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Full text of "Manhãs de Cascaes"

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^LBERTO  piJVlEfíTEL 


\^?2y^ 


W  inn.  LosiKH» .  n.  rutineiAi  ífB*ixo3t 


ALBERTO  PIMENTEL 


Manhãs  de  Cascaes 


^^.FERIN&C* 


1893 

LISBOA 


Digitized  by  the  Internet  Archive 

in  2010  with  funding  from 

University  of  Toronto 


http://www.archive.org/details/manhsdecascaesOOpime 


o  primsiro  mosquito 

Chegou  o  inimigo. 

Ouvi  hontem  o  seu  clarim  vibrante  resoar 
sobre  a  minha  cabeça  em  som  de  euerra. 

Era  a  guarda  avançada  do  grande  exercito 
alado  do  verão,  hunos  do  ar  que  invadem  os 
nossos  quartos  de  cama  zombando  perfidamente 
de  todas  as  nossas  precauções  e  dilacerando- 
nos  a  carne  com  o  seu  pequenino  áspide,  agudo 
^omo  um  punhal. 

• — Ah!  disse  eu.  E  o  primeiro  mosquito  que 
■chega ! 

E  estremeci  de  horror. 

E  que  se  ha  animal  n  este  mundo  que  me  in- 
■commode,  que  seja  incompaiivel  comigo,  esse 
•animal  é  o  mosquito, — o  pequeno  mosquito, 
um  dos  mais  sanguinários  inimigos  da  humani- 
•dade. 


Uma  vez,  em  certa  praia,  um  amigo  meu 
mostrou-me  o  seu  quarto,  cujas  paredes  esta- 
vam revestidas  de  uma  estranha  pintura, —  ara- 
bescos de  sangue^  o  sangue  da  victima,  o  sangue 
delle.  o  desgraçado! 

—  Entram  os  mosquitos,  dizia-me  o  meu  po- 
bre amigo,  e  roubam-me  o  que  eu  tenho  me- 
nos, roubam-me  o  sangue.  Eu,  não  podendo 
repellir  a  aggressão,  porque  essa  praga  de  mos- 
quitos vem  aos  centos,  adoptei  a  estratégia  de 
os  deixar  ccvarem-se  á  vontade.  Engordam  e 
3giboiam-se,  ficam  obesos  e  inertes.  Então  soa 
a  hora  da  minha  vingança,  pego  n'um  sapato  e 
atiro-me  a  elles  como  S.  Thiago  aos  m.ouros. 
Pál  pál  sapatada  para  a  direita,  sapatada  para 
a  esquerda,  aqui  se  esborracha  um,  ali  se  es- 
tampa outro,  a  parede  salpicada  de  sangue  pa- 
rece um  crivo,  um  mappa,  e  é  assim  que  eu, 
durante  um  mez,  tenho  conseguido  ornamentar 
o  meu  quarto  com  esta  estranha  decoração, 
arabescos  de  sangue  roubado  ás  minhas  pró- 
prias veias.  O  que  está  ali  na  parede  sou  eu, 
depois  de  ter  atravessado  pelo  interior  de  um 
mosquito.  Centenas  d'elles  me  tecm  sugado, 
com  o  meu  sangue  teem  vitalisado  os  seus  ór- 
gãos sonoros,  porque  cada  mosquito  traz  ás 
costas  uma  fanfarra  estrondosa,  quti  nos  ensur- 
dece com  o  tinido  dos  seus  metaes.  Tenho 
n'aquella  parede  o  meu  sangue,  e  tenho  no  meu 
corpo  a  minha  anemia:  o  traço  de  união  entre 


7 


aquillo,  que  é  a  parede,  e  isto,  que  sou  eu,  é  o 
mosquito. 

Ha  banhista  que  prefere  dormir  na  praia,  so- 
bre um  banco  de  pau,  ou  mesmo  sobre  a  areia, 
a  dormir  em  casa  sob  a  tyrannia  dos  mosqui- 
tos. 

Um  sujeito  encontrei  eu  já,  que,  accordando 
de  madrugada  meio  devorado  pelos  mosqui- 
tos, sahiu  para  o  meio  da  rua, — com  o  resto 
do  corpo  que  elles  lhe  tinham  deixado  de  far- 
tos. 

Logo  que  amanheceu  e  a  prim.eira  tenda  da 
praia  se  abriu,  elle  correu  a  escrever  sobre  o 
balcão  a  seguinte  carta  ao  senhorio,  que  era 
um  dos  pescadores  mais  ricos  da  terra: 

«111.™°  sr.  José  Peixeiro: — Sendo  v.  s.*  um 
dos  homens  mais  considerados  d'esta  locali- 
dade, regedor  de  facto  e  barão  em  perspe- 
ctiva, muito  me  admira  que  commettesse  a  burla 
de  arrendar  a  sua  casa  a  duas  familias  ao  mesmo 
tempo.  Quando  me  entregou  a  chave  da  porta, 
fez-me  suppôr  que  não  havia  lá  dentro  mais  in- 
quilinos. Com  eífeito,  assim  me  quiz  parecer 
quando  entrei,  porque  a  única  pessoa,  e  essa 
inoftensiva.  que  encontrei,  foi  o  cavalieiro  D^ 
Fuás  Roupinho  a  pique  de  despenhar-se  do  ro- 
chedo da  Nazareth.  É  realmente  um  quadro 
muito  bonito,  que,  longe  de  me  incommodar, 
me  deleitaria.  Aposentei  a  minha  familia,  a  mi- 


nha  mulher  e  os  meus  filhos,  e  eu  preferi  para 
meu  uso  o  quarto  onde  se  acha  o  quadro  do 
Milagre  da  Na:{areth,  porque  sou  amador,  e 
falla-se  mesmo  em  mim  para  inspector  da 
Academia  de  Bellas  Artes.  Deitamo-nos.  Eis  se- 
não quando,  outra  família  de  inquilinos  surge 
como  por  encantamento.  Primeiro  appareceu  o 
pae,  depois  a  mãe,  depois  os  meninos,  depois 
as  meninas,  depois  os  meninos  dos  meninos, 
depois  as  meninas  das  meninas,  depois  os  bis- 
netos, depois  os  tresnetos,  depois  os  tetranetos, 
uma  alluvião  de  individuos,  uma  phalange,  um 
exercito  e,  sem  respeito  nenhum  pelo  nosso 
somno,  começaram  a  conversar  em  voz  alta,  o 
pae  com  a  mãe,  os  manos  com  as  manas,  os 
tios  com  os  sobrinhos,  os  primos  com  as  pri- 
mas. Calei-me  a  ver  no  que  aquiUo  parava.  Mas 
não  parou.  Depois  toda  essa  magna  caterva  teve 
"vontade  de  ceiar,  foi  á  dispensa,  foi  á  cosinha, 
e  como  não  encontrasse  nada  para  comer,  re- 
solveu comer  a  minha  familia  inteira.  Participo- 
Ihe,  pois,  que  estamos  comidos,  —  duas  vezes: 
pelo  senhor  e  por  elles,  os  outros  inquilinos  do 
meu  prédio.  Resolvi  portanto  mudar  de  casa 
para  um  banco  da  praia,  que  está  á  sua  dispo- 
sição, se  nos  quizer  dar  a  honra  da  sua  visita. 
Quanto  á  sua  casa,  ahi  lhe  mando  as  chaves, 
para  que  o  sr.  vá  lá  dormir  esta  noite  com  a  sua 
familia,  a  fim  de  verificar  se  as  minhas  informa- 
ções são  verdadeiras  ou  não.»» 


o  sr.  José  Peixeiro  respondeu  immediata- 
mente :  ' 

«Lá  irei  á  noite  ver  essa  pouca  vergonha,  e 
se  fôr  como  diz  eu  cá  estou  para  obrar  como 
regedor.» 

Então  o  pobre  queixoso  julgou  dever  prestar 
mais  um  esclarecimento  importante  á  digna  au- 
ctoridade  parochial : 

«111.""'  sr.  José  Peixeiro.  —  Tenho  por  conve- 
niente informal-o  de  que  na  minha  carta  ante- 
rior faltou  um  note  beue,  que  vae  agora. 

Os  inquilinos  a  que  me  refiro  são  os  mos- 
quitos. 

Supponho  que  esta  informação  ha  de  apro- 
veitar á  sija  perspicácia.» 

José  Peixeiro  deu-se  pressa  em  enviar  a  se- 
guinte replica: 

«A  minha  casa  é  a  melhor  da  villa,  e  tem  sido 
sempre  habitada  por  pessoas  de  importância. 
Eu,  no  resto  do  anno,  vivo  lá.  E  tanto  eu  como 
minha  senhora  temos  gosado  saúde*,  a  única 
doença  que  a  minha  senhora  lá  tem  tido  foi  um 
parto.  Eu,  nem  isso;  sou  são  como  um  pêro. 
Mosquitos  e  moscas  em  toda  a  parte  os  ha;  a 
mim.  ainda  me  incommodam  mais  as  moscas  do 


IO 


que  os  mosquitos.  O  anno  passado,  o  sr.  vis- 
conde do  Pecegueiro  veiu  a  morrer  para  a  mi- 
nha casa,  e  foi-se  embora  tão  bom,  que  até  o 
meu  compadre  barbeiro,  que  tem  pilhéria,  disse 
que  elle  ainda  ia  capaz  de  dar  pccegos.  Mas 
para  não  se  incommodar  com  os  mosquitos  in- 
ventou o  systema  de  dormir  de  caraça  e  de  lu- 
vas. Faça  o  senhor  outro  tanto,  e  não  dê  im- 
portância aos  trombcteiros.» 

Ahl  caro  leitor^  aviso-o  para  que  se  acautele, 
visto  que  já  fui  atacado  pelo  primeiro  mosquito 
d'este  verão:  compre  caraça  e  luvas  como  o 
visconde  do  Pecegueiro. 

Oh!  o  primeiro  mosquito!  Que  horror! 


II 

A  comedia  das  praias 

De  manhã  cedo,  na  praia,  todos  parecem  ter 
ainda  o  olhar  vidrado,  estúpido,  de  quem.  acaba 
de  accordar. 

Olham  uns  para  os  outros  com  certa  surpreza 
spasmodica,  achando-se  feios. 

Defeitos  que  durante  o  dia  chegam  a  passar 
despercebidos,  avultam:  foi  n'uma  praia  que  eu 
descobri  que  certa  dama,  aliás  formosa,  tinha 
uma  orelha  maior  que  a  outra...   de  manhã! 

Dar-se-ia  o  caso  que,  depois  de  feita  a  ioi- 
lette,  a  orelha  mais  pequena  crescesse  ou  a 
maior  diminuisse? 

Certamente  que  não.  Mas  diante  do  espelho, 
com  vagar,  um  geito  dado  ao  cabello,  artisti- 
camente, encobria  o  defeito  da  orelha.  O  ferro 
de  frisar  salvava  a  situação:  a  madeixa,  que 
elle  fazia  descer,  salvava  a  orelha,  que  a  natu- 
reza fizera  subir. 


12 


* 


Em  questões  de  toilette^  o  meio  termo  não  é 
admissível:  ou  tudo  ou  nada.  Ou  a  toilette  es- 
plendida ou. .  .  a  estatua.  Eva,  depois  do  pec- 
cado  original,  faz-nos  rir  vestida  de  folhas  de 
figueira.  Ora  o  fato  de  banho  é  o  meio  termo: 
a  folha  de  figueira.  Para  vestir.  .  .  é  pouco; 
para  despir. . .  é  muito. 

Ha  porém  uma  coisa  peior  do  que  vestir  um 
fato  de  banho:  é  querer  sophismal-o. 

Certas  damas,  quando  chegam  á  praia,  con- 
seguem dar  na  vista  pela  perfeição  plástica  das 
suas  curvas.  Ao  entrar  na  agua,  vestidas  para 
o  banho,  perdem  as  curvas.  Não  perderam; 
deixaram-n'as  na  barraca-  Este  sophisma  de- 
plorável revela  a  carência  de  um  bom  argu- 
mento. Argumento  ou  augmento.  O  eufemismo 
é  o  mesmo.  Mas  só  a  praia  consegue  revelar 
um  segredo,  de  que.  quando  muito,  apenas  se 
suspeitava. . . 


Andam  pessoas  a  enganar-nos  durante  onze 
mezcs  em  cada  anno. 

Suppomol-as  polidas,  eruditas,  francas,  esti- 
máveis. 

Em  Lisboa,  quando  as  encontrávamos  na  rua, 


I J 


trocavam  comnosco  um  shake-hand,  tinham  um' 
dito  amável  ou  sentencioso,  pareciam-nos  cor- 
dealmente  expansivas. 

Nas  praias,  á  sombra  de  um  chalet  ou  de  uma 
arvore,  durante  duas  horas  de  conversação,, 
desmascaram  se.  Dia  a  dia,  podemos  fazer  o 
inventario  das  suas  idéas,  dos  seus  sentimen- 
tos, das  suas  opiniões.  E,  ao  cabo  de  um  mez 
de  estação  balnear,  averiguamos  que: 

Fulano,  que  vae  á  missa  em  Lisboa,  não  crê 
em  Deus. 

Sicrano,  que  tinha  foros  de  erudito,  apenas 
lê  a  Reinsta  dos  dois  mundos. 

Beltrano,  que  parecia  fallar-nos  com  o  cora- 
ção nas  mãos,  não  fazia  outra  coisa  senão  met- 
ter-nos  os  pé»  nas  algibeiras. 

*     * 

Em  Lisboa,  accusa-se  o  Grémio  e  a  Hava- 
neza  de  terem  má  lingua. 

Pobre  Havaneza!  pobre  Grémio  I  pagam  as 
favas  injustamente. 

A  maledicência  habitual  d'esses  dois  pontos, 
de  reunião  tem  apenas  um  caracter  pessoal.  Eu 
explico.  Ordinariamente,  falla-se  só  do  sujeito 
que  passou  ou  do  sujeito  que  saiu. 

A  maledicência  das  praias  estende-se  á  gera- 
ção, chega  ao  pae,  passa  ao  avô,  alcança. ás 
vezes  o  bisavó.  E  retrospectiva.  Por  exemplo: 


i4 


—  Quem  é  aquelle  sujeito  que  vem  acolá? 

—  Pois  não  conhecei  E  fulano. 

—  Não  conheço. 

—  Ha  de  lembrar-se  com  certeza  do  caso  da 
herança  do  Gutierres.  Foi  muito  fallado. 

—  Lembro-me,  sim. 

—  Pois  este  é  que  falsificou  o  testamento, 

—  Este!  E  anda  vestido  de  branco,  —  como 
íis  virgens ! 

—  E  de  familia. .  . 

—  O  fato  branco  ? 

—  Não.  A  alma  negra.  O  pae  foi  negreiro. 

—  Já  vem  mais  de  traz,  isso. 

—  Por  quê? 

—  O  avô  enriqueceu  no  tempo  dos  france- 
zes,  dando  assalto  ás  casas  dos  visinhos  que  ti- 
nham fugido. 

O  sujeito  aproxima-se,  dois  ou  três  levan- 
tam-se  para  abraçal-o;  mas  a  esse  tempo,  que 
foi  pouco,  já  lhe  está  desenterrada. a  familia  até 
ao  avô. 

O  vagar  faz  colheres,  diz  o  povo.  Nas  praias, 
o  vagar  faz  exhumações  tremendas.  Não  ha  bis- 
avô que  esteja  seguro  na  sepultura. 

* 
*     * 

Na  comedia  das  praias,  as  moscas  teem  um 
papel  importante.  Em  Lisboa,  para  se  dar  im- 
portância a  uma  mosca,  é  preciso  que  elia  haja 


i5 


sido  audaciosa  até  o  ponto  de  escolher  para 
suicidar-se  o  nosso  prato  de  sopa.  De  resto, 
em  Lisboa,  as  moscas  morrem,  mas^  nas  praias, 
as  moscas  matam.  Teem  dentes;  são  carnivo- 
ras.  Mordem,  perseguem,  endoidecem  a  gente. 
Desforram-se  da  ociosidade  de  um  anno  inteiro, 
esperam  famintas  pelos  banhistas,  e,  depois  de 
os  morder,  zumbem  e  zombam,  parecem  rir 
de  troça  umas  com  as  outras. 

Só  nas  praias  é  que  o  europeu  consegue  ser 
victima  das  moscas.  E  fallarmos  nós  com  horror 
das  moscas  de  Africa!  As  moscas  saloias  são 
muito  peiores! 

* 
*     # 

Em  Lisboa,  os  criados  passam  ás  vezes  um 
anno  inteiro  sem  partir  loiça. 

Mas,  chegando  ás  praias,  os  seus  dedos  pa- 
recem débeis  como  vimes.  Quebram  hoje  um 
copo,  amanhã  um  prato,  escacam,  em  quinze 
dias,  metade  da  loiça  do  senhorio. 

Encontrei  uma  vez,  n'uma  praia,  certa  dama, 
que  andava  afflictissima  de  loja  em  loja,  procu- 
rando alguma  coisa,  que  lhe  dava  grande  cui- 
dado. 

—  Imagine,  disse-me  ella,  que  o  meu  criado 
quebrou  hontem  uma  chávena  ! 

—  E  vulgar. 


i6 


—  Quebrar  é  vulgar;  mas  a  chávena  é  que  o 
não  era. 

—  Como  assim  ?  I 

—  Quandoeu  vim,  a  senhoria disse-me:  «Peço 
a  v.  ex.^  todo  o  cuidado  com  esta  chávena, — 
que  era  a  chávena  do  papá.» 

—  Como  o  sabre  da  Grã-diique\a'. 

—  Isso.  Ninguém  se  servia  d"aquella  chávena 
gloriosa,  nenhum  de  nós  tinha  ousado  man- 
dal-a  tirar  do  guarda-loiça.  Mas  o  meu  criado 
ousou  limpal-a  hoje,  e  quebrou-a.  Aqui  ando 
eu  agora  afflicta  á  procura  de  uma  chávena,  que 
possa  continuar  a  ser,  na  tradição  da  casa,  a 
chávena  do  papá! 


Nada  ha  que  me  dê  tanto  a  impressão  do 
communismo  como  um  club  de  praia. 

E  de  todos,  sem  pertencer  a  ninguém. 

Cada  um  que  vem  chegando  pensa  que  o  club 
é  seu.  A  primeira  cousa  de  que  se  apossa  é... 
o  piano.  O  piano  passa  a  ser,  não  um  instru- 
mento de  musica,  mas  um  escravo.  Submisso, 
paciente,  resignado,  obedece  como  um  negro, 
cujos  dentes  são  muito  brancos...  Açoutam-n"o 
com  as  mãos,  e  não  protesta;  dão-lhe  pontapés 
no  pedal,  e  não  se  desconjunta.  Familias  in- 
teiras vão  affirmar  no  teclado  os  seus  direitos 
de  sócio.  A  mãe  toca  a  Norma^  que  c  uma  opera 


do  seu  tempo  •,  a  filha  perpetra  a  Cariiicn ;  o  fi- 
lho executa  os  Fados  —  com  a  mão  direita. 

O  pae  agarra-se  aos  jornaes  e  parece  resol- 
vido a  não  deixal-os  ler  por  mais  ninguém. 

As  primeiras  senhoras  que  á  noite  chegam 
ao  club  parecem  tomar  gosto  á  grandeza  da 
sala.  .  . 

O  seu  desejo  seria  talvez  que  as  outras,  mais 
retardatárias,  ficassem  á  porta  a  contemplal-as... 
de  longe. 

Mas.  como  isso  não  acontece,  as  que  já  estão 
de  posse  da  sala,  preparam-se  para  o  ataque, 
assestam  as  suas  baterias. 

E  o  lorgnon . .  . 

E  o  sorriso  sardónico. . . 

E  o  ditinho  picante.  . . 

Tudo  isto  entra  em  fogo  ao  mesmo  tempo. 

Depois,  as  que  acabam,  de  chegar,  fazem 
causa  commum  com  as  que  jcá  tinham  chegado 
e,  preparadas  para  o  combate,  ficam  á  espera 
das  que  hão  de  chegar  ainda.  .  . 


#       * 

Ha  sempre  nas  praias  uma  menina  que  re- 
cita. 

De  pé,  quasi  sempre  vestida  de  branco,  re- 
cita versos  azues.  Quero  dizer,  versos  etherea- 


iS 


mente  românticos.  Em  quanto  ella  recita,  a  mãe 
põe  os  olhos  no  chão.  As  outras  senhoras  p5«m 
o  leque  diante  da  cara. 

Algumas  vezes,  a  menina  engana-se,  falta-lhe 
a  memoria.  Nem  para  traz  nem  para  dcante. 

Então  lança  mão  de  um  recurso  supremo: 
desmaia. 

—  Um  medico!  Não  está  ahi  um  medico? 
N'uma  praia  estão  sempre  quatro  médicos, 

pelo  menos. 
Vem  um. 

—  Isto  não  é  nada,  passa  já. 

Mas  o  irmão  mais  novo  da  menina  desmaiada 
foi,  a  correr,  buscar  a  casa  o  Almanach  .ias  Se- 
nhoras. 

E.  reanimada  por  este  auxilio,  a  menina  con- 
tinua a  recitação,  ficando  o  irmão  mais  novo 
mettido  atraz  do  piano, —  servindo  de  ponto  á 
mana. 

*       * 

Também  ha  sempre  uma  menina  que  tem 
álbum. 

Pede,  a  torto  e  a  direito,  uns  versos,  um  de- 
senho, uma  melodia. 

Pôde  imaginar-se  o  valor  do  albuni  dizendo 
que  são  os  poetas  que  desenham,  são  os  pin- 
tores que  fazem  versos,  são  os  que  sabem  fa- 


19 


zer  desenhos   ou  versos   que  escrevem   a  me- 
lodia. 

Em  conclusão:   ninguém  quer  perder  n'um 
álbum  o  melhor  do  seu  talento.  . . 


IIÍ 

11'uir.a  praia  solitária 

Um  amii^o  meu.  que  se  acha  n"uma  praia  do 
ivorte  do  paiz,  certamente  das  menos  conhecidas 
c  frequentadas,  acaba  de  descrever-me  n"uma 
carta  a  maneira  como  alii  tem  vivido  desde  os 
últimos  dias  de  julho. 

Quando  chegou,  apenas  encontrou  já  instal- 
lado  uni  outro  banhista,  que  desde  logo  se  con- 
stituiu seu  companheiro  inseparável,  comquanto 
então  se  vissem  pela  primeira  vez. 

O  meu  amigo  e  de  Lisboa-,  o  outro  reside 
actualmente  no  Alto  Minho.  Foi  o  acaso  que  os 
reuniu  pela  identidade  de  destinos,  como  dois 
náufragos  desconhecidos  que  se  encontrassem 
agarrados  á  mesma  tábua  de  salvação  ou  per- 
didos na  mesma  ilha  deserta. 

Começaram  por  tirar  cerimoniosamente  o 
chapéu  um  ao  outro,  mas  ao  cabo  de  duas  ho- 


21 


ras  de  convivência  tratavam-se  por  tu,  —  inti- 
mamente. 

A  ilha  deserta  em  que  se  encontraram  era  a 
única  loja  importante  da  praia, — uma  loja  onde 
se  vende  tudo  o  que  uma  pessoa  pôde  desejar 
em  qualquer  momento. 

Supponhamos  que  um  LucuUo  extraviado  che- 
gava alli  e  pedia  champagne. 

Encostando-se  ao  balcão,  perguntaria  : 

—  Tem  champagne  ? 

—  Tenho,  sim^,  senhor. 

E  abrindo  um  armário  m3'Sterioso,  cheio  de 
retortas,  alambiques,  garrafas  e  garrafões,  o 
dono  do  estabelecimento  demorar-se-ia  um.  in- 
stante operando  chimicamente. 

Passada  meia  hora,  quando  muito,  apresen- 
taria uma  garrafa  de  champagne,  k'.to  talvez 
de  petróleo,  talvez  de  azeite,  talvez  de  vinagre: 
composição  sua. 

O  freguez  poderia  extranhar  que  a  garrafa 
não  tivesse  capsula  de  chumbo,  mas  apenas 
uma  velha  rolha  porosa. 

O  dono  do  estabelecimentores  ponder-lhe-ia 
imperturbavelmente : 

—  E  verdade  isso,  mas  eu  preoccupo-nie  mais 
com  a  qualidade  dos  meus  vinhos  do  que  com 
a  apparencia  das  garrafas. 

Lucullo,  sentado  á  sua  mesa  de  familia,  pro- 
varia o  champagne,  e  ficaria  por  ahi,  a  não  ser 
que  quizesse  envenenar-se. 


22 


Mas,  para  não  ser  ^  anico  a  cahir  no  logro, 
calar-se-ia  e,  para  rir  um  pouco,  aconselharia 
a  toda  a  gente  que  fosse  comprar  o  bello  cham- 
pagne  da  loja  do  Elephaute  ar^ul. 

Ora  é  justamente  o  discreto  silencio  dos  fre- 
guezes,  que  querem  ter  companheiros  na  des- 
graça (solalium  est  miseris,  eto,  que  explica  a 
grande  clientella  que  tem,  principalmente  na 
epocha  de  banhos,  a  loja  do  Elephaute  a-iil. 

Foi,  pois,  n"essa  ilha  deserta,  deserta  antes 
do  mez  de  setembro,  o  melhor  n'aquella  remota 
praia,  que  os  dois  solitários  banhistas  se  en- 
contraram, e  principiaram  a  tratar-se  por  tu. 
duas  horas  depois  de  se  terem  visto  pela  pri- 
meira vez. 

—  Mas  então,  perguntava  o  meu  amigo,  não 
costuma  vir  mais  gente  para  aqui  ? 

—  Sim,  senhor,  respondia  o  dono  do  Ele- 
phaute a-^iíl,  no  mez  de  setembro  c  tanta  a  con- 
corrência, que  eu  costumo  vender  todo  o  cham- 
pagne.  toda  a  cerveja,  toda  a  genebra  que  fa- 
brico. 

E  o  outro,  que  já  lá  estava  a  banhos,  obser- 
vava : 

—  Em  setembro,  será  assim.  Mas  desde  o 
dia  20  de  julho,  em  que  cheguei,  até  hoje,  ape- 
nas eu  só  tenho  tido  a  honra  de  despertar  as 
attenções  dos  pescadores.  No  primeiro  dia  olha- 
ram para  mim  com  surpreza,  e  nos  dias  seguin- 
tes com  espanto. 


23 


—  Como  assim  ? ! 

—  Espanto  de  que  eu,  encontrando-me  sosi- 
nho,  continuasse  a  ficar.  .  . 

—  Mas  agora  somos  já  dois! 

—  Agora  seremos  um,  in  carne  una^  porque 
eu  já  te  não  largo,  amigo  da  minha  alma!  até 
que  em  setembro  chegue  mais  gente.  Tu  foste 
a  minha  tábua  de  salvação,  ó  inesperado  e  di- 
lecto amigo ! 

—  O  que  direi  eu  então  de  ti,  que  me  pro- 
porcionaste occasião  de  ter  com  quem  fallar  da 
crise  monetária  e  do  caso  das  Trinas  I  Feliz  de 
mim,  que  te  encontrei,  e  de  ti  que  me  encon- 
traste !  Gloria  a  Deus  nas  alturas,  e  paz  na 
terra.  .  .  a  dois  homens  ! 

—  Imagina,  porém,  que,  por  nos  exaltarmos 
em  qualquer  discussão,  tínhamos  de  ficar  de 
mal  um  com  o  outro  ? 

—  Era  o  mesmo  que  romper  com  toda  a  hu- 
manidade ! 

—  Mas  o  que  farias  tu? 

—  Eu?  !  Eu  ficaria  de  bem  comtigo  até  que, 
chegando  setembro,  podesse  encontrar  dois  pa- 
drinhos para  te  mandar  desafiar.  .  . 

Começou  agosto,  e  por  mais  que  os  dois  ami- 
gos espreitassem  para  dentro  de  todas  as  dili- 
gencias que  se  fazem  annunciar  ao  som  de  es- 
tridulas campainhas,  não  viam  chegar  ninguém. 

—  Então  para  que  servem  as  diligencias?  per- 
guntava um. 


2A 


—  Servem  para  alimentar  a  tradição  de  via- 
jar, respondia  o  outro. 

O  dono  do  Elephantc  a-id  dizia  do  lado : 
— Em  setembro  vcem  cheias  de  gente.  As  ve- 
zes trazem  dczeseis  pessoas  em  oito  logares. 

—  Mas  não  seria  melhor  que  essas  pessoas 
viessem  a  pouco  e  pouco,  cada  uma  cm  seu  Jo- 
gar ? 

—  Não,  senhor.  Porque  então,  replicava  o 
dono  do  Elephj.nl c  -i\itl^  por  muita  gente  que 
viesse,  não  se  sentiria  tanto. 

Os  dois  amigos  tinham  já  esgotado  todo  o 
reportório  das  suas  opiniões. 

—  O  que  pensas  tu,  caro  amigo,  a  respeito 
do  caso  das  Trinas? 

—  Ja  to  disse  hontem. 

—  E  a  respeito  da  crise  monetária? 

—  Já  t'o  disse  ante  hontem, 

—  E  verdade  I  Por  signa!  que  te  repetiste. 
Também  já  ipo  tinhas  dito  no  dia  em  que  eu 
cheguei. . . 

O  que  mais  os  aborrecia  era  não  poderem 
encontrar  um  terceiro  parceiro  para  o  voltarete. 

Haviam  já  perguntado  ao  dono  do  ElephanU' 
a\ul : 

—  Sabe  o  voltarete  ? 

—  Não,  sr.  Sei  fazer  champagne,  sei  fazer 
cognac,  sei  fabricar  cerveja,  só  não  sei  jogar  o 
voltarete  I 

—  Porque  nào  trata  de  o  aprender? 


2D 


—  Não  vale  a  pena:  não  e  coisa  que  se  venda. 
No   dia  8  de  agosto,   por  volta  do  meio  dia, 

qual  não  foi  a  surpreza  dos  dois  amigos  quando, 
encostados  aporta  de  Eiephaute  aiiil^  viram  che- 
gar uma  carruagem  com  um  passageiro  dentro. 

—  Eureka!  gritou  um. 

—  Apaga  a  lanterna  de  Diógenes  I  exclamou 
o  outro. 

O  passageiro  apeiou-se  do  trem  e,  sem  en- 
trar na  loja  do  Elephj.nlc  a-iil^  seguiu  para  o 
interior  da  villa. 

—  Vae  installar-se,  disse  um.. 

—  Vae,  e  não  tarda  ahi,  á  procura  dos  úni- 
cos dois  homens  que  n'este  momento  lhe  po- 
dem ser  agradáveis. 

O  dono  do  Elephante  a-ul^  tendo  vindo  á 
porta  examinar  o  recem-chegado,  observou: 

—  Não  é  cara  conhecida.  Nunca  veiu  cá. 

—  Poderá;  Se  já  conhecesse  a  praia,  não  vi- 
nha senão  em  setembro. 

Ficaram  os  dois  conversando,  mas  o  homem" 
não  appareceu. 

—  Onde  se  metteria  elle  ? 

—  Naturalmente,  disse  o  dono  do  Eicphanlc 
iiyãl^  anda  procurando  casa. 

—  Se  fosse  só  isso,  já  a  teria  encontrado.  E 
maÍ3  provável  que  ande  procurando  gente... 

Cerca  das  trez  horas  da  tarde,  tornou  a  ap_ 
parecer  a  carruagem,  m^as  vasia. 

O  caso  ia  tendo  as  proporções  de  um  mysterio. 


26 


—  o  homem  suicidou-.sc! 

—  Qual  I  Anda  perdido  nas  ruas,  e  não  en- 
contra ninguém  para  lhe  ensinar  o  caminho. 

Finalmente,  o  homem  appareceu. 

Entrou  no  Elephantc  a\ul  para  comprar  ci- 
garros. 

Os  dois  banhistas  crivaran"i-n"o  logo  de  per- 
guntas. 

—  V.  ex.*  vem  para  cá? 

—  Não,  sr. 

Os  dois  olharam-se  com  dolorosa  surpreza. 

—  Então  não  vem  para  cá?  insistiu  não  sei 
qual  d"elles. 

—  Vim  justamente  fazer  o  contrario. 

—  Mas...  não  percebo  ! 

—  Vim  dizer  que  nao  vinha  para  cá.  . 

—  Nem  mesmo  em  setembro? 

—  Nem  mesmo.  . .  nunca.  Tenho  ahi  um.  pa- 
renie  que  me  esperava,  e  vim  dizer-lhe  que  não 
contasse  commigo. 

—  Mas  isto  é  muito  bonito. ..  em  setenibrol 

—  Será.  Eu  tenho  informações  que  me  levam 
a  pensar  o  contrario. 

—  Pois  que!  Nem  sequer  tenta  fazer  uma 
experiência  I 

—  Não,  sr.  Um  amigo  meu  veiu  uma  vez  em 
agosto,  e  esperou  ate  setembro  que  viesse  gente. 
Mas  em  setembro  achou-se  ainda  mais  só.  por- 
que morreu  de  bexigas  o  único  banhista  que 
lhe  podia  fazer  companhia. 


^i 


—  N'esse  ca^o  vae-se  embora? 

— -Vou  já,  respondeu  o  sujeito  pagando  os 
cigarros. 

Já  elle  ia  a  dirigir-se  para  o  trem,  quando 
um  dos  dois  se  lembrou  de  gritar: 

—  O  sr.  Mendonça! 

O  sujeito  níÃo  fez  caso. 

—  O  sr.  Andrade  ! 

O  sujeito  dispunha-se  a  entrar  no  trem. 

—  Ó  sr.  Mattos  ! 

O  sujeito  voltou-se  rapidamente. 

—  Ah!  já  sei  que  se  chama  ]Mattos!.  .  .  tem  a 
bondade  de  nos  dar  uma  palavra? 

O  sujeito,  que  já  tinha  um  pé  no  estribo, 
veiu  ao  encontro  dos  dois. 

—  Sabe  o  sr.  Mattos,  disse  um,  o  que  nós 
estamos  resolvidos  a  fazer? 

O  meu  amigo  olhava  para  o  companheiro  de 
desgraça  sem  poder  adivinhar  a  sua  intenção. 

—  Não  sei,  mas  v  ex."**  terão  a  bondade  de 
dizer. 

—  Pois  bem,  sr.  Mattos!  Vae  sabel-o. 
E  agarrou-o  pelas  lapellas  do  frak. 

—  O  sr.  está  preso. 

—  Preso  ?  !  Porque  ? ! 

Então  o  meu  amigo  sentiu-se  illuminado.  Adi- 
vinhou tudo. 

E  deitando  as  mãos  aos  hombros  do  homem, 
gritou  por  sua  vez : 

—  Preso.  . .  sim.  sr. ! 


■28 


—  Mas  que  crime  fiz  eu? 

—  Não  se  trata  de  um  crime,  nem  precisa- 
mente de  uma  prisão. 

— ^Mas,  SC  não  se  trata  de  uma  prisão,  por- 
que é  que  me  prendem  I  ? 

—  Fica  apenas  detido.  Segundo  o  código,  é 
differente. 

—  Somente  detido.  O  código  estabelece  a  dif- 
ferença. 

- — Preso  ou  detido  1  disse  o  liomem.  .Mas  por- 
que ?  Para  que  ? 

—  Detido  ou  preso...   Preso  para  banhista. 

—  Mas  eu  não  quero  tomar  banhos ! 

—  Pois  não  tome,  mas  fica  preso  para  ba- 
nhista. 

—  Preso  não,  observou  o  meu  amigo.  E  bom 
não  confundir  as  palavras.  O  sr.  Mattos  fica 
apenas  detido  até  setembro...  emquanto  não 
vem  mais  gente. 

—  Mas  que  proveito  tiram  d"ahi  os  srs.  ?.  . . 
perguntou  o  Mattos. 

—  O  proveito  de  sermos  trez. 

—  Trez  para  tudo:  trez  para  o  cavaco,  trez 
para  o  voltarete,  trez  para  o  banho,  trez  para 
o  Elephãute  ã\ul. 

—  Mas  eu  não  sei  o  voltarete! 

—  Pouco  importa.  O  que  se  quer  é  que  o 
jogue 

—  Para  jogal-o  é  preciso  aprendel-o. 

—  Isso  não  é  inteimmcnte  verdade...  Mas, 


2Q 


dado  o  caso  que  seja  verdade,  até  setembro 
tem  o  sr.  Mattos  muito  tempo  para  aprender  a 
jogar  o  voltarete. 

O  meu  amigo  termina  a  carta  dizendo  : 
—  ('Cá  temos  o  homem  preso,  e  bem  vigiado. 
A  noite  fechamos-lhe  a  porta,  e  levamos  a  chave 
para  casa.  Uma  noite,  para  lhe  suavisarmos  o 
captiveiro,  resolvemos  perder  ao  voltarete.  E 
assim  é  que  conseguimos  ser  trez  !  Mas,  para 
ver  se  vem  mais  gente^  mandamos  dizer  nos 
jornaes  do  Porto  que  a  praia  está  muito  ani- 
mada, e  que  em  setembro  serão  poucas  as  ca- 
sas para  os  banhistas  que  se  esperam.  Vê  lá  se 
dizes  isso  também  nos  jornaes  de  Lisboa...)- 


Escolhamos  alguns  dos  typos  que  avulram 
na  galeria  das  praias,  para  fixarmos  n'elles  a 
nossa  attenção  por  um  momento. 

O  falLidor — E  o  discursador  de  cada  praia, 
o  homem  que  conta  anecdotas  e  que  sabe  da 
vida  alheia.  Tem  corda  para  toda  a  época  bal- 
near. Levanta-se  pela  manha  a  fallar.  vai  con- 
versar para  a  praia  dos  banhos  logo  que  se  le- 
vanta, e  á  noite  é  o  ultimo  a  sair  do  club. 

—  Meus  amigos,  diz  elle,  alli  na  Arruda  acon- 
teceu-me  uma  vez  uma  partida  de  estalo.  Ima- 
ginem que  um  rapaz  do  meu  tempo,  vendo-me 
apeiar  da  diligencia,  se  lembrou  de  dizer  aos 
da  terra  que  eu  era  o  homem  mais  rico  de  Por- 
tugal. D"alli  a  pouco  choviam-me  no  hotel  mc- 
moriaes,  requerimentos,  bilhetes  de  visita.  Um 
tal  foi  propôr-me  um  negocio  que  devia  render 
cincocnta  por  cento.   Outro  queria  vender-me 


Ôl 


uma  quinta  phyiloxerada.  E  um  pai  de  famí- 
lia pretendia  que  eu  lhe  desposasse  a  rilha.  . . 
no  caso  de  ser  soheiro.  Via-me  embaraçado 
com  tantos  pedidos  e  pi^opostas.  De  modo  que 
tive  de  escrever  para  um  meu  amigo  de  Lisboa 
pedindo-lhe  que  me  dissesse  em  telegramma  ; 
«Failiu  Rio  Janeiro  casa  Antunes  &  C"  Paciên- 
cia e  resignação.» 

Eu  li  este  telegramma  na  botica  da  terra, 
onde  me  foi  entregue,  e  exclamei  tingindo  des- 
maiar:  «Estou  arruinado I» 

Acreditaram.  Nunca  mais  ninguém  me  procu- 
rou para  saber  a  resposta  que  eu  daria  aos  me- 
moriaes  e  aos  requerimentos. 

Dalli  a  instantes: 

—  Em  Maçãs  de  D.  Maria  também  me  acon- 
teceu um  caso  muito  ratão.  Eu  tinha  ido  lá  para 
arrematar  uma  quinta,  que  devia  ir  á  praça 
n'esse  dia.  Mas,  por  qualquer  motivo,  não  se 
realisou  a  arrematação.  Logo  souberam,  porém, 
ao  que  eu  ia.  A  noite,  armaram^  um  bailarico, 
e  convidaram-me  para  assistir.  Houve  descan- 
tes em  minha  honra.  ]\Lis  no  dia  seguinte,  rea- 
lisava-se  a  festa  de  um  santo  qualquer  e  vieram 
dizer-me  que  eu  tinha  de  pagar  a  missa  e  o  ser- 
mão, porque  era  costume  da  terra  que  toda  a 
pessoa  que  alli  fosse  pela  primeira  vez,  e  rece- 
besse a  honra  de  um  bailarico,  fizesse  á  sua 
custa  a  festa  d'aquelle  santo. 

No  club,  á  noite : 


32 


—  Uma  vez.  na  Narazeth,  lembramo-nos  de 
ir  todos  para  o  club  vestidos  com  o  fato  do  ba- 
nho. Imaginem  que  risota  ?  I 

—  ?slas  as  senhoras?  O  que  disserani  as  se- 
nhoras a  isso?  pergunta  alguém,  do  lado. 

O  fallador  não  se  atrapalha: 

—  Ah!  as  senhoras  não  foram  n^essa  noite 
ao  club.  . . 

O  silencioso  —  Ouve  tudo  calado,  mascando 
no  seu  charuto.  Não  aventa  uma  ideia,  não  ar- 
risca uma  opinião.  Não  quer  conhecer  ninguém. 
Os  outros  banhistas  que  se  riem  do  Jalladur, 
riem-?e  igualmente  do  silencioso.  Ao  cabo  de 
vinte  dias  de  praia,  o  silencioso  aveniura-se  a 
proferir  uma  palavra  ou  duas.  Em  vez  de  levar 
apenas  a  mão  ao  chapéu,  rompe  neste  excesso 
de  eloquência:  «Muito  bons  dias»  ou  «Muito 
boas  noites».  Cinco  dias  depois,  já  cumprimenta 
um  ou  outro  pelo  seu  nome.  E  no  tím  do  mez, 
quando  parecia  resolvido  a  fallar.  vae-se  em- 
bora I 

Uma  vez,  n'Lima  praia,  appareceu  um  silen- 
cioso doestes.  Havia  um  fallador^  que  embir- 
rava muito  com  elle.  Era  natural. 

—  Eu  hei  de  obrigar  a  fallar  este  diabo... 
Fazia-lhe  uma  pergunta,  e  o  homem  conten- 

tava-se  com  encolher  os  hombros. 

—  Não  importai  Eu  hei  de  obrigar  a  fallar 
este  diabo. . .  dizia  o  fallador  assim  que  o  si- 
lencioso voltava  costas. 


—  o  cavalheiro  toma  banhos  ? 

O  silencioso  meneiava  afirmativamente  ou  ne- 
gativamente a  cabeça. 

Desesperado,  o  falladov,  estando  certo  dia  a 
contar  uma  das  suas  muitas  historias,  fingiu-se 
distraído,  e  pisou  o  outro. 

—  Que  bruto !  exclamou  o  silencioso. 

—  Mas. . .  fallou!  gritou  cheio  de  jubilo  o  fal- 
lador. 

O  generoso — Vá,  rapazes,  lembrem-se  vocês 
d'a]guma  festa,  e  contem  commigo.  Póde-se  ti- 
rar partido  de  tanta  coisa I  Querem  um  arraial? 
Eu  dou  o  fogo  de  vistas.  Querem  um.a  re^irata? 
Fai  dou  os  prémios.  Querem  uma  burricida? 
Eu  dou  os  burros. 

—  Não  os  ha,  diz  alguém,  do  lado. 

—  Qual  não  ha!  Tudo  são  difficuldadesi  Já 
não  ha  rapazes  ! . . . 

—  O  que  não  ha  são  burros. 

—  Burros!  ha  sim,  sr.  Eu  encarrego-me  de  os 
mandar  vir  pelo  caminho  de  ferro  ou,  se  tanto 
fôr  preciso,  pelo  telegrapho.  Onde  ha  dinheiro, 
ha  tudo. 

O  sovina — Andam  ahi  a  fazer  uma  subscri- 
pção?  Tem  graça!  Quem  encommendou  o  ser- 
mão, que  o  pague.  Eu  nunca  na  minha  vida  dei 
dez  réis  para  divertir  os  outros.  Pelo  contrario, 
o  que  eu  quero  é  que  os  outros  me  divirtam  a 
mim.  Agora  uma  soirée!  Não  vou  a  parte  ne- 
nhuma para  tomar  chá.  Tomo-o  em  m.inha  casa 


'H 


quando  quero.  De  mais  a  mais  uma  soirée  com 
bolos  saloios,  que  quebram  os  dentes  á  gente  1 
E  chá  de  herva  cidreira  ainda  por  cima !  No 
chá  não  se  admitte  meio  termo :  ou  bom  ou 
nada.  Eu  não  gosto  senão  do  Hyson.  E  de- 
pois dá  cá  dez  tostões !  Ora  que  tal  está  a 
maroteira !  Queriam  dançar  ?  Dançassem  a 
sêcco.  Quanto  mais  leve  se  está,  melhor  se 
dança ! 

O  pai  extremoso — E  a  primeira  vez  que  o 
cavalheiro  vem  a  esta  praia  ? 

—  Sim,  sr. ;  é  a  primeira  vez. 

—  Então  hade  conhecer  poucas  senhoras? 

—  Muito  poucas. 

—  E  uma  contrariedade  para  quem  gosta  de 
dançar.  O  cavalheiro  dança  ? 

—  Gosto  muito. 

—  Pois  bem,  esta  noite  queira  procurar-me 
no  club,  que  eu  o  apresentarei  a  três  ou  quatro 
senhoras. 

—  Oh !  mil  vezes  obrigado. 

—  Se  me  não  custa  nadai 

A'  noite,  no  club,  o  pai  extremoso  procede  ás 
promettidas  apresentações. 

—  Tenho  a  honra  de  apresentar  ao  cavalheiro 
minha  filha  Engracia. 

E  passando  em  claro  apenas  uma  cadeira  : 

—  Tenho  a  honra  de  apresentar  ao  cavalheira 
minha  filha  Cecília. 

E  duas  cadeiras  mais  adeante : 


35 


—  Tenho  a  honra  de  apresentar  ao  cavalheiro 
minha  filha  Conceição. 

Depois,  filando  o  apresentado  pela  lapella  do 
frack : 

—  Agora  já  o  cavalheiro  tem  muito  com  quem 
dançar.  Para  o  caso,  porém,  de  querer  variar  um 
pouco,  apresento-lhe  ainda  a  minha  Alimi,  que 
tem  apenas  nove  annos,  mas  que  gosta  mAiito  de 
dançar.  Aprendeu  com  o  Justino  Soares,  e  e!!e 
disse-me  quando  viemos  para  cá:  «Esta  menina 
ha  de  vir  a  dançar  ainda  melhor  que  as  irmãs  !» 

O  pai  indiferente.  —  Passo. 
O  filho  mais  novo,   chegando-se   ao  pé   da 
mesa  do  voltarete  : 

—  Manda  dizer  a  mamã  se  faz  favor  de  ir  á 
sala  para  arranjar  um  par  para  a  mana.  E!la 
ainda  não  dançou. 

—  Diz  á  mamiã  que  vou  já. 
D'ahi  a  pouco  volta  o  pequeno : 

—  Faz  favor  de  lá  ir,  que  se  vai  dançar  uma 
quadrilha. 

—  Peço  licença. 

—  Que  diz  o  papá  ? 

—  Que  já  lá  vou. 

—  Então  eu  espero  pelo  papá. 

—  isto  não  tem  discussão  possível :  cinco  ma- 
tadores. 

—  Venha  d'ahi,  papá. 

—  Dois  de  licença,  cinco  de  matadores,  dois 
de  cinco  primeiras :  nove. 


36 


—  Olhe,  papá,  já  começou  a  quadrilha  ! 

— 'Quando  se  dançar  outra,  vem  chamar-me. 
O  commodista  —  Meninas,  olhem  que  já  são 
dez  horas. 

