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Full text of "Litteratura contemporanea: O sr. Julio Dantas"

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*     ^ 


Ife 


FIDELINO  OE  FIGUEIREDO, 

SÓCIO  DA  ACADEMIA  DAS  SCIENCIA8. 


LITnmiTUIlli  CONIEMPORINEU, 


O  sr.  Júlio  Dantas. 


3.»    EDICAO 


LISBOA 

LIVRARIA  CLÁSSICA  EDITORA 

DE  A.  M.  TEIXEIRA 

17,  Praça  dos  Restauradores,  17 
1919 


o  sr.  Júlio  Dantas 


Do  mesmo  auctor: 


BIBLIOTHECA  DE  ESTUDOS  HISTÓRICOS  NACIONAES 

I  —  O  Espirito  Histórico  —  Introducção  —  2.»  edição 
seguida  da  bibliographia  portuguesa  de  theo- 
ria  e  ensino  da  historia  (esgot.). 
n  —  Historia  da  Critica  Litteraria  em  Portugal  — 
2.a  edição. 

III  —  A  Critica  Litteraria  como  Sciencia  —  2.*  edição 

seguida  da  bibliographia  portuguesa  de  cri- 
tica litteraria  (esgot.). 

IV  —  Historia  da  Litter atura  Rotnantica  (1825-1870). 
V  —  Historia    da   Litteratura   Realista   (1870-1900). 

VI  —  Historia    da   Litteratura   Clássica   (1502-1580). 
yil—De  Camões  a  Garrett  (1580-1825)  (em  preparação). 


Caracteristicas  da  litteratura  portuguesa^  2.»  edição. 

Portugal  nas  guerras  europêas. 

Estudos  de  Litteratura,  2  vols. 

Como  dirigi  a  Bibliotheca  Nacional. 

Revista  de  Historia  (direcção  e  collaboração),  7  vols. 


/. 


FiDELINO  DE  FIGUEIREDO, 

SÓCIO  DA   ACADEMIA  DAS   SCIENCIAS. 


LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA: 


O  sr.  Júlio  Dantas. 


3.*   EDIÇÃO 


^-- 
^i^ 


LISBOA 

LIVRARIA  CLÁSSICA  EDITORA 

DE  A.  M.  TEIXEIRA 

17,  Praça  dos  Restauradores,  17 

1919 


^  \J 


.EB  2 8  1968       j) 


<^/7V  CF  '\QÍ 


PORTO 
TIP.    SEQUEIRA 

Rua  Joaé  Falcão,  122 


Por  instancias  de  amigos,  novamente  se 
publica  o  presente  ensaio  critico,  escripto  no 
verão  de  1917,  no  fim  do  mesmo  anno  publi- 
cado no  volume  de  artigos  vários  €sfudos  de 
Xifferafura  (2,"-  serie)  e  reproduzido  no  n." 
26  da  Revista  de  Historia,  para  a  qual  foi 
primitivamente  destinada  a  serie  de  estudos 
de  Xifferafura  confemporanea,  A  composição 
desta  serie  é  a  seguinte: 

I—O  St.  Silva  Gaio; 
II— O  Sr,  Vieira  da  Costa ; 

III  —  Sobre  a  composição  do  romance ; 

IV  — Sobre  a  decadência  do  romance  realista; 
V —  O  Sr,  Anthero  de  Figueiredo; 

VI — O  Sr.  Teixeira  Gomes; 
VII  —  O  Sr,  Júlio  Dantas, 


LITTKRATURA  CONTEMPORÂNEA 


Para  informação  do  espirito  e  propósito 
que  dominam  esta  serie  de  artigos^  tomamos 
a  liberdade  de  chamar  a  attenção  dos  leitores 
para  a  nota,  que  precedeu  o  primeiro  artigo, 
publicado  no  n.^  11  da  7{evista  de  historia  ^ 
Neste  lugar  apenas  transcreveremos,  visto  ser 
corrente  em  Portugal  a  opinião  de  que  historia 
litteraria  e  critica  litteraria  são  não  somente 
disciplinas  diversas,  mas  até  certo  ponto 
antagónicas,  apenas  transcreveremos  um  passo 
dum  livro  nosso,  em  que  refutamos  uma  opi- 
nião  similar  apresentada  por  um  theorico  da 
critica,  o  sr.  G.  Renard  ^.  « Começa  por  esta- 
belecer uma  completa  separação  entre  critica 
e  historia  litteraria,  affins,  mas  diff crentes, 
como  a  medicina  e  a  physiologia,  como  a 
politica  e  a  sociologia.  Uma  estuda  desinteres- 
sadamente, sem  preoccupação  de  nenhum  fim 
útil,  o  passado  litterario;  a  outra,  a  critica, 
procura   applicar   os  principios   extrahidos 


í     y.  vng.  212  do  3."  vol.,  Lisboa.  1914. 

*    V,    La    Méthode    Scientifique    de    l'Historie    littéraire, 

Paris,  1900. 


o   SR.  JÚLIO  DANTAS 


dessa  longa  e  experiente  observação.  Esta 
opposição  é  subtil  de  mais.  Perante  uma  obra 
antiga,  uma  obra  já  da  historia,  o  critico 
surprehende-se  na  mesma  situação,  em  que 
está  perante  uma  contemporânea,  recem-appa^ 
recida,  Desconhece-a,  vae  estudá-la,  primei- 
ramente gozando-a  como  leitor,  depois  reflec- 
tindo sobre  a  impressão  colhida,  e  da  con- 
clusão de  que  a  obra  tenha  maior  ou  menor 
valor  passará  á  analyse  e  á  explicação.  Para 
a  obra  antiga  repor ta-se  ao  conjuncto  de  cir- 
cunstancias históricas,  ambientes  e  coevas, 
quer  para  a  explicação,  quer  para  a  avaliação; 
para  a  obra  moderna,  faz  o  mesmo  só  com  a 
correcção  chronologica,  e  visto  que  o  auctor  vive 
e  é  capaz  de  mais  produzir,  a  conclusão  pro- 
duz  um  effeito,  porque  se  dirige  a  um  espirito 
em  evolução,  emquanto  que  no  caso  da  obra 
antiga  o  veredictum  é  sem  consequências,  A 
carência  de  effeito  na  critica  histórica  e  a 
possibilidade  de  effeito  na  critica  contem' 
poranea  são,  quanto  a  nós,  os  traços  dif- 
ferenciaes;  a  primeira  será  mais  desinte- 
ressadamente especulativa,  a  segunda  mais 


LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 


preoccupadamente  normativa.  Mas^  não  ha- 
vendo uam  differença  essencial  de  methodo 
e  havendo-a  apenas  nos  resultados,  deverá 
estabelecer-se  uma  distincção?  Quando  invés- 
tigamos  a  historia  litteraria  não  nos  obstemos 
da  analyse  esthetica  intrinseca  da  obra,  como 
quando  fazemos  critica  contemporânea  nos 
não  devemos  abster  da  sua  explicação  histó- 
rica. A  própria  obra  moderna,  recem-appare- 
cida,  de  hoje,  é  já  uma  obra  histórica  consi- 
derada na  sua  derivação  e  considerado  o  seu 
auctor  como  producto  de  causas  passadas^ 
encorporadas  já  na  historia»  ^ 

Nós  entendemos  que  ha  tanto  dever  e  di- 
reito de  apreciar  as  obras  dos  auctores  vivos 
como  os  ha  a  respeito  das  obras  de  auctores 
mortos  e  que  é  possivel  fazê-lo  com  serenidade 
critica  e  certa  segurança  de  methodo.  Apenas 
haverá  que  fazer  algumas  reducções  na  nossa 
investigação;  nem  analyses  moraes  da  pessoa 
do  próprio  auctor ,  nem  vaticinios  temerários. 


^    F.   A   Critica  Litteraria  como  Sciencia,  pag.  37  da  2." 
edição,  Lisboa,  1914. 


o  SR.   JÚLIO  DANTAS 


Sob  forma  inversa,  exprimia  egiial  pensamento 
o  grande  critico  Sainte-Beuve  quando  queria 
que,  ao  escrever-se  sobre  um  auctor  morto,  se 
julgasse  que  esse  auctor  estava  presente  a  ou- 
vir  o  que  delle  se  dizia.  Portanto,  lia  que  come- 
dir a  analyse  critica  sobre  os  mortos  e  alar- 
gá-la sobre  os  vivos.  Nem  tão  imprudente  e 
indiscreta  como  se  pratica  frequentemente  a 
respeito  dos  mortos,  nem  tão  limitada  ou  pouco 
independente,  como  se  exerce  acerca  dos  vivos, 
É  necessário  que  haja  franqueza  de  admirar 
o  que  é  admirável  e  de  gozar  o  delicioso 
prazer  da  emoção  artistica  deante  do  que  é 
bello,  de  execrar  o  que  é  execravel  por  esthe- 
ticamente  monstruoso,  —  e  mais  ainda  de  o 
confessar.  Estão-nos  a  occorrer  as  censuras 
fundamentadas,  que  o  sr.  L.  Tonelli,  ^  historia- 
dor litterario  italiano,  dirige  d  critica  sua 
contemporânea,  por  se  manter  na  generalidade 


*  y.  La  critica  Letteraiia  Italiana  negli  ultimi  cinquanfanni» 
Luigi  Tonelli,  Bari,  1914,  pag.  7  a  11,  o  §  sobre  La  critica  dei 
contemporanei.  Sobre  esta  obra  publicámos  uma  breve  resenha  cri-- 
liça  a  pag.  190  do  5.®  vol.  da  Revista  de  Historia,  1916. 


10         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 


silenciosa  e  indifferente  perante  os  auctores 
vivos^  excepção  feita  dos  trabalhos  do  eminente 
sr,  B,  Croce^  criticamente  brilhantes,  moral- 
mente nobres  ^. 

A  nossa  serie  de  estudos  sobre  a  litteratura 
portuguesa  contemporânea  é  um  sincero  es- 
forço para  proceder  de  modo  diverso  ^. 

F.  F. 


<  V.  a  serie  Note  sulla  letteratura  italiana  nella  seconda 
meta  dei  secolo  XIX,  publicada  na  revista  La  Critica,  desde  1903 
até  1914. 

'  Este  ligeiro  prefacio  é,  com  pequenas  alíeraçõest  a  reprodu- 
cção  do  que  acompanha  outro  artigo  da  mesma  serie,  também  repro- 
duzido em  volume  independente,  Litteratura  Contemporânea:  An- 
thero  de  Figueiredo,  Lisboa,  1916,  edição  Aillaud,  Alves  <£-  C* 
'64  pag. 


o  sr.  Julío  Dantas 


Foi  em  1899  que  o  sr.  Júlio  Dantas  fez  a 
sua  estreia  litteraria  por  um  livro  de  versos, 
estreia  muito  orthodoxamente  nacional.  E  já 
decorrido  prazo  de  tempo  sufíieiente  para  se 
poder  balancear  a  productividade  litteraria 
deste  escriptor  e  para  tentar  delinear  a  physio- 
nomia  especifica  do  seu  bem  dotado  talento. 
Esse  livro  de  versos,  Nada,  está  longe  de  ser 
nada,  antes  alguma  coisa  é,  porque  constituo 
um  dos  documentos  do  movimento  ancioso  de 
reformas,  que  no  fim  do  século  passado  agitou 
e  gravemente  perturbou  a  poesia  nacional,  e 
porque  já  denuncia  algumas  das  principaes 
tendências  do  escriptor,  que  mais  tarde  vieram 
a  avultar  e  a  occupar  lugar  primacial  entre 
os  seus  processos  de  arte. 


12  LITTEKATURA  CONTEMPORÂNEA 

Quanto  á  forma,  é  muito  para  notar  que 
nessa  epocha  o  sr.  Júlio  Dantas  francamente 
houvesse  optado  pelos  moldes  tradicionaes, 
tercetos,  vilancetes,  sonetos  com  seus  metros 
clássicos,  nessa  epocha  em  que  ainda  não  pas- 
sara a  moda  da  extravagância.  Para  notar  é 
também  o  gosto  do  archaismo,  muito  trahido 
por  varias  partes  dos  seus  versos,  e  que  esses 
velhos  termos  rebuscados  a  indumentária,  a 
aspectos  exteriores  principalmente  se  refiram, 
objectos  de  uso  commum;  são  portanto  vocá- 
bulos archaicos,  não  expressões,  modos  de 
dizer  e  de  pensar.  Nos  vilancetes  e  nos  sone- 
tos, sem  duvida  por  influencia  da  leitura  dos 
nossos  quinhentistas,  confessam-se  as  diligen- 
cias por  engastar  nessas  formas  métricas  di- 
zeres argutos  e  agudezas  conceituosas,  mas  de 
modo  muito  leve  e  sem  êxito  apreciável,  porque 
claramente  se  vê  não  ser  essa  a  natural  ten- 
dência do  sr.  Júlio  Dantas,  ou  melhor  sê-lo  o 
coníinar-se  em  ditos  ligeiros  e  discretos,  mais 
elegantes  e  subtis  no  dizer,  que  profundos  em 
seu  conteúdo,  que  ricos  no  seu  sentido  intimo. 
Para  tal  conseguir,  houvera  necessidade  de  que 


o  SR.  JÚLIO  DANTAS  13 

a  intelligencia  do  poeta  não  se  achasse  nessa 
epocha  dominada  pelos  cânones  da  esthetica 
reinante  e  não  soíFresse  dum  mal  muito  do  seu 
tempo  e  em  arte  tão  fatal :  a  carência  de  ideal. 
Pessimismo  litterario,  queremos  dizer,  juizos 
condemnatorios  sobre  as  pessoas  e  as  coisas, 
julgadas  através  dum  egotismo  exigente,  que 
é  uma  verdadeira  e  impertinente  hypertrophia 
da  própria  personalidade;  a  certeza  do  fim 
próximo  da  vida  e  de  que  com  a  morte  tudo 
acaba,  de  que  á  podridão  cadavérica  todo  o 
bem  e  todo  o  mal  vão  dar;  desconhecimento 
proposital  das  almas  e  do  espirito  das  coisas; 
observação  confinada  na  superfície  e  na  forma 
visivel;  até  certo  comprazimento  em  remexer 
o  mundo  macabro  das  podridões,  formaram  o 
alimento  espiritual  deste  poeta.  Era  lógico. 
Então  Fialho  de  Almeida,  Abei  Botelho  e 
Casario  Verde  estavam  na  moda;  todos  três 
ignoraram  as  maiores  bellezas  da  vida  e  se 
limitaram  a  só  querer  ver  as  que  os  seus 
preconceitos  de  escola  lhes  apontavam  como 
única  matéria  de  arte;  todos  três  perdularia- 
mente  sacrificaram  superiores  dotes  litterarios 


14         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

e  grangearam  sympathias  veh ementes  que  bem 
lhes  promettiam  a  certeza  do  êxito  litterario 
por  taes  meios.  O  naturalismo  physiologico  de 
Fialho  de  Almeida,  medico  materialista  que 
supunha  que  em  arte  se  poderia  aplicar  pro- 
cesso análogo  ao  da  dissecção  dum  cadáver,  e 
de  Abel  Botelho,  o  extremo  auctor  do  Barão 
de  Lavos^  e  o  realismo  na  poesia  de  Cesário 
Verde  imprimiram  cunho  vivo  e  indelével 
sobre  o  sr.  Júlio  Dantas,  também  medico, 
também  materialista,  que  então  não  via  na 
formosura  mais  do  que  uma  futura  podridão, 
que  se  affligia  com  a  certeza  de  que  o  cheiro 
do  seu  cadáver  afugentasse  a  sua  amada  e 
que  na  cabeça  não  via  a  sede  de  todos  os 
nossos  pensamentos  e  sentimentos,  o  centro  da 
nossa  personalidade  moral,  mas  um  craneo, 
uma  caveira.  Por  isso,  em  que  pese  ao  prefa- 
ciador  illustre  da  obra,  o  sr.  Lopes  de  Men- 
donça, nós  não  vemos  no  Nada  «um  brilhan- 
tíssimo symptoma  dessa  renovação  systematica 
da  poesia  portuguesa,  que  é,  a  bem  dizer,  um 
resurgimento» ;  vemos  nesse  livro  uma  traduc- 
ção  muito  fiel  do  gosto  poético  desse  tempo, 


o  SR.  JDLIO  DANTAS  15 

8Ó  com  a  melhoria  sobre  esse  tempo,  da  prefe- 
rencia das  formas  tradicionaes. 

