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HISTORIA
MEMORIAS
D A
ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS
DE LISBOA.
S-f06-/.J). Cf.
HISTORIA
E
MEMORIAS
DA
ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS
DE LISBOA.
Nisi utile est qtwd facimus , sttdta est glofia.
TOMO IX.
LISBOA
NA TYPOGRAFIA DA MESMA ACADEMIA^
1825.
Com licença às S. MAGESTÂDE.
(ã.l^
HISTORIA
D A
ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS
DE LISBOA
PARA O ANNO DE 187.3.
Discurso do Sereítissimo Senhor Infante D. Miguel^ Presidente
da jícadetnia , por occasião da Sessão publica da mesma
Academia em z-j de Junho de 1823.
OR singular beneficio da Providencia Divina , sábios Aca-
démicos , se abre este anno a Sessão publica da nossa Aca-
demia debaixo dos mais felizes e lisonjeiros auspícios. Nos-
so adorado Monarca , Meu Augusto Senhor e Pai , nos hon-
ra com a Sua Presença , cercado de todo o explendor da
Magestade , e firmado no Régio Throno , que herdara de
Seus Maiores , pela Mão do Omnipotente , e pelo amor e
lealdade de todas as Classes de seus vassallos : e a distincta
T. IX. P. I.
pro-
li Historiada AcademíaRe AL
protecção com que este Grande Rei sempre auxiliou e pro .•
niovco hum cstabelccimciuo , que tem por divisa a titilidã' '|
àel nos dá as mais bem fundadas esperanças dos progres-
so^ da associação littcraria a que pertencemos.
' A relação dos trabalhos , em que seus Membros se oc-
cupárão desde a ultima Sessão publica , vos mostrará que '
o amor dos bons estudos não pôde nellas ser suffocado pe-
los esforços 'da tyrannia , que perseguindo de todas as ma-
reiras, c subtrahindo os meios de subsistência ás corpora-
ções scientificas mais respeitáveis, e dignas de auxilio pe» j
los fins de seus institutos, procurou fazer retrogradar ai
Nação a hum estado de ignorância e barbaridade , que nos :.
riscaria da classe dos povos civilisados , e nos faria appa-
recer no meio da Europa culta como Vândalos e Africanos.
Lancemos porém hum vco sobre esses dias de luto c
amargura , e voUando os olhos para a agradável perspecti-
va que nos oíFerece a nossa actual situação , formemos as
mais lisongeiras esperanças da prosperidade que as cir-
cumstancias promettem á Academia, assim como a todos
os estabelecimentos destinados á instrucção publica e á
cultura das Artes e Sciencias. A paz profunda em que nos
achamos, e a Real Protecção de Sua Magestade, ani-
iriaráó os nossos iitteratos a progredir em seus trabalhos
com maior fervor e energia , e a escrever obras , que le-
vem seus nomes á riiais remota posteridade.
O Deos Todo poderoso , de cujo aceno pende o des-
tino dos Impérios, abençoará (como dclic confio) nossos
desejos e esperanças ; e acolherá benignamente os votos
que lhe oflFerecemos pela constante felicidade do Nosso
Alto e Poderoso Rei , meu Senhor c Pai ; pela prolongaçao
de sua preciosa Vida , e pela gloria e prosperidade dos
povos , que em sua Sagrada Pessoa adorão como filhos o
Pai amoroso, e respeitão o Soberano, cujas Reaes Virtu-
des illustrão o Throno, e derramão contínuos benefícios
sobre toda a Nação.
Disse.
DIS-
I>AS SCIENCIAS DE L I S B O A.
IIT
DISCURSO HISTÓRICO
Recitado na Sessão puUica de 27 de Junho de 182'
PELO SECRETARIO
JOSÉ MARIA DANTAS PEREIRA.
wJendo innegavcl que os Estados intcressao ent ter so-
ciedades especialmente encarregadas de cuidarem no aper-
feiçoamento da rasâo humana , as quaes trabalhando no pio-
grcsso^das scjencias e das artes se communiquem as suas
invenções provocando e premiando ao mesmo tempo as
alhêas, divulgando todas, e servindo ao seu paiz como
signal ou apoio da opinião dos homens sábios , que dispen-
se os outros de se estremarem nos conhecimentos indiíFe-
rentes ás suas profissões, cumpre concluir que o Estado
Portuguez interessa muito em conservar, e em animar a
Academia Real das Sciencias.
Esta proposição he confirmada pelo consenso das maio-
res Cortes Europcas, e pela consideração assim como pe-
Ias outras vantagens, que nas mesmas Cortes andão inheren-
tes aos logares académicos, por se entender que os fins
devem corresponder aos meios, assim como os eíFeitos ás
causas que os produzem.
Todavia acabamos de ver reduzido a metade o dote
académico liberalisado por S, Magestade; e esta reducção
foi ordenada por aquelles que se denominavão nossos re-
generadores , contando então mesmo no seu seio mais de
hum individuo que percebia (sem duvida como precisos
para a sua manutenção) vencimentos superiores ao votado
para toda esta Academia !
* I ii O
IT. ! H I S.TO.Í í A. [D A- A C A r EM IÁ;: R E A L
O facto hc publico , c devo infelizmenre relatallo ;
porémí-a causa principal de o recordar consiste era p«-tea-
dcr que nada perciío do seu realce aquelles de que foi ori-
gem; pois sinto o maior prazer cm principiar qst^: relató-
rio pelo tributo de gratidão devido aos meus illustrissimos
Consócios.
Sim , Senhores , apenas sôa o rumor pregoeiro desta
economia apparcnte e mesquinha, a Academia he convoca-
da , e os meus Consócios não só illustres senão também
illustradores, privao-se de continuarem a percçpçao do pp-
quenissimo emolumento dos jetócs, alem de que se offere-
ccm para saldarem á sua custa as dcspczas académicas; dis»;
tinguindo-se com especialidade o Silr. Gypriano Ribeiro.;
Freire , que pcrtcnde e obtém ser elle só quem preencha
no anno corrente o deficit do dote académico , por conta
do qual ja forncceo oitocentos mil réis, e mais forneceria
se mais lhe fosse pedido; seguindo«se daqui podermos cha-
mar feliz a mesquinhez, que produzio tanta generosidade e
tonto patriotismo !
WilEste patriotismo , que deve aliás precisar-nos á maior
circunspecção no concernente ás despezas da Academia, he
também comprovado, assim por outras despezas de alguns
Sócios como pela exposição dos trabalhos executados no
decurso do anno próximo , em despeito de tão desanimador
tratamento, assaz opposto ao das nações cultas, e repugnan-
te á civilisação da Europa : tratamento que demais a mais se
accbmulou a dcsviação de nossas idéas para outros objectos ;
a huma agitação violenta incompativel com a fructificação
da oliveira ; e a não haver Sócio que deva considerar como
seu único emprego publico a satisfação ,das suas obrigações
académicas; isto he , a mais assídua e preciosa cultura da-
quella arvore assaz própria do nosso clima, e cujos íructos
intercsão tanto.
Com effeito jquem não esperaria que taes e tão mul-
tiplicados obstáculos anniquilasscm hum anno que , tendo
sido infausto nós registos littcrarios, e sendo bem apete-
O :. • ci-
DAsSciENCIASDÇLrSBOA. V
eivei que pelo menos o não fosse çm outro alginn respei-
to, veio por ventura a finaiisar em vernaos restituído ao
seu antigo esplendor o grande dia do nomí do nosso Au-
gusto Soberano? dia para cujo festejo a Academia concor-
re rta Sessão presente , díndo-vos conta do emprego do
tempo e dos meios disponivçjis desde a próxima Sessão
anterior ?
He certo, mas não estranhavel , que nos foi impos-
sível adiantar-nos tanto quantc» nos adiantaríamos em ter-
reno franco , sem outra obrigação mais do que a de mar-
char. a<i) longo delle ; porém não deixaiá de merecer attea-
ção a substancia , por assim dizer , desce relatório que .di-
vidirei cm trez partes, incluindo na primeira os trabalhos
individuaes mais notáveis ; na segunda os restantes ; na ter-
ceira os que forão offcrecidos á Academia : depois lerei o
programma, e nada mencionarei acerca do deste anno, por-
que ninguém concorreo a elle ; tão geral foi o desalento
filho dos nossos padecimentos, c da falta daquelle espirito
emprehendedor , que quasi sempre anda precedido por bem
fundadas esperanças de vantagens tão análogas como pro-
porcionadas ás fadigas a que elle nos conduz.
Primeira Parte.
O Snr. Francisco Xavier de Almeida Pimçnta , nosso
correspondente , enviou-nos as suas Investigações sobre a na-
tureza e antiguidade das aguas mineraes de Cabeço de Vide ;
cujo exame lhe foi incumbido pela Academia , e desempe-
nhou como se esperava do seu zelo e préstimo.
O Snr. Joaquim Pedro Fragoso, incansável nos seus
trabalhos litterarios, apresentou huma Memoria que intitu-
lou Ensaio sobre o conhecimento das arvores silvestres e fructi-
feras de Portugal.
O Snr. António Diniz do Couto Valente, que vai
mostrando-sc filho digno de succcder a seu distincto pai ,
cal-
VI Historiada A cademiaReal
calculou e apicscnrou impressas no fim de Mrtrçò ^sEphe-
nieridcs tiatirkax para o anno de 1824.
O Snr. Matthcus Valente do Couto , apezar de muito
clevadamehte occupado, apresentou a continuação das Ob-
servações astronómicas feitas no Observatório Real da Ma-
rinha , c acaba de offerecer a primeira parte de huma Me-
moria sobre a architectura naval.
Monsenhor Ferreira , cujo distincfo merecimento he
assa/, notório, augmcntou o thesouro litterario da Academia
com duas Memorias , em huma das quaes escreve acerca dos
Judcos em Portugal ; e na outra sobre a influencia do Con-
cilio de Trento na legislação Portugueza,
O Siir. Fr. Fortunato de S. Boaventura , bem conhe-
cido na littcratura lusitana, accrescentou ás suas obras aci-
demicas huma Memoria em que trata do nosso Chronista
Fr. António Brandão.
O Snr. Francisco Nunes Franklin augmentou seme-
lhantemente os distinctos productos do seu génio traba-
lhador com huma Memoria relativa aos Chronistas Portu-
guczcs
O Snr. João da Cunha das Neves e Carvalho , nosso
Correspondente premiado por esta Academia , ofFereceo
huma Memoria sobre a Provisão do Senhor D. AíFonso II.
acerca dos Decretos chamados de Fr. Soeiro Gomes.
O Srir. José Feliciano de Castilho vai rcmettendo-nos
cm vários quadernos a sua Memoria sobre as Ilhas^ de Cabo
verde , que tanto merecem a nossa attençao , e mormente
nas actuaes circumstancias.
O Snr. Manoel José Maria da Costa c Sá , exceden-
do o desempenho dos seus deveres académicos accumula-
dos sobre os muito consideráveis do seu principal empre-
go assaz afadigoso, apresentou duas Memorias, tratando
em huma do nosso commercio com Tunes , e descrevendo
na outra a Serra nevada do Brasil.
Forão recebidas e julgadas merecedoras da luz publica
as poesias posthumas do Snr. Sebastião Francisco de Men-
^ ^ do
TIAS SciENciAs DE Lisboa. vir
do Trigoso , que tanto se distinguio como sábio Porcu-
guez, c como Sócio desta Academia.
Segunda Parte.
Os trabalhos da Instituição Vaccinica tem proscquido
sem interrupção nesta Capital , e com o mais louvável zelo
por parte dos Sócios respectivos : com tudo a vaccinação
nas províncias está quasi parada por faltarem vaccinadores
que a propaguem; motivo pelo qual apenas chega a 2:697
enumero dos vaccinados de que se dêo parte á Instituição,
parecendo todavia que devem ter sido mais , attendida a
quantidade de matéria vaccinica distribuiJa por differentes
vezes , e por diversas partes do Reino ; sendo notável não
ter constado facto que deixasse de dever augmentar o cre-
dito da virtude antivariolosa da vaccina ; virtude que no
scculo prezente , contrapesando parte da destruição da es-
pécie humana produzida por hum fatal espirito innovador,
e voraginoso, deve elevar tanto mais o nome de Jenner ,
quanto mais o génio bcmfazejo da humanidade deve sobre-
sahir ao seu contrario , que poderá obter celebridade , mas
nunca veneração e amor.
Passando agora á publicação dos capitules das antigas
Cortes Portuguezas , cumpre-me referir que estão compi-
ladas até o tempo do Senhor D. Diniz, Soberano de sau-
dosíssima recordação para os Portuguezes em geral, e mui-
to especialmente para os lavradores e litteratos.
As aguas mineraes de Lisboa e seu termo forao ob-
jecto sobre o qual se oilíciou ao Governo , respondendo a
huma Portaria delle com o extracto do parecer da Com-
missão incumbida deste negocio pela Academia , sendo as-
saz para sentir que tenhamos sido muito precedidos a este
rcspL-iro pelas nações mais cultas da Europa , as quaes ja
tem publicado as analyses das suas aguas , e conseguinte-
nente conhecem todas as vantagens que delias podem ti-
rar.
A
vnr Historia da Academia Real
A Academia foi tambcm encarregada de fazer constar
a sua opinião sobre a arqueação dos navios nacionacs, e
sobre o modo de facilitar o seu calculo pratico , assim co-
mo o comparativo com as tonnclndas estrangeiras: trabalho
este assaz importante, que existe muito rccommendado qo
benemérito Director da classe das sciencias exactas.
A rcducçao do dote académico precisou-nos a dar por
concluida a preparação dos peixes fluviaes e marítimos de
Portugal : por cujo motivo esta collecção icthyologica Por-
tugueza contêm por agora tão somente, aoo preparações,
que comprehendem 70 espécies.
Finalmente a Academia fez imprimir na sua typogra-
fia não só as Ephemerides mencionadas , senão também a
Hygicne do seu fallecido e muito distincto Sócio o Snr.
Francisco de Mello Franco , da qual veio assim a ver a luz
publica huma terceira impressão : accrescendo que também
foi impressa , e distribuída na forma do costume a primei-
ra parte do tomo 8." das Memorias académicas.
Terceira Parte.
O nosso Sócio estrangeiro o Snr. Christiano Martinho
Fraehn offereceo á Academia huma noticia do Muzeo
Asiático da de S. Petersburgo , e a lista das medalhas ará-
bicas aili existentes.
O Siír. Maria Carlos José Pougens , da Academia Real
das Inscripções e Bellas letras em Paris, e nosso Sócio,
enviou-nos hum exemplar da sua Archeologia Fr^mceza,
O Snr. D. Francisco Xavier Cabanes , General Hespa-
nhol , e nosso correspondente , remctteo de Madrid inte-
ressantes mappas dos movimentos, e acções principacs na
peninsula durante a guerra de Hespanha ; de cujo reino e
ilhas adjacentes mandou também hum quadro estatístico.
O Snr. João Adamson enviou de Londres hum folhe-
to com duas taboas principalmente compiladas para uso dos
collectores de conchas.
Veio
dasSgienciasdeLisboa. IX
"Veio de Paris oíFcrecido por Mr. Norvins hum exem-
plar do seu poema sobre a immovtalidade da alma.
Semelliantcmente veio de Londres oíFerecido pelo Snr.
Samuel Parkes hum exemplar do seu discincto Cathccismo
de Chymica.
A Academia Real das Sciencias e Bellas letras de Bru-
xellas enviou dois volumes de Memorias, dirigindo-nos por
esta occasião a mais lisongeira carta : hum dos volumes he
o i.° tomo das suas novas Memorias ; e o outro he hum
exemplar das premiadas em 1817.
O Snr. António Feliciano de Castilho oíFerecêo hum
exemplar da sua collecção de Poematos sobre a Primavera.
Monsenhor Ferreira apresentou os riscos originaes do
Palácio Real, cuja execução chegou a ser ordenada pelo
Siir. Rei D. José.
O Siir. Ignacio António da Fonseca Benevides, nosso
Sócio, dco-nos dois exemplares dos Estatutos da Sociedade
Medica Lisbonense.
O Srir. José Feliciano Fernandes Pinheiro , presen-
temente nosso Consócio , offcreceo hum exemplar do se-
gundo tomo dos seus annaes da Província de S. Paulo.
O nosso Sócio o Siír. D.José Alaria de Sousa remet-
tco de Paris a cfEgie do immortal Camões gravada em
huma medalha de bronze.
O Snr. Vicente José Ferreira Cardoso , nosso Sócio
correspondente , brindou-nos com hum exemplar da sua obra
intitulada O que he o Código civil.
Conclusão.
Fica pois evidenciado por este relatório , que as letras
Portuguezas estão ainda felizmente protegidas pelas únicas
duas protecções, que podem fazer gyrar brilhantemente o
orbe litterario, aíFugcntando os erros inimigos da humani-
dade , assim como o Sol vivificador do mundo fisico affugcn-
ta delle as trevas, que o enlutão e amortecem.
T. IX. P.I. * 1 Ago-
X Historia DA Academia Real
Agora mesmo , Senhores , estamos go/ando de hum
dcliciusissimo espectáculo, pois vemos as Ictnis Portugue-
zas protegidas por si mesmas, e pela Augusta Presença de
Sua Magestade a quem somos aliás tão devedores ; ac-
crescendo ser tal a sua bondade , que podemos recopilar o
seu principal elogio dizendo com o nosso antigo Ferreira,
que Sua Magestade hc verdadeiramente Rei e Pai, Senhor
e Amigo, de todos os bons Portuguc/es.
Com estas protecções concorre a bem do progresso
littcrario a distincçao de sermos presididos pelo Sereníssimo
Senhor Infante D. Migufi, , que tem honrado as nossas
sessões com a sua Real Presença , e que sem duvida nos
continuará esta honra para inflamar a nação no amor das
letras, assim como acaba de inflamalla no da Monarquia, e
da Real F^amilia,
Sim, Senhores, S. A. R, tem mostrado que se con-
sidera na obrigação de ser grande em todas as acções da
sua vida; sabe que a verdadeira gloria consiste em promo»
ver quanto he possivel o bem geral da pátria ; conhece
quanto este bem depende do progresso e diffusão dos co-»
rhecimentos úteis ; não ignora que os Soberanos de mais
saudosa recordação tem sido os mais amantes das letras cm
todos os impérios do mundo ; e que o maior cxplendot*
politico destes impérios tem sido coevo com o litterario ,
proseguíndo este muitas vezes depois de attenuado , ou ani-
quilado aquelle ; em fim S. A. R. acaba de observar quanw
to influe nos Portuguezes o agrado e a presença de huma
Real Pessoa: esperemos pois com toda a confiança, que
também se empregará em fazer florecer, e fructificar, a ins-
trucção geral e proveitosa, com o mesmo zelo, que na au-
rora dos seus dias acaba de empregar na dissipação das
guerras civis, e na restauração da Monarquia.
DIS-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA.
xr
DISCURSO
Recitado feio Secretario José Maria Dantas Pereira no Paço
da Bemposta, perante ElRey Nosso Senhor, por occasiao^
da felicissima restauração do Tbrono Lusitano.
SENHOR
lluMA facção maligna, usurpando o nome da Naçáo
Portugueza , ouzou artentar contra a independência desta
Nação fiel, procurando desmantelar e abater o Throno Au-
gusto, que V. Magestade herdou de seus Renes Progenito-
res , conforme as leis fundamentaes da Monarquia : com ef.
feno, <;qucm dirá que pertender democratisar Portugal, nas
suas actuacs circunstancias, não equivale a intentar fazello
hespanhol ?
Os Portuguezes pois, vendo-se illudidos, espoliados,
c abysmados na voragem terrivel das desgraças mais horri-
veis, anhelaváo sacudir tao hediondo jugo ; e restaurar
aquellas suas instituições tão antigas como sabias, que exal-
tando c abrilhantando cada vez mais a Real Coroa , cen-
tuplicarão o seu poder, dilatando-o prodigiosamente por
todas as quatro partes da terra.
Todavia submissos ainda mais, se he possível, do que
leaes ao seu Monarcha , esperavao hum signal , que lhes
afiançasse ser do Real Agrado a execução deste seu inten-
to verdadeiramente nacional e bemfazejo.
Eis hum Infante, preclaro filho de V. Magestade , ar-
vorando a bandeira deste signal, e designando assim o
1 , « _ •■
* 2 u mo.
XII Historia DA Academia Real
momento opportuno para a satisfação da geral vontade :
V. JNbj>cstade firma aqucUa bandeira ; e Portugal resurge
immediatamente prostrando, e soterrando a negra facção anár-
quica.
São fructos immediatos de tão grande, rápido, e bem
concebido movimento , a extincção da guerra civil em am-
bos os hemisférios , e a do receio da guerra estrangeira :
alem de que resurge o socego das familias, do Throno , e
do Altar; o commercio se reanima; e em huma palavra a
Monarquia se restaura , fazendo-se provável que o Brasil se
reúna a Portugal como bom irmão , e conseguindo-se van-
tagens taes e tantas, dentro de brevíssimos dias, sem o
custo de huma só desgraça , ou do mais leve damno.
Testemunha pois de tão altas venturas a Academia das
Sciencias, que jamais deixou de cognominar-se Real, e de
ser sensível á publica prosperidade , trasborda no maior ju-
bilo por tão felices acontecimentos : e envia respeitosamen-
te esta depuração á muito Augusta Presença de V. Ma«
gestade para ter a honra de congratular a V. Magestade
por tão admirável restauração ; expressando ao mesmo tem-
po os mais vivos desejos de que a sua duração iguale a do
mundi) ; e beijando com o maior acatamento a Mão Real
do melhor Soberano.
DIS-
DAS SCIÇNÇIAS DE LiSBOA, XIII
DISCURSO
Recitado pelo Secretario Jasd Maria Dmtat Pereira nç Pap
da Bemposta , perante o Sereuissiuw Senhor Infante J}.
Miguel , Presidente da Academia , por occflsião dfl fç~
licissima .roftauraç^no do Throm Lusitano.
SENHOR
A
Academia Real das Sciencias, que se honrava respei-
tando em V. A. R. o seu Presidente , se felicita , e se
gloria , muito extraordinária e grandemente , contemplando
que V. A. R. acaba de unir áqucUe titulo de seu Presi-
dente os immortaes, e muito distinctos, de restaurador da Mo-
narquia Portugueza , e destruidor das guerras civis , que no
fim de trinta annos de gravíssimos padecimentos , augmen-
tando-os sobremaneira , deveriao produzir terríveis convul-
sões politicas, que terminarião (provavelmente fallando )
na aniquilação da independência nacional , se huma força
estrangeira , e se a politica europea , não precisassem a Hes-
panha a deixar de avaaçar pelo caminho da destruição
alhêa , e própria , por onde a França havia marchado tão
tristemente.
Ah! e com que suavidade, com que rapidez, hum só
movimento patriótico de V. A. R. , evidenceando aliás quan-
to por ventura ainda influe em Portugal o exemplo das
Reacs Pessoas , nos levantou ao cume da fortuna quando
híamos precipitando-nos pelo despenhadeiro da desgraça !
Desconfianças, violências, e todos os perigos que, ou ja
nos dilaceravão, ou ameaçavão arremessar-nos proniptamen-
tc
XIV Historia da Academia Real
te ás voragens da desordem, c da miséria, desappareccrão
dentro de oito dias , podendo V. A. R. dizer verdadeira-
mente : (i Dentro de liuma semana sahi de Lisboa , e venci
j> os maiores inimigos da minha Pátria. »»
A Academia pois scnsivel e reconhecida a tantos e
taes benefícios, exulta de prazer, e tanto mais exulta por
isso que somente a verdadeira sciencia pôde conhecer o
justo valor de tudo, e antever os prováveis futuros que
devem brotar do presente c do passado: por tanto anima-
da pelo mais puro e fervoroso reconhecimento , envia esta
deputação para ter a honra de beijar em seu nome, e por
hum tal motivo, a Regia Mão de V. A. R.
DIS-
DAS SCIENCIAS DE L I S B O A. XV
DISCURSO
Recitado pelo Secretario José Maria Dantas Pereira uo Paço
da Bemposta , perante ElRey Nosso Senhor , por occasiao do
acontecimento de Cadiz , e do venturoso anniversario do Sere-
níssimo Senhor Infante D. Miguel^ Presidente da Academia.
SENHOR
N-
A longa serie das Inconsequencias , ou das contradic-
ções do espirito humano, sobresahirá infeliz e grandemen-
te a pertenção dos actiiaes demagogos.
No mundo moral , e no físico , procede tudo gradual-
mente , e nenhum excesso dura : todavia elles tem estado
sempre em manifesta contradicçao com estas leis tão ge-
laes, e salutiferas.
Em vão , desde a mais remota antiguidade os verda-
deiros sábios confirmão aquella verdade tSo importante : em
vão o maior Corifeo dos mesmos demagogos lhes deixou
escrito , que a necessidade elevou os thronos , e a sabe-
doria os firma.
Simplices iniciados (e quantos delles bem simplices!)
adorão o Corifeo, porém nutridos pelo mais atroz espirito
de seita, ou pela mais negra malevolencia , ou pela des-
truidora ignorância , tem ou^iado conluiar-se para derribarem
o que , tendo sido elevado pela necessidade , está firmado
pela sabedoria !
Tão vãos como orgulhosos (pois a soberba he inhe-
rente á mesquinhez elevada ) contrapõem mesmo as suas
obras, e os seus discursos- ao axioma politico de ser prc-
fc-
XVI Historia da Academia Real
fcrivcl para qualquer ruçao aquclle governo a que e!la
existe habituada.
Dcvião pois seguir-se a taes inconsequencias , ou a
tacs coinradicçõcs , os terríveis males, cm cujo hediondo
pélago hianios naufragando.
Com cffeiro, querer fundar a igualdade geral sobre a
desigualdade física, moral, e civil, tão profundamente ar-
raigada , e tão incessantemente promovida pelas diíFercnças
de educação , instrucçáo , haveres , profissões , caracteres ,
c talentos ; querer cm summa fundar a democracia sobre à
geral desejo de sobresahir e dominar, ou sobre a geral re-
pugnância ao nivelamento politico, pois ninguém quer ser
igual ao seu inferior , he querer realisar a quimera.
^ Que conceito pois deve corresponder á pertenção
ainda mais absurda , ou monstruosa , de transformar anti-
gas monarquias em democracias; quando taes movimentos
marchão cm geral na direcção opposta?
O próprio terror exhauriria os seus recursos mais hor-
ríveis, antes de conseguir taes realisações , ou transforma-
ções , como vimos acontecer aos Francezes ; e por tanto
assaz se patentea a miseranda sorte preparada pura a gran-
de Hespanha pelos seus allucinados ou perversos demago-
gos.
Mas a este tão horrivel como voraginoso rodomoinho
seria Portugal arrastado por aquella visinha poderosa c úni-
ca, SC tão desgraçado systema prevalecesse a! 11 por algum
tempo, infelicitando a península, e ameaçando a Europa
estremecida pela França, que em certo modo lhe inoculou
o contagio, sem deixar livie delle , ainda mesmo a isola-
da e constitucional Inglaterra,
Em tão criticas circunstancias a queda do empório da
seita liespanhola, certificando-nos , que tão grande como
próximo perigo se affastou dos nossos larjs , e dos presen-
tes dias , deve encher-nos do maior regosijo , sem que to-
davia nos lance nos braços de huma confiança perigosa.
Os Poituguezcs, Senhor, tem mais hum motivo sin»
gu-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. XVH
guiar para se congratularem por tão decidido acontecimen-
to ; pois ellc os livrou de cuidados gravíssimos acerca de
hum neto de V. Magestadc , de huma Infanta Porrugueza ,
e de huma Princcza tão exemplar no cumprimento dos al-
tos deveres da maternidade, que chegou a sacrificar-lhes a
sua pr('pria vida.
Nestes termos, a Academia Real das Scíências, cheia
do maior prazer , tem a honra summamente preciosa de
congratular com todo o respeito a V. Magestade por tão
plaubivel successo ; e com esta congratulação reverente , e
affcctuosa , combina em certo modo a que respeita o gran-
de anniversario festejado com tanta razão no dia de hoje:
dia que tão intimamente lhe toca ; dia cuja solemnidade a
mesma Academia espera ver cada vez mais abrilhantada
pelas heroicidades do seu Presidente, e pelas subsequen-
tes effusões da gratidão Portugueza.
Por ambos os motivos pois esta Academia Real tem
a honra de beijar com o maior acatamento a Mão Sobera-
na, que protege as sciencias em Portugal, assim como os
maiores Ptolomeus as protegerão no Egipto , os Medicis
em Florença , Luiz XIV em França , o grande Frederico
cm Berlin , e o grande Czar na Rússia.
^ToM. IX. P. I, • 3 DIS-
sViir Historia da Academia Real
DISCURSO
Recitado pelo Secretario José Maria Dantas Pereira no Faço
da Bemposta , perante o Sereníssimo Senhor Infante D. Mi-
■ guel , Presidente da academia , por occasiiío do feliz anni-
versario de S. uí. R. , e do acontecimento de Cadiz.
SENHOR
i^E a queda feliz de Cadiz deve concorrer para se firmar
a restauração do Throno Portuguez , esta felicíssima restau-
ração concorrêo indubitável e grandemente para se effeituar,
e apressar aquella queda.
Porém a V. A. R. coube em tão prodigiosa restaura-
ção a primazia , que todos presenciámos ; devemos pois
considerar cm V. A. R. hum dos principaes fautores daquel-
le acontecimento , cujas consequências cumpre que sejâo
tão grandes como felicitadoras.
Por este motivo a Academia Real das Sciencias , in-
teressada verdadeiramente na estabilidade e na exaltação do
Régio Throno Lusitano, tem a honra de expressar peran-
te V, A. R. que serão eternos o seu reconhecimento , a
sua gratidão , e o seu especial respeito para com a Real
Pessoa de V. A. R.
Demais a mais a sublime parte que de tão importan-
te queda parece caber a V. A. R. , concorre para serem sa-
tisfeitos os votos fervorosíssimos da mesma Academia, im-
m^irtalisando este faustissimo dia, em que todos os leaes
Portuguczes , possuídos do prazer mais bem merecido , ce-
lebrão o nascimento de huraa Real Pessoa, que tão suave
DAS SCIENCIAS DE L I S B O A. XIX
e promptamcntc os livrou dos horrores da mais abominável
demagogia.
No brilhantíssimo foco deste pomposo cortejo , a Aca-
demia Real das iJcicncias procura em fim distinguir-se fe-
licitando a V. A. R. ainda mais com o coração , do que
com as vozes, ou com apparatosas apparencias : e por tan-
to beija tão reverente como affcctuosamente a Regia Mao.
de V. A. R. , a quem DEOS conserve numerosíssimos an-
nos , como convém a todos os Portuguezcs verdadeiramen-
te amantes do seu Rei , e da sua Pátria.
• 3 ii PRO-
PROGRAMMA
D A
ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS
DE LISBOA,
ANNUNCIADO NA SESSÃO PUBLICA DE 27 DE JUNHO DE 1823.
NAS SCIENCIAS NATURAES.
Para o anno de 1824.
Jbji
I M CHYMICA com premio dobrado. Determinar por expe-
riências chymicas , que analogia e diferença ha entre o la-
ctucarium e o ópio ^ e se o lactiicario , que se extrahe dos
thallos das alfaces espigadas , também existe , e em que pro-
porção , nas folhas da mesma planta antes de espigar.
EM MEDICINA. Determinar por observações clinicas , em que
dijferem os e ff eitos, do lactiicario dos do opto,
EM MEDICINA. Mostrando a experiência , que o ttso da qui-
na , e de outros amargos chamados anti-febris he nocivo em
muitas febres intermitt entes ^ designar ^ em quaes destas suo
indicados aquelles medicamentos ; e qual seja o tract amento
conveniente nas outras : estabelecendo principias theoricos , e
referindo factos , para provar a opinião que se adoptar em
qualquer dos dois ca'^os.
EU ECONOMIA RURAL. Visto o estado da nossa agricul-
tura , determinar , qual seria o melhor methodo para conse-
guir., que as encostas e cumes dos nossos montes^ que estão
incultos j se plantassem de arvores. De que espécie se poderia
ti-
ni^s SciENCiAS DE Lisboa. xxt
tirar maior partido ? ^al seria a sua melhor plantação e
cultura ? E que interesses poderião resultar delia ao Estado ?
Para o anno de 1825".
EM ECONOMIA RURAL , E DOMESTICA. Sendo recouhe-
cidu nas nossas fabricas de tincturaria a necessidade , e uti'
lidade da planta chamada Gianza , otí Ruiva dos tinctu-
reiros ,{Riibia tinctorum Linn.) : Em que terrenos prospera
mais a sua cultura ? Qtie outras espécies se lhe podem sub-
stituir ; e se alguma delias merece a preferencia na tincttt'
raria ? Por que modo , e em que tempo , devemos promover
a cultura desta planta ? Oitando estará nas circumstancias
de se recolher para uso das fabricas ? Qtie parte da planta
serve , e como se deve preparar para este fim ? Qtie outros
usos podemos fazer da ma ma planta , alem dos que respei-
tão d tincturaria ? Qtie vantajent tirard o lavrador da sua
cultura., comparada com as diff crentes sementeiras ., que po-
dem ter logar nos terrenos , onde deve ser cultivada ? Òut
consumo fazem hoje delia as nossas fabricas ; e quanto an-
nualmmtc pouparíamos , se a tivéssemos de cultura própria ,
e não a comprássemos aos estrangeiros.
EM MEDICINA. Ottaes sejão as cansas existentes ou occa-
sionaes da frequência das ptysicas em Portugal , especial'
mente em Lisboa ; e qual a natureza eu espécie da que he
mais geral , estabelecendo se os meios de a prevenir , e o me-
tbodo de a curar d vista de observações practicas}
Prémios extraordinários sem limitação de tempo.
Um epitome das leis agrarias Porttiguezas , piiblicadat
desde o principio da Monarchia até ao presente , e os aphoris •
mos polittce-economicos , que das mesmas se podem dedttzir a
beneficio da agricultura., povoação , e commercio dos Reinos
de Portugal, e dos Algarves.
xxit Historia da Academia Real
A dieta Obra deve ser eomposta segundo o methodo
seguido por Mr. Fourncl na que imprimiu em Paris no
anno de 1819 com o tirulo Les Loix rurales de la Frciuce y
rangées dans letir ordre naturel. A Memoria que for appro-
vada , ou que pelo menos merecer o Accessit , obterá o
premio de uma medalha de ouro do valor de joiooo réis.
Qtial be o methodo de curar radicalmente uí dysenterias
chrmicas , de qualquer causa que procedao , fundado em prin-
cipios , e confirmado por observares prncticas.
Este Programma tem o premio de 400:000 ,réis.
Assumptos fixos para todos os annos.
I. Â Descripção Physica de alguma comarca , ou territó-
rio considerável do Reino , ou Domintos ultramarinos , que com-
prchenda a Historia da Natureza do paiz descripto.
II. A Descripfão Económica de alguma comarca , ou ter-
ritório considerável do Reino , feita cotforme o plano adoptado
pela Academia para a visita da comarca de Setúbal, e que
se publicou tio Tomo III das suas Memorias Económicas.
III. A Topographia Medica de uma grande povoação ( ci'
da de , ou vil la notável ) de Portugal : segundo o plano indica-
do na Histoire et Mémoires de la Societé Royale de Mé-
decinc , Prefac. p. XIV Tom. 1 : ou Descripção de alguma
moléstia epidemica , ou endémica em algum logar de Portugal ,
indicando-se o tractamento mais conveniente.
NAS SCIENCIAS EXACTAS.
Para o anno de 1824.
EM ASTRONOMIA. Mostrar, que grão de confiança pode
merecer a longitude do Navio dedttzida da Estima em uma
viagem pelo menos de ^o dias. E se convêm ou não fazer as
emendas relativas d longitude f qtie são indicadas pela dif-
DAS SCIENCIAS DE L l S B O A. XXUt
ferenqa que se acha entre a latitude estimada e a obser-
vada : fundado isto no Calculo , t Observações.
EM ANJLYSE. Mostrar em duas series de grandezas , que
se correspondão termo por termo , qual deve ser o numero e
o interval/o delias para poder estabelecer algumas formulas
convenientes , que dêni com sufjiciente approximaçÕo as inter-
médias entre as grandezas dadas.
EM MECHANICA. Principias ftmdamentaes de Mechanica ,
estabelecidos {quanto poder ser) geometricamente.
Sem limitação de tempo.
EM ASTRONOMIA. Algumas observações de eclipses do Sol,
ou cccultações de estrellas pela lua , feitas por navegantes
portuguezes em portos do Brazil ou da Ásia : especificando
os meios e instrumentos , de que se servirão «estas observa»
coes. ^
EM NAFEGAÇAO. Uma derrota de navegação alta por tem-
po de um mez ou mais , feita em navio portu^uez , ajjoprin-:
cipal motor seja o fogo : ou uma memoria , na qual se evi-
dencêe a possibilidade e maneira de effeituar a mesma na-
vegação vantajosamente nos navios mercantes.^ e em todas as
circumstanciat. Será preferível a memoria , que alem de des-
empenhar este assumpto , considerar o motor empregado ao
mesmo tempo na cozinha do navio., em distillar agoa do mar
para os usos ordinários delia , em renovar o ar do porão e
das cobertas , em esgottar o navio , e em defende lo median-
te a conveniente projecção de agua fervente , d similhançeí
da executada pelos Americanos Ingkzes a bordo da fraga-
ta. Fulton. (*)
NA
(*) A navegação por meio do fogo combinado com o vento pôde
reduzir as guaruiyões dos navios , e as durações medias das viagens a
metade d;is actuaes : donde resulta , que a despega por este lado deve
descer * «m <^uarto ; e bcDi assim o espaço preciso para serem collo-
cadas as munições de bocca, o qual aindíise tornará menor, applr-
xxrv Historia da Academia Real
NA LITTERATURA PORTUGUEZA.
Para o anno de 1825'.
EM HISTORU PORTUGUEZA. A Historia dos nossos des-
cobrimentos em Aist>\i/dsia , e Polinésia^ cem a syuuiywia
dos descobrimentos feitos posteriormente pelas outras va^Ses
Europêas nas mesmas regiões.
Para o anno de 1824.
EM língua PORTUGUEZA. A Historia da lingtia porttt-
giie^a nos quatro primeiros séculos da Monarchia.
EM HISTORIA PORTUGUEZA. Determinar o aiigmento , e
diminui f ao de população nos Reinos de Portugal ^ e Algar'
ves
cando-se também o fogo a distillar agoa do mar para ser empregada
nos usos ordinários. Esta distillação poderá ser executada á maneira
da que está descripta na Enciclopédia melhodica. A navegação refe-
rida terá também as vantagens de fazer niúito menos perigosas as tra-
vessias nas vizinhanças da terra ; de tornar prcfixavel com niúita apro-
ximação a duração das viagens ; e de augmentar os lucros do cora-
mercio , accelerando a marcha do seu gjro. Alem disso porá era cer-
to modo as províncias do ultramar a meia distancia da metrópole ,
promovendo ou apertando assim a união daquellas com esta, e acce-
lerando a rapidez da acção do Governo, bem como a de todas as cor-
relações de ambos os paizes. O uso de taes navegações deve pois ser
singularmente vautajoso ás aações pequenas c marítimas, que possuem
grandes colónias. Abstrahíndo a consideração das vantagens desta na-
vegação nas guerras navaes , ve-se aliás , que para alcançarmos tão
importantes fins nos basta ampliar o que está feito, e unir o que exis-
te disperso ; e pois fomos quem outr''hora se avantajou ás mais nações
no tocante á Marinha, parece, que pelo menos devemos não descahir
muito áquem das mesmas nações era objecto tão ponderoso e conse-
quente.
Portanto, attendidos os referidos motivos, um Sócio da Academia
dobra o premio académico relativo a este prugramnia, dando luaU cio-
coeuta mil reis em metal.
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. XXV
• ves nas diversas epochas da Monarchia , indicando as ver-
dadeiras causas , q^ue se devem assignar d sua respectiva al-
teração.
Assumptos fixos para todos os annos.
EM POESIA^ E THE ATRO NACIONAL. Uma Tragedia
portugiieza.
Uma Comedia de caracter em verso , ou em prosa.
Os prcmlos ordinários consistem em huma medalha de
ouro do pc7,o de 50:000 reis: e todas as pessoas podem
concorrer a elles , á excepção dos sócios honorários , e eíFe-
ctivos da Academia. Abaixo destes prémios principaes , pro-
põe a Academia também a honra do Accessit , que consiste
em uma medalha de prata : e ainda abaixo desta a menção
honorifica da memoria , que só disso se fizer digna ; a qual
menção será feita nas suas Actas e Historia.
As condições geraes para todos os assumptos propos-
tos são: Que as memorias, que vierem a concurso, sejão
escriptas em portuguez, sendo os seus auctores naturaes
destes Reinos ; e em latim , ou em qualquer das linguas
da Europa mais geralmente conhecidas, sendo os auctores
estrangeiros : Que sejão entregues na secretaria da Acade-
mia por todo o mez de Abril do anno, em que houverem
de ser julgadas: Que os nomes dos auctores venhâo em car-
ta fechada, a qual traga a mesma divisa que a memoria,
para se abrir somente no caso , em que a memoria seja
premiada : E finalmente que as memorias premiadas não pos-
são ser impressas senão por ordem , ou com licença expres-
sa da Academia, condição que igualmente se extende a to-
das as memorias , que, não obtendo premio , merecerem com-
tudo a honra do Accessit. Porem nem esta distincçao, nem
a adjudicação do premio, nem mesmo a publicação deter-
r. IX. P. L » 4 mi-
scxvt Historia da A-capímía Rí al
minada, ou permittida pela Acadcinla , deverão jainais re-
putar-se como argumento decisivo, dç qiiç i;,sj;a S^eicdade
approva absolutamente tudo quanto se contiver naj meroo-
rias , a que conceder qualquer destes signaes de approva-
ção ; porem sotrjente como uma prova , de que no seu con-
ceito desempenharão, senão inteiramente, ao menos a par-
te mais iijiportante dos assumptos propostos.
.i;u - • . * * wH DI5.
DAS SciENCi AS DE Lisboa, xxvn
DISCURSO
Recitado na Sessão publica de i de Julho de 1824
PELO SECRETARIO
JOSÉ MARIA DANTAS PEREIRA.
^ER grande huma nação pode diffeiir muito de ser naçaò
grande , e de haverem existido nella homens verdadeira-
mente grandes : que tem sido grande a nação Portugueza ,
he verdade assaz evidenciada pela coexistência da peque-
nez do seu território, e da diuturna conservação da sua in-
dependência ; quando porém a estes factos ajunto o das
duas restaurações desta independência effeituadas nos tem-
pos, em que a Hespanha inteira obedecia ao gabinete de
Madrid, e em que as hostes do Corso agrilhoavâo o mun*
do , cresce , por assim dizer , a evidencia da minha propo-
sição ; que sobe ao maior gráo de clareza , quando se con-
templa , que tão pequeno território se dilatou por toda a
face da terra tanto , quanto não consta de outra nação
comparada com a portugueza : conseguintemente não foi a
imaginação, mas sim a razão, quem fez dizer ao nosso
Poeta :
E vereis qual he mais eícéllente,
Se ser do mundo Rei , se de tal gente.
Porém como pode hum poro menos numeroso sobre-
sahir a outros muito maiores , chegando mesmo a fazer
mudar a marcha geral do commercio do mundo, e a fazer
retroceder invasões taes como a dos Agarenos, senão ad-
'• . * 4 ii Si"'^^
xxviir Historia ©a Academia Real
quiiiiido em força moral excesso superior á falta de força
íysica , ou sendo exairado pela superioridade das suas in-
stituições mais doque abatido pela inferioridade numérica?
Eis-aqui pois o que nos elevou ao preeminente alca-
çar da gloria mais bnltiante; e para níío descermos dclle
convém toda a vigilância, e toda a efficacia, em conser-
var, ç em acrysolar os meios, que produzirão a nossa ele-
vação verdadeiramente magestosa.
He certo , que o desejo de obter , e o de desfrutar
o que se tem obtido, são estimulos, cuja actividade mui-
to differcnte deve produzir muito diversos resultados ; mas
por isso mesmo cumpre dcsvelar-nos a fim de conseguir-
jnos , que o gozo dos bens adquiridos não nos entorpeça
de mjncira que nos precipitemos, cntrcgando-nos d negli-
gencia na conservação e no augmcnto daqucUes meios, en-
tre os quaes occupa lugar muito distincto o progresso dos
conhecimentos úteis ; progresso que felizmente depende
piuito menos do numero doque dos costumes de cada po-
vo, conforme nós mesmos manifestámos em o nosso bom
tempo, no qual os Nunes, os Osorios , os Camões, e os
Barros, forão coevos dos Albuqucrques, e dos Castros.
Quanto pois deve importar que floreça hum estabe-
lecimento ' encarregado de adiantar os ditos conhecimen-
tos , e dç 08 derramar por todo o território portuguez ,
he assaz evidente apenas se demonstrar , que tão preciso
çstabclçcimento tem pago a sua divida, isto he, tem pro-
curado obter os seus grandes fins, fazendo o uso mais van-
tajoso dos meios postos á sua disposição. Eis-aqui pois o
objecto do presente relatório : assim eu possa desempenha-
lo , assim eu possa levar a minha convicção ao intimo de
todos os corações verdadeiramente portuguezes.
Com esta louvável intenção repartirei o meu discurso
em qur^tro part€s. Na primeira tratarei do que he devido
á classe das sciencias naturaes ; na segunda e terceira da
que similhantemenre se deve ás classes de litteratura e de
Ojathematic^ i na quarta do augcacoto desta divida corres^
pon-
DAS ScrENCIAS DE LiSBOA. XXIÍC
pondente ao anno proximamente findo ; c logo depois nao
só lerei o programma para o anno seguinte , mas também
terei a honra de fazer distribuir junto com este programma
o catalogo das obras impressas pela Academia , catalogo que
hc precisamente hum documento comprovador deste meu
relatório.
Primeira Parte.
Hc indubitável, que hum pequeno povo, ou ilhado,
ou situado na beira-mar de sorte que esteja impossibilitado
de augmcntar o seu território, só pode crescer constituin-
do-se agricultor e navegador : daqui proveio que as so-
branceiras vistas dos nossos maiores Soberanos se applicá-
rao a favorecer os verdadeiros agricultores , e a promover
a navegação portugueza ; bastando para se provarem estes
factos a saudosissiina recordação dos nomes dos Senhores
Reis D. Diniz, e D.João II.
Vejamos pois se esta Academia Real das Sciencias
tem procurado seguir, no que lhe diz respeito, a marcha
prefixada em certo modo por aquelles grandes Monarchas j
e seguila avançanlo tanto quanto lho tem permittido as
tuas circumstanciask
A Academia deve não empregar todos os seus meios
só nos dois mencionados objectos, pois o seu Estatuto lhe
incumbe contemplar outros simultaneamente, porem cura-
prelhc repartir, ou antes ratear, aquelles meios por todos
os objectos conforme á importância delles , e sempre de
sorte que nenhuma desproporção nas diversas partes do to-
do ou paralyse algumas, ou destrua o mesmo todo, como
acontece quando tal desproporção existe.
Este portanto foi o dever desempenhado pela Aca*
demia : por isso considerando a nossa agricultura como hum
dos principacs agentes da publica prosperidade , concluio
que devia ser hum dos primeiros objectos dos seus desve-
los , e jamais ommittio diligencia , que estivesse ao seu al-
iance, a qual não empregasse pelo modo mais efficaz afin)
XXX Historia da Academia Real
de promover este ramo de industria , do qual dependeni to-
dos os outros , pois depende a geral subsistência , e de-
pende a producção de muitas matérias primeiras.
Bastará passar rapidamente os olhos pelas obras im-
pressas, e pelos programmas académicos, pondo mesmo de
parte os assentos dos conselhos c das sessões particulares ,
p.iraquc esta verdade se manifeste evidentemente , ainda
mesmo ás vistas menos atiladas ou perspicazes: as quaes
distinguirão entre os programmas respectivos aquelie , que
he relativo ás leis agrarias portuguezas publicadas desde o
principio da monarchia.
Kntrc as ditas obras mencionarei primeiro as que tem
por objecto a manufactura do azeite, e do vinho, ou a
cultura da oliveira , e da videira ; plantas que logo depois
das cereaes nos são assaz interessantes ; e a cujo respeito
se esmerou também a Academia ( postoque sem o maior
resultado ) no descobrimento de remédio ao mal terrivel ,
que qu.isi esterilisa as arvores productoras do óleo mais im-
portante ; as quaes ao mesmo tempo gostão de terreno ,
que , fecundado pela agricultura , nos enriqueça com ou-
tras producçóes que nos alimentem.
A base principal deste alimento nunca tem deixado
de ser assumpto especialmente considerado por esta Acade-
mia, como provão as distribuições de trigo sarraceno, e de
batatas, as de prémios relativos à sua cultura , e as de fo-
lhetos, mediante cuja publicação procurou divulgar os co-
nhecimentos respectivos ; praticando-se outro tanto a res-
peito da cultura dos nabos, e procedendo-se similhante-
mente emquanto á das favas na provincia da Beira : alem
de que se tratou da excicação das batatas, e da sua redac-
ção a farinha e a pão.
A agricultura mesmo contemplada em geral , e con-
templada emquanto ao particular de diversas partes de
Portugal, tem sido objecto incessante, assim dos program-
mas da Academia , como dos trabalhos de seus distinctos
sócios: e já com a mira em que, descrevendo se o seu
actual
DAS SciENCIAfi DE LlSBOA. XXXI
actual estado , se possa proceder com todo o conhecimen-
to de causa aos melhoramentos correspondentes ; já pura
indicar estes melhoramentos, ou prescrever a melhor ma-
neira de efifeitualos , com atcenção a que sempre a indo-
lência , ou a ignorância , he mais convencida ou estimula-
da pelo exemplo doque pelo raciocinio.
O dever de não cangar as vossas attenções , e de con-
formar-me ás circumstancias em que leio este relatório, pre-
cisa-me a ser talvez exccsNÍvamente conciso ; deixando pois
de referir outros trabalhos importantes , mencionarei ape-
nas , que a cultura dos baldios, a plantação de arvores syl-
vestres e fructiferas, em que tanto interessamos, a reproduc-
çâo e augmcnto das fontes, o ensecamento dos paues , o
aproveitamento dos nossos dilatados areaes , e o encana-
mento dos rios, tem sido objectos das meditações, dos
escritos, e dos programmas desta Academia.
A creação daquelles preciosos vermes , mediante cuja
interN-^ençao as folhas de amoreira se transfórmão em gran-
des peças de seda ; as abelhas e as colmeias ; a granza ou
ruiva dos tintureiros, que em Portugal apparece esponta-
neamente ; a influencia dos meteoros na vegetação ; os
gados sem exclusão das suas lãs e da arte veterinária ; os
prados artificiaes , os pastos , os carros , as seves , o linho ,
o algodão, o esparto, os aparelhos distillatorios, os for-
nos e fogões , as gadanhas , os estrumes , as queimadas ,
a publicação de noções breves e claras para instrucção dos
nossos lavradores ; o estabelecimento de escolas de agri-
cultura theorica e pratica ; o de companhias agrarias ; a
descripção e remoção dos obstáculos ao progresso da agri-
cultura , do qual dependem tanto o da povoação , e o da
civilisação , donde deve resultar o da geral prosperidade ,
e até a firmeza ou duração da nossa independência , tem
sido objecto continuo das mais serias attençóes desta Aca-
demia.
Em summa, esta Real Academia publicou em i8off>
como assumpto principai do seu programma em aj;ricul-
* tu-
XXXII Historia da Academia Real
tura , K Indicar as plantas que podem servir de alimento aos
homens , e supprir em annos estéreis as que servem á sua
ordinária sustentação ; quaes são as que melhor se dão em
o nosso clima , e quaes as que poderão nclle cultivar-se
com vantagem , segundo a natureza dos diversos terrenos
de Portugal ; e os usos a que as mesmas plantas poderáô
ser destinadas , quando uáo sejão necessárias para o men-
cionado fim. '»
A benemérita classe das sciencias naturaes , principal
credora dos louvores devidos, ao que se tem praticado a
bem da agricultura, também o lie dos que lhe competem,
por se ter empregado tanto nos outros objectos que lhe
correspondem, quanto evidentemente se colhe de haver pu-
blicado o primeiro Firidarium Ltisitanicum '^ a distincta Flo-
ra da Cochinchina ; a analyse das agoas das Caldas e de
Cabeço de vide ; tomando alias em consideração o trans-
porte das primeiras , e imprimindo muito notáveis memo-
rias sobre as nossas marinhas , o nosso sal comparado com
o de Cadiz, o algodão cuja cultura procurou aclimatisar
em Portugal, a cochonilha, o ricino, a urzella , o anil,
o chenopodio marítimo , e as plantas indígenas , donde se
extrahc a soda.
Recorrendo ás referidas fontes veremos o muito , que
esta mesma classe se tem occupado com a parte mineraló-
gica do nosso Reino , e com o concernente á ictiologia , á
preparação do peixe salgado e seco , e ás pescarias ; ramo
este de industria , que deve alias concorrer grandemente pa-
ra haver quem possa guarnecer a propósito os nossos na-
vios de guerra , sem os quaes , nem o commercio pode ser
protegido ou animado , nem as colónias ligadas entre si ,
e á sua metrópole.
Sobre tudo reconhecereis , Senhores , quanto deve a
esta classe a propagação daquella invenção Ingleza , bastan-
te para immortalTzar o século decimo oitavo, tão notável
nos annaes da destruição dos homens; fallo, Senhores, da
invenção tendente 4 conservar nada menos do que hum se-
ti-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. XXXIlr
timo da nossa espécie, em despeito das flagelladoras be-
xigas , que nao só procuravão deturpala quabi toda , mas
também coiisegiiião devoíar-lhe a sétima parte,
A cducaçíío fysica desta mesma espécie, que tão in-
felizmente vai declinando ( e talvez não menos a moral ,
brotando de taes fontes as causas principaes de muiro con-
sideráveis padecimentos) não podia deixar de attrahir as
mais graves meditações de tão distincta classe ; que depois
de haver-se empregado zclosissimamente na nossa restaura-
ção fysica , e na preservação das doenças que nos mortifi-
cão, publicando tratados sobre a dita educação, e sobre a
Hygiene considerada em geral , e considerada emquanto
aos corpos militares, assim terrestres como maritimos, se
desvelou em obstar á propagação dos contágios , mediante
a publicação de folhetos destinados a vulgarisar os conhe-
cimentos relativos á preservação da peste , e das doenças
dos exércitos : alem de que fez imprimir huma memoria
sobre a desinfecção das cartas , e hum tratado de policia
medica escrito por hum dos mais beneméritos Professores
de medicina , sócio desta Academia.
Daqui passando a classe a tratar de destruir os males
fysicos , procurou desempenhar-se , como se colhe das suas
memorias, sobre os hospitaes do Reino, sobre a sympathia
do estômago com a cabeça , ou do laboratório da nossa
nutrição corporal com o da intellectual , se com effeito he
admissível esta expressão; sobre a Fysica tuberculosa; so-
bre algumas observações Botanico^medicas ; sobre as bou-
bas ; sobre a dedaleira e suas propriedades medicinaes ; so-
bre as dysenterias chronicas, sobre o empyrismo na medi-
cina , e sobre a identidade no systema muscular : escritos
a cuja menção unirei a dos avisos sobre as mortes apparen-
tes, a das advertências sobre o uso da agoa das Caldas,
a das memorias para a historia da medicina ; e a do en-
saio dermosografico do nosso falecido consócio o Snr. Ber-
nardino António Gomes , a quem de mais a mais he devida
a invenção do chinchonino.
' r. IX. p.L • g Os
XXXIV Historia da Academia Real
Os programmas da Academia também mostrao , que
a sua classe de sciencias natuincs procurou unir aos seus
trabalhos os de todos os litteratos da mesma classe, con-
vidando-os a escrever sobre o temperamento medico actual
desta cidade , talvez a mais desproporcional de rodas as
capitães comparadas com o total das suas n:içÕcs ; o que
não pode deixar de influir sensivelmente sobre a sua vida
fysica e politica.
Proscguindo porém na enumeração dos objectos, a que
se rcpoi tão os programmas desta classe , relatarei com.o
principacs , as doenças nervosas , as tisicas , a morféa ; as
doenças agudas e chronicas , que mais frequentemente ac-
comcttcm os pretos recem-tirados da Africa; a lepra, a
gota, a febre amarella , as queixas biliosas , as que mais
atacão a nossa tropa, e as apoplexJas.
A mesma classe considerou também nos seus program-
iras as composições farmaceutico-clinicas ; a differença en-
tre os effeitos do lactucario e os do ópio , determinada por
cbs.rvações clinicas; a influencia dos meteoros assim na ve-
getação como na saúde dos homens e dos animaes ; e a
analysc das agoas das Aleaçarias , do Estoril, do Gerez, e
do Vimeiro.
Accresce haver tratado , como foi notório , de concor-
rer, assim para serem convenientemente soccorridos os asfi-
xiados e os rcccm-afogados , como paraque se remediassem
prompt:imente as doenças que flagellavão Lisboa em 1 8 ii ;
não impedindo tantos e taes desvelos , que procurasse obter
noções sobre a porcelana , o tabaco , o xarão , o chá , e a
tinturaria chineza ; e que também contemplasse distincta-
ipente a meteorologia, assimcomo alguns outros ramos as-
5^z importantes da Fysica e da Chimica. ti :>j: ■;
Sjgue^se pois , em conclusão , que esta classe teat
preenchido os seus deveres ,. cora o esmero próprio do mais
fibivab sd Si«m u auxn ^b rr
DAS SciENCiAS DE Lisboa. "~ xxxv
EGUNDA Parte
A classe de litteratura merece menção nada menos
honrosa , como passo a evi>.1cnciar.
Sendo manifesto, que devemos ás nossas antigas in-
stituições a dilatação prodigiosa do nosso império, que che-
gou a exceder cm grandeza territorial todos os antigos,
divulgar pela imprensa o conhecimento destas instituições,
depois de havelas desarreigado do abysmo do esquecimen-
to , devia ser , e tem sido com effcito , hum dos princi-
pacs trabalhos desta classe cada vez mais benemérita. As-
sim lhe fosse dado reproduzir nossos antigos costumes !
Todavia cumprio, e cumpre o maior talvez dos seus
deveres na publicação mencionada ; pois sem duvida nos
convém a restauração daquellas instituições mais adequada
ao estado presente da civiiisaçao; ou não he verdade axio-
mática , que a força dos hábitos nacionaes , á maneira da
dos inJividuaes donde procede, muito difficilmente he sub-
rogada , ou vencida , pel ) impulso de innovações contrarias
áquelies hábitos, ou áquellas instituições.
Com grande razão pois a classe de litteratura, alem
da preciosa colh<;ita depositada em seu distincto celeiro ,
para ir sendo divulgada pela typografia académica (a) , já
fios fez gozar o prazer da agradável recordação do que
nossos maiores praticarão heroicamente, e regularão sabia-
mente , conforme consta dos cinco primeiros volumes dos
inéditos , dos qaaes tenho a honra de apresentar o quinto
recem-sahido da imprensa.
Nelles se encontrão estampadas consecutivamente as
Chronicas do Snr. D. Duarte, do Snr. D. Affonso V, do
Snr. D. João II , e de D. Duarte de Menezes escritas pe-
lo nosso Ruy de Pina ; a de D. Pedro de Menezes por
Gomes Eannes de Zurara ; as dos Senhores Reis D. Pe-
dro I, e D. Fernando por Fernão Lopes, e as de todos
os nossos Soberanos até o Snr. D. João III pelo Bacharel
* j ii Chris-
/
sxxvr HisVoria"da Ae\D'EM:iA'RKat.
Christovão Rodrigues Azinheiro ; alem do que publicou a
mesma Classe nos referidos volumes a guerra de Ceuta por
mestre Mattheus de Pisano , o livro vermelho do Siir. 1).
AlFonso V, os íbros antigos de Santarém, S. Martinho de
^louros, Torrcs-novas , Gravao , Guarda, e Beja , mais aV4
guns fragmentos de legislação portugiieza extiahidos do li-
vro das posses da Cas* da Supplicaçâo : devendo- se espes
cialmcnte a publicação dos dois ulti^mos volumes ás fadi--
gas du distincta Comiliissdo do historia, estabelecida pela
Academia, C formada por muito respeitáveis ?aiios da elas*
se de littcratura. ' • -i ^ r ' ' ' -
A esta mesma classe he devida' a^ itiferessantè coUec-
ção de noticias para a historia c geografia das iiiações ul*
tramarinas, a cujo respeito não se poderá dizer o mesmo,
que táo desgraçadamente nos exprobráo á cerca do roteiro
do mar vermelho escrito pelo insigne D. João de Castro;
e conhecida} agora , rtão porque portiiguczes amantes da
gloria nacioilal o publicassem , mas sim porque o venderão
a estrangeiros, que prezando-o como deviao o extractárao,
e o imprimirão cm lingua estranha, como consta das re*
spectivas impressões , e da noticia delias publicada no to-
mo V dos Annaes das sciencias , das artes , e das letras.
Na mencionada , e preciosa coUecção de noticias ul-
tramarinas encontraremos , alem das que referem os costu-
íncs e as escrituras dos gentios orientaes , as que nos forao
deixadas pelo venerável José de Anchieta sobre as pro*
ducções naturaes da capitania de S. Paulo; noticias segui-
das pelas navegações de Cadamosto , de Pedro de Cintra ,
de Pedro Alvares Cabral , de Thomé Lopes , e de João de
Empoli ; ás quaes publicações se unio a do livro de Duar-
te Barbosa, e as cartas de Américo Vespucio a Pedro So*
derini : havendo promptos para entrarem na imprensa mui-
to notáveis manuscritos , dos quaes mencionarei agora hu-
ma dcscripção do Brasil escrita no tempo dos Filippes J
e havendo também no cartório da Academia importantes
mappas relativos áquelle vastíssimo paiz j assimcomo de*
se-
t>A*SCIENCIAS DE LiSBOA. XXXYir
senhos de variai das suas arvores, e descripçoes de alguns
dos seus territórios.
*; Em volumes avulsos dco á luz esta mesma classe vá-
rios documentos arábicos da liistoria portugucza ; hum en-
sftiô económico sobre o commercio de Portugal e suas co-
lónias ; algumas memorias para a historia da capitania de
S. Vicente ; as observações sobre as principaes causas da
decadência dos portuguezes na Ásia ; o primeiro volume
dás obfJs do Snr. Francisco de tíorja Garção Stockier ; e
outras mais directamente concernentes á lingoa c poesia
portugucza; a saber: o primeiro volume do nosso diccio-
nario , hum lexicon «tymoiogico das palavras e-nomes por-
tuguezes que tem origem arábica , hum ensaio dos syno-
nymos da lingoa portugucza, huma grammatica philosophi-
ca desta mesma lingoa , as obras poéticas de Francisco Dias
G >mcs ; varias tragedias , entre as quaes huma nacional , e
Bs outras traduzidas do grego e do latim , com a notável
attenção de expor em verso portuguez hum assumpto que
foi tratkio por Euripides , Séneca, e Racine; alem de que
se tem começado a reimprimir os nossos principaes histo-
t-iograíos : e existe no cartório da Academia grande nume-
ro de obras poéticas escritas em portuguez, em larim , e
cm italiano ; existindo também hum diccionario alemão-
portuguez , mandado compor á maneira do alemao-latino
de Scherer;e a traducçao de Virgilio por Cândido Lusi-
tano , authografa.
Sendo clarissimo, que esta classe não podia satisfazcr-
8e com a divulgiçâo dos mencionados fragmentos da legis-
lação , que tanto concorreo pafa nos elevarmos ao gráo de
gloria , que deixo referido com tanto respeito e prazer ,
mostrou a mesma classe quanto prezava este grande assum-
pto , fazendo imprimir as obras do nosso famoso jurisperi-
to , e clarissimo consócio Pascoal José de Mello Freire ;
alem dâs quaes mencionarei o Índice dos foraes das terras
do Reino de Portugal e seus domínios ; a synopsis chro-
nologica de subsídios para o estudo da nossa legislação i
as
xxxviii Historia da Academia Real
as fontes próximas do código Filippino ; e o índice chro-
nologrco remissivo escrito pelo mesmo benemérito sócio, a
quem devemos as observações históricas e criticas sobre a
diplom;icia portugucza. i
Náo se reduzem ao muito que deixo relatado os tra-
balhos da classe concernentes á nossa legislação ; pois en-
tre as memorias publicadas se encontrão as que tem por
objecto:
j> O nosso governo e os nossos costumes desde os
»> primeiros tempos conhecidos até o estabelecimento da
>» monnrchia portugucza inclusivamente;
» A «rigem dos nossos juizes de fora ;
» O que erão as behetrias , e em que differião dos
>í coutos e honras ;
» A época certa , e o modo da introducção do direi-
» to chamado de Justiniano ;
» O direito de correição usado nos tempos antigos e
» nos modernos ;
3> A origem , progressos , e variações da jurispruden-
» cia dos morgados ;
>» A época fixa da introducção do direito romano cm
» Portugal , c o gráo de aurhoridade que elle teve nos di-
íj versos tempos , » memoria esta que concorreo a program-
ma , e assim também a anterior ; havendo sido ambas es-
critas por hum sócio, que depois temos visto elevado aos
eminentes cargos de Ministro e Conselheiro de Estado.
Semelhantemente foi escrita por outro distincto sócio,
em concurso a outro programma , huma memoria sobre a
introducção do direito das Decretaes em Portugal ; e a
influencia que elle teve na nossa legislação.
A todas estas memorias accrescem ainda as que tra-
tão da forma dos juizos nos primeiros séculos da monar-
chia ; da influencia dos conhecimentos das nossas leis an-
tigas em os estudos do jurista portuguez ; dos inconve-
nientes e das vantagens dos prazos com relação a agricul*
tura y da origem e jurisdicçao dos corregedores das co-
rnar-
DAS SCIENCIAS t)È LiSBOA. XXXI3Í
marcas; da lei das sesmarias; de que até o tempo do Snr.
D. Diniz nenhuma lei prohibio ás igrejas e mosteiros a
acquisição dos bens de raiz ; e em fim a memoria escrita
sobre a authoridade que teve entre nós o código Wisigo-
do : memoria esta , que também se apresentou a concurso ,
c he devida a hum nosso distincto correspondente , que
no anno próximo offereceo outra, na qual trata dos chama-
dos decretos de Fr. Soeiro Gomes.
Para completar este meu relatório correspondente á
parte juridica da classe, cujos trabalhos vou descrevendo,
separarei dos prngrammas desta classe os que reputo prin-
cipaes entre os pertencentes áquella parte , a saber :
»» Quaes foráo os diversos géneros e classes de pes^
» soas , que existirão na nação portugueza até o reinado
» do Senhor D. AflFonso V; e quaes os seus diversos foros,
» privilégios, e obrigações:
» Qiie parte das ideas feudaes se introduzio na legís^
»» lação portugueza, em que tempos, e que alterações re-
>» cebeo : i ■- ^
5í Qual foi a proporção entre os crimes e as penas
>» em as diflFereiite<; épocas da nossa jurisprudência :
>í Q^iaes forão a natureza , qualidades , e eflPeitos po-
» líticos da jurisprudência dos nossos antigos forâes :
»« Qual seja a natureza das doações dos bens da Co-
j» roa , e a necessidade e diversidade das suas confirma-
♦> ç6eS í -- -:;•■';!. "■'3'-'-' í^'iJ ■:•'•
j> Qual foi entre nós a árigeni,- ptíógíèssofs j fe efiFei-
>} tos dos direitos senhoreaes :
« Huma historia das confirftiações geraes ordenadas por
«algum dos nossos Soberanos.»
•' Passando aos' mais objectos desta classe de litteraturà
occuparia com a relação delles b tempo exigido pela de
outros talvez não mais consideráveis : limitar-me-hei pois a
dl2er, que lhe devemos os escritos ou memorias, cujos
assumptos são =: algumas Décadas iheditas do bem conhe-
cido Diogo <lo Couto te ã litteraturà sagrada dos-Jud^o*
por-
XL Historia da Academia Real
portuguezes =: alguns apontamentos interessantes para a
historia civil e littcraria ác Portugal tr os códices manus-
criptos e cartório do Real Mosteiro de Alcobaça = a vi-
da e os escritos de Francisco de Mello, e do insigne Pe-
dro Nunes rr o ensaio de huma bibliotheca lusitana Anti-
rabbinica r= a Typografia portugucza :=. alguns marhema-
ticos portuguezes , e estrangeiros domiciliários em Portu-
gal — mostrar a legitimidade da Senhora D. Thereza :=: e
mostrar que o Síir. Conde D. Henrique no anno 1Í03 ain-
da não tinha voltado a Portugal.
A estas qicmorias devo accrescenrar as que tratão í::
dos Judcos em Portugal í= do estabelecimento da Arcádia
de Lisboa r: de Luiz de Camões e das suas obras r: das
primeiras cinco edições dos Lusiadas e= do começo , pro-
gresso, e decadência da litteratura grega em Portugal t=
dos Chronistas mores Fr. Bernardo de Brito , e Fr. António
Brandão = de Fr. Luiz de Sousa e das suas obras ::: do
Cardeal D. Jorge da Costa := do Theatro portuguez =z da
viíla de Cêa z^ dos Chronistas portuguezes :r e de alguns
dos nossos falecidos sócios.
Ainda me cumpre mencionar os escritos t^ sobre a
historia c descobrimentos de nossos maiores í= sobre dois
antigos mappas geográficos do Síir. Infante D. Pedro , e
do cartório de Alcobaça t:: sobre a possibilidade e verosi-
milhança da demarcação do estreito de Magalhães no pri-
meiro dos ditos mappas ;=: sobre o conhecimento que se
jJodia ter da existência da America ir sobre a antiguidade
da observação dos astros , e uso da Bússola t= sobre Mar-
tim de Bohemia sr sobre a novidade da navegação portu-
gucza no século XV r: e sobre os descobrimentos e com-
mercio dos portuguezes nas terras scptentrionaes americanas.
Também podeis ver impressas outras . memorias de
grande merecimento, á cerca da filologia portugueza , «St
jcritas pçLos Senhores Joaquim de Foios , António Pereira
de Figueiredo , Francisco Dias Gomes , António das Ne-
ires Ferçiu, D. Fr. Francisco de S. Luiz, e ílodrigo Ferj
.., /" rei-
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA. " XLI
reíra da Costa , cujo systema de orthogiafia parece com
cffeito ser o preferivcl entre todos os que vagucâo, per-
tendcndo seguir, mais ou menos sensatamente, já o con*
stantc systema etymologico , já o variável da pronunciaçáo ,
que está continuamente sacrificando a etymologia á cufo*
nia ; e que muda não só com os tempos , senão também
com os logares , ainda mesmo em nações tão pouco nume-
rosas como a portugucza europêa.
São muito interessantes e muito apropriados ás nossas
circumstancias todos os programmas propostos pela distin-
cta classe de litteratura : porém, mencionando apenas, em-
quanto aos que tratão da poesia portugueza , os que pro-
põem premio a quem apresentar ou huma tragedia portu-
gueza, ou huma comedia portugueza de caracter, em ver-
so ou em prosa, sem se lhes assignaiar limite de tempo J
mencionarei aliàs os que tem por objecto:
j> O elogio de algum portuguez illustre :
j> O estado actual da nossa litteratura :
>> A historia da typografia portugueza:
»» A descripção histórica de alguma parte notável do
j> Reino , desde a sua origem até o presente :
» O índice chronologico remissivo dos documentos
>» impressos, pertencentes á nossa historia, desde a restau-
5» ração das Hespanhas até 1603 exclusivamente:
» A historia do nosso commercio exterior, até o des-
»» cobrimento da índia :
" A dos nossos descobrimentos em Australasia e Po»
í> linesia :
j» A forma do exercito portuguez até a invasão de
>» Fiiippe II :
" A povoação de Portugal nos reinados dos Senho-
»» res Reis D.João II, e D. Manoel , até a época dos des-
*» cobrimentos, averiguando as causas do seu augmento ou
»» da sua diminuição :
» O estado da marinha e da navegação portugiiez»
f* até o Sfír. D. João II : .
T. IX. P.I, • é ff Quaes
XUT Historia da Academia Real
»> Quaes forão os motivos que occasionárão e promb-r
w vcião o descobrimento do Oriente; e quaes os subsidios
" que concorrerão para a sua feliz execução : e em fim ^
>» O augmento ou diminuição da nossa povoação eu-
" ropêa , nas diversas épocas da monarchia , indicando as
>» suas causas. » (h)
Tendo assim relatado summariamente os principacs
trabalhos desta classe , rematarei mencionando os seus pror
grammas , ciíi que , propondo os elogios dos nossos mais dis-
tinctos Soberanos, procura desta sorte concorrer, paraque
sejao, se he possivel , cada vez mais animados pelo espiri-
to da verdadeira gloria: alem de que notarei, que não te-
nho ainda visto as historias dos Soberanos referidas com atr
tenção aos meios, que seus antecessores lhes deixarão , e quç
os mesmois Soberanos deixão aos seus successorcs : donde
resulta, que muitos ainda hoje gozao de reputação ou su«
pcrior, ou inferior, áquella que verdadeiramente lhes com-
pete.
Te rceira Parte.
Chegado ao recenseamento do que he devido a minha
classe, procurarei que o espirito de corporação me não des'
lumbre , como acontece não poucas vezes com assaz perjui-
zo publico.
Principiarei observando em geral , que devemos á ma-
thematica o conhecimento de .todas as grandezas , e cor-
relações assim algarithmicas como geométricas ; bastando
para se manifestar a sua transcendente e geral utilidade,
a ponderação, de que sem a mathematica, nem conhece-
riamos as leis , que regem os astros , nem saberíamos em-
pregar este conhecimento a bem da segurança e do pro-
gresso da navegação;. sem a qual nem o commercio, nem
a civilisação poderia subir ao gráo de elevação , que tanto
nos honra j sem a qual , em huma palavra , os portugue-
zes nunca scrião o que tem sido , graças principalmente
: : ^'j '9 ao
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. XLIII
ao mathcmatico, valoroso, resoluto, e immortal Infante
D, Henrique.
Os trabalhos da minha classe comparados, ou com os
das outras classes dc.vta Real Academia , ou com es de
igual classe nas Academias estrangeiras, mostrão que esta
classe não desmerece consideração disrincta.
Com effeito , alem do que referirei relativo ao pro-
gresso importantíssimo da nossa navegação , alem dos tra-
tados de agrimensura, de musica, e dos limites (que me
parece dos melhores entre os elementares mathcmaticosj ;
alem da publicação de humas taboas logarithmicas ; de ou-
tras supplemcntares ás logarithmicas e trigonométricas; das
do nonagésimo para a latitude de Lisboa; e dos elemen-
tos assim de geometria como das duas trigonometrias, que
já contio terceira edição ; consultando as memorias da Aca-
demia yer-se-ha , que pertencem a esta classe aquellas que
tratão :
>> Da solução geral do problema de Kepler sobre a
» medição das pipas e dos toneis.
5> Dos princípios do calculo superior.
» De additamentos consideráveis á regra de Fontaine
j> para resolver approxímadamente os problemas reductiveis
5> ás quadraturas.
jj De muito interessantes observações meteorológicas
»» e astronómicas, sendo algumas praticadas em obscrvato-
» rio especial construido sobre muralha do castello , á custa
>» da Academia ; tendo servido huma parte delias para a
»» determinação da latitude e longitude desta capital ; e
>» accrescendo a estas mesmas observações astronómicas, e
>» meteorológicas, muitas outras praticadas em Mafra, em
>» S. Paulo, e no Rio de Janeiro.
j» Huma demonstração do theorema de Newton so-
»» bre a relação dos coefficientes das equações algébricas
>» com as sommas das potencias das suas raizes he também
» devida a esta classe ; assimcomo a applicação do mes-
í» mo theorema ao desenvolvimento em serie dos produ*
* 6 ii »» CtQS
xuv Historia da Academia Real
>» ctos compostos de infinitos factores ; ilevendo-se-!he ao
» mesmo tempo memorias interessantes :
jj Sobre as equações de condição.
» Sobre as orbitas dos cometas.
j> Sobre as propriedades dos coefHcientes dos termos
j> do Binómio Newtoniano.
» Sobre as Bríichystochronas.
" Sobre as. variações seculares dos elementos cUipti-
» cos de Palias e Ceres.
j> Sobre o cometa de 1807.
j> Sobre o calculo das notações.
» Sobre a dcducção filosófica das operações algébricas.
j> Sobre os theoremas de Newton á cerca das poten-
j> cias das rai/es das equações.
» Sobre a theorica da composição das forças.,
j> Sobre a comparação das formulas tanto finitas co-
j> mo de variações finitas e infinitcsimas dos triângulos es-
» fericos e rectilíneos.
» Sobre as binomiaes.
j> Sobre as lorerias.
5) Sobre as formulas propostas por Wronski para a re-
»> solução geral das equações.
>> Sobre não poderem ter formas de raizes as equa-
j> ções litteraes e completas dos gráos superiores ao quarto.
)> E sobre a influencia do erro, que pode resultar nos
jj ângulos horários do sol e da lua, de se não attender á
» figura da terra. >»
Abstendo-me de reflexões acerca de tão relevantes fa-
digas , pois me cumpre inscrever muitas e grandes noticias
dentro do mais resumido quadro , concluirei o relatório d^
minha classe , expondo o mais importante do que respeita
aos seus programmas , e á nossa navegação.
Entre os programmas que pude rever, e que não ap-
parecem resolvidos nas mencionadas memorias , julgo so-
bresahirem aquelles que tiverão por objecto :
>» O methoio de tirar das observações as equações
>» dos
DAS SciENCIAS DE LlSBOA. XLV
i> dos planetas, accommodando-o principalmente JÍ detcr-
»i minação das desigualdades da lua.
» Hans elciTieiitos de aiithmeticâ politica para uso da
j» nação portuguc/a.
>» O mcthodo geral para determinar independentcmen-
j> te da integração de equações diíFcrenciacs , a diffcrenças
j> parciaes , qualquer dos Rsctores que podem Fazer int(>
» gravei liuma funcçao diíFercncial , que, não sendo exa-
j> cta , SC possa reduzir a que o seja , multiplicando-a por
»» hum factor conveniente.
j> Hum tratado de series , em que se comprehendes-
i> sem as verdades mais importantes até então descobertas
»5 na sua thcoria , deduzido pelo modo mais fácil e natu-
íj ral do menor numero de princípios , e estes os mais ge-
j> raes que fosse possível.
5> Expor e comparar os methodos até então conheci-
>» dos para sommar approximadamente as series infinitas ,
»> que não admiitem somma algébrica.
" Hum tratado completo do methodo dos incremcn-
»i tos directo, e inverso, com as suas principaes applica-
>» ções á doutrina das series , e ao calculo das probabili-
» dades.
» Comparar os diversos géneros de moinhos empre-
s» gados entre nós na trituração dos grãos frumentaceos ,
» apontando os seus defeitos, e os meios mais fáceis de
j> os remediar.
" Determinar os principies em que deve fundar-se a
>> applicação do calculo das probabilidades á critica dos
»> factos históricos. /:
: » Dar hum methodo suflícientemente exacto de medir
>» a velocidade das agoas correntes em qualquer profun-
»» didade.
j? Huma analyse e comparação circumstanciada dos me-
»» thodos de calcular a resistência dos fluidos.
>» Huma applicação do calculo litteral a qualquer dos
*» ramos d« economia politica. : vi-p í; sl
»» De-
XLVi Historia da Academia Real
I» Determinar a forma dos carros mais próprios para
»> os terrenos desiguaes e montanhosos; dando o mcthodo
>» mais simples de avaliar o estorço do motor em *|ualqucr
>» posiçSo dos mesmos carros.
5> Entre os mechodos conhecidos de aproveitar a for-
» ça das marés, determinar qual stja o mais vantajoso nas
j» diversas paragens do nosso Reino.
j» Simplificar a bomba de fogo de maneira que o seu
» uso se torne mais fácil ; indicando se com especialidade
» as vantagens da sua applicação ao ensecamcnto dos paues.
Ultimamente , com premio fixo para todos os annos
» hum pl;)no de canal para aproveitar as agoas de algum
3> rio de Portugal na irrigação dos campos , com todas as
>» nivclaçócs e todos os cálculos necessários, paraque a
j> Academia possa conccitualo. "
Senhores desculpai-me , se o louvável desejo de apre-
sentar-vos o quadro systeraatico , e synoptico , dos servi*
ços mais notáveis feitos por esta Real Academia , me con-
duzio a ser pezado ás vossas attenções : prestai-mas ainda
por poucos instantes , paraque possais conceituar a pro-
pósito o distincto zelo com que esta Academia se tem ap-
pl içado a promover hum dos vossos maiores interesses ,
pois tal deve ser considerado o progrssso da navegação
portugueza.
Agora mesmo tenho a honra de aprescntar-vos entre
as obras impressas neste anno Académico as Ephemerides
náuticas para o de i8iy, havendo 27 annos que princi-
piou a publicação deste diário indispensável para a nave-
gação alta : o qual he tão apropriado ao seu destino , que
vencco por este lado o parallelo com a distincta Epheme-
ride Conjnbricence.
A Academia imprimio também as taboas perpetuas
astronómicas para uso da navegação ; e entre as suas me-
morias, abstrahindo as que respeitão a historia das nossas
navegações antigas, (sendo por isso bem próprias para nos
excitarem a que restauremos este agente da nossa antiga
for-
DAS SCIENCIAS de: LlSBOA.7 T''' SLVir
fortuna e gloria), ommittindo mesmo as que tratão do max
gnctismo , mencionarei aqucllas que tem por objecto, =5 os
instrumentos de reflexão zz as instrucções e regras praticas
relativas á construcção , carregação , e manobra dos navios
c3 a architecrura naval = a practica da alagaçao dos na-
vios n: o calculo da longitude simplificando considerável'
mente a formula de Ic Gcndre r: e notarei finalmente aqucl'»
la que , tratando da reforma da quinta ordem de marcha j
quando o vento alarga , nos mostra ao mesmo tempo o er-
ro de hum táctico distincto , e que as vistas da Academia
tem abrangido todos os ramos da marinha.
Esta verdade he também demonstrada pelos program-
maí? correspondentes, e assaz importantes, entre os quaes
SC encontrão os seguintes , a saber :
>> Assignar os meios mais expeditos, e mais seguros,
>> para conhecer no mar a distancia e rumo a que se tem
>» navegado.
» Dada a secção horisontal de hum navio , feita á
í» flor da agoa , e a sua secção vertical pelo plano da ca-
>» sa mestra, determinar entre todas as superficies curvas,
»> continuas e descontinuas, que podem passar pelas linhas
j> que terminâo as sobreditas secções , aquella que , posto
»» o navio em movimento pela acção do vento sobre as ve-
»» las , fará que elle experimente nas agoas a minima re-
»» sistencia : e reciprocamente dada a figura e as dimensões
» de hum navio, determinar o angulo que o plano da sec-
« ção feita á flor da agoa deve fazer com o plano da casa
»> mestra , paraque o navio se mova com a máxima velo-
»> cidade.
» Huma comparação analytica dos differentes metho-
« dos de determinar as longitudes no mar , em que se ex-
j> ponhão as circumstancias mais e menos favoráveis a cada
»> hum dos mesmos methodos , e o maior erro que pru-
» dentemente se pode recear delles , sendo practicados com
»» a maior exacção possível.
»» Achar pela observação dos astros a hora de bordo,
»» quan-
scLvin Historia da Academia Real
»» quando nSo se vê o horisonte : mostrando juntamente o
» gráo de confiança merecida pela solução que se der a es-
>» te problema.
» Mostrar o gráo de confiança devido á longitude do
>» navio deduzida da estima , em huma viagem de 30 dias
» pelo menos: e se convém, ou não, fazer na longitude
» estimada âs emendas indicadas pela diíFerença entre as
j> latitudes observada c estimada: fundado isto no calculo
» e nas observações.
>» Resumo das regras praticas (que se usão) para tra-
>» çar a figura de hum navio sobre os três planos ortho-
í> gonaes de projecção, mostradas com toda a clareza pos-
j» sivcl pelos desenhos correspondentes ; e juntamente o
»> calculo pratico do porte e da capacidade do navio.
j» Algumas observações de eclipses do sol , ou de oc-
»» cultações de estrellas pela lua , feitas por navegadores
»» portuguezes em portos do Brasil ou da Ásia ; espccifi-
>» cando-se todos os meios e instrumentos empregados nes-
»> tas observações.
j> Huma derrota de navegação alta por tempo de hum
9> mez , ou mais, feita em navio portuguez, cujo princi-
» pai motor seja o fogo : ou huma memoria , na qual se
j> evidencêe a possibilidade e maneira de effcituar a mes-
« ma navegação vantajosamente nos navios mercantes , e
j> em todas as circumstancias. Será preferível a memoria ,
j> que, alem de desempenhar este assumpto, considerar o
>» motor empregado ao mesmo tempo na cosinha do na-
»> vio, em distillar agoa do mar para os usos ordinários
>» delia , em renovar o ar do porão e das cobertas , em es-
í» gotar o navio , e em defendêlo mediante a projecção
j» de agoa fervente , á semelhança da executada pelos Ame-!
>» ricanos Inglezes a bordo da fragata Fulton. »
Programmas estes aos quaes cumpre accrescentar os
propostos tantas vezes com premio fixo , sem limitação de
tempo , a saber :
jí Huma derrota , em que o uso das observações as-
)f tro-
DAS ScrEKCrAS DE LlSBOA,*T XLIX
í» troríomicas seja assaz frequente , principalmente o das
»j distancias da lua a,o.sol, ou ás estrellas : sendo estas dis-
**'tancia» calculadas 'segundo os methudos , que a Acade-
»» mia tem indicado, c continuar a indicar em as Efeme-
»». rides náuticas, que para uso dos nossos pilotos^ tem man-f
>j dado calcular para todos os annos. qr '; roS
>» Huma comparação circumstanciada , e reflectida, dns
» boas ou más qualidades de qualquer navio , observadas
j> nas diversas circumstancias , em que se tenha achado nas
» suas viagens, com aquellas que devera ter segundo os
í> principios theoreticos derivados da figura do seu casco ,
>» e das posições do seu centro de gravidade, do centro
»» de gravidade da sua parte mergulhada, do metacentro,
» e do centro velico: sendo estas determinações feitas pe-
»> los mcthodos mais exactos. »»
A tantos e taes trabalhos , executados nas circumstan*
cias, que ponderei no relatório da sessão anterior, e nas
patenteadas pelo Snr. MuUer em 24 de Junho de 18 10,
muitos outros accresccm ordenados pela superioridade , e
os relativos a hum gabinete de fysica , a outro de histo-
ria natural, á typografia académica, e a huma livraria mais
notável pela qualidade , doque pela não pequena quanti-
tJade dos seus volumes.: entrego porém todos ao silencio,
assimcomo os que respeitão ás artes e officios , ou á me-
chanica, ás censuras académicas, c ao exame quer dos car-
tórios, e de algumas livrarias do Reino, quer do archivo
da Torre do tombo, e da livraria do Escurial. Desta sorte
vou passar mais brevemente á part'e quarta e ultima deste
xelatorio , no qual tenho já comprehendido os principaes
serviços prestados por esta Academia no longo espaço de
quasi quarenta e quatro annos.
Q^u ARTA Parte.
Proseguirei mencionando primeiro os individuaes tra-
balhos académicos executados no anno agora findo ; relata-
rei depois os trabalhos que devemos a mais de hum socio^
r. IX. F.I. • 2 «
Z ■ Historia ca A^adeiMIã Real
e finalizarei referindo as obras offcrecidas a esta Academia j
já por individuos portugufzefi , e.já (.por 'estrangeiros. ,
O Siír. D. Fr. Francisco de S» Luiz abrio a carreira
littcraria deste anno , tazendo apresentar a continuação do
seu tratado dos synonymos da lingua portugucza, que ve-
des reimpresso com este additamcnto. • ' •.;„.■ u ■
2 b O Siír. Luiz da Silva Muzinho de Albuquepcjue , de-
pois de havcr-nos brinti^ado com a traducção dos seus doze
bem desenhados quadros- de ,chimica inorgânica, apresen-
tou a primeira parte do seu curso fysico-chimico , que a
Academia julgou merecer a luz publica, seguindo-se man-
dar imprimi la , e- ficar rassim preenchido hum grande vá-
cuo , que havia nas producções littcnarias portúguezas.
Demais a mais procurou a Academia corresponder ao
distinto auctor, nomeando-o Correspondente, e elevando-o
logo depois ao gráo de Sócio livre: alem de que, ponde-
rando quanto convém que taes conhecimentos se adiantem y
e se dilFundâ^j estabcleceo hum premio a favor daquelk
discipulo tdas novas aulas de f)'sica e de chimica , que
apresentar alguma memoria , na qual se adiante sensivel-
mente qualquer das ditas sciencias.
O mesmo Sfír. Mozinho não só noticiou as ultimas
descobertas de MM. Dbreirer, Thenard , e Dulmas , acer-
ca da influencia dos metaes sobre os fluidos aeriformes ,
naas também executou perante a Academia huma experiên-
cia relativa á prompta determinação dos principios com-
ponentes da agoa na presença do platina-esponjoso.
O Snr. António Diniz do Couto Valente ofíereceo a
Efeméride náutica para o anno 1825, devendo notar-se,
jquc a sua composição se tornou mais trabalhosa , por se
não poder fundamentar na do Almanak Inglez tanto quanr
to atégora se praticava.
O Siír. Joaquim Pedro Fragoso da Mota de Siqueira
4êo-nos o principio de huma memória sobre as minas de
Saxonia ; e outra sobre a fabricação do pez e do alcatrão
na marinha grande.
O
DAS SciENCiÀs CE Lisboa. li
O Sfir. Luiz Gomes de Carvalho offcreceo-nos huma
interessante memoria sobre a restauração das barras dos
portos, considcrando-os primeiro em geral, e contemplan-
do especialmente os de Portugal , entre os quaes trata mais
especialmente do Douro.
Tereis, Senhores, a satisfação de ouvir ler hum ex*
tracto desta memoria de hum portuguez , antes de cuja
existência ninguém levou a concha de S. Martinho , e as
barras de Aveiro , e do Porto , ao gráo de melhoramento
em que hoje as vemos, e desfructamos , com evidente van-
tagem publica em mais de hum sentido ; sendo por tanto
muito distincto o merecimento que fez entrar no numero
dos correspondentes desta Academia o auctor de tão notá-
vel escrito; no qual se evidencca o muito que a possível
restauração das barras , dependente alias da distancia das
margens, da dureza relativa destas margens, e do fundo,
também depende da igualdade ou quasi igualdade das mes-
mas margens de sua foz ; e da quasi perpendicularidade
delias a respeito das costas immediatas.
O Snr. Fr. Fortunato de S. Boaventura dobrando a
satisfação dos seus deveres académicos , não obstante a de
muitos outros que tem tido a seu cargo, enviou nos duas
memorias , em huma das qiiaes trata do portuguez Diogo
Lobo Rebello , escritor theologico e politico de nossos an-
tigos tempos; a quem Barbosa na sua bibliotheca denomi-
na Diogo Lopes Rebello : e na outra memoria pertende
fazer mais illustre a do Chronista mór Fr. Bernardo de
Brito-
O Srir. Manoel José Pires lêo huma traducção da ora-
ção pro Ligario.
O Snr. Barão de Eschwege apresentou hum curioso
mappa das alturas de diversos lugares de Portugal sobre o
nível do mar, e das qualidades dos terrenos adjacentes.
O Síir. Ignacio António da Fonseca Benevides recitou
a continuação de huma memoria medico-botanica sobre as
plantas venenosas poriuguezas. 'onui/i
♦ 7 ii O
Lii Historia da Academia Real
i-!!;j..lO Sfir. Joaquim Baptista oíFcreceo huma memoria so-
bre as caldas que chama de Lafões , e que também são
denominadas de S, Pedro do Sul.
O Snr. Manoel José Maria da Costa e Sá vai ler-vos
o elogio do nosso distincto e fallccido sócio o Snr. Ale-
xandre António das Neves , que também foi Guarda mór
da Academia, e hum dos maiores zeladores do progresso
académico: este elogio contemplando-o como homem, co-
mo litterato, e como membro da Academia, patentear-vos-
ha o bom aparo da penna do seu escritor, e por isso me
abstenho de todo o toque de qualificação á cerca delle. :
O Snr. Jcronymo Joaquim de Figueiredo aprcsentou-
nos a sua Flora alimentar e farmacêutica portugucza , es-
crita em o nosso idioma : com esta Flora , depois de se
lhe ajuntar hum indice lusitano , poderá qualquer portu-
guês adestrar SC nos conhecimentos botânicos ; pois adqui^
rindo os elementos da lingoagem , e da scicncia , mediante
o estudo do compendio escrito em portugucz pelo Snr. Fe-
lis de Avellar Brotero , pode applicar esta lingoagem ás
plantas de vulgar conhecimento, servindo-se da nova Flo-
ra; e habilitar-se desta sorte, quer para elevar-se a maio-
res conhecimentos botânicos , quer para fazer mais util a
mesma Flora , addicionando-lhe descripçócs da cultura , das
propriedades , e dos usos das plantas alli mencionadas ,
cujo numero anda por quinhentos, e parece que pode ser
augmentido (r). .
. '. O Snr. Visconde de Santarém oíTereceo consideráveis
additamenios ás suas assaz conhecidas memorias sobre os
manuscritos, que, existindo nas bibliothecas Parisienses, per-
tencem ao Direito publico externo e diplomático de Por-
tugal : a.distiactQ conceito, que corresponde a este manu-
scrito , alem. :dèí assaz prefixado pelas ditas memorias im-
pressas, Vai agora, mesmo ser manifestado pela leitura de
alguns dos. jidditamentos offcrecidos..
..'£ . iFiBalracnt^> o Secretario fez puesente huma succinta
memoria sobre a navegação e comraercio do Rio de Janeiro,
Trcs
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. Lllt
Tres forão as commissôes que tiverâo cffoctivo exer-
cício no decurso de todo o anno agora concluído j a saber:
a commissáo de historia , a ccmmissao das Cortes , e a
Instituição vaccinica.
Proseguio a primeira na distincta satisfação dos seus
deveres publicando o quinto volume de inéditos, que tive
a honra de apresentar , e que que já descrevi quando tra-
tei de todos ; alem de que preparou materiacs para o sexto
volume, que vai ser impresso: em casa do Sfir. Francisco
Nunes Franklin forão tiradas e confrontadas as copias dos
documentos, ou manuscritos impressos naquelle volume , cu-
ja revisão principiando em cada folha a cargo do mesmo
sócio, tem sido concluida pelo Siir, Francisco Manoel Tri-
goso ; estes Sócios juntos com os Senhores João Pedro Ri-
beiro , Francisco Ribeiro Dosguimarães , e Joaquim José
da Costa de Macedo formão presentemente a referida com-
tnissão de historia.
A commissão das Cortes publicou as de Lamego ;
as de Coimbra celebradas no anno 121 1, e extrahidas de
dois diversos documentos, que na impressão marchão con-
frontados entre si ; seguindo-se a estas Cortes as de Coim-
bra , celebradas no anno 1229; e a estas o principio das
que forão convocadas no anno iijj-
Em quanto á Instituição vaccinica , tomando a Acade-
mia em consideração o que lhe representou depois da sua
mudança para a Estrella , obteve de S. Magestade (cujo
coração verdadeiramente paternal se regozija annuindo a tu-
do quanto pode melhorar a sorte de seus fieis portugue-
ses) que em vez de hum estabelecimento nesta capital,
houvesse dois alem do existente nas casas da Academia ,
a saber : hum no thesouro velho , e outro no hospital da
marinha, cujos locaes , segundo me foi participado, estão
promptos para principiarem a servir.
Se o resultado corresponder á expectativa da benemé-
rita Instituição, crescerá o numero dos vaccinados na ca-
pital , e estes encontrando menos incommodo em voltarem
aos
LTV Historia DA Academia Real
aos lugares da vaccinação satisfarão hum dever , concor-
rendo paraquc possa proscguir o beneficio por elles re-
cebido : sendo sem duvida muito estranhavel a falta do
cumprimento de tão essencial obrigação , pois desta falta
verdadeiramente dcshumana he consequência immediata , e
precisa , o augmento do numero das pessoas mortas pelo
terrível mal das bexigas naturacs.
Tratando agora dos offerecimentos feitos á Academia ,
devo , Senhores , communicar-vos , que o Siir. Barão de
Esch-vvege apresentou hum mappa geográfico da capitania
de Minas geracs, e prometteo huma copia dcUe : accrcs-
cendo prescntear-nos com quatro volumes escritos cm ale-
mão , dois dos qujcs intitulou "Jornal do BrazH , aonde re-
lata parte das suas viagens naquelle paiz , dando ao mes-
mo tempo varias noticias mineralógicas , geognosticas , e
cscadisticas respectivas : hum dos outros volumes tem por
titulo, Prospecto geognostico do Brasil^ e sobre a matriz dos
diamantes : o quarto volume he intitulado , Noticias minera-
iogicas e geognosticas de Portugal e das suas colónias.
O Síir. Manoel José Maria da Costa e Sá ofFereceo
huma collccçâo de noticias manuscritas , concernentes á
Cochinchina.
Recebco-se também hum exemplar do carmen endeca-
syllahum de Rezende, impresso em Lisboa no anno 1547,
e offerecido á Academia por Joaquim António de Medina.
Mr. Deveze, medico em Pariz , e membro de varias
Academias , offereceo alguns impressos relativos á febre
amarella , sendo de parecer que não he contagiosa.
Mr. de Chateaunoeuf remetteó-nos hum exemplar do
seu folheto relativo á mortalidade das mulheres na idade
considerada critica de 40 a fo annos.
O Srir. Ampere enviou-nos hum exemplar da sua obra
sobre os fenómenos electro-magneticos.
O Snr. Fr. Mattheus da Assumpção , agora nosso cor-
respondente, oíFereceo-nos hnm exemplar da sua traducção
da historia das revoluções, esccit4..pof.yertotj. outro da
sua
V
DAS SciENCIAS CE LiSBOAiT TtV
sua' carta apologética á favor do P. Vieira, e outro do seu
sermão em acção de graças pela feliz acciamação de S. Ma-
gcstade.
O Sfír António Joaquim de Castro Peixoto, havendo
offcrecido vários desenhos da sua machina de debulhar tri-
go , incumbio-se de dirigir a construcção de hum modelo
próprio para se fazerem decisivas experiências; modelo que
a Academia, sempre propensa para animar tudo o que po-
de promover o bem dos agricultores, mandou fazer á sua
custa : seguindo-se encarregar a clasvse respectiva de proce^
der aos mencionados exames práticos , assimcomo ao da
mcm )ria , que sobre a dita machina foi apresentada pelo
seu auctor.
Pelos Sócios da Academia forâo distribuídos os exem-
plares de hum folheto intitulado. Resposta do Bispo de An-
gra , cnvi.idos pelo mesmo Síír. Bispo para se proceder á
sua distribuição. r-.-.tiS) è-.í;'
' O Sfír. Varnaghen participou haver encontrado nas cin-
co villas pedra conveniente á lithografia; e forao apresen-
tadas varias estampas lithografiadas nesta cidade por Mr.
le Coq,
O Snr. Alberto Carlos de Menezes oflFereceo exem-
plares impressos do balanço do Terreiro publico em 1821,
os quaes forao distribuidos na forma do costume.
O Sfír. Stuart remetteo hum exemplar dos fragmentos
de hum Cancioneiro inédito , que mandara imprimir em
Pariz , com attenção a estampar imitações das letras do ori-
(ginal.
Mr. de Saint-Hilaire mandou exemplares dos seus im-
■presos intitulados, Rapport sur le voyage dans le Bresil^ et
les misslons du Paraguay — Memoires sur les cucurbitacées !=:
Memoires sur /ir plantes aux quelles on attribue u» placenta
central libre : oíFerecimento este que foi seguido pelo de
vários outros folhetos relativos á Botânica.
Houvemos também hum exemplar da oração académi-
ca recitada por occasião do nascimento da Sereníssima Se-
nho-
tvi Historia da Academia Real
nhora Princeza da Beira pelo Sfír. José Joaquim da Cruz ;
e hum exemplar do i." volume das obras do Snr, José Ma-
noel Ribeiro Vieira de Castro.
Monsenhor Ferreira Gordo remetteo a esta Academia
hum exemplar da obra intitulada, Lamedecine satis medecin ^
e acompanhada, assim por vários folhetos, como por pe»
qucnos volumes de remédios, que furão submettidos ao exa-
me da classe de sciencias naturacs.
Recebemos Mmbcm huma nova edição da Hygiene mi-
litar do Síir. KirckoíF, accresccntada com duas sessões in-
tcrcss.-.ntes sobre o recrutamento, e sobre o serviço da saú-
de dos exércitos : offerecimento que foi augmentado ulti-
mamente com o de huma dissertação sobre o ar athmo-
sferico , e a sua influencia na economia animal.
O Snr. Luiz Pinto Varella enviou-nos varias obras suas
impressas e manuscritas.
A Senhora D. Maria José Corrêa da Serra , pertenden-
do cumprir a vontade de seu fallecido irmão, o Snr. José
Corrêa da Serra nosso distincto sócio , remetteo nos huma
copia do Leal Conselheiro , escrito pelo Snr. Rei D. Duar-
te , e copiado do códice existente em Pariz , do qual tí-
nhamos as noticias publicadas nds interessantes Annaes das
sciencias e artes.
O actual Secretario , depois de haver offerecido hum
manuscrito , que trata dos governadores de Angola até o
fallecido Barão de Mossamedes , oflFereceo também alguns
exemplares dos impressos intitulados :
Bosquejo do hnm quadro sytioptico designador dos homens ^
e das nações'.
Memorias para a historia da chamada regeneração porttt-
gueza em 1820 :
Táctica naval, e signaes maritimos. Obra esta na qual,
não somente se vê pela primeira vez reduzida aquella tá-
ctica aos movimentos mais simplices , e com balizas , co-
mo acontece no exercito \ mas também se executa o que
^r. R.amatuelle não pôde executar;, e se propõe huma na?
va
.: DAS Sgieíícias de LrsEoA.''-r Lvn
Vã oticin única , preferível á de Mr. Grenicr : íncluindc-se
alem disso entre os nossos signaes (também peia vez pri*
moira) aquelles que os Inglezes chamão de distancia , e
hum diccionario siippridor das faltas do regimento.
, . Alem destes aperfeiçoamentos imitados da maior na-
ção marítima dos nossos dias , bem como o sysrcma nume-
ral do regimento, encontrao-se neste mesmo regimento,
o de se levar os signaes de cores á maior independência
possível das mesmas cores ; o de incluir signaes de fi-
gura mais adequados á telegrafia em todos os tempos e
lugares ; o de se poder expressar de noite quanto se po-
de dizer no dia mais claro ; o de se poder supprir a bordo
a falta de bandeiras ou de quaesquer elementos componen-
tes dos signaes do regimento ; e o de se haver completa-
do o systcma de sjrte que pôde servir em qualquer tem-
po e lugar , para communicaçoes de navios entre si , de
navios com a terra , c dos telégrafos terrestres , em todas
as circumstanclas.
A concurso veio huma memoria com a epigrafe : si
àcsiiit vires , tamen est laudanda loluntas : he concernente âO
■programma que tem por assumpto — a topografia medica
de huina grande povoação de Portugal ~ porém não ha-
vendo parecido merecedora de premio, em vez de procla-
mar com grande prazer o nome do seu auctor , passarei a
fazer cumprir o estatuto académico, apresentando e fazen-
do queimar a carta devlsada pela dita epigrafe.
Julgo em fim haver evidenciado que a Academia terti
desempenhado os seus deveres , pondo na mais bem regu-
lada actividade todos os seus meios, que felizmente volta-
rão ao seu antigo estado, como vos foi notório na sessão
anterior; graças á Soberana Munificência de S. Magestade,
que tão promptamente nos reinstallou na posse daquella
mesma dotação , com que nos havia habilitado , para nos
empregarmos como nos temos empregado no Real Serviço.
Accrescentnrei pois tão somente , que a total execu-
ção dos estatutos desta Academia não só a tem conduzido
y. IX. P.L » 8 a
i-Tiir Historia da Academia Real
a sobresahir em quanto á nossa antiga Academia de histo-
ria , mas também a pódc conduzir a comprchender todas as
sociedades, cuja instituição tenha por objecto o progresso
das scicncias e artes em Portugal : sendo conseguintemenie
da maior evidencia o muito que se interessa em conservar,
e em promover este importantissimo estabelecimento.
Nestes termos concluirei o presente relatório, mencio-
nando a offerta do poema latino do Cavalheiro Camberiyn ,
composto por occasiao dos immortaes acontecimentos do
anno próximo, e dirigido í S. Magestade : com aquelle
Cavalheiro direi finalmente ,
coHstatis tua vivet imago
Cordibus in cunctis , hac vobis templa vovennis.
NOTAS.
(a) Entre os manuscritos mais modernos parece-me que
inerece especial menção a := Descripção do estado da pro-
víncia de Trás os montes em 1796 por Columbano Pinta
Ribeiro de Castro c: em hum Volume folio ; e a í: His-
toria das guerras de Angola em três volumes folio tr pa-
recendo-me também que devo mencionar a grande collec-
çâo de bilhetes relativos aos documentos para a historia e
legislação portugueza , cujo primeiro maço acaba no fim
do século decimo-terceiro , e os outros proseguem chrono*
logicamente até incluírem o século decimo-nono.
{h) A este respeito mencionarei haver no cartório da
Academia hum manuscrito com o titulo seguinte tr Re-
sultado de huma resenha geral dos povos de Portugal feita
em o anno 1417.
(c) Parece bem notável que o maior luxo de imprensa
praticado na publicação de objectos relativos á nossa flo-
ra, e á nossa architectura , não seja obra de portuguezes ,
mas sim dos estrangeiros Link , Hoffmansegg , e Murphy.
PROGRAMMA
D A
ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS
DE LISBOA,
ANNUNCIADO NA SESSÃO PUBLICA DE I DE JULHO DE 1824.
NAS SCIENCIAS NATURAES.
Para o anno de 1825'.
E
M ECONOMIA RURAL , E DOMESTICA Sendo rc
conhecida , nas nossas fabricas de tincttiraria a necessidade ,
e utilidade da planta chamada Granza , ou Ruiva dos tin-
ctureiros ( Rubia tinctorum Linn. ) : Em que terrenos pro-
spera mais a sua cultura ? Oite outras espécies se lhe podem
substituir , e se alguma delias merece a preferencia na tin-
cttiria ? Por que modo , e em que tempo , devemos promover
a cultura desta planta ? Qitando estará nas circumstancias ,
de se recolher para uso das fabricas ? Que parte da planta
serve , e como se deve preparar para este fim ? Qtte outros
usos podemos fazer da mesma planta , alem dos que respet'
tão à tincttiraria ? Que vantajens tirará o lavrador da sua
cultura , comparada com as differentes sementeiras , que po-
dem ter litgar nos terrenos , onde deve ser cultivada ? Que
consumo fazem hoje delia as nossas fabricas ; e quanto an-
nualmente pouparíamos , se a tivéssemos de cultura própria ,
e não a comprássemos aos estrangeiros?
EM MEDICINA. Quaes sejão as causas existentes ou occa'
* g ii JíO-
Lx Historia da Academia Real"
sionaes da frequência das prysicas em Porítigai., especialmen-
te cm Lisboa ; e qual a natureza ou espécie âa que he mais
geral, estabelecendu-se os meios de a prevenir, e o methodo
de a curar d vista de observações praticas ?
■ , '-A
Para o anno de 1826.
V O a 3 i .
EM ECONOMIA RURAL , CHYMICA, E MECHANICA
APFLICADA A'S ARTES. A melhor memoria sobre as ma-
ias de arvores resinosas , que satisfaça ds condições seguin-
tes : 1 . uma enumeração exacta e comparativa das diversas
variedades de pmheiros conhecidos , com a comparação das
vantagens oferecidas por cada uma delias ; os meios de as
transportar ao nosso paiz , e o logar donde poderão impor-
tar se suas sementes , assimcomo a maneira de semear e
crear as plantas, 2. Uma enimieração das variedades exi-
stentes nas notsas principaes matas publicas e particulares.
3. O modo de aproveitar as refinas dos pinheiros, e de pre-
parar com a maior perfeição , e a melhor economia , as the-
rebentinas , o alcatrão , e o pez, 4. O modo mais económi-
co e expedito de cortar as madeiras de pinho , tanto em
barrotes como em taboado ; com a descripção e os desenhos
das machinas , que para o referido fim hajão de empregar-
se. 5 . Quaes são os principaes estorvos ao augmento das ma-
tas resinosas , os meios de os remover , e de fazer prospe-
rar estas matas , assim as publicas como as particulares.
EM MEDICINA. Marcar quaes sejão os symptomas , que es-
tabelecem o diagnortico das inflammaçoes chronicas ; e se a
dar e a febre devem reputar^se sempre essencialmente neces-
sárias para caracterisar taes inflammaçÕes ; e qual o trata-
mento mais seguro para as debellar , logoque sejão capitu-
ladas : devendo este tratamento ser comprovado por meio de
observações.
■ A':.. Deter minar por observações clinicas em que differem os
effeitos do lactucario dos do ópio,
Pre-
-" tta s Sciencias de Lisboa. lxb
Prémios extraordinários ^em limitação de tempo.
Um epitome das leis migrarias portuguesas, publicadas des-
de o principio da tmuarchia até ao presente , e os aphorismos
politicoeconomicos f que das mesmat se podem dediizir a benefi-
cio da agricultura , povoação , e commercio dos Reinos de Por-
tugal ^ c dos yilgarves.
A dieta obra deve ser composta segundo o methodo
seguido por Mr. Fournel na que imprimio em Paris no
anno de 1819 com o titulo Les loix rttrales de la France ^
ratigées dans letir ordre naturel. A memoria que for appro-
vada , ou que pelo menos merecer o Accesstt , obterá o
premio de uma medalha de ouro do valor de 5-0:000 réis.
O/w/ he o methodo de curar radicalmente as dysenterias
chronicas , de qualquer causa que frocedão ; fundado em priti'
cipios , e confirmado por observações practicas.
Este Programma tem o premio de 400:000 réis.
Assumptos fixos para todos os annos.
•oqrr.,-
I. A dcscripção physica de alguma comarca, ou território
considerável do Reino , ou Domínios- ultramarinos \ que compre-
henda a Historia da natureza do paiz descripto.
II. A descripção económica de alguma comarca , ou terri-
tório connderavel do Reino , feita cotforme o plano adoptado
pela Academia para a visita da comarca de Setúbal, e que se
■publicou no Tomo III das suas Memorias económicas.
III. A topograpbia medica de uma grande povoação {cida-
de ou villa notável) de Portugal: segundo o plano indicado na
-Histoire et Mémoires de la Societc Royale de Médecine ,
Prcfac. p. XIV Tomo I: ou Descripção de alguma moléstia
êpidemica , ou endémica em algum logar de Portugal , indican-
do-se o tractamento mais convenknte-
NAS
Lxn Historia da Academia Real
NAS SCIENCIAS EXACTAS.
Para o anno de iSaj'.
EM CALCULO. Um tratado elementar do calculo das froba-
hiliàades escrito em portuguez, para quem souber aquella
fane do curso de Bezout , que trata das mathematicas pu-
ras : devendo porém o tratado corresponder aos actuaes cohhe-
cimeutos respectivos , e conter algumas applicaçÕes aos factos
históricos antigos .1 preferindo entre estes factos os da historia
portuguesa até o reinado do Senhor D. João 1 exclusiva'
7nente.
EM MECHANICA. Um breve tratado dos principios de me-
chauica , estabelecidos {quanto puder ser) geometricamente.
Uma memoria sobre as vantagens relativas , que deve-
mos encontrar empregando como principal motor a bordo dos
navios , e nas machinas mais essenciaes ao progresso da ci'
vilisação , o fogo ou o vapor da agoa fervendo ; aquelle que
os higlezes denominao agora compressão athmosferica ; e o me-
chanismo inventado por Mr. Crivelli.
Sem limitação de tempo.
EM M^fTHEMATlCA. Um curso elementar completo de ma-
thematica pura e applicada ; escrita em portuguez , e de sor-
te que cada uma das suas partes corresponda ao estado actual
da sciencia ; versando as applicafÕes especialmente sobre a
maritiha.
EM ASTRONOMIA. Algumas observações de eclipses do Sol,
ou occultaçôes de estrellas pela lua , feitas por navegantes
portugttezes em portos do Brazil ou da Ásia : especificando
os meios e instrumentos , de que se servirão nestas observa-
ções.
EM NAVEGAÇÃO. Uma derrota de navegação alta por tem-
fo de um mez ou mais , feita em navio portuguez , cujo prin-
ci-
DAS SciKNCIAS DE LiSBOA. LXIII
cipal motor seja o fugo : ou uma memorta , na qual se evi-
dencêe a possibilidade e maneira de effeituar a mesma na-
vegação vantajosamente nos navios mercantes , e em todas as
circumstancias. Será preferivel a memoria , que alem de des-
empenhar este assumpto , considerar o motor empregado ao
mesmo tempo na cozinha do navio, em distillar agua do mar
para os usos ordinários delia , em renovar o ar do porão e
das cobertas , em esgotar o navio , e em defendelo mediante
a conveniente projecção de agua fervente , d similhança da
executada pelos americanos inglezes a bordo da fragata Ftil-
ton (*).
NA
(*) A navegação por meio do fogo combinado cora o vento pôde
Tedu7Ír as guarnições dos navios, e as durações medias das viagens a
metade das actuaes : doude resulta, que a despeza por este lado deve
descer a um quarto; e bem assim o espaço preciso para serem collo-
cndas as munições de bocca, o qual ainda se tomará menor, appli-
cando-se tatu bem o fogo a distillar agua do mar para ser empregada
nos usos ordinários. Ksta distiilação poderá ser executada á maneira
da que está descripta na Enciclopédia nielhodica. A navegação refe-
rida ter,\ também as vantagens de fazer muito menos perigosas as tra-
vessias nas vizinhanças da terra; de tornar prefixavel com muita apro-
ximação a duração das viagens ; e de augnientar os lucros do com-
mercio , accelerando a marcha do seu giro. Alem disso porá em cer-
to modo as províncias do ultramar a meia distancia da metrópole,
promovendo ou apertando assim a união daquellas cora esta, e acce-
lerando a rapidez da acção do Governo, bem coruo a de todas as cor-
relações de ambos os paizes. O uso de taes navegações deve pois ser
singularmente vantajoso ás nações pequenas e marítimas, que possuem
grandes colónias. Abstrahindo a con.<!Íderação das vantagens desta na-
vegação nas guerras uavaes , ve-se aliás , que para alcançarmos tão
importantes fins nos basta ampliar o que está feito, e unir o que exis^
te disperso ; e pois fomos queu ontr''hora se avantajou ás raais nações
no tocante á Marinha , parece , que pelo menos devemos não descahir
muito áquem das mesmas nações em objecto tão ponderoso e conse-
quente.
Portanto, attendidos os referidos motivos, um Sócio da Academia
dobra o premio académico relativo a este programma, dando mais cia»
coeuta mil rein em meta^.
Lxiv Historia da Academia Real
NA LITTERATURA PORTUGUEZA.
Para o anno de 1825".
FM HISTORIA PORTUGUEZA. A historia dos nossos des-
cobrimentos em Atistralasin y e Polinésia ^ com a sjion^mia
dos descobririieutos feitos posteriormente pelas outras nu^òes
europêas nas mesmas regiões.
Para o anno de i2 16,
EM língua PORTUGUEZA. Uma chrystomathia dos mais
acreditados atictores portugtiezes : oti collecçao dos passos
mais elegantes e próprios para servirem de modelos de es-
tylo ; arranjados sobre o plano da obra de Heinecio De sry-
lo culciori , e contendo os que servem de exemplo do melhor
estylo epistolar y dialogirtico^ histórico, ctc.
EM PIISTORIA PORTUGUEZA. Determinar o augmento, è
diminuição de população nos Reinos de Portugal, e Algar-
ves nas diversas epochas da monarchia , indicando as ver-
dadeiras causas , que se devem assignar d sua respectiva al-
teração. ^
Assumptos fixos para todos os annos.
EM POESIA, E THE ATRO NACIONAL. Uma Tragedia
^ portugtieza.
Uma Comedia de caracter em verso , ou em prosa.
Os prémios ordinários consistem em huma medalha de
ouro do pezo de 5-0:000 reis : e todas as pessoas podem
concorrer a elles , á excepção dos sócios honorários , e efFe-
ctivos da Academia. Abaixo destes prémios principaes , pro-
põe a Academia também a honra do Accessit , que consiste
cm
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. LXV
em uma medalha de prata : e ainda abaixo desta a menção
honorifica da memoria , que só disso se fizer digna ; a qual
menção será feita nas suas Actas e Historia.
As condições geracs para todos os assumptos propos-
tos são: Que as memorias, que vierem a concurso, sejao
cscriptas em portuguez , sendo os seus auctores naturaes
destes Reinos ; e em latim , ou em qualquer das liuguas
da Europa mais geralmente conhecidas , sendo os auctores
estrangeiros: Que scjão entregues na secretaria da Acade-
mia por todo o mez de Abril do anno, em que houverem
de ser julgadas: Que os nomes dos auctores venhão tm car-
ta fechada, a qual traga a mesma divisa que a memoria,
para se abrir somente no caso , em que a memoria seja
premiada : li finalmente que as memorias premiadas não pos-
são ser impressas senão por ordem, ou com licença expres-
sa da Academia, condição que igualmente se extende a to-
das as memorias , que , não obtendo premio , merecerem com-
tudo a honra do Accessit. Porem nem esta distincçao, nem
a adjudicação do premio, nem mesmo a publicação deter-
niin,ida , ou pcrmittida pela Academia, deverão jamais re-
putar-se como argumento decisivo , de que esta Sociedade
approva absolutamente tudo quanto se contiver nas memo-
rias , a que conceder qualquer destes signaes de approva-
ção ; porem somente como uma prova , de que no seu con-
ceito desempenharão , senão inteiramente , ao menos a par-
te mais importante dos assumptos propostos.
Tomo IX. * p ELO-
BXs SciENCiAS DE Lisboa, lx\ii
í/. /
-I "■11"!
ELOGIO HISTÓRICO
D E
SEBASTIÃO FRANCISCO DE MENDO TRIGOSO
HOMEM DE MAGALHÃES.
UDO NA SESSXO PUBUCA DE 24 DE JUNHO DE i8a2
POR
MANOEL JOSÉ MARIA Da'cOSTA E SÁ.
N-
iNGUEM ha que encontrando um monumento, depois
de reparar na sua forma eestructura, náa deseje satjer quem
foi o seu author ; e assim não julgue a hií>toria de um ne-
cessária ao melhor conhecimento do outro. — Este senti-
mento, propiio da curiosidade que nos é natural, torna-se
mui recommendado quando semelhante monumento é o fru-
cto das vigílias de um sábio. — Então, conhecer quem fos-
se o author , é adquirir meios para que melhor se aprovei-
te a lição que nos oíFereccm seus escritos. O author nas
suas concepções, une, ao que é meramente scientifico , as
disposições que lhe são naturaes, conforme o desenvolvi-
mento que lhes vai procurando o seu estado civil. Nesta
acção reciproca accende-se-lhe o génio , de que são fructo
os seus escritos. — Convém saber pois o modo porque o
impulso dos progressos dos conhecimentos humanos nelle
obrou , já para o attrahir ao estudo e applicação das letras ,
já para lhe despertar as faculdades intellectuaes fazendo-o
contribuir para o augmento e prosperidade das mesmas le-
* p ii tias.
txviu Historia da Academia Re-al
trás. Devemos saber o caminho que fez na pratica das scicn-
cias, o que ahi lhe serviu de incentivo ou de estorvo:
que influencia nelie exercitou a ordem politica do Estado
a que pertencia, quaes fossem as suas disposições naturacs,
c como o determinarão ou regerão. Topando com uma com-
posição literario-scientifica folgamos encontrar semelhantes
noções , de que logo conhecemos a vantagem. — Por tan-
to , recolher as noticias de um Escritor desvelado em todo
o género d'applicaçâo e estudo , é accrescentar o proveito
de seus trabalhos , fazendo com qúe a sua lição seja mais
desembaraçada e proficua. Tal o fim dos elogios históricos
dos homens de letras: Tal o objecto, do que, em teste-
munho do empenho que tomo pelos progressos desta Aca-
demia , dedico á memoria de um dos seus mais beneméritos
sócios.
no 3t.'p fiií M I!' T -•
O Sr. Sebastião Francisco de Mendo Trigoso Homem
de Magalhães , FidaJgo da Caza de S. Magestade , Forma-
do em Filosofia pela Universidade de Coimbra , Tenente
Coronel dos Voluntários Reaes de Milícias a cavallo de
Lisboa , Censor Régio , Sócio e Secretario desta Academia ,
foi filho de Francisco Mendo Trigoso Pereira Homem de
Magalhães , ede D. Antónia Joaquina Teresa de Sousa Mo-
rato. Nasceu em Lisboa aos i8 de Maio de 1773 , sendo
a sua mãi apenas gravida de sete mezes , o que parece ter
sido pronostico , de que em flor , o perderião a Pátria e as
Scicncias. O estado de fraqueza em que continuou por mui-
to tempo , bastante deu que recear pela conservação da
sua existência.
Procedia o Sr. Sebastião Trigoso de illusfre asceden-
cia. Seu Pai com os morgados de que lhe deixava a admi-
nistração , transmittia-lhe o appellido de Trigoso , que com
tanta frequência se encontra nas series dos Ministros dos
Tri-
DAS ScienciaS de Lisboa. lxdc
Tribunaes , e Dignidades das Dioceses do Reino , sendo
também muito conhecido na ordem dos Lentes das Univer-
sidades de Évora e de Coimbra ; e na ultima o nome do
Vice-Reitor Manoel Paes de Aragão Trigoso , seu tio pa-
terno , será sempre lembrado , tanto pelo seu saber e pru-
dência , como por ter sido quem dirigiu os esforços da
Universidade e Cidade de Coimbra tendentes a sacudir o
jugo dos Francezes: No que tudo bem mostrava esta famí-
lia a grande vocação que sempre teve ao estudo das scicn-
cias , mormente das que servem d'habilitação para aquelles
lugares que entre nós por isso se chumao de letras. — Sua
Alai , filha única e herdeira , descendia igualmente de fa-
mília nobre e muito accrcditada. Da piedade de seus Pais
e Avós , e da sua teliz engenho desde a puericia dá teste-
munho a moderna Historia da fundação do òeminario de Fe-
ratojo.
De que serve , dirão esses génios impertinentes , que
sem exame só repetem o que ouvirão, de que serve esta
lembrança, na historia de hum littcruto ? — Assim é que
a este basta a gloria do seu merecimento ; mas para que
privallo da que lhe compete no bom uso que fez do exem-
plo de seus maiores , herança a que accrcscentou preço , e
dco maior valia ? Para que esbulhar a sua familia do novo
realce que lhe procura um digno successor ? — Em fim pa-
ra que negar á humanidade a consolação que recebe {>er-
suadindo-se que os filhos continuarão as boas acções dos
Pais? Alem disto, semelhantes noticias não serão absoluta-
mente inúteis para entreterem as meditações a que o filo-
sofo se entrega , á cerca da melhoria , e do adiantamento
da própria espécie.
Cuidadosos andarão os Pais do Sr. Sebastião Trigo-
so , em que ás disposições herdadas correspondesse a neces-
sária cultura ; pois contando apenas seis annos o metterâo
no Collegio que então esiabelecião as Senhoras Cauvins
no sitio das Necessidades , do qual veio a ser o primeiro
alumno. Ahi com os rudimentos das primeiras letras apren-
deu
Lxx Historia da Academia Real
deu a lingua franceza, passando a estudar grammatica lati-
na com o Padre José Pegado , que depois toi Bispo de An-
gra , c Rhetorica c lingua grega com o Padre José Valé-
rio hoje Bispo de Portalegre, então Professores Públicos
da melhor nomeada. Estes estudos porem erao preliminares
aos do Collegio dos Nobres onde completou o curso das
suas aulas.
De tudo quanto o Marquez de Pombal Sebastião Jo-
sé de Carvalho havia promovido a fundação do Collegio
de Nobres e a reformação dos estudos era o que lhe de-
vera mais desvelo e attenção. Mudada a forma d'adminis-
tração publica, substituido ao antigo quasi um novo syste-
ma de legislação , pelas novas leis que se havião promulga-
do , c achando-se todas as ordens do Estado n'uma posição
bem diíFerente da anterior, o Marquez de Pombal, politi-
co hábil , procurou que a educação estivesse em perfeita
analogia com as sobreditas mudanças e novo regimen , a
fim de que as podesse devidamente arreigar e manter. Não
queria que os Portuguezes se limitassem a huma simples
observância daquellas leis , pertendia convencer os ânimos y
c illustrar os entendimentos, para assim formar como ou-
tras tantas guardas manteudas ao seu pontual effeito e exe-
cução. — Desta sorte o systema do ensino publico não só
' devia ter huma relação immediafa com todas as providen-
cias que então alterarão forma da administração do Esta-
do , nos seus diversos ramos , mas ainda endereçar-se a ou-
tras, igualmente interessantes e decisivas, que para todo
o Reino de Portugal , concebera , e de longo tempo me-
ditara este homem na verdade extraordinário , de quem pa-
rece chegada a época , de se poder fallar, sem ódio nem li-
sonja.
O Collegio dos Nobres, que como acabamos dever,
era o estabelecimento mimoso do Marquez de Pombal , es-
tava no auge do seu explcndor quando para elle entrou o
Sr. Sebastião Trigoso : sentia todo o vigor da sua recente
e tão favorecida fundação. Professores de abalizado mereci-
nicn* t
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. LXXI
jTiento occupavão as suas cadeiras , taes como os Srs. Pe-
dro José da Fonseca , Bartholomeu Ignacio Gorge , Custo-
dio José d'01iveira, Joaquim Cariitiro da Silva, de quem
o Sr. Trigoso, com a melhor doutrina, bebeu o amor que
todos tinhão ás letras que professavao. Dos dois primeiros
lembra-sc, como era opportuno o Sr. Trigoso, no Discur-
so que recitou na Sessão Publica desta Academia em 24
de Junho de 1817, expressando vivamente a sua sensibili-
dade pelos que o encaminharão ao sanctuario da sabedoria.
Uma circumstancia porem , talvez mais poderosa do
que todas as outras , servia de animar o zelo dos Professo-
res, excitando nobre emulação nos discipulos : fallo do es-
pirito publico que exclusivamente parecia então dedi-
cado a favorecer todo o género de estudos. — Certa ur-
banidade e decência no trato familiar e publico entre todos
os indivíduos da nnçao communicavao aos literatos a mais
circunispecta gravidade no que escreviao e publicarão. As-
sim é, que estes contribuião para a illustração do publico ,
mas era deste mesmo publico, juiz integerrimo e sisudo
que recebião como a norma a que deviao amoldar os seus
escritos: Este mutuo commercio de um publico então bem
dirigido com os Escritores que se tomavão da diiEcil tare-
fa de lhe dedicar o fructo dos seus estudos ( como alia's
então parecia exigir-se de todo aquelle que professava as
letras ) apurou o gosto , que distingue os Poetas e Prosa-
dores desta época que vai passando , quando aliás tanto
convinha ao credito e bom nome da Nação restauralla , apro-
veitando-se o pouco que ainda delia nos resta ; e dando-se
de mão , aos argumentos imsulsos e até vergonhosos , que
servem de these aos nossos Escritores d'hoje, cujas compo-
sições sem sabor , mingoadas no estilo , escritas n'um vas-
conço enjoativo sem graça nem energia , tão alheias são
da gravidade dos objectos com que a Nação se vê abraços :
Aproveitcm-se pois aquellas abertas que nos deixão as se-
rias considerações que nos merece a causa da Pátria , em
cultivar a boa e amena literatura, cora que as Nações tam-
bém
Lxxii Historia da Academia Real
bem se regcnerao , e com que sem a menor hesitação po-
demos affirmar que perpetuamente vivem na memoria das
gentes.
Este modo de pensar inteiramente se confirmava com
a propensão que o Sr. Sebastião Trigoso desde logo ma-
nisfestou para o exercício das letras j por isso debaixo da
disciplina de tão sábios Professores se distinguio na carrei-
ra literária ; pois não a considerou simplesmente como pri-
liminar de maiores estudos, mas também como dii^po-
sição para o melhor proveito que podia tirar dos mesmos
estudos.
Ao passo que as faculdades intcllectuaes do Sr. Sebas-
tião Trigoso se descnvolvião , e que por meio do estudo
ia descobrindo os dilatados horizontes da esfera dos conhe-
cimentos humanos accendia-se-lhe o mais vivo desejo de os
comprehender e alcançar. — As sciencias mathematicas e na-
turiíes erão as que mais promettião : as ultimas encerravâo
mil segredos de cujo descobrimento a contemplação do uni-
verso deixava a sua alma cobiçosa , e por assim dizer no-
bremente insofrida. As outras erão pioprias a contentar a
sua razão , pela rigorosa exacção dos seus princípios. A in-
dependência de fortuna em que se achava o Sr. Sebastião
Trigoso pelos rendimentos que tinha de sua casa, e que
o desobrigavão de buscar estabelecimento nos empregos Pú-
blicos, facilitavão-lhc poder corresponder ás inspirações
que o levavão a seguir os* estudos de huma faculdade , sem
premio ou recompensa que promovesse a frequência de suas
aulas convidando alumnos com a promessa de galardão e
empregos futuros. Matriculou-se pois o Sr. Trigoso na Fa-
culdade das Sciencias Mathematicas-Filozoficas da Univer-
sidade de Coimbra , segundo a ordem que nessa época ti-
nhão as suas Cadeiras. — Os progressos do alumno igua-
larão aos desejos que o animavão , e ao ardor com que en-
tão se cultivavão as sciencias em Coimbra , mormente as
Naturaes , que alem do attrativo que lhe he próprio , re-
cebião a influencia do espirito publico que parecia exclu-
si-
í
DAS ScienciaS de Lisboa. Lxxrir
sivamcnte quere-las só attcnder. E como se a sua applica-
ção augmcntassc de força á proporção que se prolongava ,
coroou o anno da sua formatura feita cm p de Julho de
1792 com o primeiro destinado a servir de laurel aos mais
distinctos na faculdade.
Rccolhendo-se o Sr. Sebastião Trigoso á caza pater-
na teve de entrar no serviço publico assentando praça de
cadete em 6 de Maio de 1797 no segundo Regimento d'ar-
mada , que depois passou a denominar-se de Lisboa , con-
forme a Lei entáo novíssima , que chamava ao serviço das
armas todos os primogénitos senhores de caza : Dahi pas-
sou cm ij de Fevereiro de 1798 a Capitão mór do Ter-
mo de Torres Vedras , onde era o solar da sua caza pa-
terna ; e occupou este posto até 1809, em que por occa-
sião de se organizar o Regimento de Voluntários Reaes
de Milícias a Cavallo de Lisboa foi nomeado Tenente Co-
ronel a;i,grcgado a este Regimento: Em 1806 também ti-
nha mudado de estado cazando-se com a Senhora D. Ma-
ria José de Oliveira Sande c Vasconcellos, de quem lhe fi-
carão três filhas.
Este espaço, que vai da sua formatura ao anno de 181 1,
em que a Academia o recebeu no numero de seus sócios
offerecc como um vácuo e pausa á vida literária do Sr. Se-
bastião Trigoso, pois alem das Poesias, de que logo da-
rei conta , e dos estudos de Chymica , a que então se en-
tregava , e de que depois tanto medrarão os fructos , na-
da mais terei que notar ; occupatido-se desde o fallecimen-
to de seu pai nos fins de 1798 , na administração e melho-
ramento dos bens da sua caza , espalhados pordifferentes distri-
ctos e províncias , e na inspecção tanto da fabrica do novo edi-
ficio , que a piedade da Sereníssima Princeza do Brasil D.
Maria Francisca Benedicta começara a fundar em Runa pa-
ra os soldados inválidos , como das quintas e fazendas ,
que lhe erao annexas, apenas se distrahia em silencio e fi-
losófico retiro com o estudo das sciencias e literatura ; go-
zando assim da doçura d'uma vida privada.
Tomo IX. * 10 Não
ixxiv Historia da Academia Real
Não admirará porem semelhante pausa a quem refle-
ctir : que o Sr. Sebastião Trigoso já se havia remontado
CO conhecimento de muitas verdades , que o chamavão a
descortinar outras infinitas , ainda recônditas e não previs-
tas, — Nesta situação a alma indicisa e absorta , parece
perder parte daquelle vigor, com que proscguira na aquisi-
ção dessas mesmas verdades: este he , por assim dizer, o
estado de abatimento que succede ao de orgasmo ou excita-
mento produzido pelo enthusiasmo dos primeiros estudos.
— A accommodação dos principies rheorcticos com os da
pratica do mundo, em que então se he forçado de entrar,
pede também momentos de reflexão , que muitas vezes aba-
tem e esmorecem o pensador , quando combina as idcas, que
formara do homem, com o mesmo homem. — Então parece
querer elle desistir de promover a causa da humanidade ;
e forçar-se por ganhar a negada tendência para um exclu-
sivo egoismo ; pois a sua frieza criminoza jamais compe-
te ás almas bem nascidas. — Lá está porem o termo das
dcsgmças publicas , das grandes catastrophes da Pátria :
A seus gritos elles acodem mais solícitos doque nenhum
outro de seus filhos ; e aquelle , que só parecia entregue
aos cálculos do seu commodo e bem pessoal , he o mais
denodado athleta , que combate a favor dessa Sociedade , que
parecia desconhecer , c a qual , por isso mesmo , talvez mui-
to pouco lhe merecia.
Este termo chega. . ! Portugal , a ponto de desappare-
cer da lista das nações livres , chama todos os seus filhos aos
últimos extremos , com que desbaratado o inimigo orgulho-
so , que o invadira, canta o triunfo da sua independência. —
Os habitantes de duas províncias inteiras com o sacrifício
de seus haveres e pessoas tinhão cooperado para as victo-
rias do exercito, mas amontoados no recinto de Lisboa,
o desamparo, as privações, e toda a espécie de tribulações
fisicas e moraes fermentara entre elles um violento conta-
gio, que, devorando estas victimas da salvação da Pátria,
ameaçava estender os seus estragos ao mesmo seio da Ca-
pi-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. LXXV
pitai , que lhes dera abrigo. — A Academia das Scienciag
solicita no empenho de promover a causa da Pátria , e
da humanidade acudio cm socccrro delia, bradando pela coadju-
vação de todos os homens sensíveis , e subministrando aos
enfermos de tão terrível mal, quantos soccorros permittiao
suas faculdades de si mesmo limitadas, ejá quasi cxhaus-
ras (a). O Sr. Sebastião Trigoso a ouviu , não esperou mais,
larga a espécie de retiro, em que se achava, c correspon-
de ás solicitudes Académicas , offerecendo um escrito ,
onde , depois do exame das causas accidentaes de tal epide-
mia , indica os meios de a atalhar, evitando-se os seus ef-
feitos e ulterior progresso (!/). — A Academia via nelle um
digno cooperador dos seus trabalhos , e o chamou a si : O
Sr. Trigoso encetando a carreira de Escritor publico, nun-
ca mais desviou delia os seus passos ; e os úteis e novos
progressos , que nella fez , deixou exuberantemente preen-
chidos os votos, com que fora admittido ao grémio da Aca-
demia. —
Os interesses desta passarão a ser os seus próprios in-
teresses: O explendor , e a gloria literária, o alvo dos
seus cuidados ; em uma palavra , tudo quanto fazia parte das
tarefas desta sociedade , exclusivamente veio cativar toda
a attenção do Sr. Trigoso: por isso, incançavel nós o ve-
remos sempre occupar-se em todos os diversos ramos d'ap-
plicação , que a Academia abrange no seu vasto recinto : Tam-
bém é certo, que esta se mostrou sempre agradecida aos seus
disvclos , nomeandoo successivamente e com mui breves
intervallos. Sócio livre e eíFectivo , e Director da classe de
Sciencias naturaes encarregando-o das mais importantes com-
missõcs ; elegendo-o duas vezes Vice-Secretario : e por ul-
timo fazendo recahir nelle a honrosa nomeação de Secre-
tario , quando oSr.Jozé Bonifácio d'Andrada deixou deoc-
* IO u cu-
(«) Vej. Discurso repetido a 24 de Juuho de 1812, no Tora. 3.".
parte 2.' das Mem. da Acad.
{b) Não se chegou a imprimir.
Lxxvi Historia da Academia Real
cupar este lugar, passando para o Rio de Janeiro cmi8i8.
De todos os serviços , que se podem fazer d Iiunani-
dade, nenhum mais utií do que desabusa-la, mostrando-lhe
a ordem natural dos phenomenos que a maravilháo; prin-
cipalmente quando as nações tendo sido violentamente .igi-
tadas , o povo , que não sabe descobrir a c;iusa dos succes-
SOS extraordinários , que o commoverão , cuida achar naquel-
les phenomenos da natureza argumentos para comíirmar co-
mo prodigiosos os mesmos successos. Assim , que serviço
mais proveitoso doque tirar o homem do erro , fazcndo-
Ihe dom de algumas verdades, cm o que se promove o
seu ulterior aperfeiçoamento ? A nação Portugue/a , que ti-
nha experimcntaido as mais fortes concussões , via também
cm seu território alguns eíFeitos raros no andamento ordi-
nário da natureza : Uma pretendida chuva d'algodão , que
foi um delies , logo no Sr. Sebastião Trigozo encontrou
scicntifica e apropriada explicação , com a qual desvaneci-
do o extraordinário, de que começava já a ser revestida ,
mostrou , que aquella chuva nada mais fora do que o produ-
cto de uma immensidade de ovários d'aranhas , que os fu-
racões, que rijamente tinhão soprado , levarão a maior altura ,
donde a amenidade dos subsequentes dias os fez cahir em
terra («).
As experiências Chymicas sobre a quina do Rio de
Janeiro , comparada com outras , que fez na qualidade de
membro daCommissão, que a Academia para esse fim tinha
escolhido, em cumprimento da ordem , que recebera do Go-
verno, sérvio de um claro testemunho de seus grandes co-
nhecimentos Chymicos, tão importantes á saúde e commodo
<la vida humana (b).
Ao passo porem que se engolfava, por assim dizer, no
estudo das Sciencias Fysico-Naturaes , e que a Academia
CO-
(a) Impressa no Tom. 3." parte 2/ das Mcni. d^Acautuiia p. 85.
(i) Vcja-se a noticia dos trabalhos desta Cominissão no Tom. 3. par-
te 2.' das Mem. d' Academia p. 96.
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. LXXVII
conhcceniío a sua aptidão e préstimo lhe incumbia diver-
sas lucubrações concernentes a este vasto ramo dos noss( s
conhecimentos (a) , a literatura e historia Portugueza mc-
recião ao Sr. Sebastião Trigozo não menos desvelos doque
amor. — Os descobrimentos dos Portuguczes nas ferras
septentrionaes d'America estavao , não duvidamos dize-lo ,
sacrificados á gloria e melhor dita que lograrão os que ha-
víamos feito no Oriente, nas costas d'Africa , e America
meridional. — Os Cortes-Rcaes , perecendo na tentativa de
adiantar os descobrimentos ao norte d'America , parece que
tinhâo como mal agourado e intrestecido , quanto alli fize-
mos : Embora duas nações rivaes , disputando uma a ou-
tra a gloria dos pretendidos descobrimentos , que alli se attri-
buiiio , confessassem algumas vezes a prioridade dos nossos:
Embora os nomes Portuguezes impostos ás ilhas , rios , e
praias daqucUa Região, que trazem os antigos Mappas,
e que ainda hoje mesmo conservão algumas de suas para-
gens , fossem decisiva prova , de que a gloria do seu des-
cobrimento, e por me servir da fraze de que se usava, a
.«ua conquista pertencia a )S Portuguezes : Todos estes tes-
temunhos espalhados não offerecião uma allegação , que con-
vencesse os incrédulos ou ignorantes do subido louvor, de
<]ue até nesta parte do globo se fizerão dignos os nossos
maiores : Isto foi , o que o Sr. Trigozo se propoz de reme-
diar
(a) llm 25 de Movcinbro ue JtíJl leu a Descripção de duas espé-
cies (Ic Peixes da nossa costa , das quaes uma não está descripta pelos
letbyologos , á qual deo o nome de Spartts tiilahiatus.
Em 11 d''Outubro de 1815 remetteu á Academia amostras de di-
versas aguas para serem examinadas: Em 8 de Novembro do mesmo
anno fez o extracto de uma memoria de Mineralogia do Sr. Barão de
Eiscliivege, impr. no Tora. 4.° parte 2." Mem. d''Acad.
Em JÓ de Fevereiro de 1817 leu diversas reflexões sobre a meteo-
rologia dos antigos. Neste mesmo anno escreveo as Kotas ás observa-
ç5c8 d'am Anónimo sobre alguns peixes do mar e rios do Algarve,
que se publicarão com as mesmas observações no Tom. 5.° parte 2.*
Mem. dWcacl. Finalmente apresentou o extracto da Memoria do Sr. João
de Macedo Pereira sobre o estado da Agricultura da Comarca de Cas-
tello branco, que se imprimio uo Tom. 4." parte 2.' Mem. d'Acad.
Lxxviii Historia da Academia Real
diar no seu Ensaio sobre os descobrimentos e conmiercio dos
Poríiigtiezes em as terras sepíentrionaes d' America («) : Aqui
depois de compendiar as noticias , que já se encontravão das
ditas terras cm outros escritores, entra nas expedições
dos malfadados Cortes-Reaes , vindicando a sua memoria
do quasi absoluto silencio , em que os nossos a tinhão se-
pultado : rctcrc depois o commercio e trato , que os Poi tu-
guczes para alli fazião , em proveito de alguns portos c
terras maritimas de Portugal , que tiravão dahi a sua úni-
ca prosperidade ; nem consentio o seu zelo, que ficassem no
esquecimento as noticias , que encontrara poroccasiao des-
te seu trabalho , de ter sido descoberta pelos Portuguezes
a passagem pelo Norte d'America para as índias Orientaes ,
que hoje tem feito o objecto das cmprczas da maior na-
ção maritima , a Gra-Brctanha : Oxalá que eu ainda um dia
possa illucidar algumas outras espécies relativas a este objecto ,
que tenho encontrado no meu estudo , c addi-Ias , ás que nos
offerece o Sr. Trigoso , por certo mui curiosas e instructi-
vas,
Náo ficarão também os descobrimentos Portuguezes ,
sobre a costa d'America Meridional e ilhas do mar Athlan-
tico , sem receberem do Sr. Sebastião Trigoso novas e
recônditas investigações, como as que fez no exame da/^-
da de Martim de Bohemia (b) , que tão grande parte tomara
cm nossas navegações. Os factos da vida deste sábio astró-
nomo ainda estavão indeterminados ; e as fadigas do sábio
Doutor Murr , e d'outros Escritores Alemães não havião
satisfeito a incerteza evacuo, que neste ponto sentíamos:
O Sr Sebastião Trigoso, que emprehendeu esta tarefa , tão
difficil pela falta de memorias como pela alteração das tra-
dições, deixou com tudo o que dizia respeito a Martim de
Bohemia muito bem illustrado, assimcomo outros muitos
factos
(a) Impresso no Tom. 8. das Mem. deLitterat. d'Academiapag. 305.
{b) Impresso no Tom. 8. d^Mem. deLitterat. d''Academiapag. 365.
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. ' LXXIX
factos da historia de nossas navegações atdgora tão pou-
co averiguados e conhecidos {a).
E foi paraque ficasse competentemente illustrada esta
parte da nossa historia , de que tanta gloria resulta ao nome
Portuguez , que emprchendeu a Redacção das memorias pd'
ra a historia das Nações Ultramarinas j e a Collecção das
viagens dos Portuguezcs nos districtos que elles babitno per-
tencentes boje aos seus dominios : Collecção preciosa em que
se resgatarão do eterno esquecimento as noticias do ce-
lebre viajador Cadamosto , de Duarte Barboza , e de ou-
tros de igual nota (Jj).
Se estas compozições eriío porem úteis , e de grande
valor á historia e honrada lembrança de nossos maiores ,
assumptos de maior utilidade pratica desafiavão a applica-
ção do Sr. Sebastião Trigoso. — Os terrenos abertos c bal-
dios , que se encontrão em nosso Reino , derão occasião , a que
clle examinasse o damno e detrimento , que para a agricultura
dahi se deriva; lembrando a propósito os diffcrentes metho-
dos de tapumes, convenientes para remediar semelhante es-
trago {c).
A falta de conhecimentos , em que nos achamos das pra-
ticas mais aperfeiçoadas que a agricultura tem tido entre
as outras Nações , levou-o a inculcar um Projecto para o
estabelecimento d'escolas d'agricultura pratica , onde depois
de persuadir a sua utilidade , afastando-se do que a seme-
lhante respeito propõe Sinclair, e outros , como pouco pró-
prio das nossas circumstancias e localidade , traça o plano
por
(a) Vcja-se a nota , que o Sr. António Ribeiro dos Santos accrescen-
tou á sna Memoria sobre dois antigos Mappas Geográficos do Infante
D. Pedro a p. 304 do volume 8. das Memorias de Litteratura da Aca-
demia, em que agradece ao Sr. Sebastião Trigoso o grande adjutorio^
que ihe dera para o seu trabalho.
(4) Vcja-se a Collecção de noticias para a historia, e Geografia ãa»
Naçffes Ultramarinas , que vivem nos Dominios Portuguezes , ou lhes
são visinlias. 2 vol. Lisboa 1812. 1813.
(c) Impressa no Tom. 5. das Mcm. Económicas d' Academia p. 63.
Lxxx Historia da Academia Real
porque entre nós deviao ser reguladas, afim de bem cor-
responderem ao fim do seu instituto (a).
Estas e outras compoziçôes , o zelo , e o descernimcn-
to avantajado , com que satisfazia as diversas Commissõcs ,
de que a Academia o encarregava , erão provas positivas
do amor , que lhe tinha este seu Sócio. Assim a Academia
nomeando-o para seu Vice-Secretario mostrou o seu agra-
decimento ao Sr. Sebastião Trigoso ; o qual tendo nos im-
pedimentos do Secretario , de ser o historiador dos traba-
lhos Académicos, no anno decorrido dei8i3 ^1814 mos-
trou o acerto da sua escolha.
No seu discurso histórico (b) avalia o Sr. Sebastião
Trigoso com justiça c boa critica as diversas Memorias apre-
sentadas naquelle periodo , dando de todas as suas tarefas
uma deducçao clara, em estilo desempeçado e elegante, c
fazendo bom uzo dos necessários atavios da eloquência ,
para recommendar , como merecião , os sócios beneméritos j
e para despertar nas almas frias e indolentes o amor da
gloria literária , incitando umas a fazerem justo apreço de
taes trabalhos ; e accendendo cm outras dezejos de concor-
rerem nos mesmos trabalhos. Este foi sempre o desempe-
nho, com que nos annos de 1817 , e 1820 satisfez empre-
za tão árdua como delicada (6),
Uma de maior consideração corria neste tempo por
conta d'Acadcmia. O Plano da reforma e uniformidade dos
Pesos e Medidas do Reino tinha sido incumbido, primei-
ramente a uma Commissão em parte escolhida pela Aca-
demia , e depois á Commissão do exame dos Foraes e me-
lhoramento da Agricultura, composta de vários sócios Aca-
de-
(rt) Impresso no Tom. 4. parte 1.' p. 58 das Mem. d' Academia.
(o) Tom. 4.° parte 1." Mera. da Academia.
(c) Tom. 5. parte 2.' Mem. da Academia, e Tom. 7.° Aqui tem
lugar fazer-se menção do Catalogo das obras já impressas e mandadas
publicar pela Academia impressas em 1819, o qual vem transcrito e
elogiado no Tom. 9." dos Annaes das Sciencias e das Artes. O Siir. Tri-
goso foi quem redigio este Catalogo.
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. LXXXr
demicos, que no Archivo da Torre do Tombo , e no Ar*
senal do Exercito fazião as suas conferencias , e prcsidiao
aos trabalhos da construcçilo dos novos padrões , da com-
paração destes com os antigos de cada um dos conselhos
do Reino: O Sr. Sebastião Trigoso, que era membro des-
tas Commissocs , e em quem recahio grande parte do tra-
balho delias , tomou álcm disso a seu cargo não só remo-
ver o obstáculo , que a ignorância de muitos podia oppor
a introducção do novo systema métrico decimal, mas com'
bater com energia os falaces argumentos, com que sábios
caprichosos pretcndião criminar esta introducção. Para este
fim offertou á Academia o resultado das suas experiências
sobre a comparação dos pesos e medidas de Vi Ha Verde
e Torres Vedras (íi) : e uma memoria sobre a historia e
legislação dos nossos pesos c medidas des do principio da
monarchia até ao tempo dosFclippes ; e sobre a introducção
do systema métrico decimal : (Z») e pouco depois escrevco
outra cxcellcnte Memoria sobre as medidas Portuguczas ,
em resposta , ao que sobre este assumpto vem escrito no
N.° 4 do Observador Lusitano, e3 volumes dosAnnaes das
Artes (c). Estes escritos palpavelmente mostrão , que a dou-
trina , que expendera na Commissão sobre a preferencia do
systema métrico decimal, era solida e verdadeira, e filha
de longas meditações , e seguros raciocínios. Porem não
convirá de certo , que tanto trabalho , consagrado a um objecto
de manifesta utilidade publica, fique no esquecimento , quan-
do os sábios , que nelle se empregaram, tem pelo menos di-
reito , a que se publique o fructo de suas fadigas.
O apparecimento de certo verme n'um olho de um
cavallo , convidou o Sr. Sebastião Trigoso, a que em dis-
Tom. IX. P. 1. * II tracção
(«) Por Avizo de S. Magestade de 10 de Setembro de ]814 foi or-
denado á Academia , que incumbisse ao Sr. Sebastião Trigoso esta com-
liaração e exame , de que deo conta.
(i) Impressa no Tom. 5. das Memorias económicas d^Academia p. 336.
(e) Impressa noTora.7.dos Armaes dasSciencias e Artes. Paris 1820.
ivxxii Historia da Academia Real
tracção daquelles cuidados mais graves desse uma expli-
cação de semelhante phenomeno : Na sua obra , depois de
algumas breves reflexões sobre a deducção da immensa ca-
dea dos seres animados , refere os factos idênticos, que ou-
tros Escritores havião mencionado ; e entrando nos princi-
pios , que poderião produsir a geração ou formação daqucllc
verme, aindaque regeita os da creação espontânea, que
são hoje os que vulgarmente se seguem , e os únicos , que
parecem próprios a servir de cabal explicação a semelhan-
tes phenomenos , mostra com tudo a maior sagacidade , pois
abraçando os princípios da geração própria ou deduzida ,
satisfaz conforme a elles o fim , a que se proposcra naquel-
le escrito, (a)
As notas illustradoras , segundo os recentes descobri-
mentos do Tratado da cultura das oliveiras do Sr, Dalla
Bella , obra estimável , de que se havia acabado a edição ,
foi outro trabalho , de que o Sr. Trigoso se encarregou pe-
lo serviço da Pátria , credito e honra d'Academia. (b)
O exame da magnifica edição dos Lusíadas que o Sr.
Morgado de Mattheus dedicou a literatura em geral , e par-
ticularmente á gloria da nação Portugueza feito pelos três
Directores das classes , e do qual coube ao Sr. Sebastião
Trigoso fazer o relatório (c) digno do desempenho de tão
subida empreza, levantou-lhe pensamentos a um maior tra-
balho. — O Sr. Sebastião Trigoso entrou no exame criti-
co das cinco primeiras edições do nosso Poeta (d) : esta
analyse escrupulosa e bem seguida oíFcreceu-lhe úteis espé-
cies á i Ilustração da historia do Poeta , e á daquelle tem-
po , em que uma tremenda potestade se havia entre nós
erguido , sugeitando todos os discursos a uma bitola des-
co-
(a) Impressa no Tom. 5. parte 1." p. 60 das Memorias da Academ.
(ò) Memoria sobre a cultura das oliveiras cm Portugal , 2." Ed.
corrigida e annotada. Lisboa 1818.
(c) Impr. no Tora. 5. parte 2.' das Memorias d^Academ.
(d) Impr. no Tom. 8° parte 1." das Mera. d' Academ.
DAS SCIENCIAS DE L I S B O A. LXXXIÍI
conhecida e avessa ; e terrivelmente fulminando contra os
que se niostravão menos dóceis, tinha os engenhos como
embotados , abatendo os pensamentos , que amendrontados
como que não ousavão arrcdar-se de casa , nem ao menos
transluzir fora. — Apparecendo todas as edjções do nosso
Poeta debaixo de tão mahgno influxo, des da primeira , sem
duvida , apparecerâo desfiguradas suas expressões e pensa-
mentos. O bom juizo , que de tudo apresenta, ecomo en-
tão lhe era permittido , o Sr. Sebastião Trigoso é digno
de rccommendação , até pelas noticias e reflexões, c]ue di
c suscita daquelia época, donde sederivão os dias infaustos
da nossa literatura, e do vigor nacional.
Por este mesmo tempo cmpregava-se o Sr. Sebastião
Trigoso em salvar a memoria d'alguns de nossos Consó-
cios beneméritos d'Academia e da Pátria. — No Elogio his-
tórico do Sr. Conde da Barca (a), rcferindo-nos em substan-
cia , c n'um estilo grave c desempeçado a sua vida literá-
ria , augmentou , se he possivel , a estimação, que a Acade-
mia porclle teve, quando o chamou a si; com a narrativa
de sua vida publica, açaimou, por assim dizer, aos que ain-
da se obstinassem em contrariar os seus serviços e fideli-
dade ; mostrando em tudo que o Sr. Conde da Barca fora
accredor da estima , e particular consideração , com que o
distinguiu o nosso munificentíssimo Monarcha , sempre be-
nigno e liberal em attender o verdadeiro merecimento. —
A noticia porem , que o Sr. Sebastião Trigoso nos dá da
copiosa e selecta livraria de manuscriptos , livros , e precio-
sidades raras e de grande valor, que o Sr. Conde da Bar-
ca , a tanto custo , juntara em toda a sua vida , he triste-
mente acompanhada pelo dissabor , que nos causa o fim , que
sabemos tivera tão rica bibliotheca , que por baixo preço
tem sido truncada e dispersa , semque mais se possa en-
contrar parte desses manuscriptos singulares sobre nossas
* 1 1 ii con-
(a) Tom. 8.» parte 2.' Mem. d"Acadein.
Lxxxiv Historia da Academia Reai.
cunquistas e descobrimentos Africanos , com que o oíitro
nosso sábio Consócio o Sr. Josíí Banks havia presenteado
ao Sr. Conde da Bnrca.
No Elogio , que depois fez do Sr. António Caetano
do Amaral (a) , expressou a saudade , que lhe devia este Ami-
go e Consócio , sábio e benemérito , que accreditando a
Academia com o primor de seus fadigosos trabalhos , na 11-
Jubtraçao , que offcreceu á nossa historia constituio-se digno
dos mais justos louvores. — A conta que o Sr. Trigoso
offcrece de seus trabalhos literários é própria a dispert;ir
o aírradccimcnto devido a um sábio tão incansável como
O
atilado. —Já antes disto , no Elogio que dedicou á memo-
ria do Sr. Fr. João de Sousa, nosso Sócio, havia deixado
o competente registo , do que este Religioso fizera em ser-
viço d'Academia e de Portugal , que adoptara por sua
nova e verdadeira Pátria, (b) A ordem e disposição , que o
Sr. Trigoso guarda nestas composições aliás difficeis , fa-
zem-no por certo não ficar inferior aos bons modelos , que
ha neste gcncro.
Em quanto o Sr. Trigoso, com estas e outras com-
posições parecia ofFerccer a Academia o emprego de todo
o seu tempo, elle entregando-se também a amenidade da
Poesia, que sempre lhe mereceu amor e culto, vinha- com
os seus dons mitigar a austeridade das tarefas ordinárias
d' Academia. Após as traducções em verso solto , que leu
nas suas sessões das Tragedias, Hyppolito de Séneca, e
Phedra de Racine (c) , nas quaes mostrou propriedade e
elegância, em confrontação com os seus originaes, leu (d)
aversão dos quatro livros das Georgicas de Virgilio , Poe-
ma consagrado a celebrar os trabalhos campestres, afim de
com
(a) Tora. 8.° parte 2.' Memor. d'Acadeni.
(6J Impresso no Tom. 4. parte 1.' das Memor. d^Academ.
(c) Impr. em 1813.
■ (d) Nosannos de 1815. 1816. 1818: mas esta versão ainda está ine«
dita.
DAS SCIEÍÍCIAS DE LjSEOA. IXXXy
com Odeleite da poesia insinuar úteis preceitos da agricul-
tura. O Sr. Trigoso trcspassanilo-os á nosía Jingvugcni,
com toda a correcção , e conservando a bcUeza do origi-
nal , leva o mesmo fito , de fa/er proveitosas aos Tort^guc-
zcs asidéas, que o Poeta latino tivera, quando asoffercceu
aos Romanos. A's illustraçõcs philologicas para a intclli-
gencia do poema, ajuntou outras propriamente agriologi-
cas, de muito saber c utilidade. Deste modo coube ao Sr.
Sebastião Trigoso satisfazer ao Programma , que havia an-
nos a Academia fizera para uma versão das Gcorgicas accom-
modadas a inculcar os preceitos d'agricultura, e que nun-
ca fora prchcnchido. — Deste modo também trouxe o Sr.
Sebastião Trigoso cm dom á Academia o fruto da pro-
pensão, que sempre tivera aos attractivos da poesia ; e de
que são argumento outras muitas composições, que deixou
manuscriptas , ea que parece não dava todo o apreço, que
merccião, pois a sua publicação o faria avaliar como ura
dos nossos bons poetas modernos.
Outras obras mais extensas , e igualmente úteis á his-
toria da nossa Pátria e aos progressos scientificos trazia en-
tre mãos neste mesmo tempo o Sr. Sebastião Trigoso :
taes erão a traducção da obra de Columella De re rústica y
a historia de Lisboa antiga, em que compendiava ossucces-
sos e particularidades notáveis de Lisboa , como o erudito
Crevier fez da cidade de Paris; e segundo os diversos qua-
dernos , que vi desta obra, promettia bem satisfazer ao fim
a que a destinava : um Parallelo entre a economia vegetal
c animal , uma synonymia dos nomes Linneanos com os
Portuguezes , os additamentos á arte de verificar as datas
no que dizia respeito a Portugal, de que fora encarregado
na Gommissão para esse fim nomeada pela Academia {a) :
Pro-
(n) Por Aviso de 26 de Janeiro de 1819 incumbiu S. Magestadc a
rsta sua Real Ac.ideiuia a redacção dn historia Chrouologica do Reinp
de Portugal para continuar o artigo da Arte de verificar as datas q.ue
deixou DO que eia relativo a Portugal em 1760 : Jslo foi porfioJicitajpes
Lxxxvi Historia DA A CADEMiA Real
Projecto para o estabelecimento de Escolas normaes de Fy-
sica c historia natural cm Lisboa , e assim outros cscriptos ,
de que nuo he possível dar agora mais ampla noticia.
Na verdade quando se considerão tantas e tão varia-
das composições, quando se attende , que o Sr. Sebastião
Trigoso encarregado da Secretaria d'Acadcmia não podia
deixar de se empregar no seu expediente , e correspondên-
cia, o que llie devia roubar não pouco tempo; bem como
lho roubara o arranjamcnio dos outros objectos, que perten-
cem a lugar tão pensionado : que empregado na Commis-
são do exame dos Foraes e melhoramento d'agricultura ,
na parte que dizia respeito a reforma e novo rcgulanicuio
dos pesos e medidas , diariamente ia ao Arsenal do Exer-
cito vigiar, e observar os trabalhos práticos, que alli se fa-
ziâo ; quando se considerão as moléstias , que padecia , e
que muitas vezes vinhão emburgar os esforços do seu zelo
e actividade: quando se considera tudo isto, não é possivel
deixar de render á sua memoria o tributo do maior lou-
vor e admiração. Parece, que o Sr. Sebastião Trigoso pre-
sentido da pouca duração da sua existência , a queria dila-
tar o mais possível , empregando utilmente todos os seus
momentos no serviço da Pátria e proveito da humanidade.
A um tal Escritor , a um sábio tão laboriozo e íncançavel
he justo, que com boa graça se desculpem algumas falhas,
ou incorrecções , que se possuo notar cm seus escritos , fa-
lhas nascidas sem duvida da multiplicidade e variedade del-
les , e da velocidade com que erao compostos ; disfarcem-
sc-lhe pois essas quebras, quando scjao assim avaliadas,
olhando-se ao zelo , bom animo e decisiva vontade , com
que promoveu a causa das letras e das scicncias j e ás tris-
tes
do Ministro de S. Magestade Christianissima: Ao Sr. Trigoso coube ser
b redactor do trabalho Académico , que concluido foi remettido para
o Rio de Janeiro onde então se achava a Corte : Em consequência dos
succpssos posteriores não sei o que foi feito deste trabalho, aliás esti-
mável , e de que ainda se couservão muitos apontauieutos.
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. "LXXXVU
tes cogitações, de que se via opprimido pelo estado mor-
bozo de sua saúde.
Com cffcito uma aíFccçao gotosa , junto a uma dis-
posição ncurismatica , que talvez fora também a de seu
pai (a) , aggravava mais c mais os seus insultos , e o Sr.
Se-
ia) O Sr, Doutor Beruardino António Gomes pretendia descrever
particularmente a moléstia, de que foi victinia o Sr. Sebastião l'rancis-
co de Mendo Trigoso, a morte iiorcin deste sábio consócio nos privou
deste e doutros traballios, com que a sua continua applicaçáo preiíieltia en-
riquecer as scitncias em benelicio da luimanidade: O que liça dito Ibi
o resultado do que o mesmo Sr. Beruardino me havia communicado ,
o que elle afirmava comprovar-se com a dissecção do cadáver do Sr.
Trigoso feita era sua presença. Depois de concluido este Elogio é que
o Sr. José Pinheiro de Freitas Soares escreveo a breve nota em que
quiz desafogar a magoa que lhe causava a perda do seu amigo, e que
agora transcreverei.
Depois da exposição feita da vida publica e particular doSiir. Sebas-
tião Trigoso , com bem dòr sou obrigado a fallar do trisie aconteci-
mento da sua morte. Logo na flor de seus annos começou asoírcr ata-
ques de gota regular ; e bemque a natureza , por seu talento .e
luzes o tornasse um vigoroso Athléta j>ara correr com gloria a vas-
ta e nobre carreira das Sciencias ; a sua morbosa constituição foi sa-
crificada nos esforços do seu génio sublime , e assim forão crescendo
os insultos da sua cruel moléstia no meio de assíduos e variados traba-
lhos litterarios , até que no raez de Janeiro de 1821, cahio na cama
com um novo ataque gotoso , que se remontou violentamente aos ór-
gãos da respiração e circulação , nos quaes foi constante , em maior ou
menor gráo , até á sua morte , que se verificou no dia 18 do mez de
IMaio do mesmo anno , quando contava 48 annos de idade. A rebeldia
deste ultimo insulto da sua moléstia , a inefficacia dos differentes re-
médios, que se lhe administrarão, e que costumão ser proveitosos em
tacs circu instancias , fizerão suspeitar nos dous facultativos, quelha
assistirão, inllammações chronicas, e suas consequências, nos órgãos
da cavidade superior; que naturalmente se havião desenvolvido mui-
to antes deste ultimo ataque; poisque já mezes antes o Sr. Sebastião
Trigoso, fallando ou lendo , mostrava uma respiração cançada. A dis-
secção do cadáver , que foi feita por um cirurgião hábil perante ura
dos facultativos assistentes, converteo a suspeita em certeza; e não me
demoro mais sobre a descripção pathologica das entranhas do cadáver,
para não augmentar a nossa dor.
Assim acabou seus gloriosos dias este illustre varão : as Sciencias
chorarão sempre a sua falta; a saudade será eterna nos corações de
Seus parentes c amigos; e a dòr, que excita a sua perda ^ só pôde ser
Lxxxvin Historia da Academia Real
Sebastião Trigoso , no meio das maiores dores , mostrava
a serenidade própria da sua filosofia , e resignação nos ma-
les , que ao homem não é dado remediar. Nós o vimos ,
com os symptomas d'afílicção produzida pela vchemencia
das dores que sofria, recitar, na sessão de 34 de Junho
de 1820 a historia dos nossos trabalhos no anno então de-
corrido ; c não obstante isso , nós o vimos na sua natural
firmeza conservar a gravidade, e tom de voz, com que ou-
tras vezes fora o Orador d'Acadcmia : Esta porem não ti-
nha de o possuir por muito mais tempo. — O resto do
anno , com pequenos intervallos de saúde passou o Senhor
Sebastião Trigoso , occupando-se inteiramente com os tra-
balhos Académicos, tendo sido um dos sócios nomeados
para a Commissão , que em 1820 foi visitar o estabeleci-
mento da Casa pia, segundo os desejos , que então manifes-
tou o Intendente geral da policia {a) ; cumprindo-lhe ao
mesmo tempo desempenhar a trabalhosa tarefa de Membro
da Commissão da Censura, creada logo nos fins de Setem-
bro , ao que depois se lhe ajuntou a dos livros estran-
geiros por Provisão de 13 d'Outubro do mesmo anno. O
Sr. Sebastião Trigoso cm 8 de Fevereiro deste anno já ti-
nha sido nomeado Censor Régio do Desembargo do Paço ,
c em 18 de Maio Censor privativo dos annaes das Scien-
cias e Artes , que se publicavão em Paris. — De todas as ta-
refas literárias no tempo passado, a mais diffieil e enfado-
nha era a de Censor. Faltos de norma no seu magistério ,
linhão como arbitrariamente de sentenciar , o que os outros
cscrevião e pensavão ; ignorando se sempre o que se que-
ria , que a censura vedasse ou permittisse : a isto accrescia
uma
iiioderada pela iciéa das iminulaveis leis da natureza , que sujeita á
lucsina sorte todos os eutes , que respirão.
Hcpousa em paz , varão sábio e virtuoso ; a morte não sepultou
a tua memoria ; pois as acçSes , que praticaste , e os escritos , que nos
deixaste, e que guardão teus pensamentos, são immortaes.
(a) Impressa a Memoria sobre este objecto a pag. 386 do Tom. 7,
das Álemor. d^Academ. das Sciencias.
DAS SciENCIAS DE LiSROA. LXXXIX
uma infinidade de papeis insonsos e inúteis , que o Censor era
obrigadnr a ler , e examinar ; o que até constituia este em-
prego aborrecido c por extremo desagravavel.
\ín:i sua incumbência, que segundo acabamos de ver ,
por si mesmo era penosa , pode ser que influisse tambetn
no estado da sua saúde, que de dia adia passava por novos
c violentos insultos. — A Pátria, que sem a menor recom-
pensa até então o.vio solicito só em concorrer á ^ua pros-
peridade e grandeza , ainda invocou o seu préstimo; mas ao
Sr. Trigoso não era dado corresponder mais aos votos de
seus compatriotas : A Pátria , as Sciencias , esta Academia
tinhão de o perder brevemente , pois em Maio do anno
findo com a firmeza de um filosofo (e porque não diremos
de filosofo chrisião?) passou desta a melhor vida («)•
Nas agonias de tão dolorosa moléstia deu provas au-
thcnticas do seu afFecto pelo bem da Pátria e d'Academia.
Qiiando cedendo á violência das agudas dores, que o ator-
mentavão, esmorecida a razão, a voz seguia os impulsos
do deiirio : Portugal, Academia, objectos literários era o
que se lhe ouvia articular.
Pela sua não vulgar literatura , c avantajado saber sem-
pre será o Senhor Sebastião Trigoso tão respeitado de to-
dos os que lerem os seus escritos , como as suas amáveis
qualidades o fazião estimar de quantos oconheciao: aqucl-
Ic ar imperturbável c socegado , próprio da convicção de
um merecimento real: o sangue frio nas di-putas : o nenhum
accesso que dava a intriga , que muito aborrecia : a doçu-
ra do seu trato domestico e familiar : a franqueza em coadju-
var toda a emprcza literária : o ardor com que procurou o
adi-intiimento da Pátria fazião , com que fosse tão bom
Tomo IX. * 1 2 pai
(«) Morreu a 18 de Maio dia do seu nascimento, em que comple-
tava quarenta e oito aunos de idade , depois de ter recebido todos os
saeraineiitos da Igreja, e de ter soífrido , principalmente desde o mfi
de Janeiro , em que uão toruou a saliir de casa , violentos e repetidos ata»
qucs da mais afflictiTa enfermidade.
xc HistoriadaAcadkmiaReal
pai de famílias , tão bom amigo , c tão bom cidadão , co-
mo as suas obras depõem que fora desvelado escritor.
Sem solicitar nem receber outra recompensa mais do-
que a consciência do seu merecimento desceu á sepultura ,
sobre a qual depositarei a mal tecida coroa deste Elogio ,
tributo. na verdade pequeno, para o que merece a memoria
de seu nome.
Disse.
LIS-
OAS SciEKCtAS DE LiSBOA. XCÍ
LISTA DOS SÓCIOS
Da Academia Real das Sciencias ^ em Junho de iSzy.
PROTECTOR
ELREI NOSSO SENHOR.
PRESIDENTE
O Sereníssimo Senhor Infante D. Miguel.
Fice- Presidente.
Fernando Maria José de Sousa Coutinho Castello-Branco
e Menezes, Marquez de Borba.
Sócios Honorários,
S. M. ElRei da Gra-Bretanha.
S. A. R. o Duque de ^ussex.
Arthur Wclleslcy , Marquez de Wellington ,
Duque da Victoria, - fera do Reino,
Ayres de Saldanha e Albuquerque, Conde da
Ega , ---..-...... ef;i Lisboa.
António de Saldanha da Gama, Conde de Por- •
to Santo, Conselheiro, Ministro, e Secre-
tario de Estado dos Negócios Estrangeiros , em Lisboa.
D. Caetano de Noronha , Conde de Peniche , em Lisboa.
D. Carlos da Cunha, Cardeal Patfiarcha , - em Lisboa.
Carlos Stuard ,--_-..__- fdra do Reino.
* li ii D.
y
^cu Historia DA Academia. Real
D, Domingos de Sousa Coutinho, Conde do
Funchal , - - - ^,„ Lotulres.
D. Duarte Manoel , Marquez de Tancos , - em Lisboa.
Fernando Luiz Pereira de Sousa Barradas , Con-
selheiro, Ministro, e Secretario de Estado
dos Negócios Rcclesiasticos , e da Justiça , eni Lisboa.
Fernando Maria José de Sousa Coutinho Cas-
tello-Branco e Menezes , Marquez de Borba ,
Vice-Presidente , - - - - - -.1 - em Lisboa.
Filippe Ferreira de Araújo e Castro, - - - em
Francisco Furtado de Castro do Rio de Men-
doça , Conde de Barbacena , Conselheiro ,
Ministro , c Secretario de Estado dos Ne-
gócios da Guerra , - em Lisboa.
Henrique Teixeira de Sampaio, Conde da Po-
voa , --...-...--^cj-ff Lisboa.
Ignacio da Costa Qiiintella , Ministro, e Se-
cretario de Estado Honorário .,---- em Lisboa,
Joaquim José Monteiro Torres , Conselheiro ,
Ministro ,, e Secretario de Estado dos Ne-
* gocios da Marinha , em Lisboa.
José António de Oliveira Leite de Barros , Con-
selheiro de Estado , em Lisboa,
José Joaquim de Almeida e Araújo Corrêa de
Lacerda ,. Conselheiro, Ministro, e Secreta-
rio de Estado dos Negócios do Reino, - em Lisboa»
Luiz António Furtado de Castro do Rio de
Mcndoça , Conde de Barbacena , . - ^ em Lisboa.
Manoel Ignacio Martins Pamplona Corte Real,
Conde de Subserra ,-------- fw Madrid.
Alanocl Marinho Falcão de Castro , - - fora de Lisboa.
D. Marcos de Noronha , Conde dos Arcos , - em Lisboa,
D. Miguel António de Mello , Conselheiro ,
Ministro , e Secretario de Estado dos Ne-
gocios da Fazenda , .------ em Lisboa,
D. Miguel Pereira Forjaz, Conde da Feira, - em Lisboa.
D.
DAS SciENCIAS DE LlSBOA. XCtlI
D, Fr. Patrício da Silva, Cardeal Arcebispo
de Évora , Regedor das Justiças ^ - - - em Lisboa.
D. Pedro de Sousa Holstcin , Marquez de Pal-
inclla ^..--. ------- em Londres.
Scb..stião José de Carvalho , ----- cw; Lisboa.
D. Scgi'ímundo Caetano Alvares Pereira de Mel-
lo , Duque de Alafões , .-..-- em Lisboa.
Silvestre Pinheiro Ferreira, ------ e;«
Thomaz António de Villanova Portugal , Con-
selheiro de Estado , ~ ----- ' em Lisboa.
Sócios Estrangeiros.
António Lourenço de Jussieu ,----- em Parh.
Christiano Martinho Fraehn , - - - em S. Petersbourgo.
Frederico Bouterwek , ------- fw Gottivga.
J.iime Edward Smith ,-------- f/« Londres.
José Francisco de Jacquim (Barão de Jacquim) , em Vieuna
ã" Áustria.
D. Manoel Abella , -------- ^m Madrid.
Moria Carlos José Pougens, ------ em Paris,
Ricardo António de Saiisbury ^ ----- em Londres,
Sócios Veteranos.
Joaquim Pedro Fragoso, - ~ - »
em Lisboa,
SO^
xciv Historia da Academia Real
Sócios effectivos.
Na Classe de Sciencias Naturaes.
Alexandre António Vandelli , Guarda mór dos
Estabelecimentos da Academia > - - - - f'« Lisboa.
Félix de Avellar Brotero , ------ «^ Ajuda.
Francisco Elias Rodrigues da Silveira , Vicc-
Secretario, ---------- em Lisboa.
Ignacio António da Fonseca Benevides, Dire-
ctor da classe ,--------- e»< Lisboa.
Joaquim Xavier da Silva , ------ em Lisboa.
José Bonifácio de Andrada e Silva , - - fora do Reino,
José Pinheiro de Freitas Soares , - - - - em Li boa.
Thomé Rodrigues Sobral , ------ em Coimbra.
Na Classe de Sciencias Exactas.
Francisco de Borja Garção Stockler, Barão da
Villa da Praia ,---------«« Lisboa.
Francisco de Paula Travassos ^ ----- em Lisboa.
Francisco Villela Barbosa , ------ «o Brasil.
José Maria Dantas Pereira , Secretario , - - em Lisboa.
Marino Miguel Fran/.ini , ------ ew; Lisboa.
Mattheus Valente do Couto, Director daclasse,
e Thcsourciro da Academia ^ ----- em Lisboa.
Rodrigo Ferreira da Costa, ------ em Lisboa.
Na Classe de Litteratura Portugueza.
D. Fr. Francisco de S. Luiz, - - - - fora de Lisboa.
Francisco Manoel Trigoso de Aragão Morato ,
Director da classe ,-------- í;;; Loures.
Fran-
1
nAS SciKNci AS DE Lisboa. scv
Francisco Ribeiro Dosguimarâes , - > - - - eM Lisboa*
João Pedro Ribeiro ,--------*/« Lisboa,
Joaquim de Santo Agostinho de Brito França
Galvão , ---.-_----. e«i Lustosa.
Joaquim José da Costa de Macedo , - - - em
Joaquim José Ferreira Gordo (Monsenhor Fer-
n ira) , -em Lisboa.
Manoel de Almeida e Vasconcellos, Conde da
Lapa j-------»----ew Lisboa.
Sócios Livres.
António de Almeida, ---.»_-- em Penafiel.
António de Araújo Travassos ^ - ~ ~ - - em França.
António Diniz do Couto Valente, ~ - - em Lisboa,
D. Fernando de Lima , ------- ew Lisboa,
Fr. Fortunato de S. Boaventura , - - - - em Coimbra.
D. Francisco Alexandre Lobo , Bispo de Vi-
seu , -----.---.-- em Viseu.
Francisco José de Almeida ,-■---,- fw Lisboa»
Francisco Nunes Franklin , ------- ew Lisboa,
Francisco Xavier de Almeida Pimenta, - * no Sardoal.
