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^LBERTO piJVlEfíTEL
\^?2y^
W inn. LosiKH» . n. rutineiAi ífB*ixo3t
ALBERTO PIMENTEL
Manhãs de Cascaes
^^.FERIN&C*
1893
LISBOA
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in 2010 with funding from
University of Toronto
http://www.archive.org/details/manhsdecascaesOOpime
o primsiro mosquito
Chegou o inimigo.
Ouvi hontem o seu clarim vibrante resoar
sobre a minha cabeça em som de euerra.
Era a guarda avançada do grande exercito
alado do verão, hunos do ar que invadem os
nossos quartos de cama zombando perfidamente
de todas as nossas precauções e dilacerando-
nos a carne com o seu pequenino áspide, agudo
^omo um punhal.
• — Ah! disse eu. E o primeiro mosquito que
■chega !
E estremeci de horror.
E que se ha animal n este mundo que me in-
■commode, que seja incompaiivel comigo, esse
•animal é o mosquito, — o pequeno mosquito,
um dos mais sanguinários inimigos da humani-
•dade.
Uma vez, em certa praia, um amigo meu
mostrou-me o seu quarto, cujas paredes esta-
vam revestidas de uma estranha pintura, — ara-
bescos de sangue^ o sangue da victima, o sangue
delle. o desgraçado!
— Entram os mosquitos, dizia-me o meu po-
bre amigo, e roubam-me o que eu tenho me-
nos, roubam-me o sangue. Eu, não podendo
repellir a aggressão, porque essa praga de mos-
quitos vem aos centos, adoptei a estratégia de
os deixar ccvarem-se á vontade. Engordam e
3giboiam-se, ficam obesos e inertes. Então soa
a hora da minha vingança, pego n'um sapato e
atiro-me a elles como S. Thiago aos m.ouros.
Pál pál sapatada para a direita, sapatada para
a esquerda, aqui se esborracha um, ali se es-
tampa outro, a parede salpicada de sangue pa-
rece um crivo, um mappa, e é assim que eu,
durante um mez, tenho conseguido ornamentar
o meu quarto com esta estranha decoração,
arabescos de sangue roubado ás minhas pró-
prias veias. O que está ali na parede sou eu,
depois de ter atravessado pelo interior de um
mosquito. Centenas d'elles me tecm sugado,
com o meu sangue teem vitalisado os seus ór-
gãos sonoros, porque cada mosquito traz ás
costas uma fanfarra estrondosa, quti nos ensur-
dece com o tinido dos seus metaes. Tenho
n'aquella parede o meu sangue, e tenho no meu
corpo a minha anemia: o traço de união entre
7
aquillo, que é a parede, e isto, que sou eu, é o
mosquito.
Ha banhista que prefere dormir na praia, so-
bre um banco de pau, ou mesmo sobre a areia,
a dormir em casa sob a tyrannia dos mosqui-
tos.
Um sujeito encontrei eu já, que, accordando
de madrugada meio devorado pelos mosqui-
tos, sahiu para o meio da rua, — com o resto
do corpo que elles lhe tinham deixado de far-
tos.
Logo que amanheceu e a prim.eira tenda da
praia se abriu, elle correu a escrever sobre o
balcão a seguinte carta ao senhorio, que era
um dos pescadores mais ricos da terra:
«111.™° sr. José Peixeiro: — Sendo v. s.* um
dos homens mais considerados d'esta locali-
dade, regedor de facto e barão em perspe-
ctiva, muito me admira que commettesse a burla
de arrendar a sua casa a duas familias ao mesmo
tempo. Quando me entregou a chave da porta,
fez-me suppôr que não havia lá dentro mais in-
quilinos. Com eífeito, assim me quiz parecer
quando entrei, porque a única pessoa, e essa
inoftensiva. que encontrei, foi o cavalieiro D^
Fuás Roupinho a pique de despenhar-se do ro-
chedo da Nazareth. É realmente um quadro
muito bonito, que, longe de me incommodar,
me deleitaria. Aposentei a minha familia, a mi-
nha mulher e os meus filhos, e eu preferi para
meu uso o quarto onde se acha o quadro do
Milagre da Na:{areth, porque sou amador, e
falla-se mesmo em mim para inspector da
Academia de Bellas Artes. Deitamo-nos. Eis se-
não quando, outra família de inquilinos surge
como por encantamento. Primeiro appareceu o
pae, depois a mãe, depois os meninos, depois
as meninas, depois os meninos dos meninos,
depois as meninas das meninas, depois os bis-
netos, depois os tresnetos, depois os tetranetos,
uma alluvião de individuos, uma phalange, um
exercito e, sem respeito nenhum pelo nosso
somno, começaram a conversar em voz alta, o
pae com a mãe, os manos com as manas, os
tios com os sobrinhos, os primos com as pri-
mas. Calei-me a ver no que aquiUo parava. Mas
não parou. Depois toda essa magna caterva teve
"vontade de ceiar, foi á dispensa, foi á cosinha,
e como não encontrasse nada para comer, re-
solveu comer a minha familia inteira. Participo-
Ihe, pois, que estamos comidos, — duas vezes:
pelo senhor e por elles, os outros inquilinos do
meu prédio. Resolvi portanto mudar de casa
para um banco da praia, que está á sua dispo-
sição, se nos quizer dar a honra da sua visita.
Quanto á sua casa, ahi lhe mando as chaves,
para que o sr. vá lá dormir esta noite com a sua
familia, a fim de verificar se as minhas informa-
ções são verdadeiras ou não.»»
o sr. José Peixeiro respondeu immediata-
mente : '
«Lá irei á noite ver essa pouca vergonha, e
se fôr como diz eu cá estou para obrar como
regedor.»
Então o pobre queixoso julgou dever prestar
mais um esclarecimento importante á digna au-
ctoridade parochial :
«111.""' sr. José Peixeiro. — Tenho por conve-
niente informal-o de que na minha carta ante-
rior faltou um note beue, que vae agora.
Os inquilinos a que me refiro são os mos-
quitos.
Supponho que esta informação ha de apro-
veitar á sija perspicácia.»
José Peixeiro deu-se pressa em enviar a se-
guinte replica:
«A minha casa é a melhor da villa, e tem sido
sempre habitada por pessoas de importância.
Eu, no resto do anno, vivo lá. E tanto eu como
minha senhora temos gosado saúde*, a única
doença que a minha senhora lá tem tido foi um
parto. Eu, nem isso; sou são como um pêro.
Mosquitos e moscas em toda a parte os ha; a
mim. ainda me incommodam mais as moscas do
IO
que os mosquitos. O anno passado, o sr. vis-
conde do Pecegueiro veiu a morrer para a mi-
nha casa, e foi-se embora tão bom, que até o
meu compadre barbeiro, que tem pilhéria, disse
que elle ainda ia capaz de dar pccegos. Mas
para não se incommodar com os mosquitos in-
ventou o systema de dormir de caraça e de lu-
vas. Faça o senhor outro tanto, e não dê im-
portância aos trombcteiros.»
Ahl caro leitor^ aviso-o para que se acautele,
visto que já fui atacado pelo primeiro mosquito
d'este verão: compre caraça e luvas como o
visconde do Pecegueiro.
Oh! o primeiro mosquito! Que horror!
II
A comedia das praias
De manhã cedo, na praia, todos parecem ter
ainda o olhar vidrado, estúpido, de quem. acaba
de accordar.
Olham uns para os outros com certa surpreza
spasmodica, achando-se feios.
Defeitos que durante o dia chegam a passar
despercebidos, avultam: foi n'uma praia que eu
descobri que certa dama, aliás formosa, tinha
uma orelha maior que a outra... de manhã!
Dar-se-ia o caso que, depois de feita a ioi-
lette, a orelha mais pequena crescesse ou a
maior diminuisse?
Certamente que não. Mas diante do espelho,
com vagar, um geito dado ao cabello, artisti-
camente, encobria o defeito da orelha. O ferro
de frisar salvava a situação: a madeixa, que
elle fazia descer, salvava a orelha, que a natu-
reza fizera subir.
12
*
Em questões de toilette^ o meio termo não é
admissível: ou tudo ou nada. Ou a toilette es-
plendida ou. . . a estatua. Eva, depois do pec-
cado original, faz-nos rir vestida de folhas de
figueira. Ora o fato de banho é o meio termo:
a folha de figueira. Para vestir. . . é pouco;
para despir. . . é muito.
Ha porém uma coisa peior do que vestir um
fato de banho: é querer sophismal-o.
Certas damas, quando chegam á praia, con-
seguem dar na vista pela perfeição plástica das
suas curvas. Ao entrar na agua, vestidas para
o banho, perdem as curvas. Não perderam;
deixaram-n'as na barraca- Este sophisma de-
plorável revela a carência de um bom argu-
mento. Argumento ou augmento. O eufemismo
é o mesmo. Mas só a praia consegue revelar
um segredo, de que. quando muito, apenas se
suspeitava. . .
Andam pessoas a enganar-nos durante onze
mezcs em cada anno.
Suppomol-as polidas, eruditas, francas, esti-
máveis.
Em Lisboa, quando as encontrávamos na rua,
I J
trocavam comnosco um shake-hand, tinham um'
dito amável ou sentencioso, pareciam-nos cor-
dealmente expansivas.
Nas praias, á sombra de um chalet ou de uma
arvore, durante duas horas de conversação,,
desmascaram se. Dia a dia, podemos fazer o
inventario das suas idéas, dos seus sentimen-
tos, das suas opiniões. E, ao cabo de um mez
de estação balnear, averiguamos que:
Fulano, que vae á missa em Lisboa, não crê
em Deus.
Sicrano, que tinha foros de erudito, apenas
lê a Reinsta dos dois mundos.
Beltrano, que parecia fallar-nos com o cora-
ção nas mãos, não fazia outra coisa senão met-
ter-nos os pé» nas algibeiras.
* *
Em Lisboa, accusa-se o Grémio e a Hava-
neza de terem má lingua.
Pobre Havaneza! pobre Grémio I pagam as
favas injustamente.
A maledicência habitual d'esses dois pontos,
de reunião tem apenas um caracter pessoal. Eu
explico. Ordinariamente, falla-se só do sujeito
que passou ou do sujeito que saiu.
A maledicência das praias estende-se á gera-
ção, chega ao pae, passa ao avô, alcança. ás
vezes o bisavó. E retrospectiva. Por exemplo:
i4
— Quem é aquelle sujeito que vem acolá?
— Pois não conhecei E fulano.
— Não conheço.
— Ha de lembrar-se com certeza do caso da
herança do Gutierres. Foi muito fallado.
— Lembro-me, sim.
— Pois este é que falsificou o testamento,
— Este! E anda vestido de branco, — como
íis virgens !
— E de familia. . .
— O fato branco ?
— Não. A alma negra. O pae foi negreiro.
— Já vem mais de traz, isso.
— Por quê?
— O avô enriqueceu no tempo dos france-
zes, dando assalto ás casas dos visinhos que ti-
nham fugido.
O sujeito aproxima-se, dois ou três levan-
tam-se para abraçal-o; mas a esse tempo, que
foi pouco, já lhe está desenterrada. a familia até
ao avô.
O vagar faz colheres, diz o povo. Nas praias,
o vagar faz exhumações tremendas. Não ha bis-
avô que esteja seguro na sepultura.
*
* *
Na comedia das praias, as moscas teem um
papel importante. Em Lisboa, para se dar im-
portância a uma mosca, é preciso que elia haja
i5
sido audaciosa até o ponto de escolher para
suicidar-se o nosso prato de sopa. De resto,
em Lisboa, as moscas morrem, mas^ nas praias,
as moscas matam. Teem dentes; são carnivo-
ras. Mordem, perseguem, endoidecem a gente.
Desforram-se da ociosidade de um anno inteiro,
esperam famintas pelos banhistas, e, depois de
os morder, zumbem e zombam, parecem rir
de troça umas com as outras.
Só nas praias é que o europeu consegue ser
victima das moscas. E fallarmos nós com horror
das moscas de Africa! As moscas saloias são
muito peiores!
*
* #
Em Lisboa, os criados passam ás vezes um
anno inteiro sem partir loiça.
Mas, chegando ás praias, os seus dedos pa-
recem débeis como vimes. Quebram hoje um
copo, amanhã um prato, escacam, em quinze
dias, metade da loiça do senhorio.
Encontrei uma vez, n'uma praia, certa dama,
que andava afflictissima de loja em loja, procu-
rando alguma coisa, que lhe dava grande cui-
dado.
— Imagine, disse-me ella, que o meu criado
quebrou hontem uma chávena !
— E vulgar.
i6
— Quebrar é vulgar; mas a chávena é que o
não era.
— Como assim ? I
— Quandoeu vim, a senhoria disse-me: «Peço
a v. ex.^ todo o cuidado com esta chávena, —
que era a chávena do papá.»
— Como o sabre da Grã-diique\a'.
— Isso. Ninguém se servia d"aquella chávena
gloriosa, nenhum de nós tinha ousado man-
dal-a tirar do guarda-loiça. Mas o meu criado
ousou limpal-a hoje, e quebrou-a. Aqui ando
eu agora afflicta á procura de uma chávena, que
possa continuar a ser, na tradição da casa, a
chávena do papá!
Nada ha que me dê tanto a impressão do
communismo como um club de praia.
E de todos, sem pertencer a ninguém.
Cada um que vem chegando pensa que o club
é seu. A primeira cousa de que se apossa é...
o piano. O piano passa a ser, não um instru-
mento de musica, mas um escravo. Submisso,
paciente, resignado, obedece como um negro,
cujos dentes são muito brancos... Açoutam-n"o
com as mãos, e não protesta; dão-lhe pontapés
no pedal, e não se desconjunta. Familias in-
teiras vão affirmar no teclado os seus direitos
de sócio. A mãe toca a Norma^ que c uma opera
do seu tempo •, a filha perpetra a Cariiicn ; o fi-
lho executa os Fados — com a mão direita.
O pae agarra-se aos jornaes e parece resol-
vido a não deixal-os ler por mais ninguém.
As primeiras senhoras que á noite chegam
ao club parecem tomar gosto á grandeza da
sala. . .
O seu desejo seria talvez que as outras, mais
retardatárias, ficassem á porta a contemplal-as...
de longe.
Mas. como isso não acontece, as que já estão
de posse da sala, preparam-se para o ataque,
assestam as suas baterias.
E o lorgnon . . .
E o sorriso sardónico. . .
E o ditinho picante. . .
Tudo isto entra em fogo ao mesmo tempo.
Depois, as que acabam, de chegar, fazem
causa commum com as que jcá tinham chegado
e, preparadas para o combate, ficam á espera
das que hão de chegar ainda. . .
# *
Ha sempre nas praias uma menina que re-
cita.
De pé, quasi sempre vestida de branco, re-
cita versos azues. Quero dizer, versos etherea-
iS
mente românticos. Em quanto ella recita, a mãe
põe os olhos no chão. As outras senhoras p5«m
o leque diante da cara.
Algumas vezes, a menina engana-se, falta-lhe
a memoria. Nem para traz nem para dcante.
Então lança mão de um recurso supremo:
desmaia.
— Um medico! Não está ahi um medico?
N'uma praia estão sempre quatro médicos,
pelo menos.
Vem um.
— Isto não é nada, passa já.
Mas o irmão mais novo da menina desmaiada
foi, a correr, buscar a casa o Almanach .ias Se-
nhoras.
E. reanimada por este auxilio, a menina con-
tinua a recitação, ficando o irmão mais novo
mettido atraz do piano, — servindo de ponto á
mana.
* *
Também ha sempre uma menina que tem
álbum.
Pede, a torto e a direito, uns versos, um de-
senho, uma melodia.
Pôde imaginar-se o valor do albuni dizendo
que são os poetas que desenham, são os pin-
tores que fazem versos, são os que sabem fa-
19
zer desenhos ou versos que escrevem a me-
lodia.
Em conclusão: ninguém quer perder n'um
álbum o melhor do seu talento. . .
IIÍ
11'uir.a praia solitária
Um amii^o meu. que se acha n"uma praia do
ivorte do paiz, certamente das menos conhecidas
c frequentadas, acaba de descrever-me n"uma
carta a maneira como alii tem vivido desde os
últimos dias de julho.
Quando chegou, apenas encontrou já instal-
lado uni outro banhista, que desde logo se con-
stituiu seu companheiro inseparável, comquanto
então se vissem pela primeira vez.
O meu amigo e de Lisboa-, o outro reside
actualmente no Alto Minho. Foi o acaso que os
reuniu pela identidade de destinos, como dois
náufragos desconhecidos que se encontrassem
agarrados á mesma tábua de salvação ou per-
didos na mesma ilha deserta.
Começaram por tirar cerimoniosamente o
chapéu um ao outro, mas ao cabo de duas ho-
21
ras de convivência tratavam-se por tu, — inti-
mamente.
A ilha deserta em que se encontraram era a
única loja importante da praia, — uma loja onde
se vende tudo o que uma pessoa pôde desejar
em qualquer momento.
Supponhamos que um LucuUo extraviado che-
gava alli e pedia champagne.
Encostando-se ao balcão, perguntaria :
— Tem champagne ?
— Tenho, sim^, senhor.
E abrindo um armário m3'Sterioso, cheio de
retortas, alambiques, garrafas e garrafões, o
dono do estabelecimento demorar-se-ia um. in-
stante operando chimicamente.
Passada meia hora, quando muito, apresen-
taria uma garrafa de champagne, k'.to talvez
de petróleo, talvez de azeite, talvez de vinagre:
composição sua.
O freguez poderia extranhar que a garrafa
não tivesse capsula de chumbo, mas apenas
uma velha rolha porosa.
O dono do estabelecimentores ponder-lhe-ia
imperturbavelmente :
— E verdade isso, mas eu preoccupo-nie mais
com a qualidade dos meus vinhos do que com
a apparencia das garrafas.
Lucullo, sentado á sua mesa de familia, pro-
varia o champagne, e ficaria por ahi, a não ser
que quizesse envenenar-se.
22
Mas, para não ser ^ anico a cahir no logro,
calar-se-ia e, para rir um pouco, aconselharia
a toda a gente que fosse comprar o bello cham-
pagne da loja do Elephaute ar^ul.
Ora é justamente o discreto silencio dos fre-
guezes, que querem ter companheiros na des-
graça (solalium est miseris, eto, que explica a
grande clientella que tem, principalmente na
epocha de banhos, a loja do Elephaute a-iil.
Foi, pois, n"essa ilha deserta, deserta antes
do mez de setembro, o melhor n'aquella remota
praia, que os dois solitários banhistas se en-
contraram, e principiaram a tratar-se por tu.
duas horas depois de se terem visto pela pri-
meira vez.
— Mas então, perguntava o meu amigo, não
costuma vir mais gente para aqui ?
— Sim, senhor, respondia o dono do Ele-
phaute a-^iíl, no mez de setembro c tanta a con-
corrência, que eu costumo vender todo o cham-
pagne. toda a cerveja, toda a genebra que fa-
brico.
E o outro, que já lá estava a banhos, obser-
vava :
— Em setembro, será assim. Mas desde o
dia 20 de julho, em que cheguei, até hoje, ape-
nas eu só tenho tido a honra de despertar as
attenções dos pescadores. No primeiro dia olha-
ram para mim com surpreza, e nos dias seguin-
tes com espanto.
23
— Como assim ? !
— Espanto de que eu, encontrando-me sosi-
nho, continuasse a ficar. . .
— Mas agora somos já dois!
— Agora seremos um, in carne una^ porque
eu já te não largo, amigo da minha alma! até
que em setembro chegue mais gente. Tu foste
a minha tábua de salvação, ó inesperado e di-
lecto amigo !
— O que direi eu então de ti, que me pro-
porcionaste occasião de ter com quem fallar da
crise monetária e do caso das Trinas I Feliz de
mim, que te encontrei, e de ti que me encon-
traste ! Gloria a Deus nas alturas, e paz na
terra. . . a dois homens !
— Imagina, porém, que, por nos exaltarmos
em qualquer discussão, tínhamos de ficar de
mal um com o outro ?
— Era o mesmo que romper com toda a hu-
manidade !
— Mas o que farias tu?
— Eu? ! Eu ficaria de bem comtigo até que,
chegando setembro, podesse encontrar dois pa-
drinhos para te mandar desafiar. . .
Começou agosto, e por mais que os dois ami-
gos espreitassem para dentro de todas as dili-
gencias que se fazem annunciar ao som de es-
tridulas campainhas, não viam chegar ninguém.
— Então para que servem as diligencias? per-
guntava um.
2A
— Servem para alimentar a tradição de via-
jar, respondia o outro.
O dono do Elephantc a-id dizia do lado :
— Em setembro vcem cheias de gente. As ve-
zes trazem dczeseis pessoas em oito logares.
— Mas não seria melhor que essas pessoas
viessem a pouco e pouco, cada uma cm seu Jo-
gar ?
— Não, senhor. Porque então, replicava o
dono do Elephj.nl c -i\itl^ por muita gente que
viesse, não se sentiria tanto.
Os dois amigos tinham já esgotado todo o
reportório das suas opiniões.
— O que pensas tu, caro amigo, a respeito
do caso das Trinas?
— Ja to disse hontem.
— E a respeito da crise monetária?
— Já t'o disse ante hontem,
— E verdade I Por signa! que te repetiste.
Também já ipo tinhas dito no dia em que eu
cheguei. . .
O que mais os aborrecia era não poderem
encontrar um terceiro parceiro para o voltarete.
Haviam já perguntado ao dono do ElephanU'
a\ul :
— Sabe o voltarete ?
— Não, sr. Sei fazer champagne, sei fazer
cognac, sei fabricar cerveja, só não sei jogar o
voltarete I
— Porque nào trata de o aprender?
2D
— Não vale a pena: não e coisa que se venda.
No dia 8 de agosto, por volta do meio dia,
qual não foi a surpreza dos dois amigos quando,
encostados aporta de Eiephaute aiiil^ viram che-
gar uma carruagem com um passageiro dentro.
— Eureka! gritou um.
— Apaga a lanterna de Diógenes I exclamou
o outro.
O passageiro apeiou-se do trem e, sem en-
trar na loja do Elephj.nlc a-iil^ seguiu para o
interior da villa.
— Vae installar-se, disse um..
— Vae, e não tarda ahi, á procura dos úni-
cos dois homens que n'este momento lhe po-
dem ser agradáveis.
O dono do Elephante a-ul^ tendo vindo á
porta examinar o recem-chegado, observou:
— Não é cara conhecida. Nunca veiu cá.
— Poderá; Se já conhecesse a praia, não vi-
nha senão em setembro.
Ficaram os dois conversando, mas o homem"
não appareceu.
— Onde se metteria elle ?
— Naturalmente, disse o dono do Eicphanlc
iiyãl^ anda procurando casa.
— Se fosse só isso, já a teria encontrado. E
maÍ3 provável que ande procurando gente...
Cerca das trez horas da tarde, tornou a ap_
parecer a carruagem, m^as vasia.
O caso ia tendo as proporções de um mysterio.
26
— o homem suicidou-.sc!
— Qual I Anda perdido nas ruas, e não en-
contra ninguém para lhe ensinar o caminho.
Finalmente, o homem appareceu.
Entrou no Elephantc a\ul para comprar ci-
garros.
Os dois banhistas crivaran"i-n"o logo de per-
guntas.
— V. ex.* vem para cá?
— Não, sr.
Os dois olharam-se com dolorosa surpreza.
— Então não vem para cá? insistiu não sei
qual d"elles.
— Vim justamente fazer o contrario.
— Mas... não percebo !
— Vim dizer que nao vinha para cá. .
— Nem mesmo em setembro?
— Nem mesmo. . . nunca. Tenho ahi um. pa-
renie que me esperava, e vim dizer-lhe que não
contasse commigo.
— Mas isto é muito bonito. .. em setenibrol
— Será. Eu tenho informações que me levam
a pensar o contrario.
— Pois que! Nem sequer tenta fazer uma
experiência I
— Não, sr. Um amigo meu veiu uma vez em
agosto, e esperou ate setembro que viesse gente.
Mas em setembro achou-se ainda mais só. por-
que morreu de bexigas o único banhista que
lhe podia fazer companhia.
^i
— N'esse ca^o vae-se embora?
— -Vou já, respondeu o sujeito pagando os
cigarros.
Já elle ia a dirigir-se para o trem, quando
um dos dois se lembrou de gritar:
— O sr. Mendonça!
O sujeito níÃo fez caso.
— O sr. Andrade !
O sujeito dispunha-se a entrar no trem.
— Ó sr. Mattos !
O sujeito voltou-se rapidamente.
— Ah! já sei que se chama ]Mattos!. . . tem a
bondade de nos dar uma palavra?
O sujeito, que já tinha um pé no estribo,
veiu ao encontro dos dois.
— Sabe o sr. Mattos, disse um, o que nós
estamos resolvidos a fazer?
O meu amigo olhava para o companheiro de
desgraça sem poder adivinhar a sua intenção.
— Não sei, mas v ex."** terão a bondade de
dizer.
— Pois bem, sr. Mattos! Vae sabel-o.
E agarrou-o pelas lapellas do frak.
— O sr. está preso.
— Preso ? ! Porque ? !
Então o meu amigo sentiu-se illuminado. Adi-
vinhou tudo.
E deitando as mãos aos hombros do homem,
gritou por sua vez :
— Preso. . . sim. sr. !
■28
— Mas que crime fiz eu?
— Não se trata de um crime, nem precisa-
mente de uma prisão.
— ^Mas, SC não se trata de uma prisão, por-
que é que me prendem I ?
— Fica apenas detido. Segundo o código, é
differente.
— Somente detido. O código estabelece a dif-
ferença.
- — Preso ou detido 1 disse o liomem. .Mas por-
que ? Para que ?
— Detido ou preso... Preso para banhista.
— Mas eu não quero tomar banhos !
— Pois não tome, mas fica preso para ba-
nhista.
— Preso não, observou o meu amigo. E bom
não confundir as palavras. O sr. Mattos fica
apenas detido até setembro... emquanto não
vem mais gente.
— Mas que proveito tiram d"ahi os srs. ?. . .
perguntou o Mattos.
— O proveito de sermos trez.
— Trez para tudo: trez para o cavaco, trez
para o voltarete, trez para o banho, trez para
o Elephãute ã\ul.
— Mas eu não sei o voltarete!
— Pouco importa. O que se quer é que o
jogue
— Para jogal-o é preciso aprendel-o.
— Isso não é inteimmcnte verdade... Mas,
2Q
dado o caso que seja verdade, até setembro
tem o sr. Mattos muito tempo para aprender a
jogar o voltarete.
O meu amigo termina a carta dizendo :
— ('Cá temos o homem preso, e bem vigiado.
A noite fechamos-lhe a porta, e levamos a chave
para casa. Uma noite, para lhe suavisarmos o
captiveiro, resolvemos perder ao voltarete. E
assim é que conseguimos ser trez ! Mas, para
ver se vem mais gente^ mandamos dizer nos
jornaes do Porto que a praia está muito ani-
mada, e que em setembro serão poucas as ca-
sas para os banhistas que se esperam. Vê lá se
dizes isso também nos jornaes de Lisboa...)-
Escolhamos alguns dos typos que avulram
na galeria das praias, para fixarmos n'elles a
nossa attenção por um momento.
O falLidor — E o discursador de cada praia,
o homem que conta anecdotas e que sabe da
vida alheia. Tem corda para toda a época bal-
near. Levanta-se pela manha a fallar. vai con-
versar para a praia dos banhos logo que se le-
vanta, e á noite é o ultimo a sair do club.
— Meus amigos, diz elle, alli na Arruda acon-
teceu-me uma vez uma partida de estalo. Ima-
ginem que um rapaz do meu tempo, vendo-me
apeiar da diligencia, se lembrou de dizer aos
da terra que eu era o homem mais rico de Por-
tugal. D"alli a pouco choviam-me no hotel mc-
moriaes, requerimentos, bilhetes de visita. Um
tal foi propôr-me um negocio que devia render
cincocnta por cento. Outro queria vender-me
Ôl
uma quinta phyiloxerada. E um pai de famí-
lia pretendia que eu lhe desposasse a rilha. . .
no caso de ser soheiro. Via-me embaraçado
com tantos pedidos e pi^opostas. De modo que
tive de escrever para um meu amigo de Lisboa
pedindo-lhe que me dissesse em telegramma ;
«Failiu Rio Janeiro casa Antunes & C" Paciên-
cia e resignação.»
Eu li este telegramma na botica da terra,
onde me foi entregue, e exclamei tingindo des-
maiar: «Estou arruinado I»
Acreditaram. Nunca mais ninguém me procu-
rou para saber a resposta que eu daria aos me-
moriaes e aos requerimentos.
Dalli a instantes:
— Em Maçãs de D. Maria também me acon-
teceu um caso muito ratão. Eu tinha ido lá para
arrematar uma quinta, que devia ir á praça
n'esse dia. Mas, por qualquer motivo, não se
realisou a arrematação. Logo souberam, porém,
ao que eu ia. A noite, armaram^ um bailarico,
e convidaram-me para assistir. Houve descan-
tes em minha honra. ]\Lis no dia seguinte, rea-
lisava-se a festa de um santo qualquer e vieram
dizer-me que eu tinha de pagar a missa e o ser-
mão, porque era costume da terra que toda a
pessoa que alli fosse pela primeira vez, e rece-
besse a honra de um bailarico, fizesse á sua
custa a festa d'aquelle santo.
No club, á noite :
32
— Uma vez. na Narazeth, lembramo-nos de
ir todos para o club vestidos com o fato do ba-
nho. Imaginem que risota ? I
— ?slas as senhoras? O que disserani as se-
nhoras a isso? pergunta alguém, do lado.
O fallador não se atrapalha:
— Ah! as senhoras não foram n^essa noite
ao club. . .
O silencioso — Ouve tudo calado, mascando
no seu charuto. Não aventa uma ideia, não ar-
risca uma opinião. Não quer conhecer ninguém.
Os outros banhistas que se riem do Jalladur,
riem-?e igualmente do silencioso. Ao cabo de
vinte dias de praia, o silencioso aveniura-se a
proferir uma palavra ou duas. Em vez de levar
apenas a mão ao chapéu, rompe neste excesso
de eloquência: «Muito bons dias» ou «Muito
boas noites». Cinco dias depois, já cumprimenta
um ou outro pelo seu nome. E no tím do mez,
quando parecia resolvido a fallar. vae-se em-
bora I
Uma vez, n'Lima praia, appareceu um silen-
cioso doestes. Havia um fallador^ que embir-
rava muito com elle. Era natural.
— Eu hei de obrigar a fallar este diabo...
Fazia-lhe uma pergunta, e o homem conten-
tava-se com encolher os hombros.
— Não importai Eu hei de obrigar a fallar
este diabo. . . dizia o fallador assim que o si-
lencioso voltava costas.
— o cavalheiro toma banhos ?
O silencioso meneiava afirmativamente ou ne-
gativamente a cabeça.
Desesperado, o falladov, estando certo dia a
contar uma das suas muitas historias, fingiu-se
distraído, e pisou o outro.
— Que bruto ! exclamou o silencioso.
— Mas. . . fallou! gritou cheio de jubilo o fal-
lador.
O generoso — Vá, rapazes, lembrem-se vocês
d'a]guma festa, e contem commigo. Póde-se ti-
rar partido de tanta coisa I Querem um arraial?
Eu dou o fogo de vistas. Querem um.a re^irata?
Fai dou os prémios. Querem uma burricida?
Eu dou os burros.
— Não os ha, diz alguém, do lado.
— Qual não ha! Tudo são difficuldadesi Já
não ha rapazes ! . . .
— O que não ha são burros.
— Burros! ha sim, sr. Eu encarrego-me de os
mandar vir pelo caminho de ferro ou, se tanto
fôr preciso, pelo telegrapho. Onde ha dinheiro,
ha tudo.
O sovina — Andam ahi a fazer uma subscri-
pção? Tem graça! Quem encommendou o ser-
mão, que o pague. Eu nunca na minha vida dei
dez réis para divertir os outros. Pelo contrario,
o que eu quero é que os outros me divirtam a
mim. Agora uma soirée! Não vou a parte ne-
nhuma para tomar chá. Tomo-o em m.inha casa
'H
quando quero. De mais a mais uma soirée com
bolos saloios, que quebram os dentes á gente 1
E chá de herva cidreira ainda por cima ! No
chá não se admitte meio termo : ou bom ou
nada. Eu não gosto senão do Hyson. E de-
pois dá cá dez tostões ! Ora que tal está a
maroteira ! Queriam dançar ? Dançassem a
sêcco. Quanto mais leve se está, melhor se
dança !
O pai extremoso — E a primeira vez que o
cavalheiro vem a esta praia ?
— Sim, sr. ; é a primeira vez.
— Então hade conhecer poucas senhoras?
— Muito poucas.
— E uma contrariedade para quem gosta de
dançar. O cavalheiro dança ?
— Gosto muito.
— Pois bem, esta noite queira procurar-me
no club, que eu o apresentarei a três ou quatro
senhoras.
— Oh ! mil vezes obrigado.
— Se me não custa nadai
A' noite, no club, o pai extremoso procede ás
promettidas apresentações.
— Tenho a honra de apresentar ao cavalheiro
minha filha Engracia.
E passando em claro apenas uma cadeira :
— Tenho a honra de apresentar ao cavalheira
minha filha Cecília.
E duas cadeiras mais adeante :
35
— Tenho a honra de apresentar ao cavalheiro
minha filha Conceição.
Depois, filando o apresentado pela lapella do
frack :
— Agora já o cavalheiro tem muito com quem
dançar. Para o caso, porém, de querer variar um
pouco, apresento-lhe ainda a minha Alimi, que
tem apenas nove annos, mas que gosta mAiito de
dançar. Aprendeu com o Justino Soares, e e!!e
disse-me quando viemos para cá: «Esta menina
ha de vir a dançar ainda melhor que as irmãs !»
O pai indiferente. — Passo.
O filho mais novo, chegando-se ao pé da
mesa do voltarete :
— Manda dizer a mamã se faz favor de ir á
sala para arranjar um par para a mana. E!la
ainda não dançou.
— Diz á mamiã que vou já.
D'ahi a pouco volta o pequeno :
— Faz favor de lá ir, que se vai dançar uma
quadrilha.
— Peço licença.
— Que diz o papá ?
— Que já lá vou.
— Então eu espero pelo papá.
— isto não tem discussão possível : cinco ma-
tadores.
— Venha d'ahi, papá.
— Dois de licença, cinco de matadores, dois
de cinco primeiras : nove.
36
— Olhe, papá, já começou a quadrilha !
— 'Quando se dançar outra, vem chamar-me.
O commodista — Meninas, olhem que já são
dez horas.
— Amanhã é dia santo, papá.
— O Jeremias! deixa dançar as pequenas mais
um bocado. . .