A  concepção  moral,  que  esses  versos  tra- 
hem,  está  inteiramente  de  accordo  com  o  rea- 
lismo da  decadência  e  dá-lhes  esse  caracter 
limitado,  finito,  essa  falta  de  ideal,  de  perspe- 
ctiva; que  os  reduz  a  pintura  de  primeiro 
plano,  a  desenhos  lineares.  E  um  signal  bem 
expressivo  da  estranha  e  limitada  esthetica 
litteraria  do  fim  do  século  a  poesia  os  Filhos^ 
thema  que  o  poeta  não  pôde  sentir  nem  com- 
prehender,  pelo  que  confessou  sentimentos  que 
não  são  humanos,  não  são  legitimos  sequer  para 
quem,  vulgar  embora,  alguma  vez  tenha  sentido 
a  vida,  sem  a  venda  do  pessimismo  macabro 
do  sr.  Júlio  Dantas  e  dos  seus  mestres  litte- 
rarios.  Contemplando  um  painel  de  Christo, 
todo  o  mundo  histórico,  religioso,  sentimental, 
que  essa  contemplação  pode  suscitar-ihe,  per- 
manece desconhecido,  pois  se  limita  a  ve-lo 
através  das  normas  da  anatomia  plástica.  E 
muito  flagrante  exemplificação  da  sua  maneira 
a  Dansa  Macabra^  que  representa  o  gosto  e  as 
concepções  materialistas  e  irreverentes  dos  ro- 


16         LITTERATDRA  CONTEMPORÂNEA 

mancistas,  postos  em  verso  com  a  maior  li- 
berdade permittida  á  poesia,  e  já  exemplifi- 
cada pelos  srs.  Guerra  Junqueiro  e  Gomes 
Leal.  Do  symbolismo  não  são  tão  vivos  os 
vestígios  como  os  do  decadentismo ;  do  sym- 
bolismo apenas  passaram  alguns  signais  esty- 
listicos,  como  esse  do  «triste  fim  da  raça>.  No 
Mercado  do  peixe  é  um  exemplo  do  realismo 
na  poesia,  como  o  comprehendera  Cesário 
Verde,  e  a  Vida  Simples^  em  pleno  contraste 
com  todo  o  theor  do  livro,  é  uma  aspiração 
modesta  á  áurea  mediocritas,  de  Horácio. 

Ha  já  nesse  livro,  além  do  gosto  do  ar- 
chaismo,  signaes  inilludiveis  de  que  seu  auctor 
procura  eíFeitos  de  estylo,  e  que,  uma  vez  veri- 
ficado o  seu  efíeito,  os  emprega  como  uma 
espécie  de  technica  pessoal,  como  aquelles 
mots  d'auteur  que  um  critico  francez  se  deu 
á  tarefa  de  recensear,  processo  que,  sendo  em 
apparencia  fútil,  já  permittiu  a  Lutolawski 
restabelecer  a  verdadeira  chronologia  dos  diá- 
logos de  Platão  e  engeitar  os  apocryphos. 
Neste  primeiro  livro  de  versos,  o  effeito  de 
estylo  mais  evidente,  por  mais  repetido,  é  o 


o  SR.  JÚLIO  DANTAS  17 

que  consiste  em  fazer  brilhar  o  ouro  nas  des- 
cripções,  ou  tomá-lo  para  dilecto  termo  de 
comparação,  já  de  aspectos  do  mundo  moral, 
já  de  objectos  do  mundo  material.  Por  isso, 
nas  poucas  paginas  do  Nada,  nós  temos  ouro 
a  rodo,  ouro  ou  oiro  conforme  as  necessi- 
dades da  rima.  Ha  ali:  corpos  de  oiro^  com- 
passos de  oiro,  alegrias  de  ouro,  cinturas  de 
ouro,  sombras . . .  em  rosa  e  ouro  feitas,  lirios 
d'oiro,  manchas  d'ouro,  ar  doirado,  mascaras 
de  ouro,  pratos  d'oiro,  agulhas  d'oiro,  castel- 
los  d' oiro,  placasinhas  d' oiro,  azas  d' oiro ^ 
dedos  d' oiro,  barregaes  d' ouro,  azas  tecidas 
d'ouro,  ruivos  d'ouro,  vegetaes  dourados,  co- 
thurnos  doirados,  demónios  loiros,  cabeças 
d'ouro,  o  sol  zebrando  d'oiro,  bordados  de  flo 
d^ouro,  o  sol  como  um  losango  d'ouro,  berços 
d'ouro,  poeira  d'ouro,  espiritos  d'ouro,  som- 
bras que  o  sol  a  ouro  vae  bordando,  sombras 
d' oiro,  camas  d' ouro,  bodas  d' ouro,  leitos  d'oU' 
ro,  chapins  doirados,  quem . . .  ouro  fia,  to- 
queixos  d'ouro,  cabeças  d'ouro,  talha  doirada, 
doirar  de  gorduras,  languidos  molluscos.,, 
carregados  d'ouro.  Bem  se  poderia  dizer,  se 

2 


18         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA. 

essa  áurea  profusão  não  fosse  simples  adorno 
litterario,  que  a  imaginação  do  poeta  prompta 
e  espontaneamente  resolvera  o  problema  da 
velha  alchimia,  pois  como  a  almejada  pedra 
philosophal  tudo  transformava  em  ouro.  E  é 
ainda  dentro  dessa  tendência  que  o  poeta  faz 
das  estrellas  o  seu  segundo  mot  d^auteur, 
espalhando  pelos  seus  versos  o  deliriuni  tre- 
mens  das  estrellas,  roupa  d'estrellas,  um  le- 
proso a  babar  uma  estrella,  entes  coroados  de 
flores  e  de  estrellas,  seios  das  estrellas,  Deus 
que  criou  as  estrellas,  pandeiros  assoalhados 
de  estrellas,  rosas  pouco  e  pouco  estrellas, 
entes  que  vêem  das  estrellas  descendo . . . 

Felizmente  o  poeta  cansou-se  da  sua  gra- 
vata á  1830  e  de  chamar  cretinos  aos  burgue- 
ses que  não  amam  a  excentricidade  provo- 
cante, o  que  em  arte  equivale  a  dizer  que  se 
entediou  do  macabro,  das  podridões  vermina- 
das,  do  grosseiro  materialismo  dos  hospitaes  e 
cemitérios  vistos  com  a  irreverência  do  cynis- 
mo  egotista,  entediou  dessa  licença  da  imagi- 
nação, que  no  fundo,  sem  paradoxo,  era  um 
verdadeiro   collete    de   forças   que   quebrava, 


o  SR.  JULIO  DANTAS  19 

como  as  modas  sempre  fazem,  os  impulsos  de 
sincera  originalidade.  Sentiu  que  é  preciso 
comprehender  a  vida  com  largueza  e  sympa- 
thia,  devassá-la  nos  seus  múltiplos  aspectos, 
variados  até  ao  infinito,  aquella  variedade  que 
se  contem  num  corpo  destinado  a  apodrecer 
e  num  craneo  esburacado . . .  Mas  se  os  ho- 
rizontes espirituaes  do  escriptor  se  alargaram 
consideravelmente,  quando  a  sua  consciência 
se  desprendeu  dos  vínculos  escravizantes,  que, 
em  estylo  semelhante  ao  seu,  cravavam  como 
alfinetes  as  azas  doiradas  da  borboleta  da  sua 
imaginação,  certo  é  também  que  a  sua  primi- 
tiva educação  escolar  e  litteraria  não  deixou 
de  imperar  por  algum  tempo  e  de  imprimir 
indelével  marca  na  sua  productividade  artís- 
tica, nos  seus  processos  de  conhecimento  e 
apreciação,  constituindo  assim  um  dominante 
ponto  de  vista,  sempre  o  do  medico  materia- 
lista, um  pouco  suggestionado  pela  superstição 
scientifica,  sobretudo  de  certas  modernas  con- 
clusões suas,  a  hereditariedade,  a  degeneração 
e  os  estigmas  criminologicos.  Estas  conclusões 
determinaram  a  constituição  de  novas  formas 


20         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

de  actividade  iatellectual,  principalmente  a 
tendência  para  de  accordo  com  ellas  interpre- 
tar velhos  problemas,  só  explicados  até  então 
pela  psychologia  clássica,  racional,  a  da  intus- 
pecção,  sempre  e  apesar  de  tudo  o  predomi- 
nante methodo  das  investigações  psychicas. 
Elias  formaram  também  uma  moda,  e  á  luz 
delias  foi  Nordau  —  critico  tão  brilhante  e 
suggestivo  quanto  leviano  e  enganador  —  exa- 
minar e  interpretar  as  principaes  correntes  do 
pensamento  artístico  e  europeu.  O  sr.  Júlio 
Dantas,  abandonando  o  artificioso  pessimismo 
e  o  extravagante  macabro  licencioso  do  seu 
Nada,  foi  depois  lançar-se  nos  braços  dessa 
nova  tendência,  aperfeiçoando  e  tornando 
mais  rigorosos  e  severos  os  seus  methodos  de 
trabalho,  passando  da  arbitraria  imaginação 
poética  para  a  pratica  scientifica — dirá  elle — , 
trocando  uma  moda  por  outra,  diremos  nós, 
ou  mais  exactamente,  um  aspecto  da  moda 
por  outro.  E  em  vez  « das  insistências  no  vocá- 
bulo obsoleto»,  de  ouro  e  de  estrellas,  tivemos 
então  a  complicada  machinaria  de  neologismos 
da  terminologia  scientifica.  Desse  novo  pendor 


o   SR.  JULIO  DANTAS  21 

do  seu  espirito  provieram  os  trabalhos  de 
medico-litterato :  Poetas  e  Pintores  em  Rilha- 
folies^  1900;  e  o  projecto  dum  largo  estudo 
sobre  a  Hereditariedade  e  degenerescência  nas 
Baças  Reaes  Portuguesas,  de  que  chegou  a 
executar  as  partes  publicadas  em  1903-1906, 
depois  recopiladas  no  volume  Outros  Tempos, 
1909 ;  o  artigo  Sobre  a  genealogia  portuguesa 
do  prognathismo  dos  Hahshurgos,  lido  em 
1910  na  Academia  das  Sciencias ;  e  uma  con- 
ferencia sobre  a  Consanguinidade  e  a  dege- 
nerescência das  famiUas  reaes,  feita  na  Im- 
prensa Nacional,  em  1912. 

A  these  sobre  as  manifestações  artisticas 
dos  internados  no  hospital  de  Rilhafoles  foi  o 
nosso  primeiro  estudo  sobre  as  características 
da  arte  do  louco,  e  nesse  aspecto  pertence 
ao  dominio  de  outra  especialidade,  muito 
distincta  da  critica  litteraria  como  nós  a  com- 
prehendemos,  a  psychiatria.  Não  discutiremos, 
por  isso,  as  suas  conclusões.  Apenas  delia  ex- 
trahiremos  os  elementos  de  informação,  que 
realmente  contem,  para  a  caracterização  da 
dominante  tendência   espiritual  do  sr.  Júlio 


22         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

Dantas  nesse  período.  Medico,  elle  suppõe  a 
medicina  a  sciencia  das  sciencias,  em  todos 
os  districtos  penetrando  e  a  todos  vivificando 
com  o  especial  ponto  de  vista  que  comsigo 
leva:  «O  medico  tem  hoje  o  seu  lugar  mar- 
cado na  critica  das  manifestações  artísticas  e 
intellectuaes  suas  coevas,  e  também,  o  que  é 
deveras  importante,  na  critica  e  philosophia 
históricas.  A  historia  está  por  fazer  no  que 
toca  á  sua  parte  de  interpretação  philoso- 
phica.  O  medico  está  destinado  a  ser  o  historia- 
dor. O  próprio  Fios  Sanctorum,  nas  mãos  do 
alienista,  reduzir-se-ha  ás  modestas  e  nada  mi- 
lagrosas proporções  dum  capitulo  de  psychia- 
tria.»  Outra  opinião  extrema  do  sr.  J.  Dantas  é 
a  que  considera  a  critica — pôde  dizer-se  critica? 
—  antes  o  exame  das  manifestações  artísticas 
do  louco  como  base  indispensável  da  bôa  cri- 
tica da  arte  sã,  porque  tendo,  em  seu  juizo,  a 
critica  por  objecto  procurar  os  desvios  vesani- 
cos,  o  directo  conhecimento  da  arte  do  louco 
logo  lh'os  apontaria.  A  estes  extremos  conduz 
o  ponto  de  vista  unilateral  por  demasiado 
systematico.  A  maior  refutação  destas  opiniões 


o   SR.  JÚLIO  DANTAS  23 

está  na  applicação  que  delias  fez  o  escríptor. 
Grande  é  a  massa  de  argumentos,  de  factos 
tirados  da  historia,  e  fáceis  e  lógicas  são  as 
interpretações  proporcionadas  pelo  simples 
bom-senso  com  que  se  podem  refutar  as  opi- 
niões geralmente  condemnatorias  desenvolvi- 
das nestes  trabalhos  do  sr.  Júlio  Dantas. 
Segundo  elles,  as  democracias  seriam  uma 
fatal  necessidade,  derivada  não  tanto  da  evolu- 
ção politica  e  social  quanto  do  geral  esgota- 
mento, da  inilludivel  incapacidade  moral  e 
mental  das  familias  reinantes.  Deste  modo  o 
sr.  Júlio  Dantas  ofíerecia  aos  regimens  demo- 
cráticos uma  nova  base  doutrinaria,  —  nova  se 
ella  não  fosse  ha  muito  revelha.  Essa  supposta 
base  scientiíica  foi  em  seu  tempo  um  expe- 
diente de  opposição,  destruído  pelo  exame  da 
historia  e  pelos  dictames  do  bom  senso  —  ou 
da  bôa-fé,  visto  de  politica  se  tratar.  Algumas 
objecções  já  lhe  foram  oppostas  pelos  srs. 
Augusto  For  jaz  ^  e  Ruy  Chianca,  ^  na  parte 


*    V.  Nun'Alvares  e  o  sr.  Dantas,  Lisboa,  1914. 
»    V.  O  Santo  Condestabre,  resposta  ao  *L^ello  do  Cardeal  Dia' 
bo»,  Lisboa,  1914. 


