Skip to main content

Full text of "Memorias da Academia Real das Sciencias de Lisboa"

See other formats


iíA\ 


-•V- 


^•.^ 


»Hi.^*.:-.>«v 


1^ 


t  • 


^- 


\ 


HISTORIA 

MEMORIAS 

D  A 

ACADEMIA  R.  DAS  SCIENCIAS 

DE    LISBOA. 


S-f06-/.J).  Cf. 


HISTORIA 

E 

MEMORIAS 

DA 

ACADEMIA   REAL   DAS   SCIENCIAS 
DE    LISBOA. 

Nisi  utile  est  qtwd  facimus ,  sttdta  est  glofia. 
TOMO    IX. 


LISBOA 

NA  TYPOGRAFIA  DA  MESMA  ACADEMIA^ 

1825. 

Com  licença  às  S.  MAGESTÂDE. 


(ã.l^ 


HISTORIA 


D  A 


ACADEMIA  REAL  DAS  SCIENCIAS 

DE     LISBOA 

PARA      O      ANNO      DE       187.3. 


Discurso  do  Sereítissimo  Senhor  Infante  D.  Miguel^  Presidente 

da  jícadetnia ,  por  occasião  da  Sessão  publica   da  mesma 

Academia  em  z-j  de  Junho  de  1823. 

OR  singular  beneficio  da  Providencia  Divina  ,  sábios  Aca- 
démicos ,  se  abre  este  anno  a  Sessão  publica  da  nossa  Aca- 
demia debaixo  dos  mais  felizes  e  lisonjeiros  auspícios.  Nos- 
so adorado  Monarca  ,  Meu  Augusto  Senhor  e  Pai ,  nos  hon- 
ra com  a  Sua  Presença  ,  cercado  de  todo  o  explendor  da 
Magestade ,  e  firmado  no  Régio  Throno ,  que  herdara  de 
Seus  Maiores  ,  pela  Mão  do  Omnipotente ,  e  pelo  amor  e 
lealdade  de  todas  as  Classes  de  seus  vassallos :  e  a  distincta 


T.  IX.  P.  I. 


pro- 


li  Historiada  AcademíaRe AL 

protecção  com  que  este  Grande  Rei  sempre  auxiliou  e  pro  .• 
niovco  hum  cstabelccimciuo  ,  que  tem  por  divisa  a  titilidã'  '| 
àel  nos  dá  as  mais  bem  fundadas  esperanças   dos  progres- 
so^ da  associação  littcraria  a  que  pertencemos. 

'  A  relação  dos  trabalhos  ,  em  que  seus  Membros  se  oc- 
cupárão  desde  a  ultima  Sessão  publica  ,  vos  mostrará  que  ' 
o  amor  dos  bons  estudos  não  pôde  nellas  ser  suffocado  pe- 
los esforços  'da  tyrannia  ,  que  perseguindo  de  todas  as  ma- 
reiras,  c  subtrahindo  os  meios  de  subsistência  ás  corpora- 
ções scientificas  mais  respeitáveis,  e  dignas  de  auxilio  pe»  j 
los  fins  de  seus  institutos,  procurou  fazer  retrogradar  ai 
Nação  a  hum  estado  de  ignorância  e  barbaridade ,  que  nos  :. 
riscaria  da  classe  dos  povos  civilisados ,  e  nos  faria  appa- 
recer  no  meio  da  Europa  culta  como  Vândalos  e  Africanos. 
Lancemos  porém  hum  vco  sobre  esses  dias  de  luto  c 
amargura ,  e  voUando  os  olhos  para  a  agradável  perspecti- 
va que  nos  oíFerece  a  nossa  actual  situação ,  formemos  as 
mais  lisongeiras  esperanças  da  prosperidade  que  as  cir- 
cumstancias  promettem  á  Academia,  assim  como  a  todos 
os  estabelecimentos  destinados  á  instrucção  publica  e  á 
cultura  das  Artes  e  Sciencias.  A  paz  profunda  em  que  nos 
achamos,  e  a  Real  Protecção  de  Sua  Magestade,  ani- 
iriaráó  os  nossos  iitteratos  a  progredir  em  seus  trabalhos 
com  maior  fervor  e  energia ,  e  a  escrever  obras ,  que  le- 
vem seus  nomes  á  riiais  remota  posteridade. 

O  Deos  Todo  poderoso  ,  de  cujo  aceno  pende  o  des- 
tino dos  Impérios,  abençoará  (como  dclic  confio)  nossos 
desejos  e  esperanças ;  e  acolherá  benignamente  os  votos 
que  lhe  oflFerecemos  pela  constante  felicidade  do  Nosso 
Alto  e  Poderoso  Rei ,  meu  Senhor  c  Pai  ;  pela  prolongaçao 
de  sua  preciosa  Vida  ,  e  pela  gloria  e  prosperidade  dos 
povos  ,  que  em  sua  Sagrada  Pessoa  adorão  como  filhos  o 
Pai  amoroso,  e  respeitão  o  Soberano,  cujas  Reaes  Virtu- 
des illustrão  o  Throno,  e  derramão  contínuos  benefícios 
sobre  toda  a  Nação. 

Disse. 

DIS- 


I>AS    SCIENCIAS    DE    L  I  S  B  O  A. 


IIT 


DISCURSO    HISTÓRICO 

Recitado  na  Sessão  puUica  de  27  de  Junho  de  182' 

PELO      SECRETARIO 
JOSÉ    MARIA    DANTAS    PEREIRA. 


wJendo  innegavcl  que  os  Estados  intcressao  ent  ter  so- 
ciedades especialmente  encarregadas  de  cuidarem  no  aper- 
feiçoamento da  rasâo  humana ,  as  quaes  trabalhando  no  pio- 
grcsso^das  scjencias  e  das  artes  se  communiquem  as  suas 
invenções  provocando  e  premiando  ao  mesmo  tempo  as 
alhêas,  divulgando  todas,  e  servindo  ao  seu  paiz  como 
signal  ou  apoio  da  opinião  dos  homens  sábios ,  que  dispen- 
se os  outros  de  se  estremarem  nos  conhecimentos  indiíFe- 
rentes  ás  suas  profissões,  cumpre  concluir  que  o  Estado 
Portuguez  interessa  muito  em  conservar,  e  em  animar  a 
Academia  Real  das  Sciencias. 

Esta  proposição  he  confirmada  pelo  consenso  das  maio- 
res Cortes  Europcas,  e  pela  consideração  assim  como  pe- 
Ias  outras  vantagens,  que  nas  mesmas  Cortes  andão  inheren- 
tes  aos  logares  académicos,  por  se  entender  que  os  fins 
devem  corresponder  aos  meios,  assim  como  os  eíFeitos  ás 
causas  que  os  produzem. 

Todavia  acabamos  de  ver  reduzido  a  metade  o  dote 
académico  liberalisado  por  S,  Magestade;  e  esta  reducção 
foi  ordenada  por  aquelles  que  se  denominavão  nossos  re- 
generadores ,  contando  então  mesmo  no  seu  seio  mais  de 
hum  individuo  que  percebia  (sem  duvida  como  precisos 
para  a  sua  manutenção)  vencimentos  superiores  ao  votado 
para  toda  esta  Academia  ! 

*  I  ii  O 


IT. !  H  I  S.TO.Í  í  A.  [D  A-  A  C  A  r  EM  IÁ;:  R  E  A  L 

O  facto  hc  publico  ,  c  devo  infelizmenre  relatallo  ; 
porémí-a  causa  principal  de  o  recordar  consiste  era  p«-tea- 
dcr  que  nada  perciío  do  seu  realce  aquelles  de  que  foi  ori- 
gem;  pois  sinto  o  maior  prazer  cm  principiar  qst^:  relató- 
rio pelo  tributo  de  gratidão  devido  aos  meus  illustrissimos 
Consócios. 

Sim  ,  Senhores ,  apenas  sôa  o  rumor  pregoeiro  desta 
economia  apparcnte  e  mesquinha,  a  Academia  he  convoca- 
da ,  e  os  meus  Consócios  não  só  illustres  senão  também 
illustradores,  privao-se  de  continuarem  a  percçpçao  do  pp- 
quenissimo  emolumento  dos  jetócs,  alem  de  que  se  offere- 
ccm  para  saldarem  á  sua  custa  as  dcspczas  académicas;  dis»; 
tinguindo-se  com  especialidade  o  Silr.  Gypriano  Ribeiro.; 
Freire  ,  que  pcrtcnde  e  obtém  ser  elle  só  quem  preencha 
no  anno  corrente  o  deficit  do  dote  académico ,  por  conta 
do  qual  ja  forncceo  oitocentos  mil  réis,  e  mais  forneceria 
se  mais  lhe  fosse  pedido;  seguindo«se  daqui  podermos  cha- 
mar feliz  a  mesquinhez,  que  produzio  tanta  generosidade  e 
tonto  patriotismo ! 

WilEste  patriotismo ,  que  deve  aliás  precisar-nos  á  maior 
circunspecção  no  concernente  ás  despezas  da  Academia,  he 
também  comprovado,  assim  por  outras  despezas  de  alguns 
Sócios  como  pela  exposição  dos  trabalhos  executados  no 
decurso  do  anno  próximo ,  em  despeito  de  tão  desanimador 
tratamento,  assaz  opposto  ao  das  nações  cultas,  e  repugnan- 
te á  civilisação  da  Europa  :  tratamento  que  demais  a  mais  se 
accbmulou  a  dcsviação  de  nossas  idéas  para  outros  objectos ; 
a  huma  agitação  violenta  incompativel  com  a  fructificação 
da  oliveira ;  e  a  não  haver  Sócio  que  deva  considerar  como 
seu  único  emprego  publico  a  satisfação  ,das  suas  obrigações 
académicas;  isto  he ,  a  mais  assídua  e  preciosa  cultura  da- 
quella  arvore  assaz  própria  do  nosso  clima,  e  cujos  íructos 
intercsão  tanto. 

Com  effeito  jquem  não  esperaria  que  taes  e  tão  mul- 
tiplicados obstáculos  anniquilasscm    hum  anno   que  ,   tendo 
sido  infausto  nós  registos  littcrarios,  e  sendo    bem  apete- 
O  :.         •  ci- 


DAsSciENCIASDÇLrSBOA.  V 

eivei  que  pelo  menos  o  não  fosse  çm  outro  alginn  respei- 
to, veio  por  ventura  a  finaiisar  em  vernaos  restituído  ao 
seu  antigo  esplendor  o  grande  dia  do  nomí  do  nosso  Au- 
gusto Soberano?  dia  para  cujo  festejo  a  Academia  concor- 
re rta  Sessão  presente ,  díndo-vos  conta  do  emprego  do 
tempo  e  dos  meios  disponivçjis  desde  a  próxima  Sessão 
anterior  ? 

He  certo,  mas  não  estranhavel ,  que  nos  foi  impos- 
sível adiantar-nos  tanto  quantc»  nos  adiantaríamos  em  ter- 
reno franco  ,  sem  outra  obrigação  mais  do  que  a  de  mar- 
char. a<i)  longo  delle  ;  porém  não  deixaiá  de  merecer  attea- 
ção  a  substancia ,  por  assim  dizer ,  desce  relatório  que  .di- 
vidirei cm  trez  partes,  incluindo  na  primeira  os  trabalhos 
individuaes  mais  notáveis ;  na  segunda  os  restantes ;  na  ter- 
ceira os  que  forão  offcrecidos  á  Academia  :  depois  lerei  o 
programma,  e  nada  mencionarei  acerca  do  deste  anno,  por- 
que ninguém  concorreo  a  elle  ;  tão  geral  foi  o  desalento 
filho  dos  nossos  padecimentos,  c  da  falta  daquelle  espirito 
emprehendedor ,  que  quasi  sempre  anda  precedido  por  bem 
fundadas  esperanças  de  vantagens  tão  análogas  como  pro- 
porcionadas ás  fadigas  a  que  elle  nos  conduz. 

Primeira     Parte. 

O  Snr.  Francisco  Xavier  de  Almeida  Pimçnta ,  nosso 
correspondente ,  enviou-nos  as  suas  Investigações  sobre  a  na- 
tureza e  antiguidade  das  aguas  mineraes  de  Cabeço  de  Vide ; 
cujo  exame  lhe  foi  incumbido  pela  Academia  ,  e  desempe- 
nhou como  se  esperava  do  seu  zelo  e  préstimo. 

O  Snr.  Joaquim  Pedro  Fragoso,  incansável  nos  seus 
trabalhos  litterarios,  apresentou  huma  Memoria  que  intitu- 
lou Ensaio  sobre  o  conhecimento  das  arvores  silvestres  e  fructi- 
feras  de  Portugal. 

O  Snr.  António  Diniz  do  Couto  Valente,  que  vai 
mostrando-sc  filho  digno  de  succcder   a  seu  distincto  pai , 

cal- 


VI  Historiada  A cademiaReal 

calculou  e  apicscnrou  impressas  no  fim  de  Mrtrçò  ^sEphe- 
nieridcs  tiatirkax  para  o  anno  de    1824. 

O  Snr.  Matthcus  Valente  do  Couto ,  apezar  de  muito 
clevadamehte  occupado,  apresentou  a  continuação  das  Ob- 
servações astronómicas  feitas  no  Observatório  Real  da  Ma- 
rinha ,  c  acaba  de  offerecer  a  primeira  parte  de  huma  Me- 
moria sobre  a  architectura  naval. 

Monsenhor  Ferreira  ,  cujo  distincfo  merecimento  he 
assa/,  notório,  augmcntou  o  thesouro  litterario  da  Academia 
com  duas  Memorias  ,  em  huma  das  quaes  escreve  acerca  dos 
Judcos  em  Portugal ;  e  na  outra  sobre  a  influencia  do  Con- 
cilio de  Trento  na  legislação  Portugueza, 

O  Siir.  Fr.  Fortunato  de  S.  Boaventura ,  bem  conhe- 
cido na  littcratura  lusitana,  accrescentou  ás  suas  obras  aci- 
demicas  huma  Memoria  em  que  trata  do  nosso  Chronista 
Fr.  António  Brandão. 

O  Snr.  Francisco  Nunes  Franklin  augmentou  seme- 
lhantemente os  distinctos  productos  do  seu  génio  traba- 
lhador com  huma  Memoria  relativa  aos  Chronistas  Portu- 


guczcs 


O  Snr.  João  da  Cunha  das  Neves  e  Carvalho ,  nosso 
Correspondente  premiado  por  esta  Academia  ,  ofFereceo 
huma  Memoria  sobre  a  Provisão  do  Senhor  D.  AíFonso  II. 
acerca  dos  Decretos  chamados  de  Fr.  Soeiro  Gomes. 

O  Srir.  José  Feliciano  de  Castilho  vai  rcmettendo-nos 
cm  vários  quadernos  a  sua  Memoria  sobre  as  Ilhas^  de  Cabo 
verde ,  que  tanto  merecem  a  nossa  attençao  ,  e  mormente 
nas  actuaes  circumstancias. 

O  Snr.  Manoel  José  Maria  da  Costa  c  Sá ,  exceden- 
do o  desempenho  dos  seus  deveres  académicos  accumula- 
dos  sobre  os  muito  consideráveis  do  seu  principal  empre- 
go assaz  afadigoso,  apresentou  duas  Memorias,  tratando 
em  huma  do  nosso  commercio  com  Tunes ,  e  descrevendo 
na  outra  a  Serra  nevada  do  Brasil. 

Forão  recebidas  e  julgadas  merecedoras  da  luz  publica 
as  poesias  posthumas  do  Snr.  Sebastião  Francisco  de  Men- 
^  ^  do 


TIAS  SciENciAs  DE  Lisboa.  vir 

do  Trigoso ,  que   tanto   se  distinguio    como    sábio  Porcu- 
guez,  c  como  Sócio  desta  Academia. 

Segunda     Parte. 

Os  trabalhos  da  Instituição  Vaccinica  tem  proscquido 
sem  interrupção  nesta  Capital ,  e  com  o  mais  louvável  zelo 
por  parte  dos  Sócios  respectivos  :  com  tudo  a  vaccinação 
nas  províncias  está  quasi  parada  por  faltarem  vaccinadores 
que  a  propaguem;  motivo  pelo  qual  apenas  chega  a  2:697 
enumero  dos  vaccinados  de  que  se  dêo  parte  á  Instituição, 
parecendo  todavia  que  devem  ter  sido  mais  ,  attendida  a 
quantidade  de  matéria  vaccinica  distribuiJa  por  differentes 
vezes ,  e  por  diversas  partes  do  Reino  ;  sendo  notável  não 
ter  constado  facto  que  deixasse  de  dever  augmentar  o  cre- 
dito da  virtude  antivariolosa  da  vaccina  ;  virtude  que  no 
scculo  prezente  ,  contrapesando  parte  da  destruição  da  es- 
pécie humana  produzida  por  hum  fatal  espirito  innovador, 
e  voraginoso,  deve  elevar  tanto  mais  o  nome  de  Jenner  , 
quanto  mais  o  génio  bcmfazejo  da  humanidade  deve  sobre- 
sahir  ao  seu  contrario ,  que  poderá  obter  celebridade ,  mas 
nunca  veneração  e  amor. 

Passando  agora  á  publicação  dos  capitules  das  antigas 
Cortes  Portuguezas  ,  cumpre-me  referir  que  estão  compi- 
ladas até  o  tempo  do  Senhor  D.  Diniz,  Soberano  de  sau- 
dosíssima recordação  para  os  Portuguezes  em  geral,  e  mui- 
to especialmente   para  os  lavradores  e  litteratos. 

As  aguas  mineraes  de  Lisboa  e  seu  termo  forao  ob- 
jecto sobre  o  qual  se  oilíciou  ao  Governo  ,  respondendo  a 
huma  Portaria  delle  com  o  extracto  do  parecer  da  Com- 
missão  incumbida  deste  negocio  pela  Academia ,  sendo  as- 
saz para  sentir  que  tenhamos  sido  muito  precedidos  a  este 
rcspL-iro  pelas  nações  mais  cultas  da  Europa  ,  as  quaes  ja 
tem  publicado  as  analyses  das  suas  aguas  ,  e  conseguinte- 
nente  conhecem  todas  as  vantagens  que  delias  podem  ti- 
rar. 

A 


vnr  Historia  da  Academia  Real 

A  Academia  foi  tambcm  encarregada  de  fazer  constar 
a  sua  opinião  sobre  a  arqueação  dos  navios  nacionacs,  e 
sobre  o  modo  de  facilitar  o  seu  calculo  pratico ,  assim  co- 
mo o  comparativo  com  as  tonnclndas  estrangeiras:  trabalho 
este  assaz  importante,  que  existe  muito  rccommendado  qo 
benemérito  Director  da  classe  das  sciencias  exactas. 

A  rcducçao  do  dote  académico  precisou-nos  a  dar  por 
concluida  a  preparação  dos  peixes  fluviaes  e  marítimos  de 
Portugal  :  por  cujo  motivo  esta  collecção  icthyologica  Por- 
tugueza  contêm  por  agora  tão  somente,  aoo  preparações, 
que  comprehendem  70  espécies. 

Finalmente  a  Academia  fez  imprimir  na  sua  typogra- 
fia  não  só  as  Ephemerides  mencionadas  ,  senão  também  a 
Hygicne  do  seu  fallecido  e  muito  distincto  Sócio  o  Snr. 
Francisco  de  Mello  Franco ,  da  qual  veio  assim  a  ver  a  luz 
publica  huma  terceira  impressão  :  accrescendo  que  também 
foi  impressa ,  e  distribuída  na  forma  do  costume  a  primei- 
ra parte  do  tomo  8."  das  Memorias  académicas. 

Terceira     Parte. 

O  nosso  Sócio  estrangeiro  o  Snr.  Christiano  Martinho 
Fraehn  offereceo  á  Academia  huma  noticia  do  Muzeo 
Asiático  da  de  S.  Petersburgo ,  e  a  lista  das  medalhas  ará- 
bicas aili  existentes. 

O  Siír.  Maria  Carlos  José  Pougens ,  da  Academia  Real 
das  Inscripções  e  Bellas  letras  em  Paris,  e  nosso  Sócio, 
enviou-nos  hum  exemplar  da  sua  Archeologia  Fr^mceza, 

O  Snr.  D.  Francisco  Xavier  Cabanes ,  General  Hespa- 
nhol  ,  e  nosso  correspondente ,  remctteo  de  Madrid  inte- 
ressantes mappas  dos  movimentos,  e  acções  principacs  na 
peninsula  durante  a  guerra  de  Hespanha ;  de  cujo  reino  e 
ilhas  adjacentes  mandou  também  hum  quadro  estatístico. 

O  Snr.  João  Adamson  enviou  de  Londres  hum  folhe- 
to com  duas  taboas  principalmente  compiladas  para  uso  dos 
collectores  de  conchas. 

Veio 


dasSgienciasdeLisboa.  IX 

"Veio  de  Paris  oíFcrecido  por  Mr.  Norvins  hum  exem- 
plar do  seu  poema   sobre  a  immovtalidade  da  alma. 

Semelliantcmente  veio  de  Londres  oíFerecido  pelo  Snr. 
Samuel  Parkes  hum  exemplar  do  seu  discincto  Cathccismo 
de  Chymica. 

A  Academia  Real  das  Sciencias  e  Bellas  letras  de  Bru- 
xellas  enviou  dois  volumes  de  Memorias,  dirigindo-nos  por 
esta  occasião  a  mais  lisongeira  carta  :  hum  dos  volumes  he 
o  i.°  tomo  das  suas  novas  Memorias  ;  e  o  outro  he  hum 
exemplar  das  premiadas  em  1817. 

O  Snr.  António  Feliciano  de  Castilho  oíFerecêo  hum 
exemplar  da  sua  collecção  de  Poematos  sobre  a  Primavera. 

Monsenhor  Ferreira  apresentou  os  riscos  originaes  do 
Palácio  Real,  cuja  execução  chegou  a  ser  ordenada  pelo 
Siir.  Rei   D.  José. 

O  Siir.  Ignacio  António  da  Fonseca  Benevides,  nosso 
Sócio,  dco-nos  dois  exemplares  dos  Estatutos  da  Sociedade 
Medica  Lisbonense. 

O  Srir.  José  Feliciano  Fernandes  Pinheiro  ,  presen- 
temente nosso  Consócio ,  offcreceo  hum  exemplar  do  se- 
gundo tomo  dos  seus  annaes  da  Província  de  S.  Paulo. 

O  nosso  Sócio  o  Siír.  D.José  Alaria  de  Sousa  remet- 
tco  de  Paris  a  cfEgie  do  immortal  Camões  gravada  em 
huma  medalha  de  bronze. 

O  Snr.  Vicente  José  Ferreira  Cardoso  ,  nosso  Sócio 
correspondente  ,  brindou-nos  com  hum  exemplar  da  sua  obra 
intitulada  O  que  he  o  Código  civil. 

Conclusão. 

Fica  pois  evidenciado  por  este  relatório ,  que  as  letras 
Portuguezas  estão  ainda  felizmente  protegidas  pelas  únicas 
duas  protecções,  que  podem  fazer  gyrar  brilhantemente  o 
orbe  litterario,  aíFugcntando  os  erros  inimigos  da  humani- 
dade ,  assim  como  o  Sol  vivificador  do  mundo  fisico  affugcn- 
ta  delle  as  trevas,  que  o  enlutão  e  amortecem. 
T.  IX.  P.I.  *  1  Ago- 


X  Historia  DA  Academia  Real 

Agora  mesmo  ,  Senhores  ,  estamos  go/ando  de  hum 
dcliciusissimo  espectáculo,  pois  vemos  as  Ictnis  Portugue- 
zas  protegidas  por  si  mesmas,  e  pela  Augusta  Presença  de 
Sua  Magestade  a  quem  somos  aliás  tão  devedores  ;  ac- 
crescendo  ser  tal  a  sua  bondade  ,  que  podemos  recopilar  o 
seu  principal  elogio  dizendo  com  o  nosso  antigo  Ferreira, 
que  Sua  Magestade  hc  verdadeiramente  Rei  e  Pai,  Senhor 
e  Amigo,  de  todos  os  bons  Portuguc/es. 

Com  estas  protecções  concorre  a  bem  do  progresso 
littcrario  a  distincçao  de  sermos  presididos  pelo  Sereníssimo 
Senhor  Infante  D.  Migufi,  ,  que  tem  honrado  as  nossas 
sessões  com  a  sua  Real  Presença  ,  e  que  sem  duvida  nos 
continuará  esta  honra  para  inflamar  a  nação  no  amor  das 
letras,  assim  como  acaba  de  inflamalla  no  da  Monarquia,  e 
da  Real   F^amilia, 

Sim,  Senhores,  S.  A.  R,  tem  mostrado  que  se  con- 
sidera na  obrigação  de  ser  grande  em  todas  as  acções  da 
sua  vida;  sabe  que  a  verdadeira  gloria  consiste  em  promo» 
ver  quanto  he  possivel  o  bem  geral  da  pátria  ;  conhece 
quanto  este  bem  depende  do  progresso  e  diffusão  dos  co-» 
rhecimentos  úteis  ;  não  ignora  que  os  Soberanos  de  mais 
saudosa  recordação  tem  sido  os  mais  amantes  das  letras  cm 
todos  os  impérios  do  mundo ;  e  que  o  maior  cxplendot* 
politico  destes  impérios  tem  sido  coevo  com  o  litterario , 
proseguíndo  este  muitas  vezes  depois  de  attenuado ,  ou  ani- 
quilado aquelle ;  em  fim  S.  A.  R.  acaba  de  observar  quanw 
to  influe  nos  Portuguezes  o  agrado  e  a  presença  de  huma 
Real  Pessoa:  esperemos  pois  com  toda  a  confiança,  que 
também  se  empregará  em  fazer  florecer,  e  fructificar,  a  ins- 
trucção  geral  e  proveitosa,  com  o  mesmo  zelo,  que  na  au- 
rora dos  seus  dias  acaba  de  empregar  na  dissipação  das 
guerras  civis,  e  na  restauração  da  Monarquia. 


DIS- 


DAS    SciENCIAS    DE    LiSBOA. 


xr 


DISCURSO 


Recitado  feio  Secretario  José  Maria  Dantas  Pereira  no  Paço 
da  Bemposta,   perante  ElRey  Nosso  Senhor,  por  occasiao^ 
da  felicissima  restauração  do  Tbrono  Lusitano. 

SENHOR 

lluMA  facção  maligna,  usurpando  o  nome  da  Naçáo 
Portugueza  ,  ouzou  artentar  contra  a  independência  desta 
Nação  fiel,  procurando  desmantelar  e  abater  o  Throno  Au- 
gusto, que  V.  Magestade  herdou  de  seus  Renes  Progenito- 
res ,  conforme  as  leis  fundamentaes  da  Monarquia  :  com  ef. 
feno,  <;qucm  dirá  que  pertender  democratisar Portugal,  nas 
suas  actuacs  circunstancias,  não  equivale  a  intentar  fazello 
hespanhol  ? 

Os  Portuguezes  pois,  vendo-se  illudidos,  espoliados, 
c  abysmados  na  voragem  terrivel  das  desgraças  mais  horri- 
veis,  anhelaváo  sacudir  tao  hediondo  jugo ;  e  restaurar 
aquellas  suas  instituições  tão  antigas  como  sabias,  que  exal- 
tando c  abrilhantando  cada  vez  mais  a  Real  Coroa  ,  cen- 
tuplicarão o  seu  poder,  dilatando-o  prodigiosamente  por 
todas  as  quatro  partes  da  terra. 

Todavia  submissos  ainda  mais,  se  he  possível,  do  que 
leaes  ao  seu  Monarcha  ,  esperavao  hum  signal  ,  que  lhes 
afiançasse  ser  do  Real  Agrado  a  execução  deste  seu  inten- 
to verdadeiramente  nacional  e  bemfazejo. 

Eis  hum  Infante,  preclaro  filho  de  V.  Magestade ,  ar- 
vorando  a   bandeira  deste   signal,    e    designando   assim   o 
1    ,  «    _    •■ 


*  2  u  mo. 


XII  Historia  DA  Academia  Real 

momento  opportuno  para  a  satisfação  da  geral  vontade  : 
V.  JNbj>cstade  firma  aqucUa  bandeira ;  e  Portugal  resurge 
immediatamente  prostrando,  e  soterrando  a  negra  facção  anár- 
quica. 

São  fructos  immediatos  de  tão  grande,  rápido,  e  bem 
concebido  movimento  ,  a  extincção  da  guerra  civil  em  am- 
bos os  hemisférios  ,  e  a  do  receio  da  guerra  estrangeira  : 
alem  de  que  resurge  o  socego  das  familias,  do  Throno  ,  e 
do  Altar;  o  commercio  se  reanima;  e  em  huma  palavra  a 
Monarquia  se  restaura ,  fazendo-se  provável  que  o  Brasil  se 
reúna  a  Portugal  como  bom  irmão ,  e  conseguindo-se  van- 
tagens taes  e  tantas,  dentro  de  brevíssimos  dias,  sem  o 
custo  de  huma  só  desgraça  ,  ou  do  mais  leve  damno. 

Testemunha  pois  de  tão  altas  venturas  a  Academia  das 
Sciencias,  que  jamais  deixou  de  cognominar-se  Real,  e  de 
ser  sensível  á  publica  prosperidade ,  trasborda  no  maior  ju- 
bilo por  tão  felices  acontecimentos :  e  envia  respeitosamen- 
te esta  depuração  á  muito  Augusta  Presença  de  V.  Ma« 
gestade  para  ter  a  honra  de  congratular  a  V.  Magestade 
por  tão  admirável  restauração ;  expressando  ao  mesmo  tem- 
po os  mais  vivos  desejos  de  que  a  sua  duração  iguale  a  do 
mundi) ;  e  beijando  com  o  maior  acatamento  a  Mão  Real 
do  melhor  Soberano. 


DIS- 


DAS   SCIÇNÇIAS   DE    LiSBOA,  XIII 


DISCURSO 


Recitado  pelo  Secretario  Jasd  Maria  Dmtat  Pereira  nç  Pap 

da  Bemposta ,  perante    o  Sereuissiuw  Senhor  Infante  J}. 

Miguel ,  Presidente  da  Academia ,  por  occflsião  dfl  fç~ 

licissima .roftauraç^no  do  Throm  Lusitano. 


SENHOR 


A 


Academia  Real  das  Sciencias,  que  se  honrava  respei- 
tando em  V.  A.  R.  o  seu  Presidente  ,  se  felicita  ,  e  se 
gloria  ,  muito  extraordinária  e  grandemente  ,  contemplando 
que  V.  A.  R.  acaba  de  unir  áqucUe  titulo  de  seu  Presi- 
dente os  immortaes,  e  muito  distinctos,  de  restaurador  da  Mo- 
narquia Portugueza ,  e  destruidor  das  guerras  civis ,  que  no 
fim  de  trinta  annos  de  gravíssimos  padecimentos  ,  augmen- 
tando-os  sobremaneira ,  deveriao  produzir  terríveis  convul- 
sões politicas,  que  terminarião  (provavelmente  fallando ) 
na  aniquilação  da  independência  nacional ,  se  huma  força 
estrangeira ,  e  se  a  politica  europea ,  não  precisassem  a  Hes- 
panha  a  deixar  de  avaaçar  pelo  caminho  da  destruição 
alhêa ,  e  própria ,  por  onde  a  França  havia  marchado  tão 
tristemente. 

Ah!  e  com  que  suavidade,  com  que  rapidez,  hum  só 
movimento  patriótico  de  V.  A.  R. ,  evidenceando  aliás  quan- 
to por  ventura  ainda  influe  em  Portugal  o  exemplo  das 
Reacs  Pessoas ,  nos  levantou  ao  cume  da  fortuna  quando 
híamos  precipitando-nos  pelo  despenhadeiro  da  desgraça  ! 
Desconfianças,  violências,  e  todos  os  perigos  que,  ou  ja 
nos  dilaceravão,  ou  ameaçavão  arremessar-nos  proniptamen- 

tc 


XIV  Historia  da  Academia  Real 

te  ás  voragens  da  desordem,  c  da  miséria,  desappareccrão 
dentro  de  oito  dias ,  podendo  V.  A.  R.  dizer  verdadeira- 
mente :  (i  Dentro  de  liuma  semana  sahi  de  Lisboa ,  e  venci 
j>  os  maiores  inimigos  da  minha  Pátria.  »» 

A  Academia  pois  scnsivel  e  reconhecida  a  tantos  e 
taes  benefícios,  exulta  de  prazer,  e  tanto  mais  exulta  por 
isso  que  somente  a  verdadeira  sciencia  pôde  conhecer  o 
justo  valor  de  tudo,  e  antever  os  prováveis  futuros  que 
devem  brotar  do  presente  c  do  passado:  por  tanto  anima- 
da pelo  mais  puro  e  fervoroso  reconhecimento ,  envia  esta 
deputação  para  ter  a  honra  de  beijar  em  seu  nome,  e  por 
hum  tal  motivo,  a  Regia  Mão  de  V.  A.  R. 


DIS- 


DAS    SCIENCIAS    DE    L  I  S  B  O  A.  XV 


DISCURSO 

Recitado  pelo  Secretario  José  Maria  Dantas  Pereira  uo  Paço 
da  Bemposta ,  perante  ElRey  Nosso  Senhor ,  por  occasiao  do 
acontecimento  de  Cadiz  ,  e  do  venturoso  anniversario  do  Sere- 
níssimo Senhor  Infante  D.  Miguel^  Presidente  da  Academia. 


SENHOR 


N- 


A  longa  serie  das  Inconsequencias  ,  ou  das  contradic- 
ções  do  espirito  humano,  sobresahirá  infeliz  e  grandemen- 
te a  pertenção  dos  actiiaes  demagogos. 

No  mundo  moral ,  e  no  físico ,  procede  tudo  gradual- 
mente ,  e  nenhum  excesso  dura  :  todavia  elles  tem  estado 
sempre  em  manifesta  contradicçao  com  estas  leis  tão  ge- 
laes,  e  salutiferas. 

Em  vão ,  desde  a  mais  remota  antiguidade  os  verda- 
deiros sábios  confirmão  aquella  verdade  tSo  importante :  em 
vão  o  maior  Corifeo  dos  mesmos  demagogos  lhes  deixou 
escrito ,  que  a  necessidade  elevou  os  thronos ,  e  a  sabe- 
doria os  firma. 

Simplices  iniciados  (e  quantos  delles  bem  simplices!) 
adorão  o  Corifeo,  porém  nutridos  pelo  mais  atroz  espirito 
de  seita,  ou  pela  mais  negra  malevolencia ,  ou  pela  des- 
truidora ignorância ,  tem  ou^iado  conluiar-se  para  derribarem 
o  que ,  tendo  sido  elevado  pela  necessidade ,  está  firmado 
pela  sabedoria  ! 

Tão  vãos  como  orgulhosos  (pois  a  soberba  he  inhe- 
rente  á  mesquinhez  elevada )  contrapõem  mesmo  as  suas 
obras,  e  os  seus  discursos-  ao  axioma  politico  de  ser  prc- 

fc- 


XVI  Historia  da  Academia  Real 

fcrivcl    para    qualquer    ruçao    aquclle  governo    a  que  e!la 
existe   habituada. 

Dcvião  pois  seguir-se  a  taes  inconsequencias ,  ou  a 
tacs  coinradicçõcs ,  os  terríveis  males,  cm  cujo  hediondo 
pélago  hianios  naufragando. 

Com  cffeiro,  querer  fundar  a  igualdade  geral  sobre  a 
desigualdade  física,  moral,  e  civil,  tão  profundamente  ar- 
raigada ,  e  tão  incessantemente  promovida  pelas  diíFercnças 
de  educação  ,  instrucçáo ,  haveres  ,  profissões  ,  caracteres  , 
c  talentos ;  querer  cm  summa  fundar  a  democracia  sobre  à 
geral  desejo  de  sobresahir  e  dominar,  ou  sobre  a  geral  re- 
pugnância ao  nivelamento  politico,  pois  ninguém  quer  ser 
igual   ao  seu   inferior ,  he  querer  realisar  a  quimera. 

^  Que  conceito  pois  deve  corresponder  á  pertenção 
ainda  mais  absurda  ,  ou  monstruosa ,  de  transformar  anti- 
gas monarquias  em  democracias;  quando  taes  movimentos 
marchão  cm  geral  na  direcção  opposta? 

O  próprio  terror  exhauriria  os  seus  recursos  mais  hor- 
ríveis, antes  de  conseguir  taes  realisações ,  ou  transforma- 
ções ,  como  vimos  acontecer  aos  Francezes ;  e  por  tanto 
assaz  se  patentea  a  miseranda  sorte  preparada  pura  a  gran- 
de Hespanha  pelos  seus  allucinados  ou  perversos  demago- 
gos. 

Mas  a  este  tão  horrivel  como  voraginoso  rodomoinho 
seria  Portugal  arrastado  por  aquella  visinha  poderosa  c  úni- 
ca, SC  tão  desgraçado  systema  prevalecesse  a!  11  por  algum 
tempo,  infelicitando  a  península,  e  ameaçando  a  Europa 
estremecida  pela  França,  que  em  certo  modo  lhe  inoculou 
o  contagio,  sem  deixar  livie  delle ,  ainda  mesmo  a  isola- 
da e  constitucional  Inglaterra, 

Em  tão  criticas  circunstancias  a  queda  do  empório  da 
seita  liespanhola,  certificando-nos ,  que  tão  grande  como 
próximo  perigo  se  affastou  dos  nossos  larjs  ,  e  dos  presen- 
tes dias ,  deve  encher-nos  do  maior  regosijo  ,  sem  que  to- 
davia  nos  lance  nos  braços  de  huma   confiança  perigosa. 

Os  Poituguezcs,  Senhor,  tem  mais  hum  motivo  sin» 

gu- 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  XVH 

guiar  para  se  congratularem  por  tão  decidido  acontecimen- 
to ;  pois  ellc  os  livrou  de  cuidados  gravíssimos  acerca  de 
hum  neto  de  V.  Magestadc  ,  de  huma  Infanta  Porrugueza , 
e  de  huma  Princcza  tão  exemplar  no  cumprimento  dos  al- 
tos deveres  da  maternidade,  que  chegou  a  sacrificar-lhes  a 
sua  pr('pria  vida. 

Nestes  termos,  a  Academia  Real  das  Scíências,  cheia 
do  maior  prazer  ,  tem  a  honra  summamente  preciosa  de 
congratular  com  todo  o  respeito  a  V.  Magestade  por  tão 
plaubivel  successo ;  e  com  esta  congratulação  reverente ,  e 
affcctuosa  ,  combina  em  certo  modo  a  que  respeita  o  gran- 
de anniversario  festejado  com  tanta  razão  no  dia  de  hoje: 
dia  que  tão  intimamente  lhe  toca  ;  dia  cuja  solemnidade  a 
mesma  Academia  espera  ver  cada  vez  mais  abrilhantada 
pelas  heroicidades  do  seu  Presidente,  e  pelas  subsequen- 
tes effusões  da  gratidão  Portugueza. 

Por  ambos  os  motivos  pois  esta  Academia  Real  tem 
a  honra  de  beijar  com  o  maior  acatamento  a  Mão  Sobera- 
na,  que  protege  as  sciencias  em  Portugal,  assim  como  os 
maiores  Ptolomeus  as  protegerão  no  Egipto ,  os  Medicis 
em  Florença ,  Luiz  XIV  em  França  ,  o  grande  Frederico 
cm  Berlin ,  e  o  grande  Czar  na  Rússia. 


^ToM.  IX.  P.  I,  •  3  DIS- 


sViir  Historia  da  Academia  Real 


DISCURSO 

Recitado  pelo  Secretario  José  Maria  Dantas  Pereira  no  Faço 
da  Bemposta  ,  perante  o  Sereníssimo  Senhor  Infante  D.  Mi- 
■  guel ,   Presidente  da  academia ,  por  occasiiío  do  feliz  anni- 
versario  de  S.  uí.  R. ,  e  do  acontecimento  de  Cadiz. 


SENHOR 


i^E  a  queda  feliz  de  Cadiz  deve  concorrer  para  se  firmar 
a  restauração  do  Throno  Portuguez ,  esta  felicíssima  restau- 
ração concorrêo  indubitável  e  grandemente  para  se  effeituar, 
e  apressar  aquella  queda. 

Porém  a  V.  A.  R.  coube  em  tão  prodigiosa  restaura- 
ção a  primazia  ,  que  todos  presenciámos  ;  devemos  pois 
considerar  cm  V.  A.  R.  hum  dos  principaes  fautores  daquel- 
le  acontecimento ,  cujas  consequências  cumpre  que  sejâo 
tão  grandes  como  felicitadoras. 

Por  este  motivo  a  Academia  Real  das  Sciencias ,  in- 
teressada verdadeiramente  na  estabilidade  e  na  exaltação  do 
Régio  Throno  Lusitano,  tem  a  honra  de  expressar  peran- 
te V,  A.  R.  que  serão  eternos  o  seu  reconhecimento  ,  a 
sua  gratidão  ,  e  o  seu  especial  respeito  para  com  a  Real 
Pessoa  de  V.  A.  R. 

Demais  a  mais  a  sublime  parte  que  de  tão  importan- 
te queda  parece  caber  a  V.  A.  R. ,  concorre  para  serem  sa- 
tisfeitos os  votos  fervorosíssimos  da  mesma  Academia,  im- 
m^irtalisando  este  faustissimo  dia,  em  que  todos  os  leaes 
Portuguczes ,  possuídos  do  prazer  mais  bem  merecido  ,  ce- 
lebrão  o  nascimento  de  huraa  Real  Pessoa,  que  tão  suave 


DAS    SCIENCIAS   DE    L  I  S  B  O  A.  XIX 

e  promptamcntc  os  livrou  dos  horrores  da  mais  abominável 
demagogia. 

No  brilhantíssimo  foco  deste  pomposo  cortejo ,  a  Aca- 
demia Real  das  iJcicncias  procura  em  fim  distinguir-se  fe- 
licitando a  V.  A.  R.  ainda  mais  com  o  coração  ,  do  que 
com  as  vozes,  ou  com  apparatosas  apparencias  :  e  por  tan- 
to beija  tão  reverente  como  affcctuosamente  a  Regia  Mao. 
de  V.  A.  R. ,  a  quem  DEOS  conserve  numerosíssimos  an- 
nos ,  como  convém  a  todos  os  Portuguezcs  verdadeiramen- 
te amantes  do  seu  Rei ,  e  da  sua  Pátria. 


•  3  ii  PRO- 


PROGRAMMA 

D   A 

ACADEMIA   REAL    DAS   SCIENCIAS 
DE     LISBOA, 

ANNUNCIADO    NA    SESSÃO    PUBLICA    DE    27    DE    JUNHO    DE    1823. 


NAS   SCIENCIAS   NATURAES. 
Para  o  anno  de  1824. 


Jbji 


I M  CHYMICA  com  premio  dobrado.  Determinar  por  expe- 
riências chymicas ,  que  analogia  e  diferença  ha  entre  o  la- 
ctucarium  e  o  ópio  ^  e  se  o  lactiicario  ,  que  se  extrahe  dos 
thallos  das  alfaces  espigadas ,  também  existe ,  e  em  que  pro- 
porção ,  nas  folhas  da  mesma  planta  antes  de  espigar. 

EM  MEDICINA.  Determinar  por  observações  clinicas ,  em  que 
dijferem  os  e ff  eitos,  do  lactiicario  dos  do  opto, 

EM  MEDICINA.  Mostrando  a  experiência ,  que  o  ttso  da  qui- 
na ,  e  de  outros  amargos  chamados  anti-febris  he  nocivo  em 
muitas  febres  intermitt entes  ^  designar  ^  em  quaes  destas  suo 
indicados  aquelles  medicamentos ;  e  qual  seja  o  tract amento 
conveniente  nas  outras  :  estabelecendo  principias  theoricos ,  e 
referindo  factos ,  para  provar  a  opinião  que  se  adoptar  em 
qualquer  dos  dois  ca'^os. 

EU  ECONOMIA  RURAL.  Visto  o  estado  da  nossa  agricul- 
tura ,  determinar ,  qual  seria  o  melhor  methodo  para  conse- 
guir.,  que  as  encostas  e  cumes  dos  nossos  montes^  que  estão 
incultos  j  se  plantassem  de  arvores.  De  que  espécie  se  poderia 

ti- 


ni^s  SciENCiAS  DE  Lisboa.  xxt 

tirar  maior  partido  ?  ^al  seria   a  sua  melhor  plantação  e 
cultura  ?  E  que  interesses  poderião  resultar  delia  ao  Estado  ? 

Para  o  anno  de   1825". 

EM  ECONOMIA  RURAL ,  E  DOMESTICA.  Sendo  recouhe- 
cidu  nas  nossas  fabricas  de  tincturaria  a  necessidade ,  e  uti' 
lidade  da  planta  chamada  Gianza ,  otí  Ruiva  dos  tinctu- 
reiros  ,{Riibia  tinctorum  Linn.)  :  Em  que  terrenos  prospera 
mais  a  sua  cultura  ?  Qtie  outras  espécies  se  lhe  podem  sub- 
stituir ;  e  se  alguma  delias  merece  a  preferencia  na  tincttt' 
raria  ?  Por  que  modo ,  e  em  que  tempo ,  devemos  promover 
a  cultura  desta  planta  ?  Oitando  estará  nas  circumstancias 
de  se  recolher  para  uso  das  fabricas  ?  Qtie  parte  da  planta 
serve  ,  e  como  se  deve  preparar  para  este  fim  ?  Qtie  outros 
usos  podemos  fazer  da  ma  ma  planta ,  alem  dos  que  respei- 
tão  d  tincturaria  ?  Qtie  vantajent  tirard  o  lavrador  da  sua 
cultura.,  comparada  com  as  diff crentes  sementeiras .,  que  po- 
dem ter  logar  nos  terrenos ,  onde  deve  ser  cultivada  ?  Òut 
consumo  fazem  hoje  delia  as  nossas  fabricas ;  e  quanto  an- 
nualmmtc  pouparíamos ,  se  a  tivéssemos  de  cultura  própria , 
e  não  a  comprássemos  aos  estrangeiros. 

EM  MEDICINA.  Ottaes  sejão  as  cansas  existentes  ou  occa- 
sionaes  da  frequência  das  ptysicas  em  Portugal ,  especial' 
mente  em  Lisboa  ;  e  qual  a  natureza  eu  espécie  da  que  he 
mais  geral ,  estabelecendo  se  os  meios  de  a  prevenir ,  e  o  me- 
tbodo  de  a  curar  d  vista  de  observações  practicas} 

Prémios  extraordinários  sem  limitação  de  tempo. 

Um  epitome  das  leis  agrarias  Porttiguezas ,  piiblicadat 
desde  o  principio  da  Monarchia  até  ao  presente ,  e  os  aphoris  • 
mos  polittce-economicos  ,  que  das  mesmas  se  podem  dedttzir  a 
beneficio  da  agricultura.,  povoação ,  e  commercio  dos  Reinos 
de  Portugal,  e  dos  Algarves. 


xxit  Historia  da  Academia  Real 

A  dieta  Obra  deve  ser  eomposta  segundo  o  methodo 
seguido  por  Mr.  Fourncl  na  que  imprimiu  em  Paris  no 
anno  de  1819  com  o  tirulo  Les  Loix  rurales  de  la  Frciuce  y 
rangées  dans  letir  ordre  naturel.  A  Memoria  que  for  appro- 
vada  ,  ou  que  pelo  menos  merecer  o  Accessit ,  obterá  o 
premio  de  uma  medalha  de  ouro  do  valor  de  joiooo  réis. 
Qtial  be  o  methodo  de  curar  radicalmente  uí  dysenterias 
chrmicas ,  de  qualquer  causa  que  procedao ,  fundado  em  prin- 
cipios ,  e  confirmado  por  observares  prncticas. 

Este  Programma   tem  o  premio  de  400:000  ,réis. 


Assumptos  fixos  para  todos  os  annos. 

I.  Â  Descripção  Physica  de  alguma  comarca ,  ou  territó- 
rio considerável  do  Reino ,  ou  Domintos  ultramarinos ,  que  com- 
prchenda  a  Historia  da  Natureza  do  paiz  descripto. 

II.  A  Descripfão  Económica  de  alguma  comarca  ,  ou  ter- 
ritório considerável  do  Reino ,  feita  cotforme  o  plano  adoptado 
pela  Academia  para  a  visita  da  comarca  de  Setúbal,  e  que 
se  publicou  tio  Tomo  III  das  suas  Memorias  Económicas. 

III.  A  Topographia  Medica  de  uma  grande  povoação  (  ci' 
da  de ,  ou  vil  la  notável )  de  Portugal :  segundo  o  plano  indica- 
do na  Histoire  et  Mémoires  de  la  Societé  Royale  de  Mé- 
decinc  ,  Prefac.  p.  XIV  Tom.  1 :  ou  Descripção  de  alguma 
moléstia  epidemica ,  ou  endémica  em  algum  logar  de  Portugal , 
indicando-se  o  tractamento  mais  conveniente. 

NAS  SCIENCIAS  EXACTAS. 

Para  o  anno  de  1824. 

EM  ASTRONOMIA.  Mostrar,  que  grão  de  confiança  pode 
merecer  a  longitude  do  Navio  dedttzida  da  Estima  em  uma 
viagem  pelo  menos  de  ^o  dias.  E  se  convêm  ou  não  fazer  as 
emendas  relativas  d  longitude  f   qtie  são  indicadas  pela  dif- 


DAS   SCIENCIAS   DE   L  l  S  B  O  A.  XXUt 

ferenqa  que  se  acha  entre  a  latitude  estimada  e  a  obser- 
vada :  fundado  isto  no  Calculo ,  t  Observações. 

EM  ANJLYSE.  Mostrar  em  duas  series  de  grandezas  ,  que 
se  correspondão  termo  por  termo ,  qual  deve  ser  o  numero  e 
o  interval/o  delias  para  poder  estabelecer  algumas  formulas 
convenientes ,  que  dêni  com  sufjiciente  approximaçÕo  as  inter- 
médias entre  as  grandezas  dadas. 

EM  MECHANICA.  Principias  ftmdamentaes  de  Mechanica , 
estabelecidos  {quanto  poder  ser)  geometricamente. 

Sem  limitação  de  tempo. 

EM  ASTRONOMIA.  Algumas  observações  de  eclipses  do  Sol, 
ou  cccultações  de  estrellas  pela  lua ,  feitas  por  navegantes 
portuguezes  em  portos  do  Brazil  ou  da  Ásia  :  especificando 
os  meios  e  instrumentos ,  de  que  se  servirão  «estas  observa» 
coes.  ^ 

EM  NAFEGAÇAO.  Uma  derrota  de  navegação  alta  por  tem- 
po de  um  mez  ou  mais ,  feita  em  navio  portu^uez  ,  ajjoprin-: 
cipal  motor  seja  o  fogo  :  ou  uma  memoria ,  na  qual  se  evi- 
dencêe  a  possibilidade  e  maneira  de  effeituar  a  mesma  na- 
vegação vantajosamente  nos  navios  mercantes.^  e  em  todas  as 
circumstanciat.  Será  preferível  a  memoria  ,  que  alem  de  des- 
empenhar este  assumpto  ,  considerar  o  motor  empregado  ao 
mesmo  tempo  na  cozinha  do  navio.,  em  distillar  agoa  do  mar 
para  os  usos  ordinários  delia ,  em  renovar  o  ar  do  porão  e 
das  cobertas ,  em  esgottar  o  navio ,  e  em  defende  lo  median- 
te a  conveniente  projecção  de  agua  fervente ,  d  similhançeí 
da  executada  pelos  Americanos  Ingkzes  a  bordo  da  fraga- 
ta. Fulton.  (*) 

NA 


(*)  A  navegação  por  meio  do  fogo  combinado  com  o  vento  pôde 
reduzir  as  guaruiyões  dos  navios  ,  e  as  durações  medias  das  viagens  a 
metade  d;is  actuaes  :  donde  resulta ,  que  a  despega  por  este  lado  deve 
descer  *  «m  <^uarto ;  e  bcDi  assim  o  espaço  preciso  para  serem  collo- 
cadas  as  munições  de  bocca,   o  qual  aindíise  tornará  menor,  applr- 


xxrv  Historia  da  Academia  Real 

NA  LITTERATURA  PORTUGUEZA. 

Para  o  anno  de   1825'. 

EM  HISTORU  PORTUGUEZA.  A  Historia  dos  nossos  des- 
cobrimentos em  Aist>\i/dsia ,  e  Polinésia^  cem  a  syuuiywia 
dos  descobrimentos  feitos  posteriormente  pelas  outras  va^Ses 
Europêas  nas  mesmas  regiões. 

Para  o  anno  de   1824. 

EM  língua  PORTUGUEZA.  A  Historia  da  lingtia  porttt- 
giie^a  nos  quatro  primeiros  séculos  da  Monarchia. 

EM  HISTORIA  PORTUGUEZA.  Determinar  o  aiigmento ,  e 
diminui f ao    de  população  nos  Reinos  de  Portugal  ^  e  Algar' 

ves 


cando-se  também  o  fogo  a  distillar  agoa  do  mar  para  ser  empregada 
nos  usos  ordinários.  Esta  distillação  poderá  ser  executada  á  maneira 
da  que  está  descripta  na  Enciclopédia  melhodica.  A  navegação  refe- 
rida terá  também  as  vantagens  de  fazer  niúito  menos  perigosas  as  tra- 
vessias nas  vizinhanças  da  terra ;  de  tornar  prcfixavel  com  niúita  apro- 
ximação a  duração  das  viagens  ;  e  de  augmentar  os  lucros  do  cora- 
mercio ,  accelerando  a  marcha  do  seu  gjro.  Alem  disso  porá  era  cer- 
to modo  as  províncias  do  ultramar  a  meia  distancia  da  metrópole , 
promovendo  ou  apertando  assim  a  união  daquellas  com  esta,  e  acce- 
lerando a  rapidez  da  acção  do  Governo,  bem  como  a  de  todas  as  cor- 
relações de  ambos  os  paizes.  O  uso  de  taes  navegações  deve  pois  ser 
singularmente  vautajoso  ás  aações  pequenas  c  marítimas,  que  possuem 
grandes  colónias.  Abstrahíndo  a  consideração  das  vantagens  desta  na- 
vegação nas  guerras  navaes  ,  ve-se  aliás  ,  que  para  alcançarmos  tão 
importantes  fins  nos  basta  ampliar  o  que  está  feito,  e  unir  o  que  exis- 
te disperso  ;  e  pois  fomos  quem  outr''hora  se  avantajou  ás  mais  nações 
no  tocante  á  Marinha,  parece,  que  pelo  menos  devemos  não  descahir 
muito  áquem  das  mesmas  nações  era  objecto  tão  ponderoso  e  conse- 
quente. 

Portanto,  attendidos  os  referidos  motivos,  um  Sócio  da  Academia 
dobra  o  premio  académico  relativo  a  este  prugramnia,  dando  luaU  cio- 
coeuta  mil  reis  em  metal. 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  XXV 

•  ves  nas  diversas  epochas  da  Monarchia ,  indicando  as  ver- 
dadeiras causas ,  q^ue  se  devem  assignar  d  sua  respectiva  al- 
teração. 

Assumptos  fixos  para  todos  os  annos. 

EM  POESIA^  E  THE  ATRO  NACIONAL.  Uma  Tragedia 
portugiieza. 

Uma  Comedia  de  caracter  em  verso ,  ou  em  prosa. 


Os  prcmlos  ordinários  consistem  em  huma  medalha  de 
ouro  do  pc7,o  de  50:000  reis:  e  todas  as  pessoas  podem 
concorrer  a  elles ,  á  excepção  dos  sócios  honorários ,  e  eíFe- 
ctivos  da  Academia.  Abaixo  destes  prémios  principaes ,  pro- 
põe a  Academia  também  a  honra  do  Accessit ,  que  consiste 
em  uma  medalha  de  prata  :  e  ainda  abaixo  desta  a  menção 
honorifica  da  memoria ,  que  só  disso  se  fizer  digna ;  a  qual 
menção  será  feita  nas  suas  Actas  e  Historia. 

As  condições  geraes  para  todos  os  assumptos  propos- 
tos são:  Que  as  memorias,  que  vierem  a  concurso,  sejão 
escriptas  em  portuguez,  sendo  os  seus  auctores  naturaes 
destes  Reinos  ;  e  em  latim  ,  ou  em  qualquer  das  linguas 
da  Europa  mais  geralmente  conhecidas,  sendo  os  auctores 
estrangeiros :  Que  sejão  entregues  na  secretaria  da  Acade- 
mia por  todo  o  mez  de  Abril  do  anno,  em  que  houverem 
de  ser  julgadas:  Que  os  nomes  dos  auctores  venhâo  em  car- 
ta fechada,  a  qual  traga  a  mesma  divisa  que  a  memoria, 
para  se  abrir  somente  no  caso ,  em  que  a  memoria  seja 
premiada  :  E  finalmente  que  as  memorias  premiadas  não  pos- 
são  ser  impressas  senão  por  ordem ,  ou  com  licença  expres- 
sa da  Academia,  condição  que  igualmente  se  extende  a  to- 
das as  memorias  ,  que,  não  obtendo  premio  ,  merecerem  com- 
tudo  a  honra  do  Accessit.  Porem  nem  esta  distincçao,  nem 
a  adjudicação  do  premio,  nem  mesmo  a  publicação  deter- 
r.  IX.  P.  L  »  4  mi- 


scxvt  Historia  da  A-capímía  Rí  al 

minada,  ou  permittida  pela  Acadcinla ,  deverão  jainais  re- 
putar-se  como  argumento  decisivo,  dç  qiiç  i;,sj;a  S^eicdade 
approva  absolutamente  tudo  quanto  se  contiver  naj  meroo- 
rias  ,  a  que  conceder  qualquer  destes  signaes  de  approva- 
ção ;  porem  sotrjente  como  uma  prova ,  de  que  no  seu  con- 
ceito desempenharão,  senão  inteiramente,  ao  menos  a  par- 
te mais  iijiportante  dos  assumptos  propostos. 


.i;u    -  •      .  *  *  wH     DI5. 


DAS  SciENCi AS  DE  Lisboa,  xxvn 

DISCURSO 

Recitado  na  Sessão  publica  de  i  de  Julho  de  1824 

PELO     SECRETARIO 
JOSÉ  MARIA   DANTAS   PEREIRA. 


^ER  grande  huma  nação  pode  diffeiir  muito  de  ser  naçaò 
grande ,  e  de  haverem  existido  nella  homens  verdadeira- 
mente grandes :  que  tem  sido  grande  a  nação  Portugueza , 
he  verdade  assaz  evidenciada  pela  coexistência  da  peque- 
nez do  seu  território,  e  da  diuturna  conservação  da  sua  in- 
dependência ;  quando  porém  a  estes  factos  ajunto  o  das 
duas  restaurações  desta  independência  effeituadas  nos  tem- 
pos, em  que  a  Hespanha  inteira  obedecia  ao  gabinete  de 
Madrid,  e  em  que  as  hostes  do  Corso  agrilhoavâo  o  mun* 
do ,  cresce ,  por  assim  dizer ,  a  evidencia  da  minha  propo- 
sição ;  que  sobe  ao  maior  gráo  de  clareza ,  quando  se  con- 
templa ,  que  tão  pequeno  território  se  dilatou  por  toda  a 
face  da  terra  tanto ,  quanto  não  consta  de  outra  nação 
comparada  com  a  portugueza :  conseguintemente  não  foi  a 
imaginação,  mas  sim  a  razão,  quem  fez  dizer  ao  nosso 
Poeta : 

E  vereis  qual  he  mais  eícéllente, 

Se  ser  do  mundo  Rei ,  se  de  tal  gente. 

Porém  como  pode  hum  poro  menos  numeroso  sobre- 

sahir   a  outros   muito  maiores  ,   chegando  mesmo   a  fazer 

mudar  a  marcha  geral  do  commercio  do  mundo,  e  a  fazer 

retroceder  invasões  taes  como  a  dos  Agarenos,  senão  ad- 

'•     .  *  4  ii  Si"'^^ 


xxviir  Historia  ©a  Academia  Real 

quiiiiido  em  força  moral  excesso  superior  á  falta  de  força 
íysica  ,  ou  sendo  exairado  pela  superioridade  das  suas  in- 
stituições mais  doque  abatido  pela  inferioridade  numérica? 

Eis-aqui  pois  o  que  nos  elevou  ao  preeminente  alca- 
çar  da  gloria  mais  bnltiante;  e  para  níío  descermos  dclle 
convém  toda  a  vigilância,  e  toda  a  efficacia,  em  conser- 
var, ç  em  acrysolar  os  meios,  que  produzirão  a  nossa  ele- 
vação verdadeiramente  magestosa. 

He  certo  ,  que  o  desejo  de  obter  ,  e  o  de  desfrutar 
o  que  se  tem  obtido,  são  estimulos,  cuja  actividade  mui- 
to differcnte  deve  produzir  muito  diversos  resultados  ;  mas 
por  isso  mesmo  cumpre  dcsvelar-nos  a  fim  de  conseguir- 
jnos  ,  que  o  gozo  dos  bens  adquiridos  não  nos  entorpeça 
de  mjncira  que  nos  precipitemos,  cntrcgando-nos  d  negli- 
gencia na  conservação  e  no  augmcnto  daqucUes  meios,  en- 
tre os  quaes  occupa  lugar  muito  distincto  o  progresso  dos 
conhecimentos  úteis  ;  progresso  que  felizmente  depende 
piuito  menos  do  numero  doque  dos  costumes  de  cada  po- 
vo, conforme  nós  mesmos  manifestámos  em  o  nosso  bom 
tempo,  no  qual  os  Nunes,  os  Osorios ,  os  Camões,  e  os 
Barros,  forão  coevos  dos  Albuqucrques,  e  dos  Castros. 

Quanto  pois  deve  importar  que  floreça  hum  estabe- 
lecimento '  encarregado  de  adiantar  os  ditos  conhecimen- 
tos ,  e  dç  08  derramar  por  todo  o  território  portuguez , 
he  assaz  evidente  apenas  se  demonstrar ,  que  tão  preciso 
çstabclçcimento  tem  pago  a  sua  divida,  isto  he,  tem  pro- 
curado obter  os  seus  grandes  fins,  fazendo  o  uso  mais  van- 
tajoso dos  meios  postos  á  sua  disposição.  Eis-aqui  pois  o 
objecto  do  presente  relatório  :  assim  eu  possa  desempenha- 
lo ,  assim  eu  possa  levar  a  minha  convicção  ao  intimo  de 
todos  os  corações  verdadeiramente  portuguezes. 

Com  esta  louvável  intenção  repartirei  o  meu  discurso 
em  qur^tro  part€s.  Na  primeira  tratarei  do  que  he  devido 
á  classe  das  sciencias  naturaes  ;  na  segunda  e  terceira  da 
que  similhantemenre  se  deve  ás  classes  de  litteratura  e  de 
Ojathematic^  i  na  quarta  do  augcacoto  desta  divida  corres^ 

pon- 


DAS  ScrENCIAS  DE   LiSBOA.  XXIÍC 

pondente  ao  anno  proximamente  findo  ;  c  logo  depois  nao 
só  lerei  o  programma  para  o  anno  seguinte  ,  mas  também 
terei  a  honra  de  fazer  distribuir  junto  com  este  programma 
o  catalogo  das  obras  impressas  pela  Academia  ,  catalogo  que 
hc  precisamente  hum  documento  comprovador  deste  meu 
relatório. 

Primeira     Parte. 

Hc  indubitável,  que  hum  pequeno  povo,  ou  ilhado, 
ou  situado  na  beira-mar  de  sorte  que  esteja  impossibilitado 
de  augmcntar  o  seu  território,  só  pode  crescer  constituin- 
do-se  agricultor  e  navegador :  daqui  proveio  que  as  so- 
branceiras vistas  dos  nossos  maiores  Soberanos  se  applicá- 
rao  a  favorecer  os  verdadeiros  agricultores  ,  e  a  promover 
a  navegação  portugueza  ;  bastando  para  se  provarem  estes 
factos  a  saudosissiina  recordação  dos  nomes  dos  Senhores 
Reis  D.  Diniz,  e  D.João  II. 

Vejamos  pois  se  esta  Academia  Real  das  Sciencias 
tem  procurado  seguir,  no  que  lhe  diz  respeito,  a  marcha 
prefixada  em  certo  modo  por  aquelles  grandes  Monarchas  j 
e  seguila  avançanlo  tanto  quanto  lho  tem  permittido  as 
tuas  circumstanciask 

A  Academia  deve  não  empregar  todos  os  seus  meios 
só  nos  dois  mencionados  objectos,  pois  o  seu  Estatuto  lhe 
incumbe  contemplar  outros  simultaneamente,  porem  cura- 
prelhc  repartir,  ou  antes  ratear,  aquelles  meios  por  todos 
os  objectos  conforme  á  importância  delles  ,  e  sempre  de 
sorte  que  nenhuma  desproporção  nas  diversas  partes  do  to- 
do ou  paralyse  algumas,  ou  destrua  o  mesmo  todo,  como 
acontece  quando  tal  desproporção  existe. 

Este  portanto  foi  o  dever  desempenhado  pela  Aca* 
demia :  por  isso  considerando  a  nossa  agricultura  como  hum 
dos  principacs  agentes  da  publica  prosperidade ,  concluio 
que  devia  ser  hum  dos  primeiros  objectos  dos  seus  desve- 
los ,  e  jamais  ommittio  diligencia ,  que  estivesse  ao  seu  al- 
iance, a  qual  não  empregasse  pelo  modo  mais  efficaz  afin) 


XXX  Historia  da  Academia  Real 

de  promover  este  ramo  de  industria ,  do  qual  dependeni  to- 
dos os  outros ,  pois  depende  a  geral  subsistência ,  e  de- 
pende a  producção  de  muitas  matérias  primeiras. 

Bastará  passar  rapidamente  os  olhos  pelas  obras  im- 
pressas, e  pelos  programmas  académicos,  pondo  mesmo  de 
parte  os  assentos  dos  conselhos  c  das  sessões  particulares , 
p.iraquc  esta  verdade  se  manifeste  evidentemente  ,  ainda 
mesmo  ás  vistas  menos  atiladas  ou  perspicazes:  as  quaes 
distinguirão  entre  os  programmas  respectivos  aquelie ,  que 
he  relativo  ás  leis  agrarias  portuguezas  publicadas  desde  o 
principio  da  monarchia. 

Kntrc  as  ditas  obras  mencionarei  primeiro  as  que  tem 
por  objecto  a  manufactura  do  azeite,  e  do  vinho,  ou  a 
cultura  da  oliveira  ,  e  da  videira  ;  plantas  que  logo  depois 
das  cereaes  nos  são  assaz  interessantes  ;  e  a  cujo  respeito 
se  esmerou  também  a  Academia  (  postoque  sem  o  maior 
resultado  )  no  descobrimento  de  remédio  ao  mal  terrivel  , 
que  qu.isi  esterilisa  as  arvores  productoras  do  óleo  mais  im- 
portante ;  as  quaes  ao  mesmo  tempo  gostão  de  terreno , 
que ,  fecundado  pela  agricultura  ,  nos  enriqueça  com  ou- 
tras producçóes  que  nos  alimentem. 

A  base  principal  deste  alimento  nunca  tem  deixado 
de  ser  assumpto  especialmente  considerado  por  esta  Acade- 
mia, como  provão  as  distribuições  de  trigo  sarraceno,  e  de 
batatas,  as  de  prémios  relativos  à  sua  cultura  ,  e  as  de  fo- 
lhetos, mediante  cuja  publicação  procurou  divulgar  os  co- 
nhecimentos respectivos  ;  praticando-se  outro  tanto  a  res- 
peito da  cultura  dos  nabos,  e  procedendo-se  similhante- 
mente  emquanto  á  das  favas  na  provincia  da  Beira  :  alem 
de  que  se  tratou  da  excicação  das  batatas,  e  da  sua  redac- 
ção a  farinha  e  a  pão. 

A  agricultura  mesmo  contemplada  em  geral ,  e  con- 
templada emquanto  ao  particular  de  diversas  partes  de 
Portugal,  tem  sido  objecto  incessante,  assim  dos  program- 
mas da  Academia  ,  como  dos  trabalhos  de  seus  distinctos 
sócios:  e  já  com  a  mira  em  que,  descrevendo  se  o  seu 

actual 


DAS  SciENCIAfi  DE   LlSBOA.  XXXI 

actual  estado ,  se  possa  proceder  com  todo  o  conhecimen- 
to de  causa  aos  melhoramentos  correspondentes  ;  já  pura 
indicar  estes  melhoramentos,  ou  prescrever  a  melhor  ma- 
neira de  efifeitualos  ,  com  atcenção  a  que  sempre  a  indo- 
lência ,  ou  a  ignorância ,  he  mais  convencida  ou  estimula- 
da  pelo  exemplo  doque   pelo  raciocinio. 

O  dever  de  não  cangar  as  vossas  attenções ,  e  de  con- 
formar-me  ás  circumstancias  em  que  leio  este  relatório,  pre- 
cisa-me  a  ser  talvez  exccsNÍvamente  conciso ;  deixando  pois 
de  referir  outros  trabalhos  importantes ,  mencionarei  ape- 
nas ,  que  a  cultura  dos  baldios,  a  plantação  de  arvores  syl- 
vestres  e  fructiferas,  em  que  tanto  interessamos,  a  reproduc- 
çâo  e  augmcnto  das  fontes,  o  ensecamento  dos  paues ,  o 
aproveitamento  dos  nossos  dilatados  areaes ,  e  o  encana- 
mento dos  rios,  tem  sido  objectos  das  meditações,  dos 
escritos,  e  dos  programmas  desta  Academia. 

A  creação  daquelles  preciosos  vermes ,  mediante  cuja 
interN-^ençao  as  folhas  de  amoreira  se  transfórmão  em  gran- 
des peças  de  seda  ;  as  abelhas  e  as  colmeias ;  a  granza  ou 
ruiva  dos  tintureiros,  que  em  Portugal  apparece  esponta- 
neamente ;  a  influencia  dos  meteoros  na  vegetação ;  os 
gados  sem  exclusão  das  suas  lãs  e  da  arte  veterinária  ;  os 
prados  artificiaes ,  os  pastos ,  os  carros ,  as  seves ,  o  linho , 
o  algodão,  o  esparto,  os  aparelhos  distillatorios,  os  for- 
nos e  fogões ,  as  gadanhas ,  os  estrumes  ,  as  queimadas , 
a  publicação  de  noções  breves  e  claras  para  instrucção  dos 
nossos  lavradores ;  o  estabelecimento  de  escolas  de  agri- 
cultura theorica  e  pratica  ;  o  de  companhias  agrarias ;  a 
descripção  e  remoção  dos  obstáculos  ao  progresso  da  agri- 
cultura ,  do  qual  dependem  tanto  o  da  povoação ,  e  o  da 
civilisação ,  donde  deve  resultar  o  da  geral  prosperidade , 
e  até  a  firmeza  ou  duração  da  nossa  independência ,  tem 
sido  objecto  continuo  das  mais  serias  attençóes  desta  Aca- 
demia. 

Em  summa,  esta  Real  Academia  publicou  em  i8off> 
como  assumpto  principai  do  seu  programma   em  aj;ricul- 
*  tu- 


XXXII  Historia  da  Academia  Real 

tura ,  K  Indicar  as  plantas  que  podem  servir  de  alimento  aos 
homens ,  e  supprir  em  annos  estéreis  as  que  servem  á  sua 
ordinária  sustentação  ;  quaes  são  as  que  melhor  se  dão  em 
o  nosso  clima ,  e  quaes  as  que  poderão  nclle  cultivar-se 
com  vantagem  ,  segundo  a  natureza  dos  diversos  terrenos 
de  Portugal ;  e  os  usos  a  que  as  mesmas  plantas  poderáô 
ser  destinadas  ,  quando  uáo  sejão  necessárias  para  o  men- 
cionado fim.  '» 

A  benemérita  classe  das  sciencias  naturaes ,  principal 
credora  dos  louvores  devidos,  ao  que  se  tem  praticado  a 
bem  da  agricultura,  também  o  lie  dos  que  lhe  competem, 
por  se  ter  empregado  tanto  nos  outros  objectos  que  lhe 
correspondem,  quanto  evidentemente  se  colhe  de  haver  pu- 
blicado o  primeiro  Firidarium  Ltisitanicum '^  a  distincta  Flo- 
ra da  Cochinchina  ;  a  analyse  das  agoas  das  Caldas  e  de 
Cabeço  de  vide  ;  tomando  alias  em  consideração  o  trans- 
porte das  primeiras  ,  e  imprimindo  muito  notáveis  memo- 
rias sobre  as  nossas  marinhas ,  o  nosso  sal  comparado  com 
o  de  Cadiz,  o  algodão  cuja  cultura  procurou  aclimatisar 
em  Portugal,  a  cochonilha,  o  ricino,  a  urzella ,  o  anil, 
o  chenopodio  marítimo ,  e  as  plantas  indígenas ,  donde  se 
extrahc  a  soda. 

Recorrendo  ás  referidas  fontes  veremos  o  muito ,  que 
esta  mesma  classe  se  tem  occupado  com  a  parte  mineraló- 
gica do  nosso  Reino  ,  e  com  o  concernente  á  ictiologia ,  á 
preparação  do  peixe  salgado  e  seco ,  e  ás  pescarias  ;  ramo 
este  de  industria ,  que  deve  alias  concorrer  grandemente  pa- 
ra haver  quem  possa  guarnecer  a  propósito  os  nossos  na- 
vios de  guerra ,  sem  os  quaes ,  nem  o  commercio  pode  ser 
protegido  ou  animado ,  nem  as  colónias  ligadas  entre  si , 
e  á  sua  metrópole. 

Sobre  tudo  reconhecereis ,  Senhores  ,  quanto  deve  a 
esta  classe  a  propagação  daquella  invenção  Ingleza ,  bastan- 
te para  immortalTzar  o  século  decimo  oitavo,  tão  notável 
nos  annaes  da  destruição  dos  homens;  fallo,  Senhores,  da 
invenção  tendente  4  conservar  nada  menos  do  que  hum  se- 

ti- 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  XXXIlr 

timo  da  nossa  espécie,  em  despeito  das  flagelladoras  be- 
xigas ,  que  nao  só  procuravão  deturpala  quabi  toda ,  mas 
também  coiisegiiião  devoíar-lhe  a  sétima  parte, 

A  cducaçíío  fysica  desta  mesma  espécie,  que  tão  in- 
felizmente vai  declinando  ( e  talvez  não  menos  a  moral , 
brotando  de  taes  fontes  as  causas  principaes  de  muiro  con- 
sideráveis padecimentos)  não  podia  deixar  de  attrahir  as 
mais  graves  meditações  de  tão  distincta  classe ;  que  depois 
de  haver-se  empregado  zclosissimamente  na  nossa  restaura- 
ção fysica  ,  e  na  preservação  das  doenças  que  nos  mortifi- 
cão,  publicando  tratados  sobre  a  dita  educação,  e  sobre  a 
Hygiene  considerada  em  geral ,  e  considerada  emquanto 
aos  corpos  militares,  assim  terrestres  como  maritimos,  se 
desvelou  em  obstar  á  propagação  dos  contágios ,  mediante 
a  publicação  de  folhetos  destinados  a  vulgarisar  os  conhe- 
cimentos relativos  á  preservação  da  peste  ,  e  das  doenças 
dos  exércitos  :  alem  de  que  fez  imprimir  huma  memoria 
sobre  a  desinfecção  das  cartas ,  e  hum  tratado  de  policia 
medica  escrito  por  hum  dos  mais  beneméritos  Professores 
de  medicina  ,  sócio  desta  Academia. 

Daqui  passando  a  classe  a  tratar  de  destruir  os  males 
fysicos ,  procurou  desempenhar-se ,  como  se  colhe  das  suas 
memorias,  sobre  os  hospitaes  do  Reino,  sobre  a  sympathia 
do  estômago  com  a  cabeça ,  ou  do  laboratório  da  nossa 
nutrição  corporal  com  o  da  intellectual ,  se  com  effeito  he 
admissível  esta  expressão;  sobre  a  Fysica  tuberculosa;  so- 
bre algumas  observações  Botanico^medicas ;  sobre  as  bou- 
bas ;  sobre  a  dedaleira  e  suas  propriedades  medicinaes ;  so- 
bre as  dysenterias  chronicas,  sobre  o  empyrismo  na  medi- 
cina ,  e  sobre  a  identidade  no  systema  muscular :  escritos 
a  cuja  menção  unirei  a  dos  avisos  sobre  as  mortes  apparen- 
tes,  a  das  advertências  sobre  o  uso  da  agoa  das  Caldas, 
a  das  memorias  para  a  historia  da  medicina ;  e  a  do  en- 
saio dermosografico  do  nosso  falecido  consócio  o  Snr.  Ber- 
nardino António  Gomes ,  a  quem  de  mais  a  mais  he  devida 
a  invenção  do  chinchonino. 

'  r.  IX.  p.L  •  g  Os 


XXXIV  Historia  da  Academia  Real 

Os  programmas  da  Academia  também  mostrao  ,  que 
a  sua  classe  de  sciencias  natuincs  procurou  unir  aos  seus 
trabalhos  os  de  todos  os  litteratos  da  mesma  classe,  con- 
vidando-os  a  escrever  sobre  o  temperamento  medico  actual 
desta  cidade ,  talvez  a  mais  desproporcional  de  rodas  as 
capitães  comparadas  com  o  total  das  suas  n:içÕcs  ;  o  que 
não  pode  deixar  de  influir  sensivelmente  sobre  a  sua  vida 
fysica  e  politica. 

Proscguindo  porém  na  enumeração  dos  objectos,  a  que 
se  rcpoi  tão  os  programmas  desta  classe ,  relatarei  com.o 
principacs ,  as  doenças  nervosas ,  as  tisicas ,  a  morféa ;  as 
doenças  agudas  e  chronicas ,  que  mais  frequentemente  ac- 
comcttcm  os  pretos  recem-tirados  da  Africa;  a  lepra,  a 
gota,  a  febre  amarella  ,  as  queixas  biliosas  ,  as  que  mais 
atacão  a  nossa  tropa,  e  as  apoplexJas. 

A  mesma  classe  considerou  também  nos  seus  program- 
iras  as  composições  farmaceutico-clinicas  ;  a  differença  en- 
tre os  effeitos  do  lactucario  e  os  do  ópio  ,  determinada  por 
cbs.rvações  clinicas;  a  influencia  dos  meteoros  assim  na  ve- 
getação como  na  saúde  dos  homens  e  dos  animaes  ;  e  a 
analysc  das  agoas  das  Aleaçarias ,  do  Estoril,  do  Gerez,  e 
do  Vimeiro. 

Accresce  haver  tratado ,  como  foi  notório ,  de  concor- 
rer,  assim  para  serem  convenientemente  soccorridos  os  asfi- 
xiados e  os  rcccm-afogados ,  como  paraque  se  remediassem 
prompt:imente  as  doenças  que  flagellavão  Lisboa  em  1 8 ii ; 
não  impedindo  tantos  e  taes  desvelos ,  que  procurasse  obter 
noções  sobre  a  porcelana ,  o  tabaco ,  o  xarão ,  o  chá  ,  e  a 
tinturaria  chineza  ;  e  que  também  contemplasse  distincta- 
ipente  a  meteorologia,  assimcomo  alguns  outros  ramos  as- 
5^z  importantes  da  Fysica  e  da  Chimica.  ti  :>j:  ■; 

Sjgue^se  pois ,  em  conclusão ,  que  esta  classe  teat 
preenchido  os  seus  deveres ,.  cora  o  esmero  próprio  do  mais 

fibivab  sd  Si«m  u  auxn  ^b  rr 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.   "~  xxxv 


EGUNDA  Parte 


A  classe  de  litteratura  merece  menção  nada  menos 
honrosa  ,  como  passo  a  evi>.1cnciar. 

Sendo  manifesto,  que  devemos  ás  nossas  antigas  in- 
stituições a  dilatação  prodigiosa  do  nosso  império,  que  che- 
gou a  exceder  cm  grandeza  territorial  todos  os  antigos, 
divulgar  pela  imprensa  o  conhecimento  destas  instituições, 
depois  de  havelas  desarreigado  do  abysmo  do  esquecimen- 
to ,  devia  ser ,  e  tem  sido  com  effcito ,  hum  dos  princi- 
pacs  trabalhos  desta  classe  cada  vez  mais  benemérita.  As- 
sim lhe  fosse  dado  reproduzir  nossos  antigos  costumes  ! 

Todavia  cumprio,  e  cumpre  o  maior  talvez  dos  seus 
deveres  na  publicação  mencionada  ;  pois  sem  duvida  nos 
convém  a  restauração  daquellas  instituições  mais  adequada 
ao  estado  presente  da  civiiisaçao;  ou  não  he  verdade  axio- 
mática ,  que  a  força  dos  hábitos  nacionaes ,  á  maneira  da 
dos  inJividuaes  donde  procede,  muito  difficilmente  he  sub- 
rogada ,  ou  vencida ,  pel )  impulso  de  innovações  contrarias 
áquelies  hábitos,  ou  áquellas  instituições. 

Com  grande  razão  pois  a  classe  de  litteratura,  alem 
da  preciosa  colh<;ita  depositada  em  seu  distincto  celeiro  , 
para  ir  sendo  divulgada  pela  typografia  académica  (a)  ,  já 
fios  fez  gozar  o  prazer  da  agradável  recordação  do  que 
nossos  maiores  praticarão  heroicamente,  e  regularão  sabia- 
mente ,  conforme  consta  dos  cinco  primeiros  volumes  dos 
inéditos ,  dos  qaaes  tenho  a  honra  de  apresentar  o  quinto 
recem-sahido  da  imprensa. 

Nelles  se  encontrão  estampadas  consecutivamente  as 
Chronicas  do  Snr.  D.  Duarte,  do  Snr.  D.  Affonso  V,  do 
Snr.  D.  João  II ,  e  de  D.  Duarte  de  Menezes  escritas  pe- 
lo nosso  Ruy  de  Pina  ;  a  de  D.  Pedro  de  Menezes  por 
Gomes  Eannes  de  Zurara  ;  as  dos  Senhores  Reis  D.  Pe- 
dro I,  e  D.  Fernando  por  Fernão  Lopes,  e  as  de  todos 
os  nossos  Soberanos  até  o  Snr.  D.  João  III  pelo  Bacharel 

*  j  ii  Chris- 


/ 


sxxvr  HisVoria"da  Ae\D'EM:iA'RKat. 

Christovão  Rodrigues  Azinheiro  ;  alem  do  que  publicou  a 
mesma  Classe  nos  referidos  volumes  a  guerra  de  Ceuta  por 
mestre  Mattheus  de  Pisano  ,  o  livro  vermelho  do  Siir.  1). 
AlFonso  V,  os  íbros  antigos  de  Santarém,  S.  Martinho  de 
^louros,  Torrcs-novas ,  Gravao  ,  Guarda,  e  Beja ,  mais  aV4 
guns  fragmentos  de  legislação  portugiieza  extiahidos  do  li- 
vro das  posses  da  Cas*  da  Supplicaçâo  :  devendo- se  espes 
cialmcnte  a  publicação  dos  dois  ulti^mos  volumes  ás  fadi-- 
gas  du  distincta  Comiliissdo  do  historia,  estabelecida  pela 
Academia,  C  formada  por  muito  respeitáveis  ?aiios  da  elas* 
se   de  littcratura.  '     •   -i   ^    r  '    '    '     - 

A  esta  mesma  classe  he  devida'  a^  itiferessantè  coUec- 
ção  de  noticias  para  a  historia  c  geografia  das  iiiações  ul* 
tramarinas,  a  cujo  respeito  não  se  poderá  dizer  o  mesmo, 
que  táo  desgraçadamente  nos  exprobráo  á  cerca  do  roteiro 
do  mar  vermelho  escrito  pelo  insigne  D.  João  de  Castro; 
e  conhecida}  agora ,  rtão  porque  portiiguczes  amantes  da 
gloria  nacioilal  o  publicassem ,  mas  sim  porque  o  venderão 
a  estrangeiros,  que  prezando-o  como  deviao  o  extractárao, 
e  o  imprimirão  cm  lingua  estranha,  como  consta  das  re* 
spectivas  impressões ,  e  da  noticia  delias  publicada  no  to- 
mo V  dos  Annaes  das  sciencias ,  das  artes  ,  e  das  letras. 

Na  mencionada ,  e  preciosa  coUecção  de  noticias  ul- 
tramarinas encontraremos ,  alem  das  que  referem  os  costu- 
íncs  e  as  escrituras  dos  gentios  orientaes ,  as  que  nos  forao 
deixadas  pelo  venerável  José  de  Anchieta  sobre  as  pro* 
ducções  naturaes  da  capitania  de  S.  Paulo;  noticias  segui- 
das pelas  navegações  de  Cadamosto ,  de  Pedro  de  Cintra , 
de  Pedro  Alvares  Cabral ,  de  Thomé  Lopes ,  e  de  João  de 
Empoli ;  ás  quaes  publicações  se  unio  a  do  livro  de  Duar- 
te Barbosa,  e  as  cartas  de  Américo  Vespucio  a  Pedro  So* 
derini :  havendo  promptos  para  entrarem  na  imprensa  mui- 
to notáveis  manuscritos ,  dos  quaes  mencionarei  agora  hu- 
ma  dcscripção  do  Brasil  escrita  no  tempo  dos  Filippes  J 
e  havendo  também  no  cartório  da  Academia  importantes 
mappas  relativos  áquelle  vastíssimo  paiz  j    assimcomo  de* 

se- 


t>A*SCIENCIAS   DE    LiSBOA.  XXXYir 

senhos  de  variai  das  suas  arvores,  e  descripçoes  de  alguns 
dos  seus  territórios. 

*;  Em  volumes  avulsos  dco  á  luz  esta  mesma  classe  vá- 
rios documentos  arábicos  da  liistoria  portugucza  ;  hum  en- 
sftiô  económico  sobre  o  commercio  de  Portugal  e  suas  co- 
lónias ;  algumas  memorias  para  a  historia  da  capitania  de 
S.  Vicente  ;  as  observações  sobre  as  principaes  causas  da 
decadência  dos  portuguezes  na  Ásia  ;  o  primeiro  volume 
dás  obfJs  do  Snr.  Francisco  de  tíorja  Garção  Stockier  ;  e 
outras  mais  directamente  concernentes  á  lingoa  c  poesia 
portugucza;  a  saber:  o  primeiro  volume  do  nosso  diccio- 
nario ,  hum  lexicon  «tymoiogico  das  palavras  e-nomes  por- 
tuguezes que  tem  origem  arábica  ,  hum  ensaio  dos  syno- 
nymos  da  lingoa  portugucza,  huma  grammatica  philosophi- 
ca  desta  mesma  lingoa ,  as  obras  poéticas  de  Francisco  Dias 
G  >mcs ;  varias  tragedias ,  entre  as  quaes  huma  nacional ,  e 
Bs  outras  traduzidas  do  grego  e  do  latim ,  com  a  notável 
attenção  de  expor  em  verso  portuguez  hum  assumpto  que 
foi  tratkio  por  Euripides  ,  Séneca,  e  Racine;  alem  de  que 
se  tem  começado  a  reimprimir  os  nossos  principaes  histo- 
t-iograíos  :  e  existe  no  cartório  da  Academia  grande  nume- 
ro de  obras  poéticas  escritas  em  portuguez,  em  larim  ,  e 
cm  italiano  ;  existindo  também  hum  diccionario  alemão- 
portuguez  ,  mandado  compor  á  maneira  do  alemao-latino 
de  Scherer;e  a  traducçao  de  Virgilio  por  Cândido  Lusi- 
tano ,   authografa. 

Sendo  clarissimo,  que  esta  classe  não  podia  satisfazcr- 
8e  com  a  divulgiçâo  dos  mencionados  fragmentos  da  legis- 
lação ,  que  tanto  concorreo  pafa  nos  elevarmos  ao  gráo  de 
gloria ,  que  deixo  referido  com  tanto  respeito  e  prazer , 
mostrou  a  mesma  classe  quanto  prezava  este  grande  assum- 
pto ,  fazendo  imprimir  as  obras  do  nosso  famoso  jurisperi- 
to  ,  e  clarissimo  consócio  Pascoal  José  de  Mello  Freire ; 
alem  dâs  quaes  mencionarei  o  Índice  dos  foraes  das  terras 
do  Reino  de  Portugal  e  seus  domínios  ;  a  synopsis  chro- 
nologica  de  subsídios  para  o  estudo  da  nossa  legislação  i 

as 


xxxviii         Historia  da  Academia  Real 
as  fontes  próximas   do  código  Filippino  ;    e  o  índice  chro- 
nologrco  remissivo  escrito  pelo  mesmo  benemérito  sócio,  a 
quem  devemos   as  observações  históricas  e  criticas  sobre  a 
diplom;icia  portugucza.  i 

Náo  se  reduzem  ao  muito  que  deixo  relatado  os  tra- 
balhos da  classe  concernentes  á  nossa  legislação  ;  pois  en- 
tre as  memorias  publicadas  se  encontrão  as  que  tem  por 
objecto: 

j>  O  nosso  governo  e  os  nossos  costumes  desde  os 
»>  primeiros  tempos  conhecidos  até  o  estabelecimento  da 
>»  monnrchia  portugucza  inclusivamente; 

»  A  «rigem  dos  nossos  juizes  de  fora  ; 

»  O  que  erão  as  behetrias  ,  e  em  que  differião  dos 
>í  coutos  e  honras  ; 

»  A  época  certa  ,  e  o  modo  da  introducção  do  direi- 
»  to  chamado  de  Justiniano  ; 

»  O  direito  de  correição  usado  nos  tempos  antigos  e 
»  nos  modernos  ; 

3>  A  origem ,  progressos ,  e  variações  da  jurispruden- 
»  cia  dos  morgados  ; 

>»  A  época  fixa  da  introducção  do  direito  romano  cm 
»  Portugal ,  c  o  gráo  de  aurhoridade  que  elle  teve  nos  di- 
íj  versos  tempos ,  »  memoria  esta  que  concorreo  a  program- 
ma  ,  e  assim  também  a  anterior ;  havendo  sido  ambas  es- 
critas por  hum  sócio,  que  depois  temos  visto  elevado  aos 
eminentes  cargos   de  Ministro  e  Conselheiro  de  Estado. 

Semelhantemente  foi  escrita  por  outro  distincto  sócio, 
em  concurso  a  outro  programma  ,  huma  memoria  sobre  a 
introducção  do  direito  das  Decretaes  em  Portugal  ;  e  a 
influencia  que  elle  teve  na  nossa  legislação. 

A  todas  estas  memorias  accrescem  ainda  as  que  tra- 
tão  da  forma  dos  juizos  nos  primeiros  séculos  da  monar- 
chia ;  da  influencia  dos  conhecimentos  das  nossas  leis  an- 
tigas em  os  estudos  do  jurista  portuguez  ;  dos  inconve- 
nientes e  das  vantagens  dos  prazos  com  relação  a  agricul* 
tura  y  da  origem  e  jurisdicçao  dos  corregedores  das  co- 
rnar- 


DAS   SCIENCIAS   t)È   LiSBOA.  XXXI3Í 

marcas;  da  lei  das  sesmarias;  de  que  até  o  tempo  do  Snr. 
D.  Diniz  nenhuma  lei  prohibio  ás  igrejas  e  mosteiros  a 
acquisição  dos  bens  de  raiz  ;  e  em  fim  a  memoria  escrita 
sobre  a  authoridade  que  teve  entre  nós  o  código  Wisigo- 
do :  memoria  esta ,  que  também  se  apresentou  a  concurso , 
c  he  devida  a  hum  nosso  distincto  correspondente  ,  que 
no  anno  próximo  offereceo  outra,  na  qual  trata  dos  chama- 
dos decretos  de  Fr.  Soeiro  Gomes. 

Para  completar  este  meu  relatório  correspondente  á 
parte  juridica  da  classe,  cujos  trabalhos  vou  descrevendo, 
separarei  dos  prngrammas  desta  classe  os  que  reputo  prin- 
cipaes  entre  os  pertencentes  áquella  parte ,  a  saber  : 

»»  Quaes  foráo  os  diversos  géneros  e  classes  de  pes^ 
»  soas ,  que  existirão  na  nação  portugueza  até  o  reinado 
»  do  Senhor  D.  AflFonso  V;  e  quaes  os  seus  diversos  foros, 
»  privilégios,  e  obrigações: 

»  Qiie  parte  das  ideas  feudaes  se  introduzio  na  legís^ 
»»  lação  portugueza,  em  que  tempos,  e  que  alterações  re- 
>»  cebeo :    i  ■-  ^ 

5í  Qual  foi  a  proporção  entre  os  crimes  e  as  penas 
>»  em  as  diflFereiite<;  épocas  da  nossa  jurisprudência  : 

>í  Q^iaes  forão  a  natureza  ,  qualidades ,  e  eflPeitos  po- 
»  líticos  da  jurisprudência  dos  nossos  antigos  forâes : 

»«  Qual  seja  a  natureza  das  doações  dos  bens  da  Co- 
j»  roa  ,   e   a  necessidade   e  diversidade   das   suas  confirma- 

♦>    ç6eS  í  --     -:;•■';!.   "■'3'-'-'    í^'iJ     ■:•'• 

j>  Qual  foi  entre  nós  a  árigeni,-  ptíógíèssofs  j  fe  efiFei- 
>}  tos  dos  direitos  senhoreaes  : 

«  Huma  historia  das  confirftiações  geraes  ordenadas  por 
«algum  dos  nossos  Soberanos.» 

•'  Passando  aos'  mais  objectos  desta  classe  de  litteraturà 
occuparia  com  a  relação  delles  b  tempo  exigido  pela  de 
outros  talvez  não  mais  consideráveis :  limitar-me-hei  pois  a 
dl2er,  que  lhe  devemos  os  escritos  ou  memorias,  cujos 
assumptos  são  =:  algumas  Décadas  iheditas  do  bem  conhe- 
cido Diogo  <lo  Couto  te  ã  litteraturà  sagrada  dos-Jud^o* 

por- 


XL  Historia  da  Academia  Real 

portuguezes  =:  alguns  apontamentos  interessantes  para  a 
historia  civil  e  littcraria  ác  Portugal  tr  os  códices  manus- 
criptos  e  cartório  do  Real  Mosteiro  de  Alcobaça  =  a  vi- 
da e  os  escritos  de  Francisco  de  Mello,  e  do  insigne  Pe- 
dro Nunes  rr  o  ensaio  de  huma  bibliotheca  lusitana  Anti- 
rabbinica  r=  a  Typografia  portugucza  :=.  alguns  marhema- 
ticos  portuguezes  ,  e  estrangeiros  domiciliários  em  Portu- 
gal —  mostrar  a  legitimidade  da  Senhora  D.  Thereza  :=:  e 
mostrar  que  o  Síir.  Conde  D.  Henrique  no  anno  1Í03  ain- 
da não  tinha  voltado  a  Portugal. 

A  estas  qicmorias  devo  accrescenrar  as  que  tratão  í:: 
dos  Judcos  em  Portugal  í=  do  estabelecimento  da  Arcádia 
de  Lisboa  r:  de  Luiz  de  Camões  e  das  suas  obras  r:  das 
primeiras  cinco  edições  dos  Lusiadas  e=  do  começo ,  pro- 
gresso,  e  decadência  da  litteratura  grega  em  Portugal  t= 
dos  Chronistas  mores  Fr.  Bernardo  de  Brito  ,  e  Fr.  António 
Brandão  =  de  Fr.  Luiz  de  Sousa  e  das  suas  obras  :::  do 
Cardeal  D.  Jorge  da  Costa  :=  do  Theatro  portuguez  =z  da 
viíla  de  Cêa  z^  dos  Chronistas  portuguezes  :r  e  de  alguns 
dos  nossos  falecidos  sócios. 

Ainda  me  cumpre  mencionar  os  escritos  t^  sobre  a 
historia  c  descobrimentos  de  nossos  maiores  í=  sobre  dois 
antigos  mappas  geográficos  do  Síir.  Infante  D.  Pedro  ,  e 
do  cartório  de  Alcobaça  t::  sobre  a  possibilidade  e  verosi- 
milhança da  demarcação  do  estreito  de  Magalhães  no  pri- 
meiro dos  ditos  mappas  ;=:  sobre  o  conhecimento  que  se 
jJodia  ter  da  existência  da  America  ir  sobre  a  antiguidade 
da  observação  dos  astros ,  e  uso  da  Bússola  t=  sobre  Mar- 
tim  de  Bohemia  sr  sobre  a  novidade  da  navegação  portu- 
gucza no  século  XV  r:  e  sobre  os  descobrimentos  e  com- 
mercio  dos  portuguezes  nas  terras  scptentrionaes  americanas. 
Também  podeis  ver  impressas  outras .  memorias  de 
grande  merecimento,  á  cerca  da  filologia  portugueza ,  «St 
jcritas  pçLos  Senhores  Joaquim  de  Foios  ,  António  Pereira 
de  Figueiredo ,  Francisco  Dias  Gomes ,  António  das  Ne- 
ires  Ferçiu,  D.  Fr.  Francisco  de  S.  Luiz,  e  ílodrigo  Ferj 
..,  /"  rei- 


DAS   SCIENCIAS   DE   LlSBOA.       "  XLI 

reíra  da  Costa  ,  cujo  systema  de  orthogiafia  parece  com 
cffeito  ser  o  preferivcl  entre  todos  os  que  vagucâo,  per- 
tendcndo  seguir,  mais  ou  menos  sensatamente,  já  o  con* 
stantc  systema  etymologico  ,  já  o  variável  da  pronunciaçáo , 
que  está  continuamente  sacrificando  a  etymologia  á  cufo* 
nia  ;  e  que  muda  não  só  com  os  tempos ,  senão  também 
com  os  logares ,  ainda  mesmo  em  nações  tão  pouco  nume- 
rosas como  a  portugucza  europêa. 

São  muito  interessantes  e  muito  apropriados  ás  nossas 
circumstancias  todos  os  programmas  propostos  pela  distin- 
cta  classe  de  litteratura  :  porém,  mencionando  apenas,  em- 
quanto  aos  que  tratão  da  poesia  portugueza ,  os  que  pro- 
põem premio  a  quem  apresentar  ou  huma  tragedia  portu- 
gueza,  ou  huma  comedia  portugueza  de  caracter,  em  ver- 
so ou  em  prosa,  sem  se  lhes  assignaiar  limite  de  tempo  J 
mencionarei  aliàs  os  que  tem  por  objecto: 

j>  O  elogio  de  algum  portuguez  illustre : 

j>  O  estado  actual  da  nossa  litteratura  : 

>>  A  historia  da  typografia  portugueza: 

»»  A  descripção  histórica  de  alguma  parte  notável  do 
j>  Reino ,  desde  a  sua  origem  até  o  presente  : 

»  O  índice  chronologico  remissivo  dos  documentos 
>»  impressos,  pertencentes  á  nossa  historia,  desde  a  restau- 
5»  ração  das  Hespanhas  até  1603  exclusivamente: 

»  A  historia  do  nosso  commercio  exterior,  até  o  des- 
»»  cobrimento  da  índia  : 

"  A  dos  nossos  descobrimentos  em  Australasia  e  Po» 
í>  linesia  : 

j»  A  forma  do  exercito  portuguez  até  a  invasão  de 
>»  Fiiippe  II : 

"  A  povoação  de  Portugal  nos  reinados  dos  Senho- 
»»  res  Reis  D.João  II,  e  D.  Manoel ,  até  a  época  dos  des- 
*»  cobrimentos,  averiguando  as  causas  do  seu  augmento  ou 
»»  da  sua  diminuição  : 

»  O  estado  da  marinha  e  da  navegação  portugiiez» 
f*  até  o  Sfír.  D.  João  II :  . 

T.  IX.  P.I,  •  é  ff  Quaes 


XUT  Historia  da  Academia  Real 

»>  Quaes  forão  os  motivos  que  occasionárão  e  promb-r 
w  vcião  o  descobrimento  do  Oriente;  e  quaes  os  subsidios 
"  que  concorrerão  para  a  sua  feliz  execução  :  e  em  fim  ^ 
>»  O  augmento  ou  diminuição  da  nossa  povoação  eu- 
"  ropêa  ,  nas  diversas  épocas  da  monarchia  ,  indicando  as 
>»  suas  causas.  »  (h) 

Tendo  assim  relatado  summariamente  os  principacs 
trabalhos  desta  classe  ,  rematarei  mencionando  os  seus  pror 
grammas  ,  ciíi  que  ,  propondo  os  elogios  dos  nossos  mais  dis- 
tinctos  Soberanos,  procura  desta  sorte  concorrer,  paraque 
sejao,  se  he  possivel ,  cada  vez  mais  animados  pelo  espiri- 
to da  verdadeira  gloria:  alem  de  que  notarei,  que  não  te- 
nho ainda  visto  as  historias  dos  Soberanos  referidas  com  atr 
tenção  aos  meios,  que  seus  antecessores  lhes  deixarão  ,  e  quç 
os  mesmois  Soberanos  deixão  aos  seus  successorcs  :  donde 
resulta,  que  muitos  ainda  hoje  gozao  de  reputação  ou  su« 
pcrior,  ou  inferior,  áquella  que  verdadeiramente  lhes  com- 
pete. 

Te  rceira    Parte. 

Chegado  ao  recenseamento  do  que  he  devido  a  minha 
classe,  procurarei  que  o  espirito  de  corporação  me  não  des' 
lumbre ,  como  acontece  não  poucas  vezes  com  assaz  perjui- 
zo  publico. 

Principiarei  observando  em  geral ,  que  devemos  á  ma- 
thematica  o  conhecimento  de  .todas  as  grandezas  ,  e  cor- 
relações assim  algarithmicas  como  geométricas  ;  bastando 
para  se  manifestar  a  sua  transcendente  e  geral  utilidade, 
a  ponderação,  de  que  sem  a  mathematica,  nem  conhece- 
riamos  as  leis ,  que  regem  os  astros ,  nem  saberíamos  em- 
pregar este  conhecimento  a  bem  da  segurança  e  do  pro- 
gresso da  navegação;. sem  a  qual  nem  o  commercio,  nem 
a  civilisação  poderia  subir  ao  gráo  de  elevação ,  que  tanto 
nos  honra  j  sem  a  qual ,  em  huma  palavra ,  os  portugue- 
zes  nunca  scrião  o  que  tem  sido  ,  graças  principalmente 
: :  ^'j  '9  ao 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  XLIII 

ao   mathcmatico,    valoroso,   resoluto,   e  immortal  Infante 
D,  Henrique. 

Os  trabalhos  da  minha  classe  comparados,  ou  com  os 
das  outras  classes  dc.vta  Real  Academia  ,  ou  com  es  de 
igual  classe  nas  Academias  estrangeiras,  mostrão  que  esta 
classe  não  desmerece  consideração  disrincta. 

Com  effeito ,  alem  do  que  referirei  relativo  ao  pro- 
gresso importantíssimo  da  nossa  navegação ,  alem  dos  tra- 
tados de  agrimensura,  de  musica,  e  dos  limites  (que  me 
parece  dos  melhores  entre  os  elementares  mathcmaticosj  ; 
alem  da  publicação  de  humas  taboas  logarithmicas ;  de  ou- 
tras supplemcntares  ás  logarithmicas  e  trigonométricas;  das 
do  nonagésimo  para  a  latitude  de  Lisboa;  e  dos  elemen- 
tos assim  de  geometria  como  das  duas  trigonometrias,  que 
já  contio  terceira  edição ;  consultando  as  memorias  da  Aca- 
demia yer-se-ha ,  que  pertencem  a  esta  classe  aquellas  que 
tratão  : 

>>  Da  solução  geral  do  problema  de  Kepler  sobre  a 
»  medição  das  pipas  e  dos  toneis. 

5>  Dos   princípios  do  calculo  superior. 

»  De  additamentos  consideráveis  á  regra  de  Fontaine 
j>  para  resolver  approxímadamente  os  problemas  reductiveis 
5>  ás  quadraturas. 

jj  De  muito  interessantes  observações  meteorológicas 
»»  e  astronómicas,  sendo  algumas  praticadas  em  obscrvato- 
»  rio  especial  construido  sobre  muralha  do  castello ,  á  custa 
>»  da  Academia  ;  tendo  servido  huma  parte  delias  para  a 
»»  determinação  da  latitude  e  longitude  desta  capital  ;  e 
>»  accrescendo  a  estas  mesmas  observações  astronómicas,  e 
>»  meteorológicas,  muitas  outras  praticadas  em  Mafra,  em 
>»  S.  Paulo,  e  no  Rio  de  Janeiro. 

j»  Huma  demonstração  do  theorema  de  Newton  so- 
»»  bre  a  relação  dos  coefficientes  das  equações  algébricas 
>»  com  as  sommas  das  potencias  das  suas  raizes  he  também 
»  devida  a  esta  classe  ;  assimcomo  a  applicação  do  mes- 
í»  mo  theorema  ao  desenvolvimento    em  serie  dos  produ* 

*    6   ii  »»  CtQS 


xuv  Historia  da  Academia  Real 

>»  ctos  compostos  de  infinitos  factores  ;  ilevendo-se-!he  ao 
»  mesmo  tempo  memorias  interessantes : 

jj  Sobre  as  equações  de  condição. 

»  Sobre  as  orbitas  dos  cometas. 

j>  Sobre  as  propriedades  dos  coefHcientes  dos  termos 
j>  do  Binómio  Newtoniano. 

»  Sobre  as  Bríichystochronas. 

"  Sobre  as.  variações  seculares  dos  elementos  cUipti- 
»  cos  de  Palias  e  Ceres. 

j>  Sobre  o  cometa  de  1807. 

j>  Sobre  o  calculo  das  notações. 

»  Sobre  a  dcducção  filosófica  das  operações  algébricas. 

j>  Sobre  os  theoremas  de  Newton  á  cerca  das  poten- 
j>  cias  das  rai/es  das  equações. 

»  Sobre  a  theorica  da  composição  das  forças., 

j>  Sobre  a  comparação  das  formulas  tanto  finitas  co- 
j>  mo  de  variações  finitas  e  infinitcsimas  dos  triângulos  es- 
»  fericos  e  rectilíneos. 

»  Sobre  as  binomiaes. 

j>  Sobre  as  lorerias. 

5)  Sobre  as  formulas  propostas  por  Wronski  para  a  re- 
»>  solução  geral    das  equações. 

>>  Sobre  não  poderem  ter  formas  de  raizes  as  equa- 
j>  ções  litteraes  e  completas  dos  gráos  superiores  ao  quarto. 

)>  E  sobre  a  influencia  do  erro,  que  pode  resultar  nos 
jj  ângulos  horários  do  sol  e  da  lua,  de  se  não  attender  á 
»  figura  da  terra.  >» 

Abstendo-me  de  reflexões  acerca  de  tão  relevantes  fa- 
digas ,  pois  me  cumpre  inscrever  muitas  e  grandes  noticias 
dentro  do  mais  resumido  quadro ,  concluirei  o  relatório  d^ 
minha  classe ,  expondo  o  mais  importante  do  que  respeita 
aos  seus  programmas ,  e  á  nossa  navegação. 

Entre  os  programmas  que  pude  rever,  e  que  não  ap- 
parecem  resolvidos  nas  mencionadas  memorias ,  julgo  so- 
bresahirem  aquelles   que  tiverão  por  objecto  : 

>»  O  methoio  de  tirar  das  observações  as  equações 

>»  dos 


DAS   SciENCIAS   DE   LlSBOA.  XLV 

i>  dos   planetas,  accommodando-o  principalmente  JÍ  detcr- 
»i  minação  das  desigualdades  da  lua. 

»  Hans  elciTieiitos  de  aiithmeticâ  politica  para  uso  da 
j»  nação   portuguc/a. 

>»  O  mcthodo  geral  para  determinar  independentcmen- 
j>  te  da  integração  de  equações  diíFcrenciacs  ,  a  diffcrenças 
j>  parciaes  ,  qualquer  dos  Rsctores  que  podem  Fazer  int(> 
»  gravei  liuma  funcçao  diíFercncial ,  que,  não  sendo  exa- 
j>  cta ,  SC  possa  reduzir  a  que  o  seja  ,  multiplicando-a  por 
»»  hum   factor  conveniente. 

j>  Hum  tratado  de  series ,  em  que  se  comprehendes- 
i>  sem  as  verdades  mais  importantes  até  então  descobertas 
»5  na  sua  thcoria  ,  deduzido  pelo  modo  mais  fácil  e  natu- 
íj  ral  do  menor  numero  de  princípios ,  e  estes  os  mais  ge- 
j>  raes  que  fosse  possível. 

5>  Expor  e  comparar  os  methodos  até  então  conheci- 
>»  dos  para  sommar  approximadamente  as  series  infinitas  , 
»>  que  não  admiitem  somma  algébrica. 

"  Hum  tratado  completo  do  methodo  dos  incremcn- 
»i  tos  directo,  e  inverso,  com  as  suas  principaes  applica- 
>»  ções  á  doutrina  das  series ,  e  ao  calculo  das  probabili- 
»  dades. 

»  Comparar  os  diversos  géneros  de  moinhos  empre- 
s»  gados  entre  nós  na  trituração  dos  grãos  frumentaceos  , 
»  apontando  os  seus  defeitos,  e  os  meios  mais  fáceis  de 
j>  os  remediar. 

"  Determinar  os  principies  em  que  deve  fundar-se  a 
>>  applicação  do  calculo  das  probabilidades  á  critica  dos 
»>  factos  históricos.  /: 

:  »  Dar  hum  methodo  suflícientemente  exacto  de  medir 
>»  a  velocidade  das  agoas  correntes  em  qualquer  profun- 
»»  didade. 

j?  Huma  analyse  e  comparação  circumstanciada  dos  me- 
»»  thodos  de  calcular  a  resistência  dos  fluidos. 

>»  Huma  applicação  do  calculo  litteral  a  qualquer  dos 
*»  ramos  d«  economia  politica.  :  vi-p  í;  sl 

»»  De- 


XLVi  Historia  da  Academia  Real 

I»  Determinar  a  forma  dos  carros  mais  próprios  para 
»>  os  terrenos  desiguaes  e  montanhosos;  dando  o  mcthodo 
>»  mais  simples  de  avaliar  o  estorço  do  motor  em  *|ualqucr 
>»  posiçSo  dos  mesmos  carros. 

5>  Entre  os  mechodos  conhecidos  de  aproveitar  a  for- 
»  ça  das  marés,  determinar  qual  stja  o  mais  vantajoso  nas 
j»  diversas  paragens  do  nosso  Reino. 

j»  Simplificar  a  bomba  de  fogo  de  maneira  que  o  seu 
»  uso  se  torne  mais  fácil ;  indicando  se  com  especialidade 
»  as  vantagens  da  sua  applicação  ao  ensecamcnto  dos  paues. 

Ultimamente  ,  com  premio  fixo  para  todos  os  annos 
»  hum  pl;)no  de  canal  para  aproveitar  as  agoas  de  algum 
3>  rio  de  Portugal  na  irrigação  dos  campos  ,  com  todas  as 
>»  nivclaçócs  e  todos  os  cálculos  necessários,  paraque  a 
j>  Academia  possa  conccitualo.  " 

Senhores  desculpai-me  ,  se  o  louvável  desejo  de  apre- 
sentar-vos  o  quadro  systeraatico  ,  e  synoptico  ,  dos  servi* 
ços  mais  notáveis  feitos  por  esta  Real  Academia  ,  me  con- 
duzio  a  ser  pezado  ás  vossas  attenções  :  prestai-mas  ainda 
por  poucos  instantes ,  paraque  possais  conceituar  a  pro- 
pósito o  distincto  zelo  com  que  esta  Academia  se  tem  ap- 
pl içado  a  promover  hum  dos  vossos  maiores  interesses  , 
pois  tal  deve  ser  considerado  o  progrssso  da  navegação 
portugueza. 

Agora  mesmo  tenho  a  honra  de  aprescntar-vos  entre 
as  obras  impressas  neste  anno  Académico  as  Ephemerides 
náuticas  para  o  de  i8iy,  havendo  27  annos  que  princi- 
piou a  publicação  deste  diário  indispensável  para  a  nave- 
gação alta  :  o  qual  he  tão  apropriado  ao  seu  destino ,  que 
vencco  por  este  lado  o  parallelo  com  a  distincta  Epheme- 
ride  Conjnbricence. 

A  Academia  imprimio  também  as  taboas  perpetuas 
astronómicas  para  uso  da  navegação  ;  e  entre  as  suas  me- 
morias,  abstrahindo  as  que  respeitão  a  historia  das  nossas 
navegações  antigas,  (sendo  por  isso  bem  próprias  para  nos 
excitarem  a  que  restauremos  este  agente  da  nossa  antiga 

for- 


DAS    SCIENCIAS   de:  LlSBOA.7  T'''  SLVir 

fortuna  e  gloria),  ommittindo  mesmo  as  que  tratão  do  max 
gnctismo  ,  mencionarei  aqucllas  que  tem  por  objecto,  =5 os 
instrumentos  de  reflexão  zz  as  instrucções  e  regras  praticas 
relativas  á  construcção ,  carregação ,  e  manobra  dos  navios 
c3  a  architecrura  naval  =  a  practica  da  alagaçao  dos  na- 
vios n:  o  calculo  da  longitude  simplificando  considerável' 
mente  a  formula  de  Ic  Gcndre  r:  e  notarei  finalmente  aqucl'» 
la  que ,  tratando  da  reforma  da  quinta  ordem  de  marcha  j 
quando  o  vento  alarga  ,  nos  mostra  ao  mesmo  tempo  o  er- 
ro de  hum  táctico  distincto  ,  e  que  as  vistas  da  Academia 
tem  abrangido  todos  os  ramos  da  marinha. 

Esta  verdade  he  também  demonstrada  pelos  program- 
maí?  correspondentes,  e  assaz  importantes,  entre  os  quaes 
SC  encontrão  os  seguintes ,  a  saber : 

>>  Assignar  os  meios  mais  expeditos,  e  mais  seguros, 
>>  para  conhecer  no  mar  a  distancia  e  rumo  a  que  se  tem 
>»  navegado. 

»  Dada  a  secção  horisontal  de  hum  navio  ,  feita  á 
í»  flor  da  agoa  ,  e  a  sua  secção  vertical  pelo  plano  da  ca- 
>»  sa  mestra,  determinar  entre  todas  as  superficies  curvas, 
»>  continuas  e  descontinuas,  que  podem  passar  pelas  linhas 
j>  que  terminâo  as  sobreditas  secções  ,  aquella  que ,  posto 
»»  o  navio  em  movimento  pela  acção  do  vento  sobre  as  ve- 
»»  las ,  fará  que  elle  experimente  nas  agoas  a  minima  re- 
»»  sistencia  :  e  reciprocamente  dada  a  figura  e  as  dimensões 
»  de  hum  navio,  determinar  o  angulo  que  o  plano  da  sec- 
«  ção  feita  á  flor  da  agoa  deve  fazer  com  o  plano  da  casa 
»>  mestra ,  paraque  o  navio  se  mova  com  a  máxima  velo- 
»>  cidade. 

»  Huma  comparação  analytica  dos  differentes  metho- 
«  dos  de  determinar  as  longitudes  no  mar ,  em  que  se  ex- 
j>  ponhão  as  circumstancias  mais  e  menos  favoráveis  a  cada 
»>  hum  dos  mesmos  methodos ,  e  o  maior  erro  que  pru- 
»  dentemente  se  pode  recear  delles ,  sendo  practicados  com 
»»  a  maior  exacção  possível. 

»»  Achar  pela  observação  dos  astros  a  hora  de  bordo, 

»»  quan- 


scLvin  Historia  da  Academia  Real 

»»  quando  nSo  se  vê  o  horisonte :  mostrando  juntamente  o 
»  gráo  de  confiança  merecida  pela  solução  que  se  der  a  es- 
>»  te  problema. 

»  Mostrar  o  gráo  de  confiança  devido  á  longitude  do 
>»  navio  deduzida  da  estima ,  em  huma  viagem  de  30  dias 
»  pelo  menos:  e  se  convém,  ou  não,  fazer  na  longitude 
»  estimada  âs  emendas  indicadas  pela  diíFerença  entre  as 
j>  latitudes  observada  c  estimada:  fundado  isto  no  calculo 
»  e  nas  observações. 

>»  Resumo  das  regras  praticas  (que  se  usão)  para  tra- 
>»  çar  a  figura  de  hum  navio  sobre  os  três  planos  ortho- 
í>  gonaes  de  projecção,  mostradas  com  toda  a  clareza  pos- 
j»  sivcl  pelos  desenhos  correspondentes ;  e  juntamente  o 
»>  calculo  pratico  do  porte  e  da  capacidade  do  navio. 

j»  Algumas  observações  de  eclipses  do  sol ,  ou  de  oc- 
»»  cultações  de  estrellas  pela  lua  ,  feitas  por  navegadores 
»»  portuguezes  em  portos  do  Brasil  ou  da  Ásia  ;  espccifi- 
>»  cando-se  todos  os  meios  e  instrumentos  empregados  nes- 
»>  tas  observações. 

j>  Huma  derrota  de  navegação  alta  por  tempo  de  hum 
9>  mez ,  ou  mais,  feita  em  navio  portuguez,  cujo  princi- 
»  pai  motor  seja  o  fogo :  ou  huma  memoria ,  na  qual  se 
j>  evidencêe  a  possibilidade  e  maneira  de  effcituar  a  mes- 
«  ma  navegação  vantajosamente  nos  navios  mercantes  ,  e 
j>  em  todas  as  circumstancias.  Será  preferível  a  memoria , 
j>  que,  alem  de  desempenhar  este  assumpto,  considerar  o 
>»  motor  empregado  ao  mesmo  tempo  na  cosinha  do  na- 
»>  vio,  em  distillar  agoa  do  mar  para  os  usos  ordinários 
>»  delia ,  em  renovar  o  ar  do  porão  e  das  cobertas ,  em  es- 
í»  gotar  o  navio ,  e  em  defendêlo  mediante  a  projecção 
j»  de  agoa  fervente ,  á  semelhança  da  executada  pelos  Ame-! 
>»  ricanos  Inglezes  a  bordo  da  fragata  Fulton.  » 

Programmas  estes  aos  quaes  cumpre  accrescentar  os 
propostos  tantas  vezes  com  premio  fixo ,  sem  limitação  de 
tempo  ,  a  saber  : 

jí  Huma  derrota ,  em  que  o  uso  das  observações  as- 

)f  tro- 


DAS   ScrEKCrAS  DE   LlSBOA,*T  XLIX 

í»  troríomicas  seja  assaz  frequente  ,  principalmente  o  das 
»j  distancias  da  lua  a,o.sol,  ou  ás  estrellas :  sendo  estas  dis- 
**'tancia»  calculadas 'segundo  os  methudos ,  que  a  Acade- 
»»  mia  tem  indicado,  c  continuar  a  indicar  em  as  Efeme- 
»». rides  náuticas,  que  para  uso  dos  nossos  pilotos^  tem  man-f 
>j  dado  calcular  para   todos  os  annos.  qr ';      roS 

>»  Huma  comparação  circumstanciada ,  e  reflectida,  dns 
»  boas  ou  más  qualidades  de  qualquer  navio  ,  observadas 
j>  nas  diversas  circumstancias ,  em  que  se  tenha  achado  nas 
»  suas  viagens,  com  aquellas  que  devera  ter  segundo  os 
í>  principios  theoreticos  derivados  da  figura  do  seu  casco , 
>»  e  das  posições  do  seu  centro  de  gravidade,  do  centro 
»»  de  gravidade  da  sua  parte  mergulhada,  do  metacentro, 
»  e  do  centro  velico:  sendo  estas  determinações  feitas  pe- 
»>  los  mcthodos  mais  exactos.  »» 

A  tantos  e  taes  trabalhos  ,  executados  nas  circumstan* 
cias,  que  ponderei  no  relatório  da  sessão  anterior,  e  nas 
patenteadas  pelo  Snr.  MuUer  em  24  de  Junho  de  18 10, 
muitos  outros  accresccm  ordenados  pela  superioridade ,  e 
os  relativos  a  hum  gabinete  de  fysica ,  a  outro  de  histo- 
ria natural,  á  typografia  académica,  e  a  huma  livraria  mais 
notável  pela  qualidade  ,  doque  pela  não  pequena  quanti- 
tJade  dos  seus  volumes.:  entrego  porém  todos  ao  silencio, 
assimcomo  os  que  respeitão  ás  artes  e  officios ,  ou  á  me- 
chanica,  ás  censuras  académicas,  c  ao  exame  quer  dos  car- 
tórios, e  de  algumas  livrarias  do  Reino,  quer  do  archivo 
da  Torre  do  tombo,  e  da  livraria  do  Escurial.  Desta  sorte 
vou  passar  mais  brevemente  á  part'e  quarta  e  ultima  deste 
xelatorio  ,  no  qual  tenho  já  comprehendido  os  principaes 
serviços  prestados  por  esta  Academia  no  longo  espaço  de 
quasi  quarenta  e  quatro  annos. 

Q^u  ARTA    Parte. 

Proseguirei  mencionando  primeiro   os  individuaes  tra- 
balhos académicos  executados  no  anno  agora  findo ;  relata- 
rei depois  os  trabalhos  que  devemos  a  mais  de  hum  socio^ 
r.  IX.  F.I.  •  2  « 


Z    ■  Historia  ca  A^adeiMIã  Real 

e  finalizarei  referindo  as  obras  offcrecidas  a  esta  Academia  j 
já  por  individuos  portugufzefi  ,  e.já  (.por 'estrangeiros.         , 

O  Siír.  D.  Fr.  Francisco  de  S»  Luiz  abrio  a  carreira 
littcraria  deste  anno ,  tazendo  apresentar  a  continuação  do 
seu  tratado  dos  synonymos  da  lingua  portugucza,  que  ve- 
des reimpresso  com  este  additamcnto.  •  '  •.;„.■  u  ■ 
2  b  O  Siír.  Luiz  da  Silva  Muzinho  de  Albuquepcjue ,  de- 
pois de  havcr-nos  brinti^ado  com  a  traducção  dos  seus  doze 
bem  desenhados  quadros- de  ,chimica  inorgânica,  apresen- 
tou a  primeira  parte  do  seu  curso  fysico-chimico  ,  que  a 
Academia  julgou  merecer  a  luz  publica,  seguindo-se  man- 
dar imprimi  la  ,  e-  ficar  rassim  preenchido  hum  grande  vá- 
cuo ,  que  havia  nas  producções  littcnarias  portúguezas. 

Demais  a  mais  procurou  a  Academia  corresponder  ao 
distinto  auctor,  nomeando-o  Correspondente,  e  elevando-o 
logo  depois  ao  gráo  de  Sócio  livre:  alem  de  que,  ponde- 
rando quanto  convém  que  taes  conhecimentos  se  adiantem  y 
e  se  dilFundâ^j  estabcleceo  hum  premio  a  favor  daquelk 
discipulo  tdas  novas  aulas  de  f)'sica  e  de  chimica  ,  que 
apresentar  alguma  memoria  ,  na  qual  se  adiante  sensivel- 
mente qualquer  das  ditas  sciencias. 

O  mesmo  Sfír.  Mozinho  não  só  noticiou  as  ultimas 
descobertas  de  MM.  Dbreirer,  Thenard ,  e  Dulmas  ,  acer- 
ca da  influencia  dos  metaes  sobre  os  fluidos  aeriformes , 
naas  também  executou  perante  a  Academia  huma  experiên- 
cia relativa  á  prompta  determinação  dos  principios  com- 
ponentes da  agoa  na  presença  do  platina-esponjoso. 

O  Snr.  António  Diniz  do  Couto  Valente  ofíereceo  a 
Efeméride  náutica  para  o  anno  1825,  devendo  notar-se, 
jquc  a  sua  composição  se  tornou  mais  trabalhosa  ,  por  se 
não  poder  fundamentar  na  do  Almanak  Inglez  tanto  quanr 
to  atégora  se  praticava. 

O  Siír.  Joaquim  Pedro  Fragoso  da  Mota  de  Siqueira 
4êo-nos  o  principio  de  huma  memória  sobre  as  minas  de 
Saxonia  ;  e  outra  sobre  a  fabricação  do  pez  e  do  alcatrão 
na  marinha  grande. 

O 


DAS  SciENCiÀs  CE  Lisboa.  li 

O  Sfir.  Luiz  Gomes  de  Carvalho  offcreceo-nos  huma 
interessante  memoria  sobre  a  restauração  das  barras  dos 
portos,  considcrando-os  primeiro  em  geral,  e  contemplan- 
do especialmente  os  de  Portugal ,  entre  os  quaes  trata  mais 
especialmente  do  Douro. 

Tereis,  Senhores,  a  satisfação  de  ouvir  ler  hum  ex* 
tracto  desta  memoria  de  hum  portuguez ,  antes  de  cuja 
existência  ninguém  levou  a  concha  de  S.  Martinho ,  e  as 
barras  de  Aveiro ,  e  do  Porto ,  ao  gráo  de  melhoramento 
em  que  hoje  as  vemos,  e  desfructamos ,  com  evidente  van- 
tagem publica  em  mais  de  hum  sentido  ;  sendo  por  tanto 
muito  distincto  o  merecimento  que  fez  entrar  no  numero 
dos  correspondentes  desta  Academia  o  auctor  de  tão  notá- 
vel escrito;  no  qual  se  evidencca  o  muito  que  a  possível 
restauração  das  barras ,  dependente  alias  da  distancia  das 
margens,  da  dureza  relativa  destas  margens,  e  do  fundo, 
também  depende  da  igualdade  ou  quasi  igualdade  das  mes- 
mas margens  de  sua  foz ;  e  da  quasi  perpendicularidade 
delias  a  respeito  das  costas  immediatas. 

O  Snr.  Fr.  Fortunato  de  S.  Boaventura  dobrando  a 
satisfação  dos  seus  deveres  académicos ,  não  obstante  a  de 
muitos  outros  que  tem  tido  a  seu  cargo,  enviou  nos  duas 
memorias  ,  em  huma  das  qiiaes  trata  do  portuguez  Diogo 
Lobo  Rebello  ,  escritor  theologico  e  politico  de  nossos  an- 
tigos tempos;  a  quem  Barbosa  na  sua  bibliotheca  denomi- 
na Diogo  Lopes  Rebello  :  e  na  outra  memoria  pertende 
fazer  mais  illustre  a  do  Chronista  mór  Fr.  Bernardo  de 
Brito- 

O  Srir.  Manoel  José  Pires  lêo  huma  traducção  da  ora- 
ção pro  Ligario. 

O  Snr.  Barão  de  Eschwege  apresentou  hum  curioso 
mappa  das  alturas  de  diversos  lugares  de  Portugal  sobre  o 
nível  do  mar,  e  das  qualidades  dos  terrenos  adjacentes. 

O  Síir.  Ignacio  António  da  Fonseca  Benevides  recitou 
a  continuação  de  huma  memoria  medico-botanica  sobre  as 
plantas  venenosas  poriuguezas.  'onui/i 

♦  7  ii  O 


Lii  Historia  da  Academia  Real 

i-!!;j..lO  Sfir.  Joaquim  Baptista  oíFcreceo  huma  memoria  so- 
bre as  caldas  que  chama  de  Lafões  ,  e  que  também  são 
denominadas  de  S,  Pedro  do  Sul. 

O  Snr.  Manoel  José  Maria  da  Costa  e  Sá  vai  ler-vos 
o  elogio  do  nosso  distincto  e  fallccido  sócio  o  Snr.  Ale- 
xandre António  das  Neves  ,  que  também  foi  Guarda  mór 
da  Academia,  e  hum  dos  maiores  zeladores  do  progresso 
académico:  este  elogio  contemplando-o  como  homem,  co- 
mo litterato,  e  como  membro  da  Academia,  patentear-vos- 
ha  o  bom  aparo  da  penna  do  seu  escritor,  e  por  isso  me 
abstenho  de  todo  o  toque  de  qualificação  á  cerca  delle.    : 

O  Snr.  Jcronymo  Joaquim  de  Figueiredo  aprcsentou- 
nos  a  sua  Flora  alimentar  e  farmacêutica  portugucza  ,  es- 
crita em  o  nosso  idioma  :  com  esta  Flora  ,  depois  de  se 
lhe  ajuntar  hum  indice  lusitano ,  poderá  qualquer  portu- 
guês adestrar  SC  nos  conhecimentos  botânicos ;  pois  adqui^ 
rindo  os  elementos  da  lingoagem  ,  e  da  scicncia  ,  mediante 
o  estudo  do  compendio  escrito  em  portugucz  pelo  Snr.  Fe- 
lis  de  Avellar  Brotero ,  pode  applicar  esta  lingoagem  ás 
plantas  de  vulgar  conhecimento,  servindo-se  da  nova  Flo- 
ra; e  habilitar-se  desta  sorte,  quer  para  elevar-se  a  maio- 
res conhecimentos  botânicos  ,  quer  para  fazer  mais  util  a 
mesma  Flora  ,  addicionando-lhe  descripçócs  da  cultura ,  das 
propriedades  ,  e  dos  usos  das  plantas  alli  mencionadas  , 
cujo  numero  anda  por  quinhentos,  e  parece  que  pode  ser 
augmentido  (r).    . 

.  '.  O  Snr.  Visconde  de  Santarém  oíTereceo  consideráveis 
additamenios  ás  suas  assaz  conhecidas  memorias  sobre  os 
manuscritos,  que,  existindo  nas  bibliothecas  Parisienses,  per- 
tencem ao  Direito  publico  externo  e  diplomático  de  Por- 
tugal :  a.distiactQ  conceito,  que  corresponde  a  este  manu- 
scrito ,  alem.  :dèí  assaz  prefixado  pelas  ditas  memorias  im- 
pressas, Vai  agora,  mesmo  ser  manifestado  pela  leitura  de 
alguns  dos.  jidditamentos  offcrecidos.. 

..'£  .  iFiBalracnt^>  o  Secretario  fez  puesente  huma  succinta 
memoria  sobre  a  navegação  e  comraercio  do  Rio  de  Janeiro, 

Trcs 


DAS    SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  Lllt 

Tres  forão  as  commissôes  que  tiverâo  cffoctivo  exer- 
cício no  decurso  de  todo  o  anno  agora  concluído  j  a  saber: 
a  commissáo  de  historia  ,  a  ccmmissao  das  Cortes ,  e  a 
Instituição  vaccinica. 

Proseguio  a  primeira  na  distincta  satisfação  dos  seus 
deveres  publicando  o  quinto  volume  de  inéditos,  que  tive 
a  honra  de  apresentar  ,  e  que  que  já  descrevi  quando  tra- 
tei de  todos ;  alem  de  que  preparou  materiacs  para  o  sexto 
volume,  que  vai  ser  impresso:  em  casa  do  Sfir.  Francisco 
Nunes  Franklin  forão  tiradas  e  confrontadas  as  copias  dos 
documentos,  ou  manuscritos  impressos  naquelle  volume  ,  cu- 
ja revisão  principiando  em  cada  folha  a  cargo  do  mesmo 
sócio,  tem  sido  concluida  pelo  Siir,  Francisco  Manoel  Tri- 
goso ;  estes  Sócios  juntos  com  os  Senhores  João  Pedro  Ri- 
beiro ,  Francisco  Ribeiro  Dosguimarães  ,  e  Joaquim  José 
da  Costa  de  Macedo  formão  presentemente  a  referida  com- 
tnissão  de  historia. 

A  commissão  das  Cortes  publicou  as  de  Lamego  ; 
as  de  Coimbra  celebradas  no  anno  121 1,  e  extrahidas  de 
dois  diversos  documentos,  que  na  impressão  marchão  con- 
frontados entre  si ;  seguindo-se  a  estas  Cortes  as  de  Coim- 
bra ,  celebradas  no  anno  1229;  e  a  estas  o  principio  das 
que  forão  convocadas  no  anno  iijj- 

Em  quanto  á  Instituição  vaccinica ,  tomando  a  Acade- 
mia em  consideração  o  que  lhe  representou  depois  da  sua 
mudança  para  a  Estrella ,  obteve  de  S.  Magestade  (cujo 
coração  verdadeiramente  paternal  se  regozija  annuindo  a  tu- 
do quanto  pode  melhorar  a  sorte  de  seus  fieis  portugue- 
ses) que  em  vez  de  hum  estabelecimento  nesta  capital, 
houvesse  dois  alem  do  existente  nas  casas  da  Academia , 
a  saber :  hum  no  thesouro  velho ,  e  outro  no  hospital  da 
marinha,  cujos  locaes ,  segundo  me  foi  participado,  estão 
promptos  para  principiarem  a  servir. 

Se  o  resultado  corresponder  á  expectativa  da  benemé- 
rita Instituição,  crescerá  o  numero  dos  vaccinados  na  ca- 
pital ,  e  estes  encontrando  menos  incommodo  em  voltarem 

aos 


LTV  Historia  DA  Academia  Real 

aos  lugares  da  vaccinação  satisfarão  hum  dever ,  concor- 
rendo paraquc  possa  proscguir  o  beneficio  por  elles  re- 
cebido :  sendo  sem  duvida  muito  estranhavel  a  falta  do 
cumprimento  de  tão  essencial  obrigação  ,  pois  desta  falta 
verdadeiramente  dcshumana  he  consequência  immediata ,  e 
precisa  ,  o  augmento  do  numero  das  pessoas  mortas  pelo 
terrível   mal  das  bexigas  naturacs. 

Tratando  agora  dos  offerecimentos  feitos  á  Academia , 
devo ,  Senhores  ,  communicar-vos ,  que  o  Siir.  Barão  de 
Esch-vvege  apresentou  hum  mappa  geográfico  da  capitania 
de  Minas  geracs,  e  prometteo  huma  copia  dcUe  :  accrcs- 
cendo  prescntear-nos  com  quatro  volumes  escritos  cm  ale- 
mão ,  dois  dos  qujcs  intitulou  "Jornal  do  BrazH ,  aonde  re- 
lata parte  das  suas  viagens  naquelle  paiz ,  dando  ao  mes- 
mo tempo  varias  noticias  mineralógicas  ,  geognosticas  ,  e 
cscadisticas  respectivas  :  hum  dos  outros  volumes  tem  por 
titulo,  Prospecto  geognostico  do  Brasil^  e  sobre  a  matriz  dos 
diamantes :  o  quarto  volume  he  intitulado ,  Noticias  minera- 
iogicas  e  geognosticas  de  Portugal  e  das  suas  colónias. 

O  Síir.  Manoel  José  Maria  da  Costa  e  Sá  ofFereceo 
huma  collccçâo  de  noticias  manuscritas ,  concernentes  á 
Cochinchina. 

Recebco-se  também  hum  exemplar  do  carmen  endeca- 
syllahum  de  Rezende,  impresso  em  Lisboa  no  anno  1547, 
e  offerecido  á  Academia  por  Joaquim  António  de  Medina. 

Mr.  Deveze,  medico  em  Pariz ,  e  membro  de  varias 
Academias ,  offereceo  alguns  impressos  relativos  á  febre 
amarella ,  sendo  de  parecer  que  não  he  contagiosa. 

Mr.  de  Chateaunoeuf  remetteó-nos  hum  exemplar  do 
seu  folheto  relativo  á  mortalidade  das  mulheres  na  idade 
considerada  critica  de  40  a  fo  annos. 

O  Srir.  Ampere  enviou-nos  hum  exemplar  da  sua  obra 
sobre  os  fenómenos  electro-magneticos. 

O  Snr.  Fr.  Mattheus  da  Assumpção ,  agora  nosso  cor- 
respondente, oíFereceo-nos  hnm  exemplar  da  sua  traducção 
da  historia  das  revoluções,    esccit4..pof.yertotj.  outro  da 

sua 


V 


DAS   SciENCIAS  CE   LiSBOAiT  TtV 

sua'  carta  apologética  á  favor  do  P.  Vieira,  e  outro  do  seu 
sermão  em  acção  de  graças  pela  feliz  acciamação  de  S.  Ma- 
gcstade. 

O  Sfír  António  Joaquim  de  Castro  Peixoto,  havendo 
offcrecido  vários  desenhos  da  sua  machina  de  debulhar  tri- 
go ,  incumbio-se  de  dirigir  a  construcção  de  hum  modelo 
próprio  para  se  fazerem  decisivas  experiências;  modelo  que 
a  Academia,  sempre  propensa  para  animar  tudo  o  que  po- 
de promover  o  bem  dos  agricultores,  mandou  fazer  á  sua 
custa  :  seguindo-se  encarregar  a  clasvse  respectiva  de  proce^ 
der  aos  mencionados  exames  práticos ,  assimcomo  ao  da 
mcm  )ria  ,  que  sobre  a  dita  machina  foi  apresentada  pelo 
seu  auctor. 

Pelos  Sócios  da  Academia  forâo  distribuídos  os  exem- 
plares de  hum  folheto  intitulado.  Resposta  do  Bispo  de  An- 
gra ,  cnvi.idos  pelo  mesmo  Síír.  Bispo  para  se  proceder  á 
sua  distribuição.  r-.-.tiS)  è-.í;' 

'  O  Sfír.  Varnaghen  participou  haver  encontrado  nas  cin- 
co villas  pedra  conveniente  á  lithografia;  e  forao  apresen- 
tadas varias  estampas  lithografiadas  nesta  cidade  por  Mr. 
le  Coq, 

O  Snr.  Alberto  Carlos  de  Menezes  oflFereceo  exem- 
plares impressos  do  balanço  do  Terreiro  publico  em  1821, 
os  quaes  forao  distribuidos  na  forma  do  costume. 

O  Sfír.  Stuart  remetteo  hum  exemplar  dos  fragmentos 
de  hum  Cancioneiro  inédito  ,  que  mandara  imprimir  em 
Pariz ,  com  attenção  a  estampar  imitações  das  letras  do  ori- 
(ginal. 

Mr.  de  Saint-Hilaire  mandou  exemplares  dos  seus  im- 
■presos  intitulados,  Rapport  sur  le  voyage  dans  le  Bresil^  et 
les  misslons  du  Paraguay  —  Memoires  sur  les  cucurbitacées  !=: 
Memoires  sur  /ir  plantes  aux  quelles  on  attribue  u»  placenta 
central  libre  :  oíFerecimento  este  que  foi  seguido  pelo  de 
vários  outros  folhetos  relativos  á  Botânica. 

Houvemos  também  hum  exemplar  da  oração  académi- 
ca recitada  por  occasião  do  nascimento  da  Sereníssima  Se- 
nho- 


tvi  Historia  da  Academia  Real 

nhora  Princeza  da  Beira  pelo  Sfír.  José  Joaquim  da  Cruz ; 
e  hum  exemplar  do  i."  volume  das  obras  do  Snr,  José  Ma- 
noel Ribeiro  Vieira  de  Castro. 

Monsenhor  Ferreira  Gordo  remetteo  a  esta  Academia 
hum  exemplar  da  obra  intitulada,  Lamedecine  satis  medecin ^ 
e  acompanhada,  assim  por  vários  folhetos,  como  por  pe» 
qucnos  volumes  de  remédios,  que  furão  submettidos  ao  exa- 
me da  classe  de  sciencias  naturacs. 

Recebemos  Mmbcm  huma  nova  edição  da  Hygiene  mi- 
litar do  Síir.  KirckoíF,  accresccntada  com  duas  sessões  in- 
tcrcss.-.ntes  sobre  o  recrutamento,  e  sobre  o  serviço  da  saú- 
de dos  exércitos  :  offerecimento  que  foi  augmentado  ulti- 
mamente com  o  de  huma  dissertação  sobre  o  ar  athmo- 
sferico ,  e  a  sua   influencia  na  economia  animal. 

O  Snr.  Luiz  Pinto  Varella  enviou-nos  varias  obras  suas 
impressas  e  manuscritas. 

A  Senhora  D.  Maria  José  Corrêa  da  Serra ,  pertenden- 
do  cumprir  a  vontade  de  seu  fallecido  irmão,  o  Snr.  José 
Corrêa  da  Serra  nosso  distincto  sócio ,  remetteo  nos  huma 
copia  do  Leal  Conselheiro ,  escrito  pelo  Snr.  Rei  D.  Duar- 
te ,  e  copiado  do  códice  existente  em  Pariz ,  do  qual  tí- 
nhamos as  noticias  publicadas  nds  interessantes  Annaes  das 
sciencias  e  artes. 

O  actual  Secretario ,  depois  de  haver  offerecido  hum 
manuscrito ,  que  trata  dos  governadores  de  Angola  até  o 
fallecido  Barão  de  Mossamedes  ,  oflFereceo  também  alguns 
exemplares  dos  impressos  intitulados  : 

Bosquejo  do  hnm  quadro  sytioptico  designador  dos  homens  ^ 
e  das  nações'. 

Memorias  para  a  historia  da  chamada  regeneração  porttt- 
gueza  em   1820 : 

Táctica  naval,  e  signaes  maritimos.  Obra  esta  na  qual, 
não  somente  se  vê  pela  primeira  vez  reduzida  aquella  tá- 
ctica aos  movimentos  mais  simplices ,  e  com  balizas ,  co- 
mo acontece  no  exercito  \  mas  também  se  executa  o  que 
^r.  R.amatuelle  não  pôde  executar;,  e  se  propõe  huma  na? 

va 


.:  DAS  Sgieíícias  de  LrsEoA.''-r  Lvn 

Vã  oticin  única ,  preferível  á  de  Mr.  Grenicr :  íncluindc-se 
alem  disso  entre  os  nossos  signaes  (também  peia  vez  pri* 
moira)  aquelles  que  os  Inglezes  chamão  de  distancia  ,  e 
hum  diccionario  siippridor  das  faltas  do  regimento. 
,  .  Alem  destes  aperfeiçoamentos  imitados  da  maior  na- 
ção marítima  dos  nossos  dias ,  bem  como  o  sysrcma  nume- 
ral do  regimento,  encontrao-se  neste  mesmo  regimento, 
o  de  se  levar  os  signaes  de  cores  á  maior  independência 
possível  das  mesmas  cores  ;  o  de  incluir  signaes  de  fi- 
gura mais  adequados  á  telegrafia  em  todos  os  tempos  e 
lugares  ;  o  de  se  poder  expressar  de  noite  quanto  se  po- 
de dizer  no  dia  mais  claro ;  o  de  se  poder  supprir  a  bordo 
a  falta  de  bandeiras  ou  de  quaesquer  elementos  componen- 
tes dos  signaes  do  regimento ;  e  o  de  se  haver  completa- 
do o  systcma  de  sjrte  que  pôde  servir  em  qualquer  tem- 
po e  lugar ,  para  communicaçoes  de  navios  entre  si  ,  de 
navios  com  a  terra ,  c  dos  telégrafos  terrestres ,  em  todas 
as  circumstanclas. 

A  concurso  veio  huma  memoria  com  a  epigrafe  :  si 
àcsiiit  vires ,  tamen  est  laudanda  loluntas :  he  concernente  âO 
■programma  que  tem  por  assumpto  —  a  topografia  medica 
de  huina  grande  povoação  de  Portugal  ~  porém  não  ha- 
vendo parecido  merecedora  de  premio,  em  vez  de  procla- 
mar com  grande  prazer  o  nome  do  seu  auctor ,  passarei  a 
fazer  cumprir  o  estatuto  académico,  apresentando  e  fazen- 
do queimar  a  carta  devlsada  pela  dita  epigrafe. 

