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Full text of "Lisboa triste"

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BRIEF 

0061882 


lEsnasn^ngs^,^:: 


:m?^ié: 


LISBOA 


TRISTE 


Officinas  da  Empreza  Litt,  e  Typographica 
Rua  da  Boavista,  321  —  Porto  —  mcmxvii 


Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/lisboatristeOOigno 


LISBOA    TRISTE 


IGNOTUS 


LISBOA 


TRISTE 


1  9  1  O 
TIP.   DA   EMPRESA   LITERÁRIA   E  TIPOGRÁFICA 

178  —  Uua  Elia3  Garoia  —  184 

PORTO 


Z)M 


yJos  frísfes  c/e  Xísboa 


lONOTUS 


Não  teem  estas  paginas  pretensão  litteraria. 

Não  foram  estylisadas  na  belleza  da  forma, 
não  foram  cuidadas  nem  revistas  minuciosa- 
mente, para  que  possam  pretender  a  mais  do 
que  a  serem  sentidas  por  quem  as  lêr,  como  sen- 
tidas foram  por  quem  as  escreveu. 

Inspiradas  no  paris  S^^^^f  de  Félix  Frade! , 
que  mostra  um  Paris  que  soffre  e  trabalha 
aos  que  só  conhecem  o  Faris  que  ri  e  se  diverte, 
assim  tentamos  mostrar  tristezas  de  Lisboa  aos 
que  só  lhe  conhecem  as  alegrias. 

São  simples  palavras  estas  que  vêem  pedir 
aos  felizes  uma  lagrima  para  os  que  soffrem,  que 
pedem  uma  lembrança  para  os  esquecidos,  uma 
saudade  para  o  passado ! 

Paginas  desconhecidas  que  o  «O  Dia»  tão 
gentilmente  publicou,  humildes  e  apagadas 
ficarão  sempre,  como  desconhecido  e  ignorado 
ficará 

õ  Jgnoius, 


os  PATEOS 


Tanta  miséria,  tanta  pobreza  nos  pateos  de 
Lisboa  I  Dramas  sentimentaes  de  costureirinhas 
pallidas  que  morrem  de  amor  e  tragedias  bru- 
taes  de  rufias  bêbedos  que  maltratam  as  mulhe- 
res, lares  honestos  de  trabalhadores,  onde  as 
crianças  enchem  de  risos  e  de  luz  a  tristeza 
dos  pateos  1 

Tantos  pateos  por  essa  Lisboa  fora,  montões 
de  casas  apertadas,  sem  luz,  e  sem  hygiene,  nas 
ruas  tristes  do  Bairro  Alto,  na  rua  de  S.  Bento 
e  na  rua  dos  Prazeres,  ou  no  bairro  movimen- 
tado de  Alcântara ! 

Essa  gente  que  se  ajuda  nos  trabalhos,  se 
defende  uma  á  outra  e  se  descompõe  nas  mais 
barbaras  palavras,  vive  como  uma  grande  fa- 
milia,  como  um  grande  rancho  de  irmãos  na 
miséria.  Acompanha-se  nas  doenças  e  nas  mor- 
tes, põe  no  prego  os  trapinhos  para  valer  ao 
vizinho  que  não  tem  para  a  renda. 

Quasi  todos  parecidos,  os  pateos,  com  um 
poço,  um  lavadouro,  e  as  casitas  baixas  alegra- 


10 


das  com  os  melindres,  os  manjaricos  e  as  sardi- 
nheiras, em  panellas  velhas  de  ferro.  Algumas 
casas,  arranjadinhas  e  limpas,  com  o  luxo  de  uma 
machina  na  casa  de  fora,  de  uma  commoda  com 
pannos  de  crochet.  Bolas  de  vidro  verde  nas 
jarras,  e  nas  paredes  caiadas  algumas  oleogra- 
phias  de  cores  vivas  compradas  na  feira  da 
Ladra.  Oleographias  de  santos,  da  edade  do 
homem,  ou  da  cara  apostólica  do  sr.  Affonsó 
Costa. 

Sente-se,  n'essas  casitas  limpas,  que  o  dono 
tem  uma  mulher  arranjada,  que  lhe  cuida  da 
casa  e  dos  filhos.  Virá  da  fabrica  onde  traba^ 
Ihou  todo  o  dia,  cheio  de  cansaço,  descansar 
para  o  seu  ninho,  gosando  o  bem  estar  que 
n'elle  acha,  e  esquecendo  em  frente  da  sopa 
quente  que  a  mulher  lhe  traz,  e  no  chilrear  de 
passarinhos  dos  petizes,  todo  o  trabalho,  toda  a 
amargura  da  sua  vida  de  pobre ! 

Mas  as  pobres  mulheres  que  trabalham  fora, 
que  tempo  terão  para  arranjar  as  suas  casas  ? 

Como  será  triste  a  chegada  no  fim  d'um 
dia  de  canceira,  ao  desconforto  do  lar  onde  os 
pequenos  ficaram  sós  todo  o  dia,  encarregada  a 
mais  velha  de  embalar  o  berço  do  menino,  de 
lhe  dar  as  sopinhas  de  leite  e  a  rolha  de  pão 
com  assucar  para  elle  não  chorar  pela  mãe  I 


11 


Os  pateos  são  das  mulheres  e  das  crianças. 
Elias  é  que  os  animam  com  as  zangas,  com  os 
ralhos,  com  as  cantigas,  com  os  risos  e  com  as 
lagrimas ! 

São  ellas  que  respondem  com  palavrões  ou 
com  choros  á  figura  trágica  do  procurador  do 
senhorio,  que  de  vez  em  quando  lá  apparece, 
quando  é  preciso  pôr  na  rua  algum  morador  que 
não  paga. 

São  ellas  que  tratam  das  florsitas  pobres  que 
alegram  o  pateo,  que  o  embandeiram  todos  os 
dias  com  as  cordas  de  roupa  estendida,  que  o 
caiam,  que  o  varrem,  que  o  limpam  e  que  o 
sujam . .  . 

Os  homens  não  se  vêem;  todo  o  dia  no 
trabalho,  á  noite  em  casa  ou  na  taberna,  quasi 
que  não  o  habitam :  só  em  dias  de  greves  e  aos 
domingos,  quando  não  sahem  com  a  mulher,  e 
a  petizada  a  gosar  até  Cacilhas,  ficam.  Então, 
jogam  as  cartas  á  porta,  entre  vizinhos,  em  cima 
de  um  banco  velho  de  cozinha,  e  ás  vezes  por 
noites  quentes  de  verão,  ao  luar,  desabafam 
n'uma  guitarra  ou  n'um  harmonium  toda  a  tris- 
teza, todo  o  sentimento,  todas  essas  pequenissi- 
mas  e  delicadas  coisas  que  todas  as  almas  teem, 
e  que  quando  se  não  dizem,  por  força  se  hão-de 
cantar  I 


12 


Em  noites  de  Santo  António  ou  S.João  tudo 
brinca,  tudo  ri,  o  pateo  esbrazeia-se  todo  ao  cla- 
rão da  fogueira,  toma  tons  vermelhos  infernaes 
com  os  phosphoros  encarnados,  tons  suaves  de 
luar  com  as  htzes  eléctricas,  parece  um  sonho 
oriental  na  chuva  d'oiro  dos  valverdes!  As 
crianças  abrem  então  muito  os  olhos,  encan- 
tadas n'aquella  visão  de  maravilhosas  coisas 
que  se  desfazem ! 

Para  fogo  de  vista  ha  sempre  dinheiro,  em- 
bora no  dia  seguinte  se  não  coma.  Que  por  uns 
momentos  ao  menos  os  olhos  vejam  as  chuvas 
d'oiro,  de  brilhantes,  de  rubis,  como  se  os  thesou- 
ros  das  cavernas  encantadas  se  abrissem,  para  os 
pobresinhos,  para  logo  se  fecharem  na  escuridão! 
Dansa-se  e  toca-se  até  de  manhã,  fazem-se  sor- 
tes, dão-se  manjaricos  e  nascem  namoros .  .  . 

Em  noite  de  S.  João  começou  n'um  pateo 
um  namoro  triste  de  uma  costureira  loira,  sen- 
timental, que  morreu  de  amor  por  um  rufia 
chie,  de  camisa  tango,  fato  claro  de  calça  muito 
justa  e  coco  ao  lado  na  melena  negra .  .  . 

EUe  primeiro  vinha  fallar-lhe  á  porta  do 
túnel  escuro  da  entrada.  Depois  deixou  de  vir. 
Ella  esperava-o  sempre  por  noites  frias,  e  elle, 
entretido  na  Mouraria  pelas  tabernas,  não  vinha 
nunca. 


13 


A  pequena  de  dia  costurava  no  «atelier» 
abafado,  cheio  de  gente,  a  respirar  aquelle  ar 
viciado  de  muitas  boccas,  enervada  com  as  suas 
penas,  com  o  seu  trabalho,  e  o  barulho  irritante 
das  machinas. 

Ao  chegar  a  casa  perguntava  se  tinha 
carta,  ou  se  elle  tinha  vindo,  e  quando  a  mãe  lhe 
dizia  que  não,  ficava  muito  triste  a  scismar  e 
não  tocava  no  comer. 

Foi  emmagrecendo,  emmagrecendo,  até  que 
entysicou.  \ 

O  pae  tinha  morrido  tysico,  a  irmã  tam- 
bém, e  ella,  coitadita,  com  aquella  pena  a  roer- 
Ihe  o  coração,  seguiu  o  mesmo  rumo. 

Quando  ella  já  se  não  levantava,  e  na 
cama  de  ferro  do  quartosinho  pobre,  muito 
limpo,  aili  estava  deitada,  muito  magrinha,  com 
as  mãos  transparentes  sobre  a  dobra  do  lençol, 
alegrava-se  ainda,  e  riam-se-lhe  os  olhos  quando 
a  mãe  delle  a  vinha  ver,  uma  velha  alta,  magra, 
estafada  de  trabalho  e  de  desgostos,  que  lhe 
queria  como  filha. 

