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Full text of "Lisboa de hontem"

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LISBOA  DE  HONTEM 


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LISBOA 
OFFICIHA  TYPOGRAPHICA  OE  J.  A.  DE  BIATTOS 

30,  Rua  Nova  do  Almada,  36 


[llflEZI  llllílllll  If  y;S-Mt7 

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ESCRIPTORIO 
24,  Rua  Nova  do  Almada,  2, 


i^QSQâCÃd<£^ 


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DP 

\AxP 
li-' 


Do  mesmo  modo  que  o  prestigio  das 
velhas  dynastias  se  altera  com  as  res- 
taurações incompletas,  assim  as  cidades 
perdem  do  seu  caracter  com  os  concer- 
tos e  arranjos  a  que  as  sujeitam.  Por 
pouco  que  recordemos  atrasados,  ah! 
que  de  vohas  não  tem  levado  tudo  isto 
de  ha  trinta  annos  para  cá! 

Aqui  vivia,  mais  sinceramente,  aber- 
tamente, a  mãe 

Pacliorra 

Imaginem  luzitana,  imagem  clássica 
por  excellencia,  de  tão  incontestável  for- 


6  LISBOA  DE  HOMEM 

mosura  e  grandeza  para  nós  que  não 
tem  podido  envelhecer  de  todo.  e  ainda 
parece  ás  vezes  conservar  a  mocidade 
das  coisas  immortaes,  de  tal  maneira  se 
prende  aos  nossos  sentimentos,  indepen- 
dente dos  tempos,  dos  meios,  da  civili- 
sação. 

De  tempos  a  tempos,  pelas  cartas  do 
Braz  Tizana,  escriptas  no  Porto  por 
José  de  Sousa  Bandeira  sobre  informa- 
ções que  d'aqui  lhe  mandavam,  primeiro 
publicadas  no  Periódico  dos  Pobres  e 
depois  no  jornal  que  tomou  por  titulo  o 
pseudónimo  do  famoso  folhetinista  da 
cidade  eterna,  constava  que  a  camará 
municipal,  depois  de  uQia  sessão  re- 
nhida, ia  dar  mais  dois  candieiros  á 
capital. 

O  correspondente  porque  ainda  não 


LISBOA  DE  HONTEM  7 

estivessem  em  uso  os  chavões  jornalís- 
ticos de: 

«  Parabéns  á  illustre  camará.  .  . 

« Registremos  este  acto  do  festejado 
vereador.  . . 

Limitavam-se  a  fazer  a  diligencia  de 
que  o  leitor  se  compenetrasse  bem  de 
que,  para  o  fim  do  anno,  com  o  estabe- 
lecer a  arithmetica  que  tinhamos  mais 
dez  candieiros,  era  o  mesmo  que  dizer 
que  estávamos  dez  vezes  mais  esclare- 
cidos do  que  no  anno  antecedente. 

Assim  íamos  constantemente  creando 
novas  luzes,  o  que  não  impedia  que,  no 
centro  mesmo  da  cidade,  qualquer  das 
ruas  de  maior  transito  tivesse  apenas  no 
espaço  de  cem  metros  um  candieirito,  que 
servia  optimamente  para  fazer  sobresair 
o  horror  dos  sítios  menos  favorecidos. 


8  LISBOA  DE  HOMEM 

Principiava  então  a  moda,  que  ainda 
dura,  de  não  se  passar  dia  sem  que  os 
jorna  es  recebam  certo  numero  de  cartas 
em  que  diversos  leitores  assiduos  lhes 
revelam  acliar-se  a  lua  tal  n*um  estado 
deplorável,  nunca  ser  varrida  a  outra, 
esla  precisar  calcada,  e  aquella  estar 
perigosissima.  Enchiam  columnas  os  jor- 
naes  com  esta  escripta  gratuita,  aprovei- 
tando com  avidez  esse  benéfico  maná. 
O  presidente  de  uma  camará,  ao  entrar 
no  exercicio  d"aquellas  funcções  entre 
graves  e  recreativas,  deu  ordem  para 
que  se  tomasse  nota  todos  os  dias  nos 
diversos  jornaes  da  capital,  de  tudo  que 
tivesse  relação  com  o  municipio  e  com 
os  serviços  vários  que  estivessem  de- 
baixo de  sua  gerência.  No  fim  da  semana, 
quando  o  digno  presidente  viu  desfilar 


USBOA  DE  HONTEM  9 

na  sua  presença,  marginadas  a  lápis  en- 
carnado pelos  seus  empregados,  as  dif- 
ferentes  reclamações,  teve  occasião  de 
verificar  que  a  opinião  da  imprensa  é 
sempre  respeitável;  erespeiiou-a  aponto 
de  não  pensar  mais  em  a  consultar,  para 
evitar  que  os  agentes  do  município  per- 
dessem o  seu  tempo:  —  toda  a  cidade 
precisava  concerto!  .  .  . 

Um  pobre  homem  que  se  perdesse  de 
noite  por  essas  ruas  barrancosas,  ia  aos 
tombos  de  abysmo  em  abysmo,  escor- 
regando no  cascalho,  esbarrando  nos 
frades  de  pedra,  caindo  de  ventas  nos 
montes  de  caliça. 

De  meia  em  meia  hora  encontrava-se 
um  candieiro,  de  luz  indecisa  e  frouxa;  só 
o  que  chegasse  para  uma  pessoa  conhe- 
cer que  se  havia  enganado  no  caminho. 


10  LISBOA  DE  HONTEM 

A  ladroeira  hoje  em  Lisboa  está  sendo 
audaz.  E  um  progresso  que  eu  noto  com 
estranheza,  porque,  proveniente  de  ser- 
mos um  paiz  pequeno,  tudo  entre  nós 
vae  de  vagar  menos  isso,  diga-se  a  ver- 
dade, menos  isso;  e  folgo  de  poder  dar 
desde  já  este  testemunho  de  imparciaU- 
dade. 

Já  d'antes  tinhamos  bastantes  ladrões, 
mas  eram  verdadeiramente  o  que  se  cha- 
ma em  linguagem  jornalística  «ladroeira 
frequente,  porem  pouco  importante». 
Ladrões  timidos.  neophitos  inexperien- 
tes, discipulos  de  um  professor  que  não 
podia  mecher-se,  o  famoso  coxo,  que 
estacionava  no  Terreiro  do  Paço,  á  porta 
da  Aula  do  Commercio. 

Toda  a  gente  conhecia  esse  coxo ;  to- 
pos os  homens  que  teem  hoje  quarenta 


LISBOA  DE  HONTEM  11 

e  tantos  annos  se  lembram  d'elle;  ladra- 
vaz  reformado,  caixa  dos  furtos.  Man- 
dava os  seus  delegados  para  difíerentes 
juntas  de  consideração,  para  o  jardim 
da  Alfandega,  para  o  Tivoli,  para  os 
iheatros  da  Rua  dos  Condes,  de  S.  Car- 
los, do  Salitre,  para  a  porta  das  egre- 
jas,  e  arrecadava  depois  paternalmente 
o  fructo  d'essas  diligencias,  de  umas  ve- 
zes recompensando  logo  os  gatunos,  de 
outras  encarregando-se  laboriosamente 
da  venda  dos  objectos  e  dividindo  o  pro- 
ducto  com  equidade. 

Fazia  bem  a  muita  gente,  e  sabia  di- 
rigir todos  com  a  prudência  de  seus  con- 
selhos. Os  gatunos  de  hoje  vão  para  o 
governo  civil,  e,  não  contentes  de  fugi- 
rem de  lá  meia  hora  depois,  levam  dos 
quartos  da  policia  alguma  roupa  que  por 


12  LISBOA  DE  HONTEM 

lá  apanham.  Ha  bem  pouco  que  fizeram 
islo  mais  uuia  vez.  Se  fosse  no  tempo 
d'elle.  veriam  correrem  as  coisas  de  ou- 
tro modo,  e  elle  dir-lhes-ía  conforme  seu 
animo  generoso  lh'o  dictasse: 

—  Não  convém,  filhos,  dar  a  perceber 
ao  vulgo  que  a  policia  seja  ainda  mais 
tollâ  que  prevaricada.  D'ahi  a  concluir- 
mos que  ella  é  de  todo  ridicula,  inútil 
e  despresivel;  iria  um  passo.  Saibamos 
guardar  as  conveniências! 

Pela  proximidade  cm  que  vivia  das 
aulas,  creára  amor  á  sciencia;  e  con- 
versava a  meudo  com  os  estudantes,,  que 
lhe  eram  em  geral  afieiçoados  por  seu 
modo  jovial  e  pela  liberalidade  com  que 
elle  lhe  emprestava  seu  pinto  de  vez  em 
quando.  Para  invenlar,  por  assim  dizer, 
um  freio,  que  repremisse  no  declive  das 


LISBOA  DE  HONTEM  13 

extravagâncias  as  paixões  juvenis,  accei- 
tava-lhes  os  livros  em  penhor:  mas,  para 
que  não  perdessem  a  sede  de  saber,  dei- 
xava-os  ler  á  tarde,  pelo  compendio  em 
reféns,  a  lição  immediata ;  guardava-o  em 
seguida  outra  vez,  e,  de  manhã,  quando, 
no  seu  dizer,  a  memoria  estava  mais 
fresca,  elle  próprio  encostando  o  livro 
á  muleta  e  abrindo-o  na  devida  folha 
seguia  com  a  vista  a  lição  que  o  estu- 
dante repetia,  e  lha  emendava  em  ha- 
vendo erro: 

— Vejamos  agora,  dizia  o  coxo,  apon- 
tando como  o  ponto  do  theatro,  o  que 
resulta  da  expressão  algébrica  da  tan- 
gente .  .  . 

E  o  escolar  ia  dizendo. 

Era  amigo  da  mocidade  e  sabia  auxi- 
lial-a  com  ideias  sãs: 


14  USBOA  DE  HOxMEM 

—  Quando  os  meninos  forem  depula- 
dos,  proponham  uma  lei  que  diga :  lodo 
aquelle  homem  que  pelo  correccional  fôr 
condemnado  em  mais  de  um  anno  de 
prisão  e  que  no  tempo  em  que  estiver 
preso  adquirir  algum  dos  conhecimen- 
tos que  passo  a  mencionar,  verá  dimi- 
nuida  a  pena  nas  proporções  que  vou 
dizendo :  Se  aprender  a  ler,  dar-se-lhe-ha 
baixa  n*um  mez  de  prisão;  a  escrever, 
outro  mez  do  prisão;  as  quatro  espécies, 
outro  mez  da  prisão;  guitarra,  canto  e 
geometria,  três  mezes  de  prisão .  ,  .  Et 
coetera. 

Pessoa  a  quem  nas  ruas  houvessem 
roubado  a  bolsa  ou  o  relógio,  ia  procu- 
rar o  coxo;  um  ou  outro,  por  conhecer 
menos  os  costumes,  dirigia-se  á  policia, 
o  que  não  linha  conveniente  senão  o  de 


LISBOA  DE  HONTEM  lo 

uma  pequena  demora:  porque,  iam  em 
seguida  consultar  o  coxo,  a  policia  e  elles. 

A  segurança  dos  prédios  e  garantia 
dos  moradores  eram  os  sapateiros  de 
escada. 

O  sapateiro  de  escada,  typo  essen- 
cialmente, completamente  portugiiez,  foi 
por  muitos  annos  a  providencia  dos  in- 
quilinos e  o  confidente  dos  namorados. 
O  namoro  lia  trinta  annos  tinha  attingido 
em  Lisboa  proporções  vastissimas;  o  sa- 
pateiro de  escada  não  era  um  simples 
mensageiro  de  amor,  era  o  espirito  mo- 
derador entre  a  paixão  e  a  dignidade: 
protegia  Leandro,  mas  zelava  os  direitos 
da  auctoridade,  e  a  virtude  do  lar;  in- 
cumbia-se  de  levar  e  trazer  cartas,  mas 
lia-as  primeiro,  em  parte  por  enlreteni- 
.     mento,    em   parte   por  moralidade,  e, 


i6  LISBOA  DE  HONTEM 

sendo  preciso,  dava-as  lambem  a  ler  aos 
pães.  Era  o  homem  de  confiança  da  es- 
cada. Pagava  aos  boleeiros  o  aluguel  da 
traquitana,  indo  elle  mesmo  chamar  a 
sege  á  praça  e  recebendo  d'elles  uma 
precentagem,  á  maneira  do  que  faz  a 
Sapa,  em  Cintra,  aos  cocheiros  que  pre- 
ferem a  sua  casa  a  outra;  espreitava  os 
criados  nas  compras  que  faziam,  discutia 
com  elles,  sendo  preciso,  o  excesso  dos 
roes,  dava  informações  dos  inquilinos, 
ajuisando  dos  seus  haveres  pelo  que 
cada  um  comia  em  sua  casa;  sentava-se 
de  noite  á  porta  cantando  em  ar  de  bê- 
bedo, para  não  lhe  escapar  coisa  alguma 
do  que  se  passava  na  visinhança;  e  ac- 
ceitava  uma  de  seis,  que  é  como  se  dizia 
d'antes  seis  vinténs,  por  qualquer  epis- 
tola que  levava,  com  a  dignidade  de 


LISBOA  DE  HONTEM  17 

um  banqueiro  ao  receber  o  juro  de  uma 
transacção.  A  lembrança  d'esse  func- 
cionario  parece  recordar-nos  a  pátria 
ausente. 

Em  casa  que  não  tivesse  este  guarda 
amigo,  estava-se  sempre  em  cuidados 
de  não  deixar  aberta  a  porta  da  rua. 
Os  ladrões,  ainda  pittorescos,  entravam 
então  pela  janella.  Um  dos  homens  mais 
engraçados  d'cssa  época,  vivo  ainda  Iioje, 
o  sr.  Domingos  Ardisson,  sabendo  que 
era  esse  o  costume  d'elles,  não  se  deu 
ao  encommodo  de  fechar  a  janella  do 
seu  quarto  n'uma  noite  de  verão.  Unica- 
mente, por  precaução  de  scenario,  poz  um 
par  de  pistollas  á  cabeceira.  Pelas  três 
horas  da  noite,  o  ladrão  appareceu,  es- 
preitou, e  entrou.  Logo  que  o  viu,  agrada- 
velmente entretido,  abrir  uma  gaveta,  o 


18  LISBOA  DE  HONTEM 

sr.  Ardisson  sentou-se  na  cama,  apon- 
toií-lhe  uma  pistoUa,  e  com  serenidade: 

—  Ponha  para  ahi  o  que  traz  com- 
sigol  lhe  disse. 

O  ladrão  queria  ajoelhar. 
— Nada    de   altitudes.   Quanto  traz 
comsigo?  Gonserve-se  de  pé.  .  . 

—  Senhor.  . . 

—  Conserve-se  de  pé.  e  responda! 

—  Dezoito  tostões,  senhor! 
— Deixe-os  ver. 

—  Que  os  deixe  vêr!?  para  que? 

—  Para  os  pôr  ahi  quietinhos.  íjuer 
antes  um  tiro? 

Gesto  negativo. 

— Venham  os  dezoito  tostões! 

O  ladrão,  com  ar  mortificado  despe- 
jou o  bolso  e  ia  de  novo  saltar  pela  ja- 
nella,  quando,  por  attender  aos  preceitos 


LISBOA  DE  HOXTExM  19 

da  hospitalidade,  o  sr.  Ardisson  lhe  of- 
fereceu  um  phosphoro. 

—  Um  phosphoro?! 

• — Para  descer  a  escada! 

E  convidou-o  gentilmente  a  sair  pela 
porta,  assegurando-lhe  sob  palavra  de 
honra,  que  por  igual  preço  poderia  vol- 
tar quando  lhe  approuvesse. 

Succediam  a  cada  instante  os  casos 
mais  chistosos  promovidos  pela  larapice, 
e  fazendo  ella  má  figura,  pelo  contrario 
de  hoje,  que,  animada  pela  gloria  que 
lhe  reverte  de  rir  da  perspicácia  dos  An- 
tunes, tem  quasi  sempre  o  melhor  papel 
nas  lUiadas  que  empreende.  De  uma 
occasião,  por  exemplo,  entrou  com  uma 
chave  falsa  n'um  terceiro  andar,  ao  soc- 
corro,  um  gatuno. 

Fechou  a  poria,  visitou  os  moveis  em 


20  LISBOA  DE  HONTEM 

que  havia  chave,  explorou  os  cantos  á 
casa,  e,  nâo  achando  dinheiro  nem  coisa 
que  o  valesse,  tratou  de  se  vestir  dos 
pés  até  á  cabeça,  á  custa  d'aquelle  mo- 
rador. 

Escolheu  calça,  sobre  casaca,  coUete, 
um  chapéo  aUo,  e  umas  botas  de  poli- 
mento, que  era  até  um  calçado  de  que 
elle  sempre  gostara  e  nunca  tinha  tido. 
Depois,  foi-se  á  commoda,  que  estava 
cheia  de  roupa,  escolheu  uma  camisa 
fina,  abriu-a  e  estendeu-a  sobre  a  cama. 

Feitos  estes  preparativos,  despiu-se. 

Na  occasiâo  em  que  ia  mudar  de 
roupa,  ouviu  bulha  na  escada.  Apurou 
o  ouvido.  Os  passos  vinham  a  chegar-se. 
Pararam  á  porta .  .  . 

—  Oh !  com  a  breca !  murmurou  elle. 
Metteram  a  chave  na  fechadura.  .. 


LISBOA  DE  HONTEM  21 

E  elle,  zás,  acocorou-se  e  sumiu-se 
para  baixo  da  cama. 

Aberta  a  porta,  entrou  quem  quer 
que  era. 

O  ladrão  coitado,  não  podia  ver-lhe 
senão  os  pés  e  um  pedaço  das  pernas, 
girando,  de  um  lado  para  o  outro,  com 
pressa,  com  muita  pressa.  .  .  E  elle  tudo 
era  acachar-re,  sem  bulir,  a  tremer  do 
que  iria  sair  d'aquelle  caso. 

Nem  talvez  cinco  minutos  fossem  pas- 
sados, quando  o  recem-chegado  se  diri- 
giu para  a  porta  e  foi  pela  escada  abaixo. 

O  malfeitor  saiu  da  íocca. 

—  Apre!  disse  elle.  Safla!  Apanhei 
um  susto !  Mas.  .  . 

A  camisa  já  nâo  estava  em  cima  da 
cama!  e  o  fato,  que  havia  tirado  das  ga- 
vetas, também  tinha  desapparecido! 


22  LISBOA  DE  HONTEM 

—  Que  pena!  balbuciou  elle.  Por  um 
boccadinho ! 

Rcdusido  a  ir  outra  vez  buscar  a  sua 
própria  fatiota,  chegou-se  aos  pés  da 
cama  onde  a  deixara,  e  poderá  calcu- 
lar-se  o  pasmo  em  que  ficou  quando  a 
nao  viu. 

—  Que  é  do  fato?  dizia  elle.  Que  é 
do  fato!? 

E;  por  cumulo  de  desgraça,  as  gave- 
tas da  commoda  estavam  vasias,  e  a 
roupa  desapparecêra. 

O  individuo  que  o  ladrão  cuidara  ser 
o  domno  da  casa,  era  nem  mais  nem 
menos  do  que  outro  ladrão,  que  fizera  a 
sua  trouxa  e  se  puzera  a  andar. 

A  reflexão  é  uma  coisa  óptima,  mas 
leva  tempo,  e  emquanto  elle  eslava  a  me- 
ditar sobre  qual  seria  a  melhor  maneira 


LISBOA  DE  HONTEM  23 

de  se  tirar  dos  apuros  em  que  se  via, 
veiu  o  homem  que  morava  n'aqiiella  casa, 
e,  pela  desordem  em  que  ali  estava  tudo, 
percebeu  que  era  victima  de  um  roubo, 
como  diz  o  povo,  de  fresco,  por  isso  que 
nâo  estivera  fora  de  casa  mais  de  meia 
hora. 

Ao  entrar  ivuma  saleta;  deu  de  cara 
com  o  qiiidam  em  completo  estado  de 
nudez,  acanhado,  perpelexo. 

Sem  poder  atinar  com  com  as  expli- 
cações de  um  caso  de  tanta  maneira  ce- 
lebre, intimou-o  a  que  o  acompanhasse 
á  casa  da  guarda,  e  deu-lhe  um  cobertor 
para  se  embrulhar. 

No  patamar,  quando  já  iam  a  sair, 
disse-lhe  o  ladrão : 

—  O  meu  senhor? 

—  Que  é? 


24  LISBOA  DE  HO.MEM 

—  Onde  é  que  vamos? 
— A  estação  próxima. 

—  Para  fazer  o  que?  Para  vossa  se- 
nhoria me  deixar  preso  ? !  Isso  é  o  resul- 
tado de  não  fazer  reparo  n'uma  coisa,  e 
é  a  seguinte:  —  que  eu  é  que  fui  rou- 
bado! O  que  lucra  em  me  fazer  mal? 
Não  lucra  nada.  Nem  a  policia  poderá 
occupar-se  d'este  negocio,  porque  não 
tem  tempo! 

— Não  lem  tempo  . . .  Sim,  isso,  tam- 
bém, é  verdade! 

E  tudo  estava  dito. 

Não  ter  tempo!  —  Quereria  ler  isto, 
quereria  escrever  aquillo,  ver  esta  pes- 
soa, desempenhar  aquelle  dever,  mas  não 
tem  tempo,  não  tenho  tempo,  não  ha 
tempo ...  De  quantas  locuções  banaes, 
de  todas  as  palavras  que  o  rio  das  con- 


LISBOA  DE  HONTEM  25 

vcrsações  de  cada  dia  revolve  no  seu 
curso,  não  ha  outras  que  saiam  em  Lis- 
boa ainda  hoje  com  mais  frequência  do 
que  estas  : 

aSsío  tei'  tempo  I 

E  o  caso  é  que  o  tempo  falta,  falta 
porque  não  descemos  a  querer  aprovei- 
tal-o.  Temos  tempo, — temol-o  á  farta 
— mas  recreamo-nos  em  dar  cabo  d'elle 
como  se  tivéssemos  a  eternidade  ás  nos- 
sas ordens.  Fogem  com  a  rapidez  dos 
relâmpagos  os  dias,  os  mezes,  os  annos: 
vem  cada  passo  chegando-nos  mais  ao 
termo  da  vida,  mas  não  trememos!  O 
que  vae,  vae.  Roma  não  se  fez  n'um  dia. 
A  mandrice  é  uma  prenda,  n'um  povo 
que  sabe  conservar  como  documento  das 
descobertas  e  expedições  antigas   este 


26  LISBOA  DE  HONTEM 

resto  de  soberania,  a  que  se  chama  — 
nâo  fazer  nada.  Por  isso  olhamos  com 
desdém  para  o  gallego,  esse  bruto  vil 
que  trabalha! 

E  o  mais  é  que  de  1836  a  1850  a 
policia  em  Lisboa  não  tinha  effectiva- 
mente  tempo  senão  para  andar  na  pin- 
gada das  conspirações.  Toda  a  gente 
conspirava.  Não  se  fazia  mais  nada,  não 
se  tratava  de  outra  coisa.  As  revoluções 
succediam-se.  quasi  sem  intervallo.  Nin- 
guém se  entendia,  ninguém  já  sabia  o 
que  queria ;  febre  de  conspirar,  de  mu- 
dar, de  alterar,  de  desbancar:  capricha- 
va-se  em  que  Portugal  deixasse  de  ser 
mudo;  reinava  um  appetite  invencível  de 
revolver  tudo.  Já  não  havia  portuguezes, 
já  não  havia  liberaes,  havia  patuleas, 
setembristas,  cartistas,  cabralistas . . . 


LISBOA  DE  HONTEM  27 

Ma  dottore,  mia  parola . . . 

Chc  parola!  Não  havia  tempo!  Era 
preciso  conspirar,  fundar  sociedades  se- 
cretas, escolher  um  grâo-meslre  inicia- 
dor, fazer  discursos  incendiários,  planos 
terrificos: 

— -Põe  ahi  a  mão  na  chamma;  põe  a 
mão  na  chamma.  põe  a  mão,  faze  o  que 
te  digo:  para  te  lavares  de  toda  a  iniqui- 
dade. Põe-a  agora  n'este  papel,  e  a  outra 
mão  no  coração,  e  jura  para  ahi,  jura 
que  has  de  trabalhar  com  todas  as  tuas 
forças  para  que  se  propaguem  os  nossos 
princípios,  os  princípios  do  nosso  parti- 
do .. .  Jura  que  matas  o  Gosta  Cabral, 
se  fôr  preciso? 

— Juro. 

— Jura  três  vezes! 


28  LISBOA  DE  HOMEM 

— Juro,,  juro,  juro. 

—  Jura  que  has  de  matar  a  rainliíi, 
sendo  necessário. 

— Juro,  juro,  juro! 

— Resignas-íe  á  morte,  tu  próprio, 
só  para  que  triumphem  as  nossas  ideias 
e  possamos  abater  o  J^sé  dos  Cónegos 
e  mais  o.  .  . 

—  Resigno. 

—  E  levas  em  gosto  que  te  queimem 
o  coração,  e  que  t*o  façam  em  torresmos 
e  deitem  ao  vento  as  cinzas,  no  caso  de 
nos  atraiçoares . . . 

—  Palavra ! 

—  E  se  a  Ignm  de  nós  revelar  este  se 
gredo,  vaes-te  a  elle  e  matal-o? 

—Mato. 

Mettia  medo ! 

As  eleições  n'esse  tempo  eram  mode- 


LISBOA  DE  HONTEM  29 

nhãs.  Substiluia-se  a  vontade  tyranni- 
ca,  o  capricho  despótico,  á  liberdade 
dos  cidadãos.  Não  se  esclarecia  o  es- 
pirito que  devera  encaminhar  a  mão; 
não  se  indicava  a  escolha,  as  razões  de 
se  dever  fazel-a:  ia-se  de  pistola  aos 
peitos,  de  varapau,  de  casse-íéte  —  esta- 
vam muito  em  moda  —  fazia-se  desor- 
dens nas  egrejas,  forçavam-se  as  urnas, 
atropellava-se  tudo,  e  triumphava-se  gen- 
tilmente pela  força  e  pelo  terror.  Con- 
tava qualquer,  como  caso  corrente,  o 
syslema  engenhoso  e  galanie  que  ado- 
ptara para  a  sua  freguezia:  escondia-se 
na  egreja,  deixava  sair  toda  a  gente  e 
fecharem-se  as  portas,  ía-se  ás  urnas, 
tirava  as  listas,  e,  de  manhã,  quando  o 
sachristão  entrava,  fazia-lhe  presente  de 
uma  bofetada  que  lhe  vendasse  os  olhos, 


30  LISBOA  DE  HOMEM 

e  aproveitava  esse  ensejo  de  se  pôr  ao 
fresco. 

Nunca  mais  Lisboa,  desde  então,  ver- 
dadeiramente conspirou.  Querem  ainda, 
de  tempos  a  tempos,  figurar  isso,  mas, 
como  nos  pequenos  theatros,  não  temos 
companhia,  e  são  os  próprios  actores 
uns  relles  comparsas,  que  se  apressam 
em  enterrar  a  poça  antes  d'ella  subir 
á  scena.  Diz  então  a  gente  por  ahi  aos 
conspiradores,  quando  os  encontra: 

— Então  vocemecé  anda  conspirando? 

E  elles,  com  modéstia: 

—  Ora,  não  é  tanto  assim! 

—  Já  cá  se  sabe  Indo .  . . 

Elles  com  uma  anciedade  imporlanle: 

—  Serio!? 

Nós,  para  os  enganarmos: 

—  Foi  graça. 


LISBOA  DE  HONTEM  3l 

Elles  com  despeito: 
— Não,  o  meu  amigo  qiie  o  diz,  al- 
guma coisa  sabe .  . . 
— Não  sei! 

—  Palavra  de  honra? 
— Palavra  de  hom'a. 

—  Ah!  enlão,  eu  lhe  conio .  .  . 
E  conta-nos  a  conspiração. 

Pelas  ultimas  sarafuscas  que  houve, 
lemerosas  pelo  prologo,  como  as  velhas 
peças  do  Salitre,  estava  eu  em  casa 
quando  veiu  dizer-me  um  doestes  ami- 
gos que  andam  mais  bem  informados: 

—  Pois  tu  ainda  aqui  estás?!  Arran- 
ja-te,  vamos,  avia-te;  ha  baralho! 

—  Ha  barulho?  Porque? 

— Isso  depois!  Arranja-te!  Despacha. 

—  Aonde  é  o  barulho? 

—  Ha  de  ser  logo,  ali  pelo  Rocio . . . 


32  LISBOA  DE  HO.NTEM 

No  Martinho  é  qae  se  sabe!  Isso  sabe-se 
sempre  no  Martinho! .  .  . 

Vesli-me  á  pressa:  larguei  a  correr 
como  um  gaiato  de  caixas  de  assucar  — 
não  deixemos  cair  em  desuso  esta  locu- 
ção nacional, —  até  ao  sitio  indicado:  era 
ainda  cedo:  encontrei  tudo  socegado. 

— Não  me  deixaste  jantar,  amigo 
meu! 

— Não  tem  duvida.  Vamos  á  rua  do 
Principe,  ao  biffe. 

— Pois  sim.  Mesmo  para  fazer  horas 
é  conveniente,  e,  se  a  policia  nos  vir  es- 
tar a  comer;  não  desconfiará  de  que  eu 
esteja  ao  facto  do  que  tu  me  informas- 
te, mercê  de  andares  sempre  em  dia 
com  esjas  coisas. 

—  Calluda. 

Jantei  ao  lado  de  um  sujeito  que  se 


LISBOA  DE  HONTEM  33 

entretinha  solitariamente  com  um  bitie- 
sito  velhote:  a  modo  de  biffe  da  vés- 
pera, biffe  reaccionário;  como  que  um 
simptoma  pohtico !  .  .  .  Diacho  I  Comi  á 
pressa,  ancioso  de  ir  para  o  foco. 

— Vamos  para  o  foco? 

— Vamos. 

Conversações  animadas;  magotes  fus- 
cos; segredos  aos  ouvidos  uns  dos  ou- 
tros; alguns  apertos  de  mão.  Lobriguei 
no  Suisso  gente  a  tomar  café.  militares 
sentados  fraternalmente  em  bancos,  jo- 
gando o  xadrez  e  funíando .  .  .  Foi-me 
grato  vèr  esses  bravos,  n'uma  tal  hora, 
descansarem  pacificamente  de  sua  activa 
vigilância;  a  dois  passos  d'elles,  mais 
militares:  depois  um  grupo,  depois  ou- 
tro, e  uma  infinidade  d'elles ;  e  ahi  entrou 

um  capitão,  de  grandes  bigodes,  disse 
3 


34  LISBOA  DE  HONTEM 

adeus  a  um  e  a  outro,  foi  desarmar-se 
a  um  canto  e  bebeu  depois  genebra,  a 
uma  mesa  onde  estavam  também  dois 
furriéis.  Não  fallou  com  elles,  mas  não 
desdenhou  estar  a  seu  lado,  e  aquelle 
comportamento  democrático  teve  logo 
para  mim  uma  alta  significação  poli- 
tica. 

Veiu  um  que  é  da  policia  sentar-se  á 
mesma  mesa  em  que  estávamos,  e  não 
tirou  os  olhos  de  nós.  Eu  por  disfarce, 
disse  ao  meu  amigo: 

—  Queres  tu  jogar  o  dominu? 

Mas  o  policia  tudo  era  olhar-nos  fixa- 
mente : 

O  meu  amigo,  resolutamente,  respon- 
deu-me: 

—  Não! 

O  da  policia  disse-me: 


LISBOA  DE  HONTEM  35 

—  Se  me  acceita  para  parceiro,  aqui 
estou. 

—  Com  muito  gosto!  respondi,  eston- 
teado já  pela  ebriedade  revolucionaria. 
Joguemos ! 

Veiu  dominó. 

—  Jogamos  a  copos  de  genebra?  per- 
guntou o  da  policia. 

—  A  cognac. 

— Venha  cognac ! 

— Do  fino!  grilou  o  criado  n'um  tom, 
que  parecia  assoviar  uma  ironia  ao  sys- 
tema  que  nos  rege. 

Uns  que  estavam  á  entrada,  disseram 
entre  si  olhando  para  a  nossa  mesa: 

—  x\quelles  são  da  obra!  Lá  está  já 
a  policia  com  elles. 

Formaram-se  grupos  a  observar-nos. 
Vieram  mais  bolegins  para  a  porta. 


36  LISBOA  DE  HOMEM 

Jogámos  alguns  copinhos,  e  o  policia 
foi  quem  perdeu,  ou  antes,  quem  per- 
deu foram  os  fundos  secretos. 

Entretanto,  desde  aquella  hora,  ficá- 
mos compromettidos. 

— Vamos  ao  Martinho?  disse  eu  ao 


meu  amigo. 


— Vamos  lá!  disse  o  outro. 

E  fomos. 

Á  excepção  de  dois  rapasitos,  que 
estavam  ali  aprendendo  a  beber  sem  ter 
sede,  não  estava  lá  mais  ninguém  do  que 
nós  —  de  policia  atraz. 

—  Diga-me  cá  uma  coisa,  perguntei 
ao  moço,  aqui  nunca  vem  mais  gente? 

—  Das  oito  ás  nove,  o  poder  do  mun- 
do. Antes,  c  depois,  ninguém. 

—  E  boa!  Vamos  ao  Rocio,  sem  de- 


mora! 


USBOA  DE  HONTEM  37 

Fomos  ao  Rocio.  Lá  estavam  alguns 
passeando,  outros  como  que  a  desfiarem 
idylios;  sentados  nos  seus  banquinhos, 
de  costas  voltadas  para  o  fundador  da 
liberdade,  verdadeira  attitude  de  disfarce 
para  revolucionários,  que  luctem  contra 
a  influencia  do  governo,  entretendo  ali 
os  seus  conciliábulos  até  soar  a  hora 
gloriosa .  .  .  Como  vissemos  o  homem  da 
bilha  pedimos-lhe  um  copo  d'agua,  e 
bebêmol-a,  perdidos  na  conspiração  c  na 
noite.  Depois,  fizemos  meia  volta  á  di- 
reita e  dirigimos-nos  para  nossas  casas. 
O  pianista  das  Figuras  de  cera,  commo- 
vido  da  situação  em  que  nos  vira,  mimo- 
seou-nos  de  longe  com  o  quer  que  fosse 
do  Oífenbach  .  .  . 

—  A  coisa  estcá  feia!  dissemos  em 
casa,  ao  recolher. 


38  LISBOA  DE  HONTEM 

A  cidade,  antigamente,  auxiliava  pela 
escuridão,  a  boa  mise-en-scène  d'estas 
farças.  Agora  ha  luz  de  mais  para  tão 
pouco  assumpto.  Era  tudo  quedo,  tudo 
soturno,  e  morto.  Apenas  o  pregão  de 
algum  aguadeiro,  aqui  ou  ali,  roncando 
lugubremente: 

—  Aíi. 

As  lojas  maçónicas  trabalhavam  com 
anciã  desde  as  Ave-Marias,  em  suc- 
cessivas  iniciações,  e  as  sociedades  po- 
liticas limpavam  os  neophitos  de  toda 
a  docilidade,  obrigando-os  a  juramen- 
tos gravíssimos,  para  cpie  ajudassem  a 
dar  cabo  de  todos  os  tramas  no  mais 
breve  espaço  de  tempo.  Passava-se  po- 
rem tudo  em  sessões,  e  nunca  essas 
paixões  exaltadas  fizeram  outro  mal  que 
não  fosse  o  de  moer  a  paciência  de 


LISBOA  DE  HOMEM  :i9 

quem  ouvia  os  discursos  que  ellas  inspi- 
ravam. 

