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4
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>
M. MARQUES DE BARROS
Sitteratura
dos Negros
Contos, Cantigas e Parábolas
(SEPARATA DA "Tribuna,,)
LISBOA
Typographia do Commercio
T. do Sacramento, ao Carmo, 3 a 7
19OO
¥
~PéO}z
3
\
-Jl
A noiva da serpente
(conto mandinga)
Ao encantador contista
d' O» meus Amores.
sira-iiÁ dJoDÓ-tA
am-din!
I — I AYIA nas terras dos Mandingas
* -*■ uma bonita aldeia, a qual com o
rumor e bulício da sua numerosa popu-
lação animava as clareiras de uma im-
mensa floresta.
Ainda hoje, para as bandas do sul e
não muito longe d'esse Jogar, se encon-
tra uma praia cujas areias reflectem o
sol do meio dia como um grande incên-
dio : e uma fila de blocos de basaltbo par-
tidos, tombados, ou suspensos no ar, cin-
ge em hemyciclo essa estancia povoada
de espíritos encantados, de medos, e de
pbantasmas.
Do outro lado, ao norte, onde os bao.
bás, os cipós, e as pandanas terminam
com os seus massiços de verdura, des-
dobram- se, até onde a vista pode alcan-
çar, extensas pradarias mosqueadas de
garças brancas, de rebanhos, de mergu-
lhões, de flamingos.
E a uma distancia de cincoenta arre-
messos de lança, destaca -se no horison-
te, como um gigantesco ramalhete, um
bosque de tamareiras, de fetos arbóreos,
e de festões de lianas, a cuja sombra umas
nascentes de abundantes aguas se ouvem
cantarolar no meio de pedregulhos ro-
liços e esverdeados.
Tudo isto ainda se lá encontra. E
esse manancial chamava-se a fonte das
Ginas, por ser a fonte onde as raparigas
da aldeia, em costume do Faraizo, to-
mavam o seu banho desde o pôr do sol,
até as horas tépidas dos fogos fátuos,
das estrellas fugazes, e das revoadas dos
pyrilampos.
N'uma das numerosas casas de que
era formada essa interessante povoação
de bambu, com os seus tectos em forma
funil, que ao longe se podia tomar por
um agrupamento de colmeias, ou cidade
de castores — morava uma pequena fa-
mília de fidalga linhagem, que se com-
punha apenas de mãe — Fátma e de suas
filhas Cumba e Sira, pobres creanças,
que haviam perdido seu pae na sangui-
nosa guerra de Firdú.
Fátma, boa mulher, mas muko doidi-
nha pelas suas filhas, trazi-as sempre
muito lavadas, muito lustrosas, e enfei.
tadinhas de braceletes de oiro nos pul-
sos, e de argolinhas de prata aos jés ;
e á cintura um par de cintos de missan-
ga, e preza aos cintos uma campainha
de reclamo. (*)
Era de ver comi quanta graça essas
esveltas negrinhas, fazendo pouco das
zumbaias dos rapazes, furavam aquellas
ruas tortas e esconças, mais dengosas e
flexíveis que duas gatas em noites de
luar. — Diabretes catitas e impagáveis
eram ellas na verdade !
Havia, contudo entre ambas diferen-
ças notáveis de caracter, de génio e de
instinctos. — Cumba, que era das duas
irmãs a mais velha, adorava sua mãe:
os amores de Sira eram todos sobre-
naturaes ; e uma liga de cascavéis a
distinguia de todas as dançarinas, como
a dançarina incomparável.
Cumba, de seu natural ladina e bis-
bilhoteira, passava tempos esquecidos
sentada aos pés da mãe, a quem contava
tudo o que sabia ou lhe vinha á imagi-
(#) «Bissa-Amadi é uma bonita
aldeia que conta mais de dois mil habitan-
tes, quasi todos ricos, o que se conhece
pelas manilhas de prata e oiro de que usam
as mulheres tanto nas pernas como nos
braços.»— (J. M. de Souza Monteiro, Costu-
mes da Guiné, no Panorama).
nação... as suas corridas pelos campos
floridos; os seus sustos, ao ver o com-
bate dos touros, quando rapavam a ter-
ra, e jogavam as armas ao ar ! — outras
vezes sahia-se com historietas, ou então
cantava-lhe as proezas guerreiras do pae
ou de Alen Cóe, ou as famosas cantigas
de Mamadebá ou de Fatandin.
Sira, essa então, quando podia, furta-
va-se á companhia de uma e outra para
amassar «bolos azinos de farinha crua
e hydromel» : e punha sempre o maior
cuidado em occultar o destino dos taes
«bolos sagrados».
Mas a irmã sempre acabou por se re-
solver a espreita-la. — Até que um dia,
como estivesse atraz de uma porta do
quintal, notou que Sira, tendo preparado
as suas farinhas e seus bolos, acondicio-
nou-os com uns passes n'uraa condeci-
nha de rota, bordada a canris e sarapin-
tada de sandaraca: depois, espiou em
roda; pegou na condecinha que levou á
cabeça, e sahindo do quintal em direcção
á praia, esgueirou se na floresta.
Cumba não perdeu de vista sua irmã :
e cosida com a sombra, de arvore em ar-
vore, de mouta em mouta, e aos pulos
como uma loba, ora agachando Be, ora
soerguendo se nos bicos dos pés — com
a voz estrangulada e ouvido á escuta —
seguiu a visionaria, indo-lhe no encalço
até á borda do mar, onde, de um salto, se
escondeu no esconço de um penedo mais
próximo.
Sira, julgando-se só, continuou no
seu caminho até á linha d'agua, onde a
mareta lhe vinha beijar as suas bragui-
nhas de prata.
Depois, tendo com a sua vista pene-
trante explorado o grande mar, curvou-
se, e fez sobre a areia no vos passes, sa-
cudindo os dedos aos quatro ventos. E
em seguida com a sua voz de flauta can-
tou assim:
9u djane* aa-ló ò
9U djaae* na madje
mumen tà
Sae das aguas
rei de mar!
Sae das ondas
meu amor!
Aqui trago
os teus bolos
de farinha e mel.
Sae das aguas,
sae das ondas
rei de mar!
Fez-se um extranho movimento nas
aguas!... E junto á praia exondou
uma immensa cobra, cuja cabeça estava
coberta de conchas e de sargaços.
Era a serpente do mar.
Cumba — mal viu o grande crfeitiço» —
figiu, correndo direito a casa, onde entrou
8
num arremeço, como uma pomba espa-
vorida.
—Que tens tu filha?!
— Seitánof Seitánof . . .
— Mas que é isso? meu amorsinho?
Perguntava a mãe sobresaltada.
--Seitáno! Seitánof. . .
Que tinha visto Satanaz.
Ella coitada, nem podia falar.
A pobre mãe, com o fim de pôr a
sua estremecida filha ao abrigo de uma
imminente desgraça, mandou chamar o
mais afamado «monteador» d'aquellas
terras para lhe montear o grande feitiço
das aguas.
Veiu o monteador, e antes de par-
tir, carrega a sua espingarda com um
par de «planquetas»: cinge a sua espa-
da, e marcha em companhia de Cumba,
que o conduziu até as ultimas cortinas
do arvoredo, onde se deixou ficar de
sentinella.
Cumba, tendo chegado á beira-mar,
afinou nesta cantiga que a sua irmã tão
amorosamente sabia cantar:
ani djanc* sa-lé ò
ani djanca na niAdJe
LtÁ!
Sae das aguas
rei de mar!
Sae das ondas
meu amor!
Aqui trago
os teus bolos
de farinha e mel.
Sae das aguas,
sae das ondas,
rei de mar !
A serpente suppondo ser aquella voz
a voz de Sira, tão linda e aflautada, as-
somou a sua enorme cabeça á flor das
aguas, varando- a ao mesmo tempo uma
baila que partiu da floresta : mortal-
mente ferida, contorce-se ; enrosca se,
e desenrosca-se : e espadanando o mar
com as barbatanas, espira, entendida no
areal como um enorme tronco, que as
tempestades tivessem arrojado á praia.
N'essa mesma tarde, Sira, que tinha
ido banhar-se á fonte das Grinas, e ao
campo fazer um rosário de flores de ne-
nuphár, pareceu-lhe que o sol se punha
mais vermelho n'esse dia, e sentiu cahir-
lhe no coração uma gota de sangue ou
um pingo de lagrima.
De regresso a casa, sentou-se n'uma
esteira de rota para comer a sua refeição
ãa tarde, quando uma galinha que per-
to acompanhava o seu bando de pintai-
nhos, chegou-se para ella com modos
mysteriosos, e lhe disse :
— S^e deres, Sira, boccado que farte
aos meus filhinhos hei-de te contar um
segredo, que has-de prometter guardar.
10
Sira espalhou duas mã-cheias de ar-
roz ao meio da casa, e prometteu guar-
dar esse segredo.
Então a galinha mãe lhe fez saber, que
a. «vianda» da sua ceia, era de carne da
serpente encantada.
Depressa comprehendeu a triste cre an-
ca que tinha sido trahida por sua irmã.
E não querendo mais ouvir, levanta-se;
arranca a sua campainha de reclamo ; ti-
ra, e arremessa para longe as suas ar-
golinha s de oiro e prata : a sua liga de
cascavéis, desatou-a ; rompeu e quebrou
a um e um os seus cintos de missanga;
e, pegando em dois paosinhos que batia
um no outro, deu voltas á casa — cho-
rando a sua virgindade com a cabeça
pulvilhada de cinza.
A mãe, toda afflicta, tentou uma con-
ciliação com a filha, e chamando-a para
unto de si, dizia :
slra-ná, tljonò-lá,
om-dln!
slra-ná, djonó-tá,
oní-dln
Sira minha filha,
anda cá !
Ramos de coral,
contas de azeviche
toma lá.
Lenços de — Hollanda,
guizos de prata
olha lá !
11
A estes engodos e carinhos da mãe,
Sira muito «resentida» respondia «sec-
camente» sahindo de casa em direcção
ao mar:
tá dlh cu mb a barln djaa,
«Ira bit* djonibò lá,
na eulaadjan ó sln cuauni !
«A Cumba os teus dons,
«minha mãe :
• á tua fnvorita,
«e irmã cruel !»
que os biinquedos meus
são agora,
minha mãe,
os coraes e as pérolas
do fundo do mar ! . .
«ou o abraço
«dos peixes e das serpentes !»
Despovoou se toda a aldeia para acom-
panhar a infeliz Sira, e levando a cabe-
ça coroada de campainhas, entoaram a
toque de palmas e tambores este hymno
de consagração
í.° Coro
Sira a bel la !
Sira a dançarina !
Tinha o seu amante,
tinha o seu amor,
tinha o seu encanto
nas ondas do mar.
2.° Coro
Vae ter a sua «tumba»
no ventre do mar !
12
Todos
Vae ter a sua tumba
no ventre do mar !
Por cima (Taquella extraordinária or-
chestra de vozes e instrumentos, que re-
percutiam na floresta á maneira de tro
voes, ouviam- se, cortantes como espadas,
os gritos da mãe.
Não era já voz humana aquella...
era o ulular da leoa a quem roubaram os
seus cachorros.
E aquelle povo immenso, que a um
tempo cantava e chorava, ou sacudia a
6ua coroa de campainhas, cobriu as ri-
banceiras do mar junto á praia dos en-
cantamentos, para onde Sira avançou com
uns passos firmes, entrando n'agua afé
á cintura... até aos peitos... até que
•uma onda do alto, tocada por um tur-
bilhão de vento, a veiu cobrir com um
largo veu de espuma e prata. . . e nin-
guém mais a viu !
E a mãe, louca de dor, por muito tem-
po correu jis ruas da aldeia cantando :
slra-uá, dJonó-IA
am-dln !
«Sira, minha filha,
anda cá». . .
^&L
-^C5 ■ \f ■ — 1^="*"
II
ti conto do vaqueiro de Ipiches
«O povo é o mesmo em
toda a parte.» (Dr. T. C.)
| | conto alemtejano da «infeliz des-
^^ graçada», que o sr. Trindade Coe-
lho publicou em o numero 12 de A Tri-
buna, trouxe-nos à memoria três «his-
torias» (lá chamam historias aos contos)
que ha cerca de trinta e cinco annos ou-
vimos contar nas terras d' Africa aos pre-
tos. E como nessas historias se encontram
tantos e tão surprehendentes pontos de
semelhança e de concordância com va-
rias passagens do conto alemtejano, pa-
receu-nos, logo á primeira leitura, ser
este o resumo das três historias africa-
nas a que nos referimos; ou que estas
ultimas são o desdobramento do conto
«a infeliz desgraçada».
Uma de duas: ou colónias oriundas
14
de Portugal levaram aos sertões d 'Afri-
ca o conto de Briches, ou foram os pre-
tos que o trouxeram a Portugal desdo-
brado em três contos distinctos, os quaes
mais tarde foram enramalhetados em
um conto único.
Ora tendo o sr. Trindade Coelho at-
tribuido cerca de 400 annos ao con-
to do vaqueiro de Briches, sobre o>
qual projectou a clara luz do seu en-
tendimento — cae por inconsistente a by-
pothese primeira, por coincidir essa da-
ta memorável com a época das longín-
quas navegações e conquistas, em que os
portuguezes não entendiam a lingua dos
pretos, e nem os pretos o portuguez;—
e nem que entendessem — não é crivei
nem de suppôr que entre uns e outros
houvesse tão estreitas relações de intimi-
dade que «o branco» — desbaratando o
seu tempo, se desse á paciência de lhe
contar historias.
Por outro lado, como a escravatura
importasse um incalculável numero de
indígenas d'Africa, não seria temerário
pensar que os pretos, excellentes con-
tistas que são, — por habito ou por ten-
dência natural, espalhassem a plenas
mãos o ouro precioso da sua litteratura
peregrina, para dulcificar a via dolorosa
da sua nova existência, contando histo-
rias da sua terra.
E se ainda não é admissível esta se-
^unda bypothese, ent&u, será neccssa-
:»o concordar que as Musas, que n&o
padecem de preconceitos de escola, ins-
piraram com igual carinho e amor o
mesmo ou os mesmos themas a dois cé-
rebros de idênticas faculdades, posto
<jue differenciados na encadernação. As*
sim, teríamos de acceitar como impu-
gnáveis aquellas sentenciosas palavras
com que encimámos este artigo, o «po-
vo é o mesmo em toda a parte» e pe-
rante as quaes devem oscillar nos seus
alicerces as tbeorias hypotheticas das dif-
ferenças chamadas «fundamentaes» nas
diversas tribus da mesma familia huma-
na, sustentadas por aquelles que preten-
dem medir a envergadura das faculda-
des do espirito com o diâmetro de um
elemento piloso, com a gamma das co-
res do pygmento, com a posição das or-
bitas, ou com o angulo basilar.
A benevolência dos leitores dos «as-
sumptos africanos», leval-os-á porven-
tura a perguntarem, quaes possam ser
es pontos de semelhança entre o conto
alemtejano de Briches de Serpa... no
hemispherio norte, e qnaesquer histo-
rias africanas no hemispherio sul...
mais abaixo.
A nossa resposta cifra se em duaw pa-
lavras.
Como no conto da infeliz princeza, te-
mos na «historia da dona feiticeira» um
1G
Sida o qual fugindo da avó que apoz
d'elle corria, atirava de quando era
quando, e nas situações mais criticas,
com um carvão que se interpunha e
transformava, umas vezes n'uma pare-
de, outras em uma mouta de espinhei-
ros, n'uma columna de fumo, ou n'um
lago, e n'uma palmeira.