Então  ouvia-se  a  voz  da  velha  dando  con- 
selhos, que  o  deixasse,  que  não  se  ralasse  por 
causa  d'elle,  um  moina  que  não  lhe  tinha  dado 
senão  ralações,  que  só  queria  dinheiro  para  a 
estroinice,  e  uma  rapariguinha  assim  tão  soce- 


14 


gada,  com  tão  boas  màos,  não  havia  de  lhe  fal- 
tar quem  a  quizesse .  .  . 

E  a  doente  chorava,  tossia  e  ficava-se  a 
scismar  sem  dizer  nada,  emquanto  a  mãe  delia, 
que  engommava  para  fora,  a  esconder  os  olhos 
cheios  de  lagrimas,  vinha  á  porta  assoprar  o 
ferro ! 

Morreu.  A  carreta  negra  lá  veio  buscar  o 
corpinho  leve,  magrinho  e  consumido  de  penas, 
e  os  vizinhos  e  as  vizinhas  chorosas,  vestidos  de 
preto,  lá  deixaram  no  Alto  de  S.  João  a  cos- 
tureirinha  loira  que  morreu  d'amor  por  um  rufia 
chie.  .  . 

Quantos  sahiram  assim  do  pateo,  na  car- 
reta negra,  para  descansarem  na  pobreza  da 
terra  dura,  guardados  pela  cruz  numerada!  O  pa- 
teo ficava  todo  o  dia  triste,  a  sentir  a  falta  de 
quem  partiu! 

Mas  como  se  alegrava  o  pateo,  se  ani- 
mava com  a  alegria  dos  casamentos  que  dali 
sahiam,  dos  baptisados,  que  alvoroçavam  toda 
a  vizinhança! 

Vinha  a  comadre  muito  bem  vestida,  com 
o  menino  ao  collo,  muito  lavadinho,  com  o  seu 
fato  de  chita  e  uma  fita  larga  de  setim  na  cin- 
tura (que  uma  vizinha  que  tinha  boas  coisas 
emprestava  aos  baptisados  todos),  e  uma  tou- 


10 


quinha  com  um  fitilho  cor  de  rosa  emmoldu- 
rando  a  carinha  vermelha,  ainda  sem  feições.. 
A  volta  da  egreja  todos  queriam  beijar  o  5^7;^- 
iinho^  e  os  vizinhos  eram  convidados  com  os  pa- 
drinhos e  a  comadre,  a  um  copinho  de  vinho 
fino,  um  pires  d'arroz  doce,  uma  fatia  de  pão 
deló! 

Agora  poucos  baptisados  já  sahem  dos 
pateos. 

As  criancinhas,  por  ser  mais  barato,  vão 
só  ao  registo,  que  é  d'obrigação.  Não  se  faz 
festa,  não  ha  arroz  doce,  não  se  bebe  á  felici- 
dade do  menino.  Para  quê?  já  não  é  um  anji- 
nho que  foi  a  abençoar.  E  um  cidadão  que  foi 
a  marcar ... 

Esta  grande  familia  da  pobreza  que  se  pro- 
tege, se  chora,  se  acompanha  e  se  descompõe, 
n'um  estranho  e  incomprehensivel  sentimento, 
vê  partir  com  a  maior  indifferença  o  vizinho 
com  quem  viveu,  n'uma  intimidade  de  irmão, 
logo  que  o  sinistro  procurador  o  intima  a  sahir 
por  não  pagar.  Sabe  que  o  vizinho  que  partiu 
arranjou  casa  mais  barata  nalgum  outro  pateo 
distante,  n'alguma  ilha  lá  para  os  Terremotos, 
Sete  Moinhos  ou  Monsanto  e,  na  mesma  indiffe- 
rença com  que  o  viu  partir,  não  procura  vê-lo 


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mais  nem  saber  d'elle,  talvez  no  fatalismo  orien- 
tal do  que  tem  qtte  ser,  ou  n'uma  certeza  que 
no  outro  mundo  se  encontrarão ! 

Lembrai- vos  da  pobre  gente  dos  pateos 
que  vos  mostrei,  familias  ricas  ou  remediadas 
que  vos  juntais  na  meza  alegre,  cheia  de  flo- 
res. Pensai  que  nos  pateos  ha  criaturas  que  teem 
fome,  crianças  que  nunca  tiveram  brinquedos, 
e  quando  vos  chegarem  ás  mãos  aquellas  cartas 
em  papel  almaço  azul,  marcadas  por  tantas 
mãos  sujas  que  por  ellas  passaram,  que  são  ás 
vezes  os  pedidos  dos  moradores  dos  pateos,  á 
Caridade,  dai  o  pouco  ou  muito  que  puderdes, 
mas  dai  sempre,  que  mais  vale  dar  a  um  man- 
drião que  quer  explorar  do  que  não  dar  a  um 
desgraçado  que  precise ! 


os  GUARDAROUPAS 


Foi  n'uma  tarde  quente,  de  primavera,  ha 
muitos  annos,  na  anciedade  e  excitação  que  os 
preparativos  de  uma  récita  punham  cm  todos 
nós,  que,  n'um  grande  grupo  de  gente  alegre, 
entrámos  pela  primeira  vez  na  tristeza  quasi 
trágica  dos  guarda- roupas! 

O  theatro  de  D.  Maria  dormia  n'essa  tarde 
quente,  muito  fechado,  muito  triste.  Tinha 
aquella  lassitude  que  as  coisas  tomam  como  se 
fossem  gente,  aquella  tristeza  inconfundivel  que 
os  theatros  teem  de  dia,  elles,  que  só  para  a  noite 
foram  feitos,  e  que  lhes  dá  o  ar  amadornado  dos 
morcegos  quando  nos  dias  de  sol  se  collam  ás 
traves  das  adegas  para  dormirem  ao  fresco. 

O  grupo  alegre  de  rapazes  e  raparigas 
calou-se  logo,  sentindo  instinctivamente  que  se 
devia  calar,  e  foi  em  silencio  que  se  atravessou 
o  palco,  onde  os  carpinteiros  trabalhavam  na 
mudança  de  um  scenario,  sem  bulha,  quasi  como 
phantasmas  ou  como  sombras  no  mesmo  instin- 
cto  de  nào  acordar  o  theatro  adormecido. 


'20 


Subimos,  subimos  sempre,  escadas  em  cara- 
col como  para  o  zimbório  de  uma  torre.  N'um 
mysterio,  n'uma  espera  estranha  de  qualquer 
coisa  de  extraordinário.  Lá  em  cima,  n'uma  enor- 
me sala  cheia  de  armários,  esperavam-nos  para 
mostrar  os  fatos .  .  . 

Como  cadáveres  decapitados,  pendurados 
em  cabides,  appareceram  fatos  de  velludo  de 
duques  da  Renascença,  fatos  de  mignons,  de 
mangas  golpeadas,  casacas  de  seda  de  grandes 
abas,  de  marquezes  de  Versa  illes,  casacas  sóbrias 
e  elegantes  do  primeiro  Império ! 

Abriu-se  um  armário,  e  appareceram  vesti- 
dos de  mulheres  de  todas  as  épocas,  tão  cheios 
ainda  de  todos  os  corpos  que  vestiram,  que  pare- 
ciam gente  morta,  pendurada,  estrangulada, 
como  se  fosse  aquella  a  casa  de  Barba-Azul  e  ali, 
n'aquelle  armário,  estivessem  as  mulheres  que 
elle  matou! 

Todos  esses  fatos  foram  vestidos  por  acto- 
res, por  actrizes  conhecidas,  fatos  que  todos  nós 
reconhecemos  ali  por  termos  visto  no  theatro. 
Mas  que  differentes,  vistos  assim  de  dia,  sem  as 
luzes,  sem  o  brilho,  sem  o  fundo  de  illusão  do 
scenario  de  lona,  apparecendo  os  setins  pobres  e 
baratos,  as  rendas  ordinárias,  os  velludos  sem 
brilho   e  amassados,  tão  differentes    dos    que 


21 


vimos  no  theatro,  em  que  a  riqueza  das  luzes 
dava  riqueza  áquella  pobreza  toda,  transfor- 
mando as  rendas  pobres  em  rendas  ricas,  os 
setins  em  libertys  caros,  os  velludos  pobres 
dalgodão,  em  ricos  velludos  de  Lyon  1  Illusão 
deliciosa  que  encanta  os  nossos  olhos,  feita  da 
varinha  de  condão  da  phantasia,  que  transfor- 
mou em  sapatinhos  de  crystal  os  sapatos  velhos 
da  Cendrillonl 

Mexeu-se  em  tudo,  tiraram-se  dúzias  de 
fatos  entre  risos  e  chilriada  alegre  de  gente  nova, 
vestiram-se  as  casacas  de  seda  sobre  os  jaquetões, 
puzeram-se  os  espadins  á  cinta.  Imaginámo-nos 
todos  peraltas  e  sécias,  contemporâneos  de  made- 
moiselle  de  La  Ségliére,  apanhando  as  cerejas 
brancas  do  jardim  do  amigo  Fritz,  á  medida  que 
os  fatos  dessas  peças  as  iam  evocando ... 

E  os  fatos  pareciam  dar  as  deixas,  evocar 
expressões,  lembrar  silhoiiettes  gentis  de  actrizes, 
mascaras  interessantes  de  actores,  pareciam 
viver,  animar-se  com  a  vida  que  deixou  nelles 
os  corpos  que  vestiram ! 

Escolheram-se  alguns,  os  outros  atiraram-se 
para  ali  a  monte  e  ficaram  todos  misturados, 
esperando  o  cemitério  dos  armários,  como  se 
aquelle  sopro  que  os  animou  se  tivesse  extin- 
guido e  ficassem  para  ali  amarrotados  como  os 


90 


comparsas  de   Guignol,   quando  o  espectáculo 
acaba  e  a  meão  que  os  animou  se  retira! 

Desceu-se  outra  vez  a  escada  de  caracol, 
passou-se  pelo  palco  onde,  a  um  cantinho, 
emquanto  os  carpinteiros  de  blusa  azul  ageita- 
vam  as  lonas  floridas  d'um  scenario,  os  actores, 
rezavam  os  papeis  d'uma  peça  nova.  E, sempre 
no  mesmo  mysterio,  no  mesmo  silencio,  n'uma 
tristeza  desconhecida  e  estranha,  o  grupo  alegre 
que  visitou  o  guarda-roupa,  de  novo  se  achou  no 
movimento  e  barulho  do  Rocio,  á  hora  arroxeada 
do  entardecer . . . 