Em  se  saindo  do  Chiado,  e  da  baixa, 
mudava  logo  o  aspecto  da  população;  a 
cidade  era  outra:  ruas  velhas,  ruas  tos- 
cas, que  offereciam  mediocre  interesse 
aos  archeologos  e  pareciam  ter  sido  edi- 
ficadas em  plano  de  labyrintho  para  que 
uma  pessoa  inexperiente  com  difficul- 
dade  encontrasse  sabida .  .  .  Cidade  de 
provincia.  Sem  cerimonia.  Cordas  á  ja- 
nella  com  roupa  a  seccar.  Gallinhas  á 
porta;  rebanhos  de  rapasilos  a  brincarem 
nas  escadas,  accocorados  nos  degraus 
aos  cinco  e  aos  seis,  o  mais  velho  com 
o  mais  novo  ás  costas .  .  . 

Á  hora  de  largar  a  agulha  fallava-se 
de  janella  para  janella.  O  facto  de  ser 
visinho  authorisava  a   Iravar  conheci- 


40  LISBOA  DE  HOMEM 

mento.  Pedia-se  um  ramo  de  salsa,  um 
fio  de  azeite  ...  Ao  cair  da  noite  fecha- 
va-se  toda  a  gente  nos  differentes  an- 
dares do  prédio,  como  objectos  que  se 
arrecadassem  nas  gavetas  de  uma  com- 
moda.  Tinha-se  horror  ao  movimento. 
Ninguém  suspeitava  que  a  actividade, 
a  distracção,  pudessem  agradar  ás  cre- 
aturas,  e  que  até  a  rasão  se  recu- 
se, por  algum  modo,  a  admittir  que 
haja  felicidade  immovel  e  sempre  igual, 
por  mais  completa  que  seja,  —  doutrina 
que  não  deve  parecer  opposta  ao  senti- 
mento religioso  que  governa  as  crea- 
turas,  porque  a  contradição  é  só  na 
apparencia,  visto  não  estar  ainda  deter- 
minado que  júbilos  nos  sejam  promet- 
tidos  para  depois  de  morrermos,  nem 
haver  motivo  para  que  se  nos  affigurem 


LISBOA  DE  HOMEM  4i 

com  a  perspectiva  de  um  descanço  esta- 
gnado ! 

E  entretanto,  coisa  natavel,  foi  por 
entre  a  monotonia  d'essa  vida  velha,  que 
surgiram  os  homens  mais  importantes 
dos  uhimos  tempos  de  Portugal!  E  isso 
na  politica,  nas  lettras,  nas  artes,  na 
sciencia,  na  elegância  até! 

A  geração  nova  olhou  para  elles  pas- 
mada; e  achou-os  excessivos,  achou-os 
exaltados . . .  Quando  um  d'elles  ouviu 
isto,  sorriu-se,  e,  em  plena  sessão  do 
parlamento,  atirou-lhes  em  resposta  um 
improviso,  que  bastaria  para  ganhar  fama 
de  eloquente  a  um  orador:  depois  de 
lhes  ensinar  o  que  eram  os  exaltados, 
quiz  mostrar-lhes  também  no  que  vinha 
a  dar  não  o  ser . . . 

— Não  exaltado,  disse  elle,  foi  o  se- 


42  LISBOA  DE  HONTEM 

nado  de  Tibério,  quando  subscrevia  os 
caprichos  d'aquelle  furioso :  não  exaltado 
era  o  senado  de  Diocleciano,  quando  as- 
sentado nas  sedes  curues  discutia  em 
que  caçarola  devia  coser-seo  redovalho: 
não  exaltados  foram  os  cônsules  de  Ca- 
lígula, quando  aceitaram  para  seu  com- 
panheiro o  cavallo  Incitatus :  não  exaltada 
era  a  dieta  de  Stockolmo,  quando  estava 
para  ser  presidida  pela  botta  suja  de 
Carlos  XII :  não  exaltada  é  a  lama  das 
ruas,  a  vasa  das  marés,  o  lodo  das  praias, 
e  a  poeira  das  praças! 

Chamava-se  António  da  Cunha  Sotto 
Maior,  o  que  assim  deffendeu  os  exal- 
tados. Que  original,  esse  António  da 
Cunha!  Vejamol-o  um  pouco,  fora  das 
exaltações  da  vida  publica:  mais  curioso 
parecerá;  porque,  desde  que  o  mundo  é 


LISBOA  DE  HONTEM  43 

mundo,  e  em  toda  a  parte,  sempre  os 
grandes  homens  procuraram  distrair-se 
da  gloria  que  os  acompanha,  e  não  ha 
mais  curioso  exame  do  que  o  de  obser- 
var os  homens  de  talento  na  occasião  em 
que  descançam.  Conta-se  que  estando 
em  Londres  o  anão  Tom  Pouce,  que  alU 
chegara  havia  apenas  vinte  e  quatro  ho- 
ras, e  fora  morar  para  um  hotel  que  ha 
em  Leicester  Square  Leicester  Place,  o 
hotel  da  viuva  Granara,  tambcm  chamado 
hotel  da  Europa,  estava  alli  um  estran- 
geiro —  sempre  é  bom  que  se  diga  já  que 
não  era  portuguez,  conforme,  pelo  me- 
nos, ao  que  me  aííiançaram  quando  lá 
mesmo  em  1862  me  contou  esta  historia 
um  dos  creados  do  hotel,  que  era  italiano 
e  me  tratava  nas  palminhas  desde  um 
dia  em  que  viu  o  tenor  Tamberhk,  que 


4i  LISBOA  DE  HONTEM 

era  o  seu  ídolo,  dar-me  a  honra  de  ir 
visitar-me;  —  estava  alli  um  estrangeiro 
e,  á  mesa,  o  estrangeiro  disse  a  quem  o 
quiz  ouvir: 

—  Tenho  pena  que  o  Tom  Pouce  es- 
teja por  um  preço  fabuloso ;  dois  guinéus 
para  o  ver,  acho  pesado!  Em  estando 
mais  barato,  heide  ir  vel-o  eu  também! 

— Anda  por  ahi  n"uma  carruagem,  é 
espreital-o! 

— Impossivel.  A  carruagem  é  tão  pe- 
quena e  elle  vae  tão  escondidinho  dentro 
(i'ella,  que  não  ha  pescal-o!  Esperarei 
que  baixe  de  preço . . . 

— Porque  preço  lhe  faz  conta? 

— Para  ver  um  anão  tão  possante  e 
proporcionado  como  dizem  que  elle  é, 
acho  bem  empregada  meia  libra:  mais, 
nem  um  pejiny . . . 


LISBOA  DE  HOMEM  4o 

— Pode  vel-0  de  graça,  se  quizer! 
— De  graça!? 
— De  graça. 

—  D'essa  maneira  ainda  me  parece- 
ria mais  curioso.  Como  hade  ser? 

—  Elle  está  no  primeiro  andar . . . 

—  Está,  sim. 

—  O  meu  amigo  está  no  segundo . . . 
— No  segundo  é  que  eu  moro,  no 

quarto  78. 

—  O  quarto  d'elle  é  o  16:  o  meu 
amigo  de  manhã  desce  do  seu  quarto 
para  ir  tomar  um  banho:  mette-se  pelo 
corredor  onde  avister  o  numero  do  quarto: 
elle  ás  sete  horas  está  sempre  a  pé,  ba- 
ta-lhe  á  porta. 

— Bato-lhe  á  porta . , . 
— Elle  cuida  que  é  o  creado,  e  abre: 
o  meu  amigo  olha  para  elle,  vê-o  bem, 


46  LISBOA  DE  HOMEM 

pedc-lhe  desculpa  de  se  haver  enganado 
e  ter  batido  na  porta  16  em  vez  da  por- 
ta... 

—  78,  que  é  a  minha! 

— Isso  mesmo;  em  vez  da  porta  78, 
que  é  a  sua,  no  segundo  andar;  íacil 
equivoco!  Pedidas  as  desculpas,  viu  o 
Tom  Pouce,  apenas  chegado  a  Londres, 
Tom  Pouce  fresco,  e  de  graça ! . . . 

—  Já  amanhã  vou  fazer  essa!  Quarto 
16? 

— Quarto  16. 

Na  manhã  immediata  o  amável  espe- 
culador levantou-se  ás  seis  horas  e  meia; 
vestiu-se;  desceu  ao  primeiro  andar  e 
bateu  á  porta  do  quarto  16. 

— Quem  está  ahi  ?  perguntou  de  den- 
tro uma  voz  grossa  e  formidanda. 

— Faz  favor  de  abrir. 


LISBOA  DE  HOMEM  47 

x\briu-sc  a  porta  e  appareceu  um  ho- 
memzarrão  immeiíso  e  tremebundo,  o 
famoso  Lablache,  cantor,  o  ligarão  mais 
alto  e  mais  gordo  que  a  Inglaterra  tem 
contemplado. 

O  estrangeiro,  sem  se  lembrar  que  por 
maganice  haviam  cassoado  com  elle  in- 
dicando-lhe  o  quarto  doeste  gigante  em 
vez  do  quarto  do  anão,  balbuciou  timi- 
damente : 

—  Hade  desculpar,  senhor. . . 

—  O  que? 

—  Creio  que  me  enganei . . . 

—  Ah\ 

—  Procurava  . . . 

—  Quem? 

— O  sr.  Tom  Pouce? 

—  O  anãosinho  Tom  Pouce  . . . 

—  Sim,  senhor. . . 


48  LISBOA  DE  HONTEM 

—  Sou  eu. 

—  É  O  senhor!?! 

—  Sou  eu. 

—  O  sr.  é  que  é  o  sr.  Tom  Pouce!  A 
mim  tinham-me  dito  que  elle  era  tão  pe- 
quenino, tão  pequenino . . . 

— Sim,  mas,  quando  estou  só,  ponho- 
me  á  vontade!... 

Assim  acontece  de  algum  modo  aos  ho- 
mens de  talento.  Surpreendel-os  quando 
elles  estiverem  á  vontade,  é  vero  que  ha 
mais  differente  de  elles  próprios ;  não  é 
só  pelo  que  respeita  a  maneiras,  a  excen- 
tricidades, a  celebreiras,  como  as  que  se 
citam  do  marquez  de  Pomnal  gostar  de 
exercicios  fatigantes  e  ter  havido  quem 
o  visse  sahar  mesas  e  cadeiras,  o  Bocage 
comer  papel,  Rebello  da  Silva  comer  as 
unhas  a  deixar  o  sabugo  em  sangue.  Ca- 


LISBOA  DE  H  ONTEM  49 

millo  Castello  Branco  fazer  sociedade  com 
um  gato  como  dois  amigos  para  a  vida 
e  para  a  morte :  ha  muito  da  naturesa 
de  creança  em  todo  o  homem  de  talento; 
isso  é  sabido,  mas  o  que  é  para  ver^  é 
quanto  mesmo  aquelles  que  não  são  ex- 
cêntricos differem  na  vida  intima  e  em 
tudo  que  verdadeiramente  revehi  o  ho- 
mem, do  conceito  que  o  mundo  quer 
sempre  formar  d'elles  e  da  apparencia 
que  elles  mesmo  se  dão. 

António  da  (Ainha  Sotto  Maior,  que 
é  hoje  ministro  de  Portugal  em  Stockol- 
mo,  foi  aqui  um  taful  d'estrondo,  um 
elegante  legendário,  um  janota  da  raça 
dos  Alcibiades.  Parece  que  ainda  hoje 
por  lá  conserva  grandes  restos  do  antigo 
dandysmo.  e  que  não  abdicou  ainda  das 
exagerações  que  o  caracterisavam.  Em 


SO  LISBOA  DE  HOMEM 

1871  OU  1872  sendo  adJido  da  legação 
portugaeza  em  Dinamarca  um  dos  raros 
elegantes  portuguezes,  novos,  que  tem 
dado  que  fallar  de  si  no  estrangeiro  pelo 
luxo  de  vestuário,  trens,  despesas  grossas 
e,  principalmente,  pelo  amor  á  excentri- 
cidade, o  sr.  Jeronymo  Condeixa,  teve 
de  ver  com  smpresa  que,  apezar  da  sua 
juventude  e  da  ílôr  de  mocidade  que  de- 
veria dar-lhe  sobre  o  vellio  ministro  uma 
superioridade  que  não  seria  para  estra- 
nhar, attenta  a  edade  d*aquelle  principe 
da  e\egàuá3.,pnncepselegantiarnm,  Sto- 
ckolmo  lhe  chamava,  como  para  lhe  fa- 
zer sentir  que  elle  ia  apenas  no  caminho 
alcibidiaco  que  o  outro  já  conhecia  mais, 
o  Sotto  Memi\  Mr.  Sotto  Mineur,  para 
lhe  marcar  bem  a  patente  inferior  em 
proporção  para  com  Sotto  Maior. 


LISBOA  DE  HOxNTEM  51 

O  meu  conliecimento  com  António  da 
Cunha  foi  o  caso  maisgallante,  direi  me- 
lhor,—  o  menos  gallanle,  mas  o  mais 
excêntrico  que  tem  havido  n'este  mundo. 
Eu  tinha  dezoito  annos  n'esse  tempo. 
Um  cavalheiro  cujo  nome  não  vem  para 
o  caso,  havia-me  convidado  a  ir  ao  baile 
de  S.  Carlos,  no  Carnaval;  elle  tinha  um 
camarote  que  uma  velha  do  seu  conhe- 
cimento havia  oílerecido  a  uma  pessoa 
que  lhe  era  querida,  e  a  quem  elle  acom- 
panhava. António  da  Cunha  Sotto  Maior 
fazia  a  corte  a  essa  pessoa,  corte  que  o 
próprio  cavalheiro  nada  tinha  que  estra- 
nhar, porque  parecia  limitar-se  a  olhal-a 
com  attençâo,  cortejando-a  com  a  delica- 
desa  de  um  gentleman  e  o  respeito  affe- 
ctuoso  de  um  admirador.  Entretanto  os 
zuns  zuns  da  vida,  a  diligencia  que  a 


o2  LISBOA  DE  HONTEM 

inveja,  a  ruindade,  a  cobardia  fazem  sem- 
pre de  prejudicar  alguém,  levara  porven- 
tura ao  seu  distrabido  ouvido,  por  mais 
de  uma  vez,  como  que  nas  azas  de 
uma  intenção  maliciosa,  o  nome  de  An- 
tónio da  Cunba. 

Chegáramos  a  S.  Carlos,  o  tbeatro 
estava  cbeio  de  mascaras  e  de  curiosos, 
rompemos  pelo  sallão,  trepámos  a  larga 
escadaria,  e  eis-nos  n'um  camarote  de 
segunda  ordem.  Por  baixo  zumbia  a  fal- 
lacia  das  mascaras,  e  a  bulha  da  orches- 
tra:  n'esse  tempo  não  se  dava  opera  em 
S.  Carlos  na  noute  de  baile.  O  calor  era 
immenso,  e,  de  mais  a  mais,  o  camarote 
ficava  por  tal  forma  fronteiro  ao  lustre, 
que  a  vista  pcrlurbava-se.  O  cavalheiro 
disse: 

—  Que  calor!  e  que  camarote! 


LISBOA  DE  HOMEM  53 

A  pessoa  querida  não  se  queixou. 

—  Vamos  lá  abaixo!  disse  elle  para 
mim. 

FoQios  lá  abaixo. 

— O  Júlio,  você  visto  ser  traductor  do 
Gymnasio,  deve  por  força  conhecer  o 
Maia  ? 

—  Qual  Maia? 

—  O  Maia  camarotciro  de  S.  Carlos, 
que,  quando  não  está  mettidonasua  res- 
pectiva tócca  de  camaroteiro,  está  sem- 
pre no  Gymnasio . . . 

—  Conheço,  sim;  o  Maia  alto,  que  tem 
o  mais  bonito  burro  das  duas  Castellas. 

— Isso;  você  falia- lhe? 
— Fallo,  fallo-lhe  todos  os  dias. 
— Magnifico;  vamos  nós  ver  se  elle 
nos  troca  o  camarote  . . . 

—  Pois  vamos. 


m  LISBOA  DE  HONTEM 

O  Alaia  camaroteiro  estava  no  exerci- 
cio  das  suas  funcções,  entregando  cha- 
ves, tomando  nota,  recebendo  dinheiro. 
E  o  mesmo  Maia  hoje  dono  da  casa  de 
pasto  do  Campo  Grande,  que  faz  esquina 
á  estrada  que  segue  para  o  Lumiar. 

—  O  sr.  Maia,  disse-lhe  eu,  seria  pos- 
sível trocar  por  outro  o  camarote  numero 
tantos? 

—  Trocar  outro  por  esse? 
— Vem  a  dar  na  mesma. 

—  Com  a  diflerença  de  que  o  sr.  Ma- 
chado engana-se  no  numero,  esse  cama- 
rote que  me  diz  parece-me  que  é  do . . . 
Veja  ahi  na  lista,  faça  favor,  que  eu  não 
posso  agora  interromper  o  que  estou  fa- 
zendo . . . 

E,  continuando  a  contar  dinheiro,  in- 
dicou-me  a  lista. 


LISBOA  DE  HONTEM  55 

Olhei :  adeante  do  numero  do  cama- 
rote, lia-se — António  da  Cunha  Sotto 
Maior. 

Olá! 

Felizmente  o  cavalheiro  de  quem  eu 
era  convidado  entretinha-se  n'essa  occa- 
sião  a  fallar  não  sei  com  quem. 

—  Não  ha  camarote,  disse-lhe  eu.  Se 
as  luzes  do  lustre  o  encommodam.  o  me- 
lhor é  ir-se  embora. 

—  E  o  que  eu  vou  fazer,  disse  elle. 
Isto  não  tem  graça,  de  camarote ;  eu  vim 
cá  porque  fulana  —  o  nome  da  velha  — 
tinha  esse  camarote  e  não  querendo  vir 
ao  theatro  por  estar  constipada  mandou-o 
lá  para  casa.  Então  adeus,  Machadinho, 
e  obrigado  . . . 

Não  me  atrevi  a  dizer-lhe : 
-;-Não  ha  de  quê. 


56  LISBOA  DE  HONTEM 

Tanto  havia  de  quê,  que  o  próprio 
António  da  Cunka  vindo  a  saber,  não 
sei  como,  que  eu  havia  evitado  uma  in- 
discrição que  poderia  ser  fatal,  disse  a 
Lopes  de  Mendonça,  com  quem  eu  me 
dava  muito,  que  me  apresentasse  e  tive- 
mos depois  excellentes  relações. 

O  mundo  exterior  era  tudo  para  Sotto 
Maior.  Pela  pratica  da  vida,  e  pelo  es 
tudo,  eíiegára  a  estimar  acima  de  tudo, 
o  trabalho,  o  bom  senso,  a  razão,  a  fa- 
mília, todas  as  cousas  úteis  e  salutares, 
—  mas  nunca  gostou,  creio  eu,  senão 
das  outras,  das  que  não  são  tão  salutares 
nem  tão  úteis,  porém  são  mais  brilhan- 
tes. Gomquanto  educado  grandemente, 
e  luxuosamente,  comquanto  habituado 
desde  pequeno  a  quanto  ha  mais  caro, 
mais  luzido,  mais  rico,  e  mais  elegc^nte, 


LISBOA  DE  HONTEM  S7 

havia  n'elle  urna  tendência  que  eu  nunca 
soube  explicar  para  vaidades  ostentosas. 
Já  no  seu  vestuário  elle  era,  ás  vezes, 
um  elegante  suspeitoso:  de  gustibus  não 
est  disputandiim,  mas  sempre  ha  o  di- 
reito, senão  de  questionar,  pelo  menos 
de  observar :  a  abundância  e  variedade  de 
cores  com  que  elle  matisava  o  seu  ves- 
tuário ;  o  prazer  que  elle  tinha  em  an- 
nunciar  o  fausto  que  o  distinguia,  e  o 
cuidado  permanente  de  pôr  bem  em  evi- 
dencia as  raridades  da  sua  guarda-roupa, 
tinham  de  vez  em  quando  seu  que  de 
ostentoso,  e  pode  e  deve  dizer-se  isto  com 
tanto  mais  desafogo  que,  todos  sabem 
que  era  um  original.  Resgatava  porém, 
isso  tudo,  e  fazia-o  perdoar  pela  moci- 
dade de  um  espirito  gracioso  e  pelo  vigor 
de  uma  argumentação  sempre  prompta 


58  LISBOA  DE  HONTEM 

e  hábil.  Dominava  pela  palavra,  não  só 
nas  camarás,  mas  pela  rua,  nas  casas 
no  theatro.  As  pala\Tas  teem  importân- 
cia em  toda  a  parte,  mas  principalmente 
n'este  povo  impressionavel  e  leviano,  que 
tantas  vezes  até  em  coisas  serias  para 
negocio  se  contenta  com  palavras  e  se  dá 
por  bem  pago.  Com  palavras  se  emba- 
lam os  lisboetas,  e  se  caçoa  com  elles ; 
é  fácil  exploral-os  escolhcndo-as  bonitas 
€  brilhantes;  assustal-os  evocando  ter- 
mos, que  são  como  phantasmas: 

Decimas. 

Reacção. 

Deficit. 

Repubhca. 

Bancarrota. 

Ibéria. 

Direitos. 


LISBOA  DE  HONTEM  59 

Liberdade. 

Patriotismo. 

E  outros  roncos  de  parolagem ! 

Depois  de  haver  assustado  o  parla- 
mento, sem  se  lhe  importar  atirava  certo 
com  tanto  que  atirasse  forte  e  que  fe- 
risse fogo,  cortou  as  azas  do  anjo  e  não 
quiz  saber  se  a  humanidade  é  tâo  feia 
como  a  pintam,  tratou  antes  de  lhe  met- 
ter  medo  para  a  deter  em  seus  Ímpetos 
e  de  exageral-a  para  a  corrigir:  isso  fez 
nas  cartas  de  Gracco  a  Tullia,  e  em 
difterentes  escriptos,  nomeadamente  no 
Fr.  Paulo  ou  doze  mistérios,  de  que 
apenas  escreveu  os  primeiros,  talvez  por 
ver  que  a  baixesa  é  campo  vasto,  e  que 
tanto  faz  na  corte,  como  nos  cantos  das 
ruas,  nas  assembléas  brilhantes  ou  nos 
coiós  escuros,  as  plantas  luxuriantes  do 


60  LISBOA  DE  HOMEM 

vicio,  dahypocresia.  da  avidez,  da  lisonja, 
da  contradicção,  da  mentira,  da  tolice  na 
ambição  e  da  chatesa  na  vontade,  ger- 
minam por  ahi  em  tal  abundância  e  em 
tal  fartura,  que  doze  mistérios  era  uma 
bagatela  para  tão  momentoso  e  tão  ren- 
doso assumpto! 

Foi  essa  a  hora  em  que  a  sociedade,  o 
que  se  chama  sociedade  —  isto  é,  a  mais 
pequenina  porção  d'ella,  isso  a  que  cha- 
mam hoje  hygh-life,  pareceu  enfadal-o: 
desdenhou  o  grande  aparato  da  aristo- 
cracia, aparato  que  principiava  a  achar-se 
em  mau  estado  como  os  adereces  das 
magicas  cançadas  ou  as  estropiadas  vis- 
tas do  theatro  de  S.  Carlos,  de  que  a  gente 
não  pode  deixar  de  rir  quando  a  rubrica 
marca  no  folheto  da  opera — salão  ex- 
pkndido  c  magnifico . . .  Borbuleteou,  em 


LISBOA  DE  HONTEM  61 

folhetins  do  Estandarte,  divagando  a  res- 
peito de  bailes,  de  mulheres,  de  amores, 
fazendo  o  retrato  e  a  critica  de  uma  ou 
outra,  brincando,  devaneiando,  sorrindo, 
e,  che  lo  sá? — vingando.  Tinham  por 
titulo  esses  folhetins.  Esta,  essa,  aquella, 
e  aqueFoiítra  e  eram  de  um  fulgor  de 
imaginação  que  fazia  com  que  aqueFou- 
tra  tivesse  ciúmes  d'aquella,  d'essa,  e 
d'esta. 

As  suas  maiores  excentricidades  fo- 
ram exactamente  o  segredo  da  nomeada 
que  elle  alcançou.  De  uma  occasião  es- 
tava jogando  o  wist:  caiu  um  pinto  a 
um  dos  parceiros,  homem  extremamente 
rico :  o  sujeito  tirou  o  candieiro  de  ci- 
ma da  mesa,  e  poz-se  a  procurar  o  seu 
pinto. 

—  Que  faz,  meucharo  '?  perguntou-lhe 


62  LISBOA  DE  HONTEM 

António  da  Cunha.  Quer  deixar-nos  ás 
escuras?! 

— Gahiu-mc  um  pinto!  respondeu  o 
outro. 

— Ah!  E  escusado  tirar-nos  a  luz; 
eu  o  alumio. 

E  accendendo  uma  nota  de  quatro 
moedas  fez  com  ella  um  archotinho  para 
o  ajudar  a  procurar  o  pinto . . . 

— Veja  se  o  acha!  disse. 

N'um  bello  dia,  para  não  augmentar 
a  conta  no  Keil,  entendeu  que  seria  bom 
regular  a  sua  vida,  e  fazer  aos  credores 
uma  pequena  amabihdade — pagar-lhes ; 
isso  fez-se  e  foi-se  embora  para  Dina- 
marca como  nosso  ministro:  pagar-lhes  e 
ficar,  seria  amabilidade  grande  de  mais, 
— seria  fazer  conta  nova. 

Era  homem  de  bons  dotes,  de  um  gosto 


LISBOA  DE  HONTEM  63 

fino  para  algumas  coisas,  e  sabendo  ap- 
plicar  as  suas  raras  faculdades  a  concep- 
ções que  apresentavam  sempre  um  ca- 
racter de  orignalidade.  Tinha  muitas  vezes 
a  maneira  do  cavalheirismo  antigo  e  he- 
róico. Não  deve  esquecer  o  seu  nome : 
como  homem  de  talento  não  lhe  ficou  que 
desejar,  brilhou  no  parlamento  pela  viva- 
cidade, explendor,  e  ousadia  dos  seus 
discursos,  brilhou  na  moda  como  o  pri- 
meiro janota  do  seu  tempo, — no  Passeio 
publico  o  vi  eu  de  uma  vez  com  uma  capa 
de  casemira  branca  — ,  brilhou  na  im- 
prensa como  o  único  folhetinista  que  pôde 
conseguir  esse  titulo  no  tempo  de  Lopes 
de  Mendonça,  e  foi  ainda  brilhar  na  di- 
plomacia, mercê  do  alcance  das  suas  fa- 
culdades e  dos  recursos  da  sua  feição 
elegante.  Se  a  gloria  é  alguma  coisa. 


6i  LISBOA  DE  HONTEM 

podem  os  mais  illustres  do  nosso  tempo 
invejar-lhe  a  sorte.  Por  muitos  annos, 
quando  elle  estava  ainda  em  Lisboa,  se 
ouviu  dizer  de  vez  em  quando : 

—  O  António  da  Cunha  é  velho,  ulio 
nos  iUudâmos.  Já  no  anno  de .  .  . 

O  seu  elegante  bigode  branco  conti- 
nuava a  ser  tão  moço  como  os  rapases 
d'esse  tempo,  bem  mais  moço  que  os  ra- 
pases d'agora.  Esse  bigode  legendário 
era,  como  por  graciosa  malicia,  mais  alve- 
jante que  nenhum  outro,  mercê  de  um 
dos  seus  segredos  de  garridice :  lavava-o 
todos  os  dias  com  sumo  de  limão,  para 
o  tornar  de  uma  alvura  nitida  e  magni- 
fica. 

Davam  os  antigos  uma  foice  ao  tempo 
e  estavam  longe  por  certo  de  cuidar,  ape- 
sar da  allegoria,  quanto  esse  ceifeiro  cruel 


I 


LISBOA  DE  HONTEM  65 

havia  de  devastar  a  Lisboa  de  hontem, 
fazendo  desapparecer  em  poucos  annos, 
e  como  que  de  repente,  quantos  brilha- 
ram n'ella  na  única  quadra  elegante  que 
ella  teve .  .  . 

Uma  foice,  não! 

Uma  foice  não  poderia  com  tanto.  Me- 
lhor graça  teve  Ovidio,  em  dar  ao  velho 
dentes  e  um  appetite  enorme.  Tempus 
edax  rerum.  Na  monotonia  portugueza, 
no  delirio  da  vida  de  Paris,  nas  brumas 
do  norte,  nos  frios  da  Rússia,  António 
da  Cunha  Sotto  Maior  tem  conseguido 
até  hoje  rir-se  dos  annos !  .  .  . 

Falla-se  agora  ^puito  em  typos:  — 
Que  typo! — É  um  typo! — Tu  és  typo! 
—  Não  se  fallava  d'isso  então,  e  era  en- 
tão que  elles  existiam.  De  mais  a  mais 
n'essa  quadra  havia,  por  assim  dizer, 


66  LISBOA  DE  HOMEM 

em  Lisboa,  uma  aula  de  alegria :  eram 
as  peças  do  Gymnasio.  O  francez  Emile 
Doux  ensaiava  n'esse  theatrirho  as  co- 
medias mais  engraçadas  do  ^epertorio 
de  França,  que  parecia  inexgotavel  de 
ratices  e  jovialidades,  a  Porta  da  ma, 
o  Morgado  da  Ventosa,  as  Duas  Ben- 
gallas,  o  Ensaio  da  Norma,  o  Doutor 
Gramma,  e  as  galantes  composições  de 
Scribe,  Beijo  ao  portador,  A  recolhida, 
o  Coronel,  sem  fallarmos  na  farça  im- 
mortaldo  Taborda,  a  Velhice  Namorada, 
em  que  este  copiara,  um  celebre  fiel  de 
feitos,  chamado  Paixão,  que  era  muito 
conhecido  nâo  só  nos  cartórios,  mas  em 
todas  as  lojas  de  Lisboa  por  contende- 
rem com  elle  os  caixeiros. 

Esse  Paixão,  foi  a  primeira  victima 
da  troça  popular,  não  tão  amargurado 


LISBOA  DE  HOXTEM  67 

assim  mesmo  pela  fúria  cassoista  da  garo- 
tada das  ruas  como  o  José  das  caixinhas; 
o  Francisquinho;  as  duas  irmãs  O  mana 
acerta  o  passo,  pobres  velhas  a  quem  fi- 
zeram inclemências  só  pelo  crime  de  ellas 
dizerem  isso  uma  á  outra  quando  iam 
passeiando ;  o  boticário  da  rua  do  Ouro 
Roberto  pim  pim.  que  pagou  caro  o  ha- 
ver usado  d'esta  expressão  pitíoresca 
para  indicar  a  ária  do  baixo  no  Roberto 
do  diabo:  e,  mais  que  todos,  o  pallido  e 
phantastico  figurão  que  Lisboa  conheceu 
pelo  nome  de  Escalado. 

O  Escalado  era  um  pobre  homem,  que 
deixara  crescer  o  cabello,  as  unhas^  e  a 
sugidão  mais  do  que  é  permittido.  Usava 
os  suspensórios  por  cima  da  jaqueta: 
quinse  anneis :  chapéu  esboracado,  posto 
um  pouco  á  banda ;  botías  melancholi- 


68  LISBOA  DE  HOMEM 

camente  estropiadas.  Ar  de  philosopho, 
e  de  louco:  certa  elegância  burlescamente 
lúgubre:  a  miséria  da  scrte  e  da  vida, 
passeando  pelo  seu  pé,  como  uma  theo- 
ria  extravagante  e  stoica,  ai^  sol  das  Por- 
tas de  Santo  Antão! 

Ha  poucas  alegrias  n'este  mundo  que 
nâo  custem  lagrimas  a  alguém.  E  feita 
assim,  a  humanidade.  No  que  uns  achara 
occasião  de  se  divertirem,  teem  outros 
razões  para  chorarem.  O  rapazio  era  fe- 
liz correndo  atraz  d'esse  pobre  louco; 
não  havia  garoto  fino  ou  grosso,  dos 
que  iam  ao  collegio  ou  dos  que  não 
aprendiam  a  ler,  (lue  não  aproveitasse 
o  ensejo  de  implicar  com  o  Escalado, 
se  o  acaso  lhes  sorria  ao  ponto  de  o  en- 
contrarem no  seu  caminho.  A  infância 
é  cruel,  e  o  excêntrico  personagem  des- 


LISBOA  DE  HO.^TEM  69 

afiava  a  curiosidade;  tinha  a  excentri- 
cidade cavalheiresca,  andava  em  passo 
demorado  e  garboso:  dir-se-hia  a  cari- 
catura de  um  deus  do  hellenismo.  Ham 
entretanto,  algumas  vezes,  o  que  quer 
que  fosse  sublime  n'aquelle  desgraçado. 
Diziam-se  diíferentes  coisas  a  seu  res- 
peito ;  que  era  de  boa  família,  que  fora 
militar,  que  enlouquecera  por  amores. 
Vá  lá  saber !  O  nada  da  sua  existência 
era  a  única  coisa  fácil  de  averiguar.  Es- 
tava incapaz  de  sentir.  Tudo  o  aíTastava 
do  mundo;  ninguém  na  vida  tinha  ter- 
nura para  elle ;  dizia-se  também,  era 
uma  das  legendas,  que  elle  expiava  não 
sei  que  praga  que  haviam  rogado  a  al- 
guém da  sua  familia.  Historias!  A  fata- 
hdade  antiga  não  tinha  já  n'esse  tempo 
nada  que  ver  com  as  Portas  de  Santo 


70  LISBOA  DE  HONTEM 

Antão,  mas  as  idéas  que  grassavam 
n'essa  epocha  a  respeito  da  justiça  ainda 
tinham  sua  relação  com  as  que  faziam, 
outr'ora,  expiar  por  um  innocente  o  crime 
de  um  culpado.  InspiraçStls  da  Biblia  que 
poderiam  levar-nos  longe ;  hoje  é-se  me- 
nos sonhador;  o  cordeiro  do  sacrifício 
de  Abraham  era  cordeiro,  não  era  ho- 
mem ;  mal  iria  aos  ministros,  que  vêem 
depois  de  outros,  se  tivessem  de  pagar 
o  que  elles  deixam  por  solver:  quanto 
mais  o  pobre  Escalado  pagar  o  que  não 
fez!  Era  louco,  e  pobre;  males  vergo- 
nhosos: e  estava  em  terra  onde  nunca 
houve  policia,  por  isso  os  gaiatos,  como 
bons  portuguezes,  o  apedrejavam  casti- 
gando-o  de  ser  pobre  e  louco! 

A  sociedade  media  tinha  o  seu  excên- 
trico; chamava-se  o  Morgado  das  cebollas. 


LISBOA  DE  HONTEM  7i 

Era  o  morgado  um  bello  rapagão,  bem 
parecido,  de  presença  esbelta,  vestindo 
á  moda,  e  deitando  o  pé  para  fora.  Pas- 
sava por  ser  bom  moço,  e  ter  pilhéria. 
Dizia  coisas  chistosas,  que  davam  no 
goto  ás  bellas,  por  certa  originalidade, 
n'este  género : 

— Uma  senhora,  que  se  prese,' falta 
aos  deveres  da  boa  sociedade  sempre 
que  deixar  as  visitas  fazerem  escarneo 
das  pessoas  que  vâo  a  sua  casa,  muito 
mais  quando  essas  pessoas  voltarem  cos- 
tas e  se  retirarem.  Ella  mesma  é  que  deve 
fazer  isso,  a  ella  é  que  isso  compete ! 