Guilherme, Barão de Eschwege, - - - - em Lisboa.
João António Salter de Mcndoça , Visconde de
Azurara ,.------. ---ew Lisboa.
João da Cunha Neves e Carvalho , - - - no Porto,
D. João de Magalhães e Avellar , Bispo do
Porto ,----.-----. no Porto.
Joaquim Pedro Gomes de Oliveira , m - - em Lisboa.
Fr. José de Santo António Moura, - ' - em Lisboa,
José Feliciano de Castilho ,------ í»í Coimbra.
D. José Maria de Sousa Botelho > - - * - ^"^ P<i^'i^'
Justiniano de Mello Franco , ----- no Brasil.
Luiz
XCVl HiSTOKIA DA AcADEMIA ReAL
Luiz Máximo Alfredo Pinto de Sousa , Viscon-
de de Balsemão , .-.----- fora de Lisboa.
Luiz da Silva Mosinho de Albuquerque , - em Lisboa.
Manoel Ferreira da Camará Bctancourt, - - no Brasil.
Manoel José Maria da Costa e Sá , - - - em Lisboa.
Manoel José Pires, -------- ^w; Lisboa.
Manoel Pedro de Mello , ------ em Coimbra.
Paulo José Maria Ciera .^ ------- em Lisboa,
Pedro José de Figueiredo ^ ------ etn Lisboa.
Pedro de Mello Brcyner , ------ em Lisboa.
Ricardo Raymundo Nogueira, Conselheiro de
Estado , ----------- f;« Li'bo'a.
Timothco Lecussan Verdier, ----- em França.
Wencesláo Anselmo Soares ,------ era Lisboa.
Correspondentes.
Agostinho de Mendoça Falcão , - - - - em Coimbra.
Mr. Ampere ,------■»•--- ew França,
António Maria da Costa e Sá, - - - - - em Lisboa,
Augusto de Sainte-Hilaire ,------ em Paris.
Balthasar da Silva Lisboa ,------ no Brasil,
Bento Affonso Cabral Godinho , - - - _ em Évora,
Fr. Bento de Santa Gertrudes Magna , - - no Porto.
D. Blaz Martinez , ------- em Pamplona»
Caetano Arnaud ,---,------ ew Chacim.
Cândido José Xavier, -------- em Li -boa.
Diogo de Toledo Lara Ordones , - - - - no Brasil.
Eustáquio Joaquim de Azevedo Franco , - na Azambuja.
Félix José Marques, - ~ ------ em Lisboa,
Francisco António de Almeida Moraes Peçanha , em
Francisco António Marques Giraldes , - ' - em Lisboa,
Francisco de Oliveira Barbosa ,----- no Brasil.
D. Francisco Xavier Cabanés ^ -•■--- em Madrid.
Fran-
I
DAS SciEMClAS DE LiSBOA. XCVIJ
Francisco Xavier do Rego Aranha, - - - em Elvas,
Fridcrico Luiz Guilherme Varnhagen , - - em Leiria.
Guilherme Muller , .....--- cm Londres.
Jacob Graberg de.Hcmso, ------ em Tanger e,
Jeronymo Joaquim de Figueiredo , - - - -em Coimbra,
João Adamson ,-----. ----ew Londres.
João António Monteiro , em Freyberg.
João Croft , em Londres.
João de Macedo Pereira da Guerra Forjaz , em Casiello-branco.
Jiiâo da Silva Feijó, ........ no Brasil.
João Theodoro Koster., em Londres.
D. Joaquim de Santa Anna Carvalho , Bispo
do Algarve , em Lisboa»
Joaquim Baptista de Sousa , . , . . . .em Voiizella.
D. Joaquim José António Lobo da Silveira ,
Conde de Oriola , em Berlim.
Joaquim José Varclla , em Monte mór o novo.
Joaquim Navarro de Andrade , no Porto.
Joaquim Pedro Catdoso Casado Giraldes , fdra de Lisboa.
Fr. Joaquim Rodrigues , em Lisboa.
José Accursio das Neves ........ ^m Lisboa.
Fr. José de Almeida Drak , em Lisboa.
José Avelino de Castro ......... iw Porto.
José Calheiros de Magalhães e Andrada , . em Braga.
José Cordeiro Feio ,--------. cw Lisboa.
José Diogo Mascarenhas Neto , em Lisboa,
José Egidio Alvares de Almeida , Barão de San-
to Amaro , KO Branh
José Feliciano Fernandes Pinheiro, . . , . no Brasil.
" José Tacintho de Sousa , no Porto.
José Ignacio Paes de Sousa e Vasconcellos , . em Liboa.
José Liberato Freire de Carvalho , . . . fdra do Reino,
José Lino Coutinho , no Brasil.
José Manoel Ribeiro Vieira de Castro, . . em Lisboa.
José Manoel de Sequeira , »o Brasil,
D. José Maria da Piedade Lencastre e Silveira ,
imo IX. ♦ 1 3 Mar-
"xcvni HfSToniA DA Academia Real
Marquez de Abrantes, . . . . • ; • em Lisboa.
losé Marianno Leal da Gamara Rangel de Gus-
' ^ . .... em Lisboa.
mao ,
José Portelli, • .
José Romer Luiz de Kirckhoff, em Anvers
José de Sá Betancourt , "^ ^'""^^
D. José Valério , Bispo de Portalegre , • em Portalegre.
José VUlela de Barros , • • • «" ^''"!;
Luiz António de Oliveira xMendes , . . • no Brasil.
Luiz Gomes de Carvalho , . . . • fora de Ltsboa.
Luiz Henriques, Barão de Block, . . . . em Dresde.
Manoel Agostinho Madeira Torres, . em Torres vedras.
Manol Francisco de Barros e Mesquita , Vis-
conde de Santarém , '"' ^f'^;
Manoel Jacintho Nogueira da Gama , . . . no Brasil.
Manoel José Mourão de Carvalho Azevedo
,, . . ... na Mealhada.
Monteiro, j ■ i„„
Fr. Mattheus da Assumpção , . .... em Ltsboa.
Mattheus Valente do Couto Diniz, . • . em Usboa.
Pedro Celestino Soares , '"' ntZ
„ , ^ • • - em Bolonha.
Pedro Geannini, . • • • • • .• •
Pedro Machado de Miranda Malheiros (Mon-
I -KA- A.\ . . . • no Brasil.
senhor Miranda) ...... ^^ ^^^^.^^
Roque Schuch, •••_•_•;.... em França.
D^hld^erManoel Delgado, .... - f ^íí
Vicente Gomes de Oliveira , . . . • •' l m i
Vi ente José Ferreira Cardoso, . • naIlhadeSMtgtel
Vente Navarro de Andrade, , • • fera de Luboa.
RE-
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA. XCIX
RELAÇÃO
Dos Membros, e Correspondentes da Instituição Vaccinica
da Academia Real das Sciencias.
Membros da Instituição Vaccinica.
Francisco Elias Rodrigues da Silveira , . . em Lisboa,
Ignacio António da Fonseca Benevides , . . em Lisboa.
Joaquim Xavier da Silva , em Lisboa.
José Feliciano de Castilho , em Coimbra.
José Pinheiro de' Freitas Soares, .... em Lisboa.
Justiniano de Mello Franco, em S Pau/o.
Wencesláo Anselmo Soares , em Lisboa.
Correspondentes da Instituição Vaccinica.
Dnna Angela Tamagnini de Abreu , . . . em Lisboa.
António de Almeida, Medico, . . . . . em PenafieL
António Anastácio de Sousa , Medico , . . em Pombal.
António Coelho de Magalhães e Queiroz, Bo-
ticário , em Filia meam.
António Joaquim de Carvalho , Medico , em Ponte de Lima.
António José de Almeida , Medico , ... em Mafra.
António José Giraldo de Oliveira , Cirurgião , em Tavira.
António José Teixeira, Cirurgião, .... em Alijó.
António Manoel Pedreira de Brito , Cirurgião , em Filia no-
va da Cerveira.
António Pereira Xavier, . »o Crato.
Barnabé Bustamante , Medico , em Ferreira.
* 13 ii Car-
c HiSTOBiA DA Academia Real
Carlos António Lopes Pereira , Cirurgião , no Peso da Regoa.
Carlos Frederico Lccor , Tenente General.
Domingos José da Fonseca , Cirurgião Mór do
Bjcalhão de Caçadores N. 4 , . . . . em obrantes,
Fernando António Cardoso , Cirurgião , . . em Peniche.
Francisco Ignacio Pereira Rubião , . . . em Filia Real.
Francisco Ignacio dos Santos Cruz , Medico , em Punhcte,
Francisco Manoel de Albuquerque , Medico , em Pinhel.
Francisco Maria Roldão , Cirurgião , . . . no Cano.
Francisco Xavier de Almeida Pimenta, Medico, no Sardoal.
Francisco Zefyrino Mendes, Cirurgipo , . em Estrcuwz.
João António de Carvalho Chaves , Medico , no Redondo,
João António Rodrigues de Oliveira, Cirurgião, em Lamego.
João António dos Santos Cordeiro, Cirurgião, cm Eiva;.
João Gervásio de Carvalho, Medico, . . .no Cartacho,
João Pereira de Mello, Cirurgião, em Moimenta da Beira,
Joaquim António Baptista Varella , Capitão de
Ordenanças , ........ «a Ftlla do Torrão.
Joaquim António Novaes , Medico , ... na Certa,
Joaquim António de Oliveira, Cirurgião, . na Gollega.
Joaquim Baptista , Medico , em Vouzella*
Joaquim Gomes Barros , Cirurgião , em Santa Leocadia de Pedra
furada.
José António Barbosa àa. Silva , Cirurgião , em Santo Tyrso.
José Duarte Salustiano , Medico , . . . . no Porto.
José Gomes Cabral , Cirurgião , . ... em Mello.
José Guerreiro da Silva ^ . . em Filia nova de mil fontes.
José Ignacio Pereira Derramado , Medico , . em Portel.
José Ignacio da Silva , Cirurgião , ... ff» Estremoz.
José Joaquim Mixote , Cirurgião , .... «o Redondo.
José Luiz Pinto da Cunha, Cirurgião, emVianna do Minho.
José Maria Bustamantc , Medico , . . . . em Alvito.
José Maria Pereira de Sousa , Cirurgião Mór
do Regimento de Cavallaria N. 1 , . . . em Lisboa,
José Nunes Chaves , Medico , . em Hllanova de Portimão,
José Pinto RcbcUo de Carvalho , Medico , na Filia de Barcos.
Jo-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. Cl
Josd dos Santos Dias, Medico, . ... em Montalegre
Luiz Cypriano Coelho de Magalhães, Medico, em Aveiro»
Luiz Gonzaga da Silva, Medico, . . . em Santarém'
Luiz Mendes Fortio , Cirurgião, .... em AviZ'
Luiz Soares Barbosa, Medico, em Leiria,
Dona Luiza Adelaide de Magalhães Coutinho
da Motta , em Filia Real.
Manoel Coelho do Nascimento , Cirurgião , em Coitares.
Manoel Lopes de Carvalho, Cirurgião, . . em Bellas.
Manoel José Malheiro da Costa Lima , em S. Vicente do Penso,
Manoel José Mourão de Carvalho Azevedo
Monteiro, Medico, na Mealhada.
JManocl Vicente, Cirurgião, . , . , . . .na Guarda.
Nicoláo de Sí)usa Gallião , Cirurgião j . . em Lanhezes.
Pedro António da Silva, Cirurgião , na Marinha Grande.
Pedro António Teixeira de Pmho , Cirurgião, em Ovar.
Plácido de Azevedo Tavares , Cirurgião , em S. João de Ta-
rottca.
ME.
" ><xx:xx>oCK>oo<x:>o<50o»oocx;x;-oooo<>rxxxxxx^::x.>o<xxxxx:x y
MEMORIAS
D A
ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS
DE LISBOA.
NOTICIAS,
E REFLEXÕES ESTADÍSTICAS
A RESPEITO DA PROVÍNCIA
D E
MINAS GERAES.
Por Guilherme, BarSo d'Eschwege,
A
Provincía de Minas geraes coniina , pelo lado do
norte , com as províncias da Bahia , e Pernambuco. O Rio
verde pequeno marca pela maior parte os limites da pri-
meira , e o Rio Carinhanha os da segunda. Ao poente cor-
rem estes sobre huma grande cordilheira os limites da pro-
víncia de Goyazes com Minas geraes , desde as cabeceiras
do Rio Carinhanha ate os Arrependidos nas vizinhanças de
Paracatú , dirigindo-se dahi para as cabeceiras do Rio de
T.lX.P.l. A . S.
i Memorias d a A c a n em i a R e a i.
S. Marcos até a sua foz com o Paranahiba, e iiniáo deste
com o Rio graiulc, formando assim a divisa entre asJuas
provincias. (íí) Pelo lado do Sud-Ocste , c do Sul, confi-
na com a provincia de S. Paulo , e parte com a do Rio
de Janeiro, tcndo-se tomado primeiro por limite o Rio
grande ; donde vai o ribeirão das Canoas acima até as
suas cabeceiras , atravessando o sertão de lacui , e o Rio
pardo, dirigindo-se depois sobre o cume da cordilheira,
que acompanha a margem esquerda do Rio pardo, nté en-
contrar-se com a cordilheira conhecida debaixo do nome
da Scjra- da Manrigucira , cujas cordilheiras são interroan-
pidas pelo Rio Jagoar , formando ao lado da Mantigucira
o grande e áspero morro do Lopo. Nas vertentes desta
grande serra onde nasce o Rio preto, principião os limi-
tes da provincia do Rio de Janeiro com a de Minas, e ca-
minhando pelo dito Rio abaixo até se unir com o Rio Pa-
raibuna , continuão depois com a corrente do Paraibana , e
Paraíba até á foz do Riò Muriahé. Segucm-se então para
o Lest os limites com a provincia de Porto Seguro , e Es-
pirito Santo, mas muito mal determinados por causa de hum
sertão inculto coberto d'espessos matos, e habitado por
mui-
(a) Por Carta Regia do anno c!e 1816 forão os dons Julgados de
y. Domingcs d^Araxá, e Desemboque desmembrados da })roviucia de
(joyazes, e unidos á de JNliiias , declarando que tudo que pertencia
ás freguczias dos dons Juigados pertenceria desde então a Minas.
Deste modo íicou mui indeciso quaes fossem os verdadeiros limites ;
])()is como a população todos os annos se augmentava introduzindo-se
fl\)Utras partes das provincias muitos novos colonos para o fértil sertão,
que começa desde a estrada de Goyazes para S. FaTilo, c continua até
à foz do í'aranaliiba com o Kio grande, que vem a ser hum compri-
Biento de mais de outenta legoas , resultou daqui o mesmo inconve-
niente , que se pertendia evitar na dcsmembração , de licareni estas
terras muito distantes da capital da provincia; e seria muito acerta-
do detcrminar-se , que os Kios Uberava falso, e Uberava verdadeiro
en(a'e o Rio grande , e o Rio tias velhas , e o Rio Pizarrão entre o Rio
das velhas, e o Rio Paranahiba fizessem os limites dit Miuaa , ficando
todas as terras d;ihi até a foz do Paranahiba com o Rio grande per-
teucendw á provincia de S. Paulo , e assim mai.s próximas á capital.-
DAS SciENCIAS T)E LiSBOA. ^
muitas tribiis d' Imlios bravos. Estes limites se dirigem pri-
mL-iro pelo Rio Murialií , acima depois atravessao hum ser-
tão, e apparcccra outra vez nas margens do Rio Guandu ,
e dahi continuao por hum espigío entre o Rio Guandu ,
e Rio Manhaçu até ás Caxociras do Rio Doce, denomi-
nadas as Escadinhas , (limites estes determinados por hum
Auto de 8 d'Outubro de 1800, entre as duas províncias)
c cortando estas , e correndo pelo espigão de huma cor-
dilheira , que no principio tem o norfic da serra de Souza,
e que será provavelmente a cordilheira que acompanha em
certa distancia a costa do Brazil até o Salto grande do
Rio Jequetinhonha, atravessão o Rio pardo grande, c fe-
chão com o limite da Província da Bahia, {a)
Contém todo este terreno desde a latitude 14", até
23°, c de longitude 2° Leste do Rio de Janeiro, até 6".
Ocst da mesma capital I7i5'2 legoas quadradas, cujo as-
pecto pela maior parte he montanhoso.
Huma grande cordilheira , que denominei a grande ser-
ra £ espinhaço^ divide naturalmente a província em duas par-
tes; a parte de Leste desta cordilheira he mais monta-
nhosa , c coberta de espessos matos ; a parte Occidental ^
exceptuando alguns ramos lateraes da grande serra, mostra
hum aspecto mais onduloso, e consiste de campos, em cu-
jos valles só se encontrão alguns matos. Assimcomo o as-
pecto exterior muito diíFere , também o interior do terre-
no he differcnte. Na parte oriental da grande serra prc-
dominão as rochas Graníticas, na parte occidental as ro-
chas Chistosas.
A elevação da provinda , segundo as minhas obser-
vações barometricas , he desde 1000 pés, considerando-se
o lugar mais baixo na confluência do Rio de Santo Anto-
A íi nio
(a) Em geral se devia evitar que os cumes das serras , ou as suas
vcrtenUs constituissem os limites. São estas as causas de continuadas
questões, e contendas principalmeate entre a província de S. Paulo, e
Aiinas.
4- Memorias PA Academia Real
nio com o Rio Doce, até a altuia de 6300 pés , que vem
a ser a seira mais alta do Irambc da villa do Príncipe ;
i^endo portanro a elevação média de toda a provincia so-
bre o njvel do mar de 2300 pés ; resultado este tirado de
mais de duzentas observações feitas em differentes purtes.
Esta grande elevação lie o principal motivo de não
ter a provincia nem hum rio navegável em grandes distan-
cias; somente o Rio de S. Francisco ofFerece esta vanta-
gem desde a barra do Rio Para , nas visinhanças da villa
de Pirangui, até á caxoeira da Pirapóra perto da confluên-
cia do Rio das velhas com o primeiro, c dahi até á gran-
de caxoeira de Paulo Affonso na provincia da Bahia , 60
Icgoas distante da barra do mesmo Rio de S. 1-Vancisco.
O Rio Doce mais difficuldades ainda offerece pelo curto
espaço de 40 legoas , em que se precipita de huma altu-
ra de 1000 pés , repartida em mais de vinte caxoeiras.
O clima he mui temperado, pois a temperatura mé-
dia não excede de 64° Fahr. , temperatura igual de Lisboa,
mas a humidade excede á de Lisboa 11° do Hygrometeo
de Luc. Entretanto as localidades em muitas partes in-
alem de tal modo, que alguns districtos são mui quentes,
cjutros mui frios ; em huns nunca cahe geada , em outros
porém cahe tanta que a canna , as bananeiras , os cafezei-
ros , e outras arvores morrem , e até as aguas estagnadas
golão c criâo huma crusta de grossura de meia pollcgada.
Em geral as estações do anno são mui regulares: do
mez d'Outubro por diante principião as chuvas , e trovoa-
das, continuando até o fim do mez de Março; e de Abril
por diante já não se conta com grandes e continuadas chu-
vas. A falta de chuvas no tempo próprio infalivelmente
produz falta de mantimentos; e pelo contrario os annos
de muitas chuvas nunca prcjudicão consideravelmente.
As observações seguintes feitas em Villa rica , c^ao-
huma idéa da muita , c pouca chuva que tem cabido , as-
simcomo das trovoadas , e da influencia que tiverão na cul-
tura dos mantimentos.
DAsScfENCIAS DE Ll.SBOA.
1
í
I 8
I 8
I 8
I ?
1820
Metei
Oiai Jc
Dias de
D/íiJ </í
UiVj (/<;
Dia/ de
Dias de
clíuva
trovoada
chuva
IrovonJa
chuva
trovoada
Janeiro
13
7
9
8
2 I
9
Fevereiro
9
5
4
5"
22
17
Março
3
I
10
10
15-
9
Abril
4
I
7
5
24
8
Maio
7
2
4
3
13
4
Junho
I
■»
2
5>
9 .
>>
Julho
8
I
I
»
6
»
Agosto
6
I
I
I
2
j>
Setembro
>>
>»
6
4
4
>>
Outubro
9
6
16
12
9
»
Novembrc
14
5
14
6
II
6
Dezembrc
10
10
2t
15
18
8
Somma
84
39
,6
69
1^4
61
Anno c
le fome
Anno c
'.e fome
Anno tl'abundácia as-
simcomo 0 de 1S21
— __.
i
O clima naturalmente influe sobre a vegetação ; e pa-
ra se poder fazer alguma comparação , apresento aqui di-
versas observações feitas em Villa rica.
Ag
6 MemoriasdaAcademiaReal
As larangeiras floiccem , assimcomo as mais arvores
cl'cspinho, nos mczcs de Setembro, Outubro, e Novem-
bro, c principiao a amadurecer no mcz de Maio,
Os cafczeiros florccem cm Janeiro, c Fevereiro, c
por segunda vez em os mezcs de Miio , c Junho, e ama-
durecem desde o mez de Setembro até o mez de Janeiro.
As macieiras florccem em os mczes de Outubro , e No-
vembro , e amadurecem nos mezes de Fevereiro , c Março.
Os pessegueiros florccem nos mezcs de Setembro , e
Outubro, e amadurecem cm Fevereiro, e Março.
As amcxociras florccem no mez de Setembro , c ama-
durecem no mez de Dezembro.
As hortaliças só produzem no tempo das agoas , mas
a alface, para ser viçosa, precisa do tempo trio.
A batata produz melhor no tempo da seca que no tem-
po da chuva.
O linho no espaço de três mezes chega a amadure-
cer ; no tempo frio precisa de quatro mezes , mas em to-
do o anno produz.
O milho se planta no mez de Setembro e Outubro ,
florecc no mez de Dezembro e Janeiro , e amadurece em
o mez de Abril.
O feijão se planta no mez de Fevereiro , e amadure-
ce cm o mez de Maio.
Assimcomo do clima depende a vegetação , de certo
também muito influe elle sobre a fecundidade, e mortanda-
de dos animaes , principalmente do género humano: ajun-
to portanto aqui hum resultado interessante, que tirei dos
mappas dos parochos do Bispado deMarianna, para se co-
nhecer esta verdade.
C/asses de pessoas livres.
Dos brancos nascem de 98... 4
De mulatos .... de 109,.. 4
De índios de 99 ... 4
Dos pretos de 83 ... 4
e morrem de io6 ... 3
de 109 . • . 3
de 108 ... 4
de p3 . . . f
Es.
DAS SciENciAS DE Lisboa. *f
Escravos.
Dos mulatos nascem de io5'...4: e morrem de loo... 6
Dos pretos de 103 ... 3 : de 102 ... 7
A maior fecundidade , e a maior mortandade se acha
por consequência entre os pretos livres.
A maior fecundidade, e a menor mortandade entre os
brancos,
A menor fecundidade , e menor mortandade entre os
mulatos.
A menor fecundidade, e a maior mortandade entre os
escravos pretos.
A respeito dos índios, os mappas certamente são in-
exactos, e a razão he esta: Os índios aldeados tomão sem-
pre os Portuguczes por padrinhos por causa d'alguns pre-
'/cntes que dcllcs recebem , c por esta razão dão parte aos
parochos a respeito das crianças nascidas : como não lhes
resulta a mesma vantagem , quando alguém da familia mor-
re , por isso ordinariamente o enterrão na matta , sem o
participar ; sendo hum facto que as nações dos índios di-
minuem cada vez mais, cm lugar decrescer, na proporção
dos mortos para os nascidos.
Toda a província está dividida em sinco comarcas:
a do Oiro preto , do Sabard ^ do Rio das mortes ^ do «ferro do
frio , c do Paracatu.
A comarca do Oiro preto , onde está a sede do Go-
verno, e do Bispado, comprehende hum terreno de 2268
legoas quadradas, e huma população de 75:5-73 almas, não
entrando neste numero as muitas tribus de índios como Bo-
tecudos, Puris , Coroatos, eCoropos, que habitão o gran-
de sertão entre o Rio Doce, e o Rio Pomba, cujo numero
não se sabe , de modo que por cada legoa quadrada não se
pôde contar mais que 33,2 pessoas civilizadas.
A comarca de Sabard a menor de todas , mas a mais
povoada, tem 1700 legoas quadradas, e huma população
de ii(?y2o almas, fora os índios salvagens que ha na con-;
fluen.
Ç MemoriasdaAcademiaReal
fluência do Rio de Santo António , com o Rio Doce ; con-
tem por consequência por cada Icgoa quadrada 70, 3 pes-
soas.
A do Rio das mortes , á excepção de hum pequeno
numero de índios , que habitão as margens do Rio Paraí-
ba , tcni cspaliiado sobre hum terreno de 3240 Icgoas qua-
dradas huma popuhiçáo de 2 136 17 pessoas, que vem a ser
por cada legoa quadrada 65", 9 pessoas.
A commarca do Serro frio he a mais extensa, contem
éij6 Icgoas quadradas, e huma população de 83626 al-
mas, que vem a ser 13, f pessoas por cada Icgoa. A ter-
ça parte certamente he povoada por índios bravos princi-
palmente Botccudos.
A de Paracattí tem 3888 legoas quadradas, não en-
trando o grande sertão desde a estrada principal que con»
duz de Goyazes para S. Paulo , até a confluência do Rio
Paranahiba com o Rio grande , tendo só huma populnção
de 21772 almas; portanto he tão despovoada que por ca-
da legQa quadrada não se pôde contar mais que f, 6 ha-
bitantes. Não tem índios bravos, á excepção dosCayapós,
que vagão pelo sertão à cima mencionado. Os índios Bo-
rorós, e Xigriabás, aldeados ao longo da estrada de Goya-
zes , c S.Paulo, fazem só huma população de 871 almas,
espalhadas em 19 aldeãs.
Resulta portanto daqui que toda a província de Mi-
nas gcraes tem huma população de5'i4io8 pessoas, espa-
lhadas sobre hum terreno de i725'2 legoas quadradas, de
sorte que para cada legoa quadrada se contão 29, 7 pessoas.
O mappa seguinte tirado no presente anno, e fundado
sobre os mappas particulares de diíFerentes datas e annos ,
dá huma idéa das diíferentes classes da população, (a)
MAP-
(a) Mão obstiinte as muitas, e repetidas onleus, e insinuações dos
Governadores para se formarem todos os annos , e com toda a exacti-
dão , os mappas da população , não tem sido possível asna realização,
e nunca o será em quanto não se empregarem certas pessoas para este
effeito , tiraudoas listas da população , dos livros dos assentos dos pa-
rochos.
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B
IO Memorias pa AcademiaReal
As principaes producçocs, que constituem os géneros
de commcrcio em cada hum;i das comarcas, tanto para o
commcrcio interior como exterior , são:
Na-comarca de Oiro preto oiro, ferro, topázios, man-
timentos, c algum toucinho.
Comarca do Salurd oiro, ferro, mantimentos, touci-
nho , gado vaccum , c fazendas d'algodao.
Comarca do Rio das mortes oiro, mantimentos, tou-
cinho, queijos, fumo, gado vaccum , e cavallar.
Comarca de Serro do frio oiro , diamantes , e outras
pedras preciosas , ferro , gado vaccum, c principalmente al-
godão cm rama , do districto de minas novas.
Comarca de Paracatii pouco oiro, toucinho, pouco
algodão (sendo o do Abacié de tão boa qualidade como
o de minas novas) (d) ^ gado vaccum , e cavallar.
Havendo tantas proporções , e capacidade nesta pro-
víncia para estabelecimentos, fabricas, e manufacturas, he
para admirar como atégora a industria tenha feito tão
poucos progressos , de modo que hoje em dia só existem
alguns estabelecimentos Régios de pouca utilidade , algu-
mas fabricas , mas nenhuma manufactura.
Aos estabelecimentos pertencem em primeiro lugar as
quatro casas de fundição d'oiro, erigidas no anno de i75'i
em beneficio dos mineiros , e da Real Fazenda , tempo em
que SC podia então usar de toda a generosidade para com
os mineiros pelo grande rendimento que dahi resultava ; cie
modo que se crearão as quatro casas de fundição de Villa
rica, Sabará , S. João d' ElRei , e Villa do Principe, com
muitos empregados, e grandes ordenados, como mostra a
relação seguinte.
Re-
(a) Sciia f!a maior ucccssidade que se introduzisse geralmeíite hu-
ma boa policia para vigiar sobre os falsificadores do algodão , não
sendo raro cncontrareni-sc uo meio dos fardos algodão com caroços ,
ou pedras para augmeutar o peso, de modo que os compradores estão
sempre de má fé, em graudc prejuízo deste importante ramo de com-
mcrcio.
DAS SctENCIAS DE LiSEOA. ÍI
Relação dos empregados , e seus ordenados em cada huma
das casas de fundição.
Hum Inspector («)---- a 400^ rs, i:6oc^ rs.
Thcsourciro ---.-. 8oo(3Í) y.20oq[)
Escrivão da receita e despesa SoO(f) 3:200^
Escrivão de fundição - - - 70O(f) 2'2oo^
Ensaiador ------- 8oo(í) 3:200(|)
Ajudante d' Ensaiador - - - ^ootj) 1:600^
I." Fundidor ------ 80c ^ 3:2001^)
2° Fundidor ------ 400;^) 1:600^
Meirinho ------- 300^) i:200(|>
F^scrivSo do dito - - _ . 300(;^ i:200(^
Fora destes empregados tem
a Intendência de Villa rica
Hum Fiscal --------- 600^
3.° Fundidor --------- 400(J
Abridor de cunhos ------- 8oo(^
Em despesas de jornaleiros, carvão, &c, 2:20o<^
Somma total das despesas annuaes - - 3o:ooo(^
Accrescc ainda a esta despesa a de sulimao , e agua
forte , que são remettidos pelo Real Erário do Rio de Ja-
neiro , e de que se ignorão os preços.
Nestas casas he gratuitamente fundido em barras o
oiro , que os mineiros para ahi levão , marcando-as com o
8eu valor intrínseco, tirando-se antes de fundido o quinto,
Estabelecêrão-se estas casas quando a mineração esta-
va no seu maior auge, e o Real quinto rendia então 11 8
arrobas. He para lastimar que naquelle tempo não houves-
B ii se
— — - ■
(a) São ^^ Juizes de fora os Inspectores,
12 Mem ORi AS DA Academia Real
se no Ministério de Sua Magcstadc pessoas formadas nas
scicncias moiitanlsticns , para dar ao governo das Minas
hum regimento solido que affiançasse e assegurasse á pos-
teridade estas fontes de riqueza nacional.
Era para prever que os grandes thesouros que os mi-
neiros acharão quasi na superfície da terra , e com pouco
trabalho, deveriao diminuir com o tempo, ajudando sobre
tudo a ignorância para destruir mais depressa o que por
huma regular administração montanistica seria objecto de
industria para muitos séculos.
A diminuição do Real quinto , e por consequência a
decadência das lavras de oiro , também principiou logo de-
pois da criação das casas da fundição: no anno de 1764
já estava reduzido a pp arrobas, em 1774 3 7? arrobas,
em 1777 a 70 arrobas, e assim continuou progressivamen-
te a diminuição de modo que em 181 1 já estava reduzi-
do a 24" arrobas, em 1813 a 20 arrobas, em 1816 a 18
arrobas, em 18 18 desceo até 12 arrobas, em 18 19 a 7 ar-
robas; e em 1820 anno do estabelecimento do Banco fi-
lial para a compra d'oiro em pó rendeo só duas arrobas.
Nos annos da riqueza se occupavão oitenta mil pes-
soas com a mineração , porém no actual tempo da miséria
apenas seis mil ; por consequência não hc só o extravio o
quo erradamente se dá por principal causa da diminuição
do Real quinto, sendo aliás a principal, mas a diminuição
do numero de braços , braços que o mineiro empobrecido ,
e ignorante retirou destes trabalhos, por já cançado de não
ter a fortuna dos seus antepassados.
Resultou destas idéas erradas , principalmente nos tem-
pos modernos , que o Ministério , que quasi nunca cuidou
em remediar os verdadeiros males, pensava que tudo esta-
ria remediado, acautelando o extravio, pois por desgraça
teve as mais das vezes lembranças tão infelizes, que de or-
dinário só produzião resultados contrários,
*" ~ As leis montanisticas existentes , segundo a ordem
chronologica, são:
I.
DAS SciENCIAS DE LiSBOA, IJ
i.° Alvará de regimento em 62 capitules , de ij dé
Agosto de 1605 , que lílRei D, Filippe 11 dco aos seus vas-
sallos , e mineiros do Brasil.
Nota. Como este Alvará estivesse por muito tempo em
CastcUa, só em 9 d' Outubro de i6j2 hc que ellc toi re-
gistado em S. Paulo, e a requerimento de partes, no Li-
vro do registo da Gamara de S. João d'ElRei em 27 d'Ou-
tubro de 1729; mas não obstante as muito excellentes de-
terminações que elle contém , nunca esteve em plena execu-
ção.
2.° Regimento dos Guardas mores, que para as minas
trouxe o Doutor José Vás Finto sobre as terras mineraes,
e aguas, de 19 d' Abril de 1702, contendo 33 capítulos.
3.° Reformas da maior parte dos capítulos do Regimen-
to anterior de 7 de Maio de 1703.
Nota. Por causa da imperfeição do regimento foi ne-
cessário fazer as reformas de huma grande parte dos capí-
tulos, mas com tudo isso contém este regimento tantas de-
terminações contrarias a huma boa administração montanis-
tica , que a elle em grande parte se pôde attríbuir a rui-
na da mineração ; pois foi feito inteiramente sem conheci-r
mentos da causa.
4,° Três cartas de Sua Magestade para o Doutor José
Vás Pinto, de 7 de Maio de 1703: a primeira trata d'al-
gumas providencias a respeito da repartição das datas ; a
segunda determina lavrar as datas da Real Fazenda de
meias ; e pela terceira são creados os lugares de Guardas
mores substitutos. -
j." Bando de D. Braz Balthazar da Silveira, Governa-
dor e Capitão General de S. Paulo, e Minas, de 2a de
Fevereiro de 1714, determinando as penas em que cahem
as pessoas , que não dão parte dos descobrimentos , conce-
dendo também mais huma data aos descobridores.
6." Lei de 22 de Junho de 1720, que determina fa-
zer as repartições das aguas , conforme as possibilidades dos
que minerão.
7*
14 M E M o R I A S D A A C A n E M I A R E A L
7.° Bando de D. Lourenço d'Almeida , Governador e
C.ipitão General de S. Paulo, c Minas, para o morro de
mara cavallos, e passagem, de 26 de Setembro da 1721.
Noia. Não contem nada que seja geralmente applica-
vel.
8." Bando de D. Lourenço d'AImeida, de 3 de Março
de 1726 , contendo licença para ir livremente minerar a
Iraberava , e de lá a Casa da casca.
9.° Bando de D. Lourenço d'Almcida , de 22 de Mar-
ço de 1728 para o Rio das pedras, contendo algumas pro-
videncias locaes.
io.° Bando de D. Lourenço d'Almeida , de 24 de No-
vembro de 1728 para o morro de S. João d' ElRei , do
modo e como se ha de repartir o dito morro , determinan-
do também que se dêm datas não lavradas a outras pes-
soas.
ii,° Bando do General Gomes Freire d'Andrade , de
1736 sobre os salários que devem levar os Ministros das
vestorias , e sobre as provisões dos Guarda mores , substitu-
tos , e seus Escrivães.
Nota. Como o original estava mui damnificado não se
poude conhecer a data em que foi passado. EUe allega hu-
ma ordem de Sua Magestade de 27 de Junho de 1735 a
respeito dos salários, que não pude descobrir em nenhum
dos cartórios.
12.° Bando de Gomes Freire d'Andrade , de 8 d'Agosto
de 1738, sobre a lei de 13 d'Abril do mesmo anno a res-
peito das sesmarias.
13.° Provimento de Guarda mor geral por ordem de Sua
Magestade , sobre as aguas mineraes , o qual foi achado no
Livro da Guarda moria a foi. 108 e 109.
14.° Bando de Gomes Freire d'Andrade, de 14 de Maio
de i''36 , contendo varias providencias sobre as funcçóes
dos Guardas mores, sobre demandas, e principalmente so-
Jbre a conservação dos matos.
Nota. Não duvido que haja ainda mais algumas leií ,
e
dasScienciasdeLisboa. TJ"-
e banjos espalhados nos nntigos livros de registo, ou nas
Gamaras, ou Secretarias do Governo, ou da Junta da Real
Fazenda, ou cartórios d'Ouvidorias , mas não chegarão ao
meu conhecimento , e ninguém hoje os conhece.
iç-." Nos tempos modernos appareceo o Alvará de 13
de Maio de 1803, abolindo o giro do oiro em pó, e es-
tabelecendo casas de moeda na capitania de Minas ge-
racs.
Nota. Este Alvará está fundado sobre verdadeiros prin-
cípios montanisticos , mas o plano he tão gigantesco, e
cm muitos artigos impraticável no Brasil , de modo que co-
nheccndo-sc as difficuldades de pôllo em pratica, ficou sem
effeito; entretanto sobre elle se deve formar huma lei mais
económica, e mais adquada para os estados do Brasil.
16. "Alvará de 10 de Setembro de 1808 para circula-
rem em todas as capitanias do interior moedas d'oiro , pra-
ta, e cobre j prohibindo a circulação do oiro em pó como
moeda.
Nora. Este Alvará pela maior parte não foi posto em
pratica, principalmente pela falta de fundos metallicos , e
por este motivo sahio o Alvará seguinte:
17.° Alvará de 12 d'Outubro de 1808 para circularem
na capitania de Minas gcraes os pesos hespanhoes , depois
de serem marcados com o cunho das Armas Reaes ; fazen-
do-se também bilhetes impressos para o troco de oiro em
pó nas casas de permuta. Acompanha este Alvará hum re-
gulamento provisional para o tfoco de oiro eili pó.
Nota. Foi este Alvará que muito prejuizo tem causado
á Real Fazenda , não somente por ter aberto maior cami-
nho ao extravio, mas também pela perda que sofria nas
trocas , e nos immcnsos bilhetes falsos , que logo forão in-
troduzidos. A perda nos trocos importou desde 1809 até
18 > 4 em quatorze contos de réis, que desde então até ho-
je será dobrada.
18.° Alvará de 17 de Novembro de 1813 privilegian-
do os mineiros que se empregão effecxivamente na excava,
ção
1^ MemoriasdaAcademiaReal
ção do oiro, não obstante não terem trinta escravos; am-
pliando o Decreto de 19 de Fevereiro de I7yz.
Nota. Todos os privilégios que prcjiidicão a terceiro
são nocivos, e principalmente este, que faz perder todo
o credito dos mineiros. rri ;!'.:
19.° Carta Regia de 4 de Dezembro de 1816, ordenan-
do a abertura das estradas da cipitania de Almas para a
do Espirito Santo.
Nota. Trata-se nella também da distribuição dns terras
de mineração, que se encontrarem naqueile sertão.
2C.° Carta Regia com os estatutos para a companhia
de mineração de Cuiabá de 16 de Janeiro de 18 17.
. Nota. He esta Carta Regia feita só para aquelle local,
e não tem applicaçao para outras partes.
21.° Carta Regia de 12 d' Agosto de 18 17 com os seus
estatutos , ordenando o estabelecimento das sociedades de
mineração.
Nota. He a execução destes estabelecimentos o único
meio da resurreição da mineração , e de acabar com o ex-
travio ; mas seria necessário ampliar mais os estatutos , e
animar a creação das sociedades.
: 22.° Creação do Bjnco filial para a compra do oiro em
pó, c das barras, de 1819.
Nota. Esta creação de Banco filial feita pelo Banco do
Rio de Janeiro anniquilou quasi o Real quinto , augmen-
tou as despesas, e abrio mais portas para o extravio; e co-
mo a maior parte dos fundos erão remettidos em bilhetes,
desappareceo todo o metallico, de sorte que em muitas par-
tes do interior não qucrião acceitar os bilhetes, e em ou-
tras pedião hum rebate de seis por cento. O peior de tu-
do he que , não obstante a creação do Banco filial tornar
supérfluas todas as despesas das casas de fundição , estão
estas ainda no mesmo pé, como se o Real quinto rendesse
cem arrobas de oiro.
Em segunddo lugar o estabelecimento Régio, e gran-
-de, de que não se pôde bem calcular as perdas para a
Re-
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 17
Real Fazenda , he o da Real extracção diamantina. Este
estabelecimento tem hum Intendente geral com huma Jun-
ta administrativa, cujos membros, que estão atesta delle ,
tem avultados ordenados, sendo a despesa annual , e que
ainda actualmente se faz com pouca diffcrcnça, a seguinte :
Despesa annual da Real extracção dos diamantes.
De assitencia annual ------- 1 20:0001^000
Ordenados ao Intendente , Fiscal , Escri- ") , -.
., • ■ 1 ' ' > 6:o20(j)ooo
vao, e Meirinho ------ j ^-w.
Aos Officiaes , e soldados da companhia, ") ^ o *.
j D j . A \\ f • u r 4:6o8(?)ooo
de redrestes , de soldo e rannha - i t y ^
Suprimento a assistência da Regia ex- -j
tracção dos diamantes pelo prejuizo > 4:000(35)000
do oiro do auinto fundido - - - j
Somma i3j:6 18(^000
Nota. A esta despesa acresce ainda a do destacamento
do regimento da cavalleria de linha, composto de hum Ca-
pitão , hum Alferes , e quarenta soldados , assimcomo o pa-
gamento da divida de mais de hum milhão , que resultou
do papel moeda , que a dita administração tinha faculdade
de fazer , visto não chegar o dinheiro da assistência. Estes
bilhetes da extracção não tinhão valor algum fora do dis-
tricto diamantino, e também a Fazenda Real só á dous
annos para cá os tem recebido em pagamentos , mas só da
comarca do Serrofrio. Esta comarca rende mais ou menos
trinta contos annualmente , mas sendo tal quantia destina-
da para a amortização da divida, fica portanto augmenta-
da a despesa.
Tem tido esta administração , desde a descoberta dos
diamantes no anno de 1727, varias alternativas; e as leis
que a este respeito sahírão são as seguintes :
i.° Portaria de D. Lourenço d' Almeida , Governador e
Capitão general de S. Paulo e Minas, de a de Dezem-
T.IX.P.L C bro
i8 Memorias da Academia Real
bro de 1729, aiinullando todas as concessões de datas pe-
los Guardas mores nos rios diamantinos.
2." Carta Regia de 8 de Fevereiro de 1730, ordenando ao
Governador c Capitão general de usar de rodos os meios que
achasse conveniente para tirar utilidade desta descoberta.
3.° Portaria de D. Lourenço d'Almeida , de 24 de Ju-
nho de 1730, determinando o methodo do trabalho, e o
pagamento de ^ (j)ooo rs. por cada escravo. Esta providen-
cia foi desapprovada pelo Ministério, e mandou que paras-
sem os trabalhos j mas por instancias do povo ainda con-
tinuarão pagando-se 20(í)ooo rs. por cada escravo. Como
a concorrência de trabalhadores fosse extraordinária de mo-
do que os diamantes perderão o seu valor na Europa , sahio
então ú luz o
4.° Bando de D. Lourenço d'Almcida , de 9 de Janeiro
de 1731, mandando despejar da comarca do Serrofrio to-
dos os negros , negras , e mulatos forros.
J." Bando do Conde das Galveas , de 16 d' Abril de 1733 ,
regulando o pagamento de cada escravo em 2^^600 rs. , e
yarias outras providencias.
6.° Bando do Conde das Galveas, de 2 de Dezembro
de 1733, regulando o pagamento de cada escravo em
40(i)ooo rs. , c tratando de mais outras determinações.
7.° BanJo do Conde das Galveas, de 19 de Julho de
1734, mandando cessar inteiramente o tributo que se pa-
gava dos escravos, e ordenando que todos os diamantes de
maipr de vinte quilates de peso pertenceriao á Coroa.
8.° Portaria do Conde das Galveas, de 8 de Novembro
de 17^4, impondo taxas ás lojas de fazendas, e tabernas
em Tijuco, e outras providencias a respeito da justiça.
9.° Bando de Gomes Freire d' Andrade , de 26 d'Agos-
to de 1739 1 pondo a taxa sobre os escravos a 240<|)ooo rs, ;
e como ninguém quizesse trabalhar, arrematou hum certo
João Fernandes d'01iveira o contracto por tempo de qua-
tro annos , e até o anno de 1771.
Nota. Ficou esta administração na mão de diíFerentcs
contractadores , com muito prejuízo da Real Fazenda j m^s
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. Í9
depois tomou a Coroa sobre si a administração, e mandou
o regimento seguinte :
10.° Regimento para a Real extracção dos diamantes do
Arrayal do Tejuco do Scrrofrio, de 2 d'Agos:o de 177 1.
Nota. Contêm este regimento 5-4 artigos, e todos tra-
táo do modo mais dispotico do governo do districto, pa-
ra evitar o extravio : hc hum regimento mais digno de
brilhar nos estados do Grão Senhor, que u' hum paiz ci-
vilizado.
ii.° Leis, e regimento para o fiscal da administração
dos diamantes, de 23 de Maio de 1772.
Nota. Neste estado se tem conservado esta administra-
ção até hoje; e he finalmente tempo que o Ministério olhe
para este importante ramo da administração , fazendo as-
mudanças que as circumstancias exigirem.
O terceiro estabelecimento Régio he a Real fabrica
de ferro do morro do Pilar, com que se tem gasto cento
e tantos contos de réis, a custa da assistência da Real ex-
tracção diamantina. Por hum termo médio dos últimos seis
annos tem a dita fabrica annualmente produzido 1 144 ar-
robas, que custarão a produzir (não entrando as despesas
extraordinárias) 7:^^0(^)000 rs. ; e como cada arroba de fer-
ro seja vendida na fabrica pelo preço de 2(2)ooo rs. , tem
dalii resultado annualmente huma perda de 5':i72(^ooo rs. ,
ou huma perda em cada arroba de ferro de 4(35)608 rs.
O quarto estabelecimento Régio he a Real mina de ga-
lena do Abaete, com que a Fazenda Real despendeo desde
181 1 inclusive da compra de 26 escravos 5::462(j[)ooo rs. Por
ora nenhumas vantagens tem resultado deste estabelecimen-
to, por ter o Ministério faltado com as providencias ne-
cessárias. Entretanto já hoje não faz com elle despesa al-
guma a Real Fazenda , por sustentar-se a si mesmo da ven-
da dos algodões que produz , e da melhor qualidade.
O quinto estabelecimento , em que a Real Fazenda tem
parte , he a sociedade de mineração de oiro , que tem as
suas lavras no arraial da passagem da cidade de Marianna;
Os poucos fundos , que este estabelecimento tem , e que quasj
C ii fO'
iO Memorias DA Academia Real
todos se applicarao na compra de escravos, lavras, e erec-
ção de engenhos , e as poucas providencias da parte do
Ministério , são a causa de não ter elle feito os progres-
sos que deveria fazer; entretanto os seus trabalhos conti-
nuão com grandes esperanças de hum feliz resultado , hu-
ma vez que haja de cooperar daqui em diante , como se
deve esperar, o sábio Ministério.
O sexto estabelecimento he a fabrica de ferro de Con-
gonhas do campo, estabelecida por Carta Regia de i8ii
á custa de huma sociedade. A sua creaçâo custou treze mil
cruzados ; o resultado da producçâo , por hum termo médio,
nos últimos seis annos tem sido annualmente 1300 arrobas,
que custáião a produzir a quantia de a:200(3l)ooo rs. ; e como
cada arroba de ferro seja vendida na fabrica por 2(^400 rs. ,
tem dahi resultado hum lucro annual de 5)zo<^ooo rs. , ou
hum lucro de 708 rs. em cada arroba de ferro.
Fora destas fabricas de ferro ha ainda outras de par-
ticulares , que merecem ser nomeadas.
Duas fabricas no termo da villa do Principe , que prin-
cipalmente tem suprido com ferro a Real extracção dia-
mantina.
A fabrica do francez Monlewade ao pé de Caeté , que
tem hum forno alto.
A fabrica de huma sociedade de Itabira de matto den-
tro , com outras mais pequenas , no mesmo arraial , entre as
quaes huma tem huma pequena fabrica de armas.
A fabrica de Capanema , onde se vende o ferro em
obras; e muitas outras pequenas, espalhadas em mais par-
tes da Capitania , e que somente produzem ferro para uso
da casa , e lavoura.
Não se encontrão fabricas de outra natureza , nem ma-
nufacturas em toda a província.
Depois de ter brevemente tratado do estado physico
tia provincia , e de como são aproveitados os seus thesou-
ros , passarei a tratar da influencia , que ella immediatamen-
te tem sobre as rendas da Real Fazenda , e da applicação
<las mesmas , mas tudo em resumo na Tabeliã seguinte :
Re-
DAS SciEWCiAS DE Lisboa. 3t
N3o tendo esta provincia , como consta dos livros da
receita e despesa da mesma , sobras , que se podessem ap-
plicar para outras necessidades do Estado, e tendo-se ape-
nas conseguido por huma melhor administração dos rendi-
mentos , pagar a divida atrazadu de duzentos e cinco con-
tos aos filhos da folha, restando ainda o pagar a grande di-
vida da administração diamantina , mais difficuldadcs se en-
contrão agora em realisar este projecto , tendo-se nos últi-
mos dous annos consideravelmente augmentado as despesas,
sendo ainda muito maior a difficuldade em consequência da
bem acertada graça de S, A. R. de mandar levantar o gran-
de tributo do sal, que annuahnente importava pouco maiç
ou menos, segundo a lista da importação, em iiy contoç
de réis; porque impossibilitará muito mais a Real Fazenda
de pagar os filhos da folha com a exacção , que he ne-
cessária em todos os Estados bem organisados , pela falta
que faz nos rendimentos ; portanto he de maior urgência
supprir com a maior brevidade esta falta.
Não me posso conformar com o projecto de carregar
com maiores tributos os outros objectos de luxo , pois a
graça concedida ficaria sem effcito , e indirectamente re-
cahiria outra vez tanto sobre o pobre, como sobre o rico,
vistoque a natureza do commercio assim o requer. Dimi-
nuir as despesas, economisar os objectos supérfluos, que
não influem na felicidade do paiz ; diminui-las tanto quan-
to importava o rendimento , he o importante objecto de
que resultará o beneficio aos povos, e que S, A. R. tinha
em vista fazer-lhes , e que sem perda de tempo se deve
pôr em pratica.
Dous recursos principaes ha , e que geralmente nada
influem no bem dos povos.
O primeiro he a abolição de três casas de fundições,
a de Sabará , de S. João d* ElRei , e de yilla do Prínci-
pe.
O segundo he a abolição da Real administração dia-
mantina.
Os
21 Memorias DA Academia Real
Os outros recursos são de menor importância , os quaes
se reduzem a despender menos com as milícias , e alguns
empregados supérfluos.
j 'i^ Abolição de três casas de fundições.
Sendo o Real quinto quasi reduzido a nada, huma das
casas de fundições, a de Viila-iica , lie muito sufficicnte
para satisfazer , ou preencher o seu fim , unindo-sc a cila
huma casa de moeda. As outras três casas , que rcstão , co-
mo consta da tabeliã das despesas , e que fazem hum gas-
to annual de vinte contos de réis, segundo hum termo mé-
dio, deverão ser abolidas; pois conservando-sc ainda aos
seus empregados ametade pelo menos dos seus ordenados ,
emquanto não entrassem em outros empregos ; a Fazenda
Real poupará mesmo assim annualmente dez contos de réis,
além do que ella despendia com jornaleiros , carvão , le-
nha, &c. , cuja somma servirá para o acréscimo de despesa
feita com a casa da moeda , que de certo não importará
em mais , contando mesmo com o ter a casa da fundição
de Villa-rica todo o aparelho necessário para cunhar moe-
da, e até hum abridor de cunhos.
Para os mineiros poderem immediatamente trocar o
seu oiro , se estabelecerão nas três casas de fundições abo-
lidas , casas de permuta , empregando-se os officiaes , que
estiverem a meio soldo, e usando-se , a respeito da remes-
sa d'oiro para a casa da fundição de Villa-rica onde de-
verá ser logo fundido , e reduzido a moeda , o mesmo que
foi ultimamente praticado pelo Banco filial. O troco de oi-
ro deve ser feito principalmente em moedas d'oiro •, c fa-
zendo S. A. R. a graça aos mineiros de lhes perdoar o Real
quinto , reduzindo-o ao dizimo, ou vigésimo , e dando á oi-
tava d'oiro o valor de mil e quinhentos rs. , não só todo
o extravio acabará, mas de novo se reanimará a mineração,
e a Real Fazenda ganhará no direito senhorial o que per-
deo no quinto , e no oiro extraviado,
» ^ ' Abo-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA, IJ
Abolição da Real extracção diamantina.
De neccssidaJe este estabelecimento deve levar huma
grande reforma, tanto económica, como politica: a primei*
ra pelas necessidades do Estado ; a segunda pela incompa-
tibilidade cm que as leis desta administração se achão com
o actual estado das cousas.
Da conta da despesa deste estabelecimento vio-se que
importava annualmcnte , inclusive a da amortização da di-
vida , cm _----..--- 165:61812)000
Abolindo-se a actual administração, fica a despesa re-
duzida ao seguinte :
Para amortização da divida - - - - 50:000(^000
Para p.igimento dos principaès emprega-
dos a meio soldo , e outras despesas de huma
nova administração -------- 20:000^000
Somma 7o:ooo(|)ooo
I
Portanto a Fa/enda Real lucrara' , ou poupará nesta
administração 95:000(^000 ^ que sommados com os dez con-
tos , que se podem poupar na abolição das três casas de
fundições, faz a quantia de cento e cinca contos , que su-
prirá perfeitamente a falta que a abolição dos direitos de
• sal causara nas rendas da Real Fazenda ; e conser\fando-se
huma boa administração das rendaá da província, a' grande
divida ficará extincta , e no fim de dez annoá , por conse-
quência se poderá contar com huma sobra de sessenta con-
tos de réis annualmente. "
A respeito de huma futura administração diamantina ,
diffcrentes são os systcmas , que se poderáõ seguir , comtan-
toquc os trabalhos sejao fiscalizados por huma administra-
ção regular, e que a venda dos diamantes esteja livre, e
não constrangida, sendo as pedias de galerim primeiramen-
te
24 Memorias da Academia Real
te offcrccidas á Coroa , e compradas pelo seu justo valor
no caso de agradarem. O melhor systema será sempre o
de serem os rios trabalhados por sociedades , em que todos
os capitalistas possão tomar parte, entrando com acções,
c pagando do total do valor dos diamantes cxtrahidos á
Coroa o dizimo , ou , como cm outro tempo usarão , hum
tanto por cada escravo , ou trabalhador , detcrminando-se
o numero do pessoas , com que podessem trabalhar.
Não he aqui o lugar d'estcnder-me sobre este assum-
pta, direi portanto só alguma cousa sobre os proveitos que
se podem tirar das outras riquezas da natureza.
Da Real mina de galena do Abaete.
Até ao presente tem sido o sertão do Abaete , no rio
do mesmo nome , comarca de Paracatú , o único lugar on-
de se tem dcscuberto galenas de chumbo argentifero. Dif-
ficaltosa foi a empreza de crear naquelles ermos hum esta-
belecimento metallurgico , pela falta de gente , e falta das
primeiras necessidades da vida ; mas emfim com muito tra-
balho , e paciência consegui fixar este estabelecimento , e
com a menor despesa possivcl. Não se deve esperar de
hum tal estabelecimento, ainda muito na infância, lucros
immcdiatos para a Real Fazenda ; mas he preciso não só
conserva-lo ,, mas eleva-lo mesmo ao melhor estado possí-
vel , paraque se possa para o futuro tirar delle grandes uti-
lidades nos casos de urgência ; e até porque deste modo
virá o Brasil a fazer-se pouco a pouco independente dos es-
trangeiros; mas para se conseguir isto, bastará só mandar
vir hum mestre mineiro, e hum mestre fundidor, e augmen-
tar o numero dos escravos até cincoenta , como já por mui-
tas vezes representei. O valor dos metacs fundidos , com o
grande recurso da agricultura, suprirá perfeitamente as des-
pesas deste estabelecimento , que com o augmcnto da po-
pulação poderá fazer época na historia das minas.
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 2^
Da mineração do oiro.
De maior consideração he a mineraçíío do oiro. A igno-
rância deitou a perder este grande ramo da riqueza nacio-
nal ; mas a hum sábio Governo pertence remediar os ma-'
les passados. N' hum paiz onde ha tanta falta de braços ^
e onde os poucos que ha, tanta preguiça tem, deve ser o
principal objecto substituir esta falta por meio de enge-
nhos , e maquinas. Nenhuma occupação offcrece hum cam-
po tão vasto ao mineiro scientifico para tirar as maiores
vantagens do seu saber que a mineração , o que nunca se
poderá esperar em quanto estes trabalhos estiverem nas
mãos de homens ignorantes, que só seguem o que apren-
derão de seus pais : portanto formar huma administração
regular , simples , c económica de pessoas scientificas , e
formadas nasscieneias montanisticas, crear as sociedades de
mineração em toda a sua extensão , formar leis próprias
para o paiz , he o único meio de fazer florecer outra vez
as minas de oiro , e he também o grande objecto que me*
tece toda a attenção de hum sábio Governo.
A copia de huma attestaçao junta dá huma pequena
jdda das vantagens para a mineração , que se podem tirar
da applicação de engenhos.
» Romualdo José Monteiro de Barros , professo na
j» Ordem de Christo , Coronel de Milícias , &c. z5 Attes-
j> to c faço certo , que por insinuação do Tenente Coro-
5> nel do Real Corpo de Engenheiros , Guilherme Barão
>» d' Eschwege , fiz construir hum engenho para reduzir a
3> pó , e ao mesmo tempo lavar a formação de pedra da
" minha lavra , seguindo-se em tudo a sua direcção , com
» que principiei logo a perceber a grande vantagem de
>» tirar vinte e seis oitavas de huma mina abandonada pe-
>» la sua pobreza , no curto espaço de pouco mais de dois
»» dias de trabalho , em que foráo occupados apenas dous
>» escravos ; vantagem esta que antes não percebia com
T. IX. P. I. D »» trin-
«■6 Memorias DA Academia Real
»> trinta praças occupadas na mesma mina cm huma sema-
» na, E por esta me ser pedida a passei para constar.
»» Morro de Santo António 13 de Maio de 181). r:; Ro-
» mualdo José Monteiro de Barros. "
Nota. A copia authcntica desta attestnçao foi por or-
dem do Ministério inserida na Gazeta do Rio de Janeiro
no mesmo anno de 18 ij.
Das fabricas de ferro.
De certo , metal nenhum contribua tanto para a ri-
queza , e industria nacional que o ferro , aiiulaque pouco
lucro tirão os fabricantes que o produzem , com tudo he
huma fonte de que milhares de pessoas tirão o seu susten-
to , he o movei que vivifica a agricultura, e todas as fa-
bricas , e que mais influe sobre o augmento da população
de hum paiz.
O interior do Brasil , principalmente a província de
Alinas geraes, he o mais abençoado paiz a este respeito,
c hum sábio Governo deve procurar todos os meios para ti-
rar as grandes vantagens destes bens da natureza. Animar
a fabricação por meio de prémios , augmentar as fabricas
pequenas espalhadas em toda a província, será o verdadei-
ro methodo que mais influirá sobre a felicidade dos povos.
Fabricas grandes por modo algum podem subsistir ,
principalmente no interior. A população ainda he mui di-
ininiita , por consequência o consumo está nesta mesma
proporção. A exportação para os portos do mar sem estra-
das , e rios navegáveis , e aonde o ferro de fora está por
hum preço tão baixo , preço a que apenas poderá chegar
o do Brasil , a nenhum homem de senso lembrara' ; entre-
tanto hc necessário que o Brisil tenha algumas fabricas
-grandes, como a de S João de Ininema, e a do Morro do
^ilsr, para as necessidades do Estado cm casos extraordi-
1)1 ci A fabrica de S.Joao de Ipanemi offjrece maiores van-
^niij «t <^i .\ .'^ .^V . lia-
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 17
tagcns pela sua localidade , porque cstabclccendo-sc ahi hu-
ma fjbrica d'armas c ferrarias , onde se fabrique em obra
grande parte do ferro para os Reacs Arsenaes, &c. , ella
por si mesma se sustentará : porém a fabrica do Morro do
Pilar só com prejuízo poderá trabalhar, huma vez que se
não introduza huma administração económica , que propor-
cione a producção ao consumo, principalmente porque se-
gundo hum perfeito conhecimento , depois da pratica de
muitos annos , não deverá exceder o producto a duas mil
arrobas.
D u ME-
T-
DAS SciENCiAS DE Lisboa. i^
MEMORIA
Sobre o começo , progresws , e decadência da litteratura JF/í-
hraica entre os Portiiguezes Catholicos Romanos desóe a jun»
dação deste Reino até ao reinado d' E/Rei D. ^osé I.
Por Fr. Fortunato de S. Boaventura.
^^uando eu tratava de colligir espécies que fizessem ao
intento de escrever a Memoria sobre a litteratura Gregd
nestes Reino r ^ succcdia-me encontrar muitas, que respcita-
vão á litteratura Hebraica ; e desde então se me excitou a
idéa que trato agora de executar. Principalmente a execu-
to por saber a estima que fazem os estrangeiros deste ra«
ino de litteratura , e por ter observado , não sem gronde
reparo e dissabor , que tal filólogo protestante do sécu-
lo XVIII. depois de recensear os serviços feitos á littera-
tura Hebraica pelas difix;rentes nações da Europa , ousa es- '
bulhar os Portuguezes de toda a consideração nestes estu-
dos, (a) Accresceo mais que o erudito Colomesio , {b) a
pesar de mui defeituoso em a resenha dos Portuguezes es-
tudiosos da lingua Hebraica, assim mesmo se fez cargo de
hum ou outro até agora ommittido pelos nossos escrito-
res (í) ; e para se mostrar ainda mais a nccessidabe de hum
trabalho sobre esta matéria , o próprio Wolfio addiciona-
dor e corrector de Colomesio, teceo hum novo catalogo,
onde entrâo mais Portuguezes do que devia ser, contando-
se alli entre os Hebraizantes alguns Escritores que não ti-
on-
(a) Vai Em. Lotscken de causu linguce HebiaxE Libri três. — Frait-
cofurti et Lipsuc 170G pag. 122.
(6) P. Coloiii. Itália et Hispwtia Orientalis Ed. Wolfio Hamburgi
17.J0. ■^ '
(c) Mais adiaatc se fará menção destes.
jo Memorias da Academia Real
nhâo a mais ligeira noticia da iingua Hebraica , e abiisan-
do-sc a cada passo do que devia ser hum titulo irrcfraga-
vel de erudições Hjbraicas em outra nação, que fosse mais
dada a similhantos estudos. Desgraçadamente porém o sa-
ber Hebraico entre nós , e íazcr longos tratados contra o
Judaismo , são tarefas mui diversas , e que as mais das ve-
zes andáo separadas , quando a boa razão exigia que fos-
sem constantemente unidas , e até inseparáveis.
Haveria muito de que encher esta Memoria, seosju-
dcos Portuguezes devessem entrar nella ; mas parecco me
ociosa huma empreza já cabalmente desempenhada pelo
cruditissimo e saudosissimo Sfír. António Ribeiro dos San-
tos , que se por ventura não chegou a exhaurir a matéria ,
aproveitou com tudo o melhor que corria impresso em Wol-
fio , Bartolocci , Imbonati , e Rossi ; e bem se vê que es-
tando já quasi seccas estas fontes de erudição , mal se po-
deria addicionar cousa inteiramente nova , que só estas são
dignas de apparecerem entre as Memorias sobre taes assum-
ptos. Cingindo-me pois ao titulo desta, repartirei pelos sé-
culos o que for próprio de cada hum delles, guardada em
tudo a concisão , e imparcialidade , que já me propunha se-
guir em a Memoria sobre litteratura Grega , e das quaes
espero dar nesta , provas ainda mais claras , e decisivas.
Não hc para admirar que fossem pouco avantajados os
passos da nossa litteratura , em quanto os nossos maiores se
cmpenhavão em conservar huma independência , que até ao
meado do século XIV teve sempre mais ou menos que te-
mer da parte dos Mouros , que bem a seu pezar hião lar-
gando a melhor das suas conquistas; entre tanto ^'que na-
ções da Europa tem a gloria de verem enfeitado o berço
da sua independência, com o estudo das letras Divinas, e
humanas commo ha succedido entre nós? Reparo, e com
toda a justiça , que certos ensaios da nossa litteratura pas-
sem por alto os séculos XII , XIII , e XIV, e que satisfei-
t .s de reduzirem a poucas palavras toda a Historia littera-
ria daquelles tempos , saltem ao scculo XV, que se julga
pro-
DAsSciEKCIASnELlSBOA. ^í
propriamente aqucllc onde se lançarão os fundamentos da
nossa reputação litt-raria, N.ío obstante a cscaccz de mo«
niiment.)s daquelles primeiros séculos da nossa Monarquia ,
era conveniente que os exploradores da nossa antiga litte-
ratura não se contentassem de ler Fr. Bi.rnurdo de Britto ,
c Manoel de Faria e Sousa , mas que adiantando-se hum
pouco mais, examinassem os códices daqueila idade, onde
por ventura achariáo linguagem mais corrente que a de Fer-
nam Lopes , Gomes Eannes de Az.urara , e Fr. Bernardo de
Alcobaça, j Assim fosse possível descubrir monumentos de
litteratura Hebraica nesses primeiros tempos da nossa in-
dependência, como he fácil achar escritos originacs, e tra-
ducçõcs feitas naquelles séculos , que ao vermos a indiffe-
rença com que são tratados pelos nossos Escritores , fa-
cilmente se pensará que forão escuros , e bárbaros ! Haven-
do como de feito havia muitos Judeos nas Hcspanhas , he
obvio que pelo menos hum ou outro dos Theologos Hes-
panhoes se desse ao estudo de huma lingua por certo in-
dispensável para serem combatidos , e destruídos os erros
de Synagoga.
A data de 1279 bem próxima dos tempos cm que
forão mais encarniçadas as guerras dos Soberanos da Penín-
sula com os Régulos que a dominavão em grande parte ,
he indicada até pelos sábios estrangeiros como aquella em
que os estudos da lingua Hebraica se fizerão vulgares nas
Hespanhas , sendo Raymundo Martins o seu principal ins-
tigador. Existindo já d'antes as causas que fomcntavão es-
te género de estudos, he de presumir, que também já d'an-
tes houvesse alguns estudiosos da lingua Hebraica ; nem era
natural que sendo as Hespanhas como a fonte onde os sá-
bios estrangeiros vinhao naquelle tempo beber o conheci-
mento das línguas orientaes , ficassem os sábios destes rei»
nos huns tranquillos espectadores da gloria litteraria ad-
quirida pelos estranhos {a). Gastão de Fox , que se díí
n-
■ ■ — — — ■ —\
('/) llau:i(^ue iMiUdeidorpf uo sea Lom;ueaiariu D<i vintiiutis Late*
3» Memorias da Academia Real
oriundo de França, e descendente dos Príncipes de Guicn-
na , hc o primeiro que se oflerece entre nós como sabedor
d.i iingua Hebraica , a pczar de que a confutação dos er-
ros de Matoma conseguio a flor dos seus estudos , e cui-
dados. Hum sábio contemporâneo d' ElRci D. AíFonso Hen-
riques , c por cile nomeado Bispo de Évora , parece mui
digno de estar a frente dos estudiosos da Iingua Hebraica,
dando a esta Iingua huma preeminência , que cu não pude
assegurar á iingua Grega, a pezar de todos os meus cui-
dados, c diligencias.
Fvirão talvez maiores as que me deveo Gistao de Fox,
e sinto não poder affiançar aos meus leitores o que deste
e^Titor nos refere o Abbade Barbosa Machado na sua Bt-
bltotheca. Não he aqui lugar próprio de se discutir o que
pertence a Gastão de Fox, e que tudo se firma e descan-
ça \\à autoridade de hum Escritor do século XVÍ , que a
nicu ver não hc muito idóneo para asseverar successos tão
dist.intcs; mas perdoem-me assim o Beneficiado Leitão, co-
mo o Auth )r da Bibliotheca Lusitana^ que nem o Author
que houvesse de escrever a Lusitânia Sacra poderá restituir
com segurança este Bispo á Igreja de Évora , nem eu o po-
rei acima da classe de Author duvidoso, cm quanto não
apparecer noticia mais positiva das duas traducçóes da obra
de Fox contra os sectários de Mafoma, e possi allegar se
algum dos muitos Escritores das antiguidades de Hespanha ,
que nos conservasse a memoria do Epitáfio de Gístão de
Fox , cujo tumulo se diz fora demolido pelos Francezes
em huma entrada que fizerão na Guiposcoa (a).
Tor-
»-in/ó ?.i llc-pviii qum Arahis Auctores hahuerunt , premiado pela Uni-
\' rsiilade de Gottinga em 1810, faz menção a pag. 65 de muitos sá-
bios dos scculos IX , X , e XI , que vierão á Hespaiiha para se ius-
íruireui nas linguas.
(6) Revolvi a Historia Genealógica de França, e os diversos ramos
da famiiia de Foix , e não achei memoria de tal descendente. Exami-
pei muitos livros de antiguidades de Hespanha, e nem rastos descubri
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 3J
Torna a apparecer como instruído nas línguas orien-
taes o esclarecido Santo António de Lisboa , de quem já
fiz menção na Memoria sobre a litteratura Grega. A pezar
dos esforços do grande Cenáculo para mostrar , que Santo
António era versado nas línguas Grega , e Hebraica , eu
insistirei novamente, em que a interpretação de algumas
palavras nunca será para mim huma prova decisiva de ter
havido conhecimento profundo de qualquer língua, condi-
ção esta por certo indispensável para se ter lugar nesta
Memoria. Fossem todavia superficiaes os conhecmientos do
Santo na língua Hebraica , nem por isso esta litteratura
será esbulhada da honra que lhe toca, pois não ser intei-
ramente hospede nestas erudições , dá creaito aos educa-
dores do Santo , mostra que já naquelles tempos se apre-
ciava entre nós o estudo da língua Hebraica , e serve de
norte , e de exemplo aos nossos Theologos ; pois se hum
varão eminente em letras e virtudes, e que tratou princi-
palmente de converter os máos Christãos, e de refutar os
hereges do seu tempo , que não abusavão do conhecimento
das línguas, nem por isso pôz de parte o estudo da lín-
gua Hebraica só porque huma ou outra vez tinha de en-
rostar com os Judeos ; ^ quanta não deve ser a applicação
a esta língua da parte daquelles, que ou tiverem de refu-
tar a Synagoga , ou por incumbidos do Magistério devem
estar sempre á lerta para explicarem e defenderem os tex-
tos do Testamento velho ?
He cousa sabida , que já antes da fundação da Uni-
versidade de Coimbra se levantarão neste Reino, e prin-
cipalmente nas Cathedraes e Mosteiros, escolas de tudo o
que nestes tempos se julgava como preliminar dos estudos
T. IX. P. I. E theo-
™ ■ ■ _i . .. j-.i , ,1. ■ ■- ■ , -■ — -'■■ ■
do epitáfio , onde estranhei muito ver suprimidas as dignidades de
Bispo, e de Embaixador, que fazião mais grave a atrocidade dos la-
drões, que o tinhão assassinado. Note-se , que jà no tempo de Fr.
Francisco Brandão havia quem puzesse duvidaa & eaiistencia de tal e».
critor. .^j-i urv.i. i,»
54 Memorias DA Academia Real
theologicos : nenhuma cousa porém enobrece tanto o sé-
culo XIII como a erecção da Universidade de Coimbra ve-
rificada cm 1290 á instancia dos ecclesiasticos , e mormen-
te dos Prelados Regulares deste Reino ; e assim como em
seus primeiros estatutos deixou de mencionar-se a Theo-
logia , então ensinada nos claustros, não he muito que lá
não appareção vcstigios da lingua Hebraica , que só para
Theologos lie de absoluta necessidade. Entretanto não se
podo achar monumento daquclla idade, que falsifique a as-
serção do Author da j." Parte da Muuarchia Lusitatia ^ que
positivamente nos assegura da falta de Mestres da lingua
Santa naquelle século, e podemos aífirmar, que similhante
estudo não era seguido entre nós , a pezar de muitas ra-
zoes que o aconselhavão e persuadião. Era comtudo bem
fjcil aos nossos Theologos o aprenderem a lingua Santa ,
ou por applicação e industria própria , ou frequentando as
aulas Castelhanas, que já nesse tempo, como vimos, a es-
tudavão , c cultivavão. O já citado D. Fr. Manoel do Ce-
náculo nos deixou a preciosa noticia de hum Catecismo
contra os Judeos, em que o Pregador da Synagoga do tem-
po d' ElRei D. Diniz «< ameuda textos, que fazem ao pro-
í> posito, passados do Hcbreo , e Vulgata á nossa lingua , " («)
« se as graves suspeitas indicadas pelo mesmo sábio era
respeito á versão do Testamento novo pelo nosso Portu-
guez João Ferreira de Almeida (b) , passarem algum dia
ao gráo de certeza , que se demanda em taes matérias , não
faltaria que addicionar á Historia da litteratura Grega , pois
vinha a possuir no século XIII o que não teve no século
XVl, e bem lastimosamente lhe faltou no século XVIII (f).
; Era de esperar , <jue a determinação do Concilio Ge-
ral
o'i(f) Cuií^oe Jiuerarios , pag. 426.
.i.lC*) fàid. pag. ,<»27, ,
Vf(c) Tem havido muUos sábios destituídos do coabecimento da lín-
gua Gtcga., mas hum s»t)i<>, que se encarrega de pôr eia lingoagem
o Novo TesUmeuto, deve sab,ec a liagua origiual em que foi cschí^.
•' DAS SeiENCIAS DE LtSBOA. 3^
ral Vienncnsc produzisse em todas as Universidades da Eu-
ropa os cffeitos desejados , não sabemos porém que a de
Coimbra tivesse naquclle tempo cadeira de linguas orien-.
taes , o que he bem para sentir , e me obrigou a passar
poF muitas fadigas para descubrir neste século ao menos
hum sabedor da lingua Hebraica. Se a mera confutação
dos erros da Synagoga tosse ao menos hum indicio pro-
vável da erudição Hebraica, eu citaria como própria da-
quelles antigos dias a obra do Monge de Alcobaça Fr.
João, que se intitula Speculum Hebr^orum ., e foi acabada
em i?35', ,; mas que erudito deixará de saber, que os co-
nhecimentos da lingua , e a confutação dos erros podem
facilmente separar-se , e existir huma cousa sem a outra ,
do que poderião citar-se muitos exemplos antigos e mo-
dernos ? Até nos escritores estrangeiros (a) apparecem tes-
tcmuniios de cultura do Hebreo , cm alguns dos Reinos
das Hespanhas, no que toca porem ao nosso Reino, ob-
serva-se hum alto silencio, e por mais que se examinem»
e revolvão as Bibliografias não se colhe nada que faça ao
intento de vingar para o século XIV alguma prova de nos
darmos ao estudo da lingua Hebraica. Tive de satisfazer-
me com o exame da famigerada obra do nosso D. Fr. Ál-
varo Paez de planctu Ecclesia ^ onde achei alguns rastos de
conhecimento da sobredita lingua. O Author parece mos-
tralo a foi. 86 onde começa huma explanação dos Threnos
^e Jeremias^ e declara a significação de todas as letras do
alfabeto Hebreo; e assim como de observar que a foi. ij$
elle se aproveita do sentido que Santo Agostinho deo á
palavra Grega m£chia , eu infiro que o nosso Bispo não ti-
nha conhecimentos da lingua Grega, assim também de tet
examinado que elle proceda com mais confiança nas pala-
vras Hebraicas , eu devo concluir , que elle não foi hos-
pede nesta Utteratura , a pezar de que já nesse tempo as
E ii glos-
(a) P. Lambitiet Origities de Plmprimiere, Faris 1810. T. 2. pag. 26R^
^6 M EM o B I JtS DfA- Ac A:I>Í![M ÇA R^f: AÉ.
glossas de Nicoláo de Lira deviãp ser. vulgares em tod^
a Hespanha , ainda sem fallar nas obras exegeticas de S.
Jeronymo , que o referido Bispo consultou, e examinou^
como SC pôde ver pelas citações da obra (a). -jcj
Chegava o século XV , c as próprias adversidades, j
que denegrirão o meado deste século hum dos mais in-
faustos pura a christandfide , e para a Europa :devião con?
correr para se apressar o restabelecimento dos, bons estu-
dos. He bem sabido , que a Itália foi o berço da suspÍ7
rada restauração das letras, que por ventura não consegui-
rão nunca hum gazalhado tão distincto , cçmo esse, que
lhes prestou 3 familia de Medicis , apcllido certamente me-
morável , )C capaz de avivar o recçnhccimcnto dos sábios ,
a pe/.ar de que muitos destes hão querido trasladar para
o século seguinte os brazões deste , que tanto podem os
juízos anticipados , e a mania de sujeitar os acontecimen-
tos a huina opinião ou systema , o que nunca, terá forças
nem para os mudar, nem para lhes tirar a existência (è).
Já deixei advertida rio meu trabalho sobre litteratura Gre-
ga , a parte que vários Italianos tiverão nessas primeiras
faiscas de erudição , que felizmente luzirão era o nosso
Reino, e ao mesmo passo que he fácil produzir o teste-
.munho de Angelo Policiano a favor dos seus discípulos,
que ao diante seria confirmado pelo immortal André de Re-
zen-
('i) Consta de dous livros, e foi impressa em Leão de França 1517.
Tem no fim : Autorh subscriptio. Manii própria una vice corrcxi et apo-
stiltavi atino Dni 1335 in Algarhia Tortugallice ubi sum preesul in viíla
Ramra. Secuiulo correxi et aposúllam in Sancto Jacobo de CompoHella an-
lio^Domini 1540. He sabido, que as Glossas de Kicoláo de Lira forão
acabadas em 1330, e logo espalhadas por toda a Europa.
(*) Nunca se julgará suspeito nesta matéria o erudito Inglez W.
Roscoe, que nas snas historias verdadeiramente magistraes, e primoro-
samente escritas, de Lourenço de Medicis, e Leão X elucida a meu
ver melhor que niugucm a questão do restabelecimento dos bons ti»
tudos. Notarei de passagem, que nas provas da 2.' destas obras se en-
gfiDtrãn muitos £ «legaattssioigs ver«o8 latiuo» «íh louvor do nosso Kei
P, Manoçl.
.7 DAS S'CIENCrA's DT LrSKOA. "' f^
ícndc, terei de passar pelo disgosto de não encontrar hurrí
SC Portuguez, que naqucHc tempo se desse aos estudos da
língua Santa. Nem o estimulo assas forte dos Judcos Por*
tugue/.cs , que pelas suas edições Hebraicas dos últimos
annus deste século , acreditavão os seus cstu-ios , c enobre»
cião a arte Typografica , era bastante para des.per^^ar os
nossos do Icrhargo, cm que jazião ; e pôde ser que a aver-
são aos Judcos fizesse retardar a época do luzi mento às
huns estudos , em que tanto se interessa a verdade do Chris-
tianismo. Dedicavão-se naquclle tempo os mancebos nobres
á lição dos Authores Gregos , como se vê pelo exemplo
de D.Diogo de Almeida, Cavalleiro da Ordem de S.João
de Jerusalém (a) , e por motivos da exploração de novas
terras, e para se animar o commercio com os povos re-
cem-dcscubcrtos , florecia o estudo das linguas Arábiga, e
Ethiopica , a que se dava entre nós o próprio {b) , que vie»
ra de longe para nos ensinar alguns ramos de litteratura ,
c nomeadamente a lingua Latina , da qual todavia já era
•fácil apontar exccllentes cultores, que só tinhão frequenta-
do as escolas e mestres nacionaes (c).
He de presumir , que os Oradores Sagrados daquclle
tempo, não fossem destituídos de conhecimentos indispen-
sáveis para o bom êxito dos combates , que era necessário
ter, e sustentar com a Synagoga então admittida e tole-
rada nestes Reinos ; como porém nenhum Sermonario da-
quella época vio a luz publica, e alguns monumentos theo-
lo-
(a) Na Carta ao Pontífice Innocencio VlII, que vem entre as obras
de Cataldo Siculo.
• (b) E3te ultimo, que na sua Carta a D. Pedro de Menezes escrita
fios fius deste século, de que vamos tratando, falia nos seus estudos do
Árabe, assimcomo em outra escrita a ElRei D. João II, que lhe ea«
commeiulava a instruci^ão latina dos filhos de D. Rodrigo de Sousa,
se fu cargo das suas applicações á lingua Ethiopica.
. Ce) Sirva de exemplo D. Garcia de Menezes, Bispo de Évora, de
cuja oraçSo ao Papa, e da impressão que elle íez em a própria Ro«
Çia , UUio a cada paaso o« nosso» escritores.
"38 Memorias DA ACAT5EMIÂ RtATS
lógicos desse tempo são raríssimos (a) , ficarei duvidando
sç por ventura cxistio no século XV hum só Portuguex
Catholico Romano , que soubesse a lingua Hebraica , du-
vida esta , que me seria penosíssima se o formoso secu-
Jo XVI não viesse já consolar-me , e indemnizar-me da pe-
núria , que tenho arguido em os séculos precedentes.
O século XVI com effeito para ser em tudo o mais
brilhante da nossa Historia littcraria, ofFerece-me tal copia
de argumentos da erudição Hebraica daquellcs tão faustos,
c saudosos dias , que terei grande embaraço em classificar
os beneméritos daqucUa até então ou desconhecida , ou des-
prezada litteratura. Não obstante o possuirmos em Lisboa
huma Universidade , que os Reis e os Infantes augmcnta-
vão todos os dias em rendimentos e cadeiras , era princi-
pio assentado entre nós, que ainda nos era necessário re-
correr ás Universidades estrangeiras, que mais próximas
da Itália havião aproveitado mais cedo que nós o influxo
bemfazcjo de protecção concedida ás sciencias e artes pela
generosidade dos Medicis. ElRei D.João III, já meditan-
do pôr a nossa Universidade ao nivel das estrangeiras mais
florescentes, fazia sustentar em Pariz 72 mancebos escolhi-
dos , que passado tempo nos viessem trazer as erudições já
vulgares naquella academia , e as ensinassem e propagassem
nas escolas deste Reino. Feita a devida menção de Pedro
Henriques , e Gonsalo Alvares , primeiros mestres de He-
braico nos estabelecimentos litterarios de Coimbra , c que
tinhão aprendido a lingua Santa de mestres Francezes , e
contado entre os grandes incitamentos para taes estudos ,
não só o magistério do erudito Diogo Sigêo, que acom-
panhava a nossa Corte , e ensinava os Principes e Infan-
tes, mas também a viagem que o insigne Humanista Ni-
coláo Clenardo fez a este Reino, onde plantou de mão*s
dadas com João Vaseu , até em Braga , o estudo das lín-
guas,
(a) Allude aos Cathecismos de D. Diogo Ortiz de VilJjegas,
DAS SciEMCIAS DE LiSBOA. JpL
guas , que pouco antes nem a própria Universidade de Lis-
boa sabia conhecer e apreciar ; pedem agora a brevidade
e razão de ordem , que pelo texto da língua Santa , a qual
nem ao longe nos ofFerecc a vastidão e copia dos exempla-
res das linguas Grega, e Latina, graduemos imparcialmen-
te os serviços , que lhe fi/erão os nossos Portuguczes. Aqucl-
Ic texto, como todos sabem, he a Sagrada Escritura do
Testamento velho ; sobre a qual temos abalizados interpre-
tes , e commentadores que devem ter lugar acima dos que
compilarão de differentes Rabbinos as artes de Grammati-
ca , de que abaixo fallaremos. Das espécies históricas, que
trato agora de explanar, se verá que a gloria nacional ga-
nhada pelas nossas applicações ao Hebreu se avantaja mui-
to , á que já mostrámos , fora adquirido nos mesmos dias
pela cultura do Grego.
O Dominicano Fr. Francisco Foreiro , que já teve
hum lugar distincto na Memoria sobre litteratura Grega ,
deve agora occupar outro mil vezes mais distincto , que as»
sim o pede a natureza dos seus trabalhos , e a acceitação
qive elles tem merecido aos próprios inimigos da Santa
Igreja Catholica , indicio este o mais seguro de huma vas-
-ta erudição , e de hum saber mais que ordinário , quando
■taes louvores não tem sido comprados pelo exorbitante pre^
ço de vergonhosas condescendências , a que certamente não
desceo este igualmente sábio , e virtuoso interprete. Âlera
dos 5CUS incansáveis estudos ^ que presenciou, e admirou
,a França^ e a Itália, e que derao tamanho brado na au-
Çysta e veneranda asse mbléá de\TfentQ, elle formou para
sèu uso' particuTar hum diccionarTó da língua Hebraica, e
he pena ter ficado manuscrito, teijdo bem natural, que já
tenha perecido, vista a decididaV^âyersJo a similhantes es-
,tudos, que çoip^çando nps fiqs dç secyío^VI^ subio ao
maior auge no para ii lingua He&jpaíça, afs^, tenebroso se-
culp XVIL Deixou-nos porém a seguinte obra , e com el-
la o argumento £abal da sua-£Xudição Hebraica.
4» Memorias da Academia Real
Jsai<e Propheta vetus et nova ex Hebraico versio , cum com-
nientario , iti quo uíriusque versio redditur , vulgatus in-
terpres a plurimorum cahimniis viiidicattir , et loci amues
qmbus sana docírina adversus Hareticos atque Jiidaos con-
jirmari potcst , stimmo stiidio ac deligentia explicantur.
Venetiis aptid Jor danem Zileti 1563 foi,
O próprio titulo desta obra, que foi desempenhado á
letra por seu egrégio author, he a sua melhor recommen-
dação , e seria hum grave insulto á memoria de hum varão
tido geralmente na conta de hum dos mais atilados inter-
pretes do antigo Testamento, qualquer indagação sobre o
mérito dos seus trabalhos , e quando me faltassem outras
provas, era de sobejo huma extrínseca, e maior que toda
a excepção, e vem a ser o acharmos admittidos na obra
assas conhecida pelo titulo de Critici Sacri^ onde figurarão
muitos interessados em deprimir a nossa Vulgata , os Com-
mcntarios do Padre Foreiro.
Succede-lhe por ventura só em ordem alfabética ou-
tro Dominicano Fr. Jeronymo de Azambuja mais conheci-
do pelos estrangeiros debaixo do sobrenome latinizado de
Oleastroy que podendo entrar em parallelo com o antece-
dente, a nenhum outro cederá a sua bem merecida prima-
zia em taes estudos, de que nos deixou as provas seguin-
tes :
^ Commentaria in Mosis Pentatetichun juxta Magistri Sanctis
Pa^nini interpretationem. Antuérpia in adU>us vidute et
haredum Joannis Stelsii 1568 foi. et Lugdmi tç^ó foi.
'j .
l\ -Hebraismi et Cânones pro intellectu Sacra Scripíitra. Lugdu~
.30 ,. ui 1566 j e 1588 foi. .. „ ...
*** JSt Isaiafn Prophetam Cotfnmentarii f^o^/posthmum. Lutetite
"f ""Parisiorum lóiz foi. (a). ' ' '^ " ' '' "
1 :' f-l I T f ■_■'• > ■ I - fN ■ ' , .
(a) O Editor desU obra foi o Domiaicano Fr. Fedro Calvo , qUQ
I
DAS SciENciAs DE Lisboa. 41
He escusado mostrar, que Fr. Jeronymo da Azambuja
empregou muito cabedal da sua erudição nestas obras im-
pressas , nem este coriFco de litteratura sagrada admittiria
facilmente, que eu citasse todos os lugares, cm que elle
recorre ao texto original sob pena de sahir mui diffusa ,
c até fastidiosa esta memoria.
Apenas lembrarei duas espécies de alguma utilidade,
para quem houver de corrigir e addicionar a Bibliotbeca Lu-
sitana ^ e vem a ser: i. Qi^ie o doutíssimo Rossi facil-
mente o principe de litteratura Hebraica nestes últimos
tempos (jo) , qualifica o Padre Azambuja de claríssimo in-
terprete , e recorre á sua auctoridade para recommendar os
estudos da língua Hebraica. 2. A primeira edição dn Com»
nientario ao Pentateuco he de Lisboa em ifçó, se devemos
acreditar o Index expurgai or to de D. Fernão Martins Mas-
carenhas , que também cita a edição de Leão de França
em iy88 , da qual aponta igualmente as paginas; o que
dá a entender, que ou ha quatro edições distinctas do so-
bredito Commentario , ou que vem erradas as datas na 5/-
bliotheca , onde taes descuidos são mui ordinários , e mal
se podem estranhar severamente em huma obra de tal na-
tureza , e de quatro volumes em folio.
Adverte o auctor da Bibliotbeca , que não tem a se-
gunda obra impressa , como distincta da primeira. <t Esta
>» obra (diz elle) a que Imhonati Bibl. Latiu. Rab. pag 72,
>> n. 280 , e Lipen. Bibl. Real. tbeol. tomo 2. pag. 74^
»> dão este titulo , parece ser o Commentario sobre o Penta-
>» teuco. '» Este Commentario pela confissão do author da
Bibliotbeca sahio em Anvers lyóp, e Leão de França ijSó,
T. IX. P.L F e
nlo obstaute escrever 110 titulo que o Padre Azambuja fazia exactis-
simim litterce expositionem , lual preencheo os fins próprios de huiu
titulo , vistoquc o Padre Azambuja fez huma nova interpretação de
Isaías, que elle compara com a Vulgata.
(a) De prascipuis caitsis et motneiitis neglectte a nonullis Hebraicarum
Litter. discipliiKe. Disquisitio ElenclUica, Aug: Taurvi. 17tí9 — pag. 167,
4« Memorias DA AcademiaReal
e bem se vc , que nenhuma destas datas se ajusta com
aqucllas , em que diz terem sahido os Hebraísmos e Câno-
nes, que são todavia huma obra separada do Commentario
iio Pentixteuco ^ aindaque venhão cm o principio, ao menos
da edição, que eu consultei, e he de Anvers (15-68) on-
de enchem nove paginas debaixo destes títulos:
Cânones ad iVacrartim literarum lectionem ac htcidiorem co-
gnit tonem peru tiles.
São ao todo desascis Cânones onde reluz, a vasta eru-
dição do author.
Hehraismi ordine literarum digesti.
Neste opúsculo serve-se continuamente da erudiçSo
Hebraica, e só he para lastimar, que as palavras Hebrai-
cas estejão lançadas em caracteres Romanos , o que mos-
trando 3 penúria daquella typografia não poderá nunca ser-
vir de desdouro a huma cidade tão famosa nesses tempos
não só pela typografia Plantiniana, mas também pela edi-»
. ção da Polyglotra de Árias Montano , serviço relevante á
íitterarura sagrada , com que os hespanhoes fechavão ái-r
gnamente hum século, que tão magestosamente começará
pela edição da Polyglotta do Cardeal Ximenes.
Fr, Heitor Pinto, monge de S. Jeronymo , e mui ce-
lebrado em os fastos da littcratura, e lealdade portugue-
za , vai apparecer igualmente luzido nos fastos da littcra-
tura Hebraica. Aprendeo as duas linguas , subsídios princi-
paes da Thcologia exegética , no seu collegio de S. Je-
ronymo da cidade de Coimbra , e das suas palavras em hu-
ma dedicatória ao Cardeal Rei se vê , que huma boa par-
te dos outo annos , cm que elle estudou a Filosofia , e a i
Thcologia , se applicou ao indispensável escudo das- lin- I
guas. Sahio consummado principaln}fiRf,e^ Qa Hebraica..,.,. ç[ I
das
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 4^
dâs suas obras Escriturarias (a) , assim avulsas coiho reu-
nidas ciTi hum só corpo, se vê j quanto elle sobrcsahia na
verdadeira intcliigencia do sentido litteral. Se me pergun-
tarem , qual foi o motivo, por que dei o terceiro lugar a
Fr. Heitor 1'into , parecendo rouba-lo a outros, que por
ventura gj/.árao de melhor conceito nesta litteratura , res*
pondo com Horácio :
Tanttim series , juncturaqtte pollet \
Fr. Heitor Pinto seguindo as pizadas dos Padres Fo-
reiro , e Azambuja, teve para si, quef o texto Hebraico
merecia hum especial cuidado, e que se o uso desta oú
daquella palavra Hjbraica bastasse para merecer as honras
de Commentador perito na sobredita lingua, não haveria
cousa mais fácil, existindo já nesse tempo diccionarios He-
braicos, interpretações litteraes , versões interlincares , e ou-
tros auxilios desta natureza , e por estes motivos elle aspi-
rou a huina gloria mais solida, juntando a cada hum dos
capítulos do author sagrado o que intitulou Annotationes
ex Hel/fao y e quando era necessário, como foi em Daniel
Annotationes exChaldeo; e ahi deixou multiplicadas e convin-
centes provas , de que era , náo só versado , mas eminente
nas linguas.
Já antes de Fr. Heitor Pinto florecia D. Pedro de Fi-
gueiró, a quem o Bispo Conde D. Fr. João Soares, como
já escrevi cm outra memoria , chamava o S. Jeronymo do
seu tempo. He certo, que este Cónego regrante foi dis-
F ii ci-
(a) Fr. Hactoris Piíiti in Diviíiiim vatem Danielem commeiítarii. — Co«
, nimbriccc ex Officina Antoidi a Mariz 1569.
He de notar nesta edição a formosura dos caracteres Hebraicos de
António de Mariz.
Ill Esccitielem Propk. Commentarii. Antuerpim m cedibus vidutB
et lueredum Joamiis Stelsii 1570. — foi. miit.
— ■ Opera onmia latina. — Lugduni 1534 /o/. Tem os Commenta»
rios aos profetas maiores, e ao menor Mahum.
'44 Meuo-íias DA Academia Real
cjpulo dos mestres portuguczcs vimios de ParÍ7, , e que em
1528 abrífão huma escola de Hcbreo por instancia e i cus-
ta do mosteiro de Santa Cruz, e que já homem feiro nos
bons estudos vcstio a murça Augustiniana em 1543. Os
scusCommcntJrios aos primeiros vmte e cinco psalmos, ás
lamentações de Jeremias, e aos doze profetas irenores,
que forão impressos cm Leão ce Frcnça ccptis da sua
morte, são eruditos c recheados de palavras, e textos He-
braicos; não vejo porem estas erudições alli trazidas com
a ordem e clareza, em que se abalizava o precedente, nem
o exame avulso deste , ou daquelle texto pode horr.hrcar
çom huma interprataçiio seguida , do que hia apparecendo
mais notável cm cada hum dcs capítulos. Entretanto cabe
a D, Pedro de Finiieiró huma gloria talvez única em t(,das
as corpnraçõcs religiosas deste Reino , e vem a ser a de
ter fe:to medrar c arraigar tanto a erudição Hebraica nos
veneráveis claustros do mosteiro de Santa Cruz de Coim-
bra, que talvez não custasse muito a provar, que nunca
alli morrerão de todo os estudos Hebraicos , e que o sa-
grado fogo desta erudição alli escondido, nunca se apagou
inteiramente, pois neste caso seria como impossivel , que
elle despedisse as lavaredas, de que foi testemunha, e ad-
mirador, como logo veremos, o século dezoito.
Não sahirei já agora dos Commentadores , entre os
quâes se distinguem o sábio D. Jcronymo Osório , e seu
sobrinho do mesmo nome, cujas obras Escriturarias se im-
primirão em Roma nos fins do século XVI , e onde se
conhece palpavelmente a mais selecta erudição nas duag
linguas Grega c Hebraica. He o primeiro talvez ainda mais
digno de louvor pelos cuidados, com que obstou, quanta
nelle era , ao definhamento de taes estudos (a) , do que
pelas mostras de saber profundo , que o collocárão na pri-
mci-
(a) Não somente animava, porém estabelecia dentro do seu Paço
aulas de Grego, e de Hebraico, e excitava os Thcologos já adiautados
em annos , paraque entrassem ucsta carreira. Oh têmpora !
.t • DAS ScfEWCIAS DE LiSBOJU M J^J"
meira linha dos homens grandes de hum século , que tio
abundante foi de trotcos licterarios, justa compensação dos
que lhe faltarão pelo exercício das armas.
Os Jtsuitas reunindo cm hum sujeito as cadeiras de
Grego, c H-braico , e não se dignando publicar em a sua
typografia do collegio das artes de Coimbra hum só in-
dicio, de que promovião taes estudos (pois assimcomo alli
se imprimio por ve/.es a Arte Grega de Nicoláo Cienar-
do, também se poderia imprimir a Arte Hebraica do mes-
mo author, ou qualquer outra idónea para ensinjr a mo-
cidade Portugueza) , são gravemente culpados no esmore-
cimcnto da litteratura Hebraica pelos fins do próprio se-
cul ) , em que mais luzente e conspicua se mostrara ; mas
pede a justiça que não seja) ommittidos os ncmes dos
Padres Cisme de Magalhães, Sebastião Barradas, Bento
Fernandes , e Manoel dj Sá , egrégios cultores das Hnguas
Grega e H-braica, e visto o ser educado neste século o
Paire Francisco de Mendonça , não lhe tirarei o seu lu-
gar cure os Jesuítas estudiosos daquellas duas linguas (a).
O Padre Cosme de Magalhães merece nesta littera-
tura ainla maiores elogios, que na Grega, pois tendo os
seus Gon.nintarios por objecto algumas partes do antigo
Testa ncnto ahi cabia melhor a erudição Hebraica , de que
eu pod.ndo citar muitos exemplos, só enviarei os meus lei-
tores para o Commcntario ;'» Canticum primum Mosis da edi-
ção
(a) Níío ciio as edições das obiaa destes Commentadores , que se
pode n ver n\ BtbliotU:ca Lusitana , mas cuinpre-rae fazer algumas ad-
Tertenci.is. O 1'adrc Barradas em os seus Cominentarios iii Conconl. Hist.
IF Eiit-r. iaipressos em L?ão de França (1611) usa frequentemente
do texto ilebraioo , expresso em caracteres nítidos, como se pode vei
a pig. 02, 67, (j8, 99, 115, e 129 do primeiro tomo daquella edição,
cujo imprcssir l.iiiçou fambcm em caracteres Romanos as palavras He-
braicas, o qae mostra desejjs de acudir aos que não soubessem o ai*
fabeto .iljbr.iico. Nos volumes impressos em Lisboa por Pedro Craes-
becck vem caracteres Hebraicos menos máos, a pezar de muitos erros
e tróc7is~de letras, e Ha ausência dos pontos vogaes, que já tiulião
morrido naquelle prélo.
7^6 Mkmohias DA Academia Real
çao Lugduriensc de 1609 , e ahi desde pag. 19 até pag. 11
pôde ler-.se huma breve porém atilada discussão sobre a
poesia dos Hcbreos tanto mais digna de applauso , quanto
lhe foi posterior a obra clássica deste género (a).
O Padre Bento Fernandes logo na cxplicrçao do ca-
pitulo I. do Génesis mostra o que era de sabedor na lín-
gua Hebraica , juizo este que nunca será desmentido pelo
decurso das sues obras.
O Padre Francisco de Mendonça a pezar de fallecido
em o século XVll , não deixa de pertencer ao século, em
que estudou as letras humanas. Fm os seus Commcntarios
aos quatro livros dos Reis faz muito uso do texto origi-
nal , como se pôde ver nos dous volumes estampados , o
primeiro em Coimbra por Diogo Gomes do Loureiro (1621),
e o segundo em Évora por Pedro Craesbeeck (1624).
Aindaque os Padres Oleastro , e Foreiro acreditarão
de tal modo a ordem dos Pregadores , que por certo não
carece de mais gloria nesta porção dos estudos subsidiários
para a Theologia , nestes séculos de que vou tratando ,
convém fazer ainda especial memoria do Padre Fr. Luis
de Sottomaior , que não só pelas chronicas e escritores
da sua ordem , mas pelo testemunho dos seus contempo-
râneos de todas as classes , mereceo os créditos de varão
consumado em os differentes ramos de Theologia, que en-
sinou por largos annos, e com grande applauso em a Uni-
versidade de Coimbra. Examinei o seu Commentario ao Cân-
tico dos Cauticos impresso em Lisboa por Pedro Craesbeeck
(1J99)) s 30 mesmo passo que eu notava a boa applica-
ção da lingua Hebraica a pag. 30, 31, 80, 129, 163,
^^Sí s J49 succedeo-me lastimar o confuso e mal figura-
do das letras pela maior parte inintelligiveis , prova fatal,
mas verdadeira, de que o Hebreo começava a despedir-se
de nós.
Nâo
(a) De Rob. Lovth.
DAS SciEKciAs DE Lisboa. 4^
Náo disputando ás mais ordens Religiosas, o terem
contado nesta época vários alumnos sabedores da lingua
Hebraica, só tratarei de esbulhar alguns da gloria, que por
certo lhes náo pertence, c de restituir a outros o lugar,
que ainda lhe náo foi assinado, quanto eu saiba, pelos nos-
sos escritores. Wolfio addicionando a Hispânia Orienta/is de
Paulo Colomesio , noinê.i alguns Fortuguczes deste século,
c pede a boa critica, que se depure este catalogo das con-
fusões, e erros de que está clieio. Alli vem três Francis-
cos dcb.iixo dos appellidos Alcobacensis , Machadus , Seat-
ris , que devo redu/,ir somente a dous , vistoque o Cister-
ciense Fr. Francisco Machado , Doutor pela Universidade
de Pariz , na obra que escreveo adverstts Habraos , de que
faz menção a Bibliotbeca Lusitana , se chamou Franchcus JV-
curif , e o chamado Alcobacense pela Bibliotheca não pode
ser outro senão o Doutor Fr. Francisco Carreiro , que em
i5'97 era lente de Durando em a Universidade de Coim-
bra , o que se confirma pelas noticias porventura trans-
mittiias de Portugal para o author da Bibl. Cisterciense.
Hum e outro fora ) monges da minha ordem , e sobresa-
hírão nos estudos Theologicos, mas devem ser expungidos
da lista dos sabedores da lingua Hebraica. O primeiro na
sua obra impressa em Coimbra (1J67) apenas huma até
duas vezes usa de palavras Hebraicas em caracteres Lati-
nos, que de certo não convencem o leitor, de que clle sou-
besse a lingua. Do segundo tenho visto alguns trabalhos
filosóficos manuscritos sobre Aristóteles , onde não se divi-
sa a erudição Grega, que vinha tanto a propósito; e co-
mo ainda não vi os seus trabalhos theologicos , nem será
fácil dcscubrilos, visto não apparecerem na livraria manu-
scripta de Alcobaça , (deposito ordinário das producçóes dos
monges daquella casa) tenho por mais provável , que elle
não tivesse grandes conhecimentos da lingua Hebraica.
Só de passagem citarei novamente a Epistola trilin.
gue de Joanna Vaz, aindaque principio a ter alguma du..
vida , se competem maia á Castelhana Luiza Sigêa doque
i
4^. Memorias D A Academia Real
i nossa Portugueza os louvores, que por ventura correrão
até hoje confundidos. Authorcs Purtuguczcs de nota (a),
sem disputarem a Joanna Vaz o conhecimento da lingua
Hebraica , attribuem a Luiza Sigêa a Epistola trilingue
ao Papa, c muito fácil era que o author da Bibliothcca
Lusitana se enganasse, ou fosse illudido, o que só entra-
nharão os que não sabem , que a cmpreza de tecer huma
Bibliothcca nacional, exacta e acabada, exige hombros de
gigante.
Entrarão de novo para a lista dos sabedores da lingua
Hebraica hum nacii nal , c hum estrangeiro. O nacional hc
o Franciscano Fr. Roque de Almeida, que a pczar de não
ter figurado na Bibliotheca Lusitana^ e nos mais escritores
portuguczes, que fizcrao especial memoria dos estudiosos
da lingua Hebraica (//) , deve ter aqui o lugar, que hum
seu illustre contemporâneo lhe assinou cm as palavrjs se-
guintes : Prater cateros Lutetiie mihi cogiiitos, monachus etiatn
qtiídam I^tiritanus ex instituto Franciscanorum Rochus ^lineiday
mire mihi deditus erat , adeoque me docente captas erat amore
líterartivi Hebraicarum , ut hac sola gratia paucis postea dis-
pus se contiilerit Lovanium à^c. (c).
O estrangeiro hc ojudeo convertido Francisco de Tá-
vora , de cujos trabalhos, e vicissitudes da fortuna já dei
alguma noticia em a Memoria sobre Fr. Bernardo de Brito ^
e
(a) Sousa de Macedo, Flores de Portugal. VascoDcellos , Historia
de Santarém edificada.
. (b) Fr. Luiz dr S. Francisco na sua prefacção ao Globua Canorium.
D. Fr. Manoel do Cenáculo cm diíTcrcntes obras, f^as disposições para
os estudos da 3.' ordem, traz os nomes de Religiosos Terceiros, que
66 derão nos séculos XVI e XVII aos estudos da lingua Santa.
(c) As palavras de Clciiardo forão transcriptas porColomesio a pag.
221 da obra citada, e como afíirina que o Religioso Franciscano Fr.
Eoque de .■Vlineida florecêra cm 1525, lie de prel-uiiiir que fosse dos
mancebos que D. João 111 mandou estudar a Pariz. As cartas de Cle-
Tiardo fazem muila honra á nossa litteratura, forão impressas ao menos
quatro vezes em o século XVI, e creio que neubuina das livrarias de
Coimbra pD:ssue huuu rxeiupLu: xlcsta- obia I
DAS SciENCiAs DE Lisboa. 49
c neste lugar só darei conta da sua Arte ou Grammatica
Hebraica impressa em Coimbra por João Alvares ( 1566 )
o que he tanto mais necessário , quanto este Livro he ra-
rissimo , que se o nao fosse mal poderia escapar aos eru-
ditissimos D. Fr. Manoel do Cenáculo, e António Ribei-
ro dos Santos, e como os sábios estrangeiros aprccião
em muito qualquer noticia de Literatura Hebraica , e o sá-
bio A. da Èíblíotheca Hebraica , não teve noticia nem deste
judeo , nem da sua Grammatica, lançarei cm nota a dedi-
catória ao Conde da Feira , de que ainda algum sábio es-
trangeiro poderá fazer uso, quando se trjte de fazer cor-
recções e addiçóes á citada Bibliotbeca de Wolfio. (a)
T. IX. P.I. G O
(a) Illustrisámo D. Jacobo Pereira Comiti Fereiísi , Fraiwiscus a Tá-
vora. S. P. D.:
Cutn deccm anos natus , Comes illustrissime , me Thessalonicam disceiuli
causa coiitulissem , ibique aimos ires Liiig-uavi Syricam aliasque dedicissem ,
eodem discoidi stiidio 3Ionestenum iirbKtn totius Grceciw ■praclaiissnmam
sum projectus , in qua urbe cum Ckaldwam , Armenicam , Gelbanam ,
Tttrcarumque liiiguam didicissem , tandem a Josepho Gaone et Mediíia sa-
jnentibiis ut ea appellunt , Constantitiopolvn , ubi multi mihi sanguiiic con-
Juncti ei-ant , sum revocatus , ut magistri gradum susceperim : quo suscepto
Vcnetias me docendarum linguanan causa contuli , ibique cum frequcnter
Sacram Scripturam legerem clarissime ex viultis Sacrarum literarutn lo-
cis cognoui Cliiislianam Jidem et religionem eam esse , sinc qua nemo ad
bcatam , faslicemque vitam posset pervcuire , Christurnque. optimum maxi-
mum , seriiatorem iiostrttm esse eum , quem Jacob morieiís futurum prcedi-
■tit , Non auferetur sceptrum Juda , et dux de fcemore ejus , donec veniat ,
qui mittendus est.
Qua de causa Romam sum pofectus , ut sacro baptismafis fonte ló-
tus, lis aqua mundarer de quibus Ezcchiel. Cap. 36. Efiundam super
vos aquam muiidam , et muudabimiin ab omnibus inquinamentis vestris , cui
rei haurmtius Pirez a Távora iirasfuit. Inde mortis metu quam et pnter ,
et sanguinei mihi miiiabaniur , quod Judaici erroris desertor- me ad Christia-
nam religionem convertissem , iti Hispatiiam profectus Plúlippi regis jussu ,
eruditionis mete facto pericxdo , menses octo mcdiocri stipeudio Hebrceam liii-
gxiam SalmanticcE publice docui , quam urbem cum uimiis fiigoribus
mihi maxime infestam invenissem , Conimbricam me converti. In qua urbe
rum imíli cognati , aut amici essent , qui me hospitio susciperent , Domnus
Rodericus tuusflius nobilissimus fuit , qui hominem lotiginquum , et alieni-
genam nom soluni suis tectis exciperet , sed rcs etiam necessárias suppedita-
ret. Quam ob rem cum nulla alia raíione animum in te nosti-um ostendere
5© Memorias da Academi a Real
O titulo da Grammatica he assim.
Grammatica Hehraa , novissime edita, Authore Francvco a
Távora. Covimbrica apud Joanuem JlVanim Anno Do-
mini MD. LXVI.
Afora o prologo ou dedicatória consM de n8 pagi-
nas ; começa pela declaração do alfabeto Hebraico , onde
SC demora talvez mais doqae pedia a brevidade que cUe
fc propunha , e que de feito seguia em outras partes de
maior importância, mas que expõe todavia com assas cla-
reza , e mcthodo. Por fim da ccllecçao dos preceitos acres-
centa hum ensaio de versão literal do começo da Profe-
cia de Abdias, que também lançarei em nata a beneficio
dos estudiosos de nossa linguagem , (a) e remata o livro
com
putwsscmwi , jmupetes agrícolas yutnus imitati , qui cum cjuondam dm mino-
ra srcrificia prwsture non posstnt , Cereri spicas , Bacho raccmwn , F/illa-
di olÍBam , .ma dcmum aáqua Deo mimera offercbant , ut quamvis exisuo ,
ffrato tamen niunere cos colerent. Cum tgitur , ut aliquid utilitatis afferre-
miv! iis qui Hasuaw Hebiwmn scire vcllevt ; liaiic nostram artcm typis ex-
cussam in litcem edere voltãssemíis , intelllgereniusque te maxime omnhim
lilerarum generc delectwi , tibi , comes illustrissime , eam dedicare instiiid-
}nus , ut mwiere aliquo , et si te non digno , tamen lÁribus nostris pari , a-
nimi in t-e nostri cum gratitiidinem et bencvolentiam , tiim etiam pictatêm sigm-
ficare jjosscmus. Accipe igitur lioc nostrum , qualccumque sit múnus , ncc
qumitum sit, sed quo animo dctur expende. Vale. Kalcndas Janunrii 1ÍJ66.
(a) 11 Profecia de abdias: asi dixi o Senhor Deos : por ísdom ou-
?) vida ouuimus do Senlior , e embaixador a gentes foy mandado, a-
» leuantaiuos, e aleuantarnos-emos contra ella a peleja.
1- Eis-aqui pequeno te ei dado uas gentes , menos prezado tu inuy-
•>i to =: Soberba de teu coraçaõii t£ enganou, o que mora em minas
7! de penedal, alta sua habitação, o que diz em seu coração, quem
w me fará decer á terra.
■>i Se te aleuantorcs como Águia, e se em meo das estrellas puge-
■>i res teu ninho, dahi te farei decer, dito de Deos Se Ladroeus vie-
;■> ram a ti , se roubadores de noite como te calaste certamente furta-
71 riam seu necessário , se vindimadorcs vieram pêra ti , certamente fi-
">■> cariam rabuscos.
" (x)mo foram esquadrinhados Ezau , foram buscados seus escon-
Tt didiços.
' ' '•» Até o termo te maadaram todos os homens do teu firmamento, v,
DAS SciEKCiAS DE Lisboa. fr
com a approvação de Fr. Martinho de Ledesma , que a exa-
minou de ordcin do Inquisidor geral Infante D. Henrique,
e lhe chama valde iittlem , tit qui voltierint , cito linguam e-
díscant Hehraam.
Destes principies he fácil concluir — i.° Que ainda
em iy66 não erão desprezados neste reino os estudos de
lingua Hebraica , pois hum estrangeiro foi bem recebido
em Coimbra, e teve discipuios , que o obrigarão a com-
por huma Arte. 2.° Que faziao os estrangeiros , o que de-
vião ter feito os naturaes , pois he lastima , que nem se
quer saibamos por que arte ensinavão os Jesuitas do colle-
gio de Coimbra. Esta compilação porém de regras , e pre-
ceitos grammaticaes sahio já mui tarde para fazer resusci-
tar os estudos de Hebreu então quasi mortos neste reino j
e como não será fora de propósito referir as perseguições ,
e contrariedades oppostas aos amadores de taes estudos, e
descubrir as varias causas , que influirão neste desastroso cor-
te dos bons estudos , findarei com esta odiosa pintura o que
eu tinha para escrever sobre o século 16. {a)
A má intclligencia do Canon Tridentino que declarou
a autenticidade da nossa Vulgata , foi huma das primeiras
causas, que gerarão o despreso da lingoa Hebraica, e in-
fluirão muito para o seu extermínio das nossas aulas preli-
minares da Thcologia. Creio também que o horror aos es-
tudos de huma lingoa mui avessa das outras nos seus di-
versos elementos , e até na configuração das letras , e mo-
do de as escrever , sustentado pela preguiça , alheou mui-
ta gente do que á primeira vista se lhe antolhava como
G ii dif-
(a) A persuação da necessidade da lingua Hebraica para os esta-
dos Theologicos , estava tão profundamente gravada nos Portnguezea
até ao meio deste século , que os próprios Infantes destinados para o
Estado Ecclfsiastico , não erão dispensados do seu estudo , como suc-
ccdeo ao Infante depois Rei D. Henrique , discípulo nestas erudiyõe»
do famoso e já citado Nicoláo Clenardo , o que nos attesta alem da
Chronista dos Cónegos Regrantes D. INicoláo de Santa Maria, oerudit»
Foppeus cm a sua Bibliotheca Bélgica.
yi MemoriasdaAcademiaRbai,
d líicil e laboriubO. N/o hc este o lugar pai.> ucsfaz i tacs
prevenções, e quari'. a não estivesse SDÍiu.iTKntc d^ii.C/iis-
tiado, que o Concilio de Trento nem tiu.u nem podia ti-
rar aos textos origiiiacs a sua Divina insjMi. çáo c auihcnti-
cidade , bastaria ver o grande uso , que os nossos Tlieolo-
gos, Fadies Oleastro e Foreiro costumaváo fazer do Hebreu,
a pe/ar de terem assistido ao dito Concilio. Até nos púl-
pitos se tazia commcmoraçao do Texto Hebraico, c se
deixo muitos exemplos do fim do século i6 para citar hum
só, he por ser do esclarecido Varão o Dr. Diogo t!c Pai-
va c Andrade, assas r conimcndavcl pelas suas obras Thco-
logicas , que cm os Sermões impressos depois de sua mor-
te , e ainda pregados no século i6 , inculca repetidas ve-
zes com o seu exemplo a devida applicação do Texto He-
breu , onde elle pinte mais ao vivo que as traducçõcs , ou
a energia , ou a prodigiosa fecundidade de palavra de
Dcos (a).
Não se contentando os impugnadores de taes estudos
com huma simples desapprovação, ou menoscabo, princi-
piarão de os attacar , e perseguir com tal encarniçamento ,
que obrigarão o Padre Azambuja tão modesto como douto
a romper nesta invectiva. Imputent hoc (o amor dos estu-
dos Hebraicos ) imbecillitati , qiii velint , et tngenii niei , quam
et ipse fateor , tentiitati , et quanto libeat siipercilio , ac fas-
tu imputent , modo ut de ntultis , vel unum hoc adducam ex
írigesximi Geneseos capitis posteriore parte in qua de Jacob
cum Laban conventione , et Patriarcha astu agitur , sitie Liii'
g"^-
(a) Veja-se o T. 1. dos seus elegantes Sermões por certo os que
hei visto mais parecidos com as Homilias dos antigos Padres a foi. 78 ,
79 , 96 , 97, 236 f. , 273 , 289 f., &c. e parece-me justo lançar a-
qui íluas palavras de Fr. Manoel da Conceição editor dos Sernjõts, e
Si)brinho do A. ii Passado o tempo necessário ao estudo daThcologia Es-
■>■> colastica, se deu de todo á liçiío dos Santos e estudo da Sagrada Es-
v> critiira , pêra o que aprendeo muy de propósito a liiigoa Hebraica,
5) que he meio principalissimo pêra se alcançar o sentido literal do ve-
» lho testamento. E neste sentido procurava trazer sempre os lugarca
■>} da Diviua Escritura como se veri nas pregações, f)
DAS SciENCIAS T)E LiSBOA. ^
guartim pr^esicUo si posiunt , se expediant. Deste motlo ec ex-
plica em a sua Epistola dedicatória dos seus con-.mentarius
sobre o Lcvitico , c sendo cila endereçada ao Cardeal In-
fante D. Henrique antes de ijío , b(.m se conhece, que
principiou do meio do século 16 por diante a guerra aos
estudos Hebraicos , c o mais he , que o sobredito Padre
também era vexado, pelos seus Religiosos, que Iheimpu-
tavão a crime o desvio da auctoridade de S. Thomaz so-
bre a intelligencia de vários textos da Escritura como por
exemplo os do Génesis : Crescite et mitltipUcatriini éí'c. Do-
tninamini piscibtis maris cb^c. Este Padre até depois de mor-
to devia sofFrer novas perseguições , pois em o Index cx-
purgatorio deD. Fernam Martins Mascarenhas («) he man-
dada riscar huma parte da sua Prefacçao aos livros do Pcn-
tatcuto , onde entre outras cousas defendia , que a Vulgata
ainda se podia corrigir pelo texto Hebreu. (_/*)
Emquanto a nossa mocidade estudiosa se valia dos
trabalhos de hum estrangeiro , succedeo que hum nosso Por-
tuguez se esmerasse cm revolver todas as artes de Hebrai-
co , e os melhores escritos dos Rabbinos para escrever hu-
ma Arte , que se imprimio em Roma , e que pode servir
de consolação aos que advertirem como nesse tempo se fi-
nava entre nós o estudo de lingoa Hebraica. Fallo da o-
bra do Franciscano Fr. Luiz de S. Francisco intitulada:
Globíis Canontim et arcnuorum Inigua Sanctte ac Divina Scri-
ptiira ad Ferdinandwn Medicem Cardinalem é^c. Romte
1586. 4.°
;: - ' ., - Es--
(fl) Pag. 0'8tí.
(4) Da obra posthnma do Padre Azambuja sobre Isaías se vé que
õ seu continuado uso da língua Santa em o coramentario ao Pentateuco
azedara muitos dos seus leitores, causa esta que o resolveo a ser mais
parco destas erudições no segundo commcntario. Se me fosse dado a-
leni passar as balizas do assumpto desta memoria, eu tivera muito que
dizer cm defensa do Padre Azambuja, e basta .id vertir , que as próprias
correcções feiUis 4 Vulgata de mandado dos Pontífices , e já posteriores
ao Concilio de Trento adTOgSo a caasa do iios«o compatriota. _ .i^
^4 MemobiasdaAcademiaReal
Esta obra hc não só Grammatical , mas também exe-
gética segundo se vc do Elenchus rerum ontnium qua in boc
globo coníirietitur ,c os artigos 9.° e 10.° tratão especialmen-
te de antiga poesia dos Hebreos. A' primeira vista se co-
nhece, que esta obra cahe em hum extremo de diíFusáo o
mais importuno e fastidioso para os principiantes, que dcsa-
nimão todas as vezes que se lhes appresentáo montanhas
tão Íngremes como elevadas , onde só quererião achar ca-
minhos andamosos , e planos. He tirada pela maior parte
dos escritos de Elias Levita, e outros Rabbinos , visto po-
rém começar elle o estudo da lingoa aos cincocnta annos
do idade bem mostra que fez hum excellente uso do con-
selho , que para esse fim lhe dera o grande Bispo c sábio
D. Jeronymo Osório.
Principiou desgraçadamente o século desasete para a
lingoa Hebraica sob os mesmos auspicios , que já deplorei
pelo que toca á lingoa Grega , que nesta parte muito mais
feliz que a outra teve ao menos hum distincto cultor , e
alguém mais que a fomentasse neste século , venturas es-
tas que faltarão á lingoa Hebraica, destinada para sofFrer
neste século hum inteiro esquecimento da parte dos mes-
mos Portuguezes , a quem ella pouco antes fizera tão cele-
bres em o mundo literário. Entretanto , como se houves-
sem de ser quasl em tudo semilhantes os fados das duas
lingoas , se hum Portuguez estabelecido em paiz estran-
geiro foi dos nossos o que mais honrou a Literatura Gre-
ga no século 17, (d) outro Portuguez também naturaliza-
do
(a) Tliomaz Piuneiro traductor de Stephaiio ; como porém ueste
século iiosoíferece a Bibl. Lusitana mais dous traductores Portuguezes,
a saber Fernando deMena, e Manasses Ben Israel, cumpre-nie dar
açora succintaraente as causas porque não os metti na classe dos tra-
ductores , emquanto me não vejo obrigado a fazer maiores addições
á niiiiha memoria sobre Literatura Grega. Emquaufo ao primeiro, as-
sentei que era melhor ommitti-lo do que renovar a questão se foi Por-
tuguez ou Castelhano. Emquanto ao segundo , eu não ignoro que o
eruditíssimo António Ribeiro dos Santos ( Memorias de Liter. T. 3."
pag. 3i7 ) seguiudo a Bibligtlieca chama traductor de Foc^lides ao
DAS ScienciaS de Lisboa. 55,
do cm Reino estrangeiro foi o que dco mais provas de sa-
ber , c do apreço que fazia de lingoa Sanca.
Não me cansarei em mostrar que a erudição dos
commentadores deste século Fr. Balthasar Paes , Fr. Gre-
gório Baptista , P, Paulo Kodrigues , e de outros fica-
. ya muito a quem, da que justamente louvei no scculo
antecedente, nem he meu animo roubar ao Theologo Co-
nimbricense João de Paiva o lugar hum pouco mais dis-
tincto (sim muito abaixo dos Foreiros , e Azambujas)
que todavia lhe compete , e para me aflFastar quanto an-
tes desta como solidão espantosa , que me oíFcrece o sé-
culo 17 , respirarei hum pouco tendo em vista os conheci-
mentos Hebraicos do Monge Benedictino do Mosteiro de
Monserrate, porem natural de Lisboa Fr. Francisco San-
ches , que deo á luz a obra seguinte :
In
nosso Menasses Ben Israel , examinadas porém as formaes palavras des-
te Jiideo PorUigueE , que se podem ler em o Prologo da 2." parte da
sua obra iutitulada o Conciliador da conveniência dos lugares da Sa-
grada ticritura impresso em Amsterdão (1650) u Escrcui depues no-
i> tas eii Phocyli<ks Poeta Griego, que ahora se imprime y-i nãose po-
de concluir que fosse traductor, mas que só era commentador. Acres-
ce mais que no dito prologo, em que faz menção dos seus estudos,
que forão muitos, nem huma só palavra diz do Grego; o que se de-
via esperar quando o tivesse estudado e sabido a ponto de traduzir por
inteiro hum A. Grego, e apenas em o prologo da sua obra == de La,
fragilidad humana , =. protesta que se informou , do que escreverão os
Gregos, e Latinos, o que todavia não he j)rova terminante de gran-
des conhecimentos de Grego , pois era aquelle tempo bem poucos se-
ii3o os A A. Gregos, que não estivessem trasladados para Latim. O cer-
to he que D. José Rodrigues de Castro não fez memoria da traducção
de Focjlides, a pezar de que a Bibl. Grega apoiada no testemunho
de Spjzelio , nos dá esta noticia em o artigo de Focylides Hispanice
transtuierat Judfeus cekbris Manasses Ben-hiad et cum notis edere voluit.
ííuspeito , o não affírmo , que por ventura a traducção de Focylides r=
cn Kspafiol con consonantes iz: author P. Francisco de Quevedo, que
*" imptlnik> em Madrid ( 1635), se reimprimiria em Amsterdão ou Bru-
xellos, como era ordinário uaquelles tenvpos , ç q\ie Manasses Beu ls«
racl llie lizcsàe notas.
jó Memorias DA Academia Real
/» Ecclesiasten Conitnentatium cum concórdia vulgata editio-
tiis et Hebraici textus j Barcinotie 1619 4.° (a).
Na prefação recommcnda o esrudo da lingoa Hebraica
e para mostrar o que ella vai, manda consultar os com-
mcnt.nios Pererii in Genes, 3. v. 15" , e acrescenta Si igno-
rubat Helrtca cur hebraizare sapitis gaiidct ? -vcnivi hac sca-
bie pasíim laboram concionatores , qtii tiisi aliqiiid Hehraiciim
fromant , truditionis sua jacturnni jecisse arbitrciiittir.
Nestas expressões do sábio Bcnedictino , eu achei fun-
damento para me segurar no conceito que fiz, depois de
hum sollicito mas cançado exame dos Prògadores daqucllc
tempo. Fr. Thomaz da Veiga, {b) Fr. António Fêo, (f)
Fr. Pedro Calvo , {d) Fr. João de Ceita , Fr. Christovão
de Almeida c outros recorrião ao texto Hebraico , mas
qualquer leve tintura de lingoa ou as versões interlineares
os habilitavão para este uso da lingoa Santa , que não ob-
stante achar-se quasi proscrita deste reino , apparecem to-
da-
' (a) E^te commentador bem a seu pezar teve de sugeitar-se á pe-
núria dos prelos, e por isso todas as palavras Hebraicas a miúdo c\-
tadas nesta obra , que consta de 286 folhas , vem escritas em caracte-
res Romanos.
(J) Fr. Thomaz da Veiga nas considerações Literaes, Moraes, e
Allegoricas sobre os Threnos, cujo 1. Tomo sábio em Lisboa 1633 a
pag. 314 serve-se da versão interliuear do Hebraico.
(c) Fr. António Feo nos seus Tratados Quadragesimaes e da Páscoa
Usa de palavras Hebraicas sem dar mostras de outra erudição alem
do que facilmente se adquiria pelos meios já indicados.
(rf) Fr. Pedro Calvo nas Homilias Latinas para todo o anno T. 1.
Lisboa 1615 , a pag. 344 remette-se á auctoridade de Vatablo , e de Fo-
rriro, c a pag. 524 á de S. Jeronymo , e na Homilia ad Hcbrceos iit
fide Lapsos , produz a pag. 583 , e 604 textos vertidos literalmente de
'Hebrco, que bem fácil era tira-los de Árias Montauo. O mesmo jui-
20 se pode fazer dos Sermões de Fr. João de Ceita, e de Fr. Christo-
vão de Almeida e para resumir tudo cm duas palavias. Eu creio , que
a obra de Pedro Galatino de Arcanis Catholica; veiitatis era o arsenal
donde os Pregadores dos Autos da Fé, tiravão as armas para comba-
terem os Judeos.
1
DAS SciKNCiAS DE Lisboa. ^7
davia os seus caracteres menos máos em os prelos de Pe-
dro Craesbeeck em Lisboa , de Didgo Gomes do Loureiro
em Coimbra , e de Manoel Cardoso no Porto. Creio , que
Pedro Craesbeeck foi o impressor, que os conservou por
mais, tempo conforme sevo do já citado Index cxpurgato-
rio, onde se encontrão muitas palavras Hebraicas em bons
caracteres; e se o Padre Balthasar Alvares, como presiden-
te dos censores para o exame e redacção daquelle index,
teve o maior trabalho, como he de suppôr, não deverei
exclui-lo do numero dos sabedores da lingoa Hebraica. A
certeza de que nem o cximio Padre Vieira se applicou a
estudos , que parecião necessários para as suas pregações , e
nomeadamenre para a sua Clavis Prophetariim , e Historia
do Futuro , obra tão engenhosa a cercos respeitos , quan-
to a outros frívola e nugatoria , depara-me outro argumen-
to, de que a lingoa Hebraica era totalmente ignorada neste
reino, e ao menos o Padre Vieira talvez mais sincero, que
muitos prògjdores , e commcntadores desse tempo não dei-
xava de citar o interprete, commentador ou diccionaiio,
que lhe fornecia as palavras Hebraicas.
Que immenso vácuo me ofFerece o espaço de mais
de hum século fielmente contado desde 1640 até i75'ol
Neste grande intervallo já funestíssimo para a lingoa Gre-
ga , apparecião de quando cm quando nomes portuguezes ,
que não dcixavão quebrar a cadêa principiada nas escolas
de Itália em o Século XV; mas pelo que toca aoHebreo,
não apparcce hum só commentador , hum só Theologo ,
que rastejasse a brilhantíssima carreira dos nossos maiores.
O Padre D. Luiz Caetano de Lima , a quem se attribuem
Epigrammas Gregos , também deixou huma obra manuscrita,
que se intitula Exercitai tone í Hebraic£ in Genesin. Também
nos consta do elogio deste benemérito Padre , que o decl-
ino Conde de Vimioso costumava dizer do Padre Lima ,
que elle tivera o dom de lingoas. Entretanto nada he mais
fácil, que parecer sábio, c luzir, quando he geral a igno-
rância ; e não he seguro concluir da simples inscripcão da-
T.IX.P.I. H quel-
5^ Memorias DA Academia Real
quclla obra , que o Padre Lima tivesse grandes conhecí-
nientu da lingoa Hebraica.
Só á vjsta daquellas exercitações se poderia ver, se
o fundo principal delias era a linyoa Santa ou as ciudições
Rabbiiiicas. Ora os estatutos da Universidade feitos cm
1654 íallão da cadeira de Hebraico, e do seu ordenado,
mas parece , que a cadeira se tornou em simplesmente ho-
norária; e se acreditarmos o erudito cavalheiro de Monte
mór o velho Francisco de Fina e Mello , que escrevia em
1752 sobre as lingoas oricntaes o seguinte « Não he ne-
j» cessario provar a muita ignorância que ha destas lingoas
»» no nosso Reino. Do Hebraico ainda ha maior dcsccnhe-
>» cimento , porque nem se ensina , nem se aprende »> (a) ,
quem não lastimará o estudo infelicíssimo da Literatura
Hebraica no intervallo , que á pouco assinei?
Graças pois sejão dadas ao mui erudito A. do Verda-
deiro Methodo de estudar , o qual não só pintou ao vivo
a nossa decadência neste ramo de Literatura, mas também
inculcou por mil modos , e argumentos a necessidade de
recomeçarmos hum estudo geralmente airortecido , e talvez
reputado inútil pelos chamados sábios portuguezes 1 Hum
destes respondendo ao A. do Methodo , ousou mandar im-
primir estes miseráveis períodos. « Por despedida ordena ,
íj que os humanistas saibão a lingoa Grega e Hebraica para
j> entenderem os livros, como senão estivesse tudo muito
V bem explicado nos commentos Latinos. Não sei, porque
»> não lhe aconselha, que saibão Francez , Italiano, Tudes-
w CO, Inglez, e por curiosidade a lingoa de Angola e
» dos Tapuyas do Brazil. " (b) He ocioso perguntar a hum
destes , paraque estudou Racine o Grego , quando tinha ver-
sões Latinas de Euripides e Sophocles, e para que fim o
ce-
ia) Balança intcllectual çm que se pezava o merecimento do ver-
daticiro methodo de estudar. LisDoa 1752 , p.ig. 31.
(i) Reflexões Apologéticas í obra intitulada Verdadeiro Methodo
de estudar &c. Valensai 1748 4."
DAS SciENCiAs DE Lisboa. 5-9
celebre Conde de Alficri começou aos 45 annos de idade
o estudo da mesma lingoa ? O maior cabtigo, que se pô-
de dar a estes scmidoutos he fazer reimprimir os seus di-
tos, paraque cheguem á noticia de todos, e principalmen-
te dos estrangeiros, sempre bons avaliadores das erudi^cs
Grega e Hebraica.
As providencias tomadas pelo grande Rei D.José I. cm
175-9 "^o podiao deixar de incluir a lingoa Santa, que mui
judiciosamente encomendou ás corporações Religiosas dcs-
ta Monarchia , e felizmente não sahio errado o seu concei-
to. A esse tempo já o tantas vezes, e nunca assa's por
mim louvado Fr. Manoel do Cenáculo havia estudado a
lingoa Hebraica de sociedade com outros doutores conim-
bricenses , com a louvável tenção de porem em lingoagem
o Testamento velho; e se o Rei á instancia do seu minis-
tro de Estado Marquez de Pombal o não chamasse para
outras funcções , por certo , que elle nos deixaria mais cla-
ros testemunhos da sua erudição Hebraica , afora os que
podem colher-se das suas differentes , e immortaes obras.
Forcejou todavia , paraque a Terceira Ordem preenchesse nes-
ta parte os votos d'ElRei , e o Convento de Jesus em Lis-
boa converteo-se na mais famosa escola de lingoas Orien-
taes , que se tem visto em Portugal. Ahi se estabeleceo
por algum tempo o Maronita D. Paulo Hodar, sábio nas
lingoas Orientaes , que depois lêo em a Universidade de
Coimbra , e com elle se aperfeiçoou o Mestre Fr. Francis-
co da Paz , que tinha de dar em suas obras Grammaticaes
e Exegeticas hum grande impulso a estes conhecimentos.
Principiarão logo estes laboriosos Padres de dar continuas
provas , do que se tinhao adiantado nos estudos da lingoa
Santa. O Mestre Paz endereçava huma falia Hebraica ao
Príncipe D.José de saudosa memoria, que se dignou vi-
sitar os estabelecimentos Litterarios de seu grande Mes-
tre. Fr. Gregório José Viegas ( hoje Excellentissimo Bis-
po de Pernambuco ) dava passos de gigante nos estudos
tia lingoa Hebraica , e fazia composições , que andão imprcs-
H ii sas
6o Memouias DA Academia Real
sas entre os obséquios da Terceira Ordem á inauguração da es-
tatua equestre do sobredito Rei, e abonarão entre os vin-
douros o progresso , que fez o seu A. nas línguas Orientaes.
Alli veio apert"eiçoar-se na lingoa Hebraica o Aiigustiniano
Fr. Joaquim de Azevedo, que brevemente luvirá cntie os
peritos da lingoa Hebraica no século 18. Alli chegou hu-
ma colónia de Cistercicnses , que o seu Geral Fr. Manoel
de Mendoça quiz habilitar para o ensino das lingoas cm
o collegio de Alcobaça. Nestes novos discipulos se avanta-
jou muito o Padre Fr. José Sanches natural de Alcains ,
não só pela sua distincta figura nas conclusões defendidas
cm Lisboa , cm que forao arguentes os sábios H()d;ir , e
Berminghan , mas também pela composição Hebraica im-
pressa nos applausos do Mosteiro de Alcobaça á inaugura-
ção da estatua equestre, (a)
Oxalá que a espantosa queda do primeiro Alinistro
e das suas creaturas não tivesse feito mirrar os estudos He-
braicos , que apenas sabidos do berço Já promettião gran-
des créditos ao nosso Reino! Oxalá que as boas institui-
ções separadas sempre de quem as fe?. , tn<:^em constantemen-
te superiores ao conflicto dos partidos ! Fallemos sem rebu-
ço, as letras Hebraicas ou perecerão, ou cahírão em for-
mal desprezo na maior parte das Congregações , que as
buscavão , e applaudião , e não obstante as ameudadas re-
commendações de taes estudos , he necessário confessar , que
ellas tem outra vez desapparecido dos próprios lugares , em
que se lhes havia feito o mais cordeal , c benigno acolhi'^
mento. Não acrescentarei mais paraque não se julgue que
o espirito de maledicência guia a minha penna , e conclui-
rei esta Memoria com os sempre respeitáveis nomes dos já
citados Fr. Joaquim de Azevedo , Fr. Francisco da Paz , e
de D. João da Encarnação , sem duvida os coriíêos da Li-
te-
(a) Sigo nesta oarcação as Memoiias de Fr. Vicente Salgado.
^ DAS SciEMCIÁS HE LiSBOA. 6l
teratura Hebraica entre nós, como attestao as obras impres-
sas , bem conhecidas deste reino , e dos estrangeiros, {a)
yd depois de conchiida esta Metnoria succedendo me exa-
minar a Collecção dos Retratos dos varões illustrcs c Donas
^c, achei que o sábio Luiz António Vernei cowposéra btinm
arte Hebraica que ficou entre os seus manuscritos , enão he pe-
quena honra para os sabedores da lingoa Santa , que também
o fosse este por ventura o maior sábio Portuguez do secttlo^ 18.
(a) Fr. Joaquim de Azevedo refutou completamente a Sixtino A-
maina , era obra impressa , e tratou de responder ás objeções dos in»
crédulos que abusão do Texto Sagrado , era outra obra também im-
pressa , onde e.<:palhou ás mãos cheias a erudição Grega e Hebraica.
Fr. Francisco da Paz escreveo hunia Arte de Hebraico, e a ex-
plicação das vozes anómalas do antigo Testamento , que ambas sahirão
Jmpreí^sas.
D.João da Encarnação Cónego Regrante de Santo Agostinho, meu
doutíssimo e saudoso Mestre , deixou-me lembranças indeléveis do me-
thodo e clareza com que explicava a lingoa Santa, de que fez imprimir
a Grammatica em 1790. Teve a paciência de entregar á memoria o
Diccionario Hebraico , e assento que neste ramo se lhe deve applicar
o dito de Plinio Imiíati sunt multi , aquavit iiemo. Sei que os uoiiies
de D. Paulo , e D. Joaquim da Encarnação figurão na Bibl. Lusita-
na, mas careço ainda de provas, para os collocar nestas Memorias.
6z MUMORrAS DA ACACEMIA RkaE,
uidãitamento a esta memoria.
^^uando eu tocava nos monumentos de littcratiiia l)c-
braica , que poderiáo existir na livraria manuscrita do
mosteiro de Alcobaça , guici-me pelas noticias dadas no //;-
AiW Codicíim Bibliothece Alcobatiensis y que síío dn maneira se-
guinte.
CoDEx CCXXXIX.
Memhríuic.ceus iii foi. luagno exaratus Gothlcis caractcri»
hus , muJtís liueis cxpunctisfol. 133. continct tractationem dogma-
ticant de Tyiuitatc , Incarnatioiíe , libero arbítrio , intelligcU'
tia Prophetia , de novo testamento , et dispntatione ordinanàa ,
et judicibus eligaidis ; disptitatiouem item inter Hcbr^ctim et
christianttm trimcatam , et confnse compaginatam , qtc£ credi-
tttr esse fragmentum diwriim egregiorum voltimijiuvi , f]ita Fr.
Franciscus Machado Mouachtis Âlcobacensis et Doct. Parisien-
sis Hairico Cardinali minciipavit Sactil, \6 quorum meminit
Kicolaus AntontHs in sua Biblioth. et extabaut oliin Ms. in,
Jlcob. Bibl.
CoDEx CCXL.
Memhrauaceus in foi. exaratus Gothicis cnracteribus foi.
rjf>. lacerus tamen plnribus foliis , et ahrasus plitribus li>ieis j
et Hl ter is , scriptus et complettts anno 1335- per Fr. Joannctii ,
ut legitur in fine Prologi. Compkctitur Uhelltim adversns He-
Iraos , cui auctor titulitm fccit Spcculum Hcbríeorum : Initium
op. Vcrns et unus Deus. Caret fine.
Só por estes indicios mal podia eu concluir, que os
mon-
DAS SciENCiAS DE Lisboa. (5j
DISSERTAÇÃO I.
Os Fenícios em Espanha , mil e quatrocentos e mais aunos
antes da era de Christo.
Por António Pereira de Figueiredo.
N,
Xo ha cousa mais constante entre os nossos escrito-
res , doque terem sido os Fenicios huma das primeiras
nações estrangeiras, que vierao a Espanha, e nella esta-
belecerão varias colónias. Tão attestada hc esta vinda pe-
los Gregos já des do tempo d' Homero, e pelos Romanos
já des do tempo de Varrão : que era impossivel a igno-
rassem hum Fiorião de Campo , hum Morales , hum Ma-
rianna , hum Barreiros, hum Resende, hum Brito, e hum
Arrais. Entretanto nenhum destes , que a mim nie lembre ,
acertou atògora com o verdadeiro tempo , em que os Fe-
nícios vierão pela primeira vez a Espanha. Porque Brito
põe esta vinda novecentos e tantos annos antes de Chri-
sto: Marianna a rebaixa até o tempo de Sicheo marido de
Dido , e consequentemente pouco anterior á fundação de
Carthago.
Como este he hum ponto importante para a nossa
historia , será elle o assumpto da primeira de todas as
dissertações , com que tenho determinado illustral-la. E
seja o primeiro passo declarar, quem forão os Fenícios, e
qual a sua primeira origem.
Os Fenicios , está assentado entre todos os eruditos ,
que forão os mesmos que os Cananeos , descendentes de
Canaan, filho de Cam , e neto de Noé; e que estes Ca-
naneos erão aquelles povos , que habitarão a terra chama-
da da Promissão , donde por mandado de Deos os expul*
sá-
^4 Memorias da Academia Real
sárão os Hebrcos, parte em tempo de Moysés, parte cm
tempo de Josué.
Dcmostra-se esta identidade. Primo: Porque pelos ca-
pitulos IX , Xlll , e XIX do livro de Josué, e pelo ca-
pitulo III do livro dos Juizes consta, que o Líbano, Ty-
ro , c Sidónia ficarão dentro dos limites da terra de Ca-
naan, que Dcos mandou aos Israelitas que conquistassem.
E ninguém ignora, que o Libano, Tyro , e Sidónia, per-
tencião á chamada depois Fenicia. Demostra-se Secundo:
Porque a versão grega dos setenta , como observarão cotn
outros Bochart e Calmet, substitue ordinariamente Fenicia^
onde o Hcbrco , e com elle a nossa Vulgata latina trazem
Catiaat!. Como quando no Êxodo cap. XVI, verso 35' dizen-
do o Hcbreo , que Saul era filho ãhtima Canatiea, os seten-
ta vertem , que era fi/ho d^huma Fenícia. E no capitulo V
de Josué, verso 12, dizendo o Hebreo , fructos da terra
de Cduaan , os setenta vertem fructos da terra dos Fenicios,
Demostra-se Tertio : Porque aquella mulher, que recorreo
a Christo para lhe curar sua filha , a qual S. Mattheus no
cm. XV, verso 12 chama Cananéa ^ S. Marcos no cap.
VII, verso ^6 a chama Syrofenicia.
A' vista de tão convincentes provas parecerá escusado
ajuntar, o que Santo Agostinho na sua Exposição incoada
da Epistola aos Romanos assevera da persuasão em que es-
tavão os camponezes d'Africa ; os quaes ainda em tempo
do Santo , quando lhe perguntavao , quem erao , respon-
dião que Cananos , isto he , Cananeos. E isto sem duvida ,
porque sabiao por tradição, que Carthago, e outras terras
suas erão fundações dos Fenicios , vindos antigamente de
Cjnaan. Interrogati rustici nostri , qui sint ^ respondente Ca-
nani. Nas Questões sobre o livro dos Juizes acrescenta
Sinto Agostinho, que a antiga lingua púnica ou cartha-
gineza , era a mesma que a cananéa.
Mas seria imprudência , ou improvidcncia , se quan-
do se tratava das colónias dos Fenicios em Espanha ,
omittissemos estes testemunhos de Santo Agostinho. Por-
que
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 6z a
monges antigos daquelle mosteiro se tivessem dado aos
estudos de lingoa Santa , c de mais a certeza , que me de-
ra nesta parte o exame áo Repertorittm veritatis de Fr. Fran-
cisco Machado me parecco extensiva ao outro monge, que
SC diz escrevera o códice CCXL,
Passados alguns mezcs , succedco-me examinar ambos
os códices , e dahi me proveio a dcscubcrta de novas es-
pécies sobre litteratura hebraica, que alem de enobrecerem
o mosteiro onde cila se cultivou , tem o grande merecimen-
to de patentearem pela primeira vez , que os decretos do
Concilio geral de Vienna forão não só recebidos , mas exe-
cutados á letra neste reino ; e tempo virá em que cheguem
a descubrir-se mais argumentos desta verdade.
Reparem os meus leitores, que eu me satisfaço e
muito deter achado dentro das paredes, onde fiz o tyro-
cinio monástico, provas irrefragaveis da cultura do He-
breo , pois aindaque os trabalhos , de que estou para fazer
menção, se reduzissem a meras copias, nem por isso fica-
ria destituída de fundamentos a minha principal asserção.
F^ntretanto a pezar deque não rezolvi ainda todas
as producções da meia idade contra os judeos, e sei por
outra parte, com que temor, ecircumspecçâo se deve pro-
ceder no exame de tacs códices , paraque não se chamem
originaes , os que simplesmente forao copias , eu que tive
o cuidado de esquadrinhar os Volfios e Bartolocios , e que
confrontei os códices de Alcobaça , com o Punhal de fé
obra clássica desses tempos , julgo e não sem graves fun-
damentos , que o sobredito Specultim Hebraorum foi compo-
sição original de hum portuguez monge de Alcobaça no
século XIV. Debaixo destas ideas farei separadamente o cx3-
mc de cada hum dos sobreditos códices, e depois hei de
cotcjalos entre si , paraque se veja ou a sua identidade ,
ou a sua differença. Comecemos pelo códice CCXXXIX.
He necessário ou estar cego , ou apenas classificar de
hum volver de olhos este códice , para o attribuir a hum
escritor do século XVI. A veneranda antiguidade, que ellc
Tomo IX, H mos-
62 h MemoriasdaAcademiaReal
mostra, e a própria letra, em que he escrito, annuncião
logo, e mui claramente o excesso de duzentos annos, que
elle tem sobre a data dos escritos do Doutor Fr, Francis-
co Machado.
Justamente se queixa o A. do Index por ter achado
este códice confitse compaginatum ; mas por isso mesmo o
deveria correr todo , e facilmente acharia nclle huma boa
parte do seu principio, onde bera clara, e methodicamente
se desenvolve a traça de seu A. , c por ventura não tem
a livraria manuscrita de Alcobaça hum livro , que mais
acredite a erudição dos seus monges em os tempos chama-
dos escuros da nossa littcratura , c que seja mais accomo-
dado para mostrar, o quanto tiorecia em Portugal no sécu-
lo XIV. o estudo das letras Divinas.
A que devia ser primeira parte do códice passou por
negligencia do encadernador a ser a ultima. Três colunas
do prologo forão raspadas ou por malícia , ou por certa
economia vulgar naquelles tempos. Ficou ainda o que bas-
ta para conhecermos o fim que o autor se propunha , e
que a meu ver desempenhou com huma clareza e ordem ,
de que não se pejariáo os mais doutos hebraisantes e con-
troversistas dos tempos modernos.
Deixadas certas preparações do A. quasi illegiveis nes-
te códice , extractarei o que pertence á divisão das matérias.
Liher iste iti VIII titules ex integro dividetur. Primus dabit
artcin brevissitnam positivam scripttire hebraice vel calãee in
nostris litteris cogmscende.
Secimdus erit de Trinitate. Iste docebit titulas quomodo apttd
deum íit cognoscenda imitas ia essência , ve/ natura. . et tri-
iiitas in personis.
Tertiiis erit de divina encarnatione. . . Iste probabit multis ar-
gumeutis quomodo idem Deus in persona filii '. patre et spi-
ritu sfíucto cooperante ; veram humunitatem accipere debuit
ex virgine illibata , verusque homo corporaliter apparere
Christus Deus,
Quar-
DAS SciENCiAs DE Lisboa. 62 c
Quartus erit de domintca passione. hte probabit quoniodo iii
redemptione butuani generis deperditi , fuerit idem Christus
Deiií secttndum homiuem occidendtis et sepeliendus. Qttomodo
viauente corpore in sepulcro , infernttm esset spoliaturus ,
ter tia die a morttiis in corpore sttrrectiirus , in celum ascen-
stints , et ad patris dcxtravi permnnsurus. \
Qttintíis erit de adventu. Iste probabit prius qito tntmdi tempore
et Christus debttit adveuire. probabit deinde quia ve-
nit. probabit et quia judfX veniet in futuro.
Sextus erit de repromissione inultiplici noviC legis tam figurali-
ter , qiiam aperte , ut per eam non corpora in hac vita sed
anima salvarentur.
Scptimus erit de prophetia , et necessitate spiritualis inteUigen-
tie scripturarimi. Iste probabit vetus testameníum fuisse per
novum ad spiritum necessário deducendum , ut sicut ad intel-
lectum carnalem historia vera fuit sub veteri , ita sub novo
fuerit in mistério ad spiritum cognoscenda.
Octavus erit de imperitia hebreorum in cognitione sacre scriptu-
re. Iste disputabit de Leviatan quod bebrei male att-
tumant in christi sui -centuri fortitudine de tnaris pélago ex-
trahendum , omnemque popultun Judeorum ex eo Largijiue
saturandum.
Proposta a divisão da matéria conclue o prologo assim.
Obsecro autem vos ó Christi professores , ut grafia comodioris
disputationis vestrum mi adhibeatis favorem , ut si quando
bebreos textus invenero , qui a nostro textu secundum litte-
ram videantur quamvis non multum in setentia discrepare^
ex bis quidem ijalcam arguere contra itlos atque in suis tex-
tibus increpare. Ex hoc enim copiosior veritas nosíra erit,
ut dum eos duximtts in suis textibus convincendos , inàe nos-
tra probatio contra illos firmior babeatur.
Completur est autem liber iste cum auxilio magni dei in ve-
nerabili monasterio alcobacie portugalia regionis sub era crea-
tionii mimdi sex mille CCCC tionaginta FIL secundum erro-
H ii rem
6a d Memorias DA Academia Real
rem autem hehreorum qttitique tnille nonaginta sub era in-
caniationis àoniinice mille CCC XXXIII. Sub era terrestris
Iberusnkm perpetue vastitatis mille CC. LFII.
Explicit prologns , hicipit primus tituhis.
De disputatione ordhiauãa et judicibus eligendis.
Prefacio artis.
jírs brevíssima scripture Hebraice et Caldee latinis litteris cognos-
cende ; et primo in quibiis proiiunciationibiis latinurnm , lin-
gua hebraica deficiat , seu iii quibiis hebreorum deficit et
latina.
Prima regula habeudi pronunciai ioiieni hebraice littere = hhayn =
qiw XIX est in hebraico alphabelo.
Secunda regula habeudi pronunciationem hebraice littere = heç =
que yill ést in hebraico alphabeto.
Ter tia regula habeudi prommciationem ká>raice littere =■ Kaf ^=^
que XI est in hebraico alphabeto.
Quarta regula hahendi prommciationem hebraice littere = gy-
mal '-^^ que tertia est in hebraico alphabeto.
Qjiinta regula babendi prommciationem hehraice littere = taf^=^
qiie ultima est iu bebr. alpb.
Sexta reg. babendi pronunciai, hcbr. litt. = <hlet = que quin--
ta est in Hebr. alph.
Septima reg. babendi prontmciat. hebr. litt. = bet = que sC'
cunda est in hebr. alph.
Octava reg. hab, prommciat. = tiait == que sexta est in hebr.
alpb.
Pondo agoFa de parte outras erudições hebraicas , de que abun-
da este códice, passemos ao exame do outro (CCXL),
Em a coluna a. do prologo se encontra o nome do A. =
Igitur ego Fr. iobannes monachus sincerus quidem fide ac puro
genere christianus
Está mui apagada a letra das palavras seguintes , e
apqnas se collige , que sendo inconveniente que hum geo»
me-
DAS SciENciAS DE Lisboa. 62 e
metra dispute com quem o não be , assim elle náo se con-
tentando de pôr em latim a confutação dos hebrcos , algu-
mas vezes recorreo á lingoa hebraica para o seu fim , e
que chamou a este seu trabalho Spetulum Hebreoritm e con-
tinua justificando este seu titulo. Protesta em fim que se
valerá do antigo testamento e que não quiz amontoar pas-
sagens do novo, e propõe a divisão geral da obra.
Liber iste in septem títulos ex integro devidetur.
Frimus erit de Trinitate = Iste docehit tatu tbeorice qitam pra-
tice qimnodo apud Detim sit credenda imitas in essência ,
uel natura , et trinitaf in personis.
Secundus erit de divina incarnatione. Iste probabit tiitihis argu-
mentis quomodo idem deus in persona filii , patre et spiritu
sancto cooperante , veram bumanitatem accipere debeat ex vir-
glue illibata , verusque homo corporaliter ãfparere Christiis
Deus.
Tcrtius çrit de dominica passiove. Iste prohabit quomodo in re-
demptiouem bumani generis deperditi fuerit cbristus Deus se-
cundum hominem occidendus et sepeliendus. Qtiomodo manen-
te corpore in sepulcro , ivfernum esset spoUaturus , tertia
die a mortiiis in corpore surrecttirtís , in celttm ascensurtts
et ad patris dextram permansurus.
Qíiartus erit de novo Testamento, Iste probabit tam figurali-
ter ; quam aperte , quomodo per ipstim iion tam corpora in
hac vita , quam anime salvarentur,
Qtiintus erit de adventu. Iste probabit certa têmpora , sive lo-
ca in quibus Cbristus corporaliter ventre debuit et venit. . . .
qtio muudi tempore , quibus diebus , qtio atino , qtio mense que
bebdomade sive die , qua civitate sive templo. Probabit et
eum sic proculdubio jam venisse : ut quidquid in contrarium
dici possit , non careat falsitate,
Sextus erit de propbetia et necessitate spiritualis intelligentie
scripturarum. Iste probabit vetus testamentum fuisse per nO'
vum de carne ad spiritum necessário deducendum , ut sicut
ad ivtellectum carnalem historia vera fuerit sub veteri; sie
quo-
6t f Memorias UA Academia Real
qiioque sub novo fuei-it in mistério ad spiritutn cogmsceuda-
Septimns dabit artem hrevissimam positivam scriptiire hebraice
et caldee per singula exempla latinis litteris cognoscende. Nec
ccutepuat lector , si quedam ex es que jam dieta juerint ,
invenerit repetita\ quod facturi sttmus ob duritiam hebreo-
rum contercndam , iiam dicit oracio , quod decies repetita place-
hiiut. Et utique in p/agis veteribus , eadem medecina , qí4am
sepe apponitur ut fortins operetur. Obsecro autcm vos o Chris-
ti professores , iit gratia cotuodioris disputationis vesírum nii-
bi adbibeatis favorem , ut si quando hebraicos texttis invene'
ro , qiii a nostro textu secundum litteram videantnr quamvis
tion multum in seiítentia discrepare : ex his quidem valcam ar-
gtiere contra illos , atque in suis textibus incrcpare. Ex hoc
enim copiosiora victoria nostra erit , ttt dum eos duxerimus
in suis textibus convincendos : inde nostra probabio contra il-
los firmior babeatur. Datur atitem in duplici volumine liber
is te., . cum hebraicis in maior i , et sine hebraicis inminori:
ut qiii aspcritatem lingue hebraice ferre nequemit in maiori
proficianí in minori, Igittir presens disputatio juxta formam
bane proponitiir in minori. Completus est atitem liber iste cum
ai:xilio magni Dei anno domini millesimo trecentessimo qna-
dragessimo quinto = explicit prologus =
Desta ultima parte do prologo se conclue que o có-
dice CCXXXIX. he o chamado in maiori neste segundo , e que
este he o in minori, vindo portanto a ser o codex CCXL.
hum resumo do CCXXXIX, e por isso he de força , que se
encontrem nclles muitas couzas semilhantes , sem embargo de
se notarem algumas diíFerenças, quacs são por exemplo as
que occorrem no próprio indice dos tratados.
A principal differença que fazem os dous códices he
que o CCXXXIX. produz sempre o texto hebraico ( aindaque
debaixo de caracteres latinos) v. g. em o terceiro titulo de
incarnatione capitulo 27 = Probatio manifesta ex testimonio
Isaie = o CCXL. antes de responder ás objecções allega so-
mente o famoso texto = Ecce virgo concipiet = como se
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 62 g
lê na vulgata ; porem oCCXXXIX. traz por extenso o original
hebraico ; e aindaquc ambos se encarregao de responder ás
cinco principaes objecções dos judeos, o CCXXXIX. insisie
na força das palavras hebraicas , e o CCXL. estriba-sc mais
nas interpretações obvias que se fundão na vulgata , c lu-
gares parallelos ; mas nem por isso deixa de recorrer alguma
vez ás erudições hebraicas, o que melhor se conhecerá , pori-
do-sc hum exemplo tirado de resposta ás objecções dosju-
dcos contra a intclligencia que nós damos ao texto dclsaias.
GoDEX. CCXXXIX.
Tertium contrariuvi faciuut in ebraica descriptime. =^ha^=^
que síve propter specificationem rei proposite , sive propttr or-
natum sermonis , quibusdam nominibus proponilur in hebreo. Ta-
li ergo consíãeratione proponittir in hoc loco hebraice dictioni
= bhalma =^ tibi dicitur =^ ha hhalma = quod est juvencitla
scilicet , incógnita vel intacta qitia cnivi tam propter sermonem
rethoricum in ebreo quam propter specificatiotiem rei proposite ,
ipsa dictio — hhalma = per adjtmctionem hebraice descriptio-
nis =: ha ^= legittir ibi = ha hhalma = qtiod est juvencitla
scilicet incógnita vel intacta quam diximus hebraica.
descriptio ^=^ ha ^= que iit dixiimts est propter ornatum^ seu
propter specijicationem quibusdam dictionihus proposita inventtnr»
Latinus enim ser mo , talem non hahet notulam , quamvis ipsam
I.atini baleant in vulgari ^zerbi graíia =^ ubi homo ■, vel mtt-
lier , vel lápis , seu aliud tale Icgimus in Latino , ibi per ta-
lem notulam vulgus dicit = Li homo — Li mulier = Lipetra ,
hebreus autem dicit = hda adam = quod est = Li homo = hd
yssa ~ quod est Li mulier = ha ebben = quod est = Li pe-
tra — et similis iyc.
CoDEX CCXL.
Tertium contrarium facinnt in hebraica descriptione — hd =
que sive propter specijicationem rei proposite , sive etiam propter
62 h Memoftas DA Academia Reai,
onmtum sennotiis quibtisdam nominibus proponitiir in hebreo y la-
tintts enim sermo talem non babei notulam &c. o mais he co-
mo acima.
Tenho dado conta do exame , e confrontação dos dous
códices : a espécie de solemnidade com que no CCXXXIX.
se aponta o lugar, em que foi escrito, assas confirma a opi-
nião, de que teve por A. hum monge de Alcobaça, da qual
só desistirei , quando se me oíFercção melhores provas em con-
trario ; e estou certo, de que todos os amantes de littera-
tura hcbracia hão-de acompan!iar-me na justa magoa , de que
tão exccllcnte obra não chegasse a ver a luz , quando es-
tava inteira , sem embargo de que assim mesmo damnifi-
cada, e mutilada, he huma prova clara do estado floreccn-
te da nossa litteratura sagrada em o século decimo quarto.
DIS-
DAS SCIEMCIAS DE LiSBOA. 6j
que a época da vinda dos Fenícios a Espanha , vamos nós
já a mostrar, que hc a mesma, que a cm que elles che-
garão ás terras d'Atrica mais vizinhas ao nosso continen-
te ; e que ate os nossos tempos pertencerão por mais de
dous séculos á coroa de Portugal.
He célebre entre os modernos antiquários, (mas não
entre os nossos) hum lugar de Procopio no segundo li-
vro da guerra de Justiniano contra os Vandallos da Afri-
ca ; o qual traduzido na fé da versão latina d' Hugo Gro-
cio , diz assim :
<( Poisque a historia nos trouxe até á Mourama , se-
>» rá conveniente expor , donde tinha sua origem esta gen-
»> te , que veio fazer assento na Africa. Ao tempo que
»> os Hebreos , depois de terem sahido do Egypto , esta-
3» vão já a tocar na Palestina, morreo Moysés, aquelle sa-
M bio homem , que os tinha conduzido atélli. Succeden-
»» do-lhe no governo Josué , filho de Nave , este intro-
>» duzio na Palestina os seus nacionaes ; e armado d' huma
»» força mais do que humana , se apoderou da terra ; des-
» truio os habitantes , e reduzio ao seu domínio as cidades
» delia ; com o que alcançou para si o nome de invicto.
>» A região marítima , que se estendia desde Sidónia até
»» o Egypto , chamava-se Fenícia. Havia neste território
j» vários povos ; os Gergeseos , os Gebuseos , e outros que
}» a historia hebraica nomea. Estes homens, vendo que não
>» podiâo resistir ao general estrangeiro, retirarão-se prí-
>j mciramente para o Egypto, mas não achando nelle ca-
j» pacidade para recolher tanta gente de novo , por ser o
j> Egypto de tempos antigos mui povoado dos naturaes ,
>» passarão á Africa , e a conquistarão toda até as colum-
>» nas d' Hercules. Fundarão nella muitas cidades, e nella
» habitão até á minha idade , falando a língua Fenícia.
» Edificarão tãobem na província de Numídia hum castel-
» lo no lugar, onde hoje he a cidade que chamão Tingi.
»» Aqui junto a huma fonte existem levantadas duas co-
»» lumnas de pedra branca , que tem gravada em letras Fe-
T. JX, P.I. l » ni-
66 MemouiaS DA Academia Real
3» nicins esta inscripçiio : Nds somos aqnelles , que fugimos
»» do ladrão Josué filho de Nave. »
Atcqui a narração de Procopio , que a escrevia pelos
annos Jc Christo 540, isto he, quasi no meio do sexto
século da Igreja,
Procopio he hum Author de conhecida reputação : re-
fere hum achado do seu tempo: não ha motivo, por que
lhe neguemos o credito. Principalmente que o que elle
aqui conta da vinda dos Fenieios até Tingi , quando fu-
gião de Josué , he mui conforme com o que liuscbio de
Cosaréa tinha escrito na sua chronica ; que aqucllcs mes-
mos Cannncos , que os Israelitas tinhao expulsado das suas
terras, vierao fundar na Africa Tripolitana varias colónias.
E o affirmar Procopio , que até o seu tempo falavão os
Mouros a lingua Penicia, hc o que á pouco ouvimos di-
zer a Santo Agostinho natural da terra.
Tingi he a que em tempo dos Romanos deo nome
á Mauritânia Tingitana, chamada assim para difFercnça das
outras duas na mesma Africa Cesariense , e Setifense. E
íiindiaue todas estavao da banda d'a]ém do estreito de
Gibraltar, e a Tingitana ficava onde hoje são os reinos
de Fé/. , e de Marrocos ; todavia Constantino na divisão
das províncias do Império fez da Mauritânia Tingitana,
chamada também Transfretana , a sexta provinda d' Espa-
nha, a quem ficava fronteira, e como adjacente.
-i A sua metrópole Tingi , concordâo todos os Geógra-
fos , que he Tangere , cidade que , como todos sabem ,
pertenceo á coroa de Portugal des do anno i4<'3, em que
o nosso invicto Rei D, Affonso V a tomou aos Mouros,
até o anno 1662, em que a Serenissima Rainha D. Cathe-
rina a levou em dote para Inglaterra , quando cazou com
o Rei Carlos II.
Temos logo os Fenieios habitando no extremo d'Afri-
ca fronteiro d' Espanha , des do tempo de Josué. Ora Jo-
sué, conforme os cálculos do insigne chronologista Usser,
começou a guerra contra os Cananeos no anno mil e qua-
tro-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 67
trocentos e cincoenta e hum antes da era de Chri-
sto.
Isto bastava , para nós sem hesitação alguma pormos
os Fcnicios em Espanha por estes mesmos tempos. Porque
não mediando entre a Mauritânia Tingitana , e a Espanha
Betica maior distancia doque a do estreito de Gibraltar,
que duvida pode haver , de que por estes tempos passa-
rião os Fenicios d'huma i outra banda ? Mas nós temos do-
cumentos positivos , que assim mesmo o persuadem.
O primeiro he, ser constante entre todos os antiquá-
rios , que , antesque os Gregos se dessem a conhecer por
algumas colónias, que fundassem fora do seu continente,
tinhão já os Fenicios nobilitado o seu nome por meio de
muitas , que estabelecerão na Africa , e na Europa. Isso
quiz significar TibuUo , quando chamou primeiros mestres
da navegação os Fenicios, liv. I. Eleg. 7.
Prima ratem ventis tradet docta Tyrus.
Ora du/entos annos antes da guerra de Troya já os
Gregos de Zacintho tinhao vindo a Espanha , e fundado
nella Sagunto , e Denia , como por authoridade de Bócio
attesta Flinio no livro XVI cap. 40. Ixya , segundo os
mármores d'Oxford , foi destruida no anno lioj? antes da
era de Christo : segundo a opinião commumente recebida
entre os modernos depois de Petavio , e Usser, no anno
ii8i antes da mesma era. Logo mais de duzentos annos
antes daquellas duas contas, se deve ter por certo, que ti-
nhao os Fenicios vindo a Espanha. E em ambas as hypo-
thcses se roça esta época pelos tempos de Josué.
O segundo tira-se do que affirma Estrabão no livro
III pag: lí^ da edição d'Almeloveen : que dos Fenicios
he que o"; Gregos tiverão as primeiras noticias do sitio, e
clima d' Espanha : e que por isso Homero poz na boca a
Protheo aquellas palavras, em que Protheo dizia a Mene-
I ii láo,
6R Memorias DA Academia Real
láo , que vindo a Espanha veria os campos Elysios , e o
£m do mundo.
Sed te , qua terra postremus terminus extat ,
Elyshim in campum cmlestia, minúna àucent,
O terceiro forma-se , do que Plinio escreve d' huma
antiga iilia , que ficava entre Cádis, e o continente d'Es-
panha , que tinha três mil passos de comprido, e mil de
largo. Esta ilha, di/ Plinio livro IV, cap. 22, he chama-
da por Efor , e por Philistides Erythia , por Timeo , c Si-
Icno AFrodisias , e pelos naturaes iiha de Juno. Foi cha-
mada Erythia , por causa de que os seus primeiros habi-
tantes forão os Tyrios , vindos do mar Erythreo. Vocatur
ab Ephoro et Philistide Erythia , a limão et Sileno Âphroài-
di£ , ab indigenis Junmis. Erythia dieta est , quoniam Tyrii
aborigines eorttm orti ab Erythrej mari fcrebaiitur. No qual
texto aquellc aborigines eorutn he huma emenda de Tal-
iTielio adoptada justamente por Bochart , que assim querem
que se leia em lugar de que trazem as edições vulgares
de Plinio , ah origine eorttm. Porque pela mesma razão de
primeiros habitadores, se chamarão Morigines y os que pri-
meiro povoarão Itália, como expõe Dionysio d'Halicarnas-
so. Temos logo por testemunho de Plinio , que os Tyrios
forão os primeiros que habitarão na Bctica a ilha Erythia ,
e que a denominarão assim , por terem vindo a ella do
mar Erythreo , que he o mar vermelho. Ora nesta ilha
Erythia pozerão os poetas Gregos os bois de Geryão , que
por mui gordos e mui anafados mettêrão cubica a Hercu-
les para os ir furtar. O que além de ser notório pelos ver-
sos de Hesiodo , mais antigo ainda doque Homero , he
expresso em Estrabão no livro III, pag. ijf. E posto-
que hum antiquíssimo historiador por nome Hecateo , ci-
tado por Arrijno escrevesse , que Geryão não reinara em
Espanha , mas em Embracia província do Epiro , sempre
daqui se comprova , que no conceito dos Gregos , já mui-;
to
TJAS SCTENCIAS DE LfSBOA. 69
to antes do tempo d' Hercules Thebano tinhao os Fenícios
cultivado de tal sorte em Espanha a ilha Erythia , que nel-
la SC criavão os mais formosos bois do mundo ; c fundado
nclla a primeira Cádis , que depois se mudou paraondc
hoje está. Na mesma ilha com o nome à'Erythia , e o so-
brenome á'' jífrodisiaí , faz mcnçSo Estevão de Byzancio no
seu livro De Urbihus,
O quarto forma-se , do que escreve Plinio no livro
III, cap. 9, que Marco Agrippa, genro d'Augusto dava
toda a Betica por originaria dos Carthaginczcs. Oram
eam universam originis Poerorum existimavit Âgrippa. Náo
queria dizer com isto Agrippa, que os Carthaginezes , co-
mo taes , tinhão sido os fundadores da Betica : porque
clle náo podia ignorar, que o império dos Carthaginezes
cm Espanha não precedia muito o tempo da primeira guer-
ra púnica. Queria pois dizer, que toda a Betica se reco-
nhecia originaria dos Carthaginezes , emquanto referia a
sua origem aos Fenícios , de quem os Carthaginezes des-
cendião, e a quem succedêrão cm Espanha. E neste senti-
do reputava Agrippa os Fenicios pelos mais antigos habi-
tadores da Betica , depois da primeira povoação d' Espa-
nha pelos netos de Noé. Bem como parece que os tinha
também reputado muito antes d'Agrippa , o author do livro
Das Maravilhas attribuido commummente a Aristóteles,
quando referia, que os Fenicios forâo os primeiros, que
vindo por mar a Tartesso , hoje Tariffa , acharão tanta co-
pia de prata, que delia fizcrão ancoras para os seus navios.
Primor Phignices ferunt , cum Tartessum navigassent , &c.
Confirma-se tudo o sobredito de que como mostrou
Bochart no seu Faleg ^ e no seu Catiaan , tanto os nomes
desta região d' Espanha , como os das suas províncias , rios,
e cidades prlncipaes , estão soando terem dos Fenicios a
sui primeira origem. Taes são os nomes Ibéria, Hispânia,
Betica, Turdetania, Lusitânia, Tagtis , Jna, Batis , Iberus ,
Gades, Malacha, Olisippo , Hispalis.
O quinto desume-se de remotíssima antiguidade , que
to-
70 Memorias DA Academia Real
todos os escritores tlão á cidade de Cádis. Ha pouco que
nós ouvimos, que Plinio a faz íundação dos Fenícios Abo-
rigines da ilha Erythia : os quaes Fenícios , como aili acres-
centa o mesmo Plinio , posérao á nova cidade o nome de
Gjdir, (mudado depois no singular Gadis , e no plural Ga-
des) que na sua lingua queria dizer cerco. No tri Tartes-
son appellant , Fosni Gadir , ita Púnica lingua sepem signifi-
cante. No qual texto de Plinio , creio que ninguém repara
que cu por lingua púnica entenda a Fènicia , depois que
advertir, que assim mesmo o entcndeo Sallusrio , quando
nos fragmentos do livro segundo de sua historia esereveo
assim : Tartessum Hispânia civitatem , qitam nttnc Tyrii mtita-
to tiomitie Gadir habent. E Santo Isidoro nas Origens : Qiiam
Tyrii a rubro mari profecti occupantes, Lingua sua Gndes^ id
tst ^ Septam nominaverunt. Também não faz ao nosso tazo ,
que os Romanos confundissem Cádis com Tartesso , como
também o confundirão alguns Gregos. Porque ou fosse Cá-
dis , ou fosse Tartesso aquella cidade , que os Fenícios
fundarão na ilha Erythia ; sempre daqui temos em Espa-
nha huma cidade fundada pelos Fenícios , que tinhão vin-
do a ella do mar vermelho : o que faz logo lembrar os
tempos de Josué.
Aos mesmos tempos faz que remontemos a fundação
de Cádis , o que da antiguidade do templo d' Hercules ,
que nella havia , deixou escrito Pomponio Mela no livro
III , cap. 6. Aqui affirma Pomponio Mela , que a antigui-
dade deste templo se roçava pela época da destruição de
Troya: Annorum ab Illiaca tempestate principia sunt. Ora he
natural , que a cidade fosse fundada primeiro que o tem-
plo ; e também que o templo não fosse fundado, senão
passadas muitas idades, depoisque florecêra Hercules. Por-
que muitas idades era necessário que se passassem , para
a fama das proezas d' hum heroe se propagar de sorte ,
que lhe conseguisse as honras da apotheose , ou da cano-
nisação. Muitas idades logo antes da guerra de Troya se
deve suppor , que foi fundada Cádis , e que floreceo o
Hcr-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 7I
Hercules, a que se consagrou o templo. Troya porem,
segundo os mármores il'Oxford , foi destruída no anno 1209
antes da era de Christo : segundo Eusébio , a quem se-
guem Petau , e Usser , no anno 1182 antes da dita era.
Logo muitas idades antes de qualquer destas duas epccas ,
(que só diflFercm huma da outra em vinte e sete annos) se
deve crer que foi fundada Cádis , e fundado o seu tem-
plo.
E daqui mesmo se confirma , que o Hercules adora-
do em Cádis não era o Thcbano , mas o Tyrio alguns
séculos mais antigo. Porque do Hercules Thebano he con-
stante , que florecêra poucos tempos antes da guerra de
Troya , como expressamente o adverte Diodoro de Sicília,
no livro I, cap. 24. tomo I, pag. 28, e como se pro-
va de que este Hercules matou a Laomedonte pai de Pria-
mo , e concorrco na expedição dos Argonautas a Colcos
com Castor e PoUux, irmãos da formosa Helena.
Ao sobredito acresce , que Cláudio Joláo , escritor
das antiguidades Fenícias , citado por hum antigo etymo-
logista Grego, que Bochart descreve, pag. 358, e pag.
609 affirma , que Arcaleo , filho de Fenis , e irmão de
Cadmo , funda'ra em Espanha a cidade de Cádis , pondo-
Ihe este nome Fcnicio. Pelo qual Fenis entendo eu Age-
nor Rei de Fenícia , a quem também Apollodoro e Eusé-
bio chamarão Fenis.
Por sexto e ultimo documento allego eu a famosa de-
nominação das Colítmnas à^Hercules , attribuida por todos
os antigos e modernos aos dous extremos do estreito de
Gibraltar, hum da parte d' Espanha, outro da parte d'A-
frlca. Porque ou estas columnas fossem verdadeiras , ou
fossem metafóricas , ou fossem imaginarias , he certo que
por ellas significarão os antigos geógrafos e historiadores
hum facto real , isto he , a vinda d'Hercules a estes dous
extremos , como os fins das suas heróicas expedições. Ora
este Hercules, a quem se attribue a posição das duas co-
lumnas , e de quem ellas tomarão o nome , deve-se crer ,
ÍJUC
71 MemortasdaAcadbmiaReal
que foi aquellc mesmo , que se venerava com summa reli-
gião no antiquíssimo e famosissimo templo de Cádis. O
que se prova, tanto porque as columnas e o templo cs-
tavao no mesmo contorno ; como porque Estrabao na li-
vro III, pag. 25-9 attesta, que em Cádis lie que os Hs-
panhoes e Africanos punhão as columnas d' Hercules. Hi-
spãíit et Jfri eas Gadibns vinJicant.
Não he menos certo , que este Hercules que se ve-
nerava em Cádis não era o Hercules Grego, filho d'Am-
fitruão e Alcmcna ; mas sim o Hercules Tyrio, alguns sé-
culos mais antigo, doquc o Grego. Assim o aífiimao Ar«
riano no livro II das expedições d'Alexandre , pag. 89
da edição de Gronovio : e Appinno na sua historia Ibéri-
ca, pag. 25Ó da edição d' Henrique Estevão, Aos quacs
se deve ajuntar outro escritor muito mais antigo , qual he
Diodoro de Sicilia , que no livro V, cap. 20. pag. 345-
da edição de Wessekng escreve, que Hercules era celebra-
do no templo de Cádis com rito Fenicio. Temos logo
hum Hercules Fenicio, atravessando o estreito de Gibral-
tar , e passando da Africa Tingitana á Espanha Betica.
Nos quaes dous termos , como considerados então os fins
do mundo, ou fins dos heróicos trabalhos d' Hercules, poz
a antiguidade as duas famosas columnas , de que tratamos.
Nenhum outro porém com mais probabilidade se pode crer,
que fora este Hercules Tyrio , doque aquelle heroe , que
segundo a relação de Procopio , conduzio a armada dos
Fenícios , quando fugindo das armas de Josué vierão ao
Egypto, e de lá passarão á Africa Tingitana.
Confirma-se não pouco esta hypothese , do que attes-
ta Pomponio Mela, escritor Espanhol e Andaluz, no li-
vro III , cap. 6. , que a causa de ser tão venerando o tem-
plo d' Hercules em Cádis , era porque naquclle templo
se conservavão os ossos daquelle Deos. Cur sanctum sit ,
ossa ejus ibi sita efficiunt. O que he huma prova irrefraga-
vel , de que na existimação da antiguidade, tinha este Her-
cules falecido na Espanha. Era logo este Hercules o Ty-
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA. 73
rio , e não o Thebano : porque este todos os antigos re-
conhecem , que da Espanha passara á França , e da França
i Itália , e que da Itália se recolhera para a Grécia.