—  Amanhã  é  dia  santo,  papá. 

— O  Jeremias!  deixa  dançar  as  pequenas  mais 
um  bocado. . . 

— -Perde-se  todo  o  effeito  dos  banhos  cem  es- 
tas noitadas  ! 

—  E  só  mais  um  bocado. . . 

—  Nadai  nada!  já  estou  com  muico  somno. 

—  Vê  se  o  espalhas. 

—  A  Rosa  já  deve  ter  feito  o  chá. 

—  Ks  massador  ! 

—  Ai  que  deixei  a  janella  do  quarto  aberta, 
e  entram  os  m.osquitos  !  Vamos  lá  depressa  .  . . 

O  sucio  —  Eu  cá  sou  de  feição.  Não  gostei 
nunca  de  desmanchar  prazeres.  Podem  dançar 
á  vontade,  que  eu  vou  ver  jogar. 

E  vae  para  a  rua  conversar  com  as  rapari- 
gas do  povo,  que  espreitam  á  porta  do  club. 

í^ma  hora  depois,  volta  á  sala. 

—  Então,  ainda  quereni  dançar  mais  ? 

—  Só  mais  uma  valsa. 

—  Pois  sim!  Eu  cá  não  quero  ser  desman- 
cna-prazeres.  Vou  ler  os  jornaes,  que  remé- 
dio ! 

E  torna  para  a  porta  do  club  a  conversar 
com  as  raparigas  do  povo. 

—  O  Melôa,  já  te  vaes  embora? 


—  Já,  sim,  sr.,  e  não  tenho  medo  de?  la- 
drões. 

—  Pois  fazes  mal.  Espera  ahi,  que  eu  acom- 
panho-te.  Sempre  é  bom  acautelar... 

O  indígena  da  praia  —  Quem  diabo  serão  os 
patuscos,  que  andam  a  tocar  trompa  a  esta 
hora  ?!  Estava  no  m.elhor  do  meu  somno  !  Corja 
de  patifes ! 

Gs  da  trompa  —  Sopra-lhe  ahi  com  força  p.ira 
accordares  o  Diamxantino,  que  me  vendeu  um 
fato  de  banho  por  mais  seis  tostões. Patife  ! 


V 

Casos,  ♦♦ 

Conta-se  a  anecdota  de  certo  prelado  de  uma 
diocese  do  Alemtejo,  homem  de  lettras  afamado, 
que  viveu  no  tempo  do  marquez  de  Pom.bal  e 
que,  em  estando  entregue  aos  seus  trabalhos 
litierarios,  de  nada  mais  queria  saber. 

{'m  anno,  pelo  tempo  das  boas-festas,  estava 
o  bispo  sentado  á  banca,  no  seu  vasto  escripto- 
rio — um  salão  do  paço  episcopal  —  quando  um 
diocesano  entrou  para  cumprimental-o. 

C)  prelado  não  deu  tento  da  entrada  do  ho- 
mem, tanto  era  o  interesse  que  lhe  merecia  o 
assumpto  de  que  estava  tratando, 

—  Sr.  bispo!  apostrophou  timidamente  o  re- 
cem-chegado. 

O  bispo  não  ouviu. 

—  Sr.  bispo  I  tornou  a  exclamar  o  visitante. 
Nada!  O  bispo  não  ouvia. 


3q 


Então,  muito  compromettido,  o  visitante  re- 
solveu-se  a  empurrar  uma  cadeira  para  fazer 
barulho. 

O  bispo  voltou  de  súbito  a  cabeça.  Viu-o,  e 
perguntou : 

—  O  que  é  que  quer? 

—  Eu  vinha  visitar  v.  ex.* 

E  o  bispo,  continuando  a  escrever,  respon- 
deu: 

—  Pois  visite,  visite. 

* 
*       # 

O  curso  do  quinto  anno  de  direito  estava  si- 
mulando audiências,  como  é  costume,  fazendo 
um  estudante  de  juiz,  outro  de  escrivão  do  pro- 
cesso, outro  de  official  de  diligencias,  etc. 

Constituiu-se  o  tribunal,  e  o  professor  da  ca- 
deira disse  ao  estudante  que  representava  de 
juiz : 

—  Ha  sussurro  na  sala.  O  que  faz  o  sr.  juiz? 

—  Toco  a  campainha,  e  recommendo  silencio 
ao  auditório. 

Mas  o  professor  insistiu : 

—  Continua  o  sussurro.  O  que  faz  o  sr.  juiz? 

—  Torno  a  tocar  a  campainha,  e  de  novo  re- 
commendo silencio. 

—  Mas  supponha  que  não  basta  isso.  O  sus- 
surro continua. 


40 


—  N"e.sse  caso,  direi:  Official,  tome  nota  das 
pessoas  que  estão  fazendo  sussurro,  para  se- 
rem autuadas. 

—  Mas  o  sussurro  redobra. 

E  o  estudante,  já  muito  atarantado,  exclama  : 

—  Redobra ! 

—  Sim,  senhor, — o  sussurro  redobra. 
O  estudante  pensa  um  momento. . . 

—  Então,  insiste  o  professor,  o  que  fazia  o 
sr.  juiz  ? 

—  Eu  ?  Eu  fazia  isto:  punha  o  chapéu  na  ca- 
beça e  dizia:  Está  levantada  a  sessão. 

Riu  o  professor,  riu  todo  o  curso,  e  o  estu- 
dante salvou-se  da  entalação  d'aquelle  dia, — 
por  ter  tido  uma  idéa  e  um  chapéu. 


Havia  um  grande  capitalista,  que,  por  ter  um 
sobrinho  muito  extravagante,  já  lhe  não  queria 
dar  vintém. 

Um  dia  appareceu-lhe  o  sobrinho  annunciando 
que  ia  partir  para  os  Estados  Unidos,  onde  po- 
deria vender  melhor  do  que  em  Portugal,  di- 
zia elle,  o  segredo  de  uma  invenção  maravi- 
lhosa. 

O  tio,  picado  de  curiosidade,  quiz  saber  no 
que  consistia  a  maravilhosa  invenção.  Recusa 
do  sobrinho.  Insistência  do  tio.  Finalmente,  o 


41 


sobrinho  revelou  o  seu  segredo :  tinha  desco- 
berto o  processo  de  fazer  oiro.  O  tio,  tão  rico 
como  ambicioso,  resolve  comprar-lhe  o  segredo 
por  seis  contos  de  réis.  O  sobrinho,  simulando 
alguma  dificuldade,  acaba  por  vender-lhe  a  re- 
ceita, que  o  tio  paga  immediatamente.  Con- 
cluída a  transacção,  despedem-se,  mas,  já  no 
fundo  da  escada,  diz  o  sobrinho  ao  tio : 

—  Ah!  esquecia-me  um.a  coisa,  meu  tio.  Para 
que  a  receita  dê  resultado  satisfatório,  é  preciso 
que  o  tio,  quando  quizer  fazer  oiro,  não  se 
lembre  do  elephante  branco. 

E  saiu  com  o  dinheiro  na  algibeira. 

O  tio  tratou  de  montar  o  seu  laboratório,  e 
de  realisar  a  receita.  Mas,  por  mais  que  qui- 
zesse  affastar  do  seu  espirito  a  idéa  do  elcphaníe 
branco,  essa  terrível  idéa  acudia-lhe  sempre, 
pelo  que  jamais  conseguiu  tirar  da  compra  que 
fizera  o  resultado  que  esperava.  . . 


Não  sei  quando,  nem  mesmo  onde,  existiam 
dois  esposos,  que  se  enriqueceram.  . .  de  filhos. 
A  boa  fortuna  parecia  apostada  em  querer  que 
elles  esgotassem  todos  os  nomes  do  Fios  san- 
ciorum. 

Começaram  pelos  vulgares.  Os  primeiros  fi- 
lhos chamaram-se  Manuel,  Joaquim,  António, 
João.   Depois  passaram  a  escolher  nomes  ro- 


42 


manticos:  Arthur,  Laura,  Beatriz,  Egberto.  Por 
ultimo,  tiveram  que  lançar  mão  dos  nomes  mais 
esquisitos  e  arrevesados  :  Cunegundes,  Tecla, 
Mafalda,  Thimoteo. 

Um  dia,  quando  já  era  difficil  saber  a  conta 
de  todos  os  filhos,  e  acertar-lhes  de  prompto 
com  os  nomes,  saiu  o  pae  a  passeio  e,  longe 
de  casa,  encontrou  na  rua  uma  creança  que 
chorava,  escondendo  o  rosto  entre  as  mãos. 

Apiedou-se,  dirigiu-se  d  creança,  levantou-lhe 
a  cabeça,  achou  que  tinha  uns  olhos  bonitos,  e 
disse-lhe : 

—  O  que  fazes  tu  por  aqui,  meu  menino! 

—  Ando  perdido. 

—  Pobre  creança!  Sabes  quem  é  a  tua  fa- 
mília ? 

—  Não  estou  bem  certo  d"isso.  meu  sr. 

—  Tens  fome  ? 

—  Muita,  muita. 

—  E  frio  ? 

—  Muito  frio ... 

—  Está  bem,  anda  d\ahi  comigo. 

Onde  ia  elle  levar  a  creança?  Ora!  onde  é 
que  o  negociante  feliz  vai  depositar  os  seus  lu- 
cros? No  Banco.  Pois  o  Banco  onde  esse  feliz 
casado  enthesourava  todos  os  lucros  da  sua 
prosperidade  conjugal  era. . .  a  sua  própria  ca- 
sa,—  o  seu  lar. 

Chega  elle,  muito  contente,  com  a  creança 
pela  mão. 


43 

—  Querida  mulher!  disse  ao  entrar  em  casa. 
Trago-te  mais  uma  creança.  . . 

—  Outra? ! 

—  Sim,  fillia,  tu  és  bondosa,  compassiva,  has 
de  comprehender  o  impulso   do  meu   coração. 

—  O  que  queres  dizer  ? 

—  Quero  dizer  que  encontrei  na  rua,  abando- 
nada, esta  pobre  creança,  que  não  sabe  ao  certo 
quem  são  os  seus  pais  e  onde  moram. 

E  o  pequeno,  escondendo  o  rosto  choroso  en- 
tre as  mãos,  arquejava,  soluçava.  .  . 

—  Vendo-o,  pensei  commigo  micsmo  :  Onde 
cabem  vinte,  podem  caber  vinte  e  um.  Eis  aqui 
está  o  que  eu  pensei,  e  trouxe-o  commigo. 

—  Que  Deus  nos  ajude,  homem!  mas  já  es- 
távamos tão  sobrecarregados ! 

—  Quando  tínhamos  apenas  seis  filhos  já  di- 
zíamos isso  mesmo  I  E  comtudo  tem  havido  lo- 
gar  para  todos,  nenhum  d"elles  ainda  morreu 
de  fome. 

—  Pois  bem!  fique  o  pequeno. 

A  creança  conservava-se  ao  canto  da  casa, 
soluçando,  arquejando. 

—  Disseste  que  era  bonito  o  pequeno? 

—  Olha  para  elle,  e  verás  os  lindos  olhos  que 
tem  I 

—  Levanta  a  cabeça,  meu  menino. 

A  creança  não  se  mexia.  Arquejava,  soluçava. 
Então  foi  preciso  levantar-lhe  a  cabeça  quasi 
á  forca. 


44 


—  Ora  esta!  exclama  a  dona  da  casa. 

—  O  que  é?I  pergunta  o  marido. 

—  E  o  nosso  Augusto! 

Eram  tantos,  que  já  nem  o  pai  os  conhecia ! 


Sabem  o  que  é  mu'to  diíiicil  no  carnaval  ? 

E  encontrar  uni  companheiro  que  nos  não 
incommode  e  que  nos  não  contrarie. 

Ah  I  isso  é  que  é  muito  difficil ! 

Eu  apenas  conheço  um  caso  em  que  certo 
amigo  meu  poude  encontrar  o  melhor  dos  com- 
panheiros para  um  baile  de  mascaras. 

Esse  companheiro  era  um  general,  que  pa- 
recia excellentemente  disposto:  alto,  forte,  com 
um  bello  bigode  branco,  e  algum  brilho  ainda 
nos  olhos. 

O  meu  amigo  convidou-o  para  irem  a  um 
baiie  de  mascaras.  Acceitou  logo.  Foram. 

Uma  vez  no  baile  de  mascaras,  o  meu  amigo 
scntou-se  junto  a  duas  mulheres  mascaradas. 
O  general  também.  O  meu  amigo  fallava-lhes. 
Elias  respondiam.  Só  o  general  estava  calado, 
parecendo  comtudo   excellentemente  disposto. 

Convidou-as  o  meu  amigo  para  irem  ceiar 
todos  juntos.  O  general  não  oppOz  a  menor  re- 
sistência. 

—  Pois  sim!  vamos  lá  ceiar,  disse  elle. 


45 


Pioram  ceiar. 

As  mulheres  tiraram  a  mascara.  O  meu  ameigo 
disse  a  uma  das  mulheres  que  gostava  muito 
d'ella  •,  o  general  não  disse  nada  á  outra. 

Comeram.  O  general  comeu  também.  No  fim 
da  ceia,  queimaram  todos  quatro  as  suas  cigar- 
rilhas. O  general  parecia  excellentemente  dis- 
posto. Desabotoou  o  coUete.  repotreou-se  na 
cadeira,  accendeu  segunda  cigarrilha. 

Veiu  a  conta.  O  meu  amigo  quiz  pagar  toda 
a  despeza  ;  o  general  não  consentiu,  quiz  pogar 
também  a  sua  parte. 

Sairam. 

O  meu  amigo,  voltando-se  para  o  general, 
disse-lhe : 

—  E  aííora  ? 

O  general,  parecendo  sempre  muito  bem  dis- 
posto, inclinou-se  ao  ouvido  do  meu  amigo,  e 
disse-lhe : 

—  Olhe,  meu  caro,  eu  já  não  tenho  condição 
nenhuma  para  gostar  de  um  baile  de  mascaras. 

E  o  meu  amiigo,  sem  se  desconcertar,  sem 
SC  surprehender,  oífereceu  o  braço  direico  a 
uma  das  mulheres,  o  braço  esquerdo  á  outra, 
e  disse  ao  general,  que  continuava  a  parecer 
muito  bem  disposto : 

—  Boa  noite,  general. 


46 


Certo  estudante,  tendo  faltado  ás  aulas,  apre- 
sentou unia  certidão  de  doença,  falsa. 

O  medico  que  a  passara  era  uzeiro  e  vezeiro 
em  justificar  a  cabula  dos  estudantes,  que  lhe 
pagavam  a  justificação. 

Do  alto  da  cathedra,  o  professor,  tendo  re- 
lanceado os  olhos  á  assignatura  da  certidão, 
perguntou : 

—  O  sr.  Fulano  I  se  estivesse  doente  chamava 
este  xiedico  para  o  tratar  ? 

O  estudante  respondeu  com  promptidão  e 
firmeza : 

—  Não,  senhor. 


Tinha  António  Feliciano  de  Castilho  ido  ao 
Rio  de  Janeiro,  e  fora  recebido  em  audiência 
particular  pelo  imperador  D.  Pedro  II. 

A  conversação  versou,  como  era  natural,  so- 
bre assumptos  litterarios. 

Castilho  havia  sido  prevenido  de  que  o  im- 
perador, por  amor  á  discussão  com  homens  no- 
táveis, gostava  de  que  elles  o  contrariassem 
nas  suas  opiniões. 

Assim  avisado,  se  o  imperador  dizia  que  tal 


47 


objecto  era  branco,  Castilho  sustentava  que  esse 
mesmo  objecto  era  preto. 

O  sr.  D.  Pedro  II  estava  delirante  de  alegria, 
e  propositadamente  prolongava  a  conversação. 

Veiu  a  ponto  fallarem  de  versos  alexandri- 
nos. 

O  imperador  declarou  que  não  gostava  do 
verso  alexandrino,  de  que,  como  se  sabe,  Cas- 
tilho era  enthusiasta. 

—  Ser-me-ha  licito,  disse  Castilho,  perguntar 
a  vossa  magestade  os  fundamentos  da  sua  opi- 
nião ? 

—  Acho  o  alexandrino — replicou  D.  Pedro  II, 
um  metro  inútil,  por  isso  que  é  composto  de 
dois  versos  de  seis  S3dlabas.  Digam  francamente 
que  fazem  versos  de  seis  syllabas,  e  escusam 
de  baptisar  cada  parelha  de  seis  S3dlabas  com 
o  pomposo  nome  de  alexandrinos. 

Castilho  replicou : 

—  O  que  faz  vossa  magestade  quando  tem 
sede  ? 

O  imperador  sorriu-se,  e  respondeu : 

—  Bebo  agua. 

—  Ora  muito  bem!  tornou  Castilho,  mas  se 
vossa  magestade  beber  agua  por  dois  copinhos, 
não  fica  tão  satisfeito  como  tendo-a  bebido  de 
um  só  trago  por  um  copasio  enorme. 


43 


Um  homem  que  se  dava  excellentemente  com 
a  ir.ulher,  e  que  tinha  trez  filhas  muito  bonitas 
e  trez  filhos  muito  espertos,  não  podia  soffrer 
a  sogra, — como  quasi  sempre  acontece. 

Um  dia,  ella  adoeceu  gravemente,  muito  gra- 
ve r.ente.  Foi  preciso  cham.ar  o  medico  que,  de- 
pois d'i  lhe  vêr  a  lingua  e  tomar  o  pulso,  tor- 
ceu o  nariz. 

—  Isto  não  está  bomi  disse  o  medico. 

—  O  que  se  ha  de  fazer  então  ? 

—  Deitar-lhe  bichas,  já,  immediatamente. 
Mandou-se,  sem  perda  de  tempo,  buscar  as 

bichas,  muitas  bichas. 

O  bom  do  genro  assistiu  á  chegada  das  bi- 
chas, viu-as  deitar,  chegou  mesmo  a  perguntar 
se  ellas  tinham  feito  bem  o  seu  dever:  morder 
na  sogra. 

Á  noite,  no  club,  dizia  elle: 

—  Assisti  hoje  a  um  combate  de  feras. 

—  Como  assim  ?  I 

—  Vi  deitar  duas  dúzias  de  bichas  em  minha 
sogra . . . 


# 


Certo  professor  de  medicina  perguntava  a  um 
estudante  : 


49 


—  Por  que  é  que  no  tratamento  das  feridas 
se  emprega  o  panno  de  linho  velho  ? 

O  estudante  procurou  qualquer  razão,  e  dis- 
se-a. 

—  Não,  sr.,  replicou  o  cathedratico. 

O  estudante  tratou  de  procurar  outra  razão. 
Observação  do  professor: 

—  Também  não. 

O  estudante  dá  ainda  tratos  á  cabeça  para 
descobrir  uma  terceira  razão. 

Então  o  professor  resolve-se  a  fazer  luz  no 
assumpto : 

—  Por  duas  razões,  e  nenhuma  d'ellas  o  sr. 
foi  capaz  de  descobrir!  i.*  Porque  o  panno  de 
linho  velho  é  mais  barato.  2.*  Porque  o  panno 
de  linho  novo  é  mais  caro. 

* 
*       * 

Eu  estava  uma  vez  no  escriptorio  de  um  ad- 
vogado meu  amigo,  homem  de  lettras,  jorna- 
Usta  principalmente,  que  me  pedira  que  espe- 
rasse emquanto  elle  acabava  de  escrever  um 
artigo  de  fundo. 

A  penna  rangia  vertiginosamente  sobre  o  pa- 
pel. 

Eis  senão  quando  entra  um  saloio. 

—  Que  é  ?  perguntou  o  advogado  escrevendo 
sempre. 


bo 


O  saloio  respondeu : 

—  Vinha  consultar  v.  ex.^  sobre  uma  pequena 
questão. 

—  Vá  dizendo. 

O  saloio  olhou  para  o  advogado,  olhou  para 
mim  e  olhou  para  um  espelho  que  havia  no  es- 
criptorio.  Estava  embaraçado,  duvidoso  de  ex- 
por o  seu  assumpto  sem  que  o  advogado  se 
prestasse  a  dar-lhe  toda  a  attençao. 

—  Vá  dizendo,  repetiu  o  advogado. 

—  Sr.  dr. :  Ha  na  minha  terra  uma  mulher 
de  má  lingua,  que  traz  todo  o  logar  embru- 
lhado. Por  causa  d''ella  lavram  inimisades  de 
família^  questões  entre  casados,  o  diabo !  Mas 
de  cara  a  cara  ella  não  se  mette  com  ninguém; 
é  só  por  traz  da  cortina.  Veiu  para  lá  ha  três 
annos,  comprou  uma  casita,  e  trabalha  de  te- 
cedeira.  Mas  o  que  ella  tece  melhor  são  intri- 
gas. Por  sua  causa  estou  de  mal  com  meu  so- 
gro e  com  meu  cunhado.  Eu  e  outros  mais  da 
freguezia  queremos  pôl-a  fora  do  logar,  mas 
não  sabemos  a  quem  havemos  de  requerer... 

E  calou-se.  O  advogado  continuava  escre- 
vendo. 

—  Não  sabemos  a  quem  havemos  de  reque- 
rer. . .  repetiu  o  saloio. 

O  advogado  não  respondeu. 

—  Sr.  dr.,  perguntou  o  saloio,  a  quem  have- 
mos nós  de  requerer  ? 

O  advogado  nem  palavra. 


5i 


Mas  o  saloio  não  desistiu.  Aproximou-se  da 
banca,  e  tornou  a  perguntar  curvando-se  até 
quasi  juntar  a  sua  cabeça  com  a  do  advogado : 

—  A  quem  havemos  nós  de  requerer,  sr.  dr.  ? 

—  A  D.  Miguel,  respondeu  o  advogado  con- 
tinuando sempre  a  escrever. 

*       * 

Quem  conhecia  bem  a  formiga  era  um  certo 
lavrador  do  Alemtejo,  cujo  celleiro  as  formigas 
tinham  invadido  como  praga  damninha. 

Elle  consultou  todos  os  chimicos  afamados 
para  que  lhe  vendessem  um.  ingrediente  que  as 
matasse. 

A  droga  que  lhe  receitou  o  boticário  da  sua 
terra,  não  deu  resultado.  Veiu  de  propósito  a 
Lisboa,  conversou  sobre  o  assumpto  com  os 
mais  conspícuos  pharmaceuticos  da  capital. 

—  Faça  isto. 

—  Faça  aquillo. 

—  Faça  aqueiroutro. 

Nada  deu  resultado.  Um  dia,  na  charneca, 
aconselhou-se  com  um  pastor.  Obrigados,  pela 
solidão  em  que  vivem,  á  observação  da  natu- 
reza e  á  philosophia  da  experiência,  os  pasto- 
res da  charneca  téem  ás  vezes  phrases  concei- 
tuosas,  alvitres  sapientissimos. 

O  pastor  deu-lhe  um  conselho,  que  valia  mais 
do  que  as  drogas  dos  pharmaceuticos. 


52 


Chegado  a  casa,  o  lavrador  pegou  n'uma  tira 
de  papel,  escreveu  n'ella  algumas  palavras,  c 
foi  pregal-a  na  porta  do  celleiro. 

Legiões  de  formigas  avançavam,  pelo  veso, 
em  demanda  das  tulhas.  Mas  logo  que  avista- 
vam a  porta,  e  liam  o  lettreiro,  retrocediam 
como  que  embuchadas. 

No  dia  seguinte,  a  mesma  coisa.  O  pastor 
tinha  aconselhado  um  remédio  excellente. 

O  que  escreveu  o  lavrador  no  papel  ?  Esta 
simples  phrase: 

a'7)e  hoje  em  deante^  toda  a  formiga  que  en- 
trar no  meu  celleiro  ha  de  pagar  de:{  r^éis — por 
cabeça. » 

Ora  como  as  formigas  são  essencialmente 
avarentas,  chegavam  á  porta  do  celleiro,  liam 
o  papel,  e  desandavam  para  a  toca,  não  sabendo 
ao  certo  se  o  lavrador  gracejaria  ou  fallaria  ver- 
dade. 

* 
*      * 

Um  moço  de  fretes  costumava  ir  confcssar- 
se  todos  os  annos,  mas  fazia  a  sua  chorata  ao 
prior  para  não  ter  que  pagar  a  desarrisca.  De 
uma  vez,  porque  lhe  parecesse  que  o  prior  se 
aborrecia  com  a  choradeira,  que  era  fingida, 
andou  a  procurar  entre  os  seus  patacos  um  que 
tinha  pcor  cara  e  que  por  isso  mesmo  era  mais 
duvidoso. 


53 


Foi  confessar-se,  muito  contricto,  com  o  pa- 
taco falso  na  algibeira.  Antes  de  receber  Nosso 
Pae,  pensando  sempre  em  Deus  e  no  pataco, 
dirigiu-se  para  a  sachristia. 

—  Sr.  prior,  disse  elle,  eu  tenho  abusado  muito 
da  bondade  de  v.  s." 

—  Nem  por  isso,  Ramon .  . . 

—  Tenho,  tenho,  sr.  prior,  mas  este  anno  não 
ha  de  ser  assim. 

E,  dizendo,  tirava  vagarosamente  da  algibeira 
do  collete  o  que  quer  que  fosse. 

—  Este  anno,  continuou,  quero  pagar  a  des- 
arrisca.  Se  o  sr.  prior  estiver  pelos  autos,  fi- 
cará o  costume  de  eu  pagar  de  dois  em  dois 
annos. 

—  Pois  seja  como  quizeres. 

E  o  moço  de  fretes,  tirando  o  pataco  da  al- 
gibeira, pôl-o  a  um  canto  da  mesa  em  que  o 
prior  estava  escrevendo  no  livro. 

—  É  poucochinho,  sr.  prior,  mas  os  annos 
vão  muito  bicudos . . . 

—  Não  fallemos  mais  n"isso. 

—  Sempre  chega  para  o  rapé.  Este  pataqui- 
nho  é  para  o  rapé  do  sr.  prior. 

—  Pois  seja. 

E  o  prior,  voltando-se  para  o  menino  do  coro, 
que  estava  perto,  disse-lhe  imperativamente: 

—  Ó  Zé  Maria,  vae-me  ali  defronte  comprar 
um  pataco  de  meio  grosso. 

O  Zé  Maria  sahiu,  a  correr,  e  o  moço  de  fre- 


54 


tes,   sempre  muito   coniricto,  foi  ajoelhar-se  d 
mesa  da  communhao,  esperando  pelo  prior. 

Um  instante  depois,  o  menino  do  coro  en- 
trava na  saciíristia  com  o  rapé  e  com  o  pataco. 

—  Sr.  prior,  disse  elle,  não  quizeram  receber 
o  pataco. 

—  Por  quê  ? 

—  Porque  é  falso  como  Judas.  Mas  obriga- 
ram-me  a  trazer  o  rapé  por  ser  para  o  sr.  prior. 

—  Deixa  lá  ver  o  pataco. 

O  prior  ♦pegou  no  dinlieiro,  levou-o  á  altura 
dos  olhos,  e  riu-se.  Levantou-se,  preparou-se 
para  ir  dar  a  communhao. 

Chegando  á  egreja,  descobriu  o  moço  de  fre- 
tes, que  estava  já  com  o  queixo  muito  embru- 
lhado na  toalha  de  rendas. 

O  prior  foi  distribuiu  Jo  as  sagradas  partícu- 
las, mas  quando  chegou  ao  gallego,  introdu- 
ziu-lhe  o  pataco  na  bocca, —  delicadamente. 

Habituado  a  grandes  pesos,  o  penitente  nem 
sequer  se  admirou  de  que  fosse  tão  pesada 
aquella  estranha  partícula. 

Mas  quando  quiz  engulil-a^  é  que  foram  el- 
las ! 

E  o  prior,  de  pé,  grave  e  solemne,  esperava. 

Bem  voltas  dava  á  lingua  o  gallego,  mas  não 
havia  meio  de  engulir  o  pataco. 

Até  que,  com  alguma  difficuldade,  se  resol- 
veu a  dizer : 

—  Não  passa,  sr.  prior  ! 


DD 


E  O  prior,  sempre  muito  grave  e  solemne 
respondeu-lhe : 

—  Não  passa,  não.  Já  mandei  comprar  rapé, 
e  não  o  quizeram  acceitar. 


#       ^ 


—  Por  que  é,  perguntava  um  professor  de 
agricultura,  que  as  sementes  precisam  ser  en- 
terradas na  terra  ? 

—  Por  isto.  . .  dizia  um  estudante. 

—  Por  aquillo. .  .  respondia  outro. 
O  professor  zangou-se : 

—  Não,  sr. !  E  preciso  enterrar  as  sementes 
para  os  pássaros  as  não  comerem. 


VI 

  volta  dos  pés  da  imperatriz 

Referiram  ha  tempos  os  jornaes  que  se  tinha 
levantado  na  corte  de  Berlim  uma  grave  ques- 
tão de  etiqueta,  —  grave  como  todas  as  ques- 
tões d'este  género,  incluindo  a  do  Hyssope. 

A  actual  imperatriz,  que  prima  por  uma  extre- 
ma simplicidade  de  vestidos  e  maneiras,  pedira 
ao  imperador  seu  marido  que  dispensasse,  nas 
grandes  solemnidades  do  palácio,  os  vestidos 
roçagantes,  as  longas  traines  cadentes. 

A  condessa  Waldersee,  que  tem  auctoridade 
em  questões  de  etiqueta,  reforçou  com  a  sua 
opinião  o  pedido  da  imperatriz. 

Mas  Guilherme  II  não  annuiu,  e  as  extensas 
caudas  de  setim  e  velludo  continuarão  a  arras- 
tar-se,  sobre  os  tapetes  da  corte  allcma,  longa- 
mente, apparatosamente. . . 

Á  bocca  pequena  dizia-se  em  Berlim  que  no 
pedido  da  imperatriz  havia  o  que  quer  que  fosse 
de  vaidade  feminina,  porque,  tendo  uns  pés 


37 


pequeníssimos,  não  desejava  que  lh"os  empa- 
nasse o  vestido. 

O  imperador,  conhecendo  a  intenção  reser- 
vada da  imperatriz,  entrincheirára-se  na  recusa, 
porque,  não  obstante  as  suas  aventuras  d'amor, 
Guilherme  II,  como  todo  o  marido  que  se  prese, 
entende  que  deve  ser  elle  o  único  a  ter  o  di- 
reito de  admirar  as  perfeições  plásticas  de  sua 
mulher. 

Pelo  que  respeita  aos  pés  femininos,  divi- 
dem-se  as  opiniões.  Os  leitores  sabem-n'o  tão 
bem  como  eu. 

Entendem  uns  que  os  pés  da  mulher  são  tão 
pouco  para  admirar  como  abaste  de  uma  rosa. 
Todas  as  attenções  se  fixam  na  belleza  da  co- 
rolla,  no  colorido  das  pétalas.  É  a  rosa  fresca 
e  bella  ?  E  isso  o  que  se  quer.  Tenha  a  mulher 
as  graças  do  semblante,  que  os  pés,  que  ficam 
lá  muito  para  baixo,  escapam  á  vista,  sejam 
grandes  ou  pequenos. 

Outros  porém,  e  estes  são  decerto  em  maior 
numero,  adoram  os  pés  caprichosamente  pe- 
queninos, miniaturados  a  buril  como  por  um 
gravador  que  houvesse  cegado  depois  de  os  ter 
feito . . . 

Os  que  são  doeste  parecer  defendem-se  cora 
a  tradição  da  estatuária  clássica,  com  as  lendas 
graciosas  da  bella  plástica  antiga,  em  que  a 
mulher,  não  raras  vezes,  apparece  divinisada 
pela  pequenez  do  pé. 


58 


Recordam  a  historia  da  Cendrillon,  a  nossa 
Gata  borralheira,  que  perdeu  o  chapim  pelo 
qual  um  principe  galante  a  mandara  procurar 
até  que,  encontrando-a,  só  descansou  quando 
poude  desposal-a. 

Citam  a -tradição  da  formosa  Rhodópis  a 
quem,  estando  ella  no  banho,  uma  águia  em- 
polgou uma  das  sandálias,  que  deixou  cahir  no 
terraço  do  palácio  real  de  Memphis,  onde  o 
rei,  apanhando-a,  tratou  de  descobrir,  desde 
essa  hora,  o  pequenino  pé  de  que  pela  sandália 
fxcára  enamorado. 

E,  no  fundo,  a  mesma  lenda,  talvez  um  ^ym- 
bolismo  m3-thico  transformado  em  anecdota  his- 
tórica, como  julga  Husson. 

Lembram  ainda  em  seu  abono  o  instincto 
artístico  da  poesia  popular,  que  sempre  cele- 
brou as  mulheres  de  pés  pequenos.  E  adduzem 
exemplos : 

Tendes  o  pé  pequenino, 

Do  tamanho  d 'um  vintém: 

Podia  calçar  de  prata 

Quem  tão  pequeno  pé  tem. 

A  verdade  é  que  o  arsenal  de  defesa  dos  que 
assim  pensam  está  copiosamente  abastecido  de 
citações  e  referencias,  a  que  esses  taes  poderão 
recorrer  para  seu  triumpho. 

Na  écloga  segunda  de  Bernardim  Ribeiro, — 
de  que  os  seus  biographos  tanto  se  téem  ser- 
vido para  dilucidar  a  mysteriosa  vida  do  poeta  — 


69 


é  também  pelo  pé  de  Joanna  que  o  pastor  Jano 
se  deixa  fascinar  amorosamente. 

Jano  anda  guardando  o  seu  rebanho  quando 
vc  aproximar-se  Joanna  que,  vestida  de  branco, 
se  entretém  colhendo  flores.  EUe  occulta-se  es- 
preitando-a.  Colhidas  as  íiôres, 

Joanna,  as  abas  erguidas, 
Entrar  pela  agua  ordenou  ; 
E  assentando-se,  então 
As  çapatas  descalçou, 
E,  pondo-as  sobre  o  chão. 
Por  dentro  d'agua  entrou, 
E  a  Jano  pelo  coração. 

Ah !  que  é  preciso  uma  pessoa  ser  cega  de 
enthusiasmo  pelo  bucolismo,  pela  infância  poé- 
tica da  alm.a  portugueza,  tão  simples,  tão  sin- 
cera e  ao  mesmo  passo  tão  dócil,  para  não  mor- 
rer de  apoplexia  fulminante  ao  soar-lhe  nos  ou- 
vidos este  plebeu  vocábulo  çapatas,  tão  gros- 
seiro e  saloio,  como  elle  nos  soa  hoje ! 

Bernardim,  esse  favo  de  saudades  a  que  o 
tempo  não  tem  roubado  a  doçura,  essa  abelha 
do  amor,  que  usurpou  ao  Hymetto  o  segredo 
de  amelar  deliciosamente  as  suas  trovas  com 
as  boninas  do  coração  namorado,  parecer-nos- 
ha,  se  o  não  avistarmos  de  alto,  um  camponio 
da  Ribaldeira  a  gabar  as  çapatas  amarellas  da 
moça  do  prior! 

Mas  o  pastor  Jano  não  teve  mão  em  si  que 
não  sahisse  do  escondrijo  ao  encontro  da  bella 


6o 


zagalla.   Ella,   como    Galatéa,   esquivou-se   fu- 
gindo : 

Muito  perto  estava  o  casal 
Onde  vivia  o  pai  d'ella, 
Que  fez  ir  mais  longe  o  mal. 
Que  Jano  teve  de  vêl-a  : 
Mas  o  medo  que  causou, 
Joanna  partir-se  assi, 
Tanto  as  mãos  lhe  embaraçou, 
Que  a  çapata  esquerda,  alli, 
Com  a  pressa  lhe  íicou. 

Agora  é  que  o  ridículo  da  situação  parece  su- 
bir de  ponto,  porque  o  pastor  Jano  —  o  próprio 
Bernardim  talvez  —  corre  a  abraçar-se  com  a 
çapata,  a  cliorar  sobre  ella.  çapatando  os  pei- 
tos. E  textual. 

Çapata,  deixada  aqui, 
Para  mal  de  outro  mòr  mal. 
Quem  te  deixou,  leva  a  mi  : 
Que  troca  tão  desegual ! 
Mas  pois  assim  é,  seja  assi. 

Foi,  portanto,  pelo  pé  de  Joanna  que  o  pas- 
tor Jano  se  sentiu  arrastado  para  o  abysmo  do 
amor, —  com  a  çapata  na  mão. 

Como  os  tempos  mudam  1  Hoje,  um  poeta 
palaciano,  que  ouzassc  cantar  em  publico,  ainda 
mesmo  sob  o  disfarce  de  pastor,  a  çapata  da 
bem-amada,  era  um  homem  que  tinha  a  sua 
carreira  cortada  pelo  ridículo. 


6i 


A  Academia,  elegante  como  ella  é,  diria,  se 
alguém  lhe  fallasse  em  admitil-o  sócio  corres- 
pondente : 

—  Que  !  O  da  çapata  ? !  Não  pôde  ser  1  Elle 
que  mude  para  chapim. 

Qualquer  ministro  do  reino,  com  receio  do 
ridiculo  das  gazetas,  se  algum  influente  politico 
lhe  pedisse  que  fabricasse  deputado  o  poeta, 
responderia  sorrindo : 

—  Ora  adeus  I  O  deputado  da  çapata?!  É  lá 
possível !  Você  quer  matar  o  governo  pelo  ridi- 
culo ! 

Todavia  a  Academia  Real  curva-se — e  n'este 
ponto  curva-se  bem  —  perante  Bernardim  Ri- 
beiro, o  primeiro  poeta  bucólico  portuguez. 

As  gazetilhas  em  verso  fariam  uma  troça  de 
seiscentos  diabos  ao  anonymo  que  ouzasse  man- 
dar para  o  Diário  de  Noíicias  o  seguinte  an- 
nuncÍ3: 

«Ha  oito  dias  que  estou  beijando  incessante- 
mente a  çapata  que  v.  ex.^  perdeu  em  Cascaes 
quando,  para  me  fugir,  entrou  precipitadamente 
no  banho.  A  çapata  entrou-me  pelo  coração, 
como  V.  ex.'^  pela  agua.» 

Nada  obstante_,  se  os  redactores  de  gazeti- 
lhas vissem  entrar  Bernardim  Ribeiro  no  escri- 
ptorio  do  jornal,  vestido  de  mendigo,  como  a 
lenda  nol-o  pinta  á  volta  de  Saboya,  roto  e  es- 
frangalhado, e  se  elle  lhes  dissesse  que  era  o 
auctor  do  livro  das  saudades,  os  srs.  redacto- 


62 


res  levantas-se-iam  respeitosos,  curvados  e  do- 
minados, para  offerecer  uma  cadeira  ao  grande 
poeta  Bernardim  Ribeiro,  que  devia  estar  can- 
sado, por  vir  de  longes  terras. 

Mas,  á  parte  o  desprimor  archeolcgico  do  vo- 
cábulo, emerge  d'esta  trova  do  bucolista  o 
naturalismo,  vivo  e  quente,  que  endeusa  a  pe- 
quenez do  pé  feminino. 

Parece-nos  galante  toda  a  conjuncturaem  que 
um  pé  de  fada  se  descubra  aos  nossos  olhos 
na  sua  exiguidade  microscópica,  seja  pulando 
sobre  o  tapete  de  um  salão,  poisando  no  estribo 
d\ima  carruagem,  ou  aquecendo  na  concha  ar- 
dente das  nossas  mãos  aduncas. . . 

Conta  frei  Luiz  de  Sousa  que  o  infante  D.  Fer- 
nando, tendo  casado  com  D.  Guiomar  Coutinho. 
em  torno  da  qual  se  agitou  a  paixão  dramática 
do  marquez  de  Torres  Novas,  e  «subindo  am- 
bos uma  escada,  em  tempo  que  andava  pejada 
D.  Guiomar,  lhe  lançou  mão  dos  chapins  para 
que  tivesse  menos  pena  na  subida.» 

Gentil,  não  é  ? 

Todas  as  delicadas  galanterias  que  se  façam 
aos  pés  de  uma  mulher,  suppÕem  que  o  que 
n'elles  encantou  foi  a  perfeição  com  que  a  na- 
tureza os  talhou  no  mármore. 

Enumerar  todos  quantos  poetas,  antigos  e 
modernos,  téem  cantado  os  pés  femininos,  seria 
o  mesmo  que  encher  de  versos  uma  biblio- 
theca. 


63 


Temos,  pois,  que  resignar-nos,  quanto  ao  nu- 
mero, a  dar  apenas  insignificantíssimas  amos- 
tras. 

De  um  poeta  antigo  -^  Rodrigues  Lobo : 

As  flores,  por  onde  passa, 
Se  os  pés  lhe  acerta  de  pôr, 
Ficam  de  inveja  sem  côr 
E  de  vergonha  com  graça. 
Qualquer  pegada  que  faça 
Faz  florescer  a  verdura, 
Vai  formosa  e  não  segura. 

Citarei  apenas  dois  poetas  modernos. 
E  conhecidissimo  o  bello  pensamento  de  João 
de  Deus : 

O  que  te  falta  pois  ?  os  teus  desejos 
Quaes  são  ?  de  que  precisas  ? 

Ah  !  não  ser  eu  o  mármore  que  pisas. . . 
Calçava-te  de  beijos  ! 

O  soneto  A  Bori'alheira,  de  Luiz  Guimarães, 
é  dos  mais  scintillantes  da  sua  lyra  ardente: 

Meigos  pés  pequeninos,  delicados 
Como  um  duplo  lilaz, — se  os  beija-flôres 
Vos  descobrissem  entre  as  outras  flores, 
Que  seria  de  vós,  pés  adorados  ! 

Como  dois  gémeos  sylphos  animados, 
Vi-vos  hontem  pairar  entre  os  fulgores 
Do  baile,  ariscos,  brancos,  tentadores. . . 
Mas,  ai  de  mim! — como  os  mais  pés  calcados 


64 


«Calçados  como  os  mais  !  que  desacato  ! 
Disse  eu. — Vou  já  talhar-lhes  um  sapato 
Leve,  ideial,  fantástico,  secreto. . .» 

Eil-o.  Resta  saber,  anjo  faceiro, 
Se  acertou  na  medida  o  sapateiro  : 
iMimosos  pés,  calçai  este  soneto. 

A  sabedoria  da  antisfuidade,  formulada  cm 
provérbios,  que  são  como  que  migalhas  de  phi- 
losophia,  impõe-se  ao  nosso  espirito  naimmensa 
variedade  de  assumptos  que  podem  impressio- 
nal-o. 

Ora  os  antigos  diziam :  Ne  qiiid  niinis.  Nada 
que  seja  de  mais.  Eu  fui  educado  com  velhos, 
e  aprendi  da  sua  experiência.  Se  n\\quelle  pro- 
vérbio posso  calçar  um  pé  de  mulher,  acho  que 
o  provérbio  é  bom,  e  que  o  pé  é  ainda  melhor. 
Se  não  posso,  quer-me  parecer  que  os  meus 
velhos  educadores  me  estão  segredando  em  es- 
pirito com  a  auctoridade  dos  seus  cabellos  bran- 
cos :  «Ahi  ha  pé  de  mais  e  provérbio  de  me- 
nos.» 

Ne  qiiid  nimis  ou,  como  dizem  os  francezes, 
Rien  de  trop. .  .  até  nos  pés! 


VII 

Loucura  aisgrs 

Conta-se  que  sobre  uma  pequena  terra  de 
província  cahira,  não  sei  quando,  uma  chuva 
verdadeiramente  original,  tão  original^  que  per- 
deram o  juizo  todos  os  que  a  apanharam. 

E  o  caso  é  que  toda  a  gente  d'aquella  terra 
a  apanhou,  com  excepção  de  um  sábio  que  ali 
vivia  voluntariamente  exilado,  entregue  a  leitu- 
ras profundas,  a  estudos  d'alta  sciencia. 

No  dia  da  chuva,  o  sábio  não  sahiu  ;  não  sa- 
bia nunca.  Ficou,  portanto,  em  seu  perfeito 
juizo. 

A  gente  da  terra  vivia  principalmente  dos 
trabalhos  da  agricultura,  em  pleno  campo,  de 
modo  que  a  chuva  cahiu-lhe  em  cheio  sobre  a 
cabeça,   foi  como  se  lhe  alagasse  os  miolos.  .  . 

Tendo  endoidecido  todos,  o  sábio  era  como 
que  o  único  pharol  de  bom  senso  que  brilhava 
n'aquelle  vasto  mar  de  loucura. 

Aconselhava  os  outros. 


66 


Procurava  chamal-os  á  razão. 

Dava-lhes  conselhos  acertados. 

ReprehenJia-os  anioravelmente  qu mdo  elles 
praticavam  desatinos. 

Mas  qual  I  Ninguém  o  acreditava,  ninguém 
o  atcendia,  todos  os  outros  haviam  .i.aiihado  a 
chuva  terrível,  todos  estavam  louco.-,  e  procu- 
rar restabelecel-os  de  um  momento  para  o  ou- 
tro era  o  mesmo  que  remar  contra  a  marf. 

Começou  o  sábio  a  inquietar-se  com  a  sua 
própria  situação,  que  em  verdade  nada  tinha 
de  agradável. 

Receiava  elle  próprio  perder  o  juizo,  que  tão 
preciso  lhe  era,  como  se  estivesse  vivendo  no 
meio  de  um  hospital  de  doidos. 

A  sua  criada  desatava  a  cantar  e  bailar  quando 
elle  lhe  mandava  fazer  o  biffe  do  almoço  ou  as 
torradas  para  o  chá. 

De  íorte  que  se  via  na  necessidade  de  ir  elle 
mesmo  fazer  o  bitíe  ou  as  torradas,  emquanto 
a  criada  bailava  e  cantava  em  frente  do  fogão, 
azoinando  o  am.o. 

O  seu  criado  engraixava-lhe  a  camisa  engom- 
mada,  quando  elle  lhe  mandava  engraixar  as 
botas  •,  e  escovava-lhe  as  botas,  quando  elle  lhe 
mandava  tirar  da  gaveta  uma  camisa  cngom- 
mada. 

Pensou  o  sábio  em  mudar  de  terra,  mas  a 
pequena  propriedade  que  possuía  estava  si- 
tuada ali:;e  em  taes  círcumstancías  ninguém  lh'a 


67 


queria  comprar,  porque  o  caso  da  chuva  tinha 
soado  ao  longe,  de  maneira  que  a  terra  cahira 
em  descrédito,  sabia-se  que  todos  hl  estavam 
doidos. 

Os  próprios  trabalhos  scientiíicos  do  sábio, 
até  ahi  tão  considerados,  principiaram  a  ser 
suspeitos  de  loucura.  Já  não  havia  quem  os  qui- 
zesse  ler.  A  opinião  publica  é  assim.  Até  então, 
como  corresse  fama  de  que  era  aquelle  um 
grande  sábio,  toda  a  gente  o  considerava  con^iO 
tal;  de  repente,  com  a  mesma. unanimidade,  to- 
da a  gente  principiou  a  duvidar  de  que  elle  po- 
desse  conservar  inteiro  o  juizo  vivendo  no  meio 
de  doidos. 

— ■  o  que  hei  de  eu  fazer  ?  perguntava  a  si 
me-mo  o  sábio. 

Como  ainda  houvesse  pelas  ruas  da  villa  mui 
tas  poças  de  agua  da  chuva,  começou  a  anaiy- 
sar  chimicamente  a  agua  para  ver  se  descobria 
o  segredo  daquella  extranha  epidemia  de  lou- 
cura. 