As  meninas  riam. 

— A  civilidade  étudo,  minhas  senho- 
ras! accrescentava  elle,  preparando  já 
novo  gracejo.  Não  ha  nada  que  chegue  á 
civihdade!  Ahi  está  também  que,  quando 


n  LISBOA  DE  HONTEM 

uma  visita  se  levante  para  se  ir  embora, 
nunca  as  senhoras  lhe  devem  puchar 
pela  sobrecasaca,  para  a  fazerem  sentar 
outra  vez,  ao  ponto  de  a  rasgarem.  Basta 
dizer-lhe  com  um  arsinho  de  saudade : 
' — «Então,  já!»  E  quando  elle  for  na 
escada,  depois  de  se  fechar  a  porta,  é 
que  se  deve  usar  a  exclamação  usada 
em  taes  casos — ^Oh!  que  massador! 

E  outia  vez  as  meninas  riam,  riam.  . . 

Era  preciso  vel-o  n"um  celebre  Circo 
da  rua  da  Procissão,  aos  domingos  de 
tarde,  de  pé,  á  entrada,  namorando  as 
formosas  que  iam  para  a  galeria,  já  jan- 
tadinhas,  de  palito  na  bocca,  e  toilettes 
que  não  tinham  nada  que  ver  com  o  fi- 
gurino da  ultima  moda. 

A  deusas  da  companhia,  que  attraiam 
áquelle  pequenino  circo  todos  os  ama- 


LISBOA  DE  HONTEM  73 

dores,  pela  sua  elegância  e  pela  per- 
feição do  seu  trabalho,  eram  mulheres 
bonitas,  coisa  que  já  não  se  usa  nos 
divertimentos.  Os  grandes  janotas  do 
tempo  aífluiam  aJi  para  as  ver.  Reinava 
uma  suave  admiração  da  parte  do  pu- 
blico para  os  artistas,  e,  por  ser  grande 
o  calor  n'aquelle  divertimento,  jcá  porque 
o  circo  só  trabalhava  de  verão,  já  por- 
que o  verão  era  ardentíssimo,  os  elegan- 
tes de  vez  em  quando  mandavam  buscar 
refrescos,  e  enviavam-os  lá  para  dentro 
por  um  moço  qualquer,  que  trepava  gra- 
vemente o  estrado  e  ali  mesmo  lh'os 
offerecia  á  vista  do  publico,  dando  occa- 
sião  a  que  ellas  os  bebessem,  trocando 
ao  mesmo  tempo  amáveis  sorrisos  com 
os  seus  adoradores  como  se  lhes  disses- 
sem: 


74  LISBOA  DE  HONTEM 

— A  sua  saúde! 

De  uma  occasião  estava  uma  a  beber 
um  cabaz,  bebida  ie  que  se  perdeu  a 
moda,  e  que  constav.i  de  caffé  e  licores, 
e  bebia  isso  em  plena  pantomima .  .  . 

N'isto  ouve-se  uma  voz  no  fim  da  pla- 
téa: 

— Nâo  bebas  mais !  Olha  que  te  pode 
fazer  mal ! . . . 

Era  a  mãe  da  diva,  que  lhe  atirara 
com  aquelle  conselho  hygienico,  do  lo- 
gar  onde  estava  saboreando,  ella  própria, 
uma  mistura. 

Quando  no  fim  da  funcção  disper- 
sava a  sociedade,  aquellas  ruas  estreitas 
regorgitavam  de  frequentadores  do  Circo; 
iam  uns  cantando,  para  celebrarem  a 
victoria  d'aquella  tarde  e  noite,  outros 
cantavam  também  para  esquecerem  o 


LISBOA  DE  HONTEM  75 

cheque  amoroso  que  haviam  levado;  era 
cantoria  e  fallacia  por  todos  os  lados; 
as  ondas  movediças  d'aquelle  pequeno 
mar  humano  iam  rolando  para  a  Praça 
das  Flores ;  depois,  a  pouco  e  pouco  as 
vozes  enrouqueciam,  apagavam-se  as  lu- 
zes do  Circo  da  rua  da  Procissão,  fe- 
chava um  botequim  que  havia  alli  perto, 
armado  para  o  momento,  ia  cada  um 
para  sua  casa,  e  no  silencio  da  noite  não 
se  ouvia  senão  os  gemidos  queixosos  dos 
músicos,,  esfalfados  de  haverem  tocado 
desde  as  duas  horas  até  ás  nove,  e  uma 
voz  de  homem  que  fallava  da  rua  para 
a  janella  de  uma  casa  ao  lado  do  Circo 
ou  fronteira  ao  Circo...  Era  o  Morgado 
das  cebolas,  que  havia  arranjado  namoro 
aUi,  como  em  toda  a  parte,  e  que  estava 
dizendo  á  formosa: 


70  LISBOA  DE  HOMEM 

—  Tive  excellente  idéa  em  vir  hoje  a 
este  divertimento!  Ganhei  o  prazer  de 
conhecer  v.  ex.^  c.ija  belleza  rara  . . . 

Doesse  Circo  dá  rua  da  Procissão, 
passaram  os  artista^'  para  o  Circo  do 
Gvmnasio.  o  famoso  barracão  onde  a 
pantomima  e  a  gymnastica  floresceram 
durante  três  mezes:  do  barracão,  nas- 
ceu o  theatro,  o  antigo  theatrinho  que 
foi  tão  alegre  pelo  seu  repertório  como 
pela  vida  que  levavam  os  seus  artistas. 

Amigos  todos  e  dando-se  bem  uns 
com  os  outros,  o  que  é  a  mais  curiosa 
raridade  de  quantas  tem  succedido  em 
theatro,  trabalhava-se  á  hora  própria,  e 
o  resto  do  tempo  era  para  a  alegria. 

Cada  qual  se  divertia  alli  a  seu  sa- 
bor. 

Romão  era  homem  dado  a  amores  e 


LISBOA  DE  HONTEM  77 

a  aventuras;  tinha  uma  bagagem  per- 
manente de  raminhos  de  flores,  c  de 
cartas  maviosas :  nunca  passou  tantos  bi- 
lhetes de  beneficio,  como  bilhetes  de 
amores.  A  legenda  apontava  uma  lista 
abundante  de  favoritas  doeste  imperador 
do  ensaio.  A  verdade  é  que  elle  ensinava 
as  actrizes  com  immenso  gosto,  e  que 
esse  gosto  augmentava  em  ellas  também 
gostando  d'elle.  Fez  prodígios.  Não  ha- 
via discípula  formosa,  que  a  varinha  ma- 
gica d'este  ensaiador,  que  parecia  querer 
perpetuar  o  capricho  gallante  dos  faunos, 
não  transformasse,  a  poder  de  dedicação, 
em  artista  distincta.  Depois,  como  sem- 
pre foi  homem  intelligente,  sinceramente 
alTeiçoado  ao  theatro,  tendo  o  zelo  e  o 
fanatismo  da  arte,  ainda  que  acabasse 
o  amante,  continuava  o  ensaiador,  eia-as 


78  LISBOA  DE  HONTEM 

auxiliando  sempre  com  as  suas  lições, 
elle  que  por  um  momento  estivera  a 
ponto  de  as  desvairar  com  o  ensinar-lhes 
o  jogo  das  paixões  nas  praticas  da  vida, 
mais  arriscadas  ainda  que  as  do  palco  I 

O  gordo  Pereira ! 

Homem  por  excellencia ! 

Bom  egualmente  á  mesa,  ao  cavaco, 
e  no  tablado. 

Para  elle  a  difficuldade  de  um  papel 
consistia  simplesmente  em  o  decorar. 
Uma  vez  aprendido  de  còr  o  papel,  di- 
zia-o  para  alli  de  corrida  como  um  rapaz 
a  papaguear  a  lição,  e  suppria  pela  sua 
graça  natural  o  que  devia  ás  vezes  á 
peça  e  ao  personagem.  Era  jovial  con- 
viva, e  bebeclor  audaz.  Tinha  a  casa 
cheia  de  livros:  muitos  em  lingua  que 
nem  elle  sabia.  Levava-o  para  as  letlras 


LISBOA  DE  HONTEM  79 

e  para  o  talento,  uma  simpathia  irresis- 
tível: depois  do  talento  e  das  lettras, 
essa  mesma  simpathia  levava-o  para  o 
vinho.  De  uma  vez,  por  distracção  e 
curiosidade,  namorou ;  elle  mesmo  con- 
fessava que  não  havia  gostado  e  que  se 
deixara  d'isso  sem  mesmo  haver  perce- 
bido o  que  seria  ser  amado  e  amar.  Era 
um  philosopho. 

Moniz,  tétrico,  patibular ,  lugubremente 
triste,  de  cara,  de  modo,  de  expressão 
e  de  sistema,  na  vida,  alegrava-se  duas 
horas  todas  as  noites — emquanto  estava 
representando,  e  que  vivia  da  alegria 
que  inspirava.  Precisava  fazer  rir  todo  o 
pubhco,  para  estar  contente  elle.  Ao 
descer  do  panno,  os  espectadores  reti- 
ravam-se,  e  Moniz  ficava  sem  a  sua  ale- 
gria: levavam-Hra  elles. 


80  LISBOA  DE  HONTEM 

Marques,  era  um  sábio,  um  cavalhei- 
ro, um  piteireiro,  e  um  sachristão.  Tudo 
isto.  Sabia  latim,  dizia  a  propósito  de 
qualquer  coisa  uma  máxima  valiosa,  e 
bebia-lhe  em  cima  meio  quartilho.  Fez 
a  fortuna  e  a  fama  de  uma  tasca,  que 
por  muitos  annos  existiu  ao  lado  do 
Gvmnasio;  foi  o  inventor  do  Barra- 
cão, 

Braz  Martins  estudava,  trabalhava,  e 
massava.  Em  apanhando  léo  impingia  a 
sua  historia  toda :  fura  rico,  elegante,  jo- 
ven,  e  sempre  fanhoso:  de  todas  estas 
prendas  só  lhe  ficara  a  ultima.  O  reper- 
tório original  do  theatro  portuguez  foi 
por  uns  tempos  seu.  Para  o  theatro  de 
D.  Maria  ii  escrevia  a  Mendiga:  para  o 
Gvmnasio: 

Fernando  ou  o  juramento,  O  chinello 


LISBOA  DE  HONTEM  81 

da  cantora,  Vou  para  a  Califórnia,  A 
garrafa  monstro,  Santo  António. 

Era  homem  de  habilidade,  mas  in- 
feliz. Temperamento  oscilante ;  caracter 
fraco:  dominado  pelas  mulheres.  Boa 
naturesa,  no  fundo  d'isso,  e  sempre  ge- 
neroso nos  assomos  de  audácia  que  eram 
suffocados  na  paixão  amorosa.  Esmore- 
cia no  IrabalhO;  por  causa  dos  amores; 
nem  estudava,  nem  progredia ;  pelo  con- 
trario, como  succede  aos  fracos,  foi  a 
peior  como  escriptor  e  como  artista,  á 
medida  que  os  casos  do  coração  o  sal- 
tearam. Os  grandes  talentos  medram  e 
avultam  quando  amam :  os  pequenos  en- 
tesam e  murcham.  E  a  differença. 

Diga-se  também  n'este  ponto  a  ver- 
dade toda,  e  é  que  a  vida  de  thealro 

n'esse  tempo  tinha  seducções  que  não 
6 


82  LISBOA  DE  HONTEM 

tornou  a  ter;  o  publico  adorava  os  artis- 
tas: as  mulheres  davam  o  cavaco  por 
elles.  Os  theatros  particulares  prepara- 
vam habilmente  esses  eíTeitos  amorosos; 
o  maior  numero  de  actores  começaram 
n'esses  tablados  amáveis,  nunca  perigo- 
sos, de  theatrinlios  de  convite.  Ali  se 
davam  o  gosto  de  representar  toda  a  qua- 
lidade de  papeis  a  seu  sabor.  Pedro  o 
Grande  ou  a  escrava  de  Mariemburgo, 
A  nódoa  de  sangue.  .  .  Braz  Martins 
ganhara  fama  n'esses  recreios  tomados 
sempre  em  conta  de  gloria,  e  dispendêra 
com  taes  divertimentos  o  melhor  de  uma 
herança  que  tivera.  Ao  entrar  para  o 
Gymnasio,  protegido  e  aconselhado  por 
um  cavalheiro  que  lhe  foi  dedicado 
sempre,  o  tabellião  Cardoso,  mais  co- 
nhecido n'aquella  epocha  por  cunhado 


LISBOA  DE  HONTEM  g$ 

do  Visconde  da  Luz,  homem  engraça- 
díssimo, extremamente  afeiçoado  ao  thea- 
tro,  e  auctor  de  uma  farcita  que  fez 
epocha,  Um  Bernardo  C'>mo  ha  muitos; 
ao  entrar  para  o  Gymnasio,  Braz  Mar- 
tins era  annunciado  como  uma  ressur- 
reição do  Talma.  Durante  annos  esse 
homem  teve  a  arte  de  prender  a  atten- 
ção  do  pubUco  ás  suas  peças  e  ao  seu 
nome,  e  alcançou  o  suífragio  dos  httera- 
tos  pela  prenda  de  recitar  poesias  no  in- 
tervallo  das  comedias. 

Foi,  mercê  d*essa  novidade,  a  qua- 
dra do  Ave  César,  do  Abdel-Kader,  o 
Veterano,  a  Minha  Pátria,  a  Lua  de 
Londres,  o  Camões .  .  . 

Estabeleceu-se  a  moda. 

A  sr.^  Emilia  das  Neves  entendeu 
logo  que  devia  também  molhar  a  sua 


8i  LISBOA  DE  HONTEM 

sopa  no  mel,  ii'aquelle  puro  Hymeto  da 
poesia  lyrica,  e  começou  a  recitar  a  Cei- 
feira, o  Se  coras  mo  conto,  o  Sonho  da 
actriz,  entre  applausos. 

O  actor  Rosa  não  poude  também  sus- 
ter-se,  e  foi-se  ao  Veterano  apesar  do 
Braz  Martins. 

Os  litteratos  tinham  um  trabalho  enor- 
me para  contentar  estes  três  interpretes, 
que,  não  contentes  de  recitarem  durante 
mezes  a  fio  quantas  poesias  appareciam, 
algumas  nem  sempre  muito  ricas  de  idéas 
nem  de  rimas, — mas  emfim,  lá  isso,  cos- 
tuma dizer-se  que  não  é  a  riqueza  que 
dá  a  felicidade! — os  obrigavam  a  julga- 
mentos imparciaes  e  sinceros. 

Rosa  apresentava  razões  para  eviden- 
ciar que  só  elle  tinha  a  grande  arte  da 
recitação  lyrica;  a  sr.^  Emilia  das  Neves 


LISCOA  DE  HONTEM  8S 

valia-se  da  sua  voz  lindíssima  para  dar 
ao  verso  uma  musica  que  não  deixava 
de  ter  sua  graça;  e  o  Braz  Martins  ia 
fungando  poesia  e  mais  poesia,  tirando 
recursos,  até  então  não  conhecidos,  da 
voz  nasal. 

Tudo  isto  fazia  com  que  Braz  Mar- 
tins disfructasse  uma  consideração  litte- 
raria,  que  promovia  o  assombro  dos  seus 
companheiros,  e  o  auctorisava  a  descar- 
regar massadas  homicidas  n'aquelles 
pobres  homens,  que  viam  n'elle  um 
Moliére,  com  a  mesma  facilidade  e 
promptiJão  com  que  annos  depois,  sem 
motivo  para  uma  coisa  nem  para  a  ou- 
tra, principiaram  a  ver  n'elle  unica- 
mente um  actor  impossível  e  um  auctor 
inaceitável.  Para  este  ultimo  conceito  ha- 
via concorrido  em  parte  o  nenhum  sue- 


86  LISBOA  DE  HOXTEM 

cesso  (las  suas  ultimas  peças,  e  a  queda 
desastrada  de  uma  celebre  Ilha  gataria 
em  que  o  panno  teve  de  descer  indo  a 
peça  em  meio,  para  maior  conveniência 
do  theatro  e  vantagem  do  auditório. 

Não  estou  certo  se.  emquanto  durou 
a  sua  hora  de  celebridade  e  de  voga, 
lhe  enfeitaram  a  primeira  casa  do  lado 
esquerdo  da  casaca  com  um  habitosito; 
tenho  idéa  qiie  se  pensou  n'isso,  mas 
não  poderia  assegurar  se  o  conseguiram 
ou  não.  A  coisa  apresentava  difficulda- 
des.  As  condecorações  no  palco  eram 
d'antes  assumpto  de  grandes  discussões 
no  nosso  paiz.  Por  occasião  de  ser  con- 
decorado o  actor  Epiphanio,  abalou-se 
o  paiz.  A  geração  nova  approvou  o  fa- 
cto; os  velhos  sobresaltaram-se.  Houve 
m.urmurio  grande,  ficou  sempre  memo- 


LISBOA  DE  HONTEM  87 

avel  este  caso  na  família  portugueza. 
Por  muito  tempo,  actor  que  levasse  pal- 
mas esperava  no  dia  seguinte  que  o  mi- 
nistro lhe  puzesse  uma  fitinha  na  casaca; 
os  ministros  deixaram  de  applaudir,  pa- 
ra nâo  se  comprometeren)  a  dar  prenda. 
Tinham  os  artistas  em  recitas  de  noite 
de  gala  distracções  imperdoáveis  na  de- 
clamação dos  seus  papeis,  e  arregala- 
vam os  olhos  a  cada  instante  para  as 
commendas  e  hábitos  que  ornavam  o 
peito  de  alguns  espectadores.  Os  gover- 
nos fingiam  não  perceber,  e  tudo  conti- 
nuou no  palco  em  grande  calmaria  de 
condecorações. 

Vinte  annos  depois  pensou-se  que  era 
tempo  de  arriscar  outro  habitosito,  e  acu- 
diu logo  muito  naturalmente  a  casaca  — 
ou,  quero  dizer,  o  talento  de  Taborda. 


«8  LISBOA  DE  HONTEM 

Eiitrelanto..  como  um  presente  d'aquel- 
les  não  podia  levar-se  a  efteito  de  um  dia 
para  o  outro,  passou-se  um  pouco  de 
tempo  a  scismar. 

—  Pômos-llie  a  fila? 

—  Não  lhe  pomos  a  fita? 

Grave  problema,  que  rasgou  desde 
logo  o  véo  das  ambições  secretas,  dissi- 
pou o  nevoeiro  de  desejos  que  não  se 
declaram,  e  descobriu  radiante  no  ho- 
risonte  a  fita  de  S.  Thiago,  que  estava 
fresquinha. 

—  Pomos-lhe  a  fita  ?  tornaram  elles 
a  dizer. 

—  Não  lhe  pomos  a  fita? 
Perigosíssimo  ponto  de  interrogação 

que  suspendeu  de  repente  a  gravitação 
silenciosa  de  alguns  aspirantes  ordiná- 
rios á  roda  do  seu  astro  central,  e  cha- 


LISBOA  DE  HONTEM  89 

mou  a  attenção  da  imprensa  e  do  pu- 
blico. 

Appareceu  a  noticia  nos  jornaes... 

O  ecco  repetiu... 

Foi  uma  alegria ! 

Depois  de  tantas  questões  que  por 
ahi  suscitara,  S.  Thiago  vinha  em  fim 
dar  gosto  á  gente. 

Estimou-se  nas  salas,  saudou-o  a  im- 
prensa, o  theatro  sentiu-se  glorioso  pela 
segunda  vez,  nos  serões  foi  esse  o  as- 
sumpto das  palestras,  e  até  nos  botequins 
ruidosos  calou-se  o  cavaco  soporifero 
para  deixar  fallar  a  voz  do  triumpho. 

E  de  então  para  cá,  ora  para  o  actor 
Rosa,  ora  para  o  actor  Tasso,  ora  para 
o  actor  Santos,  ora  para  o  grande  Rossi, 
ora  para  Salvini,  ora  para  o  Isidoro, 
ainda  de  vez  em  quando  se  pensava: 


90  LISBOA  DE  HOMEM 

—  Damos-lhe  a  fita? 

—  Não  lhe  damos  a  fita? 

Porque,  dizia-se,  se  nâo  lhe  damos  a 
fita,  os  actores  poderão  gritar  que  con- 
tmuam  os  preconceitos,  a  injustiça,  o 
martyrio ;  poderão  allegar  a  importância 
social  da  sua  arte,  as  difficuldades  que 
a  cercam,  o  talento  de  que  teem  dado 
provas,  o  incessante  caminhar  para  o 
bem,  a  pureza  progressiva  dos  seus  cos- 
tumes, a  estima  m.oderna  em  que  são 
tidos. 

Se  lhe  damos  a  fita.  o  que  dirá  S. 
Thiagc? 

O  que  dirá  a  arte  dramática? 

O  que  dirá  a  lógica? 

Pensemos  um  momento  como  se  fos- 
semos nós  a  loírica.  a  arte  dramática,  e 
S.  Thiaao: 


LISBOA  DE  HONTEM  91 

— Eu  SOU  O  distinctivo  do  mérito.  Se 
o  não  engendro,  pelo  menos  apregôo-o; 
se  nâo  ando  pendurado  em  todas  as  go- 
las illustres,  estimo  ao  menos  como  ce- 
lebres todos  os  peitos  que  enfeito,  e 
julgo  que  me  pagam  cortezia  com  cor- 
tezia.  Gomo  hei  de  ver-me  no  tablado, 
embrulhado  nos  ouropéis  agora  do  ri- 
diculo,  logo  do  vicio,  e  d'alli  a  nada  do 
crime?!  Pois  hei  de  trepar-me  na  niza 
de  Manuel  Mendes,  e  receber  trambu- 
Ihões  de  ReboUo,  de  Michaella  e  do  ca- 
pitão de  milicias?  Hei  de  ser  o  traidor, 
o  papa-ratos,  o  paspalhâo,  e  o  malvado? 
Hei  de  ministrar  veneno,  cravar  punhaes, 
roubar  creanças,  e  sair  á  estrada?  E  se 
a  peça  fôr  má,  se  o  papel  fôr  pateado, 
se  a  plaléa  enraivecida  atirar  patacos  ao 
actor,  hei  de  ser  eu  que  os  receba?  Á 


92  LISBOA  DE  HOMEM 

casaca  dos  pintores,  dos  esculptores,  dos 
homens  de  letras,  posso  eii  muito  bem 
pendurar-me;  se  qualquer  d'elles  tiver 
um  revez,  não  me  succederá  mal  algum 
— porque  não  appareço.  Mas  com  os 
actores  não  é  assim,  porque  os  actores 
pagam  com  a  sua  pessoa,  pagam  de  corpo 
presente.  Embora  me  deixem  no  cama- 
rim, senle-se  que  vou  com  elles  para  o 
tablado.  Yisivel  ou  invisivel,  brilho  aos 
olhos  de  toda  a  gente.  Gomo  heide  pre- 
servar-me  eu  das  humilhações  a  que  el- 
les próprios  se  sujeitam? 

Dizia  a  arte  dramática : 

— Bom  foi  que  assim  como  o  deram 
aos  trágicos,  também  o  dessem  aos  jo- 
cosos ;  —  aliás,  ahi  principiavam  os  acto- 
res alegres,  os  que  fazem  rir,  a  scismar 
na  fita  e  a  mudar  de  género,  deixando-me 


LISBOA  DE  HO.NTEM  93 

reduzida  aos  centros  e  aos  pães  nobres. 
A  pateada  ó  um  perigo,  é  certo,  e  seria 
prova  de  civilisação  completa  da  parte 
d'este  paiz  se  depois  de  haver  acabado 
com  a  pena  de  morte  acabasse  também 
com  a  pateada;  mas  —  para  supprimir 
também  os  applausos.  Se  um  cavalheiro, 
n'uma  sala,  em  vez  de  discutir  as  opi- 
niões d'aquelle  com  quem  converse,  lhe 
exprimir  a  sua  maneira  de  pensar  fer- 
rando os  tacões  no  sobrado  e  sapateando 
rijo,  terá  de  passar  por  sujeito  educado 
um  pouco  incorrectamente; — mas  se  tre- 
par a  uma  cadeira  e  principiar  a  gritar 
«bravo!  bravo!  bis!^  não  fará  decerto 
melhor  figura.  Deixemos,  deixemos  a 
pateada;  é  talvez  útil...  até  para  não 
serem  condecorados  senão  os  bons  acto- ; 
res! 


94  LISBOA  DE  HOMEM 

A  lógica  dizia : 

—  Dè-se  a  fita  aos  actores,  podem 
merecel-a  como  a  outra  gente ;  mas  dê-se 
também  ás  outras  notabilidades  circum- 
vizinhas.  aos  dançarinos,  aos  gymnas- 
tas,  aos  Yolteadores  do  circo,  ao  homem 
dos  sete  instrumentos,  ao  que  apanha 
primorosamente  um  toiro,  a  quantos  di- 
virtam a  gente  com  boa  habihdade  em- 
fim. 

E  isto  é..  cuido  eu,  de  tudo  o  melhor, 
—  comtanto  que  não  haja  equivocos, 
porque  na  guerra  as  condecorações  são 
baseadas  cm  feitos  indiscutiveis,  cam- 
panhas, feridas,  acções  de  estrondo,  bem 
comona  ordem  das  funcções  publicas  — 
serviços  reaes  e  visiveis ;  ao  passo  que 
na  arte  é  tudo  vago,  fugitivo,  e  a  opi- 
nião de  um  a  tal  respeito  não  concorda 


LISBOA  DE  HONTEM  95 

quasi  PiUnca  com  a  do  outro.  E  indis- 
pensável, por  isso,  que  continue  a  ha- 
ver cautela,  e  a  ponderar-se  a  cada  ca- 
valheiro novo  que  aponte  no  horisonte: 

—  Pômos-lhe  a  fita? 

—  Não  lhe  pomos  a  fita? 

Braz  Martins  merecia-a  deceito  tanto 
como  alguns  que  por  ahi  a  teem ;  esta 
maneira  de  dizer  tem  a  vantagem  de 
servir  para  o  direito  e  para  o  avesso,  e 
o  leitor  terá  a  bondade  de  ageital-a  á 
sua  opinião,  por  forma  que  conclua  que 
o  homem  merecia  a  fita,  ou  não  merecia 
a  fita. 

E  verdade  que  os  mesmos  poetas,  cu- 
jas composições  elle  decorava  e  repetia, 
também  não  se  acharam  nunca  enfeita- 
dos d'esse  adorno  glorioso  e  decorativo, 
á  excepção  do  sr.  Mendes  Leal,  que  lo- 


96  LISBOA  DE  HONTEM 

grou  a  escalla  chromatica  de  toda  essa 


musica. 


O  que  havia  de  poetas  por  aquella 
epocha,  é  coisa  incalculável ;  pouco  du- 
raram quasi  todos  elles:  mas.  por  mais 
de  três  ou  ([uatro  annos,  foi  um  enxame. 
A  mythologia  grega  dizia  que  o  somno 
é  pae  da  morte :  tanto  adormeceram  os 
leitores,  que  morreram  elles  próprios, 
coitados !  ^ 

Os  que  resistiram,  eram  homens  a  va- 
ler. O  paiz,  que  lhes  apprendera  os  no- 
mes, não  os  esqueceu  mais. 

Muitos,  destinados  a  outras  especiali- 
dades e  consagrando  a  sua  attenção  a 
uma  ordem  de  trabalhos  completamente 
alheios  á  poesia,  deram-se  ao  verso  como 
quem  se  põe  á  moda. 

O  primeiro  poeta  que  me  mostraram, 


LISBOA  DE  HONTEM  97^ 

nâo  sei  já  em  que  rua,  foi  o  sr.  António 
de  Serpa.  Magro,  pallido,  de  cabello  cor- 
redio deitado  para  traz  da  orelha,  e  so- 
bre-casaca  abotoada,  admirei  n'elle  o 
typo  completo,  excellente,  que  a  burgue- 
zia  attribue  aos  poetas:  era  melancho- 
lico,  entesado,  amarelilo  .  . . 

Pareceu-me  lúgubre. 

Apertou-se-me  o  coração  quando  o 
vi. 

— Este  é  o  António  de  Serpa,  hein? 
perguntei  pasmado. 

—  É. 

—  Está  bom  poeta.  Deve  ser  muito 
infeliz  ... 

—  Infeliz  .  .  .  ? 

—  Sim,  muito  doente,  muito  perse- 
guido pelos  homens,  muito  atribulado, 
muito  afflicto  ... 

7 


98  LISBOA  DE  HONTEM 

—  Não.  É  até  muito  estimado  pelos 
seus  talentos. 

—  Palavra  de  honra? 

—  Palavra  d"honra.  Acaba  de  publi- 
car um  livro  de  versos  correctissimos.  E 
um  poeta  da  familia  dos  Déchamps  e 
dos  Méry.  Tem  a  corda  da  tristeza,  e  a 
da  ironia.  Brinca  a  sua  satyra,  que  é  um 
gosto.  Não  é  triste,  não;  e  apesar  de 
magiinho  é  de  canéllo:  ha-de  ir  longe. 

O  que  é  feito  do  poeta?  Ninguém  mais 
soube.  Os  poetas  são  creanças  perdidas 
na  sociedade  moderna :  a  elle  acharam-o 
e  fizeram-o  ministro.  Adeus  pagens,  e 
adeus  bandolins ! 

Diz  o  provervio  que  Júpiter  quando 
quer  perder  as  pessoas,  endoudece-as 
primeiro.  Quos  viút  perdere  Júpiter  prins 
dementat:  a  poesia  foi  em  Lisboa  o  prin- 


LISBOA  DE  HO.NTEM  W 

cipal  instrumento  de  que  Júpiter  se  ser- 
viu para  dar  com  a  gente  em  doida; 
ambos  os  sexos,  e  todas  as  classes,  se 
pozeram  de  repente  n'aquelle  regimen 
exclusivo  de  versalhada.  O  destempero, 
a  pieguice,  a  lamuria,  produziram  um 
effeito  tão  agradável  que  a  chochice  ri- 
mada tomou  o  logar  ao  juiso,  á  arte,  e 
á  moral.  Rompeu  uma  multidão  de  poe- 
tas a  discorrer  sem  metro  nem  rithmo, 
que  arrasou  o  gosto  c  a  rasão  com  uma 
exhuberancia  tremenda  de  semsaboria 
guindada,  de  sublimidade  pascasia.  Era 
o  Banana  em  Pathmos ! 

Tiveram  um  instante  de  moda:  nas 
philarmonicas ;  nas  casas  particulares 
recitando  versos,  ao  piano,  em  que  se 
celebrava  o  siuriso  liso;  e  nas  barcas 
de  banhos,  para  irem  gargarejar  com 


100  LISBOA  DE  HONTEM 

acompanhamento  de  exclamações  e  ex- 
tasis: 

—  Temos  um  bello  rio! 

—  Oh!... 

—  Um  bello  rio ! 

As  barcas  eram  muito  concorridas: 
faltava  só  uma  cousa  á  felecidade  dos 
donos  J'esses  estabelecimentos;  a  não 
ser  isso,  a  ventura  d'elles  seria  completa: 
era  nâo  terem  lá  emprazadores. 

O  emprazador,  producto  incestuoso 
da  vadiagem  e  do  mau  olhado,  florescia 
muito  entre  nós:  deleitava-se  em  não  ter 
que  fazer,  e  entretinha-se  em  prejudicar. 
Tomava  no  bote  o  lugar  que  conviesse 
a  algum  freguez  sério,  que  ficava  no  cães 
á  espera,  ou  saltava  para  outro  bote  e  ia 
a  outra  barca;  sentava-se  na  cadeira 
destinada  a  quem  estivesse  esperando 


LISBOA  DE  HONTEM  101 

banho ;  ia  pespegar-se  no  toucador  das 
senhoras,  pasmado  para  quem  comia  um 
biscoitinho  e  bebia  um  copinho  de  hc^r 
depois  do  banho;  afugentava  familias 
pela  balda  que  tinha  de  se  fazer  chistoso 
mofando  em  voz  alta  da  tlgura  de  cada 
qual;  e  namorava  sem  incommodo  nem 
despeza,  chegando  a  fazer  com  que  as 
filhas  alheias  se  dessem  por  constipadas 
para  a  mãe  tomar  banho  sósinha,  e  fi- 
carem ellas  a  vêl-o ;  do  que  resultava. 
para  o  estabelecimento,  baixa  de  filhas 
na  venda  dos  bilhetes ! 

Na  barca  dos  Tonneis  tinham  por  el- 
les  cordeal  antipathia,  e  tratavam-os  com 
um  rigor,  que  só  n"uma  imagem  poderá 
dizer-se  —  como  quem  trata  um  cão. 
Mas,  por  mais  duras  (lue  fossem  as  se- 
veridades,  nunca  esses  petimétres,  como 


i02  LISBOA  DE  HONTEM 

então  se  lhes  chamava,  lho  levavam  a 
mal,  cada  vez  pareciam  dehciar-se  mais 
com  aquella  convivência,  e  logo  que 
rompia  a  manhã  já  lhe  appareciam  — 
aligeirando  a  barca  da  sua  presença  ape- 
nas por  alguns  intervallos,  empregados 
em  viajar  até  ao  Terreiro  do  Paço  e  do 
Terreiro  do  Paço  outra  vez  para  lá,  ora 
com  os  que  iam,  ora  com  os  que  volta- 
vam, rindo  e  brincando,  como  pedia  o 
bom  humor. 

O  encanto  das  barcas  brilhava  por 
episódios  diversos ;  sahava,  por  exem- 
plo, de  repente,  entrando  de  um  lado, 
atravessando  com  rapidez,  e  saindo  pelo 
outro,  um  banhista  nómado,  ambulante, 
de  coecas  de  malha,  que  andava  de  bote 
visitando  as  barcas  n'aquella  toilette, — 
a  bem  dizer,  casaca  de  visita  para  o 


LISBOA  DE  HOMEM  i03 

Tejo  de  crystal ;  quando  não  andava  na- 
dando! e  que,  saindo  das  ondas  como 
um  câo  d'agua,  lhe  dava  a  vineta  de  en- 
trar nas  barcas,  movido  do  desejo  de 
fazer  de  aguaceiro  e  encharcar  as  pes- 
soas por  quem  se  roçava. 

A  Diligencia  pela  respeitabilidade  de 
principios  clássicos,  esqoivava-se  um 
pouco  a  essas  correrias  gallantes,  mercê 
de  ser  a  barca  das  velhas  que  iam  ás 
duas  e  ás  três,  de  mãos  dadas,  outras 
vezes  com  um  idiota  no  meio,  dando- 
Ihe  a  mão,  uma  de  cada  lado,  pé  cá,  pé 
lá,  n'uma  contradança,  que  levava  três 
horas  primeiro  que  embarcassem! 

Tenazmente  disputaram  essas  duas 
com  a  Flor  do  Tejo  o  império  do  mar,  co- 
mo outr'ora  Tyro,  Garthago  eRoma,  não 
para  fazer  vogar  os  seus  triremos  victo- 


104  LISBOA  DE  HOMEM 

riosos,  mas  para  darem  quarto  e  lençol 
por  sete  vinténs  em  honra  de  Amphitrite! 
A  dos  Tonneis  deu-se  por  vencida. 
Já  estava  cançada  d^aquella  lida,  de  vi- 
gilância, seriedade,  doçura,  engenho, 
rispidez,  bonito  modo:  no  bonito  modo^ 
iam  as  conveniências  sociaes;  cumpri- 
mentar para  um  lado.  e  para  o  outro, 
prestar  a  maior  attenção  a  qualquer  des- 
abafo contra  o  lençol,  que  estivesse  um 
pouco  húmido: 

—  E  do  tempo,  minha  senhora,  é  do 
tempo! 