Nem obsta chamar Pomponio Mela o Hercules de Cá-
dis Hercules E^ypcio. Forque desta difficuldadc se expedem
facilmente, os que seguem que o Hercules Tyrio fora Ca-
dmo, do qual escreve Diodoro de Sicilia no livro I, cap.
3^. pag. 27 , e com elle Eusébio na sua chronica , que
do Egypto viera d Grécia. Mas eu , que por huma parte
tenho por certo, que Cadmo não do Egypto, mas da Fc-
nicia trouxera o uso das letras á Grécia ; e pela outra não
considero interesse, em que Cadmo fosse o Hercules Ty-
rio; digo que para se verificar o titulo de Egypcio , que
Pomponio Mela attribue ao Hercules de Cádis, basta re-
flectir, que pela Relação de Procopio foi o Egypto o pri-
meiro assento, a que se acolherão os sobreditos Fenicios ,
e que do Egypto vierão eiles ao estreito de Gibraltar ,
donde suppomos que passarão a Cádis.
Nem he novo que hum mesmo Hercules tivesse dous
sobrenomes. Porque do mesmo Hercules Tyrio consta por
Heródoto , que outrosi se chamnva Thasio , por ter outro
templo em Thaso , fundado também pelos Fenicios. He-
ródoto livro 11, cap. 45-. pag. 125- da edição de Wesse-
ling.
Contra esta nossa hypothese , de ter sido o Hercules
Tyrio o conductor dos Fenicios fugitivos de Josué, se po-
dem fazer dous argumentos , hum tirado d' Heródoto , ou-
tro d'Arriano , que Bochart não prévio, nem previnio ; e
que á primeira vista parecem arruinar pelos alicerces tudo
o que acabamos de dizer nesta matéria.
Heródoto no mesmo lugar ha pouco citado do livro
II, cap. 45". pag. uj attesta , que visitando elle o tem-
plo d' Hercules em Tyro , e perguntando aos seus sacer-
dotes, que antiguidade tinha aquelle templo; os sacer-
dotes lhe responderão , que o templo tinha sido fundado
juntamente com a cidade, e havia dous mil e trezentos
T.IX.F.L K an-
74 Memorias da Academia Real
annos. Arriano no livro II , pag. 88 affiinia, que Hercu-
les Tyiio era muitos séculos mais antigo , do que Cadmo.
Destes dous testemunhos se segue , que Hercules Tyiio
precedeo em tempo muitos séculos ao hcroc, que nós sup-
pomos íòra o conductor dos Fenícios em tempo de Josué.
Porque começando pelo testemunho d' Heródoto , es-
te escrevia a sua historia pouco mais de quatrocentos an-
nos antes da era de Chrisío : pois que tendo a guerra do
Peloponneso começado no anno 431 antes da dita era ,
Heródoto na sua historia faz mençíío d'alguns successos
desta guerra já adiantada. Ajuntemos pois estes quatrocen-
tos annos , que Heródoto antecede á era de Christo , aos
dous mil e trezentos annos, que então diziSo os sacerdo-
tes d' Hercules , que o templo de Tyro tinha d'antigui-
dade ; resulta o anno 2700 antes da era de Christo. Lo-*
go já no anno 2700 antes da era de Christo , tinha ha-
vido Hercules Tyrio. Logo Hercules Tyrio nâo podia ser
o conductor dos Fenícios fugitivos de Josué , o qual Jo-
sué não entrou na terra de Canaan , a que pertencia a
Fenícia, senão no anno i45'i antes da dita era.
Passando ao testemunho d'ArrIano , o dizer elle , que
o Hercules de Tyro precedera muitos séculos a Cadmo ,
prova que o Hercules de Tyro fora tambcm muitos sécu-
los mais antigo do que Josué, cujos tempos crncordao to-
dos os críticos depois d' Eusébio , q^ie coincidirão com os
de Cadmo. (vijij.' "í .loh -i.-rjiifyfi
Mas toda esta'máquina vem abaixo, logo' que se ad-
verte, que a antiguidade que os sacerdotes de Tyro de-
râo ao remplo d' Hercules em presença d' Hcodoto , he
manifestamente falsa : e que Arriano no que escreveo do Her-
cules de Tyro, seguio sem maisepçame a Heródoto. Não
pode pois admittir-se a antiguidade , que ao templo de
Tyro attribuírão os sacerdotes d'Herculcs fallando com He-
ródoto : porque se _ o templp^ d' Hercules Tyrio existissç
des do anno de 2703 antes. , da era de Christo, ser
guia-se.;que .o..íal Xcraplo .ejwsti#_jíi mijito antes do dilu-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 75"
vio de Noé , o qual todos os que seguem a chronolugia
Hebraica , collocão no anno de 2348 antes da nossa era.
Admittido porém , que muito antes do diluvio havia já em
Tyro hum templo dedicado a Hercules, scguia-se , que
muito antes do diluvio se tinha introduzido no mundo a
idolatria. Nenhum homem porém versado na antiguidade ,
reconhece idolatria , senão depois de Nemrod , e depois da
torre de Babel. Logo o dito daquelles sacerdotes foi hu-
ma ignorância , ou huma impostura manifesta,
Podese também discorrer, que no eirado texto d'He-
rodoto andâo errados os números por culpa ou descuido
dos primeiros copiadores , que cm lugar de mil e trinta ,
poserão dous mil e trezentos. O que para não parecer livre-
mente dito, he de saber, que a cada passo estão emen-
dando os criticos modernos os cálculos d' Heródoto , pelos
acharem contrários ao que pelo testemunho d'outros escri-
tores se dá por certo. Baste por exemplo outro celebre tex-
to do livro II, cap. 146. pag. 174 onde Heródoto diz, que
desde Baccho filho de Semeie , e neto de Cadmo , ate o
tempo delle Heródoto , tinhao corrido mil e seiscentos an-
nos. O que por se não poder ajustar á chronologia rece»
bida , emenda Lydiat nas notas aos mármores d'Oxford ,
pag. II) mandando ler mil e sessenta y em lugar de mil t
seiscentos, E no mesmo texto d' Heródoto , de que se ti-
rou o argumento contra a nossa época d' Hercules Tyrio ;
«m lugar das sinco idades ou gerações, que elle mette en-
tre Cadmo e Hercules Thebano, quer Bouher que se leiâo
oito , Berthel que se leiao dez.
Alligada assim ao tempo de Josué, tanto a primeira
vinda dos Fenícios a Espanha , como a época d' Hercules
Tyrio seu conductor , he fácil reduzir a fundação do mes-
mo Hercules a huma cidade da Betica , que Estrabão no
Livro III, pag. 205^ chama Calpe, e que Gasaubon , e Bo-
chart querem que se leia Cartea ^ hoje Gibraltar. No dito
lugar pois escreve Estrabão por authoridade d' Eratosthe-
ncs , que a quarenta estádios de distaacia do monte Cal-
K ii pe,
76 Memorias da Academia Real
pe, fundara Hercules huma íamosa cidade do mesmo no-
me, que dtpoi.s se chamoa Heraclea , na torma que os des-
cendentes d' Hercules vierão a ser chamados Herac /idas. Co-
mo nenhum outro geógrafo íaz menção de cidade chama-
da Calpe na Betica ; e todos os mais, a snbcr, Mela, Plí-
nio, e 1'tolcmco , pocm junto do monte Calpe a Cartea :
cor ecturou agudamente Casaubon , que no texto d' Es-
trabão cm lugar de Calpe polis ^ se devia ler Cartea polis,
E até pelo nome de Cartea mostra Bochart p^ig. 6i6, que
cila se deve referir ao Hercules Tyrio , que na lingua dos
Fenícios se chamava Melcarthus , que quer dizer , Rei da
cidade, isto he, de Tyro.
No Livro V, cap. 20. tom. I , pag. 34<r faz Diodoro
menção d' huma grande ilha fronteira á Africa , mas mui
distante delia, que sendo atclli incógnita, os Fenícios com
huma tempestade que lhes deo na costa da mesma Africa,
forão parar a elia , e acharão hum paiz ameníssimo , cor-
tado de muitos rios navegáveis, regado de fontes d'excel-
Knte agua, povoado de bosques, quintas, jardins, e edi-
ficios magnificos. Que nclo tempo adiante , querendo os
Fenícios plantar nesta deliciosa e remotíssima ilha huma
colónia , que lhes servisse de feitoria para o seu commer-
cio ; os Carthaginezes se lhes oppozcrao , temendo que at-
trahidos da bondade da ilha , não se tentassem também os
seus a passar para ella , em prejuízo dos outros grandes
domínios , que a republica de Carthago tinha na Africa.
Que por esta razão assentarão os Carthaginezes ter sem»
pre fechado aos seus o accesso áquclla ilha , e entretanto
trazerem-na muito no sentido, para que se algum dia se vis-
sem obrigados pelos seus Inimigos a desamparar Carthago,
tivessem naquella ilha hum asylo seguro, a que se acolhe-
rem.
Não poderão atégora atinar os modernos indagadores
da antiguidade, com o sitio desta ilha tão celebrada por
Diodoro. Q^ú se lembra , que seria a Atlântida , de que
Platão no seu Timeo diz, que fqra summergida por hum
gran-
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 77
grande diluvio. Qual , que seria alguma das Fortunaus ,
que hoje dizemos Canárias. Qual , que seria a America ,
tida então por ilha.
Esta terceira opinião he a que tem maior numero de
sequazes respeitáveis. Por cila se declararão entre outros
Grocio nas notas ao capitulo XVIII do Deutcronomio , ver-
so 10. Huet na Demonstração Evangélica, proposição 10.
artigo 6. Horne numa obra que intitulou Da Origem das
Gentes da America', e Schimid na Dissertação sobre a Ame-
rica, que elle ajuntou ao seu Pindaro.
As difficuldades que a esta chegada dos Fenicios até
á America , oppoem Bochart no livro Be Coloniis Pbanicum
cap. 38. Wesseling na nota ao presente lugar de Diodo-
ro , e Calmet no fim da Dissertação que escreveo Sobre
em que paiz se salvarão os Cananeos afugentados por Josué.
Todas estas difficuldades se reduzem a dizer, que em tem-
pos em que os navios crão incomparavelmente menos pos-
santes do que hoje são os nossos , e cm que não havia
uso algum nem conhecimento da agulha de marear; pare-
ce impossível, que sem milagre podessem os Fenicios fa-
zer huma tão larga navegação por mares tão grandes , e
tão aparcelados.
Ãlas quanto a mim , ainda prescindindo doutra não
menos admirável navegação, que Plínio no Livro II, cap.
67 attribue a Eudoxo, a Magon , e até aos Espanhoes do
tempo de Tibério , dos quaes todos affirma , que navega-
rão desde Cádis até o Sino Arábico , e desde Sino Arábico
.até Cádis ; prescindindo também de que como nos infor-
ma Damião de Góes no principio da Chronica do Princi-
jje D. João , com esta noticia se animavão os nossos para
€mprehenderem o descobrimento de novas terras em tempo
tio Infante D. Henrique. Quanto a mim , digo , nenhuma
força tem esta razão, para impugnar, e muito menos pa-
ra negar a chegada dos Fenicios á America. Porque sendo
innegavel , que quando os Castelhanos e os Portuguezes
tlescobfírão este noyQ mundo » q acharão tçdo habitado
._ d'ho-
78 Memorias DA Academia Real
d' homens naturaes , e que estes homens tinhão para lá ido
muitas centenas d'annos antes , isto he , de tempos que
excedem toda a memoria : destes dous factos se taz evi-
dente , que em tempos antiquíssimos , em tempos que a
náutica estava mui longe da perfeição, que depois a cal-
çou, poderão os homens navegar, e com eíFeito navcgárãj
os mares , por onde ou da Ásia , ou da Africa , ou da
Europa se podia chegar á America, separada por mar de
todas as outras partes do mundo.
Como o meu intento não foi expor todas as colónias,
que os Fenícios estabelecerão em Espanha, ou fora dcUa;
mas fixar provavelmente a época , em que elies pela pri-
meira vez chegarão ao nosso continente : passo daqui a
dizer alguma cousa das muitas riquezas , que elles acharão
nesta região , ou logo no principio , ou depois que o
tempo e a experiência lhes foi descobrindo.
Refere pois Diodoro de Sicília no livro V da sua
Bibliotheca, cap. 35-, que a muita prata, qu2 os Fenícios
acharão em Tartesso , ilha e cidade da Betíca , que Ma-
riana julga ser TariíFa , fora a que lhes dera opulência e
forças navaes , com que elles depois propagarão o seu im-
pério em varias partes da Africa, Sicília, e Sardenha. A
qual prata affirma. Diodoro que era tanta, que estando os
Fenícios para se embarcar, e vendo que os seus navios a
não podião levar toda ; tomarão o expediente de fazerem
de prata as ancoras , e mais instrumentos , com que se es-
quipa huma frota.
Por este caso allega o nosso Gaspar Barreiros na sua
Corografia não só a Diodoro de Sicília no lugar acima in-
dicado, mas também a Aristóteles na obra Das MaravilbaSf
a qual todavia já antes de Barreiros tinha duvidado Eras-
mo , e depois de Barreiros duvidou Vossio , que fosse de
Aristóteles.
Para que a ninguém pareça incrível aquella prodigiosa
abundância de prata , temos em Estrabão outro lugar apon-
tado também por Barreiros do livro III, pag. 224 ondg
. P; A. Ç S q I;E;IíiOI;A.S p E L 1 5 ^O,^ 3 y^ 7^;
este gravíssimo geógrafo attesta como hum facto constan-
te entre os escritofes mais, ant;igQS.; que quando os Car-
thaginezes vierão ã Espanha em tempo d'AmiIcnr Barca,
pai do grande Annibal ; observarão não sem admiração ,
(jue os Tudertano.s usavão, de talhas ç de manjedouras de
prata. Comprehendia a Tud.ertani^ parte da Betica , e par-
te da Lusitânia. '
Afora estes testemunhos produzidos por Gaspar Bar-
reiros , acho outros , que ainda provão mais especifica-
mente o nosso assumpto. Porque no mesmo livro III , pag.
220 escreve Estrabao por authoridade de Polybio , que jun-
to a Carthagena no âmbito de quarenta estádios , ( cada
estádio tinha cento e vinte cinco pés ) havia humas minas
de prata , onde d' ordinário trabalhavao quarenta mil ho-
mens , e donde por dia se pagavao aos Romanos vinte cin-
co mil dracmas. E passando das minas de prata ás do ou-
ro, o mesmo Estrabao tinha já notado na pag. 216, que
na Tudertania se achavao algumas vezes torrões d'ouro de
seis libras , a que chamavao palas , que necessitavão de
mui pouca expurgação para se aproveitarem de todo.
PHnio no livro XXXIII , cip. 4 dá por cousa averi-
guada, que só as Astúrias, 3 Galliza, e a Lusitânia, pro-
duzião cada anno ^os mineiros vinte mil arráteis d'ouro
{vlcena millia pondo) : que reduzidos a arrobas, fazem seis-
centas e vinte sinco. -jy.ii -èoa míií!-:; u.
Ultimamente da historia Roftíiaría consta , que toma-
da por Scipião Carthagena , forao achados no esbulho del-
ia dezoito mil e trezentas libras de vasos de prata, e du-
isentas ç setenta e seis taças d'oura.
%.' ' Boii-tiecitada' na sessão temipublica 4^ 2.1 4e ^^rp de
\fj'%'f-:-y-J ;í;'.o í-,i,i -,.,,: ^ ,,;.
~í:oI Eímugag e mo'j oW^^^úVi
sDDiBq h4tta<^xa « obc}io[ijs ití loq
8o MemouiasdaAcademiaReal
DISSERTAÇÃO II.
Etymologia destes quatro nomes , Ibéria , Celtiberia , Hi.patiia ,
Lusitânia.
Cjanto Isidoro de Sevilha no livro XIV das Origens , cap.
4 diz, que esta região da Europa, em que nós habita-
mns, fora no principio chamada Ibéria do rio Ibero ^ hoje
F.bro , que rega hunia grande parte delia ; e depois fora
chamada Hispânia de Hispdlo , que outros declarão fora hum
dos seus primeiros Reis. Hispânia prius ab Ibero amne Ibé-
ria nuncupata , postea ab Hispalo Hispânia cognominata est. Am-
bas as etymologias tirou Santo Isidoro de Justino, que as-
sim o escreve no principio do Livro XLIV.
Nem se pode oppor contra a segunda o dizer , que
se Hispalo fosse o que deo o nome a Espanha , deveria
esta chamar-se antes Hispalia , do que Hispânia. Porque em
contrario se re<;ponde , que não obstante chamarem Gregos
e Romanos Hispânia a região , sabemos que entre os mes-
mos Romanos houve hum Cornelio Hispdlo , chamado assim
por ter sujeitado Espanha. Consta isto d' hum notável lu-
gar de Diodoro de Sicilia nos Excerptos do livro XXXIV,
tomo II da edição de Wessehng, pag. óof , que diz as-
sim : (( O Cônsul Publio Scipião Nasica foi hum varão emi-
j> nentissimo , tanto pela sua virtude , como pelo esplen-
j» dor da sua geração : porque era descendente daquella fa-
j> milia, de que sahírão os Africanos, e os Asiáticos, e
>f os Hispálos : dos quaes o primeiro sujeitou a Africa, o
>» segundo a Ásia, ô terceiro a Espanha. >> Aqui temos,
que contra as regras da derivação, mas não sem exemplo,
chama'rã() os Romanos Cornelio Hispdlo com a segunda lon-
ga aquelle heroe , que por ter sujeitado a Espanha parece
que SC devia appellidar antes Hispano. Mas neste caso for-
ma-
DAS SciENci AS DE Lisboa. 8i
márao os Romanos àc Hispânia Hispà/o , da mesma scrte
que de Messaita formarão o outro appcllido de Messala.
Tudo advcrtio primeiro do que eu Henrique de Valois ,
na Nota ao referido lugar de Diodoro. Logo se contia
as regras da ctymologia poderão os Romanos de Hispânia,
formar Hi^pdlo ; porque não poderião ellcs de Hispdlo for-
mar Hispânia ?
Ainda assim Marcos Varrão citado por Plinio seguio
outro rumo , quando escreveo que os Iberos Povos da
Ásia , onde hoje chamão a Geórgia , forão es que derão a
Espanha o nome de Ibéria: que Luso ouLysa companhei-
ros de Bacco , forão os que derão o nome á Lusitânia : e
que Pan, outro capitão que cá deixou Bacco, fora o que
a toda a Região dera o nome de Pania , donde depois
acrescentada huma letra se formou Spauia , e por ultimo
junta huma syllaba com aspiração Hispânia. Pjinio Livro
IH. cap. \. In universam Hispaniam M. Varro pervenisse
Iberos , et Persas , et Phoevicas , Celtasque et Pcenos Irodit '.
Lujum enim Liberi Patris , ac Lysam cum eo bacchantem , no-
men dedisse Lusitânia , et Pana prafectum ejus iiniversa.
Se estas etymologias fossem tão certas , pelos seus
fundamentos , como ellas são bem recebidas entre os
Escritores ; era fácil fixar a Época , em que a Espanha e
Lusitânia obtiverão estes nomes, pelo tempo em que vi-
verão os Heroes , que lhos derão. Porque Heródoto no Li-
vro IL cap. 146. testifica, que Bacco floreceu antes delle
mil e sccenta annos , que estes são os números , que por
consenso de grandes Criticos se devem repor no Texto de
Heródoto , em lugar dos mil e seis centos , que se lem nas
suas Edições. Vejão-se as Notas , que aqui traz a Edição
de Wesseling.
Heródoto , como eu já demostrei na Dissertação so-
bre a Época dos Fenicios em Espanha florecia pouco mais
de quatrocentos annos antes da era de Christo. Ajuntcm-
sc estes quatrocentos annos aos mil e secenta , que Heró-
doto atte&ta que lhe precedera Bacco: temos o anno 1460
T. IX. P. L L an-
Sx MemouiasdaAcademiaReal
antes da dita era. Tantos ha logo , segundo o testemunho
de Varrão , que a Espanha se chama assim de Pan capitão
de Bacco, e a Lusitânia assim de Luso ou Lysa seu com-
panheiro.
Confirma-se esta Época de Bacco e seus companhei-
ros , pelo que os M.irmores d'Oxford assignao a Gadmo
avô de Bacco por sua filha Semeie. Porque segundo os di-
tos Mármores, na Época VIL Cadmo veio á Grécia no
anno iji? antes da era de Christo : que vem a ser 59
annos , antes do anno 1460 cm que por Heródoto vimos,
que florccêra Bacco neto de Cadmo.
Antes que deixemos de todo o referido Texto de Plí-
nio Livro in. cap. I. deve-se advertir, que ainda que nel-
le trazem todas as Edições Lustim ou Lysam copulativamen-
tc, o sentido parece pedir, que se leia disjunctivamente
Lustim aut Lysam , como já notou Resende ; porque fuljan-
do-se de quem tomou a Lusitânia o nome , como Luso e
Lysd são nomes diversos, não se podia dizer, que a Lu-
sitânia o tomara de ambos, mas d'hum ou d'c)utro
Também sobre o referido Texto de Heródoto he ne-
cessário notar, que elle depois de fixar a Época de Bacco
a mil e secenta annos antes do seu tempo, prosegue fixan-
do também as Épocas d'Hercules filho d'Alcmena , e de
Pan filho de Penélope. Mas este Pan he diverso. Diz que des-
de Hercules filho d'Alcmena até o tempo delle Heródoto,
tinhão decorrido novecentos annos : ( são mil e trezentos an-
tes de Christo ) e que desde Pan filho de Penélope tinhão
decorrido oitocentos : ( são mil e duzentos antes de Christo. )
Daqui se segue , que o Pan de que falia Varrão , he muito di-
verso e muito mais antigo, do que o Pan de que falia Heródoto.
Mas prescindindo das Épocas destes Heroes , Samuel
Bochart versadissimo nas Linguas Orientaes , e em toda a
Historia antiga ; dá por quiméricas todas estas etymologias
de Varrão apontadas por Plínio ; e quer que em lugar dos
Gregos, fossem os Fenícios os que denominarão a nossa
Região , e. as suas Províncias.
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 8^
O sentimento pois de Bochart he , que o nome d'/-
beria vem do termo Fenicio Ebrin , ou Ibrin , que significa
o fim , ou o que he ultimo : visto que dos Fenícios passou
aos Gregos e aos Romanos o conceito , de que a Espa-
nha era o fim do Mundo , como entre outros chamou Clau-
diano :
In extremos aciem mittebat Iberos.
Que o nome A'' Hispânia vem do outro termo Sayhan ,
que em Lingua Fenicia quer dizer coelho : de sorte que
á Espanha se desse este nome por cauza da grande co-
pia de coelhos , que nella se produzem. O que alem de
ser huma qualidade, que todos os antigos Historiadores
attribuem a Espanha, e ás Ilhas Baleares suas adjacentes j
deo também motivo ao Poeta Catullo , para que no Epi-
grama a seus companheiros desse á Espanha como por an-
tonomásia , o cpitheto de cunicutosa , isso he , de creadora
de coelhos.
Tu pr£ter omnes une de capillatis
Cuniculosa Celtiberite filits.
Confirma Bochart esta etymologia , observando que a
orthografia primitiva deste nome he Spania por SP, e três
syllabas , como trazem o Grego de S.Paulo Rom. XV. 24,
38, o de Eusébio, o de S. Epifânio: e como o trazem
€m Latim as Subscripções do primeiro Concilio de Cons-
tantinopla , e muitos Manuscritos de Curcio , de Justino,
de S. Isidoro de Sevilha , e de S. Eulogio de Córdova.
Com o que pode muito bem estar , e com effeito está ^
que a outra orthografia de Hispânia por H. e quatro sylla-
bas , se não deve ter por barbara , ou errada : pois que el-
Ja se acha frequentemente nas Pedras e medalhas do tem-
po dos Romanos.
Qjc Lusitânia vem de outro termo Z,az, que entre os
Fcnicios queria dizer amendoeira. Porque sendo costume
L ii dos
84 Memorias pa Academia Real
dos Fenícios dar ás suas Povoações o nome dos fructos ,
porque ellas se distinguião humas das outras ; como quan»
do chamarão a Jerko cidade das palmeiras , a Tapphua ci-
dade das m.içaas , a Rimirwn cidade das romaas , a Bathna.
cidade das nozes : dá Bochart por mais do que provável ,
que da mesma sorte chamarão os P^cnicios Lnsitauia este
nosso paiz , por cauza das muitas amendoeiras que nclle
acharão, e que na mesma Lusitânia ainda hoje dáo o no-
me ás villas da Amêndoa , . Òl Almendra , e de Castelmendo :
do mesmo modo que os mesmos Fenícios até por confis-
são de S. Jerónimo , chamarão Litza a cidade de Bethcl ,
querendo dizer cid?.de das amendoeiras. Comprobatnr Bethel
Luzam id est amigdalum , ante vocitatam ; diz o Doutor Má-
ximo no Livro das questões Hebraicas. Assim Bochart no
Livro De Coloniis Phieniaim, cap. ^^.
Lsto he pelo que toca ás origens destes três nomes
Ibéria , Hispânia , e Lusitânia , as quaes eu náo faço mais
do que referir, deixando ao juizo de meus ouvintes ou lei-
tores , escolher a que lhes pareça mais vcrosimel.
Qiianto ao nome de Celtiheria , os antigos ora o con-
trahião a huma parte da Espanha , ora o applicavão a toda
ella. No primeiro sentido se chamavão propriamente Celti-
beros aquelles Povos d'Espanha , que habitavão d'huma e ou-
tra banda do Ebro : os quaes Estrabão no Livro III a ca-
da passo está contradistinguindo dos Turdetanos , dos Lu-
sitanos, e dos Gallcgds. No segundo escreve Floro Livro
II. cap. 17. 7 Ota certaminum moles cum Lusitanis et Ntimati-
tinis ftiit. , . . Fuisset et cum omnibus Celtiberis , nisi , &c. E
no mesmo sentido ouvimos já dizer a CatuUo no Epigra-
ma XXXVIII. Cuniculosie Celtiberis filiis, He porém cons-
tante entre antigos e modernos , que o nome de Celtibe-
ria se formou do concurso das duas Nações , Céltica e Ibé-
rica , do modo que refere Diodoro de Sicilia no Livro V.
c.ip. 3^. por estas palavras: Depois determos assas fallado
dos Celtas , passemos a tratar dos Celtiberos seus commar-
cãos. Porque estes dois Povos, os Iberos e os Celtas, co-
mo
DAsSciENciAs DE Lisboa. 85^
mo antes tivessem tido guerras sobre os limites de seus
campos, por ultimo feita paz habitarão pormiscuamente hii-
ma mesma Região: e misturados huns com outros pelos
cazamciitos , tomarão ambos hum mesmo nome , que de-
notasse essa mesma mistura. Atòqui Diodoro.
Chamárão-sc pois Celtiberos os habitantes sobre o Ebro ,
depois que com elles se vierão misturar os Celtas Povos
da Gallia , que se scguião immediatamente aos Pyrincos.
E chamou-se Celtiberia aquella Região , em que vivião huns
e outros Povos já misturados n'hum.
Mas não cuide alguém, que os Celtas pararão de to-
do nas ribeiras do Ebro. Porque dos antigos Geógrafos
consta , que elles também se propagaVão pela Lusitânia ,
e pela Betica , e que da Betica passarão á Galliza : o que
tudo mostra Resende pelos testemunhos d'Estrabâo e Plinio.
Não ha cousa mais decantada entre os antigos Poetas
Espanhoes , do que ter provindo o nome de Celtiberia des-
ta mistura e ajuntamento dos deus Povos confinantes. Lu-
cano Livro IV. verso 9.
Proftigique d gente vetusta
Gallorum , Celta miscentes numen Iberis.
Silio , Livro in. verso 340.
Venere et Celta sociatum nomen Iberis.
DIS-
t6 Memorias da Academia Reau
DISSERTAÇÃO III.
Os Gregos em Espanha , jd des dos Tempos Heróicos , isto he ,
antes da guerra de Troya , e immediatamente depois delia.
D.
EPOis dos Fenícios , a Nação mais amiga de que eu
tenho noticia que viesse a Espanha, são os Gregos, e isto
já des dos Tempos Heróicos.
Por Tempos Heróicos da Grécia entendo eu aquelles,
em que florecêrão os seus Deoses e Semideoses; os qujcs
tendo sido na realidade huns puros homens , (ainda que
alguns delles ao mesmo tempo bem impuros ) a grandeza
de suas acções , e aventuras os elevou a huma classe infi-
nitamente superior á de todos os outros , segundo a gen-
tilidade era propensa e fácil em dar honras divinas aos
seus heróes.
§ I.
Dentro de que espaço de tempo se comprehendem os Tempos
Heróicos da Grécia segundo Farrao.
Censorino no seu curiosíssimo e elegantíssimo Trata-
do De Die Natali ^ cap. ii diz que Varrão dividia todos
os tempos em três classes. A primeira des da creação do
mundo até o diluvio d'Ogyges, A segunda , des do dilu-
vio d'Ogyges até o principio das Olympiadas. A terceira
des do principio das Olympiadas até o tempo, em que elle
Varrão escrevia.
O primeiro intervallo dava Varrão por adelon , isto
he , por absolutamente incógnito aos homens : o segundo
por mythicon , isto he, por fabuloso: o terceiro por histo-
ricotij isto he, por verdadeiro.
Em
I
DAS SciENciAS DE Lisboa. 87
Em dar o primeiro intcrvallo por absolutamente in-
cógnito, queria dizer Varrao , que do que dentro dcllc ti-
nha succcdido no mundo , não se sabia nada. Em dar o
segundo intcrvallo por fabuloso , queria dizer , que nelle
andava a verdade misturada com a ficção. Em dar o ter»
ceiro intervallo por histórico, queria dizer, que nelle ap-
parecia a verdade clara.
Resultados deste Principio Chronologico de Fmrão.
Primeiro Resultado. Que a única cousa , que Gregos
e Romanos sabiâo do primeiro intervallo do mundo , era
que tinha havido na Attica hum diluvio , reinando nella
Ogyges.
Segundo Resultado. Deste diluvio d'Ogyges até o
tempo em que Varrão escrevia , diz elle no Pxoemio do
Livro Terceiro De Re Rústica , que erão passados quasi
dous mil e cem annos. Thcba , qua ante cataclysnium Ogy-
gís condita dicuntur , ea tamen circiler duo millia aunorum et
centtim sunt. Varrão escrevia no anno setecentos da funda-
ção de Roma , sincoenta antes do nascimento de Christo :
porque no mesmo Proemio nota elle , que então he que
se podia dizer com verdade , o que cento e tantos annos
' antes tinha escrito menos exactamente o Poeta Ennio :
Septingenti sunt paullo plus atit minus anni,
augusto augúrio postquam ínclita condita Roma est.
Logo todos os conhecimentos históricos de Gregos e
Romanos , segundo o testemunho do mais douto d'entrel-
Ics , não remontavão acima do nascimento de Christo , mais
do que a dous mil cento e sincoenta annos. Donde se
mostra bem , quanto a Historia dos Hebreos excede em
antiguidade de factos , tudo quanto refere a Historia Pro-
fina. Porque collijindo-se pela Historia do Testamento ve-
lho quatro mil anaoç des da creação dp mundo até Chris-
to j
88 MemoriasdaAcademiaReal
to ; Varrão nos assegura , que a Historia Profana apenas
passava de dous mil.
Terceiro Resultado. Daquelles dous mil e cem annos,
que Varriío affirmu terem passado dcs do diluvio d'Ogyges
até o seu tempo, tirem-se os setecentos, que hião dcs do
tempo de Varrão até a fundação de Roma: ficao mil e qua-
trocentos annos. Logo este era com pouca differcnça o es-
paço , que Varrão chamava mythkon , ou fabuloso. Porque
segundo o systcma de Varrão, do principio das Olympia-
das até a fundação de Roma , não decorrerão senão vinte
e dous annos. E como o intcrvallo dos tempos fabulo-
sos, todos convém que he o mesmo, que o dos tempos
heróicos; temos que segundo Varrão , por tempos herói-
cos se devem reputar todos os mil e quatrocentos an-
nos, que decorrerão des do diluvio d'Ogyges até a época
das Olympiadas , que -todos põem no anno setecentos e se-
tenta e seis antes da era de Christo , e segundo o sy^tema
de Varrão , vinte e dous annos antes da fundação de Roma.
§ II.
Qtiando começão os Tempos Heróicos da Grécia segundo os
Mármores d'' Oxford , e segundo Eusébio.
Os Mármores d'Oxford , que como eu já disse noutra
Dissertação, forão escritos duzentos e secenta e quatro an-
nos antes da era de Christo ; dão principio aos tempos
heróicos da Grécia em Cecrópe primeiro Rei d'Athenas ,
mil e quinhentos e oitenta e dous annos antes da nossa
era.
Com elles concorda admiravelmente o Principe da
chronologia antiga , Eusébio de Cesárea. Porque no Livro
IX da sua grande obra Da Preparação Evangélica , cap. 3 :
segundo a antiga edição Veneziana de que uso de is'^9 y
ou cap. 9. segundo a de que usavão Usser c Musansi :
depois de notar, que Cecrópe e Moysés forão contempo*
ra-
dasScienciasdeLisboa. 8^
ranços, prosegue Eusébio dizendo, que d'então por dir.nte
he que acontecerão todas aqucUas maravilhas, que a my-
thologia Grega nos conta : a saber , o diluvio de Deuca-
liáo , o incêndio de Faetonte , a vinda de Cadmo a The-
bas , os dous raptos de Prosérpina e Europa , os nasci-
mentos d'Apollo e Errcthonio, a agricultura de Triptole-
mo , os mysterios Eleusinos de Ceres ; e depois destes as
aventuras de Minos , Preseo , Theseo , Bacco , Hercules.
Numa só cousa discrepa Eusébio dos Mármores d'Ox-
ford , como notou Selden : e he que os cálculos d' Eusé-
bio ordinariamente vão atrazados aos dos Mármores d'Ox-
ford vinte e seis annos. Mas em succcssos , que a nosso
respeito são passados ha mais de três mil annos; ninguém
deixará de conceder , que a dilFerença de vinte e seis an-
nos não he diíFerença , de que se faça caso , quando se
trata de fixar esta ou aquclla época.
Diodoro de Sicilia, que florcceo em tempo d'Augusto
Ccsar , promettendo no Proemio do Livro IV da sua Bi-
bliothcca , tratar dos semideoses e heroes da Grécia, co-
meça por Bacco, filho de Semeies, e neto de Cadmo: de-
pois passa a Hercules , filho d'Alcmena : depois a Jason ,
capitão dos Argonautas: depois a Dardano e Priamo: de-
pois a Minos e Dédalo. E isto he desumir também Dio-
doro os tempos heróicos da Grécia, dos que se seguirão
ao reinado de Cecrópe, como com os Mármores d'Oxford
fez Eusébio. Porque Cadmo concorreo com Amfyctião ter-
ceiro Rei d'Athenas depois de Cecrópe.
Quanto ao termo dos tempos heróicos , seguio Eusé-
bio o systcma de Varrao. Porque chegando na sua Chro-
nica ao principio das Olympiadas, diz assim Eusébio: jíqui
acabão os tempos fabulosos , e começao os históricos.
Resultados desta combinação da Chronologia ^Eusébio com
os Mármores d'Oxford.
Primeiro Resultado. Tendo Cecrópe concorrido em
T. IX. P. h M tem-
^ Memorias DA Academia Real
tempo com Moysés , fica evidente, que os tempos herói-
cos da Grécia correspondem áquelles dos Hcbreos , que
se seguirão depois de Moysés.
Segundo Resultado. Qiie os tempos heróicos da Gré-
cia des de Cecrópe até a ruína de Troya , coincidem com
os tempos dos Juizes do Povo Hebrco des de Josué até
Jephte.
Terceiro Resultado. Que os tempos heróicos da Gré-
cia des da ruina de Troya até o principio das Olympia-
das coincidem com os tempos de Jcpte , Sansão , Heli ,
Samuel , e com os dos Reis de Judá desde Saul até
Ozias.
§. III.
^ue Gregos vierão a Espanha nos Tempos Heróicos , antes
da destruição de Troya.
Os Zacynthios f ou naturaes da Ilha Zante.
Duzentos annos antes da destruição de Troya, huma
armada de Gregos vindos da ilha de Zacyntho no mar lo-
nio , desembarcarão em Espanha onde hoje he a cidade de
Valença , e fundarão a três milhas delia a cidade de Sa-
gunto , que agora se chama Monviedro ; e pouco depois
a setecentos estádios de Carthagena , edificarão hum tem-
plo á dcosa Diana , e coUocárão nelle hum simulacro da
mesma deosa , que tinhão trazido de Zacyntho. Do qual
templo de Diana se chamou depois Dianio o Promontório
c villa, onde elle estava, que era onde hoje vemos a villa
de Denia.
Qlic Sagunto fosse fundação dos Zacynthios, temo-lq
expresso em Estrabão Livro III, pag. 239'. e em Tito Li-
vio Livro XXI , cap. 7.
C^ie fosse fundada duzentos annos antes da destruição
de Troya , colhe-se da igual antiguidade , que Plinio dl
ao templo de Diana , quando no Livro XVI , cap. 40 al-
ie-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. gi
legando com Bocco escreve assim : Et iti Hispânia Sagr.nti
aiunt Templtim Diana a Zazyntho advecta cum coriditortbus ,
anuis diicentis ante exciclium Tróia , ut auctor est Boccbus j /»-
fraque oppidutn ipsum id baberi.
Do mesmo templo de Diana faz menção Estrabão no
lugar acima indicado , como também do promontório e po-
voação , que dcllc tomarão o nome de Dianio : mas ad-
verte, que a povoação era obra muito mais moderna, pois
tinha por authores os de Marselha , colónia dos Focenscs.
Accrescenta , que em Dianio havia huma atalaya perpetua;
e que em tempo dos Romanos tivera Sertório aqui a sua
praça d'armas : o que também se colhe de Cicero no LiW:
vro V contra Verres, cap. 56. j
Sabemos também pelo mesmo Estrabão , que o tem-;
pio de Diana estava entre o rio Sucro, e a cidade que de»
pois se chamou Carthagena.
Para fixarmos pela antiguidade do templo a época des-^
ta vinda dos Zacynthios a Espanha , e da fundação de Sa-
gunto por elles ; basta saber pela referida informação de
Plinio, que ao tempo da ruina de Troya , contava já d
templo duzentos annos. Troya porém , segundo os mármo-
res d'Oxford na época XXV foi tomada no apno mil e
duzentos e nove antes da era de Christo. Accrescentemos
a esta conta os duzentos annos , que o templo já tinha ,
quando foi tomada Troya : acharemos que cidade e tem-
plo forão fundados mil e quatrocentos e nove annos antes
da mesma era.
S IV.
Que Gregos vier Ho d Espanha nos Tempos Heróicos ^ depois
da destruição de Troya.
No paragrafo antecedente de propósito omitti tratar
de Bacco e de Hercules , que todos os nossos antiquários
suppóem vindos a Espanha muito antes da guerra de Troya.
M ii E
91 MeMOUIAS DA ACADEM IA ReaU
E a razão que tive para este silencio foi : porque sendo
muitos os Bjccos , e muitos os Hercules que a antiguidade
celebrou ; e achando-se as aventuras d' hum e outro mistu-
radas de muitas fabulas, sem que pelos testemunhos dos
authores Gregos seja fácil deslindar u verdade dos succes-
sos e dos tempos; não pareceo justo, que onde só se tra-
tava de descobrir o certa e averiguado , gastasse eu o tem-
po era expor c estofar especiosas mentiras , quaes siío vá-
rios contos ide que andâo cheias as Historias de Mariana
ç de Brito. , ,...i; .
A guerra de Troya, e a subsequente destruição desta
famosa capital da Frygia depois de dez annos, he a épo-
ca , que nos escritos do gravissimo e exactíssimo Historia-
dor Est rabão , nos offerece mais certos documentos, por
donde melhor possamos conhecer , quaes forao os heróes ,
que depois daquelle successo o mais memorável da Histo-
ria'Grega , ;vierâo por força da adversidade illustrar com
as-^iuas íurjdaçâes esta nossa Península.
ab i Observa país Estrabâo mais d'lwma vez, a saber no
Livro 'I,;pag. ^3 , e no Livro III, pag. 123 , que na tor-
nada para as suas terras , depois de destruída Troya , achá-
íãò os capitães Gregos tão contrários os fados , que em
breve tempo sè virão oá vencedores igualados nas desgra-
ças cont ; os Vencidos : e que assim desapossados dos seus
Estadas , e pobres de bens , sei virão huns e outros cons-
trangidos a buscar por meio de longas peregrinações em
paizcs estranhos melhor fortuna. Logo bem como Enéas, e
Antenor víerão a Itália ; assim também Menestheo , Mene-
la'o , Ulysses , Teucro , e Diontedes passarão a Espanha ,
e no extremo delia deixarão illustre memoria de si em va-
rias fuuJaçõcs, que o mesmo Estrabâo aponta em diversos
lugares do Livro III, pag. 206, e 223, e 236.
Menestheo.
Menestheo tinha esbulhado da posse do Reino d'Athe-
I nas
DAS SciENciAS DE Lisboa. 95
nas a Theseo , ajudado para isso dos filhos de Tyndaro.
Ao voltar da guerra de Troya , achou o Reino occupado
por Demofonte, filho de Theseo, a quem clle pertencia
pelo direito da succcssâo. Vendo-se assim despojado de seus
Estados , veio a Cadiz , e defronte desta ilha , na foz do
rio Belon , que hoje se chama Guadalethe , edificou huma
cidade , que do nome do fundador se chamou Porto de Me-
nestheo , que se julga ser ao presente o Porto de Santa
Maria. E entre os dous braços, que então fazia o Guadal-
quivir, levantou hum templo, que também de seu nome
se chamou Oráculo de Menesthco.
Meneldo.
Meneláo ao tempo da guerra de Troya era Rei de
Mcsscnia no Peloponeso. Em vingança e despique da af-
frofita , que Paris, filho de Priamo tinha feito a Aleneláo,
vindo-lhe roubar a casa çua própria mulher, a fermosa He-
lena ; he que toda a Grécia se conjurou contra Troya , pa-
ra cuja destruição veio huma armada de mil e duzentas
na'os. A vinda de Meneláo a Espanha , depois da ruina de
Troya , prova-a Estrabão daquella passagem da Odyssea de
Homero , onde este Poeta introduz a Protheo fallando as-;
sim com Meneláo :
Sed te , qtia terra postremus terminas extat ,
Elysium in campum calestia numina ducent :
Qtiem Rhadanianthus habet ; qua vita facillima multo
Ducitiir : baitd operit campos vive Júpiter istos :
Hyheruo tempus neque viultum prorogat anuo.
Ntilli imbres : spirat semper grata aura favoni ,
Missaque ab Oceano nimios deniitigat astus.
Nos quaes versos querendo Protheo significar a Meneláo ,
que viria a Espanha, diz-lhe que viria ao ultimo extremo
lio mundo , onde estavão os campos Elysios. Tão antiga
cia
94 MemoriasdaAcademiaRkal
era entre os Gregos a fama da amenidade e riqueza do
nosso terreno , que nelle punhão o Paraiso , onde eterna-
mente hião morar as almas bemaventuradas dos seus he-
roes. E ainda que alguns authorcs portuguezes querem ,
que os campos Elysios dos antigos fossem na província
d'entre Douro e Minho ; os que d'cntre os estrangeiros
são mais versados na historia e mythologia grega , põem
aquelles campos na provinda da Betica, onde era Tartcs-
so , e onde hoje está Cádis. E este he o sentir d' Estra-
bão , que a isto diz que alludiao as duas fabulosas expe-
dições dos herócs gregos , huma dirigida a furtar as boia-
das de Geryáo , que pastavão na ilha Erythia entre Cádis
e a terra firme d' Espanha ; outra a colher os pomos de
ouro do jardim das Hesperidas , que era da outra banda
da Mauritânia , c fronteira de Cádis.
Accrescenta Estrabão, que donde Homero, e Hesio-
do , e os outros poetas gregos souberão da amenidade , fer-
tilidade , e opulência d' Espanha , fora dos Fenícios , que
muito antes tinhão vindo a ella.
Vlysseí»
Damião de Góes numa descripção que fez de Lisboa
em muito bom latim , affirma que o fundamento que os
nossos tirão do nome Ulyssipo para fazerem Lisboa funda-
ção d'Ulysses, he hum fundamento ruinoso. Porque a ver-
dadeira orthografia deste nome nos antigos monumentos
Romanos , não he Ulyssypo , por U e Y , com dous SS , e
PP: mas sim Olisipo j por O e I latino, sem nenhuma le-
tra dobrada.
Samuel Bochart no Livro I De Coloniis PhanicwUj cap.
3f quer que Olissypo venha dos dous vocábulos Fenícios
^lis Ubbo y que significão enseada amena. Porque no livro
III, cap. I colloca Pomponio Mella Lisboa numa enseada
do Tejo. E a amenidade desta enseada nós a vemos e go-
samos. . •
D.
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 9f
D. Fr. Amador Arrais no dialogo IV, cap. 7 seguin-
do que a verdadeira orthografia he Olisipo, insiste todavia
em que Lisboa fora funda'da por Uiysses. E cita por esra
opinião a Solino , c a Estrabao. Com effeito Solino as5Ím
o di7. no cap. 36 do seu Polyhistor : Ibi oppidnm Ulissippo
ah Ulysse condltuvt. Estrabao no livro 111, pag. 223 c 236
citando a Possidonio, e a Artemidoro , menciona cm Espa-
nha hiima cidade fundada por Uiysses , onde havia hum
templo de Alinerva : mas não a chama Vlyssibpo , nem Olys~
sippo, como todos os outros gregos, e latinos, senão UUys~
sea. E Casaubon diz que não sabe se esta será Lisboa.
Eu comtudo , prescindindo por hora da questão ortho-
grafica ; tenho por sem duvida , que a Ulyssea d' Estrabao
lie Lisboa. E o meu fundamento he , que se Estrabao não
entendeo Lisboa debaixo do nome d'Ulyssea, seguir-se-hia
o grande inconveniente de confessarmos, que Estrabao não
tivera noticia d'huma cidade, de que todos os outros se
lembrarão , e que pela sua celebridade merecia não esque-
cer a nenhum , e muito menos a'quelle , que passa por
principe de todos. Nem o achar-se o dito nome escrito
por O e I latino , prova que a Lisboa não foi fundada
por Uiysses : pois que todos sabem as grandes alterações ,
que o tempo faz nos vocábulos, e principalmente nos pró-
prios.
Teticro.
No livro III, pag. 236 nos dá Estrabao noticia de
hum Asclepiades Myrliano , de quem diz que ensinara gram-
matica grega na Tudertania , isto he , naquclla parte d'Es-
panha , que hoje chamamos Andaluzia e Algarve ; e que
composera huma descripção dos diversos povos , que a ha-
bitavão.
Na fé deste Asclepiades conta Estrabao , que vários
gregos que tinhão acompanhado a Teucro na guerra de
Troya , vierão com elle fazer assento em Galliza , e alli
fundarão duas cidades, huma chamada Hellenes, outra Am-
fi-
9^ MEMOniASDAAcADEMIAREAL
filoquia; a primeira das quaes julga Marianna que he Pon-
tcvedra , a segunda Orcnse.
O mesmo nome d' Hellenes' está mostrando a origem
grega desta cidade. Porque segundo os mármores d'Oxford
nos informão na época VI de Hellen , filho de Deucaliao,
que reinou na Fitiotida . começarão a chamar se Hellenes,
os que antes se diziao Grecos , ou Gregos, nome que lhes
tinha dado Greco, filho de Théssalo : o que também consta
de Plinio no livro IV, cap. 7. Onde he muito para se
advertir, que assim como de Hellen, filho de Deucalião
se denominou o Hellenismo, que era o dialecto Attico c
commum a todos os Gregos; assim de Doro e Eolo , filhos
de Hellen, c de lon seu neto, vierao depois a denomi-
nar-se os outros três dialectos particulares , Dórico , Eóli-
co , e lonio.
A causa da outra cidade de Galliza se chamar Am-
filoquia , nota o mesmo Estrabao , que fôra porque nella
morrera Amfiloco, que devia ser algum dos capitães, que
tinha acompanhado a Teucro nesta denota.
Com o testemunho d'Estrabão sobre a vinda de Teu-
cro a Galliza, concorda o de Justino, compilador da his-
toria de Trjgo Pompeo , o qual no livro XLIV, cap. 3
diz assim : Os Gallegos referem a sua origem aos Gregos.
Porque dizem , que Teucro acabada a guerra de Troya ,
vendo que seu pai Telamon o não queria admittir no Rei-
no , por causa da morte de seu irmão Aiax , que elle Teu-
cro não soubera vingar ; fôra para Chipre , e lá fundara
huma cidade do nome de sua pátria , que era Salamina.
Que passados tempos , ouvindo que seu pai era falecido ,
tjrnára para a pátria : mas que sendo delia repellido por
Euryfaccs , filho de Aiax , se embarcara via d' Espanha ; e
tendo abicado ás suas praias , se apoderara primeiramente
daquelle districto , onde agora está Carthagena ; depois
passara a Galliza , e nella dera nome a varias cidades ,
que fundara. Gallaci autem Gracam sibi originem adsertmt.
Siquidem post finem Troiani helli , Teucrum morte Jiacis fra-
tris
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 97
tris invisum patri Telamoni , quum non reciperetur in regtmm ,
Cyprum concessisse , atque ihi urbem tionitiem aniiqua putriíS
Salamina condidisse. Lide accepta opiniotie paterna mor tis , pa-
triam repetitse, Sed quum ab Euryface Âiacis filto accessu pro-
biberetttr , Hispânia littoribtii appuhttm , loca ubi nuuc est Car-
tbago nova , occttpasse : mde Gallaciam transisse , positisque se-
díbus getiti nomen dedisse. Atéqui Justino. De cuja relação
se conhece, que este Teucro que veio a Galliza, não he
aquellc , que de Creta veio para a Frygia , e de quem os
Troyanos se denominarão Teucros : mas outro algum tJnto
mais moderno , filho de Telamon Rei de Salamina , ilha
situada entre o Peloponeso e a Attica , que se achou na
guerra de Troya com seu irmão Aiax , e que depois vin-
do a Chipre fundou nella huma Cidade do mesmo nome
da sua pátria, isto he, a Cidade de Salamina, que hoje
se diz Famagusta.
Como a Salamina da Grécia pelo decurso dos tempos
veio a pertencer aos Athenienses , e a Salamina de Chi-
pre era C^olonia sua ; faz o Chronista de Paror expressa
memoria desta fundação de Teucro, dizendo assim na Épo-
ca XXVII. dos Mármores d'Oxford , segundo a reducção
dos annos que costumamos fazer , por ordem ao tempo an-
terior ao nascimento de Christo :— Desde que Teucro fun-
dou Salamina em Chipre , são passados mil e duzentos e
dous annos , reinando em Athenas Demofonte. = Foi logo
fundada Salamina por Teucro ,, sete annos depois da ruina
de Troya: pois que esta como já vimos, os mesmos Már-
mores na Época XXV. a põem succedia no anno mil e du-
zentos e nove antes da nossa era.
Silio Itálico no Livro III, verso 378. faz a Cartha-
gcna fundaçãa de Teucro.
Dat Cartbago viros , Teucn ftmdata vetusto.
O que deo muito que fazer ao nosso Resende. Por-
que por huma parte Polybio , Estrabão , Pomponio Mela ,
T. IX, P.I. N e
9? Memorias DA Academia Real
e outros, aíEimao que Carthagcna fora obra d'Hasclrubal.
Vor outra parte, Carthagcna foi chamada Carthago Nova
por comparação e respeito da Carthago Afiicana , que na
opinião geralmente recebida contra a hypothese de Virgi-
lio , toi iundada algumas centenas d'annos depois da des-
truição de Troya. Como podia logo Teucro dar a Cartha-
gcna o nome de Carthago Nova , se ainda não existia a
primeira Carthago.
Mas para conciliar a Silio com os ditos Geógrafos e
Historiadores , pode-sc responder : Que Teucro no lugar'
em que hoje está Carthagcna , fundara huma Cidade , e
lhe poséra hum nome , que hoje se ignora : c que dahi
a mu tos séculos, vindo Hasdrubal a Espanha, reedificara
essa Cidade fundada por Teucro, ou a augmentára tanto
d'edificios , que parecia huma nova Cidade , e por compa-
ração á Carthago Africana sua pátria a chamara Carthago
Nova.
Justino no lugar que ha pouco ouvimos, suggere es-
ta mesma solução ; em quanto diz , que Teucro occupára
aquelle Território d'Espanha , onde agora está Carthage-
na. Loca ubi nnnc est Carthago nova occupasse. E he claro ,
que Teucro não havia d'occupar aquelle Território , sem
estabelecer nelle alguma Povoação. Esta Povoação podia es-
tar arruinada em tempo d'Hasdrubal , e este convidado da
aptidão do porto restaurai-la , pondo-lhe o nome da sua
pátria. Não ha cousa mais frequente nas Historias , do que
mudarem as Cidades os nomes , a arbítrio daquelles , que ou
as reedificarão , ou as engrandecerão. Assim reedificada Je-
rusalém , Adriano a appellidou Elia : restaurada Bizâncio ,
Constantino a appellidou Constantinopla.
Diomédes.
A respeito d'Espanha , não individua Estrabâo nada
deste Heroc , contentando-se somente de o metter na clas-
se dos outros Capitães Gregos, que cá vierão. Porem Silio
1'
dasScienciasdeLisboaí 99
Itálico, quando no Livro III. verso 380. deo a Tiiy oepi-
theto de Etòla , dizendo :
Et qtios nmc Gravios violato twmitie Grniúm
Oenca misére domus , JEtolaqtie Tide :
claramente quiz significar , que Tuy era fundação de Dio-
médes , e que este lhe poscra o nome de Tyde , em me-
moria do seu pay Tydeo Rei da Etolia , e neto d'Eneo.
Onde he também de notar , que aos Gallegos se dava
o nome de Gravios , que Silio adverte era corrompido de
Gratos , que quer dizer Gregos ; como se com este appelli*
do quizessem os antigos dar a conhecer os Gallegos por
originários da Grécia.
Mas desta origem Grega dos nossos maiores , erão
em Espanha bons indicies não só o nome de Graios , que
se dava aos habitantes do Minho , mas também os costu-
mes que Estrabão geralmente attribue aos Lusitanos, que
vivião junto ao Douro , e ao Tejo. Porque no Livro III.
pag. 132. affirma , que ao modo dos Laconios se ungião
duas vezes no dia ; que se aquentavão ao lume feito de pe-
dras em braza ; e que uzavão com muita frugalidade d'hum
mesmo alimento: Que erão grandes sacrificadores, e mui
dados a augurar dos futuros pelo exame das entranhas das
rezes , e pela pulsação das artérias. Que com rito Grego
costumavão todos os annos fazer aos Deoses o sacrifício
de cem victimas, que naquella Lingua se chama Hecatom-
ba. Que á maneira dos Gregos se exercitavão em vários jo-
gos de força , carreira , e destreza. Finalmente que cele-
bravão os seus matrimónios segundo o ceremonial Grego.
Estas são , Senhores , as memorias que por hora pude
descobrir da mais remota antiguidade da Grécia , respecti-
vas á nossa Espanha : pelas quaes fica manifesto , que mui-'
to antes da guerra de Troya , fundarão os Zacynthios na
Espanha Tarraconense a cidade de Sagunto e o Templo
de Denia consagrado a Diana ; que pouco depois da mes-
N ii ma
100 Memorias da Academia Real
ma guerra vierão a Espanha Mencsthco , Mcncláo , Ulfs-
ses , Teucro , c Diomédcs ; dos quaes huns fundarão na Bc-
tica o Porto de Santa Maria; outros na Lusitânia Lisboa j
outros cm Galliza Ponte Vedra , e Orense.
DISSERTAÇÃO IV.
Das Egoas da Luaitania , de que se creo que concehiao do Ze-
fyro , e onde era nos Campos de Lisboa , que ellas pastavao.
hjs
/STE espece he trevial entre os nossos antiquários. Eu
não Farei mais , do que dar-lhe alguma novidade , pelo mo-
do de a tratar. E ninguém espere de mim alguma Disser-
tação fysica , sobre a possibilidade ou impossibilidade do
facto. Isso pertenceria a outra classe mais alta , a que eu
não sou aggregado. E assim cingir-me-hei precizamente a
expor, o que nesta matéria noa transmittio a crença dos
antigos Romanos ; o que por este meu Papel se verá , que
foi muito mais, do que, o que nos descobrirão Resende,
Brito , e Arraiz.
Não ha fabula mais authorizada , nem mais acredita-
da , do que a de conceberem e parirem algumas vezes do
vento as egoas da Lusitânia nos campos de Lisboa.
Varrão foi o primeiro entre os Romanos , que a pu-
blicou e deo por certa , quando no Livro II. De Re Rús-
tica , cap. 1. escreveo assim: Na matéria de fecundidade
succede em Espanha huma cousa incrivel , mas que passa
assim na realidade : e he que na Lusitânia junto ao Ocea-
no , naquelle Território onde está Lisboa , no monte Ta-
gro , concebem algumas egoas do vento em certa estação.
Mas os potros que delias nascem , não vivem mais que
três annos. = In fmtura res incredibilis est in Hispânia , sed
est vera : quod in Lusitânia ad Oceanum in ea regicne , ubi est
oppidum Olyssippo , mmte Tagro ^ quadam e vento certo tem-
po-
DAS SciEWCIAS DE Li S BOA. lOf
pre cottcipiunt equa. Sed ex bis equis qui nati pitlJi , mniUis
trieuuiunt vivunt.
A VarrSo scguio se Columclla, que no Livro VI. tam-
bém De Re Rtutica , cap. 27. escrevco deste modo : He
huma cousa, que todos sabem, que em Espanha no mon-
te sacro , que corre para o occidcnte junto ao Oceano ,
tem acontecido varias vezes , apparecerem as egoas prenhes ,
sem o cavallo as ter antes cuberto, e criarem o feto que
parirão; o qual todavia he inútil, porque antes d'encorpar,
morre aos três annos. Notissimum est in sacro monte Hispa-
ni£ , qiii procurrit in occident^mjuxta oceamim , frequenter equas
sitie coittt ventrem pertulisse , feettimqiie educasse ; qui tamcn
inutilis est , quod triennio priusquam adolescat , morte absumi^
tur.
A Columella seguio-se Plinio , que duas vezes tocou
e asseverou esta maravilha. Huma no Livro IV. da Histo-
ria Natural, cap. 12. onde chama a Lisboa cidade nobre,
pelas egoas que nos seus campos concebem do vento fa-
vonio. In Lusitânia Tagi ora , oppidum O/yssippo , equarum e
favonio vento conceptu vobile. Outra no Livro VIII. cap.
42. onde diz que he huma cousa constante , que na Lu-
sitânia em torno de Lisboa junto ao Tejo , voltadas pa-
ra onde corre a viração do favonio , attrahem as egoas o
espirito animal , e delle parem huns potros de summa li-
geireza , mas que não vivem mais que trez annos. Constat
in Lusitânia circa Olyssipoiiem et Tagum amnem , equas favo-
nio flante obversas animalem concipere spiriíum , idque partum
fieri , et gigni pernicissimum ita , ut triennitwt vit<e non excedat,
A Plinio seguio-se Solino, que no capitulo 36. do
seu Polyhistor se explicou assim : Na Lusitânia ha hum
^iromontorio ou Cabo , que huns chamão Artabro , outros
Lisbonense , que distingue o ceo , as terras , e os mares.
AUi está a cidade de Lisboa fundada por Ulysses. Alli o
rio Tejo, que por cauza das suas douradas arcas he ante-
-posto a todos os mais. Nas vizinhanças de Lisboa , he cou-
sa admirável , que as egoas no tempo do cio lhes serve
de
loi Memorias da Academia Real
de marido o favonio , do qual concebem e parem. In Lusi-
tânia promontoriítm est , qtiod alii Artabrum , alii Vlysíippo-
nense diciint. Hoc aelum , terras , et muria distingtiit. . . Ibi
oppidttm Ulyssippo ab Ulysse couditum. Ibi Tagus Jliimen. Ta-
griím ob arenas aiiriferas ceteris omuibut pratulertint. In pró-
ximo Ulyssipponis equ/e Jascivimt mira foecunditate , et sitien-
tes viros aurarum spiritu maritantur.
Sendo tão celebrada pelos Historiadores esta admirá-
vel fecundidade das nossas egoas , não he muito que os
Poetas a dessem por huma cousa averiguada e certa. Vir-
gílio no Livro III. das Georgicas, verso 266. e segg.
Vbi súbdita jlamma medullis ,
Vere magis , quia vere calor redit ossibus , illa
Ove omnes ver s te in zephyrum stant rupibus altis j
Exceptantque leves auras , et sape sine ullis
Cotijugiis vento gravida ( tnirabile dictu )
Saxaper et scopulos , et depressas ccnvalles
Dijfugiunt,
Singularmente nota Virgilio , que a estação em que
as egoas concebiâo do zefyro , he na primavera, por ser
este o tempo , com que o calor começa a mover os espí-
ritos, f^ere magis ^ quia vere calor redit ossibus.
Silio Itálico , concordando com Virgilio quanto á es-
tação em que as egoas concebiâo do vento ; discrepa to-
davia dos outros , quanto ao tempo que os potros duravão.
Porque não lhes dando Varrão, Columella , e Plinio mais
de trcs annos ; Silio lhes estende a vida até sete.
No Livro Segundo da Guerra Púnica, tratando dos
diversos Povos d'Espanha , de que Annibal Carthaginez
reforçou o seu Exercito , para marchar a Itália contra os
Romanos ; depois de nomear os Biscainhos , Asturianos ,
Gallcgos , Lusitanos , põe Silio os Vettoes , dando-os a co-
nhecer pelas castiças egoas , que nos seus campos conce-
bem e parem do zéfyro. Livro III. verso 390. csegg.
At
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. tOJ
At Vettónum alas Balartis prolat aquore aperto :
Hic adeo cttm -ver placidttm jiiitttsqut teposcit,
Concubitut servans tachos grex prostat equarttm ^
Et venerem occultam genitati concipit titira.
Sed mil multa dtes geiíeri , properatque scnecttis.
Septimaque bis stabulis hngissime ducitiir atas.
Este lugnr de Silio he notável , não só porque illus-
tra a fabula das nossas egoas fecundadas pelo vento favo-
nio , ou zcfyro ; mas também porque decide huma ques-
tão, em que Resende se cançou muito: que he , se os
Vcttões pcTtencião á Lusitânia , ou csfavão fora delia. Re-
sende no Livro I. das suas Ar.tiguidad(.s , prova que al-
guns Vettõcs pcrtcnciao á Lusitânia , outn^s não. Allcga
pelos primeiros o lugar de Flinio, que no Livro IV. cap.
3 1. reconhece Vettões junto ao Tejo. Ctrca Tugtim Vétto- ^
nes. Allega a Prudcncio , que no Hymno de S. Ulaya cha-
ma a M crida , illustre Colónia da Vettonia. E allega va-
rias Inscripções do tempo dos Romanos, achadas em Meti-
da , Évora, e outras partes, onde a Vettonia vem incor-
porada na Lusitânia.
Com estes mesmos Documentos mostrou em nossos
dias o Padre Flores no Tomo L da Espanha Sagrada , cap.
12. que a Lusit.mia comprehendia parte dos Vettões. Mas
nem Resende , nem Flores , se lembrou deste lugar de Si-
lio It.ilico , que como Espanhol, e tão antigo, era hum
Juiz muito mais competente , do que Plinio e Prudencio ;
c que claramente põe os Vettões naquella parte d'Espanha ,
onde as egoas concebião do vento : o que por testemunho
de todos os Historiadores Romanos, era nos campos do
Tejo junto a Lisboa , como temos ouvido.
At Vettónum alas 'Balartis probat aquore aperto.
Hic adeo , cum ver placidum , &c.
Do
■ro4 Memorias da Academia Real
Do qual primeiro verso se colhe também , que a se-
gunda syllaba desse nome não he sempre breve , como
cuidava Resende allegando com Prudencio e com Sereno
Sammonico ; mas alguma vez longa , como aqui a fez Si-
lio : de sorte que na proza dever se-ha dizer sempre Vét-
tones ; mas no verso se pôde também dizer Vettónes.
Tornando ás egoas dos campos de Lisboa , só Justi-
no de todos os Antigos advertio , que o dizer-se que ci-
las conccbião do vento , era huma fabula , a que dera oc-
casiáo a summa fecundidade das mays , e a igual ligeire-
za das crias. Justino no Livro XLIV. cap. 3. In Lusitânia
jtixta fiiivium Tagiim eqtias vento concipere muhi authores pro-
didenint : quts fabuLu ex equariim fectmditate et gregum miil-
titíidine natie siint : qià tanti in Galileia et Lusitânia ac tam
fernicitcr visuntur ut non immerito ipso vento concepti videavtur.
Ainda assim Lactando Firmiano , ( que de Professor
de Rethorica quiz passar a Theologo ( controversista ) no
Livro IV. das Divinas Instituições, cap. 12. se valeo des-
te supposto milagre da natureza , para com clle persuadir
aos Gentios, que não havia repugnância nenhuma, em que
também por milagre da graça concebesse e parisse huma
virgem sem concurso de varão. E esta foi talvez huma
das razões , porque S. Jcronymo disse de Lactancio , que
prouvera a Deos que clle fora tão feliz em provar os Do-
gmas da Igreja , como o tinha sido em impugnar os erros
da Idolatria. Porem não se deve culpar nos primeiros Mes-
tres do Christianismo , que argumentando ad hominem com
os Ethnicos os procurassem elles convencer da possibilida-
de dos nossos mystcrios , com os exemplos de certas cou-
sas , que os mesmos Ethnicos davão por certas. Como quan-
do com a paridade da Fénis , que renascia das próprias
cinzas , provarão outros Padres ora a possibilidade da Re-
surreiçâo glorioza deChristo, ora a da virgindade fecun-
da de Maria.
Tenho exposto , o que os Romanos crerão e escreve-
rão das nossas egoas. Resta apurar pelos seus mesmos tes-
te-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. lôj
temunhos , em que sitio das ribeiras do Tejo e das vi/í*
nhanças de Lisboa , punhão elles este portento.
Varrão , que foi o primeiro Author desta fabula en-
tre os Romanos, (porque faliando dos Gregos, ella já vi-
nha do tempo d'Aristoteles , que no Livro VI. da Histo-
ria dos Animaes, cap. i8. nenhuma duvida põe, cm que
as egoas concebessem do vento). Varrão , digo, punha es-
tas egoas da Lusitânia no districto ou Comarca de Lis-
boa , no monte Tagro. In ea regione , ubi est oppidtim Olys-
sippo ^ monte Tagro. Este monte Tagro suspeitava Resende ,
que era a Serra de Monte Junto , doze Icgoas de Lisboa.
Fr. Luiz de Souza na primeira Parte da Historia de S. Do-
mingos , também propendeo para o mesmo , e confirmou
a conjectura com advertir , que ainda hoje temos risquicios
do nome Tagro na Villa de Tagárro y vizinha da dita Serra.
Porém esta intelligencia do lugar de Varrão tem con-
tra si , que ao que Varrâo chama monte Tagro , chama Co-
lumella monte Sacro. O que movco Escaligero, Ursino , e
Popma a querer, que pelo lugar de Columella se emen-
dasse o de Varrão , e que em lugar de monte Tagro se les-
se monte Sacro em ambos.
Que assim o entendessem os três referidos críticos
Estrangeiros, que como taes não estarião plenamente in-
formados das distancias do nosso paiz , não he para admi-
rar. Mas que hum Espanhol, como o Padre Lacerda, se
declarasse pelo mesmo sentimento nos seus Commentarios
ao Terceiro das Georgicas de Virgilio , não sei como o
desculpe. Porque nshasitznh níohn outro motite Sacro ^ que
seja conhecido dos Geógrafos, por este nome, senão o
que elles chamao sacro promontório , que todos pelas con-
frontações de Pomprtnio Mela , e de Plinio , convém que
he o Cabo de S. Vicente no Reino do Algarve. E este não
pódc ser o monte ou Serra , de que se trata ; porque dis-
ta de Lisboa algumas sincocnta legoas , como advertio sen-
do Estrangeiro , o outro moderno critico Scoettgen.
D. Fr. Amador Arraiz no Dialogo IV. cap. 7. , citan-
T. IX. P. I. Ò do
rc>6 Mem ORr AS DA Academia Real
do a hum douto Portuguez , que não nomeia , e que cu cui-
do ser Damião de Góes, diz que o monte Tagro àc Var-
rão , onde pascião as nossas egoas, he a Serra de Sintra,
distante de Lisboa cmco ou seis legoas. Não me desagra-
da esta opinião , visto que dos campos de Sintra se podem
verificar ainda melhor do que dos de Monte Junto , as
circunstancias do sitio, em que todos os Antigos põem es-
tas egoas. Mas então inclino-me , a que em Varrão em lu-
gar de monte Tagro se deve ler tnoHte Artabro , como com
elFcito emendou Salmasio. Movo-me , porque no Livro IV.
da sua Historia Natural, cap. 21. chama W\n\o promontó-
rio Artabro , ao Cabo que junto a Lisboa lança huma gran-
de ponta para o Oceano. Excurrit deinde in altum vasto cor-
mi pronmitorlum , quod alii Artahrum appellavére , alii magnum ,
multi Olyssiponense ab oppido , terras , viária , ccelum distermi-
naus. O que todos os nossos entendem da Serra de Sintra ,
chamada pelos navegantes o Cabo da Roca, Movo-me mais :
porque Snlino no lugar acima citado , põe Lisboa nas vizi-
nhanças do promontório Artabro ; e pÕe as egoas que con-
çebiáo do vento , nas vizinhanças de Lisboa. In próximo
olyssipnnis equ<e lascivittnt mira foecunditate.
Estando para concluir esta Dissertação , achei casual-
mente por huma Nota de Bongarsio ao lugac de Justino,
que acima transcrevi , que hum sábio Espanhol por nome
Francisco Fernandes de CordpvíC, ,,nQ,sçu Tratado De Di'
dafcallia mttltiplici ^ cap. 48. mostrara com vários argumen-
tos de razão e d'experiençia , que taes conceições do ven-
to , quacs os Romanos crerão das tgoas de Lisboa , era
hua)a patranha manifesta. Eu accrescento , que para disto
se persuadirem todos , não hc necessário mais , do que con-
sultar o senso commuin. E admiro-me que houvesse , en-
tre nós , quem professando q estudo das Letras , propen-»
desse para acrçditar huma fabula tão palpável , como Ar-
raiz dá a entender que houve.
DIS^
DAS SCIENCIAS DE LiSBO A. lOJ
DISSERTAÇÃO V.
Sobre dotit notáveis lugares d* Heródoto , acerca dos Focenses ,
e Samios vindos a Tartésso ; e sobre bum d'Esírabão igual-
mente memorável j dcerca da antiguidade que nossos maio-
res se attrtbuião.
E.
usEBio na sua Chronica, anno 445" antes da era de
Christo, refere que no dito anno, tendo lido Heródoto os
seus livros n'huma Assemblea d'Athenas , fora honrado
com a approvação e louvores de todos. Como Heródoto na
sua Historia faz menção d'alguns successos da famoza guer-
ra do Peloponeso , declarada em seu tempo entre Athenien-
ses,e Laccdemonios : a saber, no Livro VII. cap. 137. al-
guns successos do segundo anno da guerra ; e no Livro IX.
cap. 72. alguns do anno decimo terceiro: e esta guerra
do Peloponeso, convém os dous grandes Chronologistas,
Petau , e Usscr , que começou no anno 431 antes da nos-
sa era , e durou yinte e oito. Segue-se , que ou Heródo-
to cscreveo a sua Historia muito mais tarde do que cuidou
Eusébio; ou que se a escreveo quando Eusébio suppôe,
a retocou depois Heródoto , para a enriquecer com aquel-
las noticias da guerra do Peloponeso. E sempre daqui se
conclue , que Heródoto compoz a sua Historia , quando
menos , quatrocentos annos antes da era de Christo.
Ora no Livro I. cap. 163. pag. yj da Edição de
que uzo , que he a de Wesseling , Amsterdam , 176^, traz
Heródoto a seguinte Passagem : = Os Focenses forão os
primeiros dos Gregos, que fizerao longas navegações: e
essss mesmos forão, os que derao a conhecer o Adriático,
a Siciiia, a Espanha, e Tartésso. Uzavao porém de ga-
Ij lés não redondas , mas pentecontoras , isto he , de sincoen-
ta remos. Estes Focenses pois tendo vindo a Tartésso, fo-
O ii tâO
To8 Memorias da Aca^demií Rhal
rão mui aceitos ao Rei da terra Arganthonio , que havia
já oitenta annos que reinava em Tartésso , e que viveo cen-
to e vinte. E tanto se insinuarão os Focenses na graça de
Arganthonio, que elle primeiramente os aconselhou, que
deixada de todo a lonia sua pátria , fizesssrti asseiíto n*
seu reino , onde muito quizessem. Depois vendo qUe os
não podia reduzir a isso, deo-lhes com que murassem a
sua cidade, e dco-lhcs com mão larga. Porque o âmbito
do dito muro he de não poucos estádios , e todo elle foi
construído de pedras grandes , e primorosamente lavradas. ^^
Atequi a primeira Passagem d'Herodoto.
A segunda he no Livro IV. ca'p. iffi. pag. 547, e
diz assim : = Tende os Samios levantado ferro da ilha de
Platéa , com intento d'irem ao Egypto n'huma galé , do
que era Piloto Coleu ; aconteceo, que empurrados d'hum
furiozo temporal , passarão as columnas d'Hercules, e vie«
rão a Tartésso , sendo Dcos o que para lá os encaminha-
va. Era Tartésso naquelle tempo hum empório intacto ; de
sorte que voltahdo ellcs Samios para a sua pátria , levarão
tamanhos lucros por producto das suas mercadorias , que se
não acha , que outros alguns Gregos os tenhão tirado maio-
res , á excepção de Sóstrato d*Egina filho de Laodamante ,
tom o qual ninguém pôde competir. Destes lucros tirada
a decima, que fofaO seis talefitos, fizerão os Samios hum
caldeirão á forma do que havia em Argos , cercado por fó-
i-à de cabeças de gryfos voltadas humas para as outras , e
o collocárão no Templo de Juno , sustentado em três figu-
las colossaes de sete covados , firmadas sobre os joelhos. =
Atequi a segunda Passagem d'Herodoto.
Gomo ambas ellas são notáveis, não só pela vinda de
Focenses, e Samios a Tartésso; mas também pelo modo,
com que Heródoto falia desta vinda : entro primeiro que
-tudo a averiguar , em que tempo vierão aquelles Gregos a
Tartésso; quacs vierão primeiro; e onde era Tartésso. De-
pois reflectirei na grande idade do Rei Arganthonio. Por
ultimo discutirei , o que destes dous lugares d'Herodoto
se
DAS SciENCIAS DE LiSBOA, lO<f
se deve ou não deve concluir , sobre a primeira vinda dos
Gregos a Espanha.
Em quanto aos Foccnses , o mesmo»' contexto d'Hcro-
doto nos taz manifesto , cm que tempo fixo vicrap clles a
Tartésso. Porque no antecedente capitulo 162.. e no sub-,
sequente 164, claramente dá a entender, que os Foccnses
vierão a Tartésso por aquella occasião , cm que H.upago
General de Cyro , ( que alguns erradamente nomeao Har-
palo , entrelles o Padre Mariana) estava de cerco sobre a
cidade de Focéa capital da lonia , para a render ao domi-
nio dos Persas, como com effcito rendeo. Andava então
Cyro na grande empreza de conquistar toda a Ásia menor,
para o que lhe abrira caminho a famoza victoria , que cin-
co annos antes tinha alcançado de Créso Rei poderosíssi-
mo da Lydia , cuja Capital era Sardes. Esta entrada porém
d'H.irpago na lonia , çnde pouco depois expugnou com ou-
tras cidades a de Focéa , Eusébio na sua Chronica a põe
no anno 5'4j , antes da era de Christo , o segundo da Olym-
piada LIX. Neste anno pois , ou no seguinte , he que os
Focenscs vierão a Tartésso , valer-se do seu Rei Argantho-
DÍO.
O Padre Mariana no Livro I. da sua Historia d'Es-
panha , cap. 17. suppõe que depois de terem voltado de
Tartésso , he que os Focenses fundarão em França a cidade
de Marselha. Porém engana-se , porque Marselha tinha sido
fundada pelos Focenses mais de cincoenta annos antes , a
saber, no anno 600 antes da era de Christo. O que se
demostra não só por assim o affirmar Eusébio na sua Chro-
nica , pondo a fundação de Marselha no anno primeiro da
Olympiada XLV. , mas também porque Timeo citado por
Marciano na sua Periégesi , põe Marselha fundada no mar
Ligustico 120 annos antes da famoza batalha de Salami-
na , em que os Gregos derrotarão a armada deXerxes. Ora
pelos Mármores d'Oxford , Época LU. a Batalha de Sala-
mina foi no anno 480 antes da era de Christo. Ajunte-
mos a estes 480 os cento e vinte , que conforme Timeo
e-
lio Memorias da Academia Real
erão passados , desde que os Foccnses tinhão fundado Mar-
selha: daremos no anno 600 antes da nossa era.
Já pelo que roca á vinda dos Samios a Tartésso , ain-
da que Heródoto quanto ao lugar , a põe posterior á dos
Focenses j porque tendo tratado dos Foccnses no Livro 1.
cap. 163. só trata dos Samios no Livro IV. cap. ifi. Com
tudo a circunstancia de notar Heródoto , que ao tempo que
os Samios arribarão a Tartésso, era Tartésso hum empó-
rio intacto , ou pelo dizer assim , ainda virgem para os
Gregos: esta circunstancia, digo, parece decidir, que na
mente d'Herodoto yierão primeiro a Tartésso os Samios ,
do que os Focenses. E assim Bochart no Livro L das Co-
lónias dos Fenicios , cap. 34. p6c esta vinda dos Samios a
Tartésso quasi seiscentos annos antes do nascimento de Chris-
to , isto he , quasi ao mesmo tempo , que como nós disse-
mos acima , fundarão os Focenses Marselha.
He verdade, que Heródoto no primeiro lugar também
tinha escrito, que os Focenses havião sido os primeiros
dos Gregos , que com as suas longas viagens tinhão dado
a conhecer o Adriático, a Sicilia , a Espanha, e Tartésso.
No que parece dar a entender Heródoto , que também ao
tempo que vierâo os Focenses , era Tartésso hum empório,
onde ainda não tinhão chegado outros Gregos. Mas respon-
do , que com ser T^^artésso hum empório intacto , quando
a clle arribarão os Samios, pode muito bem estar terem
sido os Focenses os primeiros dos Gregos , que derão a
conhecer Tartésso , porque os Samios sim vierão primeiro ,
mas vierão só arribados , e por acazo ; e como se não de-
tivera© , não tiverão tempo para se lhes poder attribuir
entre os Gregos huma informação exacta do paiz. Os Fo-
ccnses porém, como navegarão de propósito os nossos ma-
res , como examinaVão d'espaço os seus portos , como fun-
darão cm Sicilia Velia, em França Marselha, em Espanha
Dcnia , c Empurias : com razão se lhes attribue o desco-
brimento destas terras, mais do que a nenhuns outros Gre-
gos; principalmente tendo elles encontrado em Tartésso
com
DAS Sci ENciAS DE Lisboa. iri
com hum Rei como Arganthonio , famoio pelas suas ri-
quezas , pelos muitos annos que reinou, pelos muitos que
viveo.
Os antigos Gregos, e Romanos, confundiao Tartésso
com Cadiz, Assim Cicero no seu Lélio, ou Livro De Jmi-
citia , cap. ip. depois de dizer que Arganthonio fora Rei
de Tartésso , accrescenta logo , que reinara em Cadiz :
'Fuil enim ( tií scriptum video ) Ârganthonius qiàdam Gadibtis ,
qui octoginta regnavit anms , centum viginti vtxit. E Plinio
no Livro IV. cap. 22. expressamente diz, que a cidade,
que os Cn.rthaginezes chamavao Gadir , ou Cadiz , a essa
mesma chamavão os Romanos Tartésso : Nostri larte^son
appellant , Poeni Gadir. Da mesma sorte Arriano , quando
no Livro II. observa que o Hercules que se venerava no
Templo de Tartésso , não era o Grego, mas oTyrio ; ma-
nifestamente confunde Tartésso com Cadiz , onde he no-
tório por Pomponio Mela , Livro III. cap. 6. , ter estado
aqucllc Templo. Na mesma confuzão cahio Sallustio , e
Avieno.
Hoje está assentado entre os eruditos , que Tartésso
era huma ilha e huma cidade, que estava situada entre os
dous braços que então fazia o Guadalquivir , onde agora
está Tarifa : mas que abusivamente se dava também este
nome a Cadiz, e a Carteia , que hoje se crê ser Gibraltar.
Qiie por isso Silio Itálico no Livro III. chama aos de Car-
teia netos d'Arganthonio :
Arganthoniacos armat Carteia nepotes.
A extraordinária duração de reinado e de vida d' Ar-
ganthonio , ficou sendo celebre nos escritos dos Antigos.
Cicero no Lugar acima allegado do seu Livro DeAnticitia,
cap. 19. seguindo a Heródoto, lhe dá cento e vinte an-
nos d'idade. Plinio no Livro VII. cap. 48. allegando com
o Pocra Anacreonte , assina-lhe cento e cincoenta. Ânacreon
poeta Argauthonio TartessiorHm regi C. L. tribuit annos. Mas
Es-
Ill Memorias da Academia Real
Estrabão no Livro III. pag. 225- reflectindo em que He-
ródoto não tinha dado a Arganthonio , senão cento e vin-
te annos devida, inclina-se a julgar , que quando Anacreon-
te escreveo , que não podia reinar cento e sincoenta annos
sobre os bemaventurados Tartcssios :
Non posco quinqttaginta
CeiUtimque regnare annos
Tartessis beatis :
ouAnacreonte fallava d'outro Rei; ou pelo numero de cen-
to c sincoenta annos quiz significar precizamente , que não
queria ser Rei de Tartésso por longo tempo. Todavia Si-
lio Itálico , tanto não achou incrivel , que Arganthonio ti-
vesse vivido cento e sicoenta annos , que antes no citado
lugar do Livro III» dco a Arganthonio trezentos.
Arganthoniacoí armat Carteia ncpotes.
Rex proavis fuit bumani ditissimus avi ,
Ter denos decies emensus belliger annos.
Admittida como mais provável a conta d'Herodoto ,
e Cicero , e assentado que Arganthonio (como consta do
mesmo Heródoto) morrera pouco depois que os Focenses
se despedirão delle, que foi no anno 5'43 antes da era de
Christo : podemos seguramente dar a Arganthonio por mor-
to no seguinte anno de 542. E como elle reinou oitenta,
e viveo cento e vinte: fica daqui demostrado, que Argan-
thonio começara a reinar em Tartésso no anno 822, antes
da era de Christo , e nascera no anno 662 antes da mes-
ma era. E assim concorreo o reinado d'Arganthonio em
Espanha com o de Manasses, Amon , Josias , ejeconias na
Judéa ; com o de Nabucodonosor o grande , Eviimerodach,
e Baithazar em Bnbylonia ; com o de Alyattes, e de seu
filho Crcso na Lydia ; com o de Astyages , e de seu filho
Cyaxares, ou Dário Medo na Media; com o de Cyro na
-1", Per-
/
DAS SciENciAs DE Lisboa. iij
Pcrsia : de sorte que nos oitenta annos que Aiganthonio
reinou entrenós, se incluem quasi todos os setenta annos,
que o Povo Hcbreo esteve cativo em Babylonia,
Resta o mais importante e difficulto/o da presente
Dissertação , que he precaver o abuzo , que dos dous Lu-
gares d'Herodoto acima dcscriptos , poderá alguém tazcr
contra outras antiguidades mais remotas da nossa Espanha.
Com effeito Bochart no Livro L Das Colónias dos Fe-
tiicios , cap. 34. e cap. 36. de dizer Heródoto na segunda
Passagem , que ao tempo que Coleu com os outros Samios
arribarão a Tartésso , era Tartésso hum empório intacto :
toma daqui por hum principio flindamental do seu Syste-
nia , que antes de Coleu nenhuns Gregos tinhão vindo a
Tartésso : e assim fundado em Heródoto nega , que o Her-
cules Grego viesse nunca a tal terra , e tudo o que deste
se refere pertencente a Espanha , quer que se attribua ao
Hercules Tyrio ou Fenicio.
Ora eu nenhum interesse especial considero, em que
Hercules filho d'Hinfytruão e Alcumena viesse a Tartésso ,
ou a alguma outra parte d'Espanha : principalmente quan-
do advirto , que a sua mais famoza aventura succedida em
Espanha , que foi roubar as boyadas de Geryao , que pas-
tavão nos campos da ilha Erythia , ou Erythéa , se he as-
severada por muitos Authores Gregos , também he negada
por não poucos. Porque Hecateo citado e seguido por Ar-
riano no Livro IL he Hecateo alguns cem annos anterior
a Heródoto , que delle faz menção no Livro V. claramen-
te escreve , que Geryão nunca teve nada com Espanha ,
mas reinara somente em Ambracia no Epiro. O mesmo re-
pete Eustathio commentando a Dionyzio Periegétes. Ao
que Arriano ajunta, que elle em nenhum Escritor Espa-
nhol achara , que em Espanha tivesse reinado Príncipe de
tal nome.
Mas como Heródoto , bem como na segunda Passa-
gem affirma , que antes da arribada dos Samios , era Tar-
tésso hum empório intacto aos Gregos ; assim na primeira
T.IX. P.I, P es-
114 Memorias da Academia Real
escreve, que os Focenses forão os primeiros dos Gregos,
que com as suas navegações derao a conhecer Espanha.
Sc as palavras d'Hcrodoto se houverem de tomar no rigor ,
em que Bochart as cntcndco ; necessariamente havemos de
passar pelo desgosto , de vermos arruinado pelos alicer-
ses , tudo o que eu ha hum niez na Dissertação III. dei
por provado sobre muitas e illustrcs fundações feitas pelos
Gregos em Espanha nos tempos Heróicos, isto he , em
tempos muitas centenas d'annos anteriores á vinda dos Sa-
mius , e Focenses a Tartdsso.
Não me posso pois nem me devo accommodar á es-
treita generalidade , em que Bochart tomou as palavras de
Heródoto sobre as nossas antiguidades Gregas : não por-
que nestas matérias deva ser o amor da pátria , o que re-
gule os nossos assensos ou dissensos; mas sim porque as
mesmas regras da boa critica nos obrigão a dissentir nes-
te cazo da opinião de Bochart. Primo : Porque o mesmo
Heródoto , que na segunda Passagem dá a Tartésso por
hum empório intacto aos Gregos antes de Coleu de Samos
vir a elle seiscentos annos antes do nascimento de Chris-
to ; esse mesmo diz na primeira Passagem , que os Focen-
ses forão os primeiros dos Gregos, que derão a conhecer
Tartésso , quinhentos e quarenta e tantos annos antes da
nossa era. Para senão dizer pois, que hum tão grave Es-
critor como Heródoto , se contradiz n'hum facto , que ao
tempo em que clle escrevia , era hum facto moderno ; pe-
de a razão que busquemos modo de concordar hum dito
com outro. Ora eu já notei , que Heródoto podia muito
bem attribuir huma mesma descuberta de Tartésso a duas
viagens de Gregos , distantes huma da outra mais de sin-
cocnta annos ; por cauza de que os primeiros só chegarão
a Tartésso por arribação e por pouco tempo ; os segundos
porem forão de propósito, detiverão-se , e continuarão por
outras vezes a costear Espanha. Agora accrescento, que o
tcr-se explicado Heródoto na segunda Passagem pelo nome
d'eniporio intacto ; foi para nos trazer á idéa , que o inta-
cto
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. II5'
cto de que elle fallava , era a respeito do commercio dos
Gregos com os nossos. Com o que pode muito bem
estar, que antes dos Samios, e Focenses, tivessem vintio
a Tartésso e a outros portos d'Espanha outros Gregos ,
sem ser para commerciar ; mas ou por força dos ventos ,
ou com o fim de ver hum paiz , que des das primeiras na-
vegações dos Fenicios se tinha feito afamado ; cu perse-
guidos da fortuna , como succederia aos heroes Gregos ,
de quem na sobredita Dissertação mostrei terem cá vindo ,
huns antes, outros pouco depois da guerra deTroya. Que-
ro dizer : que como o meio ordinário de se communicarem
as nações , e de se darem a conhecer humas ás outras , he
o commercio ; e este antes da arribada dos Samios a Tar-
tésso não o teria havido , ou teria cessado por muitos sé-
culos entre Gregos , e Espanhoes : por isso ao tempo que
os S.imios arribarão a Tartésso com as suas mercadorias,
podia dizcr-se Tartésso hum empório intacto aos Gregos,
não porque antes não tivessem vindo a Tartésso outros Gre-
gos , mas porque não terião vindo a traficar.
Sectmdò : Porque Heródoto na primeira Passagem , as-
sim como diz que os Focenses forão os primeiros dos Gre-
gos , que derão a conhecer Espanha , e Tartésso ; também
diz que forão os primeiros , que derão a conhecer o Adriá-
tico , c Sicilia. Tomemos estas palavras no rigor que quer
Bochart : seguir-se-ha , que antes dos Focenses quinhentos
annos antes do nascimento de Christo aenhuns Gregos na-
vegarão o Adriático , nem o Tyrrheno. E quem não vê , que
esta hypothese reduz a huma pura fabula , tudo o que das
primeiras antiguidades de Itália e de Roma , passa por
mais constante nos Escritos de Catão Censório , de Dio-
nysio d'Halicarnasso , de Tito Livio , de Plinio , de Soli-
no ? O argumento que prova demasiado , nada prova , diz
o Axioma dos Lógicos. Tal he o que das palavras d'He-
rodoto forma Bochart. Logo nada prova este argumento.
Mas demos por hum instante , que Heródoto com to-
da a clareza affirmava, que de todos os Gregos forão os
P ii Sa-
ii6 Memorias da Academia Real
Samios, ou os Foccnses os primeiros, que apportárão cin
Espanha. Acazo hc tão grande a authoridade d'Herodoto ,
que devamos sempre antepolla á de todos os outros Escri-
tores , que se acharem em opposiçao com ellc ? De nenhu-
ma sorte. Heródoto , ainda que reconhecido e chamado
p:iy da Historia Grega , a cada passo se acha impugnado
pelos melhores Cronologos, como Escaligero , Petau , Us-
sér , Marsham , ainda em successos próximos ao seu tempo.
Que será nos da mais remota antiguidade ? Com o teste-
munho d'Herodoto á vista , dando ao Império dos Assy-
rios só quinhentos e vinte annos desde Nino até Sardana-
pdlo ; assignão Petau , Ricioli , e Labbé mil e trezentos
annos ao mesmo Império, por seguirem antes a Ctesias ,
Diodoro , Justino , e outros antigos. E a Bibliothcca de
Focio nosintorma, que o dito Ctesias, que foi algum tan-
to mais moderno do que Heródoto, em todos os vinte e
trcz Livros que compoz da Historia Assyria e Pérsica , ti-
rada dos monumentos públicos, ou (por nos explicarmos
ao nosso modo) da Torre do Tombo dos Imperadores Per-
sas ; quasi sempre contradisse a Heródoto , e o convcnceo
de mil falsidades e mentiras.
Ainda dado cazo pois , que a mente expressa d'Hero-
doto nas duas Passagens acima descriptas , fosse persuadir,
que antes dos Foccnses ou dos Samios, nenhuns Gregos
tinhuo vindo a Espanha : nem por isso se deveria dar por
falso, o que na referida Dissertação III. escrevemos da vin-
da de certos Gregos a Espanha , muitas centenas d'annos
anterior á dos Focenses , e Samios. Porque dissesse o que
dissesse Heródoto , a positiva authoridade de Bócco cita-
do e seguido por Plinio , deve bastar para acreditarmos,
que duzentos annos antes da Guerra de Troya , fundarão
os Zacynthios em Espanha a Cidade de Sagunto , e o Tem-
plo de Denia consagrado a Minerva. Dissesse o que dis-
sesse Heródoto , a positiva authoridade d'Asclepiades Myr-
Hano citado c seguido porEstrabão, deve bastar para acre-
ditarmos , que immcdiatamente depois da Guerra de Troya
ap-
DAS SciENciAS DE Lisboa. 117
apportára Teucro de Salamina em Galliza, e alli fundara
varias cidades : principalmente tendo eu no mesmo lagar
advertido com Estrabão , que o tal Asciepiadcs Myrliano
ensinara muitos annos Grammatica Grega na Turdetania ,
c cá mesmo escrevera a sua Historia Geográfica d'EspanIia,
Donde se segue, que o dito Asclepiades , ainda que Gre-
go SC deve reputar como nacional na fidelidade e exacçiío,
com que escreveria a sua Historia. Com este Asclcpiíidcs
porém concorda no mesmo facto Trago Pompco, contem-
porâneo do mesmo Estrabão , e abbreviado por Justino.
Desembaraçados assim dos dous lugares d'Herodoto,
acerca dos Foctnses , e Samios vindos a Tartésso ; passe-
mos já ao outro d'Estrabão , que promettemos illustrar , á-
ccrca da Policia dos nossos Turdetanos ou Turdulos , e da
antiguidade d*origcm , de que cllcs se jactavão.
No Livro III. pag. 204, tratando dos Turdetanos ou
Turdulos d'Espanha , escreve E.strabão o seguinte : = Es-
tes são reputados os mais doutos de todos os Espanhoes ,
e uzáo de Grammatica , e tem escritas as suas Antiguida-
des e Poemas delias em oração ligada, dizem elles que de
s€Ís mil annos. Os outros Espanhoes também uzao de Gram-
matica, mas não todos d'huma : porque também a Lin-
guagem não he a mesma era todos.= Até aqui as pala-
vras d'Estrabão. i .
Hoje está assentado entre os nossos Eruditos moder-
nos, pelas confrontações dos antigos Geógrafos, que de-»
baixo do nome de Turdetanos se comprehendião não só os
Povos da Betica , mas também aquelles da Lusitânia, que
habitavão o Reino do Algarve , e as duas Comarcas de
Beja e Ourique. Assim ò mostra Resende rio Livro L Das
Antiguidades da Lusitânia, folha 16. O mesmo Estrabão
•ndverte , que ainda que Polybio tivesse distinguido os Tur-
dulos dos Turdetanos; no tenipo comtudo delle Estrabão
nenhuma differença se fazia destes; Povos entre òsí- Romanos.
O mesmo notou Resende que se comprovava deTitoLivioi
O Padre Mariana diz que a Turdetania totnár* este
no-
ji8 Memorias da Academia Real
nome de Turdeto, cidade situada entre Xerez e Arcos. Bo-
chart deduzi o nome de Turdulos do vocábulo Syro Tiltiid ,
que quer dizer emigração : como que os Turdulos tivessem
emigrado da Fenicia para aquclla parte d'Espanha , que pe-
la mesma razão se chamou Turdetania. E mostra com hu-
ma aiithoridade d'Artemidòro, que no principio em lugar
de Turdetatios e Turdulos , com D na segunda , se dizia Tur-
tetaiioí e Turtulos , com T.
Voltando porém ao lugar d'Estrabão , que acima trans-
crevemos , he muito para notar ; que quanto elle rccom-
menda a instrucção dos nossos maiores pelo estudo das Le-
tras; tjnto faz manifesta a sua vãa jactância, pela demasia-
da antiguidade que loucamente se attribuiao. Gloriavaose
os Turdetanos qu Turdulos, de ter Historias e Poesias suas
de seis mil annos. E quem lendo ou ouvindo isto não ad-
verte logo , que tendo Estrabao composto a sua Geogra-
fia em tempo de Tibério , contava então o mundo pelos
cálculos Hebraicos , pouco mais de quatro mil annos que
era creado; e que ainda não havia dous mil e quatro cen-
tos^ que tinha succedido o Diluvio? Como podião logo
os nossos maiores , imperando Tibério , ter Historias e Poe-
sias de seis mil annos?
Mas,, esta era huma vaidade ridicula , que então lison-
gcava os corações de muitos outros Povos Gentios , aquém
faltava o lume da divina Revelação , para se desenganarem ,
que nem o mundo existia ab eterno^ nem tinha tantos an-
nos de creação, quantos ellcs cuidavao. E comparados os
nossos Turdetanos com os Babylonios , eEgypcios, pode-se
dizer, que na presente matéria erão os Espanhoes , os que
erraváo mais toíeravelmente. Porque Ciccro nos Livros De
Dívitiatme f e Diodóro de Sicilia no Livro IL cap. 31.
dizem , que os Caldeos faziao remontar as suas observações
Astronómicas a quatro centos e setenta mil annos. Jorze
Syncello cita huma antiga Chronica do Egypto , que nos
Cafalpgos que formava dos seus Reis, dava trinta e seis
inil ç quinhentos annçs de duraçáo a'quella Monarquia,
-on O
DAS SciENCiAS DE Lisboa. iif^
O mesmo Diodoro de Sicilia ha pouco citado, tinha
já advertido no Livro I. cap. i6. que certos Escritores pa-
ra conciliarem alguma credibilidade a huma tão portento-
za serie de annos, recorrerão ao meio de dizer, que cada
anno Egypcio não tinha mais do que hum mez. O que
Plinio também confirma no Livro VIL cap. 48. concluin-
do daqui não ser desta sorte incrível , que hum Rei vives-
se mil annos , que vinhao a ser só cem dos nossos. Porém
Ccnsorino no seu Livro De Die Natali ., cap. 19. attesta ,
que dado que até o tempo do Rei Pison não tinha o an-
no Egypcio senão dous mezes , elle comtudo o chegou
primeiramente a quatro , e por ultimo a doze.
Por mais provável tenho eu o que outros conjecturão ,
que he que os Egypcios , para ostentarem huma antigui-
dade que espantasse , contavão como succcssivos os annos
simultâneos dos Reis ou Régulos de trinta Dynastias , cm
que o Egypto por muitos séculos esteve dividido.
Era muito para dezejar, que Estrabão assim como nos
informou da applicaçao dos nossos Turdetanos ao estudo
da Grammatica, da Historia, e da Poesia; assim também
nos deixasse declarado, que lingua materna era, a que el-
les aprendiâo por essa Grammatica. Porque quanto para maior
instrucção dos que já sabiao a lingua materna, já nós ou-
I vimos do mesmo Estrabão , como elles aprendiâo a Grega
debaixo do Magistério d'Asclepiades Myrliano. E quanto
á Latina , he igualmente indubitável , que depois que Es-
panha cahio na dominação dos Romanos , ficou sendo a
lingua destes tão familiar aos nossos , como antes o tinha
sido a do paiz. E não he pequena gloria para Espanha ,
ter dado á lingua Latina sete Authores clássicos seus na-
cionacs : a saber , três Sénecas , Pomponio Mela , Lucano ,
Silio Itálico, e Marcial. O de que nenhuma outra nação
fora de Itália se poderá jactar.
Eu porém reflectindo, que a lingua de qualquer paiz
li se costumou sempre formar dos vocábulos daquellas nações
cstrang-eiras , que por mais tempo o habitarão e dominarão i
in-
I20 Memokias da Academia Real
inclino-me a crer , que antes da mescla dos Romanos , era
a nossa lingua no seu fundo a mesma , que a Feniciana ,
ou Carthagincza. Porque por huma parte estas duas Na-
ções , huma oriunda da outra , forao as que cm Espanha
fundarão mais Colónias , e as de que cm Espanha se con-
servâo auida hoje mais vestigios nos nomes dos seus' Rios
e Povoações. E por outra parte he notório pelos escritos
de Santo Agostinho , que a lingua Púnica era substancial-
mente a mesma , que a dos Fcnicios.
Com isto pôde estar, que a nofsa lingua tomasse tam-
bém muitos vocábulos dos Gregos, que juntamente comos
Fcnicios e Carthaginezes occupárao boa parte d'Espanha ,
c com a lingua communicárSo também aos nossos os cos-
tumes. Do que he huma prova decisiva attestar Resende ,
que de vocábulos Gregos tinha elle notado na lingua Por-
tugueza mais de quinhentos. Todas estas linguas porém ,
SC pode dizer, que pelo decurso do tempo absorveo em
si a Latina ; da qual he innegavel , que a Portugueza par-
ticipa tanto , quanto nenhuma outra da Europa.
DISSERTAÇÃO VI.
Etymologia do nome de Pyrenéos , e qiiaes fossem as chamadas
Columnas d'Hercules.
ODOS sabem , que a Espanha se devide da França , pe-
los Pyrenéos ; e que só por esta banda pega a Espanha
com Terra firme , sendo por todas as outras torneada de
mar: o que faz ser esta nossa Região huma verdadeira
Península. Ipsa Hispânia , nisi qua Gallias tangit , pélago un-
diqite incincta est j escrcveo Pomponio Mela no Livro 11.
cap. 6.
A commum opinião dos Gregos, derivada já do tem-
po de Possidonio Author antiquíssimo , que como testemu-
nha
DAS SCIENCIAS DE L I S B O A. I2l
nha ocular tratou muito individualmente das cousas c'Es-
panha , muito antes do nascimento de Christo : Ehta com-
mum opinião digo , hc que nos primeiros tempos havendo cer-
tos pastores pegado fogo aos espessos e dilatados arvore-
dos , de que se cubriao aqucllcs montes j foi tanta a copia
de mctacs preciozos , que dcrritida com o incêndio de mui-
tos dias manou do cume e faldas dos mesmos n.ontcs ; que
todo o paiz d'Espanha se vio inundado de caudadozos rios
de ouro e prata , que pelo tempo adiante a fi/erao celebre
pelas suas minas entre as Nações mais remotas : e que des-
te incêndio veio também aos ditos montes o nome de Py-
renéos f que ainda hoje conservao : nome derivado àePyrosj
que em Grego quer dizer fogo.
A este incêndio dos Pyrenéos , e á grande copia de
preciozos metaes derretidos , que delles começou a correr
pela terra , alludio o famozo Poeta Lucrécio , quando no
Livro V. verso i25'o. e segg. cantou assim:
Flavimetis ardor
Horrihili sonitii Silvas exederat altas
jíb radicibus , et terram percoxerat igni.
Manabat venis ferventibus in loca terra
Concava convenieus argenti rivtis et auri y
Aeris item , et plutnbi.
Que deste incêndio vierao a chamar-se Pyrenéos aquel-
Jes montes, he expresso em Diodóro Siculo no Livro V.
da sua Bibliotheca Histórica, cap. gy. pag. 358 da Edi-
ção de Wcsseling de que uzo , Amsterdão 1746.
Estrabão no Livro IlL da sua Geografia, pag. 217
dá por huma fabula toda esta narração dos seus Gregos ,
e nota a Possidonio , por ter mostrado que lhe dava cre-
dito.
Por fabula quizera eu também , que a tivessem quali-
ficado dous Escritores nossos tão sisudos , e atillados , co-
mo M.iiiana, c Brito. Mas quem escreve huma Historia dí-
T. IX. P. I. Q^ la-
121 Memorias DA Academia Real
latada, não tem tempo para pezar sempre a credibilidade,
ou incredibilidade dos successos, que se offcrcccm.
Silio Itálico aponta outra origem do nome , que nao
parece menos arbitraria, do que a primeira. Porque no Li-
vro 111 verso 406. e scgg. tallando de como Annibal atra-
vessou os Pyrencos , para por França passar á Itália ; diz
que estes montes toma'rão o nome de Pyrene ^ filha do Rey
Bébrix , a qual vcndo-se comprimida por Hercules , que
por alli fazia caminho , temendo a ira do pay , se embre-
nhara naquclle vasto arvoredo, onde foi despedaçada das
feras.
Jt Pyrenei frondosa cacumina montis
Turbíita Poentis tcrrarum pace petehat.
E trcs versos abaixo :
Nomen Bebxycia duxére d virgine colles.
Como nenhuma das duas referidas etymologias agra-
dasse aos modernos Antiquários , foi Bochart de parecer
no Livro De Coloniis Pboenicím , cap. ^^. col. 626, que
Pjreiíe e Pyrenéo se derivava do adjectivo Piirani ^ que em
lingua Fcnicia significa frondozo ou opaco. Porque este he
com eíFeito o epitheto , que Estrabao , e SiHo dão a esta
cordelhcira de niontes : aosquaes pela mesma razão chama-
rão Cornelio Nepote , c Paulo Orosio , Pyreií^eus Saltiis , o
Bosque dos Pyrenéos.
Hoje a etymologia de Pyrenéo , que vejo mais bem
recebida entre os Criticos , he a que propoz Mr. Astruc
na Sua Historia Natural do Langitedoc , Livro III. cap. 2.
pag. 446, onde se inclina a dizer, que Pyrcne e Pyrenéo
(hum e oufrO nome derao os Antigos a estes montes) vem
da palavra Pyrtn ou Pyren , que na lingoa dos Celtas signi-
fica monte. Esta he a que adoptou Wesselingc nas Notas a
Diodóro. Todos sabem a cognação , que tem entre si as le-
tras Í5. e P , para fácilíncnte se trocar huma pela outra. E
que não he novo , vir hum nome que na sua origem he ap-
pellativo , a ser propíio tleste ou daquelle sogeito.
Pas-
DAS SctENClXs DE LiSBO A. I25
Passando dos Pyrcncos ás Colunmas íC Hercules y que
he como passar d'huiTi extremo a outro j não ha nos His-
toriadores c Geógrafos antigos cousa mais nomeada, nem
mais famigerada, do que estas Columnas. Heródoto, pay
da Historia Grega, uzando como u/a frequentemente des-
tes termos, bem mostra, quanto ellc os tinha recebido de
longe. Nem os que depois escreverão das cousas d'Espanha ,
quer Gregos , quer Latinos , uzárao d'outros : do que são
boas testemunhas os Escritos de Polybio, Diodóro , Ptole-
meo , Estrabão , Livio , Mela , Plinio , e Sohno,
Duas cousas pois entramos a averiguar. Primeira : On-
de crão as Columnas d' Hercules. Segunda : Qiie origem e fun-
damento teve esta denominação. E não cuide ninguém ,
serem estas questões mui fáceis de decidir. Porque quanto
he notório o nome destas Columnas , tanto he escuro en-
tre os mesmos Antigos o seu sitio, escura a sua origemj
Estrabão no Livro IIL numero marginal 170 e 171, tra«
tando de propósito ambos os dous pontos, (e he elle o
único dos Antigos, em que os achei tratados) dçpois de
trez paginas d'exacta discussão, nada nos deixou definido
ao certo.
Quanto á primeira questão, pois, adverte o Principe
dos Geógrafos , que huns punhão as columnas d'Hercules
em Cádiz ; outros nas Portas ou Bocas do Estreito ; outros
nos dous montes Calpe e Abyla , dos quaes o primeiro es-
tá da parte d'Espanha , o segundo da parte d'Africa. li
não faltou quem se persuadisse , que debaixo do nome de
Coliiniuas d^ Hercules se dcvião entender as Columnas d'oito
covados d'altura , que sustentarão o famozo Templo d'Her-
cules de Cádiz , e nas quaes estavão gravadas em bronze
as suas doze Aventuras. Este foi o juizo de Possidonio ,
que Estrabão justamente regeita. Porque nota, que nas
columnas do Templo não havia outra Inscripção , que a
que declarava a dcspeza, que se tinha feito na sua fabri-
ca : quando as chamadas propriamente Columnas d'Herculcs
se dcvião ter por huns Padrões, que ou o mesmo Hercu-
Q^ii les,
124 Memorias DA Academia Real
les , ou outro pozera , como huns Monumentos de se terem
terminado alli as suas heróicas Peregrinações.
Qiianto á origem e fundamento desta denominação ,
hc de saber, que as columnas levantadas em certos luga-
res , íorão o primeiro género de Padrões , de que ha noti-
cia que uzasscm os homens , ou cm memoria d'algum il-
lustre successo , ou para estremar as terras confinantes.
Deste antiquissimo e primevo uzo , nos ofFerece a Es-*
critura Sagrada hum exemplo , mais de mil e seiscentos an-
nos anterior ao nascimento de Cliristo : que he aquella
Pedra ungida , que o Patriarca Jacob levantou cm Bethel ,
depois da maravilhoza visão da Escada , por que subião e
baixarão os Anjos de Deos. {Gen. XXVIII. i8.)
A' imitação dos Hcbreos , começarão os Fenicios seus
eom:ircãos a erigir nas suas terras outras semelhantes Pe-
dras ungidas , a que chamavão Bctylos ou Betylios. Delias
faz menção hum antiquissimo Escritor Fenício por nome
Sanconiathon , ao qual faz Bochart contemporâneo de Ge-
deão , c cuja obra das antiguidades da sua gente traduzio
cm Grego hum Filo de Biblos. Bem sei, que Calmet com
outros modernos suspeitao, ser este Sanconiathon hum Au-
thor supposto , inventado c publicado por Porfyrio no se-
gundo século da Igreja , a fim de desacreditar e ridiculi-
2ar os mysterios da Religião Christaa. Mas ao mesmo tem-
po he inegável que desta obra de Sanconiathon , como
d'huma obra genuína e verídica , citarão no quarto e quin-
to século vários fragmentos os dous grandes Críticos Eusé-
bio, eTheodoro.
E deixada como não necessária para o nosso intento
a authoridadc de Sanconiathon ; Focio na sua Bibliotheca
pag. 1047 traz hum testemunho de Damascio , do qual
consta , que Asclepiades subindo ao monte Libano , achara
nelle muitos destes Betylos , ou Pedras ungidas, que a re-
ligião dos Fenicios tinha levantado em titulo aos seus Deo-
ses. Isto hc pelo que toca ás columnas erectas como Mo-
numento d'algum successo memorável.
Das
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 12^
Das outras Columnas erectas cora o fim de cstrcniar
as terras confinantes , aponta Estrabão no lugar acima in-
dicado duas , que osjonios pozerãode mão conimum , quan-
do expulsos do Peloponéso o tornarão a recuperar. Ficarão
liuns vivendo na Attica c na Mcgarida , c di?ia a colum-
na que lhes servia de marco : Jqtti não be o Fekponéso , mas
a Joiíia. Ficarão os outros vivendo no Peloponéso , e dizia
a sua Columna : Aqui não he a Jotiia , mas o Peloponéso.
Supposta esta previa noticia do uzo das Columnas pa-
ra memoria, e para demarcação ; toda a difficuldade sobre
as Columnas ã' Hercules consiste , em que em nenhum dos
dous extremos do estreito de Gilbaltar , que he onde todos
os Antigos , excepto Possidonio , as consideravão , apparc-
ce cousa , que propriamente se possa chamar Columnas ;
nem entre os Antigos se acha algum , que diga que as vis-
se.
Mas Estrabão já advcrtio , que bem as poderá ter ha-
vido naquclie sitio , c tellas depois consumido o tempo ,
que tudo destroe , ou faz desapparecer : e que ainda assim
podia o mesmo sitio continuar a chamar-se as columnas
d'' Hercules ; bem como ainda no seu tempo se continuava a
chamar as Aras dos Filenos outro lugar d*Africa , onde ji
então se não viao nenhumas Aras.
Ou também , que as chamadas Columnas ií Hercules não
erão algumas Columnas reaes e verdadeiras ; mas humas co-
lumnas imaginarias , para denotar o sitio a que Hercules
chegara por fim dos seus trabalhos ; á maneira dos Circu-
los e Constellações , que os Mathematicos considerão no
Ceo e nos Planetas , para explicarem os lugares , sobre que
cahem as suas observações Astronómicas. Porque como pa-
ra memoria dos grandes acontecimentos , ou para demarca-
ção e limite de diversas terras , estava em uzo levantar
Columnas : podiao muito bem nos dous extremos do Es-
treito de Gibaltar imaginar-se duas Columnas , como li-
mites do Mundo, ecomo Padrões das Aventuras d'Hcrcu-
Ics , que alli chegara e terminara as suas Peregrinações ;
ain-
120 Memorias da Academia Real
ainda que nem elle, nem outro as tivesse nunca posto na-
quclles lugares: bem como para lizongearem a mulher de
Ptolemeo por cauza do seu cabello fingirão os Mathemati-
cos no Ceo a chamada Cama de Berenice.
Entre os vahos discursos sobre a origem , de se cha-
marem Colunmas d^Hercules os dous extremos do Estreito de
Gibaltar ; o que me parece mais provável e mais bem fun-
dado , he o que desume aquella denominação d'huma fabu-
la , que ainda que tida por tal dos Geógrafos gentios , po-
dia dar motivo a ella, assim como outra fabula o dco ao
nome de Fia Láctea.
Conta-se pois, que chegado Hercules, onde hoje he
o Estreito , dividira em dous hum grande monte , que alli
estava , e que ajuntava a Africa com Espanha ; e que por
entr'elles mettêra o mar, que hoje faz o mesmo Estreito.
Que o monte que ficou da parte d'Espanha, he o que se
chama Calpe ; o que ficou da parte d'Africa , o que se
chama Abyla.
Diodóro de Sicilia no Livro IV. cap. 18. pag. 164
diz , que sei>do dous os promontórios , Hercules os alarga-
ra de modo com huns pegões de pedra que d'huma e ou-
tra parte lhes ajuntou, que sendo atélli muito largo ornar
que por entr'ellcs corria , agora ficava elle tão estreito , que
não podião passar por elle as baleas. Mas a primeira for-
ma de narração he a que eu acho authorizada por Mela, e
por Plinio. Dos quaes o primeiro no Livro \. cap. 5". diz
assim : Addh fama nominis fabulam. Herculem ipsum jimctos
olim perpetuo jugo dirimisse colles , atqite ita exclustim antea
mole montiiim oceanum , ad qute nttnc itmndat admissum. O se-
gundo no Livro III. cap. i. diz assim : Qttam ob causam
indigente columnas ejus Dei vocant , traduntque perfossas exclu-
sa aiitea admississe marta , et rerum natura mutasse faciem.
Supposta esta fabula do mgnte dividido por Hercules
em dous , crerão e advertirão os Antigos , que as Colum-
nas d'Hercules não erão outra cousa , senão os dous montes
Calpe, e Abyla, que postos d'huma c outra parte do Estrei-
to
DAS SCISHCIV? Pfi lyíS^BP/. izj
to dividem a Africa da Espanha. Mela no lugar citado :
Deiíide est mcns praahits ei , quem cx adverso Fiisfania ajtol-
lit , objcctus. Hiinc Ahyhm , Hhm Cfilpen xocani : Cohív.íias
Herculis titriimque. Plinio também no lugar citado: Proxivni
mitem fancibus titrinque impesiti montet ceercatit clujisira , Aby-
Ja Jfrica , Europa Calpe , laborum Hercules meta. Oitam oh
causam indigente Columnas ejus Dei vocant.
Antes de Alela , e PJinio se tinha inclinado ao mesmo
parecer Estrabao no Livro III. pag. 258, depqisEustathio
nos Escólios a Dionysio Pcricgéta.
A esta razão d'authoridadc se podem ajuntar duas de
congtucncia. A primeira hc , que, como observou Facciola-
ti , os dous montes Calpe e Abyla , aos que os vem de
longe, parecem duas Columnas. A segunda he , que, como
notou Bochart , Abyla em lingua- Fenícia quer dizer Co-
lumna. E dando-se este nome a hum dos dous montes , era fa-
cil trnnsferillo também para o cutro. E com isto se pôde
confirmar o que ji dissemos na Dissertação I. , que o Her-
cules de que se denominavao estas Columnas „ não era o
Thebano , mas o Tyrio , cujo Templo de Cádiz faz Me-
la coevo da guerra de Troya.
DIS-
íaS Memorias da Acaôemia Real
DISSERTAÇÃO VII.
Império dos Cartbaginezes em Espanha , quando come f ou ,
e quanto durmu
ARA proceder com a devida ordem e clareza, dividirei
esta Dissertação em três partes. Na primeira, tratar-seha
da fundação , antiguidade , e grandeza de Carthago. Na
segunda , das forças terrestres e navaes desta republica , e
das suas conquistas dentro , c fcSra d'Africa. Na terceira
darei huma exacta synopse chronologica, formada dos es-
critos de Polybio, das três famosas guerras dos Cartbagi-
nezes com os Ropianos , chamadas vulgarmente as guerras
Púnicas, em que os nossos Espanhoes tiverao tanta parte,
quanta se verá pelo decurso da mesma Dissertação.
§ I.
Da fundação , antiguidade , e grandeza de Carthago.
Os Carthaginezes procedião dos Tyros. Por isso Jus-
tino os chama parentes. A questão he , por que via. E
bate a questão , sobre quaes forão os fundadores de Car-
tha ro.
Filisto Nomcratita , citado e seguido por Eusébio na
sua Chronica , diz que Carthago fora edificada por dous
Tyrios , Zoro , e Carquédon , trinta annos antes da destrui-
ção de Troya. Appiano diz que sincoenta. Poidm quanto ao
nome dos fundadores , Bochart no livro De Coloniis Phwni-
cum , cap. 24. tem que isto he huma equivocação : porque
Zoro , c Carquédon não são nomes de homens , mas de cida-
des : a saber, de Tyro , que em lingua Hebraica se diz
Zor j e de Carthago , que , como observa Solino no cap. 40. ,
SC
DÁS SCIENCIÀS DE LtSBOA. tl^
se dizia no principio Carthdda^ que em lingua Fenícia si--
gnifica , Cidade Nova»
A opinião commum dos Iiistoriadotes he j tjué Car-
thago ao menos na parte principal c mais nobre , foi obra
da Rainha Elissa natural de Tyroj Chamada por outro no-
me Dido , quatrocentos e mais anrios depois da ruina de
Troya. E assim o fazer Virgilio a Dido contemporânea e
amante de Enéas , já observou seu antigo commentador
Sérvio Honorato , que fora hum anachronismo , que o prín-
cipe dos poetas seguío muito de propósito , com o fim de
dar lugar ao mais bello e interessante episodio , que se
acha na Eneida.
Mas sobre a época de Dido , e fundação de Cartha-
go por cila , he muito para admirar , quanto os authoreá
discordão entre si. José no livro I contra Appião , traz hum
catalogo dos antigos Reis de Tyro, com os annos que ca-
da hum viveo e governou, tirado de MeHandro de Efeso:
no qual diz, que no sétimo anno de Pygmalião, duodéci-
mo na ordem dos Reis depois de Abibalo , fugira Elissa
sua irmã de Tyro com muitos fidalgos , e vindo a Africa
fundara Carthago.
Esta viagem , e longa peregrinação de Elissa , foi se-
gundo hum antigo etymologista Grego , a que entre os Fe-
nicios lhe deo o nome de Dido , que naquella língua quer
dizer errante, ou vagabunda.
Petau no livro XIII , pag. 295: da edição d'Antuerpía
de I7f2 allíga o anno sétimo de Pygmalião ao de 886
antes da era de Chrísto, cento e trinta e três antes da fun-
. dação de Roma.
Desta conta não discrepa Solíno , senão três annos
menos Porque no cap. 40 põe destruída Carthago por Sci-
piâo, setecentos e trinta e sete annos depois que fora edi-
ficada. Ora Carthigo foi destruída por Scipião , sendo Côn-
sules Cn. Cornelio Lentulo, e Lúcio Mummio Acaico : is-
to he, segundo os cálculos de Petau, no anno 146 antes
da era de Chrísto. Ajuntemos estes 146 áquelles 737 sa*
T. IX. P. I. R hir-
«;• Mç-MORIílS DA AcADí:.MfA RtAL
hir-nos-ha. o annp 883 antes da mesma era, que são cento
e trinta antes da fund;ição de Roma. .
Porém os outros cscritdres Romanos decem muitos ân-
uos mais para baixo a fundação de Carthago. Porque Jus>
tino no livro XVIII a põe fundada antes de Roma só se*
tenta c dous annos. Sérvio commcntando aquellc hemisti*-
quio de Virgilio, Urbs antiqua ftiU ^ só setenta» Paterculó
no Livro I só secenta e sinco. .wÁ ab Jinrr .
Compunha-se a cidade de Carthago de três "grandes
Bairros. O primeiro chamado Cotbon , era hum porto não
natural , mas aberto á força da arte e da industria (donde
na opinião de Bochart lhe veio este nome) com vários es»
talleiros á roda. O segundo chamado Bjirsa, era huma For-
taleza , ou Cidadclla , cujos muros consta pelos Excerptos
de Diodoro Siculo , que tinhão de altura quarenta covados ,
e de largura trinta e dous. O terceiro chamado Magalia,
era a Povoação que se estendia por fora. Tudo consta d'Es-
trabão , Appiano , e Sérvio.
Estava Carthago situada numa Península de trezentos
e secenta estádios de ambJto, que era o mesmo que tinha
Babylonia. DeiTtro da }iyrsa havia muitas .Torres de três an-
dares: no primeiro dos quaes se alojavão trezentos elefan-
tes : no segundo quatro mil cavallos : no terceiro huma
guarnição de vinte e quatro mil homens. No mais alto es-
tava hum Templo d' Esculápio de tanta capacidade , que
quando Scipiâo Emiliano tomou Carthago , nelle se refu-
giarão e esconderão por sete dias sincoenta mil pessoas.
Depois a mulher d'Hasdrubal lhe poz fogo, e pereceo no
incêndio.
Contão , que quando Dido pedio ao Rei Hiarbas es-
paço de terra para fundar a cidade , limitando-lho o Rei
ao espaço que occupasse hum couro de boi , usara ella da
industria de mandar partir o couro em muitas e mui del-
gadas tiras , e tomar para sitio da cidade todo aquellc âm-
bito , que as mesmas tiras estendidas em redondo descre-
vessem. E que daqui viera á nova fundação o nome de Byri
^"1
DAS SclENClAS OE LiSBOA. Ijf
ta , que cm Grego quer dizer Costado. E ainda que isto
parece huma íiibula dos Foctas , Trogo Fompeo , ou seu
Abbreviador Justino , e com elles Appiano , mostrarão que
a acreditavao. Hoje hc sentimento de grandes Críticos,
que o Byrsa dos Gregt)s he o Bysra dos Hcbreos, que vai
o mesmo que Fortificação ; e que cm lugar de Byn-a dis-
serão os Gregos Byrsa., por não soffrcr o génio da sua Lín-
gua , que ao S se siga R.
O nome de Maga/ia , que era a terceira parte de
Carthago, diz Sérvio, que vem de Mngar., que cm Lin-
gua Funica significa Killa , ou como acrescenta o nosso S.
Isidoro , Filia Nova. Forem Appiano em lugar de Maga-
lia , constant^.mente escreve sempre Megdra.
Como Carthago se formou das três Fovoações , que
dissemos , e foi fundada por partes , e pouco a pouco í
daqui tem alguns por verisimel , que segundo a diversida-
de dos Bairr.js, seriao taobcm diversos os Fundadores, e
diversos os tempos da fundação : c que por isso mesmo
são tão diversos os annos , cm que os Authores põem fun-
dada Carthago. Com cfF.-iro Appiano dá por certo , que
quando Dido viera fundar a Byrsa , já havia alguma cousa
de Carthago feita pelos Fenícios. O mesmo parece suppor
Virgílio naquelle verso :
Miratítr molem Jeiíeat j magalia qmudam.
E esta he a opinião, que Com Isaac Vossio segue Bochart.
Dizem mais , que quando se abrião os alicesses de
Carthago, fora achada na terra huma cabeça de cavallo,
que ficou servindo de Insig lia á nova Cidade. Com cffei-
to o' grande Bispo de Lerida , e Arcebispo de Tarragona
António Agostinho , no Sexto dos seus raríssimos Diálo-
gos testifica, que tinha em seu poder huma medalha Cic-
thagineza de prata , com huma cabeça de cavallo elegan-
temente gravada, e no fim do pescosso escrito este nome
CACCABE, que naqucUa língua significa cabuça de cas-allo.
R ii A
iji Mkmorias DA Ac AT5EMIA Real
A religião dos Carthaginczcs erl a mesma que a dos
Tyrios seus fundadores. Polybio no Excerpto CXIV. das
Embaixadas , fãx menção dMnuna na'o , que todos os annos
hia de Cartliago a Tyro , levar as Primicins aos Dcoses
pátrios. E Diodóro Siculo escfeve no Livro XIII. cap. io8.
que na conquista e esbulho de Gela cidade de Sicília', achan-
do os Carthacrinezcs huma Estatua colossal de bronze do
Deos Apollo , a mandarão logo de presente a Tvro. As-
sim como em Tyro era celebre pelos Escritos d'Hcrodoto
o 'rcinplo d'Hcrculcs , com huma columna de ouro , outra
d'csmcrjlda : assim em Cartliago tinha Hercules outro Tem-
plo, onde todos os annos se sacrificava huma victima hu-
mana , como refere Plinio no Livro XXXVI. cap. 6. Cos-
tume, que segundo testifica Tertullinno no Apologético,
durou cm Carthago até o tempo de Tibério.
§ II.
Das forcas terrestres e tiavaes da Republica de Carthago , t
das suas conquistas dentro , e fora d' Africa.
Depois da morte da Rainha Dido , passou o Gover-
no de Carthago de Monárquico a ser Republicano. Os que
occupavão osummo Magistrado, chamavao-se J'«/>/<'í , no-
me que dos Carttiaginezes adoptarão os Latinos : ( o que
se. faz manifesto de viirios lugares de Livio, como no Li-
vro XXVIIL cap. 37. e no^Livro XXX. cap. 7. ) e noi
me que parece que os Carthaginezes tomarão dos Hebrcos ,
em cuja Língua se chamavão Sophetim aquellcs Juizes , que
depois da morte de |osuc governdrâo com hum império
absoluto o Povo de Deos : de sorte que nté o Livro que
trata destes Juizes, se intitula em Hebrco Sophetim. O Pre-
zidente porem ou Doge destes SulFctes de Carthago , cons-
ta de Polybio no Livro III. cap. ■:^^. que se intitulava Rei.
E este mesmo nome dá Solino a Hannon.
Qual fosse a potencia de Carthago , florente esta Re-
pu-
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA. IJJ
publica , de nenhuma cousa se pode avaliai melhor, diz
Hstrabiío no Livro XVII. pag. 1189. que doestado cm
que ella se achava , ao tempo da terceira e ultima guerra
com os Romanos. Havia então em Carthago setecentos
mil liomens : e estav-ío-lhe sujeitas por toda a Africa tre-
zentas cidades. Sitiados que torão por Scipião , entrega-
rão de armas maiores duzentas mil, de maquinas beilicas
três mil , a fin de o moverem a não continuar a guerra.
Como depois se resolverão a dctender-se a todo o risco,
comcçaVão a fabricar novas armas: e cada dia se faziao cen-
to e quarenta escudos batidos, trezentas espadas , quinhen-
tas lanças, e mil dardos d'arremeço, para cordas dos quaes
instrumentos davão as escravas os seus próprios cabellos.
Conserv.ívão ainda doze na'os das que tinhão servido havia
sincoenta annos. Agora porem , não obstante ter se refugia-
do o grosso da cidade na Fortaleza , dentro de dous mc-
zes fizcrão cento e vinte náos. E tendo-lhes o inimigo oc-
cupado o porto com huma guarnição , abrirão logo outro ^
donde de repente sahio aqu.Ua armada. Porque tinhão ain-
da de tempos antigos muita madeira prompta, e promptos
muitos officiaes sustentados do publico. Atéqui Estrabão*
Este poder naval dos Carthaginezes vinha já de mui-
tos séculos a traz : e pode-se dizer, que começou, com a
Republica. Porque já do tempo de Cyro , celebrao Heró-
doto e Thucydides huma armada Carthagineza de secenta
náos , que no mar de Córsega pelejou com outra dos Fo-
censcs de igual numero, pelos annos de 5-44 antes da era
de Christo.
Pelos annos de 484 antes da mesma era , consta de
Diodóro Sicuio no Livro XL cap. 2. que querendo Xerxes
invadir a Grécia , pedira auxilio aos Carthaginezes ; os quaes
dentro de três annos ajunta'rão hum exercito de trezentos
mil homens , e huma armada de duzentas náos.
Pelos annos de 408 antes da mesma era, refere o mes-
mo Diodóro no Livro XIIL cap. 5-4. que para a conquis-
ta dj Sicilii, prepararão os Carthaginezes huma armada de
se-
134 Memorias da Academia Real
secenta náos de guerra, c de mil e quinhentas de carga.
Por estes tempos se julga , que foi aqucUa famo-
za expedição de Hannon Ciutliaginez , que n'huma arma-
da de secenta náos, cm que hião trinta mil homens, cor-
reo por ordem do Senado roda a costa d'Africa , ao mes-
mo tempo que outro (>arrh;igincz por nome Himilco , cor-
ria a da Europa. Digo, que esta l"amoza expedição foi por
estes tempos, ou talvez ainda mais antiga. Porque de mui-
tas cidjdes fundadas por Hannon, e mencionadas por elle
no seu Périplo , faz memoria Scyláce de Caryando Gcogra-
fro Grego, ao qual Isaac Vossio na Prefação ao mesmo
Scyláce faz contemporâneo de Dário Norho succcssor de
ArtíLxcixcs Longimano; e João Alberto Fabrício no Livro
IV da sua Bibliolheca Grega, cap. ri. §6. o reduz com
inclli;'res fundamentos ao tempo de Dário Hystaspis , an-
tecessor do referido Artaxerxes.
Tendo sido pois tão grandes e tão conhecidas as for-
ças maritimas da Republica de Carthago , antes das suas
guerras com os Romanos; he muito para admirar, que
Eusébio, que na sua Chronica teve cuidado de hir notan-
do nos respectivos lugares o« Povos , que em diversos tem-
pos tiverão o império do mar, como os Lydios , os Pe-
lasgos , os Thracios , os Rhodios , os Fenícios , os Focen-
ses , os Eginetas : nenhuma menção fizesse dos Carthagine-
zes , de cujas conquistas por mar e por terra , estão cheios
CS Livros de Polybio , Diodóro , Estiabão , Livio , e
Justino.
Por cíFeito desta potencia naval , testifica Polybio no
Livro I. cap. IO. e Livro IIL cap. 59. que ao tempo da
primeira Guerra Púnica , isto he , pelos annos de 490 da
fundação de Roma, e 264. antes da era de Christo; es-
tavão sujeitas ao dominio dos Carthaginczes todas as Pro-
víncias d'Africa, des das Aras dos Filenos até as Colum-
nas d'Hercules : espaço de dezaseis mil estádios, em que
já ouvimos dizer a Estrabao , que jaziao trezentas cidades:
e fora d'Africa , mas fronteiras a ella , todas as ilhas do
mar
DAS SciENCTAS DE LiSBOA." l^f
inar Sardico e Etrusco. Que por isso no principio da se«
gunda guerra se queixou Annibai por boca de Tito Livio ,
Livro XXI. cap. 43. de que os Romanos tivessem tirado
á Republica de Carthago as duas ilhas de Sicília e Sarde-
nha. Parum est , qtiod veterrimas Províncias meãs Siciliam est
Siirdiniam adimis : etiam Hispanias. Note-se bem a energia
daquellas palavras , veterrimas Provindas meãs : com as quaes
declara Annibai, que em lhe tirarem os Romanos a Sicilia
e a Sardenha , não só lhe tirarão o que era seu , mas o
que era seu de tempos antiquissimos. E com cffeito nós
ji vimos de Diodóro , que ao menos des do tempo de Dá-
rio Notho, cstavão os Carthaginezes de posse do melhor
da Sicilia. E pouco depois em tempo de Dionyzio o Ty-
r^nno diz o mesmo Diodóro no Livro XIV. cap. 76 que
toda a Sicilia, excepto Saragossa , era dos Carthaginezes.
Mas que digo eu , do tempo de Dário Notho ? A His-
toria de Polybio nos informa no Livro III. cap. 12. que
iogo no primeiro anno depois de expulsos os Reys de Ro-
ma , e primeiro dos Cônsules que em seu lugar se insti-
tuirão; isto he , no anno 209 da fundação de Roma e
5*09 antes da era de Christo , celebrarão os Romanos com
os Carthaginezes hum Tratado de Limites e de Commer-
cio , em cujo Artigo quinto se suppoe , que de muitos
ânnos atraz estavão os Carthaginezes de posse da Sarde-
nha , e d'huma grande parte da Sicilia. Ora isto foi , co-
mo no mesmo lugar nota Polybio , vinte e oito annos an-
tes que Xerxes passasse á Grécia , e consequentemente em
tempo de Dário Hystaspes ; que são perto de duzentos e
sincocnta annos antes da primeira guerra Púnica.
Porém onde os Carthjginezes dilatarão mais o seu po-
der , foi na Espanha : para o que lhes abria a porta o es-
tarem já senhores das suas ilhas adjacentes , e o terem al-
liançi d'amizade c parentesco com os de Cadiz , por cau-
za de communidade d'origem , que huns e outros vinhao
de Tyro.
Diodóro no Livro V. cap. 16. diz que cento e se-
cen-
T3fi Memorias da Academia Rhai.
cenra annos depois de fundada Carthago , estabelecerão os
Carrliaginezcs luima Colónia na ilha de Piíyiisa, que ho-
je SC nomeia Juiça , e jiz opposta ao Cabo de Denia , dis-
tante só hum dia de viagem do continente d'Espanha. Cha-
márão-lhc os Gregos Pttyusa y pelos muitos pinhaes de que
está cubcrta.
Estrabão no Livro III, pag. 25-4, põe duas PhyusasX
huma . chamada £/<«/<? , hojcibissa, de quatrocentos está-
dios de comprido, e quasi outros tantos de largo, com
huma cidade do mesmo nome: outra chamada Ophhisa ^ vi-
zinha á primeira, mas muito mais pequena, e deserta. O
que procedia talvez, das muitas cobras que. a infcstavão,
donde lhe veio o nome Grego á^Ophiiisa , a que correspon-
de o Latino Colubrarja , que lhe dá Piinjo no Livro -III.
cap. f . como se disséramos , ilha das cobras.
Por este lugar d'Estrabáo , quer Wesselinge que se
emende Plinio , o qual tendo reconhecido com tstrabão
duas Pityusas , a ambas contra elle chama Elmos , pondo
a Ophhisa ou Colubraria por distincta das duas.
Pelo mesmo lugar d'Estrabão , querem Casaubono e
Salmasio , que se emende Diodóro , em quanto chama Ere-
so , á que Estrabão com outros chama FMuso.
Feitos senhores das Pityusas , foi fácil aos Carthagi-
nezes apossarem-se também das Baleares, que como nos
informa Plinio, não distão delias senão setecentos estádios ,
e são ás que hoje chamamos Malhorca e Minorca. Pose-
rão os Gregos a estas duas ilhas o nome de Gymnefias , pe-
lo costume que os seus habitantes tinhão , de andarem nus
em tempo do verão ; e o ^e Baleares , pelo uzo da funda ,
em que erão insignes , e em que se exercitavao desde me-
ninos de sorte, que primeiro havião d'acertar no alvo, do
que receber páo. Assim o observa Estrabão no Livro IIL
Numero marginal 168 acrescentando, que estas fundas se
fazião d'huma espece de junco desfiado , a que os Gregos
chamão melancrena. D'huma e outra etymologia faz menção
Diodóro, no Livro V. cap. 16.
Da-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. Í37
Daqui ficou sendo mui celebrada até entre os Poe-
tas a funda dos Malhorquins. Como quando Virgílio diz nas
Gcorgicas :
Shipea torquentem Baleari verbera funda.
E Ovidio nas Mctamorfozcs :
Non secuí exarsit , quam cum Balearia pluhim
Funda jacit.
Mas concordando todos os antigos e modernos , em
que as Baleares tomarão este nome do uzo da funda ; nao
he huma só a opinião sobre a raiz do nome. Porque huns
o derivao do verbo Grego Ballein , que significa atirar de
arremesso ; como Diodóro no lugar lia pouco indicado, e
com clle o nosso S. Isidoro no Livro XIV. das origens ,
cap. 6. Outros com Estrabão c Eustathio , querem que Ba-
leares seja de sua origem hum nome posto pelos Fenicios,
que no principio povoarão aquellas ilhas, e em cuja I,ingua
Baaljara quer dizer mestre d'atirar. Este he o sentimento
de Bochart no Livro De Colmiis Phwnuum , cap. 35'.
A maior das duas Baleares , que he Malhorca , tem
conforme Plinio no Livro IIL cap. j. cem milhas de com-
prido , e de circunferência trezentas e oitenta , com duas
Cidades , que em tempo dos Romanos se chamavâo Palma
c Pollcncia. A menor que he Minorca , tinha outras duas,
Jammon e Magon , como depois de Pomponio Mela attes-
ta Severo Bispo da mesma ilha , n'huma carta circular que
traz Baronio no anno de Christo 418. onde a nosso pro-
pósito adverte , que ambas aquellas cidades erão obra dos
Carthaginczes. Duo parva eppida , quibus a Poenis indita no-
mina , Jammon ad occasum , Magon ad orientem.
Para se formar algum conceito dos costumes destes
llhéos , he notável o que delles escreve Diodoro de Sici-
lii, Livro V. cap. 17. dizendo que eptrcUes era prohibi-
1. IX. P. 1. S do
igS Memorias DA Academia Real
do todo o uzo de dinheiro d'ouro e de prata : e que as-
sim todo o soldo que lhes davão os Carthaginezcs , o con-
vertião elles em comprar e levar para as suas terras mulhe-
res e vinho.
Qi-ianto he certo , que os Carthaginezcs forão senho-
res das ilhas d'Espanha muito primeiro, que do seu con-
tinente ; tanto he difficultozo de designar o tempo , em
que elles estabelecerão no mesmo continente hiima domi-
nação fixa.
Já ouvimos a Polybio , que ao tempo da primeira guer-
ra Púnica , tinhâo já os Carthaginezcs sujeitado ao seu do-
mínio a maior parte dos lugares d'Espanha. Porem o mes-
mo Polybio no Livro II. cap. i. e cap. 36. celebra a A-
milcar Barca, e a seu genro Hasdrubdl , pordous insignes
dilatadores do império Carthaginez em Espanha , depois
da primeira guerra Púnica. E no Livro III. cap. 26; p6e
celebrado pelos Romanos com o mesmo Hasdrubal hum
Tratado, em que se prohibia aosCarthaginezes d'Espanha
estender as suas conquistas alem do Ebro : o que he sinal ,
que atclli as não tinhão elles ainda feito. Ultimamente no
Livro III. cap. 35:. testifica Polybio, que declarada já a
segunda guerra Púnica , he que Annibal rendera ao seu im-
pério a Navarra , depois de ter sujeitado os Carpetanos na
Província de Toledo.
De tudo isto tiro eu , que o lugar do Livro I. cap.
10. onde Polybio escrevera, que ao tempo da primeira guer-
ra Púnica estavão já os Carthaginezcs de posse da maior
parte d*Espanha; tem muito d'hyperbolico , e não se po-
de facilmente conciliar com as vastas conquistas, que elle
no Livro segundo attribue a Amilcar, e a Hasdrubal , fei-
tas depois daquella guerra , e no Livro terceiro a Annibal ,
pouco antes da segunda. E assim persuado-me , que ao tem-
po da primeira guerra Púnica , não se estendião os domí-
nios Carthaginezcs em Espanha muito fora da Betica c Lu-
sitânia : e que ao tempo da segunda, antes das conquistas
d'Annibal , não passavão do Ebro.
Con-
DAS SciENCi AS DE Lisboa. 13^
Confiimo-me neste parecer , pelo que adio em Trfgo
Pompco , ou no seu Compilador Justino , Livro Xl.iV.
cap. 6. e em Estrabão Livro IIL pag. 224. O primeiro
diz , que quando Amílcar Barca veio a Espanha , era esta
a segunda expedição , que os Carthaginczcs lazião a cila.
Ora elle não se sabe , cm que tempo succcdeo a primei-
ra y que toi conforme o mesmo Justino , quando os Car-
thaginczes vierão socorrer aos Fcnicios deCadiz, na guer-
ra que lhes fazião os naturaes da terra. Mas como Estra-
bão nota, que ao tempo que veio Amilcar Barca, obser-
varão os Carthaginezes com admiração , que os nossos Tur-
detanos uzavão atd de mangedouras e tinas de prata : por
aqui se pódc e deve entender , que até aquelle tempo não
tinhão os Carthaginezes muito conhecimento , nem muito
trato com os nossos. Era logo moderno em Espanha o seu
império.
A gloria pois das maiores e principaes conquistas dos
Carthaginezes em Espanha, se deve attribuir aos três gran-
des Capitães , Amilcar Barca , Hasdrubal seu genro , e An-
nibal filho d'Amilcar ; dos quaes os dous primeiros gover-
narão muitos annos a Espanha , por ordem do Senado de
Carthago ; e o terceiro no espaço de dous sujeitou o me-
lhor da Espanha Tarraconensc.
A Amilcar Barca fazem alguns modernos fundador de
Barcelona , movidos da semelhança do nome Latino desta
cidade , que he Barcino. Eu não acho , que Amilcar che-
gasse nunca á Catalunha. E o nome de Barcitw lho pode-
rá dar Annibal , e em memoria do sobrenome de seu pay.
E a isto alludiria Ausonio , quando na Epistola X. a Pauli-
no , chama Ptmica a Barcelona.
De Carthagena não pódc haver duvida , que foi obra
d'Hasdrubal : porque assim o affirma Polybio no Livro X.
cap. 10. e Estrabão no Livro III. pag. 238. A bella e
exacta dcscripção, que de Carthagena traz Polybio no lu-
gar citado , he donde Tito Livio tirou a sua no Livro XXVI.
cnp. 42.
S ii No
440 Memorias da Academia Real
No Reino do Algarve , crê o nosso Resende , Livro
IV. pag. i86 , que tundára Annibal a cidade, que l^om-
ponio Mela chama do seu nome Portus Annihalis , onde ho-
je está a villa d'Alvor. Da Oração que o mesmo Annibal
íez ao seu exercito, quando o animava em Itnlia para a
primeira batalha contra os Romanos, c que se lè em Ti-
to Livio Livro XXI. cap. 43. consta que elle estivera na
Lusitânia. O que he da minha ingenuidade notar , que pri-
meuo que eu , o observara o mesmo Resende.
Quantas e quam grandes fossem as vantagens de ri-
queza e de forças militares, que os Carthaginezes tirarão
d'Esp3nha ; ninguém o explicou melhor, do que Diodóro
de Sicilia, quando no Livro V. cap. 38. escreveo o seguin-
te : = Tendo havido em Espanha tantas officinas de ouro
e prata , que das suas minas se tirava em grande abundân-
cia , he cousa digna d'admiração , que hoje não apparece
nada disso. Mas he porque a avareza dos Carthaginezes ,
que então possuião Espanha , tudo levou. Porque daqui he
que crescerão as suas riquezas , e as suas forças. Daqui he
que elles tirarão soldados valentíssimos , com cujo auxilio
fizerão e concluirão muitas guerras gravíssimas. Porque es-
te foi sempre o costume dos Carthaginezes no fazer da
guerra ; que não se confiavão no exercito formado dos seus
Cidadãos , nem no dos escravos dos Povos alliados. E só
com o muito cabedal que tirarão das minas d'Espanha , met-
têrão cm grandes perigos os Romanos , os Sicilianos , e
os Africanos. = Atéqui Diodoro.
Polybio no Livro IIL cap. 33. e com ellcs Tito Li-
vio no Livro XXI. cap. 21. observão , que Annibal, co-
mo cm extremo acautelado e sagaz , quando se estava pre-
parando em Carthagena para a guerra d'Italia , manda'ra
que as Praças d'Africa as fossem guarnecer Espanhoes , c
as d'Espanha Africanos ; discorrendo que com os mútuos
pinhores, que huns e outros deixavao nas pátrias, lhe fi-
carião todos mais obrigados , c lhe serião mais £eis.
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 14;
§ III.
Synopse Chronologka das três Guerras Púnicas.
Esta Synopse , sobre illustrar infinitamente as cousas
da nossa Espanha , tem por si a novidade , de ser formada
(]Uasi toda dos Escritos d'hum Historiador, que na autho-
ridade não tem outro, não digo cu que o exceda , mas nem
que o iguale. Tal he no juizo de todos os Criticos Poly-
bio de JMegalopole , cidade da Arcádia ; o qual alòm de
ser antiquissimo , e quasi coetâneo aos successos que refe-
re , professa huma diligencia , e huma cxacção , que o faz
sobrcsahir a todos os mais, assim Gregos, como Roma-
nos.
• Tendo pois diante dos olhos a novissima Edição de
Polybio feita em Lcipsic no anno de 1764. formei esta
Synopse chronologica das três Guerras Púnicas , á imitação
d'outra do mesmo assumpto, que nos deixou Casaubon.
Porem no ajustar dos annos tanto da fundação de Roma,
( que são só os que apontou Casaubon ) como dos que prece-
derão a era vulgar de Christo, segui a Chronologia de
Pctau , como a mais correcta , e a mais bem recebida.
O que não achei em Polybio , suppro eu não poucas
vezes de Tito Livio , e de outros Escritores.
Ora antes d'entrarmos na Relação dos successos , he
necessário prcnotar , que até este tempo cultivavão osCar-
thaginczes boa paz e amizade com os Romanos , em vir-
tude de três Tratados que tinhão feito entre si , dos quaes
todos e dos seus Artigos, nos dá Polybio noticia no Livro
III. cap. 22. 24. e 25:.
O primeiro , de que já acima fizemos menção , foi
celebrado entre Carthaginezes e Romanos logo no primei-
ro anno da Republica destes, que foi o de 209 da funda-
ção de Roma , e 509 antes da era de Christo. E dizia
assim : «« Haja amizade entre Romanos e Carthaginezes de-
» bai-
14* Memorias da Academia Real
" baixo destas Leys e condições, Qlic os Romanos nao
5» naveguem alem do Pulcro Promontório. Sesucccder, que
» por cauza d'alguma tempestade apportem adiante nao
» possão comprar nem receber cousa alguma , senão o que
j> tor necessário para reparo dasnáos, ou exercício das cou-
» sas de religião ; e passados sinco dias retirem-se. Qiic pos-
» são negociar em Africa e na Sardenha, e naquella par-
» te da Sicília , que está sujeita ao império dos Carthagi-
» nczcs. Que os Carthaginezes não facão mal algum aos
» Povos do Lacio , que estão debaixo do dominio dos Ro-
j> manos. Que se abstenhão de tomar alguma destas cida-
>j des. Qlic se a tomarem , a entreguem logo sem algum
» gravame. Que não edifiquem Fortaleza alguma no cam-
» po Latino. Que se com mão armada poserem o pé nel-
j> le , não pernoitem assim. "
Daqui temos , que quando começava a Republica dos
Romanos, já os Carthaginezes contavao por Terras suas
íóra d'Africa, toda a Sardenha , e parte da Sicilia.
A cauza porque os Carthaginezes não querião, que
os Romanos passassem com embarcações grandes alem do
Pulcro Promontório , julga e nota Polybio que era , porque
não querião que os Romanos soubessem o que havia cm
Byzacio , e na pequena Syrte , lugares que pela fertilidade
do terreno se chamavão Empórios.
O segundo Tratado dos Romanos com os Carthagine*
zes, comprchcndia também os Tyrios , e os Uricenses. Foi
celebrado no anno de 402 da fundação de Roma, (se-
gundo se colhe do nosso Orosio , Livro III. cap. 7. por-
que Polybio não designa o tempo) isto he , no anno de
3J2 antes da era de Christo. E dizia assim. t< Haja ami-
» zade entre os Romanos , Carthaginezes , Tyrios , e Uti-
5> ccnses , debaixo destas Leys. Que os Romanos não fa-
» ção prezas, alem do Pulcro Promontório, de Mastia,
3> edcTharseio. Que não vão lá mercadejar. Que não edi-
j> fiquem lá nenhuma Cidade. Que se os Carthaginezes to-
-j» marem no Lacio alguma Cidade , das que não estão de-
>j bai-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. I43
>í baixo do domínio dos Romanos, fiquem embora crm a
j> preza, c com os cativos, mas entreguem a cidade. Qiic
» na Africa e na Sardenha nenhum Romano negocie , nem
» edifique cidade. Que na Sicilia sujeita aos Carthagine-
)» zes , c cm Carthago , facão os Romanos tudo , vcndao
j» o que quizercm , e a quem quizerem. O mesmo seja li-
» cito aos Carthaginezcs fazerem em Roma. j>
Aqui se pcrmitte aos Romanos a viagem até Mastia
c Tharscio ; mas prohibe-se o commercio na Africa cspe-
ciahncnte dita , excepto Carthago , e na Sardenha.
O terceiro Tratado celebrou-se no tempo , que o Rei
Pyrrho veio a Itália , anno 474 da fundação de Roma ,
c 280 antes da era de Christo, Nelle se renovarão todas
as condições , em que de parte a parte se tinha convindo
nos primeiros, e só se acrescentou de novo o seguinte:
«< Que se ou o Povo Romano , ou o Povo Carthagincz fi-
j> zer sociedade com Pyrrho, seja debaixo da condição,
" que no cazo d'algum inimigo invadir as Terras de qual-
j» quer dos dous , hum c outro se auxiliem mutuamente.
j> Ê que sendo necessário , dem os Carthaginezcs náos aos
í> Romanos, não só para o transporte, mas também para
j> a batalha. >>
Esta segunda clausula creio eu que foi posta, porcau-
za de que até aquelle tempo, e até muitos annos depois,
não tinhão os Romanos ainda armada própria.
Primeira Guerra Púnica.
Desta guerra foi hum o pretexto , outra a causa. O
pretexto foi , quererem mostrar os Romanos que se com-
padecião dos Mamortinos, que era hum Povo do Reino
de Nápoles ou Terra do Lavor , que se tinha estabeleci-
do em Messina , e agora se queixava das oppressóes , que
na Sicilia lhe faziao os Carthaginezcs, unidos com Hierão
Rei de Saragossa. A cauza foi , não poderem os Romanos
soffrcr, que os Carthaginezcs desfrutassem sós huma ilha
tão
144 Memorias da Academia Real
tão fcrtil , c tivessem nclla huma como ponte , por onde
facilmente podiao passar á Itália. O principal thcatro logo
da primeira guerra Púnica foi a Sicília. Polybio Livro í.
cap. 8. e cap. lo.
Primeiro Âmio da Guerra , 490 da fundação de Roma , e
164 antes da era de Chrisío,
Então foi a primeira vez , que os Romanos sahirão
fora da Itália com exercito. O Cônsul Appio attacou tão
rijamente aos Carthaginezes e ao Rei Hierão , que huns e
outros se virão obrigados a fugir de Messina , aquelles pa-
ra Pcloro , este para Saragossa. Por ter entregado a For-
taleza fizeráo os Carthaginezes crucificar o seu Governa-
dor. Polybio, Livro I. cap. 11. e 12.
Pela Historia de Diodóro se sabe , que o nome deste
Governador Carthaginez era Hannon , nome entrelles céle-
bre, e commum a outros capitães. E pelas Historias de Ti-
to Livio c Valério Máximo he também constante, que o
crucificar aos capitães, quando ou erão vencidos, ou ainda
que vencedores tinhão obrado imprudentemente , era hum
supplicio usual entre os Carthaginezes.
Segundo Anno , 49 1 ^rt fundação de Roma , e 2 ó 3 antes da
era de Christo.
Fazem os Romanos paz com o Rei Hierão, e sendo
este. o que lha pedio, movido de duas razões: primeira,
de medo dos Sicilianos : segunda , admirado de ver a va-
Jentia dos Romanos. Polybio, Livro I. cap. 16.
Pausanias acrescenta terceira , que foi assentar comsi-
go Hierão, que na amizade e fé se devia fiar mais dos
Romanos, que dos Carthaginezes.
As condições da paz forão estas. « Que Hierão res-
í» tituiria os cativos Romanos , sem levar nada por elles : e
»» que
DAS St:iF.NCIAS DE LiSBOA. 14^
»» que de mais a mais daria cem talentos de prata, >» Po*
lybio ihid.
Lutropio e Orosio dobrão o numero de talentos: por-
que põem duzentos.
Daqui SC pódc emendar , e com cffcito quer Casau-
bono que se emende, hum lugar de Diodóro na Écloga
VIII. do Livro XXII. Tomo II. pag. 5-02, onde segundo
as Edições vulgares diz Diodoro , que Ilierão fora obriga-
do 3 dar cento e sincoenta mil dracmas: o que he muito
abaixo da somma que Polybio aponta : porque cento e sin-
coenta mil dracmas só fa/em vinte c sinco talentos: que
he huma quantia, que não condiz com a cubica dos Ro-
manos, nem com as riquezas d'Hierão. Onde pois cm Dio-
doro sele cento e sincoenta mil dracmas, quer o dito gran-
de critico , que se reponha , quinhentas ou seiscentas mil
dracmas.
Não declara Polybio as condições da porte dos Ro-
manos: mas dcclara-as Diodóro no lugar citado , dizendo
que forão estas. Qtie Hierao ficasse com o douiinio de Sara'
gossa , e das mais cidades da sua jurisdicção , ([ue erão por
todas seis.
Quarto Amo ^ 453 da fundação de Roma y e í6i antes da
era de Christo.
Neste anno foi , que os Romanos se applicárão a ter
armada própria , depois de conquistado no antecedente Agri-
gento, Polybio, Livro L cap. i{J,
Quinto Amw y 494 da fundação de Roma j e 260 antes^^
era de Christo*
O Cônsul Cornelio se entrega aos Carthaginezcs. Dull-
lio hc o primeiro dos Romanos, que vence os Carthagi-
nczes em batalha naval , na qual os Carthaginezes perdem
setenta náns. Polybio Livro L cap. 22. e 23.
T. IX. P.I. T Por
14^ Memorias da Academia Real
Por esta victoria se levantou em Roma humn Coliimna
á honra de Duillio , com huma Inscripçao , que ainda ho-
je existe , de Latim muito tosco, qual ainda então era o
dos Romanos.
Notio Âiino^ 498 da fundação de Roma j e 2^6 antes da
era de Christo.
Com huma armada de trezentas e trinta náos , pre-
tendem os Romanos passar a Africa ; com outra de trezen-
tas c sincocnta lho disputãb os Carrhaginczes. Dada bata-
lha , fica a victoria pelos Romanos , perdidas vinte e qua-
tro na'os Romanas, e mais de trinta Carthaginezas. Pelo
mesmo tempo passa o Cônsul Attilio a Africa com outra
arm.ida de trinta náos, em que hião quinze mil infantes,
e quinhentos cavallos , com que tomou aos Carthaginezes
a cidade de Clapea e muitas Villas , e cativou vinte mil
escravos. Polybio Livro I. cap. 28. e 29,
Eutvopio acrescenta , que voltado a Roma o outro
Cônsul Manlio, e ficando em Africa Attilio, vencera este
os dous Hasdrubaes , e aAmilcar, e matara a tiro junto ao
rio Bragada huma serpente , que Estrabão diz que tinha
setenta pés de comprido.
Decimo Anno ^ 499 da fundação de Roma, e 2^^ antes da
era de Christo.
Persuadidos os Carthaginezes , de que por imperícia ,
ou máo conselho dos seus capitães , he que lhe succediáo
mal as cousas, mandão vir da Grécia para seu General a
Xantippo Laccdemonio. Este junto hum exercito de doze
mil de pé, quatro mil cavallos, e cem elefantes, dá bara-
lha aos Romanos, e os vence, ficando cativo o Cônsul
Attilio, Polybio Livro \. cap. 34.
Se damos credito a Eutropio , o -numero dos Roma-
nos mortos forão trinta mil, o dos cativos quinze mil.
Man-
I
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. t^^
Mandado pelos Carthaginczcs a Roma o mesmo Atti-
lio , debaixo da palavra c juramento , de que ainda no ca-
20 de que o Senado não conviesse n'huma de duas , ou
de fazer paz, ou de trocar os cativos, voltaria ellc Attilio
para o seu cativeiro: Attilio aconselhou ao Senado, que
continuasse a guerra, e tornou para Carthago, como pro-
mcttêra. Vingárão-se nellc os Carthaginczes , fazendo-o mor-
rer cruJelissimamente. Porque o mettêrao n'huma gayola
cercada por dentro d'agudas pontas, e tão ajustada ao cor-
po , que se não podia mover o miserável ainda levemen-
te , sem se esperar c ferir com inexplicáveis dores, até
que neste tormento acabou.
Assim he que Appiano refere o desgraçado fim do
Cônsul Attilio, digno pelo seu valor e fidelidade de me-
lhor fortuna. E quanto ao facto , de terem os Carthagine-
7es mandado matar a Attilio, concordão com Appiano Gre-
go muitos Escritores Romanos; cntrelles Valcrio Mj^íimo
no Livro I. cap. i. e o Author do Epitome do LivroXVIII.
de Tito Livio, que alguns querem que fosse Lúcio Floro.
Todavia Jacques Palmicr, de cujo parecer mostra Wcs-
selinge que não dissente , p6e alguma duvida a esta cruel
morre de Attilio. Fundão se hum e outro no silencio de
Polybio , que tendo escrito tão miudamente da primeira
guerra Púnica, e do cativeiro de Attilio, não disse toda-
via huma só palavra daquelle atroz supplicio. Fundâo-se
mais em que Diodóro de Sicilia nos Excerptos do Livro
XXIV. Tomo II. pag. <;66. parece suppôr , que Attilio
morrera em Carthago só de doença natural , e não de mor-
te violenta.
Mas quanto ao silencio de Polybio devião advertir
ambos aquelles Críticos, que Polybio não se propoz escre-
ver todas as circunstancias dos successos , que refere : pois
do mesmo Attilio calou Polybio muitas cousas , que de-
pois mencionou Livio. E pelo que toca ao lugar de Dio-
dóro, eu acho que delle mais se confirma a narração de
Appiano, do que se impugna. Porque o aconselhar a mu-
T ii Iher
148 Memorias da Academia Real
Hier d'Attilio a seus filhos, que cm vingança da morte do
pay cm Carthago atormentassem cruelmente em R.oma oá
dous cativos Cartliaginczes Bostar e Amílcar; mais pare-
ce pena de talião , do que simples desaíFogo da magoa.
Tornando a Xantippo General dos Carthaginezes , o
mesmo Appiano escreve , que os Carthaginezes reccozos
de que a ellc se attribuisse toda a gloria das suas victorias,
o remetterão premiado de grandes dons para Lacedemonia ;
encommendando com tudo ao mestre da náo , que em cer-
ta paragem desse geito , a que clle morresse afFogado. Po-
rem o nosso Polybio dá a entender , Xantippo tôra o mes-
mo que disposéra a sua retirada , por se subtrahir aos malignos
cfFcitos da emulação e da inveja.
Sabido em Roma o máo successo da armada d'Attilio,
partirão logo para Africa os dous novos Cônsules Emilio e
Fulvio com outra armada de trezentas -c sincocnta náos.
Sahiráo os Carthaginezes a recebcllos com a sua de duzen-
tas. Dada batalha , são desbaratados os Carthaginezes , com
perda de cento e quatorze náos, ficando cativos todos os
que nellas vinhão. Recolhendo-se para Roma a armada vi-
ctorioza , huma tempestade a faz naufragar , de sorte , que
de trezentas e secenta náos só escaparão oitenta. Polybio
Livro I. cap. 36. e 37.
Undécimo Ânuo j 5*00 da fundação de Roma^ e 2 j/^ antes da
era de Christo,
Preparada nova armada de trezentas náos , em que en-
travão as relíquias das que tinhão naufragado , navegão os
Cônsules Cornelio Scipião Asina , e Lúcio Attilio Calati-
no para a Sicilia , onde depois d'hum apertado sitio tomao
Palermo. Polybio Livro I. cap. 39.
Duo-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. Z4^
Di4odecmo Anuo y yoi da fundação de Roma ^ e a 5* 3 antet
da era de Cbristo.
Sitlão os Romanos cm Sicilia a cidade de Lilybeo,
posta no Promontório ou Cabo do mesmo nome , írontci-
ro a Carthago. Dcfciidcm-scos Carthaginezes valerozaihen-
tc, com gravíssimo damno dos Romanos. Desesperados es-
tes de poderem tomar Lilybeo , passáo a sitiar Drép.ino.
Impedcm-lhe os Carthaginezes o accesso. Dá-se batalha.
Foge o Cônsul Publio: o que em Roma se lhe deo em
culpa , porque foi castigado. Tomão os Carthaginezes aos
Romanos noventa e três náos , e cativao quasi todos os da
armada.
Renovão os Romanos o sitio de Lilybeo. Repellcm
os Carthaginezes a armada Romana. P.ideee esta segundo
naufrágio, em que perecerão cento e sincocnta náos. Poly-
bio Livro I. des do capitulo 43. até 55-.
Os referidos successos não forão todos no mesmo an-
no; mas em diversos. Eu os ajuntei desta vez n'hum só,
pela cognaçâo e connexao dos objectos.
Por este tempo cedem os Romanos o império do mar
•os Carthaginezes.
o"
Decimo oitavo Anm , 507 da fnndação de Roma, ^ 247 ati-
tes da era de Cbristo.
Neste anno nasceo o grande Annibal , aquelle que
depois fez a segunda guerra Púnica. Porque antes delle
tinha havido outros do mesmo nome.
Vigésimo terceiro Anno ^ 5" 12 da fundação de Roma., e i^z
antes da era de Cbristo,
Reparada nova armada , encarregao os Romanos a guer-
ra coiura os Carthaginezes ao Cônsul Lutacio. Vence este
os
i^ò Memorias da Academia RSai,
i)S Carthaginczcs na batallia d'Egate , ilha fronteira a
Lilybco , que por outro nome se chama Egusa, mettidas
a pii]uc sincoenta náos, e cativadas setenta. Polybio Livro
I, ca]i. 6i.
Vigésimo quarto e ultimo Jnno , y 1 3 da fundação de Roma j
e 241 antes da era de Christo.
Por conselho e direcção d'Amilcar Barca , pay do
grande Annibal , pedem os Carth;iginezes paz aos Roma-
nos , e estes lha concedem debaixo destas Leys. <« Qlic os
>» Carthaginezes saião de toda a Sicilia. Qi^ic não façao
» guerra ao Rcy Hierao. Qiie não acommcttão Saragossa.
>» Que entreguem os cativos Romanos gratuitamente. Que
»» paguem por vinte annos aos Romanos dous mil e duzen-
>» tos talentos cada anno. » Polybio Livro L cap. 62 , e
Livro in. cap. 27. se bem (]ue no segundo lugar pos cl-
le por prazo da paga não vinte annos , mas dez ; acrescen-
tando , que dem logo mil talentos.
Trcs annos depois , como se tornasse a renovar a guer-
ra sobre a possessão de Sardenha , ajuntãrão-se de mais ao
referido Tratado estas condições. = Que os Garthagine-
zes sahissem da Sardenha , e dessem outros mil e duzen-
tos talentos aos Romanos. = Por ultimo estando Hasdru-
bal em Espanha proseguindo a conquista começada por
Amilcar , ajustou-sc entre as duas Nações : Qtie os Cartba-
giiiezes não passarião com mão armada alem do rio Ebro. Po-
lybio Livro in. cap. 27. e 29.
Observa este judiciosissimo e doutíssimo Escritor,
que não será fácil achar nas Historias outra guerra, que
durasse tanto , como a primeira Púnica , a qual se fez por
vinte e quatro annos completos, sem intermissão alguma:
quando a do Peloponeso entre Lacedemonios e Athcnien-
ses , sim durou vinte e oito annos c meio , como aífirma
Xenofonte ; mas passado o primeiro dccennio , houve hii-
ma tregoa dilatadíssima.
Ob-
DAS SctENciAS t)E Lisboa. tçt
Otserva mais o nosso Escritor , que depois de con*
cluida a primeira guerra Púnica, hc que os Romanos con-
ceberão o grande projecto , de se fazerem senhores de to-
do o Mundo , por meio do império do mar, que os Car-
thaginczes lhe cederão.
Expulsus da Sicilia c da Sardenha os Carthaginezes ,
voltárão-se as suas esperanças para a Espanha.
No anno fi7 da fundação de Roma, e 237 antes
da era de Christo , foi Amílcar Barca mandado pelo Sena-
do de Carthago a Espanha , para onde trouxe comsigo a
seu filho Annibal , que então não passava de nove annos.
Polybio Livro IL cap. i.
N'outro lugar acrescenta o nosso Escritor, e delle o
tomou Livio , que ao passar Amilcar para Espanha, rogan-
do-ihe o menino que o levasse comsigo, o pay lhe fi/era
pôr a mão sobre o altar, em que tinha feito sacrifício aos
Dcoses pelo bom successo da expedição, e o obrigara a
promctter-lhe com juramento , que em podendo , seria hum
inimigo perpetuo dos Romanos. Polybio Livro III. cap.
II. e Livio Liv. XXL cap. 1.
Governou Amilcar em Espanha nove annos , no fim
dos quaes , tendo sujeitado parfe a' força d*armas , parte
com o seu modo persuasivo muitas cidades nossas ao im-
pério dos Carthaginezes , morreo pelejando valerozamente
n'huma batalha, junto a Castello Alto. Polybio Livro IL
cap. I. O lugar da batalha consta de Tito Livio Livro
XXIV. cap. 41.
Pelos Excerptos do Livro XXV. de Diodóro Sicu-
lo , Tomo II. pag. 510 sabemos, que nesta guerra com
os Espanhoes vencera Amilcar a dous Régulos dos Celtas,
hum por nome Istolacio , outro Indortes , cativando do exer-
cito do primeiro três mil, e do exercito do segundo dez mil.
Dos mesmos Excerptos de Diodóro consta , que Amil-
car fundara em Espanha huma grande Cidade, a que pela
nntureza do sitio poz o nome de Jcra Leuca^ e que eu
não pude descobrir onde era.
Cons-
iji Memoeias PA Academia. Real
Consta outro si dos mesmos Excerptos , que Hasdru-
bal succcssor d' Amílcar, tivera c governara cm lispaiiha
liimi exercito de sincocnta mil infiintes , seis mil cavallos,
e duzentos elefantes: cgm o qual vencera ao Rei Orisso ,
e lhe tomara doze cidades , afora outras muitas d'Espanha.
Mas acrescentando iminediatamcntc Diodfíro , que Hasdru-
bal cazára em segundas núpcias com hunia fillia do Rei
dos Espanhoes , não declara, se era o mesmo Orisso , ou
outro.
No anno 5^26 da fundação de Roma, e 228 antes
da era de Christo , morto Amilcar cm Espanha , veio sr.c-
ceder-lhc seu genro Hasdrubal , que a governou oito annos.
Polybio ibid.
D'ambos os nomes d'Amilcar c Hasdrubal , houve en-
tre os Carthaginezcs outros homens insignes : mas nenhum
igualou na fama de prudência e de valor estes dous.
Dilatou Hasdrubal sobremaneira em Espanha o domi-
nio dos Carthaginczcs. Fundou Carthagcna , que veio a
ser como o Qi.iartel general , e a Praça d'Armas da sua
Republica nçstas partes. Era seu tempo , receozos os Ro-
manos da grande potencia que Hasdrubal hia adquirindo ,
e não se atrevendo por então a romper abertamente contra
os Carthaginezes , pelo medo da guerra dos Gallos que os
ameaçava ; celebrarão com ellc o Tratado que já acima
mencionámos , pelo qual se dava o rio Ebro por limite ás
conquistas dos Carthaginezes em Espanha , considerada da
parte da Bctica, por onde os Carthaginezes as tinhao co-
meçado. Acrescentava-se , que Sagunto ficaria sempre inta-
cta. Polybio, Livro II. cap. 13. e 36. Livio Livro XXI.
cap. 2.
No fim d'oito annos completos de governo , foi Has-
drubal morto á falsa fé por hum escravo Francez , que quiz
assim vingar a morte, que Hasdrubal dera a seu senhor.
Polybio Livro II. cap. 36,
Livio acrescenta, que apanhado logo o escravo, c
cruelmente atormentado , levou a morte com hum socego
de
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. IfJ
de animo tal , que até no semblante se enxergava huma
€specie de rizo. Livio Livro XXI. cap. 2.
Pelos versos de Silio Itálico se sabe , que o Regulo
que Hasdrubal matara , se chamava Tago. Antiqua de Stir-
pe Tagum. Silio Livro I. verso 15-2.
Neste mesmo anno veio Annibal succeder no Governo
d'Espanlia a Hasdrubal seu cunhado. E a primeira cousa
que fez , foi acommettcr os Olcades , e tomar-lhcs á tor-
ça d'armas a sua principal, e mais rica cidade, chamada
Althéa, que se crê era onde hoje está Ocanha : rendida
a qual ; todas as mais daquella Comarca se lhe entregarão.
Polybio Livro III. cap. 13.
No anno seguinte, yjjr da fundação de Roma, e
219 antes da era de Christo , attacou Annibal os Vacceos ,
e lhes tomou primeiramente Salamanca , depois outra cida-
de por nome Arbucala , ainda mais populoza e mais forti-
ficada. Como sobrcvicssem os Carpetanos , que erao os da
Comarca de Toledo , a soccorrcr por parte de vizinhança
os Vacceos , e a propulsar o commum inimigo ; Hannibal
lhes deo batalha junto do Tejo , onde forão innumcraveis
os que morrerão dos nossos, parte affogados no Tejo, par-
te esmagados de quarenta elefantes, que Annibal tinha pos-
to na ribanceira do rio ; e mais de cem mil , os que por
elle forão postos em fugida. Desta sorte , nenhum Povo
dos que habitavão para lá do Ebro , excepto o de Sagunto , se
atreveo dalli em diante a levantar olhos contra o poder
Carthaginez. Polybio Livro III.
Sabcndo-se em Roma por avizo dos Saguntinos , os
rápidos progressos das armas d'Annibal em Espanha; vie-
rão de Roma Embaixadores , que da parte do Senado lem-
brassem a Annibal o Tratado , que poucos annos havia se
tinha celebrado com Hasdrubal seu antecessor , sobre não
deverem os Carthaginezes passar com mão armada alem do
Ebro , nem entenderem hostilmente com Sagunto , cidade
confederada com os Romanos. Não esteve Annibal pela
proposta. Antes allegando frívolos pretextos , despedidos
T.IX.P.I. V que
i5'4 Memorias d\ Academia R=EA L
que foriío os Embaixadores , poz sitio a Sagunto , e den-
tro d'oito niezcs a rcndeo i sua obediência. Reservando
para as despe-zas da guerra os grandes thesouros de dinhei-
ro, que achou no esbulho de S.fgunto , remctteo Annibal
para Carthago , todo o preciozo movei das alfayas. Polybio
Livro IIL' cap. 17.
Ouvida em Roma a tomada de Sagunto , mandou o
Senado Embaixadores a Carthiigo , com instrucção , de que
ou lhe mandassem entregar Annibal , ou dessem por decla-
rada a guerra. Prevalecendo no Senado de Carthago o par-
tido d'Annibjl , aceitarão os Garthaginezes a guerra ; que
era o fim que o mesmo Annibal se rinha proposto , quan»
áo 5Í1Í0U e destruio Sagunto , pelo implacável ódio cm
que ardia contra os Romanos , herdado já de seu pay Amíl-
car. Polybio Livro III. cap. 20, e 33.
Oito annos depois, recuperarão os Romanos Sagunto,
Livio Livro XXIV. cap. 42.
Achava- se então Annibal invernando em Carthagena ,
cazado já com huma senhora Espanhola natural de Casta-
Ião, como nos inForma Livio Livro XXIV. cap. 41.
No principio cuidavão os Romanos, que a guerra se-
lia em Espanha. Mas Annibal tinha determinado fazella
na mesma Itália. Para isso , providas todas as cousas que
pertencião a deixar seguras a Espanha e a Africa, partio
por terra para a Itália com hum exercito de noventa mil
infantes, e doze mil cavallos. Nesta passagem sugeitou na
Navarra os llorgetes, os Bargusios , os Erenosios, e os
Ausetanos. E deixado aqui Hannon por Governador , com
dez mil infantes, e mil cavallos de guarnição, despedi»
para suas cazas outros tantos : a fim de ter estes a todo o
tempo promptos para alguma necessidade; e de ficarem os
outros que marchavâo com elle , esperançados de que al-
gum dia voltarião á pátria. Assim tirado do exercito o re-
ferido numero , chegou Annibal pelos Pyrineos ao Róda-
no , com sincoenta mil infantes , e pouco mais de quatro
mil cavallos. Polybio Livro III. cap. jy.
..-. Pe-
DAS SciENClAS DE LiSBOA. l^f
Pelos Livros III. e V. e X de Silio Itálico , he Initn
facto constante que parte deste grande exercito crão Lusi-
tanos.
Segunda guerra Púnica.
Primeiro Amo , ^^6 da fundação de Roma , ff 2 1 8 antes da
era de Christo.
Annibal passados os Alpes , vence ao Consui Pubjio
Scipião na batalha de Pavia. Polybio Livro III, cap. 66,
Vence ao outro Cônsul Tito Sempronio na batalha
junto ao rio Trebia. Polybio Livro III , cap. 75-.
Segundo Anno , ^^7 da fundação de Roma , í 2 1 7 antes da
era de Chrisío.
Annibal em terceira batalha junto ao lago Trasyme-
no na Toscana , vence os Romanos, ficando morto o Côn-
sul Flaminio. Polybio Livro 111. cap. 85-.
Pelo contrario Gneo Scipião irmão de Publio, pos-
tos em terra os soldados d'huma armada de secenta náos ,
com que viera a Espanha , sujeitou primeiramente muitos
Povos marítimos desta Região des das Empurias até o Ebro :
depois passando aos mediterrâneos , deo batalha aos Car-
thaginezes : junto á Villa de Cissa , onde tomou vivo ao
seu General Hannon. Polybio Livro III, cap. 76.
Terceiro Auno , j 3 8 da fundação de Roma , e 116 antes da
era de Christo.
Quarta vez desbarata Annibal os Romanos na sobre
todas famoza batalha de Cannas , na qual da parte dos
Romanos cahirão mortos setenta mil , entrelles os dous Côn-
sules do anno passado ; e da parte dos Carthaginezes só
seis mil. Polybio Livro III. des do cap. 114 até 118 on-
V ii de
I5'6 Memori AS DA Academia Real
de nota , que no exercito Carthaginez tinhao os Espanhoes
e Francezcs a dianteira.
Com esta victoria ficou Annibal senhor de quasi toda
a Itália , concorrendo á porfia os Povos delia , a qual se
havia d'entregar primeiro a Annibal.
Ao mesmo tempo em Espanha , continuando a fortu-
na a ser adversa aos Carthaginezcs , desbarata Gneo Sci-
piâo a Hasdrubal na batalha de Tarragona. Polybio Livro
111. cap. p7.
Sétimo Anno ^ 5-42 da fundação de Roma j e 211 antes da
era de Cbristo.
Toma Annibal Otranto , excepto a Fortaleza. Polybio
Livro VIII. cap. 19.
Em Espanha são vencidos e mortos pelo exercito d'
Hasdrubal os dous Scipioes , primeiro Publio atravessado
com huma lançi , e dahi a desanove dias Gneo queimado
vivo dentro d'huma Torre , a que se acolhera. Lívio Li-
vro XXV. cap. :?4. e cap. 36.
Lúcio Mareio Cavalleiro Romano , vendo mortos os
dous Generaes , toma a si o governo do derrotado exerci-
to , e dando com elle sobre os nossos , mata-nos trinta
c sete mil. Livio LivroTXXV. cap. 37.
Oitavo Amo ^ ^j^^ da fundação de Roma, e 211 antes da
era de Cbristo.
Annibal , tendo tentado em vão livrar Capua do cer-
co , que lhe tinhao posto os Romanos , passa com exerci-
to a Roma , e aloja-se sinco milhas á vista delia. Achan-
do que na cidade não faltavão Legiões que lhe resistissem ,
levanta o campo, e vem pela Pulha até Régio. Entretan-
to hc tomada Capua pelos Romanos: mas os principacs
da cidade , que estavão pelos Carthaginezes , de ódio e
raiva se matáo a si mesmos todos com veneno , por não
ca-
DAS SCIENCIAS DE L I S B O A. 1^-J
cahircm nas mãos do inimigo. Poiybio nos Excerptoí; do
Livro IX , cap. 4 e segg.