Julgo  em  fim  haver  evidenciado  que  a  Academia  terti 
desempenhado  os  seus  deveres ,  pondo  na  mais  bem  regu- 
lada actividade  todos  os  seus  meios,  que  felizmente  volta- 
rão ao  seu  antigo  estado,  como  vos  foi  notório  na  sessão 
anterior;  graças  á  Soberana  Munificência  de  S.  Magestade, 
que  tão  promptamente  nos  reinstallou  na  posse  daquella 
mesma  dotação  ,  com  que  nos  havia  habilitado  ,  para  nos 
empregarmos  como  nos  temos  empregado  no  Real  Serviço. 
Accrescentnrei  pois  tão  somente ,  que  a  total  execu- 
ção dos  estatutos  desta  Academia  não  só  a  tem  conduzido 
y.  IX.  P.L  »  8  a 


i-Tiir  Historia  da  Academia  Real 

a  sobresahir  em  quanto  á  nossa  antiga  Academia  de  histo- 
ria ,  mas  também  a  pódc  conduzir  a  comprchender  todas  as 
sociedades,  cuja  instituição  tenha  por  objecto  o  progresso 
das  scicncias  e  artes  em  Portugal :  sendo  conseguintemenie 
da  maior  evidencia  o  muito  que  se  interessa  em  conservar, 
e  em  promover  este  importantissimo  estabelecimento. 

Nestes  termos  concluirei  o  presente  relatório,  mencio- 
nando a  offerta  do  poema  latino  do  Cavalheiro  Camberiyn , 
composto  por  occasiao  dos  immortaes  acontecimentos  do 
anno  próximo,  e  dirigido  í  S.  Magestade  :  com  aquelle 
Cavalheiro  direi  finalmente , 

coHstatis  tua  vivet  imago 
Cordibus  in  cunctis ,  hac  vobis  templa  vovennis. 


NOTAS. 

(a)  Entre  os  manuscritos  mais  modernos  parece-me  que 
inerece  especial  menção  a  :=  Descripção  do  estado  da  pro- 
víncia de  Trás  os  montes  em  1796  por  Columbano  Pinta 
Ribeiro  de  Castro  c:  em  hum  Volume  folio  ;  e  a  í:  His- 
toria das  guerras  de  Angola  em  três  volumes  folio  tr  pa- 
recendo-me  também  que  devo  mencionar  a  grande  collec- 
çâo  de  bilhetes  relativos  aos  documentos  para  a  historia  e 
legislação  portugueza ,  cujo  primeiro  maço  acaba  no  fim 
do  século  decimo-terceiro ,  e  os  outros  proseguem  chrono* 
logicamente  até  incluírem  o  século  decimo-nono. 

{h)  A  este  respeito  mencionarei  haver  no  cartório  da 
Academia  hum  manuscrito  com  o  titulo  seguinte  tr  Re- 
sultado de  huma  resenha  geral  dos  povos  de  Portugal  feita 
em  o  anno   1417. 

(c)  Parece  bem  notável  que  o  maior  luxo  de  imprensa 
praticado  na  publicação  de  objectos  relativos  á  nossa  flo- 
ra,  e  á  nossa  architectura ,  não  seja  obra  de  portuguezes , 
mas  sim  dos  estrangeiros  Link ,  Hoffmansegg ,  e  Murphy. 


PROGRAMMA 

D   A 

ACADEMIA   REAL   DAS   SCIENCIAS 
DE     LISBOA, 

ANNUNCIADO    NA   SESSÃO    PUBLICA    DE    I    DE   JULHO    DE    1824. 


NAS  SCIENCIAS  NATURAES. 
Para  o  anno  de  1825'. 


E 


M  ECONOMIA  RURAL ,  E  DOMESTICA  Sendo  rc 
conhecida  ,  nas  nossas  fabricas  de  tincttiraria  a  necessidade  , 
e  utilidade  da  planta  chamada  Granza  ,  ou  Ruiva  dos  tin- 
ctureiros  (  Rubia  tinctorum  Linn. )  :  Em  que  terrenos  pro- 
spera mais  a  sua  cultura  ?  Oite  outras  espécies  se  lhe  podem 
substituir  ,  e  se  alguma  delias  merece  a  preferencia  na  tin- 
cttiria  ?  Por  que  modo ,  e  em  que  tempo ,  devemos  promover 
a  cultura  desta  planta  ?  Qitando  estará  nas  circumstancias , 
de  se  recolher  para  uso  das  fabricas  ?  Que  parte  da  planta 
serve ,  e  como  se  deve  preparar  para  este  fim  ?  Qtte  outros 
usos  podemos  fazer  da  mesma  planta ,  alem  dos  que  respet' 
tão  à  tincttiraria  ?  Que  vantajens  tirará  o  lavrador  da  sua 
cultura ,  comparada  com  as  differentes  sementeiras ,  que  po- 
dem ter  litgar  nos  terrenos ,  onde  deve  ser  cultivada  ?  Que 
consumo  fazem  hoje  delia  as  nossas  fabricas  ;  e  quanto  an- 
nualmente  pouparíamos ,  se  a  tivéssemos  de  cultura  própria , 
e  não  a  comprássemos  aos  estrangeiros? 
EM  MEDICINA.    Quaes  sejão  as  causas  existentes  ou  occa' 

*  g   ii  JíO- 


Lx  Historia  da  Academia  Real" 

sionaes  da  frequência  das  prysicas  em  Porítigai.,  especialmen- 
te cm  Lisboa ;  e  qual  a  natureza  ou  espécie  âa  que  he  mais 
geral,  estabelecendu-se  os  meios  de  a  prevenir,  e  o  methodo 
de  a  curar  d  vista  de  observações  praticas  ? 

■  ,  '-A 

Para  o  anno  de   1826. 

V  O  a  3  i  . 

EM  ECONOMIA  RURAL ,  CHYMICA,  E  MECHANICA 
APFLICADA  A'S  ARTES.  A  melhor  memoria  sobre  as  ma- 
ias de  arvores  resinosas ,  que  satisfaça  ds  condições  seguin- 
tes :  1 .  uma  enumeração  exacta  e  comparativa  das  diversas 
variedades  de  pmheiros  conhecidos ,  com  a  comparação  das 
vantagens  oferecidas  por  cada  uma  delias  ;  os  meios  de  as 
transportar  ao  nosso  paiz ,  e  o  logar  donde  poderão  impor- 
tar se  suas  sementes  ,  assimcomo  a  maneira  de  semear  e 
crear  as  plantas,  2.  Uma  enimieração  das  variedades  exi- 
stentes nas  notsas  principaes  matas  publicas  e  particulares. 
3.  O  modo  de  aproveitar  as  refinas  dos  pinheiros,  e  de  pre- 
parar com  a  maior  perfeição ,  e  a  melhor  economia ,  as  the- 
rebentinas ,  o  alcatrão ,  e  o  pez,  4.  O  modo  mais  económi- 
co e  expedito  de  cortar  as  madeiras  de  pinho  ,  tanto  em 
barrotes  como  em  taboado  ;  com  a  descripção  e  os  desenhos 
das  machinas ,  que  para  o  referido  fim  hajão  de  empregar- 
se.  5 .  Quaes  são  os  principaes  estorvos  ao  augmento  das  ma- 
tas resinosas ,  os  meios  de  os  remover ,  e  de  fazer  prospe- 
rar estas  matas  ,  assim  as  publicas  como  as  particulares. 

EM  MEDICINA.  Marcar  quaes  sejão  os  symptomas ,  que  es- 
tabelecem o  diagnortico  das  inflammaçoes  chronicas ;  e  se  a 
dar  e  a  febre  devem  reputar^se  sempre  essencialmente  neces- 
sárias para  caracterisar  taes  inflammaçÕes  ;  e  qual  o  trata- 
mento mais  seguro  para  as  debellar  ,  logoque  sejão  capitu- 
ladas :  devendo  este  tratamento  ser  comprovado  por  meio  de 
observações. 

■  A':..  Deter  minar  por  observações  clinicas  em  que  differem  os 
effeitos  do  lactucario  dos  do  ópio, 

Pre- 


-"  tta s  Sciencias  de  Lisboa.  lxb 

Prémios  extraordinários  ^em  limitação  de  tempo. 

Um  epitome  das  leis  migrarias  portuguesas,  publicadas  des- 
de  o  principio  da  tmuarchia  até  ao  presente  ,  e  os  aphorismos 
politicoeconomicos  f  que  das  mesmat  se  podem  dediizir  a  benefi- 
cio da  agricultura  ,  povoação ,  e  commercio  dos  Reinos  de  Por- 
tugal ^  c  dos  yilgarves. 

A  dieta  obra  deve  ser  composta  segundo  o  methodo 
seguido  por  Mr.  Fournel  na  que  imprimio  em  Paris  no 
anno  de  1819  com  o  titulo  Les  loix  rttrales  de  la  France ^ 
ratigées  dans  letir  ordre  naturel.  A  memoria  que  for  appro- 
vada  ,  ou  que  pelo  menos  merecer  o  Accesstt  ,  obterá  o 
premio  de  uma  medalha  de  ouro  do  valor  de  5-0:000  réis. 

O/w/  he  o  methodo  de  curar  radicalmente  as  dysenterias 
chronicas ,  de  qualquer  causa  que  frocedão  ;  fundado  em  priti' 
cipios ,  e  confirmado  por  observações  practicas. 

Este  Programma  tem  o  premio  de  400:000  réis. 


Assumptos  fixos  para  todos  os  annos. 
•oqrr.,- 

I.  A  dcscripção  physica  de  alguma  comarca,  ou  território 
considerável  do  Reino  ,  ou  Domínios-  ultramarinos \  que  compre- 
henda  a  Historia  da  natureza  do  paiz  descripto. 

II.  A  descripção  económica  de  alguma  comarca  ,  ou  terri- 
tório connderavel  do  Reino  ,  feita  cotforme  o  plano  adoptado 
pela  Academia  para  a  visita  da  comarca  de  Setúbal,  e  que  se 
■publicou  no  Tomo  III  das  suas  Memorias  económicas. 

III.  A  topograpbia  medica  de  uma  grande  povoação  {cida- 
de ou  villa  notável)  de  Portugal:  segundo  o  plano  indicado  na 
-Histoire  et  Mémoires  de  la  Societc  Royale  de  Médecine  , 
Prcfac.  p.  XIV  Tomo  I:  ou  Descripção  de  alguma  moléstia 
êpidemica ,  ou  endémica  em  algum  logar  de  Portugal ,  indican- 
do-se  o  tractamento  mais  convenknte- 

NAS 


Lxn  Historia  da  Academia  Real 

NAS  SCIENCIAS  EXACTAS. 
Para  o  anno  de   iSaj'. 

EM  CALCULO.  Um  tratado  elementar  do  calculo  das  froba- 
hiliàades  escrito  em  portuguez,  para  quem  souber  aquella 
fane  do  curso  de  Bezout ,  que  trata  das  mathematicas  pu- 
ras :  devendo  porém  o  tratado  corresponder  aos  actuaes  cohhe- 
cimeutos  respectivos ,  e  conter  algumas  applicaçÕes  aos  factos 
históricos  antigos  .1  preferindo  entre  estes  factos  os  da  historia 
portuguesa  até  o  reinado  do  Senhor  D.  João  1  exclusiva' 
7nente. 

EM  MECHANICA.  Um  breve  tratado  dos  principios  de  me- 
chauica  ,  estabelecidos  {quanto  puder  ser)  geometricamente. 

Uma  memoria  sobre  as  vantagens  relativas  ,  que  deve- 
mos encontrar  empregando  como  principal  motor  a  bordo  dos 
navios ,  e  nas  machinas  mais  essenciaes  ao  progresso  da  ci' 
vilisação ,  o  fogo  ou  o  vapor  da  agoa  fervendo ;  aquelle  que 
os  higlezes  denominao  agora  compressão  athmosferica ;  e  o  me- 
chanismo  inventado  por  Mr.  Crivelli. 

Sem  limitação  de  tempo. 

EM  M^fTHEMATlCA.  Um  curso  elementar  completo  de  ma- 
thematica  pura  e  applicada  ;  escrita  em  portuguez ,  e  de  sor- 
te que  cada  uma  das  suas  partes  corresponda  ao  estado  actual 
da  sciencia  ;  versando  as  applicafÕes  especialmente  sobre  a 
maritiha. 

EM  ASTRONOMIA.  Algumas  observações  de  eclipses  do  Sol, 
ou  occultaçôes  de  estrellas  pela  lua ,  feitas  por  navegantes 
portugttezes  em  portos  do  Brazil  ou  da  Ásia  :  especificando 
os  meios  e  instrumentos ,  de  que  se  servirão  nestas  observa- 
ções. 

EM  NAVEGAÇÃO.  Uma  derrota  de  navegação  alta  por  tem- 
fo  de  um  mez  ou  mais ,  feita  em  navio  portuguez ,  cujo  prin- 

ci- 


DAS    SciKNCIAS   DE   LiSBOA.  LXIII 

cipal  motor  seja  o  fugo :  ou  uma  memorta ,  na  qual  se  evi- 
dencêe  a  possibilidade  e  maneira  de  effeituar  a  mesma  na- 
vegação vantajosamente  nos  navios  mercantes ,  e  em  todas  as 
circumstancias.  Será  preferivel  a  memoria ,  que  alem  de  des- 
empenhar este  assumpto ,  considerar  o  motor  empregado  ao 
mesmo  tempo  na  cozinha  do  navio,  em  distillar  agua  do  mar 
para  os  usos  ordinários  delia  ,  em  renovar  o  ar  do  porão  e 
das  cobertas ,  em  esgotar  o  navio ,  e  em  defendelo  mediante 
a  conveniente  projecção  de  agua  fervente  ,  d  similhança  da 
executada  pelos  americanos  inglezes  a  bordo  da  fragata  Ftil- 
ton  (*). 

NA 


(*)  A  navegação  por  meio  do  fogo  combinado  cora  o  vento  pôde 
Tedu7Ír  as  guarnições  dos  navios,  e  as  durações  medias  das  viagens  a 
metade  das  actuaes  :  doude  resulta,  que  a  despeza  por  este  lado  deve 
descer  a  um  quarto;  e  bem  assim  o  espaço  preciso  para  serem  collo- 
cndas  as  munições  de  bocca,  o  qual  ainda  se  tomará  menor,  appli- 
cando-se  tatu  bem  o  fogo  a  distillar  agua  do  mar  para  ser  empregada 
nos  usos  ordinários.  Ksta  distiilação  poderá  ser  executada  á  maneira 
da  que  está  descripta  na  Enciclopédia  nielhodica.  A  navegação  refe- 
rida ter,\  também  as  vantagens  de  fazer  muito  menos  perigosas  as  tra- 
vessias nas  vizinhanças  da  terra;  de  tornar  prefixavel  com  muita  apro- 
ximação a  duração  das  viagens  ;  e  de  augnientar  os  lucros  do  com- 
mercio ,  accelerando  a  marcha  do  seu  giro.  Alem  disso  porá  em  cer- 
to modo  as  províncias  do  ultramar  a  meia  distancia  da  metrópole, 
promovendo  ou  apertando  assim  a  união  daquellas  cora  esta,  e  acce- 
lerando a  rapidez  da  acção  do  Governo,  bem  coruo  a  de  todas  as  cor- 
relações de  ambos  os  paizes.  O  uso  de  taes  navegações  deve  pois  ser 
singularmente  vantajoso  ás  nações  pequenas  e  marítimas,  que  possuem 
grandes  colónias.  Abstrahindo  a  con.<!Íderação  das  vantagens  desta  na- 
vegação nas  guerras  uavaes ,  ve-se  aliás ,  que  para  alcançarmos  tão 
importantes  fins  nos  basta  ampliar  o  que  está  feito,  e  unir  o  que  exis^ 
te  disperso  ;  e  pois  fomos  queu  ontr''hora  se  avantajou  ás  raais  nações 
no  tocante  á  Marinha ,  parece  ,  que  pelo  menos  devemos  não  descahir 
muito  áquem  das  mesmas  nações  em  objecto  tão  ponderoso  e  conse- 
quente. 

Portanto,  attendidos  os  referidos  motivos,  um  Sócio  da  Academia 
dobra  o  premio  académico  relativo  a  este  programma,  dando  mais  cia» 
coeuta  mil  rein  em  meta^. 


Lxiv  Historia  da  Academia  Real 

NA  LITTERATURA  PORTUGUEZA. 

Para  o  anno  de   1825". 

FM  HISTORIA  PORTUGUEZA.  A  historia  dos  nossos  des- 
cobrimentos em  Atistralasin  y  e  Polinésia  ^  com  a  sjion^mia 
dos  descobririieutos  feitos  posteriormente  pelas  outras  nu^òes 
europêas  nas  mesmas  regiões. 

Para  o  anno  de  i2 16, 

EM  língua  PORTUGUEZA.  Uma  chrystomathia  dos  mais 
acreditados  atictores  portugtiezes  :  oti  collecçao  dos  passos 
mais  elegantes  e  próprios  para  servirem  de  modelos  de  es- 
tylo ;  arranjados  sobre  o  plano  da  obra  de  Heinecio  De  sry- 
lo  culciori ,  e  contendo  os  que  servem  de  exemplo  do  melhor 
estylo  epistolar  y  dialogirtico^  histórico,   ctc. 

EM  PIISTORIA  PORTUGUEZA.  Determinar  o  augmento,  è 
diminuição  de  população  nos  Reinos  de  Portugal,  e  Algar- 
ves  nas  diversas  epochas  da  monarchia ,  indicando  as  ver- 
dadeiras causas ,  que  se  devem  assignar  d  sua  respectiva  al- 
teração. ^ 

Assumptos  fixos  para  todos  os  annos. 

EM  POESIA,   E  THE  ATRO  NACIONAL.    Uma  Tragedia 
^  portugtieza. 

Uma  Comedia  de  caracter  em  verso ,  ou  em  prosa. 


Os  prémios  ordinários  consistem  em  huma  medalha  de 
ouro  do  pezo  de  5-0:000  reis  :  e  todas  as  pessoas  podem 
concorrer  a  elles ,  á  excepção  dos  sócios  honorários ,  e  efFe- 
ctivos  da  Academia.  Abaixo  destes  prémios  principaes ,  pro- 
põe a  Academia  também  a  honra  do  Accessit ,  que  consiste 

cm 


DAS    SCIENCIAS    DE    LiSBOA.  LXV 

em  uma  medalha  de  prata  :  e  ainda  abaixo  desta  a  menção 
honorifica  da  memoria ,  que  só  disso  se  fizer  digna  ;  a  qual 
menção  será  feita  nas  suas  Actas  e  Historia. 

As  condições  geracs  para  todos  os  assumptos  propos- 
tos são:  Que  as  memorias,  que  vierem  a  concurso,  sejao 
cscriptas  em  portuguez ,  sendo  os  seus  auctores  naturaes 
destes  Reinos  ;  e  em  latim  ,  ou  em  qualquer  das  liuguas 
da  Europa  mais  geralmente  conhecidas ,  sendo  os  auctores 
estrangeiros:  Que  scjão  entregues  na  secretaria  da  Acade- 
mia por  todo  o  mez  de  Abril  do  anno,  em  que  houverem 
de  ser  julgadas:  Que  os  nomes  dos  auctores  venhão  tm  car- 
ta fechada,  a  qual  traga  a  mesma  divisa  que  a  memoria, 
para  se  abrir  somente  no  caso  ,  em  que  a  memoria  seja 
premiada :  li  finalmente  que  as  memorias  premiadas  não  pos- 
são  ser  impressas  senão  por  ordem,  ou  com  licença  expres- 
sa da  Academia,  condição  que  igualmente  se  extende  a  to- 
das as  memorias  ,  que ,  não  obtendo  premio  ,  merecerem  com- 
tudo  a  honra  do  Accessit.  Porem  nem  esta  distincçao,  nem 
a  adjudicação  do  premio,  nem  mesmo  a  publicação  deter- 
niin,ida ,  ou  pcrmittida  pela  Academia,  deverão  jamais  re- 
putar-se  como  argumento  decisivo ,  de  que  esta  Sociedade 
approva  absolutamente  tudo  quanto  se  contiver  nas  memo- 
rias ,  a  que  conceder  qualquer  destes  signaes  de  approva- 
ção ;  porem  somente  como  uma  prova ,  de  que  no  seu  con- 
ceito desempenharão ,  senão  inteiramente ,  ao  menos  a  par- 
te mais  importante  dos  assumptos  propostos. 


Tomo  IX.  *  p  ELO- 


BXs  SciENCiAS  DE  Lisboa,  lx\ii 


í/.  / 


-I  "■11"! 


ELOGIO    HISTÓRICO 

D  E 

SEBASTIÃO  FRANCISCO  DE  MENDO  TRIGOSO 
HOMEM  DE  MAGALHÃES. 

UDO  NA  SESSXO  PUBUCA  DE  24  DE  JUNHO  DE  i8a2 
POR 

MANOEL  JOSÉ  MARIA  Da'cOSTA  E  SÁ. 


N- 


iNGUEM  ha  que  encontrando  um  monumento,  depois 
de  reparar  na  sua  forma  eestructura,  náa  deseje  satjer  quem 
foi  o  seu  author  ;  e  assim  não  julgue  a  hií>toria  de  um  ne- 
cessária ao  melhor  conhecimento  do  outro.  —  Este  senti- 
mento, propiio  da  curiosidade  que  nos  é  natural,  torna-se 
mui  recommendado  quando  semelhante  monumento  é  o  fru- 
cto  das  vigílias  de  um  sábio.  —  Então,  conhecer  quem  fos- 
se o  author  ,  é  adquirir  meios  para  que  melhor  se  aprovei- 
te a  lição  que  nos  oíFereccm  seus  escritos.  O  author  nas 
suas  concepções,  une,  ao  que  é  meramente  scientifico ,  as 
disposições  que  lhe  são  naturaes,  conforme  o  desenvolvi- 
mento que  lhes  vai  procurando  o  seu  estado  civil.  Nesta 
acção  reciproca  accende-se-lhe  o  génio  ,  de  que  são  fructo 
os  seus  escritos.  —  Convém  saber  pois  o  modo  porque  o 
impulso  dos  progressos  dos  conhecimentos  humanos  nelle 
obrou ,  já  para  o  attrahir  ao  estudo  e  applicação  das  letras  , 
já  para  lhe  despertar  as  faculdades  intellectuaes  fazendo-o 
contribuir  para  o  augmento  e  prosperidade  das  mesmas  le- 

*  p  ii  tias. 


txviu  Historia  da  Academia  Re-al 

trás.  Devemos  saber  o  caminho  que  fez  na  pratica  das  scicn- 
cias,  o  que  ahi  lhe  serviu  de  incentivo  ou  de  estorvo: 
que  influencia  nelie  exercitou  a  ordem  politica  do  Estado 
a  que  pertencia,  quaes  fossem  as  suas  disposições  naturacs, 
c  como  o  determinarão  ou  regerão.  Topando  com  uma  com- 
posição literario-scientifica  folgamos  encontrar  semelhantes 
noções ,  de  que  logo  conhecemos  a  vantagem.  —  Por  tan- 
to ,  recolher  as  noticias  de  um  Escritor  desvelado  em  todo 
o  género  d'applicaçâo  e  estudo ,  é  accrescentar  o  proveito 
de  seus  trabalhos  ,  fazendo  com  qúe  a  sua  lição  seja  mais 
desembaraçada  e  proficua.  Tal  o  fim  dos  elogios  históricos 
dos  homens  de  letras:  Tal  o  objecto,  do  que,  em  teste- 
munho do  empenho  que  tomo  pelos  progressos  desta  Aca- 
demia ,  dedico  á  memoria  de  um  dos  seus  mais  beneméritos 
sócios. 


no  3t.'p  fiií  M  I!' T  -• 
O  Sr.  Sebastião  Francisco  de  Mendo  Trigoso  Homem 
de  Magalhães  ,  FidaJgo  da  Caza  de  S.  Magestade  ,  Forma- 
do em  Filosofia  pela  Universidade  de  Coimbra  ,  Tenente 
Coronel  dos  Voluntários  Reaes  de  Milícias  a  cavallo  de 
Lisboa  ,  Censor  Régio  ,  Sócio  e  Secretario  desta  Academia , 
foi  filho  de  Francisco  Mendo  Trigoso  Pereira  Homem  de 
Magalhães  ,  ede  D.  Antónia  Joaquina  Teresa  de  Sousa  Mo- 
rato.  Nasceu  em  Lisboa  aos  i8  de  Maio  de  1773  ,  sendo 
a  sua  mãi  apenas  gravida  de  sete  mezes ,  o  que  parece  ter 
sido  pronostico ,  de  que  em  flor ,  o  perderião  a  Pátria  e  as 
Scicncias.  O  estado  de  fraqueza  em  que  continuou  por  mui- 
to tempo ,  bastante  deu  que  recear  pela  conservação  da 
sua  existência. 

Procedia  o  Sr.  Sebastião  Trigoso  de  illusfre  asceden- 
cia.  Seu  Pai  com  os  morgados  de  que  lhe  deixava  a  admi- 
nistração ,  transmittia-lhe  o  appellido  de  Trigoso  ,  que  com 
tanta  frequência  se  encontra  nas  series  dos  Ministros    dos 

Tri- 


DAS  ScienciaS  de  Lisboa.  lxdc 

Tribunaes ,  e  Dignidades  das  Dioceses  do  Reino  ,  sendo 
também  muito  conhecido  na  ordem  dos  Lentes  das  Univer- 
sidades de  Évora  e  de  Coimbra ;  e  na  ultima  o  nome  do 
Vice-Reitor  Manoel  Paes  de  Aragão  Trigoso  ,  seu  tio  pa- 
terno ,  será  sempre  lembrado  ,  tanto  pelo  seu  saber  e  pru- 
dência ,  como  por  ter  sido  quem  dirigiu  os  esforços  da 
Universidade  e  Cidade  de  Coimbra  tendentes  a  sacudir  o 
jugo  dos  Francezes:  No  que  tudo  bem  mostrava  esta  famí- 
lia a  grande  vocação  que  sempre  teve  ao  estudo  das  scicn- 
cias  ,  mormente  das  que  servem  d'habilitação  para  aquelles 
lugares  que  entre  nós  por  isso  se  chumao  de  letras.  —  Sua 
Alai ,  filha  única  e  herdeira  ,  descendia  igualmente  de  fa- 
mília nobre  e  muito  accrcditada.  Da  piedade  de  seus  Pais 
e  Avós  ,  e  da  sua  teliz  engenho  desde  a  puericia  dá  teste- 
munho a  moderna  Historia  da  fundação  do  òeminario  de  Fe- 
ratojo. 

De  que  serve ,  dirão  esses  génios  impertinentes ,  que 
sem  exame  só  repetem  o  que  ouvirão,  de  que  serve  esta 
lembrança,  na  historia  de  hum  littcruto  ?  —  Assim  é  que 
a  este  basta  a  gloria  do  seu  merecimento  ;  mas  para  que 
privallo  da  que  lhe  compete  no  bom  uso  que  fez  do  exem- 
plo de  seus  maiores ,  herança  a  que  accrcscentou  preço ,  e 
dco  maior  valia  ?  Para  que  esbulhar  a  sua  familia  do  novo 
realce  que  lhe  procura  um  digno  successor  ?  —  Em  fim  pa- 
ra que  negar  á  humanidade  a  consolação  que  recebe  {>er- 
suadindo-se  que  os  filhos  continuarão  as  boas  acções  dos 
Pais?  Alem  disto,  semelhantes  noticias  não  serão  absoluta- 
mente inúteis  para  entreterem  as  meditações  a  que  o  filo- 
sofo se  entrega ,  á  cerca  da  melhoria ,  e  do  adiantamento 
da  própria  espécie. 

Cuidadosos  andarão  os  Pais  do  Sr.  Sebastião  Trigo- 
so ,  em  que  ás  disposições  herdadas  correspondesse  a  neces- 
sária cultura  ;  pois  contando  apenas  seis  annos  o  metterâo 
no  Collegio  que  então  esiabelecião  as  Senhoras  Cauvins 
no  sitio  das  Necessidades ,  do  qual  veio  a  ser  o  primeiro 
alumno.  Ahi  com  os  rudimentos  das  primeiras  letras  apren- 
deu 


Lxx  Historia  da  Academia  Real 

deu  a  lingua  franceza,  passando  a  estudar  grammatica  lati- 
na com  o  Padre  José  Pegado  ,  que  depois  toi  Bispo  de  An- 
gra ,  c  Rhetorica  c  lingua  grega  com  o  Padre  José  Valé- 
rio hoje  Bispo  de  Portalegre,  então  Professores  Públicos 
da  melhor  nomeada.  Estes  estudos  porem  erao  preliminares 
aos  do  Collegio  dos  Nobres  onde  completou  o  curso  das 
suas  aulas. 

De  tudo   quanto  o  Marquez  de  Pombal  Sebastião  Jo- 
sé de  Carvalho    havia    promovido    a  fundação    do  Collegio 
de  Nobres  e  a  reformação  dos  estudos  era    o  que    lhe  de- 
vera mais  desvelo  e  attenção.  Mudada    a  forma    d'adminis- 
tração  publica,    substituido  ao  antigo  quasi  um  novo  syste- 
ma  de  legislação ,  pelas  novas  leis  que  se  havião  promulga- 
do ,  c  achando-se  todas  as  ordens  do  Estado  n'uma  posição 
bem  diíFerente  da  anterior,  o  Marquez  de  Pombal,  politi- 
co hábil ,    procurou    que    a  educação   estivesse  em  perfeita 
analogia    com  as  sobreditas  mudanças  e  novo  regimen  ,    a 
fim  de  que  as  podesse  devidamente  arreigar  e  manter.  Não 
queria   que  os  Portuguezes    se  limitassem    a  huma    simples 
observância  daquellas  leis  ,   pertendia  convencer  os  ânimos  y 
c  illustrar  os  entendimentos,    para    assim  formar  como  ou- 
tras tantas  guardas  manteudas  ao  seu  pontual  effeito  e  exe- 
cução. —  Desta  sorte  o  systema  do  ensino  publico    não    só 
'  devia  ter  huma  relação  immediafa  com  todas    as  providen- 
cias que  então  alterarão  forma    da  administração    do  Esta- 
do ,  nos  seus  diversos  ramos ,  mas  ainda  endereçar-se  a  ou- 
tras,    igualmente  interessantes  e  decisivas,    que  para  todo 
o  Reino  de  Portugal  ,    concebera ,    e  de  longo  tempo  me- 
ditara este  homem  na  verdade  extraordinário ,  de  quem  pa- 
rece chegada  a  época ,  de  se  poder  fallar,  sem  ódio  nem  li- 
sonja. 

O  Collegio  dos  Nobres,  que  como  acabamos  dever, 
era  o  estabelecimento  mimoso  do  Marquez  de  Pombal ,  es- 
tava no  auge  do  seu  explcndor  quando  para  elle  entrou  o 
Sr.  Sebastião  Trigoso :  sentia  todo  o  vigor  da  sua  recente 
e  tão  favorecida  fundação.  Professores  de  abalizado  mereci- 

nicn*         t 


DAS   SciENCIAS   DE  LiSBOA.  LXXI 

jTiento  occupavão  as  suas  cadeiras  ,  taes  como  os  Srs.  Pe- 
dro José  da  Fonseca  ,  Bartholomeu  Ignacio  Gorge  ,  Custo- 
dio José  d'01iveira,  Joaquim  Cariitiro  da  Silva,  de  quem 
o  Sr.  Trigoso,  com  a  melhor  doutrina,  bebeu  o  amor  que 
todos  tinhão  ás  letras  que  professavao.  Dos  dois  primeiros 
lembra-sc,  como  era  opportuno  o  Sr.  Trigoso,  no  Discur- 
so que  recitou  na  Sessão  Publica  desta  Academia  em  24 
de  Junho  de  1817,  expressando  vivamente  a  sua  sensibili- 
dade pelos  que  o  encaminharão  ao  sanctuario  da  sabedoria. 
Uma  circumstancia  porem  ,  talvez  mais  poderosa  do 
que  todas  as  outras ,  servia  de  animar  o  zelo  dos  Professo- 
res, excitando  nobre  emulação  nos  discipulos :  fallo  do  es- 
pirito publico  que  exclusivamente  parecia  então  dedi- 
cado a  favorecer  todo  o  género  de  estudos.  —  Certa  ur- 
banidade  e  decência  no  trato  familiar  e  publico  entre  todos 
os  indivíduos  da  nnçao  communicavao  aos  literatos  a  mais 
circunispecta  gravidade  no  que  escreviao  e  publicarão.  As- 
sim é,  que  estes  contribuião  para  a  illustração  do  publico  , 
mas  era  deste  mesmo  publico,  juiz  integerrimo  e  sisudo 
que  recebião  como  a  norma  a  que  deviao  amoldar  os  seus 
escritos:  Este  mutuo  commercio  de  um  publico  então  bem 
dirigido  com  os  Escritores  que  se  tomavão  da  diiEcil  tare- 
fa de  lhe  dedicar  o  fructo  dos  seus  estudos  ( como  alia's 
então  parecia  exigir-se  de  todo  aquelle  que  professava  as 
letras  )  apurou  o  gosto  ,  que  distingue  os  Poetas  e  Prosa- 
dores desta  época  que  vai  passando ,  quando  aliás  tanto 
convinha  ao  credito  e  bom  nome  da  Nação  restauralla  ,  apro- 
veitando-se  o  pouco  que  ainda  delia  nos  resta  ;  e  dando-se 
de  mão  ,  aos  argumentos  imsulsos  e  até  vergonhosos  ,  que 
servem  de  these  aos  nossos  Escritores  d'hoje,  cujas  compo- 
sições sem  sabor  ,  mingoadas  no  estilo ,  escritas  n'um  vas- 
conço  enjoativo  sem  graça  nem  energia  ,  tão  alheias  são 
da  gravidade  dos  objectos  com  que  a  Nação  se  vê  abraços : 
Aproveitcm-se  pois  aquellas  abertas  que  nos  deixão  as  se- 
rias considerações  que  nos  merece  a  causa  da  Pátria ,  em 
cultivar  a  boa  e  amena  literatura,  cora  que  as  Nações  tam- 
bém 


Lxxii  Historia  da  Academia  Real 

bem  se  regcnerao ,  e  com  que  sem  a  menor  hesitação  po- 
demos affirmar  que  perpetuamente  vivem  na  memoria  das 
gentes. 

Este  modo  de  pensar  inteiramente  se  confirmava  com 
a  propensão  que  o  Sr.  Sebastião  Trigoso  desde  logo  ma- 
nisfestou  para  o  exercício  das  letras  j  por  isso  debaixo  da 
disciplina  de  tão  sábios  Professores  se  distinguio  na  carrei- 
ra literária  ;  pois  não  a  considerou  simplesmente  como  pri- 
liminar  de  maiores  estudos,  mas  também  como  dii^po- 
sição  para  o  melhor  proveito  que  podia  tirar  dos  mesmos 
estudos. 

Ao  passo  que  as  faculdades  intcllectuaes  do  Sr.  Sebas- 
tião Trigoso  se  descnvolvião  ,  e  que  por  meio  do  estudo 
ia  descobrindo  os  dilatados  horizontes  da  esfera  dos  conhe- 
cimentos humanos  accendia-se-lhe  o  mais  vivo  desejo  de  os 
comprehender  e  alcançar.  —  As  sciencias  mathematicas  e  na- 
turiíes  erão  as  que  mais  promettião  :  as  ultimas  encerravâo 
mil  segredos  de  cujo  descobrimento  a  contemplação  do  uni- 
verso deixava  a  sua  alma  cobiçosa  ,  e  por  assim  dizer  no- 
bremente insofrida.  As  outras  erão  pioprias  a  contentar  a 
sua  razão  ,  pela  rigorosa  exacção  dos  seus  princípios.  A  in- 
dependência de  fortuna  em  que  se  achava  o  Sr.  Sebastião 
Trigoso  pelos  rendimentos  que  tinha  de  sua  casa,  e  que 
o  desobrigavão  de  buscar  estabelecimento  nos  empregos  Pú- 
blicos, facilitavão-lhc  poder  corresponder  ás  inspirações 
que  o  levavão  a  seguir  os*  estudos  de  huma  faculdade  ,  sem 
premio  ou  recompensa  que  promovesse  a  frequência  de  suas 
aulas  convidando  alumnos  com  a  promessa  de  galardão  e 
empregos  futuros.  Matriculou-se  pois  o  Sr.  Trigoso  na  Fa- 
culdade das  Sciencias  Mathematicas-Filozoficas  da  Univer- 
sidade de  Coimbra  ,  segundo  a  ordem  que  nessa  época  ti- 
nhão  as  suas  Cadeiras.  —  Os  progressos  do  alumno  igua- 
larão aos  desejos  que  o  animavão  ,  e  ao  ardor  com  que  en- 
tão se  cultivavão  as  sciencias  em  Coimbra  ,  mormente  as 
Naturaes ,  que  alem  do  attrativo  que  lhe  he  próprio  ,  re- 
cebião  a  influencia  do  espirito  publico  que  parecia    exclu- 

si- 


í 


DAS  ScienciaS  de  Lisboa.  Lxxrir 

sivamcnte  quere-las  só  attcnder.  E  como  se  a  sua  applica- 
ção  augmcntassc  de  força  á  proporção  que  se  prolongava  , 
coroou  o  anno  da  sua  formatura  feita  cm  p  de  Julho  de 
1792  com  o  primeiro  destinado  a  servir  de  laurel  aos  mais 
distinctos  na  faculdade. 

Rccolhendo-se  o  Sr.  Sebastião  Trigoso  á  caza  pater- 
na teve  de  entrar  no  serviço  publico  assentando  praça  de 
cadete  em  6  de  Maio  de  1797  no  segundo  Regimento  d'ar- 
mada  ,  que  depois  passou  a  denominar-se  de  Lisboa ,  con- 
forme a  Lei  entáo  novíssima  ,  que  chamava  ao  serviço  das 
armas  todos  os  primogénitos  senhores  de  caza  :  Dahi  pas- 
sou cm  ij  de  Fevereiro  de  1798  a  Capitão  mór  do  Ter- 
mo de  Torres  Vedras ,  onde  era  o  solar  da  sua  caza  pa- 
terna ;  e  occupou  este  posto  até  1809,  em  que  por  occa- 
sião  de  se  organizar  o  Regimento  de  Voluntários  Reaes 
de  Milícias  a  Cavallo  de  Lisboa  foi  nomeado  Tenente  Co- 
ronel a;i,grcgado  a  este  Regimento:  Em  1806  também  ti- 
nha mudado  de  estado  cazando-se  com  a  Senhora  D.  Ma- 
ria José  de  Oliveira  Sande  c  Vasconcellos,  de  quem  lhe  fi- 
carão  três  filhas. 

Este  espaço,  que  vai  da  sua  formatura  ao  anno  de  181 1, 
em  que  a  Academia  o  recebeu  no  numero  de  seus  sócios 
offerecc  como  um  vácuo  e  pausa  á  vida  literária  do  Sr.  Se- 
bastião Trigoso,  pois  alem  das  Poesias,  de  que  logo  da- 
rei conta  ,  e  dos  estudos  de  Chymica  ,  a  que  então  se  en- 
tregava ,  e  de  que  depois  tanto  medrarão  os  fructos ,  na- 
da mais  terei  que  notar  ;  occupatido-se  desde  o  fallecimen- 
to  de  seu  pai  nos  fins  de  1798  ,  na  administração  e  melho- 
ramento dos  bens  da  sua  caza  ,  espalhados  pordifferentes  distri- 
ctos  e  províncias  ,  e  na  inspecção  tanto  da  fabrica  do  novo  edi- 
ficio ,  que  a  piedade  da  Sereníssima  Princeza  do  Brasil  D. 
Maria  Francisca  Benedicta  começara  a  fundar  em  Runa  pa- 
ra os  soldados  inválidos ,  como  das  quintas  e  fazendas , 
que  lhe  erao  annexas,  apenas  se  distrahia  em  silencio  e  fi- 
losófico retiro  com  o  estudo  das  sciencias  e  literatura ;  go- 
zando assim  da  doçura  d'uma  vida  privada. 

Tomo  IX.  *   10  Não 


ixxiv  Historia  da  Academia  Real 

Não  admirará  porem  semelhante  pausa  a  quem  refle- 
ctir :  que  o  Sr.  Sebastião  Trigoso  já  se  havia  remontado 
CO  conhecimento  de  muitas  verdades  ,  que  o  chamavão  a 
descortinar  outras  infinitas  ,  ainda  recônditas  e  não  previs- 
tas, —  Nesta  situação  a  alma  indicisa  e  absorta  ,  parece 
perder  parte  daquelle  vigor,  com  que  proscguira  na  aquisi- 
ção dessas  mesmas  verdades:  este  he  ,  por  assim  dizer,  o 
estado  de  abatimento  que  succede  ao  de  orgasmo  ou  excita- 
mento  produzido  pelo  enthusiasmo  dos  primeiros  estudos. 
—  A  accommodação  dos  principies  rheorcticos  com  os  da 
pratica  do  mundo,  em  que  então  se  he  forçado  de  entrar, 
pede  também  momentos  de  reflexão  ,  que  muitas  vezes  aba- 
tem e  esmorecem  o  pensador ,  quando  combina  as  idcas,  que 
formara  do  homem,  com  o  mesmo  homem.  —  Então  parece 
querer  elle  desistir  de  promover  a  causa  da  humanidade ; 
e  forçar-se  por  ganhar  a  negada  tendência  para  um  exclu- 
sivo egoismo  ;  pois  a  sua  frieza  criminoza  jamais  compe- 
te ás  almas  bem  nascidas.  —  Lá  está  porem  o  termo  das 
dcsgmças  publicas ,  das  grandes  catastrophes  da  Pátria  : 
A  seus  gritos  elles  acodem  mais  solícitos  doque  nenhum 
outro  de  seus  filhos  ;  e  aquelle ,  que  só  parecia  entregue 
aos  cálculos  do  seu  commodo  e  bem  pessoal ,  he  o  mais 
denodado  athleta  ,  que  combate  a  favor  dessa  Sociedade  ,  que 
parecia  desconhecer  ,  c  a  qual ,  por  isso  mesmo  ,  talvez  mui- 
to pouco  lhe  merecia. 

Este  termo  chega. .  !  Portugal ,  a  ponto  de  desappare- 
cer  da  lista  das  nações  livres  ,  chama  todos  os  seus  filhos  aos 
últimos  extremos  ,  com  que  desbaratado  o  inimigo  orgulho- 
so ,  que  o  invadira,  canta  o  triunfo  da  sua  independência. — 
Os  habitantes  de  duas  províncias  inteiras  com  o  sacrifício 
de  seus  haveres  e  pessoas  tinhão  cooperado  para  as  victo- 
rias  do  exercito,  mas  amontoados  no  recinto  de  Lisboa, 
o  desamparo,  as  privações,  e  toda  a  espécie  de  tribulações 
fisicas  e  moraes  fermentara  entre  elles  um  violento  conta- 
gio, que,  devorando  estas  victimas  da  salvação  da  Pátria, 
ameaçava  estender  os  seus  estragos  ao  mesmo   seio  da  Ca- 

pi- 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  LXXV 

pitai  ,  que  lhes  dera  abrigo.  —  A  Academia  das  Scienciag 
solicita  no  empenho  de  promover  a  causa  da  Pátria ,  e 
da  humanidade  acudio  cm  socccrro  delia,  bradando  pela  coadju- 
vação de  todos  os  homens  sensíveis  ,  e  subministrando  aos 
enfermos  de  tão  terrível  mal,  quantos  soccorros  permittiao 
suas  faculdades  de  si  mesmo  limitadas,  ejá  quasi  cxhaus- 
ras  (a).  O  Sr.  Sebastião  Trigoso  a  ouviu  ,  não  esperou  mais, 
larga  a  espécie  de  retiro,  em  que  se  achava,  c  correspon- 
de ás  solicitudes  Académicas  ,  offerecendo  um  escrito  , 
onde  ,  depois  do  exame  das  causas  accidentaes  de  tal  epide- 
mia ,  indica  os  meios  de  a  atalhar,  evitando-se  os  seus  ef- 
feitos  e  ulterior  progresso  (!/).  —  A  Academia  via  nelle  um 
digno  cooperador  dos  seus  trabalhos ,  e  o  chamou  a  si :  O 
Sr.  Trigoso  encetando  a  carreira  de  Escritor  publico,  nun- 
ca mais  desviou  delia  os  seus  passos  ;  e  os  úteis  e  novos 
progressos ,  que  nella  fez  ,  deixou  exuberantemente  preen- 
chidos os  votos,  com  que  fora  admittido  ao  grémio  da  Aca- 
demia. — 

Os  interesses  desta  passarão  a  ser  os  seus  próprios  in- 
teresses: O  explendor ,  e  a  gloria  literária,  o  alvo  dos 
seus  cuidados  ;  em  uma  palavra  ,  tudo  quanto  fazia  parte  das 
tarefas  desta  sociedade  ,  exclusivamente  veio  cativar  toda 
a  attenção  do  Sr.  Trigoso:  por  isso,  incançavel  nós  o  ve- 
remos sempre  occupar-se  em  todos  os  diversos  ramos  d'ap- 
plicação  ,  que  a  Academia  abrange  no  seu  vasto  recinto  :  Tam- 
bém é  certo,  que  esta  se  mostrou  sempre  agradecida  aos  seus 
disvclos ,  nomeandoo  successivamente  e  com  mui  breves 
intervallos.  Sócio  livre  e  eíFectivo  ,  e  Director  da  classe  de 
Sciencias  naturaes  encarregando-o  das  mais  importantes  com- 
missõcs  ;  elegendo-o  duas  vezes  Vice-Secretario  :  e  por  ul- 
timo fazendo  recahir  nelle  a  honrosa  nomeação  de  Secre- 
tario ,  quando  oSr.Jozé  Bonifácio  d'Andrada  deixou  deoc- 


*    IO    u  cu- 


(«)     Vej.  Discurso   repetido   a  24    de  Juuho    de  1812,   no  Tora.  3.". 
parte  2.'  das  Mem.  da  Acad. 
{b)     Não  se  chegou  a  imprimir. 


Lxxvi  Historia  da  Academia  Real 

cupar  este  lugar,  passando  para  o  Rio  de  Janeiro  cmi8i8. 
De  todos  os  serviços  ,  que  se  podem  fazer  d  Iiunani- 
dade,  nenhum  mais  utií  do  que  desabusa-la,  mostrando-lhe 
a  ordem  natural  dos  phenomenos  que  a  maravilháo;  prin- 
cipalmente quando  as  nações  tendo  sido  violentamente  .igi- 
tadas ,  o  povo ,  que  não  sabe  descobrir  a  c;iusa  dos  succes- 
SOS  extraordinários  ,  que  o  commoverão  ,  cuida  achar  naquel- 
les  phenomenos  da  natureza  argumentos  para  comíirmar  co- 
mo prodigiosos  os  mesmos  successos.  Assim  ,  que  serviço 
mais  proveitoso  doque  tirar  o  homem  do  erro ,  fazcndo- 
Ihe  dom  de  algumas  verdades,  cm  o  que  se  promove  o 
seu  ulterior  aperfeiçoamento  ?  A  nação  Portugue/a  ,  que  ti- 
nha experimcntaido  as  mais  fortes  concussões  ,  via  também 
cm  seu  território  alguns  eíFeitos  raros  no  andamento  ordi- 
nário da  natureza  :  Uma  pretendida  chuva  d'algodão ,  que 
foi  um  delies  ,  logo  no  Sr.  Sebastião  Trigozo  encontrou 
scicntifica  e  apropriada  explicação  ,  com  a  qual  desvaneci- 
do o  extraordinário,  de  que  começava  já  a  ser  revestida  , 
mostrou ,  que  aquella  chuva  nada  mais  fora  do  que  o  produ- 
cto  de  uma  immensidade  de  ovários  d'aranhas  ,  que  os  fu- 
racões,  que  rijamente  tinhão  soprado  ,  levarão  a  maior  altura  , 
donde  a  amenidade  dos  subsequentes  dias  os  fez  cahir  em 
terra  («). 

As  experiências  Chymicas  sobre  a  quina  do  Rio  de 
Janeiro ,  comparada  com  outras ,  que  fez  na  qualidade  de 
membro  daCommissão,  que  a  Academia  para  esse  fim  tinha 
escolhido,  em  cumprimento  da  ordem  ,  que  recebera  do  Go- 
verno, sérvio  de  um  claro  testemunho  de  seus  grandes  co- 
nhecimentos Chymicos,  tão  importantes  á  saúde  e  commodo 
<la  vida  humana  (b). 

Ao  passo  porem  que  se  engolfava,  por  assim  dizer,  no 
estudo  das  Sciencias  Fysico-Naturaes  ,    e  que    a  Academia 

CO- 

(a)     Impressa  no  Tom.  3."  parte  2/  das  Mcni.  d^Acautuiia  p.  85. 
(i)     Vcja-se  a  noticia  dos  trabalhos  desta  Cominissão  no  Tom.  3.  par- 
te 2.'  das  Mem.  d' Academia  p.  96. 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  LXXVII 

conhcceniío  a  sua  aptidão  e  préstimo  lhe  incumbia  diver- 
sas lucubrações  concernentes  a  este  vasto  ramo  dos  noss(  s 
conhecimentos  (a)  ,  a  literatura  e  historia  Portugueza  mc- 
recião  ao  Sr.  Sebastião  Trigozo  não  menos  desvelos  doque 
amor.  —  Os  descobrimentos  dos  Portuguczes  nas  ferras 
septentrionaes  d'America  estavao  ,  não  duvidamos  dize-lo  , 
sacrificados  á  gloria  e  melhor  dita  que  lograrão  os  que  ha- 
víamos feito  no  Oriente,  nas  costas  d'Africa ,  e  America 
meridional.  —  Os  Cortes-Rcaes ,  perecendo  na  tentativa  de 
adiantar  os  descobrimentos  ao  norte  d'America  ,  parece  que 
tinhâo  como  mal  agourado  e  intrestecido ,  quanto  alli  fize- 
mos :  Embora  duas  nações  rivaes  ,  disputando  uma  a  ou- 
tra a  gloria  dos  pretendidos  descobrimentos  ,  que  alli  se  attri- 
buiiio  ,  confessassem  algumas  vezes  a  prioridade  dos  nossos: 
Embora  os  nomes  Portuguezes  impostos  ás  ilhas  ,  rios ,  e 
praias  daqucUa  Região,  que  trazem  os  antigos  Mappas, 
e  que  ainda  hoje  mesmo  conservão  algumas  de  suas  para- 
gens ,  fossem  decisiva  prova ,  de  que  a  gloria  do  seu  des- 
cobrimento, e  por  me  servir  da  fraze  de  que  se  usava,  a 
.«ua  conquista  pertencia  a  )S  Portuguezes  :  Todos  estes  tes- 
temunhos espalhados  não  offerecião  uma  allegação  ,  que  con- 
vencesse os  incrédulos  ou  ignorantes  do  subido  louvor,  de 
<]ue  até  nesta  parte  do  globo  se  fizerão  dignos  os  nossos 
maiores :  Isto  foi ,  o  que  o  Sr.  Trigozo  se  propoz  de  reme- 
diar 

(a)  llm  25  de  Movcinbro  ue  JtíJl  leu  a  Descripção  de  duas  espé- 
cies (Ic  Peixes  da  nossa  costa  ,  das  quaes  uma  não  está  descripta  pelos 
letbyologos ,  á  qual  deo  o  nome  de  Spartts  tiilahiatus. 

Em  11  d''Outubro  de  1815  remetteu  á  Academia  amostras  de  di- 
versas aguas  para  serem  examinadas:  Em  8  de  Novembro  do  mesmo 
anno  fez  o  extracto  de  uma  memoria  de  Mineralogia  do  Sr.  Barão  de 
Eiscliivege,  impr.  no  Tora.  4.°  parte  2."  Mem.  d''Acad. 

Em  JÓ  de  Fevereiro  de  1817  leu  diversas  reflexões  sobre  a  meteo- 
rologia dos  antigos.  Neste  mesmo  anno  escreveo  as  Kotas  ás  observa- 
ç5c8  d'am  Anónimo  sobre  alguns  peixes  do  mar  e  rios  do  Algarve, 
que  se  publicarão  com  as  mesmas  observações  no  Tom.  5.°  parte  2.* 
Mem.  dWcacl.  Finalmente  apresentou  o  extracto  da  Memoria  do  Sr.  João 
de  Macedo  Pereira  sobre  o  estado  da  Agricultura  da  Comarca  de  Cas- 
tello  branco,  que  se  imprimio  uo  Tom.  4."  parte  2.'  Mem.  d'Acad. 


Lxxviii  Historia  da  Academia  Real 
diar  no  seu  Ensaio  sobre  os  descobrimentos  e  conmiercio  dos 
Poríiigtiezes  em  as  terras  sepíentrionaes  d' America  («)  :  Aqui 
depois  de  compendiar  as  noticias  ,  que  já  se  encontravão  das 
ditas  terras  cm  outros  escritores,  entra  nas  expedições 
dos  malfadados  Cortes-Reaes  ,  vindicando  a  sua  memoria 
do  quasi  absoluto  silencio  ,  em  que  os  nossos  a  tinhão  se- 
pultado :  rctcrc  depois  o  commercio  e  trato ,  que  os  Poi  tu- 
guczes  para  alli  fazião  ,  em  proveito  de  alguns  portos  c 
terras  maritimas  de  Portugal  ,  que  tiravão  dahi  a  sua  úni- 
ca prosperidade ;  nem  consentio  o  seu  zelo,  que  ficassem  no 
esquecimento  as  noticias  ,  que  encontrara  poroccasiao  des- 
te seu  trabalho  ,  de  ter  sido  descoberta  pelos  Portuguezes 
a  passagem  pelo  Norte  d'America  para  as  índias  Orientaes , 
que  hoje  tem  feito  o  objecto  das  cmprczas  da  maior  na- 
ção maritima  ,  a  Gra-Brctanha  :  Oxalá  que  eu  ainda  um  dia 
possa  illucidar  algumas  outras  espécies  relativas  a  este  objecto , 
que  tenho  encontrado  no  meu  estudo  ,  c  addi-Ias  ,  ás  que  nos 
offerece  o  Sr.  Trigoso ,  por  certo  mui  curiosas  e  instructi- 
vas, 

Náo  ficarão  também  os  descobrimentos  Portuguezes  , 
sobre  a  costa  d'America  Meridional  e  ilhas  do  mar  Athlan- 
tico ,  sem  receberem  do  Sr.  Sebastião  Trigoso  novas  e 
recônditas  investigações,  como  as  que  fez  no  exame  da/^- 
da  de  Martim  de  Bohemia  (b)  ,  que  tão  grande  parte  tomara 
cm  nossas  navegações.  Os  factos  da  vida  deste  sábio  astró- 
nomo ainda  estavão  indeterminados ;  e  as  fadigas  do  sábio 
Doutor  Murr ,  e  d'outros  Escritores  Alemães  não  havião 
satisfeito  a  incerteza  evacuo,  que  neste  ponto  sentíamos: 
O  Sr  Sebastião  Trigoso,  que  emprehendeu  esta  tarefa  ,  tão 
difficil  pela  falta  de  memorias  como  pela  alteração  das  tra- 
dições, deixou  com  tudo  o  que  dizia  respeito  a  Martim  de 
Bohemia    muito    bem  illustrado,    assimcomo  outros  muitos 

factos 


(a)     Impresso  no  Tom.  8.  das  Mem.  deLitterat.  d'Academiapag.  305. 
{b)     Impresso  no  Tom.  8.  d^Mem.  deLitterat.  d''Academiapag.  365. 


DAS  SciENCIAS   DE  LiSBOA.      '  LXXIX 

factos  da  historia  de  nossas  navegações  atdgora  tão  pou- 
co averiguados  e   conhecidos   {a). 

E  foi  paraque  ficasse  competentemente  illustrada  esta 
parte  da  nossa  historia  ,  de  que  tanta  gloria  resulta  ao  nome 
Portuguez ,  que  emprchendeu  a  Redacção  das  memorias  pd' 
ra  a  historia  das  Nações  Ultramarinas  j  e  a  Collecção  das 
viagens  dos  Portuguezcs  nos  districtos  que  elles  babitno  per- 
tencentes boje  aos  seus  dominios  :  Collecção  preciosa  em  que 
se  resgatarão  do  eterno  esquecimento  as  noticias  do  ce- 
lebre viajador  Cadamosto  ,  de  Duarte  Barboza  ,  e  de  ou- 
tros de  igual  nota  (Jj). 

Se  estas  compozições  eriío  porem  úteis ,  e  de  grande 
valor  á  historia  e  honrada  lembrança  de  nossos  maiores  , 
assumptos  de  maior  utilidade  pratica  desafiavão  a  applica- 
ção  do  Sr.  Sebastião  Trigoso.  —  Os  terrenos  abertos  c  bal- 
dios ,  que  se  encontrão  em  nosso  Reino  ,  derão  occasião  ,  a  que 
clle  examinasse  o  damno  e  detrimento  ,  que  para  a  agricultura 
dahi  se  deriva;  lembrando  a  propósito  os  diffcrentes  metho- 
dos  de  tapumes,  convenientes  para  remediar  semelhante  es- 
trago {c). 

A  falta  de  conhecimentos  ,  em  que  nos  achamos  das  pra- 
ticas mais  aperfeiçoadas  que  a  agricultura  tem  tido  entre 
as  outras  Nações ,  levou-o  a  inculcar  um  Projecto  para  o 
estabelecimento  d'escolas  d'agricultura  pratica  ,  onde  depois 
de  persuadir  a  sua  utilidade  ,  afastando-se  do  que  a  seme- 
lhante respeito  propõe  Sinclair,  e  outros  ,  como  pouco  pró- 
prio das  nossas  circumstancias  e  localidade ,    traça  o  plano 

por 

(a)  Vcja-se  a  nota  ,  que  o  Sr.  António  Ribeiro  dos  Santos  accrescen- 
tou  á  sna  Memoria  sobre  dois  antigos  Mappas  Geográficos  do  Infante 
D.  Pedro  a  p.  304  do  volume  8.  das  Memorias  de  Litteratura  da  Aca- 
demia, em  que  agradece  ao  Sr.  Sebastião  Trigoso  o  grande  adjutorio^ 
que  ihe  dera  para  o  seu  trabalho. 

(4)  Vcja-se  a  Collecção  de  noticias  para  a  historia,  e  Geografia  ãa» 
Naçffes  Ultramarinas  ,  que  vivem  nos  Dominios  Portuguezes ,  ou  lhes 
são  visinlias.  2  vol.  Lisboa  1812.  1813. 

(c)     Impressa  no  Tom.  5.  das  Mcm.  Económicas  d' Academia  p.  63. 


Lxxx  Historia  da  Academia  Real 

porque  entre  nós  deviao  ser  reguladas,  afim  de  bem  cor- 
responderem ao   fim  do  seu  instituto  (a). 

Estas  e  outras  compoziçôes ,  o  zelo  ,  e  o  descernimcn- 
to  avantajado ,  com  que  satisfazia  as  diversas  Commissõcs , 
de  que  a  Academia  o  encarregava  ,  erão  provas  positivas 
do  amor  ,  que  lhe  tinha  este  seu  Sócio.  Assim  a  Academia 
nomeando-o  para  seu  Vice-Secretario  mostrou  o  seu  agra- 
decimento ao  Sr.  Sebastião  Trigoso  ;  o  qual  tendo  nos  im- 
pedimentos do  Secretario ,  de  ser  o  historiador  dos  traba- 
lhos Académicos,  no  anno  decorrido  dei8i3  ^1814  mos- 
trou o  acerto  da  sua  escolha. 

No  seu  discurso  histórico  (b)  avalia  o  Sr.  Sebastião 
Trigoso  com  justiça  c  boa  critica  as  diversas  Memorias  apre- 
sentadas naquelle  periodo  ,  dando  de  todas  as  suas  tarefas 
uma  deducçao  clara,  em  estilo  desempeçado  e  elegante,  c 
fazendo  bom  uzo  dos  necessários  atavios  da  eloquência  , 
para  recommendar  ,  como  merecião  ,  os  sócios  beneméritos  j 
e  para  despertar  nas  almas  frias  e  indolentes  o  amor  da 
gloria  literária  ,  incitando  umas  a  fazerem  justo  apreço  de 
taes  trabalhos ;  e  accendendo  cm  outras  dezejos  de  concor- 
rerem nos  mesmos  trabalhos.  Este  foi  sempre  o  desempe- 
nho,  com  que  nos  annos  de  1817  ,  e  1820  satisfez  empre- 
za  tão  árdua  como  delicada  (6), 

Uma  de  maior  consideração  corria  neste  tempo  por 
conta  d'Acadcmia.  O  Plano  da  reforma  e  uniformidade  dos 
Pesos  e  Medidas  do  Reino  tinha  sido  incumbido,  primei- 
ramente a  uma  Commissão  em  parte  escolhida  pela  Aca- 
demia ,  e  depois  á  Commissão  do  exame  dos  Foraes  e  me- 
lhoramento da  Agricultura,  composta  de  vários  sócios  Aca- 

de- 

(rt)     Impresso  no  Tom.  4.  parte  1.'  p.  58  das  Mem.  d' Academia. 

(o)     Tom.  4.°  parte  1."  Mera.  da  Academia. 

(c)  Tom.  5.  parte  2.'  Mem.  da  Academia,  e  Tom.  7.°  Aqui  tem 
lugar  fazer-se  menção  do  Catalogo  das  obras  já  impressas  e  mandadas 
publicar  pela  Academia  impressas  em  1819,  o  qual  vem  transcrito  e 
elogiado  no  Tom.  9."  dos  Annaes  das  Sciencias  e  das  Artes.  O  Siir.  Tri- 
goso foi  quem  redigio  este  Catalogo. 


DAS   SCIENCIAS  DE   LiSBOA.  LXXXr 

demicos,  que  no  Archivo  da  Torre  do  Tombo  ,  e  no  Ar* 
senal  do  Exercito  fazião  as  suas  conferencias  ,  e  prcsidiao 
aos  trabalhos  da  construcçilo  dos  novos  padrões  ,  da  com- 
paração destes  com  os  antigos  de  cada  um  dos  conselhos 
do  Reino:  O  Sr.  Sebastião  Trigoso,  que  era  membro  des- 
tas Commissocs  ,  e  em  quem  recahio  grande  parte  do  tra- 
balho delias  ,  tomou  álcm  disso  a  seu  cargo  não  só  remo- 
ver o  obstáculo ,  que  a  ignorância  de  muitos  podia  oppor 
a  introducção  do  novo  systema  métrico  decimal,  mas  com' 
bater  com  energia  os  falaces  argumentos,  com  que  sábios 
caprichosos  pretcndião  criminar  esta  introducção.  Para  este 
fim  offertou  á  Academia  o  resultado  das  suas  experiências 
sobre  a  comparação  dos  pesos  e  medidas  de  Vi  Ha  Verde 
e  Torres  Vedras  (íi) :  e  uma  memoria  sobre  a  historia  e 
legislação  dos  nossos  pesos  c  medidas  des  do  principio  da 
monarchia  até  ao  tempo  dosFclippes  ;  e  sobre  a  introducção 
do  systema  métrico  decimal  :  (Z»)  e  pouco  depois  escrevco 
outra  cxcellcnte  Memoria  sobre  as  medidas  Portuguczas  , 
em  resposta  ,  ao  que  sobre  este  assumpto  vem  escrito  no 
N.°  4  do  Observador  Lusitano,  e3  volumes  dosAnnaes  das 
Artes  (c).  Estes  escritos  palpavelmente  mostrão ,  que  a  dou- 
trina ,  que  expendera  na  Commissão  sobre  a  preferencia  do 
systema  métrico  decimal,  era  solida  e  verdadeira,  e  filha 
de  longas  meditações  ,  e  seguros  raciocínios.  Porem  não 
convirá  de  certo ,  que  tanto  trabalho  ,  consagrado  a  um  objecto 
de  manifesta  utilidade  publica,  fique  no  esquecimento  ,  quan- 
do os  sábios  ,  que  nelle se  empregaram,  tem  pelo  menos  di- 
reito ,  a  que  se  publique  o  fructo  de  suas  fadigas. 

O  apparecimento  de  certo   verme    n'um    olho    de   um 
cavallo  ,    convidou  o  Sr. Sebastião  Trigoso,  a  que  em  dis- 
Tom.  IX.  P.  1.  *   II  tracção 

(«)  Por  Avizo  de  S.  Magestade  de  10  de  Setembro  de  ]814  foi  or- 
denado á  Academia  ,  que  incumbisse  ao  Sr.  Sebastião  Trigoso  esta  com- 
liaração  e  exame  ,  de  que  deo  conta. 

(i)     Impressa  no  Tom.  5.  das  Memorias  económicas  d^Academia  p.  336. 

(e)     Impressa  noTora.7.dos  Armaes  dasSciencias  e  Artes.  Paris  1820. 


ivxxii  Historia  da  Academia  Real 
tracção  daquelles  cuidados  mais  graves  desse  uma  expli- 
cação de  semelhante  phenomeno  :  Na  sua  obra ,  depois  de 
algumas  breves  reflexões  sobre  a  deducção  da  immensa  ca- 
dea  dos  seres  animados  ,  refere  os  factos  idênticos,  que  ou- 
tros Escritores  havião  mencionado ;  e  entrando  nos  princi- 
pios ,  que  poderião  produsir  a  geração  ou  formação  daqucllc 
verme,  aindaque  regeita  os  da  creação  espontânea,  que 
são  hoje  os  que  vulgarmente  se  seguem  ,  e  os  únicos ,  que 
parecem  próprios  a  servir  de  cabal  explicação  a  semelhan- 
tes phenomenos  ,  mostra  com  tudo  a  maior  sagacidade  ,  pois 
abraçando  os  princípios  da  geração  própria  ou  deduzida  , 
satisfaz  conforme  a  elles  o  fim ,  a  que  se  proposcra  naquel- 
le  escrito,  (a) 

As  notas  illustradoras  ,  segundo  os  recentes  descobri- 
mentos do  Tratado  da  cultura  das  oliveiras  do  Sr,  Dalla 
Bella ,  obra  estimável ,  de  que  se  havia  acabado  a  edição  , 
foi  outro  trabalho  ,  de  que  o  Sr.  Trigoso  se  encarregou  pe- 
lo serviço  da   Pátria  ,  credito  e  honra  d'Academia.  (b) 

O  exame  da  magnifica  edição  dos  Lusíadas  que  o  Sr. 
Morgado  de  Mattheus  dedicou  a  literatura  em  geral  ,  e  par- 
ticularmente á  gloria  da  nação  Portugueza  feito  pelos  três 
Directores  das  classes  ,  e  do  qual  coube  ao  Sr.  Sebastião 
Trigoso  fazer  o  relatório  (c)  digno  do  desempenho  de  tão 
subida  empreza,  levantou-lhe  pensamentos  a  um  maior  tra- 
balho. —  O  Sr.  Sebastião  Trigoso  entrou  no  exame  criti- 
co das  cinco  primeiras  edições  do  nosso  Poeta  (d) :  esta 
analyse  escrupulosa  e  bem  seguida  oíFcreceu-lhe  úteis  espé- 
cies á  i Ilustração  da  historia  do  Poeta  ,  e  á  daquelle  tem- 
po ,  em  que  uma  tremenda  potestade  se  havia  entre  nós 
erguido ,    sugeitando  todos  os  discursos  a  uma  bitola  des- 

co- 

(a)     Impressa  no  Tom.  5.  parte  1."  p.  60  das  Memorias  da  Academ. 
(ò)     Memoria   sobre   a  cultura  das  oliveiras  cm  Portugal  ,   2."  Ed. 
corrigida  e  annotada.  Lisboa  1818. 

(c)  Impr.  no  Tora.  5.  parte  2.'  das  Memorias  d^Academ. 

(d)  Impr.  no  Tom.  8°  parte  1."  das  Mera.  d' Academ. 


DAS   SCIENCIAS   DE   L  I  S  B  O  A.  LXXXIÍI 

conhecida  e  avessa ;  e  terrivelmente  fulminando  contra  os 
que  se  niostravão  menos  dóceis,  tinha  os  engenhos  como 
embotados ,  abatendo  os  pensamentos ,  que  amendrontados 
como  que  não  ousavão  arrcdar-se  de  casa  ,  nem  ao  menos 
transluzir  fora.  —  Apparecendo  todas  as  edjções  do  nosso 
Poeta  debaixo  de  tão  mahgno  influxo,  des  da  primeira  ,  sem 
duvida ,  apparecerâo  desfiguradas  suas  expressões  e  pensa- 
mentos. O  bom  juizo  ,  que  de  tudo  apresenta,  ecomo  en- 
tão lhe  era  permittido  ,  o  Sr.  Sebastião  Trigoso  é  digno 
de  rccommendação ,  até  pelas  noticias  e  reflexões,  c]ue  di 
c  suscita  daquelia  época,  donde  sederivão  os  dias  infaustos 
da  nossa  literatura,  e  do  vigor  nacional. 

Por  este  mesmo  tempo  cmpregava-se  o  Sr.  Sebastião 
Trigoso  em  salvar  a  memoria  d'alguns  de  nossos  Consó- 
cios beneméritos  d'Academia  e  da  Pátria.  —  No  Elogio  his- 
tórico do  Sr.  Conde  da  Barca  (a),  rcferindo-nos  em  substan- 
cia ,  c  n'um  estilo  grave  c  desempeçado  a  sua  vida  literá- 
ria ,  augmentou  ,  se  he  possivel ,  a  estimação,  que  a  Acade- 
mia porclle  teve,  quando  o  chamou  a  si;  com  a  narrativa 
de  sua  vida  publica,  açaimou,  por  assim  dizer,  aos  que  ain- 
da se  obstinassem  em  contrariar  os  seus  serviços  e  fideli- 
dade ;  mostrando  em  tudo  que  o  Sr.  Conde  da  Barca  fora 
accredor  da  estima  ,  e  particular  consideração  ,  com  que  o 
distinguiu  o  nosso  munificentíssimo  Monarcha  ,  sempre  be- 
nigno e  liberal  em  attender  o  verdadeiro  merecimento.  — 
A  noticia  porem  ,  que  o  Sr.  Sebastião  Trigoso  nos  dá  da 
copiosa  e  selecta  livraria  de  manuscriptos  ,  livros ,  e  precio- 
sidades raras  e  de  grande  valor,  que  o  Sr.  Conde  da  Bar- 
ca ,  a  tanto  custo ,  juntara  em  toda  a  sua  vida ,  he  triste- 
mente acompanhada  pelo  dissabor ,  que  nos  causa  o  fim  ,  que 
sabemos  tivera  tão  rica  bibliotheca  ,  que  por  baixo  preço 
tem  sido  truncada  e  dispersa  ,  semque  mais  se  possa  en- 
contrar parte  desses  manuscriptos    singulares    sobre   nossas 

*   1 1   ii  con- 

(a)    Tom.  8.»  parte  2.'  Mem.  d"Acadein. 


Lxxxiv        Historia  da  Academia  Reai. 
cunquistas  e  descobrimentos  Africanos  ,    com  que    o  oíitro 
nosso  sábio  Consócio  o  Sr.  Josíí    Banks    havia    presenteado 
ao  Sr.  Conde  da  Bnrca. 

No  Elogio ,  que  depois  fez  do  Sr.  António  Caetano 
do  Amaral  (a)  ,  expressou  a  saudade ,  que  lhe  devia  este  Ami- 
go e  Consócio ,  sábio  e  benemérito ,  que  accreditando  a 
Academia  com  o  primor  de  seus  fadigosos  trabalhos  ,  na  11- 
Jubtraçao ,  que  offcreceu  á  nossa  historia  constituio-se  digno 
dos  mais  justos  louvores.  —  A  conta  que  o  Sr.  Trigoso 
offcrece  de  seus  trabalhos  literários  é  própria  a  dispert;ir 
o  aírradccimcnto  devido  a  um  sábio   tão    incansável    como 

O 

atilado.  —Já  antes  disto  ,  no  Elogio  que  dedicou  á  memo- 
ria do  Sr.  Fr.  João  de  Sousa,  nosso  Sócio,  havia  deixado 
o  competente  registo  ,  do  que  este  Religioso  fizera  em  ser- 
viço d'Academia  e  de  Portugal ,  que  adoptara  por  sua 
nova  e  verdadeira  Pátria,  (b)  A  ordem  e  disposição  ,  que  o 
Sr.  Trigoso  guarda  nestas  composições  aliás  difficeis  ,  fa- 
zem-no  por  certo  não  ficar  inferior  aos  bons  modelos ,  que 
ha  neste  gcncro. 

Em  quanto  o  Sr.  Trigoso,  com  estas  e  outras  com- 
posições parecia  ofFerccer  a  Academia  o  emprego  de  todo 
o  seu  tempo,  elle  entregando-se  também  a  amenidade  da 
Poesia,  que  sempre  lhe  mereceu  amor  e  culto,  vinha- com 
os  seus  dons  mitigar  a  austeridade  das  tarefas  ordinárias 
d' Academia.  Após  as  traducções  em  verso  solto ,  que  leu 
nas  suas  sessões  das  Tragedias,  Hyppolito  de  Séneca,  e 
Phedra  de  Racine  (c)  ,  nas  quaes  mostrou  propriedade  e 
elegância,  em  confrontação  com  os  seus  originaes,  leu  (d) 
aversão  dos  quatro  livros  das  Georgicas  de  Virgilio ,  Poe- 
ma consagrado  a  celebrar  os  trabalhos  campestres,  afim  de 

com 


(a)  Tora.  8.°  parte  2.'  Memor.  d'Acadeni. 

(6J  Impresso  no  Tom.  4.  parte  1.'  das  Memor.  d^Academ. 

(c)  Impr.  em  1813. 

■    (d)  Nosannos  de  1815.  1816.  1818:  mas  esta  versão  ainda  está  ine« 
dita. 


DAS   SCIEÍÍCIAS    DE   LjSEOA.  IXXXy 

com  Odeleite  da  poesia  insinuar  úteis  preceitos  da  agricul- 
tura. O  Sr.  Trigoso  trcspassanilo-os  á  nosía  Jingvugcni, 
com  toda  a  correcção  ,  e  conservando  a  bcUeza  do  origi- 
nal ,  leva  o  mesmo  fito  ,  de  fa/er  proveitosas  aos  Tort^guc- 
zcs  asidéas,  que  o  Poeta  latino  tivera,  quando  asoffercceu 
aos  Romanos.  A's  illustraçõcs  philologicas  para  a  intclli- 
gencia  do  poema,  ajuntou  outras  propriamente  agriologi- 
cas,  de  muito  saber  c  utilidade.  Deste  modo  coube  ao  Sr. 
Sebastião  Trigoso  satisfazer  ao  Programma  ,  que  havia  an- 
nos  a  Academia  fizera  para  uma  versão  das  Gcorgicas  accom- 
modadas  a  inculcar  os  preceitos  d'agricultura,  e  que  nun- 
ca fora  prchcnchido.  —  Deste  modo  também  trouxe  o  Sr. 
Sebastião  Trigoso  cm  dom  á  Academia  o  fruto  da  pro- 
pensão, que  sempre  tivera  aos  attractivos  da  poesia  ;  e  de 
que  são  argumento  outras  muitas  composições,  que  deixou 
manuscriptas ,  ea  que  parece  não  dava  todo  o  apreço,  que 
merccião,  pois  a  sua  publicação  o  faria  avaliar  como  ura 
dos  nossos  bons  poetas  modernos. 

Outras  obras  mais  extensas ,  e  igualmente  úteis  á  his- 
toria da  nossa  Pátria  e  aos  progressos  scientificos  trazia  en- 
tre mãos  neste  mesmo  tempo  o  Sr.  Sebastião  Trigoso : 
taes  erão  a  traducção  da  obra  de  Columella  De  re  rústica  y 
a  historia  de  Lisboa  antiga,  em  que  compendiava  ossucces- 
sos  e  particularidades  notáveis  de  Lisboa  ,  como  o  erudito 
Crevier  fez  da  cidade  de  Paris;  e  segundo  os  diversos  qua- 
dernos  ,  que  vi  desta  obra,  promettia  bem  satisfazer  ao  fim 
a  que  a  destinava :  um  Parallelo  entre  a  economia  vegetal 
c  animal ,  uma  synonymia  dos  nomes  Linneanos  com  os 
Portuguezes  ,  os  additamentos  á  arte  de  verificar  as  datas 
no  que  dizia  respeito  a  Portugal,  de  que  fora  encarregado 
na  Gommissão  para  esse  fim  nomeada  pela   Academia  {a) : 

Pro- 

(n)  Por  Aviso  de  26  de  Janeiro  de  1819  incumbiu  S.  Magestadc  a 
rsta  sua  Real  Ac.ideiuia  a  redacção  dn  historia  Chrouologica  do  Reinp 
de  Portugal  para  continuar  o  artigo  da  Arte  de  verificar  as  datas  q.ue 
deixou  DO  que  eia  relativo  a  Portugal  em  1760  :  Jslo  foi  porfioJicitajpes 


Lxxxvi        Historia  DA  A  CADEMiA  Real 
Projecto  para  o  estabelecimento  de  Escolas  normaes  de  Fy- 
sica  c  historia  natural  cm  Lisboa  ,  e  assim  outros  cscriptos  , 
de  que  nuo  he  possível  dar  agora  mais  ampla  noticia. 

Na  verdade  quando  se  considerão  tantas  e  tão  varia- 
das composições,  quando  se  attende ,  que  o  Sr.  Sebastião 
Trigoso  encarregado  da  Secretaria  d'Acadcmia  não  podia 
deixar  de  se  empregar  no  seu  expediente ,  e  correspondên- 
cia,  o  que  llie  devia  roubar  não  pouco  tempo;  bem  como 
lho  roubara  o  arranjamcnio  dos  outros  objectos,  que  perten- 
cem a  lugar  tão  pensionado :  que  empregado  na  Commis- 
são  do  exame  dos  Foraes  e  melhoramento  d'agricultura , 
na  parte  que  dizia  respeito  a  reforma  e  novo  rcgulanicuio 
dos  pesos  e  medidas ,  diariamente  ia  ao  Arsenal  do  Exer- 
cito vigiar,  e observar  os  trabalhos  práticos,  que  alli  se  fa- 
ziâo  ;  quando  se  considerão  as  moléstias ,  que  padecia  ,  e 
que  muitas  vezes  vinhão  emburgar  os  esforços  do  seu  zelo 
e  actividade:  quando  se  considera  tudo  isto,  não  é  possivel 
deixar  de  render  á  sua  memoria  o  tributo  do  maior  lou- 
vor e  admiração.  Parece,  que  o  Sr.  Sebastião  Trigoso  pre- 
sentido  da  pouca  duração  da  sua  existência ,  a  queria  dila- 
tar o  mais  possível  ,  empregando  utilmente  todos  os  seus 
momentos  no  serviço  da  Pátria  e  proveito  da  humanidade. 
A  um  tal  Escritor  ,  a  um  sábio  tão  laboriozo  e  íncançavel 
he  justo,  que  com  boa  graça  se  desculpem  algumas  falhas, 
ou  incorrecções  ,  que  se  possuo  notar  cm  seus  escritos ,  fa- 
lhas nascidas  sem  duvida  da  multiplicidade  e  variedade  del- 
les ,  e  da  velocidade  com  que  erao  compostos  ;  disfarcem- 
sc-lhe  pois  essas  quebras,  quando  scjao  assim  avaliadas, 
olhando-se  ao  zelo ,  bom  animo  e  decisiva  vontade ,  com 
que  promoveu  a  causa  das  letras  e  das  scicncias  j  e  ás  tris- 
tes 

do  Ministro  de  S.  Magestade  Christianissima:  Ao  Sr. Trigoso  coube  ser 
b  redactor  do  trabalho  Académico ,  que  concluido  foi  remettido  para 
o  Rio  de  Janeiro  onde  então  se  achava  a  Corte  :  Em  consequência  dos 
succpssos  posteriores  não  sei  o  que  foi  feito  deste  trabalho,  aliás  esti- 
mável ,  e  de  que  ainda  se  couservão  muitos  apontauieutos. 


DAS   SCIENCIAS  DE   LiSBOA.  "LXXXVU 

tes  cogitações,  de  que  se  via  opprimido  pelo  estado  mor- 
bozo  de  sua  saúde. 

Com  cffcito  uma  aíFccçao  gotosa  ,  junto  a  uma  dis- 
posição ncurismatica  ,  que  talvez  fora  também  a  de  seu 
pai  (a) ,  aggravava  mais  c  mais  os  seus  insultos  ,    e  o  Sr. 

Se- 


ia) O  Sr,  Doutor  Beruardino  António  Gomes  pretendia  descrever 
particularmente  a  moléstia,  de  que  foi  victinia  o  Sr.  Sebastião  l'rancis- 
co  de  Mendo  Trigoso,  a  morte  iiorcin  deste  sábio  consócio  nos  privou 
deste  e  doutros  traballios,  com  que  a  sua  continua  applicaçáo  preiíieltia  en- 
riquecer as  scitncias  em  benelicio  da  luimanidade:  O  que  liça  dito  Ibi 
o  resultado  do  que  o  mesmo  Sr.  Beruardino  me  havia  communicado , 
o  que  elle  afirmava  comprovar-se  com  a  dissecção  do  cadáver  do  Sr. 
Trigoso  feita  era  sua  presença.  Depois  de  concluido  este  Elogio  é  que 
o  Sr.  José  Pinheiro  de  Freitas  Soares  escreveo  a  breve  nota  em  que 
quiz  desafogar  a  magoa  que  lhe  causava  a  perda  do  seu  amigo,  e  que 
agora  transcreverei. 

Depois  da  exposição  feita  da  vida  publica  e  particular  doSiir.  Sebas- 
tião Trigoso  ,  com  bem  dòr  sou  obrigado  a  fallar  do  trisie  aconteci- 
mento da  sua  morte.  Logo  na  flor  de  seus  annos  começou  asoírcr  ata- 
ques de  gota  regular  ;  e  bemque  a  natureza  ,  por  seu  talento  .e 
luzes  o  tornasse  um  vigoroso  Athléta  j>ara  correr  com  gloria  a  vas- 
ta e  nobre  carreira  das  Sciencias ;  a  sua  morbosa  constituição  foi  sa- 
crificada nos  esforços  do  seu  génio  sublime  ,  e  assim  forão  crescendo 
os  insultos  da  sua  cruel  moléstia  no  meio  de  assíduos  e  variados  traba- 
lhos litterarios ,  até  que  no  raez  de  Janeiro  de  1821,  cahio  na  cama 
com  um  novo  ataque  gotoso ,  que  se  remontou  violentamente  aos  ór- 
gãos da  respiração  e  circulação ,  nos  quaes  foi  constante ,  em  maior  ou 
menor  gráo  ,  até  á  sua  morte ,  que  se  verificou  no  dia  18  do  mez  de 
IMaio  do  mesmo  anno ,  quando  contava  48  annos  de  idade.  A  rebeldia 
deste  ultimo  insulto  da  sua  moléstia  ,  a  inefficacia  dos  differentes  re- 
médios,  que  se  lhe  administrarão,  e  que  costumão  ser  proveitosos  em 
tacs  circu  instancias ,  fizerão  suspeitar  nos  dous  facultativos,  quelha 
assistirão,  inllammações  chronicas,  e  suas  consequências,  nos  órgãos 
da  cavidade  superior;  que  naturalmente  se  havião  desenvolvido  mui- 
to antes  deste  ultimo  ataque;  poisque  já  mezes  antes  o  Sr.  Sebastião 
Trigoso,  fallando  ou  lendo  ,  mostrava  uma  respiração  cançada.  A  dis- 
secção do  cadáver ,  que  foi  feita  por  um  cirurgião  hábil  perante  ura 
dos  facultativos  assistentes,  converteo  a  suspeita  em  certeza;  e  não  me 
demoro  mais  sobre  a  descripção  pathologica  das  entranhas  do  cadáver, 
para  não  augmentar  a  nossa  dor. 

Assim  acabou  seus  gloriosos  dias  este  illustre  varão  :  as  Sciencias 
chorarão  sempre  a  sua  falta;  a  saudade  será  eterna  nos  corações  de 
Seus  parentes  c  amigos;  e  a  dòr,  que  excita  a  sua  perda  ^  só  pôde  ser 


Lxxxvin  Historia  da  Academia  Real 
Sebastião  Trigoso  ,  no  meio  das  maiores  dores ,  mostrava 
a  serenidade  própria  da  sua  filosofia ,  e  resignação  nos  ma- 
les ,  que  ao  homem  não  é  dado  remediar.  Nós  o  vimos , 
com  os  symptomas  d'afílicção  produzida  pela  vchemencia 
das  dores  que  sofria,  recitar,  na  sessão  de  34  de  Junho 
de  1820  a  historia  dos  nossos  trabalhos  no  anno  então  de- 
corrido ;  c  não  obstante  isso  ,  nós  o  vimos  na  sua  natural 
firmeza  conservar  a  gravidade,  e  tom  de  voz,  com  que  ou- 
tras vezes  fora  o  Orador  d'Acadcmia  :  Esta  porem  não  ti- 
nha de  o  possuir  por  muito  mais  tempo.  —  O  resto  do 
anno ,  com  pequenos  intervallos  de  saúde  passou  o  Senhor 
Sebastião  Trigoso ,  occupando-se  inteiramente  com  os  tra- 
balhos Académicos,  tendo  sido  um  dos  sócios  nomeados 
para  a  Commissão ,  que  em  1820  foi  visitar  o  estabeleci- 
mento da  Casa  pia,  segundo  os  desejos  ,  que  então  manifes- 
tou o  Intendente  geral  da  policia  {a)  ;  cumprindo-lhe  ao 
mesmo  tempo  desempenhar  a  trabalhosa  tarefa  de  Membro 
da  Commissão  da  Censura,  creada  logo  nos  fins  de  Setem- 
bro ,  ao  que  depois  se  lhe  ajuntou  a  dos  livros  estran- 
geiros por  Provisão  de  13  d'Outubro  do  mesmo  anno.  O 
Sr.  Sebastião  Trigoso  cm  8  de  Fevereiro  deste  anno  já  ti- 
nha sido  nomeado  Censor  Régio  do  Desembargo  do  Paço  , 
c  em  18  de  Maio  Censor  privativo  dos  annaes  das  Scien- 
cias  e  Artes  ,  que  se  publicavão  em  Paris.  —  De  todas  as  ta- 
refas literárias  no  tempo  passado,  a  mais  diffieil  e  enfado- 
nha era  a  de  Censor.  Faltos  de  norma  no  seu  magistério , 
linhão  como  arbitrariamente  de  sentenciar ,  o  que  os  outros 
cscrevião  e  pensavão ;  ignorando  se  sempre  o  que  se  que- 
ria ,  que  a  censura  vedasse  ou  permittisse :  a  isto  accrescia 

uma 

iiioderada    pela   iciéa  das  iminulaveis  leis  da  natureza  ,   que   sujeita   á 
lucsina  sorte  todos  os  eutes  ,  que  respirão. 

Hcpousa  em  paz ,  varão  sábio  e  virtuoso ;  a  morte  não  sepultou 
a  tua  memoria ;  pois  as  acçSes ,  que  praticaste  ,  e  os  escritos ,  que  nos 
deixaste,  e  que  guardão  teus  pensamentos,  são  immortaes. 

(a)     Impressa  a  Memoria  sobre  este  objecto  a  pag.  386  do  Tom.  7, 
das  Álemor.  d^Academ.  das  Sciencias. 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSROA.  LXXXIX 

uma  infinidade  de  papeis  insonsos  e  inúteis  ,  que  o  Censor  era 
obrigadnr  a  ler ,  e  examinar  ;  o  que  até  constituia  este  em- 
prego aborrecido  c  por  extremo  desagravavel. 

\ín:i  sua  incumbência,  que  segundo  acabamos  de  ver , 
por  si  mesmo  era  penosa  ,  pode  ser  que  influisse  tambetn 
no  estado  da  sua  saúde,  que  de  dia  adia  passava  por  novos 
c  violentos  insultos.  —  A  Pátria,  que  sem  a  menor  recom- 
pensa até  então  o.vio  solicito  só  em  concorrer  á  ^ua  pros- 
peridade e  grandeza  ,  ainda  invocou  o  seu  préstimo;  mas  ao 
Sr.  Trigoso  não  era  dado  corresponder  mais  aos  votos  de 
seus  compatriotas  :  A  Pátria  ,  as  Sciencias ,  esta  Academia 
tinhão  de  o  perder  brevemente  ,  pois  em  Maio  do  anno 
findo  com  a  firmeza  de  um  filosofo  (e  porque  não  diremos 
de  filosofo  chrisião?)    passou  desta  a  melhor  vida  («)• 

Nas  agonias  de  tão  dolorosa  moléstia  deu  provas  au- 
thcnticas  do  seu  afFecto  pelo  bem  da  Pátria  e  d'Academia. 
Qiiando  cedendo  á  violência  das  agudas  dores,  que  o  ator- 
mentavão,  esmorecida  a  razão,  a  voz  seguia  os  impulsos 
do  deiirio  :  Portugal,  Academia,  objectos  literários  era  o 
que  se   lhe  ouvia  articular. 

Pela  sua  não  vulgar  literatura  ,  c  avantajado  saber  sem- 
pre será  o  Senhor  Sebastião  Trigoso  tão  respeitado  de  to- 
dos os  que  lerem  os  seus  escritos ,  como  as  suas  amáveis 
qualidades  o  fazião  estimar  de  quantos  oconheciao:  aqucl- 
Ic  ar  imperturbável  c  socegado ,  próprio  da  convicção  de 
um  merecimento  real:  o  sangue  frio  nas  di-putas  :  o  nenhum 
accesso  que  dava  a  intriga  ,  que  muito  aborrecia :  a  doçu- 
ra do  seu  trato  domestico  e  familiar  :  a  franqueza  em  coadju- 
var toda  a  emprcza  literária  :  o  ardor  com  que  procurou  o 
adi-intiimento  da  Pátria  fazião ,  com  que  fosse  tão  bom 
Tomo  IX.  *  1 2  pai 

(«)  Morreu  a  18  de  Maio  dia  do  seu  nascimento,  em  que  comple- 
tava quarenta  e  oito  aunos  de  idade  ,  depois  de  ter  recebido  todos  os 
saeraineiitos  da  Igreja,  e  de  ter  soífrido ,  principalmente  desde  o  mfi 
de  Janeiro  ,  em  que  uão  toruou  a  saliir  de  casa  ,  violentos  e  repetidos  ata» 
qucs  da  mais  afflictiTa  enfermidade. 


xc  HistoriadaAcadkmiaReal 

pai  de  famílias  ,  tão  bom  amigo  ,  c  tão  bom  cidadão  ,  co- 
mo as  suas  obras  depõem  que  fora  desvelado  escritor. 

Sem  solicitar  nem  receber  outra  recompensa  mais  do- 
que  a  consciência  do  seu  merecimento  desceu  á  sepultura , 
sobre  a  qual  depositarei  a  mal  tecida  coroa  deste  Elogio  , 
tributo. na  verdade  pequeno,  para  o  que  merece  a  memoria 
de  seu  nome. 


Disse. 


LIS- 


OAS  SciEKCtAS  DE  LiSBOA.  XCÍ 


LISTA    DOS    SÓCIOS 

Da  Academia  Real  das  Sciencias  ^  em  Junho  de  iSzy. 

PROTECTOR 
ELREI  NOSSO  SENHOR. 

PRESIDENTE 
O  Sereníssimo  Senhor  Infante  D.  Miguel. 

Fice- Presidente. 

Fernando   Maria  José   de  Sousa   Coutinho  Castello-Branco 
e  Menezes,  Marquez  de  Borba. 


Sócios  Honorários, 


S.  M.  ElRei  da  Gra-Bretanha. 

S.  A.  R.  o  Duque  de  ^ussex. 

Arthur   Wclleslcy ,    Marquez    de  Wellington  , 

Duque  da  Victoria,       - fera  do  Reino, 

Ayres  de  Saldanha  e  Albuquerque,  Conde  da 

Ega ,     ---..-......     ef;i  Lisboa. 

António  de  Saldanha  da  Gama,  Conde  de  Por-  • 
to  Santo,  Conselheiro,  Ministro,  e  Secre- 
tario de  Estado  dos  Negócios  Estrangeiros ,     em  Lisboa. 

D.  Caetano  de  Noronha ,  Conde  de  Peniche  ,     em  Lisboa. 

D.  Carlos  da  Cunha,   Cardeal  Patfiarcha ,      -     em  Lisboa. 

Carlos  Stuard ,--_-..__-    fdra  do  Reino. 

*  li  ii  D. 


y 


^cu  Historia  DA  Academia.  Real 

D,  Domingos  de  Sousa  Coutinho,  Conde  do 

Funchal ,     -     -     - ^,„  Lotulres. 

D.  Duarte  Manoel ,    Marquez  de  Tancos  ,     -     em  Lisboa. 
Fernando  Luiz  Pereira  de  Sousa  Barradas ,  Con- 
selheiro,   Ministro,   e  Secretario  de  Estado 
dos  Negócios  Rcclesiasticos ,    e  da  Justiça ,     eni  Lisboa. 
Fernando  Maria  José   de  Sousa  Coutinho  Cas- 
tello-Branco  e  Menezes ,  Marquez  de  Borba , 
Vice-Presidente  ,       -     -     -     -     -     -.1     -     em  Lisboa. 

Filippe  Ferreira  de  Araújo  e  Castro,    -     -     -     em 
Francisco  Furtado  de  Castro  do  Rio  de  Men- 
doça  ,    Conde  de  Barbacena  ,    Conselheiro  , 
Ministro  ,    c  Secretario   de  Estado   dos  Ne- 
gócios da  Guerra  ,    - em  Lisboa. 

Henrique  Teixeira  de  Sampaio,  Conde  da  Po- 
voa ,      --...-...--^cj-ff  Lisboa. 
Ignacio  da  Costa  Qiiintella  ,  Ministro,  e  Se- 
cretario de  Estado  Honorário .,----     em  Lisboa, 
Joaquim  José  Monteiro  Torres  ,   Conselheiro  , 
Ministro  ,,  e  Secretario    de  Estado  dos  Ne- 

*  gocios  da  Marinha , em  Lisboa. 

José  António  de  Oliveira  Leite  de  Barros ,  Con- 
selheiro  de  Estado , em  Lisboa, 

José  Joaquim  de  Almeida  e  Araújo  Corrêa  de 
Lacerda  ,.  Conselheiro,  Ministro,  e  Secreta- 
rio de  Estado  dos  Negócios  do  Reino,     -     em  Lisboa» 
Luiz  António  Furtado    de  Castro   do  Rio    de 

Mcndoça ,  Conde  de  Barbacena ,       .     -     ^     em  Lisboa. 
Manoel  Ignacio  Martins  Pamplona  Corte  Real, 

Conde  de  Subserra  ,--------  fw  Madrid. 

Alanocl  Marinho  Falcão  de  Castro ,     -     -    fora  de  Lisboa. 
D.  Marcos  de  Noronha  ,  Conde  dos  Arcos ,  -     em  Lisboa, 
D.  Miguel  António  de  Mello ,    Conselheiro  , 
Ministro ,   e  Secretario  de  Estado  dos  Ne- 
gocios  da  Fazenda  ,       .------     em  Lisboa, 

D.  Miguel  Pereira  Forjaz,  Conde  da  Feira,  -     em  Lisboa. 

D. 


DAS   SciENCIAS   DE   LlSBOA.  XCtlI 

D,   Fr.  Patrício    da  Silva,   Cardeal  Arcebispo 

de  Évora  ,  Regedor  das  Justiças  ^     -     -     -     em  Lisboa. 

D.  Pedro  de  Sousa  Holstcin ,  Marquez  de  Pal- 

inclla  ^..--.     -------  em  Londres. 

Scb..stião  José   de  Carvalho  ,       -----     cw;  Lisboa. 

D.  Scgi'ímundo  Caetano  Alvares  Pereira  de  Mel- 
lo ,  Duque  de  Alafões  ,      .-..--     em  Lisboa. 

Silvestre  Pinheiro  Ferreira,     ------     e;« 

Thomaz  António  de  Villanova  Portugal ,  Con- 
selheiro de  Estado ,       ~     -----     '     em  Lisboa. 


Sócios  Estrangeiros. 

António  Lourenço  de  Jussieu  ,-----       em  Parh. 

Christiano    Martinho  Fraehn ,       -     -     -   em  S.  Petersbourgo. 
Frederico   Bouterwek  ,       -------  fw  Gottivga. 

J.iime  Edward  Smith ,--------   f/«  Londres. 

José  Francisco  de  Jacquim  (Barão  de  Jacquim)  ,      em  Vieuna 

ã"  Áustria. 
D.  Manoel  Abella  ,       --------  ^m  Madrid. 

Moria  Carlos  José  Pougens,  ------       em  Paris, 

Ricardo  António  de  Saiisbury  ^    -----    em  Londres, 


Sócios  Veteranos. 
Joaquim  Pedro  Fragoso,  -    ~    -    » 


em  Lisboa, 


SO^ 


xciv  Historia  da  Academia  Real 

Sócios  effectivos. 
Na  Classe  de  Sciencias  Naturaes. 

Alexandre  António  Vandelli ,  Guarda  mór  dos 

Estabelecimentos  da  Academia  >    -     -     -     -     f'«  Lisboa. 

Félix  de  Avellar  Brotero  ,       ------      «^  Ajuda. 

Francisco  Elias  Rodrigues  da  Silveira  ,    Vicc- 

Secretario,       ----------     em  Lisboa. 

Ignacio  António  da  Fonseca  Benevides,  Dire- 
ctor da  classe  ,---------     e»<  Lisboa. 

Joaquim  Xavier  da  Silva  ,       ------     em  Lisboa. 

José  Bonifácio  de  Andrada  e  Silva ,      -     -    fora  do  Reino, 

José  Pinheiro  de  Freitas  Soares ,      -     -     -     -     em  Li  boa. 

Thomé  Rodrigues  Sobral ,      ------  em  Coimbra. 

Na  Classe  de  Sciencias  Exactas. 

Francisco  de  Borja  Garção  Stockler,  Barão  da 

Villa  da  Praia  ,---------««  Lisboa. 

Francisco  de  Paula  Travassos  ^     -----  em  Lisboa. 

Francisco  Villela  Barbosa ,      ------  «o  Brasil. 

José  Maria  Dantas  Pereira  ,  Secretario  ,      -     -  em  Lisboa. 

Marino  Miguel  Fran/.ini ,       ------  ew;  Lisboa. 

Mattheus  Valente  do  Couto,  Director  daclasse, 

e  Thcsourciro  da  Academia  ^    -----  em  Lisboa. 

Rodrigo  Ferreira  da  Costa,    ------  em  Lisboa. 

Na  Classe  de  Litteratura  Portugueza. 

D.  Fr.  Francisco  de  S.  Luiz,      -     -     -     -   fora  de  Lisboa. 

Francisco  Manoel  Trigoso  de  Aragão  Morato , 

Director  da  classe ,--------     í;;;  Loures. 

Fran- 


1 


nAS  SciKNci AS  DE  Lisboa.  scv 

Francisco  Ribeiro  Dosguimarâes ,     -  >  -     -     -     eM  Lisboa* 
João  Pedro  Ribeiro  ,--------*/«  Lisboa, 

Joaquim   de  Santo  Agostinho  de  Brito  França 

Galvão  ,      ---.-_----.    e«i  Lustosa. 
Joaquim  José  da  Costa  de  Macedo ,     -     -     -     em 
Joaquim  José  Ferreira  Gordo  (Monsenhor  Fer- 

n  ira) , -em  Lisboa. 

Manoel  de  Almeida  e  Vasconcellos,  Conde  da 

Lapa  j-------»----ew  Lisboa. 


Sócios  Livres. 


António  de  Almeida,   ---.»_--  em  Penafiel. 
António  de  Araújo  Travassos  ^     -     ~     ~     -     -     em  França. 
António  Diniz  do  Couto  Valente,       ~     -     -     em  Lisboa, 
D.  Fernando  de  Lima ,      -------     ew  Lisboa, 

Fr.  Fortunato  de  S.  Boaventura ,      -     -     -     -  em  Coimbra. 

D.  Francisco  Alexandre  Lobo  ,  Bispo   de  Vi- 
seu ,      -----.---.--       em  Viseu. 

Francisco  José  de  Almeida  ,-■---,-     fw  Lisboa» 
Francisco  Nunes  Franklin  ,      -------     ew  Lisboa, 

Francisco  Xavier  de  Almeida  Pimenta,      -     *     no  Sardoal. 
Guilherme,  Barão  de  Eschwege,     -     -     -     -     em  Lisboa. 

João  António  Salter  de  Mcndoça ,  Visconde  de 

Azurara ,.------.     ---ew  Lisboa. 

João  da  Cunha  Neves  e  Carvalho ,      -     -     -        no  Porto, 
D.  João   de  Magalhães   e  Avellar ,    Bispo  do 

Porto ,----.-----.        no  Porto. 

Joaquim   Pedro  Gomes  de  Oliveira ,       m     -     -     em  Lisboa. 
Fr.  José  de  Santo  António  Moura,       -     '     -     em  Lisboa, 
José  Feliciano  de  Castilho  ,------  í»í  Coimbra. 

D.  José  Maria  de  Sousa  Botelho  >   -     -     *     -       ^"^  P<i^'i^' 
Justiniano  de  Mello  Franco ,       -----       no  Brasil. 

Luiz 


XCVl  HiSTOKIA    DA    AcADEMIA    ReAL 

Luiz  Máximo  Alfredo  Pinto  de  Sousa  ,  Viscon- 
de de  Balsemão  ,       .-.-----  fora  de  Lisboa. 

Luiz  da  Silva  Mosinho  de  Albuquerque  ,       -  em  Lisboa. 

Manoel  Ferreira   da  Camará  Bctancourt,    -     -  no  Brasil. 

Manoel  José  Maria  da  Costa  e  Sá ,      -     -     -  em  Lisboa. 

Manoel  José  Pires,       --------  ^w;  Lisboa. 

Manoel   Pedro  de  Mello  ,       ------  em  Coimbra. 

Paulo  José  Maria  Ciera  .^   -------  em  Lisboa, 

Pedro  José  de  Figueiredo  ^     ------  etn  Lisboa. 

Pedro  de  Mello  Brcyner  ,       ------  em  Lisboa. 

Ricardo  Raymundo  Nogueira,  Conselheiro  de 

Estado ,      -----------  f;«  Li'bo'a. 

Timothco  Lecussan  Verdier,       -----  em  França. 

Wencesláo  Anselmo  Soares ,------  era  Lisboa. 


Correspondentes. 

Agostinho  de  Mendoça  Falcão ,       -     -     -     -  em  Coimbra. 

Mr.  Ampere  ,------■»•---     ew  França, 

António  Maria  da  Costa  e  Sá,  -     -     -     -     -     em  Lisboa, 

Augusto  de  Sainte-Hilaire ,------        em  Paris. 

Balthasar  da  Silva  Lisboa  ,------       no  Brasil, 

Bento  Affonso  Cabral  Godinho  ,      -     -     -     _     em  Évora, 
Fr.  Bento  de  Santa  Gertrudes   Magna  ,      -     -       no  Porto. 
D.  Blaz  Martinez ,        -------      em  Pamplona» 

Caetano  Arnaud  ,---,------     ew  Chacim. 

Cândido  José  Xavier,  --------     em  Li -boa. 

Diogo  de  Toledo  Lara  Ordones ,    -     -     -     -      no  Brasil. 

Eustáquio  Joaquim  de  Azevedo  Franco  ,    -     na  Azambuja. 
Félix  José  Marques,     -     ~     ------     em  Lisboa, 

Francisco  António  de  Almeida  Moraes  Peçanha ,     em 
Francisco  António  Marques  Giraldes ,  -     '     -     em  Lisboa, 
Francisco  de  Oliveira  Barbosa ,-----      no  Brasil. 

D.  Francisco  Xavier  Cabanés  ^    -•■---    em  Madrid. 

Fran- 


I 


DAS   SciEMClAS  DE  LiSBOA.  XCVIJ 

Francisco  Xavier  do  Rego  Aranha,      -     -     -      em  Elvas, 

Fridcrico  Luiz  Guilherme  Varnhagen ,       -     -     em  Leiria. 

Guilherme   Muller ,        .....---  cm  Londres. 

Jacob  Graberg  de.Hcmso,     ------  em  Tanger e, 

Jeronymo  Joaquim  de  Figueiredo  ,  -     -     -     -em  Coimbra, 

João  Adamson ,-----.     ----ew  Londres. 

João  António  Monteiro  , em  Freyberg. 

João   Croft , em  Londres. 

João  de  Macedo  Pereira  da  Guerra  Forjaz ,  em  Casiello-branco. 

Jiiâo  da  Silva  Feijó,       ........       no  Brasil. 

João  Theodoro  Koster., em  Londres. 

D.  Joaquim   de  Santa  Anna  Carvalho ,   Bispo 

do  Algarve , em  Lisboa» 

Joaquim  Baptista  de  Sousa ,    .     ,     .     .     .     .em  Voiizella. 

D.  Joaquim  José   António  Lobo   da   Silveira , 

Conde  de  Oriola , em  Berlim. 

Joaquim  José  Varclla  , em  Monte  mór  o  novo. 

Joaquim  Navarro  de  Andrade , no  Porto. 

Joaquim  Pedro  Catdoso  Casado  Giraldes ,       fdra  de  Lisboa. 

Fr.  Joaquim  Rodrigues , em  Lisboa. 

José  Accursio  das  Neves  ........     ^m  Lisboa. 

Fr.  José  de  Almeida  Drak  , em  Lisboa. 

José  Avelino  de  Castro  .........        iw  Porto. 

José  Calheiros  de  Magalhães  e  Andrada  ,       .     em  Braga. 

José  Cordeiro  Feio ,--------.    cw  Lisboa. 

José  Diogo  Mascarenhas  Neto , em  Lisboa, 

José  Egidio  Alvares  de  Almeida  ,  Barão  de  San- 
to Amaro  , KO  Branh 

José  Feliciano  Fernandes  Pinheiro,    .     .     ,     .       no  Brasil. 

"  José  Tacintho  de  Sousa  , no  Porto. 

José  Ignacio  Paes  de  Sousa  e  Vasconcellos ,    .     em  Liboa. 
José  Liberato  Freire  de  Carvalho ,    .     .     .    fdra  do  Reino, 

José  Lino  Coutinho , no  Brasil. 

José  Manoel  Ribeiro  Vieira  de  Castro,     .     .     em  Lisboa. 

José  Manoel  de  Sequeira  , »o  Brasil, 

D.  José  Maria  da  Piedade  Lencastre  e  Silveira , 
imo  IX.  ♦   1 3  Mar- 


"xcvni  HfSToniA  DA  Academia  Real 

Marquez  de  Abrantes,    .     .     .     .     •     ;     •     em  Lisboa. 
losé  Marianno  Leal  da  Gamara  Rangel  de  Gus- 
'       ^                                             .  ....     em  Lisboa. 

mao , 

José  Portelli, • . 

José  Romer  Luiz  de  Kirckhoff, em  Anvers 

José  de  Sá  Betancourt , "^  ^'""^^ 

D.  José  Valério ,  Bispo  de  Portalegre  ,       •     em  Portalegre. 

José  VUlela  de  Barros ,  •     •     • «"  ^''"!; 

Luiz  António  de  Oliveira  xMendes ,       .     .     •      no  Brasil. 

Luiz  Gomes  de  Carvalho  ,        .     .     .     •       fora  de  Ltsboa. 

Luiz  Henriques,  Barão  de  Block,     .     .     .     .     em  Dresde. 

Manoel  Agostinho  Madeira  Torres,       .     em  Torres  vedras. 

Manol  Francisco  de  Barros  e  Mesquita  ,  Vis- 
conde  de  Santarém  , '"'  ^f'^; 

Manoel  Jacintho  Nogueira  da  Gama ,    .     .     .       no  Brasil. 

Manoel   José    Mourão    de    Carvalho    Azevedo 

,,        .                                         .     ...     na  Mealhada. 
Monteiro, j  ■  i„„ 

Fr.  Mattheus  da  Assumpção ,        .     ....     em  Ltsboa. 

Mattheus  Valente  do  Couto  Diniz,      .     •     .     em  Usboa. 

Pedro  Celestino  Soares  , '"' ntZ 

„   ,      ^        •   •           -                    em  Bolonha. 

Pedro  Geannini,  .      •     •     •     •     •    .•     • 
Pedro  Machado  de  Miranda  Malheiros  (Mon- 

I        -KA-      A.\                                .     .     .     •  no  Brasil. 

senhor  Miranda)     ......  ^^  ^^^^.^^ 

Roque  Schuch,     •••_•_•;....     em  França. 

D^hld^erManoel  Delgado,  ....     -  f ^íí 

Vicente  Gomes  de  Oliveira  ,  .  .     .     •     •'      l  m       i 

Vi  ente  José  Ferreira  Cardoso,  .     •     naIlhadeSMtgtel 

Vente  Navarro  de  Andrade,  ,    •    •     fera  de  Luboa. 


RE- 


DAS   SCIENCIAS  DE   LlSBOA.  XCIX 


RELAÇÃO 

Dos  Membros,  e  Correspondentes  da  Instituição  Vaccinica 
da  Academia  Real  das  Sciencias. 


Membros  da   Instituição   Vaccinica. 

Francisco   Elias  Rodrigues  da  Silveira ,       .     .  em  Lisboa, 

Ignacio  António  da  Fonseca  Benevides ,     .     .  em  Lisboa. 

Joaquim  Xavier  da  Silva  , em  Lisboa. 

José   Feliciano  de  Castilho  , em  Coimbra. 

José   Pinheiro  de' Freitas  Soares,        ....  em  Lisboa. 

Justiniano  de  Mello  Franco, em  S  Pau/o. 

Wencesláo  Anselmo  Soares  , em  Lisboa. 


Correspondentes  da  Instituição  Vaccinica. 

Dnna  Angela  Tamagnini  de  Abreu ,      .     .     .     em  Lisboa. 
António  de  Almeida,  Medico,     .     .     .     .     .    em  PenafieL 
António  Anastácio  de  Sousa ,   Medico ,      .     .    em  Pombal. 
António  Coelho  de  Magalhães  e  Queiroz,  Bo- 
ticário , em  Filia  meam. 

António  Joaquim  de  Carvalho  ,  Medico  ,  em  Ponte  de  Lima. 
António  José  de  Almeida  ,  Medico  ,  ...  em  Mafra. 
António  José  Giraldo  de  Oliveira ,  Cirurgião ,  em  Tavira. 
António  José  Teixeira,  Cirurgião,  ....  em  Alijó. 
António  Manoel  Pedreira  de  Brito ,  Cirurgião ,  em  Filia  no- 
va da  Cerveira. 

António  Pereira  Xavier,      . »o  Crato. 

Barnabé  Bustamante  ,  Medico , em  Ferreira. 

*   13  ii  Car- 


c  HiSTOBiA  DA  Academia  Real 

Carlos  António  Lopes  Pereira  ,  Cirurgião ,  no  Peso  da  Regoa. 
Carlos  Frederico  Lccor ,  Tenente  General. 
Domingos  José  da  Fonseca  ,  Cirurgião  Mór  do 

Bjcalhão  de  Caçadores  N.  4 ,  .  .  .  .  em  obrantes, 
Fernando  António  Cardoso  ,  Cirurgião  ,  .  .  em  Peniche. 
Francisco  Ignacio  Pereira  Rubião ,  .  .  .  em  Filia  Real. 
Francisco  Ignacio  dos  Santos  Cruz ,  Medico ,  em  Punhcte, 
Francisco  Manoel  de  Albuquerque  ,  Medico  ,  em  Pinhel. 
Francisco  Maria  Roldão ,  Cirurgião ,  .  .  .  no  Cano. 
Francisco  Xavier  de  Almeida  Pimenta,  Medico,  no  Sardoal. 
Francisco  Zefyrino  Mendes,  Cirurgipo  ,  .  em  Estrcuwz. 
João  António  de  Carvalho  Chaves  ,  Medico ,  no  Redondo, 
João  António  Rodrigues  de  Oliveira,  Cirurgião,  em  Lamego. 
João  António  dos  Santos  Cordeiro,  Cirurgião,  cm  Eiva;. 
João  Gervásio  de  Carvalho,  Medico,  .  .  .no  Cartacho, 
João  Pereira  de  Mello,  Cirurgião,  em  Moimenta  da  Beira, 
Joaquim  António  Baptista  Varella  ,  Capitão  de 

Ordenanças  ,       ........   «a  Ftlla  do  Torrão. 

Joaquim  António  Novaes  ,  Medico  ,       ...       na  Certa, 
Joaquim  António  de  Oliveira,  Cirurgião,      .    na  Gollega. 

Joaquim  Baptista  ,  Medico  , em  Vouzella* 

Joaquim  Gomes  Barros ,  Cirurgião ,  em  Santa  Leocadia  de  Pedra 

furada. 
José  António  Barbosa  àa.  Silva  ,  Cirurgião  ,  em  Santo  Tyrso. 
José  Duarte  Salustiano ,  Medico ,  .  .  .  .  no  Porto. 
José  Gomes  Cabral  ,  Cirurgião ,  .  ...  em  Mello. 
José  Guerreiro  da  Silva  ^  .  .  em  Filia  nova  de  mil  fontes. 
José  Ignacio  Pereira  Derramado  ,  Medico  ,  .  em  Portel. 
José  Ignacio  da  Silva  ,  Cirurgião ,  ...  ff»  Estremoz. 
José  Joaquim  Mixote  ,  Cirurgião  ,  ....  «o  Redondo. 
José  Luiz  Pinto  da  Cunha,  Cirurgião,  emVianna  do  Minho. 
José  Maria  Bustamantc ,  Medico ,  .  .  .  .  em  Alvito. 
José  Maria  Pereira  de  Sousa ,    Cirurgião  Mór 

do  Regimento  de  Cavallaria  N.  1  ,  .  .  .  em  Lisboa, 
José  Nunes  Chaves  ,  Medico  ,  .  em  Hllanova  de  Portimão, 
José  Pinto  RcbcUo  de  Carvalho ,  Medico ,  na  Filia  de  Barcos. 

Jo- 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  Cl 

Josd  dos  Santos  Dias,  Medico,  .  ...  em  Montalegre 
Luiz  Cypriano  Coelho  de  Magalhães,  Medico,  em  Aveiro» 
Luiz  Gonzaga  da  Silva,  Medico,  .  .  .  em  Santarém' 
Luiz  Mendes  Fortio ,  Cirurgião,       ....       em  AviZ' 

Luiz  Soares  Barbosa,  Medico, em  Leiria, 

Dona  Luiza  Adelaide  de  Magalhães  Coutinho 

da  Motta  , em  Filia  Real. 

Manoel  Coelho  do  Nascimento ,  Cirurgião ,  em  Coitares. 
Manoel  Lopes  de  Carvalho,  Cirurgião,  .  .  em  Bellas. 
Manoel  José  Malheiro  da  Costa  Lima  ,  em  S.  Vicente  do  Penso, 
Manoel  José    Mourão    de   Carvalho    Azevedo 

Monteiro,  Medico, na  Mealhada. 

JManocl  Vicente,  Cirurgião,  .  ,  .  ,  .  .  .na  Guarda. 
Nicoláo  de  Sí)usa  Gallião  ,  Cirurgião  j  .  .  em  Lanhezes. 
Pedro  António  da  Silva,  Cirurgião  ,  na  Marinha  Grande. 
Pedro  António  Teixeira  de  Pmho ,  Cirurgião,  em  Ovar. 
Plácido  de  Azevedo  Tavares ,  Cirurgião ,  em  S.  João  de  Ta- 

rottca. 


ME. 


"    ><xx:xx>oCK>oo<x:>o<50o»oocx;x;-oooo<>rxxxxxx^::x.>o<xxxxx:x  y 

MEMORIAS 

D  A 

ACADEMIA  R.  DAS  SCIENCIAS 

DE     LISBOA. 


NOTICIAS, 

E  REFLEXÕES    ESTADÍSTICAS 
A   RESPEITO   DA   PROVÍNCIA 

D  E 

MINAS     GERAES. 
Por  Guilherme,  BarSo  d'Eschwege, 


A 


Provincía  de  Minas  geraes  coniina  ,  pelo  lado  do 
norte ,  com  as  províncias  da  Bahia ,  e  Pernambuco.  O  Rio 
verde  pequeno  marca  pela  maior  parte  os  limites  da  pri- 
meira ,  e  o  Rio  Carinhanha  os  da  segunda.  Ao  poente  cor- 
rem estes  sobre  huma  grande  cordilheira  os  limites  da  pro- 
víncia de  Goyazes  com  Minas  geraes ,  desde  as  cabeceiras 
do  Rio  Carinhanha  ate  os  Arrependidos  nas  vizinhanças  de 
Paracatú  ,  dirigindo-se  dahi  para  as  cabeceiras  do  Rio  de 
T.lX.P.l.  A  .  S. 


i  Memorias   d  a  A  c  a  n  em  i  a  R  e  a  i. 

S.  Marcos  até  a  sua  foz  com  o  Paranahiba,  e  iiniáo  deste 
com  o  Rio  graiulc,  formando  assim  a  divisa  entre  asJuas 
provincias.  (íí)  Pelo  lado  do  Sud-Ocste ,  c  do  Sul,  confi- 
na com  a  provincia  de  S.  Paulo  ,  e  parte  com  a  do  Rio 
de  Janeiro,  tcndo-se  tomado  primeiro  por  limite  o  Rio 
grande  ;  donde  vai  o  ribeirão  das  Canoas  acima  até  as 
suas  cabeceiras  ,  atravessando  o  sertão  de  lacui  ,  e  o  Rio 
pardo,  dirigindo-se  depois  sobre  o  cume  da  cordilheira, 
que  acompanha  a  margem  esquerda  do  Rio  pardo,  nté  en- 
contrar-se  com  a  cordilheira  conhecida  debaixo  do  nome 
da  Scjra-  da  Manrigucira  ,  cujas  cordilheiras  são  interroan- 
pidas  pelo  Rio  Jagoar  ,  formando  ao  lado  da  Mantigucira 
o  grande  e  áspero  morro  do  Lopo.  Nas  vertentes  desta 
grande  serra  onde  nasce  o  Rio  preto,  principião  os  limi- 
tes da  provincia  do  Rio  de  Janeiro  com  a  de  Minas,  e  ca- 
minhando pelo  dito  Rio  abaixo  até  se  unir  com  o  Rio  Pa- 
raibuna ,  continuão  depois  com  a  corrente  do  Paraibana  ,  e 
Paraíba  até  á  foz  do  Riò  Muriahé.  Segucm-se  então  para 
o  Lest  os  limites  com  a  provincia  de  Porto  Seguro  ,  e  Es- 
pirito Santo,  mas  muito  mal  determinados  por  causa  de  hum 
sertão  inculto    coberto  d'espessos  matos,    e  habitado    por 

mui- 

(a)  Por  Carta  Regia  do  anno  c!e  1816  forão  os  dons  Julgados  de 
y.  Domingcs  d^Araxá,  e  Desemboque  desmembrados  da  })roviucia  de 
(joyazes,  e  unidos  á  de  JNliiias  ,  declarando  que  tudo  que  pertencia 
ás  freguczias  dos  dons  Juigados  pertenceria  desde  então  a  Minas. 
Deste  modo  íicou  mui  indeciso  quaes  fossem  os  verdadeiros  limites  ; 
])()is  como  a  população  todos  os  annos  se  augmentava  introduzindo-se 
fl\)Utras  partes  das  provincias  muitos  novos  colonos  para  o  fértil  sertão, 
que  começa  desde  a  estrada  de  Goyazes  para  S.  FaTilo,  c  continua  até 
à  foz  do  í'aranaliiba  com  o  Kio  grande,  que  vem  a  ser  hum  compri- 
Biento  de  mais  de  outenta  legoas ,  resultou  daqui  o  mesmo  inconve- 
niente ,  que  se  pertendia  evitar  na  dcsmembração  ,  de  licareni  estas 
terras  muito  distantes  da  capital  da  provincia;  e  seria  muito  acerta- 
do detcrminar-se  ,  que  os  Kios  Uberava  falso,  e  Uberava  verdadeiro 
en(a'e  o  Rio  grande  ,  e  o  Rio  tias  velhas ,  e  o  Rio  Pizarrão  entre  o  Rio 
das  velhas,  e  o  Rio  Paranahiba  fizessem  os  limites  dit  Miuaa ,  ficando 
todas  as  terras  d;ihi  até  a  foz  do  Paranahiba  com  o  Rio  grande  per- 
teucendw  á  provincia  de  S.  Paulo ,  e  assim  mai.s  próximas  á  capital.- 


DAS  SciENCIAS  T)E   LiSBOA.  ^ 

muitas  tribiis  d' Imlios  bravos.  Estes  limites  se  dirigem  pri- 
mL-iro  pelo  Rio  Murialií ,  acima  depois  atravessao  hum  ser- 
tão, e  apparcccra  outra  vez  nas  margens  do  Rio  Guandu , 
e  dahi  continuao  por  hum  espigío  entre  o  Rio  Guandu  , 
e  Rio  Manhaçu  até  ás  Caxociras  do  Rio  Doce,  denomi- 
nadas as  Escadinhas ,  (limites  estes  determinados  por  hum 
Auto  de  8  d'Outubro  de  1800,  entre  as  duas  províncias) 
c  cortando  estas ,  e  correndo  pelo  espigão  de  huma  cor- 
dilheira ,  que  no  principio  tem  o  norfic  da  serra  de  Souza, 
e  que  será  provavelmente  a  cordilheira  que  acompanha  em 
certa  distancia  a  costa  do  Brazil  até  o  Salto  grande  do 
Rio  Jequetinhonha,  atravessão  o  Rio  pardo  grande,  c  fe- 
chão  com  o  limite  da  Província  da  Bahia,  {a) 

Contém  todo  este  terreno  desde  a  latitude  14",  até 
23°,  c  de  longitude  2°  Leste  do  Rio  de  Janeiro,  até  6". 
Ocst  da  mesma  capital  I7i5'2  legoas  quadradas,  cujo  as- 
pecto pela   maior  parte  he  montanhoso. 

Huma  grande  cordilheira ,  que  denominei  a  grande  ser- 
ra  £  espinhaço^  divide  naturalmente  a  província  em  duas  par- 
tes; a  parte  de  Leste  desta  cordilheira  he  mais  monta- 
nhosa ,  c  coberta  de  espessos  matos  ;  a  parte  Occidental  ^ 
exceptuando  alguns  ramos  lateraes  da  grande  serra,  mostra 
hum  aspecto  mais  onduloso,  e  consiste  de  campos,  em  cu- 
jos valles  só  se  encontrão  alguns  matos.  Assimcomo  o  as- 
pecto exterior  muito  diíFere ,  também  o  interior  do  terre- 
no he  differcnte.  Na  parte  oriental  da  grande  serra  prc- 
dominão  as  rochas  Graníticas,  na  parte  occidental  as  ro- 
chas Chistosas. 

A  elevação  da  provinda  ,  segundo  as  minhas  obser- 
vações barometricas  ,  he  desde  1000  pés,  considerando-se 
o  lugar  mais  baixo  na  confluência  do  Rio  de  Santo  Anto- 

A  íi  nio 

(a)  Em  geral  se  devia  evitar  que  os  cumes  das  serras ,  ou  as  suas 
vcrtenUs  constituissem  os  limites.  São  estas  as  causas  de  continuadas 
questões,  e  contendas  principalmeate  entre  a  província  de  S.  Paulo,  e 
Aiinas. 


4-  Memorias  PA  Academia  Real 

nio  com  o  Rio  Doce,  até  a  altuia  de  6300  pés  ,  que  vem 
a  ser  a  seira  mais  alta  do  Irambc  da  villa  do  Príncipe  ; 
i^endo  portanro  a  elevação  média  de  toda  a  provincia  so- 
bre o  njvel  do  mar  de  2300  pés  ;  resultado  este  tirado  de 
mais  de  duzentas  observações  feitas  em  differentes  purtes. 

Esta  grande  elevação  lie  o  principal  motivo  de  não 
ter  a  provincia  nem  hum  rio  navegável  em  grandes  distan- 
cias; somente  o  Rio  de  S.  Francisco  ofFerece  esta  vanta- 
gem desde  a  barra  do  Rio  Para  ,  nas  visinhanças  da  villa 
de  Pirangui,  até  á  caxoeira  da  Pirapóra  perto  da  confluên- 
cia do  Rio  das  velhas  com  o  primeiro,  c  dahi  até  á  gran- 
de caxoeira  de  Paulo  Affonso  na  provincia  da  Bahia  ,  60 
Icgoas  distante  da  barra  do  mesmo  Rio  de  S.  1-Vancisco. 
O  Rio  Doce  mais  difficuldades  ainda  offerece  pelo  curto 
espaço  de  40  legoas ,  em  que  se  precipita  de  huma  altu- 
ra de  1000  pés  ,  repartida  em  mais  de  vinte  caxoeiras. 

O  clima  he  mui  temperado,  pois  a  temperatura  mé- 
dia não  excede  de  64°  Fahr. ,  temperatura  igual  de  Lisboa, 
mas  a  humidade  excede  á  de  Lisboa  11°  do  Hygrometeo 
de  Luc.  Entretanto  as  localidades  em  muitas  partes  in- 
alem de  tal  modo,  que  alguns  districtos  são  mui  quentes, 
cjutros  mui  frios  ;  em  huns  nunca  cahe  geada  ,  em  outros 
porém  cahe  tanta  que  a  canna ,  as  bananeiras  ,  os  cafezei- 
ros  ,  e  outras  arvores  morrem  ,  e  até  as  aguas  estagnadas 
golão  c  criâo  huma  crusta  de  grossura    de  meia  pollcgada. 

Em  geral  as  estações  do  anno  são  mui  regulares:  do 
mez  d'Outubro  por  diante  principião  as  chuvas ,  e  trovoa- 
das, continuando  até  o  fim  do  mez  de  Março;  e  de  Abril 
por  diante  já  não  se  conta  com  grandes  e  continuadas  chu- 
vas. A  falta  de  chuvas  no  tempo  próprio  infalivelmente 
produz  falta  de  mantimentos;  e  pelo  contrario  os  annos 
de  muitas  chuvas  nunca  prcjudicão  consideravelmente. 

As  observações  seguintes  feitas  em  Villa  rica  ,  c^ao- 
huma  idéa  da  muita  ,  c  pouca  chuva  que  tem  cabido  ,  as- 
simcomo  das  trovoadas  ,  e  da  influencia  que  tiverão  na  cul- 
tura dos  mantimentos. 


DAsScfENCIAS   DE   Ll.SBOA. 


1 

í 

I  8 

I  8 

I  8 

I  ? 

1820 

Metei 

Oiai  Jc 

Dias  de 

D/íiJ  </í 

UiVj  (/<; 

Dia/  de 

Dias  de 

clíuva 

trovoada 

chuva 

IrovonJa 

chuva 

trovoada 

Janeiro 

13 

7 

9 

8 

2  I 

9 

Fevereiro 

9 

5 

4 

5" 

22 

17 

Março 

3 

I 

10 

10 

15- 

9 

Abril 

4 

I 

7 

5 

24 

8 

Maio 

7 

2 

4 

3 

13 

4 

Junho 

I 

■» 

2 

5> 

9    . 

>> 

Julho 

8 

I 

I 

» 

6 

» 

Agosto 

6 

I 

I 

I 

2 

j> 

Setembro 

>> 

>» 

6 

4 

4 

>> 

Outubro 

9 

6 

16 

12 

9 

» 

Novembrc 

14 

5 

14 

6 

II 

6 

Dezembrc 

10 

10 

2t 

15 

18 

8 

Somma 

84 

39 

,6 

69 

1^4 

61 

Anno  c 

le  fome 

Anno  c 

'.e  fome 

Anno  tl'abundácia  as- 
simcomo  0  de  1S21 



— __. 

i 

O  clima  naturalmente  influe  sobre  a  vegetação ;  e  pa- 
ra se  poder  fazer  alguma  comparação ,  apresento  aqui  di- 
versas observações   feitas  em  Villa  rica. 

Ag 


6  MemoriasdaAcademiaReal 

As  larangeiras  floiccem ,  assimcomo  as  mais  arvores 
cl'cspinho,  nos  mczcs  de  Setembro,  Outubro,  e  Novem- 
bro, c  principiao  a  amadurecer  no  mcz  de  Maio, 

Os  cafczeiros  florccem  cm  Janeiro,  c  Fevereiro,  c 
por  segunda  vez  em  os  mezcs  de  Miio  ,  c  Junho,  e  ama- 
durecem desde  o  mez  de  Setembro  até  o  mez  de  Janeiro. 

As  macieiras  florccem  em  os  mczes  de  Outubro  ,  e  No- 
vembro ,  e  amadurecem  nos  mezes  de  Fevereiro  ,  c  Março. 

Os  pessegueiros  florccem  nos  mezcs  de  Setembro ,  e 
Outubro,  e  amadurecem  cm  Fevereiro,  e  Março. 

As  amcxociras  florccem  no  mez  de  Setembro  ,  c  ama- 
durecem no  mez  de  Dezembro. 

As  hortaliças  só  produzem  no  tempo  das  agoas  ,  mas 
a  alface,  para  ser  viçosa,  precisa  do  tempo  trio. 

A  batata  produz  melhor  no  tempo  da  seca  que  no  tem- 
po da  chuva. 

O  linho  no  espaço  de  três  mezes  chega  a  amadure- 
cer ;  no  tempo  frio  precisa  de  quatro  mezes ,  mas  em  to- 
do o  anno  produz. 

O  milho  se  planta  no  mez  de  Setembro  e  Outubro  , 
florecc  no  mez  de  Dezembro  e  Janeiro ,  e  amadurece  em 
o  mez  de  Abril. 

O  feijão  se  planta  no  mez  de  Fevereiro ,  e  amadure- 
ce cm  o  mez  de  Maio. 

Assimcomo  do  clima  depende  a  vegetação  ,  de  certo 
também  muito  influe  elle  sobre  a  fecundidade,  e  mortanda- 
de dos  animaes  ,  principalmente  do  género  humano:  ajun- 
to portanto  aqui  hum  resultado  interessante,  que  tirei  dos 
mappas  dos  parochos  do  Bispado  deMarianna,  para  se  co- 
nhecer esta  verdade. 


C/asses  de  pessoas  livres. 

Dos  brancos  nascem  de  98...  4 
De  mulatos  ....  de  109,..  4 

De  índios de  99  ...  4 

Dos  pretos de  83  ...  4 


e  morrem  de  io6  ...  3 

de  109  .  • .  3 

de  108  ...  4 

de  p3  . . .  f 

Es. 


DAS  SciENciAS  DE  Lisboa.  *f 

Escravos. 

Dos  mulatos  nascem  de  io5'...4:  e  morrem  de  loo...  6 
Dos  pretos de  103  ...  3  : de   102  ...  7 

A  maior  fecundidade  ,  e  a  maior  mortandade  se  acha 
por  consequência   entre  os  pretos  livres. 

A  maior  fecundidade,  e  a  menor  mortandade  entre  os 
brancos, 

A  menor  fecundidade ,  e  menor  mortandade  entre  os 
mulatos. 

A  menor  fecundidade,  e  a  maior  mortandade  entre  os 
escravos  pretos. 

A  respeito  dos  índios,  os  mappas  certamente  são  in- 
exactos, e  a  razão  he  esta:  Os  índios  aldeados  tomão  sem- 
pre os  Portuguczes  por  padrinhos  por  causa  d'alguns  pre- 
'/cntes  que  dcllcs  recebem  ,  c  por  esta  razão  dão  parte  aos 
parochos  a  respeito  das  crianças  nascidas :  como  não  lhes 
resulta  a  mesma  vantagem ,  quando  alguém  da  familia  mor- 
re ,  por  isso  ordinariamente  o  enterrão  na  matta ,  sem  o 
participar ;  sendo  hum  facto  que  as  nações  dos  índios  di- 
minuem cada  vez  mais,  cm  lugar  decrescer,  na  proporção 
dos  mortos  para  os  nascidos. 

Toda  a  província  está  dividida  em  sinco  comarcas: 
a  do  Oiro  preto ,  do  Sabard  ^  do  Rio  das  mortes  ^  do  «ferro  do 
frio ,   c  do  Paracatu. 

A  comarca  do  Oiro  preto ,  onde  está  a  sede  do  Go- 
verno, e  do  Bispado,  comprehende  hum  terreno  de  2268 
legoas  quadradas,  e  huma  população  de  75:5-73  almas,  não 
entrando  neste  numero  as  muitas  tribus  de  índios  como  Bo- 
tecudos,  Puris  ,  Coroatos,  eCoropos,  que  habitão  o  gran- 
de sertão  entre  o  Rio  Doce,  e  o  Rio  Pomba,  cujo  numero 
não  se  sabe  ,  de  modo  que  por  cada  legoa  quadrada  não  se 
pôde  contar  mais  que  33,2  pessoas  civilizadas. 

A  comarca  de  Sabard  a  menor  de  todas ,  mas  a  mais 
povoada,  tem  1700  legoas  quadradas,  e  huma  população 
de  ii(?y2o  almas,  fora  os  índios  salvagens  que  ha  na  con-; 

fluen. 


Ç  MemoriasdaAcademiaReal 

fluência  do  Rio  de  Santo  António  ,  com  o  Rio  Doce ;  con- 
tem por  consequência  por  cada  Icgoa  quadrada  70,  3  pes- 
soas. 

A  do  Rio  das  mortes  ,  á  excepção  de  hum  pequeno 
numero  de  índios  ,  que  habitão  as  margens  do  Rio  Paraí- 
ba ,  tcni  cspaliiado  sobre  hum  terreno  de  3240  Icgoas  qua- 
dradas huma  popuhiçáo  de  2 136 17  pessoas,  que  vem  a  ser 
por  cada  legoa  quadrada  65",  9  pessoas. 

A  commarca  do  Serro  frio  he  a  mais  extensa,  contem 
éij6  Icgoas  quadradas,  e  huma  população  de  83626  al- 
mas, que  vem  a  ser  13,  f  pessoas  por  cada  Icgoa.  A  ter- 
ça parte  certamente  he  povoada  por  índios  bravos  princi- 
palmente Botccudos. 

A  de  Paracattí  tem  3888  legoas  quadradas,  não  en- 
trando o  grande  sertão  desde  a  estrada  principal  que  con» 
duz  de  Goyazes  para  S.  Paulo ,  até  a  confluência  do  Rio 
Paranahiba  com  o  Rio  grande ,  tendo  só  huma  populnção 
de  21772  almas;  portanto  he  tão  despovoada  que  por  ca- 
da legQa  quadrada  não  se  pôde  contar  mais  que  f,  6  ha- 
bitantes. Não  tem  índios  bravos,  á  excepção  dosCayapós, 
que  vagão  pelo  sertão  à  cima  mencionado.  Os  índios  Bo- 
rorós, e  Xigriabás,  aldeados  ao  longo  da  estrada  de  Goya- 
zes ,  c  S.Paulo,  fazem  só  huma  população  de  871  almas, 
espalhadas   em   19  aldeãs. 

Resulta  portanto  daqui  que  toda  a  província  de  Mi- 
nas gcraes  tem  huma  população  de5'i4io8  pessoas,  espa- 
lhadas sobre  hum  terreno  de  i725'2  legoas  quadradas,  de 
sorte  que  para  cada  legoa  quadrada  se  contão  29,  7  pessoas. 

O  mappa  seguinte  tirado  no  presente  anno,  e  fundado 
sobre  os  mappas  particulares  de  diíFerentes  datas  e  annos  , 
dá  huma  idéa  das  diíferentes  classes  da  população,  (a) 

MAP- 

(a)  Mão  obstiinte  as  muitas,  e  repetidas  onleus,  e  insinuações  dos 
Governadores  para  se  formarem  todos  os  annos ,  e  com  toda  a  exacti- 
dão ,  os  mappas  da  população ,  não  tem  sido  possível  asna  realização, 
e  nunca  o  será  em  quanto  não  se  empregarem  certas  pessoas  para  este 
effeito ,  tiraudoas  listas  da  população  ,  dos  livros  dos  assentos  dos  pa- 
rochos. 


CO 

< 
Cá 

w 
u 

CO 

< 
5í 


Q 


U 

"A 

> 
O 

<í 
Q 

O 

^< 
cr 

<: 

P 

p- 
O 

< 


o  o 


CO 


o 

Z 
<! 


o 

Q 
Dá 


oo 

^^ 

o 

O 

iO 

r- 

CO 

"A 

H 

ci 

^ 

« 

^ 

o 

VO 

r-* 

_ 

O 

N 

*« 

*^ 

— 

NO 

x^ 

(4 

>A 

^ 

^ 

Cí 

'^ 

■• 

3       - 


« 

I^ 

r^ 

Ov 

O 

« 

O 

Ov 

»^ 

«-» 

r^ 

a\ 

■^ 

« 

•>»v 

'^ 

C4 

« 

C\ 

OO 

v^ 

0\ 

»** 

oo 

« 

-« 

-• 

•^ 

^ 

O 

\« 

'l- 

« 

*" 

r^ 

l^: 


c 

s 

-S 

"5 

fS 

T3 

CS 

O 

«: 

Cb 

Vi 

J 


o 


Cs 

o 


rt 


a-  •• 
o 


^  s 


-> 

o 

u 

-o 

CO 

a> 

o 

u« 

1r3 

o 

C>" 

t> 

k. 

c 

O 

O-n:! 

&• 

O 

'► 

í:. 

u« 

G 

C3 

(U 

Ci3 

CJ 

J3 

ns 

»- 

ri 

kl 

&, 

CJ 

r-.  __ 

!-k« 

C3 

;? 

<j 

o 

Ut 

o 

j:j 

r; 

C/5 

3 

O 

ac-o 

C/ 

xr\ 

O 

1« 

o> 

o 

o« 

B 


IO  Memorias  pa  AcademiaReal 

As  principaes  producçocs,  que  constituem  os  géneros 
de  commcrcio  em  cada  hum;i  das  comarcas,  tanto  para  o 
commcrcio   interior  como  exterior ,   são: 

Na-comarca  de  Oiro  preto  oiro,  ferro,  topázios,  man- 
timentos,  c  algum    toucinho. 

Comarca  do  Salurd  oiro,  ferro,  mantimentos,  touci- 
nho ,   gado  vaccum  ,  c   fazendas  d'algodao. 

Comarca  do  Rio  das  mortes  oiro,  mantimentos,  tou- 
cinho, queijos,  fumo,  gado  vaccum  ,  e  cavallar. 

Comarca  de  Serro  do  frio  oiro  ,  diamantes  ,  e  outras 
pedras  preciosas  ,  ferro ,  gado  vaccum,  c  principalmente  al- 
godão cm  rama  ,  do  districto  de  minas  novas. 

Comarca  de  Paracatii  pouco  oiro,  toucinho,  pouco 
algodão  (sendo  o  do  Abacié  de  tão  boa  qualidade  como 
o  de  minas  novas)   (d)  ^  gado  vaccum  ,  e  cavallar. 

Havendo  tantas  proporções  ,  e  capacidade  nesta  pro- 
víncia para  estabelecimentos,  fabricas,  e  manufacturas,  he 
para  admirar  como  atégora  a  industria  tenha  feito  tão 
poucos  progressos ,  de  modo  que  hoje  em  dia  só  existem 
alguns  estabelecimentos  Régios  de  pouca  utilidade  ,  algu- 
mas fabricas  ,  mas  nenhuma  manufactura. 

Aos  estabelecimentos  pertencem  em  primeiro  lugar  as 
quatro  casas  de  fundição  d'oiro,  erigidas  no  anno  de  i75'i 
em  beneficio  dos  mineiros ,  e  da  Real  Fazenda ,  tempo  em 
que  SC  podia  então  usar  de  toda  a  generosidade  para  com 
os  mineiros  pelo  grande  rendimento  que  dahi  resultava  ;  cie 
modo  que  se  crearão  as  quatro  casas  de  fundição  de  Villa 
rica,  Sabará  ,  S.  João  d' ElRei  ,  e  Villa  do  Principe,  com 
muitos  empregados,  e  grandes  ordenados,  como  mostra  a 
relação  seguinte. 

Re- 

(a)  Sciia  f!a  maior  ucccssidade  que  se  introduzisse  geralmeíite  hu- 
ma  boa  policia  para  vigiar  sobre  os  falsificadores  do  algodão ,  não 
sendo  raro  cncontrareni-sc  uo  meio  dos  fardos  algodão  com  caroços , 
ou  pedras  para  augmeutar  o  peso,  de  modo  que  os  compradores  estão 
sempre  de  má  fé,  em  graudc  prejuízo  deste  importante  ramo  de  com- 
mcrcio. 


DAS   SctENCIAS   DE   LiSEOA.  ÍI 

Relação  dos  empregados  ,  e  seus  ordenados  em  cada  huma 
das  casas  de  fundição. 

Hum   Inspector  («)----       a  400^  rs,  i:6oc^  rs. 

Thcsourciro     ---.-.     8oo(3Í)  y.20oq[) 

Escrivão  da  receita  e  despesa        SoO(f)  3:200^ 

Escrivão  de  fundição      -     -     -     70O(f)  2'2oo^ 

Ensaiador  -------     8oo(í)  3:200(|) 

Ajudante  d' Ensaiador     -     -     -     ^ootj)  1:600^ 

I."  Fundidor    ------     80c  ^  3:2001^) 

2°  Fundidor    ------     400;^)  1:600^ 

Meirinho     -------     300^)  i:200(|> 

F^scrivSo  do  dito       -     -     _     .      300(;^  i:200(^ 

Fora  destes  empregados  tem 

a    Intendência    de  Villa  rica 

Hum  Fiscal       ---------      600^ 

3.°  Fundidor       ---------      400(J 

Abridor  de  cunhos       -------      8oo(^ 

Em  despesas  de  jornaleiros,  carvão,  &c,  2:20o<^ 

Somma  total  das  despesas  annuaes  -    -     3o:ooo(^ 


Accrescc  ainda  a  esta  despesa  a  de  sulimao ,  e  agua 
forte  ,  que  são  remettidos  pelo  Real  Erário  do  Rio  de  Ja- 
neiro ,  e  de  que  se  ignorão  os  preços. 

Nestas  casas  he  gratuitamente  fundido  em  barras  o 
oiro ,  que  os  mineiros  para  ahi  levão  ,  marcando-as  com  o 
8eu  valor  intrínseco,  tirando-se  antes  de  fundido  o  quinto, 

Estabelecêrão-se  estas  casas  quando  a  mineração  esta- 
va no  seu  maior  auge,  e  o  Real  quinto  rendia  então  11 8 
arrobas.  He  para  lastimar  que  naquelle  tempo  não  houves- 

B  ii  se 

— — -  ■ 

(a)    São  ^^  Juizes  de  fora  os  Inspectores, 


12  Mem  ORi  AS  DA  Academia  Real 

se  no  Ministério  de  Sua  Magcstadc  pessoas  formadas  nas 
scicncias  moiitanlsticns ,  para  dar  ao  governo  das  Minas 
hum  regimento  solido  que  affiançasse  e  assegurasse  á  pos- 
teridade estas  fontes  de  riqueza  nacional. 

Era  para  prever  que  os  grandes  thesouros  que  os  mi- 
neiros acharão  quasi  na  superfície  da  terra  ,  e  com  pouco 
trabalho,  deveriao  diminuir  com  o  tempo,  ajudando  sobre 
tudo  a  ignorância  para  destruir  mais  depressa  o  que  por 
huma  regular  administração  montanistica  seria  objecto  de 
industria  para   muitos  séculos. 