24         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

referente  a  D.  Nuno  Alvares.  Mas  ha  mais. 
A  própria  anthropologia,  as  próprias  theorias 
da  hereditariedade  e  degeneração  engeitam  a 
conclusão  capital  do  sr.  Dantas.  Também  en- 
tre nós  foi  feito  esse  género  de  refutação; 
foi  a  penna  auctorizada  do  sr.  professor  Euze- 
bio  Tamagnini  que  repudiou  essa  conclusão 
do  sr.  Júlio  Dantas,  lembrando  que  as  famílias 
reaes  não  degeneram  necessariamente  e  que  a 
consanguinidade,  só  por  si,  não  é  causa  suf- 
íiciente  de  degeneração  ^. 

Deste  gosto  por  taes  theorias,  no  que  ellas 
contêm  de  mais  arbitrário,  alguma  coisa  pas- 
sou na  obra  dramática  do  escriptor,  como 
veremos  adeante. 

* 

Em  1900  o  sr.  Júlio  Dantas  fez  a  sua  es- 
treia no  theatro,  ao  qual  desde  então  dedicou 


*  V.  A  propósito  duma  conferencia  sobre  a  consanguinidade  e  a 
degenerescência  nas  Famílias  Reaes,  no  Movimento  Medico,  9.°  anno, 
n.»  2,  Coimbra,  15  de  Janeiro  de  1913,  pags.  22-26. 


o  SR.  JÚLIO  Dantas  25 

a  maior  e  melhor  parte  da  sua  actividade. 
Como  86  vê  da  ehronologia  não  foram  os  seus 
estudos  de  psycho-pathologia  que  lhe  revela- 
ram o  lado  dramático  de  certos  episódios  ou 
certas  personagens  da  historia,  foi  a  incursão 
que  o  novel  dramaturgo  fez  pela  historia  que 
suggeriu  ao  medico  esses  estudos ;  nós  fizemos 
já  referencias  a  esses  artigos,  porque  repre- 
sentam um  pendor  intellectual  que  quizemos 
mostrar  não  se  haver  extinguido  com  o  aban- 
dono do  verso  lyrico. 

Com  a  peça,  O  que  morreu  de  amor^  se 
estreou  o  dramaturgo,  peça  que  desenvolve  o 
episodio  da  paixão  de  Pêro  Roiz,  que  está  por 
detrás  de  breves  passagens  dos  nobiliários 
medievaes,  pois  pouco  mais  são  essas  passa- 
gens, além  desse  apposto  biographico:  o  que 
morreu  de  amor,  O  nome  de  Pêro  Roiz,  o 
nome  da  mulher  que  tão  fatal  paixão  lhe  des- 
pertou, Maria  Paes,  o  de  seu  marido,  Gonzalo 
Gonzalez,  e  aquella  lacónica  rubrica  —  o  que 
morreu  de  amor  —  são  eífectivamente  muito 
escassos  elementos  para  reconstituir  esse  dra- 
ma.  Arbitraria,   inteiramente  imaginosa  teve 


26         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

• 

de  ser  a  construcção  do  drama,  mal  se  com- 
prehendendo,  por  isso,  a  razão  por  que  não 
preferiu  o  auctor  aproveitar  a  suggestão  desse 
pequeno  passo  dos  velhos  nobiliários,  mas 
tratá-la  independentemente,  localizando-a  em 
qualquer  outra  epocha,  encabeçando-a  em 
quaesquer  outras  personagens.  Deste  modo  o 
sr.  Júlio  Dantas  foi  extrahir  a  essa  rápida 
passagem  dos  nobiliários  um  conteúdo  que 
eila  não  possuia  e  que,  por  isso,  não  é  menos 
arbitrário  que  se  da  declarada  invenção  do 
escriptor  proviesse,  e  foi,  por  outro  lado,  obri- 
gar-se  ao  dever  de  manter  a  cor  locaU  como 
diziam  os  românticos,  a  expressão  caracterís- 
tica da  epocha,  como  diremos  nós.  Nós  cre- 
mos que  esta  obra,  assim  composta  em  torno 
duma  formosa  phrase,  eloquente  e  pungente 
na  sua  mesma  brevidade,  como  único  vestígio 
do  longo  m.artyrio  duma  alma,  a  destacar 
lyricamente  no  monótono  rol  de  nomes  e  bar- 
baras proezas  da  velha  nobreza,  é  um  signal 
eloquente  do  gosto  do  sr.  Júlio  Dantas  pela 
phrase.  Galante,  espirituosa,  subtil  de  agu- 
deza, habilidosa  como  uma  escamoteação,  pro- 


o  SR.  JDLIO  DANTAS  27 

vocante  como  um  desafio,  cynica  ou  sarcástica 
—  a  phrase,  o  bom  dito  é  uma  irresistivel  pre- 
dilecção do  sr.  Júlio  Dantas. 

Essa  perigosa  tendência  encontraremos,  ao 
depois,  amplamente  exemplificada  na  sua  car- . 
reira  litteraria,  onde  ha  peças  que  parece  te- 
rem sido  elaboradas  para  aproveitarem  um 
bom  dito  e  outras  que  de  diálogos  desse  theor 
se  compõem. 

O  que  morreu  de  amor  conta-nos  em  seus 
quatro  actos  a  paixão  de  Pêro  Roiz,  episodi- 
camente entrelaçada  com  a  revolta  dos  bur- 
gueses do  Porto  contra  o  bispo.  Vêmo-lo  triste 
e  desalentado  no  primeiro  acto,  a  deixar  adi- 
vinhar a  sua  paixão;  assistimos  a  um  seu 
impulso  no  segundo  acto,  em  que  irrompe 
pela  alcova  de  Maria  Paes  e  quer  arremeter 
contra  Gonzalo,  e  depois  desalentado  e  arre- 
pendido logo  perante  o  marido  ofíendido  se 
humilhar;  no  terceiro  acto  Pêro  Roiz,  já  gra- 
vemente doente,  sofíre  a  sua  paixão  e  a  dôr 
do  arrependimento  do  imprudente  impulso,  a 
que  cedera;  e  no  quarto,  abençoado  por  seu 
irmão  bispo,  que  regressara  á  sua  diocese,  de- 


28         LITTBRATURA  CONTEMPORÂNEA 

bellada  a  revolta,  morre,  tendo  determinado 
que  sobre  a  sua  louza  sepulchral  se  inscrevam 
estas  palavras  de  humildade:  «Aqui  jaz  Pêro 
Roiz,  o  que  morreu  de  amor».  A  acção  é  lenta 
e  prolixa,  pouco  interessando  porque  as  per- 
sonagens todas  se  subordinam  á  narrativa  das 
varias  phases  do  estranho  mal  de  Pêro  Roiz; 
um  marido  tolerante  e  generoso,  uma  irmã 
medianeira  e  a  própria  Maria  Paes  generosa 
até  á  imprudência. 

É  uma  peça  inteiramente  de  gosto  român- 
tico; simplesmente  em  lugar  dum  grande  epi- 
sodio histórico  central,  núcleo  da  obra,  ve- 
mos contar  um  pequeno  episodio  de  amor 
que  decorreu  entre  personagens  que  a  historia 
esqueceu...  e  esta  substituição  não  foi  um 
progresso  que  o  sr.  Júlio  Dantas  trouxesse  ao 
theatro  histórico. 

A  condição  de  generalidade  de  interesse, 
de  universalidade  de  significado,  a  que  toda  a 
obra  de  arte  deve  obedecer,  sem  prejuízo  do 
seu  apparente  particularismo,  satisfazia  o  thea- 
tro romântico  com  a  vasta  matéria  da  histo- 
ria, e  essa  circumstancia  de  tratar  assumpto. 


o  SR.  JÚLIO  DANTAS  29 


que  a  todos  dissesse  respeito,  é  que  ofíuscava 
um  pouco  os  defeitos  da  sua  technica  e  lhe 
communicava   essa  vida  de  vibrante  sympa- 
thia,  que,  embora  transitória,  fez  do  theatro 
histórico  um  género  fervorosamente  acolhido 
durante  o  ro^^antismo.  E  certo  que  essa  gene- 
ralidade da  matéria  era  exclusivamente  nacio- 
nal, mas  era  menos  eircumscripta  que  a  do 
caso   de  Pêro  Roiz,  longínquo   amante  num 
vago  e  longínquo  século,  soíírendo  dum  mal 
de  todos  tão  bem  conhecido,  porque  a  littera- 
tura  empregou  os  seus  mais  eloquentes  meios 
de    expressão    e    de    interpretação    para   nos 
reconstituir  casos  modernos,  mais  typicamente 
humanos.  Estará  o  interesse  da  obra  na  cor 
local,  na  expressão  característica  da  sua  epo- 
cha,  como  dissemos  ha  pouco?  Também  não 
cremos,  e  por  duas  razões.  A  primeira  é  que, 
tendo   essa  epocha  sido  tam  devassada  pelo 
romance  e  pelo   theatro,   pela  poesia  e  pela 
historia,  quando  o  medievismo  foi  preferido 
objecto   das   artes  e  das  sciencias  históricas, 
nenhuma  novidade  nos  traria  o  sr.  Júlio  Dan- 
tas, que  não  é  ura  historiador,  e  a  segunda  é 


30         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

que  08  meios  de  coloração  que  o  sr.  J.  Dantas 
envidou  foram  muito  escassos. 

Taes  meios  foram  a  indumentária  e  o  mo- 
biliário, com  seus  archaicos  nomes,  a  revolta 
dos  burgueses  do  Porto,  a  cantiga  do  Fíguei- 
ral  Figueiredo  com  a  allusão  a  Çroesto  Ansu- 
res,  e  o  arremedilho^  com  a  allusão  aos  bobos 
Bonamis  e  Acompaniado.  Na  indumentária  e 
no  mobiliário  se  esmerou  o  escriptor  e  cada 
vez  mais  se  ha-de  esmerar  nas  outras  suas 
obras,  em  que  essa  mesma  terminologia  ar- 
chaica  constitue  uma  fundamental  feição;  a 
revolta  dos  burgueses  do  Porto  apparece-nos 
reduzida  e,  sem  a  mestria  que  o  tom  irónico 
e  o  conhecimento  experiente  das  turbas,  de 
Garrett,  souberam  pôr  no  Arco  de  SanfAmia, 
a  um  bispo  medroso  e  a  uma  vozearia  se 
limita  na  peça  deste  escriptor;  a  cantiga  do 
Figueiral  Figueiredo^  ha  muito  que  foi  clas- 
sificada pela  boa  critica  philologica  como  uma 
falsificação  alcobacense  e  das  menos  hábeis; 
o  episodio  de  Goesto  Ansures,  herói  da  liber- 
tação das  donzellas  christãs  no  lugar,  que  por 
isso  se  chamou  Figueiredo  das  Donas,  é  uma 


o   SR.  JULIO  DANTAS  31 


pura  lenda,  que  merece  tanto  crédito  como  as 
das  mouras  encantadas,  de  cuja  formação  é 
coetânea;  e  a  respeito  do  arremedilho  e  de 
Bonamis  e  Acompaniado,  muito  pouco  nos 
pôde  fallar  á  imaginação  este  pormenor,  por- 
que quanto  sabemos  desses  divertimentos  me- 
dievos e  desses  dois  bobos  é-nos  ministrado 
pela  concisa  referencia  do  Elucidário  de  Santa 
Rosa  de  Viterbo  e  dum  documento  publicado 
por  João  Pedro  Ribeiro.  Foram  estes  auctores 
que  nos  revelaram  a  própria  palavra  arreme- 
dilho e  os  próprios  nomes  de  Bonamis  e 
Acompaniado,  e  só  para  nos  eommunicarem 
uma  doação  que  lhes  fora  feita  por  D.  San- 
cho I  e  depois  confirmada  por  D.  Affonso  ii. 
São,  por  isso,  poucos  e  pouco  seguros  os  ele- 
mentos decorativos  e  pittorescos  que  o  sr. 
Júlio  Dantas  empregou  na  sua  obra  de  es- 
treia, verdadeiramente  reduzindo-se  ao  mobi- 
liário e  á  indumentária.  O  mobiliário  e  o 
vestuário  preoccupavam  já  então  muito  absor- 
ventemente  este  escriptor,  que  chegou  a  pro- 
por na  Academia  Real  das  Sciencias  «a  or- 
ganização  e   elaboração   dum   trabalho   onde 


32         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA. 

largamente  se  compilem  todos  os  materiaes 
existentes  para  o  estudo  da  indumentária  reli- 
giosa e  secular  em  Portugal»  ^.  Esta  proposta 
útil  foi  approvada  immediatamente  por  unani- 
midade e  logo  unanimemente  esquecida,  como 
quasi  todas  as  apresentadas  na  Academia. 