— -Perde-se todo o effeito dos banhos cem es-
tas noitadas !
— E só mais um bocado. . .
— Nadai nada! já estou com muico somno.
— Vê se o espalhas.
— A Rosa já deve ter feito o chá.
— Ks massador !
— Ai que deixei a janella do quarto aberta,
e entram os m.osquitos ! Vamos lá depressa . . .
O sucio — Eu cá sou de feição. Não gostei
nunca de desmanchar prazeres. Podem dançar
á vontade, que eu vou ver jogar.
E vae para a rua conversar com as rapari-
gas do povo, que espreitam á porta do club.
í^ma hora depois, volta á sala.
— Então, ainda quereni dançar mais ?
— Só mais uma valsa.
— Pois sim! Eu cá não quero ser desman-
cna-prazeres. Vou ler os jornaes, que remé-
dio !
E torna para a porta do club a conversar
com as raparigas do povo.
— O Melôa, já te vaes embora?
— Já, sim, sr., e não tenho medo de? la-
drões.
— Pois fazes mal. Espera ahi, que eu acom-
panho-te. Sempre é bom acautelar...
O indígena da praia — Quem diabo serão os
patuscos, que andam a tocar trompa a esta
hora ?! Estava no m.elhor do meu somno ! Corja
de patifes !
Gs da trompa — Sopra-lhe ahi com força p.ira
accordares o Diamxantino, que me vendeu um
fato de banho por mais seis tostões. Patife !
V
Casos, ♦♦
Conta-se a anecdota de certo prelado de uma
diocese do Alemtejo, homem de lettras afamado,
que viveu no tempo do marquez de Pom.bal e
que, em estando entregue aos seus trabalhos
litierarios, de nada mais queria saber.
{'m anno, pelo tempo das boas-festas, estava
o bispo sentado á banca, no seu vasto escripto-
rio — um salão do paço episcopal — quando um
diocesano entrou para cumprimental-o.
C) prelado não deu tento da entrada do ho-
mem, tanto era o interesse que lhe merecia o
assumpto de que estava tratando,
— Sr. bispo! apostrophou timidamente o re-
cem-chegado.
O bispo não ouviu.
— Sr. bispo I tornou a exclamar o visitante.
Nada! O bispo não ouvia.
3q
Então, muito compromettido, o visitante re-
solveu-se a empurrar uma cadeira para fazer
barulho.
O bispo voltou de súbito a cabeça. Viu-o, e
perguntou :
— O que é que quer?
— Eu vinha visitar v. ex.*
E o bispo, continuando a escrever, respon-
deu:
— Pois visite, visite.
*
* #
O curso do quinto anno de direito estava si-
mulando audiências, como é costume, fazendo
um estudante de juiz, outro de escrivão do pro-
cesso, outro de official de diligencias, etc.
Constituiu-se o tribunal, e o professor da ca-
deira disse ao estudante que representava de
juiz :
— Ha sussurro na sala. O que faz o sr. juiz?
— Toco a campainha, e recommendo silencio
ao auditório.
Mas o professor insistiu :
— Continua o sussurro. O que faz o sr. juiz?
— Torno a tocar a campainha, e de novo re-
commendo silencio.
— Mas supponha que não basta isso. O sus-
surro continua.
40
— N"e.sse caso, direi: Official, tome nota das
pessoas que estão fazendo sussurro, para se-
rem autuadas.
— Mas o sussurro redobra.
E o estudante, já muito atarantado, exclama :
— Redobra !
— Sim, senhor, — o sussurro redobra.
O estudante pensa um momento. . .
— Então, insiste o professor, o que fazia o
sr. juiz ?
— Eu ? Eu fazia isto: punha o chapéu na ca-
beça e dizia: Está levantada a sessão.
Riu o professor, riu todo o curso, e o estu-
dante salvou-se da entalação d'aquelle dia, —
por ter tido uma idéa e um chapéu.
Havia um grande capitalista, que, por ter um
sobrinho muito extravagante, já lhe não queria
dar vintém.
Um dia appareceu-lhe o sobrinho annunciando
que ia partir para os Estados Unidos, onde po-
deria vender melhor do que em Portugal, di-
zia elle, o segredo de uma invenção maravi-
lhosa.
O tio, picado de curiosidade, quiz saber no
que consistia a maravilhosa invenção. Recusa
do sobrinho. Insistência do tio. Finalmente, o
41
sobrinho revelou o seu segredo : tinha desco-
berto o processo de fazer oiro. O tio, tão rico
como ambicioso, resolve comprar-lhe o segredo
por seis contos de réis. O sobrinho, simulando
alguma dificuldade, acaba por vender-lhe a re-
ceita, que o tio paga immediatamente. Con-
cluída a transacção, despedem-se, mas, já no
fundo da escada, diz o sobrinho ao tio :
— Ah! esquecia-me um.a coisa, meu tio. Para
que a receita dê resultado satisfatório, é preciso
que o tio, quando quizer fazer oiro, não se
lembre do elephante branco.
E saiu com o dinheiro na algibeira.
O tio tratou de montar o seu laboratório, e
de realisar a receita. Mas, por mais que qui-
zesse affastar do seu espirito a idéa do elcphaníe
branco, essa terrível idéa acudia-lhe sempre,
pelo que jamais conseguiu tirar da compra que
fizera o resultado que esperava. . .
Não sei quando, nem mesmo onde, existiam
dois esposos, que se enriqueceram. . . de filhos.
A boa fortuna parecia apostada em querer que
elles esgotassem todos os nomes do Fios san-
ciorum.
Começaram pelos vulgares. Os primeiros fi-
lhos chamaram-se Manuel, Joaquim, António,
João. Depois passaram a escolher nomes ro-
42
manticos: Arthur, Laura, Beatriz, Egberto. Por
ultimo, tiveram que lançar mão dos nomes mais
esquisitos e arrevesados : Cunegundes, Tecla,
Mafalda, Thimoteo.
Um dia, quando já era difficil saber a conta
de todos os filhos, e acertar-lhes de prompto
com os nomes, saiu o pae a passeio e, longe
de casa, encontrou na rua uma creança que
chorava, escondendo o rosto entre as mãos.
Apiedou-se, dirigiu-se d creança, levantou-lhe
a cabeça, achou que tinha uns olhos bonitos, e
disse-lhe :
— O que fazes tu por aqui, meu menino!
— Ando perdido.
— Pobre creança! Sabes quem é a tua fa-
mília ?
— Não estou bem certo d"isso. meu sr.
— Tens fome ?
— Muita, muita.
— E frio ?
— Muito frio ...
— Está bem, anda d\ahi comigo.
Onde ia elle levar a creança? Ora! onde é
que o negociante feliz vai depositar os seus lu-
cros? No Banco. Pois o Banco onde esse feliz
casado enthesourava todos os lucros da sua
prosperidade conjugal era. . . a sua própria ca-
sa,— o seu lar.
Chega elle, muito contente, com a creança
pela mão.
43
— Querida mulher! disse ao entrar em casa.
Trago-te mais uma creança. . .
— Outra? !
— Sim, fillia, tu és bondosa, compassiva, has
de comprehender o impulso do meu coração.
— O que queres dizer ?
— Quero dizer que encontrei na rua, abando-
nada, esta pobre creança, que não sabe ao certo
quem são os seus pais e onde moram.
E o pequeno, escondendo o rosto choroso en-
tre as mãos, arquejava, soluçava. . .
— Vendo-o, pensei commigo micsmo : Onde
cabem vinte, podem caber vinte e um. Eis aqui
está o que eu pensei, e trouxe-o commigo.
— Que Deus nos ajude, homem! mas já es-
távamos tão sobrecarregados !
— Quando tínhamos apenas seis filhos já di-
zíamos isso mesmo I E comtudo tem havido lo-
gar para todos, nenhum d"elles ainda morreu
de fome.
— Pois bem! fique o pequeno.
A creança conservava-se ao canto da casa,
soluçando, arquejando.
— Disseste que era bonito o pequeno?
— Olha para elle, e verás os lindos olhos que
tem I
— Levanta a cabeça, meu menino.
A creança não se mexia. Arquejava, soluçava.
Então foi preciso levantar-lhe a cabeça quasi
á forca.
44
— Ora esta! exclama a dona da casa.
— O que é?I pergunta o marido.
— E o nosso Augusto!
Eram tantos, que já nem o pai os conhecia !
Sabem o que é mu'to diíiicil no carnaval ?
E encontrar uni companheiro que nos não
incommode e que nos não contrarie.
Ah I isso é que é muito difficil !
Eu apenas conheço um caso em que certo
amigo meu poude encontrar o melhor dos com-
panheiros para um baile de mascaras.
Esse companheiro era um general, que pa-
recia excellentemente disposto: alto, forte, com
um bello bigode branco, e algum brilho ainda
nos olhos.
O meu amigo convidou-o para irem a um
baiie de mascaras. Acceitou logo. Foram.
Uma vez no baile de mascaras, o meu amigo
scntou-se junto a duas mulheres mascaradas.
O general também. O meu amigo fallava-lhes.
Elias respondiam. Só o general estava calado,
parecendo comtudo excellentemente disposto.
Convidou-as o meu amigo para irem ceiar
todos juntos. O general não oppOz a menor re-
sistência.
— Pois sim! vamos lá ceiar, disse elle.
45
Pioram ceiar.
As mulheres tiraram a mascara. O meu ameigo
disse a uma das mulheres que gostava muito
d'ella •, o general não disse nada á outra.
Comeram. O general comeu também. No fim
da ceia, queimaram todos quatro as suas cigar-
rilhas. O general parecia excellentemente dis-
posto. Desabotoou o coUete. repotreou-se na
cadeira, accendeu segunda cigarrilha.
Veiu a conta. O meu amigo quiz pagar toda
a despeza ; o general não consentiu, quiz pogar
também a sua parte.
Sairam.
O meu amigo, voltando-se para o general,
disse-lhe :
— E aííora ?
O general, parecendo sempre muito bem dis-
posto, inclinou-se ao ouvido do meu amigo, e
disse-lhe :
— Olhe, meu caro, eu já não tenho condição
nenhuma para gostar de um baile de mascaras.
E o meu amiigo, sem se desconcertar, sem
SC surprehender, oífereceu o braço direico a
uma das mulheres, o braço esquerdo á outra,
e disse ao general, que continuava a parecer
muito bem disposto :
— Boa noite, general.
46
Certo estudante, tendo faltado ás aulas, apre-
sentou unia certidão de doença, falsa.
O medico que a passara era uzeiro e vezeiro
em justificar a cabula dos estudantes, que lhe
pagavam a justificação.
Do alto da cathedra, o professor, tendo re-
lanceado os olhos á assignatura da certidão,
perguntou :
— O sr. Fulano I se estivesse doente chamava
este xiedico para o tratar ?
O estudante respondeu com promptidão e
firmeza :
— Não, senhor.
Tinha António Feliciano de Castilho ido ao
Rio de Janeiro, e fora recebido em audiência
particular pelo imperador D. Pedro II.
A conversação versou, como era natural, so-
bre assumptos litterarios.
Castilho havia sido prevenido de que o im-
perador, por amor á discussão com homens no-
táveis, gostava de que elles o contrariassem
nas suas opiniões.
Assim avisado, se o imperador dizia que tal
47
objecto era branco, Castilho sustentava que esse
mesmo objecto era preto.
O sr. D. Pedro II estava delirante de alegria,
e propositadamente prolongava a conversação.
Veiu a ponto fallarem de versos alexandri-
nos.
O imperador declarou que não gostava do
verso alexandrino, de que, como se sabe, Cas-
tilho era enthusiasta.
— Ser-me-ha licito, disse Castilho, perguntar
a vossa magestade os fundamentos da sua opi-
nião ?
— Acho o alexandrino — replicou D. Pedro II,
um metro inútil, por isso que é composto de
dois versos de seis S3dlabas. Digam francamente
que fazem versos de seis syllabas, e escusam
de baptisar cada parelha de seis S3dlabas com
o pomposo nome de alexandrinos.
Castilho replicou :
— O que faz vossa magestade quando tem
sede ?
O imperador sorriu-se, e respondeu :
— Bebo agua.
— Ora muito bem! tornou Castilho, mas se
vossa magestade beber agua por dois copinhos,
não fica tão satisfeito como tendo-a bebido de
um só trago por um copasio enorme.
43
Um homem que se dava excellentemente com
a ir.ulher, e que tinha trez filhas muito bonitas
e trez filhos muito espertos, não podia soffrer
a sogra, — como quasi sempre acontece.
Um dia, ella adoeceu gravemente, muito gra-
ve r.ente. Foi preciso cham.ar o medico que, de-
pois d'i lhe vêr a lingua e tomar o pulso, tor-
ceu o nariz.
— Isto não está bomi disse o medico.
— O que se ha de fazer então ?
— Deitar-lhe bichas, já, immediatamente.
Mandou-se, sem perda de tempo, buscar as
bichas, muitas bichas.
O bom do genro assistiu á chegada das bi-
chas, viu-as deitar, chegou mesmo a perguntar
se ellas tinham feito bem o seu dever: morder
na sogra.
Á noite, no club, dizia elle:
— Assisti hoje a um combate de feras.
— Como assim ? I
— Vi deitar duas dúzias de bichas em minha
sogra . . .
#
Certo professor de medicina perguntava a um
estudante :
49
— Por que é que no tratamento das feridas
se emprega o panno de linho velho ?
O estudante procurou qualquer razão, e dis-
se-a.
— Não, sr., replicou o cathedratico.
O estudante tratou de procurar outra razão.
Observação do professor:
— Também não.
O estudante dá ainda tratos á cabeça para
descobrir uma terceira razão.
Então o professor resolve-se a fazer luz no
assumpto :
— Por duas razões, e nenhuma d'ellas o sr.
foi capaz de descobrir! i.* Porque o panno de
linho velho é mais barato. 2.* Porque o panno
de linho novo é mais caro.
*
* *
Eu estava uma vez no escriptorio de um ad-
vogado meu amigo, homem de lettras, jorna-
Usta principalmente, que me pedira que espe-
rasse emquanto elle acabava de escrever um
artigo de fundo.
A penna rangia vertiginosamente sobre o pa-
pel.
Eis senão quando entra um saloio.
— Que é ? perguntou o advogado escrevendo
sempre.
bo
O saloio respondeu :
— Vinha consultar v. ex.^ sobre uma pequena
questão.
— Vá dizendo.
O saloio olhou para o advogado, olhou para
mim e olhou para um espelho que havia no es-
criptorio. Estava embaraçado, duvidoso de ex-
por o seu assumpto sem que o advogado se
prestasse a dar-lhe toda a attençao.
— Vá dizendo, repetiu o advogado.
— Sr. dr. : Ha na minha terra uma mulher
de má lingua, que traz todo o logar embru-
lhado. Por causa d''ella lavram inimisades de
família^ questões entre casados, o diabo ! Mas
de cara a cara ella não se mette com ninguém;
é só por traz da cortina. Veiu para lá ha três
annos, comprou uma casita, e trabalha de te-
cedeira. Mas o que ella tece melhor são intri-
gas. Por sua causa estou de mal com meu so-
gro e com meu cunhado. Eu e outros mais da
freguezia queremos pôl-a fora do logar, mas
não sabemos a quem havemos de requerer...
E calou-se. O advogado continuava escre-
vendo.
— Não sabemos a quem havemos de reque-
rer. . . repetiu o saloio.
O advogado não respondeu.
— Sr. dr., perguntou o saloio, a quem have-
mos nós de requerer ?
O advogado nem palavra.
5i
Mas o saloio não desistiu. Aproximou-se da
banca, e tornou a perguntar curvando-se até
quasi juntar a sua cabeça com a do advogado :
— A quem havemos nós de requerer, sr. dr. ?
— A D. Miguel, respondeu o advogado con-
tinuando sempre a escrever.
* *
Quem conhecia bem a formiga era um certo
lavrador do Alemtejo, cujo celleiro as formigas
tinham invadido como praga damninha.
Elle consultou todos os chimicos afamados
para que lhe vendessem um. ingrediente que as
matasse.
A droga que lhe receitou o boticário da sua
terra, não deu resultado. Veiu de propósito a
Lisboa, conversou sobre o assumpto com os
mais conspícuos pharmaceuticos da capital.
— Faça isto.
— Faça aquillo.
— Faça aqueiroutro.
Nada deu resultado. Um dia, na charneca,
aconselhou-se com um pastor. Obrigados, pela
solidão em que vivem, á observação da natu-
reza e á philosophia da experiência, os pasto-
res da charneca téem ás vezes phrases concei-
tuosas, alvitres sapientissimos.
O pastor deu-lhe um conselho, que valia mais
do que as drogas dos pharmaceuticos.
52
Chegado a casa, o lavrador pegou n'uma tira
de papel, escreveu n'ella algumas palavras, c
foi pregal-a na porta do celleiro.
Legiões de formigas avançavam, pelo veso,
em demanda das tulhas. Mas logo que avista-
vam a porta, e liam o lettreiro, retrocediam
como que embuchadas.
No dia seguinte, a mesma coisa. O pastor
tinha aconselhado um remédio excellente.
O que escreveu o lavrador no papel ? Esta
simples phrase:
a'7)e hoje em deante^ toda a formiga que en-
trar no meu celleiro ha de pagar de:{ r^éis — por
cabeça. »
Ora como as formigas são essencialmente
avarentas, chegavam á porta do celleiro, liam
o papel, e desandavam para a toca, não sabendo
ao certo se o lavrador gracejaria ou fallaria ver-
dade.
*
* *
Um moço de fretes costumava ir confcssar-
se todos os annos, mas fazia a sua chorata ao
prior para não ter que pagar a desarrisca. De
uma vez, porque lhe parecesse que o prior se
aborrecia com a choradeira, que era fingida,
andou a procurar entre os seus patacos um que
tinha pcor cara e que por isso mesmo era mais
duvidoso.
53
Foi confessar-se, muito contricto, com o pa-
taco falso na algibeira. Antes de receber Nosso
Pae, pensando sempre em Deus e no pataco,
dirigiu-se para a sachristia.
— Sr. prior, disse elle, eu tenho abusado muito
da bondade de v. s."
— Nem por isso, Ramon . . .
— Tenho, tenho, sr. prior, mas este anno não
ha de ser assim.
E, dizendo, tirava vagarosamente da algibeira
do collete o que quer que fosse.
— Este anno, continuou, quero pagar a des-
arrisca. Se o sr. prior estiver pelos autos, fi-
cará o costume de eu pagar de dois em dois
annos.
— Pois seja como quizeres.
E o moço de fretes, tirando o pataco da al-
gibeira, pôl-o a um canto da mesa em que o
prior estava escrevendo no livro.
— É poucochinho, sr. prior, mas os annos
vão muito bicudos . . .
— Não fallemos mais n"isso.
— Sempre chega para o rapé. Este pataqui-
nho é para o rapé do sr. prior.
— Pois seja.
E o prior, voltando-se para o menino do coro,
que estava perto, disse-lhe imperativamente:
— Ó Zé Maria, vae-me ali defronte comprar
um pataco de meio grosso.
O Zé Maria sahiu, a correr, e o moço de fre-
54
tes, sempre muito coniricto, foi ajoelhar-se d
mesa da communhao, esperando pelo prior.
Um instante depois, o menino do coro en-
trava na saciíristia com o rapé e com o pataco.
— Sr. prior, disse elle, não quizeram receber
o pataco.
— Por quê ?
— Porque é falso como Judas. Mas obriga-
ram-me a trazer o rapé por ser para o sr. prior.
— Deixa lá ver o pataco.
O prior ♦pegou no dinlieiro, levou-o á altura
dos olhos, e riu-se. Levantou-se, preparou-se
para ir dar a communhao.
Chegando á egreja, descobriu o moço de fre-
tes, que estava já com o queixo muito embru-
lhado na toalha de rendas.
O prior foi distribuiu Jo as sagradas partícu-
las, mas quando chegou ao gallego, introdu-
ziu-lhe o pataco na bocca, — delicadamente.
Habituado a grandes pesos, o penitente nem
sequer se admirou de que fosse tão pesada
aquella estranha partícula.
Mas quando quiz engulil-a^ é que foram el-
las !
E o prior, de pé, grave e solemne, esperava.
Bem voltas dava á lingua o gallego, mas não
havia meio de engulir o pataco.
Até que, com alguma difficuldade, se resol-
veu a dizer :
— Não passa, sr. prior !
DD
E O prior, sempre muito grave e solemne
respondeu-lhe :
— Não passa, não. Já mandei comprar rapé,
e não o quizeram acceitar.
# ^
— Por que é, perguntava um professor de
agricultura, que as sementes precisam ser en-
terradas na terra ?
— Por isto. . . dizia um estudante.
— Por aquillo. . . respondia outro.
O professor zangou-se :
— Não, sr. ! E preciso enterrar as sementes
para os pássaros as não comerem.
VI
 volta dos pés da imperatriz
Referiram ha tempos os jornaes que se tinha
levantado na corte de Berlim uma grave ques-
tão de etiqueta, — grave como todas as ques-
tões d'este género, incluindo a do Hyssope.
A actual imperatriz, que prima por uma extre-
ma simplicidade de vestidos e maneiras, pedira
ao imperador seu marido que dispensasse, nas
grandes solemnidades do palácio, os vestidos
roçagantes, as longas traines cadentes.
A condessa Waldersee, que tem auctoridade
em questões de etiqueta, reforçou com a sua
opinião o pedido da imperatriz.
Mas Guilherme II não annuiu, e as extensas
caudas de setim e velludo continuarão a arras-
tar-se, sobre os tapetes da corte allcma, longa-
mente, apparatosamente. . .
Á bocca pequena dizia-se em Berlim que no
pedido da imperatriz havia o que quer que fosse
de vaidade feminina, porque, tendo uns pés
37
pequeníssimos, não desejava que lh"os empa-
nasse o vestido.
O imperador, conhecendo a intenção reser-
vada da imperatriz, entrincheirára-se na recusa,
porque, não obstante as suas aventuras d'amor,
Guilherme II, como todo o marido que se prese,
entende que deve ser elle o único a ter o di-
reito de admirar as perfeições plásticas de sua
mulher.
Pelo que respeita aos pés femininos, divi-
dem-se as opiniões. Os leitores sabem-n'o tão
bem como eu.
Entendem uns que os pés da mulher são tão
pouco para admirar como abaste de uma rosa.
Todas as attenções se fixam na belleza da co-
rolla, no colorido das pétalas. É a rosa fresca
e bella ? E isso o que se quer. Tenha a mulher
as graças do semblante, que os pés, que ficam
lá muito para baixo, escapam á vista, sejam
grandes ou pequenos.
Outros porém, e estes são decerto em maior
numero, adoram os pés caprichosamente pe-
queninos, miniaturados a buril como por um
gravador que houvesse cegado depois de os ter
feito . . .
Os que são doeste parecer defendem-se cora
a tradição da estatuária clássica, com as lendas
graciosas da bella plástica antiga, em que a
mulher, não raras vezes, apparece divinisada
pela pequenez do pé.
58
Recordam a historia da Cendrillon, a nossa
Gata borralheira, que perdeu o chapim pelo
qual um principe galante a mandara procurar
até que, encontrando-a, só descansou quando
poude desposal-a.
Citam a -tradição da formosa Rhodópis a
quem, estando ella no banho, uma águia em-
polgou uma das sandálias, que deixou cahir no
terraço do palácio real de Memphis, onde o
rei, apanhando-a, tratou de descobrir, desde
essa hora, o pequenino pé de que pela sandália
fxcára enamorado.
E, no fundo, a mesma lenda, talvez um ^ym-
bolismo m3-thico transformado em anecdota his-
tórica, como julga Husson.
Lembram ainda em seu abono o instincto
artístico da poesia popular, que sempre cele-
brou as mulheres de pés pequenos. E adduzem
exemplos :
Tendes o pé pequenino,
Do tamanho d 'um vintém:
Podia calçar de prata
Quem tão pequeno pé tem.
A verdade é que o arsenal de defesa dos que
assim pensam está copiosamente abastecido de
citações e referencias, a que esses taes poderão
recorrer para seu triumpho.
Na écloga segunda de Bernardim Ribeiro, —
de que os seus biographos tanto se téem ser-
vido para dilucidar a mysteriosa vida do poeta —
69
é também pelo pé de Joanna que o pastor Jano
se deixa fascinar amorosamente.
Jano anda guardando o seu rebanho quando
vc aproximar-se Joanna que, vestida de branco,
se entretém colhendo flores. EUe occulta-se es-
preitando-a. Colhidas as íiôres,
Joanna, as abas erguidas,
Entrar pela agua ordenou ;
E assentando-se, então
As çapatas descalçou,
E, pondo-as sobre o chão.
Por dentro d'agua entrou,
E a Jano pelo coração.
Ah ! que é preciso uma pessoa ser cega de
enthusiasmo pelo bucolismo, pela infância poé-
tica da alm.a portugueza, tão simples, tão sin-
cera e ao mesmo passo tão dócil, para não mor-
rer de apoplexia fulminante ao soar-lhe nos ou-
vidos este plebeu vocábulo çapatas, tão gros-
seiro e saloio, como elle nos soa hoje !
Bernardim, esse favo de saudades a que o
tempo não tem roubado a doçura, essa abelha
do amor, que usurpou ao Hymetto o segredo
de amelar deliciosamente as suas trovas com
as boninas do coração namorado, parecer-nos-
ha, se o não avistarmos de alto, um camponio
da Ribaldeira a gabar as çapatas amarellas da
moça do prior!
Mas o pastor Jano não teve mão em si que
não sahisse do escondrijo ao encontro da bella
6o
zagalla. Ella, como Galatéa, esquivou-se fu-
gindo :
Muito perto estava o casal
Onde vivia o pai d'ella,
Que fez ir mais longe o mal.
Que Jano teve de vêl-a :
Mas o medo que causou,
Joanna partir-se assi,
Tanto as mãos lhe embaraçou,
Que a çapata esquerda, alli,
Com a pressa lhe íicou.
Agora é que o ridículo da situação parece su-
bir de ponto, porque o pastor Jano — o próprio
Bernardim talvez — corre a abraçar-se com a
çapata, a cliorar sobre ella. çapatando os pei-
tos. E textual.
Çapata, deixada aqui,
Para mal de outro mòr mal.
Quem te deixou, leva a mi :
Que troca tão desegual !
Mas pois assim é, seja assi.
Foi, portanto, pelo pé de Joanna que o pas-
tor Jano se sentiu arrastado para o abysmo do
amor, — com a çapata na mão.
Como os tempos mudam 1 Hoje, um poeta
palaciano, que ouzassc cantar em publico, ainda
mesmo sob o disfarce de pastor, a çapata da
bem-amada, era um homem que tinha a sua
carreira cortada pelo ridículo.
6i
A Academia, elegante como ella é, diria, se
alguém lhe fallasse em admitil-o sócio corres-
pondente :
— Que ! O da çapata ? ! Não pôde ser 1 Elle
que mude para chapim.
Qualquer ministro do reino, com receio do
ridiculo das gazetas, se algum influente politico
lhe pedisse que fabricasse deputado o poeta,
responderia sorrindo :
— Ora adeus I O deputado da çapata?! É lá
possível ! Você quer matar o governo pelo ridi-
culo !
Todavia a Academia Real curva-se — e n'este
ponto curva-se bem — perante Bernardim Ri-
beiro, o primeiro poeta bucólico portuguez.
As gazetilhas em verso fariam uma troça de
seiscentos diabos ao anonymo que ouzasse man-
dar para o Diário de Noíicias o seguinte an-
nuncÍ3:
«Ha oito dias que estou beijando incessante-
mente a çapata que v. ex.^ perdeu em Cascaes
quando, para me fugir, entrou precipitadamente
no banho. A çapata entrou-me pelo coração,
como V. ex.'^ pela agua.»
Nada obstante_, se os redactores de gazeti-
lhas vissem entrar Bernardim Ribeiro no escri-
ptorio do jornal, vestido de mendigo, como a
lenda nol-o pinta á volta de Saboya, roto e es-
frangalhado, e se elle lhes dissesse que era o
auctor do livro das saudades, os srs. redacto-
62
res levantas-se-iam respeitosos, curvados e do-
minados, para offerecer uma cadeira ao grande
poeta Bernardim Ribeiro, que devia estar can-
sado, por vir de longes terras.
Mas, á parte o desprimor archeolcgico do vo-
cábulo, emerge d'esta trova do bucolista o
naturalismo, vivo e quente, que endeusa a pe-
quenez do pé feminino.
Parece-nos galante toda a conjuncturaem que
um pé de fada se descubra aos nossos olhos
na sua exiguidade microscópica, seja pulando
sobre o tapete de um salão, poisando no estribo
d\ima carruagem, ou aquecendo na concha ar-
dente das nossas mãos aduncas. . .
Conta frei Luiz de Sousa que o infante D. Fer-
nando, tendo casado com D. Guiomar Coutinho.
em torno da qual se agitou a paixão dramática
do marquez de Torres Novas, e «subindo am-
bos uma escada, em tempo que andava pejada
D. Guiomar, lhe lançou mão dos chapins para
que tivesse menos pena na subida.»
Gentil, não é ?
Todas as delicadas galanterias que se façam
aos pés de uma mulher, suppÕem que o que
n'elles encantou foi a perfeição com que a na-
tureza os talhou no mármore.
Enumerar todos quantos poetas, antigos e
modernos, téem cantado os pés femininos, seria
o mesmo que encher de versos uma biblio-
theca.
63
Temos, pois, que resignar-nos, quanto ao nu-
mero, a dar apenas insignificantíssimas amos-
tras.
De um poeta antigo -^ Rodrigues Lobo :
As flores, por onde passa,
Se os pés lhe acerta de pôr,
Ficam de inveja sem côr
E de vergonha com graça.
Qualquer pegada que faça
Faz florescer a verdura,
Vai formosa e não segura.
Citarei apenas dois poetas modernos.
E conhecidissimo o bello pensamento de João
de Deus :
O que te falta pois ? os teus desejos
Quaes são ? de que precisas ?
Ah ! não ser eu o mármore que pisas. . .
Calçava-te de beijos !
O soneto A Bori'alheira, de Luiz Guimarães,
é dos mais scintillantes da sua lyra ardente:
Meigos pés pequeninos, delicados
Como um duplo lilaz, — se os beija-flôres
Vos descobrissem entre as outras flores,
Que seria de vós, pés adorados !
Como dois gémeos sylphos animados,
Vi-vos hontem pairar entre os fulgores
Do baile, ariscos, brancos, tentadores. . .
Mas, ai de mim! — como os mais pés calcados
64
«Calçados como os mais ! que desacato !
Disse eu. — Vou já talhar-lhes um sapato
Leve, ideial, fantástico, secreto. . .»
Eil-o. Resta saber, anjo faceiro,
Se acertou na medida o sapateiro :
iMimosos pés, calçai este soneto.
A sabedoria da antisfuidade, formulada cm
provérbios, que são como que migalhas de phi-
losophia, impõe-se ao nosso espirito naimmensa
variedade de assumptos que podem impressio-
nal-o.
Ora os antigos diziam : Ne qiiid niinis. Nada
que seja de mais. Eu fui educado com velhos,
e aprendi da sua experiência. Se n\\quelle pro-
vérbio posso calçar um pé de mulher, acho que
o provérbio é bom, e que o pé é ainda melhor.
Se não posso, quer-me parecer que os meus
velhos educadores me estão segredando em es-
pirito com a auctoridade dos seus cabellos bran-
cos : «Ahi ha pé de mais e provérbio de me-
nos.»
Ne qiiid nimis ou, como dizem os francezes,
Rien de trop. . . até nos pés!
VII
Loucura aisgrs
Conta-se que sobre uma pequena terra de
província cahira, não sei quando, uma chuva
verdadeiramente original, tão original^ que per-
deram o juizo todos os que a apanharam.
E o caso é que toda a gente d'aquella terra
a apanhou, com excepção de um sábio que ali
vivia voluntariamente exilado, entregue a leitu-
ras profundas, a estudos d'alta sciencia.
No dia da chuva, o sábio não sahiu ; não sa-
bia nunca. Ficou, portanto, em seu perfeito
juizo.
A gente da terra vivia principalmente dos
trabalhos da agricultura, em pleno campo, de
modo que a chuva cahiu-lhe em cheio sobre a
cabeça, foi como se lhe alagasse os miolos. . .
Tendo endoidecido todos, o sábio era como
que o único pharol de bom senso que brilhava
n'aquelle vasto mar de loucura.
Aconselhava os outros.
66
Procurava chamal-os á razão.
Dava-lhes conselhos acertados.
ReprehenJia-os anioravelmente qu mdo elles
praticavam desatinos.
Mas qual I Ninguém o acreditava, ninguém
o atcendia, todos os outros haviam .i.aiihado a
chuva terrível, todos estavam louco.-, e procu-
rar restabelecel-os de um momento para o ou-
tro era o mesmo que remar contra a marf.
Começou o sábio a inquietar-se com a sua
própria situação, que em verdade nada tinha
de agradável.
Receiava elle próprio perder o juizo, que tão
preciso lhe era, como se estivesse vivendo no
meio de um hospital de doidos.
A sua criada desatava a cantar e bailar quando
elle lhe mandava fazer o biffe do almoço ou as
torradas para o chá.
De íorte que se via na necessidade de ir elle
mesmo fazer o bitíe ou as torradas, emquanto
a criada bailava e cantava em frente do fogão,
azoinando o am.o.
O seu criado engraixava-lhe a camisa engom-
mada, quando elle lhe mandava engraixar as
botas •, e escovava-lhe as botas, quando elle lhe
mandava tirar da gaveta uma camisa cngom-
mada.
Pensou o sábio em mudar de terra, mas a
pequena propriedade que possuía estava si-
tuada ali:;e em taes círcumstancías ninguém lh'a
67
queria comprar, porque o caso da chuva tinha
soado ao longe, de maneira que a terra cahira
em descrédito, sabia-se que todos hl estavam
doidos.
Os próprios trabalhos scientiíicos do sábio,
até ahi tão considerados, principiaram a ser
suspeitos de loucura. Já não havia quem os qui-
zesse ler. A opinião publica é assim. Até então,
como corresse fama de que era aquelle um
grande sábio, toda a gente o considerava con^iO
tal; de repente, com a mesma. unanimidade, to-
da a gente principiou a duvidar de que elle po-
desse conservar inteiro o juizo vivendo no meio
de doidos.
— ■ o que hei de eu fazer ? perguntava a si
me-mo o sábio.
Como ainda houvesse pelas ruas da villa mui
tas poças de agua da chuva, começou a anaiy-
sar chimicamente a agua para ver se descobria
o segredo daquella extranha epidemia de lou-
cura.
Mas nada lhe achou de notável segundo a
chimica. Era agua de chuva com d qualquer ou-
tra.