A  diminuição  do  Real  quinto  ,  e  por  consequência  a 
decadência  das  lavras  de  oiro  ,  também  principiou  logo  de- 
pois da  criação  das  casas  da  fundição:  no  anno  de  1764 
já  estava  reduzido  a  pp  arrobas,  em  1774  3  7?  arrobas, 
em  1777  a  70  arrobas,  e  assim  continuou  progressivamen- 
te a  diminuição  de  modo  que  em  181 1  já  estava  reduzi- 
do a  24"  arrobas,  em  1813  a  20  arrobas,  em  1816  a  18 
arrobas,  em  18  18  desceo  até  12  arrobas,  em  18 19  a  7  ar- 
robas; e  em  1820  anno  do  estabelecimento  do  Banco  fi- 
lial para  a  compra  d'oiro  em  pó  rendeo  só  duas  arrobas. 

Nos  annos  da  riqueza  se  occupavão  oitenta  mil  pes- 
soas com  a  mineração ,  porém  no  actual  tempo  da  miséria 
apenas  seis  mil ;  por  consequência  não  hc  só  o  extravio  o 
quo  erradamente  se  dá  por  principal  causa  da  diminuição 
do  Real  quinto,  sendo  aliás  a  principal,  mas  a  diminuição 
do  numero  de  braços  ,  braços  que  o  mineiro  empobrecido  , 
e  ignorante  retirou  destes  trabalhos,  por  já  cançado  de  não 
ter  a  fortuna  dos  seus  antepassados. 

Resultou  destas  idéas  erradas ,  principalmente  nos  tem- 
pos modernos  ,  que  o  Ministério ,  que  quasi  nunca  cuidou 
em  remediar  os  verdadeiros  males,  pensava  que  tudo  esta- 
ria remediado,  acautelando  o  extravio,  pois  por  desgraça 
teve  as  mais  das  vezes  lembranças  tão  infelizes,  que  de  or- 
dinário só  produzião  resultados  contrários, 
*"  ~  As  leis  montanisticas  existentes ,  segundo  a  ordem 
chronologica,  são: 

I. 


DAS   SciENCIAS    DE   LiSBOA,  IJ 

i.°  Alvará  de  regimento  em  62  capitules  ,  de  ij  dé 
Agosto  de  1605  ,  que  lílRei  D,  Filippe  11  dco  aos  seus  vas- 
sallos  ,  e   mineiros  do  Brasil. 

Nota.  Como  este  Alvará  estivesse  por  muito  tempo  em 
CastcUa,  só  em  9  d' Outubro  de  i6j2  hc  que  ellc  toi  re- 
gistado em  S.  Paulo,  e  a  requerimento  de  partes,  no  Li- 
vro do  registo  da  Gamara  de  S.  João  d'ElRei  em  27  d'Ou- 
tubro  de  1729;  mas  não  obstante  as  muito  excellentes  de- 
terminações que  elle  contém ,  nunca  esteve  em  plena  execu- 
ção. 

2.°  Regimento  dos  Guardas  mores,  que  para  as  minas 
trouxe  o  Doutor  José  Vás  Finto  sobre  as  terras  mineraes, 
e  aguas,   de   19  d' Abril  de   1702,  contendo   33   capítulos. 

3.°  Reformas  da  maior  parte  dos  capítulos  do  Regimen- 
to anterior  de  7   de  Maio  de   1703. 

Nota.  Por  causa  da  imperfeição  do  regimento  foi  ne- 
cessário fazer  as  reformas  de  huma  grande  parte  dos  capí- 
tulos, mas  com  tudo  isso  contém  este  regimento  tantas  de- 
terminações contrarias  a  huma  boa  administração  montanis- 
tica  ,  que  a  elle  em  grande  parte  se  pôde  attríbuir  a  rui- 
na  da  mineração ;  pois  foi  feito  inteiramente  sem  conheci-r 
mentos   da  causa. 

4,°  Três  cartas  de  Sua  Magestade  para  o  Doutor  José 
Vás  Pinto,  de  7  de  Maio  de  1703:  a  primeira  trata  d'al- 
gumas  providencias  a  respeito  da  repartição  das  datas  ;  a 
segunda  determina  lavrar  as  datas  da  Real  Fazenda  de 
meias  ;  e  pela  terceira  são  creados  os  lugares  de  Guardas 
mores  substitutos.       - 

j."  Bando  de  D.  Braz  Balthazar  da  Silveira,  Governa- 
dor e  Capitão  General  de  S.  Paulo,  e  Minas,  de  2a  de 
Fevereiro  de  1714,  determinando  as  penas  em  que  cahem 
as  pessoas ,  que  não  dão  parte  dos  descobrimentos ,  conce- 
dendo também   mais  huma  data  aos  descobridores. 

6."  Lei  de  22  de  Junho  de  1720,  que  determina  fa- 
zer as  repartições  das  aguas ,  conforme  as  possibilidades  dos 
que  minerão. 

7* 


14  M  E  M  o  R  I  A  S    D  A    A  C  A  n  E  M  I  A    R  E  A  L 

7.°  Bando  de  D.  Lourenço  d'Almeida ,  Governador  e 
C.ipitão  General  de  S.  Paulo,  c  Minas,  para  o  morro  de 
mara  cavallos,  e   passagem,  de  26  de  Setembro  da   1721. 

Noia.  Não  contem  nada  que  seja  geralmente  applica- 
vel. 

8."  Bando  de  D.  Lourenço  d'AImeida,  de  3  de  Março 
de  1726  ,  contendo  licença  para  ir  livremente  minerar  a 
Iraberava  ,  e  de  lá  a  Casa  da  casca. 

9.°  Bando  de  D.  Lourenço  d'Almcida ,  de  22  de  Mar- 
ço de  1728  para  o  Rio  das  pedras,  contendo  algumas  pro- 
videncias locaes. 

io.°  Bando  de  D.  Lourenço  d'Almeida ,  de  24  de  No- 
vembro de  1728  para  o  morro  de  S.  João  d' ElRei  ,  do 
modo  e  como  se  ha  de  repartir  o  dito  morro  ,  determinan- 
do também  que  se  dêm  datas  não  lavradas  a  outras  pes- 
soas. 

ii,°  Bando  do  General  Gomes  Freire  d'Andrade ,  de 
1736  sobre  os  salários  que  devem  levar  os  Ministros  das 
vestorias ,  e  sobre  as  provisões  dos  Guarda  mores ,  substitu- 
tos ,  e  seus  Escrivães. 

Nota.  Como  o  original  estava  mui  damnificado  não  se 
poude  conhecer  a  data  em  que  foi  passado.  EUe  allega  hu- 
ma  ordem  de  Sua  Magestade  de  27  de  Junho  de  1735  a 
respeito  dos  salários,  que  não  pude  descobrir  em  nenhum 
dos  cartórios. 

12.°  Bando  de  Gomes  Freire  d'Andrade  ,  de  8  d'Agosto 
de  1738,  sobre  a  lei  de  13  d'Abril  do  mesmo  anno  a  res- 
peito das  sesmarias. 

13.°  Provimento  de  Guarda  mor  geral  por  ordem  de  Sua 
Magestade  ,  sobre  as  aguas  mineraes ,  o  qual  foi  achado  no 
Livro  da  Guarda  moria  a  foi.  108  e  109. 

14.°  Bando  de  Gomes  Freire  d'Andrade,  de  14  de  Maio 
de  i''36  ,  contendo  varias  providencias  sobre  as  funcçóes 
dos  Guardas  mores,  sobre  demandas,  e  principalmente  so- 
Jbre  a  conservação  dos  matos. 

Nota.     Não  duvido  que  haja  ainda   mais  algumas  leií , 

e 


dasScienciasdeLisboa.  TJ"- 

e  banjos  espalhados  nos  nntigos  livros  de  registo,  ou  nas 
Gamaras,  ou  Secretarias  do  Governo,  ou  da  Junta  da  Real 
Fazenda,  ou  cartórios  d'Ouvidorias  ,  mas  não  chegarão  ao 
meu   conhecimento  ,  e  ninguém  hoje  os  conhece. 

iç-."  Nos  tempos  modernos  appareceo  o  Alvará  de  13 
de  Maio  de  1803,  abolindo  o  giro  do  oiro  em  pó,  e  es- 
tabelecendo casas  de  moeda  na  capitania  de  Minas  ge- 
racs. 

Nota.  Este  Alvará  está  fundado  sobre  verdadeiros  prin- 
cípios montanisticos ,  mas  o  plano  he  tão  gigantesco,  e 
cm  muitos  artigos  impraticável  no  Brasil ,  de  modo  que  co- 
nheccndo-sc  as  difficuldades  de  pôllo  em  pratica,  ficou  sem 
effeito;  entretanto  sobre  elle  se  deve  formar  huma  lei  mais 
económica,   e  mais  adquada  para  os  estados  do  Brasil. 

16. "Alvará  de  10  de  Setembro  de  1808  para  circula- 
rem em  todas  as  capitanias  do  interior  moedas  d'oiro ,  pra- 
ta, e  cobre  j  prohibindo  a  circulação  do  oiro  em  pó  como 
moeda. 

Nora.  Este  Alvará  pela  maior  parte  não  foi  posto  em 
pratica,  principalmente  pela  falta  de  fundos  metallicos ,  e 
por  este  motivo  sahio  o  Alvará  seguinte: 

17.°  Alvará  de  12  d'Outubro  de  1808  para  circularem 
na  capitania  de  Minas  gcraes  os  pesos  hespanhoes ,  depois 
de  serem  marcados  com  o  cunho  das  Armas  Reaes ;  fazen- 
do-se  também  bilhetes  impressos  para  o  troco  de  oiro  em 
pó  nas  casas  de  permuta.  Acompanha  este  Alvará  hum  re- 
gulamento provisional  para  o  tfoco  de  oiro  eili  pó. 

Nota.  Foi  este  Alvará  que  muito  prejuizo  tem  causado 
á  Real  Fazenda  ,  não  somente  por  ter  aberto  maior  cami- 
nho ao  extravio,  mas  também  pela  perda  que  sofria  nas 
trocas ,  e  nos  immcnsos  bilhetes  falsos ,  que  logo  forão  in- 
troduzidos. A  perda  nos  trocos  importou  desde  1809  até 
18  > 4  em  quatorze  contos  de  réis,  que  desde  então  até  ho- 
je será  dobrada. 

18.°   Alvará  de   17   de  Novembro  de    1813    privilegian- 
do os  mineiros  que  se  empregão  effecxivamente  na  excava, 

ção 


1^  MemoriasdaAcademiaReal 

ção  do  oiro,  não  obstante  não  terem   trinta  escravos;  am- 
pliando o  Decreto  de   19  de  Fevereiro   de    I7yz. 

Nota.  Todos  os  privilégios  que  prcjiidicão  a  terceiro 
são  nocivos,  e  principalmente  este,  que  faz  perder  todo 
o  credito  dos  mineiros.  rri  ;!'.: 

19.°  Carta  Regia  de  4  de  Dezembro  de  1816,  ordenan- 
do a  abertura  das  estradas  da  cipitania  de  Almas  para  a 
do  Espirito  Santo. 

Nota.  Trata-se  nella  também  da  distribuição  dns  terras 
de  mineração,  que  se  encontrarem   naqueile  sertão. 

2C.°    Carta  Regia    com  os  estatutos    para  a   companhia 
de  mineração  de  Cuiabá  de    16    de  Janeiro  de   18 17. 
.    Nota.     He  esta  Carta  Regia  feita  só  para  aquelle  local, 
e  não  tem  applicaçao  para  outras  partes. 

21.°  Carta  Regia  de  12  d' Agosto  de  18 17  com  os  seus 
estatutos ,  ordenando  o  estabelecimento  das  sociedades  de 
mineração. 

Nota.  He  a  execução  destes  estabelecimentos  o  único 
meio  da  resurreição  da  mineração ,  e  de  acabar  com  o  ex- 
travio ;  mas  seria  necessário  ampliar  mais  os  estatutos  ,  e 
animar  a   creação  das  sociedades. 

:     22.°   Creação  do  Bjnco  filial  para  a  compra  do  oiro  em 
pó,  c  das  barras,  de  1819. 

Nota.  Esta  creação  de  Banco  filial  feita  pelo  Banco  do 
Rio  de  Janeiro  anniquilou  quasi  o  Real  quinto ,  augmen- 
tou  as  despesas,  e  abrio  mais  portas  para  o  extravio;  e  co- 
mo a  maior  parte  dos  fundos  erão  remettidos  em  bilhetes, 
desappareceo  todo  o  metallico,  de  sorte  que  em  muitas  par- 
tes do  interior  não  qucrião  acceitar  os  bilhetes,  e  em  ou- 
tras pedião  hum  rebate  de  seis  por  cento.  O  peior  de  tu- 
do he  que ,  não  obstante  a  creação  do  Banco  filial  tornar 
supérfluas  todas  as  despesas  das  casas  de  fundição ,  estão 
estas  ainda  no  mesmo  pé,  como  se  o  Real  quinto  rendesse 
cem  arrobas  de  oiro. 

Em  segunddo  lugar  o  estabelecimento  Régio,  e  gran- 
-de,   de  que   não  se  pôde  bem  calcular  as  perdas   para    a 

Re- 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  17 

Real  Fazenda ,  he  o  da  Real  extracção  diamantina.  Este 
estabelecimento  tem  hum  Intendente  geral  com  huma  Jun- 
ta administrativa,  cujos  membros,  que  estão  atesta  delle , 
tem  avultados  ordenados,  sendo  a  despesa  annual ,  e  que 
ainda  actualmente  se  faz  com  pouca  diffcrcnça,  a  seguinte : 

Despesa  annual  da  Real  extracção  dos  diamantes. 

De  assitencia  annual     -------     1 20:0001^000 

Ordenados  ao  Intendente  ,  Fiscal ,  Escri-   ")  ,  -. 

.,  •  ■   1  '  '  >  6:o20(j)ooo 

vao,  e  Meirinho      ------  j  ^-w. 

Aos  Officiaes ,  e  soldados   da  companhia,  ")  ^    o  *. 

j     D  j     .        A        \\         f   •  u  r  4:6o8(?)ooo 

de  redrestes ,  de  soldo  e  rannha     -   i  t    y    ^ 

Suprimento  a  assistência  da  Regia  ex-   -j 

tracção  dos  diamantes    pelo  prejuizo    >  4:000(35)000 

do  oiro  do  auinto  fundido      -     -     -   j 


Somma   i3j:6 18(^000 


Nota.  A  esta  despesa  acresce  ainda  a  do  destacamento 
do  regimento  da  cavalleria  de  linha,  composto  de  hum  Ca- 
pitão ,  hum  Alferes ,  e  quarenta  soldados ,  assimcomo  o  pa- 
gamento da  divida  de  mais  de  hum  milhão  ,  que  resultou 
do  papel  moeda ,  que  a  dita  administração  tinha  faculdade 
de  fazer ,  visto  não  chegar  o  dinheiro  da  assistência.  Estes 
bilhetes  da  extracção  não  tinhão  valor  algum  fora  do  dis- 
tricto  diamantino,  e  também  a  Fazenda  Real  só  á  dous 
annos  para  cá  os  tem  recebido  em  pagamentos ,  mas  só  da 
comarca  do  Serrofrio.  Esta  comarca  rende  mais  ou  menos 
trinta  contos  annualmente ,  mas  sendo  tal  quantia  destina- 
da para  a  amortização  da  divida,  fica  portanto  augmenta- 
da  a  despesa. 

Tem  tido  esta  administração ,  desde  a  descoberta  dos 
diamantes  no  anno  de  1727,  varias  alternativas;  e  as  leis 
que  a  este  respeito  sahírão  são  as  seguintes : 

i.°  Portaria  de  D.  Lourenço  d' Almeida ,  Governador  e 
Capitão  general    de  S.  Paulo  e  Minas,   de  a   de  Dezem- 

T.IX.P.L  C  bro 


i8  Memorias  da  Academia  Real 

bro  de  1729,  aiinullando  todas  as  concessões  de  datas  pe- 
los Guardas  mores  nos  rios  diamantinos. 

2."  Carta  Regia  de  8  de  Fevereiro  de  1730,  ordenando  ao 
Governador  c  Capitão  general  de  usar  de  rodos  os  meios  que 
achasse  conveniente   para  tirar  utilidade  desta  descoberta. 

3.°  Portaria  de  D.  Lourenço  d'Almeida  ,  de  24  de  Ju- 
nho de  1730,  determinando  o  methodo  do  trabalho,  e  o 
pagamento  de  ^  (j)ooo  rs.  por  cada  escravo.  Esta  providen- 
cia foi  desapprovada  pelo  Ministério,  e  mandou  que  paras- 
sem os  trabalhos  j  mas  por  instancias  do  povo  ainda  con- 
tinuarão pagando-se  20(í)ooo  rs.  por  cada  escravo.  Como 
a  concorrência  de  trabalhadores  fosse  extraordinária  de  mo- 
do que  os  diamantes  perderão  o  seu  valor  na  Europa ,  sahio 
então  ú  luz  o 

4.°  Bando  de  D.  Lourenço  d'Almcida  ,  de  9  de  Janeiro 
de  1731,  mandando  despejar  da  comarca  do  Serrofrio  to- 
dos  os  negros ,  negras  ,  e  mulatos  forros. 

J."  Bando  do  Conde  das  Galveas  ,  de  16  d' Abril  de  1733  , 
regulando  o  pagamento  de  cada  escravo  em  2^^600  rs. ,  e 
yarias  outras  providencias. 

6.°  Bando  do  Conde  das  Galveas,  de  2  de  Dezembro 
de  1733,  regulando  o  pagamento  de  cada  escravo  em 
40(i)ooo  rs. ,  c  tratando  de  mais  outras  determinações. 

7.°  BanJo  do  Conde  das  Galveas,  de  19  de  Julho  de 
1734,  mandando  cessar  inteiramente  o  tributo  que  se  pa- 
gava dos  escravos,  e  ordenando  que  todos  os  diamantes  de 
maipr  de  vinte  quilates  de  peso  pertenceriao  á  Coroa. 

8.°  Portaria  do  Conde  das  Galveas,  de  8  de  Novembro 
de  17^4,  impondo  taxas  ás  lojas  de  fazendas,  e  tabernas 
em  Tijuco,  e  outras  providencias  a  respeito  da  justiça. 

9.°  Bando  de  Gomes  Freire  d' Andrade  ,  de  26  d'Agos- 
to  de  1739  1  pondo  a  taxa  sobre  os  escravos  a  240<|)ooo  rs, ; 
e  como  ninguém  quizesse  trabalhar,  arrematou  hum  certo 
João  Fernandes  d'01iveira  o  contracto  por  tempo  de  qua- 
tro annos ,  e  até  o  anno  de    1771. 

Nota.  Ficou  esta  administração  na  mão  de  diíFerentcs 
contractadores ,  com  muito  prejuízo  da  Real  Fazenda  j  m^s 


DAS   SCIENCIAS   DE    LiSBOA.  Í9 

depois  tomou  a  Coroa  sobre  si  a  administração,  e  mandou 
o  regimento  seguinte  : 

10.°  Regimento  para  a  Real  extracção  dos  diamantes  do 
Arrayal   do  Tejuco  do  Scrrofrio,  de  2  d'Agos:o  de    177 1. 

Nota.  Contêm  este  regimento  5-4  artigos,  e  todos  tra- 
táo  do  modo  mais  dispotico  do  governo  do  districto,  pa- 
ra evitar  o  extravio  :  hc  hum  regimento  mais  digno  de 
brilhar  nos  estados  do  Grão  Senhor,  que  u' hum  paiz  ci- 
vilizado. 

ii.°  Leis,  e  regimento  para  o  fiscal  da  administração 
dos  diamantes,  de  23  de  Maio  de  1772. 

Nota.  Neste  estado  se  tem  conservado  esta  administra- 
ção até  hoje;  e  he  finalmente  tempo  que  o  Ministério  olhe 
para  este  importante  ramo  da  administração ,  fazendo  as- 
mudanças  que  as  circumstancias  exigirem. 

O  terceiro  estabelecimento  Régio  he  a  Real  fabrica 
de  ferro  do  morro  do  Pilar,  com  que  se  tem  gasto  cento 
e  tantos  contos  de  réis,  a  custa  da  assistência  da  Real  ex- 
tracção diamantina.  Por  hum  termo  médio  dos  últimos  seis 
annos  tem  a  dita  fabrica  annualmente  produzido  1 144  ar- 
robas, que  custarão  a  produzir  (não  entrando  as  despesas 
extraordinárias)  7:^^0(^)000  rs. ;  e  como  cada  arroba  de  fer- 
ro seja  vendida  na  fabrica  pelo  preço  de  2(2)ooo  rs. ,  tem 
dalii  resultado  annualmente  huma  perda  de  5':i72(^ooo  rs. , 
ou  huma  perda  em  cada  arroba  de  ferro  de  4(35)608  rs. 

O  quarto  estabelecimento  Régio  he  a  Real  mina  de  ga- 
lena do  Abaete,  com  que  a  Fazenda  Real  despendeo  desde 
181 1  inclusive  da  compra  de  26  escravos  5::462(j[)ooo  rs.  Por 
ora  nenhumas  vantagens  tem  resultado  deste  estabelecimen- 
to, por  ter  o  Ministério  faltado  com  as  providencias  ne- 
cessárias. Entretanto  já  hoje  não  faz  com  elle  despesa  al- 
guma a  Real  Fazenda ,  por  sustentar-se  a  si  mesmo  da  ven- 
da dos  algodões  que   produz ,  e  da  melhor  qualidade. 

O  quinto  estabelecimento  ,  em  que  a  Real  Fazenda  tem 
parte ,  he  a  sociedade  de  mineração  de  oiro ,  que  tem  as 
suas  lavras  no  arraial  da  passagem  da  cidade  de  Marianna; 
Os  poucos  fundos ,  que  este  estabelecimento  tem  ,  e  que  quasj 

C  ii  fO' 


iO  Memorias  DA  Academia  Real 

todos  se  applicarao  na  compra  de  escravos,  lavras,  e  erec- 
ção de  engenhos ,  e  as  poucas  providencias  da  parte  do 
Ministério ,  são  a  causa  de  não  ter  elle  feito  os  progres- 
sos que  deveria  fazer;  entretanto  os  seus  trabalhos  conti- 
nuão  com  grandes  esperanças  de  hum  feliz  resultado  ,  hu- 
ma  vez  que  haja  de  cooperar  daqui  em  diante ,  como  se 
deve  esperar,  o  sábio  Ministério. 

O  sexto  estabelecimento  he  a  fabrica  de  ferro  de  Con- 
gonhas do  campo,  estabelecida  por  Carta  Regia  de  i8ii 
á  custa  de  huma  sociedade.  A  sua  creaçâo  custou  treze  mil 
cruzados ;  o  resultado  da  producçâo  ,  por  hum  termo  médio, 
nos  últimos  seis  annos  tem  sido  annualmente  1300  arrobas, 
que  custáião  a  produzir  a  quantia  de  a:200(3l)ooo  rs. ;  e  como 
cada  arroba  de  ferro  seja  vendida  na  fabrica  por  2(^400  rs. , 
tem  dahi  resultado  hum  lucro  annual  de  5)zo<^ooo  rs. ,  ou 
hum   lucro  de  708   rs.  em  cada  arroba  de  ferro. 

Fora  destas  fabricas  de  ferro  ha  ainda  outras  de  par- 
ticulares ,  que  merecem  ser  nomeadas. 

Duas  fabricas  no  termo  da  villa  do  Principe ,  que  prin- 
cipalmente tem  suprido  com  ferro  a  Real  extracção  dia- 
mantina. 

A  fabrica  do  francez  Monlewade  ao  pé  de  Caeté ,  que 
tem   hum  forno  alto. 

A  fabrica  de  huma  sociedade  de  Itabira  de  matto  den- 
tro ,  com  outras  mais  pequenas ,  no  mesmo  arraial ,  entre  as 
quaes  huma  tem  huma  pequena  fabrica  de  armas. 

A  fabrica  de  Capanema  ,  onde  se  vende  o  ferro  em 
obras;  e  muitas  outras  pequenas,  espalhadas  em  mais  par- 
tes da  Capitania  ,  e  que  somente  produzem  ferro  para  uso 
da  casa ,  e  lavoura. 

Não  se  encontrão  fabricas  de  outra  natureza ,  nem  ma- 
nufacturas em  toda  a  província. 

Depois  de  ter  brevemente  tratado  do  estado  physico 
tia  provincia ,  e  de  como  são  aproveitados  os  seus  thesou- 
ros ,  passarei  a  tratar  da  influencia ,  que  ella  immediatamen- 
te  tem  sobre  as  rendas  da  Real  Fazenda ,  e  da  applicação 
<las  mesmas ,  mas  tudo  em  resumo  na  Tabeliã  seguinte : 

Re- 


DAS  SciEWCiAS  DE  Lisboa.  3t 

N3o  tendo  esta  provincia ,  como  consta  dos  livros  da 
receita  e  despesa  da  mesma  ,  sobras ,  que  se  podessem  ap- 
plicar  para  outras  necessidades  do  Estado,  e  tendo-se  ape- 
nas conseguido  por  huma  melhor  administração  dos  rendi- 
mentos ,  pagar  a  divida  atrazadu  de  duzentos  e  cinco  con- 
tos aos  filhos  da  folha,  restando  ainda  o  pagar  a  grande  di- 
vida da  administração  diamantina  ,  mais  difficuldadcs  se  en- 
contrão agora  em  realisar  este  projecto ,  tendo-se  nos  últi- 
mos dous  annos  consideravelmente  augmentado  as  despesas, 
sendo  ainda  muito  maior  a  difficuldade  em  consequência  da 
bem  acertada  graça  de  S,  A.  R.  de  mandar  levantar  o  gran- 
de tributo  do  sal,  que  annuahnente  importava  pouco  maiç 
ou  menos,  segundo  a  lista  da  importação,  em  iiy  contoç 
de  réis;  porque  impossibilitará  muito  mais  a  Real  Fazenda 
de  pagar  os  filhos  da  folha  com  a  exacção  ,  que  he  ne- 
cessária em  todos  os  Estados  bem  organisados ,  pela  falta 
que  faz  nos  rendimentos  ;  portanto  he  de  maior  urgência 
supprir   com  a  maior  brevidade  esta  falta. 

Não  me  posso  conformar  com  o  projecto  de  carregar 
com  maiores  tributos  os  outros  objectos  de  luxo  ,  pois  a 
graça  concedida  ficaria  sem  effcito  ,  e  indirectamente  re- 
cahiria  outra  vez  tanto  sobre  o  pobre,  como  sobre  o  rico, 
vistoque  a  natureza  do  commercio  assim  o  requer.  Dimi- 
nuir as  despesas,  economisar  os  objectos  supérfluos,  que 
não  influem  na  felicidade  do  paiz  ;  diminui-las  tanto  quan- 
to importava  o  rendimento ,  he  o  importante  objecto  de 
que  resultará  o  beneficio  aos  povos,  e  que  S,  A.  R.  tinha 
em  vista  fazer-lhes ,  e  que  sem  perda  de  tempo  se  deve 
pôr  em  pratica. 

Dous  recursos  principaes  ha ,  e  que  geralmente  nada 
influem  no  bem  dos  povos. 

O  primeiro  he  a  abolição  de  três  casas  de  fundições, 
a  de  Sabará ,  de  S.  João  d*  ElRei ,  e  de  yilla  do  Prínci- 
pe. 

O  segundo  he  a  abolição  da  Real  administração  dia- 
mantina. 

Os 


21  Memorias  DA  Academia  Real 

Os  outros  recursos  são  de  menor  importância  ,  os  quaes 
se  reduzem  a  despender  menos  com  as  milícias  ,  e  alguns 
empregados  supérfluos. 

j  'i^  Abolição  de  três  casas  de  fundições. 

Sendo  o  Real  quinto  quasi  reduzido  a  nada,  huma  das 
casas  de  fundições,  a  de  Viila-iica ,  lie  muito  sufficicnte 
para  satisfazer  ,  ou  preencher  o  seu  fim  ,  unindo-sc  a  cila 
huma  casa  de  moeda.  As  outras  três  casas ,  que  rcstão ,  co- 
mo consta  da  tabeliã  das  despesas ,  e  que  fazem  hum  gas- 
to annual  de  vinte  contos  de  réis,  segundo  hum  termo  mé- 
dio, deverão  ser  abolidas;  pois  conservando-sc  ainda  aos 
seus  empregados  ametade  pelo  menos  dos  seus  ordenados , 
emquanto  não  entrassem  em  outros  empregos  ;  a  Fazenda 
Real  poupará  mesmo  assim  annualmente  dez  contos  de  réis, 
além  do  que  ella  despendia  com  jornaleiros ,  carvão  ,  le- 
nha,  &c. ,  cuja  somma  servirá  para  o  acréscimo  de  despesa 
feita  com  a  casa  da  moeda ,  que  de  certo  não  importará 
em  mais  ,  contando  mesmo  com  o  ter  a  casa  da  fundição 
de  Villa-rica  todo  o  aparelho  necessário  para  cunhar  moe- 
da, e  até  hum  abridor  de  cunhos. 

Para  os  mineiros  poderem  immediatamente  trocar  o 
seu  oiro ,  se  estabelecerão  nas  três  casas  de  fundições  abo- 
lidas ,  casas  de  permuta ,  empregando-se  os  officiaes  ,  que 
estiverem  a  meio  soldo,  e  usando-se  ,  a  respeito  da  remes- 
sa  d'oiro  para  a  casa  da  fundição  de  Villa-rica  onde  de- 
verá ser  logo  fundido ,  e  reduzido  a  moeda ,  o  mesmo  que 
foi  ultimamente  praticado  pelo  Banco  filial.  O  troco  de  oi- 
ro deve  ser  feito  principalmente  em  moedas  d'oiro  •,  c  fa- 
zendo S.  A.  R.  a  graça  aos  mineiros  de  lhes  perdoar  o  Real 
quinto  ,  reduzindo-o  ao  dizimo,  ou  vigésimo  ,  e  dando  á  oi- 
tava d'oiro  o  valor  de  mil  e  quinhentos  rs. ,  não  só  todo 
o  extravio  acabará,  mas  de  novo  se  reanimará  a  mineração, 
e  a  Real  Fazenda  ganhará  no  direito  senhorial  o  que  per- 

deo  no  quinto ,  e  no  oiro  extraviado, 

»        ^         '  Abo- 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA,  IJ 

Abolição  da  Real  extracção  diamantina. 

De  neccssidaJe  este  estabelecimento  deve  levar  huma 
grande  reforma,  tanto  económica,  como  politica:  a  primei* 
ra  pelas  necessidades  do  Estado ;  a  segunda  pela  incompa- 
tibilidade cm  que  as  leis  desta  administração  se  achão  com 
o  actual  estado  das  cousas. 

Da  conta  da  despesa  deste  estabelecimento  vio-se  que 
importava  annualmcnte  ,  inclusive  a  da  amortização  da  di- 
vida ,  cm       _----..---     165:61812)000 

Abolindo-se  a  actual  administração,  fica  a  despesa  re- 
duzida ao  seguinte : 

Para  amortização  da  divida      -     -     -     -  50:000(^000 

Para  p.igimento  dos  principaès  emprega- 
dos a  meio  soldo ,  e  outras  despesas  de  huma 
nova  administração      --------  20:000^000 


Somma     7o:ooo(|)ooo 

I 

Portanto  a  Fa/enda  Real  lucrara' ,  ou  poupará  nesta 
administração  95:000(^000  ^  que  sommados  com  os  dez  con- 
tos ,  que  se  podem  poupar  na  abolição  das  três  casas  de 
fundições,  faz  a  quantia  de  cento  e  cinca  contos  ,  que  su- 
prirá perfeitamente  a  falta  que  a  abolição  dos  direitos  de 
•  sal  causara  nas  rendas  da  Real  Fazenda  ;  e  conser\fando-se 
huma  boa  administração  das  rendaá  da  província,  a' grande 
divida  ficará  extincta ,  e  no  fim  de  dez  annoá ,  por  conse- 
quência se  poderá  contar  com  huma  sobra  de  sessenta  con- 
tos de  réis  annualmente.  " 

A  respeito  de  huma  futura  administração  diamantina  , 
diffcrentes  são  os  systcmas  ,  que  se  poderáõ  seguir ,  comtan- 
toquc  os  trabalhos  sejao  fiscalizados  por  huma  administra- 
ção regular,  e  que  a  venda  dos  diamantes  esteja  livre,  e 
não  constrangida,  sendo  as  pedias  de  galerim  primeiramen- 
te 


24  Memorias  da  Academia  Real 

te  offcrccidas  á  Coroa  ,  e  compradas  pelo  seu  justo  valor 
no  caso  de  agradarem.  O  melhor  systema  será  sempre  o 
de  serem  os  rios  trabalhados  por  sociedades ,  em  que  todos 
os  capitalistas  possão  tomar  parte,  entrando  com  acções, 
c  pagando  do  total  do  valor  dos  diamantes  cxtrahidos  á 
Coroa  o  dizimo  ,  ou  ,  como  cm  outro  tempo  usarão  ,  hum 
tanto  por  cada  escravo  ,  ou  trabalhador  ,  detcrminando-se 
o  numero  do  pessoas  ,  com  que  podessem   trabalhar. 

Não  he  aqui  o  lugar  d'estcnder-me  sobre  este  assum- 
pta, direi  portanto  só  alguma  cousa  sobre  os  proveitos  que 
se  podem  tirar  das  outras  riquezas  da  natureza. 

Da  Real  mina  de  galena  do  Abaete. 

Até  ao  presente  tem  sido  o  sertão  do  Abaete ,  no  rio 
do  mesmo  nome ,  comarca  de  Paracatú ,  o  único  lugar  on- 
de se  tem  dcscuberto  galenas  de  chumbo  argentifero.  Dif- 
ficaltosa  foi  a  empreza  de  crear  naquelles  ermos  hum  esta- 
belecimento metallurgico ,  pela  falta  de  gente  ,  e  falta  das 
primeiras  necessidades  da  vida ;  mas  emfim  com  muito  tra- 
balho ,  e  paciência  consegui  fixar  este  estabelecimento  ,  e 
com  a  menor  despesa  possivcl.  Não  se  deve  esperar  de 
hum  tal  estabelecimento,  ainda  muito  na  infância,  lucros 
immcdiatos  para  a  Real  Fazenda  ;  mas  he  preciso  não  só 
conserva-lo  ,,  mas  eleva-lo  mesmo  ao  melhor  estado  possí- 
vel ,  paraque  se  possa  para  o  futuro  tirar  delle  grandes  uti- 
lidades nos  casos  de  urgência ;  e  até  porque  deste  modo 
virá  o  Brasil  a  fazer-se  pouco  a  pouco  independente  dos  es- 
trangeiros; mas  para  se  conseguir  isto,  bastará  só  mandar 
vir  hum  mestre  mineiro,  e  hum  mestre  fundidor,  e  augmen- 
tar  o  numero  dos  escravos  até  cincoenta ,  como  já  por  mui- 
tas vezes  representei.  O  valor  dos  metacs  fundidos ,  com  o 
grande  recurso  da  agricultura,  suprirá  perfeitamente  as  des- 
pesas deste  estabelecimento ,  que  com  o  augmcnto  da  po- 
pulação poderá  fazer  época  na  historia  das  minas. 


DAS  SCIENCIAS  DE  LiSBOA.  2^ 

Da  mineração  do  oiro. 

De  maior  consideração  he  a  mineraçíío  do  oiro.  A  igno- 
rância deitou  a  perder  este  grande  ramo  da  riqueza  nacio- 
nal ;  mas  a  hum  sábio  Governo  pertence  remediar  os  ma-' 
les  passados.  N'  hum  paiz  onde  ha  tanta  falta  de  braços  ^ 
e  onde  os  poucos  que  ha,  tanta  preguiça  tem,  deve  ser  o 
principal  objecto  substituir  esta  falta  por  meio  de  enge- 
nhos ,  e  maquinas.  Nenhuma  occupação  offcrece  hum  cam- 
po tão  vasto  ao  mineiro  scientifico  para  tirar  as  maiores 
vantagens  do  seu  saber  que  a  mineração ,  o  que  nunca  se 
poderá  esperar  em  quanto  estes  trabalhos  estiverem  nas 
mãos  de  homens  ignorantes,  que  só  seguem  o  que  apren- 
derão de  seus  pais :  portanto  formar  huma  administração 
regular ,  simples  ,  c  económica  de  pessoas  scientificas ,  e 
formadas  nasscieneias  montanisticas,  crear  as  sociedades  de 
mineração  em  toda  a  sua  extensão  ,  formar  leis  próprias 
para  o  paiz ,  he  o  único  meio  de  fazer  florecer  outra  vez 
as  minas  de  oiro ,  e  he  também  o  grande  objecto  que  me* 
tece  toda  a  attenção  de  hum  sábio  Governo. 

A  copia  de  huma  attestaçao  junta  dá  huma  pequena 
jdda  das  vantagens  para  a  mineração ,  que  se  podem  tirar 
da  applicação  de  engenhos. 

»  Romualdo  José   Monteiro    de  Barros  ,  professo  na 

j»  Ordem  de  Christo ,  Coronel  de  Milícias ,  &c.  z5  Attes- 

j>  to  c  faço  certo ,  que  por  insinuação  do  Tenente  Coro- 

5>  nel    do  Real  Corpo  de  Engenheiros ,  Guilherme  Barão 

>»  d'  Eschwege ,  fiz  construir  hum  engenho   para  reduzir  a 

3>  pó  ,  e  ao  mesmo   tempo    lavar  a  formação  de  pedra    da 

"  minha    lavra  ,  seguindo-se  em  tudo  a  sua  direcção ,  com 

»  que  principiei    logo    a  perceber  a   grande   vantagem  de 

>»  tirar  vinte  e  seis  oitavas  de  huma  mina  abandonada  pe- 

>»  la  sua  pobreza ,  no  curto  espaço  de  pouco  mais  de  dois 

»»  dias  de  trabalho  ,    em  que  foráo  occupados  apenas  dous 

>»  escravos ;   vantagem   esta   que    antes   não   percebia  com 

T.  IX.  P.  I.  D  »»  trin- 


«■6  Memorias  DA  Academia  Real 

»>  trinta  praças  occupadas  na  mesma  mina  cm  huma  sema- 
»  na,  E  por  esta  me  ser  pedida  a  passei  para  constar. 
»»  Morro  de  Santo  António  13  de  Maio  de  181).  r:;  Ro- 
»  mualdo  José  Monteiro  de  Barros.   " 

Nota.  A  copia  authcntica  desta  attestnçao  foi  por  or- 
dem do  Ministério  inserida  na  Gazeta  do  Rio  de  Janeiro 
no  mesmo  anno  de  18  ij. 

Das  fabricas  de  ferro. 

De  certo  ,  metal  nenhum  contribua  tanto  para  a  ri- 
queza ,  e  industria  nacional  que  o  ferro  ,  aiiulaque  pouco 
lucro  tirão  os  fabricantes  que  o  produzem  ,  com  tudo  he 
huma  fonte  de  que  milhares  de  pessoas  tirão  o  seu  susten- 
to ,  he  o  movei  que  vivifica  a  agricultura,  e  todas  as  fa- 
bricas ,  e  que  mais  influe  sobre  o  augmento  da  população 
de  hum  paiz. 

O  interior  do  Brasil ,  principalmente  a  província  de 
Alinas  geraes,  he  o  mais  abençoado  paiz  a  este  respeito, 
c  hum  sábio  Governo  deve  procurar  todos  os  meios  para  ti- 
rar as  grandes  vantagens  destes  bens  da  natureza.  Animar 
a  fabricação  por  meio  de  prémios ,  augmentar  as  fabricas 
pequenas  espalhadas  em  toda  a  província,  será  o  verdadei- 
ro methodo  que  mais  influirá  sobre  a  felicidade  dos  povos. 

Fabricas  grandes  por  modo  algum  podem  subsistir , 
principalmente  no  interior.  A  população  ainda  he  mui  di- 
ininiita  ,  por  consequência  o  consumo  está  nesta  mesma 
proporção.  A  exportação  para  os  portos  do  mar  sem  estra- 
das ,  e  rios  navegáveis  ,  e  aonde  o  ferro  de  fora  está  por 
hum  preço  tão  baixo ,  preço  a  que  apenas  poderá  chegar 
o  do  Brasil ,  a  nenhum  homem  de  senso  lembrara' ;  entre- 
tanto hc  necessário  que  o  Brisil  tenha  algumas  fabricas 
-grandes,  como  a  de  S  João  de  Ininema,  e  a  do  Morro  do 
^ilsr,  para  as  necessidades  do  Estado  cm  casos  extraordi- 

1)1  ci  A  fabrica  de  S.Joao  de  Ipanemi  offjrece  maiores  van- 
^niij  «t  <^i  .\  .'^  .^V  .  lia- 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  17 

tagcns  pela  sua  localidade ,  porque  cstabclccendo-sc  ahi  hu- 
ma  fjbrica  d'armas  c  ferrarias ,  onde  se  fabrique  em  obra 
grande  parte  do  ferro  para  os  Reacs  Arsenaes,  &c. ,  ella 
por  si  mesma  se  sustentará :  porém  a  fabrica  do  Morro  do 
Pilar  só  com  prejuízo  poderá  trabalhar,  huma  vez  que  se 
não  introduza  huma  administração  económica  ,  que  propor- 
cione a  producção  ao  consumo,  principalmente  porque  se- 
gundo hum  perfeito  conhecimento  ,  depois  da  pratica  de 
muitos  annos ,  não  deverá  exceder  o  producto  a  duas  mil 
arrobas. 


D  u  ME- 


T- 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  i^ 


MEMORIA 

Sobre  o  começo ,  progresws ,  e  decadência  da  litteratura  JF/í- 
hraica  entre  os  Portiiguezes  Catholicos  Romanos  desóe  a  jun» 
dação  deste  Reino  até  ao  reinado  d' E/Rei  D.  ^osé  I. 

Por  Fr.  Fortunato  de  S.  Boaventura. 

^^uando  eu  tratava  de  colligir  espécies  que  fizessem  ao 
intento  de  escrever  a  Memoria  sobre  a  litteratura  Gregd 
nestes  Reino r ^  succcdia-me  encontrar  muitas,  que  respcita- 
vão  á  litteratura  Hebraica  ;  e  desde  então  se  me  excitou  a 
idéa  que  trato  agora  de  executar.  Principalmente  a  execu- 
to por  saber  a  estima  que  fazem  os  estrangeiros  deste  ra« 
ino  de  litteratura  ,  e  por  ter  observado ,  não  sem  gronde 
reparo  e  dissabor ,  que  tal  filólogo  protestante  do  sécu- 
lo XVIII.  depois  de  recensear  os  serviços  feitos  á  littera- 
tura Hebraica  pelas  difix;rentes  nações  da  Europa ,  ousa  es-  ' 
bulhar  os  Portuguezes  de  toda  a  consideração  nestes  estu- 
dos, (a)  Accresceo  mais  que  o  erudito  Colomesio ,  {b)  a 
pesar  de  mui  defeituoso  em  a  resenha  dos  Portuguezes  es- 
tudiosos da  lingua  Hebraica,  assim  mesmo  se  fez  cargo  de 
hum  ou  outro  até  agora  ommittido  pelos  nossos  escrito- 
res (í)  ;  e  para  se  mostrar  ainda  mais  a  nccessidabe  de  hum 
trabalho  sobre  esta  matéria ,  o  próprio  Wolfio  addiciona- 
dor  e  corrector  de  Colomesio,  teceo  hum  novo  catalogo, 
onde  entrâo  mais  Portuguezes  do  que  devia  ser,  contando- 
se  alli  entre  os  Hebraizantes  alguns  Escritores  que  não  ti- 
on- 

(a)  Vai  Em.  Lotscken  de  causu  linguce  HebiaxE  Libri  três. —  Frait- 
cofurti  et  Lipsuc  170G  pag.  122. 

(6)  P.  Coloiii.  Itália  et  Hispwtia  Orientalis  Ed.  Wolfio  Hamburgi 
17.J0.  ■^  ' 

(c)    Mais  adiaatc  se  fará  menção  destes. 


jo  Memorias  da  Academia  Real 

nhâo  a  mais  ligeira  noticia  da  iingua  Hebraica  ,  e  abiisan- 
do-sc  a  cada  passo  do  que  devia  ser  hum  titulo  irrcfraga- 
vel  de  erudições  Hjbraicas  em  outra  nação,  que  fosse  mais 
dada  a  similhantos  estudos.  Desgraçadamente  porém  o  sa- 
ber Hebraico  entre  nós  ,  e  íazcr  longos  tratados  contra  o 
Judaismo ,  são  tarefas  mui  diversas ,  e  que  as  mais  das  ve- 
zes andáo  separadas ,  quando  a  boa  razão  exigia  que  fos- 
sem constantemente  unidas ,  e  até  inseparáveis. 

Haveria  muito  de  que  encher  esta  Memoria,  seosju- 
dcos  Portuguezes  devessem  entrar  nella  ;  mas  parecco  me 
ociosa  huma  empreza  já  cabalmente  desempenhada  pelo 
cruditissimo  e  saudosissimo  Sfír.  António  Ribeiro  dos  San- 
tos ,  que  se  por  ventura  não  chegou  a  exhaurir  a  matéria , 
aproveitou  com  tudo  o  melhor  que  corria  impresso  em  Wol- 
fio  ,  Bartolocci ,  Imbonati  ,  e  Rossi  ;  e  bem  se  vê  que  es- 
tando já  quasi  seccas  estas  fontes  de  erudição ,  mal  se  po- 
deria addicionar  cousa  inteiramente  nova ,  que  só  estas  são 
dignas  de  apparecerem  entre  as  Memorias  sobre  taes  assum- 
ptos. Cingindo-me  pois  ao  titulo  desta,  repartirei  pelos  sé- 
culos o  que  for  próprio  de  cada  hum  delles,  guardada  em 
tudo  a  concisão ,  e  imparcialidade ,  que  já  me  propunha  se- 
guir em  a  Memoria  sobre  litteratura  Grega  ,  e  das  quaes 
espero  dar  nesta  ,  provas  ainda  mais  claras ,  e  decisivas. 

Não  hc  para  admirar  que  fossem  pouco  avantajados  os 
passos  da  nossa  litteratura ,  em  quanto  os  nossos  maiores  se 
cmpenhavão  em  conservar  huma  independência ,  que  até  ao 
meado  do  século  XIV  teve  sempre  mais  ou  menos  que  te- 
mer da  parte  dos  Mouros ,  que  bem  a  seu  pezar  hião  lar- 
gando a  melhor  das  suas  conquistas;  entre  tanto  ^'que  na- 
ções da  Europa  tem  a  gloria  de  verem  enfeitado  o  berço 
da  sua  independência,  com  o  estudo  das  letras  Divinas,  e 
humanas  commo  ha  succedido  entre  nós?  Reparo,  e  com 
toda  a  justiça  ,  que  certos  ensaios  da  nossa  litteratura  pas- 
sem por  alto  os  séculos  XII ,  XIII ,  e  XIV,  e  que  satisfei- 
t  .s  de  reduzirem  a  poucas  palavras  toda  a  Historia  littera- 
ria  daquelles  tempos ,  saltem  ao  scculo  XV,  que   se  julga 

pro- 


DAsSciEKCIASnELlSBOA.  ^í 

propriamente  aqucllc   onde  se  lançarão  os  fundamentos  da 
nossa  reputação   litt-raria,   N.ío   obstante  a  cscaccz   de  mo« 
niiment.)s  daquelles  primeiros  séculos  da  nossa  Monarquia  , 
era  conveniente  que  os  exploradores   da  nossa  antiga  litte- 
ratura  não  se  contentassem  de  ler  Fr.  Bi.rnurdo  de  Britto , 
c  Manoel   de  Faria  e  Sousa  ,  mas  que    adiantando-se  hum 
pouco  mais,  examinassem  os  códices  daqueila  idade,  onde 
por  ventura  achariáo  linguagem  mais  corrente  que  a  de  Fer- 
nam  Lopes ,  Gomes  Eannes  de  Az.urara  ,  e  Fr.  Bernardo  de 
Alcobaça,    j  Assim  fosse   possível  descubrir  monumentos   de 
litteratura  Hebraica    nesses   primeiros    tempos  da  nossa  in- 
dependência, como  he  fácil  achar  escritos  originacs,  e  tra- 
ducçõcs  feitas  naquelles  séculos ,  que  ao  vermos  a  indiffe- 
rença    com   que    são   tratados    pelos  nossos  Escritores  ,    fa- 
cilmente se  pensará  que  forão  escuros  ,  e  bárbaros  !  Haven- 
do como  de  feito  havia  muitos  Judeos  nas  Hcspanhas ,  he 
obvio  que  pelo  menos  hum  ou  outro  dos  Theologos  Hes- 
panhoes  se  desse  ao  estudo  de  huma  lingua  por  certo  in- 
dispensável   para  serem   combatidos ,  e  destruídos  os  erros 
de  Synagoga. 

A  data  de  1279    bem   próxima  dos  tempos    cm   que 
forão  mais  encarniçadas  as  guerras  dos  Soberanos  da  Penín- 
sula   com  os  Régulos  que  a  dominavão  em  grande  parte , 
he  indicada  até  pelos  sábios  estrangeiros  como  aquella  em 
que  os  estudos  da   lingua  Hebraica  se  fizerão  vulgares  nas 
Hespanhas  ,  sendo  Raymundo  Martins  o  seu  principal  ins- 
tigador.  Existindo  já  d'antes  as  causas  que  fomcntavão  es- 
te género  de  estudos,  he  de  presumir,  que  também  já  d'an- 
tes  houvesse  alguns  estudiosos  da  lingua  Hebraica ;  nem  era 
natural  que  sendo  as  Hespanhas  como  a  fonte  onde  os  sá- 
bios estrangeiros  vinhao  naquelle  tempo  beber  o  conheci- 
mento das  línguas  orientaes ,  ficassem  os  sábios  destes  rei» 
nos  huns   tranquillos  espectadores    da   gloria  litteraria   ad- 
quirida pelos  estranhos  {a).    Gastão   de  Fox ,    que   se  díí 

n- 

■ ■ — — — ■ —\ 

('/)     llau:i(^ue  iMiUdeidorpf  uo  sea  Lom;ueaiariu  D<i  vintiiutis  Late* 


3»  Memorias  da  Academia  Real 

oriundo  de  França,  e  descendente  dos  Príncipes  de  Guicn- 
na ,  hc  o  primeiro  que  se  oflerece  entre  nós  como  sabedor 
d.i  iingua  Hebraica ,  a  pczar  de  que  a  confutação  dos  er- 
ros de  Matoma  conseguio  a  flor  dos  seus  estudos  ,  e  cui- 
dados. Hum  sábio  contemporâneo  d'  ElRci  D.  AíFonso  Hen- 
riques ,  c  por  cile  nomeado  Bispo  de  Évora ,  parece  mui 
digno  de  estar  a  frente  dos  estudiosos  da  Iingua  Hebraica, 
dando  a  esta  Iingua  huma  preeminência ,  que  cu  não  pude 
assegurar  á  iingua  Grega,  a  pezar  de  todos  os  meus  cui- 
dados, c  diligencias. 

Fvirão  talvez  maiores  as  que  me  deveo  Gistao  de  Fox, 
e  sinto  não  poder  affiançar  aos  meus  leitores  o  que  deste 
e^Titor  nos  refere  o  Abbade  Barbosa  Machado  na  sua  Bt- 
bltotheca.  Não  he  aqui  lugar  próprio  de  se  discutir  o  que 
pertence  a  Gastão  de  Fox,  e  que  tudo  se  firma  e  descan- 
ça  \\à  autoridade  de  hum  Escritor  do  século  XVÍ ,  que  a 
nicu  ver  não  hc  muito  idóneo  para  asseverar  successos  tão 
dist.intcs;  mas  perdoem-me  assim  o  Beneficiado  Leitão,  co- 
mo o  Auth  )r  da  Bibliotheca  Lusitana^  que  nem  o  Author 
que  houvesse  de  escrever  a  Lusitânia  Sacra  poderá  restituir 
com  segurança  este  Bispo  á  Igreja  de  Évora ,  nem  eu  o  po- 
rei acima  da  classe  de  Author  duvidoso,  cm  quanto  não 
apparecer  noticia  mais  positiva  das  duas  traducçóes  da  obra 
de  Fox  contra  os  sectários  de  Mafoma,  e  possi  allegar  se 
algum  dos  muitos  Escritores  das  antiguidades  de  Hespanha , 
que  nos  conservasse  a  memoria  do  Epitáfio  de  Gístão  de 
Fox ,  cujo  tumulo  se  diz  fora  demolido  pelos  Francezes 
em  huma  entrada  que  fizerão  na  Guiposcoa  (a). 

Tor- 


»-in/ó  ?.i  llc-pviii  qum  Arahis  Auctores  hahuerunt ,  premiado  pela  Uni- 
\'  rsiilade  de  Gottinga  em  1810,  faz  menção  a  pag.  65  de  muitos  sá- 
bios dos  scculos  IX ,  X ,  e  XI ,  que  vierão  á  Hespaiiha  para  se  ius- 
íruireui  nas  linguas. 

(6)  Revolvi  a  Historia  Genealógica  de  França,  e  os  diversos  ramos 
da  famiiia  de  Foix ,  e  não  achei  memoria  de  tal  descendente.  Exami- 
pei  muitos  livros  de  antiguidades  de  Hespanha,  e  nem  rastos  descubri 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  3J 

Torna  a  apparecer  como  instruído  nas  línguas  orien- 
taes  o  esclarecido  Santo  António  de  Lisboa  ,  de  quem  já 
fiz  menção  na  Memoria  sobre  a  litteratura  Grega.  A  pezar 
dos  esforços  do  grande  Cenáculo  para  mostrar ,  que  Santo 
António  era  versado  nas  línguas  Grega  ,  e  Hebraica  ,  eu 
insistirei  novamente,  em  que  a  interpretação  de  algumas 
palavras  nunca  será  para  mim  huma  prova  decisiva  de  ter 
havido  conhecimento  profundo  de  qualquer  língua,  condi- 
ção esta  por  certo  indispensável  para  se  ter  lugar  nesta 
Memoria.  Fossem  todavia  superficiaes  os  conhecmientos  do 
Santo  na  língua  Hebraica  ,  nem  por  isso  esta  litteratura 
será  esbulhada  da  honra  que  lhe  toca,  pois  não  ser  intei- 
ramente hospede  nestas  erudições  ,  dá  creaito  aos  educa- 
dores do  Santo ,  mostra  que  já  naquelles  tempos  se  apre- 
ciava entre  nós  o  estudo  da  língua  Hebraica ,  e  serve  de 
norte ,  e  de  exemplo  aos  nossos  Theologos ;  pois  se  hum 
varão  eminente  em  letras  e  virtudes,  e  que  tratou  princi- 
palmente de  converter  os  máos  Christãos,  e  de  refutar  os 
hereges  do  seu  tempo ,  que  não  abusavão  do  conhecimento 
das  línguas,  nem  por  isso  pôz  de  parte  o  estudo  da  lín- 
gua Hebraica  só  porque  huma  ou  outra  vez  tinha  de  en- 
rostar  com  os  Judeos ;  ^  quanta  não  deve  ser  a  applicação 
a  esta  língua  da  parte  daquelles,  que  ou  tiverem  de  refu- 
tar a  Synagoga ,  ou  por  incumbidos  do  Magistério  devem 
estar  sempre  á  lerta  para  explicarem  e  defenderem  os  tex- 
tos do  Testamento  velho  ? 

He  cousa  sabida  ,   que  já  antes  da  fundação  da  Uni- 
versidade de  Coimbra  se  levantarão  neste  Reino,   e  prin- 
cipalmente nas  Cathedraes  e  Mosteiros,  escolas  de  tudo  o 
que  nestes  tempos  se  julgava  como  preliminar  dos  estudos 
T.  IX.  P.  I.  E  theo- 

™  ■  ■    _i  .  ..  j-.i         ,  ,1.  ■         ■-  ■  ,         -■ — -'■■  ■ 

do  epitáfio ,  onde  estranhei  muito  ver  suprimidas  as  dignidades  de 
Bispo,  e  de  Embaixador,  que  fazião  mais  grave  a  atrocidade  dos  la- 
drões, que  o  tinhão  assassinado.  Note-se  ,  que  jà  no  tempo  de  Fr. 
Francisco  Brandão  havia  quem  puzesse  duvidaa  &  eaiistencia  de  tal  e». 
critor.  .^j-i  urv.i.  i,» 


54  Memorias  DA  Academia  Real 

theologicos  :  nenhuma  cousa  porém  enobrece  tanto  o  sé- 
culo XIII  como  a  erecção  da  Universidade  de  Coimbra  ve- 
rificada cm  1290  á  instancia  dos  ecclesiasticos ,  e  mormen- 
te dos  Prelados  Regulares  deste  Reino ;  e  assim  como  em 
seus  primeiros  estatutos  deixou  de  mencionar-se  a  Theo- 
logia ,  então  ensinada  nos  claustros,  não  he  muito  que  lá 
não  appareção  vcstigios  da  lingua  Hebraica  ,  que  só  para 
Theologos  lie  de  absoluta  necessidade.  Entretanto  não  se 
podo  achar  monumento  daquclla  idade,  que  falsifique  a  as- 
serção do  Author  da  j."  Parte  da  Muuarchia  Lusitatia  ^  que 
positivamente  nos  assegura  da  falta  de  Mestres  da  lingua 
Santa  naquelle  século,  e  podemos  aífirmar,  que  similhante 
estudo  não  era  seguido  entre  nós ,  a  pezar  de  muitas  ra- 
zoes que  o  aconselhavão  e  persuadião.  Era  comtudo  bem 
fjcil  aos  nossos  Theologos  o  aprenderem  a  lingua  Santa  , 
ou  por  applicação  e  industria  própria ,  ou  frequentando  as 
aulas  Castelhanas,  que  já  nesse  tempo,  como  vimos,  a  es- 
tudavão ,  c  cultivavão.  O  já  citado  D.  Fr.  Manoel  do  Ce- 
náculo nos  deixou  a  preciosa  noticia  de  hum  Catecismo 
contra  os  Judeos,  em  que  o  Pregador  da  Synagoga  do  tem- 
po d' ElRei  D.  Diniz  «<  ameuda  textos,  que  fazem  ao  pro- 
í>  posito,  passados  do  Hcbreo ,  e  Vulgata  á  nossa  lingua  ,  "  («) 
«  se  as  graves  suspeitas  indicadas  pelo  mesmo  sábio  era 
respeito  á  versão  do  Testamento  novo  pelo  nosso  Portu- 
guez  João  Ferreira  de  Almeida  (b) ,  passarem  algum  dia 
ao  gráo  de  certeza ,  que  se  demanda  em  taes  matérias ,  não 
faltaria  que  addicionar  á  Historia  da  litteratura  Grega  ,  pois 
vinha  a  possuir  no  século  XIII  o  que  não  teve  no  século 
XVl,  e  bem  lastimosamente  lhe  faltou  no  século  XVIII  (f). 
;  Era  de  esperar ,  <jue  a  determinação  do  Concilio  Ge- 
ral 

o'i(f)     Cuií^oe Jiuerarios ,  pag.  426. 

.i.lC*)     fàid.  pag.  ,<»27,  , 

Vf(c)    Tem  havido  muUos  sábios  destituídos  do  coabecimento  da  lín- 
gua Gtcga.,   mas  hum  s»t)i<>,  que  se  encarrega  de  pôr  eia  lingoagem 

o  Novo  TesUmeuto,  deve  sab,ec  a  liagua  origiual  em  que  foi  cschí^. 


•'      DAS  SeiENCIAS  DE  LtSBOA.  3^ 

ral  Vienncnsc  produzisse  em  todas  as  Universidades  da  Eu- 
ropa os  cffeitos  desejados  ,  não  sabemos  porém  que  a  de 
Coimbra  tivesse  naquclle  tempo  cadeira  de  linguas  orien-. 
taes  ,  o  que  he  bem  para  sentir ,  e  me  obrigou  a  passar 
poF  muitas  fadigas  para  descubrir  neste  século  ao  menos 
hum  sabedor  da  lingua  Hebraica.  Se  a  mera  confutação 
dos  erros  da  Synagoga  tosse  ao  menos  hum  indicio  pro- 
vável da  erudição  Hebraica,  eu  citaria  como  própria  da- 
quelles  antigos  dias  a  obra  do  Monge  de  Alcobaça  Fr. 
João,  que  se  intitula  Speculum  Hebr^orum .,  e  foi  acabada 
em  i?35',  ,;  mas  que  erudito  deixará  de  saber,  que  os  co- 
nhecimentos da  lingua ,  e  a  confutação  dos  erros  podem 
facilmente  separar-se  ,  e  existir  huma  cousa  sem  a  outra  , 
do  que  poderião  citar-se  muitos  exemplos  antigos  e  mo- 
dernos ?  Até  nos  escritores  estrangeiros  (a)  apparecem  tes- 
tcmuniios  de  cultura  do  Hebreo  ,  cm  alguns  dos  Reinos 
das  Hespanhas,  no  que  toca  porem  ao  nosso  Reino,  ob- 
serva-se  hum  alto  silencio,  e  por  mais  que  se  examinem» 
e  revolvão  as  Bibliografias  não  se  colhe  nada  que  faça  ao 
intento  de  vingar  para  o  século  XIV  alguma  prova  de  nos 
darmos  ao  estudo  da  lingua  Hebraica.  Tive  de  satisfazer- 
me  com  o  exame  da  famigerada  obra  do  nosso  D.  Fr.  Ál- 
varo Paez  de  planctu  Ecclesia  ^  onde  achei  alguns  rastos  de 
conhecimento  da  sobredita  lingua.  O  Author  parece  mos- 
tralo  a  foi.  86  onde  começa  huma  explanação  dos  Threnos 
^e  Jeremias^  e  declara  a  significação  de  todas  as  letras  do 
alfabeto  Hebreo;  e  assim  como  de  observar  que  a  foi.  ij$ 
elle  se  aproveita  do  sentido  que  Santo  Agostinho  deo  á 
palavra  Grega  m£chia ,  eu  infiro  que  o  nosso  Bispo  não  ti- 
nha conhecimentos  da  lingua  Grega,  assim  também  de  tet 
examinado  que  elle  proceda  com  mais  confiança  nas  pala- 
vras Hebraicas ,  eu  devo  concluir  ,  que  elle  não  foi  hos- 
pede nesta  Utteratura ,  a  pezar  de  que  já  nesse   tempo  as 

E  ii  glos- 


(a)    P.  Lambitiet  Origities  de  Plmprimiere,  Faris  1810.  T.  2.  pag.  26R^ 


^6  M  EM  o  B  I  JtS  DfA-  Ac  A:I>Í![M ÇA  R^f:  AÉ. 

glossas  de  Nicoláo  de  Lira  deviãp  ser.  vulgares  em  tod^ 
a  Hespanha  ,  ainda  sem  fallar  nas  obras  exegeticas  de  S. 
Jeronymo  ,  que  o  referido  Bispo  consultou,  e  examinou^ 
como   SC  pôde  ver  pelas  citações  da  obra  (a).  -jcj 

Chegava  o  século  XV ,  c  as  próprias  adversidades,  j 
que  denegrirão  o  meado  deste  século  hum  dos  mais  in- 
faustos pura  a  christandfide ,  e  para  a  Europa  :devião  con? 
correr  para  se  apressar  o  restabelecimento  dos,  bons  estu- 
dos. He  bem  sabido  ,  que  a  Itália  foi  o  berço  da  suspÍ7 
rada  restauração  das  letras,  que  por  ventura  não  consegui- 
rão nunca  hum  gazalhado  tão  distincto  ,  cçmo  esse,  que 
lhes  prestou  3  familia  de  Medicis ,  apcllido  certamente  me- 
morável ,  )C  capaz  de  avivar  o  recçnhccimcnto  dos  sábios , 
a  pe/.ar  de  que  muitos  destes  hão  querido  trasladar  para 
o  século  seguinte  os  brazões  deste ,  que  tanto  podem  os 
juízos  anticipados  ,  e  a  mania  de  sujeitar  os  acontecimen- 
tos a  huina  opinião  ou  systema  ,  o  que  nunca,  terá  forças 
nem  para  os  mudar,  nem  para  lhes  tirar  a  existência  (è). 
Já  deixei  advertida  rio  meu  trabalho  sobre  litteratura  Gre- 
ga ,  a  parte  que  vários  Italianos  tiverão  nessas  primeiras 
faiscas  de  erudição ,  que  felizmente  luzirão  era  o  nosso 
Reino,  e  ao  mesmo  passo  que  he  fácil  produzir  o  teste- 
.munho  de  Angelo  Policiano  a  favor  dos  seus  discípulos, 
que  ao  diante  seria  confirmado  pelo  immortal  André  de  Re- 

zen- 

('i)  Consta  de  dous  livros,  e  foi  impressa  em  Leão  de  França  1517. 
Tem  no  fim  :  Autorh  subscriptio.  Manii  própria  una  vice  corrcxi  et  apo- 
stiltavi  atino  Dni  1335  in  Algarhia  Tortugallice  ubi  sum  preesul  in  viíla 
Ramra.  Secuiulo  correxi  et  aposúllam  in  Sancto  Jacobo  de  CompoHella  an- 
lio^Domini  1540.  He  sabido,  que  as  Glossas  de  Kicoláo  de  Lira  forão 
acabadas  em  1330,  e  logo  espalhadas  por  toda  a  Europa. 

(*)  Nunca  se  julgará  suspeito  nesta  matéria  o  erudito  Inglez  W. 
Roscoe,  que  nas  snas  historias  verdadeiramente  magistraes,  e  primoro- 
samente  escritas,  de  Lourenço  de  Medicis,  e  Leão  X  elucida  a  meu 
ver  melhor  que  niugucm  a  questão  do  restabelecimento  dos  bons  ti» 
tudos.  Notarei  de  passagem,  que  nas  provas  da  2.'  destas  obras  se  en- 
gfiDtrãn  muitos  £  «legaattssioigs  ver«o8  latiuo»  «íh  louvor  do  nosso  Kei 
P,  Manoçl. 


.7     DAS  S'CIENCrA's   DT  LrSKOA.  "'  f^ 

ícndc,  terei  de  passar  pelo  disgosto  de  não  encontrar  hurrí 
SC  Portuguez,  que  naqucHc  tempo  se  desse  aos  estudos  da 
língua  Santa.  Nem  o  estimulo  assas  forte  dos  Judcos  Por* 
tugue/.cs  ,  que  pelas  suas  edições  Hebraicas  dos  últimos 
annus  deste  século  ,  acreditavão  os  seus  cstu-ios  ,  c  enobre» 
cião  a  arte  Typografica  ,  era  bastante  para  des.per^^ar  os 
nossos  do  Icrhargo,  cm  que  jazião  ;  e  pôde  ser  que  a  aver- 
são aos  Judcos  fizesse  retardar  a  época  do  luzi mento  às 
huns  estudos ,  em  que  tanto  se  interessa  a  verdade  do  Chris- 
tianismo.  Dedicavão-se  naquclle  tempo  os  mancebos  nobres 
á  lição  dos  Authores  Gregos  ,  como  se  vê  pelo  exemplo 
de  D.Diogo  de  Almeida,  Cavalleiro  da  Ordem  de  S.João 
de  Jerusalém  (a) ,  e  por  motivos  da  exploração  de  novas 
terras,  e  para  se  animar  o  commercio  com  os  povos  re- 
cem-dcscubcrtos  ,  florecia  o  estudo  das  linguas  Arábiga,  e 
Ethiopica ,  a  que  se  dava  entre  nós  o  próprio  {b) ,  que  vie» 
ra  de  longe  para  nos  ensinar  alguns  ramos  de  litteratura , 
c  nomeadamente  a  lingua  Latina ,  da  qual  todavia  já  era 
•fácil  apontar  exccllentes  cultores,  que  só  tinhão  frequenta- 
do as  escolas  e  mestres  nacionaes  (c). 

He  de  presumir ,  que  os  Oradores  Sagrados  daquclle 
tempo,  não  fossem  destituídos  de  conhecimentos  indispen- 
sáveis para  o  bom  êxito  dos  combates ,  que  era  necessário 
ter,  e  sustentar  com  a  Synagoga  então  admittida  e  tole- 
rada nestes  Reinos  ;  como  porém  nenhum  Sermonario  da- 
quella  época  vio  a  luz  publica,  e  alguns  monumentos  theo- 

lo- 


(a)     Na  Carta  ao  Pontífice  Innocencio  VlII,  que  vem  entre  as  obras 
de  Cataldo  Siculo. 

•  (b)  E3te  ultimo,  que  na  sua  Carta  a  D.  Pedro  de  Menezes  escrita 
fios  fius  deste  século,  de  que  vamos  tratando,  falia  nos  seus  estudos  do 
Árabe,  assimcomo  em  outra  escrita  a  ElRei  D.  João  II,  que  lhe  ea« 
commeiulava  a  instruci^ão  latina  dos  filhos  de  D.  Rodrigo  de  Sousa, 
se  fu  cargo  das  suas  applicações  á  lingua  Ethiopica. 
.  Ce)  Sirva  de  exemplo  D.  Garcia  de  Menezes,  Bispo  de  Évora,  de 
cuja  oraçSo  ao  Papa,  e  da  impressão  que  elle  íez  em  a  própria  Ro« 
Çia ,  UUio  a  cada  paaso  o«  nosso»  escritores. 


"38  Memorias  DA  ACAT5EMIÂ  RtATS 

lógicos  desse  tempo  são  raríssimos  (a) ,  ficarei  duvidando 
sç  por  ventura  cxistio  no  século  XV  hum  só  Portuguex 
Catholico  Romano ,  que  soubesse  a  lingua  Hebraica ,  du- 
vida esta  ,  que  me  seria  penosíssima  se  o  formoso  secu- 
Jo  XVI  não  viesse  já  consolar-me ,  e  indemnizar-me  da  pe- 
núria ,  que  tenho  arguido  em  os  séculos  precedentes. 

O  século  XVI  com  effeito  para  ser  em  tudo  o  mais 
brilhante  da  nossa  Historia  littcraria,  ofFerece-me  tal  copia 
de  argumentos  da  erudição  Hebraica  daquellcs  tão  faustos, 
c  saudosos  dias ,  que  terei  grande  embaraço  em  classificar 
os  beneméritos  daqucUa  até  então  ou  desconhecida  ,  ou  des- 
prezada litteratura.  Não  obstante  o  possuirmos  em  Lisboa 
huma  Universidade ,  que  os  Reis  e  os  Infantes  augmcnta- 
vão  todos  os  dias  em  rendimentos  e  cadeiras  ,  era  princi- 
pio assentado  entre  nós,  que  ainda  nos  era  necessário  re- 
correr ás  Universidades  estrangeiras,  que  mais  próximas 
da  Itália  havião  aproveitado  mais  cedo  que  nós  o  influxo 
bemfazcjo  de  protecção  concedida  ás  sciencias  e  artes  pela 
generosidade  dos  Medicis.  ElRei  D.João  III,  já  meditan- 
do pôr  a  nossa  Universidade  ao  nivel  das  estrangeiras  mais 
florescentes,  fazia  sustentar  em  Pariz  72  mancebos  escolhi- 
dos ,  que  passado  tempo  nos  viessem  trazer  as  erudições  já 
vulgares  naquella  academia ,  e  as  ensinassem  e  propagassem 
nas  escolas  deste  Reino.  Feita  a  devida  menção  de  Pedro 
Henriques ,  e  Gonsalo  Alvares  ,  primeiros  mestres  de  He- 
braico nos  estabelecimentos  litterarios  de  Coimbra ,  c  que 
tinhão  aprendido  a  lingua  Santa  de  mestres  Francezes ,  e 
contado  entre  os  grandes  incitamentos  para  taes  estudos  , 
não  só  o  magistério  do  erudito  Diogo  Sigêo,  que  acom- 
panhava a  nossa  Corte ,  e  ensinava  os  Principes  e  Infan- 
tes, mas  também  a  viagem  que  o  insigne  Humanista  Ni- 
coláo  Clenardo  fez  a  este  Reino,  onde  plantou  de  mão*s 
dadas  com  João  Vaseu  ,  até  em  Braga ,  o  estudo  das  lín- 
guas, 

(a)    Allude  aos  Cathecismos  de  D.  Diogo  Ortiz  de  VilJjegas, 


DAS  SciEMCIAS   DE   LiSBOA.  JpL 

guas ,  que  pouco  antes  nem  a  própria  Universidade  de  Lis- 
boa sabia  conhecer  e  apreciar ;  pedem  agora  a  brevidade 
e  razão  de  ordem ,  que  pelo  texto  da  língua  Santa  ,  a  qual 
nem  ao  longe  nos  ofFerecc  a  vastidão  e  copia  dos  exempla- 
res das  linguas  Grega,  e  Latina,  graduemos  imparcialmen- 
te os  serviços ,  que  lhe  fi/erão  os  nossos  Portuguczes.  Aqucl- 
Ic  texto,  como  todos  sabem,  he  a  Sagrada  Escritura  do 
Testamento  velho ;  sobre  a  qual  temos  abalizados  interpre- 
tes ,  e  commentadores  que  devem  ter  lugar  acima  dos  que 
compilarão  de  differentes  Rabbinos  as  artes  de  Grammati- 
ca ,  de  que  abaixo  fallaremos.  Das  espécies  históricas,  que 
trato  agora  de  explanar,  se  verá  que  a  gloria  nacional  ga- 
nhada pelas  nossas  applicações  ao  Hebreu  se  avantaja  mui- 
to ,  á  que  já  mostrámos  ,  fora  adquirido  nos  mesmos  dias 
pela  cultura  do  Grego. 

O    Dominicano    Fr.   Francisco  Foreiro  ,    que  já   teve 

hum   lugar  distincto    na  Memoria  sobre  litteratura  Grega  , 

deve  agora  occupar  outro  mil  vezes  mais  distincto ,  que  as» 

sim  o  pede  a  natureza  dos  seus  trabalhos ,  e  a  acceitação 

qive   elles    tem    merecido    aos  próprios    inimigos    da  Santa 

Igreja  Catholica ,  indicio  este  o  mais  seguro  de  huma  vas- 

-ta  erudição ,  e  de  hum  saber  mais  que  ordinário ,  quando 

■taes  louvores  não  tem  sido  comprados  pelo  exorbitante  pre^ 

ço  de  vergonhosas  condescendências ,  a  que  certamente  não 

desceo  este  igualmente  sábio ,  e  virtuoso  interprete.  Âlera 

dos  5CUS  incansáveis  estudos  ^  que  presenciou,  e  admirou 

,a  França^    e  a  Itália,  e  que  derao  tamanho  brado  na  au- 

Çysta  e  veneranda  asse mbléá  de\TfentQ,  elle  formou  para 

sèu  uso'  particuTar  hum  diccionarTó  da  língua  Hebraica,  e 

he  pena  ter  ficado  manuscrito,  teijdo  bem  natural,  que  já 

tenha  perecido,  vista  a  decididaV^âyersJo  a  similhantes  es- 

,tudos,  que  çoip^çando  nps  fiqs  dç  secyío^VI^  subio  ao 

maior  auge  no  para  ii  lingua  He&jpaíça,  afs^,  tenebroso  se- 

culp  XVIL  Deixou-nos  porém  a  seguinte  obra ,  e  com  el- 

la  o  argumento  £abal  da  sua-£Xudição  Hebraica. 


4»  Memorias  da  Academia  Real 

Jsai<e  Propheta  vetus  et  nova  ex  Hebraico  versio ,  cum  com- 
nientario  ,  iti  quo  uíriusque  versio  redditur ,  vulgatus  in- 
terpres  a  plurimorum  cahimniis  viiidicattir ,  et  loci  amues 
qmbus  sana  docírina  adversus  Hareticos  atque  Jiidaos  con- 
jirmari  potcst  ,  stimmo  stiidio  ac  deligentia  explicantur. 
Venetiis  aptid  Jor danem  Zileti   1563  foi, 

O  próprio  titulo  desta  obra,  que  foi  desempenhado  á 
letra  por  seu  egrégio  author,  he  a  sua  melhor  recommen- 
dação ,  e  seria  hum  grave  insulto  á  memoria  de  hum  varão 
tido  geralmente  na  conta  de  hum  dos  mais  atilados  inter- 
pretes do  antigo  Testamento,  qualquer  indagação  sobre  o 
mérito  dos  seus  trabalhos  ,  e  quando  me  faltassem  outras 
provas,  era  de  sobejo  huma  extrínseca,  e  maior  que  toda 
a  excepção,  e  vem  a  ser  o  acharmos  admittidos  na  obra 
assas  conhecida  pelo  titulo  de  Critici  Sacri^  onde  figurarão 
muitos  interessados  em  deprimir  a  nossa  Vulgata  ,  os  Com- 
mcntarios  do  Padre  Foreiro. 

Succede-lhe  por  ventura  só  em  ordem  alfabética  ou- 
tro Dominicano  Fr.  Jeronymo  de  Azambuja  mais  conheci- 
do pelos  estrangeiros  debaixo  do  sobrenome  latinizado  de 
Oleastroy  que  podendo  entrar  em  parallelo  com  o  antece- 
dente, a  nenhum  outro  cederá  a  sua  bem  merecida  prima- 
zia em  taes  estudos,  de  que  nos  deixou  as  provas  seguin- 
tes : 

^  Commentaria  in  Mosis  Pentatetichun  juxta  Magistri  Sanctis 

Pa^nini  interpretationem.    Antuérpia  in  adU>us  vidute  et 

haredum  Joannis  Stelsii  1568  foi.  et  Lugdmi  tç^ó  foi. 
'j  . 

l\  -Hebraismi  et  Cânones  pro  intellectu  Sacra  Scripíitra.  Lugdu~ 
.30  ,.  ui  1566 j  e   1588  foi.  ..   „  ... 

***  JSt  Isaiafn  Prophetam  Cotfnmentarii  f^o^/posthmum.  Lutetite 
"f  ""Parisiorum  lóiz  foi.  (a).     '     '  '^  "  '  ''  " 

1      :'    f-l    I  T    f  ■_■'• >     ■  I   -     fN     ■    ' , . 

(a)    O  Editor  desU  obra  foi  o  Domiaicano  Fr.  Fedro  Calvo ,  qUQ 


I 


DAS  SciENciAs  DE  Lisboa.  41 

He  escusado  mostrar,  que  Fr.  Jeronymo  da  Azambuja 
empregou  muito  cabedal  da  sua  erudição  nestas  obras  im- 
pressas ,  nem  este  coriFco  de  litteratura  sagrada  admittiria 
facilmente,  que  eu  citasse  todos  os  lugares,  cm  que  elle 
recorre  ao  texto  original  sob  pena  de  sahir  mui  diffusa  , 
c  até  fastidiosa  esta   memoria. 

Apenas  lembrarei  duas  espécies  de  alguma  utilidade, 
para  quem  houver  de  corrigir  e  addicionar  a  Bibliotbeca  Lu- 
sitana ^  e  vem  a  ser:  i.  Qi^ie  o  doutíssimo  Rossi  facil- 
mente o  principe  de  litteratura  Hebraica  nestes  últimos 
tempos  (jo)  ,  qualifica  o  Padre  Azambuja  de  claríssimo  in- 
terprete ,  e  recorre  á  sua  auctoridade  para  recommendar  os 
estudos  da  língua  Hebraica.  2.  A  primeira  edição  dn  Com» 
nientario  ao  Pentateuco  he  de  Lisboa  em  ifçó,  se  devemos 
acreditar  o  Index  expurgai or to  de  D.  Fernão  Martins  Mas- 
carenhas ,  que  também  cita  a  edição  de  Leão  de  França 
em  iy88  ,  da  qual  aponta  igualmente  as  paginas;  o  que 
dá  a  entender,  que  ou  ha  quatro  edições  distinctas  do  so- 
bredito Commentario  ,  ou  que  vem  erradas  as  datas  na  5/- 
bliotheca  ,  onde  taes  descuidos  são  mui  ordinários  ,  e  mal 
se  podem  estranhar  severamente  em  huma  obra  de  tal  na- 
tureza ,  e  de  quatro  volumes  em  folio. 

Adverte  o  auctor  da  Bibliotbeca ,  que  não  tem  a  se- 
gunda obra  impressa  ,  como  distincta  da  primeira.  <t  Esta 
>»  obra  (diz  elle)  a  que  Imhonati  Bibl.  Latiu.  Rab.  pag  72, 
>>  n.  280  ,  e  Lipen.  Bibl.  Real.  tbeol.  tomo  2.  pag.  74^ 
»>  dão  este  titulo ,  parece  ser  o  Commentario  sobre  o  Penta- 
>»  teuco.  '»  Este  Commentario  pela  confissão  do  author  da 
Bibliotbeca  sahio  em  Anvers  lyóp,  e  Leão  de  França  ijSó, 
T.  IX.  P.L  F  e 


nlo  obstaute  escrever  110  titulo  que  o  Padre  Azambuja  fazia  exactis- 
simim  litterce  expositionem ,  lual  preencheo  os  fins  próprios  de  huiu 
titulo ,  vistoquc  o  Padre  Azambuja  fez  huma  nova  interpretação  de 
Isaías,  que  elle  compara  com  a  Vulgata. 

(a)     De  prascipuis  caitsis  et  motneiitis  neglectte  a  nonullis  Hebraicarum 
Litter.  discipliiKe.  Disquisitio  ElenclUica,  Aug:  Taurvi.  17tí9  —  pag.  167, 


4«  Memorias  DA  AcademiaReal 

e  bem  se  vc  ,  que  nenhuma  destas  datas  se  ajusta  com 
aqucllas ,  em  que  diz  terem  sahido  os  Hebraísmos  e  Câno- 
nes, que  são  todavia  huma  obra  separada  do  Commentario 
iio  Pentixteuco  ^  aindaque  venhão  cm  o  principio,  ao  menos 
da  edição,  que  eu  consultei,  e  he  de  Anvers  (15-68)  on- 
de enchem  nove  paginas  debaixo  destes  títulos: 

Cânones    ad  iVacrartim  literarum  lectionem   ac  htcidiorem   co- 
gnit  tonem  peru  tiles. 

São  ao  todo  desascis  Cânones  onde  reluz,  a  vasta  eru- 
dição do  author. 

Hehraismi  ordine  literarum  digesti. 

Neste  opúsculo  serve-se  continuamente  da  erudiçSo 
Hebraica,  e  só  he  para  lastimar,  que  as  palavras  Hebrai- 
cas estejão  lançadas  em  caracteres  Romanos ,  o  que  mos- 
trando 3  penúria  daquella  typografia  não  poderá  nunca  ser- 
vir de  desdouro  a  huma  cidade  tão  famosa  nesses  tempos 
não  só  pela  typografia  Plantiniana,  mas  também  pela  edi-» 
.  ção  da  Polyglotra  de  Árias  Montano  ,  serviço  relevante  á 
íitterarura  sagrada ,  com  que  os  hespanhoes  fechavão  ái-r 
gnamente  hum  século,  que  tão  magestosamente  começará 
pela  edição  da  Polyglotta  do  Cardeal  Ximenes. 

Fr,  Heitor  Pinto,  monge  de  S.  Jeronymo ,  e  mui  ce- 
lebrado em  os  fastos  da  littcratura,  e  lealdade  portugue- 
za  ,  vai  apparecer  igualmente  luzido  nos  fastos  da  littcra- 
tura Hebraica.  Aprendeo  as  duas  linguas  ,  subsídios  princi- 
paes  da  Thcologia  exegética ,  no  seu  collegio  de  S.  Je- 
ronymo da  cidade  de  Coimbra  ,  e  das  suas  palavras  em  hu- 
ma dedicatória  ao  Cardeal  Rei  se  vê  ,  que  huma  boa  par- 
te dos  outo  annos ,  cm  que  elle  estudou  a  Filosofia  ,  e  a  i 
Thcologia  ,  se  applicou  ao  indispensável  escudo  das-  lin-  I 
guas.   Sahio  consummado   principaln}fiRf,e^  Qa  Hebraica..,.,.  ç[       I 

das 


DAS  SciENCIAS   DE  LiSBOA.  4^ 

dâs  suas  obras  Escriturarias  (a)  ,  assim  avulsas  coiho  reu- 
nidas ciTi  hum  só  corpo,  se  vê  j  quanto  elle  sobrcsahia  na 
verdadeira  intcliigencia  do  sentido  litteral.  Se  me  pergun- 
tarem ,  qual  foi  o  motivo,  por  que  dei  o  terceiro  lugar  a 
Fr.  Heitor  1'into  ,  parecendo  rouba-lo  a  outros,  que  por 
ventura  gj/.árao  de  melhor  conceito  nesta  litteratura  ,  res* 
pondo  com  Horácio  : 

Tanttim  series ,  juncturaqtte  pollet  \ 

Fr.  Heitor  Pinto  seguindo  as  pizadas  dos  Padres  Fo- 
reiro  ,  e  Azambuja,  teve  para  si,  quef  o  texto  Hebraico 
merecia  hum  especial  cuidado,  e  que  se  o  uso  desta  oú 
daquella  palavra  Hjbraica  bastasse  para  merecer  as  honras 
de  Commentador  perito  na  sobredita  lingua,  não  haveria 
cousa  mais  fácil,  existindo  já  nesse  tempo  diccionarios  He- 
braicos, interpretações  litteraes  ,  versões  interlincares ,  e  ou- 
tros auxilios  desta  natureza ,  e  por  estes  motivos  elle  aspi- 
rou a  huina  gloria  mais  solida,  juntando  a  cada  hum  dos 
capítulos  do  author  sagrado  o  que  intitulou  Annotationes 
ex  Hel/fao  y  e  quando  era  necessário,  como  foi  em  Daniel 
Annotationes  exChaldeo;  e  ahi  deixou  multiplicadas  e  convin- 
centes provas ,  de  que  era  ,  náo  só  versado ,  mas  eminente 
nas  linguas. 

Já  antes  de  Fr.  Heitor  Pinto  florecia  D.  Pedro  de  Fi- 
gueiró, a  quem  o  Bispo  Conde  D.  Fr. João  Soares,  como 
já  escrevi  cm  outra  memoria ,  chamava  o  S.  Jeronymo  do 
seu  tempo.  He  certo,  que  este  Cónego  regrante  foi  dis- 

F  ii  ci- 

(a)    Fr.  Hactoris  Piíiti  in  Diviíiiim  vatem  Danielem  commeiítarii.  —  Co« 
,  nimbriccc  ex  Officina  Antoidi  a  Mariz  1569. 

He  de  notar  nesta  edição  a  formosura  dos  caracteres  Hebraicos  de 
António  de  Mariz. 
Ill  Esccitielem  Propk.  Commentarii.  Antuerpim  m  cedibus  vidutB 

et  lueredum  Joamiis  Stelsii  1570.  — foi.  miit. 
— ■ Opera  onmia  latina.  —  Lugduni  1534 /o/.  Tem  os  Commenta» 

rios  aos  profetas  maiores,  e  ao  menor  Mahum. 


'44  Meuo-íias  DA  Academia  Real 

cjpulo  dos  mestres  portuguczcs  vimios  de  ParÍ7, ,  e  que  em 
1528  abrífão  huma  escola  de  Hcbreo  por  instancia  e  i  cus- 
ta do  mosteiro  de  Santa  Cruz,  e  que  já  homem  feiro  nos 
bons  estudos  vcstio  a  murça  Augustiniana  em  1543.  Os 
scusCommcntJrios  aos  primeiros  vmte  e  cinco  psalmos,  ás 
lamentações  de  Jeremias,  e  aos  doze  profetas  irenores, 
que  forão  impressos  cm  Leão  ce  Frcnça  ccptis  da  sua 
morte,  são  eruditos  c  recheados  de  palavras,  e  textos  He- 
braicos; não  vejo  porem  estas  erudições  alli  trazidas  com 
a  ordem  e  clareza,  em  que  se  abalizava  o  precedente,  nem 
o  exame  avulso  deste  ,  ou  daquelle  texto  pode  horr.hrcar 
çom  huma  interprataçiio  seguida ,  do  que  hia  apparecendo 
mais  notável  cm  cada  hum  dcs  capítulos.  Entretanto  cabe 
a  D,  Pedro  de  Finiieiró  huma  gloria  talvez  única  em  t(,das 
as  corpnraçõcs  religiosas  deste  Reino  ,  e  vem  a  ser  a  de 
ter  fe:to  medrar  c  arraigar  tanto  a  erudição  Hebraica  nos 
veneráveis  claustros  do  mosteiro  de  Santa  Cruz  de  Coim- 
bra,  que  talvez  não  custasse  muito  a  provar,  que  nunca 
alli  morrerão  de  todo  os  estudos  Hebraicos  ,  e  que  o  sa- 
grado fogo  desta  erudição  alli  escondido,  nunca  se  apagou 
inteiramente,  pois  neste  caso  seria  como  impossivel  ,  que 
elle  despedisse  as  lavaredas,  de  que  foi  testemunha,  e  ad- 
mirador, como  logo  veremos,  o  século  dezoito. 

Não  sahirei  já  agora  dos  Commentadores  ,  entre  os 
quâes  se  distinguem  o  sábio  D.  Jcronymo  Osório ,  e  seu 
sobrinho  do  mesmo  nome,  cujas  obras  Escriturarias  se  im- 
primirão em  Roma  nos  fins  do  século  XVI  ,  e  onde  se 
conhece  palpavelmente  a  mais  selecta  erudição  nas  duag 
linguas  Grega  c  Hebraica.  He  o  primeiro  talvez  ainda  mais 
digno  de  louvor  pelos  cuidados,  com  que  obstou,  quanta 
nelle  era ,  ao  definhamento  de  taes  estudos  (a) ,  do  que 
pelas  mostras  de  saber  profundo ,  que  o  collocárão  na  pri- 

mci- 

(a)  Não  somente  animava,  porém  estabelecia  dentro  do  seu  Paço 
aulas  de  Grego,  e  de  Hebraico,  e  excitava  os  Thcologos  já  adiautados 
em  annos ,  paraque  entrassem  ucsta  carreira.  Oh  têmpora ! 


.t  •  DAS   ScfEWCIAS  DE  LiSBOJU  M  J^J" 

meira  linha  dos  homens  grandes  de  hum  século ,  que  tio 
abundante  foi  de  trotcos  licterarios,  justa  compensação  dos 
que  lhe  faltarão  pelo  exercício  das  armas. 

Os  Jtsuitas  reunindo   cm   hum  sujeito  as  cadeiras  de 
Grego,  c  H-braico ,  e  não  se  dignando  publicar  em  a  sua 
typografia    do  collegio    das   artes    de  Coimbra   hum   só  in- 
dicio, de  que  promovião  taes  estudos  (pois  assimcomo  alli 
se   imprimio   por  ve/.es  a  Arte  Grega   de  Nicoláo  Cienar- 
do,  também  se  poderia  imprimir  a  Arte  Hebraica  do  mes- 
mo author,    ou  qualquer  outra  idónea  para   ensinjr    a  mo- 
cidade Portugueza)  ,    são  gravemente  culpados  no  esmore- 
cimcnto  da   litteratura   Hebraica   pelos   fins   do   próprio  se- 
cul )  ,    em  que  mais  luzente  e  conspicua  se  mostrara  ;  mas 
pede    a  justiça    que  não  seja)   ommittidos    os  ncmes    dos 
Padres  Cisme    de  Magalhães,   Sebastião  Barradas,    Bento 
Fernandes ,  e  Manoel  dj  Sá ,  egrégios  cultores  das  Hnguas 
Grega  e  H-braica,   e  visto  o  ser  educado  neste   século  o 
Paire   Francisco  de  Mendonça ,    não  lhe   tirarei  o   seu  lu- 
gar cure  os  Jesuítas  estudiosos  daquellas  duas  linguas  (a). 
O  Padre   Cosme    de   Magalhães    merece   nesta   littera- 
tura ainla  maiores  elogios,  que  na  Grega,  pois  tendo  os 
seus  Gon.nintarios   por  objecto  algumas  partes  do  antigo 
Testa  ncnto  ahi  cabia  melhor  a  erudição  Hebraica  ,  de  que 
eu  pod.ndo  citar  muitos  exemplos,  só  enviarei  os  meus  lei- 
tores para  o  Commcntario  ;'»  Canticum  primum  Mosis  da  edi- 
ção 

(a)  Níío  ciio  as  edições  das  obiaa  destes  Commentadores ,  que  se 
pode  n  ver  n\  BtbliotU:ca  Lusitana  ,  mas  cuinpre-rae  fazer  algumas  ad- 
Tertenci.is.  O  1'adrc  Barradas  em  os  seus  Cominentarios  iii  Conconl.  Hist. 
IF  Eiit-r.  iaipressos  em  L?ão  de  França  (1611)  usa  frequentemente 
do  texto  ilebraioo ,  expresso  em  caracteres  nítidos,  como  se  pode  vei 
a  pig.  02,  67,  (j8,  99,  115,  e  129  do  primeiro  tomo  daquella  edição, 
cujo  imprcssir  l.iiiçou  fambcm  em  caracteres  Romanos  as  palavras  He- 
braicas, o  qae  mostra  desejjs  de  acudir  aos  que  não  soubessem  o  ai* 
fabeto  .iljbr.iico.  Nos  volumes  impressos  em  Lisboa  por  Pedro  Craes- 
becck  vem  caracteres  Hebraicos  menos  máos,  a  pezar  de  muitos  erros 
e  tróc7is~de  letras,  e  Ha  ausência  dos  pontos  vogaes,  que  já  tiulião 
morrido  naquelle  prélo. 


7^6  Mkmohias  DA  Academia  Real 

çao  Lugduriensc  de  1609  ,  e  ahi  desde  pag.  19  até  pag.  11 
pôde  ler-.se  huma  breve  porém  atilada  discussão  sobre  a 
poesia  dos  Hcbreos  tanto  mais  digna  de  applauso  ,  quanto 
lhe  foi  posterior  a  obra  clássica  deste  género  (a). 

O  Padre  Bento  Fernandes  logo  na  cxplicrçao  do  ca- 
pitulo I.  do  Génesis  mostra  o  que  era  de  sabedor  na  lín- 
gua Hebraica  ,  juizo  este  que  nunca  será  desmentido  pelo 
decurso  das  sues  obras. 

O  Padre  Francisco  de  Mendonça  a  pezar  de  fallecido 
em  o  século  XVll  ,  não  deixa  de  pertencer  ao  século,  em 
que  estudou  as  letras  humanas.  Fm  os  seus  Commcntarios 
aos  quatro  livros  dos  Reis  faz  muito  uso  do  texto  origi- 
nal ,  como  se  pôde  ver  nos  dous  volumes  estampados ,  o 
primeiro  em  Coimbra  por  Diogo  Gomes  do  Loureiro  (1621), 
e  o  segundo  em  Évora   por  Pedro  Craesbeeck  (1624). 

Aindaque   os  Padres  Oleastro  ,    e    Foreiro  acreditarão 
de  tal   modo  a  ordem  dos  Pregadores ,  que  por  certo  não 
carece  de  mais  gloria  nesta  porção  dos  estudos  subsidiários 
para    a  Theologia ,    nestes  séculos    de    que   vou  tratando , 
convém    fazer  ainda  especial   memoria    do  Padre   Fr.  Luis 
de  Sottomaior ,    que    não   só    pelas  chronicas    e  escritores 
da   sua  ordem  ,  mas  pelo   testemunho   dos  seus   contempo- 
râneos de  todas  as  classes ,  mereceo  os  créditos   de  varão 
consumado  em  os  differentes  ramos  de  Theologia,  que  en- 
sinou por  largos  annos,  e  com  grande  applauso  em  a  Uni- 
versidade de  Coimbra.  Examinei  o  seu  Commentario  ao  Cân- 
tico dos  Cauticos  impresso  em  Lisboa  por  Pedro  Craesbeeck 
(1J99))  s  30  mesmo  passo  que  eu  notava  a  boa  applica- 
ção  da  lingua  Hebraica   a  pag.  30,    31,  80,   129,    163, 
^^Sí  s  J49  succedeo-me  lastimar  o  confuso  e  mal  figura- 
do das  letras  pela  maior  parte  inintelligiveis ,  prova  fatal, 
mas  verdadeira,  de  que  o  Hebreo  começava  a  despedir-se 
de  nós. 

Nâo 

(a)     De  Rob.  Lovth. 


DAS  SciEKciAs  DE  Lisboa.  4^ 

Náo  disputando  ás  mais  ordens  Religiosas,  o  terem 
contado  nesta  época  vários  alumnos  sabedores  da  lingua 
Hebraica,  só  tratarei  de  esbulhar  alguns  da  gloria,  que  por 
certo  lhes  náo  pertence,  c  de  restituir  a  outros  o  lugar, 
que  ainda  lhe  náo  foi  assinado,  quanto  eu  saiba,  pelos  nos- 
sos escritores.  Wolfio  addicionando  a  Hispânia  Orienta/is  de 
Paulo  Colomesio  ,  noinê.i  alguns  Fortuguczes  deste  século, 
c  pede  a  boa  critica,  que  se  depure  este  catalogo  das  con- 
fusões, e  erros  de  que  está  clieio.  Alli  vem  três  Francis- 
cos  dcb.iixo  dos  appellidos  Alcobacensis ,  Machadus ,  Seat- 
ris ,  que  devo  redu/,ir  somente  a  dous ,  vistoque  o  Cister- 
ciense  Fr.  Francisco  Machado ,  Doutor  pela  Universidade 
de  Pariz ,  na  obra  que  escreveo  adverstts  Habraos ,  de  que 
faz  menção  a  Bibliotbeca  Lusitana ,  se  chamou  Franchcus  JV- 
curif ,  e  o  chamado  Alcobacense  pela  Bibliotheca  não  pode 
ser  outro  senão  o  Doutor  Fr.  Francisco  Carreiro  ,  que  em 
i5'97  era  lente  de  Durando  em  a  Universidade  de  Coim- 
bra ,  o  que  se  confirma  pelas  noticias  porventura  trans- 
mittiias  de  Portugal  para  o  author  da  Bibl.  Cisterciense. 
Hum  e  outro  fora )  monges  da  minha  ordem  ,  e  sobresa- 
hírão  nos  estudos  Theologicos,  mas  devem  ser  expungidos 
da  lista  dos  sabedores  da  lingua  Hebraica.  O  primeiro  na 
sua  obra  impressa  em  Coimbra  (1J67)  apenas  huma  até 
duas  vezes  usa  de  palavras  Hebraicas  em  caracteres  Lati- 
nos, que  de  certo  não  convencem  o  leitor,  de  que  clle  sou- 
besse a  lingua.  Do  segundo  tenho  visto  alguns  trabalhos 
filosóficos  manuscritos  sobre  Aristóteles ,  onde  não  se  divi- 
sa a  erudição  Grega,  que  vinha  tanto  a  propósito;  e  co- 
mo ainda  não  vi  os  seus  trabalhos  theologicos ,  nem  será 
fácil  dcscubrilos,  visto  não  apparecerem  na  livraria  manu- 
scripta  de  Alcobaça  ,  (deposito  ordinário  das  producçóes  dos 
monges  daquella  casa)  tenho  por  mais  provável ,  que  elle 
não  tivesse  grandes  conhecimentos  da  lingua  Hebraica. 

Só  de  passagem  citarei  novamente  a  Epistola  trilin. 
gue  de  Joanna  Vaz,  aindaque  principio  a  ter  alguma  du.. 
vida  ,    se   competem  maia  á  Castelhana  Luiza  Sigêa   doque 

i 


4^.  Memorias  D  A  Academia  Real 

i  nossa  Portugueza  os  louvores,  que  por  ventura  correrão 
até  hoje  confundidos.  Authorcs  Purtuguczcs  de  nota  (a), 
sem  disputarem  a  Joanna  Vaz  o  conhecimento  da  lingua 
Hebraica  ,  attribuem  a  Luiza  Sigêa  a  Epistola  trilingue 
ao  Papa,  c  muito  fácil  era  que  o  author  da  Bibliothcca 
Lusitana  se  enganasse,  ou  fosse  illudido,  o  que  só  entra- 
nharão os  que  não  sabem ,  que  a  cmpreza  de  tecer  huma 
Bibliothcca  nacional,  exacta  e  acabada,  exige  hombros  de 
gigante. 

Entrarão  de  novo  para  a  lista  dos  sabedores  da  lingua 
Hebraica  hum  nacii  nal ,  c  hum  estrangeiro.  O  nacional  hc 
o  Franciscano  Fr.  Roque  de  Almeida,  que  a  pczar  de  não 
ter  figurado  na  Bibliotheca  Lusitana^  e  nos  mais  escritores 
portuguczes,  que  fizcrao  especial  memoria  dos  estudiosos 
da  lingua  Hebraica  (//) ,  deve  ter  aqui  o  lugar,  que  hum 
seu  illustre  contemporâneo  lhe  assinou  cm  as  palavrjs  se- 
guintes :  Prater  cateros  Lutetiie  mihi  cogiiitos,  monachus  etiatn 
qtiídam  I^tiritanus  ex  instituto  Franciscanorum  Rochus  ^lineiday 
mire  mihi  deditus  erat ,  adeoque  me  docente  captas  erat  amore 
líterartivi  Hebraicarum ,  ut  hac  sola  gratia  paucis  postea  dis- 
pus se  contiilerit  Lovanium  à^c.  (c). 

O  estrangeiro  hc  ojudeo  convertido  Francisco  de  Tá- 
vora ,  de  cujos  trabalhos,  e  vicissitudes  da  fortuna  já  dei 
alguma  noticia  em  a  Memoria  sobre  Fr.  Bernardo  de  Brito ^ 

e 


(a)  Sousa  de  Macedo,  Flores  de  Portugal.  VascoDcellos  ,  Historia 
de  Santarém  edificada. 

.  (b)  Fr.  Luiz  dr  S.  Francisco  na  sua  prefacção  ao  Globua  Canorium. 
D.  Fr.  Manoel  do  Cenáculo  cm  diíTcrcntes  obras,  f^as  disposições  para 
os  estudos  da  3.'  ordem,  traz  os  nomes  de  Religiosos  Terceiros,  que 
66  derão  nos  séculos  XVI  e  XVII  aos  estudos  da  lingua  Santa. 

(c)  As  palavras  de  Clciiardo  forão  transcriptas  porColomesio  a  pag. 
221  da  obra  citada,  e  como  afíirina  que  o  Religioso  Franciscano  Fr. 
Eoque  de  .■Vlineida  florecêra  cm  1525,  lie  de  prel-uiiiir  que  fosse  dos 
mancebos  que  D.  João  111  mandou  estudar  a  Pariz.  As  cartas  de  Cle- 
Tiardo  fazem  muila  honra  á  nossa  litteratura,  forão  impressas  ao  menos 
quatro  vezes  em  o  século  XVI,  e  creio  que  neubuina  das  livrarias  de 
Coimbra  pD:ssue  huuu  rxeiupLu:  xlcsta-  obia  I 


DAS  SciENCiAs  DE  Lisboa.  49 

c  neste  lugar  só  darei  conta  da  sua  Arte  ou  Grammatica 
Hebraica  impressa  em  Coimbra  por  João  Alvares  (  1566  ) 
o  que  he  tanto  mais  necessário ,  quanto  este  Livro  he  ra- 
rissimo  ,  que  se  o  nao  fosse  mal  poderia  escapar  aos  eru- 
ditissimos  D.  Fr.  Manoel  do  Cenáculo,  e  António  Ribei- 
ro dos  Santos,  e  como  os  sábios  estrangeiros  aprccião 
em  muito  qualquer  noticia  de  Literatura  Hebraica  ,  e  o  sá- 
bio A.  da  Èíblíotheca  Hebraica  ,  não  teve  noticia  nem  deste 
judeo  ,  nem  da  sua  Grammatica,  lançarei  cm  nota  a  dedi- 
catória ao  Conde  da  Feira  ,  de  que  ainda  algum  sábio  es- 
trangeiro poderá  fazer  uso,  quando  se  trjte  de  fazer  cor- 
recções e  addiçóes  á  citada  Bibliotbeca  de  Wolfio.  (a) 

T.  IX.  P.I.  G  O 

(a)     Illustrisámo  D.  Jacobo  Pereira  Comiti  Fereiísi ,  Fraiwiscus  a  Tá- 
vora. S.  P.  D.: 

Cutn  deccm  anos  natus  ,  Comes  illustrissime  ,  me  Thessalonicam  disceiuli 
causa  coiitulissem ,  ibique  aimos  ires  Liiig-uavi  Syricam  aliasque  dedicissem , 
eodem  discoidi  stiidio  3Ionestenum  iirbKtn  totius  Grceciw  ■praclaiissnmam 
sum  projectus ,  in  qua  urbe  cum  Ckaldwam  ,  Armenicam ,  Gelbanam  , 
Tttrcarumque  liiiguam  didicissem  ,  tandem  a  Josepho  Gaone  et  Mediíia  sa- 
jnentibiis  ut  ea  appellunt ,  Constantitiopolvn  ,  ubi  multi  mihi  sanguiiic  con- 
Juncti  ei-ant ,  sum  revocatus ,  ut  magistri  gradum  susceperim  :  quo  suscepto 
Vcnetias  me  docendarum  linguanan  causa  contuli ,  ibique  cum  frequcnter 
Sacram  Scripturam  legerem  clarissime  ex  viultis  Sacrarum  literarutn  lo- 
cis  cognoui  Cliiislianam  Jidem  et  religionem  eam  esse ,  sinc  qua  nemo  ad 
bcatam  ,  faslicemque  vitam  posset  pervcuire  ,  Christurnque.  optimum  maxi- 
mum  ,  seriiatorem  iiostrttm  esse  eum  ,  quem  Jacob  morieiís  futurum  prcedi- 
■tit ,  Non  auferetur  sceptrum  Juda  ,  et  dux  de  fcemore  ejus  ,  donec  veniat , 
qui  mittendus  est. 

Qua  de  causa  Romam  sum  pofectus  ,  ut  sacro  baptismafis  fonte  ló- 
tus, lis  aqua  mundarer  de  quibus  Ezcchiel.  Cap.  36.  Efiundam  super 
vos  aquam  muiidam  ,  et  muudabimiin  ab  omnibus  inquinamentis  vestris ,  cui 
rei  haurmtius  Pirez  a  Távora  iirasfuit.  Inde  mortis  metu  quam  et  pnter , 
et  sanguinei  mihi  miiiabaniur  ,  quod  Judaici  erroris  desertor-  me  ad  Christia- 
nam  religionem  convertissem  ,  iti  Hispatiiam  profectus  Plúlippi  regis  jussu  , 
eruditionis  mete  facto  pericxdo  ,  menses  octo  mcdiocri  stipeudio  Hebrceam  liii- 
gxiam  SalmanticcE  publice  docui  ,  quam  urbem  cum  uimiis  fiigoribus 
mihi  maxime  infestam  invenissem ,  Conimbricam  me  converti.  In  qua  urbe 
rum  imíli  cognati ,  aut  amici  essent ,  qui  me  hospitio  susciperent ,  Domnus 
Rodericus  tuusflius  nobilissimus  fuit ,  qui  hominem  lotiginquum  ,  et  alieni- 
genam  nom  soluni  suis  tectis  exciperet  ,  sed  rcs  etiam  necessárias  suppedita- 
ret.    Quam  ob  rem  cum  nulla  alia  raíione  animum  in  te  nosti-um  ostendere 


5©  Memorias  da  Academi  a  Real 

O  titulo  da  Grammatica  he  assim. 

Grammatica  Hehraa  ,  novissime  edita,  Authore  Francvco  a 
Távora.  Covimbrica  apud  Joanuem  JlVanim  Anno  Do- 
mini  MD.  LXVI. 

Afora  o  prologo  ou  dedicatória  consM  de  n8  pagi- 
nas ;  começa  pela  declaração  do  alfabeto  Hebraico  ,  onde 
SC  demora  talvez  mais  doqae  pedia  a  brevidade  que  cUe 
fc  propunha  ,  e  que  de  feito  seguia  em  outras  partes  de 
maior  importância,  mas  que  expõe  todavia  com  assas  cla- 
reza ,  e  mcthodo.  Por  fim  da  ccllecçao  dos  preceitos  acres- 
centa hum  ensaio  de  versão  literal  do  começo  da  Profe- 
cia de  Abdias,  que  também  lançarei  em  nata  a  beneficio 
dos  estudiosos   de  nossa  linguagem  ,    (a)    e  remata  o  livro 

com 

putwsscmwi , jmupetes  agrícolas  yutnus  imitati ,  qui  cum  cjuondam  dm  mino- 
ra srcrificia  prwsture  non  posstnt ,  Cereri  spicas  ,  Bacho  raccmwn ,  F/illa- 
di  olÍBam  ,  .ma  dcmum  aáqua  Deo  mimera  offercbant ,  ut  quamvis  exisuo , 
ffrato  tamen  niunere  cos  colerent.  Cum  tgitur  ,  ut  aliquid  utilitatis  afferre- 
miv!  iis  qui  Hasuaw  Hebiwmn  scire  vcllevt ;  liaiic  nostram  artcm  typis  ex- 
cussam  in  litcem  edere  voltãssemíis ,  intelllgereniusque  te  maxime  omnhim 
lilerarum  generc  delectwi ,  tibi  ,  comes  illustrissime ,  eam  dedicare  instiiid- 
}nus ,  ut  mwiere  aliquo  ,  et  si  te  non  digno ,  tamen  lÁribus  nostris  pari ,  a- 
nimi  in  t-e  nostri  cum  gratitiidinem  et  bencvolentiam  ,  tiim  etiam  pictatêm  sigm- 
ficare  jjosscmus.  Accipe  igitur  lioc  nostrum  ,  qualccumque  sit  múnus  ,  ncc 
qumitum  sit,  sed  quo  animo  dctur  expende.  Vale.  Kalcndas  Janunrii  1ÍJ66. 
(a)  11  Profecia  de  abdias:  asi  dixi  o  Senhor  Deos :  por  ísdom  ou- 
?)  vida  ouuimus  do  Senlior  ,  e  embaixador  a  gentes  foy  mandado,  a- 
»  leuantaiuos,  e  aleuantarnos-emos  contra  ella  a  peleja. 

1-  Eis-aqui  pequeno  te  ei  dado  uas  gentes ,  menos  prezado  tu  inuy- 
•>i  to  =:  Soberba  de  teu  coraçaõii  t£  enganou,  o  que  mora  em  minas 
7!  de  penedal,  alta  sua  habitação,  o  que  diz  em  seu  coração,  quem 
w  me  fará  decer  á  terra. 

■>i  Se  te  aleuantorcs  como  Águia,  e  se  em  meo  das  estrellas  puge- 
■>i  res  teu  ninho,  dahi  te  farei  decer,  dito  de  Deos  Se  Ladroeus  vie- 
;■>  ram  a  ti ,  se  roubadores  de  noite  como  te  calaste  certamente  furta- 
71  riam  seu  necessário  ,  se  vindimadorcs  vieram  pêra  ti ,  certamente  fi- 
">■>  cariam  rabuscos. 

"  (x)mo  foram  esquadrinhados  Ezau ,    foram  buscados  seus  escon- 
Tt  didiços. 
' '  '•»  Até  o  termo  te  maadaram  todos  os  homens  do  teu  firmamento,  v, 


DAS  SciEKCiAS  DE  Lisboa.  fr 

com  a  approvação  de  Fr.  Martinho  de  Ledesma ,  que  a  exa- 
minou de  ordcin  do  Inquisidor  geral  Infante  D.  Henrique, 
e  lhe  chama  valde  iittlem  ,  tit  qui  voltierint ,  cito  linguam  e- 
díscant  Hehraam. 

Destes  principies  he  fácil  concluir  —  i.°  Que  ainda 
em  iy66  não  erão  desprezados  neste  reino  os  estudos  de 
lingua  Hebraica  ,  pois  hum  estrangeiro  foi  bem  recebido 
em  Coimbra,  e  teve  discipuios  ,  que  o  obrigarão  a  com- 
por huma  Arte.  2.°  Que  faziao  os  estrangeiros ,  o  que  de- 
vião  ter  feito  os  naturaes ,  pois  he  lastima  ,  que  nem  se 
quer  saibamos  por  que  arte  ensinavão  os  Jesuitas  do  colle- 
gio  de  Coimbra.  Esta  compilação  porém  de  regras ,  e  pre- 
ceitos grammaticaes  sahio  já  mui  tarde  para  fazer  resusci- 
tar  os  estudos  de  Hebreu  então  quasi  mortos  neste  reino  j 
e  como  não  será  fora  de  propósito  referir  as  perseguições  , 
e  contrariedades  oppostas  aos  amadores  de  taes  estudos,  e 
descubrir  as  varias  causas  ,  que  influirão  neste  desastroso  cor- 
te dos  bons  estudos ,  findarei  com  esta  odiosa  pintura  o  que 
eu  tinha  para  escrever  sobre  o  século   16.  {a) 

A  má  intclligencia  do  Canon  Tridentino  que  declarou 
a  autenticidade  da  nossa  Vulgata  ,  foi  huma  das  primeiras 
causas,  que  gerarão  o  despreso  da  lingoa  Hebraica,  e  in- 
fluirão muito  para  o  seu  extermínio  das  nossas  aulas  preli- 
minares da  Thcologia.  Creio  também  que  o  horror  aos  es- 
tudos de  huma  lingoa  mui  avessa  das  outras  nos  seus  di- 
versos elementos  ,  e  até  na  configuração  das  letras ,  e  mo- 
do de  as  escrever ,  sustentado  pela  preguiça ,  alheou  mui- 
ta  gente    do  que   á  primeira    vista  se  lhe  antolhava  como 

G  ii  dif- 

(a)  A  persuação  da  necessidade  da  lingua  Hebraica  para  os  esta- 
dos Theologicos ,  estava  tão  profundamente  gravada  nos  Portnguezea 
até  ao  meio  deste  século  ,  que  os  próprios  Infantes  destinados  para  o 
Estado  Ecclfsiastico ,  não  erão  dispensados  do  seu  estudo ,  como  suc- 
ccdeo  ao  Infante  depois  Rei  D.  Henrique ,  discípulo  nestas  erudiyõe» 
do  famoso  e  já  citado  Nicoláo  Clenardo  ,  o  que  nos  attesta  alem  da 
Chronista  dos  Cónegos  Regrantes  D.  INicoláo  de  Santa  Maria,  oerudit» 
Foppeus  cm  a  sua  Bibliotheca  Bélgica. 


yi  MemoriasdaAcademiaRbai, 

d  líicil  e  laboriubO.  N/o  hc  este  o  lugar  pai.>  ucsfaz  i  tacs 
prevenções,  e  quari'.  a  não  estivesse  SDÍiu.iTKntc  d^ii.C/iis- 
tiado,  que  o  Concilio  de  Trento  nem  tiu.u  nem  podia  ti- 
rar aos  textos  origiiiacs  a  sua  Divina  insjMi.  çáo  c  auihcnti- 
cidade  ,  bastaria  ver  o  grande  uso  ,  que  os  nossos  Tlieolo- 
gos,  Fadies  Oleastro  e  Foreiro  costumaváo  fazer  do  Hebreu, 
a  pe/ar  de  terem  assistido  ao  dito  Concilio.  Até  nos  púl- 
pitos se  tazia  commcmoraçao  do  Texto  Hebraico,  c  se 
deixo  muitos  exemplos  do  fim  do  século  i6  para  citar  hum 
só,  he  por  ser  do  esclarecido  Varão  o  Dr.  Diogo  t!c  Pai- 
va c  Andrade,  assas  r  conimcndavcl  pelas  suas  obras  Thco- 
logicas  ,  que  cm  os  Sermões  impressos  depois  de  sua  mor- 
te ,  e  ainda  pregados  no  século  i6  ,  inculca  repetidas  ve- 
zes com  o  seu  exemplo  a  devida  applicação  do  Texto  He- 
breu ,  onde  elle  pinte  mais  ao  vivo  que  as  traducçõcs  ,  ou 
a  energia ,  ou  a  prodigiosa  fecundidade  de  palavra  de 
Dcos  (a). 

Não  se  contentando  os  impugnadores  de  taes  estudos 
com  huma  simples  desapprovação,  ou  menoscabo,  princi- 
piarão de  os  attacar  ,  e  perseguir  com  tal  encarniçamento  , 
que  obrigarão  o  Padre  Azambuja  tão  modesto  como  douto 
a  romper  nesta  invectiva.  Imputent  hoc  (o  amor  dos  estu- 
dos Hebraicos  )  imbecillitati  ,  qiii  velint  ,  et  tngenii  niei ,  quam 
et  ipse  fateor  ,  tentiitati ,  et  quanto  libeat  siipercilio ,  ac  fas- 
tu  imputent ,  modo  ut  de  ntultis  ,  vel  unum  hoc  adducam  ex 
írigesximi  Geneseos  capitis  posteriore  parte  in  qua  de  Jacob 
cum  Laban  conventione  ,    et  Patriarcha  astu  agitur  ,    sitie  Liii' 

g"^- 

(a)  Veja-se  o  T.  1.  dos  seus  elegantes  Sermões  por  certo  os  que 
hei  visto  mais  parecidos  com  as  Homilias  dos  antigos  Padres  a  foi.  78 , 
79  ,  96  ,  97,  236  f. ,  273  ,  289  f.,  &c.  e  parece-me  justo  lançar  a- 
qui  íluas  palavras  de  Fr.  Manoel  da  Conceição  editor  dos  Sernjõts,  e 
Si)brinho  do  A.  ii  Passado  o  tempo  necessário  ao  estudo  daThcologia  Es- 
■>■>  colastica,  se  deu  de  todo  á  liçiío  dos  Santos  e  estudo  da  Sagrada  Es- 
v>  critiira  ,  pêra  o  que  aprendeo  muy  de  propósito  a  liiigoa  Hebraica, 
5)  que  he  meio  principalissimo  pêra  se  alcançar  o  sentido  literal  do  ve- 
»  lho  testamento.  E  neste  sentido  procurava  trazer  sempre  os  lugarca 
■>}  da  Diviua  Escritura  como  se  veri  nas  pregações,  f) 


DAS   SciENCIAS  T)E   LiSBOA.  ^ 

guartim  pr^esicUo  si  posiunt ,  se  expediant.  Deste  motlo  ec  ex- 
plica em  a  sua  Epistola  dedicatória  dos  seus  con-.mentarius 
sobre  o  Lcvitico ,  c  sendo  cila  endereçada  ao  Cardeal  In- 
fante D.  Henrique  antes  de  ijío  ,  b(.m  se  conhece,  que 
principiou  do  meio  do  século  16  por  diante  a  guerra  aos 
estudos  Hebraicos  ,  c  o  mais  he  ,  que  o  sobredito  Padre 
também  era  vexado,  pelos  seus  Religiosos,  que  Iheimpu- 
tavão  a  crime  o  desvio  da  auctoridade  de  S.  Thomaz  so- 
bre a  intelligencia  de  vários  textos  da  Escritura  como  por 
exemplo  os  do  Génesis  :  Crescite  et  mitltipUcatriini  éí'c.  Do- 
tninamini  piscibtis  maris  cb^c.  Este  Padre  até  depois  de  mor- 
to devia  sofFrer  novas  perseguições  ,  pois  em  o  Index  cx- 
purgatorio  deD.  Fernam  Martins  Mascarenhas  («)  he  man- 
dada riscar  huma  parte  da  sua  Prefacçao  aos  livros  do  Pcn- 
tatcuto ,  onde  entre  outras  cousas  defendia ,  que  a  Vulgata 
ainda  se  podia  corrigir  pelo  texto  Hebreu.   (_/*) 

Emquanto  a  nossa  mocidade  estudiosa  se  valia  dos 
trabalhos  de  hum  estrangeiro ,  succedeo  que  hum  nosso  Por- 
tuguez  se  esmerasse  cm  revolver  todas  as  artes  de  Hebrai- 
co ,  e  os  melhores  escritos  dos  Rabbinos  para  escrever  hu- 
ma Arte  ,  que  se  imprimio  em  Roma ,  e  que  pode  servir 
de  consolação  aos  que  advertirem  como  nesse  tempo  se  fi- 
nava entre  nós  o  estudo  de  lingoa  Hebraica.  Fallo  da  o- 
bra  do  Franciscano  Fr.  Luiz  de  S.  Francisco  intitulada: 

Globíis  Canontim  et  arcnuorum  Inigua  Sanctte  ac  Divina  Scri- 
ptiira   ad   Ferdinandwn  Medicem  Cardinalem  é^c.   Romte 
1586.  4.° 

;: -  '  ., -        Es-- 

(fl)     Pag.  0'8tí. 

(4)  Da  obra  posthnma  do  Padre  Azambuja  sobre  Isaías  se  vé  que 
õ  seu  continuado  uso  da  língua  Santa  em  o  coramentario  ao  Pentateuco 
azedara  muitos  dos  seus  leitores,  causa  esta  que  o  resolveo  a  ser  mais 
parco  destas  erudições  no  segundo  commcntario.  Se  me  fosse  dado  a- 
leni  passar  as  balizas  do  assumpto  desta  memoria,  eu  tivera  muito  que 
dizer  cm  defensa  do  Padre  Azambuja,  e  basta  .id  vertir ,  que  as  próprias 
correcções  feiUis  4  Vulgata  de  mandado  dos  Pontífices  ,  e  já  posteriores 
ao  Concilio  de  Trento  adTOgSo  a  caasa  do  iios«o  compatriota.  _  .i^ 


^4  MemobiasdaAcademiaReal 

Esta  obra  hc  não  só  Grammatical ,  mas  também  exe- 
gética segundo  se  vc  do  Elenchus  rerum  ontnium  qua  in  boc 
globo  coníirietitur  ,c  os  artigos  9.°  e  10.°  tratão  especialmen- 
te de  antiga  poesia  dos  Hebreos.  A'  primeira  vista  se  co- 
nhece, que  esta  obra  cahe  em  hum  extremo  de  diíFusáo  o 
mais  importuno  e  fastidioso  para  os  principiantes,  que  dcsa- 
nimão  todas  as  vezes  que  se  lhes  appresentáo  montanhas 
tão  Íngremes  como  elevadas  ,  onde  só  quererião  achar  ca- 
minhos andamosos  ,  e  planos.  He  tirada  pela  maior  parte 
dos  escritos  de  Elias  Levita,  e  outros  Rabbinos  ,  visto  po- 
rém começar  elle  o  estudo  da  lingoa  aos  cincocnta  annos 
do  idade  bem  mostra  que  fez  hum  excellente  uso  do  con- 
selho ,  que  para  esse  fim  lhe  dera  o  grande  Bispo  c  sábio 
D.  Jeronymo  Osório. 

Principiou  desgraçadamente  o  século  desasete  para  a 
lingoa  Hebraica  sob  os  mesmos  auspicios  ,  que  já  deplorei 
pelo  que  toca  á  lingoa  Grega ,  que  nesta  parte  muito  mais 
feliz  que  a  outra  teve  ao  menos  hum  distincto  cultor  ,  e 
alguém  mais  que  a  fomentasse  neste  século ,  venturas  es- 
tas que  faltarão  á  lingoa  Hebraica,  destinada  para  sofFrer 
neste  século  hum  inteiro  esquecimento  da  parte  dos  mes- 
mos Portuguezes ,  a  quem  ella  pouco  antes  fizera  tão  cele- 
bres em  o  mundo  literário.  Entretanto ,  como  se  houves- 
sem de  ser  quasl  em  tudo  semilhantes  os  fados  das  duas 
lingoas  ,  se  hum  Portuguez  estabelecido  em  paiz  estran- 
geiro foi  dos  nossos  o  que  mais  honrou  a  Literatura  Gre- 
ga no  século  17,  (d)  outro  Portuguez  também  naturaliza- 
do 

(a)  Tliomaz  Piuneiro  traductor  de  Stephaiio  ;  como  porém  ueste 
século  iiosoíferece  a Bibl.  Lusitana  mais  dous  traductores  Portuguezes, 
a  saber  Fernando  deMena,  e  Manasses  Ben  Israel,  cumpre-nie  dar 
açora  succintaraente  as  causas  porque  não  os  metti  na  classe  dos  tra- 
ductores ,  emquanto  me  não  vejo  obrigado  a  fazer  maiores  addições 
á  niiiiha  memoria  sobre  Literatura  Grega.  Emquaufo  ao  primeiro,  as- 
sentei que  era  melhor  ommitti-lo  do  que  renovar  a  questão  se  foi  Por- 
tuguez ou  Castelhano.  Emquanto  ao  segundo ,  eu  não  ignoro  que  o 
eruditíssimo  António  Ribeiro  dos  Santos  (  Memorias  de  Liter.  T.  3." 
pag.  3i7  )  seguiudo  a  Bibligtlieca  chama   traductor  de  Foc^lides  ao 


DAS  ScienciaS  de  Lisboa.  55, 

do  cm  Reino  estrangeiro  foi  o  que  dco  mais  provas  de  sa- 
ber ,  c  do  apreço  que  fazia  de  lingoa  Sanca. 

Não  me  cansarei  em  mostrar  que  a  erudição  dos 
commentadores  deste  século  Fr.  Balthasar  Paes ,  Fr.  Gre- 
gório Baptista ,  P,  Paulo  Kodrigues  ,  e  de  outros  fica- 
. ya  muito  a  quem,  da  que  justamente  louvei  no  scculo 
antecedente,  nem  he  meu  animo  roubar  ao  Theologo  Co- 
nimbricense João  de  Paiva  o  lugar  hum  pouco  mais  dis- 
tincto  (sim  muito  abaixo  dos  Foreiros ,  e  Azambujas) 
que  todavia  lhe  compete ,  e  para  me  aflFastar  quanto  an- 
tes desta  como  solidão  espantosa ,  que  me  oíFcrece  o  sé- 
culo 17  ,  respirarei  hum  pouco  tendo  em  vista  os  conheci- 
mentos Hebraicos  do  Monge  Benedictino  do  Mosteiro  de 
Monserrate,  porem  natural  de  Lisboa  Fr.  Francisco  San- 
ches ,  que  deo  á  luz  a  obra  seguinte  : 

In 


nosso  Menasses  Ben  Israel ,  examinadas  porém  as  formaes  palavras  des- 
te Jiideo  PorUigueE  ,  que  se  podem  ler  em  o  Prologo  da  2."  parte  da 
sua  obra  iutitulada  o  Conciliador  da  conveniência  dos  lugares  da  Sa- 
grada ticritura  impresso  em  Amsterdão  (1650)  u  Escrcui  depues  no- 
i>  tas  eii  Phocyli<ks  Poeta  Griego,  que  ahora  se  imprime  y-i  nãose  po- 
de concluir  que  fosse  traductor,  mas  que  só  era  commentador.  Acres- 
ce mais  que  no  dito  prologo,  em  que  faz  menção  dos  seus  estudos, 
que  forão  muitos,  nem  huma  só  palavra  diz  do  Grego;  o  que  se  de- 
via esperar  quando  o  tivesse  estudado  e  sabido  a  ponto  de  traduzir  por 
inteiro  hum  A.  Grego,  e  apenas  em  o  prologo  da  sua  obra  ==  de  La, 
fragilidad  humana  ,  =.  protesta  que  se  informou  ,  do  que  escreverão  os 
Gregos,  e  Latinos,  o  que  todavia  não  he  j)rova  terminante  de  gran- 
des conhecimentos  de  Grego  ,  pois  era  aquelle  tempo  bem  poucos  se- 
ii3o  os  A  A.  Gregos,  que  não  estivessem  trasladados  para  Latim.  O  cer- 
to he  que  D.  José  Rodrigues  de  Castro  não  fez  memoria  da  traducção 
de  Focjlides,  a  pezar  de  que  a  Bibl.  Grega  apoiada  no  testemunho 
de  Spjzelio ,  nos  dá  esta  noticia  em  o  artigo  de  Focylides  Hispanice 
transtuierat  Judfeus  cekbris  Manasses  Ben-hiad  et  cum  notis  edere  voluit. 
ííuspeito  ,  o  não  affírmo ,  que  por  ventura  a  traducção  de  Focylides  r= 
cn  Kspafiol  con  consonantes  iz:  author  P.  Francisco  de  Quevedo,  que 
*"  imptlnik>  em  Madrid  (  1635),  se  reimprimiria  em  Amsterdão  ou  Bru- 
xellos,  como  era  ordinário  uaquelles  tenvpos ,  ç  q\ie  Manasses  Beu  ls« 
racl  llie  lizcsàe  notas. 


jó  Memorias  DA  Academia  Real 

/»  Ecclesiasten  Conitnentatium  cum  concórdia  vulgata  editio- 
tiis  et  Hebraici  textus  j  Barcinotie  1619  4.°  (a). 

Na  prefação  recommcnda  o  esrudo  da  lingoa  Hebraica 
e  para  mostrar  o  que  ella  vai,  manda  consultar  os  com- 
mcnt.nios  Pererii  in  Genes,  3.  v.  15"  ,  e  acrescenta  Si  igno- 
rubat  Helrtca  cur  hebraizare  sapitis  gaiidct  ?  -vcnivi  hac  sca- 
bie  pasíim  laboram  concionatores  ,  qtii  tiisi  aliqiiid  Hehraiciim 
fromant  ,  truditionis  sua  jacturnni  jecisse  arbitrciiittir. 

Nestas  expressões  do  sábio  Bcnedictino  ,  eu  achei  fun- 
damento para  me  segurar  no  conceito  que  fiz,  depois  de 
hum  sollicito  mas  cançado  exame  dos  Prògadores  daqucllc 
tempo.  Fr.  Thomaz  da  Veiga,  {b)  Fr.  António  Fêo,  (f) 
Fr.  Pedro  Calvo  ,  {d)  Fr.  João  de  Ceita  ,  Fr.  Christovão 
de  Almeida  c  outros  recorrião  ao  texto  Hebraico  ,  mas 
qualquer  leve  tintura  de  lingoa  ou  as  versões  interlineares 
os  habilitavão  para  este  uso  da  lingoa  Santa  ,  que  não  ob- 
stante achar-se  quasi  proscrita  deste  reino ,  apparecem  to- 
da- 

'  (a)  E^te  commentador  bem  a  seu  pezar  teve  de  sugeitar-se  á  pe- 
núria dos  prelos,  e  por  isso  todas  as  palavras  Hebraicas  a  miúdo  c\- 
tadas  nesta  obra ,  que  consta  de  286  folhas ,  vem  escritas  em  caracte- 
res Romanos. 

(J)  Fr.  Thomaz  da  Veiga  nas  considerações  Literaes,  Moraes,  e 
Allegoricas  sobre  os  Threnos,  cujo  1.  Tomo  sábio  em  Lisboa  1633  a 
pag.  314  serve-se  da  versão  interliuear  do  Hebraico. 

(c)  Fr.  António  Feo  nos  seus  Tratados  Quadragesimaes  e  da  Páscoa 
Usa  de  palavras  Hebraicas  sem  dar  mostras  de  outra  erudição  alem 
do  que  facilmente  se  adquiria  pelos  meios  já  indicados. 

(rf)  Fr.  Pedro  Calvo  nas  Homilias  Latinas  para  todo  o  anno  T.  1. 
Lisboa  1615  ,  a  pag.  344  remette-se  á  auctoridade  de  Vatablo  ,  e  de  Fo- 
rriro,  c  a  pag.  524  á  de  S.  Jeronymo  ,  e  na  Homilia  ad  Hcbrceos  iit 
fide  Lapsos ,  produz  a  pag.  583 ,  e  604  textos  vertidos  literalmente  de 
'Hebrco,  que  bem  fácil  era  tira-los  de  Árias  Montauo.  O  mesmo  jui- 
20  se  pode  fazer  dos  Sermões  de  Fr.  João  de  Ceita,  e  de  Fr.  Christo- 
vão de  Almeida  e  para  resumir  tudo  cm  duas  palavias.  Eu  creio  ,  que 
a  obra  de  Pedro  Galatino  de  Arcanis  Catholica;  veiitatis  era  o  arsenal 
donde  os  Pregadores  dos  Autos  da  Fé,  tiravão  as  armas  para  comba- 
terem os  Judeos. 


1 


DAS  SciKNCiAS  DE  Lisboa.  ^7 

davia  os  seus  caracteres  menos  máos  em  os  prelos  de  Pe- 
dro Craesbeeck  em  Lisboa  ,  de  Didgo  Gomes  do  Loureiro 
em  Coimbra  ,  e  de  Manoel  Cardoso  no  Porto.  Creio  ,  que 
Pedro  Craesbeeck  foi  o  impressor,  que  os  conservou  por 
mais,  tempo  conforme  sevo  do  já  citado  Index  cxpurgato- 
rio,  onde  se  encontrão  muitas  palavras  Hebraicas  em  bons 
caracteres;  e  se  o  Padre  Balthasar  Alvares,  como  presiden- 
te dos  censores  para  o  exame  e  redacção  daquelle  index, 
teve  o  maior  trabalho,  como  he  de  suppôr,  não  deverei 
exclui-lo  do  numero  dos  sabedores  da  lingoa  Hebraica.  A 
certeza  de  que  nem  o  cximio  Padre  Vieira  se  applicou  a 
estudos  ,  que  parecião  necessários  para  as  suas  pregações  ,  e 
nomeadamenre  para  a  sua  Clavis  Prophetariim  ,  e  Historia 
do  Futuro  ,  obra  tão  engenhosa  a  cercos  respeitos ,  quan- 
to a  outros  frívola  e  nugatoria  ,  depara-me  outro  argumen- 
to,  de  que  a  lingoa  Hebraica  era  totalmente  ignorada  neste 
reino,  e  ao  menos  o  Padre  Vieira  talvez  mais  sincero,  que 
muitos  prògjdores  ,  e  commcntadores  desse  tempo  não  dei- 
xava de  citar  o  interprete,  commentador  ou  diccionaiio, 
que  lhe  fornecia  as  palavras  Hebraicas. 

Que  immenso  vácuo  me  ofFerece  o  espaço  de  mais 
de  hum  século  fielmente  contado  desde  1640  até  i75'ol 
Neste  grande  intervallo  já  funestíssimo  para  a  lingoa  Gre- 
ga ,  apparecião  de  quando  cm  quando  nomes  portuguezes , 
que  não  dcixavão  quebrar  a  cadêa  principiada  nas  escolas 
de  Itália  em  o  Século  XV;  mas  pelo  que  toca  aoHebreo, 
não  apparcce  hum  só  commentador  ,  hum  só  Theologo , 
que  rastejasse  a  brilhantíssima  carreira  dos  nossos  maiores. 
O  Padre  D.  Luiz  Caetano  de  Lima ,  a  quem  se  attribuem 
Epigrammas  Gregos  ,  também  deixou  huma  obra  manuscrita, 
que  se  intitula  Exercitai  tone  í  Hebraic£  in  Genesin.  Também 
nos  consta  do  elogio  deste  benemérito  Padre  ,  que  o  decl- 
ino Conde  de  Vimioso  costumava  dizer  do  Padre  Lima  , 
que  elle  tivera  o  dom  de  lingoas.  Entretanto  nada  he  mais 
fácil,  que  parecer  sábio,  c  luzir,  quando  he  geral  a  igno- 
rância ;  e  não  he  seguro  concluir  da  simples  inscripcão  da- 
T.IX.P.I.  H  quel- 


5^  Memorias  DA  Academia  Real 

quclla   obra  ,    que    o  Padre  Lima  tivesse  grandes  conhecí- 
nientu  da  lingoa  Hebraica. 

Só  á  vjsta  daquellas  exercitações  se  poderia  ver,  se 
o  fundo  principal  delias  era  a  linyoa  Santa  ou  as  ciudições 
Rabbiiiicas.  Ora  os  estatutos  da  Universidade  feitos  cm 
1654  íallão  da  cadeira  de  Hebraico,  e  do  seu  ordenado, 
mas  parece  ,  que  a  cadeira  se  tornou  em  simplesmente  ho- 
norária;  e  se  acreditarmos  o  erudito  cavalheiro  de  Monte 
mór  o  velho  Francisco  de  Fina  e  Mello  ,  que  escrevia  em 
1752  sobre  as  lingoas  oricntaes  o  seguinte  «  Não  he  ne- 
j»  cessario  provar  a  muita  ignorância  que  ha  destas  lingoas 
»»  no  nosso  Reino.  Do  Hebraico  ainda  ha  maior  dcsccnhe- 
>»  cimento  ,  porque  nem  se  ensina  ,  nem  se  aprende  »>  (a) , 
quem  não  lastimará  o  estudo  infelicíssimo  da  Literatura 
Hebraica  no  intervallo  ,  que  á  pouco  assinei? 

Graças  pois  sejão  dadas  ao  mui  erudito  A.  do  Verda- 
deiro Methodo  de  estudar  ,  o  qual  não  só  pintou  ao  vivo 
a  nossa  decadência  neste  ramo  de  Literatura,  mas  também 
inculcou  por  mil  modos ,  e  argumentos  a  necessidade  de 
recomeçarmos  hum  estudo  geralmente  airortecido  ,  e  talvez 
reputado  inútil  pelos  chamados  sábios  portuguezes  1  Hum 
destes  respondendo  ao  A.  do  Methodo  ,  ousou  mandar  im- 
primir estes  miseráveis  períodos.  «  Por  despedida  ordena  , 
íj  que  os  humanistas  saibão  a  lingoa  Grega  e  Hebraica  para 
j>  entenderem  os  livros,  como  senão  estivesse  tudo  muito 
V  bem  explicado  nos  commentos  Latinos.  Não  sei,  porque 
»>  não  lhe  aconselha,  que  saibão  Francez ,  Italiano,  Tudes- 
w  CO,  Inglez,  e  por  curiosidade  a  lingoa  de  Angola  e 
»  dos  Tapuyas  do  Brazil.  "  (b)  He  ocioso  perguntar  a  hum 
destes  ,  paraque  estudou  Racine  o  Grego  ,  quando  tinha  ver- 
sões Latinas  de  Euripides  e  Sophocles,    e  para  que  fim   o 

ce- 
ia)    Balança  intcllectual   çm  que  se  pezava  o  merecimento  do  ver- 
daticiro  methodo  de  estudar.    LisDoa  1752  ,    p.ig.  31. 

(i)     Reflexões    Apologéticas  í  obra    intitulada    Verdadeiro  Methodo 
de  estudar  &c.  Valensai  1748  4." 


DAS  SciENCiAs  DE  Lisboa.  5-9 

celebre  Conde  de  Alficri  começou  aos  45  annos  de  idade 
o  estudo  da  mesma  lingoa  ?  O  maior  cabtigo,  que  se  pô- 
de dar  a  estes  scmidoutos  he  fazer  reimprimir  os  seus  di- 
tos, paraque  cheguem  á  noticia  de  todos,  e  principalmen- 
te  dos  estrangeiros,  sempre  bons  avaliadores  das  erudi^cs 
Grega  e  Hebraica. 

As  providencias  tomadas  pelo  grande  Rei  D.José  I.  cm 
175-9  "^o  podiao  deixar  de  incluir  a  lingoa  Santa,  que  mui 
judiciosamente  encomendou  ás  corporações  Religiosas  dcs- 
ta  Monarchia ,  e  felizmente  não  sahio  errado  o  seu  concei- 
to. A  esse  tempo  já  o  tantas  vezes,  e  nunca  assa's  por 
mim  louvado  Fr.  Manoel  do  Cenáculo  havia  estudado  a 
lingoa  Hebraica  de  sociedade  com  outros  doutores  conim- 
bricenses ,  com  a  louvável  tenção  de  porem  em  lingoagem 
o  Testamento  velho;  e  se  o  Rei  á  instancia  do  seu  minis- 
tro de  Estado  Marquez  de  Pombal  o  não  chamasse  para 
outras  funcções ,  por  certo ,  que  elle  nos  deixaria  mais  cla- 
ros testemunhos  da  sua  erudição  Hebraica  ,  afora  os  que 
podem  colher-se  das  suas  differentes  ,  e  immortaes  obras. 
Forcejou  todavia  ,  paraque  a  Terceira  Ordem  preenchesse  nes- 
ta parte  os  votos  d'ElRei ,  e  o  Convento  de  Jesus  em  Lis- 
boa converteo-se  na  mais  famosa  escola  de  lingoas  Orien- 
taes ,  que  se  tem  visto  em  Portugal.  Ahi  se  estabeleceo 
por  algum  tempo  o  Maronita  D.  Paulo  Hodar,  sábio  nas 
lingoas  Orientaes ,  que  depois  lêo  em  a  Universidade  de 
Coimbra  ,  e  com  elle  se  aperfeiçoou  o  Mestre  Fr.  Francis- 
co da  Paz ,  que  tinha  de  dar  em  suas  obras  Grammaticaes 
e  Exegeticas  hum  grande  impulso  a  estes  conhecimentos. 
Principiarão  logo  estes  laboriosos  Padres  de  dar  continuas 
provas ,  do  que  se  tinhao  adiantado  nos  estudos  da  lingoa 
Santa.  O  Mestre  Paz  endereçava  huma  falia  Hebraica  ao 
Príncipe  D.José  de  saudosa  memoria,  que  se  dignou  vi- 
sitar os  estabelecimentos  Litterarios  de  seu  grande  Mes- 
tre. Fr.  Gregório  José  Viegas  (  hoje  Excellentissimo  Bis- 
po de  Pernambuco  )  dava  passos  de  gigante  nos  estudos 
tia  lingoa  Hebraica ,  e  fazia  composições  ,  que  andão  imprcs- 

H  ii  sas 


6o  Memouias  DA  Academia  Real 

sas  entre  os  obséquios  da  Terceira  Ordem  á  inauguração  da  es- 
tatua equestre  do  sobredito  Rei,  e  abonarão  entre  os  vin- 
douros o  progresso  ,  que  fez  o  seu  A.  nas  línguas  Orientaes. 
Alli  veio  apert"eiçoar-se  na  lingoa  Hebraica  o  Aiigustiniano 
Fr.  Joaquim  de  Azevedo,  que  brevemente  luvirá  cntie  os 
peritos  da  lingoa  Hebraica  no  século  18.  Alli  chegou  hu- 
ma  colónia  de  Cistercicnses  ,  que  o  seu  Geral  Fr.  Manoel 
de  Mendoça  quiz  habilitar  para  o  ensino  das  lingoas  cm 
o  collegio  de  Alcobaça.  Nestes  novos  discipulos  se  avanta- 
jou muito  o  Padre  Fr.  José  Sanches  natural  de  Alcains  , 
não  só  pela  sua  distincta  figura  nas  conclusões  defendidas 
cm  Lisboa  ,  cm  que  forao  arguentes  os  sábios  H()d;ir  ,  e 
Berminghan  ,  mas  também  pela  composição  Hebraica  im- 
pressa nos  applausos  do  Mosteiro  de  Alcobaça  á  inaugura- 
ção da  estatua  equestre,   (a) 

Oxalá  que  a  espantosa  queda  do  primeiro  Alinistro 
e  das  suas  creaturas  não  tivesse  feito  mirrar  os  estudos  He- 
braicos ,  que  apenas  sabidos  do  berço  Já  promettião  gran- 
des créditos  ao  nosso  Reino!  Oxalá  que  as  boas  institui- 
ções separadas  sempre  de  quem  as  fe?. ,  tn<:^em  constantemen- 
te superiores  ao  conflicto  dos  partidos  !  Fallemos  sem  rebu- 
ço, as  letras  Hebraicas  ou  perecerão,  ou  cahírão  em  for- 
mal desprezo  na  maior  parte  das  Congregações  ,  que  as 
buscavão ,  e  applaudião ,  e  não  obstante  as  ameudadas  re- 
commendações  de  taes  estudos  ,  he  necessário  confessar ,  que 
ellas  tem  outra  vez  desapparecido  dos  próprios  lugares  ,  em 
que  se  lhes  havia  feito  o  mais  cordeal  ,  c  benigno  acolhi'^ 
mento.  Não  acrescentarei  mais  paraque  não  se  julgue  que 
o  espirito  de  maledicência  guia  a  minha  penna  ,  e  conclui- 
rei esta  Memoria  com  os  sempre  respeitáveis  nomes  dos  já 
citados  Fr.  Joaquim  de  Azevedo ,  Fr.  Francisco  da  Paz ,  e 
de  D.  João  da  Encarnação ,   sem  duvida  os  coriíêos  da  Li- 

te- 


(a)    Sigo  nesta  oarcação  as  Memoiias  de  Fr.  Vicente  Salgado. 