— Estou  desconfiada  que  m'o  troca- 
ram! 

—  Pode  V.  ex.^  estar  certa  que . . . 

—  Passou  de  linho  a  algodão,  mu- 
dou-se  de  novo  em  velho,  tinha  uma 
farrusca . . .  etc. 


LISBOA  DE  HONTEM  105 

E  depois,  saber  o  nome  de  toda  a 
gente  (ha  pessoas  que  gostam  muito  de 
que  lhes  saibam  o  nome!) 

—  Muito  bom  dia,  sr.  João  Gancio! 

—  Senhora  D.  Leocadia,  minha  se- 
nhora ! 

E  o  que  vaha  era  n*esse  tempo  ap- 
parecerem  poucos  titulos,  e  não  ser  pre- 
ciso carregar  a  memoria  com  barões. 
viscondes  e  condes. 

Em  tudo  ha  especialistas.  Existem  col- 
lecionadores  que  não  querem  saber  senão 
de  certos  e  determinados  objectos;  uns 
procuram  louças  da  China,  este  quer 
contadores  antigos,  o  outro  moedas  de 
outras  eras,  este  medalhas,  aquelle  cai- 
xas de  rapé;  os  bibliomaniacos  não  dão 
estimação  senão  a  certa  qualidade  de  h- 
yi*os,  ha  um  que  tem  os  folhetos  todos 


106  LISBOA  DE  HONTEM 

de  S.  Carlos,  outro  a  collecçâo  de  avi- 
sos de  touros  que  espalha  o  homem  do 
bando:  mas  começaram  a  apparecer 
ii'esse  tempo  alguns,  que,  por  não  serem 
numismataS;  nem  amadores  de  cerâmica 
nem  bibliopliilos,  gostavam  de  espelhos 
e  descalçadores  dos  quartos  das  bar- 
cas.. .  Que  variedade  nos  collecionado- 
res!  A  barca  dos  Tonneis  não  gostou 
d'essa  civilisação,  e  também  se  affligiu 
com  a  confusão  que  reinava  no  corre- 
dor da  saida,  e  que  era  vivo  prenuncio 
do  progresso!  Esse  corredor,  era  um 
perigo  para  os  costumes:  para  aU  se 
passar,  era-se  pisado;  todas  as  gordas 
iam  para  o  corredor :  o  motivo  não  se 
sabia,  mas  o  certo  era  que  todas  âs  gor- 
das iam,  com  meninos,  dois  ou  três  me- 
ninos, que  punham  á  frente: — Chega-te 


LISBOA  DE  HONTEM  107 

para  diante,  menino!  — E  ahi  ia  um  su- 
jeito passar  por  cima  do  pequeno,  e  por 
baixo  d'ella,  sem  pisar  ninguém,  e  agora 
se  lhe  prendia  a  aba  do  casaco,  e  lá  lhe 
ficava  a  manga,  e  ahi  lhe  cabia  o  cha- 
péu, e  tropeção  de  um  lado,  encontrão 
do  outro,  três  pés  em  cima  de  um  d'elle, 
e  tudo  isto  conforme  manda  a  cortesia, 
indo  ainda  em  cima  a  pedir  perdoes : 

—  Perdão  minha  senhora ! 

—  Perdão,  meu  senhor  1 

Depois,  mal  chegava  o  bote,  ia  tudo 
em  onda;  os  que  estavam  adiante  caiam 
sobre  os  que  desembarcavam,  os  que  de- 
sembarcavam caiam  outra  vez  no  bote ; 
a  criada,  que  nesse  tempo  ia  para  to- 
das as  funcções  com  os  amos,  deixava-se 
ficar  para  traz,  na  intenção  ladina  de  se 
ver  livre  d'elles  por  um  pedaço : 


"408  LISBOA  DE  HONTEM 

—  O  Maria,  6  Romana! 

—  Estou  aqui,  minha  senhora,  mas 
já  não  caibo ! 

—  Avia-te,  dá  cá  a  mão! 

—  Já  não  cabe !  dizia  o  barqueiro, 
que  é  o  que  ella  queria  ouvir.  Está  a 
conta. 

E  lá  se  iam  os  patrões,  de  bole,  e 
ella  na  barca,  livre  por  dez  minutos,  in- 
dependente, podendo  fallar  com  quem 
quizesse . . . 

—  Já  não  caibo ! . . . 

Ah !  Uma  barca  austera  não  poderia 
ver  isto  com  bons  olhos ;  foi  do  que  mor- 
reu a  dos  Tonneis:  o  progresso  ajudou-a. 

O  progresso ! 

Era  a  palavra  do  dia !  Era  o  papão !... 

Muita  gente  se  assustou  com  isso. 
Depois  do  terror,  veio  o  ódio ;  chegou  a 


LISBOA  DE  HONTEM  109 

odiar-se  essa  palavra  e  essa  idéa:  pro- 
fjresso  / . . . 

Todas  as  epochas  em  Portugal  toem 
tido  alguma  raivinha  de  predilecção,  ar- 
gumento sem  replica,  ultima  ratio,  con- 
tra a  qual  não  haja  que  dizer,  por  ser 
ao  mesmo  tempo  absurda  e  victoriosa; 
tem  sido  sempre  assim  na  politica,  na 
arte  e  nas  letras.  Por  um  tempo  a  in- 
juria suprema,  com  que  os  cortezãos  do 
poder  fechavam  a  boca  a  todas  as  objec- 
ções, era  ser  republicano;  depois  foi 
acoimado  de  retrogado,  de  repente,  todo 
o  pobre  homem  que  continuou  a  ser 
como  era,  a  viver  como  vivia . . .  N'um 
bello  dia,  a  mocidade  partiu  com  a  ma- 
nia dominante  da  economia  politica,  e 
foi  dar  comsigo  na  politica  sem  econo- 
mia; chamou-se  a  isso  o  progresso:  d'ali 


lio  LISBOA  DE  HONTEM 

a  pouco,  como  se  um  furacão  nos  ti- 
vesse voltado,  já  nâo  embirrávamos  se- 
não com  os  progressistas;  comedias, 
jornaes,  e  a  rua,  tudo  mettia  o  progresso 
á  bulha;  dizia-se  de  qualquer  cousa  ri- 
dicula.  prejudicial,  ou  fútil: —  «E  o  pro- 
gresso!* 

Foi-se  embirrando  sucessivamente 
com  uns  poucos  de  grupos :  um  homem 
andava  pelo  seu  pé,  ou  parava,  ou  punha 
o  chapéu,  ou  tirava-o,  ou  respirava,  ou 
tossia,  era  cabralista;  o  homem -depois 
tossia,  ou  respirava,  ou  punha  o  cha- 
pen,  ou  tirava-o,  ou  parava,  ou  ia  an- 
dando, er3i  pé  fresco,  era  lazarista,  ou, 
peior  de  que  tudo,  era  litterato! 

Poucos  tiveram  a  coragem  de  não 
quererem  ser  poetas,  n'esse  tempo.  Dois 
ou  três  resistiram.  Rebello  da  Silva  en- 


LISBOA  DE  HONTEM  111 

tre  elles.  Um  homem  raro.  O  mesmo 
talento  até  ao  fim  da  vida.  A  mesma  fa- 
cilidade de  fallar  e  de  escrever.  Rápido 
e  exaltado.  Escriptor,  professor,  orador, 
e  animando-se  por  igual  no  parlamento, 
no  curso  superior  de  lettras,  e  deante 
da  mesa  da  escripta.  Improvisador  sem- 
pre—  o  seu  grande  segredo;  porque, 
bem  sabem,  que,  até  nas  paginas  de 
um  livro  de  larga  meditação  e  por  mais 
abafado  que  alli  pareça  estar,  nunca  o 
fogo  sagrado  do  improviso,  nos  previ- 
legiados  talentos  que  dispõem  d' esse 
dote,  deixa  de  romper  em  clarões  vivifi- 
cantes. 

Quando  elle  se  estreou,  a  impressão 
romântica  dominava  o  espirito  da  epo- 
cha.  Dados  os  primeiros  passos  e  ganhos 
os  primeiros  triumphos,  elle  conseguiu 


112  LISBOA  DE  HONTEM 

logo  depois  que  um  romance  portuguez 
disputasse  era  popularidade  a  estimação 
só  concedida  n'esse  tempo  ás  attrahen- 
tes  novellas  históricas  de  Alexandre  Du- 
mas. 

Com  que  anciedade  se  procuravam 
na  Revista  Universal  Lisbonense  os  capí- 
tulos soltos  da  Mocidade  de  D.  João  V, 
que  pela  frescura  e  graça  do  estylo  não 
só  mereceu  a  admiração  da  gente  que 
faz  a  barba,  mas  a  sympathia  espontâ- 
nea e  enthusiastica  das  doces  creaturas 
que  a  phraseologia  de  então  ainda  cha- 
mava galantemente  a  mais  hella  porção 
da  humanidade. 

Mas,  o  que  foi  sobretudo  raro,  afluên- 
cia, o  aroma  de  poesia,  todos  os  dotes 
emfim  que,  n'aquelle  afamado  romance, 
Jhe  alcançaram  tão  justa  voga,  encon- 


LISBOA  DE  HONTEM  il3 

travam-se  ainda  e  sempre  com  a  mesma 
força,  a  mesma  inspiração,  a  mesma 
descripção  opulenta  e  florida  nos  seus 
últimos  livros,  que  nunca  aliás  ganha- 
ram celebridade. 

Quando  elle  appareceu,  a  moda  era 
querer  ser  cada  contista  —  um  pintor  do 
coração  humano.  Sempre  entre  nós  se 
tem  gostado  d'esta  phrase,  e  por  isso  a 
deixo  ir  tal  qual,  comquanto  a  mim  se 
me  figure  risivel.  E  um  infeliz,  esse  po- 
bre coração  humano,  de  quem  toda  a 
gente  tem  abusado  escandalosamente  na 
imprensa.  O  coração  humano  de  quem? 
o  coração  humano  de  que?  Creio  que 
também  tenho  coração,  eu;  e  que  o  lei- 
tor também  tem  coração;  e  o  meu  vizi- 
nho, outro;  e  outro  o  seu  vizinho;  e  que 
toda  a  gente  tem  coração  mais  ou  me- 


114  LISBOA  DE  HONTEM 

nos,  mas  sem  coração  humano:  aliás, 
quantos  romances  se  incumbiram  de 
descrever  o  dito  coração,  teriam  todos 
de  seguir  o  mesmo  molde! 

O  romance  é  o  homem,  —  e  ahi  está 
talvez  a  explicação  de  haver  tantos  ro- 
mances maus,  e  serem  tão  raros  os  que 
se  citam  por  excellentes. 

Ha  romancistas  de  analyse,  romancis- 
tas de  imaginação,  e  até  romancistas  de 
acontecimento,  de  caso,  de  drama:  não 
escrevem,  contam,  ajudam  a  matar  o 
tempo,  entretém;  ha  também  romancis- 
tas Íntimos,  como  foi  por  essa  epocha, 
Barbosa  e  Silva,  no  Viver  e  soffrer;  e 
romancistas  históricos,  que  foi  ao  que 
Rebello  da  Silva  se  propoz,  por  enten- 
der decerto  que  chegara  a  hora  de  reco- 
lher as  Iradiccões. 


LISBOA  DE  HONTEM  115 

EUe  gostava  do  romance  de  imagina- 
ção, e  nunca  abandonou  essas  predilec- 
ções no  romance  histórico.  O  seu  gosto 
era  vir  como  um  amigo  intimo  visitar  o 
leitor  sem  se  embuçar  n''um  capote  e 
sem  se  embrulhar  n'uma  nuvem;  vir 
conversar,  mudando  de  tom,  risonho, 
cáustico,  sensivel:  fazer  o  romance  de 
sentimento,  que  de  certa  maneira  é  já 
historia, — a  historia  de  uma  existência, 
de  uma  paixão :  —  mas  a  vida  portu- 
gueza  principiava  a  não  ter  feição  pró- 
pria e  sua;  começávamos  a  fazer  tudo 
á  moda  estrangeira,  imitando  constan- 
temente a  França  no  modo  de  pensar, 
de  fallar,  de  trajar,  de  sentir:  e  elle,  por 
ver  que  se  iam  apagando  cada  vez  mais 
os  costumes  e  esmorecendo  o  gosto  pela 
pintura  d'elles,  entendeu  que  o  romance 


116  LISBOA  DE  HOMEM 

histórico  era  o  único  romance  possível 
em  Portugal,  mas  realisou-o  a  seu  modo 
fazendo  concessões  ás  suas  tendências 
de  homem  de  imaginação  fugaz,  como  o 
foi  sempre  em  tudo,  nâo  só  no  romance, 
mas  no  jornal,  no  parlamento,  na  vida. 
Primoroso  como  orador.  Gomo  con- 
versador fluentissimo,  brilhante,  inex- 
gotavel,  mas  esquecendo-se  um  pouco 
ás  vezes  e  alargando-se  em  dicursos 
que  nâo  eram  propriamente  o  que  cons- 
tituo conversação,  superiores  a  ella  tal- 
vez, mas  que,  em  todo  o  caso,  de  al- 
gum modo  a  transformavam  n'um  longo 
ainda  que  admirável  monologo,  que  fa- 
^ia  lembrar  o  discorrer  de  Angelo  Ma- 
lipieri  com  a  cómica  Tysbe  no  meio  da 


rua! 


Como  artista,  e  por  amor  do  pitoresco 


LISBOA  DE  HOMEM  117 

era  capaz  de  moer  um  homem,  de  o  es- 
trafegar.  de  o  aniquilar,  de  espalhar  ao 
vento  as  suas  cinzas,  e  depois  caindo  em 
si,  serenando  da  fúria  da  palavra,  cho- 
rar por  elle  com  sinceridade  vehemente 
dum  admirador  .  .  . 

Guerreou  Rodrigo  da  Fonseca  Maga- 
lhães no  jornal  A  imprensa  atrozmente, 
horrivelmente;  e  toda  a  genle  lhe  ouviu 
por  muitas  vezes  exaUar  o  talento,  a 
graça,  o  encanto  especial  d'aquelle  espi- 
rito e  d'aquelle  temperamento: 

—  Bom  homem !  dizia  elle  de  Rodrigo 
quando  contava  o  caso  e  recordava  epi- 
sódios em  que  pudera  avalial-o.  Bom! 
excellente  homem!  ninguém  gosta  tanto 
d'elle  como  eu! 

E,  recolhido  em  si,  entregava-se  ao 
poor  Jorik !  de  Hamlet. 


118  LISBOA  DE  HONTEM 

Teve  sempre  UQia  paixão  e  sempre 
se  sacrificou  a  parecer  ter  outra ;  a  das 
leltras  era  verdadeira.  A  da  politica. . . 
Em  politica  era  um  phantasista ;  e  cus- 
tou-lhe  essa  phantasia  bens  e  saúde. 
Foram  tristes  os  últimos  tempos  da  sua 
vida.  No  jantar  do  seu  ultimo  dia  de  an- 
nos,  sentiu-se  como  que  o  frio  dos  pres- 
ságios, no  sorriso  com  que  elle  acolheu 
a  saúde  que  se  lhe  fez.  Estavam  á  mesa 
unicamente  a  familia,  uma  filha  do  sr. 
Rodrigo  Felner,  o  velho  actor  Theodo- 
rico,  Jayme  Moniz,  e  eu.  Custava-lhe  já 
excessivamente  a  fallar,  e  deixava  trans- 
parecer a  tristeza,  que  elle  de  ordinário 
disfarçava  com  tanto  cuidado. 

Já  iam  longe  os  triumphos  do  Ráusso 
por  Homisio,  da  Tourada  de  Salvaterra, 
e  da  Mocidade  de  D.  João  V. . .  E  de- 


LISBOA  DE  HONTEM  119 

pois  a  doença,  a  solidão  que  estranham 
os  que  saem  do  poder,  as  surprezas  da 
astúcia,  as  da  ingratidão  . . . 

Talento  vivaz,  talento  fluente  mais  que 
todos,  e  mais  qne  todos  lúcido !  Ensaio 
gigantesco  que  Deus  fez!  Foi  sempre 
este  o  effeito,  que  este  homem  de  gran- 
des qualidades  produziu  a  todos  que  o 
conheceram.  Veiu  ao  mundo  destinado 
aos  triumphos  da  palavra,  da  escripta, 
da  politica,  do  professorado.  Como  que 
lhe  tiritava  o  talento  n'aquelle  corpo 
frágil,  e  a  chamma  sagrada  pairava  en- 
tregue aos  ventos,  sempre  gloriosa  e  es- 
plendida nas  lutas,  parecendo  defendida 
pelo  7ioli  me  tangere  dos  poetas . . . 

Quando  a  idéa  da  associação  irrompeu 
em  Portugal,  os  litteralos  soffreram  um 
pequeno  abalo,  porque  as  attenções  des- 


120  USBOA  DE  HOXTEM 

denharam-os  durante  um  tempo  e  volfa- 
ram-se  exclusivamente  para  os  corajosos 
iniciadores  d'aquelle  grande  e  útil  pen- 
samento. 

Os  que  se  riam  du  progresso,  riam-se 
também  da  associação.  Mas  quê!  A  vi- 
ctoria  parecia  decisiva.  Era  uma  febre 
nervosa,  uma  preocupação  indomável. 
Associação!  Associação!  Associação!  Foi 
a  idéa ;  foi  a  palavra.  Esperava-se  tudo 
d'ella.  x\ssociação!  Parecia  chegada  a 
hora  em  que  o  rec:imento  mor  dos  des- 
herdados  poderia  sacudir  de  vez  o  fardo 
secular,  que  lhes  tem  pesado!  Já  se  dei- 
tavam contas  a  que  o  povo  que  soffre, 
que  trabalha,  que  aguenta  o  peso  do 
dia,  o  vento,  a  chuva,  o  calor,  tivesse 
também  o  seu  quinhão  de  regalias . . . 

Mas  o  problema  era  difficil  de  resolver; 


LISBOA  DE  MONTEM  121 

difficil  continuou  a  ser.  Agora  mesmo 
que  eu  estou  escrevendo,  bem  sentado, 
está  um  pedreiro,  a  caiar  uma  casa, 
encarapitado  no  parapeito  da  janella, 
segurando-se  ninguém  sabe  como,  mal 
podendo  assentar  os  pés,  e  exposto  ás 
ventanias;  se  o  pedreiro  pozer  um  pé 
em  falso,  se  tiver  um  momento  de  des- 
cuido, de  esquecimento,  de  distracção, 
estará  perdido,  irá  bailar  á  rua.  Porque 
será  elle,  e  nfio  eu? 

Porque  é  lei  da  natureza  a  desigual- 
dade ? 

D'aquellas  duas  arvores  que  estão 
acolá,  porque  motivo  é  maior  a  da  di- 
reita do  que  a  da  esquerda,  mais  co- 
pada, mais  alta,  mais  rica?  Qual  será 
o  destino  que  marca  áquella  roseira 
finar-se  e  murchar,  emquanto  esta  d'a- 


122  LISBOA  DE  HONTEM 

qui  viceja  e  triumpha  em  todo  o  explen- 
dor  e  em  todo  o  desabrochar  das  flores? 

Pode  o  homem,  mais  fehz  que  a  ar- 
vore e  a  flor,  remediar  ás  vezes  por  a 
vontade  e  pelo  trabalho  a  desigualdade 
de  origem  e  de  meios ;  mas  é  custoso,  e 
da  maior  parte  das  vezes  não  se  con- 
segue; o  problema  subsistiu,  subsiste 
ainda,  doloroso,  ralando  em  meditações 
os  mais  pacientes;  a  associação  não  ha- 
veria podido  nunca  resolvel-a,  mas,  o 
que  não  é  pouco,  podia,  e  pode,  por 
vezes  attenuar-lhe  a  aspereza  e  as  tris- 
tezas. 

Appareceu  então  o  jornal  de  Sousa 
Brandão  e  Lopes  de  Mendonça,  Ecco  dos 
Opperarios.  Mendonça  andava  n'uma  ale- 
gria extrema.  Com  que  orgulho  elle  apre- 
sentava os  seus  collaboradores,  Chaves, 


LISBOA  DE  HOiNTEM  123 

e  Vieira  da  Silva!  Iam  ás  tardes  ao  Pas- 
seio Publico,  ao  Martinho,  ao  Suisso, 
e  Mendonça  revia-se  n'elles.  Vieira  da 
Silva  foi-lhe  sempre  sympathico ;  muitos 
annos  depois  d'essa  epoclia,  Mendonça, 
que  se  animava  e  perdia  em  sonhos  côr 
de  rosa,  sempre  bons  e  propicios  aos 
seus  amigos,  sentimento  que  o  distin- 
guiu em  todo  o  tempo  que  esteve  no 
gozo  e  segurança  das  suas  faculdades,  e 
que  ainda  o  acompanhou  por  entre  as 
primeiras  perturbações  da  loucura,  di- 
zia-me  n'uma  manhã: 

—  A  minha  idéa  é  fundar  uma  typo- 
graphia,  pôr  á  frente  d'ella  o  Vieira  da 
Silva,  e  fazer-me  editor  de  algumas 
obras.  Isto  é  principalmente  por  ter  em 
vista  o  Vieira,  que  eu  desejo  ver  coUo- 
cado  por  modo  que  possa  viver  com  de- 


424  LISBOA  DE  HOMEM 

safogo  e  occupar-se  de  trabalho  de  que 
elle  goste  e  entenda! 

N'esse  tenopo  o  edilor  em  Portugal 
era  como  a  ave  Phenix,  de  que  toda  a 
gente  falia  e  que  ninguém  viu  nunca. 
Apenas  dois  homens  asseguravam  que 
isso  existia,  Garrett  e  Alexandre  Hercu- 
lano; mas.  quando  se  queria  verificar, 
era  impossível:  dizia-se  «ali  para  o 
Chiado,  á  esquina  ou  cousa  assim,  de 
uma  travessa  perto  da  egreja  dos  Mar- 
tyres,  uma  loja,  uns  velhos,  muito  hon- 
rados, uns  occulos  .  .  .  E  nada  mais,  o 
o  muito,  o  muito,  este  nome — ^Ber- 
trands ...»  loja  escura,  casa  incerta, 
tudo  vago  .  .  . 

Lopes  de  Mendonça  não  chegou  in- 
felizmente a  realisar  nem  esse,  nem  ou- 
tros dos  seus  sonhos:  mas  logrou  uma 


LISBOA  DE  HONTEM  42õ 

alegria,  alegria  verdadeira  para  aquelle 
temperamento  nobre  e  são ;  fòi  ã  de  au- 
xiliar, celebrando-os,  quantos  em  Portu- 
gal se  interessaram  de  coração  n  essa 
épocha  pelo  espirito  e  destinos  das  clas- 
ses operarias. 

A  associação  em  Portugal  teve  os  seus 
fanáticos,  e  os  seusmartyres,  e  até,  para, 
não  escapar  á  sorte  das  grandes  reuniões 
e  por  obedecer  aos  preceitos  de  uma  épo- 
cha em  que  a  habilidade  é  tudo,  os  seus 
hábeis.  Essa  habilidade  ainda  assim  não 
foi  nunca  mais  longe  do  que  a  grangear 
a  algum,  um  pouco  mais  ambicioso,  po- 
der brilhar  melhor  na  associação  do  que 
se  estivesse  sósinho,  ficando  a  parecer-se 
n'isso  com  os  diamantes,  que  devem  sem- 
pre o  brilho  á  luz  a  que  estão  expostos 
e  que  reflectem. 


126  LISBOA  DE  HOMEM 

Mas  isso  mesmo  era  bom,  e  d'ahi  po- 
deria vir  bem :  era  incentivo,  gosto  pe- 
las cousas  úteis,  desejo  de  se  distinguir 
por  ellas. 

Quando  mesmo  se  chegue  a  ser  n'isso, 
como  outros  o  são  por  esse  mundo,  cada 
um  no  seu  ramo,  um  pouco  frigideira^ 
o  resultado  para  o  adiantamento  e  para 
os  interesses  da  causa  não  tem  que  pe- 
rigar n'isto  como  n''outras  especialida- 
des; pelo  contrario,  os  que  o  nâo  pare- 
cerem um  pouco,  serão  indifferentes,  e 
constituir-se-hão  surdamente  e  mole- 
mente emprejudiciaes;  ou  serão  inimigos 
sem  ninguém  saber  porque,  sem  o  sa- 
berem elles  sequer,  mas  pelo  gosto  de 
empecer,  de  desacreditar,  de  destruir: 
ha  gente  que  vem  ao  mundo  para  negar 
tudo ;  começaram  por  negar  a  divindade 


LISBOA  DE  HOMEM  127 

de  Jesus-Ghristo,  e  depois  racionalismo, 
positivismo,  pantheismo,  naturalismo, 
critica,  até  chegar  ao  doce  desafogo  de 
chamar  tolos  aos  que  se  interessam  por 
alguma  cousa,  que  se  dediquem,  que 
tenham  fé,  que  trabalhem  .  .  . 

Por  isso  um  ou  outro  não  entendeu 
bem,  que  a  associação  podesse  ser  o 
espirito  e  a  Índole  d'este  tempo. 

Os  descrentes  não  eram  simplesmente 
teimosos;  de  ordinário  não  se  é  assim  de 
nascença:  principia  a  cousa  por  uma 
borbulhinha  e  alastra  depois  pelo  corpo 
todo;  é  raspar  a  unha  nos  queixosos, 
que  se  dão  mal  com  tudo,  e  de  tudo  e 
de  todos  têem  que  murmurar,  e  quasi 
sempre  se  acha  logo  um  ambicioso  maior 
ou  mais  pequeao,  que  não  acertou  no 
tiro,  e  que  se  vinga  a  querer  queimar  o 


128  LISBOA  DE  HONTEM 

que  nâo  pode  tomar  seu  ou  o  que  ado- 
rou em  vão. 

E  assim  em  tudo.  Nmiea  se  ha  de  ver 
cônjuges  felizes  quererem  divorciar-se, 
nem  ouvir  patentes  grandes  queixa- 
rem-se  da  dureza  do  serviço  militar: 
nâo  são  as  formosas  que  se  conspi- 
ram contra  a  injustiça  da  natureza, 
que  dividiu  o  mundo  feminino  em  dois 
repartimentos  deseguaes,  de  um  lado 
as  bonitas  e  do  outro  as  feias;  de 
certo  que  não  seria  José  Estevão  quem 
se  queixasse  do  império  da  palavra 
para  dominar  as  multidões;  não  será 
Carlos  Bento  que  reprehenda  a  camará 
por  admirar  a  finura  e  o  aticismo  de 
um  epigramma,  que  faça  ás  vezes  a 
philosophia  de  uma  situação  melhor 
e  mais  profundamente  do  que  largos 


LISBOA  DE  HO.MELM  129 

discursos  pesadões;  e  D.  João  é  de  pa- 
recer que  as  mais  suaves  divindades, 
os  entes  mais  perfeitos  da  creação,  são 
as  mulheres,  por  gostarem  d'elle. 

Quem  é  mocho  é  que  se  dá  mal  com 
tudo,  e  tem  ódio  á  sociabilidade.  Con- 
vém na  opinião  d'esses  sujeitos  enclau- 
surar-se  um  homem,  beber  agua,  comer 
ervas,  deitar-se  ás  Ave-Marias,  empre- 
gar o  dia  em  cousas  de  interesse  próprio, 
e  ser  a  todos  os  respeitos  de  uma  mori- 
geração  própria  para  dar  exemplo  ao 
mundo;  sem  isso,  na  opinião  d'elles, 
nunca  se  chega  a  qualquer  cousa  pa- 
recida com  o  ser  gente;  amor,  paixão, 
prazer, — isso  mesmo  são  associações  e 
inspiram-lhes  tédio .  .  .  Alguns  levavam 
o  ódio  pela  associação  a  não  quererem 
sequer  a  da  familia.  Foi  por  elles  que 

9 


130  LISBOA  DE  HONTEM 

se  espalhou  que  não  ha  cousa  melhor 
que  nâo  gostar  de  ninguém,  senão  cada 
um  de  si,  e  isso  já  é  boato  velho  que 
mais  ou  menos  agradou  sempre, — a 
prova  é  que  os  antigos  pasmaram  da 
celebre  associação  pequena  de  dois  ami- 
gos, e  mais  eram  irmãos,  e  mais  eram 
gémeos:  e,  maravilhados  de  ver  que 
nunca  tiveram  bulhas  e  sempre  se  de- 
ram bem,  elevaram-os  ao  posto  de  deu- 
ses, e  puzeram-03  em  evidencia,  em 
constellação,  para  os  mostrarem  ás  as- 
sociações futuras:  Castor  e  PoUux!  .  .  . 
Tudo  isto  acabava  sempre  por  ir  pa- 
rar aos  gracejos  do  thealro.  Nada  es- 
capava á  farça  e  ás  cópias.  Até  os  anda- 
dores  das  almas  tiveram  de  brincar  no 
tablado!  Coitados:  como  que  ainda  se 
ressentem  d'isso. 


Lisboa  de  hontem  i3i 

— Para  as  almas!  diziam  estendendo 
a  bandejinha. 

E  por  conservar-se  o  costume,  davam- 
Ihe  alguns  os  seus  cinco  réis  para  ajudar 
as  despezas  da  missa  da  madrugada,  em 
que  se  pede  pelos  mortos  para  aliviar  as 
suas  almas  se  estiverem  no  purgatório . . . 
Com  o  lemhrarem-se  das  almas,  mais  se 
lembrava  cada  qual  da  sua,  dando-lhe 
fesmola.  Se  até  as  plantas  nos  sitios  em 
que  tudo  é  sombra  se  voltam  para  o 
ponto  de  onde  emana  a  luz,  quanto  mais 
nós  que,  por  mais  ás  escuras  que  este- 
jamos, sentimos  a  alma  precipitar-se  por 
instincto  para  o  sói  da  luz  eterna !  Entre- 
tanto, desde  a  parodia  que  tanto  diver- 
tiu Lisboa,  os  próprios  que  dão  esmolla 
agora,  como  que  se  lembram  do  Tabor- 
da, e  mostram  um  signal  de  riso  . . . 


132  LISBOA  DE  HONTEM 

—  Para  as  almas !  diz  o  pobre  anda- 
dor.  E,  ao  affirmar-se  na  cara  que 
alguns  fazem  a  procurar  o  troco  na 
algibeira,  também  elle  poderia  rir-se,  e 
TÍr-lhe  á  idéa  que  para  muitos  esse  mo- 
mento é  que  é  o  verdadeiro  sacrifficio  da 
missa ! 

Mas  não  se  ri. 

Deixa  que  moffem  d'elle,  um  ou  outro 
dos  que  passam ;  e  pensa  de  si  para  si : 

—  Com  o  irem-se-lhes  as  illusôes, 
com  o  perderem  os  que  amarem,  elles 
chegarão  ás  tristes  horas  de  solidão,  á 
fria  aridez  do  abandono,  e  hãode  incli- 
nar-se  então  para  a  egreja,  e  perceberem 
que  só  as  preces  podem  restituir,  pela 
actividade  da  resignação,  a  energia  hu- 
mana e  christã ...  Ah  1  Elles  riem-se, 
e  lembram-se  do  Taborda .  . .  Para  cá 


LISBOA  DE  HONTEM  133 

virão,  quando  a  morte  lhes  roubar  os 
que  estimam!  Então  me  darão  esmoUa 
sem  se  rirem,  quando  eu  lhes  disser: 
—  Para  as  almas. 

Odiaram  o  Taborda  durante  annos. 
Não  sei  se  esse  ódio  lhes  passou,  com  o 
passar  a  peça.  Taborda  levou  a  malicia 
a  ir  conversar  todos  os  dias  com  o  anda- 
dor  dos  Martyres,  ao  tempo  dos  ensaios 
da  peça. 

Quem  passava  pelo  Chiado  das  oito 
horas  para  as  nove,  via-os  no  adro  con- 
versando : 

—  Aquelle  é  o  Taborda?  diziam  as 
senhoras,  pasmadas  de  o  verem  ali  de 
caturreira  com  o  andador. 

—t  o  Taborda,  é! 

E  elles  a  conversarem ...  a  conver- 
sarem . . . 


134  LISBOA  DE  HONTEM 

O  riso  foi  n'essa  épocha  a  dominante, 
como  se  diz  na  musica.  Dos  homens 
mais  eminentes  de  então,  só  um  talvez 
escapou  ao  que  o  povo  chama  a  chalaça: 
foi  Alexandre  Herculano.  Não  foi  verda- 
deiramente o  seu  talento  inventivo  o  que 
produziu  uma  admiração  profunda;  di- 
zia-se  que  o  ponto  de  partida  do  Euriso 
era  o  mesmo  de  Jocelyn,  o  celibato  do 
clero  catholico,  e  a  imaginação  fugia 
tainbem  para  o  René;  mas  a  obra  reve- 
lava uma  tão  admirável  superioridade  de 
estudo,  a  épocha  da  destruição  da  mo- 
narchia  goda  na  Ilespanha  pela  invasão 
árabe  o  os  costumes  e  caracter  social, 
eram  apresentados  com  tal  feição  de  au- 
thenlicidadc,  que  as  tendências  anfiqua- 
rias  fulgiram  n'um  extaze  de  enthusiasmo 
e  aclamaram  o  grande  pensador  e  grande 


USBOA  DE  HOMOÍ  135 

investigador  como  um  deus.  Sem  que  a 
politica  entrasse  de  nenhum  modo  nos 
seus  escriptos,  Herculano  teve  o  poder 
de  despertar  no  paiz,  e  notavelmente  nos 
portuguezes  que  no  Brazil  viam  de  longe 
a  pátria  á  luz  da  sua  saudade  e  do  seu 
amor  natal,  uma  febre  de  adoração  com- 
parável apenas  á  que  em  Itália  se  tem 
consagrado  a  Garibaldi.  Foi  um  escri- 
ptor  que  teve  influencia  litteraria:  não 
teve  leitores  e  admh*adoreSj  teve  fanáti- 
cos. Ninguém  melhor  do  que  elle  conhe- 
cia a  historia,  nem  encontrava  n^ella  com 
maior  profundidade  a  nota  philosofiea. 
Era  um  homem  fadado  para  a  lucta; 
fora  soldado,  expuzera  a  vida,  tinha  o 
fogo  supremo  das  convicções,  e  a  inven- 
civel  tenacidade  de  um  caracter  valente, 
severo,  e  desprendido  em  tudo  e  sempre 


136  LISBOA  DE  HOMEM 

das  ambições  e  ufanias  a  que  teem  sa- 
criticado  quasi  sempre  em  Portugal  os 
grandes  e  os  maiores. 

Outros  dois,  lidaram  tanto  como  elle, 
e  consagraram  ás  lettras  quanto  amor  po- 
deram ;  Garrett,  e  Castilho ;  Garrett  viveu 
mais  ou  menos  contente,,  da  sua  terra 
e  da  sua  gente,  porque  tinha  génio  de 
nâo  attentar  nas  misérias  do  mundo,  ou 
figurava  talvez  que  não  dava  por  ellas : 
Castilho  viveu  minado  de  desgostos,  de 
perseguições,  de  malquerenças,  de  ódios 
sem  motivo,  de  calumnias,  accusações 
vagas,  punhaladas  á  falsa  fé.  Envenena- 
ram-lhe  a  vida  os  inimigos,  e  os  falsos 
amigos,  que  ainda  mais  o  amarguraram 
com  verdades  e  mentiras  que  iam  repe- 
tir-lhe,  emquanto  elle  consumia  o  tempo 
em  trabalhos  úteis  perturbados  sempre 


LISBOA  DE  HONTEM  137 

pela  damnada  briilalidade  dos  ingratos 
e  dos  ruins. 