N'uraa outra historia também appare-
ce um cavallo, mas com o seu cavaliei-
ro, paladino de lei e estrénuo defensor
das damas (!) A convite dos pães de
uma encantadora menina que casou —
como a infeliz princeza — com um phan-
(asma de homem, este cavalleiro, de-
pois de ter explorado meio mundo e
afrontado todos os ares e ventos, entrou
n'uma caverna onde encontrou a dama
que procurava, e a unhas de cavallo,
fugiu com ella dos ataques de uma hy-
dra em que se tinha transformado o ho-
mem phantasma, que por fim matou a
golpes de durindana.
Simplesmente bello, extraordinário,
surprehendente ! . . .
Temos mais.
No conto do vaqueiro, vemos uma
princeza a «firmar no chão» a lingua do
seu cavallo cardano, a conselho do mes-
mo cavallo que em defesa d'ella se dei-
xa matar. — N'uma historia das «meni-
nas do pote)) é uma boa velha mephis-
tophelica, que offerece de uma ve
17
três ovos a uma doniella sua pro-
tegida, a qual, ia em procura de um po-
te de agua ás terras de Sanha, recom-
mendando-lhe que não voltasse o rosto,
de cada vez que atirasse um para trai
das costas. A donzella assim o fez ; e
quando arremessou o ultimo ovo viu- se
de repente n'uma «grande casa» cerca-
da de todas as commodidades possíveis
n'aquella8 terras. Tal qual a infeliz prin-
eeza que encontrou, por encantamento,
uma torre de refugio.
Mais tarde contaremos na sua inte-
gra, estas «historias», agora apenas es-
boçadas, pondo o máximo cuidado em
conservar- lhe a forma, o tom, o estylo
e a cor local, evitando quanto possivel,
o rbythmo, quasi bíblico, com o seu in-
terminável autem genuit dos factos pe-
riodicamente repetidos, que apezar d'is-
80 não cançam e melhor se fixam na me-
moria.
Cumpre-nos dizer finalmente, que a
maneira como os pretos contam as suas
historias é verdadeiramente typica e ori-
ginal.
Imaginem os leitores, uma contista (em
regra são as mulheres) que fazendo gi-
rar entre os dedos o seu fuso, começa
em tom compassado uma historia, pelas
palavras eacramentaes, Era, era... A
contista espera então, que os ouvintes
lhe concedam licença, e dêem provas de
18
confiança com esfoutras palavras egual-
mente consagradas : Era ba certo, o que
traduzido em portuguez quer dizer: Era
uma verdadeira historia.
Concedida a palavra a contista dá
principio, sem pose, á sua narração sem*
pre em linha recta, sem divagações,
sem ornatos, a secco, até final; e apenas
se permitte fazer descripções como par-
te obrigada, e quando as faz é sempre
d'am traço, como uma pincelada de Apel-
les, ou com dois e três traços como uma
pennada de La Fontaine. — E, como quem
tem plena confiança no critério dos seus
ouvintes, não faz commentarios, nem tira
antes ou depois a moralidade do caso
narrado. — Em compensação, os ouvin-
tes, sem nunca interromperem a contista,
tomam a liberdade de fazer, uma vez
ou outra, os seus apartes, por gestos,
por exclamações de approvação ou de cen-
sura, por interjeições de admiração e de
espanto; por palavras ou pbrases curtas
que muitas vezes valem um discurso.
As historias entre os Mandingas e
Biafadas são contadas com certo appara-
to com cantigas, danças e orchestração
de palmas, e uma vez ouvidas nunca
mais esquecem. Algumas são um verda-
deiro primor de forma e de imaginação
oriental, e as quaes nós por muito que
nos esforçássemos não poderíamos dar
d'ellas a mais remota ideia.
. Andotntino
III
HISTORI/V DE SANHA
(Oonto Mandinga)
Ao encantador contista
de Os meus amores.
Contista: Era, era. . .
Ouvintes: Era uma verdadeira histo-
ria.
Contista: Havia nas terras dos Man-
dingas um casal que se compunha de
homem, mulher e duas filhas chamadas
Djádjas (leia-se, Iáia, querendo): Djá-
djabá e Djadjandin, (Djádja grande^ e
pequena Djádja).
E porque n'essa terra e em todas as
outras em roda, a arte de «pangâ pote»
(olaria) era desconhecida, o preço de um
pote para agua era egual ao preço de
um escravo, ou de uma vacca com a sua
cria; e para se obter um, era preciso ir
muito longe ás terras de Sanha onde o
«sol faz cam Dança» (onde o sol se põe).
•20
(Jm dia, Djádja levou á fonte um
pote da sua mãe — grande pote para ella
na verdade— encheu-o d'agua, e quando
já o tinha suspenso no ar, o pote esca-
pou lhe dos braços, cahiu e despeda-
çou se.
£ como tivesse medo que a m&e lhe
ralhasse, resolveu fazer uma viagem até
a atabanca grande» (') de Sanha, a pe-
dir ao rei um pote novo para levar á
mãe, e poz-se a caminho.
Depois de ter andado muito tempo
perdida pelo matto, encontrou uma onça
que recuava com o trazeiro para medir
o salto.
Djádja viu que a onça não estava com
boas intenções, e cantou :
sanha, sanha,
sllol he minto?
sanha 9 sanhA, %
sllol be minto?
saahAniansacunda
sllol bemlnté?
a teta 'm fé
bala dlmbó,
a teta 'm fé
bala dombó.
Camarada !
«Qual é o caminho»
«da tabanca do rei de Sanha?»
(*) Tabanca grande ou «tabanca de rei»:
cidade gentílica cercada de trabancas, an-
tigo syatema de fortificações também cha-
madas tranqueiras.
21 —
«Quebrei o pote»
«da minha mãe»
vou a Sanbá
pedir ao rei
um pote novo.
A onça ficou muito encantada com
aquella cantiga, e com a cauda «chico-
teou» as moscas, e mostrou- lhe o cami-
nho.
Mais adiante, depois de ter andado
muito, viu um camaleão n'um ramo de
«alfarroba»: o camaleão com o seu papo
cheio de veneno, fazia-se de mil cores.
Djádja desconfiou que aquelle animal
não estava com boas intenções, e cantou:
nanhA, ManhÁ,
•ilol be mlnté ?
nanhá, sanha,
«Ilol be mlnté?
Camarada !
a Qual é o caminho»
«da tabanca do rei de Sanha ?
O camaleão encantado com uma can-
tiga tão bonita, enguliu o seu veneno,
fez se de cor de anil, e em três balanços,
mostrou-lhe o caminho com a patinha
no ar.
Djádja foi andando, foi andando, e en-
controu uma grande cobra atravessada
22
no caminho: a cobra assobiava e lambia
o ar com a língua.
Djádja viu que aquella serpente não
estava ali para coisa boa, e cantou :
Allol be mlnté?
«anila, sanha,
nilol be mlntó?
Camarada !
«Qual é o caminho»
«da tabanca do rei de Sanha?
A cobra encantada com uma «gargan-
ta tão bonita» fez-se n'oma rodilha, re-
colheu a língua, e deixou-a passar.
Djádja depois de ter caminhado mui-
to, chegou ao «cambar do sol» a uma
fonte, onde uma velha estava «a lavar-
se»; mas a velha era muito velha, e tão
velha, que nas costas se lhe tinham crea-
do mil gerações de ostras.
A velha pediu a Djádja que (segundo
o costume da terra) lhe «esfregasse» as
costas.
A moça «não porfiou» não se fez ro-
gada, (Aparte dos ouvintes: «bom me-
nino !») ( l ) Porém, apenas lhe correu as
( ! ) Os substantivos, em regra, não va-
riam a sua forma para o feminino. — Na
23
mãos pelas costas, cahiram-lhe os dedos
cortados no chão.
A velha apanhou os dedos e «tomou a
emendai- os» (') £ Djádja ficou com as
suas m&os inteiras e tão bonitas «como
Deus as fez».
A velha vestiu-se e acompanhou a
Djádja a sua casa coberta de macarujá,
e cercada de mandiocal e de bananeiras.
Apenas chegaram, a velha entrou no
neu «aposento» e trouxe de lá um grão
de arroz em casca, que entregou á moça
para «pilar» (*).
A moça lançou o grão de arroz no
«pilão», e apenas «bateu com o pau de
pilar», o pilão encheu- se de arroz ( l ).
aurora das nossas letras pátrias também o
termo pastor appl içava -se indistinctamen-
te aos dois sexos. N'um «cancioneirinho»
d'El-Rei D. Diniz lemos : Uua fremosa
pastor,
(*) Esta velha dos prodígios não desço -
nhecia os milagres da «enxertia animal»!...
(*) Parece que a velha, por passatempo,
submettia ás mais mephistophclicas provas
os seus hospedes, afim de lhes sondar os
instinctos, as tendências do seu caracter,
e os principios de sua educação.
( 3 ) Como Christo, com os píies, a velha
fazia a multiplicação dos grãos de arroz,
quando os seus hospedes lhe davam pro-
vas de confiança, de humildade e de resi-
gnação (!..•)
24
Djâdja, tendo o arroz todo descascado
e limpo, cosinhou e foi ter com a velha
para que lhe desse a manteiga» para bo-
tar na panella.
A velha cuspiu para o chão: e a
moça quando se abaixou. . . viu uma aca-
bacinha» de manteiga fresca que foi bo-
tar na panella de arroz ( 1 ).
Cearam: cardaram muito algod&o; a
velha contou historias de príncipes e
princezas encantadas, e foram aos seus
«aposentos» dormir.
Apenas cantou o primeiro gallo, a ve-
lha levantou -se, e foi â capoeira buscar
três ovos; e que lindos! pareciam ovos
de prata, que deu a Djádja e recommen-
dou-lhe que todas as vezes que no cami-
nho se sentisse cançada, atirasse com
um para traz das costas, e não voltasse
o rosto*
£ accrescentou, que a tabanca do rei
de Sanha ficava ainda muito longe, e,
estendendo o braço, disse: lá n'essas
terras onde Deus, quando se cança de
pelejar todo o dia, arremessa o seu gran-
( l ) A boa velha convertia a sua saliva
em nata I As provas eram um tanto duras,
porém necessárias por serem decisivas. —
Lembremo-nos que um santo da Compa-
nhia, por obediência, plantou uma arvore
com as raizes ao sol !
de escudo de fogo — «e' ta ramangd se
djarga garande de fugo».
A moça prometteu fazer tudo como a
velha lhe ensinou, e despediu-se.
A velha abraçou Djádja e «cheirou-a
no rosto» ( 1 ). A moça pediu a benção, e
seguiu o seu caminho.
Depois de ter andado muito, Djádja
sentiu-se cançada, e atirou com um ovo
para traz das costas, e atraz d'ella ou-
viu uma cr grande tormenta de alimárias»
que corriam para um lado e para outro,
como se tivessem perdido o juizo — asima
dodo» ( 2 ).
Mas ella não fez caso, e seguiu o seu
caminho.
( ! ) Cheirou-a no rosto. Assim beijam as
pessoas que lhes são caras, as creanças
quasi exclusivamente. — Foi a aspiração do
hálito das matronas pelos maridos, entre
os romanos, que, como consta, deu origem
ao costume de se beijarem as pessoas que
se estimam, se amam ou se veneram.
( 2 ) Deuealião e Pyrra, repovoam a ter-
ra assolada pelo diluvio fazendo sahir
homens e mulheres de uma sementeira
de pedras (!) No couto do vaqueiro de
Briches de Serpa, publicado na Tribuna,
uma princeza arranca a lingua a um ca-
vallo morto que espeta no chão... e do
chão ergue- se uma torre (!) A nossa con-
tista africana faz nascer de um ovo, — ho-
mens, animaeSj palácios e fruetos da ter-
2
átí
Mais adiante e já muito longe, atirou
com um outro ovo. . . pragas, áis e gar-
galhadas de gente que «pelejava»., foi o
que ella ouviu ; não fez caso e foi an-
dando.
Foi andando, foi andando, e quando
já não podia andar mais, atirou com o
ovo que lhe restava, e achou-se de re-
pente n'uma grande casa, com «manga
de escravos» manga de curraes de vac-
ca, e toda a sorte de «mantimentos», e
ficou sendo a maior fidalga d'aqnella
terra,
{Ouvintes: Ah !. . .)
Um dia Djádjandin, irmã mais nova
de Djádjabá, levou também á fonte um
pote da mãe, «e lá o deixou ficar».
Com medo que. a mãe a castigasse
lançou se n'uma viagem muito perigosa
«em busca» das terras de Sanha.
Depois de ter errado muito pelos mat-
tos, encontrou um leão que lambia as
unhas e rangia os dentes.
ra! — Parece-nos, salva opinião em contra-
rio, que a sua invenção tem alguma coisa de
mais verosimilhança, por ser mais natural,
e mais conforme com o velho aphorismo :
omitis ovo, ab ovo } et in ovo.
27
A rapariga muito espantada, e a tre-
mer cantou assim :
sanha, sanha,
sllol be mlntó?
sanha, sanha,
sllol be mlntó?
sanha niansacunda
sllol be mlntó?
a teta 'm fé
bala dlnibó,
a teta 'm fé
bala donibó.
Camarada !
«Qual é o caminho»
«da tabanca do rei de Sanha?»
«Quebrei o pote»
«da minha mac»
vou a Sanha
pedir ao rei
* um pote novo.
O leão teve dó d'ella ; metten na bai-
nha as suas unhas e mostrou lhe o ca-
minho.
Foi andando, foi andando, e encon-
trou um porco espinho que «batia o pé»
muito encrespado — Djádjandin teve
medo e cantou :
sanha, sanha,
sllol be mlntó?
sanha, sanha,
sllol be mlntó?
i
28
Camarada !
«Qual é o caminho»
«da tabanca do rei de Sanha?
O porco-espinho teve pena d'ella; des-
armou as suas frechas, e ensinou-lhe o
caminho.
Ella continuou a andar, a andar. . .
até quando, passando perto de um rio, viu
estendido na lama e á sombra dos man-
gles um «lagarto» (crocodillo) que ma-
traqueava os dentes. (Os ouvintes: má
viagem) ( l ) Djádja, muito assustadaj can-
tou toda a tremer :
sanha, sanha,
sllol be minto?
sanha, sanha,
sllol be mlntó?
Camarada !
«Qual é o caminho»
«da tabanca do rei de Sanha?»
O lagarto «fechou o seu caixão» (as
suas fauces), e deixou-a passar.
Depois de ter andado muito, chegou
(') Má viagem! Agouram mal uma via-
gem ou jornada em que topam comum cro-
codillo.
29
a uma fonte onde uma velha, (a nossa
conhecida velha de mil annos) que esta-
va a lavar se, apenas a viu chamou-a pe-
lo seu nome:
— Djádjandin ! Djádjandin !
Á pequena, muito admirada, disse de
si comsigo : esta velha é por força uma
feiticeira. Quem foi que lhe «ensinou» o
meu nome?
E foi muito desconfiada ter com ella.
A velha rogou-lhe que lhe «esfregasse»
as costas.
Djàdja «espiou» as suas mãos, espiou
a velha, levantou o nariz ao vento e
«chiou» (signal de mais aviltante despre-
zo) e disse:
— Bem dizia eu que eras uma bruxa.
Acaso Deus me deu estas mãos tão bo-
nitas, para as estragar nas ostras do teu
costado ? ( l )
( l ) Nos Contos das Fadas de Charles
Perrault encontramos mais de um ponto
de concordância com esta nossa «historia»,
sendo mais notável o seguinte :
Quando «a menina má» foi, por ordem da
mâe, dar de beber á Fada numa fonte, —
diz-lhe toda empertigada.
— «Naturalmente vim aqui, — disse a or-
gulhosa menina, — de propósito para lhe
dar de beber ! Trouxe mesmo um jarro de
prata com a ideia expressa de dar de beber
â senhora. Beba da bica, que não foi feita
para os cães ! »
30
(Os ouvintes olham a furto uns para
os outros).