^     DAS   SciEMCIÁS   HE   LiSBOA.  6l 

teratura  Hebraica  entre  nós,  como attestao  as  obras  impres- 
sas ,  bem  conhecidas  deste  reino ,  e  dos  estrangeiros,  {a) 


yd  depois  de  conchiida  esta  Metnoria  succedendo  me  exa- 
minar a  Collecção  dos  Retratos  dos  varões  illustrcs  c  Donas 
^c,  achei  que  o  sábio  Luiz  António  Vernei  cowposéra  btinm 
arte  Hebraica  que  ficou  entre  os  seus  manuscritos  ,  enão  he  pe- 
quena  honra  para  os  sabedores  da  lingoa  Santa  ,  que  também 
o  fosse  este  por  ventura  o  maior  sábio  Portuguez  do  secttlo^  18. 


(a)  Fr.  Joaquim  de  Azevedo  refutou  completamente  a  Sixtino  A- 
maina  ,  era  obra  impressa  ,  e  tratou  de  responder  ás  objeções  dos  in» 
crédulos  que  abusão  do  Texto  Sagrado  ,  era  outra  obra  também  im- 
pressa ,  onde  e.<:palhou  ás  mãos  cheias  a  erudição  Grega  e  Hebraica. 

Fr.  Francisco  da  Paz  escreveo  hunia  Arte  de  Hebraico,  e  a  ex- 
plicação das  vozes  anómalas  do  antigo  Testamento ,  que  ambas  sahirão 
Jmpreí^sas. 

D.João  da  Encarnação  Cónego  Regrante  de  Santo  Agostinho,  meu 
doutíssimo  e  saudoso  Mestre  ,  deixou-me  lembranças  indeléveis  do  me- 
thodo  e  clareza  com  que  explicava  a  lingoa  Santa,  de  que  fez  imprimir 
a  Grammatica  em  1790.  Teve  a  paciência  de  entregar  á  memoria  o 
Diccionario  Hebraico  ,  e  assento  que  neste  ramo  se  lhe  deve  applicar 
o  dito  de  Plinio  Imiíati  sunt  multi ,  aquavit  iiemo.  Sei  que  os  uoiiies 
de  D.  Paulo  ,  e  D.  Joaquim  da  Encarnação  figurão  na  Bibl.  Lusita- 
na, mas  careço  ainda  de  provas,  para  os  collocar  nestas  Memorias. 


6z  MUMORrAS  DA  ACACEMIA  RkaE, 


uidãitamento  a  esta  memoria. 

^^uando  eu  tocava  nos  monumentos  de  littcratiiia  l)c- 
braica ,  que  poderiáo  existir  na  livraria  manuscrita  do 
mosteiro  de  Alcobaça  ,  guici-me  pelas  noticias  dadas  no  //;- 
AiW  Codicíim  Bibliothece  Alcobatiensis  y  que  síío  dn  maneira  se- 
guinte. 

CoDEx  CCXXXIX. 

Memhríuic.ceus  iii  foi.  luagno  exaratus  Gothlcis  caractcri» 
hus  ,  muJtís  liueis  cxpunctisfol.  133.  continct  tractationem  dogma- 
ticant  de  Tyiuitatc ,  Incarnatioiíe  ,  libero  arbítrio  ,  intelligcU' 
tia  Prophetia  ,  de  novo  testamento ,  et  dispntatione  ordinanàa  , 
et  judicibus  eligaidis ;  disptitatiouem  item  inter  Hcbr^ctim  et 
christianttm  trimcatam ,  et  confnse  compaginatam  ,  qtc£  credi- 
tttr  esse  fragmentum  diwriim  egregiorum  voltimijiuvi  ,  f]ita  Fr. 
Franciscus  Machado  Mouachtis  Âlcobacensis  et  Doct.  Parisien- 
sis  Hairico  Cardinali  minciipavit  Sactil,  \6  quorum  meminit 
Kicolaus  AntontHs  in  sua  Biblioth.  et  extabaut  oliin  Ms.  in, 
Jlcob.  Bibl. 

CoDEx  CCXL. 

Memhrauaceus  in  foi.  exaratus  Gothicis  cnracteribus  foi. 
rjf>.  lacerus  tamen  plnribus  foliis  ,  et  ahrasus  plitribus  li>ieis  j 
et  Hl  ter  is  ,  scriptus  et  complettts  anno  1335-  per  Fr.  Joannctii , 
ut  legitur  in  fine  Prologi.  Compkctitur  Uhelltim  adversns  He- 
Iraos  ,  cui  auctor  titulitm  fccit  Spcculum  Hcbríeorum  :  Initium 
op.  Vcrns  et  unus  Deus.  Caret  fine. 

Só  por  estes  indicios  mal  podia  eu  concluir,    que  os 

mon- 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  (5j 


DISSERTAÇÃO    I. 

Os  Fenícios  em  Espanha ,  mil  e  quatrocentos  e  mais  aunos 
antes  da  era  de  Christo. 


Por  António  Pereira  de  Figueiredo. 


N, 


Xo  ha  cousa  mais  constante  entre  os  nossos  escrito- 
res ,  doque  terem  sido  os  Fenicios  huma  das  primeiras 
nações  estrangeiras,  que  vierao  a  Espanha,  e  nella  esta- 
belecerão varias  colónias.  Tão  attestada  hc  esta  vinda  pe- 
los Gregos  já  des  do  tempo  d' Homero,  e  pelos  Romanos 
já  des  do  tempo  de  Varrão  :  que  era  impossivel  a  igno- 
rassem hum  Fiorião  de  Campo  ,  hum  Morales  ,  hum  Ma- 
rianna ,  hum  Barreiros,  hum  Resende,  hum  Brito,  e  hum 
Arrais.  Entretanto  nenhum  destes ,  que  a  mim  nie  lembre , 
acertou  atògora  com  o  verdadeiro  tempo ,  em  que  os  Fe- 
nícios vierão  pela  primeira  vez  a  Espanha.  Porque  Brito 
põe  esta  vinda  novecentos  e  tantos  annos  antes  de  Chri- 
sto:  Marianna  a  rebaixa  até  o  tempo  de  Sicheo  marido  de 
Dido ,  e  consequentemente  pouco  anterior  á  fundação  de 
Carthago. 

Como  este  he  hum  ponto  importante  para  a  nossa 
historia ,  será  elle  o  assumpto  da  primeira  de  todas  as 
dissertações ,  com  que  tenho  determinado  illustral-la.  E 
seja  o  primeiro  passo  declarar,  quem  forão  os  Fenícios,  e 
qual  a  sua  primeira  origem. 

Os  Fenicios ,  está  assentado  entre  todos  os  eruditos , 
que  forão  os  mesmos  que  os  Cananeos  ,  descendentes  de 
Canaan,  filho  de  Cam  ,  e  neto  de  Noé;  e  que  estes  Ca- 
naneos erão  aquelles  povos  ,  que  habitarão  a  terra  chama- 
da da  Promissão ,  donde   por  mandado  de  Deos  os  expul* 

sá- 


^4  Memorias  da  Academia  Real 

sárão  os  Hebrcos,   parte  em  tempo  de  Moysés,  parte  cm 
tempo  de  Josué. 

Dcmostra-se  esta  identidade.  Primo:  Porque  pelos  ca- 
pitulos  IX  ,  Xlll  ,  e  XIX  do  livro  de  Josué,  e  pelo  ca- 
pitulo III  do  livro  dos  Juizes  consta,  que  o  Líbano,  Ty- 
ro  ,  c  Sidónia  ficarão  dentro  dos  limites  da  terra  de  Ca- 
naan,  que  Dcos  mandou  aos  Israelitas  que  conquistassem. 
E  ninguém  ignora,  que  o  Libano,  Tyro ,  e  Sidónia,  per- 
tencião  á  chamada  depois  Fenicia.  Demostra-se  Secundo: 
Porque  a  versão  grega  dos  setenta ,  como  observarão  cotn 
outros  Bochart  e  Calmet,  substitue  ordinariamente  Fenicia^ 
onde  o  Hcbrco  ,  e  com  elle  a  nossa  Vulgata  latina  trazem 
Catiaat!.  Como  quando  no  Êxodo  cap.  XVI,  verso  35'  dizen- 
do o  Hcbreo ,  que  Saul  era  filho  ãhtima  Canatiea,  os  seten- 
ta vertem  ,  que  era  fi/ho  d^huma  Fenícia.  E  no  capitulo  V 
de  Josué,  verso  12,  dizendo  o  Hebreo ,  fructos  da  terra 
de  Cduaan ,  os  setenta  vertem  fructos  da  terra  dos  Fenicios, 
Demostra-se  Tertio :  Porque  aquella  mulher,  que  recorreo 
a  Christo  para  lhe  curar  sua  filha ,  a  qual  S.  Mattheus  no 
cm.  XV,  verso  12  chama  Cananéa  ^  S.  Marcos  no  cap. 
VII,  verso  ^6   a  chama  Syrofenicia. 

A'  vista  de  tão  convincentes  provas  parecerá  escusado 
ajuntar,  o  que  Santo  Agostinho  na  sua  Exposição  incoada 
da  Epistola  aos  Romanos  assevera  da  persuasão  em  que  es- 
tavão  os  camponezes  d'Africa  ;  os  quaes  ainda  em  tempo 
do  Santo ,  quando  lhe  perguntavao ,  quem  erao ,  respon- 
dião  que  Cananos ,  isto  he ,  Cananeos.  E  isto  sem  duvida , 
porque  sabiao  por  tradição,  que  Carthago,  e  outras  terras 
suas  erão  fundações  dos  Fenicios  ,  vindos  antigamente  de 
Cjnaan.  Interrogati  rustici  nostri ,  qui  sint ^  respondente  Ca- 
nani.  Nas  Questões  sobre  o  livro  dos  Juizes  acrescenta 
Sinto  Agostinho,  que  a  antiga  lingua  púnica  ou  cartha- 
gineza ,  era  a  mesma  que  a  cananéa. 

Mas   seria  imprudência ,   ou  improvidcncia  ,    se  quan- 
do   se    tratava    das    colónias    dos   Fenicios    em    Espanha  , 
omittissemos  estes  testemunhos  de  Santo  Agostinho.  Por- 
que 


DAS    SciENCIAS    DE    LiSBOA.  6z   a 

monges  antigos  daquelle  mosteiro  se  tivessem  dado  aos 
estudos  de  lingoa  Santa  ,  c  de  mais  a  certeza ,  que  me  de- 
ra nesta  parte  o  exame  áo  Repertorittm  veritatis  de  Fr.  Fran- 
cisco Machado  me  parecco  extensiva  ao  outro  monge,  que 
SC  diz  escrevera  o  códice  CCXL, 

Passados  alguns  mezcs  ,  succedco-me  examinar  ambos 
os  códices  ,  e  dahi  me  proveio  a  dcscubcrta  de  novas  es- 
pécies sobre  litteratura  hebraica,  que  alem  de  enobrecerem 
o  mosteiro  onde  cila  se  cultivou  ,  tem  o  grande  merecimen- 
to de  patentearem  pela  primeira  vez ,  que  os  decretos  do 
Concilio  geral  de  Vienna  forão  não  só  recebidos ,  mas  exe- 
cutados á  letra  neste  reino ;  e  tempo  virá  em  que  cheguem 
a  descubrir-se  mais  argumentos  desta  verdade. 

Reparem  os  meus  leitores,  que  eu  me  satisfaço  e 
muito  deter  achado  dentro  das  paredes,  onde  fiz  o  tyro- 
cinio  monástico,  provas  irrefragaveis  da  cultura  do  He- 
breo ,  pois  aindaque  os  trabalhos  ,  de  que  estou  para  fazer 
menção,  se  reduzissem  a  meras  copias,  nem  por  isso  fica- 
ria destituída  de  fundamentos  a  minha  principal  asserção. 

F^ntretanto  a  pezar  deque  não  rezolvi  ainda  todas 
as  producções  da  meia  idade  contra  os  judeos,  e  sei  por 
outra  parte,  com  que  temor,  ecircumspecçâo  se  deve  pro- 
ceder no  exame  de  tacs  códices  ,  paraque  não  se  chamem 
originaes  ,  os  que  simplesmente  forao  copias  ,  eu  que  tive 
o  cuidado  de  esquadrinhar  os  Volfios  e  Bartolocios  ,  e  que 
confrontei  os  códices  de  Alcobaça ,  com  o  Punhal  de  fé 
obra  clássica  desses  tempos  ,  julgo  e  não  sem  graves  fun- 
damentos ,  que  o  sobredito  Specultim  Hebraorum  foi  compo- 
sição original  de  hum  portuguez  monge  de  Alcobaça  no 
século  XIV.  Debaixo  destas  ideas  farei  separadamente  o  cx3- 
mc  de  cada  hum  dos  sobreditos  códices,  e  depois  hei  de 
cotcjalos  entre  si ,  paraque  se  veja  ou  a  sua  identidade  , 
ou  a  sua  differença.    Comecemos    pelo  códice  CCXXXIX. 

He  necessário  ou  estar  cego  ,   ou  apenas  classificar  de 
hum  volver  de  olhos  este    códice ,    para  o  attribuir  a   hum 
escritor  do  século  XVI.  A  veneranda  antiguidade,  que  ellc 
Tomo  IX,  H  mos- 


62  h  MemoriasdaAcademiaReal 

mostra,  e  a  própria  letra,  em  que  he  escrito,  annuncião 
logo,  e  mui  claramente  o  excesso  de  duzentos  annos,  que 
elle  tem  sobre  a  data  dos  escritos  do  Doutor  Fr,  Francis- 
co  Machado. 

Justamente  se  queixa  o  A.  do  Index  por  ter  achado 
este  códice  confitse  compaginatum  ;  mas  por  isso  mesmo  o 
deveria  correr  todo  ,  e  facilmente  acharia  nclle  huma  boa 
parte  do  seu  principio,  onde  bera  clara,  e  methodicamente 
se  desenvolve  a  traça  de  seu  A.  ,  c  por  ventura  não  tem 
a  livraria  manuscrita  de  Alcobaça  hum  livro ,  que  mais 
acredite  a  erudição  dos  seus  monges  em  os  tempos  chama- 
dos escuros  da  nossa  littcratura  ,  c  que  seja  mais  accomo- 
dado  para  mostrar,  o  quanto  tiorecia  em  Portugal  no  sécu- 
lo XIV.  o  estudo  das  letras   Divinas. 

A  que  devia  ser  primeira  parte  do  códice  passou  por 
negligencia  do  encadernador  a  ser  a  ultima.  Três  colunas 
do  prologo  forão  raspadas  ou  por  malícia  ,  ou  por  certa 
economia  vulgar  naquelles  tempos.  Ficou  ainda  o  que  bas- 
ta para  conhecermos  o  fim  que  o  autor  se  propunha  ,  e 
que  a  meu  ver  desempenhou  com  huma  clareza  e  ordem  , 
de  que  não  se  pejariáo  os  mais  doutos  hebraisantes  e  con- 
troversistas  dos  tempos  modernos. 

Deixadas  certas  preparações  do  A.  quasi  illegiveis  nes- 
te códice  ,  extractarei  o  que  pertence  á  divisão  das  matérias. 

Liher  iste  iti  VIII  titules  ex  integro  dividetur.  Primus  dabit 
artcin  brevissitnam  positivam  scripttire  hebraice  vel  calãee  in 
nostris  litteris  cogmscende. 

Secimdus  erit  de  Trinitate.  Iste  docebit  titulas  quomodo  apttd 
deum  íit  cognoscenda  imitas  ia  essência ,  ve/  natura. .  et  tri- 
iiitas  in  personis. 

Tertiiis  erit  de  divina  encarnatione. . .  Iste  probabit  multis  ar- 
gumeutis  quomodo  idem  Deus  in  persona  filii '.  patre  et  spi- 
ritu  sfíucto  cooperante  ;  veram  humunitatem  accipere  debuit 
ex  virgine  illibata ,  verusque  homo  corporaliter  apparere 
Christus  Deus, 

Quar- 


DAS  SciENCiAs  DE  Lisboa.  62  c 

Quartus  erit  de  domintca  passione.  hte  probabit  quoniodo  iii 
redemptione  butuani  generis  deperditi ,  fuerit  idem  Christus 
Deiií  secttndum  homiuem  occidendtis  et  sepeliendus.  Qttomodo 
viauente  corpore  in  sepulcro  ,  infernttm  esset  spoliaturus , 
ter  tia  die  a  morttiis  in  corpore  sttrrectiirus  ,  in  celum  ascen- 
stints ,  et   ad  patris  dcxtravi  permnnsurus.  \ 

Qttintíis  erit  de  adventu.  Iste  probabit  prius  qito  tntmdi  tempore 

et Christus  debttit  adveuire.  probabit  deinde  quia  ve- 

nit.  probabit  et  quia  judfX  veniet  in  futuro. 

Sextus  erit  de  repromissione  inultiplici  noviC  legis  tam  figurali- 
ter ,  qiiam  aperte  ,  ut  per  eam  non  corpora  in  hac  vita  sed 
anima  salvarentur. 

Scptimus  erit  de  prophetia ,  et  necessitate  spiritualis  inteUigen- 
tie  scripturarimi.  Iste  probabit  vetus  testameníum  fuisse  per 
novum  ad  spiritum  necessário  deducendum ,  ut  sicut  ad  intel- 
lectum  carnalem  historia  vera  fuit  sub  veteri ,  ita  sub  novo 
fuerit  in  mistério  ad  spiritum   cognoscenda. 

Octavus  erit  de  imperitia  hebreorum  in  cognitione  sacre  scriptu- 

re.  Iste  disputabit de   Leviatan  quod  bebrei  male  att- 

tumant  in  christi  sui  -centuri  fortitudine  de  tnaris  pélago  ex- 
trahendum  ,  omnemque  popultun  Judeorum  ex  eo  Largijiue 
saturandum. 

Proposta  a  divisão  da  matéria  conclue  o  prologo  assim. 

Obsecro  autem  vos  ó  Christi  professores ,  ut  grafia  comodioris 
disputationis  vestrum  mi  adhibeatis  favorem  ,  ut  si  quando 
bebreos  textus  invenero ,  qui  a  nostro  textu  secundum  litte- 
ram  videantur  quamvis  non  multum  in  setentia  discrepare^ 
ex  bis  quidem  ijalcam  arguere  contra  itlos  atque  in  suis  tex- 
tibus  increpare.  Ex  hoc  enim  copiosior  veritas  nosíra  erit, 
ut  dum  eos  duximtts  in  suis  textibus  convincendos ,  inàe  nos- 
tra  probatio  contra  illos  firmior  babeatur. 

Completur  est  autem  liber  iste  cum  auxilio  magni  dei  in  ve- 
nerabili  monasterio  alcobacie  portugalia  regionis  sub  era  crea- 
tionii  mimdi  sex  mille  CCCC  tionaginta  FIL  secundum  erro- 

H  ii  rem 


6a  d  Memorias  DA  Academia  Real 

rem  autem  hehreorum  qttitique  tnille  nonaginta    sub    era    in- 

caniationis  àoniinice  mille  CCC  XXXIII.  Sub  era  terrestris 

Iberusnkm  perpetue  vastitatis  mille  CC.  LFII. 
Explicit  prologns  ,  hicipit  primus  tituhis. 
De  disputatione  ordhiauãa  et  judicibus  eligendis. 
Prefacio  artis. 
jírs  brevíssima  scripture  Hebraice  et  Caldee  latinis  litteris  cognos- 

cende  ;  et  primo  in  quibiis  proiiunciationibiis  latinurnm  ,    lin- 

gua    hebraica  deficiat ,    seu  iii   quibiis   hebreorum    deficit   et 

latina. 
Prima  regula  habeudi pronunciai ioiieni  hebraice  littere  =  hhayn  = 

qiw  XIX  est   in  hebraico  alphabelo. 
Secunda  regula  habeudi pronunciationem  hebraice  littere  =  heç  = 

que  yill  ést  in  hebraico  alphabeto. 
Ter  tia  regula  habeudi  prommciationem  ká>raice  littere  =■  Kaf  ^=^ 

que  XI  est  in  hebraico  alphabeto. 
Quarta  regula  hahendi  prommciationem  hebraice   littere  =  gy- 

mal  '-^^  que  tertia  est  in  hebraico  alphabeto. 
Qjiinta  regula  babendi  prommciationem  hehraice  littere  =  taf^=^ 

qiie  ultima  est  iu  bebr.  alpb. 
Sexta  reg.  babendi  pronunciai,  hcbr.  litt.  =  <hlet  =  que  quin-- 

ta  est  in  Hebr.  alph. 
Septima  reg.  babendi  prontmciat.    hebr.    litt.  =  bet  =  que  sC' 

cunda  est  in  hebr.  alph. 
Octava  reg.  hab,  prommciat.  =  tiait  ==  que  sexta  est  in  hebr. 

alpb. 

Pondo  agoFa  de  parte  outras  erudições  hebraicas ,  de  que  abun- 
da este  códice,  passemos  ao  exame  do  outro  (CCXL), 
Em  a  coluna  a.  do  prologo  se  encontra  o  nome  do  A.  = 

Igitur  ego  Fr.  iobannes  monachus  sincerus  quidem  fide  ac  puro 
genere  christianus 

Está  mui  apagada  a  letra    das  palavras    seguintes  ,   e 
apqnas  se  collige ,  que  sendo  inconveniente  que  hum  geo» 

me- 


DAS  SciENciAS  DE  Lisboa.  62  e 

metra  dispute  com  quem  o  não  be  ,  assim  elle  náo  se  con- 
tentando de  pôr  em  latim  a  confutação  dos  hebrcos ,  algu- 
mas vezes  recorreo  á  lingoa  hebraica  para  o  seu  fim  ,  e 
que  chamou  a  este  seu  trabalho  Spetulum  Hebreoritm  e  con- 
tinua justificando  este  seu  titulo.  Protesta  em  fim  que  se 
valerá  do  antigo  testamento  e  que  não  quiz  amontoar  pas- 
sagens do  novo,  e  propõe  a  divisão  geral  da  obra. 

Liber  iste  in  septem  títulos  ex   integro  devidetur. 

Frimus  erit  de  Trinitate  =  Iste  docehit  tatu  tbeorice  qitam  pra- 
tice  qimnodo  apud  Detim  sit  credenda  imitas  in  essência  , 
uel  natura ,  et  trinitaf  in  personis. 

Secundus  erit  de  divina  incarnatione.  Iste  probabit  tiitihis  argu- 
mentis  quomodo  idem  deus  in  persona  filii  ,  patre  et  spiritu 
sancto  cooperante ,  veram  bumanitatem  accipere  debeat  ex  vir- 
glue  illibata  ,  verusque  homo  corporaliter  ãfparere  Christiis 
Deus. 

Tcrtius  çrit  de  dominica  passiove.  Iste  prohabit  quomodo  in  re- 
demptiouem  bumani  generis  deperditi  fuerit  cbristus  Deus  se- 
cundum  hominem  occidendus  et  sepeliendus.  Qtiomodo  manen- 
te corpore  in  sepulcro ,  ivfernum  esset  spoUaturus  ,  tertia 
die  a  mortiiis  in  corpore  surrecttirtís ,  in  celttm  ascensurtts 
et  ad  patris  dextram  permansurus. 

Qíiartus  erit  de  novo  Testamento,  Iste  probabit  tam  figurali- 
ter ;  quam  aperte  ,  quomodo  per  ipstim  iion  tam  corpora  in 
hac  vita ,  quam  anime  salvarentur, 

Qtiintus  erit  de  adventu.  Iste  probabit  certa  têmpora ,  sive  lo- 
ca in  quibus  Cbristus  corporaliter  ventre  debuit  et  venit. . . . 
qtio  muudi  tempore  ,  quibus  diebus  ,  qtio  atino ,  qtio  mense  que 
bebdomade  sive  die ,  qua  civitate  sive  templo.  Probabit  et 
eum  sic  proculdubio  jam  venisse :  ut  quidquid  in  contrarium 
dici  possit ,  non  careat  falsitate, 

Sextus  erit  de  propbetia  et  necessitate  spiritualis  intelligentie 
scripturarum.  Iste  probabit  vetus  testamentum  fuisse  per  nO' 
vum  de  carne  ad  spiritum  necessário  deducendum ,  ut  sicut 
ad  ivtellectum  carnalem  historia  vera  fuerit  sub  veteri;   sie 

quo- 


6t  f  Memorias  UA  Academia  Real 

qiioque  sub  novo  fuei-it  in  mistério  ad  spiritutn  cogmsceuda- 
Septimns  dabit  artem  hrevissimam  positivam  scriptiire  hebraice 
et  caldee  per  singula  exempla  latinis  litteris  cognoscende.  Nec 
ccutepuat  lector  ,  si  quedam  ex  es  que  jam  dieta  juerint , 
invenerit  repetita\  quod  facturi  sttmus  ob  duritiam  hebreo- 
rum  contercndam ,  iiam  dicit  oracio  ,  quod  decies  repetita  place- 
hiiut.  Et  utique  in  p/agis  veteribus  ,  eadem  medecina  ,  qí4am 
sepe  apponitur  ut  fortins  operetur.  Obsecro  autcm  vos  o  Chris- 
ti  professores  ,  iit  gratia  cotuodioris  disputationis  vesírum  nii- 
bi  adbibeatis  favorem  ,  ut  si  quando  hebraicos  texttis  invene' 
ro  ,  qiii  a  nostro  textu  secundum  litteram  videantnr  quamvis 
tion  multum  in  seiítentia  discrepare  :  ex  his  quidem  valcam  ar- 
gtiere  contra  illos  ,  atque  in  suis  textibus  incrcpare.  Ex  hoc 
enim  copiosiora  victoria  nostra  erit ,  ttt  dum  eos  duxerimus 
in  suis  textibus  convincendos :  inde  nostra  probabio  contra  il- 
los firmior  babeatur.  Datur  atitem  in  duplici  volumine  liber 
is  te.,  .  cum  hebraicis  in  maior  i ,  et  sine  hebraicis  inminori: 
ut  qiii  aspcritatem  lingue  hebraice  ferre  nequemit  in  maiori 
proficianí  in  minori,  Igittir  presens  disputatio  juxta  formam 
bane  proponitiir  in  minori.  Completus  est  atitem  liber  iste  cum 
ai:xilio  magni  Dei  anno  domini  millesimo  trecentessimo  qna- 
dragessimo  quinto  =  explicit  prologus  = 

Desta  ultima  parte  do  prologo  se  conclue  que  o  có- 
dice CCXXXIX.  he  o  chamado  in  maiori  neste  segundo ,  e  que 
este  he  o  in  minori,  vindo  portanto  a  ser  o  codex  CCXL. 
hum  resumo  do  CCXXXIX,  e  por  isso  he  de  força  ,  que  se 
encontrem  nclles  muitas  couzas  semilhantes ,  sem  embargo  de 
se  notarem  algumas  diíFerenças,  quacs  são  por  exemplo  as 
que  occorrem  no  próprio  indice  dos  tratados. 

A  principal  differença  que  fazem  os  dous  códices  he 
que  o  CCXXXIX.  produz  sempre  o  texto  hebraico  (  aindaque 
debaixo  de  caracteres  latinos)  v.  g.  em  o  terceiro  titulo  de 
incarnatione  capitulo  27  =  Probatio  manifesta  ex  testimonio 
Isaie  =  o  CCXL.  antes  de  responder  ás  objecções  allega  so- 
mente o  famoso  texto  =  Ecce  virgo   concipiet  =  como  se 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  62  g 

lê  na  vulgata  ;  porem  oCCXXXIX.  traz  por  extenso  o  original 
hebraico ;  e  aindaquc  ambos  se  encarregao  de  responder  ás 
cinco  principaes  objecções  dos  judeos,  o  CCXXXIX.  insisie 
na  força  das  palavras  hebraicas  ,  e  o  CCXL.  estriba-sc  mais 
nas  interpretações  obvias  que  se  fundão  na  vulgata  ,  c  lu- 
gares parallelos ;  mas  nem  por  isso  deixa  de  recorrer  alguma 
vez  ás  erudições  hebraicas,  o  que  melhor  se  conhecerá  ,  pori- 
do-sc  hum  exemplo  tirado  de  resposta  ás  objecções  dosju- 
dcos  contra  a  intclligencia  que  nós  damos  ao  texto  dclsaias. 

GoDEX.  CCXXXIX. 

Tertium  contrariuvi  faciuut  in  ebraica  descriptime.  =^ha^=^ 
que  síve  propter  specificationem  rei  proposite ,  sive  propttr  or- 
natum  sermonis ,  quibusdam  nominibus  proponilur  in  hebreo.  Ta- 
li  ergo  consíãeratione  proponittir  in  hoc  loco  hebraice  dictioni 
=  bhalma  =^  tibi  dicitur  =^  ha  hhalma  =  quod  est  juvencitla 
scilicet  ,  incógnita  vel  intacta  qitia  cnivi  tam  propter  sermonem 
rethoricum  in  ebreo  quam  propter  specificatiotiem  rei  proposite , 
ipsa  dictio  —  hhalma  =  per  adjtmctionem  hebraice  descriptio- 
nis  =:  ha  ^=  legittir  ibi  =  ha  hhalma  =  qtiod   est    juvencitla 

scilicet  incógnita  vel  intacta quam    diximus  hebraica. 

descriptio  ^=^  ha  ^=  que  iit  dixiimts  est  propter  ornatum^  seu 
propter  specijicationem  quibusdam  dictionihus  proposita  inventtnr» 
Latinus  enim  ser  mo  ,  talem  non  hahet  notulam  ,  quamvis  ipsam 
I.atini  baleant  in  vulgari  ^zerbi  graíia  =^  ubi  homo  ■,  vel  mtt- 
lier  ,  vel  lápis  ,  seu  aliud  tale  Icgimus  in  Latino ,  ibi  per  ta- 
lem notulam  vulgus  dicit  =  Li  homo  —  Li  mulier  =  Lipetra  , 
hebreus  autem  dicit  =  hda  adam  =  quod  est  =  Li  homo  =  hd 
yssa  ~  quod  est  Li  mulier  =  ha  ebben  =  quod  est  =  Li  pe- 
tra  —  et  similis  iyc. 

CoDEX   CCXL. 

Tertium  contrarium  facinnt  in  hebraica  descriptione  —  hd  = 
que  sive  propter  specijicationem  rei  proposite ,  sive  etiam propter 


62  h  Memoftas  DA  Academia  Reai, 

onmtum  sennotiis  quibtisdam  nominibus proponitiir  in  hebreo  y  la- 
tintts  enim  sermo  talem  non  babei  notulam  &c.  o  mais  he  co- 
mo acima. 

Tenho  dado  conta  do  exame  ,  e  confrontação  dos  dous 
códices  :  a  espécie  de  solemnidade  com  que  no  CCXXXIX. 
se  aponta  o  lugar,  em  que  foi  escrito,  assas  confirma  a  opi- 
nião, de  que  teve  por  A.  hum  monge  de  Alcobaça,  da  qual 
só  desistirei  ,  quando  se  me  oíFercção  melhores  provas  em  con- 
trario ;  e  estou  certo,  de  que  todos  os  amantes  de  littera- 
tura  hcbracia  hão-de  acompan!iar-me  na  justa  magoa  ,  de  que 
tão  exccllcnte  obra  não  chegasse  a  ver  a  luz  ,  quando  es- 
tava inteira  ,  sem  embargo  de  que  assim  mesmo  damnifi- 
cada,  e  mutilada,  he  huma  prova  clara  do  estado  floreccn- 
te  da  nossa  litteratura  sagrada  em  o  século  decimo  quarto. 


DIS- 


DAS  SCIEMCIAS  DE  LiSBOA.  6j 

que  a  época  da  vinda  dos  Fenícios  a  Espanha ,  vamos  nós 
já  a  mostrar,  que  hc  a  mesma,  que  a  cm  que  elles  che- 
garão ás  terras  d'Atrica  mais  vizinhas  ao  nosso  continen- 
te ;  e  que  ate  os  nossos  tempos  pertencerão  por  mais  de 
dous   séculos   á  coroa  de  Portugal. 

He  célebre  entre  os  modernos  antiquários,  (mas  não 
entre  os  nossos)  hum  lugar  de  Procopio  no  segundo  li- 
vro da  guerra  de  Justiniano  contra  os  Vandallos  da  Afri- 
ca ;  o  qual  traduzido  na  fé  da  versão  latina  d'  Hugo  Gro- 
cio  ,  diz  assim  : 

<(  Poisque  a  historia  nos  trouxe  até  á  Mourama ,  se- 
>»  rá  conveniente  expor ,  donde  tinha  sua  origem  esta  gen- 
»>  te  ,  que  veio  fazer  assento  na  Africa.  Ao  tempo  que 
»>  os  Hebreos  ,  depois  de  terem  sahido  do  Egypto ,  esta- 
3»  vão  já  a  tocar  na  Palestina,  morreo  Moysés,  aquelle  sa- 
M  bio  homem  ,  que  os  tinha  conduzido  atélli.  Succeden- 
»»  do-lhe  no  governo  Josué  ,  filho  de  Nave  ,  este  intro- 
>»  duzio  na  Palestina  os  seus  nacionaes ;  e  armado  d' huma 
»»  força  mais  do  que  humana  ,  se  apoderou  da  terra  ;  des- 
»  truio  os  habitantes  ,  e  reduzio  ao  seu  domínio  as  cidades 
»  delia  ;  com  o  que  alcançou  para  si  o  nome  de  invicto. 
>»  A  região  marítima ,  que  se  estendia  desde  Sidónia  até 
»»  o  Egypto ,  chamava-se  Fenícia.  Havia  neste  território 
j»  vários  povos ;  os  Gergeseos  ,  os  Gebuseos ,  e  outros  que 
}»  a  historia  hebraica  nomea.  Estes  homens,  vendo  que  não 
>»  podiâo  resistir  ao  general  estrangeiro,  retirarão-se  prí- 
>j  mciramente  para  o  Egypto,  mas  não  achando  nelle  ca- 
j»  pacidade  para  recolher  tanta  gente  de  novo ,  por  ser  o 
j>  Egypto  de  tempos  antigos  mui  povoado  dos  naturaes , 
>»  passarão  á  Africa  ,  e  a  conquistarão  toda  até  as  colum- 
>»  nas  d' Hercules.  Fundarão  nella  muitas  cidades,  e  nella 
»  habitão  até  á  minha  idade  ,  falando  a  língua  Fenícia. 
»  Edificarão  tãobem  na  província  de  Numídia  hum  castel- 
»  lo  no  lugar,  onde  hoje  he  a  cidade  que  chamão  Tingi. 
»»  Aqui  junto  a  huma  fonte  existem  levantadas  duas  co- 
»»  lumnas  de  pedra  branca ,  que  tem  gravada  em  letras  Fe- 
T.  JX,  P.I.  l  »  ni- 


66  MemouiaS  DA  Academia  Real 

3»  nicins  esta   inscripçiio  :    Nds   somos  aqnelles  ,   que  fugimos 
»»  do  ladrão  Josué  filho  de  Nave.  » 

Atcqui  a  narração  de  Procopio  ,  que  a  escrevia  pelos 
annos  Jc  Christo  540,  isto  he,  quasi  no  meio  do  sexto 
século  da  Igreja, 

Procopio  he  hum  Author  de  conhecida  reputação :  re- 
fere hum  achado  do  seu  tempo:  não  ha  motivo,  por  que 
lhe  neguemos  o  credito.  Principalmente  que  o  que  elle 
aqui  conta  da  vinda  dos  Fenieios  até  Tingi  ,  quando  fu- 
gião  de  Josué  ,  he  mui  conforme  com  o  que  liuscbio  de 
Cosaréa  tinha  escrito  na  sua  chronica  ;  que  aqucllcs  mes- 
mos Cannncos  ,  que  os  Israelitas  tinhao  expulsado  das  suas 
terras,  vierao  fundar  na  Africa  Tripolitana  varias  colónias. 
E  o  affirmar  Procopio  ,  que  até  o  seu  tempo  falavão  os 
Mouros  a  lingua  Penicia,  hc  o  que  á  pouco  ouvimos  di- 
zer a  Santo  Agostinho  natural  da  terra. 

Tingi  he  a  que  em  tempo  dos  Romanos  deo  nome 
á  Mauritânia  Tingitana,  chamada  assim  para  difFercnça  das 
outras  duas  na  mesma  Africa  Cesariense ,  e  Setifense.  E 
íiindiaue  todas  estavao  da  banda  d'a]ém  do  estreito  de 
Gibraltar,  e  a  Tingitana  ficava  onde  hoje  são  os  reinos 
de  Fé/. ,  e  de  Marrocos  ;  todavia  Constantino  na  divisão 
das  províncias  do  Império  fez  da  Mauritânia  Tingitana, 
chamada  também  Transfretana  ,  a  sexta  provinda  d' Espa- 
nha, a  quem  ficava  fronteira,  e  como  adjacente. 
-i  A  sua  metrópole  Tingi ,  concordâo  todos  os  Geógra- 
fos ,  que  he  Tangere  ,  cidade  que ,  como  todos  sabem  , 
pertenceo  á  coroa  de  Portugal  des  do  anno  i4<'3,  em  que 
o  nosso  invicto  Rei  D,  Affonso  V  a  tomou  aos  Mouros, 
até  o  anno  1662,  em  que  a  Serenissima  Rainha  D.  Cathe- 
rina  a  levou  em  dote  para  Inglaterra  ,  quando  cazou  com 
o  Rei  Carlos  II. 

Temos  logo  os  Fenieios  habitando  no  extremo  d'Afri- 
ca  fronteiro  d' Espanha  ,    des  do  tempo   de  Josué.    Ora  Jo- 
sué, conforme  os  cálculos  do  insigne  chronologista  Usser, 
começou  a  guerra  contra  os  Cananeos  no  anno  mil  e  qua- 
tro- 


DAS  SCIENCIAS  DE  LiSBOA.  67 

trocentos  e  cincoenta  e  hum  antes  da  era  de  Chri- 
sto. 

Isto  bastava ,  para  nós  sem  hesitação  alguma  pormos 
os  Fcnicios  em  Espanha  por  estes  mesmos  tempos.  Porque 
não  mediando  entre  a  Mauritânia  Tingitana  ,  e  a  Espanha 
Betica  maior  distancia  doque  a  do  estreito  de  Gibraltar, 
que  duvida  pode  haver ,  de  que  por  estes  tempos  passa- 
rião  os  Fenicios  d'huma  i  outra  banda  ?  Mas  nós  temos  do- 
cumentos positivos  ,  que  assim   mesmo  o  persuadem. 

O  primeiro  he,  ser  constante  entre  todos  os  antiquá- 
rios ,  que  ,  antesque  os  Gregos  se  dessem  a  conhecer  por 
algumas  colónias,  que  fundassem  fora  do  seu  continente, 
tinhão  já  os  Fenicios  nobilitado  o  seu  nome  por  meio  de 
muitas ,  que  estabelecerão  na  Africa  ,  e  na  Europa.  Isso 
quiz  significar  TibuUo ,  quando  chamou  primeiros  mestres 
da  navegação  os  Fenicios,  liv.  I.  Eleg.  7. 

Prima  ratem  ventis  tradet  docta  Tyrus. 

Ora  du/entos  annos  antes  da  guerra  de  Troya  já  os 
Gregos  de  Zacintho  tinhao  vindo  a  Espanha  ,  e  fundado 
nella  Sagunto ,  e  Denia  ,  como  por  authoridade  de  Bócio 
attesta  Flinio  no  livro  XVI  cap.  40.  Ixya ,  segundo  os 
mármores  d'Oxford  ,  foi  destruida  no  anno  lioj?  antes  da 
era  de  Christo :  segundo  a  opinião  commumente  recebida 
entre  os  modernos  depois  de  Petavio ,  e  Usser,  no  anno 
ii8i  antes  da  mesma  era.  Logo  mais  de  duzentos  annos 
antes  daquellas  duas  contas,  se  deve  ter  por  certo,  que  ti- 
nhao os  Fenicios  vindo  a  Espanha.  E  em  ambas  as  hypo- 
thcses  se  roça  esta  época  pelos  tempos  de  Josué. 

O  segundo  tira-se  do  que  affirma  Estrabão  no  livro 
III  pag:  lí^  da  edição  d'Almeloveen  :  que  dos  Fenicios 
he  que  o";  Gregos  tiverão  as  primeiras  noticias  do  sitio,  e 
clima  d'  Espanha :  e  que  por  isso  Homero  poz  na  boca  a 
Protheo  aquellas  palavras,  em  que  Protheo  dizia  a  Mene- 

I  ii  láo, 


6R  Memorias  DA  Academia  Real 

láo  ,  que    vindo   a  Espanha  veria   os  campos  Elysios ,  e  o 
£m  do  mundo. 

Sed  te ,  qua  terra  postremus  terminus  extat , 
Elyshim  in  campum  cmlestia,  minúna  àucent, 

O  terceiro  forma-se  ,  do  que  Plinio  escreve  d'  huma 
antiga  iilia ,  que  ficava  entre  Cádis,  e  o  continente  d'Es- 
panha ,  que  tinha  três  mil  passos  de  comprido,  e  mil  de 
largo.  Esta  ilha,  di/  Plinio  livro  IV,  cap.  22,  he  chama- 
da por  Efor ,  e  por  Philistides  Erythia  ,  por  Timeo  ,  c  Si- 
Icno  AFrodisias ,  e  pelos  naturaes  iiha  de  Juno.  Foi  cha- 
mada Erythia ,  por  causa  de  que  os  seus  primeiros  habi- 
tantes forão  os  Tyrios  ,  vindos  do  mar  Erythreo.  Vocatur 
ab  Ephoro  et  Philistide  Erythia  ,  a  limão  et  Sileno  Âphroài- 
di£ ,  ab  indigenis  Junmis.  Erythia  dieta  est ,  quoniam  Tyrii 
aborigines  eorttm  orti  ab  Erythrej  mari  fcrebaiitur.  No  qual 
texto  aquellc  aborigines  eorutn  he  huma  emenda  de  Tal- 
iTielio  adoptada  justamente  por  Bochart ,  que  assim  querem 
que  se  leia  em  lugar  de  que  trazem  as  edições  vulgares 
de  Plinio ,  ah  origine  eorttm.  Porque  pela  mesma  razão  de 
primeiros  habitadores,  se  chamarão  Morigines  y  os  que  pri- 
meiro povoarão  Itália,  como  expõe  Dionysio  d'Halicarnas- 
so.  Temos  logo  por  testemunho  de  Plinio ,  que  os  Tyrios 
forão  os  primeiros  que  habitarão  na  Bctica  a  ilha  Erythia  , 
e  que  a  denominarão  assim  ,  por  terem  vindo  a  ella  do 
mar  Erythreo  ,  que  he  o  mar  vermelho.  Ora  nesta  ilha 
Erythia  pozerão  os  poetas  Gregos  os  bois  de  Geryão  ,  que 
por  mui  gordos  e  mui  anafados  mettêrão  cubica  a  Hercu- 
les para  os  ir  furtar.  O  que  além  de  ser  notório  pelos  ver- 
sos de  Hesiodo  ,  mais  antigo  ainda  doque  Homero  ,  he 
expresso  em  Estrabão  no  livro  III,  pag.  ijf.  E  posto- 
que  hum  antiquíssimo  historiador  por  nome  Hecateo ,  ci- 
tado por  Arrijno  escrevesse  ,  que  Geryão  não  reinara  em 
Espanha ,  mas  em  Embracia  província  do  Epiro  ,  sempre 
daqui  se  comprova ,  que  no  conceito  dos  Gregos ,  já  mui-; 

to 


TJAS   SCTENCIAS  DE    LfSBOA.  69 

to  antes  do  tempo  d'  Hercules  Thebano  tinhao  os  Fenícios 
cultivado  de  tal  sorte  em  Espanha  a  ilha  Erythia ,  que  nel- 
la  SC  criavão  os  mais  formosos  bois  do  mundo  ;  c  fundado 
nclla  a  primeira  Cádis  ,  que  depois  se  mudou  paraondc 
hoje  está.  Na  mesma  ilha  com  o  nome  à'Erythia ,  e  o  so- 
brenome á'' jífrodisiaí  ,  faz  mcnçSo  Estevão  de  Byzancio  no 
seu   livro   De  Urbihus, 

O  quarto  forma-se ,  do  que  escreve  Plinio  no  livro 
III,  cap.  9,  que  Marco  Agrippa,  genro  d'Augusto  dava 
toda  a  Betica  por  originaria  dos  Carthaginczcs.  Oram 
eam  universam  originis  Poerorum  existimavit  Âgrippa.  Náo 
queria  dizer  com  isto  Agrippa,  que  os  Carthaginezes ,  co- 
mo taes  ,  tinhão  sido  os  fundadores  da  Betica  :  porque 
clle  náo  podia  ignorar,  que  o  império  dos  Carthaginezes 
cm  Espanha  não  precedia  muito  o  tempo  da  primeira  guer- 
ra púnica.  Queria  pois  dizer,  que  toda  a  Betica  se  reco- 
nhecia originaria  dos  Carthaginezes ,  emquanto  referia  a 
sua  origem  aos  Fenícios ,  de  quem  os  Carthaginezes  des- 
cendião,  e  a  quem  succedêrão  cm  Espanha.  E  neste  senti- 
do reputava  Agrippa  os  Fenicios  pelos  mais  antigos  habi- 
tadores da  Betica  ,  depois  da  primeira  povoação  d'  Espa- 
nha pelos  netos  de  Noé.  Bem  como  parece  que  os  tinha 
também  reputado  muito  antes  d'Agrippa  ,  o  author  do  livro 
Das  Maravilhas  attribuido  commummente  a  Aristóteles, 
quando  referia,  que  os  Fenicios  forâo  os  primeiros,  que 
vindo  por  mar  a  Tartesso  ,  hoje  Tariffa  ,  acharão  tanta  co- 
pia de  prata,  que  delia  fizcrão  ancoras  para  os  seus  navios. 
Primor  Phignices  ferunt ,  cum  Tartessum  navigassent ,  &c. 

Confirma-se  tudo  o  sobredito  de  que  como  mostrou 
Bochart  no  seu  Faleg  ^  e  no  seu  Catiaan ,  tanto  os  nomes 
desta  região  d' Espanha  ,  como  os  das  suas  províncias  ,  rios, 
e  cidades  prlncipaes  ,  estão  soando  terem  dos  Fenicios  a 
sui  primeira  origem.  Taes  são  os  nomes  Ibéria,  Hispânia, 
Betica,  Turdetania,  Lusitânia,  Tagtis ,  Jna,  Batis ,  Iberus , 
Gades,  Malacha,   Olisippo ,  Hispalis. 

O  quinto  desume-se  de  remotíssima  antiguidade ,  que 

to- 


70  Memorias  DA  Academia  Real 

todos  os  escritores  tlão  á  cidade  de  Cádis.  Ha  pouco  que 
nós  ouvimos,  que  Plinio  a  faz  íundação  dos  Fenícios  Abo- 
rigines  da  ilha  Erythia :  os  quaes  Fenícios ,  como  aili  acres- 
centa o  mesmo  Plinio ,  posérao  á  nova  cidade  o  nome  de 
Gjdir,  (mudado  depois  no  singular  Gadis ,  e  no  plural  Ga- 
des)  que  na  sua  lingua  queria  dizer  cerco.  No  tri  Tartes- 
son  appellant  ,  Fosni  Gadir ,  ita  Púnica  lingua  sepem  signifi- 
cante. No  qual  texto  de  Plinio  ,  creio  que  ninguém  repara 
que  cu  por  lingua  púnica  entenda  a  Fènicia  ,  depois  que 
advertir,  que  assim  mesmo  o  entcndeo  Sallusrio ,  quando 
nos  fragmentos  do  livro  segundo  de  sua  historia  esereveo 
assim  :  Tartessum  Hispânia  civitatem ,  qitam  nttnc  Tyrii  mtita- 
to  tiomitie  Gadir  habent.  E  Santo  Isidoro  nas  Origens  :  Qiiam 
Tyrii  a  rubro  mari  profecti  occupantes,  Lingua  sua  Gndes^  id 
tst  ^  Septam  nominaverunt.  Também  não  faz  ao  nosso  tazo  , 
que  os  Romanos  confundissem  Cádis  com  Tartesso ,  como 
também  o  confundirão  alguns  Gregos.  Porque  ou  fosse  Cá- 
dis ,  ou  fosse  Tartesso  aquella  cidade  ,  que  os  Fenícios 
fundarão  na  ilha  Erythia  ;  sempre  daqui  temos  em  Espa- 
nha huma  cidade  fundada  pelos  Fenícios ,  que  tinhão  vin- 
do a  ella  do  mar  vermelho  :  o  que  faz  logo  lembrar  os 
tempos  de  Josué. 

Aos  mesmos  tempos  faz  que  remontemos  a  fundação 
de  Cádis ,  o  que  da  antiguidade  do  templo  d' Hercules  , 
que  nella  havia  ,  deixou  escrito  Pomponio  Mela  no  livro 
III ,  cap.  6.  Aqui  affirma  Pomponio  Mela  ,  que  a  antigui- 
dade deste  templo  se  roçava  pela  época  da  destruição  de 
Troya:  Annorum  ab  Illiaca  tempestate  principia  sunt.  Ora  he 
natural ,  que  a  cidade  fosse  fundada  primeiro  que  o  tem- 
plo ;  e  também  que  o  templo  não  fosse  fundado,  senão 
passadas  muitas  idades,  depoisque  florecêra  Hercules.  Por- 
que muitas  idades  era  necessário  que  se  passassem  ,  para 
a  fama  das  proezas  d'  hum  heroe  se  propagar  de  sorte  , 
que  lhe  conseguisse  as  honras  da  apotheose  ,  ou  da  cano- 
nisação.  Muitas  idades  logo  antes  da  guerra  de  Troya  se 
deve   suppor ,    que   foi  fundada  Cádis ,    e   que  floreceo  o 

Hcr- 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  7I 

Hercules,  a  que  se  consagrou  o  templo.  Troya  porem, 
segundo  os  mármores  il'Oxford ,  foi  destruída  no  anno  1209 
antes  da  era  de  Christo  :  segundo  Eusébio  ,  a  quem  se- 
guem Petau  ,  e  Usser ,  no  anno  1182  antes  da  dita  era. 
Logo  muitas  idades  antes  de  qualquer  destas  duas  epccas , 
(que  só  diflFercm  huma  da  outra  em  vinte  e  sete  annos)  se 
deve  crer  que  foi  fundada  Cádis ,  e  fundado  o  seu  tem- 
plo. 

E  daqui  mesmo  se  confirma  ,  que  o  Hercules  adora- 
do em  Cádis  não  era  o  Thcbano ,  mas  o  Tyrio  alguns 
séculos  mais  antigo.  Porque  do  Hercules  Thebano  he  con- 
stante ,  que  florecêra  poucos  tempos  antes  da  guerra  de 
Troya ,  como  expressamente  o  adverte  Diodoro  de  Sicília, 
no  livro  I,  cap.  24.  tomo  I,  pag.  28,  e  como  se  pro- 
va de  que  este  Hercules  matou  a  Laomedonte  pai  de  Pria- 
mo  ,  e  concorrco  na  expedição  dos  Argonautas  a  Colcos 
com  Castor  e  PoUux,  irmãos  da  formosa  Helena. 

Ao  sobredito  acresce  ,  que  Cláudio  Joláo  ,  escritor 
das  antiguidades  Fenícias ,  citado  por  hum  antigo  etymo- 
logista  Grego,  que  Bochart  descreve,  pag.  358,  e  pag. 
609  affirma  ,  que  Arcaleo ,  filho  de  Fenis  ,  e  irmão  de 
Cadmo  ,  funda'ra  em  Espanha  a  cidade  de  Cádis ,  pondo- 
Ihe  este  nome  Fcnicio.  Pelo  qual  Fenis  entendo  eu  Age- 
nor Rei  de  Fenícia ,  a  quem  também  Apollodoro  e  Eusé- 
bio chamarão  Fenis. 

Por  sexto  e  ultimo  documento  allego  eu  a  famosa  de- 
nominação das  Colítmnas  à^Hercules  ,  attribuida  por  todos 
os  antigos  e  modernos  aos  dous  extremos  do  estreito  de 
Gibraltar,  hum  da  parte  d' Espanha,  outro  da  parte  d'A- 
frlca.  Porque  ou  estas  columnas  fossem  verdadeiras ,  ou 
fossem  metafóricas ,  ou  fossem  imaginarias ,  he  certo  que 
por  ellas  significarão  os  antigos  geógrafos  e  historiadores 
hum  facto  real ,  isto  he ,  a  vinda  d'Hercules  a  estes  dous 
extremos  ,  como  os  fins  das  suas  heróicas  expedições.  Ora 
este  Hercules,  a  quem  se  attribue  a  posição  das  duas  co- 
lumnas ,  e  de  quem  ellas  tomarão  o  nome ,  deve-se  crer , 

ÍJUC 


71  MemortasdaAcadbmiaReal 

que  foi  aquellc  mesmo  ,  que  se  venerava  com  summa  reli- 
gião no  antiquíssimo  e  famosissimo  templo  de  Cádis.  O 
que  se  prova,  tanto  porque  as  columnas  e  o  templo  cs- 
tavao  no  mesmo  contorno  ;  como  porque  Estrabao  na  li- 
vro III,  pag.  25-9  attesta,  que  em  Cádis  lie  que  os  Hs- 
panhoes  e  Africanos  punhão  as  columnas  d'  Hercules.  Hi- 
spãíit  et  Jfri  eas  Gadibns  vinJicant. 

Não  he  menos  certo  ,  que  este  Hercules  que  se  ve- 
nerava em  Cádis  não  era  o  Hercules  Grego,  filho  d'Am- 
fitruão  e  Alcmcna ;  mas  sim  o  Hercules  Tyrio,  alguns  sé- 
culos mais  antigo,  doquc  o  Grego.  Assim  o  aífiimao  Ar« 
riano  no  livro  II  das  expedições  d'Alexandre  ,  pag.  89 
da  edição  de  Gronovio  :  e  Appinno  na  sua  historia  Ibéri- 
ca, pag.  25Ó  da  edição  d' Henrique  Estevão,  Aos  quacs 
se  deve  ajuntar  outro  escritor  muito  mais  antigo  ,  qual  he 
Diodoro  de  Sicilia ,  que  no  livro  V,  cap.  20.  pag.  345- 
da  edição  de  Wessekng  escreve,  que  Hercules  era  celebra- 
do no  templo  de  Cádis  com  rito  Fenicio.  Temos  logo 
hum  Hercules  Fenicio,  atravessando  o  estreito  de  Gibral- 
tar ,  e  passando  da  Africa  Tingitana  á  Espanha  Betica. 
Nos  quaes  dous  termos  ,  como  considerados  então  os  fins 
do  mundo,  ou  fins  dos  heróicos  trabalhos  d' Hercules,  poz 
a  antiguidade  as  duas  famosas  columnas ,  de  que  tratamos. 
Nenhum  outro  porém  com  mais  probabilidade  se  pode  crer, 
que  fora  este  Hercules  Tyrio ,  doque  aquelle  heroe  ,  que 
segundo  a  relação  de  Procopio  ,  conduzio  a  armada  dos 
Fenícios ,  quando  fugindo  das  armas  de  Josué  vierão  ao 
Egypto,  e  de  lá  passarão  á  Africa  Tingitana. 

Confirma-se  não  pouco  esta  hypothese  ,  do  que  attes- 
ta Pomponio  Mela,  escritor  Espanhol  e  Andaluz,  no  li- 
vro III ,  cap.  6. ,  que  a  causa  de  ser  tão  venerando  o  tem- 
plo d'  Hercules  em  Cádis  ,  era  porque  naquclle  templo 
se  conservavão  os  ossos  daquelle  Deos.  Cur  sanctum  sit , 
ossa  ejus  ibi  sita  efficiunt.  O  que  he  huma  prova  irrefraga- 
vel ,  de  que  na  existimação  da  antiguidade,  tinha  este  Her- 
cules falecido  na  Espanha.  Era  logo  este  Hercules  o  Ty- 


DAS   SCIENCIAS   DE   LlSBOA.  73 

rio ,  e  não  o  Thebano  :  porque  este  todos  os  antigos  re- 
conhecem ,  que  da  Espanha  passara  á  França  ,  e  da  França 
i  Itália ,  e   que  da  Itália  se  recolhera  para  a  Grécia. 

Nem  obsta  chamar  Pomponio  Mela  o  Hercules  de  Cá- 
dis Hercules  E^ypcio.  Forque  desta  difficuldadc  se  expedem 
facilmente,  os  que  seguem  que  o  Hercules  Tyrio  fora  Ca- 
dmo,  do  qual  escreve  Diodoro  de  Sicilia  no  livro  I,  cap. 
3^.  pag.  27  ,  e  com  elle  Eusébio  na  sua  chronica  ,  que 
do  Egypto  viera  d  Grécia.  Mas  eu  ,  que  por  huma  parte 
tenho  por  certo,  que  Cadmo  não  do  Egypto,  mas  da  Fc- 
nicia  trouxera  o  uso  das  letras  á  Grécia ;  e  pela  outra  não 
considero  interesse,  em  que  Cadmo  fosse  o  Hercules  Ty- 
rio; digo  que  para  se  verificar  o  titulo  de  Egypcio ,  que 
Pomponio  Mela  attribue  ao  Hercules  de  Cádis,  basta  re- 
flectir, que  pela  Relação  de  Procopio  foi  o  Egypto  o  pri- 
meiro assento,  a  que  se  acolherão  os  sobreditos  Fenicios , 
e  que  do  Egypto  vierão  eiles  ao  estreito  de  Gibraltar , 
donde  suppomos  que  passarão  a  Cádis. 

Nem  he  novo  que  hum  mesmo  Hercules  tivesse  dous 
sobrenomes.  Porque  do  mesmo  Hercules  Tyrio  consta  por 
Heródoto  ,  que  outrosi  se  chamnva  Thasio ,  por  ter  outro 
templo  em  Thaso ,  fundado  também  pelos  Fenicios.  He- 
ródoto livro  11,  cap.  45-.  pag.  125-  da  edição  de  Wesse- 
ling. 

Contra  esta  nossa  hypothese ,  de  ter  sido  o  Hercules 
Tyrio  o  conductor  dos  Fenicios  fugitivos  de  Josué,  se  po- 
dem fazer  dous  argumentos ,  hum  tirado  d'  Heródoto ,  ou- 
tro d'Arriano  ,  que  Bochart  não  prévio,  nem  previnio  ;  e 
que  á  primeira  vista  parecem  arruinar  pelos  alicerces  tudo 
o  que  acabamos  de  dizer  nesta  matéria. 

Heródoto  no  mesmo  lugar  ha  pouco  citado  do  livro 
II,  cap.  45".  pag.  uj  attesta ,  que  visitando  elle  o  tem- 
plo d'  Hercules  em  Tyro ,  e  perguntando  aos  seus  sacer- 
dotes,  que  antiguidade  tinha  aquelle  templo;  os  sacer- 
dotes lhe  responderão  ,  que  o  templo  tinha  sido  fundado 
juntamente  com  a  cidade,  e  havia  dous  mil  e  trezentos 
T.IX.F.L  K  an- 


74  Memorias  da  Academia  Real 

annos.  Arriano  no  livro  II  ,  pag.  88  affiinia,  que  Hercu- 
les Tyiio  era  muitos  séculos  mais  antigo ,  do  que  Cadmo. 
Destes  dous  testemunhos  se  segue  ,  que  Hercules  Tyiio 
precedeo  em  tempo  muitos  séculos  ao  hcroc,  que  nós  sup- 
pomos  íòra  o  conductor  dos  Fenícios  em  tempo  de  Josué. 

Porque  começando  pelo  testemunho  d'  Heródoto ,  es- 
te escrevia  a  sua  historia  pouco  mais  de  quatrocentos  an- 
nos antes  da  era  de  Chrisío  :  pois  que  tendo  a  guerra  do 
Peloponneso  começado  no  anno  431  antes  da  dita  era  , 
Heródoto  na  sua  historia  faz  mençíío  d'alguns  successos 
desta  guerra  já  adiantada.  Ajuntemos  pois  estes  quatrocen- 
tos annos  ,  que  Heródoto  antecede  á  era  de  Christo  ,  aos 
dous  mil  e  trezentos  annos,  que  então  diziSo  os  sacerdo- 
tes d' Hercules  ,  que  o  templo  de  Tyro  tinha  d'antigui- 
dade  ;  resulta  o  anno  2700  antes  da  era  de  Christo.  Lo-* 
go  já  no  anno  2700  antes  da  era  de  Christo  ,  tinha  ha- 
vido Hercules  Tyrio.  Logo  Hercules  Tyrio  nâo  podia  ser 
o  conductor  dos  Fenícios  fugitivos  de  Josué  ,  o  qual  Jo- 
sué não  entrou  na  terra  de  Canaan ,  a  que  pertencia  a 
Fenícia,  senão  no  anno  i45'i   antes  da  dita  era. 

Passando  ao  testemunho  d'ArrIano ,  o  dizer  elle ,  que 
o  Hercules  de  Tyro  precedera  muitos  séculos  a  Cadmo  , 
prova  que  o  Hercules  de  Tyro  fora  tambcm  muitos  sécu- 
los mais  antigo  do  que  Josué,  cujos  tempos  crncordao  to- 
dos os  críticos  depois  d' Eusébio ,  q^ie  coincidirão  com  os 
de  Cadmo.  (vijij.'  "í  .loh  -i.-rjiifyfi 

Mas  toda  esta'máquina  vem  abaixo,  logo'  que  se  ad- 
verte, que  a  antiguidade  que  os  sacerdotes  de  Tyro  de- 
râo  ao  remplo  d'  Hercules  em  presença  d'  Hcodoto ,  he 
manifestamente  falsa  :  e  que  Arriano  no  que  escreveo  do  Her- 
cules de  Tyro,  seguio  sem  maisepçame  a  Heródoto.  Não 
pode  pois  admittir-se  a  antiguidade ,  que  ao  templo  de 
Tyro  attribuírão  os  sacerdotes  d'Herculcs  fallando  com  He- 
ródoto :  porque  se  _  o  templp^  d' Hercules  Tyrio  existissç 
des  do  anno  de  2703  antes. ,  da  era  de  Christo,  ser 
guia-se.;que  .o..íal  Xcraplo  .ejwsti#_jíi  mijito  antes  do  dilu- 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  75" 

vio  de  Noé  ,  o  qual  todos  os  que  seguem  a  chronolugia 
Hebraica  ,  collocão  no  anno  de  2348  antes  da  nossa  era. 
Admittido  porém ,  que  muito  antes  do  diluvio  havia  já  em 
Tyro  hum  templo  dedicado  a  Hercules,  scguia-se  ,  que 
muito  antes  do  diluvio  se  tinha  introduzido  no  mundo  a 
idolatria.  Nenhum  homem  porém  versado  na  antiguidade  , 
reconhece  idolatria ,  senão  depois  de  Nemrod  ,  e  depois  da 
torre  de  Babel.  Logo  o  dito  daquelles  sacerdotes  foi  hu- 
ma  ignorância ,  ou  huma  impostura  manifesta, 

Podese  também  discorrer,  que  no  eirado  texto  d'He- 
rodoto  andâo  errados  os  números  por  culpa  ou  descuido 
dos  primeiros  copiadores  ,  que  cm  lugar  de  mil  e  trinta , 
poserão  dous  mil  e  trezentos.  O  que  para  não  parecer  livre- 
mente dito,  he  de  saber,  que  a  cada  passo  estão  emen- 
dando os  criticos  modernos  os  cálculos  d'  Heródoto  ,  pelos 
acharem  contrários  ao  que  pelo  testemunho  d'outros  escri- 
tores se  dá  por  certo.  Baste  por  exemplo  outro  celebre  tex- 
to do  livro  II,  cap.  146.  pag.  174  onde  Heródoto  diz,  que 
desde  Baccho  filho  de  Semeie  ,  e  neto  de  Cadmo  ,  ate  o 
tempo  delle  Heródoto  ,  tinhao  corrido  mil  e  seiscentos  an- 
nos.  O  que  por  se  não  poder  ajustar  á  chronologia  rece» 
bida  ,  emenda  Lydiat  nas  notas  aos  mármores  d'Oxford , 
pag.  II)  mandando  ler  mil  e  sessenta  y  em  lugar  de  mil  t 
seiscentos,  E  no  mesmo  texto  d'  Heródoto ,  de  que  se  ti- 
rou o  argumento  contra  a  nossa  época  d' Hercules  Tyrio ; 
«m  lugar  das  sinco  idades  ou  gerações,  que  elle  mette  en- 
tre Cadmo  e  Hercules  Thebano,  quer  Bouher  que  se  leiâo 
oito  ,  Berthel  que  se  leiao  dez. 

Alligada  assim  ao  tempo  de  Josué,  tanto  a  primeira 
vinda  dos  Fenícios  a  Espanha  ,  como  a  época  d'  Hercules 
Tyrio  seu  conductor ,  he  fácil  reduzir  a  fundação  do  mes- 
mo Hercules  a  huma  cidade  da  Betica ,  que  Estrabão  no 
Livro  III,  pag.  205^  chama  Calpe,  e  que  Gasaubon  ,  e  Bo- 
chart  querem  que  se  leia  Cartea  ^  hoje  Gibraltar.  No  dito 
lugar  pois  escreve  Estrabão  por  authoridade  d' Eratosthe- 
ncs  ,  que  a  quarenta  estádios  de  distaacia  do  monte  Cal- 

K  ii  pe, 


76  Memorias  da  Academia  Real 

pe,  fundara  Hercules  huma  íamosa  cidade  do  mesmo  no- 
me, que  dtpoi.s  se  chamoa  Heraclea ,  na  torma  que  os  des- 
cendentes d' Hercules  vierão  a  ser  chamados  Herac /idas.  Co- 
mo  nenhum  outro  geógrafo  íaz  menção  de  cidade  chama- 
da Calpe  na  Betica  ;  e  todos  os  mais,  a  snbcr,  Mela,  Plí- 
nio, e  1'tolcmco ,  pocm  junto  do  monte  Calpe  a  Cartea  : 
cor  ecturou  agudamente  Casaubon ,  que  no  texto  d' Es- 
trabão  cm  lugar  de  Calpe  polis ^  se  devia  ler  Cartea  polis, 
E  até  pelo  nome  de  Cartea  mostra  Bochart  p^ig.  6i6,  que 
cila  se  deve  referir  ao  Hercules  Tyrio ,  que  na  lingua  dos 
Fenícios  se  chamava  Melcarthus ,  que  quer  dizer ,  Rei  da 
cidade,   isto  he,  de  Tyro. 

No  Livro  V,  cap.  20.  tom.  I ,  pag.  34<r  faz  Diodoro 
menção  d'  huma  grande  ilha  fronteira  á  Africa  ,  mas  mui 
distante  delia,  que  sendo  atclli  incógnita,  os  Fenícios  com 
huma  tempestade  que  lhes  deo  na  costa  da  mesma  Africa, 
forão  parar  a  elia  ,  e  acharão  hum  paiz  ameníssimo ,  cor- 
tado de  muitos  rios  navegáveis,  regado  de  fontes  d'excel- 
Knte  agua,  povoado  de  bosques,  quintas,  jardins,  e  edi- 
ficios  magnificos.  Que  nclo  tempo  adiante  ,  querendo  os 
Fenícios  plantar  nesta  deliciosa  e  remotíssima  ilha  huma 
colónia  ,  que  lhes  servisse  de  feitoria  para  o  seu  commer- 
cio ;  os  Carthaginezes  se  lhes  oppozcrao ,  temendo  que  at- 
trahidos  da  bondade  da  ilha ,  não  se  tentassem  também  os 
seus  a  passar  para  ella  ,  em  prejuízo  dos  outros  grandes 
domínios  ,  que  a  republica  de  Carthago  tinha  na  Africa. 
Que  por  esta  razão  assentarão  os  Carthaginezes  ter  sem» 
pre  fechado  aos  seus  o  accesso  áquclla  ilha  ,  e  entretanto 
trazerem-na  muito  no  sentido,  para  que  se  algum  dia  se  vis- 
sem obrigados  pelos  seus  Inimigos  a  desamparar  Carthago, 
tivessem  naquella  ilha  hum  asylo  seguro,  a  que  se  acolhe- 
rem. 

Não  poderão  atégora  atinar  os  modernos  indagadores 
da  antiguidade,  com  o  sitio  desta  ilha  tão  celebrada  por 
Diodoro.  Q^ú  se  lembra ,  que  seria  a  Atlântida ,  de  que 
Platão  no  seu  Timeo  diz,   que  fqra  summergida  por  hum 

gran- 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  77 

grande  diluvio.  Qual ,  que  seria  alguma  das  Fortunaus , 
que  hoje  dizemos  Canárias.  Qual ,  que  seria  a  America  , 
tida  então  por  ilha. 

Esta  terceira  opinião  he  a  que  tem  maior  numero  de 
sequazes  respeitáveis.  Por  cila  se  declararão  entre  outros 
Grocio  nas  notas  ao  capitulo  XVIII  do  Deutcronomio  ,  ver- 
so 10.  Huet  na  Demonstração  Evangélica,  proposição  10. 
artigo  6.  Horne  numa  obra  que  intitulou  Da  Origem  das 
Gentes  da  America',  e  Schimid  na  Dissertação  sobre  a  Ame- 
rica, que  elle  ajuntou  ao  seu  Pindaro. 

As  difficuldades  que  a  esta  chegada  dos  Fenicios  até 
á  America ,  oppoem  Bochart  no  livro  Be  Coloniis  Pbanicum 
cap.  38.  Wesseling  na  nota  ao  presente  lugar  de  Diodo- 
ro  ,  e  Calmet  no  fim  da  Dissertação  que  escreveo  Sobre 
em  que  paiz  se  salvarão  os  Cananeos  afugentados  por  Josué. 
Todas  estas  difficuldades  se  reduzem  a  dizer,  que  em  tem- 
pos em  que  os  navios  crão  incomparavelmente  menos  pos- 
santes do  que  hoje  são  os  nossos  ,  e  cm  que  não  havia 
uso  algum  nem  conhecimento  da  agulha  de  marear;  pare- 
ce impossível,  que  sem  milagre  podessem  os  Fenicios  fa- 
zer huma  tão  larga  navegação  por  mares  tão  grandes  ,  e 
tão  aparcelados. 

Ãlas  quanto  a  mim ,  ainda  prescindindo  doutra  não 
menos  admirável  navegação,  que  Plínio  no  Livro  II,  cap. 
67  attribue  a  Eudoxo,  a  Magon ,  e  até  aos  Espanhoes  do 
tempo  de  Tibério  ,  dos  quaes  todos  affirma  ,  que  navega- 
rão desde  Cádis  até  o  Sino  Arábico ,  e  desde  Sino  Arábico 
.até  Cádis ;  prescindindo  também  de  que  como  nos  infor- 
ma Damião  de  Góes  no  principio  da  Chronica  do  Princi- 
jje  D.  João ,  com  esta  noticia  se  animavão  os  nossos  para 
€mprehenderem  o  descobrimento  de  novas  terras  em  tempo 
tio  Infante  D.  Henrique.  Quanto  a  mim ,  digo ,  nenhuma 
força  tem  esta  razão,  para  impugnar,  e  muito  menos  pa- 
ra negar  a  chegada  dos  Fenicios  á  America.  Porque  sendo 
innegavel ,  que  quando  os  Castelhanos  e  os  Portuguezes 
tlescobfírão  este  noyQ  mundo »  q  acharão  tçdo  habitado 
._  d'ho- 


78  Memorias  DA  Academia  Real 

d'  homens  naturaes ,  e  que  estes  homens  tinhão  para  lá  ido 
muitas  centenas  d'annos  antes ,  isto  he  ,  de  tempos  que 
excedem  toda  a  memoria  :  destes  dous  factos  se  taz  evi- 
dente ,  que  em  tempos  antiquíssimos ,  em  tempos  que  a 
náutica  estava  mui  longe  da  perfeição,  que  depois  a  cal- 
çou,  poderão  os  homens  navegar,  e  com  eíFeito  navcgárãj 
os  mares ,  por  onde  ou  da  Ásia  ,  ou  da  Africa  ,  ou  da 
Europa  se  podia  chegar  á  America,  separada  por  mar  de 
todas  as  outras  partes  do  mundo. 

Como  o  meu  intento  não  foi  expor  todas  as  colónias, 
que  os  Fenícios  estabelecerão  em  Espanha,  ou  fora  dcUa; 
mas  fixar  provavelmente  a  época ,  em  que  elies  pela  pri- 
meira vez  chegarão  ao  nosso  continente :  passo  daqui  a 
dizer  alguma  cousa  das  muitas  riquezas  ,  que  elles  acharão 
nesta  região ,  ou  logo  no  principio  ,  ou  depois  que  o 
tempo  e  a  experiência  lhes  foi  descobrindo. 

Refere  pois  Diodoro  de  Sicília  no  livro  V  da  sua 
Bibliotheca,  cap.  35-,  que  a  muita  prata,  qu2  os  Fenícios 
acharão  em  Tartesso  ,  ilha  e  cidade  da  Betíca  ,  que  Ma- 
riana julga  ser  TariíFa  ,  fora  a  que  lhes  dera  opulência  e 
forças  navaes ,  com  que  elles  depois  propagarão  o  seu  im- 
pério em  varias  partes  da  Africa,  Sicília,  e  Sardenha.  A 
qual  prata  affirma. Diodoro  que  era  tanta,  que  estando  os 
Fenícios  para  se  embarcar,  e  vendo  que  os  seus  navios  a 
não  podião  levar  toda  ;  tomarão  o  expediente  de  fazerem 
de  prata  as  ancoras ,  e  mais  instrumentos ,  com  que  se  es- 
quipa huma  frota. 

Por  este  caso  allega  o  nosso  Gaspar  Barreiros  na  sua 
Corografia  não  só  a  Diodoro  de  Sicília  no  lugar  acima  in- 
dicado, mas  também  a  Aristóteles  na  obra  Das  MaravilbaSf 
a  qual  todavia  já  antes  de  Barreiros  tinha  duvidado  Eras- 
mo ,  e  depois  de  Barreiros  duvidou  Vossio ,  que  fosse  de 
Aristóteles. 

Para  que  a  ninguém  pareça  incrível  aquella  prodigiosa 
abundância  de  prata ,  temos  em  Estrabão  outro  lugar  apon- 
tado também   por  Barreiros  do  livro  III,  pag.  224   ondg 


.    P; A. Ç  S  q  I;E;IíiOI;A.S   p  E  L 1 5  ^O,^  3  y^  7^; 

este  gravíssimo  geógrafo  attesta  como  hum  facto  constan- 
te entre  os  escritofes  mais,  ant;igQS.;  que  quando  os  Car- 
thaginezes  vierão  ã  Espanha  em  tempo  d'AmiIcnr  Barca, 
pai  do  grande  Annibal  ;  observarão  não  sem  admiração  , 
(jue  os  Tudertano.s  usavão,  de  talhas  ç  de  manjedouras  de 
prata.  Comprehendia  a  Tud.ertani^  parte  da  Betica ,  e  par- 
te da  Lusitânia.  ' 

Afora  estes  testemunhos  produzidos  por  Gaspar  Bar- 
reiros ,  acho  outros ,  que  ainda  provão  mais  especifica- 
mente o  nosso  assumpto.  Porque  no  mesmo  livro  III ,  pag. 
220  escreve  Estrabao  por  authoridade  de  Polybio  ,  que  jun- 
to a  Carthagena  no  âmbito  de  quarenta  estádios ,  (  cada 
estádio  tinha  cento  e  vinte  cinco  pés )  havia  humas  minas 
de  prata  ,  onde  d' ordinário  trabalhavao  quarenta  mil  ho- 
mens ,  e  donde  por  dia  se  pagavao  aos  Romanos  vinte  cin- 
co mil  dracmas.  E  passando  das  minas  de  prata  ás  do  ou- 
ro,  o  mesmo  Estrabao  tinha  já  notado  na  pag.  216,  que 
na  Tudertania  se  achavao  algumas  vezes  torrões  d'ouro  de 
seis  libras  ,  a  que  chamavao  palas ,  que  necessitavão  de 
mui  pouca  expurgação  para  se  aproveitarem   de  todo. 

PHnio  no  livro  XXXIII ,  cip.  4  dá  por  cousa  averi- 
guada,  que  só  as  Astúrias,  3  Galliza,  e  a  Lusitânia,  pro- 
duzião  cada  anno  ^os  mineiros  vinte  mil  arráteis  d'ouro 
{vlcena  millia  pondo)  :  que  reduzidos  a  arrobas,  fazem  seis- 
centas e  vinte  sinco.     -jy.ii  -èoa  míií!-:;  u. 

Ultimamente  da  historia  Roftíiaría  consta  ,  que  toma- 
da por  Scipião  Carthagena ,  forao  achados  no  esbulho  del- 
ia dezoito  mil  e  trezentas  libras  de  vasos  de  prata,  e  du- 
isentas  ç  setenta  e  seis  taças  d'oura. 


%.'  '  Boii-tiecitada'  na  sessão  temipublica  4^  2.1    4e  ^^rp  de 

\fj'%'f-:-y-J  ;í;'.o  í-,i,i  -,.,,:  ^  ,,;. 
~í:oI  Eímugag  e  mo'j  oW^^^úVi 
sDDiBq  h4tta<^xa  «  obc}io[ijs  ití  loq 


8o  MemouiasdaAcademiaReal 

DISSERTAÇÃO    II. 

Etymologia  destes  quatro  nomes ,  Ibéria ,  Celtiberia ,  Hi.patiia , 

Lusitânia. 

Cjanto  Isidoro  de  Sevilha  no  livro  XIV  das  Origens ,  cap. 
4  diz,  que  esta  região  da  Europa,  em  que  nós  habita- 
mns,  fora  no  principio  chamada  Ibéria  do  rio  Ibero  ^  hoje 
F.bro ,  que  rega  hunia  grande  parte  delia  ;  e  depois  fora 
chamada  Hispânia  de  Hispdlo  ,  que  outros  declarão  fora  hum 
dos  seus  primeiros  Reis.  Hispânia  prius  ab  Ibero  amne  Ibé- 
ria nuncupata  ,  postea  ab  Hispalo  Hispânia  cognominata  est.  Am- 
bas as  etymologias  tirou  Santo  Isidoro  de  Justino,  que  as- 
sim  o  escreve  no  principio  do  Livro  XLIV. 

Nem  se  pode  oppor  contra  a  segunda  o  dizer  ,  que 
se  Hispalo  fosse  o  que  deo  o  nome  a  Espanha ,  deveria 
esta  chamar-se  antes  Hispalia ,  do  que  Hispânia.  Porque  em 
contrario  se  re<;ponde ,  que  não  obstante  chamarem  Gregos 
e  Romanos  Hispânia  a  região  ,  sabemos  que  entre  os  mes- 
mos Romanos  houve  hum  Cornelio  Hispdlo ,  chamado  assim 
por  ter  sujeitado  Espanha.  Consta  isto  d' hum  notável  lu- 
gar de  Diodoro  de  Sicilia  nos  Excerptos  do  livro  XXXIV, 
tomo  II  da  edição  de  Wessehng,  pag.  óof  ,  que  diz  as- 
sim :  (( O  Cônsul  Publio  Scipião  Nasica  foi  hum  varão  emi- 
j>  nentissimo  ,  tanto  pela  sua  virtude  ,  como  pelo  esplen- 
j»  dor  da  sua  geração :  porque  era  descendente  daquella  fa- 
j>  milia,  de  que  sahírão  os  Africanos,  e  os  Asiáticos,  e 
>f  os  Hispálos  :  dos  quaes  o  primeiro  sujeitou  a  Africa,  o 
>»  segundo  a  Ásia,  ô  terceiro  a  Espanha.  >>  Aqui  temos, 
que  contra  as  regras  da  derivação,  mas  não  sem  exemplo, 
chama'rã()  os  Romanos  Cornelio  Hispdlo  com  a  segunda  lon- 
ga aquelle  heroe ,  que  por  ter  sujeitado  a  Espanha  parece 
que  SC  devia  appellidar  antes  Hispano.  Mas  neste  caso  for- 
ma- 


DAS  SciENci  AS  DE  Lisboa.  8i 

márao  os  Romanos  àc  Hispânia  Hispà/o  ,  da  mesma  scrte 
que  de  Messaita  formarão  o  outro  appcllido  de  Messala. 
Tudo  advcrtio  primeiro  do  que  eu  Henrique  de  Valois , 
na  Nota  ao  referido  lugar  de  Diodoro.  Logo  se  contia 
as  regras  da  ctymologia  poderão  os  Romanos  de  Hispânia, 
formar  Hi^pdlo ;  porque  não  poderião  ellcs  de  Hispdlo  for- 
mar Hispânia  ? 

Ainda  assim  Marcos  Varrão  citado  por  Plinio  seguio 
outro  rumo  ,  quando  escreveo  que  os  Iberos  Povos  da 
Ásia  ,  onde  hoje  chamão  a  Geórgia  ,  forão  es  que  derão  a 
Espanha  o  nome  de  Ibéria:  que  Luso  ouLysa  companhei- 
ros de  Bacco  ,  forão  os  que  derão  o  nome  á  Lusitânia  :  e 
que  Pan,  outro  capitão  que  cá  deixou  Bacco,  fora  o  que 
a  toda  a  Região  dera  o  nome  de  Pania ,  donde  depois 
acrescentada  huma  letra  se  formou  Spauia  ,  e  por  ultimo 
junta  huma  syllaba  com  aspiração  Hispânia.  Pjinio  Livro 
IH.  cap.  \.  In  universam  Hispaniam  M.  Varro  pervenisse 
Iberos ,  et  Persas ,  et  Phoevicas ,  Celtasque  et  Pcenos  Irodit '. 
Lujum  enim  Liberi  Patris  ,  ac  Lysam  cum  eo  bacchantem ,  no- 
men  dedisse  Lusitânia ,  et  Pana  prafectum  ejus  iiniversa. 

Se  estas  etymologias  fossem  tão  certas ,  pelos  seus 
fundamentos  ,  como  ellas  são  bem  recebidas  entre  os 
Escritores  ;  era  fácil  fixar  a  Época  ,  em  que  a  Espanha  e 
Lusitânia  obtiverão  estes  nomes,  pelo  tempo  em  que  vi- 
verão os  Heroes  ,  que  lhos  derão.  Porque  Heródoto  no  Li- 
vro IL  cap.  146.  testifica,  que  Bacco  floreceu  antes  delle 
mil  e  sccenta  annos  ,  que  estes  são  os  números ,  que  por 
consenso  de  grandes  Criticos  se  devem  repor  no  Texto  de 
Heródoto ,  em  lugar  dos  mil  e  seis  centos ,  que  se  lem  nas 
suas  Edições.  Vejão-se  as  Notas ,  que  aqui  traz  a  Edição 
de  Wesseling. 

Heródoto ,  como  eu  já  demostrei  na  Dissertação  so- 
bre a  Época  dos  Fenicios  em  Espanha  florecia  pouco  mais 
de  quatrocentos  annos  antes  da  era  de  Christo.  Ajuntcm- 
sc  estes  quatrocentos  annos  aos  mil  e  secenta  ,  que  Heró- 
doto atte&ta  que  lhe  precedera  Bacco:  temos  o  anno  1460 
T.  IX.  P.  L  L  an- 


Sx  MemouiasdaAcademiaReal 

antes  da  dita  era.  Tantos  ha  logo  ,  segundo  o  testemunho 
de  Varrão  ,  que  a  Espanha  se  chama  assim  de  Pan  capitão 
de  Bacco,  e  a  Lusitânia  assim  de  Luso  ou  Lysa  seu  com- 
panheiro. 

Confirma-se  esta  Época  de  Bacco  e  seus  companhei- 
ros ,  pelo  que  os  M.irmores  d'Oxford  assignao  a  Gadmo 
avô  de  Bacco  por  sua  filha  Semeie.  Porque  segundo  os  di- 
tos Mármores,  na  Época  VIL  Cadmo  veio  á  Grécia  no 
anno  iji?  antes  da  era  de  Christo :  que  vem  a  ser  59 
annos ,  antes  do  anno  1460  cm  que  por  Heródoto  vimos, 
que  florccêra  Bacco  neto   de   Cadmo. 

Antes  que  deixemos  de  todo  o  referido  Texto  de  Plí- 
nio Livro  in.  cap.  I.  deve-se  advertir,  que  ainda  que  nel- 
le  trazem  todas  as  Edições  Lustim  ou  Lysam  copulativamen- 
tc,  o  sentido  parece  pedir,  que  se  leia  disjunctivamente 
Lustim  aut  Lysam  ,  como  já  notou  Resende  ;  porque  fuljan- 
do-se  de  quem  tomou  a  Lusitânia  o  nome  ,  como  Luso  e 
Lysd  são  nomes  diversos,  não  se  podia  dizer,  que  a  Lu- 
sitânia o  tomara  de  ambos,  mas  d'hum  ou  d'c)utro 

Também  sobre  o  referido  Texto  de  Heródoto  he  ne- 
cessário notar,  que  elle  depois  de  fixar  a  Época  de  Bacco 
a  mil  e  secenta  annos  antes  do  seu  tempo,  prosegue  fixan- 
do também  as  Épocas  d'Hercules  filho  d'Alcmena  ,  e  de 
Pan  filho  de  Penélope.  Mas  este  Pan  he  diverso.  Diz  que  des- 
de Hercules  filho  d'Alcmena  até  o  tempo  delle  Heródoto, 
tinhão  decorrido  novecentos  annos  :  (  são  mil  e  trezentos  an- 
tes de  Christo  )  e  que  desde  Pan  filho  de  Penélope  tinhão 
decorrido  oitocentos :  (  são  mil  e  duzentos  antes  de  Christo.  ) 
Daqui  se  segue  ,  que  o  Pan  de  que  falia  Varrão ,  he  muito  di- 
verso e  muito  mais  antigo,  do  que  o  Pan  de  que  falia  Heródoto. 

Mas  prescindindo  das  Épocas  destes  Heroes ,  Samuel 
Bochart  versadissimo  nas  Linguas  Orientaes  ,  e  em  toda  a 
Historia  antiga  ;  dá  por  quiméricas  todas  estas  etymologias 
de  Varrão  apontadas  por  Plínio  ;  e  quer  que  em  lugar  dos 
Gregos,  fossem  os  Fenícios  os  que  denominarão  a  nossa 
Região ,  e.  as  suas  Províncias. 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  8^ 

O  sentimento  pois  de  Bochart  he  ,  que  o  nome  d'/- 
beria  vem  do  termo  Fenicio  Ebrin ,  ou  Ibrin ,  que  significa 
o  fim  ,  ou  o  que  he  ultimo  :  visto  que  dos  Fenícios  passou 
aos  Gregos  e  aos  Romanos  o  conceito  ,  de  que  a  Espa- 
nha era  o  fim  do  Mundo  ,  como  entre  outros  chamou  Clau- 
diano  : 

In  extremos  aciem  mittebat  Iberos. 

Que  o  nome  A'' Hispânia  vem  do  outro  termo  Sayhan , 
que  em  Lingua  Fenicia  quer  dizer  coelho  :  de  sorte  que 
á  Espanha  se  desse  este  nome  por  cauza  da  grande  co- 
pia de  coelhos  ,  que  nella  se  produzem.  O  que  alem  de 
ser  huma  qualidade,  que  todos  os  antigos  Historiadores 
attribuem  a  Espanha,  e  ás  Ilhas  Baleares  suas  adjacentes  j 
deo  também  motivo  ao  Poeta  Catullo  ,  para  que  no  Epi- 
grama a  seus  companheiros  desse  á  Espanha  como  por  an- 
tonomásia ,  o  cpitheto  de  cunicutosa ,  isso  he  ,  de  creadora 
de  coelhos. 

Tu  pr£ter  omnes  une  de  capillatis 
Cuniculosa  Celtiberite  filits. 

Confirma  Bochart  esta  etymologia ,  observando  que  a 
orthografia  primitiva  deste  nome  he  Spania  por  SP,  e  três 
syllabas  ,  como  trazem  o  Grego  de  S.Paulo  Rom.  XV.  24, 
38,  o  de  Eusébio,  o  de  S.  Epifânio:  e  como  o  trazem 
€m  Latim  as  Subscripções  do  primeiro  Concilio  de  Cons- 
tantinopla ,  e  muitos  Manuscritos  de  Curcio  ,  de  Justino, 
de  S.  Isidoro  de  Sevilha ,  e  de  S.  Eulogio  de  Córdova. 
Com  o  que  pode  muito  bem  estar  ,  e  com  effeito  está  ^ 
que  a  outra  orthografia  de  Hispânia  por  H.  e  quatro  sylla- 
bas ,  se  não  deve  ter  por  barbara ,  ou  errada  :  pois  que  el- 
Ja  se  acha  frequentemente  nas  Pedras  e  medalhas  do  tem- 
po dos  Romanos. 

Qjc  Lusitânia  vem  de  outro  termo  Z,az,  que  entre  os 
Fcnicios    queria    dizer   amendoeira.    Porque  sendo  costume 

L  ii  dos 


84  Memorias  pa  Academia  Real 

dos  Fenícios  dar  ás  suas  Povoações  o  nome  dos  fructos , 
porque  ellas  se  distinguião  humas  das  outras  ;  como  quan» 
do  chamarão  a  Jerko  cidade  das  palmeiras ,  a  Tapphua  ci- 
dade das  m.içaas  ,  a  Rimirwn  cidade  das  romaas  ,  a  Bathna. 
cidade  das  nozes :  dá  Bochart  por  mais  do  que  provável  , 
que  da  mesma  sorte  chamarão  os  P^cnicios  Lnsitauia  este 
nosso  paiz ,  por  cauza  das  muitas  amendoeiras  que  nclle 
acharão,  e  que  na  mesma  Lusitânia  ainda  hoje  dáo  o  no- 
me ás  villas  da  Amêndoa  ,  .  Òl  Almendra  ,  e  de  Castelmendo  : 
do  mesmo  modo  que  os  mesmos  Fenícios  até  por  confis- 
são de  S.  Jerónimo ,  chamarão  Litza  a  cidade  de  Bethcl , 
querendo  dizer  cid?.de  das  amendoeiras.  Comprobatnr  Bethel 
Luzam  id  est  amigdalum  ,  ante  vocitatam  ;  diz  o  Doutor  Má- 
ximo no  Livro  das  questões  Hebraicas.  Assim  Bochart  no 
Livro  De  Coloniis  Phieniaim,  cap.    ^^. 

Lsto  he  pelo  que  toca  ás  origens  destes  três  nomes 
Ibéria ,  Hispânia  ,  e  Lusitânia ,  as  quaes  eu  náo  faço  mais 
do  que  referir,  deixando  ao  juizo  de  meus  ouvintes  ou  lei- 
tores ,  escolher  a  que  lhes  pareça  mais  vcrosimel. 

Qiianto  ao  nome  de  Celtiheria  ,  os  antigos  ora  o  con- 
trahião  a  huma  parte  da  Espanha  ,  ora  o  applicavão  a  toda 
ella.  No  primeiro  sentido  se  chamavão  propriamente  Celti- 
beros aquelles  Povos  d'Espanha  ,  que  habitavão  d'huma  e  ou- 
tra banda  do  Ebro  :  os  quaes  Estrabão  no  Livro  III  a  ca- 
da passo  está  contradistinguindo  dos  Turdetanos  ,  dos  Lu- 
sitanos, e  dos  Gallcgds.  No  segundo  escreve  Floro  Livro 
II.  cap.  17.  7 Ota  certaminum  moles  cum  Lusitanis  et  Ntimati- 
tinis  ftiit.  ,  . .  Fuisset  et  cum  omnibus  Celtiberis  ,  nisi  ,  &c.  E 
no  mesmo  sentido  ouvimos  já  dizer  a  CatuUo  no  Epigra- 
ma XXXVIII.  Cuniculosie  Celtiberis  filiis,  He  porém  cons- 
tante entre  antigos  e  modernos  ,  que  o  nome  de  Celtibe- 
ria  se  formou  do  concurso  das  duas  Nações  ,  Céltica  e  Ibé- 
rica ,  do  modo  que  refere  Diodoro  de  Sicilia  no  Livro  V. 
c.ip.  3^.  por  estas  palavras:  Depois  determos  assas  fallado 
dos  Celtas ,  passemos  a  tratar  dos  Celtiberos  seus  commar- 
cãos.  Porque  estes  dois  Povos,  os  Iberos  e  os  Celtas,  co- 
mo 


DAsSciENciAs  DE  Lisboa.  85^ 

mo  antes  tivessem  tido  guerras  sobre  os  limites  de  seus 
campos,  por  ultimo  feita  paz  habitarão  pormiscuamente  hii- 
ma  mesma  Região:  e  misturados  huns  com  outros  pelos 
cazamciitos  ,  tomarão  ambos  hum  mesmo  nome ,  que  de- 
notasse essa  mesma  mistura.  Atòqui  Diodoro. 

Chamárão-sc  pois  Celtiberos  os  habitantes  sobre  o  Ebro  , 
depois  que  com  elles  se  vierão  misturar  os  Celtas  Povos 
da  Gallia  ,  que  se  scguião  immediatamente  aos  Pyrincos. 
E  chamou-se  Celtiberia  aquella  Região  ,  em  que  vivião  huns 
e  outros  Povos  já  misturados  n'hum. 

Mas  não  cuide  alguém,  que  os  Celtas  pararão  de  to- 
do nas  ribeiras  do  Ebro.  Porque  dos  antigos  Geógrafos 
consta  ,  que  elles  também  se  propagaVão  pela  Lusitânia , 
e  pela  Betica  ,  e  que  da  Betica  passarão  á  Galliza  :  o  que 
tudo  mostra  Resende  pelos  testemunhos  d'Estrabâo  e  Plinio. 

Não  ha  cousa  mais  decantada  entre  os  antigos  Poetas 
Espanhoes  ,  do  que  ter  provindo  o  nome  de  Celtiberia  des- 
ta mistura  e  ajuntamento  dos  deus  Povos  confinantes.  Lu- 
cano  Livro  IV.  verso  9. 

Proftigique  d  gente  vetusta 


Gallorum  ,  Celta  miscentes  numen  Iberis. 
Silio  ,  Livro  in.  verso  340. 

Venere  et  Celta  sociatum  nomen  Iberis. 


DIS- 


t6  Memorias  da  Academia  Reau 

DISSERTAÇÃO    III. 

Os  Gregos  em  Espanha ,  jd  des  dos  Tempos  Heróicos ,  isto  he , 
antes  da  guerra  de  Troya ,  e  immediatamente  depois  delia. 


D. 


EPOis  dos  Fenícios  ,  a  Nação  mais  amiga  de  que  eu 
tenho  noticia  que  viesse  a  Espanha,  são  os  Gregos,  e  isto 
já  des  dos  Tempos  Heróicos. 

Por  Tempos  Heróicos  da  Grécia  entendo  eu  aquelles, 
em  que  florecêrão  os  seus  Deoses  e  Semideoses;  os  qujcs 
tendo  sido  na  realidade  huns  puros  homens  ,  (ainda  que 
alguns  delles  ao  mesmo  tempo  bem  impuros )  a  grandeza 
de  suas  acções ,  e  aventuras  os  elevou  a  huma  classe  infi- 
nitamente superior  á  de  todos  os  outros ,  segundo  a  gen- 
tilidade era  propensa  e  fácil  em  dar  honras  divinas  aos 
seus  heróes. 

§     I. 

Dentro  de  que  espaço  de  tempo  se  comprehendem  os  Tempos 
Heróicos  da  Grécia  segundo  Farrao. 

Censorino  no  seu  curiosíssimo  e  elegantíssimo  Trata- 
do De  Die  Natali  ^  cap.  ii  diz  que  Varrão  dividia  todos 
os  tempos  em  três  classes.  A  primeira  des  da  creação  do 
mundo  até  o  diluvio  d'Ogyges,  A  segunda  ,  des  do  dilu- 
vio d'Ogyges  até  o  principio  das  Olympiadas.  A  terceira 
des  do  principio  das  Olympiadas  até  o  tempo,  em  que  elle 
Varrão  escrevia. 

O  primeiro  intervallo  dava  Varrão  por  adelon ,  isto 
he ,  por  absolutamente  incógnito  aos  homens :  o  segundo 
por  mythicon ,  isto  he,  por  fabuloso:  o  terceiro  por  histo- 
ricotij  isto  he,  por  verdadeiro. 

Em 


I 


DAS  SciENciAS  DE  Lisboa.  87 

Em  dar  o  primeiro  intcrvallo  por  absolutamente  in- 
cógnito, queria  dizer  Varrao ,  que  do  que  dentro  dcllc  ti- 
nha succcdido  no  mundo  ,  não  se  sabia  nada.  Em  dar  o 
segundo  intcrvallo  por  fabuloso ,  queria  dizer  ,  que  nelle 
andava  a  verdade  misturada  com  a  ficção.  Em  dar  o  ter» 
ceiro  intervallo  por  histórico,  queria  dizer,  que  nelle  ap- 
parecia  a  verdade  clara. 

Resultados  deste  Principio  Chronologico  de  Fmrão. 

Primeiro  Resultado.  Que  a  única  cousa  ,  que  Gregos 
e  Romanos  sabiâo  do  primeiro  intervallo  do  mundo  ,  era 
que  tinha  havido  na  Attica  hum  diluvio  ,  reinando  nella 
Ogyges. 

Segundo  Resultado.  Deste  diluvio  d'Ogyges  até  o 
tempo  em  que  Varrão  escrevia  ,  diz  elle  no  Pxoemio  do 
Livro  Terceiro  De  Re  Rústica  ,  que  erão  passados  quasi 
dous  mil  e  cem  annos.  Thcba ,  qua  ante  cataclysnium  Ogy- 
gís  condita  dicuntur ,  ea  tamen  circiler  duo  millia  aunorum  et 
centtim  sunt.  Varrão  escrevia  no  anno  setecentos  da  funda- 
ção de  Roma ,  sincoenta  antes  do  nascimento  de  Christo : 
porque  no  mesmo  Proemio  nota  elle  ,  que  então  he  que 
se  podia  dizer  com  verdade  ,  o  que  cento  e  tantos  annos 
'  antes  tinha  escrito  menos  exactamente  o  Poeta  Ennio : 

Septingenti  sunt  paullo  plus  atit  minus  anni, 
augusto  augúrio  postquam  ínclita  condita  Roma  est. 

Logo  todos  os  conhecimentos  históricos  de  Gregos  e 
Romanos ,  segundo  o  testemunho  do  mais  douto  d'entrel- 
Ics ,  não  remontavão  acima  do  nascimento  de  Christo ,  mais 
do  que  a  dous  mil  cento  e  sincoenta  annos.  Donde  se 
mostra  bem  ,  quanto  a  Historia  dos  Hebreos  excede  em 
antiguidade  de  factos  ,  tudo  quanto  refere  a  Historia  Pro- 
fina.  Porque  collijindo-se  pela  Historia  do  Testamento  ve- 
lho quatro  mil  anaoç  des  da  creação  dp  mundo  até  Chris- 
to j 


88  MemoriasdaAcademiaReal 

to  ;   Varrão  nos  assegura  ,   que  a  Historia  Profana  apenas 
passava  de  dous  mil. 

Terceiro  Resultado.  Daquelles  dous  mil  e  cem  annos, 
que  Varriío  affirmu  terem  passado  dcs  do  diluvio  d'Ogyges 
até  o  seu  tempo,  tirem-se  os  setecentos,  que  hião  dcs  do 
tempo  de  Varrão  até  a  fundação  de  Roma:  ficao  mil  e  qua- 
trocentos annos.  Logo  este  era  com  pouca  differcnça  o  es- 
paço ,  que  Varrão  chamava  mythkon ,  ou  fabuloso.  Porque 
segundo  o  systcma  de  Varrão,  do  principio  das  Olympia- 
das  até  a  fundação  de  Roma  ,  não  decorrerão  senão  vinte 
e  dous  annos.  E  como  o  intcrvallo  dos  tempos  fabulo- 
sos,  todos  convém  que  he  o  mesmo,  que  o  dos  tempos 
heróicos;  temos  que  segundo  Varrão ,  por  tempos  herói- 
cos se  devem  reputar  todos  os  mil  e  quatrocentos  an- 
nos, que  decorrerão  des  do  diluvio  d'Ogyges  até  a  época 
das  Olympiadas ,  que  -todos  põem  no  anno  setecentos  e  se- 
tenta e  seis  antes  da  era  de  Christo ,  e  segundo  o  sy^tema 
de  Varrão ,  vinte  e  dous  annos  antes  da  fundação  de  Roma. 

§     II. 

Qtiando  começão  os  Tempos  Heróicos  da  Grécia  segundo  os 
Mármores  d'' Oxford ,  e  segundo  Eusébio. 

Os  Mármores  d'Oxford  ,  que  como  eu  já  disse  noutra 
Dissertação,  forão  escritos  duzentos  e  secenta  e  quatro  an- 
nos antes  da  era  de  Christo ;  dão  principio  aos  tempos 
heróicos  da  Grécia  em  Cecrópe  primeiro  Rei  d'Athenas  , 
mil  e  quinhentos  e  oitenta  e  dous  annos  antes  da  nossa 
era. 

Com  elles  concorda  admiravelmente  o  Principe  da 
chronologia  antiga ,  Eusébio  de  Cesárea.  Porque  no  Livro 
IX  da  sua  grande  obra  Da  Preparação  Evangélica ,  cap.  3  : 
segundo  a  antiga  edição  Veneziana  de  que  uso  de  is'^9  y 
ou  cap.  9.  segundo  a  de  que  usavão  Usser  c  Musansi  : 
depois  de  notar,   que  Cecrópe  e  Moysés  forão  contempo* 

ra- 


dasScienciasdeLisboa.  8^ 

ranços,  prosegue  Eusébio  dizendo,  que  d'então  por  dir.nte 
he  que  acontecerão  todas  aqucUas  maravilhas,  que  a  my- 
thologia  Grega  nos  conta  :  a  saber ,  o  diluvio  de  Deuca- 
liáo ,  o  incêndio  de  Faetonte ,  a  vinda  de  Cadmo  a  The- 
bas ,  os  dous  raptos  de  Prosérpina  e  Europa  ,  os  nasci- 
mentos d'Apollo  e  Errcthonio,  a  agricultura  de  Triptole- 
mo  ,  os  mysterios  Eleusinos  de  Ceres ;  e  depois  destes  as 
aventuras  de  Minos  ,  Preseo  ,  Theseo ,  Bacco  ,  Hercules. 

Numa  só  cousa  discrepa  Eusébio  dos  Mármores  d'Ox- 
ford ,  como  notou  Selden  :  e  he  que  os  cálculos  d'  Eusé- 
bio ordinariamente  vão  atrazados  aos  dos  Mármores  d'Ox- 
ford  vinte  e  seis  annos.  Mas  em  succcssos  ,  que  a  nosso 
respeito  são  passados  ha  mais  de  três  mil  annos;  ninguém 
deixará  de  conceder ,  que  a  dilFerença  de  vinte  e  seis  an- 
nos não  he  diíFerença  ,  de  que  se  faça  caso ,  quando  se 
trata  de  fixar  esta  ou  aquclla  época. 

Diodoro  de  Sicilia,  que  florcceo  em  tempo  d'Augusto 
Ccsar ,  promettendo  no  Proemio  do  Livro  IV  da  sua  Bi- 
bliothcca  ,  tratar  dos  semideoses  e  heroes  da  Grécia,  co- 
meça por  Bacco,  filho  de  Semeies,  e  neto  de  Cadmo:  de- 
pois passa  a  Hercules  ,  filho  d'Alcmena  :  depois  a  Jason , 
capitão  dos  Argonautas:  depois  a  Dardano  e  Priamo:  de- 
pois a  Minos  e  Dédalo.  E  isto  he  desumir  também  Dio- 
doro os  tempos  heróicos  da  Grécia,  dos  que  se  seguirão 
ao  reinado  de  Cecrópe,  como  com  os  Mármores  d'Oxford 
fez  Eusébio.  Porque  Cadmo  concorreo  com  Amfyctião  ter- 
ceiro Rei  d'Athenas  depois  de  Cecrópe. 

Quanto  ao  termo  dos  tempos  heróicos  ,  seguio  Eusé- 
bio o  systcma  de  Varrao.  Porque  chegando  na  sua  Chro- 
nica  ao  principio  das  Olympiadas,  diz  assim  Eusébio:  jíqui 
acabão  os  tempos  fabulosos ,  e  começao  os  históricos. 

Resultados  desta  combinação  da  Chronologia  ^Eusébio  com 
os  Mármores  d'Oxford. 

Primeiro  Resultado.    Tendo  Cecrópe   concorrido   em 
T.  IX.  P.  h  M  tem- 


^  Memorias  DA  Academia  Real 

tempo  com  Moysés  ,  fica  evidente,  que  os  tempos  herói- 
cos da  Grécia  correspondem  áquelles  dos  Hcbreos ,  que 
se  seguirão  depois  de  Moysés. 

Segundo  Resultado.  Qiie  os  tempos  heróicos  da  Gré- 
cia des  de  Cecrópe  até  a  ruína  de  Troya ,  coincidem  com 
os  tempos  dos  Juizes  do  Povo  Hebrco  des  de  Josué  até 
Jephte. 

Terceiro  Resultado.  Que  os  tempos  heróicos  da  Gré- 
cia des  da  ruina  de  Troya  até  o  principio  das  Olympia- 
das  coincidem  com  os  tempos  de  Jcpte  ,  Sansão  ,  Heli  , 
Samuel  ,  e  com  os  dos  Reis  de  Judá  desde  Saul  até 
Ozias. 

§.     III. 

^ue  Gregos  vierão  a  Espanha  nos  Tempos  Heróicos ,  antes 
da  destruição  de  Troya. 

Os  Zacynthios  f  ou  naturaes  da  Ilha  Zante. 

Duzentos  annos  antes  da  destruição  de  Troya,  huma 
armada  de  Gregos  vindos  da  ilha  de  Zacyntho  no  mar  lo- 
nio ,  desembarcarão  em  Espanha  onde  hoje  he  a  cidade  de 
Valença  ,  e  fundarão  a  três  milhas  delia  a  cidade  de  Sa- 
gunto  ,  que  agora  se  chama  Monviedro  ;  e  pouco  depois 
a  setecentos  estádios  de  Carthagena ,  edificarão  hum  tem- 
plo á  dcosa  Diana ,  e  coUocárão  nelle  hum  simulacro  da 
mesma  deosa  ,  que  tinhão  trazido  de  Zacyntho.  Do  qual 
templo  de  Diana  se  chamou  depois  Dianio  o  Promontório 
c  villa,  onde  elle  estava,  que  era  onde  hoje  vemos  a  villa 
de  Denia. 

Qlic  Sagunto  fosse  fundação  dos  Zacynthios,  temo-lq 
expresso  em  Estrabão  Livro  III,  pag.  239'.  e  em  Tito  Li- 
vio  Livro  XXI ,  cap.  7. 

C^ie  fosse  fundada  duzentos  annos  antes  da  destruição 
de  Troya  ,  colhe-se  da  igual  antiguidade  ,  que  Plinio  dl 
ao  templo  de  Diana ,  quando  no  Livro  XVI ,  cap.  40  al- 
ie- 


DAS    SciENCIAS    DE    LiSBOA.  gi 

legando  com  Bocco  escreve  assim  :  Et  iti  Hispânia  Sagr.nti 
aiunt  Templtim  Diana  a  Zazyntho  advecta  cum  coriditortbus  , 
anuis  diicentis  ante  exciclium  Tróia ,  ut  auctor  est  Boccbus  j  /»- 
fraque  oppidutn  ipsum  id  baberi. 

Do  mesmo  templo  de  Diana  faz  menção  Estrabão  no 
lugar  acima  indicado ,  como  também  do  promontório  e  po- 
voação ,  que  dcllc  tomarão  o  nome  de  Dianio  :  mas  ad- 
verte, que  a  povoação  era  obra  muito  mais  moderna,  pois 
tinha  por  authores  os  de  Marselha ,  colónia  dos  Focenscs. 
Accrescenta  ,  que  em  Dianio  havia  huma  atalaya  perpetua; 
e  que  em  tempo  dos  Romanos  tivera  Sertório  aqui  a  sua 
praça  d'armas  :  o  que  também  se  colhe  de  Cicero  no  LiW: 
vro  V  contra  Verres,  cap.  56.  j 

Sabemos  também  pelo  mesmo  Estrabão  ,  que  o  tem-; 
pio  de  Diana  estava  entre  o  rio  Sucro,  e  a  cidade  que  de» 
pois  se  chamou  Carthagena. 

Para  fixarmos  pela  antiguidade  do  templo  a  época  des-^ 
ta  vinda  dos  Zacynthios  a  Espanha ,  e  da  fundação  de  Sa- 
gunto  por  elles ;  basta  saber  pela  referida  informação  de 
Plinio,  que  ao  tempo  da  ruina  de  Troya ,  contava  já  d 
templo  duzentos  annos.  Troya  porém ,  segundo  os  mármo- 
res d'Oxford  na  época  XXV  foi  tomada  no  apno  mil  e 
duzentos  e  nove  antes  da  era  de  Christo.  Accrescentemos 
a  esta  conta  os  duzentos  annos ,  que  o  templo  já  tinha , 
quando  foi  tomada  Troya  :  acharemos  que  cidade  e  tem- 
plo forão  fundados  mil  e  quatrocentos  e  nove  annos  antes 
da  mesma  era. 

S    IV. 

Que  Gregos  vier  Ho  d  Espanha  nos  Tempos  Heróicos  ^  depois 
da  destruição  de  Troya. 

No  paragrafo  antecedente  de  propósito  omitti  tratar 
de  Bacco  e  de  Hercules ,  que  todos  os  nossos  antiquários 
suppóem  vindos  a  Espanha  muito  antes  da  guerra  de  Troya. 

M  ii  E 


91  MeMOUIAS   DA   ACADEM  IA   ReaU 

E  a  razão  que  tive  para  este  silencio  foi  :  porque  sendo 
muitos  os  Bjccos  ,  e  muitos  os  Hercules  que  a  antiguidade 
celebrou ;  e  achando-se  as  aventuras  d' hum  e  outro  mistu- 
radas de  muitas  fabulas,  sem  que  pelos  testemunhos  dos 
authores  Gregos  seja  fácil  deslindar  u  verdade  dos  succes- 
sos  e  dos  tempos;  não  pareceo  justo,  que  onde  só  se  tra- 
tava de  descobrir  o  certa  e  averiguado ,  gastasse  eu  o  tem- 
po era  expor  c  estofar  especiosas  mentiras  ,  quaes  siío  vá- 
rios contos  ide  que  andâo  cheias  as  Historias  de  Mariana 
ç  de  Brito.  ,  ,...i;   . 

A  guerra  de  Troya,  e  a  subsequente  destruição  desta 
famosa  capital  da  Frygia  depois  de  dez  annos,  he  a  épo- 
ca ,  que  nos  escritos  do  gravissimo  e  exactíssimo  Historia- 
dor Est  rabão  ,  nos  offerece  mais  certos  documentos,  por 
donde  melhor  possamos  conhecer ,  quaes  forao  os  heróes  , 
que  depois  daquelle  successo  o  mais  memorável  da  Histo- 
ria'Grega ,  ;vierâo  por  força  da  adversidade  illustrar  com 
as-^iuas  íurjdaçâes  esta  nossa  Península. 
ab  i  Observa  país  Estrabâo  mais  d'lwma  vez,  a  saber  no 
Livro 'I,;pag.  ^3  ,  e  no  Livro  III,  pag.  123  ,  que  na  tor- 
nada para  as  suas  terras ,  depois  de  destruída  Troya  ,  achá- 
íãò  os  capitães  Gregos  tão  contrários  os  fados  ,  que  em 
breve  tempo  sè  virão  oá  vencedores  igualados  nas  desgra- 
ças cont ; os  Vencidos :  e  que  assim  desapossados  dos  seus 
Estadas ,  e  pobres  de  bens  ,  sei  virão  huns  e  outros  cons- 
trangidos a  buscar  por  meio  de  longas  peregrinações  em 
paizcs  estranhos  melhor  fortuna.  Logo  bem  como  Enéas,  e 
Antenor  víerão  a  Itália ;  assim  também  Menestheo ,  Mene- 
la'o  ,  Ulysses ,  Teucro ,  e  Diontedes  passarão  a  Espanha  , 
e  no  extremo  delia  deixarão  illustre  memoria  de  si  em  va- 
rias fuuJaçõcs,  que  o  mesmo  Estrabâo  aponta  em  diversos 
lugares  do  Livro  III,  pag.  206,  e  223,  e  236. 

Menestheo. 

Menestheo  tinha  esbulhado  da  posse  do  Reino  d'Athe- 
I  nas 


DAS  SciENciAS  DE  Lisboa.  95 

nas  a  Theseo  ,  ajudado  para  isso  dos  filhos  de  Tyndaro. 
Ao  voltar  da  guerra  de  Troya  ,  achou  o  Reino  occupado 
por  Demofonte,  filho  de  Theseo,  a  quem  clle  pertencia 
pelo  direito  da  succcssâo.  Vendo-se  assim  despojado  de  seus 
Estados  ,  veio  a  Cadiz ,  e  defronte  desta  ilha ,  na  foz  do 
rio  Belon  ,  que  hoje  se  chama  Guadalethe  ,  edificou  huma 
cidade ,  que  do  nome  do  fundador  se  chamou  Porto  de  Me- 
nestheo  ,  que  se  julga  ser  ao  presente  o  Porto  de  Santa 
Maria.  E  entre  os  dous  braços,  que  então  fazia  o  Guadal- 
quivir, levantou  hum  templo,  que  também  de  seu  nome 
se  chamou  Oráculo  de  Menesthco. 

Meneldo. 

Meneláo  ao  tempo  da  guerra  de  Troya  era  Rei  de 
Mcsscnia  no  Peloponeso.  Em  vingança  e  despique  da  af- 
frofita  ,  que  Paris,  filho  de  Priamo  tinha  feito  a  Aleneláo, 
vindo-lhe  roubar  a  casa  çua  própria  mulher,  a  fermosa  He- 
lena ;  he  que  toda  a  Grécia  se  conjurou  contra  Troya ,  pa- 
ra cuja  destruição  veio  huma  armada  de  mil  e  duzentas 
na'os.  A  vinda  de  Meneláo  a  Espanha ,  depois  da  ruina  de 
Troya ,  prova-a  Estrabão  daquella  passagem  da  Odyssea  de 
Homero ,  onde  este  Poeta  introduz  a  Protheo  fallando  as-; 
sim  com  Meneláo : 

Sed  te ,  qtia  terra  postremus  terminas  extat , 
Elysium  in  campum  calestia  numina  ducent : 
Qtiem  Rhadanianthus  habet ;  qua  vita  facillima  multo 
Ducitiir :  baitd  operit  campos  vive  Júpiter  istos  : 
Hyheruo  tempus  neque  viultum  prorogat  anuo. 
Ntilli  imbres :  spirat  semper  grata  aura  favoni , 
Missaque  ab  Oceano  nimios  deniitigat  astus. 

Nos  quaes  versos  querendo  Protheo  significar  a  Meneláo  , 
que  viria  a  Espanha,  diz-lhe  que  viria  ao  ultimo  extremo 
lio  mundo  ,   onde  estavão  os  campos  Elysios.   Tão  antiga 

cia 


94  MemoriasdaAcademiaRkal 

era  entre  os  Gregos  a  fama  da  amenidade  e  riqueza  do 
nosso  terreno ,  que  nelle  punhão  o  Paraiso ,  onde  eterna- 
mente hião  morar  as  almas  bemaventuradas  dos  seus  he- 
roes.  E  ainda  que  alguns  authorcs  portuguezes  querem  , 
que  os  campos  Elysios  dos  antigos  fossem  na  província 
d'entre  Douro  e  Minho ;  os  que  d'cntre  os  estrangeiros 
são  mais  versados  na  historia  e  mythologia  grega ,  põem 
aquelles  campos  na  provinda  da  Betica,  onde  era  Tartcs- 
so  ,  e  onde  hoje  está  Cádis.  E  este  he  o  sentir  d'  Estra- 
bão  ,  que  a  isto  diz  que  alludiao  as  duas  fabulosas  expe- 
dições dos  herócs  gregos  ,  huma  dirigida  a  furtar  as  boia- 
das de  Geryáo ,  que  pastavão  na  ilha  Erythia  entre  Cádis 
e  a  terra  firme  d'  Espanha  ;  outra  a  colher  os  pomos  de 
ouro  do  jardim  das  Hesperidas ,  que  era  da  outra  banda 
da  Mauritânia ,  c  fronteira  de  Cádis. 

Accrescenta  Estrabão,  que  donde  Homero,  e  Hesio- 
do ,  e  os  outros  poetas  gregos  souberão  da  amenidade ,  fer- 
tilidade ,  e  opulência  d'  Espanha ,  fora  dos  Fenícios  ,  que 
muito  antes  tinhão  vindo  a  ella. 

Vlysseí» 

Damião  de  Góes  numa  descripção  que  fez  de  Lisboa 
em  muito  bom  latim ,  affirma  que  o  fundamento  que  os 
nossos  tirão  do  nome  Ulyssipo  para  fazerem  Lisboa  funda- 
ção d'Ulysses,  he  hum  fundamento  ruinoso.  Porque  a  ver- 
dadeira orthografia  deste  nome  nos  antigos  monumentos 
Romanos ,  não  he  Ulyssypo ,  por  U  e  Y ,  com  dous  SS ,  e 
PP:  mas  sim  Olisipo j  por  O  e  I  latino,  sem  nenhuma  le- 
tra dobrada. 

Samuel  Bochart  no  Livro  I  De  Coloniis  PhanicwUj  cap. 
3f  quer  que  Olissypo  venha  dos  dous  vocábulos  Fenícios 
^lis  Ubbo  y  que  significão  enseada  amena.  Porque  no  livro 
III,  cap.  I  colloca  Pomponio  Mella  Lisboa  numa  enseada 
do  Tejo.  E  a  amenidade  desta  enseada  nós  a  vemos  e  go- 
samos.  .  • 

D. 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  9f 

D.  Fr.  Amador  Arrais  no  dialogo  IV,  cap.  7  seguin- 
do que  a  verdadeira  orthografia  he  Olisipo,  insiste  todavia 
em  que  Lisboa  fora  funda'da  por  Uiysses.  E  cita  por  esra 
opinião  a  Solino ,  c  a  Estrabao.  Com  effeito  Solino  as5Ím 
o  di7.  no  cap.  36  do  seu  Polyhistor  :  Ibi  oppidnm  Ulissippo 
ah  Ulysse  condltuvt.  Estrabao  no  livro  111,  pag.  223  c  236 
citando  a  Possidonio,  e  a  Artemidoro ,  menciona  cm  Espa- 
nha hiima  cidade  fundada  por  Uiysses  ,  onde  havia  hum 
templo  de  Alinerva  :  mas  não  a  chama  Vlyssibpo ,  nem  Olys~ 
sippo,  como  todos  os  outros  gregos,  e  latinos,  senão  UUys~ 
sea.  E  Casaubon  diz  que  não  sabe  se  esta  será  Lisboa. 

Eu  comtudo ,  prescindindo  por  hora  da  questão  ortho- 
grafica ;  tenho  por  sem  duvida ,  que  a  Ulyssea  d'  Estrabao 
lie  Lisboa.  E  o  meu  fundamento  he ,  que  se  Estrabao  não 
entendeo  Lisboa  debaixo  do  nome  d'Ulyssea,  seguir-se-hia 
o  grande  inconveniente  de  confessarmos,  que  Estrabao  não 
tivera  noticia  d'huma  cidade,  de  que  todos  os  outros  se 
lembrarão ,  e  que  pela  sua  celebridade  merecia  não  esque- 
cer a  nenhum  ,  e  muito  menos  a'quelle  ,  que  passa  por 
principe  de  todos.  Nem  o  achar-se  o  dito  nome  escrito 
por  O  e  I  latino  ,  prova  que  a  Lisboa  não  foi  fundada 
por  Uiysses :  pois  que  todos  sabem  as  grandes  alterações  , 
que  o  tempo  faz  nos  vocábulos,  e  principalmente  nos  pró- 
prios. 

Teticro. 

No  livro  III,  pag.  236  nos  dá  Estrabao  noticia  de 
hum  Asclepiades  Myrliano ,  de  quem  diz  que  ensinara  gram- 
matica  grega  na  Tudertania ,  isto  he ,  naquclla  parte  d'Es- 
panha  ,  que  hoje  chamamos  Andaluzia  e  Algarve ;  e  que 
composera  huma  descripção  dos  diversos  povos ,  que  a  ha- 
bitavão. 

Na  fé  deste  Asclepiades  conta  Estrabao  ,  que  vários 
gregos  que  tinhão  acompanhado  a  Teucro  na  guerra  de 
Troya ,  vierão  com  elle  fazer  assento  em  Galliza  ,  e  alli 
fundarão  duas  cidades,  huma  chamada  Hellenes,  outra  Am- 

fi- 


9^  MEMOniASDAAcADEMIAREAL 

filoquia;  a  primeira  das  quaes  julga  Marianna  que  he  Pon- 
tcvedra  ,  a  segunda  Orcnse. 

O  mesmo  nome  d'  Hellenes'  está  mostrando  a  origem 
grega  desta  cidade.  Porque  segundo  os  mármores  d'Oxford 
nos  informão  na  época  VI  de  Hellen ,  filho  de  Deucaliao, 
que  reinou  na  Fitiotida .  começarão  a  chamar  se  Hellenes, 
os  que  antes  se  diziao  Grecos ,  ou  Gregos,  nome  que  lhes 
tinha  dado  Greco,  filho  de  Théssalo :  o  que  também  consta 
de  Plinio  no  livro  IV,  cap.  7.  Onde  he  muito  para  se 
advertir,  que  assim  como  de  Hellen,  filho  de  Deucalião 
se  denominou  o  Hellenismo,  que  era  o  dialecto  Attico  c 
commum  a  todos  os  Gregos;  assim  de  Doro  e  Eolo ,  filhos 
de  Hellen,  c  de  lon  seu  neto,  vierao  depois  a  denomi- 
nar-se  os  outros  três  dialectos  particulares ,  Dórico ,  Eóli- 
co ,  e  lonio. 

A  causa  da  outra  cidade  de  Galliza  se  chamar  Am- 
filoquia  ,  nota  o  mesmo  Estrabao  ,  que  fôra  porque  nella 
morrera  Amfiloco,  que  devia  ser  algum  dos  capitães,  que 
tinha  acompanhado  a  Teucro  nesta  denota. 

Com  o  testemunho  d'Estrabão  sobre  a  vinda  de  Teu- 
cro a  Galliza,  concorda  o  de  Justino,  compilador  da  his- 
toria de  Trjgo  Pompeo  ,  o  qual  no  livro  XLIV,  cap.  3 
diz  assim :  Os  Gallegos  referem  a  sua  origem  aos  Gregos. 
Porque  dizem  ,  que  Teucro  acabada  a  guerra  de  Troya  , 
vendo  que  seu  pai  Telamon  o  não  queria  admittir  no  Rei- 
no ,  por  causa  da  morte  de  seu  irmão  Aiax  ,  que  elle  Teu- 
cro não  soubera  vingar ;  fôra  para  Chipre  ,  e  lá  fundara 
huma  cidade  do  nome  de  sua  pátria ,  que  era  Salamina. 
Que  passados  tempos  ,  ouvindo  que  seu  pai  era  falecido , 
tjrnára  para  a  pátria :  mas  que  sendo  delia  repellido  por 
Euryfaccs ,  filho  de  Aiax ,  se  embarcara  via  d'  Espanha ;  e 
tendo  abicado  ás  suas  praias  ,  se  apoderara  primeiramente 
daquelle  districto ,  onde  agora  está  Carthagena  ;  depois 
passara  a  Galliza  ,  e  nella  dera  nome  a  varias  cidades , 
que  fundara.  Gallaci  autem  Gracam  sibi  originem  adsertmt. 
Siquidem  post  finem  Troiani  helli ,  Teucrum  morte  Jiacis  fra- 

tris 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  97 

tris  invisum  patri  Telamoni  ,  quum  non  reciperetur  in  regtmm , 
Cyprum  concessisse  ,  atque  ihi  urbem  tionitiem  aniiqua  putriíS 
Salamina  condidisse.  Lide  accepta  opiniotie  paterna  mor  tis ,  pa- 
triam  repetitse,  Sed  quum  ab  Euryface  Âiacis  filto  accessu  pro- 
biberetttr  ,  Hispânia  littoribtii  appuhttm ,  loca  ubi  nuuc  est  Car- 
tbago  nova  ,  occttpasse  :  mde  Gallaciam  transisse  ,  positisque  se- 
díbus  getiti  nomen  dedisse.  Atéqui  Justino.  De  cuja  relação 
se  conhece,  que  este  Teucro  que  veio  a  Galliza,  não  he 
aquellc ,  que  de  Creta  veio  para  a  Frygia  ,  e  de  quem  os 
Troyanos  se  denominarão  Teucros :  mas  outro  algum  tJnto 
mais  moderno  ,  filho  de  Telamon  Rei  de  Salamina ,  ilha 
situada  entre  o  Peloponeso  e  a  Attica  ,  que  se  achou  na 
guerra  de  Troya  com  seu  irmão  Aiax ,  e  que  depois  vin- 
do a  Chipre  fundou  nella  huma  Cidade  do  mesmo  nome 
da  sua  pátria,  isto  he,  a  Cidade  de  Salamina,  que  hoje 
se  diz  Famagusta. 

Como  a  Salamina  da  Grécia  pelo  decurso  dos  tempos 
veio  a  pertencer  aos  Athenienses ,  e  a  Salamina  de  Chi- 
pre era  C^olonia  sua ;  faz  o  Chronista  de  Paror  expressa 
memoria  desta  fundação  de  Teucro,  dizendo  assim  na  Épo- 
ca XXVII.  dos  Mármores  d'Oxford  ,  segundo  a  reducção 
dos  annos  que  costumamos  fazer ,  por  ordem  ao  tempo  an- 
terior ao  nascimento  de  Christo  :— Desde  que  Teucro  fun- 
dou Salamina  em  Chipre  ,  são  passados  mil  e  duzentos  e 
dous  annos ,  reinando  em  Athenas  Demofonte.  =  Foi  logo 
fundada  Salamina  por  Teucro  ,,  sete  annos  depois  da  ruina 
de  Troya:  pois  que  esta  como  já  vimos,  os  mesmos  Már- 
mores na  Época  XXV.  a  põem  succedia  no  anno  mil  e  du- 
zentos e  nove  antes  da  nossa  era. 

Silio  Itálico  no  Livro  III,   verso  378.   faz  a  Cartha- 
gcna  fundaçãa  de  Teucro. 

Dat  Cartbago  viros ,  Teucn  ftmdata  vetusto. 

O  que  deo  muito  que  fazer  ao  nosso  Resende.    Por- 
que por  huma  parte  Polybio ,    Estrabão  ,  Pomponio  Mela  , 
T.  IX,  P.I.  N  e 


9?  Memorias  DA  Academia  Real 

e  outros,  aíEimao  que  Carthagcna  fora  obra  d'Hasclrubal. 
Vor  outra  parte,  Carthagcna  foi  chamada  Carthago  Nova 
por  comparação  e  respeito  da  Carthago  Afiicana  ,  que  na 
opinião  geralmente  recebida  contra  a  hypothese  de  Virgi- 
lio  ,  toi  iundada  algumas  centenas  d'annos  depois  da  des- 
truição de  Troya.  Como  podia  logo  Teucro  dar  a  Cartha- 
gcna o  nome  de  Carthago  Nova ,  se  ainda  não  existia  a 
primeira  Carthago. 

Mas  para  conciliar  a  Silio  com  os  ditos  Geógrafos  e 
Historiadores ,  pode-sc  responder :  Que  Teucro  no  lugar' 
em  que  hoje  está  Carthagcna  ,  fundara  huma  Cidade  ,  e 
lhe  poséra  hum  nome  ,  que  hoje  se  ignora  :  c  que  dahi 
a  mu  tos  séculos,  vindo  Hasdrubal  a  Espanha,  reedificara 
essa  Cidade  fundada  por  Teucro,  ou  a  augmentára  tanto 
d'edificios  ,  que  parecia  huma  nova  Cidade  ,  e  por  compa- 
ração á  Carthago  Africana  sua  pátria  a  chamara  Carthago 
Nova. 

Justino  no  lugar  que  ha  pouco  ouvimos,  suggere  es- 
ta mesma  solução  ;  em  quanto  diz  ,  que  Teucro  occupára 
aquelle  Território  d'Espanha  ,  onde  agora  está  Carthage- 
na.  Loca  ubi  nnnc  est  Carthago  nova  occupasse.  E  he  claro  , 
que  Teucro  não  havia  d'occupar  aquelle  Território  ,  sem 
estabelecer  nelle  alguma  Povoação.  Esta  Povoação  podia  es- 
tar arruinada  em  tempo  d'Hasdrubal  ,  e  este  convidado  da 
aptidão  do  porto  restaurai-la ,  pondo-lhe  o  nome  da  sua 
pátria.  Não  ha  cousa  mais  frequente  nas  Historias  ,  do  que 
mudarem  as  Cidades  os  nomes  ,  a  arbítrio  daquelles  ,  que  ou 
as  reedificarão ,  ou  as  engrandecerão.  Assim  reedificada  Je- 
rusalém ,  Adriano  a  appellidou  Elia :  restaurada  Bizâncio , 
Constantino  a  appellidou  Constantinopla. 

Diomédes. 

A  respeito  d'Espanha  ,  não  individua  Estrabâo  nada 
deste  Heroc ,  contentando-se  somente  de  o  metter  na  clas- 
se dos  outros  Capitães  Gregos,  que  cá  vierão.  Porem  Silio 

1' 


dasScienciasdeLisboaí  99 

Itálico,  quando  no  Livro  III.  verso  380.  deo  a  Tiiy  oepi- 
theto  de  Etòla ,  dizendo  : 

Et  qtios  nmc  Gravios  violato  twmitie  Grniúm 
Oenca  misére  domus  ,  JEtolaqtie  Tide : 

claramente  quiz  significar  ,  que  Tuy  era  fundação  de  Dio- 
médes  ,  e  que  este  lhe  poscra  o  nome  de  Tyde  ,  em  me- 
moria do  seu  pay  Tydeo  Rei  da  Etolia ,  e  neto  d'Eneo. 

Onde  he  também  de  notar ,  que  aos  Gallegos  se  dava 
o  nome  de  Gravios  ,  que  Silio  adverte  era  corrompido  de 
Gratos ,  que  quer  dizer  Gregos ;  como  se  com  este  appelli* 
do  quizessem  os  antigos  dar  a  conhecer  os  Gallegos  por 
originários  da  Grécia. 

Mas  desta  origem  Grega  dos  nossos  maiores ,  erão 
em  Espanha  bons  indicies  não  só  o  nome  de  Graios ,  que 
se  dava  aos  habitantes  do  Minho ,  mas  também  os  costu- 
mes que  Estrabão  geralmente  attribue  aos  Lusitanos,  que 
vivião  junto  ao  Douro ,  e  ao  Tejo.  Porque  no  Livro  III. 
pag.  132.  affirma ,  que  ao  modo  dos  Laconios  se  ungião 
duas  vezes  no  dia  ;  que  se  aquentavão  ao  lume  feito  de  pe- 
dras em  braza ;  e  que  uzavão  com  muita  frugalidade  d'hum 
mesmo  alimento:  Que  erão  grandes  sacrificadores,  e  mui 
dados  a  augurar  dos  futuros  pelo  exame  das  entranhas  das 
rezes ,  e  pela  pulsação  das  artérias.  Que  com  rito  Grego 
costumavão  todos  os  annos  fazer  aos  Deoses  o  sacrifício 
de  cem  victimas,  que  naquella  Lingua  se  chama  Hecatom- 
ba.  Que  á  maneira  dos  Gregos  se  exercitavão  em  vários  jo- 
gos de  força ,  carreira  ,  e  destreza.  Finalmente  que  cele- 
bravão  os  seus  matrimónios  segundo  o  ceremonial  Grego. 

Estas  são  ,  Senhores ,  as  memorias  que  por  hora  pude 
descobrir  da  mais  remota  antiguidade  da  Grécia  ,  respecti- 
vas á  nossa  Espanha  :  pelas  quaes  fica  manifesto  ,  que  mui-' 
to  antes  da  guerra  de  Troya ,  fundarão  os  Zacynthios  na 
Espanha  Tarraconense  a  cidade  de  Sagunto  e  o  Templo 
de  Denia  consagrado  a  Diana  ;  que  pouco  depois  da  mes- 

N  ii  ma 


100  Memorias  da  Academia  Real 

ma  guerra  vierão  a  Espanha  Mencsthco ,  Mcncláo  ,  Ulfs- 
ses  ,  Teucro ,  c  Diomédcs  ;  dos  quaes  huns  fundarão  na  Bc- 
tica  o  Porto  de  Santa  Maria;  outros  na  Lusitânia  Lisboa j 
outros  cm  Galliza  Ponte  Vedra ,  e  Orense. 


DISSERTAÇÃO    IV. 

Das  Egoas  da  Luaitania ,  de  que  se  creo  que  concehiao  do  Ze- 
fyro  ,  e  onde  era  nos  Campos  de  Lisboa  ,  que  ellas  pastavao. 


hjs 


/STE  espece  he  trevial  entre  os  nossos  antiquários.  Eu 
não  Farei  mais  ,  do  que  dar-lhe  alguma  novidade ,  pelo  mo- 
do de  a  tratar.  E  ninguém  espere  de  mim  alguma  Disser- 
tação fysica ,  sobre  a  possibilidade  ou  impossibilidade  do 
facto.  Isso  pertenceria  a  outra  classe  mais  alta  ,  a  que  eu 
não  sou  aggregado.  E  assim  cingir-me-hei  precizamente  a 
expor,  o  que  nesta  matéria  noa  transmittio  a  crença  dos 
antigos  Romanos  ;  o  que  por  este  meu  Papel  se  verá ,  que 
foi  muito  mais,  do  que,  o  que  nos  descobrirão  Resende, 
Brito  ,  e  Arraiz. 

Não  ha  fabula  mais  authorizada ,  nem  mais  acredita- 
da ,  do  que  a  de  conceberem  e  parirem  algumas  vezes  do 
vento  as  egoas  da  Lusitânia  nos  campos  de  Lisboa. 

Varrão  foi  o  primeiro  entre  os  Romanos ,  que  a  pu- 
blicou e  deo  por  certa ,  quando  no  Livro  II.  De  Re  Rús- 
tica ,  cap.  1.  escreveo  assim:  Na  matéria  de  fecundidade 
succede  em  Espanha  huma  cousa  incrivel ,  mas  que  passa 
assim  na  realidade :  e  he  que  na  Lusitânia  junto  ao  Ocea- 
no ,  naquelle  Território  onde  está  Lisboa  ,  no  monte  Ta- 
gro  ,  concebem  algumas  egoas  do  vento  em  certa  estação. 
Mas  os  potros  que  delias  nascem ,  não  vivem  mais  que 
três  annos.  =  In  fmtura  res  incredibilis  est  in  Hispânia ,  sed 
est  vera :  quod  in  Lusitânia  ad  Oceanum  in  ea  regicne  ,  ubi  est 
oppidum  Olyssippo ,  mmte  Tagro  ^  quadam  e  vento  certo  tem- 
po- 


DAS   SciEWCIAS   DE   Li  S  BOA.  lOf 

pre  cottcipiunt  equa.  Sed  ex  bis  equis  qui  nati  pitlJi ,  mniUis 
trieuuiunt  vivunt. 

A  VarrSo  scguio  se  Columclla,  que  no  Livro  VI.  tam- 
bém De  Re  Rtutica ,  cap.  27.  escrevco  deste  modo  :  He 
huma  cousa,  que  todos  sabem,  que  em  Espanha  no  mon- 
te sacro ,  que  corre  para  o  occidcnte  junto  ao  Oceano  , 
tem  acontecido  varias  vezes  ,  apparecerem  as  egoas  prenhes  , 
sem  o  cavallo  as  ter  antes  cuberto,  e  criarem  o  feto  que 
parirão;  o  qual  todavia  he  inútil,  porque  antes  d'encorpar, 
morre  aos  três  annos.  Notissimum  est  in  sacro  monte  Hispa- 
ni£ ,  qiii  procurrit  in  occident^mjuxta  oceamim  ,  frequenter  equas 
sitie  coittt  ventrem  pertulisse  ,  feettimqiie  educasse  ;  qui  tamcn 
inutilis  est ,  quod  triennio  priusquam  adolescat ,  morte  absumi^ 
tur. 

A  Columella  seguio-se  Plinio ,  que  duas  vezes  tocou 
e  asseverou  esta  maravilha.  Huma  no  Livro  IV.  da  Histo- 
ria Natural,  cap.  12.  onde  chama  a  Lisboa  cidade  nobre, 
pelas  egoas  que  nos  seus  campos  concebem  do  vento  fa- 
vonio.  In  Lusitânia  Tagi  ora  ,  oppidum  O/yssippo  ,  equarum  e 
favonio  vento  conceptu  vobile.  Outra  no  Livro  VIII.  cap. 
42.  onde  diz  que  he  huma  cousa  constante  ,  que  na  Lu- 
sitânia em  torno  de  Lisboa  junto  ao  Tejo  ,  voltadas  pa- 
ra onde  corre  a  viração  do  favonio ,  attrahem  as  egoas  o 
espirito  animal ,  e  delle  parem  huns  potros  de  summa  li- 
geireza ,  mas  que  não  vivem  mais  que  trez  annos.  Constat 
in  Lusitânia  circa  Olyssipoiiem  et  Tagum  amnem  ,  equas  favo- 
nio flante  obversas  animalem  concipere  spiriíum ,  idque  partum 
fieri ,  et  gigni  pernicissimum  ita  ,  ut  triennitwt  vit<e  non  excedat, 

A  Plinio  seguio-se  Solino,  que  no  capitulo  36.  do 
seu  Polyhistor  se  explicou  assim :  Na  Lusitânia  ha  hum 
^iromontorio  ou  Cabo ,  que  huns  chamão  Artabro ,  outros 
Lisbonense  ,  que  distingue  o  ceo ,  as  terras  ,  e  os  mares. 
AUi  está  a  cidade  de  Lisboa  fundada  por  Ulysses.  Alli  o 
rio  Tejo,  que  por  cauza  das  suas  douradas  arcas  he  ante- 
-posto  a  todos  os  mais.  Nas  vizinhanças  de  Lisboa ,  he  cou- 
sa  admirável ,   que    as  egoas   no  tempo  do  cio  lhes  serve 

de 


loi  Memorias  da  Academia  Real 

de  marido  o  favonio ,  do  qual  concebem  e  parem.  In  Lusi- 
tânia promontoriítm  est ,  qtiod  alii  Artabrum ,  alii  Vlysíippo- 
nense  diciint.  Hoc  aelum ,  terras  ,  et  muria  distingtiit. . .  Ibi 
oppidttm  Ulyssippo  ab  Ulysse  couditum.  Ibi  Tagus  Jliimen.  Ta- 
griím  ob  arenas  aiiriferas  ceteris  omuibut  pratulertint.  In  pró- 
ximo Ulyssipponis  equ/e  Jascivimt  mira  foecunditate ,  et  sitien- 
tes  viros  aurarum  spiritu  maritantur. 

Sendo  tão  celebrada  pelos  Historiadores  esta  admirá- 
vel fecundidade  das  nossas  egoas  ,  não  he  muito  que  os 
Poetas  a  dessem  por  huma  cousa  averiguada  e  certa.  Vir- 
gílio no  Livro  III.  das  Georgicas,  verso  266.  e  segg. 

Vbi  súbdita  jlamma  medullis  , 

Vere  magis ,  quia  vere  calor  redit  ossibus ,  illa 

Ove  omnes  ver s te  in  zephyrum  stant  rupibus  altis  j 

Exceptantque  leves  auras ,  et  sape  sine  ullis 

Cotijugiis  vento  gravida  (  tnirabile  dictu ) 

Saxaper  et  scopulos  ,  et  depressas  ccnvalles 

Dijfugiunt, 

Singularmente  nota  Virgilio  ,  que  a  estação  em  que 
as  egoas  concebiâo  do  zefyro ,  he  na  primavera,  por  ser 
este  o  tempo ,  com  que  o  calor  começa  a  mover  os  espí- 
ritos, f^ere  magis  ^  quia  vere  calor  redit  ossibus. 

Silio  Itálico  ,  concordando  com  Virgilio  quanto  á  es- 
tação em  que  as  egoas  concebiâo  do  vento  ;  discrepa  to- 
davia dos  outros ,  quanto  ao  tempo  que  os  potros  duravão. 
Porque  não  lhes  dando  Varrão,  Columella  ,  e  Plinio  mais 
de  trcs  annos ;  Silio  lhes  estende  a  vida  até  sete. 

No  Livro  Segundo  da  Guerra  Púnica,  tratando  dos 
diversos  Povos  d'Espanha ,  de  que  Annibal  Carthaginez 
reforçou  o  seu  Exercito  ,  para  marchar  a  Itália  contra  os 
Romanos ;  depois  de  nomear  os  Biscainhos  ,  Asturianos  , 
Gallcgos ,  Lusitanos  ,  põe  Silio  os  Vettoes  ,  dando-os  a  co- 
nhecer pelas  castiças  egoas  ,  que  nos  seus  campos  conce- 
bem e  parem  do  zéfyro.  Livro  III.  verso  390.  csegg. 

At 


DAS   SciENCIAS    DE    LiSBOA.  tOJ 

At  Vettónum  alas  Balartis  prolat  aquore  aperto  : 
Hic  adeo   cttm  -ver placidttm  jiiitttsqut  teposcit, 
Concubitut  servans  tachos  grex  prostat  equarttm  ^ 
Et  venerem  occultam  genitati  concipit  titira. 
Sed  mil  multa  dtes  geiíeri  ,  properatque  scnecttis. 
Septimaque  bis  stabulis  hngissime  ducitiir  atas. 