— Eu perco o juizol dizia de si para comsigo
o sábio. Tudo isto é tão extraordinário, que
sinto vacillar a minha própria razão'.
E a criada continuava a bailar e a dançar
quando elle lhe mandava fazer o biffe ou as
torradas.
68
E o criado engraixava-lhe a camisa quando
elle lhe mandava engraixar as botas.
Os seus caseiros não se entendiam com clle,
nem elle com os seus caseiros.
O padeiro, pela manhã, trazia-lhe pedras
duras em vez de pão fresco.
O merceeiro manda va-lhe assucar quando
elle pedia arroz ou mandava-lhe arroz quando
elle lhe pedia assucar.
De modo que, n'um momento de desespero,
o sábio resolveu um bcllo dia perder o juízo
que até então havia conservado.
Fugiu para o meio da rua, andou procuran-
do uma das poças de agua da chuva, que ainda
havia. Poz-se de cócoras, olhou em roda, e re-
conhecendo mais uma vez que todos estavam
doidos, metteu as mãos na poça, encheu-as de
agua, e começou a encharcar a cabeça.
D'ahi a momentos estava também doido, e
toda a sua preoccupação anterior havia desap-
parecido, porque, tendo elle próprio perdido a
razão, já não se affligia com a loucura dos ou-
tros.
Lembrou-me esta anecdota quando, passan-
do sabbado á noite pelo Colyseu dos Recreios,
vi uma enorme multidão de povo invadir as
portas, disputar a entrada, ancioso de obter
um logar para ir assistir ao beneficio da Geral-
dine.
— Então, dizia eu com os meus botões, tudo
69
isso de reULicçÕes imminentes é uma fabula ! O
paiz está rico e contente. Diz-se que ha misé-
ria, e toda a gente pensa em divertir-se I O que
se vê é que as industrias estão prosperas, o
commercio florescente. Os operários, voltando
agora de um trabalho fartamente remunerado,
tratam de comprar bilhete para a geral. Ven-
der uma colónia! para que ? O que o povo que
é que lhe vendam um bilhete Colyseu I Os
jornaes portuguezes e extrangeiros dizem que
estamos pobres ! Sempre mentem muito os jor-
naes ! Toda essa gente, que ahi se agglomera
ás portas, estende para o camaroteiro uma
nota, oíTerece-lhe dinheiro, tão rica está toda a
gente !
E, pensando n'isto e na anecdota. continuei
a dizer com os meus botões :
— ... Salvo se o ultimo portuguez que ti-
vesse juizo também molhou a cabeça na poça
d 'agua !
Mas no domingo fui passeiar á Avenida co-
mo para procurar a contra-prova do espectá-
culo da véspera.
Oh! que alluvião de gente I que bulício ! que
vida ! que animação !
Longas tilas de trens desdobravam-sc ao
longo da Avenida n\im grande esplendor de
equipagens brilhantes.
O dinheiro trotava em bellos cavallos pur
saug; rodavam titulos e brazÕes, forlunas co-
70
lossaes deslisavam a quatro soltas, pomposa-
mente.
E eu continua\a perguntando aos meus bo-
tões :
— Santo Deus I onde d que está o ultimo sá-
bio desta terra ? I
K olhava para o chão esperando ver que o
ultimo sábio, posto de cócoras, estivesse olhando
para os outros e molhando a cabeça com fre-
nesi.
Qual I não era para o chão que eu devia olhar.
Os sábios portuguezes prezam-sc muito para
que algum d"elles queira acocorar-se á vista dos
seus p^itricios.
P>ra para o alto das boleias e para a estampa
das horsas que eu devia olhar ; não para o
chão. O chão I esse, coitado, estava pisado,
moido do continuo attricto das ferraduras dos
cavallos e das rodas das carruagens.
O sol. bcllamente festivo, cahia em palpita-
ções de luz sobre a Avenida. O monumento vi-
ctorioso dos Restauradores recorta\a-sc nutn
fundo de azul luminoso parecendo chispar cen-
telhas como uma lamina erguida ao sol. Chalets
elegantes alcandoravam-se pela encosta oriental
da cidade. Prédios magniíkos, alguns sumptuo-
sos, agrupa^■am-se em grandes bairros novos á
ilharga da Avenida nas terras outr"ora desertas
c solitárias. As antigas hortas desappareceram
para dar logar a palácios novos. Guardas-por-
71
toes imponentes encosíavam-se ás portas vendo
de longe o formigueiro dos trens que passavam
rodando ao trote largo de cavallos finos.
E por mais que eu olhasse para o chão nenhum
sábio, de cócoras, tratava de molhar a cabeça
para não ter que chorar sobre tanta alegria I
Então, recolhendo para casa, olhando sem-
pre cautelosamente para não ser atropellado
pelos trens e pelos cavalleiros, lembrou-me ou-
tro caso, nada mais e nada menos que o plano
de um poema que certo amigo meu havia deli-
neado quando a morte o surprehendêra.
A J^alsa: era o titulo do poema.
A acção leva pouco tempo a contar.
Meia dúzia de velhos, que no seu tempo ha-
viam sido grandes valsistas. resolveram, a des-
peito do peso dos annos, reconquistar uma hora
de mocidade, dar um baile em que todos elles
valsassem como antigamente, embora fossem
morrendo de cansaço no meio da sala.
Assim fizeram. Na noite do baile, eil-os que
entram no salão, correctamente barbeados, tão
gentis, quanto a idade lhes permittia, dentro
das suas casacas muito justas e luzidias.
Uma valsa de Strauss fez ouvir as suas pri-
meiras notas. Tudo ali parece palpitar ao som
da miusica, — os velhos principalmente.
E, cingindo a cintura de bellas damas, todos
elles principiam a valsar com a intrepidez dos
vinte annos.
72
A valsa não aífrouxa nunca, e os velhos val-
sistas, extenuados, principiam a cahir de can-
saço, pallidos, mortos, um após outro, até que,
estendidos sobre o verniz do salão, teem por
funeral o baile, por De profiindis a valsa de
Strauss, que parece não acabar nunca I
Era phantastico o poema, excêntrico o poeta.
Mas. o caso é que me lembrei do poema da
Valsa, que, ai do poetai ticou apenas em pro-
jecto.
Tudo aquillo que eu tinha visto, no sabbado
e no domingo, era como a valsa dos velhos
extenuados, que, ao som da musica, iam ca-
hindo mortos n\ima atmosphera de alegria e
n'uma allucinação de prazer, que os matou sem
os ter remoçado, que os esgotou sem os ter di-
vertido !
Vííí
A msscotts
Ter ou não ter inascoite, eis a questão, para
tudo e para todos.
Não sei se o leitor é dado a superstições e
crendices, que, de resto, constituem o fundo
simples e primitivo da natureza humana.
Eu, por mais que oiça dissertar os philoso-
phos, creio profundamente em superstições. Sou,
a este respeito, quasi primitivo. E entre as su-
perstições, que me inspiram maior fé, acredito
cegamente na influencia benéfica de um génio
bom e tutellar, a que modernamente chamamos
mascottc.
Até — seja dito em confidencia — ja tive uma
mascottc.
Por que não hei de contar francamente essa
historia ?
Era uma insignificantíssima beniiala da ilha
da Madeira, que me tinha custado doze vinténs
74
e que ninguém seria capaz de me comprar por
seis.
Estava muito longe do meu espirito a sus-
peita de que essa reles bengala, cheia de nós
e de mossas, podesse exercer alguma influen-
cia benéfica na minha vida.
Mas comecei a notar a coincidência de que
tudo me corria mal. quando o mau tempo me
obrigava a substituir a bengala pelo chapéu de
chuva.
Difficuldades, incertezas, contrariedades que
o chapéu de chuva tinha suscitado e alimen-
tado, aplanavam-se e desappareciam quando
no dia s.guinte a bengala substituía o chapéu
de chuva.
Este facto rcpctiu-se uma e muitas vezes :
induzi portanto que aquellc reles pausinho da
ilha da Madeira tinha condão de felicidade. Era
o meu íalisman. Tomei-lhe amor, ganhei cou:
fiança na sua virtude, e comecei a acreditar na
existência de uma niascolíc que, se me aban-
donava um momento, me deixava exposto ás
maiores contrariedades.
Em dias de chuva torrencial, dias de tempo-
ral desfeito, eu não ousava sahir sem a nuis-
coílc, importando-me pouco que as outras pes-
soas podessem fazer reparo na excentricidade
de um homem que, apesar de chover a potes,
deixava o chapéu de chuva em casa e sahia
com a bengala debaixo do braço.
Muitas vezes fui obrigado, por manter o culto
devido á minha inascottL', a tomar um trem.
Mas fazia de bom grado essa despeza, nem
me importava apanhar chuva, comtanto que
não tivesse de largar a mascotte.
Os meus amigos conheciam esta supersti-
ção, e riam-se. Fingiam querer roubar-m'a. Mas
eu, se passava a noite com elles, sentava-me
de bengala na mão, não a abandonava um mo-
mento.
Um dia perdi-a. Vou contar como isso foi.
O leitor pôde imaginar o desgosto que n'esse
dia me feriu.
Era então ministro da marinha o conselheiro
Júlio de Vilhena, que morava na rua de S. João
da Matta.
Na véspera havíamos passado grande parte
da noite a conversar sobre um livro, que se re-
lacionava com o assumpto litterario de que eu
então me estava occupando.
Tratava-se da symbolica do direito, que me
era preciso estudar para o livro A jornada dos
séculos, que eu trazia entre mãos. Júlio de Vi-
lhena offerecéra emprestar-m'o^ e ficou combi-
nado que eu iria no dia seguinte a sua casa. á
uma hora da tarde, buscar o livro.
Chovia : tomei um trem.
Durante o trajecto, para accender um cigarro,
tive que encostar a bengala a um canto da car-
ruagem.
76
Quando cheguei á rua de S. João da Matta,
disse-me o correio que o ministro estava ainda
almoçando, e que eu teria de esperar pelo me-
nos meia hora.
Despedi o trem, sem tomar sentido no nu-
mero.
Chegaram mais pessoas, com quem esperei
conversando.
Quando o ministro acabou de almoçar, e me
recebeu no seu escriptorio, lembrci-me subita-
mente de que a jjmscotíe tinha ficado no trem.
Mostrei-me inquieto, disse-lhe o motivo da
minha inquietação, porque elle conhecia muito
bem, como todos os meuc amigos, a lenda da
bengala.
Sahi de afogadilho, com o livro debaixo do
braço, e dirigi-me immediatamente ao commis-
sariado geral de policia.
A um dos commissarios, meu amigo, contei
que me tinha esquecido dentro de uma carrua-
gem, cujo numero ignorava, uma bengala que
valeria apenas seis vinténs, mas que eu esti-
mava muito.
O commissario imaginou talvez que se tra-
tava de uma recordação de familia. Socegou-
me. Como a bengala não tinha valor material,
ap pareceria facilmente, ia dar as suas ordens,
e eu prometti gratificar o policia que encon-
trasse a bengala.
Sahi do commissariado de policia para ir dar
77
umas voltas, tratar de negócios particulares»
Mas tinha a convicção de que tudo me cor-
reria mal n^esse dia e nos outros, porque, ai
de mim I havia perdido a mascotte. Era, moral-
mente, um homem morto.
Às cinco horas da tarde, muito contrariado,
quasi rabujento, subia eu o Chiado, olhando at-
tentamente para todos os trens que passavam,
ancioso de reconhecer o cocheiro que me tinha
levado á rua de S. João da Matta.
De repente, descendo o Chiado, passa um
trem. O cocheiro olha para mim, e pára. O fe-
licidade ! era o cocheiro que eu procurava! De
dentro da caixa da almofada tirou elle a minha
querida bengala, e eu tirei da algibeira dez tos-
tões que lhe dei como aiviçaras.
O cocheiro, que via pagar por dez tostões
uma bengala que valeria seis vinténs, ficou a
olhar para mim, espantado.
Suppoz, talvez, n"aquelle momento, que eu
era filho do sr. Monteiro da rua do Alecrim.
Que boas horas de alegria que eu tive, read-
quirindo a posse da mascotte, a minha que-
rida bengala! Nadando em jubilo, fui dizer
ao commissario de policia que a bengala tinha
apparecido. E á noite, contando a historia do
feliz achado aos meus amigos, recebi para-
béns.
Rodaram alguns annos, durante os quaes tive
sobejos motivos para firmar a minha crença no
7»
£ondão maravilhoso da bengala. Era decidida-
mente umia mascolíc.
Mas um dia — que terrive! dia esse I — por
acaso, n"uma esgrima simulada, a bengala partia-
se. Deus perdoe a quem, com a mais amável
intenção d'este mundo, contribuiu para esòe
medonho fracasso. Guardei durante algum teni-
po os dois fragmentos da bengala, mas o seu
condão de felicidade tinha-se partido com ella,
ai de mim 1 A niascollc havia fugido, como uma
alma abandona um corpo.
O leitor pôde sorrir-se da minha ingénua cre-
dulidade, mas eu cria cegamente na virtude
d'esse talisman, que um acaso m.e trouxe, e que
um acaso levou.
Não ha philosophia que resista aos factos.
De varias pessoas sei eu que tiveram })his-
cotte, e que criam n'ella como em Deus.
Uma d'cssas pessoas era o general José de
Vasconcellos Correia, que morreu conde de
Torres Novas.
A sua mascottc era uma escova de fato, que
o não abandonava jamais.
Justamente, tendo de partir para Torres No-
vas, onde se assignalou pelo seu valor, esque-
ceu lhe mctter dentro da mala a escova. E, por
não querer separar-se d'ella em tão duvidosa
occasião, metteu-a dentro da barretina.
Em Torres Novas, durante a refrega, rece-
beu uma cutilada na cabeça. O golpe tel-o-ia
79
prostrado, se entre a barretina e a cabeça não
estivesse a escova,-— a que ficou devendo a
vida.
Falta-me o espaço para referir outros muitos
casos não menos interessantes e justificativos.
E tenha pena ! O leitor começaria talvez por
sorrir-se :j mas acabaria decerto por acreditar.
Toda a gente, por muito que finja o contra-
rio, tem as suas superstições.
IX
Sra ern abril
Cétait en avril, un dimanche,
Oui, le dimanche !
J'etais heureux. . .
\'ous aviez une robe blanche
Et deux gentils brins de pervenche,
Oui, de pervenche,
Dans les cheveux.
Nous étions assis sur la mousse,
Oui, sur la mousse,
Et sans parler,
Nous regardions Therbe qui pousse,
La feuille verte et Tombro douce,
Oui, Tombre douce,
Et Teau couler.
Un oiseau chantait sur la branche,
Oui, sur la branche.
Puis il s'est tu.
J"ai pris dans ma main ta main blanche.
Cetait en avril, un dimanche,
Oui, le dimanche. . .
T'en souviens — tu ?
8i
Ah ! como esta deliciosa canção primaveral
de Eduardo Pailleron concentra em si todos os
perfumes, todos os cânticos, todos os sonhos
de abril, quando o laranjal florido deixa cair da
sua coma. semelhante a um bouquet de noiva,
não sei que doces pensamentos de amor. não
sei que fragrâncias de boudoir. que estontea-
mentos de volúpia, cheia de mvsterios. de se-
gredos e de arrulhos maviosos I ? A olaia põe no
terreno grandes manchas encarnadas, tapetes
de pétalas soltas, que se alastram convidando
ao remanso d"um idyllio. oui. d'un idylh'...
No ar, passam foliando os assobios estridu-
los dos melros e da tlauta de Pan, dando uma
extranha sensação de prazer vibrante, sobre-
tudo se brilha no céu o bello sol ocioso dum
domingo... oui, le diniauche!
Perto, um veio d^agua crystallina e murmura
dá uma enorme sensação de frescura e de pre-
guiça, porque não ha nada que enerve mais
deliciosamente do que vêr correr a agua sobre
um campo... et leaii coiílcr.
Tufos de relva, estrellados de malmequeres,
redondos e grandes, vecejam n"uma exuberân-
cia de florescência sadia, impregnada da ini-
mensa vitalidade vernal...
Nous regardions Therbe qui pousse,
La feuille verte et Tombre douce.
Delicioso abril ! Primavera encantadora ! por
6
82
mais que a gente queira adorar-tc sem rhcto-
rica, é completamente impossivel, porque tu
mesma és a rhetorica da creaçao, o Padre Car-
doso da naturesa...
Cétãit en arni . . .
Era sim, era em abril, os melros e as touti-
negras enchiam de musica o ar, os laranjaes e
as olaias doidejavam galas de Hores e de perfu-
mes, e o meu amigo Rosendo, tão feliz como
Pailleron, foi com a sua bella ao Campo Grande
passar um domingo, uma esplendida manhã de
domingo... oui, Ic dimaiichc.
Tinham ido por ahi fora no omnibus do Sa-
lazar, n"uma felicidade cortada de phrases ter-
nas e de solavancos, um paraiso ambulante, ti-
rado por três pilecas rebeldes ao amor e ao
chicote.
Rosendo e Ambrósia tinham pressa de che-
car ao Campo Grande, tinham um grande de-
sejo de verdura, quasi tanto como as pilecas.
Ella ia fresca de mocidade e elegância singela:
um vestido de percale claro, umas rendas, uma
rosa natural, um chapéu com blonde verde, lu-
vas de peau de Suédc... Tentadora ! Nunca uma
Ambrósia parecera tão fascinante, nunca um
Rosendo sentira no coração um bando de rou-
xinoes tão palreiros e tão músicos como naquella
83
hora deliciosa. Imagine-se a pressa do Rosendo
em chegar ao Campo Grande, porque, corn
um bando de rouxinoes dentro do coração, es-
tava em risco de morrer de hypertrophia, se
não chegasse de pressa, — ■ mesmo muito de
pressa.
Mas finalmente chegaram. Esperava-os um
banco verde, um banco de idyllio, que nem que
fosse mandado pôr ali de encommenda pela ca-
mará municipal, para uso dos namorados ao
domingo... oui, le dimanche. Por de traz, um
bosquesinho de roseiras, discreto como um cego,
silencioso como um mudo.
Rosendo sabia os versos de Pailleron por os
ter lido na Revista dos dois mundos, e por os
haver achado deliciosos.
Tratou de pôl-os em acção, ou antes, de pôr
a sua mão de enamorado Rosendo sobre a mão
branca de Ambrósia.
J'ai pris dans ma main ta main blanche.. .
Não faltava nada para que o scenario fosse
em tudo semelhante ao da Revista dos dois mun-
dos: a erva vecejante, a folha verde, a agua cor-
rente, o domingo e a felicidade.
Pássaros folgasaos pipillavam no arvoredo,
numa grande bambocha de virtuoses, e a dis-
tancia, amortecido pelo intervallo dos canteiros,
o ruido de um trem que passava para o Lumiar,
ouvia-se.
^^4
Kosendo. achando-se divino, divinisa\a Am-
brósia, para se confundirem ambos n'uma gran-
de consubstanciação amorosa.
Elle s(3 tinha um desgosto : — que ella, em vez
de uma rosa no vestido, não trouxesse nos ca-
bellos dois ramos de pervinca... oiii. de pcrvcn-
clic.
De repente. Ambrósia, ouvindo dar oito ho-
ras, voltou-se rapidamente para elle, e dos seus
lábios saiu esta phrase. terrível como um grito
de Tântalo :
— O Rosendo, vamos nós almoçar ao José
dos Caracoes ?...
• •>•••.>... •••• •■••••••
'fcíi sourÍL'u:i III... Rosendo?
X
A fslicidads 2 a cainisa
Houve outr"ora um rei, que possuía vastos
domínios, formosos castellos, vastos parques,
ricas baíxellas e equipagens.
Mas era triste, peior talvez do que triste, me-
lancólico.
Organisava festins, e aborrecia-se no meio
d"elles. Nem o ouro, nem a saúde, nem a gran-
des a conseguiam distrai l-o.
A rainha confrangia-se de ver sempre niedi-
tando o seu real esposo.
O príncipe real impr<nisava ruidosas caçadas
para alegrar seu augusto progenitor, mas o
rei, a breve trecho, cahia na sua melancolia
habitual, sentava-se á sombra de uma arvore,
scismava...
Um dia, n"uma kermesse, que as damas da
corte promoveram para divertir seu real amo,
appareceu uma cigana, que andava lendo a lvu>-
na-díchã de barraca em barraca.
86
Em alta, morena como todas as ciganas, e
tinha uns olhos tamanhos e tão vivos, que bem
podiam ler o futuro a grande distancia...
Kmbrulhava-se num manto de retalhos, uma
capa de pedinte que, á força de remendada, já
não tinha côr própria.
Lia, com profunda inditferença, o destino dos
outros, seguindo com a vista as linhas que elles
tinham gravadas na palma da mão. Annunciava
tragedias, desgraças, coisas tenebrosas com a
mesma serenidade com que promettia riquezas,
venturas, delicias.
O rei soube que tinha apparecido na ker-
messe aquella cigana, e mandou-a chamar.
— Quero que me digas, ordcnou-lhe o rei,
,se posso ainda ser feliz.
A cigana, sem parecer preoccupar-se com a
honra que lhe era dispensada, respondeu laconi-
camente :
— Sim. Ainda pôde ser feliz vossa magestade.
Alegrou-se subiraniente o rei e perguntou-
Ihe:
— ^O que é preciso fazer para que eu seja
inteiramente feliz ?
A cigana demorou-se uni momento consul-
tando as linhas da real mão, e respondeu :
— Precisa vossa magestade vestir a camisa
de um homem feliz.
— Mas onde poderei eu encontrar esse homem
feliz?
«7
■ — Isso agora não é comigo, disse a cigana.
E voltou costas ao rei indiíferentemente.
Logo sua magestade mandou reunir no palá-
cio real os seus validos e conselheiros.
Gontando-lhes o caso da cigana, acabou por
dizer-lhes :
— Agora é que eu vou conhecer qual de vós
me é mais dedicado. Trata-se de procurar um
homem feliz, cuja camisa, ainda que custe rios
de ouro, eu hei de vestir, ide procural-o, pois.
E todo aquelle que o encontrar, receberá re-
compensas quaes rei algum da terra ainda con-
cedeu.
Fazendo mil protestos de dedicação, logo cada
um d"elles se deu pressa em partir. Para onde ?
Ao acaso, pelo mundo fora, á procura de um
homem feliz...
Tal conselheiro do rei descobriu um proprie-
tário muito rico, que todos os dias via entrar
pela porta dentro os seus rendeiros carregados
de ouro.
Foi procural-o. na supposição venturosa de
que tinha encontrado a pessoa que procurava.
— Sois feliz como pareceis? perguntou-lhe.
— - Não sou, ai de n"iim I E verdade que pos-
suo uma riqueza enorme, mas falta-me a saú-
de, que é cada vez mais precária. Daria toda
a minha riqueza para poder viver sem dores,
para comer com apetite.
Outro conselheiro do rei encontrou um ho-
88
mem muito robusto, cuja caude todos na sua
terra invejavam.
— E o homem mais forte doestes sitios I dis-
seram-lhe.
Foi visital-o.
— Uma pergunta vos quero fazer. Dizei-me
se, na posse de tão tiorescente saúde., sois com-
pletamente feliz...
O homem forte suspirou, e respondeu :
— E verdade que sou muito robusto, mas
quizera não o ser tanto, porque não tenho gosto
nenhum de viver ainda muitos annos.
— Por que ?
— Porque sou pae de doze hlhos e não ga-
nho 'o bastante para lhes dar de comer. Quan-
to mais trabalho, menos ganho. Ha destinos
assim, e o meu, já agora, não tem remédio.
Informaram um dos validos do rei, de que
em tal aldeia morava um homem que, vinte
annos depois de casado, ainda namorava a mu-
lher.
Assombrou-se com esta revelação o valido, e
foi a correr por montes e valles procurar o di-
toso casado.
Sem mais preâmbulos, interrogou-o.
— E certo que sois casado ha vinte annos?
— Ha vinte annos e vinte dias.
— E que tendes vivido n'uma continua lua
de mel :
— Certissimo, meu senhor.
89
— Sois pois inteiramente feliz ?
— Sel-o-ia se...
— O que?! Pois não vos reputaes um ho-
mem feliz?!
— Sel-o-ia, se não fosse minha sogra, que
volta e meia se lembra de vir visitar-me.
Já iam decorridos alguns mezes, sem que os
conselheiros e validos do rei houvessem voltado
ao paço para noticiar a sua magestade o achado
de um homem feliz.
Esta demora tinha desanimado cada vez mais
o rei, que, de quando em quando, gritava en-
furecido :
— Pois não haverá sobre aterra um homem
verdadeiramente feliz ? I
Certo dia um dos conselheiros do rei ia jorna-
deando, sempre na faina de procurar um homem
feliz, por uma serra muito agreste e solitária.
Só de longe a longe avistava algumas cabras,
que andavam roendo as raizes das urzes.
— Que serra tão triste I disse o fidalgo ao
arreeiro.
— Por aqui só se encontra algum pastor ;
ninguém mais. Lá está um acolá, no alto
daquelle rochedo, a tocar na sua flauta.
— É verdade! Quero fallar-lhe. Vamos lá.
Era grande a distancia. Mas á medida que
se aproximavam iam ouvindo os sons rústicos
da avena e vendo o pastor a bailar, muito con-
tente, sósinho, no topo do rochedo.
90
— Parece impossível, dizia o fidalgo, que não
tenha medo de cair 1
Chegaram perto do rochedo, e o fidalgo gri-
tou-lhe :
— Olá. pastor !
O pegureiro interrompeu a musica e o bailo.
Tirou o chapéu, e ficou-se muito quieto.
— Anda cá, que te quero fazer uma pergunta
e dar dinheiro.
O pastor desceu de um salto.
— .)ulgas-te feliz, meu rapaz?
— Sim, meu senhor, julgo-me feliz.
O conselheiro do rei receiou endoidecer de
alegria.
— Pois então, pega lá todo este dinheiro, e
vende-me a tua camisa.
— Meu senhor, respondeu o pegureiro, eu não
tenho camisa. . .
Por mais que a gente possa invejar a felici-
dade dos outros, e desesperar da sua, o que
é certo é que, ainda quando os outros lhe pa-
recem felizes, sem.pre lhes falta alguma coisa:
a camisa, por exemplo.
XI
Morts d9 um gsntlsman
fBjrão da Torre de Pêro Palha)
Foram-se os deuzes. depois os heroes, por
ultimo parece que também vão acabando 03
homens. . .
Os homens antigos, entenda-se, os homens
de rija tempera, fortes, destros, gentis, bem
educados.
Bem educados, sobretudo, que também isso
faz muito ao caso para a disciplina social, para
a harmonia das classes, para a ordem que não
pôde deixar de ser a base do respeito que as
diversas categorias se devem um.as ás outras.
Os homens que viram nascer a liberdade,
que a sonharam e implantaram, e que tinham
por ella esse culto dedicado que se conserva
por uma creança que educamos a nosso geito...
O que ahi vae ficando já não são homens
medidos pelo estalão que outr"ora marcava a
92
estatura moral. Como na Grécia antiga, foram-
se os Milciades, os Themistocles, talvez os Pé-
ricles. Não tardará o tempo em que se levan-
tem trezentas e sessenta estatuas a Demétrio
Phalerio, quero dizer, aos heroes da decadên-
cia. Se não ha melhor I
Generaes illustres, oradores proeminentes,
sábios conspícuos, tudo isso tem desappare-
cido a pouco e pouco. Até vae desapparecendo
também um t^po que parecia fundido de uma
co.stella de cavalleiro e d'outra costella de tro-
vador : fundido dos restos meio heróicos e meio
galantes da idade-media. Era o gcntleman^ que
sabia montar a cavallo, bater-se em duello, fal-
lar ás damas, dançar uma valsa, entrar n'um
salão. Era o gentlcman, que punha o chapéu na
cabeça diante de um insolente, e que o tirava
quando á portinhola de uma carruagem cum-
primentava uma senhora. Era o goitlonati^ que
não parecia ridículo quando vestia uma calça de
ganga e calcava umas luvas còr de açafrão. Era
o gentlcmau. .. Morreu outro dia um ; desconfio
que foi o ultimo. . .
Chamava-se Hugo Owen, barão da Torre
de Pêro Palha.
Não fez dis:ursos, não fez leis. não escreveu
livros, não compoz óperas, mas conquistou o
direito a ser conhecido e estimado dos seus
contemporâneos.
Por que r Porque foi um gentleman. Eis tudo. ..
93
Seu pai, um inglez de distincçao, militar?, ao
serviço de Portugal no tempo em que os espí-
ritos mais generosos principiavam a sonhar com
a liberdade.
Casara, ficara entre nós ; e o filho, direito
como um pinheiro novo, esvelto e firme, pas-
sou os primeiros annos da vida montando gar-
bosamente a cavallo no séquito de D. Pedro IV,
improvisado, quasi por galanteria, em seu aiu-
dante de campo.
Zuniram-lhe as balas do cerco do Porto por
cima da cabeça, ouviu de perto o estrondo da
metralha, fortificou-se respirando a fumarada.
da pólvora.
Depois... depois a guerra acabou, os vence-
dores julgaram que tudo o que havia a fazer
pela liberdade estava feito, quanto se engana-
ram I e os vencidos presumiram-se decerto as
ultimas victimas das luctas politicas em Portu-
gal. Quanto se enganaram também ! . . .
Hugo Owen casou com uma dama portu-
gueza, amou-a extremosamente, era rico, forte,
alegre, feliz.
Mas a roda da fortuna encravára-se um dia;
parou de súbito. A esposa de Hugo Owen mor-
rera deixando-lhe filhos pequeninos. No cora-
ção do viuvo fez-se um vácuo profundo, enor-
me. E aqui CDmeça a serie das suas desgraças,
quaes poucos homens teem soffrido, e que ellc
aguentou sem se azedar a ponto de parecer
94
malcreado e sem se mostrar desgostoso ao ex-
tremo de querer descalçar as luvas para sovar
a humanidade.
Pois se o fizesse, teria tido razoes de sobra
para isso. . .
As ditíiculdades levantavam-se-lhe debaixo
dos pés, a fatalidade andava inventando para
elle casos imprevistos e complicados, como um
advogado chicaneiro que não pensa senão cm
urdir uma rede de rabulices para embaraçar a
parte contraria.
Um dia, Hugo Owen assistia á agonia de
um filho, que a morte viera surprehender pre-
maturamente.
O coração do pae despedaçava-se atormen-
tado contra esse leito, como a vaga contra os
rochedos.
Havia já na face do moribundo a pallidez
que parece ser o reflexo longínquo do luar de
além-tumulo.
Os irmãos soluçavam, abafados de angustia,
e o pae, pendido para o leito, disfarçava a sua
dor murmurando palavras carinhosas, de uma
grande ternura dolorida, sobre a cabeça do
moribundo.
N'isto, rompe n'um dos andares do prédio a
esfusiada musical de uma valsa de Strauss, scn-
te-se dançar ruidosamente, pular, conversar,
tinir loiças e cristaes.
Estâ-se cm plena 5oircV, e a festa parece pro-
95
longar-se pela noite dentro, attingir a madru-
gada.
E no som da valsa que o moribundo se con-
torce no delírio da agonia, é a dois passos da
vida alegre da sala que o espectro da morte
vem assentar arraiaes.
Teriam tido conhecimento d'esta deplorável
antithese os que se estavam divertindo ? Certa-
mente que não. Mas essa tormentosa coinci-
dência tinha-a o destino guardado para esma-
gar o coração do barão da Torre de Pêro Pa-
lha.
Uma sua irmã, Fanny Owen, morreu na flor
dos annos, sacrificada a um drama conjugal que
enche muitas paginas de um livro de Gamillo
Castello Branco, No Bom Jesus do Monte.
Foi casada, e morreu pura. Os médicos que
procederam á autopsia, assim o affirmaram sob
juramento.
Pois bem ! um anno depois da morte de Fanny,
contado dia a dia, Hugo Owen, estando n'um
hotel de Lisboa, ouviu gemer num quarto pró-
ximo.
— Quem está ali doente ? perguntou.
— É o sr. . . .
Era o marido de sua irmã, o marido que tão
allucinadamente a aggravára, que vinha mor-
rer a dois passos de distancia do barão da Torre
de Pêro Palha!
E, como estas, outras mil contrariedades e
96
coincidências, que o destino baralhava para o
atormentar, expressamente . . .
Eu conheço a biographia de Hugo Owen
em tudo o que ella teve de mais intimo e re-
côndito. Somente não estou auctorisado a con-
tal-a. Conheço-a, porque elle me confiou um
dia as suas memorias, que se conservam iné-
ditas :, paginas que elle escrevia com a ver-
dade e o respeito de um homem que se julga
já diante de Deus contando o que soffreu entre
os homens.
Encontrei nas memorias do barão o material
preciso para urdir dez romances sem dar tra-
tos á imaginação. Em cada capitulo havia um
drama de lagrimas. Li o manuscripto, sentin-
do-nie muito honrado com a confiança que o
barão depositava em mim, fechei-o profunda-
mente commovido e sepultei no fundo do meu
coração o segredo das suas revelações, tão pun-
gentes e dilacerantes.
A's vezes, quando conversava com o barão
da Torre de Pêro Palha debaixo da Arcada ou
á porta da (^asa Havaneza. assombrava-me a
sua resignação, espantava-me a sua paciência,
a correcção sempre distincta das suas palavras
e das í-uas maneiras.
E todavia elle estava tão pobre, que mal po-
deria esperdiçar um charuto. . .
Os que o não conheciam de perto, poderiam
suppôl-o um homem feliz.
97
Com o seu ar elegante, o seu casaco curto^
as suas calças largas, um pouco á Juissard (essas
calças tradicionaes dos g-entleme)! do seu tempo:
nunca o Manuel Browne e os outros vestiram
calças que não fossem á luíssard), as suas po-
iainas brancas, a sua bengala de castão de
prata, as suas lunetas de oiro, as suas suissas
grisalhas, ellc tinha o aspecto de um homem
feliz, que houvesse accordado ao meio-dia de-
pois de ter passado a noite n"um baile onde
perpetrara a sua ultima ^■alsa. onde queimara o
ultimo cartucho do seu paiol amoroso.
K todavia talvez tivesse almoçado, de pé. dois
ovos à la coque, apenas...
Também me assombrava n"esíe homem, cuja
m.orte deploro, n'este homem que tinha corrido
e visto tanto mundo, n"este homem que tanto
havia soffrido e aprendido, a boa fé. a ingenui-
dade com que parecia acreditar todas as espe-
ranças que lhe davam, todas as promessas que
lhe faziam, o ar de candura com que tantas ve-
zes procurou o seu nome no Diário do Goi'erno.