Mas  nada  lhe  achou  de  notável  segundo  a 
chimica.  Era  agua  de  chuva  com  d  qualquer  ou- 
tra. 

—  Eu  perco  o  juizol  dizia  de  si  para  comsigo 
o  sábio.  Tudo  isto  é  tão  extraordinário,  que 
sinto  vacillar  a  minha  própria  razão'. 

E  a  criada  continuava  a  bailar  e  a  dançar 
quando  elle  lhe  mandava  fazer  o  biffe  ou  as 
torradas. 


68 


E  o  criado  engraixava-lhe  a  camisa  quando 
elle  lhe  mandava  engraixar  as  botas. 

Os  seus  caseiros  não  se  entendiam  com  clle, 
nem  elle  com  os  seus  caseiros. 

O  padeiro,  pela  manhã,  trazia-lhe  pedras 
duras  em  vez  de  pão  fresco. 

O  merceeiro  manda va-lhe  assucar  quando 
elle  pedia  arroz  ou  mandava-lhe  arroz  quando 
elle  lhe  pedia  assucar. 

De  modo  que,  n'um  momento  de  desespero, 
o  sábio  resolveu  um  bcllo  dia  perder  o  juízo 
que  até  então  havia  conservado. 

Fugiu  para  o  meio  da  rua,  andou  procuran- 
do uma  das  poças  de  agua  da  chuva,  que  ainda 
havia.  Poz-se  de  cócoras,  olhou  em  roda,  e  re- 
conhecendo mais  uma  vez  que  todos  estavam 
doidos,  metteu  as  mãos  na  poça,  encheu-as  de 
agua,  e  começou  a  encharcar  a  cabeça. 

D'ahi  a  momentos  estava  também  doido,  e 
toda  a  sua  preoccupação  anterior  havia  desap- 
parecido,  porque,  tendo  elle  próprio  perdido  a 
razão,  já  não  se  affligia  com  a  loucura  dos  ou- 
tros. 

Lembrou-me  esta  anecdota  quando,  passan- 
do sabbado  á  noite  pelo  Colyseu  dos  Recreios, 
vi  uma  enorme  multidão  de  povo  invadir  as 
portas,  disputar  a  entrada,  ancioso  de  obter 
um  logar  para  ir  assistir  ao  beneficio  da  Geral- 
dine. 

— Então,  dizia  eu  com  os  meus  botões,  tudo 


69 


isso  de  reULicçÕes  imminentes  é  uma  fabula  !  O 
paiz  está  rico  e  contente.  Diz-se  que  ha  misé- 
ria, e  toda  a  gente  pensa  em  divertir-se  I  O  que 
se  vê  é  que  as  industrias  estão  prosperas,  o 
commercio  florescente.  Os  operários,  voltando 
agora  de  um  trabalho  fartamente  remunerado, 
tratam  de  comprar  bilhete  para  a  geral.  Ven- 
der uma  colónia!  para  que  ?  O  que  o  povo  que 
é  que  lhe  vendam  um  bilhete  Colyseu  I  Os 
jornaes  portuguezes  e  extrangeiros  dizem  que 
estamos  pobres !  Sempre  mentem  muito  os  jor- 
naes !  Toda  essa  gente,  que  ahi  se  agglomera 
ás  portas,  estende  para  o  camaroteiro  uma 
nota,  oíTerece-lhe  dinheiro,  tão  rica  está  toda  a 
gente  ! 

E,  pensando  n'isto  e  na  anecdota.  continuei 
a  dizer  com  os  meus  botões : 

— ...  Salvo  se  o  ultimo  portuguez  que  ti- 
vesse juizo  também  molhou  a  cabeça  na  poça 
d 'agua  ! 

Mas  no  domingo  fui  passeiar  á  Avenida  co- 
mo para  procurar  a  contra-prova  do  espectá- 
culo da  véspera. 

Oh!  que  alluvião  de  gente  I  que  bulício  !  que 
vida  !  que  animação  ! 

Longas  tilas  de  trens  desdobravam-sc  ao 
longo  da  Avenida  n\im  grande  esplendor  de 
equipagens  brilhantes. 

O  dinheiro  trotava  em  bellos  cavallos  pur 
saug;   rodavam  titulos  e  brazÕes,  forlunas  co- 


70 


lossaes  deslisavam  a  quatro  soltas,  pomposa- 
mente. 

E  eu  continua\a  perguntando  aos  meus  bo- 
tões : 

—  Santo  Deus  I  onde  d  que  está  o  ultimo  sá- 
bio desta  terra  ?  I 

K  olhava  para  o  chão  esperando  ver  que  o 
ultimo  sábio,  posto  de  cócoras,  estivesse  olhando 
para  os  outros  e  molhando  a  cabeça  com  fre- 
nesi. 

Qual  I  não  era  para  o  chão  que  eu  devia  olhar. 

Os  sábios  portuguezes  prezam-sc  muito  para 
que  algum  d"elles  queira  acocorar-se  á  vista  dos 
seus  p^itricios. 

P>ra  para  o  alto  das  boleias  e  para  a  estampa 
das  horsas  que  eu  devia  olhar ;  não  para  o 
chão.  O  chão  I  esse,  coitado,  estava  pisado, 
moido  do  continuo  attricto  das  ferraduras  dos 
cavallos  e  das  rodas  das  carruagens. 

O  sol.  bcllamente  festivo,  cahia  em  palpita- 
ções de  luz  sobre  a  Avenida.  O  monumento  vi- 
ctorioso  dos  Restauradores  recorta\a-sc  nutn 
fundo  de  azul  luminoso  parecendo  chispar  cen- 
telhas como  uma  lamina  erguida  ao  sol.  Chalets 
elegantes  alcandoravam-se  pela  encosta  oriental 
da  cidade.  Prédios  magniíkos,  alguns  sumptuo- 
sos, agrupa^■am-se  em  grandes  bairros  novos  á 
ilharga  da  Avenida  nas  terras  outr"ora  desertas 
c  solitárias.  As  antigas  hortas  desappareceram 
para  dar  logar  a  palácios  novos.  Guardas-por- 


71 


toes  imponentes  encosíavam-se  ás  portas  vendo 
de  longe  o  formigueiro  dos  trens  que  passavam 
rodando  ao  trote  largo  de  cavallos  finos. 

E  por  mais  que  eu  olhasse  para  o  chão  nenhum 
sábio,  de  cócoras,  tratava  de  molhar  a  cabeça 
para  não  ter  que  chorar  sobre  tanta  alegria  I 

Então,  recolhendo  para  casa,  olhando  sem- 
pre cautelosamente  para  não  ser  atropellado 
pelos  trens  e  pelos  cavalleiros,  lembrou-me  ou- 
tro caso,  nada  mais  e  nada  menos  que  o  plano 
de  um  poema  que  certo  amigo  meu  havia  deli- 
neado quando  a  morte  o  surprehendêra. 

A  J^alsa:  era  o  titulo  do  poema. 

A  acção  leva  pouco  tempo  a  contar. 

Meia  dúzia  de  velhos,  que  no  seu  tempo  ha- 
viam sido  grandes  valsistas.  resolveram,  a  des- 
peito do  peso  dos  annos,  reconquistar  uma  hora 
de  mocidade,  dar  um  baile  em  que  todos  elles 
valsassem  como  antigamente,  embora  fossem 
morrendo  de  cansaço  no  meio  da  sala. 

Assim  fizeram.  Na  noite  do  baile,  eil-os  que 
entram  no  salão,  correctamente  barbeados,  tão 
gentis,  quanto  a  idade  lhes  permittia,  dentro 
das  suas  casacas  muito  justas  e  luzidias. 

Uma  valsa  de  Strauss  fez  ouvir  as  suas  pri- 
meiras notas.  Tudo  ali  parece  palpitar  ao  som 
da  miusica, —  os  velhos  principalmente. 

E,  cingindo  a  cintura  de  bellas  damas,  todos 
elles  principiam  a  valsar  com  a  intrepidez  dos 
vinte  annos. 


72 


A  valsa  não  aífrouxa  nunca,  e  os  velhos  val- 
sistas,  extenuados,  principiam  a  cahir  de  can- 
saço, pallidos,  mortos,  um  após  outro,  até  que, 
estendidos  sobre  o  verniz  do  salão,  teem  por 
funeral  o  baile,  por  De  profiindis  a  valsa  de 
Strauss,  que  parece  não  acabar  nunca  I 

Era  phantastico  o  poema,  excêntrico  o  poeta. 

Mas.  o  caso  é  que  me  lembrei  do  poema  da 
Valsa,  que,  ai  do  poetai  ticou  apenas  em  pro- 
jecto. 

Tudo  aquillo  que  eu  tinha  visto,  no  sabbado 
e  no  domingo,  era  como  a  valsa  dos  velhos 
extenuados,  que,  ao  som  da  musica,  iam  ca- 
hindo  mortos  n\ima  atmosphera  de  alegria  e 
n'uma  allucinação  de  prazer,  que  os  matou  sem 
os  ter  remoçado,  que  os  esgotou  sem  os  ter  di- 
vertido ! 


Vííí 


A  msscotts 


Ter  ou  não  ter  inascoite,  eis  a  questão,  para 
tudo  e  para  todos. 

Não  sei  se  o  leitor  é  dado  a  superstições  e 
crendices,  que,  de  resto,  constituem  o  fundo 
simples  e  primitivo  da  natureza  humana. 

Eu,  por  mais  que  oiça  dissertar  os  philoso- 
phos,  creio  profundamente  em  superstições.  Sou, 
a  este  respeito,  quasi  primitivo.  E  entre  as  su- 
perstições, que  me  inspiram  maior  fé,  acredito 
cegamente  na  influencia  benéfica  de  um  génio 
bom  e  tutellar,  a  que  modernamente  chamamos 
mascottc. 

Até  —  seja  dito  em  confidencia  —  ja  tive  uma 
mascottc. 

Por  que  não  hei  de  contar  francamente  essa 
historia  ? 

Era  uma  insignificantíssima  beniiala  da  ilha 
da  Madeira,  que  me  tinha  custado  doze  vinténs 


74 


e  que  ninguém  seria  capaz  de  me  comprar  por 
seis. 

Estava  muito  longe  do  meu  espirito  a  sus- 
peita de  que  essa  reles  bengala,  cheia  de  nós 
e  de  mossas,  podesse  exercer  alguma  influen- 
cia benéfica  na  minha  vida. 

Mas  comecei  a  notar  a  coincidência  de  que 
tudo  me  corria  mal.  quando  o  mau  tempo  me 
obrigava  a  substituir  a  bengala  pelo  chapéu  de 
chuva. 

Difficuldades,  incertezas,  contrariedades  que 
o  chapéu  de  chuva  tinha  suscitado  e  alimen- 
tado, aplanavam-se  e  desappareciam  quando 
no  dia  s.guinte  a  bengala  substituía  o  chapéu 
de  chuva. 

Este  facto  rcpctiu-se  uma  e  muitas  vezes  : 
induzi  portanto  que  aquellc  reles  pausinho  da 
ilha  da  Madeira  tinha  condão  de  felicidade.  Era 
o  meu  íalisman.  Tomei-lhe  amor,  ganhei  cou: 
fiança  na  sua  virtude,  e  comecei  a  acreditar  na 
existência  de  uma  niascolíc  que,  se  me  aban- 
donava um  momento,  me  deixava  exposto  ás 
maiores  contrariedades. 

Em  dias  de  chuva  torrencial,  dias  de  tempo- 
ral desfeito,  eu  não  ousava  sahir  sem  a  nuis- 
coílc,  importando-me  pouco  que  as  outras  pes- 
soas podessem  fazer  reparo  na  excentricidade 
de  um  homem  que,  apesar  de  chover  a  potes, 
deixava  o  chapéu  de  chuva  em  casa  e  sahia 
com  a  bengala  debaixo  do  braço. 


Muitas  vezes  fui  obrigado,  por  manter  o  culto 
devido  á  minha  inascottL',  a  tomar  um  trem. 

Mas  fazia  de  bom  grado  essa  despeza,  nem 
me  importava  apanhar  chuva,  comtanto  que 
não  tivesse  de  largar  a  mascotte. 

Os  meus  amigos  conheciam  esta  supersti- 
ção, e  riam-se.  Fingiam  querer  roubar-m'a.  Mas 
eu,  se  passava  a  noite  com  elles,  sentava-me 
de  bengala  na  mão,  não  a  abandonava  um  mo- 
mento. 

Um  dia  perdi-a.  Vou  contar  como  isso  foi. 
O  leitor  pôde  imaginar  o  desgosto  que  n'esse 
dia  me  feriu. 

Era  então  ministro  da  marinha  o  conselheiro 
Júlio  de  Vilhena,  que  morava  na  rua  de  S.  João 
da  Matta. 

Na  véspera  havíamos  passado  grande  parte 
da  noite  a  conversar  sobre  um  livro,  que  se  re- 
lacionava com  o  assumpto  litterario  de  que  eu 
então  me  estava  occupando. 

Tratava-se  da  symbolica  do  direito,  que  me 
era  preciso  estudar  para  o  livro  A  jornada  dos 
séculos,  que  eu  trazia  entre  mãos.  Júlio  de  Vi- 
lhena offerecéra  emprestar-m'o^  e  ficou  combi- 
nado que  eu  iria  no  dia  seguinte  a  sua  casa.  á 
uma  hora  da  tarde,  buscar  o  livro. 

Chovia :  tomei  um  trem. 

Durante  o  trajecto,  para  accender  um  cigarro, 
tive  que  encostar  a  bengala  a  um  canto  da  car- 
ruagem. 


76 


Quando  cheguei  á  rua  de  S.  João  da  Matta, 
disse-me  o  correio  que  o  ministro  estava  ainda 
almoçando,  e  que  eu  teria  de  esperar  pelo  me- 
nos meia  hora. 

Despedi  o  trem,  sem  tomar  sentido  no  nu- 
mero. 

Chegaram  mais  pessoas,  com  quem  esperei 
conversando. 

Quando  o  ministro  acabou  de  almoçar,  e  me 
recebeu  no  seu  escriptorio,  lembrci-me  subita- 
mente de  que  a  jjmscotíe  tinha  ficado  no  trem. 

Mostrei-me  inquieto,  disse-lhe  o  motivo  da 
minha  inquietação,  porque  elle  conhecia  muito 
bem,  como  todos  os  meuc  amigos,  a  lenda  da 
bengala. 

Sahi  de  afogadilho,  com  o  livro  debaixo  do 
braço,  e  dirigi-me  immediatamente  ao  commis- 
sariado  geral  de  policia. 

A  um  dos  commissarios,  meu  amigo,  contei 
que  me  tinha  esquecido  dentro  de  uma  carrua- 
gem, cujo  numero  ignorava,  uma  bengala  que 
valeria  apenas  seis  vinténs,  mas  que  eu  esti- 
mava muito. 

O  commissario  imaginou  talvez  que  se  tra- 
tava de  uma  recordação  de  familia.  Socegou- 
me.  Como  a  bengala  não  tinha  valor  material, 
ap pareceria  facilmente,  ia  dar  as  suas  ordens, 
e  eu  prometti  gratificar  o  policia  que  encon- 
trasse a  bengala. 

Sahi  do  commissariado  de  policia  para  ir  dar 


77 


umas  voltas,  tratar  de  negócios  particulares» 
Mas  tinha  a  convicção  de  que  tudo  me  cor- 
reria mal  n^esse  dia  e  nos  outros,  porque,  ai 
de  mim  I  havia  perdido  a  mascotte.  Era,  moral- 
mente, um  homem  morto. 

Às  cinco  horas  da  tarde,  muito  contrariado, 
quasi  rabujento,  subia  eu  o  Chiado,  olhando  at- 
tentamente  para  todos  os  trens  que  passavam, 
ancioso  de  reconhecer  o  cocheiro  que  me  tinha 
levado  á  rua  de  S.  João  da  Matta. 

De  repente,  descendo  o  Chiado,  passa  um 
trem.  O  cocheiro  olha  para  mim,  e  pára.  O  fe- 
licidade !  era  o  cocheiro  que  eu  procurava!  De 
dentro  da  caixa  da  almofada  tirou  elle  a  minha 
querida  bengala,  e  eu  tirei  da  algibeira  dez  tos- 
tões que  lhe  dei  como  aiviçaras. 

O  cocheiro,  que  via  pagar  por  dez  tostões 
uma  bengala  que  valeria  seis  vinténs,  ficou  a 
olhar  para  mim,  espantado. 

Suppoz,  talvez,  n"aquelle  momento,  que  eu 
era  filho  do  sr.  Monteiro  da  rua  do  Alecrim. 

Que  boas  horas  de  alegria  que  eu  tive,  read- 
quirindo a  posse  da  mascotte,  a  minha  que- 
rida bengala!  Nadando  em  jubilo,  fui  dizer 
ao  commissario  de  policia  que  a  bengala  tinha 
apparecido.  E  á  noite,  contando  a  historia  do 
feliz  achado  aos  meus  amigos,  recebi  para- 
béns. 

Rodaram  alguns  annos,  durante  os  quaes  tive 
sobejos  motivos  para  firmar  a  minha  crença  no 


7» 


£ondão  maravilhoso  da  bengala.  Era  decidida- 
mente  umia  mascolíc. 

Mas  um  dia  —  que  terrive!  dia  esse  I  —  por 
acaso,  n"uma  esgrima  simulada,  a  bengala  partia- 
se.  Deus  perdoe  a  quem,  com  a  mais  amável 
intenção  d'este  mundo,  contribuiu  para  esòe 
medonho  fracasso.  Guardei  durante  algum  teni- 
po  os  dois  fragmentos  da  bengala,  mas  o  seu 
condão  de  felicidade  tinha-se  partido  com  ella, 
ai  de  mim  1  A  niascollc  havia  fugido,  como  uma 
alma  abandona  um  corpo. 

O  leitor  pôde  sorrir-se  da  minha  ingénua  cre- 
dulidade, mas  eu  cria  cegamente  na  virtude 
d'esse  talisman,  que  um  acaso  m.e  trouxe,  e  que 
um  acaso  levou. 

Não   ha   philosophia  que  resista  aos  factos. 

De  varias  pessoas  sei  eu  que  tiveram  })his- 
cotte,  e  que  criam  n'ella  como  em  Deus. 

Uma  d'cssas  pessoas  era  o  general  José  de 
Vasconcellos  Correia,  que  morreu  conde  de 
Torres  Novas. 

A  sua  mascottc  era  uma  escova  de  fato,  que 
o  não  abandonava  jamais. 

Justamente,  tendo  de  partir  para  Torres  No- 
vas, onde  se  assignalou  pelo  seu  valor,  esque- 
ceu lhe  mctter  dentro  da  mala  a  escova.  E,  por 
não  querer  separar-se  d'ella  em  tão  duvidosa 
occasião,  metteu-a  dentro  da  barretina. 

Em  Torres  Novas,  durante  a  refrega,  rece- 
beu uma  cutilada  na   cabeça.  O  golpe  tel-o-ia 


79 

prostrado,  se  entre  a  barretina  e  a  cabeça  não 
estivesse  a  escova,-— a  que  ficou  devendo  a 
vida. 

Falta-me  o  espaço  para  referir  outros  muitos 
casos  não  menos  interessantes  e  justificativos. 
E  tenha  pena !  O  leitor  começaria  talvez  por 
sorrir-se  :j  mas  acabaria  decerto  por  acreditar. 

Toda  a  gente,  por  muito  que  finja  o  contra- 
rio, tem  as  suas  superstições. 


IX 

Sra  ern  abril 


Cétait  en  avril,  un  dimanche, 

Oui,  le  dimanche  ! 

J'etais  heureux. . . 
\'ous  aviez  une  robe  blanche 
Et  deux  gentils  brins  de  pervenche, 

Oui,  de  pervenche, 

Dans  les  cheveux. 

Nous  étions  assis  sur  la  mousse, 

Oui,  sur  la  mousse, 

Et  sans  parler, 
Nous  regardions  Therbe  qui  pousse, 
La  feuille  verte  et  Tombro  douce, 

Oui,  Tombre  douce, 

Et  Teau  couler. 

Un  oiseau  chantait  sur  la  branche, 

Oui,  sur  la  branche. 

Puis  il  s'est  tu. 
J"ai  pris  dans  ma  main  ta  main  blanche. 
Cetait  en  avril,  un  dimanche, 

Oui,  le  dimanche. . . 

T'en  souviens  —  tu  ? 


8i 


Ah !  como  esta  deliciosa  canção  primaveral 
de  Eduardo  Pailleron  concentra  em  si  todos  os 
perfumes,  todos  os  cânticos,  todos  os  sonhos 
de  abril,  quando  o  laranjal  florido  deixa  cair  da 
sua  coma.  semelhante  a  um  bouquet  de  noiva, 
não  sei  que  doces  pensamentos  de  amor.  não 
sei  que  fragrâncias  de  boudoir.  que  estontea- 
mentos  de  volúpia,  cheia  de  mvsterios.  de  se- 
gredos e  de  arrulhos  maviosos  I  ?  A  olaia  põe  no 
terreno  grandes  manchas  encarnadas,  tapetes 
de  pétalas  soltas,  que  se  alastram  convidando 
ao  remanso  d"um  idyllio.  oui.  d'un  idylh'... 

No  ar,  passam  foliando  os  assobios  estridu- 
los  dos  melros  e  da  tlauta  de  Pan,  dando  uma 
extranha  sensação  de  prazer  vibrante,  sobre- 
tudo se  brilha  no  céu  o  bello  sol  ocioso  dum 
domingo...  oui,  le  diniauche! 

Perto,  um  veio  d^agua  crystallina  e  murmura 
dá  uma  enorme  sensação  de  frescura  e  de  pre- 
guiça, porque  não  ha  nada  que  enerve  mais 
deliciosamente  do  que  vêr  correr  a  agua  sobre 
um  campo...  et  leaii  coiílcr. 

Tufos  de  relva,  estrellados  de  malmequeres, 
redondos  e  grandes,  vecejam  n"uma  exuberân- 
cia de  florescência  sadia,  impregnada  da  ini- 
mensa  vitalidade  vernal... 

Nous  regardions  Therbe  qui  pousse, 
La  feuille  verte  et  Tombre  douce. 

Delicioso  abril !  Primavera  encantadora !  por 

6 


82 


mais  que  a  gente  queira  adorar-tc  sem  rhcto- 
rica,  é  completamente  impossivel,  porque  tu 
mesma  és  a  rhetorica  da  creaçao,  o  Padre  Car- 
doso da  naturesa... 


Cétãit  en  arni .  .  . 

Era  sim,  era  em  abril,  os  melros  e  as  touti- 
negras enchiam  de  musica  o  ar,  os  laranjaes  e 
as  olaias  doidejavam  galas  de  Hores  e  de  perfu- 
mes, e  o  meu  amigo  Rosendo,  tão  feliz  como 
Pailleron,  foi  com  a  sua  bella  ao  Campo  Grande 
passar  um  domingo,  uma  esplendida  manhã  de 
domingo...  oui,  Ic  dimaiichc. 

Tinham  ido  por  ahi  fora  no  omnibus  do  Sa- 
lazar, n"uma  felicidade  cortada  de  phrases  ter- 
nas e  de  solavancos,  um  paraiso  ambulante,  ti- 
rado por  três  pilecas  rebeldes  ao  amor  e  ao 
chicote. 

Rosendo  e  Ambrósia  tinham  pressa  de  che- 
car ao  Campo  Grande,  tinham  um  grande  de- 
sejo de  verdura,  quasi  tanto  como  as  pilecas. 
Ella  ia  fresca  de  mocidade  e  elegância  singela: 
um  vestido  de  percale  claro,  umas  rendas,  uma 
rosa  natural,  um  chapéu  com  blonde  verde,  lu- 
vas de  peau  de  Suédc...  Tentadora  !  Nunca  uma 
Ambrósia  parecera  tão  fascinante,  nunca  um 
Rosendo  sentira  no  coração  um  bando  de  rou- 
xinoes  tão  palreiros  e  tão  músicos  como  naquella 


83 


hora  deliciosa.  Imagine-se  a  pressa  do  Rosendo 
em  chegar  ao  Campo  Grande,  porque,  corn 
um  bando  de  rouxinoes  dentro  do  coração,  es- 
tava em  risco  de  morrer  de  hypertrophia,  se 
não  chegasse  de  pressa,  — ■  mesmo  muito  de 
pressa. 

Mas  finalmente  chegaram.  Esperava-os  um 
banco  verde,  um  banco  de  idyllio,  que  nem  que 
fosse  mandado  pôr  ali  de  encommenda  pela  ca- 
mará municipal,  para  uso  dos  namorados  ao 
domingo...  oui,  le  dimanche.  Por  de  traz,  um 
bosquesinho  de  roseiras,  discreto  como  um  cego, 
silencioso  como  um  mudo. 

Rosendo  sabia  os  versos  de  Pailleron  por  os 
ter  lido  na  Revista  dos  dois  mundos,  e  por  os 
haver  achado  deliciosos. 

Tratou  de  pôl-os  em  acção,  ou  antes,  de  pôr 
a  sua  mão  de  enamorado  Rosendo  sobre  a  mão 
branca  de  Ambrósia. 

J'ai  pris  dans  ma  main  ta  main  blanche.. . 

Não  faltava  nada  para  que  o  scenario  fosse 
em  tudo  semelhante  ao  da  Revista  dos  dois  mun- 
dos:  a  erva  vecejante,  a  folha  verde,  a  agua  cor- 
rente, o  domingo  e  a  felicidade. 

Pássaros  folgasaos  pipillavam  no  arvoredo, 
numa  grande  bambocha  de  virtuoses,  e  a  dis- 
tancia, amortecido  pelo  intervallo  dos  canteiros, 
o  ruido  de  um  trem  que  passava  para  o  Lumiar, 
ouvia-se. 


^^4 


Kosendo.  achando-se  divino,  divinisa\a  Am- 
brósia, para  se  confundirem  ambos  n'uma  gran- 
de consubstanciação  amorosa. 

Elle  s(3  tinha  um  desgosto :  — que  ella,  em  vez 
de  uma  rosa  no  vestido,  não  trouxesse  nos  ca- 
bellos  dois  ramos  de  pervinca...  oiii.  de  pcrvcn- 
clic. 

De  repente.  Ambrósia,  ouvindo  dar  oito  ho- 
ras, voltou-se  rapidamente  para  elle,  e  dos  seus 
lábios  saiu  esta  phrase.  terrível  como  um  grito 
de  Tântalo : 

—  O  Rosendo,  vamos  nós  almoçar  ao  José 
dos  Caracoes  ?... 

•   •>•••.>... •••• •■•••••• 

'fcíi  sourÍL'u:i  III...  Rosendo? 


X 


A  fslicidads  2  a  cainisa 


Houve  outr"ora  um  rei,  que  possuía  vastos 
domínios,  formosos  castellos,  vastos  parques, 
ricas  baíxellas  e  equipagens. 

Mas  era  triste,  peior  talvez  do  que  triste,  me- 
lancólico. 

Organisava  festins,  e  aborrecia-se  no  meio 
d"elles.  Nem  o  ouro,  nem  a  saúde,  nem  a  gran- 
des a  conseguiam  distrai l-o. 

A  rainha  confrangia-se  de  ver  sempre  niedi- 
tando  o  seu  real  esposo. 

O  príncipe  real  impr<nisava  ruidosas  caçadas 
para  alegrar  seu  augusto  progenitor,  mas  o 
rei,  a  breve  trecho,  cahia  na  sua  melancolia 
habitual,  sentava-se  á  sombra  de  uma  arvore, 
scismava... 

Um  dia,  n"uma  kermesse,  que  as  damas  da 
corte  promoveram  para  divertir  seu  real  amo, 
appareceu  uma  cigana,  que  andava  lendo  a  lvu>- 
na-díchã  de  barraca  em  barraca. 


86 


Em  alta,  morena  como  todas  as  ciganas,  e 
tinha  uns  olhos  tamanhos  e  tão  vivos,  que  bem 
podiam  ler  o  futuro  a  grande  distancia... 

Kmbrulhava-se  num  manto  de  retalhos,  uma 
capa  de  pedinte  que,  á  força  de  remendada,  já 
não  tinha  côr  própria. 

Lia,  com  profunda  inditferença,  o  destino  dos 
outros,  seguindo  com  a  vista  as  linhas  que  elles 
tinham  gravadas  na  palma  da  mão.  Annunciava 
tragedias,  desgraças,  coisas  tenebrosas  com  a 
mesma  serenidade  com  que  promettia  riquezas, 
venturas,  delicias. 

O  rei  soube  que  tinha  apparecido  na  ker- 
messe  aquella  cigana,  e  mandou-a  chamar. 

—  Quero  que  me  digas,  ordcnou-lhe  o  rei, 
,se  posso  ainda  ser  feliz. 

A  cigana,  sem  parecer  preoccupar-se  com  a 
honra  que  lhe  era  dispensada,  respondeu  laconi- 
camente  : 

—  Sim.  Ainda  pôde  ser  feliz  vossa  magestade. 
Alegrou-se    subiraniente    o   rei   e   perguntou- 

Ihe: 

— ^O  que  é  preciso  fazer  para  que  eu  seja 
inteiramente  feliz  ? 

A  cigana  demorou-se  uni  momento  consul- 
tando as  linhas  da  real  mão,  e  respondeu : 

—  Precisa  vossa  magestade  vestir  a  camisa 
de  um  homem  feliz. 

—  Mas  onde  poderei  eu  encontrar  esse  homem 
feliz? 


«7 


■ —  Isso  agora  não  é  comigo,  disse  a  cigana. 
E  voltou  costas  ao  rei  indiíferentemente. 

Logo  sua  magestade  mandou  reunir  no  palá- 
cio real  os  seus  validos  e  conselheiros. 

Gontando-lhes  o  caso  da  cigana,  acabou  por 
dizer-lhes : 

—  Agora  é  que  eu  vou  conhecer  qual  de  vós 
me  é  mais  dedicado.  Trata-se  de  procurar  um 
homem  feliz,  cuja  camisa,  ainda  que  custe  rios 
de  ouro,  eu  hei  de  vestir,  ide  procural-o,  pois. 
E  todo  aquelle  que  o  encontrar,  receberá  re- 
compensas quaes  rei  algum  da  terra  ainda  con- 
cedeu. 

Fazendo  mil  protestos  de  dedicação,  logo  cada 
um  d"elles  se  deu  pressa  em  partir.  Para  onde  ? 
Ao  acaso,  pelo  mundo  fora,  á  procura  de  um 
homem  feliz... 

Tal  conselheiro  do  rei  descobriu  um  proprie- 
tário muito  rico,  que  todos  os  dias  via  entrar 
pela  porta  dentro  os  seus  rendeiros  carregados 
de  ouro. 

Foi  procural-o.  na  supposição  venturosa  de 
que  tinha  encontrado  a  pessoa  que  procurava. 

—  Sois   feliz  como   pareceis?  perguntou-lhe. 

— -  Não  sou,  ai  de  n"iim  I  E  verdade  que  pos- 
suo uma  riqueza  enorme,  mas  falta-me  a  saú- 
de, que  é  cada  vez  mais  precária.  Daria  toda 
a  minha  riqueza  para  poder  viver  sem  dores, 
para  comer  com  apetite. 

Outro  conselheiro  do  rei  encontrou  um  ho- 


88 


mem   muito   robusto,   cuja  caude  todos  na  sua 
terra  invejavam. 

—  E  o  homem  mais  forte  doestes  sitios  I  dis- 
seram-lhe. 

Foi  visital-o. 

—  Uma  pergunta  vos  quero  fazer.  Dizei-me 
se,  na  posse  de  tão  tiorescente  saúde.,  sois  com- 
pletamente feliz... 

O  homem  forte  suspirou,  e  respondeu  : 

—  E  verdade  que  sou  muito  robusto,  mas 
quizera  não  o  ser  tanto,  porque  não  tenho  gosto 
nenhum  de  viver  ainda  muitos  annos. 

—  Por  que  ? 

—  Porque  sou  pae  de  doze  hlhos  e  não  ga- 
nho 'o  bastante  para  lhes  dar  de  comer.  Quan- 
to mais  trabalho,  menos  ganho.  Ha  destinos 
assim,  e  o  meu,  já  agora,  não  tem  remédio. 

Informaram  um  dos  validos  do  rei,  de  que 
em  tal  aldeia  morava  um  homem  que,  vinte 
annos  depois  de  casado,  ainda  namorava  a  mu- 
lher. 

Assombrou-se  com  esta  revelação  o  valido,  e 
foi  a  correr  por  montes  e  valles  procurar  o  di- 
toso casado. 

Sem  mais  preâmbulos,  interrogou-o. 

—  E  certo  que  sois  casado  ha  vinte  annos? 

—  Ha  vinte  annos  e  vinte  dias. 

—  E  que  tendes  vivido  n'uma  continua  lua 
de  mel  : 

—  Certissimo,  meu  senhor. 


89 


—  Sois  pois  inteiramente  feliz  ? 

—  Sel-o-ia  se... 

—  O  que?!  Pois  não  vos  reputaes  um  ho- 
mem feliz?! 

—  Sel-o-ia,  se  não  fosse  minha  sogra,  que 
volta  e  meia  se  lembra  de  vir  visitar-me. 

Já  iam  decorridos  alguns  mezes,  sem  que  os 
conselheiros  e  validos  do  rei  houvessem  voltado 
ao  paço  para  noticiar  a  sua  magestade  o  achado 
de  um  homem  feliz. 

Esta  demora  tinha  desanimado  cada  vez  mais 
o  rei,  que,  de  quando  em  quando,  gritava  en- 
furecido : 

—  Pois  não  haverá  sobre  aterra  um  homem 
verdadeiramente  feliz  ?  I 

Certo  dia  um  dos  conselheiros  do  rei  ia  jorna- 
deando,  sempre  na  faina  de  procurar  um  homem 
feliz,  por  uma  serra  muito  agreste  e  solitária. 

Só  de  longe  a  longe  avistava  algumas  cabras, 
que  andavam  roendo  as  raizes  das  urzes. 

—  Que  serra  tão  triste  I  disse  o  fidalgo  ao 
arreeiro. 

—  Por  aqui  só  se  encontra  algum  pastor ; 
ninguém  mais.  Lá  está  um  acolá,  no  alto 
daquelle  rochedo,  a  tocar  na  sua  flauta. 

—  É  verdade!  Quero  fallar-lhe.  Vamos  lá. 
Era   grande  a  distancia.  Mas  á  medida   que 

se  aproximavam  iam  ouvindo  os  sons  rústicos 
da  avena  e  vendo  o  pastor  a  bailar,  muito  con- 
tente, sósinho,  no  topo  do  rochedo. 


90 


—  Parece  impossível,  dizia  o  fidalgo,  que  não 
tenha  medo  de  cair  1 

Chegaram  perto  do  rochedo,  e  o  fidalgo  gri- 
tou-lhe  : 

—  Olá.  pastor ! 

O  pegureiro  interrompeu  a  musica  e  o  bailo. 
Tirou  o  chapéu,  e  ficou-se  muito  quieto. 

—  Anda  cá,  que  te  quero  fazer  uma  pergunta 
e  dar  dinheiro. 

O  pastor  desceu  de  um  salto. 

—  .)ulgas-te  feliz,  meu  rapaz? 

—  Sim,  meu  senhor,  julgo-me  feliz. 

O  conselheiro  do  rei  receiou  endoidecer  de 
alegria. 

—  Pois  então,  pega  lá  todo  este  dinheiro,  e 
vende-me  a  tua  camisa. 

—  Meu  senhor,  respondeu  o  pegureiro,  eu  não 
tenho  camisa.  . . 

Por  mais  que  a  gente  possa  invejar  a  felici- 
dade dos  outros,  e  desesperar  da  sua,  o  que 
é  certo  é  que,  ainda  quando  os  outros  lhe  pa- 
recem felizes,  sem.pre  lhes  falta  alguma  coisa: 
a  camisa,  por  exemplo. 


XI 

Morts  d9  um  gsntlsman 

fBjrão  da  Torre  de  Pêro  Palha) 

Foram-se  os  deuzes.  depois  os  heroes,  por 
ultimo  parece  que  também  vão  acabando  03 
homens.  . . 

Os  homens  antigos,  entenda-se,  os  homens 
de  rija  tempera,  fortes,  destros,  gentis,  bem 
educados. 

Bem  educados,  sobretudo,  que  também  isso 
faz  muito  ao  caso  para  a  disciplina  social,  para 
a  harmonia  das  classes,  para  a  ordem  que  não 
pôde  deixar  de  ser  a  base  do  respeito  que  as 
diversas   categorias   se  devem  um.as  ás  outras. 

Os  homens  que  viram  nascer  a  liberdade, 
que  a  sonharam  e  implantaram,  e  que  tinham 
por  ella  esse  culto  dedicado  que  se  conserva 
por  uma  creança  que  educamos  a  nosso  geito... 

O  que  ahi  vae  ficando  já  não  são  homens 
medidos  pelo  estalão  que  outr"ora  marcava    a 


92 


estatura  moral.  Como  na  Grécia  antiga,  foram- 
se  os  Milciades,  os  Themistocles,  talvez  os  Pé- 
ricles. Não  tardará  o  tempo  em  que  se  levan- 
tem trezentas  e  sessenta  estatuas  a  Demétrio 
Phalerio,  quero  dizer,  aos  heroes  da  decadên- 
cia. Se  não  ha  melhor  I 

Generaes  illustres,  oradores  proeminentes, 
sábios  conspícuos,  tudo  isso  tem  desappare- 
cido  a  pouco  e  pouco.  Até  vae  desapparecendo 
também  um  t^po  que  parecia  fundido  de  uma 
co.stella  de  cavalleiro  e  d'outra  costella  de  tro- 
vador :  fundido  dos  restos  meio  heróicos  e  meio 
galantes  da  idade-media.  Era  o  gcntleman^  que 
sabia  montar  a  cavallo,  bater-se  em  duello,  fal- 
lar  ás  damas,  dançar  uma  valsa,  entrar  n'um 
salão.  Era  o  gentlcman,  que  punha  o  chapéu  na 
cabeça  diante  de  um  insolente,  e  que  o  tirava 
quando  á  portinhola  de  uma  carruagem  cum- 
primentava uma  senhora.  Era  o  goitlonati^  que 
não  parecia  ridículo  quando  vestia  uma  calça  de 
ganga  e  calcava  umas  luvas  còr  de  açafrão.  Era 
o  gentlcmau. ..  Morreu  outro  dia  um  ;  desconfio 
que  foi  o  ultimo. . . 

Chamava-se  Hugo  Owen,  barão  da  Torre 
de  Pêro  Palha. 

Não  fez  dis:ursos,  não  fez  leis.  não  escreveu 
livros,  não  compoz  óperas,  mas  conquistou  o 
direito  a  ser  conhecido  e  estimado  dos  seus 
contemporâneos. 

Por  que  r  Porque  foi  um  gentleman.  Eis  tudo. .. 


93 


Seu  pai,  um  inglez  de  distincçao,  militar?,  ao 
serviço  de  Portugal  no  tempo  em  que  os  espí- 
ritos mais  generosos  principiavam  a  sonhar  com 
a  liberdade. 

Casara,  ficara  entre  nós  ;  e  o  filho,  direito 
como  um  pinheiro  novo,  esvelto  e  firme,  pas- 
sou os  primeiros  annos  da  vida  montando  gar- 
bosamente a  cavallo  no  séquito  de  D.  Pedro  IV, 
improvisado,  quasi  por  galanteria,  em  seu  aiu- 
dante  de  campo. 

Zuniram-lhe  as  balas  do  cerco  do  Porto  por 
cima  da  cabeça,  ouviu  de  perto  o  estrondo  da 
metralha,  fortificou-se  respirando  a  fumarada. 
da  pólvora. 

Depois...  depois  a  guerra  acabou,  os  vence- 
dores julgaram  que  tudo  o  que  havia  a  fazer 
pela  liberdade  estava  feito,  quanto  se  engana- 
ram I  e  os  vencidos  presumiram-se  decerto  as 
ultimas  victimas  das  luctas  politicas  em  Portu- 
gal. Quanto  se  enganaram  também  ! . . . 

Hugo  Owen  casou  com  uma  dama  portu- 
gueza,  amou-a  extremosamente,  era  rico,  forte, 
alegre,  feliz. 

Mas  a  roda  da  fortuna  encravára-se  um  dia; 
parou  de  súbito.  A  esposa  de  Hugo  Owen  mor- 
rera deixando-lhe  filhos  pequeninos.  No  cora- 
ção do  viuvo  fez-se  um  vácuo  profundo,  enor- 
me. E  aqui  CDmeça  a  serie  das  suas  desgraças, 
quaes  poucos  homens  teem  soffrido,  e  que  ellc 
aguentou   sem   se   azedar  a   ponto  de  parecer 


94 


malcreado  e  sem  se  mostrar  desgostoso  ao  ex- 
tremo de  querer  descalçar  as  luvas  para  sovar 
a  humanidade. 

Pois  se  o  fizesse,  teria  tido  razoes  de  sobra 
para  isso.  .  . 

As  ditíiculdades  levantavam-se-lhe  debaixo 
dos  pés,  a  fatalidade  andava  inventando  para 
elle  casos  imprevistos  e  complicados,  como  um 
advogado  chicaneiro  que  não  pensa  senão  cm 
urdir  uma  rede  de  rabulices  para  embaraçar  a 
parte  contraria. 

Um  dia,  Hugo  Owen  assistia  á  agonia  de 
um  filho,  que  a  morte  viera  surprehender  pre- 
maturamente. 

O  coração  do  pae  despedaçava-se  atormen- 
tado contra  esse  leito,  como  a  vaga  contra  os 
rochedos. 

Havia  já  na  face  do  moribundo  a  pallidez 
que  parece  ser  o  reflexo  longínquo  do  luar  de 
além-tumulo. 

Os  irmãos  soluçavam,  abafados  de  angustia, 
e  o  pae,  pendido  para  o  leito,  disfarçava  a  sua 
dor  murmurando  palavras  carinhosas,  de  uma 
grande  ternura  dolorida,  sobre  a  cabeça  do 
moribundo. 

N'isto,  rompe  n'um  dos  andares  do  prédio  a 
esfusiada  musical  de  uma  valsa  de  Strauss,  scn- 
te-se  dançar  ruidosamente,  pular,  conversar, 
tinir  loiças  e  cristaes. 

Estâ-se  cm  plena  5oircV,  e  a  festa  parece  pro- 


95 


longar-se  pela  noite  dentro,  attingir  a  madru- 
gada. 

E  no  som  da  valsa  que  o  moribundo  se  con- 
torce no  delírio  da  agonia,  é  a  dois  passos  da 
vida  alegre  da  sala  que  o  espectro  da  morte 
vem  assentar  arraiaes. 

Teriam  tido  conhecimento  d'esta  deplorável 
antithese  os  que  se  estavam  divertindo  ?  Certa- 
mente que  não.  Mas  essa  tormentosa  coinci- 
dência tinha-a  o  destino  guardado  para  esma- 
gar o  coração  do  barão  da  Torre  de  Pêro  Pa- 
lha. 

Uma  sua  irmã,  Fanny  Owen,  morreu  na  flor 
dos  annos,  sacrificada  a  um  drama  conjugal  que 
enche  muitas  paginas  de  um  livro  de  Gamillo 
Castello  Branco,  No  Bom  Jesus  do  Monte. 

Foi  casada,  e  morreu  pura.  Os  médicos  que 
procederam  á  autopsia,  assim  o  affirmaram  sob 
juramento. 

Pois  bem !  um  anno  depois  da  morte  de  Fanny, 
contado  dia  a  dia,  Hugo  Owen,  estando  n'um 
hotel  de  Lisboa,  ouviu  gemer  num  quarto  pró- 
ximo. 

—  Quem  está  ali  doente  ?  perguntou. 

—  É  o  sr. . . . 

Era  o  marido  de  sua  irmã,  o  marido  que  tão 
allucinadamente  a  aggravára,  que  vinha  mor- 
rer a  dois  passos  de  distancia  do  barão  da  Torre 
de  Pêro  Palha! 

E,  como  estas,  outras  mil  contrariedades  e 


96 


coincidências,  que  o  destino  baralhava  para  o 
atormentar,  expressamente  .  .  . 

Eu  conheço  a  biographia  de  Hugo  Owen 
em  tudo  o  que  ella  teve  de  mais  intimo  e  re- 
côndito. Somente  não  estou  auctorisado  a  con- 
tal-a.  Conheço-a,  porque  elle  me  confiou  um 
dia  as  suas  memorias,  que  se  conservam  iné- 
ditas :,  paginas  que  elle  escrevia  com  a  ver- 
dade e  o  respeito  de  um  homem  que  se  julga 
já  diante  de  Deus  contando  o  que  soffreu  entre 
os  homens. 

Encontrei  nas  memorias  do  barão  o  material 
preciso  para  urdir  dez  romances  sem  dar  tra- 
tos á  imaginação.  Em  cada  capitulo  havia  um 
drama  de  lagrimas.  Li  o  manuscripto,  sentin- 
do-nie  muito  honrado  com  a  confiança  que  o 
barão  depositava  em  mim,  fechei-o  profunda- 
mente commovido  e  sepultei  no  fundo  do  meu 
coração  o  segredo  das  suas  revelações,  tão  pun- 
gentes e  dilacerantes. 

A's  vezes,  quando  conversava  com  o  barão 
da  Torre  de  Pêro  Palha  debaixo  da  Arcada  ou 
á  porta  da  (^asa  Havaneza.  assombrava-me  a 
sua  resignação,  espantava-me  a  sua  paciência, 
a  correcção  sempre  distincta  das  suas  palavras 
e  das  í-uas  maneiras. 

E  todavia  elle  estava  tão  pobre,  que  mal  po- 
deria esperdiçar  um  charuto.  . . 

Os  que  o  não  conheciam  de  perto,  poderiam 
suppôl-o  um  homem  feliz. 


97 


Com  o  seu  ar  elegante,  o  seu  casaco  curto^ 
as  suas  calças  largas,  um  pouco  á  Juissard  (essas 
calças  tradicionaes  dos  g-entleme)!  do  seu  tempo: 
nunca  o  Manuel  Browne  e  os  outros  vestiram 
calças  que  não  fossem  á  luíssard),  as  suas  po- 
iainas  brancas,  a  sua  bengala  de  castão  de 
prata,  as  suas  lunetas  de  oiro,  as  suas  suissas 
grisalhas,  ellc  tinha  o  aspecto  de  um  homem 
feliz,  que  houvesse  accordado  ao  meio-dia  de- 
pois de  ter  passado  a  noite  n"um  baile  onde 
perpetrara  a  sua  ultima  ^■alsa.  onde  queimara  o 
ultimo  cartucho  do  seu  paiol  amoroso. 

K  todavia  talvez  tivesse  almoçado,  de  pé.  dois 
ovos  à  la  coque,  apenas... 

Também  me  assombrava  n"esíe  homem,  cuja 
m.orte  deploro,  n'este  homem  que  tinha  corrido 
e  visto  tanto  mundo,  n"este  homem  que  tanto 
havia  soffrido  e  aprendido,  a  boa  fé.  a  ingenui- 
dade com  que  parecia  acreditar  todas  as  espe- 
ranças que  lhe  davam,  todas  as  promessas  que 
lhe  faziam,  o  ar  de  candura  com  que  tantas  ve- 
zes procurou  o  seu  nome  no  Diário  do  Goi'erno. 