Ncno Jutio , J44 da fundação de Roma ^ e 210 antes da
era de Chrisío. ^
Scipião Africano , que no anno antecedente tinha sido
mandado a Espanha, feito Procônsul tm idade de vinte e
quatro annos , dentro d' hum dia toma por assalto a cidade
de Carthagena , c manda repartir o esbulho pelos solda-
dos. Poiybio Livro X, cap. 15 , e segg.
Undécimo Ânuo j 5*46 da fundnçao de Roma ^ e zcZ antes
da era de Christo.
O Cônsul Marccilo he morto numa emboscada , que
Annibal lhe armou ; e o outro collega Crispino obrigado
a fugir ferido, Poiybio Livro X, cap. 29.
Três poderosos Régulos a'Esponha, Mandonio, In-
dibil , c Edecáo , deixado o pnrtido Carthagincz , se passão
ao dos Romanos, estando Scipião em Tarragona. Foi esta
huma consequência , parte da tomada de Carthagena , par-
te da dureza e extorsões com que Hasdrubal irmão d'Han-
nibal tratava os nossos. Por vezes acclamao os Espanhoes
Rei a Scipião, o qual constantemente recusa este titulo,
como odiosíssimo e perigosíssimo entre os Romanos. Dá
Scipião batalha a Hasdrubal, e o vence junto á cidade de
Bécula. Poiybio Livro X des do cap. 21 até o cap. 27, e
Livro XI , cap. 20. Livio Livro XXVII , cap. 18 , e cap. 19.
Duodécimo Anno j 547 da fundação de Roma, e 207 antes
da era de Cbristo.
Hasdrubal irmão d' Hannibal afugentado d' Espanha
por Scipião , junto hum grande exercito d' Espanhoes e
Fiancezes , passa á Itália , com intento de se ir unir cora
An-
líS Memorias da Academia Real
Annibal. Interceptadas as cartas que mandava para seu ir-
mão , he Hasdrubal derrotado em batalha pelo Cônsul Cláu-
dio Nerão j e não só derrotado , mas morto. Polybio nos
Excerptos do Livro XI, cnp. 2 , e Livio no Livro XXVII,
cap. 49 onde nota , que nesta b;Uallia tinha Hasdrubal pos-
to toda a sua confiança nas tropas veteranas dos Espa-
nhocs. Sabida por Annibal a derrota e morte do irmão ,
cheio de dor se recolhe ao Abru/o.
Se Hasdrubal tivesse conseguido unir-se a Hannibal ,
confessou depois Scipiáo Africano, que então acabaria de
todo o nome Romano. Livio Livro XXVI, cap. 41.
Decimo terceiro Ânuo, 5" 4 8 da fundação de Roma, e 206
antes da era de Christo.
Lança Scipiâo fora de toda a Espanha os Carthagine-
zcs , rotos em batalha os seus dous Gcneraes , Hasdrubal
filho de Gisgon , e Magon filho d'Amilcar.
Scipiâo cheo de despojos e de gloria , depois de ter
passado a Africa , se recolhe a Roma , onde em pleno Se-
nado se jacta , de que tendo sido mandado a Espanha con-
tra quatro Gencraes , e contra quatro exércitos vencedores,
não deixava agora em Espanha Carthaginez algum. De Ro-
ma torna Scipiâo a ser mandado a Africa contra Annibal.
Livio Livro XXVIII, cap. 16 e 38.
Do que o mesmo Livio deixava escrito no capitulo
20 do Livro XXVII consta que Hasdrubal filho de Gis-
con , antes desta batalha, estivera acampado com os seus
na Lusitânia.
Decimo sexto Anno , ^^i da fundação de Roma, e 203 antes
da era de Christo.
Derrota Scipiâo em Africa o exercito d'outro Hasdru-
bal filho de Gisgon , c o de seu alliado Syface Rey dos
Massylos j o qual de amigo dos Romanos passara a ser ini-
mi-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. T^f}
migo, casando com huma filha d'Hasdrubal, por nome So-
fonisba. De trinta mil homens, de que constava o exerci^
to Catthagincz , dez mil ciáo Espanhoes : os quaes ainda
que a maior parte ficarão mortos: pelo muito tempo , e
grande valor com que resistirão aos Romanos , dcrao lugar
a que os dous Gcneraes se podessem retirar com o resto
dos que fugirão; a saber, Syface para o seu Reino, e
Hasdrubal para Carthago. Folybio nos Excerptos do Livro
XIV, cap. 769.
Animados os Carthaginczes com a presença d'Anni-
bal , a quem tinhão chamado, e feito vir da Itália, atre-
vem-se a maltratar aos Embaixadores de Scipião na volta
de Carthago: com o que se accendco de novo o ódio das
duas nações , e se ateou mais vivamente a guerra entrei-
las. Polybio nos Excerptos do Livro XV, cap. 3.
Decimo sétimo atino ^ 5*^2 da fundação de Roma, e 202 antes
da era de Christo.
CoUoquio d'Annibal com Scipião , á vista dos dous
exércitos , sobre se far.cr a paz. Foi magestosissimo o dis-
curso de ambos. Porem Annibal , ^ue era o que pedia a
paz , fallou em taes termos , que ao mesmo tempo que
exaltava o valor de Scipião , mostrado em quatro batalhas
que vencera em Espanha, e noutras quatro em Africa ; com
a memoria e recapitulaçao que faz das victorias, que elle
Annibal alcançara em Itália , e do terror em que poséra
por tantos annos os Romanos ; dava a entender , que o de
que Scipião se devia mais jactar , era ser agora Annibal
o que se lhe humilhava. Com que em lugar de mitigar o
animo de Scipião , o tornou Annibal mais duro e inflexi-
vcl. Assim sem se concluir nada sobre o negocio da paz,
de><pedidos que forâo os Gcneraes , se disposerão logo os
exLTcitos para a batalha , que foi das mais renhidas e san-
guinolentas <ÍQ mundo •, e em -ijue Annibal ficou vencido
por
i6o Memorias D A Academia Re AL
por Scipiao. Polybio nos Excerptos do Livro XV des do
cap. 6 até o 14. Livio Livro XXX, cap. 30, e segg.
Decimo oitavo e ultimo Juno , j y 3 da fundação de Roma , e
201 antes da era de Cbristo.
Dá-se paz aos Carthaginezes debaixo das seguintes
condições, que elles aceitarão por conselho do mesmo An-
ui bal. <i Que os Carthaginezes fiquem com tudo o que an-
j» tes da guerra tinhão em Africa , de cidades , campos , c
>» quacsqucr outros bens. Que entreguem todos os cativos
» e desertores Romanos. Que entreguem todas as náos
» d'alto bordo , e fiquem só com dez fragatas. Que fora
» d'Africa não facão guerra a ninguém : e dentro delia
» não a facão , sem permissão do povo Romano. Que não
j> inquietem o Rey Masanissa , antes lhe entreguem tudo
j» o que lhe tinhão tirado. Que por sincoenta annos pa-
>» guem aos Romanos cada anno dez mil talentos de pra-
j> ta.» Polybio nos Excerptos do Livro XV, cap. 18, e
Todas estas condições forão necessárias , para os Ro-
manos se segurarem no projecto, que tinhão formado, de
senhorear o mundo todo j e também para resarcirem parte
dos gravíssimos damnos , que Annibal lhes causara em Itá-
lia; onde, como escreve Appiano, forão mais de quatro-
centas as cidades que elle destruio , e mais de trezentos
mil homens , os que elle fez perecer em diversas batalhas.
Em todas ellas forão os nossos Espanhoes companhei-
ros fieis dos Carthaginezes , assim na prospera , como na
adversa fortuna ; em todas terrível aos Romanos o seu va-
lor , terrível a sua braveza. Tendo sido Annibal o maior
capitão do seu século , e hum dos maiores do mundo ;
não duvida escrever Floro no Livro II , cap. 6, , que a
nossa Espanha fora a mestra d'Annibal. Depois de vencido
por Scipiâo em Africa , não fez Annibal no mundo outra
figura, que a de fugitivo. Scipião foi o primeiro, que en-
tre
I
DAS SciENCiAS DE Lisboa. i6r
tre os Romanos tomou o sobrenome da nação que dcbel-
lárj , chamaudo-sc Africano. Livio o observa no fira do
Livro trigésimo.
Terceira guerra Púnica.
Sincoenta annos depois de concluída a segunda guerra
Púnica , isto he , no anno éoj da fundação de Roma , e
149 antes da era de Christo, começou a terceira, a que
os Carthaginezes derão occasião , infestando as terras do
velho Rei Masanissa , e pondo náos de guerra no mar ,
conrra o que se continha no ultimo tratado de paz com
os Romanos.
He constante , (e assim o notou com outros Ammíâ-
no Mcircellino no Livro XXIV) que Poiybio acompanha-
ra e ajudara nesta guerra a Scipião Emiliano. Porém da
sua descripção não se conserva hoje de Pi.lybio , senão o
Excerpto CXIII , que contém somente a noticia d' huma
embaixada , que os Carthaginezes mandarão a Roma , quan-
do ainda havia alguma esperança , de que se poderia evi-
tar a guerra.
A Historia de Floro , e de Appiano he que nos in-
forma , que irritados no ultimo extremo os Romanos con-
tra os Carthaginezes, deo o Senado ordem aos dous Côn-
sules Censorino e Manilio , que partidos a Africa com oi-
tenta mil infantes, e quatro mil cavallos , não sahissem de
Carthago, sem a deixarem arrazada. Mas esta gloria esta-
va reservada para Scipião Emiliano , a quem depois d'huni
apertado cerco de quatro annos se renderão quarenta mil
homens , com o seu mesmo Governador Hasdrubal , anno
608 da fundação de Roma, e 146 antes da era de Christo.
Era este Scipião filho natural de Paulo Emilio, e fi-
lho adoptivo de Scipião filho do Africano. Valério Máxi-
mo Livro V, cap. 10.
Dcsasete dias ardeo Carthago , posto o fogo a's ca-
sas , e aos templos pelos seus mesmos habitantes : e sendo
T. IX. P,L X a
rCz Memorias da Academia Real
a mulher d'Hasdrubal huma das heroinas, que voluntaria->
mente se precipitarão nas cliammas. Floro Livro II, cap. ly.
Notou-sc , que no mesmo anno que Scipiao destruio
Carthago , destruio Mummio Corintho. Mas dahi a cento
e dous annos mandou Augusto César reedificar e povoar
ambas estas duas capitães, huma da Africa, outra da Acaia.
Appiano bem no fim da sua Historia Lybica.
Carthago distava de Tunes cento e vinte estádios.
Polybio Livro XIV, cap. lo.
Isto he , Senhores , cm summa , o que do império
dos Carthaginezes em Espanha , e das suas três famosas
guerras com os Romanos, ^oude descobrir a minha curio-
sidade, que parecesse digno da vossa attenção, e podesse
iJlustrar a nossa antiga Historia neste seu importante ramo.
DISSERTAÇÃO VIIL
Império dos Romanos em Espanha , expulsos delia os Cartha-
ginezes.
O
Preambulo.
MEU intento nesta Dissertação , não he tecer nem ain-
da em compendio , huma historia seguida das nossas guer-
ras com os Romanos. Pelo que toca á historia geral , Ma-
riana o fez com bastante exacção. Pelo que toca á histo-
ria particular da Lusitânia , Resende pouco deixou que
dizer de novo.
O meu designio pois só he , dar huns breves Excer-
ptos do que na nossa historia antiga ha de mais selecto ,
e de menos tocado pelo nossos modernos : e sobre tudo
o verificar esses mesmos Excerptos com a fiel citação dos
Authores clássicos , donde cada hum delles se tirou : e fi-
nalmente fixar as épocas dos successos por ordem aos Con-
sulados , c aos annos da fundação de Roma , segundo a
chro-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. líj
chronología mais bem recebida , qual he a de Petau : a
qual todavia nao dilFcre da que com Sigonio adoptou Re-
sende , scnáo em andar hum antio mais atrazada.
Como huma notável parte da historia destes tempos,
sao os Régulos d' Espanha os que a formão j começarei
os meus Excerptos pelo catalogo destes Régulos : e será
este catalogo não somente huma cousa nova entre nós ;
mas servirá também de supprir a grande falta que temos
de memorias d'outros Soberanos mais antigos d' Espanha.
Porque os de que Florião de Campo nos dco noticia pelo
suppositicio Beroso de João Annio : quero dizer, os Brigor y
os TagOT j os Betos , os Sicoros ^ e outros muitos forjados
na mesma officina ; logo os nossos dous grandes criticos
Barreiros , e Resende , descuberta a impostura , os deráí>
por quiméricos. Os que Mariana porém admittio por suc-
cessores destes, fundado na authoridade de Diodoro de Si-
cilia , de Justino , e d'outros Escritores antigos : a saber ,
Geryão y Hispalo, Atlante j Sicalo , Gargoris y Abidis \ a his-
toria destes Reis se acha tão mesclada de tantas fabulas , e
ainda d'anachronismos , que eu dos tempos heróicos me
não atrevo a designar Rei algum certo na Espanha. E dos
tempos que depois mediarão entre o principio das Olym-
piadas , e entrada dos Carthaginezes em Espanha , só re-
conheço por indubitável o Rei Arganthonio de Tartésso y
celebrado por Heródoto , Cicero , Estrabão , e Plinio.
Assim he muito para estranhar, que Fr, Bernardo de
Brito, não fazendo caso da justa censura, que ao Beroso
de João Annio tinháo feito em Portugal Barreiros , e Re-
sende , em Castella João Luiz Vives , e o Bispo Cano ;
enchesse pelo contrario huma grande parte do primeiro
tomo da Alouarqnia Lusitana , com a relação circunstancia-
da de tantos Reis fabulosos ; a qual hoje só pôde servir
de tornar ridicula aos sábios estrangeiros toda a nossa his-
toria antiga , e de fazer perder o credito entre os nacio*
nacs sisudos, a tudo o mais que Brito publicou.
X ii s
xâf Memorias da Academia Rial
§ I.
Doí Rfis e Regidos d^ Espanha em tempo dos Cartkagiuezes j
e dos Romanos.
Do tempo dos Caithaginezes descobri© a minha lição
C]uatio insignes Régulos d' Espanha ; a saber, Oriisao, Ta'
go , Firiatho prlinciro deste nome, c Atmtsitu,
D'Orisjão nos dá noticia Diodóro de Sicília nos Ex*
cerptos do Livro XXV, Tomo II, pag. jii onde diz, que
sitiando Amilcar Barca a cidade de Hclice , viera o Rei
Orissáo cm socorro dos sitiados; c que ao passar hum cau-
daloso rio, d' hum sacão que o cavallo deo , cahira na cor-
rente , c morrera afogado.
Tago chama Silio Itálico aquelle Regulo, a quem
Ha^drubal matou, e cujo escravo matou depois a Hasdru-
bal , para assim vingar a morte de seu senhor. Silio Li-
vro I , verso 5: a , e segg. /Intiqua de stirpe Tagum.
Firiatho primeiro deste nome, he muito celebrado pe-
lo mesmo Silio Itálico : como quando no Livro III , ver-
so 35'4 , e segg. diz, que elle era o que capitaneava o
terço dos Lusitanos , que com os outros povos d' Espanha
scguião a Annibal para a guerra d' Itália. E quando no
Livro X descrevendo a famosa batalha de Canas , diz no
Terso 220 , e segg. que nclla matara Viriatho a Quinto
Scrvilio , e que depois fora morto Viriatho pelo Cônsul
Emilio Paulo. Reg^iator Ibera magnanimus terra.
Amustto Regulo dos Ausetanos no Reino de Navarra ,
depois de se ter alistado em serviço de Gneo Scipiao j
passou para o d' Hasdrubal. Livio Livro XXI, cap. 61.
Do tempo dos Romanos he maior o numero que se
acha dos Régulos Espanhocs. Eisaqui os seus nomes.
Allucio Regulo de Carthagena , foi o que estava ajus-
tado para casar com aqucUa dama mui termosa , que entre
outras cativas trouxerão a Scipiao Africano : e o que por
ver
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. l6f
ver a honfa e contincncia , com que Scipiâo a tinha trata-
do, mandando-lha por ultimo entregar intacta; aceitou gos-
toso ser seu vassallo, e lhe offerecco para o ajudarem na
guerra mil c quatrocentos cavalleiros. Livio Livro XXVI,
cap. j-Q.
Mandonio , c Indibil , aquellc Regulo dos Lacetanos ,
este Regulo dos Ilcrgetes , tanto que tomada Carthagcna
virão os rápidos progressos das armas de Scipiáo Afii^ano,
unirão se a clle por algum tempo : depois torndrão-se a re-
bcliar. Livio XXVII , cap. 17 ^ e Livro XXVIII, cap,
34.
Eàech ^ ou Edescdo^ era outro Regulo nosso do mes-
mo tempo , que também veio cíFcrecer-se ao serviço de
S>:ipião Africano. Polybio nos Excerptos do Livro X , cap.
Corbis , e Orsua crão dous irmãos , que andavao em
demanda, sobre qual havia de ficar com o senhorio d' hu-
m.i cidade chamada Ibis , que alguns conjecturão ser a La*
tibis de Ptolomeo , hoje iorre de la Cevada na Betica. A
tempo que Scipião celebrava em Tarragona as exéquias dô
seu pai e tio , mortos pouco antes pelos nossos na bata-
lha de Becula ; os dous irmãos se lhe oíFerecêrão para em
desafio dirimirem a contenda , que entrambos traziao. Sa-
hindo ambos a campo, foi Orsua morto por Corbis, qu8
era o mais velho. Livio Livro XXVIII , cap. 20.
Coitas Regulo de vinte t oiro cidades, em tempo do
mesmo Scipiiro. Livio Livro XXVIII, cap. 13. A este cha-
ma Polybio Colicante. Polybio nos Excefptos do Livro X,
cap. t8.
Mas pelo que toca ao numero das cidades , em que
leinava Colcas , he primeiramente notável o descuido qua
teve Livio, em não declarar sequer a principal delias, ou
qual fosse a comarca. Em segundo lugar noto , que nou-
tra parte, isto he , no Livro' XXXIII , cap. 21, diminue
Livio muito o dito numero, porque assigna a Colcas só
desascte cidades.
t66 Memorias da Academia Real
JNanes , Regulo dos Tudertanos, hoje os Andaluzes,'
pelo iiKsmo tempo. Livio Livro XXVIII, cap. 15-.
Bclistages y Regulo dos Ilergetes cm tempo, que o
CoiTíul Marco Porcio Catão se achava em Espanha. Livio
Livro XXXIII, cap. II.
Luscino y Regulo de Cardona c Bardona , que junta-
mente com o sobredito Colcas tomou pelo mesmo as
armas contra os Romanos. Lívio Livro XXXIII , cap,
21.
Foi grande inadvertência de Dujat , dizer que esta
Cardona , e esta Bardona crão as cidades de Cardona e BeV'
ga y que ainda hoje existem em Catalunha. Porque a Ca-
talunha todos sabem, que pertencia á Espanha citerior : e
a guerra que os dous Régulos Luscino , e Colcas move-
rão aos Romanos, he expresso aqui em Tito Livio, que
fora na Espanha ulterior.
Corribílão , Regulo da cidade de Litahro , a quemi
Caio Flaminio tomou vivo. Livio Livro XXXV, cap. 22.
Turro , Regulo da cidade d'Alce , entregou-se ao Pre-
tor Tito Sempronio Gracco. Livio Livro XL, cap. 49.
Viriatho segundo do nome , a quem pela gloria e fa-
ma de seus illustres feitos , e para diíFerença do primeiro
podemos chamar o grande Viriatho. Senhoreou-se da Lusi-
tânia , donde era natural , logo depois da terceira guerra
Púnica , e poz aos Romanos em não menos cuidado e ter-
ror, do que antes o fizera Annibal. Floro Livro II, cap,
17. Epitome de Livio Livro LII. Sexto Aurélio Victor no
Livro dos Varões Illustres ., cap. 71.
Morto por traição Viriatho , succedeo-lhe no governo
dos nossos Tautano. Diodoro Livro XXXII, Écloga V, To-
mo II, pag. s^i'
Estes são os Régulos d' Espanha mais insignes , de
que a Historia Romana faz menção.
Além destes porém houve outros , que ainda que se
não nomeão Régulos , as suas acções com tudo os dão a
conhecer por grandes personagens entre nós. Desta classs
apon-
t)AS SciENCIAS DE LiSBOA. l6y
apontarei aqui só quatro, que forão Merico , Rhetogcnes ,
Cónnolas^ e Salottdico.
Mcrico achava-sc em Sicília no serviço dos Carthagi-
nezes, quando Annibal devastara toda a Itália. Advertido
porém do deplorável estado , a que as cousas dos Cartha-
ginezes estavao reduzidas em Espanha , depois da derrota
dos dous Hasdrubaes ; passou-se ao serviço do Cônsul Mar-
cello , que então estava de sitio sobre Saragossa , e lhe
entregou a importante praça de Naso com toda a sua guar-
nição. Procedimento feio e detestável : mas que lhe conse-
gui© entre os Romanos huma honra , que eu não sei que
fosse nunca concedida a outro .£spanhol. Porque depois da
tomada de Saragossa, triumfando Marcello em Roma, So-
sis Syracuzano, e o nosso Merico forão na dianteira com
coroas d'ouro nas cabeças : aquelle por ter dado entrada
aos Romanos para dentro de Saragossa ; este por lhes ter
entregado Naso. Além disto a cada hum foi dada sua ci-
dade com quinhentas geiras de terra. Nem ficou também
sem o seu premio o outro Espanhol , por nome Bellige-
no , que aconselhara a Merico a deserção. Derão-se-!he
quatrocentas geiras. Livio Livro XXV, cap, 30, e Livro
XXVI, cap. 21.
Rhetogenes y tendo se passado para as partes de Me-
fello , deo occasião , a que por não matar a dous filhos
seus que pelejavâo pelos Espanhoes seus naturaes , levan-
tasse o mesmo Metello o sitio que tinha posto á cidade
de Nercobriga , ou como outros lhe chamão Centrobrica.
Valério Máximo Livro V, cap. 1.
Cónnobas era capitão d' huma quadrilha de salteadores ,
a tempo que Quinto Fábio Serviliano trazia guerra com'
Viriíitho. E o mesmo Serviliano , depois de expugnar a
cidade de Baccia , apanhou a Cónnobas , e perdoando a
este, mandou cortar as mãos a todos os seus companhei-
ros. Supplemento de Livio, Livro LIV, cap. 10.
Salottdico , homem de tão grande astúcia , como reso-
lução , foi o que batendo na terra conx huma lança, que
el-
i68l Memorias da Academia Real
elle dizia lhe tinha vindo do ceo , deo principio i guerra
de Numancia : e faria Icvaiuar-sc contra os Romanos a Es-
panha toda , se a tempo que elle estava naquella acgao ,
não fosse atravessado com hum pique. Floro Livro II ,
cap. 17.
Durando as guerras civis entre César e Pompeo, são
celebres do Terço dos Lusitnnos hum Catão , c hum f;7o,
que se passarão do partido de Pompeo para o de César.
Dclles faz menção Hircio ou Oppio, Author do Livro De
Bello Hispaniensi.
§ IL
Qjiando começou , e quanto durou a guerra àos Romanos com
os Espauhoes. Espanto e terror em que as nossas armas
tiverão sempre os Romatws,
Até o principio da segunda guerra Púnica, nunca os
Romanos tinhão entrado em Espanha com mão armada :
antes nella tinhão boa amizade com os de Sagunto. De-
pois que Annibal com a tomada de Sagunto deo occasião
a se romper a guerra entre Romanos c Carthaginezes ;
(o que foi no anno yjó da fundação de Roma, e 218
antes da era de Christo : ) então he que a Republica Ro-
mana , partido Annibal para a Itália , mandou pela pri-
meira vez exercito e armada a Espanha , onde ficavão por
parte dos Carthaginezes os dous generaes Hannon e Has-
drubal.
Governava este exercito e armada Gneo Scipião , ao
qual se ajuntou pouco depois com outro exercito e outra
armada, seu irmão Publio. Livio Livro XXI, cap. ai.
Este Gneo Scipião, depois de ter vencido primeira-
mente a Hannon na batalha de Cissa , depois a Hasdrubal
na batalha de Tarragona ; ajudado também da boa manha
que tinha para attrahir os povos ; no breve espaço de sete
annos tirou ao Império Carthaginez , e ajuntou ao Roma-
no
DAS Ser EN CIAS DE LlSBOA^ l6^
no huma grande parte d' Espanha. Polybio Livro III, cap*
76 e 97 j Livio Livro XXI, cap. 60, e Livro XXII,
cap. 20.
Achando-se os dous Scipiões ambos juntos, cada hum
com seu exercito na batalha d'Anitorgis , a que da parte
contraria tinhao concorrido com outros tantos exércitos três
Generaes Carthaginezes, Magon , Hasdrubal filho de Gis-'
gon , e Hasdrubal Barcino irmão d'Annibal : succedeo mor-
rerem desgraçadamente nesta batalha os dous Scipiões ; pri-
meiro Publio atravessado com huma lança ; depois Gneo
queimado vivo dentro d' huma torre vizinha, a que se ti-
nha acolhido. Livio Livro XXV, cap. 32, e scgg.
Ciccro (não me lembra onde) cOm elegante metáfora
chama a estes dous Scipiões dous Raios do Império Roma-
no. Sdpioties duo fulmina nostri' imperii in Hispânia occidcnint,
A qual metáfora imitou depois Virgílio, quando no Sex-
to da Eneida, verso 842 disse:
Duo fulmina lelli Scipiadas.
Estava Espanha por estes tempos dividida em varias
Dynastias , ou pequenos Governos Soberanos , como mais
antigjmcnte estivera também a Grécia: o que como obser-
va Estrabão no Livro III, pag. 238 foi a causa da ruina
de ambas. Porque hum corpo ainda que grande, se tem as
forças divididas , facilmente vem a ceder , a quem o aco*
mette por partes.
Estes nossos Régulos , e os Povos a elles sujeitos ,
parte aborrecidos da dominação estranha , parte incitados
da sua natural braveza , a cada passo se estava rebel-
londo contra os Romanos. Hoje constrangidos da maior
força , depunhão as armas : ámanhaã impacientes do jugo
as tomavão a tomar. Gens nata instaurandis reparandisque bel-
lif , diz Livio no Livro XXIV, cap. 42.
Esta Índole feroz e bellicoza dos Espanhoes , fazia que
os Romanos os não temessem menos quando vencidos , do
T.IX. P.I, Y que
170 Memouias da Academia Real
que quando vencedores. E cazos houve , em que o medo
chegou a ser nos Romanos consternação. Disto nos refere
dous illustrcs exemplos , hum a Historia de Livio , outro a
de Polybio.
Corria o anno oitavo da segunda guerra Púnica , que
era o anno 543 da fundação de Roma, e 2op antes da
era de Christo , quando sabida em Roma a desastrada mor-
te dos dons Scipioes em Espanha , aconteceo o que Livio
refere no Livro XXVL cap, 18. por estas palavras. = Em
Roma, depois que se recuperou Capua , já ao Senado c ao
Povo não dava maior cuidado Itália do que Espanha. To-
dos concordavão , que se devia recrutar de novo o exerci-
to, e que se devia mandar hum General novo. Mas não
sabiao , quem elle havia de ser : só sim , que onde tinhao
sido mortos dous Generaes summos , devia aquelle que lhes
succedcssc , ser escolhido com huma circunspecção extraor-
dinária. Nomeavão huns este, outros aquelle : mas nenhum
enchia as medidas. Por fim chegou a cousa a termos , que
o Povo pedio se ajuntassem Cortes , onde se votasse no
Procônsul, que devia ser mandado a Espanha: e os Cônsu-
les assinarão dia para o Congresso. Entrementes estava-se
esperando (creio que ninguém notará este adverbio, em
sabendo que elle tem por si a respeitável authoridade d'hum
tão grande Escritor dajingua Portugueza , como he o gran-
de Bispo de Portalegre D. Fr. Amador Arraiz:) Entremen-
tes , torno a dizer , estava-se esperando , que alguns dessem
os seus nomes , para se ver , se erao dignos d'hum tão im-
portante Governo, E como se visse baldada esta expecta-
ção , renovou-se em todos a dôr d'hunia tão grande per-
da , c cora a dôr a saudade dos dous Generaes defuntos.
Cheia pois de tristeza a Cidade , e quasi falta de conse-
lho , desceo todavia ao campo no dia das Cortes. Então
postos os olhos nos Magistrados , e vendo que os que en-
trelles erão os Príncipes, olhavão também huns para os ou-
tros , como tomados todos da mesma perplexidade : alli foi
bramir do Povo, que se lamentava, de que a Republica
es-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 1^1
estivesse reduzida a hum tão deplorável estado , que não
apparecia ninguém , que se atrevesse a ir governar Espa-
nha. Eis que de repente se levanta Publio Curnelio Scipião j
moço que teria vinte e quatro annos, filho do outro Pu-
blio do mesmo sobrenome, que tinha sido morto tm Es-
panha ; e diz que elle está prompto para aceitar aquelle
cargo. Nisto vokâo todos os olhos para elle , cheios não
menos de gosto, que d'admiraçáo; e depois de lhe terem
significado com huma alegre grita , quanío applaudiáo o seu
ofFerecimento , e quanto o tinhão em bom agouro : todos
a huma, não só centúrios, mas homens, mandarão que se
desse a Public Cornelio Scipião o império d'E&panha. =
Atéqui Livio.
Antes que passemos ao segundo exemplo , pede a boa
ordem das cousas , que deixemos primeiro notado em sum-
ma , o que entre nós fez este Scipião o moço.
Chegado em breve a Espanha , a primeira obra com
que Scipião nobilitou o seu nome, e abrio caminho a maio-
res conquistas , foi a tomada de Carthagena executada n'hum
dia. Polybio Livro X. cap. 15- , e segg. Livio Livro XXVL
des do capitulo 42 até o capitulo 46.
Dahi a dous annos, venceo Scipião aHasdrubal irmão
d'Annibal na batalha de Bécula , donde Hasdrubal fugio
para os Pyrineos. Polybio Livro X. cap. 31,6 segg. Li-
vio Livro XXVII. cap. 18 , e cap. i^.
Dahi a outros dous annos venceo Scipião ao outro
Hasdrubal filho de Gisgon , e a seu Ajudante Magon filho
d'Amilcar em segunda batalha junto á mesma , ou a outra
Bécula. Com a qual victoria , que foi no anno decimo ter-
ceiro da segunda guerra Púnica , expulsou Scipião para
sempre de toda a Espanha os Carthaginezes. Polybio Li-
vro XI. cap. 18. e segg. Livio Livro XXVIII. cap, 16.
O decimo terceiro anno da segunda guerra Púnica ,
coincide com o anno 5'48 da fundação de Roma, e 206
antes da era de Christo.
Por este lugar de Livio pois, onde a expulsão dos
Y ii Car-
17a Memorias DA AcademiaReal
Carthaginezcs d'Espanha se põe no anno decimo terceiro
da guerra , se deve emendar o outro do Epitomador de
Livio, que a põe no anuo decimo quinto.
Depois destes felices successos em Espanha , passou
Publio Cornelio Scipião a Africa , onde derrotando em
batalha a Annibal , conseguio o sobrenome d'Afric3no, Li-
vio Livro XXVL cap. 18 , c Livro XXX. cap. ultimo.
O primeiro exemplo acima referido pelas palavras de
Livio , he do tempo , cm que a segunda guerra Púnica
ainda nao estava no meio. O segundo acontecco dous an-
nos antes de se começar a terceira guerra , isto he , no an-
no 602 da fundação de Roma, e if 2 antes da era de Chris-
to ; quando cm Espanha se achava o Cônsul Cláudio Mur-
cello , ameaçado da guerra dos Arevácós , Povos bellico-
■/issimos de Castella velha sobre o Douro, os quaes Poly-
bio contra o costume de todos os outros Escritores Roma-
nos chama Jranãcos \ bem como chama também lingos ou-
tros Povos comarcãos , que os outros Escritores nomeão Ti-
thos.
Descreve-o o mesmo Polybio na Écloga CXLL por
estes termos. = Quanto maior era o cuidado , com que o
Senado se applicava aos aprestos desta guerra ; tanto maior
admiração cauzou , o que então se vio. Achavão-se nesta
occasiâo em Roma Quinto Ponteio , que os annos passa-
dos tinha sido Governador das Armas em Espanha , e com
ellcs muitos OfHciaes , que lá tinhão militado. Estes porém
não cessavão d'exaggerar , quão grande fosse o valor dos
Espanhoes ; quão frequentes as vezes , que os Romanos se
virão precizados a pelejar com elles em batalha formada ;
como nestes conflictos forão innumeraveis os Romanos ,
que perecerão. Ajuntava-se a isto , que Marcello por bo-
ca dos mensageiros que enviara , confessava abertamente ,
quanto aquella guerra o assustava. Nestes termos foi tal o
pavor, que occupou os ânimos dos moços, que. os velhos
affirmavão , não o terem nunca visto semelhante. Tanto se
deixarão os homens penetrar do medo da ferocidade Espa-
nho-
DAS SciENClAS DE LiSBOA. Í7Í
nhola , que quando outras occasiões se costum<i\^o cffcicccr
para a guerra muitos mais , do que era necessário ; agora
nenhum se atrevia a dar o seu nome nem para OíficJal ,
nem para soldado. Allegavao todos taes escuzas , que o
lembrarse delias era vergonha , o examina-las indecencia ,
o castiga-las crueldade. Alfim , como nem o Senado , nem
os Magistrados tivessem para onde se voltar; entre a in-
certeza em que todos elles estavao , de quando cessaria o
desaforo dos moços : (que este era o nome, que a novi-
dade do cazo fazia dar ao seu medo : ) Eis que levantado
do meio Publio Cornelio Africano, homem moço, que ti-
nha sido hum dos que persuadirão a guerra , mas a quem
ainda faltava a gloria militar; disse em alta voz, que se
qui/.essem manda-lo a Espanha ou por Coronel, ou por
Tenente General dos Cônsules , clle estava posto nas mãos
do Senado. A estas palavras admirados todos , tanto pela
pouca idade de Scipiao como pela irresolução que os ou-
tros mostravão : de repente começão todos a abraçar o
mancebo , c a dar-lhe mil louvores : o que no dia seguin-
te se fez ainda com mais distinctas demonstrações d'esti-
ma e alvoroço. Porque aquelles mesmos, que atéili se mos-
travão medrozos , agora temendo , que comparados com Sci-
piao fossem castigados com a ignominioza nota de cobar-
des: huns se ofFerecião para oíEciaes , outros a grandes ca-
tervas SC alistavão por soldados. = Atéqui Polybio.
He muito para se observar, que em ambos estes aper-
tos , em que a experimentada braveza dos Espanhoes poz
a soberba animosidade dos Romanos; forao dous Scipiões,
os que se ofFcrecêrão , e os que com cffeito forão escolhi-
dos para instrumentos da nossa ruína. Ambos chamados
Africanos , porque ambos sujeitarão Africa a Roma : hum
dando fim á segunda guerra Púnica, outro dando fim á ter-
ceira e ultima. Ambos tão fataeS á Espanha, como á Afri-
ca sua vizinha : aquelle porque nos tomou Carthagena , es-
te porque nos destruio Numancia.
Mas Espanha sempre ficou com a singular gloria , de
que
174 Memorias da Academia Real
que sendo a primeira onde entrarão os Romanos, foi a ul-
tima que elles debellárão. Prima Rovianis inita Provinciarutn y
qtia quidem cmtineniis sint postrema onmium perdoniita est. lÁ-
vxo Livro XXVIII, cap. 12.
He hum facto observado por Estrabão no Livro III,
pag. 238 , e por Floro no Livro II, cap. 16, que a con-
quista d' Espanha custou aos Romanos duzentos annos de
crua guerra: que tantos se contao des do principio da se-
gunda guerra Púnica até o Impcrio d'Augusto.
He outra observação dos mesmos dous Escritores ,
que se os Povos d' Espanha se tivessem todos unido num
corpo , com huma só cabeça , nunca nação alguma os su-
jeitaria : e assim só acomettendo-os por partes , he que a
Potencia Romana os veio por ultimo a domar , sendo os
Lusitanos (acrescenta Estrabão) os que por mais tempo lhe
resistirão. Com o que concorda o que escreve Diodoro de
Sicilia, Livro V, cap. 34, Tomo I, pag. ^s? que os Lu-
sitanos erão os mais fortes de todos os Espanhoes.
Nesta matéria he sobre todos ilkistre e memorável o
testemunho de Velleio Paterculo , que ainda que transcri-
pto já por mim ha seis annos, no Parallelo d' Augusto Cé-
sar e do Magnânimo Rei D. José 7, he muito a propósito
repetir-se aqui. No Livro II , cap. 5)0 diz assim Paterculo
faliando d' Espanha. = Esta foi a que por espaço de mais
de duzentos annos exercitou as armas dos Romanos , com
morte de muitos Generaes, com aíFronta dos seus exérci-
tos, e algumas vezes com perigo, de que Roma perdesse
o Império. Esta foi a que deo cabo dos dous Scipiões.
Esta a que por vinte annos fez huma guerra contumeliosa
a Roma em tempo de Viriatho. Esta a que aterrou o sol-
dado Romano na guerra de Numancia, precisando-o a pa-
ctos ignominiosos ao Senado. Esta a que .se exaltou tanto
pelas armas em tempo de Sertório, que por espaço de sin-
co annos esteve indeciso , quaes erão os que tinhão mais
forças , se os Espanhoes , se os Romanos j e quaes os que
devião dar as leis aos outros. =
Atd-
DAS SciENClAS DE LiSBOA. 175-
Atdquí Vcllcio , cujo lugar sobre conter hum cxcel»
lente resumo das glorias d'Espaiiha ; poderia tambcm ser-
vir, para o tempo do Goveruo do grande Viriatho se di«
latar muito mais, do que o dilatao t(;dos os outros Escri»
torcs , se assim o permittissc a verdade da Historia. Mas
este ponto tratar-se-ha mais commoda c opportunamente
n'outra parte.
§. III.
Da guerra d' Espanha contrahtda a Lusitânia com os principaes
successos delia até os prelúdios da guerra de Viriatho, ,
Já acima ouvimos d'Estrabão , que a guerra dos Ro.
manos com os Espanhoes durara duzentos annos; e que de
todos os Povos d'Espanha forao os Lusitanos , os que por
mais largo tempo lhes resistirão.
A primeira vez que a Historia de Tito Livio nos rcr
prcsenta os Lusitanos fazendo guerra por si aos Romanos,
he no Consulado de Publio Cornelio Scipião, chamado de-
pois o Asiático, e de Caio Lélio, anno 5'64 da fundação
de Romi, e 190 antes da era de Christo. Do anno de
Roma 5-04 em que como abaixo veremos , batalharão os Lu-
sitanos a primeira vez com os Romanos, até o anno da
mesma Roma 720, em que domados por ultimo os Lusita-
nos , morrco JuIio César ; correrão cento e sincoenta e seis
annos. Logo outros tantos durou a guerra dos Romanos
com os Lusitanos. O que de nenhuma outra gente d'Espa-
nha será fácil mostrar.
No dito anno pois JÍ4 da fundação de Roma, e 190
antes da era de Christo, vencerão os Lusitanos em bata-
lha ao Pretor Lúcio Emilio Paulo , matando-lhe seis mil
homens, e obrigando o resto do exercito a fugir para mui-
to longe. Livio Livro XXXVII. cap. 46.
Faz grande difEculdade aos críticos , tanto estrangei-
nacionaes , dizerem os exemplares de Livio ,
que
ty6 Memorias da Academia Real
que esta batalha fôra in Vascetanis , aptià oppidum Lyconem.
Porque se não conhecem em toda a Espanha Povos alguns ,
que SC chamassem Fascetanos, Assim o nosso Resende con-
sultado sobr'isso por Vazeo , conjecturava que em lugar de
in fascetauis , se devia ler in Bastetauis , Povos que Estra-
bão no Livro IIL pag. 207. põe na Bctica entre Calpe e Cadiz.
Dujat advertindo que entre o Mondego e o Douro
corre o nosso rio Vouga , que em Latim se diz Facca ; in-
clinava-se a que os Povos em cujo território se deo esta
memorável batalha , fossem os que habitavao as ribeiras do
Vouga ; e a que no Texto de Livio cm lugar de in VascC'
tatiis por SC, se substituísse in Faccetanis por dons CC : de
sorte que de vacca se formasse Vaccetani , como de Jacca
se forma Jaccetani.
A segunda guerra dos Lusitanos com os Romanos ,
foi no Consulado de Appio Cláudio Pulcro, e de Marco
Sempronio Tuditano, anno 569 da fundação de Roma, 6185"
antes da era de Christo. Nella se derão duas batalhas nos
campos de Toledo, unidos os Lusitanos com os Celtiberos,
e unidos também entre si os dous exércitos Romanos, hum
de Caio Calpurnio Pisão Pretor da Espanha ulterior , ou-
tro de Lúcio Quincio Crispino Pretor da Espanha citerior.
A primeira batalha ganhárao-na os nossos , com perda de
sinco mil Romanos entre mortos e fugitivos. A segunda
vencerão-na os Romanos com tal desbarato dos nossos , que
de trinta e sinco mil só três mil conservarão as armas. To-
dos os mais ou morrerão , ou fugirão. Livio Livro XXXIX.
cap. 30. e cap. 31.
Em premio desta victoria , triunfarão o anno seguinte
em Roma os dous Pretores , primeiro Calpurnio Pisão , e
passados poucos dias Quincio Crispino. Livio ibid. cap. 42.
No anno jyó da fundação de Roma, e 178 antes da
era de Christo , sendo Cônsules Marco Junio Bruto , Aulo
Manlio Vulsío , triunfou dos Lusitanos e d'outros Povos da
Espanha ulterior o Pretor Lúcio Postamio Albino. Livio
Livro XLL cap. 11.
No
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. I77
No anno 600 da fundação de Roma, e i5'4 antes da
era de Christo , sendo Cônsules Lúcio Opiínio, e Lúcio
Postumio Albino , tinhão os Lusitanos por General hum
Carfhaginez , de quem se não sabe o nome , e debaixo de
cujo commando alcansárao duas victorias , huma contra o
exercito de Manilio , outra contra o exercito de Pisão.
Supplemento de Livio Livro XLVII , cap. 28, e cap. 3J.
Dos prósperos successos das nossas armas no referido
Consulado dá também testemunho o outro antigo Escritor
Júlio Obsequente no Livro Dos Prodígios.
No anno 602 da fundação de Roma , e ijz antes da
era de Christo, sendo Cônsules Marco Cláudio Marcello,
e Lúcio Valério Flacco , triunfou dos Lusitanos o Pretor
Lúcio Mummio. Appiano na Historia Ibérica.
Em tempo deste Mummio tiverâo os Lusitanos hutn
General por nome César ou Cesarião , que fora eleito por
morte do Carthaginez acima mencionado, e que numa ba-
talha matou nove mil do exercito Romano; outro por no-
me Cauceno , que investindo os Cuneos , lhes tomou a
grande e poderosa cidade de Conistorgis. Supplemento de
Livio Livro XLVII , cap. 40.
Resende dá por hum erro nos exemplares d' Eutro-
pio, trazerem ellcs Memniio , em lugar de Mummio. Porém
Diodoro de Sicilia , Livro XXXI , Écloga V , Tomo II ,
pag. 5:19 também chama Memmio a este Pretor.
Este Excerpto de Diodóro , que Resende não vio , não
só nos confirma , que o triunfo que Mummio alcansou dos
nossos não foi sem lhe preceder muita perda dos seus ;
mas também nos dá noticia, que a victoria que logo no
principio ganharão os Lusitanos sobre o exercito de Mum-
mio , foi a que divulgada por toda a Espanha , erigio os
ânimos dos Arevácos , para se levantarem contra os Ro-
marws.
O Cônsul Marco Cláudio Marcello também por este
tempo esteve em Espanha. Polybio nos he Author , que
Marcello depois de ter ouvido na Espanha citerior as quei-
2". IX. P. I. Z xas ,
178 Memorias da Academia Real
xas , que os Bellos e Tingos lhe fizcrão das hostilidades,
que contra ellcs commettião os Aranácos, chamados mais
commumentc Arevácos ; passara á ulterior , e depois de
tomar por assalto na Lusitânia a cidade de Ercobriga , se
recolhera a invernar em Córdova. Polybio Écloga CXLI.
O que escreve Estrabao no Livro III , pag. 207 que
Córdova era obra de Marcello , deve se entender não da
primeira fundação; (porque Silio Itálico já conta Córdova
entre as cidades, que derão gente a Annibal para a guer-
ra de Itália) mas do novo esplendor que Marcello lhe
dco , fa7.cndo-a primeira colónia do Povo Romano cm Es-
panha , como o mesmo Estrabao logo explica.
Por outro testemunho d' Estrabao no Livro III , pag.
247 sabemos que Marcello pedira aos Celtiberos hum tri-
buto de seiscentos talentos. O que elle refere na fé de
Possidonio, para deduzir dahi qual fosse a riqueza de Cel-
tibcria.
Era neste anno de éoi Pretor da Espanha ulterior
Marco Attilio , que foi o que neste Governo succedeo a
Lúcio Mummio.
Deo Marco Attilio huma batalha aos Lusitanos , de
que matou setecentos , e a quem tomou a maior e mais
forto cidade que elles tinhâo, chamada Oxthraca.
Com este medo se passarão para os Romanos muitas
cidades vizinhas , e algumas dos Vettões , Povos confinan-
tes com os Lusitanos. Mas tanto que o Pretor Attilio re-
colheo o seu exercito aos quartéis d'inverno , todas de re-
pente se tornarão a sublevar , e não forão poucas as cida-
des sócias dos Romanos, que os nossos pozcrão de cerco.
Supplemento de Livio, Livro XLVIII, cap. 6.
No anno 603 da fundação de Roma, e ifi antes da
era de Christo , sendo Cônsules Lúcio Licinio Lucullo , e
Aulo Postumio Albino , veio á Espanha ulterior por seu
Pretor Sérgio Sulpicio Galba , homem de nobilissim.a pro-
sápia , e hum dos mais eloquentes da sua idade ; mas tão
ambicioso e avarento como prov.i o que delle disse Scipião
Emi-
DAS SCIENCIAS D£ LiSBOA. I^ÇIf
Emiliano, quando Galba depois de ter sido Pretor em Es-
panha quiz cornar a ella sendo Cônsul. Ambos os col le-
gas, Sérgio Sulpicio Galba, e Lúcio Aurélio Cota, pre-
tendiáo ir governar Espanha. Embaraçados os Padres com
esta contenda , pedirão a Scipião Emiliano que desse o seu
parecer. Respondeo ellc, que a nenhum dos dous convi-
nha dar semelhante Governo : porque Cota não tinha na-
da, e a Galba nada lhe era bastante. Neutrum , inquit , niihi
fítitti placet ; quia alter nihil habet , alteri nihil est satis. Va-
lério Máximo, Livro VI, cap. 4.
Com o Pretor Galba veio também o Cônsul LucuUo,
que fez guerra aos Turdulos e Vacceos , e tomou a estes
segundos as cidades de Cauca e Luercacia, e teve na Be-
tica vários choques com os Lusitanos. Floro Livro II , cap.
17. Appiano na Historia Ibérica. Supplemento de Livio
Livro XLVIII , cap. 17 e scgg.
O lugar de Floro que acabo de citar , he memorável
não só pelo que conta , mas também pelas palavras com
que o conta. Por isso em obsequio dos estudiosos da cri-
tica Latina , me demorarei hum pouco em o illustrar.
O texto de Floro no Livro II, cap. 17 diz assim:
Lucíillíis Turdulos atque Vaccaos ., de quibus Scipio tile poste'
rior , singulari certamine , qtium rex fuisset provocatus , opima
rettilerat. Quer dizer, que Scipião mais moço, por sobre-
nome Emiliano , sendo Legado , ou como nós hoje dize-
mos , Tenente General de Lucullo na guerra com os Vac-
ceos, ganha'ra os despojos do Rei, que o tinha provocado
a brigar com elle só por só , porque o matou em duel-
lo.
O caso he , que durante o bloqueo de Intercacia ,
hum Espanhol de grande corpulência , vestido de luzentes
armas, desafiava atrevidamente osRomanosj dizendo que se
algum se quizesse matar com elle , que sahisse a campo.
Como nenhum ousasse a sahir , não cessava o bárbaro de
insultallos de cobardes. EntSo por honra do nome Romano,
aceitou Publio Scipião o desafio ; e postos ambos em cam-
Z ii po ,
i8o Memorias da Academia Real
po, o Romano que era mui pequeno de corpo, prostrou
o agigantado Espanhol.
Sendo que na substancia deste facto concordem com
Floro outros três Historiadores antigos , a saber , Velleio
Patorculo , Livro I, cap. 12, o Epitomador do Livro
XLVIII de Tito Livio , e Appiano na Historia Ibérica: ne-
nhum todavia faz Rei o Espanhol provocante , como Floro
o nomca. Por onde conjecturava Grevio, que o que hoje
se lê nos manuscritos e edições de Floro , Qrium Rex ftiis-
set provocatns , procedera da má intelligcncia dos primeiros
copiadores; os quaes achando no original hum R^ e logo
ex , em lugar de exporem o R , como abbreviatura de Ro-
manus y c o e.v , como abbreviatura de Exercitus , fi/erão
de dous nomes hum só ; e devendo escrever , Qtnim Ra-
tnaniis exercittis fulsset provocatiis , escreverão , Qutim Rex
fmsset provocatus.
Entretanto o mesmo Grevio reconhece , que a lição
vulgar de F"loro , considerada em quanto á syntaxe , nada
tem de insólita no bom latim. Porque da sorte que aqui
diz Floro fmsset provocatus , em lugar de provocasset ; tinha
escrito antes Varrão , Ajfectatus est regnnm , em lugar de
Ajfectavit: e Tito Livio, Livro IV, cap. 24, Commtmicati
sunt , em lugar de Communicavenmt : e assim outros Autho-
res clássicos , que eu a este assumpto alieguei ha trinta an-
nos, nas notas ao Tratado dos Pretéritos do meu Novo Me*
tboclo da Grammatica Latina.
Pouco tempo havia que Sérgio Galba tinha chegado
á Lusitânia, a livrar do sitio as cidades confederadas; quan-
do apresentando batalha aos nossos , foi ncUa vencido , e
obrigado a fugir, ficando mortos no campo sete mil Ro-
manos. Appiano na Historia Ibérica, e Orosio no Livro IV,
cap. 31.
Para reparar a queda da sua reputação , e vingar-se da
ignominia que considerava ter recebido dos Lusitanos; ap-
pHcou Galba o meio mais execrando, que se podia imagi-
nar. E foi assim o caso. Tcndo-se-lhc depois entregado
vo-
DAS SciENCIAS DE L I S B O A. igt
voliintariaincntc trcs cidades das nossas, ajustou Gnlbacom
os moradores , que cm certo dia se ajuntassem todos num
lugar, onde lhes queria propor hum negocio de sumnio in-
teresse para elles. Concorrerão os homens em toda a boa
fé no dia aprazado. Então Galba , tendo-lhes feito depor
as armas , com o pretexto de que ellas não estavão bera
a huma gente amiga, de repente manda cercar todos pe-
las legiões Romanas, que para este fim tinha secretamen-
te promptas , e assim inermes faz passar á espada trinta
mil Lusitanos. Suetonio na vida do Imperador Galba ,
cap. 3.
Bem sei, que Valério Máximo no Livro IX, cap. 6
reduz a muito menor numero , os que a perfidia e cruel-
dade de Galba perdeo. Porque entre mortos , e vendidos
para ficarem escravos , não conta senão nove mil. Mas isto
sem duvida he , porque Valério Máximo não contemplan-
do o vulgo dos que perecerão , só attendeo aos que erão
como a flor dos nossos. Novem uiillia , in qtitbus sors juven-
tutís consistebat electa , et armis exuta , partim triicidavit ,
partim vendidit.
Appiano adverte , que hum dos que pela sua astúcia
poderão escapar da mortandade , fora Viriatho. Suetonio e
Orosio , que deste caso de Galba tivera principio a guer-
ra Viriathina , que tanto deo que fazer aos Romanos. E
assim do anno immediato ao governo de Galba se podem
e devem começar a contar os onze annos , que Diodoro de
Sicilia num Excerpto que adiante transcreveremos , dá a
€sta guerra : de sorte que os primeiros quatro annos fossem
como prelúdios da guerra , pelejando Viriatho ainda como
particular ; os sete últimos , os em que Viriatho feito já
General d' hum justo exercito, obrou as proezas que adian-
te resumiremos.
Tornado a Roma , foi Galba accusado por Marco
Porcio Catão da perfidia , que tinha usado em Espanha
C')in os Lusitanos. Neste aperto e perigo de vida tomou
Galba o expediente de vir ao Senado com dous filhos seus
pe-
i82 Memorias da Academia Real
pequenos , c com outro de Caio Sulpicio , de que era tu-
tor. E tanto lamentou o desamparo , a que com a sua mor-
te ficavão expostos aquelles três meninos ; que movido a
huma reprehensivel compaixão , lhe perdoou o Senado hum
tão grande crime. Epitome de Livio, Livro XLIX, e Valé-
rio Máximo, Livro IX, cap. 6.
Qiiando Catão Censório accusou a Galba , diz L vio
no Livro XXXIX, cap. 40, que tinha Catão noventa an-
nos. E assim o crerão também depois de Plutarco, Rése.i-
de, e Frinshemio. Mas pelas contas que Lclio faz no Livro
de Ciccro De Senectute, colhem Glareano e Sigonio , que
então não passava Catão d'oitent3 annos , e que ao todo
vivera somente oitenta e quatro.
. Mas por maiores que fossem as victorias e conquistas
de Bruto , nem por isso perderão os nossos o antigo vi-
gor. Júlio Obsequente no seu Livro Dos Prodígios testifi'
ca, que sendo Cônsules Publio Rutilio Rufo, e Gneo Ma-
nilio , isto he , no anno 649 da fundação de Roma , e
12J' antes da era de Christo , fora o exercito Romano
desbaratado pelos Lusitanos.
E que este vigor o conservavao ainda os nossos , pas-
sados sessenta annos depois da morte de Viriatho , fallo-
hci eu agora patente pelo compendio da guerra de Sertó-
rio , que á imitação de Resende e de Frinshemio tecerei
do. que delia nos deixarão escrito o Epitomador de Livio,
Appiano , Plutarco , e Orosio.
No anno 673 da fundação de Roma, e 81 antes da
era de Christo , achando-se Quinto Sertório na Mauritâ-
nia , o convidarão os Lusitanos para vir ser seu General,
contra os que em Espanha seguião o partido de Sulla , que
em Roma o tinha a elle Sertório mettido no numero dos
proscriptos.
A tempo que Sertório se achava ainda na Mauritânia ,
diz Plutarco , que em Tangere lhe foi mostrado o sepul-
cro do antiquíssimo gigante Anteo , morto alli por Her-
cules, cujo cadáver se achou que tinha sessenta covados de
com'
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. iSj
comprido : fabula por certo indigna , de a referir como cii-
vel hum Historiador sisudo.
Trouxe Sertório da Africa para a Lusitânia dous mil
e seiscentos Romanos , e setecentos Africanos. A estes ajun-
tou dos Lusitanos quatro mil infantes , e setecentos cavai-
los.
Pouco depois veio unir-se aelle Marco Perpcrna com
trcs cohortes Romanas : o qual Perperna também se acha-
va bannido por Sulla.
Com estas e outras accessões de gente , que pouco a
pouco se lhe forão aggregando, chegou Sertório brevemen-
te a ter hum exercito de sessenta mil infantes , e nove mil
cavai los : e quando no principio da guerra só contava por
suas vinte cidades da Lusitânia, no fim delia se achava se-
nhor de quasi toda a Espanha.
Sabido em Roma , que Sertório tinha tomado as ar-
mas contra a Republica , mandou o Senado logo contra el-
le para a Espanha ulterior a Metello, no anno 674 da
fundação de Roma, e 80 antes da era de Christo.
(^al fosse nesta guerra a fortuna de Sertório póde-se
bem conhecer pelos seguintes successos.
Na transição d'Africa para Espanha , venceo a Cotta
n'huma batalha naval junto á ilha Mellaria. Logo oppon-
'do se lhe Furfidio junto aoGuadalguivir , Sertório o fez ce-
der matando-lhe dous mil homens.
Venceo na batalha do Guadiana a Lúcio Domicio Pro-
cônsul da Espanha citerior , a quem Metello tinha chama-
do á ulterior em seu soccorro. Venceo n'outra batalha , e
fez fugir para Lerida , a Lúcio Manilio Procônsul da Gal-
lia Narbonense, que também tinha vindo auxiliar a Metei-
lo- .
Sitiando Metello a nossa Praça de Lacobriga , derro-
tou Sertório a Aguino com seis mil homens, que Metello
tinha destacado a buscar mantimentos.
N'outra batalha desfez a Thorio Legado de Metello
com todo o seu exercito. vq íjJ
Cor-
184 Memorias da Academia Real
Corria o anno 6-]^ da fundação de Roma e -^"j antes
da era de Christo , quando o Senado Romano , vendo que
para impedir os rápidos progressos das armas de Sertório
na Espanha , não bastava hum só General , por mais vale-
rozo e por mais provecto na guerra que lossc Metello : or-
denou que Pompco a toda a pressa se fosse unir com clle,
armado da mesma authoridade Proconsular. Nesta occasiao
he que Lúcio Filippe, perguntado se llie parecia bem , que
Pompeo não sendo ainda Senador, mas hum simples caval-
Iciro , fosse mandado a Espanha feito Procônsul , respon-
dco : Que pelo seu voto o mandava elle ir não como Pro-
cônsul , mas como Procônsules. Non se illttm sua sententia
proconsule , sed proconsultbus mittere. Elogio que mostra bem
o alto conceito , que já então se fazia da capacidade e prés-
timo de Pompco.
Mas chegado Pompeo a Espanha , d vista delle e do
seu exercito tomou Sertório a cidade de Laurona ; e depois
de a queimar, trouxe para a Lusitânia muitos cativos. Obri-
gou ao mesmo Pompeo a levantar o sitio, que tinha pos-
to a Palencia. Sitiando Metello e Pompeo a Calahorra,
fez fugir aquelle para osVacceos, este para França, e ma-
tou do arrayal de Pompeo três mil.
Deo muito que fazer a ambos na batalha de Sucro,
onde matou oito mil do exercito de Pompeo : muito na ou-
tra batalha, que elles lhe apprescntárão junto ao rio Tu-
ria , na qual morrerão seis mil Romanos , e Metello se vio
reduzido ás ultimas angustias.
Foi tal a desesperação , em que por vezes se virão os
dous Generaes Romanos ; que Metello chegou a prometter
cem talentos de prata , e vinte mil gejras de terra, a quem
matasse a Sertório. Pompeo escreveo ao Senado^ huma car-
ta cheia de queixas , protestando que se lhe não mandavao
mais dinheiro , recolheria da campanha a soldadesca.
No anno 680 da fundação de Roma , e 74 antes da
era de Christo, que foi o penúltimo da vida de Sertório,
incitado Mithridátcs Rei poderosíssimo do Ponto, da fa-
ma
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. iS^
ma que por todo o mundo corria das forçns e rique/as de
Sertório, dirigio a este liuma embaixada u hspanha, pcdin-
do-lhe que se alijasse com clle para a terceira guerra, que
determinava fazer aos Romanos. Chegados a Espanha os em-
baixadores de MithriJiccs , aceitou Sertório as condições
propostas , que erãj , que elle Sertório mandaria em soe*
corro de Mithridátcs hum certo numero de tropas com seu
General ; e que Mithridátes daria a Sertório três mil talea-
tos , e quarenta náos.
Para o apresto das Armadas , servia-se Sertório ordi-
nariamente do porto de Denia , como de Praça d' Armas.
O que alem de ser expresso em Estrabáo Livro III. pag.
a ^9. se pôde também confirmar deste lugar de Cicero no
Livro V. das Verrinas , cap. y6. QiiíCítnque accesserant ad
iilcíHam paullo pleniores , eos Senorianos milites esse , atqiie
e Diauio fugere diccbat.
Em tempo d'inverno costumava Si-rtorio lecolher-se á
Lusitânia, e chegada que fosse a primivera, partir para a
campanha com o seu Tenente G.neral Mjrco Perperna ; con-
fiando-se sempre, como nota Appiano, mais dos Lusitanos ,
do que de nenhuns outros Espanhoes.
Tinha Sertório em Évora huma caza , que ainda hoje
existe na Praça do Pescado , e nella huma pequena familia j
que constava d*huma criada por nome Junia Donace, e de
três Libertos todos do nome de Sertório , como consta de
huma Inscripção que traz Vasconcellos.
Assim como á imitação de Roma formou Sertório em
Espanha hum Senado em que trezentos Membros votavão
sobre todos os negócios annuos de guerra c de Politica;
assim para a mocidade Espanhola ser instruida nas Letras
Gregas e Latinas , instituio em Huesca hum Collegio de
Nobres.
Mas nesta mesma Cidade d'Huesca acabou Sertório
miseravelmente a vida , sendo morto por certos conjurados
Romanos , no oitavo anno do seu Gencralato , que foi o
aiino 681 da fundação de Roma, e 73 antes da era de
2". IX. P. J, Aa Chris-
i9i5 Memorias da Academia Rxal
Christo. O cnbcça da conjuração foi aquelle mesmo Per--
perna que sobre ser Tenente General de Sertório, tra o
qiie o mesmo Sertório ( como depois se soube ) instituia no
seu testamento por herdeiro universal. Fingio-se ter che-
gado noticia d'hum3 grande victoria , alcançada em tal par-
te pelo exercito de Sertório. Alegre este sobremaneira com
o. successo, Perperna o convida para hum banquete cm
sua C3Z3. Sem nada suspeitar de traição , vem Sertório a
cazn de Perperna ; asscnta-se á mcza com mais seis convi-
dados , que os fragmentos da perdida Historia de Sallustio
nomcão ; cómc-se, bcbe-se , fazem-se saúdes. E quando
Sertório mais descuidado estava , António luim dos seis he
o primeiro, que ao sinal dado por Perperna, o fere com
hum punhal. Hindo Sertório a querer levantar-se , António
lhe segura ambas as mãos, e entretanto o acabâo de ma-
tar os outros.
Succedeo a Sertório no Governo d'Espanha o mesmo
Perperna , que dentro de pouco tempo experimentou o cas-
tigo da sua perfídia , sendo vencido e morto por Pompeo,
Não he para se passar em silencio , que na Oração
sobre as Leys Agrarias contra Rullo , se lamenta Cicero ,
de que por todo o tempo que durou a guerra de Sertório ,
não cobrou a Republica Romana tributo algum da Espa-
nha, ii ;ij V. . fi;j^i:j í-ffMifrO i.w ..: , jiijJ
.: Divulgada a infeliz morte de Sertof io , 'todaí? as cida^*
des d'Espanha se renderão espontaneamente aos Romanos,
excepto Calahorra-e' Uxarha , que por algum tempo resis-
tirão ao vencedor. Mas por ultimo a ambas expugnou Pom-
peo.
Este era o estado , em que as guerras civis de Júlio
Gesar com Pompeo^ e de Octaviano César com os filhos .
de Pompeo acharão a Espanha. A qual quanto nas primei-^
ras guerras favoreceo o partido de Pompeo , tanto nas se-
gundas se quiz particularizar nos obséquios d'Augnsto, ins*
tituindo em honra c memoria sua a famoza Era d& Ctsar ^
110 anno 716 da fundação de Roma, e 38 antes- da era-
DAS SoiEtTCrAS DE LiSBOA. 187
de Christo. Da qual era tudo o bom que se acha escrito
por Escaligoro, Mariana, e Petau , o devem ellcs a Rií-
scnde , ou á carta que clle sobre esta matcria escrcveo a
Joiío Vaseo.
Falravão sós por debellar os Cantabros e os Asturia-
nos, que como mais inacccssiveis pelo montuozo e áspero
do terreno forao os últimos que se sujeitarão ao Império
Romano , sendo o mesmo Augusto o que os acommettco
cm pessoa. Foi isto no anno 730 da fundação de Roma,
e zo antes da era de Christo.
Assim vemos verificado , o que por authoridade d'Es-
trabão , Vellcio Paterculo , e Floro , dissemos no principio:
Que a Espanha custara a sujeitar quasi duzentos annos ;
que tantos vão do anno 5-3 6 da fundação de Roma, em
que começou a segunda guerra Púnica, até o de 730 cm
que os Cantabros e Asturianos forâo subjugados por Augus-
to.
Neste mesmo tempo , reformando Augusto as tropas
veteranas , que se achavao em Espanha , mandou que as da
Legião Qyinta ■, e as da Legião Decima , fundassem na Lu-
sitânia huma Colónia com o nome de Emérita Augusta f
em cujo território assignou a cada centúria , ou a cada com-
panhia das ditas Legiões , quatrocentas geiras de terra pa-
ra cultivarem. E esta nova cidade he a que hoje se chama
Merida , e a que até o tempo dos Godos ficou sendo Me-
trópole de toda a Lusitânia.
Que Merida fosse fundada logo depois de concluída
a guerra dos Cantabros ou Biscainhos , he expresso em
Dião Cassio no Livro LIII pag. 315. da Edição Basthen-
sc de João Oporino , de ifjS.
Que fosse fundada pelos eméritos da Quinta e da De-
cima Legião, colhe-se das Medalhas de Merida, que Hen-
rique Flores produzio e explicou no Tomo L das Mcda-
Ibas d'Eípaiiha, Taboa XXIIL Num. i. e 2. pag. 401.
Que a estes eméritos se assignassem quatrocentas gei-*
ras por companhia , prova-o o mesmo Flores no Tomo XIIL
Aa ii da
?,88 Memoriaí DA Academia RsAL
da Espanha Sagrada , pag. 88. com hum testemunho d'Hy-
gino no Lívio De Limitibus,
§ IV.
Principias da guerra em Espanha , debaixo do cotimiando de
Geiíeraes próprios nossos. Governos de Marco Porcio Catulo ,
1 e de Tito Sempronio Cracco.
No quinto anno depois de finda a segunda guerra Pú-
nica , isto hc , no anno 557 da fundação de Roma, c 197
antes da era de Christo , sendo Cônsules Caio Cornelio
Ccthego, e Quinto Minucio Rufo, dividirão osRomanos
toda a Espanha em duas , cada huma com seu Governador
separado : cm Citcrior , que comprehendia tudo o que vai
dos Pyreneos até o rio Ebro ; e em Ulterior, que com-
prehendia tudo o que vai do rio Ebro até a nossa Lusitâ-
nia. Consta o tempo desta primeira divisão das Espanhas ,
do que escreve Livio no Livro XXXII cap. 27. e 28. on-
de depois de dizer , que naquelle anno forão pela primeira
vez creados seis Pretores , por cauza de ter crescido com
a maior dilatação do império o numero das Províncias ; acres-
centa logo, que psra a Espanha Citerior fora mandado Caio
Sempronio Tuditano , c para a Ulterior Marco Helvio. E
a este anno alliga também Petau esta primeira divisão da
Espanha em duas , ainda que sem apontar Author.
Hc verdade , que o mesmo Livio no Livro XXXIIL
cap. 27. nomea a Gneo Cornelio Lentulo , por Anteces-
sor de Caio Sempronio Tuditano no Governo d'Espanha
Citerior, e logo a Lúcio Stertinio , como Governador da
Ulterior. Donde parece , que aquella divisão era mais anti-
ga. Mariana , que põe a divisão d'Espanha hum anno an-
tes, não deixa de reconhecer com tudo , que antes de feita a
divisão fora Espanha governada pelos mesmos dous Gneo
Cornelio Lentulo, e Lúcio Stertinio: sinal , de que cWc
Dão achou cootradicção nistoi Nem cu também acho em
re-
bAs SciXKciÀs -DE Lr^snoA. iS^
reflectindo ^ que ou esses dous que governávâo Espanha ^
a govcriiaváo ambos de niáo commum j ou pela divisão dos
dons Governos se estabclcceo que ficasse sendo hum costume
ordinário, c perpetuo, o que antes era extraordinário e variável.
Alem dos dous Pretores ordinários , vinhão não pou-
cas vezes a Espanha hum dos dous Cônsules , pedindo-o
assim alguma urgência particular, como se irá vendo pe-
lo decurso desta Dissertação.
Em tempo destes dous Pretores Caio Sempronio Tu-
ditano , e JMarco Hclvio , se rebcllaião ambas as Espanhas
contra os Romanos. E foi esta a primeira vez, como no-
ra liivio no Livro XXXIII. cap. 26. que os nossos fizerão
guerra por si com exercito próprio, e General próprio. Por*
que até então tinhão sido os Carthaginczes , os que junca*
mente com as suas tropas commjndavã.> as nossas.
Qiie a guerra se fizesse enl ambas as Espanhas , cons-
ta do que di/, Livio no mesmo Livro XXXIIL primeira-
mente no cap. 20. que na Espanha Ulterior tomarão as ar-
mas dous poderotos Régulos delia , Colcas e Lucinio : aquel-
]c senhor de desa>ete cidades, (ou como o mesmo Author
tinha escrito no Livro XXVIIL cap. 13. de vintoito ) ; este
senhor de Cardona, e de Bardona. Depois no capitulo ij, qu«
Caio Sempronio Tuditano na Espanha Cirerior fora venci*
do em batalha , roto e posto em fugida o seu exercito ^
mortos muitos officiaes de conta , eelle também mortalmen-
te ferido , de sorte , que pouco depois espirara.
Esta infausta noticia obrigou o Senado , a que no anno
5^9 da fundação de Roma, e ipj' antes da era de Ghris-
to, mandasse que alem dos dous Pretores ordinários, par-
tisse também para Espanha com exercito separado hum dos
dous Cônsules.
Fora) nomeados por Pretores para a Espanha Citerior
Publio Manlio , e para a Ulterior Appio Cláudio Nero : e
mandados os dous Cônsules Lúcio Valério Flacco , e Mar-
co Porcio Catão sortear entre si as Províncias, coube Es-
j)anba a Catão. Livio Liyro XXXIIL cap. 43.
No-
I<>0 MeMOKIAÍ da ACADEMI aRsaL
Nobilitou Marco Porcio Catão o seu Governo d'Esj)a«
nha , não só pelas victorias c conquistas , que liie conse-
guirão a honra do Triunfo , como attestao os Fastos Ca-
pitolinos attribuidos commumentc a Vcrrio Flacco , cscritoi
do tempo d'Augusto ; mas também por hum estratagema ,
de que uzou para deixar os nossos sem defensa , do qual
nos dao noticia Júlio Frontino , c Sexto Aurélio Victor. O
estratagema foi , que para evitar que os Povos da Espanha
Citerior se tornassem a levantar Confiados nos fortes mu-
ros , de que as suas cidades estavão cercadas ; cscreveo Ca-
tão a todas as cidades rendidas , mandando-ihcs que demo-
lissem os muros , sob pena de lhes tornar a fa/er guerra.
E os Povos não sabendo , que o que se mandava a hum se
mandava também ao outro, todos assim o fizcrao. Frontino
no Livro I. Dos Estratagemas ^ cap. i. e Sexto Aurélio Vi-
ctor no Livro Dos Varões Illustres ^ cap. 47,
Isto que no principio da guerra praticou Catão com
as cidades da Espanha Citerior, foi o mesmo, que no fim
da guerra praticarão muito depois os Romanos com as ci-
dades daquclla parte da Ulterior, que formava a nossa Lu-
sitânia. Assim o attesta Estrabâo no Livro III, pag. 231.
E julga Casaubon , que quem imitou nisto o exemplo de
Catão, foi Júlio César, que como escreve Plutarco, de-
bellou por ultimo os Gallegos e os Lusitanos. Exccllcnte
prova do valor dos nossos , temerem-nos os Romanos, ain-
da depois de vencidos ; e não darem por seguro o seu do-
mínio na Lusitânia , em quanto as nossas cidades não fos-
sem reduzidas a aldêas.
Tito Livio no Livro XXXIV. cap. 17. diz que a pri-
meira cousa que Catão fizera para conter os Espanhoes na
sua obediência , fora tirar a todos as armas : mas que de-
pois , sabendo que muitos dos nossos levarão tanto a mal
esta violência , que a si mesmos se matavâo de puro des-
gosto ; dera em fim ordem , que n'hum mesmo dia fossem
demolidos os muros de todas as cidades da Espanha Cite-
rior. Gente feroz, ajunta o mesmo Historiador, que tinha
■ ijfi pfl-
DAS SciENCÍAS DE LiSBOA. 19!
para si que o viver sem armas nao era viver. Ferox geriu/ f
tiullam vitam rati sine arfí:is esse.
Este costume de se matarem pelas suas próprias mãos,
quando se vião obrigados ou a largar as armas, ou a ren-
dcr-se aos inimigos; era hum costume, que Estrabão no
Livro III, pag. 249 faz geral em todos os Povos da Es-
panha, e principalmente nos setentrionaes.
No principio da segunda guerra Púnica , quando An-
nibal sitiou Sigunto, os moradores desesperados de remé-
dio, c apertados da fome, fizerão na Praça huma grande
fogueira , e se lançarão nclla com tudo o que tinhão de
mais estimável e preciozo. Valério Máximo Livro VI. cap.
6.
O mesmo durante a mesma guerra fizerão os morado-
res da outra nossa cidade d'Astapa , achando-se estreitados
a hum duro cerco por Scipião Africano. Livio Livro XXVIIL
cap. 23.
Depois da terceira guerra Púnica os de Numancia,
vendo que Scipiao Emiliano nem queria levantar o sitio,
nem dar-lhes batalha, mas obriga-los a rendor-se, como
humas victimas; huns a outros se matárâf) , parte com fer-
ro, parte com veneno, parte com as chamas cm que se
precipitarão. Floro Livro II. cap. 1 8.
Na guerra Cantabrica em tempo d' Augusto , houve
mãys , que matarão a seus próprios filhos , por não virem
a cahir em poder dos Romanos: c hum rapaz de pouca ida-
de , acolhendo á mão huma espada , por ordem de seu pay
matou a seus irmãos. O mesmo fez huma mulher a muitos
homens, que com ella se achavão cativos ; mortos os quaes ,
cila se matou também a si mesma. Estrabão Livro III. pag,
249- e 250.
Para estes cazos , costumavao os nossos trazer comsi»
go , ou ter prompto emcaza hum veneno, que matava sem
dôr , feito d'huma erva que Estrabão diz se parecia com
o aipo , ou das bagas de teixo , como diz Floro. Estrabão
Livro III. pag.-2yx. e Floro no Livro IV. cap. 12. Des-
te
191 Memofias t)A Academia Real
te veneno (í'Espanha faz tambcm menção Plinio no Livro
XVI. cap. IO.
Depois de Marco Porcio Catão , o Governador qac:
mais dilatou o império dos Romanos na Espanha Citenor ,
foi Tito Scmpronio Gracco , sendo Cônsules Lúcio Mani-
lio Acidino , e Quinto Fuivio Flacco , anno 575: da funda-
ção de Roma, e 179 antes da era de Christo.
Polybio n'lium fragmento que nos conservou Estrabão,
refere que este Gracco tomara trezentas cidades nossas. Po-
rém Possidonio, outro Author Grego, que depois de Po-
Jybio , e antes d'Estnibão esteve muito tempo cm Espanha,
diz, que esta asserção de Polybio fora huma exaggcração ,
de quem quiz exaltar as façanhas de Gracco, nicttcndo
no numero e conta de cidades até as aldeãs e castellos ;
como succcdia nos triunfos de Roma , onde entre os si-
mulacros das cidades, conquistadas, se costumavão metter
para maior pompa , muitas , que não merecião tal nome.
E este mesmo he o sentimento do referido Estrabão no Li-
vro in. pag. 247, que depois seguio Frinshemio no Sup«
plemento da Historia de Livio , Livro XLL cap. 3.
O fundamento d'Estrabão para assentir ao juizo , que
Possidonio fizera das conquistas de Gracco na Espanha Ci-
tcrior , he pnreccr-lhc excessivo o numero de trezentas ci-
dades , consideradas como resto das muitas outras, que Ca-
tão pouco antes deixara subjugadas. Pelo que assenta Estra-
bão , que os que derão a toda a Região d'Espanha mil ci-
dades,* foi porque contarão neste numero também as al-
deãs. E com eífeito Floro no Livro IL cap. 17. não pôe
conquistadas por Gracco na Celtiberia senão cento e sin-
coenta , isto he , ametade das que Polybio contara.
No presente assumpto he digno de se notar t.° que
dons tão grandes críticos, como Casaubon na Syfiopse ciro-
vologica da Historia Polybiana , e como Pctau no Livro XIIL.
da sua Doutrina dos Tempos y cahissem no descuido, (por
não dizermos infidelidade) de que referindo o que na fé
de Polybio escreve Estrabão., que Gracco tomara na Espx-*
aha.
DAS ScifiNci AS DE Lisboa. 193
nha citerior trezentas cidades, omittisscm ambos o juizo ,
que deste numero fizerao Possidonio e o mesmo Estrabáo.
He digno de se notar i.° o que muito depois se atre-
veo a escrever João Dujat , commentando in ustun Delphini
hum lugar de Tito Livio , que trata das conquistas de
Gracco na Espanha citerior. Diz Livio no Livro XL, cap.
49 , que Gracco dentro de poucos dias rendco á sua obe-
diência cento e trcs cidades ou villas acastelladas : c]ue hu-
ma e outra cousa significa em bom latim o nome oppidum ,
como he corrente nos Grammaticos. Centum tria opptda in-
tra paucos dies in deditionem accepit. Que havia de escrever
aqui o commentador Francez ? Mirum fuerit , si tot viços in
Celtiberia ftiisse dicamus. Seria huma cousa maravilhosa , se
se dissesse , que na Celtiberia havia outros tantos lugarejos.
Entre tanto Plinio manifestamente convence a ignorância
deste critico, quando no Livro III, cap. i dá na Espanha
ulterior só a Betica cento e setenta e sinco cidades : e no
capitulo 3 a toda a Espanha citerior, duzentas e noventa
e quatro. Na qual conta creio cu que ninguém dirá , que
Plinio mette aldeãs no numero de cidades.
Em memoria do seu nome e do seu governo , deixou .
Tito Sempronio Gracco em Espanha a cidade de Cracctir-
rif. Epitome de Livio no Livro XLL
Como Festo Pompeo testifica , que a cidade que do
nome de Gracco se chamou Graccurris ^ se chamava antes
Ilurcis ; infere-se daqui , que Gracco não a edificou de no-
vo, mas a ampliou, ou ornou de novos edificios.
De Graccítrris existem amda hoje varias medalhas de-
dicadas ao Imperador Tibério , de que faz menção Flores
na sua collecção das Medalhas d^ Espanha^ pag. 448. Delias
tlcra muito antes noticia o Padre Mariana. Julga-se que
Graccurris era onde hoje está Agreda no Reino d'Aragão.
Sobre as capitulações que Gracco deixara feitas na Es-
panha citerior, se levantou dahi a vinte e seis annos en-
tre os Espanhoes e o Senado Romano huma controvérsia,
que se não dirimio, senão pelo arbitrio das armas. O caso
y. IX, p. I. Bb foi
194 Memorias DA Ac ADEMiA Retal
foi assim. Sendo Cônsules Quinto Fulvio Nobilior, e Tito
Annio Lusco , anno 6oi da fundação de Roma, e 15-3
antes da era de Christo , rebcUados os Bcllos e os Tingos
Povos commarcãos e visinhos do Douro , occupdrao lums
e outros Segeda , cidade mui populosa e rica, c huma das
que Gracco tinha feito confederada dos Romanos, e co-
meçarão a cercalla d' hum muro de quarenta estádios. Qiie-
rendo o Senado obrigallos a desistir da obra , e a contri-
buir com os impostos e levas do costume ; responderão os
nossos , que pelos Tratados de Gracco sim estavão cllcs
prohibidos d'edificar cidades novas, mas não de restaurar e
fortificar as velhas : e que no tocante a contribuir com os
impostos e recrutas auxiliares d' huma e outra cousa os ti-
nha eximido o Senado depois da paz de Gracco. Não es-
teve por estas escusas o Cônsul Nobilior. Com hum exer-
cito de trinta mil homens veio sobre Segeda. Sabendo isto
os Bellos e Tingos, como a cidade não estava ainda bem
murada , fugirão com suas mulheres e filhos para os Are-
Vuccos. Mãocommunados na própria defensa os três Povos ,
elegem por General de todos hum Segedam por nome Ca-
ro. Dá-se batalha entre Romanos e Espanhoes, e morrem
de parte a parte seis mil homens , cntrclles o General dos
nossos. Acolhendo-se estes aquclla noite a Numancia, ele-
gem por successores de Caro dous novos Generaes , Am»
bão e Leucão. Daqui teve principio a guerra de Numan-
cia , que durou vinte annos , com igual estrago que igno-
minia do Povo Romano. Supplemento de Livio , Livro
XLVII, cap. 36, e segg.
DAS SciENClAS DE LiSBOA. t<;y
§ V.
Guerra dot nossos em tempo de Vtriatho. Conquistas de Bruto
na Calliza e na Lusitânia. Renovação da guerra , sendo
Sertório General dos nossos. Fim da guerra d^ Espanha debel'
lados os Cantabros ou Biscainhos. Era de César instituida em
honra de Augusto. Fundação de Merida , que veio a ser a
Metrópole da Lusitânia até a vinda dos Godos.
Depois do grande Annibal Carthaginez , não houve
no mundo capitão , que mais terror causasse aos Romanos ,
e que deixasse de si maior fama nas Historias , do que o
nosso Viriatho, segundo do nome. Delle fazem honorifica
menção Cicero nos Officios , Diodoro de SiciHa noí seus
Excerptos , Vclleio Paterculo, Valério Máximo, Frontino
na sui Obra Dos Estratagemas ^ Silio Itálico no Livro V
das guerras Púnicas, Floro, o Epitomador de Livio , Ap-
piano na Historia Ibérica, Sexto Aurélio Victor no Livro
Dos FarSes Illiístres^ Justino , Eutropio , e Orosio.
Tudo o que se podia compilar de tantos authores ,
reduzo eu a illustrar dous lugares de Diodoro de Sicilia,
que escaparão á diligencia de Resende ; os quaes quando
não existissem outras memorias de Viriatho , bastarião por
si sós , para no-lo darem a conhecer por hum capitão de
singular merecimento entre todos os nossos ; ou como se
explica Justino no Livro XLIV, cap. z pelo único que Es-
panha produzio no decurso de tantos séculos.
Todos os antigos convém , que Viriatho fora Lusita-
no de nação, e que de pastor passara a ser salteador, de
salteador a general d' hum justo exercito: isto he confor-
me Appiano, d' hum exercito de dez mil homens.
Cícero he o primeiro , que eu acho ter dado a Viria-
tho o nome de ladrão , quando no Livro II Dos Officios ,
cap. 1 1 escreve assim : = Também dos ladrões se diz que
Bb ii tem
196 Memorias da Academia Real
tem suas leys. Por tanto pela igualdade que observava na
repartição das prezas , teve Bargulo Ulyrico , como se lè
em Tiíeopompo , grandes riquezas, e Viriatino Lusitano
outras ainda maiores. = Qtiin etiam Jcgcs latromtm esse di'
cuiiíur, Itaqtie propter aquabilem pradíe partitionem Bargulus
lllyricus , àe qtto est apud Tbeopompiim , magnas opes habuit ,
et multo maiores Viriathtis Lusitanus. No qual texto de Ci-
cero , ( para também advertirmos isto de passagem ) quer
Henrique de Vertois , que em lugar de Bargtilus se leia
Bardylís : por ser este o nome , que áquclle Regulo dos
Illyricos deráo Helladio Bcsontino citado por Focio, Dio-
doro de Sicilia no Livro XVI , cap. 4 , e Plutarco na vi-
da de Pyrrho.
O nosso Resende persuadio-se , que o tratarem os
Romanos de ladrão a Viriatho , fora effeito de seu ódio e
da sua inveja contra elle, para com este ignominioso titu-
lo infamarem a memoria d' hum heroe, que tanto os ator-
mentara e abatera.
Eu de boamente conviera neste juizo d' hum tão gran-
de homem , se mo não tolhesse a respeitável authoridade
de dous escritores tão graves , e tão imparciacs , como
Diodoro c Estrabão : os quaes ambos dão por huma cou-
sa constante e averiguada , terem sido os nossos serranos
geralmente avezados a viver de saltos e de roubos: porque
faltando-lhes o sustento , por causa de não poderem ou não
quererem cultivar as terras , hiao os moços em grandes
quadrilhas a prear tudo , o que encontravão nos lugares
commarcãos. Assim Diodoro no Livro V, cap, 34, Tomo I
da edição de Wesseling, pag. 35'7 , e Estrabão no Livra
III, pag. 231 da edição do mesmo Wesseling.
Convém igualmente todos os antigos , que o que deo
occasião a' guerra de Viriatho , foi a perfídia e crueldade ,
com que Sérgio Galba fez passar á espada muitos milha-
res de Lusitanos, na forma que atraz fica referida.
Pela attenta combinação porém dos Pretores e dos fa-
ctos, que intervieráo nesta guerra está assentado entre to-
dos
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. I97
dos OS modernos críticos , que entre a carnificina de Gal-
ha e a eleição de Viriatho em General dos nossos , me-
diarão sinco annos. Assim o advcrtio entre outros Justo
Lipsio nas notas a Velleio Patcrculo. A diffcrcnça está ,
que Resende seguindo os Fastos de Sigonio , põe o caso
de Galba no anno 602 da fundação de Roma, c 152 an-
tes da era de Christo : e alliga o principio do Gcnerala-
to de Viriatho ao anno 607 da fundação de Roma , e 147
antes da era de Christo , que he também a chronologia
que Frinshemio adoptou nos seus Supplemcntos da Histo-
ria de Tito Livio. Mas Petau , a quem costumo seguir,
póe o caso de Galba no anno 603 da fundação de Roma ,
e lyi antes da era de Christo: e alliga o principio do
Gencralato de Viriatho ao anno 6c8 da fundação de Ro-
ma, e 146 antes da era de Christo. Huns e outros porém
suppoem , que o governo de Galba coincidio com o Con-
sulado de Lúcio Licínio Lucullo, e Aulo Postumio Albi-
no : c que Viriatho fora eleito General , sendo Cônsules
Lúcio Cornelio Lentulo , e Lúcio Mummio Acaico. Logo
por ordem ás épocas daquelles dous acontecimentos , não ha
entre os Chronologos maior differença , do que a d'hum anno.
Ouçamos agora dous illustres Excerptos , em que
Diodoro de Sicilia resumio tudo o que ha de mais glo-
rioso na vida e morte de Viriatho.
O primeiro he na Écloga V do Livro XXXII, To-
mo II, pag. fij, e diz assim: = Os Lusitanos no princi-
pio , como não tinhao hum hábil General , que os reges-
se , facilmente na guerra com os Romanos cedião á sua
força : mas depois que elegerão a Viriatho , causárão-lhes
grandes perdas. Era este hum Lusitano , que costumado
des de moço á vida de pastor e de serrano , e dotado de
huma natureza robusta, veio a exceder na valentia e agi-
lidade dos membros iodos os outros Espanhoes. Comia
pouco : e de sono não dava ao corpo , senão o que abso-
lutamente lhe não podia negar. A sua vida era exercitar-
se continuamente no trabalho , trazendo sempre armas de
fer-
198 Memorias DA. Academia Real
ferro , pelejando com as feras e com os ladroes. Assim
veio Viriatho a fazer-se celebre no povo , e por fim crca-
do General , ajuntou a si hum esquadrão de salteadores.
Fazendo cada dia maiores progressos na guerra , não so-
mente se fez admirar pelas outras virtudes , mas também
mereceo ser julgado excellcnte em todas as artes Impcra-
torias. Além disto guardava muita justiça na repartição dos
despojos \ e á medida do valor que os soldados tinhão
mostrado nas occasióes , erão as dadivas e mercês , com
que engrandecia a cada hum. E crescendo cada vez mais
em espíritos, dava Viriatho a conhecer, que já não era
hum ladrão, mas hum príncipe. Fez guerra aos Romanos,
e ficou vencedor delles em muitas batalhas: de sorte que
debellou a Vetilio General dos Romanos com todo o seu
exercito ; e depois de o fazer prisioneiro , lhe tirou a vi-
da. E por este modo concluio felizmente outras muitas
guerras , até que foi eleito General contra ellc Fábio. D'en-
tão por diante começou Viriatho a descahir. Mas tornan-
do a recobrar as forças , depois de ter pelejado illustre-
mente contra F;'.bio , o obrigou a condições indigms do
nome Romano. Porém Cepiao , a quem depois se entre-
gou o supremo mando do exercito , não quiz estar por
estes pactos , antes os deo por nullos. E tendo vencido
por vezes a Viriatho , por ultimo quando este constrangi-
do da triste situação das suas cousas, estava resoluto a ca-
pitular paz ; Cepião subornando alguns dos seus domésti-
cos , o fez matar á traição. Succedendo Teutano em lugar
de Viriatho , Cepião de tal sorte aterrou as suas tropas ,
que o obrigou a convir nas condições que elle muito quiz ;
e por grande favor lhes concedeo cidades e campos , em
que vivessem. =
Atéqui Diodoro: cujo lugar, sobre o que contém das
virtudes e acções de Viriatho , se nos faz também muito
estimável , em quanto nos descobre o nome do outro Re-
gulo que o succedeo no governo da nossa Lusitânia, que
foi Tautano.
Pa-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. igí>
Para eterna execração c infâmia das su;is pcfsoas, ii(;s
deixou Appiano notados os nomes dos trcs aleivosos assas-
sinos de Viriatlio. Chamavão-se Audaz, Ditalcão , e Mi-
nuro , os que comprados por Cepião matarão a Viriatho ,
estando ellc dormindo sobre a terra nua.
Eutropio acrescenta , que depois de executado este
cruel parricidio, vindo os matadores requerer a Cepião al-
guma nova recompensa, Cepião lhe respondera: Oiie o Se-
nado Romano nunca approvdra , qtte bum General josse morto
pelos seus soldados.
O segundo Excerpto de Diodoro hc do Livro XXXII,
Tomo II , pag. 5^97 , e diz assim : = O cadáver de Vi-
riatho foi celebrado pelos Lusitanos com humas magnifi-
cas exéquias : porque junto ao seu tumulo forão mandados
pelejar duzentos pares de gladiadores , hcnra justamente
tributada ao eximio valor de tal heróe. Porque he constan-
te entre todos, que Viriatho foi belicosissimo nos perigos,
c em prover no que mais convinha, sagacíssimo; e o que
he o principal , em todo o tempo que governou as tro-
pas , tão amado dos soldados , como ninguém o tinha an-
tes sido. Por quanto ao repartir das prezas nunca tomava
para si o mais precioso ; e das cousas que a elle lhe ca-
biao , premiava com dadivas os valentes , e sublevava a po-
breza dos outros. Guardava outrosi huma sobriedade e vi-
gilância incrível, sem nunca recusar trabalho ou perigo al-
gum , e sempre inflexível para não buscar deleites. E na
verdade os argumentos do seu esforço estão bem á vista.
Porque tendo sido General dos Lusitanos onze annos , sem-
pre as suas tropas se conservarão não somente concordes
sem nenhuma sedição, mas também quasi invencíveis. Mor-
to porém Viriatho, privados de tal capitão brevemente fo-
rão dissipados os Lusitanos. = Atéqui Diodoro.
Para que ninguém se espante , de que em honra de
Viriatho fossem mandados brigar junto ao seu tumulo du-
zentos pares de gladiadores ; Estrabao no Livro III , pag.
25" I nos adverte , ter este sido hum costume muito ordi-
na-
200 Memorias da Academia Real
nario dos Espanhocs , matar-se a si mesmos em obsequio
dos amigos defuntos. O que depois d'listrabão, testifica
também Valério Máximo no Livro II , cap. 6. E não he
muito , que esta barbaridade se praticasse entre os povos
d' Espanha , ferozes por natureza e por criação ; quando
cila toi também adoptada pelos mesmos Romanos , c du-
rou entrelles até os tempos mais polidos e civilisados do
Império.
Morreo Viriatho no ânno 614 da fundação de Roma,
e 140 antes da era de Christo , sendo Cônsules Quinto
Scrvilio Cepião , e Caio Lélio. Segundo a qual chronolo-
gia, que he a de Petau , juntos os sinco annos dos prelú-
dios desta guerra , aos seis em que Viriatho a continuou ,
saiem ao justo os onze annos, que ha pouco ouvimos apon-
tados por Diodoro , de cujas contas pouco discrepa Justi-
no , quando escreve , que Viriatho fatigara por dez annos
os Romanos com varias victorias , que delles alcansou.
Na verdade só mettendo numa mesma conta os an-
nos, que Viriatho militou como particular, e os que mi-
litou como General em chefe dos nossos ; he que se po-
derão admittir quatorze annos, que Floro, Eutropio , e
Orosio assignão á guerra de Viriatho.
Ainda hoje se conserva junto a Viseu a chamada Ca-
va de Viriatho , que he hum cabeço de terra artificial com
barbaçaã e fosso , que terá de circumferencia (pois he re-
dondo) huma legoa. Aqui he tradição dos moradores, que
Viriatho se costumava intrincheirar contra os Romanos. Eu
a vi e passeei mais d* huma vez no anno de i/f?. E pes-
soas sisudas da mesma cidade me asseverarão , que na Ca-
mará se guardavão Provisões do Snr. ElRei D. Duarte , en-
commendando muito a conservação desta Cava. Porém ella
hoje se vê toda csbarrondada e cheia de barro, por causa
dos gados que nella se deixâo pastar.
O que Diodoro affirma no segundo Excerpto , que tan-
to que Viriatho faltou aos Lusitanos, logo estes forão des-
feitos i allude ás guerras e conquistas de Decimo Junio
Bru-
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA< 20I
Bruto, de quem o Epitomador de Livio no Livro LV es-
creve, que vindo a Espanha sendo Cônsul, assignou cam-
pos aos soldados , que tinhão militado sob Viriatho , c
lhes deo licença para fundarem a cidade de Valença, que
se crê ser a villa que ainda hoje conserva este nome na
Província d' Entre Douro e Minho : e que nos tomou na
Lusitânia trinta cidades.
Veio Bruto a Espanha no anno 6i6 da fundação de
Roma, e 138 antes da era de Christo , sendo Cônsules o
mesmo Decimo Junio Bruto, e Public Cornclio Nasica Se-
rá pi ao.
A tempo que Bruto fazia guerra aos Lusitanos , vle-
rão em socorro destes os Gallegos de Braga. Que debaixo
do nome de Galliza se comprehendia então, e se continuou
ainda a comprehendcr em tempo dos Godos todo o Entre
D )uro e Minho. A este exercito de Gallegos e Lusitanos
deo Bruto batalha junto á cidade de Morão visinha do Te-
jo : e era tão numeroso o nosso exercito , que posta a vi-
ctori;i da parte dos Romanos , morrt3rão sincoenta mil en-
tre Lusitanos e Gallegos , afora seis mil que ficarão pri-
sioneiros. Orosio Livro V, cap. j.
Não bastou a fama desta mortandade , e o estar já
quasi toda a Lusitânia subjugada pelos Romanos, para os
naturacs d'outra cidade nossa por nome Cinninia , perde-
rem os grandes espiritos, que sempre animarão a nossa
gente. Mandando-lhes Bruto pedir certa contribuição , ti-
verão os Cinninicnses valor para responderem aos seus Le-
gados : que clles tinhão ferro para defender a sua liberda-
de , mas que seus maiores lhes não tinhão deixado ouro
para a comprar, Ferrum sibi ad tueudam libertatem sumi ,
non aurum ad emendam relktum a maioribus esse. Valério Má-
ximo Livro VI , cap. 4.
Depois de sujeitar a Lusitânia, marchou Bruto contra
a Galli/a. Nesta expedição he que lhe succedeo , o que
tanto exaggerão para gloria de Bruto os Escritores Roma-
nos ; sendo que o que clle fez , foi mais efieito d' hum
T. IX. P. I. Ce es.
202 Memorias da Academia Real
espirito illuminado , do que prova d' hum General extraor-
dinariamente intrépido. O caso foi assim. Chegando o exer-
cito Romano ao rio Lima , não se atreviíío os soldados
a passallo, detidos d'huma opinião que corria no vulgo,
de que os que passavão aquelle rio , perdião a memoria de
tudo o que tinháo no mundo. Esta fabula tinha dado 20
mesmo rio o nome de Lethes ^ que quer di/cr, Rio do es-
quecimento. Então Bruto tirando a bandeira da mão ao seu
Alferes, com cila na sua passou á outra banda, e fez com
o seu exemplo , que conhecida a futilidade do agouro , o
seguissem todos sem medo algum. Assim o mesmo Epito-
mador do Livro IV da Historia de Livio : ao que allude
Eloro no Livro II, cap. 17.
Q^ie este rio, que Appinno e Silio Itálico chamão
Lctbes , fosse o rio Lima ^ he expresso não só em Pompo-
nio Mela, Livro III, cap. i , e cm Plinio, Livro IV, cap.
22, mas também cm Estrabão , Livro III, pag. 229.
O principio de se ter introduzido no povo a ridícula
pcrsuação , de que os que passavão o Lima ficavao esque-
cidos de tudo , conta o mesmo Estrubão que fora este.
Que tendo os Celtas e osTurdulos, (povos alliados que vi-
vião em diversas comarcas da Espanha ulterior) feito hu-
nia irrupção contra os Gallegos , succedeo passado o rio
Lima, levantar-se entre huns e outros huma sedição, e
morrcr-lhcs ppuco depois o General. Qiic daqui precedera ,
que espalhados por diversas partes , todos lá ficarão sem
tornarem mais ás suas terras : e que por esta causa come-
çara aquelle rio a chamar-se o Rio do esquecimento.
Neste mesmo lugar em que vamos d' Estrabão , Li-
vro III, pag. 230, escreve este gravíssimo geógrafo, que
o Lima fora o termo da expedição de Bruto. E isto mes-
mo confirma Appiano , quando diz , que depois da passa-
gem do Lima se recolhera Bruto a Pioma. Donde se se-
gue , que Bruto não debellou toda a Galliza , mas somen-
te aquella parte , que hoje forma o território de Braga.
Não he para esquecer, que tanto nos Fastos Gapito-
li-
DAS SCIENCIAS DE LlSP. OA. 203-
linos de Verrio Flacco, em que se dá noticia de ter Bruto
triumfado em Roma dos Lusitanos e dos Galkgos , como
nas medalhas que ainda hoje existem do mesmo Bruto , se
intitula clle não Gatlaicus por G , mas Callaicus por C ; que
he também como Hstrabão o escreve.
DISSERTAÇÃO IX.
X)rt.r diversas divisões , que os Romanos fizer ao da Espanha.
Da civilidade e policia , a qiie reduzirão os seus Povos.
REs divisões da Espanha são igualmente celebres na
Historia antiga , que constantes entre os criticos modernos.
De todas três tratarei com a costumada precisão , e não
sei se diga também diligencia.
§ I.
Da primeira Divisão d'Espanha em duas Provindas*
Depois da segunda guerra Púnica , expulsos da Espa-
nha os Carthaginezes , dividirão os Romanos toda esta
grande região em duas , cada huma com seu Governador
separado. Chamarão a huma Espanha Citerior , a outra Es-
panha Ulterior,
Prova-se esta primeira Divisão , do que escreve Tito
Livio no Livro XXXII, cap. 27, é 28, que sendo Côn-
sules Caio Cornelio Cethégo , e Quinto Minucio Rufo ,
isto he, no anno yjy da fundação de Roma, e 197 antes
da era de Christo , forão creados pela primeira vez seis
Pretores , quando atélli se costumavão crear só quatro : por-
que crescendo já o numero das Provincias , e dilatando-se
cada vez mais o império , ficou em regra ordinária manda-
Cc ii rem-
204 Memobias da Academia Real
rcm-se dous a Espanha ; hum que governasse a citcrior,
outro que governasse a ulterior.
Que cm quanto durou a Republica, não se conhcceo
entre os Romanos outra divisão da Espanha , he claro pe-
los Historiadores que florecêrâo no fim da mesma Republi-
ca , Sallustio , Júlio César , c Hircio , em cujos escritos
não se acha outra.
A duvida he , donde tomarão as duas Espanhns a de-
nominação de Citerior e Ulterior. Porque sendo estes nomes
formados das duas preposições latinas Citra , que quer di-
zer dáqucm ou da banda de cá, e Ultra, que quer dizer,
dálem , ou da banda de la'. Não he comtudo fácil designar
o termo ou limite, que sérvio de fundamento a estas re-
lações locaes. Henrique Flores mais suppoz , do que mos-
trou, que a respeito do que ficava para cá, ou para lá do
rio Ebro , he que os Romanos dividirão a Espanha cm Ci~
terior e Ulterior: de sorte que se denominasse citerior, a
que respectivamente a Roma estava para cá do Ebro ; e
se denominasse ulterior , a que estava para lá do mesmo
jio. Mas o mesmo Flores reconhece, que debaixo do nome
d' Espanha citerior, se comprehendia tudo o que pela se-
gunda divisão veio a chamar-se Espanha Tarracmiense '. por-
que assim o diz expressamente Plinio no Livro 111, cap. r.
Citerior eaãemqtie Tarraconensis, E he certo que a Tarra-
conense continha em si tudo o que não era Betica , nem
Lusitânia: c consequentemente muito, do que a respeito
dos Romanos ficava para cá do Ebro.
Acresce , que Santo Isidoro de Sevilha no Livro XIV
das Origens, cap. 4 deduz as denominações de citerior e
u'tcrior, não como relativas ao mediar do Ebro, mas co-
mo relativas á situação, que cada hunia tinha. Porque se-
gue, que a citerior se chamou assim, tomada a preposição
Citra na significação de Circa: e que a ulterior se chamou
assim , tomada a palavra ulterior na significação de ultima :
visto que depois desta parte d' Espanha não havia outra
alguma terra. Citerior atitem et ulterior dieta ^ quasi citra et
ul-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. lOf
ultra : ci/ra autem , quasi circa terras : ultra zero qiiasi n/ri»
ma ; vel quod nua sit pott bane ulla , boc est , alia terra.
Segundo eu cnrcndo esta etymologia de Santo Isido-
ro , cUc tomava por Espanha citcrior, a que era mediter-
rânea, ou do sertão; c tomava por Espanha ulterior, a
que pelo mar se separava de todo o mais resto do mundo.
E esta idea coincide com a d'Estrabão, que á Espanha ci-
tcrior chama interior, e d ulterior exterior.
Fosse porém qual fosse o termo desta primeira divi-
são, he certo que durante ella no seu rigor primitivo, se
chamava Espanlia citerior, tudo o que não era Gjlliza ,
Betica , c Lusitânia : e que estas três Províncias erao as
que formavão a Espanha ulterior. Porque pertencer Galliza
no principio á ulterior , hc expresso no Epitomador do Li-
vro LVl. da historia de Tito Livio. Assim como também
se não pode negar, que dividida depois a Espanha em três
Provincias , veio a mesma Galliza a pertencer á citerior,
em quanto parte da Tarraconense , o que brevemente ve-
remos de Plinio.
§ II.
Da segunda Divisão da Espanha em três Provindas.
Dião Cassio no Livro LIIL da sua Historia Romana ,
pag. 309 da Edição Basilccnse de João Oporino , conta
que Augusto César, depois que o Senado lhe confirmou o
Império, dividira com huma fiiia politica entrcsi e o Se-
nado as Provincias, que então o compunhão : dando ao Se-
nado e Povo Romano a administração das Provincias , que
por pacatas e tranquillas não pediao tantos cuidados , nem
tantas precauçÓes ; e reservando para si as outras , de que
ainda se podiío temer novos tumultos. Com isto se armou
Augusto a si , e desarmou o Senado : porque toda a for-
ça das tropas e do exercito ficava á ordem do Imperador.
Dando pois em Espanha aoSenado a Betica , escolheo Au-
gusto para a sua disposição a Tarraconense , e a Lusitânia.
E
2o6 MemoriasdaAcademiaReal
E esta foi a segunda Divisão , que Espanha experimentou
e a qual consistio, em que toda a chamada então Espanha
citerior se reduziu a huma Provincia, que da insigne ci-
dade de Tarragona se denominou Tarraconensc ; e toda a
Espanha ulterior se rcduzio a duas, que crão a Betica e a-
Lusitânia.
Sobre em qual dos seus Consulados fez Augusto esta
Divisão, não concorda Cassiodoro com Diao Cassio , da-
do que Flores os cita a ambos, como perfeitamente acor-
des neste ponto. Porque Cassiodoro a põe no sexto Con-
sulado d'Augusto : Dião Cassio no sétimo , isto he, noan-
no 727 da fundação de Roma , 627 antes da era deChris-
to. E esta he com eíFcito a verdadeira Chronologia.
O primeiro Escritor, que eu acho ter feito menção
desta segunda partilha d'Espanha , he Estrabao, que com-
punha a sua Geografia em tempo de Tibério , jmmediato
successor d'Augusto , e que no Livro III. pag. 2J3 625-4
diz assim : Os Romanos chamando promistuamente a to-
da a Região Ibéria e Espanha , a dividem em Interior ou
Citerior, c em Exterior ou Ulterior. Mas elles mesmos,
attcndendo á diversa administração de Governos , que os
tempos vierâo a fazer necessária , a dividem ainda d'outra
maneira. Em nossa idade, como as Províncias humas se as-
smárão ao Senado e Povo Romano , outras ao Príncipe ;
coube a Betica ao Povo, e a ella se manda hum Pretor
com hum Questor e hum Legado. O seu limite oriental
lie junto -J Castulaã , (hoje Cazlona : ) Toda a mais Es-
panha he do César : e a ella se mandão dous Legados ,
hum na qualidade de Pretor , outro na qualidade de Côn-
sul. O primeiro como seu Legado administra Justiça na
Lusitânia , a qual confina com a Betica , c chega até o rio
Douro, e á sua foz. O resto d'Espanha , que he a sua
maior parte, está sujeito ao segundo Legado, que o go-
verna com authoridade consular, tendo á sua ordem hum
exercito de trcs cohortes , e três Legados. O primeiro dos
quaes com duas cohortes guarda todo aqucUc território,
que
I
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 20^
que para a banda do Setcntriao fica para lá do rio Douro :
o qual território antigamente se chamava Lusitânia, c ago-
ra .SC chama Galliza. O segundo com huma cohortc gover-
na os contornos dos Pyrincos. O terceiro sem tropa algu-
ma governa os Povos mediterrâneos, que habitao d'huma
e outra parte as ribeiras dô Ebro , e que propriamente se
chamão Celtiberos: Povos já pacatos e civilizados , que com
a Toga uzão também da lingua Itálica. O Prefeito porém,
ou Legado Augustal , que manda sobre todos , pelo inver-
no costuma residir em Carthngena ou em Tarragona : e pe-
lo estio vizitar toda a Província em Correição. Atéqui o
Príncipe dos Geógrafos. O qual já muito antes tinha obser-
vado na pag. 237 e 238, que a instituição demandar três
cohortes para a Tarraconense , fora obra d'Augusto , a exe-
cução obra de Tibério.
A mesma Divisão da Espanha nas referidas três Pro-
vincias , reconhece Pomponio Mela , que florecia em tem-
po de Cláudio. Livro IL cap. 6. Tribtis autem est distinta
ProrincUs , psrsqiie ejvs Tarraconcnsis , pars Batka , pars
Luiitíwia vocatur.
Piinio que dedicou a sua Obra a Vespasiano , também
não dá a Espanha senão as mesmas três Províncias , iden-
tificando a citerior com a Tarraconense. Livro III. cap.
1. (e não como cita Flores, Livro I. cap. 3.) Prima His-
pânia terrarttm est, Ulterior appellata. Eadem Batica. Mosa
a fine Urgitano Citerior , eadeniqjie Tarrocensis . . . Ulterior
in duas per longitudinem Provindas dividittir. Siquidem Batica
hteri septentrionali ; pr^ftenditur Lttsitafiia , ^na amne discreta.
O testemunho de Ptolomeo, que ainda alcançou os
tempos d'Antonino Pio, e que no Livro II. cap. 4. Ta-
boa 2. também não divide a Espanha , senão em Betica ,
Lusitânia, e Tarraconense. Este testemunho, digo, de
Ptolomeo , serve de mais a mais de mostrar com toda a
evidencia , que desde Augusto até Hadriano , não se fez
em Espanha outra Divisão. Com o que fica convencida de
falsa a opinião de Panvinio , a quem incautamente seguio
Pe-
2o8 Memorias da Academia Real
Pedro de Marca no seu Tratado De Priniatihis , que pu-
nha introduzida por Hadriano a Divisão em seis Províncias ,
que nós adiante havc-mos de provar , que teve por Author
a Constantino.
Para melhor e mais commoda administração da Justi-
ça, instituhio o mesmo Augusto, que as três Provincias ,
cm que clle dividio toda a Espanha , tivesse cada huma
certo numero de Conventos Juridtces , a que os Povos re-
corressem , para nelles receberem as Decisões dos seus li-
tígios c demandas. Estes Conventos Jurídicos explica Flores
com D. Rodrigo da Cunha pelo nome de Chancellarias :
eu cuido com Gaspar Barreiros , que elles se exprimem
melhor pelo nome de Relações. Quantos e quaes ellcs fos-
sem , o mesmo Plinio o declara pontualmente nos seus res-
pectivos lugares. A Betica tinha quatro : Cddiz , Córdova ,
Ecija , e Sevilha. Plinio Livro III. cap. i. A Lusitânia três:
Méridã j Beja f e Santarém. Plinio Livro IV. cap. 22. A
Tarraconense , como era muito mais dilatada , tinha sete :
Carthagena , Tarragona , Saragoça , Clunia , Astorga , Ltigo ,
e Brirga. Plinio Livro III. cap. 3.
O mesmo Plinio nos assegura , que ao Convento ou
Relação de Braga pertencião vinte e quatro cidades , e con-
corrião a elb duzentas e setenta e sinco mil pessoas. Clu-
nia ficava ao occidente d'Osma , entre Corunha dei Con-
de e Penhalba.
§ m.
Da Terceira Divisão da Espanha em seis ou sete Provincias,
Com a restauração de Byzancio , e mudança da Cor-
te Imperial para Constantinopla , introduzio Constantino
no Império Romano huma nova forma de Governo e de
Magistrados. Dividio todo o Império em quatro grandes
Dioceses, duas no Oriente, e duas no Occidente, cada
huma das quaes tinha por Chefe hum Prefeito do Pretó-
rio. Subdividiu estas quatro Dioceses maiores em varias
Dio-
■• DAS SciENCiAS DE Lisboa. 209
Dioceses menores, tendo cada huma seu Vigário, como
Subalterno do seu respectivo Prefeito do Pretório. E tor-
nou a subdividir cada Diocese menor cm certo numero de
Províncias , cada huma das quaes tinha seu Presidente ,
como Subalterno do dito Vigário.
Os dous Prefeitos do Pretório , entre os quaes se di-
vidio o Oriente , não fazem por ora ao nosso cazo. Os
outros dous do Occidcnte , hum governava a Itália com as
suas Ilhas adjacentes, c a Africa. Outro tinha por Diocese
as Espanhas, as Gallias, e a Graa Bretanha. O Vigário
das Espanhas tinha debaixo da sua jurisdicçao seis Provín-
cias , sinco dentro do Continente e huma fora delle. As sin-
co do continente erão : a Betica , a Lusitânia , a Calliza ,
a Tarraconetise , e a Carthaginense , ou de Carthagena. A que
ficava fora do Continente era z Tingitana , chamada também
Transfretana porque era da banda d'álem do Estreito de Gi-
braltar , onde hoje está Tangere , chamado cm Latim 3"»;-
gi , que era a sua Metrópole.
Consta esta Divisão da Espanha em seis Províncias,
d'hum notável lugar de Sexto Rufo , que no seu Breviário
da Historia Romana dedicado ao Imperador Valentiniano
I. não muito depois do principio escreve assim : Per ottines
Hispanias sex sunt nmc Provinda : Tarraconensis , Carthagineii'
sis y Lusitânia , Gallacia , Batica : Transfretum etiam in solo
terra Africa , Provinda Hispaniarum est , qita Tingitanica
Mauritânia coguominatur, Ex his Batica et Lttsitania Consula-
res ; cetere Prasidiales sunt. Assim o leio no corpo dos an-
tigos Escritores Latinos, que tenho impresso em Ebrodu-
no por Pedro de la Roviere , anno 1Ó21, pag. 638. O qual
Texto , ainda que na substancia diga o mesmo , que o
que transcreveo Flores ; nas palavras com tudo varia nota-
velmente delle , talvez por culpa do Typografo Espanhol.
Porque onde o nosso Texto diz in solo , poz Flores í«j«-
la : onde o nosso Texto diz Tingitanica Mauritânia , poz
Flores someate Tingitania.
Mais digno de ponderação he, que quando eu e Flo-
T. IX. P.I. Dd res
2IO Memouias vk Academia. Real
rcs nao achamos nos nossos exemplares de Rufo , senão
seis Prí)vincias d'Espanha , Pedro de Marca parece que no
seu achava sete. Porque na Dissertação De Prtmatibus , nu-
mero CXXV. descrevendo o Texto de Rufo, mette nellc
em sexto lugar as Ilhas Baleares , c em sétimo a Tingita-
na , ou Transfretana. Se esta addição das Baleares niío foi
descuido de Marca , mas com eflFcito se achava no Exem-
plar de Rufo, donde elie transcrevia o presente Texto : pó-
de-se ju^^tamente duyidar , do que Flores dá por cousa as-
sentada , que Honório he que ajuntou ás seis Provincias
de Constantino a sétima formada das Baleares. Com cffci-
to a Noticia do Império, que em tempo d'Honorio se pu-
blicou , e que hoje corre illustrada por Pancirollo , dá á
Espanha por sétima Provincia as Baleares. Porque eis-aqui
o que cila diz na parte que toca á Espanha. Ficariíis His-
paniarum , cujtis Provincia FII. Consulares três , Baetica , Lu-
sitânia , Gall,ecia. Frwsidum quatuor , Tarraconensis , Ctirthagi-
tieiisis , Tingitana , Insulte Baleares, Daqui infere Henrique
Flores , que do tempo d'Honorio he que á Divisão em
seis Provincias feita por Constantino , accedeo a sétima ,
que se formou das Baleares , que hoje dizemos Malhorca
e Minorca. Porém as referidas palavras da Noticia do Int'
perio , ninguém deixa de ver, que mais presuppõem a Di-
visão, do que a fazem. Não se pôde logo porella bem de-
cidir , se a addição da sétima Provincia começou em tem-
po dTIonorio , ou se vinha já de mais atraz.
Mas examinando eu de novo por outras Edições o
Texto d^; Rufo , acho que da mesma sorte que acima o
dei, o trazem também a antiga Edição de Sylburgio feita
em Francford no anno de ijiS, e a moderna de Haurisio
feita em Heildeberga no anno de 1743. ^ daqui concluo
que no Texto allegado por Marca houve equivocação e
descuido.
Fosse porém quem quer que fosse o Author desta ad-
dição , sempre pelo Texto de Rufo ; e pela Noticia do Im-
pério ficamos sabendo , que a Betica , a Lusitânia , e a Gal-
li-
DAS S CIÊNCIAS DE LiSBOA. 211-
liza , crão Províncias Consulares, isto hc , Províncias ciijojr
Governadores tinhão Alçada e Insígnias de Cônsules: t que
as outras erão Presidiaes , ou governadas por simples Pre-
sidentes: o que denota, que as primeiras sercputavão mais
dignas do que as segundas.
Ora o tcrem-se annexado ás sinco Províncias do Con-»
tinente d'Espanha , duas fora delle , que erão a Tingitana
dlcm do Estreito, e as Baleares no Mediterrâneo; deve-se
entender que foi somente por ordem ao Governo Civil ; e
não quanto ao Ecclcsíastico. Porque he hum íacto averigua-
do , que os Bispos da Africa Tingitana nunca concorrerão
aos Synodos d'Espanha ; e que os Bispos das Baleares erão
SuflFraganeos do Arcebispo de Calher , Metropolitano da
Sardenha. Esta he a razão , porque todos os Monumentos
antigos d'Espanha , em que se trata das suas Províncias
Ecclesiastícas , só costumâo nomear as sinco , que dentro
do Continente formavão o Estado Civil: a saber, a Tar-
raconcnsc , a Carthagíncnse ou de Carthagena , a Galliza ,
a Botica , a Lusitânia. Isto se vê da Decretai de Siricio a
Himcrio de Tarragona, e da Re!»ra da Fé que anda no fiai
das Actas do primeiro Concilio Toletano , e que se reno-
-vou no primeiro Bracarense.
Destas sinco Províncias, que erão no Continente, a
■Galliza comprehendia não só o que hoje se chama propria-
mente Galliza , mas também as Astúrias , e a Cantábria ,
ou Biscaia. Assim o aiErma em termos Orosio no Livro
•VI. cap. 2 1. Cantahri et Astures Gallteciíe Provinciíe portio
stint. O mesmo se confirma de Idacio, que na sua Chro-
niça a cada passo está reduzindo Lugo eAstorga á Galliza.
Estendia-se outro si a Galliza a todo aquelle terre-
no , que nós hoje chamamos Entre Douro e Minho. Pro-
va-se de que o mesmo Idacio na Olympiada CCCIX. póe
Braga por cidade da Galliza, e pela sua ultima cidade. Ad
Bracaram extremam civitatem GalUci<£. E mais abaixo póe
parte da Galliza sobre o Douro. Regionem Gallacia adh^'
rentem fiumini Durio de^radantur.
Dd ii A
ai2 Memorias DA Academia Real
A Divisão da Gailiza em duas , feita porTheodomiro
Rei dos Suevos , no anno de Christo 569 dizia respeito
somente ao Estado Ecciesiastico , cm que Braga era a pri-
meira Metrópole, Lugo a segunda. Assim consta das Actas
do segundo Concilio Bracarense. E esta mesma Divisão
da Gailiza em duas Províncias Ecclesiasticas , só subsistio ,
em quanto o Reino dos Suevos não foi absorvido no Im-
pério dos Godos.
Ainda no século XII, isto he, pelos annos de Christo
II 17 SC intitulivão os Arcebispos de Braga Metropolitanos
da Gailiza. Prova-se da Lenda da Trasladação das Relíquias
de Santiago Intcrcizo , que andava n'hum Breviário de quar-
to grande, escrito de mão no século XIV, que muitos an-
nos tive cm meu poder por concessão do Sereníssimo Sr.
D. Gaspar Arcebispo Primaz das Espanhas. Nesta Lenda
diz assim o Arcebispo D. Mauricio seu Compositor : Mau'
ritius Ego Provinda Galleci<e divina petatis clementia metro-
folitamis , &c.
De dez Povos da Gailiza em tempo de Vespasiano,
faz menção huma Pedra , 'que ainda hoje existe navilla de
Chaves , donde o letreiro foi mandado ao Padre D. Jero-
nymo Contador d'Argote , copiado por Thomaz de Távo-
ra Secretario do Exercito da Província de Traz dos Mon-
tes ; ainda que muito mal copiado como mostra e sequei-
ra Flores no Tomo IV. da Espanha Sagrada., pag. 313.
Mais de século e meio antes que escrevesse Argote, lí-
nhão Vaseo e Morales allegado a mesma Inscripção Re-
sende pelos mesmos tempos allegava a segunda parte dei-
la , que he a que contem os nomes das dez cidades , que
são estes :
CIVITATES X.
AQUIFLAVIENSES. AOBRÍGENS.
BIBALI. COELERINI. EQUOESIL.
INTRRAMNICI. LIMICI. AEBISO.
QUARGUERNI. TAMACANL
i» _. Des-
DAS ScENici AS DE Lisboa.^ ^ 215
Destes povos os Jlqitijlavienses sao indisputavelmcntô
os da terra de Chaves , chamada em Latim Aqu^e llaiia.
Os Interamnkoi são os d' Entre Douro e Alinho. Os Litui-
cos são os que habitavão as ribeiras do Lima. Os latiiaca-^
tioi j os que habitavão sobre o Tamaga.
Não declara esta pedra de Chaves o motivo , por que
as dez cidades dedicarão a sobredita inscripção ao Impera-
dor Vespaciano. Mas outra , que também ainda hoje se lê
na ponte da mesma Villa , expressamente nos informa, de
que cm tempo de Trajano fizerão só os Aquiflavicnses á
sua custa a obra da ponte. Porque diz assim :
IMP. CÃES. NERVAE
TRAJANO AUG. GER.
DACICO PONT. MAX.
TRIB. POT. COS. P. P.
AQUIFLAVIENSES
PONTEM LAPIDEUM
DE SUO F. C.
Passando já á nossa Lusitânia , esta dividia-se da Gal-
liza pelo Douro, e dividia-se da Betica pelo Guadiana,
lançando hum grande braço desde o Guadiana até o Cabo
de S. Vicente. Tudo temos expresso em Plinio , de quem
sabemos que fora Questor em Espanha. No Livro III , cap.
I. Bwticie latere septentrionali prietendiítir Lusitânia Ana am-
■tie discreta. E no Livro IV, cap. 21 : A Durio Lusitânia in-
<cipit. E no cap. 22. Ab Ana ad Sacrum Lusitani. Destas
demarcações de Plinio se segue, que nem tudo o que hoje
"hfc de Portugal, era antigamente da Lusitânia. Porque hoje
he de Portugal todo o Entre Douro e Minho , que anti-
gamente pertencia á Galliza , como posto para lá do Dou-
ro. Da mesma sorte são hoje de Portugal Olivença , Afo«-
rão , Moura , Serpa , e outras terras , que antigamente per-
tcncião á Betica , como postas para lá do Guadiana. Se-
gue-se outro si pelo contrario: que muitos povos, que an-
ti-
214 Memorias da Academia Real
tigaraente erão Lusitanos, não são hoje Portuguezes; , mas
Castelhanos. Taes são os de Ávila , Salamanca , Ciudad Ro-
drigo , Merida , (que era a Metrópole da Lusitânia) Alcân-
tara y MedeUim , Trugilho , Cáceres.
A célebre inscripção Latina , que passados quasi mil
e setecentos annos se conserva até hoje na ponte do Tejo
junto a Alcântara, dá noticia de dez povos da Lusitânia,
que em tempo de Trajano concorrerão para a íabrica da
mesma ponte. Eisaqui os seus nomes.
MUNICIPIA '
PROVINCIAE
LUSITÂNIA E STIPE
CONLATA. QjQAE OPUS
PERFECKRUNT
IGAEDITANI
LANCIENSES OPPIDANI
TALORES
INTERAMNENSES
COLARNI
LANCIENCES TRANSCUDANI
MEIDUBRIGENSES
BANIENSES
PAESURES
Desta inscripção temos, que havia na Lusitânia dous
illustres povos do mesmo nome de Lancienses , que para
se diffcrençarem huns se chamavão Lancienses OppiJanos ,
outros Lancienses Transcudanos , que he o mesmo que Lan-
cienses da banda de lá do Goa. D' huns e outros se lem-
bra Plinio no Livro IV, cap. 12, como também dos Co-
lamos.
Temos mais , que havia na Lusitânia outro illustre
povo , chamado Interamnium , cujos moradores se dizião
por isso Interamnenses , como se disséramos , os d'entre os
dous rios: e estes sem duvida diversos dos d'entre Douro
e
DA s SciENCi AS DE Lisboa. 2ir
e Minho , que pertcncião já á Galliza. Ainda hoje aqucl-
lo tcnicorio , onde o rio Paiva se ajunta com o Douro
se chama d'Entre ambos os Rios. Pelo sitio pertencia este
território á Lusitânia : c ainda que fica mui distante do
Tejo , poderia talvez chegar lá a contribuição para a fa-
brica da ponte d'Alcantara , em que toda a gente para cá
do Douro era interessada ; assim como chegou aos de Ci-
ma Coa , que também não distão pouco do Tejo. Estes In-
terumnenses suspeito eu que são os mesmos , que nas edi-
ções vulgares de Plinio se nomeão erradamente Interanen'
ses.
Os Egiditanos concordâo todos, que são os da Idanha.
Os Meidubrigenses quer Resende , que scjão os .de
Marvão, cuja cidade Aleidubriga he célebre não só nos es-
critos de Plinio , mas também nos de Hircio.
Os Arabrigenses põe Barreiros em Alenquer, Vascon-
ccllos cm Povos.
Os Pésttres conjectura Flores , que ficavão perto do
Vouga , visto que Plinio depois de Pesures nomea logo
este rio.
O nome de Mimicipios , que na mesma inscripçâo d'Al-
cantara se attribue aos dez povos , que concorrerão para a
obra da ponte; quer dizer, que cada hum daquelles povos
tinha suns Icys próprias, por onde se governava, debaixo
da inspecção dos chamados Duumviros , que erão nos Mu-
nicípios , como os dous Cônsules em Roma ; dos Decu-
riões , que correspondião aos nossos Vereadores; dos Edi-
les , que correspondião aos nossos Almotaceis.
Sobre o nome de Portucale y donde veio a formar-se
Porttigallia , observo que este nome em quanto contrahido
á cidade do Porto , (donde elle se communicou a todo o
Reino) era já usado no quinto século da Igreja , como se
vê da Chronica d'Idacio. Estendido porém a todo o Rei-
no, hc tão moderno, que a primeira vez que o encontro,
he no Concilio Coyacense, celebrado na Diocese d'Ovie-
do pelos annos de Christo 105-0 , reinando em Espanha
D.
■2i6 Memorias da Academia Real
D. Fernando o Magno. O titulo oitavo começa assim :
Octavo aiitem titulo niaiidamtts ^ ut in Legione et in suis ter-
nutiisy in Galltecia et in Asturiis ^ et Portucalc y tale sit judi-
cium setnper f &c.
§ IV.
Da Civilidade e Policia , a que o trato com os Romanos redu-
zia por ultimo os Espanhoes,
Mostra-se esta cultura dos nossos , primeiramente do
que escreve Estrabao no Livro III, pag. 225:, que os Tur-
dctanos c Celtiberos tinhío adoptado com os costumes a
lingua e trajo dos Romanos ; n<1o fallando senão em La-
tim , e não usando d'outra forma de vestido, que a da
Toga.
Mostra-se em segundo lugar, de que em nenhuma ou-
tra região do Império havia tantas cidades ornadas de no-
mes Romanos , como em Espanha. Dizia-se Casaraugusta ,
Saragoça : Emérita Augusta , Mêrida : Pax Augusta , Bada-
joz : Felicitas Júlia , Lisboa : Liberalitas Júlia , Évora : Past
J tília ^ Beja: Júlia Myrtilis j Mértola : Norba dssariensis y
Alcântara: Castra Júlia ^ Trugilho : Castra Ccecilia, Cáce-
res. E assim outros muitos , que traz Plinio. Por donde
não falta entre os nossos antiquários quem julgue , que
Marialva se diz por corrupção de Marii Arva^ como tam-
bém Jurumcnha por corrupção de Julii Mania.
Mostra-se em terceiro lugar , pelo que o mesmo Es-
trabão no Livro III, pag. 2^7 refere da grandeza e es-
plendor de Cadiz : dizendo que no numero dos habitantes
só a excedia Roma ; e que em ter quinhentos cavalheiros
Romanos nacionaes , só a igualava Pádua. Aumentou-a e
nobilitou-a muito a esta sua pátria Cadiz hum Espanhol
por nome Cornelio Balbo , que em tempo d'Augusto foi
Cônsul em Roma , (o primeiro de todos os estrangeiros)
e triumfou dos Garamantes , povos da Africa Cyrenaica.
Es-
DAS SciEHCIAS DE LiSBOA. llj
Estrabao ibid. Plinio Livro V , cap. y , c Livro VII ,
cap. 43.
Mostra-sc em quarto lugar , de que cm tempos tão
polidos dco Espanha a Roma os trcs melhores Imperado-
res que ella revê depois d 'Augusto ; doas Gentios, e hum
Christão. Os Gentios forao Trajano e Hadnano. Dos quacs
Trajano era natural da cidade d' Itálica na Bctica, vizinha
e fronteira de Sevilha. Hadriano por seu pay era oriundo
da mesma cidade d' Itálica , c por sua mãy oriundo de Ca-
diz : o que tudo he expresso cm Esparciano. O Christão
foi Theodosio o Grande , por cujo nascimento em Galli-
za na cidade de Cauca , começa Idacio a sua Chronica.
Em tempo deste Imperador foi Prefeito do Pretório
da Diocese do Oriente hum Cynegio , famoso nas leys
que a elle dirigio Theodosio, insertas depois no Código
de Justiniano. O qual Cyncgio eu tenho por certo , que
também era Espanhol , movido de que o mesmo ou outro
Idacio nos seus Fastos Consulares, depois de referir a sua
morte em Constantinopla , acrescenta immediatamente , que
sua mulher Acancia fizera no seguinte anno trasladar o seu
corpo para as Espanhas trazido por terra. Et post annutn
transtulit etitn matrona ejus Acbantia in Hispauias pedestre.
DISSERTAÇÃO X.
Entrada dos Godos y Suevos j Alanos ^ e Vândalos em Espanha f
com o summario das consequências desta entrada.
A
iRRUpqXo dos povos setentrionaes nas terras do Im-
pério Romano em tempo d' Honório, he o successo mais
inemoravel e o mais estrondoso, de quantos ee lem na His-
toria do século quinto : successo que encadeou comsigo
hum numero sem numero de infortúnios e de calamidades :
c successo donde todos os eruditos desumem a época da
Tomo IX. Ee des-
2i8 Memorijls da Academia Real
destruição do mesmo Iinpcrio. Roma por seiscentos annos
senhora do mundo, de repente se vê nssaltada e enxovalha-
da por hnm temeroso exercito de Bárbaros : o Imperador
Honório obrigado a pactear condições indignas da magesta-
de da sua pessoa, e da do Império. Placidia irmaã d' Ho-
nório levada cativa por Alarico para casar com Ataulfo ;
Roma em fim daquellc ponto em diante, feita o jogo c o
ludibrio das nações do Norte , cjuc como á competência lhe
vinhão tirar cada huma seu pedaço : de sorte que dahi a se-
ccnta annos apenas se viiío nelia as sombras do que fora.
Hum acontecimento tão grande pelos seus adjuntos e
consequentes, não podia deixar de ter feito hum dos prin-
cipacs pontos de vista da Providencia do Altíssimo no go-
verno do mundo , e no da sua Igreja.
Grandes interpretes do Apocalypse , seguindo as pi-
zadas do sempre illustre e sempre respeitável Bispo Mr.
Bossuet , querem que a tomada de Roma pelos Godos ,
preludio da total ruina do Império, fosse como o objecto
d'atribuição daquella sagrada e abstrusissima profecia.
§ I.
Que gentes erSo estes Bárbaros j e donde vier ao.
Dado que a nação dos Godos fosse conhecida dos Ro-"
manos já do tempo de Júlio César, como com Orosio af-
firma Santo Isidoro : o nome dos Godos comtudo eu o não
acho em Author algum , que escrevesse em tempo da mais
pura Latinidade. Sobre o que basta observar , que Plinio
não menciona Godos.
He porém innegavel , que os escritores que florecêrão
entre o império de Diocleciano e o de Constantino, como
Esparciano, Trebellio Pollião , c Júlio Capitolino, fazem
já menção delles debaixo daquelle nome , quando tratão
das cousas de Caracalla , de Maximino, e de Valeriano.
Pelo que toca á origem do nome, Santo Isidoro na
chro-
DAS SciEHCtA^ DE LiSBOA. 2I(^
chrotiica dos Godos diz , que alguns derivarão o nome dos
Godos do de Magog filho de Jafech , ou do de Gog men-
cionado por Ezequiel : mas que todj a antiguidade erudi-
ta confundira os Godos eom os Getas.
Isto que sem citar a S. Jcronymo escreve Santo Isi-
doro, foi sem duvida tirado por elle do Doutor Máximo,
que assim mesmo o refere nas suas Questões Hebraicas so-
bre o capitulo decimo do Génesis.
Em dizer porém S. JeronymOj que toda a ailtiguida-,
de erudita confundira os Godos com os Getas , allude o
Doutor Máximo ao que conta Esparciano na vida do Im-
perador Antonino Caracalla. Foi o caso, que Caracalla por
ter vencido os Alemães , tinha arrogado a si o titulo de
jílamanico» Helvio Pertinaz para o motejar, disse-lhe numa
oecasião : Se vos parece , Senhor , ajuntai ao titulo d^AlamA-
nlco o de Getico Máximo. Prosegue Esparciano , e declara j
que o pique de Pertinaz se fundava , em que Caracalla
tinha morto a seu irmão Geta ^ e que Getas se chamavão
os Godos , que elle vencera , indo de caminho para o
Oriente. Adde si placet , etiam Geticus Maximiis : qiiod Ge-
tam occiderat fratrem , et Gothi Geta dícerentur^ quos illc dum
ad Orientem transiit^ dcvicerat.
Allude mais S. Jcronymo a escrever Júlio Capitolino
na vida de Maximino , que Maximino fora em extremo
amado dos Getas , como seu cidadão. Amatiis est wiice a
Getis , quasi eorttm civis. Assima tinha dito Capitolino, que
o pay de Maximino era Godo , a mãy Alana. Bárbaro etiam
patre et ttuitre genitus , quorum alter e Goíhia, alter ex Ma-
nis.
Ora os Getas , segundo nos informa Plinio no Livro
IV, cap. 12, erão os que os Romanos por outro nome
chamavão Dacos. Getíê ., Romanis Dacii dicti. E isto mesmo
recoriheceo depois o nosso Paulo Orosio , quando no Li-
vro I, cap. i6 poz a Gothia na Dácia , e reconheceo que
os Godos erão o'^ mesmos , que os Getas,
Mas Trebeliio Polliâo na vida dos dous Gallienos ^
Ee ii cha-
220 MeMOUIAS da AcADEIfftA RbAL
chama os Godos tronco dos Scythas. Scytha atitem^ id est ^
pars Goíhortun. E Santo Isidoro na Recapitulação da sua
Historia dos Godos adverte , que o nome de Getas atrri-
buido aos Godos , he huma leve alteração do nome de
Scythas : GetíC quasi Scytha sunt wincupati.
Para se conciliarem estas idcas , que parece se encon-'
trão humas com outras , temos a Jornandes Author do sex-
to scculo , que de propósito escrcvco das cousas dos Ge-
tas ou dos Godos : e que começa a sua Historia pelas di-
versas emigrações, que cm diversos tempos fizerão os Go-'
dos da sua terra pátria , que era a ilha ou pcninsula de
Scaudinavia , chamada por outro nome Scandia , ou Scanzia ,
ora á Dacia , ora á Scythia Europea, ora a outras regiões
do Norte. Donde se conclue , que das diversas regiões ,
em que tendo sahido do seu paiz se estabelecerão , he que
os Godos ora forao confundidos com os Getas , ora com
os Scythas.
E este he o sentimento mais commum , e mais bem
recebido dos modernos críticos , dos quacs basta citar aqui
a José Scaligero nas notas á Chronica d' Eusébio , e a Ni-
coláo Petreio nas suas Origens dos Cimbros , e dos Godos.
Como não he do meu intento tecer a historia de to-
das as emigrações dos Godos, algumas das quaes segun-
do Jornandes, succedêrao muitos annos e ainda muitos sé-
culos antes da vinda de Christo ao mundo. Passo a sub-
stanciar os transes mais notáveis que elles passarão em
tempo dos Imperadores Romanos , ainda antes que inva-
dissem a Itália , á França , e a Espanha : pelos quaes tran-
ses se poderá também fazer algum conceito , de quaes fos-
sem as forças e a valentia destes Bárbaros , nossos fiimo-
sos ascendentes e progenitores.
No anno de Christo 2^6 , sendo Imperador Valeria-
no , tomarão os Godos aos Romanos a Grécia , a Mace-
dónia, o Ponto, a Ásia Menor, e o lilyrico : das quaes
regiões a Macedónia e o lilyrico retiverao elles debaixo do
seu poder quinze annos. Santo Isidoro na Chronica dos Godos.
Sue-
DAS SCIENCIAS OB LiSSOA. 22f
Succedcndo a Valeriano o Imperador Cláudio II , este
dentro d' hum anno em diversas batalhas que lhes dco jun-
to a Marcianopolc , a Thcssalonica , e ao monte Hemo,
desbaratou trezentos e vinte mil Godos, e lhes metteo no
fundo duas mil nãos, como elle mesmo refere numa carta
que cscreveo a Junio Brocco Gjvcrnador do Illyrico. Tre»
bcllio Polliáo na rida de Cláudio.
O antigo Author dos Fastos atrribuidos a Idacio ,
consigna estas victorias de Cláudio sobre os Godos no Con-
sulado do mesmo Cláudio , e de Paterno , que cahio no
anno de Christo 269. His Cítiss. victi Gothi a Cláudio. O que
admittido como certo , não chegarão os Godos a reter o
Illyrico e a Macedónia quinze annos, mas somente quator-
zc talvez incompletos: pois tantos e não mais, são os qus
vão de ijò a 269.
Por estas tão insignes victorias honrou o Senado a
Cláudio com três monumentos os mais brilhantes , que po-
dia inventar a vaidade Romana. Dedicou-lhe na Cúria hum
escudo de ouro, onde se via gravada a imagem de Cláu-
dio vestida de sua couraça. Levantou-lhe no Capitólio bem
defronte do altar de Júpiter, huma estatua de dez pés de
altura também de ouro- Erigio-ihe na Praça huma colum-
na , que servia de pedestal a outra estatua de mil e qui-
nhentas libras de prata , daquellas que por estarem todas
rodeadas e marchetadas de palmas , chamava o estilo da-
quclle tempo Estatuas Palnuitas. TrebcUio Pollião na mes-
ma vida de Cláudio. 3b 2ci
Imperando Constantino, e no seu anno vigésimo, que
foi o de Christo 3;! invadirão os Godos a Sarmacia , en-
chendo tudo de estragos e de mortes. No seguinte anno
de 332 os repellio Constantino, fazendo-os passar para a
banda dálem do Danúbio : com o que mereceo as publicas ,
acclamações do Senado. Sjnto Isidoro na sua Chronica ,
Combinado com os Fastos de Idacio. r 3Í>íj^
No anno de 369 sendo Imperador Valente , diz San-
to Isidoro que fora Athanarico crcado primeiro Rei dos
Go-
i2i Memoriaí da Academia Real
Godos. Creio que lhe chama primeiro no conhecimento c
trato mais intimo com os Romanos. Porque aliás antes de
Athanarico , reconhece e nomea Jornandes outros Reis dos
Godos muito mais antigos: como Corillo , Berig, e Ge-
bcrig. E quatrocentos annos mais antigo de que Jornan-
des, celebra Estrahão no Livro VII outros dous Reis Go-
dos, Byribistas, e Dromiquetas. Ainda assim em Espanha,
como Santo Isidoro foi sempre tido por texto das cousas
Gothicas , todos os catálogos antigos dos Reis Godos co»
meção por Athanarico.
Como passados alguns annos se dividissem os Godos
em dous partidos , reconhecendo huns por seu Rei a Atha-
narico , outros a Fridigerno : auxiliou o Imperador Vidente
a Athanarico , para que este vencendo em batalha a Fridi-
gerno , ficasse único senhor do Reino. Então mandou pe-
dir Athanarico a Valente , que lhe enviasse sacerdotes , que
instruissem os Godos na Religião Christaã. Valente como
Ariano que era, mandou-lhe sacerdotes Arianos, cuja he-
resia professa'rão e conservarão os Godos até o tempo de
Reccaredo. Por este tempo da missão enviada por Valente ,
tiverão os Godos hum Bispo da sua nação chamado Galfilas
ou Ulfilas , que inventou os caracteres Gotliicos , e tradu-
zlo na sua Lingua a Sagrada Escritura do Velho e Novo
Testamento.
Não obstante porém, que deste tempo em diante fi-
cou o coramum da nação Goda inficionado com a heresia
Ariana ; comtudo de varias cartas de S. João Chrysostomo
se faz certo , que em tempo deste Santo Patriarca e no
Império de Arcádio, havia em Constantinopla muitos Go-
dos Catholicos com sua Igreja própria , onde os clérigos
Godos ordenados por S. João Chrysostomo celebravão com
edificação os officios Divinos. E o mesmo Santo Patriarca
deo para a Gothia hum Bispo por nome Unilas, homem
d'admiravcl virtude , que eu creio era da mesma nação.
Veja-se Tillemont na vida de S. João Chrysostomo, Arti-
go LII e LIV. O qual Tilieraont todavia julga , que es-
tes
CAS S^ciENCiAS Df Lisboa. zij
tcs Goc?ds eráo diversos daquelles , que expulsos do seu
paiz pelos Hiinnos, se tinhao valido da protecção de Va-
lente, como já vamos a cxpòr.
No anuo de 376 (prefiro os cálculos d' Idacio aos que:
vai seguindo Santo Isidoro) lançados tora da sua terra os
Godos pelos Hiinnos, se valerão aquelles da commiscração
de Valente , o qual lhes concedco para habitarem a Thra-
cia. Alas aqui vendo os Godos que os Romanos os oppri-
miáo , logo no seguinte anno de 377 se rcbcjlárão contra
o Império, Passando Valente a dar-lhes batalha dentro da
mesma Thracia , foi o exercito Romjno dei;feito pelos Go-
dos ; e Valente que ferido d' huma lançada se tinha aco-
lhido a huma cabana do campo, morrco queimado dentro
delia, correndo o anno de 37S. Santo Isidoro na sua Chro-
nica combinado com Idacio nos Fastos.
He not.ivcl o modo , com que o referido Idacio con-
ta nos seus Fastos a desventura de Valente. Porque diz
assim : Sendo Cottmles Valente a sexta vez , e Falentiniano a
segunda^ (hc justamente o dito anno de Christo 378) par-
tia Valente Aigti^to de Con~tantinopla no dia três dos Idus de
Junho , e deo-se huma gran.ie batalha entre Romanos e Godos
a dez milhas d' Hadrianopole ^ dia sinco dos Idus £ Agosto. E
desde aqnelle dia nunca mais appareceo Valente Augusto. E por
ttdo o anno habitarão os Godos juntos na Diocese das Thra-
cias , e da Scythia , e da Mesta , e as devastarão : e depois
chegarão até ás portas de Constantinopla.
No anno de 381 imperando já Theodosio o Grande,
morto em Constantinopla Athanarico Rei dos Godos, se
renderão estes ao Império , e servirão nclle vinte e oito
annos. Fastos d* Idacio, e Chronica de Santo Isidoro.
O mesmo ou outro Idacio na sua Chronica nos ad-
verte , que este entregarcm-se os Godos aos Romanos , fo-
ra como huma paz simulada. Gothi infida Romanis pace se
tradunt.
Por este tempo he que se lamentava Santo Ambró-
sio , de que a Guarda do Coroo dos Imperadores fosse
for-
144 Memorias da Academia Real
formada d'Archciros Godos : isto he , formada d' huns in-
veterados inimigos do Império. Santo Ambrósio nos Livros
De Fide a Graciano.
Então mesmo era hum dos Condes do Império aqucl-
le Alarico , que depois cm tempo d' Honório feito Rei
dos Godos, acommetteo c tomou Roma. He reflexão do
nosso Paulo Orosio , donde a tirou o grande Bossuet , pa-
ra illustrar com ella hum dos mais escuros lugares do Apo-
calypse.
Poucos annos antes que Alarico tomasse Roma, tinha
outro Rei Godo por nome Radngasio , posto em consterna-
ção toda a Itália , com hum exercito de duzentos mil homens.
Mas fechado por Stilicao entre os montes da Toscana , pe-
receo Radagasio com todo o seu exercito , mais á torça
da fome , do que á da espada. Chronica de Santo Isidoro.
Passando já dos Godos aos Suevos, de que já debai-
xo deste mesmo nome faz menção Júlio César : Estrab.io
no Livro VII, pag. 445- c segg. os colloca na Germânia
entre o Rhin e o Albis , dando-lhe por habitação princi-
pal o bosque Hcrcynio , c incluindo nelles os Marcomma-
nos , povos que João Christovão de Jordan nas suas Ori-
gens Slavkas quer que sejão os Bobemos. O dito bosque
Hercynio affirma Júlio César no Livro VI Be Bello Callico .,
cap. 24 , que tinha de largura nove dias de jornada. Pom-
ponio Mela no Livro 111 , cap. 3 lhe dá por todo o âm-
bito o caminho de secenta dias. Ainda hoje forma a Sue-
via hum dos dez Círculos , em que se divide o Império
Germânico : e daqui sahírão nos séculos XII e XIII os dous
primeiros Imperadores Fridericos.
Quanto aos Alanos, Plínio no Livro IV, cap. 12 os
p6e na Scythia Europea, visínhos dos Roxolanos, os quaes
alguns modernos julgão , que crão os que por outro nome
se chamâo hoje Moscovitas. Ammiano Marcellíno no Li-
vro XXXI , cap. 2 e 3 faz os Alanos vindos da Ásia para
a Scythia Europea, e coUoca-os habitando sobre ^)Tanais,
que lhes deo o outro nome de Tanaitas.
Fi-
DAS SciENCIAS DE LiSBO/V. aif
FinaJmente os Vândalos , sabe-se pelo testemunho de
Procopio na sua Historia De Bel/o Wandalico , que erao ori-
ginariamente da raça dos Godos. E sabe-se outro si pela
Historia Gctica dejornandes , que desunidos por guerras dos
Godos seus Aborigines , e expulsos por elles da Dacia , fo-
rão os Vândalos habitar na Pannonia hoje Hungria , sendo
Imperador Constantino : e que na Pannonia se achavão a
tempo , que imperando Honório os incitou Stilicão a vi-
rem assolar as Gallias , e depois as Espanhas , para onde
marcharão juntamente com os Alanos e Suevos.
§ II.
Em que tempo entrarão as Nações setetitrtonaes em Espanha.
Os Suevos, Alanos, e Vândalos, entraVão primeiro
em Espanha, e entrarão todos juntos. Depois delles esta-
rem de posse d'Espanha, he que entrarão nella os Godos.
Tudo ficará claro , dos Documentos que vou a propor.
Os Suevos pois , os Alanos , e os Vândalos , entrarão
d'alkivião em Espanha no anno de Christo 409.
Prova-se da Chronica d'Idacio Bispo de Chaves, que
sobre ser escritor nacional , foi também coetâneo , e no se-
gundo anno da Olympiada CCXCVII. diz assim : jllani ,
et Wandali , et Suevi Hispatiias ingressi. Aera CCCCXLVII.
Honório VIU. et Tbeodosio Arcadii filio 111. Consulibus. Quer
dizer : Na era de 447 entrarão os Alanos , e Vândalos , e
Suevos em Espanha, sendo Cônsules Honório a oitava vez,
e Theodosio filho d'Arcadio a terceira.
Abatão-se da sobredita era de César 447 os 38 an-
nos , que ella leva de dianteira ao nascimento de nosso Sal-
vador: e ella nos dará pontualmente o anno de Christo
409.
Do mesmo anno 409 são Índices infalliveis as outras
duas notas, com que Idacio marcou esta entrada dos Bár-
baros em Espanha : isto he , a nota do Consulado VIII.
Tomo IX. Ff d'Ho-
aié Memorias da Academia Real
d'Honorio , c terceiro de Theodosio : e a nuta do segua-
do anno da Olympiada CCXCVIl. Porque ainda que Sir-
mendo c Petau disserão , que o anno da entrada dos Bár-
baros cm Espanha fora o primeiro da dita Olympiada
CCXCVIl. foi porque (como advertio Flores) não repa-
rarão que asOlympiadas d'ldacio erao Euscbianas , que vão
hum anno adiantadas das vulgares.
No mesmo anno de Christo 409 correspondente ao
Consulado oitavo d'Honorio c terceiro de Theodosio , po-
scrão com Idacio a entrada dos Suevos , Alanos , e Vânda-
los cm Espanha, os outros dous igualmente famosos Chro-
nisras Prospero e Cassiodoro.
De propósito deixo d'allegar pela Época da entrada
dos Bárbaros em Espanha o Author dos Fastos chamados
Idacianos , qiic tambcm a poe no Consulado oitavo d'Hp-
noiio c terceiro de Theodosio : porque depois do indubitável
Idacio na sua Chronica ter estabelecido a Época da dita
entrada tio clara e distinctamente , como vimos; parece
escuzndo allcgar o testemunho d'huns Fastos , que se não
eabe de cerro , se são do mesmo Idacio.
Mas não he para se omittir a averiguação, sobre que
Chronologia scguio no presente assumpto Santo Isidoro que
«m pontos da historia d'Espanha , he depois d'Idacio o se-
gundo Texto.
Tendo pois Idacio designado com tantos e tão distin-
ctos caracteres , o anno da entrada dos Suevos , Alanos ,
e Vândalos em Espanha ; parece incrível , que Santo Isidoro ,
que como observou Pagi , costuma transcrever a Idacio por
palavras formacs , apontasse outra Época daquclla entrada.
. O caso porém he , que não só na Edição Real de Ma-
drid de 1Í99. mas ainda na novissima de Madrid de 1778.
traz o Texto de S. Isidoro a sobredita entrada das três
Nações em Espanha , posta hum anno antes : isto he na
era de 446 que dá o anno de Christo 408. Porque no
fim do Parrafo I. da historia dos Vândalos , se lê em am-
bas as duas Edições apontadas o seguinte : Aera CDXLFL
me'
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 22/
tuemorata gentes Hispaniarum Provindas irriiwftint. Quer di-
zer: Na era de 446 ( he o dito anno de Chrisro 4CÍ!) eii-
trão as ditas Nações por força nas Provincias a'Espariha.
O que cau/.a maior admiração neste particular hc ,
que tendo Santo Isidoro posto no fim do dito Parrafo 1. a
entrada dos Suevos , Alanos , e Vândalos em Espanha no
anno de 408 pelas palavras que acabamos de referir : quan-
do logo no principio do Parrafo 11. torna a fallar do an-
no , em que as três Nações entrarão em Espanha , ambas
as mesmas duas Edições Alatritenses com hum erro palpá-
vel de números, põem a entrada daquellas nações dez an-
nos adiante, dizendo assim: Jera CDLVI Vandali ^ J/aiii y
et Snevi Hispauias occttpantes , neces v as tat tones que cruentis in-
cíirsíonibíis faciunt. Quer dizer : Na era de 456 (he o an-
no de Ghristo 418) occupando os Vândalos, Alanos, e
Suevos a Espanha, commcttcm neila com as suas sangui-
nolentas correrias muitas mortes e estragos. De sorte que
dentro de poucas regras põem as duas Edições Matriten-
ses a Santo Isidoro não só discorde de Idacio , quando faz en-
trados em Espanha os Suevos , Alanos , e Vândalos no anno
de 408, mas também discorde de si mesmo ; quando logo os faz
entrados no anno de 41 8. Erro que Flores já tinha notado na
primeira Edição de 1 5- 99 , e que supposta a advertência de Flo-
res , fica indisculpavel na de 1778. Mas passemos adiante.
Depois de Idacio pôr a entrada dos Suevos, Alanos,
e Vândalos em Espanha no dito anno de Christo 409 pas-
sa logo o mesmo Idacio a pôr no seguinte anno de 410
a tomada de Roma por Alarico Rei dos Godos , e morto
este logo depois da tomada de Roma, asuccessao d'Ataul-
fo no Reino. E be de notar , que em pôr a tomada de
Roma e a morte d'Alarico no anno de 410 seguem cons-
tantemente a Idacio os outros três famosos Chronistas
Prospero , Marcellino , e Cassiodoro. Ora esta Época da to-
mada de Roma e da morte immediata d'Alarico em 410
he a que nos abre caminho para estabelecermos a Época
da entrada dos Godos em Espanha.
Ff ii Tan-
228 Memorias da Academia Real
Tnnto Idacio pois, como Santo Isidoro, ambos suppdem ,
que os Godos não vicrao a Espanha , senão quando a cila
veio o seu Rey Ataulfo , immediato succcssor d'Alarico.
Ora Auulto , segundo Santo Isidoro , começou a reinar na era
de CCCCXLIX. que dá o anno de Christo 411 e ao quin-
to anno dos seis que ao todo governou, he que deixada a
Itália veio para França. Veio logo Ataulfo d'Italia para Fran-
ça no anno de 415". Aqui celebrou as suas vodas com a
infeliz cativa Placidia irmã d'Honorio : até que ou por pcr-
suaçáo , ou por força que lhe fe/. o Patrício Constâncio ,
passou de Narbona a Barcelona, onde n'huma conversação
familiar foi morto aleivosamente por hum dos seus Godos ,
no anno de 416 ultimo dos seis que remou, como se co-
lhe não só de Idacio , mas também de Marccllino , ede Santo
Isidoro. Logo os Godos entrarão em Espanha com Ataul-
fo entre o anno de 415' e o de 416.
líeterminar agora , se os Godos entrarão em Espanha
ainda no anno de 415' depende de se saber, que tempo
se demorou Ataulfo em França : o que não he expresso nos
sobreditos Authores. Mas prudentemente podemos discor*
rer, que o anno de 415' todo se gastou parte na jornada
d'Italia para França ; parte na celebração das vodas com
Placidia ; parte nas negociações do Patrício Constâncio;
e parte na passagem de França para Espanha : c que as-
sim não entrou Ataulfo com os seus Godos em Espanha ,
senão correndo já o anno de 416.
O doutíssimo Henrique Flores na Nota VI. ao seu
Idacio Illustrado , que vem no Tomo IV. da Espanha Sa-
grada y deo por hum erro dos Copiadores em Santo Isidoro ,
pôr-sc o primeiro anno d'Ataulfo , na era de CCCCXLIX.
que he o anno de Christo 41 1. E assim na nova Edição
que nos deo da Chronica dos Godos de Santo Isidoro no To-
mo VI. da mesma obra , em lugar da era CCCCXLIX.
emendou CCGCXLVIII. que he o anno de Christo 410
como já antes trazião as Edições de Grocio e de Labbé.
Mas ainda admittida esta emenda, digo que se pódc
pfo-
DAS Sci ENCi AS u E Lisboa. 229
provar ck Santo Isidoro , que o anno cm que os Godos cntrá»
rão em Espanha foi o de 415' para 416. A nizão hc : Por-
que dado que o primeiro anno d'Ataulfo começasse ainda
no anno de Christo 410 nao pode com tudo negar Flores^
que a maior parte deste primeiro anno d'Ataulio, pcrtcn-
eco ao anno de 411 , visto que a ttjmada de Roma cm 410
foi a 24 d*Agosto ; e que tendo acontecido pouco depois
a morte d'Alarico , não podia Ataulfo entrar a succedcr-lhe
no Reino , se não quando muito no Setembra seguinte já
adiantado. O que se faz evidente pelo que refere Zozimo:
que Alarico sahira de Roma três dias depois que a con-
quistara: e que partindo para Rhegio , com tenção de pas-
sar aSicilia, e depois aAfrica, sobrevindo-lhe huma tem-
pestade que lhe destroçou a armada , morrera de doença ,
e tivera por sepultura o rio Bascnto.
Fixada assim a Época da entrada dos Godos em Espa-
nha no anno de Christo 416 passo a observar com Jornan-
des e com Paulo Di icono , que os Godos que tinhão vin-
do das partes occidcntaes da sua Região, se ficarão cha-
mando Fesegodos y nome depois corrompido em Visigodos:
e estes são os que se estabelecerão em Espanha. Os que
tinhão vindo das partes orientacs , se ficarão chamando Os-
trogodos : e estes são os que depois se estabelecerão em Itá-
lia.
A razão dos nomes dcscubrio-no-la Resende , notando
que na lingua Germânica ou Alemã , Vest significa occiden-
te , Ouer oriente. Donde elle infere , que os nomes que
os marinheiros Portuguezes dão aos ventos, tem a sua ori-
gem aos Godos.
Mariana crê , que também nos ficarão dos Godos os
seguintes vocábulos : Albergar , Bandeira , Caça , Camisa ,
Cangirão , Elmo , Esgritnidor , Harpa , Moça , Tripas.
Este juizo , por ser d'hum homem tão intelligente,
merece toda a attenção aos nossos Diccionaristas.
§
ajo Memorias da Academia Real
§ III.
Diversa fortuna , que em Espanha correrão estas quatro Na-
fÕes,
Ao terceiro anno da sua entrada, isto he, no anno
de Christo 411 saciada já a fúria e cubica dos Suevos,
Alanos, c Vândalos com as crudelissirhas hostilidades, que
executarão na miserável Espanha, sortearão os Bárbaros en-
tre si as Províncias, para cada hum saber, qual havia de
habitar. Coube aos Suevos a Galliza : aos Alanos a Lusitâ-
nia e a Província de Carthagcna : os Vândalos ficarão com
a Betica. Assim Idacio e Santo Isidoro.
He de saber , que a Galliza tinha então limites mui-
to mais extensos, do que hoje: porque alem do Entre Dou-
ro e Minho , e Trás dos Montes , comprehendia como no-
ta Mariana , toda a Castella Velha.
Supposta porém a repartição sobredita , pouco ficava
aos Godos, onde podesscm pôr o pé seguro. Foi-lhes lo-
go necessário ganhar á força de braço o terreno , que oc-
cupasscm. Vallía immediato successor d'Ataulfo fez dura
guerra aos Alanos e Vândalos : a qual continuada com igual
vigor por seus successores , resultou daqui , serem os Ala-
nos inteiramente desfeitos na Lusitânia , e serem obrigados
os Vândalos a largar a Betica, sendo seu primeiro Rey
Gunderico. Idacio e Santo Isidoro.
Expulsos d'Espanha os Vândalos passa'rão a Africa com
todas as suas famílias , governando-os já Genserico , irmão
e successor de Gunderico, anno de Christo 429. Idacio,
e Santo Isidoro.
Cassiodoro adverte , que para esta passagem tirerão
os Vindalos por conselheiro e instigador o Conde Bonifá-
cio rebelde do Império, Personagem muito célebre na his-
toria pelas suas aventuras , e muito mais pela intima ami-
zade que teve com Santo Agostinho.
Pa-
DAS SciENCiAS Dl Lisboa. 231-
Para difFundir por toda a Africa o terror das íuas ar-
mas, espalhou Gcnserico voz, que tcita resenha das suas
tropas, SC achaváo no seu exercito oitenta mil homens. Mas
o que SC passava na realidade era, que aquelle numero só
procedia verdadeiro , mettendo ncUe também mulheres e
meninos. Victor Vitense na historia da Perseguição Vanda-
lica.
No decimo anno da sua entrada em Africa , isto he,
no anno de Christo 439 e no consulado decimo sétimo de
Thcodosio , tomarão os Vândalos Carthago capital da mes-
ma Africa. Idacio , Prospero , e Marcellino.
Sobre o tempo que durou a Monarquia dos Vândalos
cm Africa, Santo Isidoro seguindo a Victor de Tunes, diz
que forão 97 contados des do tempo que os Vândalos en-
trarão cm Africa, até o em que forão totalmente destruí-
dos por Bclisario general de Justiniano. Esta conta dos 5)7
annos de duração, hc a que sahe das parcellas dos annos,
que Santo Isidoro assina a cada Rei desde Gcnserico ate' Gli-
mer: e a que segundo a reducçao da era , a que Santo Isido-
ro alliga a destruição da mesma Monarquia , parte direita
des do anno de 429 até o anno de 5-26. Mas já daqui se
vc , que a reducçao que faz Santo Isidoro do ultimo anno da
Monarquia dos Vândalos acra de DLXIV e ao anno CXIII
da entrada de Gunderico em Espanha , he inconciliável
com a verdadeira Chronologia , e inconciavel comsigo mesma.
Hc inconciliável com a verdadeira chronologia , Pri-
mo: porque a era de 564 dá o anno de Christo 526 an-
no em que Justiniano ainda não era Imperador : pois como
attesta Victor de Tunes , o primeiro anno de Justiniano
cahio no Consulado de Mavórcio : o consulado de Mavórcio
porém cahio no anno seguinte de 5-27. Secundo : Porque a des-
truição da Monarquia Vandalica por Belisario , como attesta
não só Victor de Tunes , mas também Procopio , foi no anno
sétimo de Justiniano: o anno sétimo de Justiniano porém ca-
hio no anno de 533.
He inconciliável comsigo mesma: porque a era de j 64
do
23* Memorias da Academia Real
de nenhuma sorte pode coincidir com o anno 113 da en-
trada dcGundcrico em Espanha. Para o que basta reflectir ,
que a era de 564 dá o anno deChristo 526. O anno 115
porém da entrada de Gunderico em Espanha, necessaria-
mente ou foi o anno de 5:21 ou o anno de J22. Dcmos-
tra-se : porque o anno da entrada dos Vândalos cm Espa-
nha , segundo Santo Isidoro , foi o de 408. Ajuntemos a estes
408 aquelles 113. sahir-nos-ha o anno de j2i. Segundo
Idacio , o anno em que os Vândalos entráião em Espanha ,
foi o seguinte de 409. Ajuntemos a estes 409 aquelles mes-
mos 113. sahir-nos-ha o anno de 522. Logo a era de 5-64
de nenhuma sorte pôde coincidir com o anno 113 da en-
trada de Gunderico em Espanha.
He muito para sentir, que des do anno de I5'99 em
que foi feita a Edição Real de Madrid de todas as Obras
de Sjnto Isidoro, não tenha até agora apparecido algum anti-
go Códice de boa nota , por cujo meio se podessem ajus-
tar em Santo Isidoro os números de certas Eras e de certas
Épocas : e isto para não termos ainda hoje o dissabor de
vermos reproduzidos na Edição novíssima também de Ma-
drid de 1778 anachronismos e incoherencias , que parece
incrível viessem do Original do Santo Chronista.
Os Suevos experimentarão entre nós melhor fortuna.
A sua Monarquia de Galli/a conservou-se em respeito cen-
to e setenta e tantos annos , desde Hermerico, que foi o
primeiro Rei , até Heborico que foi o ultimo. Mas em fim
foi absorvida por guerra na dos Godos, sendo Rei destes
Leovigildo , e no anno decimo sétimo do seu Reinado ,
que foi odcChristo ^Z^. João Biclarense , e Santo Isidoro.
Reinando o seu antepenúltimo Rei Theodomiro, ti-
nhão os Suevos abjurado a heresia Ariana , e abraçado a
Religião Catholica , por diligencias de S. Martinho Bispo
do Mosteiro de Dume , e depois também Arcebispo de Bra-
ga. Assim o mesmo Santo Isidoro tanto na Chronica dos Sue-
vos, como no Livro Dos Varões Illustres ^ cap. 35'.
Depois da incorporação dos Suevos , ficarão os Godos
uni-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 233
únicos senhores de toda a Espanha. Nella comtudo se con-
servarão sempre alguns Romanos até o tempo de Sisibuto ,
que delles triumfou. Santo Isidoro na Chronica dos Godos.
Antes pela Chronica Albeldensc consta , que ainda cm
tempo de Suintila successor de Sisibuto, aflPectavão os Ro-
manos ter suas pretençõcs em Espanha.
Fora d' Espanha possuião também os Godos a Gallia
Narboncnse , e a Aquitanica : a Narbonense des do tempo
d'Ataulfo , como se colhe da Chronica d' Idacio : a Aqui-
tanica des do tempo de Wallia successor d'Ataulfo , como
se colhe da Chronica de Santo Isidoro.
Daqui se verá a razão , porque o Concilio Narbonen-
se do anno de Christo 589 se diz nas Actas, que fora ce-
lebrado no quarto anno do gloriosíssimo Rei Reccaredo nosso
Senhor, E nos Concilios Tuletanos III e IV juntamente
com os Bispos d' Espanha assinao os MetropoHtanos de
Narbona.
Assim em Narbona tinháo os mais antigos Reis Go-
dos a sua Corte , que depois se mudou para Toledo.
Ainda hoje se conservão em vários gabinetes meda-
lhas de Leovigildo e d'Ervigio, com a letra no reverso,
NARBONA PIUS.
Pcira que este continuado dominio dos Reis Godos
na Gallia Narbonense , fique por ultimo authorizado cora
o testemunho positivo d'algum escritor clássico ; produzo
o que na sua Chronica nos deixou o nosso João Biclaren-
se por estas palavras : Bis diebus Linva Rex vivendi finem
accepit , et Hispânia omnis , Galliaque Narbonensis , in regno
et potestate Leovigildi concurrit.
Esta Gallia Narbonense he a que os eruditos costu-
mão chamar Gallia Gothica,
Pelo que escreve o Monge de Silos, Author d'huma
Chronica do século XII , possuião também os Reis Godos
fora do Continente d' Espanha , e alem do Estreito de Gi-
baltar, aquella parte da Africa que formava a Província
Tingitana : porque diz que desta Província era Governador
Tomo IX. Gg aquel-
234 Memorias da Academia Real
aquellc Conde Julião , que em ódio e vingança do Rei
Rodrigo , introduzio os Mouros em Espanha.
No quarto anno do Rei Reccaredo , que foi o anno
de Christo jSj dentro do Concilio Tolctano III abjurada
a heresia Ariana, professarão os Godos a Fé nrthodoxa da
Trindade Beatíssima , e a dos mais mysterios da nossa Re-
ligião Catholica Romana : conversão , cuja gloria constan-
temente attribuera todos a S. Leandro Arcebispo de Sevi-
lha.
Florccia por este mesmo tempo em fama de virtudes
c de doutrina, o nosso illustre Portuguez Scalabitano João
Abbadc do Mosteiro de Biclara , e depois Bispo de Gi-
rona, que nos deixou huma breve Chronica do que succe-
dco no Império Romano e em Espanha , dcs do primeiro
anno de Justino o moço até o oitavo de Maurício, e quar-
to de Reccaredo. Nesta Chronica deo o Cardeal Aguirre
por certo , que estavao viciados por algum Ariano certos
lugares , onde se diz , que o Príncipe Hermenegildo ir-
mão m.iis velho de Reccaredo , se rebcllou contra seu pay
e seu Rei Leovigildo , e se fizera tyranno do Reino. Her-
menegilãiis tyrannidem assumens iti Hispali civitate rehellione
facta , &c. E outra vez : Leovigildus Rex exercitum ad ex-
ptignandum tyranmim filium colligit. E logo : Leovigildus re-
hellein filium gravi ohsidione conchidit. Porém o juizo d'A-
guirre contra a sinceridade da Chronica do Biclarense he
insustentável e inadmissível. Porque pelos mesmos termos
fallou d' Hermenegildo pouco depois Santo Isidoro , quan-
do na sua Chronica geral do mundo escrcvco assim : Go-
thi per Hermenegildiim Leovigildi Regis filiam bifarie divisi
mutua CíBde vastantur. E na Chronica particular dos Godos:
Hermenegildiím ãeinde filium imperiis stiis tyranuizantem , ob-
sessum exsuperavit. Sobre o que imitando depois a Santo
Isidoro escreveo da mesma sorte o Arcebispo de Toledo
D. Rodrigo Ximenes , Livro II, cap. 14. Hermenegildum
deinde filium couíra imperium tyrannizatitem , ohsessum Hispa-
li dolo cepit. Concluamos logo, que a rcbelliao do Prínci-
pe
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 2^5*
pc Hermenegildo he hum facto constante em todas as
Historias d' Espanha : c que quem poz a Hermenegildo
nos altares, não forão as acções da vida, mas sim a mor-
te soffiida valerosamente em defensa da verdadeira Fé, de
que seu pay o quiz apartar.
§ IV.
Ceremottias da Inauguração.
ê
A Inauguração dos Reis Godos constava de Sagraçâo
da Pessoa , e de Juramento das Leys.
Da Sagraçâo da Pessoa , como ainda hoje praticão os
Reis de França , dão illustres testemunhos o Concilio To-
letano XII, cap. i. onde se refere a sagraçâo do Rey Er-
vigio : e S. Julião Arcebispo de Toledo na Historia de
Wamba , onde descreve a sagraçâo do mesmo Wamba.
A antiga Chronica dos Reis Visigodos , que se cos-
tuma attribuir a Vulsa escritor do oitavo século , faz ex-
pressa menção de terem sido ungidos os Reis Ervigio ,
Egica , e Witiza.
Pelos dous primeiros testemunhos do Concilio Tole-
tano XII , e de S. Julião , também sabemos , que ao Ar-
cebispo de Toledo he que competia ungir o novo Rei :
pelos testemunhos da Chronica dos Reis Visigodos , que
esta funcção se costumava fazer em Domingo.
Esta Chronica muito celebre já nos escritos de Am-
brósio de Morales e de João Baptista Peres, (os dous
maiores antiquários que teve Espanha em tempo de Filip-
pe II) foi o Cardeal de Aguirre o primeiro que a deo á
estampa, mas imperfeita entre os Concilios d' Espanha nos
fins do século passado ; e foi D. Gregório Majans e Sis-
car , o que em nossos dias a publicou inteira , na Prefa-
ção ás Obras Chronologicas do famoso Marquez de Mon-
dexar e Agiopoli.
O juramento em que o novo Rei promettia guardar
Gg ii as
136 Memorias da Academia Real
as Leis Fundamcntacs do Reino Gothico , consta do Con-
cilio Toletano VI, cap. 3 , c do Concilio Toictano VIII,
cap. 10.
Huma destas Leys juradas era , que elle Rei não con-
sentiria em Espanha aos Judeos o exercicio da sua Reli-
gião Mosaica. Concilio Toictano VI , cap. 3. Outra, que
cUc Rei não alienaria os bens da Coroa. Concilio Toicta-
no VIII no Decreto final.
Esquecia-me notar , que esta ceremonia de se fazerem
sagrar ou ungir os Reis Go4os , passou dellcs aos antigos
Reis de Leão seus successorcs. Prova-se isto da Chronica
do Monge de Silos, escritor do século XII, que faz sagra-
do cm idade de treze annos ao Rei D. Affonso IV, c dii
também , que Ordonho II fora sagrado por doze Bispos.
Em século mais chegado a nós , quiz também ser sa-
grado , e o foi com eíFeito em Portugal ElRei D. Duarte.
Ungido e coroado o novo Rei , era do estilo virem
todos os Bispos á Corte dar-lhe o parabém da sua exalta-
ção ao Throno. Consta das subscripções do Concilio To-
letano em tempo de Gundemaro , anno de Christo 610,
onde Santo Isidoro Arcebispo de Sevilha , e Innocencio
Arcebispo de Merida , declarão que elles se achavão aquel-
la occasião em Toledo, por terem vindo cumprimentar El-
Rey. Dum in nrbctn Toletanam pro occursti Regls advenissem»
Os Padres do Concilio Toletano VII em tempo de
Reccesvintho , esmaltarão o seu obsequio para com o Rei ,
estabelecendo no cap. 7, que dahi por diante em sinal de
reverencia ao Príncipe , e para honra da sua Corte , resi-
dissem sempre nella com o Arcebispo de Toledo alguns
Bispos dos mais vizinhos, que se dcvião revezar todos os
mezes , excepto nos tempos da seifa e das vindimas. Pro
rever entia Principis , et Regia sedis iouore.
PAR-
DAS SciElíClAS DE LiSBOA. ^37
PARTE II.
Da Legislação Gotbica.
Antes que entremos na individuação das Leys Gothi-
cas hc necessário advertir, que por via de regra não pro-
niulgavao os Reis Godos Ley alguma de maior pondera-
ção , que não fosse em publica Assemblea dos Bispos do
Reino e dos Senhores da Corte , e de commum con-
sentimento d' huns e outros. Isto se convence das Actas
de muitos Concilios Toictanos do sétimo século , onde ve-
mos , que depois de dtfiniJos pelos Bispos os pontos de
Religião e Disciplina tcciesia&tica , se entrava logo a tra-
trar entre o Rei, Prelados, e Cortesãos, do que perten-
cia ao Governo Politico ou aos negócios do Estado. De
sorte que estes Concilios erão como humas Cortes , onde
a unanimidade do Principe com os Grandes Ecclesiasticos
e Seculares , era a que dava a ultima força ás Leys , que
alli se cstabclecião , como hoje succede nas Dietas do Im-
pério Germânico, e nas do Reino de Polónia.
§ I.
Logo o Governo Gotbico era hum Governo Monárquico tempe-
rado do Aristocrático.
Para demonstração desta verdade basta ouvir, como o
Rei Reccesvintho se explica , fallando com os Padres e Fi-
dalgos , que se achavao no Concilio VIII de Toledo , an-
no de Christo 65- 3.
In commune iam vobis cimctis , et ex divino cultu Minis-
irii idoneis^ et ex Aula Regia Rectoribus decenter electis , di-
Tini nominis adjuratione obstrictis ^ adjicio consensionis me£ ve-
rum purumque promissum ; ut quodcmque jiistitia , aut pieta-
ti , salutarique discretioni vicinum decernere seu adimplere cum
nos-
23? Memorias da Academia Real
tiostro consensH elegeritis , omnia f avente Dco perfiàam , et ad~
versus omnimodam controversiarum querelam , Principali aucto-
ritate muniam ac defendam.
Quer dizer: A huns e outros de vós, tanto Ministros
do culto divino, como Officiaes da Casa Real , juntos nes-
ta Assemblea para tratardes em commum dos Negócios que
vos tenho apontido , e conjurados por mim com a invo-
cação do nome de Deos: eu vos promctto da minha par-
te hum verdadeiro e sincero consentimento a tudo o que
vós determinardes que se cumpra , sendo conforme a' jus-
tiça , á piedade , e á saudável discrição : e que todos os
vossos Decretos munirei e defenderei com a authoridadc
de Principc, contra todas e quaesquer queixas que se lhes
opponhão. Atcqui Reccesvintho.
E para que se não diga, que estes votos dos Prela-
dos e Officiaes da Casa Real , erão puramente Consulti-
vos , e não Decisivos , temos no fim das Actas do mesmo
Concilio oitavo de Toledo hum Decreto acordado pelos
Estados do Reino , no qual os Bispos com os Officiaes da
Casa Real ordenão, que os bens da Coroa se reputem não
como Património , mas como Morgado , para se não po-
derem alienar arbitrariamente pelos Principes , nem ainda
a favor de seus filhos ; mas que só possão dispor livre-
mente dos bens adquiridos ou herdados por qualquer via.
O qual Decreto o mesmo Reccesvintho confirma logo com
huma Ley sua.
Quando se haviao de celebrar estas Assembleas , era
só o Príncipe o que as convocava; e ou elle assistisse pes-
soalmente ou não assistisse , só elle era o que designava
e propunha os Negócios Públicos, sobre que se devia tra-
tar e legislar nas taes Cortes. O que elle fazia não de vi-
va voz, mas por escrito, que chamavão Tomo^ e que cor-
respondia ás Sacras Divaes , que os Imperadores Romanos
mandavão aos Concílios Geraes do Oriente,
No Concilio Toletano VIII foi lido o Tomo de
Reccesvintho : nos Toletanos XII e XIII os Tomos de
Er-
DAS SciENCIAS DE L I S B O A. 239
Eivlgio : nos Toletanos XVI e XVII os Tomos d' E-
gica.
§ II.
O Reino Gothico não era Hereditário , mas Electivo. E o Di-
reito de eleger Rei estava nos Grandes , tanto Eccle-
sias ticos y como Seculares.
Huma e outra cousa se acha expressa no Concilio
Tolctano IV, cap. 75" , no Toletano V, cap. 3 , no Tole-
tano VJII, cap. 10.
O mesmo se confirma da Historia de Wamba, escri-
ta por S. Julião Arcebispo de Toledo.
Pelos mesmos Documentos se sabe , que o eleito de-
via ser Godo de nação , e Fidalgo por nascimento.
§. III.
Vivendo o Rei , e contra sua vontade , não podiao os Grandes
designar-lhe Successor,
Consta do Concilio Toletano VI, cap. ij.
§ IV.
Muitos Reis , ( convindo nisso os Grandes do Reino , ) fizer ao
em sua vida consortes do império a seus filhos , para es-
tes lhes succederem depois da stia morte.
Leovigildo associou comsigo ao império a seu filho
Santo Hermenegildo. Consta d' huma Inscripçao Gothica
coetânea , que se conserva na Cartuxa de Sevilha , que
di/. nssim : ANNO FELICITRR SECUNDO REGNI DO-
MINI NOSTRI ERMENEGILDI REGIS, &c.
Siiinthila associou a seu filho Rccimiro. Santo Isido-
ro na Chronica dos Godos.
Qi_iin-
340 Memokias da Academia Real
Quindasvintho associou a seu filho Reccesvintho. Chro-
nica de Vulsa. Chronica de Isidoro Pacense. Chronica Al-
beldense.
Caiando se calassem os Historiadores, tínhamos ainda
melhor prova nas Medalhas de Toledo e de Sevilha. Quin-
dasvintho e Reccesvintho, pay e filho, ambos apparecem
intitulados Reys com esta inscripçao : Cindasvintbus Rx y e
no reverso Rcccesvintbus Rx.