Seria um defeito de intelligencia ? Não era,
com certeza. Era apenas um aspecto da sua in-
dividualidade de gentlcman. Conhecendo que a
vida estava por pouco, não queria desfazer n"um
momento a obra de toda a sua existência, sahir
do mundo dcsmanchando-se n"um gesto tão ple-
beu como expressivo. Procurava i!ludir-se por
mais algum tempo... pouco!
7
:',^
E, de resto, ellc tinha razão.
Quando já não podia viver com as mulheres,
com quem viveria elle se tivesse rompido com
os homens ?
Era esta decerto a sua ideia.
Não queria isolar-se pelo resentimento, pelo
azedume, pelo despeito, sentindo-se a dois pas-
sos da solidão eterna do tumulo.
Fora um homem de sociedade, sabia o que
era a lisonja, a mentira, a falsidade cortez e
aniavel. Devia conhecel-as á légua. Mas assim
como nos salÔes tinha fingido acredital-as, re-
duzido á pobreza fingia também dar-lhes cre-
dito.
O enganal-o por cortezia podia ser um mo-
tivo para que elle continuasse a não ter di-
nheiro na bolsa, mas não era um motivo para
que recusasse um shakc-haud á pessoa que o en-
ganava segundo as boas praxes do código do
bom tom.
— Para a semana será... dizia ellc.
Passava uma semana, um mcz, um nnno.
— Então ?...
— Tem havido ditficuldades... Mas estão apla-
nadas... Agora vae.
E não ia !
Elle é que, fingindo esperar senipre alguma
coisa que lhe consolasse os últimos dias da vida,
foi para o Porto, já muito doente, cheio de do-
res e de desillusÕes, e de casa de uma filha que-
^Kí
rida, que ihe recolheu piedosamente o derra-
deiro suspiro, foi para a cemitério de Agra-
monte, onde finalmente descansa...
O Diário do Gopenio perdeu um leitor, a
sociedade portugueza perdeu um dos seus geií-
tlemeu, talvez o ultimo, seus filhos perderam
um pae extrernosissimo, e cu perdi um amigo
tão dedicado, cjue me confiava os segredos do-
lorosos de toda a sua vida, dando-me a ler o
manuscripto das suas memorias inéditas.
Pobre barão 1 Outros, que começaram niais
tarde a frequentar a sociedade, chegaram de-
pressa ao gaiarim, tão depressa que, na alluci-
nação do triumpho, nem já o conheciam. Mas
elle é que conhecia toda a gente: um sliake-hand
para a direita, um sorriso para a esquerda,
parecia andar fazendo as suas visitas de des-
pedida antes de partir para a eternidade. E
para que ninguém podesse ficar aggravado com
o muito que elle tinha soíTrido. perdoava a to-
dos...
Morreu como viveu : um genilcman.
XII
A «ssason» lisbonenss em 1833
Kstc inverno proniettc uma scasou \crdadci-
ramcnte notável: salas que raramente se abriam,
como as dos condes de Porto Go\o. reanimam-
se e povoam-se ; o presidente do conselho de
ministros receberá ainda quatro Aezes durante
os dois mezes próximos.
Fallemos piincipalmente das sairdes da pre-
sidência, notáveis mais que todas por serem o
ponto de reunião dos ^i-andes \ultos da politica
po!tugueza na casa do primeiro entre os pri-
meiros.
Quem vir o sr. Fontes Pereii'a de Mello nas
recepções oiticiaes do paço, nos actos solemnes
da vida parlamentar, com o seu aspecto severo
c frio. com a sua figura correcta e grave, terá
avaliado apenas superficialmente este homem
de estado que tern. como nenhum outro, a
lOI
consciência das funcçÕes de que se acha inves-
tido e das situações em que se acha collocado.
E preciso, porém, avalial-o che^ /?//, tendo uma
phrase amável para todas as pessoas que con-
correm ás suas recepções, sabendo fallar ás se-
nhoras e aos politicos, percorrendo todas as
sahts para ser attencioso com todos, conver-
sando litteratura com os escriptores, politica
com os homens de estado, accommodando-se
com distincção a todos os assumptos e a todas
as idades, sem constrangimento e sem esforço.
Um estrangeiro, um viajante, um toiíristc não
encontraria decerto melhor occasiao para co-
nhecer todos os homens notáveis de Portugal
do que aquella que as soirées do presidente do
conselho lhe podem fornecer.
Aqui, um pouco curvado, o cabello levantado
e branco, faces coradas, um sorriso docemente
irónico, deixando ver atravez das suas lunetas
uns olhos penetrantes e expressivos, o ministro
de Portugal em Madrid, vice-presidente da ca-
mará dos pares, passa nas salas, sobraçando a
claque. E um erudito, um professor, um acadé-
mico, que consome a maior parte dos dias na
Torre do Tombo a revolver o archivo. Para os
litteratos é o auctor de Um anuo na corte ; para
os académicos é o auctor da Historia da linha
de demarcação que repartia o nuindo entre Por-
íuo\il e Caslella, o recente annotador do Roteiro
de Lisboa a Goa ; para os politicos c um esta-
102
dista e um diplomata de primeira ordem, é ainda
o auctor dos Perigos; para os indiPferentes é o
sr. Andrade Corvo.
Ali, debruçado sobre a meza do whist, na cur-
vatura interessada dos m3'op es, um homem ma-
gro c seco, de uma magresa forte e resistente,
pondo ás vezes por cima dos óculos afumados
o seu lorgiiou, interroga o parceiro com a sua
voz mansamente timbrada : é o poeta do Are
César e do Pavilhão negro, o dramaturgo dos
P'rnnerros amores de Bocage, o romancista dos
Bandeirantes, orador, estadista, diplomata, aca-
démico, é Mendes Leal, emfim.
Acolá, o ministro dos negócios estrangeiros,
António de Serpa Pimentel, conversa animada-
mente, encostando o seu corpo franzino ao an-
gulo de uma meza, fazendo girar rapidamente
o cordão da sua luneta, e sorrindo : eis aqui
uiii outro liomem de estado que é ao mesmo
passo um poeta, uni prosador, um critico e um
académico.
Na sala de baile, a ligura esvelta e forte de
Thomaz Ribeiro destaca-se : a £íran-cruz es-
carlate, atravessada sobre o peito largo, ani-
ma-lhe o busto \ os cabellos grisalhos, como
que ligeiramente empoados, téem por vezes
fulgurações instantâneas.
Num fauleuil, Júlio de Vilhena obser\ a com
os seus olhos penetrantemente meridionaes,
sorri com vi\acidade aos que lhe vão fallando.
lOJ
'e retorce descuidiídamente a guia esquerda do
seu pequeno bigode.
Hintze Ribeiro conversa num grupo de depu-
tados sobre as discussões do parlamento: ani-
m.a-se faliando, e fixa a luneta, fitando o inter-
locutor.
O procurador geral da coroa e fazenda '. alto
e corpulento, conversa no tom modesto e aucto-
risado que lhe é peculiar •, dois jurisconsultos
distinctos ouvemx-n"o com uma grande attenção
respeitosa, como a um mestre.
Barjona de Freitas, baixo, nutrido, hombros
largos, Ccibello preto e luzidio, falia com Thomaz
de Carvalho, que o ouve com o beiço inferior
uni pouco descabido, e Bulhão Pato. pequeno
e forte, o cabello branco, faces morenas como
as de um anduluz, aproxim^a-se, cofiando a pêra.
E como n"esse momento uma valsa, de um.a
meiodia suave,' docemente marulhada, se es-
praie pela sala, devem certamente acudir-lhe ao
espirito ardente os versos da Paqnita :
Entrei no baiie, quando a valsa rápida
Corria as salas em airosas vohas i
Das leves roupas, transparentes, soltas,
Que doce aroma se esparzia no ar !
Parei mirando aquellas frontes cândidas.
Que se animavam de alegrias loucas.
Amor calando nas graciosas bocas,
Amor dizendo no inspirado olhar.
' Conselheiro ?úartens Ferrão.
104
As primeiras valsistas de Lisboa, as de mais
nobre nascimento e de mais distincta elegância,
giravam com effeito em torno do salão, que pa-
recia ondular serenamente como um lago, en-
crespado por uma brisa ligeira.
Algumas cabeças, formosamente loiras como
a de Daphnc, pareciam aureoladas por um dia-
dema de oiro; outras, de bellos cabellos ne-
gros, affiguravam-se radiadas de arabescos lu-
minosos, como o azeviche batido fortemente
pela luz.
O visconde de S. Januário, de amplo peito
arqueado, gran-cruz traçada, cabeça altiva, con-
versava n"um grupo de senhoras ; o duque de
Palmella, alto, suissas pretas, com a mão di-
reita entalada entre o collete e a gran-cruz, aca-
bava de conversar com o duque de Loulé, que
fora fazer a sua partida de whist para a sala
da bibliotheca, onde o conde de Valbom jogava
emparceirado com o sr. Carlos Bento na mesma
mesa cm que também era parceiro o distincto
advogado Pinto Coelho.
Não haveria, pois. melhor occasiao para po-
der observar os nossos honiens mais distinctos
na politica, no foro, na litteratura, na diplo-
macia, no professorado, no commercio.
Muitos d"elles, se não a maior parte, são um
nobre exemplo de coragem, de perseverança e
de gloria a todos quantos agora estreiam a sua
carreira. A vista de um trabalho paciente e in-
lOD
trepido alcançaram, por direito de conquista, a
alta posição que lioje occupam. Soífreram, com-
bateram, luctaram, mas conseguiram honrar o
seu berço, o seu nome, e o seu paiz. Citemos
ao acaso um nome, Mendes Leal, que atraves-
sou todas as commoçÕes de uma existência ac-
cidentada de mil incertezas, luctando sempre,
no theatro, na litteratura, na imprensa, na po-
litica, mas conseguindo vencer por um esforço
heróico de que só os homens do seu valor c da
sua tempera são capazes.
Quantos d"elles, se não todos, téem sido injus-
tamente accusados, violentamente atacados, in-
juriados atél A consciência do dever é, porém,
uma espécie de muralha da China, onde os pro-
jectis da inveja e da calumnia vão bater, re-
fluindo de ricochete contra os que os arremes-
saram com mão traiçoeira. E a compensação
providencial destinada aos que cumprem a sua
missão. Os insignificantes, os invejosos, os inú-
teis, aquelles que não comprehendem o seu des-
tino, julgam que todos lh'o roubaram, e por isso
de todos dizem mal.
Aqui está, pois, levamente esboçada, uma
pagina da seasoii lisbonense em i883.
XÍIÍ
Qostcs não ss discatsm
Tem cada um sua maneira especial de se di-
vertir. Chega a haver n'isso uma tal variedade
como nas ph3'sionomias.
Ha quem não possa divertir-sc com os ou-
tros, c quem não esteja bastante divertido sem
os outros.
Ha quem goste dos outros só por algum
tempo, de modo que nos acontece ás vezes en-
contrar um sujeito que nos abre os braços e ex-
clama nadando em jubilo:
— Ora ainda bem que o encontro! Ha quanto
tempo ! ha quantos mezes ! Temos muito que
conversar I "\^anios a isso ! vamos a isso I
Fica a gente horrorisada com a perspectiva
de uma maçada enorme. Mas não ha remédio
senão fazer cara alegre e acceitar as coisas como
ellas são.
— Pois vamos lá a issol
I07
Conta-nos o sujeito duas lerias, fugitivamente,
como se o tivesse de fazer por simples cumpri-
mento.
E. de repente, estendendo-nos a mão, pare-
cendo ter já dito tudo :
— Adeus! meu amigo. Estimei muito vel-o.
Aqui está um exemplar de sujeito que gosta
da companhia dos outros por algum tempo ape-
nas.
O grande prazer que sentiu encontrando-nos
aguou-se tão de pressa, que só abandonando ■
nos de repente poude continuar a divertir-se.
Conheci um alto cavalheiro, pessoa de esti-
mação, que folgava immenso de que outro, que
em tempo havia feito despachar para certo lo-
gar da alfandega, o seguisse por toda a parte,
vestindo-lhe o casaco á Siiida dos theatrcs, pe-
gando-lhe pa bengala se queria atar o cache-m-,
acompanhando-o a casa todas as noites, dizen-
do-lhe na rua o nome das pessoas que o iam
cumprimentando.
Um dia o fiel protegido adoeceu, e o prote-
ctor tão aborrecido se encontrou da sua falta,
que resolveu ficar em casa emquanto o outro
não melhorasse.
Pelo contrario, ha pessoas a quem uma tão
solicita e dedicada gratidão incommodaria enor-
memente.
Andrade Corvo, conversando comigo, dizia
uma vez :
io8
— A gratidão que persegue a gente, é das
coisas mais secantes que se conhecem. E oftende
até certo ponto, porque dá a entender que fa-
zemos um favor para sermos servidos toda a
vida.
Como nesse dia estivesse de notável bom
humor, exemplificou :
— Ora imagine que se dá um espirro c se
ouve dizer logo do lado: '^Dominus teciinu sr.
conselheiro.» Imagine que tira a gente um cha-
ruto da algibeira, e que a gratidão acode a cor-
tar-nos o passo exclamando: «Aqui está o meu
lume ás ordens de v. ex/'^, sr. conselheiro!»
Olhe que chega a fazer perder a paciência !
Ha pessoas que se divertem passeiando sem
fallar e sem olhar para ninguém.
Recolhe um desses a sua casa e pergunta-
Ihe a mulher :
— Encontraste muita gente conhecida ?
— Não sei.
— E tiveste muito calor, hlho ?
— Olha que também não sei.
Outros, porém, gozam andando devagar, pas-
mando para tudo, parando de vez em quando
a observar todos, descobrindo m\sterios. sur-
prehendendo segredos.
Conheço um destes; que me disse ha pou-
cos mezes :
— Fulano, quando chegar a ministro, não faz
caso de ninouem.
109
— Por que ?
— Eu lhe conto. Outro dia encontrou elle um
amigo na rua da Boa Vista. Você conhece de
ceito o Silveira ?
— Muito bem.
— Pois era esse o amigo que elle encontrou.
Eu vinha atraz e ouvi toda a conversa. Ambos
queriam o americano que fosse para o Rato.
N'isto passava o carro que ambos desejavam.
De repente o outro, que lobrigara um só logar
vazio, larga o Silveira, trepa para o americano,
c diz-lhe de lá adeus com a mão. O Silveira fi-
cou com cara de parvo.
— Mas que tem isso ? !
— Ah ! então você não costuma aproveitar as
lições que a observação de todos os dias lhe vae
deparando! Está arranjado! Aquelle americano
era uma espécie de carro do governo, em que
o outro, logo que"teve occasião, tratou de ar-
ranjar logar, sem se importar com os que fica-
vam atrazados.
— Sim. Mas não me parece...
— Homem! qualquer coisa define uma pessoa.
Os que gostam de íí\.zç.v paciências divertem-
se comsigo mesmos : em tendo um baralho de
cartas, prescindem bem dos outros.
Um d"esses taes estava em casa uma noite.
Passou um amigo, e entrou.
— Pensei que estivesse gente de fora ! disse
o amigo ao entrar.
I IO
— Enganaste-te. Estou eu só a íazcv pacícu-
cias.
— E a sr.'^ D. Ismenia ?
— Sahiu.
— F^oi para o theatro ?
— Também não sei bem. Sahiu com a mãe
• — E tua filha ?
— Sahiu com o tio.
— E tu por que não s.ahiste também ?
— rPor que não precisava.
— Mas sempre c bom passeiar depois que se
janta.
— Para passeiar, meu amigo, basta que saia
alguém da familia.
Outros são de feitio opposto : amam a socie-
dade, a companhia, a convivência.
Encontra a gente um ou outro, d meia noite,
quando recolhe a casa.
— Que pressa tem \ocè de se deitar? y.a-
gunta elle.
— Preciso levantar-me cedo.
— Mas durma depressa, homem!
— Durma depressa ! tem graça !
— E o que lhe digo. Quer você ouvir um
caso ? Olhe que ainda c cedo. l'ma \ez estava
eu em Villa Eranca, em casa do Tibério. Joga-
va-se o voltarete. Havia hospedes: um delles
era o maj(^r Noronha, que linha de ir no com-
boio da manhã para Santarém. O jogo enre-
missou-se. A dona da casa, muito constrangida,
1 1 1
lembrou que era meihor deixarem as remissas
para outra occasião, porque o major tinha de
levantar-.se cedo. E vae elle, muito amável, res-
pondeu : «Não tem duvida, minha senhora, por-
que eu estou habituado a dormir depressa.»
Faça você o mesmo, e dê dois dedos de ca-
vaco.
— Sim... mas é já tarde.
— Olhe cá, a propósito de voltarete e remis-
sas... ^''ocê sabe que o Castilho dizia que o vol-
tarete era um jogo impio ?
— ímpio ?
— Porque a cada passo ouvia dizer aos que
o estavam jogando : Arre missas ! (Ha remis-
sas).
— Tem graça, temi Adeus, que já é tarde.
E o pobre homem, que só com os outros se
diverte, íica aborrecido por se achar só na rua.
Lenibra-lhe talvez ir pedir lume ao guarda
nocturno para accender o charuto, — como um
pretexto para arm.ar cavaqueira.
Depois de accender o charuto :
— O sr. guarda I n"esta rua ha muitos namo-
ros ?
— Já houve mais.
— Por que ?
— Téem ido casando.
— E mal feito !
— Bem ou mal feito, é lá com elles.
— Mas o senhor fica muito prejudicado!
[ 12
— Ora essa !
— Porque quantos menos namoros houver,
mais só vae ficando a rua.
Eil-o aqui a pensar como se ellc próprio fosse
o guarda nocturno. Ah I se o fosse, valer-se-ia
até talvez da carta anonvma para desfazer ca-
samentos, porque os namoros podem succeder-
se, mas os casados, cm geral, não se namo-
ram... depois.
Ha pessoas secantes que se divertem ra-
lhando sempre, e que gostam do jogo. porque
lhes dá occasião de bater murros na mesa e de
gritar.
A um d"estes grasinas faltava certa noite um
parceiro para jogar o whist de perna de pau.
— Se viesse por ahi alguém! exclamava elle
espreitando pelas vidraças para fora.
N^isto tocaram a campainha.
— Ah I é você 1 Ainda bem I ^^lmos lá jogar
o whist.
— Não jogo.
— Por que não joga ?
— Porque você ralha sempre!
— Hoje não ralho. Palavra de honra.
— Com essa condição, vanios lá.
Meia hora depois dizia o dono da casa:
— Esta stearina está hoje detestável!
Passados cinco minutos :
— Parece que cá em casa não fazem hoje
tenção de servir o chá !
ii3
De repente os outros dois pegaram-se a dis-
cutir o jogo.
— Ah! elle c issol exclama o dono da casa.
Pois então sempre lhe quero dizer a você (o
tal, que tirara a condição) que já ahi fez uma
grande asneira quando eu me queixei da stea-
rina, e outra quando fallei no chá. Da primeira
vez você devia ter vindo a oiros.
Kntra o criado com o taboleiro do chá.
— Leva lá isso, que ainda é mjuito cedo ! E
da segunda vez porque devia ter vindo a co-
pas, que era o que se lhe pedia.
Epaminondas, segundo resa a historia, nem
por gracejo mentia, tanto gostava da verdade, —
até para se divertir.
Outros, porém, só mentindo é que estão nas
.suas sete quintas.
E isso cria-lhes difficuldades, pÕe-n"os em gra-
ves apuros, mas dá-lhes tanto gosto, que per-
doam o ma! que ás vezes lhes faz pelo bem
que lhes sabe. . . o mentir.
Contava um n uma roda de amigos :
— Ver a morte I Quatro vezes a tenho eu
visto já! imaginem que andando á caça no Bra-
zil, alonguei-me pela roça fora, e tinha descido
a uma chã quando vi que um preto, que eu ha-
via castigado dias antes, corria atraz de mim
de espingarda na mão.
— E depois ?
— Depois o preto, que chegara á borda do-
s
outeiro, apontou-me a espingarda. Voccs sabem
que os pretos tecm uma pontaria infallivel !
— Como diabo escapaste tu ? I
Chegado a este ponto, também elle próprio
não sabia ainda como poderia ter escapado.
— Sim ! Como escapaste tu ? I
Nova hesitação do narrador.
— Não escapaste I
— Homem, isto é serio. Fosse em razão do
ódio que me tinha, ou do cansaço da corrida,
o preto teve uma apoplexia fulminante e veiu
cair-me aos pés. Dei-lhe um pontapé, e conti-
nuei a caçar.
Conheci um rapaz, que morria por andar de
calças brancas.
Eu disse-lhe algumas vezes :
— Que diabo de gosto o teu I Não te parece
que andas em ceroulas ?
Elle respondia-me sempre :
— E a ti não te parece que metteste as per-
nas n"um tinteiro I
São gostos, e gostos não se discutem. Mas
se toda a gente, em questão de gosto, tivesse
a mesma opinião, quanto seria difhcil... casar,
por exemplo !
XIV
Fêccadilhcs mstricos
Non bis in idem
)'iiZL-m amanhã wnnos .
Alberto 1'imentel
Sovidadcs, de doiiiiiigo a?
>ic novembro de i>!.S7.
Ainda ante-hontem dizia
Certo jornal que eu fazia
Annos no dia seguinte.
Comquanto o jornal rot rido
Pertença a outro partido,
Kra favor ; não acinte.
Mas, emtim, passa em julgado
Que eu seja tão desastrado
Que, já pro.ximo dos enla^
Faça annos cada semestre r
Não : que o tempo é um grande mestre.
Tempo que passa, avelhenta.
1 It)
Fíizer annos em novembro,
Logo em abrii repetil-os !
De tal coisa não me lembro !
Tomara diminuil-os,
Quanto mais, por triste engano,
Duplical-os em cada anno !
Assim, se chego aos sessenta,
Gontar-me-hão cento e vinte !
Pois cada semestre augmenta
Um anno, e outro o seguinte !
Faço annos no quente e frio
Como pago ao senhorio ! l
Não I Não pode ser ! Protesto !
Porque eu trabalho, e de resto,
Pago de seis em seis mezes
Duas rendas, uma em annos,
Outra em metal ! São enganos ?
Mas eu pago duas vezes !
Fique pois bem entendido.
Bem notório, bem sabido,
Que só uns annos farei.
Qtiator-^c de abril : é a data.
Dispenso flores, cantata.. .
Mas protesto. E protestei.
■Kj de iioxembro de 1SS7.
i'7
DEPOIS DO INCÊNDIO DO THEATRO BAQUET
("Versos recitados pelo actor Firmino,
uma das victimas sobreviventes d'aqiielle incêndio,
no beneficio
que reali:;ou no theatro da Trindade.)
Venho d"entre as ruinas e das chammas,
Onde tudo perdi. Sabeis a historia,
Que o vosso coração ainda contrista.
Perdoai a vaidade ao pobre artista. . .
Eu sonhava essa noite com a gloria.
Monstruosa ironia ! A gloria I A gloria !
Tive por ovação prantos, clamores.
Ossadas por cortejo. O incêndio e a fama
Disputaram ali. Venceu a chamma.
Eram chammas o palco e os bastidores. . .
E ali n'essa sinistra apotheóse
Ficaram sepultados meus thesoiros,
Amigos que eu perdi, — tão dedicados !
Minha pobre familia, — os meus cuidados,
Doces cuidados que eu pref ria aos loiros ! ...
Sou agora a mim próprio quasi extranho,
Um viajante perdido no deserto,
N'esse infindo deserto da saudade.
Sinto ainda a desgraça muito perto.. .
Mas sinto ainda mais perto a caridade !
Se vivo, é só por ella. Em seu regaço
Choro o meu abandono, as minhas dores.
Refunde-se a minha alma em muitas almas.
Vale um consolo o que não valem palmas...
Vivo, meu Deus ! graças avós, senhores!...
ii8
UMA DAS MCTIMAS 1)0 INCÊNDIO
(Eieh'ni.1 Júlia dWbueid.j.)
Vi-rt n'um baile, ha muitos annos, quantos !
j)i» sua face bella as frescas rosas
Deviam ter suavissimos encantos
Se os beijos, namoradas mariposas.
Fossem sorver, ha muitos annos, quantos .'
D:i sua face bella as frescas rosas.
Mas quem hontem logrou reconhecel-a
Kntre as negras ruinas sepultada :. . .
Mas quem poude allirmar, dizer : É el!a !
Kila que fora outr"ora alva e rosada 1
Já não poude ninguém reconhecel-i
F.ntre as negras ruinas sepultada.
i8K.
i." DF DEZEMBRO
Filippa de \ilhena I
João Pinto Ribeiro I
Palavra, que faz pena
Ver o despenhadeiro
Em que isto agora vae !
F. como o paiz cae 1
Agora é só dinheiro.
Está campando em scena
Somente o deus Milhão !
Filippa de Vilhena !
João Pinto Ribeiro I
Palavra, que faz pena. . .
Agora é só dinheiro. . .
E os que lá vão lá y~\n !
A 19
EMÍLIA
f(£Mmha irmã.)
Nunca tu azas tiveras,
Que te elevassem ao ceu.
Nunca tu voar poderás
Co 'as azas que Deus te deu.
Por mais que tu procuraste
Reprimir-Ilie o oncioso vóo,
Eras tão débil ! cansaste.
Deus quiz o anjo, elevou-o.
Tinha reflexos tão doces
O teu olhar doce e brando,
Que logo pensei que fosses
Lírio que veio voando
D 'essa translúcida esphera.
Tão cristalina e tão alta,
Onde a eterna primavera
Sentiria a tua falta.
Então as flores celestes
Chorando saudosamente
Vestiram lutuosas vestes,
Feitas de seda somente.
E, debruçadas nas sépalas,
Choraram pranto divino
Sobre o justilho de pétalas,
Polvilhado de ouro flno.
Deus viu-as tristes, chorosas.
Nos seus ethéreos jardins^
120
E chorou co"as suas rosas.
Teve do dos seus jasmins.
E como o pranto divino
Também, como pranto, queima,
Deus co'a sua voz, um hymno,
Dissera ás azas: «Trazei-m'a.»
E as azas, mal escutaram
A celeste melodia,
Obedeceram, voaram,
Qual d'ellas mais voaria.
Quando esse lirio nevado
Chegou de novo ao empíreo.
Ia triste e maguado.
Deus estranhou o seu lin<í I
E o que o lirio não dissera
Tudo Deus adivinhou.
Voando á celeste esphera,
Chorara emquanto voou.
As flores do azul sorriam,
Os lirios do ceu cantavam.
Meus olhos já te não viam,
Meiga creança, e choravam.
Nunca tu azas tiveras,
Que te elevassem ao ceu
Nunca tu voar poderás
Co as azas que Deus te deu.
24-2-87.
121
JOÃO DE DEUS
João de Deus I De Deus. . . porque é divino.
João, ou seja o primo de Jesuz
Ou o outro que vela junto á Cruz,
E divino também.
E não atino
Senão co'esta rasão: foi prophecia
— Se já não foi destino —
De quem previu que João de Deus seria
Um poeta divino.
Ericeira, 21 — :o — 90.
KERMESSE
O bem é como as auroras,
Que para tudo o que existe
Espalham luz e calor.
Seja alegre ou seja triste
A alma, o insecto, a ave, a flor.
Tudo o que ri ou que chora
Sente nos raios da aurora
A esmola do eterno amor. . .
Os beijos do sol aquecem
Tudo o que é velhoou que é moço,
O ephémero e o colosso.
As rochas e os corações,
Os lagos e as ondas bravas,
Empórios e solidões.
As lagrimas das escravas
E os sorrisos das rainhas,
As cavernas dos leões
E os ninhos das andorinhas.
122
E o bem c como as auroras.
Por isso ao bem não esquece
A creança, o ninho, a escoJa...
Tu és como o sol, esmola !
íss como a aurora, kermesse !
OS TREZ VFLH05
Cahiu um nevão na serra.
Desde a cumiada ao vai
Alveja rútila a terra.
Não houve nevão egual !
O ar í;eiado, cortante,
Passa sobro as povoações
CeifanJo como um montante,
Rugindo como os leões.
Arvores secas, esguias
Olham para o ceu, talvez
A soluçar elegias.
Carpindo a sua nudez.
Cheias de fome. as manadas
Sobre as campinas despidas
Só roem urzes queimadas
F. roizes ressequidas.
A fome, a doença, a morte
Assentaram arraiaes
Junto ao casal e á corte,
Levando qente e animaes.
123
Famintas, as alcateas
Vem de noite ao povoado.
Tremem de medo as aldeãs,
Ouvindo o lobo esfaimado. - .
E desde o alto da serra
Ahrè a neve o seu lençol.
O que seria da terra
Sem ter um raio de sol ? !
II
Entre a egreja e o prcsbyterio
Corre, caiado de novo,
O muro do cemitério.
Vem ali juntar-se o povo.
O sol, batendo no muro,
Aquece a pedra ao meio dia,
Torna o inverno menos duro,
Tempera a nortada fria.
Lá se juntaram trez velhos
Secos, rijos, vermelhaços.
Expondo ao sol os joelhos.
Estendendo ao sol os braços.
Emquanto o sol os aquece,
Riem-se elles da nortada.
Cada um seu mal esquece.
Vai tudo de patuscada.
— Tem morrido muita gente
Com esta grande invernia ! . . .
— Pois nunca o inverno foi quente
— Salvo. . . este sol do meio dia.
124
— Este sol é a minha adega :
Eu não quero outro calor.
— Você o vinho renega ! . . .
— Língua de mau pai^ador I
— O vinho é caro. A cachaça
Custa agora. . .
— Isso que monta !
— O sol dá-o Deus de graça ! . . .
— Mas beba vinho com conta !
— Eu cá nunca fui borracho.
— Nanja eu. Mas acho-o bom.
— Diz um cacho a outro cacho :
Não bebas sem tom nem som !
E n'esta mansa folia
Vão-se aquecendo os trez velhos
Ao doce sol do meio dia,
Rijos, secos e vermelhos.
III
— Lá vem enterro. . . Isto agora. .
Não tem descanso o coveiro I
— Vem d'acolá d 'onde mora
A mulher do Zé Cabreiro.
— Foi o rilho. . . É de creança
O caixão : eu inda vejo !
— O coveiro não descansa ! . . .
— Inda hontem lhe dei um beijo !
— A quem ? Ao coveiro ? !
— Irra
Ao rilho do Zé Cabreiro.
125
— o frio as creanças mirra.
— Lá vem atraz o coveiro. . .
— A morte leva os fedelhos,
Mata n'um dia um rapaz,
Emquanto que nós, os velhos.
Vamos ficando pVa traz !
— A morte é uma gulosa,
Gosta de bocados finos.
Carnes que cheirem a rosa,
Polpa de tenros meninos. . .
— Pôde ser ! . . .
— Pois certamente !
Nós cá, ossos esbui"gados,
Nem para a cova de um dente
I.he chegávamos, coitados !
No alto mar me contava
Um velho de Guimarães
Que a terra se embebedava
Com as lagrimas das mães. . .
— Por isso lhes leva os filhos ! . . .
A gulosa ! . . . Quer banquete !
— Quem tem filhos tem cadilhos.
Morreram-me. Eu tive sete ! . . .
— E eu nenhum.
— Nem eu.
—Agora,
Sem ter filhos nem mulher.
Visto que ninguém nos chora,
Nem mesmo a terra nos quer ! . . .
Janeiro de iSgi.
126
AS POMBAS
(De Theophilo Gautier.)
Na collina dos mortos, entre os túmulos,
Ergue a bella palmeira a verde pluma,
E á tarde as mansas pombas de azas cândidas
Vão aninhar ali, uma após uma.
De manhã, quando o sol desperta rútilo.
As brancas pombas vão, cortando o ar,
Como um solto collar no azul ethércd,
Longe do ninho um tecto procurar.
Minha alma é como a solitária arvore
Onde enxames de loucas illusÕes
Poisam á noite. Fui^itivos hospedes,
Vão-se coa luz as pombas e as visões.
8— 2— Sj.
MrLIIi-.R E GATA
(PauI Verlainc.)
O vel-a ate dava gosto
Brincando co' a sua gata,
Branca mão contra alva pata.
Na penumbra do .sol posto.
Mitene, que a mão recorta.
Por dissimular trabalha
l'nha d*ágatha, que corta
F. brilha como navalha.
Mas a gata, disfarçada
Também, com prazer ronrona
127
E ensaia a unha acerada. . .
Não é melhor Jo que a dona !
E os dois iabios purpurinos
Enchiam de riso o ar,
Onde se viam, felinos,
Quatro phosphoros brilhar.
N"U.MA SALA
A um canto, os politicos fallavam
Com um certo mvsterio
Do modo como as coisas caminhavam.
Se estava forte ou fraco o ministério.
Alguém que se mostrava resentido,
Abanava a cabeça — era um symptoma
De que a seu ver o mundo está perdido
E tudo cae, — como caíra Roma !
Elle só, por sciencia e por estudo,
Era talvez capaz de salvar tudo. . .
N"outro canto da sala i^orgeiava
A musica do riso e d 'alegria
Um grupo que sorria e que faiiava
De quanto ouvia e via.
Era o grupo formoso das solteiras,
O grupo dos vinte annos,
Que é capaz de passar noites inteiras,
Rindo de tudo, — até dos desenganos !
D'este grupo gentil como é que eu posso
l^esenhar o esboço ?
Precisaria ter as tinta.> finas,
128
o magico pincel
De que dispunha o grande Raphaei !
F.m vez de uma . . . eram quatro Fornarinas.
Quereriam talvez as bellas damas
Ver no papel traçado o seu perfil i !
N'essa não caio eu. . .
Quem é capaz de retratar abril ?
De transportar á tela o que é do ceu ?
De copiar as flores ?
De imitar as estrellas ?
De dizer á manhã : Roubeite as cores ?
Tende paciência, ó minhas damas bellas,
Incumba cada uma o seu Romeu
D 'esse arrojo inaudito.
Eu cá por mim, repito,
N'essa não caio eu. . .
K de mais eu bem sei, minhas senhoras,
Que mo attendestes n'um serão inteiro
Por não haver na sala algum solteiro. . .
Sois boas, não sejaes enganadoras.
Eu já tenho trez filhos, eu sou velho,
Disse-m'o ha pouco tempo uma visinha,
E o maldito do espelho
'lem-me mostrado até. . . pés de ^alliuha !.
Vão muito longe as minhas primaveras.
De mais a mais, senhoras, a aza branca
Da musa ideal que eu tive n 'outras eras
Desplumou-se a pensar em Salamanca,
No imposto sobre o sal,
A estudar as questões do parlamento,
O orçamento geral,
129
• — Diabo de orçamento !
Que é o livro maior que ha em S. BerJo !
Assim se foi rasgando, creio eu,
Essa aza branca que me erguia ao ceu I . .
Vede, senhoras, se ha tormento igua! !
O que me resta só,
Para de todo errar da sorte o alvo,
E vêr-me, um dia, calvo,
E descer á miséria. . . de um chino.