A  morte,  por  que  assim  diga,  salvou-o. 
Foi  curioso  o  effeito  de  perspectiva  que 
ella  produziu. — bastou-lhe  um  momento 
para  transfigurar  tudo  e  coUocar  o  poeta 
n'uns  longes  completamente  favoráveis, 
apagando  qualquer  leve  senão,  perante 
â  grandeza  da  sua  vida  e  da  sua  obra, 
e  restituindo-lhe  inteira  a  magestade  au- 
gusta e  serena,  que  tantas  vezes  se  tinha 
feito  diligencia  de  empanar. 

Nada  d'isso  serviu  de  lição,  nem 
prestou  para  exemplo.  O  paiz,  indiffe- 
rente  e  frio,  vae  sendo  o  mesmo.  Im- 
pressões de  momento  pela  falta  de  um 
homem  de  lettras  que  ninguém  em  Por- 
tugal substituiu:  mas,  impressões  de 
momento,  como  quando  se  vê  uma  pes- 


138  LISBOA  DE  HOMEM 

soa  c^^ir  ao  mar.  Eterna  historia  1  Es- 
tão os  passageiros  na  tolda  a  passear, 
ouvem  a  bulha  de  uma  queda,  debru- 
çam-se  para  vêr,  perguntam  como  foi 
isso,  dizem  uns : 

—  Forte  cousa !  Que  desgraça ! 
Outros : 

—  Coitado ! 

E  o  homem  merguHia,  apparece  ainda; 
chama .  .  . 

Depois  o  navio  continua  no  seu  ru- 
mo..  . 

Depois  os  passageiros,  encostados, 
olham  para  a  agua,  depois  para  o  ceu, 
depois  uns  para  os  outros;  e,  conver- 
sando : 

— íamos  nós  dizendo .  .  . 

Os  homens  de  talento  em  Portugal 
teem  tido  sempre  por  destino  não  inte- 


LISBOA  DE  HONTEM  139 

ressar  ninguém.  Falla-se  d'elles,  diz-se 
que  tcem  merecimento,  mas  nunca  ha 
quem  trate  de  os  ajudar  como  se  elles 
fossem  outra  cousa,  se  tivessem  um  ne- 
gocio qualquer,  uma  loja,  e  quebras- 
sem .  .  .  Tem-se  raiva  á  superioridade, 
entre  nós ;  e,  nâo  contentes  de  deixarem 
ir  entregues  ao  seu  mau  fado,  os  que 
forem  superiores,  amarguram-os  ás  ve- 
zes por  gosto  e  recreio,  promovem-lhes 
guerras,  espalham  boatos,  cruxificam-os; 
depois  quando  os  vêem  mortos,  vão  até 
ao  cemitério, — nunca,  assim  mesmo,  em 
tão  numerosa  aílluencia  como  quando  lia 
tropa  —  e,  chegados  lá,  querem  ainda 
fazer  render  o  morto : 

—  Quem  falia? 

—  Então  ninguém  falia? 

—  Não  ha  discursos  ? ! ! 


140  LISBOA  DE  HO.XTEM 

—  Homem !  Essa  agora ! . . . 

Nunca  em  vida  o  auxiliaram,  nunca  lhe 
quizeram  verdadeiran^ente  bem,  nunca  o 
defenderam :  pelo  contrario  lhe  fizeram 
de  vez  em  quando  as  pirraças  possiveis : 
mas,  n'aquelle  dia  todos  os  louvores 
lhes  parecem  pouco  e  pedem  algumas 
flores  de  eloquência  á  beira  da  sepul- 
tura . . . 

Quando  Castilho  deu  uns  saraus  ht- 
terarios,  ensinando  as  creanças  a  lêr, 
instruindo-as  e  recreando-as,  ia  lá  de 
tempos  a  tempos  uma  cambada  de  ta- 
fues  desgostal-o,  afiligil-o.  Ha  gente. em 
quem  os  sentimentos  ruins  nascem  como 
bichos,  não  engendrados  por  fora,  mas 
concebidos  e  a  ferverem  na  podridão  in- 
veterada da  sua  substancia. 

EUe  nunca  poude  entender-se  de  todo 


LISBOA  DE  HO^TEM  i41 

bem  com  o  mundo ;  a  acção  que  exerceu 
sobre  a  mocidade,  foi  grande  nos  pri- 
meiros tempos;  nos  últimos  annos  quasi 
nenhuma, — ella  aggrediu-o  por  vezes, 
e  elle  a  ella:  foi  a  única  relação  que  ti- 
veram. 

O  maior  miai  proveiu  talvez  de  não 
poder  existir  afinidade  entre  o  poeta 
cego,  e  a  maior  parte  da  gente,  creatu- 
ras  de  feliz  espirito,  que  não  se  deixam 
surprehender  pelas  visões,  pelas  chime- 
ras  sublimes,  pelas  angustias  mysterio- 
sas  que  minam  e  devoram  as  almas  dos 
poetas.  E  elle  era  propriamente  poeta; 
até  no  que  se  reputavam  inconsequen- 
cias  suas,  caprichos ;  males  imaginários, 
que  tantas  vezes  iam  dar  em  dores  ver- 
dadeiras. 

Depois,  a  humanidade  tem  horas  em 


142  LISBOA  DE  HOXTEM 

qne  é  másinha.  Havia  de  vez  em  quando 
um  ou  outro,  por  quem  elle  fizera  o  que 
havia  podido  —  e  ninguém  era  mais 
dado  a  empenhar-se  e  a  trabalhar  pelos 
outroSj — que,  n'um  bello  dia,  o  encon- 
trava pela  rua,  dando  o  braço  a  um  pe- 
queno, a  um  criado,  e  ás  vezes  a  um 
de  seus  filhos.  Então,  para  não  estar  a 
demorar-se,  para  não  ter  que  ir  apertar 
a  mão  amiga  e  illuslro  d'aquelle  velho, 
o  sujeito,  logo  que  o  avistava,  sumia-se. 

Castilho  não  o  via.  coitado:  daria  elle 
alguma  coisa  para  isso.  por  pouco  que 
o  outro  tivesse  que  ver:  mas  via-o  a 
pessoa  que  acompanhava  o  poeta  e  que 
lhe  dizia: 

— Vem  ali  o  sr.  fulano! 

N'isto,  o  fulano  dosapparecêra. 

E  o  outro : 


LISBOA  DE  HOMEM  143 

—Quando  digo  vem,  vinha . . . 

— E  então? 

—  E  então  viu-nos  e  metteii-se  para 
a  travessa ... 

Caslilho  desde  esse  dia  derprezava 
aqiielle  homem;  é  natural;  e  quando  al- 
guma occasião  tivesse  de  exprimir  a  res- 
peito d'elle  um  sentimento  de  desdém, 
de  desestima,  ainda  o  mundo  o  accu- 
sava  a  elle  e  o  arguia  de  sentir  d'esse 
modo,  tendo-se  interessado  tanto  pelo 
homem  n'outros  tempos: 

— Vão  lá  fiar-se ! 

Os  dissabores  azedaram-lhe  o  cara- 
cter, e,  uma  vez  olíendido,  Castilho  não 
perdoava.  Ás  vezes  ia  até  á  exageração 
do  despeito.  De  mais  a  mais  linha  muita 
graça,  graça  conceituosa,  e  também  graça 
violenta;  em  lhe  convindo  fazia-a  va- 


144  LISBOA  DE  HONTEM 

ler.  A  Tosquia  de  um  camelo  é  formi- 
dável. 

A  conversar  era  prodigioso.  Por  sen- 
timento de  artista  a  sua  palavra  tinha  a 
força  de  uma  arma,  que  atirasse  o  ini- 
migo ao  riso  vingador;  e  nos  chistes 
singelos  da  conversação  amável,  nin- 
guém o  excedia  em  faciUdade  e  em  es- 
pirito. De  uma  occasião,  por  exemplo  — 
citodhes  isto  a  propósito  de  espirito  e 
facilidade  —  tendo-se  mudado  para  a 
rua  Nova  de  S.  Francisco  de  Paula,  fui 
ali  vêl-o.  Andava-se  a  arrumar  os  li- 
vros: estava  lá.  visitando-o  o  antigo 
prior  de  Santa  Isabel,  de  quem  Casti- 
lho era  muito  amigo.  lam-se  tirando  os 
jivros  dos  balius,  dizia-se  o  titulo  da 
obra,  e  o  poeta  indicava  em  que  armá- 
rio c  junto  de  que  outras  obras  deveria 


LISBOA  DE  HONTEM  li5 

aquella  ser  collocada.  Por  entretimento 
e  para  concorrer  na  lida,  o  prior  e  eu 
ajudámos  esta  tarefa. 

N'isto  o  prior,  sobraçando  nâo  sei 
quantos  volumes,  perdeu  os  óculos: 

—  Mau!  disse.  > 
E  parou. 

— Que  foi?  perguntou  o  visconde. 
— Estou  bem  aviado.  Perdi  os  ócu- 
los! 

O  poeta  sorriu-se : 

—  Procura,  dizem  que  tudo  se  acha 
nos  livros!  Lá  devem  estar! 

Foi  sempre  e  até  á  ultima  um  lida- 
dor litterario.  Também,  como  Alexandre 
Herculano,  não  ajoelhou  nunca  deante 
da  fortuna  para  ella  o  enfeitar  com  os 
laços  da  sua  côr,  nem  quiz  outra  cousa 
senão  ir  cumprindo  a  sua  missão  de 

10 


146  LISBOA  DE  HONTEM 

poela  n'este  mundo;  mas  Herculano  era 
um  solitário,  e  um  austero;  e  Castilho 
comcpanto  mal  lhe  chegassem  aos  ou- 
ndos  os  rumores  do  dia,  as  mtorias, 
disputas,  intrigas,  derrotas  e  calumnias 
da  vida  publica,  não  logrou  as  vanta- 
gens da  velha  máxima — esconde  a  lua 
vida  e  espalha  o  teu  espirito ! 

Nunca  ao  lêl-o  se  apercebeu  alguém, 
se  lembrou  sequer  da  idade  que  elle  ti- 
nha; morreu  de  setenta  e  cinco  annos. 
Quê,  annos!  Não  ha  annos  para  ho- 
mens d'aquelles.  A  poeira  amarrota  e 
rasga-lhes  a  certidão  de  idade.  Escrevia 
ainda  com  tanta  frescura  como  nos  dias 
em  que  o  tempo  sorria  á  sua  juventude. 
O  amor  era  o  sói  da  sua  alma :  alumia- 
va-lhe  as  profundezas,  dava-lhe  calor 
na   superfície,   despertava-lhe  com  os 


LISBOA  DE  HONTEM  147 

seus  raios  a  primavera  que  elle  adivi- 
nhou e  cantou,  transformava  em  flores, 
e  em  borboletas  coloridas  do  matiz  mais 
vistoso,  as  idéas  ingratas  que  por  al- 
gum momento  serpeassemn'aquella  com- 
prida noite  a  que  a  desgraça  o  prendera, 
e  fazia  desabrochar  no  seu  peito  abe- 
lhas que  distillavam  mel,  e  a  que  o  mel 
adoçava  o  ferrão . . . 

Passou  os  seus  dias  a  poetar,  e  os  se- 
rões a  ensinar  as  creanças,  a  ouvir  ler, 
ou  a  escutar  musica.  Por  isso  também  o 
sói  que  lhe  servia  de  luz  não  durava  só 
um  dia;  nem  ia  deitar-se  nas  nuvens, 
como  o  nosso,  ás  vezes  sem  sequer  as 
doirar.  .  . 

Foram  eminentes  como  as  suas  qua- 
lidades litterarias,  os  serviços  que  pres- 
tou ás  letras,  O  que  elle  fazia  da  lingua 


148  LISBOA  DE  HO>ÍTEM 

portugLieza,  como  a  conhecia,  como  se 
entendia  com  ella,  como  a  levava  a  ex- 
pressar tudo  com  os  segredos  do  vigor  e 
da  graça,  sempre  pura,  e  conforme  sem- 
pre ás  leis  inflexiveis  da  belleza  harmo- 
niosa !  E  não  é  o  único  louvor  que  deve 
dar-se-lhe ;  também  Roma  admirou  Te- 
rêncio no  tocante  a  saber  a  sua  lingua 
mais  do  que  qualquer  outro  poeta  latino 
—  sem  exceptuar  Horácio  e  Yirgilio  — 
e,  comquanto  esse  louvor  fosse  grande, 
nâo  considerou  nunca  que  elle  indicasse 
por  si  só  a  valia  absoluta  de  um  gi'ande 
talento.  Quando  se  lêem  as  Georgicas 
pega-se  indiíTerentemente  no  poeta  latino 
ou  no  seu  interprete  portuguez  e  em  am- 
bos se  tem  Yirgilio  á  vista,  a  tal  ponto 
elle  foi  n'esta  obra  traductor  primoroso, 
sem  versos  parasitas,  traduzindo  com 


LISBOA  DE  HONTEM  149 

vida,  fidelidade,  côr,  desenho,  correcção, 
harmonia,  tudo ;  nâo  sei  se  a  musa  que 
favorece  o  berço  dos  poetas  lhe  havia 
concedido  largamente  a  invenção;  não 
sei  também  se  as  suas  traducções  de  Mo- 
liére  foram  impecáveis:  mas  em  todo  o 
caso,  dizer  que  Castilho  sabia  a  sua  Hn- 
gua  e  foi  excellente  traduclor  como  cen- 
tos de  vezes  se  tem  dito  para  não  dizer 
mais  nada,  não  basta :  em  todas  as  suas 
obras  sente-se  um  moralista  e  um  poeta, 
revelando-se  em  conceitos  de  uma  gra- 
vidade penetrante,  profunda,  própria  de 
uma  alma  apaixonada  e  verdadeiramente 
humana ! 

Trabalhou  muito,  e  teve  a  virlude  rara 
de  fazer  sempre  quanto  poude  pelas  let- 
tras,  e  por  todos  em  quem  conheceu  ta- 
lento. 


loO  LISBOA  DE  HONTEM 

Garrett  teria  sido  menos  popular  do 
que  Herculano,  e  do  que  Castilho,  ape- 
sar da  grandeza  rara  do  seu  génio,  ou 
talvez  por  causa  d'isso  mesmo,  se  nâo 
fora  o  thealro.  O  povo  conheceu-o  pelo 
Alfageme  ou  a  Espada  do  Condestavel; 
não  o  conhecia  pelo  Auto  de  Gil  Vicente, 
nem  viria  a  conhecel-o  pelo  Fr,  Luiz  de 
Sousa,  que  nunca  attraiu  publico,  ou 
pela  Sobrinha  do  marquez,  que  foi  pa- 
teada.  Assim  é  a  historia;  e  é  ella  tanto 
assim,  que  na  occasião  em  que  patea- 
ram  esta  peça,  que  é  uma  bellesa,  que 
é  uma  jóia,  Garrett,  que  estava  n'um 
camarote  de  bocca,  debruçou-se  um 
pouco,  e  disse,  n'um  tom  de  voz  que  a 
platéa  ouviu: 

— Pateiem,  bárbaros! 

O  Alfageme  foi  a  grande  peça  portu 


USBOA  DE  HONTEM  lol 

gueza  para  o  publico  do  seu  tempo.  O 
theatro  pôl-a  em  scena  com  esmero, 
mandou  pintores  a  Santarém  para  trasla- 
dar as  vistas,  e  escripturou  cantores  para 
os  coros  e  cópias  do  primeiro  acto.  A 
musa  theatral  deu  a  Garrett  n'essa  épo- 
cha,  como  a  um  amante  querido,  tudo 
que  o  amor  pode  dar;  o  publico  perce- 
beu-o,  admirou-o,  e,  de  akuma  maneira 
ficou  entendendo  mais  vagamente,  ou 
menos  vagamente,  que  aquelle  homem 
linha  o  condão  especial  e  superior  de 
fazer  sempre  grande  tudo  em  que  me- 
chesse . . .  Não  tratou  de  se  informar 
muito  a  seu  respeito,  mas  acreditou  que 
elle  fosse  extraordinário ;  e  depois  cons- 
tou-lhe  que  Garrett  estivera  em  França 
e  em  Inglaterra,  trabalhando,  escre- 
vendo; que  algumas  de  suas  obras  alli 


152  LISBOA  D£  HOiVTEM 

haviam  sido  escriptas  e  publicadas;  que 
era  conhecido^  que  era  considerado  lá 
fora ...  O  estrangeiro  é.  de  algum  modo, 
para  nós  portuguezes.  um  principio  de 
posteridade ... 

Herculano  impunha  mais.  pelo  facto 
de  se  saber  que  era  homem  de  estudos 
austeros  e  ao  mesmo  tempo  de  opiniões 
inabaláveis,  capaz  de  as  defender  quando 
fosse  preciso  com  firmeza  e  com  lógica, 
encostando-se  a  grandes  e  velhos  livros, 
a  uma  papellada  iuimensa  e  riquissima, 
reforçando  isso  com  um  talento  vigo- 
roso, um  raciocinar  seguro,  e  uma  ha- 
bitual reserva  e  isenção  que  ainda  dava 
maior  valor  a  esse  trabalhador  obsti- 
nado e  infatigável,  sempre  á  procura  de 
augmentar  a  sua  erudição,  vivendo  n'um 
casaréo  immenso,  lá  na  Ajuda,,|não  saindo 


LISBOA  DE  HO-NTEM  153 

d'alli  senão  para  ir  á  Torre  do  Tombo. 
Era  o  homem  do  retiro  estudioso,  de 
existência  de  trabalho  desinteressado; 
vida  de  homem  honrado,  consolada  ape- 
nas pelos  gosos  do  estado. 

E  Garrett? 

Garrett,  não.  Garrett  estudara  immen- 
so,  sabia  immenso,  trabalhava  immenso, 
deve-se-lhe  haver  tbeatro  nacional,  foi 
por  si  só,  ellc,  uma  littcratura,  como 
disse  de  uma  vez  Carlos  Bento  n'am  ar- 
tigo, mas,  para  a  opinião,  para  os  me- 
diocres,  o  mesmo  que  dizer  para  quasi 
toda  a  gente,  Garrett  era  um  homem  de 
talento,  mas  perdendo  quasi  todo  o 
tempo  na  elegância  c  nos  amores. 

Erudito,  mas  homem  de  gosto  por 
excellencia,  como  nunca  houve  em  Por- 
tugal, como  difficilmente  tornará  a  ha- 


154  LISBOA  DE  HONTEM 

ver,  Garrett  nem  na  êscripta  nem  na 
vida  tinha  ares  de  gêbo:  o  paiz  era 
gêbo,  e  embirrava  com  isso. 

Quando  se  fallava  de  Garrett,  não  se 
ouvia  logo  dizer  de  todos  os  lados : 

—  Oh !  Que  espirito  brilhante !  Oh  ! 
que  poeta  verdadeiramente  inspirado! 
Oh !  que  artista  prodigioso ! 

Nada. 

O  que  se  ouvia  dizer  era  isto : 
— Oh!  que  homem  tão  affectado!  Tem 
tudo  postiço! 
—Tudo! 

—  Cabellos,  dentes,  barrigas  das  per- 
nas . . .  Até  usa  espartilho ! 

A  elegância  n'es5a  épocha  era  anli- 
pathica.  Dizer  elegância  equivalia  a  d'i- 
zer  Sociedade  do  delírio,  equivalia  a 
dizer  marquez  de  Niza .  .  . 


LISBOA  DE  HONTEM  loo 

O  marquez  de  Niza  espalhava  terror 
em  Lisboa,  como  os  demónios  das  ma- 
gicas espalham  fumo  de  si  quando  sal- 
tam do  alçapão.  Esse  homem  era  para 
quem  o  visse  e  lhe  fallasse  o  typo  do 
gentil-homem  de  raça  e  espirito ;  entrara 
na  vida  por  uma  porta  doirada,  conse- 
guiu levar  em  Lisboa  durante  muitos 
annos  uma  existência  phantastica  e  ca- 
prichosa, foi  o  ultimo  elegante,  o  ultimo 
grande  vivmr  á  grandes  brides,  e  ullimo 
gastador  explendido  e  notável  pelas  ex- 
travagâncias, foi  também  notável  pela 
sagacidade,  pelo  espirito,  e  pela  instruc- 
ção.  A  vastidão  dos  seus  conhecimentos 
collocava-o  mais  subidamente  do  que  na 
simples  estimação  do  cavalheiro  instruí- 
do: andava  já  perto  do  que  se  chama 
um  sábio,  se  é  certo  o  que  d'elle  julga- 


156  LISBOA  DE  HONTEM 

vam  os  competentes,  que  o  conheceram 
bem  e  o  trataram ;  pela  minha  parte  co- 
nheci-o  pouco:  a  edade  abrira  entre  nós 
como  que  um  fosso :  no  tempo  em  que 
elle  mais  floresceu,  era  eu  pequeno,  e, 
quando  entrei  no  que  propriamente  se 
chama  mundo,  ia  elle  já  a  retirar-se.  Era 
homem  de  immenso  espirito,  e  ainda  <|ue 
haja  quem  diga  que  o  espirito  e  o  talento 
andam  ahi  pelas  ruas  a  cada  canto,  a 
verdade  é  que  os  que  dizem  isso  teem  a 
vista  curta;  os  homens  verdadeiramente 
de  espirito  teem  sempre  sido  raros  em 
Portugal;  ha  muito  quem  faça  profissão 
das  coisas,  e  pouco  quem  esteja  no  caso 
de  se  abalançar  a  isso,  a  não  ser  como 
o  uso  tem  auctorisado,  por  filáucia  e  nâo 
por  direito;  tem  havido  trezentos  homens 
a  fazerem  versos,  no  paiz,  e  só  dois  ou 


LISBOA  DE  HONTEM  lo7 

tres  poetas;  todos  teem  servido  aqui 
para  deputados,  e  sempre  se  tem  apon- 
tado a  dedo  algum,  raro,  que  pense  e 
falle.  No  fim  de  uns  poucos  de  annos 
de  vida  elegante,  cortada  nos  ullimos 
tempos,  de  luctas  e  de  difficuldades, 
o  marquez  de  Niza  ouviu  uma  noite, 
por  entre  o  tinir  dos  copos  e  do  riso, 
estalar  o  lagedo  com  as  passadas  temi- 
veis  do  commendador,  como  na  peça 
antiga . .  . 

Era  a  edade  que  lhe  ia  subindo  a  es- 
cada. .  .  Levava  adeante  de  si  o  espectro 
da  doença. . . 

O  marquez  quiz  ainda  desafial-a : 

— Olá!  Aqui  tem  cadeira,  e  talher! 
Toque  n'este  copo !  A  saúde  do  commen- 
dador!. . . 

A  ceia  durou  um  anno  e  tanto. . .  Aca- 


158  LISBOA  DE  HONTEM 

boii  em  Cotterets  onde  o  famoso  fidalgo 
foi  morrer. 

N"essa  hora  o  Champagne  em  Portu- 
gal estremeceu  nos  copos !.  .  . 

Garrett  era  um  erudito,  mas  a  sua 
erudição  vinha  nas  azas  da  poesia  e  da 
graça ;  era  um  clássico,  mas  escrevia  para 
que  todos  o  entendessem;  e  amava  a  sin- 
gelesa,  que  é  a  grande  condição  nas  artes, 
a  divina  simplicidade  c|ue  foi  o  segredo 
de  Canova,  e  o  segredo  de  Bellini;  era 
um  delicado,  que  applicava  as  suas  ra- 
ras faculdades  a  concepções  que  apre- 
sentavam sempre  o  caracter  de  uma 
originalidade  bem  definida  e  bem  mar- 
cada. Era  um  poeta;  puro,  e  stibhme. 
Amou,  lidou,  cantou.  Não  considerava 
mediocre  tudo  que  fosse  paixão,  senti- 
mento ;  não  condemnava  o  seu  talento  a 


LISBOA  DE  HONTEM  159 

viver  no  cume  de  uma  espécie  de  Monte 
branco  a  que  se  chama  arte  com  A  gran- 
de. Não  encastelava  substantivos  e 
adjectivos  raros  a  poder  de  velhos,  e 
adoptava  de  vez  em  quando  umas  ex- 
pressões que  lhe  pareciam  próprias  d'este 
tempo,  por  pensar  talvez  que  caminhando 
as  idéas  não  é  natural  que  fiquem  pa- 
radas as  palavras,  e  que  quem  tem  ca- 
bello  se  ponha  de  rabicho,  só  porque 
seu  bisavô  usava  chino.  Chino,  usava-o 
elle,  coitado,  mas  era  porque,  segundo 
se  dizia,  desde  que  em  pequeno  dera 
uma  queda,  ficara  com  a  cabeça  estro- 
piada. 

Servia-lhe  o  estudo,  para  dar  os  re- 
flexos brilhantes  que  só  o  estudo  pode  dar, 
mas  o  gosto,  a  suprema  prenda,  do  ta- 
lento, scintillava  em  tudo  que  elle  es- 


460  LISBOA  DE  HOXTEM 

crevia  como  rebentando  de  um  focco  se- 
creto e  inexgotaveL 

Teve  uma  vida  agitada;  passou  com 
mais  dedicação  do  que  paixão  no  trilho 
da  politica:  não  amou  senão  as  lettras, 
não  gostou  senão  d'ellas  e  da  arte,  e  do 
amor,  e  também  da  sua  terra.  Poderia 
ter  vivido  longe  d*aqui,  n'alguma  das 
nossas  legações;  mas  os  mais  bellos  le- 
gares do  mundo,  não  conseguiam  fazer- 
Ihe  esquecer  o  paiz  em  que  nascera; 
esse  sentimento  communica-o  a  natu- 
reza quando  da  o  sopro  da  vida  a  cer- 
tas organisações  poéticas  e  generosas. 
Fez  muito  pelas  nossas  coisas,  por  elle 
fizemos  pouco,  e  quando  foi  ministro  e 
decretou  um  dinheirito  para  haver  cout 
sen'atorio,  largaram  a  gritar  os  jornaes 
do  tempo  que  não  se  queriam  ministros 


LISBOA  DE  HONTEM  161 

poetas,  e  passa  tora  esbanjadores,  e  ahi 
está  para  cpie  servem  os  talentos . . .  Mas 
elle  continuou  a  gostar  da  terra,  por  ser 
a  sua,  e  deixou-os  fallar;  arranquem  um 
homem  que  viver  perto  do  polo  aos  seus 
montes  de  gelo,  se  o  quiserem  ver  esmo- 
recido; transportem  o  Africano  para  a 
nossa  zona  temperada,  e  terá  saudades 
dos  areaes  ardentes . . .  Assim  também 
Garrett  precisava  d' essas  mesmas  amar- 
guras que  lhe  deram,  e  que  são  sempre 
os  mimos  que  Portugal  dá  aos  que  o  il- 
lustram. 

Foi  um  génio,  Garrett.  Não  só  pode 
fallar  d'elle  como  dos  outros  homens  de 
Portugal,  por  mais  notáveis  que  elles  te- 
nham sido.  Era  um  artista  superior,  em 
tudo.  Diz-se  que  Péricles  o  Olympico  ti- 
nha na  tribuna  o  gesto  sóbrio,  a  attitude 
11 


162  LISBOA  DE  HOXTEM 

tranquilla,  a  feição  magestosa  de  uma 
estatua  de  mármore;  Garrett  teve  nas 
lettras,  no  thealro,  no  parlamento,  a  alta 
serenidade,  a  bella  e  luminosa  singelesa 
que  foi  a  primeira  qualidade  dos  gregos 
dos  bons  tempos,  e  que  será  sempre  o 
principal  dote  dos  artistas ! 

Disse  eu  atraz  que  Lisboa  era  gêba 
n'*esse  tempo:  é  verdade  que  era,  mas 
emfim  tinha  essa  desculpa,  a  de  nâo  es- 
tar civilisada;  hoje  é  que  já  nâo  tem  ne- 
nhuma,—  está  civilisada  e  gêba. 

Até  fez  galla  de  acabar  com  quasi 
tudo  que  tinha.  Preferiu,  por  exemplo, 
— a  tempo  em  que  nem  se  pensava  em 
americanos  —  acabar  com  os  omnibus, 
os  antigos  omnibus,  que  tanto  de  algum 
modo  se  pareciam  com  ella. 

Inventou  tudo  para  se  ver  livre  d'elles.- 


LISBOA  DE  HONTEM  463 

Chegou  a  calumiiiar  õs  cavallos.  di- 
zendo que  tinham  sarna! 

E  nâo  tinham.  Coçavam-se  por  enfado, 
aborrecidos  da  sua  vida  com  essas  coi- 
sas todas;  ia-lhes  isso  fazendo  sarna, 
effectivamente :  mas  nunca  a  chegaram 
a  ter. 

Queridos  e  veneráveis  omnibus!  Lem- 
brarmo-nos  que  nunca  mais  tornámos  a 
ver  aquellas  caixas  formidolosas,  aquellas 
bisarmas,  aquellas  panças  de  elephante. 
bumba,  bumba,  pelas  ruas  fora,  enchen- 
do-as  de  lado  a  lado  e  levantando-se  até 
á  ahura  dos  terceiros  andares !  Quanto 
eram  imponentes  na  sua  deformidade! 
Que  brutalidade  magestatica!  Malfeitões, 
desairosos,  pantafassudos,  tudo  que  qui- 
zerem,  mas  graves,  sinceros,  omnibus 
bons  homens,  como  uns  valentões  que 


164  LISBOA  DE  HONTEM 

ha  de  barriga  saida  e  pata  grande,  com 
qaem  se  pode  contar  para  tudo! 

Quando  elles  desciam  a  calçada  de 
S.  Sebastião  da  Pedreira,  era  de  uma 
pessoa,  em  os  avistando,  deitar  a  fugir: 
parecia  que  vinham  arrasar  tudo;  eram 
omnibus  dignos  da  lUiada,  omnibus  ho- 
méricos, truz,  catrapuz,  abalando  os  pré- 
dios em  lhes  passando  perto,  e  fazendo 
benzer  as  lavadeiras,  que  os  encontra- 
vam, montadas  nos  seus  burrinhos,  es- 
cabeceando  com  somno,  e  acordando 
espavoridas  ao  verem  aquelle  espectáculo 
monstruoso ! 

Que  existência  de  aUernativas  e  vi- 
cissitudes! Quem  lhes  diria  em  1835, 
por  occasiâo  da  fundação  da  companhia, 
que  as  coisas  chegariam  a  esse  triste  des- 
enlace! Tudo  foi  alegria  n'esse  tempo, 


LISBOA  DE  HONTEM  165 

tudo  pareceu  saudal-os  com  enthusias- 
mo :  approvaram-se  os  estatutos  em  as- 
sembléa  geral  de  13  de  abril  de  1S36  ao 
som  de  parabéns:  << felizmente,»  ^ ainda 
bem, »  <í  agora  sim, »  e  viva !  e  viva !  emit^ 
tiram-se  logo  quarenta  contos  em  qua- 
trocentas acções  de  1001000  réis;  os 
directores,  Manuel  António  Vianna  Pe- 
dra, Bartholomeu  Lourenço  Martelli, 
Francisco  Alexandre  Ferraz,  Martin, 
Victor  Jorge,  Augusto  Xavier  da  Silva, 
andavam  satisfeitissimos,  recebiam  abra- 
ços de  toda  a  gente,  conhecidos  e  nâo 
conhecidos,  pela  felicidade  d'aquella  idéa, 
pelos  bons  auspícios  da  empreza,  para 
que  fosse  tudo  cada  vez  melhor,  como 
era  de  esperar  e  como  havia  razão  para 
ser.  Lisboa  pulou  de  jubilo  a  gritar: 
f  Vamos  ter  omnibus!»  com  a  alegria 


166  LISBOA  DE  HONTEM 

com  que  os  adolescentes  dizem:  «Ama- 
nhã principio  a  fazer  a  barba !.  . .  >  Mas 
do  mesmo  modo  que  nos  cançamos  d'essa 
felicidade,  de  sentir  na  cara  o  sabão  e 
a  navalha,  assim  Lisboa  se  cançou  dos 
omnibus,  e  pareceu,  de  repente,  n'um 
bello  dia,  ver  desdouro  no  que,  de  prin- 
cipio, vira  uma  providencia ! 

Temos  grandes  parecenças  com  os 
athenienses  d'outr'ora !  Não  seremos  tão 
espertos  como  elles,  mas  no  génio  não 
ha  gente  mais  parecida;  gostamos  por 
exemplo  mais  de  adivinhar  as  coisas  do 
que  de  as  saber  a  preceito,  que  é  o  que 
lhes  succedia  a  elles  no  dizer  de  Plu- 
tarco; elles  eram  muito  cumprimenteiros, 
e  nós  somos  tão  attenciosos  que  andamos 
sempre  a  agradecer  tudo  nos  jornaes,  a 
quem  nos  trata  bem,  a  quem  nos  dá  chá' 


LISBOA  DE  HONTEM  167 

a  quem  nos  cura  o  parente  ou  também 
a  quem  o  deixa  morrer ;  regalamos-nos 
de  ser  tafues,  elles  sobremaneira  o  eram; 
como  elles  sacrificamos  tudo  ao  luxo,  vi- 
vendo ás  vezes  que  é  uma  lastima,  a  co- 
mer feijão,  batata  e  fava,  para  que  assim 
nos  chegue  o  remédio  para  as  modas 
novas,  que  não  vamos  mostrar  para  a 
porta  Dypilonica,  mas  para  o  Passeio  Pu- 
blico: finalmente  com  o  gostarem  elles 
tanto  de  ver  os  navios  de  Garthago  sul- 
car os  mares  em  todas  as  direcções,  para 
si  não  queriam  aquillo,  e  nunca  nave- 
gavam para  lá  das  columnas  de  Hercules ; 
exactamente  como  nós,  que  nos  gloriá- 
vamos muito  deleromnibus,  muitíssimo, 
realmente  muito,  mas  para  não  andar 
nelles! 

Quando  n'uma  noite  de  inverno,  um 


168  LíSDOA  DE  HONTEM 

moço  que  estava  de  vigilia,  Albino  Go- 
mes. 80  ("liamava  clle.  deu  pelo  fogo,  o 
famoso  fogo  das  cocheiras,  e  pediu  soc- 
coiTO,  soltou  o  primeiro  grito  prophetico 
da  agonia  d*aquelle  negocio  todo. 

Estavam  dormindo  socegadamente 
onze  empregados  no  estabelecimento; 
o  fogo  principiara  n'um  caixão  de  ce- 
vada: de  quarenta  e  nove  cavallos  po- 
deram  apenas  salvar-se  vinte  e  dois. 
Perderam-se  na  noite  lugubremente  ao 
clarão  do  incêndio,  ao  ruído  das  bom- 
bas, dos  tocjues  de  sino,  e  da  vozearia 
do  povo,  os  gemidos,  os  arrancos  de 
vinte  e  sete  cavallos,  que  se  despediram, 
por  entre  o  horror  d'aquella  catastrophe, 
das  viagens  a  Bemfica,  ao  Poço  do  Bispo, 
a  Belém ... 

N'esse   mesmo  anno  foi  rescindido 


LISBOA  DE  H  ONTEM  169 

pela  companhia  o  privilegio.  A  sorte  pa- 
recia querer  oppôr-se  á  prosperidade 
d'essa  empreza:  então  lucta,  por  lucta, 
quizeram-a  completa.,  e  a  fortuna.,  que 
se  compraz  em  ajudar  os  audaciosos, 
coroou  por  uns  tempos  aquelles  esforços. 