A velha não fez caso: vestiu-se, e acom-
panhou a rapariga á sua «morança» no
meio das bananeiras e á sombra de ma-
racujá.
Djádja pediu lhe uma medida de ar-
roz «para pilar» (para descascar).
A velha entrou no seu aposento, e
trouxe de lá um grão de arroz. A rapa-
riga «fincou as mãos na pontada» (nas
ilhargas) e exclamou :
«Djusto de um garã? !» Um grão sã-
mente f l — Sabes que mais, sua velha
tonta? quem é pobre vae por portas pedir
esmola, «é ta bd co porta pidi sumóla».
(Faz se um movimento no grupo dos
ouvintes: uns baixam a cabeça, outros
riscam na areia).
A velha calou-se: entrou em casa e
trouxe de lá uma medida de «arroz al-
vo» que a pequena cozinhou, e foi-lhe pe-
dir uma colher de nata.
A velha cuspiu: a rapariga deu um
salto para traz, e batendo as mãos no
peito (signal de quem está muito afflicto
ou altamente indignado) disse: «iáe !...
es porcadia ê par queseâ? Para que ser-
ve essa porcaria ?
(Os ouvintes rosnam. Alguns excla-
mam sentcnciosamente: «es criatuda ca
ten «djÍ8» esta creatura não tem juízo).
A velha «fez que não entendeu»; e foi
31
trazer uma colher de nata fresca, com
qae a rapariga temperou a «Manda» de
arroz.
Cearam. A velha cardou o seu algo-
dão, e contou historias de príncipes e
princezas encantadas, até que lhes deu
o somno e se foram deitar.
Pela manhã, ao cantar do gallo, a ve-
lha levantou-se, e foi ao gallinheiro dos
ovas de prata s e trouxe de lá três, os
mais lindos, que entregou a Djádja, e
reconimendou-lhe que os fosse arremes-
sando a una e um para traz das cos-
^s, sem «nunca» voltar o rosto.
A pequena observou que, embora isso
'i*e parecesse uma tolice, comtudo teria
cuidado de «amarrar» {apertar) bem
a fc* arriga para não comer os ovos quan-
°c* se sentisse com fome.
ÇNo semblante dos ouvirdes nota-se um
i^ot/xo de riso amartllo e mal disfarçado,)
fizeram as suas despedidas.
-A velha abraçou e cheirou Djáujan-
d**-* no rosto. Djádjandin esqueceu-se de
11* « pedir a benção; voltou costas, e par-
ti **.(>)
KJjhrande movimento de espanto dos ou-
O) Djádjandin esqueceu-se. Bello euphe-
*** i emo ! que a contista empregou em vez
^^ . . «Djádjandin por ser uma malcreada
Muito atrevida, não pediu a benção á velha
<i*ie lhe soffreu os seus insultos».
í
i
32
vintes: alguns abanam as cabeças; mui-
tos batem castanholas com os dedos).
Depois de ter caminhado bastante tem-
po arremessou um ovo para traz das cos-
tas, e pareceu-lhe que corria atraz d'ella
um bando de leões, de porco-espinhos e
de alagartos»; e não se pôde conter que
não olhasse: e apenas «virou o rosto»,
aquellas alimárias atiraramrse a ella e
despedaçaram-^a.
Calátifljan, (i) uma águia brada -
dora, que n f esse dia atravessava aquel-
las terras, indo muito pelo alto, «arreba-
(!) Culá,n<\jan. «Uma águia bra-
dadora», assim traduzimos Aquila vocifer.
Alguns exemplares d 1 esta espécie encon-
tram-se no Jardim Zoológico de Lisboa.
O seu canto, segundo os Mandingas pa-
rece dizer :
quéò! quéò! quéò manqui-
lin ! . . . E os creoulos traduzem assim e
perfeitamente :
«Orne ó óme ! óme ca d junto I . . . » que
em portuguez vem a ser quasi á letra:
Um homem e mais um homem, esses homens
não são eguaes !
Como se vê, esta ave sentenciadora nâo
foi mal introduzida n'esta scena trágica»
tão maravilhosamente imaginada e tão re-
passada de commoções e de contrastes (
E como os negros são fatalistas, salta aos
olhos a profunda moralidade do conto se-
33
tou» um dedo da pobre Djádja, voou e
foi abandonai -o no quintal de seus pães.
Estes «choraram muito e muito sua
filha», e «se consolaram».
(Os ouvintes commovidos: «Coitada !»
iTt^?
gundo a sua philosophia natural : Cada
qual, n'este mundo, segue irrevogavelmen-
te o seu destino. Por outra : o nascimento
e a educação não podem reagir contra a
ordem preestabelecida de todas as coisas.
A velha representa a incarnação da Pro-
videncia sobre a terra, perante a qual to-
dos os homens são eguaes, por isso que
vemos os bons e os maus— egualmente hos-
pedados á chegada, e abraçados e beijados
á despedida por essa mesma Providencia
personificada. . . e quasi tão velha como a
eternidade !
Haverá porventura n'este género de con-
tos, nada mais sublime e transcendental ?
— Que ensejo para as mais profundas co-
gitações não offerece essa concepção, que
tem o singelíssimo titulo, A historia de Sa-
nha, ou As meninas do pote ! — O que não
dirão os litteratos e os philosophos peran-
te a intellectualidade, e singular poder
imaginativo dos negros !
IV
CANTIGAS
Ao Dr. António Roque Ferreira
3umá
(Canto marítimo)
«aieb ! eh! auitift ieh ! ehallballô!
•a min ea (') tene mamáe oh !
«a min ca tene papáe ,
«aieh! eh! goma ieh ! ehallballô !
«padida que padi se fidjo macho oh !
«e toma e bota na mè de mar
•aieh! eh! suma ieh! ehallballô l
(') oa, partícula negativa d'origem «Ban-
tu». A opinião do dr. H. Chuchardt, pro-
fessor de uma universidade de Áustria re-
sume-se n'estas palavras : 1 believe tkat it
is of the African language. O Mande tem a
negativa cana, também achada pelo
mesmo notabilissimo professor.
36
Ai ! a barbara Suma
que pariste um filho
e botaste no mar :
oh ! barbará Sn má 1
challballô!
Não tenho pae nem mãe
Que me bote no mar,
ó barbara Suma,
challballô!
Certa mulher chamada Suma rfum
momento de allucinação atirou com o fi-
lho ao mar. Os marinheiros cantando ao
som compassado dos remos, e cóbrindo-a
de vaias, dizem : Eu felizmente não te-
nho pae nem mãe que me condemne a
morrer no fundo do mar.
Conceito : Sou marinheiro por minha
deliberação e de modo algum condemna-
do ás galês como um forçado.
*
* *
malan
(Canto de uma escrava)
a mi è malan oh, oh/...
a mil malan oh!
que benba par hàe.
am nhabldo co licor
am limpado co lenç de cambraia
a mi ê malan oh, oh!...
que benba par bàe.
37
Eu era triste escrava, ( â )
ai ! e que bem triste escrava,
que vinha para embarcar.
O meu senhor vestiu me ( 2 )
e zangado batia-me
com ramo de coral ;
e pensava-me as chagas
co'o mais doce licor ;
e limpava-me as f ridas
com lenço de cambraia.
J 1 ) Escrava. Por um natural sentimento
^5e dignidade a cantadeira não dá a si
^mesma o tratamento aviltante de escra-
~^a, mas de mal nu, que na lingua Man-
dinga significa estrangeiro.
E 9 para notar que não são raras as vo-
sses africanas que enriquecem o creoulo da
^ruiné— legitimo dialecto românico portu-
guez, ainda hoje muito mais conhecido no
estrangeiro que em Portugal.
Entre nós além dos philologos e folkclo-
ristas eméritos Adolpho Coelho e Leite de
Yasconcellos não temos noticia de outros
que com tão superior competência se dedi-
quem ao estudo (Teste interessante ramo
da nossa lingua a primeira das indo-euro-
peias, que levou a aurora da civilisação a
tantissimos povos desconhecidos.
( 2 ) Ve8tiu-me. Lá dizem amarrar panno,
esposar uma donzella, a qual, tendo andado
sempre— quasi em costume do Paraizo até
aos 12 e aos 18 annos, veste-se pela pri-
meira vez com os pannos que lhe dá o seu
noivo ou os seus pães.
38
E eu era triste escrava
que vinha para embarcar
— que ben ba par bàe*
Onde estava a sorte doesta feliz escra-
va condemnada aos canaviaes de Cuba ou
de Jamaica, que passou a ser castigada,
não a chicote ou a bastonadas .. . mas
com ramos de coral! — Que formosa não
seria aos olhos do seu talvez crudelissi-
mo senhor !
Seja como for : O que nos parece evi-
dente é que a divina e castíssima Sula-
mite não teria dito coisas mais encanta-
doramente figuradas.
Neste género e n* outros as nossas
cantadeiras africanas expõem á nossa
admiração surprehendida algumas péro-
las de um inestimável valor.
Daremos aos folkcloristas e aos amá-
veis e esclarecidos leitores dos nossos
modestos artigos acerca das litteraturas
exóticas além das que seguem, mais al-
gumas amostras d? essas originaes e bel-
las creaçoes a que é vulgar chamar- se
desdenhosamente — «cantigas de pretos.»
*
* *
«querè. querê, condon»
Amores, Amores
se e'chigâ na sabe
tudo mundo IA mato.
_39_
se e'cbigâ na fede
abós dôç condoo.
quero eaè demanda,
querè saô matança
quero, querO, condon'
Se vos ri la boa sorte,
tendes o mundo em casa.
Se vos entra a miséria
lá se vae todo o mundo
— «abós dôç condon.
Amor gerou demanda
Amor gerou matança.
Só n'aquelles quem se amam
reina perfeito amor
— «abós (£<?£. condo».
Muito conhecida é aquella espirituosa
picaresca lyra de João de Deus que
ZI ^meça assim:
Não sou tâo tola
Que caia em casar ;
Mulher não é rola
Que tenha um só par
A nossa cantadeira encara o assum-
^oto sob um ponto de vista menos jocoso
m *i.o campo da sã philosophia e da mais
profunda observação.
Quem tal diria f . . .
(Extractos do Guineense).
M Ancfanfino
V
monde
ó!
ó!
VOZ
ó! ó! ó!
CORO
ó! ó! ó!
VOZ
ó monde ó! monde ó !
ó monde! amiq' êcó!
djurumnó andjurun cá,
neto de réno, fidjo de reno.
nfn que cantias tudo tá fogâ,
nin que botes tudo ta fogâ,
djuramné andjarnn cá!
CORO
ó! ó! ó! ó!
VOZ
dapê baáu lumunu-m' tée...
om ca dangut
q' anti s máâ ó blamA
q' ê djeu na-má.
CORO
ó! ó! ó! ó!
VOZ
menhenienhé co-bos,
blamA ó
blamA menhemenbé co bos,
mancara de bdjogd !
CORO
ó! ó! ó! ó !
42
voz
blamA ta obi do auaaA,
la fosse bandèra ;
ta tenê do seu,
ta cubri cobaio.
CORO
ó! ó! ó! ó !
VOZ
•uflià mal-empregado
pa camba balcon :
ê mal-empregado
pa 'nganhà amgalande.
CORO
ó! ó! ó! ó!
VOZ
catépe catépe...
cauúa decambaaça:
coma boba come l tée. . .
e' dessa-1 pel e ós.
CORO
ó! ó! ó! ó!
VOZ
nasaln djfte catalaoó ! . . .
niuq' e' mil e cicoenta,
e' ca ta iàgo,
e 1 ca ta bás !
CORO
ó! ó! ó! ó!
VOZ
blamA ficam' cabeça
pa leba-m' cofea!
ficam' cabeça,
pa leba-m' mina !
CORO
ó! ó! ó! o!
VOZ
bó salga- m' nha cama,
bó leba-1 djiné :
s' e' 'mbichâ co bós oh !
e' ca ta ten comedor?
CORO
ó ! ó ! ó! ó
4ô
voz
odja na — roa
COfljOte oh!...
codJOte odja na má!...
prlntánf.j nan co.
CORO
ó ! ó ! ó ! ó !
VOZ
roncam' condidjo,
e' passa o' bá cassa noba;
se m ca djenguO rosto,
o' tá fura-m'-ba odjo !
CORO
ó! ó ! ó! ó !
VOZ
bós cendo-1 candia,
palabote ó !
palaboto ó !
bós cendo-1 candia!
CORO
ó! ó! ó! ó!
so 'm ten-ba pôá,
aill ta bidà tèulu do mar;
3iU ta bidà tenha do mar,
pa 'm djobê tanga
CORO
ó! ó! ó! ó!
VOZ
se 'iu ten-ba pô >,
?m la djogà peto co mar;
ani ta djogâ peto co mar
pa iu djobô langa
MONDEANAS
(Cantigas)
Ao dr. Silva Cordeiro
Morte negra foge do telhado ó, ó,. . .
(OS SIMPLES)
Monde '• — Nharambá — e a desconhe-
cida cantadeira de nha-meniiio (0
formam a singular trilogia dos bardos
africanos mais inspirados pelas Graças.
E se nascessem n! outro meio --quem pre-
tenderá nega-lo ? — talvez os seus nomes
não fossem inferiores aos de Erinne, de
Sapho, ou Corina.
Se Nharambá — pulsa com levantado
estro a sua lyra movimentada— como ve-
remos; e a cantadeira de nha menino,
palpitando as suas azas cândidas nas on-
(!) Dissemos n'uma «Memoria» publi-
cada no Boletim da Sociedade de Geogra-
phia de Lisboa, em 1883, que as can-
tadeiras da Guiné eram de entre os bar-
dos d'aquella nossa província «as únicas
dotadas de certa chamina de génio». E ain-
da hoje não temos motivo para nos retra-
tar.
f
45
das da luz do luar, repete como um echo
na floresta as eternas harmonias do Cân-
tico dos cânticos ! — Monde, a quem pro-
fundos desgostos velaram a sua lyra vigo-
rosamente afinada para a- poesia épica,
solta o seu cantar triste que nos faz recor-
dar os tristes threnos de Job e de Jere-
mias.
Vamos ver como esta ultima, a pobre
-Ztfondé, nascida sob a influencia de uma
estreita funesta, e mais tarde coroada por
Xíelpomene e Polymnia, — canta as suas
magoas e o seu amante. O seu registo é
em Do maior plangente, como o Dies irae
e o Stabat Mater. E sem variações, man-
tém sempre o mesmo andamento, simulan-
do um temporal e gritos subversivos de fa-
cínoras que investem contra ella sem a co-
nhecer :
«Ah! vindes açuladas contra mim, e
não me conheceis ?
«Pois Monde é o meu nome, pertenço
á tribu dos fortes e o meu appellido é Cá :
«e também sou descendente dos reis
e cidadã de Inté.
«Ainda mesmo no meio das tempesta-
des,
«Sou e serei sempre
Monde de Andjurun ;
sou-o e serei sempre
sob o temporal
com mortes e naufrágios ! . . . »
46
«De um extremo ao outro das terras
de Bissau, que é um continente, levantaram
em volta de mim uma grande celeuma ;
porém, não me abateram na minha indif-
ferença:
«o que poderá Bolama contra mim se é
apenas uma ilhota do mar? (')
((A chocalhada da vossa lingua, ó gen-
tes ! — é para mim o ruido chocalheiro
da mancarra de Bijagó ( 2 ).
«Tudo o que se conta de Sussá, vós
de Bolama, tomais e fazeis estandarte, e
escondeis as vossas misérias debaixo do
balaio».
( 1 ) Á ilha de Bissau é uma das mais con-
sideráveis d'aquella costa; por isso a nossa
cantadeira pensa que é «terra firme».