N 'estas alturas, minhas damas bellas,
Não posso ser pintor.
Quereis ver-vos, senhoras, retratadas
Formosas como sois, e delicadas í
Mirae-vos n'uma flor. . .
N'essa não caio eu . . .
Fazer-vos o retrato .'' !
Mas, em compensação,
Com a vossa adhesão
Estou prompio a fazer um syndicato.
XV
Os amav2is
Toda a gente os conhece, os amáveis, sem-
pre generosos, sempre previdentes, tendo á flor
dos lábios sorrisos doces e doces falias, que,
quando não encantam, incommodam com cor-
tesã os outros . . .
Sim, porque os grosseiros custam a aturar,
são bruscos, são ásperos, são impertinentes.
Mas os amáveis de profissão, os que fazem
gosto e gala de o ser por uso e costume, che-
gam a aborrecer quasi tanto como os grossei-
ros.
Com a differença de que se um grosseiro,
por descuido, alguma vez se mostra amável,
fica a gente encantada com essa surpresa ; ao
passo que se um amável, também por descuido,
lOI
commeite uma grosseria, fica a gente quasi ve-
xada de ver que e!le estragou com um invo-
luntário borrão todo o seu passado de homem
fino.
A cortezia é como certos estofos claros, em
que a mais leve nódoa se torna saliente. Ao
passo que nos tecidos grosseiros, qualquer in-
correcção de cor, qualquer sombra, por maior
que pareça, tem sempre esta desculpa : «E
mesmo da fazenda. . • >^
Um brutaihão de marca maior costumava
espancar a mulher por dá cá aquella palha. As
visinhas tinham dó da pobre creatura sempre
que ella acabava de apanhar a sova do est34o.
«Coitada! diziam-lhe, vocemecê sempre foi mui-
to infeliz com o marido que escolheu I» E ella
respondia, cheia de philosophica resignação :
«E génio d'elle •, não façam caso.»
Equivalia certamente a dizer: «E feitio da
fazenda, não ha que extranhar.»
Um amável que uma vez escorrega, fica tão
maltratado em sua boa fama, como ficaria mal-
tratado corporalmente se tivesse caído do arco
grande das Aguas Livres sobre as hortas da
Rabicha.
Um dia, certo cavalheiro primoroso em fal-
ias e maneiras, inexcedivel em requintes de
cortezia, andando adoentado de irritação intes-
tinal, teve a infelicidade, estando a jogar jogos
de prendas com damas, de ser elle próprio
1*2
dolorosamente surprehendido por alguma coisa
que o vexou.
O jogo acabou de repente, no meio de um
silencio gelado. O cavalheiro infeliz pegou no
chapéo e, esv.juecendo-se da bengala, deitou a
correr pela escada abaixo.
As damas dividiram-se em grupos, fallando
ao ouvido umas das outras, recciosas de que
alguém as ouvisse.
Os que estavam jogando o voltarete e o
;í'/2;s/ perguntavam admirados :
-Então acabaram tão cedo o seu divcrrti-
mento I
— Aconteceu alguma coisaj?
— Por que se íoi Fulano embora tão depressa ?
K as damas calavam-se mysteriosamente, en-
trincheiradas n'um silencio, que só quebravam
para cochichar ao ouvido de alguma sua amiga.
No dia seguinte o caso espalhou-se em toda
a cidade.
— Sabe o que aconteceu hontem a Fulano
em casa de Fulano ?
— Não sei.
— Pois ainda não sabe '.
— Eu lhe digo. . .
E dizia-lh'o ao ouvido, com tamanho myste-
rio, que justificava plenamente o pasmo com
que a noticia era recebida.
— Ora essa !
— Um homem tão correcto!
i:o
— Um tão perfeito ctivalheiro!
— Que pena I
— Que desastre I
— Que fiasco !
E, em verdade, o que tinha acontecido a
esse primoroso cavalheiro, que não podesse
acontecer a qualquer outra pessoa ?
Tinha deixado cair um borrão no claro es-
tofo da sua boa fama.
Se se tratasse de um grosseirão, toda a gente
haveria dito apenas que era próprio da fazenda.
Viajando em caminho de ferro, quem é que
não tem encontrado um companheiro tão amá-
vel, que chega a aborrecer?
Se tem vontade de abrir uma janella, enco-
bre este desejo com um veo de cortezia, e per-
gunta :
— Quer a janella aberta, não é verdade?
Se deseja fechal-a, serve-se de processo idên-
tico, sempre em nome da cortezia :
— Pois não é verdade, pergunta, que dese-
java a janella fechada :
Se se trata de olferecer de jantar a alguém,
o amável insta, insiste, persegue quasi, que é
talvez a melhor maneira da gente, no caso de
ter que acceitar por força, ir mal disposta, e
comer pouco.
— Você — dizia certo amável a um amigo que
lhe appareceu sem ser esperado — você janta
hoje comigo sem appellação nem aggravo.
i34
— Não posso, meu caro, o comboio parte
d^aquí a meia hora, e eu tenho que seguir hoje
viagem..
— Que pena I que pena ! Mas veja hí se pôde
de algum modo fazer o sacrificio de jantar hoje
comigo. . .
— Absolutamente, não posso, meu caro.
E o ama\el, tirando dois charutos da algi-
beira, offerece um ao seu amigo e procura o pre-
texto de ir ao interior da casa accender o outro.
Serviu-se d"este pretexto para ir dizer alguma
coisa ao cosinheiro, que aliás não tinha dotes
de muito esperto.
E, voltando para a sala, todo elle era per-
guntar ao amigo :
— Seu pae como está ?
— Menos mal, obrigado.
— E seu tio ?
— -Esse passa peíor.
— Sinto muito. Diga-lhe que sinto muito.
— E aquelle seu primo de Torres Novas?
— Esse I Morreu ha um anno I
— Não sabia 1 Que penal um homem ainda
tão novo !
De repente, voltando ao otTerecimento do jan-
tar:
— Mas, dccididanicnie. você janta hoje co-
migo . . .
— Não posso, meu caro, porque o comboio
não dá l'cenca
i35
— Eu nem mesmo sei o que tenho hoje para
jantar. Mas isso sabe-se depressa. O' José Ma-
ria, anda cá.
José Maria era o cosinheiro, a quem elle ha-
via dito de repente, quando foi accender o cha-
ruto :
— Se eu logo te perguntar o que temos para
jantar hoje, inventa lá alguma coisa grande e
pomposa.
Vem o José Maria e, de barrete branco na
mão, espera que o amo o interrogue.
— O que temos nós hoje para jantar, José
Maria ?
E o cosinheiro, que estivera matutando na
invenção de alguma coisa grande e pomposa,
responde :
— Saiba v. ex." que temos uma balea.
Gesto de surpresa do amigo e do dono da
casa.
O cosinheiro fica atarantado, suppõe que ti-
nha dito ainda pouco . . .
— O que dizes tu, José Maria I Uma baleai
E o cosinheiro querendo emendar a mão:
— Duas . . . duas. meu senhor.
Um homem menos amável teria certamente
evitado este fiasco das duas baleas. porque não
se lembraria de chamar o cosinheiro como col-
laborador da sua amabilidade hospitaleira.
E toda a gente, d'ali por diante, repetiu o caso
ás gargalhadas, fazendo alastrar a nódoa com
iM)
que uma tão distincta pessoa maculara a sua
reputação de homem amável.
Havia um sujeito, pessoa exceilente, a quem
a naturesa dera como íilho um brutamontes
rebelde a todas as correcções.
Pae e rilho foram' convidados a jantar fora
de casa. O filho quiz ir por força: o pae con-
sentiu, com a Condição de que elle fallaria o
menos possível.
Á mesa, o visinho da direita disse ao rapaz:
— O tempo está magnifico I
Elle limitou-se a meneiar aliirmaiivamente a
cabeça.
O visinho da esquerda disse- lhe por sua vez:
— Que magnifico tempo 1
Elle tornou a meneiar a cabeça.
D'ali a nada diziam os visinhos aos visinhos:
— Este rapaz é um grosseirão !
E o rapaz, dirigindo-se ao pae, cir.e estava
sentado defronte :
— Olhe que elles ja me conheceram ! Posso
fallar d vontade.
O pae sorriu encolhendo os hombros, como
se quizesse dizer para os outros convivas .
— Desculpem, isto é mesmo da fazenda.
Desenganem-se : os amáveis teem muito mais
que perder do que os grosseiro.-^. E quantas
vezes se arrepende uma pessoa de ser amável.
devendo ter sido grosseira !. . .
XVÍ
Devo começar por dizer quem fosse o sr.
D. Ruy, porque eu, posto a contar historias,
tenho ainda o mau costume de começar pelo
principio.
O que faz com quç seja alguma coiía mas-
sador. . . pelo menos.
O sr. D. Ru}- era o fiiho único da f.dalga da
Gésíeira e do morgado do mesmo nome.
Sobre aqueíle menino pesava uma nobreza
de sete gerações, e uma riqueza talvez mais pe-
sada ainda do que uma tal arvore genealógica.
Pela sua parte, elle não precisaria ser tão
nobre nem tão rico para se fazer estimar e
adorar.
Era, realmente, uma creança insinuante, rnci-
i3S
ga e intelligente, quasi nada voluntariosa ape-
zar dos extremos, por vezes ridículos, com que
era tratada.
A mãe parecia viver da vida do tilho. Se elle
ria, ria ella também-, ás vezes adoeciam, m.ãe
e íilho, da mesma tristeza : chamava-se logo o
medico para ambos, porque o morgado, depois
de ter vivido no mundo, prescindira da socie-
dade que tanto o prendera outr'ora, para se li-
mitar a viver para a mulher e para o filho, isto
é, para uma só alma partida em dois corpos.
No solar da Gésteira havia ainda uma outra
pessoa, que fazia parte integrante da familia :
era o padre João, capelláo da casa.
Padre João accumulára também as funcçÕes
de preceptor do sr. D. Ruy durante a primeira
infância do fidalguinho. Ensinara-o a lêr e a re-
zar. Umas vezes por outras fallava-lhe do sr.
D. Miguel de Bragança, que, segundo elle. era
o Dcse/ado dos tempos modernos.
Mas o sr. D. Ruy foi crescendo, e chegou
um dia em que se pensou no que se devia fa-
zer d'aquelle menino.
O que havia elle de ser no mundo para me-
lhor fazer sobresair a sua riqueza e a sua fidal-
guia ?
A mãe, no egoismo do seu amor, dizia que
o melhor era não se pensar mais n'isso, que o
sr. D. Ruy já sabia ler o bastante. . . para não
ser analphabeto.
i39
Padre João concordava com a fidalga: que
sim, que a sabedoria era boa para os pobres.
O morgado protestava. Elle mesmo era ba-
charel em direito, e queria que o filho o fosse.
Vivendo amarrado ás tradições de família,
queria que o filho se graduasse em leis, como
elle, fazendo o que seu pae fizera, tendo um
cavallo para passeiar, como todos os estudan-
tes nobres d'aquelle tempo, exhibindo-se, n'uma
palavra, em toda a plenitude das regalias que
uzufruiam os morgados em Coimbra.
Padre João concordava também com o mor-
gado: que sim, que o saber não ficava mal a
ninguém.
A morgada zangava-se, e dizia :
— O padre João está fallando assim por com-
prazer com meu marido. Já lhe tenho ouvido
dizer que a sabedoria é boa para quem não
tem outra coisa.
O bom do capellão via-se enleiado, tomava
a sua pitada, rufava depois com os dedos so-
bre os joelhos :
— Sim, quero eu dizer, minha senhora, que
nem tanto ao mar nem tanto á terra. Uma en-
vernizadella ao espirito não faz mal a ninguém...
— Uma envernizadella! replicava o morgado.
Mais do que isso. Uma carta de bacharel.
Pôde nascer-se morgado, sem a gente o que-
rer:, doutor é que não. O padre João já viu al-
guém nascer doutor ?
j'4o
— Eu, não. sr.
— Pois se não viu, é porque para o ser é
preciso estudar e saber alguma coisa. E a honra
é tanto maior quanto o individuo, pela sua po-
sição social, menos precisa das cartas de um
curso para viver. Hoje os tempos mudaram, e
um fidalgo ignorante ja ninguém o toma a serio.
Eu quero que meu filho vá a Coimbra.
A fidalga punha os olhos no cháo^ ficava ca-
lada e triste.
— Mas isso não é por ora, tornava o mor-
gado*, escusas de estar ahi a abalar de tristeza,
Christina. Has de habituar-te pouco a pouco a
viver sem o teu filho, como minha mãe se ha-
bituou. O habito é uma segunda natureza. Pri-
meiro entrará o Ruy n'um collegio. \'amos vi-
ver para o Porto, — e olha que faço n'isso al-
gum sacrificio, porque já me custa arrancar-
me á vida da província. Para que elle também
se habitue a viver sem nós, mettemol-o n'uni
collegio, no da Guíj. por exemplo, porque le-
nho boas informações a respeito d^essa casa de
educação. Iremos vel-o sempre que queiras.
Pelas ferias, sahirá, viremos para a Gésteira,
a fim de que elle possa saborear, de tempos a
tempos, o bem estar da casa paterna, conser-
var as tradições de familia. que cu tanto prezo,
e tu tanibcm,
De sahir da Gesicira, de deixar o seu que-
rido Minho, é que padre João não gostava;,
141
mas, chamado a conselho pelo morgado, não ti-
nha remédio senão concordar.
Finalmente, resolveu-se que o sr. D. Ruy
iria para o collegio da Guia estudar prepara-
tórios.
Os fidalgos da Gésteira sahiram para o Porto,
e arrendaram casa, uma bella casa de trez an-
dares, na rua de Santa Gatharina.
A fidalga queria ficar perto , do collegio, — o
mais perto possível.
Marcou-se o dia em que o sr. D. Ruv devia
entrar no collegio. O director, o Daniel Na-
varro, tinha ordem de se não poupar a despe-
zas para amenizar a iniciação do joven colle-
gial. Esse dia, era uma segunda feira. Mas no
domingo á noite a fidalga chorou tanto, que o
morgado achou prudente deixar passar mais
alguns dias.
Por sua parte, o sr. D, Ruy estava um pouco
vacillante entre as saudades da mãe e o desejo
de entrar no collegio. Um dia o pae levara-o
lá. Era á hora em que os alumnos estavam no
recreio: todos elles pareciam alegres, riam, vo-
zeavam, corriam pelas ruas da quinta, joga-
vam as escondidas, baloiçavam-se no trapesio.
Aquillo não lhe desagradou ; demais a mais o
Navarro tizera-lhe muita festa, foi mostrar-lhe
as aulas, os dormitórios, a casa de jantar, e
disse-lhe :
— Olhe que isto não c mau.
142
E o sr. D. Ruy sorrira, sentira-se forte, ima-
ginava que se havia de dar bem ali, com os
outros, brincando como elles.
Mas ao chegar a casa, chorara vendo a mãe,
e elhi chorara também, abraçada n'elle.
— Bem! dissera do lado o pae, tu não des-
gostaste, pois não é verdade:
O sr. D. Ru}', com os olhos chorosos, me-
neara affirmativamente a cabeça.
— Então entrarás segunda feira... está dito!
E passara a mão pela face da fidalga, afa-
gando-a
— É que se o rapaz ainda não vae d'esta vez,
dissera, fica sendo o D, Sebastião do collegio
da Guia. Eu não quero que os outros lhe po-
nham alcunhas, que ficam depois para toda a
vida.
— Nem eu, replicara a fidalga com vivaci-
dade.
A ideia de que seu filho poderia ter uma al-
cunha, ser chamado o D. Schjistião do collegio,
sobresaltára-a. E desde logo protestou a si
mesma que o deixaria na primeira segunda
feira.
— O' mamã, di.^sera o pequeno, sabe que
numero eu vou ter no collegio ?
— Qual ?
— Sou o 41 6.
Esta novidade, o facto de ir ser o 41G. agra-
dava-lhe. Era uma variante á monotonia do seu
Í4-3
tratamento habitual. Toda a gente ihe chamava
D. Ruy, o sr. D. Ruy, mas d'ali em diante iam
chamar-lhe o 416. Que bom!
No domingo, o morgado tornou a levar o fi-
lho ao coUegio. Quando entravam, os rapazes
sabiam arregimentados. Iam ouvir missa áLapa,
e depois dariam um passeio até Paranhos. O
morgado disse ao prefeito que também os acom-
panharia, para habituar o filho á sua nova vida
de coUegial.
Na egreja da Lapa, emquanto esperavam pela
missa, o sr. D. Ruy fez relações de amisade
com um rapaz, filho de um fidalgo da casa de
Villa Pouca, em Guimarães. Era o 86. O sr.
D Ruy gostou d"elle, e gostou de se ver tra-
tado familiarmente — por 416, apenas.
Veio para casa contar á mãe o que tinha
feito. Estava enthusiasmado. E a segunda feira
tardava-lhe. A mãe alegrou-se um pouco da
alegria do filho. Pela manhã lavou-o, penteou-o,
ella mesma, chorando umas vezes, sorrindo ou-
tras, soífrendo e amando.
Padre João foi com o morgado acompanhar
o 416. A fidalga veiu para a janella. Chorava.
Chegara finalmente o momento terrível, que
ella temia tanto. Mal viu o filho na rua, lim-
pou as lagrimas, procurou sorrir. O sr. D. Ruy
ia bem disposto, sentia-se forte, disse adeus á
mãe sem chorar, mas á esquina da rua, quando
a janella ia desapparecer, o valoroso 416 vol-
U4
tou-se ainda uma ve?: para traz. e limpou duas
lagrimas ao canhão da jaqueta.
E' que. por muito leviano que se seja quando
se c creança, sempre se tem consciência de
que uma mãe faz muita falta.
O 416 deu boa conta de si no coUegio da
Guia. De dia, as aulas e o recreio absorviam-
Ihe a attençíío:, á noite, nos primeiros tempos,
arrasavam-sc-lhe sempre os olhos de lagrimas,
quando, ames de adormecer, pensava na mãe.
Faltavam-lhe os beijos d"ella, que se inclinava
sobre o leito a compor-lhe a almofada, e a con-
chegar-lhe a roupa. A cabeça de Ghristina to-
mava então o aspecto de uma aza protectora.
O 416, no collegio, cnrolava-se no lençol, solu-
çando, e adormecia assim, rezando ao anjo da
guarda, como padre João lhe ensinara. Mas,
pela manhã, a disciplina escolar não lhe dava
occasião para pensamentos tristes : era saltar
da cama e começar a lide.
Ao cabo do primeiro mez, o 410 já adorme-
cia m.elhor.
Como as suas relações com o 86 se houves-
sem estreitado cada vez mais, faziam ambos
projectos para as ferias da Paschoa. O 416
levaria para a (jc>teira o seu condiscípulo: já
estavam solicitadas as respectivas licenças. Não
havia duvida nenhuma. Fariam um .íudas logo
que lá chegassem. Houve apenas uma pequena
divergência, entre os dois amigos, sobre o modo
143
como vestiriam o Judas. O 86 queria que fosse
de \eterano. O 416 preferia um fato de hespa-
nhol — com as respectivas castanhetas. A sua
opinião venceu, com uma simples modificação:
as castanhetas seriam substituidns por um pan
deiro.
Padre João, n'uma visita ao collegio. disse
que o fato de hespanhol não era próprio para
Judas \ que seria melhor vestil-o de judeu. Os
dois collegiaes não quizeram saber d"isso, e o
416 encarregou o capellão de lhe comprar um
fato de hespanhol. que o padre foi desencantar
na rua de Santo António. n'um guarda-roupa
de carnaval.
Imagine-se a alegria com que todos parti-
ram para a Gésteira ! A [morgada parecia ter
a idade do filho : ria, fallava, apoiava caloro-
samente os projectos dos dois collegiaes sobre
a queima do Judas, que devia ser espaventosa.
Na caixa do trem ia muito fogo de artificio
para recheiar o apostolo. . . castelhano. Dentro
da barriga tinham os dois amigos combinado
pôr-lhe uma bomba, que devia rebentar como
uma peça de artilheria. Na cabeça, outra bomba:
o chapéu devia ir parar a casa do diabo.
Logo que chegaram á Gésteira. trataram de
fazer o Judas. O arcabouço era de palha. Ves-
tiram-lhe as pantalonas castelhanas, a jaqueta
de alamares ^ ataram-lhe a faixa encarnada. Po-
zcram-lhe unia caraça de andaluz, e um som-
140
brero com debrum de velludo preto. As mãos
eram duas luvas de algodão com recheio de pa-
lha ; na esquerda tinha um pandeiro, c na di-
reita a saca dos trinta dinheiros. Por um arti-
ficio sabiamente imaginado, a saca do dinheiro
devia, quando se puxasse por um arame, ba-
ter no pandeiro, e fazel-o soar. Na boca um
charuto: era uma granada envolvida em folha
de tabaco. Nos pés, esporas de lata. com pól-
vora dentro.
O Judas ficou n'um vasto telheiro que, den-
tro do pateo, se encostava ao muro da quinta.
O machinismo do pandeiro e da saca dos
trinta dinheiros, invenção do 86, levara muito
tempo, e dera muito trabalho, de modo que só
foi possivel acabal-o, á luz de lanternas, na sexta
feira á noite. O Judas, finalmente prompto, es-
tava de papo ao ar, no chão, hirto, inchado,
apopletico. Pela manha, os meninos levantar-
se-hiam muito cedo para assistir á empalação.
Depois... só restava pegar-lhe fogt).
De madrugada, uma criada da casa fora ao
moinho buscar uns sacos de farinha, que trouxe
n'uma jumenta. Descarregou a farinha e enxo-
tou a jumenta para o meio do pateo, emquanto
foi acondicionar os sacos na cosinha.
Não se lembrou a estúpida de que o Judas era
de palha, e de que as jumentas comem palha...
ainda mesmo quando lh"a não sabem dar.
A jumenta, de focinho baixo, foi procurando
147
o que havia pelo telheiro. Vendo o Judas dei-
tado no meio' do chão, começou, desconíiada,
a ladeal-o, mas, por fim, investiu com elle.
Cheirou-lhe a palha, e com uma dentada esgar-
çou lhe o peitilho da camisa. Achou dentro a
palha, e começou a comer. Trazia fome. Tinha
ido para o moinho de madrugada, e lá, emquanto
esperava pela moedura, apenas poderá traçar
com os dentes umas hervitas, de modo que
aquelle almoço inesperado soube-lhe bem.
Quando os meninos se levantaram, correram
ao telheiro. Do Judas... restava apenas aparte
castelhana, isto é, o fato:, mas os intestinos ti-
nham desapparecido.
Proromperam nMm choro atroador as duas
creanças. Os morgados, os criados, acudiram
todos. As lamentações dos dois collegiaes eram
sentidíssimas, clamorosas. E .. burra, indiffe-
rente a tudo o que se passava, continuava a
procurar com o focinho alguma cousa, na es-
píirança de encontrar outro Judas.
Num momc:ito de cólera, o 86 e o qiõ pe-
garam cada qual no seu fueiro, e começaram a
desancar a jumenta. Levou muita lambada; até
o padre João, para lisonjear os meninos, lhe
dera um pontapé na trazeira, dizendo : Que
grande burra esta I
Mas ella, com o falso apostolo na barriga,
parecia ter a consciência de qiie um traidor não
merecia sepultura melhor.
XVÍl
A canfiinhj do Alsmteío
Ha pouco mais de um mez. passava eu na
linha do sueste com destino ao Alemtejo. Tí-
nhamos atravessado o rio com muito vento;
havia vaga. O ceu estava carrancudo ; promet-
tia chuva. O vento apressava-a. Na ponte do
Barreiro, uma grande corda de agua principiara
a cahir. Corremos todos para as carruagens;^
foi um verdadeiro sau}'c qui pent.
O comboyo partira e a chuva continuava a
cahir. Uma inverneira pegada. Eu sentia-me
.somnolento. cabeceava. Na estação de... (se-
jamos discretos) sentindo correr uma vidraça
na carruagem immediata. espertei. Uma voz,
num tom agaiatado de rapazote de escola,
disse : E a cabrinha r E a cabrinha ?
O chefe da estação, um homem velho, de bi-
gode branco, olhou de repente para a carrua-
149
gem d'onde a voz partira. Havia ficado visivel-
mente aborrecido, mas continuara fazendo o seu
serviço. De instante a instante, ao passo que a
voz repetia— E a cabrinha ? — elle resmungava.
Ao cabo de pouco tempo a campainha dera
o signal da partida. No momento em que o
comboyo largava, uma voz, mais vozes disse-
ram : E a cabrinha ? E a cabrinha ?
O que se passou não sei, mas numa das es-
tações seguintes procurei occasiao de perguntar
ao meu visinho, que se apeiára, o que aquillo
queria dizer.
O rapazote, que teria quando muito dezeseis
annos, explicou-me.
Aquelle chefe tinha uma cabrinha de muita
estimação, que lhe dava magnifico leite para o
almoço. Mas a cabrinha, que era toda meiguice
com a dona, mostrava-se pouco afleiçoada ao
dono. Um dia, por um motivo qualquer, a mu-
lher do chefe da estação teve de ausentar-se ;
o marido ficou, desempenhando as funcções
do seu cargo.
Quando chegou a hora do almoço, o chefe
tratou de chamar a cabrinha para mungil-a.
Isso sim ! A cabri-nha fugia, e o pobre homem
resignou-se a tomar o seu café sem leite. Não
gostou, e tratou de afagar a cabra para que ella
se mostrasse menos extranha e rispida. Qual
historia I No outro dia a mesma comedia, elle
a chamar a cabra com as suas melhores ma-
i5o
neiras, e ella a fugir d ellc como o demónio
foge da cruz.
O pobre homem deu tratos á imaginação para
resolver o problema, em que elle e a cabra en-
travam como factores.
O que havia de fazer ? Demais a mais o café
sem leite estava-lhe fazendo mal ao estômago,
e a cabra não promcttia tornar-se mais amaAcl
do que até ahi se havia mostrado.
Depois que os comboyos passavam, elle fe-
chava a porta da estação, e dois pensamentos
atrozes o preoccupavam : a mulher e a cabra.
O que havia de fazer ? pensava e tornava a
pensar.
Até que uma noite teve uma idéa luminosa,
salvadora. Adormeceu mais tranquillamente,
saboreando mentalmente a delicia de t(^rnar a
almoçar café com leite.
Pela manhã, quando acordou, ve.stiu um ves-
tido da mulher, poz na cabeça um lenço d'ella.
Foi chamar a cabra, e a cabra veiu immediata-
mente, fazendo-lhe festa.
Kstava resolvida a ditficuldade. a cabra dei-
xava-se mungir ; o bom homem endoidecia de
contentamento.
Nisto, um silvo terrível ouve-se a pequena
distancia. Era o comboyo. mas em que (Kc;i-
sião, santo Deus I
O pobre chefe estava vestido de mulher, de
saia e lenço. Vm dilcmma implacável se lhe
i5i
apresentava: apparecer tal como estava ou fal-
tar.
Mas faltar seria um delicto muito grave, um
motivo para demissão. Nisto o comboyo che-
gava. . . E o chefe da estação apparecia na pla-
taforma, mascarado de mulher, a dar ordens
no desempenho do seu cargo.
Os passageiros riram a bom rir. O caso di-
vulgou-se, espalhou-se ao longe, e agora é raro
o dia em que passe um comboyo sem que al-
guém pergunte ao chefe da estação noticias da
cabrinha . . .
— Já não ha salteadores no Alemtejo ! dizia
eu para um dos meus companheiros de viagem.
Que falta que me faz um assalto, de que eu
precisava escapar... para o contar depois I
E elle referia-me casos tenebrosos de antigos
salteadores alemtejanos, do José da Costa e do
Chapéu de ferro, dois faccinoras. dois monstros.
que viveram num tempo em que ainda se po-
dia ser litterato.
O José da Costa fora ha doze ou quinze an-
nos o terror das terras interpostas a Alcochete e
Setúbal. Desertor de lanceiros, andava a monte,
zombando das auctoridades e da policia. Era
um heroe terrível, um homem sanguinário, uma
lenda viva. Uma noite, encontrara o caseiro da
l52
quinta de Algeruz, e mandára-o apeiar do ca-
vallo que montava. O caseiro obedecera imme-
diatamente. e o faccinora dissera-lhe, passando-
Ihe a mão pela cara :
— Anda lá, anda, segue teu caminho.
O caseiro cavalgou de novo, dispunha-se a
partir, quando José da Gosta lhe tornou a di-
-zer :
— Apeia-te outra vez.
E passando-lhe a mão pela cara :
— Ajoelha-te.
O caseiro ajoelhou.
— Por esta vez, vae-te embora.
O caseiro montou, e José da Costa, deitando
a mão ás rédeas do cavallo, exclamou :
— Apeia-te, e ajoelha.
E pondo-lhe a mão na cabeça e nas laces :
— Vae com Deus ou com o diabo I
O caseiro estava muito disposto a partir pro-
tegido por qualquer dos dois. quando o José
da Costa lhe apostrophou :
— Torna a descer, que to mando eu.
E o caseiro desceu do cavallo.
— Ajoelha.
K o caseiro ajoelhou.
— Monta agora.
E o caseiro montou.
E depois, vendo-o em cima do cavallo, ati-
rou-o a terra com um tiro.
— Coitado! disse, tornando a passar-lhe a
i63
mão pela cabeça inanimada, já devias estar can-
çado de montar e desmontar I
De uma vez, José da Costa teve seus dares
t tomares com um hespanhol pimpão. Travou-
9e a lucta braço a braço, e ó faccinora parecia
não levar a melhor.
l)e repente, José da Gosta grita para o hes-
pani^ol :
— Olha quem ahi vem ! Foge I
Nãc vinha ninguém. O hespanhol^ voltou-se
e o faccinora feriu-o pelas costas.
Foi ra venda de Algeruz que José da Costa
poude Sír preso.
Fechaiam-lhe a porta á traição, cercaram a
casa, e fc-am buscar a Setúbal uma força mi-
litar, de lue foi commandante o governador
Cunha, haannos fallecido.
Mas denro da taberna haviam ficado trcz ou
quatro homns, que não poderam sahir a tempo,
e o José da.2osta, vendo-se apanhado no laço,
ia-os esfaquendo para saciar a sede de sangue.
Os feridos gritavam de dentro, o povo gri-
tava de fora, força havia chegado, estava de
armas mettida, á cara, e de repente, por uma
das janellas dÉ,casa, uma coisa saltara para a
charneca. Mas')s soldados, percebendo o que
era, não descaregaram.
José da Cost havia atirado para fora um
cortiço, fingindoque era elle próprio que sal-
tava, na esperan^ de que os soldados dispa-
i54
rassem, c ellc podesse fugir entretanto, são e
salvo.
Entyo, baldados todos os recursos, entregou-
se á prisão.
O Chapéu de ferro infestava ahi por iNno e
tantos as circumvisinhanças de Beja.
Uma vez matara um homem num vwite^
como quem diz um casal, e obrigara a mulher
da victima a aparar-lhe o sangue n'um algui-
dar.
Dois rapazitos, e um delles é hoje un cava-
lheiro altamente collocado, sahiam. en férias,
de Beja para a sua terra natal.
Um homem de grandes barbas esressas ap-
pareceu-lhes na charneca.
— Quem são vocês? perguntou-lhís.
— Somos estudantes.
— E eu, sabem quem eu sou?
— Não sabemos.
— Pois eu sou o Chapéu de fei'o.
— O Chapéu de ferro ! exclararam horrori-
sados.
— Sim, eu sou o Chapéu de jrro. e deixo-os
ir cm paz. Talvez quisessem qu eu os matasse,
dois creancolas. I
XVIII
A mulher
Desde ^ paraíso terreal até hoje, não tem
havido accntecimentos de polpa em que não
figure a milher. Os francezes dizem « ChercJie-{
la fefJimt'». O que significa que a mulher anda
sempre mettila em todas as endrominas deste
mundo.
Ora, desde que principiou a desenvolver-se
na imprensa o panorama escandaloso do Pa-
namá, admiradc estava eu de que não tivesse
apparecido aind& como actriz ou como com-
parsa, como figurnte de qualquer género, uma
mulher pelo meno^
Já tinha tido teniiçÕes de lembrar á França
que o seu proverbii falhara. .. pela primeira
vez. Eis senão qua-do o provérbio triumpha,
agora como sempre. No caso do Panamá ap-
parecc uma mulher, ladame Cottu, e a sabe-
doria da Franca salvais seus créditos, emrim.
ibf)
Decididamente, a mulher, quer a emancipem
quer não, tenha voto ou não tenha voto, ha de
ser, na successão dos séculos, a eterna colla-
boradora do homem em todos os casos da vida.
E visto que isto tem de acontecer por força,
convém a cada homem escolher o tvpo de col-
laboradora que mais lhe agrade, especialmente
para as emprezas em que o agrado é tud^).
Deverá escolher-se a mulher pequena." Será
essa, como typo do sexo, a que mais }-óde en-
cantar os olhos de quem a yê ?
E certo que os antigos diziam: '.'A mulher c
a sardinha quer-se pequenina.» A píquenina, a
nupiouiic. destas em que se póce pegar ao
collo. e passeial-as sem cançar «s braços, d,
em verdade, um ser gracioso, |ue conserva,
até mesmo na velhice, o que qier que seja de
infantil, de ar alegre de boneca
E de mais a mais dizia umphilosopho, não
sei qual, um philosopho apolo,ista de mulheres
pequenas: «Do mal o menos»
Mas a verdade e que as nulheres altas, ele-
gantes, fortes, se não são «o commodas para
trazer ao collo, dão marge'i a que os olhos de
quem as contempla possa-i saturar-se de bello
sexo, demorando-se a mral-as da cabeça até
aos pés.
E como se a gente es'vesse a olhar ao longo
de terras vastas, de ina paizagem dilatada,
com um horisonte anplo, infinito, cm (.|ue
sempre, por mais que se olhe, ha alguma coisa
para ver de novo.
Outro philosopho — porque sobejam, graças
a Deus I philosophos para tudo — costumava
dizer que a mulher alta era a mais apreciável
de todas, visto que não tinha o coração ao pé
da boca.
Feia ? Deverá ser feia a mulher ? Não falta
quem seja d'esta opmiáo. Não ha mulher feia
que não possua pelo menos uma qualidade es-
timável. A natureza mostrou-se principalmente
sabia e justa nas compensações.
Vê a gente ás vezes um homem loucamente
apaixonado por uma mulher que a nós nos pa-
rece feia.
Sempre que isto acontece, e para descontiar
que exista uma compensação, uma qualidade,
que esse homem, tendo visto melhor que nós,
conseguiu descobrir.