Esta  preoccupação  da  indumentária  domi- 
nará todo  o  theatro  e  todo  o  conjuncto  das 
obras  do  sr.  Júlio  Dantas,  que  na  vida  só  verá 
os  aspectos  exteriores,  dotado  como  é  dessa 
predilecção  do  aspecto  externo  e  sendo,  como 
é,  muito  reduzido  o  seu  dom  da  visão  interior 
das  coisas  e  das  pessoas.  Sempre  mais  arma- 
dor de  scena  e  ensaiador  de  actores,  sempre 
mais  rebuscador  da  boa  e  elegante  phrase, 
mais  erudito  em  guarda-roupa  que  perspicaz 
observador  das  almas,  o  sr.  Júlio  Dantas  fará 
um  theatro  todo  de  enganoso  efíeito  scenico, 
com  as  entradas  e  sabidas  das  personagens  a 
tempo,  com  uns  ardilosos  attractivos  para  a 
attenção  pouco  criteriosa  do  publico,  raro  um 


^    V.  Bolelim  da  Segunda  Classe  da  Academia  Real  das  Scien- 
ciaa,  vol.  n,  Lisboa,  1910,  pag.  303. 


o   SR.  JÚLIO  DANTAS  33 

theatro  humano,  onde  se  agitem  personagens 
com  seu  próprio  caracter,  de  autónoma  vida, 
encontrando-se  em  situações  e  debatendo  pro- 
blemas reaes,  em  que  seus  caracteres  sejam 
postos  á  prova.  As  suas  obras  não  contêm 
uma  visão  vasta,  integral  da  vida  —  aquella 
visão  que  da  vida  a  arte  nos  dá,  isolando  as- 
pectos, mas  ampliando-os,  esbatendo-os  sobre 
todo  o  conjuncto  e  produzindo  assim  uma 
idealidade  de  superior  relevo.  Apresentar  esses 
aspectos  escolhidos  e  idealizados,  com  desta- 
cante  evidencia  attribuir-lhes  capacidade  emo- 
tiva que  transmude  em  prazer  esthetico  o 
sofírimento  que  nas  correspondentes  situações 
nos  produzem  —  é  um  alto  objectivo  da  arte, 
pelo  menos  daquella  arte  que  a  crear  belleza 
humana  e  perdurável  vise.  Tal  belleza  não  a 
produziu  sempre  o  sr.  Júlio  Dantas  com  seu 
theatro,  que  na  generalidade  pertence,  pelo 
contrario,  a  uma  inferior  categoria  artística,  o 
bonito  —  que  está  longe  de  ser  o  bello.  E  um 
mixto  bem  equilibrado  e  symetrico  de  eííeitos 
scenographicos  e  do  dialogo  —  gracioso,  deli- 
cado, de  ténue  poder  emocional,  que  entre- 

3 


84         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

têm  sem  fadiga,  sem  compromettimento  nem 
compromisso,  a  attenção  preguiçosa  de  espec- 
tadores que  não  gostam  de  sensações  fortes, 
nem  de  pensar. 

Estes  juízos  vamos  exemplificar  sobre  as 
suas  principaes  peças. 

* 

*       * 

No  principio  de  1900  estreou-se  no  Thea- 
tro  de  D.  Amélia,  de  Lisboa,  o  Viriato  Trá- 
gico, pelo  seu  próprio  auctor  designado  de 
comedia  de  capa  e  espada.  Era  essa  obra,  por 
signaes  evidentes,  directamente  suggerida  pelo 
Cyrano  de  Bergerac,  representado  em  Paris, 
dois  annos  antes,  a  formosa  creaçao  de  Ros- 
tand,  que  é  também  uma  comedia  de  capa  e 
espada,  mas  onde  correm  parelhas  na  intensi- 
dade o  lyrismo,  o  preciosismo  da  phrase  e  do 
sentimento,  a  terna  emoção  e  a  viva  paixão. 
O  êxito  extraordinário  da  peça  de  Rostand 
mostrou  ao  sr.  J.  Dantas  os  dotes  dramáticos 
da  vida  agitada,  aventurosa  e  galante  de  Braz 


o  SR.  JULIO   DANTAS  35 

Grarcia  de  Mascarenhas,  como  Cyrano  irrequieto 
poeta  do  século  xvii  ^  Um  pouco  por  simples 
coincidência  histórica  e  muito  por  imitação, 
ha  na  composição  das  duas  obras  evidentes 
analogias.  A  rivalidade  entre  De  Guiché  e  Cy- 
rano corresponde  a  rivalidade  entre  D.  Sancho 
Manoel  e  Braz  Garcia;  em  ambos  os  primei- 
ros actos  ha  um  duello,  em  que  o  protago- 
nista ostenta  a  sua  destreza  nas  armas  e  a 
sua  galhardia  cavalheiresca ;  ao  cerco  de  Arras 
corresponde  o  recontro  da  Praça  dos  Alfaya- 
tes;  ambas  as  peças  têm  um  intuito  de  apolo- 


*  Já  havia  sido  tratado  este  thema  na  nossa  litteratura.  Na 
introducção  do  seu  romance  Lucta  de  Gigantes,  publicado  em  1865, 
Camillo  faz  ura  bosquejo  biographico  acerca  de  Braz  Garcia.  O 
romance  tem  por  objecto  a  narrativa  dos  episódios  da  longa  e 
agitada  rivalidade  entre  o  provincial  dos  franciscanos  do  Algarve, 
D.  Diogo  César,  e  o  commissario  pontifício,  D.  Martinho  do  Rosário, 
cuja  familias  andavam  inconciliavelmente  desavindas  desde  que 
em  Coimbra  se  dera  certo  episodio,  em  que  fora  protagonista  o 
poeta  Braz  Garcia.  Em  1901  publicou  o  sr.  Visconde  de  Sanches 
de  Frias  jim  drama  histórico,  O  Poeta  Garcia,  cuja  matéria  já  fica 
indicada  no  titulo.  Precedem  o  texto  do  drama  as  investigações 
do  auctor  acerca  do  poeta  e  sua  familia  e  ainda  algumas  informa- 
ções sobre  o  mesmo  drama.  A  acção  deste  drama  comprehende  a 
vida  do  poeta  desde  a  sua  estada  em  Coimbra  até  á  sua  rehabiii- 
tação  por  D.  Jo5o  iv. 


36         LITTERATDRA  CONTEMPORÂNEA 

gia  da  independência  individual,  do  heroismo 
personificado  no  seu  protagonista. 

Falta,  porêra,  ao  Viriato  aquella  alta  ins- 
piração que  anima  o  Cyrano,  onde  o  iliudido 
amor  de  Roxane  por  Christian,  formoso,  ani- 
mado da  alma  que  Cyrano  lhe  emprestava  e 
que  delia  jazeu  ignorada  até  ao  supremo 
momento,  é  uma  concepção  poética  do  maior 
talento,  alli  aproveitada  com  extrema  elegân- 
cia e  sobriedade;  falta  sobretudo  que  a  figura 
de  Braz  Garcia  fosse  a  figura  de  Cyrano, 
typo  perfeito  de  espadachim  cavalheiresco  e 
por  Rostand  transmudado  já  em  symbolo  hu- 
mano, corajoso  e  louco  cavalleiro  do  ideal  que 
passou  a  vida  a  investir  contra  a  mentira,  os 
compromissos,  os  prejuizos  e  as  cobardias  e 
que  ás  mãos  d' estes  adversários  invencíveis 
morre  heroicamente. 

O  sr.  J.  Dantas  mais  restrictamente  só  quiz 
fazer  uma  pintura  histórica  de  grande  espec- 
táculo, movimentada  e  viva,  e  isso  conseguiu 
em  parte  da  sua  obra.  E  dizemos  em  parte, 
porque  a  intriga  esmorece,  torna-se  lenta  e 
monótona  naquelas  partes,  que  vemos  terem 


o   SR.   JÚLIO   DANTAS  37 

sido  encorporadas  na  obra  só  por  esse  desí- 
gnio de  fazer  pintura  histórica  e  não  pelas 
necessidades  da  acção.  Quando  um  drama- 
turgo assim  procede  e  introduz  na  sua  peça 
actos  ou  scenas,  que,  servindo  plenamente  a 
um  propósito  de  reconstituição,  nada  acres- 
centam ao  desenvolvimento  lógico  da  acção, 
pende  ou  para  o  romance,  uma  espécie  de 
romance  por  diálogos  vivos,  ou  para  outra 
espécie  de  theatro,  que  não  o  de  acção.  Estas 
perplexidades  se  notam  no  Viriato  Trágico^ 
cujo  2.^  acto,  o  que  decorre  na  serra,  é  pura- 
mente descriptivo,  mas  nem  é  episódico  como 
parte  integrante  da  acção,  nem  é  histórico 
como  elemento  que  sirva  ao  propósito  de 
«pintura  histórica >  do  poeta;  é  regional  e 
descriptivo.  Ora,  o  poeta,  ao  manusear  a 
massa  de  episódios  da  vida  de  Braz  Garcia,  ^ 


2  Reduzem-se  aos  seguintes  trabalhos  as  investigações  sobre 
a  biographia  de  Braz  Garcia  de  Mascarenhas:  1.**  — os  informes 
de  Bento  Madeira  de  Castro,  prestados  na  1.*  edição  do  Viriato 
Trágico,  feita  por  diligencias  suas  etn  1699;  2. o  — os  de  Albino 
Abranches  Freire  de  Figueiredo,  prestados  na  2.*  edição  do  Yiriato, 
íeita  por  diligencias  deste  em  1846;  'ò."  —  Ensaio  biographico-critico 


38         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

tinha  de  com  elles  organizar  um  todo,  formar 
um  pequeno  systema  dramático,  que  seria  a 
sua  selecção  e  a  sua  interpretação  da  vida 
de  Braz  Garcia,  que  seria  verdadeiramente 
a  sua  creação  dramática.  O  Cyrano  da  histo- 
ria é  um;  O  Cyrano  de  Rostand  é  o  mesmo  e 
é  outro.  É  o  mesmo,  porque,  aparte  minimas 
discordâncias,  é  o  mesmo  Cyrano,  gigantesco 
nasigero,  que  os  seus  contemporâneos  amaram 
e  temeram  e  que  os  eruditos  fizeram  resurgir, 
e  é,  outro  porque  do  espirito  de  JRostand  al- 
guma coisa  passou  nelle,  principalmente  a  in- 
terpretação do  seu  caracter,  e  a  escolha  e  a 
concatenação  dos  episódios  da  sua  vida,  que 
servem  a  documentá-lo.  Estes  caracteres  mul- 
típlices, estas  intrigas  históricas  já  feitas  que 
ao  dramaturgo  se  ofíerecem,  são  como  edifi- 


sobre  os  melhores  poetas  portugueses,  J.  M.  Costa  e  Silva,  tomo  vii; 
i.^  —  Bibliotheca  Lusitana,  Diojro  Barbosa  Machado,  tomo  l.«;  5.* — 
Diccionario  Bibliographico  Português,  Innocencio;  6.*  — Bros:  Garcia 
de  Mascarenhas,  Doutor  António  de  Vasconcellos,  em  publicação 
na  Pevista  da  Universidade  de  Coimbra,  desde  1912.  É  este  o  prin- 
cipal trabalho  sobre  Braz  Garcia,  organizado  com  escrúpulo  e  se- 
gurança de  methodo  inexcediveis. 


o  SR.  JULIO  DANTAS  39 

cios  vastíssimos  para  onde  se  pode  entrar  por 
muitas  portas,  cada  uma  das  quaes  revela  seu 
especial  aspecto.  A  chave  que  escolhe  e  abre 
alguma  dessas  portas  é  o  próprio  espirito  do 
escriptor.  Não  se  pode  dizer  que  não  fosse  de 
ouro  a  chave  com  que  Rostand  abriu  e  de- 
vassou esse  thesouro  artístico,  que  é  a  vida 
do  auctor  da  Viagem  d  Lua^  como  inversa- 
mente se  não  pode  dizer  que  o  sr.  Júlio  Dan- 
tas tivesse  chegado  a  achar  alguma  chave, 
que  o  introduzisse  por  trilho  novo  na  vida  de 
Braz  Garcia.  Sem  esta  interpretação  artística, 
que  no  Cyrano  de  Rostand  é  essa  maravilhosa 
rede  psychologica  do  caracter  de  Bergerac,  já 
hoje  é  inútil  tentar  accordar  o  theatro  histó- 
rico, pois  para  pôr  o  relevo  da  scena  e  o  seu 
poder  de  vulgarização  ao  serviço  da  narrativa, 
da  simples  e  ingénua  narrativa,  só  para  con- 
tar a  quem  quer  ver  também  emquanto  ouve, 
não  valeria  a  pena  accordar  o  velho  systema 
dramático  dos  românticos,  E  necessário  algu- 
ma coisa  accrescentar. 

Fazer,  sob  vestidura  histórica,  com  as  suas 
liberdades  de  composição,  que  o  systema  cias- 


40         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

sieo  não  comportava,  o  que  chamaremos  thea- 
tro  poético,  de  emphase  elegante,  nobre 
pompa,  de  verso  resoante,  seria  sem  duvida 
introduzir  entre  nós  um  novo  systema  dramá- 
tico. E  este  emprehendimento  estava  muito  de 
accordo  com  as  tendências  litterarias  que  no 
sr.  Dantas  se  adivinham.  Falta,  porém,  ao  es- 
criptor  a  concepção  ousada  e  original,  o  dom 
da  creação  psychologica.  Por  isso  neste  Viriato 
Trágico  se  notam  frequentes  hesitações  de 
composição,  que  fazem  oscillar  a  obra  entre  o 
theatro  heróico  e  romanesco,  o  theatro  mera- 
mente descriptivo,  o  theatro  narrativo,  o  thea- 
tro poético  e  o  drama  romântico.  De  todos  estes 
elementos  ha  representação  no  Viriato,  e  do 
peor  gosto  são  os  cansados  elementos  de  drama 
romântico,  que  na  obra  passaram,  os  quadros 
de  felicidade  lacrimejante,  em  que  sempre  fra- 
quejaram os  artistas  e  o  do  arrependimento  de 
D.  Sancho  Manuel,  inopportuno  e  desneces- 
sário, fora  da  concepção  melodramática  do 
romantismo. 

Carecendo  de  interpretação  psychologica  o 
Viriato  e  reduzindo-se  somente  a  uma  «pin- 


o   SR.   JÚLIO  DANTAS  41 

tura  histórica),  o  seu  objectivo  fica  cumprido 
desde  que  a  dotes  scenicos  se  allie  a  verdade 
histórica.  Este  é  um  dos  riscos  perigosos  do 
theatro  que  a  resurreição  histórica  se  reduz; 
é  que  para  a  sua  apreciação  se  requer,  não  um 
processo  esthetico  e  critico,  mas  sim  uma  sim- 
ples aferição  histórica.  Quem  vae  pedir  contas 
a  Rostand-  dos  Ugeiros  peccados  históricos  por 
elle  commettidos  no  seu  Cyrano  ?  Certo  é  que, 
de  accordo  com  a  verdade  histórica,  Bergerac 
não  podia  alludir  á  imitação  delle  feita  por 
Mohère  nas  Fourberies  de  Scapin,  e  que  não 
foi  a  amada  de  Neuvillette  que  usou  o  crypto- 
nymo  de  Roxane  e  que  a  Cloreste,  cuja  repre- 
sentação Cyrano  impede,  não  foi  exhibida  nesse 
anno  de  1640,  em  que  principia  a  peça.  Mas 
taes  peccados  veniaes  não  chegam  a  constituir 
demérito  numa  peça  que,  ao  contrario  de 
Viriato,  é  intensamente  psychologica  e  poética 
e  que,  portanto,  por  critério  esthetico  deve  ser 
apreciada  e  não  examinada  pela  erudição.  Neste 
segundo  ponto  de  vista  alguma  coisa  haveria 
que  notar  no  Viriato,  cujo  auctor  não  tinha  á 
mão  investigações  criteriosas  como  Rostand  ti- 


42         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

nha  em  França,  depois  que  Gautier,  V.  Four- 
nel  e  Brun  se  haviam  occupado  de  Bergerac. 