José Maria de Souza Monteiro descreveu
num bonito romance publicado no Panora-
ma os usos e costumes dos negros d'aquel-
la grande ilha, e que a Tribuna começou a
transcrever, sob a acertadíssima indicação
de um dos seus mais estimáveis redacto-
res, o sr. Marques Pereira (Fernão Lopes).
— Como se vê, ha uma funda rivalidade en-
tre os indígenas de Bissau e de Bolama,
pequena ilha povoada de Manjacos, Bura-
mcs e Jalofos, gentes para elles despresi-
veis por abandonarem as suas terras em
busca de toda a qualidade de serviços sem
escolha e eem preferencias.
( 2 ) Mancarra de Bijagó, 6 a Voandzea
subterrânea, espécie de feijão que se cria
47
Monde peleja a favor de Stissá, sua
amiga ou parenta, suppondo a incapaz
de praticar actos menos dignos que lhe at-
tribuem, como saltar a horas mortas pa-
ra dentro dos balcões com o fim de mer-
cadejar—a troco de pannos finos — o seu
pudor. Em revindicta expõe, num terrível
realismo habilmente figurado, o desvergo-
nhamento de suasrivaes, citando uma Ca-
tepe, uma Nassim Djáe, refinadíssimas.,.
Oalateas,
No emianto ella reflecte um pouco, e
comprehende que das mãos de gente iní-
qua e má, não ha fugir, e então, apenas
nos deixa ouvir a sua voz repassada de
lagrimas:
«Alvejaram a minha alma
e sobre ella juraram,
que me conduziriam,
que me conduziriam,
á fria sepultura ! . . »
«Contra mim juraram
que me levariam,
que me levariam
ás minas da morte ) . .
A taça da irrevogável e mortal amar-
gura é na verdade difficil de provar (}),
debaixo da terra. A Revista Colonial e
Marítima dá noticia d'esta leguminosa.
(*) Esta passagem, como aquella em que
48
E comtudo, na sua qualidade de des-
cendente de Andjurun e de homens valo-
rosos, encara a sua sorte com uma cora-
gem heróica, arremessa o mais aviltante
sarcasmo ás faces das suas inimigas que
juraram a sua perdição, pondo a sua ca-
beça a preço para a arrastarem aos seus
covis de infâmia ( l ) e diz:
«Um conselho vos quero eu dar, boa
gente, é que se não tiverdes cuidado com
a minha carne não tereis com que vos
banquetear ( 2 )
«Olhae ! se são bixos que vos appetece
manducar ou se é carne humana?. . . Es-
colhei !
«Salgae a minha carne
e levae-a á Guiné ( s )
Monde defronta intrepidamente com as suas
perseguidoras, faz lembrar um dos passos
mais dolorosos que ficaram escriptos com
o suor e sangue de um Martyr sublime.
( ! ) Claro está que eó se trata de bruxas
e de feiticeiros, isto é, segundo a nossa
comprehensào, de gente maldosa, de más
obras e peiores instinctos.
( 2 ) Cf. Et . . . a rugientibu8 praeparatis
ad escam, de manibus quaerentium animam
meam et de portis tribulationum, quae cir*
cundederunt me.
(Lição do livro da Sabedoria).
( 3 ) Para elles a Guiné propriamente di-
ta é a ilha de Bissau, grande centro de
4\)
que se vos apodrecer
não terá comedor
«é 1 ea ta ten comedor.»
Se tudo isto não é verdadeiramente su-
blime, então declaro que não comprehen-
do Longino,
Porém, Cfjmo nem tudo são luto e la-
grimas n*cste mundo súblunar, visão J a-
gueira se antolha á sua alma amargura-
da: — é o seu Coête-Iangáy o seu aman-
te, que ao passar por ella agitando os
cadilhos da sua tanga azul — «que im-
postor ! . . . » fugiu tão rápido para a
Casa-nova ( ! ) que lhe ia «arrancando os
olhos /»
«Attentae amigas
para aquella miragem !
Lá vae o meu Coête
agitando as fímbrias
da sua tanga azul, ( 2 )
«e foi-se fugi d do- me
para a Casa-nova.
malefícios onde as feiticeiras retouçam á
solta.
(*) Casa-nova — antiga feitoria de João
Marques de Barros, na ilha de Bolama, ho.
je pertencente á importante casa Coelho
Serra & C", de Lisboa.
(*) Sousa Monteiro diz que «esse vestido
que se parece com uma tanga (e que ainda
não vimos nos costumes d'outros indígenas
_50_
Se iiíto to uno tento,
se nao affasto o rosto
levava-me os olhos!» ( l )
E quando o seu amante embarca, pede f
chamando para bordo de um navio de
guerra, que lhe ponham luminárias; e
ella mesma se lançaria na sua esteira a
nado se possuísse o condão das transfor-
mações, e podesse, como Leandro, ou eo-
mo um semideus, atravessar o mar «jo-
gando o peito com as ondas.»
Repare o leitor, para a belleza d* esta
poesia em que se figura imitando uma cor-
respondência de vozes entre terra e mar.
d' Africa) é uma espécie de calção curto.»
Pouco se parece; mas em summa, na falta
de outra coisa com que se compare, — pôde
passar.
Usam os mancebos ordinariamente de
uma tanga de banda branca a que chamam
lopé, e nos dias de festa, de ncatá,
que é feita de banda anilada com cadilhos
muito longos,bastosefluctuantes;e tudo mui-
to ornamentado de cascavéis, campainhas e
missangas. Um mancebo de acata não dei-
xa de ter a sua graça, porque lhe fica bem.
(*)E' para notar que n'aquellas terras
ainda os papeis se acham invertidos num
certo numero de coisas; por exemplo: os
machos enfeitam -se, e arrastam azas; e as
fêmeas cantam como umas toutinegras ao
f)1 -
«O' dcp'labote,ó ?...
Olóo!
O' dep'labote, ó?...
Olóo !
Acccndam as candeae !
O' de guerra, ó ? . . .
Olóo!
Accendam os pliaroes 1»
«Se cu fosse um semi- deus
pimba o peito no mai,
affrontava o mar,
e luctava com as ondas
para ver langá I »
E preciso confessar que o coração, o
cérebro, a alma humana, como queiram,
é a mesma em toda a parte onde quer que
se encontre um homem, com a única dif-
ferença de cultura e de encadernação.
Encontra- se porventura nos cantos ge-
nuinamente populares de outras raças hu-
manas, mais ou menos rudes, mais ou me-
nos cultas, alguma coisa que seja absolu-
tamente superior?
Por Deus ! que desejávamos ver isso.
Mas ha melhor.
alvorecer do dia dos seus amores. As razoes
moraes d'esta inversão havemos de as dar,
numa outra circumstancia mais opportuna.
A accreseentar: Monde e Nharambá bíio
Fepeis de Bissau, e a mimosa cantadeira
de nlia-meniiio níto deixará de per-
tencer á mesma tribu.
VI
m (DEHWO
nha menino oh ! 1 ib . . . lan . . .
dente de djára de prata !
lan. . . nha menino oh ! oh !
garganta de léba na b lanha !
lan . . . nha menino oh ! oh !
odjo de mèç na djanela !
lan . . . nha menino oh ! oh !
odjo de lua na djanero !
lan. . . nha menino oh ! oh !
odjo de cacho na polon !
lan. • . nha menino oh ! oh!
pistana de renda de camissa!
lan . . . nha menino oh ! oh !
cabelo de oro torcido !
lan. . . nha menino oh • oh!
bunda de fulo iarmado!
lan. . . nha menino oh! oh !
bucho de bela formado !
lan. . . nha menino oh! oh !
ta iandâ chon la requedel,
lá na crua de mantambor!
O Meu Menirço
Esta nossa cantadeira africana, uma
das três de maior envergadura a que
anteriormente nos referimos, abre com
chave de prata o seu escrineo de pérolas,
o seu sacrário em que não desejaríamos
pôr os nossos dedos profanos.
E se acaso ousássemos tocar noutros
sacrários ainda mais sagrados para uma
tentativa de confronto ao menos, não nos
faltariam themas e motivos para appro-
ximações entre varias passagens de nlia-
iticiiino» e algumas das melhores da
litteratura popular de um povo culto ti-
rado á sorte. . . Portugal, por exemplo.
E a primeira coisa que nos accudiria
á reflexão é que se nessa estreitíssima
zona à" «Africa portentosa» houvesse tor-
res defendidas por uma linha de escudos,
55
como a torre de David; príncipes so-
braçando mantos cor de purpura; cabras
arrastando o seu vello cor de espuma;
lagos de Esabão, columnas elegantíssi-
mas: ou se lá houvesse romãs, que par-
tidas ao meio fazem lembrar uma bocca
a sorrir e as tintas do rosto, — a nossa
cantadeira vão deixaria de se inspirar
n estas lindas coisas, e os seus fios de
pérolas, as suas jóias, as suas tintas
com que adornou o seu idolosinho, o seu
menino encantador, talvez parecessem
roubadas ao thesouro onde algum poeta
de raça guardou a sua lyra coroada de
capellas e nimbada do sol ao meio dia, . .
Ella então nos viria cantar pouco mais
ou menos assim o seu meninos
O pescoço, pensa a gente
Que é a torre exactamente
De David nesses ares!
O cabello é tal e qual
Um grande manto real!
Os olhos esses então
Os dois lagos de Esabão.
Os dentes em abrindo
A tua bocca, que lindo!
Nem rebanho de ovelhas
Todas brancas e parelhas
I
_ 56
As faces não. ha de certo
Assim casca de romã
De cor tão linda e tão sã.
As pernas, de musculosas
São columnas magestosas
E de mármore inteiriço.
O cabello em quantidade
E' tamanho é singular.
E não me lembra senão
Das cabras de Galaad
Que lhes rola pelo chão
Em ellas indo a andar.
{Campo das Flores.)
A cantadeira de nlia-mentno nun-
ca viu uma torre sequer, mantos reaes,
e tão formosas cabras f nem lagos de uma
limpidez de espelho: nem romãs, ou co-
lumnas de mármore f—Não importa! El-
la encontrará nos campos, nas florestas,
nos guarda-joias dos nababos , nos astros
nos phenomenos do mar, nas lendas, os
mais peregrinos motivos, imagens, tintas,
esmaltes e comparações com que saberá
enfeitar de boas noites mi rabi lis a sua
lyra docemente alumiada com a luz do
luar e da madrugada.
E ella mesma, lá dessa costa d' Afri-
ca virá confirmar mais uma vez esta in-
contestável verdade.
57
«A intima ligação do verdadeiro poeta
com o seu meio intellectual, moral e so-
cial, é um facto que se constata ao es-
tudarem-se as obras primas de cada
época ou de cada nacionalidade». (*)
E assim é.
E que genial artista que se offerece á
nossa contemplação na singular canta-
deira da cor das barracas dos mouros
e das tendas de Salomão! — Quanta
propriedade e parcimonia nas adjectiva*
çôesl — Quão pouco vulgar imaginação! —
Que notável sentimento de esthetica e de
plástica! — E que singular instincto de
bom gosto e bom senso em tudo quanto
diz do seu menino !
Repare o leitor, para esta inexgotavel
fonte de bellas imagens e comparações :
«Os seus dentes são como duas pra-
teleiras de jarras de prata. o
Jarras cinzeladas com amores em re-
levo brincando ri um carnaval de flores. . .
aljava ás costas e arco em descanso! —
Um primor d 1 arte que por acaso viu em
casa dos argentamos Benicios, Barretos
ou Alvarengas.
«A sua garganta é só comparável com
(*) Teixeira Bastos nos Poetas BrazU
leiros.
58
a do flamingo posto de sentinella no
meio do arrozal!»
«O cabello da cor d'amarantho feito de
oiro «torcido » — cahe-lhe sobre os hom-
bros numa catadupa de chorões»
a As pestanas ensombram seus olhos
com um suavíssimo docel de rendas as
mais finas, as mais pudibundas e cas-
tas!»
«Seus olhos são como dois carbúncu-
los numa taça de esmeralda ou, são «co-
mo duas papoulas rubras ardendo rium
estendal de verdura».
«E são como as ondas da luz do luar
que irrompem por uma jauella a dentro».
«Tem as «cozas» redondas como dois
hemispherios perfeitos».
«As suas «pernas»... o seu andar é
como uma galera que com todo o vela-
me em concha e varredoras— navega no
alto mar com ventos de feição»
£ a graça, o ar
D'aquelle andar!
Que vela passa
Com tanta graça
A' flor do mar?
&9
Finalmente a nossa cantadeira, da cor
de Sulamite e das tendas Salomão, fecha
com uma chave de oiro o seu escrineo
de madrigaes!
«Quando anda, a terra enamora- se,
como se andasse lá... nas coroas mo-
vediças do mar!»
A traducção de n li a- me nino 1 é
pouco mais on menos assim:
1 O bordão ia-ian e toda a musica
desta cantiga, leva-nos a suppor que é ori-
ginaria de Cacheu. A sua auctora que se-
ria Pepel liberta ou escrava, deve ter fal-
lecido ha cerca de oitenta annos.
Ninguém hoje se lembra do seu nome, o
que não admira. Os meteoros também ap-
parecem nas altas regiões de um ceo escu-
ro, descrevem um arco de luz, e desappa-
recem em qualquer ponto do horizonte, sem
que o vulgo tenha a curiosidade de per-
guntar o que é, d'onde vem, e para onde
vae!
A rima, essa puerilidade de Heine não
tem logar nas producçòes espontâneas e re-
pentistas das nossas cantadeiras africanas
por se acharem ainda no seu periodo de
sensação e de imagem. Em compensação o
rhitmo e a cadencia são excellentes.
ia-ian, é uma interjeição de extasia
e de contentamento. — £ é para notar que
esta cantiga é quasi toda feita de excla-
mações em que as palavras apenas entram
GO
Oh!. . . o meu menino!
São os seus dentes lindos,
lindos, lindos,
oomo um renque de jarras de prata.
E airosa é a sua garganta,
t&o airosa
como a de iéma em chão de verdura. 2 -3
Seu cabello em chorêes,
é tal qual
amarantho de oiro torcido.
Suas pestanas parecem. . .
é mesmo assim,
das camisas as rendas de linho.
Tem os olhos vermelhos,
tão vermelhos
como formulas consagradas, á maneira de
grãosinhos de incenso.
Perante o deus, poucas palavras e me-
nos musica, que a cantiga, quasi se pode
dizer, não tem: é um lingui lingui monolo-
gado em veneração!
2 O texto diz Manha, em Pepel, e
significa o mesmo que arrozal ou alaga-
mento.
3 Ema ou iéba, é o casuar, para uns, e
para outros é o flamingo, o phenicóptero.
Ha exemplares no jardim zoológico, vindos
da Guiné. Distingue-sc das outras pernal-
tas da mesma espécie pelo seu porte dis-
tincto e elegante, e seu pescoço de cisne.
til
como os tem o pardal no arvoredo: *- 5 - 8
e afio como quando entra,
quando irrompe
na janella uma onda de luar :
são como a luz da lua,
luz de estrellas
4 Somos tentados a crer que esta côr dos
olhos é simplesmente symbolica : com tudo
é possível que o menino tivesse os olhos
encarnado?, que para os pretos silo os mais
bonitos, os mais fascinadores, como em ge-
ral, os olhos azues para os habitantes do
Sul da Europa, e os negros para os povos
do Norte. — Caso este para pensar, que o
bel lo em muitas coisas está na raridade ou
na singularidade delias.
O iria maculado de vermelho é raro,
muito raro, mesmo entre os negros.
5 No original: cacho na polon. Caclio da lín-
gua Mandinga oachó, é uma pequena
ave conirostra a que em Lisboa o Mossa-
medes chamam aj anuários» de olhos encar-
nados, de plumagem escura e sarapintada
como o pintasilgo.