Tristeza  quasi  trágica  dos  guarda-roupas, 
quem  a  não  conhece! 

Quem  haverá  que  não  tenha  subido  em 
noite  de  Carnaval  a  escada  do  Cruz  para  enver- 
gar sobre  a  casaca,  o  smoking  ou  o  jaquetão, 
dominó  de  seda  preta  com  fitas  cahidas  no  capuz, 
o  convencional  e  clássico  dominó  alugado  que 
as  mascaras,  das  casas  que  recebem  mascaras, 
todas  conhecem  ha  tantos  annos!  Esses  dominós, 
guardados  durante  um  anno  nos  armários  do 
Cruz,  com  o  cheiro  leve  de  bafio,  e  de  perfume, 
que  romances  contariam  se  fallassem,  se  contas- 
sem aos  loups  de  velludo  preto  as  palavras  que 
ouviram,  as  declarações,  os  namoros,  as  felicida- 
des ou  amarguras  da  vida,  de  que  foram  neces- 


23 


sarias  testemunhas!  Romances  passados  entre 
valsas,  barulho,  chiada,  intrigas  de  mascaras  em 
salas  chies  de  gente  conhecida,  romances  pobres 
e  ordinários  de  lagrimas  depois  dos  risos,  em 
bailes  de  mascaras  dos  theatros! 

Quem  não  conhece  aquelles  guerreiros  me- 
dievaes  do  Guarda-roupa  Cruz,  phantasmas  do 
passado,  guardiões  ferozes  dos  pierrots  senti- 
mentaes  e  sonhadores,  das  lavradeiras  do  Mi- 
nho de  vistosas  cores,  das  ciganas  de  sequins 
e  colletes  de  velludo  preto,  das  hespanholas  de 
saias  de  setim  encarnado,  que  ali  estão  €m  ca- 
bides á  espera  de  um  corpo  que  lhes  dê  vida  e 
de  uma  alma  que  os  anime! 

Ali  estão,  os  vestidos  de  seda  antiga,  de 
folhos  e  decote  largo,  das  pareittas  velhas  á 
espera  dos  mitenes^  dos  manteletes  e  dos  bandós 
de  cabello  empoado,  para  seguirem  para  as  luzes 
das  salas  em  mesuras  requebradas ;  ali  estão  as 
sedas  Pompadours  e  os  paniers  dos  vestidos 
Luiz  XV  á  espera  dos  penteados  altos,  das  mou- 
ehes,  das  pulseirinhas  de  velludo  preto  para 
levantarem  com  dois  dedos  a  saia  de  seda  no 
passo  vagaroso  do  minuettc. 

Ali  estão  varinas,  saloios  e  ché-chés  já  de 
grande  facalhão,  á  espera  de  uma  voz  avinhada 
que  os  faça  correr  no  arreda  que  te  espeto  ! 


24 


E  esses  fatos  todos  que  mexeram,  dança- 
ram, na  illusão  da  vida  que  lhes  deu  o  Carnaval, 
em  quarta-feira  de  cinzas,  com  os  restos  de  per- 
fumes, de  confetti,  de  flores  murchas  pregadas 
ainda  nelles,  voltam  á  tristeza  dos  guarda-rou- 
pas,  a  pensarem,  a  sonharem,  fechados  um  anno 
inteiro  no  silencio  dos  armários ! 

Tristeza  dosguarda-roupas  que  mascaram  a 
illusão,  que  escondem  romances,  risos  e  lagrimas! 


os  GAROTOS 


Pensava  uma  creança  preoccupada  com  o 
destino  que  Deus  daria  ãs  luas  depois  de  velhas, 
que  Deus  as  cortaria  decerto  aos  boccados  para 
fazer  mais  estrellas .  .  . 

Que  destino  dará  Deus  aos  garotos  quando 
crescem  ?  O  que  fará  Deus  d'esse  bando  enorme 
de  rapazitos,  descalços,  enfezados,  pallidos,  roxi- 
nhos  de  frio  no  Inverno,  que  se  sentam  nos  eixos 
dos  coupés  emquanto  não  são  denunciados  pelo 
4à  vae  Mfmf,  que  se  vêem  ao  espelho  no  poli- 
mento dos  automóveis,  que  se  esgueiram  pelas 
lojas  elegantes,  pelos  eléctricos,  pelas  egrejas 
como  sombrasinhas  famintas  sem  quasi  se  ouvi- 
rem os  passinhos  dos  pés  descalços,  sempre  com 
medo  que  ralhem  e  os  ponham  fora ! 

Que  homens  fará  Deus  d  esses  garotos  de 
Lisboa,  de  todos  os  feitios,  tamanhos  e  edades, 
desde  os  pequeninos  de  zé  de  malha  na  cabeça, 
até  aos  grandes  de  bonet  sebento  e  beata  atraz 
da  orelha  1 

Esses  garotos  que  vendem  postaes,  cautel- 


28 


las,  jornaes,  alfinetes  e  atacadores  pelas  ruas  da 
Baixa,  caras  conhecidas,  ^^;//í?  conhecida  e  smart 
entre  os  garotos,  que  os  lisboetas  que  vão  á 
Baixa  vêem  de  anno  para  anno  crescer,  sempre 
magrinhos  e  enfezados,  de  repente  desapparecem 
e  não  se  vêem  nunca  mais;  e  novos  garotos 
apparecem  como  um  exercito  que  se  renova,  a 
substituir  os  que  partiram  1 

Lisboa  é  d'elles.  Conhecem-n'a  toda. 

Sabem  as  lojas  boas  onde  fingem  que  os  não 
vêem  entrar,  as  lojas  más  onde  logo  desde  a 
porta  correm  com  elles  para  não  incommodarem 
os  freguezes,  as  egrejas  onde  os  sacristãs  não 
ralham.  Physionomistas  e  psychologos,  os  garo- 
tos vêem  logo,  entre  tantas  senhoras  cJiics  no 
Bénard,  aquellas  que  darão  um  lepes  ou  um  bolo 
e  vão  pelo  faro  como  os  cães,  direitinhos  a  essas. 

A  porta  do  Colyseu  ou  dos  animatographos, 
n'um  instincto,  vão  logo  pedir  a  quem  tem  cara 
de  dar  o  cobresito  que  falta  para  wmdi  girai /  A 
quem  não  compre  o  postal  com  o  retrato  do  sr. 
D.  Manuel,  apresentam  logo  o  retrato  do  sr.  Ber- 
nardino Machado.  E  se  vêem  hesitação  na  esco- 
lha, os  garotos  dos  postaes,  psychologos,  e  por- 
tugiiezes,  n'uma  suprema  tentação  dizem  logo: 

—  O  freguez,  fique  com  os  dois!.  .  . 

O  freguez  pára,  hesita  e  leva ...  os  dois  1 


29 


O  garoto  bem  sabia  que  batia  certo,  ou  elle 
não  fosse  garoto  e .  .  .  portuguez  de  agora ! 

E  o  garoto  independente,  que  responde  se 
lhe  ralham,  que  deita  a  lingua  de  fora  a  quem  o 
despreza,  que  passa  todo  o  dia  com  uma  côdea 
de  pão  e  um  carapau,  que  se  veste  de  trapos 
que  lhe  dão  e  não  gasta  nada  em  calçado,  feliz 
como  os  felizes  com  dez  quentes  e  boas  por  um 
guines,  felizes  como  os  felizes,  com  um  boccadito 
livre  para  uma  partida  de  eixo,  de  semana  ou 
de  peão,  conforme  a  epocha,  quando  á  noite  se 
accomoda  para  dormir  em  casa,  se  a  tem,  se 
não  a  tem  debaixo  d' aqiiella  arcada,  quando  en- 
trega á  mãe  o  tostãosito  que  ganhou  no  dia,  es- 
tava bem  no  seu  direito,  se  fosse  philosopho,  de 
se  achar  bem  superior  a  tanta  dessa ^^///^yf;/í? 
que  elle  viu  na  Baixa,  e  de  dizer  para  comsigo : 

—  Sempre  ha  iypos  muito  giros  / 

Mas  o  garoto  felizmente  não  pensa,  em 
pensar,  não  faz  commentarios,  não  se  aprecia, 
vive  au  jour  le  jour  de  pensamentos,  sem  proje- 
ctos de  futuro.  Não  se  imagina,  fazendo  um 
casamento  rico,  n'um  automóvel  com  outros 
garotos  a  abrirem-lhe  a  porta,  que  elle  agora 
abre,  nem  nos  theatros  em  logares  bons,  onde 
a  gente  se  encosta. 

Satisfaz  as  suas  aspirações  se  vê  passar 


3U 


O  Ji ornem  dos  té- fés  e  tem  um  guines  para  com- 
prar um,  se  tem  lá  por  festa  dois  cochichos  para 
ir  ver  os  palhaços,  se  tem  uma  medida  de  amen- 
doim na  algibeira  para  ir  roendo  quando  tem 
fome ! 

E  demais  tem  tanta  coisa  inesperada  para 
o  divertir ! 

As  caçadas  aos  gatos  da  rua  a  quem  as 
velhas  atiram  tripas  de  peixe,  as  musicas  que 
elle  segue  marchando,  as  senhoras  á  moda  que 
elle  troça,  os  casamentos,  as  festas  a  que  elle 
vae  sempre  chamar  os  carros  e  abrir  as  portas  ! 

Os  garotos  vão  a  tudo,  sabem  tudo,  as- 
sistem a  tudo,  por  fora.  Como  os  nomes  mais 
repetidos  nos  carnets  niondaíns  dos  jornaes,  os 
garotos  que  não  teem  nome,  não  faltam  nunca 
a  nada  que  seja  chie  e  divertem-se  quasi  sem- 
pre mais  do  que  aquelles  que  vão  por  dentro 
em  Fiats  ou  Renaults  já  òlasés  e  maçados  de 
tudo! 

Mas  o  supremo  encanto  e  distracção  dos 
garotos  pequeninos  são  as  egrejas ! 