Este  lugnr  de  Silio  he  notável  ,  não  só  porque  illus- 
tra  a  fabula  das  nossas  egoas  fecundadas  pelo  vento  favo- 
nio ,  ou  zcfyro ;  mas  também  porque  decide  huma  ques- 
tão, em  que  Resende  se  cançou  muito:  que  he  ,  se  os 
Vcttões  pcTtencião  á  Lusitânia  ,  ou  csfavão  fora  delia.  Re- 
sende no  Livro  I.  das  suas  Ar.tiguidad(.s  ,  prova  que  al- 
guns Vettõcs  pcrtcnciao  á  Lusitânia  ,  outn^s  não.  Allcga 
pelos  primeiros  o  lugar  de  Flinio,  que  no  Livro  IV.  cap. 
3  1.    reconhece  Vettões  junto  ao  Tejo.    Ctrca  Tugtim  Vétto-  ^ 

nes.  Allega  a  Prudcncio ,  que  no  Hymno  de  S.  Ulaya  cha- 
ma a  M crida  ,  illustre  Colónia  da  Vettonia.  E  allega  va- 
rias Inscripções  do  tempo  dos  Romanos,  achadas  em  Meti- 
da ,  Évora,  e  outras  partes,  onde  a  Vettonia  vem  incor- 
porada na  Lusitânia. 

Com  estes  mesmos  Documentos  mostrou  em  nossos 
dias  o  Padre  Flores  no  Tomo  L  da  Espanha  Sagrada  ,  cap. 
12.  que  a  Lusit.mia  comprehendia  parte  dos  Vettões.  Mas 
nem  Resende  ,  nem  Flores ,  se  lembrou  deste  lugar  de  Si- 
lio It.ilico  ,  que  como  Espanhol,  e  tão  antigo,  era  hum 
Juiz  muito  mais  competente ,  do  que  Plinio  e  Prudencio ; 
c  que  claramente  põe  os  Vettões  naquella  parte  d'Espanha , 
onde  as  egoas  concebião  do  vento  :  o  que  por  testemunho 
de  todos  os  Historiadores  Romanos,  era  nos  campos  do 
Tejo  junto  a  Lisboa  ,  como  temos  ouvido. 


At  Vettónum  alas   'Balartis  probat  aquore  aperto. 
Hic  adeo ,  cum  ver  placidum  ,  &c. 


Do 


■ro4  Memorias  da  Academia  Real 

Do  qual  primeiro  verso  se  colhe  também  ,  que  a  se- 
gunda syllaba  desse  nome  não  he  sempre  breve  ,  como 
cuidava  Resende  allegando  com  Prudencio  e  com  Sereno 
Sammonico ;  mas  alguma  vez  longa  ,  como  aqui  a  fez  Si- 
lio :  de  sorte  que  na  proza  dever  se-ha  dizer  sempre  Vét- 
tones  ;  mas  no  verso  se  pôde  também  dizer  Vettónes. 

Tornando  ás  egoas  dos  campos  de  Lisboa ,  só  Justi- 
no de  todos  os  Antigos  advertio  ,  que  o  dizer-se  que  ci- 
las conccbião  do  vento  ,  era  huma  fabula  ,  a  que  dera  oc- 
casiáo  a  summa  fecundidade  das  mays ,  e  a  igual  ligeire- 
za das  crias.  Justino  no  Livro  XLIV.  cap.  3.  In  Lusitânia 
jtixta  fiiivium  Tagiim  eqtias  vento  concipere  muhi  authores  pro- 
didenint :  quts  fabuLu  ex  equariim  fectmditate  et  gregum  miil- 
titíidine  natie  siint  :  qià  tanti  in  Galileia  et  Lusitânia  ac  tam 
fernicitcr  visuntur  ut  non  immerito  ipso  vento  concepti  videavtur. 

Ainda  assim  Lactando  Firmiano  ,  (  que  de  Professor 
de  Rethorica  quiz  passar  a  Theologo  ( controversista )  no 
Livro  IV.  das  Divinas  Instituições,  cap.  12.  se  valeo  des- 
te supposto  milagre  da  natureza  ,  para  com  clle  persuadir 
aos  Gentios,  que  não  havia  repugnância  nenhuma,  em  que 
também  por  milagre  da  graça  concebesse  e  parisse  huma 
virgem  sem  concurso  de  varão.  E  esta  foi  talvez  huma 
das  razões ,  porque  S.  Jcronymo  disse  de  Lactancio ,  que 
prouvera  a  Deos  que  clle  fora  tão  feliz  em  provar  os  Do- 
gmas da  Igreja  ,  como  o  tinha  sido  em  impugnar  os  erros 
da  Idolatria.  Porem  não  se  deve  culpar  nos  primeiros  Mes- 
tres do  Christianismo  ,  que  argumentando  ad  hominem  com 
os  Ethnicos  os  procurassem  elles  convencer  da  possibilida- 
de dos  nossos  mystcrios  ,  com  os  exemplos  de  certas  cou- 
sas ,  que  os  mesmos  Ethnicos  davão  por  certas.  Como  quan- 
do com  a  paridade  da  Fénis ,  que  renascia  das  próprias 
cinzas  ,  provarão  outros  Padres  ora  a  possibilidade  da  Re- 
surreiçâo  glorioza  deChristo,  ora  a  da  virgindade  fecun- 
da de  Maria. 

Tenho  exposto  ,  o  que  os  Romanos  crerão  e  escreve- 
rão das  nossas  egoas.  Resta  apurar  pelos  seus  mesmos  tes- 
te- 


DAS   SCIENCIAS   DE    LiSBOA.  lôj 

temunhos  ,  em  que  sitio  das  ribeiras  do  Tejo  e  das  vi/í* 
nhanças  de  Lisboa ,  punhão  elles  este  portento. 

Varrão  ,  que  foi  o  primeiro  Author  desta  fabula  en- 
tre os  Romanos,  (porque  faliando  dos  Gregos,  ella  já  vi- 
nha do  tempo  d'Aristoteles ,  que  no  Livro  VI.  da  Histo- 
ria dos  Animaes,  cap.  i8.  nenhuma  duvida  põe,  cm  que 
as  egoas  concebessem  do  vento).  Varrão ,  digo,  punha  es- 
tas egoas  da  Lusitânia  no  districto  ou  Comarca  de  Lis- 
boa ,  no  monte  Tagro.  In  ea  regione ,  ubi  est  oppidtim  Olys- 
sippo  ^  monte  Tagro.  Este  monte  Tagro  suspeitava  Resende , 
que  era  a  Serra  de  Monte  Junto  ,  doze  Icgoas  de  Lisboa. 
Fr.  Luiz  de  Souza  na  primeira  Parte  da  Historia  de  S.  Do- 
mingos ,  também  propendeo  para  o  mesmo  ,  e  confirmou 
a  conjectura  com  advertir ,  que  ainda  hoje  temos  risquicios 
do  nome  Tagro  na  Villa  de  Tagárro  y  vizinha  da  dita  Serra. 

Porém  esta  intelligencia  do  lugar  de  Varrão  tem  con- 
tra si  ,  que  ao  que  Varrâo  chama  monte  Tagro  ,  chama  Co- 
lumella  monte  Sacro.  O  que  movco  Escaligero,  Ursino ,  e 
Popma  a  querer,  que  pelo  lugar  de  Columella  se  emen- 
dasse o  de  Varrão ,  e  que  em  lugar  de  monte  Tagro  se  les- 
se monte  Sacro  em  ambos. 

Que  assim  o  entendessem  os  três  referidos  críticos 
Estrangeiros,  que  como  taes  não  estarião  plenamente  in- 
formados das  distancias  do  nosso  paiz ,  não  he  para  admi- 
rar. Mas  que  hum  Espanhol,  como  o  Padre  Lacerda,  se 
declarasse  pelo  mesmo  sentimento  nos  seus  Commentarios 
ao  Terceiro  das  Georgicas  de  Virgilio  ,  não  sei  como  o 
desculpe.  Porque  nshasitznh  níohn  outro motite Sacro ^  que 
seja  conhecido  dos  Geógrafos,  por  este  nome,  senão  o 
que  elles  chamao  sacro  promontório  ,  que  todos  pelas  con- 
frontações de  Pomprtnio  Mela ,  e  de  Plinio  ,  convém  que 
he  o  Cabo  de  S.  Vicente  no  Reino  do  Algarve.  E  este  não 
pódc  ser  o  monte  ou  Serra ,  de  que  se  trata ;  porque  dis- 
ta de  Lisboa  algumas  sincocnta  legoas  ,  como  advertio  sen- 
do Estrangeiro ,  o  outro  moderno  critico  Scoettgen. 

D.  Fr.  Amador  Arraiz  no  Dialogo  IV.  cap.  7. ,  citan- 
T.  IX.  P.  I.  Ò  do 


rc>6  Mem  ORr AS  DA  Academia  Real 

do  a  hum  douto  Portuguez  ,  que  não  nomeia  ,  e  que  cu  cui- 
do ser  Damião  de  Góes,  diz  que  o  monte  Tagro  àc  Var- 
rão  ,  onde  pascião  as  nossas  egoas,  he  a  Serra  de  Sintra, 
distante  de  Lisboa  cmco  ou  seis  legoas.  Não  me  desagra- 
da esta  opinião  ,  visto  que  dos  campos  de  Sintra  se  podem 
verificar  ainda  melhor  do  que  dos  de  Monte  Junto  ,  as 
circunstancias  do  sitio,  em  que  todos  os  Antigos  põem  es- 
tas egoas.  Mas  então  inclino-me ,  a  que  em  Varrão  em  lu- 
gar de  monte  Tagro  se  deve  ler  tnoHte  Artabro  ,  como  com 
elFcito  emendou  Salmasio.  Movo-me  ,  porque  no  Livro  IV. 
da  sua  Historia  Natural,  cap.  21.  chama  W\n\o  promontó- 
rio Artabro  ,  ao  Cabo  que  junto  a  Lisboa  lança  huma  gran- 
de ponta  para  o  Oceano.  Excurrit  deinde  in  altum  vasto  cor- 
mi pronmitorlum  ,  quod  alii  Artahrum  appellavére  ,  alii  magnum  , 
multi  Olyssiponense  ab  oppido ,  terras  ,  viária  ,  ccelum  distermi- 
naus.  O  que  todos  os  nossos  entendem  da  Serra  de  Sintra , 
chamada  pelos  navegantes  o  Cabo  da  Roca,  Movo-me  mais : 
porque  Snlino  no  lugar  acima  citado ,  põe  Lisboa  nas  vizi- 
nhanças do  promontório  Artabro ;  e  pÕe  as  egoas  que  con- 
çebiáo  do  vento ,  nas  vizinhanças  de  Lisboa.  In  próximo 
olyssipnnis  equ<e  lascivittnt  mira  foecunditate. 

Estando  para  concluir  esta  Dissertação ,  achei  casual- 
mente por  huma  Nota  de  Bongarsio  ao  lugac  de  Justino, 
que  acima  transcrevi ,  que  hum  sábio  Espanhol  por  nome 
Francisco  Fernandes  de  CordpvíC,  ,,nQ,sçu  Tratado  De  Di' 
dafcallia  mttltiplici  ^  cap.  48.  mostrara  com  vários  argumen- 
tos de  razão  e  d'experiençia ,  que  taes  conceições  do  ven- 
to ,  quacs  os  Romanos  crerão  das  tgoas  de  Lisboa ,  era 
hua)a  patranha  manifesta.  Eu  accrescento ,  que  para  disto 
se  persuadirem  todos  ,  não  hc  necessário  mais  ,  do  que  con- 
sultar o  senso  commuin.  E  admiro-me  que  houvesse ,  en- 
tre nós  ,  quem  professando  q  estudo  das  Letras ,  propen-» 
desse  para  acrçditar  huma  fabula  tão  palpável ,  como  Ar- 
raiz  dá  a  entender  que  houve. 


DIS^ 


DAS  SCIENCIAS  DE   LiSBO  A.  lOJ 

DISSERTAÇÃO    V. 

Sobre  dotit  notáveis  lugares  d* Heródoto  ,  acerca  dos  Focenses , 
e  Samios  vindos  a  Tartésso  ;  e  sobre  bum  d'Esírabão  igual- 
mente memorável  j  dcerca  da  antiguidade  que  nossos  maio- 
res se  attrtbuião. 


E. 


usEBio  na  sua  Chronica,  anno  445"  antes  da  era  de 
Christo,  refere  que  no  dito  anno,  tendo  lido  Heródoto  os 
seus  livros  n'huma  Assemblea  d'Athenas  ,  fora  honrado 
com  a  approvação  e  louvores  de  todos.  Como  Heródoto  na 
sua  Historia  faz  menção  d'alguns  successos  da  famoza  guer- 
ra do  Peloponeso  ,  declarada  em  seu  tempo  entre  Athenien- 
ses,e  Laccdemonios :  a  saber,  no  Livro  VII.  cap.  137.  al- 
guns successos  do  segundo  anno  da  guerra ;  e  no  Livro  IX. 
cap.  72.  alguns  do  anno  decimo  terceiro:  e  esta  guerra 
do  Peloponeso,  convém  os  dous  grandes  Chronologistas, 
Petau ,  e  Usscr  ,  que  começou  no  anno  431  antes  da  nos- 
sa era  ,  e  durou  yinte  e  oito.  Segue-se ,  que  ou  Heródo- 
to cscreveo  a  sua  Historia  muito  mais  tarde  do  que  cuidou 
Eusébio;  ou  que  se  a  escreveo  quando  Eusébio  suppôe, 
a  retocou  depois  Heródoto ,  para  a  enriquecer  com  aquel- 
las  noticias  da  guerra  do  Peloponeso.  E  sempre  daqui  se 
conclue  ,  que  Heródoto  compoz  a  sua  Historia ,  quando 
menos ,  quatrocentos  annos  antes  da  era  de  Christo. 

Ora  no  Livro  I.  cap.  163.  pag.  yj  da  Edição  de 
que  uzo  ,  que  he  a  de  Wesseling ,  Amsterdam  ,  176^,  traz 
Heródoto  a  seguinte  Passagem :  =  Os  Focenses  forão  os 
primeiros  dos  Gregos,  que  fizerao  longas  navegações:  e 
essss  mesmos  forão,  os  que  derao  a  conhecer  o  Adriático, 
a  Siciiia,  a  Espanha,  e  Tartésso.  Uzavao  porém  de  ga- 
Ij  lés  não  redondas  ,  mas  pentecontoras ,  isto  he ,  de  sincoen- 

ta  remos.  Estes  Focenses  pois  tendo  vindo  a  Tartésso,  fo- 

O  ii  tâO 


To8  Memorias  da  Aca^demií  Rhal 

rão  mui  aceitos  ao  Rei  da  terra  Arganthonio  ,  que  havia 
já  oitenta  annos  que  reinava  em  Tartésso  ,  e  que  viveo  cen- 
to e  vinte.  E  tanto  se  insinuarão  os  Focenses  na  graça  de 
Arganthonio,  que  elle  primeiramente  os  aconselhou,  que 
deixada  de  todo  a  lonia  sua  pátria ,  fizesssrti  asseiíto  n* 
seu  reino ,  onde  muito  quizessem.  Depois  vendo  qUe  os 
não  podia  reduzir  a  isso,  deo-lhes  com  que  murassem  a 
sua  cidade,  e  dco-lhcs  com  mão  larga.  Porque  o  âmbito 
do  dito  muro  he  de  não  poucos  estádios ,  e  todo  elle  foi 
construído  de  pedras  grandes  ,  e  primorosamente  lavradas.  ^^ 
Atequi  a  primeira  Passagem  d'Herodoto. 

A  segunda  he  no  Livro  IV.  ca'p.  iffi.  pag.  547,  e 
diz  assim  :  =  Tende  os  Samios  levantado  ferro  da  ilha  de 
Platéa  ,  com  intento  d'irem  ao  Egypto  n'huma  galé ,  do 
que  era  Piloto  Coleu  ;  aconteceo,  que  empurrados  d'hum 
furiozo  temporal  ,  passarão  as  columnas  d'Hercules,  e  vie« 
rão  a  Tartésso  ,  sendo  Dcos  o  que  para  lá  os  encaminha- 
va. Era  Tartésso  naquelle  tempo  hum  empório  intacto  ;  de 
sorte  que  voltahdo  ellcs  Samios  para  a  sua  pátria ,  levarão 
tamanhos  lucros  por  producto  das  suas  mercadorias ,  que  se 
não  acha  ,  que  outros  alguns  Gregos  os  tenhão  tirado  maio- 
res ,  á  excepção  de  Sóstrato  d*Egina  filho  de  Laodamante  , 
tom  o  qual  ninguém  pôde  competir.  Destes  lucros  tirada 
a  decima,  que  fofaO  seis  talefitos,  fizerão  os  Samios  hum 
caldeirão  á  forma  do  que  havia  em  Argos  ,  cercado  por  fó- 
i-à  de  cabeças  de  gryfos  voltadas  humas  para  as  outras  ,  e 
o  collocárão  no  Templo  de  Juno ,  sustentado  em  três  figu- 
las  colossaes  de  sete  covados  ,  firmadas  sobre  os  joelhos.  = 
Atequi  a  segunda  Passagem  d'Herodoto. 

Gomo  ambas  ellas  são  notáveis,  não  só  pela  vinda  de 
Focenses,  e  Samios  a  Tartésso;  mas  também  pelo  modo, 
com  que  Heródoto  falia  desta  vinda  :  entro  primeiro  que 
-tudo  a  averiguar  ,  em  que  tempo  vierão  aquelles  Gregos  a 
Tartésso;  quacs  vierão  primeiro;  e  onde  era  Tartésso.  De- 
pois reflectirei  na  grande  idade  do  Rei  Arganthonio.  Por 
ultimo    discutirei ,    o  que  destes  dous  lugares  d'Herodoto 

se 


DAS    SciENCIAS   DE    LiSBOA,  lO<f 

se  deve  ou  não  deve  concluir ,  sobre  a  primeira  vinda  dos 
Gregos  a  Espanha. 

Em  quanto  aos  Foccnses  ,  o  mesmo»' contexto  d'Hcro- 
doto  nos  taz  manifesto  ,  cm  que  tempo  fixo  vicrap  clles  a 
Tartésso.  Porque  no  antecedente  capitulo  162..  e  no  sub-, 
sequente  164,  claramente  dá  a  entender,  que  os  Foccnses 
vierão  a  Tartésso  por  aquella  occasião ,  cm  que  H.upago 
General  de  Cyro  ,  ( que  alguns  erradamente  nomeao  Har- 
palo  ,  entrelles  o  Padre  Mariana)  estava  de  cerco  sobre  a 
cidade  de  Focéa  capital  da  lonia  ,  para  a  render  ao  domi- 
nio  dos  Persas,  como  com  effcito  rendeo.  Andava  então 
Cyro  na  grande  empreza  de  conquistar  toda  a  Ásia  menor, 
para  o  que  lhe  abrira  caminho  a  famoza  victoria ,  que  cin- 
co annos  antes  tinha  alcançado  de  Créso  Rei  poderosíssi- 
mo da  Lydia  ,  cuja  Capital  era  Sardes.  Esta  entrada  porém 
d'H.irpago  na  lonia  ,  çnde  pouco  depois  expugnou  com  ou- 
tras cidades  a  de  Focéa ,  Eusébio  na  sua  Chronica  a  põe 
no  anno  5'4j  ,  antes  da  era  de  Christo  ,  o  segundo  da  Olym- 
piada  LIX.  Neste  anno  pois  ,  ou  no  seguinte ,  he  que  os 
Focenscs  vierão  a  Tartésso  ,  valer-se  do  seu  Rei  Argantho- 

DÍO. 

O  Padre  Mariana  no  Livro  I.  da  sua  Historia  d'Es- 
panha ,  cap.  17.  suppõe  que  depois  de  terem  voltado  de 
Tartésso ,  he  que  os  Focenses  fundarão  em  França  a  cidade 
de  Marselha.  Porém  engana-se ,  porque  Marselha  tinha  sido 
fundada  pelos  Focenses  mais  de  cincoenta  annos  antes ,  a 
saber,  no  anno  600  antes  da  era  de  Christo.  O  que  se 
demostra  não  só  por  assim  o  affirmar  Eusébio  na  sua  Chro- 
nica ,  pondo  a  fundação  de  Marselha  no  anno  primeiro  da 
Olympiada  XLV. ,  mas  também  porque  Timeo  citado  por 
Marciano  na  sua  Periégesi ,  põe  Marselha  fundada  no  mar 
Ligustico  120  annos  antes  da  famoza  batalha  de  Salami- 
na ,  em  que  os  Gregos  derrotarão  a  armada  deXerxes.  Ora 
pelos  Mármores  d'Oxford  ,  Época  LU.  a  Batalha  de  Sala- 
mina  foi  no  anno  480  antes  da  era  de  Christo.  Ajunte- 
mos   a  estes  480  os  cento  e  vinte ,    que  conforme  Timeo 

e- 


lio  Memorias  da  Academia  Real 

erão  passados ,  desde  que  os  Foccnses  tinhão  fundado  Mar- 
selha: daremos  no  anno  600  antes  da  nossa  era. 

Já  pelo  que  roca  á  vinda  dos  Samios  a  Tartésso  ,  ain- 
da que  Heródoto  quanto  ao  lugar  ,  a  põe  posterior  á  dos 
Focenses  j  porque  tendo  tratado  dos  Foccnses  no  Livro  1. 
cap.  163.  só  trata  dos  Samios  no  Livro  IV.  cap.  ifi.  Com 
tudo  a  circunstancia  de  notar  Heródoto  ,  que  ao  tempo  que 
os  Samios  arribarão  a  Tartésso,  era  Tartésso  hum  empó- 
rio intacto ,  ou  pelo  dizer  assim ,  ainda  virgem  para  os 
Gregos:  esta  circunstancia,  digo,  parece  decidir,  que  na 
mente  d'Herodoto  yierão  primeiro  a  Tartésso  os  Samios  , 
do  que  os  Focenses.  E  assim  Bochart  no  Livro  L  das  Co- 
lónias dos  Fenicios  ,  cap.  34.  p6c  esta  vinda  dos  Samios  a 
Tartésso  quasi  seiscentos  annos  antes  do  nascimento  de  Chris- 
to ,  isto  he ,  quasi  ao  mesmo  tempo  ,  que  como  nós  disse- 
mos acima  ,  fundarão  os  Focenses  Marselha. 

He  verdade,  que  Heródoto  no  primeiro  lugar  também 
tinha  escrito,  que  os  Focenses  havião  sido  os  primeiros 
dos  Gregos  ,  que  com  as  suas  longas  viagens  tinhão  dado 
a  conhecer  o  Adriático,  a  Sicilia  ,  a  Espanha,  e  Tartésso. 
No  que  parece  dar  a  entender  Heródoto ,  que  também  ao 
tempo  que  vierâo  os  Focenses ,  era  Tartésso  hum  empório, 
onde  ainda  não  tinhão  chegado  outros  Gregos.  Mas  respon- 
do ,  que  com  ser  T^^artésso  hum  empório  intacto ,  quando 
a  clle  arribarão  os  Samios,  pode  muito  bem  estar  terem 
sido  os  Focenses  os  primeiros  dos  Gregos ,  que  derão  a 
conhecer  Tartésso ,  porque  os  Samios  sim  vierão  primeiro  , 
mas  vierão  só  arribados ,  e  por  acazo  ;  e  como  se  não  de- 
tivera© ,  não  tiverão  tempo  para  se  lhes  poder  attribuir 
entre  os  Gregos  huma  informação  exacta  do  paiz.  Os  Fo- 
ccnses porém,  como  navegarão  de  propósito  os  nossos  ma- 
res ,  como  examinaVão  d'espaço  os  seus  portos ,  como  fun- 
darão cm  Sicilia  Velia,  em  França  Marselha,  em  Espanha 
Dcnia  ,  c  Empurias :  com  razão  se  lhes  attribue  o  desco- 
brimento destas  terras,  mais  do  que  a  nenhuns  outros  Gre- 
gos;   principalmente    tendo    elles  encontrado  em  Tartésso 

com 


DAS  Sci  ENciAS  DE  Lisboa.  iri 

com  hum  Rei  como  Arganthonio  ,  famoio  pelas  suas  ri- 
quezas ,  pelos  muitos  annos  que  reinou,  pelos  muitos  que 
viveo. 

Os  antigos  Gregos,  e  Romanos,  confundiao  Tartésso 
com  Cadiz,  Assim  Cicero  no  seu  Lélio,  ou  Livro  De  Jmi- 
citia ,  cap.  ip.  depois  de  dizer  que  Arganthonio  fora  Rei 
de  Tartésso ,  accrescenta  logo ,  que  reinara  em  Cadiz  : 
'Fuil  enim  (  tií  scriptum  video  )  Ârganthonius  qiàdam  Gadibtis , 
qui  octoginta  regnavit  anms  ,  centum  viginti  vtxit.  E  Plinio 
no  Livro  IV.  cap.  22.  expressamente  diz,  que  a  cidade, 
que  os  Cn.rthaginezes  chamavao  Gadir  ,  ou  Cadiz  ,  a  essa 
mesma  chamavão  os  Romanos  Tartésso :  Nostri  larte^son 
appellant ,  Poeni  Gadir.  Da  mesma  sorte  Arriano ,  quando 
no  Livro  II.  observa  que  o  Hercules  que  se  venerava  no 
Templo  de  Tartésso ,  não  era  o  Grego,  mas  oTyrio  ;  ma- 
nifestamente confunde  Tartésso  com  Cadiz  ,  onde  he  no- 
tório por  Pomponio  Mela ,  Livro  III.  cap.  6. ,  ter  estado 
aqucllc  Templo.  Na  mesma  confuzão  cahio  Sallustio  ,  e 
Avieno. 

Hoje  está  assentado  entre  os  eruditos ,  que  Tartésso 
era  huma  ilha  e  huma  cidade,  que  estava  situada  entre  os 
dous  braços  que  então  fazia  o  Guadalquivir ,  onde  agora 
está  Tarifa :  mas  que  abusivamente  se  dava  também  este 
nome  a  Cadiz,  e  a  Carteia  ,  que  hoje  se  crê  ser  Gibraltar. 
Qiie  por  isso  Silio  Itálico  no  Livro  III.  chama  aos  de  Car- 
teia netos  d'Arganthonio : 

Arganthoniacos  armat  Carteia  nepotes. 

A  extraordinária  duração  de  reinado  e  de  vida  d' Ar- 
ganthonio ,  ficou  sendo  celebre  nos  escritos  dos  Antigos. 
Cicero  no  Lugar  acima  allegado  do  seu  Livro  DeAnticitia, 
cap.  19.  seguindo  a  Heródoto,  lhe  dá  cento  e  vinte  an- 
nos d'idade.  Plinio  no  Livro  VII.  cap.  48.  allegando  com 
o  Pocra  Anacreonte  ,  assina-lhe  cento  e  cincoenta.  Ânacreon 
poeta  Argauthonio  TartessiorHm  regi  C.  L.  tribuit  annos.  Mas 

Es- 


Ill  Memorias  da  Academia  Real 

Estrabão  no  Livro  III.  pag.  225-  reflectindo  em  que  He- 
ródoto não  tinha  dado  a  Arganthonio  ,  senão  cento  e  vin- 
te annos  devida,  inclina-se  a  julgar ,  que  quando  Anacreon- 
te  escreveo ,  que  não  podia  reinar  cento  e  sincoenta  annos 
sobre  os  bemaventurados  Tartcssios  : 

Non  posco  quinqttaginta 
CeiUtimque  regnare  annos 
Tartessis  beatis  : 

ouAnacreonte  fallava  d'outro  Rei;  ou  pelo  numero  de  cen- 
to c  sincoenta  annos  quiz  significar  precizamente  ,  que  não 
queria  ser  Rei  de  Tartésso  por  longo  tempo.  Todavia  Si- 
lio  Itálico ,  tanto  não  achou  incrivel ,  que  Arganthonio  ti- 
vesse vivido  cento  e  sicoenta  annos  ,  que  antes  no  citado 
lugar  do  Livro  III»  dco  a  Arganthonio  trezentos. 

Arganthoniacoí  armat  Carteia  ncpotes. 
Rex  proavis  fuit  bumani  ditissimus  avi  , 
Ter  denos  decies  emensus  belliger  annos. 

Admittida  como  mais  provável  a  conta  d'Herodoto , 
e  Cicero ,  e  assentado  que  Arganthonio  (como  consta  do 
mesmo  Heródoto)  morrera  pouco  depois  que  os  Focenses 
se  despedirão  delle,  que  foi  no  anno  5'43  antes  da  era  de 
Christo  :  podemos  seguramente  dar  a  Arganthonio  por  mor- 
to no  seguinte  anno  de  542.  E  como  elle  reinou  oitenta, 
e  viveo  cento  e vinte:  fica  daqui  demostrado,  que  Argan- 
thonio começara  a  reinar  em  Tartésso  no  anno  822,  antes 
da  era  de  Christo  ,  e  nascera  no  anno  662  antes  da  mes- 
ma era.  E  assim  concorreo  o  reinado  d'Arganthonio  em 
Espanha  com  o  de  Manasses,  Amon ,  Josias  ,  ejeconias  na 
Judéa  ;  com  o  de  Nabucodonosor  o  grande  ,  Eviimerodach, 
e  Baithazar  em  Bnbylonia ;  com  o  de  Alyattes,  e  de  seu 
filho  Crcso  na  Lydia ;  com  o  de  Astyages ,  e  de  seu  filho 
Cyaxares,  ou  Dário  Medo  na  Media;  com  o  de  Cyro  na 
-1",  Per- 


/ 


DAS  SciENciAs  DE  Lisboa.  iij 

Pcrsia :  de  sorte  que  nos  oitenta  annos  que  Aiganthonio 
reinou  entrenós,  se  incluem  quasi  todos  os  setenta  annos, 
que  o  Povo  Hcbreo  esteve  cativo  em  Babylonia, 

Resta  o  mais  importante  e  difficulto/o  da  presente 
Dissertação  ,  que  he  precaver  o  abuzo  ,  que  dos  dous  Lu- 
gares d'Herodoto  acima  dcscriptos ,  poderá  alguém  tazcr 
contra  outras  antiguidades  mais  remotas  da  nossa  Espanha. 

Com  effeito  Bochart  no  Livro  L  Das  Colónias  dos  Fe- 
tiicios  ,  cap.  34.  e  cap.  36.  de  dizer  Heródoto  na  segunda 
Passagem  ,  que  ao  tempo  que  Coleu  com  os  outros  Samios 
arribarão  a  Tartésso  ,  era  Tartésso  hum  empório  intacto  : 
toma  daqui  por  hum  principio  flindamental  do  seu  Syste- 
nia  ,  que  antes  de  Coleu  nenhuns  Gregos  tinhão  vindo  a 
Tartésso  :  e  assim  fundado  em  Heródoto  nega  ,  que  o  Her- 
cules Grego  viesse  nunca  a  tal  terra  ,  e  tudo  o  que  deste 
se  refere  pertencente  a  Espanha  ,  quer  que  se  attribua  ao 
Hercules  Tyrio  ou  Fenicio. 

Ora  eu  nenhum  interesse  especial  considero,  em  que 
Hercules  filho  d'Hinfytruão  e  Alcumena  viesse  a  Tartésso  , 
ou  a  alguma  outra  parte  d'Espanha :  principalmente  quan- 
do advirto ,  que  a  sua  mais  famoza  aventura  succedida  em 
Espanha  ,  que  foi  roubar  as  boyadas  de  Geryao  ,  que  pas- 
tavão  nos  campos  da  ilha  Erythia ,  ou  Erythéa  ,  se  he  as- 
severada por  muitos  Authores  Gregos  ,  também  he  negada 
por  não  poucos.  Porque  Hecateo  citado  e  seguido  por  Ar- 
riano  no  Livro  IL  he  Hecateo  alguns  cem  annos  anterior 
a  Heródoto  ,  que  delle  faz  menção  no  Livro  V.  claramen- 
te escreve ,  que  Geryão  nunca  teve  nada  com  Espanha  , 
mas  reinara  somente  em  Ambracia  no  Epiro.  O  mesmo  re- 
pete Eustathio  commentando  a  Dionyzio  Periegétes.  Ao 
que  Arriano  ajunta,  que  elle  em  nenhum  Escritor  Espa- 
nhol achara ,  que  em  Espanha  tivesse  reinado  Príncipe  de 
tal  nome. 

Mas   como  Heródoto ,    bem  como  na  segunda  Passa- 
gem affirma  ,  que  antes  da  arribada  dos  Samios  ,  era  Tar- 
tésso hum  empório  intacto  aos  Gregos  ;    assim  na  primeira 
T.IX.  P.I,  P  es- 


114  Memorias  da  Academia  Real 

escreve,  que  os  Focenses  forão  os  primeiros  dos  Gregos, 
que  com  as  suas  navegações  derao  a  conhecer  Espanha. 
Sc  as  palavras  d'Hcrodoto  se  houverem  de  tomar  no  rigor , 
em  que  Bochart  as  cntcndco  ;  necessariamente  havemos  de 
passar  pelo  desgosto ,  de  vermos  arruinado  pelos  alicer- 
ses ,  tudo  o  que  eu  ha  hum  niez  na  Dissertação  III.  dei 
por  provado  sobre  muitas  e  illustrcs  fundações  feitas  pelos 
Gregos  em  Espanha  nos  tempos  Heróicos,  isto  he ,  em 
tempos  muitas  centenas  d'annos  anteriores  á  vinda  dos  Sa- 
mius  ,  e   Focenses  a  Tartdsso. 

Não  me  posso  pois  nem  me  devo  accommodar  á  es- 
treita generalidade  ,  em  que  Bochart  tomou  as  palavras  de 
Heródoto  sobre  as  nossas  antiguidades  Gregas  :  não  por- 
que nestas  matérias  deva  ser  o  amor  da  pátria  ,  o  que  re- 
gule os  nossos  assensos  ou  dissensos;  mas  sim  porque  as 
mesmas  regras  da  boa  critica  nos  obrigão  a  dissentir  nes- 
te cazo  da  opinião  de  Bochart.  Primo :  Porque  o  mesmo 
Heródoto ,  que  na  segunda  Passagem  dá  a  Tartésso  por 
hum  empório  intacto  aos  Gregos  antes  de  Coleu  de  Samos 
vir  a  elle  seiscentos  annos  antes  do  nascimento  de  Chris- 
to ;  esse  mesmo  diz  na  primeira  Passagem  ,  que  os  Focen- 
ses forão  os  primeiros  dos  Gregos,  que  derão  a  conhecer 
Tartésso  ,  quinhentos  e  quarenta  e  tantos  annos  antes  da 
nossa  era.  Para  senão  dizer  pois,  que  hum  tão  grave  Es- 
critor como  Heródoto ,  se  contradiz  n'hum  facto  ,  que  ao 
tempo  em  que  clle  escrevia ,  era  hum  facto  moderno ;  pe- 
de a  razão  que  busquemos  modo  de  concordar  hum  dito 
com  outro.  Ora  eu  já  notei ,  que  Heródoto  podia  muito 
bem  attribuir  huma  mesma  descuberta  de  Tartésso  a  duas 
viagens  de  Gregos  ,  distantes  huma  da  outra  mais  de  sin- 
cocnta  annos  ;  por  cauza  de  que  os  primeiros  só  chegarão 
a  Tartésso  por  arribação  e  por  pouco  tempo  ;  os  segundos 
porem  forão  de  propósito,  detiverão-se ,  e  continuarão  por 
outras  vezes  a  costear  Espanha.  Agora  accrescento,  que  o 
tcr-se  explicado  Heródoto  na  segunda  Passagem  pelo  nome 
d'eniporio  intacto  ;  foi  para  nos  trazer  á  idéa ,  que  o  inta- 
cto 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  II5' 

cto  de  que  elle  fallava  ,  era  a  respeito  do  commercio  dos 
Gregos  com  os  nossos.  Com  o  que  pode  muito  bem 
estar,  que  antes  dos  Samios,  e  Focenses,  tivessem  vintio 
a  Tartésso  e  a  outros  portos  d'Espanha  outros  Gregos , 
sem  ser  para  commerciar ;  mas  ou  por  força  dos  ventos , 
ou  com  o  fim  de  ver  hum  paiz  ,  que  des  das  primeiras  na- 
vegações dos  Fenicios  se  tinha  feito  afamado  ;  cu  perse- 
guidos da  fortuna ,  como  succederia  aos  heroes  Gregos  , 
de  quem  na  sobredita  Dissertação  mostrei  terem  cá  vindo  , 
huns  antes,  outros  pouco  depois  da  guerra  deTroya.  Que- 
ro dizer  :  que  como  o  meio  ordinário  de  se  communicarem 
as  nações  ,  e  de  se  darem  a  conhecer  humas  ás  outras ,  he 
o  commercio  ;  e  este  antes  da  arribada  dos  Samios  a  Tar- 
tésso não  o  teria  havido  ,  ou  teria  cessado  por  muitos  sé- 
culos entre  Gregos  ,  e  Espanhoes  :  por  isso  ao  tempo  que 
os  S.imios  arribarão  a  Tartésso  com  as  suas  mercadorias, 
podia  dizcr-se  Tartésso  hum  empório  intacto  aos  Gregos, 
não  porque  antes  não  tivessem  vindo  a  Tartésso  outros  Gre- 
gos ,  mas  porque  não  terião  vindo  a  traficar. 

Sectmdò :  Porque  Heródoto  na  primeira  Passagem  ,  as- 
sim como  diz  que  os  Focenses  forão  os  primeiros  dos  Gre- 
gos ,  que  derão  a  conhecer  Espanha  ,  e  Tartésso  ;  também 
diz  que  forão  os  primeiros  ,  que  derão  a  conhecer  o  Adriá- 
tico ,  c  Sicilia.  Tomemos  estas  palavras  no  rigor  que  quer 
Bochart  :  seguir-se-ha  ,  que  antes  dos  Focenses  quinhentos 
annos  antes  do  nascimento  de  Christo  aenhuns  Gregos  na- 
vegarão o  Adriático  ,  nem  o  Tyrrheno.  E  quem  não  vê  ,  que 
esta  hypothese  reduz  a  huma  pura  fabula ,  tudo  o  que  das 
primeiras  antiguidades  de  Itália  e  de  Roma ,  passa  por 
mais  constante  nos  Escritos  de  Catão  Censório  ,  de  Dio- 
nysio  d'Halicarnasso  ,  de  Tito  Livio  ,  de  Plinio  ,  de  Soli- 
no  ?  O  argumento  que  prova  demasiado ,  nada  prova  ,  diz 
o  Axioma  dos  Lógicos.  Tal  he  o  que  das  palavras  d'He- 
rodoto  forma  Bochart.  Logo  nada  prova  este  argumento. 

Mas  demos  por  hum  instante ,  que  Heródoto  com  to- 
da   a  clareza  affirmava,    que  de  todos  os  Gregos  forão   os 

P  ii  Sa- 


ii6  Memorias  da  Academia  Real 

Samios,  ou  os  Foccnses  os  primeiros,  que  apportárão  cin 
Espanha.  Acazo  hc  tão  grande  a  authoridade  d'Herodoto , 
que  devamos  sempre  antepolla  á  de  todos  os  outros  Escri- 
tores ,  que  se  acharem  em  opposiçao  com  ellc  ?  De  nenhu- 
ma sorte.  Heródoto ,  ainda  que  reconhecido  e  chamado 
p:iy  da  Historia  Grega  ,  a  cada  passo  se  acha  impugnado 
pelos  melhores  Cronologos,  como  Escaligero  ,  Petau  ,  Us- 
sér  ,  Marsham ,  ainda  em  successos  próximos  ao  seu  tempo. 
Que  será  nos  da  mais  remota  antiguidade  ?  Com  o  teste- 
munho d'Herodoto  á  vista ,  dando  ao  Império  dos  Assy- 
rios  só  quinhentos  e  vinte  annos  desde  Nino  até  Sardana- 
pdlo  ;  assignão  Petau  ,  Ricioli  ,  e  Labbé  mil  e  trezentos 
annos  ao  mesmo  Império,  por  seguirem  antes  a  Ctesias  , 
Diodoro ,  Justino  ,  e  outros  antigos.  E  a  Bibliothcca  de 
Focio  nosintorma,  que  o  dito  Ctesias,  que  foi  algum  tan- 
to mais  moderno  do  que  Heródoto,  em  todos  os  vinte  e 
trcz  Livros  que  compoz  da  Historia  Assyria  e  Pérsica  ,  ti- 
rada dos  monumentos  públicos,  ou  (por  nos  explicarmos 
ao  nosso  modo)  da  Torre  do  Tombo  dos  Imperadores  Per- 
sas ;  quasi  sempre  contradisse  a  Heródoto  ,  e  o  convcnceo 
de  mil  falsidades  e  mentiras. 

Ainda  dado  cazo  pois  ,  que  a  mente  expressa  d'Hero- 
doto  nas  duas  Passagens  acima  descriptas  ,  fosse  persuadir, 
que  antes  dos  Foccnses  ou  dos  Samios,  nenhuns  Gregos 
tinhuo  vindo  a  Espanha  :  nem  por  isso  se  deveria  dar  por 
falso,  o  que  na  referida  Dissertação  III.  escrevemos  da  vin- 
da de  certos  Gregos  a  Espanha  ,  muitas  centenas  d'annos 
anterior  á  dos  Focenses  ,  e  Samios.  Porque  dissesse  o  que 
dissesse  Heródoto ,  a  positiva  authoridade  de  Bócco  cita- 
do e  seguido  por  Plinio  ,  deve  bastar  para  acreditarmos, 
que  duzentos  annos  antes  da  Guerra  de  Troya  ,  fundarão 
os  Zacynthios  em  Espanha  a  Cidade  de  Sagunto  ,  e  o  Tem- 
plo de  Denia  consagrado  a  Minerva.  Dissesse  o  que  dis- 
sesse Heródoto  ,  a  positiva  authoridade  d'Asclepiades  Myr- 
Hano  citado  c  seguido  porEstrabão,  deve  bastar  para  acre- 
ditarmos ,  que  immcdiatamente  depois  da  Guerra  de  Troya 

ap- 


DAS  SciENciAS  DE  Lisboa.  117 

apportára  Teucro  de  Salamina  em  Galliza,  e  alli  fundara 
varias  cidades  :  principalmente  tendo  eu  no  mesmo  lagar 
advertido  com  Estrabão  ,  que  o  tal  Asciepiadcs  Myrliano 
ensinara  muitos  annos  Grammatica  Grega  na  Turdetania , 
c  cá  mesmo  escrevera  a  sua  Historia  Geográfica  d'EspanIia, 
Donde  se  segue,  que  o  dito  Asclepiades  ,  ainda  que  Gre- 
go SC  deve  reputar  como  nacional  na  fidelidade  e  exacçiío, 
com  que  escreveria  a  sua  Historia.  Com  este  Asclcpiíidcs 
porém  concorda  no  mesmo  facto  Trago  Pompco,  contem- 
porâneo do  mesmo  Estrabão  ,  e  abbreviado  por  Justino. 

Desembaraçados  assim  dos  dous  lugares  d'Herodoto, 
acerca  dos  Foctnses  ,  e  Samios  vindos  a  Tartésso ;  passe- 
mos já  ao  outro  d'Estrabão ,  que  promettemos  illustrar  ,  á- 
ccrca  da  Policia  dos  nossos  Turdetanos  ou  Turdulos ,  e  da 
antiguidade  d*origcm  ,  de  que  cllcs  se  jactavão. 

No  Livro  III.  pag.  204,  tratando  dos  Turdetanos  ou 
Turdulos  d'Espanha  ,  escreve  E.strabão  o  seguinte  :  =  Es- 
tes são  reputados  os  mais  doutos  de  todos  os  Espanhoes , 
e  uzáo  de  Grammatica  ,  e  tem  escritas  as  suas  Antiguida- 
des e  Poemas  delias  em  oração  ligada,  dizem  elles  que  de 
s€Ís  mil  annos.  Os  outros  Espanhoes  também  uzao  de  Gram- 
matica, mas  não  todos  d'huma :  porque  também  a  Lin- 
guagem  não  he  a  mesma  era  todos.=  Até  aqui  as  pala- 
vras d'Estrabão.  i  . 

Hoje  está  assentado  entre  os  nossos  Eruditos  moder- 
nos,  pelas  confrontações  dos  antigos  Geógrafos,  que  de-» 
baixo  do  nome  de  Turdetanos  se  comprehendião  não  só  os 
Povos  da  Betica  ,  mas  também  aquelles  da  Lusitânia,  que 
habitavão  o  Reino  do  Algarve  ,  e  as  duas  Comarcas  de 
Beja  e  Ourique.  Assim  ò  mostra  Resende  rio  Livro  L  Das 
Antiguidades  da  Lusitânia,  folha  16.  O  mesmo  Estrabão 
•ndverte  ,  que  ainda  que  Polybio  tivesse  distinguido  os  Tur- 
dulos dos  Turdetanos;  no  tenipo  comtudo  delle  Estrabão 
nenhuma  differença  se  fazia  destes; Povos  entre  òsí- Romanos. 
O  mesmo  notou  Resende  que  se  comprovava  deTitoLivioi 

O  Padre    Mariana    diz    que    a  Turdetania  totnár*  este 

no- 


ji8  Memorias  da  Academia  Real 

nome  de  Turdeto,  cidade  situada  entre  Xerez  e  Arcos.  Bo- 
chart  deduzi  o  nome  de  Turdulos  do  vocábulo  Syro  Tiltiid , 
que  quer  dizer  emigração  :  como  que  os  Turdulos  tivessem 
emigrado  da  Fenicia  para  aquclla  parte  d'Espanha  ,  que  pe- 
la mesma  razão  se  chamou  Turdetania.  E  mostra  com  hu- 
ma  aiithoridade  d'Artemidòro,  que  no  principio  em  lugar 
de  Turdetatios  e  Turdulos ,  com  D  na  segunda  ,  se  dizia  Tur- 
tetaiioí  e  Turtulos ,  com  T. 

Voltando  porém  ao  lugar  d'Estrabão ,  que  acima  trans- 
crevemos ,  he  muito  para  notar ;  que  quanto  elle  rccom- 
menda  a  instrucção  dos  nossos  maiores  pelo  estudo  das  Le- 
tras; tjnto  faz  manifesta  a  sua  vãa  jactância,  pela  demasia- 
da antiguidade  que  loucamente  se  attribuiao.  Gloriavaose 
os  Turdetanos  qu  Turdulos,  de  ter  Historias  e  Poesias  suas 
de  seis  mil  annos.  E  quem  lendo  ou  ouvindo  isto  não  ad- 
verte logo ,  que  tendo  Estrabao  composto  a  sua  Geogra- 
fia em  tempo  de  Tibério  ,  contava  então  o  mundo  pelos 
cálculos  Hebraicos  ,  pouco  mais  de  quatro  mil  annos  que 
era  creado;  e  que  ainda  não  havia  dous  mil  e  quatro  cen- 
tos^ que  tinha  succedido  o  Diluvio?  Como  podião  logo 
os  nossos  maiores ,  imperando  Tibério  ,  ter  Historias  e  Poe- 
sias de  seis  mil  annos? 

Mas,, esta  era  huma  vaidade  ridicula  ,  que  então  lison- 
gcava  os  corações  de  muitos  outros  Povos  Gentios  ,  aquém 
faltava  o  lume  da  divina  Revelação  ,  para  se  desenganarem  , 
que  nem  o  mundo  existia  ab  eterno^  nem  tinha  tantos  an- 
nos de  creação,  quantos  ellcs  cuidavao.  E  comparados  os 
nossos  Turdetanos  com  os  Babylonios  ,  eEgypcios,  pode-se 
dizer,  que  na  presente  matéria  erão  os  Espanhoes  ,  os  que 
erraváo  mais  toíeravelmente.  Porque  Ciccro  nos  Livros  De 
Dívitiatme  f  e  Diodóro  de  Sicilia  no  Livro  IL  cap.  31. 
dizem  ,  que  os  Caldeos  faziao  remontar  as  suas  observações 
Astronómicas  a  quatro  centos  e  setenta  mil  annos.  Jorze 
Syncello  cita  huma  antiga  Chronica  do  Egypto ,  que  nos 
Cafalpgos  que  formava  dos  seus  Reis,  dava  trinta  e  seis 
inil  ç  quinhentos  annçs  de  duraçáo  a'quella  Monarquia, 

-on  O 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  iif^ 

O  mesmo  Diodoro  de  Sicilia  ha  pouco  citado,  tinha 
já  advertido  no  Livro  I.  cap.  i6.  que  certos  Escritores  pa- 
ra conciliarem  alguma  credibilidade  a  huma  tão  portento- 
za  serie  de  annos,  recorrerão  ao  meio  de  dizer,  que  cada 
anno  Egypcio  não  tinha  mais  do  que  hum  mez.  O  que 
Plinio  também  confirma  no  Livro  VIL  cap.  48.  concluin- 
do daqui  não  ser  desta  sorte  incrível ,  que  hum  Rei  vives- 
se mil  annos  ,  que  vinhao  a  ser  só  cem  dos  nossos.  Porém 
Ccnsorino  no  seu  Livro  De  Die  Natali .,  cap.  19.  attesta  , 
que  dado  que  até  o  tempo  do  Rei  Pison  não  tinha  o  an- 
no Egypcio  senão  dous  mezes ,  elle  comtudo  o  chegou 
primeiramente  a  quatro  ,  e  por  ultimo   a  doze. 

Por  mais  provável  tenho  eu  o  que  outros  conjecturão , 
que  he  que  os  Egypcios  ,  para  ostentarem  huma  antigui- 
dade que  espantasse  ,  contavão  como  succcssivos  os  annos 
simultâneos  dos  Reis  ou  Régulos  de  trinta  Dynastias  ,  cm 
que  o  Egypto  por  muitos  séculos  esteve  dividido. 

Era  muito  para  dezejar,  que  Estrabão  assim  como  nos 
informou  da  applicaçao  dos  nossos  Turdetanos  ao  estudo 
da  Grammatica,  da  Historia,  e  da  Poesia;  assim  também 
nos  deixasse  declarado,  que  lingua  materna  era,  a  que  el- 
les  aprendiâo  por  essa  Grammatica.  Porque  quanto  para  maior 
instrucção  dos  que  já  sabiao  a  lingua  materna,  já  nós  ou- 
I  vimos  do  mesmo  Estrabão  ,    como  elles  aprendiâo  a  Grega 

debaixo  do  Magistério  d'Asclepiades  Myrliano.  E  quanto 
á  Latina  ,  he  igualmente  indubitável ,  que  depois  que  Es- 
panha cahio  na  dominação  dos  Romanos ,  ficou  sendo  a 
lingua  destes  tão  familiar  aos  nossos ,  como  antes  o  tinha 
sido  a  do  paiz.  E  não  he  pequena  gloria  para  Espanha  , 
ter  dado  á  lingua  Latina  sete  Authores  clássicos  seus  na- 
cionacs  :  a  saber  ,  três  Sénecas  ,  Pomponio  Mela  ,  Lucano  , 
Silio  Itálico,  e  Marcial.  O  de  que  nenhuma  outra  nação 
fora  de  Itália  se  poderá  jactar. 

Eu  porém  reflectindo,    que  a  lingua  de  qualquer  paiz 

li  se  costumou  sempre  formar  dos  vocábulos  daquellas  nações 

cstrang-eiras  ,  que  por  mais  tempo  o  habitarão  e  dominarão  i 


in- 


I20  Memokias  da  Academia  Real 

inclino-me  a  crer ,  que  antes  da  mescla  dos  Romanos  ,  era 
a  nossa  lingua  no  seu  fundo  a  mesma ,  que  a  Feniciana , 
ou  Carthagincza.  Porque  por  huma  parte  estas  duas  Na- 
ções ,  huma  oriunda  da  outra ,  forao  as  que  cm  Espanha 
fundarão  mais  Colónias  ,  e  as  de  que  cm  Espanha  se  con- 
servâo  auida  hoje  mais  vestigios  nos  nomes  dos  seus'  Rios 
e  Povoações.  E  por  outra  parte  he  notório  pelos  escritos 
de  Santo  Agostinho  ,  que  a  lingua  Púnica  era  substancial- 
mente a  mesma  ,  que  a  dos  Fcnicios. 

Com  isto  pôde  estar,  que  a  nofsa  lingua  tomasse  tam- 
bém muitos  vocábulos  dos  Gregos,  que  juntamente  comos 
Fcnicios  e  Carthaginezes  occupárao  boa  parte  d'Espanha  , 
c  com  a  lingua  communicárSo  também  aos  nossos  os  cos- 
tumes. Do  que  he  huma  prova  decisiva  attestar  Resende  , 
que  de  vocábulos  Gregos  tinha  elle  notado  na  lingua  Por- 
tugueza  mais  de  quinhentos.  Todas  estas  linguas  porém  , 
SC  pode  dizer,  que  pelo  decurso  do  tempo  absorveo  em 
si  a  Latina  ;  da  qual  he  innegavel ,  que  a  Portugueza  par- 
ticipa tanto ,  quanto  nenhuma  outra  da  Europa. 


DISSERTAÇÃO    VI. 

Etymologia  do  nome  de  Pyrenéos  ,  e  qiiaes  fossem  as  chamadas 
Columnas  d'Hercules. 


ODOS  sabem ,  que  a  Espanha  se  devide  da  França  ,  pe- 
los Pyrenéos ;  e  que  só  por  esta  banda  pega  a  Espanha 
com  Terra  firme  ,  sendo  por  todas  as  outras  torneada  de 
mar:  o  que  faz  ser  esta  nossa  Região  huma  verdadeira 
Península.  Ipsa  Hispânia  ,  nisi  qua  Gallias  tangit  ,  pélago  un- 
diqite  incincta  est  j  escrcveo  Pomponio  Mela  no  Livro  11. 
cap.  6. 

A  commum  opinião  dos  Gregos,  derivada  já  do  tem- 
po de  Possidonio  Author  antiquíssimo ,  que  como  testemu- 
nha 


DAS   SCIENCIAS   DE    L  I  S  B  O  A.  I2l 

nha  ocular  tratou  muito  individualmente  das  cousas  c'Es- 
panha  ,  muito  antes  do  nascimento  de  Christo  :  Ehta  com- 
mum  opinião  digo  ,  hc  que  nos  primeiros  tempos  havendo  cer- 
tos pastores  pegado  fogo  aos  espessos  e  dilatados  arvore- 
dos ,  de  que  se  cubriao  aqucllcs  montes  j  foi  tanta  a  copia 
de  mctacs  preciozos  ,  que  dcrritida  com  o  incêndio  de  mui- 
tos dias  manou  do  cume  e  faldas  dos  mesmos  n.ontcs  ;  que 
todo  o  paiz  d'Espanha  se  vio  inundado  de  caudadozos  rios 
de  ouro  e  prata  ,  que  pelo  tempo  adiante  a  fi/erao  celebre 
pelas  suas  minas  entre  as  Nações  mais  remotas  :  e  que  des- 
te incêndio  veio  também  aos  ditos  montes  o  nome  de  Py- 
renéos  f  que  ainda  hoje  conservao  :  nome  derivado  àePyrosj 
que  em  Grego  quer  dizer  fogo. 

A  este  incêndio  dos  Pyrenéos ,  e  á  grande  copia  de 
preciozos  metaes  derretidos  ,  que  delles  começou  a  correr 
pela  terra  ,  alludio  o  famozo  Poeta  Lucrécio ,  quando  no 
Livro  V.  verso  i25'o.  e  segg.  cantou  assim: 

Flavimetis  ardor 


Horrihili  sonitii  Silvas  exederat  altas 
jíb  radicibus ,  et  terram  percoxerat  igni. 
Manabat  venis  ferventibus  in  loca  terra 
Concava  convenieus  argenti  rivtis  et  auri  y 
Aeris  item  ,  et  plutnbi. 

Que  deste  incêndio  vierao  a  chamar-se  Pyrenéos  aquel- 
Jes  montes,  he  expresso  em  Diodóro  Siculo  no  Livro  V. 
da  sua  Bibliotheca  Histórica,  cap.  gy.  pag.  358  da  Edi- 
ção de  Wcsseling  de  que  uzo  ,  Amsterdão  1746. 

Estrabão  no  Livro  IlL  da  sua  Geografia,  pag.  217 
dá  por  huma  fabula  toda  esta  narração  dos  seus  Gregos  , 
e  nota  a  Possidonio  ,  por  ter  mostrado  que  lhe  dava  cre- 
dito. 

Por  fabula  quizera  eu  também ,  que  a  tivessem  quali- 
ficado dous  Escritores  nossos  tão  sisudos  ,  e  atillados ,  co- 
mo M.iiiana,  c  Brito.  Mas  quem  escreve  huma  Historia  dí- 
T.  IX.  P.  I.  Q^  la- 


121  Memorias  DA  Academia  Real 

latada,  não  tem  tempo  para  pezar  sempre  a  credibilidade, 
ou  incredibilidade  dos  successos,  que  se  offcrcccm. 

Silio  Itálico  aponta  outra  origem  do  nome  ,  que  nao 
parece  menos  arbitraria,  do  que  a  primeira.  Porque  no  Li- 
vro 111  verso  406.  e  scgg.  tallando  de  como  Annibal  atra- 
vessou os  Pyrencos ,  para  por  França  passar  á  Itália ;  diz 
que  estes  montes  toma'rão  o  nome  de  Pyrene  ^  filha  do  Rey 
Bébrix ,  a  qual  vcndo-se  comprimida  por  Hercules ,  que 
por  alli  fazia  caminho ,  temendo  a  ira  do  pay  ,  se  embre- 
nhara naquclle  vasto  arvoredo,  onde  foi  despedaçada  das 
feras. 

Jt  Pyrenei  frondosa  cacumina  montis 

Turbíita  Poentis  tcrrarum  pace  petehat. 
E  trcs  versos  abaixo  : 

Nomen  Bebxycia  duxére  d  virgine  colles. 

Como  nenhuma  das  duas  referidas  etymologias  agra- 
dasse aos  modernos  Antiquários  ,  foi  Bochart  de  parecer 
no  Livro  De  Coloniis  Pboenicím ,  cap.  ^^.  col.  626,  que 
Pjreiíe  e  Pyrenéo  se  derivava  do  adjectivo  Piirani  ^  que  em 
lingua  Fcnicia  significa  frondozo  ou  opaco.  Porque  este  he 
com  eíFeito  o  epitheto ,  que  Estrabao ,  e  SiHo  dão  a  esta 
cordelhcira  de  niontes  :  aosquaes  pela  mesma  razão  chama- 
rão Cornelio  Nepote ,  c  Paulo  Orosio  ,  Pyreií^eus  Saltiis ,  o 
Bosque  dos  Pyrenéos. 

Hoje  a  etymologia  de  Pyrenéo ,  que  vejo  mais  bem 
recebida  entre  os  Criticos  ,  he  a  que  propoz  Mr.  Astruc 
na  Sua  Historia  Natural  do  Langitedoc  ,  Livro  III.  cap.  2. 
pag.  446,  onde  se  inclina  a  dizer,  que  Pyrcne  e  Pyrenéo 
(hum  e  oufrO  nome  derao  os  Antigos  a  estes  montes)  vem 
da  palavra  Pyrtn  ou  Pyren  ,  que  na  lingoa  dos  Celtas  signi- 
fica monte.  Esta  he  a  que  adoptou  Wesselingc  nas  Notas  a 
Diodóro.  Todos  sabem  a  cognação ,  que  tem  entre  si  as  le- 
tras Í5.  e  P  ,  para  fácilíncnte  se  trocar  huma  pela  outra.  E 
que  não  he  novo ,  vir  hum  nome  que  na  sua  origem  he  ap- 
pellativo ,  a  ser  propíio  tleste  ou  daquelle  sogeito. 

Pas- 


DAS   SctENClXs   DE   LiSBO  A.  I25 

Passando  dos  Pyrcncos  ás  Colunmas  íC Hercules  y  que 
he  como  passar  d'huiTi  extremo  a  outro  j  não  ha  nos  His- 
toriadores c  Geógrafos  antigos  cousa  mais  nomeada,  nem 
mais  famigerada,  do  que  estas  Columnas.  Heródoto,  pay 
da  Historia  Grega,  uzando  como  u/a  frequentemente  des- 
tes termos,  bem  mostra,  quanto  ellc  os  tinha  recebido  de 
longe.  Nem  os  que  depois  escreverão  das  cousas  d'Espanha  , 
quer  Gregos ,  quer  Latinos ,  uzárao  d'outros  :  do  que  são 
boas  testemunhas  os  Escritos  de  Polybio,  Diodóro  ,  Ptole- 
meo  ,  Estrabão ,  Livio ,  Mela ,  Plinio  ,  e  Sohno, 

Duas  cousas  pois  entramos  a  averiguar.  Primeira  :  On- 
de crão  as  Columnas  d' Hercules.  Segunda :  Qiie  origem  e  fun- 
damento teve  esta  denominação.  E  não  cuide  ninguém  , 
serem  estas  questões  mui  fáceis  de  decidir.  Porque  quanto 
he  notório  o  nome  destas  Columnas ,  tanto  he  escuro  en- 
tre os  mesmos  Antigos  o  seu  sitio,  escura  a  sua  origemj 
Estrabão  no  Livro  IIL  numero  marginal  170  e  171,  tra« 
tando  de  propósito  ambos  os  dous  pontos,  (e  he  elle  o 
único  dos  Antigos,  em  que  os  achei  tratados)  dçpois  de 
trez  paginas  d'exacta  discussão,  nada  nos  deixou  definido 
ao  certo. 

Quanto  á  primeira  questão,  pois,  adverte  o  Principe 
dos  Geógrafos ,  que  huns  punhão  as  columnas  d'Hercules 
em  Cádiz ;  outros  nas  Portas  ou  Bocas  do  Estreito ;  outros 
nos  dous  montes  Calpe  e  Abyla  ,  dos  quaes  o  primeiro  es- 
tá da  parte  d'Espanha  ,  o  segundo  da  parte  d'Africa.  li 
não  faltou  quem  se  persuadisse ,  que  debaixo  do  nome  de 
Coliiniuas  d^ Hercules  se  dcvião  entender  as  Columnas  d'oito 
covados  d'altura  ,  que  sustentarão  o  famozo  Templo  d'Her- 
cules  de  Cádiz ,  e  nas  quaes  estavão  gravadas  em  bronze 
as  suas  doze  Aventuras.  Este  foi  o  juizo  de  Possidonio , 
que  Estrabão  justamente  regeita.  Porque  nota,  que  nas 
columnas  do  Templo  não  havia  outra  Inscripção ,  que  a 
que  declarava  a  dcspeza,  que  se  tinha  feito  na  sua  fabri- 
ca :  quando  as  chamadas  propriamente  Columnas  d'Herculcs 
se  dcvião  ter  por  huns  Padrões,  que  ou  o  mesmo  Hercu- 

Q^ii  les, 


124  Memorias  DA  Academia  Real 

les  ,  ou  outro  pozera ,  como  huns  Monumentos  de  se  terem 
terminado  alli  as  suas  heróicas  Peregrinações. 

Qiianto  á  origem  e  fundamento  desta  denominação  , 
hc  de  saber,  que  as  columnas  levantadas  em  certos  luga- 
res ,  íorão  o  primeiro  género  de  Padrões ,  de  que  ha  noti- 
cia que  uzasscm  os  homens  ,  ou  cm  memoria  d'algum  il- 
lustre  successo ,  ou  para  estremar  as  terras  confinantes. 

Deste  antiquissimo  e  primevo  uzo ,  nos  ofFerece  a  Es-* 
critura  Sagrada  hum  exemplo  ,  mais  de  mil  e  seiscentos  an- 
nos  anterior  ao  nascimento  de  Cliristo :  que  he  aquella 
Pedra  ungida  ,  que  o  Patriarca  Jacob  levantou  cm  Bethel  , 
depois  da  maravilhoza  visão  da  Escada  ,  por  que  subião  e 
baixarão  os   Anjos  de  Deos.  {Gen.  XXVIII.   i8.) 

A'  imitação  dos  Hcbreos ,  começarão  os  Fenicios  seus 
eom:ircãos  a  erigir  nas  suas  terras  outras  semelhantes  Pe- 
dras ungidas ,  a  que  chamavão  Bctylos  ou  Betylios.  Delias 
faz  menção  hum  antiquissimo  Escritor  Fenício  por  nome 
Sanconiathon ,  ao  qual  faz  Bochart  contemporâneo  de  Ge- 
deão ,  c  cuja  obra  das  antiguidades  da  sua  gente  traduzio 
cm  Grego  hum  Filo  de  Biblos.  Bem  sei,  que  Calmet  com 
outros  modernos  suspeitao,  ser  este  Sanconiathon  hum  Au- 
thor  supposto  ,  inventado  c  publicado  por  Porfyrio  no  se- 
gundo século  da  Igreja  ,  a  fim  de  desacreditar  e  ridiculi- 
2ar  os  mysterios  da  Religião  Christaa.  Mas  ao  mesmo  tem- 
po he  inegável  que  desta  obra  de  Sanconiathon ,  como 
d'huma  obra  genuína  e  verídica ,  citarão  no  quarto  e  quin- 
to século  vários  fragmentos  os  dous  grandes  Críticos  Eusé- 
bio, eTheodoro. 

E  deixada  como  não  necessária  para  o  nosso  intento 
a  authoridadc  de  Sanconiathon ;  Focio  na  sua  Bibliotheca 
pag.  1047  traz  hum  testemunho  de  Damascio ,  do  qual 
consta ,  que  Asclepiades  subindo  ao  monte  Libano  ,  achara 
nelle  muitos  destes  Betylos  ,  ou  Pedras  ungidas,  que  a  re- 
ligião dos  Fenicios  tinha  levantado  em  titulo  aos  seus  Deo- 
ses.  Isto  hc  pelo  que  toca  ás  columnas  erectas  como  Mo- 
numento d'algum  successo  memorável. 

Das 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  12^ 

Das  outras  Columnas  erectas  cora  o  fim  de  cstrcniar 
as  terras  confinantes ,  aponta  Estrabão  no  lugar  acima  in- 
dicado duas  ,  que  osjonios  pozerãode  mão  conimum  ,  quan- 
do expulsos  do  Peloponéso  o  tornarão  a  recuperar.  Ficarão 
liuns  vivendo  na  Attica  c  na  Mcgarida ,  c  di?ia  a  colum- 
na  que  lhes  servia  de  marco  :  Jqtti  não  be  o  Fekponéso  ,  mas 
a  Joiíia.  Ficarão  os  outros  vivendo  no  Peloponéso  ,  e  dizia 
a  sua  Columna :  Aqui  não  he  a  Jotiia ,  mas  o  Peloponéso. 

Supposta  esta  previa  noticia  do  uzo  das  Columnas  pa- 
ra memoria,  e  para  demarcação ;  toda  a  difficuldade  sobre 
as  Columnas  ã' Hercules  consiste ,  em  que  em  nenhum  dos 
dous  extremos  do  estreito  de  Gilbaltar ,  que  he  onde  todos 
os  Antigos  ,  excepto  Possidonio  ,  as  consideravão  ,  apparc- 
ce  cousa ,  que  propriamente  se  possa  chamar  Columnas ; 
nem  entre  os  Antigos  se  acha  algum ,  que  diga  que  as  vis- 
se. 

Mas  Estrabão  já  advcrtio  ,  que  bem  as  poderá  ter  ha- 
vido naquclie  sitio  ,  c  tellas  depois  consumido  o  tempo  , 
que  tudo  destroe  ,  ou  faz  desapparecer  :  e  que  ainda  assim 
podia  o  mesmo  sitio  continuar  a  chamar-se  as  columnas 
d'' Hercules  ;  bem  como  ainda  no  seu  tempo  se  continuava  a 
chamar  as  Aras  dos  Filenos  outro  lugar  d*Africa  ,  onde  ji 
então   se  não  viao  nenhumas  Aras. 

Ou  também  ,  que  as  chamadas  Columnas  ií Hercules  não 
erão  algumas  Columnas  reaes  e  verdadeiras  ;  mas  humas  co- 
lumnas imaginarias ,  para  denotar  o  sitio  a  que  Hercules 
chegara  por  fim  dos  seus  trabalhos  ;  á  maneira  dos  Circu- 
los  e  Constellações ,  que  os  Mathematicos  considerão  no 
Ceo  e  nos  Planetas ,  para  explicarem  os  lugares  ,  sobre  que 
cahem  as  suas  observações  Astronómicas.  Porque  como  pa- 
ra memoria  dos  grandes  acontecimentos  ,  ou  para  demarca- 
ção e  limite  de  diversas  terras ,  estava  em  uzo  levantar 
Columnas :  podiao  muito  bem  nos  dous  extremos  do  Es- 
treito de  Gibaltar  imaginar-se  duas  Columnas  ,  como  li- 
mites do  Mundo,  ecomo  Padrões  das  Aventuras  d'Hcrcu- 
Ics  ,    que    alli    chegara  e  terminara  as  suas  Peregrinações ; 

ain- 


120  Memorias  da  Academia  Real 

ainda  que  nem  elle,  nem  outro  as  tivesse  nunca  posto  na- 
quclles  lugares:  bem  como  para  lizongearem  a  mulher  de 
Ptolemeo  por  cauza  do  seu  cabello  fingirão  os  Mathemati- 
cos  no  Ceo  a  chamada  Cama  de  Berenice. 

Entre  os  vahos  discursos  sobre  a  origem  ,  de  se  cha- 
marem Colunmas  d^Hercules  os  dous  extremos  do  Estreito  de 
Gibaltar ;  o  que  me  parece  mais  provável  e  mais  bem  fun- 
dado ,  he  o  que  desume  aquella  denominação  d'huma  fabu- 
la ,  que  ainda  que  tida  por  tal  dos  Geógrafos  gentios ,  po- 
dia dar  motivo  a  ella,  assim  como  outra  fabula  o  dco  ao 
nome  de  Fia  Láctea. 

Conta-se  pois,  que  chegado  Hercules,  onde  hoje  he 
o  Estreito  ,  dividira  em  dous  hum  grande  monte  ,  que  alli 
estava  ,  e  que  ajuntava  a  Africa  com  Espanha  ;  e  que  por 
entr'elles  mettêra  o  mar,  que  hoje  faz  o  mesmo  Estreito. 
Que  o  monte  que  ficou  da  parte  d'Espanha,  he  o  que  se 
chama  Calpe  ;  o  que  ficou  da  parte  d'Africa ,  o  que  se 
chama  Abyla. 

Diodóro  de  Sicilia  no  Livro  IV.  cap.  18.  pag.  164 
diz ,  que  sei>do  dous  os  promontórios  ,  Hercules  os  alarga- 
ra de  modo  com  huns  pegões  de  pedra  que  d'huma  e  ou- 
tra parte  lhes  ajuntou,  que  sendo  atélli  muito  largo  ornar 
que  por  entr'ellcs  corria  ,  agora  ficava  elle  tão  estreito ,  que 
não  podião  passar  por  elle  as  baleas.  Mas  a  primeira  for- 
ma de  narração  he  a  que  eu  acho  authorizada  por  Mela,  e 
por  Plinio.  Dos  quaes  o  primeiro  no  Livro  \.  cap.  5".  diz 
assim  :  Addh  fama  nominis  fabulam.  Herculem  ipsum  jimctos 
olim  perpetuo  jugo  dirimisse  colles ,  atqite  ita  exclustim  antea 
mole  montiiim  oceanum ,  ad  qute  nttnc  itmndat  admissum.  O  se- 
gundo no  Livro  III.  cap.  i.  diz  assim  :  Qttam  ob  causam 
indigente  columnas  ejus  Dei  vocant ,  traduntque  perfossas  exclu- 
sa  aiitea  admississe  marta ,  et  rerum  natura  mutasse  faciem. 

Supposta  esta  fabula  do  mgnte  dividido  por  Hercules 
em  dous ,  crerão  e  advertirão  os  Antigos  ,    que  as  Colum- 
nas d'Hercules  não  erão  outra  cousa ,  senão   os  dous  montes 
Calpe,  e  Abyla,  que  postos  d'huma  c  outra  parte  do  Estrei- 
to 


DAS  SCISHCIV?    Pfi   lyíS^BP/.  izj 

to  dividem  a  Africa  da  Espanha.  Mela  no  lugar  citado  : 
Deiíide  est  mcns  praahits  ei ,  quem  cx  adverso  Fiisfania  ajtol- 
lit  ,  objcctus.  Hiinc  Ahyhm  ,  Hhm  Cfilpen  xocani  :  Cohív.íias 
Herculis  titriimque.  Plinio  também  no  lugar  citado:  Proxivni 
mitem  fancibus  titrinque  impesiti  montet  ceercatit  clujisira ,  Aby- 
Ja  Jfrica ,  Europa  Calpe ,  laborum  Hercules  meta.  Oitam  oh 
causam  indigente  Columnas  ejus  Dei  vocant. 

Antes  de  Alela ,  e  PJinio  se  tinha  inclinado  ao  mesmo 
parecer  Estrabao  no  Livro  III.  pag.  258,  depqisEustathio 
nos  Escólios  a  Dionysio  Pcricgéta. 

A  esta  razão  d'authoridadc  se  podem  ajuntar  duas  de 
congtucncia.  A  primeira  hc ,  que,  como  observou  Facciola- 
ti ,  os  dous  montes  Calpe  e  Abyla ,  aos  que  os  vem  de 
longe,  parecem  duas  Columnas.  A  segunda  he  ,  que,  como 
notou  Bochart  ,  Abyla  em  lingua-  Fenícia  quer  dizer  Co- 
lumna.  E  dando-se  este  nome  a  hum  dos  dous  montes  ,  era  fa- 
cil  trnnsferillo  também  para  o  cutro.  E  com  isto  se  pôde 
confirmar  o  que  ji  dissemos  na  Dissertação  I. ,  que  o  Her- 
cules de  que  se  denominavao  estas  Columnas  „  não  era  o 
Thebano  ,  mas  o  Tyrio ,  cujo  Templo  de  Cádiz  faz  Me- 
la coevo  da  guerra  de  Troya. 


DIS- 


íaS  Memorias  da  Acaôemia  Real 


DISSERTAÇÃO    VII. 

Império  dos  Cartbaginezes  em  Espanha ,  quando  come f  ou , 
e  quanto  durmu 


ARA  proceder  com  a  devida  ordem  e  clareza,  dividirei 
esta  Dissertação  em  três  partes.  Na  primeira,  tratar-seha 
da  fundação  ,  antiguidade ,  e  grandeza  de  Carthago.  Na 
segunda ,  das  forças  terrestres  e  navaes  desta  republica ,  e 
das  suas  conquistas  dentro  ,  c  fcSra  d'Africa.  Na  terceira 
darei  huma  exacta  synopse  chronologica,  formada  dos  es- 
critos de  Polybio,  das  três  famosas  guerras  dos  Cartbagi- 
nezes com  os  Ropianos ,  chamadas  vulgarmente  as  guerras 
Púnicas,  em  que  os  nossos  Espanhoes  tiverao  tanta  parte, 
quanta  se  verá  pelo  decurso  da  mesma  Dissertação. 

§     I. 

Da  fundação ,  antiguidade ,  e  grandeza  de  Carthago. 

Os  Carthaginezes  procedião  dos  Tyros.  Por  isso  Jus- 
tino os  chama  parentes.  A  questão  he  ,  por  que  via.  E 
bate  a  questão ,  sobre  quaes  forão  os  fundadores  de  Car- 
tha  ro. 

Filisto  Nomcratita  ,  citado  e  seguido  por  Eusébio  na 
sua  Chronica ,  diz  que  Carthago  fora  edificada  por  dous 
Tyrios  ,  Zoro  ,  e  Carquédon  ,  trinta  annos  antes  da  destrui- 
ção de  Troya.  Appiano  diz  que  sincoenta.  Poidm  quanto  ao 
nome  dos  fundadores ,  Bochart  no  livro  De  Coloniis  Phwni- 
cum ,  cap.  24.  tem  que  isto  he  huma  equivocação  :  porque 
Zoro ,  c  Carquédon  não  são  nomes  de  homens ,  mas  de  cida- 
des :  a  saber,  de  Tyro ,  que  em  lingua  Hebraica  se  diz 
Zor  j  e  de  Carthago  ,  que ,  como  observa  Solino  no  cap.  40. , 

SC 


DÁS  SCIENCIÀS  DE  LtSBOA.  tl^ 

se  dizia  no  principio  Carthdda^  que  em  lingua  Fenícia  si-- 
gnifica  ,  Cidade  Nova» 

A  opinião  commum  dos  Iiistoriadotes  he  j  tjué  Car- 
thago  ao  menos  na  parte  principal  c  mais  nobre ,  foi  obra 
da  Rainha  Elissa  natural  de  Tyroj  Chamada  por  outro  no- 
me Dido  ,  quatrocentos  e  mais  anrios  depois  da  ruina  de 
Troya.  E  assim  o  fazer  Virgilio  a  Dido  contemporânea  e 
amante  de  Enéas ,  já  observou  seu  antigo  commentador 
Sérvio  Honorato ,  que  fora  hum  anachronismo ,  que  o  prín- 
cipe dos  poetas  seguío  muito  de  propósito ,  com  o  fim  de 
dar  lugar  ao  mais  bello  e  interessante  episodio  ,  que  se 
acha  na  Eneida. 

Mas  sobre  a  época  de  Dido ,  e  fundação  de  Cartha- 
go  por  cila  ,  he  muito  para  admirar ,  quanto  os  authoreá 
discordão  entre  si.  José  no  livro  I  contra  Appião ,  traz  hum 
catalogo  dos  antigos  Reis  de  Tyro,  com  os  annos  que  ca- 
da hum  viveo  e  governou,  tirado  de  MeHandro  de  Efeso: 
no  qual  diz,  que  no  sétimo  anno  de  Pygmalião,  duodéci- 
mo na  ordem  dos  Reis  depois  de  Abibalo ,  fugira  Elissa 
sua  irmã  de  Tyro  com  muitos  fidalgos ,  e  vindo  a  Africa 
fundara  Carthago. 

Esta  viagem ,  e  longa  peregrinação  de  Elissa ,  foi  se- 
gundo hum  antigo  etymologista  Grego ,  a  que  entre  os  Fe- 
nicios  lhe  deo  o  nome  de  Dido ,  que  naquella  língua  quer 
dizer  errante,  ou  vagabunda. 

Petau  no  livro  XIII ,  pag.  295:  da  edição  d'Antuerpía 
de  I7f2  allíga  o  anno  sétimo  de  Pygmalião  ao  de  886 
antes  da  era  de  Chrísto,  cento  e  trinta  e  três  antes  da  fun- 
. dação  de  Roma. 

Desta  conta  não  discrepa  Solíno  ,  senão  três  annos 
menos  Porque  no  cap.  40  põe  destruída  Carthago  por  Sci- 
piâo,  setecentos  e  trinta  e  sete  annos  depois  que  fora  edi- 
ficada. Ora  Carthigo  foi  destruída  por  Scipião  ,  sendo  Côn- 
sules Cn.  Cornelio  Lentulo,  e  Lúcio  Mummio  Acaico :  is- 
to he,  segundo  os  cálculos  de  Petau,  no  anno  146  antes 
da  era  de  Chrísto.  Ajuntemos  estes  146  áquelles  737  sa* 
T.  IX.  P.  I.  R  hir- 


«;•  Mç-MORIílS   DA    AcADí:.MfA   RtAL 

hir-nos-ha.  o  annp  883  antes  da  mesma  era,  que  são  cento 
e  trinta  antes  da  fund;ição  de  Roma.  . 

Porém  os  outros  cscritdres  Romanos  decem  muitos  ân- 
uos mais  para  baixo  a  fundação  de  Carthago.  Porque  Jus> 
tino  no  livro  XVIII  a  põe  fundada  antes  de  Roma  só  se* 
tenta  c  dous  annos.  Sérvio  commcntando  aquellc  hemisti*- 
quio  de  Virgilio,  Urbs  antiqua  ftiU  ^  só  setenta»  Paterculó 
no  Livro  I  só  secenta  e  sinco.  .wÁ   ab    Jinrr  . 

Compunha-se  a  cidade  de  Carthago  de  três  "grandes 
Bairros.  O  primeiro  chamado  Cotbon  ,  era  hum  porto  não 
natural ,  mas  aberto  á  força  da  arte  e  da  industria  (donde 
na  opinião  de  Bochart  lhe  veio  este  nome)  com  vários  es» 
talleiros  á  roda.  O  segundo  chamado  Bjirsa,  era  huma  For- 
taleza ,  ou  Cidadclla  ,  cujos  muros  consta  pelos  Excerptos 
de  Diodoro  Siculo ,  que  tinhão  de  altura  quarenta  covados , 
e  de  largura  trinta  e  dous.  O  terceiro  chamado  Magalia, 
era  a  Povoação  que  se  estendia  por  fora.  Tudo  consta  d'Es- 
trabão  ,  Appiano  ,  e  Sérvio. 

Estava  Carthago  situada  numa  Península  de  trezentos 
e  secenta  estádios  de  ambJto,  que  era  o  mesmo  que  tinha 
Babylonia.  DeiTtro  da  }iyrsa  havia  muitas  .Torres  de  três  an- 
dares: no  primeiro  dos  quaes  se  alojavão  trezentos  elefan- 
tes :  no  segundo  quatro  mil  cavallos :  no  terceiro  huma 
guarnição  de  vinte  e  quatro  mil  homens.  No  mais  alto  es- 
tava hum  Templo  d'  Esculápio  de  tanta  capacidade  ,  que 
quando  Scipiâo  Emiliano  tomou  Carthago  ,  nelle  se  refu- 
giarão e  esconderão  por  sete  dias  sincoenta  mil  pessoas. 
Depois  a  mulher  d'Hasdrubal  lhe  poz  fogo,  e  pereceo  no 
incêndio. 

Contão ,  que  quando  Dido  pedio  ao  Rei  Hiarbas  es- 
paço de  terra  para  fundar  a  cidade  ,  limitando-lho  o  Rei 
ao  espaço  que  occupasse  hum  couro  de  boi ,  usara  ella  da 
industria  de  mandar  partir  o  couro  em  muitas  e  mui  del- 
gadas tiras ,  e  tomar  para  sitio  da  cidade  todo  aquellc  âm- 
bito ,  que  as  mesmas  tiras  estendidas  em  redondo  descre- 
vessem. E  que  daqui  viera  á  nova  fundação  o  nome  de  Byri 

^"1 


DAS  SclENClAS  OE  LiSBOA.  Ijf 

ta  ,  que  cm  Grego  quer  dizer  Costado.  E  ainda  que  isto 
parece  huma  íiibula  dos  Foctas ,  Trogo  Fompeo  ,  ou  seu 
Abbreviador  Justino ,  e  com  elles  Appiano ,  mostrarão  que 
a  acreditavao.  Hoje  hc  sentimento  de  grandes  Críticos, 
que  o  Byrsa  dos  Gregt)s  he  o  Bysra  dos  Hcbreos,  que  vai 
o  mesmo  que  Fortificação  ;  e  que  cm  lugar  de  Byn-a  dis- 
serão  os  Gregos  Byrsa.,  por  não  soffrcr  o  génio  da  sua  Lín- 
gua ,  que  ao  S  se  siga    R. 

O  nome  de  Maga/ia ,  que  era  a  terceira  parte  de 
Carthago,  diz  Sérvio,  que  vem  de  Mngar.,  que  cm  Lin- 
gua  Funica  significa  Killa  ,  ou  como  acrescenta  o  nosso  S. 
Isidoro  ,  Filia  Nova.  Forem  Appiano  em  lugar  de  Maga- 
lia  ,  constant^.mente  escreve  sempre  Megdra. 

Como  Carthago  se  formou  das  três  Fovoações  ,  que 
dissemos ,  e  foi  fundada  por  partes  ,  e  pouco  a  pouco  í 
daqui  tem  alguns  por  verisimel  ,  que  segundo  a  diversida- 
de dos  Bairr.js,  seriao  taobcm  diversos  os  Fundadores,  e 
diversos  os  tempos  da  fundação :  c  que  por  isso  mesmo 
são  tão  diversos  os  annos ,  cm  que  os  Authores  põem  fun- 
dada Carthago.  Com  cfF.-iro  Appiano  dá  por  certo  ,  que 
quando  Dido  viera  fundar  a  Byrsa  ,  já  havia  alguma  cousa 
de  Carthago  feita  pelos  Fenícios.  O  mesmo  parece  suppor 
Virgílio  naquelle  verso  : 

Miratítr  molem  Jeiíeat  j  magalia  qmudam. 

E  esta  he  a  opinião,  que  Com  Isaac  Vossio  segue  Bochart. 
Dizem  mais  ,  que  quando  se  abrião  os  alicesses  de 
Carthago,  fora  achada  na  terra  huma  cabeça  de  cavallo, 
que  ficou  servindo  de  Insig  lia  á  nova  Cidade.  Com  cffei- 
to  o' grande  Bispo  de  Lerida  ,  e  Arcebispo  de  Tarragona 
António  Agostinho  ,  no  Sexto  dos  seus  raríssimos  Diálo- 
gos testifica,  que  tinha  em  seu  poder  huma  medalha  Cic- 
thagineza  de  prata ,  com  huma  cabeça  de  cavallo  elegan- 
temente gravada,  e  no  fim  do  pescosso  escrito  este  nome 
CACCABE,  que  naqucUa  língua  significa  cabuça  de  cas-allo. 

R  ii  A 


iji  Mkmorias  DA  Ac AT5EMIA  Real 

A  religião  dos  Carthaginczcs  erl  a  mesma  que  a  dos 
Tyrios  seus  fundadores.  Polybio  no  Excerpto  CXIV.  das 
Embaixadas  ,  fãx  menção  dMnuna  na'o  ,  que  todos  os  annos 
hia  de  Cartliago  a  Tyro ,  levar  as  Primicins  aos  Dcoses 
pátrios.  E  Diodóro  Siculo  escfeve  no  Livro  XIII.  cap.  io8. 
que  na  conquista  e  esbulho  de  Gela  cidade  de  Sicília',  achan- 
do os  Carthacrinezcs  huma  Estatua  colossal  de  bronze  do 
Deos  Apollo  ,  a  mandarão  logo  de  presente  a  Tvro.  As- 
sim como  em  Tyro  era  celebre  pelos  Escritos  d'Hcrodoto 
o  'rcinplo  d'Hcrculcs  ,  com  huma  columna  de  ouro  ,  outra 
d'csmcrjlda  :  assim  em  Cartliago  tinha  Hercules  outro  Tem- 
plo, onde  todos  os  annos  se  sacrificava  huma  victima  hu- 
mana ,  como  refere  Plinio  no  Livro  XXXVI.  cap.  6.  Cos- 
tume, que  segundo  testifica  Tertullinno  no  Apologético, 
durou  cm  Carthago  até  o  tempo  de  Tibério. 

§     II. 

Das  forcas  terrestres  e  tiavaes  da  Republica  de  Carthago  ,    t 
das  suas  conquistas  dentro ,    e  fora  d' Africa. 

Depois  da  morte  da  Rainha  Dido  ,  passou  o  Gover- 
no de  Carthago  de  Monárquico  a  ser  Republicano.  Os  que 
occupavão  osummo  Magistrado,  chamavao-se  J'«/>/<'í  ,  no- 
me que  dos  Carttiaginezes  adoptarão  os  Latinos  :  (  o  que 
se.  faz  manifesto  de  viirios  lugares  de  Livio,  como  no  Li- 
vro XXVIIL  cap.  37.  e  no^Livro  XXX.  cap.  7. )  e  noi 
me  que  parece  que  os  Carthaginezes  tomarão  dos  Hebrcos , 
em  cuja  Língua  se  chamavão  Sophetim  aquellcs  Juizes ,  que 
depois  da  morte  de  |osuc  governdrâo  com  hum  império 
absoluto  o  Povo  de  Deos  :  de  sorte  que  nté  o  Livro  que 
trata  destes  Juizes,  se  intitula  em  Hebrco  Sophetim.  O  Pre- 
zidente  porem  ou  Doge  destes  SulFctes  de  Carthago ,  cons- 
ta de  Polybio  no  Livro  III.  cap.  ■:^^.  que  se  intitulava  Rei. 
E  este  mesmo  nome  dá  Solino  a  Hannon. 

Qual  fosse  a  potencia  de  Carthago ,  florente  esta  Re- 

pu- 


DAS  SCIENCIAS  DE  LlSBOA.  IJJ 

publica  ,  de  nenhuma  cousa  se  pode  avaliai  melhor,  diz 
Hstrabiío  no  Livro  XVII.  pag.  1189.  que  doestado  cm 
que  ella  se  achava  ,  ao  tempo  da  terceira  e  ultima  guerra 
com  os  Romanos.  Havia  então  em  Carthago  setecentos 
mil  liomens  :  e  estav-ío-lhe  sujeitas  por  toda  a  Africa  tre- 
zentas cidades.  Sitiados  que  torão  por  Scipião ,  entrega- 
rão de  armas  maiores  duzentas  mil,  de  maquinas  beilicas 
três  mil  ,  a  fin  de  o  moverem  a  não  continuar  a  guerra. 
Como  depois  se  resolverão  a  dctender-se  a  todo  o  risco, 
comcçaVão  a  fabricar  novas  armas:  e  cada  dia  se  faziao  cen- 
to e  quarenta  escudos  batidos,  trezentas  espadas ,  quinhen- 
tas lanças,  e  mil  dardos  d'arremeço,  para  cordas  dos  quaes 
instrumentos  davão  as  escravas  os  seus  próprios  cabellos. 
Conserv.ívão  ainda  doze  na'os  das  que  tinhão  servido  havia 
sincoenta  annos.  Agora  porem  ,  não  obstante  ter  se  refugia- 
do o  grosso  da  cidade  na  Fortaleza  ,  dentro  de  dous  mc- 
zes  fizcrão  cento  e  vinte  náos.  E  tendo-lhes  o  inimigo  oc- 
cupado  o  porto  com  huma  guarnição  ,  abrirão  logo  outro  ^ 
donde  de  repente  sahio  aqu.Ua  armada.  Porque  tinhão  ain- 
da de  tempos  antigos  muita  madeira  prompta,  e  promptos 
muitos    officiaes  sustentados  do  publico.    Atéqui  Estrabão* 

Este  poder  naval  dos  Carthaginezes  vinha  já  de  mui- 
tos séculos  a  traz  :  e  pode-se  dizer,  que  começou,  com  a 
Republica.  Porque  já  do  tempo  de  Cyro  ,  celebrao  Heró- 
doto e  Thucydides  huma  armada  Carthagineza  de  secenta 
náos ,  que  no  mar  de  Córsega  pelejou  com  outra  dos  Fo- 
censcs  de  igual  numero,  pelos  annos  de  5-44  antes  da  era 
de  Christo. 

Pelos  annos  de  484  antes  da  mesma  era  ,  consta  de 
Diodóro  Sicuio  no  Livro  XL  cap.  2.  que  querendo  Xerxes 
invadir  a  Grécia  ,  pedira  auxilio  aos  Carthaginezes  ;  os  quaes 
dentro  de  três  annos  ajunta'rão  hum  exercito  de  trezentos 
mil  homens ,  e  huma  armada  de  duzentas  náos. 

Pelos  annos  de  408  antes  da  mesma  era,  refere  o  mes- 
mo Diodóro  no  Livro  XIIL  cap.  5-4.  que  para  a  conquis- 
ta dj  Sicilii,  prepararão  os  Carthaginezes  huma  armada  de 

se- 


134  Memorias  da  Academia  Real 

secenta    náos  de  guerra,    c  de  mil  e  quinhentas   de  carga. 

Por  estes  tempos  se  julga  ,  que  foi  aqucUa  famo- 
za  expedição  de  Hannon  Ciutliaginez  ,  que  n'huma  arma- 
da de  secenta  náos,  cm  que  hião  trinta  mil  homens,  cor- 
reo  por  ordem  do  Senado  roda  a  costa  d'Africa  ,  ao  mes- 
mo tempo  que  outro  (>arrh;igincz  por  nome  Himilco  ,  cor- 
ria a  da  Europa.  Digo,  que  esta  l"amoza  expedição  foi  por 
estes  tempos,  ou  talvez  ainda  mais  antiga.  Porque  de  mui- 
tas cidjdes  fundadas  por  Hannon,  e  mencionadas  por  elle 
no  seu  Périplo  ,  faz  memoria  Scyláce  de  Caryando  Gcogra- 
fro  Grego,  ao  qual  Isaac  Vossio  na  Prefação  ao  mesmo 
Scyláce  faz  contemporâneo  de  Dário  Norho  succcssor  de 
ArtíLxcixcs  Longimano;  e  João  Alberto  Fabrício  no  Livro 
IV  da  sua  Bibliolheca  Grega,  cap.  ri.  §6.  o  reduz  com 
inclli;'res  fundamentos  ao  tempo  de  Dário  Hystaspis ,  an- 
tecessor do  referido  Artaxerxes. 

Tendo  sido  pois  tão  grandes  e  tão  conhecidas  as  for- 
ças maritimas  da  Republica  de  Carthago  ,  antes  das  suas 
guerras  com  os  Romanos;  he  muito  para  admirar,  que 
Eusébio,  que  na  sua  Chronica  teve  cuidado  de  hir  notan- 
do nos  respectivos  lugares  o«  Povos  ,  que  em  diversos  tem- 
pos tiverão  o  império  do  mar,  como  os  Lydios ,  os  Pe- 
lasgos  ,  os  Thracios ,  os  Rhodios ,  os  Fenícios  ,  os  Focen- 
ses ,  os  Eginetas :  nenhuma  menção  fizesse  dos  Carthagine- 
zes  ,  de  cujas  conquistas  por  mar  e  por  terra  ,  estão  cheios 
CS  Livros  de  Polybio  ,  Diodóro ,  Estiabão ,  Livio ,  e 
Justino. 

Por  cíFeito  desta  potencia  naval ,  testifica  Polybio  no 
Livro  I.  cap.  IO.  e  Livro  IIL  cap.  59.  que  ao  tempo  da 
primeira  Guerra  Púnica  ,  isto  he  ,  pelos  annos  de  490  da 
fundação  de  Roma,  e  264.  antes  da  era  de  Christo;  es- 
tavão  sujeitas  ao  dominio  dos  Carthaginczes  todas  as  Pro- 
víncias d'Africa,  des  das  Aras  dos  Filenos  até  as  Colum- 
nas  d'Hercules :  espaço  de  dezaseis  mil  estádios,  em  que 
já  ouvimos  dizer  a  Estrabao ,  que  jaziao  trezentas  cidades: 
e  fora  d'Africa  ,   mas  fronteiras  a  ella ,    todas  as  ilhas   do 

mar 


DAS  SciENCTAS   DE  LiSBOA."  l^f 

inar  Sardico  e  Etrusco.  Que  por  isso  no  principio  da  se« 
gunda  guerra  se  queixou  Annibai  por  boca  de  Tito  Livio , 
Livro  XXI.  cap.  43.  de  que  os  Romanos  tivessem  tirado 
á  Republica  de  Carthago  as  duas  ilhas  de  Sicília  e  Sarde- 
nha. Parum  est  ,  qtiod  veterrimas  Províncias  meãs  Siciliam  est 
Siirdiniam  adimis  :  etiam  Hispanias.  Note-se  bem  a  energia 
daquellas  palavras  ,  veterrimas  Provindas  meãs :  com  as  quaes 
declara  Annibai,  que  em  lhe  tirarem  os  Romanos  a  Sicilia 
e  a  Sardenha ,  não  só  lhe  tirarão  o  que  era  seu ,  mas  o 
que  era  seu  de  tempos  antiquissimos.  E  com  cffeito  nós 
ji  vimos  de  Diodóro  ,  que  ao  menos  des  do  tempo  de  Dá- 
rio Notho,  cstavão  os  Carthaginezes  de  posse  do  melhor 
da  Sicilia.  E  pouco  depois  em  tempo  de  Dionyzio  o  Ty- 
r^nno  diz  o  mesmo  Diodóro  no  Livro  XIV.  cap.  76  que 
toda  a  Sicilia,    excepto  Saragossa  ,    era  dos  Carthaginezes. 

Mas  que  digo  eu  ,  do  tempo  de  Dário  Notho  ?  A  His- 
toria de  Polybio  nos  informa  no  Livro  III.  cap.  12.  que 
iogo  no  primeiro  anno  depois  de  expulsos  os  Reys  de  Ro- 
ma ,  e  primeiro  dos  Cônsules  que  em  seu  lugar  se  insti- 
tuirão; isto  he ,  no  anno  209  da  fundação  de  Roma  e 
5*09  antes  da  era  de  Christo ,  celebrarão  os  Romanos  com 
os  Carthaginezes  hum  Tratado  de  Limites  e  de  Commer- 
cio  ,  em  cujo  Artigo  quinto  se  suppoe  ,  que  de  muitos 
ânnos  atraz  estavão  os  Carthaginezes  de  posse  da  Sarde- 
nha ,  e  d'huma  grande  parte  da  Sicilia.  Ora  isto  foi ,  co- 
mo no  mesmo  lugar  nota  Polybio ,  vinte  e  oito  annos  an- 
tes que  Xerxes  passasse  á  Grécia ,  e  consequentemente  em 
tempo  de  Dário  Hystaspes  ;  que  são  perto  de  duzentos  e 
sincocnta  annos  antes  da   primeira  guerra  Púnica. 

Porém  onde  os  Carthjginezes  dilatarão  mais  o  seu  po- 
der ,  foi  na  Espanha  :  para  o  que  lhes  abria  a  porta  o  es- 
tarem já  senhores  das  suas  ilhas  adjacentes  ,  e  o  terem  al- 
liançi  d'amizade  c  parentesco  com  os  de  Cadiz  ,  por  cau- 
za  de  communidade  d'origem ,  que  huns  e  outros  vinhao 
de  Tyro. 

Diodóro  no  Livro  V.    cap.   16.    diz  que  cento  e  se- 

cen- 


T3fi  Memorias  da  Academia  Rhai. 

cenra  annos  depois  de  fundada  Carthago  ,  estabelecerão  os 
Carrliaginezcs  luima  Colónia  na  ilha  de  Piíyiisa,  que  ho- 
je SC  nomeia  Juiça  ,  e  jiz  opposta  ao  Cabo  de  Denia  ,  dis- 
tante só  hum  dia  de  viagem  do  continente  d'Espanha.  Cha- 
márão-lhc  os  Gregos  Pttyusa  y  pelos  muitos  pinhaes  de  que 
está  cubcrta. 

Estrabão  no  Livro  III,  pag.  25-4,  põe  duas  PhyusasX 
huma .  chamada  £/<«/<? ,  hojcibissa,  de  quatrocentos  está- 
dios de  comprido,  e  quasi  outros  tantos  de  largo,  com 
huma  cidade  do  mesmo  nome:  outra  chamada  Ophhisa  ^  vi- 
zinha á  primeira,  mas  muito  mais  pequena,  e  deserta.  O 
que  procedia  talvez,  das  muitas  cobras  que. a  infcstavão, 
donde  lhe  veio  o  nome  Grego  á^Ophiiisa  ,  a  que  correspon- 
de o  Latino  Colubrarja  ,  que  lhe  dá  Piinjo  no  Livro -III. 
cap.   f .   como  se   disséramos  ,   ilha  das   cobras. 

Por  este  lugar  d'Estrabáo  ,  quer  Wesselinge  que  se 
emende  Plinio  ,  o  qual  tendo  reconhecido  com  tstrabão 
duas  Pityusas ,  a  ambas  contra  elle  chama  Elmos ,  pondo 
a  Ophhisa  ou  Colubraria  por  distincta  das  duas. 

Pelo  mesmo  lugar  d'Estrabão  ,  querem  Casaubono  e 
Salmasio  ,  que  se  emende  Diodóro ,  em  quanto  chama  Ere- 
so ,  á  que  Estrabão  com  outros  chama  FMuso. 

Feitos  senhores  das  Pityusas  ,  foi  fácil  aos  Carthagi- 
nezes  apossarem-se  também  das  Baleares,  que  como  nos 
informa  Plinio,  não  distão  delias  senão  setecentos  estádios  , 
e  são  ás  que  hoje  chamamos  Malhorca  e  Minorca.  Pose- 
rão  os  Gregos  a  estas  duas  ilhas  o  nome  de  Gymnefias ,  pe- 
lo costume  que  os  seus  habitantes  tinhão  ,  de  andarem  nus 
em  tempo  do  verão  ;  e  o  ^e  Baleares  ,  pelo  uzo  da  funda  , 
em  que  erão  insignes ,  e  em  que  se  exercitavao  desde  me- 
ninos de  sorte,  que  primeiro  havião  d'acertar  no  alvo,  do 
que  receber  páo.  Assim  o  observa  Estrabão  no  Livro  IIL 
Numero  marginal  168  acrescentando,  que  estas  fundas  se 
fazião  d'huma  espece  de  junco  desfiado  ,  a  que  os  Gregos 
chamão  melancrena.  D'huma  e  outra  etymologia  faz  menção 
Diodóro,  no  Livro  V.  cap.   16. 

Da- 


DAS   SciENCIAS    DE   LiSBOA.  Í37 

Daqui  ficou  sendo  mui  celebrada  até  entre  os  Poe- 
tas a  funda  dos  Malhorquins.  Como  quando  Virgílio  diz  nas 
Gcorgicas : 

Shipea  torquentem  Baleari  verbera  funda. 

E  Ovidio  nas  Mctamorfozcs  : 

Non  secuí  exarsit ,  quam  cum  Balearia  pluhim 
Funda  jacit. 

Mas  concordando  todos  os  antigos  e  modernos  ,  em 
que  as  Baleares  tomarão  este  nome  do  uzo  da  funda  ;  nao 
he  huma  só  a  opinião  sobre  a  raiz  do  nome.  Porque  huns 
o  derivao  do  verbo  Grego  Ballein ,  que  significa  atirar  de 
arremesso  ;  como  Diodóro  no  lugar  lia  pouco  indicado,  e 
com  clle  o  nosso  S.  Isidoro  no  Livro  XIV.  das  origens  , 
cap.  6.  Outros  com  Estrabão  c  Eustathio  ,  querem  que  Ba- 
leares seja  de  sua  origem  hum  nome  posto  pelos  Fenicios, 
que  no  principio  povoarão  aquellas  ilhas,  e  em  cuja  I,ingua 
Baaljara  quer  dizer  mestre  d'atirar.  Este  he  o  sentimento 
de  Bochart  no  Livro  De  Colmiis  Phwnuum ,  cap.   35'. 

A  maior  das  duas  Baleares ,  que  he  Malhorca ,  tem 
conforme  Plinio  no  Livro  IIL  cap.  j.  cem  milhas  de  com- 
prido ,  e  de  circunferência  trezentas  e  oitenta ,  com  duas 
Cidades  ,  que  em  tempo  dos  Romanos  se  chamavâo  Palma 
c  Pollcncia.  A  menor  que  he  Minorca  ,  tinha  outras  duas, 
Jammon  e  Magon ,  como  depois  de  Pomponio  Mela  attes- 
ta  Severo  Bispo  da  mesma  ilha ,  n'huma  carta  circular  que 
traz  Baronio  no  anno  de  Christo  418.  onde  a  nosso  pro- 
pósito adverte ,  que  ambas  aquellas  cidades  erão  obra  dos 
Carthaginczes.  Duo  parva  eppida ,  quibus  a  Poenis  indita  no- 
mina ,  Jammon  ad  occasum  ,  Magon  ad  orientem. 

Para  se  formar  algum  conceito  dos  costumes  destes 
llhéos  ,  he  notável  o  que  delles  escreve  Diodoro  de  Sici- 
lii,  Livro  V.  cap.  17.  dizendo  que  eptrcUes  era  prohibi- 
1.  IX.  P.  1.  S  do 


igS  Memorias  DA  Academia  Real 

do  todo  o  uzo  de  dinheiro  d'ouro  e  de  prata  :  e  que  as- 
sim todo  o  soldo  que  lhes  davão  os  Carthaginezcs ,  o  con- 
vertião  elles  em  comprar  e  levar  para  as  suas  terras  mulhe- 
res e  vinho. 

Qi-ianto  he  certo  ,  que  os  Carthaginezcs  forão  senho- 
res das  ilhas  d'Espanha  muito  primeiro,  que  do  seu  con- 
tinente ;  tanto  he  difficultozo  de  designar  o  tempo ,  em 
que  elles  estabelecerão  no  mesmo  continente  hiima  domi- 
nação fixa. 

Já  ouvimos  a  Polybio  ,  que  ao  tempo  da  primeira  guer- 
ra Púnica ,  tinhâo  já  os  Carthaginezcs  sujeitado  ao  seu  do- 
mínio a  maior  parte  dos  lugares  d'Espanha.  Porem  o  mes- 
mo Polybio  no  Livro  II.  cap.  i.  e  cap.  36.  celebra  a  A- 
milcar  Barca,  e  a  seu  genro  Hasdrubdl ,  pordous  insignes 
dilatadores  do  império  Carthaginez  em  Espanha  ,  depois 
da  primeira  guerra  Púnica.  E  no  Livro  III.  cap.  26;  p6e 
celebrado  pelos  Romanos  com  o  mesmo  Hasdrubal  hum 
Tratado,  em  que  se  prohibia  aosCarthaginezes  d'Espanha 
estender  as  suas  conquistas  alem  do  Ebro :  o  que  he  sinal  , 
que  atclli  as  não  tinhão  elles  ainda  feito.  Ultimamente  no 
Livro  III.  cap.  35:.  testifica  Polybio,  que  declarada  já  a 
segunda  guerra  Púnica  ,  he  que  Annibal  rendera  ao  seu  im- 
pério a  Navarra  ,  depois  de  ter  sujeitado  os  Carpetanos  na 
Província  de  Toledo. 

De  tudo  isto  tiro  eu ,  que  o  lugar  do  Livro  I.  cap. 
10.  onde  Polybio  escrevera,  que  ao  tempo  da  primeira  guer- 
ra Púnica  estavão  já  os  Carthaginezcs  de  posse  da  maior 
parte  d*Espanha;  tem  muito  d'hyperbolico  ,  e  não  se  po- 
de facilmente  conciliar  com  as  vastas  conquistas,  que  elle 
no  Livro  segundo  attribue  a  Amilcar,  e  a  Hasdrubal ,  fei- 
tas depois  daquella  guerra  ,  e  no  Livro  terceiro  a  Annibal , 
pouco  antes  da  segunda.  E  assim  persuado-me  ,  que  ao  tem- 
po da  primeira  guerra  Púnica  ,  não  se  estendião  os  domí- 
nios Carthaginezcs  em  Espanha  muito  fora  da  Betica  c  Lu- 
sitânia :  e  que  ao  tempo  da  segunda,  antes  das  conquistas 
d'Annibal ,  não  passavão  do  Ebro. 

Con- 


DAS  SciENCi AS  DE  Lisboa.  13^ 

Confiimo-me  neste  parecer ,  pelo  que  adio  em  Trfgo 
Pompco  ,  ou  no  seu  Compilador  Justino  ,  Livro  Xl.iV. 
cap.  6.  e  em  Estrabão  Livro  IIL  pag.  224.  O  primeiro 
diz  ,  que  quando  Amílcar  Barca  veio  a  Espanha  ,  era  esta 
a  segunda  expedição  ,  que  os  Carthaginczcs  lazião  a  cila. 
Ora  elle  não  se  sabe  ,  cm  que  tempo  succcdeo  a  primei- 
ra y  que  toi  conforme  o  mesmo  Justino ,  quando  os  Car- 
thaginczes  vierão  socorrer  aos  Fcnicios  deCadiz,  na  guer- 
ra que  lhes  fazião  os  naturaes  da  terra.  Mas  como  Estra- 
bão nota,  que  ao  tempo  que  veio  Amilcar  Barca,  obser- 
varão os  Carthaginezes  com  admiração  ,  que  os  nossos  Tur- 
detanos  uzavão  atd  de  mangedouras  e  tinas  de  prata  :  por 
aqui  se  pódc  e  deve  entender ,  que  até  aquelle  tempo  não 
tinhão  os  Carthaginezes  muito  conhecimento  ,  nem  muito 
trato  com  os  nossos.  Era  logo  moderno  em  Espanha  o  seu 
império. 

A  gloria  pois  das  maiores  e  principaes  conquistas  dos 
Carthaginezes  em  Espanha,  se  deve  attribuir  aos  três  gran- 
des Capitães  ,  Amilcar  Barca  ,  Hasdrubal  seu  genro  ,  e  An- 
nibal  filho  d'Amilcar  ;  dos  quaes  os  dous  primeiros  gover- 
narão muitos  annos  a  Espanha ,  por  ordem  do  Senado  de 
Carthago  ;  e  o  terceiro  no  espaço  de  dous  sujeitou  o  me- 
lhor da  Espanha  Tarraconensc. 

A  Amilcar  Barca  fazem  alguns  modernos  fundador  de 
Barcelona  ,  movidos  da  semelhança  do  nome  Latino  desta 
cidade  ,  que  he  Barcino.  Eu  não  acho  ,  que  Amilcar  che- 
gasse nunca  á  Catalunha.  E  o  nome  de  Barcitw  lho  pode- 
rá dar  Annibal ,  e  em  memoria  do  sobrenome  de  seu  pay. 
E  a  isto  alludiria  Ausonio  ,  quando  na  Epistola  X.  a  Pauli- 
no ,  chama  Ptmica  a  Barcelona. 

De  Carthagena  não  pódc  haver  duvida ,  que  foi  obra 
d'Hasdrubal :  porque  assim  o  affirma  Polybio  no  Livro  X. 
cap.  10.  e  Estrabão  no  Livro  III.  pag.  238.  A  bella  e 
exacta  dcscripção,  que  de  Carthagena  traz  Polybio  no  lu- 
gar citado ,  he  donde  Tito  Livio  tirou  a  sua  no  Livro  XXVI. 
cnp.  42. 

S  ii  No 


440  Memorias  da  Academia  Real 

No  Reino  do  Algarve  ,  crê  o  nosso  Resende  ,  Livro 
IV.  pag.  i86  ,  que  tundára  Annibal  a  cidade,  que  l^om- 
ponio  Mela  chama  do  seu  nome  Portus  Annihalis ,  onde  ho- 
je está  a  villa  d'Alvor.  Da  Oração  que  o  mesmo  Annibal 
íez  ao  seu  exercito,  quando  o  animava  em  Itnlia  para  a 
primeira  batalha  contra  os  Romanos,  c  que  se  lè  em  Ti- 
to Livio  Livro  XXI.  cap.  43.  consta  que  elle  estivera  na 
Lusitânia.  O  que  he  da  minha  ingenuidade  notar ,  que  pri- 
meuo  que  eu  ,  o  observara  o  mesmo  Resende. 

Quantas  e  quam  grandes  fossem  as  vantagens  de  ri- 
queza e  de  forças  militares,  que  os  Carthaginezes  tirarão 
d'Esp3nha ;  ninguém  o  explicou  melhor,  do  que  Diodóro 
de  Sicilia,  quando  no  Livro  V.  cap.  38.  escreveo  o  seguin- 
te :  =  Tendo  havido  em  Espanha  tantas  officinas  de  ouro 
e  prata  ,  que  das  suas  minas  se  tirava  em  grande  abundân- 
cia ,  he  cousa  digna  d'admiração  ,  que  hoje  não  apparece 
nada  disso.  Mas  he  porque  a  avareza  dos  Carthaginezes , 
que  então  possuião  Espanha ,  tudo  levou.  Porque  daqui  he 
que  crescerão  as  suas  riquezas  ,  e  as  suas  forças.  Daqui  he 
que  elles  tirarão  soldados  valentíssimos ,  com  cujo  auxilio 
fizerão  e  concluirão  muitas  guerras  gravíssimas.  Porque  es- 
te foi  sempre  o  costume  dos  Carthaginezes  no  fazer  da 
guerra  ;  que  não  se  confiavão  no  exercito  formado  dos  seus 
Cidadãos ,  nem  no  dos  escravos  dos  Povos  alliados.  E  só 
com  o  muito  cabedal  que  tirarão  das  minas  d'Espanha  ,  met- 
têrão  cm  grandes  perigos  os  Romanos ,  os  Sicilianos  ,  e 
os   Africanos.  =  Atéqui  Diodoro. 

Polybio  no  Livro  IIL  cap.  33.  e  com  ellcs  Tito  Li- 
vio  no  Livro  XXI.  cap.  21.  observão  ,  que  Annibal,  co- 
mo cm  extremo  acautelado  e  sagaz  ,  quando  se  estava  pre- 
parando em  Carthagena  para  a  guerra  d'Italia  ,  manda'ra 
que  as  Praças  d'Africa  as  fossem  guarnecer  Espanhoes  ,  c 
as  d'Espanha  Africanos ;  discorrendo  que  com  os  mútuos 
pinhores,  que  huns  e  outros  deixavao  nas  pátrias,  lhe  fi- 
carião  todos  mais  obrigados ,  c  lhe  serião   mais  £eis. 


DAS  SciENCIAS  DE  LiSBOA.  14; 

§      III. 

Synopse  Chronologka  das  três  Guerras  Púnicas. 

Esta  Synopse ,  sobre  illustrar  infinitamente  as  cousas 
da  nossa  Espanha ,  tem  por  si  a  novidade  ,  de  ser  formada 
(]Uasi  toda  dos  Escritos  d'hum  Historiador,  que  na  autho- 
ridade  não  tem  outro,  não  digo  cu  que  o  exceda  ,  mas  nem 
que  o  iguale.  Tal  he  no  juizo  de  todos  os  Criticos  Poly- 
bio  de  JMegalopole  ,  cidade  da  Arcádia  ;  o  qual  alòm  de 
ser  antiquissimo  ,  e  quasi  coetâneo  aos  successos  que  refe- 
re ,  professa  huma  diligencia  ,  e  huma  cxacção ,  que  o  faz 
sobrcsahir  a  todos  os  mais,  assim  Gregos,  como  Roma- 
nos. 

•  Tendo  pois  diante  dos  olhos  a  novissima  Edição  de 
Polybio  feita  em  Lcipsic  no  anno  de  1764.  formei  esta 
Synopse  chronologica  das  três  Guerras  Púnicas  ,  á  imitação 
d'outra  do  mesmo  assumpto,  que  nos  deixou  Casaubon. 
Porem  no  ajustar  dos  annos  tanto  da  fundação  de  Roma, 
(  que  são  só  os  que  apontou  Casaubon  )  como  dos  que  prece- 
derão a  era  vulgar  de  Christo,  segui  a  Chronologia  de 
Pctau  ,  como  a  mais  correcta  ,  e  a  mais  bem   recebida. 

O  que  não  achei  em  Polybio ,  suppro  eu  não  poucas 
vezes  de  Tito  Livio ,  e  de  outros  Escritores. 

Ora  antes  d'entrarmos  na  Relação  dos  successos ,  he 
necessário  prcnotar  ,  que  até  este  tempo  cultivavão  osCar- 
thaginczes  boa  paz  e  amizade  com  os  Romanos ,  em  vir- 
tude de  três  Tratados  que  tinhão  feito  entre  si ,  dos  quaes 
todos  e  dos  seus  Artigos,  nos  dá  Polybio  noticia  no  Livro 
III.  cap.   22.  24.  e   25:. 

O  primeiro  ,  de  que  já  acima  fizemos  menção ,  foi 
celebrado  entre  Carthaginezes  e  Romanos  logo  no  primei- 
ro anno  da  Republica  destes,  que  foi  o  de  209  da  funda- 
ção de  Roma ,  e  509  antes  da  era  de  Christo.  E  dizia 
assim  :  ««  Haja  amizade  entre  Romanos  e  Carthaginezes de- 

»  bai- 


14*  Memorias  da  Academia  Real 

"  baixo  destas  Leys  e  condições,  Qlic  os  Romanos  nao 
5»  naveguem  alem  do  Pulcro  Promontório.  Sesucccder,  que 
»  por  cauza  d'alguma  tempestade  apportem  adiante  nao 
»  possão  comprar  nem  receber  cousa  alguma ,  senão  o  que 
j>  tor  necessário  para  reparo  dasnáos,  ou  exercício  das  cou- 
»  sas  de  religião  ;  e  passados  sinco  dias  retirem-se.  Qiic  pos- 
»  são  negociar  em  Africa  e  na  Sardenha,  e  naquella  par- 
»  te  da  Sicília  ,  que  está  sujeita  ao  império  dos  Carthagi- 
»  nczcs.  Que  os  Carthaginezes  não  facão  mal  algum  aos 
»  Povos  do  Lacio  ,  que  estão  debaixo  do  dominio  dos  Ro- 
j>  manos.  Que  se  abstenhão  de  tomar  alguma  destas  cida- 
>j  des.  Qlic  se  a  tomarem  ,  a  entreguem  logo  sem  algum 
»  gravame.  Que  não  edifiquem  Fortaleza  alguma  no  cam- 
»  po  Latino.  Que  se  com  mão  armada  poserem  o  pé  nel- 
j>  le  ,  não  pernoitem   assim.   " 

Daqui  temos  ,  que  quando  começava  a  Republica  dos 
Romanos,  já  os  Carthaginezes  contavao  por  Terras  suas 
íóra  d'Africa,  toda  a  Sardenha  ,  e  parte  da  Sicilia. 

A  cauza  porque  os  Carthaginezes  não  querião,  que 
os  Romanos  passassem  com  embarcações  grandes  alem  do 
Pulcro  Promontório  ,  julga  e  nota  Polybio  que  era  ,  porque 
não  querião  que  os  Romanos  soubessem  o  que  havia  cm 
Byzacio  ,  e  na  pequena  Syrte  ,  lugares  que  pela  fertilidade 
do  terreno  se  chamavão  Empórios. 

O  segundo  Tratado  dos  Romanos  com  os  Carthagine* 
zes,  comprchcndia  também  os  Tyrios  ,  e  os  Uricenses.  Foi 
celebrado  no  anno  de  402  da  fundação  de  Roma,  (se- 
gundo se  colhe  do  nosso  Orosio  ,  Livro  III.  cap.  7.  por- 
que Polybio  não  designa  o  tempo)  isto  he  ,  no  anno  de 
3J2  antes  da  era  de  Christo.  E  dizia  assim.  t<  Haja  ami- 
»  zade  entre  os  Romanos ,  Carthaginezes  ,  Tyrios ,  e  Uti- 
5>  ccnses  ,  debaixo  destas  Leys.  Que  os  Romanos  não  fa- 
»  ção  prezas,  alem  do  Pulcro  Promontório,  de  Mastia, 
3>  edcTharseio.  Que  não  vão  lá  mercadejar.  Que  não  edi- 
j>  fiquem  lá  nenhuma  Cidade.  Que  se  os  Carthaginezes  to- 
-j»  marem  no  Lacio  alguma  Cidade  ,  das  que  não  estão  de- 

>j  bai- 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  I43 

>í  baixo  do  domínio  dos  Romanos,  fiquem  embora  crm  a 
j>  preza,  c  com  os  cativos,  mas  entreguem  a  cidade.  Qiic 
»  na  Africa  e  na  Sardenha  nenhum  Romano  negocie  ,  nem 
»  edifique  cidade.  Que  na  Sicilia  sujeita  aos  Carthagine- 
)»  zes ,  c  cm  Carthago  ,  facão  os  Romanos  tudo  ,  vcndao 
j»  o  que  quizercm  ,  e  a  quem  quizerem.  O  mesmo  seja  li- 
»  cito  aos  Carthaginezcs  fazerem  em  Roma.  j> 

Aqui  se  pcrmitte  aos  Romanos  a  viagem  até  Mastia 
c  Tharscio  ;  mas  prohibe-se  o  commercio  na  Africa  cspe- 
ciahncnte   dita  ,  excepto  Carthago  ,  e  na  Sardenha. 

O  terceiro  Tratado  celebrou-se  no  tempo ,  que  o  Rei 
Pyrrho  veio  a  Itália  ,  anno  474  da  fundação  de  Roma  , 
c  280  antes  da  era  de  Christo,  Nelle  se  renovarão  todas 
as  condições ,  em  que  de  parte  a  parte  se  tinha  convindo 
nos  primeiros,  e  só  se  acrescentou  de  novo  o  seguinte: 
«<  Que  se  ou  o  Povo  Romano ,  ou  o  Povo  Carthagincz  fi- 
j>  zer  sociedade  com  Pyrrho,  seja  debaixo  da  condição, 
"  que  no  cazo  d'algum  inimigo  invadir  as  Terras  de  qual- 
j»  quer  dos  dous  ,  hum  c  outro  se  auxiliem  mutuamente. 
j>  Ê  que  sendo  necessário  ,  dem  os  Carthaginezcs  náos  aos 
í>  Romanos,  não  só  para  o  transporte,  mas  também  para 
j>  a  batalha.   >> 

Esta  segunda  clausula  creio  eu  que  foi  posta,  porcau- 
za  de  que  até  aquelle  tempo,  e  até  muitos  annos  depois, 
não  tinhão  os  Romanos  ainda  armada  própria. 

Primeira  Guerra  Púnica. 

Desta  guerra  foi  hum  o  pretexto  ,  outra  a  causa.  O 
pretexto  foi ,  quererem  mostrar  os  Romanos  que  se  com- 
padecião  dos  Mamortinos,  que  era  hum  Povo  do  Reino 
de  Nápoles  ou  Terra  do  Lavor  ,  que  se  tinha  estabeleci- 
do em  Messina  ,  e  agora  se  queixava  das  oppressóes  ,  que 
na  Sicilia  lhe  faziao  os  Carthaginezcs,  unidos  com  Hierão 
Rei  de  Saragossa.  A  cauza  foi ,  não  poderem  os  Romanos 
soffrcr,    que    os  Carthaginezcs   desfrutassem  sós  huma  ilha 

tão 


144  Memorias  da  Academia  Real 

tão  fcrtil ,  c  tivessem  nclla  huma  como  ponte  ,  por  onde 
facilmente  podiao  passar  á  Itália.  O  principal  thcatro  logo 
da  primeira  guerra  Púnica  foi  a  Sicília.  Polybio  Livro  í. 
cap.  8.  e  cap.   lo. 

Primeiro    Âmio   da  Guerra ,    490    da  fundação    de  Roma ,    e 
164    antes  da  era  de  Chrisío, 

Então  foi  a  primeira  vez  ,  que  os  Romanos  sahirão 
fora  da  Itália  com  exercito.  O  Cônsul  Appio  attacou  tão 
rijamente  aos  Carthaginezes  e  ao  Rei  Hierão  ,  que  huns  e 
outros  se  virão  obrigados  a  fugir  de  Messina  ,  aquelles  pa- 
ra Pcloro ,  este  para  Saragossa.  Por  ter  entregado  a  For- 
taleza fizeráo  os  Carthaginezes  crucificar  o  seu  Governa- 
dor. Polybio,  Livro  I.  cap.    11.  e   12. 

Pela  Historia  de  Diodóro  se  sabe  ,  que  o  nome  deste 
Governador  Carthaginez  era  Hannon  ,  nome  entrelles  céle- 
bre, e  commum  a  outros  capitães.  E  pelas  Historias  de  Ti- 
to Livio  c  Valério  Máximo  he  também  constante,  que  o 
crucificar  aos  capitães,  quando  ou  erão  vencidos,  ou  ainda 
que  vencedores  tinhão  obrado  imprudentemente  ,  era  hum 
supplicio  usual  entre  os  Carthaginezes. 

Segundo   Anno ,    49 1  ^rt  fundação  de  Roma  ,   e  2  ó  3  antes  da 

era  de  Christo. 

Fazem  os  Romanos  paz  com  o  Rei  Hierão,  e  sendo 
este. o  que  lha  pedio,  movido  de  duas  razões:  primeira, 
de  medo  dos  Sicilianos  :  segunda  ,  admirado  de  ver  a  va- 
Jentia  dos  Romanos.  Polybio,  Livro  I.  cap.    16. 

Pausanias  acrescenta  terceira ,  que  foi  assentar  comsi- 
go  Hierão,  que  na  amizade  e  fé  se  devia  fiar  mais  dos 
Romanos,  que  dos  Carthaginezes. 

As  condições  da  paz  forão  estas.  «  Que  Hierão  res- 
í»  tituiria  os  cativos  Romanos ,  sem  levar  nada  por  elles :  e 

»»  que 


DAS   St:iF.NCIAS   DE   LiSBOA.  14^ 

»»  que  de  mais  a  mais  daria  cem  talentos  de  prata,  >»    Po* 
lybio  ihid. 

Lutropio  e  Orosio  dobrão  o  numero  de  talentos:  por- 
que põem  duzentos. 

Daqui  SC  pódc  emendar  ,  e  com  cffcito  quer  Casau- 
bono  que  se  emende,  hum  lugar  de  Diodóro  na  Écloga 
VIII.  do  Livro  XXII.  Tomo  II.  pag.  5-02,  onde  segundo 
as  Edições  vulgares  diz  Diodoro  ,  que  Ilierão  fora  obriga- 
do 3  dar  cento  e  sincoenta  mil  dracmas:  o  que  he  muito 
abaixo  da  somma  que  Polybio  aponta  :  porque  cento  e  sin- 
coenta mil  dracmas  só  fa/em  vinte  c  sinco  talentos:  que 
he  huma  quantia,  que  não  condiz  com  a  cubica  dos  Ro- 
manos, nem  com  as  riquezas  d'Hierão.  Onde  pois  cm  Dio- 
doro sele  cento  e  sincoenta  mil  dracmas,  quer  o  dito  gran- 
de critico ,  que  se  reponha  ,  quinhentas  ou  seiscentas  mil 
dracmas. 

Não  declara  Polybio  as  condições  da  porte  dos  Ro- 
manos: mas  dcclara-as  Diodóro  no  lugar  citado  ,  dizendo 
que  forão  estas.  Qtie  Hierao  ficasse  com  o  douiinio  de  Sara' 
gossa  ,  e  das  mais  cidades  da  sua  jurisdicção  ,  ([ue  erão  por 
todas  seis. 

Quarto   Amo  ^    453  da  fundação  de  Roma  y    e  í6i  antes  da 

era  de  Christo. 

Neste  anno  foi  ,  que  os  Romanos  se  applicárão  a  ter 
armada  própria  ,  depois  de  conquistado  no  antecedente  Agri- 
gento,  Polybio,  Livro  L  cap.   i{J, 

Quinto   Amw  y    494    da  fundação  de  Roma  j    e  260  antes^^ 

era   de  Christo* 

O  Cônsul  Cornelio  se  entrega  aos  Carthaginezcs.  Dull- 
lio  hc  o  primeiro  dos  Romanos,  que  vence  os  Carthagi- 
nczes  em  batalha  naval ,  na  qual  os  Carthaginezes  perdem 
setenta  náns.  Polybio  Livro  L  cap.  22.  e  23. 

T.  IX.  P.I.  T  Por 


14^  Memorias  da  Academia  Real 

Por  esta  victoria  se  levantou  em  Roma  humn  Coliimna 
á  honra  de  Duillio  ,  com  huma  Inscripçao  ,  que  ainda  ho- 
je existe  ,  de  Latim  muito  tosco,  qual  ainda  então  era  o 
dos  Romanos. 

Notio   Âiino^    498    da  fundação    de  Roma  j   e  2^6    antes  da 

era  de  Christo. 

Com  huma  armada  de  trezentas  e  trinta  náos ,  pre- 
tendem os  Romanos  passar  a  Africa  ;  com  outra  de  trezen- 
tas c  sincocnta  lho  disputãb  os  Carrhaginczes.  Dada  bata- 
lha ,  fica  a  victoria  pelos  Romanos  ,  perdidas  vinte  e  qua- 
tro na'os  Romanas,  e  mais  de  trinta  Carthaginezas.  Pelo 
mesmo  tempo  passa  o  Cônsul  Attilio  a  Africa  com  outra 
arm.ida  de  trinta  náos,  em  que  hião  quinze  mil  infantes, 
e  quinhentos  cavallos ,  com  que  tomou  aos  Carthaginezes 
a  cidade  de  Clapea  e  muitas  Villas  ,  e  cativou  vinte  mil 
escravos.  Polybio  Livro  I.  cap.  28.  e  29, 

Eutvopio  acrescenta ,  que  voltado  a  Roma  o  outro 
Cônsul  Manlio,  e  ficando  em  Africa  Attilio,  vencera  este 
os  dous  Hasdrubaes  ,  e  aAmilcar,  e  matara  a  tiro  junto  ao 
rio  Bragada  huma  serpente ,  que  Estrabão  diz  que  tinha 
setenta  pés  de  comprido. 

Decimo  Anno ^    499  da  fundação  de  Roma,   e  2^^  antes  da 

era  de  Christo. 

Persuadidos  os  Carthaginezes  ,  de  que  por  imperícia  , 
ou  máo  conselho  dos  seus  capitães ,  he  que  lhe  succediáo 
mal  as  cousas,  mandão  vir  da  Grécia  para  seu  General  a 
Xantippo  Laccdemonio.  Este  junto  hum  exercito  de  doze 
mil  de  pé,  quatro  mil  cavallos,  e  cem  elefantes,  dá  bara- 
lha aos  Romanos,  e  os  vence,  ficando  cativo  o  Cônsul 
Attilio,  Polybio  Livro  \.  cap.   34. 

Se  damos  credito  a  Eutropio  ,  o  -numero  dos  Roma- 
nos  mortos  forão  trinta  mil,  o  dos  cativos  quinze  mil. 

Man- 


I 


DAS   SciENCIAS    DE    LiSBOA.  t^^ 

Mandado  pelos  Carthaginczcs  a  Roma  o  mesmo  Atti- 
lio  ,  debaixo  da  palavra  c  juramento  ,  de  que  ainda  no  ca- 
20  de  que  o  Senado  não  conviesse  n'huma  de  duas  ,  ou 
de  fazer  paz,  ou  de  trocar  os  cativos,  voltaria  ellc  Attilio 
para  o  seu  cativeiro:  Attilio  aconselhou  ao  Senado,  que 
continuasse  a  guerra,  e  tornou  para  Carthago,  como  pro- 
mcttêra.  Vingárão-se  nellc  os  Carthaginczes  ,  fazendo-o  mor- 
rer cruJelissimamente.  Porque  o  mettêrao  n'huma  gayola 
cercada  por  dentro  d'agudas  pontas,  e  tão  ajustada  ao  cor- 
po ,  que  se  não  podia  mover  o  miserável  ainda  levemen- 
te ,  sem  se  esperar  c  ferir  com  inexplicáveis  dores,  até 
que  neste  tormento  acabou. 

Assim  he  que  Appiano  refere  o  desgraçado  fim  do 
Cônsul  Attilio,  digno  pelo  seu  valor  e  fidelidade  de  me- 
lhor fortuna.  E  quanto  ao  facto ,  de  terem  os  Carthagine- 
7es  mandado  matar  a  Attilio,  concordão  com  Appiano  Gre- 
go muitos  Escritores  Romanos;  cntrelles  Valcrio  Mj^íimo 
no  Livro  I.  cap.  i.  e  o  Author  do  Epitome  do  LivroXVIII. 
de  Tito  Livio,  que  alguns  querem  que   fosse  Lúcio  Floro. 

Todavia  Jacques  Palmicr,  de  cujo  parecer  mostra  Wcs- 
selinge  que  não  dissente  ,  p6e  alguma  duvida  a  esta  cruel 
morre  de  Attilio.  Fundão  se  hum  e  outro  no  silencio  de 
Polybio  ,  que  tendo  escrito  tão  miudamente  da  primeira 
guerra  Púnica,  e  do  cativeiro  de  Attilio,  não  disse  toda- 
via huma  só  palavra  daquelle  atroz  supplicio.  Fundâo-se 
mais  em  que  Diodóro  de  Sicilia  nos  Excerptos  do  Livro 
XXIV.  Tomo  II.  pag.  <;66.  parece  suppôr ,  que  Attilio 
morrera  em  Carthago  só  de  doença  natural ,  e  não  de  mor- 
te violenta. 

Mas  quanto  ao  silencio  de  Polybio  devião  advertir 
ambos  aquelles  Críticos,  que  Polybio  não  se propoz  escre- 
ver todas  as  circunstancias  dos  successos  ,  que  refere :  pois 
do  mesmo  Attilio  calou  Polybio  muitas  cousas  ,  que  de- 
pois mencionou  Livio.  E  pelo  que  toca  ao  lugar  de  Dio- 
dóro, eu  acho  que  delle  mais  se  confirma  a  narração  de 
Appiano,  do  que  se  impugna.    Porque  o  aconselhar  a  mu- 

T  ii  Iher 


148  Memorias  da  Academia  Real 

Hier  d'Attilio  a  seus  filhos,  que  cm  vingança  da  morte  do 
pay  cm  Carthago  atormentassem  cruelmente  em  R.oma  oá 
dous  cativos  Cartliaginczes  Bostar  e  Amílcar;  mais  pare- 
ce pena  de  talião  ,  do  que  simples  desaíFogo  da  magoa. 

Tornando  a  Xantippo  General  dos  Carthaginezes  ,  o 
mesmo  Appiano  escreve ,  que  os  Carthaginezes  reccozos 
de  que  a  ellc  se  attribuisse  toda  a  gloria  das  suas  victorias, 
o  remetterão  premiado  de  grandes  dons  para  Lacedemonia  ; 
encommendando  com  tudo  ao  mestre  da  náo ,  que  em  cer- 
ta paragem  desse  geito  ,  a  que  clle  morresse  afFogado.  Po- 
rem o  nosso  Polybio  dá  a  entender ,  Xantippo  tôra  o  mes- 
mo que  disposéra  a  sua  retirada  ,  por  se  subtrahir  aos  malignos 
cfFcitos  da  emulação  e  da   inveja. 

Sabido  em  Roma  o  máo  successo  da  armada  d'Attilio, 
partirão  logo  para  Africa  os  dous  novos  Cônsules  Emilio  e 
Fulvio  com  outra  armada  de  trezentas  -c  sincocnta  náos. 
Sahiráo  os  Carthaginezes  a  recebcllos  com  a  sua  de  duzen- 
tas. Dada  batalha  ,  são  desbaratados  os  Carthaginezes  ,  com 
perda  de  cento  e  quatorze  náos,  ficando  cativos  todos  os 
que  nellas  vinhão.  Recolhendo-se  para  Roma  a  armada  vi- 
ctorioza ,  huma  tempestade  a  faz  naufragar ,  de  sorte  ,  que 
de  trezentas  e  secenta  náos  só  escaparão  oitenta.  Polybio 
Livro  I.  cap.  36.  e  37. 

Undécimo  Ânuo  j    5*00  da  fundação  de  Roma^   e  2  j/^  antes  da 

era  de  Christo, 

Preparada  nova  armada  de  trezentas  náos  ,  em  que  en- 
travão  as  relíquias  das  que  tinhão  naufragado  ,  navegão  os 
Cônsules  Cornelio  Scipião  Asina ,  e  Lúcio  Attilio  Calati- 
no  para  a  Sicilia  ,  onde  depois  d'hum  apertado  sitio  tomao 
Palermo.  Polybio  Livro  I.  cap.  39. 


Duo- 


DAS  SciENCIAS  DE  LiSBOA.  Z4^ 

Di4odecmo   Anuo  y    yoi    da  fundação  de  Roma  ^    e  a  5*  3  antet 
da  era  de  Cbristo. 

Sitlão  os  Romanos  cm  Sicilia  a  cidade  de  Lilybeo, 
posta  no  Promontório  ou  Cabo  do  mesmo  nome ,  írontci- 
ro  a  Carthago.  Dcfciidcm-scos  Carthaginezes  valerozaihen- 
tc,  com  gravíssimo  damno  dos  Romanos.  Desesperados  es- 
tes de  poderem  tomar  Lilybeo ,  passáo  a  sitiar  Drép.ino. 
Impedcm-lhe  os  Carthaginezes  o  accesso.  Dá-se  batalha. 
Foge  o  Cônsul  Publio:  o  que  em  Roma  se  lhe  deo  em 
culpa  ,  porque  foi  castigado.  Tomão  os  Carthaginezes  aos 
Romanos  noventa  e  três  náos ,  e  cativao  quasi  todos  os  da 
armada. 

Renovão  os  Romanos  o  sitio  de  Lilybeo.  Repellcm 
os  Carthaginezes  a  armada  Romana.  P.ideee  esta  segundo 
naufrágio,  em  que  perecerão  cento  e  sincocnta  náos.  Poly- 
bio  Livro  I.  des  do  capitulo  43.  até  55-. 

Os  referidos  successos  não  forão  todos  no  mesmo  an- 
no;  mas  em  diversos.  Eu  os  ajuntei  desta  vez  n'hum  só, 
pela  cognaçâo  e  connexao  dos  objectos. 

Por  este  tempo  cedem  os  Romanos  o  império  do  mar 
•os  Carthaginezes. 


o" 


Decimo  oitavo  Anm ,    507  da  fnndação  de  Roma,  ^  247  ati- 
tes da  era  de  Cbristo. 

Neste  anno  nasceo  o  grande  Annibal ,  aquelle  que 
depois  fez  a  segunda  guerra  Púnica.  Porque  antes  delle 
tinha  havido  outros  do  mesmo  nome. 

Vigésimo  terceiro   Anno  ^    5"  12  da  fundação  de  Roma.,    e  i^z 
antes  da  era  de  Cbristo, 

Reparada  nova  armada  ,  encarregao  os  Romanos  a  guer- 
ra coiura  os  Carthaginezes  ao  Cônsul  Lutacio.  Vence  este 

os 


i^ò  Memorias  da  Academia  RSai, 

i)S  Carthaginczcs  na  batallia  d'Egate ,  ilha  fronteira  a 
Lilybco ,  que  por  outro  nome  se  chama  Egusa,  mettidas 
a  pii]uc  sincoenta  náos,  e  cativadas  setenta.  Polybio  Livro 
I,  ca]i.  6i. 

Vigésimo  quarto  e  ultimo  Jnno ,   y  1 3  da  fundação  de  Roma  j 
e   241    antes  da  era  de  Christo. 

Por  conselho  e  direcção  d'Amilcar  Barca  ,  pay  do 
grande  Annibal  ,  pedem  os  Carth;iginezes  paz  aos  Roma- 
nos ,  e  estes  lha  concedem  debaixo  destas  Leys.  <«  Qlic  os 
>»  Carthaginezes  saião  de  toda  a  Sicilia.  Qi^ic  não  façao 
»  guerra  ao  Rcy  Hierao.  Qiie  não  acommcttão  Saragossa. 
>»  Que  entreguem  os  cativos  Romanos  gratuitamente.  Que 
»»  paguem  por  vinte  annos  aos  Romanos  dous  mil  e  duzen- 
>»  tos  talentos  cada  anno.  »  Polybio  Livro  L  cap.  62  ,  e 
Livro  in.  cap.  27.  se  bem  (]ue  no  segundo  lugar  pos  cl- 
le  por  prazo  da  paga  não  vinte  annos ,  mas  dez ;  acrescen- 
tando ,  que  dem   logo  mil  talentos. 

Trcs  annos  depois  ,  como  se  tornasse  a  renovar  a  guer- 
ra sobre  a  possessão  de  Sardenha  ,  ajuntãrão-se  de  mais  ao 
referido  Tratado  estas  condições.  =  Que  os  Garthagine- 
zes  sahissem  da  Sardenha  ,  e  dessem  outros  mil  e  duzen- 
tos talentos  aos  Romanos.  =  Por  ultimo  estando  Hasdru- 
bal  em  Espanha  proseguindo  a  conquista  começada  por 
Amilcar ,  ajustou-sc  entre  as  duas  Nações :  Qtie  os  Cartba- 
giiiezes  não  passarião  com  mão  armada  alem  do  rio  Ebro.  Po- 
lybio Livro  in.  cap.  27.  e  29. 

Observa  este  judiciosissimo  e  doutíssimo  Escritor, 
que  não  será  fácil  achar  nas  Historias  outra  guerra,  que 
durasse  tanto  ,  como  a  primeira  Púnica ,  a  qual  se  fez  por 
vinte  e  quatro  annos  completos,  sem  intermissão  alguma: 
quando  a  do  Peloponeso  entre  Lacedemonios  e  Athcnien- 
ses  ,  sim  durou  vinte  e  oito  annos  c  meio  ,  como  aífirma 
Xenofonte ;  mas  passado  o  primeiro  dccennio ,  houve  hii- 
ma  tregoa  dilatadíssima. 

Ob- 


DAS  SctENciAS  t)E  Lisboa.  tçt 

Otserva  mais  o  nosso  Escritor ,  que  depois  de  con* 
cluida  a  primeira  guerra  Púnica,  hc  que  os  Romanos  con- 
ceberão o  grande  projecto ,  de  se  fazerem  senhores  de  to- 
do o  Mundo  ,  por  meio  do  império  do  mar,  que  os  Car- 
thaginczes  lhe  cederão. 

Expulsus  da  Sicilia  c  da  Sardenha  os  Carthaginezes , 
voltárão-se  as  suas  esperanças  para  a  Espanha. 

No  anno  fi7  da  fundação  de  Roma,  e  237  antes 
da  era  de  Christo  ,  foi  Amílcar  Barca  mandado  pelo  Sena- 
do de  Carthago  a  Espanha ,  para  onde  trouxe  comsigo  a 
seu  filho  Annibal ,  que  então  não  passava  de  nove  annos. 
Polybio  Livro  IL  cap.   i. 

N'outro  lugar  acrescenta  o  nosso  Escritor,  e  delle  o 
tomou  Livio ,  que  ao  passar  Amilcar  para  Espanha,  rogan- 
do-ihe  o  menino  que  o  levasse  comsigo,  o  pay  lhe  fi/era 
pôr  a  mão  sobre  o  altar,  em  que  tinha  feito  sacrifício  aos 
Dcoses  pelo  bom  successo  da  expedição,  e  o  obrigara  a 
promctter-lhe  com  juramento  ,  que  em  podendo  ,  seria  hum 
inimigo  perpetuo  dos  Romanos.  Polybio  Livro  III.  cap. 
II.  e  Livio  Liv.  XXL  cap.    1. 

Governou  Amilcar  em  Espanha  nove  annos ,  no  fim 
dos  quaes ,  tendo  sujeitado  parfe  a'  força  d*armas ,  parte 
com  o  seu  modo  persuasivo  muitas  cidades  nossas  ao  im- 
pério dos  Carthaginezes ,  morreo  pelejando  valerozamente 
n'huma  batalha,  junto  a  Castello  Alto.  Polybio  Livro  IL 
cap.  I.  O  lugar  da  batalha  consta  de  Tito  Livio  Livro 
XXIV.  cap.  41. 

Pelos  Excerptos  do  Livro  XXV.  de  Diodóro  Sicu- 
lo ,  Tomo  II.  pag.  510  sabemos,  que  nesta  guerra  com 
os  Espanhoes  vencera  Amilcar  a  dous  Régulos  dos  Celtas, 
hum  por  nome  Istolacio  ,  outro  Indortes  ,  cativando  do  exer- 
cito do  primeiro  três  mil,  e  do  exercito  do  segundo  dez  mil. 

Dos  mesmos  Excerptos  de  Diodóro  consta  ,  que  Amil- 
car fundara  em  Espanha  huma  grande  Cidade,  a  que  pela 
nntureza  do  sitio  poz  o  nome  de  Jcra  Leuca^  e  que  eu 
não  pude  descobrir  onde  era. 

Cons- 


iji  Memoeias  PA  Academia.  Real 

Consta  outro  si  dos  mesmos  Excerptos  ,  que  Hasdru- 
bal  succcssor  d' Amílcar,  tivera  c  governara  cm  lispaiiha 
liimi  exercito  de  sincocnta  mil  infiintes  ,  seis  mil  cavallos, 
e  duzentos  elefantes:  cgm  o  qual  vencera  ao  Rei  Orisso , 
e  lhe  tomara  doze  cidades  ,  afora  outras  muitas  d'Espanha. 
Mas  acrescentando  iminediatamcntc  Diodfíro  ,  que  Hasdru- 
bal  cazára  em  segundas  núpcias  com  hunia  fillia  do  Rei 
dos  Espanhoes  ,  não  declara,  se  era  o  mesmo  Orisso  ,  ou 
outro. 