E' também conhecido no dialecto creou-
lo-portuguez com o nomo de «pardal.»
• Pólon y em portuguez «poilao» é uma
mafumeira ou Eriodendron. E' o mais agi-
gantado produeto da flora d'aquellas terras.
Egual ou maior, só fora dessa região se
encontra a Adansonia.
*>3
Só correndo e saltando se pode escapar
áquelle risco na apparencia innocente.
Estes perigosos bancos encontram-se
junto ás ilhas das Arcas., de Bolama e das
Cobras. A de Mantambor (máu-tambor) é
notável pelo rumor da mareta que, na
praia-mar ao longe, e em noites de tempo-
ral parece o rufar de tambores.
E* perigosíssima á navegação.
As coroas movediças de areia também se
encontram nas costas de Bretanha e de Es-
cossia; e Victor Hugo faz d'ellas uma des-
cripção viva e palpitante de verdade*
Aos «enlizements» dos francezes chamar-
lhe-iamos de bom grado assolapamenlos.
Que o termo não é bonito, isso vemos
nós ; porém define melhor.
Nota transitória,
O garoto podia muito bem ter a cabel-
leira côr de oiro fosco, porque como se sa-
be, esta côr mais ou menos ruiva, mais ou
menos almagre, encontra-se em todas as
raças humanas.
Porém não são as nuances do systema
pilloso que nos aquece o prurido de alinha-
var mais esta nótula: e por isso que tem
de ser relativamente extensa, pe limos des -
culpa ao leitor.
Para elles o tom avermelhado do cabei-
lo tem o quer que é de «feitiço» por que,
segundo os seus «saibos» ou sábios (pouca
ou muita, experimental ou expeculativa —
elles também lá tem a sua sei ene ia), — a
04
cor distinctiva do Tran (!), daa Ginas ou
Génios, é positivamente ruiva; e também
porque os primeiros homens, os homens
primitivos (fen-cotó) eram todos dessa cor:
e além d 'isso . . . muito baixos, quasi anões
atarracados, de braços longos, calcaneo
enorme ou exaggeradamente desenvolvi-
do^) £ a accrescentar: tartamudo, e posição
erecta! — talqualmente, sem tirar nem pôr,
o homem alalo, o pythecantropo terciário
deHaeckel(!!...)
Agora perguntamos nós: - Quem foi que
lhes ensinou?
É para notar que esta crença existe des-
de tempos immemoriaes antes que aquelle
aliem ao illustre viesse espantar o mundo
com as suas theorias e hypotheses^
E — pela millésima vez: Não ha novida-
des debaixo do sol!
O mais bonito e interessante é affirma-
rem que o tal homem ou animal ainda exis-
te (!!...) com os nomes suggestivos de
Fencotó e Condor on; e noutras partes, com
os nomes de Cudéne e mourosinho encan-
tado, sempre de barretinho vermelho (a
cabelleira ! na Africa o barrete é substi-
tuído por uma cabaça, isto é, a mesma ca-
beleira intonsa, fleurie).
Tudo liquidado — Cudéne, mourosinho e
o «garoto» de cabaça, vêem a ser os mes-
mos entes mysteriosos de Haeckel e dos
negros, que passaram á lenda com diffe-
r entes nomes, por isso que todas as lendas
bem sondadas dão sempre n'um fundo so-
lido de verdade
Haverá alguma relação de semelhança
65
entre o Fencotó ou Fencoten com o Rànotó-
moniç das florestas das Novas Conquistas? —
E uns e outros serão idênticos aos homens
selvagens encontrados por Hannon no seu
périplo para alem das Columnas no golpho
de Senegal? — Ou serão os mesmos homens
cabelludos das ilhas Kuriles dos Annaes
chinezes?
Claro está, que o gorilla nilo é aqui cha-
mado. ... o gorilla de Savage.
Mas, emfím, de toda esta noticia ultra-cu-
riosa para os apreciadores, e ultra-impor-
tantissima (passe!) para os zoologos e an-
thropologistas, o mais que podemos concluir
de positivo é que os negros affastam a sua
raça dos taes seres hypotheticos tanto quan-
to approximam os brancos, em geral, das Gi-
nas, dos Irans e dos Génios !
D'ahi a adoração «fetichista» da nossa
cantadeira pelo seu menino por causa
do seu cabello côr de oiro, e olhos côr de
fogo. . . uma divindadesinha que, quando
anda, a terra treme!
£ nisto roda toda a sublime ideia, a
pedra de toque destas pérolas: a bclleza so-
brenatural dos deuscs,com que a nossa can-
tadeira revestiu um mortal na infância —
belleza egual a das Anse-fledês e Alb hei-
das dos germanos antes, e mesmo depois da
influencia civilisadora do christianismo.
VII
APOLOGO
O Bei Djambatúto
[M dia os pássaros, sentindo-se des-
animados pelos estragos que o mi-
lhano fazia na sua geração, reuni -
ram-se em assembleia para eleger um
rei que os defendesse d'aquelle implacá-
vel inimigo : e os votos recahiram em
djaiiibntiUo.
«E' djambatúto um passarão de olhos
vermelhos, voz de espavento, o mais to-
lo e mofino de todos os pássaros».
Não passou muito tempo que não se
vissem obrigados a ir ter com o rei, pa-
ra se queixarem de que o milhano con-
tinuava a fazer grande devastação nos
seus filhos ; e o rei mostrou na sua có-
lera os seus olhos encarnados.
68
Os pássaros, vendo aquelle assomo da
real indignação, retiraram-se muito con-
tentes dizendo : com o nosso rei nin-
guém brinca !
Mas, como o mi lhano continuasse a
fazer sangue, voltaram dentro em ponco
com as mesmas queixas. E o rei mos-
trou na sua oolera os seus olhos encar-
nados.
D'esta vez, os pássaros retiraram-se
com o bico cahido, e disseram uns para
os outros : «ermons t enó rey bermedjo*
na rrí odjo amontona Irmãos ! o nosso
rei apenas tem olhos encarnados ; e por
isso, o que cada um tem de melhor a
fazer, é vigiar e defender seus próprios
filhos.
Judicioso conselho! muilo mais acer-
tado do que o da substituição do inoffen-
sivo djatnbatúto por um outro rei, que
lhes podia sahir uma serpente : no que
mostraram maisjuizo do que as rãs, que
também tiveram um rei— um rei tronco —
que por vaidade reclamaram ao pae dos
deuses.
Por nos parecer muito curiosa a bella
transcripção deste conto em dialecto criou-
lo — que nos serviu de th ema para a nossa
«9
composição tanto ou quanto ao sabor das
litteraturas cultas — damol-a na inte-
gra, sem lhe alterar a forma, por nos
merecer todo o respeito o seu auctor,
que é um rapaz muito esclarecido e
ti m dos nossos mais estimáveis auxi-
liares n'este género muito árduo de tra-
balho. A sua maneira de escrever é mais
normal e mais corrente que a nossa.
pjfà^
Storla de djambatutú
ré de paatroa
«Um dia pastros djuntâ ês fallâ: Ermons ! manhote
co 1 falcon na eabâ nos fidjos; mindjor na eseodje um
águêm de respêto, na facêl no ré. Tudo responde:
ió... ióo, i birdade, parque se i ca sim, na ta fica
■im fidjo. Alá que ês fallâ: quem que na ta pôe nos ré?
Um som respondo i fallâ na poi djambá-tútú,
parque el que si odjo mas burmedjo de que tudo pas-
tro. Es conta djambatutú tudo, i seta, ês facêl ré.
Nem i ca passa mem manga de dia, falcon co' manho-
te rabatâ fidjos de pastro.
Pastros djuntâ ê ba quéçá nho ré. Nho ré responde
i fallâ ês: Bô deçâ par nha conta, 'n ta mostra ma-
nhote co 1 falcon. Outro dia manhote co' falcon torna
rabata fidjo de pastro.
Pastros torna djuntâ ê bá tem co' djambatutú.
Quel sintâ-té i burmedjâ ôdjo, i brabo prope, toroo
pastros falia: 'ndje. . .! es biás li ô, som i dá-no pur-
bidencia. Nim i ca tarda, manhote co 1 falcon torna
m'barfustâ co 1 fidjos de pastros. "Èa torna bá quéçá.
Home! djambatutú sinta te i orfá prope, i brábo, i
burmedjâ odjo i djurmentá cumâ i ta dá cabo de
tudo manhote co' falcon que tem na mundo.
Alá que pastros sai, e falia um outro (una aos ou-
tro»): Ermons! É no ré si odjo burmedjo naman amon-
ton: dêde men è câ ôçâ tambê manhote co' falcon.
Cada alguém taratâ de si fidjo parque si no na fiá na
el, na câ tâ fica co 1 nim um som».
Âfftfanttn»
VIII
nharambá
am baba oatir oh !
a m bá cobâ llngron.
»n bá-ba eaúr oh !
9m bá cobâ llngron.
pêç cabalo djidjih co-mi oh !
8UI pupâ probe de mim !
testemunho pó de gamboa
ali q'am djargà
a mi ô neto d'antula*ni co-1 oh!
neto.
a mi ê neto d'aDtala-m co-1 oh!
noto ;
nonde polon q'ercè de se bontade,
neto;
aonde tarçade fassê porfia co ponta de sol oh
neto.
alá <ine nha bida stá oh !
ali que nha bida stá !
nonde palmora sota ramo
alá que nha bida stá !
nonde pol«n q'ercô de se bontade
sem ser regado. '
nonde nbae cuíca pote de lete
alá que nha bida stá !
probo de mi oh ! na dandú!
probe de mi !
probe d j mi oh ! na dandú
probe de mi !
nonde bjogÔ pupâ ea-ea-ea ! oh 1
da-m 1 eanbaeo !
nonde balanl apupa nldal nlda !
dam' gambanh !
am obi cèlò-cèlb! !
am djantlh bás de praia.
»m obi cèlò-cèlò !
am djantlh bás de praia,
na porto de má lissa bera
am ca odjâ nha fidjo macho oh !
aui bidà aui codjè pedra de biamanta
am consola.
amor dja-ni ficha oh !
amor dja-m ficha.
amor dja-m ficha oh !
amor dja-m ficha.
3 ai bota chabe na fui: do do mar oh !
amor dja-m ficha :
encantado dja pauhal-o oh !
serpente dja 'ngulM
-J 3 „
ploto da-m' licença
pa- m canibrl cuàr.
ploto da-iD 1 licença
\}a.-'m cíimbii cnur,
dm bá pa camba eaur oh !
pôç cabalo djldjlh comi !
am sota mon na peto oh !
dm papa nha fidjo ben m ama !
planqueta na ml oh !
planqueta na mi !
planqueta na mi oh -
planqueta na mi !
fumo d'ôro na nha fidjo macho oh !
planqueta na mi !
fumo d'ôro na fidjo macho oh !
planqueta na mi !
NJ-ÍARAMB/VN/VS
Nharambá, o bardo porven-
tura mais querido e venerado pelos in-
dígenas da nossa costa da Guiné, teria
seus quatorze annos, o máximo dezoi-
to, quando começou a cantar, por ser
n'es8a edade que as moças Pepeis de
Bande, de Inté e de Ântúla exercem
a sua pequena industria de vendedeiras
de cuscus e batánga nas ruas de Bis-
sau, e á sombra dos poilões da Mura.
E Nharambá era uma d'essas vendedei-
ras, no dizer de uma rival que, invejosa
da sua fama, parodiava as suas cantigas
com vaias e palmadinhas no ar como
quem afugenta avejões i})*
Explendidamente nutrida, havia no
seu porte, no seu andar — demarche —
(i) Vid. Imitações no APPENDICE.
um quid extraordinário de vigor e de
«vibrações.» Mais um motivo para a cha-
cota e apupos das suas rivaes. Mas ella
proseguia no seu caminho sem se arre-
cear pelos seus calcanhares.
Aquelles mesmos que se diziam seus
sinceros admiradores, não podendo ex-
plicar como ella viera a ser a primeira
cantadeira do seu tempo, molestavam-na
com a suspeita de que tivesse feito pa-
cto com a serpente das praias, ou das
arribas do mar, de Nhácara ou de Pan-
tufan, vendendo a sua alma ao diabo a
troco do génio das cantigas.
— E' lá possível ? 1
— Uma creança !
— Não tem que ver: «pegou Iran.»
Era assim que se rosnava.
Cançada de combater tão extravagan-
te ideia, acabou por dizer ser verdade
ter ido uma vez ás praias do mar, mas
á pesca de mexilhões : e que se a ser-
pente se parece com um cavallo-mari-
nho (o que seria na verdade extravagan-
te !), por Deus, que lhe causou um gran-
de susto ; e se lhe não davam credito
fossem «perguntar» ás brutas cannas das
gamboas . . . N'um grau de civilisação su-
perior teria dito : que fossem perguntar
ás nymphas dos cannaviaes de Midas das
orelhas grandes, e não andaria mal. Com
effeito ! O que entenderá o usprito ma-
liai», ou «maligno» acerca de cantigas?. . .
De uma vez ás lindas praias
fui á pesca de mexilhões.
Fui á pesca de mexilhões
de uma vez ás lindas praias ;
mas um cavallo -marinho
arremetteu contra mim :
assustada fugi,
e fui
esconder -me nas gamboas.
E são d' isso testemunhas
as cannas das armadilhas,
a quem podeis perguntar.
Ella mesma accrescenta e completa
estas interessantes noticias biographi-
cas a seu respeito, quando, cantando
louvores á sua terra, descreve ao som de
clarim o que n'ella ha de mais notável :
os homens de grandes estaturas, e os
guerreiros que madrugam no campo das
batalhas desafiando o sol !
Da tribu de Co sou filha :
sou neta da tribu Có
d?Antúla. Onde os poilões
crescem á sua vontade:
onde os raios das espadas
desafiam as alvoradas !
É para notar esta pompa de imagens
tão peculiar das cantigas de Nharambá :
grandes arvores que se vêem «crescer á
sua vontade»; allusão aos homens agi-
gantados da sua terra, e terçados que
77
afazem porfia com o sol, que aponta»
nas orlas do mar ; outra allusão aos
valentões de A titula, os mais famigerados
de toda a ilha.
Esta preoccupaçâo pelas grandes coi-
sas e sempre pelas mais altas e mais
sublimes, e o singular emprego de uma
linguagem muito fora dos moldes popu-
lares, terra a terra, é tão suggesti-
va que, Deus do oeo ! parece que aquella
negrinha apesar de o ser, trazia a sua
cabecita entre nimbos. . . como OSSIÀN.
E comtudo, Nharambà não obstante
haver nascido, a bem dizer, detraz de
uma densa e larga nuvem prenhe de re-
lâmpagos, os seus sonhos, o seu ideal, era
pela vida modesta e obscura das vende-
deiras de leite ; e longe de se mostrar
indifferente perante o sussurro myste-
rioso das florestas virgens agitadas por
invisiveis Génios ... os poilões e as pal-
meiras eram os seus encantos.
aE lá que a minha vida está»
onde a palma das florestas
agita os seus ramos.
aE lá que a minha vida está»
onde os poilões agigantados
crescem á sua vontade
sem regas e sem cuidados :
onde as moças feirantes
vendem tarros de leite
na praça rumorosa.
<
78
Coherente com estes bons sentimentos
de mansidão e paz, manifestou sempre
o seu horror pelas «luctas em que os ho-
mens se matam uns aos outros para
comprarem a vida» : (!) e sobre tudo
quando vê um Bijagó de Orango ou de
Canhabak, que se levanta n'um impeto
a perguntar pelo seu tridente, e umBa-
lanta pelo seu terçado soltando os mais
selvagens gritos.
Ella então pendura n'uma Livingstonia
a lyra anacreontica, e volta de novo a
tanger o seu clarim.