Egica associou o seu filho Witiza. Chronica de Se-
bastião de Salamanca. O qual acrescenta outra particulari-
dade, que hc, que Egica assinou por Corte a Witiza a Ci-
dade de Tuy , como quem queria renovar assim em Espa-
nha o Reino dos Suevos.
§ V.
Wamha por motivo de Religião abdicou o Reino em favor
à'Ervigio,
Consta do Concilio Toletano XII , cap. i.
O modo como Ervigio subio ao Throno por eleição
de Wamba , refere-o assim Sebastião de Salamanca, escri-
tor do século nono.
Ervigio parente de Reccesvintho, ardendo em desejos
de ser Rei dos Godos, deo a Wamba huma bebida, que
o privou da memoria e dos sentidos. O Arcebispo de To-
ledo S. Julião , e os Officiaes do Paço , que não sabiao
da tramóia d' Ervigio, vendo ao seu Rei Wamba neste es-
tado , e temendo não morresse clle sem a absolvição sa-
cerdotal , fizerão que se lhe desse a Penitencia canónica.
Pouco depois convalescendo Wamba do seu lethargo , e
sabendo que o tinhao sujeitado á Penitencia canónica, re-
nunciou o Reino, e tendo declarado por escrito que a sua
vontade era , que lhe succedesse Ervigio (sem duvida igno-
rante da sua alcivosia) se recolheo num Mosteiro, vestido
d' habito religioso e tonsurado. .
To-
Das SciENciAS DE Lisboa. 241
Todo este procedimento de Wamba attestão também
os Padres do Concilio duodccirrlo de Toledo, cap. 1. on-
de tudo foi proposto, examinado, e approvado. E o gran-
de Investigador dá Disciplitia Ecclesiastica João Morin no
Livro II De Pxuitencia ^ cap. 7. prova de.->te tacto, que até
por pcccados occultos se impunha antigamente penitencia
publica.
O que he mais digno porem da nossa consideração^
consiste em que os Padres do referido Concilio duodécimo
de Toledo qualificiío esta acção de Wambn por huma ac-
ção inevitável, isto he, por huma acção que Wamba níoi
podia deixnr de fazer. Idem eniin Rex IVamba , dum inevita-
bílis necessittidittis tenetur eventu , suscepto rcligionis delito cul-
tn,, et vencruhUi sacra tonsura stguacu/o , &c. Pois que? Hu-
ma vez que Wamba tinha recebido a Penitencia Canónica,
não podia Wamba continuar (to governo do Reino? Não.
li a razão segundo eu entendo , (porqne os nossos Autho-
res não fallã.) nisso) era qu^ pelo capitulo XII do Tercei-
ro Concilio de Toledo, os que reccbiao a enitencia pu-
blica , mudavão de habito , e tonsuravão-se. E pela Ley
Fundamental estabelecida no Concilio Toletano VI , cap.
17 não podia ser Rei dos Godos quem por motivo de
Religião tivesse mudado o habito, e sido tonsurado.
Confirma-se e illustra-se nobremente esta mtnha intel-
ligcncia , com o que a Chronica de Wulsa escreve , que
fizera Ervigio , achando-se no ultimo da sua vida : que fçi
declarar hum dia por seu succcssor a Egica seu filho , c
no outro receber a Penitencia , e declarar logo aos Gran-
des do Reino, como eleito Egica ficavao já absoltos todos
do juramento de Fidelidade, que a elle Ervigio tinhao da-
do no principio.
Tom IX. Hh
34- Memorias DA Academia Real
§ VI.
Penas contra os Reos de Lesa Magestade.
Os Godos por sua natural fereza e barbaridade , erao
tão avezados a assassinar ou dcpôr os seus Reis , que co-
mo observou Bochart no seu Tratado De 'Jure Regnm , e
Majans na sua Defensa Del Rei JFííiza , não será fácil achar
outra Nação , que os igualasse nos exemplos de perfídia.
Para isto basta ler a Clironica dos Godos de Santo Isidoro,
onde desde Ataulfo que foi o primeiro Rei , até Siscbuto
que foi o vigésimo primeiro , se achao notados onze as-
sassinatos de Reis.
Isto obrigou os Padres do Concilio IV de Toledo
no anno de 633 a que no cap. 75" fulminassem contra os
aggressores das Reacs Pessoas , ou inimigos do seu Esta-
do , a mais tremenda sentença de escommunhão, que se
Ic nos antigos Monumentos da Igreja : porque a repetem
três vezes com summa vehemencia de palavras, e em no-
me de toda a Nação , cujo Corpo representavão naquella
Assemblea juntos os Bispos com os Grandes Seculares , e
presente á testa de todos o Rei Sisenando,
Mas descobrindo a experiência novas traições e alei-
vosias contra Reccesvintho , Wamba , e Egica , tornarão og
nossos Padres a excitar a antiga comminação no Concilio
TolctanoXVI, anno de 693 , fulminando e repetindo ou-
tras trcs vezes no cap. 10 a mesma sentença de excom-
inunhão , contra os que de qualquer modo ousassem aiteii-
tar contra a vida ou Estado do seu Rei legitimo.
Afora a pena d'escommunhão fulminada contra todos
e quaesqucr Reos de Leza Magestade , declarão os Padres
deste Concilio Toletano XVI, que os Grandes Seculares se-
jão castigados com a pena de perdimento de todos os car-
gos e OíEcios honorificos , e de confiscação de todos os
Bens : os Bispos com a pena de deposição e desterro : o
que
DAS SciÊNCtAS bÊ LíSBÕA. Í4J
que logo SC executou na pessoa de Sisbcrto Arcebispo de
Toledo, por SC ter conjurado contra o Rei Egica.
E por hum Decreto já antes estabelecido no Gonci*
lio Tolctano VII se o Rei ofFcndido vinha a congraçar»-
se com o vassallo olFcnsor, não podia restituir-lhe doS bens
confiscados , senão a vigésima parte.
No Concilio Tolctano XIII a rogos do Rei Ervigiò
se levantou a pena de infâmia c de confiscação , aos que
em tempo de Wamba se tinhão associado ao rebelde Duque
PjuIo.
No antecedente Concilio Tolctano XII , cap. 5 de-
clarâo os Padres delle , que tendo sido declarado cscom-
mungado algum Godo por crinle de Lesa Magestade , da-
do caso que o Rei offcndido admittindo o á sua graça o
honre com a sua Meza , fique por este mesmo facto tirada
a cscommunhão , sem ser necessária outra alguma sentença*
O que he hum excellente documento , de quanto ainda eiti
matérias do Foro Ecciesiastico devem 0$ Bispos contem-
plar a vontade e gosto dos seus Soberanos.
Isto he pelo que toca aos Cartones da nossa Igreja.
Quanto ás Leys Gothicas sobre o crime de Lesa Ma-
gestade , he indubitável , que nestes casos prescrevião el-
las contra os reos a pena capital : que foi a que os Juizes
de Wamba pronunciarão contra o Duque Paulo , que se ti-
nha sublevado com a Província de Narbona , como consta
da Historia do mesmo Wamba escrita por S.Julião de To-
ledo : c a que depois executou D. Ordonho II contra oS
Condes de Burgos Nuno Fernandes , e Fernando Ansures ,
por lhe serem rebeldes, como lemos na Chronica de Sam-»
piro Bispo de Astorga.
Mas he igualmente certo, que muitas vezes commu-
tavão os Reis Godos a pena de morte em outras talvez
mais sensíveis pela duração , e pela ignominia.
Rcccaredo a dous Bispos Sunna e Uldila , que tinha»
conspirado contra elle , contentou-se com os desterrar. A
hum Fidalgo por nome Scgga , pelo mesmo crime ; mari-
Hh ii dou-
344 MeMOBIAS DA ACAPEMIA ReaL
dou-lhe cortar ambas as mãos, e ir desterrado para Galli-
za. Noutra conjuração de que era cabeça o Duque Argi-
mundo, mandou nutar os compliccs : e quanto a Argimun-
do, que rapada a cabeça, e cortada a mão direita, entras-
se em Toledo montado num jumento, para ser o alvo das
apupadas e dos ludíbrios da plebe. Tudo consta da Chro-
nica de João de Biclara.
Os que em tempo de Wamba sentenciarão o Duque
Paulo, forão de voto , que elle e seus sócios, rapadas as
cabeças e as barbas , vestidos de pelles de camelo , pés
descalços , e o dito Paulo de mais a mais coroado d' huma
carocha de couro mascarrada de pez , fossem todos levados
cm paviolas pelas ruas da Corte, e por ultimo morressem
d' huma morte affrontosa e infame. E quando o Rei por
sua clemência fosse servido conscrvar-lhcs a vida , ao me*
nos a todos fossem arrancados os olhos. Tudo consta da
Historia de Wamba escrita por S. Julião de Toledo.
Este castigo de se mandarem vasar os olhos aos reos
de Lesa Magestadc da primeira cabeça , foi o que ficou sen»
do ordinário entre os antigos Reis de Leão successores
dos Godos. Assim o executou D. Ramiro I contra o Con-
de Aldosoito , como lemos na Chronica de Sebastião de
Salamanca. Assim D. AíFonço o Magno contra seu irmão
D. Froila, como lemos na Chronica de Sampiro d'Astorga,
Assim D. Ramiro II contra os sobrinhos do Rei D. Or-
denho II , e contra seu mesmo irmão D. Affonço , que ti-
nha reinado antes delle, como lemos na mesma Chronica
de Sampiro.
§ VIL
Qíie Bens podiao os Reis deixar a seus Filhos.
No Concilio Toletano V, cap. i , e no Toletano VI,
cap. 16 se proveo sobre a subsistência dos filhos do Rei
Quiutila, depois que o pay lhes faltasse.
No
DAS SCIJSNCIAS DS LiSBOA- 2^^
No ConcilÍQ Tolctano VIII publicarão os Padres hum
Decicto , que Rccccsvinrho confirmou cutn huma Luy , cm
que se declara , de que Bens poderia dispor o Rei a favor
de seus filhos.
§ VIII.
Das Rainhas Viuvas.
No Concilio Tolctano XIII , cap. 3. e no ToletanQ
Í^VII, cap. 7. se deo providencia, para que ns Rainhas
Liubiga mulher d'Ervigio, e Gixila mulher d'Egica, de»
pois da morte dos Reis seus maridos , nuo fossem inquie-
tadas nem nas suas Pessoas, nem nos seus Bens.
A natureza d' hum Reino Electivo, qual era o Go-
thico , fazia necessárias estas e outras precauções a favor
das Rainhas viuvas ; principalmente ficando ellas sujeitas 4
tão apertadas Leys d*Estjd() , como as que já vou a expor.
A primeira destas Leys d' Estado era , que as Rainhas
viuvas não podião tornar a casar , nem ainda com outro
Rei da mesma Nação. Assim se decretou ao Concilio To-
lctano XIII, cap. 5-. anno de 683.
A segunda ainda coartou mais a liberdade ás Rainhas
viuvas, porque por hum Decreto do Concilio III de Sara-
goça , cap. j. anno de 691 , ordenão os nossos Bispos,
que as ditas Rainhas não só não tornem a casar , mas que
logo que enviuvarem , tomando o habito religioso se xt"
colhão num Mosteiro de Freiras.
Os indecentes matrimónios , que em segundas núpcias
tcriuo talvez contrahido algumas Rainhas, ou o abuso quç
de semelhantes matrimónios podião fazer os Grandes, pa-
ra por esta via aspirarem ao Throno , e maquinarem ty-
rannicas deposições : forao sem duvida a causa de se for-
marem estes Decretos , que sobre parecerem nimiamente ri-
gorosos , alguém os reputará de mais a mais alheos de
competência Episcopal. Mas cajá preveni, que ncátas As-
sem-
246 Memorias da Academia Real
sembleas fazião os nossos Bispos duas figuras : huma de
Prelados Ecclcsiasticos para definirem os Dogmas da Reli-
gião, e regularem os Pontos da Disciplina: outra de Gran-
des do Reino, para juntos com os outros Grandes secula-
res, e authorisados do consentimento do Rei, decretarem
de commum acordo , o que parecesse conveniente ao Es-
tado.
Por mais fortes c extraordinários que parcção estes
Decretos contra as Rainhas viuvas , eu ainda acho mais
exorbitante , o que em virtude do Tratado da Paz do an-
no 1479 entre o nosso Rei D. AfTonço V e D. Fernando
Catholico , experimentou a Princcza D, Joanna de Castcl-
la , conhecida e appellidada vulgarmente a Excellente Se-
nhora : que foi ver-se precisada a professar a Regra de
Santa Clara no Mosteiro de Santarém , sendo solteira , e
tendo sido jurada Princeza herdeira de seu pay D. Henri-
que IV.
§ IX.
Do Código das Leys Gothicas,
O primeiro Rei Godo que publicou Código de Leys
Pátrias , foi Eurico sétimo depois d'Ataulfo. Santo Isido-
ro na Chronica dos Godos.
Este Código foi depois reformado e aumentado por
Leovigildo. Santo Isidoro na mesma Chronica.
Ervigio abrogou muitas Leys de Wamba , e substitu-
hio em seu lugar outras. Chronica de Sebastião de Sala-
manca,
No fim da Historia de Wamba allega S, Julião Arce-
bispo de Toledo o Livro II, Titulo I das Leis Gothicas.
A opinião dos que crerão, que o Corpo das Leys do
Fuero Itisgo fora ordenado no Concilio IV de Toledo rei-
nando Sisenando , não tem fundamento algum nas Actas do
dito Concilio.
De-
DAS SlrflEHCIAS DE LiSBOA. 247
Depois do meio do século XI , isto he no anno de
1064 como quer Bnronio, ou de 1068 como quer Baluzc ,
forão abolidas em Catalunha as Lcys Gothicas. Consta d;is
Actas d' humas Cortes de Barcelona daquelle tempo , que
traz Aguirrc na sua Gollccçao dos Concílios d' Espanha,
DISSERTAÇÃO XI.
Do Ceremoninl e Legislação dos Reis Godos , extrahido hum e
outro assumpto immcdi atam ente da antiga Historia , e
antigos Monumentos da tnvsma Nação.
P A R T E I.
Do Ceremoiiial Gothico.
O.
"s Reis Gidos succcssores dos Romanos no impcrio
das Espanhas , ao mesmo tempo que cuidarão pouco citx
OS imitar na cultura das Artes , esmcrárão-sc muito em
adoptar delles os titulos de grandeza para as suas Pessoas,
e de lustre para a sua Corte.
§ I.
Esplendor dos Nomeí.
Da Imperial Família de Vespasiano adoptarão os Reis
Godos para si o nome de Flavios , que ao menos des do
tempo de Reccaredo ficou sendo commum aos nossos Reis,
como entre os Imperadores Romanos o tinha sido o ap-
pcUido de Césares.
Huma Pedra de caracteres Gothicos desciibería em To-
ledo no anno de i5'9i , que dá noticia do anno da sagra-
ção da Igreja Metropolitana da mesma Cidade em tempo
dos Godos.
IN
248 Memorias da Academia Real
IN NOMINE DNI CONSECRA-
TA ECCLESIA SCTE MARIE
IN CATHOLIGO DIE PRIMO
IDUS APRILIS ANNO FELI-
CITER PRIMO REGNI DNI
NOSTRI GLORIOSISSIMI FL
RECCAREDI REGIS ERA
DCXXV
(He o anno de Christo fS/.)
Aqui temos o Rei Reccarcdo denominado Flávio. Mos-
tremos o mesmo d'outros seus successorcs.
Huma Ley no fim do Concilio Toletano V Flavius
Chintila Rex.
Outra l/ey no fim do Concilio Toletano VIII Flavius
Reccesviuthiis Rex.
Outra Ley no fim do Concilio Toletano XIII Flavius
Ervigitís Rex.
Duas Allocuções do Rei Egica nos princípios dos Con-
cílios Toletanos XVI e XVII Flavius Egica Rex Santissimis
Patribus in hac sancta Synoão Resiàentihus.
Era tão constarLte nos Reis Godos o nome de Flávio y
que até o tyranno Paulo , quando em tempo de Wamba
se levantou com a Província de Narbona , tomou para si
o nome de Flávio Paulo. Assim se convence da carta que
o mesmo Paulo escreveo a Wamba , publicada por Duches-
ne na Historia de Wamba escrita por S. Julião Arcebispo
de Toledo.
Os mesmos Reis Godos á imitação dos Romanos,
quando fallavão d'algum de seus predecessores defuntos ,
costuniavão honrallo com o titulo de Divus ou Diva Memo-
ria.
Reccesvintho na Allocução aos Padres do Concilio To-
le- ■
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 249
Ictano VIII Et si summut Amtor rerum me Div£ Memoria
Domini et Cenitoris temponbuí in Regia sede subvexit , &c.
Ervigio na Allocuçao aos Padres do Concilio Tolctano
XIII Retroacíis Divie Memoria IVamhie Regis tewporibns, &c.
Egica na Allocuçjo aos Padres do Concilio Tnletano
XV" Divi Píitris nosiri et soceri sortientes fíistíginm , &c. E
mais abaixo: Egit enim idem Diviis Pricdecessor noster Ervi'
giiif Princeps , &c.
Os nossos mesmos Bispos Godos no Concilio Tolc-
tano VIII nenhum escrúpulo fi/erSo de chamar a Qiiind.is-
vinrho , Priticeps Diva Mcmorite. E isro porque adverti ão
por huma parte , que estes mesmos títulos de DiVns e Di-
va Memoria , costumavão dar a seus predecessores os mes-
mos Imperadores Christíos, como he notório pelo Código
das Leys Romanas : e por outra parte , que estes títulos
não dcnotavao mais, do que a eminente excellencia das
Reacs Pessoas. No qual sentido nenhum Theologo duvida
dizer hoje de S, Paulo, Divimis Paulns ^ como o chama*
rão S. João Chrysostomo e Theodoreto : nenhum Filosofo
dizer de Platão, Divinus Plato ^ como o chamou toda a
antiguidade.
Pelo mesrtio estilo , e á imitação dos mesmos Impera-
dores Romanos , chamavão os Reis Godos Divaes ou Divinas
as suas Constituições. Recccsvintho no fim do Concilio To-
letanO VIII Tam nobis, qtiam cunctis nostra gloria successo-
ribus adfutnri Legem ponimus , Decretmt^iie divalis observan-
tia promiilgamus ^ &c.
Os Officios da Casa Augusta , que Constantino intro-
duzira em sua Corte de Constantinopla esses mesmos adop-»
tárão os Reis Godos no seu Palácio de Toledo. Consta
isto manifestamente das Actas dos Concilies Toletanos VIIÍ.
c XIII e XVI, onde depois dos Bispos subscrevem os Of-
ficines da Casa Real , huns com o titulo de Comes Citbicu'
Jariorum, outros de Comes Notariorum^ outros de Comes Spa-
tbarioriim , outros de Comes Patrimonii , e todos com o tra-
tamento de Kiri Ulustres Officii Palatini.
Tomo IX. li Eu
H^O Memoí^ias T)A Academia Reai-
Eu }i mostrei noutro papel , que imprimi ha quatro
annos sobre a Origem do Titulo e da Dignidade dos Condes ^
que o Comes Cuhiculariurum era o que nós hcjc cliamamos
Camareiro Mor , o Comes Notarioriim , o Secretario d' Es-
tado ; o Comes Patrinwnii o Vedor da Fazenda ; o Comes
Spatbariorum y o Capitão da Guarda.
O titulo de Catholico , que hoje he característico do
Rei d' Espanha des do tempo de D. P^crnanJo V os Bis-
pos do Concilio Toletano III o derão novecentos annos
antes a Reccarcdo : e as Medalhas de Tarragona c Sara-
goça oitocentos annos antes a Egica e a Witiza.
§ II
Magestade das InscripçSes nas Moedas ou Medalhas.
A mesma magestade das Inscripçoes ou Letreiros ,
que se observa nas Moedas ou Medalhas dos Imperadores
Romanos, he a que se acha nas dos Reis Godos. Para o
que basta representar entre as muitas , que de todos os
Reis ajuntou Flores , algumas de Leovigildo pay de Rec-
caredo , e o primeiro que formalizou em Espanha o Ce-
remonial da Corte.
Huma que se não sabe onde foi cunhada diz assim :
Ltuvigildiis Rex Inclytus. E por baixo da figura da victo-
ria traz estas três letras , O N O : que os Antiquários tem
por abreviaturas desta oração : Omnes Nohis Ohediant.
Outra de Córdova assim : Liuvigildus Rex Bis Cordo-
ham ohtinuit.
Outra de Merida assim : D N Leovigildus Rex Piai
Emérita victor.
Outra de Évora assim: Leovigildus Rex Elvora Jurtusé
Outra de Braga assim: Leovigildus Rex Bracara Victor,
Destas c d'outras Medalhas Góticas se faz também
evidente , que em todas as Cidades principaes da Espa-
nha havia casas e oíHcinas de cunhar moeda..
DAS SciénciaS í)ê Lisboa. jj-f
E para que se veja , que na classe destas grandes
Cidades cntravão outras d.i nossa Lusitânia , que hoje es-
tão reduzidas a mui pequenas Povoações, temos huma Me-
dalha de Rcccaredo , cuja inscripçao he esta. Reccarediis Rcx
Jtixttis JEininiô. Onde a Cidade de Eminio, conhecida por
esto mesmo nome na Historia de Plinio, e no Itinerário
d'Antonino, e authorizada com Cadeira Episcopal em tem-
po do Terceiro Concilio de Toledo; concordão hoje to-
dos os nossos Antiquirios, que era onde hoje está o Lu-
gar de Águeda entre Coimbra e Aveiro.
Temos mais outra Medalha do ultimo Rei do? Godos
D. Rodrigo , cuja InscripçJo diz assim : IN DNE Rnde-
ricUs RX Egitania Pius. Onde a Cidade de Egitania nin-
guém ignora , que era onde hoje está a pequena villa de
Idanha velha.
De caminho ficamos sabendo, que a piedosa Formula,
Em nome de Deos ^ com que hoje costumamos dar principio
aos Instrumentos públicos, nos veio transmittida dos Godos*
Mas entre as Inscripçoes das Medalhas Góticas ne-
nhuma ha tão rara , como a de huma moeda de Sisebuto ,
que Resende testifica fora achada em Évora no anno de
içáo. Dizia assim: DN Sisebiitus Rex Civitas Ebora. Deus
Jldjutor Metis. A qual Inscripçao he notável, não só por
trazer o nome Ebora escrito ao modo Romano , quando
noutras Medalhas Gothicas se acha eile alterado em Eiva-
ra; mas também porque no hemistiquio tirado dos Salmos,
Deuí Âdjíitor Metis , mostra que Sisebuto com esta devota
empreza publicava a Dcos por seu Auxiliador nas grandes
victorias, que tinha alcançado dos Romanos.
§ ÍII.
Insígnias Reaes dos Príncipes Godos.
Santo Isidoro na Chronica dos Godos attesta , que
Leovigildo fora entrelles o primeiro , que se vestio de
li ii Man-
íiTi Memórias da Acaoemia R,e.al
Manto Real , e se assentou cm Throno. Primas intef' suos
regali veste opcrtus inter sólio resedit. \-l.h^'i3
Da Coroa Real são irrefragavcis provis as Medalhas do
mesmo Leovigildo , onde a cabeça do Rei se ve cingida
com huma atadura bordada de pcrolas , e atada atraz com
huma fita : que isto era o que propriamente chamavão os
Antigos Diadema, nome Grego que significa atadura, co-
mo observou Codino Curopulata na sua Obra Dos Ofjtcios
da Corte de Bysancio. Por isso lemos da Rainlia Monyma
mnlher de Mithridátes , que tirou da cabeça o Diadema,
para se enforcar com cUe.
Plinio no Livro VII, cap. y6 diz que o inventor do
Diadema , como distinctivo da Real Dignidade , fora o
Dcos Libero. Liber Pater Diadema , Regam insigne , et tritim-
pb:iin invenit. Assim entre os Romanos , depois que na pes-
soa de Tarquinio soberbo foi desterrado o titulo de Rei,
era em extremo odioso o Diadema. De sorte que como
refere Suetonio na vida de Júlio Gesar, cnp. y6 e ^7 pon-
do alguns plebeos na estatua de Júlio César coroa 4e lou-
ro cingida com huma faixa branca ; os deus Tribunos do
Povo Epidio Marullo , c Cesecio Flávio a mandarão logo
tirar, e meter na cadea os authores da novidade. E o mes-
mo Júlio César lançou de si o Diadema , que o ConsuJ
António lhe punha na cabeça, e o mandou, . ao. Capitólio
para se coUocar na cabeça de Júpiter. rr.irr''
Aureliano foi o primeiro que usou de Diadema entra
os Romanos. Iste primas apiid Romanos diadema capiti inne-
Kuit , escreve delle Sexto Aurélio Victor no Epitome da
Historia Augusta. /
Não sei se reduza ao presente assumpto huma obser-
vação de António Agostinho sobre as Medalhas Gothicas.
Mas como ella versa sobre o que d'alguma sorte he indi-
cio de authoridade , eu a proponho já sem nenhum receio.
Vem a ser , que nas Medalhas d' Ervigio apparece este Rei
com barbas : donde podemos colher , que do mesmo modo
SC effigiavão outros dos nossos Príncipes. i
He
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 2^$
He incontestável , que as barbas em todos os séculos
e entre todas as Nações, forão tidas por demonstrativo de
autoridade , de prudência , de vigor : de sorte quo para
fazer injuria a algum personagem , bastava íazcr-lhe cor-
tar a barba , como fez o Rei Hanon aos Embaixadores de
David : e este nao soíFrendo ver por seus olhos tamanha
ignominia , mandou que os Embaixadores se detivessem
cm Jericó , em quanto a barba lhes crescia. Assim o le-
mos no Primeiro Livro dos Faralipómcnos, cap. XIX.
Quatrocentos e sincoenta c quatro annos esteve Ro-
ma sem fazer a barba, como he expresso cm Plinio no
Livro VII, cap. 5-9 allcgando com Vanao. E se bem Au-
gusto, como acrescenta Plinio , sempre fez a barba; Adria»
no a tornou a deixar crescer , como affirma Dião Cassio.
E dos Imperadores. Gregos Focas e Hcraclio mostrao bar-
bas nas suas moedas. Fm Cm das barbas crescidas tomou o
nome huma Nação inteira, que íoi a áos Longobarhos ^ cha-
mados depois Longobardos.
DISSERTAÇÃO XIL
Destruição do Reino Godo em Espanha pela entradfl dos Motí'
ros. Princípio da Restauração d'Espanha por D. Pelagio,
Suminario dos sticcessos mais notáveis do tempo dos Mouros.
Em que tempo se perdeo Espanha^
X-/eixadas outras Épocas , que se achao em varies Au-
thorcs antigos, mas não coetâneos; pede a boa critica,
que a Época da destruição do Reino Godo se não estabe-
leça, senão pelo testemunho d' Isidoro Pacense, que he o
único Escritor que temos daquelle mesmo século , e que as
cou-
25'4 MemoIiias PA AcADE MIA Real
cousas que refere neste particular , as podia ter ouvido e
sabido daquellcs mesmos que as presenciarão.
Na sua Chronica pois escreve Isidoro Pr.censc , que
Rodrigo ultimo Rei dos Godos, succcdêra no Reino a Wi-
tiza na Era de DGCXLIX , que dá o anno de Christo
7 1 1 , c que reinara só hum anno. Que correndo a mesma
Era de DGCXLIX , e o mesmo anno de Christo 711 no
anno quinto d'Ulit Califa dos Árabes , entrara por Espa-
nha hum exercito de Mouros capitaneados pelo General
Muza ; com os qiiaes sahindo a cncontrar^se o Rcy Ro-
drigo , c dando-lhcs baralha , fora por ellcs derrotado com
todo seu exercito na Era de DCCL, que dá o anno de
Christo 711, sexto do Califado d'Ulit.
Segundo esta narração d' Isidoro Pncense , fica claro e
evidente, que a destruição do Reino Godo com a derrota
do Rei Rodrigo, se deve fixar no anno de Christo 712,
que hc o que corresponde a' Era de DCCL notada expres-
samente por Isidoro , como Época da dita destruição.
Confirma-se isto pela outra Chronica d' ElRei D. Af-
fonço III chamado o Magno, que vulgarmente se costu-
ma attribuir a Sebastião Bispo de Salamanca , c que he o
Monumento que nos ficou mais antigo depois da Chroni-
ca d' Isidoro Pacensc , por ser escrito na declinação do sé-
culo nono. Na qual Chronica se põe a morte de Witiza,
e a eleição immediatamente seguida de Rodrigo na mes-
ma Era de DCCXLIX , que Isidoro assinara por principio
do Reinado de Rodrigo, anno de Christo 711.
Confirma-se mais pela outra Chronica do século XII,
que os nossos com Brandão costumão chamar Gothica ,
sendo que pelo principal assumpto que trata , que são as
acções do nosso primeiro Rey D. AfFonço Henriques, me-
lhor se devia intitular Lusitana , como bem advertio Flo-
res. Nesta Chronica pois logo quasi no principio se diz
assim : -^ra 749 a/ias yEra /yo Sarraccni Hispaniam adepti
síint regnante Roderico. Isto he , na Era 749 , alias na Era
7'jo se fiíerão os Sarracenos senhores d' Espanha. Aquelle
ajuu-
DAS ScTENCIAS Dí LlSBOA. " b.^Ç
QJuntiir as duas Eras , e como emendar huma pela outra ,
foi sem duvida querer o Author desta Ciironica distinguir
o principio da guerra do fim delia; e significar, que Jin-
da que a tomada d' Espanha começou na Era de 74i>, anno
de Chrisro 711 , nao se concluio todavia perfeitamente, se-
não na Era de 750, anno de Chvisro 712, entre as quaes
duas Eras se passou o único anno de governo , que Isi-
doro Facense tinha dado a Rodrigo.
A Chronica de Burgos, que parece ser do mesmo ser
culo XII, diz assim: Era DCCXLIX re^narc cwpit Rude-
riciis. Regnavit annis trihiis , dttobm ctim IVitiza , tmo per se,
E logo outra vez : Era DCCXLIX iiitravcrunt Spauia Sar-
rafeui ttmpore Rnderici Regit Toletani. Q|.icr dizer '.Na Era
de 749 (he o anno de Christo 711) começou a reinar Ro-
drigo, Ellc reinou três annos : a saber, dous com Witiza,
c hum elle só. N.i Era de 749 etirrárao os Sarracenos e/á
Espanha efm tempo de Rodrigo Rei de Toledo. . 1
A noticia de ter reinado Rodrigo dous annos com Wi-
ÚZi não he singular nesta Chronica de Burgos-: porque
também a de Albelda suppõe o mesmo , como logo vere-
inos. Mas dizer que na Era de 749, anno de Christo
711, começou a reinar Rodrigo, e que nessa- mesma Era
entrarão os Sarracenos' em Espanha; bem riiostra que na
dita Era de 749, anno de' Christo 71 ij he que começou
Rodrigo a reinar só: visto que codas as outras Chroniças
tonvcm, que no dito ailiiô de Chrtóto 711 falecera Witiza.
Neste sentido concorda a outrà Chronica ;d'AIbelda
admiravelmente com a de Burgos, «m quanto 'diz ^ que <)
Reino dos Godos pcrececí pela entrada que nelle fez 9
General Muza , no terceiro aniva-^de Rodrigo: terceiro,
depois de reinar dous com Witi5ía', e esse mesmo terceiro
o único , que reinou só , como tyilia escrito Isidoro Fa-
cense. . tíob 0]§olcif.v-) ««>^ijnB òlaq t
Não se deve comttído dís^imijar," qúe^esíe fércéiio
anno de Rodrigo, único que reinou- só , o retarda a sobre;
dita Chronica d'AlbeIda atd o anrtô' de Ghrista.714^ pon-
do
i^S Memorias DA Acaof. MIA Real
do assim a perda d' Espanha dous annos mais tarde , do
que 3 poscra Isidoro Paccnsc. E esta hc a Época que se-
guio Mariana.
Deste Muza General dos Mouros e Conquistador de
Espanha , querem alguns com Pedro de Marca , que os Es-
canhoes daquelle tempo se começassem a chamar Miizara»
bes , como se disséramos Árabes de Muza. Porém a opinião
mais bem recebida dos modernos da Nação tem , que os
Espanhocs se disserão Mitzarahes por corrupção ou altera-
ção de Mixtarahes : isto he , que se disserão Muzarabcs ,
para se denotar que vivião misturados com os Árabes.
O Rei Rodrigo era filho de Thcudofredo Duque de
Córdova. Chronica do Monge de Silos escrita no século
XII.
Este Theudofredo porém pai de Rodrigo era filho de
Recesvintho. Chronica do Arcebispo de Toledo D. Ro-
drigo Ximenes , que he do século XIII. Livro III, cap. i6:
Os motores da ruina d' Espanha em ódio de Rodrigo
forâo os filhos de Witiza, dos quaes hum se chamava Opas,
Arcebispo de Toledo , unidos com o Conde Julião Gover-
nador da Africa Tingitana. Chronica do Monge de Silos.
O qual todavia se engana em chamar a Opas filho de Wi-
tiza , e Arcebispo de Toledo. Porque Opas era filho de
'Eoica , c conseguintemente irmãp de Witiza : e não era
Arcebispo de Toledo , mas de Sevilha.
Que Opas fosse filho de Egica , e não de Witiza, hes
expresso cm Isidoro Pacfense , que o havia de saber muito
bem. E ainda assim o erro de fazer a Opas filho de Wi-
tiza não he só do Monge de Silos , mas também de D,
Lucas de Tui , e o que mais hc , da Chronica de Sebas-
tião de Salamanca tnntu mais antiga.
Que fosse Arcebispo de Sevilha, e não de Toledo,
consta pelo antigo Catalogo dos Arcebispos de Sevilha da.
Abbadia de S. Milhan , publicado por D. Gregório Mayans
na Vida de D. Nicoláo António, § iy6.
Não se pode comtudo negar, .que de Sevilha passou
Opas
i
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 25-7
Opas a ser Arcebispo intruso de Toledo por nomeação de
seu irmão Witiza , vivendo ainda o legitimo Arcebispo Sin-
deredo : porque assim o affirma D. Rodrigo na sua Chro-
nica , Livro 111, cap. 16.
Os motivos para se conjurarem contra o Rei Rodri-
go, forão da parte dos filhos d'Egica irmãos de Witiza ,
vcrem-se excluidos de reinar pela eleição de Rodrigo ; e
sobre excluidos de reinar , perseguidos também cruamente
pelo mesmo Rodrigo. Da parte do Conde Julião ter Ro-
drigo abusado d' huma filha sua donzella , que era Dama
do Paço. A mesma Chronica do Monge de Silos.
Ainda não pude descobrir em que Monumento antigo
se fundão João Vazeu , Estevão de Garibai , João Mariana ,
Bernardo de Brito, e os outros nossos modernos, quando
escrevem , que o nome desta Dama era Cava : nome que
em lingua Arábiga significa md mulher , segundo escreve
Fr. Pedro d'Alcalá no seu Vocahulssta Arahigo.
Alguns que depois passarão por mais sisudos, e avi-
sados, como D.José Pellicer, o Marquez de Mondexar,
e D. Gregório Mayans , derão por huma novella fabulosa
este conto dos amores do Rei Rodrigo com a filha do
Conde Julião. Mas o seu fundamento principal não tem
nada de solido. Dizem que taes amores em tempo tão tur-
bulento não são verisimeis : como se a Historia e a ex-
periência nos não mostrasse outros innegaveis exemplos do
contrario.
Sobre que fim teve o infelice Rei Rodrigo, a Chro-
nica Albeldensc diz que ninguém até aquelle tempo o sa-
bia. De Rege quoque eodem Ruderico ntilli causa interitus ejus
cognita manei tisque in prasentem diem. Quasi pelos mesmos
termos se explica na sua Chronica Sebastião de Salaman-
ca. Mas como este acrescenta , que mandando-se em seu
tempo povoar a Cidade de Viseu, se achou numa Basílica
da mesma Cidade hum sepulcro com este epitáfio : Hic re-
qttiescit Rudericus Rex Gothorum : prudentemente se pôde da-
qui inferir, que Rodrigo depois da batalha em que ficou
Tomo IX. Kk ven-
aj8 Memorias DA Ac ADEMi A Real
vencido, teve modo de se recolher da Andaluzia a Portu-
gal , onde tendo por ultimo acabado sua triste vida , toi
sepultado em Viseu.
O nosso Conde D. Pedro não devia ter lido esta Chro-
nica , quando logo no principio do seu Nobiliário , Titu-
lo I cscreveo , que o tal epitáfio fôra achado numas hor-
tas junto a Viseu.
Este epitáfio até a nossa idade se lia em Viseu na
Igreja de S. Miguel. Haverá porém sincoenta ou seccnta
annos , que o Cabido Sede Vacantc mandando reedificar a
dita Igreja , supprimio a pedra cm que elle estava , e poz
em seu lugar outra com o seguinte distico :
Hic jacet , aut jacuit postremns in ordine Regum
Gotborum , itt tiobis nuuiia fama referi.
Assim mo certificou ha poucos mezes daquella cidade o
Reverendo P. M. António Machado da Congregação da
Oratório de S. Filippe Neri.
A Rainha com quem foi casado o Rei Rodrigo , cha-
mava-se Egilona. Chronica de Isidoro Pacense.
§ II.
Principio da Restauração d^Espanha por ElRei D. Pelagio.
Sinco annos havia que os Mouros dominavão Espa-
nha , quando D. Pelagio aggregando a si vários Povos das
Astúrias se levantou Rei dos mesmos Povos.
Nesta Época do Reinado de D. Pelagio concordáo to-
das as antigas Chronicas. Basta citar a d'Alcalá , e a do
Livro de Noa de Santa Cruz de Coimbra , que ambas se
cxplicão por estas mesmas palavras : Era DCCL Sarraceni
Hispaniam obúniicrmt. Antequam Domnus Pelagius regnaret ,
Sarraceni regnarunt in Hispânia annis V*
Sup-
I
DAS SciENCIAS DE LlSBOi^. jj'^
Supposto este consenso das Chronicas antigas hc f-i-
cillimo de fixar o anno , em que D. Pclagio começou a
reinar. Porque se Espanha foi tomitía pelos Sarracenos no
anno de Christo 712, ( que he o que corresponde á era
de César 750 ) scgue-se que o primeiro anno da domina-
ção dos Sarracenos foi o seguinte anno de 713. Ora as
Chronicas attestao que passados sinco annos desta domi-
nação, he que D. Pclagio começou a reinar. Logo o prin-
cipio do Reinado de D. Pelagio foi no anno de Christo
718.
Era D. Pelagio Príncipe do sangue Real dos Godos ,
e filho do Duque D. Fafila. Chronica de Sebastião de Sa-
lamanca.
Tinha sido capitão da Guarda do Rei Rodrigo. Chro-
nica do Monge de Silos.
A restauração d' Espanha começou pela famosa victo-
ria , que D. Pelagio alcansou dos Mouros na batalha de
Cangas nas Astúrias , onde morrerão cento e vinte e qua-
tro mil infiéis, e ficarão prisioneiros Alcaman seu General,
e o pérfido Opas Arcebispo de Sevilha. Chronica de Se-
bastião de Salamanca, e Chronica do Monge de Silos.
Reinou D. Pelagio dcsanove annos completos, c fa-
Jeceo na era de 775 , anno de Christo 737. Chronica de
Sebastião de Salamanca.
Daqui se confirma o que acima estabeleci , que o pri-
meiro anno do Reinado de D. Pelagio foi o anno de Chris-
to 718, Porque de 718 para 737 vão justamente desano-
ve annos.
O jazigo dos primeiros Reis , que succedêrâo a D.
Pelagio , foi primeiro em Cangas , depois em Pravia. D.
AÔonso II o Casto , foi o primeiro , que assentou a Corte
em Oviedo , e fez nella jazigo para si e seus successores.
Depois transferio D. Ordonho II a Corte para Leão , e
então começarão os Reis a enterrar-se em Leão. Tudo cons-
ta da Chronica de Sebastião de Salamanca , e da de seu
Continuador Sampiro d'Astorga,
Kk ii Até
a6o Memorias DÀ Ac At)EMiy\ Real
Até o tempo deste D. Ordonho II intitulavão-se es-
tes Reis não Reis de Leão , mas d'Oviedo. Assim os ap-
pclida a Chronica d^i^ftbelda.
Estes Reis costumavão sagrar-se ou ungir-se , bem co-
mo o tinhão praticado os Godos. Consta da Chronica do
Monge de Silos , fallando do Rei D. AíFonço III o Ma-
guo i anno de 866, e da outra Chronica de Cardenha ,
fallando do mesmo Rei.
Pela Historia Compostcllana , Livro II, cnp. 87, cons-
ta , que ainda no século XII sagrara o Arcebispo de San-
tiago D. Diogo Gelmires a ElRei D. AíFonço VII de Leão.
Dava-se-llics também depois de mortos , como aos
Godos , o titulo honorifico de Divte Memoria. Consta do
epitáfio de D. Ramiro I em Oviedo , que diz assim :
Obiit íliVíC memorize Ranimirtis Rex die Kal. Februarii , Era
DCCCLXXXFIII. Aponta-o Morales na sua Chronologia dos
Reis tirada das Obras de Santo Eulogio Marryr.
Ainda depois da perda d' Espanha , trataváo os estran-
geiros os Espanhoes por Godos. Consta da Carta d'Alcui-
no aos Abbades e Monges da Gothia na causa de Felis
d' Urgel.
§ IIL
Tocão-se os principaes successos íT Espanha f durante a domina'
ção dos Mouros.
D. Fafila , filho e immediato successor de D. Pela'
gio , por ter a imprudência de se pôr a luctar com hum
urso, foi morto por elle, no segundo anno do seu Rei-
nado, que era o anno de Christo 739. Chronica de Se-
bastião de Salamanca, e Chronica Albcldcnse.
D. Affonço I o Magno , genro de D. Pelagio , e fi-
lho de D. Pedro Duque de Biscaia , da antiga raça dos
Reis Godos da linha de Rcccaredo , libertou do poder dos
Mouros a Lugo , Tuy , Braga, Porto, Viseu, Chaves,
Le-
DAS SciENci AS DE Lisboa. 261
Lcdcsma , Salamanca, Zamora, e outras muitas terras. Na
sua morte forao ouvidos os Anjos cantar aquellas palavras
da Escritura : Ecce quomoiio nioritur justus , et innio ccmidc-
rat , &c. Faleceo no anno de 717 tendo reinado desoito
annos. Chronica de Sebastião de Salamanca , e Chronica
do Monge de Silos.
No anno de Christo 77^ veio Carlos Magno de Fran-
ça a Espanha , passando de Pamplona até Saragoça. An-
naes Bcrtininnos publicados por Duchcsne.
Sc damos credito á Chronica do Alosteiro de S. Gál-
io, que Baluzc inscrio nas suas Miscellaneas , neste mes-
mo anno teve Carlos Magno huma grande perda em Espa-
nha. DCCLXXFIII. Hoc anno Domuus Rcx Carolus perrextt
in Spania , et ibi dispendium habuit grande.
Esta grande perda creio eu , que consistio na perda
da celebre batalha de Ronces-Valhes , onde os Francezes fo-
rao derrotados pelos Navarros unidos com os Mouros. Fun-
do-me em que a Chronica do Monge Cerratense póe nes-
te tempo a sobredita batalha , dizendo : Era DCCCXF fnit
pra;'inm de Rozas Valles ^ ubi fueruiit morttii XII Pares. Quer
di/er : Na Era de 8if (he o anno de Christo 774) foi a
batalha de Roncesvalhes , onde forâo mortos os doze Pa-
res.
Fundo-me outrosi , em que a mesma derrota dos Pa-
res a põe a Chronica Silense na volta de Carlos de Sara-
goça para Pamplona , e de Pamplona para França ; no-
meando entre os mortos a Egibardo Veador de Carlos Ma-
gno , a Anselmo seu Conde de Palácio , e a Rolão ou
Roldão Conde de Bretanha.
Sc assim foi , pôde-se disputar o Padre Mariana , e
a outros Modernos , que a batalha de Roncesvalhes fosse
nos últimos annos de Carlos Magno , e em tempo de D.
Affonço o Casto. Porque Carlos morreo indubitavelmente
em 814, e em yyy ou 778 ainda não reinava D. AfFonço.
No anno de 798 por dous Embaixadores seus D. Froi-
la e U. Basilisco , mandou o Rei D. Affonço o Casto a
Car- i
202 Memorias da Academia Reai,
Carlos Magno de presente hum fermoso Pavilhão cont
muitas armas c bestas, e com muitos Mouros cativos, que
tomara na conquista de Lisboa. Annaes Bcrtinianos.
Esta cspece não me lembro tel-la achado em Escritor
algum nosso. E quando eu a puz no meu Compendio dns
Épocas por authoridade de Lcnglct, ainda não sabia donde
elle a poderia ter tomado.
Em tempo do Rei D. Affonço o Casto ^ e de Carlos
Magno , se levantou cm Espanha a heresia de Felis Bis-
po d' Urgel , e d' Elipando Arcebispo de Toledo, que en-
sinavão , que Christo não era filho natural de Deos Padre,
mas adoptivo. Contra ella fez Carlos Magno celebrar cm
794 o Concilio de Francford , composto dos Bispos da
Itália, da França, e da Germânia, que contra a mesma
heresia escreverão aos Prelados d' Espanha huma Epistola
Synodica extensíssima , que se pôde ver nas Actas do dito
Concilio.
Pela carta do Papa Adriano I ao Bispo Egila cons-
ta , que por este mesmo tempo grassavão por Espanha ou-
tros erros sobre a celebração da Páscoa, Livre Arbítrio,
Predestinação , DiíFerença dos manjares , e Celibato dos
Clérigos.
O modo com que D. Affonço o Casto subio ao thro-
no , he digno de se saber, e de se notar.
Morto o Rei D. Silo no anno de 783 quando a Rai-
nha viuva D. Adosinda com todos os Officlaes do Paço ,
queria que lhe succedesse seu sobrinho D. Affonço , filho
do Rei D. Froila I seu irmão : succedeo que outro Prín-
cipe por nome D. Mauregato , filho bastardo do Rei D.
Affonço I o CathoUco , tido numa escrava , pacteou secre-
tamente com os Mouros , que se o ajudassem para elle al-
cançar o Reino, excluído D. Affonço, elle D. Mauregato
lhes daria todos os annos cm parias cem donzellas chris-
taãs. Com cffeito ajudado dos Mouros sahio D. Maurega-
to com a sua , e reinou sinco annos , e alguns mczes. Por
todo o qual tempo esteve seu competidor D. Affonço re-
ti-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 263
tirado da Corte , vivendo cm casa de huns parentes de
sua mãy, que tiniia cm Alava.
Morto o Rei D. Mauregato em 789 , succedeo-lhc
D. Bcrmudo I sobrinho do mesmo D. AiFonço o Catholico ^
de quem D. Mauregato era filho bastardo. Tinha D. Bcr-
mudo recebido ordem de Diácono, e ainda assim reinou
trcs annos. Mas no terceiro renunciou o Reino , não a fa-
vor d'algum de dous filhos que tinha , chamados D. Ra-
miro , e D. Garcia ; mas a favor de seu sobrinho D. Af-
fonso , que he o de quem tratamos , e que por não ter
querido nunca casar, foi chamado o Casto.
Tudo isto consta da Chronica de Sebastião de Sala-
manca : 3 qual como dá a D. AíFonço o Casto sincoenta e
dous annos de reinado , c o póe morto no anno de 842 ,
scgue-se que D. AíFonço o Custo começou a reinar no an-
no de 791.
Na batalha de Lutos nas Astúrias, matou o Rei D,
AfFmço o Casto setenta mil Mouros. A mesma Chronica
de Sebastião de Salamanca, e a outra do Monge de Silos.
Em seu tempo forâo descubertas por celestiaes indí-
cios as rcliquias do Apostolo Santiago Maior em Iria, ci-
dade então Episcopal , hoje villa do Padrão em Galliza ,
c trasladadas dalli para Cómpostella , sendo Bispo de Iria
Thcodomiro. Historia Compostellana do século XII. Livro
I, cap. 2.
A D. Affonço II o Casto , succedeo D. Ramiro I ,
aquellc que venceo aos Mouros a famosa batalha de Cla-
vijo , onde foi visto o Apostolo Santiago montado num ca-
vallo branco , com huma bandeira branca na mão , pelejar
pelos Christãos. O que tudo attestou depois o mesmo Rei
no Privilegio chamado dos Fotos ^ que Morales publicou, e
icproduzio Flores, Tomo XIX, pag. 329.
Daqui diz Mariana que veio o costume , de quando
os nossos estavão para dar batalha aos Mouros , appellidar
Santiago Barros o está mencionando a cada passo nas suas
Décadas.
A
264 Memorias da Academia. Real
A este mesmo D. Ramiro I attribue Mariana a glo-
ria de ter cllc sido o que levantou aos Mouros o infame
tributo das cem donzellas christaãs, que o Rei Maurcgato
tinha pactcado com tanto discrediro da Nação Espanhola.
A Chronica do Cerratense comtudo attribue aquella gloria
a D. Ramiro II pelos annos de Christo 934, dizendo que
ate aqucllc tempo se pagava sempre o tributo das cera
donzellas.
Poderá ser , que a paga deste tributo tivesse suas in-
terrupções , conforme erao os tempos que corriao : e que
por isso fossem diversos os Reys, que o levantassem.
Reinando D. Affonço III o Magno ^ foi sagrada a Igreja
de Santiago de Galliza : (erecta em Metropolitana a Igreja
d'Ovicdo;) e celebrado nella hum Concilio, cm que se
decretou , que visto acharem-se destruídas pelos Mouros
muitas Cathedraes , e terem-se refugiado nas Astúrias os
seus Bispos , ficassem estes vivendo em Oviedo , e dalli
governasse cada hum como podesse os seus dispersos reba-
nhos. Actas do Concilio d'Oviedo extrahidas da Chronica
de Sampiro d'Astorga.
Acháráo-se neste Concilio desasete Bispos : entrelles
Argimiro de Braga, Nausto de Coimbra, Argimiro de La.
mego , Theodorico de Viseu , Guimado do Porto.
Achárão-se outrosi com ElRey onze Condes : entrel-
les Hcrmcgildo Conde de Tuy e do Porto, e Ayres seu
filho Conde d'Eminio, que se suppõe era Águeda.
Por causa da habitação simultânea de tantos Bispos
numa mesma cidade , foi Oviedo antigamente chamada a
Cidade dos Bispos. Historia de D. Rodrigo Ximenes do sé-
culo XIII. Livro IV, cap. 18.
D. Ramiro II fez celebre o seu nome pela grande vi-
ctoria que alcançou dos Mouros na batalha de Simancas ,
onde morrerão oitenta mil. Chronica de Sampiro d'Astor-
ga , e Chronica do Monge de Silos.
Em tempo do Rey D. Ordonho III foi martyrisado
em Córdova o santo menino Pelagio, ou como nós dize-
mos
DAS SciENCIAS DE LlSSOA. 155"
mos S. Payo , correndo a era de 964, que da' o anno do
Christo 926. Assim rodos os manuscriros de Sampiro d'As-'
torga , e assim todas as Chronicas antigas , como a do
Monge de Silos, a d'Alcalá, a Ambrosi.inj.
Náo obstante este consenso dos Códices de Sampiro,
c das Chronicas apontadas , Aloralcs se persu;idio , que ha-»
via erro na Era , e que em lugar da Era de 964 , anno
de Christo 926, se devia rcpôr cm todos a Era de 963 j
anno de Christo 925. E com esta emenda reimprimio Flo-
res a Chronica de Sampiro, pela razão de que das Actas
consta , que S. Pelagio rccebco o martyrio num Domin-
go 26 de Junho: e só no anno de 92J he que o dia 26
de Junho cahio em Domingo.
Depois de D. Bcrmudo II reinou em Leão seu filho
D. AfF)nço V, que achando-se sobre Viseu , foi morto
d'huma sétada , que lhe atirou hum Mouro, anno de 1027.
Consta da Chronica de Pelagio d'Ovicdo , e do seu epi-
táfio em Leão dcscripto por Mnralcs.
Deo Leys e Ordenações a Leão , que andavão escritas
no fim da Historia dos Reys Godos. A mesma Chronica
de Pelagio d'Oviedo.
Morto D. Bermudo III sem deixar posteridade algu-
ma , recahio pela primeira vez o Reino de Leão no de
Castella , na pessoa de D. Fernando o Magno.
Era este D. Fernando filho de D. Sancho II Rey de
Navarra , e d'Aragão. D. Sancho por ter casado com D.
Nuna , filha de D. Sancho Conde de Castella , tinha feito
seu este Condado, e na repartição que fez dos seus gran-
des Estados entre seus filhos , deo Castella a D. Fernan-
do, que foi o primeiro, que se intitulou Rey de Castel-
la ; e por ter casado com D. Sancha irmaa de D. Bermu-
do III adquirio também o Reino de Leão , e começou a
intitular-sc Rey d' hum e outro Reyno. Chronica de Pela-
gio d*Oviedo, c Chronica do Monge de Silos.
Três cousas illustrárão muito o reinado de D. Fernan-
do o Magno : a População de Portugal , a Legislação pa-
Tomo IX. LI IA
i65 Memorias da Academia Reat.
ra todos os seus Reinos , a Trasladação de Santo Isidoro ^
e a dos Santos Martyrcs d' Évora.
A População de Portugal foi huma feliz consequência
de ter o Rey D. Fernando expulsado da Província da Rci-
ra os Mouros d'cntrc Douro e Mondego , tomando-lhcs
primeiro Viseu, depois Lamego, por ultimo Coimbra.
Estando sobre Viseu, achou D. Fernando ainda nesta
cidade aquelle Mouro , que trinta annos antes tinha alli
mesmo morto com huma sétada a D. Affanço V seu sogro :
e em castigo lhe mandou cortar ambas as mãos.
A tomada de Coimbra foi revelada antes por Santia-
go a hum santo peregrino , que se achava em Compostella ,
e a quem arrebatado em extosi tinha apparecido o mesmo
Apostolo montado a cavallo com humas chaves na mão :
indicio de que hia abrir aos Christãos as portas de Coim-
bra, como pontualmente mostrou o successo. .
Depois da expugnaçâo de Coimbra , na volta para Leão
deixou o Rey D. Fernando por Governador na Beira a hum
D" Sisnando, homem de grande conselho, a quem os Mou-
ros d' Andaluzia tinhao antes trazido cativo da Cidade do
Porto
Tudo o referido hc tirado da Chronica do Monge
de Silos.
Da Legislação de D. Fernando o Magno dá a Chro-
nica de Pelagio d'Oviedo hum bom testemunho , quando
diz , que D. Fernando confirmou as Leys , que D. Affon-
ço seu sogro promulgara em Leão , e que lhes acrescen-
tou outras.
Mais expresso he ainda , e mais notável o testemu-
nho , que da Legislação do mesmo D. Fernando o Magno
nos oflFerecem as Actas do Concilio de Coyaca , Diocese
d'Oviedo, celebrado no anno de Christo 1050 com assis-
tência do mesmo Rey , e dos seus Grandes , o qual divs
assim :
Octavo Título mandaniíís , ut in Legione , et in suis ter^
minis f in GalUcia , et in Âsíwiis, et Portucak , tale sit judi-^
cium
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. iff^
Ciiitn setnper y qttalc est connitutttm in Decretis Adefonsi Regit
pro homicidio , pro rauso , pro sayo7ie , aut pro onwibiis calum*
niis suis. lale vero judicitim sit in Castella , quale fuit in die^
bus avi nostri Sancii Dticis. Quer dizer: Que cm Leão, Gal-
]i/a, Ascurias, c Portugal, ye faça justiça segundo as Leys
do Rey U. AíFonço V seu sogro : c em Castella , segun-
do as Leys do Duque D. Sancho seu avô.
Que Leys fossem aqucllas de D. AfF^nço V de Leão,
Aguirre as dco nas Actas do Concilio Lcgionense do an*
no de IOI2.
A Trasladação do corpo de Santo Isidoro de Sevilha
a Leão, foi feita pelos dous Bispos Alvito de Leão, e
Ordonho d*Astorga , acompanhados do Conde Munho. O
anno anda errado na Chronica do Monge de Silos, que a
pÔe no anno da Encarnação lojz. Anda também errado na
vida de Santo Isidoro escrita pelo Monge Ccrratense , que
a põe no anno do Senhor 1062. Porque o verdadeiro an-
no desta Trasladação foi o de Christo 1063 , como he ex-
presso nas Actas da mesma Trasladação , impressas pelos
Padres Bullandistas , e reimpressas por Flores : e na Ins-
cripção coetânea posta na mesma Igreja de Santo Isidoro
de Leão ^ a qual Sandoval deixou estampada na vida do
Rcy D. Fernando.
Sobre as reliquias dos Santos Marryres d' Évora, a
Chronica de Pelagio d'Oviedo nos certifica , que D. Fer-
nando fizera trasladar de Ávila onde estavâo , as de S. Vi-
cente para Leão , as de Santa Sabina para Falência , as de
Santa Christeta para S. Pedro d'Arlanza.
Morreo este Rey D. Fernando o Magno no anno de
z<36y. Consta do unanime consenso de todas as Chroni-
cas: da Chronica de Pelagio d'Oviedo , da do Monge de
Silos , da Gothica de Brandão , da de Burgos , da d'Alca-
li. Pelos quaes monumentos se deve emendar a Chronica
do Livro da Noa de Santa Cruz de Coimbra, que a põe
hum anno antes, isto he , na Era de MCII, que dá o an-
00 de Cbriâto 10Ó4.
LI ii An-
i6o Memorias da Academia Real
Antes de morrer, dlvidio D. Fernando o Macno os
seus Reinos por seus filhos. A D. Sancho que era Primo-
génito, deo Castella : a D. Affonço , Leão: a D. Garcia,
Galliza c Portugal. Chronica do Monge de Silos, Chro-
nica de Pelagio d'Oviedo , e Chronica Compostellana.
Depois da morte do pay, começarão logo os três fi-
lhos a guerrear entre si , sobre qual havia de ter maiores
doniinios. Morto em guerra D. Sancho no sitio de Zamo-
ra , occupou D. AfFonty-o o Reino de Castella. Morto era
prizão D. Garcia, occupou D. Affonço o Reino de Galli-
za e Portugal : e deste modo absorveo em si os três Rei-
nos de seu pay. Chronica de Pelagio d'Oviedo, c Chro-
nica Compostellana.
Somos cm fim chegados ao Reinado do grande D.
Affonso VI, Tronco da Casa Real Portugueza por sua fi-
lha a Rainha D. Tareja , mulher do Conde D. Henrique
de Borgonha.
' Em tempo deste D. Affonço VI, anno de 107Ó, foi
abolido em todos os seus Reinos o Rito Gothico do Of-
ficio Divino , e introduzido em seu lugar o Romano. Chro-
nica de Burgos , e Chronica de Cardenha.
He digno de se notar , que em lugar de Rito Go-
thico , ou Rito Romano , se dizia então Ley Gothica , ou
Ley Romana. Historia Compostellana , Livro I , cap. z qua-
si no fim.
No anno de 1085- expugnou D. Affonço VI Toledo,
lançando fora os Mouros. Chronica de Burgos, Chronica
Gothica, Chronica ào Cerratense, e Livro de Noa.
Este Rey D. Affonço VI teve Carta de Confraterni-
dade com os Monges da Abbadia de Cluni cm Borgonha,
passada pelo Santo Abbade Hugo. O Instrumento publi-
cou-o Dacheri no Tomo VI do seu Spkilegio.
O mesmo Rei por sua devoção se fez tributário de
certa quantia de dinheiro ao dito Mosteiro de Cluni. Cons-
ta da Doação que traz, Yepes no Tomo IV.
A raiz desta affeição á Ordem dç Cluni , depois da
gran-
DAS SCIENCIAS CE LiSBOA. z6^
grande fama que por roda a christandade corria da santa
e exemplar vida daquellcs Monges, creio eu que era, es-
tar ElRci D. AíFvJnço VI casado cm segundas núpcias com
a Rainha D. Constança , filha do Dut]uc de Borgonha ,
cm cujo território, como já notei, estava Cliini. E daqui
também vinha , que naqucllc tempo se achavâo as primei-
ras Cathedracs d' lispanha occupadas por Monges daquella
filiação. Porque D. Bcnnudo era Arcebispo de Toledo, S,
Giraldo Arcebispo de Braga, D. Mauricio Bispo de Coim-
bra, D. Dalmacio Bispo de Compostella.
Da estada deste grande Rei em Portugal dá a Chro-
nlca hum excellente testemunho, quando diz, que na Era
de iiji, anno de Christo 1093, dentro de poucos dias
tomou ElRei aos Mouros Santarém , Lisboa , e Sintra ; e
que entregando o governo destas três Praças ao Conde
D. Ramon seu genro , marido de sua filha D. Urraca , e
pondo por Alcaide Mór delias a D. Sueiro Mendes, par*
tira para Toledo.
Faleceo ElRei D. AfFonço VI no anno de 1105» ten-
do reinado 43 annis e seis mczes. No que a dita Chronica
Gofhica concorda bellamente com a de D. Pelagio d'Ovie-
do , que então vivia , e assistio ás exéquias d' ElRei. E
daqui se convence, que elle começara a reinar no anno de
«065-, que he o em que morrera seu pai D. Fernando o
Magno,
DIS-
17C» Memorias DA AcADE MIA Real
DISSERTAÇÃO XIII.
Princípios do Reino de Portugal no casamento do Conde D. Hen-
rique com a Rainha D. Tare j a. Soberania deste Estado trans-
mittida a ElRci D. AJfonso Henriques seu filho , e na Pes-
soa delle a todos seus successores.
§ I.
De que Casa Soberana da Europa procedia o Conde D. Heuri'
que , ou qual era a sua Baronia,
D.
'EixAnAs duas opiniões, que antes do tempo de Duar-
te Nunes de Leão andarão muito em voga entre os nos-
sos : das quaes huma fazia o Conde D. Henrique proce-
dente d' hum Rei d' Hungria , sem designar que Rei fos-
se , como seguirão Duarte Galvão na Chronica d' ElRei
D. Affonço Henriques , e André de Resende no Livro Quar-
to das suas Antiguidades de Portugal : outra procedente da
Casa dos Duques de Lorena, como seguindo os dous Bis-
pos D. Rodrigo Sanches de Falência , e D. Affonço de
Carthagena de Burgos affirmou Damião de Góes na Chro-
nica d' ElRei D. Manoel. Deixadas , digo estas duas opi-
niões, como já antiquadas, e de nenhum valor por falta
de Documentos sohdos : a sentença geralmente recebida
hoje entre os eruditos tem , que o Conde D. Henrique
era de Borgonha. A duvida que unicamente resta he , de
qual das duas Borgonhas procedia elle : se da Borgonha
Ducado , se da Borgonha Condado : porque em ambos es»
tes dous Estados Soberanos se dividia aquella Provinda ,
em quanto não foi incorporada na Coroa de França.
Os Genealógicos Francezes , tendo á testa a André
Duchesne, querem que o Conde D. Henrique procedesse
de
DAS SCIENCIAS DE LlSUOA. lyt
dc Borgonha Ducado , como filho d'hum dos filhos do Du*
que Roberto , o qual Duque Roberto era filho d'outro Ro-
berto Rei de França o segundo do nome, e por clle ne-
to immcdiato do Rei Hugo Gapcto , tronco da terceira
raça actual dos Reis Cliristianissimos. Segundo a qual ge-
nenlogin tem a Casa Real Portugueza o mesmo tronco ,
que a Casa Real de França. O fundamento desta opinião
he hum manuscrito da Abbadia Floriacense ou de Fleuri
da Ordem de Cluni cm Borgonha, o qual juntamente com
as Historias de Cylabro e de Suger se imprimio pela pri-
meira vez em Francford no anno de IÇ96, e depois o in-
scrio André Duchcsne na sua Historia dos Duques de Bor-
gonha , c Francisco Duchesne seu filho no Tomo Quarto
da rarissima Collecção, que tem por titulo, Historia frau'
cortim Scriptores Coaetanei.
Este manuscrito entre muitas cousas pertencentes ao
Reino de França des dos fins do século IX até os princí-
pios do século XII traz algumas pertencentes a Espanha
do tempo d' El Rei D. Affonço VI sogro do nosso Conde
D. Henrique. O Author que se não sabe quem foi, clara-
mente se faz coetâneo do mesmo Rei D. AfFonço VI quan-
do diz, que elle no anno de 1108 estando sobre o rio
Gatona vira que no Ceo apparecião trcs soes , isto he , três
dos que os Filósofos e Mathematicos chamão Parelios. Tra-
tando porém das duas filhas do dito Rei de Leão e Castella
D. AflFonço VI depois de dizer, que a primeira que era le-
gitima , a casou elle com D. Ramon , Conde que era alem
do Saoua : ( qui Conútatum ultra Ararim tenehat : ) acrescenta
logo, que a outra que era bastarda, a dera elle a D. Hen-
rique, que era hum dos filhos do filho do Duque Roberto
de Borgonha. Alteram filiam , sed non ex conjtigali thoro ua'
tam , Atnrico uni filiorum filii ejusdem Diicis Roberti dedit.
Fundados neste Documento da Abbadia de Fleuri , e
seguindo a André Duchesne, dão hoje por indubitável os
Genealógicos de França , ter procedido o Conde D. Hen-
rique da Casa de Borgonha Ducado. E na verdade depois
d'as-
1^1 Mkmorias da Academia Real
d'assim o deixar escrito hum Author Fiaiiccz coetâneo do
mesmo Conde , c natural de Borgonha , parece que não
falta nada, para o facto se dar por certo. Assim o Chro-
rista JNIói- Fr. António Brandão na Terceira Parte da Mo-
narquia Lusitana , Livro VIU , cap. 2 se acostou a esta
opinião , como a mais provável. E o celebre Agostinho
Descalço o Padre Anselmo no Tomo I da sua Historia Ge-
nealógica dos Reis de França, cap. 1^ diz que o manus-
prito de Plcuri viera a eclipsar todas as outras opiniões
que antecedentemente corriao , sobre a origem c extracção
do Conde D. Henrique. E em virtude dcllc assenta com
os dous Santas Marthas , que o Conde D. Henrique de
Portugal era quarto filho d' Henrique , filho primogénito
de Roberto Duque de Borgonha.
Todavia D. Luiz Salazar de Castro, o mais diligen^
te e exacto Genealógico que atégora vio Espanha , na sua
t)bra Glorias da Casa Farnest ^ pag. 6Ó9 e segg. depois de
mostrar que f;iz pouca fé na authoridade do manuscrito
de Fleuri , muito de propósito e com todo o esforço com-
bate a pretensa origem do Conde D. Henrique deduzida
de Roberto Duque de Borgonha : e dá por unicamente
verdadeira a opinião , que muito antes que Brandão e Du-
chesne escrevessem , tinhão proposto Duarte Nunes e Fr.
Bernardo de Brito , que he , que o Conde D. Henrique
de Portugal era filho de Guido Conde de Vernueil na
Normandia , hum dos filhos de Reinaldo Conde de Bor-
gonha.
Esta opinião tem grande apoyo no que deixou escri-
to na sua Historia d' Espanha , Livro VI, cap. 21, o Ar-
cebispo de Toledo D. Rodrigo Ximenes , Author do sé-
culo seguinte ao em que morreo o Conde D. Henrique,
e que ainda alcançou o reinado de D. Affonço Henriques.
Porque no citado lugar affirma D. Rodrigo, que o Conde
D. Henrique era das partes de Besançon , e primo co-ir-
mão do Conde D. Ramon , pai d' ElRei D. Affonço VII
chamado o Imperador. De ^artihus Bisontinis y congermams
Ra^-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. lyt
Raytfiundi Comitis patris Imperatoris. Ora Besançon aindaqvre
era Metrópole commum das duas Borgonlias , estava no
território de Borgonha Condado , de cuja Corte que era
Doía, só distava oito Jcgoas, quando de Dijon Corte do
Ducado distava quatorze. E o Conde D. Ramon , de quem
o nosso D. Henrique se diz primo co-irmao, indubitavel-
mente consta que era da Casa de Borgonha Condado, co-
mo lic expresso numa pequena Chronica do século XIII ,
que Flores imprimio duas vezes , huma no fim do Tomo
XX, outra no fim do Tomo XXIII tirada d' hum Códice
da Historia Compostellana do Coliegio chamado do Arce-
híspo da Universidade de Salamanca : no fim da qual pe-
quena Chronica se diz , que o sobredito Rei D. Affonço
VII era filho da Rainha D. Urraca , e de D. Ramon Con-
de Palatino de Borgonha. Filius autem ejus Jdefonstis tiomi'
lie,, a Raymundo Burgundia Comité Palatino legitime geueratuSj
&c. De mais que de vários lugares da Historia Compos-
tellana , como do Livro I, cap. 46 , e do Livro I, cap.
108 , hc notório", que este Conde D. Ramon era irmão
de Guido Arcebispo de Vienna , que depois foi Papa Ca-
listo II , e do qual todos concordão, que era da Casa de
Borgonha Condado , e não Ducado. Do que tudo deduz
Salazar de Castro ser hum mesmo o tronco da Casa Real
de Portugal , e o da Casa Real de Castella , considerada
esta antes d'entrar nella a Casa de Borbon na pessoa de
Filippe V.
Expendidos assim os fundamentos d'huma e outra sen-
tença , resta declararmos , a qual das duas dá o nosso juí-
zo a preferencia para ser crida. Digo pois , que se deve
estar antes pela primeira , que faz o Conde D. Henrique
procedente da Casa de Borgonha Ducado ; do que peia
segunda , que o faz procedente da Casa de Borgonha Con-
dado. A razão de decidir he i.° Porque a primeira senten-
ça allega por si hum Documento positivo c expresso , e
esse d'Author coetâneo , e da mesma Provincia , qual he
o Manuscrito do Monge de Fleuri. A segunda porém só
Tomo IX. Mm apon-
274 Memorias pa Academia Real
aponta por si o testemunho d'hum Escritor cem annos
mais moderno , e que sobre mais moderno , se explica por
huns termos muito geraes c confusos , qual he o testemu-
nho do Arcebispo de Toledo D. Rodrigo Ximcnes. 2.° Por-
que estando em pé o Manuscrito de Fleuri , que Salazar
quer dar por supposto , mas sem prova concludente , intei-
ramente se arruina pelos aliceces a segunda opinião , que
faz o Conde D. Henrique procedente de Borgonha Con-
dado. Pelo contrario a outra opinião , que fundada no Ma-
nuscrito de Fleuri faz o Conde D. Henrique procedente
de Borgonha Ducado , pode muito bem conciliar-se , e de
facto- SC concilia com o testemunho do Arcebispo D. Ro-
drigo. Porque ser o Conde D. Henrique das partes de Be-
zatifon , ií»ualmcntc se verifica, ou elle viesse de Borgo-
nha Condado , ou de Borgonha Ducado , visto que Bezan-
çon era Metrópole commum d'ambos os Estados. E o ser
primo co-irmão do Conde D. Ramon , podia ser por par-
te da mãi , e não do pai , visto que o nome congermanus
he indilFerente para hum e outro sentido: o que não seria,
se o Arcebispo em lugar de cmigermamts tivesse escrito /)<»-
triielís.
§ II.
Se a Rainha D. Tareja era legitima , ou bastarda.
A opinião commummente recebida entre os nossos Es-
critores he , que a Rainha D. Tareja fora filha bastarda
d' ElRei D. Affonço VI havida em D. Ximena Munhoz
sua amiga. Assim a Chronica antiga citada por Brandão,
assim Damião de Góes, assim Bernardo de Brito, assim
António de Vasconcellos , assim João Baptista Lavanha , as-
sim Leão de S. Thomaz, assim outros depois dclle.
André de Resende foi o primeiro ou dos primeiros ,
que deo a D. Ximena Munhoz por mulher legitima d'El-
Rci D. AfFonço VI fundado n'huma antiga Chronica em
lingua Espanhola , que elle diz que fora escrita setenta an-
nos
I
DAS SciENClAs DE LiSROA. 375"
nos antes , que o Arcebispo de Toledo D. Rodrigo Xime-
nes publicasse a sua Historia Latina d'Espanha.
A André de Resende seguio nisto Fr. António Bran-
dão na Terceira Parte da Monarquia Lusitana : a Fr. Antó-
nio Brandão seguio D. José Barbosa no seu Catalogo das
Rainhas de Portugal,
Arrojo parece intentar eu impugnar três criticos tao
grandes. Mas por huma parte a obrigação que des do prin-
cipio me impuz , de elucidar nestas Dissertações Académi-
cas os pontos mais importantes da nossa Historia antiga ,
não permitte que passe em silencio a qualidade de nasci-
mento da nossa primeira Soberana. Por outra parte a cons-
ciência da verdade, que he a primeira Ley da Historia,
manda que a mesma verdade seja preferida a todos e quaes-
quer respeitos. He pois a minha those a que se segue :
A Rainha D. Tareja foi filha d^ElRei D. Jffonço VI ha-
vida cm D. Ximena Munhoz , que ainda que era Senhora d' al-
ta qualidade , nao foi sua mulher legitima.
Primeira Prova.
D. Pelagio que começou a ser Bispo d'Oviedo no
anno de 1098, eque conseguintemente foi contemporâneo
do dito Rei D. AfFonço VI falecido no anno de 1109 na
Chronica que escreveo dos Reis de Leão , tratando no fim
delia das mulheres e descendência , que o dito Rei teve ,
escreve assim : Hic hahuit quihqtie uxores legitimas '. primam
Jgnetem , secundam Constantiam Refinam , ex qua genuit Ur-
racam Reginam conjugem Comitis Raymundi , de qua ipse ge-
nuit Maneiam et Adefonsum Regem : tertiam Bertam Tuscia orinn-
dam : quartam Elisabeth , ex qua genuit Saneiam conjugem Co-
mitis Roderici , et Geloiram quam duxit Rogerius Dux Sicilia :
quintam Beatricem , qua mortuo eo repedavit in patriam suam.
Habiút etiam duas concubinas , tamen nobilíssimas : priorem Xi-
meuam Munionis , ex qua genuit Geloiram uxorevi Comitis Ray-
mundi Tolosani , patris ex ea Adefonsi Jordauis ; et Tarasiam
Mm ii tixo-
2j6 Memorias DA Academia Real
iixorem Henrici Comitis , patrh ex ea Vrracie , Geloir^ , et
Alefonsí : posteriorem mmitie Zaydam , filiam Âbenhabet Regis
Hispalensis , quíC baptizata Elisabeth ftiit vocata : ex hac ge-
miit Siiucium ^ qui obiit in lite de Ucks.
Qiier ihzcr ; Este Rei D. AfFonço VI teve sinco mu-
lheres legitimas : primeira D. Incz : segunda a Rainha l>.
Constança , da qual gerou a Rainha D. Urraca mulher do
Conde U. Ramon , que delle teve a D. Sancha , e a EU
Rei D. Affonço : terceira D. Bcrtha , oriunda da Toscana :
quarta D. Isabel , da qual gerou a D. Sancha mulher do
Conde D. Rodrigo , e a D. Elvira , com quem casou Ro-
gério Duque de Sicilia : quinta D. Brites , que morto elie
tornou para a sua pátria. Teve também duas concubinas ,
mas nobilissimas : primeira D. Ximena Munhoz , da qual
gerou a D, Elvira , mulher do Conde D. Ramon de To-
losa , dos quaes nasceo D. AfFonço Jordão ; e a D. Tarc-
ja mulher do Conde D. Henrique, dos quaes nascerão D.
Urraca, D. Elvira, e D. Affonço : outra por nome Zayda,
filha d'Abcnabeth Rei de Sevilha, a qual sendo baptizada,
se chamou D. Isabel : e delia teve ElRei a D. Sancho, que
morreo na batalha d'Uclés.
Aqui temos hum Bispo, que tratou muitos annos a
ElRei D. AfFonço' VI , e que por conseguinte havia de sa-
ber muito bem de todos os seus casanientos , affirmando
que este Rei tivera sinco mulheres legitimas , que nomea
pelos seus nomes ; e duas concubinas de nascimento illus-
trissimo , huaia das quaes diz que era D. Ximena Munhoz
mãi que foi da nossa Rainha D. Tareja. Logo pelo teste-
munho do Bispo D. Pelagio , não foi D. Ximena Munhoz
mulher legitima d'ElRei D. Affonço VI.
Segunda Prova.
O Arcebispo de Toledo D. Rodrigo Ximenes , que
floreceo no século immediato ao em que morreo ElRei D.
Affonço VI , c que pelo seu caracter e cxacção he o Escri-
tor
DAs< SeiENci AS DE Lisboa. 277
tor mais clássico que temos da Historia (^'Eípfinha : cstí
Arcebispo, digo, tratando das mulheres do mesmo Rei l).
AfFonço VI SC explica quasi pelos mesmos termos, de que
tinha usado D. Pelagio Bispo d'Oviedo, dizendo assim no
I.ivro VI, c;ip. 21. Hic habuit quhique uxores sticccssive legi-
timo niatrinwtíio sibi junctas. Prima ftiií Âgnes : secmula Com-
tantia , ex qua geituit filiam iiomiiie Vrracam , qtia ftiit uxor
Comitis Raimimdi , de qua ipse Raimundiis gftiuit Saneiam et
ylldefousum , qtti ftiit postea hnperator. Tertia Berta ex Tuscia
oriunda : Qtiarta Elisabet , ex qua getitiit Saneiam , qiite fuit
líxor Comitis Roderiei ; et Geloiram , qtiam dtixit Rogerius Rex
Sicilia, . . . Qiãnta Beatrix depaftibtis Callicanis. Habuit etium
aliam uxorem , qu^ Ceida , postea Maria fuit dieta, Habuit
etiam duas nobiles concubinas : una dicebatur Semena Munionis ,
ex qua genuit Geloiram , qute fuit uxor Raimundi Comitis To-
losani , et ex illo Comité genuit Jldefonsum Jordanis , qui sic
dictus , eo quod in Jordanis fiumine baptizatus Et eadem
Semena Munionis genuit aliam filiam , qiite Tharasia dieta fuit ^
quam duxit Comes Enricus de partibus Bisontinis , congerma.-
nus Raimundi Comitis patris Imperatoris , ex qua suscepit idem
Enricus Aldefonstim , qui fuit postea Rex Portugallia.
Quer dizer: Este Rei D. Affonço VI teve successi-
vánvente sinco mulheres em legitimo matrimonio. A primei-
ra foi D. Inez : a segunda D, Constança , da qual teve hu-
ma filha por nome D. Urraca , que foi mulher do Conde
D. Ramon , da qual o mesmo D. Ramon ouve a D. San-
cha , e a D. AfFonço , que depois foi Imperador. A tercei-
ra D, Berta oriunda de Toscana. A quarta D. Isabel , da
qual gerou a D. Sancha , que foi mulher do Conde D.
Rodrigo , e a D. Elvira , com quem casou Rogério Rei
de Sicilia. A quinta D. Brites, que era das partes de Fran-
ça.. . Teve também outra mulher legitima, que no princi-
pio se chamava Ceide, depois Maria. Teve também duas
concubinas mulheres nobres : huma das quaes se chamava
D. Ximcna Munhoz, da qual gerou a D. Elvira, que foi
mulher do Conde D. Ramon de Tolosa , e que do dito
Con-
278 Memorias DA Academia Real
Conde gerou a D. Affonço Jordão , assim chamado, por
ter sido baptizado neste rio. E a mesma D. Ximena Mu-
nhoz gerou outra filha por nome D, Tareja , com a qual
casou o Conde D. Henrique das partes de Besançon , pri-
mo do Conde D. Ramon pai do Imperador ; da qual o
mesmo D. Henrique teve a D. Affonço , que depois foi
Rei de Portutral.
Aqui temos o Arcebispo de Toledo D. Rodrigo Xi-
mcnes , contradistinguindo e contrapondo seis mullieres ,
legitimas d'ElRei D, AfFonço VI as que só foráo suas con-
cubinas ; e contando entre as concubinas a D. Ximena Mu-
nhoz , mãi da nossa Rainha D. Tareja. Logo tambcm se-
gundo o Arcebispo D. Rodrigo Ximenes não foi D. Xime-
na Munhoz mulher legitima d'ElRei D. Aflfonço VI.
N'huma só cousa notável discrepa a narração do Ar-
cebispo D. Rodrigo , da narração do Bispo D. Pelagio ,
que elle manifestamente tinha diante dos olhos : e he em
dar por sexta mulher legitima d'ElRei D. Affbnç ) VI a
moura Zayda , que D. Pelagio apontara por huma das duas
concubinas. Mas por huma parte esta discrepância não faz
nada contra o nosso intento , que todo versa sobre D. Xi-
mena , e não sobre a Zayda moura. Por outra parte não fal-
ta entre os modernos criticos quem discorra , que no arti-
go da Zayda foi viciado o Texto de D, Rodrigo por ou-
tra mão. E o contexto assim o persuade. Porque se D, Ro-
drigo começa como D. Pelagio, dando a ElRei D. Affon-
ço VI sinco mulheres legitimas, e depois duas concubinas:
como acrescenta elle a essas sinco mulheres legitimas ou-
tra legitima , que vem a fazer seis ? E se elle com o mes-
mo D. Pelagio reconhece duas concubinas , como nomea
só huma ? Parece logo palpável , que a clausula da Zayda
junta ás mulheres legitimas, não sahio da mão de D. Ro-
drigo, o qual a proceder com coherencia devia contar a
Zayda por segunda concubina. Este he o discurso do Pa-
dre Flores , que ninguém duvidará , que he hum discurso
digno d' hum homem grande.
DAS ScieScias de Lisboa. 279
§ III.
Rentove-se bum subterfúgio , a que D. José Barbosa se aco-
Iheo, para não ter contra si os dous Escritores sobreditos.
André de Resende e Fr. António Brandão , ambos re-
conhcccião c confessarão , que D. Pelagio d'Oviedo e D.
Rodrigo Ximcncs em darem a D. Ximena Munhoz por con-
albina d' ElRci D. AfFonço VI negavão que cila fosse sua
mulher legitima. Por isso para mostrarem , que a Rainha
D. Tareja não fora bastarda , mas legitima , recorrerão a
outros Documentos , que opposerao aos dos referidos Bis-
po e Arcebispo. O Padre D.José Barbosa, Clérigo Re-
gular da Divina Providencia , nome entre nós não só de
respeito, mas de saudade, quando no seu bem trabalhado
Catalogo das Rainhas de Portugal tratou de provar com Re-
sende e Brandão a legitimidade da Rainha D. Tareja , to-
mou o novo expediente de dizer, que o nome de concubina
nos Textos do Bispo d'Ovicdo D. Pelagio, e do Arcebis-
po de Toledo D. Rodrigo , não se devia tomar por ami-
ga ou manceba , mas por huma mulher , que por ser d*in-
ferior condição , se recebia sem soleranidade externa.
Por esta accepção do nome de concubina allega D. Jo-
sé Barbosa o cap. Christiano , que anda no Decreto ; e o
exemplo de Cethura e Agar, que sendo legitimas mulhe-
res d*Abrahão, a Escritura no Livro do Génesis as chama
concubinas. '
Mas ninguém deixa de ver , que para o nome concubina
se tomar nos Textos de D. Pelagio e de D. Rodrigo ,
por huma mulher legitima , a quem para se equiparar ás
outras só faltou ser recebida com solcmnidade ; não basta
que o tal nome se ache nesta accepção em tal cânon, ou
em tal lugar da Escritura : mas que de mais a mais he ne-
cessário mostrar , que nesta mesma accepção he que com
efFeito o vsurpárão D. Pelagio , e D. Rodrigo. Isto he po-
aSo Memorias da Academia Real
rém o que não mostrou , nem podia mostrar o Padre D.
José Barbosa,
Primo : porque tanto D. Pelagio como D. Rodrigo ,
ambos claramente contrapõem a n}t«lher concubina á mulher
legitima , e a mulher legitima á concubina : dizendo hum :
Habuit qtiinque tixores legitimas : outro , Habtiit qiiinque lixa-
res legítimo matrimonio sibi jitnctas. E dizendo ambos , Ha-
buit etiam ditas concubinas.
Secundo : porque concordando ambos , que D. Xime-
na Munhóx era illustrissima por nascimento ; assim como
da parte do Rei não havia razão para a receber sem so-
kmnidade , também da parte dos dous Escritores não ha-
via razão para a metterem na classe das concubinas : por-
que tal qual era D. Ximena , não era inferior a muitas ,
que sendo filhas de vassallos , nenhum reparo tinhâo feito
outros Reis de Leão de as receberem como Rainhas.
Tertiò : porque da arvore do cpstado , que traz Flo-
res , consta que D. Ximena era parenta d' ElRei em ter-
ceiro gráo. E as parentas em grão prohibido não podião
ser n-jm concubinas legaes no sentido de Barbosa.
Quarto : porque feito parallelo de lugares com luga-
res , acha-se que noutros Textos querendo os mesmos dous
Escritores D. Pelagio e D. Rodrigo significar bastardia nos
filhos , chamão como aqui concubinas as mais. De D. Pela-
gio se convence isto, pelo que elle escreve dos bastardos
d' El Rei D. Bermudo II dizendo : Alitid nefas nefandissimus
jlle Princeps egit. Habuit duas nobiles sorores concubinas: ex
una genttit Infantem Domintim Ordonium , ex alia genuit In-
fantissam Dominam Geloiram. Quer dizer : Outra infame mal-
dade fez ainda este nefando Principe. Teve duas irmaãs no«
brcs por concubinas : d' huma das quaes gerou o Infante
D. Ordonho , da outra a Infanta D. Elvira. No qual Tex-
to por isso mesmo que as duas concubinas erão irmaãs , fi-
ca evidente, que D. Pelagio tomou o nome de concubina
na significação d'amiga ou manceba. Porque nem duas ir-
maãs ainda successivamente podião ser mulheres, legitimas
sem
DAS SCIEKCIÀS DE LlSBOAi sSí
sem dispensa; nem D. Pclagio qualificaria de grande mal-»
dadc d' ElRci D. Bcnnudo II ter por concubinas duas ir-
inaãs , se por este nome entendesse duas mulheres legiii*
mas.
Quanto a D. Rodrigo lie terminantissimo o seguinte
lugar do Livro V, cap. i. onde fallando dos filhos d' El-
Rci D. Fioila II diz assim : Duxit uxorem nomine Múmia
Domna , ex qua sitscepit ires filioT : Aldefonstim , Ordoiihnn , et
Raiiimiriim : et qtiafttini de concubina itomine Âzenarem. Isto
hc : Casou EIRei D. Froila II com D. Múmia Domna, da
qual houve três filhos: D. AíFonço ^ D. Ordonho , D. Ra-
miro; c teve quarta d'huma concubina cham.idi Azcnar.
Para se ver com roda a clareza , que D. Rodrigo toma aqui
concubina por amiga ou manceba, hc de saber, que eíle
neste lugar não fez mais que transcrever, o que dos filhos
d' EIRei D. Froila II tinha antes deixado em memoria d
outro Bispo Sampiro d'Astorga , quanJo na íua Chronicá
escreve assim : Duxit uxorem nomiue Muniam Domnam , ex
qua três filios genuit '. Adefonsum , Ordonium , sive et Ranmt'
rum : et genuit Azenarevi , sed non ex legitimo conjugio. Qlicí
dizer: Casou ElRci D. Froila II com D. Munia Donna ^
da qual teve três filhos: D. Affonço, D. Ordonho, D. Ra-
miro : gerou mais outro filho chamado Azenar , mas não
de legitimo matrimonio. Bem ouvirão todos , que o que
Sampiro d'Astorga dissera , que EIRei D. Froila II gerara
râo de legitimo matrimonio o Príncipe Azenar ; disse D«
Rodrigo , que o gerara d' huma concubina.
Tenho logo demostrado contra o que pretendia o Pa-
dre D. José Barbosa , que o nome concubina na Historia
de D. Pelagio d'Oviedo e de D. Rodrigo de Toledo, não
se toma por mulher d'algum modo legitima , mas por ami-
ga ou manceba.
O Monge de Silos coetâneo do Bispo D. Pelagio, e
o Author da Chronicá Latina d' ElRei D. AíFonço VII ,
que floreceo no mesmo século , nos confirmão , que esta
era então a accepçao commum daquelle termo nos nossos
Tomo IX, Nn Es-
aSl MeMOKI A.S DA ACADEM IA ReA n
Escritores. Porque o primeiro tratando da repartição, que
D. Sancho Rei de Navarra fez dos seus Ebtados entre seus
filhos, dÍ7, assim: Garciam primogenitum Panipilonensibus pra-
fecít '. Feruaiidum vero hcllatrix Castclla passioue patvis pro gu-
bernatore suscepit. Dedit Ramiro , quem cx concubina hahnerat ,
quandam semotim regni sui partictilam , scilicet ne fratrihus
eo qtiod materno gcnere impar erat , quasi hcreditariíis regni
vidcretur. A D. Garcia seu primogénito deo o Reino de
Pamplona : a D. Fernando coube a bellicosa Castella : a
D. Ramiro havido numa concubina dco separadamente lui-
ma pequena porção do seu Reino , visto que sendo desigual
aos irmãos por parte da mãi , era razão que não parecesse
entrar com eiles igualmente na herança dos Estados pa-
ternos.
O segundo depois de referir no Numero 36, que El-
Rci D. Affonço VII dera por mulher a D. Garcia Rei de
Navarra sua filha D. Urraca havida numa concubina chama-
da Domna Gontroda : «í daret Regi Garsia filiam suam In-
faMem Domnam Urracam, quam genuerat ex Gontroda concu-
bina', prosegue no Num. 39 dizendo, que a concubina D.
Gontroda , depois que vio feita Rainha a sua filha D. Ur-
raca , como quem não tinha mais que desejar deste mun-
do , se recolhera Freira no Mosteiro d'Oviedo : isto em
vida do dito Rei D. Affonço VII.
Que testemunhos mais claros e mais concludentes se
podem desejar, para todos entenderem, que o significado
em que os nossos Escritores do século XII e XIII toma-
vão o nome concubina ^ era o de amiga ou manceba, e de
nenhum modo mulher legitima.
DAS SciENCIAS DE Ll3EOA* iSj
§ IV.
Refoi'ção-ic mais os fundamentos , donde se prova , que D. Xi»
mena Alunhóz mãi da Rainha D. Tareja , não fora mu~
Iher legitima d'£/Rei D. Àjfouço yi.
Mas dado, c não concedido, que os testemunhos do
Bispo D. Pclagio, c do Arcebispo D. Rodrigo, se possáo
eludir com a interpretação, que o Padre D.José Barbosa
deu ao nome de concubina : que podem repor os que pre-
tendem com elle , que a Rainha D. Tareja fôra filha de
legitimo matrimonio; que podem repor, digo, aos teste-
munhos do Monge de Fleuri , e da Chronica Latina d'El-
Rei D. Affonço VII , que por termos expressos dizem ,
que a Rainha D. Tareja não era filha legitima , mas bas-
tarda ? Pelo que toca ao Monge de Fleuri , he cousa no-
tável, que o Chronista Mor Fr. António Brandão, que o
tomara por garante da opinião que segue , de descender
o Conde D. Henrique da Casa dos Duques de Borgonha ;
quando depois tratou da qualidade de nascimento da Rai-
nha D. Tareja, o passou em claro, e nenhum caso fez del-
le. Pelo que toca á Chronica Latina d' ElRei D. Affonço
VII o Padre D. José Barbosa , que a podéra ter visto im-
pressa pelo Padre Fr. Francisco de Berganza em Madrid an-
no de 1721 , ou a não vio, ou se a vio, fez que a não
conhecia , pela achar contraria á sua pretensão.
He certo , que D. José Barb )sa folheou as Antiguida-
des d'Espanha do Padre Bergan/a : pois elle as cita varias
vezes , e delias produzio a seu favor a Chronica de Car-
denha. E nestas Antiguidades d^ Espanha imprimio o Padre
Berganza a Chronica Latina d' ElRei D. Affonço VII. Lo*
go o passal-Ia em silencio, não foi porque a não visse,
mas porque lhe não fez conta.
Aqui pois , onde só se trata de averiguar imparcial»
íncnte a vordade dos factgs importantes, e de lançar fun-.
Nn ii ' da-
2^4 Memórias da Academia Reat,
damentos seguros á nossa Historia ; hc da minha obrio-a-
çáo produzir os dous citados Documentos , como provas
as mais decisivas da thcse , que deixo proposta.
O Monge de Fleuri , segundo o publicou Duchesne
no Tomo IV dos seus Coetâneos^ pag. 89 depois de dizer,
que ElRei D. Affonço VI casara sua filha D. Urraca havi-
da na Rainha D. Constança, com o Conde D. Ramon,
que tinha o seu Condado alem do Saona ; prosegue logo
dizendo, que outra fillia , que nao era nascida de legitimo
matrimonio, a dera ElRci por mulher ao Conde D.Hen-
rique, hum dos filhos do filho de Roberto Duque de Bor-
gonha. Alteram filiam , sed nnn ex coujtigali thoro natam ,
Uinrico uni filiorum filii ejusdem Dticis Roberti dedit.
A Chronica Latina d' ElRei D. Aftonço VII confor-
me depois de Bcrganza a publicou Flores no Tomo XXI,
pag. 347 entrando no Numero 29 a fallar da guerra, que
ElRei D. AíFonço de Portugal filho do Conde D. Henri-
que e da Rainha D. Tareja , moveo contra seu primo o
dito Rei D. AíFonço VII de Leão e Castella , escreve o
seguinte : Ipsa antem Tarasia erat filia Regis Domiui Ade-
fonsi , sed de non legitima , valde tamen a Rege dilecta , nO'
mine Ximena Munionis , qtiam Rex dilectionis et honoris causa
dedit tnaritatam Enrico Comiti , et dotavit eam ruagnifice , dans
Portiigalensem ferram jure hereditário. Quer dizer: Esta Rai-
flha D. Tareja era filha d' ElRei D. AíFonço , mas havida
de mulher nao legitima , ainda que muito querida d'ElRei ,
que SC chamava Ximena Munhoz. E ElRei em sinal do
amor que tinha a esta filha , e querendo-a honrar, a casou
com o Conde D, Henrique , e a dotou magnificamente ,
dando-lhe a terra de Portugal de juro e herdade.
A* vista destes dous testemunhos , hum do Monge de
Fleuri , contemporâneo e patrício do Conde D. Henrique j
outro do Chronista d' ElRei D. Affonço VII contemporâ-
neo c patricio da Rainha D. Tareja : deve dar-se por hum
facto indubitável e absolutamente certo , que D. Ximena
Munhoz não foi mulher legitima, mas amiga ou manceba
d'El-
HÁS SciE!>rciAí< de Lisboa. 285"
d' ElRci D, AíFonço VI , e por conseguinte que a Rainha
D. Tareja filha d'entrambos era bastarda , e não legitima.
§ V.
Desfiiaem-fe os fundamentos da sentença contraria , allegadot
por Fr. António Brandão , e por D. José Barbosa.
Trcs são os fundamentos , sobre que Fr. António Bran-
dão e D. José Barbosa , derão por firmemente assentada a
legitimidade do casamento de D. Ximena Munhoz com El-
Rei D. Affonço VI , e a legitimidade do nascimento da
Rainha D. Tareja havida d'entrambos : dous d'authorida-
de , e hum d'etiqucta.
O primeiro fundamento d'authoridade he tirado d*hu-
ma antiga Chronica em Língua Espanhola , citada por An«
drd de Resende no Livro IV De Antiquitatibus Lusitânia ,
Artigo De Orichiensi Agro , foi. 209 , e transcrita depois
por Fr. António Brandão na Terceira Parte da Monarquia
Lusitana, Livro VIII, cap. ii. Na qual Chronica se acha
o seguinte testemuni\o : ElRey D. Alfonso toma muger mo^
ra , que se dizia la Zaida j y avo en ella un fijo , ai que di'
xeron Don Sancho , y por sobrenombre dixcron-lo Sancho Alfon'
so : y despues lo mataron moros en la batalla de Uclés. Des-
pties uvo este Rey otra muger , que uvo nombre Ximena Mn-
nSz ; y uvo en ella dos fijos , la Infanta Dona Elvira y y Ia
Infanta Dona Teresa.
Assim o descreve Brandão no lugar acima indicado :
porque Resende sim tinha citado a Chronica Espanhola ,
mas contentando-se com expor o que delia se concluia ,
não poz as palavras formaes , por não misturar o Castelha*
no com o Latim.
Com este testemunho porém deu Resende por tão
terta e indubitável a legitimidade do casamento de D. Xi-
mena com ElRei D. Affjnço VI , que attribuio a desaíFe-
cto nacional, o tel-la o Arcebispo D. Rodrigo qualificada
de
i86 Memorias da Academia Real
de concubina : {Rodericits Toletaniis parum Lusitanis aqiiiis :)
e sobre esta descuberta escreveo (como cUc mesmo acres-
centa) hum largo Discurso a João de Barros. Oiia de re aâ
Joantiem Barrum scripsi ., et quidem proHxe.
Para quebrar pois toda a força á authoridade do Ar-
cebispo D. Rodrigo , que tinha dado por concubina d' El-
Rei D. Affonço VI a D. Ximena Munhoz; oppoz Resen-
de o testemunho desta Chronica Espanhola , que clie diz
fora composta setenta annos antes do dito D. Rodrigo ,
{totós septuagiuta annos ante Rodericuní) e onde D. Ximena
Munhoz apparecc mulher legitima d' ElRei D, AíFonço VI
depois da Zaida moura.
Arrastados da authoridade de Resende , e movidos da
grande antiguidade que elle dava áqucUa Chronica Espa-
nhola, produzio Fr. António Brandão, e produzio D.José
Barbosa o mencionado testemunho, como hum documento,
que punha fora de toda a duvida , ter sido D. Ximena Mu-
nhoz legitima mulher d' ElRei D. Affonço VI , e legiti-
ma sua filha a Rainha D. Tareja.
Sinto na verdade , que hum homem como Resende ,
o Principe dos Antiquários d'Espanha deixasse cahir da sua
tão attentada , como atilada penna , que o ter o Arcebispo-
de Toledo feito concubina a D. Ximena , fora por ser pou-
co favorável aos Portuguezes : porque com isto nos certi-
ficou Resende , que não tinha lido ao Bispo d'Oviedo D.
Pelagio , que escreveo a sua Chronica quando Portugal
ainda não era Reino. Muito mais sinto , que Resende qua-
lificasse a Chronica Espanhola por huma Chronica setenta
annos mais antiga , do que a Historia do Arcebispo D. Ro-
drigo ; porque nisso mostrou , que a não correra pelos
olhos com a devida attenção. E sobre tudo sinto , que
D. José Barbosa , devendo-lhe Resende tanto conceito no
cjue diz da antiguidade da Chronica Espanhola , nenhum
lhe devesse na intelligencia que deu ao Texto do mesmo
D. Rodrigo sobre o significado do nome concubina.
O caso he , que a dita Chronica Espanhola , que Ré-
sen-
DAS ScienCiasde Lisboa. 287
sendc e Brandão só virão manuscrita , c da qual como ma-
nuscrita só transcrevera o mesmo Brandão alguns pequenos
pedaços : foi o Padre Flores o primeiro , que cm nossos
dias a publicou c imprimio toda inteira , no fim do pri-
meiro Tomo das suas Rcyuns Ciubo/icas, tirada d' hum Có-
dice do Convento de S. Martinho de Madrid , da letra de
João Vasques dei Marmol , Corrector Régio por Filippe II.
He peça tão curta , que na Edição de Flores só occupa
des da pagina 492 até a pagina joy. Nem contém outra
cousa mais do que humas breves genealogias dos Reis de
Leão, Castella, Navarra, Aragão, e França.
Quem quer porém que fosse o Author desta pequena
Chronica Espanhola, elle mesmo declara o tempo em que
a escrcveo por huns termos tão claros , que não dá lugar
á mais leve duvida. Porque no fim do primeiro Artigo ,
qne he dos Reis de Leão e de Castella, depois da morte
d'ElRei D. Henrique I de Castella, conclue assim: Rejnó
ia Infanta Dofm Bcringuela , y dió lo regno a sn fije D. Fer-
nando , c reynà D. Fernando. Da aqui adelaiite será lo que
Diot quisiere. E logo no principio do segundo Artigo, que
he dos Reys de Navarra, começa deste modo: Hasta aqui
hablnmus dei linage de los Reyes de Castella , como viene dei
iinage de Nuno Rasucra hasta el Eniperador , y hasta d Rey
D. Fernando y que agora rey na em Castela.
Destes dous lugares da Chronica Espanhola £cou mais
claro do que a luz do meio dia , que o Author que a
escrcveo, a escreveo no reinado d' ElRei D. Fernando o
Santo. O qual Rei D. Fernando o Santo reinou des do
anno de 12 17 ate o anno de i25'2 em que faleceo.
Ora neste mesmo reinado do Rei S. Fernando he que
lloreceo D. Rodrigo Ximenes , que entrou a ser Arcebis-
po de Toledo no anno de 1208 , e morreo no anno de
1245'. Logo o Author da Chronica Espanhola longe de ter
precedido setenta annos ao Arcebispo de Toledo D. Ro-
drigo Ximenes, foi juntamente seu contemporâneo, e con-
temporâneo num mesmo reinado. Logo cnganou-se com
Ré-
a88 Memorias da Academia Real
Resende o Padre D.José Barbosa, em suppôr escrita aqucl-
]a Chronica Espanhola screnta annos antes da Historia La-
tina do Arcebispo D. Rodrigo Ximencs.
Nestes termos correm estes dous Escritores parelhas
no tempo , mas não na authoridade. Porque D. Rodrigo
em dar por concubina d' ElRei D. Afíonço VI a Domna
Ximena Munhoz tem por si ao Bispo d'Oviedo D. Pela-
gio , ao Monge de Fieuri , e ao Chronista d' ElRei D.
AfFonço VII todos muito mais antigos ; os dous primeiros
coetâneos do mesmo Rei D. AfFonço VI , o terceiro coe-
tâneo de sua filha a Rainha D. Tareja : quando para dar
a D. Ximena por mulher legitima , nao se acha Authof
algum antes da Chronica Espanhola , que tal affirme. D.
Rodrigo he hum Author de nome e de reputação conhe-
cida : quando o Author da Chronica Espanhola he hum
Anonymo sem credito estabelecido, D. Rodrigo nas cousas
do seu tempo , ou visinhas a elle , he hum Escritor dili-
gente e exacto : quando o Author da Chronica Espanhola
em cousas notórias e visinhas ao tempo em que escrevia ,
se mostrou tão ignorante , que ao Conde D. Ramon de
Borgonha marido da Rainha D. Urraca , irmaâ da nossa
D. Tareja, o fez filho d'Affonço Jordão.
De tudo o sobredito se deve concluir, que contra a
authoridade do Bispo d'Oviedo D. Pelagio, do Anonymo
de Fieuri , do Chronista d' ElRei D. Affonço VII , e ácf
Arcebispo de Toledo D. Rodrigo Ximenes, nada pôde va-
ler o testemunho da Chronica Espanhola citado por An-
dré de Resende , reproduzido por Fr. António Brandão ,
exaggerado por D. José Barbosa.
Menos pôde valer ainda o segundo testemunho , que
pela legitimidade do casamento da mãi e do nascimento
da filha , allega o mesmo D. José Barbosa , tirado da ou-
tra Chronica Espanhola de S. Pedro de Cardenha, que de-
pois de Berganza publicou Flores no fim do Tomo XXIII
da Espanha Sagrada., pag. 376 e segg. Porque alem de
ser hum testemunho visivelmente copiado da Chronica de
Ré-
DAS SCIENCIAS DE L I S fe O A. z2(f
Resende, segundo as palavras d'Iiuma sáo idênticas com
os da outra ; seu Autlior (que também se nao sabe quem
íosse) a escrevia pelos annos de Christo 1312 em que aca-
ba : isto hc , mais de du/.cntos annos depois que D. Pc-
lagio começou a ser Bispo d'Oviedo ; mais de cento e sin-
cocnta depois de composta a Chronica d' El Rei D. Afii)n-
ço VII , e quasi cem depois que D. Rodrigo entrou a ser
Arcebispo de Toledo.
Passemos pois já ao terceiro fundamento , que hé co-
mo o Aquilles, com que Fr. António Brandão c D. José
Barbosa derao por incluctavelmente decidido , que D. Xi-
niena Munhoz lôra mulher legitima d'ElRei D. AflFonço
VI , e por necessária consequência filha legitima d'entram-
bos a Rainha D. Tareja. He este o titulo de Infanta e
de Rainha , que as antigas Memorias constantemente dao a
D. Tareja : titulo que ambos aquelles dous Críticos sup-
poém ser tão privativo das filhas legitimas dos Reis, que
nunca se attribuisse ás bastardas. Nesra supposiçâo qualifi-
cão ambos d'huma grosseira ignorância em Fr. Luiz de
Sousa, chamar elle Inftmta a D. Constança Sanches, filha
bastarda do nosso Rei D. Sancho I.
Mas primeiramente quanto ao titulo d' Infanta , he fal-
so que elle nunca se desse ás filhas bastardas dos Reis. Eu
mostro o contrario com três exemplos bem clássicos.
O primeiro he da Chronica do Bispo D. Pelagio de
Oviedo , que tratando dos filhos que ElRei D, Bermudo H
tivera de duas concubinas irmaâs huma da outra , chama
Infante a D. Ordonho filho d' huma , e chama Infanta a
D. Elvira filha da outra. Habuit duas nobiles sorores concu-
linas : ex una genuit Infantem Dominum Ordonitwi , ex alia
gentiit Infantissam Dominam Geloiram.
O segundo he da Chronica d'ElRei D. AíFonço VII ,
que logo no Numero 1. chama Infanta a D. Elvira, irmaâ
da nossa D. Tareja , e mai do Conde D. AfFonço Jordão.
To/osanus Contes Adefonsus Jordanis , Regis consangimeus , et
Jnfíintis Celoira filia Regis Jdefotisi Jilius, &c. Ora a mã*
Tmo IX. Oo des-
2^o Memokias da Academia Real'
destas duas irmaas era D. Ximcna Munhoz, da qual o Au-;
thor da mesma Chroiiica no Numero 29 affirma, que íôr*
mulher nao legirima , como já ouvimos no § III.
O terceiro hc da mesma Chronica d'ElRei D. AfFon-
ço VII, que no Numero 56 chama Infanta a D. Urraca,
da qual di/, que era filha d' huma concubina do mesmo Rei
por nome Gontroda. Qitod postqtiam factutn est , Comes Tolo-y
sauus et Príncipes Regni rogavenmt Impcratorem , ut darei Re-
gi Garsi^e filiam suam luf untem Domnam Urraca/n , quam ge-
ntierat ex Gontroda concubina. R logo fallando da mesma :
Intravit Serciissima Infiitts Domna Sanctia per Legionem , et
cum ea consobrina sua Infans Domna Urraca. E para que nin-
guém recorra ao subterfúgio de dizer , que concubina neste
e noutros lugares semelhantes não se toma por amiga ou
manceba, mas por huma mulher recebida sem golemnida-.
de, ou como nós hoje dizemos, recebida de consciência:
o mesmo Author (como já atraz advertimos) acrescenta no»
Numero ^9, que D. Gontroda, depois que vic?; feita Rai-
nha de Navarra a dita sua filha D. Urraca , se foi metteç
Freira no Convento d'Oviedo. Postquam vidit filia su<e g/o*
riam imineusam , semetipsam ojferens Deo ejus fmnulatui ad-,
hasit ., in Oveten^i nfbe sanctimonialis facta.noti:'r,r
Qiianto ao titulo de Rainha , dado que ellé por via
de regra se não attribuisse, senão ás filhas, dos Reis leg.b
timas ; deviao comtudo advertir Fr. Antonioi Brandão e D.
José Barbosa , que a respeito da nossa D: Tareja havia
razão especial , para que ainda sendo basiarda :, a chamas-
sem Rainha. Esta razão especial era ser D. Tareja Sobe-
rana de hum Reino, o que se não verificara : das outras
bastardas. • , : , /,
Qiie esta fosse a razão, por que O; Tareja se inti»
tulàVa Rainha , prova-se manifestamente daqudle mesmo lu-
gar da Chronica d' ElRei D. AíFonço VII , que já outras;
vezes temos citado. No qual lugar o Author da Chronica,
depois de notar, que D. Tareja eiz. £.\ha. de uon legitima^
acrescenta Ioga, -que» os Portugaezeá. a .chatnárão Rainha,
. -^ ^,,^ ; por
nAS SciENCIAS DE LiSBOA. Zpt
por seu pay lhe ter da-lo em dote o Reino de Portugal
de juro e herdade. Dotavit eain niaguifice ., datis Portugalen'
sem (erram jure htcr editar io. Morttto atttem Enrico Comité ,
Purtugdlenses vocaverimt cam Regiiiam.
Concluamos logo, que o intitular-sc D. Tareja Rai-
nha , não era por ser filha legitima de Rei , mas por ser
Soberana de Portugal.
§ VI.
Fossem muito embora or Porttigiiezes os primeiros , que come-
çarão a chamar Rainha a D. Tareja , como ha pouco ouvi-
mos da Chroiiica d^ElRei D. Jjfonço FlI. Mas ella era tra-
tada com este mesmo titulo não só em Portugal , mas em to-
da a Espanha , e fora d^ Espanha.
Dos outros Reinos d'Espanh3 prova-se este assumpto,
primeiramente da Historia (]ompostellana , Liv. II, c.:p. 85'
Rex A. RegincB Dii<£ XJrracte filius , immensam cum stia ami-
ta (devia escrever se mater ter a) Portugalensi Regina n. mi-
ne T, discordiam habuit. E no cap. 89 fallando do Arcebis-
po de Com postei Ia: Lit terás suas ad Portugalen sem Reginam
Domnam T. Regis materteram in h£C verba direxit : Venerabi-
Us Regina^ &c. Prova-sc em segundo lugar da Chronica
d' ElRei D. Affonço VII , Num. 2. Inde Rex abiit Zamo-
ram , et habuit ibi colloquium in Ricovado cum Tarasia Regi-
na Portugalensium.
De fora d' Espanha he bem authentico o testemunho
do Papa Calisto II, que num Breve dirigido ao Arcebispo
de Compostella no anno de 1122 e referido na Historia
Compostellana , Livro II, cap. f8, diz assim: Pervenit ad
»w, quod Portugalensis Regina T. fratrem nostrum P. Braca-
rensem Archiep, ceperit j etmque adbuc in captione detineat.
Oo ii §
api Memorias da Academia Reai»
§ VIL
Em virtude e consequência da soberania com que tinhao herda*
do os Estados de Portugal ^ nunca a Rainha D. Tareja^ nem
seu filho ElRei D. Affonço Henriques , quizcrao reconhecer
sujeição ou dependência alguma dos Reis de Castella , cott"
tra o que estes pretendiao.
Historia Compostellana , Livro II, cap. Sy. Rex A,
immensam aim sua ainiia Portugalensi Regina nomine T. dis-
cordiam habuit. Ipsa enim fnstu superbite elata términos justi-
tíie egrediebatur ^ et nulliim Regi servitium de Regno , quod ab
illo tenere debebat , exibere dignabatur.
A mesma no Livro III, cap. 24. Portugalensis Ivfans
Enrici Comitis fílius nomine A . . . . magnam divisionem , et
magnam guerram aim Rege A. Raymundi Comitis et Dn£ Re-
gime U. filio habuit. Ipse etenim Infans vitio superbia elatus
Regis dominationi subjici noluit : sed adepto hoaore conira ettm
arroganter intumuit.
§ VIIL
Esta Soberana Independência transmittio o nosso primeiro Rei
D. Affonço Henriques a todos os seus Successores no
Throno Portiiguez.
Assim o protestarão á face de todo o Orbe catholico,
os Embaixadores do nosso Rei D. João I no Concilio Ge-
ral de Constança, anno de 1416, ácssao XXII.
Erão estes Embaixadores dous grandes Fidalgos deste
Reino , D. Fernando de Castro , e D. Álvaro Gonçalves
d'Ataide; e dous grandes Doutores em Leis, Gil Martins,
e Valasco Peres. Os quaes num largo arrazoado que fizerão ,
estando presentes quinze Cardeaes , e os Embaixadores de
vinte e sete Príncipes Soberanos , sobre não deverem ter
no
I
~ ' DAS SciENCI AS DE LiSBOA. 1^^
no Concilio mais força os votos dos Aragonczes, do que
os dos Portuguczes , Castelhanos, c Navarro?, disscráo as-
sim: Oiti tanien Rex Portugallite ("iiet régua sua y terras., et
doniinia sua libera et libere , sine recognoscendo a quocumque
alio vivente in terris , nisi a Deo solo rectorc suo maxime in
tcmporalibur ^ quemadiuodum et ceteri reges Hispantariim , prí/iit
recitant Historite , glorinsique ductorct. Isco he : Porque o di-
to Rei de Portugal D. João tem os seus Reinos , terras , e
dominios livres e livremente, sem reconhecer superior al-
gum no mundo, senão só a Deos^ principalmente nas cou-
sas temporaes, como os mais Reis das lispinhas ; e isto
mesmo he o que contáo as Historias, e o que reconhecem
us Doutores mais famigerados.
DISSERTAÇÃO XIV.
jyhiim notavsl lugar do Arcebispo de Toledo D. Rodrigo XiniC'
nes na Historia d" Espanha , donde se mostra contra Fr. Jhi-
toiíio Brandão e o Padre D. José Barbosa , que não era
contra a etiqueta das Cortes d" Espanha dar-^e o titulo d^ In-
fantas , e ainda o de Rainhas , às -filhas bastardas dos Reis»
N,
A Dissertação passada , que foi a XIII , mostrei pe-
los testemunhos de Pclagio d'Oviedo , do Manuscrito da
Abbadia de Fleuri , da Chronica d' El Rei D. AíFonço VII,
e do Arcebi-jpo de Toledo D. Rodrigo Ximenes : que a
Rainha D. Tareja não foi filha legitima, mas natural d'El-
Rei D. AíFonço VI havida cm huma concubina do mesmo
Rei por nome D. Ximeni Munhoz. Mostrei mais no § V
da mesma Dissertação , que debalde tinhâo pretendido Fr.
António Brandão e o Padre D. José Barbosa dai-la por
Princcza legitima, pelo fundamento, de que as Memorias
antigas a intitulão Infanta e Rainha : titulos que ambos
aquclies Críticos suppocni , que nunca se davão ás Prin-
cc-
194 Memorias da Academia Real
cezas bastardas ; de sorte que qualiíicão por hum erro gros-
seiro em Fr. Luiz de Sousa , dar o nome d'Infanta a D.
Constança Sanches, filha natural do nosso Rei D. Sancho I.
Pelo que toca ao titulo d' Infanta y no dito § V da ci-
tada Dissertação XIII convenci eu de falsa a supposição
de Fr. António Brandão c do Padre D. José Barbosa , c
revindiquei a de Fr. Luiz de Sousa , com outros testemu-
nhos de Pclagio d'Ovicdo, e da Chronica d' ElRei D. Af-
fonço VII , que manifestamente tratáo à^Infíintas as filhas
bastardas d' ElRei D. Bermudo II , c as do mesmo Rei
D. Affonço VII.
Agora pelo que toca ao titulo de Rainha , nao se pô-
de excogitar testemunho mais cíHcaz e terminante , contra
a supposição de Brandão e de Barbosa , do que o que vou
a produzir da Historia d' Espanha do Arcebispo D. Rodri-
go Ximenes : testemunho que sendo na presente matéria
decretorio e decisivo, não sei que antes de mim reflectis-
se nelle algum dos nossos Escritores.
No Livro sétimo pois, capitulo quinto, diz assim o
Arcebispo D. Rodrigo : Comes aittem Enrictis ad petitionem
íixoris sua Tarassa , qtta Regina , quia Regis filia dicebatur ,
terr/c stite civitates singitlis Episcopis donationis titulo assigna-
vit pr£ter Coimbriam. Qi^ier dizer: O Conde D. Henrique
á petição de sua mulher D, Tarcja , que por ser filha de
Rei , se chamava Rainha , fez doação a cada Bispo das
cidades da sua terra , excepto Coimbra , que elle reservou
para lhe servir de Corte.
Notcm-se aquellas palavras : Qtta Regina , quia Regis
filia dicebatur : a qual por ser filha de Rei se chamou Rai-
nha. Palavras que ditas no Livro VII , cap. y por hum Es-
critor, que no Livro VI, cap. ai tinha dado por bastar-
da d' ElRei D. Affonço VI a mulher do Conde D. Hen-
rique: provão ineluctavelmcnte, que pela etiqueta das Cor-
tes d' Espanha , que hum tal Arcebispo não podia igno-
rar, não era incurialidade chamar Rainhas até as Princczas
bastardas , huma vez que crão filhas de Reis. Com o que
vem
DAS SciENciAs DE Lisboa. 295
vem de todo abaixo a supposiçao de Brandão e de Bar-
bosa, que o titulo á^Injantas c de Rainhas^ só se dava ás
Princezas legitimas.
DISSERTAÇÃO XV.
Segundo casamento da Rainha D, Tareja cm o Conde de
Trastamara D. Fernando Peres,
hjs
ÍSTE he outro ponto importantíssimo da nossa Histo-
ria, de cuja verificação ou não verificaçã > depende o cre-
dito, que se deve dar ou não deve dar, a huma boa par-
te dos dous primeiros Reinados de Portugal.
He de saber , que até o tempo de João de Barros
corrco de plano entre os nossos Ghronistas o segundo ca-
samento da Rainha D. Tareja com o Conde de Trasta-
mara D. Fernão Peres , que era naquclle tempo o maior
homem que havia em Espanha , que Rei não fosse , co-
mo se explica o Conde D. Pedro no seu Nobiliário.
João de Barros foi o primeiro, que eu saiba, que na
Terceira Década, Livro I, cap. 4, deo este casamento por
huma fabula com todas as suas resultas. A João de Barros
seguio Duarte Nunes : a Duarte Nunes Fr. António Bran-
dão : a Fr. António Brandão o Padre D. José Barbosa.
Entretanto Luiz de Camões, por huma parte funda-
do no que lia tanto nas antigas Chronicas d'ElRei D. Af-
fonço Henriques , como no Nobiliário do Conde D. Pe-
dro ; por outra não ignorante do que escreverá Barros y
fallou do caso assim no Canto III, Estancia zp.
Mas o velho rumor não sei se errado ,
Q]^ic em tanta antiguidade não ha certe7,a ,
Conta que a mai tomando todo o Estado ,
De segundo hymeneo não se despreza.
En-'
i<)6 Memorias da Academia Real
Entretanto tambcm Fr. Bernardo de Brito , que na
Chronica de Cister tinha posto em duvida este casamento,
depois nos Elogios dos Reis de Portugal , tratando d'El-
Rci D. AflFonço Henriques , disse que o tal casamento era
huma cousa certa e quast tnfallivel.
Nesta divisão dos nossos Escritores , toda a razão de
decidir para os que hoje escrevem, deve ser, se o segun-
do casamento da Rainha D. Tareja consta de documentos
irrcfragaveis; e de nenhuma sorte, se ellc se celebrou se-
gundo as leis do licito e honesto. Porque hum Historia-
dor não SC deve mettcr com o licito e honesto das ac-
ções , mas somente com o certo delias.
Toda a nossa Historia está chea de casamentos inde-
centes, illicitos, c nullos dos nossos Príncipes, sem que
por isso possa alguém duvidar delles t porque assim mes-
mo indecentes, illicitos , e nullos, conscão de Memorias
authenticas : assim mesmo indecentes, illicitos, e nullos,
forão reputados verdadeiros casamentos, segundo a frase e
accepção vulgar. Taes forão os casamentos das Infantas
D. Teresa e D. Mafalda , filhas d' EIRci D. Sancho 1 ,
celebrados com dous Reis parentes em gráo prohibido sem
preceder dispensa do Papa , e por isso annullados ambos
pelo Papa , depois d' haver filhos de parte a parte. Tal o
casamento d'ElRei D. AíFonço III com a Rainha D. Bri-
tes , estando ainda viva sua primeira mulher a Condeça
de Bolonha D. Mathildes. Tal o casamento d' ElRei D.
Pedro I com D. Inez de Castro sua parenta em gráo pro-
hibido , e sem preceder dispensa Pontificia , como nas Cor-
tes de Coimbra de 1385' mostrou o Doutor João das Re-
gras. Tal o casamento d'ElRei D. Fernando com D. Leo-
nor Telles , estando ainda vivo o primeiro marido desta
João Lourenço da Cunha,
Ora o segundo consorcio da Rainha D. Tareja com
o Conde de Trastamara D. Fernando Peres, he innegavel
pela Historia Compostellana , Livro III, cap. 24, Histo-
ria que nenhum dos Críticos acima referidos virão , nem
po-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 7^y
poderão ver , porque em nossos dias he que Fr. Hcnriqud
Flores a publicou d' hum antigo Manuscrito do Collegio
chamado do Arcebispo da Universidade de Salamanca : c
Historia que teVc por Authores três Cónegos da Igreja de
Santiago de Galliza , D. Mumio , D. Hugo , e D. Girar-'
do , todos três cc-ntemporaneos da mesma Rainha D. Ta-
reja.
He inncgavel pela Chronica d' ElRei D. Affonço VII
o Imperador , Livro I , Num. 2. Chronica que o Padre
D. Josc Barbosa podéra ver, pois corria já em seu tempo
publicada por Fr. Francisco Berganza : e Chronica , cujo
Author adverte na sua Prefação , que a escrevera pelas no-
ticias que lhe derão testemunhas de vista. Sicut ab tis, qui
vidertmt , didici et audivi.
He innegavel por outro Documento coetâneo , que
do Livro dos Testamentos de Santa Cruz de Coimbra pro-
duz Brandão no Livro IX, cap. ij.
He innegavel pelo que traz a Chronica Gothica na
Era de i\C6 do empenha da Rainha D. Tareja cm ex-
cluir da successão do Reino ao Príncipe D. Affonço ^eu
filho , para o dar a estrangeiros indignos. Chronica que
Resende no seu Livro das Antiguidades d' Évora , cap. 1 3
também qualifica por Obra do século XII.
Attendendo á brevidade , deixo de transcrever aqui as
palavras formaes de cada hum dos quatro Documentos apon-
tados : porque todos he fácil examinar nos seus Authores.
Tomo IX, Pp DIS-
if>S Memorias da A.gademijv. Rbal
DISSERTAÇÃO XVI.
Verdadeira Época da morte de S. Giraldo Jrccbispo de Braga
em tempo da Rainha D. Tareja , contra Fr. António Bran-
dão e D. Rodrigo da Cunha.
•
xV-NTEs de nos despedirmos da Rainha D. Tareja, nãq
será alheio do assumpto destas Dissertações , fixar a Época
da morte de S. Giraldo Arcebispo da Santa Igreja Prima-
cial de Braga, hum dos mais illustres luminares , que com
a fama das suas virtudes e milagres ennobreccrâo o Rei~
nado daquella Princcza.
Hum antigo Breviário de mão da Santa Igreja Prima-,
ciai de Braga, que por muitos annos tive em meu poder;,
e que por indicios certos foi escrito no meio do século
XIV no Calendário que traz no principio , no dia 5- d$
Dezembro diz assim : Nonis Geraldi archicpi. Bracaren. E,
M. a XLVI.
Esta Era de César 1146 dá o anno de Christo iro8,
E he evidente , que esta noticia se inseritj naqucllc Breviá-
rio, para indicar o anno, crp que S. Giraldo morreo. Por
este Breviário pois se deve emendar a chronologia , que
seguio D. Rodrigo. da Cunha na Segunda Parte da His-
toria de Braga , cap. 8 , onde deo por primeiro anno do
Arcebispo D. Maurício successor de S. Giraldo, o de mo,
suppondo morto S. Giraldo no Dezembro de 1109, como
também primeiro que clle supposera Fr. António Brandão
na Terceira Parte da Monarquia Lusitana , Livro VIII ,
cap. 2j.
O dito Calendário porém nos obriga a anticipar hum
anno a morte de S. Giraldo e a eleição de D. Maurício,
de sorte, que aquella fosse a 5 de Dezembro do anno de
1108, e esta logo nos primeiros mczes do de 1110.
Mas
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA. ^(^(y
Mas porque alguém pr')dc replicar, que hum Breviá-
rio escrito no meio do século XIV nao hc de todo suffi*
ciente para decidir em juizo contradictorio Inim facto do
principio do século XII , produzirei cm coiifirmaçu) do tes-
temunho do Breviário Bracarense hum Documento maior
do que toda a excepção. Esta hc a Historia Gompostclla-
na , cujo Author Hugo então Arcediago de Compi)Stella ,
depois Bispo do Porto, e contemporâneo de S. Giraldo,
refere no Livro I, cap. 8i o Instrumento d'huma Infeu-
daçiío de certas Terras, e Igrejas, que o novo Arcebispo
de Braga D. Mauricio recebera de D. Diogo Gelmires en-
tão Bispo, e depois primeiro Arcebispo de Compostella^
na Era de 1147, que hc o anno de Christo 1109. Uoc
scriptiim fecit Mauritius Bracareusis Archiepiscoput pradicto
S. Jacobi Episcopo in civitate Tudensi , quando accepit ah eo
prestimonítim qtiod iuferius scriptum er , Era M. C. XLVU.
E consta pelo que immediatamcnte continua a referir o
mesmo Hugo , que esta Infcudação se celebrara antes da
Dominga da Paixão.
Daqui se conclue com toda a evidencia , que já na
Qiiaresma do anno de 1109 era Arcebispo de Braga D.
Mauricio: e que assim o Dezembro, em cujo dia 5- falc-
ceo S. Gijaldo , foi o Dezembro do anno de 1 108.
DISSERTAÇÃO XVII.
Incerteza do anno em que nasceo ElRei D. Âffonço Henriques^
e certeza do annoj em que elle começou a reinar.
'EnTo cousa notável he, que d' hum Rei tão famoso,
£ d' hum Rei Fundador como foi D. Affonço Henriques ,
se nao saiba o anno em que nasceo. Mas eu ainda tenho por
mais notável, que achando-se neste ponto os antigos Do-
cumentos coetâneos em opposição huns com outros , sg
Pp ii can-
500 Memorias da Academia Real
cansem muito os nossos modernos em querer dcscubrlr e
fixar no certo a Época daqucllc nascimento.
A opinia;> commum pois, que até o tempo de João
de Barros corria nas nousas Clironicas, c que ainda depois
do tempo de Barros foi seguida por Brito, Mariana, e ou-
tros ; assinava por anno do nascimento d' ElRci D. AíFon-
ço Henriques, o anno de Cliristo 1094. Donde se seguia,
que como o anno da sua morte foi certamente o de iiSj
vivera o dito Rei noventa e hum annos.
Oppoz-se a esta Época, do nascimento d'ElRei , João
de Barros na Terceira Dccada , Livro I , cap. 4 , onde dá
por certo, que ElRei nascera no anno de iio6. E ainda
que alli não aponta fundamento algum da sua opinião, sa-
bc-se com tudo que podia ailegar por cila dous Authores
coetâneos do mesmo Rei: a saber, o, da vida de S. Thco-
tonio, que se conserva manuscrito em Santa Cruz de Coim-
bra , e o da Historia da Trasladação das Rcliquias do Mar-
tyr S. Vicente , que existe também manuscrito num Santo-
ral d'Alcobaça.
Não satisfeito da fé destes dous manuscritos , assina
Fr. António Brandão na Terceira Parte da Monarquia Lu-
sitana, Livro VIII, cap. 26, por anno do nascimento de
ElRei D. AíFonço Henriques, o anno de Christo 1110,
fundado no testemunho d'outro manuscrito d'Alcobaça, que
anda entre as Obras de S. Fulgencio.
D. José Barbosa no seu Catalogo das Rainhas de Por-
tugal ^ achando que no Livro da Noa de Santa Cruz de
Coimbra se diz, que ElRei D. Affonço Henriques nascera
no anno de Christo 1 109,. deu com isto por decidida a
controvérsia. No que eu não entendo, por que regras de
critica se governava D. José Barbosa. Porque clle nunca
poderia mostrar, que o Livro da Noa fosse Documento de
tnaior authoridade ^ (como elle o chama) do que os outros
Documentos , que se allegão pelas outras opiniões.
Ultimamente a Chronica chamada dos Godos, (que
entre Brandão e Barbosa passa por huma das mais antigas
c
l
DAS SciENciAs DE Lisboa. 301
e das mais fidedignas deste Reino) p6e nascido ElRei D.
AlFonço Henriques no anno de 1113, c morto seu pai no
aiino de 1 1 14.
Nesta tão arande discórdia das antigas Memorias ,
quem poderá estabelecer ao cerro o verdadeiro anno do
nascimento do nosso primeiro Rei ?
O Conde D. Pedro no seu Nobiliário, Titulo dos
Reis de Portugal , traz huma pratica que o Conde D.
Henrique estando para morrer ícv, ao Príncipe seu filho ,
exbortando-o a que quando entrasse a governar os Estados
que clle lhe deixava, o fizesse tendo diante dos olhos o
serviço de Deos , e o bem dos seus vassallos. Esta pratica
suppõc no Príncipe annos de plena discrição, O que de
nenhuma sorte se pckie verificar em alguma das Épocas re-
feridas , salvo na primeira, que he a das Chronicas anti-
gas : visto que tendo falecido o Conde D. Henrique (se-
gundo commumentc se crê) no anno de 11 n, se o Prin-
cipe D. Aff:)nço nasceO em 11 10, tinha então três annos:
se nasceo em 1109, tinha quatro: se nasceo em 1106, ti-
nha sete: e só suppondo-o nado em 1094, tinha elle des-
oito. Mas os nossos modernos tem dado num bello expe-
diente , para se desabafarem do peso da authoridade do
Conde D. Pedro , cm tudo o que incommoda as suas opi-
niões : que he dizerem , que o Texto do Conde está vi-
ciado, ou interpollado em tal e tal parte.
Quanto he porém incerto , em que anno nasceo ElRei
D. AfFonço Henriques; tanto he cçrto , que elle começou
a reinar no anno de 1128, como he expresso na Chronic^
Gothica, com a qual concordáo todas as outras Memorias
antigas, cm que se fundou Brandão para as>im mesmo o
estabelecer. E como a Rainha D. Tareja, segundo a mes-
ma Chronica , e todas as outras Memorias , faleceo no an-
no de 1130, claro fica, que o Principe começou a reinar
vivendo ainda sua niãi , e que reinou em vida delia dous
para trcs annos. Porque pela dita Chronica , o Principe co-
meçou a reinar cm dia de S. João Baptista , 24 de Junho
de
30i Memokias da Academia Real
de 1128 , e a Rainha morico no primeiro de Novembro
de II 30.
DISSERTAÇÃO XVIII.
Sobre de qtie Casa era a Rainha D. Mafalda , mulher d' El-
Rei D. Alfunço Henriques.
K
o Livro da Noa de Santa Cruz de Coimbra anda in-
serta huma Memoria, que diz, que a Rainha D. Mafalda
mulher do nosso primeiro Rei , era filha do Conde D, Man-
riqite de Lara , Senhor de Molina. O mesmo se aclia no No-
biliário do Conde D. Pedro , Titulo dos Reis de Portu-
gal. O mesmo se transfundio para a Chronica antiga do
mesmo Rei D. AfFonço Henriques. Mas hoje está averi-
guado e assentado ser isto falso. Porque na Chronica de
ElRei D. Manoel mostrou Damião de Góes de três Escri-
turas authenficas da Torre do Tombo , que a Rainha D.
Mafalda era filha d'Amadeu Conde de Moriana. O que
Brandão no Livro X, cap. 19 confirma d'outras Escrituras
d'igual fé : ás quaes se devem ajuntar o testemunho da
Chronica Gothica , e o do Arcebispo de Toledo D. Ro-
drigo Ximenes na sua Historia d' Espanha , Livro VII ,
cap. 5". Advirto por ultimo , que a sobredita Chronica Go-
thica chama Matilde j a que todas as outras Memorias no-
nieáo Mafalda.
DIS-
DAS ScienCiAs de Lisboa. 301
DISSERTAÇÃO XIX.
Épocas da Batalha d' Ourique^ e da^ mais que se lhe seguirão
fia Estramadura e Âlemicjo , segundo a fé da antiga Chro-
vica chamada dos Godos , de que usou Resende , e da outra
do Livro da Noa de Santa Cruz de Coimbra.
§ I.
ÂntiguLlade e authoridade destas duas Chronicas.
OR primeiro Appendix da Terceira Parte da Monarquia
Lusitana , publicou Fr. António BranJão huma intitulada
Cbronica Gothorum y que ellc diz fora cxtrahida d' hum ma-
nuscrito d'Andr<f de Resende , que por morte deste viera
ás mãos de JVlmocl Severim de Faria. De Brandão a rc-
produzio Fr. Henrique Flores no Tomo XIV da Espanha
Sagrada, Appendix XII debaixo do Titulo, CZ>rú«;VOT; Lu-
sitanum. Esta Chronica depois de dar huma succinta noti-
cia dos primeiros Reis de Leão desde D. Pelagio até D,
Affonço VI, passa logo a referir com muita miudeza e ex-
acção os illustrcs feitos do nosso primeiro Rei D. AflPonço
Henriques , como se este fora o seu principal assumpto :
de sorte que acaba no anno de Christo 1184, que foi o
penúltimo do Reinado daquelle invicto Principe.
Não se pôde fixar ao certo o tempo preciso, em que
foi escrita est.i Clironica. Mus o allegar seu Author , quan-
do falia da tomada de Coimbra por Almansor , com o que
ouvira a muitos velhos: (sieut a mtiltis seuibus audiviímis :)
o apontar o tempo dos successos com tal individuação ,
que d'ordinario não só nota o dia , mez , e anno , mas tam-
bém que dia era da semana , e que hora do dia ou da noi-
te : e finalmente não passar do Reinado d' EIRei D. Af-
fon-
■504 Memorias da Academía Reai.
fonço Henrique, cujo valor e acções amplifica, e aiiula
exaggcia com lium afFecto tão particular, que o faz pare^
ccr apaixonado. Estas c outras circunstancias nos detcrmi-
não a ter esta Chronica por obra d'Author, que alcansou
os tempos do dito Rei , ou pelo menos foi mui visinho
dcUcs.
Neste mesmo conceito a tiverão òs nossos dous famo-
sos Antiquários do século XVI André de Resende , e Gas-
par Barreiros. Dos quaes o primeiro no Livro IV De An-
tiquitatihus Lmitamiie ^ pag. 216 cita esta Chronica com o
nome à,'' antigos Annaes que tinha em seu poder: {Ut mei
reteres annales habent :) e delia tirou varias circunstancias
da batalha do Campo d'Ouriquc : como o ter sido morto
nella hum sobrinho do Rei Ismar, por nome Homar Ata-
dor , que era neto do Rei Hali. O segundo logo no prin-
cipio da sua Corografia , allega com a mesma Chronica ,
como citada já pelo mesmo Resende na outra sua Obra
das Antiguidades d' Évora , para mostrar, que em tempos
antigos se chamava Pacca a cidade de Beja. Isto basta , pa-
ra esta Chronica se dever reputar obra d' huma veneranda
e mui estirada ancianidade : como depois de Resende e de
Barreiros a reputou também Brandão.
Pelo que toca á outra Chronica do Livro da Noa de
Santa Cruz de Coimbra , o Padre D. José Barbosa no Gi-
talogo das Rainhas de Portugal diz , que por lembrança e pe-
tição sua he que no anno de 1724 fora remetida á Real
Academia da Historia Portugueza a Copia authentica des-
ta Chronica, que D. António Caetano de Sousa depois im-
primio no primeiro Tomo das Provai da Historia Genealó-
gica da Casa Real ^ pag. 375 e segg.
O dito D. José Barbosa teve esta Chronica por ori-
ginal em todas as suas partes: isto he , por huma obra que
tudo o que traz foi escrito por Authores coetâneos dos
successos , que referem. Por isso dá por decidido . que hu-
ma vez que a Chronica do Livro da Noa aponta por anno
do nascimento d'ElRei D. Affonço Henriques o de 1109,
es-
DAS Ser F.Vc IAS DE Lisboa. t^j^
este he o que se deve ter por verdadeiro c indubit'vel
anno deste nascimento.
Eu govcrnaiido-inc pela outra Copia desta Clironica,
que depois da que veio para a Academia Real da Historia
Portugucza , imprimio Fr. Henrique Flores da Ordem dos
Eremitas de Santo Agostinho, no Appendix VIT do To-
mo XXIII da Espanha i'íigrada : ju\go que de nenhum prin-
cipio SC pôde demostrar, que esta Chronica cm todas as
suas partes seja escrita por Authorcs coetâneos dos respe-
ctivos Reinados , de que nclla se trata : e que assim não
teve razão D. José Barbosa , para antepor o testemunho
desta Chronica, na parte que faz nado a ElRei D. Affon-
ço Henriques no anno de 1109 aos dous Documentos in-
dubitavelmente coetâneos, que Brandão produzira, segundo
os quaes nasceo o dito Rei no anno de 1106.
O primeiro fundamento deste meu juizo hc huma Me-
moria , ou por melhor dizer Interpollaçao , que nesta Chro-
nica se acha enxerida entre a tomada de Coimbra por Al-
mansor , e a sua resíauraçao por ElRei D. Fernando o Ma-
gno, a qual diz assim: « ElRey Dom Alfonço o primei-
j> ro Filho do Conde Dom Anrique , e da Raynha Dona
í» Tareija , porque em Espanha non podia achar cazamea-
5J to , que non fossem tanto sas parentas chegadas , que
í» non podia cazar com ellas sem dispensazon do Papa :
>» ove a cazar com Doíia Mafalda , filha do Conde Dom
j> Manrique de Lara , e Senhor de Molina , Irmano do
» Conde Dom Nuno, o que livrou os filhosdalgo do pei-
»» to em Burgos. j>
Se o Author desta Memoria fora contemporâneo do
successo, de que trata, não diria que D. Mafalda mulher
d'F.lRci D. Affonço Henriques, era filha do Conde Dom
Manrique de Lara Senhor de Molina : porque por sinco
Escrituras que traz Damião de Góes na Chronica d'ElRei
D. Manoel ; pela Chronica Gothica ; e pela Historia do
Arcebispo D. Rodrigo Ximenes, he notório, que ejta D.
Mafalda era filha d'Amadco Conde de Mauriana e de Saboya.
Tomo IX. Qa ^
joí Memorias da Academia Real
» O segundo fundamento he ver, que nc&ta Chronica
a cada passo se está invertendo a o/dem chionologica das
Eras c dos successos , pondo-se o que he mais antigo de-
pois do nuis moderno. Como quando depois de referido
o óbito do Bispo de Coimbra D. Bcrniudo na Era de
MCCXX , que hc o anno de Cliristo 1182, proscgue im-
m.ediatamente dizendo , que ElRci D. AíFvinço Henriques
nascera na Era de MCXVII , que hc o anno de Chrjsto
II 09. Onde he evidente, que quem attcstava as cousas
do anno de 1109 não era contemporâneo delias, pois as
escrevia depois do anno de 1182. O mesmo se deve di-
zer , de que mais adiante póc esta Chronica a fundação
do Castello de Leiria pelo mesmo Rei D. AíFonço Hen-
riques , na Era de MCLXXIV, que he o anno de C^hristo
II 36, depois de referir a morte d' hum João AíFonço em
tempo d' ElRei D. Affjnço IV na Era de mil e CCC e
LXIIII , que hc o anno de Christo 1326. Onde he outra
ve/ evidente , que quem apontava a fundação do Castello
de Leiria feita no anno de 11 36, a apontava cento e no-
venta annos depois do tal successo ; porque a apontava de-
pois do anno de 1326. Logo nem tudo o que esta Chro-
nica traz, foi nclla apontado por Authores do mesmo tem-
po , em que a cousa succedia ; mas muitas cousas forão
nella escritas, por quem vivia muitos annos depois. Logo
' dado que esta Chronica seja original a respeito d'alguns
successos , não o he a respeito de todos.
Sobre o que he de saber, que a primeira Parte des-
ta Chronica hc composta em Latim , e chega até o anno
de Christo 1326. A segunda he composta em Portuguez ,
e chega até o anno de Christo 1406. E daqui temos que
esta Chronica he obra pelo menos de dous Authores. Por-
que não he crivei , que hum mesmo Author num mesmo
pergaminho escrevesse primeiro em Latim , depois em Por-
tugucz. Mas ou o Author fosse hum só , ou fossem dous ,
ou fossem muitos mais: (o que era fácil de conhecer, se
os que tirarão as duas Copias que correm impressas, tives-
sem
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 307
sem tido o cuidado de notar a identidade ou differcnça
dos caracteres:) como todo o Livro foi escrito em tempo,
que os annos se contavao pelas Eras ; daqui se convence
com toda a certeza , que todo elle foi escrito antes do
anno de 1420. Porque neste anno he que por huma Lei
sua mandou ElRei D. João I , que abolido o uso da Era
de César , se contassem os annos pelo nascimento de
Christo.
Outro sinal não menos certo nos offerece a mesma
Chronica , por donde se pode e deve concluir , que cila
foi acabada d'escrcver no anno de Christo 1406. Porque
alem de não conter cousa alguma posterior ao dito anno ,
nelle depois de referido hum milagre dos Santos Martyres
de Marrocos , feito num moço quebrado , prosegue assim
o Aiithor : E eu dou de my termo , que foi esto aqui escrever
Fernão Gmizalves Cónego de Santa Cruz. Palavras que mani-
íjístamentc denotao, que o milagre foi escrito no mesmo
anno, em que succedeo , que foi o sobredito de 1406.
Destes antecedentes se segue , que a Chronica do Li-
vro da Noa na sua segunda Parte , que hc a Portugueza ,
merece maior fé a respeito dos successos, que lemos nella ,
do que merece a primeira Latina a respeito dos successos,
que nella se contém. A razão he : porque da segunda par-
te consta ao certo , que foi acabada d'escrever no anno de
1406. E quem escrevia no anno de 1406 podia ser coe-
tâneo dos successos que alli se referem , não só do tempo
d' ElRei D. João I , mas também do tempo d' ElRci D.
Fernando , e ainda do d' ElRei D, Pedro I. Os successos
porém da primeira Parte , que são os do tempo d' ElRei
D. Affonço Henriques até princípios d' ElRei D. Affonço
IV, como delles se não pode alErmar tempo certo em que
fossem escritos , senão quando muito , que forão escritos
depois do anno de 1326, em que a primeira Parte acaba:
de nenhum delles in individuo se pôde dizer, que forão es-
critos por Author contemporâneo. Assim tenho por mui
prudente o juizo, que desta Chronica formou o Padre FIo-
Qg ii res ,
3o8 Memorias DA Ac A DEMiA Real
res , quando disse , que era Copia de varias Copias ^ e de
varias Cbrmicas.
Mas como se sabe de certo, que os successos da pri-
meira Parte forão escritos antes dos da segunda : tendo os
últimos da segunda sido escritos no anno de 1406 , hc
evidente , que os da primeira forao escritos ou no mesmo
anno , ou noutro anterior j mas todos depois do anno de
1326.
Estabelecida assim a antiguidade e authoridade destas
duas Chronicas, da Gothica e da do Livro da Noa 5 pas-
semos já a expor as principaes acções e conquistas , que
huma e outra referem do nosso primeiro Rei.
§ II.
Época da Batalha do Campo d'Ourique.
Ambas estas Chronicas concordao, que a batalha do
Campo d'Ourique fòra dada e ganhada ao Rei Mouro Is-
mar por ElRei D. Affonço Henriques , no dia 25 de Ju-
lho, dia de Santiago, do anno 1139. I» loco qui vocatur
Atilic , diz a Gothica. In loco qui dicitur Ouric , diz a do
Livro da Noa. Sobre o que he de notar, como notou Re-
sende , que esta batalha tomou o nome d'Ourique , como
da Villa mais notável daquella Comarca ou Território : ain-
da que o sitio preciso da batalha foi abaixo da Villa de
Castro Verde , num valle que fica entre os dous riachos
Crobes e Terges , que a pouca distancia confundido já
hum no outro , se mettem e sepultão no Guadiana.
A circunstancia de vir Ismar acompanhado d'outros
quatro Reis Mouros , nenhuma das duas Chronicas a de-
cLira. Mas declara-a huma antiga Memoria de mão de San-
ta Cruz de Coimbra , que Brandão descreve ; e declara-a
o Auto do Juramento attribuido a ElRei D. Affonço Hen-
riques. E destes ou outros Documentos a tomarão sem du-
vida as antigas Chronicas do mesmo Rei.
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 3O9
§ III.
Época da tomada de. Santarém, e de Lisboa.
Ambas as mesmas Chronicas concordão , que Santarcm
foi tomada aos Mouros no anno de 1147. Mas só a Go-
thica nota o dia , e o mez : dizendo que fora no quinto
dos Idos de Maio ao cantar do gallo, amanhecendo para
o dia de sabbado. Qtmto idtis Maii ad galli cantum , illiís-
cescente die sabbati. Que Lisboa foi tomada no mesmo anno
de 1147 dizendo ambas que no mez d'Outubro, e acres-
centando a Gothica , que no dia nono das Calendas de
Novembro, á sexta hora do dia, que era sexta feira. No-
no Calendas Novembris feria 6, sexta diei hora. Segundo a
qual relação foi tomada Lisboa no dia 24 d'Outubro , vés-
pera dos Santos Mártires Crespim e Crespiniano. O que
se deve entender da ultima e total escala da cidade , para
assim se conciliar esta Chronica Gothica com outras Me-
morias do mesmo tempo , que fazem tomada Lisboa no
dia das onze mil virgens, 21 do mesmo mez.
§ IV.
Épocas da tomada de Sintra f Almada , e Palmella.
Immediatamente depois de referida a tomada de Lis-
boa, pocm ambas as Chronicas â tomada de Sintra, Alma-
da, e Palmella. Mas a Gothica diz , que isto fora por di-
versos tempos e annos. Per diversa têmpora et annos accepit
Sintriam et Jlmadavam et Palmellam. A do Livro da Noa
diz, que ElRei as tomara no mesmo mez d'Outubro. Et
Sintriam , et Almadana et Palmeiam in eodem mense. E como
esta Chronica p6e a tomada destas três villas debaixo do
mesmo anno de 1147 em que põe a tomada de Lisboa;
parece que a sua mente he dizer , que o Outubro cm que
fo-
3IO Memorias da Academia Real
forão tomadas as villas , foi o mesmo em que foi tomada
a cidade. Alas nao he crivei , que tomada Lisboa a vinte
e quatro d'Outubro de 1147 podessc ElRei dentro do mes-
mo Outubro tomar Sintra , Almada , e Palmella , Praças
tão fortes por sitio e por guarnição ? Assim o que diz a
Chronica Gothica , que isto fora em diversos tempos e
annos, parece que he o que se deve preferir.
§ V.
Épocas da tomada à^ Alcácer do Sal, e de Beja.
As mesmas duas Chronicas concordao , que Alcácer
do Sal foi conquistada no anno de 1158. E acrescenta a
Gothica, que no sétimo dia das Calendas de Julho, se-
gunda feira , dia de S. João Baptista. Septimo Calendas Ju-
/ti feria 2. in die S.Joannis Baptista. Acsesccnta mais, que
já antes por duas vezes tinha ElRei posto cerco a esta vil-
la , ajudado d' huma Armada das partes do Norte : mas
que só desta terceira vez fora Deos servido , que elle a
rendesse.
Goncordâo outrosi as mesmas duas Chronicas , que
Beja foi conquistada no anno de 1162. E acrescenta a Go-
thica, que em 30 de Novembro, na noite do dia do Apos-
tolo Santo André. Pridie Calendas Decembris in mete Sancti
Andre£ Âpostoli, Acrescenta mais , que quem a tomou , por
parte d' ElRei D. Aífonço , fora hum Fernão Gonsalves ,
ajudado d'alguns soldados paisanos. Sinal que ElRei se
não achou em pessoa ,na acção.
Este he o lugar da Chronica Gothica , que eu atraz
notei que fora allegado primeiramente por André de Re-
sende , depois por Gaspar Barreiros , em prova de que Be-
ja era a cidade , que antigamente se chamava Paz. Porque
diz 3 Chronica, Civitas Pace , id est Begia , como impri-
mio Brandão: ou Civitas Pacca, id est Begia, como o al-
lega Barreiros.
DAS SciENCiAs DE Lisboa. 311
Época da tomada à^Evora , ^oura , e Serpa,
Ambas as ditas duas Chronicas concordão, que num
mesmo anno , que foi o de 1166 tomou ElRci aos Mou-
ros primeiro Évora , e pouco depois Moura e Serpa. E
acrescenta a Gothica , que a gloria de ser entrada e es-
bulhada Évora, se deve ao famoso Giraldo sem pavor, c
aos salteadores seus companheiros, jíera 1204. Civitas Eh
lora capta et depredaía , et noctu ingressa a Giraldo sine pa-
'vore , et latronibits sociis ejus»
§ VII.
Emenda- se a Chrmiica Gothica pela do Livro de Noa, solre o
anno do infortúnio d^ElRei D. Jjfonço Henriques , e do
seu exercito em Badajoz.
Infortúnio d'ElRei D. Affonço Henriques, e do seu
exercito chamão ambas as ditas Chronicas, o desastre que
lhe succedeo , quando pretendendo tomar Badajoz foi o
seu exercito roto pelo d' ElRci D. Fernando de Leão, c
cllc por ter cahido do cavallo em que hia , ficou prisio-
neiro daquelle Príncipe , que era seu genro.
Sobre o anno deste acontecimento, he este hum dos
casos , em que a Chronica Gothica sendo alias Documen-
to mais authorizado , deve ser emendada pela do Livro
da Noa, que segundo mostrei acima, não he no seu total
de tanta fé.
A Chronica Gothica pois alliga este successo á era
de César 1206, que he o anno de Christo 1168. yEra 1206
fnctum est infortunium Regis D. Alfonsi et stii exercitus in
Bndalioz anno 41 Regni ejus. A do Livro da Noa porém o
põj na Era de César 1207, que he o anno de Christo 11 69.
Era
312 Memorias DA Academia Real
Era MCCVIl facttim est infurtunhim Regis Âlfoiísi centra ex-
ercííHS ejus in civitate Badalioz. M este hc o que se deve
ter pelo verdadeiro anno daquellc infortúnio.
Flores no Tomo XXII , pag. çj e yó , o demostra
contra Brandão, primo por sinco Escrituras que allega coe-
tâneas de sinco cidades de Galliza , Astorga , Mondonhe-
do, Orcnse , Pontevedra , c Tuy. Secundo pela circunstan-
cia que aponta a mesma Chronica Gothica , quando diz ,
que o infortúnio d' ElRei D. Affonço fora no anno quaren-
ta e hum do seu Reinado, jlnuo 41 Regni ejus. Forque sC'
gundo a mesma Chronica, ElRei começou a reinar na Era
de 1166, que he o anno de Christo 1128. Acrescentemos
a estes 1128 aquelles 41 sahc ao justo o anno de Christo
1169. Logo por Era do infortúnio d' ElRei se deve ler
na Chronica Gothica, não a Era de 1206, que he o anno
de Christo ii68j mas a Era de 1207, que he o anno de
Christo 1169.
M E M o Pv I A
Sobre uma Provisão ou Carta do Siir. D. Affonso II. acerca
de mis Decretos chamados Leis de Fr. Siieiro Gomes.
Por Jo5o da Cunha Neves e Carvalho,
Soão Correspondente da Academia Real dai Sciencias
de Lisboa.
O
OBJECTO da presente Memoria he iim ponto impor-
tante da Historia geral deste Reino , importante princi-
palmente para a Historia da Jurisprudência Portugueza.
Entre vários Escriptores que o referem , preferi Fr. Antó-
nio Brandão na Parte IV. da Monarchia Lusitana Liv. XII.
Cap. XXII. Em o anno de 1220 (diz o mesmo Chronis-
ta ) houve em Portugal grandes. contendas entre ElRei D.
Affonso c D. Fr. Soeiro Gomes , Prior dos Padres Prega-
dores : foi a causa delias o ajuntar-se este Prelado com al-
guns de seus companheiros , e ordenarem certas leis sobre
pontos de justiça , declarando os casos em que se liavião
de cóndcmnar os homens á morte , ou em pena pecuniária.
Aceitou ElRei muito mal estas ordenações, e tratou logo
de obviar a introducçâo delias particularmente em Santa-
rém, por ficar ; is visinho do auctor delias. Uiz pois em
sumrna a Carta u IRei D. Affonso escripta á Camará de
Santarém sobre esta .nateria : <í Affonso pela graça de Deos
j> Rei de Portugal , ao Alcaide de Santarém, Auguasis, e
j> todos os mais homens, que nella julgao de minhas cou-
>» sas, e aos Tabaliães e Conselho saúde, Mando-vos fir-
j> mcmcnre a todos que não haja pessoa alguma em essa
>í vossa Villa que ouse trazer a publico aquellcs decretos
» seculares sobre a matéria de penas pecuniárias, os quacs
r. 7A'. P. /. A »» Suei-
3 MemoriaspaAcpemiaReal
'5 Sueiro Gomes , Prior da Ordem dos Pregadores , ordenou
« com os frades da mesma OrJcm : porque não sou contente
j' que se proceda nos cnsos sobreditos por sua lista, e assi
»> o acordei com meus privados. Movo-me a isto á uma
» por sahirem os tacs decretos cm quebra grande dos io-
» ros de minha Corte , e dos Reis meus successores , e
3> dos meus fidalgos, e em summa de todas as pessoas do
j» meu Reino, Fidalgos, Vilhiõs, Seculares, e Ecclesiasti-
5» cos. E taõbcm por encontrarem aquelle livro aonde se
5> diz expressamente , que se não admittao novas leis ein
5> nosso Reino , o qual livro contém os foros , por onde
>j devem ser julgados os fidaldos de Portugal. Maiormen-
j> te que os decretos não andarão nunca em pratica em
)» tempo do Conde D. Henrique , nem no tempo de meu
j5 Avô ElRei D, Affonso , a quem o Papa Alexandre III
j> por seu privilegio confirmou em Rei , e a sua terra
>j em Reino. Nem em tempo d' ElRei D. Sancho meu
)» Pai que teve uma carta de protecção do Papa Clemen-
s> te III. Nem tão bem em meu tempo tendo duas, uma
sj de Innocencio III , e outra de Honório III. E assi por
« todas estas rasoes todo aquelle que quizer sahir a pu-
jj blico com estes decretos me pagará mil maravidís de
>j condemnação alem de fazer em sua pessoa , e fazenda
" a justiça conveniente. E tenha por sem duvida o meu
j> Rico homem em cuja terra sahirem os decretos sobrcdi-
>> tos , que alem de ficar cm desgraça minha, hade perder
5» a terra que de mim tiver. O Alcaide perderá a minha
j> Alcaidaria, e o meu amor, e será castigado cm fazenda,
" em pessoa como for direito e justiça. E dos Aguasis ,
" Tabeliães, e mais justiças tomarei justa vingança cm cor-
»> pos e fazendas. Mando com tudo que se alguém vender
» o furto, e escondidamente cousa alguma por ser contra
j> os decretos presentes, que neste ponto adniitto, me pa-
>» gará de pena quinhentos maravidís e será castigado em
j> sua pessoa , e fazenda alem de perder a cousa vendida :
» e do mesmo modo se procederá com os que fizerem com-
»> pras
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 3
»> pras em contrario destes decretos , que alem das penas
» sobreditas perderá o que comprou, e o dinheiro que por
>» ella deu. Dada em Santarém a 19 de Junho por man-
>» dado d' ElRei. >» =: «Não pude alcançar (diz o mesnio
» Acutor) m.iis noticia destas Leis que ElRei tanto encon-
" trava. Nem he de crer como forao tão contrariadas fi-
» casse delias memoria no Archivo Real. » ^
Um Religioso posto que prelado d'ourros Religiosos ,
fazendo leis ou decretos seculares, impondo penas tempo-
raes á face d'um Rei Portuguez Legislador: um Soberano
de Portugal cassando e anullando com toda a energia da
auctoridade offendida os ditos decretos , são factos muito
curiosos para não despertarem a attenção dos doutos , e
muito transcendentes para deixarem de ser prescrutados.
JVl.is não existem os taes decretos ; ou pelo motivo pouco
plausível de Fr. António Brandão, ou pela incúria, e ru-
deza dos tempos : a Provisão Real , que os proscrevera ,
não nos diz quacs elles erão ; nenhum Escriptor que eu
saiba se deu ainda a pena de dcscubrir pelos subsídios da
critica a sua natureza ; e o resultado he admirar-se a audá-
cia e temerária ingerência de Fr. Sueiro Gomes , aplaudir-
se o lance de auctoridade Real do Snr. D. AíFonso II , las-
timar-se a ignorância dos artigos que o merecerão , e ac»
commodar com esta como forçada obediência a um dos
niysterios históricos dos fastos da Monarchia.
Este mysterio he o que fez o objecto das minhas me-
ditações, e exames interrompidos, e pouco acabados com
outros cuidados das minhas obrigações publicas , mysterio
porém que eu renho tentado explicar, acrescentando com
um facto importante a serie de factos da historia Portugue-
Z.1 , e rectificados os erros e absurdos que os nossos Escri-
ptorcs alias illustrcs pela belleza do estilo, e pureza de
intenções, espalharão em suas obras, perdidos no vago de
incertas conjecturas.
He curioso ver como homens d'engenho e saber, mas
destituídos das regras de boa critica, tentarão a explanação
A ii d'u-
4 Me MORiASDA Academia Real
d'uma cousa desconhecida na sua substancia , mas certa e
real na sua existência; cnibrenhar-se n'uin mundo conjectu-
ral, e despenhar-se cm fim em arbitrins atirados ao acaso,
e sempre desmentidos pela contrariedade , e antilogía dos
acontecimentos coevos. Seria f;istidioso enumerar todos ;
para exemplos poucos bastão : Fr. António Brandão no lu-
í^ar citado refere ::=; que os tacs decretos erao leis que Fr.
Soeiro e seus companheiros ordcvárao sobre pontos de justiça ,
declarando os casos em que se haviiío de condcmnar os homens
d morte , ou em pena pecuniária. í= Nestes termos , segundo
o Autor, erâo os Decretos seculares, como lhe chama a
Provisão Real , uma espécie de Código Penal \ c se assim
fora seria esta na verdade uma pena , e perda grande ao
menos para o conhecimento dos costumes e idifas do tem-
po.
Faria e Sousa vai pelo mesmo rumo , mas foi buscar
motivo plausível que preparasse o acontecimento ; achou-o
nas Leis geraes feitas pelo Snr. D. AfFonso II em Coim-
bra no primeiro anno de seu reinado , e suppondo Fr. Soei-
ro e seus companheiros irritados e escandalizados daquella
nova legislação civil na parte em que coarctava as liber-
dades e isenções do clero, apresenta-os legislando no sen-
tido contrario , como para contrabalançar o peso e effeitos
das disposições Reaes. «Sobre estas leis» (diz o mesmo
Faria fallando das do Snr. D. AfFonso II) << ousou fazer ou-
» trás Fr. Sueiro Gomes, Prior dos Dominicos , que pouco
5> antes com humildade religiosa havia pedido lugar para
» a sua fundação neste Reino. Tão antiga hc a anciã de
5> intrometter-sc cada um no mais alheio de seu instituto.
j> Nellas ordenava castigos de fazenda e morte paia os
j> criminosos seculares. Vedou-lho EIRei, »>
La Clede na Historia de Portugal Liv. V. ao anno de
1220 diz: ti Sueiro Gomes, Prior da Ordem de S. Domin-
'> gos, novamente estabelecida em Portugal, foi tão inso-
» .lente ( j e que não fará um Monge , que se esquece do
>» que he!) que athe ousou publicar varias leis, em vir-
>» tu-
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA, ^
>» tude das quacs queria que fosse punido de morte todo
»> aqucUc que lhe faltasse ao respeito. Offendido ElRei ,
» tomou conta mais que nunca do género de vida do cle-
j» ro, cuja defesa tomara o Arcebispo de Braga.»
^lais extravagante que os outros, ou de menos boa
fé Fr. Pedro Monteiro na sua Historia da Inquisição P. i.
L. 2. C;ip. 3. não duvidou asseverar =: que ElRci o Siir.
D. AíFonso 11, a quem chama o Legislador ^ tinha commct-
tido a Fr. Suciro fazer umas leis geraes para o bom go-
verno do Reino: ~ «Estas leis (continua o Autor) revo-
5> gou ElRei , como refere Brandão , sendo pelas cousas an-
" darem nesse tempo revoltas entre o estado Secular e Ec-
j» clcsiastico. Atfirma-se (he ainda o mesmo Autor) que nas
5» ditas leis pusera o venerável Fr. Suciro uma em que con-
j» dcmnava a pena de morte aos ladrões e aos homicidas. j>
O mesmo Fr. Pedro querendo compor as cousas, altera
ainda outro facto histórico , porque acrescenta : « Conhe-
» ccndo ElRei depois o seu erro ellegeo'ao mesmo Fr.
>» Suciro, e seu companheiro Fr. Fernam Pires para Juiz
j> árbitro nas duvidas que trazia com o Arcebispo de Bra-
» ga. » Ora isto he um anacronismo , e talvez que uma
malicia: quem escolhco Fr. Sueiro para árbitro da tal con-
tenda foi o Srir. D. Sancho II depois da morte de seu Pai
cm 1223 , e he bem conhecido na historia de Portugal que
FlRei o Sfír. D. AíFonso II falleccra ainda no desagrado
da (juria Romana, não menos que do Arcebispo de Braga
D. Estevão Soares da Silva.
Mas deixemos os Escriptores e seus desvios, e apresen-
temos o nosso próprio cabedal. Diz Montesquieu, que he
necessário esclarecer a Historia pelas leis , e as leis pela
Historia', a Historia dos acontecimentos do tempo na ma-
téria sugeita será o grande guia, que como o fio da fabula
nos hade tirar do intrincado labyrinto : a mesma Historia
demonstrará que os decretos ou leis de Fr. Sueiro Gomes,
e dos seus companheiros não erão outra cousa senão uma
tentativa da introducção do Direito Canónico em geral ; e
em
6 MemoriasdaAcademiaReai,
em particular a publiciçao e execução do Canon III do
Concilio Laterancnse IV em 1215 , do I." do Concilio de
Tolosa do anno de 1220, das Bulias do Papa Honório 111
da mesma data, e daqiicllas circulares expedidas nesse tem-
po pelo mesmo Summo Pontífice aos Bispos da Itália , Ale-
manha , França , e Hespanha em confirmação e ampliação
do mesmo Concilio ; crão n'uma palavra os princípios da
Inquisição nascente plantada no Langucdoc por occasião
da guerra chamada àos Jlbigenses em 1205», (cjue continuou
com mais ou menos fcrA^or até os tempos de S. Luiz Rei
de França ) , c cxtendida na Htspanha dos hereges Albigen-
ses aos Mouros , c Judeos conversos , mas suspeitos, ou ac-
cusados de apostasia.
A única combinação dos tempos , antes de descer a
provas mais particulares , está persuadindo a abraçar esta
opinião , e uma só vista rápida pelos successos desta épo-
cha produzidos pelos costumes , e idéas recebidas bastaria
a tornar mui vcrosimil uma assersão , que outros factos
mais connexos converterão logo em quasi certeza, e demon-
stração. ^- Qual era então o quadro da Europa semibarbara?
Guerras , e dissensões intestinas produzidas pela anarchia
regular do systema feudal dominante : a preponderância do
clero , e desmesurado poder da Cúria Romana adquirido pe-
la sciencia quasi exclusiva, sustentado pela ignorância ou
antes confusão dos princípios do Decreto publico univer-
sal e Ecclesiassico , que devia marcar os razoáveis limites
do Sacerdócio, e do Império; acarinhado e protegido o
mesmo poder pelos Príncipes seculares como a única e po«
dcrosa barreira contra a desobediência e rebelião dos po-
tentados feudaes ; e acatado , e obedecido por todos como
a voz de Deos pelo ministério do seu Vigário naquelles
tempos de mais rudeza sim , mas de muito maior devoção,
Juntou-se á piedade o espirito de cavallaria introduzi-
do universalmente na Nobreza. As invasões dos Tártaros ,
e Serracenos nos Lugares Santos da Palestina acarretarão
essas famosas guerras das Cruzadas, de que tanto se tem
mo-
DAS SciEMCiAs DE Lisboa. 7
mofado por espirito de contradicção e llbertinngem , mas
as quacs he devedora a Europa culta de grande parte dos
seus conhecimentos c civiiisação, e até -da liberdade dos
povos, e da queda do direito feudal por força de combi-
nações admiráveis nos seus effcitos, mas muito nacuraes' pe-
las causas que as produzirão.
No meio de todo este aparato de devoção exaltada ,
e de pondonor e brio militar pelas cousas santas e reli-
giosas , rebentou a celebre heresia dos Albigenses na Ci-
dade c Condado de Tolosa , fcudatario da Coroa de Fran-
ça: a illustnição e créditos dos Condes Soberanos daquel-
Je Paiz , a visinhança da Iralia , a catholicidade das Mo-
narchias iemítrofes , e a tenacidade e poderio d'um povo
inteiro, que proclamara a heresia, devia assustar o Orbe
Catholico , e despertar o fervor e energia da Cúria Ro-
mana : movem-se exércitos para subjugar os rebeldes, pu-
blica-se a Cruzada , apparecem os Delegados do Summo
Pontifico, c com elles um gcnio raro e distincto naquellcs
tempos pelos seus talentos, zelo, e santidade, S. Domin-
gos de Gusmão, visinho e testemunha daquella calamidade.
A este enthusiasmo religioso veio naturalmente juntar-
se o que provinha das victorias sobre os Mouros de Afron-
so IX de Castella. O celebre Arcebispo de Toledo D. P^o-
drigo alcança então do mesmo Papa Honório o privilegio
da Cruzada contra os que combatessem os Serracenos das
Hespanhas , e daqui veio a famosa tomada d'Alcacer do
Sal pelos Cavalleiros que se dirigião por mar á Terra San-
ta , e cuja armada aportando a Setúbal , cedeo a's persua-
sões , e diligencias do Arcebispo de Lisboa D. Sueiro , em-
penhado naquella conquista.
Neste tempo, em que todo o meio dia da Europa fer-
via em guerras contra os Musulmanos, e Albigenses, confirma
o Papa Honório III a ordem de S. Domingos justamente
reputado então a escora do Vaticano, e o açoute dos he-
reges: o instituto desta Religião sendo de pregar, e ca-
thequizar, naturalmente atrahia os projectos e vistas da
Cu-
8 Memorias DA Academia Real
Cúria Romana toda occupada na extirpação das heresias ;
e cffectivamcnte foi S. Domingos c seus primeiros compa-
nheiros destinados para dirigir a empresa, munidos a esse
fim com aquelles poderes exuberantes , que a necessidade e
a devoção daqueile tempo reputava legítimos, e os quaes
ninguém contrariava. Repartiu então S. Domingos pelos
seus mais zelosos e illustrados companheiros esta missão
sagrada; a França, a Itália, e a Alemanha forao o theatro
destes novos Apóstolos; o mesmo Santo desenvdlveo o seu
'/elo por ventura demasiado na capital da Hespanha, apoiado
fortemente pela piedade de Fernando III , o Santo, e nesta
partilha apostólica coube Portugal a Fr. Suciro Gumes , Por-
tuguez.
Esta missão, esta empresa religiosa foi então annun-
ciada, e proclamada nos Decretos seculares de matéria até
hoje desconhecida , que fazem o objecto da presente Me-
moria , e sobre os quaes recahio a Provisão d' ElRei o Snr.
D. Affonso II , a quem o seu génio e as desavenças com
a Corte de Roma tornava menos dócil as pertenções da
Cúria, e mais vigilante na conservação dos direitos da sua
Coroa.
Factos positivos , provas mais próximas , que agora
he tempo de produzir, vão pôr em quasi evidencia o que
até aqui era uma opinião, mas opinião muito plausível, e
muito connexa com o espirito da Historia, e acontecimen-
tos desta épocha. A guerra, e Cruzada publicada contra os
Albigenses na pessoa de Raymundo , Conde de Tolosa,
começou no anno de 1205»; a sua desfeita ou fingida resi-
gnação parcceo acalmar ao principio esta tormenta ; porém
a mesma perseguição talvez excessiva , a energia do Conde
Raymundo, e os soccorros de Pedro II, Rei de Aragão,
demonstrarão que a heresia propagava, e se extendia , che-
gando a haver symptonias do contagio na própria capital
de França.
O zelo e constância do Papa Innoccncio III sugerio-Ihe
a idéa de interessar toda a Christandade na extincçáo deste
in-
DAS SciENciAs DE Lisboa. 9
Incêndio abrazador, e pnra esrc cffeito convocou o Concilio
Latcranense IV, celebrado cm iiij' (a). O terceiro Ca-
non deste Concilio fulmina com anathcma todas as heresias
em geral contrarias d profissão da Fé antecedentemente es-
tabelecida qualquer que seja a sua denominação , o que
denota que esta exposição hc relativa .aos erros daquelle
tempo ; que os hereges condemnados serião relaxados ao
braço secular para receberem o competente castigo, e sen-
do Clérigos serião primeiramente dcgrad;idos das Ordens ;
que os bens dos leigos serião confiscados, e os dos Clé-
rigos applicados á Igreja , da qual receberiao a sustenta-
ção; que os suspeitos de heresia serião compellidos a justi-
ficar-se pena de excommunhão ; que as pessoas constituí-
das em poder secular serião obrigadas por meio de cen-
suras a dar juramento de expulsar de seus respectivos ter-
ritórios todos os hereges notados pela Igreja; que todo o
senhor temporal que recusasse purgar as suas terras dos
hereges seria excommungado pelo Bispo metropolitano, e
pelos outros Bispos sufraganeos ; e não satisfazendo ainda
dentro d'um anno se daria aviso ao Papa a fim de absol-
ver os vassallos do juramento de fidelidade, e de expor
suas terras á conquista dos Catholicos a fim de as mante-
rem em paz e livre de heresias, salvo o direito do senhor
principal do território: termina o Decreto do Concilio de-
pois de muitas outras providencias com uma ameaça de de-
posição contra os Bispos que consentirem hereges em suas
Dioceses {h).
Fulco, Bispo de Tolosa , havia levado comsigo ao di-
to Concilio a S. Domingos, com o qual estava ligado por
um ardente zelo da salvação das almas (c). Aproveitou
S. Domingos a occasião, e propoz ao Papa Innocencio III
sua tenção de instituir uma Ordem Religiosa , ao que o
r. IX. P. 7. B San-
(n) Fleiíry Hist. Eccl. Liv. 77 § 40.
(6) Fleiíry lugar citado até § 48.
(c) O mesmo Kleury § 54.
IO Memorias pa Academia Real
Santo Padre racilnieiite accedeo ; entretanto a morte do
Summo Pontífice atalhou então este projecto, que pouco
depois foi concluído, e confirmada a ordem dos Frades
Pregadores pelo Papa Honório III em 1216, e no mesmo
anno se estabeleceo a primeira casa regular da dita Ordem
na Cidade de Tolosa. >
Neste mesmo anno (continua o Abbade Fleury) manj
dou o Santo a Hespanha quatro dos seus companheiros
pregar o Evangelho , e forão Gomes , (que he o nosso Fr.
Suciro) Pedro , Miguel , e Domingos , tempo em que o
Papa Honório escrevco a S. Domingos encarregando-o de
proscguir na fadiga apostólica da conversão dos hereges
no Langucdoc , carta de 26 de Janeiro de 1117. Neste
m«snio anno de 12 J7 suppóe o Auctor da Chronica de
S. Domingos , que entrara Fr. Suciro Gomes em Portugal ,
e tecendo como o Diário do seu estabelecimento neste Rci-i
no, conta que por fugir ao desagrado d' habitar nas ter-
ras, em que se havia publicado o interdicto, se dirigira o
mesnio Religioso a Alemquer, senhorio da Infanta irmã
d' ElRei , então em desavença e guerra aberta com seu ir-
pião : — Qiie no anno de 121 8 já o dito Fr, Sueiro e seus
confrades excrcitavao a vida monástica na Serra de Monte
Junto, e que finalmente a referida Infanta o mandara a Ro-
ma advogar sua causa , e que effectivamente trouxera os
Breves do Papa em seu favor. Esta serie chronologica de
Fr, Luiz de Sousa , com o qual se conforma Fr. Pedro
Monteiro na já citada Historia àa Inquisição ^ não me pa-
rece provada, nem se combina bem com os successos. —
He porém demonstrado, que S. Domingos viera a Hespa-
nha segunda vez em 1219, e visitara as duas casas do seu
instituto, que já entãj existião em Segóvia e Madrid, c
naturalrnente entraria acompanhado da famosa carta do Pa»
pa Honório para Fernando III, Rei de Castela , recommen-
dando-lhc acolhimento c protecção para os Frades Prega-
dores empregados na perseguição dos hereges. He do mes-
mo anno outra carta do mesmo Summo Pontifice, circular
DAS SciEMciAS DE Lisboa. ii
a todos os Bispos da christandadc para receberem os ditos
Frades, e auxiliarem sua pregação, datada a dita carta em
Roma a 8 de Dezembro deste dito anno (a).
Esta missão tão rccommcndada, e intimada aos Prín-
cipes seculares , e Ecclcsiasticos determinadamente para a
conversão e perseguição dos hereges de qualquer denomina-
ção que fossem , era a execução das disposições já referidas
do Concilio Latcranense IV, que sendo particularmente di-
rigidas contra os Albigenses , comprehendia os Mouros , e ^
Judeos, debaixo das expressões geraes = qualquer que fosse
o nome que os hereges se dessem , = empreza em que o
Papa Honório empenhou todas as forças então formidáveis
da Santa Sé , como fica apontado-
Supponho eu pois, á vista desta congruência e coin-
cidência de factos paralellos , que neste anno de 12 19 he
que Fr, Sueiro Gomes emprehcndeo sua pregação em exe-
cução das ordens da Cúria, de que terião sido prevenidos
antecedentemente os Bispos de Portugal , quando o não fos-
se também ElRei por causa do interdicto e ruptura com
a Santa Sé. E com cíFcito he deste anno o Breve que trans-
crcveo por inteiro Fr. Pedro Monteiro na Historia da In-
tjuisição em Portugal, pag. michi 35- , no qual o Bispo de
Coimbra D. Pedro Sueiro (e he notável a identidade do
nome) anctorisa ao dito Padre Pr. Sueiro Gomei e seus com-
panheiros para pregarem na sua Diocese , e para exercitarem o
poder de castigar e corrigir todos os excessos (b).
João Baptista Llorente na sua Historia critica da In-
quisição de Hespanha conforma-se inteiramente nestes factos
com a chronologia do Auctor da Historia da Inquisição em
Portugal \ mas previnidos ambos pelo seu propósito de exa-
gerarem a auctoridade dos primeiros Inquisidores, posto que
por fins oppostos, e querendo dar celebridade e apparato
B ii
as
(rt) Fleury Hiit. Eccl. Liv. 70 , 6 30.
(4) Et poustatcm compelendi et Cfínis;eiidi omites excessus. ( Dito Bre»
ve. )
II Memorias DA Academia Real
ás funcções inquisitoriaes, attribuem-lhe um resultado total-
mente alheio da verdade histórica. Conta o dito Fr. Pe-
dro Monteiro : Otiatulo o Patriarcha S, Domingos mandou o
Padre Fr, Sueiro Gomes pregar a estes Reinos, e tios mais
d^Hespanba tãohcm como Inquisidor Geral que era , lhe deo jun-
tamente jurisdição para elle inquirir do crime de heresia pela
noticia que o próprio Honório III lhe dco de que os Jndcos e
Mouros baptizados apostatavao .... destes aos que se mos-
travão arrependidos impunha penitencias segundo os Sagrados Câ-
nones, e aos que se mostravao obstinados e impenitentes relaxa-
va d "Justiça secular que iie/les executava com o fogo o tilti'
mo suplicio (a).
Sendo verdadeiro, como he, o objecto da pregação,
não o he o cxcrcicio e resultado delia , que apomão estes
Auctores ; antes foi tanto pelo contrario, que apenas ElRei
D. AíFonso II soube dos capítulos em que se proclamara a
doutrina e missão de Fr. Sueiro, logo acudio com a famo-
sa Provisão Real , que apontei , cassando e annullando tal
ingerência como oíFcnsiva de sua auctoridade , e indepen-
dência no poder temporal , bem como das liberdades e fo-
ros dos fidalgos e mais vassallos do seu Reino.