Seria  um  defeito  de  intelligencia  ?  Não  era, 
com  certeza.  Era  apenas  um  aspecto  da  sua  in- 
dividualidade de  gentlcman.  Conhecendo  que  a 
vida  estava  por  pouco,  não  queria  desfazer  n"um 
momento  a  obra  de  toda  a  sua  existência,  sahir 
do  mundo  dcsmanchando-se  n"um  gesto  tão  ple- 
beu como  expressivo.  Procurava  i!ludir-se  por 
mais  algum  tempo...  pouco! 

7 


:',^ 


E,  de  resto,  ellc  tinha  razão. 

Quando  já  não  podia  viver  com  as  mulheres, 
com  quem  viveria  elle  se  tivesse  rompido  com 
os  homens  ? 

Era  esta  decerto  a  sua  ideia. 

Não  queria  isolar-se  pelo  resentimento,  pelo 
azedume,  pelo  despeito,  sentindo-se  a  dois  pas- 
sos da  solidão  eterna  do  tumulo. 

Fora  um  homem  de  sociedade,  sabia  o  que 
era  a  lisonja,  a  mentira,  a  falsidade  cortez  e 
aniavel.  Devia  conhecel-as  á  légua.  Mas  assim 
como  nos  salÔes  tinha  fingido  acredital-as,  re- 
duzido á  pobreza  fingia  também  dar-lhes  cre- 
dito. 

O  enganal-o  por  cortezia  podia  ser  um  mo- 
tivo para  que  elle  continuasse  a  não  ter  di- 
nheiro na  bolsa,  mas  não  era  um  motivo  para 
que  recusasse  um  shakc-haud  á  pessoa  que  o  en- 
ganava segundo  as  boas  praxes  do  código  do 
bom  tom. 

—  Para  a  semana  será...  dizia  ellc. 
Passava  uma  semana,  um  mcz,  um  nnno. 

—  Então  ?... 

—  Tem  havido  ditficuldades...  Mas  estão  apla- 
nadas... Agora  vae. 

E  não  ia ! 

Elle  é  que,  fingindo  esperar  senipre  alguma 
coisa  que  lhe  consolasse  os  últimos  dias  da  vida, 
foi  para  o  Porto,  já  muito  doente,  cheio  de  do- 
res e  de  desillusÕes,  e  de  casa  de  uma  filha  que- 


^Kí 


rida,  que  ihe  recolheu  piedosamente  o  derra- 
deiro suspiro,  foi  para  a  cemitério  de  Agra- 
monte,  onde  finalmente  descansa... 

O  Diário  do  Gopenio  perdeu  um  leitor,  a 
sociedade  portugueza  perdeu  um  dos  seus  geií- 
tlemeu,  talvez  o  ultimo,  seus  filhos  perderam 
um  pae  extrernosissimo,  e  cu  perdi  um  amigo 
tão  dedicado,  cjue  me  confiava  os  segredos  do- 
lorosos de  toda  a  sua  vida,  dando-me  a  ler  o 
manuscripto  das  suas  memorias  inéditas. 

Pobre  barão  1  Outros,  que  começaram  niais 
tarde  a  frequentar  a  sociedade,  chegaram  de- 
pressa ao  gaiarim,  tão  depressa  que,  na  alluci- 
nação  do  triumpho,  nem  já  o  conheciam.  Mas 
elle  é  que  conhecia  toda  a  gente:  um  sliake-hand 
para  a  direita,  um  sorriso  para  a  esquerda, 
parecia  andar  fazendo  as  suas  visitas  de  des- 
pedida antes  de  partir  para  a  eternidade.  E 
para  que  ninguém  podesse  ficar  aggravado  com 
o  muito  que  elle  tinha  soíTrido.  perdoava  a  to- 
dos... 

Morreu  como  viveu :  um  genilcman. 


XII 


A  «ssason»  lisbonenss  em  1833 


Kstc  inverno  proniettc  uma  scasou  \crdadci- 
ramcnte notável:  salas  que  raramente  se  abriam, 
como  as  dos  condes  de  Porto  Go\o.  reanimam- 
se  e  povoam-se ;  o  presidente  do  conselho  de 
ministros  receberá  ainda  quatro  Aezes  durante 
os  dois  mezes  próximos. 

Fallemos  piincipalmente  das  sairdes  da  pre- 
sidência, notáveis  mais  que  todas  por  serem  o 
ponto  de  reunião  dos  ^i-andes  \ultos  da  politica 
po!tugueza  na  casa  do  primeiro  entre  os  pri- 
meiros. 

Quem  vir  o  sr.  Fontes  Pereii'a  de  Mello  nas 
recepções  oiticiaes  do  paço,  nos  actos  solemnes 
da  vida  parlamentar,  com  o  seu  aspecto  severo 
c  frio.  com  a  sua  figura  correcta  e  grave,  terá 
avaliado  apenas  superficialmente  este  homem 
de    estado    que    tern.    como    nenhum    outro,    a 


lOI 


consciência  das  funcçÕes  de  que  se  acha  inves- 
tido e  das  situações  em  que  se  acha  collocado. 
E  preciso,  porém,  avalial-o  che^  /?//,  tendo  uma 
phrase  amável  para  todas  as  pessoas  que  con- 
correm ás  suas  recepções,  sabendo  fallar  ás  se- 
nhoras e  aos  politicos,  percorrendo  todas  as 
sahts  para  ser  attencioso  com  todos,  conver- 
sando litteratura  com  os  escriptores,  politica 
com  os  homens  de  estado,  accommodando-se 
com  distincção  a  todos  os  assumptos  e  a  todas 
as  idades,  sem  constrangimento  e  sem  esforço. 

Um  estrangeiro,  um  viajante,  um  toiíristc  não 
encontraria  decerto  melhor  occasiao  para  co- 
nhecer todos  os  homens  notáveis  de  Portugal 
do  que  aquella  que  as  soirées  do  presidente  do 
conselho  lhe  podem  fornecer. 

Aqui,  um  pouco  curvado,  o  cabello  levantado 
e  branco,  faces  coradas,  um  sorriso  docemente 
irónico,  deixando  ver  atravez  das  suas  lunetas 
uns  olhos  penetrantes  e  expressivos,  o  ministro 
de  Portugal  em  Madrid,  vice-presidente  da  ca- 
mará dos  pares,  passa  nas  salas,  sobraçando  a 
claque.  E  um  erudito,  um  professor,  um  acadé- 
mico, que  consome  a  maior  parte  dos  dias  na 
Torre  do  Tombo  a  revolver  o  archivo.  Para  os 
litteratos  é  o  auctor  de  Um  anuo  na  corte ;  para 
os  académicos  é  o  auctor  da  Historia  da  linha 
de  demarcação  que  repartia  o  nuindo  entre  Por- 
íuo\il  e  Caslella,  o  recente  annotador  do  Roteiro 
de  Lisboa  a  Goa  ;  para  os  politicos  c  um  esta- 


102 


dista  e  um  diplomata  de  primeira  ordem,  é  ainda 
o  auctor  dos  Perigos;  para  os  indiPferentes  é  o 
sr.  Andrade  Corvo. 

Ali,  debruçado  sobre  a  meza  do  whist,  na  cur- 
vatura interessada  dos  m3'op es,  um  homem  ma- 
gro c  seco,  de  uma  magresa  forte  e  resistente, 
pondo  ás  vezes  por  cima  dos  óculos  afumados 
o  seu  lorgiiou,  interroga  o  parceiro  com  a  sua 
voz  mansamente  timbrada :  é  o  poeta  do  Are 
César  e  do  Pavilhão  negro,  o  dramaturgo  dos 
P'rnnerros  amores  de  Bocage,  o  romancista  dos 
Bandeirantes,  orador,  estadista,  diplomata,  aca- 
démico, é  Mendes  Leal,  emfim. 

Acolá,  o  ministro  dos  negócios  estrangeiros, 
António  de  Serpa  Pimentel,  conversa  animada- 
mente, encostando  o  seu  corpo  franzino  ao  an- 
gulo de  uma  meza,  fazendo  girar  rapidamente 
o  cordão  da  sua  luneta,  e  sorrindo :  eis  aqui 
uiii  outro  liomem  de  estado  que  é  ao  mesmo 
passo  um  poeta,  uni  prosador,  um  critico  e  um 
académico. 

Na  sala  de  baile,  a  ligura  esvelta  e  forte  de 
Thomaz  Ribeiro  destaca-se :  a  £íran-cruz  es- 
carlate,  atravessada  sobre  o  peito  largo,  ani- 
ma-lhe  o  busto  \  os  cabellos  grisalhos,  como 
que  ligeiramente  empoados,  téem  por  vezes 
fulgurações  instantâneas. 

Num  fauleuil,  Júlio  de  Vilhena  obser\ a  com 
os  seus  olhos  penetrantemente  meridionaes, 
sorri  com  vi\acidade  aos  que  lhe  vão  fallando. 


lOJ 


'e  retorce  descuidiídamente  a  guia  esquerda  do 
seu  pequeno  bigode. 

Hintze  Ribeiro  conversa  num  grupo  de  depu- 
tados sobre  as  discussões  do  parlamento:  ani- 
m.a-se  faliando,  e  fixa  a  luneta,  fitando  o  inter- 
locutor. 

O  procurador  geral  da  coroa  e  fazenda  '.  alto 
e  corpulento,  conversa  no  tom  modesto  e  aucto- 
risado  que  lhe  é  peculiar  •,  dois  jurisconsultos 
distinctos  ouvemx-n"o  com  uma  grande  attenção 
respeitosa,  como  a  um  mestre. 

Barjona  de  Freitas,  baixo,  nutrido,  hombros 
largos,  Ccibello  preto  e  luzidio,  falia  com  Thomaz 
de  Carvalho,  que  o  ouve  com  o  beiço  inferior 
uni  pouco  descabido,  e  Bulhão  Pato.  pequeno 
e  forte,  o  cabello  branco,  faces  morenas  como 
as  de  um  anduluz,  aproxim^a-se,  cofiando  a  pêra. 

E  como  n"esse  momento  uma  valsa,  de  um.a 
meiodia  suave,'  docemente  marulhada,  se  es- 
praie pela  sala,  devem  certamente  acudir-lhe  ao 
espirito  ardente  os  versos  da  Paqnita : 

Entrei  no  baiie,  quando  a  valsa  rápida 
Corria  as  salas  em  airosas  vohas  i 
Das  leves  roupas,  transparentes,  soltas, 
Que  doce  aroma  se  esparzia  no  ar  ! 
Parei  mirando  aquellas  frontes  cândidas. 
Que  se  animavam  de  alegrias  loucas. 
Amor  calando  nas  graciosas  bocas, 
Amor  dizendo  no  inspirado  olhar. 


'   Conselheiro  ?úartens  Ferrão. 


104 


As  primeiras  valsistas  de  Lisboa,  as  de  mais 
nobre  nascimento  e  de  mais  distincta  elegância, 
giravam  com  effeito  em  torno  do  salão,  que  pa- 
recia ondular  serenamente  como  um  lago,  en- 
crespado por  uma  brisa  ligeira. 

Algumas  cabeças,  formosamente  loiras  como 
a  de  Daphnc,  pareciam  aureoladas  por  um  dia- 
dema de  oiro;  outras,  de  bellos  cabellos  ne- 
gros, affiguravam-se  radiadas  de  arabescos  lu- 
minosos, como  o  azeviche  batido  fortemente 
pela  luz. 

O  visconde  de  S.  Januário,  de  amplo  peito 
arqueado,  gran-cruz  traçada,  cabeça  altiva,  con- 
versava n"um  grupo  de  senhoras  ;  o  duque  de 
Palmella,  alto,  suissas  pretas,  com  a  mão  di- 
reita entalada  entre  o  collete  e  a  gran-cruz,  aca- 
bava de  conversar  com  o  duque  de  Loulé,  que 
fora  fazer  a  sua  partida  de  whist  para  a  sala 
da  bibliotheca,  onde  o  conde  de  Valbom  jogava 
emparceirado  com  o  sr.  Carlos  Bento  na  mesma 
mesa  cm  que  também  era  parceiro  o  distincto 
advogado  Pinto  Coelho. 

Não  haveria,  pois.  melhor  occasiao  para  po- 
der observar  os  nossos  honiens  mais  distinctos 
na  politica,  no  foro,  na  litteratura,  na  diplo- 
macia, no  professorado,  no  commercio. 

Muitos  d"elles,  se  não  a  maior  parte,  são  um 
nobre  exemplo  de  coragem,  de  perseverança  e 
de  gloria  a  todos  quantos  agora  estreiam  a  sua 
carreira.  A  vista  de  um  trabalho  paciente  e  in- 


lOD 


trepido  alcançaram,  por  direito  de  conquista,  a 
alta  posição  que  lioje  occupam.  Soífreram,  com- 
bateram, luctaram,  mas  conseguiram  honrar  o 
seu  berço,  o  seu  nome,  e  o  seu  paiz.  Citemos 
ao  acaso  um  nome,  Mendes  Leal,  que  atraves- 
sou todas  as  commoçÕes  de  uma  existência  ac- 
cidentada  de  mil  incertezas,  luctando  sempre, 
no  theatro,  na  litteratura,  na  imprensa,  na  po- 
litica, mas  conseguindo  vencer  por  um  esforço 
heróico  de  que  só  os  homens  do  seu  valor  c  da 
sua  tempera  são  capazes. 

Quantos  d"elles,  se  não  todos,  téem  sido  injus- 
tamente accusados,  violentamente  atacados,  in- 
juriados atél  A  consciência  do  dever  é,  porém, 
uma  espécie  de  muralha  da  China,  onde  os  pro- 
jectis  da  inveja  e  da  calumnia  vão  bater,  re- 
fluindo de  ricochete  contra  os  que  os  arremes- 
saram com  mão  traiçoeira.  E  a  compensação 
providencial  destinada  aos  que  cumprem  a  sua 
missão.  Os  insignificantes,  os  invejosos,  os  inú- 
teis, aquelles  que  não  comprehendem  o  seu  des- 
tino, julgam  que  todos  lh'o  roubaram,  e  por  isso 
de  todos  dizem  mal. 

Aqui  está,  pois,  levamente  esboçada,  uma 
pagina  da  seasoii  lisbonense  em  i883. 


XÍIÍ 


Qostcs  não  ss  discatsm 


Tem  cada  um  sua  maneira  especial  de  se  di- 
vertir. Chega  a  haver  n'isso  uma  tal  variedade 
como  nas  ph3'sionomias. 

Ha  quem  não  possa  divertir-sc  com  os  ou- 
tros, c  quem  não  esteja  bastante  divertido  sem 
os  outros. 

Ha  quem  goste  dos  outros  só  por  algum 
tempo,  de  modo  que  nos  acontece  ás  vezes  en- 
contrar um  sujeito  que  nos  abre  os  braços  e  ex- 
clama nadando  em  jubilo: 

—  Ora  ainda  bem  que  o  encontro!  Ha  quanto 
tempo !  ha  quantos  mezes !  Temos  muito  que 
conversar  I  "\^anios  a  isso  !  vamos  a  isso  I 

Fica  a  gente  horrorisada  com  a  perspectiva 
de  uma  maçada  enorme.  Mas  não  ha  remédio 
senão  fazer  cara  alegre  e  acceitar  as  coisas  como 
ellas  são. 

—  Pois  vamos  lá  a  issol 


I07 


Conta-nos  o  sujeito  duas  lerias,  fugitivamente, 
como  se  o  tivesse  de  fazer  por  simples  cumpri- 
mento. 

E.  de  repente,  estendendo-nos  a  mão,  pare- 
cendo ter  já  dito  tudo  : 

—  Adeus!  meu  amigo.  Estimei  muito  vel-o. 

Aqui  está  um  exemplar  de  sujeito  que  gosta 
da  companhia  dos  outros  por  algum  tempo  ape- 
nas. 

O  grande  prazer  que  sentiu  encontrando-nos 
aguou-se  tão  de  pressa,  que  só  abandonando ■ 
nos  de  repente   poude  continuar  a  divertir-se. 

Conheci  um  alto  cavalheiro,  pessoa  de  esti- 
mação, que  folgava  immenso  de  que  outro,  que 
em  tempo  havia  feito  despachar  para  certo  lo- 
gar  da  alfandega,  o  seguisse  por  toda  a  parte, 
vestindo-lhe  o  casaco  á  Siiida  dos  theatrcs,  pe- 
gando-lhe  pa  bengala  se  queria  atar  o  cache-m-, 
acompanhando-o  a  casa  todas  as  noites,  dizen- 
do-lhe  na  rua  o  nome  das  pessoas  que  o  iam 
cumprimentando. 

Um  dia  o  fiel  protegido  adoeceu,  e  o  prote- 
ctor tão  aborrecido  se  encontrou  da  sua  falta, 
que  resolveu  ficar  em  casa  emquanto  o  outro 
não  melhorasse. 

Pelo  contrario,  ha  pessoas  a  quem  uma  tão 
solicita  e  dedicada  gratidão  incommodaria  enor- 
memente. 

Andrade  Corvo,  conversando  comigo,  dizia 
uma  vez : 


io8 


—  A  gratidão  que  persegue  a  gente,  é  das 
coisas  mais  secantes  que  se  conhecem.  E  oftende 
até  certo  ponto,  porque  dá  a  entender  que  fa- 
zemos um  favor  para  sermos  servidos  toda  a 
vida. 

Como  nesse  dia  estivesse  de  notável  bom 
humor,  exemplificou : 

—  Ora  imagine  que  se  dá  um  espirro  c  se 
ouve  dizer  logo  do  lado:  '^Dominus  teciinu  sr. 
conselheiro.»  Imagine  que  tira  a  gente  um  cha- 
ruto da  algibeira,  e  que  a  gratidão  acode  a  cor- 
tar-nos  o  passo  exclamando:  «Aqui  está  o  meu 
lume  ás  ordens  de  v.  ex/'^,  sr.  conselheiro!» 
Olhe  que  chega  a  fazer  perder  a  paciência ! 

Ha  pessoas  que  se  divertem  passeiando  sem 
fallar  e  sem  olhar  para  ninguém. 

Recolhe  um  desses  a  sua  casa  e  pergunta- 
Ihe  a  mulher : 

—  Encontraste  muita  gente  conhecida  ? 

—  Não  sei. 

—  E  tiveste  muito  calor,  hlho  ? 

—  Olha  que  também  não  sei. 

Outros,  porém,  gozam  andando  devagar,  pas- 
mando para  tudo,  parando  de  vez  em  quando 
a  observar  todos,  descobrindo  m\sterios.  sur- 
prehendendo  segredos. 

Conheço  um  destes;  que  me  disse  ha  pou- 
cos mezes  : 

—  Fulano,  quando  chegar  a  ministro,  não  faz 
caso  de  ninouem. 


109 


—  Por  que  ? 

—  Eu  lhe  conto.  Outro  dia  encontrou  elle  um 
amigo  na  rua  da  Boa  Vista.  Você  conhece  de 
ceito  o  Silveira  ? 

—  Muito  bem. 

—  Pois  era  esse  o  amigo  que  elle  encontrou. 
Eu  vinha  atraz  e  ouvi  toda  a  conversa.  Ambos 
queriam  o  americano  que  fosse  para  o  Rato. 
N'isto  passava  o  carro  que  ambos  desejavam. 
De  repente  o  outro,  que  lobrigara  um  só  logar 
vazio,  larga  o  Silveira,  trepa  para  o  americano, 
c  diz-lhe  de  lá  adeus  com  a  mão.  O  Silveira  fi- 
cou com  cara  de  parvo. 

—  Mas  que  tem  isso  ? ! 

—  Ah !  então  você  não  costuma  aproveitar  as 
lições  que  a  observação  de  todos  os  dias  lhe  vae 
deparando!  Está  arranjado!  Aquelle  americano 
era  uma  espécie  de  carro  do  governo,  em  que 
o  outro,  logo  que"teve  occasião,  tratou  de  ar- 
ranjar logar,  sem  se  importar  com  os  que  fica- 
vam atrazados. 

—  Sim.  Mas  não  me  parece... 

—  Homem!  qualquer  coisa  define  uma  pessoa. 
Os  que  gostam  de  íí\.zç.v  paciências  divertem- 

se  comsigo  mesmos :  em  tendo  um  baralho  de 
cartas,  prescindem  bem  dos  outros. 

Um  d"esses  taes  estava  em  casa  uma  noite. 
Passou  um  amigo,  e  entrou. 

—  Pensei  que  estivesse  gente  de  fora !  disse 
o  amigo  ao  entrar. 


I  IO 


—  Enganaste-te.  Estou  eu  só  a  íazcv  pacícu- 
cias. 

—  E  a  sr.'^  D.  Ismenia  ? 

—  Sahiu. 

—  F^oi  para  o  theatro  ? 

—  Também  não  sei  bem.  Sahiu  com  a  mãe 
• — E  tua  filha  ? 

—  Sahiu  com  o  tio. 

—  E  tu  por  que  não  s.ahiste  também  ? 
— rPor  que  não  precisava. 

—  Mas  sempre  c  bom  passeiar  depois  que  se 
janta. 

—  Para  passeiar,  meu  amigo,  basta  que  saia 
alguém  da  familia. 

Outros  são  de  feitio  opposto  :  amam  a  socie- 
dade, a  companhia,  a  convivência. 

Encontra  a  gente  um  ou  outro,  d  meia  noite, 
quando  recolhe  a  casa. 

—  Que  pressa  tem  \ocè  de  se  deitar?  y.a- 
gunta  elle. 

—  Preciso  levantar-me  cedo. 

—  Mas  durma  depressa,  homem! 

—  Durma  depressa  !  tem  graça  ! 

—  E  o  que  lhe  digo.  Quer  você  ouvir  um 
caso  ?  Olhe  que  ainda  c  cedo.  l'ma  \ez  estava 
eu  em  Villa  Eranca,  em  casa  do  Tibério.  Joga- 
va-se  o  voltarete.  Havia  hospedes:  um  delles 
era  o  maj(^r  Noronha,  que  linha  de  ir  no  com- 
boio da  manhã  para  Santarém.  O  jogo  enre- 
missou-se.  A  dona  da  casa,  muito  constrangida, 


1 1 1 


lembrou  que  era  meihor  deixarem  as  remissas 
para  outra  occasião,  porque  o  major  tinha  de 
levantar-.se  cedo.  E  vae  elle,  muito  amável,  res- 
pondeu :  «Não  tem  duvida,  minha  senhora,  por- 
que eu  estou  habituado  a  dormir  depressa.» 
Faça  você  o  mesmo,  e  dê  dois  dedos  de  ca- 
vaco. 

—  Sim...  mas  é  já  tarde. 

—  Olhe  cá,  a  propósito  de  voltarete  e  remis- 
sas... ^''ocê  sabe  que  o  Castilho  dizia  que  o  vol- 
tarete era  um  jogo  impio  ? 

—  ímpio  ? 

—  Porque  a  cada  passo  ouvia  dizer  aos  que 
o  estavam  jogando :  Arre  missas  !  (Ha  remis- 
sas). 

—  Tem  graça,   temi  Adeus,  que  já  é  tarde. 
E  o  pobre  homem,  que  só  com  os  outros  se 

diverte,  íica  aborrecido  por  se  achar  só  na  rua. 

Lenibra-lhe  talvez  ir  pedir  lume  ao  guarda 
nocturno  para  accender  o  charuto,  —  como  um 
pretexto  para  arm.ar  cavaqueira. 

Depois  de  accender  o  charuto  : 

—  O  sr.  guarda  I  n"esta  rua  ha  muitos  namo- 
ros ? 

—  Já  houve  mais. 

—  Por  que  ? 

—  Téem  ido  casando. 

—  E  mal  feito  ! 

—  Bem  ou  mal  feito,  é  lá  com  elles. 

—  Mas  o  senhor  fica  muito  prejudicado! 


[  12 


—  Ora  essa ! 

—  Porque  quantos  menos  namoros  houver, 
mais  só  vae  ficando  a  rua. 

Eil-o  aqui  a  pensar  como  se  ellc  próprio  fosse 
o  guarda  nocturno.  Ah  I  se  o  fosse,  valer-se-ia 
até  talvez  da  carta  anonvma  para  desfazer  ca- 
samentos, porque  os  namoros  podem  succeder- 
se,  mas  os  casados,  cm  geral,  não  se  namo- 
ram... depois. 

Ha  pessoas  secantes  que  se  divertem  ra- 
lhando sempre,  e  que  gostam  do  jogo.  porque 
lhes  dá  occasião  de  bater  murros  na  mesa  e  de 
gritar. 

A  um  d"estes  grasinas  faltava  certa  noite  um 
parceiro  para   jogar  o  whist  de  perna  de  pau. 

—  Se  viesse  por  ahi  alguém!  exclamava  elle 
espreitando  pelas  vidraças  para  fora. 

N^isto  tocaram  a  campainha. 

—  Ah  I  é  você  1  Ainda  bem  I  ^^lmos  lá  jogar 
o  whist. 

—  Não  jogo. 

—  Por  que  não  joga  ? 

—  Porque  você  ralha  sempre! 

—  Hoje  não  ralho.  Palavra  de  honra. 

—  Com  essa  condição,  vanios  lá. 
Meia  hora  depois  dizia  o  dono  da  casa: 

—  Esta  stearina  está  hoje  detestável! 
Passados  cinco  minutos : 

—  Parece  que  cá  em  casa  não  fazem  hoje 
tenção  de  servir  o  chá ! 


ii3 


De  repente  os  outros  dois  pegaram-se  a  dis- 
cutir o  jogo. 

—  Ah!  elle  c  issol  exclama  o  dono  da  casa. 
Pois  então  sempre  lhe  quero  dizer  a  você  (o 
tal,  que  tirara  a  condição)  que  já  ahi  fez  uma 
grande  asneira  quando  eu  me  queixei  da  stea- 
rina,  e  outra  quando  fallei  no  chá.  Da  primeira 
vez  você  devia  ter  vindo  a  oiros. 

Kntra  o  criado  com  o  taboleiro  do  chá. 

—  Leva  lá  isso,  que  ainda  é  mjuito  cedo !  E 
da  segunda  vez  porque  devia  ter  vindo  a  co- 
pas, que  era  o  que  se  lhe  pedia. 

Epaminondas,  segundo  resa  a  historia,  nem 
por  gracejo  mentia,  tanto  gostava  da  verdade, — 
até  para  se  divertir. 

Outros,  porém,  só  mentindo  é  que  estão  nas 
.suas  sete  quintas. 

E  isso  cria-lhes  difficuldades,  pÕe-n"os  em  gra- 
ves apuros,  mas  dá-lhes  tanto  gosto,  que  per- 
doam o  ma!  que  ás  vezes  lhes  faz  pelo  bem 
que  lhes  sabe.  .  .  o  mentir. 

Contava  um  n  uma  roda  de  amigos  : 

—  Ver  a  morte  I  Quatro  vezes  a  tenho  eu 
visto  já!  imaginem  que  andando  á  caça  no  Bra- 
zil,  alonguei-me  pela  roça  fora,  e  tinha  descido 
a  uma  chã  quando  vi  que  um  preto,  que  eu  ha- 
via castigado  dias  antes,  corria  atraz  de  mim 
de  espingarda  na  mão. 

—  E  depois  ? 

—  Depois  o  preto,  que  chegara  á  borda  do- 

s 


outeiro,  apontou-me  a  espingarda.  Voccs  sabem 
que  os  pretos  tecm  uma  pontaria  infallivel ! 

—  Como  diabo  escapaste  tu  ?  I 

Chegado  a  este  ponto,  também  elle  próprio 
não  sabia  ainda  como  poderia  ter  escapado. 

—  Sim  !  Como  escapaste  tu  ?  I 
Nova  hesitação  do  narrador. 

—  Não  escapaste  I 

—  Homem,  isto  é  serio.  Fosse  em  razão  do 
ódio  que  me  tinha,  ou  do  cansaço  da  corrida, 
o  preto  teve  uma  apoplexia  fulminante  e  veiu 
cair-me  aos  pés.  Dei-lhe  um  pontapé,  e  conti- 
nuei a  caçar. 

Conheci  um  rapaz,  que  morria  por  andar  de 
calças  brancas. 

Eu  disse-lhe  algumas  vezes  : 

—  Que  diabo  de  gosto  o  teu  I  Não  te  parece 
que  andas  em  ceroulas  ? 

Elle  respondia-me  sempre : 

—  E  a  ti  não  te  parece  que  metteste  as  per- 
nas n"um  tinteiro  I 

São  gostos,  e  gostos  não  se  discutem.  Mas 
se  toda  a  gente,  em  questão  de  gosto,  tivesse 
a  mesma  opinião,  quanto  seria  difhcil...  casar, 
por  exemplo ! 


XIV 

Fêccadilhcs  mstricos 

Non  bis  in  idem 


)'iiZL-m  amanhã  wnnos  . 


Alberto  1'imentel 

Sovidadcs,  de  doiiiiiigo  a? 
>ic  novembro  de  i>!.S7. 


Ainda  ante-hontem  dizia 
Certo  jornal  que  eu  fazia 
Annos  no  dia  seguinte. 
Comquanto  o  jornal  rot  rido 
Pertença  a  outro  partido, 
Kra  favor  ;  não  acinte. 

Mas,  emtim,  passa  em  julgado 

Que  eu  seja  tão  desastrado 

Que,  já  pro.ximo  dos  enla^ 

Faça  annos  cada  semestre  r 

Não  :  que  o  tempo  é  um  grande  mestre. 

Tempo  que  passa,  avelhenta. 


1  It) 

Fíizer  annos  em  novembro, 
Logo  em  abrii  repetil-os  ! 
De  tal  coisa  não  me  lembro  ! 
Tomara  diminuil-os, 
Quanto  mais,  por  triste  engano, 
Duplical-os  em  cada  anno  ! 

Assim,  se  chego  aos  sessenta, 
Gontar-me-hão  cento  e  vinte  ! 
Pois  cada  semestre  augmenta 
Um  anno,  e  outro  o  seguinte  ! 
Faço  annos  no  quente  e  frio 
Como  pago  ao  senhorio  !  l 

Não  I  Não  pode  ser  !  Protesto  ! 
Porque  eu  trabalho,  e  de  resto, 
Pago  de  seis  em  seis  mezes 
Duas  rendas,  uma  em  annos, 
Outra  em  metal !  São  enganos  ? 
Mas  eu  pago  duas  vezes  ! 

Fique  pois  bem  entendido. 
Bem  notório,  bem  sabido, 
Que  só  uns  annos  farei. 
Qtiator-^c  de  abril :  é  a  data. 
Dispenso  flores,  cantata..  . 
Mas  protesto.  E  protestei. 

■Kj  de  iioxembro  de  1SS7. 


i'7 


DEPOIS  DO  INCÊNDIO  DO  THEATRO  BAQUET 

("Versos  recitados  pelo  actor  Firmino, 

uma  das  victimas  sobreviventes  d'aqiielle  incêndio, 

no   beneficio 

que   reali:;ou    no   theatro   da    Trindade.) 

Venho  d"entre  as  ruinas  e  das  chammas, 
Onde  tudo  perdi.  Sabeis  a  historia, 
Que  o  vosso  coração  ainda  contrista. 
Perdoai  a  vaidade  ao  pobre  artista. . . 
Eu  sonhava  essa  noite  com  a  gloria. 

Monstruosa  ironia  !  A  gloria  I  A  gloria  ! 
Tive  por  ovação  prantos,  clamores. 
Ossadas  por  cortejo.  O  incêndio  e  a  fama 
Disputaram  ali.  Venceu  a  chamma. 
Eram  chammas  o  palco  e  os  bastidores. . . 

E  ali  n'essa  sinistra  apotheóse 
Ficaram  sepultados  meus  thesoiros, 
Amigos  que  eu  perdi, —  tão  dedicados  ! 
Minha  pobre  familia, —  os  meus  cuidados, 
Doces  cuidados  que  eu  pref  ria  aos  loiros  ! ... 

Sou  agora  a  mim  próprio  quasi  extranho, 
Um  viajante  perdido  no  deserto, 
N'esse  infindo  deserto  da  saudade. 
Sinto  ainda  a  desgraça  muito  perto..  . 
Mas  sinto  ainda  mais  perto  a  caridade  ! 

Se  vivo,  é  só  por  ella.  Em  seu  regaço 
Choro  o  meu  abandono,  as  minhas  dores. 
Refunde-se  a  minha  alma  em  muitas  almas. 
Vale  um  consolo  o  que  não  valem  palmas... 
Vivo,  meu  Deus  !  graças  avós,  senhores!... 


ii8 

UMA  DAS  MCTIMAS  1)0  INCÊNDIO 

(Eieh'ni.1  Júlia  dWbueid.j.) 

Vi-rt  n'um  baile,  ha  muitos  annos,  quantos  ! 
j)i»  sua  face  bella  as  frescas  rosas 
Deviam  ter  suavissimos  encantos 
Se  os  beijos,  namoradas  mariposas. 
Fossem  sorver,  ha  muitos  annos,  quantos  .' 
D:i  sua  face  bella  as  frescas  rosas. 

Mas  quem  hontem  logrou  reconhecel-a 
Kntre  as  negras  ruinas  sepultada  :. .  . 
Mas  quem  poude  allirmar,  dizer  :  É  el!a  ! 
Kila  que  fora  outr"ora  alva  e  rosada  1 
Já  não  poude  ninguém  reconhecel-i 
F.ntre  as  negras  ruinas  sepultada. 


i8K. 


i."  DF  DEZEMBRO 

Filippa  de  \ilhena  I 
João  Pinto  Ribeiro  I 
Palavra,  que  faz  pena 
Ver  o  despenhadeiro 
Em  que  isto  agora  vae  ! 
F.  como  o  paiz  cae  1 

Agora  é  só  dinheiro. 
Está  campando  em  scena 
Somente  o  deus  Milhão  ! 
Filippa  de  Vilhena  ! 
João  Pinto  Ribeiro  I 
Palavra,  que  faz  pena.  . . 
Agora  é  só  dinheiro. . . 
E  os  que  lá  vão  lá  y~\n  ! 


A 19 

EMÍLIA 
f(£Mmha  irmã.) 

Nunca  tu  azas  tiveras, 
Que  te  elevassem  ao  ceu. 
Nunca  tu  voar  poderás 
Co 'as  azas  que  Deus  te  deu. 

Por  mais  que  tu  procuraste 
Reprimir-Ilie  o  oncioso  vóo, 
Eras  tão  débil  !  cansaste. 
Deus  quiz  o  anjo,  elevou-o. 

Tinha  reflexos  tão  doces 
O  teu  olhar  doce  e  brando, 
Que  logo  pensei  que  fosses 
Lírio  que  veio  voando 

D 'essa  translúcida  esphera. 
Tão  cristalina  e  tão  alta, 
Onde  a  eterna  primavera 
Sentiria  a  tua  falta. 

Então  as  flores  celestes 
Chorando  saudosamente 
Vestiram  lutuosas  vestes, 
Feitas  de  seda  somente. 

E,  debruçadas  nas  sépalas, 
Choraram  pranto  divino 
Sobre  o  justilho  de  pétalas, 
Polvilhado  de  ouro  flno. 

Deus  viu-as  tristes,  chorosas. 
Nos  seus  ethéreos  jardins^ 


120 

E  chorou  co"as  suas  rosas. 
Teve  do  dos  seus  jasmins. 

E  como  o  pranto  divino 
Também,  como  pranto,  queima, 
Deus  co'a  sua  voz,  um  hymno, 
Dissera  ás  azas:  «Trazei-m'a.» 

E  as  azas,  mal  escutaram 
A  celeste  melodia, 
Obedeceram,  voaram, 
Qual  d'ellas  mais  voaria. 

Quando  esse  lirio  nevado 
Chegou  de  novo  ao  empíreo. 
Ia  triste  e  maguado. 
Deus  estranhou  o  seu  lin<í  I 

E  o  que  o  lirio  não  dissera 
Tudo  Deus  adivinhou. 
Voando  á  celeste  esphera, 
Chorara  emquanto  voou. 

As  flores  do  azul  sorriam, 
Os  lirios  do  ceu  cantavam. 
Meus  olhos  já  te  não  viam, 
Meiga  creança,  e  choravam. 

Nunca  tu  azas  tiveras, 
Que  te  elevassem  ao  ceu 
Nunca  tu  voar  poderás 
Co  as  azas  que  Deus  te  deu. 


24-2-87. 


121 


JOÃO  DE  DEUS 

João  de  Deus  I  De  Deus. .  .  porque  é  divino. 
João,  ou  seja  o  primo  de  Jesuz 
Ou  o  outro  que  vela  junto  á  Cruz, 
E  divino  também. 

E  não  atino 
Senão  co'esta  rasão:  foi  prophecia 

— Se  já  não  foi  destino — 
De  quem  previu  que  João  de  Deus  seria 

Um  poeta  divino. 

Ericeira,  21 — :o — 90. 


KERMESSE 


O  bem  é  como  as  auroras, 
Que  para  tudo  o  que  existe 
Espalham  luz  e  calor. 
Seja  alegre  ou  seja  triste 
A  alma,  o  insecto,  a  ave,  a  flor. 
Tudo  o  que  ri  ou  que  chora 
Sente  nos  raios  da  aurora 
A  esmola  do  eterno  amor.  .  . 

Os  beijos  do  sol  aquecem 

Tudo  o  que  é  velhoou que  é  moço, 

O  ephémero  e  o  colosso. 

As  rochas  e  os  corações, 

Os  lagos  e  as  ondas  bravas, 

Empórios  e  solidões. 

As  lagrimas  das  escravas 

E  os  sorrisos  das  rainhas, 

As  cavernas  dos  leões 

E  os  ninhos  das  andorinhas. 


122 

E  o  bem  c  como  as  auroras. 
Por  isso  ao  bem  não  esquece 
A  creança,  o  ninho,  a  escoJa... 

Tu  és  como  o  sol,  esmola  ! 
íss  como  a  aurora,  kermesse  ! 


OS  TREZ  VFLH05 


Cahiu  um  nevão  na  serra. 
Desde  a  cumiada  ao  vai 
Alveja  rútila  a  terra. 
Não  houve  nevão  egual ! 

O  ar  í;eiado,  cortante, 
Passa  sobro  as  povoações 
CeifanJo  como  um  montante, 
Rugindo  como  os  leões. 

Arvores  secas,  esguias 
Olham  para  o  ceu,  talvez 
A  soluçar  elegias. 
Carpindo  a  sua  nudez. 

Cheias  de  fome.  as  manadas 
Sobre  as  campinas  despidas 
Só  roem  urzes  queimadas 
F.  roizes  ressequidas. 

A  fome,  a  doença,  a  morte 
Assentaram  arraiaes 
Junto  ao  casal  e  á  corte, 
Levando  qente  e  animaes. 


123 

Famintas,  as  alcateas 
Vem  de  noite  ao  povoado. 
Tremem  de  medo  as  aldeãs, 
Ouvindo  o  lobo  esfaimado.  - . 

E  desde  o  alto  da  serra 
Ahrè  a  neve  o  seu  lençol. 
O  que  seria  da  terra 
Sem  ter  um  raio  de  sol  ?  ! 

II 

Entre  a  egreja  e  o  prcsbyterio 
Corre,  caiado  de  novo, 
O  muro  do  cemitério. 
Vem  ali  juntar-se  o  povo. 

O  sol,  batendo  no  muro, 
Aquece  a  pedra  ao  meio  dia, 
Torna  o  inverno  menos  duro, 
Tempera  a  nortada  fria. 

Lá  se  juntaram  trez  velhos 
Secos,  rijos,  vermelhaços. 
Expondo  ao  sol  os  joelhos. 
Estendendo  ao  sol  os  braços. 

Emquanto  o  sol  os  aquece, 
Riem-se  elles  da  nortada. 
Cada  um  seu  mal  esquece. 
Vai  tudo  de  patuscada. 

—  Tem  morrido  muita  gente 
Com  esta  grande  invernia  ! . .  . 
— Pois  nunca  o  inverno  foi  quente 
— Salvo. . .  este  sol  do  meio  dia. 


124 

— Este  sol  é  a  minha  adega  : 
Eu  não  quero  outro  calor. 
— Você  o  vinho  renega  ! .  . . 
— Língua  de  mau  pai^ador  I 

— O  vinho  é  caro.  A  cachaça 
Custa  agora. . . 

— Isso  que  monta  ! 
— O  sol  dá-o  Deus  de  graça  ! . . . 
— Mas  beba  vinho  com  conta  ! 

— Eu  cá  nunca  fui  borracho. 
— Nanja  eu.  Mas  acho-o  bom. 
— Diz  um  cacho  a  outro  cacho  : 
Não  bebas  sem  tom  nem  som  ! 

E  n'esta  mansa  folia 
Vão-se  aquecendo  os  trez  velhos 
Ao  doce  sol  do  meio  dia, 
Rijos,  secos  e  vermelhos. 

III 

— Lá  vem  enterro.  . .  Isto  agora. . 
Não  tem  descanso  o  coveiro  I 
— Vem  d'acolá  d 'onde  mora 
A  mulher  do  Zé  Cabreiro. 

— Foi  o  rilho. . .  É  de  creança 
O  caixão  :  eu  inda  vejo  ! 
— O  coveiro  não  descansa  ! .  . . 
— Inda  hontem  lhe  dei  um  beijo  ! 

— A  quem  ?  Ao  coveiro  ?  ! 

— Irra 
Ao  rilho  do  Zé  Cabreiro. 


125 

— o  frio  as  creanças  mirra. 
— Lá  vem  atraz  o  coveiro. .  . 

— A  morte  leva  os  fedelhos, 
Mata  n'um  dia  um  rapaz, 
Emquanto  que  nós,  os  velhos. 
Vamos  ficando  pVa  traz  ! 

— A  morte  é  uma  gulosa, 
Gosta  de  bocados  finos. 
Carnes  que  cheirem  a  rosa, 
Polpa  de  tenros  meninos.  . . 

— Pôde  ser  ! . . . 

— Pois  certamente  ! 
Nós  cá,  ossos  esbui"gados, 
Nem  para  a  cova  de  um  dente 
I.he  chegávamos,  coitados  ! 

No  alto  mar  me  contava 
Um  velho  de  Guimarães 
Que  a  terra  se  embebedava 
Com  as  lagrimas  das  mães. . . 

— Por  isso  lhes  leva  os  filhos  ! . .  . 
A  gulosa  ! . .  .  Quer  banquete  ! 
— Quem  tem  filhos  tem  cadilhos. 
Morreram-me.  Eu  tive  sete  ! . . . 

— E  eu  nenhum. 

— Nem  eu. 

—Agora, 
Sem  ter  filhos  nem  mulher. 
Visto  que  ninguém  nos  chora, 
Nem  mesmo  a  terra  nos  quer  ! . . . 
Janeiro  de  iSgi. 


126 

AS  POMBAS 

(De  Theophilo  Gautier.) 

Na  collina  dos  mortos,  entre  os  túmulos, 
Ergue  a  bella  palmeira  a  verde  pluma, 
E  á  tarde  as  mansas  pombas  de  azas  cândidas 
Vão  aninhar  ali,  uma  após  uma. 

De  manhã,  quando  o  sol  desperta  rútilo. 
As  brancas  pombas  vão,  cortando  o  ar, 
Como  um  solto  collar  no  azul  ethércd, 
Longe  do  ninho  um  tecto  procurar. 

Minha  alma  é  como  a  solitária  arvore 
Onde  enxames  de  loucas  illusÕes 
Poisam  á  noite.  Fui^itivos  hospedes, 
Vão-se  coa  luz  as  pombas  e  as  visões. 

8— 2— Sj.  

MrLIIi-.R  E  GATA 

(PauI  Verlainc.) 

O  vel-a  ate  dava  gosto 
Brincando  co'  a  sua  gata, 
Branca  mão  contra  alva  pata. 
Na  penumbra  do  .sol  posto. 

Mitene,  que  a  mão  recorta. 
Por  dissimular  trabalha 
l'nha  d*ágatha,  que  corta 
F.  brilha  como  navalha. 

Mas  a  gata,  disfarçada 
Também,  com  prazer  ronrona 


127 

E  ensaia  a  unha  acerada.  .  . 
Não  é  melhor  Jo  que  a  dona  ! 

E  os  dois  iabios  purpurinos 
Enchiam  de  riso  o  ar, 
Onde  se  viam,  felinos, 
Quatro  phosphoros  brilhar. 


N"U.MA  SALA 

A  um  canto,  os  politicos  fallavam 

Com  um  certo  mvsterio 
Do  modo  como  as  coisas  caminhavam. 
Se  estava  forte  ou  fraco  o  ministério. 

Alguém  que  se  mostrava  resentido, 
Abanava  a  cabeça — era  um  symptoma 
De  que  a  seu  ver  o  mundo  está  perdido 
E  tudo  cae, — como  caíra  Roma  ! 
Elle  só,  por  sciencia  e  por  estudo, 
Era  talvez  capaz  de  salvar  tudo. .  . 

N"outro  canto  da  sala  i^orgeiava 

A  musica  do  riso  e  d 'alegria 

Um  grupo  que  sorria  e  que  faiiava 

De  quanto  ouvia  e  via. 
Era  o  grupo  formoso  das  solteiras, 

O  grupo  dos  vinte  annos, 
Que  é  capaz  de  passar  noites  inteiras, 
Rindo  de  tudo, —  até  dos  desenganos  ! 

D'este  grupo  gentil  como  é  que  eu  posso 

l^esenhar  o  esboço  ? 
Precisaria  ter  as  tinta.>  finas, 


128 

o  magico  pincel 
De  que  dispunha  o  grande  Raphaei  ! 
F.m  vez  de  uma  . .  .  eram  quatro  Fornarinas. 

Quereriam  talvez  as  bellas  damas 
Ver  no  papel  traçado  o  seu  perfil  i  ! 

N'essa  não  caio  eu. . . 
Quem  é  capaz  de  retratar  abril  ? 
De  transportar  á  tela  o  que  é  do  ceu  ? 

De  copiar  as  flores  ? 

De  imitar  as  estrellas  ? 
De  dizer  á  manhã  :  Roubeite  as  cores  ? 
Tende  paciência,  ó  minhas  damas  bellas, 
Incumba  cada  uma  o  seu  Romeu 

D 'esse  arrojo  inaudito. 

Eu  cá  por  mim,  repito, 

N'essa  não  caio  eu. . . 

K  de  mais  eu  bem  sei,  minhas  senhoras, 
Que  mo  attendestes  n'um  serão  inteiro 
Por  não  haver  na  sala  algum  solteiro. . . 
Sois  boas,  não  sejaes  enganadoras. 

Eu  já  tenho  trez  filhos,  eu  sou  velho, 
Disse-m'o  ha  pouco  tempo  uma  visinha, 

E  o  maldito  do  espelho 
'lem-me  mostrado  até.  .  .  pés  de  ^alliuha  !. 

Vão  muito  longe  as  minhas  primaveras. 
De  mais  a  mais,  senhoras,  a  aza  branca 
Da  musa  ideal  que  eu  tive  n 'outras  eras 
Desplumou-se  a  pensar  em  Salamanca, 

No  imposto  sobre  o  sal, 
A  estudar  as  questões  do  parlamento, 

O  orçamento  geral, 


129 

• — Diabo  de  orçamento  ! 
Que  é  o  livro  maior  que  ha  em  S.  BerJo  ! 
Assim  se  foi  rasgando,  creio  eu, 
Essa  aza  branca  que  me  erguia  ao  ceu  I .  . 

Vede,  senhoras,  se  ha  tormento  igua!  ! 

O  que  me  resta  só, 
Para  de  todo  errar  da  sorte  o  alvo, 

E  vêr-me,  um  dia,  calvo, 
E  descer  á  miséria. .  .  de  um  chino. 