De mais a mais, nada ha tão vehemente. tão
vulcânico como o amor das feias. Tendo pouco
quem as requeste, poupam o paiol do coração,
de modo que o seu primeiro amor é com.o que
uma explosão do Vesúvio.
No olhar amoroso de uma feia ha sempre
um discurso enthusiasta, que pôde stenogra-
phar-se do modo seguinte .
— Muito obrigada, bravo e heróico cavalheiro!
que esgrimes denodadamente contra o precon-
ceito da belleza, e que reúnes á coragem o ta-
i58
lento, porque só tu foste capaz de descobrir a
bellcza na fealdade, a compensação que a na-
tureza me concedeu. Saber que uma mulher é
bella, quando ella realmente o seja, não engran-
dece o espirito de ninguém. Basta, para isso,
não ser cego. Mas vêr uma obra de arte. a que
todos acham defeitos, ê descobrir-lhe a única
qualidade boa que possua, chega a ser bri-
lhante, a ser glorioso, ó nobre, ó bravo, ó ex-
cepcional cavalheiro ! A ti, a minha eterna de-
dicação I
Ora este discurso, pronunciado por dois ora-
dores ao mesmo tempo, isto é, pelos olhos de
uma mulher, faz impressão no espirito de um
homem, envaidece-o, lisonjeia-o, acaba por sub-
jugal-o.
E assim se pode explicar de certo a rasão
por que as feias vão tendo despacho e con-
sumo.
Estão no caso das feias, as velhas.
Não me refiro a uma antiguidade verdadei-
ramente gothica, nem me proponho sustentar
que um homem deva casar-se com a sé de
Braga.
Mas Balzac fez, como se sabe, o elogio da
mulher de trinta annos. e eu, na minha obscu-
ridade, acho que é essa uma boa conta para
ponto de partida.
Trinta annos I obra acabada, paredes solidas,
pavimentos seguros, um prédio capaz de resis-
169
tir a um terremoto 1 Magnifico I Já passou a
época das pieguices, dos amuos, dos- caprichos
de rreança. Nada de esboços, de linhas inde-
cisas : obra a que a natureza acabou já de dar
os últimos retoques I Excellente !
Entre os trinta e os quarenta toda a mulher
3e encontra na situação das feias, ainda que
tenha sido formosíssima.
— Muito obrigada pela distincção que o ca-
valheiro me concedei parece dizerem os seus
olhos amorosos. Ha por ahi tantas meninas in-
teressantes, tantas rosinhas em botão, tantas
flores frescas e mimosas, e o cavalheiro por
todas passou sem as cobiçar I Realmente, sin-
to-me captivada... Mas deixe estar que não
hade arrepender-se. Saberei amal-o como duas
meninas, pelo menos : uma, que já fui •, outra,
que torno a ser, remoçada pelo seu amor.
E a fim de trazer sempre o homem satisfeito
e entretido, toda ella é coração, tpda ella se
dispende em lembranças mimosas, enviando ao
cavalheiro íiores para a lapella e rebuçados para
o peito.
Contou Júlio César Machado, uma vez, que
certa quarentona, soffrega de amar, tomara um
trem para num dia de primavera, cheio de es-
tímulos e effluvíos, ir dar um passeio ao Campo
Grande.
Pelo caminho, o coração trasbordava-lhe do
peito, expandia-se, mas, infelizmente, não havia
ibo
um homem que quizesse ter a heroicidade de
amai a.
Quando chegou ao Campo Grande, no mo-
mento de apeiar-se, já com o pé no estribo,
reparou nos olhos do cocheiro, que eram boni-
tos, expressivos.
E deixando-se cair para fora, de modo a que
o cocheiro tivesse a ideia de amparal-a cari-
nhosamente, exclamou :
— Amo-te, José Traquitana !
Júlio César Machado deixou neste ponto a
historia, mas é de presumir que a dama, ac-
ceitando as consequências da sua allucimição,
viesse a tranformar esse cocheiro num marido
grato e discreto, com. tacto para a vida, visto
que havia principiado por ter boa mão de ré-
dea.
Deverá prcferir-se a mulher formosa ?
K decerto a que mais agrada no primeiro mo-
mento, porque a vida é uma serie de illusões,
e a formosura a mais grata das illusÕes.
Lá disse o padre Vieira: «O que é a formo-
sura senão uma caveira bem vestida?» Mas,
emquanto está bem vestida, agrada, attrae,
fascina.
Todavia, se se pensa um momento, receia-
se. . .
A mulher formosa agrada tanto ao que a
possue, como aos outros. Tem esse perigo, que
constitue um sobresalto permanente.
i6i
E depois o que a possue não pôde de certo-
esquivar-se a pensar com os seus botões, á me-
dida que a belleza se vae apagando: «Quem te
viu e quem te vê ! »
Se a m.ulher vale só pela formosura, faltan-
do-Ihe a graça, a bondade, uma qualidade de
valor, emíim, o que quasi sempre acontece gra-
ças á theoria das compensações, essa mulher
é, já o disse alguém, um livro que uma vez
lido, não tem mais que ler.
Deve orocurar-se uma mulher de bom ^e-
nio ?
Uma mulher de inalterável bom génio parece
feita de açorda, é uma espécie de jfieiiu sem
surprezas, uma permanente dieta, em que o es-
pirito não passa de servir-se todos os dias uma
aza de frango, como se fosse um doente.
Não irrita, mas não vivifica. Não esfria, mas
não aquece. Quando um homem chega a feste-
jar as suas bodas de prata, não tem que dizer
aos outros senão isto : «Meus senhores, tenho
passado vinte e cinco annos da minha vida
n'uma paz podre, que me sabe a gallinha co-
zida.»
Se a mulher tem mau génio, se tem nervos,
deve isso ser desagradável para o marido al-
gumas vezes, mas nada ha que possa lisonjear
tanto o espirito de um homem como vêr uma'
mulher, que tem a vocação da guerra, offere-
cer-lhc um beijo... de paz I Oh! é glorioso
It)2
para um \'encido acceitar o ramo de oli\cira
que lhe ofterece o vencedor I
Deverá ser rica ? Para passar a vida, é bom
que seja rica a mulher. Mas não deixa isso de
vexar um pouco o marido, se toda a riqueza
veiu d'ella. Quando um marido em taes condi-
ções manda pôr o trem. sente-se engasgado
como se tivesse de dizer: «O José, manda pôr
o coupé da senhora.» Se vae ao theatro, ao
entregar o bilhete ao porteiro, a consciência
grita-Ihe que deveria dizer, a querer ser sincero:
«Abra o camarote da senhora!»
Oh ! deve ser horrível I
Pobre ? E se a mulher é pobre r Dá isso
pena a um marido que sinceramente a estime.
«Aqui está, dirá elle comsigo mesmo, uma mu-
lher a quem eu quizera proporcionar todos os
regalos, todas ascommodidades deumaprinccza,
e comtudo só poderei otíerecer-lhe este mez um
vestido de percale.» De modo que a independên-
cia de que um tal marido gosa junto de sua mu-
lher, c aguada pelo desgosto de a não poder fe-
licitar tanto quanto desejava.
K ditficil a escolha I concluirá o leitor. Com
effeito assim é. Dirticilima, acrescentarei eu.
Mas ha talvez um meio de illudir a dificuldade
da escolha : e amal-as a todas indistincta-
mente, para, com o auxilio da experiência, es-
colher depois a melhor ... se houver tempo
para isso.
n
XIX
:arnaval ,
Já contei ha alguns annos a historia carna-
valesca do Félix Telles, de Estarreja.
Mas vou reedital-a, para que se torne tão co-
nhecida quanto o merece a mais interessante e a
mais veridica historia que o carnaval de Lisboa
tem produzido, desde que a caraça é caraça.
Félix Telles, boa pessoa, com seus laivos
de patuscão, vivia no solar de um fidalgo de
Estarreja, na qualidade de professor aposentado
dos meninos da casa.
De vez em quando vinha a Lisboa a pretexto
de visitar o irmão e sobrinhos do fidalgo de Es-
tarreja. Agradava-lhe essa patuscada, que o dis-
traia da monotonia das arvores e da vida da
aldeia.
Assim foi que um anno, pelo carnaval, elle
disse ao fidalgo :
164
— Meu senhor, se v. ex.'' se naooppozer. \ou
a IJsboa pregar uma partida real a seu mano
e sobrinhos.
— Então que intenta você fazer, ó Félix?
— Uma partida de carnaval, que passo a ex-
por a V. ex."'' Amanhã de manhã tomo o com-
boio descendente. Chego a Lisboa das oito para
as noAe horas da noite. O mano de \. ex.^ é
certo, com toda a sua familia. num camarote
da Trindade, segundo o costume. Logo que eu
chegar, vou hospedar-me no fío/cl ^{Hiídicc para
me lavar e descançar. A meia noite pouco mais
ou menos, mando um criado do hotel aluiíar
um dominó preto ao Cruz da rua Larga de
S. Roque. Dirijo-nie em seguida ao theatro da
Trindade, vou direito ao camarote onde estiver
a familia de v. ex." e proponho-me intrigal-a,
com casos certos, durante uma boa hora. Quando
cu lhe fallar de certas coisas, toda a familia ar-
derá em curiosidade, dará tratos á imaginação
para descobrir quem eu seja. Mas não poderão
lembrar-se de mim por me supporem em Ks-
tarreja. A saidà do theatro tomarei as minhas
precauções para não ser seguido nem conhe-
cido. De manhã metto-me outra vez no com-
boio, e á noite estarei aqui a ceiar e a rir do
caso com v. ex.*' E ou não é. ex.'"" senhor, uma
partida real ?
— Pyramidal I meu caro Félix Telles, Ap-
plaudo com enthusiasmo. Vá deitar-se, visto qtie
i66
tem de fazer madiTigada. Mas que boa partida!
Ehl eh I ria o morgado, esfregando as mãos
de contente.
Foi dali o íidalgu para o seu escriptorio e,
a rir comsigo mesmo, redigiu o seguinte te!e-
gramma :
"Felix Telles chega ahi hoje noite para in-
trigar-te theatro Trindade. Dominó preto, alu-
gado Cruz. Vai Hotel Alliance. Prepara-te para
ataque. Segredo.»
Depois chamou o seu criado particular, dis-
se-lhe que logo pela manhã fosse ao telegrapho
expedir aquelle telegramma, recommendando-
Ihe a mais completa reserva.
No comboio descendente, Felix Telles tomava
eíiectivamente logar n uma carruagem de pri-
meira classe, e saboreava mentalmente o prazer
da sua aventura.
Entretanto o irmão do morgado, o visconde
de ***, recebia em Lisboa o telegramma, e cha-
mava o escudeiro para dizer-lhe :
— Esta noite estarás em Santa Apolónia á
chegada do comboio. N'uma carruagem, que
segundo o costume será de primeira classe,
hade vir o sr, F'elix Telles, que tu conheces
muito bem. Seguil-o-has, sem que te veja. Se
tomar um trem, toma tu outro. Deve apeiar-se
á porta do Hotel Alliance. Ahi. logo que che-
gue ou pouco depois, dará ordem ao criado
para que lhe vá buscar ao guarda-roupa do
i66
Cruz, na rua Larga de S. Roque, um dominó
preto. Esperarás os acontecimentos parado em
frente do liotel. Gertilicar-te-has se effectiva-
mente sae do Alliance um homem de dominó
preto. Esse homem sera o sr. Félix Telles. Logo
que elle saia, tomar-lhe-has dianteira, correrás
ao theatro da Trindade. Encostados á casa do
bengaleiro estarão os meninos e, quando o sr.
Keiix Telles entrar, dir-lhes-has : E este. Enten-
deste :
— Perfeitamente, sr. \i.sconde. Esteja v. ex.*
certo de que saberei dar conta do recado.
— Muito bem.
No seu quarto, os tilhos do visconde escreviam
sobre uma larga tira de papel branco, em garra-
fíies lertras nretas. o seguinte lettreiro: í(Soií o
1 O
Fclix Telles di' HslJi-i\ja." E riam estrepito-
samente, com aquelle grande bom humor que
se perde para todo o sempre depois que os de-
zoito annos passam . . .
O criado do \isconde desempenhou-se da sua
missão de contiança ás mil maravilhas.
Félix Telles chegava ac^ theatro da Trindade
quando já os íilhos do visconde, postos atraz
do guarda-vento. se preparavam para pregar-
Ihe nas costas a grande tira de papel branco.
Esta operação, alias dillicil. foi feita com pe-
leita delicadeza.
As pessoas que presencearam tudo isto, cas-
quinaram uma estrondosa gargalhada, que Fe-
167
lix Telles não percebeu. E logo muitas vozes,
umas accentuadamente masculinas, outras femi-
nilmente esganiçadas, começaram a gritar n'uma
surriada d'opereta, emquanto o dominó preto
passava :
— Olha o Félix Telles de Estarreja !
O homem estremeceu dentro do seu dominó,
debaixo da sua mascara.
E sujeitos de chapéu de coco, creanças de
bisnaga em. punho, pastorinhas vestidas de gaze
côr de rosa, vivandeiras de cantil a tiracoUo,
caíam sobre elle com o peso duma troça impla-
cável.
— ^(Jlha o Félix Telles de Estarreja!
Eile voltava-sc para surprehender o denun-
ciante em tlagrante delicto de bisbilhotice, não
conhecia ninguém, suava, tressuava. perguntava
a si próprio se teria enlouquecido, e então os
esguichos, as gargalhadas, os gritos recrudes-
ciam n'um crescendo atroador.
De repente, no salão, o visconde, de braços
abertos, umi riso epigrammatico nos lábios, pos-
tado deante do dominó, saudava-o com a terrí-
vel apostrophe. que se repercutia nos eccos da
sala :
— O Félix Telles, que diabo de lembrança
foi a sua !
E elle, o Félix Telies. desesperado, hydro-
phobo, apopletico, respondeu-lhe na sua voz
natural, cheio de raiva, de cólera :
:GS
— Ora deixe-me, que não sou eu !
E saiu, saiu acompanhado até á porta do
theatro por este grito terrível, insistente, perse-
guidor :
— Tu és o Fclíx 1\'IU'S de Esíarrcja !
E no conjuncto de todas essas vozes irritan-
temente cáusticas, atrozmente mordentes, elle
distinguiu perfeitamente a^^ ^ozes dos filhos do
visconde que gritavam :
— O Félix Telles, venha cá I . . .
Entrando no Hotel Allíaua', Félix Telles des-
piu de repellão o dominó, deixou-o ticar sobre
o tapete do quarto, disse brutalmente ao criado
que se fossc embora, que o deixasse em paz,
que o chamasse a tempo de sair no comboio
da manhã, e que se não esquecesse de mandar
entregar depois o dominó ao Cruz. com mais
dez tostões que elle deixaria sobre a banqui-
nha.
Pela manhã, pagou rapidamente a sua conta,
pousou sobre a b^.nquinha os dez tostões para
o Cruz, e saiu.
Quando a noite cnegou a Estarreja, ja um
telegramma do visconde para o irmão o havia
precedido.
— Então? perguntou lhe o morgado o mais
seriamente que poude.
— Então I respondeu Félix Telles. Aquillo é
ainda uma aldeia peior do que Estarreja ! toda
a gente me conheceu logo que lá cheguei !
lõg
— Não é possível !
— Tão possível como eu ter ouvido gritar de
todos os lados, a todas as pessoas, que aquelle
dominó preto era o Felíx Telles de Estar-
reja !
— Conhecel-o-íam pelo andar ?
^ Eu sei lá, sr. morgado ! Conheceram-me
por tudo, não se ouvia senão o meu nome
n'uma berrata que me ensurdecia I
Trez dias depois, o morgado chamava ao seu
escriptorio o Felíx Telles e perguntava-lhe :
— Onde foi que você despiu o dominó .preto ?
— No Hotel Alliance.
— h não viu no dominó preto alguma cousa
branca ?
— Só se fosse o forro.. . Mas não reparei.
— Pois eu lhe posso dar algumas explica-
ções, que façam luz sobre o caso.
Félix Telles esbugalhava os olhos attento,
curioso.
— Não viu um papel branco pregado nas cos-
tas do dominó preto ?
— Não vi !
— Aqui o tem, pois — ^ dizia o morgado des-
dobrando cautelosamente uma tira de papel en-
rugado, rasgado, que o visconde mandara pedir
ao Hotel Alliance e lhe tinha remettido pelo cor-
reio.
E elevando-o a altura dos olhos de Félix
Telles. mostrou-lh'o.
170
— Sou o Félix Telles de Estarreja '. dizia o
papel.
O pobre homem estava passado, assombrado.
— Mas entáol . . . exclamou elle caindo em si.
E o morgado respondeu-lhe com uma garg-i-
Ihada estrondosa, ao mesmo tempo que todas
as pessoas da casa acudiani á pona do escri-
ptorio a rir, a rir. . .
XX
:5ap2a
Perguntaram a uma tricana do norte para
que servia o chapelinho, do tamanho de uma
avellã, que coroava os seus fartos cabellos ne ■
gros.
— Ora essal exclamou ella irónica e desde-
nhosamente. Serve para pôr e tirar. . .
Realmente, é para isto que serve o chapéu,
qualquer que seja o seu tanianho e o seu feitio,
mas, principalmente pelo que respeita ao sexo
masculino, que de responsabilidades andam li-
gadas ao simples facto de pôr e tirar o cha-
péu ! . . .
Custa pouco isso, tiral-o ou pôl-o, coisa é
que se faz num momento, e comtudo nada ha
que possa ter mais serias consequências do que
pôr o chapéu quando se devia tirar, ou tiral-o
quando se devia pôr.
172
Não é so no theatro, durante os espectácu-
los, que pôr ou tirar o chapéu é um facto que
pertence aos dominios do formulário social. Mas
no theatro, visto que se está entre uma socie-
dade menos numerosa, dá isso mais nas vistas,
e se um espectador conserva o chapéu na ca-
beça, depois do panno subir, todos os outros
começam a gritar : Péu 1 peu ! Se o tira, mas
parece reconsiderar tornando a pol-o, como que
tem isso o propósito de querer irritar os outros
espectadores, e então sobe de ponto a gritaria
dos que mandam desbarretar o insolente.
Ha já muitos annos, no theatro da rua dos
Condes, appareceu n\im camarote de segunda
ordem um grupo de patuscos que vinham das
hortas, bem comidos e bem bebidos, — bem be-
bidos, sobretudo.
Não se lembraram ou não quizeram tirar o
chapéu, e o publico indignou-se, começou, de
cara no ar, a gritar, a berrar para que se des-
cobrissem.
Assistia ao espectáculo, com alguns amigos,
o Moita e Vasconcellos, então jovialissimo ra-
paz, mais tarde conselheiro e chefe de reparti-
ção no ministério das obras publicas, — o pobre
Moita que tão desgraçado morreu !
Pareceu-lhe boa occasião de tirar partido do
coníiicto, e foi bater á portii do camarote dos
patuscos.
— Quem é ? perguntaram de dentro.
173
— A auctoridade, respondeu o Moita e Vas-
concelíos.
Abriu-se a porta do camarote, e o Moita, to-
mando o ar grave de um representante da lei,
exclamou :
— Isto que se está passando é uma pouca
vergonha I Pagaram ou não pagaram os senho-
res o seu camarote ?
— Pagamos, sim, senhor.
— Pois se pagaram, podem estar como qui-
7.cr, comtanto que não oífendam a moral pu-
blica. Tanto monta ter o chapéu na cabeça
como não ter. Isso não offende a lei nem a
moral. O dever da auctoridade é proteger os
direitos de cada um, disse e saiu com a mesma
seriedade.
Os do camarote, fortes com o apoio da lei,
pozeram os chapéus na cabeça e despiram os
casacos.
Imagine-se a gritaria que n'esse momento ir-
rompeu da platéa e dos outro camarotes! A in-
ferneira cresceu a tal ponto, que a verdadeira
auctoridade teve de intervir, e os patuscos ti-
veram de ceder, não podendo dizer ao certo se
a embriaguez lhes haveria feito ver a auctori-
dade em duplicado ou se neste paiz tudo an-
dava tão fora- dos eixos, que havia duas aucto-
ridades, uma para mandar pôr o chapéu, outra
para o mandar tirar. . .
Nalguns espectáculos tem acontecido que o
174
publico se arroga o direito de mandar pôr ou
tirar o chapéu, sem se importar com a inter-
venção das auctoridades, e sem que mesmo as
auctoridades se atrevam a intervir.
N\ima tourada de Badajoz appareceu uma
vez um sujeito de chapéu alto. O publico, logo
que elle entrou, começou a gritar-lhe em coro :
— Que quite el sombrero !
O homem quiz resistir, mas acabou por ce-
der. Tirou o chapéu. N'isto começou o publico
a gritar, sempre em coro :
— Que ponga el sombrero !
E o homem, ao cabo de alguns momentos
de hesitação, teve que pôr o chapéu, para de-
pois o tornar a tirar, para ter que o pôr outra
vez e para ter que tiral-o de novo. . .
Na rua ha maior liberdade de acção, o facto
de pôr ou tirar o chapéu escapa ao dominio do
publico ; mas por isso mesmo que ha maior li-
berdade de acção, ha maior responsabilidade
no facto em relação á pessoa a quem é diri-
gido.
Basta deixar de tirar o chapéu para cortar
pela raiz. de um momento para outro, uma
longa amisade de muitos annos, E assim, por-
que o chapéu ficou na cabeça, ficaram separa-
das moralmente duas pessoas.
Tirar o chapéu fora de propósito, tiral-o de
mais ou tiral-o de menos, pôde ter consequên-
cias análogas, como se tome esse acto por troça,
ly^
por baixesa de caracter ou por desconsidera-
ção.
Tiral-o á mesma pessoa umas vezes, e não
o tirar outras vezes, é caso para a pessoa, que
umas vezes é cumprimentada e outras não, pen-
sar no que deve fazer.
Eu adoptei para este caso uma linha de pro-
cedimento. Se uma pessoa me cumprimenta uns
dias por outros, hoje sim, amanhã não, se me
cumprimenta aqui e não me cumprimenta acolá,
porque está acompanhada de melhor ou de peior
sociedade, essa pessoa passa a fazer-me o ef-
feito de um realejo, que me diverte proporcio-
nando-me occasião de trautear esta popularís-
sima trova :
Quando eu quiz, não quizeste,
Tiveste opinião ;
Agora queres, não quero,
Tenho minha presumpção.
O chapéu impõe deveres de normal corte-
zia, a que é preciso attender sem exagero para
mais ou para menos.
Nada ha tão aborrecido como o excesso de
cortezia em que um chapéu pôde incorrer es-
tando fora da cabeça quando devia conservar-
se no seu logar. Um estadista portuguez, a
quem um seu antigo protegido acompanhava
de chapéu na mão por toda a parte, chegou a
dizer n'um momento de desespero : — «Muito
me incommoda a gratidão!»
17()
Da gente de Lisboa escreveu o quinhentista
Prestes :
... e de Lisboa se sóa
Que todos lá são honrados,
Que de pessoa a pessoa
Se faliam desbarretados.
Mas Francisco Manuel de Mello poz á corte-
tezia dos lisboetas seus justos limites quando
disse :
Um fallar com tanto geito,
Um ditinho de repente.
Que affeiçôa :
i'm ter em tudo respeito.
Ai ! mate -me Deus com a gente
De Lisboa.
Ter em tudo respeito, — eis a questão. K como
se dissesse : ter conta em tudo. Respeito por
os outros e por ncjs mesmos, até no cumpri-
mentar !
Ha pessoas que caem no defeito contrario
áquelle. e que em \e/, de gastar a aba do cha-
péu, apenas gastam o dedo com que lhe tocam.
K pouco. Se um só dedo podesse bastar a al-
guém para uso próprio ou alheio, a sábia na-
tureza não nos haveria dadt^ cinco dedos em
cada mão.
Quando a gente, não sendo milita'\ se vê
cumprimentada d'esse modo. dá-lhe vontade de
responder ao dedo com o braço todo, — para
177
O presidente de não sei qu>,* estado ameri-
cano, passeiava um dia na praça publica, ves-
tido á paisana, com o seu ajudante de campo
ao lado.
Passou por elle um escravo, e cumprimen-.
tou-o. O presidente tirou-lhe o cinapeu. e seguiu
seu camip.iio. Mas quiz parecer-lhe que o aju-
dante achou que elle cumprimentara de mais
paro un"i escravo. Voltou-se e disse :
— Não quero que possa haver n"este paiz al-
guém mais bem educado do que eu I
Isto pe:"cebe-se. e é lógico. Fazer apenas meia
dose de cumprimento, não é cumprimentar, c
vexar, porque se lembra d pessoa cumprimen-
tada a sua inferioridade.
Ainda ha uma cousa peior talvez do que dis-
pensar somente meia dose de cumprimento: — c
exigi'' que lhe dispensem dose dobrada.
Ccrio tidalgo costumava deixar ficar de cha-
péu ni\ mão as pessoas que lhe fallavam. Um
dia, na rua larga de S. Roque, passou um su-
jeito a quem repugnou ver outro desbarretado
deante do íidalgo, que o não mandava cobrir.
Chegou ao pé dos dois. tocou no hombro do
que estava descoberto, e disse-lhe :
— Pôde pôr o chapéu na cabeça, que este
senhor dá licença.
Se algum dos dois devia agradecer não era o
desbarretado, mas o tidalgo, porque estava fa-
zendo peior figura. . .
178
Ter cm tudo respeito, ter conta em tudo. —
eis o caso.
Chega a gente a sentir-se enjoada de vér um
sujeito que cumprimenta a torto e a direito para
dentro de todos os trens que passam— ha nisto
verdadeiros especialistas — e que se agarra a
um cabello para ter o pretexto de se tornar suob
dos machuchos.
Mas não enjoa por certo menos vêr outros
sujeitos que põem todo o seu orgulho na aba
do chapéu, imaginando que a aba do seu cha-
péu é a continuação do firmamento.
Acima delles, só Deus, e ás vezes nem Deus...
que não conhecem I
De tudo quanto completa a íoílcile do homem
é com certeza o chapéu o que lhe impõe maio-
res responsabilidades, o que o approxima ou
affasta mais dos outros homens, o que o pôde
definir melhor na sua individualidade morai, o
que o pode tornar mais estimável e o que tam-
bém o pôde comprometter mais,
K tudo isto por que ?
Porque o chapéu, como disse a tricana do
norte, serve para pôr e para tirar.
E em saber pòl-o a tempo e tiral-o a propó-
sito é que está o buzilis.
Pouco importa que o chapéu seja pequeno
e a cabeça grande, que o chapéu seja grande
e a cabeça pequena. Não está nisso a harmo-
nia entre o homem e o chapéu, mas sim no
179
uso conveniente ou inconveniente que delle se
faz.
Quando a gente, ao sair de casa, pÕe o cha-
péu na cabeça, é como se pozesse ao sol o forro
de si mesmo, — as suas ideias, os seus senti-
mentos, a sua educação, o seu caracter.
Ha chapéus que vão dizendo de cima da ca-
beça : «Cá vae este tolo, que não conhece os
conhecidos».
Ha outros chapéus que, aborrecidos da ro-
da-viva em que andam, parecem gritar a cada
momento : «Cá vae este t©lo, que até conhece
os desconhecidos!»
Ainda ha outros chapéus que parecem muito
contentes do acerto com que são tratados pelo
dono, e em cuja copa a gente cuida ler esta di-
visa: «Nem de mais, nem de menos)-.
Já repararam em que o chapéu, qualquer que
seja o seu tamanho e feitio, parece variar de
peso em certas occasiÕes e, especialmente, de
pessoa para pessoa ?
O mesmo chapéu, se a gente está de animo
opprimido, parece pesar mais que de costume.
Um pretendente, fallando uma vez com An-
tónio Rodrigues Sampaio, começou por dizer-
Ihe, visto que n'esse momento lhe parecia ser
de chumbo a aba do chapéu :
— Muito custa, sr. conselheiro, andar a gente
por aqui de chapéu na mãol
E Sampaio, que tinha sotfrido e trabalhado
i8o
como poucos, respondeu de prompto obrigan-
do-o a cobrir-str :
— Pois ponha-o na cabeça, e diga o que
quer.
Dois sujeitos compram chapéu da mesma for-
ma e no mesmo chapeleiro.
A um d elles o chapéu como que brinca so-
bre a cabeça, inclinando-se requebrado num
bolero permanente. E que a cabeça anda ale-
gre e communica ao chapéu, que se sente leve,
a vontade de foliar.
A outro o chapéu vae-lhe descendo insensi-
velmente até ás orelhas, dando mostras de que-
rer enterrar-se por desgostoso. K que a cabeça
pegou-lhe as scismas em que anda martellando
no silencio do espirito.
Tão certo c. meus senhores, que o chapéu
re\'ela o homem: — o chapéu é o estylo de toda
a gente, incluindo a que não tem estylo.
XXI
Os antípodas
Ha pessoas tão infelizes, que iulgam que a
sua própria infelicidade não terá fim.
Ha melancólicos para quem a esperança não
accende um único raio de sol, tão entranhada-
mente elles se entregam á melancolia.
Ha pobretões que desanimam de ser reme-
diados algum dia, tão pouca fé lhes vivifica o
coração.
E para todos estes que eu escrevo hoje, man-
dando-lhes n"uma anecdota um ensinamento
moral, que pôde, por um momento ao menos,
arrancal-os aos seus pensamentos sombrios,
tiral-os, por um instante que seja, do inferno da
sua desesperança e entremostrar-lhes o ceu. . .
O padre-mestre FanhÕes também se arrepel-
lava, teimosamente incrédulo, quando o seu
collega Libório pretendia dcmonstrar-lhe que
l8-2
na esphera terrestre havia habitantes que, em
relação aos de meridianos e parallelos oppos-
tos, se chamavam antípodas, porque se acha-
vam collocados de modo que os pés de uns es-
tavam voltados contra os pés de outros.
Padre-mestre Fanhões não o podia crer e
desgostava-sc d isso, visto que toda a gente acre-
ditava na existência dos antípodas, menos elle.
— Não me tio ! dizia de si para comsigo.
Como é possível que, estando nós n'um hemis-
pherio de cabeça para cima, possa haver gente
que se equilibre de cabeça para baixo no outro
hemispherio ? !
Por mais que matutasse no caso, acabava
sempre por dar razão a si próprio, e negal-a
a-o coliega Libório.
— ■ Ora imaginem, insistia elle, uma laranja,
porque a terra tem approximadamente, segundo
se diz, a forma de uma laranja. Ponho a laranja
sobre um prato e colloco-lhe facilmente na casca
da metade superior um ou dois grãos de milho ;
mas se quizer collocal-os na metade inferior,
claro está que não terei meio de segural-os.
Cairão por força ! Pois com os habitantes da
terra ha de dar-se a mesma cousa. Que nos
aguentemos de cabeça para cima, percebe-se ;
mas que ha)a outros que se aguentem de ca-
beça para baixo, não me entra no miolo. O Li-
bório é um asno, que acredita em todos os ca-
rapctões I
i83
E o padre-mestre, ensinando o seu latim aos
rapazes, interrompia-se muitas vezes para di-
zcr-lhes a propósito de cousa nenhuma :
— Nos antípodas é que eu não acredito ! Não
pôde ser !
Os rapazes davamlhe razão, não só porque
n'essas occasiões o padre-mestre os apoquen-
tava menos no latim, mas tam.bem porque el-
les próprios não tinham grande convicção na
tal historia dos antipodas, gente que devia vi-
ver pendurada pelos pés. em permanente gym-
nastica.
Tirante a caturreira dos antipodas. padre-
mestre era uma excellente pessoa, um sacerdote
exemplar, muito respeitador das leis da egreja
e dos preceitos da Bulia da Santa Cruzada.
As sextas-feiras com.ia-se sempre de magro
em sua casa: os rapazes já contavam com o
bello bacalhau n'aquelle dia.
Elle próprio, o bom padre-mestre, o ia esco-
lher á tenda nas quintas-feiras de tarde. Tra-
zia-o para casa, escondido debaixo do capote.
Dava-o a vêr á criada.
— Que era de primeira ordem, approvava
ella, o melhor que podia seri
— Pois sim, Gertrudes, vae atar-lhe uma
corda e pôl-o a dessalgar no poço.
Dito e feito. A Gertrudes pendurava o baca-
lhau, e mergulhava-o no poço até ao meio dia
seguinte.
l.v
Succedia algumas vezes que o padre-mcstre
FanhÕes se encontrava n'esscs dias. na botica,
com o seu collega Libório e, como sempre, dis-
cutiam o eterno thema, a eterna teima dos an-
típodas.
— Que não! que não podiam existir I excla-
mava decisivamente o padre-mestre.
Não havia argumento convincente que o Li-
bório não empregasse ; mas o padre-mestre,
muito casmurro e auctoritario. cortava a ques-
tão dizendo :
— Ha duas cousas que eu sei perfeitamente:
a primeira é que tenho amanhã bacalhau para
o jantar:, a segunda e que essa tal historia dos
antipodas não tem pes nem cabeça.
Ora succedia que na sexta-feira pela manhã,
quando a Gertrudes ia tirar o bacalhau do poço,
o encontrava sempre reduzido a menos de me-
tade \ estava ratado, comido.
O que seria, o que não seria ? I
— É gato que desce pela corda, alvitrava o
padre.
— Isto não e dente de gato I ponderava acer-
tadamente a Gertrudes.
E, realmente, fizeram a seguinte descoberta :
que não podia ser gato de casa, porque o não
tinham, e não podia ser gato de fora, porque
os muros do quintal erani muito altos, e esta-
vam eriçados de cacos de garrafa.
— Será elle rato de agua, ó Gertrudes ? !
i85
— Nada, sr. padre-mestre, isto menos pode
ser dente de rato.
— Olha, dente de coelho é que é com toda
a certeza, porque por mais que a gente puxe
pelo miôlo não sabemos o que sejal
A Gertrudes achava mais uma vez graça a
este dito do padre-mestre, sempre repetido, e
na sexta-feira seguinte, quando ia tirar o baca-
lhau do poço, encontrava-o roido em mttade.
Os alumnos do padre-mestre tinham inven-
tado esta patuscada do bacalhau e, graças a
ella, passavam em cautelosa folia as noites das
quintas-feiras.
Eram elles, os diabretes I que, depois de es-
tarem certos de que o padre-mestre dormia, e
de que a Gertrudes ressonava, desciam pé-an-
te-pé ao quintal, e, içando o bacalhau, corta-
vam e comiam grandes lascas.
Se lhes dessem uma ceia de foie-íj;ras talvez
não gostassem tanto. O bacalhau roubado ti-
nha para elles o sabor do fructo prohibido, a
que servia de aperitivo a chalaça de o ireni
buscar ao poço com o sobresalto de ratoneiros
que temem ser presentidos.
Padre-mestre dava em doido, o caso já o ia
intrigando tanto como a historia dos antípo-
das.