Confrontemos agora a usurpação com o protesto , as
disposições Pontifícias com a politica do Monarcha Portu-
guez, e veremos e admirarcnros a sabedoria e dignidade
com que este soube sustentar os direitos da Coroa , e a
independência do império Lusitano n'um tempo cm que
outros, por não dizer todos, os mais Potentados da Euro-
pa Christá se curvavão diante dos excessos da Cúria,
Já vimos os pontos decretorios do Concilio Latera-
nense IV sobre a heresia em geral , e a imposição das pe-
nas tcmporaes do confisco, e expulsão, além das outras
canónicas ; noramos os esforços do Papa Honório escreven-
do aos Príncipes e Bispos do orbe catholico para entregar
a'
(a) Cap. 5. pag. 43.
DAsScjENCiASDK Lisboa. 13
a sua exccuqão aos Fndcs Pregadores , resta apontar as ou-
tras medidas ao mesmo respeito tomadas no Concilio de
Tolosa , celebrado neste anno de 1220. No primeiro Ca-
non deste Concilio , segundo o transcreve Mansi na sui
collecção , se le : Defendemos que os Prelados ^ Barões , Cava-
leiros , e outros quaesquer Senhores de Território consintao que os
Hereges ou seus sequazes tomem as Rendas , e Administrações
de suas terras ; uem tão pouco os admitíio ou tolerem na sua
Família ou Conselho quanda apenas os acharem suspeitos , oit
infamados de heresia. Devendo reputar e haver como taes aqtiel-
les contra os quaes estiver o clamor e fama publica , ou cuja
suspeita estiver provada com boas testemunhas perante o Bipo
do Território {a).
A mesmíssima doutrina do Concilio de Tolosa com as
ampliações, que veremos sobre as liberdades da Igreja, re-
putadas legitimas naquelle tempo, se confirmou no chama-
do Concilio Romano , celebrado neste anno por occasiâo
da coroação do Imperador Federico I d'Alcmanha : òabei
que tios ba pouco na Basílica de S. Pedro , Príncipe dos Apos'
tolos , estando presente nosso Filho caríssimo em Christo , Fe-
derico , Imperador dos Romanos , illustre e sempre Augusto ,
depois que em sua cabeça puzemos o Diadema Imperial^ es-
commungamos da parte de Deos todos os hereges de um e ou-
tro sexo debaixo de qualqu:r denominação que sejão ^ e os fau-
tores e rcceptadores dos mesmos ; assim como escommutigamof
rodes aquellcs que de futuro observarem , oii fizerem observar
e guardar teus estatutos , costumes ou antes abu^ Ôes contra a?
liberdades da Igreja : sendo a mesma pena igualmente extendi-
da
{a ) luhibimus ne prccluti , baroties , mi/iícs seu (juiainiqtn; domiiii terra-
rwn hteretecis , vel credeiitibus ecn-um òalivens , seu adiniiuslratiOíics terra-
riwi suariim commitaiit ; scd nec eos aut ctiain alúpios diffamatos de haire-
H , vel tjiios credunt de hoc esses siispectos hi sua familúi vcl suo Concilio
hnbrre vcl rutincre prtesumaiit. Itlos (lutcm debent pro diffamatis hnbere con-
tra quos publica fnmu clamai , vcl de quorum deflamatioiíe apud boiios et
graves coram Episcopo loci legume coiistilerit coiistàisse.
14 Memorias DA Academia Real
da aos que escreverem , dirigirem , ou coordenarem os taes esta-
tutos, &c. (a)
Reduzamos a artigos toda esta doutrina dos trcs Con-
cílios , e das Bulias c Cartas Pontifícias para a sua execu-
•çáo ; primeiro: o poder attribuido á Igreja não só de pro-
cessar e julgar o crime de heresia , c impor penas canóni-
cas, o que justissimamcnte lhe pertencia, mas o de con-
demnar a confisco de bens , exíerminio , e outras penas tein-
poraes; segundo: conhecer e julgar, os fautores, recepta-
dores e defensores dos mesmos hereges de qualquer sei-
ta , ou de qualquer nome de que usem ; terceiro : inhibir
os Príncipes, Barões, e outros senhores feudaes de con-
servar dentro de suas terras e jurisdicçõcs aos hereges ou
infamados de heresia , obrigando-os a expulsa-los e extcr-
mina-los ; quarto : prohibir que alguém os tivesse no nu-
jncro dos seus familiares, cazeiros , oíEciaes, e administra-
dores ; quinto : finalmente a competência de cxcommungar
todos os que fizessem ou executassem estatutos ou dispo-
sições contrarias ás liberdades em geral da Igreja ; e ( por
eumulo de preoccupação) ameaçar os Soberanos e Senhores,
que contraviessem estes decretos , d'absolvcr seus vassallos
do juramento de fidelidade, e entregar seus Reinos á con-
quista dos catholicos. Erao estes em todo ou em parte os
pontos da missão do nosso Fr. Sueiro , e seus companhei-
ros encarregada pela Cúria, e promulgada nas intimações
aos Reis, e Bispos da christandade , como temos visto,
approvada c auctorisada neste Reino pelo Bispo D. Pedro
de
(a) íioveriiis quod nos nuper in basilica principú apcstolorum pi-ccsenl£
Áiaivaimo in Christo , Jilio nostro Fedarico illusiri , Romanorum Tmpcraíore ,
et semj.fT nugiisto poslquam capiti suo imposuimus iniperii Dúulcma de con-
cilio Jtutriim iiostiorum excommutncarimiís ev pnrte TJei .... omites hare-
ticos utriusque scxvs quoqumqne nomiite ceiísmntur , et fautmes red pintores
et defaisorts cot um , tieu non d qui. de acta o sercaii Jccerwit eslatuta edi-
ta, coufuetudines, rei poíiiis abuxiuiies euiitra Eccieúoc libertateiii. Nec umi
excoinmwávimus slaluurios et escriptores , redores, íl\c. 12 Calendas Mai ia.
DAS SciENCIAS DE LiSPOA. 15"
de Coimbra, e matéria sem duvida dos Decretos seculares,
que a l^rovisão d'ElRei D. AíToitso proscrevia, e anmiU
lava.
Vejamos como as razoes e fundamenros da Provisão
yictoriosamcnte os desfazia •, c no adequado dos argumen-
tos acharemos mais uma prova da natureza dos mesmos De-
cretos , e do nosso descubrimento acerca do seu objecto.
Diz a Provisão ou Qirta P.egia d' ElKci D. AfFonso ,
primeiro : Ninguém cuse tra%er a publico nqmlks decretos se-
tularef sobre matéria de penas peetiuiarias e castigos tempo-
raes. O que caracterisa muito justamente a incompetência
em tal caso do poder Ecclesiastico , a que não pertence o
regimen secular e politico dos outros Estados , e fundamen-
ta a improvação do Monarchi temporal , e alludc ás penas
de confisco de bens, extermínio, e coacção aos Príncipes
seculares para expulsarem vassailos seus, posto que de di-
versa crença, &c. ; o que tudo era doutrina dos dois Con*
cílios , e objecto das Bulias Pontifícias , que haviao de ser
o modelo de taes Decretos.
Segundo: (continua a Provisão) Não sou centente que
se proceda nos casos sobre ditos por sua íista, por sair cm os taes
decretos em quebra dos Foros da minha Corte , e dos meus Fi*
dalgos , e em suma de todas tts pessoas do meu Reine. E com
cffcito attenta a politica do império Portuguez naquelle
tempo, c o estado de dcspovoTçao das terras, acrescenta-
da ainda pelas guerras e conquistas, nada seria tão absurdo
e prejudicial do que a expulsão dos indi-cidms posto qne de di-
versa crença^ estabelecida nas disposições dos Concílios, e
nas da Cúria ; sendo aliás bem constante que tanto pelo con-
trario se procedeo nos primeiros tempos da Monarchia , que
o Snr. D. Affonso Henriques conservou e legislou para os
Mouros de Lisboa , e seus dois successores para os do
Alemtcjo, que quizerão permanecer neste Paíz. E por iguics
princípios dizia ElReí , que era contra os Foros dos Fidal-
gos ^ os quaes sendo pela Jurisprudência daqu^lles tempos
Si-nhorcs não só das terras, mas dos braços e serviços dos
po-
l6 Memorias DA Academia Real
povoadores , vinhao pela sahitla dos Mouros , c Jiidcos a
ficar privados daquclla pirte do seu património. Também
contra os Forox da Corte , ou administração publica , que fi-
caria esbulhada e diminuída com a perda dos tributos c
contribuições grandes, que pagavão os Mouros, c Judeos,
e da ganância e mercancia destes últimos, que até forâo
muitas vezes pelos créditos de sua habilidade escolhidos
pelos Soberanos Portuguczcs para Védurcs , c Thesoureiros
da fazenda publica.
Terceiro: E tão bem (continua a Provisão) por encon-
trarem aqtielle livro onde se diz expressamente que se niio
admittão novas leis em nosso Reino , o qual livro contêm os
foros por onde devem ser julgados os fidalgos de Portugal, lista
coarctada denotava ainda a illegalidade e incompetência
dos decretos de Fr. Sueiro Gomes , pois que não só erão
illegitimos por falta d'auctoridade, mas ainda pela opposi-
ção que resultava das Leis até alli existentes , e praticadas
no Reino, que regulaváo os direitos e prerogativas da No-
breza ; ou as ditas Leis fossem ( pois a Provisão não o de-
clara ) o Código Wisigotico , ou as Leis geraes do mes-
mo Rei o Snr. D. Affonso nas Coites de Coimbra, ou,
como eu julgo , as Cortes de Lamego.
Qiiarto : Maioi^mente que os taes decretos ( he ainda da
Provisão ) nunca andarão em pratica em tempo do Conde D»
Henrique , nem tio tempo de meu Avô ElRei D. Âjfonso , a
quem o Papa Alexandre III por seu privilegio confirmou em Rei ,
e a sua Terra em Reino. Nem em tempo d'ElRei D. San-
cbo meu Pai , que teve uma carta de protecção do Papa Cle-
mente III. Nem tão bem em meo tempo tendo dtias, uma de In-
vocencio III ^ e outra d* Honório III. He notável este argu-
mento. Reprova a Carta Regia os taes Decretos , maior-
mente por serem cousa nova nunca praticada até alli neste
Reino desde que fora independente na pessoa do Conde
D. Henrique , c seus succcssorci ; e scrvindo-sc das pró-
prias armas do inimigo, para assim me explicar , parece
notar a contradicção em que cahia a Cúria Romana, que
icn-
DAS SCIENCIAS DE L I S B O A. ' I7
tendo confirmado e reconhecido a independência deste Rei-
no, se ingeria na suprema Soberania, mandando pregar,
e estabelecer suas máximas decretorias sem o consentimen-
to d' ElRei , c da sua Corte. Esta circumstancia está indi-
cando mui claramente que os artigos de legislação temporal
ordenados por Fr. Suciro , não erao reputados obra mera-
mente sua , mas uma derivação originariamente da Cúria ,
alias seria occioso , e sem objecto allegar aqui com as con-
firmações e reconhecimento dos Summos Pontifices a res-
peito da independência deste Reino ; e por isso dissemos
no principio desta ultima parte , que no adequado dos ar-
gumentos da Provisão acharíamos novas provas da natureza
daquellcs Decretos , e do nosso descobrimento.
Termina em fim ElRei o Snr. D. AÍFonso II sua Car-
ta Regia , ameaçando com o rigor das penas civis o que
contravier a esta revogação, estabelecendo com tudo duas
limitações, em quanto approva e ratifica dois pontos dos
taes Decretos; he o primeiro, sobre os que venderem
cousa furtada , ou escondidamente , c o segundo impondo
semelhantemente penas aos compradores de semelhantes
cousas. O que bem longe de fazer contrariedade com a
nossa supposiçâo , se conforma , e corrobora o que temos
diro ; por quanto sendo a pena de confisco de bens im-
posta pelos Cânones referidos aos hereges e mais refractá-
rios , era uma consequência acautellar as vendas clandesti-
nas, que os léos condemnados em perda de bens procura-
rião fazer para illudir o julgado ; e como este principio agra-
dou em theoria para ser aplicado a outros respeitos, con-
servou-o ElRei o Srir. D. Affonso , convertendo-o em le-
gislação propriamente sua , e ficando a regra gerai <t que
" ninguém vendesse , nem comprasse as cousas letigiosas
» em razão do crime , por serem equiparadas as alienações
« que se fazem de cousas furtadas. «
Djsta arte , e por meio de tentativas parciaes sobre
objectos particulares, procurava a Cúria Romana costumar
os Príncipes, e os povos ao Direito Canónico, bem pre-
T. IX. P. L c fe-
l8 MbmouiaS BA Academia Rfal
ferivel , sem duvida aos costumes bárbaros , e Jurisprudcn*
cia feudal daquellc tempo. Com este resultado geral quasi
hia atinando ás apalpadelas o nosso Chronista ; o qual de*
pois de protestar que não tinha conhecimento dos pontos
legislativos dos tacs Decretos , acrescenta : Porem como os
Padres que as fizerãe erão pessoas tão caUficadas em Religião
e letras , e destas onvesse muita falta naquella primeira ida"
de, de crer be que serião os estatutos ajustados com a ra-
zão , e com o direito civil , e canónico , posto que a ElRei , t
a seus Conselheiros assim »ã« parecesse , que como andcvão ja
neste tempo mrii revoltas as cousas , e o estado Eclesiástico deS'
favm-ecido £ ElRei , não he maravilha que ElRei não aceitas-
se bem estas leis., ainda que feitas com zelo, e consideração
por gente tão Religiosa. E com effeito se na luta entre as
preoccupações e usos recebidos , e a introducçao d'um me-
lhor porém novo modelo de legislação muitas vezes houve
demasias e attentados ; somos com tudo obrigados a con-
fessar á face da evidencia da Historia, que por Uitimo pre-
valecco a sciencia , e a sabedoria : o Direito Canónico foi
recebido geralmente na Europa , misturado ja com o civil
Romano , e corrigio os absurdos do antigo systema ; e os
Príncipes seculares amestrados pela experiência , e irresistí-
vel força da verdade , souberão com o andar dos tempos
conciliar a justa deferência ás luzes, e documentos práticos
d 1 Igreja còm o decoro , e independência da sua Coroa ;
sendo o feli2 resultado a civilisação actual dos povos , a
estabilidade dos Impérios , e a segurança e felicidade geral.
ME-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. Ipi
MEMORIA
Sobre a restauração das barras dos portos formados nas fozes
dos rios em geral ^ e sobre a appUcaçao dos principaes fun-
damentos destas importantíssimas restaurações ao melhora'
mento , e conservação da barra do Porto.
Por Luiz Gomes de Carvalho.
D
'ivide-se a Memoria em duas partes, na i.* estabele-
cem-se os incontestáveis princípios de universal applicação
para melhorar as fozes, e barras de todos os rios; na 2.»
se faz applicação dos mesmos principios á foz, e barra do
Douro : mostra-se que esta foz e barra são o resultado re-
gular das leis hydraulicas geraes investigadas, e estabele-
cidas na I." parte; descreve-se , e analysa-se o plano da
sua restauração , mbstrando-se também quaes serão os seus
transcendentes, e proveitosissimos resultados; faz-se ver, que
taes melhoramentos não podiao conseguir-se pelos esforços
praticados , ou plano seguido anteriormente ; e que nesse
plano foi desconhecido absolutamente , e até contrariado o
principio restaurador das fozes, e barras dos rios, estabe-
lecido , e demonstrado na i." parte ; em fim compvova-se
praticamente, quanto se diz nas duas partes desta memo-
ria , mencionando os principaes resultados das obras que
estão feitas já na barra do Porto.
Primeira Parte.
O que forão em tempos mui remotos, quando o glo-
bo estivesse pouco provado , os leitos dos rios , suas fo-
zes e barras ; e como pelo progressivo augmento da popu-
c ii la-
»o Memorias DA Academia Real
laçío do mesmo globo se foráo arruinando os leitos , e fo-
zes dos ditos; e tormado barras, e cabedelos que os atra-
vessão , e quasi tapSo os seus leitos nas fozes dos mesmos
rics durante o estio; quaes os estorvos, e perigos que
nesse estado decadente sofFre a navegação sobre as mesmas
barras , c fozes ; como se rcmedeião , e até que ponto.
§ I.
Os leitos dos rios for Sc já viais largos , fundos , e vave-
gaveis por maiores extensões acima daí suas fozes proporcional-
mente d ordem dos mesmos rios , e d natureza dos terrenos ,
que clles através são mais ou menos ^ susceptíveis de corrosão pe-
las agoas.
Nas remotas épocas do mundo o nosso globo devia
ser , e foi mui despovoado , e os poucos homens que o
habitavão dcvião ter poucas precisões , e pouca industria ,
e menos certamente doque ainda hoje tem muitos bandos,
ou povos selvagens d'America , que vivem unicamente da
caça, e da pesca, e não cultivão, nem edificao; portan-
to estaria cubcrta a superfície da terra de arvores , arbus-
tos , c plantas indigcnas , de que se veste , quando não he
estorvada ; e as agoas das chuvas não podião chegar aos
leitos dos rios , senão mui vagarosamente coadas por entre
todos esses obstáculos de huma vegetação activa , e não
estorvada,. que ofFereccria huma continuada, e çspessa ma-
ta ; e passavão além disso sobre hum terreno virgem for-
tificado com o tecido de raízes entrelaçadas em mil diffe-
rentcs direcções, que jamais a charrua, nem outro ferro ha-
via rompido; e portanto pouco, ou nada podião escavar,
e as agoas pluviacs chegarião quasi limpas aos leitos dos
rios , e não os entupirião : o vagar com que as mesmas
agoas erão coadas , e demoradas por cntie tantos obstácu-
los, que ofFerecia essa forte vegetação por toda a superfí-
cie do globo, penetrada também interiormente, e furada
até pelos vácuos que deixao as raízes que apodrecem, ar-
- DAS Sgiencias DE Lisboa. " ' i%
rores, c plantas que morrem, os asilps, e cadáveres dos.
animaes , e tendas diversamente dispu&tas das camadas que
compõem o seu interior, ctc. tudo isso dava lugar a se-
rem as mesmas chuvas em grande parte absorvidas pelos
terrenos , onde crão demoradas , e donde SQhiáo depois de
filtradas ainda mais vagarosamente, e bem repartidas por
meio de cristalinas , e abundantes fontes , que cntretinháo
fartos d'agoa os mesmos rios durante o verão; de sorte ,|
que todas as agoas das chuvas (a) erao , como disse , huma
parte vagarosamente coada na superfície da terra , e outra
filtrada em grande massa para o seu interior , e todas dc-
vião chegar limpas , e vagarosamente aos leitos dos rios
para os alimentar de inverno, e no verão sem os entupir;
e por isso havião de ser limpos, fundos, e largos segundo
a grandeza de cada rio , e a natureza do terreno que occu-
pavão ; pois erão o resultado do trabalho diuturno das cor-
rentes das agoas dos mesmos rios sem desconto de entupi-
mentos ; e as agoas mais bem repartidas para todo o verão por
meio de abundantes fontes, os terião além de limpos, lar-
gos, e fundos, mais abundantes d'agoa no estio, e mais
bem navegáveis , proporcionalmente á sua ordem ; e não
pfièrecerião as alternativas medonhas que hoje se observâo
no estado de nudez , em que está o globo ; de sorte , que
no inverno os rios actualmente não cabem nos seus leitos,
e insultão os campos, e as povoações; e no verão pouco
falta que não sequem todos completamente. Todos os rios
offerccem a prova desta verdade , e o Douro he hum exem-
plo des^a lamentável alternativa.
§ 2.
Em íguaes ctrcumstancias de terrenos os rios sertão tant"
hem mais largos , e mais fundos d medida que se aproximassem
das suas fozes ^ onde proporcionalmente d sua ordem ser ião ma-
gestosos , e de óptima navegação.
Porque em i," i.ugar g§ rias .se engrossão succcessi.^
va-
3,2 MemoriasdaAcademiaReal
vãmente desde as suas origens até ás suas fozes no mar ,'
com as agoas que recebem lateraes; em 2° lugar, porque
o volume das agoas dos mesmos rios era augmcntado pe-
las marés, que entravão até mais longe das suas fozes pe-
los leitos desentupidos, e fundos; 3.° porque os declives
dos rios se augmentão muito perto das fozes nas horas da
baixa-mar, cm que as agoas descem 14 ou 16 palmos es-
pecialmente andando cheios , pois levanta o rio semque
por isso o mar mude o seu nivel ; logo augmcntando-se a
massa d'agoas, e a sua velocidade para as fozes dos rios,
te augnienraiáõ as proporções do leito, que são o resul-
tado da maior força. Ora quanto os rios são mais largos,
e mais perto, ou próximos estão do mar, mais a agitação
c'as ondas, e a força dos ventos, que alli reinao, combatem
as margens , ora de hum , ora de outro lado ; e com esses
movimentos os alargão pouco a pouco; e por todos esses
motivos os rios serião muito mais amplos, e fundos á me-
dida que se aproximavão das fozes , e do mar , fornecendo
mais amplos ancoradouros , e huma navegação franca dos
rios para o mar nas suas fozes , e barras , ainda mais fun-
das, c amplas doque os leitos, por ser a parte mais vi-
sinha do mar, e onde passava, e se exercitava a máxima
força de cada rio.
§ 3-
Os mesmos rios fundos nas suas fozes deveriao sempre em
igtíaes circwnst anciãs , ou pouco desiguaes de tenacidade cava--
rem mais ftmdos os seus leitos naquella parte paraonde as
tormentas , e fortes ventos os encostão , quando andão cheios ; e
seria pela direita v. gr. em todos os que tem as suas fozes na
costa Occidental de Portugal.
Porque perto das fozes, e do mar, os rios irão neces^
sariamente encostar o maior volume das suas agoas á mar-
gem direita dos ditos nossos rios durante as cheias do in-
verno, e quando elles cavão mais fundos leitos, obrigados
DAS SciENCrAS DE LlS,BOH.- ' ' í?
pelos ventos tcmpcstujsos , e aturados do Sul, Sud-oeste,
etc. e por todjs os do 3.° quadrante , que então reioáo
mais ordinariamente , e pelas ondas , que os encostão tamr.
bem para o Norte, ou para a direita do leito; e porisso
de^de o principio dos tempos devom ter cavado os seus lei»
tos mais profundamente pela pirte direita, e para ella en-
costar-se ; e cm gerai do lado do polo , que está sobre o
horisonte a respeito de qualquer rio, vistoque as chuvas
maiores vem do lado do Equador.
§ 4»
O lado , ou margem , a que os rios se encostão nas suai
fozes , e poronde estabelecem mais fundos os seus leitos , fica-
ra mais saliente , ou mais avançado para o mar doque o ou-
tro ; e nos nossos rios da costa occidentat do reino , e no Dou-
ro , que he bum delles , serd mais avançada a margem direita
doque a esquerda , em iguaes , ou pouco desiguaes circumstan-
cias de dureza , e tenacidade.
Já se disse , que no inverno , quiado os rios trazem mais
agoas, e mais correntes, he quando ordinari.imente soprão
os ventos tormentosos do Oeste , O.S.O , S.O , Sul , e to-
dos do 7,.° quadrante , que devem arremessar as ondas fu-
riosamente contra a extremidade , e parte mais avançada
da margem opposta , ou margem direita ; mas estas ondas
tendo de atravessar primeiro o rio, apenas combatem, mas
nlo atravcssâo , ou só fracamente atravessão as correntes do
rio para irem atacar, e corroer a dita margem direita; ou
só mui pouco quando as cheias , e correntes são menores :
a margem direita também fica abrigada nos (5 , ou 7 me-
ees do anno, em que reinão quasi exclusivamente os ven-
tas, ora rijos, ora moderados do Norte, e Noroeste, ou
brandamente os outros; os quiíiís pelo contrario vão ainda
atacar a margem esquerda , especialmente quando as agoas
na foz , sem corrente , que defenda a esquerda , formão hu-
ma bahiâ maior nas preamares das grandes marés, e qufi
as
34 Me-morta"s da Academia Real
as ondas podem sem obstáculo, ou pouco contrariadas, ir
com os ventos fortes Nortes , c Noroestes , que reiíião no
verão, atacar a margem esquerda, que porisso , e porque
não tem defesa a sua parte mais avançada contra as tor-
mentas do inverno ; será por tudo muito mais facilmente
carcomida, e desfeita, e mais entrante , ou recolhida fica-
rá doquc a margem direita menos atacada , e mais bem
defendida.
Logo Corol. i." As margens direitas de todos os
sobreditos rios , que tem as fozes na costa nccidental do
reino , e de todo o nosso hemisfério , serão mais abri-
gadas , mais fundas , e limpas , e menos combatidas do
mar doque as esquerdas , e mais próprias para ancoradou-
ros das embarcações , e consequentemente mais próprias pa-
ra o estabelecimento , e edificação das nossas cidades , e
villàs dos portos de mar próximos das fozes dos rios, além
de ser essa margem mais bem conservada , e mais saliente
para o mar , e mais própria para estabelecer as fortifica-
ções para a sua militar defesa. Todos os nossos portos ,
e fozes desde o Minho até ao cabo de S. Vicente con-
firmão a verdade das proposições que se acabão de provar;
os rios Minho, Lima, Cavado, Ave, Leça, Douro, Mon-
dego , o rio d'Abbadia na costa de Nazareth , Porto de
S. Martinho , o Tejo , e o Sado estão assim dispostos por
eíFeito daquellas leis invariáveis. O Liz , e o Vouga , que
parecem as únicas excepções dessas leis geraes, o são ago-
ra , porque nos reinados da Senhora Rainha D. Maria I ,
assim como no actual se lhe fizcrão paredões nas margens
esquerdas (nos lugares onde foi preciso fixar-Ihe as suas
fozes) que por natureza não tinhão , e estão porisso mui-
to mais salientes, doque as margens direitas, e são por-
tanto fozes , a que se deo huma disposição , que não tu
nhão antes disso, e estavão como os outros rios compre-
hendidos na lei geral.
Logo Corolário 2° Se alguma margem esquerda dos
nossos rios, e dos ^ue tem as fozes para o occidente no
nos-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 25-
nosso hemisfério, foi pouco consistente, e a direita mui
dura , esta ficará mui avançada no mar a respeito daquclla ;
e assim acontece no Tejo, e no Mondego, onde por es-
sa causa se verificáo as differenças densas margens, que são
no Tejo de 4 Icgoas , e no Mondego de huma legoa. No
Douro, e cm outros são menos desiguaes, porque ha gran-
de dureza em ambas as margens ; e no Douro até são pou-
co desiguaes as antigas margens por serem as Pedras do
cão na esquerda ainda mais duras , do que os rochedos de
Filgueiras na direita.
Logo Corolário 3.° Se-nos ditos rios, que olhlo para
Oeste no nosso hemisfério , a margem direita for mui frá-
gil , ou arêa solta , e a esquerda mui solida , esta será por
excepção da regra geral (que suppôc a igualdade , ou pou-
ca desigualdade de circumstancias [4] ) mais avançada , pois
apesar de ser mais atacada , deve ser menos destruída. He
isto o que acontece no nosso Vouga , e no Liz , onde de-
pois que se lhes fizerão margens esquerdas com paredões
até ao mar , nas novas fozes que conveio dar-lhe , tendo
ficado as direitas desses rios no areal , ou praia de arêa
solta, lá estão constantemente essas margens direitas mais
curtas , do que as esquerdas ; sendo por arte que essas
duas fozes se achão exceptuadas da regra geral em que es-
tavão comprehendidas antes das obras feitas nellas no actual ,
e anterior reinado : satisfazendo nesse estado ao 3.° Co-
rolário da mesma geral proposição.
Corolário 4.° Logo também pelos dous theoremas
(304) terão por via de regra os rios do hemisfério Bo-
real , que tiverem fozes voltadas para o poente , as mar-
gens direitas mais avançadas para o mar, do que as esquer-
das ; e ao longo daquellas serão mais fundos nas visinhan-
ças das suas fozes ; e dalli estarão os melhores ancoradou-
ros, e o^ portos juntos ao mar: o inverso acontecerá áquel-
Ics , que no mesmo hemisfério Boreal estiverem virados
para nascente : no hemisfério Austral será tudo pelo con-
trario do que acontece, e se diz para o nosso hemisfério,
T, IX. P.L o e
i6 Memorias da Academia Keav
e por idênticos motivos ; com tanto que alguma causa mui
poderosa não contrarie o eíFeito das leis geracs (3 e 4 ) ,
que tem lugar na igualdade, ou pouca desigualdade de cir-
cumstancias locaes , de tenacidade relativa das matérias das
duas margens, e do leito de cada rio, e que estes andem
cheios no inverno respectivo quando soprao os ventos ,
que vem do Equador , e do mar , ou donde lhe vem as
grandes chuvas ; pois ha rios , que tem cheias periódicas
de verão, como o Nilo, o Niger , etc. procedidas da fu-
sjo de neves nas montanhas , donde tem a origem , que se
faz em tempo quente , c gastao taes cheias mczes para
chegarem ás suas fozes , e se evacuarem todas as suas
grandes agoas : nestes rios ha necessariamente excepções ,
e pelos mesmos princípios demonstrados. Quanto aos rios
que tem fozes para o Norte , ou para o Sul , ou sobre la-
gos , c mares no centro do Continente , terão em geral
margens mais curtas do lado , donde lhes vem os ventos ,
que lhe trazem mais abundantes , e aturadas chuvas ; pois
a todos se applicao raciocínios análogos aos que se fizerão ,
(3 e 4) em quanto aos que olhao para o Poente no nos-
so hemisfério , e no nosso Portugal.
§ 5-
O augmento da poptdaçHo Ao gloho tem motivado o entti-
fimento siiccessivo dos leitos dos rios desde o ponto onde come-
ção até ás suas fozes , e continuará até d quasi total ruina
dos mesmos , e das suas fozes , e barras.
A' força de séculos o globo se povoou de milhões de
homens ; civilisárao-se , formarão grandes nações , commu-
nicárão-se estas, commerciárâo, augmentárão as suas preci-
sões ao infinito , e dcrão extensão demasiada ás suas com-
modidades por meio das Artes , que o tempo , a necessi-
dade , o luxo , e a competência tem aperfeiçoado ; daqui a
edificação rural, civil, militar, e naval; as maquinas de
toda a espécie ; os utensílios , as fabricas, e os diferentes
mo-
\'
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 27
moveis do uso domestico: huma extcn^ia cultura, c huma
immensa quantidade de animaes domésticos , para nos aju-
dar a supportar o monstiuoso trabalho, que pcza sobre o
homem no seu estado de grande civilisaçao, puzeráo cm
pezada , e cada vez mais violenta contribuição á superfície
da terra: o ferro, e o fogo a despojarão successivamente
das arvores, arbustos, e plantas, que fazião o seu orna-
mento, e dcfendião contra os insultos das chuvas, das ne-
ves, das tempestades, e dos enchurros ; do mesmo modo
que o cabello , e a pclle decórão , e defendem os animaes
do rigor das estações; a charrua, e os diversos instrumen-
tos de agricultura romperão, e dilacerarão também a cô-
dea , ou tecido superficial formado pelas folhas , e raizes
dos vegetacs , que a cobrião, e ajudaváo a conservar in-
tacta; neste estado de nudez, em que o homem civilizado
pôz a maior parte da superfície do globo, nosso commum
património , as aguas pluviaes , c as das neves derretcndo-
se , não tendo quem as demorasse, nem coasse na super-
fície para se filtrarem , e formarem as fontes , que alimen-
tão os rios no verão , correrão sobre ella sem obstáculo , e
formarão alluviões, e arrastarão desde então para os leitos
dos rios os despojos da superfície da terra cavados pelas
agoas com que os forão entupir; os quaes não tendo força
para levar até ao mar, tudo quanto as chuvas, e as tem-
pestades arrastavão das montanhas, e terrenos mais alcan-
tilados até diversas distancias do mesmo leito, forão obri-
gados a correr sobre esses montões de ruínas , e a abrir
passagem por cima dos entulhos , segundo as direcções por
onde essas matérias, arrastadas, e distribuídas em desordem
pelos leitos lhes permittião mais fácil , e mais franca pas-
sagem. He por isso que os seus leitos entupidos, e faltos
d'agu3, ou quasi secos por falta de fontes, que os alimen-
tem, serpejão hoje sobre os antigos leitos entupidos, que
formão os campos, e terrenos baixos, que bordão os nos-
sos rios actuaes , e estão ainda esses velhos leitos assas
bem marcados pelos outeiros , e terrenos mais altos , que
o ii la*
«8 Memorias da Academia Rbal
lateralmente se correspondem de ambas as margens desses
campos, ou antigos leitos, e que ainda hoje lhes servem
no inverno, quando os rios andão mais cheios j assim como
proporcionalmente mais secos no verão , havendo quasi se-
cado as fontes que nessa estação os alimentavão pelo mo-
tivo retcrido de que as aguas pluviaes se não tlemorao á
supciEcie para serem absorvidas, c todas de montão, e re-
pentinamente passão aos leitos dos rios; além da diminui-
ção das chuvas , que a falta de arvores occasicna cm hum
paiz , que não tem , ou pcrdeo os seus arvoredos ; nós ve-
mos por toda a parte , c por isso também no Douro , os
rios atacando as cidades no inverno com indizível furor, c
quasi moribundos durante o estio ; huns negando p váo ,
c pastagem dos gados no inverno sobre os campos adja-
centes , e não podendo quasi sacinr-lhes a sede , ou regar
os frutos queimados pelo ardor do sol no estio sobre os
mesmos campos ! Os rios entupidos na sua origem entre
as montanhas , pelos entulhos grossos levantao os leitos ,
e ganhão declive para os arrastar até mais abaixo , e assim
successivamente até ás suas fozes , e até ao mar, vão le-
vando as partes mais leves , ou mais atenuadas daquellcs
entulhos , e assim se irão entupindo , e levantando , até
que possío arrastar pedras até lá; então os terrenos actuaes,
c os pequenos rios , e regatos não tendo queda para os
leitos dos rios maiores assim alteados , ficaráo encharca-
dos , e até invadidos por clles ; e o globo sem os seus
principaes esgotadores se cobrirá de charcos , e lagoas ,
deixando os restos mais altos na rocha viva lavados pelas
tormentosas chuvas, de que já vemos grandes amostras nos
picos das montanhas ; os rios ficarád sem navegação , e as
fozes serão hunias cascatas de pedragulho estendidas pelo
mar dentro nas suas fozes; as nações (se então as poder
haver que mereção esse nome ) se não poderáõ communicar
entre si , nem humas com outras pelo auxilio da navega-
ção dos rios. Então na terra quasi despovoada , e reduzi'
das a muito pouco as precisões do luxo dos seus poucos
ha-
DAS SCIENCIAS DE LiSEOA. Zff
habitadores, de novo começarão os arvoredos, c bosques
a prospcrnr pela decadência, c nullidade do homem stu
implacável inimigo ; e pouco a pouco as aqoas já então
mais abundantes , c mais bem repartidas pelo bemf^zejo in-
fluxo dos arvoredos , exercendo novamente a sua acção so-
bre os actuacs leitos entupidos dos rios conseguirão abril-
los novamente, assim como primitivamente os abrirão nos
rochedos ; tornando em fim a apparecer os terrenos sub-
mergidos , que também a seu turno se vestiráó successiva-
mente de arvores, e plantas; e a superfície do globo assim
restaurada , e formosa se prestará de novo ao engrandeci-
mento da espécie humana , que ainda tornará talvez a des-
fazer a obra desse largo periodo de regeneração pelo effi-
caz , protentoso, e espontâneo influxo da vegetação gene-
ralisada por toda a terra. Assim he que o homcffl póJe
preparar largos períodos de desolação , c de luto pelo cri-
minoso frenesim de gozar desmedidamente ; sem que bas-
tem parciaes esforços de ânimos generosos contra a inva-
são universal , que vai quasi aniquilar o reino vegetal. As-
sim he que tantos males abysmaráõ o homem , que os mo-
tiva ; pois a natureza periodicamente contrariada tomará
vingança, reparando tudo na sua marcha constante, e fir-
me obedecendo ao magestoso impulso que recebco do Crea-
dor ! BuflFon diz grandemente quando outras considerações
o conduzem a asseverar que o homem devasta o globo ,
tirando-lhe mais do que lhe restitue , e que pelo contrario
as arvores , e a vegetação podem reparar as suas ruinas ,
e devastação. ^ Que diria elle se tivesse olhado para os
effeitos do engrandecimento da nossa espécie debaixo des-
te ponto de vista ? Mas retiremos os olhos de hum qua-
dro tão horroroso para nós qual o da natureza vingada do
nosso abuso ! Felizmente para nós , e para muitas gerações
que de mais perto nos interessão ; esse montão de males
está ainda longe de pesar sobre a espécie humana , posto
que para lá cammha ; e feHzmente tamhem os nossos es-
forços parciaes podem reurdar . em cada rio , a cpoca da
fa-
30 Memorias DA Academia Real
fatal ruina das suas barras ; e por isso com mais disvcllo
vou proscguir em estabelecer os princípios , que ainda fal-
tão para os applicar a melliorar as de todos os rios do.
mundo , e a do Douro , que tanto influe nos destinos de
Portiigalj!
§ 6,
No estndo actual todos os rios formão bancos , ou barras
de aréa dentro no mar , que circundao de mm perto as suas
fozes ^ mais ou menos distantes delias ., segundo a ordem da
grande::a , e força dos mesmos rios.
A corrente dos rios , que especialmente na vasante de
maré (c ainda mais havendo cheias) leva involvidas parte
das arcas do seu leito até ao mar, diminue mui rapida-
mente, assim que faz a juncção, e fica cm contacto com
elle ; i.° porque como os rios na sua marcha para o mar
vão em nivcl superior lançar-se nesse vaso indefinito , o
qual por isso que he immenso , não levanta o seu nivel
recebendo as aguas dos mesmos rios , que sobre elle tem
queda, e a conserváo , todos se derramao para todos os
lados , e cm todos os sentidos se espalhão quando entrão
no mar; e assim aflfrouxão as correntes, e se enfraquecem.
2-° porque a massa fluida do mar, que os rios vão pene-
trar , ou por em movimento , lhes resiste também com o
que se chama força de inércia proporcional á massa que
lhe apresenta o dito fluido do mar, em que entrão (sup-
pondo-o mesmo em perfeito socego ) o qual oppondo-se a
todo o instante á força dos rios , ou transmitindo estes a
sua força para dar movimento ás agoas do mar, que suc-
ccssivamente chocâo atravessando-as , pouco depois se en-
fraquecem as correntes dos ditos rios, e as pequenas distan-
cias das suas fozes se aniquilão ; e tanto mais perto quanto
os rios forem menos vigorosos. Pois sendo sempre o mar
quem destroe a corrente com que os rios entrão nelle,
mais depressa o consegue nos fracos , e pequenos rios : se
á
. DAS SciENCIAS DE LiSBOA. Jt
á força de inércia , que o mar em soccgo oppòc aos ri(-s ,
se ajunta a íorça das ondas , que por leis hydrauiicas vem
dirigir-se , e quebrar-se nas praias por direcções perpendi-
culares ás mesmas praias {b) a corrente dos me5>m( s rios
se extinguirá mais depressa , e mais ainda sendo o vento
opposto á mesma corrente dos rios , ou sendo ventos do
mar ; logo todos os rios entrando no mar , perdem total-
mente as suas correntes em distancias das suas fozes, que
varião em todos os rios , e a todo o momento no mesmo
rio , segundo o estado delle , e a hora da maré ; e conse-
quentemente as arêas que os rios arrastão até ao mar, vão
também por esse motivo ficar depositadas perto da sua em-
bocadura, onde a corrente antes de se extinguir deixa de
as poder levar mais adiante, e alii se formaiá hum depo-
sito das mesmas arcas, ou banco, visto que nem os rios
dalli as podem levar mais adiante, pela hypothese, nem o
mar as pode fazer recuar nesse ponto do presupposto equi-
líbrio entre as duas forças oppostas do rio, e do mar. Lo-
go todos os ri(>s tem hum banco de arêa dentro no mar,
o qual banco circunda as suas fozes , e estorva a navega-
ção , mais, ou menos distante delias segundo for maior,
ou menor a força de cada rio ; sendo certo , e evidente ,
que os mais valentes poderão resistir até mais longe á op-
posição do mar , que gradual , e successiva mente aniquila
as suas correntes. Desta proposição se deduzem os seguin-
tes corolários.
Corolário i.° Logo os bancos^ ou barras de todos os
rios do mundo são moveis , visto que são variáveis ao in-
finito a força dos mesmos rios nas differcntes estações , as-
sim como a do mar nos seus differentes estados de agita-
ção, e de maré para lhe resistir no periódico fluxo, e re-
fluxo das mesmas marés.
Corol. 2." Logo quanto maior for hum rio, e mais
velocidade tiver a sua corrente ao entrar no mar, ou quan-
to mais cheio andar o mesmo rio, e mais rijo também as-
soprar o vento terral , ou do lA e a.° quadrantes nos de
Por-
^^-vj
■31 Memorias da Academia Reaií
Portugal , e mais manso estiver o mar j mais longe o rio
poderá arrojar o banco.
Corol. 3.° Logo em circumstancias iguaes quanto mais
bravo estiver o mar; mais forte for o vento mareiro, que
soprar de lá (ou do 3.° e 4.° quadrantes nas fozes dos nos-
sos rios) para se oppor á força dos mesmos rios , e mais
secos então andarem , mais perto das suas fozes se forma-
rá o banco, ou barra de qualquer rio.
Corol. 4.° Logo quanto mais perpendicular for o lei-
to do rio sobre a costa , e quanto menor for a secção da
boca do rio na foz a respeito da largura do leito alli mes-
mo , ou mais igualmente avançadas para o mar estiverem
as suas duas margens , e por esse modo ficar perpendicular
ao leito , e offerccer o menor numero de pontos de con-
tacto entre o rio , e o mar ao entrar neste ; mais longe
da foz irá formar-se o banco.
§ 7-
Quanto maior for hum rio , mais fundo haverá sobre o hatt'
CO ^ e mais bem navegável será em iguaes circumstancias.
Pois que o mar destroe igualmente a força , e anulla
a acção de todos os rios mais , ou menos longe das fozes ,
onde parão as arcas , e se formão os bancos , parece que
nenhum rio seria navegável sobre o banco , onde acaba a
força de todos , e se accumulão , e parão os entulhos ,
qualquer que fosse a ordem , a abundância d'aguas , e a
força de hum rio na sua foz, do mesmo modo que o não
são as barras dos pequenos rios. E certamente assim acon-
teceria se não. existissem as periódicas, e nunca interrom-
pidas alternativas dos verões e dos invernos , sendo estes
mais ou menos abundantes de chuvas, e de neves diversa-
mente distribuídas, e aquelles mais ou menos secos, e nun-
ca na mesma ordem ; a alternativa da baixamar á preamar,
e estados intermediários repetidos duas vezes em cada 34
horas j a alternativa de marés vivas da lua , ás marés mor-
tas
DAS SCIEKCIAS t)E LiSBOA. 3^
tas dos quartos ; das grandes marés de equinoccio em Mar-'
ço, e Setembro, ás pequenas dos solsticios em Junho, e
Dezembro; a posição relativa, e as distancias á terra dos
astros do nosso systcma solar , c finalmente o balanço ou
oscillaçáo das aguas, e as ondas^ maiores ou menores; as-
sim como as differençns dos ventos moderados aos tempes-
tuosos, cm direcções, e com forças sempre variadas , sem-
pre desiguaes , etc. : eis-aqui a variedade admissível , que
a todo o momento muda em hum rio, que entra no mar,
o lugar do equilibrio entre as forças oppostas , onde se
formão os bancos , e as barras no estado presente d i rui-
na, e decadência dos rios; e as barras lhe devem o haver
ainda huma passagem praticável para a navegação pnr ci-
ma, e a través desses bancos nas fozes dos rios , que por
serem maiores entrão com mais força , e abundância d'agua9
no mar, como se vai provar.
Com cíFcito , se a força de qualquer rio fosse con-
stante, e invariável, e se o mar, e os ventos etc. se op-
posessem sempre do mesmo modo com huma força tam-
bém constante, e invariável, o lugar do equilibrio entre
o rio , e o mar seria invariável para cada rio, e haveria
hum banco fixo , ou dormente , que o rio iria successiva-
mente estendendo para o mar, ainda que a diíFerentes dis-
tancias da foz nos difFercntcs rios (6 , corol. 3) ; e também
seria mui largo , e extenso o banco ; porque o mar arras-
taria arêa até alli , e o rio a levaria também até lá pela
hypothcse de ser alli o lugar do equilibrio , ou de ne-
nhum estorvo reciproco; e como nem o mar, nem o rio
poderião levantar o dito banco sem que este estorvasse o
rio de correr como até alli; faria isso represar, e subir as
aguas , e augmentar a sua força , e romper o equilibrio
preexistente da hypothese ; por isso o banco só se exten-
deria formando grande baixio no mar, e sobre essa gran-
de superfície, onde não ha corrente para cavar fundo, nem
o rio consentiria entupir de todo ; nenhuma navegação da-
ria alli, e huma barreira eterna vedaria para sempre a com-
T. IX, P. I. F. mu-
34 Memorias da Acíademia Real
municação dos navios do alto mar para dentro dos rios;
mesmo em quanto ellcs tran^^portão arca, e em quanto iiáo
chega essa época fatal de arrastarem grossas pedras (5) :
mas a effcctiva variedade de cada hiima destas duas forças,
a do rio , e a do mar , oper;mdo na foz ; procedida das
causas acima ponderadas , faz com que estas forças scjao
desiguaes a cada instante, que o lugar do equilíbrio delias
a cada instante mude , consequentemente que o bnnco mu-
de também de local , e ande para dentro , e para fora che-
gando-se mais para a terra , quando o mar se embravece ,
ou o rio affrouxa , e afastando-se mais para o mar , quan-
do o rio propondcra sobre elle a respeito do momento
precedente ; e como áquem do banco ha canal tanto mais
extenso , profundo , e largo , quanto maior he o rio , que
o cava antes de lá chegar ; e além do mesmo banco onde
o rio nao vai entupir, nem estorvar, também as ondas ca-
vâo o mar mais profundamente , e tanto mais quanto fica
mais ao largo, o que acontece nos maiores rios, nos quaes
os bancos se formão mais longe das tozcs {6 corol. i.) se-
mie se , que quando o banco muda de lugar, as arêas que
o formão cabem em leito mais espaçoso , e fundo nos
grandes rios , de que nos pequenos ; e por isso o cortão
sem entupir de modo que estorve a navegação; não tendo
tempo de formar banco no lugar, onde o começa momen-
taneamente , e se verifica o equilíbrio ; porque pela mes-
ma razão muda logo, e não deposita mais nada no lugar
onde o começava, e onde ou o mar, ou o rio começaráô
outra vez a profundar , segundo andar para dentro , ou pa-
ra fora ; e são além disso tanto maiores as alternativas , e
a capacidatlc do espaço, por onde o banco começa a formar-
sc sem se chegar a formar , quanto o seu leito he mais exten-
so, e mais depende das circumstancias variadas de hum paia
mais vasto , e extenso , que o alimenta ; e por isso nunca se
altêa muito o dito banco nos grandes rios, e menos quando
se dcsencontrão a propósito grandes marés , grandes choques
do mar, e grandes correntes de cheias dos rios com mar mansoi
DAS SclEVCtAS t»E LiSBOAí '' ^f
Logo OS grandes rios terão esses bancos tanto menos
supcrficiaes quanto forem maiores, emais valentes, e con-
sequentemente mais navegáveis; e os pequenos não permit-
tiraõ navegação sobre os ditos bancos. Tal he o proce>s(>
admirável que a natureza emprega para conservar abertos
ainda para a navegação muitos rios apesar dos estragos ^
que os mesmos tem sofrido , e os portos em geral , ac-
crcsccndo", que pela artenuação das matérias chocadas en-
tre si nos leitos, e depois envolvidas nas ondas, o mesmo
admirável processo as arroja dos lados do banco para as
praias lateraes á barra , donde as marés , e ondas as arras-
tão mais para fora , e depois os ventos as tornão a resti-
tuir ao Continente ; e nós vemos que muitos terrenos á
beiramar são o resultado dessa operação reparadora de par-
te dessas perdas , que fazem as chuvas , e os rios sobre o
Continente. Desta proposição se deduzem os seguintes co-
rolários. i.° Logo quanto mais rico d'aguas for hum rio,
mais fundo, e navegável será sobre o banco, ou barra, e
mais affastado estará este habitualmente da sua foz, e
vicc-versa. 2.° Logo os rios devem entrar do leito para
mar nas suas fozes com adequada secção de boca, e a me-
nor a respeito da largura do leito, ou còm margens iguacs,
e pela direcção perpendicular á costa para formarem o
banco mais ■ longe delia; e até para que as ondas vindas
nessa direcção atacar as praias não fiquem obliquas ao ca-
nal sobre o banco, e o não entuplo de lado, ou na tota-
lidade, mas andem só com o banco para dentro, e para
fora na direcção do fundo canal , que o rio abre até ao
mesmo banco segundo à direcção do seu cumprimento; as-
sim nunca as ondas atravessarão o canal transversalmente
para o entupir , e só accidentalmente nas tormentas de
hum vento decidido , e transversal , como o do Sul , etc.
alterarão hum pouco a direcção geral das ondas pela per-
pendicular ás praias. 3.° Logo os pequenos rios não po-
derão ter barras navegáveis senão no caso de terem leitos
salgados mui amplos , onde possão entrar grandes volumes
í. JE ii d'a-
5^ Me l^xy^ rt aj ji?* A <j a o s *w1 ;R eia l
^'agyasíiaígadasnajs marés ^ que supiSo na vasante, õu no
s&u gyro a falta daSí,ngu^s.}PÍuviaes desses pequenos rios ^
como. acontece uo Vouga , ou barrfl de Aveiro , e na de-
Setúbal j o Limaj e,:o Mondego tem leitos menores, e.as
suas barras, saa mi-iito? inferiores áquellas, sendo o Monde-*
go m^hor do qup o Vouga; mas o leito salgado. do Vouga
tem 51 J.cgoas ! 4°, Logo a barra de hum rio pecrará oc-
c^paud» po)ç5e$ do rPcu Jeit». sailgtído , onde consequente^
rotiitc se lhe. jiiío. deve tirar .cousa, alguma menos, que
n.ío íjçjp para ;Ihe, procurar alguma, outra vantagem maior,,
e? s<:mpre o sactif^ciò; do leito devç ,sef mui pequeno , e
somente ncssc; caso necessário, j'." Logo finalmente todas
as çaus^Sj qué .fict». concorrido .para ;o entupimento dus
leitos dos rioSi.até!á»;jsuas fozes , privando>os de 'huma: par»
tç d4 capacidade ^o seU leito salgado , onde recebem as
marés do mar; e empobrecidos seus mananciacs , concorrem
igUí|lm'-'níe-. pata destruir a navegação sobre as suas barras^
ajém jde qonduzireníi para cilas mais e mais grossos entu^
lhos. Logo também .finalmente as barras de todos os rios
1^0 p.çqrqndA atéquc fiiialmente acabarão as dos grandes
tipSi,,,CQmo, já acabarão as dos pequenos , que, tiverâo fun-
dos, quando. nada transportavão, ou quando só transporta-
YÃo mui- pquças , e ligeiras matérias , as quaes não. entu*
pião 9 quC' elles cavavão nos ia^^efuos. ; ou quando não :ti4
nhão com qUe formar essas mesmas barras, ou bancos, nem
obstruir, o? leitos; devendo durar mais as barras pertencen-r
tes aos fiop mais ricos d'aguas pluvlaes, e mais bem pror
vidos ao mesrOo tempo de Içitos salgados , para auxilia*
rem majs a força pluvial dos rios: mas todos finalmente
acabarão, como jã disse, (y) e com dor o repito neste
lugar, porqpe^ as ondas não removerão o banco quando elle
não f'Jr de arcas , ou quando o leito já pelo seu alteamen-!
t(í.,4esdí^a. sa», prigçnx.aDf ao inai:.poder.ari[a3tar.:pedras.: .;
-r.n n^fj »rj(í í:nr\onD'irt Jto nt)...! ".t .;-;i:iq ?^ TP-IudÍLí; rr
a •. D A s, S ftiEHCJ As íjrf. :L X tXfíísí M fji
§ 8.
£?« todos os rios da Costa Occidental de Portugal deve tio
estado actual dos mestnos rios ^ iaver bum. banco alto de aréa
superior ds marés chamado Cabedelo , o qual atravessa nas
suas foz£s bvina parte do antigo leito dos rios ^ começando da
testa da margem esquerda para a directa , ou do Sul para o
Narte ; ou mais geralmente começando ■ da testa da margem
mais cttrta para a mais avançada na. .mar, y ou. d», Equador.
para o Polo nos rios de todo o mundo, ;rO'v') "o:: ■./
ii; . I Ziesdc que os rios se empobrecerão d'aguas pelas cau-
sas-.exposras (3), e começarão a entupir os seus leitos, c
a arrojai' para dentro do mar montões de arêas , e entu-
lhos (6) , os Titesmos rios não poderão mais conservar aber-
ta , e menos de verão , toda a sua antiga foz limpa , e
funda; porque desde então o mar^ arrojando quanto pode
para encostar as fozes dos rios parte desses bancos que os
mesmos rios formão dentro no mar perto das suas fozes
(6 coro!, t. i)i conseguirão arrojallos mais para dentro dos
leitos por aquella parte dos mesmos leitos por onde a
corrente lhe oppunha menor resistência, a saber, por on-
de erão menos fundos , ou corria menos volume d'asuas ;
logo seria a parte do leito do lado esquerdo, donde os
nossos rios s€ retirao para se encostarem á direita (3), e
lá se formaVão bancos , que se engrossao com as ondas
«em opposição dos rios , tapando huma porção , e a mais
fraca dos leitos , tanto maior quanto os mesmos rios tem
perdido mais a força para os repcllir , e arrastar para o
mar ; c quanto a corrente actual dos rios nas fozes lho
consente, e não he capaz de desfazer no mesmo tempa
em que o mar as accuraula, e por isso atravessão , nos di-
tos nossos rios da costa Occidental , os leitos da esquerda
para a direita, ou do Sul para o Norte: estes bancos, ou
cabadeJos formão , no estado actual e decadente dos rios^
»s margons esquerdas dos meamos j margens elásticas , quç
SC
3? MeMORiA^s DA AcademFa RlAt,
se avisinhão á direita, quanto nas diftcrentes estações, e
estado dos rios , a corrente alli apertada e constrangida ,
lho pôde pcrmittir sem as defazer ou alargar : cstts cabe-
delos assim formados nas fozes àe perpetuâo,' engrossão ,
c levantáo , recebendo da banda do mar as arêas que as
ondas, e os ventos lhe accumulão , e lá ficão parte delias;
porque cada porção ultima das ondas , que montão esse
banco de arêa , sobe levando arêas envolvidas nellas, e não
descem todas, porque a agua filtra-se, e some-se no dito
banco esponjoso deixando a arêa coada sobre o dito ban-
co , e os ventos depois de maior seca, qu sendo mais ri-
jos , as vão accumulando mais para cima , onde as ondas
não chegão , nem lá as podcrião levar ; chegando por esse
modo os cabedelos a ser como são altos, lurgos , e mui
robustos tapumes , que todos os rios tem atravessados nas
suas fozes do Sul para o Norte na nossa costa occidentd.
Estes cabedelos se engrossarião continuamente pelos ventos
do mar á custa dos leitos , se os rios quando vão cheios
lhe não cortassem huma grande talhada longituc^inilmcnte
pelo Norte, e Nascente; corte que o mar supre logo que
o rio adelgaça muito o cabedelo , ou o faz mui estreitos ,
pois então nas grandes marés as ondas o salvão de parte
a parte por não ter grossura para absorver as ondas , e por
esse modo logo o alargão sobre o rio até o tornarem a pôr
ajudadas do vento, na grossura que tinha , e mais o não
salvarem , nem alargarem , e só lhe metterem arêas , com
que o engrossão, e prolongão passadas as cheias, e maio-
res correntes; conservando com este movimento continuo,
pelo decurso de séculos, e com proporções quasi inalterá-
veis , huns bancos , que tantas causas poderosas tendem a
formar, a engrandecer, e a destruir; os quaes mesmo no
curto periodo de hum anno , fazem tantas mudanças , mas
debaixo de periodos quasi regulares , e que não excedem
certos limites. Logo também visto que os rios se encos^
tão junto das fozes desde mui remota época, ao lado da
maior margem (4) , os cabedelos serão sempre do lado da
me-
CAS SCIENCIAS DE LrSB^A. §9
menor nos rios de todo o mundo , situados como se disse
(4 corol. 4) , isto he , na esquerda dos que no nosso he-
misfério olhão para o Pocnrc , e da direita dos que olhao
para Nascente , e tudo pelo contrario no hemisfério Aus-
tral; e mais geral do lado do Equador, ou donde soprão
os ventos com que mais chove no paiz.
§ 9-
No estado actual da decadência dos rios, iodos os da cos'
ta Occidental do Reino tem a sua esquerda sobre hum cabede-
lo , e não na sua antiga margem ; e essa margem esquerda no
cabedelo he sempre a menos avançada , e em todos os rios do
mundo a margem sobre o cabedelo , he sempre a mais curta.
Porque mesmo em iguaes circumstancias de tenacida-
de seria mais curta; e sendo ella hum areal solto e incon-
sistente, mais lugar tem a lei geral (4), que até demostra
por excepção , que no caso de extraordinária differença en-
tre huma margem durissima , e outra de arêa solta , será
então a mais curta do lado do areal, ou da inconsistente
margem , ainda que fique á direita nos nossos rios (4 corol. 3).
Logo Cgrande consequência) na época actual da decadência
dos rios , todos os da costa occidental do Reino , e o Dou-
ro, que he hum dclles , tem, e terão por leis necessárias,
e universaes , ás suas margens esquerdas não sobre a anti-
ga margem , mas sobre os seus respectivos cabedelos , e
mais recolhidas , ou mais curtas ; e as suas margens direi-
tas roais avançadas para o mar , ou mais compridas , e en-
costadas sempre a antiga margem direita , acontecendo o
mesmo nos rios que olhão para o Poente no nosso hemis-
fério-, e viceversa nos que olhão para Nascente , ou estão
noutro hemisfério. Nós vamos ver o que se passa nas fozes
dos rios de margens desiguaes, que geralmente todos tem
tomado.
40 Memorias da Academia Real
IO.
Todos os rios que tem margens desiguaes , ou desigualmen-
te avançadas m mar, mtidão a direcção^ que traztm no lei-
to até alli , e se lanção no mar para o lado da margem mais
curta ; isto he , para a esquerda , ou para algum ponto entre
o Sul, e o Oeste, ou para dentro do ^.° Qtiadrante em todos os
nossos rios que tem fozes naturaes na costa occidental do Rei-
no , ou que em todo o nosso hemisfério estão virados para o
Poente , e -viceversa : ou mais geral ao sair na foz inclinão a
corrente procurando o Equador.
Por que nos rios de margens desiguaes o fluido entre
cilas contido , e em nivcl superior ao mar para onde cor-
re, na vasante se ha de derramar sobre elle logo que as
ditas margens lhe não obstem , isto he , logo que vencer
a testa da menos avançada ; e como o fluido, ou cada hu-
ma das suas particulas , e camadas fluidas decidem o seu
riovimento pela direcção da maior queda, ou da mais cur-
ta distancia do lugar em que se achao áquelle para onde
vão passar , o farão na foz pelas perpendiculares á linha
de contacto, ou commum secção entre o rio, e o mar, ou
á linha que une as duas testas, e he propriamente a boca
do rio entrando no mar ; porém o mesmo fluido , ou cada
huma das suss moléculas, devendo obedecer á força, que
as move por essas direcções perpendiculares á secção com-
mum , ou á linha que une as testas das duas margens na
boca do rio , trazem já o outro movimento adquirido no
leito com que se moviâo até alli , conclue-se , que essas
moléculas seguiráõ huma direcção media comprchendida
cnrrc a que traziao as aguas no leito perto da foz , e a
perpendicular á linha que une as duas testas das margens ,
c mede a boca do rio ; seja qual for a direcção das aguas
no leito , e seja qual for o angulo que essa linha faça com
as suas margens ; e mesmo no caso do rio ser mettido en-
trv margens parallclas , e rectas ^ e (^ue a corrente fosse
pa-
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA. 4I
parallela a ellas. Para mais clareza repito a demonstração
sobre figura era nota (*) , e mais claros ficaráó os corolá-
rios seguintes.
\ I •«- :^ éT ,V «t--,_ p r
y^nmimniimililJinillllMIIIITmill I i mirmmiTmiipililninimmijiiiM a mnmii.jiTnmmmTmlnilllIiilllliiiilniiiiiiiiinHiiiilj llilijiiimBili.inil
D
i." corol. Logo quanto mais desiguaes forem as mar-
gens de hum rio , mais também a direcção que o mesmo
rio tomará, lançando-se na foz para o mar, fugirá da di-
recção, que trazia no leito, pois que a perpendicular á li-
nha que une as testas se faz mais perpendicular ao leito ,
e maior angulo faz com a que trazia no mesmo leito , lan-
çando-se para o lado da menor margem , ou para a esquer-
da nos rios da nossa costa occidentul , e por consequên-
cia no Douro.
2.° corol. Logo quando se conseguisse metter hum
rio junto da sua foz entre margens solidas de paredões ,
parallelos , e que a corrente nelle fosse parallela ás ditas
margens, ou paredões, e o rio alli ficasse perfeitamente di-
rigido , e encanado ; assim mesmo , se as mesmas margens
ficarem desigualmente avançadas , o rio ao entrar no mar
deveria mudar a direcção que tivesse nesse leito parallelo ,
e se lançaria para o lado da menor margem , ou para a es-
querda nos nossos rios da costa Occidental , ou para 03.**
quadrante entre o Sul , e Oeste } e o mesmo acontecerá
no Douro, que he hum delles.
3.° corol. Logo também se as margens forem igual-
mente avançadas, a perpendicular á secção entre o rio e o
mar, ou á linha que une as testas, que he a boca do rio,
seguirá a direcção da linha que passa pelo meio longitu-
dinal do leito, e as paralisias a ella, e não fará desviar
Z. IX. F. L * neiu
42> Memorias da Academia Real
nem para hum, nem para outro lado a direcção que ò rio
traz, e com que chega á toz para se lançar no mar; an-
tes tende a cncaminhalla para o meio do leito, c scgudlo
se nelle vieísc algum tanto obliqua 5 e se as margens fo-
rem rectas, e parallclas a essa coricnte, além de iguacs,
o rio sahirá para o mar com a sua máxima força por ser
a somma das correntes parallclas , e entrará na direcção ,
que trazia no leito sem fazer obliquidade para a direita ,
ou esquerda a respeito do mesmo leito, e pela perpendi-
cular á boca do rio, que he a menor secção, que pods
ter o leito do mesmo rio entrando no raarj e melhor bar-
ra dará sobre o banco (7 corol. 2).
A.° corol. Lo2;o se as margens forem igualmente avan-
çadas a corrente procurando o meio longitudinal do lei-
to , e suas parallclas , não deixará formar o cubedelo a hum
lado dentro no leito ; apenas consentirá , trazendo o rio
menos aguas, e sobejando leito, a formação de fachas de
arêa , ou praias , que o estreitem parallelamente á linha ,
que passa pelo dito meio longitudinal desse leito, encos-
tadas essas fichas, ou praias ás margens; mas não cabede-
lo ano-ular: e ficará o leito recto, e de margens parallclas
no verão , ou havendo poucas aguas , mas não cabedelo
pontawudo para o leito ; e assim acontecerá no Douro quan-
do tiver margens igualmente avançadas para o mar.
j-,° corol. Logo para que hum rio não mude a direc-
ção que traz no leito junto da foz quando se lança no
mir , he preciso absolutamente que as margens do mesmo
fio sejão igualmente avançadas para o mar.
6.° corol. Logo querendo-se mudar a direcção de hum
riò ao entrar no mar para a direita, ou para a esquerda,
bastará avançar convenientemente mais para o mar a mar-
gem opposta áquella para onde se pertender inclinar a di-
recção do rio , ou a barra. As fozes do Vouga , e do Liz
offerecem huma prova desta verdade ; lá se fizerao fozes
artificiaes , adiantando para o mar as margens esquerdas
com fortes paredões , ficando as suas direitas sobre o arêal,
i .\ . \ '. que
DAS SciENCIAS DE Li S BOA. 43
que logo se encurtarão pela sua tragilidade (4 corol. 3.) ;
e estes rios se lanção no mar para a direita , ou para den-
tro do 4.° Quadrante , quazi pelos rumos de Nor-Oeste ,
e ON-O; justamente o contrario das fozes naturaes , que
tem naturalmente solida , e mais avançada a sua margem
direita , e a esquerda sobre a arca solta do cabedelo.
II.
Nos rios de margens desigualmente avançadas no mar ,
as correntes nas etichentes das marés virdo entrar fbliqitanien-
te no leito , do lado da mais curta margem , dirigidas trans'
versalmente contra o lado da maior j eu nos nossos rios entra-
rdõ transversalmente da esquerda para a direita \ e do lado do E-
quador para o do Polo nos nos de todo o mundo.
Porque como as aguas do mar entrão para o leito do
rio na enchente pelas mesmas leis , com que sahem , is-
to he , em razão i." da superioridade , que então tem as
aguas do mar sobre as do rio, para o qual se lançarão pe-
ias perpendiculares á secção da sua boca, ou da linha,
que une as testas ; 2 " de hum movimento geral adquirido
lá no largo, quando marchão para a foz do rio; segue-se
que estas aguas entrando no leito fluvial , tomaráô huma
direcção media entre aquella , que as aguas trazem da bar-
ra para a foz , e aquella , com que ao chegar á mesma
foz pertendem lançar-se no rio pela perpendicular á sec-
ção entre o rio , e o mar , ou i boca do rio , ou á linha ,
que une as duas testas das suas margens ; entrarão pois trans-
versalmente no leito, e tanto mais, quanto mais desigual-
mente avançadas forem as duas margens, ou mais obliqua
for com o leito a secção, ou boca do rio na foz. Desta
proposiçâ), e da antecedente (lo) se deduz a grande
consequência : Que em todos os rios , que tiverem as suas
margens desigualmente avançadas no mar , as correntes en-
trarão nas enchentes das marés obliquamente no leito pe-
lo lado da menor margem 3 e na vasante sahiráô do mesmo
F ii OíO"
44 Memorias DA Academia Real
raodo obliquamente para ornar por esse mesmo lado', que
he o do Sul cm todas as fozes naturaes dos nossos ri( s da
costa Occidental do Reino ; bem ccmo acontece no Dou-
ro que hc hum dtlles , e de todos os que olhao para O.
no nosso hemisfério. Isto posto continuemos a examinar
o que se passa nas fozes , e barras dos rios , que tem as
suas duas margens desigualmente avançadas para o mar.
§ Í2.
Se em hum rio contido entre tnnrgens , entrar btima cor-
rente obliqua , fdzendo angu/o come/las, e ta corrente atraves-
sando o ria ira chocar a margem para onde se dirige , e en-
(ostar-se a ella , perdendo allt hiinia parte da força , e corroeU'
do a mesma margem ; encostará para ella a corrente , e as a-
guas do rio ; e fornurd no leito hum seco , ou estreitamente
na parte opposta , o qual será tanto maior , quanto essa direc-
ção de corrente , que entrar obliquamente no leito , se aproxi-
mar mais da perpendicular á margem , que vai ferir.
Porque as particulas , ou moléculas atravessando o rio
vão bater na margem opposta, ela perdem tanta mais for-
ça , quanto menos a direcção da corrente se desvia da per-
pendi^ul.ir á mesma margem ; e com a restante força hc
que se movem dalli em diante parallelamente á mesma
margem ; estas primeiras particulas depois de haverem ba-
tido na margem suo successivamente chocadas pelas que se
Jhe seguem , e obrigadas de novo a encostar mais á mes-
ma margem essas direcções parallelas, donde alguma elas-
ticidade tenderia a desvia-las hum pouco ; e por esse mo-
do as aguas alli se encostarão todas , e com bastante esfor-
ço trabalharão em corroer a margem naquelle lugar; e se-
rá curva a escavação que alli fizerem , porque as forças ,
que alli opérao , e a formão, ou pertendem forma-la, são
a cada instante novamente chocadas , de sorte que a sua
direcção varíi successivamente , e nisso consiste o movimen-
to curvilíneo. Ora pela mesma razão que o rio se vai en-
cos-
. DAsSciENCIASDÇLlSBOA. 45"
costar a esta margem chocada, as suas aguas, e correntes
se ausentarão proporcionalmente da margem opposta que
por isso se deixará entupir, e estreitar; c mais ainda se
a margem atacada pela corrente se deixar corroer , c para
lá se possa mais encostar o mesmo riodcsviando-se da mar-
gem opposta ; e assim crescerá mais o seco que hc o re-
sultado da maior ausência d'aguas , e correntes : para maior
clareza , e rigor vai em nota demonstrada com figura esta
proposição (a): o rio encostado com violência contra a
margem para onde as correntes obliquas o empurrão , con-
tido , c apertado entre ella , e a força da mesma corrente
engrossa o seu volume , o estreita e o eleva hum pouco ;
donde se segue que mais abaixo , quando se escapa i for-
-ça que o encostava á margem , se dirige ao lado opposto,
.para onde terá declive por terem abaixado alli as aguas pro-
porcionalmente á accumuliição , que tem no lugar da mar-
gem chocada , e de alguma elasticidade ; de novo pois
« p
atravessarão o alveo , ainda que mais fracamente , e menos
.obliquamente pela força perdida no primeiro choque ; mas se
íiver feita corrosão curvilínea sahirá sim mais fraca , po-
rém mais obliquamente do que se for incorroivel , e ficar
recta a margem chocada , o que deverá proseguir até de
todo se extinguir da força obliqua a parte que for perpen-
dicular ás margens, quando se decompõem no choque, e
£car só a parallela ás margens que he a que não soffrc di-
jTiiouiçáo , ou soffre muito pouca nos choques contra as di-
.ta$ margens.
Corol. i.° — Logo as correntes obliquas fascm os lei-
tos
46 Memorias da Academia Real
tos tortuosos, atacando as margens, cavandoas, juntando
as aguas a esse lado , entupindo os alveos no lado oppos-
to que ficão alli mais estreitos , e obrigando as aguas a
subir no leito acima desse estreitamente para ganharem a
necessária corrente , c com ella o rio se desonerar como
antes de formado o estreitamento; e como da força obli»
qua se destroe cuntra as margens em cada choque a parte
perpendicular , se estas margens forem incorroiveis , e pa-
rallelas chegarão a fazer as correntes parallelas ao leito ,
e ás margens. — Corol. 2.'' — Logo hum rio de margens
rectas susceptíveis de corrosão não pódc existir sem que a
corrente seja parallcla a cada huma delias, e serem portan-
to parallelas entre si as mesmas margens. — Corol. 3.° —
Logo as correntes rectas , e parallelas no alveo dão mar-
gens rectas parallelas ás ditas correntes , sendo as margens
corroiveis, c os rios as farão espontânea, e naturalmente;
os mesmos rios se alargarão no lugar das voltas, as cor-
rentes alli diminuirão, e as aguas rio acima a respeito das
voltas abaixarão naturalmente não sendo estorvadas porcau-
zas externas. — Corol. 4." — Logo se huma corrente se
fizer parallela a huma margem fixa , invariável , e incorroi-
vcl , o leito se cortará parallelamente a essa margem ; e
a opposta , ainda que seja angular, se poder ser corroída
pela corrente , se fará de si mesma parallela ; e se for mais
frágil como v. g. arêa se cortará em pouco tempo , e fi-
cará parallcla á primeira corrente ; isto he o que acontece nas
cheias violentas do Douro. Corol. y.° Logo se hum rio
por qualquer cauza fizer angulo no seu leito, ou se en-
tortar , estreitará o mesmo leito antes parallelo na parte
convexa da volta , e tanto mais quanto maior for o angu-
lo da volta ; o rio se encostará ao lado concavo ; e para se
desonerar alli por leito menor, ou de menor secção, subi-
rão as aguas acima da volta que o rio fizer, e se formará
nella gruide corrente. Logo também se por qualquer mo-
do se tirar a volta de hum rio , ou se fizer parallelo á cor-
rente no mesmo lugar , em que até alli era obliqua , acon-
tc-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 47
tecera o contrario, isto he, o mesmo rio se alargará espon-
taneamente, as aguas abaixaráõ acima da volta , e a cor-
rente que ncUe havia diminuirá , e se fará regular no lei-
to, iguilando á que tinha abaixo, e acima do estreitamen-
to. Tudo iato tem- lugar ainda mesmo suppondo o rio de
margens rectas, e parallelas , o que as correntes tendem
a fazer quando ha huma certa homogenidade de matérias
no leito , e nas margens ; mas não a havendo os rios es-
cavarão com desigualdade os leitos, e fará isso as vezes
de voltas que ainda que rasteiras sempre influirão para dcs'
viar as correntes , e fazer variar também suas direcções as-
sim como para perderem o parallelismo supposto. Corol. 6."
Logo se diminuir a corrente, ou volume das aguas de hum
rio, cm cujo leito hajão correntes parallelas ao leito, ou
alinha que o devide longitudinalmente pelo meio, o rio
se estreitará parallclamente a essa linha , que divide assim
o leito longitudinalmente pelo meio , ou ás duas margens
sendo ellas parallelas entre si ; porque seguirá sempre o
seu parallelismo ao meio do leito , não lhe permittindo
a direcção de tal corrente atacar nenhum dos lados , nem
consequentemente fazer estreitamento junto , ou encostado
a algum delles , nem formar os secos angulares na parte
opposta j e por isso igualadas as margens para tirar a obli-
quidade das correntes dos rios, nenhum cabedelo na foz
será angular, nem poderá tomar essa forma; os rios de
verão , não podendo occupar todo o leito do inverno , se
estreiraráo formando fachas de arêa , ou praias parallelas
encostadas ás margens dos mesmos rios nas suas fozes , e
sempre os leitos ficaráó rectos alem de mais largos. Co-
rol. 1°
§. 13.
Se bum rio ao contrario conservar correntes parallelas ds
margens , ou d linha , que divide o leito longitudinalmente , tn^t
for o leito quem faça angulo , é mude de direcção , a mesma
corrente ir d ferir a margem na volta y que fica para dentro
>. ^ da
48 Memorias da Academia Real
àa direcção , que a corrente , e o leito trazião , isto he , o con-
cavo da volta , e tudo alli se passará corno se as margens , e
o leito se tivessem conservado rectos , e fosse a corrente quettt
tivesie tomado essa ohltquidade.
Porque as torças das aguas sendo as mesmas , e ferin-
do , ou chocando com os mesmos ângulos a margem , sof-
frcm iguacs perdas no choque , e dão a mesma força re-
sultante paralleb ; pois tudo seria idêntico; logo a corren-
te parallela chocando a margem que faz angulo para den-
tro da direcção , que o rio trazia , e que a corrente vai
ferir, ajuntará sobre cila a corrente, e as aguas do rio a-
tacardõ, e corroerão essa margem abaixo, e ao pé da vol-
ta no concavo delia , e alli fará corrosão curvilínea j o rio
se estreitará da parte opposta ou convexa da volta , a cor-
rente se augmentará nesse estreitamento , e tudo o mais que
acontece entrando obliquamente huma corrente em hum rio ,
acontecerá fazendo o rio essa mesma volta , ou angulo com
o leito até alli , e no qual a corrente viesse parallela ás
margens. Logo se hum rio que tiver leito angular , ou fi-
zer volta , se endireitar , elle se alargará espontaneamente
no lugar da volta , á custa da parte saliente , ou conve-
xa, que estreita o rio, sendo corroivel ; ausentar-se-ha da
concavidade, que havia feito sobre a margem da parte con-
cava da volta, e essa concavidade se entulhará, diminuin-
do as correntes no lugar da volta, e fazendo-se uniformes
ou regulares no leito mais espaçoso.
§ 14.
Nos rios de margens desigtiaes , ou de correntes olliquas
na foz , que tnotivão estreitamentos no leito , formando cabe'
de/os na mesma foz , as cheias terão grande difficuldade em
alargar alli promptamente o leito para se desonerarem , e serão
por isso respectivamente muito maiores do que seriao sem aqueh
ia causa , que entorta , e estreita o leito.
Pois que as correntes se encostão ao lado concavo quan^»
do
DAS SCIENCIÁS DE LlSBOA. 4«>
do OS rios fazem voltas (13), ou áquella margem para
onde dirigem as suas correntes obliquas , quando os mes-
mos leitos são rectos (12) deixando fazer estreitamentos
de entulho no lado opposto , donde as correntes se ausen-
tão , e onde não cavâo ; obrigando taes estreitamentos a
fazer subir as aguas rio acima a respeito dos ditos estrei-
tamentos para este se desonerar por menor leito, que ne-
cessariamente alli tem , segue-se que nas fozes dos rios, on-
de os cabedelos se estendem , e formão por essas causas
os estreitamentos , e fazem tortuosos , e angulares os lei-
tos , as cheias de inverno terão ao principio muita diffi-
culdade em cortar a ponta do mesmo cabedelo ou estrei-
tamento, apesar de ser área solta , donde as correntes fo-
gem atacando inutilmente a outra margem, que he soli-
da ; com isso a cheia subirá muito , a fim de ganhar maior
queda ; e só assim , e com demora poderá cortar a primeira por-
ção mais saliente do cabedelo , e começar a fazer o leito
menos tortuoso , seguindo-se que as correntes atacarão me-
lhor o mesmo cabedelo , por irem ficando menos obliquas
( 12 ); e as cheias principiarão então a accelerar o corte
do mesmo , e a ampliar o leito cada vez com mais facili-
dade, e rapidez; mas tudo isso depois deter passado pe-
la crise da maior cheia : logo o leito tortuoso de hum
rio , obra da obliquidade das correntes na foz , procedida
da desigualdade das margens , augmenta a elevação das
cheias pluviaes , não as deixando cortar com facilidade as
arêas dos cabedelos , que quasi tapão as suas fozes ; e eis-
aqui o que vemos no Douro aonde este fenómeno natural
he mui notável.
§ ly.
Ora as ditas arêas dos cabedelos nas fozes , segundo
a sua diversa gravidade especifica, e o seu diverso granu-
lado conforme o que eu mesmo tenho observado muitas
vezes , e todo o mundo pôde observar , movem-se onde
a agua tem 2 até 3 palmos de velocidade por segundo de
T. IX. P. /. o 'em«
ço Memorias da Academia Real
tempo: mas no Douro cm as vasantes das màiés vivas no
verão, c no principio das cheias de inverno, ha lo, ii,
e 15- palmos de velocidade d'agua por segundo ao longo
da margem direita ; quando defronte no cabedelo apenas
se observa 1 até 2 palmos ; conseguintemente o rio não
cortando cousa alguma no cabedelo por ser alli fraco, tam-
bém não corta na direita , onde todo se dirige furiosamen-
te , por ser a margem mui solida; e assim o mesmo rio,
íendo aliás tanta força , fica sem acção para alargar o seu
leito naqucUe lugar ? Mas se esta corrente estivesse distri-
buída igualmente, e fosse parallcla ao leito, teria por to*
do cUc o termo médio da cjue se observa nas duas margens
nessa occasião , isto he 6 , 7 , e 8 palmos por segundo
no cazo referido, e esta força obraria então contra o ca-
bedelo, a cuja corrente não resistem as arêas , pois seria
preciso alli a largura do rio fosse a mais do seu dobro pa-
ra ficar a corrente menor de 3 palmos , e em equilibrio
com a resistência que as arêas oppoem ao movimento, vis-
to que cilas se movem com a velocidade de 2 até 3 pal-
mos fvo'- segundo da parte das aguas , que as atacão : lo-
go sendo a corrente de hum rio , quasi nuUa no convexo
Áa sua parte angular, ou na ponta do cabedelo, quando
nelle não faz corte, segue-se que hum mesmo rio com cor-
jentes rectas , e parallelas conservando elle a mesma força ,
fi o mesmo volume d'aguas , será tantas vezes mais largo ,
iquanias vezes se contiver a velocidade de 3 palmos (que
já corta bem a arêa) no meio termo das velocidades, que
se observar haver junto das duas margens concava, e con-
vexa no estado do leito angular, ou quando ha correntes
obliquas no leito recto ; .e portanto o Douro deverá ter
habitualmente mais de dobrada largura quando as correntes
-das majés , e íheias pequenas , bu aguas ordinárias de in-
-verno , forem regularmente distribuídas no leito por meio
de correntes parallelas no alveo , as quaes se obtém pela i-
.gualdade das margens , e nessa disposição as grandes cheiafi!
:nunca. acharáo.JdLto- Câtreita^ aem cor^osa j mas largo , e
DAS SciENGIAS DE LíSBOA. ft
recto , para lhes dar a mais prompta sahida , sem as de-
morar nem fazer subir as aguas ; e serão para sempre mi-
noradas , e muito minoradas as cheias deste rio.
§ i6.
Nos rios de margens desigtiaes , oii de correntes obliquas ,
que fazem estreitamentos dos leitos nas fozes , entrará , e sa-
hirá menos agua de maré salgada em proporção do estreita'
mento , que houver derivado dessa maior desigualdade das mar-
gens , da qual resulta a maior obliquidade da correyite.
Estreitado o leito na foz por os motivos que fazem
crescer os cabedelos ( da esquerda para a direita v. g. nos
rios da nossa costa occidental ) ; a enchente da maré não
fará entrar o volume d'aguas necessário para formar a prea-
mar nos mesmos rios, como acontecia durante a mesma
maré quando o leito era mais largo , pois não pôde reali-
sar-sc o contrario sem que o mar tome maior superiorida-
de de nivel sobre os rios , e augmente proporcionalmente
a corrente ; seguindo-se que as aguas do mar na sua prea-
mar est.irião mui superiores ás do rio; mas aquellas não so-
bem mais da sua conta , e logo começâo a vasar na costa
passado esse momento de preamar , deixão pois ficar o rio
com a mencionada falta , e este não se nivela com a prea-
mar do mar alto; mas sim com o mar, quando já desce
consideravelmente na costa , deixando então de correr pa-
ra dentro do rio a agua na foz , isto he , algum tempo
depois de vasar a maré no mar. O mesmo acontece na va-
sante ; porque para o rio despejar as aguas do leito por
mais estreito canal, preciza formar maior corrente durante
todo o tempo da rasante, e mesmo quando o mar está na
5ua baixa-mar correrá muito de dentro dos rios para ornar,
o-, que indicará a superioridade de nivel do rio sobre o mar
nesse momepto da baixa-mar;. Jogo não descerá tanto a a-
gua no rio como no mar, porque logo começa de novo
a encher ; e tanto menos descerá , quanto maior for o es-
G ii trei-
5*2 Memorias DA Ac ADEMi A Re At,
treitamcnto na foz , e mais incorroivel o leito para não
poder augmentar a sua capacidade profundando-o. Logo a
maré dos rios na preamar ficará menos alta , e na baixa-
mar menos descarnada ou menos baixa , e consequentemen-
te menor volume d'aguas entrará , e sahirá pelas barras cm
cat^a n aré , e menos auxilio receberão diariamente no ve-
rão os mesmos rios pelas marés do seu leito salgado, e tan-
to menos, quanto maior for o estreitamento, ou a desi-
gualdade das margens, que o motiváo ( ii , e 12). Ora
como as mares sobem apenas 14 palmos nas aguas vivas
junto ao mar, e no fim do leito salgado, até onde che-
ga a maré nada sobe, ou sobe zero, o meio termo da al-
tura de maré do leito são apenas 7 palmos por todo elle
entre a baixa-mar , e a preamar ; e basta que hum estrei-
tamento do leito na foz prive a maré de subir meio pal-
mo na preamar , e de descer meio palmo na baixa-mar pa-
ra se diminuir hum palmo de altura d'agua por todo o lei-
to em cada maré, isto he , para diminuir huma sétima par-
te o volume das aguas , que entrão e sahem em cada ma-
ré , ou a principal força dos rios durante o verão. Logo a
obliquidade da corrente na foz, ou a desigualdade das mar-
gens dos rios, donde procede essa obliquidade fio), e
aquelles estreitamentos de alveos , na dita foz farão dimi-
nuir proporcionalmente as marés, que poderião admittir os
leitos salgados dos rios , e tirar-lhe-hão portanto huma
grande parte da melhor , e mais constante força que 09
conserva, e ás barras durante o verão, quando os mesmos
rios são huns regatos, e muito os auxilião nas outras es-
tações : se ajuntarmos ainda a esta perda de forças , que
causâo as margens desiguaes na foz , a que se perde , e
inutiliza por essa disposição obliqua contra a margem di-
reita na entrada , e sabida das aguas , se verá que a dita
desigualdade das margens destroe, e inutiliza a maior par-
te da força de hum rio na sua foz, e na barra.
-:j.; ii o S
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. ^^
§ 17.
Conclusão geral dos princípios estabelecidos,
Demonstrou-se, que todos os rios tem na época actual
da sua progressiva decadência hum banco no mar (6) , hum
cabedelo na foz , e o seu leito cada vez mais entupido ,
e mesquinho (ç) , estes males universaes , resultado de cau-
sas poderosas , são especialmente derivados dos progressos
da população , e civilisaçao da espécie humana , e não se
podem remover, pois seria preciso quasi destruir o homem,
ou fazcllo recuar para o primitivo estado da natureza. He
portanto necessário supportar esses males , e embaraços
communs á navegação de todos os rios do globo povoado ,
c civilisado; o meu plano descreve, mas não pôde atalhar
(nem algum poder humano) es períodos fataes desse mal
universal proveniente de causas tão sabidas , porém cujo
remédio , humanamente fallando , he inexequível : os se-
guintes , a que vou resumidamente passar revista , são re-
mediáveis, e o meu plano os remediará todos facilmente,
e com eíFeito. Demonstrou-se também, que na mesma épo-
ca actual da decadência dos rios, todos os da costa occi-
dental do Reino, por exemplo, ou de fozes virados para
o Poente no nosso hemisfério, tem as suas margens esquer-
das sobre hum cabedelo menos avançadas para o mar, do
que as suas margens direitas (9) : que dessa disposição de
margens desigualmente avançadas resulta , que as correntes
dos mesmos rios sahindo do leito na foz , se lanção no
mar obliquamente , deixando a direcção , que trazião até
alli , e tomão outra media entre ella e a perpendicular á
linha , que mede a boca dos rios, ou que une as duas
testas das suas margens, dirigindo-se desta sorte as mesmas
correntes para algum ponto entre o Sul e Oeste , ou pa-
ra dentro do 3.° quadrante (10), ou mais geralmente para
o lado do Equador , o que motiva barraa aieaos fundas
(7
54 Memorias da AcademiX R.eíial
( 7 corol. 2 ) , além de ficarem muito mal collocadas pio-
longando-se de perto com os cabedelos , ficando nessa di-
recção os navios atravessados ás ondas que vem para as
praias qucbrar-se por duccçôes perpendiculares a ellas, ou
a esses cabedelos, e accrcscendo não lhes serem favoráveis
os ventos do mar , que os encostariao aos mesmos cabe-
delos -y nem os Nortes , ou do Sul , que para as entradas e
sabidas ficariao muito ponteiros, e são os que reinão no
bom tempo, em que mais se frequentão as barras respecti-
vas do nosso , e do outro hemisfério ; defeitos estes , que
se remedeião igualando as margens dos rios , pois da sua
desigualdade procedem os mesmos defeitos (lo corol. y) ,
e dirigindo-as nos nossos rios quanto poder ser para o Oes-
te , ou antes pela perpendicular d praia proximamente
(7 corol. 2) ; o mesmo raciocinio se applica ás fozes vira-
das para Nascente , e ás do hemisfério Austral (4 corol. 4).
1.. Pela mesma desigualdade das margens nos ditos nossos
rios (11 e 12) as correntes das marés nas enchentes de-
vem vir obliquamente entrar no leito do lado esquerdo pa-
ra o direito, ou do lado do Equador para o Polo vizivel
nos rios de todo o mundo, e formar: i.° Huma enseada
contra essa margem direita , ou em geral do lado do Polo
visível cada vez maior, e encostar para ella o rio desvian»
do-o do verdadeiro leito: 2.° Estreitar o mesmo rio no la-
do opposto , fronteiro á enseada , obrigando por esse modo
a avançar-se o cabedelo sobre o bom leito, e occupar to-
do, ou grande parte delle : 3.° Formar na foz estreitamen-
tos entre a dita enseada curva, e o cabedelo, que se es-
tende defronte para ella , estreitando o leito , e fazendo-o
tortuoso , ou angular , com correntes mui fortes encostadas
á mesma enseada, inconvenientes estes que crescem á me-
dida que a margem menor estiver mais curta , e a outra
mais carcomida na enseada , o que faz também cada vez
mais; obliqira a coirrénte no Jeito» Estes capitães defeitos
das barras, e fozes são augmentados na vasante da maré,
OU- na. evacuação das cheias-^ pprque -dirigindo os rios aa
^ ; cor-
I
PAS SciENCIAS DE LiSBOA. 5"^
Correntes que trazem de cima por leitos tortuosos, que as
enchentes de marés tormão na toz quando entrão obliqua-
mente no dito leito, vem as vasantes , e cheias a fa/.er nos
ditos leitos tortuosos o mesmo que fazem essas correntes
obliquas das mares na enchente, e com todo o peso, e
furor de huma cheia (13): i^to he , augmentaráÓ a ensea-
da da direita, farão mais tortuoso o leito para depois cres-
cer mais o cabedelo, e mais se estreitar o leito, concor-
rendo assim para se augmentarem esses mesmos capitães
defeitos das fozes, e barras, os quaes se manifestão logo
que os niesmos rios estão no estado ordinário , ou de ve-
rão , ainda que as cheias as tenhâo rasgado , e melhorado
temporariamente. Igualmente se demonstrou (14), que os
estreitamentos na foz derivados da desigualdade das mar-
gens fazem levantar mais as cheias nos rios , e fazem mais
difficil o alargamento da sua foz para se desonerarem , es-
pecialmente no começo das cheias , cujo esforço se dirige
contra a margem curva da banda do polo, e só levemente
ataca o cabedelo, que os rios sem taes estreitamentos an-
gulares curvilineos na foz serião alli habitualmente muito
mais largos, e as correntes muito mftis moderadas ; e que o
Douro pode por esse meio mais que duplicar a largura do
seu leito na foz, e conservallo assim habitualmente, e iriui
recto (ij). Demonstrou-se (16), que os estreitamentos dos
rios nas suas fozes, derivadas sempre da desigualdade das
suas margens, diminuem o volume das aguas, que cm ca-
da maré devem circular no leito , na foz , e na barra , e
que são a principal força dos mesmos rios durante as es-
tações mais secas para conservar a navegação quando jils»
tamehte ella mais se frequenta. Todos estes inconvenien-
tes , que provêm da desigualdade natural em que se achão
ôs 'margens de todos os rios nas suas fozes pelo império
das causas expostas são remediáveis , e todos se evitaráq
iguaIando-a$ artificialmente por meio .de fortes paredões
bem construídos, e bem collocados em todos os ditos rios
do lado do.Equadorj ciitcs paredões, que a respeito <io3
rios
56 Memorias DA Academia Real
rios da costa occidcntal do Reino de Portugal formaráô
margens esquerdas fixas , permanentes , e igualmente avan-
çadas no mar, ou quasi do mesmo modo, que o estiverem
as suas direitas. Logo grande consequência j se se der ao
Douro, que he hum desses rios, huma margem esquerda
penranente, bem coUocada , e igualmente avarç.ida para o
mar a respeito da sua margem direita, todos os grandes
defeitos ponderados da barra , e foz do Douro desappare-
ceráo, e a força deste rio será grandemente augmentada,
e aproveitada em beneficio da barra , e foz.
Tal he a final , e mui feliz conclusão geral , base
fundamental deduzida da serie dos meus princípios rigoro-
samente demonstrados nesta I. Parte sobre que fundei o
piano da restauração das fozes , e barras dos portos dos
rios navegáveis , e por natural applicação ao da barra do
Porto, que vou descrever na seguinte.
Sequnoa Parte.
Descripção do Douro , e do plano da restauração da sua
barra , e foz,.
V-/ DOURO he o resultado regular de todas as leis , e
prmcipios estabelecidos na Primeira Parte.
Na antecedente parte se mostrou o que forão os lei-
tos , fozes , e barras dos rios do mundo ; como chegarão
ao que são actualmente; e até o que serão para o futuro:
quanto nas suas fozes , e barras acontece em geral , foi
|>articula(raeate applicado át^uelles que as tem na cosra
tSíi oc-
dasScienciasdeLisboa. ^7
Occidental de Portugal , por isso que sendo nossos maia
nos interessão , e porque desse modo fazia huma rigorosa
applicaçiio ao Douro, que hc hum dellcs, c faz o digno
objecto da segunda parte desta Memoria. Porem como a-
qucllas leis gcraes , que estabeleci , e formão huma boa
parte das que a natureza exercita nas fozes dos rios , são
modificadas pelas circumstancias locacs próprias de cada rio,
taes como a dureza , e tenacidade relativa das duas mar-
gens, e do leito nos diíFerentcs pontos da sua extensão,
c largura ( 4 corol. 2 , e 3 ) , e ( i 2 corol. y ) , assim co-
mo pela collocaçâo geographica , e topographica dos mes-
mos portos , mais ou menos abrigados deste , ou daquelle
vento, e da costa mais, ou menos sugeita ás tempestades ;
alem de que os rios tem mesmo as suas cheias mais , ou
menos simultâneas com os ventos , e tormentas dos inver-
nos &c. Os rios digo apesar de estarem sobordinados ás
mesmas leis geraes , não formão figuras cm tudo perfei-
tamente semelhantes nas suas fozes , e barras , e aprescn-
tão ainda huma grande variedade de circumstancias , que
seexplicão pelas leis prescriptas, e invariáveis, pelas quaes
igualmente se explicão as anomalias motivadas por essas
circumstancias locaes , que hum observador menos exercita-
do ou menos attento , poderia olhar como provindas de
outras causas que não saberia , nem poderia explicar : ve-
jamos até que ponto o Douro he o resultado dessas leis
universaes, e o que neste rio ha que lhe seja particular a
respeito do seu leito , e da sua foz , e barra.
Pela lei geral ( 2 ) o Douro perto da sua foz deve
ser mais largo , e fundo á medida que se avisinha da bar-
ra , e assim acontece das Loheiras do Ouro para a foz ape-
sar da excessiva largura do leito nesse intervallo a respei-
to do mesmo leito dalli para cima , que o Douro ainda
não pôde alargar mais pela excessiva dureza das suas mar-
gens desde a foz até ao Ouro ; e menos do Ouro ate GuiU'
daes ; c menos ainda dos Guindaes subindo até OtiebrantÕes^
até onde he enfragado de ambas as margens j a impossibi-
r. IX. p. I. H li-
jS Memorias DA Academia Real
lidade de se alargar mais, o obrigou a cavar mais fundo
leito , onde mais estreito ficou ; assim mesmo cavou mais
largo, e fundo perto da foz, onde chamiío asDesoito bra-
ças do que nos Guindacs acima da cidade do Porto , a-
pesar de ser apedra das margens nasDesoito braças incom-
paravelmente mais dura do que nos Guindacs.
Pela lei geral ( 3 ) o Douro deve nas vizinhanças
da foz correr , c ter mais fundo leito encostado pela di-
reita , ou pelo lado do Norte, e ser mais baixo, mais en-
tupido , e mais seco pela esquerda : assim se verifica. Este
rio encosta-se ao Ouro, meia legoa acima da barra, ásLo-
bciras de iobreiras , á Craz de Ferro , á Bateria do uíiijo ,
á Oliiidã , Toiro , Catatulas , Caltota , e lilgtteiras , com hu-
ma largura de leito fundo de quasi 140 braças, termo mé-
dio , c quasi parallelo , que segue pelo Sul as rochas de-
nominadas Caranguejeiras , Pcrlongas , Filhas de Perlo7igas ,
com a sua restinga , que diverge para Fogamanadas ; e se-
gue também para o nascente de Caranguejeiras pelo rio a-
cima quasi na mesma largura ; o resto do antigo leito até
á Pedra do Cão , e montes , que terminao a antiga margem
pelo Sul tem muita largura , he seco , e até semeado de
rochedos, que o rio nunca poralli cortou inteiramente, e
dos quacs , huns são mui superficiacs c viziveis , outros pou-
ca profundidade tem abaixo d'agua e das arêas que os cer-
cão , ou os cobrem ; e o mesmo cabedelo assenta desde a
Pedra do Cão até i borda do leito fundo, ou até a res-
tinga , que liga Caranguejeiras com as Perlongas , sobre
penedia inavegavel , o que se tem visto quando alguma ex-
traordinária cheia do Douro tem levado a arêa do leito , e
do cabedelo, que cobre a penedia, e baixios dessa parte
esquerda , ou pouca funda do leito.
Pela lei geral ( 4 ) o Douro deve ter a sua margem
direita , ou a do Norte mais avançada , e saliente para o
mar do que a sua esquerda , e assim o vemos ; os rochedos
de Filgueiras para Bezerras , Gilreu &c. restos mais visí-
veis da extremidade da margem direita, e da costa adja-
cen-
DAS SCIENCIAÍ DE LlSBOA. f^,
ccntc, estão mais avançados para o mar do que a Pedra
do cão, testa da sua antiga margem esquerda, que por
ser duríssima , tem resistido muito ; c o Douro não tem
por isso tanta desigualdade nas antigas margens , como ha
no Tejo , no Mondego , no Lima &c. ; e assim devia a-
contccer segundo a mesma lei geral ( 4 corol. 2 ).
Pela lei geral ( 5- ) o Douro deve ter huma parte
do seu leito antigo não só menos fundo por todo , mas
esse mesmo achar-se mais entupido sobre a rocha ate onde
n'outro tempo o pôde cavar; e assim está; nós o vemos
seco pela banda do Sul desde a foz até ao Ouro meia le-
goa acima da barra ; de Q^iebrantôes para a Pedra salgada ,
e Ribeira do Abbade \ e geralmente o está onde as suas mar-
gens lhe consentirão cavar leito mais espaçoso , e tortuo-
so ; e onde a dureza das margens lho não permittio , se
vai entupindo de arêa , e diminuindo o seu fundo por to-
do o alveo que conserva , obedecendo , apesar da ferocida-
de da sua corrente nas cheias , á lei , e causa geral que
os entupe successivamente a todos.
Pela lei geral (6) o Douro deve terna nossa épo-
ca da decadência dos rios hum banco, ou barra dentro no
mar , pouco distante , e em torno da sua foz , que deve
ser navegável , por pertencer esse banco a hum grande rio
( 7 ) , o qual deve ter huma posição variável , ou incon-
stante ; e deve ficar mais longe da foz , quando o rio por
andar cheio pôde arrastallo para mais longe ; e mais ain-
da quando o vento for da terra , e rijo, isto he , do i."
e 2.° Quadrantes; ou quando o mar estiver mais manso,
e por mais tempo : deve ao contrario este banco aproxi-
inar-se á foz do rio quando este traz pouca agua , quando
o vento he rijo , e do mar , ou do 3.° e 4.° Qiiadrantes ,
c quando o mar estando mais bravo , e por mais tempo ,
poder arrastar esse banco com mais força: finalmente o
rio deve ser mais bem navegável depois das cheias do in-
verno , e primavera , do que durante o verão , e nos princi-
H ii pios
6o Memorias DA AcADEitt lA Real
pios do outono: o Douro tem com effcito aquelle banco,
e com estas variações, ou alternativas.
Pela lei geral ( 7. corol. 163)0 Douro deve ter
huma barra muito boa como rio da primeira ordem entre os nos-
sos rios , ainda que menor do que pede a sua mesma or-
dem (pois hc quasi igual ao Tejo), por ter o seu leito
salgado, mui limitado ( 7. corol. 3.° ); e se o Douro
não satisfaz a esta lei na qualidade da sua barra actual,
he pelos estragos , má disposição , e defeitos da sua foz
no estado actual procedido das suas margens desigualmen-
te avançadas (ro, 11, 12, 13, 14, ij, 16, e conclu-
são geral 17) ; c nisso mesmo se conforma com os princí-
pios demonstrados , os quaes também mostrão que ella ad-
mitte grande melhoramento.
Pela lei geral (8)0 Douro deve ter hum cabedelo
atravessando a maior parte do seu leito antigo na foz co-
meçando no Sul , ou testa da margem esquerda , donde vem
para o Norte, estreitando o leito na foz, encostando-o pa-
ra a direita; e servindo-lhe a testa do mesmo cabedelo,
como estremidade da margem esquerda, que será a mais
curta sempre (9), e assim está; nós vemos esse cabede-
lo inalteravelmente assim formado e disposto ; as cheias
lhe cortáo a testa pelo Norte , e também o cortão longitu-
dinalmente do Sul para o Norte da banda do rio, ou
de Leste , corte que o mar supre salvando-o com as on-
dds , logo que elle está mui delgado , e o mar anda bra-
vo , ou são marés vivas, que salvando o cabedelo, lanção á-
Icm delle as arêas em quanto o não engrossão ; e entretan-
to que continuão a salvallo , e depois quando só montão par-
te délle deixão Coadas as arêas na sua grossura esponjoza
onde parte das ondas se somem , ou são absorvidas e fil-
tradas deixando depositadas as arêas que levão involvidas
e assim o levaíitão ; movimento este continuo , que conscr*
vâ o cabedelo em huma grossura , e altura quasi inaltera*
vel ; tendo tambcm alternativas na sua testa , que huma ho'
ra
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 6t
ra as cheias cortão , e outr'hora o mar , ou as correntes
obliquas estendem quando o rio se não oppoem ; mas tu-
do SC faz dentro de períodos, que quasi se repetem com
regularidade ; e o todo do cabedelo se conserva , ou faz
pouca differença de século para século no meio de tantjs,
c tão poderozas causas , que tendem a destruillo , e a for-
mallo alternativamente.
Pela lei geral ( lo ) o Douro tendo as suas margens
dcsiguacs, c a esquerda mais curta (9), deve ao entrar
no Occeano inclinar a direcção da sua corrente para o la-
do do Equador a onde fica o cabedelo , ou para a esquer-
da , fazendo hum angulo com o leito na foz , e com a mar-
gem direita mais avançada qualquer que seja a figura e di-
recção, que tem tido essa margem; e assim acontece. O
Douro ao sahir do seu leito na foz encaminha-se para en-
tre o Sul, e Oeste, ou para algum ponto do 3.° Quadran-
te; c se ás veses o vemos depois de huma grande cheia
ficar mais derigido para Oeste , ou N. O. , he porque o
corte do cabedelo , sendo então mui grande no Douro for-
ma accjdentalmente huma restinga d'arêa pela esquerda até
a diante das Perlongas , que lhe fazem as vezes de mar-
gem esquerda , quasi igual , e ate a's vezes mais avançada
no mar que a direita ; e em quanto toma essa disposição
-endireita a barra , que fica mais funda , e mesmo a muda
para N. O. no 3.° Quadrante, como deve acontecer ( 10
coroi. 5"); mas pouco deve durar essa margem arenosa,
frágil, c da parte esquerda, pois que pela lei geral (4.
oorol. 2.) deve logo encurtar-se: e tudo isto assim acon»
tece , comprovando as doutrinas estabelecidas , e fazendo
antever as vantagens , que o Douro na sua foz , e barra ,
receberá quando se IheJfizer ajnargem esquerda mais avan-
•^da, e permanente. :■ u . . <v i-.o ;.
Pela lei geral (11 e ia) o Douro , em cujo leito
a corrente entra obliquamente da esquerda para a direita
•nt enchente da maré , por ter aquella margem menos avan-
^da , deve ter huma enseada curva sobre a direiu , ou do
la-
6i Memorias DA Academia Real
lado do Polo feita por aquella corrente obliqua , que na
enchente da maré bate contra a dita margem : lá existe
com cíFeito esta enseada em S. Joáo da tbz entre a ca-
pella do Anjo, c o Castello , formando hum archipclago ,
ou perigoso leito, que as aguas não poderão ainda afundar
por todo elle , nem destruir inteiramente alguns pedaços ,
por ser rocha de excessiva dureza. Deve também o Douro
encostar-se a esta enseada abandonando a maior parte de
todo o seu antigo, verdadeiro, e bom leito, quasi recto,
limpo , e mui fundo , sobre o qual se prolonga o cabede-
lo , atravessando , c occupando esse bom leito defronte da
dita enseada, e estreitando-o tanto mais, e formando cor-
rentes alli tjnto mais violentas , quanto mais transversalmen-
te a corrente na maré atravessar o leito , ou quanto mais
desigualmente avançadas estiverem as suas duas margens
{12), ou mais curta estiver a que he variável na esquer-
da sobre o cabedelo , que he quando de lá não houver res-
tinga que as cheias formão , e as ondas desfazem pouco a
pouco e anumâo para o mesmo cabedelo , isto he no fim
do verão , e muito mais quando não tem precedido cheias
de inverno que o cortem e estendão para o mar pois que
he firme e invariável a sua margem direita ; e tudo isto
alli se observa.
Pela lei geral (ij) as cheias do Douro devem su-
bir muito mais no leito , em razão do estreitamento feito
pelo cabedelo na foz, resultado das correntes obliquas,
que procedem da desigualdade das margens , e de haver
mais difficuldade em alargar o leito tortuoso na mesma
foz , visto que as correntes se ausentão da parte convexa
da volta, que he a testa do cabedelo, ou pouco o atacão,
e todo o esforço se dirige inutilmente contra a parte con-
cava da volta, ou contra a direita, que são rochedos, fi-
cando por isso inutilisada a sua força para rasgar a mes-
ma foz , e subindo por isso mais as cheias para com força
•maior o conseguirem; mas depois de passar por essa cri-
se^ e pelas suas tristes .coosequeticias. tudo isso alli aconte-
-..* ce :
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. áj
cc : e que sem aquclle estreitamento que a desigualdjiie
das margens motiva, o Douro terá mais que ckibrada , ou
triplicada a sua liabitual largura que se reduzia habitual-
mente a mui pouco , ou a pouco mais de 30 braças no
verão.
Pela lei geral (16) os grandes estreitamentos do
leito na foz motivarão menor preamar, e menor baixa-mar
no rio , e assim se observou em Setembro , e Outubro de
181 8, quando o cabedelo extraordinariamente recolhido
a respeito do mar encurtando a margem esquerda , que
esteve quasi tocando a pedra João Boi da margem direita ,
da qual chegou a distar só dez braças; apparecendo consc-
guintemente a navegação quasi interceptada , e a Praça
do Porto no maior sobresalto. Tudo pois se verifica des-
graçadamente no Douro, produsindo os mais terríveis de-
feitos da sua foz, edasua barra; mas comprovão felizmen-
te a solidez dos meus princípios estabelecidos na primeira parte
mostrando estes princípios, que he possível remediar aquel-
jes defeitos executancío o meu novo plano respectivo; e
concluindo-se igualmente , que o Douro he o resultado re-
gular das mesmas leis geraes, que consegui estabelecer
para todos os rios ; c que a desigualdade , das suas duas
margens ( 17 ) he o foco, donde emanão todos os males
que se sofrem na sua barra, e foz; concJue-se pois que i-
gualallas pela arte, he o único, e infallivel meio de re-
mediar tudo. Nesta igualação e na collocaçao da margem
esquerda a respeito da direita existente consiste o novo
plano. Eu vou descrever este plano.
§. 2.
Descripçao , e execução do novo plano.
Tendo demonstrado rigorosamente na primeira parte ,
c verificada nesta pela analyse , e mais rigorosa applicação
dos mesmos princípios ao Douro, que os defeitos da sua
foz.
04 MemoriasdaAcademxaReal
foz, e barra, na cpoca actual da decadcncia dos rios, são
motivados pela desigualdade das suas duas m.irgcns , pois
tem a esquerda menos avançada no mar do que a direita j
seguc-se que hum paredão ou dique ( Fig. ) LGC. cons-
truido na esquerda , ou pelo Sul da foz do Douro , e con-
venientemente coUocado , que prolongando, e fixando es-
ta margem artificial a iguale com a direita natural que fi-
naiisa em Filgueiras (ainda que já mui destruida , e inter-
rompida desde Galiota até lá) fará cessar todos os males ,
e tirará todos os defeitos essenciacs da barra , e foz do
Douro , tornando-a conseguintcmcnte muiro boa. Este pa-
redão LGC. fica pelo meu plano collocado sobre a restin-
ga dos rochedos mais , ou menos visíveis das Caranguejei-
ras pata Perlongas , Filhas de Perlongas &c. para ficar mais
solido, mais barato, e não occupar nada pela esquerda do
bom leito , fundo , e limpo , e navegável do Douro , e tam-
bém deixado amplo , e espaçoso para o mesmo Douro se
desonerar nas suas maiores cheias : e com effeito tendo os
rios nas fozes mais corrente do que no resto do seu leito
para cima ( 2 ) , e porisso cavando alli alveos mais largos
e fundos , bastaria que o Douro fosse na foz tão largo ,
como nos differentes pontos mais apertados do seu leito
até á cidade , Guindaes , e Quebrantões por onde o rio
passa nas maiores cheias para evacuar sem embaraço as a-
guas quando chegassem á mesma foz ; logo ficando a foz
de largura de 164 braças, e tendo o Douro ás Desoito
braças ( meia Icgoa acima da foz ) só 80 braças ; e aos
Guindaes, junto á ribeira do Porto 63 ditas, e entre Guin-
daes , e Quebrantões hum quarto de Icgoa mais acima ,
tendo só j2 braças, vem pelo meu plano a ficar ainda o
Douro na foz de triplicada largura , da que tem nesses pon-
tos mais estreitos por onde o rio passa mais acima delia ;
e consequentemente o seu leito será mais folgado na foz ,
e sobejo para as maiores cheias : isto mesmo está demons-
trado também pela experiência ; porque tendo até agora o
Douro toda a liberdade de coitar no cabedelo durante as
cheias ,
dasScienciasdeLisboa. Sff'
cheias, em lugar de profundar mais o leito , e a bana co-
mo muito conviria ; ha 30 annos que as primeiras obras da
barra começarão , e nenhuma cheia tem chegado a formar
leito na foz da largura que lhe deixa o dique LGC , que
eu colloco na esquerda do Douro , cujo dique deve obri-
gar as aguas a cavar mais fundo o leito ( e até a rocha
mesma, que fica yo pahnos inferior ao nivel da baixa-mar )
quando o rio lá chegasse, e antes disso (16) ; melhor
pois dará' passagem a qualquer cheia , que melhor passará
por 164 braças de largura na foz de leito recto , e fundo
defronte do Anjo visto haver passado por leito de 52 en-
tre Guindaes , e Quebrantóes ; e por 80 ás Desoito bra-
ças ; acrescendo que nas fozes os rios se evacuão melhor do
que rio acima como disse. Logo este dique LGC está a to-
dos os respeitos vantajosamente collocado ; também está
bem dirigido quasi a Oeste j SO , ou quasi perpendicular
á costa , ou praia , direcção que mais convém ao leito , e
á barra ( 7 corol. z ) por tanto resta só dizer alguma cou-
sa sobre o modo da execução do plano , que reduzi a cinco
principaes operações.
PRIAIEIRA OPERAqXO.
Occupar-se-ha toda a restinga visível do rochedo , que
segue para nascente das Caranguejeiras com a porção LG
do dique , que será forte , e bem construido , porque hade
ser a margem esquerda , e suportar o peso das correntes
do Douro nas suas cheias , e mesmo as ondas do mar. NB.
Neste lugar he que se haviao já lançado algumas barca-
das de pedra em 1819 para deposito, e fundação dessa
obra , que eu desejava tanto adiantar logo que S. Mages-
tade approvasse o plano, em que eu trabalhava, no que o
mesmo Senhor conveio , e a que a Illustrissima Junta se
prestou.
T,IX. P.7. i SK-
66 Memorias DA Ac ADEMiA Real
SEGUNDA OPERAqXO.
Feita a porção do dique LG, de 8o até loo braças
corrcráô aguas bastantes especialmente nas cheias do Dou-
ro , e nas grandes marés á testa G. dessa obra cntie as
Caranguejeiras ( Fig. ) e o cabedelo; e se formará hum es-
paço suificientcmcnte fundo , no qual se poderá fundar hu-
ma porção GA. do mesmo dique LGC ; e assim se hade
caminhar com a obra do rio para o mar : por este proces-
so de execução o cabedelo será o escudo contra os insul-
tos domar , que fazem três obras muitas vezes mais caras,
e mais demoradas ; e o Douro será o agente empregado
para cavar o fundo cabouco da obra no mesmo cabedelo,
o que de outro modo seria impossível ; e dará seguro , e
plácido canal para conduzir com maior felicidade as obras
pelo mesmo rio para dentro do mar a coberto , e ao abri-
go do cabedelo ; então se poderão fazer annualmente boas
porções bd , de, ef,e &c. do dique LGC , em que se
poderá trabalhar no verão , e de inverno , e em todas as
estações do anno , á medida que o rio for abrindo leito no
cabedelo á testa da porção do dique LGa , LGb. &c. que
estiver feito, onde quer que ella se for achando nas diver-
sas épocas da obra.
TERCEIRA OPERAqSO.
- o r. i
Como o cabedelo pelo andamento progressivo do di-
que LGC. se irá adelgaçando defronte da testa a , b , d ,
do mesmo dique , onde ella se for achando no seu anda-
mento , e o mar hade então poder salvar o cabedelo na-
quelle lugar, e entupir o leito, ou cabouco, que o rio
for fazendo com algumas aguas , que por alli correm para
esse fim, embaraçando desse modo a edificação, e tirando
o giro das poucas aguas á testa da obra onde quer que
ella se achar j será indispensavelmente necessário obrigar o
-J2 . ,i .*i ."li Ci'
DAS SciENCIAS DE LiSBOA* (tf
cabedelo a ir andando para o mar para se engrossar por
fora do que vai perdendo em grossura por dentro , o que
se conseguirá por dois modos , i." começando no fim da
primavera, (quando o cabedelo estiver ainda mais engros-
sado por eflPeito de alguma cheia de inverno, que o te-
nha estendido mais para fora, ou para o mar) huma por-
ção mn. no dique LGC , porque o cabedelo acompanha-
rá logo essa obra até á sua resta, e outro tanto se engrossa-
rá para o mar , tomando as cautellas necessárias para que
o mar não abra caminho ou passagem pela cauda dessa pe-
quena obra destacada , e a deixe isolada no mar ; por es-
sa occasião , e até nova cheia , que a tornasse a ligar ao
cabedelo , inconveniente que se pôde , e hade acautelar ;
por este modo se andará com a obra das Caranguejeiras
até alli ; mas em chegando a este ponto mn , onde princi-
piou a obra a descoberto para engrossar o cabedelo sobre
o mar, não poderá mais ser continuada pelo mesmo modo ,
porque acabaria o giro das aguas entretido entre a testa
da obra , que marcha , e o restante cabedelo no embaraço ,
que achará pela porção feita mn. ao mar do cabedelo em
huma das suas situações , e seria preciso fazer o restante
nc. da obra a peito descoberto , e a braços com o furor
das ondas , e tormentas , o que faria essa ultima porção
nc. do dique LGC. mui difficil , despendiosa , e demora-
da ; por tudo isso será muito preferivel o segundo expediente ,
que consiste em fazer mais para o sul do alinhamento do
dique LGC na mesma praia do cabedelo da banda domar,
e quando ella estiver convenientemente avançada para lá,
huma obra interina de fachinas tecidas com estacas , e ver-
gastes, ou pinheiros novos, e carregados de pedra pq.
como tenho feito muitos em Aveiro, as quaes obras, fa-
zendo o mesmo officio , e melhor ainda do que a porção
do dique verdadeiro mn , são muito mais baratas , e vão
avançando pouco a pouco para o mar á medida que o ca-
bedelo avança , ao qual acompanhao pelo seu mesmo effei-
to j e não cmbaração depois o giro das aguas do Douro á
i ii tes-
68 Memorias da Academia Real
testa da obra principal, quando lá chegar, ficando as di-
tas obras interinas pq. competentemente distantes do a-
linlumcnto do dique LGC. para haver sufficiente leito en-
tre cilas , e este dique , e formação do cabouco : deste
modo he que se poderá obter a vantagem inapreciável de
fazer toda , ou quasi roda essa grande obra do dique res-
taurador LGC , ou nova margem esquerda do Douro , ao
abrigo do cabedelo , e edificar no mar huma tão grande o-
bra sem sahir quasi do abrigo do rio !
Com este , e outros recursos , economisar-se-ha im-^
menso tempo, evitar-se-hão grandes, e inevitáveis avarias ,
poupar-sc-hão grandes cabcdaes , e chcgar-se-ha , com mais
brevidade a conseguir fins , ou resultados mui importantes ,
e transcendentes: a experiência de tacs trabalhos, alguma
constância , e paciência para elles , me tem habilitado pa-
ra poder usar de diversos recursos accommodados ás circum-
stancias dilíerentes , e infinitamente variadas, em que sea-
charem os trabalhos nas diversas épocas, e circumstancias
do seu andamento , sendo tanto mais impossível descrevei-
los, quanto ellas são filhas das circumstancias favoráveis,
ou desfavoráveis , que se iriao succedendo com huma va-
riedade incalculável ; por isso ficão reservadas para a exe-
cução da obra , e debaixo desse ponto de vista , se me não
engano , o Douro me fornecerá opportuna occasião de ser-
Ihe útil.
QUARTA OPERAqXO.
t 'Km
Igualada a margem esquerda em C, com a direita a-
té Galiota , que he até onde ha contiguidade visivel de
margem direita, a barra experimentará grande melhoramen^
to em tudo, isto he, em profundidade, largura, suaves,
e bem repartidas correntes parallelas no leito , bom rumo ,
prompta evacuação de cheias , maiores marés no rio &c. e
&c. ; e então para lhe dar todas as vantagens de que cila
he susceptível , convém começar o reparo da ruina dessa
liiargem direita, continuando a obra para Filgueiras sobre
»
Ir
DAS SCIENCIAS DE L I S E O A. 6^
O alicerce , que alli se acha já mui adiantado pelo plano
que se seguia ; nus ao mesmo tempo que esta obra da mar-
gem direita avançar, também o dique LGCF. avançará pro-
porcionalmente para F. a fim de não perturbar a igualda-
de , ou conveniente proporção das duas margens , de que
depende sobre tudo a bondade da barra, e foz do Douro;
até que a obra chegue pela direita a Filgueiras , c peia es-
querda a F. igual , ou quasi igualmente avançada para o
mar como Filgueiras ; ficando assim dirigido o leito com
huma só, e menor boca ao entrar no mar , e abrindo hu-
ma só barra a mais vantajosa que possa ter o Douro. Eis-
aqui como as obras do novo plano fazem aproveitar com
utilidade as do antigo, que nesta parte seria perjudicial ,
não havendo o dique pela esquerda LGCF. pois promove-
rião a maior desigualdade das margens de que adiante fal-
larci , c este ponto F. ficará quasi igualado a Filgueiras ;
alli hc que se hade determinar a final o seu verdadeiro lu«
gar, e o verdadeiro comprimento da margem esquerda , e
onde ella deve ficar; porque como os ventos soprão mais
de hum lado, do que do outro, e o rio tem desigualda-
des no leito ( 12. corol. j. ) e as aguas no Oceano huma
pequena corrente, ou movimento continuado do Norte pa-
ra o Sul (c) estas circumstancias que ajudão a obliquar as
aguas ao sahir , e entrar na foz , lhes dão huma certa obli-
quidade que deve, ou pôde exigir algumas braças de mais ,
ou de menos no paredão, ou dique LGCF. na margem
esquerda do Douro , para que o seu leito , e a sua corren-
te fique na mais recta parai leia , e bem dirigida disposi-
ção apesar desses incidentes , que assim entrão em linha
de conta ; pois a direcção do rio na foz obedece a qual-
quer desigualdade de margens ( lo. corol. 6.); e qualquer
desigualdade bastaria para tirar a tendência que as ditas
causas podem dar-lhe para hum , ou outro lado ; e mesmo
não ha precisão de marcar já esse ponto a onde necessa-
riamente hade ficar a testa F. do dique LGCF ; pois que
indo a obra da terra, ou antes . do rio para o mar, quan-
do
yo Memorias DA Academia R EA I,
do se for aproximando da igualdade de margens, o leito
hade ir chegando ao seu máximo gráo de largura rcctili-
nea , e parallela (12. corol. y.)» ^ cabedelo angular dcs-
vanecer-sc-ha , em lugar delle ficaráõ duas fachas de arêa
parallelas á linha do meio longitudinal do leito ( 10. co-
rol. 3.) , ca corrente será paialkJa a essa linha , e a g?-
sas margens ( 10. corol. 4 ), o que fará o rio de melhor
serviço, e dará ás obras a maior bellcza , e segurança ; dan-
do tambcm á barra, e foz as máximas vantagens: quando
isso estiver obtido , não se avança mais com a obra , pois
aliás começaria a desigualdade em sentido inverso , e a mar-
gem esquerda mais avançada faria formar restinga ou cabe-
delo do ouno lado do Norte , e começaria a dirigir-se a
barra pelo rumo d'entre Oeste , e o Norte , começando
também a apparecer todos os symptomas , ou effeitos da desi-
gualdade das margens em proporção dessa mesma desigual-
dade ; deve pois o dique LGCF. parar defronte de Fil-
gueiras , desde que a barra , e a foz ficarem sem os defei-
tos actuaes , resultantes da desigualdade das margens mo-
dificadas com as dos incidentes do leito, e do mais expen-
dido neste § da 4. operação, os quaes terão assim entra-
do em linha de conta j e se verá o Douro sem cabedelo
ponteagudo , com margens rectas , e parallelas na foz em
todo o tempo; cora hum leito, cuja largura excederá mui-
to a que costuma ter, e sendo a sua corrente parallela a
essas margens , e ao seu leito ; alem de que as Lages d'Â-
bra , Picão , e Lage £Agu\ão que formão grande perigo na
barra ficarão á boca do leito , ou na foz , e por isso soce-
gado esse lugar que he agora o mais critico , ou perigo-
'zo depois do baixo do banco mais fora da barra.
QUINTA OPERA qJO.
Avançará dos rochedos das Eiras na direita do Dou-
ro , e contigua á foz logo acima do Anjo huma porção
de diqu.e AB. de ^o até So braças pouco mais , ou menos
«.;-> no
DAS SctÊMtílAS OE LrSfiOA. 7f
no alinhamento dalli ao saliente da mesma margem defron-
te das Lobciras de Sobreiras , quasi parnllclo á parte LG.
do dique da esquerda LGCF , e distante delie i8o bra-
ças proximamente : esta obra tem dous fins mui utcis : o
II." he metter o Douro logo acima da foz entre margens
rectas, e parallelas no lugar onde alguma corrente vindo
K entrar hum pouco obliqua por efFeiro de alguma tempes-
tade de ventos transversaes ao leito na foz poderia ( 12.
corol. 6.) ir fazer alguma obliquidade no leito; porque
tacs margens incorroiveis, rectas e parallelas nos rios ten-
dem a endireitar correntes obliquas que por qualquer cau-
sa possão entrar no leito , assim do lado do mar , como
do lado das cheias (12. corol. i ) , que das Desoito braças ^
c de outros pontos sahem tomando direcções modificadas,
segundo a grandeza das mesmas cheias, o 2.° fim he a-
brigar o espaço entre esse dique AB, e a praia e cães
de S. João acima do Anjo , que he o único abrigo para
o grande numero de barcos de pescadores, e catraios do
serviço da barra , e da povoação de S. João da foz ; esta
enseada preciosa será com efteito abrigada , e conservada
com a dita obra , que pôde ser interrompida em dous , ou trez
pontos z. para melhor serviço , e conservação , porque o
rio se communica pelas extremidades A, B, e as aguas
circulâo alli para conserva-la desentupida, como está d'a-
rêa , ou lodo; actualmente ainda hê mui desabrigada do
S, O, Sul, S. E, e Este, o que precisa muitos barcos,
e muitas catraias a encalhar em terra sobre o cães com gran-
de incommodo de seus donos , estorvo do publico e sem
ficarem promptas para qualquer serviço , ou para acudirem
a qualquer naufrágio, ou a qualquer necessidade repentina.
NB, Na restinga de Eiras por aquella direcção AB ,
c pelos mesmos motivos , ou no mesmo tempo , em que
se formou o deposito de Caranguejeiras, lançando pedra
pelo alinhamento LGC. se começou também a formar o
deposito das Eiras no alinhamento AB, na margem direi-
ta do Douro «m 1819.
§
7* Memoriasda Academia Real
§ 3.
Concluirei esta segunda parte, dizendo ainda, que
0 meu plano de igualar as margens , cuja desigualdade mo-
tiva as correntes obliquas na toz , e barra , ou toda a desor-
dem da barra do Porto , alem de fundado em sólidos prin-
cípios, confirmados pelo que se observa nas fozes, e bar-
ras de todos os nossos rios sem exclusão do Douro ( c;ip-
1 e 2) pode mostrar a sua efficacia , e infallibilidade com-
provadas pelos factos acontecidos em Aveiro , e no mes*
mo Douro: 1.° facto — Quando abri a barra d'Avciro cm
1808 , a margem esquerda ficou encostada ate ao mar cm
hum paredão, ou dique de 1210 braças de comprimento;
e a direita sobre o areal, ou praia igualmente avançada»
no momento d'abertura da dita barra : em quanto esta mar-
gem direita se conservou igual , ou quasi igual á esquerda
firme , e solida , o leito do Vouga junto á foz por mais
de 600 braças era recto , as margens , e a corrente paral-
lelas , e não havia cabedelo ponteagudo para o leito , a
barra demorava Este Oeste na direcção do leito , e mais
funda como devia acontecer ( 10. corol. 5-. e 16); mas
pela outra lei encurtando-se successivamente a margem
frágil, e arenosa, ou arêa solta da direita (4. corol. 2. e
3 ) , as correntes do rio para dentro , e para fora , se fize-
râo obliquas no leito do Vouga principiando a atravessai-
lo da parte do lado mais curto, ou d'arêa contra o dique,
ou margem solida , que se conservou im movei , e mais a-
vançada para o mar , a qual foi vigorosamente atacada ,
pela corrente obliqua para formar enseada , e como o pa-
redão resistio , ao longo delle afundou o leito até Sj pal-
mos , o mesmo leito se estreitou no lado opposto , forman-
do cabedelo angular , e leito tortuoso ; as correntes se fi-
zcrão furiosas , a barra declinou para a direita por ser es-
sa a mais curta margem, dirigio-se para o N. O., ou pa-
ra dentro do 4.° Quadrante ( 10 ) e todos os máos effei-
tos,
DA S SciENCIAS DE LiSB OA. 75<
tos, que deve produzir a desigualdade das margens sema-
nifcsturão na nova barra de Aveiro, onde a natureza exer-
citando as suas leis já descriptas Jhe deu a forma t]ue
lhe convinha, c lhe competia em virtude delias. Em 1818
principiei hum paredão do lado do cabedelo para o mar ,
a fim de avançar a margem mais curta , e fiz 60 braças de
extensão com que diminuio outro tanto a desigualdade das
duas margens , que ainda estão mui longe da igualdade ;
o rezultado foi fazer-se a barra d'Aveiro mais para Este
Oeste , alargou muito o leito na foz , a onde chegou qua-
si a dobrar; fez-se mais recto, e parallelo, a corrente fi-
cou menos obliqua , o cabedelo alem de mais afastado per-
dco na sua testa a figura pontcaguda , e angular , forman-
do boleado largo , que se aproxima á parallela da margem
recta do dique da esquerda ; e a corrente se moderou á
testa do cabedelo, onde era furioza. Tal he a influencia
da desigualdade das margens para o transtorno das barras ,
e fozes dos rios ; influencia que pude praticamente demons-
trar no Vouga assim pelo que succedeu em quanto teve
margens iguaes , e quando se forao fazendo cada vez mais
desiguaes , como pelo que succede agora quando lhe pro-
movo arteficialmente a igualdade destruída pelas leis na-
turaes em exercido nas fozes dos rios : e tal he o poder
de suspender o exercício delias segundo convier, ou desu-
geitar á arte a magestosa força dos rios, do mar, e das
tormentas , derivado dos princípios estabelecidos ; poder
que torna infallivel o conseguimento do immeriso benefi-
cio , que se deve esperar de igualar as margens por mão
da arte , como eu projecto para restaurar a barra do Por-
to. 2° facto : O Douro sendo hum rio da primeira or-
dem tem grandes cheias no inverno , e preciza de leito
amplo na sua foz para se desonerar ; alem de que como
tem proporcionalmente pequeno , ou estreito leito salgado ,
e esse mesmo ainda se inutiliza em parte pelo estreitamen-
to na foz, que diminue as suas marés ( 15 , e i<$), he
pobre d'aguas no verão ; e mais ainda por esta causa se
7. IX. P. L K es-
74 Memorias da Academia Re-al
estreita na foz o seu leito ; consequentemente as cherass
cortão huma grande porção do cabedelo ; c se cJlas são graiin
des, ou aturadouras Icváo huma porção desse cabeuclo ,
com que formão hum extenso banco estendido pelo rumo
de Sudoeste , pouco mais, ou menos, con-.cçando do
mesmo cabedelo , para onde o Douro se lança , levando as
arêas para esse lado, e muito para dentro do mar; os ban-
cos dos annos 1792, 1818, c muitos outros ficarão mais
avançados na esquerda, do que está Fiiguciras na dirciça
( Fig. ) : estes bancos fazem então as vezes de margem ou
de dique natural , que serve de margem csquerdn , que
iguala , e ás vezes excede a direita ; e em quanto dura es-
ta disposição a barra , e a foz do Douro he mais larga ,
mais funda, mais bem dirigida pelo rumo de Oeste ; acor-
rente no leito mais parallela ás margens sem se dirigir con-
tra ellas , e sem grandes variações , ou divergências , pois
todas as correntes se tornão mais parallelas ao meio do lei-
to ; as mesmas correntes afrouxão nesse leito mais amplo,
e sem voltas; o cabedelo perde atesta ponteaguda , e for-
ma huma margem mais recta , ou mais na direcção da li-
nha do meio longitudinal do leito , que he a da corrente
nessa occasião ; e em quanto dura a restinga avançada pa-
ra o mar , o cabedelo não se faz ponteagudo , nem atraves-
sa o leito , mas se vai engrossando na sua totalidade pou-
co a pouco , estereitando parallelamente o leito , como
deve ser quando ha menos agua , e tem passado a cheia ,
porém sem o fazer angular , e sem correntes obliquas nel-
íe : passada a cheia , as ondas , e as correntes pela lei ge-
ral 4 , e 9 encurtão essa restinga successivamente para a
terra , recuando para o cabedelo ; logo que esta restinga
SC aproxima das Perlongas, c fica essa margem considera-
velmente mais curta do que a direita , as correntes se fa-
zem outra vez obliquas , o cabedelo cresce com passos
agigantados por eflfeito delias, atravessando o bom leito na
foz , fazcndo-o tortuoso , estereitando-o , e encostando-o pa-
ra a direita , donde se segue voltar tudo ao estado lamen-
ta-
DA S SCIENCIAS DE LlSBOA. "J^
tavcl , em que esta baira existe, e muito mais lamentável
logo que os invernos não dão grandes cheias , que façúo
aquclla restinga, ou margem artificial ; ou que o seu effei-
to não dure até ao verão seguinte ; e por i^so as cheias no
fim da primavera lhe são as mais proficuas para chegar o
beneficio ao verão, que se segue; porque em quanto se
encolhe, ou recua sobre o cabedelo a restinga que lhe ser-
ve temporariamente de margem esquerda , se passa a esta-
ção mais critica do verão, e comcçao de novo as chuvas
seguidas pelas cheias do outono, e do inverno immcdia-
to. Tudo isto demonstra praticamente a necessidade do di-
que LGCF do meu plano , e prova praticamente a infa-
libilidade dos bons resultados, que elle hade produzir. Es-
te banco que nas cheias grandes, e duradouras se estende
pela esquerda até alem de Filgueiras, que estão na direi-
ta, he que faz voltar para e.^tc lado a corrente do Dou-
ro, e abrir a barra doNor-Oeste, ficando inteiramente es-
ta margem arenoza mais avançada do que a direita ; como
esta barra se não entupe tanto porque se forma quando já
o cabedelo está cortado , e tem formado da arêa resultan-
te a restinga tão extensa para o mar , que excede Filguei-
ras , assim se conserva no verão ainda que com alguma di-
minuição : depois começa a recuar a restinga para a terra ,
ou para o cabedelo , e a barra a caminhar também para a
sua habitual posição do Sul-Oeste ; entre tanto cava pelo
Oeste, em quanto as margens são iguaes na ida, e na vol-
ta , c nessa direcção fica algum tempo o leito largo ali-
nhado com cilas, em quanto não he muito sensivel a des-
igualdade das margens : esta singularidade do Douro de
formar duas barras motivada pela grande restinga , ou mar-
gem temporária, c mui extensa na esquerda com as gran-
des cheias que esse rio tem , fica explicada pelos mesmos
principios , e o meu plano que reduz as duas barras a hu-
nia só pela permanência da margem esquerda iguallada ,
ou antes bem proporcionada á direita , deve ter alem de
todas as vantagens que expuz ( 17) j a de tirar huma tão
K. ii no*
76 Memorias DA Ac ADEMiA Real
notável alternativa do corte do cabedelo ; e a de reduzir as
duas barras a huma só mais ampla , mais iunda , c mais
bem dirigida; logo o dique LGÇF do meu plano eleva-
rá a mui subido gráo a ordem , ou as vantagens da barra
do Dt)uro , e a vai restaurar perfeitamente.
Com este dique LGCF posso cu levar a barra do
Porto pelo Sul das Lages que he hum dos perigos , c o
maior da barra depois do seco do banco , onde ainda ha
poucos mczes se pcrdeo o bello navio Oceano na volta da
sua primeira viagem ; e para isso bastaria adianta-lo hum
pouco mais do que está de Filgueiras na direita: neste ca-
zo a barra ficaria perto do rumo de O. j N. O. por cffei-
to daquciia pequena desigualdade (10. corol. 6), a cor-
rente viria no mesmo rumo ferir hum pouco a margem es-
querda , alimparia alli o leito de arêa , e o faria navegá-
vel por alli mesmo encostado ao dique LGCF, entre o
oua! , e as Lages passariao os navios na maior segurança ;
pí)rcm não se preciza , nem dessa perfeição para fe passar
alli com segurança, nem perder a vantagem do rumo Es-
te-Oestc , que mais convém á barra, náo só para a boa
navegação, e maior profundidade sobre o banco (7. co-
rol. 2 ) , mas também para que as arêas do leito levadas
pela corrente para o mar possao passar para o Sul sem
entrarem no canal da barra ; porque ficando pelo meu
plano as Lages já na foz do Douro , c longe do banco ,
haverá alli socego de ondas, e haverão margens lateraes;
os navios passarão sem perigo entre ellas , onde ha fundo,
e largura sufficiente , havendo socego para as aproveitar ;
c mesmo grande parte do anno passarão ao Sul delias ; por-
que o rio com margens iguaes feitas pelo dique LGCF
conservará leito recto, largo, e navegável pelo meio do
grande leito entre a margem direita, e o dique LGCF.
Se não temesse ser excessivamente extenso , faria ver
que o meu plano não reconhece limites para dar á barra
do Porto as disposições , ou vantagens , que se precizão ;
ç que o Douro fica absolutamente subordinado a este pla-
no,
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 77
no, asslmcomo áquella obra do dique da esquerda LGCF,
que deve dar á sua foz, c barra a forma, o fundo dez.cja-
do , e a direcção que mais lhe convier na actual , e geral
decadência dos rios para delie se tirar o máximo partido ,
e para prolongar também por muitos séculos a sua duração
como porto de mar.
§ 4'
Havendo cu demonstrado que a cauza dos males , e
defeitos que se fazem sentir na barra do Porto deriva , na
época actual da decadência dos rios , de ter a sua margem
esquerda no cabedelo necessariamente menos avançada no
mar do que a direita ; eque hum Paredão , ou dique LGCF,
convenientemente avançado a respeito da direita considera-
da em Filgueiras , deve tirar-lhe todos os capitães defeitos,
c restaurar a mesma barra: segue-se que o paredão ROIiD
feito conforme o plano anterior ao meu , ainda que na par-
te ROE era de alguma utilidade , posto que mui secun-
daria ( e só em quanto diminuia a enseada de S. João da
foz , máo leito para onde o rio se encostava , concorrendo
a obliquar a corrente no alveo ) ; de modo algum ataca o
principio, donde derivão os defeitos da barra, e foz do
Douro , que está na desigualdade das duas margens , e do
qual essa mesma enseada he hum effeito necessário (11 e
•12) : cm tudo o mais o dito plano que se seguio desde
■1790 ate fim de i8i6, e que eu não segui, nem devia
ecguir até para cumprir ás instrucções Regias, (d) visto
que com elle me não conformava j reduzia-se a adiantar
mais a margem direita , que já era mais comprida e mais
avançada para o mar , a qual propriamente chegava só até
á Galiota E , sendo visivel unicamente o resto delia mais
alto , e avançado em Filgueiras D , cm cujo intervallo ED
havia era 1790 fundo até 24 palmos no mais fundo dessa
restinga , por onde logo se fez alicerce nos annos seguintes
levantado até baixa-már de marés vivas : por felicidade não
su-
78 Memorias da Academia Real
subio mais o paredão , e ficou em alicerces , para náo fa-
xer grande mal. No mesmo plano se reprova como inútil ,
desnecessário , e até prejudicial qualquer obra na margem
esquerda do Douro, (e) promovendo desta sorte a maior
desigualdade das suas duas margens, c por consequência
o progresso dos defeitos da barra ; donde se segue que o
plano hc certamente errado , e não preciza de outra analy-
se, pois sendo deametralmente opposto ao que se demons-
trou ser bom, será necessariamente máo : entrei porém nes-
ta analyse quando em Abril de 1820 conclui huma me-
moria , ou plano , que aprezentei na Illustrissima Junta da
Companhia geral do Alto Douro, Inspectora, e Adminis-
tradora das obras da mesma barra , o qual deve existir no
seu archivo , e a elle me refiro ; nesta analyse destrui hum
nor hum os débeis fundamentos , e errados principies em
que se fundou ; querendo , e devendo quanto poí-sivel fos-
se deixar me entender de todos, e por todos os modos es-
clarecer de huma vez para sempre o cahos , em que tem
jazido , e o laberinto de erros , em que por tanto tempo
tem sido involvida a questão importantissima do melhora-
mento tão urgente, e tão dczejado da barra do Porto, de
que aprezento em fim a solução , deixando-a também eluci-
dada em geral , e de huma vez para sempre a quem quer
que se tinha occupado , ou para futuro se quizer occupar
delia, e mesmo quando eu já não existir; pois no meu
entender será sempre de interesse transcendente para a mi-
nha pátria : e foi o dezejo invencível de nada omittir que
podesse utilizar, quem me obrigou a seguir o trilho ele-
mentar , e a ser diíFuso.
§ ^
Finalmente tendo decorrido quasi 4 annos desde 2$
de Abril de 1820, data em que conclui e aprezentei a
dita memoria, até hoje em que pelo seu geral, e parti-
cular objecto de utilidades transcendentes procuro a honra
'•:i de
DAS SCIENCIAS DE LlSIíOA. 79
de oflfcreccr este meu escripto á Academia Reaj das Scicn-
cias ; e havendo Sua Magcstade approvado cm 30 de Julho
de 1821 o referido plano, cuja execução comecei logo no
Agosto seguinte do mesmo anno ; tenho a satisfação de po-
der accrescentar hoje que as leis geraes estabelecidas na
primeira parte desta Memoria , e a sua rjgoroza applicação
na segunda para restaurar a foz e barra do Diiuro , se
achao felizmente comprovadas pela experiência , quero dizer ,
pelos resultados da eífectiva , e successiva execução da par-
te que está feita desde o referido anno de 1821 atéago-
ra , pois achando-se apenas adiantado hum bocado de tos-
co paredão «« pela extensão de humas 280 braças para ali-
cerce, e massiço da correspondetirc parte do dique LGCF,
e estando apenas levantado metade desse pedaço un até al-
tura de meia maré viva , assimcomo a outra metade para
o lado do mar, ou de ?i, só pela baixa-mar das ditas ma-
rés vivas termo médio, já os seus eíFeitos, ou rezultados
bem fazejos são mui grandes ; visto que elFecti vãmente cxis-
tio em todo o anno de 1823, e existe agora mesmo a lar-
gura da foz do Douro em frente da testa do cabedelo , on-
de se formavão tcrriveis estreitamentos, constantemente
humas poucas de vezes maior do que era ordinariamente
em estações correspondentes : a mesma foz se acha muito
rnais recta do rio para o mar , e a barra constantemente
muito mais funda, e a navegação pela barra muito mais
facilitada, a ponto de com frequência em todo o dito anno
passado de 1823 entrarem, e sahirem navios menores tam-
bém na baixa-mar, e com vazante; accrcscendo estarem ao
mesmo tempo entrando e sahindo á vella os navios mer-
cantes bordejando na foz , e na barra , sem o conflicto das
excessivas tortuosas , e turbulentas correntes da mesma foz ,
que também deo já navegação pelo Sul das Lages mui
aturada em todo o referido anno próximo passado. O que
tudo se mostra pelos officios authenticos do Piloto-mor da bar-
ra do Porto , de que adiante transcrevo hum , que mais se
explica sobre o estado do melhoramento da barra j e pela
com-
8o Memorias da Academia Real
comparação das sondas da dita barra extrahidas dos officios
e partes do dito Piloto , e lançadas na Tabeliã que adian-
te segue das três épocas mais notáveis , e mais importan-
tes : a primeira desde que principiarão as primeiras obras cm
175)0 até 1792, donde se colhe o estado da barra nostrez
annos decorridos desde o principio das obras : a segunda desde
j8i7, em que fui tomar conta das obras até 1820, em
que também se não fez nada de obra na mesma barra , ex-
ceptuando 1819, pois então lançou-sc alguma pedra em
alguns pontos do alinhamento do dique LGCF da esquer-
da ; c em AB na direita da foz, como depozitos , e com
permissão de Sua Magcstade para adiantar a obra nova , e
não se perder tempo em quanto o novo plano se não con-
cluia ; e mostrão estas sondas o estado em que estava a
barra , quando tomei conta delia. Terceira finalmente as sondas
desde 1821 em que comecei a plena execução das obras
do meu plano, até fim de 1823, todas extrahidas, como
disse das partes officiaes dos respectivos Pilotos , ou Pilo-
tos mores da mesma barra ; cujos rezultados tão constan-
tes , e tamanhos se tem mostrado gradualmente nascircum-
stancias correspondentes á medida que se adianta a obra do
dique da esquerda LGCF , que os motiva , única em que
desde então se tem trabalhado na barra , como justamente
devia acontecer segundo os princípios geraes estabelecidos ,
e demonstrados nesta memoria , os quaes forão applicados
rigorozamente á foz, e barra do Porto: sendo não menos
admirável que a despeza média dos trez últimos annos dos
trabalhos propriamente do novo plano , he apenas os dous
quintos da despeza média annual dos trinta annos preceden-
-^ tes de 1790 até 1820; e nisso mesmo se confirma o
que eu disse (§ 2.° — 3. Operação).
Concluo transcrevendo os documentos do officio e Ta-
beliã acima mencionados « lUustrissimo Sfír. Luiz Gomes
j» de Carvalho = Cumprindo com a determinação de V. S. ,
» tenho a honra de communicar-lhe que sondando esta
»> barra do Porto no dia xo de Setembro prezente, achei
í» pc-
DAS SciEífClAS DE LiSBOA. 8r
j» pelo N. o. 31 palmos de agua; e pelo N. N. O. 2^
» palmos ; c pelo O. S. O. 20 palmos em três cjuortos
j> de maré (f). Também repeti a mesma sonda em 21 do
» dito mez , achei ter pelo N. N. O. 33 palmos d'agua ,
>» e pelo N. O. 28 palmos; c pelo O. S. O. 25^ palmos,
j> sendo feita esta sonda na preamar : A ponta dò cabede-
>» lo desde o mez de Fevereiro de 1823 até ao prezente
» mex de Setembro do dito anno n3o tem crescido para o
» norte , o que sempre costumava fazer logo que vinhãõ
)> as aguas de infestos , c agora he pelo contrario que to-
j» do este tempo a mudança que a dita ponta do cabe-
j» dclo tem feito , he o ter crescido para o leste pelo sul
» do cães que está principiado ; a barra também se tem
>» conservado com a mesma altura d'iigua todo este dito
>» tempo, e por isso que a foz, e barra seachão tão lar-
5» gas, e fundas, e as aguas estão correndo em direcções
» mui rectas do rio para o mar com correntes mais iguaes
» c sem voltas , havendo rasgado também leito fundo
»' até pelo Sul das Lages , o que dá a esta barra grande
» vantagem ; os navios menores estão entrando , e sahin-
5> do todo este anno até na baixa-mar, e em toda amare,
» acontecendo que ás vezes ao mesmo tempo huns navios
" estejão sahindo , e outros entrando á vella , e de todo
»í o modo : mas he este o primeiro verão que a barra do
»» Porto se aprezenta neste grande estado de melhoramen-
» to larga , funda , e recta ; sendo a sua actual largura
3> na foz ; em todo este anno humas poucas de vezes maior
a> do que era atégora em tal estação ; porque raras ve-
í» zes huma grande cheia do Douro chegava a pô-la tão
" larga , como ella agora está constante neste verão ; e
>» acontecia que passada qualquer cheia a foz se começava
" a estreitar até difficultar muito a passagem dos navios ;
>» cujo mal desapareceo totalmente neste anno , conservan-
>' do a toz toda a largura do leito desde Caranguejeiras
» pelo Sul do rio , onde se está fazendo o novo paredão
>j á dous annos , e a margem do norte. = Dcos guarde
Tonto IX, jL, • y a
8a Memorias da Academia Real
>» a V. S. muitos annos. = S. João da foz 29 de Sctcm-
j> bro de 1823. = De V. S. muito attento venerador e
j> creado = João Pinto de Souza. = Reconheço a letra ,
>» e assignatura supra ser do próprio. = Foz do Douro 30
>» de Setembro de 1823. = Signal do reconhecimento. =
j> Joze Joaquim de Araújo. »
NOTAS.
(a) As chuvas então também serião mais abundantes ,
e mais bem repartidas nas diversas estações pelo poderozo
influxo da vegetação , que estaria no maior auge e activi-
dade nesses mesmos tempos •, e mais regulares , e suaves
serião as mesmas estações , como mui elegantemente o des-
creve Mr. Rauch nas suas Harmonias Hydro-vegetaes , pro-
pondo as plantações dos arvoredos para evitar os males,
que elle sentia , e que eu receio , os quaes amcação con-
duzir á extincçâo dos rios.
{h) As praias são as paredes , que contém o grande va-
zo fluido do mar ; e toda a pressão de qualquer fluido se
exercita perpendicularmente contra as paredes do vazo , que
o contém , como se prova nas sciencias fysico mathemati-
cas. Logo &c. As direcções perpendiculares ás praias são
também as de mais curta distancia ; por ellas a queda he
mais rápida , por ellas pois conseguintemente as aguas le-
vantadas em ondas, formadas lá no largo, buscão as praias
mais baixas , paraonde tem queda e decidem o seu movi-
mento.
(*) Seja AD a margem mais avançada para ornar, EG
a mais recolhida de hum rio AECD perto da sua foz ;
CD será a secção commum do rio com o mar ; seja ia a
direcção da corrente , ou a de huma partícula da agua
den-
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA. " 8^
dentro no leito; esta partícula ou molécula, e todas as
mais chegando perto da boca CD, ou secção commum do
mar e do rio , forcejarão para se lançarem no mar por di-
recções am perpendiculares a ellas , ou pela mais curta dis-
tancia entre o leito mais elevado , e o mar ; porém como
se movião já no leito com as direcções ia , e velocidades
suppostas íi/», seguiráõ a direcção fl», que será sempre en-
tre a direcção da agua no leito, e a perpendicular am a
CD, sofrendo esta direcção variações dentro destes limites ,
segundo a relação , que entre si tiverem as forças compo-
nentes am c apy e quanto mais desiguaes forem as mar-
-gens, ou mais recolhida estiver a testa C a respeito da
testa D, mais am se faz perpendicular ao leito, e mais
a direcção resultante an foge da direcção ia que trazia no
leito, ou da do mesmo leito; e com maior angulo sahe pa-
ra o mar, ou declina para o lado da menor margem, ou
para a esquerda nos nossos rios; donde se segue tudo quan*
to se diz no texto , e seus corolários.
{a) Em hum rio BCEF de margens parallelas , ou não
parallelas , sejão bg rs as direcções da corrente obliqua no
leito, fazendo ângulos com as margens BC e EF ; nm. re-
prezente a velocidade da partícula , ou molécula do flui-
do ^ ; mp a força destruída contra a margem a que he
perpendicular ; mo a força parallela com que continuão a
mover-se as particulas fluidas parallelamente aEF, as quacs
ainda são novamente encostadas a esta margem pelas ou-
tras particulas rs , que chegão alli posteriormente : logo a
escavação, que a corrente fizer na margem será curvelma ,
pois as forças , que as formão mudão de direcção a cada
instante , por serem chocadas novamente a cada instante
pelas particulas , que vem chegando : mp depende do an-
gulo miip ^toE. Logo perde a força tanto mais, e tanto
mais se encosta o rio á margem , quanto mais se aproxima
o angulo Z>wE do recto , ou im da perpendicular á mar-
gem. Logo &c. &c. e segue-se quanto vai dito no texto.
(f) Talvez o movimento do Oceano do norte para o
L ii sul
54 Memorias da Academia Real
sul na noísa costa seja cauzado , ou muito ajudado ao me-
nos pelas correntes de todos os rios , que nelle tem suas
fozes , e que se dirigem para OS. O , oQ mais rigorosa-
mente fallando para o 3.° QLiadrante, c muito concorrão pa-
ra formar, ou formem esse perpetuo movimento, cuja cau-
sa he de outro modo inexplicável, por ser constante todo
o anno : mais ao largo e quasi insensivelmente essa corren-
te terá revessa cm sentido contrario, sem o que o Oceano
fugiria todo do norte para o sul , o que não acontece.
(d) No 2.° §. das ditas Instrucções Regias dadas em
1790 para governo do Director das obras da barra, cujo
original se acha no archivo da Illustrissima Junta da Com-
panhia geral do Alto Douro, Sua Magestade depois de ter
mandado que se execute inalteravelmente o plano que en-
tão se adoptou , se exprime deste modo : « se com tudo
j> no progresso das obras parecer necessário , ou útil fazer-
j» lhe ou em qualquer artigo alguma, ou algumas altera-
j> çocs , ou inovações , V. mercê dará conta na Junta da
» Companhia que deve ouvir o Fiscal , para ser tudo pre-
» sente a Sua Magestade e resolver o que for justo. j>
(e) Eis-aqui copiadas algumas passagens do § z." do
plano original que se seguia , e eu possuo «« Para o fim
» de melhorar a navegação , e facilitar a entrada , e sahi-
v da da barra, creio que será bastante este cães '» (fa-
>» lando de ROED da direita , única obra do seu plano
» de barra ) e julgo inútil , e desnecessário fazer outro
j» fronteiro na outra margem do Douro da parte do cabe-
j> delo &c. >» Concluo este mesmo paragrafo dizendo : « Lo-
>» go seria nocivo hum cães da banda do Sul >» affirmativa
ainda mais notável por isso que seguindo os bons conheci-
dos princípios de Fabre , somente hum paredão tal como
LQ^ poderia precizar o rio a cavar mais funda barra, be-
neficio este que todavia deixaria de ser duradouro , logo
que as margens ficassem desiguaes , pois aconteceria pre-
ci/amente o que a este respeito mencionei no artigo de-
nominado 2." facto.
(f)
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 85*
(f) A diffcrença de baixa-mar á preamar he de 12 a 14
palmos , c por tanto ás ditas sondas tomadas nos ~ de ma-
ré se deve acrescentar bons 3 palmos , donde se segue que
ficão de 34, 29, 25- palmos de altura na preamar corres-
pondente aos differcntcs canaes , ou rumos, cm cuja direc-
ção ha fundo na barra : mas a verdadeira barra he por on-
de ha o maior fundo, por tanto nesta sonda do dia 10
de Setembro a barra he pelo O. N. O., e tem 34 palmos
de fundo , e assim das outras : a tabeliã que apresento
foi construida debaixo deste principio.
ME-
MEMORIA TOPOGRÁFICA
E ECONÓMICA
D A
COMMARCA DOSILHEOS
Por Balthazar da Silva Lisboa.
CAPITULO I.
Da Capitania de S. Jorge dos Ilhéos , sua doação , e impos-
sibilidade , que encontrarão os primeiros colonos em a po-
voar j e engrandece-la.
A
§ I-
Villa de S. Jorge dos Ilhéos, cabeça da commar-
ca daqijclle nome, he situada na altura de 14.° 645', no
polo do sul; a sua poziçao lie entre dois oiteiros vizinhos,
ficando hum da parte do sul , e outro de oeste , separados
por 1063 braças, que váo do pontal chamado ^»;m»; , até
a ponta da terra conhecida com oappellido de Pernambuco y
encostado á qual se entra na barra, onde se achâo osves-
tjgios de huma pequena fortificação pelos Hollandezes eri-
gida, no tempo, que tomarão a Bahia. Do pontal do Amo-
rim corre o rio , que o banha em linha obliqua , a huma
pedra , que do Pimenta tomou o nome , com largura de
iri braças ao rumo de noroeste; e de cuja pedra cm li-
nha recta se busca a entrada de outro rio , por Furado co-
nhecido, que divide a ilhota, que alli ha, a qual dos Pa-
dres
88 Memorias da Academia Real
àreí tomou o nome , para o rio conhecido da Esperança.
Tem a barra 40 braças de largo , com fundo de 20 pal-
mos na baxamar , sem ter em seu canal banco algum de
pedra , ou de arèa , e hc por isso immutavel.
2.
Quando os habitantes intentao a navegação para a Ba-
hia , dirigem as suas embarcações para o norte , com res-
peito unicamente aos baixos, que tem avista, bem conhe-
cidos pelo nome de Ilhéos , os quaes são (a) compostos
de hum cordão de pedras altas saxoaas , que os navegan-
tes descobrem quatro legoas ao mar , chamadas Sororvcas
humas , Itapitntigas outras, no idioma natural do paiz, to-
das arranjadas ao correr do ilhéo , do norte da barra, hu-
ma Icgoa , encaminhando-se ao sul , pouco mais na mes-
ma distancia , fronteiras á barra. Entre estas mencionadas
pedras , e o ilhéo , assim á terra delias , como da parte do
mar , podem navegar , e fundear á roda ainda os mais
grandes vazos ; para accomctterem com tudo a barra , ca-
recem os navegantes de ventos favoráveis , taes são os de
nordeste , até les-sueste , e para a sahida , dos terraes do
sul sudoeste.
§• 3-
Ao norte da barra huma legoa desemboca o rio de
Tihipe, que tem nascimento nas caxoeiras da aldêa dos
índios da povoação de Almada , o qual com os riaxos das
serras , que circulão a formoza lagoa , que ahi existe ,
augmenta por tal forma suas aguas, que rompendo as mar-
gens do seu leito , allaga todas as férteis vargens , que a
bordeão. A sua barra apenas dá entrada a canoas j e a pe-
que-
(a) Veja-se a Nota 1.* no fim desta memoria.
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 2y
quenas lanchas , dcsviando-sc estas dos bancos de arêa pro-
ximos aos pontacs.
§ 4'
He fundada a villa em huma baixa de engrnçada var-
jaria á borda do mar, rodeada de coqueiraes , que íórma
huma vista summamcnre agradável. Não pude descobrir o
tempo, em que foi fundada, sendo aliás certo, por antigos
documentos extrahidos da Torre do Tombo, que em 1SS9
era já povoada com quatro engenhos de assucar. {a) He
innegavel , que depois da descoberta do novo mundo por
Christovão Colombo , e pela demarcação que o Pontific.e
Alexandre 6° de commum accordo com os Soberanos de
Portugal eHcspanha havia feito (b) limitando as possessões
de cada hum , pelas balizas das ilhas de Cabo Verde , e a
barlavento mais occidental , que julgou ser de Santo Antão 22.°
ao' equinocial, de 17 legoas e meia por cada hum, de-
termina-se a linha meridional de norte a sul , assentando
que as terras e ilhas por descobrir da p„~rtc do oriente
fossem pertencentes á coroa de Portugal ; ( por cuja demar-
cação Ihepcrtenceo oBrazil, descoberto por Pedro Alvares
Cabral, senhor de Azurara) desde aponta do rio das Ama-
zonas da parte de oeste , pela terra dos Caribás , e pelo cer-
tão dentro correndo ao sul , alem da barra de S. Mathias ,
por 45:.° distantes da equinocial; forão os Soberrnos portu-
guezes , senhores do Brazil , assim pelo direito da con-
quista , como por aquelle que então se julgava unicamen-
te poderozo (c) , por cuja razão concebendo os Soberanos
portuguezes altas idéas assim da riqueza das colónias ,
como principalmente de trazerem ao grémio da religião
verdadeira tantos povos , tomarão as mais serias medidas
para se povoar províncias tão vastas edezertas; e o meio,
Tomo IX. M que
(«) Vpja-se a Nota II.
(i) Vfja-se a Nota IIÍ.
(c) Vtja-se a JNota IV.
ço MemoriasdaAcademiaReal
que pareceo então conveniente , foi ciividir o Brazil em ca-
pitanias, destribuindo-as o Scnhot Dom João 3." poraqucl-
les fidalgos , que tinhao merecido a sua confiança pelos
bons serviços, que lhe tinhao feito.
§ 5.
Foi por taes motivos dada a capitania dos Ilhdos a
Jcrge de Figueiredo , fidalgo da Caza Real , e Escrivão
da fazenda , de juro , e herdade para elle e seus filhos , ne-
tos e successores , assim descendentes, como transvcrsaes,
c colateracs; cuja doação constava de 50 Icgoas de terra,
começando na ponta do sul da Bahia, onde hoje hc a for-
taleza do morro de S. Paulo , ao longo da costa , com
igual largura pelo certão dentro , e ilhas adjacentes , alem
de 10 kgoas na fronteira, e demarcação das 50; sendo
outrosi nomeado governador e capitão delias , com ex-
pressa faculdade de poder nomear, e pôr ouvidores com
alçada até morte natural nos peões , e nas pessoas graves
em degredo por dez anno5 ; consignando se-lhe rendas as-
sim na metade do pescado, como nos direitos que tocas-
sem á coroa , e á ordem de Christo , a ventcna do páa
Brazil , que se remeteria para o reino da dita sua capi-
tania , e24 escravos, que anniialmentc concedia poder en-
viar ao porto de Lisboa , e em seus navios , e por mari-
nheiros e grumetes, todos quantos escravos bem quizesse;
e finalmente as rendas das alcaidarias , e das moendas pa-
ra engenhos de assucar, os quaes sem sua licença se não
podião levantar; as salinas, e aforamentos nas dez legoas,
ficando porem assim elle , como os moradores izentos de
pagarem quaesquer outros tributos , fintas, saboarias , sizas,
ou outros direitos á excepção , dos que no foral fossem
estabelecidos.
§ 6,
Foi naquelles tempos Francisco Romeiro encarregado
de
DAS SciENciAS DE Lisboa. pr
de navios de transporte , e gente da mizeravel classe co
Reino, para a povoação da colónia. Já então os Hespanhoes
por huma cspantoza barbaridade , horrivcl carnagcoí , celc-
bravão a gloria dos seus herocs Pissaro , Corrcz , e outros
horríveis tragadorcs da humanidade , que derramarão o sus-
to, o terror, a mortandade entre as innocentes victimas da
sua rapacidade, assignalados pelo mais grande orgulho,
ambição, despotismo, furor e desprezo da moral christa,
sustentavão sem commettcr a mais leve culpa , que era li-
cito matar os insulanos, naturaes do paiz, que entregando
o que possuiâo , perderão com a liberdade, a pátria, os
thezouros , suas familias , e seus principes, restando ape-
nas mui poucos, que escapando de tantas desgraças, rcfe-
rião a quantos encontravão, os grandes estragos, as trai-
ções , a cruenta carnagem exercidas sobre os seus , por ho-
mens que dizião amar e conhecer o verdadeiro Deos , econ-
sumavão os mais execrandos projectos da total destruição
de seus companheiros.
§ 7.
A pratica de taes máximas , era por todos sabida : os
-princípios da mais sã moral , que fazia a felicidade dos
índios , e dos Europeos , e que seguraria os mais sólidos
interesses dos conquistadores , naquelles tempos, erão olha-
dos até como traidores ao throno , e que na crua guerra
com os índios , nos descobertos dos veios do ouro , e dro-
gas do paiz , no despojo da liberdade dos desgraçados ha-
bitantes , nos continues horrores da guerra , espantozas mor-
tes , se devião assignalar os sanguinolentos fructos da ava-
reza , ambição , c cegueira dos conquistadores : daqui veio
a desconfiança sempiterna dos índios com os Europeos , e
a perda desgraçada de tantos, a quem se pretendia fazer
conhecer a luz da verdadeira felicidade.
AI ii §
91 Memorias da Academia Real
§ 8.
Náo lançarão os novos povoadores da capitania dos
Ilhdos òs tundamentos da colónia , pelos sólidos princí-
pios , que firmarião a sua felicidade , dispondo , e promo-
vendo o trabalho, regulando a industria, estabelecendo a
sobriedade , fortificando pela paciência a confiança mútua
entre os índios, arreigando-a pela perfeição dos costumes ,
boa fé, e lealdade, com o que a ordem publica se resta-
beleceria ; pelo contrario qui/erão somente haver sem tra-
balho o ouro , captivando os índios , e maltratando-os por
todas as maneiras ; ate por força , tomando-lhes suas mu-
lheres, e suas escassas provizõcs , ^" que se devia então es-
perar? O que naturalmente acconteceo, e foi" excitar-se a
lembrança de antigos ódios contra os Europcanos , e arma-
reni-se os valentes Tupinanquins , para expulsarem hospe-
des tão incómodos , que projectavão sobre elles erigir o as-
sento da tirania c escravidão 5 e daqui na-cêrao tantas guer-
ras , e desconfianças , e o ódio , que dos oppressores ainda
hoje çonservão çs naturaçs, pela fpemoria de factos, que
traspa3sa'rão os quç escapando dos seus furores se embrenha-
rão nas mattas.
§ 9-
Aindaqiie Mem de Sá , antes da sua partida á conquis-
ta de villa Galhon no Rio de Jajieiro , tivesse reduzido
aqucllcs índios a pacificação , depois de huma crua guer-
ra ; com tudo jamais a capitania pode prosperar ; assim pe-
la desconfiança e vingança dos índios , como pela má cou-
ducra dos colonos , que de continuo os excitava aos mais
desesperados exce^^sos de furor e vingança , contra os seus
oppressores ; ra/ão por que nomeandp Jorg;e de Figueiredo
successor á capitania o filho mais moço Jeronymo Lavão
de Figueiredo, em 12 de Dezembro de i^fj , sendo-lhe
pelo Soberano confirmada a nomeação por G^rta de Alva-
rá
casScienciAsdeLisboa. 95
rá de 14 de Maio de if 60 , se vio impossibilitado de sus-
tentar e manter a mesma capitania , por estar quazi asso-
lada pelos índios , que tinhâo passado ao furor de queima-
rem os engenhos , c cazas dos povoadores ; e foi obrigado
a pedir á Rainha Dona Catharina , que visto ter chegado
a sua capitania a extremidade tal, que lhe não podia dar
mais firmeza, c estabilidade, e nem era possível esperar
algum soccorro dos novos colonos, receava nlo sem justa
cauza, perde-la de todo j e por este motivo, rogava lhe
concedesse faculdade de a vender a Lucas Giraldes por
preço de 4:835' cruzados; valor pelo qual outra igual havia
vendido Leonor de Campos ao Duque d'Aveiro, para com
aqucUe dinheiro comprar tença, ou renda, com que se pu-
desse sustentar no Reino.
§ 10.
A Rainha, que governava na menoridade do Senhor
Rey Dom Sebastião, por Alvará do primeiro de Outubro
de lyóo approvou a venda, debaixo da condição de se
pòr o dinheiro produzido delia em mão segura , para ser
empregada em tença , ou renda de juro , a favor do mesmo Je-
ronymo Lavão de Figueiredo , e seus filhos ,, herdeiros , e
succcssores, Lucas Giraldes não. teve duvida na compra,
pagando pela capitania a quantia convencionada , receben-
do o vendedor em pagamentos três mil cruzados , que El-
Rei por hum conhecimento em forma , passado por Pedro
Rodrigues, Escrivão da Gaza da índia de Lisboa em 18
de Fevereiro de iJyS , com Alvará datado em 18 de Fe-
vereiro do mesmo anno mandava , que da factura daquella
a trcs annos , pagasse na Gaza da índia os ditos trcs mil
cruzados , de qualquer dinheiro , que houvesse por venda
de especiaria , ou por qualquer outra via ; e que no cazo
de que o sobredito Giraldes quizesse mais antes efFeituado
o pagamento em juro de 12:500 o milhar com a condição
de retro , apenas se completasse o tempo do pagamento ,
se fizesse este etn forma de juro , a razãa de 12:500 o
mi-
94 MemoriasdaAcademiaReal
milhar , com todas as claux.ulas e condições , praticadas nos
padrões de juro, em qualquer das cazas de Lisboa, ou
alfandegas, e almoxarifados dos seus Rcim.s , onde eile
quisesse, assim em dinheiro, como no juro retcrido , com
o pacto de retro^
§ II.
Lucas Giraldes , ainda cedendo aquelles três mii cru-
zados, com o juro de 12:^00 o milhar, não preenchia
o pagamento estipulado ; porem como alem daqucUe padrão,
tinha outro de 72:377 réis detença igualmente de juro com
o mesmo pacto de retro , assentado na alfandega de Lis-
boa em o I." dejaneiro de içói , delle desmembrou 58:400
do dito preço de I 2:500 o milhar , em que montaváo os r.825'
cruzados, para inteira suisfaçao com a clauzula , que que-
rendo elle remir o padrão pelo pacto de retro ^ o dinhei-
ro seria depozitado por authoridade judicial, cm mãos de
pessoas fieis , e abonadas , para se empregar em outro ju-
ro de renda perpetua , renunciando a lei do 1.° 4.° §,
30, e quaesquer outras ordenações, cnmo a do 1.° 2/ §.
49 , para o que celebrarão cscriptura pública em 20 de Ja-
neiro dei5'6i, confirmada, eapprovada pela Rainha , man-
dando passar carta da capitania a Lucas Giraldes, por
Alvará de 19 de Agosto de 1566., declarando que nella
entraria seu filho Francisco Giraldes por seu falecimento.
Em virtude daquella carta tomou posse da capitania o di-
to Giraldes por seu procurador Balthazar Ferreira Garvo-
to.
§ 12.
A mesma impossibilidade , que teve Jeronymo Lavão
de sustentar a capitania, fortifica-la, e augmenta-la, en-
controu Lucas Giraldes e seu filho , poisque naquelle tem-
po sofrerão os colonos os maiores estragos de mizeria. Os
índios com implacável ódio, c insaciáveis na vingança,
olhavão para os Portuguezes , como duros oppressores , e
os
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. ()^
OS Portuguezcs desvairados do verdadeiro caminho das ri.
quczas , que o trabalho produz , só prctendiáo do suor e
fadiga dos índios deduzir suave , e commoda subsisiencia :
naqucllc estado levados os índios , como besta vil ao ser-
viço particular, ou público , a prizáo , aos açoutes, força-
dos a sofrer todo o género de insulto, sem dcsaggravo , re-
médio , ou indemnização ; a desesperação e vingança natu-
ral os revestirão de todo o seu turor ; e a villa , e povoa-
ções forão reduzidas a dezertos , e em theatrcs de niize'
ria , carnagem , e salvageria.
§ 13*
A tanta lastima chegou a capitania , que o seu do-
natário impossibilitado de a conservar , foi obrigado a so-
frer, que cila fosse até penhorada por divida civil, e pos-
ta em leilão, a requerimento de D. João de Gastro, em
nome , e como legitimo administrador de Dona Helena de
Souza sua filha, para pagamento de três contos e quaren-
ta e oito mil seiscentos e setenta ç dois réis ; c corridos
os pregoes legaes , foi arrematada pelo Arcediago André
Dias Prestes , em nome , e como procurador de D. João
de Castro em 10 de Julho de lóij'. E acodindo iquelle
donatário com embargos á arrematação , lhe forão por equi-
dade concedidos nove mezes , para remir, ou dar a ella lan-
çador; e como o não desse, nem remisse a divida, foi ar-
rematada pelo dito Prestes com todos os foros, rendas,
engenhos, ilhas, pescarias, dezertos, jurisdições, datas
de officios, assim , e da maneira que possuirá Jorge de Fi-
gueiredo em 19 de Maio de 1620 : assignou-se ao dona-
tário oito dias para remir a capitania com a satisfação ou
execução, não tendo elle podido conseguir, foi lançado
da remissão , c nomeou então D. João de Castro a Manoel
d' Aranha seu criado, para arremata-la novamente na rua dos
Ferros cm Lisboa a 4 de Junho de 1620 pelos referidos
dezesetc mil cruzados, e á Exccllcntissima Dona Helena de Cas-
tro ,
i)G Memorias DA Academia Real
tro , Condessa de Castro se passou carta de confirmação ,
e succcssão delia, com todas as jurisdições, e direitos por
Alvará assignado em 17 de Outubro de 162$ ; e depois a
sua successora a Exccllentissima Dona Anna Alaria de Atahi-
de por Alvará de 13 de Julho de 1646, com todos os di-
reitos , c previiegios , de que estava de posse a Exccllen-
tissima Dona Helena de Castro , com a declaração porem ,
c]ue não ficava confirmado o capitulo da doação , que con-
cedia o poderem os donatários mandar cada anno ao Rei-
no 24 escravos, para delles fazerem o que bem lhes vies-
se ; por ter sido prohibida já anteriormente a passagem
dos escravos ao Reino , por Provizão do Senhor D. Sebas-
tião, de 20 de Março de ijóo; e que da mesma sorte se
não confirmava a alçada concedida até morte incluzive ; pois
que devia haver appellação no cazo de morte para maior
alçada ; e que nos cazos rezervados na doação , houvesse
também para a mesma appellação 5 e que finalmente não era
confirmada na parte que impedia hirem alçadas á capitania ;
porque poderiao entrar as justiças Reaes, como se enten-
desse ser conveniente ao Real serviço , e boa governança
da terra.
§ 14-
Por diversas successões governarão a capitania de Ilhéos
os Excellentissimos Condes de Rezende , atéque a mesma
capitania se encorporou na Real coroa, em virtude da
subrogação feita com o Excellentissimo , e ultimo donatá-
rio D. António Jozé de Castro , a quem se havia passado
carta de doação em 22 de Junho de i75'2 , sendo parti-
cipada a subrogação ao Ouvidor da commarca da Bahia ,
por Provizão do Conselho Ultramarino de 4 de Março de
17Ó1 , paraque da capitania tomasse posse para a coroa,
e delia tomou o Desembargador Luiz Freire De Veras em,
19 de Julho daquelle anno de 1761 ; em cujo tempo foi
também servido o Senhor Rey D. Jozé i.° de saudoza me-
moria , fazer da capitania huma commarca separada da
Ba-
DAS SciEKClXs DE LiSBOA. 97
Bailia , nomeando por Ouvidor delia ao Desembargador
Miguel de Ares Lobo.
§ if'
Não foi somente a dissenção com os índios , o que
impossibilitou, e retardou os progressos da industria, c da
lavoura de tão vasta, e rica capitania; muitas outras cau-
zas concorrerão, e derão-se as mãos, para completarem a
sua fatal ruina ; muito principalmente concorreo a ignorân-
cia dos principios da verdadeira fonte das riquezas , autho-
rizada pela ambição dehiima corporação podcroza , que mo-
nopolizava o dominio de quazi todas as terras delia, absor-
vendo toda a subsistência do povo; cuja corporação ainda-
que por hum lado fizesse grandes serviços ao estado na edu-
cação dos índios , por outro inoculava a gangrena nas mais
cssenciaes entranhas, donde só dependia a vida espiritual,
e civil dos mesmos índios.
§ r6.
Formou os alicerces das vastas pozições daquella cor-
poração a doação de Mem de Sá , que havendo consegui-
do do donatário Jorge de Figueiredo huma sesmaria de
doze Icgoas quadradas , que começava ao norte do rio de
Contas para Camumú , levado do amor para com os Jesuí-
tas, em seu favor cedeu a mesma sesmaria, de que cele-
brarão escripturas , que tiverão a Real approvação ; era
virtude da qual forão appossados em 3 de Dezembro de
156:5; querendo então os Jesuítas segurar tão poderozo do-
minio , mandarão medir as terras , offerecendo-se-lhe pros-
pera occazião a chegada do Ouvidor do donatário o Licen-
ciado Martim Leitão, ao Serenhaem, no anno de 1583,
pedindo-lhe , que não mandasse citar {a) ao donatário , e
Tomo IX. \r: y. - n obti-
(a) CousU dos auttos , que se acbão 110 arcbivo da caza da Fa-
zciula.
98 Memorias da Academia Real
obtivcráo felizmente , que aquella medição principiasse da
boca do rio de Contas para o norte.
§ í7'
Logoque se retirou aquelle ministro , os medidores
se prestarão tão favoravelmente á medição , que chegarão
a Boipeba, preenchendo 10 legoas de 18, que vadea-
rão , e forão buscar duas ao sul do rio de Contas , para
completarem as 12 legoas, no lugar por Tacaré , conhe-
cido, jo braças ao sul do boqueirão de hum riaxo , cha-
mado Urizícutiba ^ distante 4 legoas do rio de Contas.
Medidas, e demarcadas assim as terras da sesmaria, admitti-
rão para a sua cultura vários forciros , aos quacs impoze-
rão o ónus de não cortarem pãos Reaes , nem sipó ver-
dadeiro , sem sua licença.
§ i8.
Pertendendo posteriormente Balthazar Ferreira Garvo-
to , governador posto pelo donatário Lucas Giraldes ,
levantar huma villa no destricto de Camamú , comprchen-
dida na doação de 12 legoas, comettendo as suas vezes a
João de Andrada , o qual fez cazas de feitoria , creou es-
crivães, e justiças, e levantou a villa com o titulo de
Andrada , e repartio as terras circumvizinhas. Immcdiata-
mente se oppnzcrão os Jesuítas, e conseguirão por senten-
ça dada na Bahia depois de muitos annos cm 16 de Agos-
to de 1 644 , que se reduzisse a villa ao estado de al-
deã , que d'antcs era , e que os capitães do donatário não
inquietassem , ou perturbassem mais o collcgio , e pagas-
sem as custas.
§ 19.
Não erâo os Jesuítas somente senhores das terras de
Jequié , pela terra firme , e de Boipeba pela costa até ao
Tacaré , ao sul de rio de Contas j mas também o forão
das
DAS SciENCiAs DE Lisboa. ^9
das mattas , que seguem pela costa procclloza , para Ma-
moan, aonde possuirão huma data, mais adiante huma ilho-
ta junto á villa dos Ilhcos , e dentro delia , alem de 4
braças, com 12 palmos de frente para caza de sua rezi-
dencia , tinhâo mais outros pedaços contiguos ácjuelles , c
junto 3 igreja outros , alem de huma sorte de terras , que
servia de cerca e cazas , que lhe pagavão renda ; aceres-
cia-lhes outra porção de terras no oiteiro da villa Velha ■;
e o engenho de Santa Anna com 4 legoas da parte do
sul até á pequena ilha dos Coqueiros ; e pelo norte até
ao rio Sauipe , e huma legoa alem daquclla possessão ,
contestando com o rio , aonde chamao Coroa graníie. No
rio do Fundão tinhão também duas legoas de terra , con-
testando huma com o rio peia parte de este, e outra , que
principiava no lugar chamado o Pimenta , ou Jacaraiba ,
pela parte de oeste. No rio Ataipe , onde chamão Getima-
va , tinhão mais trcs sortes de terras , contestando com o
rio, huma parte pelo oeste, e as duas pelo este. Dos Ilhéos
para o sul possuião mais huma sorte de terras no rio de
Messó , e outra no rio de Bambepé, alem da legoa dada
aos índios de Olivença j sendo quazi todas aquellas immen-
sas possessões adquiridas por doaçÓes , e gratificações dos
habitantes, que lhas conferirão, principalmente nas occa*
ziões de testar.