Entram  de  vagarinho,  sempre  com  medo 
que  ralhem  e  se  não  está  muita  gente  e  podem 
chegar  aos  bancos  e  esgueirarem.-se  lá  para  den- 
tro, estão  salvos ! 

Sentam-se  então,    e   ficam  muito  calados 


81 


com  o  bonet  na  mão,  os  olhos  esgazeados  para 
as  luzes,  para  os  paramentos  do  padre,  a  ouvi- 
rem o  órgão  n'um  bem  estar,  n'um  socego,  que 
elles  não  sabem  explicar! 

E'  Jesus  Christo  crucificado  no  Altar  que 
está  contente  por  terem  deixado  vir  a  Elle  os 
pobresinhos  e  dá  esses  minutos  de  bem  estar 
aos  garotos  enfezados  e  magrinhos,  esses  minu- 
tos de  socego  para  que  elles  pensem  n'Elle,  em- 
quanto  Elle  pensa  nelles .  .  . 

Que  destino  dará  Deus  aos  garotos  quando 
crescem  ? 

Irão  aprender  officio,  irão  para  casas  de 
correcção,  irão  barra  fora  como  vadios  ?  Virão  a 
ser  soldados,  trabalhadores  ou  artistas  ? 

Ou .  .  .  tão  magrinhos,  tão  enfezados,  tão 
cheios  de  fome  e  de  frio,  os  garotos  de  Lisboa 
talvez  não  cheguem  a  crescer,  e  Deus  que  corta 
as  Ltias  depois  de  velhas  para  fazer  mais  estrel- 
las,  leva  os  garotos  pobresinhos  para  o  Ceu, 
para  fazer  mais  anjos ! 


CASAS  DE  PEMHORES 


Dramas  que  se  adivinham  tão  profunda- 
mente tristes  n'estas  coisitas  das  creanças  acha- 
das nas  casas  de  penhores  ! 

Coisas  mais  ricas,  relógios  d  ouro,  alfinetes 
e  anneis  de  brilhantes  que  a  estroinice  por  uns 
dias  levou  ao  prego,  ali  ficam  com  as  coisas  po- 
bres, e  os  livros  enormes,  dossiers  da  escriptura- 
ção  da  miséria,  abrem-se  vezes  sem  conto  ao  dia, 
e  as  cautellas,  com  aquelles  dizeres  aterradores 
que  marcam  o  findar  dos  prazos  dos  juros,  lá 
passam  para  a  mão  dos  miseráveis,  a  lembrar- 
Ihes  o  grande  cofire  que  se  abre  para  tirar  di- 
nheiro, e  as  suas  coisas  tão  estimadas  que  lá 
ficaram  para  sempre  na  casa  de  penhores  1 

Nas  ruas  do  Bairro  Alto,  da  Mouraria,  e 
para  os  lados  da  Graça,  quem  não  tem  parado 
a  vêr  as  montras  das  casas  de  penhores,  quem 
não  tem  visto,  olhando  para  dentro,  n'aquella 
curiosidade  que  vem  do  desconhecido  e  da  tris- 
teza, as  guitarras  penduradas,  os  relógios,  os 
oiros  de  gente  pobre  trazidos  entre  lagrimas! 


36  = 

A'  noite,  nas  ruas  tristes,  lá  está  na  escu- 
ridão a  tentar  a  luz  da  montra,  a  lanterna  em 
que  se  le  «Empréstimos  sobre  penhores»,  e  as 
mulheres,  com  trouxas  debaixo  dos  chalés 
velhos,  lá  vão  empenhar  os  brincos,  o  cordão 
que  juntaram  quando  estiveram  a  servir,  os 
anneis  de  ouro  com  pedras  falsas,  prendas  dos 
namorados,  o  lenço  de  seda  que  ainda  trouxeram 
da  terra  e  tinham  dobrado  pelos  vincos,  o  ves- 
tido preto  de  lã  lavrada,  para  acudirem  á  renda 
da  casa,  á  falta  de  trabalho  do  homem,  e  quando 
a  miséria  mais  negra  bate  á  porta,  lá  vão  empe- 
nhar os  cobe  rtores,  o  relógio  da  casa  de  fora,  a 
machina  de  costura,  para  matar  a  fome  aos  filhos ! 

As  cautellas  vão-se  juntando  sempre  na 
esperança,  nunca  realisada,  de  as  irem  pagando 
a  pouco  e  pouco,  e  os  penhores  que  ellas  repre- 
sentam lá  vão  aos  leilões,  ás  mãos  de  outros  po- 
bres ! 

Nas  casas  de  penhores  ha  tudo.  Tudo  se  em- 
penha para  matar  a  fome  de  um  dia,  por  tudo 
se  dá  uns  cobres  ou  uns  tostões,  regateando, 
mostrando  bem,  para  desvalorizar,  os  buracos  de 
traça  dos  fatos  domingueiros,  os  amolgões  e  a 
leveza  dos  oiros,  os  riscos  no  polimento  dos  re- 
lógios, na  anciã  do  commerciante  que  quer  ga- 
nhar não  se  importando  com  a  decepção  dos  des- 


37 


graçados,  que  lá  deixam  as  suas  coisas  tão  esti- 
madas e  levam  por  ellas  a  metade  ou  um  terço 
do  que  esperavam ! 

Guitarras  que  gemeram  o  choradinho  pela 
Mouraria,  que  deram  a  única  nota  sentimental 
a  tantas  vidas,  esperam  nas  casas  de  penhores 
outros  donos  que  as  façam  chorar,  outras  mãos 
que  lhes  arranquem  no  triste  soluçar  das  suas 
cordas,  recordações  de  tantos  corações  que  con- 
tra si  as  apertaram  com  penas  de  amor,  e  n'ellas 
desabafaram  o  que  não  sabiam  dizer  ! 

Relógios  que  marcaram  horas  de  trabalho, 
de  amargura,  de  desalento,  alli  esperam,  incan- 
sáveis no  seu  bater  monótono  e  indifferente, 
que  outros  donos  os  venham  buscar,  para  outras 
vidas  de  trabalho,  de  amargura,  de  tristeza,  irem 
dividir,  desfiar,  massacrar,  no  seu  bater  certo,  in- 
flexivel,  sem  piedade,  lembrando  sempre  aos 
pobres  que  para  elles  não  há  descanso ! 

Argolas,  cordões,  anneis,  alfinetes  de  oiro 
que  uns  enfeitaram,  irão  enfeitar  outros,  talvez 
noivas  de  vestidos  de  zwile  cinzento,  peito  de 
rolla,  ou  beige ;  noivos  de  jaquetões  de  panno 
preto  e  gravatas  «plastrons»  de  seda  branca! 
Quantos  pares  assim  terão  enfeitado  as  jóias 
pobres  das  casas  de  penhores  ! 

Machinas  de  costura  onde  tantas  cabeças 


38 


de  costureiras  se  inclinaram,  que  tantos  pés  fize- 
ram girar  na  faina  de  coser,  no  acabar  das  ca- 
misas para  as  lojas,  ali  esperam  outras  donas 
que  as  façam  girar,  cantar  na  mesma  febre  de 
ganhar  o  pão,  pobres  costureiras  que  tantas  ve- 
zes ellas  matam  de  cansaço  ! 

Moveis,  cobertores,  roupas,  fatos,  casacas, 
chapéus  altos  velhos,  mantas,  capotes,  chalés,  as 
coisas  mais  grotescas,  mais  humildes  e  mais 
tristes  I 

Bonecas  vestidas  de  setim  que  tão  chora- 
das foram  com  certeza  pelas  pequenas  donas, 
copinhos  de  prata,  amolgados  ainda  pelos  den- 
tinhos que  os  morderam  das  pobres  creancinhas, 
que  tão  cedo  viram  lagrimas  em  casa  e  começa- 
ram a  vida  pela  dôr,  tudo  alli  fica  contando  dra- 
mas, nos  dossiers  de  escripturação  da  miséria! 


AS  BRUXAS 


Não  vamos  falar  das  bruxas  clássicas,  des- 
grenhadas, escaveiradas,  que,  á  meia  noite,  caval- 
gando paus  de  vassouras,  percorrem  as  aldeias 
adormecidas . . . 

Terriveis  bruxas  que  chupam  as  creanci- 
nhas  nos  berços,  e  as  deixam  sequinhas  ás  portas 
das  casas,  quando  passam  a  horas  mortas  para 
dançar  nas  clareiras  dos  pinhaes  o  «sabat»  desen- 
freado com  os  lobis-homens  que  vêem  de  percor- 
rer sete  adros  em  cumprimento  do  fadário. 

D  essas  heroinas  dos  contos  da  nossa  infân- 
cia, quem  haverá  que  delias  se  não  lembre  ? 

Quem  haverá  que  nunca  sentisse  um  arre- 
pio de  medo  á  volta  dos  serões  nas  aldeias, 
julgando  ouvir  no  murmúrio  do  vento,  nas  rama- 
gens, os  assobios  e  as  gargalhadas  do  bando 
desgrenhado  que  passa  a  voar  por  cima  de  toda 
a  folha  / 


42 


Quem  haverá  também  que  não  tenha  ouvido 
falar  nunca  ou  que  não  tenha  ido,  por  diverti- 
mento ou  por  curiosidade,  consultar  alguma  vez 
as  bruxas  de  Lisboa  de  que  vamos  falar ! 

Pobres  e  pacatas  bruxas  que  nada  se  pare- 
cem com  as  outras  que  nos  metteram  medo ! 
Nada  teem  de  mysterioso.  Não  teem  o  scenario 
de  bruxedos,  com  gatos  pretos,  morcegos  e  esque- 
letos. Não  teem  na  lareira  as  chammas  vindas 
do  Inferno  para  fazerem  ferver  o  grande  pane- 
lão  de  cobre  com  as  hervas  milagrosas  apanha- 
das á  meia  noite  nos  cemitérios,  a  boiarem  no 
sangue  vermelho  chupado  nas  creanças  por 
baptisar!!.  .  . 

Estas  pobres  e  simples  bruxas  vivem  paca- 
tamente nas  suas  casas,  tratam  do  seu  ménage, 
do  marido  e  dos  filhos. 