As  despezas  eram  grandes ;  foram  de 
quatrocentos  e  cincoenta  e  um  contos; 
gastaram  449:514  alqueires  de  cevada, 
o  que  quer  dizer  réis  158:744§008 :  de 
palha  foram  62:843  pannos,  o  que  si- 
gnifica 31:579i>709  réis.  Já  não  é  mau 
para  palha! 

Compraram  de  1835  a  1863  cem 
cavallos,  morreram-lhe  oitocentos  e  trinta 
e  sete ;  não  digo  que  fossem  de  uma  pro- 
veniência rara,  filhos  de  mães  egypcias 
descendentes  da  raça  celebre  a  que  cha- 
mam Nejdi,  infatigáveis  a  ponto  de  per- 


170  LISDOA  DE  HONTEM 

correrem  quarenta  léguas  a  galope  sem 
parar  um  segundo  para  tomar  fôlego» 
cavallos  dignos  de  serem  resgatados  a 
preço  de  duzentos  camellos;  também 
não  pretendo  affirmar  que  tivessem  pren- 
das galantes,  porem-se  de  joelhos,  com- 
primentarem,  apanharem  um  lenço  de 
assuar..  e  marcarem  as  horas  com  a 
pata ;  mas  erafim  eram  cavallos  fortes, 
sãos,  magnificos,  e  os  omnibus  descan- 
cavam  n'elles  com  uma  confiança  sem 
limites. 

Os  outros,  os  omnibus  pequenos,  que 
lhes  faziam  concorrência,  voltavam-se 
de  vez  em  quando,  e  n'isso  realmente 
eram  mais  pittorescos;  estes,  não;  estes 
linham  só  de  tempos  a  tempos  algum 
desaranjosito  amável  para  divertir  os 
passageiros.  Scenas  graciosas.  De  uma 


LISBOA  DE  HOxMEM  171 

occasiâo,  por  exemplo,  vinham  do  Poço 
do  Bispo  duas  senhoras  com  dois  mari- 
dos; de  repente,  catrapuz.  Quebrou-se 
uma  roda  do  omnibns?Atropelou-seuma 
velha?  Nada.  Vinha  um  cyrio,  ao  Ter- 
reiro do  Trigo,  e  o  cocheiro  quiz  romper. 

—  cPára  ahi!  Pára!  Hé!  Alto!  Pára 
ahi!» 

Balbúrdia,  policia,  povo:  o  grande 
diabo.  Apeia-se  toda  a  gente;  os  mari- 
dos começam  a  parlamentar  com  a  tur- 
ba, defendendo  o  cocheiro,  fallando  á 
policia,  explicando-lhes  o  caso.  As  se- 
nhoras, entretanto,  assustadas,  aílQictas, 
encostam-se  a  uma  porta,  á  espera  que 
serene  o  caso.  De  repente  ouve,  uma 
d'ellas,  dizerem-lhe: 

—  Coitadinha!  Então  está  com  muita 
faneca  (susto)? 


17i  USBOA  DE  HONTOI 

Ella,  moita:  aperta  o  braço  á  outra, 
que  cuidou  que  o  homem  era  conhecido 
da  sua  amiga  por  vèr  o  desembaraço 
com  que  lhe  fallava,  e  respondeu-lhe 
amavelmente: 

—  Ai!  Estou  a  tremer  toda!  Pobre 
homem!  Coitado!  Deus  queira  que  não 
lhe  façam  mal.  Acha  que  vão  prendel-o? 

A  outra,  a  cotovelar  o  braço  á  amiga; 
e  o  homem  a  accrescentar : 

—  Não  prendem,  não;  e  se  o  pren- 
derem, logo  o  soltam.  Vamos  nós  dar 
um  passeio,  minhas  joiasinhas,  para  não 
estarmos  aqui  parados  depois  do  susto, 
que  até  nos  pode  fazer  mal.  Não  lhes 
pareece  isto  acertado?  Então,  vamos  lá, 
vamos  .  .  . 

N'isto  chega  um  dos  maridos:  vê  o 
homem  de  palestra  com  sua  mulher  e 


LISBOA  DE  HO.MEM  173 

com  a  outra,  cuida  que  é  conhecido  da 
outra,  comprimenta-o  com  muito  bom 
modo : 

—  Muito  boa  noite! 

.  Em  seguida  apparece  o  outro  marido, 
vê  o  sujeito  com  a  sua  gente,  tira  o  cha- 
péu, dá-lhe  a  mão: 

—  Como  tem  passado  ? 

E  ahi  ficavam  todos  e  iam  de  rancho 
conversando,  como  se  se  conhecessem 
de  pequenos. 

O  grande  omnibus !  Omnibus  por  ex- 
cellencia ! 

Havia  pobresinhos,  que  não  pediam 
nas  paragens  senão  a  quem  ia  nos  om- 
nibus da  companhia.  Eram  os  melhores 
pobres!  Os  pobres  mais  ricos.  De  uma 
vez  deu  o  cocheiro  uma  moeda  de  seis 
vinténs   a   um   d'elles,  —  ainda   havia 


i7&  LISBOA  DE  HONTEM 

moedas  de  seis  vinténs ! — e  o  pobre  res- 
pondeu : 

—  Agora  não  tenho  troco,  sr.  Antó- 
nio! 

—  Bem;  fica-m'o  devendo. 

E  o  pobre  n'um  extasi  de  grati- 
dão : 

— Deas  o  avivente  e  aos  omnibus  da 
companhia  até  que  eu  lh'o  pague,  sr. 
António! 

Era  o  desejo  que  tinha  de  tornar 
eternos  os  omnibus  e  o  cocheiro!  Mas 
tinha  de  ser. 

Cairam  de  vez. 

Quando  passavam,  enormes,  pesados, 
methodicos,  já  a  modo  tristes,  arredios, 
meio  phantasticos,  de  um  feitio  que  pas- 
sara de  épocha,  vagarosos  e  abrutados 
como  elephantes  carregando  torres,  não 


LISBOA  DE  HONTEM  175 

eram  já  bem  d'este  mundo,  e  dizia  a 
gente  ao  vel-os,  como  na  bailada: 

—  Os  mortos  andam  depressa !  .  .  . 

Á  medida  que  temos  visto  fugir  as 
prendas  mais  caracteristicas  da  Lisboa 
gêba,  fingimos  sempre  ter  saudades . . . 

Uma  das  curiosidades  lisbonenses 
eram  os  Tiples.  Dizem-me  que  ainda 
vive  o  famigerado  Ferreirinha.  cantor  da 
Sé,  que  no  Kyrie  eleison  e  n'outros  cân- 
ticos religiosos  brilhava  em  todas  as 
Endoenças,  mercê  da  sua  voz  agudis- 
sima  de  soprano. 

Homem  enorme  de  altura,  mas  ma- 
gro, fusco,  deslavado,  de  carnes  moles 
e  pelles  cabidas,  que  fazia  pena  ver.  A 
julgar  pela  sua  estatura,  poderia  ter 
sido  um  homemsarrão  de  extraordinária 
corpolencia,  se  a  sorte  desde  menino 


i76  LISBOA  DE  HONTEM 

houvesse  sido  para  elle  mais  piedosa. 
Não  tinha  barba.  As  compridas  e  esgal- 
gadas pernas  tinham  um  andar  frouxo 
e  fracalhâo,  e  era  triste  o  aspecto  geral 
d'elle  como  de  um  homem  aborrecido  e 
contrariado,  a  quem  falte  alguma  coisa. 
Por  não  cantarem  senhoras  nas  egre« 
jas,  os  pobres  Tiples  suppriam-as  esga- 
niçan Jo-se ;  na  certeza  de  que,  qualquer 
que  fosse  a  edade  em  que  estivess^?m, 
nunca  mais  lhes  mudava  a  voz!  Chega- 
ram a  ter  fama,  e  a  serem  muito  esti- 
mados, esses  exóticos  músicos.  Aqui 
veiu  a  S.  Carlos  o  celebre  Crescentini, 
chamado  lá  por  fora  o  Orphéo  italiano ; 
e  tanto  este  Ferreirinha  se  desempenhava 
a  contento  geral,  que  o  conde  de  Far- 
robo,  que  ouvira  os  principaes  cantores 
daCapellaSixtina,  considerava-o. . .  não  ^ 


LISBOA  DE  HONTEM  177 

direi  um  digno  descendente  de  Cafarelli 
ou  de  Farinelli,  já  que  lhes  seria  dififi- 
cil  ter  descendentes,  mas  um  novo  Pro- 
teo  n'esse  género,  homem  pelo  traje, 
mulher  pela  voz. 

Era  opinião  corrente  que  a  musica 
sacra  nâo  podia  passar  sem  estes  sopra 
nos  artificiaes,  que  já  não  se  fabricavam, 
mas  de  que  as  festas  de  egreja  se  iam 
servindo  em  quanto  duravam;  dizia-se 
que  nunca  as  mulheres,  no  coro  de  uma 
egreja,  fariam  sobresahir  tão  dignamente 
a  pureza  d'aquelles  cânticos ! 

Um  cónego  Rebello  que  aqui  houve, 
e  que  era,  como  o  Ferreirinha,  grande 
frequentador  de  theatros,  contava  casos 
de  se  estalar  de  riso  a  respeito  dos  can- 
tores da  Sé.  Quando  o  baixo  Figueiredo, 
que  supponho  também  ser  ainda  vivo, 

i2 


478  LISBOA  DE  HONTEM 

cantou  na  Rua  dos  Condes,  por  con- 
tracto especial,  o  Fra-Diavolo,  —  fa- 
zendo elle  a  parte  principal,  sendo  a 
dama  a  Radich,  e  o  inglez  o  Sargedas — 
o  actor  Victorino,  que  era  homem  muito 
distrahido,  largou  a  dirigir  comprimen- 
tos e  louvores  ao  baixo,  julgando-o  o  ti- 
ple —  com  todos  os  requezitos  d*essa 
prenda  —  só  pelo  facto  de  ser  cantor 
da  Sé. .. 

—  Xão  parece!  dizia-lhe  Victorino. 
Digo-lhe  que  não  ha  outro  assim!  Dê 
cá  um  abraço. . .  E  tem  força !  Ora,  não 
ha!  Ora,  não  ha!  E  o  caso  mais  raro! 
E  que  bella  apparencia  de  homem,  re- 
forçado, com  boa  côr !  Assim  é  que  ainda 
nao  vi ! 

E  o  Figueiredo  a  agradecer,  sem  per- 
ceber bem  o  que  motivava  uma  tão  so- 


LISBOA  DE  HONTEM  179 

lemne  estupefacção  da  parle  d'âquelle 
Gomico  primoroso. 

O  Bonifácio  goza-se  ainda  hoje  de 
grande  aureola  como  tiple,  e  quando  elle 
vae  cant<ir  ao  Loreto  na  novena  de  Nossa 
Senhora,  cae  alli  o  mundo  em  peso  para 
se  deliciar  a  ouvil-o.  É  musico  cons- 
ciencioso, tem  alta  e  subida  voz,  forte 
nos  agudos,  e  de  melodiosa  entoação. 
Mas  o  Ferreirinha  era  o  rei  dos  tiples, 
--0S  tiples  também  devem  ter  rei.  Fer- 
reirinha! lhe  diziam.  Es  insigne!  Não 
ha  de  certo  no  Vaticano  cantor  que  te 
leve  a  palma !  Chegado  a  ser  um  cantor 
d'esse  feitio,  vaha  a  pena  ir  um  homem 
por  ahi  fora  apresentar-se  ao  Papa,  e 
offerecer-se  para  cantar  na  sua  pre- 
sença. Se  estivesses  lá,  estavas  rico . . . 

Mas  o  Ferreirinha  não  quiz,  e  uma 


180  LISBOA  DE  HONTEM 

das  rasôes  que  o  moviam  era  o  ser  muito 
pensionada  e  sujeita  a  condição  de  ti- 
ple junto  á  santa  sede. 

—  Em  que!  Mais  cantas  na  Sé,  onde 
és  par  fixo,  do  que  terias  de  cantar  lá, 
onde  os  ha  ás  dúzias!  lhe  diziam  os 
outros  cantores  de  voz  falsa. 

— Não  é  isso. 

— Então  o  que  é?  Teres  de  apresen- 
tar-te  vestido  com  mais  explendôr,  ou 
mesmo  de  mulher  se  isso  lá  fôr  moda  ? 

—  Também  nâo  é  isso. 
— Então  o  quê? 
Ferreirinha  sorria-se . . . 

—  O  motivo  é  que  se  um  tiple,  em 
Roma,  alguma  vez  quer  receber-se,  o 
Papa  não  deixa. 

— Gomo,  receber-se! 

—  Tomar  estado,  ter  mulher,  casar. 


LISBOA  DE  HONTEM  181 

Exactamente ;  casar !  Por  eu  saber  como 
as  coisas  por  lá  correm,  é  que  abanei 
sempre  as  orelhas  ao  Vaticano !  Oiçam... 

—  Oiçamos!  diziam  os  tiples. 

— Um  collega  nosso,  dos  da  Capella 
Sixtina,  enfastiado  da  vida  de  solteiro, 
requereu  de  uma  vez  para  se  casar,  ale- 
gando que  apesar  da  sua  gentil  voz,  se 
considerava  no  caso  de  aspirar  ao  ma- 
trimonio; porém  o  papa,  —  por  signal 
que  era  o  Benedetto  xiv,  despachou  o 
requerimento  pelo  theor  seguinte:  Si 
castri  meglio! 

— Ah!  guincharam  de  indignação  os 
tiples.  Fatalidade  1 

— Anathema! 

— Já  vêem!  ponderava  Ferreirinha. 
É  por  isso  que  eu  prefiro  Lisboa  a 
Roma! 


182  LISBOA  DE  HONTEM 

E  por  cá  viveu. 

Com  festas  de  egreja.  procissões  e 
philarmonicas  se  entretinha  pacatamente 
a  população.  Havia  de  vez  em  quando 
sua  fogueira  ahi  na  cidade;  pelo  Espirito 
Santo  estabelecia-se  feira  nas  Amorei- 
ras; em  outubro  reinava  a  do  Campo 
Grande,  iam  ranchos  e  ranchos  de  fa- 
milias  em  burrinhos  do  Poço  do  Borra- 
tem,  comprarem  alli  panno  de  linho, 
briche,  nozes,  passas,  para  todo  o  anno; 
de  tempos  a  tempos  dava-se  peça  nova 
na  Rua  dos  Condes  ou  no  Salitre,  ia-se 
para  alli  chorar  um  bocado  com  o  Epi- 
phanio  e  rir  outro  bocado  com  o  Lisboa, 
com  o  Sargedas,  com  o  Theodorico ;  de- 
pois abriu  o  theatro  de  D.  Maria,  o 
theatro  agrião  como  se  lhe  chamava,  e 
guerreou-se  isso  por  ser  novidade,  e 


USBOA  DE  HONTEM  t83 

não  se  quererem  novidades  n'uma  terra 
onde  a  gente  vivera  e  engordara  ao  doce 
e  benetico  remanso  das  velharias  e  do 
statu  quo. 

Quando  algum  dos  nossos  compatrio- 
tas, que  houvesse  sahido  do  paiz  com 
o  destino  de  seguir  estudos  no  estran- 
geiro, vohava  a  Lisboa  no  fim  de  annos, 
esfregava  os  olhos  como  fazem  os  prín- 
cipes nas  magicas  ao  regressarem  de 
suas  maravilhosas  viagens  e  encontra- 
rem-se  de  novo  na  aldeia  de  onde  par- 
tiram. Só  em  Paris  estavam  uns  poucos, 
hoje  conhecidos,  quasi  todos  hoje  illus- 
tres.  Faltemos  de  um  d'elles,  notável 
entre  os  maiores.  Faltemos  do  dr.  Tho- 
maz  de  Carvalho. 

Thomaz  de  Carvalho  partiu  para  Pa- 
ris em  abril  de  i841,  na  qualidade  de 


184  USBOA  DE  HONTEM 

pensionista  do  estado,  n*um  vapor  que 
fazia  o  trajecto  directamente  para  o  Ha- 
vre  e  em  que  ia  com  o  mesmo  destino  um 
cavalheiro,  que  r/esse  tempo  frequentava 
muito  a  sociedade  elegante  de  Lisboa, 
Ludgero  Avelino,  que  havia  já  habitado 
Paris  por  espaço  de  dois  annos,  e  que 
durante  a  viagem  o  foi  instruindo  nas 
maravilhas  e  costumes  da  moderna  Ba- 
bylonia. 

Uma  tempestade  formidável  arrojou-os 
á  Corunha,  onde  se  demoraram  por  vinte 
e  quatro  horas,  aproveitando  o  tempo  em 
visitar  a  cidade  gallega  e  os  seus  poucos 
monumentos.  Na  noite  da  grande  tem- 
pestade, enjoado,  afílicto,  sem  nenhuma 
aprehensão  do  perigo,  sentiu  deitar-se 
junto  d'elle  no  mesmo  beliche  ura  vulto 
desconhecido,   que  cheirava  a  catinga 


LISBOA  DE  HONTEM  185 

muito  mais  torpemente  do  que  seria 
para  tolerar. 

—  Que  diabo  é  isto?  dizia  Tho- 
niaz. 

Era  um  preto  a  quem  os  portuguezes 
em  Paris  chamavam  o  Pae  António,  e 
cuja  vida  accidentada  daria  para  larga 
memoria . . . 

Pae  António  evidentemente  abusou 
do  estado  de  prostração  de  Thomaz  de 
Carvalho,  mas  essa  prostração  não  era 
ainda  assim  tão  profunda  que  elle  não 
reagisse  e  o  atirasse  do  beliche  abaixo; 
a  queda  foi  ouvida  do  piloto,  que  n'esse 
momento  entrava  na  camará,  e  houve 
por  bem  applicar  no  preto  uma  correc- 
ção salutar. 

Demoremo-nos  um  instante  com  Pae 
António,  para  também  apresentarmos, 


186  LISBOA  DE  HONTEM 

no  quadro  a  que  este  livro  se  propõe, 
um  preto  de  honiem. 

Pae  António  era  originário  da  Costa 
d'Africa ;  fora  vendido  no  Brazil :  evadi- 
ra-se  depois,  e  levava  pela  Europa  uma 
vida  de  bohemio.  Percorreu  maior  nu- 
mero de  terras  que  o  mais  intrépido  via- 
jante :  apenas  se  demorava  algum  tempo 
n'uma,  logo  mudava  para  a  outra.  Era 
um  philosopho,  um  artista,  um  poeta,,  um 
excêntrico,  esse  filho  dos  sertões  africa- 
nos; sabia  todas  as  linguas  da  Europa, 
o  bastante  para  se  fazer  entender;  servia 
por  consequência  de  creado  e  de  inter- 
prete: a  bordo  ajudava  a  marinhagem  na 
manobra.  Quando  pretendia  fazer  viagem 
para  qualquer  ponto  do  globo,  dirigia-se 
ao  porto  de  mar  mais  próximo  de  onde 
estava,  mettia-se  a  bordo  clandestina- 


LISBOA  DE  HONTEM  187 

mente,  escondia-se  entre  a  carregação, 
e  mostrava-se  somente  quando  já  não 
era  possível  pôl-o  em  terra.  Depois  com- 
pensavam-lhe  os  serviços  com  a  ração 
da  matalotagem. 

De  vez  em  quando  apparecia  em  Pa- 
ris aos  estudantes  portuguezes  que  alli 
se  achavam,  e  desapparecia  logo :  o  que 
era  feito  de  Pae  António  ?  Pae  António 
durante  as  desapparições  fazia  uma  via- 
gem á  Califórnia,  outra  á  China,  ao  Egy- 
pto,  aos  Estados  Unidos,  etc. 

Numa  noite,  o  próprio  Thomaz  de 
Carvalho  o  encontrou  defronte  do  thea- 
tro  da  Porta  S.  Martin,  lendo  com  avi- 
dez um  cartaz:  contou-lhe  então  que  já 
n'esse  theatro  tinha  representado  de  sel- 
vagem n'uma  peça  característica:  cum- 
pria-lhe  devorar  vivo  um  innocente  fran- 


188  LISBOA  DE  HONTEM 

gão  e  em  tanta  maneira  se  desempe- 
nhava com  aceio  d'essa  operação  nau- 
seosa,  que  a  platéa  cabia  toda  em  pal- 
mas de  phrenetico  enthusiasmo:  estava 
escriptm^ado  a  dois  francos  por  noite, 
concedendo-se-lhe  o  cadáver  do  gallina- 
ceo  como  subsidio  extraordinário. 

De  uma  occasião  imaginou  apresen- 
tar-se  ao  rei  Luiz  FiHppe  como  verda- 
deiro selvagem;  alugou  num  cabeça  de 
pau  um  cinto  vistoso  de  pennas,  um  arco 
dourado  e  a  competente  setta,  e  foi  di- 
reito ás  Tulberias.  Fingiu  saber  apenas 
algumas  palavras  de  francez,  dando  a 
entender  que  desejava  fallar  á  Mages- 
tade.  Luiz  Filippe  esteve-o  examinando 
com  curiosidade  e  mandou  gratifical-o. 
Reíferiram  os  jornaes  o  caso  e  elogia- 
ram a  generosidade  do  rei.  Pae  António 


LISBOA  DE  HO.MEM  189 

contava  isto  como  uma  das  suas  maio- 
res proezas. 

Estavam  n'esse  tempo  em  Paris  Mar- 
giochi,  engenheiro,  e  hoje  director  geral 
do  Ministério  das  Obras  Publicas:  Ga- 
Iheiros,  que  foi  ministro  com  o  bispo  de 
Vizeu,  o  medico  Ortigão,  Joaquim  Júlio 
Pereira  de  Carvalho,  e  outros  compatrio- 
tas nossos,  entre  os  quaes  havia  três  es- 
tudantes expulsos  da  Universidade  de 
Coimbra,  implicados  n'um  processo  de 
violência  contra  um  professor.  O  mais 
velho  d'estes,  homem  de  uma  força  her- 
cúlea, é  actualmente  um  dos  negocian- 
tes mais  acreditados  e  respeitados  na 
cidade  do  Porto :  de  temperamento  con- 
centrado e  pouco  expansivo  era  todavia 
dotado  de  muita  graça,  e  dizem  que  essa 
graça  se  tornava  infinita  quando  recebia 


190  LISBOA  DE  HONTEM 

a  mesada  da  família.  Foi  grande  amigo 
de  José  Estevam. 

O  outro  era  vivo,  esperto,  petulante, 
e  um  pouco  poeta  nas  horas  de  ócio, 
que  eram,  pelos  modos,  todas.  Portou-se 
como  heroe  na  revolução  de  junho,  cu- 
rando os  feridos  na  praça  da  Sorbon- 
ne,  entre  as  bailas  dos  insurgentes  e  as 
das  tropas  do  general  Cavaignac ;  mere- 
ceu ser  condecorado  com  a  Legião  de 
Honra. 

O  terceiro  era  um  moço  a  quem  cus- 
tou immenso  a  formar-se.  e  foi  depois 
morrer  obscuro  n'uma  pobre  aldêa  do 
Minho. 

O  Algarve  eslava  representado  pelo 
medico  Ortigão,  e  o  dr.  Estevão.  Orti- 
gão gosava  da  fama  de  homem  resoluto 
e  destemido,  e  merecia-a,  segundo  dizem 


LISBOA  DE  HONTEM  191 

todos.  Conta-se  que,  de  uma  vez,  es- 
tando a  examinar  umas  graMiras,  ex- 
postas á  porta  de  uma  loja,  acconteceu 
passar  por  ali  um  olGBicial  do  exercito 
francez,  que  sem  maior  reparo  lhe  tocou 
no  braço. 

Ortigão  disse-lhe : 

—  Est-ce  que  vous  nij  voijez  pa$, 
monsieur? 

— En  effet,  respondeu-lhe  o  militar 
com  certo  modo  irónico,  je  me  permets, 
parfois,  d'être  myope. 

Então,  o  nosso  compatriota  com  a 
maior  presença  de  espirito,  apresentou- 
Ihe  o  seu  bilhete  de  visita,  e  tornou-lhe : 

—  Voyez  si  vous  pouvez  lire  cette 
carte  ? 

— Cest  bien,  monsieur,  voicila  mienne. 
No  dia  immediato  bateram-se  á  pis- 


i9'2  LISBOA  DE  HOMEM 

tola,  e  Ortigão  seria  varado  no  peito  pela 
balia  do  adversário  se  uma  das  testemu- 
nhas do  duello  lhe  não  bradasse: 

—  MeU-toi  en  garde! 

O  projéctil  entrou-lhe  no  braço,  pró- 
ximo da  articulação ;  fehzmente  não  teve 
consequências  funestas. 

Ainda  por  esse  tempo  estiveram  em 
Paris  o  notável  chimico  Betamio  de  Al- 
meida, Lobo  d' Ávila,  nosso  actual  mi- 
nistro em  Madrid,  Couceiro,  engenheiro, 
hoje  mestre  dos  principes. 

Era  numerosa  a  colónia  portugueza, 
e  a  brasileira  mais  considerável  ainda, 
mas  não  havia  sombra  de  rivalidade  en- 
tre ellas ;  viviam  na  mesma  fraternidade 
como  se  pertencessem  ao  mesmo  paiz. 
Entre  os  da  coUonia  irmã  havia  um  es- 
tudante Silva,  moço  valente,  que  se  ba- 


LISBOA  DE  HONTEM  193 

teu  em  duello  por  differentes  vezes,  e 
que  foi  morrer  miseravelmente  no  Brazil. 
Certo  dia  recebeu  do  pae  uma  lastimosa 
carta,  refferindo-lhe  as  suas  dissenções 
com  o  genro,  que  o  ameaçava  de  morte: 
pedia-lhe  que  partisse  immediatamente; 
o  pobre  Silva  obedeceu,  e  despediu-se 
dos  seus  companheiros,  com  as  lagrimas 
nos  olhos,  como  antevendo  a  morte  fatal 
que  lhe  estava  reservada.  Passado  tempo 
soube-se,  que,  oito  dias  depois  da  sua 
chegada  ao  Brazil,  fora  assassinado  pelo 
cunhado. 

Com  esses  portuguezes  e  com  esses 
brazileiros  viveu  Thomaz  de  Carvalho  em 
França  nem  sempre  desafogadamente, 
até  1848;  e  por  lá  ficaria  se  nâo  fora  a 
revolução  de  Fevereiro  que  deu  em  terra 
com  o  throno  de  Luiz  Filippe.  x\chava-se 

13 


m  LISBOA  DE  HONTEM 

já  por  essa  occasião  formado  e  exercendo 
a  clinica  em  S.  Deniz.  A  revolução  como 
que  curava  subitamente  todas  as  enfer- 
midades, e  durante  os  três  mezes  se- 
^  guintes  não  viu  um  só  doente. . .  Como  já 
não  recebia  mesada,  havia  mais  de  três 
annos,  não  teve  remédio  senão  voltar. 

Fallava-se  de  nova  revolução,  a  de 
junho  e  por  isso  apressou  a  jornada, 
chegando  a  Lisboa  nos  fins  de  maio  de 
1848. 

Foi  logo  visital-o  o  dr.  Magalhães  Cou- 
tinho, acconselhando-o  a  que  se  pre- 
parasse para  o  primeiro  concurso  que 
viesse  a  abrir-se  na  escola  medico-cirur- 
gica  de  Lisboa,  auxiliando-o  desde  logo 
na  vida  clinica,  tomando-o  sempre  para 
seu  ajudante  nas  operações  que  prati- 
cava e  tornando-llie  d'essa  maneira  me- 


LISBOA  DE  HONTEM  195 

nos  sensivel  a  iniciação  sempre  penosa 
para  quem  começa. 

Magalhães  Coutinho  era  então  o  pri- 
meiro operador  de  Lisboa,  e  decerto  o 
seria  ainda  se  outras  vistas  e  outras 
preocupações  o  não  tivessem  desviado  da 
carreira  que  havia  encetado  com  tanta 
fortuna  e  tamanho  explendôr. 

Homem  erudito,  homem  de  gi^andis- 
simo  talento,  conheceu  em  Thomaz  dotes 
extraordinários  e  empregou  todos  os  ex- 
forços  para  que  o  talentoso  mancebo  en- 
trasse na  escola,  estimando-o  desde  logo 
como  coUega,  e  continuando  essa  estima 
com  tanta  fidelidade  e  permanência  que 
veiu  no  fim  de  muitos  annos  a  deixar- 
Ihe  o  logar  de  director  em  que  Thomaz 
de  Carvalho  lhe  succedeu. 

Quando  em  1852  se  abriu  concurso, 


196  LISBOA  DE  HONTEM 

teve  por  competidores  os  facultativos  que 
ainda  hoje  gosam  da  maior  reputação  em 
Lisboa,  e  alguns  dos  quaes  eram  já  muito 
conceituados  por  brilhantes  provas  an- 
teriores. 

Sahiu  o  primeiro  na  votação. 

E  apesar  das  contestações  que  pos- 
teriormente se  levantaram,  ainda  no  des- 
pacho proferido  em  junho  de  1851  foi 
o  primeiro  nomeado. 

Foi  também  professor  do  Instituto 
Agrícola  desde  a  sua  fundação  em  7  de 
janeiro  de  1853  até  14  de  novembro  de 
1855  em  que  se  demittiu. 

Pela  primeira  vez  em  1850,  no  café 
Martinho,  vi  eu  esses  quatro  homens  que 
reunidos  n'um  sú  se  chamam  Thomaz 
de  Carvalho,  o  curioso  e  raro  Tho- 
maz de  Carvalho  homem  de  sciencia, 


LISBOA  DE  HONTEM  197 

Thomaz  de  Carvalho  artista,  Thomaz  de 
Carvalho  litterato,  Thomaz  de  Carvalho 
orador.  Surprehendeu-me  logo  aqiielle 
conversador  instruído  e  vivaz,  que  soube 
sempre  deslumbrar  pela  facilidade  ele- 
gante e  correcta  da  sua  palavra  ima- 
ginosa, e  principalmente  pelo  espirito 
critico,  pela  phylosophia  aventurosa, 
pelo  génio  gracioso  e  alegre.  A  nossa 
amisade  vae  tendo  já  cabellos  brancos, 
e  todavia  eu  não  pude  nunca  calcular 
onde  tem  elle  achado  tempo  para  saber 
tudo,  e  para  ler  tudo,  quanto  sabe  e  tem 
lido.  De  tempos  a  tempos  por  um  artigo 
notável,  por  um  discurso  famoso,  tem  af- 
firmado  e  j  ustificado  a  fama  do  seu  nome ; 
mas,  da  maior  parte  das  vezes,  tem  sobre- 
tudo brilhado  como  critico  ao  ar  livre,  em 
dia  com  tudo  que  for  notável,  contando, 


t98  LISBOA  DE  HONTEM 

expondo,  deslumbrando  pela  variedade 
de  conhecimentos,  e  dominando  pela  es- 
pertesa,  que  é  sobretudo  o  que  n'elle  me 
maravilhou  sempre  mais,  uma  espertesa 
que  propriamente  se  deve  chamar  pro- 
digiosa. 

O  traço  distinctivo  do  seu  espirito, 
tem  sido  sempre  o  culto,  a  curiosidade 
das  idéas,  a  necessidade  de  as  entender, 
todas,  mesmo  as  que  forem  mais  oppos- 
tas  á  sua  maneira  de  ver:  discernir  o  que 
haja  verdadeiro  n'ellas,  inteirar-se  do 
que  respeite  á  sua  origem,  á  influencia 
que  exerçam  ou  possam  exercer  nos 
outros:  e  concluir  sempre  bem,  sempre 
seguro,  á  força  de  penetração  e  de  sa- 
gacidade. 

Desde  esse  tempo  tem  sempre  exer- 
cido pelo  encanto  da  sua  conversação 


LISBOA  DE  HONTEM  199 

nos  círculos  em  que  se  dá  attenção  ás 
cousas  do  espirito,  uma  influencia  reco- 
nhecida; e  desde  que  ha  muitos  annos 
entrou  para  a  Academia,  o  illustre  homem 
da  sciencia  tem  sido  um  dos  sócios  mais 
assíduos,  intervindo  frequentemente  nas 
deUberações,  com  a  auctoridade  e  a  efifi- 
cacia  que  pertencem  a  uma  intelligencia 
como  é  a  sua. 

Falia  com  grande  correcção  professo- 
ral, e  ao  mesmo  tempo  grande  elegân- 
cia litteraria;  a  mobilidade  e  o  brilho 
do  seu  talento  como  que  fazem  lembrar 
ora  a  Sicília  ora  o  Attico;  conforme 
o  sentimento  que  o  inspira,  assim  elle 
é  por  egual  notável  no  estylo  puro 
e  simples,  no  estylo  académico,  ou  n'a- 
quelle  em  que  as  paixões  e  todos  os 
movimentos  impetuosos  da  alma  írrom- 


200  LISBOA  DE  HONTEM 

peiíi  pela  indignação,  pela  ironia,  ou 
pela  cólera.  É  essa  mobilidade  de  ta- 
lento, que,  de  uma  vez  ou  de  outra,  fez 
com  que  não  fosse  perfeitamente  en- 
tendido no  verdadeiro  ponto  de  vista  em 
que  era  para  ser  considerado,  aquillo 
que  propriamente  distingue  e  faz  com 
que  seja  extraordinário  e  originalis- 
simo  o  homem,  que  se  chama  Thomaz 
de  Carvalho ;  e  do  qual  não  direi  mais, 
n*este  livr^,  porque  a  amisade  que  sem- 
pre tem  existido  entre  nós  não  me  per- 
mittiria  fallar  d"elle  senão  com  um  amor 
enthusiasta,  que,  n'estas  paginas  breves 
e  despretenciosas,  leria  uns  ares  de  ca- 
turreira, com  que  o  seu  fino  gosto  pode- 
ria melindrar-se. 

Com  mil  bombas!  como  dizia  o  Ga- 
lamba.  Havia  de  tudo  n'aquelle  tempo. 