§ 20.
Não restava mais algum terreno , ou mattas , que as
do confim da capitania para o sul, povoada então de gen-
tios pataxos ; e pequenas porções para o norte , cobertas
de Amores , Tupinanquins , e Pataxos , que por muitos e
dilatados annos infestarão aos moradores, que povoavão a
villa, e destrictos do Cairú, e Jequiriçá. Erão seguramen-
te os Jezuitas não só senhores dos terrenos referidos ; mas
«obre tudo das pessoas dos índios , que lhe forão entregues
para a sua direcção espiritual, e temporal, reduzidos não
só a escravidão , mas condemnados á infeliz situação de
N ii cx-
loo Memokias da Academia Real
extinguirem pela mistura dos cazamentos com os negros e
negras (a que forão propensos) o gérmen da sua natural
fecundidade: elles não conhecião o direito da propriedade ,
que he a angular pedra do cdifficio da civiliznçao ; pois»
que os seus bens erao dirigidos , segundo a arbitraria dis-
poziçao de seus padres , que se atribuiao o excluzivo di-
reito da habitação das suas terras , e contra os quaes tal-
vez, se poderia applicar a exclamação do Profeta =r JVir^«-
qiiid soli habítahitis terram\ = Até erao privados da proprie-
dade do pobre , que consiste no producto , e devida remu-
neração dos seus serviços, e braços, em tanta forma, que
sendo concedido a hum índio, por nome ^o/ío Taveira ^ o
habito de Christo com tença , pelo relevante serviço por
elle feito , de mettcr a pique huma náo Hollandcza na bar-
ra grande de Camamú , conseguindo valorozamente tratar
a mesma náo , sem ser percebido dos inimigos ; pois quan-
do acodirão ao inexperado successo , o não poderão evitar,
e pagarão com a perda das vidas , è da náo sua ouzada
temeridade \ ornava-se aquelle mizeravel índio com a insí-
gnia de honra , que lhe foi dada em testemunho perpetuo
da sua fidelidade e valor summo , arrecadando porem os
padres para si a tença ; e ainda hoje se conserva aquelle
habito na familia dos Taveiras, e ordinariamente nas ta-
vernas de Barcellos empenhado por agoardente.
§ 21.
Para se entrar em huma dilucidação mais clara sobre
a importância da capitania , seria talvez a propozito divi-
dir em diversos capitulos, quantas são as villas, que ella
comprehende, discorrendo sobre o estado de cada huma,
sua agricultura e commercio , povoação , costumes , e na-
vegação ; indicando o que pôde melhorar a condição de
seus habitantes; alem dos cortes de madeiras, que consti»
tuem o mais importante objecto a bem dos povos , e da
marinha Real , e mercantil.
CA-
DAS SciENCi AS DE Lisboa. íoi
CAPITULOU.
Da villày e âestrictos de S. Jorge dos llhéos.
§ I.
Tem a villa de S, Jorge , cabeça da commarca dos
llhéos , a8o fogos com 2000 almas : os seus habitantes
não tendo braços sufficientcs para a lavoura , carecem das
riquezas, que introduz o commercio , não cxportão para a
Bahia senão algum jacarandá , arroz , peixe salgado , co-
cos, e insignificantes porções de farinhas de mandioca; os
homens s3o ágeis , e tem capacidade de se applicarcm com
proveito em todo o género de artes , e industria ; se ha quem
íhcs excite o enthusiasmo patriótico , são zelozos da cauza
pública , e bons servidores dos seus Soberanos. Os princi-
paes do paiz , fazem-se sem algum motivo , descendentes ,
não só da principal nobreza do Reino ; mas ainda de san-
gue Rcgio, ao mesmo tempo que elles nem ainda tocdrão
o primeiro estado da civilização; as suas faculdades, os
seus sentimentos , e os seus dezejos são inteiramente apro-
priados á sua situação ; a idéa , que elles tem da sua per-
feição , e felicidade , consiste na figurada grandeza de seu
nascimento , sem alguma educação civil ; e por isso não
encontrão alguns objectos de prazer , senão naquelles , a
que estão acostumados ; a caça , a pesca , a lavoura da man-
dioca , he o seu mais nobre emprego , que realça na ser-
Tentia dos cargos da Camará , que preferem a toda outra
consideração. As suas necessidades são com muito pouco
custo satisfeitas ; porque elles privadamente andao quazi nus ,
em fraldas de camiza , e se cobrem de huma túnica de bam-
ba , ou de chita , a que chamao limão ; quando recebem
algum hospede de cumprimento , as suas cazas são despi-
das de todo o ornato ; tendo o peixe , ou o marisco , e a
carne do certáo, não ambicionão as iguarias ^ que conten-
tão
I02 * Memorias DA Academia Real
tão a guUa : as suas mulheres quazi nuas se dcixao ver no
público , poisque com ricas capas de seda sobre a cabe-
ça , ou nos hombros descobrem debaixo do véo de huma
camiza de cassa transparente todo o seio, andão descalças,
ainda quando sahem á rua , nas suas cazas apparccem setn
capa , lenço , ou outra decente cobertura ; as ricas se des-
tinguem pelos cordões de oiro , e outras peças do mesmo
metal , de que se adornâo ; a satisf;ição dos prazeres do sentido
he dominante paixão do paiz , e a fonte da imaginação públi-
ca ; as mulheres cazadas são cruelmente atormentadas pelo
desprezo dos maridos , que se enlação logo no amor impu-
ro com suas escravas , e quanto mais ricas , mais infelizes
se reputão ; poisque seus maridos se arrogao então o di-
reito de ter tantas concubinas, quantas sáo as escravas,
que corrompem ; o que he transcendente a todos os povos
da capitania.
As terras são fortíssimas , e a maior parte cobertas do
húmus, ou massapé. As margens do Tahipe , que os banha ,
allaga e fecunda as suas vargens, admittindo a navegação
de hum dia inteiro por todo elle até huma lagoa em a
qual desemboca ; a qual fica duas legoas e meia ao sul da
JNIamoan , distante da costa do mar. Tem aquella lagoa
huma Icgoa de comprimento , e de largura em partes mais
de hum quarto de legoa , e em partes menos , e no fim
despede sobre ellas formozas caxoeiras , suas cristalinas agoas ,
estando huma fronteira á outra cm caminho de nordeste ,
onde lhe disputa a sua beleza , a outra das Caldeiras assim
chamada, pela forma que lhe tem dado as escavações,
feitas pelas agoas, que sobre ellas precipita , espalhando-as
com agradável suavidade , entre pequenos assaltos , pelos
quaes sobem os saborozos piaos : fronteira aquella , outra
se encaminha , rodeando para o sul , chamada Pepico por
huma rocha de pedra aggregada de seixo , e arêa com es-
patto , de dez braças de comprimento.
§
l
PAS SCIENCIAS DE LiSBOA. IO3
§ 3-
Copioza abundância de saborozo pescado nutre a la-
goa no seu seio , a qual tem de fundo cm parte 8o braças,
o que faz persuadir ser produzido de algum braço de mar,
que privarão os pontacs de arca da sua communicação , para
dar áquellcs colonos tão commoda e prospera sustentação.
Nella se encontra huma quantidade de vários pescados , co-
mo são as gostoza*; paraíbas , que ás tainhas se assemelhao ;
os roballos , carapebas, camoropins , da grandeza dos me-
ros , os camoreassús , que dos roballos tomarão a forma ,
mas não o corpo ; os piaos , trairás , bicudos , xaréos
pequenos , e guaribeiras.
§ 4.
As mattas , que bordeao são soberbamente vestidas as-
sim dos páos de construcção , como dos que servem para
obras de cazas ; e abundantemente se topão as socupiras ,
sapucaias, jatahis, óleos, jacarandás &c. As suas margens
são guarnecidas de hum sem numero de trepadeiras , de
que a baunilha entre outras, com o agradável do seu chei-
ro , toma a primazia , formando sobre as arvores mil en-
graçadas formas de pirâmides, columnas, &ç. , esmaltadas
nas estnç6cs próprias de lindas cores das suas brilhantes e I
delicadas, e aromáticas flores: acompanhao esta plauzivel
vista as fluctuantes aningas , figurando muitas ilhas , que
á vontade dos ventos são conduzidas ora para este , ora
para aquelle lugar.
§ ?.
Mas de que servem tão preciozos terrenos , cortados
de vários rios , se nao ha algum industriozo estabelecimen-
to , que facilite e promova com o trabalho , a agricultu-
ra, e commcrcio , perennes bazes da grandeza dos estados,
e raiz mestra da civilização dos povos? A Camará não tem
rcn-
104 Memorias da Academia Real
rendas para supprir ainda ás dcspczas ordinárias ; hum pcíjue-
no canal de 130 braças fazia conimunicavcl o rio Tahi-
pc, ou Atahipe com o da Esperança, ou Fundão, que
vem até á villa ; sem este canal os lavradores dcsacorat^oa-
dos apenas plantão , quanto baste , a mante-los na escassa
sustentação , poisque chegando á barra daquclle Tahipe ,
são forçidos a encalharem as canoas , para caminharem hu-
ma legoa pela costa até á villa , c dalli despedirem ca-
noas pelo rio Fundão por mais de duas legoas a recebe-
rem os seus cfFeitos, que os negros conduzem daquelle
a este porto ; entre tanto quaes são os inconvenientes , se pe-
la inconstância do tempo, a chuva não deu lugar a pôr
os géneros a bom recato nas canoas enviados áquclle rio?
§ 6.
He evidentemente manifesto , quanto convinha á agri-
cultura e commeicio daquelle povo a impozição de hu-
ina finta naquella mesma passagem , para tão indispensável
canal ; poisque huma tal despeza se compensava com o
augmcnto do annual producto dos géneros, população, e
rique/as daquelle paiz ; e aindaque para cila o povo todo
concorresse ; esse gravame , e despeza desapparecia , pela
inestimável vantagem da extensão da cultura , e facilidade
d.iscommunicações interiores. O estado tiraria também não
menos interesse na extracção das suas madeiras de con-
strucção , poupando a despeza do arrasto por terra da barra
do Tahipe ao F^undão.
§ 7.
Fica na vizinhança da lagoa a caxoeira , que de Al-
mada tomou o nome , onde foi ao sudoeste situada a al-
deia dos índios mansos da geração dos Grens , para servir
de h-irreira ás incursões do gentio bárbaro , que em outro
tempo a abordarão , cuja aldeia foi reduzida a frcguezia
de nossa Senhora da Conceição pelo Senhor Rei Dom Jo-
sé
DAS SciENCIAS DE LlSBOA. ICf
zé I."*, e pela pobreza dos habitantes; a Igreja he redu-
zida a huina pequena caza de taipa , coberta de palha.
Vivem os poucos índios , a que a aldeia está reduzida , da
pesca, e caça, errantes ora em huns, ora cm outros bos-
ques. As aguas daquella caxoeira se derigem á lagoa com
o ribeirão de Inohupe , que nasce na serra superior ; as
terras são férteis, e abundao de madeiras de construcçao;
o bosque porem he povoado de animaes, para a sustentação
dos habitantes , aindaque não no inverno pelo ar , lindas cores
de pássaros, e aves attrahem os olhos domais frio viandan-
te, o qual ao mesmo tempo he forçado acautcliar os seus
passos, por hum sem numero de peçonhentas cobras, que
nos caminhos enroscadas, nas arvores penduradas, e debai-
xo do capim escondidas , mandão a morte ao incauto ,
que as piza, e se não desvia de seus botes; abundão as
mattas de sorocucús de amarello e preto lavrados , das ca-
ninánas , jararacas, caissacas, cobras de serro verde, co-
ral , sipó do chão , brucuá , que tem a forma de jararaca ,
porem com barriga amarella ; e os feridos desses terríveis
reptis curão os naturaes com feliz successo nas morde-
duras dos sorucucús com o sumo da Jussara , palmeira
bem conhecida pela resistência do seu grosseiro linho para
os arrastos dos páos de construcção , e para as outras co-
bras (a) se servem do entrecasco do angelim ousocupiza,
Tomo IX. o do
(a) Jle tal a superstição dos povos, que tem para si, que curando-
se por curadores antes de mordidos das cobras , não faz mal o veneno ,
quando sejão mordidos j ehc acura do moéo seguinte zz: Torrão ao fo-
^o qualquer cobra venenoza morta, e feita em pó preto o guardão;
e quando curão a pessoa , tomão hum dente de cobra, ou ferro cor-
tante, e com elle fazem na pessoa cm cada pé bum pequeno golpe,
ou arranhadura; e alli então com o pó da cobra qiicimada, e nos pul-
sos , e com o pó de algumas raizes contra o veneno , e depois dão a
beber ao mesmo que se cura do mesmo pó dacobra , e raizes em agua
;norna, ou aguardente; e a isto chamão curar, para quando for mor-
dido da cobra não lhe fazer o veneno mal. Outros curadores o fazem
com rezas, e certas cruzes feitas com huma faca sobre o rosto, ou pe-
gada do j)é da pessoa, que se cura. Outros curão aos que são mordi-
dos com rezas cutre as quaes uzão da seguinte =: Jesus, Maria, «lozé,
io6 Memorias da Academia Real
do azeite , e sumo da mucuba , e banhas do amamcto
branco.
§ 8.
Com pouco mais de dois dias de viagem desse lugar,
se pizuo as catingas do certão , que se dirigem ás mi-
nas do rio Pardo , e rio de Contas , estrada que sendo
aberta , produziria hunia vantagem incalculável pela rápida
e activa circulação do commcrcio , pelos cfícitos exporta-
dos das províncias centraes , remotíssimas dos portos de mar,
alem do gado, que he conduzido por estradas intratáveis
longuíssimas e tortuozas, ese exportaria o salitre dos mon-
tes altos ao mercado; porque o custo do transporte, pe-
las estradas , que existem , absorvem todo , ou quazi todo o
valor dos géneros, com geral desmaio doproductor, con-
ductor , e mesmo do consumidor ; por aquella nova estra-
da adquiiiriao asproducçõcs do ccrtáo hum valor, que dan-
tes não tinhão , pela facilidade com que chegariao ao por-
to de mar os seus cffeitos , o que lhe daria interesse em
cultivar melhor as suas terras; fazia crescer a emulação dos
proprietários vizinhos , para suprirem com quantidade pro-
porcional o consumo , e a exportação , por huma maneira
a mais perfeitamente económica , que desafiasse a preferen-
cia aos compradores ; cxaltava-se sem duvida muito mais a
industria , e o público com uzura recmbolçava o soccorro
que para ella mandasse prestar; e toda a imposição que se
julgasse conveniente para a sua sustentação , não seria sen-
tida pelos viandantes, que a pagassem; poisque por tão
justa applicação ganhavuo mais doque perdião no descm-
bolço do imposto , sendo proporcional ao seu ganho ; pois
que somente era obrigado a ceder huma parte delle pela
bon-
S. Qeuto: Padre nosso, Ave Maria oíTerecido a S. Bento, fazendo hu-
jjia cruz sobre a feridfi : Graucie o uouie de JeâUS tff S. Beuto >{i e
de sua uiai Saati^sima ^ §, iieatQa
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. I07
bondade da estrada, diminuição do caminho e dcspczas,
(.]uc deixava de fazer para lucrar tudo o mais.
§ 9-
São atacados assim os habitantes da lagoa, e rio
como os das povoações circumvizinhas , e os da villa, de
sezões; avista moribunda, que em algumas occaziões aquel-
les infelizes mostrão , imprimindo no animo , dos que de no-
vo entrão a vizita-los , todo o horror da sua situação , he
a mais persuaziva , e eloquente , para despcrsuadir-lhes to-
do o projecto de se conservar em lugares tão doentios. Tem
origem aquellas sezões, e febres intermitentes da estagna-
ção das aguas ; poisque os rios nas enchentes delias , tras-
bordando suas margens , allagão as varjarias , onde apodre-
cendo , enchem o ar de hum gaz mefítico , capaz de pro-
duzir espantozissimos effeitos. O remédio geralmente appli-
cado áqucllas febres, são sangrias e frangos que os levão
á hydropezia , em que mormente acabão , emquanto ou-
tros mais sábios , seguindo a natureza , se approveitão dos
saudáveis amargos, extrahidos da casca de varias arvores,
sobre tudo das bem conhecidas por cavaco de grem , e qui-
na de camamú , com os quaes felizmente se curão , alem
da ipecacuanha , com que vomitao , e da batatinha de pur-
ga , e jalapa , que tomão desfeita era agua , ou aguarden-
te para descarregar as primeiras vias do humor da bí-
lis degenerada.
§ 10.
Não tendo para as outras enfermidades , que são como
geraes na commarca , meios de consultarem os Médicos da
cidade: elles chamão as experiências, e a superstição em
seu soccorro ; nos pleuriíes , que são frequentes no inverno ,
sangrão logo os enfermos, e depois de lhe darem o vomi-
tório de ipecacuanha , de que os mattos abundâo , dão a
beber ao enfermo o cozimento de parreira brava com sumo
o ii de
io8 Memorias da Academia Real
de limão , c esfregão a parte da pontada com sal e vina-
gre. Para camarás de sangue , que no verão dcspovoão mui-
tas cazas , uzão de vomitório , e ajuda de ipecacuanha , e
introdu/xm no anus hum limão esbrugado : dão a beber ao
doente canja de arroz, cozimento do talio da banana de
S. Thomé , e alfavaca , e crista de galo , ícdegozo , tudo
cozido , c coado , e dado morno a beber , e sobrevindo
vómito, rcputão sjgnal jnfallivel de morte ; também outros
ajuntáo o cozimento do urucú , e o entrecasco da raiz de
mangabcira , e outros dão ao doente hum ovo assado bran-
damente , ajuntando-se-lhe três pingas de bálsamo, emet.
tendo o doente no rio por espaço de algum tempo , e por
vezes repetidas, Uzão outros de tomar duas gemas de ovo
com vinagre misturado, deitado no ctildo de galinha , tem-
perado , e posto em fogo brando , que coalhe brandamen-r
te , e ajuntão huma gema de ovo desfeita em agua de tan-
chagcm com assucar , feito papas, c da-io a beber ao doen-
te. Outros tem gçhado-se bem, com tomarem 8 até i»
cravos amarellos pizados , e o sumo misturado com agua
ou vinho , e dado a beber por três vezes no dia , c tam-
bém as raízes do algodão, e os seus olhos cozidos, e da-
do a beber atéque parem os cursos , uzando ao mesmo
tempo da ajuda de cevada com assucar, e para adoçar as
fendas , que fazem , lavando com agua cozida do capim
pé de galinha ; e ha quem uze de tomar por trcs vezes do
pó de canclU de defunto , em porção de duas oitavas. Nas
camarás brancas uzão da caapericoba , que he a nossa ver»
bena applicada com cebo de boi em forma de emprasto,
com duas outras folhas de ortelaã, bebendo-a com sumo
de romãs azedas , e rezina de almecega , ou também cas-
tanhas de bicuibas , ou uzão do xarope de mattapasto, e
bebendo o sumo do sipó purgativo chamado de camarás ;
çsta he a maneira de se curarem taes enfermidades , que
tinha sido praticada pelos Jesuítas, quando existirão nas
gr.mdiozas fazendas que possuião na çommarca.
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. IO9
II.
Para os que padeciao gota nos pds , felizmente u/.a-
vão do sumo da serralha , com leite de peito posto no lu-
gar enfermo ; as pessoas tolhidas de ar untavão as solas
dos pés, palmas, mãos, e nariz de mostarda verde piza-
da coin raiz, folha, e flor, c p(jndo sobre a dor a pellc
de guariba , e defumando a parte leza com bosta de anta.
Aos c)ue padccião tinha, observei, que lhe untavão a ca-
beça com mel de enxame novo , c lixo de ratos, rapando
a cabeça quatro vezes. Vi cheio de espanto , evitarem o
ferro do cirurgião em postemas , saindo estas peia cútis
com as folhas da hcrva chamada cazadinha , ajuntando-lhe
a outra chamada Maria preta ^ e juntamente as conhecidas
por fedegozo, maimiqueres, enxerto de passarinhos, vas-
soura moida , artemija , mastruço, tudo bem pizado com
luim bolo de carimá secco , c posto em cima da postcma,
amparada por cima com huma tolha de capeba , e cobrin-
do tudo isto hum pano de linho. E paraque as mesmas
postemas se rezolvão com discripção uzão dos óleos roza-
dos de marcella, endro, ruda , com enxúndia de galinha,
de pato , banha de porco , cebo de carneiro , tutanos de
vaca, malvas cozidas, açafrão, gemas de ovo, farinha de
cevada , herva baboza assada , e pizada , caroço de algodão ,
alfavaca pizada com mel de abelhas feito emplasto ; man-
dioc* puba pizada com açafrão , folhas de pariroba , piza-
das e quentes , postas nas postenus.
§ 12.
Curao o mal venéreo com ajudas de sipó, chamado
de axougue , tomando duas oitavas , com huma pollegada
de sabugo de milho , e irez olhos de capim , chamado pé
de galinha posto a ferver em huma panella com quartilho
e nacio de agua, que fique na metade, tomado morno de-
pois
lio Memorias da Academia Real
pois do almoço , e os jactos sendo excessivos suspendem
o seu cffeito , tomando hum banho de cozimento do mes-
mo capim pé de galinha : tomao também o cozimento da
salça panilha , que de sete variedades são bem conhecidas
no paiz , e com grande proveito da humanidade são appli-
cadas aqucllas ajudas, e cu tenho visto muitas pcsscas to-
lhidas de dores , e cobertas de chagas venéreas se desem-
baraçarem com o uzo de taes ajudas , e bebendo o ^uma
de salsa fresca , com huma colher de assucar , e as chiigas
antigas que pareciao incuráveis , lavadas no cozimento da
mesma salsa , e pondo sobre as mesmas o bagasso , ou em-
plasto da rczina de huma arvore conhecida por luudiraua ,
nao só tornarem a bom estado, mas fecharem-se de todo,
ficando os doentes inteiramente restabelecidos. Ha alem des-
te , outro si pó chamado cainana , com que se purgão os doen-
tes da intermidade céltica, aindaq^e os seus eíFeitos são
menos seguros, e algumas vezes tem sido o seu uzo fatal
aos que forão applicados, talvez pela inexperencia da ap-
plicaçáo da doze , que muitas vezes tem produzido dissolu-
ção de sangue.
§ 13'
As pessoas , que deitão sangue pela boca , vi , que lhes
mandavão tomar hum cozimento de urucú pizado, ferven-
do-se de quatro onças , e que de três canadas de agua se
reduzisse a huma, e coado o cozimento lhe ajuntavão a sua
calda de assucar de lambedor, com huma onça de urucú
em pó subtil , bebendo deste lambedor o doente duas co-
lheres de manhã , e á noute , uzando de dieta , e evitan-
do os golpes do sol , ou a humidade do sereno , e todo o
contacto feminino , e comer e mastigar os olhos de oricuiba.
N»3 erisipelas (hoje quazi hum mal geral no Brazil) di-
minuem a força das febres inflamatórias com o uzo do co-
zimento de fedegozo bravo , arbusto bem conhecido no paiz ,
que promovendo a transpiração , diminue os seus terríveis
cffeitos , c passada a febre , untâo a parte leza com agua
de
l
DAS SciENciAs DE Lisboa. iii
de bananeira , e purgão o cnfernno com a batatinha cu jj-
lapa espontaneamente ahi produzida , e encontrada : outros,
untão o lugar doente com azeite de bicuiba , e abaíáo a
parte para desinchar com mciws dores ; superstiozos rezao
sobre o doente , uzando das seguintes palavras Pedro e Pau-
lo caminhou para Roma , e Jestu Pedro encontrou , /ego lhe
perguntou ^ Pedro , que vai lã no tuonte ? Senhor ; ei-isipéia.
Alai ^ torna para lá, Pedro dizellio, que jc cure com o óleo
da minha oliveira , erisipela nunca mal terd em nome do Pa-
dre , de Filho , do Espirito Santo.
§ 14-
Os que padecem hérnias se dão bem com o uzo de
banhos de agua quente , em que se faz ferver nove olhos
de guaiabeira e pedrahume , em nove canadas de agua pa-
ra ficar em huma , e abafando a parte pelo tempo dos ditos
banhos, e sendo aquozas, uzao do cozimento , ou folhas,
e raiz de jarro. Nas esquincncias uziíc de gargarejos da her-
va chamada piissarinbo , cozida com pedrahume , rozas , e
assucar refinado , ou xarope de xá de vassourinha , com vi-
nagre e assucar ; nas opibções mui uzuaes no paiz, pela
humidade das mattas , tomão os doentes purgantes do leite
da arvore chamada gameleira , e uzao de tomar pela ma-
nha cm nove dias o sumo da fruta anands , e outros , cal-
do de agriões sem sal , adoçado com mel de abelhas , cha-
mada" Je/âi/; e também fazem emplastos de agriões afo-
gados em azeite, e postos sobre o bofe , quando elle he
obstruído , ou naquella entranha que padece o mal.
§ i^.
Nas quebraduras , cm que sahem as tripas , pegão em
dois peilaços de banha de porco cozidos em dois pedaços
do pano de linho cada hum , e postos em agoa bem quen-
te , com elles untão as tripas , e apertando-as paraquc en-
trem
111 Memorias da Academia Real
trem para dentro ; fazem também esfregações com olco re-
zado , ou manteiga de cacáo quente , e untando a parte ,
levantando as pernas do enfermo para cima , applicando-lhe
algumas ajudas; deitão no buraco pós de incenso mistu-
rado com mel de abelhas e bosta de vaca frita em azeite
e vinho , posto sobre as tripas , que as faz tornar ao seu
lugar , e se com aquelles remédios não consegue o doente
o bom effeito que espera ; então lhe dão a beber azougue
vivo. Para soldar as quebraduras , vi , que muitas pessoas
ficarão perfeitamente sãs com o emplasto do Jeitc da ga-
meleira extrahido na lua nova, com almecega , incenso, e
rezina , de S. Thomé , própria do paiz , e cingindo o en-
fermo com a sua funda, posto oito dias em socego , dei-
tado na cama, repetindo-se o mesmo emplasto por mais
oito dias , se nos primeiros se não conseguio a perfeita
consolidação.
§ i6.
Nas quedas dão a beber ao enfermo o sumo da cai-
pcba , ou de mastruço amornado, ou olhos de imbauba com
carimá desfeita em agua: aos que padecem debilidade de
estômago que não coze o comer , dão a beber cm jejum
hum copo de vinho branco fervido com mostarda , losna y
equina docamamú. Para a asma costumão tomar huma quan-
tidade de flores , e folhas do alecrim seco ao ar, que cor-
responde a hum arrátel , depois de reduzido a pó fino , e
misturado em huma canada de mel bem cozido, e posto
a serenar , tomando huma colher d noite , e outra de ma-
nhã pelo tempo de oito dias; se o doente aos nove, ou
quinze dias tiver maior toce , tomão por bom signal , e se
hc elle cálido , em lugar do mel ajuntão assucar fino. Para
matar os vermes das tripas, mandão beber em jejum o su-
mo de gravata , ou cozimento de feto macho , e losna ,
ou pós da fruta do angelim verdadeiro , purgando o doen-
te com jalapa.
UAS SCIENCIAS DE LiSBOA. IIJ
Os que padecem dores de dentes mandão mastigar a
herva barreguda , ou tomar bochechas do cozimento da mes-
ma : também uzão do cozimento da ortclaã , tomando-sc
suadoiro na face, em que corresponde o mal ; outros re-
conhecem o allivio , pondo o sumo com bagaço de páo
chamado topanbtitno na parte doente : o mesmo proveito acha-
rão outros no entrecasco da espirituoza jerema , ou no
cozimento da raiz do espinheiro amarello ; porem outros ti-
verão allivio com o óleo da bicuiba , ou com o cozimen-
to cm vinho de pepinos de S. Gregório. Na dor de cabe-
ça observei que algumas pessoas referião achar alivio com
o uzo das folhas de jarro pequeno , postas na cabeça , e se
ella procedia de apanhar o sol , depois de emborcarem hum
copo de agoa na cabeça , os expunhao ao sol. Para dor de
tripas, nenhum outro remédio vi applicar, que folhas de
alfavaca fritas com olco rozado , ou de amêndoas doces ,
ou nnro de porco postas na barriga. Na dor de olhos, vi
tomar o sumo dos olhos de urucú , e botar nos olhos, la-
var os mesmos com agua de cozimento de limões, e un-
tar a capella com unguento feito com azeite , alvaiade ,
e leite de peito. Para as pessoas atacadas de vigilias , lhes
dão a beber a samambaia de infuzão em TÍnho.
§ 18.
Na horrível enfermidade das bexigas , em que os pais
desampárão os temos filhos , o marido a chara espoza , e
esta a seu marido e filhos, os doentes são expostos ao maior
desamparo, vi apenas applicar para sahircm as bexigas o
esterco de ovelhas desfeito em agua com mingáo de eari-
má com assucar para ser bebido, e nenhum outro remédio
applicão; se as bexigas são absolutamente malignas, todos
perecem, e as yillas se convertem emdezertos espantozos.
Tomo IX. 9 Nos
114 Memorias D A Academia Real
Nos corrimentos com dores , elles apanhão os olhos das
canas bravas , quando nascem , e pizados põem sobre hu-
ma pedra, quente , tomando aquelle bafo ; e sendo corrimen-
tos frios , untão a parte com unto de cão quente ao fogo.
Para os cravos do pé, mandão tomar suadoiros de capim ,
e ouvi dizer, se sentião bem. Na hydropezia era receitua-
do pelos Jesuítas o seguinte = Infusão de duas onças de
salsa parrilha por 14 horas em duas canadas de agua quen-
te , huma mão cheia de cevada , duas onças de aço prepa-
rado, duas de escoria de ferro, de tudo isto se fazia hum
cozimento , que ficasse em meia canada , e coado se lhe
ajuntava huma onça de sumo da raiz de lirio , outra de
sumo de folhas de rabãos , duas de senne , e ao fogo se
lhe dava huma fervura , com hum quartilho de aguardente
do reino , quatro onças de manteiga de vacca , quatro de
azeite de ruda , quatro de amêndoas doces , e outras qua-
tro de óleo de louro , fervendo tudo até se consumir a agua,
e no fim lhe deitavao hum pouco de sumo de lirio , tor-
nando a ferver hum pouco , e com isto untava-se a barri-
ga de manhã , ao jantar , e á noute.
§ 19.
Para tirar as setas , ou espinhos do corpo , tomão as
folhas de pepinos de S. Gregório com figos passados bem
pizodos, e postos na ferida : raiz de endro com mel de abe-
lhas , pós de minhocas queimadas com o mesmo mel , fel
misturado com almecega , e posto na ferida : para as beli-
das dos olhos expremem no olho o quilho branco do olho
do ananás. Querendo extrahir os vermes, que entrão nos
corpos, nenhum outro meio vi felizmente empregar se não
do emplasto de almecega sobre o lugar , e expremida a par-
te sahir o verme morto. Sendo tão frequente e incommo-
da a entrada dos bichos nos pés que produzem muitas vezes
inflammaçõcs erizipelozas , untão os pés com rczina de lan-
di rana , o que he bastante para evitar-lhcs a entrada j ou-
tros
DAsScIENCIASDeLiSJOA. II f
tros uzao da bosta de boi queimada , desfeita na polvorj ,
ajuntando o sumo de litnão. Nas impigcns untão o lugar
com o pó de arariba com azeite, c cilas immediatanuntc
desapparccem. Finalmente nas febres' malignas , u/ão beber
o sumo de limão , e o caldo da herva de sangue bem co-
zido com fedegozo , e ajuntão o cozimento do sumo de
maracujá, e limonadas do fructo do maracujamcrim , e aju-
das de matapasto , e fumo bravo , c maracujá com assucar :
nas febres intermitentes depois de vomitados , e purgados
os enfermos lhe applicao o sumo dos limões com o cozi-
mento da herva de sangue , que os xiriris chamão uukri ,
e o cozimento do fedegozo, pedra de S. Paulo, a raiz de
parreira brava, ou butua desfeita em agua , e a carimá pos-
ta a serenar, ajuntando a quina do paiz. Nos fluxos de
sangue , nas feridas uzao do pó da arvore capororoca , e al-
mecega , sangue de drago , sumo de tanchagem com clara
de ovo , e urtiga pizada. Este o curativo prático das mo-
léstias do paiz.
§ 20.
Tornando a observar o local dos ilhéos, encontrámos
ainda outro famozo rio, que o banha intitulado Espera» fa^
e por outros o Fundão , não menos importante , que aquel-
le já descrito, o qual se une ao rio da caxoeira da villa,
murado da mais singular matta , abundante de todo o gé-
nero de madeiras de construcção , e páo Brazil , assim da
parte do norte como do sul ; alli se encontrão os úteis vi-
nhatiqos , e putumujus tão buscados para a marinha , e pe-
los particulares empregados nas obras de macenaria. Que-
rendo o governador da Bahia tomar conhecimento do útil
serviço , que a marinha podia conseguir neste lugar na aber-
tura de hum corte de madeiras , ordenou por modo de ex-
periência , que aquelle se estabelecesse em tão ricas posses-
sões , c o successo correspondeu á sua expectação , rece-
bendo-se nos departamentos da marinha em Junho de 1800,
37 braços, ly cavernas para huma náo de 74, e 2p falcas
í li de
ii6 Memokias da Academia Rbai^
de vinhatlco por preços os mais proporcionados , capazes
de desafi.ir a ambição mercantil , e para pôr em movimen-
to o trabalho e a industria do povo , com manifesta utili-
dade da Real fazenda ; porem ordenando o mesmo gover-
nador a suspenção do corte das madeiras tão vantajozo pe-
la bondade delias , e favoráveis custos cm que sahião , man-
dou ao mesmo tempo expedir ordem para se fazerem re-
crutas e soldados a tal extremo, que muitas madeiras já
nas praias promptas para se embarcarem forao destruídas
do gu/.ano , por terem desamparado as povoações, todas as
pessoas que podião pegar em armas.
§ 21.
Hum paiz pobre , que não tem braços para a lavou-
ra , industria , e commercio colonial , não pode fornecer
braços , que não tem , ás tropas de linha , que sendo em
toda a parte de pezo ás authoridades das grandes nações ,
são de hum sibrccarrego immenso em paizes despovoados,
aonde a experiência tem mostrado quaes são os seus funes-
tíssimos eíFeitos. Muitos sábios tem julgado mais utilosys-
tema de tropas milicianas , onde o ministério de soldado
não he profissão destincta , nem a cargo do público , nem
a sua disciplina tão rigoroza ; parecendo talvez mais con-
forme ao interesse dos coloniaes , cntreter-se somente hum
pequeno numero de tropas pago pelo estado , e constituin-
do estes as suas forças em puras milícias, que se exerci-
tassem nas evoluções militares, sem se apartarem jamais
dos ministérios das suas respectivas profissões. O excellcn-
tissimo Marquez do Lavradio , nas instrucções , que deixou,
quando sahio do Rio de Janeiro ao seu tão digno succes'
sor o exccllentissimo Luiz de Vasconcellos e Souza , mui-
to sabiamente propõe tão útil systema de defeza , louvan-
do assaz o estado , em que ficarão as tropas milicianas ,
por elle mesmo disciplinadas ; o estado tem , alem disso a
vantagem de não divertir , e arrancar tantos braços da agri-
cul-
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 117
cultura, manufacturas, e industria, que tirados daqucllcs
importantes empregos, necessariamente se hão de diminuir
as riquc/.as do pai/.; não era forçado então o Soberano a es-
tabelecer , e augmcnrar tributos para sustentar tropas de
linha, deduzidos de fundos já desfalcados, mantendo hu-
ma classe de cidadãos, que consomem, e nada produzem;
alem de que se estragaria muito menos a população c a mo-
ralidade.
Ninguém pódc duvidar de que os milicianos com bra-
ços e corações de verdadeiros patriotas são os mais inte-
ressados em defenderem o paiz para se segurarem do go-
zo, c v?ntagcns , que nelle desfrutao ; o que não acconte-
ce nas tropas de linha, que muitas vezes tem sido traido-
ras a seus próprios Soberanos; e por isso apenas se deve
conservar hum pequeno corpo , para servir de reunião ao
indcfinito recrutamento das tropas milicianas no tempo da
guerra ; para acudir na paz a qualquer tumulto, ainda nos
confins do reino; e para fazer respeitar a authoridade do
Soberano; de mais a mais as colónias não tem que temer
lioje irrupção de bárbaros, nem pode ser de algum pezo
o pânico terror de invazão extena , pelos obstáculos que
com sigo arrasta tão temerária empreza; pois alem dosna-
turaes do paiz terem todo o interesse de fazer abortivos
os projectos de estabelecimento de qualquer nação invasô-r
ra , não era, nem tão povoado, nem tão civilizado oBra-
zil , quando com poucos milicianos , e com total falta de
soccorro do reino , que em tão críticos tempos os não po-
dia dar, sacudio em todos os pontos o jugo dos hollarv-
dczcs guerreiros , e estabelecidos já no continente : não ha
cinco annos , que poucos milicianos .em Porto seguro im-
pedirão o desembarque das tropas francezas , afiançando
por isso continuas victorias a Portugal contra os desespe-
rados que o pertcndessem surprender.
§
Ii8 Memorias DA Academia Real
§ i3-
A forma , com que sempre tenho visto proceder em
taes dilligencias de recrutas , ainda mais attcrra os povos ,
que conscguintcmente procurao por todos os meios fugir
de tão grande mal , embrenhando-se pelas mattas e certões ;
as leis que rcgulão a forma c maneira destes recrutamen-
tos, jamais tenho visto observar, antes os encarregados re-
cebem ( c muitas vezes quem os manda ) grandes utilida-
des , prendendo, e soltando conforme o favor, e o ódio
sugere ; sendo conimumente os pobres e os desvallidos os
que sao mandados assentar praça nos corpos de linha, on-
de em poucos dias, ou morrem de bexigas , ou dezcrtão
para os certões e províncias mais distantes ; sendo imprati-
cável conseguirem os governadores encher o numero das
praças vagas , e todos sabem que taes deligencias são objecto
de altas negociações dos agentes, que vendem a bom pre-
ç) a soltura daquelles , que podem com mais razão servir
a pv;trÍ3, e domarem o seu natural desenvolto com a sobor-
dinação a seus chefes , no serviço a que são destinados • por
cuja ra/So apenas se concebe , que ha ordens para recrutas ,
as brenhas immediatamente se povoao, e no centro delias
entre os horrores da fome , e mizcria acabão muitos , que
para alli se refugiao , e outros se retirão para os certões
distantes, onde se entregâo ás lavouras de algodão, milho,
c feijão , ou em negociações de gado vacum , e sua crea-
ção , e são assim approveitados , se tiverão a ventura de
cscapirem dos furores dos encarregados de fazer recrutar
os povos da marinha.
§ 24.
Nem os governadores da capitania, nem os ministros,
que tem servido na commarca , jamais tem dado algumas
providenciaes para a educação do povo , e sem que haja
hum systema de educação religioza , civil , e literária , ^ co-.
é mo
DAS SciENci AS DE 'Lisboa. 119
mo será possível obtcr-se moralidade nos cidadãos ?, e sem
esta moralidade he evidente serem impotentes as leis. On-
de a nação civilizada, que nlo se gloria de extender a ge-
neralidade de instrucção i cerca dos esscnciaes objectos da
felicidade do homem ; assim na vida temporal , como na
eterna, paraque sejao attentos aos dictamcs da consciên-
cia , e observadores escrupulozos dos deveres para com hum
Dcos de bondade, providente , remunerador, que ordena
o trabalho, e reciproca amizade entre os homens, ajudan-
do a todos , para encherem dignamente o seu fim ; ensinan-
do-lhes na contemplação para gozo do summo bem a ver-
dade, e todas as virtudes : Este oefFeito da educação chris-
tã; Hum povo assim educado, he dócil, e humano , hu-
milha-se, e obedece á voz do superior; poucas leis bastão
para a sua direcção : a despeza tendente a esta instrucção ,
he não só útil , mas necessária ; poisque a instrucção he
o contraveneno da impiedade , hypocrezia , superstição , e
barbaridade , preguiça , pobreza , e rebeldia.
§ ^S'
Aquelle desgraçado povo , não tem tido ategora hum
mestre para ensinar a seus filhos , nem ainda as primeiras
letras ; por esta cauza a maior parte dos cidadãos não sabe
ler , e escrever ; apenas tiverão hum parocho , chamado
Jozé do Amaral, digno das suas justas lagrimas, perten-
deo-o até para termo das suas desventuras. Elles tem hum
niagcstozo templo para sua matriz arruinado , e desprovi-
do das alfaias sagradas , para se celebrar com decência , e
respeito as sagradas funções do altar: assisti a huma festa,
em que as alfaias rotas, e sujas, indicavâo bem a mizeria
e desprezo da freguezia ; a muzica era composta de huma
viola e arpa desafinadas ; os muzicos erão o juiz de órfãos
da vilia , e o filho sachristão, e hum velho; e isto impri-
me não sei que descrédito á sublime religião , que pro-
fessamos , tendo-se alem disso esquecido inteiramente os fa-
bri-
no Memorias DA Academia Real
briqueiros da Sé metropolitana , a quem a Real fazenda
paga seis mil reis de todas as igrejas , paraque postas em
massa , se remedccm as necessidades de cada liuma , de re-
meter para esta os ornamentos indispensáveis. Alem da ma-
triz se vem dois outros antigos templos , dedicados , hum
a S. Sebastião , e outro a Nossa Senhora daVictoria, aquel-
Ic na borda de agua , c este no cume do monte , que o
mar lav?, e são redu/idos a cazas de morcegos, sem te-
rem as sagradas e veneráveis imagens , de que se honravão ,
o adorno competente : ainda , finalmente , se encontra ou-
tro templo, que foi dos- Jesuítas com o frontespicio no
chão , e o restante sem alguma veneração pública, ou par-
ticular.
§ i6.
^ Os necessitados e mizeraveis expostos , longe dos
hospitaes , porque mizerias não passão ? He verdade que a
lei tem estabelecido a impoziçãj das fintas, para creação
dos expostos; aporem aquelle meio, quanto na pratica se
mostra insuficiente ? Hum povo i-em cultura , consultando
sua própria vontade , e não o interesse público , julga por
oppressão taes impoziçôes, como gravozas aos seus débeis
patrimónios , ficando por tanto aquelles mizeraveis sem o
soccorro do pai da pátria : os poucos que escapão da mor-
te i porque géneros de mizerias não são sacrificados ?
$ 27.
Não contribuio pouco para a incivilização e pobreza
do povo , o não serem frequentemente vizitados por minis-
tros sábios e prudentes: tinhão decorrido vinte annos , sem
que os ouvidores fossem áquella villa , sendo eu o primei-
ro que nella entrei depois de tantos annos ; se não para
remediar os males , ao menos para apontar o remédio , e
consolalos ; ficando muito distante das outras villas aqueU
la , por caminhos de terra incoromodos e dezertos , não achao»
do-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. IJt
do meio de recompensar as fadigas, c incommodos de hu-
ma tal vingcm , fyltando alli ocommercio, a navegação,
c riquc/.as , niío se podem encontrar cauzas , cujas assigna-
turas igualem as despezas feitas , o que faz que os ouvi-
dores deixem de hir alli de correição , não tendo outro or»
denado , que trezentos mil réis, insufficicnte para sua de-
cente mantcnça , c de suas famílias; por tanto será absur-
do esperar, que elles facão prodígios de integridade , e re-
zistão a corrupção, e venalidade; cheios de necessidades
renascentes , e não suprimidas de huma maneira adquada á
sua graduação civil ; se não tem rendimentos próprios de
hum fundo permanente , hão de buscar a subí-istencia por
outro género de occupação ou trafico, senão chcgao mes-
mo a devorar a infâmia , com escandalozo dcscan.mcnto de
receber peitas de interessados no êxito das couzas, e mi-
nistérios da policia, e economia do paiz; sendo impossível
em tacs cazos exercer dignamente ministério de tanta de-
licadeza, e confiança, distrahindo-se em minuciozas merce-
nárias, e sórdidas occupaçoes lucrativas; poisque em tal
cazo a administração da justiça cm lugar de ser o azilo
da innocencia , e do direito, se converte em receptáculo
da mais facínoroza im moralidade , e corrupção.
§ 28.
Ho o desinteresse no serviço público , o mais grande
ornamento do magistrado ; mas nem por isso o governo de-
ve deixa-lo sem a decente sustentação ; pois olhando-se para
a natureza humana , se não pode acreditar que o homem
de talento, virtude, e espirito independente, queira antes
morrer de fome , como se expressa o sábio Edmundo Burke ,
na sua falia ao parlamento de Inglaterra , passando por in-
dcccncias , importunidades , e tortura dos seus amigos do-
que procurar a sua côngrua subsistência á custa do públi-
co , para quem assidua , e ardentemente trabalha : he mui-
to honesto c gloriozo , a quem possue património solido,
Tomo IX, q ser-
122 Memorias da Academia Rkal
servir ao seu Príncipe, e a pátria sem salários, ou recom-
pensa; mas também não hc menos da dignidade Real, não
receber gratuitos taes serviços , que pode pagar: e se ou-
tro patriota animado dos mais puros motivos se oflfcicce a
servir assim , renunciando a paga do estado , muitos se afoi-
tarão com hypocrito zelo a blazonar de desinteressados com
o sinistro designio de completar projectos de ambição, e
malignidade ; e todo o mundo está bem persuadido , que
ellcs se indemnizarão por meios clandestinos, c infinitiimcn-
tc injuriozos , e prejudiciaes ao público : não ha muitos tem-
pos , que os cortes de madeiras , tendo sido encarregados a
administradores pobres, sem ordenados, ellcs sahirao ricos
da administração , que poucos annos exercerão , deixando
hum delles á sua família huma propriedade de duzentos mil
cruzados.
§ 29.
Ora tendo o ouvidor dos Ilhéos tão pequeno ordena-
do, he consequência, que cm lugar de se entregar todo
ao público, para promover os seus interesses, eo dos po-
vos , se prepare a fazer as correições rendozas , promoven-
do os pleitos , armando a intriga , as chicanas forenses de
todos os seus embustes, para desunir os povos , consumir,
e dissipar a sua substancia, transmettindo de família em fa-
milia implacáveis ódios, que as frias cinzas das sepulturas
não tem força para extinguir; e por este motivo o escri-
vão mais velhaco , sem honra e moralidade , he o mais digno ;
poisquc eem o seu ministério se não pode colher os sazo-
nados fructos da malicia, nem conseguir-se com insaciável
sede de dinheiro a rendoza correição, acompanhando a rá-
bolas sem vergonha , e immorigerados , que ajuntão lenha
á fogueira da discórdia, para terem parte em tão infame
partilha.
§ 30-
He sem duvida muito conveniente ao bem público a
es-
DAS Scien(MAs'd"e Lisboa;' .tij
escolha dos ministros sábios, que ponhaofa^^sua gloria cm
sacrificar as suas pessoas, e;tempo ao'^'st'ÍViça\do' fcsradò
na certeza , de que cstepwVfetá na slia côngrua sustcíitiição
em maneira, que* possa viver, e apparecer c( m decência',
attrahindo pela sua irreprehensLvél conducta e decente faus-
to o respeito, e veneração do povo , que commbmcritc
SC rege por exterioridades. Alguns ministros, repres'entando
ao throno o augmcnto -«.los ordenados ,. foráo estes acrescen-
tados por consulta do conselho ultramarino , aos ouvidores
de Pernambuco, S. Paulo, capitania do Espiriio ' Sjnto ,
Angola, &c. , e não sendo creada iiàquelle tempo a co-
marca dos Ilhéos , ella ficou tendo o ordenado da sua crea-
ção, igual áquelle, que percebe o ouvidor da Bahia, d'on-
de esta commarca foi separada , com o que não he possi'
vcl nianter-sc hum magistrado com á decência , e frugali-
dade, que convém.
§ 3i«
Continuemos a observar a natureza dos terrenos , que
ficão ajsul dos Ilhéos, onde terminao os districtos de sua
juri^di';ão. ,; Quem não pasmará vendo vestidos todos os
seus immensos bosques de madeira' de construcção , alem
do páo Brazil , do Jacarandá , e' tantos outros cortados por
navegáveis rios , como mais a baixo se verá ? Entrando na
costa cm busca de Olivença por três legoas de praia , se to-
pa no meio o rio Cururupe , que veda a passagem aos vian-
dantes de maré cheia , deixando sem embaraço porem o ca-
minho os dois ribeirões do Tapoan e Maranhão appellida-
dos , que no-mar buscão esconder-se com os outros riachos
Sirihlba e Panuna , hum quarto de Icgoa antes de se avis-
tar a povoação , sahindo do campo do Tapoan por entre
as pedras aggregadas , cobertas de ferro e vetriolo.
§ 3^*
Reinando o Senhor Rei D. Jozé i.°, por provizão
Q ii de
IJ4 Memorias DA A c ADEMiA. Real
de 21 tlc Dezembro de I7j8, foi levantada cm villa n
povoação de indios , que na<juelle lugar vivjao debaixo do
governo jesuítico , dando-lhe o ouvidor da ^ahJa í^uiz Frei-
re de Veras o titulo de villa nov^ de Olivença, eoíQ as in-
strucçôes do direito, feito para os indios do Maranhão, He
situada aquclla villa em hum aprazjvel monte superior ao
occcano , que o refresca de saudáveis e permaneotes virações ,
com huma bella igreja de pedrg , e cal , da invocação da
Senhora da Escada. Consta a povoação de quinhentas ca-
zas, os naturaes vivem quazi nús, conjo se das mãos da
natureza tivessem prezcntcmcnte sahido ; as su;iS cazas sÍo
feitas de taipa, coberta? de palha, faltando lhes as neces-
sárias accommodações para as suasdiffcrcntcs familiàs ; o or-
nato delias consiste na rede de algodão, que tecem, no fo-
go , que lhes serve de cçbertura , e no pote de carum , com
que se refrescao ; estas as suas alfaias; os filhos, e filhas
innocentes são antecipadaniente corrompidas pela vista bru-
tal , com que os pais de continuo satisfazem diante delles
o fogo da concupiscência. EUes são oriundos da lingoa ge-
fal , robustos , membrudos , sadios , e tão fortes , que em seus
hombros carregâo hum homem por do^c legoas no dia j
tão ágeis, e capazes de todo o serviço; destros falqueja-
dores, e bons torneiros: a sua ordinária occupação consis-
te, fora da cassa, ou pesca, em que mais as mulheres tem
parte , em fazer cordas de imbé , coptas de rezar , cocos
de beber agoa , esteiras , cestos, obras de tataruga , e ou-
tras galanterias; e os lucros que dahi percebem vão imme-
diatamcnte entregar nas tavernas deUhéos, ou nas estabe-
lecidas pelas fazpndas situadas á margem da costa.
§ 33'
As instrucçoes do directório feito para os indios do
Maranhão , tão imperfeitas , e impróprias em certos capítulos ,
não podião produzir algum effeito saudável a favor dos in-
dios, antqs sim perpetua-los na inçivilização, e selvajaria;
* * mui-
I
n AS SciEKCIAS DE Lis BOA. IIJ'
muito bem concebidas trao sem duvida as providencias
da carta Regia á poucos annos expedida aos governado-
res , durante o ministério do secretario de estado do ultra-
mar Dom Rodrigo de Souza Coutinho, annuindo Sua Al-
teza favoravelmente ao que lhe havia proposto , a respeito
dos Índios do Pará, o Excellentis';imo governador Dom Fran-
cisco de Souza Coutinho , cuja carta Regia , concebida
nos termos mais sensatos e humanos , produziria na sua exe-
cução os mais belJos cffeitos , poisque entre outras cou-
Z3S , ordenava o cazamcnto das indias com os portuguczes ,
(a) o que sem duvida abriria a porta á civilização dos fi-
lhos , que adquiririão pela união com os portuguezes os
seus mesmos costumes e educação.
§ 34'
Sahirão os índios das mattas, e vivem ainda nas po-
voações, como SC não tivessem tido algum ensino: j que
educação christã , e politica lhes inspirarão os mizeraveis
directores ignorantes, que procurão aquclle lugar pela té-
nue pensão de sessenti mil réis ! j Que moralidade lhes inspi-
rará, prostituindo a virgindade das indias, com quem logo
seenlação! [Que exemplos de virtude lhes dará oparocho,
chamado , não por Deos , mas por violência aos mandados
do seu prelado , cu por interesse , não tendo huma corí-
grua sufficiente para manter-se , e que não quer approvei-
tar-se do retiro, para enriquecer o seu espirito de luzes,
buscando só na satisfação de impuros dezejos , e em tor-
tuozos meios, huma subsistência menos precária!
(a) Nota doauthor = Aiudaque senão podessem verificar tão ufeis
pffi-itos daquellrs cazamentos com os pais , que pelo seu estado de bru-
lalitiade são mais propensos para as negras; contudo era iuuegavel cou-
scguir-se dos filhos que principiassem a ser bem educados.
126 Memorias da Academia Real
§ 3^
Não he insensível aos índios o seu máo estado : e!leg
me rogarão , servindo de ouvidor , que lhes desse hum di-
rector, que ensinasse os seus filhos, e hum parocho, que
lhes desse bom exemplo ; provocando-me até as lagrimas ,
a expressão das suas magoas , e ainda mais ardentes demon-
strações de alegria , com que saudavao os augustos nomes
dos nossos Soberanos, rogando-me com muitas instancias,
quizesse remettcr para o reino dois de seus filhos a apren-
derem as sciencias naturaes , que elles se obrigavão a pôr
em porto de embarque annualmente para sua sustentação ,
vinte dúzias de pranxóes de jacarandá, e sem perda de tem-
po os forão cortar ; projecto que se mallogrou , por lhe
obstar o déspota daquelle lugar ; e pelo pouco apreço , que
o governador fez de semelhante propozição.
§ 3(5.
Nenhuma povoação de indios está mais atrazada do-
que esta na civilização. Com clles , á excepção do parocho,
c director, não vivem portuguezes , e só de passagem en-
trão na vílla a vender-lhes aguardente , ou alguma estopa ,
e por ella trocarem os seus cíFeitos. As mulheres nuas não
sentem as bellezas do ornato , e de se fazerem amadas ;
contudo .pelas observações que tenho feito , não posso con-
cluir serem elles de huma raça tão estúpida, como se de-
clinia, incapazes de adquirirem idéas de religião , e de per-
feição , para serem acommodados ás instituições da vida ci-
vil , aindaque não seja menos certo, que no estado actual,
sem muito trabalho , paciência , e tempo , não he possível
elevar os pais ao menor gráo da civilização.
DAS SciENCiAs DE Lisboa. 127
§ 37»
He certo , que sobre o caracter geral dos indios se
tem dividido em opiniões os filósofos ; alguns na descober-
ta do novo mundo , espantados de verem tão vastos conti-
nentes , occupados de huma raça de gente nua , timida ,
ignorante, sustentarão insensutamente , que esta parte do
globo tinha ficado mais longo tempo coberto das agoas do
mar, que a antiga terra conhecida, imprópria de ser habi-
tada pelo homem , parcccndo-lhcs continuamente encontrar
vestígios de hum nascimento moderno ; concluindo que os
seus habitantes , chamados á tão pouco tempo á sua exis-
tência, erão inferiores áquelks do antigo mundo: imagi-
narão outros , que taes homens dominados pela influencia
de hum clima pouco favorável , que enfraquecia o princi-
pio da vida , não podião chegar pela sua natureza ao grão
de perfeição , ficando hum animal de huma classe inferior,
sem força na sua constituição fiiica , sem sensibilidade e vi-
gor nas suas faculdades moraes : outros finalmente de
diverso parecer pretenderão, que o homem chegava ao mais
alto grão de sua dignidade e excellencia ; não chegando a
tocar o estado de civilização , afirmando , que na simpleza
da vida selvagem possuião huma elevação da alma , e sen-
timentos de independência , calor de affectos , que inutil-
mente SC poderia encontrar nos membros da sociedade ci-
vil , concluindo, que o estado do homem era tanto mais per-
feito, quanto participava menos da civilização , systemas in-
teiramente erróneos,- absurdos, mutilantes, e antireligio-
zos , com que pretenderão enganar os ignorantes.
§ 38.
Não se pôde duvidar, que, assim aquelles indios, co-
mo todos os do Brazil , a quem tenho observado , e vizi-
tado suas povoações , e com elles concorrido , vivem entre
si
128 Memorias da Academia Real
si sem alguma união , como independentes , pelo vicio da
organização moral e civil. Antes de se aldearem , vivião
nas cabeceiras das mattas , errantes de huns a outros luga-
res, acoutando-se deb;.ixo do manto danoutc, para de ma-
drugada fazerem suas incursões hostis sobre as povoações ,
mandando nas pontas das taquaras envenenadas a morte
dqucllcs , que caliião desacautcladamente nos seus braços.
Todos são de huma mesma côr , e forma , vermelhos es-
curos , cabellos negros e compridos sem barba , cara redon-
da , testa pequena , as orelhas compridas , grossos os bei-
ços , o nariz chato, olhos negros c pequenos, sem pello
em todo o corpo , ágeis , desconfiados , dotados de força ,
indcffcrentes commumente a todo o motivo de interesses,
ou de reconhecimento.
§ 39-
Alguns pretenderão, que a falta de barba, e de pel-
lo no corpo era fraqueza , e vicio da organização fizica ,
e a sua particularidade attribuião aos alimentos insípidos,
que uzavão; e outros ao pouco alimento, que tomavao ;
nem hum , nem outro motivo porem tem razões solidas em
que se firme : sofrem , he verdade , os Índios a fome mais
que algum outro homem ; mas quando tem que comer ,
são insaciáveis na voracidade , com que satisfazem aquelle
appetite : os que estão , e vivem nas povoações fazem tam-
bém uzo dos salgjdos , o que não hc possível aos que vi-
vem errantes nas mattas. O calor da zona tórrida , disserão
outros, influía na fraqueza da sua constituição, e que daqui
vinha o desprezo, com que tratavao as suas mulheres, su-
geitas commumente aos trabalhos mais fortes : hum tal absur-
do he por todos os princípios insustentável. ^- Quem dirá,
que a paixão do amor destinada á união social, e como hu-
ma fonte preparada pela natureza de ternura, e que mais
ardentemente abraza o coração humano , seja commum ao
homem civil , e ao selvagem ? Se as mulheres são delles
tratadas com frieza, e indifferença , ^nlo he para admirar,
quan-
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 129
quando vemos, que nas sociedades polidas, onde as pai-
xões tomão outra energia , e que a religião faz adoçar as
suas penas e trabalhos na sustentação, c educação da pro-
le, e de toda a f..mili.i , que muitas mulheres são entre-
gues á dor, e á desesperação, pela indiff^rença , c n-esmo
desprezo de seus maridos ? Sc o índio olha a mulher como
interior a si , não í-e occupando de ganhar o seu íflPecto
por continuos cuidados e serviços , e menos de conserva-lo
por complnccncia , e doçura, he porque a paixão do amor
parece nelles mais antes hum instincto da natureza , e por-
que lhes falta a delicadeza de sentimentos da religião ,
que dá vigor á sensibilidade da alma , e que a penetra das
mais ternas aflFeições , que dirige o amor á racionabilidade
e pureza , que he própria do sacramento ; ^ e dizemos , que
se não acha o mesmo nas sociedades polidas , onde ha
tanta variedade entre os dous sexos , e explosões tão hor-
riveis , c espantosas ?
§ 40.
He verdade , que os índios não tem idéa de castida-
de-, nem he virtude que aprecião pela ignorância , em que
vivem, e pela falta de instrucção nas cousas da fé, e cren-
ça , por cujo motivo são os pais muitas vezes , os que
aguilhoando a innocencia da filha a corrompem , e os fi-
lhos não tem horror de se ajuntarem com as parentas , e
mesmo com suas próprias mais. Tanta he a cegueira , em
que vivem pela falta de educação civil e religiosa ; vicio
não somente a ellcs familiar, mas ainda aos colonos desta
comarca; poisque as devassas geraes da correição estão
cheias de semelhantes horrores, commettidos ainda por ec-
clesiasticos depravados , e corrompidos em hum excesso o
mais incomprehensivel : he daquclla mesma fonte , que sa-
Jicm todos os inacreditáveis horrorçs de entregarem os ín-
dios as suas mulheres > e mesmo as filhas , por aguarden-
7omo IX. R te ,
ijo Memorias DA Ac ADE MIA R EAL
te, a que são nimia, e desgraçadamente propensos, e pela
qual tudo sacrificáu.
§ 41.
D'onde vierão os índios , e a maneira , por que se
passarão ao novo mundo, he questão difficil de resolver;
porque a obscuridade dos passados séculos nenhuma me-
moria transmittio aos presentes : se alguma violenta con-
cussão de tremores de terra violentos separou ou não o
Krasil das três partes do mundo , ninguém pôde segurar.
He certo, que no Brasil senão vio exi>tencia, ou vcstigios
de animaes da Europa, Ásia, ou Africa, que he bem na-
tural se topassem , se este paiz fosse algum dia communi-
cado com aquelle antigo mundo. Somente as observações
dos filósofos modernos parecem decidir, que a comnumi-
CJção proveio de alguma colónia de Tártaros pelo nordes-
te da Ásia ; havendo muito bons razões para suppôr-se ,
que os antepassados das nações da America, desde o cabo
de Horn até ás extremidades meridionaes do Lavrador, vic-
rão antes da Ásia que da Europa , poisque entre aqucUes
asiáticos , e os americanos ha muito grande semelhança ,
a-^sim na sua constituição fysica, como nas qualidades mo-
raes , que dão fundamentos de concluir , que os asiáticos
estabelecidos nas partes da America , onde os Russos des-
cobrirão a visinhança dos dois continentes , se espalhariao
por gráos a diversas regiões da America , idéas que pare-
cem muito conformes com a tradição dos mexicanos, po-
vos os mais polidos da America, que pretendião, que os
seus antepassados viessem de hum paiz situado ao nordes-
te do seu império , sendo os lugares , que clles indicarão , pre-
cisamente aquclles, em que se suppõem vierão da Ásia os
Selvagens tártaros. No governo do Exc."'" D. Rodrigo José
de Menezes forlo achados nos certóes da Rassaca perten-
centes a esta comarca , em lugares desertos , pelo capi-
tão mór João_Gonsalres da Costa, vários pedaços de loiça
da
DAS SCIENCI AS DE LiSBO A. i^i
da Ásia com jcroglificos orientaes ; os qtiaes forao remet-
tidos para se verem na Academia Re.il das Scicncias de Lis*
boa; c atégora não pude s..ber o que elles indicaváo, nem
quacs scriáo as opiniões dos sábios a este respeito.
§ 42-
Continuando a ver a costa para o sul de Olivença até
o rio Aqui, di-stancia de 3 Icgoas e ^, encostado ao mar,
se encontrão matas prodigiosas : mas não admitte o lo-
cal desembarque favorável pela braveza da costa O rio
Aqui, que desemboca no mar, nasce de huma ribeira raza ,
que fica ao norte da serra chamada das Baitarafas : pelo in-
terior das matas admitte navegação de canoas por alguns
diiis, e engrossa a sua corrente as aguas de hum ribeirão,
que nelle desagua , deitando hum braço para o sul , pelo
qual he navegável dois dias de canoas em tal tórmu , que
se não toma váo em algumas paragens , e elle tem a Fua
origem da serra grande , apanhando o rio Maruhi , que ao
mar vem terminar a sua correnteza: os bosques, que vadea
e banha, são cobertos de infinidade de sipipiras , jacaran-
dás, e de outras muitas preciosas madeiras.
§ 43'
r
Segue a costa com pontaes de arêa d'aquelle ao rio
Messo por espaço de duas Icgoas, o qual desagua no mar,
vindo de hum braço do rio Maruhi , que se une ao rio
que de Una se appellida, e se topão entre este e aquelle
rio duas pequenas lagoas , situadas , huma para o norte de
hum quarto de legoa de comprimento , e desemboca as
suas aguas no rio Maruhi,' quiàndo pelas trovoadas tras-
borda das suas margens, e fora des-ta occasiao parece hu-
ma agua morta, aindaque se embravece com os nordestes,
c no seu seio cria peixes de agua doce. A lagoa do sul
desagua no rio Arassari mostrando suas alegres vatjarias
R ii pa-
131 Memorias da Academia Ríal
para a crcaçiío do gado vaccum , e para todo gcnero de
lavouras, de que atcgora se vê privado.
§ 44.
Continua a costa em pontaes até o rio Arassari , dis-
tante daquelle huma legoa , o qual nasce no rio Maruhi,
e este na serra das Baitaraças, c velozmente corre para o
rio Una, revestindo assim as suas margens, como todo o
interior dos bosques , de todo o gcnero de madeiras de
construcção , e hum quarto adiante ficao os pontaes da bar-
ra do rio de Una , que nasce do Sincori do rio de Con-
tas das Minas , navegável muitos dias de viagem , e unin-
do a sua corrente com a do rio Maruhi , faz barra ao
mar com 7 palmos de agua no baixamar , cuja barra , sen-
do de arca , se fecha com os estes , e se abre no tempo
que rcináo os ventos sul , sudoeste , &c. Encaminha-se es-
te rio duas legoas para o sul ao lugar chamado Captai ,
e dahi procura ao poente hum quarto de legoa , e de lá
vira ao sudoeste meia legoa a t)par o braço do sul, onde
volta para o nordeste com algumas pequenas voltas , bus-
cando porém ao poente até á primeira pancada , que he ra-
ra, e depois de ^ de legoa ao Poção assim chamado por
ter hum fundo de 14 braças ; e então se encaminha direi-
to ao braço grande, acompanhado de terras montanhosas,
vestidas de angelins , óleos , sucupiras , jacarandás , e vi-
nhaticos. AUi se topa hum banco de 1 3 palmos de alto , e
dalli por diante, ora para huma, ora para outra parte se
achão cachoeiras raras , pelas quaes os índios acommettem
em suas canoas a navegação em huma legoa de distancia.
§ 4S'
O braço do norte dirigindo-se a nordeste, procura a
cachoeira do sul, navegável de canoas, aindaque com al-
gum trabalho ppr. 3. a 4 dias de viagem. Como deita hum
_,^ ■ ^ bra-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. I3J
braço ao sul , este se dirige para o interior da serra. Na
beira do rio na visinhança da costa moráo alguns índios
de Olivença, e só o capitão mór dcllcs , faz aIJi as suas
lavouras de arroz , e mandioca , e tece cabos de cmbira ,
e os poucos que se detcm naquelle lugar se entretém nas
pescarias para sua sustentação. O governador que foi da
Bahia, D. Fernando José de Portugal, mandou abrir n'a-
quclle lugar hum pequeno córtc de madeira de construcçao
por experiência , e se fizcrao vinte peças , que alli ainda
existem.
§ 46.
Faz naquelle lugar a costa três grandes enseadas para
a barra de Comandatuba em distancia de 4 legoas. Nasce
o rio de Comandatuba acima da serra das Bjitaraças, e a
sudoeste forma sua barra ao mar com f palmos de agua,
fazendo hum pontal de 300 braças, e o rio com tortuosas
voltas se dirige a barra do rio Puxim, que trazendo sua
origem do rio Patipe , ou rio Pardo, forma naquelle lugar
a sudoeste formosa embocadura ao mar , com 20 pal-
mos de agua , bordadas as suas margens , e o interior dos
bosques de todas as preciosas madeiras para construcção e
macenaria. Em outros tempos foi povoada de alguns co-
lonos , que estabelecerão a sua subsistência pela lavoura da
mandioca , e se levantou huma igreja de freguezia a'qucl-
les habitantes, da invocação de S. Boaventura; mas des-
graçadamente se poderão conservar pelas frequentes incur-
sões do gentio Pataxó , que 40 annos infestarão, e perse-
guirão a povoação, pondo aos moradores era tanto aperto
e desesperação, que desampararão o lugar, e se refugiarão
para Patipe. Acaba aquelle rio no Porto do Mato , e he
a sua navegação de barcos desde a Comandatuba de 6 a
8 horas de viagem ; nas margens do rio , e á flor da ter-
ra, se encontra prodigiosa quantidade de pingos de agua,
e alguns topázios, e ouro.
§
134 Memorias da Academia Real
§ 47*
O Porto do Mato he huma pequena povonçao com
onze casas , as quacs vivem da caça , c pesca , e ca insi-
gnificante lavoura, que fazem de mandioca e feijão; ella
he huraa ilhota cercada de hum lado dos rios já mencio-
nados , e do outro do mar salgado , em tanta forma , que
do porto da povoação, em dit,tjncia de '- àc legoa , >sc to-
pa o rio salgado, onde desagua ao mar o rio Patipe, que
forma huma restinga de mar , indo a costa por fora , e o
rio por dentro , até sahir aquelle pela barra íóra , ficando
no meio a ilha ch-imada Patipe , cuja barra he de 9 pal-
mos de agua na baixamar com 30 braças de largo, e o
seu canal se dirige a este, voltando para sueste a caminho
do sul. Aquelle famoso rio tem seu nascimento no rio
Pardo , e com aguas do rio da salsa , e hum braço de Bel-
monte , ou Jatinhonha , forma duas barras visinhas huma
da outra , com fundo , huma de 7 , outra de 9 palmos de
agua na baixamar muito mais larga , que a do Patipe, e
os terracs soprando livre do embaraço dos mangues , presta
aos navegantes a mais prospera sahida , e segurança : são
conhecidas, huma debaixo do nome da barra das Canaviei-
ras, c a outra da Embuça, distantes 3 legoas da de Pati-
pe : c como o mar , e correntezas do rio vão cavando o
seu leito, he de esperar, que rompendo os rios para o sal-
gado, para onde já a natureza os encaminha, com bem pou-
co trab.ilho , conseguida a abertura , formará hum canal mais
fundo para navegarem por elle embarcações de maior porte
das sumacas : corre actualmente o canal das barras a este.
§ 48.
Tem o rio de fundo 16 a 20 braças, aindaque em
algumas partes menos: he navegável por 30 legoas, an-
tes de mostrar a primeira cachoeira j .as suas margens , c
in-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 135'
interior dos montes descobre, aos que ncllas entrão, toda a.
qualidade de madeiras de construcção, e maccnaria , o páo
brasil das duas espécies conhecidas , os atartcrugados jaca-
randás, e todos quantos úteis arvoredos se podem desejar.
As ribanceiras e veios do rio contém pingos de agua , cris-
taes , ouro , e diamantes ; e o sábio mctallurgib^ta nelle
acharia vastas campinas para estender a esfera dos seus co-
nhecimentos, com grande utilidade da historia natural, e
proveito incalculável do património Real.
§ 49-
^ Que seguros interesses não perceberia a marinha no
estabelecimento de cortes regulares de madeiras naquelle
lugar , que por estarem á borda da agua evitava a grande
despeza dos transportes de terra, e muito principalmente
por se acharem alli como juntas em viveiro todas quantas
espécies a marinha emprega ? Quasi todas as arvores dão
nestes férteis bosques os precicsos liames , as grandes ca-
vernas , curvas , braços , &c. Paraque a utilidade do corte
se fizesse mais palpável , foi , a minhas instancias , aberto
hum corte de experiência, e o arsenal de marinha já vio,
e verá o de Lisboa por se remetterem na nova náo os
páos alli cortados para cavernas, aposturas , e braços; ten-
do sido já entregues no departamento da Bahia 90 dos
ditos páos, além de 5- mastros, 1 verga, e 4 falcas de
vinhatico , os quaes forâo conduzidos em hum barco, que a
meus olhos fiz construir de 93 palmos de quilha, com 32^
de boca, que sem algum risco entrou e sahio pelas barras,
ora de Patipc , ora de Canavieiras.
§ fo.
Aquelle corte de madeiras forneceria a huma e outra
marinha todos os liames para os maiores navios pelos mais
favoráveis preços: as rodas de proa de 3a pés de compri-
do.
136 Memorias da Academia Real
do, cora IS pollegadas de largo, e 20 de grosso alli
cortadas , ficarão no porto de embarque por Ucoo reis :
hum dos mastros, que chegou a maior despeza de 6o<j) reis,
foi vendido no Arsenal da Bahia para hum navio de com-
mcrcio por 6oo(J) reis. As curvas grandes para turcos, as
cavernas mestras no porto de embarque apenas chegarão a
despeza de 6 a 8(í) reis. Além disto o rio he abundantís-
simo de todo o género de saboroso pescado ; as mtsmas
capoeiras (a) são tâo férteis , que produzem com admiração,
e espanto do lavrador cem sirios de farinha por mil co-
vas de mandioca; cem, c duzentos alqueires de feijão por
hum de semente ; cem sirios de arroz por huma medida :
o milho alli produz igualmente bem , e dá muito boa co-
lheita sem mais industria doque as queimadas para a pro-
ducção das sementes , que com tanta vantagem a natureza
offcrcce aos colonos , sollicit.indo-os para serem felices pe-
la agricultura , poisque com pouco trabalho podem con-
seguir commoda sustentação, e prospera fortuna.
§ yi.
Apartando-se o viandante das margens do rio em hura
só dia de viagem pela terra dentro avista prodigiosas pla-
niccs , que catinga são chamadas, as quaes se dirigem ás
cabeceiras do rio de Contas e rio Pardo. Aquellas var-
gens abertas e frequentadas por huma estrada geral áquel-
les ricos paizes , ^ que riqueza não produziriâo ? O rio
Pardo cncostando-se ao sul , corre apressadamente , logoque
o avista a misturar nclle a sua rápida corrente; e por tan-
to a distancia da terra , que o separa he de 25- a 30 le-
goas, pouco mais ou menos: quando succedem as enchen-
tes do rio, vem algumas vezes parar na povoação da barra
o gado morto , precipitado nas aguas daquelles certões cul-
ti-
(a) Chamão-se capoeiras as matas baixas produzidas, e creadas em
(crreuos , que já forao agricultados.
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 1^7
tivados da resaca. No meio da mata vivem muitos índios
selvagens , que muitas vezes descem até ás feitorias dos
cortes de madeira , em lotes de 30 a 40 , e se rctirão sem
causar damno , na caça e pesca entretidos , errantes na-
quclles bosques á margem do rio ; os quacs sem duvida
reconciliados , sendo com brandura e caricias buscados , aju-
darião a abrir aquclla tão útil e necessária communicação ,
cstabclccendo-se novos registos para impedir a extracção
dos diamantes, e do ouro , cm que abunda aquelle rio , prin-
cipalmente no braço do rio de Salsa , que vem do Jetinho-
nha , por falta de cuja communicação os contrabandistas
impunemente se ousao aos projectos insaciáveis de desco-
brir, e recolher os occultos haveres, alli pela natureza de-
positados , para engrandecer o throno , e para fornecer
a industria , e as artes de muitas vantagtns desconhe-
cidas. ^ Que meios tão seguros de subsistência não forne-
ceria aos habitantes de Ilheos definhados de miséria, e de
pobreza? Os índios, civilisados por huma maneira própria
e conveniente, attrahirião outros a seu exemplo, com o
soccorro daqucllas pequenas cousas , que a Real fazenda
costuma repartir em seu beneficio. Seria aquclla entrada
mais frequentada que nenhuma outra pela planície do cami-
nho , e pequena extensão delle , e pela commodidade im-
pagável dos pastos naturaes, nas margens do rio Pardo,
para sustentação da infinidade de animaes , e finalmente pe-
lo soccorro do sustento do peixe , que o mesmo rio am-
plamente fornece.
§ j-i.
As extensas e férteis campinas de pastos naturaes en-
gordarião os gados descidos dos certões , para fornecer de
carnes não só a faminta comarca dos Ilheos , mas a me-
tropoli cidade de todos os Santos ; e assim as carnes, como
os couros estabelecerião novos ramos de economia , e inte-
resses públicos , bemcomo os queijos e manteigas extra-
Tomo IX. s hi-
ijR Memorias da Academia Reai.
hidas das vacas, que á borda d'agua nas margens salitro-
zas eiigoidão , c dao abundantemente o precioso leite , e
pela commodidade d* exportação por mar para a cidade ,
darião novos alentos ao cultivador, e productor, com ale-
gria e satisfação de emular aos da Europa , trazendo os
seus queijos e manteigas ; com o que hum novo género
de commercio. colonial renderia ao throno votos fieis de
corações agradecidos, e afortunados; poisque aos bcnefi-
cios do governo dcviao tao importantes interesses.
§ 53-
j Estas incomparáveis vantagens forão por mim repre-
sentadas ao sábio , e incomparável governador Francisco da
Cunha Menezes , elle annuio favoravelmente a tão justas
spllicitações , ordenando ao capitão mor da conquista João
Gonsalves d? Gosta , paraque á custa da Real fazenda
abrisse buma picada , pela qual elle podesse exactamente
cooiprchcnder a brevidade e bondade desse novo caminho j
rnas desejando fechar a porta a' calumnia dos ânimos inve-
josos, e turbulentos em offiçio de 37 de Setembro de 1813
offereci ao mesmo governador abr:-!o á minha custa; e elle
deixou para huma conferencia pessoal a resolução, que sem
duvida será sempre conforme aos inalteráveis princípios ,
que dirigem o seu sábio , c luminoso governo.
§ 5^4.
Na enseada do Furado da parte do sul de Canaviei-
ras , entra o rio intitulado da Embuça, o qual descendo do
caoal alli formado , chamado por todos o Fttrado , entra
para o rio conhecido pelo nome do rio da Salsa, em ra-
auoi de estarem as suas margens cobertas de salsa parrilha
de Fonduras; o qual rio cncaminhando-se ao sul, por dis-
tancia de í legoas se mistura com o ribeirão , que vem
do rio de Belmonte, ou Jatinhonha, com o nome de Peitasr
Stty
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. T39
sti , o qual engrossando a sua corrente no rio Sdlsa a
encaminha para o certáo , até o lugar que de Banibuzal .
tem o nome \ deste então se faz necessário arrastar as ca-
noas por causa dos saltos, e pancadas, que são alli for-
madas , margeadas as vargens de todo género de madei-
ra de construcção , e macenaria , e logoque se vadca
aquclle lugar, corre o rio por hum leito limpo, e fundo
por 3 legoas. O rio da Embuça se dirige até á barreta
das farinhas, e termina na distancia de huma Icgoa na bor-
da da praia , e o rio Grande procura em caminho do nor-
te a povoação de Canavieiras , e Patipe.
§ 5S-
Ao sul de Canavieiras , huma legoa , prosegue o rio
chamado Jacaré , onde finda o que vai para Belmonte (que
era a antiga divisão da comarca dos Ilhcos com a de
Porto seguro) no lugar chamado o Fezo de Belmonte. São
aqucllcs fcrteis e importantes lugares quasi ermos , pois-
que apenas se encontrão 37 casaes na povoação de Cana-
vieiras , aonde existe a freguezia da invocação de S, Boa-
ventura, cuja igreja de taipa coberta de telha he despida
de todo ornato , e decência conveniente a lugares da
publica adoração ao supremo creador. Em Patipe habitao
14 casaes, e na Juliana hum, no Porto do Mato, como
já disse , II, em Puxim 3 , em Una 5^ , formando todas
estas pequenas povoações em tão desvairados lugares , hu-
ma associação de 5-00 pessoas , unidas por vinculos des-
iguaes , compondo-se a maior parte de mulatos e índios ,
e he de admirar vcr-se em huma mesma farailia gente de
todas as cores , sendo huns brancos , outros mulatos , e ou-
tros laribocas da mistura com os indios e pretos, que bus-
carão naquelle favorável asilo , tudo o que podia favore-
cer a mais cómmoda e tranquilla sustentação em hum cli-
ma benigno e fértil , cortado de rios navegáveis , não lhes
restando para ultimar projectos da mais completa felicida-
:í ii de,
140 Memorias da Academia Real
de , senão o que contribue em seu soccorro entre a indus-
tria , e o trabalho do homem.
§ yó.
Aquellas tão prodigiosas matas , na distancia de 4 le-
c;0as , torão tombadas á minha custa para o património
Real , por se acharem aquellas devolutas , parecendo desti-
nadas pelo creador aos importantes fins da grandeza, e es-
plendor da marinha portugueza. Aquellé he o extensíssimo
fim do termo da villa dos liheos , e se atégora a bon-
dade do clima, e fertilidade da terra, tem só favorecido
a indolência dos habitantes, e prestado hum seguro asilo
aos desertores, e criminosos, que para alli se refugiarão,
não o será mais daqui em diante , raiando nesse hemisfério
as luzes do governo do mais amável dos Soberanos o Prin-
cipc Nosso Senhor, tão empenhado na felicidade de seus
vassallos, mandando crear huma vitla, para unir os braços
e corações no serviço publico, e se ajudarem os moradores
dos cortes de madeiras , e de commercio , que deve rapi-
damente crescer com a abertura dos canaes , e estradas pa-
ra os ccrtões do rio Pardo, com tanta gloria da monar-
chia , e bem dos povos, que em tropel correráõ a povoar
tão ditosos climas, para nelle firmarem a base da mais so-
lida , e durável felicidade.
§ S7-
Dos liheos para o rio de Contas he a costa procel-
Josa , e sem ancoradouro ou jazigo, ainda para canoas, que
apenas lhe presta o rio de Mamoan , que no mar a sua
pequena corrente mistura : então se formão na costa cinco
grandes enseadas , até á barra do Itahipe , com pontaes de
p.;dras ao mar ; na primeira das quaes se acha fabrica-
do hum pequeno reducto de terra , para embaraçar algum
descmbarq^uc j na segunda formou a natureza hum pe-
que-
DAS SciENCIAS DE LlSBOA. I4I
queno canal para as canoas se recolherem ; na terceira
detende a costa hum alto monte , que vai banhar-se
no mar , com escarpados penedos no seu cume ; na quarta
formou a natureza huma grande pedra , por buraco de
tmrcego appellidada , sobre hUrrt monte de pedra, que
no mar acaba ; a ultima se fecha com o soberbo monte
de penedia, onde o embravecido mar, quebrando a sua
maior fúria , lhe lava os pés , formando pontal da parte do
sul para fazer a pequena barra do Ituhipe , que só da en-
trada a pequenas lanchas, e canoas. Prosegue então a cos-
ta, formando para o norte huma enseada de Icgoa e meia,
ao lugar chamado Barra nova ^ que descobre terrenos alaga-
diços, e matas baixas, seguindo outra enseada de legoa c
nieia até o pontal de Santa Rita , formando a costa ou-
tra de huma legoa , que termina na barra do rio de Ala-
moan , continuando depois com quatro enseadas por dis-
tancia de duas Icgoas até o rio de Sagi , que no mar ve-
lozmente se introduz ; buscando na distancia de duas le-
goas por outras duas enseadas o rio Tijuhipe, aonde já
se avistão matas grossas, elevadas montanhas, que ás nu-
vens parece quererem chegar, proseguindo até a serra gran-
de , bem conhecida pela sua assombroza eminência , que
nega a passagem aos viandantes pela costa do mar, a qual
formando duas enseadas de huma legoa de extensão , bus-
ca encontrar-se no rio Jacaré, e por huma enseada de três
quartos de legoa o rápido Jeribucassú , cuja corrente no
procelloso mar emboca : então a costa não permitte por
ella mais alguma passagem; porque prosegue entre es-
carpada e medonha penedia , formando montes , que por
Tromba são conhecidos pelos navegantes, por tomarem aqucl-
la forma , com que investe a braveza dos mares , abrindo
o canal da barra , por cuja causa os viandantes seguem pe-
la terra do Jeribucassú a pancada da cachoeira do engenho,
até entrar nos campos naturaes , que se dirigem para o
rio de Contas , bem próprios para a creação , e propaga-
ção do gado vacum,
CA-
141 Memorias da Academia Real
CAPITULO III.
Da villa de S. José da barra do rio de Contas.
§ I.
r 01 levantada em villa a povoação da barra do rio de
Contas , por determinação da Ex.'"" donatária Condessa de
Resende em 27 de Janeiro de 1731 : he situada beiramar
com huma bella e proporcionada igreja matriz , cujo ora-
go he o arcanjo S. Miguel. Começa a povoação na di-
recção de norte a sul, de hum oiteiro chamado o Forte y
porque a sua raiz de pedra solida , formando o pontal ,
serve de conter o rio no seu leito, quando embravecido,
c precipitado por sua rápida corrente nas occasiões das
tiovoadas procura transbordando sahir dos limites, que a na-
tureza lhe formou \ aquelle oiteiro , estendendo-se ao norues-
tc , busca a villa em caminho de sueste , correndo o cer-
tão ao sudoeste. O terreno he agradável , assim pela vista
do mar , e coqueiraes da costa , como pela planície dos
campos , cercado de morros pela parte de traz mais ou
menos afastados huns dos outros. Corre pela parte do sul
huma ponta de terra alta , que segue até ao mar , intitula-
da a Trombinha ^ que se dirige para este hum quarto de
legoa distante da villa , , circulado de pedras arenosas e
seixosas pelo lado de este , e nordeste.
Tem a barra na baixamar ia palmos de agua com 10
braças de largura : buscao os navegantes para acommetter
a altura o outeiro defronte , que lhe fica ao sul , chamado
a Tromhinba ; ao norte desta corre hum recife de pedra ,
que forma hum pontal buscando o norte ^ e desta ponu
par
TAS SCIENCIAS DE LlSBOA. I4J
para o norte fica a barra ; alli principião os baixo?', que fi-
cáo tambcm ao norte. Ua ponta para dcntio , quasi meia
legoa , o IuikÍo lie cubcrio de hunia tnorme pedra, por
causa da qual a barra núo admittc embarcação grande , á
excepção de lanchas c barcos , que para entrarem ou sa-
hirem nccessitão de ventos favoráveis. Vencida a ponta da
barra, e a pedra, que fica no meio delia, se faz então ca-
minho de sudoeste: aquclla ptdra he redonda, e scbre ella
passão as cmbarca;ções com 8 palmos de apua no baixa-
mar , contendo canaes, assim pelo norte ccnio pela parte
do sul com 2 braçis de largo, e a do norte com duas,
ficando a barra distante unicamente da villa cem braças, e
ca ponta para dentro faz huma enseada chamada z Concha,
a qual acaba , e vai fazer ponta do norte , e se enterra no
rio com hum recife de pedra , á qual os naturaes chamão
])ouía do Xíirdo, que dista jo br-ças da villa.
§ 3-
Tem nascimento aquelle rio acima do rio de Contas
de Minas , e vem com vários riachos até o lugar chamado
dos Ftiniz^ onde parece esconder -se por baixo das pedras,
e vai apparccer ensoberbecido de aguas até o porto conhe-
cido com o nome de Acaris^ por muitas legoas navegável
de canoas , aindaque em alguns lugares a navegcção he
trabalhosa , c até perigosa pelas pancadas de varias ca-
chocims , pasfadas as quaes por abundantes remansos de
agua busca o porto da pancada, navegável hum quarto de
legoa, c dalii prosegue até a serra de agua, onde abordão
as lanchas , para receberem as farinhas , que fazem o obje-
cto do trafico , e viver dos habitantes.
§ 4-
As matas, que existião i beira do rio até os Futiiz por
cinco a dez legoas, sç acabarão, em razão de as haverem
quei-
144 Memorias da Academia Real
queimado , e assolado os moradores para a plantação da
mandioca, que alli apenas colhem onze cirios por mil co-
vas , e os mais ricos , e acreditados plantão de yo a 8o
mil covas. No anno de 1799 constava a exportação daqucl-
le género para o celeiro da Bahia a trinta mil alqueires,
cincocnta de gomnia , alem de cento e cincoenta de arroz.
Ellcs cultivão muitas variedades de mandiocas, conhecidas
por differentes nomes, e são: olho roxo de duas qualida-
des, camoquemgue da branca e da preta, alandi , pexo-
to, paraunc , saracura, milagrosa, branquinha, muUati-
nha, sotinga verdadeira, mangue, corecoré , uruba , São
Pedro, mato negro, paçaré , monica de ramalhete, cara»
vella, pitanga, cobra, Sanca Igncz , alagôa, aipimpóca
verdadeiro , e do amarello.
§ ^
o methodo geralmente praticado na lavoura da man-
dioca consiste em roçar os matos pequenos, que ficão pe-
lo meio dos grossos, e derrubão então aquelles , e estan-
do seco o roçado , largao fogo , e se achão depois da quei-
mada, que ficarão ainda os lenhos grossos mal queimados,
os cortão novamente de machado , e os finos com facões ,
e ajuntando os pedaços , que ficão dispersos , lhe largão
o fogo , e a este serviço chamão coivaras , que ardem vá-
rios dias : estando o fogo apagado , se limpa o roçado to-
do, e principião a fazer covas no chão, distantes humas
das outras mela braça ; e estando estas feitas , cortão a
mandioca do comprimento de hum palmo , ou de mais
conforme a opinião dos que a plantão , e passão a finca-^
las naquellas covas algum tanto deitadas, e não aprovei
tão as cinzas para a potassa.
§ 6.
Aquella he a maneira de preparar a terra, e modo
de
DAS SciENCIAS DE L I S B O A. í^^
de se fazer a plantação da mandioca , que antes de anuo
e meio não tem a raiz capaz de arrancar-se para descas-
cada ralar-sc , apurar-sc nos taipitis a massa , para levar-se
ao forno para se cozer, c torrar-se gradualmente cm fogo
brando , para então passar-se ás tulhas , aonde vão comprar
os negociantes nos difiPerentes portos dos lavradores , que
assistem commummentc nas suas fazendas, privados de to-
da a particular communicação por terra , de huns com ou-
tros visinhos , para não serem vistos no interior. Vivem
quasi todos em summa penúria de sustento , se a podre
carne do certão, o peixe do alto nos tempos favoráveis,
os camarões do rio, ou alguma caça do mato não vem ma-
tar-lhcs a fome. Não plantão , além da farinha e algum ar-
roz, outro algum legume , e menos cultiváo a creação dos
gados, com tão vastas campinas de pastos naturacs , que
lhe darião o estrume para adubar as suas terras; alli falta
todo o género de educação civil e religiosa , os homens
grosseiros , e ignorantes tem os costumes dos povos bár-
baros da sua origem.
§ 7;
Contém as matas naquelle território todo o género de
madeira de construcção , e no tempo do serviço do Dcs-
embarpador Francisco Nunes da Costa , delias se extrahí-
rão muitas dúzias do precioso tapmhoa , e as mastreações
da fragata Carlota ; hoje porém as matas próximas ás po-
voações estão queimadas , e as que contém os importantes
■lenhos ficão mui distantes da borda d'agua , á excepção das
que existem para cima dos Fmiz , ainda intactas ; poisque
a distancia e o temor do gentio tem servido de salvaguar-
da ao assolador ferro dos mandioqueiros. A povoação da
villa e seu termo apenas comprehende duas mil almas, he
com.posta principalmente de escravos, e de mulatos, e ape-
nas conterá cem pessoas brancas : a maior parte não tem
terras próprias para suas lavouras , e as trazem de arren-
Tonio IX. T da-
14^ Memorias da Academia Real
damento aos senhorios , que as arrematarão no fisco Real ,
pelo sequestro feito aos proscriptos Jesuítas ; e apenas al-
guns tem a propriedade de pequenas porções pelas com-
pras , que depois fizcrao aquelles compradores do fisco
Real.
§ 8.
Sendo governador da Bahia Manoel da Cunha Me-
nezes , fiJ:ilgo illustre de muita actividade , e zelo pelo
bem publico, foi acertadamente determinada a abertura de
huma communicação interior dos ccrtões da Rassaca a sa-
hir á barra do rio de Contas. Porém ao tempo que to-
mava as suas medidas , e havia encarregado ao capitão
mdr João Gonsalves da Costa a conquista do gentio , que
habitava nas cabeceiras , e a abertura do dito caminho ,
tendo este feita a abertura á sua custa até aos Funiz , e
dalli para a villa os moradores delia , foi rendido pelo
Marquez de Valença, c durante o seu governo, e do seu
successir se não fallou mais desta communicação com os
povos ccntraes.
§ 9.
Parecia , que a gloria de^te grandioso serviço estava
reservada para D. Fernando José de Portugal ; poisque
a chegada dos gentios daquelles ricos certoes á Bahia o
desafiava para abrir o caminho da prosperidade desta co-
lónia. Forão á presença daquelle illustre c circumspecto go-
vernador varioí Índios da conquista das Salinas, rogando-
Ihe que lhes desse hum parocho, que os instruísse na re-
ligião catholica (a). Foi então com a maior satisfação que
fe/, remetter os Índios ao Desembargador Francisco Nunes
da Costa em 25- de Junho de 1790, significando-lhe o pra-
zer
(«) Veja-se as Notas V, VI, e Vil no fim desta Memoria.
n
DAS SciENCIAS OE LlSBOA. I47
zer , que tinha de terem vindo aquelles índios , e encom-
mendando-lhe , que désse as mais efficazcs providencias ,
a £m de se lhes fazer hum estabelecimento permanente.
10.
Não sei , por que fatal desgraça se não effcituou o es-
tabelecimento da aloca abaixo dos Futiiz do rio de Contas,
talvez por se aggregarem á nova aldêa indios, que se man-
darão vir daquclla de Almada da nação Grun , não se se-
guindo outro eífeito do estabelecimento , que a perda da
despeza , com que a Real fazenda se prestou a favorecer
aquelle tão útil projecto. Os indios cm pouco tempo de-
zcrtárão, e, embrcnhando-sc pelos ccrtões das matas, bus-
carão os seus primeiros lares, não obstante se lhes ter con-
cedido huina legoa de terras para as suas plantações.
II.
Desamparada a povoação , era forçoso igualmente , que
a estrada já aberta fosse menos e menos frequentada até
vir a tapar-se de todo , ficando os povos centraes privados
de tão util communicação , que tanto anhelavão , suppli-
cando até ao mesmo governador fizesse estender a jurisdic-
ção do ouviJor dos liheos até áquellas províncias, pois-
que distaria zj a 30 Icgoas , quando para a commarca da
Jacobina, a quem pertenciâo , distavão mais de 200, o que
era visivelmente do mais incomprehensivel detrimento aos
povos, e se seguião muitas ruinas, e irreparáveis damnos.
O governador logo se prestou favorável a tão justas re-
presentações, e assim o resolveo*, mas como não fosse por
ordem Regia estabelecida tal demarcação , se oppoz , e
até a illudio o ouvidor , e com ellcs as justiças da Jaco-
bina ; e os povos centraes gemem inconsolavelmente de-
T ii bai-
148 Memorias da Acatíemia Real
baixo do peso da mais sensivcl oppressão , de que se se-
guem muitos desserviços , e ruina dos seps civis estabele-
cimentos.
§ 12.
Por aquella communicação pela margem do rio de Con-
tas seguirão vários tropeiros dos ccrtões , e o capitão mor
João Gonsalves navegou por vários annos em canoas pelo
dito rio conduzindo seus eflfeitos ; havia pouco a fazer pa-
ra ser frequentada , tirando-se algumas voltas , e estivan-
do-se em alguns lugares , poronJe vários córregos c ria-
chos a atravessão e cortao. O rio abunda de peixe , as
margens são férteis para as lavouras , e tem quantidade su-
perabundante de pão brasil , além de todas as outras madei-
ras de construcção.
§ 13-
Era da mais reconhecida utilidade o estabelecimento
da aldêa , no lugar acima dos Fiinizi do dito no de Con-
tas, que pela vi^inhança dos certoes da Rassaca , Silinas,
&c. se construiria em poucos annos, cofn a communicação
e mistura dos portuguezes , civilisada , povoada, e rica j
como , porque servia igualmente de registo aos viandantes
de Minas, e contrabandistas, ou para arrecadação dos di-
reitos, que se julgasse conveniente impôr-se. Ficando fre-
quentada a estrada com pastagens convenientes , desceria
por ella o gado para abastecer a faminta commarca , au-
gmentava-se a industria do povo , adquiria "actividade o
commercio interior, e cultivava-se o algodão com mais afin-
co, d'onde provirião recrescentes meios de abundância, ci-
vilisação , e riqueza do paiz.
§ 14-
Protegendo o governo a communicação proposta, ne«
ces-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. I49
cessaríamentc os rios teriâo novos meios de acummular os
seus fundos, com os quacs crescia a povoação e a riquc/a , e
com ella o redito publico , que se não pôde augmcntar ,
e pcrpctuar-se , semquc cresça a opulência dos vassallos,
c a sua população. O rio de Contas he cm grande parte
navegável , e poderia ser todo , ao menos tm certas épo-
cas, quebrando algumas cachoeiras, e praticando se o en-
canamento pelos meios, que a arte ensina, não havenda
alguma invencível difficuldade , quando ainda sem algum
beneficio as canoas seguem pelos saltos c correntezas, guia-
das pelos hábeis, e destros remadores índios, sem algum
perigo , exportando os géneros , de que são capazes aquel-
Ids embarcações.
§ if.
Desaguão neste famoso rio os auriferos córregos , que
de Oiieiíitado j e Gricmgugi tem o nome, os quaes contém
tanto ouro , que á muitos annos os contrcbandistas não
pudérão c^^gota lo , e persistem a fazer muitas escavações.
Devem portanto ser examinadas pelo hábil mctaliurgico ,
que saiba umbem o trabalho das minas. A'quclles rios se
unem outros, que merecem ser observados, e com quanta
utilidade da Real fazenda , poisque o trabalho das minas
attrahe huma immcnsa povoação , como a experiência tes-
tifica cm todos os -idênticos estabelecimentos.
§ 16.
Alguns fisiocratas sustentao , que as minas são prejudi*
ciaes ao estado , que as possue , e pretendem , que só a
agricultura seja a uníca fonte da sua permanente riqueza.
Porém de que tem servido aos povos do Brasil as suas
immensas possessões em terrenos férteis , que produzem
com espanto dos seus mesmos proprietários protentosas co-
lheitas , se não ha consumidores, e não tem facilidade de
transportes para dar sahida ás producções, que sobejão da
sua
15*0 Memorias da Academia Real
sua subsistência ? He constante verdade , que se não pode
chamar rico o que somente possue terras , c tem copiosos
fructos da sua lavoura; mas sim aquclle, cujas producçóes
são buscadas , e ha das mesmas grande prcciião j e he isto
o que dá valor á sua propriedade.
§ I7«
Nao sendo a riqueza proporcional á grandeza das fa-
zendas , mas sim ao valor das producçõcs , fica evidente,
que o dinheiro será quem determina o grão do valor dos
géneros, de que precisa para acudir a's necessidades dos po-
vos , poisquc vende cada hum a dinheiro , o que lhe so-
beja, e compra com elle, o que necessita; e conseguinte-
mentc a massa das producçõcs augmentorá, ou diminuirá
de valor, quanto maior ou menor for a abundância de di-
nheiro , e houver maior ou menor necessidade dos gcneros ;
os quaes jamais constituem riqueza permanente , poisque
só o dinheiro he , o que pôde dar , e constituir a riqueza do
pivo, ou da nação, que o possuir; pois com elle ninguém
teme deixar de comprar, e ter as producçõcs, mas com
aquellas nem sempre poderão ter dinheiro.
Ora como os povos das minas do Brasil tem muitas pro-
ducçóes , e a sua massa he superior ás suas necessidades; he
difficultoso pelas longuissimas estradas , e actuaes commu-
nicações interiores de terra, e pelos rios, exportar para as
povoações marítimas o seu excedente , portanto os seus
géneros serão sempre baratos no próprio paiz , e tudo quan-
to lhes vier de fora, caríssimo; por isso que elles não tem
dinheiro, com que possao comprar aquclies, que necessitão ;
tendo alias producçõcs sem valor. O governo não lhes per-
mitte estabelecimento algum industrioso, antes pelo con-
trario tem repetidas vezes mandado queimar os seus tea-
res,
DAS SctENriAÍDK LtSBOA. '"" Ifl'
rcs, onde se teciáo finos e delicados fustões, e gangas &c.,
com que contrabalançariáo . o, valor; dos generus estangei-
ros , que recebem caríssimos , quando aquelles são de geral
consummo, o que constitue huma carestia opprcssiva; e co-
mo nao tem dinheiro, com qi/e satisfação a5 suas necessida-
des , necessariamente lhes resulta o lamentável estado , e
empate das suas subsistências, e õ descrédito para com os
commcrciantcs da marinha. Acresce a tudo isto a falta de
instrucção metaliurgica, e do trabalho das minas, e a op-
prcssão de muitos governadores e magistrados , que lhes
promovem a ruina de suas fortunas.
§ 19.
O despotismo de hum vice rei do Brasil abrio as im-
penetráveis brenhas, e fez por infinitas estradas communi-
caveis as minas com as povoações do mar por tropas im-
niensas de desertores, que cada dia se refugiavao aquelles
ditosos climas ; os registos das estradas gcraes ficarão in-
úteis , e os contrabandos do ouro e diamantes entrarão a
ser frequentados com segurança para. o rio de Janeiro e
Bahia ; desde então immensos traficantes transitarão fora
das estradas do registo , e as barras de ouro começarão a
girar para Monte Video , Inglaterra ,&c. ; factos incontes-
táveis , e de que poderia produzir provas , mas que não
são a propósito nesta Memoria , sendo a todas as luzes evi-
dente , que os povos mineiros não são tão ricos por se
não entregarem á lavoura, que tem- em superabundante quan-
tidade para sua subsistência j mas porque aquelles não tem o
valor competente, por se não carecer do excesso, e não
haver até ao presente meios de exporta-lo ; não são pobres
só pela razão de serem as minas o principal maneio , po-
rém sim pela incúria do seu trabalho, extravios, e outras
causas , que não são desconhecidas aos economistas. Todos
sabem , que na Europa as nações , que tem minas , nem por
isso (leixão de tirar delias os interesses , que lhes resulta
de
íyi Memorias DA Ac ademia^Real
de huma tal propriedade , protegendo o governo os ou-
tros ramos ,■ que constituem a sua prosperidade e riqueza.
C A P I TU L O .IV.
! Da villa de Marabii,
.tdfiiiaffi
§ I.
ROSEGUiNno-SE do rio de Contas a Marahú , ou se bus-|
ca o interior por campinas baixas a encontrar o rio Pira-
canga salgado , e depois a passagem do rio Aubim , onde
as canoas e lanchas proseguem ao porto da villa , ou se
busca a esconsa praia de arêa solta por 3^ legoas a entrar
na mata , huma legoa distante do rio Aubim , que faz a
barra no mar ; e então se caminha ^ de legoa pelo interior
da mata até entrar na povoação da villa , que foi creada
em 23 de Julho de 1761 pelo ouvidor da Bahia Luiz Frei-
re de Veras, por ordem do./Senhor Rei D. José I pela sup-
plica dos habitantes, os qiraes constituem huma povoação
de du-is mil pessoas. Foi^lhe dado por termo o lugar da
aldéa velha ^ e a praia do sul chamada do Passeio , come-
çando da barra grande de Camamú até os certões do Cau-
bi , e Caibro por hum rio fundo navegável de lanchas, e
sumaquinhas até á villa ; largo c espaçoso , que corre da
barra grande , e ponta do Mutá até o Caubi , ou passa-
gem , onde termina , comprehendendo seis legoas de distan-
cia no rumo de sudoeste.
2.
Ao entrar da b^rra grande na ponta do Mutá , se ta-
pa da parte do sul huma alta pedra , que de Sioba tem o
nomej e dalli para dentro em pequena distancia o recife,
que de Taipaba se appellida , fronteiro ao no Caripi tan-
gai >
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 15-3
gui , que corre ao nordeste : dali em diante , cm pouco r. m-
po se consegue a navegação para Marahú , topando-se a
oeste três ilhas chamadas da cruz , demorando a òsre outra,
que do lurmiga se chamou, entrando delia hum rio, que
por Taipú hc conhecido , e ficao pouco mais adiante ou-
tras trcs ilhas , de que huma de Santa Anna he nomeada ,
Tatus a segunda, c Moconan a terceira, correndo defron-
te de Santa Anna o rio Paratigimerim no rumo de oeste.
§ 3.
Logoque se avista a villa , que he situada á margem
do rio sobre hum pequeno oiteiro , se descobre ao norte
huma grande pedra de lo ou 12 braças levantada acima
das aguas , que Sapanhutw lhe chamarão os naturaes , fican-
do fronteiras recomendáveis barreiras de argila , de branco,
amarello , e roxo matizadas ; ficando pouco adiante no meio
do canal as pedras chamadas de São Roque , que faz a na-
vegação só praticável de canoas e pequenas lanthas dali até
o Caubi. Tem o rio da barra grande até ás ilhas de San-
ta Anna quatrocentas braças de largo, e em partes mais,
e desde então se vai estreitando até cem braças , e ainda
menos.
§ 4-
Os habitantes são grosseiros , e ignorantes , sem edu-
cação , com os costumes , e vicios de povos bárbaros. São
poucos os brancos, que alli rezidem : a maior parte da po-
voação se compõe de mulatos : elles tem hoje hum pa-
rocho virtuozo , que lhes inspira o horror do vicio , e o
amor da virtude , e da gloria , a que são insensíveis , por
serem acostumados á vida feroz e brutal , em que seus pas-
sados os deixarão, e por isso não podem ver os seus vi-
cios combatidos por hum pastor irreprehensivel , assiduo
ao pé do altar da matriz da invocação de S. Sebastião*,
única igreja da freguezia , e que tem attrahido a milagro-
Tomo IX. V ^a
r5'4 MEMOni AS DA Academia Real
za imagem do Santo padroeiro a A^encraçao dos povos ,
que vem de mui longe tributar aos seus pés os votos de
reconhecimento aos muitos benefícios dellc recebidos; e talvcx
por esta cauza lie ornado o templo das mais ricas altaias ,
que se não topao nos outros da commarca.
§ ^
A lavoura da cana , para se destilar em aguardente ,
faz a principal parte da occupaçao dos habitantes: elles
também se empregão na lavoura da mandioca , e a sua ex-
portação consiste, alem daquellas, em alguns fructos e em
remos de voga , sendo a da farinha até 4<J) akjucires , de
aguardente ^^ canadas, oitenta a cem potes de mellado,
cincoenta alqueires de goma , sessenta a cem dúzias de re-
mos de voga, alguns centos de cocos, melancias, e ana-
nazes , que corresponde em valor metálico a cinco contos
de réis , pouco mais ou menos.
§ 6.
Não se encontra já nenhuma mata virgem nosdistrictos
daquella villa , á excepção de meia legoa acima do porto
do noviciado , onde as matas são vestidas de óleo , pão
roxo, tapinhoãs, e alguma sepipira ; e da mesma forma
as matas do Caibro ao sul, até a distancia de oito Icgoas,
o que procede das grandes lavouras, que os jesuítas tinhão
feito nnquelle lugar, sendo forçozo reduzir por isso a cin-
zas as grandes arvores, para se poder fazer a grandioza
plantação de mandioca, que elles tinhão: ainda vi luga-
res, onde o fogo perdoou a existência de alguns mons-
truozos páos de óleo de 140 e mais palmos de comprimen-
to com 16 e 20 de roda , arruinados interiormente pa-
ra extracção do óleo , que os naturacs vão vender nas bo-
ticas da cidade.
" " ' CA-
1
H.
DAS SciENClAS DE LiSBOA. I^^
CAPITULO V.
Da villa de Barcelhs.
§ I.
I
.UMA Icgoa abaixo do rio de Marahú , ena parte op-
posta em hum alto e vistozo monte, está situada a villa
nova dos indios de Barcellos com frcguezia da invocação
da Senhora das Candêas ; foi erecta pelo ouvidor Luiz. Frei-
re de Veras no anno de 1758 por provizão do c(;nsclho
ultramarino; poisque com o extermínio dos jesuítas , se
mandarão crear em villas todas as povoações dos inuios ,
debaixo do directório feito para os indios de Maranhão.
O único edifício de pedra e cal, que tem a villa, he a
igreja, c collegio dos jesuítas , que tem sotrido grande
ruina : nao tem a villa duzentos indios de povoação , c se
occupão em fazer remos , tornear contas , e pouco se em«
pregão nas lavoiras : são bons serradores e falquejadores :
plantão mandioca, quanto baste para escas';a provizão de sua
família ; são hábeis para todo o género de industria. Com
elles assistem vários portuguezes , pagando- lhes arrendamen-
to das terras , em que plantão e cultivao , e fazem para
a cidade huma exportação de 500 a 600 alqueires de fa-
rinha , 100 de arroz, ijoo a 1600 canadas de aguarden-
te, IODO remos de voga, éooo dúzias de contas, de cu-
jos géneros se reputa o seu valor em moeda 3000^000
réis.
§ a.
Os jesuítas applicárao aquelles indios á muzica , e erão
tão inclinados áquella arte , que hum entre elles , por no-
me Jozé de Almeida, sem saber muzica fez huma arpa,
e hum rebecão , com os quaes instrumentos acompanhava
na missa de três vozes , sem perder hum dos tons. Na ul-
Y ii ti-
j^6 Memorias DA Academia Real
tima correição, que alli fiz, me expoz hum indio velho
com as lagrimas nos olhos a deplorável situação dos seus ;
c que elle morria com o desgosto de comsigo levar á se-
pultura , o que sabia de muzica , por não haver na villa
hum só menino , que soubesse ler , a quem elle ensinasse ;
rogando-me , que lhe desse hum director, que fizesse a sua
obrigação, Ellcs chegarão á ultima degradação de civiliza-
ção : o uso da aguardente, vicio commum entre cUes, os
tem conduzido a total pobreza e niizeria. As lagrimas da-
quclles mizcraveis me tocáião o coração, a fim de promo-
ver os seus verdadeiros interesses ; fiz o que pude procu-
rando conferir com o governador, aquém o throno confiou
a sua civilização.
§ 3-
Sobre este objecto, aliás im.portantissimo , os bons de-
zejos dos amigos da humanidade serão ineficazes, huma
vez que a civilização dos indios não for ordenada por ca-
minho diffjrcntc daquclle ategora praticado. ^ De que
serve ao indio servir de juiz ordinário, de capitão mór,
&c. , se elles não amao , nem conhecem a sociedade e a
cultura do espirito humano , que se augmcnta , segunda
os grãos de civilização ? Ve-se ainda em touos , que a sa-
tisfiição dos prazeres dos sentidos he a sua primeira incli*
nação , a da aguardente a sua maior alegria e contentamen-
to , e tudo , quanto for contrario a destruir entretanto aquel-
les sentimentos , elles tomão por oppressão a mais violenta.
Huma vez , que os cazamcntos dos indios com os portugue-
'zes se não effcituarem por privilégios, que amplamente se
acordem , aos que se enlaçarem nos matrimónios com as indias
para receberem a educação portugueza , e senão habituarem
assicuamente aó trabalho , e por elle adquirirem a industria
■e anwr de ganho , que naturalmente se introduz , conforme
os gráos de civilização , a geração dos indios , sempre homo-
génea nos seus sentimentos , será a mesma em todos os
tempos , como desgraçadamente a experiência testifica. Sina
. he
DAS SciEHCIAS nE LiSBOA. IJ7
he verdade, que cUcs são inclinados ás negras , ou pela ana-
logia da escravidão, ou pelo ódio, c desconfiança para
com os brancos seus oppressores; mas não ha tunda mcntfí
para desesperar da applieaçao daquelle reir.edio , que , se
náo produzir o effcito da de;zejada civilização dos pais ,
contribuirá sem duvida para a dos filhos , educados civil e
chrisrãmenre debaixo da protecção do governo. Na ultima
correição , que fiz naquclla villa , misturei nas eleições da
justiça os portuguezes com os indios , bemque este meio
não era da ultima efficacia , faltando aos indjos os conhe-
cimentos, que lhes convém para serem homens e cidadãos.
He verdade , que elles tem hum director ; ^ mas quem seria-
mente SC persuadirá , que hum homem ingénuo , cem co-
nhecimentos e capacidade de servir a si , e á sociedade , se
metta a viver com os indios , e educa-los civil e christã-
jnente por sessenta mil réis , que lhes dá a fazenda Real ?
^ Podem ser ardentes os trabalhos de hum parocho a favor
dos seus parochianos , quando nem he levado áquelle sagra-
do ministério por vocação divina , nem póJe ser movido
á gloria e interesse temporal , por huma pequena côngrua ,
que não o mantêm ; e por isso commumcntc violenta-
do pelo seu prelado , para servir de parocho em taes fre-
guezias ?
§ 4.
! Qiianto mais acertado e gloriozo seria mandar-se pa-
ra aquellas povoações sacerdotes regulares de avanç da
idade, costumados ao retiro da clauzura dos seus conven-
tos , com intelligencia da lingoa geral dos indios , para dar
jíquelles povos hum bom exemplo , e abrir-lhes a carreira
da industria , tendo sempre mostrado a experiência , que
elles tem conseguido nas aldeãs , a que tem sido enviados ,
conciliar, o quanto he possível, o amor de Deos com a obe-
diência aos príncipes , a educação dos meninos com a civi-
lidade , o trabalho das suas mãos com menos prodigalida-
de dispendidos, os templos aceados, e reparados, o respei-
to
ijS Memorias da Academia Real
to com o amor dos povos ; o que jamais se encontrará em
todas quantas igrejas dominão os clérigos seculares , pela
maior parte n'aquellc paiz ignorantes, e corrompidos!
§ ^
^ Que nobres sentimentos , em que só tem parte a na-
tureza não corrompida, "achei naqucllcs homens, não estan-
cio embriagados ? ^ Com que valor não forão elles no tem-
po, que os hollandezes occupárão oBrazil, guiados pelo seu
chefe João Taveira á barra grande do Camamú , mergulha*
dos n'agua , para tradarcm huma grande náo daquella na-
ção , que foi a pique? ^ Que exemplos de valor, c fideli-
dade não tem clles dado em todos os tempos ? ^ Com que
boa vontade se prestão ao serviço do Soberano , quando são
chamados , sem embargo das injustiças , que tem sofrido ,
e de serem tão mal pagos dos seus serviços ? Mas elles es-
perão no actual governo melhorarem sua triste sorte confia-
dos na justiça, e sabedoria das suas deliberações, susten-
tando a educação daquellcs infelizes habitantes , por cami-
nhos luminozos , seguindo o exemplo dos inglezes ameri-
canos, e da nova Galis , cujos estabelecimentos, aindaque
modernos no tempo, parecem ter chegado aquclles indios
á civilização , que os nossos de tão remota antiguidade ain-
da não tocarão. A carta Regia de 28 do Janeiro de 169J ,
escripta a Fr. Ignacío da Graça., provincial do convento
de nossa Senhora do Carmo , encomendava , que não só pro-
curasse conservar os seus religiozos , e augmenta-los no es-
tado perfeito de religião ; mas que se inclinassem ao exer-
cício das missões , tomando a prática da lingoa dos indios ,
exercitand:)-se tambcm , quanto antes fosse possivel , naquel-
les actos de caridade , e pobreza , que são necessários para
viver nas aldêas da doutrina dos indios , escuzando-se por
este modo os missionários estrangeiros , que pelo menos
fazião entender das partes , d'onde vinhão , que nos seus Rcaes
domínios não havia , os que se requerião para tao santo mi-
nis-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. I5'9
nisterio. Oxalá, que tao pias, e Rcaes intenções fossem
praticadas na sua total extcnção, que muito adiantaria a
civilização dos índios !
CAPITULO VI.
Da villa do Camamú.
A<
.CHA-SE situada a villa de Camamú na altura de 14.°,
Foi edificada sobre huma colina á borda da caxocira cha-
mada da Villa. Compõe se de mil fogos, com seis mil ha-
bitantes , entrando nelles o numero dos escravos. Nos quin-
tacs da villa , arrabaldes , e destrictos fazem a importan-
te colheita do café, introduzida pelo Desembargador Fran-
cisco Nunes da Costa, que naquella villa deixou cm cada
pé de cafezeiro immortalizado o seu nome , pelos benefícios,
que aquclla plantação trouxe a estes povos , que exportão
■para a cidade vinte mil arrobas. O terreno he apropriado
para aquella nova cultura , e a pobreza da villa desappare-
cco depois da soa introducção. A lavoura principal, que
faz a estabelidade do povo, he a da mandioca : alguns tam-
bém plantão canas para se destilar em aguardente. A' ex-
cepção do engenho de Acarahi , em que o proprietário Jo-
y.é de Sã Bitancourt , e seus irmãos fazem assacar , não
ha alguma outra propriedade para aquelle fim. A exportação
da mandioca consta de 400 mil alqueires, mil canadas mais
ou menos de aguardente , e o engenho de assucar até para
ao caixas: a plantação do arroz he de menos consideração,
a colheita apenas chega a mil alqueires. Alguns habitantes
não se applicão á lavoura , e somente ao corte dos tapi-
nhoãs , e de taboados de caixaria , que vão vender nos
engenhos para transportar o assucar ; a total exportação cor-
responde ao valof metálico de 18 a 20 contos de réis.
ióo Memorias DA Academia Real
§ 2.
A agricultura he ainda aqui, como em todo o Bra-
zil , praticada por hiima cega rotina. Sendo ella huma arte
de cultivar a terra , e fertiliza-la , para produzir grãos , fru-
tos , e todo o género de plantas utcis á necessidade dos
homens, epara conservar também os animaes ; não sei , por
que razão , sendo tão grande a sua importância , se não
aprende , como as de mais artes , que são necessarijs ao
tizo , c commodidades da vida ? Não ha quem não esteja
persuadido da verdade exposta ; porem todos scjulgáo dis-
pensados de se instruir nos seus principios. Columela di-
zia em outro tempo aos Romanos , que era necessário ex-
plica-la aos seus compatriotas ; o mesmo hoje devemos dizer
aos nossos senhores de engenho e lavradores , que a agri-
cultura exige hum preliminar estudo, reunindo a pratica,
e a theorica.
§ 3.
Ha pessoas, que conhecem a agricultura só pela li-
ção dos livros , fallão , e decidem de lodos os objectos ru-
racs , sem terem alguma idéa do campo , poisque nunca
sahírão do seu gabinete: ecomo dogmatizão sem a voz das
experiências , a menor circumstancia local desarranja , e mu-
da todas as suas esperanças. No Brazil cultiva-se geralmen-
te a terra, precedidas as grandes desvastações , e incêndios
das matas, sem alguma reflexão, esem principios, só por-
que assim praticarão os seus antepassados : hum só se não
sente pelo amor da gloria , e do interesse próprio impeli-
do pela grandeza dos objectos , que a natureza pródiga e
liberal lhe aprczenta, a apcrfeiço.ir o mcthodo da cultura
do seu paiz , substituindo algum menos despendiozo , eda
mais vantajoza utilidade. Não se unindo a pratica com a
theorica he dificultozo , para não dizer impossível, fazer
com acerto qualquer experiência , por faltar a guia de hum
prin-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. l6l
principio certo d'onde se deve partir. O bem da agricul-
tura exige, como essencial bazc , cm que se sustenta^
conhecimentos relativos ao estado do pai/, habitado, á sua
expozição, á sua altura do nivcl do mar, cjual a nature-
za do terreno , sua profundidade , e camadas , que o re-
cobre ; se deixa passar a agua , ou se as rctcm : conhe-
cimentos indespensaveis para assignalar acertadamente o gé-
nero de lavoira , que mais convém a este, ou áquelle lu-
gar.
§ 4.
Alem da total ignorância dos princípios expostos, que
fazem florecente a agricultura , não podiao os Camamoanos
exerce-la com actividade, por ser todo o seu território do
dominio dos jesuitas: a extincçáo daquella corporação, e
a venda , que sescguio das 12 legoas em quadro , que pos-
suião a titulo de doação , que lhes fizera Mem de Sá , de-
rão aos habitantes meios de se empregarem na lavoura prá-
tica do paiz. O Alvará publicado em 27 de Fevereiro de
1701 ordenava aos governadores, que com os ouvidores
geraes fizessem plantar, e semear mantimentos nas terras,
que costumavão a dar, e nas mais que fossem capazes des-
ta cultura, e deo cauza a preferencia da mandioca. O ex-
cellentissimo Marquez de Valença por hum bando , que
fez publicar em 16 de Fevereiro de 1781 cm observância
do referido Alvará , e do bando , que se publicara em i75'o ,
mandou , que todos os lavradores de mandioca plantassem
annualmente quinhentas covas por cada escravo de serviço ;
e que os senhores de engenho e lavradores de cana e ta-
baco do recôncavo , que morassem em terras , em que fos-
se praticável aquella plantação , o fizessem para a sua sus-
tentação , e de suas fabricas ; e que da mesma maneira os
senhorios dos navios , que commerciassem para a costa da
Mina e Angola , plantassem mandiocas necessárias em sí-
tios convenientes , como determinava a citada lei , para te-
rem as farinhas , com que podessem abastecer suas em-
Totm IX, í; bar-
'j6i Memorias da Academia Real
barcações ; e que os lavradores dentro em seis mczes fa-
liáo certo nas respectivas camarás , terem cumprido com a
plantação das quinhentas covas , por cada escravo ; c da
mesma forma os senhores de engenho , lavradores de cana ,
e tabaco, c proprietários dos navios, debaixo da pena de
50^ réis pagos da cadêa , applicados para as obras públi-
cas , alem de dois mezes de prizão ; e sendo comprehen-
dida a pena em pessoa de qualidade , expiaria este a da
prizão no forte de Santo António , alem do do Carmo. Final-
mente estabelecia , que no cazo , que os lavradores de fa-
rinha deixassem aquella cultura , para se empregarem em
outras, serião forçados a continuar na da mandioca, ciem
de pagar cem mil léis de condemnaçao da cadêa.
§ S'
Qiiando o governo dirige o trabalho dos cidadãos ,
com respeito á sua ordem natural , proporções e circumstan-
cias opportunas, tendo por objecto primário a subsistência ,
segurança, e mantença dos particulares, e doestado, e de-
pois o que hc commodo , e agradável , e finalmente o
que serve de ornato e mero luxo , se tem visto progressi-
vos adiantamentos da industria ; porem a experiência demons-
tra quazi sempre , que a industria dos povos cresce mais
rapidamente , quando a escolha do trabalho he espontanea-
mente dos cidadãos; poisque cada hum pela sua pessoal,
e local capacidade, e conforme a sua actividade, e fundos
he mais capaz de dar ao seu trabalho mais vantajoza uti-
lidade , a qual jamais pode produzir as imperativas ope-
rações do governo , que só deve facilitar a destribuição ge-
ral dos empregos , e mais géneros da industria pelas fun-
dariicntaes bazcs do bem público , protegendo constantemen-
te todos os ramos da prosperidade do paiz. Nem todos os
terrenos são próprios para a cultura da mandioca : geralmen-
te tenho ouvido a antigos lavradores, que as matas, que não
contem pindobas (espécie de palmeira), vinhaticos, e se-
pi-
nAS SciENClAS DE LiSBOA. l^J
pipiras , nâo são aptas para aquella lavoura; ^c seria justo
cbrigar-se a fazer plantações com tao graves despczas , e
perda das matas cm terrenos impróprios , cjue não pagão
o trabalho do mizcravel lavrador? Sc hum dado terreno he
mais próprio para a plantação da cana, e o asfucar tem
boa sabida nos mercados da curopa ; ^ porque deve empre-
gar as suas faculdades o lavrador naquclla , e não nesta cul-
tura ? Se as terras não estrumadas são próprias para o al-
godão, cacáo, e pimenteira da índia, ^* ha de ser força-
do a plantar mandioca, com que se arruina, e não os no-
vos géneros , com que se alenta , e enriquece ?
§ 6.
São naturalmente inclinados os povos á cultura da
mandioca, por ser o pão de que se alimentão , por exigir
aquella menos braços que a da cana para assucar , ou aguar-
dente , e favorece a fatal indolência do povo , que , tendo
aqucUe pão, c o peixe do mar, ou rios, e o marisco dos
mangues , e a carne do ccrtão , estão mais regalados do-
que os príncipes nas suas sumptuozas , magnificas , e deli-
ciozas mezas. Commumente não plantão o milho, feijão,
ou algum outro grão , apenas batatas , a que chamão ca-
rás de diversas cores e qualidades , e os seus insonsos
inhames, poucas arvores fructiferas, ou ahi elimitadas ; não
formão pastagens para conservação do gado , não adubão
as terras , nem as rasgão pelos arados , tão conhecidos nas
europcanas lavouras ; não tratão dos seus escravos , conce-
dendo-lhes apenas o sabbado para adquirirem o alimento ,
e mais commodidades da vida , donde vem a fonte do des-
coroçoamento da lavoura , que sem aquelles braços não po-
de medrar, e a perda de tantas famílias, que jamais podem
perpetuar em sua posteridade seu nome, e sua riqueza.
a: u
104 Memorias DA Academia Real
§ 7.
Lê-se na carta Regia de 31 de Janeiro de 1701 , di-
rigida ao governador do Rio de Janeiro Artur de Sá e
Menezes , que , mandando-se ver no conselho ultramarino ,
o que rcprezentára a junta das missões sobre os senhores
de engenho darem o sabbado livre aos seus escravos para
cultura das suas roç.is , ficando desembaraçados os domin-
gos e dias santos para assistirem á doutrina christã , e
officios divinos , se conhecera ser gravissima a matéria , 4
que se lhe devia applicar todo o remédio possivcl ; e que
assimcomo conforme a direito divino e hum.mo erao os
escravos obrigados a servir a seu senhor, também este ti-
nha obrif^ação de lhes dar o sustento necessário, paraque
não morressem , e devião ser obrigados , ou a lhes dar sus-
tento , ou hum dia na semana , para poderem com á sua
industria grangça-lo : e que desta alternativa escolhessem os
ditos scnliores. O governador duvidou pôr em execução
aquclla ordem pela diiEcuIdade de averiguar-se a observân-
cia delia; e lhe foi ordenado pela carta Regia de 16 de
Novembro de 1701 , que observasse inviolavelmentc a or-
dem , castigando os transgressores delia com penas condi-
gnas a seu delicto ; e quando acontecesse cazo, cm que se
não podesse averiguar no todo , ao menos cm parte , se po-
deria dar pelo meio do castigo o remédio , que se procu-
va.
§. 8.
Qiiazi em todo o Brazil foi adoptado o permittir-se
o sabbado aos; escravos, para adquirirem com o serviço
delle a sua subsistência. A triste condição de hum escravo,
em paiz estranho , de diversa religião e costumes , aban-
donado á discripção, e humor tirannico dos seus senho-
res não pôde deixar de ser desgraçado com os mesmos
senhores a todas as vistas, paraonde se volte. ^- Como pô-
de
DAS SciENCIAS DF. LiSBOA. Í6^.
àc O senhor achar soccorro , c fidelidade no escravo nú ,
definhado de fome , de mizcria , e de dcsesiperação ? Os
senhores, nascidos no grémio da mais pura e santa rchgião,
não duvidao entrcgar-se a todas as paixões sensuacs , inspi-
rando aos escravos os sentimentos de corrupção e pcrfidia j
e comtudo esperao , que o temor dos horriveis suplícios
faça encontrar naqueiles , que não conhecem as virtudes y
a continência , e os outros dons, que só a religião, a edu-
cação, e o habito conferem; e assim mesmo difficilmente
conseguem flizer praticar. As familias não se consei vão sem
a união do amor conjugal. Como pois se pertcnde associa-
ção de escravos de paizes diversos sem os unir por vinculos
sagrados no amor da família, onde rezidem , fizendi não só
parte uella, mas á mesma família? Repartindo-se com el-
]es alguma propriedade das terras , ^- quanto não serão aquel-
]es braços utilmente empregados na própria fortuna dos se-
nhores, e na prosperidade de suas familias?
§ 9-
Estremece o escravo á voz do feitor deshumano , ou
do próprio senhor , que ainda mal tem pronunciado huma
palavra , já hum sem numero de açoutes he descarregado
sobre aqucUc infeliz , quando não são dependurados pelos
braços nas arvores, ou nos postes elevados, ou nas esca-
das amarrados, para sofrerem centos de açoutes, applican-
do-se depois ás feridas novo tormento com a cura de su-
mo de limão, e pimentas. Os animaes ferozes cederíão aos
gritos lamentáveis daquellas victimas ; mas não cedem al-
guns, dos seus senhores , que de continuo estudâo inventar
novos e bárbaros castigos , de que se horroriza a humani-
dade , e de que talvez algum dia tomará vingança 1 Muitos
escravos acabão taes castigos em desesperação , voltando
a iingoa, para não refolgarem , deitando-se outros a afoga r-
se nos rios , ou no mar , degolando-sc a si , comendo ter-
ra, ou sal, se nos mesmos açoutes não exhalão alguns o
ul-
i66 Memorias da Academia Real
ultimo suspiro; assim estão persuadidos os senhores, de
que devem aterrar os escravos , paraquc estes se não levan-
tem , e os assassinem !
IO.
Por carta Regia de 20 de Março de 1688, sendo
informado o Soberano de taes horrores praticados contra
os escravos , quando só era licito aos serihores o castigo
moderado, e querendo evitar, que os escravos padecessem,
como se explica a mesma carta Regia, sobre lhes faltar a
liberdade a tirannia e vingança de seus senhores , ordena-
va , que em todas as devassas geraes se perguntasse pelos
senhores, que com crueldade castigassem a seus escravos,
e fossem obrigados a vende-los a pessoas, que lhes dessem
bom trato; e se tomassem denuncias contra os senhores,
que commettessem semelhantes castigos , sendo ainda estas
dadas pelos mesmos escravos castigados ; e ainda quando
se não provassem as denuncias , e qucrellas , fossem notifi-
cados os senhores para lhes não fazer damno algum por
aquclle motivo. Por outra carta Regia de 25 de Março
do dito anno se ordenou, que os governadores tomas-
sem informações verbaes , e summarias do modo , com que
os senhores trativão os escravos ; e que achando-se exce-
derem a moderação , os punissem arbitrariamente , e os
que fossem comprehendidos em excesso grave , os fizesse
processar summariamente, remettendose ao ouvidor o co-
nhecimento do excesso para os sentencear immediatamen-
te com adjuntos, evitando, quanto fosse possível, que
chegasse á noticia dos escravos este remédio , paraque com
menos justificada cauza não arguissem seus senhores; e no
cazo , que se entendesse , que bastaria , que os senhores
soubessem a forma , com que se mandava proceder con-
tra elles , achando-se alguns comprehendidos em maior ex-
cesso , alem das penas , que lhes fossem dadas , fossem
obrigados a vende-los, com a condição do novo senhor obri-
gar-se a trata-los com castigo moderado j e se fizesse saber
ao
dasSciekciasdeLisboa. 167
ao bispo, que se lhe constasse, que alguém punia os escra-
vos com crueldade e tirannia, procedesse contra ellc na for-
ma referida , mandando dar parte do excesso ao governa-
dor.
§ II.
Por outra carta Regia de 13 de Fevereiro de líftp ,
SC mandou suspender a execução daqucllas duas cartas Re-
gias, por grandes inconvenientes, que se rcprcztntarão ,
mandando-sc observar unicamente, o que dispunha a lei cm
commum sobre os senhores, que a seus escravos davão im-
moderado castigo. Finalmente por outra carta Regia
de 7 de Fevereiro de 1698 se encommendou aos governa-
dores, que se evitassem os castigos immoderados dos escra-
vos por aquellcs meios , que parecessem mais prudentes
c cíficizes , cm forma , que não cauzasse algum alvoroço
nos povos ; e se conseguisse o fim sem ruido , ou alteração
nos escravos.
§ 12.
Ficou em virtude daquellas ordens dependente da pru-
dência , e zelo dos governadores a applicaçâo dos meios
convenientes de conter os senhores no immoderado castigo;
e os escravos na sobordinação , e temor dos seus senhores.
O sahbado, deixado para sustentação dos escravos, não po-
dia alimenta-los , principalmente tendo filhog : o amor des-
tes, e da mulher, a ambição, e prazer da pequena pro-
priedade , que poucos senhores humanos , e sensatos lhes
tem concedido , são, e tem sido seguros meios da sua con-
servação. Hum único conheci , que alem do sabbado susten-
tava de feijão c farinha com o seu toucinho aos escravos.
De outra maneira elles se não podem contentar , de neces-
sidade se aquilombão nns matos , onde de noutc sahem a
roubar as rossas do senhor , ou dos vizinhos : as matas se
vão enchendo de descontentes escravos , quc^ algum dia
po-
i68 Memorias da Academia Real
podem invadir o paiz habitado, e produzir espantozas ex-
plozóes.
§ 13'
Parecião acertadas as providencias do governo sobre a
moderação do castigo dos escravos ; porem nao se devia pres-
cindir o cuidado da sua educação , forçando os senhores
tirannos a entrarem nos seus verdadeiros interesses , que es-
tão pendentes da conservação dos braços dos escravos , fa-
zendo-Ihes suave, e doce a escravidão pelos conhecimentos
da religião , em que são obrigados a instrui-los não vio-
lentamente , mas com brandura per.suaziva ; diiignando-lhes
por caz.imentos próprios da mesma religião os successores
do seu amor, e fidelidade ; sustentando-os conforme as suas
possibilidades , permirtindo-lhes certas porções de terra pa-
ra as suas lavoiras , para terem , com que vestir-se , c suas
mulheres; e para satisfazerem osappetites, de que he sus-
ceptível a natureza humana , fazendo-ihcs ensinar os instru-
nKMitos de muzica , a que são propensos, para suavizaras
tristezas da escravidão , e esquecerem no êxtase da sua
alegria a dureza da sua condição, e dos filhos; entreten-
do-os pelo trabalho nos dias delle, e até nas suas festivi-
dades , longe dos viciozos passos , que deve pervenir e evi-
tar ; então a lavoira do paiz produzirá grandes utilidades ,
então se perpetuarão as fabricas delle de familia em fami-
lia ; o estado será sempre florecente; poisque na prosperi-
dade geral o paiz agricula firma a sua eterna duração.
§ M-
Tão importante objecto não tem assas merecido algu-
ma consideração politica. Huma só ordem , ou insinuação
vi , tendente a conseguir a conservação dos escravos pelo
interesse do bem geral da agricultura das colónias ; poisque
sem ellcs as terras não tem algum valor. Os governado-
les em observância das ordens, c[ue reccbião do throno,
pro-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. l60
proseguiáo sem algum exame do local , a mandarem fazer
somente as lavouras da mandioca. Dom Rodrigo Jozé de
Menezes expedio cartas circulares a todas as camarás em
data de 1 2 de Setembro de 178$' exigindo a observância
das ordens dadas pelos seus antecessores áquclle fim, e man-
dando , que de seis em seis mezes , se remettesscm á secre-
taria do governo as listas das plantações praticadas ; c cm
carta de 10 de Março de 1787, a observância do plano,
e instrucçôcs feiras pelo Desembargador Francisco Nunes
da Costa a respeito da cultura da mandioca ; c que por
qualquer ommissao serião emprazadas as camarás para darem
as cauzas , porque não observarão as suas ordens. Obriga-
va aquelle plano a todas as pessoas a plantarem certo nu-
mero de covas , as quaes serião obrigadas annualmcnte duas
vezes vizitar, e correr todas as rossas , fazendo lançar em
hum livro, para esse fim creado , o numero das covas, o
lugar , o nome do lavrador , e o numero dos escravos de
serviço.
§ 15".
Aquelle mesmo systema adoptou o excellentissimo D.
Fernando Jozé de Portugal na sua carta circular de ly de
Abril de 1788, ratificando a approvação do mencionado
plano, e ordenando, que se vigiasse na sua observância,
obrigando as camarás a communicar-lhe , por mappas, os
géneros, que para o celeiro público se transportassem , pa-
ra cujo fim levarião guia as embarcações do giro , a carga
que tinhão a seu bordo , e prohibindo , que as embarcações
das outras capitanias viessem carregar nesta sem ordem do
governo ; segurando na dita carta , que por outra maneira
não podia promover a abundância , que anciozamente deze-
java , para ter os povos contentes , e livres da oppressão
da fome. E para ter hum exacto conhecimento da lavoura ,
e seu adiantamento , ordenava , que em cada semestre en-
viassem todas as camarás á secretaria do governo as listas
das covas da mandioca dos lavradores , e a importância da
Tomo IX, X sua
170 Memorias da Academia Real
sua colheita, promettendo tomar debaixo da sua protecção
os lavradores , que se distinguissem naquclle género de \à-
voira , e lhe cumpriria os seus previlegios bem como cas-
tigaria a omissão , dos que contraviessem a tão saudavi-is
providencias.
§ i^.
As grandes fomes , que dcvora'rão Pernambuco por mui-
tos annos , augmentou consideravelmente a plantação da
mandioca: o grande preço, a que subio aquelJc género da
primeira necessidade , vigorizou o trabalho daquella cultu-
ra, que devendo ser favorecida a colheita pelos meios,
que dcspertão a industria , e que removem todv s os obstá-
culos que a descoroçoão, paraque os lavradores encontras-
sem constante, c recrescente interesse na sua produção;
pelo contrario se prohibio a exportação para Pernambuco,
armárão-se assentistas , que roubarão os interesses dos po-
vos, e os lucros, que deviâo ter os lavradores pjssárâo
pira as mãos daquelles , e das guardas militares, que se
apostarão , como a fazer guerra á industria e trabalhos do
lavrador: tarde foi reconhecido tão fatal erro no governo
do excellentissimo Francisco da Cunha e Menezes ; pois
logooue deixou aos povos a indefinida extensão do seu
mercado , augmentau-se extraordinariamente aquella lavoira
em maneira tal , que Pernambuco foi copiozamente abas-
tecido , e o celeiro público da Bahia vendeo a farinha a
320 réis o alqueire, preço, porque ha mais de 20 annos
não chegou ao seu mercado público,
§ 17»
Propagando-se a lavoura da mandioca com o maior afin-
co , era natural que se destruíssem os mais densos , e im-
penetráveis bosques. Este tão grande embaraço obrigou o
ouvidor, que então era da commarca o Desembargador Fran-
cis-
DAS SCIENCIAS DE LrSBOA. 171
cisco Nunes da Costa a dirigir ao throno a mais enérgi-
ca reprezentaçao ; assim ccnicebida.
" Senhora; A inspecção dos Rcaes cortes de madeiras ,
» que Vossa Magcstadc foi servida cncarregar-me no dcs-
j' tricto desta capitania , c que prczentemcnte se mandão
>' laborar com mais extensão , acaba de confirmar-me na
s> prcciza diligencia de procurar pela Regia authoridade o
» remcdio competente ao estrago, com que as admiráveis
j» matas da mesma capitania se vão arruinando e mostran-
j' do já a perda mais scnsivcl para Vossa Magcstadc, pa-
« ra o commcrcio , e para os moradores , que se ajudavão
" desta riquissima extracção , pela prodigioza abundância
j» das madeiras, que pareciáo inexhauriveis nos primitivos
» tempos desta colónia, ou talvez pelo menor calibre dos
>» navios , e menor numero dcllcs , sendo o fornecimento
>» das matas da Europa muito superabundante , se não esta-
j> beleceu methodo , ou legislação competente, para regu-
3> lar a extracção, e conservação das deste contmente ; e
j> apenas a primeira cautela, que se encontra a este respei-
jí to , he a simples recomendação feita ao governador da
j> Relação, que nos últimos annos do intruso Filippe IV.
»> se lhe fez no regimento da sua creação na cidade da
j> Bahia , sustentada depois no segundo regimento , que lhe
»> deu em i (5 5-3 o Senhor Rey D.João IV, tendo concor-
» rido depois alguma provizão do Conselho ultramarino,
j» em que se excita a mesma recommcndação ; mas todas es-
>} tas providencias destituídas de sanção , que pela quali-
» dade da pena fizesse conhecer o valor das matas , e abo-
» minação dos incendiários , e destruidores das mesmas.
í> A população e cultura principalmente do assucar , não
>» tinhão fertilizado de sorte , que exigisse huma exacta
>» combinação dos interesses desta cultura , commoda con-
» servação das matas ; e por isso se derão de sesmaria ; e
í» se assignárão mesmo por mercês Regias , domínios par-
>» ticulares, na extenção da costa, que a invenção e des-
*» cobrimento fizerão de Vossa Magcstadc j pois bemque o
X ii » ne-
J>
172 Memokias da Academia Real
>» nexo do império assim o persuadisse , ainda mesmo a
>» authoridadc e direito público das nações, confere o do-
j> minio dos lugares inaccessiveis ao imperante, de forma
>» que pela sua natureza nenhum particular pode subtcntar-
« se nelle, sem assignaçáo, e ajudicação dos mesmos do-
Ȓ minios. Hugo Grocio no seu tratado da guerra , c da
paz 1.'' 2° cap. 2.° §. 3.° do n.° 2.° até 6." com seus
>» adnotadorcs mostrão admirável , e concizamente. Nasceu
»> desta abundância , por huma parte a dcmaziada fncilida-
>» de nas sesmarias , por outra parte , a introdução dos di-
» versos proprietários sem este titulo, e ultimamente a
» omissão do direito Forestal , cujo uzo he distinctamcnte
>> conhecido em toda a Europa , na França , reduzido a cor-
» po ; na Alemanha , a systema , do que se lembra Bohc-
j> mero no seu bom tratado do direito público , parte es-
5> pecial 1.°, 2.° cap. 10 §. 17. Nem deixarão os augustos
» predecessores de Vossa Magestade intacta esta jurispru-
» dencia , os diversos regimentos sobre o pinhal de Lei-
» ria , e a ultima creação de hum magistrado , para vigiar
» sobre elle , as amplas providencias incorporadas no re-
» gimento do Monteiro mor, e ainda a recommendação que
« a lei do reino faz aos corregedores das commarcas , no
» respectivo regimento , dão huma adequada e perfeita
>> idéa , de que a menos circumspecção a respeito do Bra-
j> zil teve por baze a sua original, e famoza abundância.
j> Mas agora que a falta já he sensivel , e que o abuzo,
j> o ferro , o fogo , a ignorância , e a ambição tem estra-
» gado rapidamente a fértil , e riquissima mata de Jiquiri-
>» çd ; e pouco menos todas as que decorrem para o sul
j> até o rio de Contas , e que este flagelo continua com
j» tal abuzo, que até se tem estabelecido a máxima, que
>» as matas são livres, e de hum direito público, e com-
j> mum , he necessário a revindicação e uzo dos direitos
j' Régios , para vedar e impedir tão ruinozo progresso : a
>» authoridade provizional , que me he licita , e que me
»> faz cargo , como corregedor da commarca , estabelecida
>» por
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 1/3
j) por hum capitulo de correição, não podendo exceder a
» impozição de multa, ou coima, mais, ou menos severa,
j> he írcia débil para conter tantos airuinadorcs , como o
» summario mostra ; pretizamente se deve recorrer ao meio
» cHicaz e pozitivo , que pela sanção contenha esses ini»
)» migos doestado. O mesmo summario, e a própria inspec-
» ção e exame , provão qual seja a incomprehensivel bre-
» vidade, com que incendiadas já muitas Icgoas se aproxi-
>j mão sem remédio as maiores despezas dos trans-purtes ;
» e até a extinção das matas , o que he bem crivei , lo-
» go que foi reflectido , que estes quazi bárbaros , não
j> costumão no mesmo terreno repetir a cultura , e pas-
>» são adiante com incrivel rapidez, fazendo novos roçados,
>» por supporem nestes mais fertilidade , e nutrindo assim
» a iguaria, com que adubados, e surribados por cultura
j> hábil , os deixados terrenos , podcrião sem duvida algu-
» ma dar a vantajoza producção , relativa ao consummo dos
j> habitantes ; os estragos que tem cauzado os intitulados
>» roceiros de Nazareth tem sido tão graves , que extenden-
» do-sc a menos de seis annos, pelo espaço de mais de
j> doze legu-is , se achão actualmente occupando as cabe-
« ceiras do rio de Jiquiriça' , onde desprezando continuas
» advertências, e até as notificações judiciaes, tem reduzido
» a cinzas , maras preciozas , e tão antigas como o mun-
>» do, fazendo huma perda, qual não ha calculo que pos-
» sa computar. Esta mata de Jiquiriça, a mais próxima
» da Bahia , foi hum rico depozito de onde se extrahirão
» as melhores peças, seja para o reparo, e concerto das
»> náos de guerra , seja para a construcção dos navios par-
>» ticulares, que se tem construido nos estaleiros desta ci-
»> dade , nestes últimos annos , ella he a única mata de on-
>i de se extrahem os importantes pranchões , e taboados
» de vinhatico , os melhores pela sua qualidade , e os mais
» commodos pela conveniência da descida do rio , todas
j> estas riquezas desprezadas por estes homens rústicos e
» ambiciozos , estão próximas a extinguir-se , se de todo
não
174 Memorias da Academia Real
>» nao forem detidos estes incendiários , e se por outras
» conveniências não forem as matas dcfczas vcdadns, e
» guardadas com o mesmo , ou maior cuidado , com que
» pelo regimento do Monteiro mor se mandarão acautc-
» lar até as matas dos particulares, que pela proximida-
» de dos rios se fazião as suas madeiras convenientes para
>» as armadas Rcaes. Este o único ponto de vista o mais
» importante da reprezcntaçao , que tenho a honra de pôr
>' na prezença de Vossa Mngesrade, consiste em se guarda-
j> reni , estenderem, e demarcarem as matas virgens, que
»» ainda resta ) livres do ferro e fogo dos roceiros, ficando
>' estes homens obrigados a fazerem as suas plantações nas
j> immensas matas já approveitadas , ou nas vulgarmente
» chamadas capoeiras ; fazcndo-se das matas Reacs , tom-
" bo , com as mesmas clare/as , confrontações , e divizões,
j> que se observao no referido regimento do Monteiro
j> mor do Reino , e dando-se todas as mais providencias ,
« que Vossa Magestade for servida. »>
§ i8.
Por oflicio de lo de Julho de 1784 rogou aquelle
tão hábil magistrado ao excellentissimo D. Rodrigo Jozé
de Menezes , governador , que se dignasse levar á Real
prezença tão justa reprezcntaçao, e que entre tanto desse
aquellas providencias , que julgasse necessárias para a con-
servação das matas, e para serem despejados os roceiros,
que por authoridade própria se situarão no centro delias ,
sem o titulo de sesmarias, e sem o reconhecimento do supe-
rior dominio, e que as ordens que fosse servido expedir se
participassem ao corregedor da Bahia , paraque de sua parte
£s fizesse observar na camará de Jaguaripe ; a cujo districto
percencião as matas das vertentes do Jiquiriçá devastadas
pelos roceiros da povoação de Nazareth.
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 175-
§ i9-
Prcstando-se o governador favoralmente a'qucllas rcpre-
zentações , cxpedio a seguinte portaria que está copiada
no livro chamado i.° da inspecção dos cortes de madeira a
f". 76.
>> Porquanto não sendo bastantes as providencias,
>» que Sua Magcstadc tem dado para evitar os estragos que
5> os roceiros ta/.em nas matas desta Ci^pitania , me c< nsta
" que os de Na/areth , e Jiquiriçá do termo da villa de
j' Jaguaripe , continuão a destruir estas matas tão preciozas
» pelas madeiras que em si tem , e utillissimas ámeitra Se-
>» nhora , na cxtraçáo delias para fabrico, e apresto prcmpto
» das na'os e fraguas da Real armada, por cauza da pro-
>» ximidadc cm que ficão ao poito do mar; e attcndtndo a
»» este prcjuizo , e a falta que com semelhantes ubtrturas de
tf roçados experimentarão ainda os povos desta cidade ,
>» com as madeiras, e taboados , para edificarem, e concer-
>' tarem as suas propriedades : ordeno ao Desembargador
» Francisco Nunes da Costa , Ouvidor da commarca dos
>» Ilhéos , que se acha encarregado por ordem de Sua Ma-
» gestadc , e instruções minhas, da inspeção dos Reaes
>» cortes de madeiras , que passe aos districros menciona-
>» dos de Nazareth , e Jiquiriçá , e mandando passar huma
j> linha imaginaria nas duas matas pela latitude delias ao
j> porto do mar, em que se facilite a extracção e conducção
>» das madeiras, prohiba aos roceiros, ou outras quaesquer
» pessoas , o corte , e abertura de roçados , com pena de
" serem autuados , immediatamente , que me constar passão
>» dos limites prohibidos, castigados rigorozamente a meu
j' arbítrio, c paraque me conste da notificação, que se H-
>» zcr aos mencionados roceiros , e das distancias que se
»» linitára , e se pohibíta, me remetard o mesmo Desembar-
>» gndor Francisco Nunes da Costa huma certidão authen-
" tica , deixando as próprias em sua mão para proceder
»» o
jy6 M EMoniAS DA Academia Real
j> o auto , e a prizao nas pessoas que transgredirem es*^
» minha ordem , por que lhe confiro a comissão de assi'Ti
» o praticar , postoque seja fora da sua commarca , pc-
>» la inspecção de que se acha encarregado, remettendo-me
» logo os prezos , para contra ellcs mandar proceder, co-
»> mo inimigos da utilidade pública : esta mesma providcn-
t( cia dará o dito Desembargador Francisco Nunes da Cos-
« ta na sua própria commarca, de que igualmente manda-
}> rá certidão a esta Secretaria de Estado , pela qual man-
» do se expessão as ordens necessárias para ficar scientc
»» do determinado ao Desembargador ouvidor desta commar-
>» ca , á commarca daquclia villa de Jaguaripe , capitão
j> mor das ordenanças delia, e mais officijcs , commandan-
>» tes dos districtos de Nazarcth , e Jiquiriçá , para pela
» parte, que lhes toca , darem inteiro cumprimento a es-
j> ta minha ordem, auxiliarem, c promptamente executarem
5> as que a respeito deste particular lhes enviar o sobredi-
»> to Desembargador Francisco Nunes da Costa , e mando ,
>» que esta se registe nos livros da Secretaria de Estado ,
>j e nos da camará de Jaguaripe , e mais partes onde con-
>» vier, paraque a todo o tempo conste. = Bahia 28 de
>» Setembro de 1784. = Rubrica do Govei^nador. = Dom
»> Rodrigo Jozé de Menezes, »»
20.
Não era possível executarem-se com formalidade le-
gal aquellas ordens , scmque se conciliasse a lavoura da
mandioca com a conservação das matas , por se não prati-
car aquellas sem as derrubadas , assolamcnto , e destruição
dos bosques : adubar as terras , e preparalas como em Por-
tugal , e cm todas as partes civilizadas he costume , era impos-
sível então praticar-se nesta capitania , que não tinha ga-
dos para os estrumes , nem animaes que a prestasem ; de-
homens grosseiros , cuja sustentação do rico he o peixe ,
e marisco , e na falta a carne do sertão , se não podia es-
pe-
DAS SciENCiAS DE Lisboa. 177
perar que tivessem industria, que só as artes e civilização
subminiátra para preparar estéreis terrenos, de modo que
ficassem .iprospara asdiffcrentes culturas, que os prcductos
levados á terra exigem : as terras de capoeiras não submi-
nistrão a raiz de mandioca com satisfiição dos pcnozos tra-
balhas do lavrador, alem de serem enxames {a) de for-
migas, que elles jamais tiráo , e que no discurso dos
tempos ficão pela immensa propagação delias incapazes de
cultura, vistoque a preguiça, c indolência lhes tira as
forças para atacar as formigas , e destrui-las.
§ 21.
Por principios oppostos ao augmento da lavoira de
mnndióca, era encaminhada outra rcprczent. çao ao mesmo
Excellcntissimo D, Rodrjgo Jozé de Menezes cm 15 de
Setembro de 178c , expondo-se a necessidade de hum re-
gimento para guardar as mat-s , e conserva-las ; poisque
da nul entendida liberdade, que tinhão os habitantes de
entrar ncllas , a seu arbitrio, sem escolha, nem cbserv. çao,
nascia a scnsivel falta das madeiras , que cada dia se ex-
perimentava ; poisque cada hum cortava poronde que-
ria, desperdiç3ndo-se infinitos páos em navios mercantis,
que devião ser rczervados para se empregarem em peças
da primeira ordem e grandtza , e que entre tanto que Sua
Magestade não rezolvia a conta , que sobre este objecto
tinha subido á Real prezença , julgava conveniente , que
se nomeasse a Manoel Gonsulves Tarrozo por mestre e
guarda das matas Reaes desde Mapendipé , até as matas de
Tomo IX. z San-
ca) iNáo III' tanto peJo maior rendimento, que conimuniniente en-
contrão os lavradores na plantação da mandioca na inata virgem , que
laz aquella preferencia á plantação das capoeiras, como por evitar
o trabalho da capinação, que nas capoeiras he três vezes mais doque
succedc nas matas virgens, onde apenas hunia he sufficiente , e na re-
planta desta se topa os mesmos eiuames de formigas, Esta uota he do
author.
178 Memorias DA Academia Real
Santarém, e Igrapiuma , com a providencia de se não po-
derem extrahir madeiras para navios particulares , scmquc
precedesse despacho , e licença de sua Excellencia , e cum-
prida na inspecção das madeiras , c por ella se assignasse
o destricto, e mata, em que se deviao abrir os cortes; e
que as peças principaes , como talões de quilha , couce ,
rodas , mastreações , e semelhantes , se não podessem cortar ,
semque precedesse exame, e escolha do referido mestre
c guarda das matas ; vivamente reprez.entando áquelle
Ex '"" governador, que só por tal meio se poderia evitar
o fdtal e ruinozi) estrago , que se experimentava , e que
acrescentasse a estas providencias as outras já dirigidas pa-
ra impedir os roçados.
22.
Conveio o Ex.""" governador na sua portaria {d) de 3 de
Outubro de lySy em tudo que lhe propo/, aqucUe ministro,
c mandou expedir as competentes ordens , para ter cm a
mais littcral observância. Vio-se porém , que na pratica se
não podião observar as ordens tendentes á prohibiçao dos
roçados, pelo grande clamor dos povos, que viviao da
lavoira, e pela sensível falta , que entrou a sentir-se do pão
da mandioca no celleiro público. Não se podia lançar a
linha imaginaria prescripta pelo governador pela confuzao
dos domínios, e posse, em que estavao os povos, em vir-
tude dos titulos do dominio de direito natural , provenien-
te da occupação e cultura , que carecia desenvolver-se, e
nssiirnalar-se prudentemente , e com conhecimento de cau-
'/a. Entretanto o governador em carta de 17 de Setembro
de 1785' cscreveo ao mesmo ouvidor, paraque facilitasse
a cultura da mandioca pela falta daquclle mantimento da
primeira necessidade , que se experimentava , recommendan-
do-
(1) Acha-se a copia desta portaria uo dito livro 1.° da inspecção
dus cortes de maJeiías f.7U.
I
DAS SciENCiAs DE Lisboa. i-t/^
dolhc , que nas ordens, que desse para a cocservrçuo díir;
matas, declarasse , que a prohlbição dos roçados semente
se entendia nas matas próximas ao mar, e rios, cm que
se podcsse conduzir as madeiras, e que lora daqucllas cm
todas as mais se praticasse a cultura da mandioca.
§ 23.
Em virtude daquella ordem , foi forçado o ouvidor
da commarca contradictoriamente aos princípios da conser-
vação das matas permittir as derrubadas para a plantação
da mandioca fora dos lugares á borda d'agua , dirigindo
em 23 de Setembro de 1785- suas ordens aos officiacs da
camará , em que lhes declarou , que cmquanto se não pratica-
va huma demarcação, que acabasse de regular, e demons-
trar quacs cráo as matas, que deviao ficar reservadas para
os Rcaes cortes, se podesse continuar na cultura da man-
dioca , comtantoque se desviem os lavradores das vizinhan-
ças do mar , e dos rios , ficando livres todas as mais dis-
tantes dos portos, para roçarem e plantarem.
§ 24-
Faleceu pouco depois aquelle ministro ; não se pro-
cedeu até ao prczente na demarcação do domínio dos par-
ticulares, ou do público; destruirão-se , e assolla'rão-se to-
das as matas aborda d' agua, com irreparável perda; pois-
que as matas que se propagão , e crescem nas capoeiras
não produzem arvores suflícientes para o serviço dos navios
de guerra. A experiência diurna confirma serem para sempre
perdidos todos os bosques , onde entrou o assolador ferro
dos mandioqueiros , e o fogo, aindaque tenha passado hum
século d'annos sobre aquelles horriveis incêndios. Verda-
de incontestável á vista das capoeiras grossas desampara-
das da agricultura dos indios , na descoberta da colónia,
(.ndc hum só páo se não encontra que tenha grossura, e
z ii com-
i8o Memorias DA Academia Real
comprimento, que a marinha possa utilizar; porquanto as
uionstruozas arvores não tomão corpo e bellc/a nos luga-
res descobertos , e somente nas sombrias matas procuião
disputar , qual primeira se apprezentará ao grande astro ,
que as aviventa , e lhes dá tão soberana grandeza.
O Excellcntissinio D. Fernando Jozé de Portugal ,
proscguio com a mesma contradição do seu Excellcntissi-
mo antecessor, persuadido da destruição das matas, que
crescia na razão do maior augmcnto da cultura da mandio-
ca , mandou fazer as maiores indagações , que hum t d
objecto exigia , e indignado da destruição daqucUas adja-
centes aos rios de Jiquiriçá , ao de Donas, e suas cabe-
ceiras , mandou que fossem despejados os roceiros , c que
só approveitassem as plantações feitas , e se consignasse^
para o despejo , termo racionavel , e os que não obcdctesseni
fossem prczos, e summariados ; ficiíndo porem conscrva-\
dos todos quantos estivessem situados em lugares distantes
dos sobreditos rios para fazerem as recommendadas plantações
da mandioca.
§ 26.
Aquellas ordens forão somente dirigidas , mas não
executadas ; e não era possivel a execução , não se assi-
gnalando o limite certo , que devia ser intacto ao ferro ,
e fogo. Os fabricantes de madeiras , que nellas plau/ivel-
mente se internavão , reprezentavão , que não podiao fa-
zer os cortes, semque lhes pcrmittisse as derrubadas, pa-
ra terem do que se sustentar coma plantação da mandioca:
aquellas razões apparentemente convencião aquelle Excel-
lentissimo governador , elles ganhavão e proseguirão nas
su.is derrubadas , com irreparável perda do património Real ,
assim na destruição, dos preciozos putunuijús, vinhatico ,
páo
dasSgienciasdeLisboa. 1.8 r
fáo brazil , que se qucimavao , como por quç faziao ccíi-
tcs , que a sua desmarcada , e mal calculada smbiçã.o não
podia approvcitar ; poisque sendo aqucllas mauis realen-
gas , cada hum entrava e derrubava cem , duzentos , c
mais páos, conforme podiâo, paraque outrog se não ap-
proveitasscm delles , e não os podendo falquejar , c abrir ,
a maior parte ficáriío podres, e perdidos nas matas. Já ho-
je são raras aquellas arvores, e ficão em distancia tão con-
siderável , que em poucos annos custará á Real fazenda
por huma só falca , ou prancha de vinhatico , ou putumu-
jú, aquelle mesmo preço, pelo qual ainda hoje se obtém
por huma dúzia.
§1 27.
Estando-sc na incerteza dos meios de conservar as
matas, quercndo-se ao mesmo tempo, que nellas se fizes-
sem derrubadas , e queimadas para a plantação da mandio-
ca , chegou ao governador o Excellentissimo D. Fernando
Jozé de Portugal a rezolução das suas contas, tendentes á
conservação das matas , e que fez o objecto da carta regia
de 13 de Março de 1797, para se organizar hum plano
cm sessões , que se devião celebrar , e de que o Excellen-
tissimo governador seria oprezidente, e adjuntos dclle o
intendente da marinha Jozé Francisco de Perné , o ouvidor,
que foi das Alagoas Jozé de Mendoça de Matos Morei-
ra, e o ouvidor , que se havia de nomear para a comniar-
ca dos Ilhéos , dizendo-se na dita carta regia, que o di-
to Excellentissimo governador não poderia pretender algu-
ma mercê ainda em remuneração de serviços , sem mostrar a
execução, que tiolia dado aos objectos importantes da dita
carta regia.
§ 28.
Nomeou interinamente o governador para administra-
do-
iSx Memorias da Academia Real
dores dos cortes de Cairú ao capitão mor João BnptlstJ Tei-
xeira, ao sargento mor Luiz Bernardo de Souza , eaocapi-
pitáo Gabriel Pinto de Pinho , a quem deo as mais apertadas
ordens , para se não consentirem os roçados nas maias gros-
sas , onde erão os cortes de madeiras , nem cstabeleccr-se
algum lavrador nas cabeceiras daquellas matas. As camarás
fizcrão reprezentaçóes , que não podião conservar-sc as povoa-
ções , sem os roçado para as suas plantações , e do contrario
scriáo forçados a dezcrtarem as viUas para não morrerem de
fome , e não se dando algum remédio a tão grave mal ; e fi-
zeráo tanto pezo as razões offerecidas pelas camarás , que o
Excellentissimo governador por portaria de 23 de Setembro
de 1797 ampliou as ordens, que tinha dirigido para a con-
servação das matas, declarando, que aquellas , que mandara
executar tendentes áquelle fim , em datas de 3 e 7 de
Junho do mesmo anno , prohibindo que os lavradores cor-
tassem, roçissem , ou queimassem as matas, só compre-
hendia os terrenos, em que havia madeiras de construc-
ção , ou páos Rcaes próprios para nãos , fragatas , e mais
embarcações do Soberano , e não aquellas que erao
assignaladas para as lavouras ; poisque nestas devião pra-
ticar aquellas derrubadas , não só em beneficio commum
dos lavradores, e mais habitantes; mas também dos tra-
balhadores , occupados nos mesmos cortes ; por cujo mo-
tivo mandou , que os referidos administradores , destinas-
sem aos lavradores limites certos , em que podessem con-
tinuar as suas plantações , emquanto não dava outra pro-
videncia, precedendo huma vestoría pelos mestres, e ad-
ministradores dos referidos cortes, a fim de conhecer, se
os lugares, que se pretendia abrir para a lavoura , tinhão
ou não madeiras Reaes; não se consentindo jamais que
na altura dos cortes , ou nas cabeceiras se estabelecessem
lavradores , ainda com o titulo de sesmarias , pelo estrago
ouc podião cauzar nas matas, e finalmente , scriao responsá-
veis os referidos administradores pelo excesso que houves-
se na execução das ordens mencionadas.
§
dasScienciasdeLisboa, i8;>
§ 29.
Como o dominio dos bosques se achava por cccupa-
çáo geral , nos diíF^rcntes particulares , promiscuamciite se
permitdrão as lavouras nos mesmos lugares dos cortes , so-
ccgando os administradores ao Exccllcntissimo governador,
(]uc as plantações e derrubadas se fazião onde já não ha-
via madeiras , por ter passado o corte , ou mais para ci-
ma , ou para algum dos lados. Era incontestavelmente cer-
to, que desde Jiquiriçá até Pinaré , abundao as matas de
todo o género de madeiras de construcção , e marchetaria ,
c edificação dos prédios urbanos , existentes não amontua-
damente neste , ou aquclle lugar , mas sim entre huma
infinidade de arvores, cujo uzo ainda se desconhece no
comercio, as quacs crescem até o seu máximo ponto, e
adoecem e morrem, e nascem ao mesmo tempo muitas
outrjs , para substituir a natureza a falta daquellas , que
perecerão, ou que se cortarão j portanto não significa na-
da passar o corte por alguma parte da mata , para se jul-
gar despida das arvores, cujo corte he proveitoso á ma-
rinha ; poisque durante o serviço do desembargador Fran-
cisco Nunes da Costa, não se encontrando na rica mata
de Mapendipe arvores , de cujos troncos se podesse tirar as
peças , que exigião os constructores para a fragata Carlota ,
depois de doze annos forão encontradas naquelle mesmo
lugar , que servirão para a náo de 74 Príncipe do Brazil j
confirmando a experiência , que toda a mata intacta do
ferro e fogo se conserva em toda a sua espontânea repro-
dução das arvores próprias do seu local , e que na ma-
dureza dos fructos a natureza se occupa de perpetuar a sua
geração , emquanto outras sobem ao seu máximo cresci-
mento , para pruduzir hum corte vantajozo ; assimcomo
largando-lhe o fogo ficou perdida , e incapaz de produzir
arvores , cujo c(Srte possa nos futuros tempos ser profícuo
ás Rcaes construcções.
184 Memorias da Academia Re Ar.
§ 30.
Formalizou-se com a minha chegada á Bahia hum
plano , que teve provizional approvaçao , e do qual se da-
rá a historia , e inutilidade quando tratnr dos cortes de
madeiras do Caiiú. Os povos de Camamú ficarão cm toda
a sua liberdade para as plantações da mandioca, e os
principaes do paiz constituirão os seus estabelecimentos para
o Serenhacm nas terras dos indios de Santarém , e para o
braço do Acaraiii , e Caxoeira da villa , exportando para
a cidade a farinha de mandioca , e também para Pernam-
buco, durante a fome, a que se reduzirão pela falta da-
quelle essencial género de sustentação dos povos : aquel-
le novo plano, ftito para a conservação djs matas, os dei-
xou na posse de fazer as suas derrubadas pira as planta-
ções da mandioca , por não serem aquelles terrenos com-
prehen lidos na demarcação dos cortes, á excepção de hu-
nia legoa de terras, entre o Serenhaem , eo Pinaré.
§ 31-
A famoza barra do Camamií , abre o caminho da in-
dustria áquelle povo; e, se elle tivesse chegado a maior
gráo de civilização, tiraria sem duvida grande vantagem
de huma barra susceptível de receber em si os maiores va-
zos, e para maior inteligência, descreverei primeiro a ou-
tra pequena barra do Serenhaem, com a costa, e rios,
que seguem, e tomão diversas direcções, a formar o mais
bello, e útil recôncavo. Quando os ventos não pcrmit-
t.m t'imjr a barra grande, as embarcações entrando então
ro presidio do Morro , buscão o interior dos rios , que
desaguão na barra dos Carvalhos, que fica em 13° 45' com
fundo de 13 braças, para buscarem, ou a barra grande,
ou o Serenhaem , e poderem ancorar na villa : o canal da
barra dos Carvalhos he estreito 3 e por isso carece de se
en-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. [í!^
entrar com pratico delia, por ser acompnnIuHÍi t^c pc-
o.ras , que se dcixao bem perceber ao norte , pela rrjnJo
rebentação, que faz, e acompanha esse recife toda a en-
seada da costa até á ponta chamada dns Ciuvalhos , c ptla
parte do sul hum baixo de arêa , formado da ponta da bar-
ra , o qual continua até o Cordão , onde se forma a barra ;
c desde então se navega por liuma enseada larga sem risco
dando-se apenas resguardo ás pedras , que estão no meio
da enseada , defronte da embocadura do rio , que de Pi.ra-
tegi tem o nome , e desagua na costa ao sul da mesma bar-
ra.
§ 3^'
Aqucllas pedras, que do rio tomarão o nome , são for-
madas por vermes, que lhes dão diíFerentes figuras de ar-
voredos, formando nas suas ramificações grandes cabeços ,
que se unem ao tronco principal , c vem de hum grande
fundo , e sáo tão brandas que se quebrão.com toda a faci-
lidade pelas embarcações , quando por descuido nellas to-
cão de maré vazia, das quacs queimadas se extrahe muito
boa cal. Quando o mnr está embravecido , de longe se
deixão ver pela sua rebentação : entre aquellns pedras , c a
costa do Parategí ha porém hum canal , pelo qual borde-
jão livremente as embarcações. Passadas aquellas pedras,
ou pelo canal de terra , ao largo se demanda a barra do
Sercnhaen que na lingoa geral dos indios, significa couza
que está no prato , e sem perigo se navega até encontrar
os baixos chamados do Gordão, que principião da costa da
parte de oeste, para este até a' ilha do Guiepe , que na
lingoa geral exprime enseada que faz a ponta de terra.
§ 33-
Ao pé do Guiepe se topa huma pedra , onde termi-
nando o Cordão, faz hum pequeno canal, pelo qual passâo
Toma IX. Aa as
i86 Memorias da Academia Real
as embarcações na maré cheia. Seguem logo pela ponta de
este os baixos encostados á ilha , que são de pedra , e se
navega para dentro, pelo canal do rio Scvtnhacn , cheio
de baixos pela parte de oeste , onde fieão os medonhos bai-
xos , que de Apaga fogo se intitulão , e peia parte do sul
os escaracéos , e ondas dos baixos conhecidos por Saltão e
Coroei grande com canal pelo meio ^ que não dá passagem
ás embarcações maiores , senão nas marés grandes e es-
tando cheia. Fieão então ao norte da Coroa grande o rio
de Serenhacn bastantemente fundo na sua embocadura , e
dá o nome a esta barra , tendo de fundo esta doze palmos
no prcimar. Na costeira que dos Tubarões se appcllida , se
encontra hum baixo de pedra chamado Sororocussú que na
lingoa dos indios significa maré que bate na praia e ronca ^
e a costa proscgue até á ponta que de S. Miguel he invo-
cada, da qual hum banco de arêa procura a ilha do Guiepe:
pasmados aquelles bancos , dando-se resgujrdo á pedra do
Sororocussú , e a outra Pedra furada que fica ao sul, toda
a mais costa he limpa e funda até dobrar a ponta da
ilha , onde vem desembocar o rio Igrapiuna com bom fun-
du y ficando fronteira a ilha de Camamú,
§ 34.
Estando-se éste-oestc com Taipumerim ao mar das
Pontas, distancia de -^ de Icgoa se topa o Guiepe a nor-
Tiorocste, ea costa corre para a barra grande a noroeste:
cstando-se no mar largo , e abra aberta com a barra se na-
vega ao longo da parte do sul da costa , desviando-se uni-
camente do que apparece á vista ; e logoquc se for do-
brando a ponta do Muta , se deve dar resguardo a pedra
Sioba que fica encostada á ponta , junto de terra. A barra
grande e-^^tá a 14° ao sul, com fundo de 18. braças, ten-
do capacidade de ancorarem nclla as embarcações de alto
bordo; he abrigada dos ventos este, e sul desde a ponta
da barra até o Campinho , e na distancia de huma legoa
po-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA, 1S7
podem estar fundeadas, muitas e grandes embarcações por
ser a costa limpa até o rolo da praia , tendo apenas tm
meia enseada ao pé de terra hum pequeno recife na boca
do rio Carapiranguí , que tem o nome de Taipaba , o
qual não embaraça a amarração dos navios , por estar qua»
zi no seco , c rolo da praia.
§ 3f-
Tem aquella enseada cu bahia da barra pela parte
do norte , em distancia de j de legoa , a ilha de Guicpe ,
que forma os baixos do Saltão , ou ponta do sul , e a ilha
de Camamú a oeste : cria-se naquella ilha do Guiepe bcl-
las plantas, c algumas arvores, de cujos préstimos a
medicina , e as artes tirarião muitas utilidades , em pro-
veito não menos da humanidade , se fossem cxtrahidas pe-
la hábil mão do botanista ; o milhomens , o alcaçuz , o
salsafraz , o sipó de chumbo, a tarrinha , a butua , batata,
quina, ea ipecacoanha são alli encontradas sem trabalho,
e muitas outras. Tornando á descripçao da costa , vencida
a entrada da barra , logo se vai buscar a villa de Camamú
por muito bom fundo , navegando até á ponta da pedrei-
ra , e ao sul da Pedra furada , que he huma ilha , cuja
entrada a natureza embellezou com hum arco de pedia
e dentro contêm varias grutas, onde os pescadores achâo
refugio nas tempestades.
§ 3^-
Navegando-se ao sul , se encontra outra pedra , que
de Cavallo tem o nome pela sua figura , dobrando-se esta
pedra se costêa a ilha, em que podem fundear sumacas,
dcsviando-se da ponta , que por Tupú he conhecida , con-
tendo huma pedra do mesmo nome, que forma canal para
pequenas embarcações, entre aquella ponta ea pedra;
e os ique com mais segurança nayegão , seguem por fora
Aa ii da
i88 Memorias DA A CADEMiA Real
da pedra, encostados ao baixo da pedra do rio Jgroptmay
e então se vem buscar a villa por algumas das seis bocas que
íem entrada no rio delia, as quaes sáo conhecidas pelo canal
de Pinaré , canal do Vinho , canal da Estaca , canal das Bana-
nas , canal dos Braços , canal do Condurú.
§ 37-
Entrando-sc por qualquer das bocas referidas , logo
em pequena distancia se encontra o riacho Mavemo sem sa-
bida, e pouco depois o canal, ou riacho Jerni, e mais
distante outro chamado laguaripe , e logo se chega á pon-
ta e ilha do Gato, eo rio seguindo até á villa, prosegue
logo para cima , com voltas tortuozas , muda ahi o nome
para Acarahi em caminho de ocstesudoeste , ficando para
o sul em pouca distancia huma ilha , que da Cruz se appel-
lida , que segye para o rio chamado da Caxocira da villa.
Daquelle porto do Acarahi se topa o córrego do Gravata
em distancia de hum quarto de iegoa , d'i nde principia
huma groza de mato grosso, que segue pelo caminho do
Braço até o oiteiro do Morro por huma Iegoa circulada
de capoeiras , nao se achando matas virgens senão de-
pois de se vadear duas , e mais legoas.
' "'■^'- § 38.
Também se faz a navegação de outra n^aneira , dei-
xando o rio de Marahú , c as ilhas de Camímú se busca
o rio Araguahi ao norte pela costeira chamada da Cújahiha
a buscar a boca do rio Matapéza que corre ao sul , ficando
para o norte a ilha de Mangue conhecida por Marangu-
assíi , por entre 3 qual fica o canal do rio Matapéza , fi-
cando defronte aquclla outra , que tem o nome de Ma-
Tttnguamjrim , com hum baixo de aréa e pedra a oeste,
a que lhe chunlo J^nce grande .^ desde então, navegando-
Se pelo mesmo canal , se topa a ponta do Camarão em
camiiihq do &\^ <, com suas voltas , fincando na boca do rio
; u pa-
TAS SciENCiAs DE Lisboa. 189-
para oeste a ilha de Garças com cnseatia para oeste,
tendo no meio do rio duas ilhas appçllidadas Ilha grande
para a parte de éi.te ; a navegação he então com niiiitjs
voltas até a Caxoeira com fundo até o poço : aquclle lugr
he povoado com muitos lavradores, e as matas virgens fi-
cão três legoas arredadas do pprto , fazendo-se naquclks
terrenos as lavoiras de mandioca , caffé , e canas.
§ 39-
Se a navegação he encaminhada á ponta do Chiqueiro
para o norte , se topa huma ilha de mangues entre sete
barras ; cujas bocas entrão por Finaré , Camocin , e Igra-
puina , c seguindo a costa fica para o norte o rio C^iba
com huma ilhota de mangues na boca , e nesta direcção
se vai á villa pelo caminho do Pmaré , ou dos bosques.
A villa foi situada sobre huma colina (como ja disse) nas
vizinhanças da Caxoeira, que a faz gozar das percnnes
virações do mar, que a refrescão ; tem huma só rua prin-
cipal com ca/as por hum e outro lado, quazi todas ter-
reaes , despidas de ornato e decência ; porem próprias ao ca-
racter, e possibilidades do povo 5 não vivem ahi pessoas
de nobreza conhecida ; poisquc a maior parte se com-
põem da classe da mulataria, e daquelles mizeraveis , que
vicrão do reino por marinheiros nos navios melhorar sua
triste condição, e alli cazárão. O templo da matriz era
accomodado , e proporcionado ao estado do povo , de bai-
xo da protecção de N. S, da Assumpção , que he o orácu-
lo ; mas a desenvoltura de hum clérigo fez , que se arra-
iasse por terra : alem daquelle , existe outro no fim da
villa, da invocação da Senhora do desterro, e outro cléri-
go administrador da igreja , tendo consumido os rendimen-
tos a deixou em termos de vir ao chão. Os povos igno-
rantes c teimozos são inclinados a chicanas do foro, e
por este motivo os ouvidores fazem allí a maior assistência
por lhes render a vara mais dinheiro j que em alguma ou-
tra
IÇO Memorias da Academia Real
tra villa : a corrupção dos costumes he alli cm seu auge.
Tem havido parodio, coadjuctor, e mais sacerdotes da villa,
que não dão ao povo a competente instrucçao , nem exem-
plos capazes de o tirar da sua ignorância , e immoregirada
conducta.
§ 40-
O' proprietário do engenho do Acarahi Jczé de Sá
BitJncourt, e seus irmãos fazem com razão a primeira fi-
gura no paiz pelos seus talentos , cducnçao , e rcprezcnta-
ç3o em que se achão : elle foi encarregado pelo governo
de ordem da corte , de examinar o salitre natural dos mon-
tes altos, allí espontaneamente produzido: diligencia que
lhe deo sem dúvida direito a pedir huma justa remunera-
ção. Ha muitos annos se não ignora a existência, e abun-
cia daquelle tão preciozo sal , nos montes altos, e outros
lugares ; poisque no reinado do Senhor Rei D. João IV,
iá Garcia Rodrigues senhor da Torre, rico, e potentado,
possuindo mais de noventa fazendas naquelle tempo , pe-
los certões , revestido de grandes poderes sobre os indios ,
oíFereceo hum certo número de quintaes de salitre, se con-
seguisse a mercê de Cavallciro na ordem de Christo, mais
o foro de fiJilgo, e o senhorio de huma villa; porém en-
contrando difficuldade na condução, rogou ao mesmo Sobe-
r.ino , se dignasse mandar receber sessenta mil cruzados por
aquella obrigação , e entregou o dinheiro , e não o salitre.