No  anno  5^26  da  fundação  de  Roma,  e  228  antes 
da  era  de  Christo  ,  morto  Amilcar  cm  Espanha  ,  veio  sr.c- 
ceder-lhc  seu  genro  Hasdrubal ,  que  a  governou  oito  annos. 
Polybio  ibid. 

D'ambos  os  nomes  d'Amilcar  c  Hasdrubal  ,  houve  en- 
tre os  Carthaginezcs  outros  homens  insignes  :  mas  nenhum 
igualou  na  fama  de  prudência  e  de  valor  estes  dous. 

Dilatou  Hasdrubal  sobremaneira  em  Espanha  o  domi- 
nio  dos  Carthaginczcs.  Fundou  Carthagcna  ,  que  veio  a 
ser  como  o  Qi.iartel  general  ,  e  a  Praça  d'Armas  da  sua 
Republica  nçstas  partes.  Era  seu  tempo  ,  receozos  os  Ro- 
manos da  grande  potencia  que  Hasdrubal  hia  adquirindo , 
e  não  se  atrevendo  por  então  a  romper  abertamente  contra 
os  Carthaginezes ,  pelo  medo  da  guerra  dos  Gallos  que  os 
ameaçava ;  celebrarão  com  ellc  o  Tratado  que  já  acima 
mencionámos  ,  pelo  qual  se  dava  o  rio  Ebro  por  limite  ás 
conquistas  dos  Carthaginezes  em  Espanha  ,  considerada  da 
parte  da  Bctica,  por  onde  os  Carthaginezes  as  tinhao  co- 
meçado. Acrescentava-se  ,  que  Sagunto  ficaria  sempre  inta- 
cta. Polybio,  Livro  II.  cap.  13.  e  36.  Livio  Livro  XXI. 
cap.  2. 

No  fim  d'oito  annos  completos  de  governo ,  foi  Has- 
drubal morto  á  falsa  fé  por  hum  escravo  Francez  ,  que  quiz 
assim  vingar  a  morte,  que  Hasdrubal  dera  a  seu  senhor. 
Polybio  Livro  II.  cap.   36, 

Livio  acrescenta,  que  apanhado  logo  o  escravo,  c 
cruelmente  atormentado ,    levou  a  morte  com  hum  socego 

de 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  IfJ 

de  animo  tal ,  que  até  no  semblante  se  enxergava  huma 
€specie   de  rizo.  Livio  Livro  XXI.  cap.    2. 

Pelos  versos  de  Silio  Itálico  se  sabe  ,  que  o  Regulo 
que  Hasdrubal  matara ,  se  chamava  Tago.  Antiqua  de  Stir- 
pe  Tagum.  Silio  Livro  I.  verso   15-2. 

Neste  mesmo  anno  veio  Annibal  succeder  no  Governo 
d'Espanlia  a  Hasdrubal  seu  cunhado.  E  a  primeira  cousa 
que  fez  ,  foi  acommettcr  os  Olcades ,  e  tomar-lhcs  á  tor- 
ça d'armas  a  sua  principal,  e  mais  rica  cidade,  chamada 
Althéa,  que  se  crê  era  onde  hoje  está  Ocanha  :  rendida 
a  qual  ;  todas  as  mais  daquella  Comarca  se  lhe  entregarão. 
Polybio  Livro  III.  cap.    13. 

No  anno  seguinte,  yjjr  da  fundação  de  Roma,  e 
219  antes  da  era  de  Christo ,  attacou  Annibal  os  Vacceos , 
e  lhes  tomou  primeiramente  Salamanca  ,  depois  outra  cida- 
de por  nome  Arbucala  ,  ainda  mais  populoza  e  mais  forti- 
ficada. Como  sobrcvicssem  os  Carpetanos ,  que  erao  os  da 
Comarca  de  Toledo  ,  a  soccorrcr  por  parte  de  vizinhança 
os  Vacceos ,  e  a  propulsar  o  commum  inimigo  ;  Hannibal 
lhes  deo  batalha  junto  do  Tejo  ,  onde  forão  innumcraveis 
os  que  morrerão  dos  nossos,  parte  affogados  no  Tejo,  par- 
te esmagados  de  quarenta  elefantes,  que  Annibal  tinha  pos- 
to na  ribanceira  do  rio ;  e  mais  de  cem  mil  ,  os  que  por 
elle  forão  postos  em  fugida.  Desta  sorte  ,  nenhum  Povo 
dos  que  habitavão  para  lá  do  Ebro  ,  excepto  o  de  Sagunto  ,  se 
atreveo  dalli  em  diante  a  levantar  olhos  contra  o  poder 
Carthaginez.  Polybio  Livro  III. 

Sabcndo-se  em  Roma  por  avizo  dos  Saguntinos  ,  os 
rápidos  progressos  das  armas  d'Annibal  em  Espanha;  vie- 
rão  de  Roma  Embaixadores  ,  que  da  parte  do  Senado  lem- 
brassem a  Annibal  o  Tratado  ,  que  poucos  annos  havia  se 
tinha  celebrado  com  Hasdrubal  seu  antecessor  ,  sobre  não 
deverem  os  Carthaginezes  passar  com  mão  armada  alem  do 
Ebro ,  nem  entenderem  hostilmente  com  Sagunto ,  cidade 
confederada  com  os  Romanos.  Não  esteve  Annibal  pela 
proposta.  Antes  allegando  frívolos  pretextos ,  despedidos 
T.IX.P.I.  V  que 


i5'4  Memorias  d\  Academia  R=EA  L 

que  foriío  os  Embaixadores  ,  poz  sitio  a  Sagunto  ,  e  den- 
tro d'oito  niezcs  a  rcndeo  i  sua  obediência.  Reservando 
para  as  despe-zas  da  guerra  os  grandes  thesouros  de  dinhei- 
ro, que  achou  no  esbulho  de  S.fgunto  ,  remctteo  Annibal 
para  Carthago ,  todo  o  preciozo  movei  das  alfayas.  Polybio 
Livro  IIL'  cap.  17. 

Ouvida  em  Roma  a  tomada  de  Sagunto  ,  mandou  o 
Senado  Embaixadores  a  Carthiigo  ,  com  instrucção  ,  de  que 
ou  lhe  mandassem  entregar  Annibal ,  ou  dessem  por  decla- 
rada a  guerra.  Prevalecendo  no  Senado  de  Carthago  o  par- 
tido d'Annibjl  ,  aceitarão  os  Garthaginezes  a  guerra  ;  que 
era  o  fim  que  o  mesmo  Annibal  se  rinha  proposto  ,  quan» 
áo  5Í1Í0U  e  destruio  Sagunto  ,  pelo  implacável  ódio  cm 
que  ardia  contra  os  Romanos  ,  herdado  já  de  seu  pay  Amíl- 
car. Polybio   Livro  III.  cap.  20,  e  33. 

Oito  annos  depois,  recuperarão  os  Romanos  Sagunto, 
Livio  Livro  XXIV.  cap.  42. 

Achava- se  então  Annibal  invernando  em  Carthagena  , 
cazado  já  com  huma  senhora  Espanhola  natural  de  Casta- 
Ião,  como  nos  inForma  Livio  Livro  XXIV.  cap.  41. 

No  principio  cuidavão  os  Romanos,  que  a  guerra  se- 
lia  em  Espanha.  Mas  Annibal  tinha  determinado  fazella 
na  mesma  Itália.  Para  isso  ,  providas  todas  as  cousas  que 
pertencião  a  deixar  seguras  a  Espanha  e  a  Africa,  partio 
por  terra  para  a  Itália  com  hum  exercito  de  noventa  mil 
infantes,  e  doze  mil  cavallos.  Nesta  passagem  sugeitou  na 
Navarra  os  llorgetes,  os  Bargusios ,  os  Erenosios,  e  os 
Ausetanos.  E  deixado  aqui  Hannon  por  Governador  ,  com 
dez  mil  infantes,  e  mil  cavallos  de  guarnição,  despedi» 
para  suas  cazas  outros  tantos :  a  fim  de  ter  estes  a  todo  o 
tempo  promptos  para  alguma  necessidade;  e  de  ficarem  os 
outros  que  marchavâo  com  elle ,  esperançados  de  que  al- 
gum dia  voltarião  á  pátria.  Assim  tirado  do  exercito  o  re- 
ferido numero ,  chegou  Annibal  pelos  Pyrineos  ao  Róda- 
no ,  com  sincoenta  mil  infantes  ,  e  pouco  mais  de  quatro 
mil  cavallos.  Polybio  Livro  III.  cap.  jy. 
..-.  Pe- 


DAS   SciENClAS   DE   LiSBOA.  l^f 

Pelos  Livros  III.  e  V.  e  X  de  Silio  Itálico  ,  he  Initn 
facto  constante  que  parte  deste  grande  exercito  crão  Lusi- 
tanos. 

Segunda  guerra  Púnica. 

Primeiro  Amo ,    ^^6  da  fundação  de  Roma ,  ff  2 1 8  antes  da 

era  de  Christo. 

Annibal  passados  os  Alpes  ,  vence  ao  Consui  Pubjio 
Scipião  na  batalha  de  Pavia.    Polybio  Livro  III,  cap.   66, 

Vence  ao  outro  Cônsul  Tito  Sempronio  na  batalha 
junto  ao  rio  Trebia.  Polybio  Livro  III ,  cap.  75-. 

Segundo    Anno ,    ^^7  da  fundação  de  Roma ,    í  2 1 7  antes  da 

era  de  Chrisío. 

Annibal  em  terceira  batalha  junto  ao  lago  Trasyme- 
no  na  Toscana  ,  vence  os  Romanos,  ficando  morto  o  Côn- 
sul Flaminio.  Polybio  Livro  111.  cap.   85-. 

Pelo  contrario  Gneo  Scipião  irmão  de  Publio,  pos- 
tos em  terra  os  soldados  d'huma  armada  de  secenta  náos  , 
com  que  viera  a  Espanha  ,  sujeitou  primeiramente  muitos 
Povos  marítimos  desta  Região  des  das  Empurias  até  o  Ebro  : 
depois  passando  aos  mediterrâneos ,  deo  batalha  aos  Car- 
thaginezes  :  junto  á  Villa  de  Cissa ,  onde  tomou  vivo  ao 
seu  General  Hannon.  Polybio  Livro  III,  cap.  76. 

Terceiro  Auno ,    j  3  8  da  fundação  de  Roma  ,    e  116  antes  da 

era  de  Christo. 

Quarta  vez  desbarata  Annibal  os  Romanos  na  sobre 
todas  famoza  batalha  de  Cannas  ,  na  qual  da  parte  dos 
Romanos  cahirão  mortos  setenta  mil ,  entrelles  os  dous  Côn- 
sules do  anno  passado ;  e  da  parte  dos  Carthaginezes  só 
seis  mil.  Polybio  Livro  III.  des  do  cap.    114  até   118  on- 

V  ii  de 


I5'6  Memori  AS  DA  Academia  Real 

de  nota  ,  que  no  exercito  Carthaginez  tinhao  os  Espanhoes 
e  Francezcs  a  dianteira. 

Com  esta  victoria  ficou  Annibal  senhor  de  quasi  toda 
a  Itália ,  concorrendo  á  porfia  os  Povos  delia  ,  a  qual  se 
havia  d'entregar  primeiro  a  Annibal. 

Ao  mesmo  tempo  em  Espanha  ,  continuando  a  fortu- 
na a  ser  adversa  aos  Carthaginezcs  ,  desbarata  Gneo  Sci- 
piâo  a  Hasdrubal  na  batalha  de  Tarragona.  Polybio  Livro 
111.  cap.  p7. 

Sétimo   Anno  ^    5-42    da  fundação  de  Roma  j    e  211  antes  da 

era    de  Cbristo. 

Toma  Annibal  Otranto  ,  excepto  a  Fortaleza.  Polybio 
Livro   VIII.  cap.    19. 

Em  Espanha  são  vencidos  e  mortos  pelo  exercito  d' 
Hasdrubal  os  dous  Scipioes  ,  primeiro  Publio  atravessado 
com  huma  lançi  ,  e  dahi  a  desanove  dias  Gneo  queimado 
vivo  dentro  d'huma  Torre  ,  a  que  se  acolhera.  Lívio  Li- 
vro XXV.  cap.   :?4.  e  cap.   36. 

Lúcio  Mareio  Cavalleiro  Romano  ,  vendo  mortos  os 
dous  Generaes  ,  toma  a  si  o  governo  do  derrotado  exerci- 
to ,  e  dando  com  elle  sobre  os  nossos ,  mata-nos  trinta 
c  sete  mil.  Livio  LivroTXXV.  cap.  37. 

Oitavo  Amo ^    ^j^^  da  fundação  de  Roma,    e  211  antes  da 

era    de  Cbristo. 

Annibal ,  tendo  tentado  em  vão  livrar  Capua  do  cer- 
co ,  que  lhe  tinhao  posto  os  Romanos ,  passa  com  exerci- 
to a  Roma ,  e  aloja-se  sinco  milhas  á  vista  delia.  Achan- 
do que  na  cidade  não  faltavão  Legiões  que  lhe  resistissem , 
levanta  o  campo,  e  vem  pela  Pulha  até  Régio.  Entretan- 
to hc  tomada  Capua  pelos  Romanos:  mas  os  principacs 
da  cidade  ,  que  estavão  pelos  Carthaginezes ,  de  ódio  e 
raiva  se  matáo    a  si  mesmos  todos  com  veneno ,    por  não 

ca- 


DAS    SCIENCIAS    DE    L  I  S  B  O  A.  1^-J 

cahircm   nas  mãos  do  inimigo.   Poiybio   nos  Excerptoí;  do 
Livro  IX ,  cap.  4  e  segg. 

Ncno  Jutio ,  J44  da  fundação  de  Roma  ^   e  210   antes  da 
era   de  Chrisío.  ^ 

Scipião  Africano ,  que  no  anno  antecedente  tinha  sido 
mandado  a  Espanha,  feito  Procônsul  tm  idade  de  vinte  e 
quatro  annos ,  dentro  d' hum  dia  toma  por  assalto  a  cidade 
de  Carthagena  ,  c  manda  repartir  o  esbulho  pelos  solda- 
dos. Poiybio  Livro  X,  cap.  15  ,  e  segg. 

Undécimo  Ânuo  j  5*46  da  fundnçao  de  Roma  ^    e  zcZ  antes 
da  era  de  Christo. 

O  Cônsul  Marccilo  he  morto  numa  emboscada  ,  que 
Annibal  lhe  armou  ;  e  o  outro  collega  Crispino  obrigado 
a   fugir  ferido,   Poiybio  Livro  X,  cap.  29. 

Três  poderosos  Régulos  a'Esponha,  Mandonio,  In- 
dibil ,  c  Edecáo ,  deixado  o  pnrtido  Carthagincz  ,  se  passão 
ao  dos  Romanos,  estando  Scipião  em  Tarragona.  Foi  esta 
huma  consequência  ,  parte  da  tomada  de  Carthagena ,  par- 
te da  dureza  e  extorsões  com  que  Hasdrubal  irmão  d'Han- 
nibal  tratava  os  nossos.  Por  vezes  acclamao  os  Espanhoes 
Rei  a  Scipião,  o  qual  constantemente  recusa  este  titulo, 
como  odiosíssimo  e  perigosíssimo  entre  os  Romanos.  Dá 
Scipião  batalha  a  Hasdrubal,  e  o  vence  junto  á  cidade  de 
Bécula.  Poiybio  Livro  X  des  do  cap.  21  até  o  cap.  27,  e 
Livro  XI ,  cap.  20.  Livio  Livro  XXVII ,  cap.  18  ,  e  cap.  19. 

Duodécimo  Anno  j  547  da  fundação  de  Roma,  e  207  antes 
da  era  de  Cbristo. 

Hasdrubal  irmão  d'  Hannibal  afugentado  d'  Espanha 
por  Scipião  ,  junto  hum  grande  exercito  d'  Espanhoes  e 
Fiancezes ,  passa  á  Itália ,  com  intento  de  se  ir  unir  cora 

An- 


líS  Memorias  da  Academia  Real 

Annibal.  Interceptadas  as  cartas  que  mandava  para  seu  ir- 
mão ,  he  Hasdrubal  derrotado  em  batalha  pelo  Cônsul  Cláu- 
dio Nerão  j  e  não  só  derrotado ,  mas  morto.  Polybio  nos 
Excerptos  do  Livro  XI,  cnp.  2  ,  e  Livio  no  Livro  XXVII, 
cap.  49  onde  nota  ,  que  nesta  b;Uallia  tinha  Hasdrubal  pos- 
to toda  a  sua  confiança  nas  tropas  veteranas  dos  Espa- 
nhocs.  Sabida  por  Annibal  a  derrota  e  morte  do  irmão , 
cheio  de  dor  se  recolhe  ao  Abru/o. 

Se  Hasdrubal  tivesse  conseguido  unir-se  a  Hannibal , 
confessou  depois  Scipiáo  Africano,  que  então  acabaria  de 
todo  o  nome  Romano.  Livio  Livro  XXVI,  cap.  41. 

Decimo  terceiro  Ânuo,  5" 4 8  da  fundação  de  Roma,  e  206 
antes  da  era  de  Christo. 

Lança  Scipiâo  fora  de  toda  a  Espanha  os  Carthagine- 
zcs ,  rotos  em  batalha  os  seus  dous  Gcneraes  ,  Hasdrubal 
filho  de  Gisgon  ,  e  Magon  filho  d'Amilcar. 

Scipiâo  cheo  de  despojos  e  de  gloria ,  depois  de  ter 
passado  a  Africa ,  se  recolhe  a  Roma ,  onde  em  pleno  Se- 
nado se  jacta ,  de  que  tendo  sido  mandado  a  Espanha  con- 
tra quatro  Gencraes ,  e  contra  quatro  exércitos  vencedores, 
não  deixava  agora  em  Espanha  Carthaginez  algum.  De  Ro- 
ma torna  Scipiâo  a  ser  mandado  a  Africa  contra  Annibal. 
Livio  Livro  XXVIII,   cap.   16  e  38. 

Do  que  o  mesmo  Livio  deixava  escrito  no  capitulo 
20  do  Livro  XXVII  consta  que  Hasdrubal  filho  de  Gis- 
con  ,  antes  desta  batalha,  estivera  acampado  com  os  seus 
na  Lusitânia. 

Decimo  sexto  Anno ,  ^^i  da  fundação  de  Roma,  e  203  antes 
da  era  de  Christo. 

Derrota  Scipiâo  em  Africa  o  exercito  d'outro  Hasdru- 
bal filho  de  Gisgon  ,  c  o  de  seu  alliado  Syface  Rey  dos 
Massylos  j  o  qual  de  amigo  dos  Romanos  passara  a  ser  ini- 

mi- 


DAS   SciENCIAS    DE    LiSBOA.  T^f} 

migo,  casando  com  huma  filha  d'Hasdrubal,  por  nome  So- 
fonisba.  De  trinta  mil  homens,  de  que  constava  o  exerci^ 
to  Catthagincz  ,  dez  mil  ciáo  Espanhoes  :  os  quaes  ainda 
que  a  maior  parte  ficarão  mortos:  pelo  muito  tempo  ,  e 
grande  valor  com  que  resistirão  aos  Romanos ,  dcrao  lugar 
a  que  os  dous  Gcneraes  se  podessem  retirar  com  o  resto 
dos  que  fugirão;  a  saber,  Syface  para  o  seu  Reino,  e 
Hasdrubal  para  Carthago.  Folybio  nos  Excerptos  do  Livro 
XIV,  cap.  769. 

Animados  os  Carthaginczes  com  a  presença  d'Anni- 
bal ,  a  quem  tinhão  chamado,  e  feito  vir  da  Itália,  atre- 
vem-se  a  maltratar  aos  Embaixadores  de  Scipião  na  volta 
de  Carthago:  com  o  que  se  accendco  de  novo  o  ódio  das 
duas  nações ,  e  se  ateou  mais  vivamente  a  guerra  entrei- 
las.  Polybio  nos  Excerptos  do  Livro  XV,  cap.  3. 

Decimo  sétimo  atino ^   5*^2  da  fundação  de  Roma,  e  202  antes 
da  era  de  Christo. 

CoUoquio  d'Annibal  com  Scipião ,  á  vista  dos  dous 
exércitos  ,  sobre  se  far.cr  a  paz.  Foi  magestosissimo  o  dis- 
curso de  ambos.  Porem  Annibal  ,  ^ue  era  o  que  pedia  a 
paz  ,  fallou  em  taes  termos ,  que  ao  mesmo  tempo  que 
exaltava  o  valor  de  Scipião ,  mostrado  em  quatro  batalhas 
que  vencera  em  Espanha,  e  noutras  quatro  em  Africa ;  com 
a  memoria  e  recapitulaçao  que  faz  das  victorias,  que  elle 
Annibal  alcançara  em  Itália  ,  e  do  terror  em  que  poséra 
por  tantos  annos  os  Romanos  ;  dava  a  entender ,  que  o  de 
que  Scipião  se  devia  mais  jactar  ,  era  ser  agora  Annibal 
o  que  se  lhe  humilhava.  Com  que  em  lugar  de  mitigar  o 
animo  de  Scipião  ,  o  tornou  Annibal  mais  duro  e  inflexi- 
vcl.  Assim  sem  se  concluir  nada  sobre  o  negocio  da  paz, 
de><pedidos  que  forâo  os  Gcneraes ,  se  disposerão  logo  os 
exLTcitos  para  a  batalha  ,  que  foi  das  mais  renhidas  e  san- 
guinolentas <ÍQ  mundo  •,   e  em  -ijue   Annibal    ficou  vencido 

por 


i6o  Memorias  D  A  Academia  Re  AL 

por  Scipiao.    Polybio  nos  Excerptos  do  Livro  XV  des  do 
cap.  6   até  o   14.  Livio  Livro  XXX,  cap.  30,  e  segg. 

Decimo  oitavo  e  ultimo  Juno ,   j  y  3  da  fundação  de  Roma  ,  e 
201  antes  da  era  de  Cbristo. 

Dá-se  paz  aos  Carthaginezes  debaixo  das  seguintes 
condições,  que  elles  aceitarão  por  conselho  do  mesmo  An- 
ui bal.  <i  Que  os  Carthaginezes  fiquem  com  tudo  o  que  an- 
j»  tes  da  guerra  tinhão  em  Africa ,  de  cidades ,  campos ,  c 
>»  quacsqucr  outros  bens.  Que  entreguem  todos  os  cativos 
»  e  desertores  Romanos.  Que  entreguem  todas  as  náos 
»  d'alto  bordo ,  e  fiquem  só  com  dez  fragatas.  Que  fora 
»  d'Africa  não  facão  guerra  a  ninguém  :  e  dentro  delia 
»  não  a  facão ,  sem  permissão  do  povo  Romano.  Que  não 
j>  inquietem  o  Rey  Masanissa  ,  antes  lhe  entreguem  tudo 
j»  o  que  lhe  tinhão  tirado.  Que  por  sincoenta  annos  pa- 
>»  guem  aos  Romanos  cada  anno  dez  mil  talentos  de  pra- 
j>  ta.»   Polybio  nos  Excerptos  do  Livro  XV,  cap.  18,  e 

Todas  estas  condições  forão  necessárias ,  para  os  Ro- 
manos se  segurarem  no  projecto,  que  tinhão  formado,  de 
senhorear  o  mundo  todo  j  e  também  para  resarcirem  parte 
dos  gravíssimos  damnos ,  que  Annibal  lhes  causara  em  Itá- 
lia; onde,  como  escreve  Appiano,  forão  mais  de  quatro- 
centas as  cidades  que  elle  destruio ,  e  mais  de  trezentos 
mil  homens ,  os  que  elle  fez  perecer  em  diversas  batalhas. 

Em  todas  ellas  forão  os  nossos  Espanhoes  companhei- 
ros fieis  dos  Carthaginezes ,  assim  na  prospera  ,  como  na 
adversa  fortuna ;  em  todas  terrível  aos  Romanos  o  seu  va- 
lor ,  terrível  a  sua  braveza.  Tendo  sido  Annibal  o  maior 
capitão  do  seu  século  ,  e  hum  dos  maiores  do  mundo  ; 
não  duvida  escrever  Floro  no  Livro  II  ,  cap.  6, ,  que  a 
nossa  Espanha  fora  a  mestra  d'Annibal.  Depois  de  vencido 
por  Scipiâo  em  Africa  ,  não  fez  Annibal  no  mundo  outra 
figura,  que  a  de  fugitivo.  Scipião  foi  o  primeiro,  que  en- 
tre 


I 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  i6r 

tre  os  Romanos  tomou  o  sobrenome  da  nação  que  dcbel- 

lárj ,    chamaudo-sc  Africano.    Livio   o  observa  no  fira   do 
Livro  trigésimo. 

Terceira  guerra  Púnica. 

Sincoenta  annos  depois  de  concluída  a  segunda  guerra 
Púnica  ,  isto  he ,  no  anno  éoj  da  fundação  de  Roma ,  e 
149  antes  da  era  de  Christo,  começou  a  terceira,  a  que 
os  Carthaginezes  derão  occasião  ,  infestando  as  terras  do 
velho  Rei  Masanissa ,  e  pondo  náos  de  guerra  no  mar  , 
conrra  o  que  se  continha  no  ultimo  tratado  de  paz  com 
os  Romanos. 

He  constante  ,  (e  assim  o  notou  com  outros  Ammíâ- 
no  Mcircellino  no  Livro  XXIV)  que  Poiybio  acompanha- 
ra e  ajudara  nesta  guerra  a  Scipião  Emiliano.  Porém  da 
sua  descripção  não  se  conserva  hoje  de  Pi.lybio ,  senão  o 
Excerpto  CXIII  ,  que  contém  somente  a  noticia  d'  huma 
embaixada ,  que  os  Carthaginezes  mandarão  a  Roma ,  quan- 
do ainda  havia  alguma  esperança ,  de  que  se  poderia  evi- 
tar a  guerra. 

A  Historia  de  Floro ,  e  de  Appiano  he  que  nos  in- 
forma ,  que  irritados  no  ultimo  extremo  os  Romanos  con- 
tra os  Carthaginezes,  deo  o  Senado  ordem  aos  dous  Côn- 
sules Censorino  e  Manilio ,  que  partidos  a  Africa  com  oi- 
tenta mil  infantes,  e  quatro  mil  cavallos  ,  não  sahissem  de 
Carthago,  sem  a  deixarem  arrazada.  Mas  esta  gloria  esta- 
va reservada  para  Scipião  Emiliano ,  a  quem  depois  d'huni 
apertado  cerco  de  quatro  annos  se  renderão  quarenta  mil 
homens ,  com  o  seu  mesmo  Governador  Hasdrubal ,  anno 
608  da  fundação  de  Roma,  e  146  antes  da  era  de  Christo. 

Era  este  Scipião  filho  natural  de  Paulo  Emilio,  e  fi- 
lho adoptivo  de  Scipião  filho  do  Africano.  Valério  Máxi- 
mo Livro  V,  cap.  10. 

Dcsasete  dias  ardeo  Carthago ,  posto  o  fogo  a's  ca- 
sas ,  e  aos  templos  pelos  seus  mesmos  habitantes :  e  sendo 
T.  IX.  P,L  X  a 


rCz  Memorias  da  Academia  Real 

a  mulher  d'Hasdrubal  huma  das  heroinas,  que  voluntaria-> 
mente  se  precipitarão  nas  cliammas.  Floro  Livro  II,  cap.  ly. 

Notou-sc  ,  que  no  mesmo  anno  que  Scipiao  destruio 
Carthago  ,  destruio  Mummio  Corintho.  Mas  dahi  a  cento 
e  dous  annos  mandou  Augusto  César  reedificar  e  povoar 
ambas  estas  duas  capitães,  huma  da  Africa,  outra  da  Acaia. 
Appiano  bem  no  fim  da  sua  Historia  Lybica. 

Carthago  distava  de  Tunes  cento  e  vinte  estádios. 
Polybio  Livro  XIV,  cap.  lo. 

Isto  he  ,  Senhores  ,  cm  summa  ,  o  que  do  império 
dos  Carthaginezes  em  Espanha  ,  e  das  suas  três  famosas 
guerras  com  os  Romanos,  ^oude  descobrir  a  minha  curio- 
sidade, que  parecesse  digno  da  vossa  attenção,  e  podesse 
iJlustrar  a  nossa  antiga  Historia  neste  seu  importante  ramo. 


DISSERTAÇÃO    VIIL 

Império  dos  Romanos  em  Espanha ,  expulsos  delia  os  Cartha- 
ginezes. 


O 


Preambulo. 


MEU  intento  nesta  Dissertação ,  não  he  tecer  nem  ain- 
da em  compendio ,  huma  historia  seguida  das  nossas  guer- 
ras com  os  Romanos.  Pelo  que  toca  á  historia  geral ,  Ma- 
riana o  fez  com  bastante  exacção.  Pelo  que  toca  á  histo- 
ria particular  da  Lusitânia ,  Resende  pouco  deixou  que 
dizer  de  novo. 

O  meu  designio  pois  só  he ,  dar  huns  breves  Excer- 
ptos  do  que  na  nossa  historia  antiga  ha  de  mais  selecto  , 
e  de  menos  tocado  pelo  nossos  modernos  :  e  sobre  tudo 
o  verificar  esses  mesmos  Excerptos  com  a  fiel  citação  dos 
Authores  clássicos ,  donde  cada  hum  delles  se  tirou  :  e  fi- 
nalmente fixar  as  épocas  dos  successos  por  ordem  aos  Con- 
sulados ,  c  aos  annos  da  fundação  de  Roma ,  segundo  a 

chro- 


DAS   SciENCIAS   DE    LiSBOA.  líj 

chronología  mais  bem  recebida  ,  qual  he  a  de  Petau  :  a 
qual  todavia  nao  dilFcre  da  que  com  Sigonio  adoptou  Re- 
sende ,  scnáo  em  andar  hum  antio  mais  atrazada. 

Como  huma  notável  parte  da  historia  destes  tempos, 
sao  os  Régulos  d'  Espanha  os  que  a  formão  j  começarei 
os  meus  Excerptos  pelo  catalogo  destes  Régulos  :  e  será 
este  catalogo  não  somente  huma  cousa  nova  entre  nós ; 
mas  servirá  também  de  supprir  a  grande  falta  que  temos 
de  memorias  d'outros  Soberanos  mais  antigos  d' Espanha. 
Porque  os  de  que  Florião  de  Campo  nos  dco  noticia  pelo 
suppositicio  Beroso  de  João  Annio  :  quero  dizer,  os  Brigor  y 
os  TagOT  j  os  Betos ,  os  Sicoros  ^  e  outros  muitos  forjados 
na  mesma  officina  ;  logo  os  nossos  dous  grandes  criticos 
Barreiros  ,  e  Resende ,  descuberta  a  impostura  ,  os  deráí> 
por  quiméricos.  Os  que  Mariana  porém  admittio  por  suc- 
cessores  destes,  fundado  na  authoridade  de  Diodoro  de  Si- 
cilia  ,  de  Justino ,  e  d'outros  Escritores  antigos :  a  saber , 
Geryão  y  Hispalo,  Atlante  j  Sicalo  ,  Gargoris  y  Abidis  \  a  his- 
toria destes  Reis  se  acha  tão  mesclada  de  tantas  fabulas ,  e 
ainda  d'anachronismos ,  que  eu  dos  tempos  heróicos  me 
não  atrevo  a  designar  Rei  algum  certo  na  Espanha.  E  dos 
tempos  que  depois  mediarão  entre  o  principio  das  Olym- 
piadas ,  e  entrada  dos  Carthaginezes  em  Espanha ,  só  re- 
conheço por  indubitável  o  Rei  Arganthonio  de  Tartésso  y 
celebrado  por  Heródoto ,  Cicero ,  Estrabão ,  e  Plinio. 

Assim  he  muito  para  estranhar,  que  Fr,  Bernardo  de 
Brito,  não  fazendo  caso  da  justa  censura,  que  ao  Beroso 
de  João  Annio  tinháo  feito  em  Portugal  Barreiros ,  e  Re- 
sende ,  em  Castella  João  Luiz  Vives ,  e  o  Bispo  Cano  ; 
enchesse  pelo  contrario  huma  grande  parte  do  primeiro 
tomo  da  Alouarqnia  Lusitana ,  com  a  relação  circunstancia- 
da de  tantos  Reis  fabulosos  ;  a  qual  hoje  só  pôde  servir 
de  tornar  ridicula  aos  sábios  estrangeiros  toda  a  nossa  his- 
toria antiga  ,  e  de  fazer  perder  o  credito  entre  os  nacio* 
nacs  sisudos,  a  tudo  o  mais  que  Brito  publicou. 

X  ii  s 


xâf  Memorias  da  Academia  Rial 

§     I. 

Doí  Rfis  e  Regidos  d^ Espanha  em  tempo  dos  Cartkagiuezes  j 
e  dos  Romanos. 

Do  tempo  dos  Caithaginezes  descobri©  a  minha  lição 
C]uatio  insignes  Régulos  d' Espanha  ;  a  saber,  Oriisao,  Ta' 
go  ,  Firiatho  prlinciro  deste  nome,  c  Atmtsitu, 

D'Orisjão  nos  dá  noticia  Diodóro  de  Sicília  nos  Ex* 
cerptos  do  Livro  XXV,  Tomo  II,  pag.  jii  onde  diz,  que 
sitiando  Amilcar  Barca  a  cidade  de  Hclice  ,  viera  o  Rei 
Orissáo  cm  socorro  dos  sitiados;  c  que  ao  passar  hum  cau- 
daloso rio,  d' hum  sacão  que  o  cavallo  deo ,  cahira  na  cor- 
rente ,  c  morrera  afogado. 

Tago  chama  Silio  Itálico  aquelle  Regulo,  a  quem 
Ha^drubal  matou,  e  cujo  escravo  matou  depois  a  Hasdru- 
bal  ,  para  assim  vingar  a  morte  de  seu  senhor.  Silio  Li- 
vro I ,  verso  5:  a  ,  e  segg.  /Intiqua  de  stirpe  Tagum. 

Firiatho  primeiro  deste  nome,  he  muito  celebrado  pe- 
lo mesmo  Silio  Itálico  :  como  quando  no  Livro  III  ,  ver- 
so 35'4  ,  e  segg.  diz,  que  elle  era  o  que  capitaneava  o 
terço  dos  Lusitanos ,  que  com  os  outros  povos  d'  Espanha 
scguião  a  Annibal  para  a  guerra  d'  Itália.  E  quando  no 
Livro  X  descrevendo  a  famosa  batalha  de  Canas ,  diz  no 
Terso  220  ,  e  segg.  que  nclla  matara  Viriatho  a  Quinto 
Scrvilio  ,  e  que  depois  fora  morto  Viriatho  pelo  Cônsul 
Emilio  Paulo.  Reg^iator  Ibera  magnanimus  terra. 

Amustto  Regulo  dos  Ausetanos  no  Reino  de  Navarra  , 
depois  de  se  ter  alistado  em  serviço  de  Gneo  Scipiao  j 
passou  para  o  d' Hasdrubal.  Livio  Livro  XXI,  cap.  61. 

Do  tempo  dos  Romanos  he  maior  o  numero  que  se 
acha  dos  Régulos  Espanhocs.  Eisaqui  os  seus  nomes. 

Allucio  Regulo  de  Carthagena ,  foi  o  que  estava  ajus- 
tado para  casar  com  aqucUa  dama  mui  termosa ,  que  entre 
outras  cativas  trouxerão   a  Scipiao  Africano  :   e  o  que  por 

ver 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  l6f 

ver  a  honfa  e  contincncia ,  com  que  Scipiâo  a  tinha  trata- 
do,  mandando-lha  por  ultimo  entregar  intacta;  aceitou  gos- 
toso ser  seu  vassallo,  e  lhe  offerecco  para  o  ajudarem  na 
guerra  mil  c  quatrocentos  cavalleiros.  Livio  Livro  XXVI, 
cap.  j-Q. 

Mandonio  ,  c  Indibil ,  aquellc  Regulo  dos  Lacetanos  , 
este  Regulo  dos  Ilcrgetes  ,  tanto  que  tomada  Carthagcna 
virão  os  rápidos  progressos  das  armas  de  Scipiáo  Afii^ano, 
unirão  se  a  clle  por  algum  tempo  :  depois  torndrão-se  a  re- 
bcliar.  Livio  XXVII ,  cap.  17  ^  e  Livro  XXVIII,  cap, 
34. 

Eàech  ^  ou  Edescdo^  era  outro  Regulo  nosso  do  mes- 
mo tempo  ,  que  também  veio  cíFcrecer-se  ao  serviço  de 
S>:ipião  Africano.  Polybio  nos  Excerptos  do  Livro  X ,  cap. 

Corbis ,  e  Orsua  crão  dous  irmãos ,  que  andavao  em 
demanda,  sobre  qual  havia  de  ficar  com  o  senhorio  d' hu- 
m.i  cidade  chamada  Ibis ,  que  alguns  conjecturão  ser  a  La* 
tibis  de  Ptolomeo  ,  hoje  iorre  de  la  Cevada  na  Betica.  A 
tempo  que  Scipião  celebrava  em  Tarragona  as  exéquias  dô 
seu  pai  e  tio ,  mortos  pouco  antes  pelos  nossos  na  bata- 
lha de  Becula  ;  os  dous  irmãos  se  lhe  oíFerecêrão  para  em 
desafio  dirimirem  a  contenda ,  que  entrambos  traziao.  Sa- 
hindo  ambos  a  campo,  foi  Orsua  morto  por  Corbis,  qu8 
era  o  mais  velho.  Livio  Livro  XXVIII ,  cap.  20. 

Coitas  Regulo  de  vinte  t  oiro  cidades,  em  tempo  do 
mesmo  Scipiiro.  Livio  Livro  XXVIII,  cap.  13.  A  este  cha- 
ma Polybio  Colicante.  Polybio  nos  Excefptos  do  Livro  X, 
cap.  t8. 

Mas  pelo  que  toca  ao  numero  das  cidades ,  em  que 
leinava  Colcas  ,  he  primeiramente  notável  o  descuido  qua 
teve  Livio,  em  não  declarar  sequer  a  principal  delias,  ou 
qual  fosse  a  comarca.  Em  segundo  lugar  noto ,  que  nou- 
tra parte,  isto  he  ,  no  Livro' XXXIII ,  cap.  21,  diminue 
Livio  muito  o  dito  numero,  porque  assigna  a  Colcas  só 
desascte  cidades. 


t66  Memorias  da  Academia  Real 

JNanes ,  Regulo  dos  Tudertanos,  hoje  os  Andaluzes,' 
pelo   iiKsmo   tempo.  Livio  Livro  XXVIII,   cap.  15-. 

Bclistages  y  Regulo  dos  Ilergetes  cm  tempo,  que  o 
CoiTíul  Marco  Porcio  Catão  se  achava  em  Espanha.  Livio 
Livro  XXXIII,  cap.   II. 

Luscino  y  Regulo  de  Cardona  c  Bardona  ,  que  junta- 
mente com  o  sobredito  Colcas  tomou  pelo  mesmo  as 
armas  contra  os  Romanos.  Lívio  Livro  XXXIII ,  cap, 
21. 

Foi  grande  inadvertência  de  Dujat ,  dizer  que  esta 
Cardona  ,  e  esta  Bardona  crão  as  cidades  de  Cardona  e  BeV' 
ga  y  que  ainda  hoje  existem  em  Catalunha.  Porque  a  Ca- 
talunha todos  sabem,  que  pertencia  á  Espanha  citerior  :  e 
a  guerra  que  os  dous  Régulos  Luscino ,  e  Colcas  move- 
rão aos  Romanos,  he  expresso  aqui  em  Tito  Livio,  que 
fora  na  Espanha  ulterior. 

Corribílão ,  Regulo  da  cidade  de  Litahro ,  a  quemi 
Caio  Flaminio  tomou  vivo.  Livio  Livro  XXXV,  cap.  22. 

Turro ,  Regulo  da  cidade  d'Alce ,  entregou-se  ao  Pre- 
tor Tito  Sempronio  Gracco.  Livio  Livro  XL,  cap.  49. 

Viriatho  segundo  do  nome  ,  a  quem  pela  gloria  e  fa- 
ma de  seus  illustres  feitos  ,  e  para  diíFerença  do  primeiro 
podemos  chamar  o  grande  Viriatho.  Senhoreou-se  da  Lusi- 
tânia ,  donde  era  natural ,  logo  depois  da  terceira  guerra 
Púnica ,  e  poz  aos  Romanos  em  não  menos  cuidado  e  ter- 
ror, do  que  antes  o  fizera  Annibal.  Floro  Livro  II,  cap, 
17.  Epitome  de  Livio  Livro  LII.  Sexto  Aurélio  Victor  no 
Livro  dos  Varões  Illustres .,  cap.  71. 

Morto  por  traição  Viriatho ,  succedeo-lhe  no  governo 
dos  nossos  Tautano.  Diodoro  Livro  XXXII,  Écloga  V,  To- 
mo II,  pag.  s^i' 

Estes  são  os  Régulos  d'  Espanha  mais  insignes ,  de 
que  a  Historia  Romana  faz  menção. 

Além  destes  porém  houve  outros  ,  que  ainda  que  se 
não  nomeão  Régulos ,  as  suas  acções  com  tudo  os  dão  a 
conhecer  por  grandes  personagens  entre  nós.   Desta  classs 

apon- 


t)AS   SciENCIAS  DE  LiSBOA.  l6y 

apontarei  aqui   só  quatro,   que  forão  Merico ,   Rhetogcnes , 
Cónnolas^  e  Salottdico. 

Mcrico  achava-sc  em  Sicília  no  serviço  dos  Carthagi- 
nezes,  quando  Annibal  devastara  toda  a  Itália.  Advertido 
porém  do  deplorável  estado ,  a  que  as  cousas  dos  Cartha- 
ginezes  estavao  reduzidas  em  Espanha  ,  depois  da  derrota 
dos  dous  Hasdrubaes ;  passou-se  ao  serviço  do  Cônsul  Mar- 
cello  ,  que  então  estava  de  sitio  sobre  Saragossa ,  e  lhe 
entregou  a  importante  praça  de  Naso  com  toda  a  sua  guar- 
nição. Procedimento  feio  e  detestável :  mas  que  lhe  conse- 
gui© entre  os  Romanos  huma  honra  ,  que  eu  não  sei  que 
fosse  nunca  concedida  a  outro  .£spanhol.  Porque  depois  da 
tomada  de  Saragossa,  triumfando  Marcello  em  Roma,  So- 
sis  Syracuzano,  e  o  nosso  Merico  forão  na  dianteira  com 
coroas  d'ouro  nas  cabeças  :  aquelle  por  ter  dado  entrada 
aos  Romanos  para  dentro  de  Saragossa  ;  este  por  lhes  ter 
entregado  Naso.  Além  disto  a  cada  hum  foi  dada  sua  ci- 
dade com  quinhentas  geiras  de  terra.  Nem  ficou  também 
sem  o  seu  premio  o  outro  Espanhol  ,  por  nome  Bellige- 
no ,  que  aconselhara  a  Merico  a  deserção.  Derão-se-!he 
quatrocentas  geiras.  Livio  Livro  XXV,  cap,  30,  e  Livro 
XXVI,  cap.  21. 

Rhetogenes  y  tendo  se  passado  para  as  partes  de  Me- 
fello  ,  deo  occasião ,  a  que  por  não  matar  a  dous  filhos 
seus  que  pelejavâo  pelos  Espanhoes  seus  naturaes  ,  levan- 
tasse o  mesmo  Metello  o  sitio  que  tinha  posto  á  cidade 
de  Nercobriga ,  ou  como  outros  lhe  chamão  Centrobrica. 
Valério  Máximo  Livro  V,  cap.  1. 

Cónnobas  era  capitão  d'  huma  quadrilha  de  salteadores , 
a  tempo  que  Quinto  Fábio  Serviliano  trazia  guerra  com' 
Viriíitho.  E  o  mesmo  Serviliano  ,  depois  de  expugnar  a 
cidade  de  Baccia ,  apanhou  a  Cónnobas ,  e  perdoando  a 
este,  mandou  cortar  as  mãos  a  todos  os  seus  companhei- 
ros. Supplemento  de  Livio,  Livro  LIV,  cap.  10. 

Salottdico ,  homem  de  tão  grande  astúcia ,  como  reso- 
lução ,  foi  o  que  batendo  na  terra  conx  huma  lança,  que 

el- 


i68l  Memorias  da  Academia  Real 

elle  dizia  lhe  tinha  vindo  do  ceo ,  deo  principio  i  guerra 
de  Numancia  :  e  faria  Icvaiuar-sc  contra  os  Romanos  a  Es- 
panha toda ,  se  a  tempo  que  elle  estava  naquella  acgao  , 
não  fosse  atravessado  com  hum  pique.  Floro  Livro  II , 
cap.  17. 

Durando  as  guerras  civis  entre  César  e  Pompeo,  são 
celebres  do  Terço  dos  Lusitnnos  hum  Catão ,  c  hum  f;7o, 
que  se  passarão  do  partido  de  Pompeo  para  o  de  César. 
Dclles  faz  menção  Hircio  ou  Oppio,  Author  do  Livro  De 
Bello  Hispaniensi. 

§    IL 

Qjiando  começou ,   e  quanto  durou  a  guerra  àos  Romanos  com 

os  Espauhoes.  Espanto  e  terror  em  que  as  nossas  armas 

tiverão  sempre  os  Romatws, 

Até  o  principio  da  segunda  guerra  Púnica,  nunca  os 
Romanos  tinhão  entrado  em  Espanha  com  mão  armada  : 
antes  nella  tinhão  boa  amizade  com  os  de  Sagunto.  De- 
pois que  Annibal  com  a  tomada  de  Sagunto  deo  occasião 
a  se  romper  a  guerra  entre  Romanos  c  Carthaginezes  ; 
(o  que  foi  no  anno  yjó  da  fundação  de  Roma,  e  218 
antes  da  era  de  Christo : )  então  he  que  a  Republica  Ro- 
mana ,  partido  Annibal  para  a  Itália  ,  mandou  pela  pri- 
meira vez  exercito  e  armada  a  Espanha ,  onde  ficavão  por 
parte  dos  Carthaginezes  os  dous  generaes  Hannon  e  Has- 
drubal. 

Governava  este  exercito  e  armada  Gneo  Scipião  ,  ao 
qual  se  ajuntou  pouco  depois  com  outro  exercito  e  outra 
armada,  seu  irmão  Publio.  Livio  Livro  XXI,  cap.  ai. 

Este  Gneo  Scipião,  depois  de  ter  vencido  primeira- 
mente a  Hannon  na  batalha  de  Cissa ,  depois  a  Hasdrubal 
na  batalha  de  Tarragona ;  ajudado  também  da  boa  manha 
que  tinha  para  attrahir  os  povos ;  no  breve  espaço  de  sete 
annos  tirou  ao  Império  Carthaginez ,  e  ajuntou  ao  Roma- 
no 


DAS   Ser  EN  CIAS   DE   LlSBOA^  l6^ 

no  huma  grande  parte  d' Espanha.  Polybio  Livro  III,  cap* 
76  e  97  j  Livio  Livro  XXI,  cap.  60,  e  Livro  XXII, 
cap.  20. 

Achando-se  os  dous  Scipiões  ambos  juntos,  cada  hum 
com  seu  exercito  na  batalha  d'Anitorgis  ,  a  que  da  parte 
contraria  tinhao  concorrido  com  outros  tantos  exércitos  três 
Generaes  Carthaginezes,  Magon ,  Hasdrubal  filho  de  Gis-' 
gon ,  e  Hasdrubal  Barcino  irmão  d'Annibal :  succedeo  mor- 
rerem desgraçadamente  nesta  batalha  os  dous  Scipiões ;  pri- 
meiro Publio  atravessado  com  huma  lança  ;  depois  Gneo 
queimado  vivo  dentro  d' huma  torre  vizinha,  a  que  se  ti- 
nha acolhido.  Livio  Livro  XXV,   cap.  32,  e  scgg. 

Ciccro  (não  me  lembra  onde)  cOm  elegante  metáfora 
chama  a  estes  dous  Scipiões  dous  Raios  do  Império  Roma- 
no. Sdpioties  duo  fulmina  nostri'  imperii  in  Hispânia  occidcnint, 
A  qual  metáfora  imitou  depois  Virgílio,  quando  no  Sex- 
to da  Eneida,  verso  842  disse: 

Duo  fulmina  lelli  Scipiadas. 


Estava  Espanha  por  estes  tempos  dividida  em  varias 
Dynastias  ,  ou  pequenos  Governos  Soberanos ,  como  mais 
antigjmcnte  estivera  também  a  Grécia:  o  que  como  obser- 
va Estrabão  no  Livro  III,  pag.  238  foi  a  causa  da  ruina 
de  ambas.  Porque  hum  corpo  ainda  que  grande,  se  tem  as 
forças  divididas ,  facilmente  vem  a  ceder ,  a  quem  o  aco* 
mette  por  partes. 

Estes  nossos  Régulos ,  e  os  Povos  a  elles  sujeitos , 
parte  aborrecidos  da  dominação  estranha ,  parte  incitados 
da  sua  natural  braveza  ,  a  cada  passo  se  estava  rebel- 
londo  contra  os  Romanos.  Hoje  constrangidos  da  maior 
força  ,  depunhão  as  armas :  ámanhaã  impacientes  do  jugo 
as  tomavão  a  tomar.  Gens  nata  instaurandis  reparandisque  bel- 
lif  ,  diz  Livio  no  Livro  XXIV,  cap.  42. 

Esta  Índole  feroz  e  bellicoza  dos  Espanhoes ,  fazia  que 
os  Romanos  os  não  temessem  menos  quando  vencidos ,  do 
T.IX.  P.I,  Y  que 


170  Memouias  da  Academia  Real 

que  quando  vencedores.  E  cazos  houve ,  em  que  o  medo 
chegou  a  ser  nos  Romanos  consternação.  Disto  nos  refere 
dous  illustrcs  exemplos  ,  hum  a  Historia  de  Livio ,  outro  a 
de  Polybio. 

Corria  o  anno  oitavo  da  segunda  guerra  Púnica ,  que 
era  o  anno  543  da  fundação  de  Roma,  e  2op  antes  da 
era  de  Christo  ,  quando  sabida  em  Roma  a  desastrada  mor- 
te dos  dons  Scipioes  em  Espanha  ,  aconteceo  o  que  Livio 
refere  no  Livro  XXVL  cap,  18.  por  estas  palavras.  =  Em 
Roma,  depois  que  se  recuperou  Capua  ,  já  ao  Senado  c  ao 
Povo  não  dava  maior  cuidado  Itália  do  que  Espanha.  To- 
dos concordavão  ,  que  se  devia  recrutar  de  novo  o  exerci- 
to,  e  que  se  devia  mandar  hum  General  novo.  Mas  não 
sabiao  ,  quem  elle  havia  de  ser :  só  sim  ,  que  onde  tinhao 
sido  mortos  dous  Generaes  summos  ,  devia  aquelle  que  lhes 
succedcssc  ,  ser  escolhido  com  huma  circunspecção  extraor- 
dinária. Nomeavão  huns  este,  outros  aquelle  :  mas  nenhum 
enchia  as  medidas.  Por  fim  chegou  a  cousa  a  termos  ,  que 
o  Povo  pedio  se  ajuntassem  Cortes  ,  onde  se  votasse  no 
Procônsul,  que  devia  ser  mandado  a  Espanha:  e  os  Cônsu- 
les assinarão  dia  para  o  Congresso.  Entrementes  estava-se 
esperando  (creio  que  ninguém  notará  este  adverbio,  em 
sabendo  que  elle  tem  por  si  a  respeitável  authoridade  d'hum 
tão  grande  Escritor  dajingua  Portugueza  ,  como  he  o  gran- 
de Bispo  de  Portalegre  D.  Fr.  Amador  Arraiz:)  Entremen- 
tes ,  torno  a  dizer  ,  estava-se  esperando  ,  que  alguns  dessem 
os  seus  nomes ,  para  se  ver ,  se  erao  dignos  d'hum  tão  im- 
portante Governo,  E  como  se  visse  baldada  esta  expecta- 
ção ,  renovou-se  em  todos  a  dôr  d'hunia  tão  grande  per- 
da ,  c  cora  a  dôr  a  saudade  dos  dous  Generaes  defuntos. 
Cheia  pois  de  tristeza  a  Cidade  ,  e  quasi  falta  de  conse- 
lho ,  desceo  todavia  ao  campo  no  dia  das  Cortes.  Então 
postos  os  olhos  nos  Magistrados  ,  e  vendo  que  os  que  en- 
trelles  erão  os  Príncipes,  olhavão  também  huns  para  os  ou- 
tros ,  como  tomados  todos  da  mesma  perplexidade  :  alli  foi 
bramir  do  Povo,    que  se  lamentava,    de  que  a  Republica 

es- 


DAS   SCIENCIAS    DE   LiSBOA.  1^1 

estivesse  reduzida  a  hum  tão  deplorável  estado  ,  que  não 
apparecia  ninguém  ,  que  se  atrevesse  a  ir  governar  Espa- 
nha. Eis  que  de  repente  se  levanta  Publio  Curnelio  Scipião  j 
moço  que  teria  vinte  e  quatro  annos,  filho  do  outro  Pu- 
blio  do  mesmo  sobrenome,  que  tinha  sido  morto  tm  Es- 
panha ;  e  diz  que  elle  está  prompto  para  aceitar  aquelle 
cargo.  Nisto  vokâo  todos  os  olhos  para  elle ,  cheios  não 
menos  de  gosto,  que  d'admiraçáo;  e  depois  de  lhe  terem 
significado  com  huma  alegre  grita  ,  quanío  applaudiáo  o  seu 
ofFerecimento ,  e  quanto  o  tinhão  em  bom  agouro :  todos 
a  huma,  não  só  centúrios,  mas  homens,  mandarão  que  se 
desse  a  Public  Cornelio  Scipião  o  império  d'E&panha.  = 
Atéqui  Livio. 

Antes  que  passemos  ao  segundo  exemplo  ,  pede  a  boa 
ordem  das  cousas ,  que  deixemos  primeiro  notado  em  sum- 
ma  ,  o  que  entre  nós  fez  este  Scipião  o  moço. 

Chegado  em  breve  a  Espanha ,  a  primeira  obra  com 
que  Scipião  nobilitou  o  seu  nome,  e  abrio  caminho  a  maio- 
res conquistas  ,  foi  a  tomada  de  Carthagena  executada  n'hum 
dia.  Polybio  Livro  X.  cap.  15-  ,  e  segg.  Livio  Livro  XXVL 
des  do  capitulo  42   até  o  capitulo  46. 

Dahi  a  dous  annos,  venceo  Scipião  aHasdrubal  irmão 
d'Annibal  na  batalha  de  Bécula  ,  donde  Hasdrubal  fugio 
para  os  Pyrineos.  Polybio  Livro  X.  cap.  31,6  segg.  Li- 
vio Livro  XXVII.  cap.    18  ,  e  cap.  i^. 

Dahi  a  outros  dous  annos  venceo  Scipião  ao  outro 
Hasdrubal  filho  de  Gisgon  ,  e  a  seu  Ajudante  Magon  filho 
d'Amilcar  em  segunda  batalha  junto  á  mesma  ,  ou  a  outra 
Bécula.  Com  a  qual  victoria  ,  que  foi  no  anno  decimo  ter- 
ceiro da  segunda  guerra  Púnica ,  expulsou  Scipião  para 
sempre  de  toda  a  Espanha  os  Carthaginezes.  Polybio  Li- 
vro XI.  cap.  18.  e  segg.  Livio  Livro  XXVIII.   cap,   16. 

O  decimo  terceiro  anno  da  segunda  guerra  Púnica , 
coincide  com  o  anno  5'48  da  fundação  de  Roma,  e  206 
antes  da  era  de  Christo. 

Por  este    lugar    de  Livio    pois,    onde  a  expulsão  dos 

Y  ii  Car- 


17a  Memorias  DA  AcademiaReal 

Carthaginezcs  d'Espanha  se  põe  no  anno  decimo  terceiro 
da  guerra ,  se  deve  emendar  o  outro  do  Epitomador  de 
Livio,  que  a  põe  no  anuo  decimo  quinto. 

Depois  destes  felices  successos  em  Espanha ,  passou 
Publio  Cornelio  Scipião  a  Africa ,  onde  derrotando  em 
batalha  a  Annibal  ,  conseguio  o  sobrenome  d'Afric3no,  Li- 
vio Livro  XXVL  cap.   18  ,  c  Livro  XXX.  cap.  ultimo. 

O  primeiro  exemplo  acima  referido  pelas  palavras  de 
Livio ,  he  do  tempo ,  cm  que  a  segunda  guerra  Púnica 
ainda  nao  estava  no  meio.  O  segundo  acontecco  dous  an- 
nos  antes  de  se  começar  a  terceira  guerra ,  isto  he ,  no  an- 
no 602  da  fundação  de  Roma,  e  if  2  antes  da  era  de  Chris- 
to  ;  quando  cm  Espanha  se  achava  o  Cônsul  Cláudio  Mur- 
cello  ,  ameaçado  da  guerra  dos  Arevácós  ,  Povos  bellico- 
■/issimos  de  Castella  velha  sobre  o  Douro,  os  quaes  Poly- 
bio  contra  o  costume  de  todos  os  outros  Escritores  Roma- 
nos chama  Jranãcos  \  bem  como  chama  também  lingos  ou- 
tros Povos  comarcãos ,  que  os  outros  Escritores  nomeão  Ti- 
thos. 

Descreve-o  o  mesmo  Polybio  na  Écloga  CXLL  por 
estes  termos.  =  Quanto  maior  era  o  cuidado  ,  com  que  o 
Senado  se  applicava  aos  aprestos  desta  guerra  ;  tanto  maior 
admiração  cauzou ,  o  que  então  se  vio.  Achavão-se  nesta 
occasiâo  em  Roma  Quinto  Ponteio  ,  que  os  annos  passa- 
dos tinha  sido  Governador  das  Armas  em  Espanha ,  e  com 
ellcs  muitos  OfHciaes  ,  que  lá  tinhão  militado.  Estes  porém 
não  cessavão  d'exaggerar ,  quão  grande  fosse  o  valor  dos 
Espanhoes ;  quão  frequentes  as  vezes  ,  que  os  Romanos  se 
virão  precizados  a  pelejar  com  elles  em  batalha  formada  ; 
como  nestes  conflictos  forão  innumeraveis  os  Romanos , 
que  perecerão.  Ajuntava-se  a  isto  ,  que  Marcello  por  bo- 
ca dos  mensageiros  que  enviara  ,  confessava  abertamente , 
quanto  aquella  guerra  o  assustava.  Nestes  termos  foi  tal  o 
pavor,  que  occupou  os  ânimos  dos  moços,  que.  os  velhos 
affirmavão  ,  não  o  terem  nunca  visto  semelhante.  Tanto  se 
deixarão  os  homens  penetrar  do  medo  da  ferocidade  Espa- 

nho- 


DAS   SciENClAS  DE   LiSBOA.  Í7Í 

nhola  ,  que  quando  outras  occasiões  se  costum<i\^o  cffcicccr 
para  a  guerra  muitos  mais  ,  do  que  era  necessário  ;  agora 
nenhum  se  atrevia  a  dar  o  seu  nome  nem  para  OíficJal , 
nem  para  soldado.  Allegavao  todos  taes  escuzas  ,  que  o 
lembrarse  delias  era  vergonha  ,  o  examina-las  indecencia  , 
o  castiga-las  crueldade.  Alfim  ,  como  nem  o  Senado  ,  nem 
os  Magistrados  tivessem  para  onde  se  voltar;  entre  a  in- 
certeza em  que  todos  elles  estavao  ,  de  quando  cessaria  o 
desaforo  dos  moços  :  (que  este  era  o  nome,  que  a  novi- 
dade do  cazo  fazia  dar  ao  seu  medo : )  Eis  que  levantado 
do  meio  Publio  Cornelio  Africano,  homem  moço,  que  ti- 
nha sido  hum  dos  que  persuadirão  a  guerra  ,  mas  a  quem 
ainda  faltava  a  gloria  militar;  disse  em  alta  voz,  que  se 
qui/.essem  manda-lo  a  Espanha  ou  por  Coronel,  ou  por 
Tenente  General  dos  Cônsules ,  clle  estava  posto  nas  mãos 
do  Senado.  A  estas  palavras  admirados  todos  ,  tanto  pela 
pouca  idade  de  Scipiao  como  pela  irresolução  que  os  ou- 
tros mostravão  :  de  repente  começão  todos  a  abraçar  o 
mancebo  ,  c  a  dar-lhe  mil  louvores  :  o  que  no  dia  seguin- 
te se  fez  ainda  com  mais  distinctas  demonstrações  d'esti- 
ma  e  alvoroço.  Porque  aquelles  mesmos,  que  atéili  se  mos- 
travão medrozos  ,  agora  temendo  ,  que  comparados  com  Sci- 
piao fossem  castigados  com  a  ignominioza  nota  de  cobar- 
des: huns  se  ofFerecião  para  oíEciaes  ,  outros  a  grandes  ca- 
tervas    SC  alistavão  por  soldados.  =  Atéqui  Polybio. 

He  muito  para  se  observar,  que  em  ambos  estes  aper- 
tos ,  em  que  a  experimentada  braveza  dos  Espanhoes  poz 
a  soberba  animosidade  dos  Romanos;  forao  dous  Scipiões, 
os  que  se  ofFcrecêrão ,  e  os  que  com  cffeito  forão  escolhi- 
dos para  instrumentos  da  nossa  ruína.  Ambos  chamados 
Africanos  ,  porque  ambos  sujeitarão  Africa  a  Roma  :  hum 
dando  fim  á  segunda  guerra  Púnica,  outro  dando  fim  á  ter- 
ceira e  ultima.  Ambos  tão  fataeS  á Espanha,  como  á  Afri- 
ca sua  vizinha  :  aquelle  porque  nos  tomou  Carthagena ,  es- 
te porque  nos  destruio  Numancia. 

Mas  Espanha  sempre  ficou  com  a  singular  gloria ,  de 

que 


174  Memorias  da  Academia  Real 

que  sendo  a  primeira  onde  entrarão  os  Romanos,  foi  a  ul- 
tima que  elles  debellárão.  Prima  Rovianis  inita  Provinciarutn  y 
qtia  quidem  cmtineniis  sint  postrema  onmium  perdoniita  est.  lÁ- 
vxo  Livro  XXVIII,  cap.  12. 

He  hum  facto  observado  por  Estrabão  no  Livro  III, 
pag.  238  ,  e  por  Floro  no  Livro  II,  cap.  16,  que  a  con- 
quista  d'  Espanha  custou  aos  Romanos  duzentos  annos  de 
crua  guerra:  que  tantos  se  contao  des  do  principio  da  se- 
gunda guerra  Púnica  até  o  Impcrio  d'Augusto. 

He  outra  observação  dos  mesmos  dous  Escritores  , 
que  se  os  Povos  d' Espanha  se  tivessem  todos  unido  num 
corpo ,  com  huma  só  cabeça ,  nunca  nação  alguma  os  su- 
jeitaria :  e  assim  só  acomettendo-os  por  partes ,  he  que  a 
Potencia  Romana  os  veio  por  ultimo  a  domar  ,  sendo  os 
Lusitanos  (acrescenta  Estrabão)  os  que  por  mais  tempo  lhe 
resistirão.  Com  o  que  concorda  o  que  escreve  Diodoro  de 
Sicilia,  Livro  V,  cap.  34,  Tomo  I,  pag.  ^s?  que  os  Lu- 
sitanos erão  os  mais  fortes  de  todos  os  Espanhoes. 

Nesta  matéria  he  sobre  todos  ilkistre  e  memorável  o 
testemunho  de  Velleio  Paterculo  ,  que  ainda  que  transcri- 
pto  já  por  mim  ha  seis  annos,  no  Parallelo  d' Augusto  Cé- 
sar e  do  Magnânimo  Rei  D.  José  7,  he  muito  a  propósito 
repetir-se  aqui.  No  Livro  II ,  cap.  5)0  diz  assim  Paterculo 
faliando  d'  Espanha.  =  Esta  foi  a  que  por  espaço  de  mais 
de  duzentos  annos  exercitou  as  armas  dos  Romanos ,  com 
morte  de  muitos  Generaes,  com  aíFronta  dos  seus  exérci- 
tos, e  algumas  vezes  com  perigo,  de  que  Roma  perdesse 
o  Império.  Esta  foi  a  que  deo  cabo  dos  dous  Scipiões. 
Esta  a  que  por  vinte  annos  fez  huma  guerra  contumeliosa 
a  Roma  em  tempo  de  Viriatho.  Esta  a  que  aterrou  o  sol- 
dado Romano  na  guerra  de  Numancia,  precisando-o  a  pa- 
ctos ignominiosos  ao  Senado.  Esta  a  que  .se  exaltou  tanto 
pelas  armas  em  tempo  de  Sertório,  que  por  espaço  de  sin- 
co  annos  esteve  indeciso  ,  quaes  erão  os  que  tinhão  mais 
forças ,  se  os  Espanhoes ,  se  os  Romanos  j  e  quaes  os  que 
devião  dar  as  leis  aos  outros.  = 

Atd- 


DAS   SciENClAS  DE  LiSBOA.  175- 

Atdquí  Vcllcio  ,  cujo  lugar  sobre  conter  hum  cxcel» 
lente  resumo  das  glorias  d'Espaiiha ;  poderia  tambcm  ser- 
vir, para  o  tempo  do  Goveruo  do  grande  Viriatho  se  di« 
latar  muito  mais,  do  que  o  dilatao  t(;dos  os  outros  Escri» 
torcs  ,  se  assim  o  permittissc  a  verdade  da  Historia.  Mas 
este  ponto  tratar-se-ha  mais  commoda  c  opportunamente 
n'outra  parte. 

§.     III. 

Da  guerra  d' Espanha  contrahtda  a  Lusitânia  com  os  principaes 
successos  delia  até  os  prelúdios  da  guerra  de  Viriatho,      , 

Já  acima  ouvimos  d'Estrabão  ,  que  a  guerra  dos  Ro. 
manos  com  os  Espanhoes  durara  duzentos  annos;  e  que  de 
todos  os  Povos  d'Espanha  forao  os  Lusitanos ,  os  que  por 
mais  largo  tempo  lhes  resistirão. 

A  primeira  vez  que  a  Historia  de  Tito  Livio  nos  rcr 
prcsenta  os  Lusitanos  fazendo  guerra  por  si  aos  Romanos, 
he  no  Consulado  de  Publio  Cornelio  Scipião,  chamado  de- 
pois o  Asiático,  e  de  Caio  Lélio,  anno  5'64  da  fundação 
de  Romi,  e  190  antes  da  era  de  Christo.  Do  anno  de 
Roma  5-04  em  que  como  abaixo  veremos  ,  batalharão  os  Lu- 
sitanos a  primeira  vez  com  os  Romanos,  até  o  anno  da 
mesma  Roma  720,  em  que  domados  por  ultimo  os  Lusita- 
nos ,  morrco  JuIio  César ;  correrão  cento  e  sincoenta  e  seis 
annos.  Logo  outros  tantos  durou  a  guerra  dos  Romanos 
com  os  Lusitanos.  O  que  de  nenhuma  outra  gente  d'Espa- 
nha  será  fácil  mostrar. 

No  dito  anno  pois  JÍ4  da  fundação  de  Roma,  e  190 
antes  da  era  de  Christo,  vencerão  os  Lusitanos  em  bata- 
lha ao  Pretor  Lúcio  Emilio  Paulo  ,  matando-lhe  seis  mil 
homens,  e  obrigando  o  resto  do  exercito  a  fugir  para  mui- 
to longe.  Livio  Livro  XXXVII.  cap.  46. 

Faz  grande  difEculdade  aos  críticos  ,  tanto  estrangei- 
nacionaes  ,    dizerem   os  exemplares    de  Livio  , 

que 


ty6  Memorias  da  Academia  Real 

que  esta  batalha  fôra  in  Vascetanis  ,  aptià  oppidum  Lyconem. 
Porque  se  não  conhecem  em  toda  a  Espanha  Povos  alguns , 
que  SC  chamassem   Fascetanos,  Assim  o  nosso  Resende  con- 
sultado sobr'isso  por  Vazeo  ,  conjecturava  que  em  lugar  de 
in  fascetauis ,    se  devia  ler  in  Bastetauis  ,  Povos  que  Estra- 
bão  no  Livro  IIL  pag.  207.  põe  na  Bctica  entre  Calpe  e  Cadiz. 

Dujat  advertindo  que  entre  o  Mondego  e  o  Douro 
corre  o  nosso  rio  Vouga ,  que  em  Latim  se  diz  Facca ;  in- 
clinava-se  a  que  os  Povos  em  cujo  território  se  deo  esta 
memorável  batalha ,  fossem  os  que  habitavao  as  ribeiras  do 
Vouga  ;  e  a  que  no  Texto  de  Livio  cm  lugar  de  in  VascC' 
tatiis  por  SC,  se  substituísse  in  Faccetanis  por  dons  CC  :  de 
sorte  que  de  vacca  se  formasse  Vaccetani ,  como  de  Jacca 
se  forma  Jaccetani. 

A  segunda  guerra  dos  Lusitanos  com  os  Romanos , 
foi  no  Consulado  de  Appio  Cláudio  Pulcro,  e  de  Marco 
Sempronio  Tuditano,  anno  569  da  fundação  de  Roma,  6185" 
antes  da  era  de  Christo.  Nella  se  derão  duas  batalhas  nos 
campos  de  Toledo,  unidos  os  Lusitanos  com  os  Celtiberos, 
e  unidos  também  entre  si  os  dous  exércitos  Romanos,  hum 
de  Caio  Calpurnio  Pisão  Pretor  da  Espanha  ulterior ,  ou- 
tro de  Lúcio  Quincio  Crispino  Pretor  da  Espanha  citerior. 
A  primeira  batalha  ganhárao-na  os  nossos  ,  com  perda  de 
sinco  mil  Romanos  entre  mortos  e  fugitivos.  A  segunda 
vencerão-na  os  Romanos  com  tal  desbarato  dos  nossos  ,  que 
de  trinta  e  sinco  mil  só  três  mil  conservarão  as  armas.  To- 
dos os  mais  ou  morrerão ,  ou  fugirão.  Livio  Livro  XXXIX. 
cap.  30.  e  cap.   31. 

Em  premio  desta  victoria  ,  triunfarão  o  anno  seguinte 
em  Roma  os  dous  Pretores ,  primeiro  Calpurnio  Pisão  ,  e 
passados  poucos  dias  Quincio  Crispino.  Livio  ibid.  cap.  42. 

No  anno  jyó  da  fundação  de  Roma,  e  178  antes  da 

era  de  Christo ,  sendo  Cônsules  Marco  Junio  Bruto  ,  Aulo 

Manlio  Vulsío ,  triunfou  dos  Lusitanos  e  d'outros  Povos  da 

Espanha    ulterior   o  Pretor    Lúcio  Postamio  Albino.    Livio 

Livro  XLL  cap.   11. 

No 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  I77 

No  anno  600  da  fundação  de  Roma,  e  i5'4  antes  da 
era  de  Christo  ,  sendo  Cônsules  Lúcio  Opiínio,  e  Lúcio 
Postumio  Albino ,  tinhão  os  Lusitanos  por  General  hum 
Carfhaginez ,  de  quem  se  não  sabe  o  nome ,  e  debaixo  de 
cujo  commando  alcansárao  duas  victorias  ,  huma  contra  o 
exercito  de  Manilio ,  outra  contra  o  exercito  de  Pisão. 
Supplemento  de  Livio  Livro  XLVII ,  cap.  28,  e  cap.  3J. 

Dos  prósperos  successos  das  nossas  armas  no  referido 
Consulado  dá  também  testemunho  o  outro  antigo  Escritor 
Júlio  Obsequente  no  Livro  Dos  Prodígios. 

No  anno  602  da  fundação  de  Roma  ,  e  ijz  antes  da 
era  de  Christo,  sendo  Cônsules  Marco  Cláudio  Marcello, 
e  Lúcio  Valério  Flacco ,  triunfou  dos  Lusitanos  o  Pretor 
Lúcio  Mummio.  Appiano  na  Historia  Ibérica. 

Em  tempo  deste  Mummio  tiverâo  os  Lusitanos  hutn 
General  por  nome  César  ou  Cesarião  ,  que  fora  eleito  por 
morte  do  Carthaginez  acima  mencionado,  e  que  numa  ba- 
talha matou  nove  mil  do  exercito  Romano;  outro  por  no- 
me Cauceno ,  que  investindo  os  Cuneos ,  lhes  tomou  a 
grande  e  poderosa  cidade  de  Conistorgis.  Supplemento  de 
Livio  Livro  XLVII ,  cap.  40. 

Resende  dá  por  hum  erro  nos  exemplares  d'  Eutro- 
pio,  trazerem  ellcs  Memniio ,  em  lugar  de  Mummio.  Porém 
Diodoro  de  Sicilia ,  Livro  XXXI ,  Écloga  V ,  Tomo  II , 
pag.  5:19   também  chama  Memmio  a  este  Pretor. 

Este  Excerpto  de  Diodóro ,  que  Resende  não  vio ,  não 
só  nos  confirma ,  que  o  triunfo  que  Mummio  alcansou  dos 
nossos  não  foi  sem  lhe  preceder  muita  perda  dos  seus ; 
mas  também  nos  dá  noticia,  que  a  victoria  que  logo  no 
principio  ganharão  os  Lusitanos  sobre  o  exercito  de  Mum- 
mio ,  foi  a  que  divulgada  por  toda  a  Espanha ,  erigio  os 
ânimos  dos  Arevácos  ,  para  se  levantarem  contra  os  Ro- 
marws. 

O  Cônsul  Marco  Cláudio  Marcello  também  por  este 
tempo  esteve  em  Espanha.  Polybio  nos  he  Author ,  que 
Marcello  depois  de  ter  ouvido  na  Espanha  citerior  as  quei- 
2".  IX.  P.  I.  Z  xas , 


178  Memorias  da  Academia  Real 

xas ,  que  os  Bellos  e  Tingos  lhe  fizcrão  das  hostilidades, 
que  contra  ellcs  commettião  os  Aranácos,  chamados  mais 
commumentc  Arevácos ;  passara  á  ulterior ,  e  depois  de 
tomar  por  assalto  na  Lusitânia  a  cidade  de  Ercobriga ,  se 
recolhera  a  invernar  em  Córdova.  Polybio  Écloga  CXLI. 

O  que  escreve  Estrabao  no  Livro  III ,  pag.  207  que 
Córdova  era  obra  de  Marcello ,  deve  se  entender  não  da 
primeira  fundação;  (porque  Silio  Itálico  já  conta  Córdova 
entre  as  cidades,  que  derão  gente  a  Annibal  para  a  guer- 
ra de  Itália)  mas  do  novo  esplendor  que  Marcello  lhe 
dco ,  fa7.cndo-a  primeira  colónia  do  Povo  Romano  cm  Es- 
panha ,  como  o  mesmo  Estrabao  logo  explica. 

Por  outro  testemunho  d'  Estrabao  no  Livro  III ,  pag. 
247  sabemos  que  Marcello  pedira  aos  Celtiberos  hum  tri- 
buto de  seiscentos  talentos.  O  que  elle  refere  na  fé  de 
Possidonio,  para  deduzir  dahi  qual  fosse  a  riqueza  de  Cel- 
tibcria. 

Era  neste  anno  de  éoi  Pretor  da  Espanha  ulterior 
Marco  Attilio  ,  que  foi  o  que  neste  Governo  succedeo  a 
Lúcio   Mummio. 

Deo  Marco  Attilio  huma  batalha  aos  Lusitanos ,  de 
que  matou  setecentos  ,  e  a  quem  tomou  a  maior  e  mais 
forto  cidade  que  elles  tinhâo,   chamada  Oxthraca. 

Com  este  medo  se  passarão  para  os  Romanos  muitas 
cidades  vizinhas  ,  e  algumas  dos  Vettões ,  Povos  confinan- 
tes com  os  Lusitanos.  Mas  tanto  que  o  Pretor  Attilio  re- 
colheo  o  seu  exercito  aos  quartéis  d'inverno ,  todas  de  re- 
pente se  tornarão  a  sublevar ,  e  não  forão  poucas  as  cida- 
des sócias  dos  Romanos,  que  os  nossos  pozcrão  de  cerco. 
Supplemento  de  Livio,  Livro  XLVIII,  cap.  6. 

No  anno  603  da  fundação  de  Roma,  e  ifi  antes  da 
era  de  Christo  ,  sendo  Cônsules  Lúcio  Licinio  Lucullo ,  e 
Aulo  Postumio  Albino  ,  veio  á  Espanha  ulterior  por  seu 
Pretor  Sérgio  Sulpicio  Galba ,  homem  de  nobilissim.a  pro- 
sápia ,  e  hum  dos  mais  eloquentes  da  sua  idade  ;  mas  tão 
ambicioso  e  avarento  como  prov.i  o  que  delle  disse  Scipião 

Emi- 


DAS   SCIENCIAS    D£   LiSBOA.  I^ÇIf 

Emiliano,  quando  Galba  depois  de  ter  sido  Pretor  em  Es- 
panha quiz  cornar  a  ella  sendo  Cônsul.  Ambos  os  col le- 
gas, Sérgio  Sulpicio  Galba,  e  Lúcio  Aurélio  Cota,  pre- 
tendiáo  ir  governar  Espanha.  Embaraçados  os  Padres  com 
esta  contenda  ,  pedirão  a  Scipião  Emiliano  que  desse  o  seu 
parecer.  Respondeo  ellc,  que  a  nenhum  dos  dous  convi- 
nha dar  semelhante  Governo  :  porque  Cota  não  tinha  na- 
da,  e  a  Galba  nada  lhe  era  bastante.  Neutrum ,  inquit ,  niihi 
fítitti  placet ;  quia  alter  nihil  habet ,  alteri  nihil  est  satis.  Va- 
lério Máximo,  Livro  VI,  cap.  4. 

Com  o  Pretor  Galba  veio  também  o  Cônsul  LucuUo, 
que  fez  guerra  aos  Turdulos  e  Vacceos  ,  e  tomou  a  estes 
segundos  as  cidades  de  Cauca  e  Luercacia,  e  teve  na  Be- 
tica  vários  choques  com  os  Lusitanos.  Floro  Livro  II ,  cap. 
17.  Appiano  na  Historia  Ibérica.  Supplemento  de  Livio 
Livro  XLVIII ,  cap.   17   e  scgg. 

O  lugar  de  Floro  que  acabo  de  citar ,  he  memorável 
não  só  pelo  que  conta  ,  mas  também  pelas  palavras  com 
que  o  conta.  Por  isso  em  obsequio  dos  estudiosos  da  cri- 
tica Latina ,  me  demorarei  hum  pouco  em  o  illustrar. 

O  texto  de  Floro  no  Livro  II,  cap.  17  diz  assim: 
Lucíillíis  Turdulos  atque  Vaccaos .,  de  quibus  Scipio  tile  poste' 
rior ,  singulari  certamine ,  qtium  rex  fuisset  provocatus ,  opima 
rettilerat.  Quer  dizer,  que  Scipião  mais  moço,  por  sobre- 
nome Emiliano ,  sendo  Legado ,  ou  como  nós  hoje  dize- 
mos ,  Tenente  General  de  Lucullo  na  guerra  com  os  Vac- 
ceos, ganha'ra  os  despojos  do  Rei,  que  o  tinha  provocado 
a  brigar  com  elle  só  por  só  ,  porque  o  matou  em  duel- 
lo. 

O  caso  he ,  que  durante  o  bloqueo  de  Intercacia , 
hum  Espanhol  de  grande  corpulência ,  vestido  de  luzentes 
armas,  desafiava  atrevidamente  osRomanosj  dizendo  que  se 
algum  se  quizesse  matar  com  elle  ,  que  sahisse  a  campo. 
Como  nenhum  ousasse  a  sahir ,  não  cessava  o  bárbaro  de 
insultallos  de  cobardes.  EntSo  por  honra  do  nome  Romano, 
aceitou  Publio  Scipião  o  desafio  ;  e  postos  ambos  em  cam- 

Z  ii  po , 


i8o  Memorias  da  Academia  Real 

po,  o  Romano  que  era  mui  pequeno  de  corpo,  prostrou 
o  agigantado  Espanhol. 

Sendo  que  na  substancia  deste  facto  concordem  com 
Floro  outros  três  Historiadores  antigos ,  a  saber ,  Velleio 
Patorculo  ,  Livro  I,  cap.  12,  o  Epitomador  do  Livro 
XLVIII  de  Tito  Livio ,  e  Appiano  na  Historia  Ibérica:  ne- 
nhum todavia  faz  Rei  o  Espanhol  provocante ,  como  Floro 
o  nomca.  Por  onde  conjecturava  Grevio,  que  o  que  hoje 
se  lê  nos  manuscritos  e  edições  de  Floro ,  Qrium  Rex  ftiis- 
set  provocatns ,  procedera  da  má  intelligcncia  dos  primeiros 
copiadores;  os  quaes  achando  no  original  hum  R^  e  logo 
ex ,  em  lugar  de  exporem  o  R  ,  como  abbreviatura  de  Ro- 
manus  y  c  o  e.v ,  como  abbreviatura  de  Exercitus ,  fi/erão 
de  dous  nomes  hum  só  ;  e  devendo  escrever ,  Qtnim  Ra- 
tnaniis  exercittis  fulsset  provocatiis  ,  escreverão  ,  Qutim  Rex 
fmsset  provocatus. 

Entretanto  o  mesmo  Grevio  reconhece ,  que  a  lição 
vulgar  de  F"loro  ,  considerada  em  quanto  á  syntaxe  ,  nada 
tem  de  insólita  no  bom  latim.  Porque  da  sorte  que  aqui 
diz  Floro  fmsset  provocatus ,  em  lugar  de  provocasset ;  tinha 
escrito  antes  Varrão  ,  Ajfectatus  est  regnnm ,  em  lugar  de 
Ajfectavit:  e  Tito  Livio,  Livro  IV,  cap.  24,  Commtmicati 
sunt ,  em  lugar  de  Communicavenmt :  e  assim  outros  Autho- 
res  clássicos ,  que  eu  a  este  assumpto  alieguei  ha  trinta  an- 
nos,  nas  notas  ao  Tratado  dos  Pretéritos  do  meu  Novo  Me* 
tboclo  da  Grammatica  Latina. 

Pouco  tempo  havia  que  Sérgio  Galba  tinha  chegado 
á  Lusitânia,  a  livrar  do  sitio  as  cidades  confederadas;  quan- 
do apresentando  batalha  aos  nossos  ,  foi  ncUa  vencido ,  e 
obrigado  a  fugir,  ficando  mortos  no  campo  sete  mil  Ro- 
manos. Appiano  na  Historia  Ibérica,  e  Orosio  no  Livro  IV, 
cap.  31. 

Para  reparar  a  queda  da  sua  reputação ,  e  vingar-se  da 
ignominia  que  considerava  ter  recebido  dos  Lusitanos;  ap- 
pHcou  Galba  o  meio  mais  execrando,  que  se  podia  imagi- 
nar.   E   foi  assim    o  caso.    Tcndo-se-lhc  depois  entregado 

vo- 


DAS    SciENCIAS    DE    L  I  S  B  O  A.  igt 

voliintariaincntc  trcs  cidades  das  nossas,  ajustou  Gnlbacom 
os  moradores  ,  que  cm  certo  dia  se  ajuntassem  todos  num 
lugar,  onde  lhes  queria  propor  hum  negocio  de  sumnio  in- 
teresse para  elles.  Concorrerão  os  homens  em  toda  a  boa 
fé  no  dia  aprazado.  Então  Galba ,  tendo-lhes  feito  depor 
as  armas  ,  com  o  pretexto  de  que  ellas  não  estavão  bera 
a  huma  gente  amiga,  de  repente  manda  cercar  todos  pe- 
las legiões  Romanas,  que  para  este  fim  tinha  secretamen- 
te promptas ,  e  assim  inermes  faz  passar  á  espada  trinta 
mil  Lusitanos.  Suetonio  na  vida  do  Imperador  Galba  , 
cap.   3. 

Bem  sei,  que  Valério  Máximo  no  Livro  IX,  cap.  6 
reduz  a  muito  menor  numero  ,  os  que  a  perfidia  e  cruel- 
dade de  Galba  perdeo.  Porque  entre  mortos ,  e  vendidos 
para  ficarem  escravos ,  não  conta  senão  nove  mil.  Mas  isto 
sem  duvida  he  ,  porque  Valério  Máximo  não  contemplan- 
do o  vulgo  dos  que  perecerão  ,  só  attendeo  aos  que  erão 
como  a  flor  dos  nossos.  Novem  uiillia  ,  in  qtitbus  sors  juven- 
tutís  consistebat  electa  ,  et  armis  exuta ,  partim  triicidavit , 
partim  vendidit. 

Appiano  adverte  ,  que  hum  dos  que  pela  sua  astúcia 
poderão  escapar  da  mortandade  ,  fora  Viriatho.  Suetonio  e 
Orosio ,  que  deste  caso  de  Galba  tivera  principio  a  guer- 
ra Viriathina  ,  que  tanto  deo  que  fazer  aos  Romanos.  E 
assim  do  anno  immediato  ao  governo  de  Galba  se  podem 
e  devem  começar  a  contar  os  onze  annos ,  que  Diodoro  de 
Sicilia  num  Excerpto  que  adiante  transcreveremos  ,  dá  a 
€sta  guerra :  de  sorte  que  os  primeiros  quatro  annos  fossem 
como  prelúdios  da  guerra  ,  pelejando  Viriatho  ainda  como 
particular ;  os  sete  últimos  ,  os  em  que  Viriatho  feito  já 
General  d' hum  justo  exercito,  obrou  as  proezas  que  adian- 
te resumiremos. 

Tornado  a  Roma ,  foi  Galba  accusado  por  Marco 
Porcio  Catão  da  perfidia  ,  que  tinha  usado  em  Espanha 
C')in  os  Lusitanos.  Neste  aperto  e  perigo  de  vida  tomou 
Galba  o  expediente  de  vir  ao  Senado  com  dous  filhos  seus 

pe- 


i82  Memorias  da  Academia  Real 

pequenos ,  c  com  outro  de  Caio  Sulpicio  ,  de  que  era  tu- 
tor. E  tanto  lamentou  o  desamparo ,  a  que  com  a  sua  mor- 
te ficavão  expostos  aquelles  três  meninos  ;  que  movido  a 
huma  reprehensivel  compaixão ,  lhe  perdoou  o  Senado  hum 
tão  grande  crime.  Epitome  de  Livio,  Livro  XLIX,  e  Valé- 
rio Máximo,  Livro  IX,   cap.  6. 

Qiiando  Catão  Censório  accusou  a  Galba  ,  diz  L  vio 
no  Livro  XXXIX,  cap.  40,  que  tinha  Catão  noventa  an- 
nos.  E  assim  o  crerão  também  depois  de  Plutarco,  Rése.i- 
de,  e  Frinshemio.  Mas  pelas  contas  que  Lclio  faz  no  Livro 
de  Ciccro  De  Senectute,  colhem  Glareano  e  Sigonio  ,  que 
então  não  passava  Catão  d'oitent3  annos  ,  e  que  ao  todo 
vivera  somente  oitenta  e  quatro. 

.  Mas  por  maiores  que  fossem  as  victorias  e  conquistas 
de  Bruto  ,  nem  por  isso  perderão  os  nossos  o  antigo  vi- 
gor. Júlio  Obsequente  no  seu  Livro  Dos  Prodígios  testifi' 
ca,  que  sendo  Cônsules  Publio  Rutilio  Rufo,  e  Gneo  Ma- 
nilio  ,  isto  he  ,  no  anno  649  da  fundação  de  Roma  ,  e 
12J'  antes  da  era  de  Christo ,  fora  o  exercito  Romano 
desbaratado  pelos  Lusitanos. 

E  que  este  vigor  o  conservavao  ainda  os  nossos ,  pas- 
sados sessenta  annos  depois  da  morte  de  Viriatho  ,  fallo- 
hci  eu  agora  patente  pelo  compendio  da  guerra  de  Sertó- 
rio ,  que  á  imitação  de  Resende  e  de  Frinshemio  tecerei 
do. que  delia  nos  deixarão  escrito  o  Epitomador  de  Livio, 
Appiano  ,  Plutarco  ,  e  Orosio. 

No  anno  673  da  fundação  de  Roma,  e  81  antes  da 
era  de  Christo  ,  achando-se  Quinto  Sertório  na  Mauritâ- 
nia ,  o  convidarão  os  Lusitanos  para  vir  ser  seu  General, 
contra  os  que  em  Espanha  seguião  o  partido  de  Sulla  ,  que 
em  Roma  o  tinha  a  elle  Sertório  mettido  no  numero  dos 
proscriptos. 

A  tempo  que  Sertório  se  achava  ainda  na  Mauritânia , 
diz  Plutarco  ,  que  em  Tangere  lhe  foi  mostrado  o  sepul- 
cro do  antiquíssimo  gigante  Anteo ,  morto  alli  por  Her- 
cules, cujo  cadáver  se  achou  que  tinha  sessenta  covados  de 

com' 


DAS   SciENCIAS  DE   LiSBOA.  iSj 

comprido  :  fabula  por  certo  indigna ,  de  a  referir  como  cii- 
vel  hum  Historiador  sisudo. 

Trouxe  Sertório  da  Africa  para  a  Lusitânia  dous  mil 
e  seiscentos  Romanos  ,  e  setecentos  Africanos.  A  estes  ajun- 
tou dos  Lusitanos  quatro  mil  infantes  ,  e  setecentos  cavai- 
los. 

Pouco  depois  veio  unir-se  aelle  Marco  Perpcrna  com 
trcs  cohortes  Romanas  :  o  qual  Perperna  também  se  acha- 
va bannido  por  Sulla. 

Com  estas  e  outras  accessões  de  gente  ,  que  pouco  a 
pouco  se  lhe  forão  aggregando,  chegou  Sertório  brevemen- 
te a  ter  hum  exercito  de  sessenta  mil  infantes ,  e  nove  mil 
cavai  los  :  e  quando  no  principio  da  guerra  só  contava  por 
suas  vinte  cidades  da  Lusitânia,  no  fim  delia  se  achava  se- 
nhor de  quasi  toda  a  Espanha. 

Sabido  em  Roma  ,  que  Sertório  tinha  tomado  as  ar- 
mas contra  a  Republica  ,  mandou  o  Senado  logo  contra  el- 
le  para  a  Espanha  ulterior  a  Metello,  no  anno  674  da 
fundação  de  Roma,  e  80  antes  da  era  de  Christo. 

(^al  fosse  nesta  guerra  a  fortuna  de  Sertório  póde-se 
bem  conhecer  pelos  seguintes  successos. 

Na  transição  d'Africa  para  Espanha ,  venceo  a  Cotta 
n'huma  batalha  naval  junto  á  ilha  Mellaria.  Logo  oppon- 
'do  se  lhe  Furfidio  junto  aoGuadalguivir ,  Sertório  o  fez  ce- 
der matando-lhe  dous   mil  homens. 

Venceo  na  batalha  do  Guadiana  a  Lúcio  Domicio  Pro- 
cônsul da  Espanha  citerior  ,  a  quem  Metello  tinha  chama- 
do á  ulterior  em  seu  soccorro.  Venceo  n'outra  batalha  ,  e 
fez  fugir  para  Lerida  ,  a  Lúcio  Manilio  Procônsul  da  Gal- 
lia  Narbonense,  que  também  tinha  vindo  auxiliar  a  Metei- 
lo-  . 

Sitiando  Metello  a  nossa  Praça  de  Lacobriga ,  derro- 
tou Sertório  a  Aguino  com  seis  mil  homens,  que  Metello 
tinha  destacado  a  buscar  mantimentos. 

N'outra  batalha  desfez  a  Thorio  Legado  de  Metello 
com  todo  o  seu  exercito.         vq   íjJ 

Cor- 


184  Memorias  da  Academia  Real 

Corria  o  anno  6-]^  da  fundação  de  Roma  e  -^"j  antes 
da  era  de  Christo ,  quando  o  Senado  Romano ,  vendo  que 
para  impedir  os  rápidos  progressos  das  armas  de  Sertório 
na  Espanha  ,  não  bastava  hum  só  General ,  por  mais  vale- 
rozo  e  por  mais  provecto  na  guerra  que  lossc  Metello  :  or- 
denou que  Pompco  a  toda  a  pressa  se  fosse  unir  com  clle, 
armado  da  mesma  authoridade  Proconsular.  Nesta  occasiao 
he  que  Lúcio  Filippe,  perguntado  se  llie  parecia  bem  ,  que 
Pompeo  não  sendo  ainda  Senador,  mas  hum  simples  caval- 
Iciro  ,  fosse  mandado  a  Espanha  feito  Procônsul ,  respon- 
dco  :  Que  pelo  seu  voto  o  mandava  elle  ir  não  como  Pro- 
cônsul ,  mas  como  Procônsules.  Non  se  illttm  sua  sententia 
proconsule ,  sed  proconsultbus  mittere.  Elogio  que  mostra  bem 
o  alto  conceito  ,  que  já  então  se  fazia  da  capacidade  e  prés- 
timo de  Pompco. 

Mas  chegado  Pompeo  a  Espanha ,  d  vista  delle  e  do 
seu  exercito  tomou  Sertório  a  cidade  de  Laurona  ;  e  depois 
de  a  queimar,  trouxe  para  a  Lusitânia  muitos  cativos.  Obri- 
gou ao  mesmo  Pompeo  a  levantar  o  sitio,  que  tinha  pos- 
to a  Palencia.  Sitiando  Metello  e  Pompeo  a  Calahorra, 
fez  fugir  aquelle  para  osVacceos,  este  para  França,  e  ma- 
tou do  arrayal  de  Pompeo  três  mil. 

Deo  muito  que  fazer  a  ambos  na  batalha  de  Sucro, 
onde  matou  oito  mil  do  exercito  de  Pompeo :  muito  na  ou- 
tra batalha,  que  elles  lhe  apprescntárão  junto  ao  rio  Tu- 
ria  ,  na  qual  morrerão  seis  mil  Romanos  ,  e  Metello  se  vio 
reduzido  ás  ultimas  angustias. 

Foi  tal  a  desesperação ,  em  que  por  vezes  se  virão  os 
dous  Generaes  Romanos  ;  que  Metello  chegou  a  prometter 
cem  talentos  de  prata ,  e  vinte  mil  gejras  de  terra,  a  quem 
matasse  a  Sertório.  Pompeo  escreveo  ao  Senado^  huma  car- 
ta cheia  de  queixas ,  protestando  que  se  lhe  não  mandavao 
mais  dinheiro  ,  recolheria  da  campanha  a  soldadesca. 

No  anno  680  da  fundação  de  Roma  ,  e  74  antes  da 
era  de  Christo,  que  foi  o  penúltimo  da  vida  de  Sertório, 
incitado  Mithridátcs  Rei  poderosíssimo  do  Ponto,  da  fa- 
ma 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  iS^ 

ma  que  por  todo  o  mundo  corria  das  forçns  e  rique/as  de 
Sertório,  dirigio  a  este  liuma  embaixada  u  hspanha,  pcdin- 
do-lhe  que  se  alijasse  com  clle  para  a  terceira  guerra,  que 
determinava  fazer  aos  Romanos.  Chegados  a  Espanha  os  em- 
baixadores de  MithriJiccs  ,  aceitou  Sertório  as  condições 
propostas  ,  que  erãj ,  que  elle  Sertório  mandaria  em  soe* 
corro  de  Mithridátcs  hum  certo  numero  de  tropas  com  seu 
General  ;  e  que  Mithridátes  daria  a  Sertório  três  mil  talea- 
tos ,  e  quarenta  náos. 

Para  o  apresto  das  Armadas  ,  servia-se  Sertório  ordi- 
nariamente do  porto  de  Denia  ,  como  de  Praça  d' Armas. 
O  que  alem  de  ser  expresso  em  Estrabáo  Livro  III.  pag. 
a ^9.  se  pôde  também  confirmar  deste  lugar  de  Cicero  no 
Livro  V.  das  Verrinas  ,  cap.  y6.  QiiíCítnque  accesserant  ad 
iilcíHam  paullo  pleniores ,  eos  Senorianos  milites  esse ,  atqiie 
e  Diauio  fugere  diccbat. 

Em  tempo  d'inverno  costumava  Si-rtorio  lecolher-se  á 
Lusitânia,  e  chegada  que  fosse  a  primivera,  partir  para  a 
campanha  com  o  seu  Tenente  G.neral  Mjrco  Perperna  ;  con- 
fiando-se  sempre,  como  nota  Appiano,  mais  dos  Lusitanos  , 
do  que  de  nenhuns  outros  Espanhoes. 

Tinha  Sertório  em  Évora  huma  caza ,  que  ainda  hoje 
existe  na  Praça  do  Pescado ,  e  nella  huma  pequena  familia  j 
que  constava  d*huma  criada  por  nome  Junia  Donace,  e  de 
três  Libertos  todos  do  nome  de  Sertório ,  como  consta  de 
huma  Inscripção  que  traz  Vasconcellos. 

Assim  como  á  imitação  de  Roma  formou  Sertório  em 
Espanha  hum  Senado  em  que  trezentos  Membros  votavão 
sobre  todos  os  negócios  annuos  de  guerra  c  de  Politica; 
assim  para  a  mocidade  Espanhola  ser  instruida  nas  Letras 
Gregas  e  Latinas  ,  instituio  em  Huesca  hum  Collegio  de 
Nobres. 

Mas   nesta    mesma    Cidade  d'Huesca  acabou  Sertório 

miseravelmente  a  vida ,  sendo  morto  por  certos  conjurados 

Romanos ,  no  oitavo   anno  do  seu  Gencralato  ,    que  foi  o 

aiino    681    da  fundação    de  Roma,   e  73    antes  da  era  de 

2".  IX.  P.  J,  Aa  Chris- 


i9i5  Memorias  da  Academia  Rxal 

Christo.  O  cnbcça  da  conjuração  foi  aquelle  mesmo  Per-- 
perna  que  sobre  ser  Tenente  General  de  Sertório,  tra  o 
qiie  o  mesmo  Sertório  (  como  depois  se  soube  )  instituia  no 
seu  testamento  por  herdeiro  universal.  Fingio-se  ter  che- 
gado noticia  d'hum3  grande  victoria  ,  alcançada  em  tal  par- 
te pelo  exercito  de  Sertório.  Alegre  este  sobremaneira  com 
o.  successo,  Perperna  o  convida  para  hum  banquete  cm 
sua  C3Z3.  Sem  nada  suspeitar  de  traição  ,  vem  Sertório  a 
cazn  de  Perperna ;  asscnta-se  á  mcza  com  mais  seis  convi- 
dados ,  que  os  fragmentos  da  perdida  Historia  de  Sallustio 
nomcão ;  cómc-se,  bcbe-se ,  fazem-se  saúdes.  E  quando 
Sertório  mais  descuidado  estava ,  António  luim  dos  seis  he 
o  primeiro,  que  ao  sinal  dado  por  Perperna,  o  fere  com 
hum  punhal.  Hindo  Sertório  a  querer  levantar-se ,  António 
lhe  segura  ambas  as  mãos,  e  entretanto  o  acabâo  de  ma- 
tar os  outros. 

Succedeo  a  Sertório  no  Governo  d'Espanha  o  mesmo 
Perperna  ,  que  dentro  de  pouco  tempo  experimentou  o  cas- 
tigo da   sua  perfídia ,  sendo  vencido  e  morto  por  Pompeo, 

Não  he  para  se  passar  em  silencio ,  que  na  Oração 
sobre  as  Leys  Agrarias  contra  Rullo ,  se  lamenta  Cicero  , 
de  que  por  todo  o  tempo  que  durou  a  guerra  de  Sertório  , 
não  cobrou  a  Republica  Romana  tributo  algum  da  Espa- 
nha, ii    ;ij    V.  .    fi;j^i:j   í-ffMifrO  i.w  ..:     ,   jiijJ 

.:    Divulgada  a  infeliz  morte  de  Sertof io , 'todaí?  as  cida^* 
des  d'Espanha  se  renderão  espontaneamente  aos  Romanos, 
excepto  Calahorra-e'  Uxarha  ,    que  por  algum  tempo  resis- 
tirão ao  vencedor.  Mas  por  ultimo  a  ambas  expugnou  Pom- 
peo. 

Este   era  o  estado ,   em  que  as  guerras  civis  de  Júlio 
Gesar  com  Pompeo^   e  de  Octaviano  César  com  os  filhos  . 
de  Pompeo  acharão  a  Espanha.  A  qual  quanto   nas  primei-^ 
ras  guerras  favoreceo  o  partido  de  Pompeo ,  tanto  nas  se- 
gundas se  quiz  particularizar  nos  obséquios  d'Augnsto,  ins* 
tituindo  em  honra  c  memoria  sua  a  famoza  Era  d&  Ctsar  ^ 
110  anno  716  da  fundação  de  Roma,   e  38   antes-  da  era- 


DAS    SoiEtTCrAS    DE    LiSBOA.  187 

de  Christo.  Da  qual  era  tudo  o  bom  que  se  acha  escrito 
por  Escaligoro,  Mariana,  e  Petau ,  o  devem  ellcs  a  Rií- 
scnde  ,  ou  á  carta  que  clle  sobre  esta  matcria  escrcveo  a 
Joiío  Vaseo. 

Falravão  sós  por  debellar  os  Cantabros  e  os  Asturia- 
nos, que  como  mais  inacccssiveis  pelo  montuozo  e  áspero 
do  terreno  forao  os  últimos  que  se  sujeitarão  ao  Império 
Romano ,  sendo  o  mesmo  Augusto  o  que  os  acommettco 
cm  pessoa.  Foi  isto  no  anno  730  da  fundação  de  Roma, 
e  zo  antes  da  era  de  Christo. 

Assim  vemos  verificado  ,  o  que  por  authoridade  d'Es- 
trabão  ,  Vellcio  Paterculo  ,  e  Floro  ,  dissemos  no  principio: 
Que  a  Espanha  custara  a  sujeitar  quasi  duzentos  annos ; 
que  tantos  vão  do  anno  5-3 6  da  fundação  de  Roma,  em 
que  começou  a  segunda  guerra  Púnica,  até  o  de  730  cm 
que  os  Cantabros  e  Asturianos  forâo  subjugados  por  Augus- 
to. 

Neste  mesmo  tempo ,  reformando  Augusto  as  tropas 
veteranas ,  que  se  achavao  em  Espanha ,  mandou  que  as  da 
Legião  Qyinta  ■,  e  as  da  Legião  Decima  ,  fundassem  na  Lu- 
sitânia huma  Colónia  com  o  nome  de  Emérita  Augusta  f 
em  cujo  território  assignou  a  cada  centúria ,  ou  a  cada  com- 
panhia das  ditas  Legiões  ,  quatrocentas  geiras  de  terra  pa- 
ra cultivarem.  E  esta  nova  cidade  he  a  que  hoje  se  chama 
Merida  ,  e  a  que  até  o  tempo  dos  Godos  ficou  sendo  Me- 
trópole de  toda  a  Lusitânia. 

Que  Merida  fosse  fundada  logo  depois  de  concluída 
a  guerra  dos  Cantabros  ou  Biscainhos  ,  he  expresso  em 
Dião  Cassio  no  Livro  LIII  pag.  315.  da  Edição  Basthen- 
sc  de  João  Oporino  ,  de   ifjS. 

Que  fosse  fundada  pelos  eméritos  da  Quinta  e  da  De- 
cima Legião,  colhe-se  das  Medalhas  de  Merida,  que  Hen- 
rique Flores  produzio  e  explicou  no  Tomo  L  das  Mcda- 
Ibas  d'Eípaiiha,  Taboa  XXIIL  Num.    i.  e  2.  pag.  401. 

Que  a  estes  eméritos  se  assignassem  quatrocentas  gei-* 
ras  por  companhia  ,  prova-o  o  mesmo  Flores  no  Tomo  XIIL 

Aa  ii  da 


?,88  Memoriaí  DA  Academia  RsAL 

da  Espanha  Sagrada  ,  pag.   88.  com  hum  testemunho  d'Hy- 
gino  no  Lívio  De  Limitibus, 

§    IV. 

Principias   da  guerra    em  Espanha ,   debaixo  do  cotimiando  de 

Geiíeraes  próprios  nossos.  Governos  de  Marco  Porcio  Catulo , 
1  e  de  Tito  Sempronio  Cracco. 

No  quinto  anno  depois  de  finda  a  segunda  guerra  Pú- 
nica ,  isto  hc  ,  no  anno  557  da  fundação  de  Roma,  c  197 
antes  da  era  de  Christo  ,  sendo  Cônsules  Caio  Cornelio 
Ccthego,  e  Quinto  Minucio  Rufo,  dividirão  osRomanos 
toda  a  Espanha  em  duas ,  cada  huma  com  seu  Governador 
separado  :  cm  Citcrior  ,  que  comprehendia  tudo  o  que  vai 
dos  Pyreneos  até  o  rio  Ebro  ;  e  em  Ulterior,  que  com- 
prehendia tudo  o  que  vai  do  rio  Ebro  até  a  nossa  Lusitâ- 
nia. Consta  o  tempo  desta  primeira  divisão  das  Espanhas , 
do  que  escreve  Livio  no  Livro  XXXII  cap.  27.  e  28.  on- 
de depois  de  dizer  ,  que  naquelle  anno  forão  pela  primeira 
vez  creados  seis  Pretores  ,  por  cauza  de  ter  crescido  com 
a  maior  dilatação  do  império  o  numero  das  Províncias  ;  acres- 
centa logo,  que  psra  a  Espanha  Citerior  fora  mandado  Caio 
Sempronio  Tuditano  ,  c  para  a  Ulterior  Marco  Helvio.  E 
a  este  anno  alliga  também  Petau  esta  primeira  divisão  da 
Espanha  em  duas ,  ainda  que  sem  apontar  Author. 

Hc  verdade  ,  que  o  mesmo  Livio  no  Livro  XXXIIL 
cap.  27.  nomea  a  Gneo  Cornelio  Lentulo ,  por  Anteces- 
sor de  Caio  Sempronio  Tuditano  no  Governo  d'Espanha 
Citerior,  e  logo  a  Lúcio  Stertinio ,  como  Governador  da 
Ulterior.  Donde  parece  ,  que  aquella  divisão  era  mais  anti- 
ga. Mariana  ,  que  põe  a  divisão  d'Espanha  hum  anno  an- 
tes, não  deixa  de  reconhecer  com  tudo  ,  que  antes  de  feita  a 
divisão  fora  Espanha  governada  pelos  mesmos  dous  Gneo 
Cornelio  Lentulo,  e  Lúcio  Stertinio:  sinal  ,  de  que  cWc 
Dão  achou  cootradicção  nistoi   Nem  cu    também  acho  em 

re- 


bAs  SciXKciÀs  -DE  Lr^snoA.  iS^ 

reflectindo  ^  que  ou  esses  dous  que  governávâo  Espanha  ^ 
a  govcriiaváo  ambos  de  niáo  commum  j  ou  pela  divisão  dos 
dons  Governos  se  estabclcceo  que  ficasse  sendo  hum  costume 
ordinário,  c  perpetuo,  o  que  antes  era  extraordinário  e  variável. 

Alem  dos  dous  Pretores  ordinários  ,  vinhão  não  pou- 
cas vezes  a  Espanha  hum  dos  dous  Cônsules  ,  pedindo-o 
assim  alguma  urgência  particular,  como  se  irá  vendo  pe- 
lo decurso  desta  Dissertação. 

Em  tempo  destes  dous  Pretores  Caio  Sempronio  Tu- 
ditano  ,  e  JMarco  Hclvio  ,  se  rebcllaião  ambas  as  Espanhas 
contra  os  Romanos.  E  foi  esta  a  primeira  vez,  como  no- 
ra liivio  no  Livro  XXXIII.  cap.  26.  que  os  nossos  fizerão 
guerra  por  si  com  exercito  próprio,  e General  próprio.  Por* 
que  até  então  tinhão  sido  os  Carthaginczes ,  os  que  junca* 
mente  com  as  suas  tropas  commjndavã.>  as  nossas. 

Qiie  a  guerra  se  fizesse  enl  ambas  as  Espanhas  ,  cons- 
ta do  que  di/,  Livio  no  mesmo  Livro  XXXIIL  primeira- 
mente no  cap.  20.  que  na  Espanha  Ulterior  tomarão  as  ar- 
mas dous  poderotos  Régulos  delia  ,  Colcas  e  Lucinio  :  aquel- 
]c  senhor  de  desa>ete  cidades,  (ou  como  o  mesmo  Author 
tinha  escrito  no  Livro  XXVIIL  cap.  13.  de  vintoito  )  ;  este 
senhor  de  Cardona,  e  de  Bardona.  Depois  no  capitulo  ij,  qu« 
Caio  Sempronio  Tuditano  na  Espanha  Cirerior  fora  venci* 
do  em  batalha  ,  roto  e  posto  em  fugida  o  seu  exercito  ^ 
mortos  muitos  officiaes  de  conta  ,  eelle  também  mortalmen- 
te ferido ,  de  sorte  ,  que  pouco  depois  espirara. 

Esta  infausta  noticia  obrigou  o  Senado  ,  a  que  no  anno 
5^9  da  fundação  de  Roma,  e  ipj'  antes  da  era  de  Ghris- 
to,  mandasse  que  alem  dos  dous  Pretores  ordinários,  par- 
tisse também  para  Espanha  com  exercito  separado  hum  dos 
dous  Cônsules. 

Fora)  nomeados  por  Pretores  para  a  Espanha  Citerior 
Publio  Manlio ,  e  para  a  Ulterior  Appio  Cláudio  Nero :  e 
mandados  os  dous  Cônsules  Lúcio  Valério  Flacco  ,  e  Mar- 
co Porcio  Catão  sortear  entre  si  as  Províncias,  coube  Es- 
j)anba  a  Catão.  Livio  Liyro  XXXIIL  cap.  43. 

No- 


I<>0  MeMOKIAÍ    da   ACADEMI  aRsaL 

Nobilitou  Marco  Porcio  Catão  o  seu  Governo  d'Esj)a« 
nha  ,  não  só  pelas  victorias  c  conquistas ,  que  liie  conse- 
guirão a  honra  do  Triunfo  ,  como  attestao  os  Fastos  Ca- 
pitolinos  attribuidos  commumentc  a  Vcrrio  Flacco ,  cscritoi 
do  tempo  d'Augusto  ;  mas  também  por  hum  estratagema  , 
de  que  uzou  para  deixar  os  nossos  sem  defensa  ,  do  qual 
nos  dao  noticia  Júlio  Frontino ,  c  Sexto  Aurélio  Victor.  O 
estratagema  foi  ,  que  para  evitar  que  os  Povos  da  Espanha 
Citerior  se  tornassem  a  levantar  Confiados  nos  fortes  mu- 
ros ,  de  que  as  suas  cidades  estavão  cercadas ;  cscreveo  Ca- 
tão a  todas  as  cidades  rendidas  ,  mandando-ihcs  que  demo- 
lissem os  muros ,  sob  pena  de  lhes  tornar  a  fa/er  guerra. 
E  os  Povos  não  sabendo  ,  que  o  que  se  mandava  a  hum  se 
mandava  também  ao  outro,  todos  assim  o  fizcrao.  Frontino 
no  Livro  I.  Dos  Estratagemas  ^  cap.  i.  e  Sexto  Aurélio  Vi- 
ctor no  Livro  Dos  Varões  Illustres  ^  cap.  47, 

Isto  que  no  principio  da  guerra  praticou  Catão  com 
as  cidades  da  Espanha  Citerior,  foi  o  mesmo,  que  no  fim 
da  guerra  praticarão  muito  depois  os  Romanos  com  as  ci- 
dades daquclla  parte  da  Ulterior,  que  formava  a  nossa  Lu- 
sitânia. Assim  o  attesta  Estrabâo  no  Livro  III,  pag.  231. 
E  julga  Casaubon  ,  que  quem  imitou  nisto  o  exemplo  de 
Catão,  foi  Júlio  César,  que  como  escreve  Plutarco,  de- 
bellou  por  ultimo  os  Gallegos  e  os  Lusitanos.  Exccllcnte 
prova  do  valor  dos  nossos  ,  temerem-nos  os  Romanos,  ain- 
da depois  de  vencidos  ;  e  não  darem  por  seguro  o  seu  do- 
mínio na  Lusitânia ,  em  quanto  as  nossas  cidades  não  fos- 
sem reduzidas  a  aldêas. 

Tito  Livio  no  Livro  XXXIV.  cap.  17.  diz  que  a  pri- 
meira cousa  que  Catão  fizera  para  conter  os  Espanhoes  na 
sua  obediência ,  fora  tirar  a  todos  as  armas  :  mas  que  de- 
pois ,  sabendo  que  muitos  dos  nossos  levarão  tanto  a  mal 
esta  violência ,  que  a  si  mesmos  se  matavâo  de  puro  des- 
gosto ;  dera  em  fim  ordem ,  que  n'hum  mesmo  dia  fossem 
demolidos  os  muros  de  todas  as  cidades  da  Espanha  Cite- 
rior. Gente  feroz,  ajunta  o  mesmo  Historiador,  que  tinha 
■  ijfi  pfl- 


DAS   SciENCÍAS    DE  LiSBOA.  19! 

para  si  que  o  viver  sem  armas  nao  era  viver.    Ferox  geriu/  f 
tiullam  vitam  rati  sine  arfí:is  esse. 

Este  costume  de  se  matarem  pelas  suas  próprias  mãos, 
quando  se  vião  obrigados  ou  a  largar  as  armas,  ou  a  ren- 
dcr-se  aos  inimigos;  era  hum  costume,  que  Estrabão  no 
Livro  III,  pag.  249  faz  geral  em  todos  os  Povos  da  Es- 
panha, e  principalmente  nos  setentrionaes. 

No  principio  da  segunda  guerra  Púnica  ,  quando  An- 
nibal  sitiou  Sigunto,  os  moradores  desesperados  de  remé- 
dio, c  apertados  da  fome,  fizerão  na  Praça  huma  grande 
fogueira  ,  e  se  lançarão  nclla  com  tudo  o  que  tinhão  de 
mais  estimável  e  preciozo.  Valério  Máximo  Livro  VI.  cap. 
6. 

O  mesmo  durante  a  mesma  guerra  fizerão  os  morado- 
res da  outra  nossa  cidade  d'Astapa  ,  achando-se  estreitados 
a  hum  duro  cerco  por  Scipião  Africano.  Livio  Livro  XXVIIL 
cap.  23. 

Depois  da  terceira  guerra  Púnica  os  de  Numancia, 
vendo  que  Scipiao  Emiliano  nem  queria  levantar  o  sitio, 
nem  dar-lhes  batalha,  mas  obriga-los  a  rendor-se,  como 
humas  victimas;  huns  a  outros  se  matárâf)  ,  parte  com  fer- 
ro,  parte  com  veneno,  parte  com  as  chamas  cm  que  se 
precipitarão.  Floro  Livro  II.  cap.  1 8. 

Na  guerra  Cantabrica  em  tempo  d' Augusto ,  houve 
mãys ,  que  matarão  a  seus  próprios  filhos ,  por  não  virem 
a  cahir  em  poder  dos  Romanos:  c  hum  rapaz  de  pouca  ida- 
de ,  acolhendo  á  mão  huma  espada  ,  por  ordem  de  seu  pay 
matou  a  seus  irmãos.  O  mesmo  fez  huma  mulher  a  muitos 
homens,  que  com  ella  se  achavão  cativos  ;  mortos  os  quaes  , 
cila  se  matou  também  a  si  mesma.  Estrabão  Livro  III.  pag, 
249-  e  250. 

Para  estes  cazos  ,  costumavao  os  nossos  trazer  comsi» 
go  ,  ou  ter  prompto  emcaza  hum  veneno,  que  matava  sem 
dôr ,  feito  d'huma  erva  que  Estrabão  diz  se  parecia  com 
o  aipo ,  ou  das  bagas  de  teixo ,  como  diz  Floro.  Estrabão 
Livro  III.  pag.-2yx.  e  Floro  no  Livro  IV.  cap.  12.  Des- 
te 


191  Memofias  t)A  Academia  Real 

te  veneno  (í'Espanha  faz  tambcm  menção  Plinio  no  Livro 
XVI.  cap.  IO. 

Depois  de  Marco  Porcio  Catão ,  o  Governador  qac: 
mais  dilatou  o  império  dos  Romanos  na  Espanha  Citenor  , 
foi  Tito  Scmpronio  Gracco ,  sendo  Cônsules  Lúcio  Mani- 
lio  Acidino  ,  e  Quinto  Fuivio  Flacco  ,  anno  575:  da  funda- 
ção de  Roma,  e  179  antes  da  era   de   Christo. 

Polybio  n'lium  fragmento  que  nos  conservou  Estrabão, 
refere  que  este  Gracco  tomara  trezentas  cidades  nossas.  Po- 
rém Possidonio,  outro  Author  Grego,  que  depois  de  Po- 
Jybio  ,  e  antes  d'Estnibão  esteve  muito  tempo  cm  Espanha, 
diz,  que  esta  asserção  de  Polybio  fora  huma  exaggcração  , 
de  quem  quiz  exaltar  as  façanhas  de  Gracco,  nicttcndo 
no  numero  e  conta  de  cidades  até  as  aldeãs  e  castellos  ; 
como  succcdia  nos  triunfos  de  Roma  ,  onde  entre  os  si- 
mulacros das  cidades,  conquistadas,  se  costumavão  metter 
para  maior  pompa  ,  muitas  ,  que  não  merecião  tal  nome. 
E  este  mesmo  he  o  sentimento  do  referido  Estrabão  no  Li- 
vro in.  pag.  247,  que  depois  seguio  Frinshemio  no  Sup« 
plemento  da  Historia  de  Livio ,  Livro  XLL  cap.  3. 

O  fundamento  d'Estrabão  para  assentir  ao  juizo  ,  que 
Possidonio  fizera  das  conquistas  de  Gracco  na  Espanha  Ci- 
tcrior  ,  he  pnreccr-lhc  excessivo  o  numero  de  trezentas  ci- 
dades ,  consideradas  como  resto  das  muitas  outras,  que  Ca- 
tão pouco  antes  deixara  subjugadas.  Pelo  que  assenta  Estra- 
bão ,  que  os  que  derão  a  toda  a  Região  d'Espanha  mil  ci- 
dades,* foi  porque  contarão  neste  numero  também  as  al- 
deãs. E  com  eífeito  Floro  no  Livro  IL  cap.  17.  não  pôe 
conquistadas  por  Gracco  na  Celtiberia  senão  cento  e  sin- 
coenta  ,  isto  he ,  ametade  das  que  Polybio  contara. 

No  presente  assumpto  he  digno  de  se  notar  t.°  que 
dons  tão  grandes  críticos,  como  Casaubon  na  Syfiopse  ciro- 
vologica  da  Historia  Polybiana  ,  e  como  Pctau  no  Livro  XIIL. 
da  sua  Doutrina  dos  Tempos y  cahissem  no  descuido,  (por 
não  dizermos  infidelidade)  de  que  referindo  o  que  na  fé 
de  Polybio  escreve  Estrabão.,  que  Gracco  tomara  na  Espx-* 

aha. 


DAS  ScifiNci AS  DE  Lisboa.  193 

nha  citerior  trezentas  cidades,  omittisscm  ambos  o  juizo , 
que  deste  numero  fizerao  Possidonio  e  o  mesmo  Estrabáo. 

He  digno  de  se  notar  i.°  o  que  muito  depois  se  atre- 
veo  a  escrever  João  Dujat  ,  commentando  in  ustun  Delphini 
hum  lugar  de  Tito  Livio ,  que  trata  das  conquistas  de 
Gracco  na  Espanha  citerior.  Diz  Livio  no  Livro  XL,  cap. 
49 ,  que  Gracco  dentro  de  poucos  dias  rendco  á  sua  obe- 
diência cento  e  trcs  cidades  ou  villas  acastelladas :  c]ue  hu- 
ma  e  outra  cousa  significa  em  bom  latim  o  nome  oppidum , 
como  he  corrente  nos  Grammaticos.  Centum  tria  opptda  in- 
tra paucos  dies  in  deditionem  accepit.  Que  havia  de  escrever 
aqui  o  commentador  Francez  ?  Mirum  fuerit ,  si  tot  viços  in 
Celtiberia  ftiisse  dicamus.  Seria  huma  cousa  maravilhosa  ,  se 
se  dissesse ,  que  na  Celtiberia  havia  outros  tantos  lugarejos. 
Entre  tanto  Plinio  manifestamente  convence  a  ignorância 
deste  critico,  quando  no  Livro  III,  cap.  i  dá  na  Espanha 
ulterior  só  a  Betica  cento  e  setenta  e  sinco  cidades  :  e  no 
capitulo  3  a  toda  a  Espanha  citerior,  duzentas  e  noventa 
e  quatro.  Na  qual  conta  creio  cu  que  ninguém  dirá  ,  que 
Plinio  mette  aldeãs  no  numero  de  cidades. 

Em  memoria  do  seu  nome  e  do  seu  governo  ,  deixou  . 
Tito  Sempronio  Gracco  em  Espanha  a  cidade  de  Cracctir- 
rif.  Epitome  de  Livio  no  Livro  XLL 

Como  Festo  Pompeo  testifica  ,  que  a  cidade  que  do 
nome  de  Gracco  se  chamou  Graccurris  ^  se  chamava  antes 
Ilurcis  ;  infere-se  daqui ,  que  Gracco  não  a  edificou  de  no- 
vo, mas  a  ampliou,  ou  ornou  de  novos  edificios. 

De  Graccítrris  existem  amda  hoje  varias  medalhas  de- 
dicadas ao  Imperador  Tibério ,  de  que  faz  menção  Flores 
na  sua  collecção  das  Medalhas  d^ Espanha^  pag.  448.  Delias 
tlcra  muito  antes  noticia  o  Padre  Mariana.  Julga-se  que 
Graccurris  era  onde  hoje  está  Agreda  no  Reino  d'Aragão. 

Sobre  as  capitulações  que  Gracco  deixara  feitas  na  Es- 
panha citerior,  se  levantou  dahi  a  vinte  e  seis  annos  en- 
tre os  Espanhoes  e  o  Senado  Romano  huma  controvérsia, 
que  se  não  dirimio,  senão  pelo  arbitrio  das  armas.  O  caso 

y.  IX,  p.  I.  Bb  foi 


194  Memorias  DA  Ac ADEMiA  Retal 

foi  assim.  Sendo  Cônsules  Quinto  Fulvio  Nobilior,  e  Tito 
Annio  Lusco  ,  anno  6oi  da  fundação  de  Roma,  e  15-3 
antes  da  era  de  Christo ,  rebcUados  os  Bcllos  e  os  Tingos 
Povos  commarcãos  e  visinhos  do  Douro  ,  occupdrao  lums 
e  outros  Segeda  ,  cidade  mui  populosa  e  rica,  c  huma  das 
que  Gracco  tinha  feito  confederada  dos  Romanos,  e  co- 
meçarão a  cercalla  d'  hum  muro  de  quarenta  estádios.  Qiie- 
rendo  o  Senado  obrigallos  a  desistir  da  obra  ,  e  a  contri- 
buir com  os  impostos  e  levas  do  costume ;  responderão  os 
nossos ,  que  pelos  Tratados  de  Gracco  sim  estavão  cllcs 
prohibidos  d'edificar  cidades  novas,  mas  não  de  restaurar  e 
fortificar  as  velhas  :  e  que  no  tocante  a  contribuir  com  os 
impostos  e  recrutas  auxiliares  d'  huma  e  outra  cousa  os  ti- 
nha eximido  o  Senado  depois  da  paz  de  Gracco.  Não  es- 
teve por  estas  escusas  o  Cônsul  Nobilior.  Com  hum  exer- 
cito de  trinta  mil  homens  veio  sobre  Segeda.  Sabendo  isto 
os  Bellos  e  Tingos,  como  a  cidade  não  estava  ainda  bem 
murada  ,  fugirão  com  suas  mulheres  e  filhos  para  os  Are- 
Vuccos.  Mãocommunados  na  própria  defensa  os  três  Povos , 
elegem  por  General  de  todos  hum  Segedam  por  nome  Ca- 
ro. Dá-se  batalha  entre  Romanos  e  Espanhoes,  e  morrem 
de  parte  a  parte  seis  mil  homens ,  cntrclles  o  General  dos 
nossos.  Acolhendo-se  estes  aquclla  noite  a  Numancia,  ele- 
gem por  successores  de  Caro  dous  novos  Generaes  ,  Am» 
bão  e  Leucão.  Daqui  teve  principio  a  guerra  de  Numan- 
cia ,  que  durou  vinte  annos ,  com  igual  estrago  que  igno- 
minia do  Povo  Romano.  Supplemento  de  Livio ,  Livro 
XLVII,  cap.  36,  e  segg. 


DAS    SciENClAS   DE   LiSBOA.  t<;y 

§    V. 

Guerra  dot  nossos  em  tempo  de  Vtriatho.  Conquistas  de  Bruto 
na  Calliza  e  na  Lusitânia.  Renovação  da  guerra  ,  sendo 
Sertório  General  dos  nossos.  Fim  da  guerra  d^ Espanha  debel' 
lados  os  Cantabros  ou  Biscainhos.  Era  de  César  instituida  em 
honra  de  Augusto.  Fundação  de  Merida  ,  que  veio  a  ser  a 
Metrópole  da  Lusitânia  até  a  vinda  dos  Godos. 

Depois  do  grande  Annibal  Carthaginez  ,  não  houve 
no  mundo  capitão ,  que  mais  terror  causasse  aos  Romanos , 
e  que  deixasse  de  si  maior  fama  nas  Historias ,  do  que  o 
nosso  Viriatho,  segundo  do  nome.  Delle  fazem  honorifica 
menção  Cicero  nos  Officios  ,  Diodoro  de  SiciHa  noí  seus 
Excerptos ,  Vclleio  Paterculo,  Valério  Máximo,  Frontino 
na  sui  Obra  Dos  Estratagemas  ^  Silio  Itálico  no  Livro  V 
das  guerras  Púnicas,  Floro,  o  Epitomador  de  Livio ,  Ap- 
piano  na  Historia  Ibérica,  Sexto  Aurélio  Victor  no  Livro 
Dos  FarSes  Illiístres^  Justino ,  Eutropio ,  e  Orosio. 

Tudo  o  que  se  podia  compilar  de  tantos  authores  , 
reduzo  eu  a  illustrar  dous  lugares  de  Diodoro  de  Sicilia, 
que  escaparão  á  diligencia  de  Resende  ;  os  quaes  quando 
não  existissem  outras  memorias  de  Viriatho ,  bastarião  por 
si  sós ,  para  no-lo  darem  a  conhecer  por  hum  capitão  de 
singular  merecimento  entre  todos  os  nossos  ;  ou  como  se 
explica  Justino  no  Livro  XLIV,  cap.  z  pelo  único  que  Es- 
panha produzio  no  decurso  de  tantos  séculos. 

Todos  os  antigos  convém  ,  que  Viriatho  fora  Lusita- 
no de  nação,  e  que  de  pastor  passara  a  ser  salteador,  de 
salteador  a  general  d' hum  justo  exercito:  isto  he  confor- 
me Appiano,  d' hum  exercito  de  dez  mil  homens. 

Cícero  he  o  primeiro ,  que  eu  acho  ter  dado  a  Viria- 
tho o  nome  de  ladrão  ,  quando  no  Livro  II  Dos  Officios  , 
cap.  1 1  escreve  assim :    =  Também  dos  ladrões  se  diz  que 

Bb  ii  tem 


196  Memorias  da  Academia  Real 

tem  suas  leys.  Por  tanto  pela  igualdade  que  observava  na 
repartição  das  prezas  ,  teve  Bargulo  Ulyrico ,  como  se  lè 
em  Tiíeopompo  ,  grandes  riquezas,  e  Viriatino  Lusitano 
outras  ainda  maiores.  =  Qtiin  etiam  Jcgcs  latromtm  esse  di' 
cuiiíur,  Itaqtie  propter  aquabilem  pradíe  partitionem  Bargulus 
lllyricus ,  àe  qtto  est  apud  Tbeopompiim ,  magnas  opes  habuit , 
et  multo  maiores  Viriathtis  Lusitanus.  No  qual  texto  de  Ci- 
cero ,  ( para  também  advertirmos  isto  de  passagem )  quer 
Henrique  de  Vertois  ,  que  em  lugar  de  Bargtilus  se  leia 
Bardylís  :  por  ser  este  o  nome  ,  que  áquclle  Regulo  dos 
Illyricos  deráo  Helladio  Bcsontino  citado  por  Focio,  Dio- 
doro  de  Sicilia  no  Livro  XVI ,  cap.  4 ,  e  Plutarco  na  vi- 
da de  Pyrrho. 

O  nosso  Resende  persuadio-se ,  que  o  tratarem  os 
Romanos  de  ladrão  a  Viriatho ,  fora  effeito  de  seu  ódio  e 
da  sua  inveja  contra  elle,  para  com  este  ignominioso  titu- 
lo infamarem  a  memoria  d' hum  heroe,  que  tanto  os  ator- 
mentara e  abatera. 

Eu  de  boamente  conviera  neste  juizo  d' hum  tão  gran- 
de homem  ,  se  mo  não  tolhesse  a  respeitável  authoridade 
de  dous  escritores  tão  graves ,  e  tão  imparciacs ,  como 
Diodoro  c  Estrabão  :  os  quaes  ambos  dão  por  huma  cou- 
sa constante  e  averiguada  ,  terem  sido  os  nossos  serranos 
geralmente  avezados  a  viver  de  saltos  e  de  roubos:  porque 
faltando-lhes  o  sustento ,  por  causa  de  não  poderem  ou  não 
quererem  cultivar  as  terras ,  hiao  os  moços  em  grandes 
quadrilhas  a  prear  tudo ,  o  que  encontravão  nos  lugares 
commarcãos.  Assim  Diodoro  no  Livro  V,  cap,  34,  Tomo  I 
da  edição  de  Wesseling,  pag.  35'7  ,  e  Estrabão  no  Livra 
III,  pag.  231   da  edição  do  mesmo  Wesseling. 

Convém  igualmente  todos  os  antigos ,  que  o  que  deo 
occasião  a'  guerra  de  Viriatho ,  foi  a  perfídia  e  crueldade , 
com  que  Sérgio  Galba  fez  passar  á  espada  muitos  milha- 
res de  Lusitanos,  na  forma  que  atraz  fica  referida. 

Pela  attenta  combinação  porém  dos  Pretores  e  dos  fa- 
ctos, que  intervieráo  nesta  guerra  está  assentado  entre  to- 
dos 


DAS    SCIENCIAS    DE    LiSBOA.  I97 

dos  OS  modernos  críticos ,  que  entre  a  carnificina  de  Gal- 
ha e  a  eleição  de  Viriatho  em  General  dos  nossos ,  me- 
diarão sinco  annos.  Assim  o  advcrtio  entre  outros  Justo 
Lipsio  nas  notas  a  Velleio  Patcrculo.  A  diffcrcnça  está , 
que  Resende  seguindo  os  Fastos  de  Sigonio ,  põe  o  caso 
de  Galba  no  anno  602  da  fundação  de  Roma,  c  152  an- 
tes da  era  de  Christo  :  e  alliga  o  principio  do  Gcnerala- 
to  de  Viriatho  ao  anno  607  da  fundação  de  Roma ,  e  147 
antes  da  era  de  Christo  ,  que  he  também  a  chronologia 
que  Frinshemio  adoptou  nos  seus  Supplemcntos  da  Histo- 
ria de  Tito  Livio.  Mas  Petau  ,  a  quem  costumo  seguir, 
póe  o  caso  de  Galba  no  anno  603  da  fundação  de  Roma  , 
e  lyi  antes  da  era  de  Christo:  e  alliga  o  principio  do 
Gencralato  de  Viriatho  ao  anno  6c8  da  fundação  de  Ro- 
ma, e  146  antes  da  era  de  Christo.  Huns  e  outros  porém 
suppoem  ,  que  o  governo  de  Galba  coincidio  com  o  Con- 
sulado de  Lúcio  Licínio  Lucullo,  e  Aulo  Postumio  Albi- 
no :  c  que  Viriatho  fora  eleito  General ,  sendo  Cônsules 
Lúcio  Cornelio  Lentulo ,  e  Lúcio  Mummio  Acaico.  Logo 
por  ordem  ás  épocas  daquelles  dous  acontecimentos ,  não  ha 
entre  os  Chronologos  maior  differença  ,  do  que  a  d'hum  anno. 

Ouçamos  agora  dous  illustres  Excerptos ,  em  que 
Diodoro  de  Sicilia  resumio  tudo  o  que  ha  de  mais  glo- 
rioso na  vida  e  morte  de  Viriatho. 

O  primeiro  he  na  Écloga  V  do  Livro  XXXII,  To- 
mo II,  pag.  fij,  e  diz  assim:  =  Os  Lusitanos  no  princi- 
pio ,  como  não  tinhao  hum  hábil  General ,  que  os  reges- 
se ,  facilmente  na  guerra  com  os  Romanos  cedião  á  sua 
força  :  mas  depois  que  elegerão  a  Viriatho ,  causárão-lhes 
grandes  perdas.  Era  este  hum  Lusitano  ,  que  costumado 
des  de  moço  á  vida  de  pastor  e  de  serrano  ,  e  dotado  de 
huma  natureza  robusta,  veio  a  exceder  na  valentia  e  agi- 
lidade dos  membros  iodos  os  outros  Espanhoes.  Comia 
pouco :  e  de  sono  não  dava  ao  corpo ,  senão  o  que  abso- 
lutamente lhe  não  podia  negar.  A  sua  vida  era  exercitar- 
se  continuamente  no  trabalho  ,    trazendo  sempre  armas  de 

fer- 


198  Memorias  DA.  Academia  Real 

ferro  ,  pelejando  com  as  feras  e  com  os  ladroes.  Assim 
veio  Viriatho  a  fazer-se  celebre  no  povo ,  e  por  fim  crca- 
do  General ,  ajuntou  a  si  hum  esquadrão  de  salteadores. 
Fazendo  cada  dia  maiores  progressos  na  guerra  ,  não  so- 
mente se  fez  admirar  pelas  outras  virtudes  ,  mas  também 
mereceo  ser  julgado  excellcnte  em  todas  as  artes  Impcra- 
torias.  Além  disto  guardava  muita  justiça  na  repartição  dos 
despojos  \  e  á  medida  do  valor  que  os  soldados  tinhão 
mostrado  nas  occasióes  ,  erão  as  dadivas  e  mercês  ,  com 
que  engrandecia  a  cada  hum.  E  crescendo  cada  vez  mais 
em  espíritos,  dava  Viriatho  a  conhecer,  que  já  não  era 
hum  ladrão,  mas  hum  príncipe.  Fez  guerra  aos  Romanos, 
e  ficou  vencedor  delles  em  muitas  batalhas:  de  sorte  que 
debellou  a  Vetilio  General  dos  Romanos  com  todo  o  seu 
exercito  ;  e  depois  de  o  fazer  prisioneiro ,  lhe  tirou  a  vi- 
da. E  por  este  modo  concluio  felizmente  outras  muitas 
guerras ,  até  que  foi  eleito  General  contra  ellc  Fábio.  D'en- 
tão  por  diante  começou  Viriatho  a  descahir.  Mas  tornan- 
do a  recobrar  as  forças  ,  depois  de  ter  pelejado  illustre- 
mente  contra  F;'.bio  ,  o  obrigou  a  condições  indigms  do 
nome  Romano.  Porém  Cepiao  ,  a  quem  depois  se  entre- 
gou o  supremo  mando  do  exercito  ,  não  quiz  estar  por 
estes  pactos ,  antes  os  deo  por  nullos.  E  tendo  vencido 
por  vezes  a  Viriatho  ,  por  ultimo  quando  este  constrangi- 
do da  triste  situação  das  suas  cousas,  estava  resoluto  a  ca- 
pitular paz  ;  Cepião  subornando  alguns  dos  seus  domésti- 
cos ,  o  fez  matar  á  traição.  Succedendo  Teutano  em  lugar 
de  Viriatho  ,  Cepião  de  tal  sorte  aterrou  as  suas  tropas , 
que  o  obrigou  a  convir  nas  condições  que  elle  muito  quiz ; 
e  por  grande  favor  lhes  concedeo  cidades  e  campos ,  em 
que  vivessem.  = 

Atéqui  Diodoro:  cujo  lugar,  sobre  o  que  contém  das 
virtudes  e  acções  de  Viriatho  ,  se  nos  faz  também  muito 
estimável ,  em  quanto  nos  descobre  o  nome  do  outro  Re- 
gulo que  o  succedeo  no  governo  da  nossa  Lusitânia,  que 
foi  Tautano. 

Pa- 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  igí> 

Para  eterna  execração  c  infâmia  das  su;is  pcfsoas,  ii(;s 
deixou  Appiano  notados  os  nomes  dos  trcs  aleivosos  assas- 
sinos de  Viriatlio.  Chamavão-se  Audaz,  Ditalcão  ,  e  Mi- 
nuro  ,  os  que  comprados  por  Cepião  matarão  a  Viriatho  , 
estando  ellc  dormindo  sobre  a  terra  nua. 

Eutropio  acrescenta  ,  que  depois  de  executado  este 
cruel  parricidio,  vindo  os  matadores  requerer  a  Cepião  al- 
guma nova  recompensa,  Cepião  lhe  respondera:  Oiie  o  Se- 
nado Romano  nunca  approvdra  ,  qtte  bum  General  josse  morto 
pelos  seus  soldados. 

O  segundo  Excerpto  de  Diodoro  hc  do  Livro  XXXII, 
Tomo  II ,  pag.  5^97  ,  e  diz  assim  :  =  O  cadáver  de  Vi- 
riatho foi  celebrado  pelos  Lusitanos  com  humas  magnifi- 
cas exéquias  :  porque  junto  ao  seu  tumulo  forão  mandados 
pelejar  duzentos  pares  de  gladiadores ,  hcnra  justamente 
tributada  ao  eximio  valor  de  tal  heróe.  Porque  he  constan- 
te entre  todos,  que  Viriatho  foi  belicosissimo  nos  perigos, 
c  em  prover  no  que  mais  convinha,  sagacíssimo;  e  o  que 
he  o  principal  ,  em  todo  o  tempo  que  governou  as  tro- 
pas ,  tão  amado  dos  soldados  ,  como  ninguém  o  tinha  an- 
tes sido.  Por  quanto  ao  repartir  das  prezas  nunca  tomava 
para  si  o  mais  precioso  ;  e  das  cousas  que  a  elle  lhe  ca- 
biao ,  premiava  com  dadivas  os  valentes ,  e  sublevava  a  po- 
breza dos  outros.  Guardava  outrosi  huma  sobriedade  e  vi- 
gilância incrível,  sem  nunca  recusar  trabalho  ou  perigo  al- 
gum ,  e  sempre  inflexível  para  não  buscar  deleites.  E  na 
verdade  os  argumentos  do  seu  esforço  estão  bem  á  vista. 
Porque  tendo  sido  General  dos  Lusitanos  onze  annos ,  sem- 
pre as  suas  tropas  se  conservarão  não  somente  concordes 
sem  nenhuma  sedição,  mas  também  quasi  invencíveis.  Mor- 
to porém  Viriatho,  privados  de  tal  capitão  brevemente  fo- 
rão dissipados  os  Lusitanos.  =  Atéqui  Diodoro. 

Para  que  ninguém  se  espante  ,  de  que  em  honra  de 
Viriatho  fossem  mandados  brigar  junto  ao  seu  tumulo  du- 
zentos pares  de  gladiadores ;  Estrabao  no  Livro  III ,  pag. 
25"  I   nos  adverte ,   ter  este  sido  hum  costume  muito  ordi- 

na- 


200  Memorias  da  Academia  Real 

nario  dos  Espanhocs ,  matar-se  a  si  mesmos  em  obsequio 
dos  amigos  defuntos.  O  que  depois  d'listrabão,  testifica 
também  Valério  Máximo  no  Livro  II  ,  cap.  6.  E  não  he 
muito  ,  que  esta  barbaridade  se  praticasse  entre  os  povos 
d'  Espanha  ,  ferozes  por  natureza  e  por  criação  ;  quando 
cila  toi  também  adoptada  pelos  mesmos  Romanos  ,  c  du- 
rou entrelles  até  os  tempos  mais  polidos  e  civilisados  do 
Império. 

Morreo  Viriatho  no  ânno  614  da  fundação  de  Roma, 
e  140  antes  da  era  de  Christo  ,  sendo  Cônsules  Quinto 
Scrvilio  Cepião ,  e  Caio  Lélio.  Segundo  a  qual  chronolo- 
gia,  que  he  a  de  Petau  ,  juntos  os  sinco  annos  dos  prelú- 
dios desta  guerra ,  aos  seis  em  que  Viriatho  a  continuou , 
saiem  ao  justo  os  onze  annos,  que  ha  pouco  ouvimos  apon- 
tados por  Diodoro  ,  de  cujas  contas  pouco  discrepa  Justi- 
no ,  quando  escreve ,  que  Viriatho  fatigara  por  dez  annos 
os  Romanos  com  varias  victorias ,  que  delles  alcansou. 

Na  verdade  só  mettendo  numa  mesma  conta  os  an- 
nos, que  Viriatho  militou  como  particular,  e  os  que  mi- 
litou como  General  em  chefe  dos  nossos  ;  he  que  se  po- 
derão admittir  quatorze  annos,  que  Floro,  Eutropio  ,  e 
Orosio  assignão  á  guerra  de  Viriatho. 

Ainda  hoje  se  conserva  junto  a  Viseu  a  chamada  Ca- 
va de  Viriatho ,  que  he  hum  cabeço  de  terra  artificial  com 
barbaçaã  e  fosso ,  que  terá  de  circumferencia  (pois  he  re- 
dondo) huma  legoa.  Aqui  he  tradição  dos  moradores,  que 
Viriatho  se  costumava  intrincheirar  contra  os  Romanos.  Eu 
a  vi  e  passeei  mais  d*  huma  vez  no  anno  de  i/f?.  E  pes- 
soas sisudas  da  mesma  cidade  me  asseverarão  ,  que  na  Ca- 
mará se  guardavão  Provisões  do  Snr.  ElRei  D.  Duarte ,  en- 
commendando  muito  a  conservação  desta  Cava.  Porém  ella 
hoje  se  vê  toda  csbarrondada  e  cheia  de  barro,  por  causa 
dos  gados  que  nella  se  deixâo  pastar. 

O  que  Diodoro  affirma  no  segundo  Excerpto ,  que  tan- 
to que  Viriatho  faltou  aos  Lusitanos,  logo  estes  forão  des- 
feitos i   allude   ás  guerras   e   conquistas  de  Decimo  Junio 

Bru- 


DAS    SCIENCIAS    DE    LlSBOA<  20I 

Bruto,  de  quem  o  Epitomador  de  Livio  no  Livro  LV  es- 
creve, que  vindo  a  Espanha  sendo  Cônsul,  assignou  cam- 
pos aos  soldados  ,  que  tinhão  militado  sob  Viriatho ,  c 
lhes  deo  licença  para  fundarem  a  cidade  de  Valença,  que 
se  crê  ser  a  villa  que  ainda  hoje  conserva  este  nome  na 
Província  d'  Entre  Douro  e  Minho  :  e  que  nos  tomou  na 
Lusitânia  trinta  cidades. 