N 'estas  alturas,  minhas  damas  bellas, 

Não  posso  ser  pintor. 
Quereis  ver-vos,  senhoras,  retratadas 
Formosas  como  sois,  e  delicadas  í 

Mirae-vos  n'uma  flor.  . . 

N'essa  não  caio  eu  . .  . 
Fazer-vos  o  retrato  .''  ! 
Mas,  em  compensação, 
Com  a  vossa  adhesão 
Estou  prompio  a  fazer  um  syndicato. 


XV 


Os  amav2is 


Toda  a  gente  os  conhece,  os  amáveis,  sem- 
pre generosos,  sempre  previdentes,  tendo  á  flor 
dos  lábios  sorrisos  doces  e  doces  falias,  que, 
quando  não  encantam,  incommodam  com  cor- 
tesã os  outros  .  .  . 

Sim,  porque  os  grosseiros  custam  a  aturar, 
são  bruscos,  são  ásperos,  são  impertinentes. 
Mas  os  amáveis  de  profissão,  os  que  fazem 
gosto  e  gala  de  o  ser  por  uso  e  costume,  che- 
gam a  aborrecer  quasi  tanto  como  os  grossei- 
ros. 

Com  a  differença  de  que  se  um  grosseiro, 
por  descuido,  alguma  vez  se  mostra  amável, 
fica  a  gente  encantada  com  essa  surpresa  ;  ao 
passo  que  se  um  amável,  também  por  descuido, 


lOI 


commeite  uma  grosseria,  fica  a  gente  quasi  ve- 
xada de  ver  que  e!le  estragou  com  um  invo- 
luntário borrão  todo  o  seu  passado  de  homem 
fino. 

A  cortezia  é  como  certos  estofos  claros,  em 
que  a  mais  leve  nódoa  se  torna  saliente.  Ao 
passo  que  nos  tecidos  grosseiros,  qualquer  in- 
correcção de  cor,  qualquer  sombra,  por  maior 
que  pareça,  tem  sempre  esta  desculpa :  «E 
mesmo  da  fazenda.  .  •  >^ 

Um  brutaihão  de  marca  maior  costumava 
espancar  a  mulher  por  dá  cá  aquella  palha.  As 
visinhas  tinham  dó  da  pobre  creatura  sempre 
que  ella  acabava  de  apanhar  a  sova  do  est34o. 
«Coitada!  diziam-lhe,  vocemecê  sempre  foi  mui- 
to infeliz  com  o  marido  que  escolheu  I»  E  ella 
respondia,  cheia  de  philosophica  resignação : 
«E  génio  d'elle •,  não  façam  caso.» 

Equivalia  certamente  a  dizer:  «E  feitio  da 
fazenda,  não  ha  que  extranhar.» 

Um  amável  que  uma  vez  escorrega,  fica  tão 
maltratado  em  sua  boa  fama,  como  ficaria  mal- 
tratado corporalmente  se  tivesse  caído  do  arco 
grande  das  Aguas  Livres  sobre  as  hortas  da 
Rabicha. 

Um  dia,  certo  cavalheiro  primoroso  em  fal- 
ias e  maneiras,  inexcedivel  em  requintes  de 
cortezia,  andando  adoentado  de  irritação  intes- 
tinal, teve  a  infelicidade,  estando  a  jogar  jogos 
de   prendas   com   damas,    de   ser   elle   próprio 


1*2 


dolorosamente  surprehendido  por  alguma  coisa 
que  o  vexou. 

O  jogo  acabou  de  repente,  no  meio  de  um 
silencio  gelado.  O  cavalheiro  infeliz  pegou  no 
chapéo  e,  esv.juecendo-se  da  bengala,  deitou  a 
correr  pela  escada  abaixo. 

As  damas  dividiram-se  em  grupos,  fallando 
ao  ouvido  umas  das  outras,  recciosas  de  que 
alguém  as  ouvisse. 

Os  que  estavam  jogando  o  voltarete  e  o 
;í'/2;s/  perguntavam  admirados : 

-Então   acabaram   tão   cedo  o  seu  divcrrti- 
mento  I 

—  Aconteceu  alguma  coisaj? 

—  Por  que  se  íoi  Fulano  embora  tão  depressa  ? 

K  as  damas  calavam-se  mysteriosamente,  en- 
trincheiradas n'um  silencio,  que  só  quebravam 
para  cochichar  ao  ouvido  de  alguma  sua  amiga. 

No  dia  seguinte  o  caso  espalhou-se  em  toda 
a  cidade. 

—  Sabe  o  que  aconteceu  hontem  a  Fulano 
em  casa  de  Fulano  ? 

—  Não  sei. 

—  Pois  ainda  não  sabe  '. 

—  Eu  lhe  digo. . . 

E  dizia-lh'o  ao  ouvido,  com  tamanho  myste- 
rio,  que  justificava  plenamente  o  pasmo  com 
que  a  noticia  era  recebida. 

—  Ora  essa  ! 

—  Um  homem  tão  correcto! 


i:o 


—  Um  tão  perfeito  ctivalheiro! 

—  Que  pena  I 

—  Que  desastre  I 

—  Que  fiasco ! 

E,  em  verdade,  o  que  tinha  acontecido  a 
esse  primoroso  cavalheiro,  que  não  podesse 
acontecer  a  qualquer  outra  pessoa  ? 

Tinha  deixado  cair  um  borrão  no  claro  es- 
tofo da  sua  boa  fama. 

Se  se  tratasse  de  um  grosseirão,  toda  a  gente 
haveria  dito  apenas  que  era  próprio  da  fazenda. 

Viajando  em  caminho  de  ferro,  quem  é  que 
não  tem  encontrado  um  companheiro  tão  amá- 
vel, que  chega  a  aborrecer? 

Se  tem  vontade  de  abrir  uma  janella,  enco- 
bre este  desejo  com  um  veo  de  cortezia,  e  per- 
gunta : 

—  Quer  a  janella  aberta,  não  é  verdade? 
Se  deseja  fechal-a,  serve-se  de  processo  idên- 
tico, sempre  em  nome  da  cortezia : 

—  Pois  não  é  verdade,  pergunta,  que  dese- 
java a  janella  fechada  : 

Se  se  trata  de  olferecer  de  jantar  a  alguém, 
o  amável  insta,  insiste,  persegue  quasi,  que  é 
talvez  a  melhor  maneira  da  gente,  no  caso  de 
ter  que  acceitar  por  força,  ir  mal  disposta,  e 
comer  pouco. 

—  Você — dizia  certo  amável  a  um  amigo  que 
lhe  appareceu  sem  ser  esperado — você  janta 
hoje  comigo  sem  appellação  nem  aggravo. 


i34 


—  Não  posso,  meu  caro,  o  comboio  parte 
d^aquí  a  meia  hora,  e  eu  tenho  que  seguir  hoje 
viagem.. 

—  Que  pena  I  que  pena  !  Mas  veja  hí  se  pôde 
de  algum  modo  fazer  o  sacrificio  de  jantar  hoje 
comigo.  .  . 

—  Absolutamente,  não  posso,  meu  caro. 

E  o  ama\el,  tirando  dois  charutos  da  algi- 
beira, offerece  um  ao  seu  amigo  e  procura  o  pre- 
texto de  ir  ao  interior  da  casa  accender  o  outro. 

Serviu-se  d"este  pretexto  para  ir  dizer  alguma 
coisa  ao  cosinheiro,  que  aliás  não  tinha  dotes 
de  muito  esperto. 

E,  voltando  para  a  sala,  todo  elle  era  per- 
guntar ao  amigo : 

—  Seu  pae  como  está  ? 

—  Menos  mal,  obrigado. 

—  E  seu  tio  ? 

— -Esse  passa  peíor. 

—  Sinto  muito.  Diga-lhe  que  sinto  muito. 

—  E  aquelle  seu   primo   de   Torres  Novas? 

—  Esse  I  Morreu  ha  um  anno  I 

—  Não  sabia  1  Que  penal  um  homem  ainda 
tão  novo ! 

De  repente,  voltando  ao  otTerecimento  do  jan- 
tar: 

—  Mas,  dccididanicnie.  você  janta  hoje  co- 
migo .  .  . 

—  Não  posso,  meu  caro,  porque  o  comboio 
não  dá  l'cenca 


i35 


—  Eu  nem  mesmo  sei  o  que  tenho  hoje  para 
jantar.  Mas  isso  sabe-se  depressa.  O'  José  Ma- 
ria, anda  cá. 

José  Maria  era  o  cosinheiro,  a  quem  elle  ha- 
via dito  de  repente,  quando  foi  accender  o  cha- 
ruto : 

—  Se  eu  logo  te  perguntar  o  que  temos  para 
jantar  hoje,  inventa  lá  alguma  coisa  grande  e 
pomposa. 

Vem  o  José  Maria  e,  de  barrete  branco  na 
mão,  espera  que  o  amo  o  interrogue. 

—  O  que  temos  nós  hoje  para  jantar,  José 
Maria  ? 

E  o  cosinheiro,  que  estivera  matutando  na 
invenção  de  alguma  coisa  grande  e  pomposa, 
responde : 

—  Saiba  v.  ex."  que  temos  uma  balea. 
Gesto   de   surpresa  do  amigo  e  do  dono  da 

casa. 

O  cosinheiro  fica  atarantado,  suppõe  que  ti- 
nha dito  ainda  pouco . .  . 

—  O  que  dizes  tu,  José  Maria  I  Uma  baleai 
E  o  cosinheiro  querendo  emendar  a  mão: 

—  Duas  .  .  .  duas.  meu  senhor. 

Um  homem  menos  amável  teria  certamente 
evitado  este  fiasco  das  duas  baleas.  porque  não 
se  lembraria  de  chamar  o  cosinheiro  como  col- 
laborador  da  sua  amabilidade  hospitaleira. 

E  toda  a  gente,  d'ali  por  diante,  repetiu  o  caso 
ás  gargalhadas,  fazendo  alastrar  a  nódoa  com 


iM) 


que  uma  tão  distincta  pessoa  maculara  a  sua 
reputação  de  homem  amável. 

Havia  um  sujeito,  pessoa  exceilente,  a  quem 
a  naturesa  dera  como  íilho  um  brutamontes 
rebelde  a  todas  as  correcções. 

Pae  e  rilho  foram'  convidados  a  jantar  fora 
de  casa.  O  filho  quiz  ir  por  força:  o  pae  con- 
sentiu, com  a  Condição  de  que  elle  fallaria  o 
menos  possível. 

Á  mesa,  o  visinho  da  direita  disse  ao  rapaz: 

—  O  tempo  está  magnifico  I 

Elle  limitou-se  a  meneiar  aliirmaiivamente  a 
cabeça. 

O  visinho  da  esquerda  disse- lhe  por  sua  vez: 

—  Que  magnifico  tempo  1 

Elle  tornou  a  meneiar  a  cabeça. 

D'ali  a  nada  diziam  os  visinhos  aos  visinhos: 

—  Este  rapaz  é  um  grosseirão  ! 

E  o  rapaz,  dirigindo-se  ao  pae,  cir.e  estava 
sentado  defronte  : 

—  Olhe  que  elles  ja  me  conheceram  !  Posso 
fallar  d  vontade. 

O  pae  sorriu  encolhendo  os  hombros,  como 
se  quizesse  dizer  para  os  outros  convivas  . 

—  Desculpem,  isto  é  mesmo  da  fazenda. 
Desenganem-se :  os  amáveis  teem  muito  mais 

que  perder  do  que  os  grosseiro.-^.  E  quantas 
vezes  se  arrepende  uma  pessoa  de  ser  amável. 
devendo  ter  sido  grosseira  !.  .  . 


XVÍ 


Devo  começar  por  dizer  quem  fosse  o  sr. 
D.  Ruy,  porque  eu,  posto  a  contar  historias, 
tenho  ainda  o  mau  costume  de  começar  pelo 
principio. 

O  que  faz  com  quç  seja  alguma  coiía  mas- 
sador. .  .  pelo  menos. 

O  sr.  D.  Ru}-  era  o  fiiho  único  da  f.dalga  da 
Gésíeira  e  do  morgado  do  mesmo  nome. 

Sobre  aqueíle  menino  pesava  uma  nobreza 
de  sete  gerações,  e  uma  riqueza  talvez  mais  pe- 
sada ainda  do  que  uma  tal  arvore  genealógica. 

Pela  sua  parte,  elle  não  precisaria  ser  tão 
nobre  nem  tão  rico  para  se  fazer  estimar  e 
adorar. 

Era,  realmente,  uma  creança  insinuante,  rnci- 


i3S 


ga  e  intelligente,  quasi  nada  voluntariosa  ape- 
zar  dos  extremos,  por  vezes  ridículos,  com  que 
era  tratada. 

A  mãe  parecia  viver  da  vida  do  tilho.  Se  elle 
ria,  ria  ella  também-,  ás  vezes  adoeciam,  m.ãe 
e  íilho,  da  mesma  tristeza :  chamava-se  logo  o 
medico  para  ambos,  porque  o  morgado,  depois 
de  ter  vivido  no  mundo,  prescindira  da  socie- 
dade que  tanto  o  prendera  outr'ora,  para  se  li- 
mitar a  viver  para  a  mulher  e  para  o  filho,  isto 
é,  para  uma  só  alma  partida  em  dois  corpos. 

No  solar  da  Gésteira  havia  ainda  uma  outra 
pessoa,  que  fazia  parte  integrante  da  familia  : 
era  o  padre  João,  capelláo  da  casa. 

Padre  João  accumulára  também  as  funcçÕes 
de  preceptor  do  sr.  D.  Ruy  durante  a  primeira 
infância  do  fidalguinho.  Ensinara-o  a  lêr  e  a  re- 
zar. Umas  vezes  por  outras  fallava-lhe  do  sr. 
D.  Miguel  de  Bragança,  que,  segundo  elle.  era 
o  Dcse/ado  dos  tempos  modernos. 

Mas  o  sr.  D.  Ruy  foi  crescendo,  e  chegou 
um  dia  em  que  se  pensou  no  que  se  devia  fa- 
zer d'aquelle  menino. 

O  que  havia  elle  de  ser  no  mundo  para  me- 
lhor fazer  sobresair  a  sua  riqueza  e  a  sua  fidal- 
guia ? 

A  mãe,  no  egoismo  do  seu  amor,  dizia  que 
o  melhor  era  não  se  pensar  mais  n'isso,  que  o 
sr.  D.  Ruy  já  sabia  ler  o  bastante.  .  .  para  não 
ser  analphabeto. 


i39 


Padre  João  concordava  com  a  fidalga:  que 
sim,  que  a  sabedoria  era  boa  para  os  pobres. 

O  morgado  protestava.  Elle  mesmo  era  ba- 
charel em  direito,  e  queria  que  o  filho  o  fosse. 

Vivendo  amarrado  ás  tradições  de  família, 
queria  que  o  filho  se  graduasse  em  leis,  como 
elle,  fazendo  o  que  seu  pae  fizera,  tendo  um 
cavallo  para  passeiar,  como  todos  os  estudan- 
tes nobres  d'aquelle  tempo,  exhibindo-se,  n'uma 
palavra,  em  toda  a  plenitude  das  regalias  que 
uzufruiam  os  morgados  em  Coimbra. 

Padre  João  concordava  também  com  o  mor- 
gado: que  sim,  que  o  saber  não  ficava  mal  a 
ninguém. 

A  morgada  zangava-se,  e  dizia  : 

—  O  padre  João  está  fallando  assim  por  com- 
prazer com  meu  marido.  Já  lhe  tenho  ouvido 
dizer  que  a  sabedoria  é  boa  para  quem  não 
tem  outra  coisa. 

O  bom  do  capellão  via-se  enleiado,  tomava 
a  sua  pitada,  rufava  depois  com  os  dedos  so- 
bre os  joelhos  : 

—  Sim,  quero  eu  dizer,  minha  senhora,  que 
nem  tanto  ao  mar  nem  tanto  á  terra.  Uma  en- 
vernizadella  ao  espirito  não  faz  mal  a  ninguém... 

—  Uma  envernizadella!  replicava  o  morgado. 
Mais  do  que  isso.  Uma  carta  de  bacharel. 
Pôde  nascer-se  morgado,  sem  a  gente  o  que- 
rer:, doutor  é  que  não.  O  padre  João  já  viu  al- 
guém nascer  doutor  ? 


j'4o 


—  Eu,  não.  sr. 

—  Pois  se  não  viu,  é  porque  para  o  ser  é 
preciso  estudar  e  saber  alguma  coisa.  E  a  honra 
é  tanto  maior  quanto  o  individuo,  pela  sua  po- 
sição social,  menos  precisa  das  cartas  de  um 
curso  para  viver.  Hoje  os  tempos  mudaram,  e 
um  fidalgo  ignorante  ja  ninguém  o  toma  a  serio. 
Eu  quero  que  meu  filho  vá  a  Coimbra. 

A  fidalga  punha  os  olhos  no  cháo^  ficava  ca- 
lada e  triste. 

—  Mas  isso  não  é  por  ora,  tornava  o  mor- 
gado*, escusas  de  estar  ahi  a  abalar  de  tristeza, 
Christina.  Has  de  habituar-te  pouco  a  pouco  a 
viver  sem  o  teu  filho,  como  minha  mãe  se  ha- 
bituou. O  habito  é  uma  segunda  natureza.  Pri- 
meiro entrará  o  Ruy  n'um  collegio.  \'amos  vi- 
ver para  o  Porto,  —  e  olha  que  faço  n'isso  al- 
gum sacrificio,  porque  já  me  custa  arrancar- 
me  á  vida  da  província.  Para  que  elle  também 
se  habitue  a  viver  sem  nós,  mettemol-o  n'uni 
collegio,  no  da  Guíj.  por  exemplo,  porque  le- 
nho boas  informações  a  respeito  d^essa  casa  de 
educação.  Iremos  vel-o  sempre  que  queiras. 
Pelas  ferias,  sahirá,  viremos  para  a  Gésteira, 
a  fim  de  que  elle  possa  saborear,  de  tempos  a 
tempos,  o  bem  estar  da  casa  paterna,  conser- 
var as  tradições  de  familia.  que  cu  tanto  prezo, 
e  tu  tanibcm, 

De  sahir  da  Gesicira,  de  deixar  o  seu  que- 
rido  Minho,    é  que   padre   João   não   gostava;, 


141 


mas,  chamado  a  conselho  pelo  morgado,  não  ti- 
nha remédio  senão  concordar. 

Finalmente,  resolveu-se  que  o  sr.  D.  Ruy 
iria  para  o  collegio  da  Guia  estudar  prepara- 
tórios. 

Os  fidalgos  da  Gésteira  sahiram  para  o  Porto, 
e  arrendaram  casa,  uma  bella  casa  de  trez  an- 
dares, na  rua  de  Santa  Gatharina. 

A  fidalga  queria  ficar  perto  , do  collegio,  —  o 
mais  perto  possível. 

Marcou-se  o  dia  em  que  o  sr.  D.  Ruv  devia 
entrar  no  collegio.  O  director,  o  Daniel  Na- 
varro, tinha  ordem  de  se  não  poupar  a  despe- 
zas  para  amenizar  a  iniciação  do  joven  colle- 
gial.  Esse  dia,  era  uma  segunda  feira.  Mas  no 
domingo  á  noite  a  fidalga  chorou  tanto,  que  o 
morgado  achou  prudente  deixar  passar  mais 
alguns  dias. 

Por  sua  parte,  o  sr.  D,  Ruy  estava  um  pouco 
vacillante  entre  as  saudades  da  mãe  e  o  desejo 
de  entrar  no  collegio.  Um  dia  o  pae  levara-o 
lá.  Era  á  hora  em  que  os  alumnos  estavam  no 
recreio:  todos  elles  pareciam  alegres,  riam,  vo- 
zeavam, corriam  pelas  ruas  da  quinta,  joga- 
vam as  escondidas,  baloiçavam-se  no  trapesio. 
Aquillo  não  lhe  desagradou ;  demais  a  mais  o 
Navarro  tizera-lhe  muita  festa,  foi  mostrar-lhe 
as  aulas,  os  dormitórios,  a  casa  de  jantar,  e 
disse-lhe  : 

—  Olhe  que  isto  não  c  mau. 


142 


E  o  sr.  D.  Ruy  sorrira,  sentira-se  forte,  ima- 
ginava que  se  havia  de  dar  bem  ali,  com  os 
outros,  brincando  como  elles. 

Mas  ao  chegar  a  casa,  chorara  vendo  a  mãe, 
e  elhi  chorara  também,  abraçada  n'elle. 

—  Bem!  dissera  do  lado  o  pae,  tu  não  des- 
gostaste, pois  não  é  verdade: 

O  sr.  D.  Ru}',  com  os  olhos  chorosos,  me- 
neara affirmativamente  a  cabeça. 

—  Então  entrarás  segunda  feira...  está  dito! 
E  passara  a  mão  pela   face   da   fidalga,  afa- 
gando-a 

— É  que  se  o  rapaz  ainda  não  vae  d'esta  vez, 
dissera,  fica  sendo  o  D,  Sebastião  do  collegio 
da  Guia.  Eu  não  quero  que  os  outros  lhe  po- 
nham alcunhas,  que  ficam  depois  para  toda  a 
vida. 

—  Nem  eu,  replicara  a  fidalga  com  vivaci- 
dade. 

A  ideia  de  que  seu  filho  poderia  ter  uma  al- 
cunha, ser  chamado  o  D.  Schjistião  do  collegio, 
sobresaltára-a.  E  desde  logo  protestou  a  si 
mesma  que  o  deixaria  na  primeira  segunda 
feira. 

—  O'  mamã,  di.^sera  o  pequeno,  sabe  que 
numero  eu  vou  ter  no  collegio  ? 

—  Qual  ? 

—  Sou  o  41 6. 

Esta  novidade,  o  facto  de  ir  ser  o  41G.  agra- 
dava-lhe.  Era  uma  variante  á  monotonia  do  seu 


Í4-3 


tratamento  habitual.  Toda  a  gente  ihe  chamava 
D.  Ruy,  o  sr.  D.  Ruy,  mas  d'ali  em  diante  iam 
chamar-lhe  o  416.  Que  bom! 

No  domingo,  o  morgado  tornou  a  levar  o  fi- 
lho ao  coUegio.  Quando  entravam,  os  rapazes 
sabiam  arregimentados.  Iam  ouvir  missa  áLapa, 
e  depois  dariam  um  passeio  até  Paranhos.  O 
morgado  disse  ao  prefeito  que  também  os  acom- 
panharia, para  habituar  o  filho  á  sua  nova  vida 
de  coUegial. 

Na  egreja  da  Lapa,  emquanto  esperavam  pela 
missa,  o  sr.  D.  Ruy  fez  relações  de  amisade 
com  um  rapaz,  filho  de  um  fidalgo  da  casa  de 
Villa  Pouca,  em  Guimarães.  Era  o  86.  O  sr. 
D  Ruy  gostou  d"elle,  e  gostou  de  se  ver  tra- 
tado familiarmente  —  por  416,  apenas. 

Veio  para  casa  contar  á  mãe  o  que  tinha 
feito.  Estava  enthusiasmado.  E  a  segunda  feira 
tardava-lhe.  A  mãe  alegrou-se  um  pouco  da 
alegria  do  filho.  Pela  manhã  lavou-o,  penteou-o, 
ella  mesma,  chorando  umas  vezes,  sorrindo  ou- 
tras, soífrendo  e  amando. 

Padre  João  foi  com  o  morgado  acompanhar 
o  416.  A  fidalga  veiu  para  a  janella.  Chorava. 
Chegara  finalmente  o  momento  terrível,  que 
ella  temia  tanto.  Mal  viu  o  filho  na  rua,  lim- 
pou as  lagrimas,  procurou  sorrir.  O  sr.  D.  Ruy 
ia  bem  disposto,  sentia-se  forte,  disse  adeus  á 
mãe  sem  chorar,  mas  á  esquina  da  rua,  quando 
a  janella   ia   desapparecer,  o  valoroso  416  vol- 


U4 


tou-se  ainda  uma  ve?:  para  traz.  e  limpou  duas 
lagrimas  ao  canhão  da  jaqueta. 

E'  que.  por  muito  leviano  que  se  seja  quando 
se  c  creança,  sempre  se  tem  consciência  de 
que  uma  mãe  faz  muita  falta. 

O  416  deu  boa  conta  de  si  no  coUegio  da 
Guia.  De  dia,  as  aulas  e  o  recreio  absorviam- 
Ihe  a  attençíío:,  á  noite,  nos  primeiros  tempos, 
arrasavam-sc-lhe  sempre  os  olhos  de  lagrimas, 
quando,  ames  de  adormecer,  pensava  na  mãe. 
Faltavam-lhe  os  beijos  d"ella,  que  se  inclinava 
sobre  o  leito  a  compor-lhe  a  almofada,  e  a  con- 
chegar-lhe  a  roupa.  A  cabeça  de  Ghristina  to- 
mava então  o  aspecto  de  uma  aza  protectora. 
O  416,  no  collegio,  cnrolava-se  no  lençol,  solu- 
çando, e  adormecia  assim,  rezando  ao  anjo  da 
guarda,  como  padre  João  lhe  ensinara.  Mas, 
pela  manhã,  a  disciplina  escolar  não  lhe  dava 
occasião  para  pensamentos  tristes  :  era  saltar 
da  cama  e  começar  a  lide. 

Ao  cabo  do  primeiro  mez,  o  410  já  adorme- 
cia m.elhor. 

Como  as  suas  relações  com  o  86  se  houves- 
sem estreitado  cada  vez  mais,  faziam  ambos 
projectos  para  as  ferias  da  Paschoa.  O  416 
levaria  para  a  (jc>teira  o  seu  condiscípulo:  já 
estavam  solicitadas  as  respectivas  licenças.  Não 
havia  duvida  nenhuma.  Fariam  um  .íudas  logo 
que  lá  chegassem.  Houve  apenas  uma  pequena 
divergência,  entre  os  dois  amigos,  sobre  o  modo 


143 


como  vestiriam  o  Judas.  O  86  queria  que  fosse 
de  \eterano.  O  416  preferia  um  fato  de  hespa- 
nhol  —  com  as  respectivas  castanhetas.  A  sua 
opinião  venceu,  com  uma  simples  modificação: 
as  castanhetas  seriam  substituidns  por  um  pan 
deiro. 

Padre  João,  n'uma  visita  ao  collegio.  disse 
que  o  fato  de  hespanhol  não  era  próprio  para 
Judas  \  que  seria  melhor  vestil-o  de  judeu.  Os 
dois  collegiaes  não  quizeram  saber  d"isso,  e  o 
416  encarregou  o  capellão  de  lhe  comprar  um 
fato  de  hespanhol.  que  o  padre  foi  desencantar 
na  rua  de  Santo  António.  n'um  guarda-roupa 
de  carnaval. 

Imagine-se  a  alegria  com  que  todos  parti- 
ram para  a  Gésteira !  A  [morgada  parecia  ter 
a  idade  do  filho :  ria,  fallava,  apoiava  caloro- 
samente os  projectos  dos  dois  collegiaes  sobre 
a  queima  do  Judas,  que  devia  ser  espaventosa. 

Na  caixa  do  trem  ia  muito  fogo  de  artificio 
para  recheiar  o  apostolo.  . .  castelhano.  Dentro 
da  barriga  tinham  os  dois  amigos  combinado 
pôr-lhe  uma  bomba,  que  devia  rebentar  como 
uma  peça  de  artilheria.  Na  cabeça,  outra  bomba: 
o  chapéu  devia  ir  parar  a  casa  do  diabo. 

Logo  que  chegaram  á  Gésteira.  trataram  de 
fazer  o  Judas.  O  arcabouço  era  de  palha.  Ves- 
tiram-lhe  as  pantalonas  castelhanas,  a  jaqueta 
de  alamares  ^  ataram-lhe  a  faixa  encarnada.  Po- 
zcram-lhe  unia  caraça  de  andaluz,  e  um  som- 


140 


brero  com  debrum  de  velludo  preto.  As  mãos 
eram  duas  luvas  de  algodão  com  recheio  de  pa- 
lha ;  na  esquerda  tinha  um  pandeiro,  c  na  di- 
reita a  saca  dos  trinta  dinheiros.  Por  um  arti- 
ficio sabiamente  imaginado,  a  saca  do  dinheiro 
devia,  quando  se  puxasse  por  um  arame,  ba- 
ter no  pandeiro,  e  fazel-o  soar.  Na  boca  um 
charuto:  era  uma  granada  envolvida  em  folha 
de  tabaco.  Nos  pés,  esporas  de  lata.  com  pól- 
vora dentro. 

O  Judas  ficou  n'um  vasto  telheiro  que,  den- 
tro do  pateo,  se  encostava  ao  muro  da  quinta. 

O  machinismo  do  pandeiro  e  da  saca  dos 
trinta  dinheiros,  invenção  do  86,  levara  muito 
tempo,  e  dera  muito  trabalho,  de  modo  que  só 
foi  possivel  acabal-o,  á  luz  de  lanternas,  na  sexta 
feira  á  noite.  O  Judas,  finalmente  prompto,  es- 
tava de  papo  ao  ar,  no  chão,  hirto,  inchado, 
apopletico.  Pela  manha,  os  meninos  levantar- 
se-hiam  muito  cedo  para  assistir  á  empalação. 

Depois...  só  restava  pegar-lhe  fogt). 

De  madrugada,  uma  criada  da  casa  fora  ao 
moinho  buscar  uns  sacos  de  farinha,  que  trouxe 
n'uma  jumenta.  Descarregou  a  farinha  e  enxo- 
tou a  jumenta  para  o  meio  do  pateo,  emquanto 
foi  acondicionar  os  sacos  na  cosinha. 

Não  se  lembrou  a  estúpida  de  que  o  Judas  era 
de  palha,  e  de  que  as  jumentas  comem  palha... 
ainda  mesmo  quando  lh"a  não  sabem  dar. 

A  jumenta,  de  focinho  baixo,  foi  procurando 


147 


o  que  havia  pelo  telheiro.  Vendo  o  Judas  dei- 
tado no  meio'  do  chão,  começou,  desconíiada, 
a  ladeal-o,  mas,  por  fim,  investiu  com  elle. 
Cheirou-lhe  a  palha,  e  com  uma  dentada  esgar- 
çou lhe  o  peitilho  da  camisa.  Achou  dentro  a 
palha,  e  começou  a  comer.  Trazia  fome.  Tinha 
ido  para  o  moinho  de  madrugada,  e  lá,  emquanto 
esperava  pela  moedura,  apenas  poderá  traçar 
com  os  dentes  umas  hervitas,  de  modo  que 
aquelle  almoço  inesperado  soube-lhe  bem. 

Quando  os  meninos  se  levantaram,  correram 
ao  telheiro.  Do  Judas...  restava  apenas  aparte 
castelhana,  isto  é,  o  fato:,  mas  os  intestinos  ti- 
nham desapparecido. 

Proromperam  nMm  choro  atroador  as  duas 
creanças.  Os  morgados,  os  criados,  acudiram 
todos.  As  lamentações  dos  dois  collegiaes  eram 
sentidíssimas,  clamorosas.  E  ..  burra,  indiffe- 
rente  a  tudo  o  que  se  passava,  continuava  a 
procurar  com  o  focinho  alguma  cousa,  na  es- 
píirança  de  encontrar  outro  Judas. 

Num  momc:ito  de  cólera,  o  86  e  o  qiõ  pe- 
garam cada  qual  no  seu  fueiro,  e  começaram  a 
desancar  a  jumenta.  Levou  muita  lambada;  até 
o  padre  João,  para  lisonjear  os  meninos,  lhe 
dera  um  pontapé  na  trazeira,  dizendo :  Que 
grande  burra  esta  I 

Mas  ella,  com  o  falso  apostolo  na  barriga, 
parecia  ter  a  consciência  de  qiie  um  traidor  não 
merecia  sepultura  melhor. 


XVÍl 


A  canfiinhj  do  Alsmteío 


Ha  pouco  mais  de  um  mez.  passava  eu  na 
linha  do  sueste  com  destino  ao  Alemtejo.  Tí- 
nhamos atravessado  o  rio  com  muito  vento; 
havia  vaga.  O  ceu  estava  carrancudo  ;  promet- 
tia  chuva.  O  vento  apressava-a.  Na  ponte  do 
Barreiro,  uma  grande  corda  de  agua  principiara 
a  cahir.  Corremos  todos  para  as  carruagens;^ 
foi  um  verdadeiro  sau}'c  qui  pent. 

O  comboyo  partira  e  a  chuva  continuava  a 
cahir.  Uma  inverneira  pegada.  Eu  sentia-me 
.somnolento.  cabeceava.  Na  estação  de...  (se- 
jamos discretos)  sentindo  correr  uma  vidraça 
na  carruagem  immediata.  espertei.  Uma  voz, 
num  tom  agaiatado  de  rapazote  de  escola, 
disse :  E  a  cabrinha  r  E  a  cabrinha  ? 

O  chefe  da  estação,  um  homem  velho,  de  bi- 
gode branco,  olhou  de  repente  para  a  carrua- 


149 


gem  d'onde  a  voz  partira.  Havia  ficado  visivel- 
mente aborrecido,  mas  continuara  fazendo  o  seu 
serviço.  De  instante  a  instante,  ao  passo  que  a 
voz  repetia— E  a  cabrinha  ? — elle  resmungava. 

Ao  cabo  de  pouco  tempo  a  campainha  dera 
o  signal  da  partida.  No  momento  em  que  o 
comboyo  largava,  uma  voz,  mais  vozes  disse- 
ram :  E  a  cabrinha  ?  E  a  cabrinha  ? 

O  que  se  passou  não  sei,  mas  numa  das  es- 
tações seguintes  procurei  occasiao  de  perguntar 
ao  meu  visinho,  que  se  apeiára,  o  que  aquillo 
queria  dizer. 

O  rapazote,  que  teria  quando  muito  dezeseis 
annos,  explicou-me. 

Aquelle  chefe  tinha  uma  cabrinha  de  muita 
estimação,  que  lhe  dava  magnifico  leite  para  o 
almoço.  Mas  a  cabrinha,  que  era  toda  meiguice 
com  a  dona,  mostrava-se  pouco  afleiçoada  ao 
dono.  Um  dia,  por  um  motivo  qualquer,  a  mu- 
lher do  chefe  da  estação  teve  de  ausentar-se  ; 
o  marido  ficou,  desempenhando  as  funcções 
do  seu  cargo. 

Quando  chegou  a  hora  do  almoço,  o  chefe 
tratou  de  chamar  a  cabrinha  para  mungil-a. 
Isso  sim !  A  cabri-nha  fugia,  e  o  pobre  homem 
resignou-se  a  tomar  o  seu  café  sem  leite.  Não 
gostou,  e  tratou  de  afagar  a  cabra  para  que  ella 
se  mostrasse  menos  extranha  e  rispida.  Qual 
historia  I  No  outro  dia  a  mesma  comedia,  elle 
a  chamar   a   cabra  com  as  suas  melhores  ma- 


i5o 


neiras,   e   ella   a  fugir  d  ellc   como   o  demónio 
foge  da  cruz. 

O  pobre  homem  deu  tratos  á  imaginação  para 
resolver  o  problema,  em  que  elle  e  a  cabra  en- 
travam como  factores. 

O  que  havia  de  fazer  ?  Demais  a  mais  o  café 
sem  leite  estava-lhe  fazendo  mal  ao  estômago, 
e  a  cabra  não  promcttia  tornar-se  mais  amaAcl 
do  que  até  ahi  se  havia  mostrado. 

Depois  que  os  comboyos  passavam,  elle  fe- 
chava a  porta  da  estação,  e  dois  pensamentos 
atrozes  o  preoccupavam :  a  mulher  e  a  cabra. 

O  que  havia  de  fazer  ?  pensava  e  tornava  a 
pensar. 

Até  que  uma  noite  teve  uma  idéa  luminosa, 
salvadora.  Adormeceu  mais  tranquillamente, 
saboreando  mentalmente  a  delicia  de  t(^rnar  a 
almoçar  café  com  leite. 

Pela  manhã,  quando  acordou,  ve.stiu  um  ves- 
tido da  mulher,  poz  na  cabeça  um  lenço  d'ella. 
Foi  chamar  a  cabra,  e  a  cabra  veiu  immediata- 
mente,  fazendo-lhe  festa. 

Kstava  resolvida  a  ditficuldade.  a  cabra  dei- 
xava-se  mungir ;  o  bom  homem  endoidecia  de 
contentamento. 

Nisto,  um  silvo  terrível  ouve-se  a  pequena 
distancia.  Era  o  comboyo.  mas  em  que  (Kc;i- 
sião,  santo  Deus  I 

O  pobre  chefe  estava  vestido  de  mulher,  de 
saia   e   lenço.    Vm  dilcmma  implacável    se   lhe 


i5i 


apresentava:  apparecer  tal  como  estava  ou  fal- 
tar. 

Mas  faltar  seria  um  delicto  muito  grave,  um 
motivo  para  demissão.  Nisto  o  comboyo  che- 
gava. .  .  E  o  chefe  da  estação  apparecia  na  pla- 
taforma, mascarado  de  mulher,  a  dar  ordens 
no  desempenho  do  seu  cargo. 

Os  passageiros  riram  a  bom  rir.  O  caso  di- 
vulgou-se,  espalhou-se  ao  longe,  e  agora  é  raro 
o  dia  em  que  passe  um  comboyo  sem  que  al- 
guém pergunte  ao  chefe  da  estação  noticias  da 
cabrinha .  . . 


—  Já  não  ha  salteadores  no  Alemtejo !  dizia 
eu  para  um  dos  meus  companheiros  de  viagem. 
Que  falta  que  me  faz  um  assalto,  de  que  eu 
precisava  escapar...  para  o  contar  depois  I 

E  elle  referia-me  casos  tenebrosos  de  antigos 
salteadores  alemtejanos,  do  José  da  Costa  e  do 
Chapéu  de  ferro,  dois  faccinoras.  dois  monstros. 
que  viveram  num  tempo  em  que  ainda  se  po- 
dia ser  litterato. 

O  José  da  Costa  fora  ha  doze  ou  quinze  an- 
nos  o  terror  das  terras  interpostas  a  Alcochete  e 
Setúbal.  Desertor  de  lanceiros,  andava  a  monte, 
zombando  das  auctoridades  e  da  policia.  Era 
um  heroe  terrível,  um  homem  sanguinário,  uma 
lenda  viva.  Uma  noite,  encontrara  o  caseiro  da 


l52 


quinta  de  Algeruz,  e  mandára-o  apeiar  do  ca- 
vallo  que  montava.  O  caseiro  obedecera  imme- 
diatamente.  e  o  faccinora  dissera-lhe,  passando- 
Ihe  a  mão  pela  cara  : 

—  Anda  lá,  anda,  segue  teu  caminho. 

O  caseiro  cavalgou  de  novo,  dispunha-se  a 
partir,  quando  José  da  Gosta  lhe  tornou  a  di- 
-zer : 

—  Apeia-te  outra  vez. 

E  passando-lhe  a  mão  pela  cara  : 

—  Ajoelha-te. 

O  caseiro  ajoelhou. 

—  Por  esta  vez,  vae-te  embora. 

O  caseiro  montou,  e  José  da  Costa,  deitando 
a  mão  ás  rédeas  do  cavallo,  exclamou  : 

—  Apeia-te,  e  ajoelha. 

E  pondo-lhe   a  mão  na  cabeça  e  nas  laces : 

—  Vae  com  Deus  ou  com  o  diabo  I 

O  caseiro  estava  muito  disposto  a  partir  pro- 
tegido por  qualquer  dos  dois.  quando  o  José 
da  Costa  lhe  apostrophou  : 

—  Torna  a  descer,  que  to  mando  eu. 
E  o  caseiro  desceu  do  cavallo. 

—  Ajoelha. 

K  o  caseiro  ajoelhou. 

—  Monta  agora. 

E  o  caseiro  montou. 

E  depois,  vendo-o  em  cima  do  cavallo,  ati- 
rou-o  a  terra  com  um  tiro. 

—  Coitado!    disse,   tornando  a  passar-lhe  a 


i63 


mão  pela  cabeça  inanimada,  já  devias  estar  can- 
çado  de  montar  e  desmontar  I 

De  uma  vez,  José  da  Costa  teve  seus  dares 
t  tomares  com  um  hespanhol  pimpão.  Travou- 
9e  a  lucta  braço  a  braço,  e  ó  faccinora  parecia 
não  levar  a  melhor. 

l)e  repente,  José  da  Gosta  grita  para  o  hes- 
pani^ol : 

— Olha  quem  ahi  vem  !  Foge  I 

Nãc  vinha  ninguém.  O  hespanhol^  voltou-se 
e  o  faccinora  feriu-o  pelas  costas. 

Foi  ra  venda  de  Algeruz  que  José  da  Costa 
poude  Sír  preso. 

Fechaiam-lhe  a  porta  á  traição,  cercaram  a 
casa,  e  fc-am  buscar  a  Setúbal  uma  força  mi- 
litar, de  lue  foi  commandante  o  governador 
Cunha,  haannos  fallecido. 

Mas  denro  da  taberna  haviam  ficado  trcz  ou 
quatro  homns,  que  não  poderam  sahir  a  tempo, 
e  o  José  da.2osta,  vendo-se  apanhado  no  laço, 
ia-os  esfaquendo  para  saciar  a  sede  de  sangue. 

Os  feridos  gritavam  de  dentro,  o  povo  gri- 
tava de  fora,  força  havia  chegado,  estava  de 
armas  mettida,  á  cara,  e  de  repente,  por  uma 
das  janellas  dÉ,casa,  uma  coisa  saltara  para  a 
charneca.  Mas')s  soldados,  percebendo  o  que 
era,  não  descaregaram. 

José  da  Cost  havia  atirado  para  fora  um 
cortiço,  fingindoque  era  elle  próprio  que  sal- 
tava, na  esperan^  de  que  os  soldados  dispa- 


i54 


rassem,    c   ellc  podesse  fugir  entretanto,  são  e 
salvo. 

Entyo,  baldados  todos  os  recursos,  entregou- 
se  á  prisão. 

O  Chapéu  de  ferro  infestava  ahi  por  iNno  e 
tantos  as  circumvisinhanças  de  Beja. 

Uma  vez  matara  um  homem  num  vwite^ 
como  quem  diz  um  casal,  e  obrigara  a  mulher 
da  victima  a  aparar-lhe  o  sangue  n'um  algui- 
dar. 

Dois  rapazitos,  e  um  delles  é  hoje  un  cava- 
lheiro altamente  collocado,  sahiam.  en  férias, 
de  Beja  para  a  sua  terra  natal. 

Um  homem  de  grandes  barbas  esressas  ap- 
pareceu-lhes  na  charneca. 

—  Quem  são  vocês?  perguntou-lhís. 

—  Somos  estudantes. 

—  E  eu,  sabem  quem  eu  sou? 

—  Não  sabemos. 

—  Pois  eu  sou  o  Chapéu  de  fei'o. 

—  O  Chapéu  de  ferro !  exclararam  horrori- 
sados. 

—  Sim,  eu  sou  o  Chapéu  de  jrro.  e  deixo-os 
ir  cm  paz.  Talvez  quisessem  qu  eu  os  matasse, 
dois  creancolas.  I 


XVIII 


A  mulher 


Desde  ^  paraíso  terreal  até  hoje,  não  tem 
havido  accntecimentos  de  polpa  em  que  não 
figure  a  milher.  Os  francezes  dizem  « ChercJie-{ 
la  fefJimt'».  O  que  significa  que  a  mulher  anda 
sempre  mettila  em  todas  as  endrominas  deste 
mundo. 

Ora,  desde  que  principiou  a  desenvolver-se 
na  imprensa  o  panorama  escandaloso  do  Pa- 
namá, admiradc  estava  eu  de  que  não  tivesse 
apparecido  aind&  como  actriz  ou  como  com- 
parsa, como  figurnte  de  qualquer  género,  uma 
mulher  pelo  meno^ 

Já  tinha  tido  teniiçÕes  de  lembrar  á  França 
que  o  seu  proverbii  falhara.  ..  pela  primeira 
vez.  Eis  senão  qua-do  o  provérbio  triumpha, 
agora  como  sempre. No  caso  do  Panamá  ap- 
parecc  uma  mulher,  ladame  Cottu,  e  a  sabe- 
doria da  Franca  salvais  seus  créditos,  emrim. 


ibf) 


Decididamente,  a  mulher,  quer  a  emancipem 
quer  não,  tenha  voto  ou  não  tenha  voto,  ha  de 
ser,  na  successão  dos  séculos,  a  eterna  colla- 
boradora  do  homem  em  todos  os  casos  da  vida. 

E  visto  que  isto  tem  de  acontecer  por  força, 
convém  a  cada  homem  escolher  o  tvpo  de  col- 
laboradora  que  mais  lhe  agrade,  especialmente 
para  as  emprezas  em  que  o  agrado  é  tud^). 

Deverá  escolher-se  a  mulher  pequena."  Será 
essa,  como  typo  do  sexo,  a  que  mais  }-óde  en- 
cantar os  olhos  de  quem  a  yê  ? 

E  certo  que  os  antigos  diziam:  '.'A  mulher  c 
a  sardinha  quer-se  pequenina.»  A  píquenina,  a 
nupiouiic.  destas  em  que  se  póce  pegar  ao 
collo.  e  passeial-as  sem  cançar  «s  braços,  d, 
em  verdade,  um  ser  gracioso,  |ue  conserva, 
até  mesmo  na  velhice,  o  que  qier  que  seja  de 
infantil,  de  ar  alegre  de  boneca 

E  de  mais  a  mais  dizia  umphilosopho,  não 
sei  qual,  um  philosopho  apolo,ista  de  mulheres 
pequenas:  «Do  mal  o  menos» 

Mas  a  verdade  e  que  as  nulheres  altas,  ele- 
gantes, fortes,  se  não  são  «o  commodas  para 
trazer  ao  collo,  dão  marge'i  a  que  os  olhos  de 
quem  as  contempla  possa-i  saturar-se  de  bello 
sexo,  demorando-se  a  mral-as  da  cabeça  até 
aos  pés. 

E  como  se  a  gente  es'vesse  a  olhar  ao  longo 
de  terras  vastas,  de  ina  paizagem  dilatada, 
com    um    horisonte    anplo,   infinito,    cm   (.|ue 


sempre,  por  mais  que  se  olhe,  ha  alguma  coisa 
para  ver  de  novo. 

Outro  philosopho — porque  sobejam,  graças 
a  Deus  I  philosophos  para  tudo  —  costumava 
dizer  que  a  mulher  alta  era  a  mais  apreciável 
de  todas,  visto  que  não  tinha  o  coração  ao  pé 
da  boca. 

Feia  ?  Deverá  ser  feia  a  mulher  ?  Não  falta 
quem  seja  d'esta  opmiáo.  Não  ha  mulher  feia 
que  não  possua  pelo  menos  uma  qualidade  es- 
timável. A  natureza  mostrou-se  principalmente 
sabia  e  justa  nas  compensações. 

Vê  a  gente  ás  vezes  um  homem  loucamente 
apaixonado  por  uma  mulher  que  a  nós  nos  pa- 
rece feia. 

Sempre  que  isto  acontece,  e  para  descontiar 
que  exista  uma  compensação,  uma  qualidade, 
que  esse  homem,  tendo  visto  melhor  que  nós, 
conseguiu  descobrir. 

De  mais  a  mais,  nada  ha  tão  vehemente.  tão 
vulcânico  como  o  amor  das  feias.  Tendo  pouco 
quem  as  requeste,  poupam  o  paiol  do  coração, 
de  modo  que  o  seu  primeiro  amor  é  com.o  que 
uma  explosão  do  Vesúvio. 