LISBOA  DE  HONTEM  201 

Era  pedir  por  bocca.  Traballiava-se  por 
gosto,  em  todos  os  géneros,  e  a  valer. 
Ouvia-se  um  caso  da  sociedade  do  delírio, 
o  da  mulher  que  ia  pelo  braço  do  seu  ma- 
rido e  á  qual  um  dos  terriveis  ia  dar  um 
beijo,  ou  o  da  actriz  raptada;  mas  ouviam- 
se  outras  coisas  bem  dilferenles  d'essas, 
ouvia-se  que  o  Garrett  publicava  o  Arco 
de  SanfAnna;  que  Alexandre  Herculano 
encetava  a  Historia  de  Portugal;  que 
um  erudito  prendado  como  poucos  da 
sciencia  da  antiguidade,  Yiale,  ia-se 
ao  mais  antigo  livro  de  lodo  o  mundo, 
abaixo  de  Moysés,  e,  sem  mais  tir'te 
nem  guard'te,  entregava-se  de  cabeça, 
como  diz  o  povo,  a  traduzir  Homero; 
que  um  escriptor  do  mais  completo  me- 
recimento, homem  de  subido  talento,  de 
immensa  instrucção,  o  mais  infatigável 


202  LISBOA  DE  HOMEM 

trabalhador  sem  nunca  deixar  de  ser  o 
espirito  mais  agi^adavel  e  menos  dado 
aos  azedumes  e  vindictas  em  que  os  ho- 
mens de  lettras  tantas  vezes  se  conso- 
mem a  si  e  aos  outros,  António  Augusto 
Teixeira  de  Vasconcellos,  fundava  um 
jornal  valioso.  A  llhistração.  N'essa  II- 
lustrarão  principiou  a  pubhcar-se  o  pri- 
meiro romance  portuguez  que  eu  li, 
Roberto  Valença.  O  romance  appareceu 
sem  nome  de  auctor ;  estava  impresso 
desde  1846,  mas  osaccontecimentospo- 
liticos  que  seguiram  a  revolução  de  maio 
d'aquclle  anno  e  a  guerra  civil  em  cu- 
jos trabalhos  coubera  ao  auctor  figurar 
quasi  constantemente,  haviam  embara- 
çado a  continuação;  sahia  o  primeiro 
volume  apenas.  Era  escripto  com  uma 
facilidade,  uma  graça  natural,  que  lem- 


LISBOA  DE  HOMEM  203 

brava  o  Gil  Braz,  o  Tom  Jones,  e  dizer 
isto  não  me  parece  que  seja  dizer  pouco, 
— bagatella!  como  diz  o  Figaro  no  Bar- 
beiro. Não  era  aquelle  jogo  frivolo  do 
espirito  em  que  consistia  o  grande  entre- 
timento  das  novellas,  era  a  comedia  e  a 
vida,  e  tudo  bem  combinado  entre  o  es- 
criptor  e  o  linguista,  tirando  o  melhor 
partido  da  propridade  das  expressões, 
artificio  da  palavra,  engenho  e  variedade 
da  phrase.  Pertence  a  uma  épocha  mais 
recente,  do  que  a  quadra  a  que  me  re- 
firo n'este  livro,  a  publicação  do  maior 
numero  das  obras  de  Teixeira  de  Vas- 
concellos ;  é  por  isso  que  só  cito  agora 
o  Boberto  Valença:  no  volume,  que  deve 
seguir-se  a  este,  tratarei  demoradamente 
doeste  escriptor,  um  dos  primeiros  de  Por- 
tugal. 


20i  LISBOA  DE  HOMEM 

Esperem  lá,  eu  não  fallei  haverá  dez 
ou  doze  paginas  do  conde  de  Farrobo  ? 
Fallei,  quando  citei  a  opinião  d'elle  a 
respeito  do  tiple  Ferreirinha ;  e  já  vêem 
que,  fallando  do  conde  é  indispensável 
fallar  das  Larangeiras.  A  quinta  das 
Larangeiras !  Alli  iam  passear  aos  do- 
mingos e  ás  quintas  feiras  os  felizes  que 
houvessem  alcançado  bilhete  de  admis- 
são ;  ainda  custava  mais  ir  lá,  do  que  a 
Gorintho.  O  theatrinho  era  um  primor; 
o  conde  deu  a  isso  o  melhor  do  seu 
tempo:  e  do  seu  gosto,  que  era  grande; 
a  riqueza  fez  o  resto.  N'aquellas  fes- 
tas de  grande  novidade,  a  elegância  foi 
tudo.  Comquanto  as  peças  que  alli  se 
representavam,  comedias,  operas  cómi- 
cas, fossem  quasi  sempre  d'aquellas  a 
que   em  expressão  theatral  se  costu- 


LISBOA  DE  HONTEM  20o 

ma  chamar  peças  á  Luiz  XV,  persona- 
gens de  cabelleira,  damas  de  signal  na 
face,  gente  empoada  e  emproada,  pela 
primeira  vez  em  Portugal  poude  admi- 
rar-se  a  gi-aça  do  dizer  natural,  a  de- 
clamação nova,  sem  sair  todavia  do 
género  de  comedia  no  que  ella  possa 
ter  mais  delicado  e  fino.  Só  curiosos 
distinctos,  pessoas  de  grande  educação, 
poderiam  representar  taes  composições 
sem  se  sentirem  embaraçadas;  tanto  mais 
que  não  quadram  facilmente  com  aquel- 
las  elegâncias  os  sentimentos  apaixona- 
dos, por  não  se  ageitarem  ao  coquetismo 
de  uma  épocha,  que  primava  em  não 
tomar  nada  a  serio.  O  mais  leve  gesto, 
que  saisse  das  altas  condições  do  gosto, 
faria  logo  rir,  com  o  vermos  saltar  dos 
cabellos  a  nuvem  alvacenta  dos  pós  da 


206  LISBOA  DE  HONTEM 

cabelleira.  Triumphavam  das  mil  exi- 
gências d'essas  peças  os  amadores  das 
Larangeiras,  pela  regularidade  de  alti- 
tudes, pela  moderação  de  accionnados, 
que  as  pessoas  da  sociedade  sabem  con- 
servar, sem  que  isso  provenha  do  acanha- 
mento nem  possa  confundir-se  com  elle. 
Tudo  era  magnifico  ali.  Pintaram  para 
esse  theatrinho  os  melhores  artistas,  os 
mais  caros,  os  mais  illustres,  Fonseca  e 
Cinnati.  Queria-se,  custasse  o  que  cus- 
tasse, a  melhor  variedade,  a  maior  ma- 
gnificência em  tudo.  Onde  o  fato  devesse 
figurar  ser  de  veludo,  era  do  melhor  ve- 
ludo: vestidos  de  setim  de  cauda  com- 
prida, espadins  de  grande  valor,  todos 
os  adereços  do  mais  alto  custo.  Quando 
n'alguma  peça,  como  n'um  bonito  vau- 
deville  que  lá  deram,  Embrassonsnous 


LISBOA  DE  HOXTEM  207 

Folleville,  a  rubrica  exigia  que  se  que- 
brasse louça,  dizendo-se  na  peça  que 
se  partia  porcelana,  era  deveras  porce- 
lana que  se  partia  em  cacos ! 

Foi  a  bizarria,  a  prodigalidade  luxuo- 
sa, o  ultimo  respirar  da  grande  elegân- 
cia e  fausto  da  fidalguia  antiga.  Desde 
os  bordados  a  ouro  dos  fatos  até  o  es- 
plendor dos  lustres,  espalhando  ondas 
de  luz,  riquissimo,  primoroso,  tudo:  di- 
vertimentos de  principe,  festas  reaes. 

Tudo  quanto  era  notável  entrou  ali, 
ou  foi  convidado  a  lá  ir.  Gosava,  por 
exemplo,  de  grande  celebridade,  um  mu- 
sico, nome  memorável  nos  annaes  da 
arte,  desde  a  opera  Nina,  pérola  da  sua 
Gorôa,  Coppola,  que  viera  por  acaso  a 
Lisboa.  Estava  cheia  a  Itália  do  nome 
d'elle ;  não  apparecera  depois  de  Bellini 


208  LISBOA  DE  HO^TEM 

quem  seguisse  com  tanta  doçura  e  tanta 
alma  as  tradições  da  suave  e  terna  ins- 
piração singela  do  auetor  da  Somnam- 
bida,  e  os  famosos  Mercadante,  Paccini, 
Appoloni,  Petrella,  Rieci,  andavam  de 
ouvido  alerta  com  os  applausos  ruidosos 
e  enthusiasticos  que  suscitava,  por  toda  a 
'parte  onde  era  cantada,  essa  musica  de- 
liciosa, ora  melancólica,  ora  alegre,  so- 
nhadora, vaga,  toda  encanto  e  ideal! .  .  . 
Disse  que  o  maestro  viera  a  Lisboa 
por  acaso?  Enganei-me.  Convidára-o  o 
conde  de  Farrobo;  e  esse  musico  de  tão 
superior  talento  que  dirigiu  por  muito 
tempo  o  theatro  das  Laranjeiras,  accei- 
tando  o  desejo  que  o  conde  lhe  mostrou, 
e  trocando  os  triumphos  de  Milão  e  Flo- 
rença pela  existência  de  compositor  tou- 
riste,  por  cá  se  deixou  ficar.  Por  signal 


LISBOA  DE  HO.NTEM  :209 

que  esse  capricho  lhe  foi  fatal  de  algum 
modo:  quando  o  conde  de  Farrobo  viu 
empallidecer  a  sua  estrella,  principiou 
também  para  Goppola  a  noite  escura  dos 
gloriosos  ao  cairem  da  fortuna  e  da  es- 
timação da  moda;  fechou  o  iheatro  das 
Laranjeiras,  e,  ao  fim  de  pouco  tempo, 
ardeu  quasi  todo  esse  templo  do  gosto, 
dos  primores  da  vida,  do  folgar  delicado 
e  nobre. 

Alli  deu  o  conde  entre  outros  sempre 
explendidos  um  grande  sarau  á  rainha,  a 
senhora  D.  Maria  ii,  e  á  corte. 

Por  signal  que  ficou  memorável  um 
dos  ensaios  para  o  espectáculo  d'essa  re- 
cita. Rebentou  uma  trovoada  medonha, 
na  occasião  de  começar  'a  ensaiar-se 
um  dos  actos  da  peça:  as  senhoras  prin 
cipiaram  por  gritar,  depois  perderam  os 

14 


210  LISBOA  DE  HONTEM 

sentidos :  os  homens  não  sabiam  o  que 
fizessem  á  sua  vida:  houve  um  pânico 
geral.  .  .  Pancadas  de  agua  sobre  panca- 
das de  agua.  .  .  Gahiu  um  rayo  a  poucos 
passos  do  theatro ...  Os  curiosos  perde- 
ram com  o  suslo  a  memoria  e  ficaram 
sem  saber  os  papeis  e  sem  saberem  de 
si.  .  .  Os  omnibus  que  trouxeram  os  mú- 
sicos cahiram  pelo  caminho. .  . 

Fallou-se  d'isso  em  Lisboa  durante 
mezes;  mais:  durante  annos.  Se  ainda 
fosse  moda  agora,  como  era  n'aquelle 
tempo,  publicarem  os  jornaes  uns  artigos 
de  variedades  intitulados  Commemora- 
ções,  escriptos  nem  mais  nem  menos  do 
que  por  Cascaes,  Mendes  Leal,  e  Silva 
TuUio  que  foi  o  que  melhor  mereceu  a 
primazia  n'esses  trabalhos,  mercê  da  es- 
crupulosa investigação  e  esmerada  peri- 


LISBOA  DE  HONTEM  211 

cia  que  revelavam  e  da  vernaculidade 
de  linguagem  em  que  eram  escriptos — 
se  ainda  agora  se  fizessem  Commemo- 
rações,  seria  falta  imperdoável  deixar  de 
commemorar  aquelle  ensaio  celebre. 

Como  eram  bem  feitos,  como  eram 
bem  pensados  e  bem  dirigidos  alguns 
jornaes  litterarios  d'esse  tempo,  o  Pa- 
norama, a  Revista  Universal  Lisbonense ! 

Dizia  Manuel  Passos: 

—  Se  acabarem  a  Revista  e  o  Fano- 
rama,  o  melhor  será  não  haver  senão 
um  jornal,  o  que  publicar  os  actos  e 
manifestos  do  governo;  porque  esse  nin- 
guém o  lê. 

E  acabaram. 

As  allenções  principiaram  a  fugir 
para  a  imprensa  politica.  O  que  mais 
captivava  era  exactamente  a  circumstan- 


212  LISBOA  DE  HONTEM 

cia  de  ainda  não  se  perceber  bem  o  di- 
reito da  imprensa  para  com  o  governo 
e  para  com  o  publico.  Theoricos  e  prá- 
ticos davam  n'esse  ponto  grandes  con- 
certos, em  que  se  desafinava  muito. 

Entendiam  uns  que,  como  principio^ 
a  imprensa  não  tinha  direito  algum  se- 
não o  que  se  lhe  concedesse,  e  que  os 
jornalistas  usurpavam  e  exerciam  sem 
mandato  um  poder  exorbitante,  que  fazia 
com  que,  pelo  facto  de  ser  imprensa, 
tivesse  mais  peso  nos  negócios  públicos 
do  que  as  deliberações  das  camarás. 

Isto,  á  primeira  vista,  não  parecia  ló- 
gico, e  lembrava-se  uma  pessoa,  mesmo 
sem  querer,  do  tal  dito  de  que  o  único 
jornal  necessário  era  o  Diário  do  Go- 
verno. 

Mas,  pensava  um  ou  outro,  e  pen- 


LISBOA  DE  HONTEM  2i3 

sava'  bem,  que  sendo  a  imprensa  um 
poder  irregular,  tinha  uma  grande  prenda 
a  seu  favor,  que  vinha  a  ser,  a  de  qual- 
quer, isto  é  toda  a  gente,  poder  entrar 
n'ella  quando  quizesse.  Yia-se  que  os 
jornaes,  em  caso  definitivo,  não  expri- 
miam senão  a  opinião  publica  tomada 
nas  suas  infinitas  divisões,  e  que  o  go- 
verno devia  ter  interesse  em  consultar 
todos  os  dias  essa  espécie  de  thermo- 
metro  das  paixões  politicas! 

Pensou-se  que,  num  paiz,  como  o 
nosso,  em  que  a  policia  não  teve  nunca 
significação,  e  em  que  a  cada  passo  se 
encontravam  por  Lisboa  uns  patetas,  ou 
uns  pobres  diabos,  que  campavam  umas 
vezes  de  infelizes,  outras  até  de  janotas, 
e  de  quem  se  dizia  cá  bocca  cheia  que 
viviam  pelos  cofres  do  governo  civil,  sem 


214  LISBOA  DE  HO.NTEM 

ninguém  fazer  caso  d'elles,  nem  para  os 
evitar,  nem  para  se  deixar  surpreen- 
der, a  imprensa  poderia  fazer,  indepen- 
dente, o  que  a  policia  sendo  paga  não 
fez  nunca,  insinuar  o  governo  acerca  do 
estado  dos  espiritos,  e  dos  planos  dos 
partidos.  A  liberdade,  a  justiça  e  a  ra- 
zão, fariam  depois  balança  e  equilibrio 
de  tudo  isso. 

O  resultado  foi  simplesmente  ficarmos 
da  força  dos  hebreus  no  que  respeitou 
a  intistuições:  os  que  eram  do  regimen 
dos  Patriarchas,  abominaram  os  do  re- 
gimen dos  Juizes ;  os  que  eram  do  regi- 
men dos  reis  não  podiam  ver  os  dos 
grandes  Pontifices  .  .  . 

A  palavra  para  tudo,  era  o  Governo, 
Como  se  hade  fazer  isto?  O  governo. 
Quem  tem  a  culpa  d'aquillo?  O  governo. 


LISBOA  DE  HONTEM  215 

O  pobre  desditoso  governo  era  um^  en- 
tidade vaga,  que  não  punha  de  manhã 
o  chapéu  na  cabeça  para  ir  tratar  da 
sua  vida,  e  tinha  de  responder  pelos 
desacertos  dos  que  tratavam  só  de  si.  Foi 
durante  um  pouco  de  tempo  uma  infer- 
neira.  Até  os  ferrolhos  do  Castello  de 
S.  Jorge  e  os  do  Limoeiro  pensaram 
tão  pouco  nos  seus  interesses,  que  cor- 
riam e  abriam-se  quando  menos  se  espe- 
rava . .  . 

A  rua  tere  também  a  sua  épocha  de 
festa,  —  mercê  dos  batalhões  nacionaes, 
bataréos,  como  foi  costume  chamar-lhes. 

Que  bonita  tropa ! 

Poderiam  haver-se  formado  destaca- 
mentos magnificos  de  coronéis  e  tenen- 
tes-coroneis! 

Eram   tantos  os  officiaes,  que  d'el- 


216  LISBOA  DE  HOMEM 

les  se  fez  um  regimento :  o  batalhão  sa- 
grado. 

O  povo  chamava-lhe  o  batalhão  dos 
panças.  Maneiras  de  dizer.  Motivava  isso 
o  ser  composto,  em  grande  parte,  de  pra- 
ças em  que  as  proporções  abdominaes 
não  avultavam  menos  do  que  a  impor- 
tância de  serviços.  Eram  oíBciaes,  to- 
dos elles,  dos  antigos  batalhões  que  em 
1833,  1836,  etc,  haviam  formado  os 
batalhões  moveis  e  milicia  nacional. 

Na  cabeça  uns  zabumbas  em  guiza 
de  barretinas;  por  armamento  umas  es- 
pingardinhas  pouco  diíTerentes  das  que 
são  destinadas  a  desenvolver  o  espirito 
bellico  da  infância. 

Além  d'este  regimento  havia  os  dois 
moveis  de  atiradores;  conhecido  o  pri- 
meiro por  batalhão  do  Falcão,  por  ser 


LISBOA  DE  HONTEM  217 

seu  commandante  um  antigo  ministro  da 
marinha,  Joaquim  José  Falcão :  chama- 
va-se-lhe  também  do  arsenal;  era  com- 
posto na  sua  maioria  de  empregados  do 
ministério  da  marinha:  aspecto  beUico: 
officiaes  de  voz  estridente  no  commando, 
lestos  nas  evoluções  e  nas  manobras. 
Magnificas  illuminações  e  grandes  sere- 
natas á  porta  do  quartel.  O  segundo 
movei  era  conhecido  por  batalhão  do 
Joãosinho,  ou  da  pescada,  por  ser  o  seu 
commandente  o  chefe  da  repartição  do 
pescado:  era  tão  fácil  ser admiltido nelle 
como  inspirar  ciúmes  a  Nemorino:  « Sa- 
reste  tu  geloso? — Si,  lo  sono! — Di  qui? 
— Di  tutti?»  Ia  para  lá  quem  queria. 
O  commandante  aproveitou  o  tirocinio 
que  em  33  havia  tido  na  milícia,  e  levou 
o  corpo  a  um  estado  de  instrucção,  que 


Ãi3  LISBOA  DE  HONTEM 

foi  fallado;  dizia-se  que  rivalisava  com 
os  mais  dextros  de  linha;  era  tudo  tra- 
tado militarmente:  zás,  traz. 

Havia  o  batalhão  das  obras  publicas, 
vulgo  da  Caliça,  composto  de  operários 
das  obras  publicas;  muito  numeroso; 
inspirando  moderada  confiança.  D'este 
corpo  era  a  guarda  do  Limoeiro,  quando 
se  abriram  aquellas  portas,  e  sahiram 
os  presos  politicos  alli  detidos. 

Tinhamos  o  batalhão  da  Carta  com  a 
sua  companhia  de  ricos  proprietários  do 
Algarve,  e  não  nos  esqueça  registrar  que 
n'esse  foi  capiíão  o  sr.  Mendes  Leal.  Ti- 
nhamos mais  a  artilhcria  nacional,  rival 
em  classificação  do  segundo  movei;  corria 
o  boato  de  que  acobertava  sob  o  uniforme 
muitos  fadistas  de  Alfama  e  Bairro  Alto: 
o  aspecto  em  todo  o  caso,  era  marcial. 


LISBOA  DE  HONTEM  ál9 

Tínhamos  ainda  —  o  que  não  tínha- 
mos nós?  —  tínhamos  o  Corpo  Commer- 
ci-al;  dois  batalhões:  negociantes  de 
todas  as  cathegorias  e  espécies,  boa  mu- 
sica, correias  de  pohmento  com  emble- 
mas de  prata;  o  encanto  das  ruas  da 
baixa,  quando  davam  guardas  para  a 
principal  ou  iam  em  formatura  á  missa 
de  S.  Domingos. 

Os  dois  corpos  que  continham  o  bei- 
jinho da  sociedade  lisbonense  eram  o 
Esquadrão  nacional,  commandado  pelo 
conde  de  Farrobo  e  o  Batalhão  de 
empregados  públicos,  commandado  pelo 
conde  de  S.  Payo.  Para  assentar  praça 
no  Esquadrão  era  necessário  possuir  ca- 
vallo  próprio.  Era  o  corpo  dos  marialvas 
da  épocha:  mais  de  uma  vez  as  patru- 
lhas, que  policiavam  a  cidade,  foram  en- 


220  LISBOA  DE  HO.NTEM 

centradas  em  flagrante  colloquio  amoroso, 
ou  escoltando  carroagens  m}  steriosas  em 
que  se  suspeitava  que  ia  a  cómica  esta, 
ou  a  bailarina  aquella. . .  Fizeram  grande 
impressão  nas  senhoras,  estes  dois  ba- 
talhões; deve-se-lhes  em  grande  parte 
o  prestigio,  a  sympathia  pela  farda,  que 
foi  durante  annos  um  dos  grandes  se- 
gredos de  tentação  lisbonense .  . . 

— Um  alferes! 

— Um  tenente! 

— Um  capitão.  .  .  Ó  céus!  como  en- 
tão era  costume  dizer.  O  céus! . .  . 

O  batalhão  de  empregados  públicos 
era  formado  da  multidão  que  povoa  as 
secretarias  e  severas  repartições  do  Es- 
tado. Bem  composto  e  fornecido  de  pra- 
ças. Havia  uma  companhia  destinada  ao 
pittoresco:  chaaiavam-lhe  áo  pau  e  cor- 


LISBOA  DE  HONTEM  221 

da;  formava-a  o  pessoal  da  companhia 
braçal  da  alfandega.  Os  oíBciaes  e  pra- 
ças do  batalhão,  que  eram  classificados 
os  da  agua  de  colónia,  fizeram  cara  á  ad- 
missão d'essa  gente  no  corpo  que  tinha 
por  soldados  muitos  commendadores  e 
conselheiros.  A  final  resolveu-se  formar 
do  pessoal  da  alfandega  uma  compa- 
nhia á  parte;  e  lá  se  introduziu  uma, 
commandada  por  officiaes  da  guarda 
das  alfandegas.  Era  um  batalhão  um 
pouco  á  moda  de  Gerolstein.  Disciplina 
de  phanthasia:  um  trecho  de  opera  para 
gritar  alerta;  saindo  do  quartel  em  seges 
para  a  guarda,  das  Francesinhas,  pela 
semana-santa.  Patrulhavam  na  perfei- 
ção: faziam  a  policia,  que  era  um  pa- 
raíso. 

Conta-se  que  de  uma  occasião  ou  de 


222  LISBQA  DE  HO.MEM 

outra,  a  ronda  superior  fazendo  o  seu 
serviço,  fora  das  horas  do  costume,  en- 
controu o  sentinella  em  deshabillé,  fu- 
mando o  seu  charuto,  repotreado  n'uma 
Cadeira  de  braços,  e,  ao  mesmo  tempo 
que  guardava  o  edifício  do  Estado,  en- 
tretendo o  espirito  com  a  leitura  de 
algum  romance  de  Alexandre  Dumas. 
Pelas  noites  o  corpo  da  guarda  torna- 
va-se  em  sala  de  concertos:  tocava-se, 
cantava-se,  jogava-se,  e  as  paredes  res- 
tauradas da  casa  da  tarimba  echoavam 
duettos  de  flauta  e  rebeca,  árias  de  Ros- 
sini, walsas  de  Strauss  e  de  um  compa- 
triota nosso,  vocação  graciosa,  Silvestre 
Pereira,  Silvestre  das  walsas  lhe  chama- 
vam, tocadas  ali  a  violoncello,  cornetim 
e  outros  instrumentos.  Então,  sob  a  far- 
deta  do  soldado,  se  denunciava  o  cava- 


LISBOA  DE  HONTEM  223 

Iheiro,  o  dandy,  o  dUettante,  o  homem 
das  salas.  Referiam  os  boatos  populares 
que  muitas  vezes  um  moço  de  fretes  en- 
vergando o  capote  de  policia  e  sobra- 
çando as  correias,  fizera  o  serviço  da 
sentinella,  a  dois  tostões  por  cabeça,  que 
lhe  grangeavam  uma  boa  propina  pelo 
serviço  da  noite  e  o  disfrute  dos  descantes. 
•Os  moços  de  fretes  attingiram  n'essa 
quadra  porporções  extraordinárias.  En- 
costados á  esquina,  de  sacco  no  braço 
e  barrete  aprumado,  deixando-lhe  de 
fora  a  orelha  para  ouvir  logo  o  psichiu 
de  quem  os  chamava,  contemplavam  sor- 
rindo as  glorias  militares  do  tempo,  e 
sorriam-se  com  malicia  para  os  misté- 
rios de  que  só  elles  tinham  a  chave,  fu- 
mando, descuidosos  da  pátria,  o  seu 
cigarro  ao  sol. 


224  LISBOA  DE  IIONTEM 

Conheciam  tudo. 

Conheciam  todos. 

Viviam  na  rua  e  da  rua. 

Possuiam  freguezes  de  carta  por  dia, 
n'este  batalhão,  ou  n'aquelle.  Em  le- 
vando a  missiva,  vohavam  logo  para  a 
esquina,  a  esperar  que  lhes  trouxessem 
outra. 

Eram  homens  para  casos  formidan- 
dos.  Pau  para  toda  a  obra.  Em  se  que- 
rendo, atormentavam  de  manha,  meze& 
a  fio,  acordando-o  á  força  de  toque  de 
campainha,  algum  devedor  rebelde;  iam 
na  pista,  um  dia  inteiro,  de  uma  familia 
que  andasse  a  visitar  as  egrejas  em 
quinta  feira  santa,  tinham  arte  de  a  se- 
guir na  sombra,  de  ouvir  dois  officios  e 
um  sermão,  de  não  perderem  o  faro  na 
confusão  e  na  balbúrdia,  e  de  irem  gen- 


LISBOA  DE  HOXTEM  22o 

tilmenle  á  meia  noite  e  um  quarto  acom- 
panhál-a  em  distancia  até  o  domicilio 
—  só  para  dizerem  depois  a  um  ca- 
valheiro, que  lli'o  incumbira,  onde  fi- 
cava a  vivenda  d'aquella  que  mais 
tarde  poderia  vir  a  dar-lhe  a  mão  de 
esposa. 

Vida  nómada,  vida  airada  e  leve;  se- 
gurar cavallos  no  Terreiro  do  Paço;  dei- 
tar ramos,  e  atirar  das  torrinhas  de  boca 
versos  de  cores  ás  bailarinas;  ir  buscar 
o  jantar  para  algum  castellinlio  miste- 
rioso, n'uma  rua  isolada,  onde,  sem  nin- 
guém o  sonhar,  alguma  grande  senhora 
fosse  ás  vezes  passar  o  dia  longe  do  seu 
palácio,  na  penumbra  encantada  dos 
amantes.  Quando  Flávio  queria  dar-se 
o  praser  de  ver  em  sua  honra  voarem 
pombinhos  em  recita  de  beneficio,  eram 

lo 


226  LISBOA  DE  HONTEM 

elles  que  iam  ás  varandas  despedir  es- 
sas ternas  aves — com  tal  meiguice  ás 
vezes,  que  lhes  atavam  um  cordel  á  aza 
para  nâo  voarem  de  todo  e  reservarem 
uma  ao  menos  para  o  arroz  da  ceia! 

Tinham  um  typo  geral ;  cahia-lhes  um 
pouco  para  cima  dos  olhos  a  melena 
clássica  dos  pensadores;  duas  farripas  á 
maneira  dos  Girardin  e  dos  Cobden;  ar 
profundo  e  firme;  nariz  abundante,  o  na- 
riz dos  fortes;  mostrando  mais  a  mão  es- 
querda do  que  a  direita,  como  suc(5ede 
por  coquetismo  natural  aos  artistas  e  aos 
poetas,  que  nunca  põem  em  evidencia 
a  mão  que  trabalha,  a  mão  dos  prodí- 
gios, a  mão  gloriosa;  corpo  á  fresca,  em 
mangas  de  camisa ;  calça  larga  e  curt-a, 
a  calça  da  intrepidez  e  da  agilidade, — 
sapato  grosso  e  sólido  —  e,  ao  meio  da 


LISBOA  DE  HOiNTEM  227 

cintura — in  médio  virtus  —  a  apparecer 
a  orelha  de  um  suspensório,  o  suspen- 
sório dos  estadistas,  o  suspensório  dos 
prudentes  e  dos  firmes! 

Eram  os  confidentes  da  vida,  os  porta- 
voz  dos  negócios,  os  correios  do  trato 
social.  A  que  poderiam  elles  aspirar 
mais  nobre  do  que  serem  úteis  aos  seus 
conterrâneos,  n'esses  tempos  arriscados, 
tempos  de  guerra,  vencerem  o  tempo  e 
o  espaço,  resolverem  as  coisas,  serem  o 
telegrapho  ambulante? 

Altivos  de  mais  para  pegarem  no  bar- 
ril e  venderem  agua  como  os  gallegos 
seus  competidores  e  seus  rivaes,  olha- 
vam-os  sem  ódio  mas  com  desdém,  e 
não  lhes  invejavam  siquer  a  sobriedade, 
elles  que  eram  n'isso  o  contrario  dos 
heroes  de  Tuy  e  de  Redondella,  amantes 


228  LISBOA  DE  HONTEM 

do  copo  de  bom  vinho  que  lhes  offere- 
ciam  na  guarda,  onde  levassem  alguma 
boa  nova.  amantes  até  da  herva-doco 
no  armazém  que  ficasse  mais  perto, 
onde  estabeleciam  escriptorio,  emquanto 
aqaella  paixão  rendesse,  olhando  para 
o  que  ia,  e  sorrindo-se,  n'uma  bea- 
titude  de  cassoistas,  de  toda  aquella 
barafunda  de  pseudo-guerra,  e  pseudo- 
amor ... 

O  primeiro  cuidado  dos  soldados  da 
guarda  era  arranjar  namoro  de  visi- 
nha.  que  lhe  proporcionasse  colloquio 
nocturno  e  lhes  fizesse  passar  agradavel- 
mente os  quartos  da  sentinella  da  noite. 
As  bellas  mostravam-se  gi-andemente 
sensíveis  a  essas  attenções.  Ao  largar 
da  agulha  não  se  ouvia  de  janella  para 
janella  senão  conversar  a  respeito  d'es- 


LISBOA  DE  HONTEM  229 

tes  guerreiros  e  discutir  como  e  que 
deve  ser  o  verdadeiro  militar: 

— Nem  alto  nem  baixo,  nem  gordo 
nem  magro,  mão  delgada,  pé  pequeno, 
cintura  fina . . .  E  o  ideal,  dizia  uma. 

— E  a  barba? 

— Só  bigode,  bigode  comprido,  fino, 
engraçado.  As  suissas  fazem  a  cara 
larga,  e  a  pêra  cahiu  no  dominio  dos 
cabos  de  policia!  Bigode,  bigode  só.  Di- 
zer uma  pessoa  o  porque,  é  difficil:  mas 
sâo  mãos  perdidas!  Gosla-se  do  bigode 
pelo  bigode  mesmo,  e  por  parecer  inse- 
parável do  militar  como  o  cavallo  do 
cavalleiro ! 

— Bigode  e  pêra,  também  é  bem  bo- 
nito! suspirava  outra.  Ainda  torna  mais 
completa  a  physionomia  de  um  alferes! 

— Não  posso  ouvir  tal.  A  pêra  ou  é 


230  LISBOA  DE  HOMEM 

bisonha,  ou  é  presumida.  Bigode  é  que 
é  o  caso ;  principalraente  se  nunca  foi  cor- 
tado. É  o  que  enfeita  mais  a  cara  de 
um  homem.  Militar  sem  bigode  é  como 
uma  vassoira  sem  barbas!  Mas,  que  o 
não  aparem.  Bigode  aparado  não  tem 
caracter;  é  como  o  rabo  dos  cães  de 
ratos:  não  se  pode  apreciar. 

E  os  pobres  homens,  coitados,  não 
eram  senhores  das  barbas;  uma  pedia 
mosca,  outra  queria  á  ingleza,  outra  a 
barba  toda  á  porta-machado.  Faziam 
os  barbeiros  doidos.  Conforme  os  na- 
moros, assim  lhes  andava  a  cara. 

Algumas  bellas  levavam  as  noites  em 
gargarejo  permanente,  e  passavam  de 
namorado  á  proporção  que  a  sentinella 
era  rendida. 

Outras  deleitavam-os,  para  lhes  tor- 


LISBOA  DE  HONTEM  231 

nar  a  sentinella  menos  cruel,  tocando 
no  piano,  de  janella  aberta,  algumas  me- 
lodias ternas,  e  por  muitas  vezes  lhes  jun- 
tavam em  voz  appiada  a  letra  de  varias 
modinhas,  correspondência  lyrica  entre 
a  tocadora  e  o  Marte  amoroso,  que  de 
espingarda  ao  hombro,  esperava  a  hora 
feliz  do  render  da  guarda  para  envergar 
a  sobre  casaca,  empunhar  a  chibatinha, 
e  ir  rondar  a  conquista  que  o  serviço  mi- 
litar lhe  deparara. 

O  sr.  Marquez  de  Fronteira  era  o 
commandante  geral  dos  batalhões  nacio- 
naes.  O  estado  maior  era  brilhantissimo. 
A  maior  campanha  foi  a  de  perma- 
nência de  cinco  dias  nas  linhas,  quando 
as  forças,  revoltadas,  da  junta  do  Porto, 
pretenderam  atacar  a  capital,  o  que  não 
teve  logar,  pelo  revez  de  Torres  Vedras. 


232  LISBOA  DE  HONTEM 

Durante  a  estada  nas  linhas,  os  no- 
mes dos  caudilhos  da  revolução,  que 
eram  o  conde  das  Antas,  então  ex-ge- 
neral  Xavier  e  o  visconde  (depois  mar- 
quez  de  Sá  da  Bandeira,  destituído  do 
seu  titulo  e  designado  nos  papeis  offi- 
ciaes  por  ex-general  Sá  Nogueira.)  eram 
ouvidos  com  terror  pela  milicia  da  capi- 
tal; mais  de  uma  cabelleira,  frizada  pelo 
Baron,  poderia  arripiar-se  debaixo  do 
bonnet  de  policia,  ao  ouvir  os  pirns  dos 
canhões,  que  feriam  tiros  durante  o  es- 
tacionamento das  forças  em  Setúbal  e 
Alto  do  Viso:  varias  pernas  poderiam 
vergar  no  serviço  de  descoberta,  quando 
se  imaginava  que  as  forças  patuléas  ap- 
parecessem  em  frente  das  linhas:  mas 
nem  as  pernas  vergaram,  nem  tremeram 
as  cabelleiras.  Até.,  por  maior  galanteria, 


LISBOA  DE  ilONTEM  233 

as  forças  milicianas  desabafaram  os  seus 
receios  em  gaizoles  da  ração,  que  o  es- 
tado fornecia,  como  se  fosse  a  tropa  em 
campanha;  e  D.  Pedro  Brito  do  Rio, 
então  quartel-mestre  do  batalhão  de  em- 
pregados públicos,  viu-se  em  mil  emba- 
raços na  distribuição  do  pão  de  munição 
e  aguardente,  ás  forças  do  seu  corpo,  que 
aguardavam  a  opportunidade  para  troca- 
rem tudo  isso  a  dinheiro,  e  voltarem-se 
para  uns  rancheiros  especiaes,  que  forne- 
ciam ranchos  de  boa  sociedade,  em  que  a 
canja  de  gaUinha  e  o  prezunto  formavam 
a  base  dos  almoços  e  jantares  das  ele- 
gantes praças  do  batalhão  da  a(/ua  de 
colónia. 

Lisboa  admjrou,  recreando-se,  todos 
esses  gentis  militares;  gostou  d*elles 
como  a  Grã-Duqueza,  da  famosa  opera, 


234  LISBOA  DE  HOXTEM 

que  tinha  de  sair  ao  inundo  tantos 
annos  depois  de  tudo  isso.  Estimava  a 
grã-duqueza  a  farda  deslumbrante,  os 
uniformes  multicores,  os  cavallos  tro- 
tando a  compasso,  a  charanga  harmonio- 
sa, as  bayonetas  que  luzem  ao  sol,  e  o 
brilho  das  espadas  por  entre  a  poeira 
das  ruas:  e  também  a  côr,  o  movimento, 
o  ruido,  a  musica  e  a  farda  seduziram 
Lisboa.  O  que  poderia  apaixonal-a  de 
todo,  era  se  tudo  isso  houvesse  ido  um 
boccadinho  além  do  pittoresco:  por  um 
triz  a  valentia  dos  batalhões  esteve  a 
ponto  de  ser  experimentada  n'essa  qua- 
dra memoranda;  e  algumas  provas  de 
valor  collectivo  d'cssa  milícia  deixaram 
perceber,  com  agrado  geral,  que,  em  oc- 
casião  opportuna,  poderia  ter-se  con- 
fiança nas  forças  que  a  compunham. 