Ai de mim entre os guerreiros
combatentes de Dandú ! . . .
Onde o forte Bijagó
solta o seu grito de guerra,
kahLkah! Kali ! perguntando,
minha azagaia onde está ! f
Onde o rápido Balanta
dá o seu signal de ataque,
nicla! nida! bradando,
o meu terçado onde está I f . . . (*)
(*) Dandú, é o grito de guerra dos gru-
metes da casa Barros, de Bissau. — Nunca
nos souberam dizer a razão porque prefe-
riram este nome a qualquer outro.
ctaiicltí é uma vasta região no reino
Mandinga, que se estende até á margem
esquerda do Geba perto de Gole e de Chi-
me, e foi onde o primeiro portuguez, que se
estabeleceu na Guiné, teve uma «casa gros-
79
A' sua lyra também não faltavam as
cordas cTalma e dos affecto6 mater-
naes.
Nharambá tendo-se enamorado de um
mocetão de Maláe (Malampanha o a Geba)
a quem chamava «seu filho másculo» seu
agigantei) dizia nas suas cantigas, que
nunca foram para ella perdidos os seus
passos em procura do seu amante ; ou
sempre o encontrava ou, como o génio
da varinha do condão, semeava-lhe a
terra de pedrarias.
Grande grita á beira mar
no porto da Lisa Vera !
Talvez seja o meu gigante
Que vem ahi de Maláe f
Perguntei^ fui ver.
Não era.
Apenas umas canoas
de (tramalheirosn que vinham
em viagem á Guiné.
Voltei o rosto e a meus pés
vi diamantes brilhar.
sa» a que os indígenas deram o nome de
oan-Hcnhor, «a casa do Senhor.»
As memorias dos nossos navegadores,
sem exclusão de Cadamosto e de Almada,
não nos deixaram noticia d'este primiti-
vo núcleo de povoação dos portuguezes
n'aquella costa d'Africa ; e tal noticia não
ria, por certo, destituida de interesse.
80
Baixei- me e apanhei um,
com esse me consolei. (')
Nfio se fiando muito ou nada na cons-
tância d'aquella divindadesinha de azas
de borboleta e olhos travessos, enca-
deou-a, lançando as chaves no fundo do
mar, as quaes sendo apanhadas por um
encantado, foram ainda parar na barriga
de uma serpente.
Como se vê, esta chave n&o estava
menos bem guardada do que certo «co-
fre pezado» que os marujos n'uma tra-
vessia lançaram ao mar.
Fechei o meu amor.
O meu amor fechei-o
com um cadeado de prata,
e lancei as chaves ás ondas:
( l ) Ramalheiro ou ramalhada fhictuante
no diluvio, ou arrastada nos vae-vens da
corrente. Termo injurioso inventado por
Nharambá para disfarçar o seu desapon-
tamento, lançando ao ridiculo os Manjacos
da Costa de Baixo, grande tribu da raça
Pepel, embarcadiça, honesta, trabalhadora,
e certamente a mais hábil de todas as ou-
tras tribus da mesma raça, e com institui-
ções politicas muito mais avançadas ain-
da. — E não obstante são lá n'aquellas ter-
ras tratados por toda a gente como os
gallegos em Portugal.
Cá e lá. . .
81
e o encantado apanhou a !
o encantado não foi longe
que não cahisse tragado
pela serpente do mar. ( â )
Tempos depois, viu sorrir-lbe o fructo
dos seus extremos e dos seus cuidados ;
pois que lhe ouvimos os gritos no cami-
nho das dunas do mar, chamando por
seu alho, quando um hippopotamo lhe
barrou a passagem.
Deu me o piloto licença
de eu ir ás dunas do mar.
Quando nas dunas andava,
de repente ás «gargalhadas»)
grande cavallo marinho
arremetteu contra mim!
Soltei afflictivo grito!
e por meu filho chamei :
Corre, filho, vem mamar
o teu leite derradeiro !
corre, corre vem meu filho
aos peitos da tua mãe ! ( 2 )
Esta ê uma das canções que durante
muitos annos ouvimos cantar com mais
frequência e com o mais internecedor re-
colhimento ; era deveras edificante ! —
o que prova que a bondade d'aquella
(i) Cf. no APPENDICE Canção de par-
tida,
(2) Cf. no APPENDICE- D. Silvana .
82
gente está muito longe de merecer tão
injustificável e injustificada comparação
(quem nos acreditará ?!...) com a bon-
dade (sic) das feras ( sio, sio l . . .) (*)
Por certo, que o grito de Nharambá
n'aquelle momento de suprema angustia
não era menos humano do que os tristís-
simos lamentos de D. Silvaria, chamando
por seu «menino» horas antes de baixar
á sepultura. Nem menos sublime do que o
gesto verdadeiramente pathetico das mães
apertando aos peitos os seus filhinhos,
(*) Não diremos, por honra do convento
onde topámos com esta e outras gracinhas,
aliás raras em outras religiões; o que é
muito para admirar.
Todas as vezes que, (sem offensa),nos ap-
parecc um ponto pela frente a soprar logo-
machias e superlativos acerca dos negros
dizemos logo com os nossos botões : Este %
coitado! nunca poz o seu rico pesinho em Afri-
ca; e se por lá passou, foi a correr.
Claro está que os Barrosos, os Antunes,,
os Nogueiras, os Henriques de Carvalho
não são vulgares. Mas, pelo visto, todos
gostam, e não perdem occasião de molhar a
sua sopa.
Por Deus ! se antes de lançarmos a pri-
meira pedra á prostituta, nos recolhêsse-
mos por um momento num exame de con-
sciência atravez da Historia, Christo teria
tempo de baixar o seu divino rosto para
escrever hierogliphos na areia ! . . .
Cf. APPENDICE — 2Vo centro d? Africa
83
quando, em um dia fatídico, escutaram
os sons de uma trombeta que abalaram
<os montes de Portugal.
Mais.
De uma vez, indo Nharambá com o
seu filho ás costas ou ás cavalleiras
atra vez de uns campos, onde, dias an-
tes, se tinha ferido uma batalha, pre-
sentiu ocoulto no capim o gentio que
experimentava as escorvas !
Este passo, de uma rara invenção
dramática, serviu-lhe de thema para um
dos seus mais bellos improvisos.
Trazei, muito embora,
vossas armas carregadas
de planquetas de metralhas,
de pólvora dourada.
Mas disparae contra mim
as vossas metralhas
e contra meu filho
a pólvora dourada ! ( l )
Basta de commentarios.
As cantigas de Nharambá, bem como
as de Monde, e da cantadeira de nha-
menino, são muito conhecidas e popu-
larisadas n'aquellas terras, para que possa
haver tentação de se suppor que preten-
(*) No original le-se : fumo de ouro.
84
demos pintar deliciosas auroras côr de roza
a favor dos negros, suppondo-os capazes
de tfio finos e levantados pensamentos.
— Quantas vezes no silencio da noite, ou
em noites de luar, nfio estacávamos sur-
prehendidos, ouvindo coros de um or-
pheon ou cousa parecida, em que ho-
mens, mulheres e creanças cantavam as
Nharambanas !
Foi assim que de coro em coro, de
bocca em bocca, atravessaram aquellas
originalíssimas creações de tfio nativa
singeleza, cerca de quarenta annos sem
notáveis differenças na forma. Nem dou-
tra maneira, cantadas ou declamadas em
rhapsodias, viriam dos cyclos heróicos
transpondo outros cyclos de longuissi-
ma duração — a Ilíada e a Odissea.
Em conclusão. Que nos desculpem re-
novarmos mais uma vez a nossa pergun-
ta.
Haverá nas canções genuinamente po-
pulares de povo-povo (Garrett) de outras
raças humanas e sem litteratura escri-
pta, alguma coisa que seja positivamente
melhor? Heli Chatlein, Bertrand Bo-
candé, o bispo H. Gregoire da real So-
ciedade de Gõttingue; Mungo Park, os
Schuchardt e os Blumenbach, também
eram, sinceros admiradores da litteratu-
ra tradicional dos negros, que elles conhe-
ciam muito melhor do que os nossos im-
pagáveis rethoricos que teimam, desde os
tempos do mestre G-ongora, bras dessus,
bras dessous oom o mestre Darwin, em
não os distinguir lá muito bem dos bru-
tos. . . por amor da arte.
Ainda ha muita gente que acredita nos
antípodas de Adão ! Uma doce mania
como qualquer outra.
APPENDICE
Á5 JNÍharambarçaj
Imitações
Cantiga de uma rival de Nharambà
nharambà oh ! . . .
chàe de nharambà !
nharambà oh !...
chàe de nharambà t
nharambà badjnda de camba de polon,
chàe de nharambà t
nharambà la iandâ càsfllp-eassapà,
chàe de nharambà.
Oh ! que terrível rapariga é esta Nha-
rambà ! — Fora com a cuscusseira dos poi-
lões da Mura — Fora ! fora com esse hy-
popotamo cujo andar é mesmo assim:
Quadrupedante putreá Bonita qaatit angula campa
87
Resposta attribuida a Nharambá :
Quel ê quen, oh?
VÀe ! quel ô quen? ! . . .
quel ê quen, oh?
BÀe t quel ô quen ? ! . . .
se ê ea quel-e bafo de djugndl
nariç melado!
■e ê ea qule-e bafo de djvffvdl
nariç melado !
— Quem é ? — Mas quem é a cantadei-
ra ?.. .
— Ora ! quem ha-de ser 1 senão aquella
ranhosa, cujo cheiro apesta como fartum
de abutre !
Uma rival de Tóte
abó téte de ean*d'-olbéra,
lote!
abó lote de ean-d'-olbéra,
téte!
abó bo ta querê dôç e dôç oh !
sima galinha !
■e ê mi que panhi-bo
co' nha fldjo macho oh !
9m la ratadjá-bo
sima fassenda
de losia garande
Oh ! desavergonhada Tóte ! Tu, que
tens amantes aos pares como as galinhas;
cuidado ! que se eu alguma vez te chego
a apanhar com o meu conversado, faço -te
em farrapos como se fosses uma peça de
fazenda «de loja grande.»
88
Resposta de Tóte :
amlq' 6 té te de eand'-olbóra :
tote!
a mi q' ê téte de eaa-d'-olbéra:
totet
em bós leba-m' na tina de ahàera «
totet
eà bói leba-m' na tina de ahàe oh !
to te!
A chamada Tóte d'01iveira, sou eu. —
Por quem sois 1 Não me leveis as tinas da
serpente de Nhácara, a mim Tóte ! — Não
me leveis as tinas das bruxas de Bissau, a
mim Tóte ! (*)
Uma que se queixa oontra um Jalofo
que pretendia roubar- lhe o filho
De todas as cantigas que se cantam na
corda de Nharambá, com infinitas varian-
tes, esta de foroà 'ndjàe é a mais perfeita
e harmoniosa.
•oro* 'ndjàe todjê nha fldjo oh
barandâ ! . . .
na rua de fera,
antam am ta manda conta se m&e oh!
na fforé,
pa e' ben consedja-1.
«Na rua da feira» soroá 'Ndjáe negou-se
a entregar-me o meu filho, flexível como
(') O texto diz nháe, mulher Pepel de Bissau; po-
rém deve-se entender que se trata de nhaesj que
têm tinas de lavadeiras durante o dia, e tinas salga-
deiras durante a noite.
Salgadelra, em sentido inetapborico— mdltficio*.
\
89
o vime, bar anda. Eu então mandarei a Go-
re contar a sua m5e (do rapaz) para lhe
vir pedir explicações.
D. SILVANA
Mamma, mamma meu menino,
D' este leite de paix&o,
A' manhan por estas horas
Está tua m&e no caix&o;
Mamma, mamma meu menino,
D'este leite de pezar,
A' manhan por estas horas
Está tua m&e a inteirar;
Mamma, mamma men menino,
D' este leite de amargara,
A' manhan por estas horas
Está tua mãe na sepultura;
Mamma, mamma meu menino,
D 1 este leite derramado,
Que ámanhan por estas horas
Está meu corpo sepultado.
(Do Romanceiro português, por L. de Vos-
eonctUo» — 1866.)
90
(Cattfão br parti&a
Ao meu coração um peto de ferro
Eu hei-de prender, na volta do mar.
Ao meu coração um peto de ferro. . .
Lançai- o ao mar.
Quem vae embarcar, quem vae degredado,
As penas do amor nto queira levar.
Marujos, tomae o cofre pesado,
Lançae-o ao mar.
E hei-de mercar um fecho de prata.
O meu coração é o cofre sellado :
A sete chaves guarda uma carta,
Releio-a no dia do teu noivado.
A sete chaves a carta encantada,
E um lenço bordado. Esse hei-de o levar. . .
Que é para o molhar na agua salgada
No dia em que emflm deixar de chorar.
Lisboa,' 1893.
Caiullo Pmiiavba.
(Extr. da Tribuna),
Cuscuz e batanga
Não sei se temos tido a boa fortuna de
nos fazermos comprehender.
Não é, nem nunca foi nosso intento fa-
zer gala de erudição de novas sciencias y
de novas artes e litteraturas quasi absolu-
tamente desconhecidas nos paizes cultos
e que são apesar d'isso — banaes, para uns;
ridículas e extravagantes para outros, e
com que, demais a mais, nunca ninguém
fez fortuna.
Não importa.
E d'ahi, quem sabe... Talvez, confor-
me se nos tem dito, os ethnographos e os
doutos orientalistas, tenham um outro mo-
do de pensar muito diíferente.
Não sei.
O nosso fim ao escrever estas «curiosi-
dades» é tentar convencer a quem faz
o favor de nos ler — não com bolas de sa-
bão e palavreado de grandes effeitos de
embasbacar as turbas — mas com o maior
numero de factos, que se acham sob o es-
treito domínio do nosso conhecimento, de
que os negros estão muito longe de ser
o que por ahi vulgarmente se diz e se es-
creve.
E d'esses factos, d'entre muitos outros
que iremos registando, lembra-nos agora
este : o conhecimento da physica applica-
da, naturalmente rudimentar, que mani-
92
festam já na confeição de cuscus por meio
de uma machina de vapor . . . machina ou
apparelho que consta de dois corpos in-
dependentes : um binde (i) com orifícios
ao fundo, e que se ajusta á bocca de uma
panella onde ferve uma pequena porção
d'agua. A fuga do vapor é vedada em to-
da a linha de contacto com uma pouca de
massa impermeável. O vapor obrigado a
atravessar o crivo d'essa espécie de capa-
cete invertido dos distiladores vulgares —
cose ou recose como que a banho-maria
a farinha que enche completamente o
binde.
Então as reacções physico-chimicas des-
envolvem o glúten que, á maneira de
uma substancia colloide, liga os grãos de
amido formando um todo que aflecta as
formas de um solido hemispherico, leve e
esponjoso.
E ahi temos nós uma espécie de pão
cosido a vapor, e que não tem nada de
desagradável.
Vão muito esquecidos os bons tempos
em que as raças, «as únicas progressivas»,
cosiam o seu pão entre duas pedras aque-
cidas ao lume. — Os negros Pepeis de Bis-
sau também usam do mesmo processo;
porém com os aperfeiçoamentos que acom-
panham sempre a natural evolução do es-
pirito humano.
Uma placa, chapa de ferro ou de bar-
(i) O binde é de barro, e tem a formula de uma ca-
isula de porcellana.
93
ro, é assente sobre brazas, e por cima de
essa chapa se lança uma porção de massa
de farinha, que se estende por seu pezo,
ficando depois de cozida com a forma es-
palmada do pão da edade de pedra polida,
ou dos Kjoekkmoenddings.
E' a batanga.