No  olhar  amoroso  de  uma  feia  ha  sempre 
um  discurso  enthusiasta,  que  pôde  stenogra- 
phar-se  do  modo  seguinte  . 

—  Muito  obrigada,  bravo  e  heróico  cavalheiro! 
que  esgrimes  denodadamente  contra  o  precon- 
ceito da  belleza,  e  que  reúnes  á  coragem  o  ta- 


i58 


lento,  porque  só  tu  foste  capaz  de  descobrir  a 
bellcza  na  fealdade,  a  compensação  que  a  na- 
tureza me  concedeu.  Saber  que  uma  mulher  é 
bella,  quando  ella  realmente  o  seja,  não  engran- 
dece o  espirito  de  ninguém.  Basta,  para  isso, 
não  ser  cego.  Mas  vêr  uma  obra  de  arte.  a  que 
todos  acham  defeitos,  ê  descobrir-lhe  a  única 
qualidade  boa  que  possua,  chega  a  ser  bri- 
lhante, a  ser  glorioso,  ó  nobre,  ó  bravo,  ó  ex- 
cepcional cavalheiro  !  A  ti,  a  minha  eterna  de- 
dicação I 

Ora  este  discurso,  pronunciado  por  dois  ora- 
dores ao  mesmo  tempo,  isto  é,  pelos  olhos  de 
uma  mulher,  faz  impressão  no  espirito  de  um 
homem,  envaidece-o,  lisonjeia-o,  acaba  por  sub- 
jugal-o. 

E  assim  se  pode  explicar  de  certo  a  rasão 
por  que  as  feias  vão  tendo  despacho  e  con- 
sumo. 

Estão  no  caso  das  feias,  as  velhas. 

Não  me  refiro  a  uma  antiguidade  verdadei- 
ramente gothica,  nem  me  proponho  sustentar 
que  um  homem  deva  casar-se  com  a  sé  de 
Braga. 

Mas  Balzac  fez,  como  se  sabe,  o  elogio  da 
mulher  de  trinta  annos.  e  eu,  na  minha  obscu- 
ridade, acho  que  é  essa  uma  boa  conta  para 
ponto  de  partida. 

Trinta  annos  I  obra  acabada,  paredes  solidas, 
pavimentos  seguros,  um  prédio  capaz  de  resis- 


169 


tir  a  um  terremoto  1  Magnifico  I  Já  passou  a 
época  das  pieguices,  dos  amuos,  dos- caprichos 
de  rreança.  Nada  de  esboços,  de  linhas  inde- 
cisas :  obra  a  que  a  natureza  acabou  já  de  dar 
os  últimos  retoques  I  Excellente  ! 

Entre  os  trinta  e  os  quarenta  toda  a  mulher 
3e  encontra  na  situação  das  feias,  ainda  que 
tenha  sido  formosíssima. 

—  Muito  obrigada  pela  distincção  que  o  ca- 
valheiro me  concedei  parece  dizerem  os  seus 
olhos  amorosos.  Ha  por  ahi  tantas  meninas  in- 
teressantes, tantas  rosinhas  em  botão,  tantas 
flores  frescas  e  mimosas,  e  o  cavalheiro  por 
todas  passou  sem  as  cobiçar  I  Realmente,  sin- 
to-me  captivada...  Mas  deixe  estar  que  não 
hade  arrepender-se.  Saberei  amal-o  como  duas 
meninas,  pelo  menos :  uma,  que  já  fui  •,  outra, 
que  torno  a  ser,  remoçada  pelo  seu  amor. 

E  a  fim  de  trazer  sempre  o  homem  satisfeito 
e  entretido,  toda  ella  é  coração,  tpda  ella  se 
dispende  em  lembranças  mimosas,  enviando  ao 
cavalheiro  íiores  para  a  lapella  e  rebuçados  para 
o  peito. 

Contou  Júlio  César  Machado,  uma  vez,  que 
certa  quarentona,  soffrega  de  amar,  tomara  um 
trem  para  num  dia  de  primavera,  cheio  de  es- 
tímulos e  effluvíos,  ir  dar  um  passeio  ao  Campo 
Grande. 

Pelo  caminho,  o  coração  trasbordava-lhe  do 
peito,  expandia-se,  mas,  infelizmente,  não  havia 


ibo 


um  homem  que  quizesse  ter  a  heroicidade  de 
amai  a. 

Quando  chegou  ao  Campo  Grande,  no  mo- 
mento de  apeiar-se,  já  com  o  pé  no  estribo, 
reparou  nos  olhos  do  cocheiro,  que  eram  boni- 
tos, expressivos. 

E  deixando-se  cair  para  fora,  de  modo  a  que 
o  cocheiro  tivesse  a  ideia  de  amparal-a  cari- 
nhosamente, exclamou  : 

—  Amo-te,  José  Traquitana  ! 

Júlio  César  Machado  deixou  neste  ponto  a 
historia,  mas  é  de  presumir  que  a  dama,  ac- 
ceitando  as  consequências  da  sua  allucimição, 
viesse  a  tranformar  esse  cocheiro  num  marido 
grato  e  discreto,  com.  tacto  para  a  vida,  visto 
que  havia  principiado  por  ter  boa  mão  de  ré- 
dea. 

Deverá  prcferir-se  a  mulher  formosa  ? 

K  decerto  a  que  mais  agrada  no  primeiro  mo- 
mento, porque  a  vida  é  uma  serie  de  illusões, 
e  a  formosura  a  mais  grata  das  illusÕes. 

Lá  disse  o  padre  Vieira:  «O  que  é  a  formo- 
sura senão  uma  caveira  bem  vestida?»  Mas, 
emquanto  está  bem  vestida,  agrada,  attrae, 
fascina. 

Todavia,  se  se  pensa  um  momento,  receia- 
se. .  . 

A  mulher  formosa  agrada  tanto  ao  que  a 
possue,  como  aos  outros.  Tem  esse  perigo,  que 
constitue  um  sobresalto  permanente. 


i6i 


E  depois  o  que  a  possue  não  pôde  de  certo- 
esquivar-se  a  pensar  com  os  seus  botões,  á  me- 
dida que  a  belleza  se  vae  apagando:  «Quem  te 
viu  e  quem  te  vê ! » 

Se  a  m.ulher  vale  só  pela  formosura,  faltan- 
do-Ihe  a  graça,  a  bondade,  uma  qualidade  de 
valor,  emíim,  o  que  quasi  sempre  acontece  gra- 
ças á  theoria  das  compensações,  essa  mulher 
é,  já  o  disse  alguém,  um  livro  que  uma  vez 
lido,  não  tem  mais  que  ler. 

Deve  orocurar-se  uma  mulher  de  bom  ^e- 
nio  ? 

Uma  mulher  de  inalterável  bom  génio  parece 
feita  de  açorda,  é  uma  espécie  de  jfieiiu  sem 
surprezas,  uma  permanente  dieta,  em  que  o  es- 
pirito não  passa  de  servir-se  todos  os  dias  uma 
aza  de  frango,  como  se  fosse  um  doente. 

Não  irrita,  mas  não  vivifica.  Não  esfria,  mas 
não  aquece.  Quando  um  homem  chega  a  feste- 
jar as  suas  bodas  de  prata,  não  tem  que  dizer 
aos  outros  senão  isto  :  «Meus  senhores,  tenho 
passado  vinte  e  cinco  annos  da  minha  vida 
n'uma  paz  podre,  que  me  sabe  a  gallinha  co- 
zida.» 

Se  a  mulher  tem  mau  génio,  se  tem  nervos, 
deve  isso  ser  desagradável  para  o  marido  al- 
gumas vezes,  mas  nada  ha  que  possa  lisonjear 
tanto  o  espirito  de  um  homem  como  vêr  uma' 
mulher,  que  tem  a  vocação  da  guerra,  offere- 
cer-lhc   um   beijo...    de   paz  I    Oh!  é  glorioso 


It)2 


para  um  \'encido  acceitar  o  ramo  de  oli\cira 
que  lhe  ofterece  o  vencedor  I 

Deverá  ser  rica  ?  Para  passar  a  vida,  é  bom 
que  seja  rica  a  mulher.  Mas  não  deixa  isso  de 
vexar  um  pouco  o  marido,  se  toda  a  riqueza 
veiu  d'ella.  Quando  um  marido  em  taes  condi- 
ções manda  pôr  o  trem.  sente-se  engasgado 
como  se  tivesse  de  dizer:  «O  José,  manda  pôr 
o  coupé  da  senhora.»  Se  vae  ao  theatro,  ao 
entregar  o  bilhete  ao  porteiro,  a  consciência 
grita-Ihe  que  deveria  dizer,  a  querer  ser  sincero: 
«Abra  o  camarote  da  senhora!» 

Oh  !  deve  ser  horrível  I 

Pobre  ?  E  se  a  mulher  é  pobre  r  Dá  isso 
pena  a  um  marido  que  sinceramente  a  estime. 
«Aqui  está,  dirá  elle  comsigo  mesmo,  uma  mu- 
lher a  quem  eu  quizera  proporcionar  todos  os 
regalos, todas  ascommodidades  deumaprinccza, 
e  comtudo  só  poderei  otíerecer-lhe  este  mez  um 
vestido  de  percale.»  De  modo  que  a  independên- 
cia de  que  um  tal  marido  gosa  junto  de  sua  mu- 
lher, c  aguada  pelo  desgosto  de  a  não  poder  fe- 
licitar tanto  quanto  desejava. 

K  ditficil  a  escolha  I  concluirá  o  leitor.  Com 
effeito  assim  é.  Dirticilima,  acrescentarei  eu. 
Mas  ha  talvez  um  meio  de  illudir  a  dificuldade 
da  escolha :  e  amal-as  a  todas  indistincta- 
mente,  para,  com  o  auxilio  da  experiência,  es- 
colher depois  a  melhor ...  se  houver  tempo 
para  isso. 


n 


XIX 


:arnaval , 


Já  contei  ha  alguns  annos  a  historia  carna- 
valesca do  Félix  Telles,  de  Estarreja. 

Mas  vou  reedital-a,  para  que  se  torne  tão  co- 
nhecida quanto  o  merece  a  mais  interessante  e  a 
mais  veridica  historia  que  o  carnaval  de  Lisboa 
tem  produzido,    desde    que  a  caraça  é  caraça. 

Félix  Telles,  boa  pessoa,  com  seus  laivos 
de  patuscão,  vivia  no  solar  de  um  fidalgo  de 
Estarreja,  na  qualidade  de  professor  aposentado 
dos  meninos  da  casa. 

De  vez  em  quando  vinha  a  Lisboa  a  pretexto 
de  visitar  o  irmão  e  sobrinhos  do  fidalgo  de  Es- 
tarreja. Agradava-lhe  essa  patuscada,  que  o  dis- 
traia da  monotonia  das  arvores  e  da  vida  da 
aldeia. 

Assim  foi  que  um  anno,  pelo  carnaval,  elle 
disse  ao  fidalgo : 


164 


—  Meu  senhor,  se  v.  ex.''  se  naooppozer.  \ou 
a  IJsboa  pregar  uma  partida  real  a  seu  mano 
e  sobrinhos. 

—  Então  que  intenta  você  fazer,  ó  Félix? 

—  Uma  partida  de  carnaval,  que  passo  a  ex- 
por a  V.  ex."''  Amanhã  de  manhã  tomo  o  com- 
boio descendente.  Chego  a  Lisboa  das  oito  para 
as  noAe  horas  da  noite.  O  mano  de  \.  ex.^  é 
certo,  com  toda  a  sua  familia.  num  camarote 
da  Trindade,  segundo  o  costume.  Logo  que  eu 
chegar,  vou  hospedar-me  no  fío/cl  ^{Hiídicc  para 
me  lavar  e  descançar.  A  meia  noite  pouco  mais 
ou  menos,  mando  um  criado  do  hotel  aluiíar 
um  dominó  preto  ao  Cruz  da  rua  Larga  de 
S.  Roque.  Dirijo-nie  em  seguida  ao  theatro  da 
Trindade,  vou  direito  ao  camarote  onde  estiver 
a  familia  de  v.  ex."  e  proponho-me  intrigal-a, 
com  casos  certos,  durante  uma  boa  hora.  Quando 
cu  lhe  fallar  de  certas  coisas,  toda  a  familia  ar- 
derá em  curiosidade,  dará  tratos  á  imaginação 
para  descobrir  quem  eu  seja.  Mas  não  poderão 
lembrar-se  de  mim  por  me  supporem  em  Ks- 
tarreja.  A  saidà  do  theatro  tomarei  as  minhas 
precauções  para  não  ser  seguido  nem  conhe- 
cido. De  manhã  metto-me  outra  vez  no  com- 
boio, e  á  noite  estarei  aqui  a  ceiar  e  a  rir  do 
caso  com  v.  ex.*'  E  ou  não  é.  ex.'""  senhor,  uma 
partida  real  ? 

—  Pyramidal  I  meu  caro  Félix  Telles,  Ap- 
plaudo  com  enthusiasmo.  Vá  deitar-se,  visto  qtie 


i66 


tem  de  fazer  madiTigada.  Mas  que  boa  partida! 
Ehl  eh  I  ria  o  morgado,  esfregando  as  mãos 
de  contente. 

Foi  dali  o  íidalgu  para  o  seu  escriptorio  e, 
a  rir  comsigo  mesmo,  redigiu  o  seguinte  te!e- 
gramma  : 

"Felix  Telles  chega  ahi  hoje  noite  para  in- 
trigar-te  theatro  Trindade.  Dominó  preto,  alu- 
gado Cruz.  Vai  Hotel  Alliance.  Prepara-te  para 
ataque.  Segredo.» 

Depois  chamou  o  seu  criado  particular,  dis- 
se-lhe  que  logo  pela  manhã  fosse  ao  telegrapho 
expedir  aquelle  telegramma,  recommendando- 
Ihe  a  mais  completa  reserva. 

No  comboio  descendente,  Felix  Telles  tomava 
eíiectivamente  logar  n  uma  carruagem  de  pri- 
meira classe,  e  saboreava  mentalmente  o  prazer 
da  sua  aventura. 

Entretanto  o  irmão  do  morgado,  o  visconde 
de  ***,  recebia  em  Lisboa  o  telegramma,  e  cha- 
mava o  escudeiro  para  dizer-lhe : 

—  Esta  noite  estarás  em  Santa  Apolónia  á 
chegada  do  comboio.  N'uma  carruagem,  que 
segundo  o  costume  será  de  primeira  classe, 
hade  vir  o  sr,  F'elix  Telles,  que  tu  conheces 
muito  bem.  Seguil-o-has,  sem  que  te  veja.  Se 
tomar  um  trem,  toma  tu  outro.  Deve  apeiar-se 
á  porta  do  Hotel  Alliance.  Ahi.  logo  que  che- 
gue ou  pouco  depois,  dará  ordem  ao  criado 
para   que   lhe   vá   buscar  ao  guarda-roupa  do 


i66 


Cruz,  na  rua  Larga  de  S.  Roque,  um  dominó 
preto.  Esperarás  os  acontecimentos  parado  em 
frente  do  liotel.  Gertilicar-te-has  se  effectiva- 
mente  sae  do  Alliance  um  homem  de  dominó 
preto.  Esse  homem  sera  o  sr.  Félix  Telles.  Logo 
que  elle  saia,  tomar-lhe-has  dianteira,  correrás 
ao  theatro  da  Trindade.  Encostados  á  casa  do 
bengaleiro  estarão  os  meninos  e,  quando  o  sr. 
Keiix  Telles  entrar,  dir-lhes-has  :  E  este.  Enten- 
deste : 

—  Perfeitamente,  sr.  \i.sconde.  Esteja  v.  ex.* 
certo  de  que  saberei  dar  conta  do  recado. 

—  Muito  bem. 

No  seu  quarto,  os  tilhos  do  visconde  escreviam 
sobre  uma  larga  tira  de  papel  branco,  em  garra- 
fíies  lertras  nretas.  o  seguinte  lettreiro:  í(Soií  o 

1  O 

Fclix  Telles  di'  HslJi-i\ja."  E  riam  estrepito- 
samente, com  aquelle  grande  bom  humor  que 
se  perde  para  todo  o  sempre  depois  que  os  de- 
zoito annos  passam  .  .  . 

O  criado  do  \isconde  desempenhou-se  da  sua 
missão  de  contiança  ás  mil  maravilhas. 

Félix  Telles  chegava  ac^  theatro  da  Trindade 
quando  já  os  íilhos  do  visconde,  postos  atraz 
do  guarda-vento.  se  preparavam  para  pregar- 
Ihe  nas  costas  a  grande  tira  de  papel  branco. 

Esta  operação,  alias  dillicil.  foi  feita  com  pe- 
leita  delicadeza. 

As  pessoas  que  presencearam  tudo  isto,  cas- 
quinaram uma  estrondosa  gargalhada,  que  Fe- 


167 


lix  Telles  não  percebeu.  E  logo  muitas  vozes, 
umas  accentuadamente  masculinas,  outras  femi- 
nilmente  esganiçadas,  começaram  a  gritar  n'uma 
surriada  d'opereta,  emquanto  o  dominó  preto 
passava : 

—  Olha  o  Félix  Telles  de  Estarreja ! 

O  homem  estremeceu  dentro  do  seu  dominó, 
debaixo  da  sua  mascara. 

E  sujeitos  de  chapéu  de  coco,  creanças  de 
bisnaga  em.  punho,  pastorinhas  vestidas  de  gaze 
côr  de  rosa,  vivandeiras  de  cantil  a  tiracoUo, 
caíam  sobre  elle  com  o  peso  duma  troça  impla- 
cável. 

— ^(Jlha  o  Félix  Telles  de  Estarreja! 

Eile  voltava-sc  para  surprehender  o  denun- 
ciante em  tlagrante  delicto  de  bisbilhotice,  não 
conhecia  ninguém,  suava,  tressuava.  perguntava 
a  si  próprio  se  teria  enlouquecido,  e  então  os 
esguichos,  as  gargalhadas,  os  gritos  recrudes- 
ciam n'um  crescendo  atroador. 

De  repente,  no  salão,  o  visconde,  de  braços 
abertos,  umi  riso  epigrammatico  nos  lábios,  pos- 
tado deante  do  dominó,  saudava-o  com  a  terrí- 
vel apostrophe.  que  se  repercutia  nos  eccos  da 
sala : 

—  O  Félix  Telles,  que  diabo  de  lembrança 
foi  a  sua ! 

E  elle,  o  Félix  Telies.  desesperado,  hydro- 
phobo,  apopletico,  respondeu-lhe  na  sua  voz 
natural,  cheio  de  raiva,  de  cólera : 


:GS 


—  Ora  deixe-me,  que  não  sou  eu ! 

E  saiu,  saiu  acompanhado  até  á  porta  do 
theatro  por  este  grito  terrível,  insistente,  perse- 
guidor : 

—  Tu  és  o  Fclíx  1\'IU'S  de  Esíarrcja ! 

E  no  conjuncto  de  todas  essas  vozes  irritan- 
temente cáusticas,  atrozmente  mordentes,  elle 
distinguiu  perfeitamente  a^^  ^ozes  dos  filhos  do 
visconde  que  gritavam  : 

—  O  Félix  Telles,  venha  cá  I .  .  . 

Entrando  no  Hotel  Allíaua',  Félix  Telles  des- 
piu de  repellão  o  dominó,  deixou-o  ticar  sobre 
o  tapete  do  quarto,  disse  brutalmente  ao  criado 
que  se  fossc  embora,  que  o  deixasse  em  paz, 
que  o  chamasse  a  tempo  de  sair  no  comboio 
da  manhã,  e  que  se  não  esquecesse  de  mandar 
entregar  depois  o  dominó  ao  Cruz.  com  mais 
dez  tostões  que  elle  deixaria  sobre  a  banqui- 
nha. 

Pela  manhã,  pagou  rapidamente  a  sua  conta, 
pousou  sobre  a  b^.nquinha  os  dez  tostões  para 
o  Cruz,  e  saiu. 

Quando  a  noite  cnegou  a  Estarreja,  ja  um 
telegramma  do  visconde  para  o  irmão  o  havia 
precedido. 

—  Então?  perguntou  lhe  o  morgado  o  mais 
seriamente  que  poude. 

—  Então  I  respondeu  Félix  Telles.  Aquillo  é 
ainda  uma  aldeia  peior  do  que  Estarreja  !  toda 
a  gente  me  conheceu  logo  que  lá  cheguei  ! 


lõg 


—  Não  é  possível ! 

—  Tão  possível  como  eu  ter  ouvido  gritar  de 
todos  os  lados,  a  todas  as  pessoas,  que  aquelle 
dominó  preto  era  o  Felíx  Telles  de  Estar- 
reja ! 

—  Conhecel-o-íam  pelo  andar  ? 

^  Eu  sei  lá,  sr.  morgado !  Conheceram-me 
por  tudo,  não  se  ouvia  senão  o  meu  nome 
n'uma  berrata  que  me  ensurdecia  I 

Trez  dias  depois,  o  morgado  chamava  ao  seu 
escriptorio  o  Felíx  Telles  e  perguntava-lhe  : 

—  Onde  foi  que  você  despiu  o  dominó  .preto  ? 

—  No  Hotel  Alliance. 

—  h  não  viu  no  dominó  preto  alguma  cousa 
branca  ? 

—  Só   se  fosse  o  forro..  .    Mas  não  reparei. 

—  Pois  eu  lhe  posso  dar  algumas  explica- 
ções, que  façam  luz  sobre  o  caso. 

Félix  Telles  esbugalhava  os  olhos  attento, 
curioso. 

—  Não  viu  um  papel  branco  pregado  nas  cos- 
tas do  dominó  preto  ? 

—  Não  vi ! 

—  Aqui  o  tem,  pois — ^  dizia  o  morgado  des- 
dobrando cautelosamente  uma  tira  de  papel  en- 
rugado, rasgado,  que  o  visconde  mandara  pedir 
ao  Hotel  Alliance  e  lhe  tinha  remettido  pelo  cor- 
reio. 

E  elevando-o  a  altura  dos  olhos  de  Félix 
Telles.  mostrou-lh'o. 


170 


—  Sou  o  Félix   Telles  de  Estarreja  '.  dizia  o 
papel. 

O  pobre  homem  estava  passado,  assombrado. 

—  Mas  entáol .  .  .  exclamou  elle  caindo  em  si. 
E  o  morgado  respondeu-lhe  com  uma  garg-i- 

Ihada  estrondosa,  ao  mesmo  tempo  que  todas 
as  pessoas  da  casa  acudiani  á  pona  do  escri- 
ptorio  a  rir,  a  rir. .  . 


XX 


:5ap2a 


Perguntaram  a  uma  tricana  do  norte  para 
que  servia  o  chapelinho,  do  tamanho  de  uma 
avellã,  que  coroava  os  seus  fartos  cabellos  ne  ■ 
gros. 

—  Ora  essal  exclamou  ella  irónica  e  desde- 
nhosamente. Serve  para  pôr  e  tirar.  .  . 

Realmente,  é  para  isto  que  serve  o  chapéu, 
qualquer  que  seja  o  seu  tanianho  e  o  seu  feitio, 
mas,  principalmente  pelo  que  respeita  ao  sexo 
masculino,  que  de  responsabilidades  andam  li- 
gadas ao  simples  facto  de  pôr  e  tirar  o  cha- 
péu ! . .  . 

Custa  pouco  isso,  tiral-o  ou  pôl-o,  coisa  é 
que  se  faz  num  momento,  e  comtudo  nada  ha 
que  possa  ter  mais  serias  consequências  do  que 
pôr  o  chapéu  quando  se  devia  tirar,  ou  tiral-o 
quando  se  devia  pôr. 


172 


Não  é  so  no  theatro,  durante  os  espectácu- 
los, que  pôr  ou  tirar  o  chapéu  é  um  facto  que 
pertence  aos  dominios  do  formulário  social.  Mas 
no  theatro,  visto  que  se  está  entre  uma  socie- 
dade menos  numerosa,  dá  isso  mais  nas  vistas, 
e  se  um  espectador  conserva  o  chapéu  na  ca- 
beça, depois  do  panno  subir,  todos  os  outros 
começam  a  gritar  :  Péu  1  peu  !  Se  o  tira,  mas 
parece  reconsiderar  tornando  a  pol-o,  como  que 
tem  isso  o  propósito  de  querer  irritar  os  outros 
espectadores,  e  então  sobe  de  ponto  a  gritaria 
dos  que  mandam  desbarretar  o  insolente. 

Ha  já  muitos  annos,  no  theatro  da  rua  dos 
Condes,  appareceu  n\im  camarote  de  segunda 
ordem  um  grupo  de  patuscos  que  vinham  das 
hortas,  bem  comidos  e  bem  bebidos, — bem  be- 
bidos, sobretudo. 

Não  se  lembraram  ou  não  quizeram  tirar  o 
chapéu,  e  o  publico  indignou-se,  começou,  de 
cara  no  ar,  a  gritar,  a  berrar  para  que  se  des- 
cobrissem. 

Assistia  ao  espectáculo,  com  alguns  amigos, 
o  Moita  e  Vasconcellos,  então  jovialissimo  ra- 
paz, mais  tarde  conselheiro  e  chefe  de  reparti- 
ção no  ministério  das  obras  publicas, — o  pobre 
Moita  que  tão  desgraçado  morreu ! 

Pareceu-lhe  boa  occasião  de  tirar  partido  do 
coníiicto,  e  foi  bater  á  portii  do  camarote  dos 
patuscos. 

—  Quem  é  ?  perguntaram  de  dentro. 


173 


—  A  auctoridade,  respondeu  o  Moita  e  Vas- 
concelíos. 

Abriu-se  a  porta  do  camarote,  e  o  Moita,  to- 
mando o  ar  grave  de  um  representante  da  lei, 
exclamou  : 

—  Isto  que  se  está  passando  é  uma  pouca 
vergonha  I  Pagaram  ou  não  pagaram  os  senho- 
res o  seu  camarote  ? 

—  Pagamos,  sim,  senhor. 

—  Pois  se  pagaram,  podem  estar  como  qui- 
7.cr,  comtanto  que  não  oífendam  a  moral  pu- 
blica. Tanto  monta  ter  o  chapéu  na  cabeça 
como  não  ter.  Isso  não  offende  a  lei  nem  a 
moral.  O  dever  da  auctoridade  é  proteger  os 
direitos  de  cada  um,  disse  e  saiu  com  a  mesma 
seriedade. 

Os  do  camarote,  fortes  com  o  apoio  da  lei, 
pozeram  os  chapéus  na  cabeça  e  despiram  os 
casacos. 

Imagine-se  a  gritaria  que  n'esse  momento  ir- 
rompeu da  platéa  e  dos  outro  camarotes!  A  in- 
ferneira  cresceu  a  tal  ponto,  que  a  verdadeira 
auctoridade  teve  de  intervir,  e  os  patuscos  ti- 
veram de  ceder,  não  podendo  dizer  ao  certo  se 
a  embriaguez  lhes  haveria  feito  ver  a  auctori- 
dade em  duplicado  ou  se  neste  paiz  tudo  an- 
dava tão  fora-  dos  eixos,  que  havia  duas  aucto- 
ridades,  uma  para  mandar  pôr  o  chapéu,  outra 
para  o  mandar  tirar.  . . 

Nalguns  espectáculos  tem  acontecido  que  o 


174 


publico  se  arroga  o  direito  de  mandar  pôr  ou 
tirar  o  chapéu,  sem  se  importar  com  a  inter- 
venção das  auctoridades,  e  sem  que  mesmo  as 
auctoridades  se  atrevam  a  intervir. 

N\ima  tourada  de  Badajoz  appareceu  uma 
vez  um  sujeito  de  chapéu  alto.  O  publico,  logo 
que  elle  entrou,  começou  a  gritar-lhe  em  coro : 

—  Que  quite  el  sombrero  ! 

O  homem  quiz  resistir,  mas  acabou  por  ce- 
der. Tirou  o  chapéu.  N'isto  começou  o  publico 
a  gritar,  sempre  em  coro : 

—  Que  ponga  el  sombrero  ! 

E  o  homem,  ao  cabo  de  alguns  momentos 
de  hesitação,  teve  que  pôr  o  chapéu,  para  de- 
pois o  tornar  a  tirar,  para  ter  que  o  pôr  outra 
vez  e  para  ter  que  tiral-o  de  novo.  .  . 

Na  rua  ha  maior  liberdade  de  acção,  o  facto 
de  pôr  ou  tirar  o  chapéu  escapa  ao  dominio  do 
publico  ;  mas  por  isso  mesmo  que  ha  maior  li- 
berdade de  acção,  ha  maior  responsabilidade 
no  facto  em  relação  á  pessoa  a  quem  é  diri- 
gido. 

Basta  deixar  de  tirar  o  chapéu  para  cortar 
pela  raiz.  de  um  momento  para  outro,  uma 
longa  amisade  de  muitos  annos,  E  assim,  por- 
que o  chapéu  ficou  na  cabeça,  ficaram  separa- 
das moralmente  duas  pessoas. 

Tirar  o  chapéu  fora  de  propósito,  tiral-o  de 
mais  ou  tiral-o  de  menos,  pôde  ter  consequên- 
cias análogas,  como  se  tome  esse  acto  por  troça, 


ly^ 


por  baixesa  de  caracter  ou  por  desconsidera- 
ção. 

Tiral-o  á  mesma  pessoa  umas  vezes,  e  não 
o  tirar  outras  vezes,  é  caso  para  a  pessoa,  que 
umas  vezes  é  cumprimentada  e  outras  não,  pen- 
sar no  que  deve  fazer. 

Eu  adoptei  para  este  caso  uma  linha  de  pro- 
cedimento. Se  uma  pessoa  me  cumprimenta  uns 
dias  por  outros,  hoje  sim,  amanhã  não,  se  me 
cumprimenta  aqui  e  não  me  cumprimenta  acolá, 
porque  está  acompanhada  de  melhor  ou  de  peior 
sociedade,  essa  pessoa  passa  a  fazer-me  o  ef- 
feito  de  um  realejo,  que  me  diverte  proporcio- 
nando-me  occasião  de  trautear  esta  popularís- 
sima trova : 

Quando  eu  quiz,  não  quizeste, 
Tiveste  opinião  ; 
Agora  queres,  não  quero, 
Tenho  minha  presumpção. 

O  chapéu  impõe  deveres  de  normal  corte- 
zia,  a  que  é  preciso  attender  sem  exagero  para 
mais  ou  para  menos. 

Nada  ha  tão  aborrecido  como  o  excesso  de 
cortezia  em  que  um  chapéu  pôde  incorrer  es- 
tando fora  da  cabeça  quando  devia  conservar- 
se  no  seu  logar.  Um  estadista  portuguez,  a 
quem  um  seu  antigo  protegido  acompanhava 
de  chapéu  na  mão  por  toda  a  parte,  chegou  a 
dizer  n'um  momento  de  desespero  :  —  «Muito 
me  incommoda  a  gratidão!» 


17() 


Da  gente  de  Lisboa  escreveu  o  quinhentista 
Prestes  : 

...  e  de  Lisboa  se  sóa 
Que  todos  lá  são  honrados, 
Que  de  pessoa  a  pessoa 
Se  faliam  desbarretados. 

Mas  Francisco  Manuel  de  Mello  poz  á  corte- 
tezia  dos  lisboetas  seus  justos  limites  quando 
disse  : 

Um  fallar  com  tanto  geito, 
Um  ditinho  de  repente. 

Que  affeiçôa  : 
i'm  ter  em  tudo  respeito. 
Ai  !  mate -me  Deus  com  a  gente 
De  Lisboa. 

Ter  em  tudo  respeito, — eis  a  questão.  K  como 
se  dissesse  :  ter  conta  em  tudo.  Respeito  por 
os  outros  e  por  ncjs  mesmos,  até  no  cumpri- 
mentar ! 

Ha  pessoas  que  caem  no  defeito  contrario 
áquelle.  e  que  em  \e/,  de  gastar  a  aba  do  cha- 
péu, apenas  gastam  o  dedo  com  que  lhe  tocam. 
K  pouco.  Se  um  só  dedo  podesse  bastar  a  al- 
guém para  uso  próprio  ou  alheio,  a  sábia  na- 
tureza não  nos  haveria  dadt^  cinco  dedos  em 
cada  mão. 

Quando  a  gente,  não  sendo  milita'\  se  vê 
cumprimentada  d'esse  modo.  dá-lhe  vontade  de 
responder  ao  dedo  com  o  braço  todo,  —  para 


177 


O  presidente  de  não  sei  qu>,*  estado  ameri- 
cano, passeiava  um  dia  na  praça  publica,  ves- 
tido á  paisana,  com  o  seu  ajudante  de  campo 
ao  lado. 

Passou  por  elle  um  escravo,  e  cumprimen-. 
tou-o.  O  presidente  tirou-lhe  o  cinapeu.  e  seguiu 
seu  camip.iio.  Mas  quiz  parecer-lhe  que  o  aju- 
dante  achou   que   elle  cumprimentara  de  mais 
paro  un"i  escravo.  Voltou-se  e  disse  : 

—  Não  quero  que  possa  haver  n"este  paiz  al- 
guém mais  bem  educado  do  que  eu  I 

Isto  pe:"cebe-se.  e  é  lógico.  Fazer  apenas  meia 
dose  de  cumprimento,  não  é  cumprimentar,  c 
vexar,  porque  se  lembra  d  pessoa  cumprimen- 
tada a  sua  inferioridade. 

Ainda  ha  uma  cousa  peior  talvez  do  que  dis- 
pensar somente  meia  dose  de  cumprimento: — c 
exigi''  que  lhe  dispensem  dose  dobrada. 

Ccrio  tidalgo  costumava  deixar  ficar  de  cha- 
péu ni\  mão  as  pessoas  que  lhe  fallavam.  Um 
dia,  na  rua  larga  de  S.  Roque,  passou  um  su- 
jeito a  quem  repugnou  ver  outro  desbarretado 
deante  do  íidalgo,  que  o  não  mandava  cobrir. 
Chegou  ao  pé  dos  dois.  tocou  no  hombro  do 
que  estava  descoberto,  e  disse-lhe  : 

—  Pôde  pôr  o  chapéu  na  cabeça,  que  este 
senhor  dá  licença. 

Se  algum  dos  dois  devia  agradecer  não  era  o 
desbarretado,  mas  o  tidalgo,  porque  estava  fa- 
zendo peior  figura.  .  . 


178 


Ter  cm  tudo  respeito,  ter  conta  em  tudo.  — 
eis  o  caso. 

Chega  a  gente  a  sentir-se  enjoada  de  vér  um 
sujeito  que  cumprimenta  a  torto  e  a  direito  para 
dentro  de  todos  os  trens  que  passam— ha  nisto 
verdadeiros  especialistas  —  e  que  se  agarra  a 
um  cabello  para  ter  o  pretexto  de  se  tornar  suob 
dos  machuchos. 

Mas  não  enjoa  por  certo  menos  vêr  outros 
sujeitos  que  põem  todo  o  seu  orgulho  na  aba 
do  chapéu,  imaginando  que  a  aba  do  seu  cha- 
péu é  a  continuação  do  firmamento. 

Acima  delles,  só  Deus,  e  ás  vezes  nem  Deus... 
que  não  conhecem  I 

De  tudo  quanto  completa  a  íoílcile  do  homem 
é  com  certeza  o  chapéu  o  que  lhe  impõe  maio- 
res responsabilidades,  o  que  o  approxima  ou 
affasta  mais  dos  outros  homens,  o  que  o  pôde 
definir  melhor  na  sua  individualidade  morai,  o 
que  o  pode  tornar  mais  estimável  e  o  que  tam- 
bém o  pôde  comprometter  mais, 

K  tudo  isto  por  que  ? 

Porque  o  chapéu,  como  disse  a  tricana  do 
norte,  serve  para  pôr  e  para  tirar. 

E  em  saber  pòl-o  a  tempo  e  tiral-o  a  propó- 
sito é  que  está  o  buzilis. 

Pouco  importa  que  o  chapéu  seja  pequeno 
e  a  cabeça  grande,  que  o  chapéu  seja  grande 
e  a  cabeça  pequena.  Não  está  nisso  a  harmo- 
nia entre  o  homem  e   o  chapéu,  mas  sim  no 


179 


uso  conveniente  ou  inconveniente  que  delle  se 
faz. 

Quando  a  gente,  ao  sair  de  casa,  pÕe  o  cha- 
péu na  cabeça,  é  como  se  pozesse  ao  sol  o  forro 
de  si  mesmo,  —  as  suas  ideias,  os  seus  senti- 
mentos, a  sua  educação,  o  seu  caracter. 

Ha  chapéus  que  vão  dizendo  de  cima  da  ca- 
beça :  «Cá  vae  este  tolo,  que  não  conhece  os 
conhecidos». 

Ha  outros  chapéus  que,  aborrecidos  da  ro- 
da-viva  em  que  andam,  parecem  gritar  a  cada 
momento :  «Cá  vae  este  t©lo,  que  até  conhece 
os  desconhecidos!» 

Ainda  ha  outros  chapéus  que  parecem  muito 
contentes  do  acerto  com  que  são  tratados  pelo 
dono,  e  em  cuja  copa  a  gente  cuida  ler  esta  di- 
visa: «Nem  de  mais,  nem  de  menos)-. 

Já  repararam  em  que  o  chapéu,  qualquer  que 
seja  o  seu  tamanho  e  feitio,  parece  variar  de 
peso  em  certas  occasiÕes  e,  especialmente,  de 
pessoa  para  pessoa  ? 

O  mesmo  chapéu,  se  a  gente  está  de  animo 
opprimido,  parece  pesar  mais  que  de  costume. 

Um  pretendente,  fallando  uma  vez  com  An- 
tónio Rodrigues  Sampaio,  começou  por  dizer- 
Ihe,  visto  que  n'esse  momento  lhe  parecia  ser 
de  chumbo  a  aba  do  chapéu : 

—  Muito  custa,  sr.  conselheiro,  andar  a  gente 
por  aqui  de  chapéu  na  mãol 

E  Sampaio,   que  tinha  sotfrido  e  trabalhado 


i8o 


como  poucos,  respondeu  de  prompto  obrigan- 
do-o  a  cobrir-str : 

—  Pois  ponha-o  na  cabeça,  e  diga  o  que 
quer. 

Dois  sujeitos  compram  chapéu  da  mesma  for- 
ma e  no  mesmo  chapeleiro. 

A  um  d  elles  o  chapéu  como  que  brinca  so- 
bre a  cabeça,  inclinando-se  requebrado  num 
bolero  permanente.  E  que  a  cabeça  anda  ale- 
gre e  communica  ao  chapéu,  que  se  sente  leve, 
a  vontade  de  foliar. 

A  outro  o  chapéu  vae-lhe  descendo  insensi- 
velmente até  ás  orelhas,  dando  mostras  de  que- 
rer enterrar-se  por  desgostoso.  K  que  a  cabeça 
pegou-lhe  as  scismas  em  que  anda  martellando 
no  silencio  do  espirito. 

Tão  certo  c.  meus  senhores,  que  o  chapéu 
re\'ela  o  homem:  —  o  chapéu  é  o  estylo  de  toda 
a  gente,  incluindo  a  que  não  tem  estylo. 


XXI 


Os  antípodas 


Ha  pessoas  tão  infelizes,  que  iulgam  que  a 
sua  própria  infelicidade  não  terá  fim. 

Ha  melancólicos  para  quem  a  esperança  não 
accende  um  único  raio  de  sol,  tão  entranhada- 
mente elles  se  entregam  á  melancolia. 

Ha  pobretões  que  desanimam  de  ser  reme- 
diados algum  dia,  tão  pouca  fé  lhes  vivifica  o 
coração. 

E  para  todos  estes  que  eu  escrevo  hoje,  man- 
dando-lhes  n"uma  anecdota  um  ensinamento 
moral,  que  pôde,  por  um  momento  ao  menos, 
arrancal-os  aos  seus  pensamentos  sombrios, 
tiral-os,  por  um  instante  que  seja,  do  inferno  da 
sua  desesperança  e  entremostrar-lhes  o  ceu. . . 

O  padre-mestre  FanhÕes  também  se  arrepel- 
lava,  teimosamente  incrédulo,  quando  o  seu 
collega  Libório  pretendia   dcmonstrar-lhe   que 


l8-2 


na  esphera  terrestre  havia  habitantes  que,  em 
relação  aos  de  meridianos  e  parallelos  oppos- 
tos,  se  chamavam  antípodas,  porque  se  acha- 
vam collocados  de  modo  que  os  pés  de  uns  es- 
tavam voltados  contra  os  pés  de  outros. 

Padre-mestre  Fanhões  não  o  podia  crer  e 
desgostava-sc  d  isso,  visto  que  toda  a  gente  acre- 
ditava na  existência  dos  antípodas,  menos  elle. 

—  Não  me  tio !  dizia  de  si  para  comsigo. 
Como  é  possível  que,  estando  nós  n'um  hemis- 
pherio  de  cabeça  para  cima,  possa  haver  gente 
que  se  equilibre  de  cabeça  para  baixo  no  outro 
hemispherio  ? ! 

Por  mais  que  matutasse  no  caso,  acabava 
sempre  por  dar  razão  a  si  próprio,  e  negal-a 
a-o  coliega  Libório. 

— ■  Ora  imaginem,  insistia  elle,  uma  laranja, 
porque  a  terra  tem  approximadamente,  segundo 
se  diz,  a  forma  de  uma  laranja.  Ponho  a  laranja 
sobre  um  prato  e  colloco-lhe  facilmente  na  casca 
da  metade  superior  um  ou  dois  grãos  de  milho ; 
mas  se  quizer  collocal-os  na  metade  inferior, 
claro  está  que  não  terei  meio  de  segural-os. 
Cairão  por  força !  Pois  com  os  habitantes  da 
terra  ha  de  dar-se  a  mesma  cousa.  Que  nos 
aguentemos  de  cabeça  para  cima,  percebe-se ; 
mas  que  ha)a  outros  que  se  aguentem  de  ca- 
beça para  baixo,  não  me  entra  no  miolo.  O  Li- 
bório é  um  asno,  que  acredita  em  todos  os  ca- 
rapctões I 


i83 


E  o  padre-mestre,  ensinando  o  seu  latim  aos 
rapazes,  interrompia-se  muitas  vezes  para  di- 
zcr-lhes  a  propósito  de  cousa  nenhuma : 

—  Nos  antípodas  é  que  eu  não  acredito  !  Não 
pôde  ser  ! 

Os  rapazes  davamlhe  razão,  não  só  porque 
n'essas  occasiões  o  padre-mestre  os  apoquen- 
tava menos  no  latim,  mas  tam.bem  porque  el- 
les  próprios  não  tinham  grande  convicção  na 
tal  historia  dos  antipodas,  gente  que  devia  vi- 
ver pendurada  pelos  pés.  em  permanente  gym- 
nastica. 

Tirante  a  caturreira  dos  antipodas.  padre- 
mestre  era  uma  excellente  pessoa,  um  sacerdote 
exemplar,  muito  respeitador  das  leis  da  egreja 
e  dos  preceitos  da  Bulia  da  Santa  Cruzada. 

As  sextas-feiras  com.ia-se  sempre  de  magro 
em  sua  casa:  os  rapazes  já  contavam  com  o 
bello  bacalhau  n'aquelle  dia. 

Elle  próprio,  o  bom  padre-mestre,  o  ia  esco- 
lher á  tenda  nas  quintas-feiras  de  tarde.  Tra- 
zia-o  para  casa,  escondido  debaixo  do  capote. 
Dava-o  a  vêr  á  criada. 

—  Que  era  de  primeira  ordem,  approvava 
ella,  o  melhor  que  podia  seri 

—  Pois  sim,  Gertrudes,  vae  atar-lhe  uma 
corda  e  pôl-o  a  dessalgar  no  poço. 

Dito  e  feito.  A  Gertrudes  pendurava  o  baca- 
lhau, e  mergulhava-o  no  poço  até  ao  meio  dia 
seguinte. 


l.v 


Succedia  algumas  vezes  que  o  padre-mcstre 
FanhÕes  se  encontrava  n'esscs  dias.  na  botica, 
com  o  seu  collega  Libório  e,  como  sempre,  dis- 
cutiam o  eterno  thema,  a  eterna  teima  dos  an- 
típodas. 

—  Que  não!  que  não  podiam  existir  I  excla- 
mava decisivamente  o  padre-mestre. 

Não  havia  argumento  convincente  que  o  Li- 
bório não  empregasse ;  mas  o  padre-mestre, 
muito  casmurro  e  auctoritario.  cortava  a  ques- 
tão dizendo : 

—  Ha  duas  cousas  que  eu  sei  perfeitamente: 
a  primeira  é  que  tenho  amanhã  bacalhau  para 
o  jantar:,  a  segunda  e  que  essa  tal  historia  dos 
antipodas  não  tem  pes  nem  cabeça. 

Ora  succedia  que  na  sexta-feira  pela  manhã, 
quando  a  Gertrudes  ia  tirar  o  bacalhau  do  poço, 
o  encontrava  sempre  reduzido  a  menos  de  me- 
tade \  estava  ratado,  comido. 

O  que  seria,  o  que  não  seria  ?  I 

—  É  gato  que  desce  pela  corda,  alvitrava  o 
padre. 

—  Isto  não  e  dente  de  gato  I  ponderava  acer- 
tadamente a  Gertrudes. 

E,  realmente,  fizeram  a  seguinte  descoberta : 
que  não  podia  ser  gato  de  casa,  porque  o  não 
tinham,  e  não  podia  ser  gato  de  fora,  porque 
os  muros  do  quintal  erani  muito  altos,  e  esta- 
vam eriçados  de  cacos  de  garrafa. 

—  Será  elle  rato  de  agua,  ó  Gertrudes  ? ! 


i85 


—  Nada,  sr.  padre-mestre,  isto  menos  pode 
ser  dente  de  rato. 

—  Olha,  dente  de  coelho  é  que  é  com  toda 
a  certeza,  porque  por  mais  que  a  gente  puxe 
pelo  miôlo  não  sabemos  o  que  sejal 

A  Gertrudes  achava  mais  uma  vez  graça  a 
este  dito  do  padre-mestre,  sempre  repetido,  e 
na  sexta-feira  seguinte,  quando  ia  tirar  o  baca- 
lhau do  poço,  encontrava-o  roido  em  mttade. 

Os  alumnos  do  padre-mestre  tinham  inven- 
tado esta  patuscada  do  bacalhau  e,  graças  a 
ella,  passavam  em  cautelosa  folia  as  noites  das 
quintas-feiras. 

Eram  elles,  os  diabretes  I  que,  depois  de  es- 
tarem certos  de  que  o  padre-mestre  dormia,  e 
de  que  a  Gertrudes  ressonava,  desciam  pé-an- 
te-pé  ao  quintal,  e,  içando  o  bacalhau,  corta- 
vam e  comiam  grandes  lascas. 

Se  lhes  dessem  uma  ceia  de  foie-íj;ras  talvez 
não  gostassem  tanto.  O  bacalhau  roubado  ti- 
nha para  elles  o  sabor  do  fructo  prohibido,  a 
que  servia  de  aperitivo  a  chalaça  de  o  ireni 
buscar  ao  poço  com  o  sobresalto  de  ratoneiros 
que  temem  ser  presentidos. 

Padre-mestre  dava  em  doido,  o  caso  já  o  ia 
intrigando  tanto  como  a  historia  dos  antípo- 
das. 