LISBOA  DE  HONTEM  235 

N'ama  parada  de  toda  a  milícia,  em 
Campo  de  Ouri(jue,  quando  a  rainha  a 
sr/  D.  Maria  ii,  se  tinha  postado  junto 
ao  quartel  do  16  para  receber  a  conti- 
nência, um  doido  arrancou  uma  das 
balizas,  e  com  a  bandeirola  e  o  ferro 
que  a  segurava,  ao  collo,  foi-se  direito 
ao  grupo  do  estado  maior  do  comman- 
dante  geral  e  largou  a  dar  bordoada  de 
crear  bicho  nos  ajudantes  de  ordens.  Os 
ajudantes  surprehendidos  pelo  arrojo 
d'aquelle  allucinado  imaginavam  uma 
revolta  de  que  aquelle  valeroso  era  o 
chefe:  os  cavallos  espantados  pela  ban- 
deira vermelha  voltaram-lhe  as  garupas 
e  exposeram  os  cavalleiros  á  pancadaria 
doida  que  não  cessara.  O  conde  de  S. 
Payo,  que  com  o  seu  cavallo  branco,  voara 
da  frente  do  batalhão  que  commandava 


236  LISBOA  DE  HONTEM 

em  soccorro  do  estado  maior,  deveu  ao 
ter-se  impinado  o  animal,  o  exforço  de 
se  abraçar  ao  pescoço  do  casallo;  e  por 
acaso  roçou  com  a  espada  pela  cabeça 
do  agressor,  o  qual,  atordoado,  caiu,  e, 
amarrado,  foi  levado  logo  para  o  hospi- 
tal com  instante  recommendação  de  que 
se  diligenciasse  fazel-o  revelar  o  proje- 
cto da  revolta. 

A  malicia  humana  ia  a  querer  surrir, 
como  se  fora  caso  cómico,  d'aquellas  fi- 
leiras de  três  ou  quatro  mil  bravos,  pos- 
tados ali  em  parada,  e  atacados  por  um 
maluco,  que  com  uma  vara  tão  frágil 
affrontou  o  valoroso  exercito  miliciano, 
tozando  o  seu  general  e  estado  maior, 
como  se  fora  aquella  a  mais  arriscada 
campanha  de  tada  a  existência  dos  ba- 
talhões nacionaes.  Entretanto  viu-se  que 


LISBOA  DE  HONTExM  237 

era  isso  um  caso  serio,  não  pelo  succes- 
so,  mas  por  se  passar  com  um  doido; 
os  doidos  na  Rússia  são  sagrados:  em 
Portugal  são  temidos. 

Quando  os  batalhões  guarneciam  as 
linhas,  abriu  o  céu  as  suas  cataractas 
sobre  os  valentes,  que  o  destino  assim 
expunha  ao  fogo  e  á  agua:  mas  o  valor 
das  aguerridas  fileiras  não  se  derreteu 
com  as  chuvas  torrenciaes,  que  cairam 
sobre  os  espinhaços  d'esses  guerreiros;  e 
o  sr.  D.  Fernando,  então  generalissimo 
de  todo  o  exercito  do  paiz,  ajudou  a 
conservar  vivo  e  prompto  o  valor  d'a- 
quella  tropa,  fazendo  visitas  amiudadas 
aos  diversos  quartéis  e  distribuindo  ci- 
garros do  contracto,  chamados  pelles  de 
tigi'e,  pelos  soldados  em  quem  o  frio  da 
agua  que  lhes  repassava  o  capote  não 


238  LISBOA  DE  HONTEM 

tivera  poder  senão  para  originar  leves 
defluxos. 

Ia  a  romper  o  grande  diabo,  e  a  coisa 
estava  por  um  triz  a  estallar  que  havia 
de  fazer  horror,  tanto  mais  que  os  ci- 
garros reaes  e  as  palavras  animadoras 
do  régio  general  incutiam  nos  ânimos 
resoluções  devastadoras;  mas,  n'isto, 
chegou  a  noticia  de  que  em  Torres  Ve- 
dras se  tinha  tornado  inútil  o  reforço 
bellico  da  milicia  nacional  da  capital. 

As  musicas  tocaram  então,  e  chega- 
vam a  parecer  alegres:  a  marcha  dos 
pelotões  foi  regular,  e  pode  dizer-se  que 
apressada,  quando  das  linhas  os  corpos 
regressaram  para  casa:  mas  convinha 
observar  melhor,  e  ver-se-hia  que  exis- 
tia in  petto  a  saudade  d'esses  tempos 
de  guerra,  não  diremos  propriamente 


LISBOA  DE  HONTEM  239 

gloriosos,  nem  também  diremos  aprasi- 
veis,  mas  brilhantes! .  .  . 

Um  maganão,  um  innovador,  pertur- 
bou de  varias  vezes  com  o  ridículo  os 
pensamentos  e  lances  mais  sisudos  e  so- 
lemnes  d"esses  tempos  . . .  Chamava-se 
Bernardino  Martins,  e  o  seu  jornal,  en- 
graçadissimo,  tinha  por  titulo  Supple- 
mento  Burlesco. 

A  caricatura  tentou  viver,  mas  não 
poude;  tratava  sempre  das  mesmas  pes- 
soas, dava  sempre  as  mesmas  figuras; 
a  rainha,  D.  Fernando,  o  conde  de  Tho- 
mar;  a  única  variedade  consistia  nas 
caras  do  Saldanha,  cpie  appareceu  de- 
senhado de  mil  maneiras.  A  simpathia 
que  o  duque  inspirava  resistia  a  isso; 
depois,  mesmo  em  caricatura,  elle  nunca 
podia  ficar  feio,  sob  pena  de  não  dar 


240  LISBOA  DE  HONTEM 

idéa  alguma  do  personagem  e  d'aquella 
rara  esbeltesa,  feições  plácidas,  boca  in- 
sinuante, grande  ar.  porte  real. 

O  Martins  do  Burlesco  era  um  grande 
elegante ;  conhecia  a  vida  pelo  lado  de- 
leitoso e  fácil:  tinha  n'esse  tempo  o 
duplo  segredo  do  l;>em  estar,  saúde  e 
dinheiro.  Formava  ao  lado  do  marquez 
de  Niza,  de  Luiz  Mendes  deVasconcel- 
los,  de  D.  Álvaro;  subia  e  descia  a  seu 
gosto  as  largas  escadarias  dos  palácios; 
chegava  de  França,  onde  folgara  os  pri- 
meiros dias  da  sua  mocidade  nos  salões 
Saint-Germain ;  tinha  muitas  relações; 
regalava-se  de  ser  propheta  na  sua  terra, 
a  mais  diffieil  das  habilidades  de  um 
homem  de  espirito;  e  conservou  por 
muito  tempo  as  attenções  presas  aos  seus 
artigos  do  Supplemento. 


LISBOA  DE  HONTEM  241 

Esse  jornal  fez  propriamente  o  que 
se  chama  épocha.  No  dia  em  que  se  pu- 
blicava, nâo  se  pensava  n'outra  coisa, 
não  se  fallava  senão  cFisso.  Gostavam 
de  o  ler  moços  e  velhos. 

Porque  n'esse  tempo  havia  velhos. 

Isso  acabou. 

Já  não  ha. 

Eram  da  sua  edade,  no  que  recla- 
masse a  dignidade,  que  os  annos  confe- 
rem; mas  eram  alegres,  amáveis,  joviaes, 
e  faziam  brilhar  com  graça  os  cabellos 
brancos  ... 

Gostava-se  d'isso;  respeitava-se  isso. 
Pela  rua  quando  se  encontrava  o  con- 
selheiro Bayardo,  Ildefonso  Leopoldo 
Bayardo,  ou  Bayard.  que  era  commen- 
dador  da  Conceição,  cavalleiro  deChris- 
to,  grã  cruz  da  Rosa  e  de  Carlos  iii, 

16 


242  LISBOA  DE  HONTEM 

quando  tudo  isso  ainda  eram  prendas 
de  estimação,  e  ministro  plenipotenciá- 
rio em  disponibilidade,  toda  a  gente 
lhe  tirava  o  chapéu,  e  não  era  por  elle 
ser  isto  tudo,  era  por  ser  velho.  Se  pode 
haver  graça  e  coquetismo  na  velhice, 
aquelle  era  o  coquetismo  e  a  graça  do 
velho.  O  cabello  alvejava  ao  longe,  o 
vestuário  era  sempre  esmerado,  como 
convém  a  um  homem  fino,  que  deve 
cuidar  de  si  tenha  que  annos  tiver,  para 
não  se  parecer  com  esses  porcalhões 
modernos,  que  acham  tafularia  lavar-se 
e  escovar-se  pouco.  Chamava-se-lhe  o 
verdadeiro  homem  de  gravata  lavada, 
porque  andava  de  gravata  branca.  Usava 
casaco  comprido,  á  Palmerston,  calça 
estreita,  chapéu  napoleonnico.  Era  de 
uma  urbanidade,  de  uma  cortesia  primo- 


LISBOA  DE  HO^'TEM  243 

rosa.  Quando  em  1856  um  criado  o  as- 
sassinou, Lisboa  teve  verdadeira  magoa: 
como  que  disse  adeus  ao  ultimo  velho ! 

—  Vens  tão  branco!  dizia  um  d'estes 
velhos  peralvilhos  de  hoje,  que  se  tin- 
gem e  burnem,  a  António  da  Cunha 
Sotto  Maior,  quando  elle  veiu  a  Lisboa 
com  licença. 

— Venho  de  longe!  respondeu  elle. 

—  Sim,  bem  sei.  Tens  estado  em  Di- 
namarca. É  talvez  má  terra,  ou,  pelo 
menos,  não  te  dás  bem!  Embranqueceste 
de  todo!  . .  . 

— Não,  não,  meu  amigo,  retrucou  o 
excêntrico  diplomata.  Isto  lá  é  moda. 
Tinge-se  um  homem  de  branco  por  ele- 
gância, quando  chega  a  ser  velho ;  exa- 
ctamente como  em  Lisboa  se  pintam 
para  parecer  terem  o  cabello  preto ! 


244  LISBOA  DE  HONTEM 

O  povo  que  se  ri  dos  falsos  elegantes, 
e  dos  moços  fingidos,  tinha  invencivel 
simpathia  por  esses  typos  de  grande  se- 
nhor. A  popularidade  é  uma  coisa  muito 
mais  rara  do  que  se  pensa,  e  isso  nasce 
principalmente  de  que  não  é  fácil  illu- 
dil-a  para  a  captar.  A  popularidade 
alcança-se  por  qualquer  coisa,  mas  é 
preciso  que  essa  coisa  seja  a  valer.  Do 
mesmo  modo  que  o  luxo  é  santo,  porque 
auxilia  o  povo  fazendo-o  ganhar  e  viver, 
assim  a  elegância  o  seduz  por  ser  um 
ideal  para  elle.  Deus  te  livre,  diz  o  ára- 
be, de  alcançares  o  teu  ideal;  a  elegân- 
cia nâo  tem  siquer  esse  perigo  para  o 
povo,  elle  não  pensa  em  a  alcançar,  mas 
deleita-se  em  admiral-a.  É  assim  que  o 
duque  de  Loulé,  que  era  a  natureza  me- 
nos própria  para  aspirar  á  popularidade, 


LISBOA  DE  HOMEM  245 

porque  não  tinha  a  vivacidade,  a  acção, 
a  palavra,  o  tom,  o  rasgo  que  attrae  o 
povo,  ainda  apesar  d' isso  lhe  impunha 
pela  distincção  especialissima  que  res- 
pirava n  elle. 

De  uma  occasião  na  sala  do  risco, 
el-rei  D.  Pedro  v  passeava  com  o  duque 
de  Loulé,  conversando;  o  povo  na  ga- 
leria, entretinha-se  em  olhar  para  elles. 
Era  um  rei  muito  estimado,  e  que  tinha 
sobre  todas  a  virtude  de  maior  apreço 
para  portuguezes,  a  modéstia;  dir-se-hia 
que  pedia  desculpa  á  gente  de  ser  rei. 
O  duque  dava,  como  de  rasão,  a  direita 
ao  monarcha,  e  apressava  ou  retardava 
o  passo  conforme  o  andar  da  magestade 
ia  indicando;  n'isto,  el-rei  passa-lhe  o 
braço  por  cima  do  hombro. 

O  duque  parou,  esquivou-se  branda- 


246  LISBOA  DE  HONTEM 

mente,  e,  virando-se  para  el-rei,  fez-lhe 
uma  vénia. 

Depois  continuaram  a  passear. 

D'alli  a  pouco,  o  senhor  D.  Pedro  v 
tornou  a  esquecer-se,  ou  quiz  lembrar- 
se,  Deus  sabe  qual  das  rasões  houve,  e 
tornou  a  passar-lhe  a  mão  pelo  hombro. 

O  duque  tornou  a  parar,  esquivou-se 
de  novo  brandamente,  e  fez  nova  vénia 
a  el-rei  como  se  lhe  dissesse: 

—  Meu  senhor,  eu  não  sou  rei,  nós 
não  somos  iguaes,  e,  agradecendo  respei- 
tosamente esse  favor,  ao  mesmo  tempo 
indico  a  Vossa  Magestade  que  tal  fami- 
haridade  não  augmentava  a  benevolência 
de  el-rei  e  diminuia  o  acerto  e  bom  gosto 
da  minha  modéstia  e  do  meu  orgulho. 

O  povo  entendeu  isto  d'essa  maneira, 
e  quando  d  duque  de  Loulé  sahiu  do 


LISBOA  DE  HONTEM  247 

Arsenal  toda  a  gente  fallava  do  caso,  e 
se  descobria  de  tão  boa  vontade  para 
saudar  o  bom  rei  como  o  bom  juiso  do 
seu  ministro. 

Que  maior  elegância,  por  outra  ma- 
neira, e  de  outro  género,  do  que,  por 
exemplo,  a  elegância  de  José  Eetevão! 

Original. 

Original  em  tudo! 

É  caso  até  para  se  dizer  que  mais  fá- 
cil seria  contar  as  estrellas  do  ceu, — 
dinumeras  stellas  si  potes ...  —  do  que 
as  innumeraveis  revelações  da  originali- 
dade doesse  homem. 

Nascera  fadado  para  fallar  ao  povo. 
O  povo  quer  ter  a  vista  entretida  por 
imagens  sensiveis  e  cores  variadas :  não 
differença  bem  isso  a  que  os  francezes 
chamam  nuances:  quer  que  lhe  fallem 


248  LISBOA  DE  HOXTEM 

alto;  Dão  tem  o  ouvido  ageitado  a  fmu- 
ras  delicadas;  quer  DiovimeDto,  calor, 
fraDquesa:  discursos  em  que  circule 
graDde  iuteusidade  de  vida.  As  mimosas 
delicadesas  do  beui  pensar  e  bem  dizer 
tocaui-lhe  pouco.  Ha  homens  fadados 
para  morrerem  como  heroes,  ou  al- 
cançarem 05  primeiros  postos:  a  tri- 
buna não  podia  dar  a  José  Estevam 
senão  um  destino  d*essa  ordem;  e  o 
povo  queria-!he  tanto  mais  quanto  elle 
se  mostrou  sempre  desprendido  de  am- 
bições pessoaes  e  das  torpes  especu- 
lações da  politica.  Os  discursos  d'elle 
tiazidos  para  o  Diário  do  Governo, 
eram  como  as  reducçõos  de  operas  para 
o  piano,  que  empalidecem  o  original.  As 
idéas  que  elle  expendia  eram  sempre 
destinadas  a  ruidosas  victorias;  mas  a 


LISBOA  DE  IIOxMEM  249 

coinmoção  produzida  era  de  tal  ordem, 
que  não  poderia  prolongar-se  muito. 
Nunca  se  perde  o  que  se  semear  no 
campo  do  progresso,  e  quando  se  foi 
grande  homem,  e  homem  de  sempre 
trabalhar  para  o  bem.  como  elle,  at- 
tingiu-se  o  fim:  pode  haver  alcançado 
pouco;  mas  a  lembrança,  mas  o  exem- 
plo ficam:  e  sempre  é  bom  isso  mesmo, 
pór  peores  que  vão  os  tempos;  sempre 
é  bom,  exactamente  por  isso,  por  irem 
maus.  Pode  a  gente  ir  de  um  pólo  para 
o  outro,  de  cá  para  lá  e  de  lá  para  cá, 
ver  homens  que  furem  a  barriga  a  si 
próprios,  que  comam  carne  crua,  que 
atravessem  o  nariz  com  uma  agulha  de 
colchão,  que  pintem  o  corpo,  que  façam 
mil  coisas  qual  d'ellas  mais  rara,  o  que 
lhe  ha  de  custar  a  ver  seja  onde  for. 


250  LISBOA  DE  HONTEM 

quanto  mais  em  terra  de  compadres 
onde  quasi  ninguém  é  pelo  que  vale 
senão  pela  ajuda  que  lhe  dão,  é  a  espé- 
cie verdadeiramente  rara  que  se  chama 
«homens  de  principios!»  Quem  viu  José 
Estevam,  viu  isso. 

Não  ha  nada  mais  fugitivo  do  que 
um  discurso,  ou  um  artigo  de  jornal; 
passa,  como  passa  a  actualidade:  apa- 
ga-se  o  discurso  de  hoje,  e  o  artigo  de 
hoje,  ao  apparecerem  os  de  amanhã.  A 
imprensa  do  tempo  de  José  Estevam  foi 
fecunda  em  trechos,  que  pareciam  desa- 
fiar a  possibilidade  de  um  esquecimento 
rápido:  e  todavia  quasi  todos  mergulha- 
ram n'elle.  Os  inimigos  do  grande  orador 
tentaram  propalar  a  opinião  de  que  elle, 
fallando  bem,  escrevia  mal.  Estava-se  na 
epocha  dos  triumphos  jornalisticos  de 


LISBOA  DE  HOMEM  251 

Sampaio,  e  a  popularidade  do  celebre 
polemista  absorvia  a  que  podessem  al- 
cançar os  artigos  de  José  Estevam.  Não 
se  consente  em  Portugal  que  o  mesmo 
homem  possa  ser  superior  em  mais  de 
um  género;  enclausurâmol-o  na  espe- 
cialidade em  que  obteve  os  primeiros 
triumphos,  e  considerâmol-o  perdido  em 
saindo  d'ella,  prevendo  queda  infallivel 
por  mais  lesto  que  elle  corra;  prega-se- 
Ihe  com  um  alfinete  o  competente  let- 
treiro,  depois  de  o  cathalogar,  e  fica 
prompto:  nunca  mais  pode  sair  d'alli. 
Fallava  bem ;  estava  dito  tudo ;  não  po- 
deria fazer  mais  nada.  A  ephemera 
duração  das  folhas  volantes,  e  esse 
preconceito  invencível,  condemnaram  a 
uma  apparição  estéril  alguns  dos  seus 
artigos,  que  seria  útil  que  houvessem 


232  LISBOA  DE  HOMEM 

durado:  apesar  de  passageira,  a  im- 
pressão produzida  por  elles,  deixava 
rasticios  ás  vezes. 

A  quadra  era  fecunda.  Começava  uma 
democracia  de  trabalho  e  de  produção, 
e  a  base  d'essa  sociedade  nova  estava 
no  trabalho  e  na  produção  pessoal.  José 
Estevão  incitava  o  povo  ao  culto  e  amor 
das  idéas,  e  incutia  nos  ânimos  o  ódio 
ás  trevas,  á  inércia,  e  á  indiííerença.  E 
depois,  era  um  artista;  sincero,  afíectuo- 
80,  sublime:  attraia,  levava  tudo,  em 
querendo,  atraz  de  si. 

Quando  conversava,  calavam-se  todos; 
elle  ás  vezes  não  acabava  bem  as  phra- 
ses,  e  parecia  não  se  importar  com  ellas 
antes  mesmo  de  as  terminar,  emquanto 
o  assumpto  lhe  não  interessava;  gra- 
dualmente ia  aquecendo:  a  voz  era  forte 


I 


LISBOA  DEHOxNTEM  253 

e  dominadora,  elle  accentuava  certas  sil- 
labas,  certas  palavras  com  uma  pronun- 
cia um  pouco  especial,  que  tantos  imi- 
tadores teve  depois:  dizia  por  exemplo 
—  poesia,  grave,  demoradamente ...  A 
phisionomia  era  verdadeiramente  bella : 
uma  pallidez  insinuante,  nariz  fino,  ex- 
pressivo, olhos  de  um  tamanho  variável, 
lúcidos,  persuasivos,  cabellos  fluctuando 
á  mercê  do  vento  e  do  acaso,  finos,  on- 
deados, bocca  formosa,  sympathica,  pro- 
mettedora,  —  bocca  de  orador! 

Tinha  bons  estudos,  e  a  sua  ins- 
trução variada  dava  novo  encanto  aos 
dotes  da  sua  eloquência,  e  o  cunho  par- 
ticular de  vivacidade  e  de  interesse  que 
só  se  alcança,  que,  pelo  menos,  só  se 
aguenta,  por  um  fundo  abundante  de 
conhecimentos  alliado  a  um  talento  na- 


254  LISBOA  DE  H  ONTEM 

tural;  mas  o  seu  principal  condão,  era 
a  espontaneidade,  a  expansão,  a  scen- 
telha  do  génio ! 

Nas  mais  leves  circumstancias  da  vida 
familiar,  era  sempre  original,  era  sem- 
pre elle.  Estava,  por  exemplo,  na  sua 
casa,  a  jantar;  o  creado  traz  para  a 
mesa  o  cosido;  José  Estevão,  que  gos- 
tava muito  de  toucinho,  procura  o  tou- 
cinho no  prato  e  não  o  acha : 

— Que  é  do  toucinho? 

O  creado  calla-se. 

— Você  não  ouve,  ó  António?  diz 
para  o  creado.  Onde  está  o  toucinho? 

—  Esqueceu  comprar  mais;  o  cosi- 
nheiro  disse-me  que  havia  só  um  boca- 
dito, e  queria  deital-o  na  panella;  mas, 
como  era  poucochinho,  achámos  que 
mais  valia  não  deitar  nenhum. 


LISBOA  DE  HONTEM  25o 

—  Acharam  isso . . .? 

— -Achámos,  sr.  José  Estevão. 
José  Estevão  meteu  a  mão  na  algi- 
beira, e  tirou  um  cruzado  novo. 
— Toma  lá. 

—  Para  que  é  isto,  sr.  José  Estevão? 

—  Doze  vinténs  para  ti,  e  doze  vin- 
téns para  o  cosinheiro :  duas  bestas  as- 
sim são  raras ! 

Perdoava-se-lhe  tudo,  pela  sinceri- 
dade de  que  elle  dava  prova  a  cada  ins- 
tante, e  porque  se  estava  habituado  a 
vêr  n'elle  uma  creatura  como  que  so- 
brenatural. 

Elle  ia  todas  as  noites  a  casa  de 
D.  Pedro  de  Brito  do  Rio;  mais  cedo, 
mais  tarde,  depois  do  Grémio,  depois  do 
theatro,  depois  do  jornal,  elle  lá  ia.  Uma 
noite  estivera  no   Grémio  até  á  meia 

\ 


256  LISBOA  DE  HONTEM 

noite,  á  meia  noite  sahiu:  chegou  ao 
Loreto,  sentou-se  num  d'aquelles  fra- 
des de  pedra,  que  alli  havia  no  tempo 
dos  casebres,  e  adormeceu.  Passou  um 
amigo,  pasmou  de  o  ver  alli,  metteu-lhe 
o  braço,  e  foram  seguindo  para  a  rua 
Formosa:  elle  ia  a  andar  e  a  dormir: 
positivamente  a  dormir.  Chegados  a  casa 
de  D.  Pedro,  abriu  os  olhos,  trepou  pela 
escada,  chegou  lá  acima,  sentou-se  n'um 
sophá  e  continuou  a  dormir ;  mas  já  en- 
tão era  o  meio  dormir  a  que  elle  era 
dado,  um  dormitar  que  o  deixava  ouvir, 
e  lhe  permittia  julgar  das  opiniões  que 
sohavam  os  que  o  julgavam  adorme- 
cido, até  o  instante  em  que  lhe  fizesse 
conta  entrar  na  conversação:  d'esse  mo- 
mento cm  diante,  ninguém  mais  fallava, 
o  que  queriam  todos  era  ouvil-o. 


LISBOA  DE  HONTEM  237 

Não  é  fácil  citar  ditos  seus.  Cita  a 
gente  de  memoria,  ou  mesmo  pode  citar 
de  as  ter  lido,  palavras  que  elle  pronun- 
ciasse ;  mas  como  hade  dar-se  a  accen- 
tuação,  o  gesto,  a  voz  vibrante,  o  olhar 
inspirado,  que  eram  tudo  n'elle? 

Ahi  está  que  os  seus  retratos,  pare- 
cidos sempre,  ainda  assim  não  dão  por 
nenhuma  maneira  idéa  da  abundância 
de  vida,  da  força  de  organi sacão  que 
admirava  a  todos  que  o  viam.  Quanta 
gente  diz : 

—  Nunca  vi  o  José  Estevam,  mas  te- 
nho o  retrato  d'elle. 

Em  geral  os  retratos  não  servem  se- 
não para  dar  um  sentimento  de  tristesa 
a  quem  olha  para  elles.  Não  passam,  to- 
dos elles,  de  epitaphios,  que  não  dizem 
o  que  cada  um  foi  e  disfarçam  o  que  é, 

47 


258  LISBOA  DE  HONTEM 

se  ainda  vive.  Não  sei  como  se  possa 
gostar  d'essas  figurinhas  passageiras, 
desligadas  por  que  assim  digamos  da 
vida  para  virem  immobilisar-se  n'um 
cartão!  É  uma  mentira,  aquella  immo- 
bilidade,  dada  a  um  ser  que  nem  por 
momentos  permanece  o  mesmo!  Toca 
os  nervos  aquelle  sorriso  infatigável  que 
não  se  sabe  para  quem  é;  dá  tentações 
de  se  lhes  fechar  os  olhos,  que  estão  sem- 
pre abertos  como  os  dos  somnambulos,  e 
seguem  a  gente  para  todos  os  lados  sem 
nos  verem. 

Se  com  José  Estevam  quasi  que  não 
bastava  vel-o,  era  preciso  ouvil-o!  Só 
d'esse  modo  era  verdadeiramente  ellel 
Quid  si  nionstrum  audivisses^f  Todo  o 
orador  superiormente  inspirado  é  o 
monstro  tão  louvado  por  Eschino,  que 


LISBOA  DE  HONTEM  259 

convinha  ouvir  para  poder  julgal-o,  e 
vel-o  para  o  entender!  É  a  acção  orató- 
ria para  a  eloquência  o  que  os  enfeites 
são  para  a  formosura:  mas  a  moda,  que 
é  a  tiranna  das  bellas,  perde  aqui  o  seu 
poder;  o  orador  brilha  unicamente  pelas 
qualidades  que  lhe  sâo  próprias,  não  as 
encommenda  ao  alfaiate  nem  á  modista. 
A  epocha  ajudou-o :  era  o  tempo  das 
grandes  audácias  febris,  que  voaram  já 
como  as  andorinhas,  mas  não  voltaram 
como  ellas.  Calaram-se  as  grandes  vo- 
zes :  não  sei  se  ha  grandes  peitos  ainda. 
Tem  vindo  por  ahi  um  ou  outro,  que  nos 
tem  dado  não  direi  metade  d'elle,  como 
o  Terêncio  dera  aos  romanos  segundo 
dizem  metade  de  Menandro,  isso  seria 
muito,  e  poderia  dizer-se-lhe  «Para  que 
dá  tanto  e  tão  pouco?»  mas  uns  longes, 


260  LISBOA  DE  HOMEM 

conforme  indicam  as  gazetas;  entretanto, 
o  povo  ainda  não  chegou  a  dar  por  isso, 
e  tem-os  prejudicado  sobretudo  haver 
sempre  a  respeito  d'*elles  duas  opiniões 
extremas :  admiráveis  do  principio  ao  fim, 
para  uns :  do  principio  ao  fim  execráveis, 
para  outros:  levaria  muito  tempo  averi- 
guar o  caso,  e.  pelos  modos,  nâo  tem 
valido  a  pena.  O  que  distinguia  José  Es- 
tevam  de  um  modo  especial  era  aquelle 
dom  do  eslylo  de  improviso,  saindo 
como  a  Palias  antiga,  armado  e  a 
sorrir,  d'aquelle  cérebro  fecundo:  exa- 
minal-o  é  quasi  impossivel:  era  uma 
maneira  única:  vá  lá  desmanchar  peça 
por  peça,  como  se  faz  com  um  relógio,  a 
composição  grandiosa  e  artística  dos  seus 
discursos!  Talvez,  n'alguns  pontos,  me- 
cher-lhe,  fosse  quebral-a :  era  a  inspi- 


LISBOA  DE  HONTEM  261 

ração  de  um  talento  superior,  e  de  ura 
homem  que  confiava  em  si  e  no  seu  amor 
pela  liberdade,  pelas  cousas  nobres  e 
sanefas,  pela  independência,  e  pela  pá- 
tria ;  um  grande  coração,  um  orador  sem 
rival,  uma  natureza  digna  de  que  a  hu- 
manidade tivesse  d'ella  orgulho. 

Esse  homem  foi  durante  muitos  an- 
nos  uma  verdadeira  gloria  de  Portugal, 
e,  o  que  chegou  a  valer  mais,  uma  das 
nossas  felicidades.  A  presença  d'elle 
originava  uma  espécie  de  festa  de  fa- 
milia,  confundiam-se  com  os  antigos 
amigos  os  novos,  e  com  estes  os  que  se 
preparavam  para  o  ser,  de  uma  geração 
mais  recente;  tinha,  para  todos,  o  que 
de  ordinário  não  é  dado  senão  aos  mo- 
ços, o  previlegio  de  se  ter  esperanças 
n'elle,  esperanças  tão  variadas  como  as 


262  LISBOA  DE  HONTEM 

qualidades  eminentes  de  que  a  sua  vida 
foi  um  longo  desenvolvimento  e  um  ma- 
gnifico testemunho,  —  e,  entre  ellás  as 
mais  vivas  iam  para  o  homem  politico, 
porque  tal  era  a  corrente  da  época,  e 
porque  com  esse  titulo  nos  pertencia  elle 
de  um  modo  mais  especial. 

Já  vae  longe  tudo  isso:  já  fica  ao 
longe  essa  Lisboa,  sincera  na  sua  gran- 
deza, grande  na  sua  sinceridade. 

Uma  novidadesita  que  houvesse,  en- 
tretinha por  muito  tempo,  e  todos  a  fa- 
ziam render  com  o  annotal-a . . .  Quando 
apparcceram  phosphoros  no  mercado, 
mugimos  esse  caso  como  quem  muge 
uma  vacca,  e  todas  as  manhas  tinha- 
mos  coisas  que  contar  a  respeito  do 
grande  perigo  que  offereciam  os  palitos, 
que  era  como  se  lhes  chamava,  palitos 


USBOA  DE  HONTEM  263 

phosphoricos  nos  jornaes,  palitos  para 
accender  lume  na  linguagem  corrente. 
Que  occasionavam  incêndios,  que  iamos 
morrer  todos  queimados,  que  as  socie- 
dades de  seguros  contra  fogos  protesta- 
vam contra  isso  nos  paizes  civilisados, 
que,  para  tudo  terem  de  ruim,  envene- 
navam os  comestiveis. . .  Citavam-se  his- 
torias ;  uma  mulher  que  guardara  o  pão 
ao  pé  dos  phosphoros,  ceara  com  o 
marido,  comendo  do  tal  pão,  e  ambos 
haviam  morrido  horas  depois . . .  Um 
saloio  deixara  a  cesta  do  seu  fardel,  e 
dentro  d'ella  uma  caixa  de  phosphoros 
fechada,  junto  de  uma  meda  de  ce- 
vada: o  sol  incendiou  os  phosphoros, 
pegou  o  fogo  na  meda,  e  foi-se  o  fructo 
da  seara. 

Para  recreio  e  chamariz  do  povo  ti- 


264  USBOA  DE  HOMEM 

nhamos  os  arraiaes:  sempre  duravam 
dois  dias.  N'essas  festas,  á  noite,  fogo 
de  vistas,  danças,  folias,  desordens,  tu- 
multo, alarido,  atropelementos  no  fugir, 
e  pedrada  brava.  Ficavam  sempre  ca- 
beças abertas,  caras  quebradas,  e  o  re- 
gedor desattendido. 

Era  muito  moda  também,  de  vez  em 
quando,  desancar  os  cabos  de  seguran- 
ça, apedrejar  a  tropa,  e  dar  morras  á 
guarda  municipal,  a  mancipal,  e  ao  D. 
Carlos  Mascarenhas.  Era  o  povo;  e  n'esse 
tempo  o  povo  folgava  á  bruta,  por  não 
estar  em  moda  serem  brutos  os  das 
classes  finas. 

Á  parte  duas  ou  três  casas  grandes, 
dois  ou  três  palácios,  dois  ou  três  salões, 
a  vida  do  que  se  chama  a  sociedade  era 
serena  e  modesta.  As  senhoras  borda- 


LISBOA  DE  HONTEM  265 

vam,  a  matiz,  quadros  que  agradavam 
muito;  bordavam-se  lenços,  cabeções, 
faziam-se  quadros  de  missanga,  borda- 
vam-se outros  a  cabello,  faziam-se  cai- 
xas de  flores  de  cera,  gaiolas  de  fio  de 
linha,  flores  bordadas  sobre  papel,  pas- 
sarinhos bordados  a  canivete,  barqui- 
nhos  em  casca  de  ovo . . . 

As  meninas  portuguezas  eram  umas 
santinhas;  quando  muito,  seroavam  nos 
seus  amores  conversando  de  janella, 
mas,  isso  mesmo,  com  prudência,  e  es- 
tando detraz  d'ellas  a  irmã  mais  velha 
ou  uma  tia. 

Tudo  que  era  nosso  nos  parecia  bem. 
Até  chegámos  a  convencer-nos  que  a  sa- 
borosa musica  portugueza  podia  ser  a 
primeira  em  a  gente  querendo,  e,  para 
exemplo  que  confundisse  todo  o  intento 


266  USBOA  DE  HONTEM 

absurdo  e  desnacional,  andávamos  sem- 
pre a  cantar:  O  saloia  dá-me  um  beijo! 

Era  a  innocencia  de  uma  povoação 
pacata ...  Á  noitinha  fechavam-se  as 
lojas...  Toda  a  gente  se  recolhia  cedo... 
Vivia-se  contente  assim. 

N'isto  appareceu  a 

Pollía 

e  ilhuninou-se  a  cidade 

a  g*az. 

A  impressão  que  estes  dois  factos 
produziram  em  Lisboa,  foi  de  tal  or- 
dem, e  mudou  logo  tudo,  mas  tudo,  tão 
de  repente,  que  até  o  céo,  limpo  e  trans- 
parente, que  tinhamos,  nunca  mais  foi 
como  era ! . . . 

FIM 


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UNIVERSITY  OF  TORONTO  LIBRARY 


DP  Machado,   Júlio  César 

"59  Lisboa  de  hontem 


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