A pedra aquecida que então (e ainda
hoje (!) usam os toscanos na fabricação
da polenta) — se sobrepunha, tinha por
fim conservar a egual distribuição do ca-
lor atravez de toda a massa, para evi-
tar a sua carbonisação de um lado ; pois
essa pedra dura e requentada em que só
se podia pegar com tenazes de páo — foi
substituída entre os negros por uma sim-
ples folha de bananeira, entreposta amassa
e á chapa em contacto com o lume ; sendo
a funcçao d'essa folha perfeitamente egual
á de uma boa rede metálica dos laborató-
rios chimicos 1
i
No centro d y Africa
«Achando-me na Kamba em i852, um
incêndio produzido pela explosão de cerca
de 3o kilogrammas de pólvora consumiu
a casa que eu habitava, e tudo quanto eu
possuia. Era hora adiantada da noute
quando isto aconteceu, todavia de todos
os logares proximosos gentios correram
em nosso auxilio.
A perca porem foi total. Fiquei, bem
como um companheiro que comigo ha-
bitava, somente com a roupa no corpo.
Nós estávamos n'aquella terra havia ape-
nas um mez e por isso poucos conhe-
cimentos tínhamos, no entanto todos os
Negros nos queriam levar para suas casas,
havendo só difficuldade na escolha, para
não offender os que se julgavam com mais
direito de nos receberem.
Afinal decidi-me pela casa do Muene-
Xicondeixoy chefe da localidade; e que
era meu visinho.
Como o meu companheiro não podia
fazer uso das mãos, por estar muito quei-
mado, uma preta mettia-lhe o comer na
bocca; outra estava sempre ao nosso lado,
95
para nos enxotar as moscas. E* bom ad-
vertir que nós não tínhamos escravos.
Emfim éramos tratados com um cari-
nho, com uma dedicação como se fosse-
mos membros da família. Toda a minha
vida me recordarei com reconhecimento
dos benefícios que n'aquella occasião re-
cebi tTaquella boa gente.»
(A Raça Negra, por A. F. Nogueira,
pag. 121.)
Com o celebre viajante Mungo-Park
deu-se um caso semelhante que passamos
a transcrever textualmente :
«Le voyageur Mungo-Park alloit périr
de besoin au milieu de TAfrique; une
Négresse le recueille, le conduit chez elle,
lui donne Thospitalité, et assemble les
femmes de sa famille qui passèrent une
partie de la nuit à íiler du coton, en impro-
visant des chansons pour distraire 1'hom-
me blanc, dont Tapparition dans ces con-
trées étoit une nouveauté : il fut Tobjet
d'une des ces chansons qui rapelle cette
pensée d'Hervey, dans ses Mèditations : Je
crois entendre les vents plaider la cause du
malheureux (Hervey, Meditat , p. i5i)
Voici cette pièce : «Les vents mugissoient,
et la pluie tomboit; le pauvre homme
blanc, accablé de fatigue, vient s'asseoir
sous notre arbre; il n'a pas de mère pour
lui apporter de lait, ni de femme pour mou-
dre son grain*; et les autres femmes chan-
toient en coeur :
%
«Plaignons, plaignonsle pauvre homme
blanc; il n'a pas de mère pour lui appor-
ter son lait, ni de femme pour moudre
son grain.» (Voyages et découvertes dans
Tinterieur de rÀfríque, par Houghton et
Mungo-Park.)
(H. Grégoire, De la litterature des Nè-
gres. A Paris, m. dccc. vui— p. 121.)
/*hP>
Como é de suppor, Nharambá não po-
dia por duas vezes referir-se simplesmente
ás grandes arvores, que <*á sua vontade»
crescem na sua terra; por quanto, nas
florestas todas as arvores crescem muito
á sua vontade : por isso estamos conven-
cidos, de que, uma das vezes pelo menos,
ella se expiimia em sentido figurado, se-
gundo o seu costume ; e os seus poilões
seriam também homens agigantados.
Com effeito, houve, não ha duzentos
annos, na aldeia de Antula, sua terra na-
tal, uma fidalga chamada Alelé, filha de
Bombôla, tio do regulo Fafá. Esta Alelé
teve dois filhos chamados Fula e Balam-
bar, que deixaram uma extraordinária ge-
ração em numero e qualidade de homens
de avantajadas proporções. Por isso, foi
Alelé «santificada» por ter sido uma be-
nemérita da sua tribu.
Em nota, diremos, ser esta a segunda
vez que falamos em «santos» ou «santifica-
ções:» a primeira foi na Tribuna. Bem
sabemos que, com excepção de Livings-
ton, muitos se hão de rir com o riso es-
carninho dos preconceitos. E não accres-
centaremos, que sempre se riu melhor
5
98
ultimo a quem coube a sua vez de se rir,
porque seria em nós uma sensível falta de
amabilidade para com os nossos leitores,
cuja benevolência desejamos merecer.
Porém, com alguma paciência mais, hão
de ver que nenhum de nós tem motivo
para sair do seu serio, por ser a cons-
cienciosa exposição dos factos o nosso le-
ma, a nossa força, que não os nossos ta-
lentos.
Que podemos errar é certo, como toda
a gente, o que não é razão para se zan-
garem comnosco, e muito menos para
nos quererem mal. Humanus sum, nihil a
me alienum puto.
«Santificar» foi o termo que nos trans-
mittiram quando cavávamos paciente-
mente nos riquíssimos stratus das theo-
gonias dos negros, levados pela curiosi-
dade em comprehender a metaphorica
significação e o valor d'estas singulares
palavras de Livingston: «A religião do
negro é doce.» E que, «acerca de Deus
nada tínhamos a ensinar-lhe.» Julgamos,
pois, conveniente conservar o termo «san-
tificar» por não ser completamente des-
arrazoado, se com e ff eito a religião d'el-
les e doce, e se nada temos a ensinar-lhes
acerca de Deus e seus attributos.
De passagem notamos ainda que não foi
sem intenção que escrevemos stratus, por
ser tão difficil apanhar á mão as linhas ge-
raes da historia d'aquellas tribus,da suapo-
litica, da sua religião, da sua moral, como
é em extremo difficil evocar á luz os monu-
mentos soterrados da prehistoria dos po-
■\
99
vos cultos. Além de que, em vista de não
poucas razões e argumentos, que temos
encontrado a cada passo n'essas escava-
ções, estamos cada vez mais tentados
a crer, que os negros com a sua historia
lendária, seus usos e costumes curiosíssi-
mos, são os herdeiros ou actuaes represen-
tantes de uma grande civilisaçao despeda-
çada, cujos fragmentos se encontram ainda
dispersos pelas florestas, e sob as estratifi-
cações do húmus accumulado durante in-
contáveis centenas de séculos.
Agora, com a devida vénia, passamos
adiante.
Para um individuo merecer o culto de
dulia fé rigorosamente o termo) além de
uma vida «irreprehensivel» é necessário
que seja causa ou origem de a sociedade
entrar na posse de grandes benefícios,
ou que seja elle o auctor d'esses mes-
mos benefícios. Com os reis ou chefes
d'Estado dá-se o facto singular de que
também podem ser santificados, se duran-
te o seu longo reinado (o tempo entra co-
mo coefrkiente mais seguro das qualida-
des moraes do homem, e o seu minimo são
noventa annos !) ( # ) não tiver havido a
mais ligeira perturbação seguida de revol-
tas e guerras sangrentas que maculam a
*) Não digas feliz a um homem antes da sua morte
—SÓLON.
Não exaltes homem «algum antes da morte — EC C L E-
SIASTES.
100
Terra sagrada. . . templo e «morança» dos
seus manes e dos seus Génios.
Não contando Alelé, a qual, como vi-
mos, foi santificada por ter dado um
grande prestigio a sua tribu com uma
prole de gigantes, temos a indicar ainda
os seguintes :
Bandundú, e Surcá-Djasse um e outro,
respectivamente, reis de Inté e deManháu
— de Tildjih— que foram santificados por
terem ambos reinado n'uma linda paz octa-
viana por um espaço de tempo approxima-
damente duzentos annos.*
Aré, «potentado» de Bissau, que se sa-
crificou com o fim de applacar os deuses
indignados, os quaes não «largavam» a
chuva para castigar os homens.
O Papá Nabzéghe, vulgo Babá, rei bija-
gó de Orango, e pae do famoso Caetano,
por haver ordenado antes da sua morte a
cessação das hecatombes dos escravos, e
enterramento em vida de algumas con-
cubinas nos túmulos dos reis defunctos.
Uma pedra redonda ou cylindrica; um
cromlech ou circulo de pequenas pedras,
marca a jazida sagrada onde um sacrifi-
cador expressamente encarregado do cul-
to do «santo», vae de tempo a tempo fa-
zer as suas ofFerendas e libações. E quan-
do toda a sociedade é ameaçada por uma
grande calamidade publica, é então o rei,
a sua corte e o seu povo que se dirigem
em romaria ao logar santo para ultima-
rem as suas preces.
E quando vemos um negro ajoelhado
101
deante de uma pedra ou de uma arvore,
dizemos na infalibilidade da nossa scien-
cia : olha aquelle adorador da amateria
bruta! o
Pedimos licença para não dizer e escre-
ver em linguagem corrente — Padre feiti-
ceiro por ser terminologia para elles ab-
solutamente desconhecida e mesmo in*
comprehensivel. E o sr. A. F. Nogueira (A
raça ZNjegra) (*) parece-nos que não es-
tá longe de concordar comnosco. — E por-
quo não se hade dizer *Padre fetichista
em logar de Padre-feiticeiro ?
Se os taes Padres fazem guerra de mor-
te e exterminio aos feiticeiros, como dia-
bo são elles feiticeiros ?
Fetichismo, é um termo de ha muito
consagrado, e que, parece-nos, perdeu
completamente a ideia ou significação de
feitiço. — Fetiche ou Fetichismo, é uma re-
ligião, uma crença em Deus, nos ma-
nes, nos Génios ou semi-deuses : «é pri-
vativa dos negros d' Africa.»
Feitiço ou Feiticismo, é uma supersti-
ção, uma arte diabólica com intuitos per-
versos: se é culto, deve de ser o mais
espalhado por todo o mundo.
(*)... Cannecattim querendo traduzir no seu Diecio-
nario da Lingua Bunda Padre, Abbade e Cardeal es-
creveu: Tatá Nganga (pai feiticeiro), Nganga Cota
(feiticeiro mais velho), e Mônagua Papa (filho do Pa-
pa), o que todavia não quer dizer que se nâo possam
exprimir aquellas palavras de outro modo— {Obra ci-
tada, pag. 222.)
102
Foram os primeiros marinheiros portu-
guezes desembarcados nas terras de Mo*
çambique, os quaes, á mingua de termi-
nologia ou de diferenciação, chamaram
ao exercício religioso dos cafres— Feitiç o,
que gerou Feiticismo, que o sr. Cândido
de Figueiredo expungiu do seu Dicciona-
rio... Porque?
Escusado é dizer, que n'um semelhante
regimen de instituições, o duello entre
aquelles «selvagens» é em geral absoluta-
mente condemnado.
Pendências d'honra, poucas ou nenhu-
mas: só as ha entre regateiras, resolven-
do-se a favor d'aquella que soube dar
mais á língua; e entre os rapazes contra
aquelle dos luctadores, que tiver dado
com os costados no chão.
— Infantilidades?...
D'accordo: mas, antes assim! £ ai de
quem, no furor da brincadeira chegou ás
vias de facto fazendo sangue! E' expulso
do paiz, quando não for, «comido pela
noite». Entre os Pepeis, o sacrílego paga
tão pesadas multas para as longas ceri-
monias de reconciliação com a Terra, que
nunca mais lhe volta a tentação de socar
e agatanhar o seu semelhante.
Ha excepções, como em tudo.
Entre as obscuras tribus Cassangas que
habitam as margens do S. Domingos, tal-
vez por serem mais civilisadas, admittem
o duello de sangue e de morte, com tanto
103
que o terreno onde se dirimam pleitos
d'essa natureza, se encontre fora da in-
fluencia e jurisdicção dos homens e dos
deuses (!) Por isso, é costume abrirem um
poço para onde os contendores, amarra-
dos pela cintura com uma corda, descem
levando facas atravessadas nos dentes.
Chegados ao fundo, d'onde se não pôde
fugir — arremetem furiosos, batem-se e co-
sem-se á facada que é uma belleza !
O vencedor — é içado para fora do poço
que ficou lavado em sangue 1 E o venci-
do — é abandonado á sua sorte por não
pertencer ao mundo dos vivos nem ao
império dos mortos. (!)
Um dia, o duelista precito, apparecerá
á meia noite transformado n'um lobisho-
mem — loup garou — soltando espantosos
gritos:
aaaaaaaaaaaaaaaa mánh I
É então— que as mães dizem muito bai-
xinho n'um dialogo:
—Ouvistes, filho ?! . . .
—Ouvi !
— E' o Jifr&f rol. .
E . . . marque lá um tento, Dr. Livings-
ton! (*)
(*) Nota transitória
Já por mais de uma vez nos perguntaram se os pre-
tos teem alguma noção do tempo e dos números, e se
por ventura sabem determinar, indicar ou fixar as suas
datas chronologicas.— De uma maneira muito simples
contam os annos de «chuva a chuva» ou de «quebra a
quebra»; isto é: o tempo que decorre entre duas
agua» ou duas colheitas de arroz. Os mezes, de «loa a
lua» com as suas semanas de 6 dias, reservando o ul*
Vivo
IX
batira cáò
balira cáò oh!
bchongolon bchéne eh !
bchongolon bchéne eh !
batira cáò oh !
Hymno Pepel
A Pires Avell anoso
Ah ! Batira Cáo
lavrou canoa.
Ah ! lavrou canoa
Batira Cáo.
Ah!...
Esta cançoneta de um indígena da ilha
de Bissau ao ver o lançamento ao rio de
uma grande piroga cortada na floresta a
golpes de machado, synthetisa por uma
forma a mais espontânea e encantadora, a
mais primitiva que é possível imaginar- se,
o seu espanto, a sua admiração, perante
essa obra d'arte e industria — verdadeiro
tour de force—ião monumental para elles,
como para nós o lançamento a nado de
um transatlântico de i5 a 20 mil toneladas.
timo para deacanço e folganças. Pelo menos foi isto
que, durante dois annos observámos entre os Fulupos
e Baiotos, que passam por ser d'entre os selvagens,
OB.maiti solvagens.
Lançam mão de di Aferentes aignaea para fixar as
^ÀJUAAAfcAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA
X
CRYPTINAS
O lobo e o carneiro
qA Christiano M. de Barros
Era uma vez um carneiro muito né-
dio, que seguia todo secio por uma es-
trada fora com umas grandes bolsas e
respectivos contrapezos quando, de im-
proviso, se lhe atravessou no camkiho
um lobo desgarrado, desfazendo-se em
comprimentos.
— Bons dias, compadre !
— Bons dias, compadre! Correspon-
deu o carneiro.
— Para onde vaes tu com essas mai-
las á laia de badalos ? Perguntou o lo-
bo.
datas e os números, a saber: qtiipôs, sementes e pe-
drinhas; golpes na aresta de uma acha; feixes de pao-
sinhos atados, e riscas a carvão.
5, é em geral a base do seu systema de contar. — E
em quanto a uns apenas lhes falta um termo para de-
signar billiões (os Mandingas), outros, como os Baio-
tes, difficilmente contam até vinte, e ainda assim com
o auxilio das mãos e dos pés.— OsDravidas, nem pelo
facto de o serem, estão mais adiantados na sciencia
dos números.
106
— Vou á feira! compadre; levo ovos
para vender.
— Oh ! diabo í Vaes á feira que fica
tão longe ? ! . . . Não caias n' essa, com-
padre! l)á-me antes três marra ias e
passa-m'os, p'ra cá.
—O quê ! . . . Os meus ovos ?
—Sim!