Apenas  diremos  que  o  episodio  do  1.®  acto, 
em  que  Braz  Garcia,  ouvindo  um  oleiro  cantar 
versos  seus  estropiadamente,  lhe  quebra  todos 
os  cântaros,  usando  para  com  o  mau  cantador 
dos  mesmos  direitos  de  destruir  a  propriedade 
alheia,  não  é  narrado  por  nenhum  biographo; 
tomou-o  o  sr.  J.  Dantas,  porque  servia  ao  seu 
propósito  de  theatro,  da  tradição  em  que  ha 
muito  anda.  Localiza-se  essa  tradição  em  Per- 
pignan,  nos  tempos  de  Jayme  i  de  Aragão, 
em  que  um  cavalleiro,  auctor  da  canção  estro- 
piada por  um  correeiro,  lhe  destruiu  a  golpes 
de  espada  todos  os  odres  que  elle  estadeava  á 
porta  da  sua  locanda. 

O  Viriato  Trágico  fixou  uma  tendência  do 
auctor,  o  gosto  da  vida  dos  séculos  xvn  e  xvni 
pelo  que  ella  contêm  de  galante  e  donairoso, 
de  precioso — dum  preciosismo  mais  duma  vez 
attribuido  pela  phantasia  do  escriptor.  Braz 
Garcia,  nos  seus  arroubos  amorosos  e  D.  San- 
cho Manuel  ao  definir  a  San  Vito  o  amor,  com 
tintas  tiradas  da  paleta  camoneana,  no  Viriato, 


o  SR.  JULTO  DANTAS  43 

já  indicavam  que  nesse  ponto  de  vista  se  con- 
finaria o  poeta.  Effectivamente,  vendo  em  con- 
juncto  a  sua  productividade  dramática,  nella 
distinguiremos  bem  caracterizada  essa  tendên- 
cia: Viriato  Trágico,  1900;  Á  Ceia  dos  Car- 
deães,  1902;  D.  Beltrão  de  Figueirôa,  1902; 
Eosas  de  todo  o  anno,  1908;  Santa  Inquisi- 
ção, 1910;  O  primeiro  beijo,  1911;  D.  Ramon 
de  Capicliuela,  1911;  Pátria  Portuguesa,  1913; 
8oror  Marianna,  1916.  Duas  outras  tendên- 
cias, posto  que  menos  representadas,  ainda  se 
accusam  nas  obras  do  sr.  J.  Dantas:  o  gosto 
do  periodo  romântico,  da  sua  bohemia  elegan- 
te e  do  plebeismo  chie  da  sua  aristocracia,  na 
Severa,  1901,  e  em  Um  serão  nas  Lar ang ei- 
ras, 1904;  simulada  piedade  e  sympathia  pe- 
los desherdados,  complicada  de  algum  propó- 
sito de  symbolismo  psychologico  em:  Crucifi- 
cados, 1902;  Paço  de  Veiros,  1903;  Mater 
Dolorosa,  1909  e  1023,  1914. 


São  de  valor  muito  desegual  as  obras,  que 


44         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

representam  a  tendeacia  histórica,  sendo  del- 
ias a  principal  a  Ceia  dos  Cardeaes,  delicado 
quadrinho  em  que  três  cardeaes,  fazendo  suas 
confidencias,  contam  a  sua  mais  viva  recorda- 
ção de  amor,  do  amor  que  cada  um  interpre- 
tara e  motivara  a  seu  modo.  Nessa  especifica 
interpretação  da  arte  de  amar  cifra  o  auctor  a 
essencial  diííerença  de  caracter  de  cada  um 
dos  três  povos  correspondentes  á  nacionali- 
dade de  cada  cardeal :  o  amor  aventuroso  e  ca- 
valheiresco dos  hespanhoes;  o  amor  espirituo- 
so, gentil  e  subtil  dos  franceses ;  e  o  amor  sim- 
plicidade, o  amor-sentimento  dos  portugueses. 
Certamente,  é  muito  unilateral  esta  psychologia 
ethnica  e  nenhum  povo  —  seja  o  português,  seja 
o  francês,  seja  o  hespanhol — se  considerará  ple- 
namente representado  no  respectivo  cardeal.  A 
peça  funda-se  em  generalidades  demasiado  ex- 
tensas, para  ter  verdade ;  é  uma  comprehensão 
desses  três  povos  muito  clássica,  muito  tecida 
de  idêas  feitas,  de  presumpções  estabelecidas. 
Mas  a  essa  comprehensão  tradicional  deu  o  sr. 
J.  Dantas  uma  expressão  artística,  delicada  e 
esbelta,  precisa  na  sua  estructura,  com  relevo 


o   SR.  JÚLIO  DANTAS  45 

de  naturalidade  e  fluência  de  linguagem  que 
fizeram  da  Ceia  um  feliz  momento  da  carreira 
litteraria  de  seu  auctor.  O  dialogo  é  espontâ- 
neo, a  phrase  corre  aguda  e  graciosa,  sem  re- 
buscados  eííeitos. 

A  pequena  comedia  D.  Beltrão  de  Figuei- 
rôa  é  um  episodio,  a  graça  dum  logro  feito  a 
um  pretendente  de  certa  dama,  pacifico  e  dado 
a  lyrismos  como  a  pretendida  preferia,  mas 
que  é  levado  a  desempenhar  o  papel  de  espada- 
chim. Nas  Rosas  de  todo  o  ano  conta-se  a  pro- 
tervia  dum  amante,  alludem-se  ligeiramente 
vários  assumptos,  que  por  si  dariam  themas 
a  obras  de  larga  extensão  e,  como  efíeito  final  e 
principal  —  dir-se-ha  que  para  elle  unicamente 
foi  elaborada  a  peça — ,  diz-se  como  uma 
noiva  consegue  um  meio  de  illudir  permanen- 
temente a  promessa,  que  ao  seu  pretendente 
fizera,  de  lhe  dar  a  sua  mão,  quando  na  sua 
jarra  já  não  houvesse  rosas.  E  esse  meio  é 
renovar  sempre  as  rosas  da  sua  jarra  com  as 
do  convento,  em  que  professara  uma  sua 
amiga,  onde  todo  o  anno  havia  rosas. 

A  Santa  Inquisição  não  é  uma  peça  que 


46         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

tenha  por  objecto  o  tristemente  famoso  tribu- 
nal do  Santo  Officio,  é  uma  peça  obcecada- 
mente escripta  contra  esse  tribunal,  porque  a 
dominam  todos  os  preconceitos  vulgares  con- 
tra elle,  as  presumpções  mais  anti-historicas, 
já  rebatidas,  umas  vezes  por  investigações  con- 
cretas, outras  somente  pelo  espirito  da  mais 
serena  imparcialidade.  A  Inquisição  é  odiosa 
porque  nascia  de  sentimentos  que  a  moderna 
consciência  hoje  repudia  e  ao  serviço  delles 
punha  a  sua  complicada  e  sollicita  organiza- 
ção. Esses  sentiçnentos  e  opiniões  eram  prin- 
cipalmente a  intolerância  religiosa,  a  idéa  da 
unidade  de  crença,  a  opinião  de  que  não  po- 
dia haver  no  homem  nenhum  foro  intimo  in- 
transponível, nenhum  rincão  de  consciência 
inviolável.  E  isto  não  pode  o  homem  moderno 
recordar  sem  repulsa,  depois  de  séculos  de  lu- 
ctas  sangrentas.  É  ainda  odiosa  por  empregar 
meios  arbitrários,  vexatórios  e  cruéis — mas 
convém  esclarecer,  que  não  eram  mais  arbi- 
trários, nem  mais  vexatórios,  nem  mais  cruéis 
do  que  os  que  a  justiça  secular  empregava.  E 
ainda  odiosa  porque  mais  duma  vez  funccio- 


o  SR.  JÚLIO  DANTAS  47 

nou  como  tribunal  régio,  servindo  interesses 
temporaes  dos  reis,  sob  a  capa  da  causa  reli- 
giosa. Estas  razões  summariamente  apontadas 
tornam  inacceitavel  perante  a  verdade  histó- 
rica e  a  justiça,  e  ainda  perante  a  verdade  da 
arte,  sua  essencial  condição,  que  um  drama- 
turgo em  pleno  século  xx,  faça  enscenar  uma 
peça,  em  que  a  Inquisição  nada  mais  é  do  que 
um  complexo  organismo  para  roubar  os  bens 
de  particulares  abastados,  pois  a  peça  só  conta 
que  a  Inquisição  dispersou  e  lançou  na  misé- 
ria mais  pungente  a  familia  Conti.  Acção,  com- 
posição e  personagens  tudo  converge  a  esse 
eííeito,  de  exemplificar  os  prejuízos  do  auctor. 
E  é  tão  intencional  esse  propósito  de  promo- 
ver a  indignação  que  a  cada  momento  se  trahe 
em  retoques  de  intensidade,  no  carregar  das 
cores,  no  fazer  sobresahir  excessivamente  a 
expressão  procurada.  O  typo  do  cardeal,  o  dia- 
logo de  Frei  Marcos  com  Izabel  Conti  no  1.^ 
acto,  o  episodio  das  bailarinas,  a  scena  do  jul- 
gamento, a  leviandade  meio  distrahida  com 
que  o  Cardeal  dá  despacho,  tudo  trahe  a  mão 
do  auctor  que  reduz  as  personagens  a  fanto- 


48         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

ches,  a  instrumentos  da  sua  preconcebida  opi- 
nião. O  primeiro  acto,  movimentado,  intenso, 
é  o  desenvolvimento  em  acto  autónomo  do 
que  em  Frei  Luís  de  Sousa  era  simples  epi- 
sodio: a  brusca  partida  da  familia,  alarmada 
pela  chegada  do  chefe,  que  precipitadamente 
quer  sahir  com  os  seus.  O  segundo  acto,  igual- 
mente movimentado,  pittoresco,  vistoso,  osten- 
ta-nos  a  opulenta  Izabel  Conti  do  1.*^  acto, 
reduzida  a  roubar  para  alimentar  os  filhos. 
Estas  bruscas  mudanças  da  fortuna,  não  con- 
tadas, mas  exemplificadas,  demonstradas  em 
episodio,  lembram  a  velha  dramaturgia  ro- 
mântica, quando  ébria  de  liberdade  por  pro- 
testo contra  a  disciplina  das  unidades,  se  en- 
tregou a  todos  os  excessos  de  precipitação  dos 
acontecimentos  e  de  alargamento  do  alcance 
chronologico  das  peças.  O  nosso  Mendes  Leal 
largamente  usou  e  abusou  dessa  liberdade. 
Mais  do  que  uma  peça  de  theatro,  a  Santa 
Inquisição  é  uma  nova  espécie  de  conto;  é  o 
auctor  que  está  nos  bastidores  a  narrar  deter- 
minado conto,  seccionado  nos  seus  principaes 
episódios,  os  quaes  se  representam  ao  vivo. 


o  SR.  JÚLIO  DANTAS  49 

são  vistos  em  vez  de  lidos  ou  ouvidos.  E  uma 
espécie  de  fita  animatografica,  em  que  os  ges- 
tos e  a  expressão  physionomica  se  exaggeram 
como  para  supprir  o  silencio  absoluto  das  per- 
sonagens, vagas  sombras  negras  que  perpas- 
sam no  panno  branco  que  a  objectiva  visa. 
Aqui  o  silencio  não  é  de  voz  corporal,  é  de 
voz  d'alma,  pois  em  nenhuma  personagem 
falia  uma  alma,  um  caracter,  pobres  mane- 
quins recortados  de  vários  livros  de  figurinos 
litt erários.  Elias  são  o  que  lhes  mandam  que 
sejam.  Até  o  Cardeal  Inquisidor,  «sybarita  ele- 
gante e  decrépito,  face  cruel  de  degenerado 
envelhecido  pelo  vicio»,  é  um  velho  e  gasto 
figurino  romântico  dos  tempos  em  que  a  força 
do  subjectivismo  lyrico  dava  aos  escriptores 
uma  muito  Umitada  capacidade  de  se  imper- 
sonalizarem  para  fazer  theatro,  para  crear 
acção  e  animar  personagens.  Este  cardeal,  typo 
de  maldade  impudica,  tão  obcecada  e  cynica 
como  não  existe  na  natureza  humana,  já 
nós  o  tínhamos  em  Portugal,  desde  o  bispo 
do  Arco  de  SanfAnna,  de  Garrett.  Como  os 
velhos  românticos,  que  no  extreme  subjecti- 


50         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

vismo  da  sua  disposição  artistica  não  sabiam 
conceber  senão  os  casos  diametralmente  op- 
postos  e  inteiramente  inverosimeis,  a  pura 
bondade  e  a  pura  maldade,  ^  que  não  existem 
na  natureza  humana,  assim  o  sr.  Júlio  Dantas, 
sacrificando  ainda  a  esse  obsoleto  processo, 
repetiu  aquelle  impeccavel  typo  de  maldade, 
que  nós  já  conhecíamos.  Mas,  convém  accres- 
centar,  os  grandes  artistas  do  romantismo  fran- 
cês nem  sempre  assim  procederam,  e  lembra- 
mo-lo não  para  apontar  o  caracter  de  imitação 
degenerativa  do  romantismo  português,  para 
o  que  não  seria  este  lugar  o  mais  idóneo,  mas 


*  Fallando  de  Herculano,  escrevemos  a  pag.  116  da  nossa  His- 
toria da  Litieratura  Romântica:  «Elle,  como  todos  os  românticos, 
era  tão  incapaz  de  se  impersonalizar  para  nos  representar  uma 
personagem  boa  como  uma  personagem  má.  Como  procedia 
então?  Para  as  figuras  de  caracter  e  de  bondade,  exteriorizava  a 
idéa  que  formava  do  homem  modelo  e  da  mulher  modelo,  idéa 
bem  clara  para  elle,  um  bom  e  um  digno ;  para  as  figuras  de  mal- 
dade voltava  esse  ideal  do  avesso.  Onde  a  personagem  bôa  proce- 
deria de  determinada  forma,  a  má  procederia  da  justamente  inversa. 
É  por  isso  que  os  traidores  e  os  cynicos  de  romantismo  têm  uma 
coherencia  na  maldade  que  os  falsifica,  uma  tenacidade  que  os 
eleva.  Basta  lembrar  Fernando  Affonso  e  o  prelado  Ornellas  do 
Monge.* 


o   SR.  JÚLIO  DANTAS  51 

para  salientar  que  o  sr.  Júlio  Daatas,  assim 
procedendo,  está  com  os  românticos  imitado- 
res, de  mais  escassos  recursos  de  creação. 