Nos  bairros  retirados,  onde  quasi  sempre 
moram,  as  suas  casitas  pobres  brilham  de  arranjo 
e  de  asseio. 

A  casa  de  fora,  muito  esfregada,  com  mobí- 
lia de  palhinha,  commoda  de  panno  de  crochet  e 
bonitos,  oratório  aberto  e  alumiado.  Tem,  ao 
meio,  a  mesa  onde  se  estendem  as  cartas,  e  onde 


43 


as  bruxas  da  Lisboa  triste,  tantas  tristezas  ouvem 
aos  tristes  de  Lisboa ! 

O  que  ellas  contam,  o  que  ellas  dizem,  as 
receitas  que  ellas  sabem  para  curar  todo  o  mal ! 

Sabem  a  grande  sciencia  de  curar  o  mal  de 
inveja,  queimando  uma  madeixa  de  cabello  do 
invejoso  ou  dando  um  nó  n'um  lenço  que  lhe 
pertença.  Sabem  benzer  com  rezas  e  alecrim  as 
casas  onde  entrou  a  desgraça,  e,  com  umas  pala- 
vras cabalisticas  ditas  no  panno  da  chaminé, 
tornam  invulneráveis  a  todo  o  mal  as  pessoas 
que  n'ellas  confiam. 

Podem  ainda  affirmar  aos  apaixonados  e 
incrédulos  que  são  amados,  se  nas  cartas,  divi- 
didas nos  cinco  montinhos  das  cinco  chagas,  a 
espadilha  se  mistura  por  três  vezes  com  o  dois 
de  copas ! 

Se  alguém  soffre  de  um  ignorado  mal,  mal 
de  amor  ou  mal  de  inveja,  as  bruxas  tudo  reme- 
deiam, mostrando  n'uma  bacia  cheia  d'agua,  ou 
em  pó  de  café,  a  imagem  nitida  e  clara  de  quem 
lhe  quer  bem  e  de  quem  lhe  quer  mal,  aquie- 
tando as  almas  torturadas  com  a  esperança  de 
reaverem  a  felicidade  perdida ! 

Rezam  novenas,  allumiam  os  santos  que 
pelas  cinco  chagas  as  cartas  são  deitadas,  sem 
malefícios  e  mysterios  de  magia  negra.  Quantas 


H 


vezes  para  bem  terão  mentido  as  Bruxas,  para 
enchugarem  as  lagrimas  dos  que  as  consultam 
por  mal  de  amor,  affirmando-lhes  que  E//e  só 
pensa  rvElla  apesar  das  intrigas  da  Dama  de 
Espadas  / 


os  POBRES 


Triste  rebanho  da  pobreza,  que  pelas  ruas 
de  Lisboa  pede  a  quem  passa,  a  esmola  de  Deus! 
Coxos,  cegos,  tysicos,  aleijados,  mães  esqueléti- 
cas, mal  podendo  com  o  pezo  dos  filhitos  enfe- 
zados! Ahi  vae  o  grande  rebanho,  Lisboa  em 
fora,  irritando  a  vista  dos  felizes  com  a  miséria 
dos  seus  farrapos  tristes,  encostar-se  ás  esquinas 
das  ruas,  sentar-se  nos  degraus  das  igrejas,  á 
hora  da  missa,  até  que  a  noute  venha  mais  ainda 
trespassal-os  de  frio ;  lá  estão  os  pobres,  de  mão 
estendida,  repetindo  mil  vezes  a  mesma  historia 
de  miséria,  a  mesma  cadencia  irritante  de  melo- 
peia, pedindo  a  quem  passa,  a  esmola  de  Deus ! 

São  figuras  allucinantes  de  Goia,  as  velhas 
com  as  caras  pergaminhadas  pelos  annos  e  pela 
fome.  São  figuras  trágicas  de  Ribera,  os  velhos 
pálidos  escáveirados  de  barbas  desgrenhadas. 
São  silhouettes  doentias  e  estranhas  de  Lorrain, 
os  tysicos  pálidos,  que  amarellecem  como  as  fo- 
lhas do  outomno  que  os  leva  a  Deus ! 

Os  pobres  de  Lisboa  arribam  como  os  pas- 


48 


saros,  aos  sítios  que  mais  lhes  conveem.  Cada 
bairro  tem  os  seus  pobres,  e  cada  pessoa  tem  o 
seu  pobre.  Ha  os  pobres  que  são  antipathicos, 
pedinchões,  ha  os  resignados  e  os  pacíficos,  ha 
os  pobres  soigncs,  os  mais  tristes  de  todos,  que 
conservam  na  sua  miséria  uns  restos  de  arranjo 
e  de  limpeza.  Havia  assim  uma  pobresinha  cega, 
que  todos  os  dias  iam  pôr  na  rua  Larga  de  S. 
Roque.  Alli  ficava  todo  um  dia  de  sol  ou  de 
névoa  —  de  frio  ou  de  calor — murmurando  sem- 
pre como  numa  reza  nunca  interrompida,  as 
mesmas  palavras  de  tristeza. 

Tinha  no  seu  vestuário  limpinho  e  pobre, 
uns  dolorosos  restos  de  coquetterie  feminina  que 
nem  a  miséria,  nem  a  desgraça,  nem  a  velhice, 
conseguiram  destruir,  e  appareciam  ainda,  na 
maneira  de  parecer  bem,  com  que  alizava  o  ca- 
bello  branco,  debaixo  da  pobre  capota  amarro- 
tada por  tantos  annos  de  serviço,  onde  tremiam 
duas  plumasitas,  desfrizadas  e  velhas. 

Que  amargura  n'aquella  vida  de  quem  nem 
sempre  foi  pobre !  Que  tristeza  voltar  á  noute  á 
mansarda  onde  a  recolhiam  por  esmola,  pen- 
sando que  no  dia  seguinte  teria  um  dia  igual  ao 
que  passou,  e  que  todos  os  que  viessem  seriam 
iguaes,  sem  nada  que  lhe  confortasse  e  alegrasse 
a  velhice  miserável! 


49 


Quando  essa  velhinha  morreu,  fiquei  con- 
tente. Deixou  de  penar  na  rua,  ao  frio  e  á  chxuva, 
e  Deus  deu-Íhe  com  certeza  um.a  capota  de  fitas 
largas  e  plumas  boas,  e  um  vestido  novo  para 
que  entras&e  no  paraizo,  muito  bem  vestida! 
Com  saudade  me  lembra  ainda  de  outros  dois 

pobres  que  m.orreram  de  frio  no  inverno  duro 

Era  uma  velha  pergaminhada  e  cheia  de 
rugas.  Foi  creada  n'um.a  casa  rica,  casou,  en- 
viuvou, envelheceu.  Tolheu-se  de  rheumatico,  os 
filhos  deixaram-a,  e  teve  de  andar  á  esmola.  Mo- 
rava num  quarto  mobilado  no  estylo  de  todas 
as  casas  dos  pobres  que  teem  casa.  Uma  enxerga, 
um  alguidar,  um^a  bilha  e  um  fogareiro  de  barro. 
Conhecia  toda  a  gente,  sabia  a  vida  de  todos,  e, 
nas  missas  de  defunctos,  quando  á  porta  da 
igreja  se  juntava  para  a  esmola,  fazia  comentá- 
rios sobre  a  gente  que  lá  estava  dentro,  pou- 
pando apenas  quem  fosse  do  seu  agrado.  Só  se 
enternecia  e  lhe  passava  o  azedume,  que  a  des- 
graçada vida  lhe  deixou,  quando  fallava  na  be- 
leza e  estimação  da  neta,  uma  costureirita,  que 
ella  orgulhosam.ente  dizia,  :^zava  chapéu. 

O  outro  era  um  velho  philosopho.  Foi 
cocheiro,  moço  de  fretes,  e  depois  de  ter  entrado 
com  elle  o  rheumatico,  pedia  esmola. 

Não  queria  ir  para  o  asylo,  e  com  a  sua  li- 


50 


herdade  bohemia  de  comer  uns  restos  que  lhe 
davam  nas  tavernas,  de  dormir  no  albergue,  e 
de  poupar  alguma  coisa  que  lhe  dessemi  para  a 
pinguita  que  o  animava,  quasi  se  julgava  feliz. 
Philosophava  sobre  a  vida,  e  dizia  rindo,  escan- 
carando a  bocca  sem  dentes,  que  a  melhor  cousa 
que  se  levava  cá  deste  mundo,  eram  os  copitos 
de  bom  vinho,  que  lhe  faziam  esquecer  a  des- 
graça. 

Tão  pouco  satisfaz  os  pobresinlios,  habi- 
tuados a  tão  pouco !  Vestem-se  de  novo  com  tra- 
pos velhos  comprados  na  feira,  comem  o  pão 
ressequido  dos  padeiros,  as  folhas  velhas  d'hor- 
taliça  dos  lugares,  e  compram  ás  peixeiras  os 
gorázes  e  carapaus  moidos,  que  dsfregtiezas  re- 
geitam ! 

Pensae  nos  pobres,  felizes  da  sorte,  quando 

vos  enfastiarem  os  foitrnèdos  e  o  foie-gras 

Quando  vos  tentar  a  compra  de  um  vestido  ou 
de  um  chapéu  caro,  hesitae  e  reparti  com  elles, 
emprestando  assim  a  Deus,  o  grande  Pastor  do 
rebanho  da  pobreza,  que  estende  sobre  elles  ,com 
amor,  o  grande  manto  azul  da  noute  amiga,  e 
que  faz  luzir  os  brilhantes  das  estrellas,  como 
promessas  de  outra  vida,  onde  os  pobres  serão 
os  primeiros ! 


AS  DOCAS 


Em  domingos  bonitos  de  inverno,  quando 
o  ceu  e  o  mar  se  juntam  no  mesmo  azul  da 
nossa  terra  querida,  a  gente  de  Lisboa,  pobre  e 
rica,  sahe  a  gosar  o  dia  de  descanso  pelo  Campo 
Grande  e  Avenidas,  pelos  arredores  das  praias 
ou  do  campo. 