Veio  Bruto  a  Espanha  no  anno  6i6  da  fundação  de 
Roma,  e  138  antes  da  era  de  Christo ,  sendo  Cônsules  o 
mesmo  Decimo  Junio  Bruto,  e  Public  Cornclio  Nasica  Se- 
rá pi  ao. 

A  tempo  que  Bruto  fazia  guerra  aos  Lusitanos ,  vle- 
rão  em  socorro  destes  os  Gallegos  de  Braga.  Que  debaixo 
do  nome  de  Galliza  se  comprehendia  então,  e  se  continuou 
ainda  a  comprehendcr  em  tempo  dos  Godos  todo  o  Entre 
D  )uro  e  Minho.  A  este  exercito  de  Gallegos  e  Lusitanos 
deo  Bruto  batalha  junto  á  cidade  de  Morão  visinha  do  Te- 
jo :  e  era  tão  numeroso  o  nosso  exercito ,  que  posta  a  vi- 
ctori;i  da  parte  dos  Romanos ,  morrt3rão  sincoenta  mil  en- 
tre Lusitanos  e  Gallegos  ,  afora  seis  mil  que  ficarão  pri- 
sioneiros. Orosio  Livro  V,  cap.  j. 

Não  bastou  a  fama  desta  mortandade ,  e  o  estar  já 
quasi  toda  a  Lusitânia  subjugada  pelos  Romanos,  para  os 
naturacs  d'outra  cidade  nossa  por  nome  Cinninia  ,  perde- 
rem os  grandes  espiritos,  que  sempre  animarão  a  nossa 
gente.  Mandando-lhes  Bruto  pedir  certa  contribuição  ,  ti- 
verão  os  Cinninicnses  valor  para  responderem  aos  seus  Le- 
gados :  que  clles  tinhão  ferro  para  defender  a  sua  liberda- 
de ,  mas  que  seus  maiores  lhes  não  tinhão  deixado  ouro 
para  a  comprar,  Ferrum  sibi  ad  tueudam  libertatem  sumi , 
non  aurum  ad  emendam  relktum  a  maioribus  esse.  Valério  Má- 
ximo Livro  VI ,  cap.  4. 

Depois  de  sujeitar  a  Lusitânia,  marchou  Bruto  contra 
a  Galli/a.  Nesta  expedição  he  que  lhe  succedeo  ,  o  que 
tanto  exaggerão  para  gloria  de  Bruto  os  Escritores  Roma- 
nos ;  sendo  que  o  que  clle  fez  ,  foi  mais  efieito  d'  hum 
T.  IX.  P.  I.  Ce  es. 


202  Memorias  da  Academia  Real 

espirito  illuminado ,  do  que  prova  d'  hum  General  extraor- 
dinariamente intrépido.  O  caso  foi  assim.  Chegando  o  exer- 
cito Romano  ao  rio  Lima ,  não  se  atreviíío  os  soldados 
a  passallo,  detidos  d'huma  opinião  que  corria  no  vulgo, 
de  que  os  que  passavão  aquelle  rio  ,  perdião  a  memoria  de 
tudo  o  que  tinháo  no  mundo.  Esta  fabula  tinha  dado  20 
mesmo  rio  o  nome  de  Lethes  ^  que  quer  di/cr,  Rio  do  es- 
quecimento. Então  Bruto  tirando  a  bandeira  da  mão  ao  seu 
Alferes,  com  cila  na  sua  passou  á  outra  banda,  e  fez  com 
o  seu  exemplo  ,  que  conhecida  a  futilidade  do  agouro  ,  o 
seguissem  todos  sem  medo  algum.  Assim  o  mesmo  Epito- 
mador  do  Livro  IV  da  Historia  de  Livio  :  ao  que  allude 
Eloro  no  Livro  II,   cap.  17. 

Q^ie  este  rio,  que  Appinno  e  Silio  Itálico  chamão 
Lctbes ,  fosse  o  rio  Lima  ^  he  expresso  não  só  em  Pompo- 
nio  Mela,  Livro  III,  cap.  i  ,  e  cm  Plinio,  Livro  IV,  cap. 
22,   mas   também   cm  Estrabão ,  Livro  III,  pag.  229. 

O  principio  de  se  ter  introduzido  no  povo  a  ridícula 
pcrsuação ,  de  que  os  que  passavão  o  Lima  ficavao  esque- 
cidos de  tudo  ,  conta  o  mesmo  Estrubão  que  fora  este. 
Que  tendo  os  Celtas  e  osTurdulos,  (povos  alliados  que  vi- 
vião  em  diversas  comarcas  da  Espanha  ulterior)  feito  hu- 
nia  irrupção  contra  os  Gallegos  ,  succedeo  passado  o  rio 
Lima,  levantar-se  entre  huns  e  outros  huma  sedição,  e 
morrcr-lhcs  ppuco  depois  o  General.  Qiic  daqui  precedera , 
que  espalhados  por  diversas  partes  ,  todos  lá  ficarão  sem 
tornarem  mais  ás  suas  terras  :  e  que  por  esta  causa  come- 
çara aquelle  rio  a  chamar-se  o  Rio  do  esquecimento. 

Neste  mesmo  lugar  em  que  vamos  d'  Estrabão  ,  Li- 
vro III,  pag.  230,  escreve  este  gravíssimo  geógrafo,  que 
o  Lima  fora  o  termo  da  expedição  de  Bruto.  E  isto  mes- 
mo confirma  Appiano  ,  quando  diz ,  que  depois  da  passa- 
gem do  Lima  se  recolhera  Bruto  a  Pioma.  Donde  se  se- 
gue ,  que  Bruto  não  debellou  toda  a  Galliza  ,  mas  somen- 
te aquella  parte ,  que  hoje  forma  o  território  de  Braga. 

Não  he  para  esquecer,  que  tanto  nos  Fastos  Gapito- 

li- 


DAS    SCIENCIAS    DE    LlSP.  OA.  203- 

linos  de  Verrio  Flacco,  em  que  se  dá  noticia  de  ter  Bruto 
triumfado  em  Roma  dos  Lusitanos  e  dos  Galkgos ,  como 
nas  medalhas  que  ainda  hoje  existem  do  mesmo  Bruto  ,  se 
intitula  clle  não  Gatlaicus  por  G  ,  mas  Callaicus  por  C  ;  que 
he  também  como  Hstrabão  o  escreve. 


DISSERTAÇÃO     IX. 

X)rt.r  diversas  divisões  ,    que   os  Romanos  fizer  ao  da  Espanha. 
Da  civilidade  e  policia ,  a  qiie  reduzirão  os  seus  Povos. 


REs  divisões  da  Espanha  são  igualmente  celebres  na 
Historia  antiga  ,  que  constantes  entre  os  criticos  modernos. 
De  todas  três  tratarei  com  a  costumada  precisão ,  e  não 
sei  se  diga  também  diligencia. 

§     I. 

Da  primeira  Divisão  d'Espanha  em  duas  Provindas* 

Depois  da  segunda  guerra  Púnica ,  expulsos  da  Espa- 
nha os  Carthaginezes ,  dividirão  os  Romanos  toda  esta 
grande  região  em  duas  ,  cada  huma  com  seu  Governador 
separado.  Chamarão  a  huma  Espanha  Citerior ,  a  outra  Es- 
panha Ulterior, 

Prova-se  esta  primeira  Divisão  ,  do  que  escreve  Tito 
Livio  no  Livro  XXXII,  cap.  27,  é  28,  que  sendo  Côn- 
sules Caio  Cornelio  Cethégo  ,  e  Quinto  Minucio  Rufo  , 
isto  he,  no  anno  yjy  da  fundação  de  Roma,  e  197  antes 
da  era  de  Christo  ,  forão  creados  pela  primeira  vez  seis 
Pretores ,  quando  atélli  se  costumavão  crear  só  quatro :  por- 
que crescendo  já  o  numero  das  Provincias ,  e  dilatando-se 
cada  vez  mais  o  império ,  ficou  em  regra  ordinária  manda- 

Cc  ii  rem- 


204  Memobias  da  Academia  Real 

rcm-se  dous    a  Espanha  ;   hum  que  governasse   a  citcrior, 
outro  que  governasse  a  ulterior. 

Que  cm  quanto  durou  a  Republica,  não  se  conhcceo 
entre  os  Romanos  outra  divisão  da  Espanha  ,  he  claro  pe- 
los Historiadores  que  florecêrâo  no  fim  da  mesma  Republi- 
ca ,  Sallustio ,  Júlio  César ,  c  Hircio  ,  em  cujos  escritos 
não  se  acha  outra. 

A  duvida  he ,  donde  tomarão  as  duas  Espanhns  a  de- 
nominação de  Citerior  e  Ulterior.  Porque  sendo  estes  nomes 
formados  das  duas  preposições  latinas  Citra ,  que  quer  di- 
zer dáqucm  ou  da  banda  de  cá,  e  Ultra,  que  quer  dizer, 
dálem ,  ou  da  banda  de  la'.  Não  he  comtudo  fácil  designar 
o  termo  ou  limite,  que  sérvio  de  fundamento  a  estas  re- 
lações locaes.  Henrique  Flores  mais  suppoz ,  do  que  mos- 
trou, que  a  respeito  do  que  ficava  para  cá,  ou  para  lá  do 
rio  Ebro ,  he  que  os  Romanos  dividirão  a  Espanha  cm  Ci~ 
terior  e  Ulterior:  de  sorte  que  se  denominasse  citerior,  a 
que  respectivamente  a  Roma  estava  para  cá  do  Ebro  ;  e 
se  denominasse  ulterior ,  a  que  estava  para  lá  do  mesmo 
jio.  Mas  o  mesmo  Flores  reconhece,  que  debaixo  do  nome 
d' Espanha  citerior,  se  comprehendia  tudo  o  que  pela  se- 
gunda divisão  veio  a  chamar-se  Espanha  Tarracmiense '.  por- 
que assim  o  diz  expressamente  Plinio  no  Livro  111,  cap.  r. 
Citerior  eaãemqtie  Tarraconensis,  E  he  certo  que  a  Tarra- 
conense  continha  em  si  tudo  o  que  não  era  Betica  ,  nem 
Lusitânia:  c  consequentemente  muito,  do  que  a  respeito 
dos  Romanos  ficava  para  cá  do  Ebro. 

Acresce ,  que  Santo  Isidoro  de  Sevilha  no  Livro  XIV 
das  Origens,  cap.  4  deduz  as  denominações  de  citerior  e 
u'tcrior,  não  como  relativas  ao  mediar  do  Ebro,  mas  co- 
mo relativas  á  situação,  que  cada  hunia  tinha.  Porque  se- 
gue, que  a  citerior  se  chamou  assim,  tomada  a  preposição 
Citra  na  significação  de  Circa:  e  que  a  ulterior  se  chamou 
assim  ,  tomada  a  palavra  ulterior  na  significação  de  ultima : 
visto  que  depois  desta  parte  d'  Espanha  não  havia  outra 
alguma  terra.  Citerior  atitem  et  ulterior  dieta  ^  quasi  citra  et 

ul- 


DAS   SCIENCIAS   DE    LiSBOA.  lOf 

ultra  :  ci/ra  autem ,  quasi  circa  terras :  ultra  zero  qiiasi  n/ri» 
ma  ;  vel  quod  nua  sit  pott  bane  ulla ,  boc  est ,  alia  terra. 

Segundo  eu  cnrcndo  esta  etymologia  de  Santo  Isido- 
ro ,  cUc  tomava  por  Espanha  citcrior,  a  que  era  mediter- 
rânea, ou  do  sertão;  c  tomava  por  Espanha  ulterior,  a 
que  pelo  mar  se  separava  de  todo  o  mais  resto  do  mundo. 
E  esta  idea  coincide  com  a  d'Estrabão,  que  á  Espanha  ci- 
tcrior chama  interior,  e  d  ulterior  exterior. 

Fosse  porém  qual  fosse  o  termo  desta  primeira  divi- 
são, he  certo  que  durante  ella  no  seu  rigor  primitivo,  se 
chamava  Espanlia  citerior,  tudo  o  que  não  era  Gjlliza , 
Betica  ,  c  Lusitânia  :  e  que  estas  três  Províncias  erao  as 
que  formavão  a  Espanha  ulterior.  Porque  pertencer  Galliza 
no  principio  á  ulterior ,  hc  expresso  no  Epitomador  do  Li- 
vro LVl.  da  historia  de  Tito  Livio.  Assim  como  também 
se  não  pode  negar,  que  dividida  depois  a  Espanha  em  três 
Provincias  ,  veio  a  mesma  Galliza  a  pertencer  á  citerior, 
em  quanto  parte  da  Tarraconense  ,  o  que  brevemente  ve- 
remos de  Plinio. 

§     II. 

Da  segunda  Divisão  da  Espanha  em  três  Provindas. 

Dião  Cassio  no  Livro  LIIL  da  sua  Historia  Romana , 
pag.  309  da  Edição  Basilccnse  de  João  Oporino  ,  conta 
que  Augusto  César,  depois  que  o  Senado  lhe  confirmou  o 
Império,  dividira  com  huma  fiiia  politica  entrcsi  e  o  Se- 
nado as  Provincias,  que  então  o  compunhão  :  dando  ao  Se- 
nado e  Povo  Romano  a  administração  das  Provincias  ,  que 
por  pacatas  e  tranquillas  não  pediao  tantos  cuidados  ,  nem 
tantas  precauçÓes ;  e  reservando  para  si  as  outras ,  de  que 
ainda  se  podiío  temer  novos  tumultos.  Com  isto  se  armou 
Augusto  a  si  ,  e  desarmou  o  Senado  :  porque  toda  a  for- 
ça das  tropas  e  do  exercito  ficava  á  ordem  do  Imperador. 
Dando  pois  em  Espanha  aoSenado  a  Betica ,  escolheo  Au- 
gusto para  a  sua  disposição  a  Tarraconense  ,  e  a  Lusitânia. 

E 


2o6  MemoriasdaAcademiaReal 

E  esta  foi  a  segunda  Divisão  ,  que  Espanha  experimentou 
e  a  qual  consistio,  em  que  toda  a  chamada  então  Espanha 
citerior  se  reduziu  a  huma  Provincia,  que  da  insigne  ci- 
dade de  Tarragona  se  denominou  Tarraconensc  ;  e  toda  a 
Espanha  ulterior  se  rcduzio  a  duas,  que  crão  a  Betica  e  a- 
Lusitânia. 

Sobre  em  qual  dos  seus  Consulados  fez  Augusto  esta 
Divisão,  não  concorda  Cassiodoro  com  Diao  Cassio ,  da- 
do que  Flores  os  cita  a  ambos,  como  perfeitamente  acor- 
des neste  ponto.  Porque  Cassiodoro  a  põe  no  sexto  Con- 
sulado d'Augusto  :  Dião  Cassio  no  sétimo  ,  isto  he,  noan- 
no  727  da  fundação  de  Roma  ,  627  antes  da  era  deChris- 
to.  E  esta  he  com   eíFcito  a  verdadeira  Chronologia. 

O  primeiro  Escritor,  que  eu  acho  ter  feito  menção 
desta  segunda  partilha  d'Espanha ,  he  Estrabao,  que  com- 
punha a  sua  Geografia  em  tempo  de  Tibério ,  jmmediato 
successor  d'Augusto  ,  e  que  no  Livro  III.  pag.  2J3  625-4 
diz  assim  :  Os  Romanos  chamando  promistuamente  a  to- 
da a  Região  Ibéria  e  Espanha  ,  a  dividem  em  Interior  ou 
Citerior,  c  em  Exterior  ou  Ulterior.  Mas  elles  mesmos, 
attcndendo  á  diversa  administração  de  Governos ,  que  os 
tempos  vierâo  a  fazer  necessária  ,  a  dividem  ainda  d'outra 
maneira.  Em  nossa  idade,  como  as  Províncias  humas  se  as- 
smárão  ao  Senado  e  Povo  Romano  ,  outras  ao  Príncipe  ; 
coube  a  Betica  ao  Povo,  e  a  ella  se  manda  hum  Pretor 
com  hum  Questor  e  hum  Legado.  O  seu  limite  oriental 
lie  junto  -J  Castulaã  ,  (hoje  Cazlona  : )  Toda  a  mais  Es- 
panha he  do  César :  e  a  ella  se  mandão  dous  Legados , 
hum  na  qualidade  de  Pretor  ,  outro  na  qualidade  de  Côn- 
sul. O  primeiro  como  seu  Legado  administra  Justiça  na 
Lusitânia  ,  a  qual  confina  com  a  Betica  ,  c  chega  até  o  rio 
Douro,  e  á  sua  foz.  O  resto  d'Espanha  ,  que  he  a  sua 
maior  parte,  está  sujeito  ao  segundo  Legado,  que  o  go- 
verna com  authoridade  consular,  tendo  á  sua  ordem  hum 
exercito  de  trcs  cohortes ,  e  três  Legados.  O  primeiro  dos 
quaes   com  duas    cohortes   guarda    todo  aqucUc  território, 

que 


I 


DAS   SciENCIAS    DE    LiSBOA.  20^ 

que  para  a  banda  do  Setcntriao  fica  para  lá  do  rio  Douro  : 
o  qual  território  antigamente  se  chamava  Lusitânia,  c  ago- 
ra .SC  chama  Galliza.  O  segundo  com  huma  cohortc  gover- 
na os  contornos  dos  Pyrincos.  O  terceiro  sem  tropa  algu- 
ma governa  os  Povos  mediterrâneos,  que  habitao  d'huma 
e  outra  parte  as  ribeiras  dô  Ebro  ,  e  que  propriamente  se 
chamão  Celtiberos:  Povos  já  pacatos  e  civilizados  ,  que  com 
a  Toga  uzão  também  da  lingua  Itálica.  O  Prefeito  porém, 
ou  Legado  Augustal  ,  que  manda  sobre  todos  ,  pelo  inver- 
no costuma  residir  em  Carthngena  ou  em  Tarragona :  e  pe- 
lo estio  vizitar  toda  a  Província  em  Correição.  Atéqui  o 
Príncipe  dos  Geógrafos.  O  qual  já  muito  antes  tinha  obser- 
vado na  pag.  237  e  238,  que  a  instituição  demandar  três 
cohortes  para  a  Tarraconense  ,  fora  obra  d'Augusto  ,  a  exe- 
cução obra  de  Tibério. 

A  mesma  Divisão  da  Espanha  nas  referidas  três  Pro- 
vincias  ,  reconhece  Pomponio  Mela  ,  que  florecia  em  tem- 
po de  Cláudio.  Livro  IL  cap.  6.  Tribtis  autem  est  distinta 
ProrincUs ,  psrsqiie  ejvs  Tarraconcnsis ,  pars  Batka ,  pars 
Luiitíwia  vocatur. 

Piinio  que  dedicou  a  sua  Obra  a  Vespasiano ,  também 
não  dá  a  Espanha  senão  as  mesmas  três  Províncias  ,  iden- 
tificando a  citerior  com  a  Tarraconense.  Livro  III.  cap. 
1.  (e  não  como  cita  Flores,  Livro  I.  cap.  3.)  Prima  His- 
pânia terrarttm  est,  Ulterior  appellata.  Eadem  Batica.  Mosa 
a  fine  Urgitano  Citerior ,  eadeniqjie  Tarrocensis  .  . .  Ulterior 
in  duas  per  longitudinem  Provindas  dividittir.  Siquidem  Batica 
hteri  septentrionali ;  pr^ftenditur  Lttsitafiia ,  ^na  amne  discreta. 

O  testemunho  de  Ptolomeo,  que  ainda  alcançou  os 
tempos  d'Antonino  Pio,  e  que  no  Livro  II.  cap.  4.  Ta- 
boa  2.  também  não  divide  a  Espanha ,  senão  em  Betica  , 
Lusitânia,  e  Tarraconense.  Este  testemunho,  digo,  de 
Ptolomeo  ,  serve  de  mais  a  mais  de  mostrar  com  toda  a 
evidencia ,  que  desde  Augusto  até  Hadriano ,  não  se  fez 
em  Espanha  outra  Divisão.  Com  o  que  fica  convencida  de 
falsa  a  opinião  de  Panvinio  ,    a  quem    incautamente  seguio 

Pe- 


2o8  Memorias  da  Academia  Real 

Pedro  de  Marca  no  seu  Tratado  De  Priniatihis ,  que  pu- 
nha introduzida  por  Hadriano  a  Divisão  em  seis  Províncias  , 
que  nós  adiante  havc-mos  de  provar ,  que  teve  por  Author 
a  Constantino. 

Para  melhor  e  mais  commoda  administração  da  Justi- 
ça, instituhio  o  mesmo  Augusto,  que  as  três  Provincias  , 
cm  que  clle  dividio  toda  a  Espanha  ,  tivesse  cada  huma 
certo  numero  de  Conventos  Juridtces  ,  a  que  os  Povos  re- 
corressem ,  para  nelles  receberem  as  Decisões  dos  seus  li- 
tígios c  demandas.  Estes  Conventos  Jurídicos  explica  Flores 
com  D.  Rodrigo  da  Cunha  pelo  nome  de  Chancellarias  : 
eu  cuido  com  Gaspar  Barreiros ,  que  elles  se  exprimem 
melhor  pelo  nome  de  Relações.  Quantos  e  quaes  ellcs  fos- 
sem ,  o  mesmo  Plinio  o  declara  pontualmente  nos  seus  res- 
pectivos lugares.  A  Betica  tinha  quatro :  Cddiz  ,  Córdova  , 
Ecija  ,  e  Sevilha.  Plinio  Livro  III.  cap.  i.  A  Lusitânia  três: 
Méridã  j  Beja  f  e  Santarém.  Plinio  Livro  IV.  cap.  22.  A 
Tarraconense  ,  como  era  muito  mais  dilatada ,  tinha  sete : 
Carthagena  ,  Tarragona  ,  Saragoça  ,  Clunia  ,  Astorga  ,  Ltigo , 
e  Brirga.  Plinio  Livro  III.  cap.   3. 

O  mesmo  Plinio  nos  assegura  ,  que  ao  Convento  ou 
Relação  de  Braga  pertencião  vinte  e  quatro  cidades ,  e  con- 
corrião  a  elb  duzentas  e  setenta  e  sinco  mil  pessoas.  Clu- 
nia ficava  ao  occidente  d'Osma ,  entre  Corunha  dei  Con- 
de e  Penhalba. 

§   m. 

Da  Terceira  Divisão   da  Espanha  em  seis  ou  sete  Provincias, 

Com  a  restauração  de  Byzancio  ,  e  mudança  da  Cor- 
te Imperial  para  Constantinopla  ,  introduzio  Constantino 
no  Império  Romano  huma  nova  forma  de  Governo  e  de 
Magistrados.  Dividio  todo  o  Império  em  quatro  grandes 
Dioceses,  duas  no  Oriente,  e  duas  no  Occidente,  cada 
huma  das  quaes  tinha  por  Chefe  hum  Prefeito  do  Pretó- 
rio.  Subdividiu   estas  quatro    Dioceses    maiores   em  varias 

Dio- 


■•  DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  209 

Dioceses  menores,  tendo  cada  huma  seu  Vigário,  como 
Subalterno  do  seu  respectivo  Prefeito  do  Pretório.  E  tor- 
nou a  subdividir  cada  Diocese  menor  cm  certo  numero  de 
Províncias  ,  cada  huma  das  quaes  tinha  seu  Presidente , 
como  Subalterno  do  dito  Vigário. 

Os  dous  Prefeitos  do  Pretório ,  entre  os  quaes  se  di- 
vidio  o  Oriente ,  não  fazem  por  ora  ao  nosso  cazo.  Os 
outros  dous  do  Occidcnte  ,  hum  governava  a  Itália  com  as 
suas  Ilhas  adjacentes,  c  a  Africa.  Outro  tinha  por  Diocese 
as  Espanhas,  as  Gallias,  e  a  Graa  Bretanha.  O  Vigário 
das  Espanhas  tinha  debaixo  da  sua  jurisdicçao  seis  Provín- 
cias ,  sinco  dentro  do  Continente  e  huma  fora  delle.  As  sin- 
co  do  continente  erão  :  a  Betica  ,  a  Lusitânia  ,  a  Calliza , 
a  Tarraconetise  ,  e  a  Carthaginense  ,  ou  de  Carthagena.  A  que 
ficava  fora  do  Continente  era  z  Tingitana ,  chamada  também 
Transfretana  porque  era  da  banda  d'álem  do  Estreito  de  Gi- 
braltar ,  onde  hoje  está  Tangere  ,  chamado  cm  Latim  3"»;- 
gi ,  que  era   a  sua  Metrópole. 

Consta  esta  Divisão  da  Espanha  em  seis  Províncias, 
d'hum  notável  lugar  de  Sexto  Rufo  ,  que  no  seu  Breviário 
da  Historia  Romana  dedicado  ao  Imperador  Valentiniano 
I.  não  muito  depois  do  principio  escreve  assim  :  Per  ottines 
Hispanias  sex  sunt  nmc  Provinda  :  Tarraconensis  ,  Carthagineii' 
sis  y  Lusitânia ,  Gallacia  ,  Batica  :  Transfretum  etiam  in  solo 
terra  Africa ,  Provinda  Hispaniarum  est ,  qita  Tingitanica 
Mauritânia  coguominatur,  Ex  his  Batica  et  Lttsitania  Consula- 
res ;  cetere  Prasidiales  sunt.  Assim  o  leio  no  corpo  dos  an- 
tigos Escritores  Latinos,  que  tenho  impresso  em  Ebrodu- 
no  por  Pedro  de  la  Roviere  ,  anno  1Ó21,  pag.  638.  O  qual 
Texto ,  ainda  que  na  substancia  diga  o  mesmo  ,  que  o 
que  transcreveo  Flores ;  nas  palavras  com  tudo  varia  nota- 
velmente delle ,  talvez  por  culpa  do  Typografo  Espanhol. 
Porque  onde  o  nosso  Texto  diz  in  solo  ,  poz  Flores  í«j«- 
la :  onde  o  nosso  Texto  diz  Tingitanica  Mauritânia ,  poz 
Flores  someate  Tingitania. 

Mais  digno  de  ponderação  he,   que  quando  eu  e  Flo- 

T.  IX.  P.I.  Dd  res 


2IO  Memouias  vk  Academia.  Real 

rcs  nao  achamos  nos  nossos  exemplares  de  Rufo ,  senão 
seis  Prí)vincias  d'Espanha  ,  Pedro  de  Marca  parece  que  no 
seu  achava  sete.  Porque  na  Dissertação  De  Prtmatibus  ,  nu- 
mero CXXV.  descrevendo  o  Texto  de  Rufo,  mette  nellc 
em  sexto  lugar  as  Ilhas  Baleares  ,  c  em  sétimo  a  Tingita- 
na ,  ou  Transfretana.  Se  esta  addição  das  Baleares  niío  foi 
descuido  de  Marca  ,  mas  com  eflFcito  se  achava  no  Exem- 
plar de  Rufo,  donde  elie  transcrevia  o  presente  Texto  :  pó- 
de-se  ju^^tamente  duyidar  ,  do  que  Flores  dá  por  cousa  as- 
sentada ,  que  Honório  he  que  ajuntou  ás  seis  Provincias 
de  Constantino  a  sétima  formada  das  Baleares.  Com  cffci- 
to  a  Noticia  do  Império,  que  em  tempo  d'Honorio  se  pu- 
blicou ,  e  que  hoje  corre  illustrada  por  Pancirollo ,  dá  á 
Espanha  por  sétima  Provincia  as  Baleares.  Porque  eis-aqui 
o  que  cila  diz  na  parte  que  toca  á  Espanha.  Ficariíis  His- 
paniarum  ,  cujtis  Provincia  FII.  Consulares  três  ,  Baetica  ,  Lu- 
sitânia ,  Gall,ecia.  Frwsidum  quatuor  ,  Tarraconensis  ,  Ctirthagi- 
tieiisis ,  Tingitana  ,  Insulte  Baleares,  Daqui  infere  Henrique 
Flores ,  que  do  tempo  d'Honorio  he  que  á  Divisão  em 
seis  Provincias  feita  por  Constantino  ,  accedeo  a  sétima  , 
que  se  formou  das  Baleares  ,  que  hoje  dizemos  Malhorca 
e  Minorca.  Porém  as  referidas  palavras  da  Noticia  do  Int' 
perio ,  ninguém  deixa  de  ver,  que  mais  presuppõem  a  Di- 
visão, do  que  a  fazem.  Não  se  pôde  logo  porella  bem  de- 
cidir ,  se  a  addição  da  sétima  Provincia  começou  em  tem- 
po  dTIonorio  ,  ou  se  vinha  já  de  mais  atraz. 

Mas  examinando  eu  de  novo  por  outras  Edições  o 
Texto  d^;  Rufo  ,  acho  que  da  mesma  sorte  que  acima  o 
dei,  o  trazem  também  a  antiga  Edição  de  Sylburgio  feita 
em  Francford  no  anno  de  ijiS,  e  a  moderna  de  Haurisio 
feita  em  Heildeberga  no  anno  de  1743.  ^  daqui  concluo 
que  no  Texto  allegado  por  Marca  houve  equivocação  e 
descuido. 

Fosse  porém  quem  quer  que  fosse  o  Author  desta  ad- 
dição ,  sempre  pelo  Texto  de  Rufo  ;  e  pela  Noticia  do  Im- 
pério ficamos  sabendo ,  que  a  Betica ,  a  Lusitânia ,  e  a  Gal- 

li- 


DAS   S  CIÊNCIAS   DE   LiSBOA.  211- 

liza  ,  crão  Províncias  Consulares,  isto  hc ,  Províncias  ciijojr 
Governadores  tinhão  Alçada  e  Insígnias  de  Cônsules:  t  que 
as  outras  erão  Presidiaes  ,  ou  governadas  por  simples  Pre- 
sidentes:  o  que  denota,  que  as  primeiras  sercputavão  mais 
dignas  do  que  as  segundas. 

Ora  o  tcrem-se  annexado  ás  sinco  Províncias  do  Con-» 
tinente  d'Espanha ,  duas  fora  delle  ,  que  erão  a  Tingitana 
dlcm  do  Estreito,  e  as  Baleares  no  Mediterrâneo;  deve-se 
entender  que  foi  somente  por  ordem  ao  Governo  Civil ;  e 
não  quanto  ao  Ecclcsíastico.  Porque  he  hum  íacto  averigua- 
do ,  que  os  Bispos  da  Africa  Tingitana  nunca  concorrerão 
aos  Synodos  d'Espanha  ;  e  que  os  Bispos  das  Baleares  erão 
SuflFraganeos  do  Arcebispo  de  Calher ,  Metropolitano  da 
Sardenha.  Esta  he  a  razão ,  porque  todos  os  Monumentos 
antigos  d'Espanha ,  em  que  se  trata  das  suas  Províncias 
Ecclesiastícas ,  só  costumâo  nomear  as  sinco ,  que  dentro 
do  Continente  formavão  o  Estado  Civil:  a  saber,  a  Tar- 
raconcnsc  ,  a  Carthagíncnse  ou  de  Carthagena  ,  a  Galliza  , 
a  Botica  ,  a  Lusitânia.  Isto  se  vê  da  Decretai  de  Siricio  a 
Himcrio  de  Tarragona,  e  da  Re!»ra  da  Fé  que  anda  no  fiai 
das  Actas  do  primeiro  Concilio  Toletano ,  e  que  se  reno- 
-vou  no  primeiro  Bracarense. 

Destas  sinco  Províncias,  que  erão  no  Continente,  a 
■Galliza  comprehendia  não  só  o  que  hoje  se  chama  propria- 
mente Galliza ,  mas  também  as  Astúrias ,  e  a  Cantábria  , 
ou  Biscaia.  Assim  o  aiErma  em  termos  Orosio  no  Livro 
•VI.  cap.  2  1.  Cantahri  et  Astures  Gallteciíe  Provinciíe  portio 
stint.  O  mesmo  se  confirma  de  Idacio,  que  na  sua  Chro- 
niça  a  cada  passo  está  reduzindo  Lugo  eAstorga  á  Galliza. 

Estendia-se  outro  si  a  Galliza  a  todo  aquelle  terre- 
no ,  que  nós  hoje  chamamos  Entre  Douro  e  Minho.  Pro- 
va-se  de  que  o  mesmo  Idacio  na  Olympiada  CCCIX.  póe 
Braga  por  cidade  da  Galliza,  e  pela  sua  ultima  cidade.  Ad 
Bracaram  extremam  civitatem  GalUci<£.  E  mais  abaixo  póe 
parte  da  Galliza  sobre  o  Douro.  Regionem  Gallacia  adh^' 
rentem  fiumini  Durio  de^radantur. 

Dd  ii  A 


ai2  Memorias  DA  Academia  Real 

A  Divisão  da  Gailiza  em  duas ,  feita  porTheodomiro 
Rei  dos  Suevos  ,  no  anno  de  Christo  569  dizia  respeito 
somente  ao  Estado  Ecciesiastico  ,  cm  que  Braga  era  a  pri- 
meira Metrópole,  Lugo  a  segunda.  Assim  consta  das  Actas 
do  segundo  Concilio  Bracarense.  E  esta  mesma  Divisão 
da  Gailiza  em  duas  Províncias  Ecclesiasticas  ,  só  subsistio  , 
em  quanto  o  Reino  dos  Suevos  não  foi  absorvido  no  Im- 
pério dos  Godos. 

Ainda  no  século  XII,  isto  he,  pelos  annos  de  Christo 
II 17  SC  intitulivão  os  Arcebispos  de  Braga  Metropolitanos 
da  Gailiza.  Prova-se  da  Lenda  da  Trasladação  das  Relíquias 
de  Santiago  Intcrcizo  ,  que  andava  n'hum  Breviário  de  quar- 
to grande,  escrito  de  mão  no  século  XIV,  que  muitos  an- 
nos tive  cm  meu  poder  por  concessão  do  Sereníssimo  Sr. 
D.  Gaspar  Arcebispo  Primaz  das  Espanhas.  Nesta  Lenda 
diz  assim  o  Arcebispo  D.  Mauricio  seu  Compositor  :  Mau' 
ritius  Ego  Provinda  Galleci<e  divina  petatis  clementia  metro- 
folitamis ,  &c. 

De  dez  Povos  da  Gailiza  em  tempo  de  Vespasiano, 
faz  menção  huma  Pedra  ,  'que  ainda  hoje  existe  navilla  de 
Chaves  ,  donde  o  letreiro  foi  mandado  ao  Padre  D.  Jero- 
nymo  Contador  d'Argote ,  copiado  por  Thomaz  de  Távo- 
ra Secretario  do  Exercito  da  Província  de  Traz  dos  Mon- 
tes ;  ainda  que  muito  mal  copiado  como  mostra  e  sequei- 
ra Flores  no  Tomo  IV.  da  Espanha  Sagrada.,  pag.  313. 
Mais  de  século  e  meio  antes  que  escrevesse  Argote,  lí- 
nhão  Vaseo  e  Morales  allegado  a  mesma  Inscripção  Re- 
sende pelos  mesmos  tempos  allegava  a  segunda  parte  dei- 
la  ,  que  he  a  que  contem  os  nomes  das  dez  cidades ,  que 
são  estes  : 

CIVITATES  X. 

AQUIFLAVIENSES.  AOBRÍGENS. 

BIBALI.  COELERINI.  EQUOESIL. 

INTRRAMNICI.    LIMICI.  AEBISO. 

QUARGUERNI.    TAMACANL 

i»  _.  Des- 


DAS  ScENici  AS  DE  Lisboa.^  ^  215 

Destes  povos  os  Jlqitijlavienses  sao  indisputavelmcntô 
os  da  terra  de  Chaves ,  chamada  em  Latim  Aqu^e  llaiia. 
Os  Interamnkoi  são  os  d' Entre  Douro  e  Alinho.  Os  Litui- 
cos  são  os  que  habitavão  as  ribeiras  do  Lima.  Os  latiiaca-^ 
tioi  j  os  que  habitavão  sobre  o  Tamaga. 

Não  declara  esta  pedra  de  Chaves  o  motivo ,  por  que 
as  dez  cidades  dedicarão  a  sobredita  inscripção  ao  Impera- 
dor Vespaciano.  Mas  outra ,  que  também  ainda  hoje  se  lê 
na  ponte  da  mesma  Villa ,  expressamente  nos  informa,  de 
que  cm  tempo  de  Trajano  fizerão  só  os  Aquiflavicnses  á 
sua  custa  a  obra  da  ponte.  Porque  diz  assim  : 

IMP.  CÃES.  NERVAE 

TRAJANO   AUG.    GER. 

DACICO  PONT.  MAX. 

TRIB.    POT.    COS.    P.    P. 

AQUIFLAVIENSES 

PONTEM  LAPIDEUM 

DE  SUO  F.  C. 

Passando  já  á  nossa  Lusitânia ,  esta  dividia-se  da  Gal- 
liza  pelo  Douro,  e  dividia-se  da  Betica  pelo  Guadiana, 
lançando  hum  grande  braço  desde  o  Guadiana  até  o  Cabo 
de  S.  Vicente.  Tudo  temos  expresso  em  Plinio ,  de  quem 
sabemos  que  fora  Questor  em  Espanha.  No  Livro  III ,  cap. 
I.  Bwticie  latere  septentrionali  prietendiítir  Lusitânia  Ana  am- 
■tie  discreta.  E  no  Livro  IV,  cap.  21  :  A  Durio  Lusitânia  in- 
<cipit.  E  no  cap.  22.  Ab  Ana  ad  Sacrum  Lusitani.  Destas 
demarcações  de  Plinio  se  segue,  que  nem  tudo  o  que  hoje 
"hfc  de  Portugal,  era  antigamente  da  Lusitânia.  Porque  hoje 
he  de  Portugal  todo  o  Entre  Douro  e  Minho ,  que  anti- 
gamente pertencia  á  Galliza  ,  como  posto  para  lá  do  Dou- 
ro. Da  mesma  sorte  são  hoje  de  Portugal  Olivença ,  Afo«- 
rão ,  Moura ,  Serpa ,  e  outras  terras  ,  que  antigamente  per- 
tcncião  á  Betica  ,  como  postas  para  lá  do  Guadiana.  Se- 
gue-se  outro  si  pelo  contrario:  que  muitos  povos,  que  an- 
ti- 


214  Memorias  da  Academia  Real 

tigaraente  erão  Lusitanos,  não  são  hoje  Portuguezes; ,  mas 
Castelhanos.  Taes  são  os  de  Ávila ,  Salamanca  ,  Ciudad  Ro- 
drigo ,  Merida ,  (que  era  a  Metrópole  da  Lusitânia)  Alcân- 
tara y  MedeUim ,  Trugilho ,  Cáceres. 

A  célebre  inscripção  Latina  ,  que  passados  quasi  mil 
e  setecentos  annos  se  conserva  até  hoje  na  ponte  do  Tejo 
junto  a  Alcântara,  dá  noticia  de  dez  povos  da  Lusitânia, 
que  em  tempo  de  Trajano  concorrerão  para  a  íabrica  da 
mesma  ponte.  Eisaqui  os  seus  nomes. 

MUNICIPIA       ' 

PROVINCIAE 

LUSITÂNIA E  STIPE 

CONLATA.  QjQAE  OPUS 

PERFECKRUNT 

IGAEDITANI 

LANCIENSES  OPPIDANI 

TALORES 

INTERAMNENSES 

COLARNI 

LANCIENCES  TRANSCUDANI 

MEIDUBRIGENSES 

BANIENSES 

PAESURES 

Desta  inscripção  temos,  que  havia  na  Lusitânia  dous 
illustres  povos  do  mesmo  nome  de  Lancienses  ,  que  para 
se  diffcrençarem  huns  se  chamavão  Lancienses  OppiJanos , 
outros  Lancienses  Transcudanos ,  que  he  o  mesmo  que  Lan- 
cienses da  banda  de  lá  do  Goa.  D'  huns  e  outros  se  lem- 
bra Plinio  no  Livro  IV,  cap.  12,  como  também  dos  Co- 
lamos. 

Temos  mais ,  que  havia  na  Lusitânia  outro  illustre 
povo ,  chamado  Interamnium ,  cujos  moradores  se  dizião 
por  isso  Interamnenses ,  como  se  disséramos  ,  os  d'entre  os 
dous  rios:  e  estes  sem  duvida  diversos  dos  d'entre  Douro 

e 


DA  s  SciENCi  AS  DE  Lisboa.  2ir 

e  Minho ,  que  pertcncião  já  á  Galliza.  Ainda  hoje  aqucl- 
lo  tcnicorio  ,  onde  o  rio  Paiva  se  ajunta  com  o  Douro 
se  chama  d'Entre  ambos  os  Rios.  Pelo  sitio  pertencia  este 
território  á  Lusitânia  :  c  ainda  que  fica  mui  distante  do 
Tejo  ,  poderia  talvez  chegar  lá  a  contribuição  para  a  fa- 
brica da  ponte  d'Alcantara  ,  em  que  toda  a  gente  para  cá 
do  Douro  era  interessada  ;  assim  como  chegou  aos  de  Ci- 
ma Coa ,  que  também  não  distão  pouco  do  Tejo.  Estes  In- 
terumnenses  suspeito  eu  que  são  os  mesmos  ,  que  nas  edi- 
ções vulgares  de  Plinio  se  nomeão  erradamente  Interanen' 
ses. 

Os  Egiditanos  concordâo  todos,  que  são  os  da  Idanha. 

Os  Meidubrigenses  quer  Resende ,  que  scjão  os  .de 
Marvão,  cuja  cidade  Aleidubriga  he  célebre  não  só  nos  es- 
critos de  Plinio  ,   mas  também  nos  de  Hircio. 

Os  Arabrigenses  põe  Barreiros  em  Alenquer,  Vascon- 
ccllos  cm  Povos. 

Os  Pésttres  conjectura  Flores  ,  que  ficavão  perto  do 
Vouga  ,  visto  que  Plinio  depois  de  Pesures  nomea  logo 
este  rio. 

O  nome  de  Mimicipios ,  que  na  mesma  inscripçâo  d'Al- 
cantara  se  attribue  aos  dez  povos ,  que  concorrerão  para  a 
obra  da  ponte;  quer  dizer,  que  cada  hum  daquelles  povos 
tinha  suns  Icys  próprias,  por  onde  se  governava,  debaixo 
da  inspecção  dos  chamados  Duumviros ,  que  erão  nos  Mu- 
nicípios ,  como  os  dous  Cônsules  em  Roma  ;  dos  Decu- 
riões ,  que  correspondião  aos  nossos  Vereadores;  dos  Edi- 
les ,  que  correspondião  aos  nossos  Almotaceis. 

Sobre  o  nome  de  Portucale  y  donde  veio  a  formar-se 
Porttigallia  ,  observo  que  este  nome  em  quanto  contrahido 
á  cidade  do  Porto  ,  (donde  elle  se  communicou  a  todo  o 
Reino)  era  já  usado  no  quinto  século  da  Igreja  ,  como  se 
vê  da  Chronica  d'Idacio.  Estendido  porém  a  todo  o  Rei- 
no, hc  tão  moderno,  que  a  primeira  vez  que  o  encontro, 
he  no  Concilio  Coyacense,  celebrado  na  Diocese  d'Ovie- 
do  pelos  annos    de  Christo  105-0  ,    reinando  em  Espanha 

D. 


■2i6  Memorias  da  Academia  Real 

D.  Fernando  o  Magno.  O  titulo  oitavo  começa  assim  : 
Octavo  aiitem  titulo  niaiidamtts  ^  ut  in  Legione  et  in  suis  ter- 
nutiisy  in  Galltecia  et  in  Asturiis  ^  et  Portucalc y  tale  sit  judi- 
cium  setnper  f  &c. 

§     IV. 

Da  Civilidade  e  Policia ,  a  que  o  trato  com  os  Romanos  redu- 
zia por  ultimo  os  Espanhoes, 

Mostra-se  esta  cultura  dos  nossos ,  primeiramente  do 
que  escreve  Estrabao  no  Livro  III,  pag.  225:,  que  os  Tur- 
dctanos  c  Celtiberos  tinhío  adoptado  com  os  costumes  a 
lingua  e  trajo  dos  Romanos  ;  n<1o  fallando  senão  em  La- 
tim ,  e  não  usando  d'outra  forma  de  vestido,  que  a  da 
Toga. 

Mostra-se  em  segundo  lugar,  de  que  em  nenhuma  ou- 
tra região  do  Império  havia  tantas  cidades  ornadas  de  no- 
mes Romanos ,  como  em  Espanha.  Dizia-se  Casaraugusta , 
Saragoça  :  Emérita  Augusta ,  Mêrida  :  Pax  Augusta  ,  Bada- 
joz :  Felicitas  Júlia  ,  Lisboa  :  Liberalitas  Júlia  ,  Évora :  Past 
J  tília  ^  Beja:  Júlia  Myrtilis  j  Mértola  :  Norba  dssariensis  y 
Alcântara:  Castra  Júlia ^  Trugilho  :  Castra  Ccecilia,  Cáce- 
res. E  assim  outros  muitos  ,  que  traz  Plinio.  Por  donde 
não  falta  entre  os  nossos  antiquários  quem  julgue  ,  que 
Marialva  se  diz  por  corrupção  de  Marii  Arva^  como  tam- 
bém Jurumcnha  por  corrupção  de  Julii  Mania. 

Mostra-se  em  terceiro  lugar ,  pelo  que  o  mesmo  Es- 
trabão  no  Livro  III,  pag.  2^7  refere  da  grandeza  e  es- 
plendor de  Cadiz  :  dizendo  que  no  numero  dos  habitantes 
só  a  excedia  Roma  ;  e  que  em  ter  quinhentos  cavalheiros 
Romanos  nacionaes ,  só  a  igualava  Pádua.  Aumentou-a  e 
nobilitou-a  muito  a  esta  sua  pátria  Cadiz  hum  Espanhol 
por  nome  Cornelio  Balbo  ,  que  em  tempo  d'Augusto  foi 
Cônsul  em  Roma  ,  (o  primeiro  de  todos  os  estrangeiros) 
e   triumfou   dos  Garamantes ,   povos   da  Africa  Cyrenaica. 

Es- 


DAS   SciEHCIAS   DE   LiSBOA.  llj 

Estrabao  ibid.  Plinio  Livro  V ,  cap.  y  ,  c  Livro  VII , 
cap.  43. 

Mostra-sc  em  quarto  lugar ,  de  que  cm  tempos  tão 
polidos  dco  Espanha  a  Roma  os  trcs  melhores  Imperado- 
res que  ella  revê  depois  d 'Augusto  ;  doas  Gentios,  e  hum 
Christão.  Os  Gentios  forao  Trajano  e  Hadnano.  Dos  quacs 
Trajano  era  natural  da  cidade  d' Itálica  na  Bctica,  vizinha 
e  fronteira  de  Sevilha.  Hadriano  por  seu  pay  era  oriundo 
da  mesma  cidade  d'  Itálica  ,  c  por  sua  mãy  oriundo  de  Ca- 
diz :  o  que  tudo  he  expresso  cm  Esparciano.  O  Christão 
foi  Theodosio  o  Grande ,  por  cujo  nascimento  em  Galli- 
za  na  cidade  de  Cauca  ,  começa  Idacio  a  sua  Chronica. 

Em  tempo  deste  Imperador  foi  Prefeito  do  Pretório 
da  Diocese  do  Oriente  hum  Cynegio ,  famoso  nas  leys 
que  a  elle  dirigio  Theodosio,  insertas  depois  no  Código 
de  Justiniano.  O  qual  Cyncgio  eu  tenho  por  certo ,  que 
também  era  Espanhol ,  movido  de  que  o  mesmo  ou  outro 
Idacio  nos  seus  Fastos  Consulares,  depois  de  referir  a  sua 
morte  em  Constantinopla  ,  acrescenta  immediatamente  ,  que 
sua  mulher  Acancia  fizera  no  seguinte  anno  trasladar  o  seu 
corpo  para  as  Espanhas  trazido  por  terra.  Et  post  annutn 
transtulit  etitn  matrona  ejus  Acbantia  in  Hispauias  pedestre. 


DISSERTAÇÃO    X. 

Entrada  dos  Godos  y  Suevos  j  Alanos  ^  e  Vândalos  em  Espanha  f 
com  o  summario  das  consequências  desta  entrada. 


A 


iRRUpqXo  dos  povos  setentrionaes  nas  terras  do  Im- 
pério Romano  em  tempo  d' Honório,  he  o  successo  mais 
inemoravel  e  o  mais  estrondoso,  de  quantos  ee  lem  na  His- 
toria do  século  quinto  :  successo  que  encadeou  comsigo 
hum  numero  sem  numero  de  infortúnios  e  de  calamidades  : 
c  successo  donde  todos  os  eruditos  desumem  a  época  da 
Tomo  IX.  Ee  des- 


2i8  Memorijls  da  Academia  Real 

destruição  do  mesmo  Iinpcrio.  Roma  por  seiscentos  annos 
senhora  do  mundo,  de  repente  se  vê  nssaltada  e  enxovalha- 
da por  hnm  temeroso  exercito  de  Bárbaros  :  o  Imperador 
Honório  obrigado  a  pactear  condições  indignas  da  magesta- 
de  da  sua  pessoa,  e  da  do  Império.  Placidia  irmaã  d' Ho- 
nório levada  cativa  por  Alarico  para  casar  com  Ataulfo  ; 
Roma  em  fim  daquellc  ponto  em  diante,  feita  o  jogo  c  o 
ludibrio  das  nações  do  Norte ,  cjuc  como  á  competência  lhe 
vinhão  tirar  cada  huma  seu  pedaço :  de  sorte  que  dahi  a  se- 
ccnta  annos  apenas  se  viiío  nelia  as  sombras  do  que  fora. 

Hum  acontecimento  tão  grande  pelos  seus  adjuntos  e 
consequentes,  não  podia  deixar  de  ter  feito  hum  dos  prin- 
cipacs  pontos  de  vista  da  Providencia  do  Altíssimo  no  go- 
verno do  mundo  ,  e  no  da  sua  Igreja. 

Grandes  interpretes  do  Apocalypse  ,  seguindo  as  pi- 
zadas  do  sempre  illustre  e  sempre  respeitável  Bispo  Mr. 
Bossuet ,  querem  que  a  tomada  de  Roma  pelos  Godos  , 
preludio  da  total  ruina  do  Império,  fosse  como  o  objecto 
d'atribuição  daquella  sagrada  e  abstrusissima  profecia. 

§     I. 

Que  gentes  erSo  estes  Bárbaros  j  e  donde  vier  ao. 

Dado  que  a  nação  dos  Godos  fosse  conhecida  dos  Ro-" 
manos  já  do  tempo  de  Júlio  César,  como  com  Orosio  af- 
firma  Santo  Isidoro :  o  nome  dos  Godos  comtudo  eu  o  não 
acho  em  Author  algum ,  que  escrevesse  em  tempo  da  mais 
pura  Latinidade.  Sobre  o  que  basta  observar  ,  que  Plinio 
não  menciona  Godos. 

He  porém  innegavel ,  que  os  escritores  que  florecêrão 
entre  o  império  de  Diocleciano  e  o  de  Constantino,  como 
Esparciano,  Trebellio  Pollião  ,  c  Júlio  Capitolino,  fazem 
já  menção  delles  debaixo  daquelle  nome ,  quando  tratão 
das  cousas  de  Caracalla ,  de  Maximino,  e  de  Valeriano. 

Pelo  que  toca  á  origem  do  nome,  Santo  Isidoro  na 

chro- 


DAS   SciEHCtA^   DE   LiSBOA.  2I(^ 

chrotiica  dos  Godos  diz  ,  que  alguns  derivarão  o  nome  dos 
Godos  do  de  Magog  filho  de  Jafech  ,  ou  do  de  Gog  men- 
cionado por  Ezequiel  :  mas  que  todj  a  antiguidade  erudi- 
ta confundira  os  Godos  eom  os  Getas. 

Isto  que  sem  citar  a  S.  Jcronymo  escreve  Santo  Isi- 
doro,  foi  sem  duvida  tirado  por  elle  do  Doutor  Máximo, 
que  assim  mesmo  o  refere  nas  suas  Questões  Hebraicas  so- 
bre o  capitulo  decimo  do  Génesis. 

Em  dizer  porém  S.  JeronymOj  que  toda  a  ailtiguida-, 
de  erudita  confundira  os  Godos  com  os  Getas ,  allude  o 
Doutor  Máximo  ao  que  conta  Esparciano  na  vida  do  Im- 
perador Antonino  Caracalla.  Foi  o  caso,  que  Caracalla  por 
ter  vencido  os  Alemães  ,  tinha  arrogado  a  si  o  titulo  de 
jílamanico»  Helvio  Pertinaz  para  o  motejar,  disse-lhe  numa 
oecasião  :  Se  vos  parece ,  Senhor ,  ajuntai  ao  titulo  d^AlamA- 
nlco  o  de  Getico  Máximo.  Prosegue  Esparciano ,  e  declara  j 
que  o  pique  de  Pertinaz  se  fundava ,  em  que  Caracalla 
tinha  morto  a  seu  irmão  Geta  ^  e  que  Getas  se  chamavão 
os  Godos ,  que  elle  vencera ,  indo  de  caminho  para  o 
Oriente.  Adde  si  placet ,  etiam  Geticus  Maximiis  :  qiiod  Ge- 
tam  occiderat  fratrem ,  et  Gothi  Geta  dícerentur^  quos  illc  dum 
ad  Orientem  transiit^  dcvicerat. 

Allude  mais  S.  Jcronymo  a  escrever  Júlio  Capitolino 
na  vida  de  Maximino ,  que  Maximino  fora  em  extremo 
amado  dos  Getas  ,  como  seu  cidadão.  Amatiis  est  wiice  a 
Getis ,  quasi  eorttm  civis.  Assima  tinha  dito  Capitolino,  que 
o  pay  de  Maximino  era  Godo ,  a  mãy  Alana.  Bárbaro  etiam 
patre  et  ttuitre  genitus ,  quorum  alter  e  Goíhia,  alter  ex  Ma- 
nis. 

Ora  os  Getas ,  segundo  nos  informa  Plinio  no  Livro 
IV,  cap.  12,  erão  os  que  os  Romanos  por  outro  nome 
chamavão  Dacos.  Getíê .,  Romanis  Dacii  dicti.  E  isto  mesmo 
recoriheceo  depois  o  nosso  Paulo  Orosio ,  quando  no  Li- 
vro I,  cap.  i6  poz  a  Gothia  na  Dácia ,  e  reconheceo  que 
os  Godos  erão  o'^  mesmos ,  que  os  Getas, 

Mas  Trebeliio  Polliâo   na  vida   dos   dous  Gallienos  ^ 

Ee  ii  cha- 


220  MeMOUIAS  da   AcADEIfftA   RbAL 

chama  os  Godos  tronco  dos  Scythas.  Scytha  atitem^  id  est ^ 
pars  Goíhortun.  E  Santo  Isidoro  na  Recapitulação  da  sua 
Historia  dos  Godos  adverte ,  que  o  nome  de  Getas  atrri- 
buido  aos  Godos ,  he  huma  leve  alteração  do  nome  de 
Scythas :  GetíC  quasi  Scytha  sunt  wincupati. 

Para  se  conciliarem  estas  idcas ,  que  parece  se  encon-' 
trão  humas  com  outras ,  temos  a  Jornandes  Author  do  sex- 
to scculo  ,  que  de  propósito  escrcvco  das  cousas  dos  Ge- 
tas ou  dos  Godos :  e  que  começa  a  sua  Historia  pelas  di- 
versas emigrações,  que  cm  diversos  tempos  fizerão  os  Go-' 
dos  da  sua  terra  pátria  ,  que  era  a  ilha  ou  pcninsula  de 
Scaudinavia  ,  chamada  por  outro  nome  Scandia ,  ou  Scanzia , 
ora  á  Dacia ,  ora  á  Scythia  Europea,  ora  a  outras  regiões 
do  Norte.  Donde  se  conclue  ,  que  das  diversas  regiões  , 
em  que  tendo  sahido  do  seu  paiz  se  estabelecerão  ,  he  que 
os  Godos  ora  forao  confundidos  com  os  Getas  ,  ora  com 
os  Scythas. 

E  este  he  o  sentimento  mais  commum ,  e  mais  bem 
recebido  dos  modernos  críticos ,  dos  quacs  basta  citar  aqui 
a  José  Scaligero  nas  notas  á  Chronica  d'  Eusébio ,  e  a  Ni- 
coláo  Petreio  nas  suas  Origens  dos  Cimbros ,  e  dos  Godos. 

Como  não  he  do  meu  intento  tecer  a  historia  de  to- 
das as  emigrações  dos  Godos,  algumas  das  quaes  segun- 
do Jornandes,  succedêrao  muitos  annos  e  ainda  muitos  sé- 
culos antes  da  vinda  de  Christo  ao  mundo.  Passo  a  sub- 
stanciar os  transes  mais  notáveis  que  elles  passarão  em 
tempo  dos  Imperadores  Romanos ,  ainda  antes  que  inva- 
dissem a  Itália ,  á  França ,  e  a  Espanha :  pelos  quaes  tran- 
ses se  poderá  também  fazer  algum  conceito ,  de  quaes  fos- 
sem as  forças  e  a  valentia  destes  Bárbaros ,  nossos  fiimo- 
sos  ascendentes  e  progenitores. 

No  anno  de  Christo  2^6  ,  sendo  Imperador  Valeria- 
no ,  tomarão  os  Godos  aos  Romanos  a  Grécia  ,  a  Mace- 
dónia, o  Ponto,  a  Ásia  Menor,  e  o  lilyrico  :  das  quaes 
regiões  a  Macedónia  e  o  lilyrico  retiverao  elles  debaixo  do 
seu  poder  quinze  annos.  Santo  Isidoro  na  Chronica  dos  Godos. 

Sue- 


DAS   SCIENCIAS   OB   LiSSOA.  22f 

Succedcndo  a  Valeriano  o  Imperador  Cláudio  II ,  este 
dentro  d'  hum  anno  em  diversas  batalhas  que  lhes  dco  jun- 
to a  Marcianopolc  ,  a  Thcssalonica  ,  e  ao  monte  Hemo, 
desbaratou  trezentos  e  vinte  mil  Godos,  e  lhes  metteo  no 
fundo  duas  mil  nãos,  como  elle  mesmo  refere  numa  carta 
que  cscreveo  a  Junio  Brocco  Gjvcrnador  do  Illyrico.  Tre» 
bcllio  Polliáo  na  rida  de  Cláudio. 

O  antigo  Author  dos  Fastos  atrribuidos  a  Idacio , 
consigna  estas  victorias  de  Cláudio  sobre  os  Godos  no  Con- 
sulado do  mesmo  Cláudio  ,  e  de  Paterno  ,  que  cahio  no 
anno  de  Christo  269.  His  Cítiss.  victi  Gothi  a  Cláudio.  O  que 
admittido  como  certo ,  não  chegarão  os  Godos  a  reter  o 
Illyrico  e  a  Macedónia  quinze  annos,  mas  somente  quator- 
zc  talvez  incompletos:  pois  tantos  e  não  mais,  são  os  qus 
vão  de  ijò  a   269. 

Por  estas  tão  insignes  victorias  honrou  o  Senado  a 
Cláudio  com  três  monumentos  os  mais  brilhantes ,  que  po- 
dia inventar  a  vaidade  Romana.  Dedicou-lhe  na  Cúria  hum 
escudo  de  ouro,  onde  se  via  gravada  a  imagem  de  Cláu- 
dio vestida  de  sua  couraça.  Levantou-lhe  no  Capitólio  bem 
defronte  do  altar  de  Júpiter,  huma  estatua  de  dez  pés  de 
altura  também  de  ouro-  Erigio-ihe  na  Praça  huma  colum- 
na ,  que  servia  de  pedestal  a  outra  estatua  de  mil  e  qui- 
nhentas libras  de  prata ,  daquellas  que  por  estarem  todas 
rodeadas  e  marchetadas  de  palmas ,  chamava  o  estilo  da- 
quclle  tempo  Estatuas  Palnuitas.  TrebcUio  Pollião  na  mes- 
ma vida  de  Cláudio.    3b  2ci 

Imperando  Constantino,  e  no  seu  anno  vigésimo,  que 
foi  o  de  Christo  3;!  invadirão  os  Godos  a  Sarmacia ,  en- 
chendo tudo  de  estragos  e  de  mortes.  No  seguinte  anno 
de  332  os  repellio  Constantino,  fazendo-os  passar  para  a 
banda  dálem  do  Danúbio :  com  o  que  mereceo  as  publicas  , 
acclamações  do  Senado.  Sjnto  Isidoro  na  sua  Chronica  , 
Combinado  com  os  Fastos  de  Idacio.  r  3Í>íj^ 

No  anno  de  369  sendo  Imperador  Valente ,  diz  San- 
to Isidoro   que  fora  Athanarico  crcado  primeiro  Rei    dos 

Go- 


i2i  Memoriaí  da  Academia  Real 

Godos.  Creio  que  lhe  chama  primeiro  no  conhecimento  c 
trato  mais  intimo  com  os  Romanos.  Porque  aliás  antes  de 
Athanarico ,  reconhece  e  nomea  Jornandes  outros  Reis  dos 
Godos  muito  mais  antigos:  como  Corillo  ,  Berig,  e  Ge- 
bcrig.  E  quatrocentos  annos  mais  antigo  de  que  Jornan- 
des, celebra  Estrahão  no  Livro  VII  outros  dous  Reis  Go- 
dos, Byribistas,  e  Dromiquetas.  Ainda  assim  em  Espanha, 
como  Santo  Isidoro  foi  sempre  tido  por  texto  das  cousas 
Gothicas ,  todos  os  catálogos  antigos  dos  Reis  Godos  co» 
meção  por  Athanarico. 

Como  passados  alguns  annos  se  dividissem  os  Godos 
em  dous  partidos ,  reconhecendo  huns  por  seu  Rei  a  Atha- 
narico ,  outros  a  Fridigerno :  auxiliou  o  Imperador  Vidente 
a  Athanarico ,  para  que  este  vencendo  em  batalha  a  Fridi- 
gerno ,  ficasse  único  senhor  do  Reino.  Então  mandou  pe- 
dir Athanarico  a  Valente ,  que  lhe  enviasse  sacerdotes ,  que 
instruissem  os  Godos  na  Religião  Christaã.  Valente  como 
Ariano  que  era,  mandou-lhe  sacerdotes  Arianos,  cuja  he- 
resia professa'rão  e  conservarão  os  Godos  até  o  tempo  de 
Reccaredo.  Por  este  tempo  da  missão  enviada  por  Valente , 
tiverão  os  Godos  hum  Bispo  da  sua  nação  chamado  Galfilas 
ou  Ulfilas ,  que  inventou  os  caracteres  Gotliicos ,  e  tradu- 
zlo  na  sua  Lingua  a  Sagrada  Escritura  do  Velho  e  Novo 
Testamento. 

Não  obstante  porém,  que  deste  tempo  em  diante  fi- 
cou o  coramum  da  nação  Goda  inficionado  com  a  heresia 
Ariana ;  comtudo  de  varias  cartas  de  S.  João  Chrysostomo 
se  faz  certo  ,  que  em  tempo  deste  Santo  Patriarca  e  no 
Império  de  Arcádio,  havia  em  Constantinopla  muitos  Go- 
dos Catholicos  com  sua  Igreja  própria  ,  onde  os  clérigos 
Godos  ordenados  por  S.  João  Chrysostomo  celebravão  com 
edificação  os  officios  Divinos.  E  o  mesmo  Santo  Patriarca 
deo  para  a  Gothia  hum  Bispo  por  nome  Unilas,  homem 
d'admiravcl  virtude  ,  que  eu  creio  era  da  mesma  nação. 
Veja-se  Tillemont  na  vida  de  S.  João  Chrysostomo,  Arti- 
go LII  e  LIV.  O  qual  Tilieraont  todavia  julga ,  que  es- 
tes 


CAS  S^ciENCiAS  Df  Lisboa.  zij 

tcs  Goc?ds  eráo  diversos  daquelles  ,  que  expulsos  do  seu 
paiz  pelos  Hiinnos,  se  tinhao  valido  da  protecção  de  Va- 
lente,  como  já  vamos  a  cxpòr. 

No  anuo  de  376  (prefiro  os  cálculos  d' Idacio  aos  que: 
vai  seguindo  Santo  Isidoro)  lançados  tora  da  sua  terra  os 
Godos  pelos  Hiinnos,  se  valerão  aquelles  da  commiscração 
de  Valente ,  o  qual  lhes  concedco  para  habitarem  a  Thra- 
cia.  Alas  aqui  vendo  os  Godos  que  os  Romanos  os  oppri- 
miáo  ,  logo  no  seguinte  anno  de  377  se  rcbcjlárão  contra 
o  Império,  Passando  Valente  a  dar-lhes  batalha  dentro  da 
mesma  Thracia ,  foi  o  exercito  Romjno  dei;feito  pelos  Go- 
dos ;  e  Valente  que  ferido  d'  huma  lançada  se  tinha  aco- 
lhido a  huma  cabana  do  campo,  morrco  queimado  dentro 
delia,  correndo  o  anno  de  37S.  Santo  Isidoro  na  sua  Chro- 
nica  combinado  com  Idacio  nos   Fastos. 

He  not.ivcl  o  modo ,  com  que  o  referido  Idacio  con- 
ta nos  seus  Fastos  a  desventura  de  Valente.  Porque  diz 
assim  :  Sendo  Cottmles  Valente  a  sexta  vez ,  e  Falentiniano  a 
segunda^  (hc  justamente  o  dito  anno  de  Christo  378)  par- 
tia Valente  Aigti^to  de  Con~tantinopla  no  dia  três  dos  Idus  de 
Junho ,  e  deo-se  huma  gran.ie  batalha  entre  Romanos  e  Godos 
a  dez  milhas  d' Hadrianopole  ^  dia  sinco  dos  Idus  £  Agosto.  E 
desde  aqnelle  dia  nunca  mais  appareceo  Valente  Augusto.  E  por 
ttdo  o  anno  habitarão  os  Godos  juntos  na  Diocese  das  Thra- 
cias ,  e  da  Scythia ,  e  da  Mesta ,  e  as  devastarão  :  e  depois 
chegarão  até  ás  portas  de  Constantinopla. 

No  anno  de  381  imperando  já  Theodosio  o  Grande, 
morto  em  Constantinopla  Athanarico  Rei  dos  Godos,  se 
renderão  estes  ao  Império  ,  e  servirão  nclle  vinte  e  oito 
annos.  Fastos  d* Idacio,  e  Chronica  de  Santo  Isidoro. 

O  mesmo  ou  outro  Idacio  na  sua  Chronica  nos  ad- 
verte ,  que  este  entregarcm-se  os  Godos  aos  Romanos ,  fo- 
ra como  huma  paz  simulada.  Gothi  infida  Romanis  pace  se 
tradunt. 

Por  este  tempo  he  que  se  lamentava  Santo  Ambró- 
sio ,   de   que    a  Guarda    do  Coroo   dos  Imperadores  fosse 

for- 


144  Memorias  da  Academia  Real 

formada  d'Archciros  Godos  :  isto  he ,  formada  d'  huns  in- 
veterados inimigos  do  Império.  Santo  Ambrósio  nos  Livros 
De  Fide  a  Graciano. 

Então  mesmo  era  hum  dos  Condes  do  Império  aqucl- 
le  Alarico ,  que  depois  cm  tempo  d' Honório  feito  Rei 
dos  Godos,  acommetteo  c  tomou  Roma.  He  reflexão  do 
nosso  Paulo  Orosio ,  donde  a  tirou  o  grande  Bossuet ,  pa- 
ra illustrar  com  ella  hum  dos  mais  escuros  lugares  do  Apo- 
calypse. 

Poucos  annos  antes  que  Alarico  tomasse  Roma,  tinha 
outro  Rei  Godo  por  nome  Radngasio ,  posto  em  consterna- 
ção toda  a  Itália  ,  com  hum  exercito  de  duzentos  mil  homens. 
Mas  fechado  por  Stilicao  entre  os  montes  da  Toscana  ,  pe- 
receo  Radagasio  com  todo  o  seu  exercito  ,  mais  á  torça 
da  fome ,  do  que  á  da  espada.  Chronica  de  Santo  Isidoro. 

Passando  já  dos  Godos  aos  Suevos,  de  que  já  debai- 
xo deste  mesmo  nome  faz  menção  Júlio  César  :  Estrab.io 
no  Livro  VII,  pag.  445-  c  segg.  os  colloca  na  Germânia 
entre  o  Rhin  e  o  Albis ,  dando-lhe  por  habitação  princi- 
pal o  bosque  Hcrcynio ,  c  incluindo  nelles  os  Marcomma- 
nos  ,  povos  que  João  Christovão  de  Jordan  nas  suas  Ori- 
gens Slavkas  quer  que  sejão  os  Bobemos.  O  dito  bosque 
Hercynio  affirma  Júlio  César  no  Livro  VI  Be  Bello  Callico ., 
cap.  24 ,  que  tinha  de  largura  nove  dias  de  jornada.  Pom- 
ponio  Mela  no  Livro  111 ,  cap.  3  lhe  dá  por  todo  o  âm- 
bito o  caminho  de  secenta  dias.  Ainda  hoje  forma  a  Sue- 
via  hum  dos  dez  Círculos ,  em  que  se  divide  o  Império 
Germânico :  e  daqui  sahírão  nos  séculos  XII  e  XIII  os  dous 
primeiros  Imperadores  Fridericos. 

Quanto  aos  Alanos,  Plínio  no  Livro  IV,  cap.  12  os 
p6e  na  Scythia  Europea,  visínhos  dos  Roxolanos,  os  quaes 
alguns  modernos  julgão ,  que  crão  os  que  por  outro  nome 
se  chamâo  hoje  Moscovitas.  Ammiano  Marcellíno  no  Li- 
vro XXXI ,  cap.  2  e  3  faz  os  Alanos  vindos  da  Ásia  para 
a  Scythia  Europea,  e  coUoca-os  habitando  sobre  ^)Tanais, 
que  lhes  deo  o  outro  nome  de  Tanaitas. 

Fi- 


DAS   SciENCIAS   DE    LiSBO/V.  aif 

FinaJmente  os  Vândalos ,  sabe-se  pelo  testemunho  de 
Procopio  na  sua  Historia  De  Bel/o  Wandalico  ,  que  erao  ori- 
ginariamente da  raça  dos  Godos.  E  sabe-se  outro  si  pela 
Historia  Gctica  dejornandes  ,  que  desunidos  por  guerras  dos 
Godos  seus  Aborigines ,  e  expulsos  por  elles  da  Dacia  ,  fo- 
rão  os  Vândalos  habitar  na  Pannonia  hoje  Hungria ,  sendo 
Imperador  Constantino  :  e  que  na  Pannonia  se  achavão  a 
tempo  ,  que  imperando  Honório  os  incitou  Stilicão  a  vi- 
rem assolar  as  Gallias ,  e  depois  as  Espanhas  ,  para  onde 
marcharão  juntamente   com  os  Alanos  e  Suevos. 

§     II. 

Em  que   tempo   entrarão  as  Nações  setetitrtonaes  em  Espanha. 

Os  Suevos,  Alanos,  e  Vândalos,  entraVão  primeiro 
em  Espanha,  e  entrarão  todos  juntos.  Depois  delles  esta- 
rem de  posse  d'Espanha,  he  que  entrarão  nella  os  Godos. 
Tudo  ficará  claro  ,  dos  Documentos  que  vou  a  propor. 

Os  Suevos  pois  ,  os  Alanos  ,  e  os  Vândalos ,  entrarão 
d'alkivião  em  Espanha  no  anno  de  Christo  409. 

Prova-se  da  Chronica  d'Idacio  Bispo  de  Chaves,  que 
sobre  ser  escritor  nacional  ,  foi  também  coetâneo  ,  e  no  se- 
gundo anno  da  Olympiada  CCXCVII.  diz  assim  :  jllani , 
et  Wandali ,  et  Suevi  Hispatiias  ingressi.  Aera  CCCCXLVII. 
Honório  VIU.  et  Tbeodosio  Arcadii  filio  111.  Consulibus.  Quer 
dizer :  Na  era  de  447  entrarão  os  Alanos  ,  e  Vândalos ,  e 
Suevos  em  Espanha,  sendo  Cônsules  Honório  a  oitava  vez, 
e  Theodosio  filho  d'Arcadio  a  terceira. 

Abatão-se  da  sobredita  era  de  César  447  os  38  an- 
nos  ,  que  ella  leva  de  dianteira  ao  nascimento  de  nosso  Sal- 
vador: e  ella  nos  dará  pontualmente  o  anno  de  Christo 
409. 

Do  mesmo  anno  409  são  Índices  infalliveis  as  outras 
duas  notas,    com  que  Idacio  marcou  esta  entrada  dos  Bár- 
baros em  Espanha :   isto    he ,    a  nota    do  Consulado  VIII. 
Tomo  IX.  Ff  d'Ho- 


aié  Memorias  da  Academia  Real 

d'Honorio ,  c  terceiro  de  Theodosio  :  e  a  nuta  do  segua- 
do  anno  da  Olympiada  CCXCVIl.  Porque  ainda  que  Sir- 
mendo  c  Petau  disserão ,  que  o  anno  da  entrada  dos  Bár- 
baros cm  Espanha  fora  o  primeiro  da  dita  Olympiada 
CCXCVIl.  foi  porque  (como  advertio  Flores)  não  repa- 
rarão que  asOlympiadas  d'ldacio  erao  Euscbianas ,  que  vão 
hum  anno  adiantadas  das  vulgares. 

No  mesmo  anno  de  Christo  409  correspondente  ao 
Consulado  oitavo  d'Honorio  c  terceiro  de  Theodosio  ,  po- 
scrão  com  Idacio  a  entrada  dos  Suevos ,  Alanos ,  e  Vânda- 
los cm  Espanha,  os  outros  dous  igualmente  famosos  Chro- 
nisras  Prospero  e  Cassiodoro. 

De  propósito  deixo  d'allegar  pela  Época  da  entrada 
dos  Bárbaros  em  Espanha  o  Author  dos  Fastos  chamados 
Idacianos  ,  qiic  tambcm  a  poe  no  Consulado  oitavo  d'Hp- 
noiio  c  terceiro  de  Theodosio  :  porque  depois  do  indubitável 
Idacio  na  sua  Chronica  ter  estabelecido  a  Época  da  dita 
entrada  tio  clara  e  distinctamente  ,  como  vimos;  parece 
escuzndo  allcgar  o  testemunho  d'huns  Fastos ,  que  se  não 
eabe  de  cerro  ,  se  são  do  mesmo  Idacio. 

Mas  não  he  para  se  omittir  a  averiguação,  sobre  que 
Chronologia  scguio  no  presente  assumpto  Santo  Isidoro  que 
«m  pontos  da  historia  d'Espanha  ,  he  depois  d'Idacio  o  se- 
gundo Texto. 

Tendo  pois  Idacio  designado  com  tantos  e  tão  distin- 
ctos  caracteres  ,  o  anno  da  entrada  dos  Suevos  ,  Alanos , 
e  Vândalos  em  Espanha  ;  parece  incrível ,  que  Santo  Isidoro  , 
que  como  observou  Pagi  ,  costuma  transcrever  a  Idacio  por 
palavras  formacs ,  apontasse  outra  Época  daquclla  entrada. 
.  O  caso  porém  he  ,  que  não  só  na  Edição  Real  de  Ma- 
drid de  1Í99.  mas  ainda  na  novissima  de  Madrid  de  1778. 
traz  o  Texto  de  S.  Isidoro  a  sobredita  entrada  das  três 
Nações  em  Espanha  ,  posta  hum  anno  antes  :  isto  he  na 
era  de  446  que  dá  o  anno  de  Christo  408.  Porque  no 
fim  do  Parrafo  I.  da  historia  dos  Vândalos ,  se  lê  em  am- 
bas as  duas  Edições  apontadas  o  seguinte :  Aera  CDXLFL 

me' 


DAS  SciENCIAS  DE  LiSBOA.  22/ 

tuemorata  gentes  Hispaniarum  Provindas  irriiwftint.  Quer  di- 
zer:  Na  era  de  446  (  he  o  dito  anno  de  Chrisro  4CÍ!)  eii- 
trão  as  ditas  Nações  por  força  nas  Provincias  a'Espariha. 

O  que  cau/.a  maior  admiração  neste  particular  hc , 
que  tendo  Santo  Isidoro  posto  no  fim  do  dito  Parrafo  1.  a 
entrada  dos  Suevos  ,  Alanos  ,  e  Vândalos  em  Espanha  no 
anno  de  408  pelas  palavras  que  acabamos  de  referir  :  quan- 
do logo  no  principio  do  Parrafo  11.  torna  a  fallar  do  an- 
no ,  em  que  as  três  Nações  entrarão  em  Espanha  ,  ambas 
as  mesmas  duas  Edições  Alatritenses  com  hum  erro  palpá- 
vel de  números,  põem  a  entrada  daquellas  nações  dez  an- 
nos  adiante,  dizendo  assim:  Jera  CDLVI  Vandali ^  J/aiii y 
et  Snevi  Hispauias  occttpantes  ,  neces  v  as  tat  tones  que  cruentis  in- 
cíirsíonibíis  faciunt.  Quer  dizer  :  Na  era  de  456  (he  o  an- 
no de  Ghristo  418)  occupando  os  Vândalos,  Alanos,  e 
Suevos  a  Espanha,  commcttcm  neila  com  as  suas  sangui- 
nolentas correrias  muitas  mortes  e  estragos.  De  sorte  que 
dentro  de  poucas  regras  põem  as  duas  Edições  Matriten- 
ses a  Santo  Isidoro  não  só  discorde  de  Idacio  ,  quando  faz  en- 
trados em  Espanha  os  Suevos  ,  Alanos  ,  e  Vândalos  no  anno 
de  408,  mas  também  discorde  de  si  mesmo  ;  quando  logo  os  faz 
entrados  no  anno  de  41 8.  Erro  que  Flores  já  tinha  notado  na 
primeira  Edição  de  1 5-  99  ,  e  que  supposta  a  advertência  de  Flo- 
res ,  fica  indisculpavel  na  de   1778.  Mas  passemos  adiante. 

Depois  de  Idacio  pôr  a  entrada  dos  Suevos,  Alanos, 
e  Vândalos  em  Espanha  no  dito  anno  de  Christo  409  pas- 
sa logo  o  mesmo  Idacio  a  pôr  no  seguinte  anno  de  410 
a  tomada  de  Roma  por  Alarico  Rei  dos  Godos  ,  e  morto 
este  logo  depois  da  tomada  de  Roma,  asuccessao  d'Ataul- 
fo  no  Reino.  E  be  de  notar ,  que  em  pôr  a  tomada  de 
Roma  e  a  morte  d'Alarico  no  anno  de  410  seguem  cons- 
tantemente a  Idacio  os  outros  três  famosos  Chronistas 
Prospero  ,  Marcellino  ,  e  Cassiodoro.  Ora  esta  Época  da  to- 
mada de  Roma  e  da  morte  immediata  d'Alarico  em  410 
he  a  que  nos  abre  caminho  para  estabelecermos  a  Época 
da  entrada  dos  Godos  em  Espanha. 

Ff  ii  Tan- 


228  Memorias  da  Academia  Real 

Tnnto  Idacio  pois,  como  Santo  Isidoro,  ambos  suppdem  , 
que  os  Godos  não  vicrao  a  Espanha  ,  senão  quando  a  cila 
veio  o  seu  Rey  Ataulfo ,  immediato  succcssor  d'Alarico. 
Ora  Auulto  ,  segundo  Santo  Isidoro  ,  começou  a  reinar  na  era 
de  CCCCXLIX.  que  dá  o  anno  de  Christo  411  e  ao  quin- 
to anno  dos  seis  que  ao  todo  governou,  he  que  deixada  a 
Itália  veio  para  França.  Veio  logo  Ataulfo  d'Italia  para  Fran- 
ça no  anno  de  415".  Aqui  celebrou  as  suas  vodas  com  a 
infeliz  cativa  Placidia  irmã  d'Honorio  :  até  que  ou  por  pcr- 
suaçáo  ,  ou  por  força  que  lhe  fe/.  o  Patrício  Constâncio  , 
passou  de  Narbona  a  Barcelona,  onde  n'huma  conversação 
familiar  foi  morto  aleivosamente  por  hum  dos  seus  Godos  , 
no  anno  de  416  ultimo  dos  seis  que  remou,  como  se  co- 
lhe não  só  de  Idacio  ,  mas  também  de  Marccllino  ,  ede  Santo 
Isidoro.  Logo  os  Godos  entrarão  em  Espanha  com  Ataul- 
fo entre  o  anno  de  415'   e  o  de  416. 

líeterminar  agora  ,  se  os  Godos  entrarão  em  Espanha 
ainda  no  anno  de  415'  depende  de  se  saber,  que  tempo 
se  demorou  Ataulfo  em  França  :  o  que  não  he  expresso  nos 
sobreditos  Authores.  Mas  prudentemente  podemos  discor* 
rer,  que  o  anno  de  415'  todo  se  gastou  parte  na  jornada 
d'Italia  para  França  ;  parte  na  celebração  das  vodas  com 
Placidia  ;  parte  nas  negociações  do  Patrício  Constâncio; 
e  parte  na  passagem  de  França  para  Espanha  :  c  que  as- 
sim não  entrou  Ataulfo  com  os  seus  Godos  em  Espanha , 
senão  correndo  já  o  anno  de  416. 

O  doutíssimo  Henrique  Flores  na  Nota  VI.  ao  seu 
Idacio  Illustrado ,  que  vem  no  Tomo  IV.  da  Espanha  Sa- 
grada  y  deo  por  hum  erro  dos  Copiadores  em  Santo  Isidoro  , 
pôr-sc  o  primeiro  anno  d'Ataulfo  ,  na  era  de  CCCCXLIX. 
que  he  o  anno  de  Christo  41 1.  E  assim  na  nova  Edição 
que  nos  deo  da  Chronica  dos  Godos  de  Santo  Isidoro  no  To- 
mo VI.  da  mesma  obra ,  em  lugar  da  era  CCCCXLIX. 
emendou  CCGCXLVIII.  que  he  o  anno  de  Christo  410 
como  já  antes  trazião  as  Edições  de  Grocio  e  de  Labbé. 
Mas  ainda  admittida  esta  emenda,   digo  que  se  pódc 

pfo- 


DAS  Sci  ENCi  AS  u  E  Lisboa.  229 

provar  ck  Santo  Isidoro  ,  que  o  anno  cm  que  os  Godos  cntrá» 
rão  em  Espanha  foi  o  de  415'  para  416.  A  nizão  hc  :  Por- 
que dado  que  o  primeiro  anno  d'Ataulfo  começasse  ainda 
no  anno  de  Christo  410  nao  pode  com  tudo  negar  Flores^ 
que  a  maior  parte  deste  primeiro  anno  d'Ataulio,  pcrtcn- 
eco  ao  anno  de  411  ,  visto  que  a  ttjmada  de  Roma  cm  410 
foi  a  24  d*Agosto  ;  e  que  tendo  acontecido  pouco  depois 
a  morte  d'Alarico  ,  não  podia  Ataulfo  entrar  a  succedcr-lhe 
no  Reino  ,  se  não  quando  muito  no  Setembra  seguinte  já 
adiantado.  O  que  se  faz  evidente  pelo  que  refere  Zozimo: 
que  Alarico  sahira  de  Roma  três  dias  depois  que  a  con- 
quistara:  e  que  partindo  para  Rhegio ,  com  tenção  de  pas- 
sar aSicilia,  e  depois  aAfrica,  sobrevindo-lhe  huma  tem- 
pestade que  lhe  destroçou  a  armada  ,  morrera  de  doença  , 
e  tivera   por  sepultura  o  rio  Bascnto. 

Fixada  assim  a  Época  da  entrada  dos  Godos  em  Espa- 
nha no  anno  de  Christo  416  passo  a  observar  com  Jornan- 
des  e  com  Paulo  Di  icono ,  que  os  Godos  que  tinhão  vin- 
do das  partes  occidcntaes  da  sua  Região,  se  ficarão  cha- 
mando Fesegodos  y  nome  depois  corrompido  em  Visigodos: 
e  estes  são  os  que  se  estabelecerão  em  Espanha.  Os  que 
tinhão  vindo  das  partes  orientacs  ,  se  ficarão  chamando  Os- 
trogodos :  e  estes  são  os  que  depois  se  estabelecerão  em  Itá- 
lia. 

A  razão  dos  nomes  dcscubrio-no-la  Resende  ,  notando 
que  na  lingua  Germânica  ou  Alemã  ,  Vest  significa  occiden- 
te  ,  Ouer  oriente.  Donde  elle  infere  ,  que  os  nomes  que 
os  marinheiros  Portuguezes  dão  aos  ventos,  tem  a  sua  ori- 
gem aos  Godos. 

Mariana  crê  ,  que  também  nos  ficarão  dos  Godos  os 
seguintes  vocábulos  :  Albergar  ,  Bandeira ,  Caça  ,  Camisa  , 
Cangirão ,  Elmo ,  Esgritnidor ,  Harpa  ,  Moça  ,  Tripas. 

Este  juizo ,  por  ser  d'hum  homem  tão  intelligente, 
merece  toda  a  attenção  aos  nossos  Diccionaristas. 


§ 


ajo  Memorias  da  Academia  Real 

§     III. 

Diversa  fortuna ,   que  em  Espanha  correrão  estas  quatro  Na- 

fÕes, 

Ao  terceiro  anno  da  sua  entrada,  isto  he,  no  anno 
de  Christo  411  saciada  já  a  fúria  e  cubica  dos  Suevos, 
Alanos,  c  Vândalos  com  as  crudelissirhas  hostilidades,  que 
executarão  na  miserável  Espanha,  sortearão  os  Bárbaros  en- 
tre si  as  Províncias,  para  cada  hum  saber,  qual  havia  de 
habitar.  Coube  aos  Suevos  a  Galliza  :  aos  Alanos  a  Lusitâ- 
nia e  a  Província  de  Carthagcna  :  os  Vândalos  ficarão  com 
a  Betica.  Assim  Idacio  e  Santo  Isidoro. 

He  de  saber ,  que  a  Galliza  tinha  então  limites  mui- 
to mais  extensos,  do  que  hoje:  porque  alem  do  Entre  Dou- 
ro e  Minho ,  e  Trás  dos  Montes  ,  comprehendia  como  no- 
ta Mariana  ,  toda  a  Castella  Velha. 

Supposta  porém  a  repartição  sobredita  ,  pouco  ficava 
aos  Godos,  onde  podesscm  pôr  o  pé  seguro.  Foi-lhes  lo- 
go necessário  ganhar  á  força  de  braço  o  terreno ,  que  oc- 
cupasscm.  Vallía  immediato  successor  d'Ataulfo  fez  dura 
guerra  aos  Alanos  e  Vândalos  :  a  qual  continuada  com  igual 
vigor  por  seus  successores ,  resultou  daqui ,  serem  os  Ala- 
nos inteiramente  desfeitos  na  Lusitânia  ,  e  serem  obrigados 
os  Vândalos  a  largar  a  Betica,  sendo  seu  primeiro  Rey 
Gunderico.  Idacio  e  Santo  Isidoro. 

Expulsos  d'Espanha  os  Vândalos  passa'rão  a  Africa  com 
todas  as  suas  famílias  ,  governando-os  já  Genserico  ,  irmão 
e  successor  de  Gunderico,  anno  de  Christo  429.  Idacio, 
e  Santo  Isidoro. 

Cassiodoro  adverte ,  que  para  esta  passagem  tirerão 
os  Vindalos  por  conselheiro  e  instigador  o  Conde  Bonifá- 
cio rebelde  do  Império,  Personagem  muito  célebre  na  his- 
toria pelas  suas  aventuras ,  e  muito  mais  pela  intima  ami- 
zade que  teve  com  Santo  Agostinho. 

Pa- 


DAS  SciENCiAS  Dl  Lisboa.  231- 

Para  difFundir  por  toda  a  Africa  o  terror  das  íuas  ar- 
mas, espalhou  Gcnserico  voz,  que  tcita  resenha  das  suas 
tropas,  SC  achaváo  no  seu  exercito  oitenta  mil  homens.  Mas 
o  que  SC  passava  na  realidade  era,  que  aquelle  numero  só 
procedia  verdadeiro  ,  mettendo  ncUe  também  mulheres  e 
meninos.  Victor  Vitense  na  historia  da  Perseguição  Vanda- 
lica. 

No  decimo  anno  da  sua  entrada  em  Africa  ,  isto  he, 
no  anno  de  Christo  439  e  no  consulado  decimo  sétimo  de 
Thcodosio  ,  tomarão  os  Vândalos  Carthago  capital  da  mes- 
ma Africa.  Idacio  ,  Prospero ,  e  Marcellino. 

Sobre  o  tempo  que  durou  a  Monarquia  dos  Vândalos 
cm  Africa,  Santo  Isidoro  seguindo  a  Victor  de  Tunes,  diz 
que  forão  97  contados  des  do  tempo  que  os  Vândalos  en- 
trarão cm  Africa,  até  o  em  que  forão  totalmente  destruí- 
dos por  Bclisario  general  de  Justiniano.  Esta  conta  dos  5)7 
annos  de  duração,  hc  a  que  sahe  das  parcellas  dos  annos, 
que  Santo  Isidoro  assina  a  cada  Rei  desde  Gcnserico  ate' Gli- 
mer:  e  a  que  segundo  a  reducçao  da  era  ,  a  que  Santo  Isido- 
ro alliga  a  destruição  da  mesma  Monarquia  ,  parte  direita 
des  do  anno  de  429  até  o  anno  de  5-26.  Mas  já  daqui  se 
vc  ,  que  a  reducçao  que  faz  Santo  Isidoro  do  ultimo  anno  da 
Monarquia  dos  Vândalos  acra  de  DLXIV  e  ao  anno  CXIII 
da  entrada  de  Gunderico  em  Espanha ,  he  inconciliável 
com  a  verdadeira  Chronologia  ,  e  inconciavel  comsigo  mesma. 

Hc  inconciliável  com  a  verdadeira  chronologia ,  Pri- 
mo: porque  a  era  de  564  dá  o  anno  de  Christo  526  an- 
no em  que  Justiniano  ainda  não  era  Imperador :  pois  como 
attesta  Victor  de  Tunes ,  o  primeiro  anno  de  Justiniano 
cahio  no  Consulado  de  Mavórcio  :  o  consulado  de  Mavórcio 
porém  cahio  no  anno  seguinte  de  5-27.  Secundo  :  Porque  a  des- 
truição da  Monarquia  Vandalica  por  Belisario  ,  como  attesta 
não  só  Victor  de  Tunes  ,  mas  também  Procopio  ,  foi  no  anno 
sétimo  de  Justiniano:  o  anno  sétimo  de  Justiniano  porém  ca- 
hio no  anno  de  533. 

He  inconciliável  comsigo  mesma:  porque  a  era  de  j  64 

do 


23*  Memorias  da  Academia  Real 

de  nenhuma  sorte  pode  coincidir  com  o  anno  113  da  en- 
trada dcGundcrico  em  Espanha.  Para  o  que  basta  reflectir , 
que  a  era  de  564  dá  o  anno  deChristo  526.  O  anno  115 
porém  da  entrada  de  Gunderico  em  Espanha,  necessaria- 
mente ou  foi  o  anno  de  5:21  ou  o  anno  de  J22.  Dcmos- 
tra-se :  porque  o  anno  da  entrada  dos  Vândalos  cm  Espa- 
nha ,  segundo  Santo  Isidoro  ,  foi  o  de  408.  Ajuntemos  a  estes 
408  aquelles  113.  sahir-nos-ha  o  anno  de  j2i.  Segundo 
Idacio ,  o  anno  em  que  os  Vândalos  entráião  em  Espanha , 
foi  o  seguinte  de  409.  Ajuntemos  a  estes  409  aquelles  mes- 
mos 113.  sahir-nos-ha  o  anno  de  522.  Logo  a  era  de  5-64 
de  nenhuma  sorte  pôde  coincidir  com  o  anno  113  da  en- 
trada de  Gunderico  em  Espanha. 

He  muito  para  sentir,  que  des  do  anno  de  I5'99  em 
que  foi  feita  a  Edição  Real  de  Madrid  de  todas  as  Obras 
de  Sjnto  Isidoro,  não  tenha  até  agora  apparecido  algum  anti- 
go Códice  de  boa  nota  ,  por  cujo  meio  se  podessem  ajus- 
tar em  Santo  Isidoro  os  números  de  certas  Eras  e  de  certas 
Épocas  :  e  isto  para  não  termos  ainda  hoje  o  dissabor  de 
vermos  reproduzidos  na  Edição  novíssima  também  de  Ma- 
drid de  1778  anachronismos  e  incoherencias ,  que  parece 
incrível  viessem  do  Original  do  Santo  Chronista. 

Os  Suevos  experimentarão  entre  nós  melhor  fortuna. 
A  sua  Monarquia  de  Galli/a  conservou-se  em  respeito  cen- 
to e  setenta  e  tantos  annos  ,  desde  Hermerico,  que  foi  o 
primeiro  Rei ,  até  Heborico  que  foi  o  ultimo.  Mas  em  fim 
foi  absorvida  por  guerra  na  dos  Godos,  sendo  Rei  destes 
Leovigildo ,  e  no  anno  decimo  sétimo  do  seu  Reinado , 
que  foi  odcChristo  ^Z^.  João  Biclarense ,  e  Santo  Isidoro. 

Reinando  o  seu  antepenúltimo  Rei  Theodomiro,  ti- 
nhão  os  Suevos  abjurado  a  heresia  Ariana ,  e  abraçado  a 
Religião  Catholica  ,  por  diligencias  de  S.  Martinho  Bispo 
do  Mosteiro  de  Dume  ,  e  depois  também  Arcebispo  de  Bra- 
ga. Assim  o  mesmo  Santo  Isidoro  tanto  na  Chronica  dos  Sue- 
vos, como  no  Livro  Dos  Varões  Illustres  ^  cap.  35'. 

Depois  da  incorporação  dos  Suevos  ,  ficarão  os  Godos 

uni- 


DAS    SCIENCIAS    DE    LiSBOA.  233 

únicos  senhores  de  toda  a  Espanha.  Nella  comtudo  se  con- 
servarão sempre  alguns  Romanos  até  o  tempo  de  Sisibuto , 
que  delles  triumfou.  Santo  Isidoro  na  Chronica  dos  Godos. 

Antes  pela  Chronica  Albeldensc  consta  ,  que  ainda  cm 
tempo  de  Suintila  successor  de  Sisibuto,  aflPectavão  os  Ro- 
manos ter  suas  pretençõcs  em  Espanha. 

Fora  d'  Espanha  possuião  também  os  Godos  a  Gallia 
Narboncnse  ,  e  a  Aquitanica  :  a  Narbonense  des  do  tempo 
d'Ataulfo ,  como  se  colhe  da  Chronica  d'  Idacio  :  a  Aqui- 
tanica des  do  tempo  de  Wallia  successor  d'Ataulfo ,  como 
se  colhe  da  Chronica  de  Santo  Isidoro. 

Daqui  se  verá  a  razão ,  porque  o  Concilio  Narbonen- 
se do  anno  de  Christo  589  se  diz  nas  Actas,  que  fora  ce- 
lebrado no  quarto  anno  do  gloriosíssimo  Rei  Reccaredo  nosso 
Senhor,  E  nos  Concilios  Tuletanos  III  e  IV  juntamente 
com  os  Bispos  d'  Espanha  assinao  os  MetropoHtanos  de 
Narbona. 

Assim  em  Narbona  tinháo  os  mais  antigos  Reis  Go- 
dos a  sua  Corte ,  que  depois  se  mudou  para  Toledo. 

Ainda  hoje  se  conservão  em  vários  gabinetes  meda- 
lhas de  Leovigildo  e  d'Ervigio,  com  a  letra  no  reverso, 
NARBONA  PIUS. 

Pcira  que  este  continuado  dominio  dos  Reis  Godos 
na  Gallia  Narbonense  ,  fique  por  ultimo  authorizado  cora 
o  testemunho  positivo  d'algum  escritor  clássico  ;  produzo 
o  que  na  sua  Chronica  nos  deixou  o  nosso  João  Biclaren- 
se  por  estas  palavras  :  Bis  diebus  Linva  Rex  vivendi  finem 
accepit ,  et  Hispânia  omnis ,  Galliaque  Narbonensis ,  in  regno 
et  potestate  Leovigildi  concurrit. 

Esta  Gallia  Narbonense  he  a  que  os  eruditos  costu- 
mão  chamar  Gallia  Gothica, 

Pelo  que  escreve  o  Monge  de  Silos,  Author  d'huma 
Chronica  do  século  XII ,  possuião  também  os  Reis  Godos 
fora  do  Continente  d'  Espanha ,  e  alem  do  Estreito  de  Gi- 
baltar,  aquella  parte  da  Africa  que  formava  a  Província 
Tingitana :  porque  diz  que  desta  Província  era  Governador 
Tomo  IX.  Gg  aquel- 


234  Memorias  da  Academia  Real 

aquellc  Conde  Julião  ,    que   em  ódio   e  vingança   do  Rei 
Rodrigo ,  introduzio  os  Mouros  em  Espanha. 

No  quarto  anno  do  Rei  Reccaredo ,  que  foi  o  anno 
de  Christo  jSj  dentro  do  Concilio  Tolctano  III  abjurada 
a  heresia  Ariana,  professarão  os  Godos  a  Fé  nrthodoxa  da 
Trindade  Beatíssima ,  e  a  dos  mais  mysterios  da  nossa  Re- 
ligião Catholica  Romana  :  conversão  ,  cuja  gloria  constan- 
temente attribuera  todos  a  S.  Leandro  Arcebispo  de  Sevi- 
lha. 

Florccia  por  este  mesmo  tempo  em  fama  de  virtudes 
c  de  doutrina,  o  nosso  illustre  Portuguez  Scalabitano  João 
Abbadc  do  Mosteiro  de  Biclara  ,  e  depois  Bispo  de  Gi- 
rona,  que  nos  deixou  huma  breve  Chronica  do  que  succe- 
dco  no  Império  Romano  e  em  Espanha  ,  dcs  do  primeiro 
anno  de  Justino  o  moço  até  o  oitavo  de  Maurício,  e  quar- 
to de  Reccaredo.  Nesta  Chronica  deo  o  Cardeal  Aguirre 
por  certo  ,  que  estavao  viciados  por  algum  Ariano  certos 
lugares ,  onde  se  diz  ,  que  o  Príncipe  Hermenegildo  ir- 
mão m.iis  velho  de  Reccaredo  ,  se  rebcllou  contra  seu  pay 
e  seu  Rei  Leovigildo ,  e  se  fizera  tyranno  do  Reino.  Her- 
menegilãiis  tyrannidem  assumens  iti  Hispali  civitate  rehellione 
facta ,  &c.  E  outra  vez  :  Leovigildus  Rex  exercitum  ad  ex- 
ptignandum  tyranmim  filium  colligit.  E  logo  :  Leovigildus  re- 
hellein  filium  gravi  ohsidione  conchidit.  Porém  o  juizo  d'A- 
guirre  contra  a  sinceridade  da  Chronica  do  Biclarense  he 
insustentável  e  inadmissível.  Porque  pelos  mesmos  termos 
fallou  d'  Hermenegildo  pouco  depois  Santo  Isidoro ,  quan- 
do na  sua  Chronica  geral  do  mundo  escrcvco  assim  :  Go- 
thi  per  Hermenegildiim  Leovigildi  Regis  filiam  bifarie  divisi 
mutua  CíBde  vastantur.  E  na  Chronica  particular  dos  Godos: 
Hermenegildiím  ãeinde  filium  imperiis  stiis  tyranuizantem  ,  ob- 
sessum  exsuperavit.  Sobre  o  que  imitando  depois  a  Santo 
Isidoro  escreveo  da  mesma  sorte  o  Arcebispo  de  Toledo 
D.  Rodrigo  Ximenes  ,  Livro  II,  cap.  14.  Hermenegildum 
deinde  filium  couíra  imperium  tyrannizatitem ,  ohsessum  Hispa- 
li dolo  cepit.  Concluamos  logo,  que  a  rcbelliao  do  Prínci- 
pe 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  2^5* 

pc  Hermenegildo  he  hum  facto  constante  em  todas  as 
Historias  d'  Espanha  :  c  que  quem  poz  a  Hermenegildo 
nos  altares,  não  forão  as  acções  da  vida,  mas  sim  a  mor- 
te soffiida  valerosamente  em  defensa  da  verdadeira  Fé,  de 
que  seu  pay  o  quiz  apartar. 

§    IV. 

Ceremottias  da  Inauguração. 

ê 

A  Inauguração  dos  Reis  Godos  constava  de  Sagraçâo 
da  Pessoa  ,  e  de  Juramento  das  Leys. 

Da  Sagraçâo  da  Pessoa ,  como  ainda  hoje  praticão  os 
Reis  de  França  ,  dão  illustres  testemunhos  o  Concilio  To- 
letano  XII,  cap.  i.  onde  se  refere  a  sagraçâo  do  Rey  Er- 
vigio  :  e  S.  Julião  Arcebispo  de  Toledo  na  Historia  de 
Wamba ,  onde  descreve   a  sagraçâo  do  mesmo  Wamba. 

A  antiga  Chronica  dos  Reis  Visigodos ,  que  se  cos- 
tuma attribuir  a  Vulsa  escritor  do  oitavo  século  ,  faz  ex- 
pressa menção  de  terem  sido  ungidos  os  Reis  Ervigio , 
Egica ,  e  Witiza. 

Pelos  dous  primeiros  testemunhos  do  Concilio  Tole- 
tano  XII ,  e  de  S.  Julião ,  também  sabemos ,  que  ao  Ar- 
cebispo de  Toledo  he  que  competia  ungir  o  novo  Rei  : 
pelos  testemunhos  da  Chronica  dos  Reis  Visigodos ,  que 
esta  funcção  se  costumava  fazer  em  Domingo. 

Esta  Chronica  muito  celebre  já  nos  escritos  de  Am- 
brósio de  Morales  e  de  João  Baptista  Peres,  (os  dous 
maiores  antiquários  que  teve  Espanha  em  tempo  de  Filip- 
pe  II)  foi  o  Cardeal  de  Aguirre  o  primeiro  que  a  deo  á 
estampa,  mas  imperfeita  entre  os  Concilios  d' Espanha  nos 
fins  do  século  passado  ;  e  foi  D.  Gregório  Majans  e  Sis- 
car ,  o  que  em  nossos  dias  a  publicou  inteira  ,  na  Prefa- 
ção ás  Obras  Chronologicas  do  famoso  Marquez  de  Mon- 
dexar  e  Agiopoli. 

O  juramento  em  que  o  novo  Rei  promettia  guardar 

Gg  ii  as 


136  Memorias  da  Academia  Real 

as  Leis  Fundamcntacs  do  Reino  Gothico ,  consta  do  Con- 
cilio Toletano  VI,  cap.  3  ,  c  do  Concilio  Toictano  VIII, 
cap.   10. 

Huma  destas  Leys  juradas  era ,  que  elle  Rei  não  con- 
sentiria em  Espanha  aos  Judeos  o  exercicio  da  sua  Reli- 
gião Mosaica.  Concilio  Toictano  VI ,  cap.  3.  Outra,  que 
cUc  Rei  não  alienaria  os  bens  da  Coroa.  Concilio  Toicta- 
no VIII  no  Decreto  final. 

Esquecia-me  notar ,  que  esta  ceremonia  de  se  fazerem 
sagrar  ou  ungir  os  Reis  Go4os  ,  passou  dellcs  aos  antigos 
Reis  de  Leão  seus  successorcs.  Prova-se  isto  da  Chronica 
do  Monge  de  Silos,  escritor  do  século  XII,  que  faz  sagra- 
do cm  idade  de  treze  annos  ao  Rei  D.  Affonso  IV,  c  dii 
também ,  que  Ordonho  II  fora  sagrado  por  doze  Bispos. 

Em  século  mais  chegado  a  nós  ,  quiz  também  ser  sa- 
grado ,  e  o  foi  com  eíFeito  em  Portugal  ElRei  D.  Duarte. 

Ungido  e  coroado  o  novo  Rei ,  era  do  estilo  virem 
todos  os  Bispos  á  Corte  dar-lhe  o  parabém  da  sua  exalta- 
ção ao  Throno.  Consta  das  subscripções  do  Concilio  To- 
letano em  tempo  de  Gundemaro  ,  anno  de  Christo  610, 
onde  Santo  Isidoro  Arcebispo  de  Sevilha  ,  e  Innocencio 
Arcebispo  de  Merida ,  declarão  que  elles  se  achavão  aquel- 
la  occasião  em  Toledo,  por  terem  vindo  cumprimentar  El- 
Rey.   Dum  in  nrbctn  Toletanam  pro  occursti  Regls  advenissem» 

Os  Padres  do  Concilio  Toletano  VII  em  tempo  de 
Reccesvintho ,  esmaltarão  o  seu  obsequio  para  com  o  Rei , 
estabelecendo  no  cap.  7,  que  dahi  por  diante  em  sinal  de 
reverencia  ao  Príncipe  ,  e  para  honra  da  sua  Corte ,  resi- 
dissem sempre  nella  com  o  Arcebispo  de  Toledo  alguns 
Bispos  dos  mais  vizinhos,  que  se  dcvião  revezar  todos  os 
mezes ,  excepto  nos  tempos  da  seifa  e  das  vindimas.  Pro 
rever entia  Principis ,  et  Regia  sedis  iouore. 


PAR- 


DAS    SciElíClAS   DE   LiSBOA.  ^37 

PARTE    II. 

Da  Legislação  Gotbica. 

Antes  que  entremos  na  individuação  das  Leys  Gothi- 
cas  hc  necessário  advertir,  que  por  via  de  regra  não  pro- 
niulgavao  os  Reis  Godos  Ley  alguma  de  maior  pondera- 
ção ,  que  não  fosse  em  publica  Assemblea  dos  Bispos  do 
Reino  e  dos  Senhores  da  Corte ,  e  de  commum  con- 
sentimento d'  huns  e  outros.  Isto  se  convence  das  Actas 
de  muitos  Concilios  Toictanos  do  sétimo  século ,  onde  ve- 
mos ,  que  depois  de  dtfiniJos  pelos  Bispos  os  pontos  de 
Religião  e  Disciplina  tcciesia&tica ,  se  entrava  logo  a  tra- 
trar  entre  o  Rei,  Prelados,  e  Cortesãos,  do  que  perten- 
cia ao  Governo  Politico  ou  aos  negócios  do  Estado.  De 
sorte  que  estes  Concilios  erão  como  humas  Cortes  ,  onde 
a  unanimidade  do  Principe  com  os  Grandes  Ecclesiasticos 
e  Seculares  ,  era  a  que  dava  a  ultima  força  ás  Leys ,  que 
alli  se  cstabclecião ,  como  hoje  succede  nas  Dietas  do  Im- 
pério Germânico,  e  nas  do  Reino  de  Polónia. 

§     I. 

Logo  o  Governo  Gotbico  era  hum  Governo  Monárquico  tempe- 
rado do  Aristocrático. 

Para  demonstração  desta  verdade  basta  ouvir,  como  o 
Rei  Reccesvintho  se  explica ,  fallando  com  os  Padres  e  Fi- 
dalgos ,  que  se  achavao  no  Concilio  VIII  de  Toledo ,  an- 
no  de  Christo  65- 3. 

In  commune  iam  vobis  cimctis ,  et  ex  divino  cultu  Minis- 
irii  idoneis^  et  ex  Aula  Regia  Rectoribus  decenter  electis ,  di- 
Tini  nominis  adjuratione  obstrictis  ^  adjicio  consensionis  me£  ve- 
rum  purumque  promissum  ;  ut  quodcmque  jiistitia ,  aut  pieta- 
ti ,  salutarique  discretioni  vicinum  decernere  seu  adimplere  cum 

nos- 


23?  Memorias  da  Academia  Real 

tiostro  consensH  elegeritis  ,  omnia  f avente  Dco  perfiàam ,  et  ad~ 
versus  omnimodam  controversiarum  querelam ,  Principali  aucto- 
ritate  muniam  ac  defendam. 

Quer  dizer:  A  huns  e  outros  de  vós,  tanto  Ministros 
do  culto  divino,  como  Officiaes  da  Casa  Real ,  juntos  nes- 
ta Assemblea  para  tratardes  em  commum  dos  Negócios  que 
vos  tenho  apontido  ,  e  conjurados  por  mim  com  a  invo- 
cação do  nome  de  Deos:  eu  vos  promctto  da  minha  par- 
te hum  verdadeiro  e  sincero  consentimento  a  tudo  o  que 
vós  determinardes  que  se  cumpra  ,  sendo  conforme  a'  jus- 
tiça ,  á  piedade ,  e  á  saudável  discrição  :  e  que  todos  os 
vossos  Decretos  munirei  e  defenderei  com  a  authoridadc 
de  Principc,  contra  todas  e  quaesquer  queixas  que  se  lhes 
opponhão.   Atcqui  Reccesvintho. 

E  para  que  se  não  diga,  que  estes  votos  dos  Prela- 
dos e  Officiaes  da  Casa  Real  ,  erão  puramente  Consulti- 
vos ,  e  não  Decisivos ,  temos  no  fim  das  Actas  do  mesmo 
Concilio  oitavo  de  Toledo  hum  Decreto  acordado  pelos 
Estados  do  Reino ,  no  qual  os  Bispos  com  os  Officiaes  da 
Casa  Real  ordenão,  que  os  bens  da  Coroa  se  reputem  não 
como  Património  ,  mas  como  Morgado ,  para  se  não  po- 
derem alienar  arbitrariamente  pelos  Principes  ,  nem  ainda 
a  favor  de  seus  filhos  ;  mas  que  só  possão  dispor  livre- 
mente dos  bens  adquiridos  ou  herdados  por  qualquer  via. 
O  qual  Decreto  o  mesmo  Reccesvintho  confirma  logo  com 
huma  Ley  sua. 

Quando  se  haviao  de  celebrar  estas  Assembleas ,  era 
só  o  Príncipe  o  que  as  convocava;  e  ou  elle  assistisse  pes- 
soalmente ou  não  assistisse  ,  só  elle  era  o  que  designava 
e  propunha  os  Negócios  Públicos,  sobre  que  se  devia  tra- 
tar e  legislar  nas  taes  Cortes.  O  que  elle  fazia  não  de  vi- 
va voz,  mas  por  escrito,  que  chamavão  Tomo^  e  que  cor- 
respondia ás  Sacras  Divaes  ,  que  os  Imperadores  Romanos 
mandavão  aos  Concílios  Geraes  do  Oriente, 

No  Concilio  Toletano  VIII  foi  lido  o  Tomo  de 
Reccesvintho  :   nos  Toletanos  XII   e  XIII   os  Tomos  de 

Er- 


DAS  SciENCIAS   DE   L  I  S  B  O  A.  239 

Eivlgio :   nos  Toletanos   XVI    e   XVII    os   Tomos    d'  E- 
gica. 

§     II. 

O  Reino  Gothico  não  era  Hereditário ,  mas  Electivo.  E  o  Di- 
reito de  eleger  Rei  estava  nos  Grandes ,  tanto  Eccle- 
sias  ticos  y  como  Seculares. 

Huma  e  outra  cousa  se  acha  expressa  no  Concilio 
Tolctano  IV,  cap.  75"  ,  no  Toletano  V,  cap.  3  ,  no  Tole- 
tano  VJII,  cap.  10. 

O  mesmo  se  confirma  da  Historia  de  Wamba,  escri- 
ta por  S.  Julião  Arcebispo  de  Toledo. 

Pelos  mesmos  Documentos  se  sabe ,  que  o  eleito  de- 
via ser  Godo  de  nação  ,  e  Fidalgo  por  nascimento. 

§.     III. 

Vivendo  o  Rei ,   e  contra  sua  vontade ,  não  podiao  os  Grandes 
designar-lhe  Successor, 

Consta  do  Concilio  Toletano  VI,  cap.  ij. 

§    IV. 

Muitos  Reis ,    (  convindo  nisso  os  Grandes  do  Reino , )  fizer  ao 
em  sua  vida  consortes  do  império  a  seus  filhos ,  para  es- 
tes lhes  succederem  depois  da  stia  morte. 

Leovigildo  associou  comsigo  ao  império  a  seu  filho 
Santo  Hermenegildo.  Consta  d'  huma  Inscripçao  Gothica 
coetânea ,  que  se  conserva  na  Cartuxa  de  Sevilha  ,  que 
di/.  nssim  :  ANNO  FELICITRR  SECUNDO  REGNI  DO- 
MINI  NOSTRI  ERMENEGILDI  REGIS,  &c. 

Siiinthila  associou  a  seu  filho  Rccimiro.  Santo  Isido- 
ro na  Chronica  dos  Godos. 

Qi_iin- 


340  Memokias  da  Academia  Real 

Quindasvintho  associou  a  seu  filho  Reccesvintho.  Chro- 
nica  de  Vulsa.  Chronica  de  Isidoro  Pacense.  Chronica  Al- 
beldense. 

Caiando  se  calassem  os  Historiadores,  tínhamos  ainda 
melhor  prova  nas  Medalhas  de  Toledo  e  de  Sevilha.  Quin- 
dasvintho e  Reccesvintho,  pay  e  filho,  ambos  apparecem 
intitulados  Reys  com  esta  inscripçao  :  Cindasvintbus  Rx  y  e 
no  reverso  Rcccesvintbus  Rx. 

Egica  associou  o  seu  filho  Witiza.  Chronica  de  Se- 
bastião de  Salamanca.  O  qual  acrescenta  outra  particulari- 
dade, que  hc,  que  Egica  assinou  por  Corte  a  Witiza  a  Ci- 
dade de  Tuy ,  como  quem  queria  renovar  assim  em  Espa- 
nha o  Reino  dos  Suevos. 

§     V. 

Wamha  por  motivo  de  Religião  abdicou  o  Reino  em  favor 

à'Ervigio, 

Consta  do  Concilio  Toletano  XII ,  cap.  i. 

O  modo  como  Ervigio  subio  ao  Throno  por  eleição 
de  Wamba  ,  refere-o  assim  Sebastião  de  Salamanca,  escri- 
tor do  século  nono. 

Ervigio  parente  de  Reccesvintho,  ardendo  em  desejos 
de  ser  Rei  dos  Godos,  deo  a  Wamba  huma  bebida,  que 
o  privou  da  memoria  e  dos  sentidos.  O  Arcebispo  de  To- 
ledo S.  Julião  ,  e  os  Officiaes  do  Paço  ,  que  não  sabiao 
da  tramóia  d' Ervigio,  vendo  ao  seu  Rei  Wamba  neste  es- 
tado ,  e  temendo  não  morresse  clle  sem  a  absolvição  sa- 
cerdotal ,  fizerão  que  se  lhe  desse  a  Penitencia  canónica. 
Pouco  depois  convalescendo  Wamba  do  seu  lethargo  ,  e 
sabendo  que  o  tinhao  sujeitado  á  Penitencia  canónica,  re- 
nunciou o  Reino,  e  tendo  declarado  por  escrito  que  a  sua 
vontade  era ,  que  lhe  succedesse  Ervigio  (sem  duvida  igno- 
rante da  sua  alcivosia)  se  recolheo  num  Mosteiro,  vestido 
d'  habito  religioso  e  tonsurado.  . 

To- 


Das  SciENciAS  DE  Lisboa.  241 

Todo  este  procedimento  de  Wamba  attestão  também 
os  Padres  do  Concilio  duodccirrlo  de  Toledo,  cap.  1.  on- 
de tudo  foi  proposto,  examinado,  e  approvado.  E  o  gran- 
de Investigador  dá  Disciplitia  Ecclesiastica  João  Morin  no 
Livro  II  De  Pxuitencia  ^  cap.  7.  prova  de.->te  tacto,  que  até 
por  pcccados  occultos  se  impunha  antigamente  penitencia 
publica. 

O  que  he  mais  digno  porem  da  nossa  consideração^ 
consiste  em  que  os  Padres  do  referido  Concilio  duodécimo 
de  Toledo  qualificiío  esta  acção  de  Wambn  por  huma  ac- 
ção inevitável,  isto  he,  por  huma  acção  que  Wamba  níoi 
podia  deixnr  de  fazer.  Idem  eniin  Rex  IVamba  ,  dum  inevita- 
bílis  necessittidittis  tenetur  eventu ,  suscepto  rcligionis  delito  cul- 
tn,,  et  vencruhUi  sacra  tonsura  stguacu/o ,  &c.  Pois  que?  Hu- 
ma vez  que  Wamba  tinha  recebido  a  Penitencia  Canónica, 
não  podia  Wamba  continuar  (to  governo  do  Reino?  Não. 
li  a  razão  segundo  eu  entendo ,  (porqne  os  nossos  Autho- 
res  não  fallã.)  nisso)  era  qu^  pelo  capitulo  XII  do  Tercei- 
ro Concilio  de  Toledo,  os  que  reccbiao  a  enitencia  pu- 
blica ,  mudavão  de  habito  ,  e  tonsuravão-se.  E  pela  Ley 
Fundamental  estabelecida  no  Concilio  Toletano  VI  ,  cap. 
17  não  podia  ser  Rei  dos  Godos  quem  por  motivo  de 
Religião  tivesse  mudado  o  habito,  e  sido  tonsurado. 

Confirma-se  e  illustra-se  nobremente  esta  mtnha  intel- 
ligcncia  ,  com  o  que  a  Chronica  de  Wulsa  escreve ,  que 
fizera  Ervigio ,  achando-se  no  ultimo  da  sua  vida :  que  fçi 
declarar  hum  dia  por  seu  succcssor  a  Egica  seu  filho  ,  c 
no  outro  receber  a  Penitencia  ,  e  declarar  logo  aos  Gran- 
des do  Reino,  como  eleito  Egica  ficavao  já  absoltos  todos 
do  juramento  de  Fidelidade,  que  a  elle  Ervigio  tinhao  da- 
do no  principio. 


Tom  IX.  Hh 


34-  Memorias  DA  Academia  Real 

§    VI. 
Penas  contra  os  Reos  de  Lesa  Magestade. 

Os  Godos  por  sua  natural  fereza  e  barbaridade ,  erao 
tão  avezados  a  assassinar  ou  dcpôr  os  seus  Reis  ,  que  co- 
mo observou  Bochart  no  seu  Tratado  De  'Jure  Regnm  ,  e 
Majans  na  sua  Defensa  Del  Rei  JFííiza  ,  não  será  fácil  achar 
outra  Nação ,  que  os  igualasse  nos  exemplos  de  perfídia. 
Para  isto  basta  ler  a  Clironica  dos  Godos  de  Santo  Isidoro, 
onde  desde  Ataulfo  que  foi  o  primeiro  Rei ,  até  Siscbuto 
que  foi  o  vigésimo  primeiro  ,  se  achao  notados  onze  as- 
sassinatos de  Reis. 

Isto  obrigou  os  Padres  do  Concilio  IV  de  Toledo 
no  anno  de  633  a  que  no  cap.  75"  fulminassem  contra  os 
aggressores  das  Reacs  Pessoas ,  ou  inimigos  do  seu  Esta- 
do ,  a  mais  tremenda  sentença  de  escommunhão,  que  se 
Ic  nos  antigos  Monumentos  da  Igreja :  porque  a  repetem 
três  vezes  com  summa  vehemencia  de  palavras,  e  em  no- 
me de  toda  a  Nação  ,  cujo  Corpo  representavão  naquella 
Assemblea  juntos  os  Bispos  com  os  Grandes  Seculares ,  e 
presente  á  testa  de  todos  o  Rei  Sisenando, 

Mas  descobrindo  a  experiência  novas  traições  e  alei- 
vosias  contra  Reccesvintho ,  Wamba  ,  e  Egica  ,  tornarão  og 
nossos  Padres  a  excitar  a  antiga  comminação  no  Concilio 
TolctanoXVI,  anno  de  693  ,  fulminando  e  repetindo  ou- 
tras trcs  vezes  no  cap.  10  a  mesma  sentença  de  excom- 
inunhão  ,  contra  os  que  de  qualquer  modo  ousassem  aiteii- 
tar  contra  a  vida  ou  Estado  do  seu  Rei   legitimo. 

Afora  a  pena  d'escommunhão  fulminada  contra  todos 
e  quaesqucr  Reos  de  Leza  Magestade ,  declarão  os  Padres 
deste  Concilio  Toletano  XVI,  que  os  Grandes  Seculares  se- 
jão  castigados  com  a  pena  de  perdimento  de  todos  os  car- 
gos e  OíEcios  honorificos ,  e  de  confiscação  de  todos  os 
Bens :   os  Bispos  com  a  pena  de  deposição  e  desterro :  o 

que 


DAS   SciÊNCtAS  bÊ   LíSBÕA.  Í4J 

que  logo  SC  executou  na  pessoa  de  Sisbcrto  Arcebispo  de 
Toledo,  por  SC  ter  conjurado  contra  o  Rei  Egica. 

E  por  hum  Decreto  já  antes  estabelecido  no  Gonci* 
lio  Tolctano  VII  se  o  Rei  ofFcndido  vinha  a  congraçar»- 
se  com  o  vassallo  olFcnsor,  não  podia  restituir-lhe  doS  bens 
confiscados  ,  senão  a  vigésima  parte. 

No  Concilio  Tolctano  XIII  a  rogos  do  Rei  Ervigiò 
se  levantou  a  pena  de  infâmia  c  de  confiscação  ,  aos  que 
em  tempo  de  Wamba  se  tinhão  associado  ao  rebelde  Duque 
PjuIo. 

No  antecedente  Concilio  Tolctano  XII ,  cap.  5  de- 
clarâo  os  Padres  delle ,  que  tendo  sido  declarado  cscom- 
mungado  algum  Godo  por  crinle  de  Lesa  Magestade ,  da- 
do caso  que  o  Rei  offcndido  admittindo  o  á  sua  graça  o 
honre  com  a  sua  Meza  ,  fique  por  este  mesmo  facto  tirada 
a  cscommunhão ,  sem  ser  necessária  outra  alguma  sentença* 
O  que  he  hum  excellente  documento ,  de  quanto  ainda  eiti 
matérias  do  Foro  Ecciesiastico  devem  0$  Bispos  contem- 
plar a  vontade  e  gosto  dos  seus  Soberanos. 

Isto  he  pelo  que  toca    aos  Cartones   da  nossa  Igreja. 

Quanto  ás  Leys  Gothicas  sobre  o  crime  de  Lesa  Ma- 
gestade ,  he  indubitável ,  que  nestes  casos  prescrevião  el- 
las  contra  os  reos  a  pena  capital :  que  foi  a  que  os  Juizes 
de  Wamba  pronunciarão  contra  o  Duque  Paulo ,  que  se  ti- 
nha sublevado  com  a  Província  de  Narbona ,  como  consta 
da  Historia  do  mesmo  Wamba  escrita  por  S.Julião  de  To- 
ledo :  c  a  que  depois  executou  D.  Ordonho  II  contra  oS 
Condes  de  Burgos  Nuno  Fernandes  ,  e  Fernando  Ansures  , 
por  lhe  serem  rebeldes,  como  lemos  na  Chronica  de  Sam-» 
piro  Bispo  de  Astorga. 

Mas  he  igualmente  certo,  que  muitas  vezes  commu- 
tavão  os  Reis  Godos  a  pena  de  morte  em  outras  talvez 
mais  sensíveis  pela  duração ,    e  pela  ignominia. 

Rcccaredo  a  dous  Bispos  Sunna  e  Uldila  ,  que  tinha» 
conspirado  contra  elle ,  contentou-se  com  os  desterrar.  A 
hum  Fidalgo  por  nome  Scgga ,  pelo  mesmo  crime ;  mari- 

Hh  ii  dou- 


344  MeMOBIAS   DA   ACAPEMIA   ReaL 

dou-lhe  cortar  ambas  as  mãos,  e  ir  desterrado  para  Galli- 
za.  Noutra  conjuração  de  que  era  cabeça  o  Duque  Argi- 
mundo,  mandou  nutar  os  compliccs  :  e  quanto  a  Argimun- 
do,  que  rapada  a  cabeça,  e  cortada  a  mão  direita,  entras- 
se em  Toledo  montado  num  jumento,  para  ser  o  alvo  das 
apupadas  e  dos  ludíbrios  da  plebe.  Tudo  consta  da  Chro- 
nica  de  João  de  Biclara. 

Os  que  em  tempo  de  Wamba  sentenciarão  o  Duque 
Paulo,  forão  de  voto  ,  que  elle  e  seus  sócios,  rapadas  as 
cabeças  e  as  barbas  ,  vestidos  de  pelles  de  camelo  ,  pés 
descalços ,  e  o  dito  Paulo  de  mais  a  mais  coroado  d'  huma 
carocha  de  couro  mascarrada  de  pez ,  fossem  todos  levados 
cm  paviolas  pelas  ruas  da  Corte,  e  por  ultimo  morressem 
d'  huma  morte  affrontosa  e  infame.  E  quando  o  Rei  por 
sua  clemência  fosse  servido  conscrvar-lhcs  a  vida ,  ao  me* 
nos  a  todos  fossem  arrancados  os  olhos.  Tudo  consta  da 
Historia  de  Wamba  escrita  por  S.  Julião  de  Toledo. 

Este  castigo  de  se  mandarem  vasar  os  olhos  aos  reos 
de  Lesa  Magestadc  da  primeira  cabeça  ,  foi  o  que  ficou  sen» 
do  ordinário  entre  os  antigos  Reis  de  Leão  successores 
dos  Godos.  Assim  o  executou  D.  Ramiro  I  contra  o  Con- 
de Aldosoito  ,  como  lemos  na  Chronica  de  Sebastião  de 
Salamanca.  Assim  D.  AíFonço  o  Magno  contra  seu  irmão 
D.  Froila,  como  lemos  na  Chronica  de  Sampiro  d'Astorga, 
Assim  D.  Ramiro  II  contra  os  sobrinhos  do  Rei  D.  Or- 
denho II ,  e  contra  seu  mesmo  irmão  D.  Affonço ,  que  ti- 
nha reinado  antes  delle,  como  lemos  na  mesma  Chronica 
de  Sampiro. 

§    VIL 

Qíie  Bens  podiao  os  Reis  deixar  a  seus  Filhos. 

No  Concilio  Toletano  V,  cap.  i ,  e  no  Toletano  VI, 
cap.  16  se  proveo  sobre  a  subsistência  dos  filhos  do  Rei 
Quiutila,  depois  que  o  pay  lhes  faltasse. 

No 


DAS   SCIJSNCIAS   DS  LiSBOA-  2^^ 

No  ConcilÍQ  Tolctano  VIII  publicarão  os  Padres  hum 
Decicto  ,  que  Rccccsvinrho  confirmou  cutn  huma  Luy  ,  cm 
que  se  declara  ,  de  que  Bens  poderia  dispor  o  Rei  a  favor 
de  seus  filhos. 

§     VIII. 
Das  Rainhas  Viuvas. 

No  Concilio  Tolctano  XIII ,  cap.  3.  e  no  ToletanQ 
Í^VII,  cap.  7.  se  deo  providencia,  para  que  ns  Rainhas 
Liubiga  mulher  d'Ervigio,  e  Gixila  mulher  d'Egica,  de» 
pois  da  morte  dos  Reis  seus  maridos ,  nuo  fossem  inquie- 
tadas nem  nas  suas  Pessoas,  nem  nos  seus  Bens. 

A  natureza  d' hum  Reino  Electivo,  qual  era  o  Go- 
thico  ,  fazia  necessárias  estas  e  outras  precauções  a  favor 
das  Rainhas  viuvas  ;  principalmente  ficando  ellas  sujeitas  4 
tão  apertadas  Leys  d*Estjd() ,  como  as  que  já  vou  a  expor. 

A  primeira  destas  Leys  d'  Estado  era ,  que  as  Rainhas 
viuvas  não  podião  tornar  a  casar  ,  nem  ainda  com  outro 
Rei  da  mesma  Nação.  Assim  se  decretou  ao  Concilio  To- 
lctano XIII,  cap.  5-.  anno  de  683. 

A  segunda  ainda  coartou  mais  a  liberdade  ás  Rainhas 
viuvas,  porque  por  hum  Decreto  do  Concilio  III  de  Sara- 
goça ,  cap.  j.  anno  de  691  ,  ordenão  os  nossos  Bispos, 
que  as  ditas  Rainhas  não  só  não  tornem  a  casar ,  mas  que 
logo  que  enviuvarem  ,  tomando  o  habito  religioso  se  xt" 
colhão  num  Mosteiro  de  Freiras. 

Os  indecentes  matrimónios ,  que  em  segundas  núpcias 
tcriuo  talvez  contrahido  algumas  Rainhas,  ou  o  abuso  quç 
de  semelhantes  matrimónios  podião  fazer  os  Grandes,  pa- 
ra por  esta  via  aspirarem  ao  Throno  ,  e  maquinarem  ty- 
rannicas  deposições  :  forao  sem  duvida  a  causa  de  se  for- 
marem estes  Decretos ,  que  sobre  parecerem  nimiamente  ri- 
gorosos ,  alguém  os  reputará  de  mais  a  mais  alheos  de 
competência  Episcopal.  Mas  cajá  preveni,  que  ncátas  As- 
sem- 


246  Memorias  da  Academia  Real 

sembleas  fazião  os  nossos  Bispos  duas  figuras :  huma  de 
Prelados  Ecclcsiasticos  para  definirem  os  Dogmas  da  Reli- 
gião, e  regularem  os  Pontos  da  Disciplina:  outra  de  Gran- 
des do  Reino,  para  juntos  com  os  outros  Grandes  secula- 
res, e  authorisados  do  consentimento  do  Rei,  decretarem 
de  commum  acordo ,  o  que  parecesse  conveniente  ao  Es- 
tado. 

Por  mais  fortes  c  extraordinários  que  parcção  estes 
Decretos  contra  as  Rainhas  viuvas  ,  eu  ainda  acho  mais 
exorbitante ,  o  que  em  virtude  do  Tratado  da  Paz  do  an- 
no  1479  entre  o  nosso  Rei  D.  AfTonço  V  e  D.  Fernando 
Catholico ,  experimentou  a  Princcza  D,  Joanna  de  Castcl- 
la  ,  conhecida  e  appellidada  vulgarmente  a  Excellente  Se- 
nhora :  que  foi  ver-se  precisada  a  professar  a  Regra  de 
Santa  Clara  no  Mosteiro  de  Santarém ,  sendo  solteira ,  e 
tendo  sido  jurada  Princeza  herdeira  de  seu  pay  D.  Henri- 
que IV. 

§    IX. 

Do  Código  das  Leys  Gothicas, 

O  primeiro  Rei  Godo  que  publicou  Código  de  Leys 
Pátrias ,  foi  Eurico  sétimo  depois  d'Ataulfo.  Santo  Isido- 
ro na  Chronica  dos  Godos. 

Este  Código  foi  depois  reformado  e  aumentado  por 
Leovigildo.  Santo  Isidoro  na  mesma  Chronica. 

Ervigio  abrogou  muitas  Leys  de  Wamba ,  e  substitu- 
hio  em  seu  lugar  outras.  Chronica  de  Sebastião  de  Sala- 
manca, 

No  fim  da  Historia  de  Wamba  allega  S,  Julião  Arce- 
bispo de  Toledo  o  Livro  II,  Titulo  I  das  Leis  Gothicas. 

A  opinião  dos  que  crerão,  que  o  Corpo  das  Leys  do 
Fuero  Itisgo  fora  ordenado  no  Concilio  IV  de  Toledo  rei- 
nando Sisenando ,  não  tem  fundamento  algum  nas  Actas  do 

dito  Concilio. 

De- 


DAS  SlrflEHCIAS   DE  LiSBOA.  247 

Depois  do  meio  do  século  XI ,  isto  he  no  anno  de 
1064  como  quer  Bnronio,  ou  de  1068  como  quer  Baluzc , 
forão  abolidas  em  Catalunha  as  Lcys  Gothicas.  Consta  d;is 
Actas  d'  humas  Cortes  de  Barcelona  daquelle  tempo ,  que 
traz  Aguirrc  na  sua  Gollccçao  dos  Concílios  d' Espanha, 


DISSERTAÇÃO     XI. 

Do  Ceremoninl  e  Legislação  dos  Reis  Godos ,  extrahido  hum  e 

outro  assumpto  immcdi  atam  ente  da  antiga  Historia ,  e 

antigos  Monumentos  da  tnvsma  Nação. 

P  A  R  T  E    I. 

Do  Ceremoiiial  Gothico. 


O. 


"s  Reis  Gidos  succcssores  dos  Romanos  no  impcrio 
das  Espanhas  ,  ao  mesmo  tempo  que  cuidarão  pouco  citx 
OS  imitar  na  cultura  das  Artes ,  esmcrárão-sc  muito  em 
adoptar  delles  os  titulos  de  grandeza  para  as  suas  Pessoas, 
e  de  lustre  para  a  sua  Corte. 

§     I. 

Esplendor  dos  Nomeí. 

Da  Imperial  Família  de  Vespasiano  adoptarão  os  Reis 
Godos  para  si  o  nome  de  Flavios  ,  que  ao  menos  des  do 
tempo  de  Reccaredo  ficou  sendo  commum  aos  nossos  Reis, 
como  entre  os  Imperadores  Romanos  o  tinha  sido  o  ap- 
pcUido  de  Césares. 

Huma  Pedra  de  caracteres  Gothicos  desciibería  em  To- 
ledo no  anno  de  i5'9i  ,  que  dá  noticia  do  anno  da  sagra- 
ção  da  Igreja  Metropolitana  da  mesma  Cidade  em  tempo 
dos  Godos. 

IN 


248  Memorias  da  Academia  Real 

IN  NOMINE  DNI  CONSECRA- 
TA  ECCLESIA  SCTE  MARIE 
IN  CATHOLIGO  DIE  PRIMO 
IDUS  APRILIS  ANNO  FELI- 
CITER  PRIMO  REGNI  DNI 
NOSTRI  GLORIOSISSIMI  FL 
RECCAREDI  REGIS  ERA 
DCXXV 
(He  o  anno  de  Christo  fS/.) 

Aqui  temos  o  Rei  Reccarcdo  denominado  Flávio.  Mos- 
tremos o  mesmo  d'outros  seus  successorcs. 

Huma  Ley  no  fim  do  Concilio  Toletano  V  Flavius 
Chintila  Rex. 

Outra  l/ey  no  fim  do  Concilio  Toletano  VIII  Flavius 
Reccesviuthiis  Rex. 

Outra  Ley  no  fim  do  Concilio  Toletano  XIII  Flavius 
Ervigitís  Rex. 

Duas  Allocuções  do  Rei  Egica  nos  princípios  dos  Con- 
cílios Toletanos  XVI  e  XVII  Flavius  Egica  Rex  Santissimis 
Patribus  in  hac  sancta  Synoão  Resiàentihus. 

Era  tão  constarLte  nos  Reis  Godos  o  nome  de  Flávio  y 
que  até  o  tyranno  Paulo ,  quando  em  tempo  de  Wamba 
se  levantou  com  a  Província  de  Narbona  ,  tomou  para  si 
o  nome  de  Flávio  Paulo.  Assim  se  convence  da  carta  que 
o  mesmo  Paulo  escreveo  a  Wamba ,  publicada  por  Duches- 
ne  na  Historia  de  Wamba  escrita  por  S.  Julião  Arcebispo 
de  Toledo. 

Os  mesmos  Reis  Godos  á  imitação  dos  Romanos, 
quando  fallavão  d'algum  de  seus  predecessores  defuntos  , 
costuniavão  honrallo  com  o  titulo  de  Divus  ou  Diva  Memo- 
ria. 

Reccesvintho  na  Allocução  aos  Padres  do  Concilio  To- 

le-  ■ 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  249 

Ictano  VIII   Et  si  summut  Amtor  rerum   me  Div£  Memoria 
Domini  et  Cenitoris  temponbuí  in  Regia  sede  subvexit ,  &c. 

Ervigio  na  Allocuçao  aos  Padres  do  Concilio  Tolctano 
XIII  Retroacíis  Divie  Memoria  IVamhie  Regis  tewporibns,  &c. 

Egica  na  Allocuçjo  aos  Padres  do  Concilio  Tnletano 
XV"  Divi  Píitris  nosiri  et  soceri  sortientes  fíistíginm ,  &c.  E 
mais  abaixo:  Egit  enim  idem  Diviis  Pricdecessor  noster  Ervi' 
giiif  Princeps ,  &c. 

Os  nossos  mesmos  Bispos  Godos  no  Concilio  Tolc- 
tano VIII  nenhum  escrúpulo  fi/erSo  de  chamar  a  Qiiind.is- 
vinrho ,  Priticeps  Diva  Mcmorite.  E  isro  porque  adverti  ão 
por  huma  parte ,  que  estes  mesmos  títulos  de  DiVns  e  Di- 
va Memoria ,  costumavão  dar  a  seus  predecessores  os  mes- 
mos Imperadores  Christíos,  como  he  notório  pelo  Código 
das  Leys  Romanas  :  e  por  outra  parte  ,  que  estes  títulos 
não  dcnotavao  mais,  do  que  a  eminente  excellencia  das 
Reacs  Pessoas.  No  qual  sentido  nenhum  Theologo  duvida 
dizer  hoje  de  S,  Paulo,  Divimis  Paulns ^  como  o  chama* 
rão  S.  João  Chrysostomo  e  Theodoreto  :  nenhum  Filosofo 
dizer  de  Platão,  Divinus  Plato  ^  como  o  chamou  toda  a 
antiguidade. 

Pelo  mesrtio  estilo ,  e  á  imitação  dos  mesmos  Impera- 
dores  Romanos ,  chamavão  os  Reis  Godos  Divaes  ou  Divinas 
as  suas  Constituições.  Recccsvintho  no  fim  do  Concilio  To- 
letanO  VIII  Tam  nobis,  qtiam  cunctis  nostra  gloria  successo- 
ribus  adfutnri  Legem  ponimus ,  Decretmt^iie  divalis  observan- 
tia  promiilgamus  ^  &c. 

Os  Officios  da  Casa  Augusta ,  que  Constantino  intro- 
duzira em  sua  Corte  de  Constantinopla  esses  mesmos  adop-» 
tárão  os  Reis  Godos  no  seu  Palácio  de  Toledo.  Consta 
isto  manifestamente  das  Actas  dos  Concilies  Toletanos  VIIÍ. 
c  XIII  e  XVI,  onde  depois  dos  Bispos  subscrevem  os  Of- 
ficines  da  Casa  Real ,  huns  com  o  titulo  de  Comes  Citbicu' 
Jariorum,  outros  de  Comes  Notariorum^  outros  de  Comes  Spa- 
tbarioriim ,  outros  de  Comes  Patrimonii ,  e  todos  com  o  tra- 
tamento de  Kiri  Ulustres  Officii  Palatini. 

Tomo  IX.  li  Eu 


H^O  Memoí^ias  T)A  Academia  Reai- 

Eu  }i  mostrei  noutro  papel  ,  que  imprimi  ha  quatro 
annos  sobre  a  Origem  do  Titulo  e  da  Dignidade  dos  Condes  ^ 
que  o  Comes  Cuhiculariurum  era  o  que  nós  hcjc  cliamamos 
Camareiro  Mor  ,  o  Comes  Notarioriim ,  o  Secretario  d'  Es- 
tado ;  o  Comes  Patrinwnii  o  Vedor  da  Fazenda  ;  o  Comes 
Spatbariorum  y  o  Capitão  da  Guarda. 

O  titulo  de  Catholico ,  que  hoje  he  característico  do 
Rei  d'  Espanha  des  do  tempo  de  D.  P^crnanJo  V  os  Bis- 
pos do  Concilio  Toletano  III  o  derão  novecentos  annos 
antes  a  Reccarcdo  :  e  as  Medalhas  de  Tarragona  c  Sara- 
goça oitocentos  annos  antes  a  Egica  e  a  Witiza. 

§     II 

Magestade  das  InscripçSes  nas  Moedas  ou  Medalhas. 

A  mesma  magestade  das  Inscripçoes  ou  Letreiros , 
que  se  observa  nas  Moedas  ou  Medalhas  dos  Imperadores 
Romanos,  he  a  que  se  acha  nas  dos  Reis  Godos.  Para  o 
que  basta  representar  entre  as  muitas ,  que  de  todos  os 
Reis  ajuntou  Flores  ,  algumas  de  Leovigildo  pay  de  Rec- 
caredo ,  e  o  primeiro  que  formalizou  em  Espanha  o  Ce- 
remonial  da  Corte. 

Huma  que  se  não  sabe  onde  foi  cunhada  diz  assim  : 
Ltuvigildiis  Rex  Inclytus.  E  por  baixo  da  figura  da  victo- 
ria  traz  estas  três  letras ,  O  N  O :  que  os  Antiquários  tem 
por  abreviaturas  desta  oração  :  Omnes  Nohis  Ohediant. 

Outra  de  Córdova  assim  :  Liuvigildus  Rex  Bis  Cordo- 
ham  ohtinuit. 

Outra  de  Merida  assim :  D  N  Leovigildus  Rex  Piai 
Emérita  victor. 

Outra  de  Évora  assim:  Leovigildus  Rex  Elvora  Jurtusé 

Outra  de  Braga  assim:  Leovigildus  Rex  Bracara  Victor, 

Destas  c  d'outras  Medalhas  Góticas  se  faz  também 
evidente ,  que  em  todas  as  Cidades  principaes  da  Espa- 
nha havia  casas  e  oíHcinas  de  cunhar  moeda.. 


DAS  SciénciaS  í)ê  Lisboa.  jj-f 

E  para  que  se  veja  ,  que  na  classe  destas  grandes 
Cidades  cntravão  outras  d.i  nossa  Lusitânia  ,  que  hoje  es- 
tão reduzidas  a  mui  pequenas  Povoações,  temos  huma  Me- 
dalha de  Rcccaredo  ,  cuja  inscripçao  he  esta.  Reccarediis  Rcx 
Jtixttis  JEininiô.  Onde  a  Cidade  de  Eminio,  conhecida  por 
esto  mesmo  nome  na  Historia  de  Plinio,  e  no  Itinerário 
d'Antonino,  e  authorizada  com  Cadeira  Episcopal  em  tem- 
po do  Terceiro  Concilio  de  Toledo;  concordão  hoje  to- 
dos os  nossos  Antiquirios,  que  era  onde  hoje  está  o  Lu- 
gar de  Águeda  entre  Coimbra   e  Aveiro. 

Temos  mais  outra  Medalha  do  ultimo  Rei  do?  Godos 
D.  Rodrigo  ,  cuja  InscripçJo  diz  assim  :  IN  DNE  Rnde- 
ricUs  RX  Egitania  Pius.  Onde  a  Cidade  de  Egitania  nin- 
guém ignora  ,  que  era  onde  hoje  está  a  pequena  villa  de 
Idanha  velha. 

De  caminho  ficamos  sabendo,  que  a  piedosa  Formula, 
Em  nome  de  Deos ^  com  que  hoje  costumamos  dar  principio 
aos  Instrumentos  públicos,  nos  veio  transmittida  dos  Godos* 

Mas  entre  as  Inscripçoes  das  Medalhas  Góticas  ne- 
nhuma ha  tão  rara  ,  como  a  de  huma  moeda  de  Sisebuto , 
que  Resende  testifica  fora  achada  em  Évora  no  anno  de 
içáo.  Dizia  assim:  DN  Sisebiitus  Rex  Civitas  Ebora.  Deus 
Jldjutor  Metis.  A  qual  Inscripçao  he  notável,  não  só  por 
trazer  o  nome  Ebora  escrito  ao  modo  Romano  ,  quando 
noutras  Medalhas  Gothicas  se  acha  eile  alterado  em  Eiva- 
ra; mas  também  porque  no  hemistiquio  tirado  dos  Salmos, 
Deuí  Âdjíitor  Metis ,  mostra  que  Sisebuto  com  esta  devota 
empreza  publicava  a  Dcos  por  seu  Auxiliador  nas  grandes 
victorias,  que  tinha  alcançado  dos  Romanos. 