Nem  sempre  assim  procederam,  porque  fre- 
quentemente animaram  typos  de  pérfida  mal- 
dade, de  grotesca  fealdade,  mas  deixaram  na 
primeira  uma  janella  de  virtude,  uma  sensibi- 
lidade humana,  por  onde  entrasse  a  brisa  mo- 
ral que  vivificaria  a  personalidade  e  a  conduzi- 
ria ao  remorso,  ao  arrependimento,  que  a  res- 
tituiria á  nossa  estima;  sempre  apresentaram 
essa  fealdade  como  mais  lastimável  que  vitu- 
peravel. 

Diz  criteriosamente  De  Sanctis  que  no 
fundo  a  personagem  de  concepção  romântica 
sempre  tem  uma  antithese  ^.  Os  nossos  român- 
ticos, de  escassa  perspicácia  critica,  ao  faze- 
rem a  importação  dos  processos  litterarios  em 
moda  não  se  aperceberam  desse  delicado  cam- 
biante e  mais  ainda  simplificaram  o  mecanis- 
nisrao  das  personagens.  O  cardeal  inquisidor- 
mór  do  sr.  Júlio  Dantas  é  mais  uma  repetição, 


*    Saggi  Criiici,  2S.a  ed.,  pag.  31,  Nápoles,  i016. 


52         HTTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

SÓ  accrescida  dos  adornos  que  lhe  appôs  o 
bom  gosto  e  a  elegante  phrase  do  escriptor. 

O  Primeiro  beijo  é  um  pequenino  episodio 
dum  velho  amor,  que  renasce  á  beira  dum  tu- 
mulo de  dois  filhos  queridos.  Por  detrás  desse 
episodio  fundamental,  o  beijo  que  dois  velhos 
se  dão,  primeiro  beijo  dum  antigo  amor  cala- 
do durante  toda  a  vida,  combatida  vida  de  ri- 
validades familiares,  adivinha-se  um  emmara- 
nhado  enredo,  que  fica  suspenso  no  vago,  pois 
para  esse  primeiro  beijo  fora  entretida  a  peça. 
Esse  tardio  beijo  lembra  aquelle  beijo  guarda- 
do durante  uma  longa  vida  e  restituído  já  na 
velhice,  quando  os  dois  velhos,  em  que  se 
tornaram  o  moço  que  o  dera  e  a  donzella  que 
o  recebera,  se  encontram  e  se  reconhecem, 
segundo  contou  Guy  de  Maupassant,  no  peque- 
no acto  traduzido  pelo  sr.  Ma3'er  Grarçao  ^. 
Foi  ainda  para  uma  phrase  elegante  —  o  beijo 
é  uma  phrase  de  amor — que  o  sr.  Júlio  Dan- 
tas escreveu  a  sua  peçasinha. 

D.  Ramon  de  Capicliuela  descreve-nos   o 


^    V.  Historia  Antiga,  Lisboa,  1903. 


o  SR.  JULIO  DANTAS  53 

phraseado  fanfarrão,  vivamente  cómico,  dum 
medroso,  é  um  ligeiro  sainete  de  sala. 

Uma  serie  de  quadros  históricos,  publi- 
cados num  jorna]  de  Lisboa,  veio  a  consti- 
tuir o  volume  Pátria  Portuguesa,  louvado 
pelo  Ministério  da  Instrucçao  Publica  e  man- 
dado adoptar  para  premio  das  escolas  pri- 
marias. Surprehende  vivamente  que  ura  mi- 
nistro, por  inculto  que  elle  fosse  e  alheio 
ás  coisas  da  educação,  ordenasse  essa  distri- 
buição pelas  creanças  das  escolas  primarias, 
duma  obra  a  que  faltam  inteiramente  os 
predicados  indispensáveis  para  constituir  lei- 
tura educativa  e  proveitosa  para  creanças  de 
pouco  mais  de  dez  annos.  E  não  o  constitue 
porque  a  sua  linguagem,  em  extremo  sobrecar- 
regada de  archaismos,  não  pode  ser  compre- 
hendida  dos  seus  pequenos  leitores ;  porque  tem 
muita  matéria  inconveniente  para  a  educação 
moral  dessas  mesmas  creanças,  por  lhes  revelar 
formas  da  vida  para  as  quaes  só  a  puberdade 
lhes  chamará  a  attenção  curiosa  e  malévola; 
e  porque  esses  episódios  minimos  da  historia 
pátria    nenhuma   capacidade    educativa    pos- 


54         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

m 


suem.  Fazendo  a  summaria  refutação  da  ca- 
pacidade pedagógica,  que  se  attribuiu  á  Pátria 
Portuguesa,  implicitamente  fizemos  a  sua  ca- 
racterisação  esthetica,  pois  é  por  ella  ser  litte- 
rariamente  como  é  —  façamos  por  emquanto 
uma  qualificação  indiííerente  á  avaliação  — 
que  tão  antl-pedagogica  se  torna.  De  facto,  per- 
guntaremos, se  a  sua  linguagem  é  tão  rebus- 
cada, tão  acintosamente  recamada  de  velhas 
maneiras  de  dizer  que  o  próprio  auctor  julgou 
útil  pospor  á  obra  um  glossário  de  archais- 
mos,  é  ella  comprehensivel  para  intelligencias 
que  ainda  só  possuem  o  vocabulário  dos  usos 
quotidianos?  Para  adultos  esse  acinte  de  eru- 
dição léxicograpliica  grandemente  prejudicaria 
a  intelligencia  da  obra  e  o  gozo  da  emoção,  se 
algum  sentido  intimo  e  alguma  ,emoção  ella 
contivesse.  Mas  não  contem;  essas  narrativas 
são  pequenas  aguarellas,  dum  só  plano,  de 
tintas  esfumadas  e  velhos  tons  inexpressivos, 
sem  longínquas  perspectivas.  De  forma  que  se 
percorre  essa  selva  de  archaismos,  eriçados 
como  lanças  inimigas  do  puro  gozo  esthetico, 
para  desilludidamente  só  encontrar  a  excessiva 


o  SR.   JÚLIO  DANTAS  55 

amplificação,  a  glosa  verbalista  de  episódios 
mais  que  secundários.  Esses  recamos  de  lingua- 
gem antiquada,  esses  retoques  de  thesouros 
intensos,  essa  sobreposição  de  tintas  já  desco- 
radas pelo  tempo  não  chegam  a  produzir  o 
effeito  desejado  pelo  auctor.  Esta  predilecção 
e  a  demora  insistente  em  descrever  superabun- 
dantemente  o  que  com  dois  ou  três  traços  fla- 
grantes e  felizes  de  prompto  se  reproduziria, 
determinaram  esse  andamento  tardo  e  monó- 
tono da  obra.  Não  parte  o  sr.  Júlio  Dantas  da 
observação  e  da  sensação  para  a  imagem  lit- 
teraria,  parte  da  erudição,  de  velhas  imagens 
litterarias  e  do  diccionario,  faz  novas  combi- 
nações de  velhos  e  gastos  elementos: 

«Então,  Afionso  Henriques,  nos  braços  do 
cancelario  e  do  prior,  de  olhos  faúlhando,  a 
barba  eriçada  e  fulva  a  tremer-lhe  no  queixo, 
deitou  as  mãos  ao  seu  perponte  verde  de 
Ruão,  rasgou-o  nas  dianteiras,  de  alto  a  baixo, 
desabrochou  em  repellões  a  aljuba  de  coiro, 
despedaçou  a  camisa  de  bragal,  que  trazia  a 
carão  de  carne,  e  nu  até  á  cintura,  hercúleo, 
medonho,  formidável,  o  torso  felpudo  de  sa- 


56         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

t3nL*o  empastado  de  guedelhas  ruivas,  apontou 
ás  punhadas  no  peito,  perante  o  pasmo  torvo  do 
cardeal,  as  vinte  cicatrizes  de  vinte  combates 
contra  os  inimigos  de  Deus,  os  signaes  de  vin- 
te golpes,  fulgurando,  abrindo  como  traços 
roxos  por  entre  os  pêllos  hirsutos,  os  estigmas 
da  morte  vinte  vezes  afírontada  pela  cruz  do 
Redemptor,  —  e  uivando  como  um  possesso, 
pulando  como  um  animal,  sobre  o  tijolo,  ba- 
tendo com  os  punhos  cerrados  na  arca  do  pró- 
prio peito,  gritava  para  a  sombra  vermelha 
do  legado  do  Papa,  que  se  apagava,  que  se 
sumia  já  entre  os  cónegos  convulsos: 

—  Herege  sou  eu  ?  Herege  sou  eu.  Dom 
cardeal,  assim  miserado  de  feridas  para  dar 
terras  a  Deus?»  (Pag.  17)  Sempre  se  sente  o 
arrastar  da  penna  não  a  accumular  efteitos 
expressivos,  mas  a  juntar  palavras  e  phrases, 
a  retorcer  a  expressão,  a  accrescentar  porme- 
nores supérfluos.  A  nota  maliciosa,  que  prin- 
cipalmente torna  o  livro  inconveniente  para 
leitura  escolar,  derrama- se  por  varias  narrati- 
vas e  exhibe-se  com  especial  relevo  na  Corte 
de  Roma,  em  que  se  conta  como  D.  João  v 


o  SR.  JÚLIO  DANTAS  57 

se  agradara  dum  padre,  seu  funccionario  em 
Roma,  que  soubera  attrahir  as  attenções  admi- 
rativas pela  audácia  de  cortejar  a  formosis- 
sima  amante  dum  cardeal  e  como  depois  o 
castiga  com  a  immediata  sabida  de  Roma  por 
haver  recusado  o  preço  excessivo  que  a  cor- 
tejada  lhe  pedia  por  uma  noite  de  amor.  E 
gosto  pleno  do  sr.  Juho  Dantas,  essa  delibera- 
ção attribuida  a  D.  João  v,  o  rei  magnifico, 
que  tudo  perdoaria,  menos  que  os  seus  diplo- 
matas fizessem  de  pobres  ou  avarentos  e  de 
descortezes  para  o  bello  sexo ;  é  uma  auten- 
tica pointe^  que  poderia  dar  uma  interessante 
anedocta  de  certo  sabor  histórico,  mas  que 
difficilmente  dará  uma  narrativa  patriótica, 
menos  ainda  uma  obra  bella.  Um  brinquedo 
litterario,  sim,  e  isso  é. 

O  Senhor  do  Paul  do  Boquilobo,  que  será 
decerto  a  peça  principal  do  livro,  conta  um 
episodio  cavalheiresco  da  vida  dum  aventu- 
reiro sem  escrúpulos,  que  só  num  sentimento 
timbrava  de  dignidade,  o  amor  pátrio.  Esse 
episodio  é  a  temerária  afíoiteza,  com  que  elle 

Iuma  noite,  em  Sevilha,  num  pateo  de  come- 


58         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

dias,  prohibe  a  representação  duma  peça,  em 
que  se  ridieularisava  o  rei  de  Portugal,  D. 
João  IV,  e  com  que,  calmo  e  erecto  sobre  a 
cadeira,  desafiou  toda  a  assistência,  a  qual 
silenciosa  e  lentamente  se  foi  escoando  para  a 
rua.  A  narrativa  termina  por  uma  agudeza, 
um  dito  engenhoso,  como  é  do  gosto  do  au- 
etor.  Mas  quem  não  vê  neste  episodio  a  dire- 
cta suggestão  do  Cyrano  de  Bergerac^  de  tão 
larga  influencia  sobre  o  escriptor  português, 
daquelle  valente  nasigero  que  impediu  a  re- 
presentação de  Chloreste  ? 

Chamando-se  o  livro  Pátria  Portuguesa,  ti- 
tulo ambicioso,  licito  era  esperar  que  nelle  se 
contivesse  o  que  de  essencialmente  typico  e 
original,  de  nobremente  heróico  contivesse  a 
historia  ou  o  génio  português,  que  fosse  a  os- 
tentação dos  nossos  pergaminhos  heráldicos. 
Assim  não  succedeu.  Pouco  se  ennobrecerá  a 
prosápia  nacional  com  os  novos  titulos,  que 
lhe  adduz  o  sr.  Júlio  Dantas,  escassos  de  inte- 
resse, de  emoção,  de  significado  histórico  ou 
moral,  pequenas  bagatellas  nem  sempre  au- 
thenticas.  De  algumas  personagens  foi  justa- 


o  SR.   JÚLIO  DANTAS  59 

mente  escolher  o  aspecto  de  menos  belleza,  de 
menos  elegância  moral.  Assim  de  Mousinho 
de  Albuquerque,  o  heroe  das  campanhas  da 
Africa  Oriental,  foi  justamente  escolher  o  tris- 
te remate  da  sua  vida,  o  suicídio,  fazendo  ain- 
da uma  pointe  com  o  titulo  do  livro  de  Bour- 
get,  que  Mousinho  comsigo  levava,  C7'uel  Eni- 
gma. Como  a  penna  dum  Amicis  saberia  fazer 
resurgir  em  Mousinho  uma  faulha  heróica, 
que  electrizaria  as  almas  dos  pequenos  leito- 
res e  de  quantos,  adultos  já,  provados  pela 
adversidade,  que  não  estimula  o  heroísmo, 
amam  o  seu  delicioso  Cuor  !  Mas  um  suicidio 
tão  banalmente  contado,  mas  uns  tiros  numa 
eleição  apreciada  não  sem  prejuízo  politico, 
que  são  mais  do  que  pura  reportagem,  do  que 
jornalismo  noticioso  mais  correcto,  animado 
de  seus  pruridos  litterarios?  E  os  Três  Alfe- 
res? Foi  para  nos  contar  a  transferencia  da 
medalha,  piedosa  recordação  de  familia,  e 
destruída  pela  bala  que  matou  o  ultimo  de- 
tentor? Foi  para  nos  fazer  assistir  á  campa- 
nha da  Rússia?  Não  sabemos,  porque  nem  o 
episodio  do  primeiro  plano,  nem  a  perspecti- 


60         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

va  do  fundo  tem  o  relevo  carinhoso,  em  que  o 
artista  de  ordinário  trahe  a  sua  intenção  do- 
minante. Na  essência,  a  narrativa  descreve  um 
caso  de  ternura  filial  e  fraternal,  e  á  idéa  da 
pátria  substitue  a  da  familia,  muito  viva  no 
coração  desses  três  alferes  obscuros. 