Quantos  lisboetas  irão  pelas  docas,  ver  os 
navios,  naquella  anciã  pelo  mar  que  e:tiste  em 
todas  as  almas  da  nossa  raça,  no  fundo  aventu- 
reiro de  todo  o  portuguez ! 

A  tentação  do  mar ! 

Foi  essa  tentação  que  nos  levou  ás  conquis- 
tas do  mundo  nas  caravellas  orgulhosas  e  sober- 
bas, sulcando  os  mares  nunca  d'antes  navega- 
dos;  é  essa  tentação  que  faz  emigrar  para  além- 
mar  a  fina  fiôr  dos  rapazes  dos  nossos  campos; 
é  essa  tentação  que  prende  ás  praias,  na  contem- 
plação do  mar,  os  pescadores  da  Nazareth,  da 
Povoa,  da  Ericeira,  em  dias  de  tempestade, 
quando  os  barcos  não  podem  sahir. 

E   essa   tentação   volta   sempre   á  super- 


54 


ficie  das  almas  mais  burguezas  e  menos  aven- 
tureiras, e  as  leva  em  domingos  bonitos  de 
inverno,  ou  em  tardes  quentes  de  verão,  a  passea- 
rem pelas  docas,  a  interessarem-se  pelos  navios 
que  chegaram  ou  vão  partir,  a  olharem  a  estrada 
azul  e  movediça,  ora  serena,  ora  agitada,  com 
uma  inveja,  com  um  desejo  que  não  se  exprime, 
vendo  no  mar  a  estrada  azul  que  as  levaria  á 
Terra  Promettida  da  liberdade  e  da  riqueza ! 

São  tão  interessantes  as  docas  e  ha  tanto 
que  vêr  ali !  Tão  estranha,  tão  curiosa  é  a  sua 
população ! 

Homens  tisnados  pelo  sol  dos  trópicos  e 
pelo  nosso  sol,  com  a  pelle  trigueira  endurecida 
pelo  vento  salgado  do  mar. 

Vareiros  musculosos  e  elegantes,  descen- 
dentes dos  phenicios  aventureiros,  sempre  prom- 
ptos  a  partirem  para  a  aventura  logo  que  o  vento 
abrande,  que  o  mar  serene  ou  os  barcos  se  des- 
carreguem. Ribatejanos  que  vêem  Tejo  acima, 
com  os  barcos  carregados  de  loiro  trigo  da 
leziria  fértil,  com  os  melões  doirados,  com  as 
melancias  que  se  escancaram  ao  sol  de  verão, 
numa  frescura  de  escumilha  vermelha.  Riquezas 
que  pelas  valias  emmaranhadas  de  nenuphares 
e  de  raizes,  onde  os  barcos  deslisam  com  um 
ruído  doce  de  sedas  amarrotadas,  elles  vieram 


00 


trazendo  devagarinho,  empurrando-os  com  a 
grande  vara  de  salgueiro  que  os  foi  guiando 
até  ao  Tejo!  Com  que  cuidado  salvam  esses 
thesouros  que  a  terra  deu,  dos  remoinhos  de 
Villa  Franca,  das  fúrias  do  rio  em  dias  de 
mau  tempo,  para  que  os  barcos  com  a  vela  ver- 
melha tinta  no  barro  da  sua  terra,  arredondada 
e  cheia  pelo  vento  bom,  venham  abordar  nas 
docas  com  as  riquezas  que  os  orgulham ! 

Lá  vêem  dos  Algarves  os  algarvios,  triguei- 
ros como  os  moiros  seus  avós,  com  os  barcos  car- 
regados de  peixe,  de  figos,  de  laranjas.  Animam 
as  docas  as  ovarinas  faladoras  e  alegres,  airo- 
sas como  amphoras  antigas.  Tudo  aquillo  canta, 
se  agita,  mexe,  trabalha,  como  um  carreiro  de 
formigas  trabalhadoras,  carregando  ou  descarre- 
gando os  barcos,  por  entre  aquella  floresta  de 
mastros  com  as  velas  enroladas,  a  destacarem-se 
na  transparência  azul  de  um  céu  e  de  um  mar 
da  Grécia! 

Sol  doirado  e  que  espalha  reflexos  lumi- 
nosos sobre  as  cargas  de  fructas  appetitosas, 
fazendo  pela  transparência  clara  da  luz,  pela 
riqueza  dos  coloridos,  que  nos  imaginemos 
num  porto  do  Adriático,  entre  mercadores  do 
Oriente,  esperando  a  cada  instante  ver  sahir  dos 
barcos   as   musselinas   e   sedas  das  índias,  as 


56 


transparentes  porcelanas  dos  paizes  exóticos,  os 
perfumes  raros  e  preciosos  que  nas  velhas  naus 
tanta  vez  abordaram  ao  nosso  porto ! 

Em  barcos  amarrados  ás  grandes  argolas 
de  ferro,  vivem  nas  docas  os  que  não  teem.  casa 
e  não  se  querem,  separar  daquelle  berço  que  os 
baloiça  e  acalenta  sobre  o  mar,  berço  a  quem 
tanto  querem,  que  pelo  grande  milagre  de  Deus 
resiste  ás  ondas  bravas,  aos  rochedos  e  aos  ven- 
davaes,  comio  resistem  as  vidas  tão  frágeis  que 
a  EUe  se  entregam.  Nesses  barquitos,  lá  está 
o  fogareiro  acceso  com  a  panella  de  lata  em 
cima,  onde  ferve  a  ceia  ou  o  jantar,  que  ali 
mesmo,  na  amurada,  é  comida  com  os  garfos  de 
ferro  e  as  orrandes  fatias  de  Dão  escuro.  Os  cãe- 
sitos  indispensáveis  a  todos  os  barcos,  amim.ados 
e  queridos  pelos  marinheiros,  esperam  graves, 
impacientes,  sentados  na  proa,  que  os  patrões 
acabem  o  banquete,  para  irem  lamber  os  pratos 
de  loiça  ordinária,  onde  sempre  algum  bomi 
boccado  é  deixado  para  elles. 

Aquella  gente  bôa  e  simples,  que  agradece 
as  boas  palavras  e  o  agrado  das  boas  falas,  mos- 
tra os  seus  barcos,  com.movendo-se  enterneci- 
damente com  os  elogios  que  se  lhes  faz,  como 
os  pães  se  enternecem  ouvindo  elogiar  os  filhos, 
e  quando  as  tempestades  lhos  estragam,  quebram 


57 


OU  somem  pelo  mar  dentro,  é  com  lágrimas 
que  se  despedem  d'elles,  aquelles  que  por  elles 
foram  emballados! 

Quando,  em  noites  de  temporal,  no  con- 
forto da  casa,  sentirdes  bater  a  chuva  nas  vidra- 
ças, pensae  um  pouco,  felizes  da  sorte,  nos  mi- 
lhares de  creaturas  que  andam  sobre  o  mar 
bravo  e  na  noite  escura,  luctando  com  a  morte, 
e  rezae  um.  Padre  Nosso  e  uma  Ave  Maria, 
pelos  que  andam  sem  rumo  sobre  aguas  do  mar! 


A  PROCISSÃO 

DE  SANTOS 


Vinha  ha  dias  annunciada  n'um  jornal  a 
procissão  das  Senhoras  no  mosteiro  de  Santos. 
Lembrei,  recordei,  evocada  por  esse  annuncio,  o 
que  era  a  procissão  de  Santos,  ha  muitos  annos, 
a  procissão  das  fidalgas,  quando  ainda  Sua  Ma- 
gestade  a  Rainha  Senhora  D.  Amélia,  muito  ele- 
gante com  o  seu  vestido  de  veludo  preto  e  a 
mantilha  de  rigor,  acompanhava  no  passo  lento 
da  procissão  o  andor  do  Senhor  dos  Passos. 
Abria-se  a  portaria  aos  rapazes  elegantes  d'esse 
tempo  quando  a  rainha  entrava  no  mosteiro.  Lá 
estavam  todos  os  annos,  n'essa  penúltima  sexta- 
feira  de  quaresma,  os  mesmos  habitues  da  porta- 
ria de  Santos,  esperando  colher  na  passagem  das 
elegantes  devotas  um  sorriso,  um  olhar,  aíravez 
da  mantilha  de  renda,  seguindo -as  com  a  vista, 
até  que  se  perdessem  no  mysterio  d'aquella 
grande  porta,  que,  po  umas  horas,  as  separava 
do  mundo.  Que  interessante  pela  tradição  antiga 
e  que  cheia  de  encanto  mys  tico  era  aquella  festa, 
só  de  senhoras  das  mais  nobres  de  Portugal,  que 


62 


n'essa  tarde  de  quaresma  se  vestiam  de  preto, 
se  toucavam  de  renda,  e,  de  cabeças  baixas,  mur- 
murando orações,  levando  nas  mãos  as  vellas 
accesas  da  sua  fé,  acompanhavam  penitentes  a 
procissão  de  penitencia!  Que  delicioso  quadro 
para  tentar  um  pintor  mystico  e  apaixonado 
pela  côr  e  pelo  rithmo  da  luz,  pelo  scenario  e 
pelo  sentimento,  aquella  procissão  de  Passos, 
n'uma  tarde  luminosa  de  Abril ! 

Atravez  das  arcarias  do  claustro,  como 
uma  nota  de  vida  alegre  a  expandir-se  no  mata- 
gal da  cerca,  as  manchas  côr  de  rosa  das  olaias 
em  flor  misturavam-se  com  as  accacias  brancas, 
e  com  os  primeiros  lilazes,  que  a  primavera 
abria,  para  que  a  pálida  imagem  do  Senhor  dos 
Passos,  ao  passar  no  seu  andor  cheio  de  violetas, 
lhe  abençoasse  as  primeiras  flores. 

Interessantíssimo  contraste  o  do  explendor 
dessa  vida  exhuberante  das  flores  abrindo-se  na 
cerca  ao  calor  de  um  sol  de  Abril,  com  a  triste 
procissão  de  penitencia,  para  remir  peccados  de 
tantas  lindas  penitentes,  arrependidas  e  devo- 
tas   

Via-se  muito  alto  o  andor  roxo  do  Senhor 
dos  Passos  e  o  andor  azul  de  Nossa^Senhora  das 
Dores 

A   Senhora  Cornmendadeira,  debaixo  do 


-  63 


Pallio,  levava  o  Santo  Lenho,  muito  pallida, 
como  uma  santinha  morta  e  ressuscitada,  em- 
brulhada no  manto  de  gaze  branca. 