— Pois então, espera ahi.
O carneiro recuou, e pregou-lhe ta-
manha bordoada, que o mestre lobo foi
três vezes ao chão ... e três vezes se
levantou reclamando os ovos.
Porém, o valente bicorne observou :
— Para a conta, se dá licença, com-
padre, ainda faltam três marradas .. .
Acaso estarás tonto ? ! . . .
— Bem! Então vamos á segunda, con-
descendeu o lobo.
O carneiro tornou a recuar com o tra-
zeiro : recuou, e continuou a recuar ain-
da alguns passos á retaguarda. . .
Mestre lobo vendo aquella manobra
pensou que o melhor era pôr a pelle
no seguro, e chamando pelo seu com-
padre, disse:
— O* compadre! se te demoras muito,
quando voltares não me encontras cá,
não ! . . .
E por causa das duvidas, o patife met-
teu o rabo entre as pernas e girou.
Na lucta pela vida, uma retirada a
tempo é um acto de prudência.
storia k lobo co' carnél
«Un dia lobo odja carnél na passa, i rabidi e fallal:
Nha cumpade nho dam três modjadera antan nho dam
obo. . .— Oarnél fallal : Bom : nha sequedo la peram.
A la que i racuâ, e madjal bip ! Namânâ cae i laban-
ta e falia: três... três... dôs... dôs...
Carnél fallal: não, e um som inda. Lobo responde e
fallal: Bom, e um; torna madja pô.
Carnél blda e na racua co 1 bunda. E racua. . . era-
ena. . . TI lobo caba odjal na quel manobra e fallal:
Nha cumpade:
Se nho na tarda nho ca ta ocbam li
Bis!. . . lobo po pé na sirbis. E bá se caminho.»
(Do auctor da Storia cio Djâm-
t>atú.ttk re cie pastros. Escusa-
do é dizer que esta transcripção está feita
por mão de mestre.)
XI
O jugudi e o falcão
(apologo)
Ao Dr. Ramos da Cru?
O jugudi é um abutre muito parecido
com o peru. Grande bico, e muito mal
encapotado nas suas grandes azas de côr
de lama. — Os naturaes poupam-n'o, por
ser o gato-pingado, e a vassoura dos
campos.
Um dia, estando empoleirado n'uma
arvore a fariscar carne morta, veiu
n'uma revoada pousar junto d'elle um
falcão, o qual, depois de o contemplar
em silencio, lhe disse :
— Por que e que tu, tendo um bico
tão grande e umas azas como vellas de
fragata, não vaes por essas terras fora
á caça como toda a gente ?
— Eu . . . respondeu o jugudi não gos-
to de fazer mal a ninguém ; contento-
me com a carne dos que vou encontran-
do mortos pelos campos. E' a minha
religião e a minha moral.
— Pois nós outros não padecemos
d'essas sentimentalidades. . . Vês n'a-
quella figueira uma pomba... vês? Já
me não escapa ! E arremessando-se no
109
espaço como um dardo, foi dar com o
peito n'am tronco, e cahiu sem senti-
dos.
Apenas despertado do sen desmaio,
n&o foi por certo a pomba a primeira
coisa qne os seus olhos viram. Esta ba-
teu azas e- fugiu: Quem encontrou ao
seu lado foi o jugudí que pacientemente
esperava.
O falcão muito aterrado, dirigin-lhe
então esta supplica:
— a Por quem és, tio jugudi, não me
faças mal: bem vês que ainda não es-
tou morto, am ca more inda qué».
O jugudi respondeu :
— aPodes morrer á tua vontade; que
en, cá por mim, nunca tenho pressa; na
certeza de que de toda a maneira já me
não escapas.»
O falcão pouco depois estrebuchou;
soltou um guincho e finou-se.
£ aquelle benemérito varredor dos
campos banqueteou se n'esse dia como
um principe.
Foi assim que oittr'ora se fizeram e
desfizeram impérios.
falcon cu jugudi
Falcon uxa jugudi sintado na polon i na quentá sol,
falcon falia jugudi, abó sumi bu grôs-sim bu boca gu-
da a88im-me bu cata pudi mata nada par bu cume.
Jugudi fali ai, amim ta pêra sóm quel qui Deus dam.
Quel ca mori anta cume.
Falcon caba de papiá qu jugudi, i ujá (odjâ) pumba
slntado na- pó de carbon secou e falia, jugudi, bu, ujá
(odjâ) quel pumba que sinta- lá na pó de carbon seccu,
um naba rabatal gossim.
Falcon buá, e cabi (caá-bá'f=eábd báe) par rabatá
pumba si anca ba bati na pó de carbon e quebra, i
caé.
Jugudi caba ujá (odjâ) falcon caé i bcá e ba-sintá
perto de falcon na chon.
Falcon fallal, é jugudi tem pacença caba cumen
inca-muri inda.
Jugudi fallal bom ami incatatem de preça, tudo mo*
do na murí cubu está.
Pouco tempo falcon mori jugudi cumel.
Buba, 12-11-95.
(Asa.) Luiz CD.
Uma varianto da parábola FALOON
00' DJUGUDI que nos foi obse-
quiosamente romettida por .. Adol-
pho Eduardo da Silva (?)
Parece-nos mais perfeita que a anterior
Um dia falcon odja djugudi sintado na polon e na
quenta sol e na djobe campada, e fallal:
Abó sima bo gros si, bo gudu boca, bo ca ta mon-
te a ni um rato, qué co todjebo ?
Djugudi responde e fallal, um ta pêra som ora co
Dés sumolam um ta cume, i el co (que èf) nharili-
djon.
Djugudi caba papea falcon bída e fallal abó í amon-
tom, (tu èa um imbecil) bo na odja um pomba riba de
quel pó de fuguera? Ampos um na ba rabatal ni i ca
ta tarda.
Qael ora i bua e ba madja peto na po de fuguera e cae
na chon, pomba patepate si anca e bua e ba sucundi
na mato.
Djugudi sima i odja falcon na chon i bua e ba siqui-
do junto dei e na bisial.
Falcon caba odja djugudi longo dei i mede e fallal
qué tio tem passença ca bo comem, um ca more
inda qué.
Djugudi rusponde e fallal, ami o (ohf) um ca ta
tem dupressa, tudu mode bo ca ta caplim mas.
E ca tarda falcon pitipiti e more, djugudi cumel.
Bolama, 2 4 <
mmwHs^mtâ
^£S> "T/ 1 WF^
XII
moreno
*
tem poder oh ! . . .
tem poder más se deus oh!
moreno !
bosta de baça caia cassa. . .
moreno !
tripa de baça marâ cancra. . .
moreno !
ai ! sangue de baça sirbi iágo. . .
moreno !
lingo de baça sirbi cudjer. . .
moreno !
ai ! dente de baça sirbi garfo. . .
moreno !
sapata de baoa sirbi copo. . .
moreno !
oredja de baea sirbi prato. . .
moreno !
ai ! rabo de baça sirbi chicote. . .
moreno !
cabeça de baça an tranca porta
moreno!
tem poder más-se deus oh ! . . .
moreno!
MORENO
Moreno, era um sujeito muito rico,
tão rico que uma cantadeira lá da terra
para o lisonjear dizia : que se Deus qui-
zesse um dia caiar o ceo — tinha de ir
ás praias fabricar cal das ostras do mar;
para se defender dos ladrões — malhar
ferro para trancas e ferrolhos das suas
portas e das suas arcas; e quando lhe
desse a vontade de beber uma pinga,
havia de dar-se ao incommodo de trepar
por uma palmeira acima — se podesse. —
Com Mdreno, porém, a coisa mudava
muito de figura, porquanto, nâo tinha
necessidade de sahir de sua casa, e nem
sequer do seu curral para encontrar á
mão tudo quanto desejasse e lhe fosse
necessário. Com o lixo de seus estábu-
los «podia muito bem caiar a sua casa»;
no sangue de seus novilhos tinha a agua
e vinho» para beber e para se lavar;
com cabeças de touro e suas armações —
fechos e ferrolhos para as suas portas.
Finalmente, a baixella de sua casa, só
de orelhas, cascos e ossos se compunha.
114
Portanto, Deus, comparado com Moreno,
era um ente inferior!
Ha quem diga que toda esta puxada
é uma satyra. Bajulice ou satyra, em
qualquer das hypotheses, n&o deixa de
ser d'essas originalidades que merecem
classificação fora de todo o concurso.
Typico e pyramidal !
Quempodemais que Deus? . . .
Moreno!
Com os estrumes dos curraes
caia as paredes do seu paço.
Com as tripas dos touros
amarra as vigas do tecto.
Ai ! a agua para seu uso
ê sangue de rez immolada.
Com uma língua de vacca
come suculentas sopas.
São seus pratos de meza
grandes orelhas das vaccas :
servem de garfo os dentes :
servem de copo os cascos.
Tem chicotes p f ra seu uzo
feitos de caudas de novilho.
Ai! com cabeças de touro
embarricadou suas portas !
Quempodemais que Deus? . . .
Moreno !
AndtanCt
bj.*h jtvi i -^pj.J5m 3 S ^
A Thomaj Borba
XIII
bende-m'
bendem' oh!
sinhô garandt
lindem'
bendem' oh !
sinhô garandt
bendem'
tudo cabo pilon
t* pilado oh !
sinhô garandt,
bende-m'.
tudo cabo bali
t* branco oh !
sinhô garande,
bende-m'
bende-m' oh!
sinhô garande
bendem',
bende-m' oh!
sinhô garande
bende-m'.
Teiei-ie senhor
Cantiga de uma infeliz escrava
Vendei-me senhor!
Meu nobre senhor,
vendei-me !
Vendei-me senhor t
Meu nobre senhor ,
vendei- me !
Em Cuba e Jamaica
ha arroz e pilão.
Vendei-me senhor!
Meu nobre senhor,
vendei me
Na terra dot pretos,
na terra dos brancos,
a boa farinha
branqueia o balaio.
Vendei-me senhor!
Meu nobre senhor,
vendei-me !
Vendei-me senhor !
Meu nobre senhor,
vendei-me (*)
Esta escrava, por certo, não era cas-
tigada com ramos de coral, como a ou-
tra que por ser mais afortunada cantou
a sua boa estrella :
a miê malan oh!
que bem-ba por bàt.
Eu era triste escrava
que vinha p'ra embarcar.
(*) Vid. anot. junta-BALAlO.
NOTA
O balaio, com o pilão e o páo de pi-
lar, (*) completa o numero dos três ins-
trumentos empregados na limpeza do ar-
roz e na fabricação da farinha. ÁfFecta a
forma — não de um «alguidar» — mas de
bandeja ou taboleiro de base quadrada,
borda alta e circular com rebordo: é um
tecido solido ou entrançamento aperta-
do de lascas de canna de rota ou serimpa.
Machina simplicíssima ! que embora de-
mande destreza excepcional e muita in-
telligencia, as negras d'Africa entretanto
fazem com ella verdadeiras maravilhas,
conseguindo ao mesmo tempo iguaes re-
sultados aos que se obtém com a siranda,
com a peneira, e com o processo archaico
de ventilação e de «erguer ao vento».
Não é preciso dizer quanto é surprehen-
dente a maneira como fazem uso d'esse ins-
trumento tão superlativamente simples, e
sabem tirar o melhor partido das leis da
mechanica e da physica applicada, cujos
princípios naturalmente presentem, mas
(*) O pilão, é um grande almofariz de madeira
bem lavrada, e parece se na forma com um copo gra-
duado das pharmacins: a mão do gral chamam elles
pão de pilar, que é quasi da altura de um homem.
118
que não saberão explicar... comoascien-
cia porf muitos séculos não soube explicar
também a razão das trepidações do tampo
de uma caldeira, e porque as laranjas des-
prendidas dos seus ramos, caem das la-
ranjeiras.
O arroz em casca, que suppomos no ba-
laio, depois de «pilado» contém de mistu-
ra a muinha, o farello, e muito grão que-
brado, minúsculo, imperceptível... Com
um arremesso— lançam ao ar todo o con-
teúdo que se espalha em leque; e n'um
gesto, apanham no balaio o grão que se
precipita primeiro, e com um airoso mo-
vimento de recuo, abandonam a muinha
que o vento leva.
Isto sempre assim sem parar — n'um
jogo successivo de balanço, e tantas vezes
quantas seja necessário para que o arroz
fique completamente limpo.
A esta primeira face da operação cha-
ma-se — fequô.
Tendo o bago fragmentado (nlielen),
por meio de movimentos semi-circulares
em plano inclinado, com vibrações, conse-
guem — nem eu sei como 1 — a sua reunião
ao centro pela força centrípeta, e depois
pela força centrífuga a um canto do
balaio, d'onde é baldeado n'ura .arre-
messo.
A isto chamam elles— iorombô.
Quando reduzem o arroz a farinha, o
amido é separado do carolo imprimindo
ao balaio movimentos semelhantes, po-
rém mais frequentemente verticaes e sa-
cudidos — -tente: de vez em quando,
119
uma pancadinha por baixo, ao centro, é
indispensável e complementar. . . Com as
pancadinhas o ar é expulso ! e . . . como
um disco de papel acompanha na queda
uma moeda que se precipita no espaço, o
amido adhere ao fundo do baldo— que
branqueia; o carolo então entra n'uma
«dansa de granizo» e convergindo em pe-
quenas ondas curvilíneas para o centro,
forma núcleo ou «cabeça de farinha»,
segundo as mesmas leis, que teriam pre-
sidido no espaço á formação de certas
nebulosas, que geraram estrellas. . . N'um
sublime e ultimo arremeço, o carolo é
apanhado na concha da mão l
Resta a farinha, impalpável e de uma
alvura immaculada no fundo doesse tabo-
leiro de serimpa, o qual, não sei a razão
porque, as Fadas o não convertem n'uma
bandeja de oiro.
Aos manes do Newton e de Laplace
consagramos o balaio das negras de
Africa.
XIV
ELEGIA
Na mesma corda da infeliz Esorava,
cantou uma pobre mulher cabida na mi-
séria, depois de ter sido muito atormen-
tada de desgostos pelo seu consorte. As
amigas para lbe levarem um raio de es-
perança e o bálsamo da consolação di-
ziam que, em summa, se resignasse a
esperar por seu marido ausente em ter-
ras estranhas.
spéra-l
tpèra-lohl...
9m emi ar sinta am spèral.
spèral oh/...
am em-iar tinta sm tpèra-l.
lembrança de binda de nha morto oh!
9m emi ar tintd «m spèra-l.
lembrança de binda de nha morto oh l
9m em-iar tinta dm tpera-l.
Qiie me resigne a espera-lo ?...
Oh ! Deus não permittirá !
Sim, Deus não permittirá !
Porquanto o seu regresso
trazer -me -hia á lembrança
a minha morte em cada dia.
ERRATA
Erros
Pao.
30 — é t« ha
87, linha S — para
88 — folkclorlstas
39, linha 18 — quem
49 — que se vos apodrecer
não terá etc.
» — para aqaella miragem!
Lá vae o meu Coête
agitando etc.
50, linha 2 — affasto
51 — e luctava comas ondas
60 — Oh! . . . o meu menino !
» — é mesmo assim
62, linha 11 — coroas
76 — malial
82— porstituta
92, linha 33 — formula
105, linha 27 — números.
112, » 8 — cancra
» • 22 — 90 tranca
Emmendns
êtmhà
p'ra
folkloristas
que
que se vos apodrecer
nio terá etc.
para aquella miragem!
La vae etc.
agitando etc.
fujo
luctava co'as ondas
Oh ! . . . o meu menino, oh !
mesmo assim
c'roas
malila
adultera
forma
números. Contam como os
Batotes
eáner*
entrança
. y*~< r^rw
Stanford Universitv Libra
Stanford, Califórnia
Return thii book on or before date da