Um  dia  chamou  de  parte  o  mais  intelligente 
dos  seus  discípulos  de  latim,  e  contou-lhe  o 
qae  estava  acontecendo  com  o  bacalhau. 


i8b 


—  O  que  será  r  perguntou  candidamente  o 
padre-mestre. 

—  Ao  certo  não  sei.  respondeu  o  estudante. 
Mas  talvez.  . . 

~  Talvez  ? 

—  Pode  muito  bem.  ser  que  o  comam  os  an- 
típodas. 

—  Lá  vens  tu  com  a  fabula  dos  antípodas! 
Não  creias  n'isso,  rapaz! 

—  O'  sr.  padre-mestre.  pois  se  todos  os  sá- 
bios dizem  que  sim,  por  que  rasao  havemos  nós 
de  pôr  em  duvida  o  que  elles  affirmam  '.  De 
mais  a  mais  vossa  senhoria  tem  m.eio  de  averi- 
guar a  verdade.  Sexta-íeira  pela  manhã  debru- 
ce-se  no  poço,  ponha-se  á  espreita,  que  talvez 
os  apanhe  com  a  boca  na  botija. 

—  No  bacalhau  é  que  tu  queres  dizer. . . 

—  Sim.  senhor,  no  bacalhau. 

—  Pois  olha  que  hei  de  tomar  o  teu  conse- 
lho. Na  se.xta-feira  eu  próprio  irei  tirar  o  ba- 
calhau do  poço  para  desenganar-me. 

Pôde  calcular-se  o  que  os  estudantes  ririam 
uns  com  os  outros  á  espera  da  sexta-feira.  que 
n'aquella  semana  parecia  não  chegar  nunca,  tão 
anciosamente  elles  a  esperavam. 

Mas,  arrastadamente,  a  sexta-feira  chegou, 
c  o  padre-mestre  foi  em  pessoa  buscar  o  ba- 
calhau. 

Ao  debruçar-se  no  poço,  deu  um  grande 
grito. 


i87 


A  Gertrudes  correu  á  janella  : 

—  O  que  é,  sr.  padre-mestre  ?  perguntou 

—  Eu  vi  um  homem  no  fundo  do  poço.  res- 
pondeu elle  assaralhopado.  E  assim  que  me 
endireitei  para  gritar,  fugiu. 

—  Atire-Ihe  uma  pedra.  sr.  padre-mestre, 
aconselhou  um  dos  estudantes,  que  também 
tinham  acudido. 

O  padre-mestre  pegou  n'um  calhau  e  atirou -o 
para  o  fundo  do  poço.  A  agua  turvou-se.  de 
modo  que,  por  mais  que  elle  se  debruçasse 
espreitando,  não  tornou  a  ver  homem  nenhum, 
—  isto  é.  não  podia  vêr-se  a  si  próprio. 

—  E  o  bacalhau  está  inteiro?  perguntou  ou- 
tro rapaz 

—  Vamos  vêr  isso. 

O    padre-mestre    deu-se    pressa    em    içar    a 
corda. 
Faltava  metade  ao  bacalhau. 

—  Ora  agora,  sr.  padre-mestre.  disse-lhe  o 
estudante  que  primeiro  o  havia  aconselhado,  já 
vossa  senhoria  não  pôde  duvidar  da  existancia 
dos  antípodas,  porque  os  viu. 

—  E  é  verdade  que  vi  um! 

—  Mas  o  que  fez  elle  quando  vossa  senhoria 
apparcceu  á  beira  do  poço  ? 

—  Ora  o  que  faz  um  gatuno  quando  alguém 
o  apanha  com  a  boca  na  botija  ? 

—  No  bacalhau,  sr.  padre-m.estre,  emendou 
o  estudante. 


j88 


—  No  bacalhau  ou  na  botija.  Fugiu  I  Pois  o 
que  havia  elle  de  fazer,  o  paiife  ? ! 

—  Vossa  senhoria  reparou  se  elle  trazia  ca- 
saco ? 

—  Trazia,  sim,  lá  isso  ainda  eu  pude  ver. 

—  Está  provado  então  que  os  antípodas  ves- 
tem como  nós.  E  vossa  senhoria  que  não  que- 
ria acreditar  n'elles ! 

—  E  verdade!  Ninguém  pôde  dizer:  d'esta 
agua  não  beberei.  Vou  coníessar  o  meu  erro 
ao  collega  Libório. 

E  íoi.  O  collega  Eiborio  estava  na  aula  a  en- 
sinar geographia  aos  rapazes. 

O  padre-mestre  chamou  por  elle  em  altos 
berros.  O  Libório  veiu  á  porta  vêr  que  afflic- 
ção  era  aquella.  Era  o  padre-mestre,  que  lhe 
gritou  : 

—  Não  ha  duvida,  não  senhor;  Você  tem  ra- 
zão n"aquillo  dos  antípodas! 

—  Porque,  ó  padre-mestre  ? 

—  Porque  eu  vi  um. 

—  Viu  um ! 

—  Vi-o  com   estes   que  a  terra  hade  comer. 

—  E  onde  é  que  o  viu  ? 

—  No  fundo  do  meu  poço ! 
Assim  é  em  tudo  o  mais. 

Por  muito  escura  que  seja  a  vida.  e  basta 
que  seja  tão  negra  como  o  fundo  de  um  poço, 
por  mais  teimosa  na  sua  descrença  que  seja  uma 
alma,  e  basta  que  o  seja  tanto  como  a  do  pa- 


i89 


dre-mestre  Fanhões.  chega  sempre  um  dia  em 
que  se  vê  ou  se  cuida  vêr  aquillo  que  jamais 
se  reputava  visivel :  realidade  ou  illusão. 

Melhor  é  que  seja  a  realidade,  ao  contrario 
do  que  aconteceu  com.  o  padre-mestre.  Mas  se 
íôr  illusão,  isso  basta  ás  vezes,  n'um  miundo 
em  que  a  maior  parte  das  cousas  são  illusorias, 
para  sentir  a  alma  menos  propensa  á  duvida  e 
ao  desalento. 

O  padre-mestre  julgou  vêr  um  antipoda,  e 
morreu  na  fé  de  que  elles  existiam, —  por  isso. 
O  collega  Libório,  em  vez  de  vêr  os  antípodas 
no  fundo  do  poço.  via-os  nos  compêndios  de 
geographia  e  nos  globos.  Nem  por  se  ter  con- 
vencido mais  depressa  logrou  ter  maior  convic- 
ção de  que  o  padre-mestre  desde  aquelle  dia. 
E  ambos  chegaram  ao  mesmo  fim  por  cam.inhos 
diversos  Mas,  com  quanto  um  se  atrazasse  na 
jornada,  ambos  chegaram,  e  o  essencial  na  vida 
é  chegar. . .  alguma  vez  ! 


XX 11 


As  uvas 


Outubro:  todos  os  lavradores  tratani  de  apu- 
rar o  resultado  das  vindimas. 

Quantas  pipas  de  vinho  tiveram  ?  A  como  as 
venderão?  Eis  as  qiiestões  que  principalmente 
os  preoccupam. 

São,  pois,  as  uvas  que  estão  ainda  em  sccna 
no  grande  palco  da  vida  rural,  tablado  sombrio 
e  m.elancolico  desde  que  o  phyloxera  começou 
a  roer  os  bastidores  feitos  de  pâmpanos  c  lata- 
das, outr'ora  verdejantes  e  opulentos  de  seiva. 

As  uvas,  disse-o  algures  .lulio  César  Machado, 
são  o  vinho  em  pilulas.  Deliciosas  e  saborosas 
pílulas,  que  não  precisam  ser  doiradas  com  as- 
sucar  como  as  da  botica! . . . 

Um  dia,  certo  medico,  que  punha  muito  gosto 
em  falar  com  distincção,  aconselhou  um  dos 
seus    doentes   a   tomar  umas   pilulas   amargas 


iqi 


que,  para  nao  repugnarem,  precisavam  ser  en- 
volvidas n'uma  substancia  doce. 

—  Tome-as  n'um  vehiculo  qualquer,  recom- 
mendou  o  medico. 

Ora  em  pliarmacia  a  palavra  vehiculo  é  sy- 
nonimo  de  excipiente,  isto  é,  a  substancia  em 
que  se  encorporam  ou  dissolvem  os  medicamen- 
tos, para  lhes  mascarar  o  sabor,  para  diminuir 
o  seu  principio  activo  ou  ainda  para  lhes  dar 
uma  forma  conveniente. 

No  dia  seguinte  vem  o  medico,  e  não  encon- 
tra o  doente  em  casa.  Mostra- se  profundamente 
surprehendido  e  contrariado. 

—  Onde  está  elle  ?  ! 

—  Saiu. 

—  Saiu?!  Que  imprudência,  santo  Deus! 

—  Mas  foi  V.  ex/  que  mandou.  .  . 

—  Eu  ? ! 

N'isto  ouve-se  parar  á  porta  uma  carruagem. 
Era  o  doente,  pallido  e  tremulo,  que  regressava 
a  casa. 

—  O  que  fez  o  senhor  ?  !  perguntou  o  me- 
dico. 

—  Sai  de  carruagem. 

—  Mas  que  loucura  foi  essa  :  I 

—  Pois  V.  ex.*  não  me  disse  que  tomasse  as 
pilulas  n'um  vehiculo  qualquer!  Tomei-as  de 
carruagem . . . 

Com  as  pilulas  de:  vinho,  tão  doces  são  !  não 
podem    dar-se   doestes  equivocos,  pois  que  não 


IQ2 


precisam  \-ehiculo  —  assucar  oi;  carrua^eTi  — 
para  engulir-sc  com  agrado. 

Perde-se  na  noite  do  cahos  a  origem  da  vi- 
nha e  do  seu  fructo  saboroso. 

Segundo  a  l^iblia.  Noé  foi  o  inventor  da  arte 
de  fa?:er  vinho  c,  por  tal  signal,  que  aprendeu 
á  sua  custa,  empiteirando-se  sem  o  querer.  Se- 
gundo a  mvthologia.  foi  Baccho  o  primeiro  vi- 
ticultor, e  o  que  é  certo  é  que  nós  ainda  hoje, 
quando  carregamos  nos  tropos,  dizemos  mui' 
tas  vezes — o  deus  Baccho- — em  vez  de  vinho. 

Mas  quem  sabe  lá  qual  foi  ao  certo  o  pri- 
meiro homem  que  cultivou  a  vinha  e  bebeu  o 
sumo  das  uvas!  De  mais  a  mais  a  vinha  não 
foi  arvore  que  Deus  prohibisse,  como  a  do  bcin 
c  do  mal.  Não.  senhores,  a  cultura  da  vinha 
foi  livie  desde  o  prmcipio  do  mundo,  e  então,  que 
me  conste,  não  se  vendia  o  vinho  por  decilitros. 
O  s}stema  métrico  decimal  é.  acho  eu.  muito 
posterior  á  origem  do  mundo.  . .  Cada  um  po- 
dia beber  o  que  quizesse.  Que  delicia,  o  prin- 
cipio do  mundo ! 

•  Pois  não  serei  eu  que  me  proponha  estudar 
a  origem  do  vinho,  para  não  incorrer  no  rídi- 
culo  daquelle  sábio  que,  tratando  de  descobrir 
o  inventor  do  jogo  do  voltarete,  ficou  capaci- 
tado de  que  tinha  .>ido.  .  .  Voltaire. 

Ha  poucos  dias  li  numa  obra  interessan- 
tíssima, a  viagem  de  Pyrard  ás  índias  Orien- 
tacs,  que  o  duque  de  Alba,  tendo  tomado  a  ci- 


uj3 


dade  de  Haerlem.  na  Hollanda,  mandou  fazer 
n'clla  execuções  tão  cruéis,  que  ha  quem  derive 
d"ahi  o  provérbio  fn^er  aviem,  de  onde  veiu, 
por  corrupção,  fazer  arlij  ou  arrelia. 

Pois  nem  Francisco  Pyrard,  nem  Cunha  Ri- 
vara,  que  commungou  esta  opinião,  eram  dois 
insignificantes. 

Pareceu-me  forçada  a  derivação  e  contando-a 
a  um  homem  de  espirito,  disse-me  elle : 

—  Eu  estou  convencido  do  contrario.  Sahe 
vossè  que  Jacob  só  muito  contrariado  casou 
com  Lia.  Por  isso,  é  natural  que  a  não  tratasse 
bemi.  Obrigava-a  a  trabalhar,  sem  que  ella  po- 
desse  e.  como  n'esse  tempo  todos  os  hom.ens 
eram  grosseiros,  dizia-lhe  a  cada  momento : 
Arre,  Lia.  D"aqui  é  que  veiu  certamente  a  lo- 
cução .  .  . 

Tem  graça,  e  caracterisa  a  facilidade  com 
que  os  sábios  inventam  origens. 

Sempre  me  ha  de  lembrar  o  caso  daquelles 
dois  distinctos  archeologos  que,  n'uma  serra  de 
Portugal,  encontraram  certa  pedra  tosca  com. 
estas  duas  lettras  gravadas:  C.  M. 

Discutiram,  investigaram.,  até  que  um  canto- 
neiro lhes  disse  : 

~  Esí^a  pedra  foi  mandada  ahi  pôr  ha  mui- 
tos annos  pela  senhora  camará  yjuinicipal. 

Ficaram  de  cara  á  banda,  os  sábios. 

A  mim,  a  respeito  da  vinha,  não  me  ha  de 
acontecer  outro  tanto.   Tiro   o  meu  chaneu  á 


'M4 


antiguidade  da  cepa,  e  passo  adeame.  Mas  como 
as  uvas,  e  bebo  o  vinho.  No  estado  de  civilisa- 
ção  em  que  nos  encontramos  hoje,  e  o  melhor 
que  temos  a  fazer. 

Sem  embargo,  também  gosto  de  olhar  para 
ellas,  principalmente  se  são  brancas,  graciosa- 
mente tocadas  pela  luz  em  cada  bago,  o  que  faz 
o  desespero  dos  pintores. 

Só  um  soube  até  hoje  igualar-se  ao  Greador 
na  reprodacção  das  uvas.  Foi  ZeLi^:is,  diz  a 
lenda.  Os  pássaros,  enganados  por  uma  tão 
perfeita  similhança,  vieram  bicar  os  cachos. 
Parrhasius,  rival  de  Zeuxis.  quiz  pintar  uma 
tela  ainda  melhor.  No  seu  quadro  havia  um 
cortinado  que  enganou  o  próprio  Zeuxis. 

—  Levanta  o  cortinado,  disse  elle  a  Parrha- 
sius, para  que  eu  possa  observar  a  tela. 

Quando  reconheceu  que  era  pintado,  Zeuxis 
confessou-se  vencido:  «Eu  enganei  os  pássaros, 
mas  Parrhasius  enganou-me  a  mim!» 

A  vinha  pôde  ser  mais  ou  menos  elegante, 
alta  e  pendente  como  no  norte  do  paiz,  de  en- 
forcado lhe  chamam  \  ou  pequena  e  redonda 
como  nas  provincias  do  sul :  mas  as  uvas  são 
sempre  bellas  na  lucidez  e  variedade  dos  tons. 

E  notável  que  Camões,  tendo  vivido  na  Es- 
tremadura, se  é  que  n"esta  mesma  província 
não  nasceu,  descrevesse  na  ilha  dos  Amores, 
não  a  vinha  do  sul,  mas  a  de  enforcado,  a  alta 
c  pendurada,  que  vegeta  no  norte: 


195 


Entre  os  braços  do  ulmeiro  está  a  jucunda 
Vide,  c'uns  cachos  roxos,  e  outros  verdes. 

Frei  Luiz  de  Sousa,  na  descripçao  da  cerca 
de  Bemfica,  serviu-se  de  uma  feliz  comparação 
com  as  pedras  preciosas  para  caracterisar  as 
nuances  da  coloração  dos  cachos.  Faziam,  diz 
elle,  «collares  de  pedraria  as  uvas,  segundo  os 
tempos,  e  as  cores  d"ellas :  já  topasios,  já  ru- 
bis, primeiro  esmeraldas.» 

Na  linguagem  pittoresca  do  apologo,  as  uvas 
estão  verdes  quando  a  rapoza  lhes  não  pôde 
chegar.  E  uma  das  mais  sentenciosas  fabulas, 
essa,  da  rapoza  e  das  uvas.  Desdenha-se  sem- 
pre d"aquillo  que  se  não  pôde  alcançar. 

—  Ser  ministro  !  diz  um  pretendente  á  pasta. 
Que  massada  I 

E  do  lado  algum  malicioso  observa  a  meia 
voz  : 

—  Estão  verdes,  não  prestam. . . 

Por  este  anno,  vamos  a  despedir-nos  das 
uvas,  que  só  por  ahi  resta  algum  cacho  guar- 
dado como  um  mimo. 

Perdem-se  no  ar,  por  esse  paiz  fora,  as  ulti- 
mas canções  das  vindimas.  No  Douro,  a  região 
do  vinho,  a  vindima  é  ainda  uma  festa,  apesar 
da  phylloxera.  Canta-se  todo  o  dia,  vindimando. 
E  ha  razão  para  isso,  porque  a  vindima  repre- 
senta o  advento  do  vinho  novo.  No  sul  do  paiz, 
a  vindima  corre  triste  e  silenciosa,  parecendo 
um  funeral,  o  enterro  das  uvas. 


lijf) 


Mas,  para  o  effeito  de  ser  bom,  pouco  im- 
porta que  o  vinho  nasça  entre  canções  ou  sem 
tílias.  O  que  se  quer  é  que  alegre  e  aqueça... 
no  inverno ; — porque,  no  estio,  alegra  e  refresca, 
dizem  os  borrachos. 


XXIII 


Pessoais  conhecidas  de  vossas  exoellencias 


Temos  visto  cair  de  anno  para  anno,  um  a 
um,  os  mais  antigos  habitues  de  S.  Carlos. 

Por  que  não  começaremos  pelas  testas  coroa- 
das ?  O  seu  dildtantismo  é  tão  humano  como 
o  dos  outros  habitues.  Primeiro  el-rei  D.  Fer- 
nando, um  espectador  certo,  mesmo  já  quando 
a  voracidade  lethifera  de  um  cancro  lhe  ia 
roendo  a  face.  D.  Fernando  punha  o  seu  par- 
che  de  seda  preta,  e  ia  para  S.  Carlos,  para 
S.  Carlos  or.de  elle  havia  brilhado  outrora  em 
plena  mocidade  feliz.  Depois  D.  Augusto,  que 
parecia  amar  a  temperatura  elevada  de  S.  Car- 
los, apesar  de  ser  um  cardiaco.  Em  seguida, 
el-rei  D.  Luiz,  que  tinha  pela  musica  a  paixão 
nativa  de  todos  os  Braganças.  Já  doente,  pal- 
lida  e  flaccida  a  face,  num  esphacelamento  lento 
que  o  rosto  denunciava,  ia  uma  vez  pc^r  (Miira 


i<)8 


a  S.  Carlos  como  para  se  despedir  da  musica, 
que  sempre  adorara. 

Cá  em  baixo,  nas  cadeiras,  desapparecêra 
primeiro  o  dr.  Alvarenga,  que  passara  a  vida 
a  tratar  o  coração  dos  outros,  embora,  para  o 
atormentar.  lhe  bastasse  o  seu,  de  que  sotfria 
muito. 

Lembram-sc  do  dr.  Alvarenga  ?  Sempre  de 
casaca,  gravata  preta,  óculos  escuros,  e  um 
crescente  mais  dilctíaiitt'  do  que  cathedratico. 
Lembram  decerto. 

Depois  o  José  Carlos  Poeta,  grande  peitilho 
lustroso,  casaca  de  amplas  lapellas.  calva  os- 
tentosa e  lusidia. 

Tinha  conhecido  a  avó  de  cada  cantora  que 
ia  apparecendo.  e  decerto  gosava,  ou\  indo  a 
neta.  mais  do  que  nós.  porque  vivia  da  saudade 
deleitosa  que  as  suas  recordações  lhe  aA  iva\  am. 

Foi-se  um  dia.  de  repente,  alli  ao  fundo  da 
rua  do  Alecrim. 

Júlio  César  Machado,  muito  correcto  dentro 
da  sua  casaca,  sempre  de  gravata  preta  —  que- 
rendo assim  mostrar  que  já  se  não  tinha  na 
conta  de  moço.  comquanto  se  tivesse  ainda  na 
conta  de  dilcltantc  ~ío\y  como  uma  estrella  ca- 
dente que  parece  procurar  outra  no  ceu,  \  er  se 
encontrava  pelo  azul  fora  a  alma  do  tilho.  que 
era  a  estrella  querida  do  seu  coração  aífectuoso. 

Agora,  ultimamente,  o  duque  de  Albuquer- 
que, uma  só  pessoa,  que  fornecera  a  S.  Carlos 


199 


dois  habitues :   o  conde  de  Mesquiteila  e  p  du- 
que de  Albuquerque. 

■O  seu  chino,  sempre  tão  fallado  nas  chroni- 
cas  de  S.  Carlos,  era  como  que  a  pagina  mais 
eloquente  do  seu  gosto  pelo  mundo  :  queria  fin- 
gir de  mais  moço  cada  vez  que  S.  Carlos  abria, 
não  obstante  ser  mais  velho  um  anno; 

E,  depois  de  certa  idade,  nada  ha  que  en- 
velheça tanto  como  cada  anno  que  vae  pas- 
sando .  . . 

Júlio  Machado  raras  vezes  subia  a  um  cama- 
rote para  visitar  alguém  ;  e  tambemi  raras  vezes 
assistia,  nos  últimos  annos,  a  um.  espectáculo 
todo. 

Pa'^ecia  um  pouco  cansado  do  mundo:  en- 
trara no  periodo  em  que  a  gente  vive  principal- 
mente de  recordações. 

O  duque  de  Albuquerque,  peio  contrario, 
entrava  em  todos  os  camarotes,  visitava  todas 
as  damas,  e  apenas  saía  de  S.  Carlos...  quando 
os  outros  saíam. 

Tinha  razão,  porque  elle  ia  lá  não  só  para 
ouvir  as  operas,  como  também,  para  ver  os  ou- 
tros. 

* 


José  Carlos  de  Freitas  Jacome  alternara  uma 
grande  parte  da  sua  ^  ida  em  occupaçÕes  que 
pn)fundamente   contrastavam,  uma  com  outra: 


2  00 


a  prosa  dos  tribunaes  e  a  poesia  da  opera.  De 
per  meio,  e  de  passagem,  plantara  o  seu  lourei- 
rosinho  no  jardim  das  Musas,  hra  escrivão  do 
eivei  na  Boa  Hora.  dilettantc  em  S.  Carlos,  c 
poeta  por  desfastio  nas  horas  em  que  da  prosa 
dos  autos  ascendia  a  região  da  harmonia.  Fora 
bastante 'cscriptor  para  não  ser  unicamente  es- 
crivão, e,  fora  da  Boa  Hora,  esquecia-se  de  ser 
escrivão,  para  ter  as  predilecções  e  as  honras 
de  escriptor. 

Bom  homem  a  valer,  iimavel,  sabendo  vestir 
uma  casaca,  tendo  o  segredo  de  fazer  espelhar, 
com  uma  limpidez  de  cristal,  o  peitilho  da  .'■ua 
camisa.  Nunca  perdeu,  apesar  de  velho  e  doente, 
os  seus  ares  de  homem  elegante,  os  seus  hábi- 
tos mundanos.  Gostava  do  mundo,  e  tinha  bom 
gosto,  porque  mal  se  chega  a  comprehender  a 
rnania.  que  teem  alguns,  de  se  sepultarem  em 
vida  na  solidão  da  misantropia. 

Duas  coisas  lhe  não  esqueceram  nunca :  as 
suas  luvas,  e  uma  flor. 

Nas  bellas  noites  de  S-  Carlos,  Freitas  Ja- 
come  enflorava  sempre  a  lapella  da  casaca. 

F  no  theatro,  na  egreja,  na  rua,  na  Hava- 
nesa, jamais  lhe  esqueceram  as  luvas,  que  ás 
vezes  não  calcava,  mas  que  não  abandonava 
nunca. 

Dava  gosto  ^  el-o  na  sua  cadeira  de  S.  Car- 
los, grave,  attento,  tendo  o  ar  de  um  diplomata 
pomposo.  Tendo  visto  nascer  o  romantisnio  eni 


201 


Portuga!,  fôra  romântico  de  convicção  e,  como 
tal,  adorava  a  musica  italiana,  saboreava-a,  a 
goies  de  audição,  como  se  fosse  um  licor  esqui- 
sito, divino. 

Verdi  servia-lhe  á  phantasia  uma  espécie  de 
champagne  capitoso,  que  o  embriagava  doce- 
mente. 

Bellini  e  Rossini,  dois  copeiros  da  cava  ce- 
leste, enchiam-lhe  a  taça  do  prazer  de  um  tokay 
generoso,  único. 

E,  de  resto,  tinha  rasão,  porque  ainda  não 
houve  quem  lhes  podesse  apagar  os  nomes  na 
grande  tela  da  immortalidade.  Meyerbeer.  uma 
aurora  boreal,  Mozart,  uma  estrella,  Wagner, 
uma  nublosa,  passam  hoje  por  todos  os  palcos 
do  mundo,  mas,  sem  embargo,  as  partituras 
italianas  hão  de  illuminar-se  sempre  d'esse  doce 
luar  de  sentimentalismo,  que  faz  a  delicia  do 
coração. 

N'essa  atmosphera  fôra  educado  Freitas  .Ta- 
come.  Nos  combates  românticos,  da  musica  c 
da  poesia,  fizera  as  suas  primeiras  armas.  Se- 
guia o  exemplo  de  Garrett  no  vestir  e  no  pen- 
sar, amava  o  romantismo  em  si  e  nos  outros. 
Não  podia  nivelar-se  com  esse  grande  homem 
na  riqueza  do  intellecto,  mas,  no  que  podia  ser 
assimilável,  imitou-o.  Não  podia  medir-se  lit- 
terariamente  com  Castilho,  mas  versejou  a  exem- 
plo d"elle  em  honra  das  divas  do  Ohmpo  ly- 
rico,    porque   Castilho,   com   ser  cego,   glí)rifi- 


202 


cou  na  )\ra  o  feminino  da  opera,  a  Agostini,  a 
Bernardi,  a  Gazzaniga.  Admirador  de  Hercu- 
lano, uma  das  três  entidades  gloriosas  da  tri- 
murti  romântica,  não  o  imitou  nos  processos  de 
vida  rústica  c  meditativa:  para  solitário  não  ti- 
nha geito  Freitas  Jacome. 

Faz-me  pena  ver  morrer  um  homem  que 
soube  aproveitar  o  mundo  como  elle  é  e  que, 
já  combalido  pela  doença  e  desalentado  pela 
velhice,  poz  o  seu  chapéu,  pegou  nas  suas  lu- 
vas, e  foi  para  a  rua  esperar  a  morte,  que  não 
ousou  atacal-o  de  cara.  como  a  todos  o:^  tristes 
e  a  todos  os  fracos. 

Freitas  Jacome  morreu  em  plena  rua.  como 
Molière  morreu  em  plena  scena,  n'um  esforço 
de  coragem. 

Lisboa,  esta  Lisboa  que  elle  tanto  amava, 
viu-o  passar  no  seu  ultimo  passeio  de  vivo  mi- 
iiutos  antes  de  cahir  morto.  Mesmo  doente,  a 
vida  exterior  attraira-o.  Em  vez  d'i  pedir  uma 
tisana  ao  medico,  planeou  o  seu  jant;ir  daquelle 
dia,  saiu,  recebeu  o  ultimo  golpe  de  luz  que 
cahia  do  ceu  de  Lisboa,  e  morreu  ouvindo  o 
ruido  da  grande  cidade,  que  fremia  em  torno 
delle. 

P>  todavia    Freitas   Jacome   era  provinciano ! 

Muitas  vezes  lhe  ouvi  dizer  que  nascera  em 
Thomar,  cujas  bellezas  naturaes  recordava,  mas 
para  um  liomem  que  gostava  do  mundo,  e  que 
tanto  se  interessava  por  elle,  o  mar  de  lona  de 


203 


S.  Carlos   era  mil   vezes  preferível  á  corrente 
authentica  do  rio  Nabão. 


* 


Fallava-se  muito  dos  irmãos  Andrades,  que 
já  tinham  cantado  no  Porto  com  a  Sembricli, 
mas,  cantar  em  Lisboa  tendo  nascido  em  Lis- 
boa, caso  era  para  uma  certa  curiosidade,  direi 
mesmo  para  um  certo  receio. 

Todos  nós  nos  lembrávamos  de  ter  visto  es- 
ses dois  rapazes  pôr  pela  primeira  vez  chapéu 
alto. 

Foi  outro  dia.  ainda. 

E  quando  se  principiou  dizendo  que  elles  can- 
tavam bem.  havia  sempre  uma  voz  judiciosa 
que  ponderasse : 

—  Ora  adeus !  Se  elles  ainda  outro  dia  poze- 
ram  chapéu  alto ! 

Ghristo  dissera  uma  vez  uma  palavra  pro- 
funda e  sabia,  como  todas  as  suas  palavras : 
que  ninguém  chega  a  ser  propheta  na  terra  em 
que  nasceu. 

Por  que  será  isto  assim  ? 

K  porque,  talvez,  o  que  em  grande  parte 
contribue  para  fazer  a  gloria  dos  homens  é  não 
tanto  o  seu  merecimento  como  a  sua  lenda. 

Desde  o  momento  que  a  gente  apenas  co- 
nheça, nua  e  crua.  em  toda  a  sua  exactidão,  a 


204 


biographia  de  qualquer  homem,  vê-o  unicameriLC 
pelo  que  elle  possa  ter  de  vulgar,  de  vulga- 
rissimo,  e  julga  que  tudo  o  que  constitua  a  in- 
dividualidade d  esse  homem  ha  de  ser  vulgar, 
vulgarissimo,  também. 

Mas,  quando  se  dá  exactamente  o  contrario 
disto,  quando  primeiro  se  conheceu  a  lenda  do 
que  a  biographia,  então  principiamos  a  ver  o 
semi-deus  no  homem,  divinisamol-o  ao  capri- 
cho da  nossa  imaginação  e  da  dos  outros,  por- 
que a  lenda  não  é  outra  coisa  senão  o  que 
a  imaginação  de  muitos  sonha  a  respeito  de 
um  só . .  . 

Se  nos  disserem  que,  no  dia  em  que  Ade- 
lina Patti  nasceu,  um  rouxinol  foi  cantar  sobre 
o  seu  berço,  como  para  prophetisar-lhe  que 
ella  seria  a  rainha  do  canto,  acreditamos  facil- 
mente. 

Ainda  mesmo  que  a  Patti  tenha  nascido  no 
inverno,  ainda  mesmo  1  acreditamos  que  o  rou- 
xinol cantasse. 

Por  que  ?  Porque  da  Patti  o  que  primeiro  co- 
nhecemos foi  a  lenda,  e,  como  já  estamos  habi  • 
tuados  á  lenda,  nem  mesmo  chega  a  fazer-nos 
mossa  ouvir  cantar  um  rouxinol  no  inverno. 

Mas  dos  Andrades  o  que  primeiro  conhece- 
mos não  foi  a  lenda,  loi  a  biographia.  Tanto 
peior  para  elles. 

Viessem  dizer-nos  que  quando  os  dois  irmãos 
nasceram,  seu  pae.  o  tabellião  José  .lustino,  viu 


2o5 


e  ouviu  um  rouxinol  começar  a  cantar  sobre 
o  berço  de  um  e  outro,  como  se  o  rouxinol 
viesse  milagrosamente  a  vaticinar  que  o  Antó- 
nio havia  de  ser  tenor,  e  que  o  Francisco  havia 
de  ser  bar}tono !  Pois  sim !  Conta-lhe  d'essas  I 
—  diríamos  nós  —  rouxinoes  I  quaes  rouxinoes 
nem  qual  historia !  o  que  elle  ouviria  talvez  se- 
riam os  pintasilgos  da  casa  de  jantar.  .  .  Sem- 
pre o  José  Justino  tem  coisas  1 

Depois,  todos  havíamos  conhecido  os  doisAn- 
drades  ainda  pequenos,  todos  os  tinhamos  visto 
assistir  aos  espectáculos  do  Gymnasio  no  seu 
camarote  de  família. 

Por  tal  signal  que  riam  a  bandeiras  despre- 
gadas com  as  pilhérias  do  Taborda.  E  todos 
havíamos  verificado  que  elles  riam  como  as  ou- 
tras pessoas. — um  pouco  estavanadamente  como 
todos  os  rapazes  da  sua  edade. 

Onde  estava  n'ísto  a  lenda  ? 

Voz  podiam  elles  ter ;  lenda  é  que  não  ti- 
nham. 

Pois  foi  n'estas  círcumstancias.  realmente  dif- 
ficeis.  que  os  dois  Andrades  appareceram  no 
palco  do  theatro  de  S.  Carlos. 

Receiava-se .  .  . 

Suspeitava-se .  . . 

Tremia-se  ! .  .  . 

Que  falta  faz  uma  lenda  I 

Mas  os  dois  artistas  antepozeram  o  gosto  de 
cantar  na  sua  terra  natal  a  todas  as  considera- 


2ob 


ções  pelas  reticencias  e  pelas  reservas  dos  seus 
conterrâneos. 

E,  uma  vez  resolvidos  a  cantar,  —  canta- 
ram. 

E,  depois  que  cantaram,  ticou-se  sabendo  que 
elles  sabiam  cantar. 


xxn' 


Comer  a  dois  carrilhos 


Numa  villa  do  Alemtejo.  cujo  nome  não  vem 
para  o  caso,  havia  um  tendeiro  rico  e  avarento, 
que  nem  de  verão  nem  de  inverno  se  lembrava 
de  atirar  uma  migalha  aos  mendigos  que  lhe 
batiam  á  porta. 

Um  engeitado.  um  pária,  um  rapazote  do  si- 
tio, tão  pobre  como  ladino,  matutou  na  injus- 
tiça da  Providencia  que  dava  ao  tendeiro  um 
bello  capote  de  camellão  para  se  resguardar  do 
frio,  ao  passo  que  só  lhe  dava  a  elle  o  frio  sem 
o  capote.  Matutou  nisto,  e  propoz-se  regulari- 
sar  a  ordem  das  coisas. 

—  Uma  esmolinha,  iio  Ambrósio,  pelo  amor 
de  Deus. . .  Está  tanto  frio!  dizia  elle,  tiritante, 
roçando-se  pela  hombreira  da  pona  do  ten- 
deiro. 


208 


—  Sai  te  d'aqui.  maroto,  que  não  quero  es- 
pantalhos á  porta,  resmoneava  de  dentro  o  ten- 
deiro.  \'ae  trabalhar. 

—  Não  posso,  que  sou  doente...  r  tenlio 
tanto  frio,  tanto  I 

—  Que  te  leve  o  diabo  e  mais  o  frio. 

No  dia  seguinte,  o  rapazito  voltava.  E.  á 
força  de  teimar,  o  engeitado  ia  conseguindo  po- 
der demorar-se  mais  tempo  á  porta  do  tendeiro 
sem  que  o  enxotasse  já  com  tanta  dureza. 

De  uma  vez  o  Ambrósio  precisou  um  recado. 

—  Olha  lá,  disse  elle  ao  mendigo,  já  que  não 
tens  que  fazer,  vae-me  ali  chamar  o  José  da 
Azenha. 

K  o  rapazito  foi  submissamente  atravez  o  frio 
áspero  da  serra,  ao  passo  que  o  tendeiro,  bem 
embrulhado  no  seu  capote  de  camellão,  ficou 
sentado  ao  balcão  da  loja,  olhando  vagamente 
para  os  seus  domínios. 

Ao  outro  dia  o  rapaz  voltou. 

—  Tio  Ambrósio,  disse  elle  da  porta,  voce- 
mecê  não  quer  hoje  algum  mandado  ? 

O  tendeiro  hcou  encantado  com  este  despren- 
dimento de  um  mendigo,  que  parecia  ler  o  má- 
ximo empenho  em  fazer  recados  de  graça  ás 
pessoas  ricas.  Em  vez  de  pedir  que  lhe  pagas- 
sem o  trabalho  da  véspera,  o  bom  do  rapaz  vi- 
nha pedir  que  lhe  dessem  mais  que  fazer... 
pelo  mesmo  preço. 

—  Sim,  disse  o  tendeiro,  pois  olha.   .  vae-me 


'iOt) 


chamar  o  Joaquim  da  Rita,  que  preciso  fallar- 
Ihe  por  causa  d'uma  coisa. 

Essa  coisa,  eram  uns  juros  em  atraso. 

E  o  rapaz  foi,  em  mangas  de  camisa,  como 
andava,  ao  passo  que  o  tendeiro,  embuçando- 
se  melhor  no  seu  farto  capote,  disse  lá  comsiga 
que  sempre  estava  muito  frio. 

O  V^enancio  engeitado,  como  todos  o  trata- 
vam, tornou-se  desde  então  o  mais  diligente 
criado  que  o  tendeiro  podia  desejar.  Sobretudo, 
pelo  que  tocava  a  soldada,  era  uma  jóia :  nem; 
vintém.  Também  elle  não  pedia.  Mas  fora  a  pouco 
e  pouco  captando  a  sympathia  e  a  confiança  do 
tendeiro,  que  primeiro  o  deixou  sentar  á  porta,, 
e  depois  n'um  banco  dentro  da  loja. 

Nos  dias  de  mercado,  em  que  havia  maior 
labutação  no  estabelecimento,  o  Venâncio  en- 
geitado offerecia-se  para  tudo.  elle  para  ir  pren- 
der á  argola  as  cavalgaduras,  elle  para  lhes  che* 
gar  umas  sopas,  elle  para  varrer  as  cascas  dos 
ovos  que  os  piteireiros  bebiam,  elle  para  limpar 
o  balcão  e  lavar  os  copos...  uma  jóia,  uma 
verdadeira  jóia.  . .  a  seco  ! . . . 

O  tendeiro  gabava-o :  Que  era  muito  bom 
rapaz,  que  precisava  muito,  e  que  de  mais  a 
mais  não  era  pedinchão. 

O  que  o  tio  Ambrósio  queria,  com  toda  esta 
cantata,  era  que  os  freguezes  pagassem  os  ser- 
viços que  o  rapaz  lhe  fazia  a  elle,  porque  de- 
Cfcrto  pareceria  escandaloso  que  uma  vez  por 


210 


outra  o  Venâncio  não  recebesse  nada.  ?vlas  como 
os  freguezes  caíam,  dando  ao  engeitado  pão  e 
azeitonas,  o  tendeiro  entendia  que  ficava  uma 
coisa  pela  outra,  e  achava-se  desembaraçado 
para  fazer  do  Venâncio  seu  criado. 

Foram  passando  tempos,  e  uma  vez,  que  es- 
tava na  loja  o  morgado  do  sitio,  um  mãos-ro- 
tas  de  generosidade  e  bizaria,  o  Venâncio  disse 
de  repente  ao  tendeiro.  entrando  na  loja : 

—  O  tio  Ambrósio,  se  vocemecé  me  podesse 
dar  agora  aquellas  duas  libras  que  lhe  der  a 
guardar,  fazia-me  favor. 

—  O  maroto!  pois  tu  deste-me  algumas  duas 
libras  ? ! 

—  Dei,  sim,  senhor,  ha  dois  mezes,  na  occa- 
sião  em  que  estava  aqui  o  da  Michaela,  que  foi 
para  o  Brazil. 

—  Ah !  maroto,  que  me  perdes  !  Pois  tu  já 
tiveste  duas  libras  algum  dia  ? ! 

—  Tive,  sim,  senhor,  ha  dois  mezes,  e  dei- 
Ihas  a  vocemecé  para  mas  guardar  por  ser  um 
homem  de  bem.  . . 

—  O  senhor  morgado,  este  maroto  está-me  a 
envergonhar ! 

—  E  o  tio  Ambrósio  está-me  a  roubar,  disse 
serenamente  o  Venâncio. 

—  Sr.  morgado,  continuava  o  tendeiro,  eu 
sou  um  homem  honrado,  incapaz  de  tirar  nada 
a  ninguém. 

—  Menos  a  um  pobre. . .   como  eu.  Duas  li- 


211 


bra.s  !  que  eu  guardava  para  uma  precisão !  ex- 
clamou o  Venâncio,  e  começou  a  chorar. 

Então,  a  natural  bizarria  do  morgado  não 
lhe  permittiu  tolerar  aquella  scena  por  mais 
tempo.  Fosse  verdade  ou  não  fosse,  era  preciso 
acabar  com  aquillo,  —  uma  miséria  de  duas  li- 
bras! E  o  tendeiro  envergonhado  por  tão  pou- 
co!..  .  Não  podia  sef . 

—  Rapaz,  disse  o  morgado  querendo  salvar  a 
situação,  não  foi  ao  sr.  Ambrósio  que  deste  a 
guardar  as  duas  libras.  Não  te  lembras  bem. 
Foi  a  mim .  . . 

Então  o  ^'enancio,  serenamente,  humilde- 
mente observou : 

—  Essas  foram  outras,  sr.  morgado. 


XXV 


o  altímc  puritano 


Era  uma  vez  um  velho,  o  Seabra,  que  eu  de 
tempos  a  tempos  procurava  na  repartição,  por- 
que tinha  uma  excellente  mão  de  cursivo  para 
tirar  copias. 

Sessenta  e  seis  annos  bem  puxados,  posto 
que  elle  não  desse  ao  manifesto  mais  de  ses- 
senta. 

—  Sessenta — -dizia  elle  —  sessenta  já  cá  es- 
tão I 

K  suspirava. 

Não  se  sabia  bem  se  suspira\a  com  remor- 
sos de  estar  mentindo  ou  porque,  deitando  as 
contas  á  sua  vida.  achasse  que  o  mais  prejudi- 
cado era  elle.    . 

Tinha  visto  muitd  coisa,  muita  politica,  muita 
patifaria.   Nada   que   vinha   de   novo  o  surpre- 


2l3 


hendia.  Batera-se  no  Aito  do  Viso.  trabalhara 
em  varias  eleições,  e  havia  quarerxta  annos  que 
saboreava,  como  premio  de  seus  trabalhos  c 
serviços,  um  pingue  logar  de  am^anuense  cris- 
talisado  em  seiscentos  réis  por  dia. 

Conhecera  muitos  homens  importantes,  que 
tinham  lucrado  com  a  collaboraçSo  d"el!e,  e  ou- 
tros que  taes,  para  subir  ao  poleiro,  e  que  por 
mais  de  uma  vez  lhe  haviam  promettido  tiral-o 
d  ali  para  coisa  melhor. 

Pois  apesar  de  lhe  faltarem  a  todas  as  pro- 
messas, de  o  trazerem  enganado  durante  qua- 
renta annos,  elle  tratava-os  sempre  com  o  mes- 
mo respeito,  cumprimentava-os  muito  reverente : 

—  Sr.  conselheiro,  criado  de  v.  ex." 

Era  um  praxista.  Não  cumprimentava  nin- 
guém sem  ter  descalçado  primeiro  a  luva  da 
mão  direita,  nem  saía  da  repanição  sem  ir  per- 
guntar ao  chefe,  entreabrindo  a  porta  do  ga- 
binete : 

■ — V.  ex.*,  sr.  conselheiro,  deterniina  mais 
alguma  coisa  ? 

E  o  chefe,  que  estava  conversando  coni  ami- 
gos, muito  entretido,  nem  o  ouvia. 

Mas  elle.  insistindo,  reperguntava : 

■ — V.  ex.''.  sr.  conselheiro,  determina  mais 
alguma  coisa  ? 

E  o  conselheiro,  se  d  essa  vez  linha  ouvido, 
respondia : 

—  Adeus,  Seabra,  até  amanhã. 


214 


.  Algumas  vezes  lhe  faílei  do  chefe,  para  son- 
dal-o. 

E  o  Seabra  dizia-me  : 

—  E  dos  novos  ;  mas  boa  pessoa. 

Cheguei  a  entender  o  sentido  destas  palavras: 
é  dos  novos.  Não  era  praxista.  não  respeitava 
as  tradições  e  os  regulamentos  da  burocracia, 
mas  o  Seabra  reputava-o  boa  pessoa. 

Alma  generosa,  a  d  esse  velho  amanuense ! 
que,  em  respeito  ao  seu  chefe,  que  o  tratava 
simplesmente  por  Seabra,  não  ousava  dizer 
d'elle  senão  que  era  dos  novos...  mas  boa  pessoa. 

Se  o  Seabra  tivesse  nascido  meio  século  mais 
tarde,  não  entreabria  a  porta  do  gabinete  do 
chefe  para  se  despedir  ;  mas,  se  o  fizesse,  e  eilc 
lhe  respondesse  com  um  «adeus.  Seabra»,  pes- 
pcgava-lhe  uma  tarca  nas  gazetas. 

Para  um  praxista  como  o  Seabra,  aquelle  ho- 
mem, que  estava  dentro  do  gabinete,  conver- 
sando com  os  amigos,  era  seu  chefe,  c  isso  lhe 
bastava. 

Ora  uma  das  praxes  observadas  pelo  Seabra 
era  a  de  consultar  sempre,  antes  de  sair  da  re- 
partição, o  seu  espelhinho  dalgibeira. 

FJle  tinha  apenas  duas  farripas  de  cabello 
branco,  muito  bem  penteadas  ao  longo  da  ca- 
beça. Mas  essas  duas  farripas  mereciam-lhe 
todo  o  cuidado  c  attcnção.  ^'endo-se  ao  espe- 
lhinho, passava  a  mão  por  cima  das  farripas, 
bninia-as  com  os  dedos,  alisava-as. 


213 


Depois  observava  a  gravata,  que  era  ordiná- 
ria, mas  sempre  bem  tratada,  sem  sombra  de  pó. 

Por  ultimo,  segurando  o  espelhinho  comi  a 
mão  esquerda,  escovava  a  sua  velha  sobreca!- 
saca  com  a  m.ão  direita. 

E  feito  todo  este  serviço,  depois  que  o  chefe 
lhe  dizia  o  «adeus,  Seabra»,  guardava  o  espe- 
lhinho na  algibeira,  a  escova  no  armário,  e  se- 
guia para  sua  casa,  a  passos  mesurados,  muito 
▼agaroso,  pela  rua  do  Oiro  até  Santa  Mar- 
tha. 

Inculcaram-m"o  uma  vez  como  tendo  excel- 
lente  letra  para  tirar  copias.  Apresentaram-m'o. 
Por  varias  vezes  lhe  dei  trabalho,  meu  e  alheio. 
Era  pontualissimo  na  entrega  das  copias,  e  ho- 
nestíssimo nas  contas  que  fazia.  Arredondava 
sempre  as  quantias  contra  elle.  Se.  trabalhando 
a  tanto  por  pagina,  o  seu  trabalho  importava 
por  exemplo  em  i^oHb  réis,  não  queria  nunca 
receber  mais  de  dez  tostões. 

Gomprehende-se  que  precisasse  muito  des- 
tas  achegas  para  poder  viver,  visto  que  o  seu 
logar  lhe  rendia  apenas  ()00  réis  diários. 

Todas  as  noites  saía  para  vir  ao  Rocio  con- 
versar numa  loja  até  ás  nove  horas.  O  logista 
era  um  homem  do  tempo  d  elle.  Tratavam-se 
por  tu.  A's  nove  em  ponto,  o  Seabra  despedia- 
.se,  ia  para  casa  trabalhar  até  á  meia  noite,  ti- 
rar copias  a  120  réis  a  pagina. 