Em  alas,  com  as  lanternas  na  mão,  com  os 
mantos  brancos  como  nuvens  íiuctuando  ao 
vento,  seguiam  as  commendadeiras  de  S.  Thiago. 
N'outra  ala,  com  os  mantos  de  cachemira  branca, 
pesados  como  mantos  de  templários,  seguiam  as 
commendadeiras  de  Aviz. 

Como  uma  onda  vagarosa  e  ondulante, 
como  uma  fita  negra  constellada  pelos  brilhantes 
das  luzes  accesas,  passava  lentamente  a  procissão 
n'um  murmúrio  triste  de  orações.  Os  Passos  do 
Senhor,  illuminados,  marcavam  as  paragens,  e, 
no  silencio  do  claustro,  ouviam-se  as  vozes  en- 
toarem os  motetos. 

Finda  a  procissão,  apagadas  as  luzes,  dei- 
xada a  imagem  do  Senhor  na  sua  capellinha 
doirada,  cheia  de  flores,  o  claustro  animava-se, 
enchia-se  do  riso  e  da  animação  dos  grupos 
de  raparigas  que  o  percorriam ;  o  velho  con- 
vento como  que  rejuvenescia  com  o  alegre 
chilrear  de  gente  nova  que  se  espalhava,  com- 
prando sortes  no  bazar,  lunchando  no  buffete, 
resando  as  ave  Marias  do  estylo  á  milagrosa  Se- 
nhora da  Escada,  que  sorria  indulgente  ás  ora- 
ções das  raparigas  I 


64 


Até  á  noite,  durava  a  animação  no  con- 
vento cheio  de  flores,  de  luzes  e  de  mulheres 
bonitas. 

Pouco  a  pouco,  pela  grande  porta  de  carva- 
lho, mystericsamente  e  como  a  medo  aberta, 
iam  sahindo  outra  vez  para  o  miundo,  as  lin- 
das devotas  que  por  umas  horas  o  deixaram, 
levando,  como  um. a  protecção  e  uma  lembrança, 
algumas  violetas  do  Senhor  dos  Passos,  que 
iriam  murchar  no  oratório  um  anno  inteiro  á  es- 
pera de  outras  flores,  como  o  convento  sempre 
triste  e  fechado,  também,  um  anno  esperava,  para 
de  novo  se  abrir  e  se  animar! 


os  ROMEIROS 

DO  PASSADO 


Os  romeiros  do  passado  não  pertencem  em 
geral  á  Lisboa  alegre  e  animada  que  se  diverte. 
Por  isso,  como  tristes  de  Lisboa,  ficam  bem  na 
Lisboa  Triste  os  fidalgos,  os  sábios  e  os  artistas 
que  a  comprehendem. 

Vivem  em  casas  antigas  impregnadas  de 
lendas  e  de  tradições,  onde  parece  que  pairam  in- 
visiveis  mas  sensíveis  as  almas  de  todos  aquelles 
que  as  habitaram.  Rodeiam-se  de  moveis,  de  se- 
das, de  «bibelots»,  em  que  possam  remexer  as 
cinzas  do  passado,  frágeis  coisas  inanimadas 
que  contam  no  silencio,  os  mysterios  que  sa- 
bem, aos  que  as  entendem. 

Romeiros  empoeirados  pelo  pó  dos  séculos, 
remando  incansáveis  contra  o  Tempo,  vivendo 
de  tiontem,  desprezando  Hoje,  seguem  eterna- 
mente pela  vida  fora,  perdidos  n'um  sonho  de 
que  não  acordam! 

Bem  hajam  esses,  que  procuram  colleccio- 
nar  as  obras  darte  que  o  passado  nos  deixou,  as 
tradições,  as  historias  e  as  lendas,  para  nos  darem 


68 


com  tudo  isso  o  esquecimento  do  presente  que 
tão  triste  é ! 

Vamos  agora  em  romaria,  a  algumas  casas 
d'esses  romeiros,  pedir  a  esmola  do  esquecimento 
do  presente,  em  troca  das  saudades  que  lhes 
levamos . . . 

Quantos  romeiros  do  passado  ha  ainda  em 
Lisboa  !  Sôfregos  das  obras  d'arte  que  herdaram 
ou  coUeccionaram,  guardam  com  amor  e  com 
carinho  as  preciosidades  que  restam  de  tantas 
que  houve  no  nosso  Portugal. 

Deliciosas  lendas  do  seu  Paço  nos  conta  o 
Conde  de  Bertiandos,  essa  figura  veneranda  de 
português  de  lei,  exemplo  de  nobreza  de  sangue 
e  de  caracter,  romeiro  do  passado  que,  nas  anti- 
guidades dos  seus  palácios,  pôde  reviver  outras 
eras  de  felicidade  1 

Abrem-se-nos  portas  de  palácios,  de  casas 
antigas,  onde  os  romeiros  guardam  os  seus  the- 
souros  que  nos  vão  mostrar. . . 

Entremos  n'uma  casa  antiga  que  o  terra- 
moto deixou  de  pé,  numa  triste  e  socegada  rua. 
Depois  de  uma  Ave-Maria  á  Nossa  Senhora  de 
azulejos,  que  á  entrada  vela  pela  felicidade  da 
casa,  vamos  viver  outras  épocas  no  meio  de  to- 
das as  bellas  coisas  que  os  séculos  nos  dei- 
xaram. 


=  69 

O  mais  requintado  bom  gosto  na  disposição 
confortável  e  artistica  daquelle  conjuncto;  gra- 
vuras assignadas  pelos  grandes  mestres,  louças 
preciosas,  moveis  riquissimos,  quadros  de  mu- 
seu, no  meio  de  damascos  e  de  sedas,  de  tapetes 
da  Pérsia  e  estofos  d'Aubuisson. 

Mil  pequeninos  nadas,  adoráveis  de  fragili- 
dade e  de  riqueza,  figurinhas  de  Saxe,  grupos 
de  biscuit  de  Sèvres,  esmaltes  e  pedrarias  d'ou- 
tros  tempos. 

Miniaturas  de  La  Tour,  boiíbonnières  de 
prata  cinzelada  sobre  moveisinhos  de  pau  santo 
como  brinquedos  preciosos  para  com  elles  brin- 
carem mãos  de  artistas. 

E  um  artista  é  Alfredo  Guimarães,  o 
dono  desta  casa,  que,  caminhando  pelo  passado 
dentro,  pôde  conseguir  delle  tirar  tanta  coisa 
bella  para  enfeitar  o  seu  ninho,  amaciando  n'esta 
atmosphera  de  belleza  as  asperezas  que  a  vida 
para  todos  tem  ! .  .  . 

.  .  .  Abre-se  agora  um  palácio  antigo,  his- 
tórico, cheio  de  recordações  e  de  lendas.  Grande 
escadaria,  onde  parece  que  vão  passar  as  figuri- 
nhas das  sécias  emplumadas.  Vestíbulo  em  que 
parece  que  ellas  deixarão  as  capas  forradas  de 
arminhos  antes  de  entrarem  para  a  grande  sala 
de  tectos  apainelados,  onde  se  vae  passar  o  serão, 


70  - 


em  jogos  de  prendas,  modinhas  ao  cravo  e  ditos 
alambicados  dos  peraltas. 

É  morador  desse  palácio  um  romeiro  do 
passado ...  O  conde  de  Sabugosa ! 

Artista  requintado  e  erudito,  escriptor  que- 
rido dos  Novos,  como  o  foi  dos ...  do  seu  tempo, 
porque  sempre  novo  é  o  seu  espirito,  sempre 
nova  a  sua  maneira  elegante  de  nos  contar  as 
velhas  coisas  que  o  passado  lhe  contou. 

Acompanhae-o  na  sua  romaria, ^é'/^/í?5  d' algo... 
e  donas  de  tempos  idos  que  foram  princezas,  frei- 
ras, fidalgas  ou  burguezas  perdidas  pela  Historia! 

Oue  todas  essas  fig-urinhas  de  mulher,  enlevo 
da  nossa  terra  e  das  nossas  gentes,  quer  tivessem 
vestido  os  brocados  e  os  damascos  ricos,  o  gros- 
seiro burel  dos  hábitos  ou  as  lãs  finas  das  bur- 
guezas, formem  alas  para  que  passe  esse  romeiro 
que  á  Historia  as  foi  buscar ! 

Figuras  mortas  que  lhe  deveis  a  vida, 
levantae-vos  dos  túmulos  brazonados,  apontae- 
Ihe  com  os  vossos  dedos  finos  constellados  de 
anneis  de  pedrarias  o  caminho  do  Passado,  que 
elle  tanto  ama  para  que  eternamente  possam 
viver  na  nossa  lembrança !  . .  . 

Affastada  da  cidade,  no  socego  de  uma  rua 
provinciana  e  calma,  lá  está  a  casa  de  um  outro 
romeiro  do  Passado. 


71 


Casa  pequenina  e  antiga,  onde  mal  cabem 
as  duas  grandes  almas  que  lá  moram,  uma  de 
um  vivo,  outra  de  um  morto!  Almas  de  dois 
grandes  portugueses  :  Os  dois  viscondes  de  Cas- 
tilho ! 

Ali  vivem  essas  almas  unidas  no  mesmo 
amor,  na  mesma  comprehensão  que  as  ligou  em 
vida,  e  o  grande  culto  que  o  filho  dedicou  ao 
pae  é  recompensado  e  agradecido  por  EUe, 
n'aquelle  sorriso  cheio  de  bondade  e  de  ternura 
e  n'aquelle  olhar  sem  ver,  que  como  uma  caricia 
viva  e  envolvente,  cahem  do  grande  retrato 
sobre  o  Filho,  quando,  á  sua  meza  de  trabalho, 
pede  ao  Pae  que  o  ajude. 