Deste  modo,  com  sua  complicada  lingua- 
gem obsoleta  e  sua  esquecida  indumentária, 
com  a  frieza  destas  coisas  mortas,  o  sr.  Júlio 
Dantas  foi  accrescentar  uma  espécie  ao  culti- 
vo serôdio  dum  género  ha  muito  morto  tam- 
bém e,  de  motu  próprio,  incorrer  na  satyra 
pungente  da  Illustre  Casa  de  Ramires.  Para 
acordar  o  romance  histórico  será  necessário 
descobrir  novo  processo,  que  não  encontramos 
na  Pátria  Portuguesa^  do  sr.  Júlio  Dantas. 

No  acto  em  prosa,  Soror  Marianna^  recons- 
tituiu o  escriptor  o  derradeiro  episodio  dos 
amores  da  freira  de  Beja,  Marianna  Alcofora- 
do, com  o  official  do  exercito  francês  que  au- 
xiliava Portugal  na  lucta  contra  Castella.  Após 
a  sua  ultima  entrevista,  o  capitão  vae  sahir  e 
para  sempre;  assistimos  ás  despedidas  e  á  par- 
tida. E  essa  partida  que  é  surprehendida  pelo 


o   SR.  JÚLIO  DANTAS  61 

bispo  de  Beja,  que  ao  longe,  no  seu  coche, 
depois  de  avisado  por  um  anonymo  que  lhe 
enviara  uma  carta  perdida  de  Chamilly,  avi- 
damente espera  e  espreita.  Por  um  cabello, 
Chamilly  teria  escapado  sem  ser  visto  e  a 
peça,  melhor  diríamos,  e  a  trama  que  o  auctor 
architecta  deixaria  de  existir.  Sem  a  carta  per- 
dida e  sem  o  aviso  anonymo,  dois  artifícios 
tão  velhos,  tão  abusivamente  usados  na  litte- 
ratura  dramática,  as  visitas  nocturnas  do  ca- 
pitão ao  convento  teriam  ficado  ignoradas, 
pois  naquella  madrugada  para  sempre  termi- 
navam. Que  tem  erros  graves  perante  a  histo- 
ria ecclesiastica,  já  foi  patenteado  por  pessoas 
de  erudição  especial  nesse  ramo :  o  bispado 
de  Beja  só  foi  creado  em  1770,  portanto  muito 
depois  da  epocha  em  que  decorre  a  peça ;  as 
questões  da  disciplina  interna  dum  convento 
de  freiras  não  eram  da  directa  alçada  do 
bispo  da  diocese,  mas  sim  do  visitador  respe- 
ctivo, que  fazia  inspecções  ordinárias  e  as  ex- 
traordinárias, que  as  emergências  requeressem. 
Litterariamente  é  que  nós  temos,  porem,  que 
observar  a  contextura  da  peça. 


62  LITTERATDRA  CONTEMPORÂNEA 

O  que  o  sr.  Júlio  Dantas  conta  tanto  podia 
ter  occorrido  no  século  xvii  como  noutro  ante- 
rior ou  posterior,  tanto  em  Beja  e  naquelle 
convento  da  Conceição  como  noutra  cidade  e 
noutra  casa  religiosa,  tanto  com  soror  Marian- 
na  Alcoforado  como  com  qualquer  outra  apai- 
xonada freira,  até  com  uma  freira  devassa. 

E  como  o  que  immortalizou  a  freira  de 
Beja  foi  a  sua  auctoria  das  Cartas ,  ainda  não 
escriptas  ao  tempo  da  peça,  daquella  visita  do 
bispo,  a  peça  tanto  podia  ehamar-se  Soror  Ma- 
rianna,  como  soror  Joanna,  o  que  equivale  a 
dizer  que  não  é  a  soror  Marianna,  a  vehemen- 
te  auctora  das  Cartas,  quem  é  a  protagonista 
da  peça.  A  protagonista  é  qualquer  freira  que 
infringisse  a  disciplina  monachal,  que  que- 
brasse o  voto  de  castidade,  na  própria  casa 
de  Deus,  em  que  fizera  esse  voto. 

Pode  bem  o  sr.  Júlio  Dantas  desculpar-se, 
justificar- se  chamando  á  sua  peça  uma  conje- 
ctura ou  livre  interpretação  que  a  nossa  affir- 
mação,  ainda  que  radical  pareça,  fica  de  pé:  não 
encontramos  na  peça  soror  Marianna ;  só  o  seu 
nome  lá  figura:   «Houve,  evidentemente,  um 


o   SR.  JÚLIO  DANTAS  63 

facto  de  amor,  desconhecido  e  vago,  de  que 
as  cinco  Cartas  foram  a  consequência  littera- 
ria.  A  minha  peça  é  apenas  a  dramatização 
conjectural  desse  facto.  Nada  se  sabe  ao  certo. 
Tudo  pode  ser  verdade.  Tudo  pode  ser  men- 
tira. Em  volta  do  fait-divers  de  soror  Marian- 
na,  precisamente  porque  se  ignora  tudo,  são 
legitimas  todas  as  lógicas  de  interpretação». 

Mas  a  freira,  que  a  historia  e  a  litteratura 
conservaram,  não  foi  essa  que  o  sr.  Dantas 
quiz  fazer  resurgir  por  uma  dramatização  con- 
jectural, como  diz,  foi  o  coração  apaixonado, 
consumido  de  saudades,  roido  de  desespero, 
que  escreveu  com  lagrimas  as  cartas.  A  freira, 
que  quebrou  o  voto  de  castidade,  que  abriu  a 
um  amante  a  porta  da  sua  cella,  que  nos  seus 
braços  palpitou  de  amor,  como  muitas  freiras 
e  todas  as  mulheres  do  século,  que  amam  a 
occultas,  em  todos  os  tempos  têm  feito,  que 
presumivelmente  teria  sido  surprehendida  no 
seu  segredo,  que  conjecturalmente  teria  tido 
uma  confidente,  e  a  um  visitador  se  denuncia- 
ria, essa  morreu  para  todo  o  sempre,  tornou- 
se  « desconhecida  e  vaga  > ,  ápagou-s3  nas  ne- 


64         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

voas  dos  tempos  que  felizmente  escondem  o 
facto  único,  commum,  desinteressante.  A  freira 
de  Beja,  do  Convento  da  Conceição,  cuja  me- 
moria perdurou  e  que  zelosamente  conserva- 
mos, essa  surgiu  depois,  foi  a  mulher  saudosa, 
pura  de  amor  carnal,  a  freira  purificada  já  pelo 
soffrimento,  a  pobre  victima  do  inferno  de  amar, 
o  coração  desvairado  de  saudades,  a  intelligen- 
cia  illuminada  pela  dôr  vehemente,  incompor- 
tável, a  própria  personalização  da  dôr,  que 
para  se  exprimir  se  fez  arte.  Não  é  pois  a  mu- 
lher feliz,  a  mulher  ciumenta,  quente  ainda 
dos  beijos  do  amante,  offegando  ainda  da  vo- 
lúpia, não  é  um  corpo  sedento  de  prazeres,  é 
uma  alma  a  sofírer,  uma  consciência  que  em 
seu  mecanismo  recebe  os  impulsos  do  coração 
e  que  com  eloquência  duma  intensidade  inex- 
cedivel  plenamente  se  exprime,  se  confessa 
aos  tempos.  Essa  sim,  essa  não  é  uma  conje- 
ctura, é  uma  existência  real  e  permanente, 
essa  mulher  é  que  é  soror  Marianna  Alcofora- 
do, freira  do  Convento  da  Conceição,  de  Beja, 
essa  é  que  tem  interesse  psychologico,  ó  que 


o  SR.  JÚLIO  DANTAfJ  65 

tem  significado  humano,   essa  é  que  tinha  o 
direito  de  constituir  thema  litterario. 

Mas,  sendo  assim,  por  que  preferiu  o  sr. 
Júlio  Dantas  a  esta  realidade  uma  conjectura, 
que  não  é  de  epocha  nenhuma  assignalada- 
mente,  não  se  refere  a  nenhuma  freira,  que 
merecesse  as  honras  da  immortalidade,  que  ó 
duma  freira  vaga  e  impessoal  pelo  escriptor 
arbitrariamente  baptizada  de  soror  Marianna 
Alcoforado  ?  Por  uma  de  duas  razões :  ou  por- 
que desconheceu  a  antecipação  que  fazia  na 
vida  moral,  na  vida  historico-litteraria  de  Ma- 
rianna, ou  porque,  reconhecendo-a,  verificasse 
também  que  essa  Marianna,  esquecida  de  Cha- 
railJy,  essa  Marianna  aureolada  pelo  soíirimen- 
to,  já  auctora  das  Cartas^  não  tinha  recursos 
Bcenicos.  Prudente  haveria  sido  adaptar  o  seu 
espirito  de  artista  ao  thema  e  não  este  áquel- 
le,  a  não  ser  que  se  obstinasse  em  querer  ex- 
trahir  delle  uma  peça  dramática.  Sim,  se  obs- 
tinasse, porque  o  que  esta  freira,  escriptora 
eminente  sem  o  saber,  possue  como  thema  lit- 
terario não  é  theatro,  não  é  movimento,  não  é 
intriga  activa,  é  lyrismo  impetuoso,  jorrante. 


66         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

Onde  pára  uma  penna  veloz  e  inspirada,  um 
estro  poético  que  queira  dizer-nos  como  penou 
saudades,  como  amou  de  longe  e  já  sem  espe- 
rança a  pobre  freira  abandonada,  por  que 
modo  a  sua  cruel  experiência  a  conduziu  á  ana- 
lyse  tão  funda  do  seu  coração,  como  os  cabei- 
los  lhe  embranqueceram,  como  para  o  mundo 
das  recordações  poéticas  foi  passando  com  o 
tempo,  inimigo  da  permanência  de  estados  vio- 
lentos, essa  paixão  frenética?  Essas  recordações 
tão  bellas  eram  já  por  si  feitas  obras  de  arte, 
porque  eram  o  reviver  os  velhos  tempos  pela 
memoria  da  saudade,  sem  o  prazer  vulgar  que 
08  acompanhou,  sem  a  dôr  cruciante  que  os 
seguira,  prazer  e  dôr  delidos,  velados  bella- 
mente,  o  prazer  porque  não  tem  arte,  a  dôr 
porque,  sem  o  soíírimento  physico,  é  sempre 
uma  obra  de  arte.  Não  foi  sobre  a  recordação, 
sobre  o  devaneio,  que  um  pensador  fundou 
toda  uma  esthetica?  Mas  o  sr.  Júlio  Dantas 
não  é  psychologo,  nem  é  poeta  lyrico;  nos  bo- 
nitos efteitos  scenicos  se  compraz  dilectamen- 
te.  Indumentária,  archaismos,  ditos  agudos, 
um  cravinho  delicado,  um  minuete,  um  órgão 


o  SR.  JÚLIO  DANTAS  67 

de  uncção  religiosa,  uns  clarins  ao  longe,  o 
amor  reduzido  a  prazer  elegante,  prudente- 
mente superficial,  eis  os  materiaes  com  que 
architecta  as  construcções  do  seu  estylo.  Não 
pensa  em  juliodantas^  como  Mareei  Schwob 
disse  de  Meredith,  um  escriptor  duma  cons- 
tituição artistica  tão  pessoal  que  pensava  não 
em  inglês,  sim  em  meredith  ^;  mas  dramati- 
camente compõe  em  juliodantas^  sendo  sem- 
pre previstos  de  repetidos  os  materiaes  da  sua 
construcção.  Conhecidas  as  suas  obras  princi- 
paes,  póde-se  deduzir  uma  formula  geral  den- 
tro da  qual  todas  as  seguintes  mais  ou  menos 
se  comprehendam,  como  succede  frequente- 
mente com  o  romance  camiliano. 

* 

As  sympathias  do  sr.  Júlio  Dantas  pelas 
modas  do  periodo  romântico,  modas  de  ves- 


>    Citado  pelo  sr.  Gonzaloz-Blaijco  no  sèu  livro  Elogio 
de  la  Criticai  Madiid,  1911,  pag.  lOõ. 


68         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

tuario  e  modas  de  caracter,  da  bohemia  ele- 
gante do  plebeísmo  de  certa  aristocracia,  es- 
tão representadas  pelas  duas  peças  Severa  e 
Um  serão  nas  Larangeiras  e  por  alguns  arti- 
gos no  volume  Outros  tempos.  Contamos  estas 
duas  peças  entre  os  melhores  trabalhos  litte- 
rarios  do  sr.  Dantas,  pela  movimentação  va- 
riada, pela  viveza  expedita  do  dialogo  e  pela 
felicidade  com  que  o  escopo,  que  em  cada 
uma  delias  se  propôs,  foi  realizado.  E  se  nos 
lembrarmos  de  que  a  Ceia  dos  Car deães,  já 
por  nós  referida,  e  o  Paço  de  Veiros,  a  que  em 
breve  alludiremos,  são  contemporâneas  dessas 
duas  peças,  concluiremos  que  o  periodo  dos 
annos  de  1901  a  1904  foi  o  de  maior  brilho 
na  carreira  do  eseriptor. 