Não  vi   nunca  pobresa  mais  resignada,  nem 


2l6 


mais  elegante.  Parecia  um  príncipe  arruinado, 
a  passos  mesurados,  pela  rua  do  Oiro.  Era  só 
então  que  elle  via  o  mundo,  uma  vez  por  dia. 
Mas  via-o  bem,  depois  de  se  ter  preparado  tam- 
bém para  ser  visto.  Não  saía  da  repartição  sem 
o  espelhinho  lhe  ter  dito:  «Estás  correcto,  Sea- 
bra.» 

Na  rua  do  Oiro  encontrava  um  conselheiro. 
Cumprimento  respeitoso. 

— :  Criado  de  v.  ex,'^,  sr.  conselheiro.  • 

Não  deixava  nunca  de  ver  os  conselheiros, 
■apesar  de  todo  o  seu  gosto,  ao  passar  na  rua 
•do  Oiro,  consistir  em  ver  as  mulheres  ou,  mais 
propriamente  ainda,  em  vèr  os  pes  das  mulhe- 
res. 

Se  parava  uma  carruagem  á  porta  de  uma 
loja,  também  elle  parava,  com  delicado  disfarce, 
para  ver  saltar  do  estribo  uma  dama. 

Não  tinha  esta  escola  moderna  dos  que  fa- 
zem tudo  descaradamente,  parando  e  obser- 
vando com  petulância.  Nada  disso.  PJle  via  o 
pé,  media-o  com  os  olhos,  calculava,  pelo  pé, 
as  dimensões  da  perna,  ficava  sabendo  a  côr  e 
-a  qualidade  da  meia,  mas,  se  alguém,  encon- 
contrando-se  com  elle,  lhe  adivinhava  a  inten- 
ção, disfarçava  a  olhar  para  uma  vitrine  ou  a 
ler  um  cartaz. 

Só  ao  cabo  de  alguns  annos  de  convivência, 
€U  consegui  conquistar  a  familiaridade  precisa 
para  lhe  fallar  nos  pes  das  mulheres. 


217 


—  o  sr.  Seabra  pella-se  por  vêr  um  pé  bem 
feito ! 

—  Gosto  I . . .  gosto  ! 

E  d  ahi  a  pouco  parou  uma  carruagem,  apeiou- 
se  uma  senhora,  que  deixou  ver,  sobre  o  estribo, 
um  pe  digno  da  admiração  do  Seabra. 

—  Então,  sr.  Seabra  I  disse-lhe  eu.  Repare, 
que  vale  a  pena. 

—  Não  I  nunca  I  respondeu  elle  um  pouco  atra- 
palhado. 

Jamais  eu  o  tinha  visto,  em  nenhum  caso  da 
sua  vida,  tão  contrariado  como  naquelle  mo- 
mento. 

—  Aquelle  pé  —  pensei  eu  —  é  talvez  uma  re- 
cordação para  elle. 

Mas  reíiexionei.  A  dama  era,  relativamente, 
nova.  Podia  ser  íilha  do  Seabra. 

—  Será  talvez  íilha  ? 

E  architectei  um  antigo  romance  de  amor, 
que  tivesse  deixado  ao  Seabra  uma  filha  natural. 

Se  fosse  assim,  eu  poderia  conseguir  talvez 
que  elle  me  contasse  o  seu  romance. 

Tentei  o  assumpto. 

—  Mas  então,  meu  caro  sr.  Seabra,  porque 
perdeu  esta  occasião  propicia  ? 

—  Não !  nunca  I  tornou  elle  a  responder. 
Devorado  pela  curiosidade,  insisti : 

—  Era  talvez  sua  parenta  ? 

—  Qual  I  disse  elle  surprehendido.  Era  a  mu- 
lher do  meu  cheíe  I 


2l8 


F^iquei  a  olhar  paraelle.  aturdido,  assombrado. 
O  leaidadc  da  velha  burocracia  portugueza!  que, 
cm  homenagem  á  disciplina  social,  desviava  os 
olhos  para  não  ver  o  pc  da  mulher  a  quem  o 
chefe  ha^  ia  dado  a  mão !  E  tive  tentações  de  o 
abraçar,  em  plena  rua  do  Oiro,  exclamando  : 
«Honradissimo  José  do  Egypto,  cujos  olhos 
largam  a  capa.  quando  a  mulher  do  chefe  da 
repartição  expõe  o  pé  á  vista  do  publico  I  cu 
te  admiro  e  te  venero ! » 

Acompanhando-o  pela  rua  do  Oiro  adiante, 
baraihavam-sc-mc  no  espirito  casos  que  eu  ti- 
nha ouvido  contar,  por  mais  de  uma  vez,  de 
empregados  públicos  que  captavam  as  boas 
graças  dos  chefes  seguindo  o  processo  opposro 
ao  do  Seabra. 

Admirável  homem  I  pensava  eu,  que  penteia 
as  suas  farripas  para  ir  ver  as  mulheres  e  que, 
não  obstante  querer  vèl-as,  não  perde  nunca 
de  vista  um  conselheiro,  para  lhe  cumprimen- 
tar a  carta  de  conselho,  nem  a  mulher  do  chefe, 
para  evitar  cumprimentar-lhe  o  pé ! 

Uma  coisa  que  entristeceu  muito  o  Seabra 
foi  o  ii'  perdendo  a  Aista,  e  com  cila  o  gosto  de 
passar  na  rua  do  Oiro.  i 

Mas,  não  obstante,  não  largou  nunca  o  seu 
espelhinho.  Tinha  o  mesmo  cuidado  em  alisar 
as  farripas  e  escovar  a  sobrecasaca.  Somente 
mudou  de  caminho,  tomava  pela  rua  da  Prata, 
cm  vez  de  segui"  pela  rua  do  Oiro. 


219 


Os  seus  collegas  diziam  : 

—  O  Seabra  agora  está  muito  caído ! 

Na  repaitieão,  eile  trabalhava  com  óculos, 
mas  na  rua  nunca  os  punha. 

Um  dia  insisti  com  elle  em  que  viesse  comigo 
pela  rua  do  Oiro. 

Pediu-me  muitas  desculpas,  e  recusou. 

—  Já  não  vejo  nadai  dizia  elle. 

—  Mas  por  que  não  põe  os  seus  óculos  ?  per- 
guntei-lhe  eu. 

E  elle,  muito  sentencioso.  respondeu-me  : 

—  Ku  sou  de  um  tempo  em  que  não  era  per- 
mittido  confessar  nenhuma  fraqueza  em  publico: 
nem  mesmo  a  da  vista. 

De  uma  vez.  como  sempre,  o  Seabra  entre- 
abriu a  porta  do  gabinete  do  chefe. 

—  V.  ex.*,  sr.  conselheiro,  determina  mais  al- 
guma coisa  ?  perguntou. 

—  Não,  Seabra,  até  amanhã. 

O  Seabra  compoz,  diante  do  espelhinho,  as 
suas  farripas,  ageitou  a  gravata,  escovou  a  so- 
brecasaca, fechou  a  escova  no  armário. 

E  metteu  pela  rua  da  Prata,  na  sua  teima  de 
não  querer  confessar  em  publico  nenhuma  fra- 
queza :  nem  mesmo  a  da  vista. 

Junto  á  Praça  da  Figueira  andava-se  concer- 
tando um  cano,  a  rua  estava  esburacada. 

O  Seabra  caiu  tão  desastradamente,  que 
partiu  uma  perna.  Foi  conduzido  em  maca 
ao  hospital   de  S.   José.    í-ogo  que  lá  chegou, 


220 


cheio  de  dores,  despiram-no,  metteram-n'o  na 
cama. 

E  elle,  dirigindo-se  muito  attenciosamente  ao 
enfermeiro,  disse-lhe  : 

—  Quer  ter  a  bondade,  sr.  enfermeiro,  de  re- 
commendar  todo  o  cuidado  com  o  meu  fato,  c 
de  me  dar  um  espelhinho  que  está  na  algibeira 
das  calças  ? 

Passados  dias  fui  visital-o,  levei-lhe  um  ro 
mance   para   que   elle  se  entretivesse,  lendo-o. 

—  Não  posso,  disse-me  elle.  Deixei  os  ócu- 
los fechados  na  repartição. 


XXVi 


Os  príncipes  do  Peru 


Vem  já  ahi  caminhando  ao  nosso  encontro  a 
bella  festa  do  Natal.  Não  tarda  nada.  Os  bate- 
dores, a  guarda  avançada,  chegaram  com  a 
sua  costumada  pontualidade.  Cá  temos  o  frio 
•e  o  peru  passeiando  ambos  pelas  ruas  de  Lis- 
boa, um  muito  afiado  c  cortante,  o  outro  glu- 
glu jante  e  luzidio. 

Esta  solemne  festa  do  anno  tem  o  condão  de 
.sorrir  a  todas  as  idades,  de  lisonjear  todos  os 
paladares^   de  encantar  todas  as  imaginações. 

As  creanças  pensam,  cheias  de  jubilo,  no  seu 
Presépio,  na  sua  arvore  do  Natal,  na  bonecada 
e  nos  bolos. 

_0s  namorados  estão  já  arregalando  o  olho 
amoroso  para  a  missa  do  (xallo.  que  é  boa  capa 
para  entrevistas  hombro  a  hombro,  de  mãos 
dadas,  emquanto  se  tinge  rezar  muito  devota- 
mente ... 


222 


Os  velhos,  que  são  ordinariamente  gulosos, 
começam  a  afinar  o  olfacto  para  descobrir,  nas 
lojas  de  confeiteiro,  os  mais  saborosos  petis- 
cos. 

Os  ambiciosos  de  qualquer  idade  e  sexo  so- 
nham com  a  grande  loteria  de  Madrid,  esse 
ideial  de  felicidade  que  todos  os  annos  lhes  faz 
negaças  á  imaginação  fogosamente  crédula. 

As  beatas  estão  já  antegostando  a  delicia  de 
oscular  mysticamente  as  carnes  rosadas  e  divi- 
nas do  pequenino  Jesus. 

No  meio  de  todo  este  coro  de  alegrias  só 
uma  nota  discordante  poderia  soar,  mas  o  peru, 
a  principal  victima  do  Natal,  não  tem  decerto 
a  consciência  do  perigo  que  a  esta  hora  esta 
correndo,  —  felizmente  para  elle. 

Pobre  peru  I  Ahi  o  vemos  fazendo  descuido-* 
sãmente  a  sua  ultima  avenida,  dando  o  seu  ul- 
timo passeio  de  condemnado  á  morte,  sem  pen- 
sar em  disposições  testamentárias,  tão  felizes 
são  os  perus ! 

As  pessoas  do  norte  do  paiz  não  tecm,  como 
o  lisboeta,  a  tradição  do  peri'i  do  Natal.  No  Mi- 
nho, na  Beira,  em  Traz-os-Montes  pensa-sc 
agora  em  mil  guloseimas,  que  não  tardarão '« 
•encher  de  aromas  a  cosinha  e  a  mesa,  mas  o 
peru  setemptrional  não  tem  que  receiar-se  da 
faca  do  cosinheiro,  porque  a  tradição  local  não 
exige  como  victima  senão  a  gallinha  gorda  eo 
gallo  nédio. 


223 


Eis  aqui  a  rasão  por  que  um  rapaz  da  Ponte 
da  Barca,  que,  ha  annos,  andava  estudando  em 
Lisboa,  ficou  muito  surprehendido  com  o  pe- 
dido que  lhe  fizera  a  mais  astuciosa  das  suas 
namoradas  lisboetas. 

Ella  era  filha  de  um  servente  de  repartição, 
creio  eu,  que  vivia  cheio  de  ditficuldades,  por- 
que a  mulher  lhe  havia  dado  uma  prole  nume- 
rosa:  três  filhas  e  quatro  filhos. 
.  Emquanto  todos  os  sete  foram  pequenos,  era 
com  profunda  tristeza  que  o  marido  e  a  mulher 
viam  passar  na  rua,  pelo  tempo  do  Natal,  os 
bandos  de  perus  luzidios  e  gluglujantes.  Não 
podiam  chegar-lhes,  elles  I  Dez  tostões  não  era 
quantia  que  um  servente  de  repartição,  cheio 
de  filharada,  podesse  dispender.  Isto  ralava-o. 
Mas  o  pobre  homem  dizia  muitas  vezes  á  mu- 
lher: 

—  Deixa  crescer  a  raparigada,  e  verás  que 
não  nos  faltarão  perus. 

A  mulher  sorria  com  desalento  e  replicava  : 

—  Pensas  talvez  que  estão  á  espera  delias 
três  príncipes  muito  ricos,  que  hão  de  ser  nos- 
sos genros  ? I 

—  Não  é  isso.  Eu  cá  tenho  a  minha  ideia. 
Deixa  crescer  a  raparigada,  e  verás. 

Os  annos  foram  passando,  e  as  ires  filhas 
do  servente  cresceram,  principiaram  a  revelar 
um  palminho  de  cara  menos  mau.  A  mais  nova 
-tinha  quinze  annos;  a  mais  velha  dezcsete. 


224 


—  K  então  os  três  príncipes  do  Peru  r  per- 
guntava a  mulher  ao  marido,  fazendo  um  ca- 
lembour  inconscientemente. 

—  K  agora.  Vae  começar  este  anno.  cá  pelo 
que  cu  tenho  observado.  Elles  ahi  estão  a  ba- 
ter á  porta . .  , 

—  Os  príncipes  ? 

—  Não.  os  perus. 

—  Fia-te  n'essa.  pateta  ! 

—  Ora  dize-me  uma  coisa:  Teem  ou  não 
teem  já  as  raparigas  o  seu  derríço  ? 

—  Sim —  acho  que  teem.  E  d'ahi,  homem  ? 

—  D'ahi.  tem  paciência,  e  espera.  Eu  logo 
vou  conversar  com  as  raparigas,  porque  todo 
o  bom  pai  precisa  aconselhar  ajuizadamente  as 
suas  filhas. 

O  Natal  estava  por  um  fio,  chega  não  chega. 
Fazia  frio  e  luar.  O  estudante  da  Ponte  da 
Barca  não  fora  a  ferias,  porque  naquelle  tempo 
ainda  o  caminho  de  ferro  não  tinha  encurtado 
as  distancias. 

O  rapazote.  achando-se  sem  obrigações  es- 
colares, principiou  a  entregar-se  exclusivamente 
á  cultura  de  namoros  desde  pela  manhã  até  á 
noite. 

Ora  ia  vêr  uma  das  suas  bellas,  ora  ia  c\- 
trapiscar  a  outra,  mas  a  rtlha  do  servente,  a 
dos  quinze  annos,  era  de  todas  as  namorada» 
a  que  mais  o  prendia  talvez,  não  só  por  esse 
orgulho  natural   de  ter  inspirado  um  pHmeiro 


22D 


amor,  como  também  porque  o  estudantelho  era 
poeta  e  a  rapariga  pareda-lhe  romântica. 

Romântica,  sim,  senhor!  Onde  fora  ella  apren- 
der isso  ?  Quem  o  poderá  dizer !  Foi  uma  qua- 
lidade que  derivou  talvez  do  fluido  magnético 
dos  seus  olhos  negros  e  grandes.  O  pae  era 
tudo  o  que  podia  haver  de  mais  prosa  em  ser- 
vente de  repartição.  A  mãe  era  digna  esposa 
de  seu  marido  segundo  os  cânones  e  a  prosa. 
As  irmãs  só  desejavam  poder  um  dia  comer 
bem  e  dormir  melhor.  Mas  o  rapariguinha  dos 
quinze  annos  tinha  suas  j'creríes.  contemplava 
o  azul  do  céu,  gostava  de  ver  o  luar,  o  que  o 
pae  e  a  mãe  muito  extranhavam  classificando  de 
telhuda  a  filha  mais  nova. 

Pois  o  Natal  estava  por  um  fio,  chega  não. 
chega,  como  eu  ia  dizendo  ainda  agora. 

O  servente  ressonava  já  ha  muito  tempo  em^ 
competência  philarmonica  com  a  cara  metade. 
As  outras  duas  filhas  sonhavam  talvez  com  al- 
guém que  lhes  desse  um  vestido  e  um  cama- 
rote, mas  a  Mariquinhas  estava  á  janella,  en- 
volta no  véu  azul  do  luar,  único  de  que  podia 
dispor,  a  conversar  idillios  com  o  seu  estudan- 
telho do  Minho. 

—  Tu  és-me  infiel,  dizia-lhe  ella. 

—  Eul  respondia  elle.  Eu  adoro-te,  Mariqui-- 
nhãs,  e  só  penso  em  poder  casar  comtigo  logo 
que  seja  alferes  de  cavallaria. 

—  São  palavras . . .  Não  sentes  o  que  dizes !' 


226 


—  Por  que  duvidas  de  mim  ? 

—  Porque  tenlio  a  certeza  de  que  o  teu  co- 
ração não  é  sincero.  Só  te  lembras  de  mim 
quando  me  estás  fallando. 

—  Também  isso  são  palavras,  apenas. 

—  Nunca  tiveste  uma  pequena  lembrança  que 
me  desses,  uma  d*essas  apreciáveis  bagatellas 
que  valem  mais  pelo  significam  do  que  pelo  cus- 
tam. Agradece-se,  estima-se  a  intenção,  princi- 
palmente. . . 

—  E  que  gostarias  tu  que  eu  te  oíferecessc  ? 
Um  ramo  de  tiores  ? . . . 

(Foi  a  coisa  mais  barata  que  lhe  lem.brou). 

—  Logo  vi  que  havias  de  escolher  uma  coisa 
que  durasse  tão  pouco  como  o  teu  amor.  Eu 
gosto  immenso  de  Hores,  mas  tenho  má  fé  com 
ellas  no  amor.  São  como  que  o  presagio  de  que 
tudo  acabará  de  pressa.  As  flores  duram  tão 
pouco ! 

—  Um  leque,  Mariquinhas,  um  leque  ? .  .  . 
(Lembrou-se  de  ter  visto  na  rua  do  Oiro  uns 

que  custavam  oito  vinténs). 
Ella  replicou  indignada : 

—  Eu  não  sou  mulher  que  me  requebre  de 
leque  na  mão.  Não  sou  d'essas  mulheres  le- 
vianas que  andam  pela  rua  a  fazer  fogo  de  vis- 
tas com  a  ventarola. 

—  Mas  eu  não  te  quiz  oífender,  Mariquinhas. 

—  Talvez  não  quizesses.  Eu  sou  uma  rapa- 
riga honesta,  que  vivo  á  sombra  de  meus  pães, 


227 


e  que  os  adoro.  Pésa-me  de  que  elles  sejam 
tão  pobres  e  tão  bons.  Sabes  no  que  eu  penso? 
Em  proporcionar-lhes  um  dia  de  Natal  agradá- 
vel, como  elles  já  não  tiveram  ha  muitos  annos... 

—  E  como  seria  isso  ? 

—  Fazendo-lhes  a  surpreza  de  uma  boa  meia 
noite. 

—  Como  ? 

—  Comprando-lhes  um  peru  sem  o  elles  sa- 
berem. 

O  estudante  sentiu  uma'  punhalada  no  cora- 
ção;  duas  punhaladas  é  que  foram. 

Primeira  punhalada :  Então  elía,  tão  român- 
tica,  tão   sonhadora,   pensa  agora  num  peru ? 

Segunda  punhalada :  Onde  hei  de  eu  ir  ar- 
ranjar dinheiro  para  comprar  o  peru  ? 

Mas,  emfím,  era  preciso  não  fazer  má  figura 
deante  da  Mariquinhas. 

—  Socega,  querida.  Has  de  fazer  essa  agra- 
dável surpresa  a  teus  pães. 

—  Quando  ? 

—  Amanhã...  decerto,  visto  que  depois  d'áma- 
nhã  é  véspera  de  Natal. 

—  Ah!  como  sou  feliz!  exclamou  a  Mariqui- 
nhas. 

E  o  estudante,  quando  sahiu  d'ali.  ia  dizendo 
comsigo : 

—  Ella  é  muito  exigente  para  um  estudante, 
mas,  em  compensação,  parece  ser  muito  bòa 
filha. 


228 


No  dia  seguinte  foi  elle  ao  Rodrigues  do  Pote 
das  Almas  vender  um  Magnum  Lexicon.  umas 
grammaticas-.  velhas,  um  Monteverde  em  menos 
mau  estado.  Apurou  ao  todo  mil  e  duzentos. 
Comprou  ao  principio  da  noite,  na  Praça  da  Fi- 
gueira, um  perii  por  ict^ioo,  e  ficou-lhe  ainda  a 
tinir  na  algibeira  o  bello  tostão  para  cigarros  e 
café. 

A  meia  noite,  eil-o  debaixo  da  janella  da  Ma- 
riquinhas, de  peru  debaixo  da  capa.  Momentos 
depois  o  peru  subia  suspenso  por  um  cordel. 
e  a  Mariquinhas  era  feliz. 

As  outras  h^más  dormiam,  mas  estariam  so- 
nhando ainda  com  alguém  que  lhes  podesse  dar 
um  vestido  e  um  camarote :  Não.  Sonhavam,  o 
que  era  verdade,  que  tinha  cada  uma  um  peru. 
que  ellas  pediram  aos  namorados,  por  conse- 
lho do  pae. 

Foi  assim  que  o  servente  de  repartição,  como 
havia  planeado,  pode  ter  peru  na  noite  de  Na- 
tal, peru  no  dia  de  Anno  Bom.  peru  no  dia 
dos  Santos  Reis.  Três  perus  a  três  filhas, — por 
cabeça. 

E  sentado  á  mesa,  muito  alegre  e  palreiro, 
ouvindo  repicar  os  sinos  para  a  missa  do  gallo. 
dizia  elle  á  mulher  : 

—  Ahi  vem  sua  alteza  o  primeiro  príncipe  do 
Peru.  Os  outros  dois  estão  ainda  em  palácio. 
Não  te  dizia  eu  que  elles  haviam  de  chegar? 


XXVII 


A  poesia  da  Servis 


Perguntaram  um  dia  a  Miçkiewiez :  «O  que 
são  os  sérvios  ? » 

E  o  grande  poeta  da  Polónia  respondeu:  «Um 
povo  destinado  a  ser  o  bardo  e  o  menestrel  de 
toda  a  raça  slava.» 

J.  Reinach  sae  em  abono  desta  opinião  con- 
lirmando-a:  «O  caracter  sérvio  é  essencialmente 
poético,  e  a  sua  poesia  não  se  traduz  apenas 
nos  pesmas,  nos  hymnos  nacionaes  que  acom- 
panham na  ^'//-/c7,  encontra-se  ainda  na  religião, 
nas  cerimonias  do  culto,  nas  festas,  na  organi- 
sação  da  familia,  nos  casamentos,  na  coragem 
heróica  dos  combates,  nos  sonhos  de  uma  vida 
melhor.  Se  queremos  procurar  a  causa  doeste 
caracter  dos  slavos,  devemos  attentar  no  páiz 
que  elles  habitam.  O  povo  que  tem  a  Servia 
por  pátria,  não  podia  deixar  de  ser,  como  disse 
Miçkiewiez,   senão  um   povo  de  bardos  e  me- 


2JO 


nestreis.  e,  nas  horas  de  perigo  nacional,  um 
povo  de  hcroes.  As  florestas  sombrias  e  pro- 
fundas, as  quebradas  dos  valles,  as  altas  mon- 
tanhas com  as  suas  cristas  inaccessiveis  e  os 
seus  bosques  de  castanheiros,  os  Schumadia, 
as  margens  accidentadas  dos  rios,  toda  essa 
natureza  selvagem  e  pittoresca  contém  e  inspira 
thesouros  de  poesia.» 

Na  familia  servia  o  sentimento  da  fraterni- 
dade é  talvez  o  mais  desenvolvido,  "Não  ha 
uma  joven  servia  sem  irmão»  diz  uma  velha  lei. 
Quando  a  noiva  deixa  o  lar  da  sua  familia,  é 
pelos  irmãos  que  ella  chora  lagrimas  semelhan- 
tes a  baQ;os  que  se  destacassem  de  um  cacho  ma- 
duro. A  canção  do  desgraçado  lowo  diz  as- 
sim : 

«O  moço  lowo  cahiu.  porque  o  sobrado  da 
casa  abateu,  e  partiu  o  bro 'o  direito. 

«Quem  o  curará  ?  Só  a  feiticeira  da  monta- 
nha, que  conhece  a  fundo  a  virtude  das  plan- 
tas; mas  a  feiticeira  exige  muito.  Pede  á  mãe 
a  sua  branca  mão  direita ;  á  irmã  as  tranças  do 
seu  cabello;  á  mulher  o  seu  coUar  de  pérolas... 

«A  niãc  dá,  com  a  melhor  vontade,  a  sua 
branca  mão  direita,  a  irmã  dá  as  tranças  do  seu 
cabello,  mas  a  mulher  recusa  o  seu  collar  de 
pérolas... 

«Agasta-se  a  feiticeira  que  vive  na  montanha, 
c  lança  veneno  nos  alimentos  de  lowo.  lowo 
morre  com  grande  pezar  de  sua  mãe. 


23  I 


«Ouvcm-sc  então  gemer  trez  cucos:  um  que 
não  deixa  Jamais  de  lamentar-se  ;  outro  que  só 
se  faz  ouvir  pela  manhã  e  á  noite ;  e  o  terceiro, 
que  somente  geme  quando  lhe  apraz. 

«Qual  é  o  que  não  deixa  jamais  de  ouvir-se  ? 
A  desgraçada  mãe  de  lowo.  O  que  somente  se 
ouve  pela  manhã  e  á  noite  ?  A  irmã  de  lowo, 
profundamente  afliicta.  E  o  que  só  geme  quando 
lhe  apraz?  É  a  joven  viuva  de  lowo.» 

O  casamento  entre  os  sérvios  é  livre,  o  re- 
sultado do  mutiius  consensus.  O  rapaz  apresen- 
ta-se  em  casa  do  pae  da  namorada,  a  pedir-lhe  a 
mão  da  filha.  Obtida  que  seja.  dá  lhe  o  annel,  pe- 
nhor do  casamento,  porque  um  antigo  pesma 
diz:  «Gomo  testemunho  de  amor.  dá-se  um 
pomo  ;  como  perfume,  um  mangerico  ; — mas  o 
annel  só  se  dá  para  casar.» 

Se  a  donzella  quer  recusar  o  noivo,  arre- 
messa lhe  o  pomo  á  cara.  dizendo:  «Não  te 
quero  a  ti  nem  ao  teu  pomo.» 

Excepcionalmente,  algumas  vezes,  os  pães 
procuram  para  suas  tilhas  casamentos  ricos. 
Os  pesmas  protestam  contra  esta  excepção.  A 
pobre  rapariga  caminha  descalça  sobre  o  gelo, 
tiritando,  e  o  irmão  pergunta-lhe :  «Tens  frio 
nos  pés,  querida  irmã  ?»  E  ella  responde:  «Nãol 
não  tenho  frio  nos  pés.  meu  irmão,  mas  sinto 
um  frio  glacial  no  coração.  Não  é  a  neve 
que  me  molesta,  é  minha  mãe  que  me  quer  dar 
por  esposo  aquelle  que  eu  aborreço.»  Uma  ou- 


202 


tra  canção  diz:  «Vivia  na  montanha  uma  don- 
zella,  e  toda  a  montanha  era  illuminada  pela 
belleza  de  seu  rosto.  O  meu  rosto,  dizia  ella, 
ó  meu  único  cuidado,  se  eu  soubesse,  meu  branco 
rosto,  que  um  velho  marido  te  devia  beijar,  oh  ! 
iria  á  montanha  verde  e  colheria  o  absyntho, 
espremeria  o  seu  suco  e  lavar-te-hia  com  elle, 
meu  rosto,  a  fim  de  que  o  velho,  quando  te 
beijasse,  lhe  sentisse  o  amargor.  Mas  se  eu 
soubesse,  meu  branco  rosto,  que  um  joven  ma- 
rido havia  de  te  beijar,  oh  I  então  iria  ao  verde 
jardim,  colheria  todas  as  rosas  e  das  rosas  es- 
premeria o  suco  para  te  lavar,  meu  branco  rosto, 
a  fim  de  que  o  joven  noivo,  quando  te  beijasse, 
ficasse  perfumado  do  teu  perfume.» 

O  casamento,  revestido  ainda  de  todos  os  sym- 
boios  primitivos,  exige  que  os  irmãos  e  amigos 
da  noiva  a  acompanhem  á  sua  nova  casa,  a 
cavallo,  ao  som  de  musica,  entoando  cânticos 
e  dando  tiros.  As  irmãs  e  as  cunhadas  vem  en- 
tão ao  encontro  da  noiva,  que  se  adeanta  pqra 
ellas:  apresentam-lhe  uma  creança  que  ella  deve 
vestir,  bem  como  deve  offerecer  aos  convidados 
pão,  vinho  e  agua.  So  quando  dá  á  luz  é  que 
a  noiva  passa  a  ser  considerada  como  fazendo 
parte  da  familia.  Recebe  um  dote.  que  os  sér- 
vios chamam  persísi.  Quando  a  noiva  já  não 
tem  pae,  e  o  irmão  que  deve  pagar  o  dote, 
sempre  fixo.  e  de  que  o  marido  não  pode  fa- 
zer uso.   Mas,    circumstancia   verdadeiramente 


■i:»:) 


notável  I  quando  uma  rapariga  casa  sem  ai  icto  ■ 
risação  dos  pais,  a  sua  união  é  considerada  le- 
gitima, pois  que  tem  por  base  o  amor. 

Assim  é  que  diz  uma  canção : 

«Eu  queria  pedir  a  tua  mão,  mas  teu  pae 
não  me  quer  para  genro,  e  eu  só  não  te  posso 
roubar.  Escuta  as  minhas  supplicas,  vem  para 
mim,  que  t"o  peço  eu.  —  Bello  amigo,  é  inútil 
pedir  a  minha  mão ;  meu  pae  recusar-ta-ha. 
Não  penses  em  roubar-me,  porque  tu  o  paga- 
rias, meu  bem  amado.  Tenho  nove  irmãos  e 
numerosos  primos ;  quando  elles  montam  nos 
seus  cavallos  negros,  com  as  suas  finas  espa- 
das na  mão,  só  vel-os  causa  horror.  Não  quero 
que  tu  morras  combatendo  com  elles ;  e  se  fu- 
gisses, não  mais  te  poderia  ouvir.  Amo-te.  Gha- 
ma-me,  eu  irei  voluntariamente  lançar-me  nos 
teus  braços.» 

Os  funeraes  são,  entre  os  sérvios,  tão  poéti- 
cos como  o  casamento.  Quando  morre  alguém, 
os  parentes  levantam  grande  alarido ;  os  ho- 
mens saiem  descobertos  durante  alguns  dias  ; 
as  mulheres  deixam  liuctuar  os  cabellos  e  os 
vestidos.  Os  homens  choram  silenciosamente, 
mas  as  mulheres,  desde  o  dia  da  morte  até  ao 
do  enterro,  não  cessam  de  naritsati,  quer  di- 
zer de  cantar  em  voz  alta  a  sua  dôr,  pranteando 
a  sorte  do  morto  e  dos  seus. 

«Ai!  ail  trava-se  na  minha  alnia  um  terrível 
combate  I  Volto  os  meus  olhos  para  o  anjo  lu- 


234 


minoso  de  Deus,  c  exclamo :  Fazei  com  que  a 
minha  vida  seja  curta.  Mas  Deus  não  me  escuta. 
E  eu.  ai  1  contemplo  o  oceano  da  vida.  de  que 
as  más  paixões  são  as  vagas,  e  em  vão  desejo 
abordar  a  porto  e  salvamento.» 

Ses[ue-se  a  cerimonia  dos  funeraes,  sendo  o 
esquife  do  morto  conduzido  ao  cemitério  pelos 
amigos.  Quando  o  féretro  desce  á  sepultura, 
um  sacerdote  lança-lhe  em  cima  um  punhado 
de  cinzas,  e  as  mulheres  recomeçam  a  prantear 
longa  e  tristemente.  Cada  anno  ha  um  dia  con- 
sagrado aos  mortos:  é  o  Zaduchnitzi. 

Os  sérvios,  como  diz  Theophilo  Lavallée, 
formam  a  população  christã  mais  importante 
da  Turquia,  pela  dignidade  e  gravidade  do  seu 
caracter,  pela  sua  coragem,  bondade,  generosi- 
dade, costumes  patriarchaes.  amor  á  pátria, 
usos  e  religião. 

A  festa  dos  ramos  é  a  primeira  do  anno: 
celebra  o  advento  da  primavera.  As  raparigas 
juntam-se  n'uma  collina  e  cantam  o  hymno  da 
resurreição  de  Lazaro:  «A  creança  cresce,  o 
homem  vive,  o  velho  morre  n"esta  ideia:  quando 
virá  o  império  sérvio?»  No  dia  seguinte,  antes 
de  nascer  o  sol,  vão  buscar  agua  e  cantam  em 
coro:  «As  pontas  do  veado  tornam  a  agua  turva, 
mas  o  seu  olhar  torna-a  clara  e  limpida.» 

Esta  canção  deve  ser  interpretada  n  um  sen 
tido  mythico. 

O  veado,  cujas  pontas  tornam  a  agua  turva, 


•235 


é  o  inverno,  o  tempo  brumoso.  Gubernatis,  fal- 
l,ando  do  veado  mythico,  diz-nos  que  ha  o  veado 
negro,  que  symbolisa  o  céu  coberto  de  nuvens, 
e  o  veado  luminoso,  que  figura  em  muitas  len- 
das da  índia.  Ora  n'esta  canção  servia,  o  olhar 
do  veado,  que  torna  as  aguas  claras  e  límpidas, 
deve  ser  considerado  como  o  triumpho  alcan- 
çado pela  primavera  sobre  o  inverno. 

Reinach  diz  que  as  raparigas  servias  saúdam 
no  regresso  da  primavera  a  volta  dos  tempos 
felizes  para  o  amor.  entoando  canções  notavel- 
mente simples,  taes  como  esta:  «Dois  amantes 
beijaram-se  na  campina,  e  julgavam  que  nin- 
guém os  teria  visto.  Mas  a  campina  viu-os,  e 
contou  tudo  ao  branco  rebanho,  que  o  repetiu 
ao  pastor  ;  o  pastor  disse-o  ao  viandante,  o 
viandante  ao  marinheiro,  que  por  sua  vez  o 
contou  á  barca.  A  barca  foi  dizel-o  ao  rio,  e  o 
rio  á  mãe  da  rapariga.»  Os  leitores  de  um  li- 
vro meu,  Atrave-  do  passado,  conhecem  já  a 
ideia  fundamental  d'esta  canção  encantadora, 
que  se  encontra  também  na  Grécia,  e  que  tem 
sido  glosada  por  distinctos  poetas,  entre  os 
quaes  o  allemão  Ghamisso. 

No  fim  de  abril  realisa-se  a  festa  de  S.  Jorge, 
um  dos  patronos  da  Servia.  As  mulheres  vão 
ás  montanhas  colher  hervas  e  tlores,  que  lançam 
depois  ao  rio,  onde  no  dia  seguinte  se  banham. 
E'  assim  pois  que  os  sérvios,  como  os  outros 
p,ovos  slavos,  celebram  o  advento  da  primavera. 


200 


Vem  immediatamente  a  festa  de  Kralitza',  cni 
que  as  donzellas  festejam  Lélio,  a  ^'énH.s  da 
Servia,  a  deusa  do  amor.  .  '■'■ 

Segue-se  o  S.  João,  o  tempo  da  canicula,  em 
que,  como  diz  a  lenda,  o  sol  parou  outrora  três 
vezes  Se  o  anno  tem  corrido  seco.  proce'de-sc 
a  uma  cerimonia  verdadeiramente  original:  urfia 
rapariga,  cujos  vestidos  consistem  apenas  numa 
ligeira  túnica  de  folhas  e  Hores.  percorre,  acom- 
panhada por  outras,  os  campos,  que  vae. asper- 
gindo com  um  regador,  pedindo  ao  céu  uma 
chuva  fecundante,  invocando  o  sol  e  a  lua-: 
iiTako  mi  Sunt\a!  (o  sol)  Tako  mi  Semlie  <a 
lua)!  Que  o  sol  seja  comigo!  Que  a  lua  nic 
proteja!  Ligeiras  corremos  atravez  da  aldêa ; 
possam  as  nuvens  do  ceu,  mais  rápidas  do  que 
nós,  beneficiar  os  prados  e  as  vinhas.  Tako 
mi  Semlie.»  Quando,  pelo  contrario,  o  anno 
tem  corrido  chuvoso,  os  habitantes  do  campo 
imploram  o  auxilio  de  Elio,  que  não  é  senão 
o  sol. 

As  festas  domesticas  na  Servia  téem  um  ca- 
racter deliciosamente  intimo.  Os  viajantes,  os 
estranhos  são  sempre  recebidos  com  amável 
hospitalidade.  O  chefe  da  familia,  quando  ó  re- 
pasto se  realisa,  entoa  a  canção  de  Batschka  : 
«Três  pássaros  desferiram  voo  atravez  do  es- 
paço, levando  cada  um  no  bico  um  presente 
precioso  :  o  primeiro,  um  grão  de  trigo ;  o  se- 
gundo, um  bago  de  uva;   o  terceiro  a  alegriw 


2-37 


c  a  felicidade.  O  grão  de  trigo  caiu  sobre  a  pla- 
nície de  Batschka,  o  bago  de  uva  sobre  as  mon- 
tanhas de  Gore ;  possam  sobre  a  nossa  mesa 
cair  a  alegria  e  a  felicidade.» 

Mas  de  todas  as  festas  domesticas  da  Ser- 
viiíl,  o  Natal  é  a  mais  solemne. 

Ao  fim  da  tarde,  terminado  o  trabalho,  o  pae 
de  familia  vae  á  Horesta  cortar  um  carvalho 
novo  e,  pondo-o  ás  costas,  volta  para  casa. 
Quando  entra,  exclama  : 

«Boa  noite!  feliz  Natal!» 
•  E  a  familia  responde:  «Que  Deus  te  proteja, 
e  te  dê  boa  colheita!»  Depois,  o  carvalho  (ba- 
dujak)  é  posto  no  fogo.  No  dia  seguinte,  a  gente 
moca  percorre  a  povoação  a  cavallo,  disparando 
tiros  de  pistola.  E  o  pae  de  familia.  appare- 
cendo  á  janella.  atira  para  a  terra  alguns  grãos 
e  sementes,  dizendo :  «Natal !  Natal !  Christo 
nasceu.»  Ao  que  os  moços  respondem  no  es- 
tylo  do  Evangelho  :  «Em  verdade  nós  vol-o  di- 
zemos, Christo  nasceu.» 

Então,  todas  as  familias  se  juntam  em  torno 
do  carvalho  que  arde,  açoitando-o  com  correas; 
e  quando  as  faiscas  saltam,  exclamam  :  «Tan- 
tas faiscas,  quantos  bois.  cavallos,  cabras,  car- 
neiros, porcos,  abelhas  e  bênçãos  do  ceu  tere- 
mos este  anno.» 

A  festa  do  Natal  dura  três  dias.  E  até  que 
que  entre  o  novo  anno,  toda  a  gente  se  saúda, 
dizendo:    «Christo   nasceu!»    e   respondendo: 


238 


«Em  verdade,  nós  vol-o  dizemos,  Christo  nas- 
ceu ! » 

A  universalidade  das  crenças  populares  é  real- 
mente um  facto  admirável  I 

Assim  como  os  sérvios  tem  o  hadujak.  temos 
nós,  nas  provincias  do  norte,  e  citaremos  para 
exemplo  o  concelho  da  Maia,  arrabalde  do  Porto, 
o  carvalho  do  Natal,  que  também  se  pÕe  no  fo- 
go e  que  no  fim  da  noite  se  guarda  para  tornar 
a  accender-se  em  occasião  de  tempestade. 

A  Servia  é  decididamente  o  paiz  das  can- 
ções. Todos  os  seus  habitantes  cantam.  Em 
cada  casa  ha  uma  gu^la,  espécie  de  mandolim 
ou  guitarra,  que  tem  apenas  uma  corda  de  cri- 
na. Não  ha  festa  sem  canção  e  sem  gUylã.  A 
Europa  occidental  conhece  de  varias  imitações 
ou  traducções  muitas  das  poesias  populares  da 
Servia.  Prosper  Mérimée,  tendo  aprendido  cin- 
co ou  seis  palavras  de  slavo.  compoz  em  quin- 
ze dias  um  pequeno  romanceiro,  que  attribuiu 
a  um  imaginário  tocador  de  giiyla,  Jacintho  Ma- 
glanovitch. 

Na  poesia  servia  relevam  a  riqueza  das  ima- 
gens, a  ingenuidade  dos  sentimentos,  o  ardor 
do  patriotismo.  A  estrophe,  sempre  melodiosa, 
é  geralmente  curta;  e  o  acompanhamento  da 
g2íyhi  apenas  a  toma  nos  últimos  versos.  Os 
cantos  nacionaes  são  compostos  em  trocheus- 
as  canções  de  amor  admittem  os  dactylos. 

No  estudo   do  poesia   servia  ha  a  distinguir 


2% 


OS  pesmas  heróicos  que  os  homens  acompanham 
na  gHyla,  e  as  canções  do  lar,  que  as  mulhe- 
res e  as  raparigas  entoam. 

Foi  só  muito  tarde  que  os  sérvios  começaram 
í?  escrever  os  seus  pesmas.  Em  conformidade 
com  a  theoria  de  Viço,  a  poesia,  entre  elles,  pre- 
cedeu a  prosa,  que  foi  definitivamente  fixada 
por  Obradwitch,  depois  da  primeira  metade 
do  século  passado. 

Os  slavos  do  sul  só  modernamente  attingi- 
ram  na  litteratura  a  forma  dramática.  Annibal 
Lusitch  foi  quem  primeiro  escreveu  para  o 
theatro,  começando  elle  e  os  seus  imitadores 
per  seguirem,  o  rasto  dos  poetas  italianos,  Me- 
tastasio,  Alfieri,  Guarini.  Foi  Estevão  Popovi- 
tch  quem  comprehendeu  que  os  assumptos  na- 
cionaes  convinham  ao  theatro.  Entre  as  suas 
producçÕes  merece  especial  menção  a  comedia 
Belgrado  na  antiguidade  e  em  nossos  dias,  que 
teve  um  grande  successo  nos  theatros  provisó- 
rios levantados  em  Agram  e  Belgrado.  Popo- 
vitch  foi  pois  o  Eschylo  da  Servia  ^  Martinho 
Ban,  auctor  dos  dramas  Lazaro  e  Meirima,  pôde 
ser  considerado  o  Sophocles  sérvio.  A  Meirima 
tem  por  assumpto  o  amor  de  um  christão  por 
uma  mussulmana,  assumpto  que,  posto  fosse 
tratado  por  Voltaire  e  Byron,  oíferece  comtudo 
um  certo  encanto  de  execução. 

Entre  as  creações  phantasticas  da  poesia 
popular  da  Servia  devem  contar-se  as  pilas,  a 


240 


que  chamamos  feiticeiras,  á  falta  de  melhor 
vocábulo,  mas  que  são  creaturas  mysticas.  que 
presidem  aos  votos  do  povo  e  que  pairam  si- 
lenciosamente sobre  a  existência  dos  homens. 
São  ligeiras  e  bellas.  diz  Reinach  :  o  vento  brinca, 
passando,  com  os  seus  longos  cabellos.  Habi- 
tam sobre  as  colinas,  perto  dos  regatos,  sobre 
o  Lotchen,  cujo  cimo,  onde  a  tempestade  ruge 
incessantemente,  é  coberto  de  neves  eternas. 

Mas  se  as  vilas  são  os  génios  bemfasejos  da 
Servia,  existem,  em  opposição  a  ellas,  espíri- 
tos maléficos,  que  trabalham  pela  perdição  do 
género  humano.  São  os  rictchi-cs  que.  íluc- 
ctuando  nos  ares.  surprehendem  os  pastores 
adormecidos,  abrem-lhes  o  peito  com  uma  vara 
magica,  fixam  o  dia  da  sua  morte,  comem-lhes 
o  coração,  fecham  de  novo  o  peito  das  victi- 
mas  e  desapparecem. 

Quando  os  pastores  acordam,  sentem-se  aba- 
tidos, doentes.  E  pouco  depois  expiram. 

Mas  uma  das  creações  mysticas  que  mais 
impressionam  a  imaginação  slava  é  o  vampiro, 
que  se  alimenta  da  carne  dos  cadáveres  e  do 
sangue  dos  vivos. 

Entre  os  typos  dos  pesmas  heróicos,  o  mais 
notável  é  Marko,  o  Cid  e  Roland  da  Servia. 

Mas.  percorrendo  o  cancioneiro  sérvio,  são 
as  canções  de  amor  as  que  mais  nos  encantam. 
Terminaremos  este  ligeiro  artigo  com  um.a  can- 
ção  amorosa,   que   rompe  dos  lábios  de  uma 


24l 


rapariga:  «O  tchardak  (\tiio),  um  fogo  abraza- 
dor  me  devora:  ninguém,  durante  a  noite,  está 
á  minha  direita  ou  á  minha  esquerda ;  revolvo 
com  o  meu  corpo  a  coberta,  e  com  a  coberta 
as, minhas  dores.»  E  o  namorado  responde  lhe: 
«O  Mileva,  assenta-te  a  meu  lado.  Nós  não  so- 
mos selvagens,  nós  sabemos  onde  se  deve  bei- 
jar: as  viuvas  entre  os  olhos,  as  solteiras  entre 
os  peitos.» 


XH^ 


índice 


Pag. 

I  o  primeiro  mosquito -5 

II  A  comedia  das  praias 1 1 

III  N'uma  praia  solitária 20 

IV  Os  frequentadores  das  praias 3o 

V  Casos 38 

VI  A'  volta  dos  pés  da  imperatriz 56 

VII  Loucura  alegre *j5 

VIII  A  mascotte 73 

IX  Era  em  abril 80 

X  A  felicidade  e  a  camisa 85 

XI  Morte  de  um  gentleman 91 

XII  A  «season«  lisbonense  em  i883 100 

XIII  Gostos  não  se  discutem to6 

XIV  Peccadilhos  métricos 114 

XV  Os  amáveis 1 3o 

XVI  A  sepultura  d'um  traidor iSy 

XVII  A  caminho  do  Alemtejo 148 

XVIII  A  mulher 1 35 

XIX  O  carnaval     i63 

XX  O  chapéu 171 

XXI  Os  antípodas 181 

XXII  As  uvas 190 

XXIII  Pessoas  conhecidas  de  vossas  excellencias.  197 

XXIV  Comer  a  dois  carrilhos 207 

XXV  O  ultimo  puritano 212 

XXVI  Os  príncipes  do  Peru   221 

XXVII  A  poesia  da  Servia 229 


EI^T^-A^T^^S 


Pag.  69,  lin.  9,  onde  se  IG  —  um  bilhete  Golyseu  — 
leia-se  —  um  bilhete  do  Golyseu. 

Pag.  104,  lin.  3o,  onde  se  lê  —  A'  vista  de  um  traba- 
lho —  leia-se  —  A'  custa  de  um  trabalho,  etc. 

Pag.  142,  lin.  23,  onde  se  lê  —  deixaria  na  primeira  — 
leia-se  —  deixaria  ir  na  primeira,  etc. 

Pag.  i55,  lin.  2,  onde  se  lê — havido  acontecimentos — 
leia-se  —  havido  acontecimento,  etc. 

Pag.  176,  lin.  16,  onde  se  lè  — ^  E  como  —  leia-se  —  E' 
como.,  etc. 


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