Sente-se  creança  ao  pé  d'aquella  grande 
memoria,  sem  se  lembrar  quasi  que  sobre  a  sua 
cabeça  se  accumularam  as  neves  dos  annos, 
juntando-se  com  a  erudição  e  o  saber ! 

Cada  livro,  cada  quadro,  cada  bibelot,  faliam 
do  Pae,  e  sentindo-o  ali  tão  vivo  na  sua  lem- 
brança, o  solitário  do  Lumiar  não  se  sente  só! 

Vamos  pedir-lhe  agora  para  folhear  com- 
nosco  os  seus  grandes  álbuns,  onde  soffrega- 
mente  guardou  para  a  velhice  a  sua  mocidade. 
Que  elle  nos  guie  pela  sua  Lisboa  antiga,  onde 
as  caleças  e  as  seges  batem  ruidosamente  nas 
calçadas,  até  seguirmos  pelos  arredores,  até  á 


72 


quinta  de  Carnide,  de  pomares  e  hortas  verde- 
jantes, onde  começaram  os  amores  de  Vieira 
Luzitano !  Que  elle  nos  mostre  as  mil  recorda- 
ções  da  sua  vida  mundana  de  elegante,  os  seus 
encantadores  desenhos  á  penna,  que  fixaram  pela 
vida  fora  as  suas  impressões. 

Salas  de  S.  Vicente,  recepções  x^o  faiiboiírg, 
janellas  ou  portões  de  quintas  senhoriaes,  si- 
Ihouettes  esfumadas  pelo  tempo,  perfis  perdidos 
pelos  annos,  tudo  vae  passando  ao  folhear  febril 
dos  grandes  álbuns,  e  as  coisas  que  passaram 
lhe  acodem  á  memoria  n'uma  saudade  doce  e 
querida ! 

Para  que  viemos  aqui  lembrar  tanta  coisa, 
perturbar  o  socego  espiritual  do  solitário,  distra- 
hil-o  com  este  ramo  de  saudades  sobre  a  mesa 
em  que  trabalhava ! 

Vamos  sahir  desta  casa  devagarinho,  sem 
que  os  nossos  passos  se  oiçam,  para  que  as  duas 
almas  que  n'esta  casa  moram,  não  sejam  pertur- 
badas pela  lama  do  presente . . . 

Grande  português,  grande  sábio,  grande 
homem  de  bemi  1  Chevalier  sans  peur  et  sans 
reproche,  deitae  a  vossa  benção  aos  que  querem 
seguir  atraz  de  vós,  na  poeira  dos  séculos,  a 
romaria  do  Passado ! 


ALFAMA 


Ouem  haverá  na  Lisboa  elecrante  e  sinart, 
que  ás  5  horas  faz  compras  na  Baixa,  e  que  vae 
todos  os  dias  tomar  chá  ao  Bénard,  ao  Rendez- 
vous  e  ao  Marques,  que  pense  que,  para  lá  da 
Rua  do  Ouro,  do  Rocio,  da  Avenida,  ha  uma 
Lisboa  tão  differente,  tão  antiga,  tão  interessante 
e  tão  desconhecida? 

Alfama !  Nome  que  lembra  moiras  encan- 
tadas, rixas  de  fidalgos  nas  viellas  estreitas  em 
que  as  espadas  faiscavam  no  escuro  da  noite, 
aventuras  galantes  do  senhor  D.  João  V,  roman- 
ces de  amor  nos  palácios  fidalgos,  onde  as  fidal- 
gas gentis  vinham  á  tarde  para  os  terraços  so- 
nhar, olhando  o  Tejo,  e  vozes  tristes  de  fadistas 
cantando  no  fado  triste  o  seu  triste  fado ! 

Alfama  tudo  lembra,  tudo  evoca!  Épocas 
que  passaram,  riquezas  que  se  perderam,  misé- 
rias que  não  se  acabam  ! 

Lisboetas  elegantes,  que  vistes  decerto  os 
bairros  excêntricos  de  Londres,  que  em  Paris  na 
tournée  cies  grands-ducs,  ceastes  no  Cavcaii  des 


76 


Jimocents,  para  que  um  arrepiosinho  de  medo 
vos  fizesse  estremecer  os  hombros  nús  do  vestido 
decotado ;  que  em  Sevilha  fostes  ver  dançar  as 
sevilhanas  a  alguma  fonda  de  Triana,  no  inter- 
vallo  das  complicadas  provas  da  Gandon  ou  da 
Martin  num  dia  de  sol  e  céu  azul,  ide  ver  Al- 
fama, ide  impregnar-vos  dum  pouco  do  passado, 
ide  relembrar  tempos  que  não  voltam,  ide  ver 
como  dos  terraços  d'aquelles  velhos  palácios,  o 
Tejo  é  mais  lindo,  mais  azul,  mais  português ! 

Nas  nesgas  do  Tejo  que  apparecem  entre 
as  muralhas  velhas  da  cidade,  aquellas  muralhas 
sobre  as  quaes  se  debruçaram  portugueses  va- 
lentes dos  tempos  idos,  podereis  evocar  as  cara- 
vellas  com  a  Cruz  de  Christo  a  destacar-se 
vermelha,  nas  velas  cheias,  a  partirem  para 
a  índia,  que  tudo  isso  as  muralhas  viram .  .  . 

Na  rua  das  Damas,  a  rua  estreita,  mal  cal- 
çada, onde  as  seges  batiam  com  barulho  de  fer- 
ragens velhas,  evocareis  as  damas  da  Rainha 
que  ali  moravam,  sahindo  nas  andas  a  caminho 
do  Paço. 

Na  janella  baixa  de  grades  partidas,  no 
muro  de  um  quintal  abandonado  e  triste,  evoca- 
reis o  romance  de  amor  de  D.  João  V,  quando 
elle,  por  noite  negra,  embuçado  numa  capa, 
vinha  fallar  a  uma  linda  burguezinha,  que  ás  es- 


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condidas  doutro  namorado,  á  janella  lhe  appare- 
cia.  E  d'essa  aventura,  em  que  D.  João  V  ia  per- 
dendo a  vida  na  espada  traiçoeira  do  namorado 
da  linda  burguezinha,  se  levantaram  os  mármo- 
res, os  quadros,  os  bronzes  da  rica  egreja  do 
menino  Deus,  como  promessa  do  Rei,  n'aquella 
hora  em  que,  na  rixa  da  viella,  vira  a  morte  de 
tão  perto,  promessa  a  um  menino  Jesus  de  uma 
velhinha  que  alli  morava  e  ao  qual  o  Rei  ao 
passar  rezava  sempre .  .  . 

Debruçando-vos  n'um  muro  d'um  quintal 
velho  e  mal  tratado,  vereis  ainda  uma  meza  de 
pedra,  onde  o  cardeal  D.  Henrique,  por  tardes 
de  verão,  vinha  merendar,  e  o  degrau  onde  subia 
para  montar  a  sua  mula  branca.  .  . 

Não  deixeis  de  rezar  no  Pateo  de  D.  Fradi- 
que  áquelle  Christo  cruxificado  que  ha  tantos 
séculos  a  tantas  amarguras  tem  acudido,  que 
tantos  segredos  tem  ouvido,  que  tantas  lágrimas 
tem  visto,  que  tantos  amores  tem  abençoado,  na 
sua  capelinha  aérea  como  uma  ponte  de  Veneza, 
onde  arde  dia  e  noite  uma  lâmpada  de  azeite. 

Devereis  ir  ao  palácio  do  Salvador,  esse 
interessantissimo  palácio  onde  podereis  evocar 
as  cadeirinhas  perfumadas  de  almxiscar  enchendo 
o  pateo  da  entrada,  o  «frou-frou»  das  sedas  roça- 
gantes das  elegantes  d'outros  tempos,  de  gran- 


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des  toucados,  a  balbúrdia  e  a  alegria  das  festas 
na  galeria,  nas  grandes  salas,  e  nos  jardins  cheios 
de  catos  muito  velhos,  que,  enroscados  como 
serpentes,  dormem  ha  séculos,  exquisitos  e  ex- 
tranhos ! 

Nos  alegretes  de  cravos  e  reseda,  respirae 
todo  o  perfume  do  passado  que  elle  guardou 
para  sempre !  E  que  um  sorriso  e  uma  lembrança 
vossa  sejam  para  o  lindo  retrato  do  Conde  dos 
Arcos,  da  sala  de  entrada,  tão  interessante  figura 
de  fidalgo  português,  morto  n'aquelle  dia  trágico 
da  ultima  tourada  em  Salvaterra,  em  que  o 
abrasado  sol  do  Ribatejo  doirava  as  lezirias  rese- 
quidas,  as  casas  brancas  e  o  seu  sangue  leal  de 
cavalleiro.  .  . 

Podereis  ainda,  no  palácio  de  Santo  Este- 
vam,  ver  do  terraço  os  tons  deliciosos  das  mon- 
tanhas da  Outra  Banda  ao  cahir  da  tarde,  e  o 
contraste  sinistro  da  miséria,  que  vive  na  tris- 
teza abafada  e  escura  das  ruas  estreitas,  emban- 
deiradas de  roupa,  onde  brincam  bandos  de 
creanças  descalças  e  pobres  como  moirasinhas 
de  Tanger . . .  E  quando  o  velho  relógio  de  espe- 
lho da  sala  de  azulejos,  que  marcou  a  hora  do 
grande  terramoto,  der  as  sete,  quando  ao  longe 
os  sinos  tocarem  as  Avé-Marias,  e  com  as  pri- 
meiras luzes  que  se  accendem  se  começarem  a 


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ouvir  as  primeiras  guitarras,  no  fado  triste,  de 
quem  tem  triste  o  fado,  sentireis  bem  toda  a 
alma  portuguesa  da  velha  Alfama,  feita  das 
épocas  que  passaram,  das  riquezas  que  se  perde- 
ram, das  misérias  que  não  se  acabam .  .  . 


ÍNDICE 


ÍNDICE 


Os  Pateos 7 

Os  Guarda-roupas 17 

Os  Garotos 25 

Casas  de  Penhores 33 

As  Bruxas 39 

Os  Pobres 45 

As  Docas 51 

A  Procissão  de  Santos 59 

Os  Romeiros  do  Passado 65 

Alfama 73 


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