Um dia chamou de parte o mais intelligente
dos seus discípulos de latim, e contou-lhe o
qae estava acontecendo com o bacalhau.
i8b
— O que será r perguntou candidamente o
padre-mestre.
— Ao certo não sei. respondeu o estudante.
Mas talvez. . .
~ Talvez ?
— Pode muito bem. ser que o comam os an-
típodas.
— Lá vens tu com a fabula dos antípodas!
Não creias n'isso, rapaz!
— O' sr. padre-mestre. pois se todos os sá-
bios dizem que sim, por que rasao havemos nós
de pôr em duvida o que elles affirmam '. De
mais a mais vossa senhoria tem m.eio de averi-
guar a verdade. Sexta-íeira pela manhã debru-
ce-se no poço, ponha-se á espreita, que talvez
os apanhe com a boca na botija.
— No bacalhau é que tu queres dizer. . .
— Sim. senhor, no bacalhau.
— Pois olha que hei de tomar o teu conse-
lho. Na se.xta-feira eu próprio irei tirar o ba-
calhau do poço para desenganar-me.
Pôde calcular-se o que os estudantes ririam
uns com os outros á espera da sexta-feira. que
n'aquella semana parecia não chegar nunca, tão
anciosamente elles a esperavam.
Mas, arrastadamente, a sexta-feira chegou,
c o padre-mestre foi em pessoa buscar o ba-
calhau.
Ao debruçar-se no poço, deu um grande
grito.
i87
A Gertrudes correu á janella :
— O que é, sr. padre-mestre ? perguntou
— Eu vi um homem no fundo do poço. res-
pondeu elle assaralhopado. E assim que me
endireitei para gritar, fugiu.
— Atire-Ihe uma pedra. sr. padre-mestre,
aconselhou um dos estudantes, que também
tinham acudido.
O padre-mestre pegou n'um calhau e atirou -o
para o fundo do poço. A agua turvou-se. de
modo que, por mais que elle se debruçasse
espreitando, não tornou a ver homem nenhum,
— isto é. não podia vêr-se a si próprio.
— E o bacalhau está inteiro? perguntou ou-
tro rapaz
— Vamos vêr isso.
O padre-mestre deu-se pressa em içar a
corda.
Faltava metade ao bacalhau.
— Ora agora, sr. padre-mestre. disse-lhe o
estudante que primeiro o havia aconselhado, já
vossa senhoria não pôde duvidar da existancia
dos antípodas, porque os viu.
— E é verdade que vi um!
— Mas o que fez elle quando vossa senhoria
apparcceu á beira do poço ?
— Ora o que faz um gatuno quando alguém
o apanha com a boca na botija ?
— No bacalhau, sr. padre-m.estre, emendou
o estudante.
j88
— No bacalhau ou na botija. Fugiu I Pois o
que havia elle de fazer, o paiife ? !
— Vossa senhoria reparou se elle trazia ca-
saco ?
— Trazia, sim, lá isso ainda eu pude ver.
— Está provado então que os antípodas ves-
tem como nós. E vossa senhoria que não que-
ria acreditar n'elles !
— E verdade! Ninguém pôde dizer: d'esta
agua não beberei. Vou coníessar o meu erro
ao collega Libório.
E íoi. O collega Eiborio estava na aula a en-
sinar geographia aos rapazes.
O padre-mestre chamou por elle em altos
berros. O Libório veiu á porta vêr que afflic-
ção era aquella. Era o padre-mestre, que lhe
gritou :
— Não ha duvida, não senhor; Você tem ra-
zão n"aquillo dos antípodas!
— Porque, ó padre-mestre ?
— Porque eu vi um.
— Viu um !
— Vi-o com estes que a terra hade comer.
— E onde é que o viu ?
— No fundo do meu poço !
Assim é em tudo o mais.
Por muito escura que seja a vida. e basta
que seja tão negra como o fundo de um poço,
por mais teimosa na sua descrença que seja uma
alma, e basta que o seja tanto como a do pa-
i89
dre-mestre Fanhões. chega sempre um dia em
que se vê ou se cuida vêr aquillo que jamais
se reputava visivel : realidade ou illusão.
Melhor é que seja a realidade, ao contrario
do que aconteceu com. o padre-mestre. Mas se
íôr illusão, isso basta ás vezes, n'um miundo
em que a maior parte das cousas são illusorias,
para sentir a alma menos propensa á duvida e
ao desalento.
O padre-mestre julgou vêr um antipoda, e
morreu na fé de que elles existiam, — por isso.
O collega Libório, em vez de vêr os antípodas
no fundo do poço. via-os nos compêndios de
geographia e nos globos. Nem por se ter con-
vencido mais depressa logrou ter maior convic-
ção de que o padre-mestre desde aquelle dia.
E ambos chegaram ao mesmo fim por cam.inhos
diversos Mas, com quanto um se atrazasse na
jornada, ambos chegaram, e o essencial na vida
é chegar. . . alguma vez !
XX 11
As uvas
Outubro: todos os lavradores tratani de apu-
rar o resultado das vindimas.
Quantas pipas de vinho tiveram ? A como as
venderão? Eis as qiiestões que principalmente
os preoccupam.
São, pois, as uvas que estão ainda em sccna
no grande palco da vida rural, tablado sombrio
e m.elancolico desde que o phyloxera começou
a roer os bastidores feitos de pâmpanos c lata-
das, outr'ora verdejantes e opulentos de seiva.
As uvas, disse-o algures .lulio César Machado,
são o vinho em pilulas. Deliciosas e saborosas
pílulas, que não precisam ser doiradas com as-
sucar como as da botica! . . .
Um dia, certo medico, que punha muito gosto
em falar com distincção, aconselhou um dos
seus doentes a tomar umas pilulas amargas
iqi
que, para nao repugnarem, precisavam ser en-
volvidas n'uma substancia doce.
— Tome-as n'um vehiculo qualquer, recom-
mendou o medico.
Ora em pliarmacia a palavra vehiculo é sy-
nonimo de excipiente, isto é, a substancia em
que se encorporam ou dissolvem os medicamen-
tos, para lhes mascarar o sabor, para diminuir
o seu principio activo ou ainda para lhes dar
uma forma conveniente.
No dia seguinte vem o medico, e não encon-
tra o doente em casa. Mostra- se profundamente
surprehendido e contrariado.
— Onde está elle ? !
— Saiu.
— Saiu?! Que imprudência, santo Deus!
— Mas foi V. ex/ que mandou. . .
— Eu ? !
N'isto ouve-se parar á porta uma carruagem.
Era o doente, pallido e tremulo, que regressava
a casa.
— O que fez o senhor ? ! perguntou o me-
dico.
— Sai de carruagem.
— Mas que loucura foi essa : I
— Pois V. ex.* não me disse que tomasse as
pilulas n'um vehiculo qualquer! Tomei-as de
carruagem . . .
Com as pilulas de: vinho, tão doces são ! não
podem dar-se doestes equivocos, pois que não
IQ2
precisam \-ehiculo — assucar oi; carrua^eTi —
para engulir-sc com agrado.
Perde-se na noite do cahos a origem da vi-
nha e do seu fructo saboroso.
Segundo a l^iblia. Noé foi o inventor da arte
de fa?:er vinho c, por tal signal, que aprendeu
á sua custa, empiteirando-se sem o querer. Se-
gundo a mvthologia. foi Baccho o primeiro vi-
ticultor, e o que é certo é que nós ainda hoje,
quando carregamos nos tropos, dizemos mui'
tas vezes — o deus Baccho- — em vez de vinho.
Mas quem sabe lá qual foi ao certo o pri-
meiro homem que cultivou a vinha e bebeu o
sumo das uvas! De mais a mais a vinha não
foi arvore que Deus prohibisse, como a do bcin
c do mal. Não. senhores, a cultura da vinha
foi livie desde o prmcipio do mundo, e então, que
me conste, não se vendia o vinho por decilitros.
O s}stema métrico decimal é. acho eu. muito
posterior á origem do mundo. . . Cada um po-
dia beber o que quizesse. Que delicia, o prin-
cipio do mundo !
• Pois não serei eu que me proponha estudar
a origem do vinho, para não incorrer no rídi-
culo daquelle sábio que, tratando de descobrir
o inventor do jogo do voltarete, ficou capaci-
tado de que tinha .>ido. . . Voltaire.
Ha poucos dias li numa obra interessan-
tíssima, a viagem de Pyrard ás índias Orien-
tacs, que o duque de Alba, tendo tomado a ci-
uj3
dade de Haerlem. na Hollanda, mandou fazer
n'clla execuções tão cruéis, que ha quem derive
d"ahi o provérbio fn^er aviem, de onde veiu,
por corrupção, fazer arlij ou arrelia.
Pois nem Francisco Pyrard, nem Cunha Ri-
vara, que commungou esta opinião, eram dois
insignificantes.
Pareceu-me forçada a derivação e contando-a
a um homem de espirito, disse-me elle :
— Eu estou convencido do contrario. Sahe
vossè que Jacob só muito contrariado casou
com Lia. Por isso, é natural que a não tratasse
bemi. Obrigava-a a trabalhar, sem que ella po-
desse e. como n'esse tempo todos os hom.ens
eram grosseiros, dizia-lhe a cada momento :
Arre, Lia. D"aqui é que veiu certamente a lo-
cução . . .
Tem graça, e caracterisa a facilidade com
que os sábios inventam origens.
Sempre me ha de lembrar o caso daquelles
dois distinctos archeologos que, n'uma serra de
Portugal, encontraram certa pedra tosca com.
estas duas lettras gravadas: C. M.
Discutiram, investigaram., até que um canto-
neiro lhes disse :
~ Esí^a pedra foi mandada ahi pôr ha mui-
tos annos pela senhora camará yjuinicipal.
Ficaram de cara á banda, os sábios.
A mim, a respeito da vinha, não me ha de
acontecer outro tanto. Tiro o meu chaneu á
'M4
antiguidade da cepa, e passo adeame. Mas como
as uvas, e bebo o vinho. No estado de civilisa-
ção em que nos encontramos hoje, e o melhor
que temos a fazer.
Sem embargo, também gosto de olhar para
ellas, principalmente se são brancas, graciosa-
mente tocadas pela luz em cada bago, o que faz
o desespero dos pintores.
Só um soube até hoje igualar-se ao Greador
na reprodacção das uvas. Foi ZeLi^:is, diz a
lenda. Os pássaros, enganados por uma tão
perfeita similhança, vieram bicar os cachos.
Parrhasius, rival de Zeuxis. quiz pintar uma
tela ainda melhor. No seu quadro havia um
cortinado que enganou o próprio Zeuxis.
— Levanta o cortinado, disse elle a Parrha-
sius, para que eu possa observar a tela.
Quando reconheceu que era pintado, Zeuxis
confessou-se vencido: «Eu enganei os pássaros,
mas Parrhasius enganou-me a mim!»
A vinha pôde ser mais ou menos elegante,
alta e pendente como no norte do paiz, de en-
forcado lhe chamam \ ou pequena e redonda
como nas provincias do sul : mas as uvas são
sempre bellas na lucidez e variedade dos tons.
E notável que Camões, tendo vivido na Es-
tremadura, se é que n"esta mesma província
não nasceu, descrevesse na ilha dos Amores,
não a vinha do sul, mas a de enforcado, a alta
c pendurada, que vegeta no norte:
195
Entre os braços do ulmeiro está a jucunda
Vide, c'uns cachos roxos, e outros verdes.
Frei Luiz de Sousa, na descripçao da cerca
de Bemfica, serviu-se de uma feliz comparação
com as pedras preciosas para caracterisar as
nuances da coloração dos cachos. Faziam, diz
elle, «collares de pedraria as uvas, segundo os
tempos, e as cores d"ellas : já topasios, já ru-
bis, primeiro esmeraldas.»
Na linguagem pittoresca do apologo, as uvas
estão verdes quando a rapoza lhes não pôde
chegar. E uma das mais sentenciosas fabulas,
essa, da rapoza e das uvas. Desdenha-se sem-
pre d"aquillo que se não pôde alcançar.
— Ser ministro ! diz um pretendente á pasta.
Que massada I
E do lado algum malicioso observa a meia
voz :
— Estão verdes, não prestam. . .
Por este anno, vamos a despedir-nos das
uvas, que só por ahi resta algum cacho guar-
dado como um mimo.
Perdem-se no ar, por esse paiz fora, as ulti-
mas canções das vindimas. No Douro, a região
do vinho, a vindima é ainda uma festa, apesar
da phylloxera. Canta-se todo o dia, vindimando.
E ha razão para isso, porque a vindima repre-
senta o advento do vinho novo. No sul do paiz,
a vindima corre triste e silenciosa, parecendo
um funeral, o enterro das uvas.
lijf)
Mas, para o effeito de ser bom, pouco im-
porta que o vinho nasça entre canções ou sem
tílias. O que se quer é que alegre e aqueça...
no inverno ; — porque, no estio, alegra e refresca,
dizem os borrachos.
XXIII
Pessoais conhecidas de vossas exoellencias
Temos visto cair de anno para anno, um a
um, os mais antigos habitues de S. Carlos.
Por que não começaremos pelas testas coroa-
das ? O seu dildtantismo é tão humano como
o dos outros habitues. Primeiro el-rei D. Fer-
nando, um espectador certo, mesmo já quando
a voracidade lethifera de um cancro lhe ia
roendo a face. D. Fernando punha o seu par-
che de seda preta, e ia para S. Carlos, para
S. Carlos or.de elle havia brilhado outrora em
plena mocidade feliz. Depois D. Augusto, que
parecia amar a temperatura elevada de S. Car-
los, apesar de ser um cardiaco. Em seguida,
el-rei D. Luiz, que tinha pela musica a paixão
nativa de todos os Braganças. Já doente, pal-
lida e flaccida a face, num esphacelamento lento
que o rosto denunciava, ia uma vez pc^r (Miira
i<)8
a S. Carlos como para se despedir da musica,
que sempre adorara.
Cá em baixo, nas cadeiras, desapparecêra
primeiro o dr. Alvarenga, que passara a vida
a tratar o coração dos outros, embora, para o
atormentar. lhe bastasse o seu, de que sotfria
muito.
Lembram-sc do dr. Alvarenga ? Sempre de
casaca, gravata preta, óculos escuros, e um
crescente mais dilctíaiitt' do que cathedratico.
Lembram decerto.
Depois o José Carlos Poeta, grande peitilho
lustroso, casaca de amplas lapellas. calva os-
tentosa e lusidia.
Tinha conhecido a avó de cada cantora que
ia apparecendo. e decerto gosava, ou\ indo a
neta. mais do que nós. porque vivia da saudade
deleitosa que as suas recordações lhe aA iva\ am.
Foi-se um dia. de repente, alli ao fundo da
rua do Alecrim.
Júlio César Machado, muito correcto dentro
da sua casaca, sempre de gravata preta — que-
rendo assim mostrar que já se não tinha na
conta de moço. comquanto se tivesse ainda na
conta de dilcltantc ~ío\y como uma estrella ca-
dente que parece procurar outra no ceu, \ er se
encontrava pelo azul fora a alma do tilho. que
era a estrella querida do seu coração aífectuoso.
Agora, ultimamente, o duque de Albuquer-
que, uma só pessoa, que fornecera a S. Carlos
199
dois habitues : o conde de Mesquiteila e p du-
que de Albuquerque.
■O seu chino, sempre tão fallado nas chroni-
cas de S. Carlos, era como que a pagina mais
eloquente do seu gosto pelo mundo : queria fin-
gir de mais moço cada vez que S. Carlos abria,
não obstante ser mais velho um anno;
E, depois de certa idade, nada ha que en-
velheça tanto como cada anno que vae pas-
sando . . .
Júlio Machado raras vezes subia a um cama-
rote para visitar alguém ; e tambemi raras vezes
assistia, nos últimos annos, a um. espectáculo
todo.
Pa'^ecia um pouco cansado do mundo: en-
trara no periodo em que a gente vive principal-
mente de recordações.
O duque de Albuquerque, peio contrario,
entrava em todos os camarotes, visitava todas
as damas, e apenas saía de S. Carlos... quando
os outros saíam.
Tinha razão, porque elle ia lá não só para
ouvir as operas, como também, para ver os ou-
tros.
*
José Carlos de Freitas Jacome alternara uma
grande parte da sua ^ ida em occupaçÕes que
pn)fundamente contrastavam, uma com outra:
2 00
a prosa dos tribunaes e a poesia da opera. De
per meio, e de passagem, plantara o seu lourei-
rosinho no jardim das Musas, hra escrivão do
eivei na Boa Hora. dilettantc em S. Carlos, c
poeta por desfastio nas horas em que da prosa
dos autos ascendia a região da harmonia. Fora
bastante 'cscriptor para não ser unicamente es-
crivão, e, fora da Boa Hora, esquecia-se de ser
escrivão, para ter as predilecções e as honras
de escriptor.
Bom homem a valer, iimavel, sabendo vestir
uma casaca, tendo o segredo de fazer espelhar,
com uma limpidez de cristal, o peitilho da .'■ua
camisa. Nunca perdeu, apesar de velho e doente,
os seus ares de homem elegante, os seus hábi-
tos mundanos. Gostava do mundo, e tinha bom
gosto, porque mal se chega a comprehender a
rnania. que teem alguns, de se sepultarem em
vida na solidão da misantropia.
Duas coisas lhe não esqueceram nunca : as
suas luvas, e uma flor.
Nas bellas noites de S- Carlos, Freitas Ja-
come enflorava sempre a lapella da casaca.
F no theatro, na egreja, na rua, na Hava-
nesa, jamais lhe esqueceram as luvas, que ás
vezes não calcava, mas que não abandonava
nunca.
Dava gosto ^ el-o na sua cadeira de S. Car-
los, grave, attento, tendo o ar de um diplomata
pomposo. Tendo visto nascer o romantisnio eni
201
Portuga!, fôra romântico de convicção e, como
tal, adorava a musica italiana, saboreava-a, a
goies de audição, como se fosse um licor esqui-
sito, divino.
Verdi servia-lhe á phantasia uma espécie de
champagne capitoso, que o embriagava doce-
mente.
Bellini e Rossini, dois copeiros da cava ce-
leste, enchiam-lhe a taça do prazer de um tokay
generoso, único.
E, de resto, tinha rasão, porque ainda não
houve quem lhes podesse apagar os nomes na
grande tela da immortalidade. Meyerbeer. uma
aurora boreal, Mozart, uma estrella, Wagner,
uma nublosa, passam hoje por todos os palcos
do mundo, mas, sem embargo, as partituras
italianas hão de illuminar-se sempre d'esse doce
luar de sentimentalismo, que faz a delicia do
coração.
N'essa atmosphera fôra educado Freitas .Ta-
come. Nos combates românticos, da musica c
da poesia, fizera as suas primeiras armas. Se-
guia o exemplo de Garrett no vestir e no pen-
sar, amava o romantismo em si e nos outros.
Não podia nivelar-se com esse grande homem
na riqueza do intellecto, mas, no que podia ser
assimilável, imitou-o. Não podia medir-se lit-
terariamente com Castilho, mas versejou a exem-
plo d"elle em honra das divas do Ohmpo ly-
rico, porque Castilho, com ser cego, glí)rifi-
202
cou na )\ra o feminino da opera, a Agostini, a
Bernardi, a Gazzaniga. Admirador de Hercu-
lano, uma das três entidades gloriosas da tri-
murti romântica, não o imitou nos processos de
vida rústica c meditativa: para solitário não ti-
nha geito Freitas Jacome.
Faz-me pena ver morrer um homem que
soube aproveitar o mundo como elle é e que,
já combalido pela doença e desalentado pela
velhice, poz o seu chapéu, pegou nas suas lu-
vas, e foi para a rua esperar a morte, que não
ousou atacal-o de cara. como a todos o:^ tristes
e a todos os fracos.
Freitas Jacome morreu em plena rua. como
Molière morreu em plena scena, n'um esforço
de coragem.
Lisboa, esta Lisboa que elle tanto amava,
viu-o passar no seu ultimo passeio de vivo mi-
iiutos antes de cahir morto. Mesmo doente, a
vida exterior attraira-o. Em vez d'i pedir uma
tisana ao medico, planeou o seu jant;ir daquelle
dia, saiu, recebeu o ultimo golpe de luz que
cahia do ceu de Lisboa, e morreu ouvindo o
ruido da grande cidade, que fremia em torno
delle.
P> todavia Freitas Jacome era provinciano !
Muitas vezes lhe ouvi dizer que nascera em
Thomar, cujas bellezas naturaes recordava, mas
para um liomem que gostava do mundo, e que
tanto se interessava por elle, o mar de lona de
203
S. Carlos era mil vezes preferível á corrente
authentica do rio Nabão.
*
Fallava-se muito dos irmãos Andrades, que
já tinham cantado no Porto com a Sembricli,
mas, cantar em Lisboa tendo nascido em Lis-
boa, caso era para uma certa curiosidade, direi
mesmo para um certo receio.
Todos nós nos lembrávamos de ter visto es-
ses dois rapazes pôr pela primeira vez chapéu
alto.
Foi outro dia. ainda.
E quando se principiou dizendo que elles can-
tavam bem. havia sempre uma voz judiciosa
que ponderasse :
— Ora adeus ! Se elles ainda outro dia poze-
ram chapéu alto !
Ghristo dissera uma vez uma palavra pro-
funda e sabia, como todas as suas palavras :
que ninguém chega a ser propheta na terra em
que nasceu.
Por que será isto assim ?
K porque, talvez, o que em grande parte
contribue para fazer a gloria dos homens é não
tanto o seu merecimento como a sua lenda.
Desde o momento que a gente apenas co-
nheça, nua e crua. em toda a sua exactidão, a
204
biographia de qualquer homem, vê-o unicameriLC
pelo que elle possa ter de vulgar, de vulga-
rissimo, e julga que tudo o que constitua a in-
dividualidade d esse homem ha de ser vulgar,
vulgarissimo, também.
Mas, quando se dá exactamente o contrario
disto, quando primeiro se conheceu a lenda do
que a biographia, então principiamos a ver o
semi-deus no homem, divinisamol-o ao capri-
cho da nossa imaginação e da dos outros, por-
que a lenda não é outra coisa senão o que
a imaginação de muitos sonha a respeito de
um só . . .
Se nos disserem que, no dia em que Ade-
lina Patti nasceu, um rouxinol foi cantar sobre
o seu berço, como para prophetisar-lhe que
ella seria a rainha do canto, acreditamos facil-
mente.
Ainda mesmo que a Patti tenha nascido no
inverno, ainda mesmo 1 acreditamos que o rou-
xinol cantasse.
Por que ? Porque da Patti o que primeiro co-
nhecemos foi a lenda, e, como já estamos habi •
tuados á lenda, nem mesmo chega a fazer-nos
mossa ouvir cantar um rouxinol no inverno.
Mas dos Andrades o que primeiro conhece-
mos não foi a lenda, loi a biographia. Tanto
peior para elles.
Viessem dizer-nos que quando os dois irmãos
nasceram, seu pae. o tabellião José .lustino, viu
2o5
e ouviu um rouxinol começar a cantar sobre
o berço de um e outro, como se o rouxinol
viesse milagrosamente a vaticinar que o Antó-
nio havia de ser tenor, e que o Francisco havia
de ser bar}tono ! Pois sim ! Conta-lhe d'essas I
— diríamos nós — rouxinoes I quaes rouxinoes
nem qual historia ! o que elle ouviria talvez se-
riam os pintasilgos da casa de jantar. . . Sem-
pre o José Justino tem coisas 1
Depois, todos havíamos conhecido os doisAn-
drades ainda pequenos, todos os tinhamos visto
assistir aos espectáculos do Gymnasio no seu
camarote de família.
Por tal signal que riam a bandeiras despre-
gadas com as pilhérias do Taborda. E todos
havíamos verificado que elles riam como as ou-
tras pessoas. — um pouco estavanadamente como
todos os rapazes da sua edade.
Onde estava n'ísto a lenda ?
Voz podiam elles ter ; lenda é que não ti-
nham.
Pois foi n'estas círcumstancias. realmente dif-
ficeis. que os dois Andrades appareceram no
palco do theatro de S. Carlos.
Receiava-se . . .
Suspeitava-se . . .
Tremia-se ! . . .
Que falta faz uma lenda I
Mas os dois artistas antepozeram o gosto de
cantar na sua terra natal a todas as considera-
2ob
ções pelas reticencias e pelas reservas dos seus
conterrâneos.
E, uma vez resolvidos a cantar, — canta-
ram.
E, depois que cantaram, ticou-se sabendo que
elles sabiam cantar.
xxn'
Comer a dois carrilhos
Numa villa do Alemtejo. cujo nome não vem
para o caso, havia um tendeiro rico e avarento,
que nem de verão nem de inverno se lembrava
de atirar uma migalha aos mendigos que lhe
batiam á porta.
Um engeitado. um pária, um rapazote do si-
tio, tão pobre como ladino, matutou na injus-
tiça da Providencia que dava ao tendeiro um
bello capote de camellão para se resguardar do
frio, ao passo que só lhe dava a elle o frio sem
o capote. Matutou nisto, e propoz-se regulari-
sar a ordem das coisas.
— Uma esmolinha, iio Ambrósio, pelo amor
de Deus. . . Está tanto frio! dizia elle, tiritante,
roçando-se pela hombreira da pona do ten-
deiro.
208
— Sai te d'aqui. maroto, que não quero es-
pantalhos á porta, resmoneava de dentro o ten-
deiro. \'ae trabalhar.
— Não posso, que sou doente... r tenlio
tanto frio, tanto I
— Que te leve o diabo e mais o frio.
No dia seguinte, o rapazito voltava. E. á
força de teimar, o engeitado ia conseguindo po-
der demorar-se mais tempo á porta do tendeiro
sem que o enxotasse já com tanta dureza.
De uma vez o Ambrósio precisou um recado.
— Olha lá, disse elle ao mendigo, já que não
tens que fazer, vae-me ali chamar o José da
Azenha.
K o rapazito foi submissamente atravez o frio
áspero da serra, ao passo que o tendeiro, bem
embrulhado no seu capote de camellão, ficou
sentado ao balcão da loja, olhando vagamente
para os seus domínios.
Ao outro dia o rapaz voltou.
— Tio Ambrósio, disse elle da porta, voce-
mecê não quer hoje algum mandado ?
O tendeiro hcou encantado com este despren-
dimento de um mendigo, que parecia ler o má-
ximo empenho em fazer recados de graça ás
pessoas ricas. Em vez de pedir que lhe pagas-
sem o trabalho da véspera, o bom do rapaz vi-
nha pedir que lhe dessem mais que fazer...
pelo mesmo preço.
— Sim, disse o tendeiro, pois olha. . vae-me
'iOt)
chamar o Joaquim da Rita, que preciso fallar-
Ihe por causa d'uma coisa.
Essa coisa, eram uns juros em atraso.
E o rapaz foi, em mangas de camisa, como
andava, ao passo que o tendeiro, embuçando-
se melhor no seu farto capote, disse lá comsiga
que sempre estava muito frio.
O V^enancio engeitado, como todos o trata-
vam, tornou-se desde então o mais diligente
criado que o tendeiro podia desejar. Sobretudo,
pelo que tocava a soldada, era uma jóia : nem;
vintém. Também elle não pedia. Mas fora a pouco
e pouco captando a sympathia e a confiança do
tendeiro, que primeiro o deixou sentar á porta,,
e depois n'um banco dentro da loja.
Nos dias de mercado, em que havia maior
labutação no estabelecimento, o Venâncio en-
geitado offerecia-se para tudo. elle para ir pren-
der á argola as cavalgaduras, elle para lhes che*
gar umas sopas, elle para varrer as cascas dos
ovos que os piteireiros bebiam, elle para limpar
o balcão e lavar os copos... uma jóia, uma
verdadeira jóia. . . a seco ! . . .
O tendeiro gabava-o : Que era muito bom
rapaz, que precisava muito, e que de mais a
mais não era pedinchão.
O que o tio Ambrósio queria, com toda esta
cantata, era que os freguezes pagassem os ser-
viços que o rapaz lhe fazia a elle, porque de-
Cfcrto pareceria escandaloso que uma vez por
210
outra o Venâncio não recebesse nada. ?vlas como
os freguezes caíam, dando ao engeitado pão e
azeitonas, o tendeiro entendia que ficava uma
coisa pela outra, e achava-se desembaraçado
para fazer do Venâncio seu criado.
Foram passando tempos, e uma vez, que es-
tava na loja o morgado do sitio, um mãos-ro-
tas de generosidade e bizaria, o Venâncio disse
de repente ao tendeiro. entrando na loja :
— O tio Ambrósio, se vocemecé me podesse
dar agora aquellas duas libras que lhe der a
guardar, fazia-me favor.
— O maroto! pois tu deste-me algumas duas
libras ? !
— Dei, sim, senhor, ha dois mezes, na occa-
sião em que estava aqui o da Michaela, que foi
para o Brazil.
— Ah ! maroto, que me perdes ! Pois tu já
tiveste duas libras algum dia ? !
— Tive, sim, senhor, ha dois mezes, e dei-
Ihas a vocemecé para mas guardar por ser um
homem de bem. . .
— O senhor morgado, este maroto está-me a
envergonhar !
— E o tio Ambrósio está-me a roubar, disse
serenamente o Venâncio.
— Sr. morgado, continuava o tendeiro, eu
sou um homem honrado, incapaz de tirar nada
a ninguém.
— Menos a um pobre. . . como eu. Duas li-
211
bra.s ! que eu guardava para uma precisão ! ex-
clamou o Venâncio, e começou a chorar.
Então, a natural bizarria do morgado não
lhe permittiu tolerar aquella scena por mais
tempo. Fosse verdade ou não fosse, era preciso
acabar com aquillo, — uma miséria de duas li-
bras! E o tendeiro envergonhado por tão pou-
co!.. . Não podia sef .
— Rapaz, disse o morgado querendo salvar a
situação, não foi ao sr. Ambrósio que deste a
guardar as duas libras. Não te lembras bem.
Foi a mim . . .
Então o ^'enancio, serenamente, humilde-
mente observou :
— Essas foram outras, sr. morgado.
XXV
o altímc puritano
Era uma vez um velho, o Seabra, que eu de
tempos a tempos procurava na repartição, por-
que tinha uma excellente mão de cursivo para
tirar copias.
Sessenta e seis annos bem puxados, posto
que elle não desse ao manifesto mais de ses-
senta.
— Sessenta — -dizia elle — sessenta já cá es-
tão I
K suspirava.
Não se sabia bem se suspira\a com remor-
sos de estar mentindo ou porque, deitando as
contas á sua vida. achasse que o mais prejudi-
cado era elle. .
Tinha visto muitd coisa, muita politica, muita
patifaria. Nada que vinha de novo o surpre-
2l3
hendia. Batera-se no Aito do Viso. trabalhara
em varias eleições, e havia quarerxta annos que
saboreava, como premio de seus trabalhos c
serviços, um pingue logar de am^anuense cris-
talisado em seiscentos réis por dia.
Conhecera muitos homens importantes, que
tinham lucrado com a collaboraçSo d"el!e, e ou-
tros que taes, para subir ao poleiro, e que por
mais de uma vez lhe haviam promettido tiral-o
d ali para coisa melhor.
Pois apesar de lhe faltarem a todas as pro-
messas, de o trazerem enganado durante qua-
renta annos, elle tratava-os sempre com o mes-
mo respeito, cumprimentava-os muito reverente :
— Sr. conselheiro, criado de v. ex."
Era um praxista. Não cumprimentava nin-
guém sem ter descalçado primeiro a luva da
mão direita, nem saía da repanição sem ir per-
guntar ao chefe, entreabrindo a porta do ga-
binete :
■ — V. ex.*, sr. conselheiro, deterniina mais
alguma coisa ?
E o chefe, que estava conversando coni ami-
gos, muito entretido, nem o ouvia.
Mas elle. insistindo, reperguntava :
■ — V. ex.''. sr. conselheiro, determina mais
alguma coisa ?
E o conselheiro, se d essa vez linha ouvido,
respondia :
— Adeus, Seabra, até amanhã.
214
. Algumas vezes lhe faílei do chefe, para son-
dal-o.
E o Seabra dizia-me :
— E dos novos ; mas boa pessoa.
Cheguei a entender o sentido destas palavras:
é dos novos. Não era praxista. não respeitava
as tradições e os regulamentos da burocracia,
mas o Seabra reputava-o boa pessoa.
Alma generosa, a d esse velho amanuense !
que, em respeito ao seu chefe, que o tratava
simplesmente por Seabra, não ousava dizer
d'elle senão que era dos novos... mas boa pessoa.
Se o Seabra tivesse nascido meio século mais
tarde, não entreabria a porta do gabinete do
chefe para se despedir ; mas, se o fizesse, e eilc
lhe respondesse com um «adeus. Seabra», pes-
pcgava-lhe uma tarca nas gazetas.
Para um praxista como o Seabra, aquelle ho-
mem, que estava dentro do gabinete, conver-
sando com os amigos, era seu chefe, c isso lhe
bastava.
Ora uma das praxes observadas pelo Seabra
era a de consultar sempre, antes de sair da re-
partição, o seu espelhinho dalgibeira.
FJle tinha apenas duas farripas de cabello
branco, muito bem penteadas ao longo da ca-
beça. Mas essas duas farripas mereciam-lhe
todo o cuidado c attcnção. ^'endo-se ao espe-
lhinho, passava a mão por cima das farripas,
bninia-as com os dedos, alisava-as.
213
Depois observava a gravata, que era ordiná-
ria, mas sempre bem tratada, sem sombra de pó.
Por ultimo, segurando o espelhinho comi a
mão esquerda, escovava a sua velha sobreca!-
saca com a m.ão direita.
E feito todo este serviço, depois que o chefe
lhe dizia o «adeus, Seabra», guardava o espe-
lhinho na algibeira, a escova no armário, e se-
guia para sua casa, a passos mesurados, muito
▼agaroso, pela rua do Oiro até Santa Mar-
tha.
Inculcaram-m"o uma vez como tendo excel-
lente letra para tirar copias. Apresentaram-m'o.
Por varias vezes lhe dei trabalho, meu e alheio.
Era pontualissimo na entrega das copias, e ho-
nestíssimo nas contas que fazia. Arredondava
sempre as quantias contra elle. Se. trabalhando
a tanto por pagina, o seu trabalho importava
por exemplo em i^oHb réis, não queria nunca
receber mais de dez tostões.
Gomprehende-se que precisasse muito des-
tas achegas para poder viver, visto que o seu
logar lhe rendia apenas ()00 réis diários.
Todas as noites saía para vir ao Rocio con-
versar numa loja até ás nove horas. O logista
era um homem do tempo d elle. Tratavam-se
por tu. A's nove em ponto, o Seabra despedia-
.se, ia para casa trabalhar até á meia noite, ti-
rar copias a 120 réis a pagina.