São  essas  quatro  peças  as  suas  obras  de 
maior  belleza  e  as  que  com  mais  feliz  re- 
levo representam  as  predominantes  feições 
artísticas  do  auctor,  exceptuando  talvez  o 
Paço  de  Veiros,  quanto  a  este  accordo  com 
as  suas  mais  espontâneas  tendências  artísticas, 
porque  nella  vemos  influencias  estranhas,  que 
lhe  dão  esse  cunho  tão  diverso,  que  ostenta. 


o  SR.  JÚLIO  Dantas  69 

A  Severa  e  Um  Serão  nas  Lar ang eiras 
quasi  não  têm  acção,  são  galerias  de  typos, 
que  desfilam,  se  agitam,  entre  si  tecendo  um 
theor  de  vida  igualmente  typico.  O  pequeno 
fio  lógico  de  intriga,  que  une  e  prende  os 
episódios  e  os  diálogos,  era  uma  necessidade 
para  que  se  não  pulverizassem  dispersamente 
esses  quadros  parciais,  que  são  de  facto  o 
objectivo  das  obras.  A  sentimentalidade  cana- 
lha da  vida,  desleixadamente  dissoluta,  de  al- 
guns aristocratas  dos  tempos  românticos,  a 
vida  agitada  duma  meretriz,  meio  idealizada 
pelo  escriptor,  em  obediência  á  corrente  crea- 
da  pelo  gosto  romântico  —  e  com  os  românti- 
cos principalmente  se  encontra  o  sr.  J.  Dantas 
—  ofíer.eciam  quadros  dum  extremo  pittoresco. 
Essa  vida  aparte,  com  sua  moral,  sua  lingua- 
gem, sua  arte,  esse  mundo  diverso  onde  havia 
também  generosidade  e  nobreza,  sinceridade 
de  paixão,  força  de  sentimentos  a  par  das  si- 
tuações mais  perversas,  oííerecia  ao  dramatur- 
go um  interessante  exotismo  social,  como  ao 
biólogo  a  fauna  e  a  flora  duma  escura  caverna 
ainda  não  devassada.  Devassou  o  sr.  Júlio  Dan- 


70         LITTERATUUA  CONTEMPORÂNEA 

tas  esse  esconso  e  trouxe  para  a  tela  litteraria 
ura  thema  novo  entre  nós,  e  não  só  entre  nós. 
A  meretriz  iníima,  das  immundas  viellas, 
raro  entrara  na  litteratura  dramática  ou  no 
romance,  pelo  menos  nunca  com  êxito.  Bal- 
zac  e  Dumas  trataram  a  cortezã  luxuosa  e  rica ; 
Gorki  delia  se  havia  approximado  quando 
perfilara  aquellas  sombras  de  gente,  que  elle 
suggesti vãmente  chamou  os  ex-homens.  O  sr. 
Júlio  Dantas  herdou  do  romantismo  a  dispo- 
sição de  idealizar  a  meretriz,  e,  conduzido  pe- 
las reminiscências  da  bohemia  de  Marialva, 
de  que  se  empapou,  foi  analysar  esse  rincão 
da  vida  de  Lisboa.  Poderá  dizer-se  que  apenas 
desenvolveu  um  thema  que  herdara  já  elabo- 
rado, porque  decorrera,  fora  uma  serie  de 
factos  de  muitos  presenceada ;  mas  foi  o 
sr.  Dantas  quem  creou  esse  thema,  quem  ani- 
mou esse  typo  característico  e  sympathico  na 
sua  devassidão,  essa  obra  é  sua  e  no  género 
é  obra  de  real  talento,  esse  dialogo  em  ca- 
lão, sempre  tão  vivo,  tão  intenso,  tão  bem 
esmaltado  de  agudezas  pittorescas.  Cremos 
que  essa  obra  será  talvez  a  que  mais  perdu- 


o   SR.   JULIO  DANTAS  71 

rara,  dentre  a  sua  bagagem  dramática,  por- 
que é  a  que  fere  uma  nota  mais  original. 
Para  esse  êxito  contribuirá  de  certo  a  cir- 
eumstancia  de  ser  o  assumpto  de  escassos 
recursos,  ou  melhor  de  fortes  recursos  prom- 
ptamente  esgotáveis;  não  será  fácil  ir  buscar 
individualidades  originaes,  casos  muito  va- 
riados de  psychologia  á  vida  moral,  que  se 
vive  nas  viellas  das  meretrizes.  Mas  como  ha 
uma  curiosidade  universal  e  como  o  bello  lit- 
terario  reside  sempre  onde  estiver  a  origina- 
lidade e  a  emoção,  o  sr.  Dantas,  sendo  o  pri- 
meiro e  tendo  sido  feliz,  trouxe  um  exotismo 
curioso  e  bello  para  a  arte  litteraria. 

Reduzamos  essa  boçal  sentimentalidade 
canalha  dos  fadistas  ao  subtil  cynismo  duma 
camada  aristocrática ;  substituamos  ao  calão 
o  dizer  elegante,  rebuscado,  finamente  inten- 
cional; ás  grosseiras  disputas  um  tiroteio  de 
sarcasmos  galantes,  que  ofíendem  sem  dar  ao 
adversário  razão  para  se  queixar;  á  exquisita 
morai  do  prostíbulo,  extravagante  flor  de  pân- 
tano, as  conveniências  postiças,  os  preconceitos 
fingidos,   o   snobismo ;   vistamos   as  persona- 


72         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

gens  com  requinte  de  luxo  e  teremos  um  Se- 
rão nas  Lar  aligeiras.  A  mesma  composição 
lassa,  episódios,  quadros,  typos,  diálogos  cara- 
cterísticos tenuemente  ligados  por  um  fio  de 
intriga  ligeira ;  a  mesma  movimentação  inces- 
sante. Essas  duas  obras  de  arte  apresentam-se 
como  paraphrases  de  dois  themas  feitos,  de 
duas  feições  da  sociedade  romântica,  portan- 
to legitimamente  encorporaveis  na  tendência 
histórica  da  sua  obra,  de  que  já  falíamos, 
apenas  com  maior  approximação  chronologica 
da  nossa  epocha. 

Mas,  como  já  expuzemos,  não  iremos  in- 
vestigar no  rigor  histórico  dessas  peças,  se  o 
Marialva,  a  Severa,  o  Conde,  do  Serão,  que  é 
Garrett,  estão  representados  fielmente,  porque 
quantas  infracções  veniaes  o  escriptor  prati- 
casse apagavam-se  perante  a  originalidade  da 
sua  creação.  Diremos  também  do  Serão,  como 
da  Severa,  que  o  seu  assumpto  facilmente 
se  esgota.  E  um  assumpto  suggestivo,  mas 
sem  fundo,  é  uma  deliciosa  superfície,  que 
uma  vez  percorrida  com  talento  nada  mais 
guai'da. . . 


o  SR.  JÚLIO  DANTAS  73 


*         * 

Já  não  podemos  prestar  o  mesmo  applauso  a 
todas  as  obras  que  tratam  assumptos  da  actua- 
lidade. Crucificados^  Mater  Dolorosa  e  1023 
reproduzem  a  vulgar  vida  quotidiana,  por  uma 
copia  servil,  em  que  não  ha  elevação,  não  ha 
arte,  ha  uma  pretensa  fidelidade  photographica 
de  repórter  e  se  alguma  emoção  nos  produzem 
não  o  fazem  por  sua  belleza,  mas  por  sympa- 
thia,  aquella  piedade  que  nos  confrange  o  co- 
ração a  cada  passo  nas  ruas  quando  entreve- 
mos a  negra  miséria,  os  soíírimentos  duma 
creança  maltratada,  as  prepotências  dum  ma- 
rido brutal  em  lar  onde  falta  o  pão  e  sobram 
os  ralhos.  Não  é  sentimento  artístico,  é  con- 
frangimento,  quasi  dor  physica.  O  Reposteiro 
VerdBy  se  estivéssemos  em  presença  dum  es- 
criptor  que  não  fosse  um  homem  quasi  moço, 
como  o  sr.  J.  Dantas,  chamar-lhe-iamos  pre- 
nuncio da  decadência  artística,  tanto  se  aíFasta 
essa  peça  da  sinceridade  artística ;  é  apenas 


74         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

theatro  animatographico,  com  seu  maravilho- 
so movimentado,  seu  imprevisto  effeito  final, 
seu  seenario  opulento  e  variado.  Não  ha  nessa 
peça  vida  interior,  ha  movimento,  peripécias ; 
não  é  uma  representação  para  o  espirito,  é 
uma  narrativa  para  os  olhos  i. 

O  Paço  de  Veiros  é  a  dramatização  habi- 
lidosa duma  idéa,  a  da  hereditariedade,  forma 
moderna  da  velha  fatalidade;  esta  já  appa- 
rece  nos  Crucificados,  mas  sem  relevo  e  su- 
balternizada pela  mediocridade  da  acção  e 
das  personagens.  Pela  data,  o  Paço  de  Veiros 
é  próximo  vizinho  da  Ceia,  da  Semra  e  do 
Serão  nas  Larangeiras,  que  assignalam  o 
mais  f eHz  momento  da  actividade  litteraria  do 
sr.  Dantas.  Como  exemplo  dos  dotes  de  ensce- 
nador  do  sr.  J.  Dantas,  o  Paço  de  Veiros  é 
uma  demonstração  feUz.  Não  lhe  peçamos 
verdade  palpável  e  vejamos  nesse  Paço  de 


1  Estava  jâ  eâcripta  esta  passagem  e  o  conteúdo  deste 
artigo  era  já  conhecido  de  alguns  amigos,  quando  apparêceu 
nas  ruas  o  cartaz  a  annunciar  a  adaptação  da  peça  do  sr.  J. 
Dantas,  Reposteiro  Verde,  ao  animatographo. 


o   SR.  JULIO  DANTAS  75 

Veiros^  na  apparencia  tão  divorciado  das  mais 
intimas  tendências  do  escriptor,  apenas  a  rea- 
lização dramática  duma  concepção  subjectiva, 
á  Ibsen.  Nesse  aspecto,  o  Paço  de  Veiros  re- 
presenta uma  afíirmação  original  no  moderno 
theatro  português. 

Uma  densa  atmosphera  de  trágica  fatali- 
dade enche  a  peça;  sombras,  receios,  resurrei- 
ções,  espectros  dominam  os  espiritos.  Christo- 
vam  cegou,  soífrendo  a  punição  das  culpas 
do  pae ;  D.  Diogo  e  Dores,  pae  e  filha,  vivem 
moralmente  muito  distanciados  por  um  abysmo 
de  mysterio ;  D.  Diogo  recusa-se  a  contribuir 
para  a  pensão  dum  estudante  de  pintura  no 
estrangeiro,  porque  este,  sendo  filho  dum 
ladrão,  haveria  de  roubar ;  o  mesmo  ama  a  D. 
Miguel  porque  nelle  vê  a  cada  passo  o  retrato 
physico  e  moral  do  pae;  Dores  não  casará 
porque,  casando,  será  infiel,  atraiçoará  seu 
marido  como  sua  mãe  e  avós,  todas  formosas 
e  muito  semelhantes,  uma  após  outra,  atrai- 
çoaram ;  e  Dores,  desesperando  de  se  fazer 
acreditar,  suicida-se  como  seu  tio  Frei  Antó- 
nio de  Jesus,  com  o  mesmo  cordão  do  habito, 


76         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

com  que  eile  se  estrangulara,  pela  mesma  dôr 
que  o  matara.  A  tyrannia  inexorável  dos  mor- 
tos, exemplificada  no  entrecho  e  proclamada 
nos  diálogos,  domina  a  peça  desconsoladora- 
mente,  como  se  o  escriptor  tivesse  querido  fa- 
zer uma  exaggerada  paraphrase  dos  Espectros^ 
de  Ibsen. 

D.  Diogo,  com  suas  obsessões,  phobias  e 
idéas  fixas,  é  evidentemente  uni  doente,  mas 
que  o  propósito  do  Paço  de  Veiros  não  foi  re- 
constituir uma  analogia  espiritual  mostra-o  a 
emmaranhada  rede  de  factos  que  explicam  e 
justificam  essa  anomalia,  que  dão  razão  ao  seu 
perfilhar  da  fatalidade  do  atavismo.  Nem  von- 
tade, nem  educação  e  autoeducação,  nem  sug- 
gestão  parecem  ao  auctor  meios  proficuos  de 
attenuar  essa  fatalidade. 

O  fundo  doutrinário  do  Paço  -de  Veiros 
encerra,  pois,  falsidade  e  contradição,  mas  a 
superfície  scenica  em  que  se  ostenta  é  de  fe- 
liz eífeito  e  revela  uma  faceta  original  por  ser 
única  —  Os  Crucificados  são  apenas  um  es- 
boço— no  conjuncto  das  suas  obras  de  theatro: 
a  dramatização  intelli gente   duma  concepção 


o  SR.  JÚLIO  DANTAS  77 

subjectiva.  A  concepção  não  é  do  sr.  Júlio 
Dantas,  chamaraos-lhe  subjectiva,  porque  no 
arbitrário  subjectivismo  reside  ainda  toda  a 
matéria  que  respeita  á  hereditariedade;  do 
sr.  Júlio  Dantas  é  a  hábil  dramatização. 

*      * 

Bosquejámos  a  evolução  artística  do  sr. 
Júlio  Dantas  e  caracterizámos  com  demora  as 
suas  mais  salientes  phases,  e  agora,  chegados 
ao  fim  do  nosso  ensaio  critico,  poderemos  ti- 
rar a  conclusão  de  que  este  escriptor  tem  sido 
grandemente  prejudicado  pelas  facilidades  do 
seu  talento  prompto,  da  sua  predilecção  pela 
galantaria,  pela  superficialidade  gentil,  pelos 
aspectos  elegantes,  por  aquella  face  exterioris- 
sima  da  vida,  que  a  hypocrisia  social  cria, 
mas  que,  longe  de  caracterizar  as  almas  e  de 
as  individualizar,  as  disfarça  e  confunde.  In- 
dumentária das  almas,  dos  corpos  e  das  coi- 
sas é  quanto  na  sua  obra  se  contém,  obra  que 


78         LITTERATURA  CONTEMPORÂNEA 

a  emoção  intensa  não  vivifica,  que  não  é  po- 
voada de  caracteres  autónomos,  abalada  de 
paixões,  mas  só  movimentada  de  joguetes  da 
moda  ou  do  instincto,  da  vaidade  ou  do  li- 
geiro amor-proprio,  fantoches  bem  vestidos  e 
bem  pintados,  que  a  occultas  a  sua  mão  vae 
conduzindo  em  passo  cadenceado  e  reve- 
rente, a  quem  a  sua  voz  vae  segredando, 
como  o  ponto  aos  actores,  as  suas  agude- 
zas subtis.  Que  variedade  de  temperamentos 
litterarios  nós  já  temos  analysado  na  curta 
série,  apenas  sete  artigos,  dos  Estudos  de  LU- 
teratura  Contemporânea/  Poucos  porém  se 
opporão  tão  vivamente  como  o  do  sr.  Júlio 
Dantas  e  o  do  sr.  Anthero  de  Figueiredo. 
E  d'essa  opposição  espiritual  um  indicio  seguro 
a  controvérsia  que  os  dois  artistas  abriram 
sobre  o  amor  e  as  feias. 

As  ultimas  obras  do  feliz  auctor  da  Ceia 
dos  Car deães,  do  Serão  nas  Larang eiras,  da 
Severa  e  do  Paço  de  Veiros,  têm  sido  forma- 
das pela  recopilação  de  pequenos  escriptos, 
improvisos  ligeiros  da  sua  facilidade  em  que 
vae  dispendendo  o  seu  engenho,  com  sacrifi- 


o   SR.  JÚLIO  DANTAS  79 

cio  de  obras  de  maior  vulto  ^.  E  que  também 
este  escriptor  é  victima  da  escassa  cultura  do 
publico,  que  concede  o  triumpho  e  nunca 
mais  exige  novos  titulos  que  o  legitimem,  e 
da  carência  duma  critica  honesta  como  um 
sacerdócio. 


*  Referimo-nos  a  Figuras  de  hontem  e  de  hoje,  Ao  ouvido 
de  MJ^  X,  O  Amor  em  Portugal  no  século  XVIII,  Mulheres,  Elles 
e  Elias  e  Espadas  e  Rosas. 


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