A Real fazenJa , depois de despender mais de trezentos
mil cruzados em explorações, e estabelecimento da fabrica
pira a extracção dclle, mandou o Senhor Rei D. Jozé I.
ao Conde D. Marcos, que fosse examinar pessoalmente,
e com cUe o chanccller'Thomaz Robim aquellas minas;
eo ultimo rczultado depois de pessoacs exames, foi man-
dar-sc suspender a fabrica; julgando assim o governador,
como o ministro informante, não convir á.Real fazenda
a extracção, e cc7nducção por sua conta , e que antes se en-
tregasse ao commercio aquelle novo género da colónia.
Con-
dasScienciasiieLisboa. ]9>%
Constamlo no nainisterio tocJos estes, factos ; ooçituiio a»
circumstancias de huma guerra; tão assi.cn^broiiaí, : dtrãQ o
justo valor áí amostras que levou Jo/.é de Sá» c stí csspc-
dírão ao governador c capitâio general da. Bahi»» ordens,
para mandar abrir á custa da Real fazenda a cstxada. paro*
a conducção dcllc, pelos lugares que expunha o mesmo
Sá ser conveniente , e com promessas de grandes acrescenta-
mentos chegou á Bahia para dar principio á estrada , que
se abrio já para os montes altos ; mas que as cireuiíistan-
cias do tempo tem impedido o tomarem-se a esse respeito
medidas serias, e decizivas.
§ 4i«
Seria talvez conveniente , que o salitre fosse conduzido
pelas estradas já estabelecidas com taz(,nd^s, e povoações
para Nazareth ou Caxocira , livres de pasí>agem d^s barras ,
e hoje bem dirigidas com tanta gloria do crpitão nu r da
conquista João Gotisalves , nos cones que ft/ em Santa
Igne/- evitando seis dias de viagem por caminho impossível
de povoar-se sem intervallo de longos annos. A estrada do
rio de Contas, antigamente aberta para os funjs e dalli
para Camamú , podia ser aproveitada , evitando a Real
fazenda a despeza da nova abertura , que podia ser appli-
cada para o estabelecimento da fabrica , e despezas da ex-
portação do salitre: e quando ainda assim aquellas frequen-
tadas communicaçóes não produzissem o dezejado cffeito
de ficar o salitre na marinha por custos proporcionados ,
que antes de tudo se deve exactamente calcular, ainda
restava outro meio de o fazer conduzir pelo rio de S.
Francisco até á pancada ou Caxoeira de Paulo Affonso,
aonde os cazaes , que forão remcttidos do Reino para po-
voar a nova estrada se podião estabelecer , porquanto
passado aquelle grande salto do rio , já navegao as suma-
cas , e bircos na exportação do sal, e na retirada podião
conduzir o salitre para Pernambuco, ou para aquelle porto,
c^ue
I9a Memorias da Academia Real
que o governo julgasse pela experiência e calculo das des-
pegas da exportação ser mais conveniente , vistique as
montanhas dos montes altos estão cobertos de salitre , c he
a sua abundância muito superior áqucUa , que no ministe»
rio se tem feito sconstar.
§ 42.
Tem a communicação , que se fez de Camamií pnra
os certôos, o grande inconveniente de se vadear mais de
20 legoas de matas virgens, onde se faz custoza a aber-
tura de fazendas , e de pastagens para subsistência dos
passageiros, e conservação dos gados , que por cila houves-
sem de transitar; vistoque os indolentes paizanos, ha
mais de dois séculos, apenas tem feito lavoiras na distancia
de j de legoa , tirando dos mangues o marisco , c do rio
o peixe para a sua subsistência , motivos que lhes impe-
dem o penetrarem o centro das matas ; são alem disso
aquelles terrenos montuozos de incómmoda passagem em
alguns lugares , e quando os ventos do mar se cncontrã9
com os terraes contribuem para a precipitação de grandes
chuveiros , que fazem nao só vicioza a vegetação ; mas
também concorrem para se formar huma atmosfera
húmida , e mefítica , onde desapiedadamente ficarão victi-
mas alguns desgraçados ilheos , que forão constrangidos a
subsistir em taes lugares, morrendo de hidropezia huns, e
outros de pura mizeria ; alguns mais afortunados desampa-
rarão tão funestas habitações ; e a Real fazenda veio a
perder não só a despeza feira com a conducçao daquelles
cazacs , como também a compra dos escravos, que lhes
foi promcttida , alem de sessenta mil cruzados despendidos
com a abertura da nova estrada ; poisque os viandantes
dos certocs acharão , pela falta dos pastos e fazendas ,
muis conveniente exportarem os seus géneros por aqueilas
já frequentadas , as povoações de Nazareth e Caxoeira ,
que de virem buscar a de Gamamú, temendo a perda de
seus
DAS SCIENCIAS DE L I S B O A. IÇJ
seus animacs, e receando a pouca extracção dos seus cffci-
tos.
§ 43-
Continuemos a observar as communicaçoes interiores ,
que a barra grande subministra para o recôncavo daquella
viUa , e acharemos, que dobrando-se a lingoa de terra da
barra para este, se chega a huma ponta, poronde entra
o rio do Campo, c do Ananáz navegável de canoas; por
cuja boca se segue para ambos , ficando o rio do Campo
a éstc , e a entrada a nornordeste , findando depois de va-
rias voltas a sueste : a oeste se acha então huma ponta de
mangue, e mato, a que lhe chamão acosta, que entran-
do por entre ella, e a boca do rio do Campo, vai até o
lio de Mutum com embocadura ao norte deste : navcgando-
se por de traz daquella ponta , em caminho do norte ,
e voltando depois ao nornordeste se entra para a tromba
deixando huma ponta de mangue para a parte de este ,
poronde entra o rio de Mutum com hum furado para a
mesma tromba , e pela mesma boca entra também o rio
da Mata em rumo de nornordeste com voltas.
§ 44-
Para oeste se avista a ilha , que do Ganna se hon-
rou , circulada do mar, e dá entrada a canoas por dctraz
delia , ficando fronteiro ao rio da Mata outro , que para a
povoação de Taboroê se encaminha : diante se topa outra
ilha , que do papagaio se chamou , e per entre a qual fica
a ilha da alta finca , junto a outra ilha chamada Romão
com hum rio , que em caminho do sul vai ao porto da
villa dos Índios de Santarém , com outro braço do rio ,
que voltejando no mesmo rumo finda na Caxoeira grande,
ficando atraz as ilhas da pescaria do Sipó , e Aracaripe
com os riachos Semeáo , S. António : defronte de Santarém
fica a ilha chamada Pericoara , e o rio ^ que vai para o
Tomo IX. sb por-
194 Memorias da Academia Real
porto da villa. Vem-se vestidas as matas da terra firme
de todo o género de madeiras de construcção , ainda na
vizinhança dos portos; pijacipalmente no rio do Campo ,
caminho de nordeste, onde ficiío as ilhas da Estiva, da
Palha , das Canoas , e todas as cabeceiras do rio do Campo.
§ 4J-
A villa de Santarém aprezenta a mais brincada vista
das suas ilhas , que a fazem alegre , e formoza , sobre o
alto monte coUocada ; mostra aos habitantes de hum lado
as ricas matas , aindaque hunia legoa dcstruidas á borda
de agua , ç de outro os diversos portos , e barras , que
a providencia lhes liberalizou, para exercerem a mais acti-
va circulação do commercio : meia Icgoa adiante lhes
aponta a vista das matas da Caxueira grande , que o seu
proprietário o padre Joaquim Francisco Malta conserva in-
tactas i e legoa e meia regada do rio que faz hum bcllo
porto de desembarque com dois braços, que dirigem para
o norte , e sul e diante a nova freguezia de Nossa Senhora
das Dores de Igrapiuna com portos accomodados á con-
ducção de todo o género de madeiras. As matas de Igra-
piuna forão destruídas cm distancia de duas Icgoas , sendo
tão abundantes de madeiras de construcção , que em hum
pequeno rossado mais de quinhentos páos forao por mim
vis.^>s abrazidos. As matas do Finaré em capoeiras até
legoa e meia são cobertas de sipipir.is , e naqucUes terre-
nos nãcOí achão os lavradores da mandioca conveniência em
as plmtar, por ser aterra muito árida, em a qual as sipi-
piras se nutretn, e crescem direitas sem esgalharem.
§ 4^«
Foi erigida aq'.vella villa, assimcomo as mais dos
inJios, pelo ouvidor Luiz Freire de Veras no anno de
i7j!i: compõe-se de 70 cazaes;, os quaes se occupao
nus
DAS SCIENCIAS DE LlSBOA. Ipj"
nos cortes de madeiras , e de as descer pela caxocira do
rio de Jcquió , com extremo valor c destreza assentados ,
ou em pé sobre as falcas de vinhatico , ou piiiumupi,
desviando-as com liuma vara na mão das pedras , accumet-
tcndo pcrigozas passngens e correntezas das caxociras , por
duas patacas, que se lhe paga pela descida de cada liuma :
vivem como os de mais Índios viciozos , entregues a
aguardente , dissipando cm huma hora o que ganharão nas
mnt.is, para as quaes não tornão a subir, semque os por-
tuguczes , com quem se ajustão, lhes dem novos suppri-
mentos de dinheiro, e fazenda para si, c suas Famílias;
por cujo motivo estão sempre devedores aos f^ibiicnnies
das madeiras, e alguns para se desonerarem de lhes pagar
forão trabalhar para a nova estrada do Camamú, de onde
dczcrtárão para as villas do sul. Plantão mandioca , quunto
baste para a sua sustentação, o que he serviço das mulhe-
res ; a pesca entretém a alguns , porém no tempo de chu-
va nao sahem de ca^a deitados na rede com o f"go ao
pc , e o pote de cauim , que he huma bebida espirituoza ,
c produzida da fermentação da mandioca , ou aipim pizado
levado a ferver ao fogo , e deixado a fermentar. Sfio as
mulheres as que vão buscar a mandioca para ralar, e fazer
a farinha, e as que diligenceião o marisco dos mangues,
eo peixe, entre tanto que os maridos se sévão na preguiça,
e se entregão aos vicios da sensualidade. Os pais dormem
juntamente com os filhos e filhas cazadas e solteiras , e
todos prezenceão a sua corrompida brutalidade; e muitas
vezes são elles mesmos, que abrem a's suas filhas o cami-
nho, das prostituições; o que he geral nas povoações dos
Índios , e ainda nas dos portuguezes.
§ 47.
Na legoa de terra , que lhes foi consignada para as
suas lavoiras , morão de arrendamento alguns portuguezes ,
que fazem muito boa plantação de mandioca e caffé , com
Bb ii que
iptf Memorias DA Academia Real
que adquirirão huma subsistência honrosa , e continuao nel-
la , por ser o terreno próprio para aquella plantação ; po-
rem os Índios não seguem o exemplo dos foreiros, nem
as continuas rccommeiídações , que durante o tempo do meu
serviço em ouvidor da commarca lhes fiz, chegando a sua
indolência , e ignorância a tal extremidade , que depois
de terem plantado nos seus quintaes muitos pds de cacáo,
ás minhas solicitações , promettendo-Ihes para os animar j
de lhes pagar a arroba de cacáo por hum preço superior
que os contentasse , meterão ncllcs os machados , depois
que chegou o novo ouvidor da commarca , dizendo , que
de nada lhes servião aquellas arvores j nem porora existe
alguma esperança de melhoramento.
CAPITULO VIL
Da vi/la de Boipeba.
§ 1.
XjL vii.la de Boipeba , que os naturacs pronuncião Unboi-
peba^ exprime o mesmo que cobra chata ^ he huma das
mais antigas da commarca , situada em huma ilha , que
lhe dá três barras ; a snber , a do presidio de S. Paulo
do Morro, onde principia a ilha, a barra da villa , e a
dos Carva!hos. Tem por termo o mesmo presidio situado
na altura de 13° 30', a sua figura lhe dá o nome, princi-
piando a maior eminência quasi a perpendiculo , sem base
piramidal, em que se sustente no lugar e ponta, que
olha para o norte, e pelos lados corre ao mar, tendo a
costa pelo este , que vai correndo por fora da ilha para
fls villas do sul , pelo oeste o mar navegável , entre o
mesmo Morro , e terra firme de Giquiriçá , com largura
de meia legoa, que vai continuando por dentro do mesmo
. . . pre-
DAS SciENCIAS DE LlSBOA. I97
presidio , cm hum mar bonançoso para as mesmas ilhas do
iul , ou terra firme.
§ 2.
Occupava a guarniçlo , e os moradores delle meia
Icgoa de cerra , sem foro algum , por ser a terra da coroa ,
em que fizeráo casas de vivenda, e seus quartclanjcntos:
pela parte da costa do mar largo , corre o caminho para
u sul, dividindo o rio chamado Ziniho , c terra de João
Liques , e pela parte da Gamboa lazendo caminho de susu-
este , parte com outro rio , e terras de Manoel Fernandes ,
e dalli por diante continuão as propriedades dos morado-
res da ilha cm terras próprias ou arrendadas. Ha seis an-
nos porem torão desapossados os miseros soldados , e pai-
zanos desta sua posse , confirmada no tombamento , que fez
para a Real Coroa , o chanceler que foi da Bahia Áliguel
Serrão Diniz cm 14 de Outubro de 1772, pelo governador
daqueilc presidio, fraudulentamente comprando a dois sol-
dados humas porções, que diziao ter, e em nome de ou-
tros herdeiros o restante , e semque elles percebessem o
valor da arrematação feita em Cairú , se chamou ao senho-
rio, quando tacs herdeiros nada tinhao pelos seus titulos
na terra dada pelos antepassados, para a fortaleza , que se
erigio no tempo do governador o Excellentissimo D. Vasco
Fernandes Conde de Sabugoza , como consta da inscripção,
que se acha na porta da fortaleza com armas Reaes , nem
se oppozerâo ao tombamento , tendo aquelle ministro fei-
to citar por edital, que se fixou cm 8 de Maio de 1772,
c com aquclles titulos illudido o Excellentissimo governa-
dor D. Fernando José de Portugal , o mandou conservar
na posse delles , contra a da Real fazenda , e de se acha-
rem aquellas terras no tombamento nos dos próprios Reaes
/ na caza da arrecadação da fazenda da capitania da Bahia ,
e tombando as mesmas terras para si , exigio o aforamento
injusto, que está percebendo <le má fé dos soldados e
paizanos.
$
198 Memorias da Academia Rbal
§
3*
Fortificava-se aquelle presidio do Morro com huma
grande bataria na raiz da montanha , e pancada do mar ,
tendo a sua maior resistência no angulo da ponta e prin-
cipio do Morro, onde está o forte, que se intitula de
S. Paulo, que flanquca o mar por dentro da dita ilha ; a
sua figura he de hum rectângulo, com 33 palmos de
comprimento, e 120 de largo, fazendo a bataria frente pa-
ra a entrada do mar, e no meio delia está a bandeira,
e tinha 18 peças de ferro montadas: a entrada he pela
parte da montanha no pavimento do terreno fronteiro ,
cm que está o corpo ^da guarda, caza , e quartéis, com a
face para o interior do terrapleno. Unia-se a este forte a
cortina exterior da grande muralha , que parte do sul , e
interior do presidio , cingindo a raiz da montanha , e o ca-
minho em ângulos salientes obtusos , e outros reintrantes :
avançava no meio daqucUa cortina para o mar o angulo
saliente maior, com seus flancos, que tem o nome de for-
te velho , e que tinha três peças de ferro de dezoito ;
a mais cortina , e a muralha seiscentos passos de compri-
mento , seguindo a figura do angulo e flancos , desde o
forte da barra , até a rampa principal da servidão do mar
para o corpo do presidio , em que está o corpo da guar-
da , que tem de comprido 90 palmos , incluindo o armazém
do armamento, tulha de farinha , c mais cómmodo dos offi-
ciacs ; c da parte esquerda para a ladeira, que sobe .para
a praça ou parada da guarnição , em cujo lugar foi erigido
o oratório para os officios divinos em huma casa de taipa,
e adiante fica o quaitcl do governador.
§ 4-
Sobindo da praça para a montanha de Morro em meia
ladeira está huma muralha , que atravessa o caminho ,com
ser-
DAS SCIENCIAS DE L I S B O A. " Içp
scrvidáo para huma rotura , feita na rucsma muralha , qiic
serve de fechar a entrada para cima, cujo muro era de loo
palmos , c íii7,cr\áo angulo continuava com 6o paJcjioB , e
tornando a voltar proseguia com loo palmos, e no centra
da quadra tem a caza da pólvora , com o âmbito fecha»
do do muro por fora , de mais de 6o palmos por cada l^r
do : superior á dita caza da pólvora está hum terreno alto ,
em pouco espaço, do qual flanqueão a entrada do presidio,
sobre a bataria grande da pancada do mar , pela vantagem
daquclle tempo três peças de ferro montadas , e huma
bandeira.
§ y.
Tem o corpo da guarda e palamenta 36 palmos; e
allí hc a guarnição para as sentindlas explorarem as novi»-
dadcs do mar da parte da entrada do presidio , continuan-
do a montanha maior subida para o alto cume , e cabeça
do morro, no qual se encontra a antiga capella abatida,
e toda arruinada e descoberta , e continuando para o sul
por hum lado ou passo estreito , entre dois despenhadeiros
dos lados , na extremidade da cabeça do morro , que circum-
(Cxplora o mar largo, fica hum reducto de 60 palmos,
chamado o Zimbeiro , cora três peças de ferro montadas,
que flanqueão a prainha , por estar com igual direcção so-
bre o forte de S. Luiz , como também flanquea a costa
do niar , por se dominar tudo do alto.
$ 6.
Tinha aquelie presidio de guarnição duas companhias
de soldados , huma de artelharia , outra de infanteria ; po-
rem gx)vernando a Bahia o Excelientissimo Manoel da Cu-
nha e Menezes, mandou retirar « companhia de artelharia,
e deixou a outra , com hum com mandante governador ,
pira cuja utilidade parece ser ella unicamente dirigida ;
poisque os soldados são out^pg tantos escravos empregados
na
200 Memorias da Academia Real
na lavoura , pesca , factura de madeiras , e armnçõcs de
baleas, e outros particulares serviços, e fieis satélites da
sua impetuosa arrogância. No plano feito no governo do
Excellcntissimo Marquez de Angeja para a fortificação da
marinha, pelo engenheiro Masié ^ talvez se entendesse,
que aquella fortificação servia de guardar as villas do C;ii-
rú , Camamú , Boipeba , c rio de Contas , que se podião
chamar então os celleiros da Bahia, pela exportação da
farinha, que naquelles tempos praticaváo, ou para acudir
aos moradores perseguidos do bravo Ainoré. Ella porém
hoje deforma alguma pode impedir (a) a entrada dos inimi-
gos na commarca ou cellciro da Bahia ; poisque he muito
mais fácil e commodo aos inimigos buscarem , como fizerâo
os Holandezcs em 1623, o seguro canal da barra grande
de Gamamú , que até o Campinho presta hum ancoradouro
seguro 3 maior armada , e onde fundiada , expideria o cor-
so para impedir o commercio interior, e a sua communi-
cação com a capital , que de virem accometter , ainda
sem algum risco de damno , que o presidio podesse causaf-
Ihe , huma estreita barra sem ancoradouro , e onde os seus
baixos fazem o naufrágio inevitável a pequenas embarca-
ções, quanto mais aos navios de alto bordo, que só o
local defende a entrada , c não o presidio. Ainda quando
todos estão persuididos da impossibilidade de defeza era
hum paiz , onde o pão natural he a mandioca, que depois
de três mezes se corrompe; a pólvora se não pode conser-
var em paiz húmido por mais de anno ; e por isso a defe-
za está unicamente na fidelidade, e amor dos povos , e no
interesse da sua conservação no paiz onde vivem.
(1) As tres villns do Caird , Boipeba e Camaniú se obrigarão á
sustciitação de farinha da guarnição do presidio do Morro por alguus
aanos , e se chamava essa contribuição voluntária farinha de Conchave,
e forão desobrigados, pelo provimento de 10 de Março de 1738. Ve-
ja-se a nota 8. no fim desta memoria.
X)AS SciENCIAS DE LiSBOA. aOI
§ 7.
Estíiva persuadido o governador passado da inutili-
dade da fortificação, quando o commandantc delia lhe
expoz vivamente taes afectadas utilidades, que obteve o
mandar-se reparar parte do presidio com grande dcspen-
dio da Real fazenda , plano que não dá pouco interesse
aos commandnntes , para quem somente he útil; porquanto
alem das obras, que se pcrmitte, clles tem a grande mina
das esmollas dos soldados , cujo fundo era no tempo do
desembargador Francisco Nunes da Costa de 14 mil
cruzados, destinados para a tactura da igreja da Senhora
da Luz , e que andava a juros até o tempo do actual go-
vernador , que achou mais conveniente amortizallos em
hum cofre, que accumular o fundo com os juros , que pa-
gaváo pessoas abonadas. Vem-se ainda no mesmo lugar
do desembarque as carretas , que forao enviadas para o re-
paro da artelharia, e o tempo as tem consumido, e arrui-
nado ; e a artelharia está desmontada e perdida : a face
da cortina da parte do mar toda no chão , e estes são os
intcesses, que a Real fazenda tira de taes administradores,
e da fortificação : ellcs adquirem entretanto grande poder
sobre os miseráveis commarções , a quem opprimem , toman-
do-se por torça os seus géneros, com o titulo de irem
para as obras Reacs do presidio, e que tomao destino parti-
cular , c para favorecer seus designios a todo o custo se bus-
ca a protecção, e amizade do ouvidor da commarca , paraque
impunes fiquem suas animozas atrocidades.
§ 8.
Tem a barra daqucllc presidio oito braças de fundo ;
porem fronteira a ella ficão os baixos chamados de Sebas-
tião Gonsalves , a oeste , cm distancia ainda menos de j de
legoa , c então se dirige a embarcação grande em rumo
Tomo IX, cc de
202 Memorias da Academia Reai,
de sudoeste a desviar-se , do que tem aos olhos presente , e
do sotavento da coroa grande , cncostando-sc sempre ao
morro , pelo canal , que não tem bom fundo para fundear
as embarcações pelas pedras nclle produzidas , por mais
de loo braças, até o rio da Gamboa, e depois de vencer
para nordeste o lugar chamado do Curral pode fundear até
á povoação do Galeão qualquer embarcação, não sendo
de grande lotação j porque estas apenas tem fundo até o
Curral. O canal he então limpo, e fundo de 5- a 8 braças,
menos para a boca do rio Patipe do norte , que tem pe-
dras, e por cuja cauza a embarcação se deve encostar para
o sul , onde o manguinho he conhecido , pelo meio do
canal até a povoação do galeão ; mas nunca se approxi-
mando á terra , c somente depois de descoberto o porto
do galeão éste-oeste , he que pode a embarcação encos-
tar-se a ella.
§ 9-
As terras daquelle presidio são áridas , e não dão man-
dioca , que compense o trabalho e a despeza. A pesca ,
e os cortes de madeiras de machado fazem o estabeleci-
mento dos paizanos e soldados , e hoje a da balêa , e
do azeite de cação que se extrahe; mas que não he per-
mittido vcndcr-sc sem crime , a não ser ao commandantc ,
e da mesma forma o saboroso peixe , que pescâo no mar
alto ; portanto em hum ptiiz assim regulado não ha a me-
nor sombra de contentamento e felicidade. \
§ 10.
Seguindo da Gamboa pela costeira, setopao duas ilho'
tas de mangues, e ao pé delia huma grande enseada, que
no montar da mesma entra o rio Saruhé , que vai sahir
ao pé da povoação do galeão , notável pela devoção dos
povos a S. Francisco Xavier j que se venera em huma pe-
quena capella erigida no cume da montanha , como pela
mi-
DAS SCIENCIAS DE.LiSBOA. 2Ó3
mina de ferro cristaUzado no seu contorno, e deixando i
direita a ilha do Saruhé. O rio he fundo de 8 braças , e
e em parte menos até j , com lo de largo, que admitte
a navegação de barcos e íanchas , e fica próximo ao galeão ,
o riacho do Pegica fronteiro a huma ilha de mangues , em
distancia de 400 braças de comprimento: encaminhando-se
pela mesma costa se topa a ilha de Mocurandiba circulada
do rio, que vai sahir a outro, chamado o Taiihenga , ou
Tororó , que se dirige perto da costa de Carapúa , sem
romper a mesma , dirigindo-se a dstc com suas voltas na-
quellc rio ; findando a ilha segue a enseada até á ponta,
chamada da Ericeira^ e em rumo do sul passa por Cairú,
e da parte de oeste o rio Sambauna com hum braço para
o rio Aritiba ; defronte do qujl para este fica na sua cos-
teira a ponta da terra chamada do Pacohtí , e no meio
huma ilha de mangues, a qual àt Papagaios se appellidou;
e para este do rio Pacobú segue a navegação de canoas;
e logo adiante fica o rio Caritanguí em rumo de norte,
ficando para oeste outro intitulado do Jubim navegável só
de canoas. E seguindo a mesma derrota , apparece huma
ponta de terra com 4 ilhas de mangues , onde se ajuntão
as enchentes das aguas do Carvalho , Boipeba , e o Mor-
ro , e nas vasantes para as mesmas barras despede, fican-
do fronteiro o rio Carapitanguí grande , em huma ensea-
da espaçoza e bella , correndo as aguas do rio a este
com voltas, a formar porto junto á costa do mar, nave-
gável de lanchas.
§ II.
Fronteiro ás ilhotas da parte de oeste fica o rio, que
de Amaro tem o nome , navegável de lanchas , ficando alli
a enseada do Tapuia , defronte da povoação de Canaviei-
ras , e nestas ilhas se encontrão todo o género de madei-
ras de construcção, e de casas. Logo adiante de Canaviei-
ras se topa o rio , que para Boipeba se navega ; e na
distancia de 10 braças o rio grande, que segue para a
cc ii mes-
204 Memorias da Academia Real
mesma villa , despedindo para o sul o rio , que de Infer-
no se appellida , pelo enfadonho de suas voltas, a s.ihir
aquella villa navegável de canoas, estando a maré cheia,
e o rio grande seguindo para o norte com diversas voltas
vai acabar na raza barra da villa , poronde entrao e sahem
para o mar largo as lanchas de maré cheia.
12.
Tudo o que fica descripto , comprehende a ilha do
Morro pelo interior dos rios : resta agora vê-la pela costa
do mar. Logoque se sahe do Moiro em distancia de 800
braças , se topa humas ilhotas de mangue e pedras com-
postas, € quasi na mesma distancia a barrcta do Zimbo ,
que forma huma enseada , onde entrao e sahem as lanchas
contendo recifes situados no meio da barreta : Em distan-
cia de 600 braças fica a boca do rio Caranpitanguí d'agua
doce , que desagua no mar ; e depois de 800 braças se
descobre a barra de Panampanan, onde hum rio d'agua
doce sahe pela sua embocadura , e a admitte entrada ás
lanchas : as matas desse lugar contém madeiras de constru-
ção , e o páo amarcllo ou tatagiba , e o rio banha as
matas da costa ; desde huma legoa do seu nascimento con-
tinua a costa com varias enseadas por espaço de duas le-
goas do Panampanan , e se entra então na formoza ensea-
da ,que forma a barra chamada do Carapuhá , a qual tem seus
baixios de arêa e pedra com recifes, que horrorizando aos
navegantes lhes presta comtudo pelo meio entrada ás lanchas
para se abrigarem do tempo , com mais seguro ancoradoiro
da parte de dentro , sendo a entrada da barra de ésre a oes-
te , e passados os baixos de pedra se topa o rio da Gamboa ,
que vem das matas.
§ 13.
Continuando a navegação pela costa , em toda ella
se avistlo recifes , e enseadas até o pontal da barreta da
vil-
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. lOJ
villa àc Boipeba, trcs legoas distante de Carapuá^ cuja
barrota se vadea a pé de maré vasia , com entrada de este
a oeste. Para alem do pontal hc que toi situada a villa
sobre huma pequena colina de fundo de arca , contendo
sua praça irregular; e no fim delia foi edificada a matriz,
da invocação do Divino Espirito Santo, com dois mil
habitantes, que na plantação da mandioca, e arroz, e nos
cortes de madeiras tirão escassa subsistência. Formosêa a
vista alegre do mar, c não a agricultura, que apenas para
a cidade fazem huma limitada exportação de farinha, que
apenas chega a quinhentos alqueires cm alguns annos , e
de arroz da terra a 3^0 até 400 alqueires; 20 a 30 car-
radas de casca de mangues, algumas porções de ripas, e
feixes, e piassaba; cana brava; achas de lenha, com al-
guns potes de peixe salgado, e frutas do paiz , como se-
jão ananáz, melancia, coco, abobara, cachos de bananas,
que se dão muito bem nos terrenos arenosos, e onde a
odorífera baunilha, aindaque embalsame o olíacto com a
sua agradável suavidade , he comtudo desprezada , e entre-
gue ao sustento das cobras , que nellas encontrão delicio-
za mantença , e corresponde a exportação ao valor metá-
lico de cinco mil cruzados.
§ 14.
O povo he hum dos mais pobres, e miseráveis da
commarca ; nos passados annos acharão grande interesse na
extracção do zimbo da praia , que se vendia a bom preço
aos commerciantes da costa d'Africa, e as praias forão
então cobertas de immensos exploradores do zimbo ; po-
rém aquelle género barateou pela abundância encontrada
no mar grande , e vizinhanças da cidade ; e desde logo
buscarão na pequena lavoira , e cortes de madeiras , e nas
cazas de mangue huma precária subsistência , mas certa-
mente as suas necessidades são satisfeitas com poucas coi-
zas ; por isso que as costas e rios , superabundao de pesca-
do^
2o6 Memorias da Academia Real,
do , de que todos se mantcm annual mente. Qiiasi todos ,
ainda os mais distinctos do paiz , andSo dcscalsos , com
h.ima cami/a, e calção de esiôpa , ou algodão, com huma
túnica , que se denomina xambrc , de bamba , ou chita ,
estão ornados e vestidos; e quasi da mesma "maneira an-
dão suas mulheres, não invejando o luxo dos povos civi-
lizados ; e tão poucas coisas bastão para conseguir o
restante dos seus desejos , não ambicionando outras honras
que os postos das ordenanças, e cargos do conselho, co-
mo intalliveis provas da sua nobreza, e graduação.
§ ^S-
Forma a povoação de Jcquié , a mais importante do
termo daqucUa villa , hum grande ramo de commercio de
taboados de vinhatico , putuniupi , cedro , e louro , pela
facilidade , com que são conduzidas as falcas daquellas ma-
deiras pelo rio , que o banha , e que lhe deu o nome ,
encaminhando-se para cUe os habitadores da villa , e ter-
mo , pela enseada do Tapuia , pela boca do rio da Torri-
nha , que se une ao rio dos Patos e Furados, que dcscm-
bocão no rio Jequié , e no de Mutupiranga , onde ha hu-
ma capella de Santo António ; e tcin o rio 25- braças de
largo , c sufficiente fundo para as embarcações , que nave-
gão carregadas de madeiras para a cidade. Também deita
hum braço para a povoação , e capella de N. Senhora da
Boa Morte do Jordão. He daquelle famoso rio , que se
cxtrahem as exccllontes pranchas de putumupi , e vinhati-
co , outras madeiras monstruosas na grandeza , eternas na
duração , c de importantes usos á marinha , ás artes , e á
humanidade principalmente nas margens do rio do Peixe
e das Almas, onde parece que a natureza as plantou com
preferencia a todas as mais arvores , não lhes negando o
páo brasil , e rcproduzindo-as por huma maneira a mais
admirável , liberalizando os seus dons , paraque huma , c
ou*
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 20/
outra marinha, assim a Real, como a mercantil podesse
tirar as maiores utilidades.
§ t6.
Existem ainda outras particulares communicaçoes , pe-
las quncs se diriqem os habitantes pnra a barra dos car-
valhos, pelo interior dos rios descri p tos , como já se no-
tou ; agora busquemos a este a ilha de mangues , com
riacho, que Pcrcquara se appellida , navegando em distan-
cia de i8o braças a oeste por entre huma ilha de loo
braças a entrar pelos rios, pequeno Tambe e Dedinzeiro ,
que entrão no rio da barra dos Carvalhos , fronteiros á
ilhota do Titum ; e alli cm distancia de 300 bragas se
encontra a boca de outro rio , que de Semeao he chamado
cm rumo de oeste, que segue com variadas voltas, com
dez braças de largo , navegável somente de canoas ; e então
dahi segue a costa do mar para a barra do Serenhaem ,
e o rio grande vem misturar com o mar sua corrente na
dita barra dos Carvalhos , ficando a este huma ilha, quede
João Rego se appellidou , de pedras arenosas, e seixos
composta, com dez braças de comprimento, e forma a
ponta de este daquella barra , seguindo as enseadas dos
Castelhanos, do Catú, Itapoan, Bainema , Moraré, Taci-
nierim , entre penhascos calcareos e seixozos em busca de
Boipeba com três riachos, que buscão esconder-se no Oc-
ceano, e que termina a ilha do Morro.
§ 17-
Qi;iando as brl/as do nordeste permanecem , buscâo
então as embarcações do sul o refugio da mencionada bar-
ra dos Carvalhos , e depois de ncUa entrarem na distancia
de huma Icgoa topão as primeiras pedras a norte , 4.° de
nordeste , e o rio tomando a volta das pedras busca a
direcção de nordeste , e voltando depois a norte por huma
le-
idí Memorias da Academia Real
1-egoa vai ao lugar, que cliamíio os Fiigiííos; e onde então
a nordcsre se encaminha a povoação de Cnnaviciras, que
he de pescadores cominumente , em distancia de hum quar-
to de legoa ; e logo em outra iguul distancia vai para
nordeste, e meia legoa depois a noroeste, e com hum
quarto de legoa passa a banhar a viila do Cairú , de que
vamos a tratar no seguinte capitulo.
CAPITULO VIII.
Da vHla do Cairií.
íí,
I.
E situada a villa de N. Senhora do Rozario de Cai-
rú, fronteira ao presidio do Morro, na distancia de duas
legoas , cm huma pequena ilhota de três quartos de legoa
em algumas partes, que em outras apenas chega a hum
quarto de legoa , na margem do rio , que desemboca no
Morro: esta he huma das cinco antigas villas , de que se
compunha a capitania , e foi erecta no tempo do primei-
ro donatário Jorge de Figueiredo : tinha por termo os ca-
zaes estabelecidos desde o rio Patipe do norte até o Jor-
dão, e pelo lado do sul ao lugar de Sambauna. Aquelle
rio fica na enseada , que vem da costeira da parte do norte
com seis braças de largo na embocadura , voltejando , se
dirige á? matas grossas. Navcgando-se pela costeira se
topa , a buscar os limites do termo , o rio de Una , que
na lingoa geral exprime rio preto ; poisque a sombra das
iiumstruo/as arvores , c o seu grande fundo , fez por isso
parecer negras as suas aguas ; este rio entra em caminho
de este para a povonção , que delle tomou o nome , tendo
300 braças de embocadura , e quasi ao sahir , na enseada
se une com o rio de Mapendipe , ou Mapendiuva na lingua
geral dos índios , que dco o nome a povoação , que alli se
for-
DAr> SciENCIÁS DE LiSBOA» ZOÇ
formou , e que tem huma capei la da invocação de S. João
Baptista. Na boca daqucllc se topa huTna ilha de man-
gues , que por todos hc chamada o Cabeço , a qual divide
o mar com a costeira da povoação do Galeão : fica na
mesma direcção outro rio, que Tapccisicn lhe chamarão, o
qual cm rumo de oeste busca a povoação, que ilellc tomou
o nome: logo mais adiante está outro rio, que Aíaricoabo ,
ou Bartraqitdvaa , segundo o idioma indico , hc appellida-
do , e de seu nome se conhece a povoação existente com
sua capella , da invocação de S. José de Desterra : depois
o rio de Caiaiva , que também deo o seu nome a outra
povoação ; antes daquelles rios se topuo as ilhas chamadas
de Sauna y do Meio ^ e do Cascalho^ ou Sabacií y com hum
canil , que vai para a povoação de Taperogua , e hum
furado para o rio de Una , c na mesma navegação se des-
cobrem os rips do Campo , o da Galé , o do Pitanga o
de Sarapuhi , Engenho , Camorogi , que igualmente dei-
chárão seus nomes as povoações hoje tão recommendaveis
pelas lavoiras da mandioca, arroz, café, e cortes de ma-
deiras , que constituem a riqueza dos habitantes. A povoa-
ção de Camorogi terri huma capella de N. Senhora d'Aju<-
da, de que he administrador o padre João Muniz Barreto,
huma das mais ricas pessoas da commarca. Fica logo adian-
te a grande povoação de Taperoaá com bello porto de
desembarque, com huma capella de S. Braz , de que he
administrador o capitão mor Luiz Bernardo de Souza : pro-
segue orlo grande a embocadura do Jequié, avista-se
então o rio Jordão , que por este lado termma o termo da
villa do Cairú, e busca então para o sul differentes ilhas,
e rios , que vão até Cabossú , e S. Tiago , que pela cos-
teira do norte se dirige á ponta grossa , e rio Aritiba ,
que sahe no lugar que Sambauna se chamou , com o qual
divide , e forma a ilha do Cairú , ou caza do sol , na Jin-
goa geral ; povoada a terra firme , e ilhas com cinco eqíI
habitantes. -'.
lomo IX, od. §
•aro Memorias da Academia Real
Tem aquclla villa liuma só rua , que vai do porto
i matriz da invocação de N. Senhora do Rozario : e para
o outro lado fica o convento dos religiosos capuchinhos, da
provincia de S. António da Bahia. O templo da matriz
hc proporcionado , com quatro altares , alem da capclhi mór ,
ornado decentemente, c he huma das freguezias, que tem
as alfaias necessárias , para se celebrarem as funções da rc-
lit^ião: celcbrão-sc as festividades no mez de Outubro,
para as quaes todos concorrem , e vão assistir talvez mais
por divertimento público, que por motivo de hum culto
espiritual. Concorre de todas as partes o povo ; e he en-
tretido nas tardes das festividades com cavalhadas , e d noi-
te com comedias, reprczentadas pelos seus mesmos concida-
dãos , que não tem intelligencia e gosto das peças , que
produ7em em público, depois das dez horas da noite, ar-
mando-se hum theatro portátil no mesmo dia do diverti-
mento, defronte do convento dos franciscanos, ou da frc-
guezia. O convento tem toda a proporção e grandeza ; ha
vinte artnos occupava vinte e mais religiosos , que se cm-
pregavão no ensino da mocidade , alem das funções do seu
ministério : hoje apenas se contão nelle quatro velhos ,
que edificando os povos com o exercício da virtude , não
podem pela idade e moléstias servir ao público , nem a si
mesmos , faltando-Ihes as esmolas para se manterem , e
conservarem o mesmo convento.
§ 3-
O local da villa , e os estreitos limites delia , faz que
tiâo possa subsistir o povo, se os habitantes da terra firme
lhes não fornecem a carne , farinha , e mais géneros, Deo
motivo áquella tão imprópria situação o temor dos selva^
gens y que de continuo insurgião sobre as povoações , fre-
chan-
DAS SclENCIAS DE LfSBOA. ílt
chando , e matando quantos encontraváo , ou quê desacau-
tcladamente cahiao cm suas mãos; e por isso se refugia-
rão na pequena ilhota , ' para melhor se defenderem , e se
livrarem dos horríveis damnos , que o gentio lhes fazia,
entrando em grandes corpos nas pequenas fazendas , em que
cstavão estabelecidos alguns colonos , e até arrombaVao as
portas das capellas , erigidas cm Una, c M.ípcndipe , es-
palhando por terra, e pi/.ando as sagradas alfaias; taes
erão os Tupinambãs , c Amores destemidos , que parecia
se dispunhão a acabar e destruir todas as povoações da
terra firme.
§ 4»
Os diuturnos gemidos, c consternação fatal do povo,
os lastimosos accidentcs , que todos os dias assignalavao
por continuas e dcsastrozas mortes, aafflição, e a dor de
muitas famílias, que erão forçadas a abandonar as suas ha-
bitações, chegarão a ter fim, logoque o Vicerei o Con-
de das Galveas , condoido por extremo das lagrimas do
povo afflicto , se dignou attender á reprezentação , que lhe
dirigio a camará em 24 de Fevereiro de 173 1, onde se
expunha vivamente o grande destroço , e mortandade , que
os bárbaros acabavâo de fazer naquelle mesmo tempo,
nas rossas de Francisco AíFonso da Silva. Mandou o Vice-
rei aos Coronéis da conquista , que com as tropas do pre-
sidio do Morro , e indios mansos atacassem aquelles , que
vagavão nas cabeceiras das matas , e a João Ferreira Riba
encarregou a entrada , paraque se estabelecesse nas cabe-
ceiras daquelles destrictos , formando arraiacs com planta-
ções sufficientes para a sustentação das pessoas , que o
acompanhavão , é seguisse ao gentio, todas as vezes, que
tivesse noticia dclle , trazendo sempre huma bandeira , cor-
rendo todas as matas para embaraçar , pelo menos , aos bár-
baros novos assaltos. E paraque o projecto na execução ^
não encontrasse algum embaraço, ordenou aos juizes, eoíFu
od ii ciaes
ai% MeMOBI^S.DA ACA.DEMIA RçAL
ciaçs da camará , ^ 4<ísí«pfíj áquclle eoronel todaa ajudsie fa-»
vor para aqucUe estabelecimento ;; e o mesmo fizesse a iQr
4os. os officiaeS' de milícias, lembrando áqucille Jaão Fer-
reira Riba a expectação em que ficava, de que desempe-
nharia tão importantfiçommissão, segurando ser Ihç proce-
desse nella como devia , e elle esperava , o havia de atten-
der pos seus requerimentos , e recommi:adar na Rçal prc;»
sença Q^íSeu préstimo, e merecimento ^ e dss mais pesr
soas que o acompanhassem, c se distinguissem neste servi-
ço ; advertindo-lhe porcMii , que por nenhuma maneira fizes-
se algum exame por descobrir ouro naquellas vjsinhanças ,
em distancia menos de 8o Icgoas da bciramar , por ser
contra as ordens de S. Magestade. Com estas instrucções
dcspedio edito coronel em 22 de Fevereiro de 1736.
§ S-
Erão instruídos 05 Índios selvagens do estado da ter-
ra por aquelles , que se intitulavão mansos , acornpanhan-
do-os : taes erao pas suas incursões hostis os indios de
huma aldêa estabelecida' sobre a grande propriedade edifi-
cada então na cachoeira do rio de Una , que possuia o
potentado Sebastião de Pontes, derrotada e perdida com
a sua prisão. Aquclla propriedade se ennobrecia pela sua
grande fabrica de assucar , e outras officinas , alem de es-
cravos, tinha no seu serviço, humá aldêa de indios. Na-
quelles tempos vinháo as charruas ao presidio do Morro ,
c na paragem chaniada o Curral y fundeavão para receber
a seu bordo as Reaes madeiras , qqe se cortavão nas ma-
tas de Una e Mapendipe , com vigia e cautclla , por cau-
za do gentio ; e como succedesse que hum dos olficiaes
da charrua olhasse amorosamente para huma das mamelu-
cas daquelle Pontes , este surprehendendo-o mandou que se
lhe marcasse as costas com huma enchada abrazada de fo-
go. Aquelle insulto r prezentado ao Senhor Rei D. João V,
O commandante teve ordem para, o prender, e o conse-
guio
dasScienciasdeLisboa. " ei5
puio atifliçoadoaicnte apanhando em seu bordo ao ditQ
Pontes, a quym rinlia convidado para jantar, c logo levan»
tando a ancora , c soltando as velas , navegou pela barra
do. presidio do Alorro. Foi então que aquelic desgfíçado
conheceu o engario , e a sua perda ; a cólera se manifestou
no !>cu scniblantc , a indignação se revcstio inutilmente do
seu furor ; mas o infeliz det-arxnado se abraidonou á dor,
c á melancolia, e cm poucos dias terminou, comi a morte
a sua infausta carreira ; daquelle successo se originou a per-
da da propriedade, o dispcrsamcnto dos índios, que se
unirão aos bárbaros habitadores, das brenhas, para atacarem
e destruírem aos visinhos , que abordavio a marinha.
§ 6.
Pcrsuadio-se o Viccrci , que povoando as cabecei-
ras, afugentaria o gentio bárbaro, ou pelo menos emba-
raçaria suas hostis incursões : para conseguir aquelle fim ,
nomeou a João Vieira de A/.cvcdo por administrador , e
governador das aldêas dos indios , que pertendia levantar:
mandou ao capitão mor das cinco villas então existentes ,
ao ouvidor da commarca , e officiacs de milícias dessem aquel-
le administrador todo o favor e ajuda, debaixo da pena
de serem rigorozamente castigados , se deixassem de con-
correr para a execução do que para aquelle estabelecimento
lhes pedisse o dito administrador. Daqui nascerão for-
marcm-se bandos de aventureiros, que debaixo de seus
chefes particulares se cncorporárâo para atacar os indios ,
e destruilos , e de cujo expediente se valeu Manoel Fran-
cisco dos Santos Soledade para alcançar , como conseguio
por doação regia , que se acha no caderno que sérvio na
villa do Cairú no anno de 1741 a f, 134, 40 legoas de
matas, por provisão datada em Lisboa a 19 de Abril de
17:59, a qual foi posteriormente invalidada pela Real reso-
lução tomada no Conselho ultramarino em 37 de Março
de i???, tendo precedido a informação do Conde de Ar-
cos , Vicerei do Brazil , e respostas dos procuradores ré-
gios,
114 Memorias ha Academia Reai,
gios, tomando-se por fundamento daquella Real resolução
que nao podião ser profícuas as mercês mencionadas na
provisão e decreto de 17 de Abril de 1739, por serem
aquellas de contracto onorozo , que obrigava igualmente
a ambas as partes estipulantes, que cada hum devia á^r
satisfação do que se sujeitava ; e como aquclle Manoel Fran-
cisco não tinha satisfeito da sua parte com o descobrimen-
to das minas, a que se obrigara, e re/ultasse damno con-
siderável aos moradores contíguos , e á Coroa , a quem per-
tenciâo as terras, não devia proceder áquclla doação, e
mais antes se devia pôr cota nella , para não produzir mais
algum effeitj sensivej.
Segurou a camará, e principaes do paiz ao Viccrei,
o prestarem-se á sustentação dos indios por hum anno ,
logoque elles se aldeassem nas cabeceiras das matas , e
lhes consignaria também huma legoa de terras para a cul-
tura de mandioca. Não podendo o Vicerei fundar as po-
voações, que dezejava , sem afugentar os indios, se em-
penhou na sua destruição ; engrossou os corpos armados ,
que partirão com os indios Cariris a explorar as matas :
unio a estas forças a aldêa dos indios do rio de Contas ,
conduzida pelo missionário Fr. Bernardino de Milão , ca-
puchinho italiano, e seu capitão, por nome Adâò , os
quaes encontrando os Amores, e Tupinambás , atacou, ma-
tou, e afugentou. Appareceo morto entre elles, hum paren-
te daquelle indio Adão , o qual chorando , e dando gran-
des urros pela morte do seu parente , prometteo , logoque
alliviasse a sua dor, de hir buscar os indios, que até
então se tinhão mostrado inimigos, paraque vivessem pa-
cificados com os portuguezes , segurando que , se dentro em
4 luas não viesse, temessem o despique, que os indios cos-
tumão tomar da injuria na guerra recebida : pouco depois
se embrenhou nas matas cora os seus dois filhos Bernabé
Dias ,
nAs SciEWciAS n e Lisboa. 2ij
Dias, e Pedro Dias, e seus dois sobrinhos Leonardo , ç
Domingos Geraldo a demandar o gentio.
§ 8.
Com a partida daquellcs índios, impacientes fica'râo
os moradores pelo êxito do bom succe^^so , que csperavão
ter, se Adão c seus companheiros podessem reduzir e ca-
pacitar tão poderosos inimigos, a receberem a paz e ami-
zade dos portuyuezcs : espalhao-se assustadoras vozes , ora
da nova insurreição hostil dos itidios bravos , ora da
desgraçada morte de Adão e seus companheiros , que ti-
nhão sido devorados pelos ferozes , c dcshumanos Amores ,
quando punhao só nelle a sua esperança , e confijnça Cor-
reo velozmente o tempo , o prazo da promessa se encheo ,
quando hum novo sobrcsalto cobre todos os ânimos da pa-
lidez da morte, pelo constante ecco dos urros, e algazar-
ras dos Índios, que de' todas as partes retumbava nas ma-
tas; porém de repente se converteo a dor em gritos de
alegria ; poisque erão já vindos os mensageiros de Adão ,
seguidos de hum grande numero de selvagens , que pc-
dião a paz , e vinhão deliberados a habitarem pacificos o
paiz ; então os povos tumultuosamente largao as cazas j
e correm ao lugar do rio de Una , que de Repartimeuto se
intitula , a esperar c receber os hospedes , que hiâo chér
gando , e conduzirão grande copia de mantimentos para sa»
ciar a voraz h)me dos bárbaros, de bugigangas , que elle*
aprccião , como fosse , facas , espelhos , machados , &c. Se-
guirão os portuguezes os capuchinhos italianos , recomen-
dáveis pelas suas virtudes , o Padre Fr, Francisco de Jesus
Maria, e Fr. André no dia 2 de Novembro de lyjó, três
legoas marcharão acima -tdò lugar , onde depois a aldéa ,
entre vivas de alegria foi kvãntada ; e alli o Padre Fr. Fian*
cisco disse três missas , e de então até hoje se ficou cor»,
servando a lembrança do succesfio, chamando-se aquelie lú*
gar as três missas. Ahi , pcl* vez primeira , a cru? do SaU
va-
Ii6 Memorias da Academia Real
vador foi levantada , c os olficios divinos se celebrarão com
grande devoção dos portuguezes , c corti admiração , e es-
panto dos bárbaros , que tiverão sempre cm graiidc vene-
ração aquelles barbadinhos.
§ 9'
Foi escolhido para o lugar da estabilidade da aldêa
aquelle , que de S. Fidelis tomou o nome , e patrocínio ,
onde se conservarão pouco tempo os novos habitantes ; por
que estranhando os alimentos salgados , e sobrcvindo-lhes
as bexigas , pereceo huma grande parte , fugirão muitos
outros para os certócs , o restante se foi acostumando aos
alimentos, e trato com os índios mansos c portuguezes;
de sorte , que ainda prezentemente existem alguns. Adão
se contentou com a pequena remuneração que pcdio , de
que se passasse a seu filho Bcrnabé .a patente de capitão
mór daquella povoação, que lhe foi permittido ; e succe-
deu por falecimento daquelle , no posto vago , João Ri-
beiro, e depois José Ribeiro, o qual ainda vive : este indo
cazuaimente com os seus camaradas ver as suas rossas,
sentindo o rasto da passagem , dos pataxos , os seguio ,
vendo-os os atacou , matou-lhes dez pessoas , e aprizionou
sete , que forão remettidos ao governador , que então era
da Bahia , o Excellentissimo Manoel da Cunha e Menezes ,
o qual os fez logo repartir pelas melhores cazas da cida-
de para os educar.
§ IO.
Esta he a origem do estabelecimento da interessante
aldêa de S. Fidelis , situada huma legoa acima da povoa-
ção da villa do rio de Una : a ella se deve a prosperida-
de dos habitantes da terra firme , e o prodigioso augmen-
to da lavoura , e a actividade do commercio dos cortes
de madeiras. Os capuchinhos italianos dirigirão por muitos
annos aquella aldêa , e muito trabalharão na sua civilização
in-
J)AS SclENCIAS DE LiSBDA. ÍI7
intioduzindo-Ihes o amor do rraBalho da lavoira , co pia,
zcr da crcação dos gados* Forão substituídos em seu lu-
gar clérigos scciílaics: nao se vê hoje na aldca, que a
pintura da sua primeira barbaridade. Elles são óptimos ca-
rapinas de machado (carpinteiros), e os unieos que valo-
rosamente descem os importantes vinhaticos , e putumujús
t loiros , de que as matas copiosamente se vestem , c da-
quelles páos tira a Real construcçao muito proveito, e ri-
queza os povos , que com os mesmos traficão. Tiverão
hum parocho , por nome António Nogueira, que em to-
das aquellas matas deixou seu nome recommcndavel pelas
suas virtudes ; mas a frcguezia se abolio , com a cre;içáo
da do Coração de Jesus, da villa nova de Valença; e
ellcs forão reduzidos á desesperação , não se lhes conce-
dendo ao menos hum coadjuctor; e por esta cauza vão de-
zertando para Jequiriçá; c o cabido da Sé metropolitana
insensivcl ás suas lagrimas, e representações, depois da
morte do seu santo prelado , os deixou persuadidos de
que não tcrião jamais os soccorros espirituaes , que, co-
mo filhos da igreja , buscavao com o maior afinco , e o
Real serviço sente já por isso huma grande falta de bra-
ços , por tão frequentes dezerções para outros lugares.
1 1.
Firmada a paz e amizade dos indios com os mora-
dores , que habitavão os paizes próximos á marji.ha , a
agricultura tomou logo novos alentos , e os cortes de ma-
deiras se fizerão amplamente , sem se poupar algum género
de esforço. Tinha naquelles primeiros tempos o governo
jnandado estabelecer huma feitoria nas margens do rio de
Una, e em Mapendipe, paraonde forão assistir os mes-
tres , e falquejadores , os quaes erao eficazmente protegi-
dos no governo do Excellentissimo Manoel da Cunha e
]Menezes ; os cortes forão então abertos desde Jequiriçá
até Jcquié : aquelle ramo de industria deo grandes soccor-
Totno IX EC ros.
41? Memorias da Academia Real
ros , que empregavão nâo*só os seus escravos naquelles ser-
viços do mato , mas aiigmentárao , c propagarão a crcaç.lo
dos gados para os arrastos dos pa'os ; c cííCc era o seu mais
nobre emprego 5 poisque nenhuma das authorizadas no
paiz , deixaváo de lavrar os páos com os seus maciíados ,
e de se armarem das aguilliadas , para conduzirem os bois
para os arrastos dos mesmos páos , c até seiravao com os
seus escravos os diíFerentes páos cm taboados , para a ven-
da pública delles. As sommas , que se rcmcttiao da Bahia ,
para a satisfação dos serviços feitos, vigorizarão por tal
maneira as faculdades dos moradores , que cilcs se applieá-
rão á lavoira com todo o afinco , c esta a primeira época
do seu nascimento neste paiz, e a principal fonte da sua
riqueza.
§ ia.
Os dizimes se augmentárão extraordinariamente , c os
administradores obtiverâo imprevista liqueza : os artigos
da lavoira consistião na mandioca , e na plantação do ar-
roz de Veneza , cuja colheita chegou a produzir mil alquei-
res de dizimo , e a exportação somente deste género ,
chegou ao valor metallico de vinte contos de reis, e ainda
mais ; a da farinha da mandioca , não foi tão considerável.
A nova cultura do café tem periodicamente crescido com
a emulação dos vizinhos, e com a sabida nos mercados
na Bahia, e a sua colheita, anda hoje de S a 10 mil
arrobas, c se vende no principio delia a 1280 , e a 1600,
e depois chega a ifóo, e 3200 na porta do lavrador. As
plantações da pimenta da índia, caneleiras por mim intro-
duzidas , vão-se felizmente propagando ; e em poucos an-
nos emulará i exportação aziatica, com grande proveito
das nossas colónias. As madeiras constituem o maior trafi-
co dos povos ; a exportação para a Bahia no anno de
1800 se contava, entre mastros grandes, e pequenos,
e raastareos e vergas z5'3 páos ; entre frexaes e vigas azjjo;
ripas de camassares 1427 dúzias j taboados de loiro , vi-
nha-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 219
nhatico , e oiti doze mil e oitenta e quatro dúzias; car-
radas de caixaria 19^, duas mil arrobas de estopa da ter-
ra cxtrahida da casca do páo , chamado biriba ; 440 feixes
de piassaba , e 12 barcadas de casca de mangue. Não cn-
trão nesta exportação aquellas das madeiras de construcçao
dos navios de S. Mngestade , c somente as do commercio ,
que o seu valor mctallico monta mais de trinta contos déreis.
§ 13-
Suppos^oque os cortes das madeiras tenlião , ha qua-
zi hum século, aberto no paiz incxgotaveis fontes da
sua riqueza ; comtudo ainda aquelles, hoje se praticao sem
alguma arte: indistinctamente se mette o machado no
tronco das monstruozas arvores , que cahindo , levâo com-
sigo muitas outras , c ordinariamente adquirem grandes
fendas no violento choque da sua estrondoza queda , fican-
do algumas vezes inteiramente perdidas , mormente na
occa2Íão do seu cio: não procurão decepar os galhos ,
que prcstão excellentes peças para braços e cavernas , e
a maior parte se partem na queda das arvores. A incompre-
hensivel força dos cabos frescos da palmeira jussára , tal-
vez facilitasse os meios de abater a força da arvore corta-
da , fazendo a sua queda mais doce. O tronco , que ainda
resta sobre a raiz , reduzido a huma superficie plana , cura-
da a grande chaga com o çumo de tanxagem , e bosta de
boi , pode ainda ser aproveitada nos futuros tempos , con-
servados os renovos , quantos forem necessários á conser-
vação da nova arvore.
§ 14-
Assimcomo a natureza de sua própria mão, plantou
sobre as montanhas do Hartz , na baixa Alemanha , nos
Alpes, Perineos, nos montes Jura , nos Vorges , Borgo-
nha, Forez , e Auvergne, as bellas arvores, cuja situação
he favorável á sua espontânea reproducçãoj também na
EC ii Arae-
220 Memorias da Academia Real
America , tanro ao norte , como ao meio dia , nas caxleias
das montanhas , que por cordilheiras são conhecidas , situou
eternos bosques, que se renovão sem cessar de si mesmos,
sobre terrenos montanhosos, indicando-nos que a natureza
e clima dellcs contêm hum principio favorável á sua exis-
tência. Os homens porém do Brazil acostumados a rece-
ber tudo çem trabalho do seu delicioso clima , julgao-se
dispensados de unir os seus esforços áquclles de huma na-
tureza tão liberal. Assimcomo- aquclla sabiamente promo-
ve 3 existência de novas gerações para substituir, as que
acabão e morrem ; porque seremos insensiveis ao seu mo-
do de obrar, deixando de cultivar em viveiro, todaá
quantas espécies de arvores são úteis , examinando pelos
seus passos a infância, adolescência, e velhice, bemco-
mo as suas enfermidades , e cauzas que as produz , o que
pode prevenir o mal , e curalo. Nesta escola as recompen-
sas , que o governo julgasse próprias, attrahiria entendi-
dos agricultores , cuja prática formaria discipulos , que
perpetuassem na sua feliz posteridade a sabedoria , e in-
dustria. Seria muito conveniente ordenar não se fazer al-
gum corte das arvores , sem substituirem aquellas por ou-
tras plantadas ; e até , que os proprietários fossem constran-
gidos a cercarem as margens das estradas , onde estão si-
tuadas as suas fazendas , com arvores de construcçao : pro-
videncias , que nas futuras épocas se conheceria a impor-
tância , e emendaria os males provenientes da mal calcu-
lada avareza dos colonos , e da sua ignorância.
§ if.
Convém todos os agrónomos, em que os meios favo-
ráveis á reproducçâo dos bosques consistem na plantação
das arvores em caminhos públicos, nas bordas das fazendas
dos particulares , e nas terras vagas , e devolutas. Vê-se
por isso na França , e nos Paizes baixos as estradas povoa-
das de arvores , sobre hum plano regular e seguido :
achâo-
DAS ScIENCIAS DE LiSBOA. 121
nchão-se por todos os caminhos arvores raras , plantadas ,
níío ao acazo , mas por luima bcmfeitora mão. A Inglaterra
tem tambcm ordenado e feito plantar as suas estradas de
úteis arvoredos , e todo o mundo admira aqucUcs estabele-
cimentos , que dão honra c riqueza ao paiz , oíFerecendo
aos viajantes a mais piauzivel vista, que. subministrão as
arvcres , alem de os cobrir dos ardores do sol , e impetuozi-
dade do ar. As propriedades cercadas de arvores de con-
strucção adquiririão hum inestimável valor , poisque fornc-
ccriiío páos duros , debaixo de diffcrcntcs formas para o
serviço da marinha. Todos sabem , que Flandres e Brabante
por aquclle meio subministrão á Europa os melhores páos ,
que fírmão a sua riqueza , e que os seus proprietários re-
zervão para os momentos das suas necessidades , ou para
o estabelecimento de seus filhos. Adoptando-se aquelle me-
thodo de cultura dos bosques , se faria desnecessária a
plantação das terras devolutas , pelo grande trabalho da
extinção das formigas, e más hervas , que nellas espanto-
zamentc se propagão.
§ 16.
Crescendo a destruição das matas com o progressivo
augmento da lavoira , assolando-se bosques immensos a
ferro , c a fogo , entrarão os governadores e capitães ge-
ncracs a dirigirem reprezentaçõcs ao throno , exigindo-se
providencias as mais efficazes , para conter os lavradores j
e appareceo huma provizão do Real Erário de 28 de Ju-
lho de i/Sf, que entre outros objectos, recommendava á
junta da fazenda da Bahia , que recorresse ao governador ,
para impedir aos lavradores de Nazareth a destruição das
matjs: cxpedio-se depois huma carta regia de 13 de Mar-
ço de 1797 , de que já se fez menção, que ordenava, se
formalizasse hum plano, que emendasse os passados damnos,
e acautelasse para o futuro se não commetessem novos.
i2i Memorias da Academia Reai.
§ 17-
Estava-se na suppoxiçao de haver ainda inatas não
doadas em sesmaria nos dcstrictos dos cortes , e outras
doadas , c queria o governo , que jamais se desse em
sesmaria aquellas , e que as outras revertessem para a Co-
roa , informando o governador da indemnização, que se
fazia praticável. As pessoas nomeadas na dita carta regia
pársí 3 organização do plano, julgarão comprehensiveis na
sua' dispozição as matas , que dccorrião de Mapcndipe
ate Pinaré, c as do rio Aqui até Belmonte do sul da Ba-
ilia"; e as propu/erão para serem coutadas para as Reaes
construcçóes. Surgirão immediítamente algumas reprezenta-
ções de proprietários, sem outros titulos, que os de possuí-
rem por diíFerentes transacções , que tiverão principio na
posse natural, que tomarão os primeiros possuidores , der»
rubando as arvores , e fazendo plantações , ou por terem
entrado nas matas em' procura do gentio Amoré, Tupi-
nambás , e ainda dos Pataxós ; e conseguirão por deter-
minação Real o serem novamente ouvidos , e de se não
impor nas suas propriedades algum ónus , sem ter havido
huma pozitiva. e Real ordem. Mandou o ExccUentissimo
governador D. Fernando Jozé de Portugal , a quem tão im-
portante negocio foi commcttido , que fossem elles con-
servados nos seus titulos , e permittio-lhes o uzo das ma-
deiras achadas nas matas coutadas , e finalmente toda a
faculdade. , que d'antes plenamente gozavao de entrarem
nas matas, e de praticarem todo o género de assolamento;
e dando conta das novas dispozições, que alteravão as do
nlano já provizoriamente approvado na carta Regia de 1 1
do Julho de 179^. Ainda pende a sua approvação da
Real vontade.
§ 18.
Dcsdcque por carta Regia de a de Janeiro de 1666
se
DAS SciFNClAS DE LiSBOA- 225
se mandou estabelecer por Sebastião Lambert huma fa-
brica de fragatas , se uzou impôr-sc nas propriedades , o
ónus de conservarem os seus proprietários (js páos chama-
dos ãe lei. A conservação das matas he hum objecto de
tanta importância , quanta he a do estado , tjue não pode
fundar a sua prosperidade , ícm manter a marinha Real ,
e mercantil : a irreparável perda dos monstruozos páos
queimados, e perdidos para a marinha e serviço público",
seria mais que justificado motivo, para se tomarem medidas
seguras de embaraçar o progresso das derrubadas ; quanto
mais, que da conservação das matas depende a fertilida-
de do paiz , pelos methcoros e cffluvios terrestres , que el-
las produzem , e que dão nascimento ás periódicas chuvas,
que deixando de cahir , e de regar a terra , tornarão os
bellos terrenos áridos , e infecundos ; matará a seca os ani-
maes , com grandissima perda dos lavradores , e da subsis-
tência dos povos , tornando-se as povoações em espantozos
dczcrtos.
§ 19.
Vemos na França , desde o Rei Filippe em 1318 im-
portantes regulamentos para a conservação das matas , que
servirão de baze ás legislações de 1388, 1402, e 1515".
Fizerão-sc outros em 1669 no titulo 21 , a respeito dos
páos Reaes, e nos titulos 24 e 26 sobre aquelles dos
particulares, e corpos de mão morta, e determinou a sen-
tença do conselho de 7 de Setembro de 1692 não se transpor-
tassem os páos por mar , ou terra , sem pagar os devidos
direitos ; e estabeleceu outra sentença do dito conselho
em 27 de Setembro de 1700 -as formalidades , que se de-
vião praticar com os páos da marinha , prohibindo-se por
outra de 23 de Julho de 1748 ás corporações ecclesiasti-
cas , seculares , regulares , e leigos ; e ainda aos parti-
culares proprietários cortarem as arvores dos bosques , que
tivessem a marca do martello da marinha. Creárão-se em
27 de Setembro de 1776 engenheiros constructores , es»
2*4 Memorias da Academia Real
palhados pelo reino , que tinhão debaixo das suas ordens
os mestres c contramestres , para indagar os pa'os nos
departamentos , que se lhes assignalava ; c aqucllcs , que
devião fazer objecto dos seus exames, forao dcclaiados no
artigo 5-.° da sentença do conselho de 28 de Setembro,
pela qual os proprietários dos bosques , situados seis Ic-
goas das ribeiras navegáveis , e quinze do mar , não abri-
riio nellas cortes , se seis mezes antes não fizessem as suas
declarações no respectivo tribunal dos bosques , onde os
páos existiao, mencionando a quantidade, qualidade, es-
sência , situação , distancia do mar , ou ribeiras navegá-
veis, debaixo da pena de três mil libras (48o(^ rs.) de
condemnação , e confiscação dos paos cortados.
J
20.
Assim legislou tão grande nação no zenith da sua
gloria , e na situação a mais perigoza da republica ; quan-
do por motivo das calamidades públicas, se propoz a ven-
da do bosque de Brest, com pena de morre, se prohibio
fazer-se huma tal propoziçao , e apenas o primeiro côn-
sul recebeo o poder , que o povo , e o senado lhe confe-
rio , creou conservadores das matas. He da sua conserva-
ção que o Papa , e tantos outros príncipes tirão immen-
sas rendas , e florecem em seus Estados.
21-
Creárão-se por cartas regias de n de Julho de 1799
as conservatórias dos Ilheos , e das Alagoas ; não se fixou
a competente jurisdição daquelles novos magistrados , que
devem ser formados pelos estudos agrónomos , connexos
com os da botânica , geometria , fizica das arvores , e ar-
chitectura naval , para adiantarem os conhecimentos de
huma tão nobre sciencia , e forão reduzidos aquelles em-
pregos , ou a mandarem cortar os páos , que se lhes encom-
men-
DAS SciENCIAS DE LiSBOÁ. llj*
tnenilava, ou a comprarem os já falqucjados , segundo as
cncomincndas c]uc lhes são dirigidas. E estes jamais podem
ser os fins daquella creação ; porque então qualquer car-
pinteiro as desempenhará. A palavra conservador está incul-
cando o seu destino de conservar as matas , de melhorar
o estabelecimento dos cortes, por luminozos princípios j
que faça , que os páos cortados sejao não somente da boa
qualidade, e em perfeita sezão derrubados, quando já se
não espera que cresção mais , e que tendem a adoecer ;
como aproveitar todas as peças, que as bellas arvores pos-
são produzir, conservando a flexibilidade das suas fibras ^
sua compatibilidade c dureza , conservar os gados para
os arrastos dos páos , conhecer as suas enfermidades , tra-
tar das mesmas. O carbúnculo dcstroe nos destrictos dos
cortes boiadas inteiras, e ordinariamente quando sobrevem
aos ardentes calores copiozas chuvas das trovoadas ; a ou-
tras boiadas sobrevem horríveis diarréas, pelas quaes cahem
em mortal desfalecimento, que a morte termina: crião
outras grandes papeiras , e emagrecem por tal maneira ^
que se não podem levantar , atéque os Urubus festejão
a sua morte, devorando seus definhados cadáveres: alguns
bois estando gordos tremendo , cahem e morrem repenti-
namente. As hervas venenozas , os silvestres fructos produ-
zidos nas costas , que de Gairus tem o nome , os mata
também subitamente.
§ 2 2.
He inteiramente, no paiz , desconhecida a arte vete-
rinária. ^Qi.ianto não serião úteis os seus conhecimentos?
As veterinárias escolas de Leão, c de Charenton , que vas-
tas instrucções não derão aos habitantes da França sobre
tão importante ramo da agricultura económica ^ Mas se
«ntre nós muitos sábios ignorão até a existência de tacs
artes, ^- como saberão os lavradores ignorantes, c mizera*
veis ? Deve sem dúvida olhar-se com grande attcnção o
Tomo IX. Ff tra-
iiô Memorias da Academia Real-
tratamento dos animaes , e promover-se n cultura das gra-
mas não só naturaes , mas também daquellas , que se tem
climatado , como seja o capim de Guiné , que tão avida-
mente com preferencia ás mais gramas , buscao assim os
animaes vacuns, como os cavallarcs, para se saciarem,
e com que cngordão extraordinariamente.
§ 23-
A preguiça, e indolência tom-se dado as mãos neste
paiz para não serem soccorridos , nem tratados os animucs;
e algumas vezes os acompanha também a superstiçíío , pa-
ra obstar aos variados objectos da sua industria. Todo o
gado dos diversos particulares he largado em pastos, que
não cultivão , nem cercão os próprios donos, ou com li-
moeiros , ou cajueiros , que fariao cercas defensáveis , e
uceis á sustentação dos animaes , que saboreão-se daqucllcs fru-
ctos: os animaes soltos sem pastor, que os vigie, e guar-
de , não encontrando sufficiente grama espontaneamente re-
produzida nos pastos , ou cazualmente encontradas nos pe-
quenos capões , que capoeiras se intitulão , correm as cos-
tas do mar para buscarem os fructos silvestres : não dor-
mem recolhidos , nem se lhes dá alguma ração : quando
são vistos com bixeiras , que as varejas depõem sobre qual-
quer ferida , ou ranhadura , ou que os bizouros , e os ver-
mes , e os morcegos lhe cauzárão , são então felizmente
curados com o sumo da herva conhecida vulgarmente ,
por tinheirão , a qual expremida com o sumo da laranja da
terra mata immediatamente osbixos: unta-se depois a fe-
rida com a manteiga da bicuiba , ou azeite delia , ou com
alcatrão.
§ 34«
Empregão também para aquelle fim meios supcrsti-
ciozos , e de que se persuadem conseguir bons eíFeitos pe-
la formula seguinte : tendo , por exemplo , hum tal boi hu-
ma
DAS SCIENCIAS DE LiSBOÀ, «2^
ma bixcira na parte direita j cu esquerda, ou em outro
qualquer Jugar «♦ Bixos mãos, que comeis, c a Deos não
» louvais, amaldiçoados sejais de Deos, e da Virgem
>j M?.ria , de S. Pedro c S. Paulo, e todos os santos da
» corte do ceo , que em três horas caião todos , e não
»> produzão mais » Com esta reza , que repetem por rres
vezes, e outras tantas benzendo, e rezando três Padre
nossos, três Ave Marias, e três Gloria Patri , á morte
e paixão de Jcsu Christo, crêm , que os bixos cahcm , e
ficão os animacs sãos. Outros formão , quando ha sol ma-
nifesto , huma cruz no rosto do animal , com duas folhi-
nhas verdes da parte dianteira , ou trazeira. Tal he o eftei-
to da ignorância, e superstição !
§ 25".
Se os bois são encontrados proximamente mordidos
de cobra surucucú , elles os salvão da morte , espremendo
na boca do ferido o sumo de jussára , e pondo o bagasso
na ferida. Se a que mordco foi jararacossú , se servem do
sumo da jarrinha com a jussára, e enxotar, ou fumo de
tabaco , ou da raiz do espinheiro amarello , e do sumo da
butua. Se foi jararaca, que raordeo, he curado immediatamen-
te o animal , com o sumo bebido do entrecasco do ange-
lim , ou sicupira ; remédios , que tem aproveitado igual-
mente aos homens feridos daquclles terríveis , e medonhos
reptis. Esta he toda a sciencia veterinária dos proprietá-
rios, que tem bois.
§ 26.
Foi levantada em villa a povoação da margem do
rio de Una , debaixo do titulo de villa nova de Valença
do Coração de Jesus em virtude da carta Regia de 1 1 de
Julho de 1799. Den-se-lhe por limite as povoações, que
decorrem dç Mapendipc até o rio de Gale, e constitue
pf ii hu-
íi? Memorias da Academia RSal
huma povoação de três mil habitantes. A carta Regia j
naquclla nova creação , teve cm vista , segundo cila expies*
áa , o segurar a boa ordem dos cortes de Cairá. Obtiveráo
os povos igualmente a crcaçao de huma nova frcguczia
com parocho próprio , e coUado , que lhes abre o caminho
da virtude pela pratica delia , instruindo-os nos principios
da solida c verdadeira felicidade , que lhes adquire a pra-
tica dos preceitos da Religião, dos quaes havia a mais
crassa ignorância. Formárão-se corpos de ordenança para
a execução das ordens militares, e civilização dos habitantes
pela obediência, que devem ter aos seus superiores, e dentro
de quatro annos esta villa tomou a face mais floreccnte ,
que cauza emulação ás vizinhas pela sua agricultura ,
gramicza dos seus edifícios, e pelo luxo ,- e seu commcr-
cio. He a única villa abastecida de carnes frescas pelas
frequentes boiadas, que descem dos certõcs , e vem ahi a
vendcr-se em mercado público. A estrada, que abri de com-
municação com as Lagens e Cortamâo , lhes subministra a
facilidade das communicaçôes interiores, e descem todos
os sabbados immcnsas cargas de mantimento , com que toda
a villa se farta , e vende o sobejo para fora.
As novas plantações, e cultura da canella, pimenteira
tia índia, árvore do papel, ou morus paperifera , café, è
cacáo, vão tendo hum prodigiozo augmento , para dar á
estes povos huma riqueza immensuravel. As matas da vizi-
nhança da costa são cobertas de baunilha , atégora des-
prezada ; e cuja cultura lhes subministrará novos ramos de
cnmmercio , bemcomo as pescadas tartarugas , que pas-
sciãò as costas ha depoziçao dos .seus ovos , que enterrão
na arêà para os chocar, e reprodifeirem- se aquelles immert-
sos anfibios , cujos lindos cascos constituem hum tão
grâirde ramo Úc commercio. Aquelles animaes , de huma
só vez , põem doze , e mais dúzias de ovos. Os naturaes
do
J
CAS SciE ^f CIAS DE Lisboa. ' 12^
do paíz os comem , a carne porém a desprezao ; pois logo*
que apanhão as tartarugas , depois de mortas as enterrao
na arca, c passados cito dias cavão o lugar marcado,
onde forão enterradas , e achão os cascos separados da car-
ne , os alimpão , e vendem a quem os procura : commu-
mente reputáu a mil reis o valor de huma libra de casco
pcrtcito. A carne preparada he de hum cxccUente gosto ;
os seus figados , c entranhas dao azeite , que pode ser
aproveitado.
§ 28.
A grande falta de azeite de peixe , e o extraordinário
preço a que subio pela desmarcada ambição dos proprietá-
rios das armações , que pnra attrahir ás suas fabricas , os
melhores arpoadorcs , e taraonciros , lhe cfferecêrão pré-
mios desproporcionados , que jamais tiverão no tempo da
administração do contracto das ballêas, e por outras cau-
las provenientes da falta de economia, e de principios
tendentes a conseguir pela menor degpeza o maior lucro ,
que não são capay.es conceber aquellcs proprietários pela
crassa ignorância , em que vivem , não considerando , que
alem de depender a pesca de dcspezas enormes , erão in-
certos os successos da morte dos peixes , para saldar as
despezas , levantarão o preço do azeite , que sendo no
tempo do contracto a 320 reis a canada , elles o elevarão
a 1820, eo preço infimo , a- que chegou, foi de 800 reis;
porem a necessidade descobrio aos povos novos, e indus-
triozos meios de serem soccorridos , fazendo , para se re-
mediarem com muito maior ventagcm , ô azeite do coco
de piassaba, e de outras palmeiras, de que âs matas da cos-
ta abundão : outros acharão nos seus quintaes e capoeiras
o remédio ás suas necessidades, extrahindo o azeite dos
caroços de algodão , e da mamoneira , com que illudirão
as esperanças mal calculadas dos lucros , <jue esperavão ter
os ambiciozos proprietários das armações , com a extracção
do seu azeite j akq[i disto a providencia os soccorreu ain"
da
■130 Memorias da Academia Reai,
da por outras naturaes maneiras, levando ás costas do maf
muitas balças mortas > que os povos aproveitavao para
supprirem a urgente fiilta , que scntiao , e ainda tivcrao pa-
ra vender aos seus vizinhos.
§ 29.
Dão muitas balêas mortas na costa , e por isso succede
encontrarem -se algumas vezes o âmbar gris, que alguns
celebres naturalistas, que viajarão o mundo, atribuem ao
escremento , ou alguma outra substancia de huma espécie
de balêa : o cheiro nauseozo do âmbar gris faz , que não
seja recolhido para ser preparado pelos meios chimicos,
que a arte ensina, e se vender no commercio, ainda quan-
do he hum género de tão grande valor , por isso ainda
encontrado frequentemente nas costas , no tempo da pes-
ca das balêas , não he recolhido nem se faz delle alguma
estimação, atéque a maré sepulta no abismo das aguas
aquelle dcpozito , que trouxe de tanta utilidade , por não
ser o uzo e préstimo daquelle bálsamo conhecido dos ha-
bitantes.
§ 30-
Esta a coramarca dos Ilheos , sua costa , rios , incli-
nações , e commercio de seus habitantes. Vêm-se os cos-
tumes serem ainda de povos , que não tem cultura , e de
onde vem a ociozidade , e apathía , em que a maior par-
te vive ; quazi todos , vendo o prezente , se ligão aos
seus inveterados costumes , e nada do futuro pertendem,
Supersticiozos accreditão os enredos dos velhacos ignoran-
tes , que feiticeiros se appellidão : o seu maior empenho
he de brilharem entre os seus cidadãos nos postos de or-
denança , e nos cargos da camará. Cobrem-se de galões de
curo , que parecem todos generaes , com grandes chapas
daquelle metal nos pés, e he nisso que fazem consistir
a sua mór nobreza , riqueza , e ostentação , mostrando p»>
rêm
I
t)AS SCIENCIAS DE LiSBOA. IJ»
rcm o exterior c interior das> suas cazas , a sua pouca cul-
tura. O clima, cm (^ue nas*;cráo , he doce e saudável: o
continente he todo aberto por vnstus braços do Oceano :
as costas por bahias e barras, matizadas de grandes e fér-
teis ilhas, regadas de hum sem numero de navegáveis rios ,
muitas Icgoas pelo interior ; o que dá sem duvida a estes
povos as mais bem fundadas esperanças da sua prosperida-
de , e lhes augura aquella ao mesmo tempo as auri terás
minas , que a natureza cm seu ceio descobre , restando
que o trabalho , e a industria accelere o progresso da civi-
lização , dando-sC'lhcs por guia bcmfazcjas mãos ; poisque
em tão puros votos de Icacs peitos gravarão ao nome
dos seus soberanos padrões eternos de gloria: ver-se-hão,
pelas luzes reverberadas do thrcno , neste hemisfério es-
clarecidos os verdadeiros principies da felicidade dos po-
vos ; o trabalho consolidado , a instrucçao pública , a ele-
gância das artes , a agricultura , c o commcrcio derrama-
rão immediatamente nestes ricos e férteis continentes suas
benignas influencias , e constituirão as sólidas bazes da sua
eterna prosperidade.
NO-
tjí Memorias da Academia Real
NOTAS.
N
OTA
Conhece-se pela descripção da barra dos Ilhcos o
engano , com que cscrcvco Rocha Pitta na sua historia da
America Portugueza , liv. 2. f. 1 1 1 § 75- , quando diz : «4 Em
» 15-° escassos tem assento a província dos Ilheos , assim
f* chamada, pelos que a natureza lhe poz na foz do rio.»
Nota II.
Da Torre do tombo me foi dada por copia a carta
cscripta pelo Padre Manoel da Nóbrega em o primeiro de
Junho de ij6o, pela qual faz saber a ElRei D. João III. ,
entre outras matérias, a conquista dos gentios dos Ilheos,
pela forma seguinte : «t A paz de Christo sija sempre em
j> continuo favor e ajuda de V. Alteza , em que me manda que
jj lhe escreva , e avize das couzas desta terra , que elle
»» deve saber. E pois assim mo manda, lhe darei conta
j» do que V. Alteza mais folgará de saber, que he da
>» convtrsão do gentio , a qual depois da vinda deste go-
»> vernador Mem de Sá cresceo tanto, que por falta de
» operários muitos deixamos de fazer muito fructo , e
»> todavia com esses poucos , que somos , se fizerão quatro
»> igrejas, em povoações grandes , onde se ajuntou muito
>» número de gentios , pela boa ordem , que a isso deu Mem
jj de Sá , cora os quaes se faz muito fructo pela sugeição
»i e obediência, que tem ao governador, e em mentes
du-
I
D AS SciENClAS DE Lr SBOAi 2^3
j> Jurar o zclK) delle se hirião ganhando muitos ; mas
>» cessando em breve, se acabará tudo, ao menos entre
» tanto , que não tem ainda lançadas boas raizcs na fé ,
" e bons costumes. A cauza por que no tempo deste go-
j' vcrnador se faz isto, e não antes não por agora haver
j' m;iis gente na Bahia ; mas por que pode vencer Mcn
" de Sá a contradicçáo de todos os xpãos desta terra , que
" era querer que os indios se comessem ; por que nisso
" punhúo a segurança da terra, c quererem que os indios
>» se furtassem huns aos outros para ellcs terem escravos,
" e quererem tomar as terras aos indios contra razão ,
" e justiça , e liranizarem-nos por todas as vias , e não
>» querem que se ajuntem para serem doutrinados, por
'> os terem mais a seu propozito , e de seus serviços , e
" outros inconvenientes desta maneira , os quaes todos el-
» le vence , a qual eu não tenho por menor victoria , que
" as outras , que Nosso Senhor lhe deu , e defendeu a
í» carne humana aos indios tão longe , quanto seu poder
" se extcndia , a qual antes se comia ao redor da cidade
» c ás vezes dentro nella , prendendo aos culpados , e
" tcndo-os prezos , até que clles bem conhecessem seu
" erro , sem nunca mandar matar ninguém , e isto só bas-
» tou para subjugar a muitos , e obrigalos a viver segun-
" do a lei da natureza, como agora se obrigão a viver j
>' mas isto custou-lhe descontentar a muitos , e por isso
" ganhar inimigos , e certifico a V. Alteza que nesta ter-
" ra , mais que cm nenhuma outra não poderá hum go-
»> vernador , e hum bispo , c outras pessoas públicas con-
" tentar a Deos Nosso Senhor , e aos homens , e o mais
" certo signal de não contentar a Nosso Senhor he não
>» contentar a todos , por estar o mal mui introduzido na
" terra por costume. Depois succedeu a gerra dos ilheos ,
j' a qual começou por matarem hum indio no caminho de
" Porto seguro, e creio, que foi por desastre, ou por
» melhor dizer, querer Nosso Senhor castigar aquellés
" ilheos, e fcrillos para os curar e sarar j e foi assim ^
Tomo IX. Gg >» que
254 Memorias da Academia Real
» que estando os engenhos todos quatro queimados , c
»» roubados, e a gente recolhida na villa em muito apcr-
» to, foi lá o governador a soccorrer com lho contradizc-
» rem os mais, ou todos da Bahia, por temerem que hin-
„ do elle se poderião levantar os da Bahia ; mas com elle
>» levar muitos indios da Bahia comsigo cessava todo este
)> inconveniente ; e o que he muito para louvar a Nosso
j, Senhor , he que sendo i<t:> no tempo do inverno em
» monções contrarias para hir aos iiheos , na ora que foi
)) embarcado lhe concertou o tempo , e lhe veio o vento
)i prospero, tanto, quiinto lhe era necessário, e não mais,
n nem menos; e lá dco-se tão boa mão , que em menos de
it dois niezes , que lá esteve, deixou os indios sugeitos e
„ tributários , e restituirão o mal todo que tinhão feito ,
>} assim aquellc presente , como todo o passado , e obrigaf-
j» dos a refazerem os engenhos, e não comerem carne hu-
tt mana , c receberem a doutrina , quando houvessem Padre?;
»> para lha dar. De maneira , que já agora a geração dos
j» Tupinanquins , que he muito grande poderá entrar ram-
j» bem no reino do Ceo. Neste tempo, que o govcrna-
j> dor era hido ao soccorro dos iiheos , succedeo que huns
» pescadores da Bahia se desmandarão, e forão pescar na
>» terra dos indios do Paraguassú , os quaes sempre forão
» inimigos dos xpãos , posto que a este tempo alguns ti-
j» nhão feito pazes com o governador ; e lá forão toma-
»» das , e mortas quatro pessoas. Depois tornando o gover-
>» nador lhes mandou pedir os matadores , e por não lhos
>» quererem dar lhes apregoou guerra , e foi a elles com
>» toda a gente da Bahia, que era para pelejar, e com mui-
j» tos indios, entrou pelo Paraguassú, matando muitos, quei-
M mando muitas aldéas , entrando muitas cercas, destruin-
j» do-lhes seus mantimentos , couza nunca imaginada que
>» podia ser , porque geralmente quando se nisso fallava ,
»» dizião , que nem todo o poder de Portugal bastaria por
»» ser terra mui fragosa , e cheia de muita gente , e foi a
3> vexação que lhes derão, que elles ganharão entendimen-
'» to.
TAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 23^
» to, para pedir pazes , c derão-lhas com cllcs darem dous
»' matadores que tinháo, c com restituírem aos xpaus quan-
>' tos escravos lhes tinhão comido, e com ficarem tribuca-
>» rios e Miçcitos , e obrigados a receberem a palavra de
» Nosso Senhor , quando Jha pregassem. Esta gente está
»> agora mui disposta para neiles se fruciificar muito. Dis-
» to poderá V. Alteza entender quantos operários da nus-
»> sa Companhia ha mister tão grande messe como esta ,
» que cada dia se hirá fazendo maior, tanto, quanto a su-
» gciçâo dos gentios se continuar. Depois stndo o go-
»» vcrnador de muitos requerido , que fosse vingar a mor-
» te do Bispo , e dos que cc m elle hião , por ser hum
» grande opróbrio dos xpáos , ser causa dos índios ganha-
» rem muita soberba, porque morrerão alli muita gente,
>» e muito principal, elle se fazia prestes aparelhando mui-
>' tos Índios da Bahia ^ mas isto estorvou a vinda da arma-
j» da que veio, com a vinda da qual se determinou de hir
» livrar o Rio de Janeiro do poder dos francezes todos
»> luteranos. E partio vizitando algumas capitanias da cos-
>» ta , até chegar ao Espirito Santo , capitania de Vasco
» Fernandes Coutinho , onde achou huma pouca de gen-
j' te , em grande perigo de serem comidos dos índios , e
>' tomados dos francezes , os quaes todos pedirão , que ,
>' ou tomasse a terra por ElRey , ou os levasse dalli , por
í' não poder jamais sustentar-se , e o mesmo requeria Vas-
5> co Fernandes Coutinho por suas cartas ao governador:
» depois de tomado sobre isto conselho , a acceitou , dan-
>' do esperanças, que da tomada a fortaleceria, e favore-
»> ceria no que podesse , por não ter tempo para mais , e
9' por não se estorvar do negocio a que vinhão do Rio
j> de Janeiro. Esta capitania se tem por a melhor couia
í> do Brazil depois do Rio de Janeiro : nella temos huma
%» caza onde se faz fructo com xpãos , e com escravos , e
íí com huriia geração de indios, que allí está, que se cha-
» mão do Gato, que ahi mandou vir Vasco Fernandes Co u-
»» tinho do Rio de Janeiro , entendendo-se também com
Gg ii í> ai-
ijô Memorias da Academia Real
f» alguns Tupinaiiquins , e se Nosso Senhor der tão boa
í» mão ao governador á tornada, como lhe deo cm todas
" as outras partes, que os ponha a todos em sugeiçao, e
>' obediência, poder-se-ha fazer muito fructo, porque este
j» he o melhor meio que pode haver para a sua convcr-
>> são. Dalli nos partimos ao Rio de Janeiro, e asscnrcu-
» se no conselho , que darião de supito no Rio , de noite
>> para tomarem os íiancezes dasaperccbidos, e mandou o
»» governador a hum que sabia bem aquelle rio , que tosse
» adiante, guiando a armada, e que ancorasse perto de
j» onde pudessem os bateis deitar gente em terra , a qual
>» havia de hir por certo lugar ; mas isto acconteceu de
>» outra maneira , do que se ordenara , porque este guia ,
j» ou por não saber , ou por não querer fez ancorar a ar-
)) mada tão longe do porto , que não poderão os bateis
j> chegar se não de dia , com andarem muita parte da noi-
»> te, e foi loffo vista e sentida a armada. No mesmo dia
>j que chegámos , se tomou huma nao , que estava no
jj Rio, para carregar do Brazil : a gente delia fugio para
» terra , e recolheo-se na fortaleza. Tomou-se conselho
s> no que se faria , e vendo todos a fortaleza do sitio em
j> que estavão os francezes , o que tinhão comsigo os in-
3» dios da terra , temerão de a combaterem , e mandarão
j> pedir ajuda de gente a S. Vicente ; mas os de S. Vicen-
»i te sabendo primeiro da vinda do governador ao rio ,
» já vinhão por caminho , e como chegarão , determinou-
»j se o governador de os combater ; mas toda a sua gen-
sj te lho contradizia, porque tinhão já bem expiado tudo,
i> e parecia-lhes couza impossível entrar-se couza tão íoi-
« te , e sobre isso lhe fizerão muitos desacatamentos , e
j» desobediências ; mas eu sobre isto tudo a maior dificul-
>» dade , que lhe achava , era ver aos capitães da armada
JJ tão pouco unidos com o governador , e ver tão pouca
JJ obediência em muitos, toda aquella viagem em que me
» achei prezente , e isto nasceo de se dizer publicamente ,
» e saberem que o governador estava mal acreditado no
>» rei-
bAS SciBNCrAS DE LiSBOA. i-lT
reino com V. Alteza, e que se liavião lá dado capítu-
los dellc por pessoas, que com paixão informarão lá mal
a V. Alteza , e parece que com pouca razão ; porque
as mais das couzas me passavão pela mão, como tercei-
ro que era nellas para as remediar ; e por isso quem quer
se lhe atrevia, e por dizerem que tinha lá inimigos no
reino, e poucos que favorecessem suas cauzas , o que
lhe tirou muito a liberdade de governar bem; mas ago-
ra veja V. Alteza as grandezas de Nosso Senhor. A pri-
meira me parece foi dar Nosso Senhor graça ao gover-
nador , para saber sofrer tudo , c dar-lhc prudência para
em tal tempo saber trazer as vontades de todos tão con-
trarias ás suas , a condescenderem com aquillo , que elle
entendia , e Nosso Senhor lhe inspirava , e foi assim ,
que a huns por vergonha, e a outros por vontade lhes
parecco bem de commetterem a fortaleza. A segunda
maravilha de Nosso Senhor , foi que , depois de comba-
tida dois dias , e não se podendo entrar , c não tendo
já os nossos pólvora mais que as que tinhão nas cama-
rás para atirar , e tratando-se já , como se poderiâo re-
colher aos navios sem os matarem todos , e como pode-
riâo recolher a artilharia , que havia posto em terra ,
sabendo que na fortaleza estavãp çiais de 6o francezes
de peleja, e mais de 800 indios, e que erão já mortos
dos nossos dez ou doze homens eom bombardas , e es-
pingardas , mostrou então Nosso Senhor sua mizericor-
dia , e deo tão grande medo aos francezes e aos in-
dios, que com elles estavão , que se acolherão da for-
taleza , e fugirão todos , deixando o que tinhão sem o
puderem levar. Estes francezes seguião as hcrezias de
Alemanha , principalmente 3 de Calvino , que está em
Genebra, segundo soube delles mesmos, e pelos livros
que lhe acharão muitos , e vinhâo a estít terra semear
estas hcrezias pelo gentio , e segundo soube tinhão man-
dado muitos meninos do gentio a aprendelas do mesmo
Calvino, e em outras partes, para depois serem mestres,
438 Memorias da Academia Real
j, e destes levou alguns o Villagalhão , que era o que fi-
j, zeia aquella fortaleza , e se intitulava Rcy do Brazil.
„ Deste se conta, que dizia, que quando llll^cy de Fian-
j, ça o nâo queira favorecer para poder ganhar esta terra ,
j, que se havia de hir confederar com o Turco , promet-
„ tendo-Ihe de lhe dar por esta parte a conquista da In-
„ dia , e as náos dos portuguezes , que de lá viessem , pa-
5, ra que poderia aqui fazer o Turco suas armadas com
,, muita madeira da terra ; mas o Senhor olhou do alto
„ tanta maldade , c houve mizerieordia da terra , e de tan»
j, ta perdição d'almas, ementita est iniquitas sibi , e dcsfez-
„ lhe o ninho , c deu sua fortaleza em mão dos portu-
guezes, a qual se destruio , c o que delia se podia dcr-
, rubar , por não ter o governador gente para logo po-
voar e fortificar como convinha. Esta gente ficou com
„ os Índios , e esperão gente e soccorro de França , maior-
„ mente que dizem que por ElRey de França os mandar,
estavão alli , para descobrir os metaes que houvessem.
Assim ha muitos francezes espalhados por diversas par-
, tes, para melhor buscarem. Parece muito necessário po-
,, voar-se o Rio de Janeiro , e fazer-se nelle outra cidade ,
,, como a da Bahia 5 porque com ella ficará tudo guarda-
,, do ; assim esta capitania de S. Vicente , como a do Es-
„ pirito Santo, que agora estão bem frescas, e os fran-
3, cezes lançados de todo fora , e os indios se poderem
„ melhor sugeitar, e para isso mandar mais moradores que
„ soldados , porque de outra maneira podesse temer com
,, razão : neredeat immttndtis spús ctim aliis septem neqitiori-
„ bus se et sint novissima peiora priorihtts ; porque a forta-
,, leza , que se desmanchou , como era de pedras e ro-
, chás , que cavarão a picão , facilmente se pode tornar a
j, reedificar , e fortalecer muito melhor. Depois de tomada
„ a fortaleza , deo o governador em huma aldêa de in-
j, dios , e matou muitos , e não poude fazer mais , porque
„ tinha necessidade de concertar os navios , que das bom-
5, bardas ficarão mal aviados, e fazelos prestes para se tor-
?>
na-
UAS SciENCIAS DE LiSBOA. 237
„ ivarcm j o que veio fazer a esta capitania de S. Vicen-
„ te , ontle cu fico , por assim o ordenar a obediência : o
„ c^ue houver mais para escrever, o Provincial, que ago-
„ ra hc ^ o Padre Luiz de Granho, o fará da Bahia. Nos-
jy so Senhor Jesu Christo de a V. Alteza sempre a sua
„ graça. Amert. De S. Vicente o i.° de Junho de lyóo/
j, z: Manoel de Nóbrega. >>
Nota III.
O Sereníssimo Infante D, Henrique foi o primeitó ,•
que pelos vastos conhecimentos do seu espirito , venceo a
difficuldade da navegação do Cabo Bojador, qUe descobrio*
com a costa de Gume. O Papa r^icoláo V por Bulia dada
no anno de t45'4 , concedeo a Portugal a conquista, e
descobrimento de todos os mares, terras.j ítrinas j e' sUas
ilhas do oriente e meio dia. Calisto III no anno de 14^6
não só confirmou aquella Bulia ; mas concedeo ao mesmo
Infante , que era Grão mestre da ordem de Christo , a
provimento dos benefícios ecciesiasticos nas terras desco-
bertas. Xisto IV em 1481 confirmou todas aquellas gra-
ças, exceptuando as ilhas Canárias a favor d'ElR.ey d'Hes-
panha , concedendo toda a mais navegação, conquista, e
descobrimento ao Senhor Rei D. Afionso V, e seus suc-
cessores. Estando as cousas neste estado , appareceo o fa-
moso descobrimento das Antilhas por Christovão Colom-
ba , reinando em Portugal o Senhor D.João II. Com aquel-
le descobrimento oíferecêrão-se duvidas sobre a divisão dos
limites , as quaes se ajustarão entre Portugal e Hespánha
no tratado de Tordesilhas, que foi celebre ainda mais pe-
la Bulia da Alexandre VI datada em 1493, que terminou
os dominios dos dois príncipes, mandando formar huma li-
nha imaginaria , lançada mathematicamcnte do norte a sul.
Pelos poios, dividio o orbe em duas partes iguacs, dando
a de este á monarchia portugueza , e a de oeste á de
Hcspanha. Aquelle parallelo , que devia ter ponto certo,
140 Memorias da Academia Real
e principio determinado , se dispoa na mesma Bulia , que
fosse huma das ilhas dos Açores , e Cabo verde , e que
lançando-se a linha cem Icgoas a éstc do mesmo ponto ,
tudo o que ficasse para o occidcnte pertenceria a Gastclla,
e a Portugal o que ficasse para o oriente. No mesmo an-
no de 1493 se oppoz o Senhor D,Jo3o II ao cun^primento
da Bulia, quanto ao curso que devia fazer a linha, e no-
mcárão-se embaixadores por ambas as potencias, os quaes
SC ajuntarão na villa de Tordesilhas com poderes de ajus-
tar o negocio , e convieráo de commum consentimento ,
que a hnha da demarcação fosse lançada de polo a polo
370 legoas ao poente das ilhas de Cabo verde, ficando o
descobrimento , e conquista da parte oriental pertencente
a Portugal , e toda a conquista da parte occidental ao
reino d' Hespanha , e que dentro em dous mezes se man-
darião duas , ou quatro embarcações por huma e outra coroa
com pilotos e pessoas intelligentes , que podessem fazer a
demarcação, e se ajuntarião na ilha Grão Canária , aonde aU
ternativamente se embarcassem castelhanos, e portuguezes
nas embarcações de ambos os reinos , os quaes hirião con-
junctamente demandar as ilhas de Cabo verde , seguindo
dahi para o oecidente a fixar o marco , onde fizessem ter-
mo as 370 legoas, que serviriao de baliza naquella parte,
aonde cortasse a linha de demarcação de norte sul , com
outras mais clausulas pertencentes á firmeza do contracto.
Tudo isto foi ratificado , e firmado por ambos os Sobera-
nos no anno de 1494. Por 30 annos esteve em silencio
€Ste negocio , atéque as contendas das Molucas o fizerao
lembrado; e então se acordou elegerem doze juizes, seis
castelhanos, e seis portuguezes, os quaes se ajuntarião em
Badajoz para concordarem a questão das Molucas , de que
cada hum dos príncipes pertcndia o domínio. Formou- se
a junta cm Badjjoz , fizerão-se conferencias, e despedírao-
se os juizes sem conclusão alguma.
Passados cinco annos , se ajustou o Imperador Car-
los V com o Senhor Rei D. João 111 ? por escritura feita
em
DAS SciENCIAS DE LlSBOA. I49
Santo Emigílio , e participarão o successo ao governador
de Buenosiiyrcs, e ao Vicerei de Lima, que mandou or-
dem a D. Bruno Maurício Escavalla , que marchasse com
a genre de Buenosayres , Santa fé, Córdova, e de las
Sictc correntes, a destruir os de Parnguay. Aqucllas for-
ças SC ajuntarão no rioTibicori, atacarão aos de Paraguay
sem proveito, e capituLirSo, dizendo os paraguayanos , que
estaváo cm terras d' ElRei de Portugal , c náo conscnti-
riáo , que se tirassem os seus marcos alli mettidos ha tan-
tos annos. Tal era a veneração, que aquelles Índios tinhão
aos portuguezcs , pelo trato amigável , e carinhoso , que
recebêi.ío de Martim AfFonso.
Charlevois no tomo I, anno 1^16 ^ foi. 43 refere,
que aquelle Marrim AíFonso explorara huma e outra mar-
gem do rio, aindaque falsamente refere, que Sebastião Ca-
boto nas visinhanças do rio trinta legoas acima de Buenos-
ayres, vira chegar ao seu campo hum capitão portuguez,
por nome Diogo Garcia , que ao reconhecer o paiz se en-
caminhara por ordem do capitão gerai do Brazil, e toma-
ra posse em nome de EIRei de Portugal , e que Gaboto
não tendo forças para impedir, que os portuguezes se as-
senhoreassem daquellas partes , se resolvera corromper ao
dito Garcia, hospedando no forte do Espírito Santo. Aquel-
la asserção do escriptor francez se convence de falsa ; pois
^ como era possível encontrar Martim Affonso , ou seus of-
íiciaes , a Giboto nas visinhanças do rio da Prata no anno
<íe 1526, se nesse tempo Martim Affonso estava em Lis-
boa ?
No anno de ifoo descobrlo o Brazil Pedro Alves Ca-
bral no reinado do Senhor Rei D. Manoel. No anno de
1501 continuou o descobrimento Américo Vespucio , man-
dado pelo mesmo Rei investigar, e demarcar exactaments
as províncias do novo mundo , e este entrou até ao rio
da Prata , con^^^ consta das suas relações e cartas, que es-
creveo a Mcsser Petro Sodrino , contando os successos da
sua primeira viagem, e as povoações portuguezas se pro-
Tomo IX. li lon-
7^o Memorias da Academia Rsal
longáfãò , desde logo por toda aquella costa , até á lagôa
dos Patos cm altura de 32°. Affirma isto mesmo Horácio
Tiircelino no Epitome das historias do mundo ^ \\v. lo , foi.
379, o Padre João Marianna , liv. aí, foi. 149, n, ifoo,
e o Padre Simão de Vasconcellos no liv. i. n. 18, foi. ij,
Sjlorzano , liv. i. cap. 4, n. 12, o Padre MafFcii , liv. 2.
da Historia Indica ^ Cláudio Bartholomcu na sua historia Or-
l/is maritimtts , e muitos outros. '.> '/vi '
No anno de ifif João Dias de Solis , indo no des-
cobrimento do caminho das Molucas , chegou a S. Gabriel ,
onde dizem desembarcara , fazendo todos es actos posses-
sórios para Castella , quando já Américo Vespucio o tinha
antecedentemente feito quinze annos antes ; e por isso a co-
roa de Castella mandando Sebastião Gaboto , piloto mór no
anno de 15" 15" ao rio da Prata, lhe deo por ordem fizesse
a viagem pelos limites da demarcação de Hcspanha , e não
nos que pertencessem a Portugal , e aquelle piloto , reco-
nhecendo as terras de Portugal, levantou fortaleza na mar-
gem Occidental do rio da Prata. Seguio-se áquelle no an-
no de I5'26 o Conde D. Fernando de Andrada , e reccbeo
daquclla coroa as mesmas instrucçoes dadas a Gaboto. Co^
nhecia-se , que o melhor fundo do rio da Prata , era junto
á sua margem occidental ; e comtudo D. Pedro de Men-
doça edificou a cidade de Buenosayrcs na opposta mar?
gem Occidental , por pertencer a margem occidental , e
ilha de 8. Gabriel á demarcação de Portugal.
No archivo real da corte se achão aquelles actos de
posse , e jurisdição exercidos pelos soberanos de Portugal
com reconhecimento de Hespanha relativamente aquelles
dominios ; poisque he innegavel , como se vio ter entrado
em ijBi no rio da Prata Martim Affonso; e tanto reconhe-
cião os Reis catholicos , que na união das duas coroas con-
firmarão as mercês das doações , que naquellas tinhão os
successores dos donatários , pelos secretários e ministros por-
tuguezes , e mostra a que fez Filippe IV ao mestre de
campo Luiz Barbatho Bezerra na enseada de Fucuay, e
DO
DAS Sciencia"s de Lisboa. ij"!
no governo do sercnissimo principe o Senhor D. Pedro as
doações do Visconde de Asseca , e a seu irmão D. João
Corrêa de Sá no continente de S. Gabriel.
Nota IV.
Doação da capitania dos Ilheos.
Dom João por graça de Dcos , Rei de Portugal , e dos
Algarves d'aquem , e d'alem mar, em Africa senhor de
Guiné, e da conquista, navegação^ commcrcio da iithio-
pia ^ Arábia j Pérsia da índia, &c. Faço saber a quantos
esta minha Carta virem , que , considerando eu pelo servi-
ço de Deos , e meu, proveito bem de meus reinos e se^
nhorios , e dos naturacs , e súbditos dclles , o ser minha
costa c terras do Brazil mais povoada doque até agora
foi; assim para nellas se haver de celebrar o culto, e of-
ficios divinos^ e se exaltar a nossa santa. fé catholica , con-'
tratasse provocar a ella os naturaes das ditas terras , in-
fiéis, e idolatras, como pelo muito proveito, que se se-
guião a meus reinos c senhorios , e aos naturaes e súb-
ditos delles, de se povoar as ditas terras, houve por bem
de mandar repartir e ordenar em capitanias de certas , e
em certas legoas , para delias prover aquellas pessoas , que
bem me parecer ; pelo qual guardando eu os muitos servi-
ços i que lorge de Figueiredo Corrêa , fidalgo da minha
casa, e escrivão da minha fazenda, a mim tem feito, e
pelo que espero, que ao diante me fará: por todos esses
respeitos , e por alguns outros , que a isto me movem ,
por folgar de lhe fazer mercê , de meu próprio motuo ,
certa sciencia, poder real, e absoluto, sem cllc mo pedir,
nem outrem por elle. Hei por bem , e me praz de lhe fa-
zer, como de effeito por esta presente Carta faço mer-
cê , sem mover doiçao em serviços valedorcs , deste dia
para todo o sempre, de juro, e herdade para elle, c pa-
ra todos os seus filhos, netos, herdeiros, e successores j
li ii que
^$2. MemokiaS da Academia R-eal
que depois dellc vierem , assim descendentes , como trans-
versaes, e collateracs, segundo ao diante he declarado, de
cincocnta legoas de terra na dita costa do Brazil, que co-
meçaráõ na ponta da Baiiia do todos os Santos da banda
do sul, quanto couber nas ditas cincoenta legoas, as quaes
se entenderão , e serão de largo ao longo da costa entre
si da mesma largura peio certao , terra firme dentro , quan-
to poderem entrar, e for da minha conquista: com todas
as ilhas que houver até dez legoas ao mar na fronteira,
e demarcação das ditas cincoenta legoas, da qual terra e
sobredita demarcação lhe faço doação, e mercê de juro e
herdade para todo o sempre como dito he , e quero e me
praz, que o dito Jorge de Figueiredo Corrêa, e todos os
áeus herdeiros , que ao diante tiver , herdarem , e succe-
derem , se possão chamar , e se chamem capitães , e go-
vernadores delias ; e outrosim lhe faço doação e mercê
de juro , e herdade para todo o sempre para elle , seus
'descendentes, e successores no modo sobredito da jurisdic-
ção civil e crime da dita terra, da qual clle dito Jorge de
Figueiredo Corrêa , e seus herdeiros , usaráõ na maneira , e
forma seguinte. Poderá por si , e seu ouvidor estar á elei-
ção dos juizes e officiaes , apurar, e alimpar as pautas, e
passar carta de confirmação aos ditos juizes , e olficiaes ,
os quaes se chamarão pelo dito capitão e governador , e
elle para o ouvidor, que poderá conhecer das acções no-
vas a dez legoas, onde estiver, e de appellação, e aggra-
vos conhecerá de toda a capitania , e governança , e os di-
tos juizes darão appellação para o dito seu ouvidor nas
quantias que mandão minhas ordenações , e do que seu ou-
vidor julgar assim por acção nova, como por appellação,
e aggravo, e sendo em cousas eiveis não haverá appella-
ção até á quantia de cem mil reis, e dahi para cima dará
appellação á parte que quizer appellar. Em casos crimes
hei por bem , que o dito capitão e governador e seu ouvi-
dor tenha jurisdição, e alçada de morte natural inclusive,
em escravos , e gentios , e o mesmo em peões christâos ,
ho-
PAS SciKNCIAS DE LiSBOA. IfJ
homem livre em todos os casos, assim para absolver, co-
mo condemnar sem haver appcUação , e aggravo , e nas
pessoas de maior qualidade terá alçada de dez annos de de-
gredo, até cem cruzados de pena, sem appellação nem
aggravo ; porém nos quatro casos seguintes , convém a sa-
ber , heresia , quando o herético lhe íor entregue pelo ec-
clcsiastico, traição, sodomia, e moeda falsa, terão alçada
em toda a pessoa de qualquer qualidade que seja , para
condemnar aos culpados á morte , c dar suas sentenças á
execução sem appellação nem aggravo ; porém nos ditos
quatro casos para absolver de morte , postoque outra pena
lhe queirão dar menos de morte, darão appellação e aggra-
vo por parte da justiça ; e outrosim me praz, que o dito
seu ouvidor possa conhecer das appellações , e aggravos ,
que a elle houverem de hir ou lugar da dita capitania em
que estiver posto , precisamente apartado deste lugar , on-
de assim estiver; comtantoque seja na própria capitania,
e o dito capitão e governador poderá pôr meirinho danre
seu ouvidor e escrivães, e outros quaesquer officiaes neces-
sários , e costumados nestes Reinos ; assim na correição
da ouvidoria , como em todas as villas e lugares da dita
capitania , e governança , e será o dito capitão governa-
dor , e seus successores obrigados , quando a dita terra for
povoada , em tanto augmento , que seja necessário outro
ouvidor de o pôr , onde por mim , e meus successores for
ordenado « outrosim me praz , que o dito capitão o go-
vernador , e todos os seus successores possão por si fazer
villas a quaesquer povoações , que nas tiitas terras se fize-
rem , e a elles lhes parecer, que o devem ser, as quaes
lhe chamarão villas , e terão termo , e jurisdição , segundo
for costume de meus Reinos , liberdades , e insignias de
villas. E isto porém se entenderá, que poderáõ fazer todas
as villas , que quizerem das povoações , que estiverem ao
longo da costa da dita terra dos rios, que se navegarem;
porque dentro da terra firme pelo certão as não poderáõ fa-
zer , menos espaço de seis legoas de terra , c termo , c
ca-
2j"4 Memorias da Academia Real
cada huma das ditas villas , e ao tempo que assim fizerem
as ditas villas, ou cada huma delias, limitarão, e assigna-
ráõ logo termo para cilas , c depois não poderão da terra ,
que assim tiverem dado por termo, fazerem outra villa sem
minha licença. E outrosim lhe faço doação, e mercê de
juro, e herdade para sempre das alcaidarias mores de to-
das as villas , e povoações da dita terra , com todas a'i
rendas, direitos, foros, tributos j que a elles pertencerem ^
segundo são escriptas c declaradas no foral , os quaes o
dito capitão e governador, seus successores haveriío , e ar-
recadarão para si , e no modo , e maneira no dito foral
conteúdo , c segundo a forma delle , e ás pessoas , que as
ditas alcaidarias mores forem entregues da mão do dito ca-
pitão e governador, lhes tomará homenagem delias, segun-
do a forma das minhas ordenações. Outrosim me praz , por
fazer mercê ao dito Jorge de Figueiredo Corrêa , e a to-
dos os seus successores, a que esta capitania, e governan-
ça de juro e herdade para sempre , que elles tenhão , e
hajão moendas ^de agua , e marinhas de sal , e quaesquer
outros engenhos de qualquer qualidade que sejâo, que na
dita capitania e governança se poderem fazer , e hei por
bem, que pessoa alguma possa fazer as ditas moendas, ma-
rinhas , nem engenhos senão o dito capitão e governador
aquellas a que para isso elle der licença , de que lhe paga-
rão aquelle foro , ou tributo , que com elle se concertar.
Outrosim lhe faço doação , e mercê de juro je herdade
para sempre de dez legoas de terra ao longo da costa da
dita capitania e governança , e entraráõ pelo certão , tan-
to , quanto poderem entrar , e for da minha conquista ,
aquella terra será sua, livre, izenta , e sem dcUa pagar fo-
ro, tributo, nem direito algum, somente o dizimo á Or-
dem do Mestrado de Nosso Senhor Jesu Christo , e dentro
de vinte dias, que o dito governador tomar posse da dita
terra, poderá escolher e tomar as ditas dez legoas de ter-
ra, em qualquer parte , que: mui quizcr , não tomando po-
rém juntas senão repartidas em quatro, ou cinco partes,
sen-
dAs Scienoias de Lisroa. iS$-
sendo de liuma a outra menos de duas legoas , -9S quacs
tcrrns o dito capitão c governador, e seus successorws po-
derão arrendar, e aforar em fatucsim , ou cm pessoas, ovi
c<»mo quiserem, e lhes bem vier, e pelos foros e tribu-
tos , que qiiizerem ; c as dit;is terras não serão aforadas ,
ou a renda delias , qiinndo forem , viráõ sempre a quem
succcder a dita capitania, c governança, pelo rnado nesta
doação conteúdo, e das novidades, que as ditas terras de-
rem, não será o dito capitão governador, nem as pessoas,
que de sua mao estiverem obrigulos a me pagar tôm , nem
direito algum. Só o dizimo a Deos, que gcralmeptç sví.h^
de pagcir cm todas as outras terras da dita eapitjnia , co,-
mo abaixo irá declarado. Item , o dito capitão e governa-
dor , c nem os que depois dclle vierem podcráõ tomar
terra alguma de sesmaria na dita capitania para si , nenj
para sua mulher, nem para o filho herdeiro delia, e antes
darão , e podcráõ dar , e repartir todas as ditas terras dç
sesmarias, e quacsquer pessoas de qualquer qualidade, e
condição que sejao , e lhes bem parecer livremente seiu
foro nem direito algum, e somente o dizimo a Deos, que
serão obrigados a passar á Ordem de Chrjsto de tudo que
nas ditas terras houver , segundo he declarado no foral , c
pela mesma maneira poderão dar e repartir por seus filhos
íóra do morgado , e assim por seus parentes ; porém aos
ditos filhos , e parentes não poderão dar mais terra da que
derão , ou tiverem dado , a qual por outra pessoa estranha ,
e todas as ditas terras , que assim derem de sesmaria asr
sim a humas , como aos outros será conforme ás ordena.-
çóes das sesmarias com as obrigações delias , pelas quaes
estará o dito capitão e governador, e os seus succes^ores,
€ não poderio em tempo algum t )maf para si , nem par^
sua mulher, nem .filho, como dito he , nem polias em ou-
trem para elles possuírem por modo aJgum que seja : so-
mente as podcráõ haver por titulo de compra verdadeira
das pessoas , que lhes quizcrcm vender passados oito pn-
nos depois das terras serem aproveitadas de outra maneira.
Ou-
15^6 Memorias t)A Academia R EAL
Outrosim lhe faço doação , e mercê de juro e herdade
para sempre de metade da dizima do pescado da dita ca-
pitania , que a mim pertencer ; porque a outra metade se
ha de arrecadar para mim segundo he no foral declarado j
a qual metade da dita dizima se entenderá do pescado, que
se matar cm toda a capitania fora das dez legoas do dito
capitão e governador ; porquanto as ditas dez legoas são
livres, e izentas, segundo atraz hc declarado. R outrosim
lhe faço doação, e mercê de juro e herdade para sempre
da redizima de todas as rendas, e direitos, que á dita Or-
dem , e a mim de direito na dita capitania pertencer ; con-
A^em a saber, que todo o rendimento, que á dita Ordem,
e a mim couber , assim dos dízimos , como de quaesquer
outras rendas, ou direitos de qualquer qualidade que s?ja ,
haja o dito capitão , e governador , e seus successores ,
huma dizima , que he de dez partes huma. Outrosim me
praz , por respeito do cuidado , que o dito capitão e gover-
nador , e seus successores hão de ter e guardar, e conser-
var o Brazil , que na dita terra houver, de lhe fazer doa-
ção , e mercê de juro e herdade para sempre da vintena
parte , do que liquidamente render para mim , forro de to-
dos os custos , o Brazil , que se trouxer da dita capitania
a estes Reinos , e a conta do tal rendimento se fará na
casa da Mina da cidade de Lisboa , onde o dito Brazil for
vendido, e arrecadado o dinheiro delle , lhe será logo pa-
go , e entregue em dinheiro de contado pelos feitores , e
bfficiaes delia áquelle , que por boa conta na dita vintena
montar , e isto porque todo o Brazil , que na dita terra
houver, hade ser sempre meu , e de meus successores sem
o dito capitão e governador , nem outra alguma pessoa po-
der desfructar nelle, nem vende-lo para fora, somente po-
derá o dito capitão, e assim os moradores da dita capita-
nia , aproveitar-sc do dito Brazil na terra , no que lhe for
necessário , segundo he declarado no foral , e tratado nel-
ie, e vendendo-o para fora incorrerá nas penas conteudas
flQ mesmo foral. Outrosim me praz; fazer mercê, e doação
ao
I
I
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 24I
em Saragoça no anno de 1^2^ em lhe vender por preço
de 35'o mil ducados de ouro, pagos em moeda corrente,
a acção do domínio , propriedade , posse , ou quasi pos-
sessão , e todo o direito de navegar , contractar , e com-
merciar por qualquer modo que fosse ; declarando outro-
sim , que as capitulações feitas entre os Senhores Reis Ca-
tholicos D.Fernando, e Dona Isabel, e o Senhor D. João
de Portugal , sobre a demarcação do mar Oceano , ficarião
firmes, e valiosas em tudo, e por tudo, como nclles era
conteúdo , exceptuando as cousas que neste contracto fos-
sem concordadas , e assentadas. Com isto cessou a ques-
tão da demarcação por aquella parte , atéque por fataes
desgraças se unirão por muitos annos os dominios das duas
coroas , com a sugcição de Portugal a Hespanha no rei-
nado dos Filippes.
He pois certo , que se ajustarão as 3Ó0 legoas no
tratado de Tordesilhas ; e que a Bulia assignalou não só
as ilhas de Caboverde , mas copulativamente as dos Aço-
res. Era preciso achar pois esse ponto para principiar a
demarcação, e a direcção para proseguir. Se se applicas-
sem aquellas nas ilhas de Caboverde proseguindo pelo
seu parallelo , ficavao excluídas as ilhas então dos Açores.
Se se punha o ponto, começando no seu meridiano, e
continuando pelo seu parallelo, então ficavâo fora da de-
marcação as ilhas de Caboverde. Começar no meridiano
de ambas não era possível , pela diíFerença que hia entre
cilas de 4 a 5" gráos de longitude : proseguir por ambos
os seus parallelos também não podia ser, pela grande dif-
ferença de suas alturas } poisque se devia principiar pelo
meridiano dos Açores , como dispunha a Bulia , e proseguir-
se pelo parallelo de Caboverde , como declarava o con-
tracto, de que se fez menção, paraque a reciproca divi-
são dos meridianos dos Açores , como parallelo das ilhas
de Caboverde fosse o verdadeiro ponto da linha , de ou-
tra sorte não se podia verificar o principio e direcção para
concordar a Bulia com O contracto celebrado entre os dois
Temo IX. ah SO'
24^ Memorias da Academia Real
soberanos em Tordesilhas , que dispi!Z2r3o , que a raia , ou
linha, que se devia lançar do pólo artico ao antartico havia
distar 370 legoas das ilhas de Caboveruc para a parte
do poente, por gráos , ou por outra maneira, que mais
brevemente se podesse computar. Havia ainda outia duvi-
da em qual das ilhas se hivia começar a contar as legoas.
Os authores de grande nota assentarão , que se devia prin-
cipiar do meridiano , que passa pela margem occidental da
ilha de Santo Antão, por ser a que fica mais ao occidente
de todas as de Caboverde, que estia em 18° de altura,
cm cujo parallelo estendidas as 370 legoas para o occiden-
te , fazião 22° gráos 20' de longitude, e tantos se havia
de contar entre o meridiano , que passa pela margem Occi-
dental da ilha de Santo Antão , e o meridiano da demar-
cação , que deve dividir o que pertence a cada huma das
coroas.
Não se ajuntarão as embarcações hespanholas e portu-
guesas para o exame do parallelo e determinação do ponto,
em que se contarião as 370 legoas, nem era então prati-
cável aquclla operação , por não estar ao tempo do con-
tracto de Tordesilhas descoberto promontório algum, ou
terra d'Ameri ca meridional, até a controvérsia das Molu-
câs , que deo occasião ás duvidas recontadas , e opiniões
sobre os pontos , em que cortaria o meridiano da demarca-
ção de huma , e de outra costa distante do porto de San-
to Antão 370 legoas, numeradas no parallelo 18°, altura
scptentrional da mesrtia ilha, que na equinocial fazião
22° 20'. Variárâo-se aquelles pontos n'America com poli-
tica , c industria , a fim de que ficassem as Molucas perten-
centes á Hespanha. António Ferreira na historia geral das^
Índias, dec. i." livro 2. cap. 10, exprime-se assim sobre
as convenções dos soberanos de Hespanha , e Portugal.
<c En siete de Junio dei afio de 1493 acordaron, que
>» la linca de la demarcacion se echasse 270 legoas, mas
3» adelante hazía el ponicnte de la linea , contenida en Ia
n Bulia dei Papa dés de Ias islãs de Caboverde hazia
» el
J
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 243
» cl ponicnte , y que dcs de este meridiano todo lo rcs-
» tante ai ponicnte fucssc de los rcys de Castilla yLcon,
jj y dés de alli ai oriente , fuesse de la navigation , con-
»» quista , y descobrimiento de los reys de Portugal. j>
Contradizcndo-se miseravelmente aquellc author assim
nos pontos geográficos , como nos que assignalou o referido
meridiano nas terras do Brazil, como se. lê na sua Dcc. 3.
liv. 6. , cap. 7.
j> Pues este meridiano viene a cortar la costa dei
>' nucrte dei Brazil por la boca dei rio Maraíion , dci-
»» xando toda la boca ai occidcnte, y la costa dei Brazil,
>» que mira ai oriente , la costa por el rio de San Antoti
» y Organos ; y este meridiano corta por la parte dei orien-
»» te en la índia por la ciudad de Malaca , deixando to~
j» da la China, islã de los Malucos, y Philippinas en la
j' demarcacion de Castilla , scgun lo qual nó solamente el
" rio de la Plata ; pêro toda la costa , que hay de la ba-
» hia de S. Vicente ai rio de la Plata, cahê en la demar-
» cacion de Castilla ; porque queda de la linea de la de-
» marcacion ai occidente. »
Enganou-se aquelle escriptor, quando affirmou que os
terrenos do Brazil se estendião pela boca do Maranhão ao
norte , e Órgãos ao sul , e que aquelles dois terrenos ao
meridiano do Brazil cortava no oriente a cidade de Malaca.
Suppondo o meridiano dividido em duas partes iguaes
precisamente se teria o circulo máximo lançado sobre a
supcrficie do mesmo globo, e sobre o seu centro, que o
corta igualmente. Pertende aquelle author, que o meridiano
venha do ponto, onde se contao os 22" 20' em procura
do rio Maranhão , e montes Órgãos , e então não cinge
cUe o mundo pelos seus pólos , mas o desvia do seu cen-
tro ; pois não he possível, que seja parallelo o meridiano
de Santo Antão, vindo a acabar nos Órgãos em menor dis-
tancia do dito parallelo; porque se o tal meridiano cahis-
se pela boca do rio Maranhão , necessariamente havia de
cortar muito adiante da bahia de S. Vicente j porque en-
Hh ii trc
244 Memorias da Academia Real
trc o cabo de Santo Agostinho , c o rio Maranhão vão
14° 40' de longitude , c entre o cabo de Santo Agosti-
nho , e a Bahia de S. Vicente não ha mais longitude
que de 10°; e por conseguinte a linha de demarcação não
pôde dirigir-se por aquelles dois lugares; porque, sendo o
meridiano huma linha de norte a sul , tanta distancia deve
haver do cabo de Santo Agostinho ao rio de Maranhão,
como daquelle á bahia de S. Vicente.
Continuou se a torcer o meridiano pela boca do rio
Maranhão , porque passa muitos gráos além do rio das
Amazonas. Não ha da ilha de Santo Antão ao cabo de
Santo Agostinho , senão 3 gráos de longitude ; e ainda
menos , c do cabo de Santo Agostinho ao rio Maranhão
14° 40', que juntas fazem 17° 40', e por esta demarcação
he manifesto se não completão os 22° 20' concedidos a
Portugal , por lhe faltar 4.° 40'. Convencido desta verdade ,
diz elle em outro lugar:
ít Despues á cá se ha hallado esta linea de demarca-
» cion , y la descrive un meridiano, que passa por 22
j> gráos , y un tercio , mas ai occidente de la islã de Saa
3> Anton. >>
João Botero Benesse assignala o verdadeiro meridiano
do Brazil os 22° 20' a distancia formada ao poente de San-
to Antão, e doutíssima e exactamente mostrarão Jorge Rey-
nal , Fernão Rodrigues de Castellobranco , Bartholomeii
Velho, e o celebre Pedro Nunes nas cartas de cálculos,
que fizerão das terras do Brazil , pelas quaes se vê , que
comcção aquellas ao norte do rio do Amazonas pela boca
do rio Fresco , e cabo dos Hunos ao sul 84 legoas além
do rio da Prata. Pedro de Magalhães de Gandavo na his-
toria da província de Santa Cruz , descreve assim o Brazil.
« Esta província de Santa Cruz está situada naquella
» grande America , huma das quatro partes do mundo , dis-
» ta o seu principio 2" da equinocial para o sul , e dahi
»» se vai estendendo para o mesmo 45''', que vem a ser até
>» á bahia de S. Mathias. >»
Ge-
1
\
DAS SCIENCIAS DE LiSBOA. 245"
Gerardo Mercador na sua geografia universal fui. 365,
assim dcscrcvco os limites :
„ Resta descrevermos a terra do Brazil mais occiden-
jj tal da America , que tomou o nome do páo vermelho ,
j, que ahi nasce .... Está situada entre os dois rios Ma-
„ ranhão, e o da Prata. „
O Lexicon geográfico de Filippe Ferrario foi. 64 no
artigo Argenteiis fluvííis ^ diz o seguinte:
'< O rio da Prata , como alguns querem , nasce da
„ região do Paraguay , além do lago chamado Xarays ^ da-
j, qui por longo intervallo divide por duas partes a pro-
„ vincia Paraguay , corre ao sul , regando outras provin-
„ cias, assimcomo os lugares de Buenosayres , Visita-
,, çuo , Conceição , Santa fé , Assumpção , e Sete corren-
„ tes , c augmentando com os rios Picolmayo , Paraná ,
„ Negro, Carcona , e outros muitos sahem no mar brazi-
„ lico por huma boca de 40 Icgoas. „
Salorzano seguindo a Gerardo Mercador no tomo i.°
cap. 6. n. $<) de Jure Indiarttm y diz :
" Aquella região, que se chama Brazil, que se de-
,, vide dos confins do reino de Peru, e se exime da júris-
„ dição do seu Vicerey , se fecha com os dois grandes
„ rios Maranhão pela parte do norte , e o da Prata pelo
„ sul. „
Filippe Cluverio nas suas introducções geográficas ,
c descripçõcs do Brazil, liv. 6, foi. 367, diz o seguin-
te :
" O mais celebre porto do Brazil, he o da Bahia de
„ todos os Santos; no certão as cidades de Paraguay, e
,, Assumpção são as mais populozas. „
O Padre Simão de Vasconcellos , Noticias das couzat
âo Brazil^ liv. i. n. 13, usa do seguinte discurso:
" Para este intento mandou naquella Bulia , que se
„ lançasse huma linha de norte a sul cem legoas das ilhas
„ dos Açores , e Caboverde a mais occidental para o
„ poente. „
£
246 Memorias da Academia Real
E continuando a mesma historia diz no n. 1 4 :
*' ElRcy D.Joáo o II, que neste tempo reinava cm For-
„ tugal, reclamou esta Bulia, pedindo ao summo Pontífice
„ outras 300 legoas ao poente sobre as cento, que tinha
,, destinado. E como estaváo os Reys de Cnstella tiío apa-
,, rcntados com os de Portugal , c o csperavao estar mais ,
„ vicrão facilmente no que pedia ElRey D, João , e de
„ boa conformidade e parecer do summo Pontífice, se con-
„ cederão mais 270 legoas, além do concedido na Bulia
„ a 7 de Junho de 1494 : o que supposto aquella linha
„ imaginaria lançada de norte a sul na conlormidadc so-
„ brcdira, que vem a ser do ultimo ponto das 370 legoas
„ de huma das ilhas dos Açores, e Caboverde mais occi-
,, dental (que dizem foi a ilha de Santo Antão) ao poen-
„ te, he o fundamento da divisão, e demarcação do Bra-
„ zil. „
O livro intitulado Theatnim orhis na taboada do Bra-
zil , e Gothofrcdo Archontologia Cósmica foi. 3 18, cor-
roborão o parecer daquelles authores com a posse continua-
da de muitos annos , em actos e povoações successivas. Luiz
Coelho de Barbuda nas Emprezas militares de Lusitanos ,
iiv. 14 foi. 2^5:, convém nas 370 legoas da demarcação ge-
ral, e attendendo as operações geográficas, diz , que o me-
ridiano passa pelo Grão Pará , e que assim fica incluída a
boca do rio da Prata dentro dos limites de Portugal. Bar-
tholomcu Leonardo y Argensola na sua historia da Con-
quista das Molucas , diz , que a linha corta mais adiante do
rio da Prata ; e a sua authoridade he de grande pezo , por
ser hcspanhol , e ter dedicado a sua obra a Filippe III.
Pedro Ordonho de Sabalhos historiador hespanhol no
livro Biajen dei Mundo, Iiv. 3. foi. 272, fazendo menção
das ilhas e terra firme, que na America occupão os hes-
panhócs , firma por termo do grande império a província
de Buenosayres , dizendo , que tudo mais he Brazil. Se-
guio aquelle Garibay estando no interior de Guipussuca ,
t. 2. Iiv. 15», cap. 4, e t. 4. Iiv. 25-, cap. 25- j assimco-
mo
DAS SciENCIAS DE L I S B O A. 247
mo tambf!in o Padre Marianna no liv. 26 ^ foi. 408. Fr.
António de S. Romão , que escrcvco em 1603 a historia
dii índia oriental, liv. i. cap. 6, não só convcm nas 370
Icgoas da situação do meridiano , que dividio o mundo ;
mas affirma com Garibay, e Marianna, que o dito meridia-
no SC lançou 470 legoas da ilha de Santo Antão para o
poente.
Barleo , diz : " O Brazil para a parte occidental vê
j, de mui largo os dezcrtos dos Caribes, o Perií das pro-
„ víncias do novo mundo a mais nobre, e ultimamente os
,, cumes de huns altos montes para o sul, desconhecidas
„ regiões , ilhas , mares , estreitos , as costas occiden-
,, taes : o Occeano atlântico , e os boreas combatem a parte
j, scptentrional , os portuguezes o terminão pelo rio da
„ Prata , e pelo rio Maranhão. „
O Atlas universal do mundo, foi o juiz imparcial da
questão , na carta geral da America , onde asNÍgnala entre
a margem occidental da ilha de Santo Antão , e a boca do
rio da Prata 21° de longitude, faltando para o complemen-
to dos 22° 30' do meridiano estabelecido da ilha de San-
to Antão 1° 20', ficando evidente, que o meridiano da de-
marcação corre além da boca do rio da Prata para a par-
te do occidente mais de 1° que falta para a satisfação
de 22° 20' de que se compÔe este parallelo ; e até a na-
tureza parece se empenhou cm tirar esta duvida , dividindo
os limites com o notável Lago doirado ou Xaray , que si-
tuou no coração da America , e quasi no centro delia , cin-
gindo-a com dois braços , que são como o império das
aguas , e dão origem aos dois famosos rios , dos quaes
hum corre para o norte com o titulo do Amazonas , ou
Maranhão com mais de 80 legoas de embocadura , e ou-
tro para o sul cora o nome de rio da Prata com 40 le-
goas de largo.
Daquelle rio da Prata tomou posse no principio do
descobrimento do Brazil Américo Vespucio , e depois Mar-
tim Affonso de Sousa, e se convence de hama carta do Snr.
Rei
248 Memorias da Academia Real
Rei D. João III de 28 de Setembro de 1532, dizendo-
Ihe , que pelas cartas , que lhe enviara por João de Sou-
sa , soubera da sua chegada ao Brazil , e que hia correndo
o rio da Prata , e que já lhe havia respondido no anno
antecedente , louvando-lhe as prezas , que fez dos navios
francezes , e encomendou as noticias, do que houvesse
encontrado , a respeito dos descobertos , como do rio da
Prata. Martim AíFonso desempenhou dignamente a commis-
são: descobrio o Rio de Janeiro, e todas as terras do sul,
onde entrou , e fez povoação na Bertioga , levantou pa-
drões nos lugares convenientes para segurar a posse de
Portugal , que depois de dois séculos ainda forão achados
pelo coronel António Botelho de Sampaio em 16 de Janei-
ro de 1767. Na altura de 30" descobrio, o que junto da
barra , se appellida da Prata ; na ilha do Maldonado assen-
tou hum marco com as quinas de Portugal , reconheceo as
duas margens do rio , e de ambas tomou posse , pondo
padrões , e forâo achados taes padrões na cidade de As-
sumpção de Paraguay, os quaes pertcndendo arrancar o go-
vernador D. Diogo de los Reys se amotinarão os indios,
e lho impedirão : retirou-se o governador para as missões
dos Padres da Companhia , para vir arrancalos com aquel-
les indios , e não o pôde conseguir pela opposição dos
de Paraguay, do que resultou, que participando esta no-
ticia o dito governador para Buenosayres , onde estava o
Tenentc-rci D. Balthasar Garcia , e o Bispo , que tinha
vindo de Cusco , se pozérão em marcha pelo rio Iraruaya ,
que vai desaguar ao rumo do sul , e dalli entrarão pelas
missões do rio Capigú , e de lá para o povo de Santa
Maria , chamado Policarpo , e marcharão para o rio Tabe-
queri , onde armarão campo : sahírao ao encontro os indios
de Paraguay com o seu governador , que elegerão D. José
de Antiqucra e Castro , e o ouvidor da Real audiência
de Suquicaca , que dando batalha ao meio dia , obrarão
por tal maneira os paraguayanos , que em duas horas po-
zérão era, fuga os cabos e soldados para a povoação de
San-
1
DAS ScrENCiAs DE Lisboa. i^j
ao dito capitão e goycrnador , e a seus successores de ju-
ro e herdade para sempre , que dos escravos, que elles res-
gatarem , e houverem na dita terra do Brasil , possão man-
dar a estes reinos vinte e quatro peças cada anno para fa-
zer dcllcs o que lhes bem vier , os quaes escravos viráó
ao porto e cidade de Lisboa , c não algum outro porto ,
e mandarão com elles certidão dos ofíiciaes da dita terra ,
de como são seus , pela qual certidão lhe serão cá despa-
chados os ditos escravos forros sem delles pagar direito
algum, nem cinco por cento, e além destas vinte e qua-
tro peças, que assim cada anno poderá mandar forros: Hei
por bem , que possa trazer por marinheiros e gurometes era
seus navios todos os escravos que quizerem , e lhes forem
necessários. Outrosim me praz , por fazer mercê ao dito
capitão c governador , e seus successores , e assim aos mo-
radores, e visinhob da dita capitania, que nella não pos-
sa em tempo algum haver direito de sizas , nem imposi-
ções, saboarias , tributos de sal, nem outros alguns tribu-
tos, nem direitos de qualquer qualidade que sejão , salvo
aquellq* , que por bem desta doação , e do foral ao pre-
zente são ordenados que haja. Item hei por bem , e me
praz , que só se dê e succeda de juro e herdade para todo
sempre pelo dito capitão e governador, e seus descen-
dentes filhos e filhas legitimas com tal declaração , que
emquanto houver filho legitimo varão no mesmo gráo , não
succeda filha , postoque seja em maior idade doque o fi-
lho ; e não havendo macho , ou havendo-o , e não tendo
então propinquo gráo ao ultimo possuidor como a fêmea ,
que então succeda a fêmea , e emquanto houver descen-
dentes legitimos machos, ou fêmeas, que não succeda na
dita capitania bastardo algum, e não havendo descendentes
machos , nem fêmeas legitimos , então supcederâo os bas-
tardos, não sendo porém de danado coito, e succederáo
pela mesma ordem de legitimos, primeiro machos, e de-
pois as fêmeas em igual gráo, e com tal condição, que os
possuidores da dita capitania a quizerem antes deirar a algum
Tomo IX, Kk seu
9f8 MfMORIAS DA ACADEMIA KeAL
seu parente transversal , que aos descendentes bastardos ,
quandi) não tiyer legitiroos , o possa fazer, e não havendo
descendentes rtuchos , nem fcmeas Jegitimos , nem bastar*
dos da maneira , que dito he , em tal c^so succederáõ os
ascendentes machos, e fêmeas, primeiro os machos, e cm
falta delles as fêmeas, e não havendo descendentes, nera
ascendentes , succederáõ os transversaes pelo modo sobre-
dito, sendo primeiro os machos, que forem em igual gráo ,
e depois as fcmeas , e no caso do^s bastardos , ou possui-
dor, poderá se quizer deixar a dita capiunia a hum trans-
versal legitimo , e tira-la aos bastardos , postoque sejão
descendentes cm muito mais próximo gráo ; e isto hei as-
sim por bem , sem embargo da lei mental , que diz , que
não succcda fêmea , nem bastardos , nem transversaes , nem as-
cendc:ites ; porque sem embargo de tudo me praz , que
nesta capitania succedao fêmeas , e bastardos , não sendo
de coito danado , e transversaes e ascendentes do modo
que já hc declarado. Outrosim quero , e me praz , que
em tempo algum serão por elles a dita capitania e gover-
nança , e todas as cousas , que por esta doação dou ao di-
to Jorge de Figueiredo Corrêa não possa partir , nem es-
cambar , cspedaçar , nem em casamento a filho ou filha ,
nem a outra pessoa dar , nem para tirar pai , ou filho , ou
alguma pessoa do captiveiro , nem para* outra cousa, ain-
daque seja mais piedoso , porque minha tenção e vontade
hc que a dita capitania e governança , e cousas ao dito
capitão e governador nesta doação dadas , andem sempre
juntas , e se não partão , nem alienem em tempo algum
aquelle que a partir, ou alienar, espedaçar, ou der em ca-
samento, ou para outra cousa, poronde haja de ser parti-
da , aindaquc seja mais piedosa por esse mesmo effeito ,
perca a dita capitania e governança, e passe direitamente
aquelle , que houver de hir pela ordem de succeder sobre-
dita , se o tal que isto assim não cumprir fosse morto. E
outrosim me praz, que para caso algum de qualquer qua-
lidade que seja ; c o dito capitão governador commetta ,
por-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. SJ-p
porque segundo o direito , e leis deste Reino , mereça per-
der a dita capitania c governança, jurisdição, e renda del-
ia , a nâo perca , salvo se o succcssor for traidor á coroa
destes reinos, e em outros casos, que commctter, será
punido, quanto o crime o obrigar; porém o seu successor
não perderá por isso a dita capitania e governança, juris-
dição , rendas, e bens delia, como dito he. Item me praz ,
e hei por bem , que o dito Jorge de Figueiredo Corrêa ,
e todos os seus successorcs , a que esta capitania e gover-
nança vier, use inteiramente de todo o poder, jurisdição,
e alçada nesta doação, com a renda assim, e da maneira,
que nella hc declarado , e pela confiança , que delles te-
nho , que guardarão nisso tudo o que cumpre a serviço de
Deos , e meu, a bem do povo, c direito das partes. Hei
outrosim por bem, e me praz, que nas terras da dita ca-
pitania não entre , nem possa entrar em tempo algum cor-
regedor , nem alçada , nem outras algumas justiças , para
nella usar de jurisdição alguma, por nenhuma via, ou mo-
do que seja , nem menos será o dito capitão suspenso da
dita capitania , governança , e jurisdição delia : porém se
o dito capitão cahir em algum erro , c fizer alguma cou-
sa , por que mereça , c deva ser castigado , Eu , ou os meus
successorcs o mandaremos vir para ser ouvido com sua jus-
tiça , e lhe ser dada aquella pena ou castigo , que de di-
reito o tal caso merecer. Outrosim me praz , por fazer mer-
cê ao dito Jorge de Figueiredo Corrêa , que elle possa no-
mear em sua vida, ou por seu falecimento a successão a
qualquer dos seus filhos, ou filhas, que elle quizer, pos-
toque nesta doação seja declarado , que a successão da dita
capitania a qualquer de seus filhos depois do seu faleci-
mento seja primeiro ao mais velho , não tendo filho al-
gum , a sua filha ; porem por falecimento de filho , ou fi-
lha , que elle assim na dita capitania , e governança no-
mear, virá a successão delia i pessoa, que de direito a de-
va de haver , c herdar , assim , e no modo , que no capi-
tulo da successão da dita capitania he declarado , e não
xk ii no-
200 Memorias da Academia Real
nomeando, em tal caso virá a.,succes^ãiQ da tal capitania 4
pessoa , a que por bem do dito capitulo da succcssao deve
vir, ., Item porquanto o ditp Jorge de Figueiredo Corrêa
fee. o primeiro capitão € governador desta capitania : hei
por bem , e me praz de lhe faz,çr mcrce , e ficar memoria
delle , que t<?dos i>« seus successores , e pessoas, que á di-
ta capitania vierem , se chamem Figueiredo ; sob pena de
que, o quç não se chamar dç Figueiredo perderá 3 dita ca-
pitania , e governança , e não poderá em maneira alguma
suçccder iae)la , a qual capitania , e governança por elle
tnesmo passará logo a QUtro successor , a que de direito
pertenceria, se o tal que isto asi-im não cumprir fosse mor-
to, e serão assim mesmo. obrigados todos os seus sucees-
sores a tra'*er as armas dos Figueredos. Esta mercê lhe far
ço , como í^ei e Senhor destes Reinos , e assim como go-
vernador , e prepetw administrador , que sou da ordem e
cavai laria do mestrado de nosso Senhor Jesu Christo , e
por.e^ta prezente carta, dou poder, e authoridade ao dito
Jorge de Figueiredo Corrêa , que elle por si , e por quem
lhe parecer , possa tomar , e tome posse real , corporal ,
c actual das terras d^ dita capitania e governança , e das
rendas , e bens delia , e todas as mais cousas conteudas
nesta doação , e use de tudo inteiramente , como ntlla se
contêm; a qual doação hei por bem, quero, e mando,
que se cumpra e guarde em tudo , e por tudo com todas
as clausulas , condições , e declarações nellas conteudas , e
declaradas, sem mingoa nem desfalecimento algum: e pa-
ra tudo o que dito he , derogo a Icí mental , c quaesr
quer outras leis , ordenações , direitos , glozas , e costu-
mes, que em direito disto haja, e possa haver, por qual-
quer modo, e via que seja, postoque sejao taes , que fos-
se necessário serem aqui expressas e declaradas , de verho
ad vcrhnn , sem embargo da ordenação do livro 2. tit. 49 ,
que dii que quando as taes leis e direitos se derogarem , se
faça expressa menção delias ; e por esta prometto ao dito
Jorge de Figueiredo Corrêa, e a todos os seus successo-
res,
DAS SCIENCIAS OE LiSBOA. z6í
res , que nunca em tempo algum hirci , nem consentirei iiir
contra esta minha ordem , c doação em parte , nem cm
todo. E rogo , e encommendo a todos os meus succcsso-
res , que lhe cumprao e guardem , mandem cumprir c guar-
dar. Assim mando a todos os meus Corregedores , Desem-
bargadores , Ouvidores , Juizes , c Justiças , OfEciaes, e pes-
soas dos mesmos reinos , e senhorios , cumprao , e guar-
dem , e f;içiIo cumprir, c guardar esta minha carta de doa-
ção, c todas as cousas nella contendas, sem nisso lhes ser
posta duvida , nem embargo , nem contradição alguma ,
porque ansim hc a minha mercê ; e por firmeza delia lhe
mandei dar esta carta por mim assignada , e sellada do
scUo pendente de cera da minha Chancellaria , a qual vai
escripta em cinco folhas , e com esta do meu signal , e
com a primeira, em que esta doação começou da parte de
dentro , as quaes todas são assignadas ao pé de cada huma
por D. Miguel da Silva , Bispo de Viseu , do meu Con-
selho , c meu Escrivão da puridade. Vicente Fernandes a
fez em Évora aos vinte e sete dias do mez de Julho do
anno de i5'24. E eu Fernão Alvares Thesoureiro mor d'El-
Rei nosso Senhor, Escrivão da sua Fazenda a fiz escre-
ver. :=, Rei.
Nota V.
Carta do Governador sohre os índios,
A S do corrente se me apresentou o indio Manoel
Filippc Monteiro de Aguiar com cinco índios, e huma Ín-
dia , acompanhados de huma carta do capitão mor das Or-
denanças de Jiquiriçá Francisco António da Silva preten-
dendo estabeleccr-se no lugar chamado das Salinas^ e pe-
dindo-me parocho , que os instruísse na Religião Catholi-
ca ; requerendo-me ao mesmo tempo , que os não pozesse
debaixo da subordinação , e direcção do capitão mor da
Rassaca João Gonsalvcs j e estranhando a vinda destes ho-
mens.
202 Memorias da Academia Real
inens , por não ser acompanhada de carta de v. in, , cjue
se aclia encarregado por este Governo do negocio impor-
tante da conquista do gentio daquellc continente , os rc-
metto na presente occasião, depois de serem assistidos com
o vestuário e comida necessária, paraque v. m. á vista do
que elles lhe ponderarem , e do que julgar mais convenien-
te ao serviço de Deos , e de S. Magestade , os fuça habi-
tar aquclle lugar, que lhe parecer mais próprio, lembran-
do-se de que pela informação , que se me dá , são sete
aldêas , que se pretendem unir, o que será fácil de conse-
guir , por fallarem todos o mesmo idioma , procurando fa-
zer esta diligencia de sorte, que fiquem contentes, e sa-
tisfeitos os mesmos indios.
Ao dito capitão mor de Jequiriçá escrevo , reprehen-
dendo-o de os remetter , sem ter primeiro participado a
V. m. semelhante remessa , que pretendeo embaraçar u sar-
gento mor Luiz Gonsalves da Silva , como v. m. me com-
munica na sua carta de 8 do corrente.
O portador desta pretende ser capitão mór dos indios
da aldêa de Jequiriçá j sobre o que v. m. me informará ,
e quando se offerecer occasião , me dará parte das provi-
dencias , que der a respeito dos mesmos indios. Deos guar-
de a v. m. Bahia 28 de Abril de 1790. =; D. Fernando
José de Portugal, z: Senhor Desembargador Francisco Nu-
nes da Costa , Ouvidor da commarca dos Ilheos.
N o T A VI.
Fico entregue da carta, que v. m. me dirigio com da-
ta de 10 de Maio passado em resposta , da que lhe es-
crevi em 28 de Abril do corrente anno, quando foi a re-
messa dos indios do certao da Rassaca , pelo conductor
Manoel Filippe Monteiro de Aguiar, e approvando as pro-
videncias , que v. m. deu a este respeito , só me resta
Icmbrar-lhe , que me communique a chegada dos ditos in-
dios a essa sua commarca , para se darem aquellas provi-
den-
DAS SciENCIAS DE LiSBOA. 263
dencias, que se julgarem necessárias. Deos guarde a v. m.
Bahia 25 de Junho de 1790. =; D. Fernando José de Por-
tugal. =; Senhor Desembargador Ouvidor da commarca dos
Ilhcos, Francisca Nunes da Costa.
Nota VII.
Os Índios , que vicrao do certão da Rassaca , c que
com esta serão apresentados a v. m. , os repartirá pelas
povoações , que julgar conveniente , recommendando aos
parochos, que os cathequizem para se baptizarem, e aos di-
rectores , que lhes dcm bom tratamento , paraque se possa
conseguir não só a conservação dos mesmos indios na-
quellas povoações , mas paraque se facilite o transporte dos
outros muitos , que se achao pelas matas, Deos guarde a
V. m. Bahia 23 de Agosto de 1790. 7Z D. Fernando José
de Portugal, z: Senhor Desembargador Ouvidor da com-»
marca dos ilheos Francisco Nunes da Costa.
Nota VIII.
Provisão (/») em que forao alliviados os povos da contriluiçao
da farinha para o presidio do Morro.
D. João por graça de Deos , Rei de Portugal, e dos
Algarves, d'aquem , e d'alem mar, em Africa Senhor de
Guiné , &c. Faço saber a vós Conde das Galveas , Vicerei
e Capitão general de mar e terra do Estado do Brazil ,
que vendo o que me escrevestes em cartas de nove de Ju-
lho de mil setecentos e trinta c seis , e de doze de Agosto
do anno passado sobre a guarnição do Morro de S, P;juIo
ser paga pela Provedoria dessa cidade de fardas e soccor-
ros , mas não de ração de farinha , de que era muito mal
satistcita ; porque á tal ração se havião obrigado os mora-
dores das villas de Boipeba , Cairú , e Camamú , a qual
obri-
(a) Ac)ia-se esta Provisão no Livro 6." de Registos de Cartas e Or-
deus na Provedoria da Fazenda Real da EaLia a f. 8.
a64 Memorias da Academia Real
obrigação , por estar ha muitos annos cxtincta , duvidavao
os ditos moradores continuar com a dita distribuição , e
principalmente por haver crescido a muito maior numero
os soldados e artilheiros, que" assistem naquelle prezidio,
por cuja causa havia huma continua vexação na cobrança
da dita farinha , c os soldados c artilheiros padecião a fal-
ta de não serem nunca inteirados das suas rações , nem se-
ria possível o fossem , não só pelo augmento das praças ,
senão também pela pobreza, com que vivião os referidos mo-
radores; e attendendo ás razões, que me expuzestes nesta
matéria, Sou servido, por Resolução de vinte e sete de
Fevereiro deste presente anno , cm consulta do Meu Con-
selho ultramarino, alliviar os moradores das referidas villas
da dita obrigação, ordenando, que da mesma sorte, que
são soccorridos de farinha os militares dessa praça, o sejão
também os do dito prezidio do Morro de S. Paulo , dan-
do-se-lhe huma quarta de dez em dez dias a cada hum ,
ajuntando-sc para este effeito com as Camarás mais visi-
nhas , ou alguma de maior possibilidade , que mandem to-
dos os mezes aquella porção de farinha sufficiente , que baa-
tar ao numero daquella guarnição, e, entregue que seja ao
Almoxarife do dito prezidio, com conhecimento de sua re-
ceita, irão os barqueiros, que a conduzirem, cobrar o seu
producto á Provedoria mor dessa, sendo distribuída a dita
farinha por mappas , para a despeza do dito Almoxarife,
a quem se ha-de carregar logo em receita no mesmo in-
stante que a receber , o que assim fareis executar. ElRei
Nosso Senhor o mandou pelos Doutores Manoel Fernandes
Vargas , e Alexandre Metello de Sousa e Menezes , Conse-
lheiros do seu Conselho ultramarino, e se passou por duas
vias. Bernardo Félix da Silva a fez em Lisboa occidental
a dez de Março de mil setecentos trinta e oito. Z5 O Se-
cretario Manoel Caetano Lopes da Lavra a fez escrever ,
e assignou. O Conselheiro Thomé Gomes Moreira. =: Ale-
xandre Mct;f;llo de Sousa e Menezes, s Thomé Gomes Mo-
reira.
OB-
OBSERVAÇÃO.
N.1 pag. XL linha ip , depois zn da villa de Cêa —
deverá lêr-se í= de monte mor o novo t= de Torres vcdras
:=; de longroiva tr de Azeitão í= da Torre de moncorvo =
do lugar da marinha grande nz de parte do território da
comarca de Thomar tr de Coimbra e seus arredores c: do
território denominado Alto Douro ti da província do Alcm-
tejo.
Tomo IX. i\ ME-
r
RESUMO
DA RECEITA DOS RENDIMENTOS DA CAPITANIA DE MINAS GERAES ,
Qiie entrarão na Thesouraria geral cm todo o anno de 1818,
pertencente ao rendimento do mesmo anno, e dos antece-
dentes.
A saber :
Do rendimento de Direitos deiitradas ---------- 767:i97çÍJ074
Dizimos ------------- 114:955(^111
Passagens -..--.--.---- 2:788(^96}
Obra pia 5S4á)8i5
Propinas de munições de guerra ------ 1:845(2!) j6t
Donativos de officios de justiça ------ 2:169^^812
Ter<,as partes de ditos --------- 1:2)1^)04
Novos direitos de ditos, e cartas de seguro - - 2:484(3^)12
Correio .-..--....--- 2:9(9(^1)9
Extraordinário ...---...-. 5:879(^5060
Pólvora ..--r-.- j:6jo,^S5S
jo6:o7j(2Í)i;79
Taxas dos sellos 5:927,^202
Decima dos prédios urbanos -......- 2:652(^)95
Dita testamentária ----------- 6:5))(2)857
Sizas - 27:472^640
Carne verde y.iiT(^6o^
4J:903<Í)S9*
Producto do oiro, do quinto fundido para assistência
da extracção diamantina .----.-. 52:700(^)844
Importância com que se llie suprio do rendimento do
subsidio voluntário ..-------- 21:221 ,5Í)47 5
73:922(^)19
Dinheiro que se recunhnu , e permuta a trocar por moeda - . - - 1:4)2(^4)6
Depósitos geraes , e das casas administradas .---.---- j2:i82(^oi4
Contribuição voluntária, e outras arrecadações para se
remetterem ao Real Erário -------- 92 5(á)96S
Pcns dauscnres - - - idem ------- 2j:j69(J)ij8
Impostos para o Eanco do Brasil -.----- 6:675(^1141
50:970(^)244
488:484,^59°
Saldo existente em cofte no fim de 1817 , e passou para 1818 a.^ 79:127,^220
Reis 507:61 i(á)8 10
DESPESA
DA THESOURARIA GERAL
NO ANNO DE l8l8.
A snher :
Ao Thesoureiro Pagador da Tropa , ordenados , e mais despesas da
Real Fazenda, para os pagamentos de sua estação ----- 247:5661^052
Ao da Intendência de Villa-rica -...-.---.- j y.o66^yoo
Ao da villa do Sabará •-.--.•_..-..- lorooo^Jooo
Ao da villa de S. João d"EIRei ....---...- ^-.400^000
Ao da villa do Príncipe ----..--....- 9:700(5)000
Ao dos diamantes para soldos dos pedrestes da mesma - - - * 4:6582854*
Ao Administrador do Correio desta villa para soldos dos emprega-
dos no giro das mallas -..-.-....-.- i:o84<;^050
Ao Hospital militar desta villa para despesas do mesmo . - - - jiooOí^ooo
Diversas despesas pagas pela Tliesouraria geral -..-... I59(jj626
Assistência á Real extracção dos diamantes do arraial do Tyúco - 90:000^000
Pagamento dos depósitos, e passagem para abono de diversos - - 48:1675^5654
Permutas .-------.--.----.. t^z^-joo
Imposto para o Eanco , temettido ao Real Erário - 6:142(^706
Bens d'auscntes , e outras arrecadações - - - - 22:65012)675
■ 28:77j(^j8l
Saldo existente em cofre, t|ue passou para o anno de 1819 - 103:28 i;J)i05
{Em bilhetes da Real extracção dos diamantes 5j:440^9i2-j
V 567:6111^)810
Em dinheiro -----.---- 49:842^^)1 9 j -^
(Entre pag. 20 e 2 1 dat Mtm. de Sucias , T. IX. P, I.)
2()7
MEMORIAS,
QUE SE CONTÉM NESTE TOMO NONO.
Historia.
XJjSCURSO do Sereníssimo Senhor Infante D. Mi-
guel , Presidente da Academia , por occasião da Ses-
são publica da mesma Academia em ^J de Junho de
1823. Pag. I
Discurso Histórico recitado na Sessão publica de 27 de
Junho de 1823 , pelo Sccrerario José Maria Dan-
tas Pereira. m
Discurso recitado pelo Secretario José Maria Dantas Pe-
reira no Paço da Bemposta , perante ElRey Nos to Se-
nhor^ por occasião da felicíssima restauração do Thro-
no Lusitano. xi
Discurso recitado pelo Secretario José Maria Dantas Pe-
reira no Paço da Bemposta , perante o Sereníssimo Se-
nhor Infante D. Miguel , Presidente da Academia , por
occasião da felicíssima restauração do Throno Lusitano. xiii
Discurso recitado pelo Secretario José Maria Dantas Pe-
reira no Paço da Bemposta y perante ElRey Nosso Se-
nhor , por occasião do acontecimento de Cadiz , e do
venturoso anniversario do Sereníssimo Senhor Infante
D, Miguel y Presidente da Academia. xv
Discurso recitado pelo Secretario José Maria Dantas Pe-
reira 710 Paço da Bemposta , perante o Sereníssimo Se-
nhor Infante D. Miguel , Presidente da Academia , por
occasião do feliz anniversario de S. A. R. , e do acon-
tecimento de Cadiz. xviii
Programma da Academia Real das Sciencias de Lisboa,
annunciado na Sessão publica de z-j de Junho de i^^i- xx
l1 ii Dis-
268
Disíurso recitado na Sessão publica de i de Jtilho de
1824 pelo Secretario José Maria Dantas Pereira, xxvii
Programma da Academia Real das Sciencias de Lisboa ,
annmciado na Sessão publica de i de Julho de 1^2 j^. ux
Elogio Histórico de Sebastião Francisco de Mendo Tri-
goso Homem de Magalhães, Lido na Sessão publica
de 2^ de "Junho de 1822 por Manoel José Maria
da Costa e Sá. , txvii
Lista dos Sócios da Academia Real das Sciejtcias. xci
Relação dos Membros , e Correspondentes da Instituição
Faccinica da Academia Real das Sciencias. xcix
Memorias de Sócios.
Noticias , e reflexões estadisticasy a respeito da Provinda
de Minas Geraes, por Guilherme , Barão d'Eschwege. i
Memoria sobre o começo , progressos , e decadência da lit-
teratura Hebraica entre os Portugueses Catholicos Ro-
manos j desde a fundação deste Reino até ao reinado
d'ElRei D. José 1 , por Fr. Fortunato de S. Boa-
ventura. 29
Addit amento ã dita Memoria. 6z
Dissertações do Padre António Pereira de Figueiredo.
Dissertação I. Os Fenícios em Espanha mil e quatro cetf'
tos e mais ânuos antes da era de Christo. 6^
Diss. II. Etymologia dos nomes Ibéria ^ Celtiberia ^ His-
pânia , Lusitânia. 80
Diss. III. Os Gregos em Espanha des dos tempos Herói-
cos. 8 6
Diss. IV. Das Egoas da Lusitânia. 100
Diss. V. Sobre dotis notáveis lugares de Heródoto. 107
Diss. VI. Etymologia do nome de Pyreneos. 120
Diss. VII. Império dos Carthaginezes em Espanha. 128
Diss VIII. Império dos Romanos em Espanha. 162
Diss. IX, Das diversas divisões , que os Romanos Jize-
rão em Espanha.
Diss,
Diss. X. Entrada dos Godos , Suevos , Alanos e Vânda-
los em Espanha. 217
Diss. XI. Do Ceremonial e Legislação dos Reis Godos. 247
Diss, XII. Destruição do Reino Godo em Espanha pela
entrada dos Mouros. 25 j
Diss. XIII. Principios do Reino de Portugal, 270
Diss. AlV. D'hum notável lugar do Arcebispo de To-
ledo. 2p3
Diss. XV. Segundo Casamento da Rainha D. Tareja. 295'
Diss XVI. Verdadeira Época da morte de S. Giraldo. 2p8
Diss. XVII. Incerteza do anuo em que nasceo ElRei
D. Affonso Henriques. 299
Diss. XVIII. Sobre de que Casa era a Rainha D Ma-
falda. 302
Diss. XIX. Épocas da Batalha de Ourique. 303
Memorias de Correspondentes.
Memoria sobre uma Provisão ou Carta do Siir. D. Af-
fonso II acerca de uns Decretos chamados Leis de
Fr. Suciro Gomes , por João da Cunha Neves e
Carvalho. 2
Memoria sobre a restauração das barras dos portos for-
madas nas fozes dos rios em geral , e sobre a appli-
cação dos principaes fundamentos destas impor tantissi-
mas restaurações ao melhoramento , e conservação da
barra do Porto ^ por Luiz Gomes de Carvalho. - 19
Memoria topográfica e económica da Commarca dos Ilheos ,
por Balthazar da Silva Lisboa. S7
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Das sondas da barra do Porto nas três épocas notavc
o principio de 1817, em que tomei conta das ot
lançou sobre alguns pontos da direcção do dique
meu plano, até fim de 1823, de cuja compara^:
feitas da parte do dique LGC.
Sondas na
Datas
Rumos
FREAMAK DA
Datas
I.' Época
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Anno de 1790
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Sul .
Sul .
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Sul .
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2i dito . .
Outubro . .
Sul .
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8 de Maio .
Dezembro . .
Sul .
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7 de Julho .
20 dito . .
Anno de 1791
Janeiro ; , .
Sul .
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Anno de 1818
Fevereiro . .
Sul .
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Março . .
Sul .
8 de Outubro
Maio . . .
Sul .
22
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Setembro . .
Sul .
• . . 22
28 dito . .
Novembro . .
Sul .
... 24
7 de Novemb.
1 5 dito . .
1 2 de Dezemb.
18 dito .
Anno de 1792
Fevereiro .
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0 rumo . 26
Dezembro .
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... 27
Anno de 1819
flieio termo das sondas nes
ta I. época 2)
22 de Janeiro
24 de Fevereiro
2.» Época
Anno de 1817
I Janeiro .
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22 Março . .
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• . . 2J
14 de Março .
27 dito . .
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fins de Setembro, e Om^b°o d' ,1?.'^ Í'"^- '"""" ** "'^'""
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T A B E L L A
Das sondas da barra do Porto nas três épocas notáveis, a saber: i.' desde 1790, em que começou a primeira obra da barra, até 1792 inclusive: a.' desde
o principio de 1817, em que tomei conta das obras até 1810, em que quasi se não trabaiiiou na barra á excepção de 1819, em que alguma pedra se
lançou sobre alguns pontos da direcção do dique LGC da esquerda, e alguma AB na direita: 3.' desde o anno de 1821 , em que comecei a executar o
meu plano, até fim de 1823, de cuja comparação se conliece o melhoramento progressivo, que a barra tem recebido nesse pouco tempo pelas obras
feitas da parte do dique LGC.
I Janeiro .
5 Fevereiro
22 Marrjo .
NOr.O
SO .
SO .
... 24
22 m. mou 2 j
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Anno de i S 1 9
22 de Janeiro
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I de i^Iarço .
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Desde Janeiro até
29 de Juiilio .
29 de Julho
20 de Agosto .
21 de Setembro .
26 de Outubro
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10 de Dezembro ,
NO .
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NNO.
NNO .
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NNO ,
2+ em J de maré j (
2í meia maré (Jil 29
26 meia mjrc ou J2
Meio termo das sondas na J." época
NB Além do melhoramento das sondas, que mostráo a maior profundidade da barra en virtude das obras do novo plano, que se estS executando desde 1S21 , a^^ ^^ ^^^^^ ^ ^^^ reduzido lios
conservado mais funda, larga, e recta, pois a sua largura se reduzia de (o até 40 braças, logo;ue as cheas passavão, e o rio andava pouco ''^""'^^"'' .'^ ''"''' '^:.„ ^„„,tou a praça do Horto; agora
fins de Setembro, e Outubro de 1817 extraordinariamente a bumas 10 braças, que tanto havia la testa do Cabedelo a pedra João Boi da margem direita, ° ''"J , r.beJelo demorava ao Sul do dique
: desde o principio de Janeiro até fiin de Setembro do anno passado de 1821 , a sua largura esteve sempre maior de 200 braças, pois testa ^^ ^ ^^^ ^^^ ^^^^^^
c a falta dagua tao notável na
influxo do que já está feito da
que nunca se vio na bana do
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CATALOGO
Das Ohras impressas , e mandadas publicar pela Academia Real
das Sciencias de Lisboa ; com os preços , por que cada uma
delias se vende brochada.
I. OReves Instrucç6es aos Correspondentes da Academia
sobre as remessas dos productos naturaes, para formar um
Museu nacional y folbero em 8.° -------- 120
II. Memorias sobre o modo de aperfeiçoar a manufactura
do azeite em Portugal, remettidas á Academia por João
António Dalla Bella, Sócio da mesma, i vol. em 4.°- - 480
III. Memorias sobre a cultura das oliveiras em Portugal ,
pelo mesmo. Segunda edição accrescentada pelo Sócio Se-
bastião Francisco de Mendo Trigoso, i vol. em 4.° - - 480
IV. Memorias de agricultura premiadas pela Academia, 2
yol. em 8.°--------------- 960
V. Paschalis Josephi Melli Freirii , Historiae Júris Civilis
Lusitani liber singularis , r vol. em 4. ° ------ 640
VI. Ejusdem Institutiones júris civilis et criminalis Lusita-
ni , 5" vol. em4. ° .._.-. 2400
VII. Osmia, Tragedia coroada pela Academia, folheto em 4.' 240
VIII. Vida do Infante D. Duarte, por André de Rezende,
folheto em 4.° -------------- 160
IX. Vestígios da lingoa arábica em Portugal , ou Lexicon
etymologico das palavras, e nomes portuguezes , que tem
origem arábica , composto por ordem da Academia , por
Fr. João de Souza , i vol. em4. ° .-_.--- 480
X. Dominici Vandelli Viridarium Grysley Lusitanicum Lin-
naeanis nominibus illustratum , r vol. em 8." - . - - aoo
XI. Ephemerides náuticas , ou Diário astronómico para os
annos de 1789 até 1798 inclusivamente , calculado para o
meridiano de Lisboa , e publicado por ordem da Academia :
- para cada anno i vol. em 4.°--------- 363
O mesmo para o anno de 1826. .-.----- 480
XII. Memorias económicas da Academia Real das Sciencias
de Lisboa, para o adiantamento da agricultura, das artes,
e da industria cm Portugal , e suas conquistas , ç vol. em 4.° 4000
XIIL
ijt Catalogo.
XIII. CollecçSo de Livros inéditos de Historia portugueza ,
desde o Reinado do Senhor Rei D. Diniz, até o do Se-
nhor Rei D. João II. , j vol. eni folio .-..*-. 5000
XIV. Avisos interessantes sobre as mortes apparentes , man-
dados recopilar por ordem da Academia , /o/too em 8.° gf.
XV. Tratado de educação fysica para uso da na^ao por-
tugueza, publicado por ordem da Academia Real da| Scien-
cias, por Francisco de Mello Franco, i vol. em 4.° - - 360
XVI. Documentos arábicos da Historia portugueza, copia-
dos dos originaes da Torre do Tombo com permissão de
S. Magestade, e vertidos em portuguez, de ordem da Aca-
demia , por Fr. João de Sousa , i vol. em 4. ° - - - - 48c
XVII. Observações sobre as principaes causas da decadên-
cia dos portuguezes na Ásia , escritas por Diogo de Couto
em forma de dialogo , com o titulo de Soldado Pratico ,
publicadas por ordem da Academia Real das Sciencias, por
António Caetano do Amaral , Sócio eíFectivo da mesma, i
tom. em 8,° ._-.__- 480
XVIII. Flora Cochinchinensis, sistens plantas in Regno Co-
ciiinchinae nascentes. Quibus accedunt aliae observatae in
Sinensi Império , Africa orientali , Indiaeque locis variis ;
labore ac studio Joannis de Loureiro , Regiae Scientiarum
Academiae Ulyssiponensis Socii : Jussu Academiae in lucem
edita , 2 vol. em 4. ° viai. __._- 2400
XIX. Synopsis Chronologica de subsídios , ainda os mais ra-
ros , para a Historia , e estudo criticf^ da Legislação por-
tugueza ; mandada publicar pela Academia Real das Scien-
cias, e ordenada por José Anastasio de Figueiredo, Cor-
respondente do numero da mesma Academia, 2, vol. de4.° 180©
XX. Tratado de educação fysica para uso da nação por-
tugueza, publicado por ordem da Academia Real das Scien-
cias , por Francisco José de Almeida , i vol. em 4.* - - 3Ó0
XXI. Obras poéticas de Pedro de Andrade Caminha, pu-
blicadas de ordem da Academia, i vol. cm 8.° _ - - 5oo
XXII. Advertências sobre os abusos , e legitimo uso das agoas
mineraes das Caldas da Rainha, publicadas de ordem da
Academia Real das Sciencias, por Francisco Tavares, Só-
cio livre da mesma Academia , /o/èfío em 4.° - - - - 120
XXIII. Memorias de Litteratura portugueza , 8 vol. em 4. ° 6400
XXIV. Fontes próximas do código Filippino, por Joaquim
José Ferreira Gordo, l vol. em 4.° - - 400
XXV. Diccionario da lingoa portugueza , i vol. zm folio mai. Áqo
XXVL
I
Catalogo. 173
XXVI. Compendio da theorica dos limites , 6u IiUroducção
ao methodo das fluxôes , por Francisco de Borja Garção
Stockler, Sócio da Academia, em 8.° - - 240
XXVII. Ensaio económico sobre o commercio de Portugal,
e suas Colónias, oíferecido ao Serenissimo Principe da Bei-
ra o Senhor D. Pedro, e publicado de ordem da Academia
Real das Sciencias, pelo seu Sócio D. José Joaquim da
Cunha de Azeredo Coutinho. Segunda edição corrigida ,
e accrescentada pelo mesmo amtor , i vol. em 4,° - - 480
XXVIII. Tratado de agrimensura, por Estevão Cabral, Só-
cio da Academia , 1 vol. em 8. ° .-,----- 2^0
XXIX. Analyse chymica da agoa das Caldas , por Guilher-
me Withering, em portuguez e \ng\e7. , folheto em 4.^ 240
XXX. Principios de táctica naval , por Manoel do Espirito
Santo Limpo , Correspondente do numero da Academia ,
I vol. em 8.° ----------.-._ 480
XXXI. Memorias da Academia Real das Sciencias , 9 vol.
tm folio --.-.------ 18000
XXXIf. Memorias para a Historia da capitania de S. Vi-
• cente, i vol. em 4.° ._... ^go
XXXIII. Observações históricas e criticas para servirem de
Memorias ao systema da diplomática portugueza, por João
Pedro Ribeiro, Sócio da Academia, Parte i. em 4. * - - 480
XXXIV. J. H. Lambert Supplementa tabularam logarithmi-
carum, et trigonometricarum , i vol. em 4.° - . - . pfo
XXXV. Obras poéticas de Francisco Dias Gomes, 1 vol.
em4. °-. -_..._. 800
XXXVI. Compilação de reflexões de Sanches, Pringle, etc.
sobre as causas e prevenções das doenças dos exércitos,
por Alexandre António das Neves : para distribuir-se ao
exercito ^oxiugMez , folheto em 12. ------- - gr.
XXXVII. Advertências dos meios para preservar da peste.
Segunda edição accrescentada com o Opúsculo de Tliomaz
Alvares sobre a peste de i^<)^ , folheto em 12. - - - 120
XXXVIII. Hippolyto , Tragedia de Euripides, vertida do
grego em portuguez , pelo Director de uma das classes
da Academia ; com o texto , l vol. em 4. ° - - - - - 480
XXXIX. Taboas logarithmicas , calculadas até á sétima casa
decimal, publicadas de ordem da Real Academia das Scien-
cias por J. M. D. P., em 8.° - - - - - - . - - 480
XL. índice Chronologlco Remissivo da Legislação Portu-
gueza posterior á publicação do código Filippino, por João
Tom. IX. iMQi Pe-
274 Catalogo.
Pedro Ribeiro, C vol. 61114.° j^^^o
XLI. Obras de Francisco de Borja Garção Stockler, Secre-
tario da Academia Real das Sciencias , i.° vol. em 8. ° - 800
XLIi. Collecçâo dos principaes auctores da Historia portu-
gueza , publicada com notas pelo Director da classe de
Litteratura da Academia Real das Sciencias , 8 Tom. em 8.° 4800
XLIII. Dissertações chronologicas , e criticas, por João Pe-
dro Ribeiro , 3 vol. em 4. °-. -------- 2400
O tom. IV. parte I. -.----....-. ^qq
XLIV. Collecçâo de noticias para a Historia e Geografia
das nações ultramarinas , Tom. I. Números i.°, 3.", 3.°, e 4,' doo
0 Tomo II. -----.-----.-._ goo
XLV. Hippolyto, Tragedia de Senec?. ; e Piíedra, Tragedia
de Racine; traduzidas em verso, pelo Sócio da Academia
Sebastião Francisco de Mendo Trigoso , com os textos. 600
XLVI. Opúsculos sobre a vaccina : Números I. até XIII. 300
XLVII. Elementos de Hygiene , por Francisco de Mello
Franco , Sócio da Academia. Terceira edição correcta ,
e augiiientada pelo mesmo auctor , i vol. em 4.° - - 960
XLV 111. Memoria sobre a necessidade e utilidades do plan-
tio de novos bosques em Portugal , por José Boniracio de
Andrada e Silva , Secretario da Academia Real das Scien-
cias , I vol. em4. ° ._--_.._.__. .q^
XLIX. Taboadas perpetuas astronómicas para uso da na-
vegação portugueza, i vol. em 4.° ---.... ^qo
L. Elementos de Geometria , por Francisco Villela Barbosa ,
Sócio da Academia Real das Sciencias. Segunda edição,
1 vol. em 8.° ----------.-._ ^£q
LI. Memoria para servir de índice dos foraes das terras
do reino de Portugal , e seus domínios : por Francisco Nu-
nes Franklin, i vol. em 4.°---------- 480
LII. Tratado de policia medica , no qual se comprehendem
todas as matérias , que podem servir para organizar hum
regimento de policia de saúde para o interior do reino
de Portugal, por José Pinheiro de Freitas Soares, em 4.° 800
L,III. Tratado de Hygiene militar e naval, pelo Sócio Joa-
qiiim Xavier da Silva , i voL em4. ° ..--._ ^qq
LIV. Princípios de Musica , ou Exposição methodica das
doutrinas da sua composição e execução ,. pelo Sócio Ro-
drigo Ferreira da Costa: a vol. em 4..° ..'! .-í; ■.7^-.'- - 2400
LV. Tratado de Trigonometria rectilínea e esférica, por
Mattheus Valente de Couto, Terceira edição , i vol. em 4.° 360
LVL
Catalogo. 275-
LVI. Ensaio dermosographico , ou succinta e fystcmatica
descripçlo das doenças cutâneas, etc. por Bernardino An-
tónio Gomes, 1 vol. em 4.° --.-..-_. 1200
LVII. Memorias par.i a Historia da Medicina lusitana ,
por José Maria Soares , i vol. em 4. ° ------ joo
LVIII. Ensaio sobre alguns synonymos da lingoa portu-
gueza , por Fr. Francisco de S. Luiz , Segunda edição ,
I vol. em 4.° -------------- 720
LIX. Grammatica philosophica da lingoa portugueza , ou
principios da Grammatica geral applicados á nossa lingua-
gem, por Jeronymo Soares Barbosa, r vol. em 4.° - ♦ póo
LX. Collecção de Cortes. Congresso do Braço da Nobreza
nas de 1697 e 1698, i vol. bom papel --._-- 600
Nova Carta do Brazil e da America Portugueza - - - 1200
Vendem-se em Lisboa nas lojas dos mercadores de livros na
rua das portas de Santa Catharina j e em Coimbra , e no Porto tam-
bém pelos mesmos preços.
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