Não vi nunca pobresa mais resignada, nem
2l6
mais elegante. Parecia um príncipe arruinado,
a passos mesurados, pela rua do Oiro. Era só
então que elle via o mundo, uma vez por dia.
Mas via-o bem, depois de se ter preparado tam-
bém para ser visto. Não saía da repartição sem
o espelhinho lhe ter dito: «Estás correcto, Sea-
bra.»
Na rua do Oiro encontrava um conselheiro.
Cumprimento respeitoso.
— : Criado de v. ex,'^, sr. conselheiro. •
Não deixava nunca de ver os conselheiros,
■apesar de todo o seu gosto, ao passar na rua
•do Oiro, consistir em ver as mulheres ou, mais
propriamente ainda, em vèr os pes das mulhe-
res.
Se parava uma carruagem á porta de uma
loja, também elle parava, com delicado disfarce,
para ver saltar do estribo uma dama.
Não tinha esta escola moderna dos que fa-
zem tudo descaradamente, parando e obser-
vando com petulância. Nada disso. PJle via o
pé, media-o com os olhos, calculava, pelo pé,
as dimensões da perna, ficava sabendo a côr e
-a qualidade da meia, mas, se alguém, encon-
contrando-se com elle, lhe adivinhava a inten-
ção, disfarçava a olhar para uma vitrine ou a
ler um cartaz.
Só ao cabo de alguns annos de convivência,
€U consegui conquistar a familiaridade precisa
para lhe fallar nos pes das mulheres.
217
— o sr. Seabra pella-se por vêr um pé bem
feito !
— Gosto I . . . gosto !
E d ahi a pouco parou uma carruagem, apeiou-
se uma senhora, que deixou ver, sobre o estribo,
um pe digno da admiração do Seabra.
— Então, sr. Seabra I disse-lhe eu. Repare,
que vale a pena.
— Não I nunca I respondeu elle um pouco atra-
palhado.
Jamais eu o tinha visto, em nenhum caso da
sua vida, tão contrariado como naquelle mo-
mento.
— Aquelle pé — pensei eu — é talvez uma re-
cordação para elle.
Mas reíiexionei. A dama era, relativamente,
nova. Podia ser íilha do Seabra.
— Será talvez íilha ?
E architectei um antigo romance de amor,
que tivesse deixado ao Seabra uma filha natural.
Se fosse assim, eu poderia conseguir talvez
que elle me contasse o seu romance.
Tentei o assumpto.
— Mas então, meu caro sr. Seabra, porque
perdeu esta occasião propicia ?
— Não ! nunca I tornou elle a responder.
Devorado pela curiosidade, insisti :
— Era talvez sua parenta ?
— Qual I disse elle surprehendido. Era a mu-
lher do meu cheíe I
2l8
F^iquei a olhar paraelle. aturdido, assombrado.
O leaidadc da velha burocracia portugueza! que,
cm homenagem á disciplina social, desviava os
olhos para não ver o pc da mulher a quem o
chefe ha^ ia dado a mão ! E tive tentações de o
abraçar, em plena rua do Oiro, exclamando :
«Honradissimo José do Egypto, cujos olhos
largam a capa. quando a mulher do chefe da
repartição expõe o pé á vista do publico I cu
te admiro e te venero ! »
Acompanhando-o pela rua do Oiro adiante,
baraihavam-sc-mc no espirito casos que eu ti-
nha ouvido contar, por mais de uma vez, de
empregados públicos que captavam as boas
graças dos chefes seguindo o processo opposro
ao do Seabra.
Admirável homem I pensava eu, que penteia
as suas farripas para ir ver as mulheres e que,
não obstante querer vèl-as, não perde nunca
de vista um conselheiro, para lhe cumprimen-
tar a carta de conselho, nem a mulher do chefe,
para evitar cumprimentar-lhe o pé !
Uma coisa que entristeceu muito o Seabra
foi o ii' perdendo a Aista, e com cila o gosto de
passar na rua do Oiro. i
Mas, não obstante, não largou nunca o seu
espelhinho. Tinha o mesmo cuidado em alisar
as farripas e escovar a sobrecasaca. Somente
mudou de caminho, tomava pela rua da Prata,
cm vez de segui" pela rua do Oiro.
219
Os seus collegas diziam :
— O Seabra agora está muito caído !
Na repaitieão, eile trabalhava com óculos,
mas na rua nunca os punha.
Um dia insisti com elle em que viesse comigo
pela rua do Oiro.
Pediu-me muitas desculpas, e recusou.
— Já não vejo nadai dizia elle.
— Mas por que não põe os seus óculos ? per-
guntei-lhe eu.
E elle, muito sentencioso. respondeu-me :
— Ku sou de um tempo em que não era per-
mittido confessar nenhuma fraqueza em publico:
nem mesmo a da vista.
De uma vez. como sempre, o Seabra entre-
abriu a porta do gabinete do chefe.
— V. ex.*, sr. conselheiro, determina mais al-
guma coisa ? perguntou.
— Não, Seabra, até amanhã.
O Seabra compoz, diante do espelhinho, as
suas farripas, ageitou a gravata, escovou a so-
brecasaca, fechou a escova no armário.
E metteu pela rua da Prata, na sua teima de
não querer confessar em publico nenhuma fra-
queza : nem mesmo a da vista.
Junto á Praça da Figueira andava-se concer-
tando um cano, a rua estava esburacada.
O Seabra caiu tão desastradamente, que
partiu uma perna. Foi conduzido em maca
ao hospital de S. José. í-ogo que lá chegou,
220
cheio de dores, despiram-no, metteram-n'o na
cama.
E elle, dirigindo-se muito attenciosamente ao
enfermeiro, disse-lhe :
— Quer ter a bondade, sr. enfermeiro, de re-
commendar todo o cuidado com o meu fato, c
de me dar um espelhinho que está na algibeira
das calças ?
Passados dias fui visital-o, levei-lhe um ro
mance para que elle se entretivesse, lendo-o.
— Não posso, disse-me elle. Deixei os ócu-
los fechados na repartição.
XXVi
Os príncipes do Peru
Vem já ahi caminhando ao nosso encontro a
bella festa do Natal. Não tarda nada. Os bate-
dores, a guarda avançada, chegaram com a
sua costumada pontualidade. Cá temos o frio
•e o peru passeiando ambos pelas ruas de Lis-
boa, um muito afiado c cortante, o outro glu-
glu jante e luzidio.
Esta solemne festa do anno tem o condão de
.sorrir a todas as idades, de lisonjear todos os
paladares^ de encantar todas as imaginações.
As creanças pensam, cheias de jubilo, no seu
Presépio, na sua arvore do Natal, na bonecada
e nos bolos.
_0s namorados estão já arregalando o olho
amoroso para a missa do (xallo. que é boa capa
para entrevistas hombro a hombro, de mãos
dadas, emquanto se tinge rezar muito devota-
mente ...
222
Os velhos, que são ordinariamente gulosos,
começam a afinar o olfacto para descobrir, nas
lojas de confeiteiro, os mais saborosos petis-
cos.
Os ambiciosos de qualquer idade e sexo so-
nham com a grande loteria de Madrid, esse
ideial de felicidade que todos os annos lhes faz
negaças á imaginação fogosamente crédula.
As beatas estão já antegostando a delicia de
oscular mysticamente as carnes rosadas e divi-
nas do pequenino Jesus.
No meio de todo este coro de alegrias só
uma nota discordante poderia soar, mas o peru,
a principal victima do Natal, não tem decerto
a consciência do perigo que a esta hora esta
correndo, — felizmente para elle.
Pobre peru I Ahi o vemos fazendo descuido-*
sãmente a sua ultima avenida, dando o seu ul-
timo passeio de condemnado á morte, sem pen-
sar em disposições testamentárias, tão felizes
são os perus !
As pessoas do norte do paiz não tecm, como
o lisboeta, a tradição do peri'i do Natal. No Mi-
nho, na Beira, em Traz-os-Montes pensa-sc
agora em mil guloseimas, que não tardarão '«
•encher de aromas a cosinha e a mesa, mas o
peru setemptrional não tem que receiar-se da
faca do cosinheiro, porque a tradição local não
exige como victima senão a gallinha gorda eo
gallo nédio.
223
Eis aqui a rasão por que um rapaz da Ponte
da Barca, que, ha annos, andava estudando em
Lisboa, ficou muito surprehendido com o pe-
dido que lhe fizera a mais astuciosa das suas
namoradas lisboetas.
Ella era filha de um servente de repartição,
creio eu, que vivia cheio de ditficuldades, por-
que a mulher lhe havia dado uma prole nume-
rosa: três filhas e quatro filhos.
. Emquanto todos os sete foram pequenos, era
com profunda tristeza que o marido e a mulher
viam passar na rua, pelo tempo do Natal, os
bandos de perus luzidios e gluglujantes. Não
podiam chegar-lhes, elles I Dez tostões não era
quantia que um servente de repartição, cheio
de filharada, podesse dispender. Isto ralava-o.
Mas o pobre homem dizia muitas vezes á mu-
lher:
— Deixa crescer a raparigada, e verás que
não nos faltarão perus.
A mulher sorria com desalento e replicava :
— Pensas talvez que estão á espera delias
três príncipes muito ricos, que hão de ser nos-
sos genros ? I
— Não é isso. Eu cá tenho a minha ideia.
Deixa crescer a raparigada, e verás.
Os annos foram passando, e as ires filhas
do servente cresceram, principiaram a revelar
um palminho de cara menos mau. A mais nova
-tinha quinze annos; a mais velha dezcsete.
224
— K então os três príncipes do Peru r per-
guntava a mulher ao marido, fazendo um ca-
lembour inconscientemente.
— K agora. Vae começar este anno. cá pelo
que cu tenho observado. Elles ahi estão a ba-
ter á porta . . ,
— Os príncipes ?
— Não. os perus.
— Fia-te n'essa. pateta !
— Ora dize-me uma coisa: Teem ou não
teem já as raparigas o seu derríço ?
— Sim — acho que teem. E d'ahi, homem ?
— D'ahi. tem paciência, e espera. Eu logo
vou conversar com as raparigas, porque todo
o bom pai precisa aconselhar ajuizadamente as
suas filhas.
O Natal estava por um fio, chega não chega.
Fazia frio e luar. O estudante da Ponte da
Barca não fora a ferias, porque naquelle tempo
ainda o caminho de ferro não tinha encurtado
as distancias.
O rapazote. achando-se sem obrigações es-
colares, principiou a entregar-se exclusivamente
á cultura de namoros desde pela manhã até á
noite.
Ora ia vêr uma das suas bellas, ora ia c\-
trapiscar a outra, mas a rtlha do servente, a
dos quinze annos, era de todas as namorada»
a que mais o prendia talvez, não só por esse
orgulho natural de ter inspirado um pHmeiro
22D
amor, como também porque o estudantelho era
poeta e a rapariga pareda-lhe romântica.
Romântica, sim, senhor! Onde fora ella apren-
der isso ? Quem o poderá dizer ! Foi uma qua-
lidade que derivou talvez do fluido magnético
dos seus olhos negros e grandes. O pae era
tudo o que podia haver de mais prosa em ser-
vente de repartição. A mãe era digna esposa
de seu marido segundo os cânones e a prosa.
As irmãs só desejavam poder um dia comer
bem e dormir melhor. Mas o rapariguinha dos
quinze annos tinha suas j'creríes. contemplava
o azul do céu, gostava de ver o luar, o que o
pae e a mãe muito extranhavam classificando de
telhuda a filha mais nova.
Pois o Natal estava por um fio, chega não.
chega, como eu ia dizendo ainda agora.
O servente ressonava já ha muito tempo em^
competência philarmonica com a cara metade.
As outras duas filhas sonhavam talvez com al-
guém que lhes desse um vestido e um cama-
rote, mas a Mariquinhas estava á janella, en-
volta no véu azul do luar, único de que podia
dispor, a conversar idillios com o seu estudan-
telho do Minho.
— Tu és-me infiel, dizia-lhe ella.
— Eul respondia elle. Eu adoro-te, Mariqui--
nhãs, e só penso em poder casar comtigo logo
que seja alferes de cavallaria.
— São palavras . . . Não sentes o que dizes !'
226
— Por que duvidas de mim ?
— Porque tenlio a certeza de que o teu co-
ração não é sincero. Só te lembras de mim
quando me estás fallando.
— Também isso são palavras, apenas.
— Nunca tiveste uma pequena lembrança que
me desses, uma d*essas apreciáveis bagatellas
que valem mais pelo significam do que pelo cus-
tam. Agradece-se, estima-se a intenção, princi-
palmente. . .
— E que gostarias tu que eu te oíferecessc ?
Um ramo de tiores ? . . .
(Foi a coisa mais barata que lhe lem.brou).
— Logo vi que havias de escolher uma coisa
que durasse tão pouco como o teu amor. Eu
gosto immenso de Hores, mas tenho má fé com
ellas no amor. São como que o presagio de que
tudo acabará de pressa. As flores duram tão
pouco !
— Um leque, Mariquinhas, um leque ? . . .
(Lembrou-se de ter visto na rua do Oiro uns
que custavam oito vinténs).
Ella replicou indignada :
— Eu não sou mulher que me requebre de
leque na mão. Não sou d'essas mulheres le-
vianas que andam pela rua a fazer fogo de vis-
tas com a ventarola.
— Mas eu não te quiz oífender, Mariquinhas.
— Talvez não quizesses. Eu sou uma rapa-
riga honesta, que vivo á sombra de meus pães,
227
e que os adoro. Pésa-me de que elles sejam
tão pobres e tão bons. Sabes no que eu penso?
Em proporcionar-lhes um dia de Natal agradá-
vel, como elles já não tiveram ha muitos annos...
— E como seria isso ?
— Fazendo-lhes a surpreza de uma boa meia
noite.
— Como ?
— Comprando-lhes um peru sem o elles sa-
berem.
O estudante sentiu uma' punhalada no cora-
ção; duas punhaladas é que foram.
Primeira punhalada : Então elía, tão român-
tica, tão sonhadora, pensa agora num peru ?
Segunda punhalada : Onde hei de eu ir ar-
ranjar dinheiro para comprar o peru ?
Mas, emfím, era preciso não fazer má figura
deante da Mariquinhas.
— Socega, querida. Has de fazer essa agra-
dável surpresa a teus pães.
— Quando ?
— Amanhã... decerto, visto que depois d'áma-
nhã é véspera de Natal.
— Ah! como sou feliz! exclamou a Mariqui-
nhas.
E o estudante, quando sahiu d'ali. ia dizendo
comsigo :
— Ella é muito exigente para um estudante,
mas, em compensação, parece ser muito bòa
filha.
228
No dia seguinte foi elle ao Rodrigues do Pote
das Almas vender um Magnum Lexicon. umas
grammaticas-. velhas, um Monteverde em menos
mau estado. Apurou ao todo mil e duzentos.
Comprou ao principio da noite, na Praça da Fi-
gueira, um perii por ict^ioo, e ficou-lhe ainda a
tinir na algibeira o bello tostão para cigarros e
café.
A meia noite, eil-o debaixo da janella da Ma-
riquinhas, de peru debaixo da capa. Momentos
depois o peru subia suspenso por um cordel.
e a Mariquinhas era feliz.
As outras h^más dormiam, mas estariam so-
nhando ainda com alguém que lhes podesse dar
um vestido e um camarote : Não. Sonhavam, o
que era verdade, que tinha cada uma um peru.
que ellas pediram aos namorados, por conse-
lho do pae.
Foi assim que o servente de repartição, como
havia planeado, pode ter peru na noite de Na-
tal, peru no dia de Anno Bom. peru no dia
dos Santos Reis. Três perus a três filhas, — por
cabeça.
E sentado á mesa, muito alegre e palreiro,
ouvindo repicar os sinos para a missa do gallo.
dizia elle á mulher :
— Ahi vem sua alteza o primeiro príncipe do
Peru. Os outros dois estão ainda em palácio.
Não te dizia eu que elles haviam de chegar?
XXVII
A poesia da Servis
Perguntaram um dia a Miçkiewiez : «O que
são os sérvios ? »
E o grande poeta da Polónia respondeu: «Um
povo destinado a ser o bardo e o menestrel de
toda a raça slava.»
J. Reinach sae em abono desta opinião con-
lirmando-a: «O caracter sérvio é essencialmente
poético, e a sua poesia não se traduz apenas
nos pesmas, nos hymnos nacionaes que acom-
panham na ^'//-/c7, encontra-se ainda na religião,
nas cerimonias do culto, nas festas, na organi-
sação da familia, nos casamentos, na coragem
heróica dos combates, nos sonhos de uma vida
melhor. Se queremos procurar a causa doeste
caracter dos slavos, devemos attentar no páiz
que elles habitam. O povo que tem a Servia
por pátria, não podia deixar de ser, como disse
Miçkiewiez, senão um povo de bardos e me-
2JO
nestreis. e, nas horas de perigo nacional, um
povo de hcroes. As florestas sombrias e pro-
fundas, as quebradas dos valles, as altas mon-
tanhas com as suas cristas inaccessiveis e os
seus bosques de castanheiros, os Schumadia,
as margens accidentadas dos rios, toda essa
natureza selvagem e pittoresca contém e inspira
thesouros de poesia.»
Na familia servia o sentimento da fraterni-
dade é talvez o mais desenvolvido, "Não ha
uma joven servia sem irmão» diz uma velha lei.
Quando a noiva deixa o lar da sua familia, é
pelos irmãos que ella chora lagrimas semelhan-
tes a baQ;os que se destacassem de um cacho ma-
duro. A canção do desgraçado lowo diz as-
sim :
«O moço lowo cahiu. porque o sobrado da
casa abateu, e partiu o bro 'o direito.
«Quem o curará ? Só a feiticeira da monta-
nha, que conhece a fundo a virtude das plan-
tas; mas a feiticeira exige muito. Pede á mãe
a sua branca mão direita ; á irmã as tranças do
seu cabello; á mulher o seu coUar de pérolas...
«A niãc dá, com a melhor vontade, a sua
branca mão direita, a irmã dá as tranças do seu
cabello, mas a mulher recusa o seu collar de
pérolas...
«Agasta-se a feiticeira que vive na montanha,
c lança veneno nos alimentos de lowo. lowo
morre com grande pezar de sua mãe.
23 I
«Ouvcm-sc então gemer trez cucos: um que
não deixa Jamais de lamentar-se ; outro que só
se faz ouvir pela manhã e á noite ; e o terceiro,
que somente geme quando lhe apraz.
«Qual é o que não deixa jamais de ouvir-se ?
A desgraçada mãe de lowo. O que somente se
ouve pela manhã e á noite ? A irmã de lowo,
profundamente afliicta. E o que só geme quando
lhe apraz? É a joven viuva de lowo.»
O casamento entre os sérvios é livre, o re-
sultado do mutiius consensus. O rapaz apresen-
ta-se em casa do pae da namorada, a pedir-lhe a
mão da filha. Obtida que seja. dá lhe o annel, pe-
nhor do casamento, porque um antigo pesma
diz: «Gomo testemunho de amor. dá-se um
pomo ; como perfume, um mangerico ; — mas o
annel só se dá para casar.»
Se a donzella quer recusar o noivo, arre-
messa lhe o pomo á cara. dizendo: «Não te
quero a ti nem ao teu pomo.»
Excepcionalmente, algumas vezes, os pães
procuram para suas tilhas casamentos ricos.
Os pesmas protestam contra esta excepção. A
pobre rapariga caminha descalça sobre o gelo,
tiritando, e o irmão pergunta-lhe : «Tens frio
nos pés, querida irmã ?» E ella responde: «Nãol
não tenho frio nos pés. meu irmão, mas sinto
um frio glacial no coração. Não é a neve
que me molesta, é minha mãe que me quer dar
por esposo aquelle que eu aborreço.» Uma ou-
202
tra canção diz: «Vivia na montanha uma don-
zella, e toda a montanha era illuminada pela
belleza de seu rosto. O meu rosto, dizia ella,
ó meu único cuidado, se eu soubesse, meu branco
rosto, que um velho marido te devia beijar, oh !
iria á montanha verde e colheria o absyntho,
espremeria o seu suco e lavar-te-hia com elle,
meu rosto, a fim de que o velho, quando te
beijasse, lhe sentisse o amargor. Mas se eu
soubesse, meu branco rosto, que um joven ma-
rido havia de te beijar, oh I então iria ao verde
jardim, colheria todas as rosas e das rosas es-
premeria o suco para te lavar, meu branco rosto,
a fim de que o joven noivo, quando te beijasse,
ficasse perfumado do teu perfume.»
O casamento, revestido ainda de todos os sym-
boios primitivos, exige que os irmãos e amigos
da noiva a acompanhem á sua nova casa, a
cavallo, ao som de musica, entoando cânticos
e dando tiros. As irmãs e as cunhadas vem en-
tão ao encontro da noiva, que se adeanta pqra
ellas: apresentam-lhe uma creança que ella deve
vestir, bem como deve offerecer aos convidados
pão, vinho e agua. So quando dá á luz é que
a noiva passa a ser considerada como fazendo
parte da familia. Recebe um dote. que os sér-
vios chamam persísi. Quando a noiva já não
tem pae, e o irmão que deve pagar o dote,
sempre fixo. e de que o marido não pode fa-
zer uso. Mas, circumstancia verdadeiramente
■i:»:)
notável I quando uma rapariga casa sem ai icto ■
risação dos pais, a sua união é considerada le-
gitima, pois que tem por base o amor.
Assim é que diz uma canção :
«Eu queria pedir a tua mão, mas teu pae
não me quer para genro, e eu só não te posso
roubar. Escuta as minhas supplicas, vem para
mim, que t"o peço eu. — Bello amigo, é inútil
pedir a minha mão ; meu pae recusar-ta-ha.
Não penses em roubar-me, porque tu o paga-
rias, meu bem amado. Tenho nove irmãos e
numerosos primos ; quando elles montam nos
seus cavallos negros, com as suas finas espa-
das na mão, só vel-os causa horror. Não quero
que tu morras combatendo com elles ; e se fu-
gisses, não mais te poderia ouvir. Amo-te. Gha-
ma-me, eu irei voluntariamente lançar-me nos
teus braços.»
Os funeraes são, entre os sérvios, tão poéti-
cos como o casamento. Quando morre alguém,
os parentes levantam grande alarido ; os ho-
mens saiem descobertos durante alguns dias ;
as mulheres deixam liuctuar os cabellos e os
vestidos. Os homens choram silenciosamente,
mas as mulheres, desde o dia da morte até ao
do enterro, não cessam de naritsati, quer di-
zer de cantar em voz alta a sua dôr, pranteando
a sorte do morto e dos seus.
«Ai! ail trava-se na minha alnia um terrível
combate I Volto os meus olhos para o anjo lu-
234
minoso de Deus, c exclamo : Fazei com que a
minha vida seja curta. Mas Deus não me escuta.
E eu. ai 1 contemplo o oceano da vida. de que
as más paixões são as vagas, e em vão desejo
abordar a porto e salvamento.»
Ses[ue-se a cerimonia dos funeraes, sendo o
esquife do morto conduzido ao cemitério pelos
amigos. Quando o féretro desce á sepultura,
um sacerdote lança-lhe em cima um punhado
de cinzas, e as mulheres recomeçam a prantear
longa e tristemente. Cada anno ha um dia con-
sagrado aos mortos: é o Zaduchnitzi.
Os sérvios, como diz Theophilo Lavallée,
formam a população christã mais importante
da Turquia, pela dignidade e gravidade do seu
caracter, pela sua coragem, bondade, generosi-
dade, costumes patriarchaes. amor á pátria,
usos e religião.
A festa dos ramos é a primeira do anno:
celebra o advento da primavera. As raparigas
juntam-se n'uma collina e cantam o hymno da
resurreição de Lazaro: «A creança cresce, o
homem vive, o velho morre n"esta ideia: quando
virá o império sérvio?» No dia seguinte, antes
de nascer o sol, vão buscar agua e cantam em
coro: «As pontas do veado tornam a agua turva,
mas o seu olhar torna-a clara e limpida.»
Esta canção deve ser interpretada n um sen
tido mythico.
O veado, cujas pontas tornam a agua turva,
•235
é o inverno, o tempo brumoso. Gubernatis, fal-
l,ando do veado mythico, diz-nos que ha o veado
negro, que symbolisa o céu coberto de nuvens,
e o veado luminoso, que figura em muitas len-
das da índia. Ora n'esta canção servia, o olhar
do veado, que torna as aguas claras e límpidas,
deve ser considerado como o triumpho alcan-
çado pela primavera sobre o inverno.
Reinach diz que as raparigas servias saúdam
no regresso da primavera a volta dos tempos
felizes para o amor. entoando canções notavel-
mente simples, taes como esta: «Dois amantes
beijaram-se na campina, e julgavam que nin-
guém os teria visto. Mas a campina viu-os, e
contou tudo ao branco rebanho, que o repetiu
ao pastor ; o pastor disse-o ao viandante, o
viandante ao marinheiro, que por sua vez o
contou á barca. A barca foi dizel-o ao rio, e o
rio á mãe da rapariga.» Os leitores de um li-
vro meu, Atrave- do passado, conhecem já a
ideia fundamental d'esta canção encantadora,
que se encontra também na Grécia, e que tem
sido glosada por distinctos poetas, entre os
quaes o allemão Ghamisso.
No fim de abril realisa-se a festa de S. Jorge,
um dos patronos da Servia. As mulheres vão
ás montanhas colher hervas e tlores, que lançam
depois ao rio, onde no dia seguinte se banham.
E' assim pois que os sérvios, como os outros
p,ovos slavos, celebram o advento da primavera.
200
Vem immediatamente a festa de Kralitza', cni
que as donzellas festejam Lélio, a ^'énH.s da
Servia, a deusa do amor. . '■'■
Segue-se o S. João, o tempo da canicula, em
que, como diz a lenda, o sol parou outrora três
vezes Se o anno tem corrido seco. proce'de-sc
a uma cerimonia verdadeiramente original: urfia
rapariga, cujos vestidos consistem apenas numa
ligeira túnica de folhas e Hores. percorre, acom-
panhada por outras, os campos, que vae. asper-
gindo com um regador, pedindo ao céu uma
chuva fecundante, invocando o sol e a lua-:
iiTako mi Sunt\a! (o sol) Tako mi Semlie <a
lua)! Que o sol seja comigo! Que a lua nic
proteja! Ligeiras corremos atravez da aldêa ;
possam as nuvens do ceu, mais rápidas do que
nós, beneficiar os prados e as vinhas. Tako
mi Semlie.» Quando, pelo contrario, o anno
tem corrido chuvoso, os habitantes do campo
imploram o auxilio de Elio, que não é senão
o sol.
As festas domesticas na Servia téem um ca-
racter deliciosamente intimo. Os viajantes, os
estranhos são sempre recebidos com amável
hospitalidade. O chefe da familia, quando ó re-
pasto se realisa, entoa a canção de Batschka :
«Três pássaros desferiram voo atravez do es-
paço, levando cada um no bico um presente
precioso : o primeiro, um grão de trigo ; o se-
gundo, um bago de uva; o terceiro a alegriw
2-37
c a felicidade. O grão de trigo caiu sobre a pla-
nície de Batschka, o bago de uva sobre as mon-
tanhas de Gore ; possam sobre a nossa mesa
cair a alegria e a felicidade.»
Mas de todas as festas domesticas da Ser-
viiíl, o Natal é a mais solemne.
Ao fim da tarde, terminado o trabalho, o pae
de familia vae á Horesta cortar um carvalho
novo e, pondo-o ás costas, volta para casa.
Quando entra, exclama :
«Boa noite! feliz Natal!»
• E a familia responde: «Que Deus te proteja,
e te dê boa colheita!» Depois, o carvalho (ba-
dujak) é posto no fogo. No dia seguinte, a gente
moca percorre a povoação a cavallo, disparando
tiros de pistola. E o pae de familia. appare-
cendo á janella. atira para a terra alguns grãos
e sementes, dizendo : «Natal ! Natal ! Christo
nasceu.» Ao que os moços respondem no es-
tylo do Evangelho : «Em verdade nós vol-o di-
zemos, Christo nasceu.»
Então, todas as familias se juntam em torno
do carvalho que arde, açoitando-o com correas;
e quando as faiscas saltam, exclamam : «Tan-
tas faiscas, quantos bois. cavallos, cabras, car-
neiros, porcos, abelhas e bênçãos do ceu tere-
mos este anno.»
A festa do Natal dura três dias. E até que
que entre o novo anno, toda a gente se saúda,
dizendo: «Christo nasceu!» e respondendo:
238
«Em verdade, nós vol-o dizemos, Christo nas-
ceu ! »
A universalidade das crenças populares é real-
mente um facto admirável I
Assim como os sérvios tem o hadujak. temos
nós, nas provincias do norte, e citaremos para
exemplo o concelho da Maia, arrabalde do Porto,
o carvalho do Natal, que também se pÕe no fo-
go e que no fim da noite se guarda para tornar
a accender-se em occasião de tempestade.
A Servia é decididamente o paiz das can-
ções. Todos os seus habitantes cantam. Em
cada casa ha uma gu^la, espécie de mandolim
ou guitarra, que tem apenas uma corda de cri-
na. Não ha festa sem canção e sem gUylã. A
Europa occidental conhece de varias imitações
ou traducções muitas das poesias populares da
Servia. Prosper Mérimée, tendo aprendido cin-
co ou seis palavras de slavo. compoz em quin-
ze dias um pequeno romanceiro, que attribuiu
a um imaginário tocador de giiyla, Jacintho Ma-
glanovitch.
Na poesia servia relevam a riqueza das ima-
gens, a ingenuidade dos sentimentos, o ardor
do patriotismo. A estrophe, sempre melodiosa,
é geralmente curta; e o acompanhamento da
g2íyhi apenas a toma nos últimos versos. Os
cantos nacionaes são compostos em trocheus-
as canções de amor admittem os dactylos.
No estudo do poesia servia ha a distinguir
2%
OS pesmas heróicos que os homens acompanham
na gHyla, e as canções do lar, que as mulhe-
res e as raparigas entoam.
Foi só muito tarde que os sérvios começaram
í? escrever os seus pesmas. Em conformidade
com a theoria de Viço, a poesia, entre elles, pre-
cedeu a prosa, que foi definitivamente fixada
por Obradwitch, depois da primeira metade
do século passado.
Os slavos do sul só modernamente attingi-
ram na litteratura a forma dramática. Annibal
Lusitch foi quem primeiro escreveu para o
theatro, começando elle e os seus imitadores
per seguirem, o rasto dos poetas italianos, Me-
tastasio, Alfieri, Guarini. Foi Estevão Popovi-
tch quem comprehendeu que os assumptos na-
cionaes convinham ao theatro. Entre as suas
producçÕes merece especial menção a comedia
Belgrado na antiguidade e em nossos dias, que
teve um grande successo nos theatros provisó-
rios levantados em Agram e Belgrado. Popo-
vitch foi pois o Eschylo da Servia ^ Martinho
Ban, auctor dos dramas Lazaro e Meirima, pôde
ser considerado o Sophocles sérvio. A Meirima
tem por assumpto o amor de um christão por
uma mussulmana, assumpto que, posto fosse
tratado por Voltaire e Byron, oíferece comtudo
um certo encanto de execução.
Entre as creações phantasticas da poesia
popular da Servia devem contar-se as pilas, a
240
que chamamos feiticeiras, á falta de melhor
vocábulo, mas que são creaturas mysticas. que
presidem aos votos do povo e que pairam si-
lenciosamente sobre a existência dos homens.
São ligeiras e bellas. diz Reinach : o vento brinca,
passando, com os seus longos cabellos. Habi-
tam sobre as colinas, perto dos regatos, sobre
o Lotchen, cujo cimo, onde a tempestade ruge
incessantemente, é coberto de neves eternas.
Mas se as vilas são os génios bemfasejos da
Servia, existem, em opposição a ellas, espíri-
tos maléficos, que trabalham pela perdição do
género humano. São os rictchi-cs que. íluc-
ctuando nos ares. surprehendem os pastores
adormecidos, abrem-lhes o peito com uma vara
magica, fixam o dia da sua morte, comem-lhes
o coração, fecham de novo o peito das victi-
mas e desapparecem.
Quando os pastores acordam, sentem-se aba-
tidos, doentes. E pouco depois expiram.
Mas uma das creações mysticas que mais
impressionam a imaginação slava é o vampiro,
que se alimenta da carne dos cadáveres e do
sangue dos vivos.
Entre os typos dos pesmas heróicos, o mais
notável é Marko, o Cid e Roland da Servia.
Mas. percorrendo o cancioneiro sérvio, são
as canções de amor as que mais nos encantam.
Terminaremos este ligeiro artigo com um.a can-
ção amorosa, que rompe dos lábios de uma
24l
rapariga: «O tchardak (\tiio), um fogo abraza-
dor me devora: ninguém, durante a noite, está
á minha direita ou á minha esquerda ; revolvo
com o meu corpo a coberta, e com a coberta
as, minhas dores.» E o namorado responde lhe:
«O Mileva, assenta-te a meu lado. Nós não so-
mos selvagens, nós sabemos onde se deve bei-
jar: as viuvas entre os olhos, as solteiras entre
os peitos.»
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índice
Pag.
I o primeiro mosquito -5
II A comedia das praias 1 1
III N'uma praia solitária 20
IV Os frequentadores das praias 3o
V Casos 38
VI A' volta dos pés da imperatriz 56
VII Loucura alegre *j5
VIII A mascotte 73
IX Era em abril 80
X A felicidade e a camisa 85
XI Morte de um gentleman 91
XII A «season« lisbonense em i883 100
XIII Gostos não se discutem to6
XIV Peccadilhos métricos 114
XV Os amáveis 1 3o
XVI A sepultura d'um traidor iSy
XVII A caminho do Alemtejo 148
XVIII A mulher 1 35
XIX O carnaval i63
XX O chapéu 171
XXI Os antípodas 181
XXII As uvas 190
XXIII Pessoas conhecidas de vossas excellencias. 197
XXIV Comer a dois carrilhos 207
XXV O ultimo puritano 212
XXVI Os príncipes do Peru 221
XXVII A poesia da Servia 229
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Pag. 69, lin. 9, onde se IG — um bilhete Golyseu —
leia-se — um bilhete do Golyseu.
Pag. 104, lin. 3o, onde se lê — A' vista de um traba-
lho — leia-se — A' custa de um trabalho, etc.
Pag. 142, lin. 23, onde se lê — deixaria na primeira —
leia-se — deixaria ir na primeira, etc.
Pag. i55, lin. 2, onde se lê — havido acontecimentos —
leia-se — havido acontecimento, etc.
Pag. 176, lin. 16, onde se lè — ^ E como — leia-se — E'
como., etc.
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