§     ÍII. 

Insígnias  Reaes  dos  Príncipes  Godos. 

Santo  Isidoro   na  Chronica  dos  Godos    attesta  ,    que 
Leovigildo   fora  entrelles   o   primeiro  ,    que   se  vestio  de 

li  ii  Man- 


íiTi  Memórias  da  Acaoemia  R,e.al 

Manto  Real ,  e  se  assentou  cm  Throno.  Primas  intef'  suos 
regali  veste  opcrtus  inter  sólio  resedit.  \-l.h^'i3 

Da  Coroa  Real  são  irrefragavcis  provis  as  Medalhas  do 
mesmo  Leovigildo  ,  onde  a  cabeça  do  Rei  se  ve  cingida 
com  huma  atadura  bordada  de  pcrolas  ,  e  atada  atraz  com 
huma  fita  :  que  isto  era  o  que  propriamente  chamavão  os 
Antigos  Diadema,  nome  Grego  que  significa  atadura,  co- 
mo observou  Codino  Curopulata  na  sua  Obra  Dos  Ofjtcios 
da  Corte  de  Bysancio.  Por  isso  lemos  da  Rainlia  Monyma 
mnlher  de  Mithridátes  ,  que  tirou  da  cabeça  o  Diadema, 
para  se  enforcar  com  cUe. 

Plinio  no  Livro  VII,  cap.  y6  diz  que  o  inventor  do 
Diadema  ,  como  distinctivo  da  Real  Dignidade  ,  fora  o 
Dcos  Libero.  Liber  Pater  Diadema ,  Regam  insigne  ,  et  tritim- 
pb:iin  invenit.  Assim  entre  os  Romanos  ,  depois  que  na  pes- 
soa de  Tarquinio  soberbo  foi  desterrado  o  titulo  de  Rei, 
era  em  extremo  odioso  o  Diadema.  De  sorte  que  como 
refere  Suetonio  na  vida  de  Júlio  Gesar,  cnp.  y6  e  ^7  pon- 
do alguns  plebeos  na  estatua  de  Júlio  César  coroa  4e  lou- 
ro cingida  com  huma  faixa  branca  ;  os  deus  Tribunos  do 
Povo  Epidio  Marullo ,  c  Cesecio  Flávio  a  mandarão  logo 
tirar,  e  meter  na  cadea  os  authores  da  novidade.  E  o  mes- 
mo Júlio  César  lançou  de  si  o  Diadema  ,  que  o  ConsuJ 
António  lhe  punha  na  cabeça,  e  o  mandou, .  ao.  Capitólio 
para  se  coUocar  na  cabeça  de  Júpiter.         rr.irr'' 

Aureliano  foi  o  primeiro  que  usou  de  Diadema  entra 
os  Romanos.  Iste  primas  apiid  Romanos  diadema  capiti  inne- 
Kuit ,  escreve  delle  Sexto  Aurélio  Victor  no  Epitome  da 
Historia  Augusta.  / 

Não  sei  se  reduza  ao  presente  assumpto  huma  obser- 
vação de  António  Agostinho  sobre  as  Medalhas  Gothicas. 
Mas  como  ella  versa  sobre  o  que  d'alguma  sorte  he  indi- 
cio de  authoridade ,  eu  a  proponho  já  sem  nenhum  receio. 
Vem  a  ser ,  que  nas  Medalhas  d'  Ervigio  apparece  este  Rei 
com  barbas :  donde  podemos  colher ,  que  do  mesmo  modo 
SC  effigiavão  outros  dos  nossos  Príncipes.  i 

He 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  2^$ 

He  incontestável ,  que  as  barbas  em  todos  os  séculos 
e  entre  todas  as  Nações,  forão  tidas  por  demonstrativo  de 
autoridade  ,  de  prudência  ,  de  vigor  :  de  sorte  quo  para 
fazer  injuria  a  algum  personagem  ,  bastava  íazcr-lhe  cor- 
tar a  barba ,  como  fez  o  Rei  Hanon  aos  Embaixadores  de 
David  :  e  este  nao  soíFrendo  ver  por  seus  olhos  tamanha 
ignominia  ,  mandou  que  os  Embaixadores  se  detivessem 
cm  Jericó  ,  em  quanto  a  barba  lhes  crescia.  Assim  o  le- 
mos no  Primeiro  Livro  dos  Faralipómcnos,  cap.  XIX. 

Quatrocentos  e  sincoenta  c  quatro  annos  esteve  Ro- 
ma sem  fazer  a  barba,  como  he  expresso  cm  Plinio  no 
Livro  VII,  cap.  5-9  allcgando  com  Vanao.  E  se  bem  Au- 
gusto, como  acrescenta  Plinio  ,  sempre  fez  a  barba;  Adria» 
no  a  tornou  a  deixar  crescer ,  como  affirma  Dião  Cassio. 
E  dos  Imperadores. Gregos  Focas  e  Hcraclio  mostrao  bar- 
bas nas  suas  moedas.  Fm  Cm  das  barbas  crescidas  tomou  o 
nome  huma  Nação  inteira,  que  íoi  a  áos  Longobarhos  ^  cha- 
mados depois  Longobardos. 


DISSERTAÇÃO    XIL 

Destruição  do  Reino  Godo  em  Espanha  pela  entradfl  dos  Motí' 
ros.  Princípio  da  Restauração  d'Espanha  por  D.  Pelagio, 
Suminario  dos  sticcessos  mais  notáveis  do  tempo  dos  Mouros. 


Em  que  tempo  se  perdeo  Espanha^ 

X-/eixadas  outras  Épocas ,  que  se  achao  em  varies  Au- 
thorcs  antigos,  mas  não  coetâneos;  pede  a  boa  critica, 
que  a  Época  da  destruição  do  Reino  Godo  se  não  estabe- 
leça, senão  pelo  testemunho  d' Isidoro  Pacense,  que  he  o 
único  Escritor  que  temos  daquelle  mesmo  século  ,  e  que  as 

cou- 


25'4  MemoIiias  PA  AcADE  MIA  Real 

cousas  que   refere  neste   particular  ,   as  podia  ter  ouvido  e 
sabido  daquellcs  mesmos  que  as  presenciarão. 

Na  sua  Chronica  pois  escreve  Isidoro  Pr.censc ,  que 
Rodrigo  ultimo  Rei  dos  Godos,  succcdêra  no  Reino  a  Wi- 
tiza  na  Era  de  DGCXLIX ,  que  dá  o  anno  de  Christo 
7 1 1  ,  c  que  reinara  só  hum  anno.  Que  correndo  a  mesma 
Era  de  DGCXLIX ,  e  o  mesmo  anno  de  Christo  711  no 
anno  quinto  d'Ulit  Califa  dos  Árabes  ,  entrara  por  Espa- 
nha hum  exercito  de  Mouros  capitaneados  pelo  General 
Muza  ;  com  os  qiiaes  sahindo  a  cncontrar^se  o  Rcy  Ro- 
drigo ,  c  dando-lhcs  baralha ,  fora  por  ellcs  derrotado  com 
todo  seu  exercito  na  Era  de  DCCL,  que  dá  o  anno  de 
Christo  711,  sexto  do  Califado  d'Ulit. 

Segundo  esta  narração  d'  Isidoro  Pncense  ,  fica  claro  e 
evidente,  que  a  destruição  do  Reino  Godo  com  a  derrota 
do  Rei  Rodrigo,  se  deve  fixar  no  anno  de  Christo  712, 
que  hc  o  que  corresponde  a'  Era  de  DCCL  notada  expres- 
samente por  Isidoro ,  como  Época  da  dita  destruição. 

Confirma-se  isto  pela  outra  Chronica  d'  ElRei  D.  Af- 
fonço  III  chamado  o  Magno,  que  vulgarmente  se  costu- 
ma attribuir  a  Sebastião  Bispo  de  Salamanca ,  c  que  he  o 
Monumento  que  nos  ficou  mais  antigo  depois  da  Chroni- 
ca d'  Isidoro  Pacensc ,  por  ser  escrito  na  declinação  do  sé- 
culo nono.  Na  qual  Chronica  se  põe  a  morte  de  Witiza, 
e  a  eleição  immediatamente  seguida  de  Rodrigo  na  mes- 
ma Era  de  DCCXLIX ,  que  Isidoro  assinara  por  principio 
do  Reinado  de  Rodrigo,  anno  de  Christo  711. 

Confirma-se  mais  pela  outra  Chronica  do  século  XII, 
que  os  nossos  com  Brandão  costumão  chamar  Gothica , 
sendo  que  pelo  principal  assumpto  que  trata ,  que  são  as 
acções  do  nosso  primeiro  Rey  D.  AfFonço  Henriques,  me- 
lhor se  devia  intitular  Lusitana ,  como  bem  advertio  Flo- 
res. Nesta  Chronica  pois  logo  quasi  no  principio  se  diz 
assim  :  -^ra  749  a/ias  yEra  /yo  Sarraccni  Hispaniam  adepti 
síint  regnante  Roderico.  Isto  he ,  na  Era  749 ,  alias  na  Era 
7'jo  se  fiíerão  os  Sarracenos  senhores  d'  Espanha.  Aquelle 

ajuu- 


DAS   ScTENCIAS   Dí   LlSBOA.       "  b.^Ç 

QJuntiir  as  duas  Eras  ,  e  como  emendar  huma  pela  outra  , 
foi  sem  duvida  querer  o  Author  desta  Ciironica  distinguir 
o  principio  da  guerra  do  fim  delia;  e  significar,  que  Jin- 
da  que  a  tomada  d'  Espanha  começou  na  Era  de  74i>,  anno 
de  Chrisro  711  ,  nao  se  concluio  todavia  perfeitamente,  se- 
não na  Era  de  750,  anno  de  Chvisro  712,  entre  as  quaes 
duas  Eras  se  passou  o  único  anno  de  governo  ,  que  Isi- 
doro Facense  tinha   dado  a   Rodrigo. 

A  Chronica  de  Burgos,  que  parece  ser  do  mesmo  ser 
culo  XII,  diz  assim:  Era  DCCXLIX  re^narc  cwpit  Rude- 
riciis.  Regnavit  annis  trihiis  ,  dttobm  ctim  IVitiza  ,  tmo  per  se, 
E  logo  outra  vez  :  Era  DCCXLIX  iiitravcrunt  Spauia  Sar- 
rafeui  ttmpore  Rnderici  Regit  Toletani.  Q|.icr  dizer '.Na  Era 
de  749  (he  o  anno  de  Christo  711)  começou  a  reinar  Ro- 
drigo, Ellc  reinou  três  annos :  a  saber,  dous  com  Witiza, 
c  hum  elle  só.  N.i  Era  de  749  etirrárao  os  Sarracenos  e/á 
Espanha  efm  tempo  de  Rodrigo  Rei  de  Toledo.  .  1 

A  noticia  de  ter  reinado  Rodrigo  dous  annos  com  Wi- 
ÚZi  não  he  singular  nesta  Chronica  de  Burgos-:  porque 
também  a  de  Albelda  suppõe  o  mesmo ,  como  logo  vere- 
inos.  Mas  dizer  que  na  Era  de  749,  anno  de  Christo 
711,  começou  a  reinar  Rodrigo,  e  que  nessa- mesma  Era 
entrarão  os  Sarracenos' em  Espanha;  bem  riiostra  que  na 
dita  Era  de  749,  anno  de' Christo  71  ij  he  que  começou 
Rodrigo  a  reinar  só:  visto  que  codas  as  outras  Chroniças 
tonvcm,  que  no  dito  ailiiô  de  Chrtóto  711  falecera  Witiza. 

Neste  sentido  concorda  a  outrà  Chronica  ;d'AIbelda 
admiravelmente  com  a  de  Burgos,  «m  quanto 'diz  ^  que  <) 
Reino  dos  Godos  pcrececí  pela  entrada  que  nelle  fez  9 
General  Muza ,  no  terceiro  aniva-^de  Rodrigo:  terceiro, 
depois  de  reinar  dous  com  Witi5ía',  e  esse  mesmo  terceiro 
o  único ,  que  reinou  só ,  como  tyilia  escrito  Isidoro  Fa- 
cense. .  tíob  0]§olcif.v-)  ««>^ijnB  òlaq  t 

Não  se  deve  comttído  dís^imijar,"  qúe^esíe  fércéiio 
anno  de  Rodrigo,  único  que  reinou- só ,  o  retarda  a  sobre; 
dita  Chronica  d'AlbeIda  atd  o  anrtô'  de  Ghrista.714^  pon- 
do 


i^S  Memorias  DA  Acaof. MIA  Real 

do  assim  a  perda  d'  Espanha  dous  annos  mais  tarde ,  do 
que  3  poscra  Isidoro  Paccnsc.  E  esta  hc  a  Época  que  se- 
guio  Mariana. 

Deste  Muza  General  dos  Mouros  e  Conquistador  de 
Espanha ,  querem  alguns  com  Pedro  de  Marca  ,  que  os  Es- 
canhoes daquelle  tempo  se  começassem  a  chamar  Miizara» 
bes ,  como  se  disséramos  Árabes  de  Muza.  Porém  a  opinião 
mais  bem  recebida  dos  modernos  da  Nação  tem ,  que  os 
Espanhocs  se  disserão  Mitzarahes  por  corrupção  ou  altera- 
ção de  Mixtarahes  :  isto  he  ,  que  se  disserão  Muzarabcs  , 
para  se  denotar  que  vivião  misturados  com  os  Árabes. 

O  Rei  Rodrigo  era  filho  de  Thcudofredo  Duque  de 
Córdova.    Chronica  do  Monge  de  Silos  escrita  no  século 

XII. 

Este  Theudofredo  porém  pai  de  Rodrigo  era  filho  de 

Recesvintho.  Chronica  do  Arcebispo  de  Toledo  D.  Ro- 
drigo Ximenes ,  que  he  do  século  XIII.  Livro  III,  cap.  i6: 

Os  motores  da  ruina  d'  Espanha  em  ódio  de  Rodrigo 
forâo  os  filhos  de  Witiza,  dos  quaes  hum  se  chamava  Opas, 
Arcebispo  de  Toledo  ,  unidos  com  o  Conde  Julião  Gover- 
nador da  Africa  Tingitana.  Chronica  do  Monge  de  Silos. 
O  qual  todavia  se  engana  em  chamar  a  Opas  filho  de  Wi- 
tiza ,  e  Arcebispo  de  Toledo.  Porque  Opas  era  filho  de 
'Eoica ,  c  conseguintemente  irmãp  de  Witiza :  e  não  era 
Arcebispo  de  Toledo ,  mas  de  Sevilha. 

Que  Opas  fosse  filho  de  Egica ,  e  não  de  Witiza,  hes 
expresso  cm  Isidoro  Pacfense  ,  que  o  havia  de  saber  muito 
bem.  E  ainda  assim  o  erro  de  fazer  a  Opas  filho  de  Wi- 
tiza não  he  só  do  Monge  de  Silos  ,  mas  também  de  D, 
Lucas  de  Tui ,  e  o  que  mais  hc ,  da  Chronica  de  Sebas- 
tião de  Salamanca  tnntu  mais  antiga. 

Que  fosse  Arcebispo  de  Sevilha,  e  não  de  Toledo, 
consta  pelo  antigo  Catalogo  dos  Arcebispos  de  Sevilha  da. 
Abbadia  de  S.  Milhan ,  publicado  por  D.  Gregório  Mayans 
na  Vida  de  D.  Nicoláo  António,  §  iy6. 

Não  se  pode  comtudo  negar,  .que  de  Sevilha  passou 

Opas 


i 


DAS    SCIENCIAS    DE   LiSBOA.  25-7 

Opas  a  ser  Arcebispo  intruso  de  Toledo  por  nomeação  de 
seu  irmão  Witiza ,  vivendo  ainda  o  legitimo  Arcebispo  Sin- 
deredo  :  porque  assim  o  affirma  D.  Rodrigo  na  sua  Chro- 
nica ,  Livro  111,  cap.  16. 

Os  motivos  para  se  conjurarem  contra  o  Rei  Rodri- 
go, forão  da  parte  dos  filhos  d'Egica  irmãos  de  Witiza , 
vcrem-se  excluidos  de  reinar  pela  eleição  de  Rodrigo  ;  e 
sobre  excluidos  de  reinar ,  perseguidos  também  cruamente 
pelo  mesmo  Rodrigo.  Da  parte  do  Conde  Julião  ter  Ro- 
drigo abusado  d'  huma  filha  sua  donzella ,  que  era  Dama 
do  Paço.  A  mesma  Chronica  do  Monge  de  Silos. 

Ainda  não  pude  descobrir  em  que  Monumento  antigo 
se  fundão  João  Vazeu ,  Estevão  de  Garibai ,  João  Mariana  , 
Bernardo  de  Brito,  e  os  outros  nossos  modernos,  quando 
escrevem  ,  que  o  nome  desta  Dama  era  Cava  :  nome  que 
em  lingua  Arábiga  significa  md  mulher ,  segundo  escreve 
Fr.  Pedro  d'Alcalá  no  seu  Vocahulssta  Arahigo. 

Alguns  que  depois  passarão  por  mais  sisudos,  e  avi- 
sados, como  D.José  Pellicer,  o  Marquez  de  Mondexar, 
e  D.  Gregório  Mayans  ,  derão  por  huma  novella  fabulosa 
este  conto  dos  amores  do  Rei  Rodrigo  com  a  filha  do 
Conde  Julião.  Mas  o  seu  fundamento  principal  não  tem 
nada  de  solido.  Dizem  que  taes  amores  em  tempo  tão  tur- 
bulento não  são  verisimeis  :  como  se  a  Historia  e  a  ex- 
periência nos  não  mostrasse  outros  innegaveis  exemplos  do 
contrario. 

Sobre  que  fim  teve  o  infelice  Rei  Rodrigo,  a  Chro- 
nica Albeldensc  diz  que  ninguém  até  aquelle  tempo  o  sa- 
bia. De  Rege  quoque  eodem  Ruderico  ntilli  causa  interitus  ejus 
cognita  manei  tisque  in  prasentem  diem.  Quasi  pelos  mesmos 
termos  se  explica  na  sua  Chronica  Sebastião  de  Salaman- 
ca. Mas  como  este  acrescenta  ,  que  mandando-se  em  seu 
tempo  povoar  a  Cidade  de  Viseu,  se  achou  numa  Basílica 
da  mesma  Cidade  hum  sepulcro  com  este  epitáfio  :  Hic  re- 
qttiescit  Rudericus  Rex  Gothorum :  prudentemente  se  pôde  da- 
qui inferir,  que  Rodrigo  depois  da  batalha  em  que  ficou 
Tomo  IX.  Kk  ven- 


aj8  Memorias  DA  Ac ADEMi A  Real 

vencido,  teve  modo  de  se  recolher  da  Andaluzia  a  Portu- 
gal ,  onde  tendo  por  ultimo  acabado  sua  triste  vida ,  toi 
sepultado  em  Viseu. 

O  nosso  Conde  D.  Pedro  não  devia  ter  lido  esta  Chro- 
nica ,  quando  logo  no  principio  do  seu  Nobiliário ,  Titu- 
lo I  cscreveo ,  que  o  tal  epitáfio  fôra  achado  numas  hor- 
tas junto  a  Viseu. 

Este  epitáfio  até  a  nossa  idade  se  lia  em  Viseu  na 
Igreja  de  S.  Miguel.  Haverá  porém  sincoenta  ou  seccnta 
annos ,  que  o  Cabido  Sede  Vacantc  mandando  reedificar  a 
dita  Igreja ,  supprimio  a  pedra  cm  que  elle  estava ,  e  poz 
em  seu  lugar  outra  com  o  seguinte  distico : 

Hic  jacet ,  aut  jacuit  postremns  in  ordine  Regum 
Gotborum ,  itt  tiobis  nuuiia  fama  referi. 

Assim  mo  certificou  ha  poucos  mezes  daquella  cidade  o 
Reverendo  P.  M.  António  Machado  da  Congregação  da 
Oratório  de  S.  Filippe  Neri. 

A  Rainha  com  quem  foi  casado  o  Rei  Rodrigo ,  cha- 
mava-se  Egilona.  Chronica  de  Isidoro  Pacense. 

§     II. 

Principio  da  Restauração  d^Espanha  por  ElRei  D.  Pelagio. 

Sinco  annos  havia  que  os  Mouros  dominavão  Espa- 
nha ,  quando  D.  Pelagio  aggregando  a  si  vários  Povos  das 
Astúrias  se  levantou  Rei  dos  mesmos  Povos. 

Nesta  Época  do  Reinado  de  D.  Pelagio  concordáo  to- 
das as  antigas  Chronicas.  Basta  citar  a  d'Alcalá ,  e  a  do 
Livro  de  Noa  de  Santa  Cruz  de  Coimbra ,  que  ambas  se 
cxplicão  por  estas  mesmas  palavras :  Era  DCCL  Sarraceni 
Hispaniam  obúniicrmt.  Antequam  Domnus  Pelagius  regnaret , 
Sarraceni  regnarunt  in  Hispânia  annis  V* 

Sup- 


I 


DAS   SciENCIAS   DE   LlSBOi^.  jj'^ 

Supposto  este  consenso  das  Chronicas  antigas  hc  f-i- 
cillimo  de  fixar  o  anno  ,  em  que  D.  Pclagio  começou  a 
reinar.  Porque  se  Espanha  foi  tomitía  pelos  Sarracenos  no 
anno  de  Christo  712,  ( que  he  o  que  corresponde  á  era 
de  César  750 )  scgue-se  que  o  primeiro  anno  da  domina- 
ção dos  Sarracenos  foi  o  seguinte  anno  de  713.  Ora  as 
Chronicas  attestao  que  passados  sinco  annos  desta  domi- 
nação, he  que  D.  Pclagio  começou  a  reinar.  Logo  o  prin- 
cipio do  Reinado  de  D.  Pelagio  foi  no  anno  de  Christo 
718. 

Era  D.  Pelagio  Príncipe  do  sangue  Real  dos  Godos , 
e  filho  do  Duque  D.  Fafila.  Chronica  de  Sebastião  de  Sa- 
lamanca. 

Tinha  sido  capitão  da  Guarda  do  Rei  Rodrigo.  Chro- 
nica do  Monge  de  Silos. 

A  restauração  d'  Espanha  começou  pela  famosa  victo- 
ria  ,  que  D.  Pelagio  alcansou  dos  Mouros  na  batalha  de 
Cangas  nas  Astúrias ,  onde  morrerão  cento  e  vinte  e  qua- 
tro mil  infiéis,  e  ficarão  prisioneiros  Alcaman  seu  General, 
e  o  pérfido  Opas  Arcebispo  de  Sevilha.  Chronica  de  Se- 
bastião de  Salamanca,  e  Chronica  do  Monge  de  Silos. 

Reinou  D.  Pelagio  dcsanove  annos  completos,  c  fa- 
Jeceo  na  era  de  775  ,  anno  de  Christo  737.  Chronica  de 
Sebastião  de  Salamanca. 

Daqui  se  confirma  o  que  acima  estabeleci ,  que  o  pri- 
meiro anno  do  Reinado  de  D.  Pelagio  foi  o  anno  de  Chris- 
to 718,  Porque  de  718  para  737  vão  justamente  desano- 
ve  annos. 

O  jazigo  dos  primeiros  Reis ,  que  succedêrâo  a  D. 
Pelagio  ,  foi  primeiro  em  Cangas ,  depois  em  Pravia.  D. 
AÔonso  II  o  Casto ,  foi  o  primeiro ,  que  assentou  a  Corte 
em  Oviedo ,  e  fez  nella  jazigo  para  si  e  seus  successores. 
Depois  transferio  D.  Ordonho  II  a  Corte  para  Leão  ,  e 
então  começarão  os  Reis  a  enterrar-se  em  Leão.  Tudo  cons- 
ta da  Chronica  de  Sebastião  de  Salamanca  ,  e  da  de  seu 
Continuador  Sampiro  d'Astorga, 

Kk  ii  Até 


a6o  Memorias  DÀ  Ac At)EMiy\  Real 

Até  o  tempo  deste  D.  Ordonho  II  intitulavão-se  es- 
tes Reis  não  Reis  de  Leão ,  mas  d'Oviedo.  Assim  os  ap- 
pclida  a  Chronica  d^i^ftbelda. 

Estes  Reis  costumavão  sagrar-se  ou  ungir-se ,  bem  co- 
mo o  tinhão  praticado  os  Godos.  Consta  da  Chronica  do 
Monge  de  Silos  ,  fallando  do  Rei  D.  AíFonço  III  o  Ma- 
guo  i  anno  de  866,  e  da  outra  Chronica  de  Cardenha  , 
fallando  do  mesmo  Rei. 

Pela  Historia  Compostcllana  ,  Livro  II,  cnp.  87,  cons- 
ta ,  que  ainda  no  século  XII  sagrara  o  Arcebispo  de  San- 
tiago D.  Diogo  Gelmires  a  ElRei  D.  AíFonço  VII  de  Leão. 

Dava-se-llics  também  depois  de  mortos ,  como  aos 
Godos  ,  o  titulo  honorifico  de  Divte  Memoria.  Consta  do 
epitáfio  de  D.  Ramiro  I  em  Oviedo  ,  que  diz  assim  : 
Obiit  íliVíC  memorize  Ranimirtis  Rex  die  Kal.  Februarii ,  Era 
DCCCLXXXFIII.  Aponta-o  Morales  na  sua  Chronologia  dos 
Reis  tirada  das  Obras  de  Santo  Eulogio  Marryr. 

Ainda  depois  da  perda  d'  Espanha ,  trataváo  os  estran- 
geiros os  Espanhoes  por  Godos.  Consta  da  Carta  d'Alcui- 
no  aos  Abbades  e  Monges  da  Gothia  na  causa  de  Felis 
d'  Urgel. 

§    IIL 

Tocão-se  os  principaes  successos  íT Espanha  f  durante  a  domina' 

ção  dos  Mouros. 

D.  Fafila  ,  filho  e  immediato  successor  de  D.  Pela' 
gio ,  por  ter  a  imprudência  de  se  pôr  a  luctar  com  hum 
urso,  foi  morto  por  elle,  no  segundo  anno  do  seu  Rei- 
nado, que  era  o  anno  de  Christo  739.  Chronica  de  Se- 
bastião de  Salamanca,  e  Chronica  Albcldcnse. 

D.  Affonço  I  o  Magno  ,  genro  de  D.  Pelagio ,  e  fi- 
lho de  D.  Pedro  Duque  de  Biscaia  ,  da  antiga  raça  dos 
Reis  Godos  da  linha  de  Rcccaredo ,  libertou  do  poder  dos 
Mouros  a  Lugo ,    Tuy ,   Braga,   Porto,  Viseu,  Chaves, 

Le- 


DAS    SciENci  AS  DE  Lisboa.  261 

Lcdcsma ,  Salamanca,  Zamora,  e  outras  muitas  terras.  Na 
sua  morte  forao  ouvidos  os  Anjos  cantar  aquellas  palavras 
da  Escritura  :  Ecce  quomoiio  nioritur  justus ,  et  innio  ccmidc- 
rat ,  &c.  Faleceo  no  anno  de  717  tendo  reinado  desoito 
annos.  Chronica  de  Sebastião  de  Salamanca  ,  e  Chronica 
do  Monge  de  Silos. 

No  anno  de  Christo  77^  veio  Carlos  Magno  de  Fran- 
ça a  Espanha ,  passando  de  Pamplona  até  Saragoça.  An- 
naes  Bcrtininnos  publicados  por  Duchcsne. 

Sc  damos  credito  á  Chronica  do  Alosteiro  de  S.  Gál- 
io, que  Baluzc  inscrio  nas  suas  Miscellaneas ,  neste  mes- 
mo anno  teve  Carlos  Magno  huma  grande  perda  em  Espa- 
nha. DCCLXXFIII.  Hoc  anno  Domuus  Rcx  Carolus  perrextt 
in  Spania  ,  et  ibi  dispendium  habuit  grande. 

Esta  grande  perda  creio  eu ,  que  consistio  na  perda 
da  celebre  batalha  de  Ronces-Valhes ,  onde  os  Francezes  fo- 
rao derrotados  pelos  Navarros  unidos  com  os  Mouros.  Fun- 
do-me  em  que  a  Chronica  do  Monge  Cerratense  póe  nes- 
te tempo  a  sobredita  batalha ,  dizendo :  Era  DCCCXF  fnit 
pra;'inm  de  Rozas  Valles  ^  ubi  fueruiit  morttii  XII  Pares.  Quer 
di/er :  Na  Era  de  8if  (he  o  anno  de  Christo  774)  foi  a 
batalha  de  Roncesvalhes ,  onde  forâo  mortos  os  doze  Pa- 
res. 

Fundo-me  outrosi ,  em  que  a  mesma  derrota  dos  Pa- 
res a  põe  a  Chronica  Silense  na  volta  de  Carlos  de  Sara- 
goça para  Pamplona ,  e  de  Pamplona  para  França ;  no- 
meando entre  os  mortos  a  Egibardo  Veador  de  Carlos  Ma- 
gno ,  a  Anselmo  seu  Conde  de  Palácio ,  e  a  Rolão  ou 
Roldão  Conde  de  Bretanha. 

Sc  assim  foi ,  pôde-se  disputar  o  Padre  Mariana  ,  e 
a  outros  Modernos ,  que  a  batalha  de  Roncesvalhes  fosse 
nos  últimos  annos  de  Carlos  Magno  ,  e  em  tempo  de  D. 
Affonço  o  Casto.  Porque  Carlos  morreo  indubitavelmente 
em  814,  e  em  yyy  ou  778  ainda  não  reinava  D.  AfFonço. 

No  anno  de  798  por  dous  Embaixadores  seus  D.  Froi- 
la   e  U.  Basilisco ,   mandou  o  Rei   D.  Affonço    o  Casto  a 

Car-  i 


202  Memorias  da  Academia  Reai, 

Carlos  Magno  de  presente  hum  fermoso  Pavilhão  cont 
muitas  armas  c  bestas,  e  com  muitos  Mouros  cativos,  que 
tomara  na  conquista  de  Lisboa.   Annaes  Bcrtinianos. 

Esta  cspece  não  me  lembro  tel-la  achado  em  Escritor 
algum  nosso.  E  quando  eu  a  puz  no  meu  Compendio  dns 
Épocas  por  authoridade  de  Lcnglct,  ainda  não  sabia  donde 
elle  a  poderia  ter  tomado. 

Em  tempo  do  Rei  D.  Affonço  o  Casto  ^  e  de  Carlos 
Magno  ,  se  levantou  cm  Espanha  a  heresia  de  Felis  Bis- 
po d' Urgel ,  e  d' Elipando  Arcebispo  de  Toledo,  que  en- 
sinavão ,  que  Christo  não  era  filho  natural  de  Deos  Padre, 
mas  adoptivo.  Contra  ella  fez  Carlos  Magno  celebrar  cm 
794  o  Concilio  de  Francford  ,  composto  dos  Bispos  da 
Itália,  da  França,  e  da  Germânia,  que  contra  a  mesma 
heresia  escreverão  aos  Prelados  d'  Espanha  huma  Epistola 
Synodica  extensíssima ,  que  se  pôde  ver  nas  Actas  do  dito 
Concilio. 

Pela  carta  do  Papa  Adriano  I  ao  Bispo  Egila  cons- 
ta ,  que  por  este  mesmo  tempo  grassavão  por  Espanha  ou- 
tros erros  sobre  a  celebração  da  Páscoa,  Livre  Arbítrio, 
Predestinação ,  DiíFerença  dos  manjares ,  e  Celibato  dos 
Clérigos. 

O  modo  com  que  D.  Affonço  o  Casto  subio  ao  thro- 
no ,  he  digno  de  se  saber,  e  de  se  notar. 

Morto  o  Rei  D.  Silo  no  anno  de  783  quando  a  Rai- 
nha viuva  D.  Adosinda  com  todos  os  Officlaes  do  Paço , 
queria  que  lhe  succedesse  seu  sobrinho  D.  Affonço ,  filho 
do  Rei  D.  Froila  I  seu  irmão  :  succedeo  que  outro  Prín- 
cipe por  nome  D.  Mauregato ,  filho  bastardo  do  Rei  D. 
Affonço  I  o  CathoUco  ,  tido  numa  escrava ,  pacteou  secre- 
tamente com  os  Mouros ,  que  se  o  ajudassem  para  elle  al- 
cançar o  Reino,  excluído  D.  Affonço,  elle  D.  Mauregato 
lhes  daria  todos  os  annos  cm  parias  cem  donzellas  chris- 
taãs.  Com  cffeito  ajudado  dos  Mouros  sahio  D.  Maurega- 
to com  a  sua ,  e  reinou  sinco  annos ,  e  alguns  mczes.  Por 
todo  o  qual  tempo  esteve  seu  competidor  D.  Affonço  re- 

ti- 


DAS    SciENCIAS    DE    LiSBOA.  263 

tirado   da  Corte ,   vivendo   cm  casa   de   huns   parentes  de 
sua  mãy,  que   tiniia  cm  Alava. 

Morto  o  Rei  D.  Mauregato  em  789  ,  succedeo-lhc 
D.  Bcrmudo  I  sobrinho  do  mesmo  D.  AiFonço  o  Catholico  ^ 
de  quem  D.  Mauregato  era  filho  bastardo.  Tinha  D.  Bcr- 
mudo recebido  ordem  de  Diácono,  e  ainda  assim  reinou 
trcs  annos.  Mas  no  terceiro  renunciou  o  Reino ,  não  a  fa- 
vor d'algum  de  dous  filhos  que  tinha ,  chamados  D.  Ra- 
miro ,  e  D.  Garcia  ;  mas  a  favor  de  seu  sobrinho  D.  Af- 
fonso ,  que  he  o  de  quem  tratamos  ,  e  que  por  não  ter 
querido  nunca  casar,  foi  chamado  o  Casto. 

Tudo  isto  consta  da  Chronica  de  Sebastião  de  Sala- 
manca :  3  qual  como  dá  a  D.  AíFonço  o  Casto  sincoenta  e 
dous  annos  de  reinado  ,  c  o  póe  morto  no  anno  de  842  , 
scgue-se  que  D.  AíFonço  o  Custo  começou  a  reinar  no  an- 
no de  791. 

Na  batalha  de  Lutos  nas  Astúrias,  matou  o  Rei  D, 
AfFmço  o  Casto  setenta  mil  Mouros.  A  mesma  Chronica 
de  Sebastião  de  Salamanca,  e  a  outra  do  Monge  de  Silos. 

Em  seu  tempo  forâo  descubertas  por  celestiaes  indí- 
cios as  rcliquias  do  Apostolo  Santiago  Maior  em  Iria,  ci- 
dade então  Episcopal  ,  hoje  villa  do  Padrão  em  Galliza  , 
c  trasladadas  dalli  para  Cómpostella  ,  sendo  Bispo  de  Iria 
Thcodomiro.  Historia  Compostellana  do  século  XII.  Livro 
I,  cap.  2. 

A  D.  Affonço  II  o  Casto ,  succedeo  D.  Ramiro  I , 
aquellc  que  venceo  aos  Mouros  a  famosa  batalha  de  Cla- 
vijo ,  onde  foi  visto  o  Apostolo  Santiago  montado  num  ca- 
vallo  branco ,  com  huma  bandeira  branca  na  mão ,  pelejar 
pelos  Christãos.  O  que  tudo  attestou  depois  o  mesmo  Rei 
no  Privilegio  chamado  dos  Fotos ^  que  Morales  publicou,  e 
icproduzio  Flores,  Tomo  XIX,  pag.  329. 

Daqui  diz  Mariana  que  veio  o  costume  ,  de  quando 
os  nossos  estavão  para  dar  batalha  aos  Mouros ,  appellidar 
Santiago  Barros  o  está  mencionando  a  cada  passo  nas  suas 
Décadas. 

A 


264  Memorias  da  Academia. Real 

A  este  mesmo  D.  Ramiro  I  attribue  Mariana  a  glo- 
ria de  ter  cllc  sido  o  que  levantou  aos  Mouros  o  infame 
tributo  das  cem  donzellas  christaãs,  que  o  Rei  Maurcgato 
tinha  pactcado  com  tanto  discrediro  da  Nação  Espanhola. 
A  Chronica  do  Cerratense  comtudo  attribue  aquella  gloria 
a  D.  Ramiro  II  pelos  annos  de  Christo  934,  dizendo  que 
ate  aqucllc  tempo  se  pagava  sempre  o  tributo  das  cera 
donzellas. 

Poderá  ser ,  que  a  paga  deste  tributo  tivesse  suas  in- 
terrupções ,  conforme  erao  os  tempos  que  corriao  :  e  que 
por  isso  fossem  diversos  os  Reys,  que  o  levantassem. 

Reinando  D.  Affonço  III  o  Magno  ^  foi  sagrada  a  Igreja 
de  Santiago  de  Galliza :  (erecta  em  Metropolitana  a  Igreja 
d'Ovicdo;)  e  celebrado  nella  hum  Concilio,  cm  que  se 
decretou ,  que  visto  acharem-se  destruídas  pelos  Mouros 
muitas  Cathedraes ,  e  terem-se  refugiado  nas  Astúrias  os 
seus  Bispos ,  ficassem  estes  vivendo  em  Oviedo  ,  e  dalli 
governasse  cada  hum  como  podesse  os  seus  dispersos  reba- 
nhos. Actas  do  Concilio  d'Oviedo  extrahidas  da  Chronica 
de  Sampiro  d'Astorga. 

Acháráo-se  neste  Concilio  desasete  Bispos  :  entrelles 
Argimiro  de  Braga,  Nausto  de  Coimbra,  Argimiro  de  La. 
mego  ,  Theodorico  de  Viseu  ,  Guimado  do  Porto. 

Achárão-se  outrosi  com  ElRey  onze  Condes :  entrel- 
les Hcrmcgildo  Conde  de  Tuy  e  do  Porto,  e  Ayres  seu 
filho  Conde  d'Eminio,  que  se  suppõe  era  Águeda. 

Por  causa  da  habitação  simultânea  de  tantos  Bispos 
numa  mesma  cidade  ,  foi  Oviedo  antigamente  chamada  a 
Cidade  dos  Bispos.  Historia  de  D.  Rodrigo  Ximenes  do  sé- 
culo XIII.  Livro  IV,  cap.  18. 

D.  Ramiro  II  fez  celebre  o  seu  nome  pela  grande  vi- 
ctoria  que  alcançou  dos  Mouros  na  batalha  de  Simancas , 
onde  morrerão  oitenta  mil.  Chronica  de  Sampiro  d'Astor- 
ga ,  e  Chronica  do  Monge  de  Silos. 

Em  tempo  do  Rey  D.  Ordonho  III  foi  martyrisado 
em  Córdova  o  santo  menino  Pelagio,  ou  como  nós  dize- 
mos 


DAS    SciENCIAS    DE    LlSSOA.  155" 

mos  S.  Payo ,  correndo  a  era  de  964,  que  da'  o  anno  do 
Christo  926.  Assim  rodos  os  manuscriros  de  Sampiro  d'As-' 
torga  ,  e  assim  todas  as  Chronicas  antigas ,  como  a  do 
Monge  de  Silos,   a  d'Alcalá,  a  Ambrosi.inj. 

Náo  obstante  este  consenso  dos  Códices  de  Sampiro, 
c  das  Chronicas  apontadas ,  Aloralcs  se  persu;idio ,  que  ha-» 
via  erro  na  Era  ,  e  que  em  lugar  da  Era  de  964  ,  anno 
de  Christo  926,  se  devia  rcpôr  cm  todos  a  Era  de  963  j 
anno  de  Christo  925.  E  com  esta  emenda  reimprimio  Flo- 
res a  Chronica  de  Sampiro,  pela  razão  de  que  das  Actas 
consta ,  que  S.  Pelagio  rccebco  o  martyrio  num  Domin- 
go 26  de  Junho:  e  só  no  anno  de  92J  he  que  o  dia  26 
de  Junho  cahio  em  Domingo. 

Depois  de  D.  Bcrmudo  II  reinou  em  Leão  seu  filho 
D.  AfF)nço  V,  que  achando-se  sobre  Viseu  ,  foi  morto 
d'huma  sétada  ,  que  lhe  atirou  hum  Mouro,  anno  de  1027. 
Consta  da  Chronica  de  Pelagio  d'Ovicdo ,  e  do  seu  epi- 
táfio em  Leão  dcscripto  por  Mnralcs. 

Deo  Leys  e  Ordenações  a  Leão ,  que  andavão  escritas 
no  fim  da  Historia  dos  Reys  Godos.  A  mesma  Chronica 
de  Pelagio  d'Oviedo. 

Morto  D.  Bermudo  III  sem  deixar  posteridade  algu- 
ma ,  recahio  pela  primeira  vez  o  Reino  de  Leão  no  de 
Castella ,  na  pessoa  de  D.  Fernando  o  Magno. 

Era  este  D.  Fernando  filho  de  D.  Sancho  II  Rey  de 
Navarra  ,  e  d'Aragão.  D.  Sancho  por  ter  casado  com  D. 
Nuna ,  filha  de  D.  Sancho  Conde  de  Castella ,  tinha  feito 
seu  este  Condado,  e  na  repartição  que  fez  dos  seus  gran- 
des Estados  entre  seus  filhos ,  deo  Castella  a  D.  Fernan- 
do, que  foi  o  primeiro,  que  se  intitulou  Rey  de  Castel- 
la ;  e  por  ter  casado  com  D.  Sancha  irmaa  de  D.  Bermu- 
do III  adquirio  também  o  Reino  de  Leão  ,  e  começou  a 
intitular-sc  Rey  d'  hum  e  outro  Reyno.  Chronica  de  Pela- 
gio d*Oviedo,  c  Chronica  do  Monge  de  Silos. 

Três  cousas  illustrárão  muito  o  reinado  de  D.  Fernan- 
do o  Magno :  a  População  de  Portugal ,  a  Legislação  pa- 
Tomo  IX.  LI  IA 


i65  Memorias  da  Academia  Reat. 

ra  todos  os  seus  Reinos ,  a  Trasladação  de  Santo  Isidoro  ^ 
e  a  dos  Santos  Martyrcs  d'  Évora. 

A  População  de  Portugal  foi  huma  feliz  consequência 
de  ter  o  Rey  D.  Fernando  expulsado  da  Província  da  Rci- 
ra  os  Mouros  d'cntrc  Douro  e  Mondego  ,  tomando-lhcs 
primeiro  Viseu,  depois  Lamego,  por  ultimo  Coimbra. 

Estando  sobre  Viseu,  achou  D.  Fernando  ainda  nesta 
cidade  aquelle  Mouro ,  que  trinta  annos  antes  tinha  alli 
mesmo  morto  com  huma  sétada  a  D.  Affanço  V  seu  sogro : 
e  em  castigo  lhe  mandou  cortar  ambas  as  mãos. 

A  tomada  de  Coimbra  foi  revelada  antes  por  Santia- 
go a  hum  santo  peregrino ,  que  se  achava  em  Compostella  , 
e  a  quem  arrebatado  em  extosi  tinha  apparecido  o  mesmo 
Apostolo  montado  a  cavallo  com  humas  chaves  na  mão  : 
indicio  de  que  hia  abrir  aos  Christãos  as  portas  de  Coim- 
bra, como  pontualmente  mostrou  o  successo.  . 

Depois  da  expugnaçâo  de  Coimbra ,  na  volta  para  Leão 
deixou  o  Rey  D.  Fernando  por  Governador  na  Beira  a  hum 
D"  Sisnando,  homem  de  grande  conselho,  a  quem  os  Mou- 
ros d' Andaluzia  tinhao  antes  trazido  cativo  da  Cidade  do 
Porto 

Tudo  o  referido  hc  tirado  da  Chronica  do  Monge 
de  Silos. 

Da  Legislação  de  D.  Fernando  o  Magno  dá  a  Chro- 
nica de  Pelagio  d'Oviedo  hum  bom  testemunho ,  quando 
diz ,  que  D.  Fernando  confirmou  as  Leys ,  que  D.  Affon- 
ço  seu  sogro  promulgara  em  Leão ,  e  que  lhes  acrescen- 
tou outras. 

Mais  expresso  he  ainda ,  e  mais  notável  o  testemu- 
nho ,  que  da  Legislação  do  mesmo  D.  Fernando  o  Magno 
nos  oflFerecem  as  Actas  do  Concilio  de  Coyaca  ,  Diocese 
d'Oviedo,  celebrado  no  anno  de  Christo  1050  com  assis- 
tência do  mesmo  Rey ,  e  dos  seus  Grandes ,  o  qual  divs 
assim : 

Octavo  Título  mandaniíís ,  ut  in  Legione ,  et  in  suis  ter^ 
minis f  in  GalUcia ,  et  in  Âsíwiis,  et  Portucak ,  tale  sit  judi-^ 

cium 


DAS  SCIENCIAS  DE  LiSBOA.  iff^ 

Ciiitn  setnper  y  qttalc  est  connitutttm  in  Decretis  Adefonsi  Regit 
pro  homicidio ,  pro  rauso ,  pro  sayo7ie  ,  aut  pro  onwibiis  calum* 
niis  suis.  lale  vero  judicitim  sit  in  Castella ,  quale  fuit  in  die^ 
bus  avi  nostri  Sancii  Dticis.  Quer  dizer:  Que  cm  Leão,  Gal- 
]i/a,  Ascurias,  c  Portugal,  ye  faça  justiça  segundo  as  Leys 
do  Rey  U.  AíFonço  V  seu  sogro  :  c  em  Castella ,  segun- 
do as  Leys  do  Duque  D.  Sancho  seu  avô. 

Que  Leys  fossem  aqucllas  de  D.  AfF^nço  V  de  Leão, 
Aguirre  as  dco  nas  Actas  do  Concilio  Lcgionense  do  an* 
no  de   IOI2. 

A  Trasladação  do  corpo  de  Santo  Isidoro  de  Sevilha 
a  Leão,  foi  feita  pelos  dous  Bispos  Alvito  de  Leão,  e 
Ordonho  d*Astorga  ,  acompanhados  do  Conde  Munho.  O 
anno  anda  errado  na  Chronica  do  Monge  de  Silos,  que  a 
pÔe  no  anno  da  Encarnação  lojz.  Anda  também  errado  na 
vida  de  Santo  Isidoro  escrita  pelo  Monge  Ccrratense ,  que 
a  põe  no  anno  do  Senhor  1062.  Porque  o  verdadeiro  an- 
no desta  Trasladação  foi  o  de  Christo  1063  ,  como  he  ex- 
presso nas  Actas  da  mesma  Trasladação  ,  impressas  pelos 
Padres  Bullandistas ,  e  reimpressas  por  Flores  :  e  na  Ins- 
cripção  coetânea  posta  na  mesma  Igreja  de  Santo  Isidoro 
de  Leão  ^  a  qual  Sandoval  deixou  estampada  na  vida  do 
Rcy  D.  Fernando. 

Sobre  as  reliquias  dos  Santos  Marryres  d' Évora,  a 
Chronica  de  Pelagio  d'Oviedo  nos  certifica  ,  que  D.  Fer- 
nando fizera  trasladar  de  Ávila  onde  estavâo ,  as  de  S.  Vi- 
cente para  Leão ,  as  de  Santa  Sabina  para  Falência ,  as  de 
Santa  Christeta  para  S.  Pedro  d'Arlanza. 

Morreo  este  Rey  D.  Fernando  o  Magno  no  anno  de 
z<36y.  Consta  do  unanime  consenso  de  todas  as  Chroni- 
cas:  da  Chronica  de  Pelagio  d'Oviedo ,  da  do  Monge  de 
Silos ,  da  Gothica  de  Brandão ,  da  de  Burgos ,  da  d'Alca- 
li.  Pelos  quaes  monumentos  se  deve  emendar  a  Chronica 
do  Livro  da  Noa  de  Santa  Cruz  de  Coimbra,  que  a  põe 
hum  anno  antes,  isto  he ,  na  Era  de  MCII,  que  dá  o  an- 
00  de  Cbriâto  10Ó4. 

LI  ii  An- 


i6o  Memorias  da  Academia  Real 

Antes  de  morrer,  dlvidio  D.  Fernando  o  Macno  os 
seus  Reinos  por  seus  filhos.  A  D.  Sancho  que  era  Primo- 
génito,  deo  Castella  :  a  D.  Affonço ,  Leão:  a  D.  Garcia, 
Galliza  c  Portugal.  Chronica  do  Monge  de  Silos,  Chro- 
nica  de  Pelagio  d'Oviedo ,  e  Chronica  Compostellana. 

Depois  da  morte  do  pay,  começarão  logo  os  três  fi- 
lhos a  guerrear  entre  si ,  sobre  qual  havia  de  ter  maiores 
doniinios.  Morto  em  guerra  D.  Sancho  no  sitio  de  Zamo- 
ra ,  occupou  D.  AfFonty-o  o  Reino  de  Castella.  Morto  era 
prizão  D.  Garcia,  occupou  D.  Affonço  o  Reino  de  Galli- 
za e  Portugal  :  e  deste  modo  absorveo  em  si  os  três  Rei- 
nos de  seu  pay.  Chronica  de  Pelagio  d'Oviedo,  c  Chro- 
nica Compostellana. 

Somos  cm  fim  chegados  ao  Reinado  do  grande  D. 
Affonso  VI,  Tronco  da  Casa  Real  Portugueza  por  sua  fi- 
lha a  Rainha  D.  Tareja  ,  mulher  do  Conde  D.  Henrique 
de  Borgonha. 

'  Em  tempo  deste  D.  Affonço  VI,  anno  de  107Ó,  foi 
abolido  em  todos  os  seus  Reinos  o  Rito  Gothico  do  Of- 
ficio  Divino ,  e  introduzido  em  seu  lugar  o  Romano.  Chro- 
nica de  Burgos  ,  e  Chronica  de  Cardenha. 

He  digno  de  se  notar  ,  que  em  lugar  de  Rito  Go- 
thico ,  ou  Rito  Romano ,  se  dizia  então  Ley  Gothica ,  ou 
Ley  Romana.  Historia  Compostellana ,  Livro  I ,  cap.  z  qua- 
si  no  fim. 

No  anno  de  1085-  expugnou  D.  Affonço  VI  Toledo, 
lançando  fora  os  Mouros.  Chronica  de  Burgos,  Chronica 
Gothica,  Chronica  ào  Cerratense,  e  Livro  de  Noa. 

Este  Rey  D.  Affonço  VI  teve  Carta  de  Confraterni- 
dade  com  os  Monges  da  Abbadia  de  Cluni  cm  Borgonha, 
passada  pelo  Santo  Abbade  Hugo.  O  Instrumento  publi- 
cou-o  Dacheri  no  Tomo  VI  do  seu  Spkilegio. 

O  mesmo  Rei  por  sua  devoção  se  fez  tributário  de 
certa  quantia  de  dinheiro  ao  dito  Mosteiro  de  Cluni.  Cons- 
ta da  Doação  que  traz,  Yepes  no  Tomo  IV. 

A  raiz  desta  affeição  á  Ordem  dç  Cluni ,  depois  da 

gran- 


DAS   SCIENCIAS  CE   LiSBOA.  z6^ 

grande  fama  que  por  roda  a  christandade  corria  da  santa 
e  exemplar  vida  daquellcs  Monges,  creio  eu  que  era,  es- 
tar ElRci  D.  AíFvJnço  VI  casado  cm  segundas  núpcias  com 
a  Rainha  D.  Constança  ,  filha  do  Dut]uc  de  Borgonha  , 
cm  cujo  território,  como  já  notei,  estava  Cliini.  E  daqui 
também  vinha  ,  que  naqucllc  tempo  se  achavâo  as  primei- 
ras Cathedracs  d' lispanha  occupadas  por  Monges  daquella 
filiação.  Porque  D.  Bcnnudo  era  Arcebispo  de  Toledo,  S, 
Giraldo  Arcebispo  de  Braga,  D.  Mauricio  Bispo  de  Coim- 
bra,  D.   Dalmacio  Bispo  de  Compostella. 

Da  estada  deste  grande  Rei  em  Portugal  dá  a  Chro- 
nlca  hum  excellente  testemunho,  quando  diz,  que  na  Era 
de  iiji,  anno  de  Christo  1093,  dentro  de  poucos  dias 
tomou  ElRei  aos  Mouros  Santarém  ,  Lisboa  ,  e  Sintra  ;  e 
que  entregando  o  governo  destas  três  Praças  ao  Conde 
D.  Ramon  seu  genro ,  marido  de  sua  filha  D.  Urraca  ,  e 
pondo  por  Alcaide  Mór  delias  a  D.  Sueiro  Mendes,  par* 
tira  para  Toledo. 

Faleceo  ElRei  D.  AfFonço  VI  no  anno  de  1105»  ten- 
do reinado  43  annis  e  seis  mczes.  No  que  a  dita  Chronica 
Gofhica  concorda  bellamente  com  a  de  D.  Pelagio  d'Ovie- 
do ,  que  então  vivia  ,  e  assistio  ás  exéquias  d'  ElRei.  E 
daqui  se  convence,  que  elle  começara  a  reinar  no  anno  de 
«065-,  que  he  o  em  que  morrera  seu  pai  D.  Fernando  o 
Magno, 


DIS- 


17C»  Memorias  DA  AcADE  MIA  Real 

DISSERTAÇÃO    XIII. 

Princípios  do  Reino  de  Portugal  no  casamento  do  Conde  D.  Hen- 
rique com  a  Rainha  D.  Tare j a.  Soberania  deste  Estado  trans- 
mittida  a  ElRci  D.  AJfonso  Henriques  seu  filho ,  e  na  Pes- 
soa delle  a  todos  seus  successores. 

§     I. 

De  que  Casa  Soberana  da  Europa  procedia  o  Conde  D.  Heuri' 
que ,  ou  qual  era  a  sua  Baronia, 


D. 


'EixAnAs  duas  opiniões,  que  antes  do  tempo  de  Duar- 
te Nunes  de  Leão  andarão  muito  em  voga  entre  os  nos- 
sos :  das  quaes  huma  fazia  o  Conde  D.  Henrique  proce- 
dente d'  hum  Rei  d'  Hungria ,  sem  designar  que  Rei  fos- 
se ,  como  seguirão  Duarte  Galvão  na  Chronica  d'  ElRei 
D.  Affonço  Henriques ,  e  André  de  Resende  no  Livro  Quar- 
to das  suas  Antiguidades  de  Portugal :  outra  procedente  da 
Casa  dos  Duques  de  Lorena,  como  seguindo  os  dous  Bis- 
pos D.  Rodrigo  Sanches  de  Falência  ,  e  D.  Affonço  de 
Carthagena  de  Burgos  affirmou  Damião  de  Góes  na  Chro- 
nica d'  ElRei  D.  Manoel.  Deixadas ,  digo  estas  duas  opi- 
niões, como  já  antiquadas,  e  de  nenhum  valor  por  falta 
de  Documentos  sohdos :  a  sentença  geralmente  recebida 
hoje  entre  os  eruditos  tem ,  que  o  Conde  D.  Henrique 
era  de  Borgonha.  A  duvida  que  unicamente  resta  he ,  de 
qual  das  duas  Borgonhas  procedia  elle  :  se  da  Borgonha 
Ducado ,  se  da  Borgonha  Condado :  porque  em  ambos  es» 
tes  dous  Estados  Soberanos  se  dividia  aquella  Provinda  , 
em  quanto  não  foi  incorporada  na  Coroa  de  França. 

Os  Genealógicos  Francezes ,   tendo  á  testa   a  André 
Duchesne,  querem  que  o  Conde  D.  Henrique  procedesse 

de 


DAS   SCIENCIAS    DE    LlSUOA.  lyt 

dc  Borgonha  Ducado ,  como  filho  d'hum  dos  filhos  do  Du* 
que  Roberto ,  o  qual  Duque  Roberto  era  filho  d'outro  Ro- 
berto Rei  de  França  o  segundo  do  nome,  e  por  clle  ne- 
to immcdiato  do  Rei  Hugo  Gapcto ,  tronco  da  terceira 
raça  actual  dos  Reis  Cliristianissimos.  Segundo  a  qual  ge- 
nenlogin  tem  a  Casa  Real  Portugueza  o  mesmo  tronco  , 
que  a  Casa  Real  de  França.  O  fundamento  desta  opinião 
he  hum  manuscrito  da  Abbadia  Floriacense  ou  de  Fleuri 
da  Ordem  de  Cluni  cm  Borgonha,  o  qual  juntamente  com 
as  Historias  de  Cylabro  e  de  Suger  se  imprimio  pela  pri- 
meira vez  em  Francford  no  anno  de  IÇ96,  e  depois  o  in- 
scrio  André  Duchcsne  na  sua  Historia  dos  Duques  de  Bor- 
gonha ,  c  Francisco  Duchesne  seu  filho  no  Tomo  Quarto 
da  rarissima  Collecção,  que  tem  por  titulo,  Historia  frau' 
cortim  Scriptores  Coaetanei. 

Este  manuscrito  entre  muitas  cousas  pertencentes  ao 
Reino  de  França  des  dos  fins  do  século  IX  até  os  princí- 
pios do  século  XII  traz  algumas  pertencentes  a  Espanha 
do  tempo  d'  El  Rei  D.  Affonço  VI  sogro  do  nosso  Conde 
D.  Henrique.  O  Author  que  se  não  sabe  quem  foi,  clara- 
mente se  faz  coetâneo  do  mesmo  Rei  D.  AfFonço  VI  quan- 
do diz,  que  elle  no  anno  de  1108  estando  sobre  o  rio 
Gatona  vira  que  no  Ceo  apparecião  trcs  soes ,  isto  he ,  três 
dos  que  os  Filósofos  e  Mathematicos  chamão  Parelios.  Tra- 
tando porém  das  duas  filhas  do  dito  Rei  de  Leão  e  Castella 
D.  AflFonço  VI  depois  de  dizer,  que  a  primeira  que  era  le- 
gitima ,  a  casou  elle  com  D.  Ramon ,  Conde  que  era  alem 
do  Saoua :  (  qui  Conútatum  ultra  Ararim  tenehat : )  acrescenta 
logo,  que  a  outra  que  era  bastarda,  a  dera  elle  a  D.  Hen- 
rique, que  era  hum  dos  filhos  do  filho  do  Duque  Roberto 
de  Borgonha.  Alteram  filiam ,  sed  non  ex  conjtigali  thoro  ua' 
tam ,  Atnrico  uni  filiorum  filii  ejusdem  Diicis  Roberti  dedit. 

Fundados  neste  Documento  da  Abbadia  de  Fleuri ,  e 
seguindo  a  André  Duchesne,  dão  hoje  por  indubitável  os 
Genealógicos  de  França ,  ter  procedido  o  Conde  D.  Hen- 
rique da  Casa  de  Borgonha  Ducado.  E  na  verdade  depois 

d'as- 


1^1  Mkmorias  da  Academia  Real 

d'assim  o  deixar  escrito  hum  Author  Fiaiiccz  coetâneo  do 
mesmo  Conde  ,  c  natural  de  Borgonha ,  parece  que  não 
falta  nada,  para  o  facto  se  dar  por  certo.  Assim  o  Chro- 
rista  JNIói-  Fr.  António  Brandão  na  Terceira  Parte  da  Mo- 
narquia Lusitana ,  Livro  VIU  ,  cap.  2  se  acostou  a  esta 
opinião ,  como  a  mais  provável.  E  o  celebre  Agostinho 
Descalço  o  Padre  Anselmo  no  Tomo  I  da  sua  Historia  Ge- 
nealógica dos  Reis  de  França,  cap.  1^  diz  que  o  manus- 
prito  de  Plcuri  viera  a  eclipsar  todas  as  outras  opiniões 
que  antecedentemente  corriao ,  sobre  a  origem  c  extracção 
do  Conde  D.  Henrique.  E  em  virtude  dcllc  assenta  com 
os  dous  Santas  Marthas  ,  que  o  Conde  D.  Henrique  de 
Portugal  era  quarto  filho  d'  Henrique  ,  filho  primogénito 
de  Roberto  Duque  de  Borgonha. 

Todavia  D.  Luiz  Salazar  de  Castro,  o  mais  diligen^ 
te  e  exacto  Genealógico  que  atégora  vio  Espanha  ,  na  sua 
t)bra  Glorias  da  Casa  Farnest  ^  pag.  6Ó9  e  segg.  depois  de 
mostrar  que  f;iz  pouca  fé  na  authoridade  do  manuscrito 
de  Fleuri ,  muito  de  propósito  e  com  todo  o  esforço  com- 
bate a  pretensa  origem  do  Conde  D.  Henrique  deduzida 
de  Roberto  Duque  de  Borgonha :  e  dá  por  unicamente 
verdadeira  a  opinião ,  que  muito  antes  que  Brandão  e  Du- 
chesne  escrevessem  ,  tinhão  proposto  Duarte  Nunes  e  Fr. 
Bernardo  de  Brito  ,  que  he  ,  que  o  Conde  D.  Henrique 
de  Portugal  era  filho  de  Guido  Conde  de  Vernueil  na 
Normandia ,  hum  dos  filhos  de  Reinaldo  Conde  de  Bor- 
gonha. 

Esta  opinião  tem  grande  apoyo  no  que  deixou  escri- 
to na  sua  Historia  d' Espanha ,  Livro  VI,  cap.  21,  o  Ar- 
cebispo de  Toledo  D.  Rodrigo  Ximenes ,  Author  do  sé- 
culo seguinte  ao  em  que  morreo  o  Conde  D.  Henrique, 
e  que  ainda  alcançou  o  reinado  de  D.  Affonço  Henriques. 
Porque  no  citado  lugar  affirma  D.  Rodrigo,  que  o  Conde 
D.  Henrique  era  das  partes  de  Besançon  ,  e  primo  co-ir- 
mão  do  Conde  D.  Ramon  ,  pai  d'  ElRei  D.  Affonço  VII 
chamado  o  Imperador.   De  ^artihus  Bisontinis  y  congermams 

Ra^- 


DAS    SciENCIAS    DE    LiSBOA.  lyt 

Raytfiundi  Comitis  patris  Imperatoris.  Ora  Besançon  aindaqvre 
era  Metrópole  commum  das  duas  Borgonlias  ,  estava  no 
território  de  Borgonha  Condado  ,  de  cuja  Corte  que  era 
Doía,  só  distava  oito  Jcgoas,  quando  de  Dijon  Corte  do 
Ducado  distava  quatorze.  E  o  Conde  D.  Ramon  ,  de  quem 
o  nosso  D.  Henrique  se  diz  primo  co-irmao,  indubitavel- 
mente consta  que  era  da  Casa  de  Borgonha  Condado,  co- 
mo lic  expresso  numa  pequena  Chronica  do  século  XIII , 
que  Flores  imprimio  duas  vezes  ,  huma  no  fim  do  Tomo 
XX,  outra  no  fim  do  Tomo  XXIII  tirada  d' hum  Códice 
da  Historia  Compostellana  do  Coliegio  chamado  do  Arce- 
híspo  da  Universidade  de  Salamanca :  no  fim  da  qual  pe- 
quena Chronica  se  diz  ,  que  o  sobredito  Rei  D.  Affonço 
VII  era  filho  da  Rainha  D.  Urraca ,  e  de  D.  Ramon  Con- 
de Palatino  de  Borgonha.  Filius  autem  ejus  Jdefonstis  tiomi' 
lie,,  a  Raymundo  Burgundia  Comité  Palatino  legitime  geueratuSj 
&c.  De  mais  que  de  vários  lugares  da  Historia  Compos- 
tellana ,  como  do  Livro  I,  cap.  46  ,  e  do  Livro  I,  cap. 
108  ,  hc  notório",  que  este  Conde  D.  Ramon  era  irmão 
de  Guido  Arcebispo  de  Vienna ,  que  depois  foi  Papa  Ca- 
listo  II ,  e  do  qual  todos  concordão,  que  era  da  Casa  de 
Borgonha  Condado ,  e  não  Ducado.  Do  que  tudo  deduz 
Salazar  de  Castro  ser  hum  mesmo  o  tronco  da  Casa  Real 
de  Portugal  ,  e  o  da  Casa  Real  de  Castella ,  considerada 
esta  antes  d'entrar  nella  a  Casa  de  Borbon  na  pessoa  de 
Filippe   V. 

Expendidos  assim  os  fundamentos  d'huma  e  outra  sen- 
tença ,  resta  declararmos  ,  a  qual  das  duas  dá  o  nosso  juí- 
zo a  preferencia  para  ser  crida.  Digo  pois ,  que  se  deve 
estar  antes  pela  primeira  ,  que  faz  o  Conde  D.  Henrique 
procedente  da  Casa  de  Borgonha  Ducado ;  do  que  peia 
segunda  ,  que  o  faz  procedente  da  Casa  de  Borgonha  Con- 
dado. A  razão  de  decidir  he  i.°  Porque  a  primeira  senten- 
ça allega  por  si  hum  Documento  positivo  c  expresso  ,  e 
esse  d'Author  coetâneo ,  e  da  mesma  Provincia  ,  qual  he 
o  Manuscrito  do  Monge  de  Fleuri.  A  segunda  porém  só 
Tomo  IX.  Mm  apon- 


274  Memorias  pa  Academia  Real 

aponta  por  si  o  testemunho  d'hum  Escritor  cem  annos 
mais  moderno  ,  e  que  sobre  mais  moderno ,  se  explica  por 
huns  termos  muito  geraes  c  confusos ,  qual  he  o  testemu- 
nho do  Arcebispo  de  Toledo  D.  Rodrigo  Ximcnes.  2.°  Por- 
que estando  em  pé  o  Manuscrito  de  Fleuri ,  que  Salazar 
quer  dar  por  supposto  ,  mas  sem  prova  concludente ,  intei- 
ramente se  arruina  pelos  aliceces  a  segunda  opinião  ,  que 
faz  o  Conde  D.  Henrique  procedente  de  Borgonha  Con- 
dado. Pelo  contrario  a  outra  opinião  ,  que  fundada  no  Ma- 
nuscrito de  Fleuri  faz  o  Conde  D.  Henrique  procedente 
de  Borgonha  Ducado ,  pode  muito  bem  conciliar-se ,  e  de 
facto-  SC  concilia  com  o  testemunho  do  Arcebispo  D.  Ro- 
drigo. Porque  ser  o  Conde  D.  Henrique  das  partes  de  Be- 
zatifon ,  ií»ualmcntc  se  verifica,  ou  elle  viesse  de  Borgo- 
nha Condado  ,  ou  de  Borgonha  Ducado  ,  visto  que  Bezan- 
çon  era  Metrópole  commum  d'ambos  os  Estados.  E  o  ser 
primo  co-irmão  do  Conde  D.  Ramon ,  podia  ser  por  par- 
te da  mãi ,  e  não  do  pai ,  visto  que  o  nome  congermanus 
he  indilFerente  para  hum  e  outro  sentido:  o  que  não  seria, 
se  o  Arcebispo  em  lugar  de  cmigermamts  tivesse  escrito /)<»- 
triielís. 

§     II. 

Se  a  Rainha  D.  Tareja  era  legitima ,  ou  bastarda. 

A  opinião  commummente  recebida  entre  os  nossos  Es- 
critores he  ,  que  a  Rainha  D.  Tareja  fora  filha  bastarda 
d'  ElRei  D.  Affonço  VI  havida  em  D.  Ximena  Munhoz 
sua  amiga.  Assim  a  Chronica  antiga  citada  por  Brandão, 
assim  Damião  de  Góes,  assim  Bernardo  de  Brito,  assim 
António  de  Vasconcellos  ,  assim  João  Baptista  Lavanha ,  as- 
sim Leão  de  S.  Thomaz,  assim  outros  depois  dclle. 

André  de  Resende  foi  o  primeiro  ou  dos  primeiros , 
que  deo  a  D.  Ximena  Munhoz  por  mulher  legitima  d'El- 
Rci  D.  AfFonço  VI  fundado  n'huma  antiga  Chronica  em 
lingua  Espanhola ,  que  elle  diz  que  fora  escrita  setenta  an- 
nos 


I 


DAS   SciENClAs   DE   LiSROA.  375" 

nos  antes  ,  que  o  Arcebispo  de  Toledo  D.  Rodrigo  Xime- 
nes  publicasse  a  sua  Historia  Latina  d'Espanha. 

A  André  de  Resende  seguio  nisto  Fr.  António  Bran- 
dão na  Terceira  Parte  da  Monarquia  Lusitana  :  a  Fr.  Antó- 
nio Brandão  seguio  D.  José  Barbosa  no  seu  Catalogo  das 
Rainhas  de  Portugal, 

Arrojo  parece  intentar  eu  impugnar  três  criticos  tao 
grandes.  Mas  por  huma  parte  a  obrigação  que  des  do  prin- 
cipio me  impuz  ,  de  elucidar  nestas  Dissertações  Académi- 
cas os  pontos  mais  importantes  da  nossa  Historia  antiga  , 
não  permitte  que  passe  em  silencio  a  qualidade  de  nasci- 
mento da  nossa  primeira  Soberana.  Por  outra  parte  a  cons- 
ciência da  verdade,  que  he  a  primeira  Ley  da  Historia, 
manda  que  a  mesma  verdade  seja  preferida  a  todos  e  quaes- 
quer  respeitos.    He    pois  a  minha   those    a  que    se  segue  : 

A  Rainha  D.  Tareja  foi  filha  d^ElRei  D.  Jffonço  VI  ha- 
vida cm  D.  Ximena  Munhoz ,  que  ainda  que  era  Senhora  d' al- 
ta qualidade  ,  nao  foi  sua  mulher  legitima. 

Primeira  Prova. 

D.  Pelagio  que  começou  a  ser  Bispo  d'Oviedo  no 
anno  de  1098,  eque  conseguintemente  foi  contemporâneo 
do  dito  Rei  D.  AfFonço  VI  falecido  no  anno  de  1109  na 
Chronica  que  escreveo  dos  Reis  de  Leão  ,  tratando  no  fim 
delia  das  mulheres  e  descendência  ,  que  o  dito  Rei  teve  , 
escreve  assim  :  Hic  hahuit  quihqtie  uxores  legitimas '.  primam 
Jgnetem ,  secundam  Constantiam  Refinam  ,  ex  qua  genuit  Ur- 
racam  Reginam  conjugem  Comitis  Raymundi ,  de  qua  ipse  ge- 
nuit Maneiam  et  Adefonsum  Regem  :  tertiam  Bertam  Tuscia  orinn- 
dam  :  quartam  Elisabeth  ,  ex  qua  genuit  Saneiam  conjugem  Co- 
mitis Roderici ,  et  Geloiram  quam  duxit  Rogerius  Dux  Sicilia : 
quintam  Beatricem  ,  qua  mortuo  eo  repedavit  in  patriam  suam. 
Habiút  etiam  duas  concubinas  ,  tamen  nobilíssimas  :  priorem  Xi- 
meuam  Munionis  ,  ex  qua  genuit  Geloiram  uxorevi  Comitis  Ray- 
mundi Tolosani ,  patris  ex  ea  Adefonsi  Jordauis ;  et  Tarasiam 

Mm  ii  tixo- 


2j6  Memorias  DA  Academia  Real 

iixorem  Henrici  Comitis  ,  patrh  ex  ea  Vrracie ,  Geloir^ ,  et 
Alefonsí :  posteriorem  mmitie  Zaydam ,  filiam  Âbenhabet  Regis 
Hispalensis  ,  quíC  baptizata  Elisabeth  ftiit  vocata  :  ex  hac  ge- 
miit  Siiucium  ^  qui  obiit  in  lite  de  Ucks. 

Qiier  ihzcr ;  Este  Rei  D.  AfFonço  VI  teve  sinco  mu- 
lheres legitimas  :  primeira  D.  Incz  :  segunda  a  Rainha  l>. 
Constança  ,  da  qual  gerou  a  Rainha  D.  Urraca  mulher  do 
Conde  U.  Ramon  ,  que  delle  teve  a  D.  Sancha  ,  e  a  EU 
Rei  D.  Affonço  :  terceira  D.  Bcrtha  ,  oriunda  da  Toscana  : 
quarta  D.  Isabel  ,  da  qual  gerou  a  D.  Sancha  mulher  do 
Conde  D.  Rodrigo  ,  e  a  D.  Elvira  ,  com  quem  casou  Ro- 
gério Duque  de  Sicilia  :  quinta  D.  Brites  ,  que  morto  elie 
tornou  para  a  sua  pátria.  Teve  também  duas  concubinas  , 
mas  nobilissimas :  primeira  D.  Ximena  Munhoz ,  da  qual 
gerou  a  D,  Elvira  ,  mulher  do  Conde  D.  Ramon  de  To- 
losa  ,  dos  quaes  nasceo  D.  AfFonço  Jordão  ;  e  a  D.  Tarc- 
ja  mulher  do  Conde  D.  Henrique,  dos  quaes  nascerão  D. 
Urraca,  D.  Elvira,  e  D.  Affonço  :  outra  por  nome  Zayda, 
filha  d'Abcnabeth  Rei  de  Sevilha,  a  qual  sendo  baptizada, 
se  chamou  D.  Isabel  :  e  delia  teve  ElRei  a  D. Sancho,  que 
morreo  na   batalha  d'Uclés. 

Aqui  temos  hum  Bispo,  que  tratou  muitos  annos  a 
ElRei  D.  AfFonço'  VI ,  e  que  por  conseguinte  havia  de  sa- 
ber muito  bem  de  todos  os  seus  casanientos ,  affirmando 
que  este  Rei  tivera  sinco  mulheres  legitimas  ,  que  nomea 
pelos  seus  nomes ;  e  duas  concubinas  de  nascimento  illus- 
trissimo ,  huaia  das  quaes  diz  que  era  D.  Ximena  Munhoz 
mãi  que  foi  da  nossa  Rainha  D.  Tareja.  Logo  pelo  teste- 
munho do  Bispo  D.  Pelagio ,  não  foi  D.  Ximena  Munhoz 
mulher  legitima  d'ElRei  D.  Affonço  VI. 

Segunda  Prova. 

O  Arcebispo  de  Toledo   D.  Rodrigo    Ximenes  ,   que 
floreceo  no  século  immediato  ao  em  que  morreo  ElRei  D. 
Affonço  VI ,  c  que  pelo  seu   caracter  e  cxacção  he  o  Escri- 
tor 


DAs<  SeiENci  AS  DE  Lisboa.  277 

tor  mais  clássico  que  temos  da  Historia  (^'Eípfinha :  cstí 
Arcebispo,  digo,  tratando  das  mulheres  do  mesmo  Rei  l). 
AfFonço  VI  SC  explica  quasi  pelos  mesmos  termos,  de  que 
tinha  usado  D.  Pelagio  Bispo  d'Oviedo,  dizendo  assim  no 
I.ivro  VI,  c;ip.  21.  Hic  habuit  quhique  uxores  sticccssive  legi- 
timo niatrinwtíio  sibi  junctas.  Prima  ftiií  Âgnes  :  secmula  Com- 
tantia  ,  ex  qua  geituit  filiam  iiomiiie  Vrracam ,  qtia  ftiit  uxor 
Comitis  Raimimdi ,  de  qua  ipse  Raimundiis  gftiuit  Saneiam  et 
ylldefousum  ,  qtti  ftiit  postea  hnperator.  Tertia  Berta  ex  Tuscia 
oriunda  :  Qtiarta  Elisabet ,  ex  qua  getitiit  Saneiam ,  qiite  fuit 
líxor  Comitis  Roderiei  ;  et  Geloiram  ,  qtiam  dtixit  Rogerius  Rex 
Sicilia, .  .  .  Qiãnta  Beatrix  depaftibtis  Callicanis.  Habuit  etium 
aliam  uxorem  ,  qu^  Ceida  ,  postea  Maria  fuit  dieta,  Habuit 
etiam  duas  nobiles  concubinas  :  una  dicebatur  Semena  Munionis , 
ex  qua  genuit  Geloiram ,  qute  fuit  uxor  Raimundi  Comitis  To- 
losani ,  et  ex  illo  Comité  genuit  Jldefonsum  Jordanis ,  qui  sic 

dictus ,  eo  quod  in  Jordanis  fiumine  baptizatus Et  eadem 

Semena  Munionis  genuit  aliam  filiam  ,  qiite  Tharasia  dieta  fuit  ^ 
quam  duxit  Comes  Enricus  de  partibus  Bisontinis ,  congerma.- 
nus  Raimundi  Comitis  patris  Imperatoris  ,  ex  qua  suscepit  idem 
Enricus  Aldefonstim  ,  qui  fuit  postea  Rex  Portugallia. 

Quer  dizer:  Este  Rei  D.  Affonço  VI  teve  successi- 
vánvente  sinco  mulheres  em  legitimo  matrimonio.  A  primei- 
ra foi  D.  Inez  :  a  segunda  D,  Constança  ,  da  qual  teve  hu- 
ma  filha  por  nome  D.  Urraca  ,  que  foi  mulher  do  Conde 
D.  Ramon  ,  da  qual  o  mesmo  D.  Ramon  ouve  a  D.  San- 
cha ,  e  a  D.  AfFonço  ,  que  depois  foi  Imperador.  A  tercei- 
ra D,  Berta  oriunda  de  Toscana.  A  quarta  D.  Isabel  ,  da 
qual  gerou  a  D.  Sancha  ,  que  foi  mulher  do  Conde  D. 
Rodrigo ,  e  a  D.  Elvira ,  com  quem  casou  Rogério  Rei 
de  Sicilia.  A  quinta  D.  Brites,  que  era  das  partes  de  Fran- 
ça.. .  Teve  também  outra  mulher  legitima,  que  no  princi- 
pio se  chamava  Ceide,  depois  Maria.  Teve  também  duas 
concubinas  mulheres  nobres  :  huma  das  quaes  se  chamava 
D.  Ximcna  Munhoz,  da  qual  gerou  a  D.  Elvira,  que  foi 
mulher  do  Conde  D.  Ramon    de  Tolosa ,    e  que    do  dito 

Con- 


278  Memorias  DA  Academia  Real 

Conde  gerou  a  D.  Affonço  Jordão ,  assim  chamado,  por 
ter  sido  baptizado  neste  rio.  E  a  mesma  D.  Ximena  Mu- 
nhoz gerou  outra  filha  por  nome  D,  Tareja  ,  com  a  qual 
casou  o  Conde  D.  Henrique  das  partes  de  Besançon ,  pri- 
mo do  Conde  D.  Ramon  pai  do  Imperador ;  da  qual  o 
mesmo  D.  Henrique  teve  a  D.  Affonço ,  que  depois  foi 
Rei  de  Portutral. 

Aqui  temos  o  Arcebispo  de  Toledo  D.  Rodrigo  Xi- 
mcnes  ,  contradistinguindo  e  contrapondo  seis  mullieres , 
legitimas  d'ElRei  D,  AfFonço  VI  as  que  só  foráo  suas  con- 
cubinas ;  e  contando  entre  as  concubinas  a  D.  Ximena  Mu- 
nhoz ,  mãi  da  nossa  Rainha  D.  Tareja.  Logo  tambcm  se- 
gundo o  Arcebispo  D.  Rodrigo  Ximenes  não  foi  D.  Xime- 
na Munhoz  mulher  legitima  d'ElRei  D.  Aflfonço  VI. 

N'huma  só  cousa  notável  discrepa  a  narração  do  Ar- 
cebispo D.  Rodrigo ,  da  narração  do  Bispo  D.  Pelagio  , 
que  elle  manifestamente  tinha  diante  dos  olhos  :  e  he  em 
dar  por  sexta  mulher  legitima  d'ElRei  D.  Affbnç )  VI  a 
moura  Zayda  ,  que  D.  Pelagio  apontara  por  huma  das  duas 
concubinas.  Mas  por  huma  parte  esta  discrepância  não  faz 
nada  contra  o  nosso  intento  ,  que  todo  versa  sobre  D.  Xi- 
mena ,  e  não  sobre  a  Zayda  moura.  Por  outra  parte  não  fal- 
ta entre  os  modernos  criticos  quem  discorra ,  que  no  arti- 
go da  Zayda  foi  viciado  o  Texto  de  D,  Rodrigo  por  ou- 
tra mão.  E  o  contexto  assim  o  persuade.  Porque  se  D,  Ro- 
drigo começa  como  D.  Pelagio,  dando  a  ElRei  D.  Affon- 
ço VI  sinco  mulheres  legitimas,  e  depois  duas  concubinas: 
como  acrescenta  elle  a  essas  sinco  mulheres  legitimas  ou- 
tra legitima ,  que  vem  a  fazer  seis  ?  E  se  elle  com  o  mes- 
mo D.  Pelagio  reconhece  duas  concubinas ,  como  nomea 
só  huma  ?  Parece  logo  palpável ,  que  a  clausula  da  Zayda 
junta  ás  mulheres  legitimas,  não  sahio  da  mão  de  D.  Ro- 
drigo, o  qual  a  proceder  com  coherencia  devia  contar  a 
Zayda  por  segunda  concubina.  Este  he  o  discurso  do  Pa- 
dre Flores ,  que  ninguém  duvidará ,  que  he  hum  discurso 
digno  d'  hum  homem  grande. 


DAS  ScieScias  de  Lisboa.  279 

§     III. 

Rentove-se  bum  subterfúgio ,    a  que   D.  José  Barbosa   se  aco- 
Iheo,  para  não  ter  contra  si  os  dous  Escritores  sobreditos. 

André  de  Resende  e  Fr.  António  Brandão ,  ambos  re- 
conhcccião  c  confessarão  ,  que  D.  Pelagio  d'Oviedo  e  D. 
Rodrigo  Ximcncs  em  darem  a  D.  Ximena  Munhoz  por  con- 
albina  d' ElRci  D.  AfFonço  VI  negavão  que  cila  fosse  sua 
mulher  legitima.  Por  isso  para  mostrarem  ,  que  a  Rainha 
D.  Tareja  não  fora  bastarda  ,  mas  legitima  ,  recorrerão  a 
outros  Documentos  ,  que  opposerao  aos  dos  referidos  Bis- 
po e  Arcebispo.  O  Padre  D.José  Barbosa,  Clérigo  Re- 
gular da  Divina  Providencia  ,  nome  entre  nós  não  só  de 
respeito,  mas  de  saudade,  quando  no  seu  bem  trabalhado 
Catalogo  das  Rainhas  de  Portugal  tratou  de  provar  com  Re- 
sende e  Brandão  a  legitimidade  da  Rainha  D.  Tareja  ,  to- 
mou o  novo  expediente  de  dizer,  que  o  nome  de  concubina 
nos  Textos  do  Bispo  d'Ovicdo  D.  Pelagio,  e  do  Arcebis- 
po de  Toledo  D.  Rodrigo ,  não  se  devia  tomar  por  ami- 
ga ou  manceba ,  mas  por  huma  mulher ,  que  por  ser  d*in- 
ferior  condição ,  se  recebia  sem  soleranidade  externa. 

Por  esta  accepção  do  nome  de  concubina  allega  D.  Jo- 
sé Barbosa  o  cap.  Christiano  ,  que  anda  no  Decreto  ;  e  o 
exemplo  de  Cethura  e  Agar,  que  sendo  legitimas  mulhe- 
res d*Abrahão,  a  Escritura  no  Livro  do  Génesis  as  chama 
concubinas.  ' 

Mas  ninguém  deixa  de  ver ,  que  para  o  nome  concubina 
se  tomar  nos  Textos  de  D.  Pelagio  e  de  D.  Rodrigo  , 
por  huma  mulher  legitima  ,  a  quem  para  se  equiparar  ás 
outras  só  faltou  ser  recebida  com  solcmnidade  ;  não  basta 
que  o  tal  nome  se  ache  nesta  accepção  em  tal  cânon,  ou 
em  tal  lugar  da  Escritura :  mas  que  de  mais  a  mais  he  ne- 
cessário mostrar  ,  que  nesta  mesma  accepção  he  que  com 
efFeito  o  vsurpárão  D.  Pelagio  ,  e  D.  Rodrigo.  Isto  he  po- 


aSo  Memorias  da  Academia  Real 

rém  o  que  não  mostrou ,   nem  podia  mostrar  o  Padre  D. 
José  Barbosa, 

Primo  :  porque  tanto  D.  Pelagio  como  D.  Rodrigo , 
ambos  claramente  contrapõem  a  n}t«lher  concubina  á  mulher 
legitima  ,  e  a  mulher  legitima  á  concubina :  dizendo  hum : 
Habuit  qtiinque  tixores  legitimas :  outro ,  Habtiit  qiiinque  lixa- 
res legítimo  matrimonio  sibi  jitnctas.  E  dizendo  ambos ,  Ha- 
buit etiam  ditas  concubinas. 

Secundo  :  porque  concordando  ambos ,  que  D.  Xime- 
na  Munhóx  era  illustrissima  por  nascimento  ;  assim  como 
da  parte  do  Rei  não  havia  razão  para  a  receber  sem  so- 
kmnidade ,  também  da  parte  dos  dous  Escritores  não  ha- 
via razão  para  a  metterem  na  classe  das  concubinas :  por- 
que tal  qual  era  D.  Ximena  ,  não  era  inferior  a  muitas  , 
que  sendo  filhas  de  vassallos  ,  nenhum  reparo  tinhâo  feito 
outros  Reis  de  Leão  de  as  receberem  como  Rainhas. 

Tertiò  :  porque  da  arvore  do  cpstado ,  que  traz  Flo- 
res ,  consta  que  D.  Ximena  era  parenta  d'  ElRei  em  ter- 
ceiro gráo.  E  as  parentas  em  grão  prohibido  não  podião 
ser  n-jm  concubinas  legaes  no  sentido  de  Barbosa. 

Quarto  :  porque  feito  parallelo  de  lugares  com  luga- 
res ,  acha-se  que  noutros  Textos  querendo  os  mesmos  dous 
Escritores  D.  Pelagio  e  D.  Rodrigo  significar  bastardia  nos 
filhos  ,  chamão  como  aqui  concubinas  as  mais.  De  D.  Pela- 
gio se  convence  isto,  pelo  que  elle  escreve  dos  bastardos 
d'  El  Rei  D.  Bermudo  II  dizendo :  Alitid  nefas  nefandissimus 
jlle  Princeps  egit.  Habuit  duas  nobiles  sorores  concubinas:  ex 
una  genttit  Infantem  Domintim  Ordonium  ,  ex  alia  genuit  In- 
fantissam  Dominam  Geloiram.  Quer  dizer :  Outra  infame  mal- 
dade fez  ainda  este  nefando  Principe.  Teve  duas  irmaãs  no« 
brcs  por  concubinas :  d'  huma  das  quaes  gerou  o  Infante 
D.  Ordonho  ,  da  outra  a  Infanta  D.  Elvira.  No  qual  Tex- 
to por  isso  mesmo  que  as  duas  concubinas  erão  irmaãs ,  fi- 
ca evidente,  que  D.  Pelagio  tomou  o  nome  de  concubina 
na  significação  d'amiga  ou  manceba.  Porque  nem  duas  ir- 
maãs ainda  successivamente  podião  ser  mulheres, legitimas 

sem 


DAS     SCIEKCIÀS   DE   LlSBOAi  sSí 

sem  dispensa;  nem  D.  Pclagio  qualificaria  de  grande  mal-» 
dadc  d' ElRci  D.  Bcnnudo  II  ter  por  concubinas  duas  ir- 
inaãs ,  se  por  este  nome  entendesse  duas  mulheres  legiii* 
mas. 

Quanto  a  D.  Rodrigo  lie  terminantissimo  o  seguinte 
lugar  do  Livro  V,  cap.  i.  onde  fallando  dos  filhos  d' El- 
Rci D.  Fioila  II  diz  assim  :  Duxit  uxorem  nomine  Múmia 
Domna  ,  ex  qua  sitscepit  ires  filioT  :  Aldefonstim ,  Ordoiihnn  ,  et 
Raiiimiriim  :  et  qtiafttini  de  concubina  itomine  Âzenarem.  Isto 
hc :  Casou  EIRei  D.  Froila  II  com  D.  Múmia  Domna,  da 
qual  houve  três  filhos:  D.  AíFonço  ^  D.  Ordonho ,  D.  Ra- 
miro; c  teve  quarta  d'huma  concubina  cham.idi  Azcnar. 
Para  se  ver  com  roda  a  clareza ,  que  D.  Rodrigo  toma  aqui 
concubina  por  amiga  ou  manceba,  hc  de  saber,  que  eíle 
neste  lugar  não  fez  mais  que  transcrever,  o  que  dos  filhos 
d'  EIRei  D.  Froila  II  tinha  antes  deixado  em  memoria  d 
outro  Bispo  Sampiro  d'Astorga  ,  quanJo  na  íua  Chronicá 
escreve  assim  :  Duxit  uxorem  nomiue  Muniam  Domnam ,  ex 
qua  três  filios  genuit '.  Adefonsum  ,  Ordonium ,  sive  et  Ranmt' 
rum  :  et  genuit  Azenarevi ,  sed  non  ex  legitimo  conjugio.  Qlicí 
dizer:  Casou  ElRci  D.  Froila  II  com  D.  Munia  Donna  ^ 
da  qual  teve  três  filhos:  D.  Affonço,  D.  Ordonho,  D.  Ra- 
miro :  gerou  mais  outro  filho  chamado  Azenar ,  mas  não 
de  legitimo  matrimonio.  Bem  ouvirão  todos ,  que  o  que 
Sampiro  d'Astorga  dissera ,  que  EIRei  D.  Froila  II  gerara 
râo  de  legitimo  matrimonio  o  Príncipe  Azenar ;  disse  D« 
Rodrigo ,  que  o  gerara  d'  huma  concubina. 

Tenho  logo  demostrado  contra  o  que  pretendia  o  Pa- 
dre D.  José  Barbosa  ,  que  o  nome  concubina  na  Historia 
de  D.  Pelagio  d'Oviedo  e  de  D.  Rodrigo  de  Toledo,  não 
se  toma  por  mulher  d'algum  modo  legitima ,  mas  por  ami- 
ga ou  manceba. 

O  Monge  de  Silos  coetâneo  do  Bispo  D.  Pelagio,  e 

o  Author  da  Chronicá  Latina    d'  ElRei  D.  AíFonço  VII , 

que  floreceo   no  mesmo  século ,    nos  confirmão  ,    que  esta 

era  então   a  accepçao  commum  daquelle  termo  nos  nossos 

Tomo  IX,  Nn  Es- 


aSl  MeMOKI  A.S   DA    ACADEM  IA   ReA  n 

Escritores.  Porque  o  primeiro  tratando  da  repartição,  que 
D.  Sancho  Rei  de  Navarra  fez  dos  seus  Ebtados  entre  seus 
filhos,  dÍ7,  assim:  Garciam  primogenitum  Panipilonensibus  pra- 
fecít '.  Feruaiidum  vero  hcllatrix  Castclla  passioue  patvis  pro  gu- 
bernatore  suscepit.  Dedit  Ramiro ,  quem  cx  concubina  hahnerat , 
quandam  semotim  regni  sui  partictilam  ,  scilicet  ne  fratrihus 
eo  qtiod  materno  gcnere  impar  erat ,  quasi  hcreditariíis  regni 
vidcretur.  A  D.  Garcia  seu  primogénito  deo  o  Reino  de 
Pamplona :  a  D.  Fernando  coube  a  bellicosa  Castella  :  a 
D.  Ramiro  havido  numa  concubina  dco  separadamente  lui- 
ma  pequena  porção  do  seu  Reino ,  visto  que  sendo  desigual 
aos  irmãos  por  parte  da  mãi ,  era  razão  que  não  parecesse 
entrar  com  eiles  igualmente  na  herança  dos  Estados  pa- 
ternos. 

O  segundo  depois  de  referir  no  Numero  36,  que  El- 
Rci  D.  Affonço  VII  dera  por  mulher  a  D.  Garcia  Rei  de 
Navarra  sua  filha  D.  Urraca  havida  numa  concubina  chama- 
da Domna  Gontroda  :  «í  daret  Regi  Garsia  filiam  suam  In- 
faMem  Domnam  Urracam,  quam  genuerat  ex  Gontroda  concu- 
bina', prosegue  no  Num.  39  dizendo,  que  a  concubina  D. 
Gontroda  ,  depois  que  vio  feita  Rainha  a  sua  filha  D.  Ur- 
raca ,  como  quem  não  tinha  mais  que  desejar  deste  mun- 
do ,  se  recolhera  Freira  no  Mosteiro  d'Oviedo  :  isto  em 
vida  do  dito  Rei  D.  Affonço  VII. 

Que  testemunhos  mais  claros  e  mais  concludentes  se 
podem  desejar,  para  todos  entenderem,  que  o  significado 
em  que  os  nossos  Escritores  do  século  XII  e  XIII  toma- 
vão  o  nome  concubina ^  era  o  de  amiga  ou  manceba,  e  de 
nenhum  modo  mulher  legitima. 


DAS   SciENCIAS    DE    Ll3EOA*  iSj 

§    IV. 

Refoi'ção-ic  mais  os  fundamentos  ,  donde  se  prova  ,  que  D.  Xi» 

mena  Alunhóz  mãi  da  Rainha  D.  Tareja ,  não  fora  mu~ 

Iher  legitima  d'£/Rei  D.  Àjfouço  yi. 

Mas  dado,  c  não  concedido,  que  os  testemunhos  do 
Bispo  D.  Pclagio,  c  do  Arcebispo  D.  Rodrigo,  se  possáo 
eludir  com  a  interpretação,  que  o  Padre  D.José  Barbosa 
deu  ao  nome  de  concubina  :  que  podem  repor  os  que  pre- 
tendem com  elle  ,  que  a  Rainha  D.  Tareja  fôra  filha  de 
legitimo  matrimonio;  que  podem  repor,  digo,  aos  teste- 
munhos do  Monge  de  Fleuri ,  e  da  Chronica  Latina  d'El- 
Rei  D.  Affonço  VII  ,  que  por  termos  expressos  dizem  , 
que  a  Rainha  D.  Tareja  não  era  filha  legitima  ,  mas  bas- 
tarda ?  Pelo  que  toca  ao  Monge  de  Fleuri ,  he  cousa  no- 
tável, que  o  Chronista  Mor  Fr.  António  Brandão,  que  o 
tomara  por  garante  da  opinião  que  segue  ,  de  descender 
o  Conde  D.  Henrique  da  Casa  dos  Duques  de  Borgonha  ; 
quando  depois  tratou  da  qualidade  de  nascimento  da  Rai- 
nha D.  Tareja,  o  passou  em  claro,  e  nenhum  caso  fez  del- 
le.  Pelo  que  toca  á  Chronica  Latina  d'  ElRei  D.  Affonço 
VII  o  Padre  D.  José  Barbosa ,  que  a  podéra  ter  visto  im- 
pressa pelo  Padre  Fr.  Francisco  de  Berganza  em  Madrid  an- 
no  de  1721 ,  ou  a  não  vio,  ou  se  a  vio,  fez  que  a  não 
conhecia ,  pela  achar  contraria  á  sua  pretensão. 

He  certo ,  que  D.  José  Barb  )sa  folheou  as  Antiguida- 
des d'Espanha  do  Padre  Bergan/a :  pois  elle  as  cita  varias 
vezes ,  e  delias  produzio  a  seu  favor  a  Chronica  de  Car- 
denha.  E  nestas  Antiguidades  d^ Espanha  imprimio  o  Padre 
Berganza  a  Chronica  Latina  d'  ElRei  D.  Affonço  VII.  Lo* 
go  o  passal-Ia  em  silencio,  não  foi  porque  a  não  visse, 
mas  porque  lhe  não  fez  conta. 

Aqui  pois ,  onde  só  se  trata  de  averiguar  imparcial» 
íncnte  a  vordade  dos  factgs  importantes,  e  de  lançar  fun-. 

Nn  ii  '  da- 


2^4  Memórias  da  Academia  Reat, 

damentos  seguros  á  nossa  Historia  ;  hc  da  minha  obrio-a- 
çáo  produzir  os  dous  citados  Documentos  ,  como  provas 
as  mais  decisivas  da  thcse ,  que  deixo  proposta. 

O  Monge  de  Fleuri  ,  segundo  o  publicou  Duchesne 
no  Tomo  IV  dos  seus  Coetâneos^  pag.  89  depois  de  dizer, 
que  ElRei  D.  Affonço  VI  casara  sua  filha  D.  Urraca  havi- 
da na  Rainha  D.  Constança,  com  o  Conde  D.  Ramon, 
que  tinha  o  seu  Condado  alem  do  Saona  ;  prosegue  logo 
dizendo,  que  outra  fillia ,  que  nao  era  nascida  de  legitimo 
matrimonio,  a  dera  ElRci  por  mulher  ao  Conde  D.Hen- 
rique, hum  dos  filhos  do  filho  de  Roberto  Duque  de  Bor- 
gonha. Alteram  filiam ,  sed  nnn  ex  coujtigali  thoro  natam , 
Uinrico  uni  filiorum  filii  ejusdem  Dticis  Roberti  dedit. 

A  Chronica  Latina  d' ElRei  D.  Aftonço  VII  confor- 
me depois  de  Bcrganza  a  publicou  Flores  no  Tomo  XXI, 
pag.  347  entrando  no  Numero  29  a  fallar  da  guerra,  que 
ElRei  D.  AíFonço  de  Portugal  filho  do  Conde  D.  Henri- 
que e  da  Rainha  D.  Tareja  ,  moveo  contra  seu  primo  o 
dito  Rei  D.  AíFonço  VII  de  Leão  e  Castella  ,  escreve  o 
seguinte  :  Ipsa  antem  Tarasia  erat  filia  Regis  Domiui  Ade- 
fonsi ,  sed  de  non  legitima ,  valde  tamen  a  Rege  dilecta  ,  nO' 
mine  Ximena  Munionis ,  qtiam  Rex  dilectionis  et  honoris  causa 
dedit  tnaritatam  Enrico  Comiti ,  et  dotavit  eam  ruagnifice ,  dans 
Portiigalensem  ferram  jure  hereditário.  Quer  dizer:  Esta  Rai- 
flha  D.  Tareja  era  filha  d'  ElRei  D.  AíFonço ,  mas  havida 
de  mulher  nao  legitima ,  ainda  que  muito  querida  d'ElRei , 
que  SC  chamava  Ximena  Munhoz.  E  ElRei  em  sinal  do 
amor  que  tinha  a  esta  filha  ,  e  querendo-a  honrar,  a  casou 
com  o  Conde  D,  Henrique  ,  e  a  dotou  magnificamente , 
dando-lhe  a  terra  de  Portugal  de  juro  e  herdade. 

A*  vista  destes  dous  testemunhos ,  hum  do  Monge  de 
Fleuri  ,  contemporâneo  e  patrício  do  Conde  D.  Henrique  j 
outro  do  Chronista  d'  ElRei  D.  Affonço  VII  contemporâ- 
neo c  patricio  da  Rainha  D.  Tareja :  deve  dar-se  por  hum 
facto  indubitável  e  absolutamente  certo ,  que  D.  Ximena 
Munhoz  não  foi  mulher  legitima,  mas  amiga  ou  manceba 

d'El- 


HÁS  SciE!>rciAí<  de  Lisboa.  285" 

d'  ElRci  D,  AíFonço  VI ,  e  por  conseguinte  que  a  Rainha 
D.  Tareja  filha  d'entrambos  era  bastarda ,  e  não  legitima. 

§     V. 

Desfiiaem-fe  os  fundamentos  da  sentença  contraria  ,  allegadot 
por  Fr.  António  Brandão ,  e  por  D.  José  Barbosa. 

Trcs  são  os  fundamentos ,  sobre  que  Fr.  António  Bran- 
dão e  D.  José  Barbosa  ,  derão  por  firmemente  assentada  a 
legitimidade  do  casamento  de  D.  Ximena  Munhoz  com  El- 
Rei  D.  Affonço  VI  ,  e  a  legitimidade  do  nascimento  da 
Rainha  D.  Tareja  havida  d'entrambos  :  dous  d'authorida- 
de ,  e  hum  d'etiqucta. 

O  primeiro  fundamento  d'authoridade  he  tirado  d*hu- 
ma  antiga  Chronica  em  Língua  Espanhola  ,  citada  por  An« 
drd  de  Resende  no  Livro  IV  De  Antiquitatibus  Lusitânia  , 
Artigo  De  Orichiensi  Agro ,  foi.  209  ,  e  transcrita  depois 
por  Fr.  António  Brandão  na  Terceira  Parte  da  Monarquia 
Lusitana,  Livro  VIII,  cap.  ii.  Na  qual  Chronica  se  acha 
o  seguinte  testemuni\o  :  ElRey  D.  Alfonso  toma  muger  mo^ 
ra ,  que  se  dizia  la  Zaida  j  y  avo  en  ella  un  fijo ,  ai  que  di' 
xeron  Don  Sancho ,  y  por  sobrenombre  dixcron-lo  Sancho  Alfon' 
so :  y  despues  lo  mataron  moros  en  la  batalla  de  Uclés.  Des- 
pties  uvo  este  Rey  otra  muger ,  que  uvo  nombre  Ximena  Mn- 
nSz ;  y  uvo  en  ella  dos  fijos ,  la  Infanta  Dona  Elvira  y  y  Ia 
Infanta  Dona  Teresa. 

Assim  o  descreve  Brandão  no  lugar  acima  indicado  : 
porque  Resende  sim  tinha  citado  a  Chronica  Espanhola  , 
mas  contentando-se  com  expor  o  que  delia  se  concluia , 
não  poz  as  palavras  formaes ,  por  não  misturar  o  Castelha* 
no  com  o  Latim. 

Com  este  testemunho  porém  deu  Resende  por  tão 
terta  e  indubitável  a  legitimidade  do  casamento  de  D.  Xi- 
mena com  ElRei  D.  Affjnço  VI ,  que  attribuio  a  desaíFe- 
cto  nacional,  o  tel-la  o  Arcebispo  D.  Rodrigo  qualificada 

de 


i86  Memorias  da  Academia  Real 

de  concubina :  {Rodericits  Toletaniis  parum  Lusitanis  aqiiiis :) 
e  sobre  esta  descuberta  escreveo  (como  cUc  mesmo  acres- 
centa) hum  largo  Discurso  a  João  de  Barros.  Oiia  de  re  aâ 
Joantiem  Barrum  scripsi .,  et  quidem  proHxe. 

Para  quebrar  pois  toda  a  força  á  authoridade  do  Ar- 
cebispo D.  Rodrigo ,  que  tinha  dado  por  concubina  d'  El- 
Rei  D.  Affonço  VI  a  D.  Ximena  Munhoz;  oppoz  Resen- 
de o  testemunho  desta  Chronica  Espanhola ,  que  clie  diz 
fora  composta  setenta  annos  antes  do  dito  D.  Rodrigo  , 
{totós  septuagiuta  annos  ante  Rodericuní)  e  onde  D.  Ximena 
Munhoz  apparecc  mulher  legitima  d'  ElRei  D,  AíFonço  VI 
depois  da  Zaida  moura. 

Arrastados  da  authoridade  de  Resende ,  e  movidos  da 
grande  antiguidade  que  elle  dava  áqucUa  Chronica  Espa- 
nhola, produzio  Fr.  António  Brandão,  e  produzio  D.José 
Barbosa  o  mencionado  testemunho,  como  hum  documento, 
que  punha  fora  de  toda  a  duvida ,  ter  sido  D.  Ximena  Mu- 
nhoz legitima  mulher  d'  ElRei  D.  Affonço  VI ,  e  legiti- 
ma sua  filha  a  Rainha  D.  Tareja. 

Sinto  na  verdade  ,  que  hum  homem  como  Resende  , 
o  Principe  dos  Antiquários  d'Espanha  deixasse  cahir  da  sua 
tão  attentada ,  como  atilada  penna ,  que  o  ter  o  Arcebispo- 
de  Toledo  feito  concubina  a  D.  Ximena  ,  fora  por  ser  pou- 
co favorável  aos  Portuguezes :  porque  com  isto  nos  certi- 
ficou Resende ,  que  não  tinha  lido  ao  Bispo  d'Oviedo  D. 
Pelagio  ,  que  escreveo  a  sua  Chronica  quando  Portugal 
ainda  não  era  Reino.  Muito  mais  sinto ,  que  Resende  qua- 
lificasse a  Chronica  Espanhola  por  huma  Chronica  setenta 
annos  mais  antiga ,  do  que  a  Historia  do  Arcebispo  D.  Ro- 
drigo ;  porque  nisso  mostrou  ,  que  a  não  correra  pelos 
olhos  com  a  devida  attenção.  E  sobre  tudo  sinto ,  que 
D.  José  Barbosa ,  devendo-lhe  Resende  tanto  conceito  no 
cjue  diz  da  antiguidade  da  Chronica  Espanhola  ,  nenhum 
lhe  devesse  na  intelligencia  que  deu  ao  Texto  do  mesmo 
D.  Rodrigo  sobre  o  significado  do  nome  concubina. 

O  caso  he ,  que  a  dita  Chronica  Espanhola ,  que  Ré- 

sen- 


DAS  ScienCiasde  Lisboa.  287 

sendc  e  Brandão  só  virão  manuscrita ,  c  da  qual  como  ma- 
nuscrita só  transcrevera  o  mesmo  Brandão  alguns  pequenos 
pedaços :  foi  o  Padre  Flores  o  primeiro  ,  que  cm  nossos 
dias  a  publicou  c  imprimio  toda  inteira  ,  no  fim  do  pri- 
meiro Tomo  das  suas  Rcyuns  Ciubo/icas,  tirada  d' hum  Có- 
dice do  Convento  de  S.  Martinho  de  Madrid  ,  da  letra  de 
João  Vasques  dei  Marmol ,  Corrector  Régio  por  Filippe  II. 
He  peça  tão  curta  ,  que  na  Edição  de  Flores  só  occupa 
des  da  pagina  492  até  a  pagina  joy.  Nem  contém  outra 
cousa  mais  do  que  humas  breves  genealogias  dos  Reis  de 
Leão,  Castella,   Navarra,  Aragão,   e  França. 

Quem  quer  porém  que  fosse  o  Author  desta  pequena 
Chronica  Espanhola,  elle  mesmo  declara  o  tempo  em  que 
a  escrcveo  por  huns  termos  tão  claros ,  que  não  dá  lugar 
á  mais  leve  duvida.  Porque  no  fim  do  primeiro  Artigo , 
qne  he  dos  Reis  de  Leão  e  de  Castella,  depois  da  morte 
d'ElRei  D.  Henrique  I  de  Castella,  conclue  assim:  Rejnó 
ia  Infanta  Dofm  Bcringuela ,  y  dió  lo  regno  a  sn  fije  D.  Fer- 
nando ,  c  reynà  D.  Fernando.  Da  aqui  adelaiite  será  lo  que 
Diot  quisiere.  E  logo  no  principio  do  segundo  Artigo,  que 
he  dos  Reys  de  Navarra,  começa  deste  modo:  Hasta  aqui 
hablnmus  dei  linage  de  los  Reyes  de  Castella  ,  como  viene  dei 
iinage  de  Nuno  Rasucra  hasta  el  Eniperador ,  y  hasta  d  Rey 
D.  Fernando  y  que  agora  rey  na  em  Castela. 

Destes  dous  lugares  da  Chronica  Espanhola  £cou  mais 
claro  do  que  a  luz  do  meio  dia  ,  que  o  Author  que  a 
escrcveo,  a  escreveo  no  reinado  d' ElRei  D.  Fernando  o 
Santo.  O  qual  Rei  D.  Fernando  o  Santo  reinou  des  do 
anno  de  12 17  ate  o  anno  de   i25'2   em  que  faleceo. 

Ora  neste  mesmo  reinado  do  Rei  S.  Fernando  he  que 
lloreceo  D.  Rodrigo  Ximenes ,  que  entrou  a  ser  Arcebis- 
po de  Toledo  no  anno  de  1208  ,  e  morreo  no  anno  de 
1245'.  Logo  o  Author  da  Chronica  Espanhola  longe  de  ter 
precedido  setenta  annos  ao  Arcebispo  de  Toledo  D.  Ro- 
drigo Ximenes,  foi  juntamente  seu  contemporâneo,  e  con- 
temporâneo  num    mesmo  reinado.   Logo  cnganou-se    com 

Ré- 


a88  Memorias  da  Academia  Real 

Resende  o  Padre  D.José  Barbosa,  em  suppôr  escrita  aqucl- 
]a  Chronica  Espanhola  screnta  annos  antes  da  Historia  La- 
tina do  Arcebispo  D.  Rodrigo  Ximencs. 

Nestes  termos  correm  estes  dous  Escritores  parelhas 
no  tempo  ,  mas  não  na  authoridade.  Porque  D.  Rodrigo 
em  dar  por  concubina  d'  ElRei  D.  Afíonço  VI  a  Domna 
Ximena  Munhoz  tem  por  si  ao  Bispo  d'Oviedo  D.  Pela- 
gio ,  ao  Monge  de  Fieuri ,  e  ao  Chronista  d'  ElRei  D. 
AfFonço  VII  todos  muito  mais  antigos  ;  os  dous  primeiros 
coetâneos  do  mesmo  Rei  D.  AfFonço  VI ,  o  terceiro  coe- 
tâneo de  sua  filha  a  Rainha  D.  Tareja  :  quando  para  dar 
a  D.  Ximena  por  mulher  legitima  ,  nao  se  acha  Authof 
algum  antes  da  Chronica  Espanhola ,  que  tal  affirme.  D. 
Rodrigo  he  hum  Author  de  nome  e  de  reputação  conhe- 
cida :  quando  o  Author  da  Chronica  Espanhola  he  hum 
Anonymo  sem  credito  estabelecido,  D.  Rodrigo  nas  cousas 
do  seu  tempo ,  ou  visinhas  a  elle ,  he  hum  Escritor  dili- 
gente e  exacto :  quando  o  Author  da  Chronica  Espanhola 
em  cousas  notórias  e  visinhas  ao  tempo  em  que  escrevia , 
se  mostrou  tão  ignorante  ,  que  ao  Conde  D.  Ramon  de 
Borgonha  marido  da  Rainha  D.  Urraca ,  irmaâ  da  nossa 
D.  Tareja,  o  fez  filho  d'Affonço  Jordão. 

De  tudo  o  sobredito  se  deve  concluir,  que  contra  a 
authoridade  do  Bispo  d'Oviedo  D.  Pelagio,  do  Anonymo 
de  Fieuri ,  do  Chronista  d'  ElRei  D.  Affonço  VII ,  e  ácf 
Arcebispo  de  Toledo  D.  Rodrigo  Ximenes,  nada  pôde  va- 
ler o  testemunho  da  Chronica  Espanhola  citado  por  An- 
dré de  Resende ,  reproduzido  por  Fr.  António  Brandão , 
exaggerado  por  D.  José  Barbosa. 

Menos  pôde  valer  ainda  o  segundo  testemunho ,  que 
pela  legitimidade  do  casamento  da  mãi  e  do  nascimento 
da  filha ,  allega  o  mesmo  D.  José  Barbosa ,  tirado  da  ou- 
tra Chronica  Espanhola  de  S.  Pedro  de  Cardenha,  que  de- 
pois de  Berganza  publicou  Flores  no  fim  do  Tomo  XXIII 
da  Espanha  Sagrada.,  pag.  376  e  segg.  Porque  alem  de 
ser  hum  testemunho  visivelmente  copiado  da  Chronica  de 

Ré- 


DAS   SCIENCIAS   DE   L  I  S  fe  O  A.  z2(f 

Resende,  segundo  as  palavras  d'Iiuma  sáo  idênticas  com 
os  da  outra  ;  seu  Autlior  (que  também  se  nao  sabe  quem 
íosse)  a  escrevia  pelos  annos  de  Christo  1312  em  que  aca- 
ba :  isto  hc ,  mais  de  du/.cntos  annos  depois  que  D.  Pc- 
lagio  começou  a  ser  Bispo  d'Oviedo ;  mais  de  cento  e  sin- 
cocnta  depois  de  composta  a  Chronica  d'  El  Rei  D.  Afii)n- 
ço  VII ,  e  quasi  cem  depois  que  D.  Rodrigo  entrou  a  ser 
Arcebispo  de  Toledo. 

Passemos  pois  já  ao  terceiro  fundamento ,  que  hé  co- 
mo o  Aquilles,  com  que  Fr.  António  Brandão  c  D.  José 
Barbosa  derao  por  incluctavelmente  decidido ,  que  D.  Xi- 
niena  Munhoz  lôra  mulher  legitima  d'ElRei  D.  AflFonço 
VI ,  e  por  necessária  consequência  filha  legitima  d'entram- 
bos  a  Rainha  D.  Tareja.  He  este  o  titulo  de  Infanta  e 
de  Rainha  ,  que  as  antigas  Memorias  constantemente  dao  a 
D.  Tareja  :  titulo  que  ambos  aquelles  dous  Críticos  sup- 
poém  ser  tão  privativo  das  filhas  legitimas  dos  Reis,  que 
nunca  se  attribuisse  ás  bastardas.  Nesra  supposiçâo  qualifi- 
cão  ambos  d'huma  grosseira  ignorância  em  Fr.  Luiz  de 
Sousa,  chamar  elle  Inftmta  a  D.  Constança  Sanches,  filha 
bastarda  do  nosso  Rei  D.  Sancho  I. 

Mas  primeiramente  quanto  ao  titulo  d' Infanta ,  he  fal- 
so que  elle  nunca  se  desse  ás  filhas  bastardas  dos  Reis.  Eu 
mostro  o  contrario  com  três  exemplos  bem  clássicos. 

O  primeiro  he  da  Chronica  do  Bispo  D.  Pelagio  de 
Oviedo  ,  que  tratando  dos  filhos  que  ElRei  D,  Bermudo  H 
tivera  de  duas  concubinas  irmaâs  huma  da  outra  ,  chama 
Infante  a  D.  Ordonho  filho  d'  huma ,  e  chama  Infanta  a 
D.  Elvira  filha  da  outra.  Habuit  duas  nobiles  sorores  concu- 
linas :  ex  una  genuit  Infantem  Dominum  Ordonitwi  ,  ex  alia 
gentiit  Infantissam  Dominam  Geloiram. 

O  segundo  he  da  Chronica  d'ElRei  D.  AíFonço  VII , 
que  logo  no  Numero  1.  chama  Infanta  a  D.  Elvira,  irmaâ 
da  nossa  D.  Tareja  ,  e  mai  do  Conde  D.  AfFonço  Jordão. 
To/osanus  Contes  Adefonsus  Jordanis ,  Regis  consangimeus ,  et 
Jnfíintis  Celoira  filia  Regis  Jdefotisi  Jilius,  &c.  Ora  a  mã* 
Tmo  IX.  Oo  des- 


2^o  Memokias  da  Academia  Real' 

destas  duas  irmaas  era  D.  Ximcna  Munhoz,  da  qual  o  Au-; 
thor  da  mesma  Chroiiica  no  Numero  29  affirma,  que  íôr* 
mulher  nao  legirima  ,  como  já  ouvimos  no  §  III. 

O  terceiro  hc  da  mesma  Chronica  d'ElRei  D.  AfFon- 
ço  VII,  que  no  Numero  56  chama  Infanta  a  D.  Urraca, 
da  qual  di/,  que  era  filha  d' huma  concubina  do  mesmo  Rei 
por  nome  Gontroda.  Qitod  postqtiam  factutn  est ,  Comes  Tolo-y 
sauus  et  Príncipes  Regni  rogavenmt  Impcratorem ,  ut  darei  Re- 
gi Garsi^e  filiam  suam  luf untem  Domnam  Urraca/n ,  quam  ge- 
ntierat  ex  Gontroda  concubina.  R  logo  fallando  da  mesma  : 
Intravit  Serciissima  Infiitts  Domna  Sanctia  per  Legionem  ,  et 
cum  ea  consobrina  sua  Infans  Domna  Urraca.  E  para  que  nin- 
guém recorra  ao  subterfúgio  de  dizer ,  que  concubina  neste 
e  noutros  lugares  semelhantes  não  se  toma  por  amiga  ou 
manceba,  mas  por  huma  mulher  recebida  sem  golemnida-. 
de,  ou  como  nós  hoje  dizemos,  recebida  de  consciência: 
o  mesmo  Author  (como  já  atraz  advertimos)  acrescenta  no» 
Numero  ^9,  que  D.  Gontroda,  depois  que  vic?; feita  Rai- 
nha de  Navarra  a  dita  sua  filha  D.  Urraca  ,  se  foi  metteç 
Freira  no  Convento  d'Oviedo.  Postquam  vidit  filia  su<e  g/o* 
riam  imineusam  ,  semetipsam  ojferens  Deo  ejus  fmnulatui  ad-, 
hasit .,  in  Oveten^i  nfbe  sanctimonialis  facta.noti:'r,r 

Qiianto  ao  titulo  de  Rainha  ,  dado  que  ellé  por  via 
de  regra  se  não  attribuisse,  senão  ás  filhas,  dos  Reis  leg.b 
timas ;  deviao  comtudo  advertir  Fr.  Antonioi  Brandão  e  D. 
José  Barbosa ,  que  a  respeito  da  nossa  D:  Tareja  havia 
razão  especial  ,  para  que  ainda  sendo  basiarda :,  a  chamas- 
sem Rainha.  Esta  razão  especial  era  ser  D.  Tareja  Sobe- 
rana de  hum  Reino,  o  que  se  não  verificara  :  das  outras 
bastardas.  •  ,      :  ,  /, 

Qiie  esta  fosse  a  razão,  por  que  O;  Tareja  se  inti» 
tulàVa  Rainha  ,  prova-se  manifestamente  daqudle  mesmo  lu- 
gar da  Chronica  d' ElRei  D.  AíFonço  VII ,  que  já  outras; 
vezes  temos  citado.  No  qual  lugar  o  Author  da  Chronica, 
depois  de  notar,  que  D.  Tareja  eiz.  £.\ha.  de  uon  legitima^ 
acrescenta  Ioga,  -que»  os  Portugaezeá.  a  .chatnárão  Rainha, 
.  -^  ^,,^  ;  por 


nAS    SciENCIAS    DE    LiSBOA.  Zpt 

por  seu  pay  lhe  ter  da-lo  em  dote  o  Reino  de  Portugal 
de  juro  e  herdade.  Dotavit  eain  niaguifice .,  datis  Portugalen' 
sem  (erram  jure  htcr editar io.  Morttto  atttem  Enrico  Comité , 
Purtugdlenses  vocaverimt  cam  Regiiiam. 

Concluamos  logo,  que  o  intitular-sc  D.  Tareja  Rai- 
nha ,  não  era  por  ser  filha  legitima  de  Rei ,  mas  por  ser 
Soberana  de  Portugal. 

§     VI. 

Fossem  muito  embora  or  Porttigiiezes  os  primeiros ,  que  come- 
çarão a  chamar  Rainha  a  D.  Tareja ,  como  ha  pouco  ouvi- 
mos da  Chroiiica  d^ElRei  D.  Jjfonço  FlI.  Mas  ella  era  tra- 
tada com  este  mesmo  titulo  não  só  em  Portugal ,  mas  em  to- 
da a  Espanha ,  e  fora  d^ Espanha. 

Dos  outros  Reinos  d'Espanh3  prova-se  este  assumpto, 
primeiramente  da  Historia  (]ompostellana  ,  Liv.  II,  c.:p.  85' 
Rex  A.  RegincB  Dii<£  XJrracte  filius ,  immensam  cum  stia  ami- 
ta  (devia  escrever  se  mater  ter  a)  Portugalensi  Regina  n.  mi- 
ne T,  discordiam  habuit.  E  no  cap.  89  fallando  do  Arcebis- 
po de  Com  postei  Ia:  Lit  terás  suas  ad  Portugalen  sem  Reginam 
Domnam  T.  Regis  materteram  in  h£C  verba  direxit :  Venerabi- 
Us  Regina^  &c.  Prova-sc  em  segundo  lugar  da  Chronica 
d'  ElRei  D.  Affonço  VII ,  Num.  2.  Inde  Rex  abiit  Zamo- 
ram ,  et  habuit  ibi  colloquium  in  Ricovado  cum  Tarasia  Regi- 
na Portugalensium. 

De  fora  d'  Espanha  he  bem  authentico  o  testemunho 
do  Papa  Calisto  II,  que  num  Breve  dirigido  ao  Arcebispo 
de  Compostella  no  anno  de  1122  e  referido  na  Historia 
Compostellana  ,  Livro  II,  cap.  f8,  diz  assim:  Pervenit  ad 
»w,  quod  Portugalensis  Regina  T.  fratrem  nostrum  P.  Braca- 
rensem  Archiep,  ceperit  j  etmque  adbuc  in  captione  detineat. 


Oo  ii  § 


api  Memorias  da  Academia  Reai» 

§    VIL 

Em  virtude  e  consequência  da  soberania  com  que  tinhao  herda* 
do  os  Estados  de  Portugal ^  nunca  a  Rainha  D.  Tareja^  nem 
seu  filho  ElRei  D.  Affonço  Henriques ,  quizcrao  reconhecer 
sujeição  ou  dependência  alguma  dos  Reis  de  Castella  ,  cott" 
tra  o  que  estes  pretendiao. 

Historia  Compostellana ,  Livro  II,  cap.  Sy.  Rex  A, 
immensam  aim  sua  ainiia  Portugalensi  Regina  nomine  T.  dis- 
cordiam  habuit.  Ipsa  enim  fnstu  superbite  elata  términos  justi- 
tíie  egrediebatur  ^  et  nulliim  Regi  servitium  de  Regno ,  quod  ab 
illo  tenere  debebat ,  exibere  dignabatur. 

A  mesma  no  Livro  III,  cap.  24.  Portugalensis  Ivfans 
Enrici  Comitis  fílius  nomine  A  .  .  .  .  magnam  divisionem ,  et 
magnam  guerram  aim  Rege  A.  Raymundi  Comitis  et  Dn£  Re- 
gime U.  filio  habuit.  Ipse  etenim  Infans  vitio  superbia  elatus 
Regis  dominationi  subjici  noluit :  sed  adepto  hoaore  conira  ettm 
arroganter  intumuit. 

§    VIIL 

Esta  Soberana  Independência   transmittio  o  nosso  primeiro  Rei 

D.  Affonço  Henriques  a  todos  os  seus  Successores  no 

Throno  Portiiguez. 

Assim  o  protestarão  á  face  de  todo  o  Orbe  catholico, 
os  Embaixadores  do  nosso  Rei  D.  João  I  no  Concilio  Ge- 
ral de  Constança,  anno  de   1416,  ácssao  XXII. 

Erão  estes  Embaixadores  dous  grandes  Fidalgos  deste 
Reino  ,  D.  Fernando  de  Castro  ,  e  D.  Álvaro  Gonçalves 
d'Ataide;  e  dous  grandes  Doutores  em  Leis,  Gil  Martins, 
e  Valasco  Peres.  Os  quaes  num  largo  arrazoado  que  fizerão , 
estando  presentes  quinze  Cardeaes ,  e  os  Embaixadores  de 
vinte  e  sete  Príncipes  Soberanos ,  sobre   não  deverem  ter 

no 


I 


~   '  DAS   SciENCI  AS    DE    LiSBOA.  1^^ 

no  Concilio  mais  força  os  votos  dos  Aragonczes,  do  que 
os  dos  Portuguczes ,  Castelhanos,  c  Navarro?,  disscráo  as- 
sim: Oiti  tanien  Rex  Portugallite  ("iiet  régua  sua  y  terras.,  et 
doniinia  sua  libera  et  libere  ,  sine  recognoscendo  a  quocumque 
alio  vivente  in  terris ,  nisi  a  Deo  solo  rectorc  suo  maxime  in 
tcmporalibur  ^  quemadiuodum  et  ceteri  reges  Hispantariim ,  prí/iit 
recitant  Historite ,  glorinsique  ductorct.  Isco  he  :  Porque  o  di- 
to Rei  de  Portugal  D.  João  tem  os  seus  Reinos ,  terras ,  e 
dominios  livres  e  livremente,  sem  reconhecer  superior  al- 
gum no  mundo,  senão  só  a  Deos^  principalmente  nas  cou- 
sas temporaes,  como  os  mais  Reis  das  lispinhas  ;  e  isto 
mesmo  he  o  que  contáo  as  Historias,  e  o  que  reconhecem 
us  Doutores  mais  famigerados. 


DISSERTAÇÃO    XIV. 

jyhiim  notavsl  lugar  do  Arcebispo  de  Toledo  D.  Rodrigo  XiniC' 
nes  na  Historia  d"  Espanha ,  donde  se  mostra  contra  Fr.  Jhi- 
toiíio  Brandão  e  o  Padre  D.  José  Barbosa  ,  que  não  era 
contra  a  etiqueta  das  Cortes  d" Espanha  dar-^e  o  titulo  d^ In- 
fantas ,  e  ainda  o  de  Rainhas ,  às  -filhas  bastardas  dos  Reis» 


N, 


A  Dissertação  passada ,  que  foi  a  XIII ,  mostrei  pe- 
los testemunhos  de  Pclagio  d'Oviedo  ,  do  Manuscrito  da 
Abbadia  de  Fleuri ,  da  Chronica  d' El  Rei  D.  AíFonço  VII, 
e  do  Arcebi-jpo  de  Toledo  D.  Rodrigo  Ximenes  :  que  a 
Rainha  D.  Tareja  não  foi  filha  legitima,  mas  natural  d'El- 
Rei  D.  AíFonço  VI  havida  cm  huma  concubina  do  mesmo 
Rei  por  nome  D.  Ximeni  Munhoz.  Mostrei  mais  no  §  V 
da  mesma  Dissertação ,  que  debalde  tinhâo  pretendido  Fr. 
António  Brandão  e  o  Padre  D.  José  Barbosa  dai-la  por 
Princcza  legitima,  pelo  fundamento,  de  que  as  Memorias 
antigas  a  intitulão  Infanta  e  Rainha  :  titulos  que  ambos 
aquclies  Críticos  suppocni ,   que  nunca    se  davão   ás  Prin- 

cc- 


194  Memorias  da  Academia  Real 

cezas  bastardas ;  de  sorte  que  qualiíicão  por  hum  erro  gros- 
seiro em  Fr.  Luiz  de  Sousa  ,  dar  o  nome  d'Infanta  a  D. 
Constança  Sanches,  filha  natural  do  nosso  Rei  D.  Sancho  I. 

Pelo  que  toca  ao  titulo  d' Infanta y  no  dito  §  V  da  ci- 
tada Dissertação  XIII  convenci  eu  de  falsa  a  supposição 
de  Fr.  António  Brandão  c  do  Padre  D.  José  Barbosa ,  c 
revindiquei  a  de  Fr.  Luiz  de  Sousa  ,  com  outros  testemu- 
nhos de  Pclagio  d'Ovicdo,  e  da  Chronica  d' ElRei  D.  Af- 
fonço  VII  ,  que  manifestamente  tratáo  à^Infíintas  as  filhas 
bastardas  d'  ElRei  D.  Bermudo  II  ,  c  as  do  mesmo  Rei 
D.  Affonço  VII. 

Agora  pelo  que  toca  ao  titulo  de  Rainha ,  nao  se  pô- 
de excogitar  testemunho  mais  cíHcaz  e  terminante ,  contra 
a  supposição  de  Brandão  e  de  Barbosa ,  do  que  o  que  vou 
a  produzir  da  Historia  d'  Espanha  do  Arcebispo  D.  Rodri- 
go Ximenes  :  testemunho  que  sendo  na  presente  matéria 
decretorio  e  decisivo,  não  sei  que  antes  de  mim  reflectis- 
se nelle  algum  dos  nossos  Escritores. 

No  Livro  sétimo  pois,  capitulo  quinto,  diz  assim  o 
Arcebispo  D.  Rodrigo  :  Comes  aittem  Enrictis  ad  petitionem 
íixoris  sua  Tarassa  ,  qtta  Regina  ,  quia  Regis  filia  dicebatur , 
terr/c  stite  civitates  singitlis  Episcopis  donationis  titulo  assigna- 
vit  pr£ter  Coimbriam.  Qi^ier  dizer:  O  Conde  D.  Henrique 
á  petição  de  sua  mulher  D,  Tarcja ,  que  por  ser  filha  de 
Rei  ,  se  chamava  Rainha  ,  fez  doação  a  cada  Bispo  das 
cidades  da  sua  terra ,  excepto  Coimbra ,  que  elle  reservou 
para  lhe  servir  de  Corte. 

Notcm-se  aquellas  palavras  :  Qtta  Regina ,  quia  Regis 
filia  dicebatur :  a  qual  por  ser  filha  de  Rei  se  chamou  Rai- 
nha. Palavras  que  ditas  no  Livro  VII ,  cap.  y  por  hum  Es- 
critor, que  no  Livro  VI,  cap.  ai  tinha  dado  por  bastar- 
da d' ElRei  D.  Affonço  VI  a  mulher  do  Conde  D.  Hen- 
rique: provão  ineluctavelmcnte,  que  pela  etiqueta  das  Cor- 
tes d' Espanha  ,  que  hum  tal  Arcebispo  não  podia  igno- 
rar, não  era  incurialidade  chamar  Rainhas  até  as  Princczas 
bastardas ,  huma  vez  que  crão  filhas  de  Reis.  Com  o  que 

vem 


DAS  SciENciAs  DE  Lisboa.  295 

vem    de  todo   abaixo    a  supposiçao  de  Brandão  e  de  Bar- 
bosa, que   o  titulo  á^Injantas  c  de  Rainhas^  só  se  dava  ás 


Princezas  legitimas. 


DISSERTAÇÃO     XV. 

Segundo  casamento  da  Rainha  D,  Tareja  cm  o  Conde  de 
Trastamara  D.  Fernando  Peres, 


hjs 


ÍSTE  he  outro  ponto  importantíssimo  da  nossa  Histo- 
ria, de  cuja  verificação  ou  não  verificaçã  >  depende  o  cre- 
dito, que  se  deve  dar  ou  não  deve  dar,  a  huma  boa  par- 
te dos  dous  primeiros  Reinados   de   Portugal. 

He  de  saber  ,  que  até  o  tempo  de  João  de  Barros 
corrco  de  plano  entre  os  nossos  Ghronistas  o  segundo  ca- 
samento da  Rainha  D.  Tareja  com  o  Conde  de  Trasta- 
mara D.  Fernão  Peres ,  que  era  naquclle  tempo  o  maior 
homem  que  havia  em  Espanha  ,  que  Rei  não  fosse ,  co- 
mo se  explica  o  Conde  D.  Pedro  no  seu  Nobiliário. 

João  de  Barros  foi  o  primeiro,  que  eu  saiba,  que  na 
Terceira  Década,  Livro  I,  cap.  4,  deo  este  casamento  por 
huma  fabula  com  todas  as  suas  resultas.  A  João  de  Barros 
seguio  Duarte  Nunes  :  a  Duarte  Nunes  Fr.  António  Bran- 
dão :  a  Fr.  António  Brandão  o  Padre  D.  José  Barbosa. 

Entretanto  Luiz  de  Camões,  por  huma  parte  funda- 
do no  que  lia  tanto  nas  antigas  Chronicas  d'ElRei  D.  Af- 
fonço  Henriques ,  como  no  Nobiliário  do  Conde  D.  Pe- 
dro ;  por  outra  não  ignorante  do  que  escreverá  Barros  y 
fallou  do  caso  assim  no  Canto  III,  Estancia   zp. 

Mas  o  velho  rumor  não  sei  se  errado , 
Q]^ic  em  tanta  antiguidade  não  ha  certe7,a , 
Conta  que  a  mai   tomando  todo  o  Estado  , 
De  segundo  hymeneo  não  se  despreza. 

En-' 


i<)6  Memorias  da  Academia  Real 

Entretanto  tambcm  Fr.  Bernardo  de  Brito ,  que  na 
Chronica  de  Cister  tinha  posto  em  duvida  este  casamento, 
depois  nos  Elogios  dos  Reis  de  Portugal ,  tratando  d'El- 
Rci  D.  AflFonço  Henriques  ,  disse  que  o  tal  casamento  era 
huma  cousa  certa  e  quast  tnfallivel. 

Nesta  divisão  dos  nossos  Escritores ,  toda  a  razão  de 
decidir  para  os  que  hoje  escrevem,  deve  ser,  se  o  segun- 
do casamento  da  Rainha  D.  Tareja  consta  de  documentos 
irrcfragaveis;  e  de  nenhuma  sorte,  se  ellc  se  celebrou  se- 
gundo as  leis  do  licito  e  honesto.  Porque  hum  Historia- 
dor não  SC  deve  mettcr  com  o  licito  e  honesto  das  ac- 
ções ,  mas  somente  com  o  certo  delias. 

Toda  a  nossa  Historia  está  chea  de  casamentos  inde- 
centes,  illicitos,  c  nullos  dos  nossos  Príncipes,  sem  que 
por  isso  possa  alguém  duvidar  delles  t  porque  assim  mes- 
mo indecentes,  illicitos  ,  e  nullos,  conscão  de  Memorias 
authenticas  :  assim  mesmo  indecentes,  illicitos,  e  nullos, 
forão  reputados  verdadeiros  casamentos,  segundo  a  frase  e 
accepção  vulgar.  Taes  forão  os  casamentos  das  Infantas 
D.  Teresa  e  D.  Mafalda  ,  filhas  d'  EIRci  D.  Sancho  1  , 
celebrados  com  dous  Reis  parentes  em  gráo  prohibido  sem 
preceder  dispensa  do  Papa  ,  e  por  isso  annullados  ambos 
pelo  Papa ,  depois  d'  haver  filhos  de  parte  a  parte.  Tal  o 
casamento  d'ElRei  D.  AíFonço  III  com  a  Rainha  D.  Bri- 
tes ,  estando  ainda  viva  sua  primeira  mulher  a  Condeça 
de  Bolonha  D.  Mathildes.  Tal  o  casamento  d'  ElRei  D. 
Pedro  I  com  D.  Inez  de  Castro  sua  parenta  em  gráo  pro- 
hibido ,  e  sem  preceder  dispensa  Pontificia ,  como  nas  Cor- 
tes de  Coimbra  de  1385'  mostrou  o  Doutor  João  das  Re- 
gras. Tal  o  casamento  d'ElRei  D.  Fernando  com  D.  Leo- 
nor Telles ,  estando  ainda  vivo  o  primeiro  marido  desta 
João  Lourenço  da  Cunha, 

Ora  o  segundo  consorcio  da  Rainha  D.  Tareja  com 
o  Conde  de  Trastamara  D.  Fernando  Peres,  he  innegavel 
pela  Historia  Compostellana  ,  Livro  III,  cap.  24,  Histo- 
ria que  nenhum   dos  Críticos  acima  referidos  virão ,   nem 

po- 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  7^y 

poderão  ver ,  porque  em  nossos  dias  he  que  Fr.  Hcnriqud 
Flores  a  publicou  d'  hum  antigo  Manuscrito  do  Collegio 
chamado  do  Arcebispo  da  Universidade  de  Salamanca  :  c 
Historia  que  teVc  por  Authores  três  Cónegos  da  Igreja  de 
Santiago  de  Galliza  ,  D.  Mumio ,  D.  Hugo ,  e  D.  Girar-' 
do ,  todos  três  cc-ntemporaneos  da  mesma  Rainha  D.  Ta- 
reja. 

He  inncgavel  pela  Chronica  d'  ElRei  D.  Affonço  VII 
o  Imperador ,  Livro  I ,  Num.  2.  Chronica  que  o  Padre 
D.  Josc  Barbosa  podéra  ver,  pois  corria  já  em  seu  tempo 
publicada  por  Fr.  Francisco  Berganza  :  e  Chronica  ,  cujo 
Author  adverte  na  sua  Prefação ,  que  a  escrevera  pelas  no- 
ticias que  lhe  derão  testemunhas  de  vista.  Sicut  ab  tis,  qui 
vidertmt ,  didici  et  audivi. 

He  innegavel  por  outro  Documento  coetâneo ,  que 
do  Livro  dos  Testamentos  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  pro- 
duz Brandão  no  Livro  IX,  cap.   ij. 

He  innegavel  pelo  que  traz  a  Chronica  Gothica  na 
Era  de  i\C6  do  empenha  da  Rainha  D.  Tareja  cm  ex- 
cluir da  successão  do  Reino  ao  Príncipe  D.  Affonço  ^eu 
filho ,  para  o  dar  a  estrangeiros  indignos.  Chronica  que 
Resende  no  seu  Livro  das  Antiguidades  d'  Évora ,  cap.  1 3 
também  qualifica  por  Obra  do  século  XII. 

Attendendo  á  brevidade ,  deixo  de  transcrever  aqui  as 
palavras  formaes  de  cada  hum  dos  quatro  Documentos  apon- 
tados :  porque  todos  he  fácil  examinar  nos  seus  Authores. 


Tomo  IX,  Pp  DIS- 


if>S  Memorias  da  A.gademijv.  Rbal 


DISSERTAÇÃO    XVI. 

Verdadeira  Época  da  morte  de  S.  Giraldo  Jrccbispo  de  Braga 
em  tempo  da  Rainha  D.  Tareja ,  contra  Fr.  António  Bran- 
dão e  D.  Rodrigo  da  Cunha. 

• 

xV-NTEs  de  nos  despedirmos  da  Rainha  D.  Tareja,  nãq 
será  alheio  do  assumpto  destas  Dissertações  ,  fixar  a  Época 
da  morte  de  S.  Giraldo  Arcebispo  da  Santa  Igreja  Prima- 
cial de  Braga,  hum  dos  mais  illustres  luminares ,  que  com 
a  fama  das  suas  virtudes  e  milagres  ennobreccrâo  o  Rei~ 
nado  daquella  Princcza. 

Hum  antigo  Breviário  de  mão  da  Santa  Igreja  Prima-, 
ciai  de  Braga,  que  por  muitos  annos  tive  em  meu  poder;, 
e  que  por  indicios  certos  foi  escrito  no  meio  do  século 
XIV  no  Calendário  que  traz  no  principio  ,  no  dia  5-  d$ 
Dezembro  diz  assim  :  Nonis  Geraldi  archicpi.  Bracaren.  E, 
M.  a  XLVI. 

Esta  Era  de  César  1146  dá  o  anno  de  Christo  iro8, 
E  he  evidente ,  que  esta  noticia  se  inseritj  naqucllc  Breviá- 
rio, para  indicar  o  anno,  crp  que  S.  Giraldo  morreo.  Por 
este  Breviário  pois  se  deve  emendar  a  chronologia  ,  que 
seguio  D.  Rodrigo. da  Cunha  na  Segunda  Parte  da  His- 
toria de  Braga ,  cap.  8  ,  onde  deo  por  primeiro  anno  do 
Arcebispo  D.  Maurício  successor  de  S. Giraldo,  o  de  mo, 
suppondo  morto  S.  Giraldo  no  Dezembro  de  1109,  como 
também  primeiro  que  clle  supposera  Fr.  António  Brandão 
na  Terceira  Parte  da  Monarquia  Lusitana  ,  Livro  VIII , 
cap.   2j. 

O  dito  Calendário  porém  nos  obriga  a  anticipar  hum 
anno  a  morte  de  S.  Giraldo  e  a  eleição  de  D.  Maurício, 
de  sorte,  que  aquella  fosse  a  5  de  Dezembro  do  anno  de 
1108,  e  esta  logo  nos  primeiros  mczes  do  de  1110. 

Mas 


DAS    SCIENCIAS    DE    LlSBOA.  ^(^(y 

Mas  porque  alguém  pr')dc  replicar,  que  hum  Breviá- 
rio escrito  no  meio  do  século  XIV  nao  hc  de  todo  suffi* 
ciente  para  decidir  em  juizo  contradictorio  Inim  facto  do 
principio  do  século  XII ,  produzirei  cm  coiifirmaçu)  do  tes- 
temunho do  Breviário  Bracarense  hum  Documento  maior 
do  que  toda  a  excepção.  Esta  hc  a  Historia  Gompostclla- 
na ,  cujo  Author  Hugo  então  Arcediago  de  Compi)Stella , 
depois  Bispo  do  Porto,  e  contemporâneo  de  S.  Giraldo, 
refere  no  Livro  I,  cap.  8i  o  Instrumento  d'huma  Infeu- 
daçiío  de  certas  Terras,  e  Igrejas,  que  o  novo  Arcebispo 
de  Braga  D.  Mauricio  recebera  de  D.  Diogo  Gelmires  en- 
tão Bispo,  e  depois  primeiro  Arcebispo  de  Compostella^ 
na  Era  de  1147,  que  hc  o  anno  de  Christo  1109.  Uoc 
scriptiim  fecit  Mauritius  Bracareusis  Archiepiscoput  pradicto 
S.  Jacobi  Episcopo  in  civitate  Tudensi ,  quando  accepit  ah  eo 
prestimonítim  qtiod  iuferius  scriptum  er  ,  Era  M.  C.  XLVU. 
E  consta  pelo  que  immediatamcnte  continua  a  referir  o 
mesmo  Hugo ,  que  esta  Infcudação  se  celebrara  antes  da 
Dominga  da  Paixão. 

Daqui  se  conclue  com  toda  a  evidencia  ,  que  já  na 
Qiiaresma  do  anno  de  1109  era  Arcebispo  de  Braga  D. 
Mauricio:  e  que  assim  o  Dezembro,  em  cujo  dia  5-  falc- 
ceo  S.  Gijaldo ,  foi  o  Dezembro  do  anno  de  1 108. 


DISSERTAÇÃO    XVII. 

Incerteza  do  anno  em  que  nasceo  ElRei  D.  Âffonço  Henriques^ 
e  certeza  do  annoj  em  que  elle  começou  a  reinar. 


'EnTo  cousa  notável  he,  que  d' hum  Rei  tão  famoso, 
£  d'  hum  Rei  Fundador  como  foi  D.  Affonço  Henriques  , 
se  nao  saiba  o  anno  em  que  nasceo.  Mas  eu  ainda  tenho  por 
mais  notável,  que  achando-se  neste  ponto  os  antigos  Do- 
cumentos coetâneos   em  opposição   huns   com   outros ,    sg 

Pp  ii  can- 


500  Memorias  da  Academia  Real 

cansem  muito   os  nossos  modernos  em  querer  dcscubrlr  e 
fixar  no  certo  a  Época  daqucllc  nascimento. 

A  opinia;>  commum  pois,  que  até  o  tempo  de  João 
de  Barros  corria  nas  nousas  Clironicas,  c  que  ainda  depois 
do  tempo  de  Barros  foi  seguida  por  Brito,  Mariana,  e  ou- 
tros ;  assinava  por  anno  do  nascimento  d'  ElRci  D.  AíFon- 
ço  Henriques,  o  anno  de  Cliristo  1094.  Donde  se  seguia, 
que  como  o  anno  da  sua  morte  foi  certamente  o  de  iiSj 
vivera  o  dito  Rei  noventa  e  hum  annos. 

Oppoz-se  a  esta  Época,  do  nascimento  d'ElRei  ,  João 
de  Barros  na  Terceira  Dccada ,  Livro  I ,  cap.  4 ,  onde  dá 
por  certo,  que  ElRei  nascera  no  anno  de  iio6.  E  ainda 
que  alli  não  aponta  fundamento  algum  da  sua  opinião,  sa- 
bc-se  com  tudo  que  podia  ailegar  por  cila  dous  Authores 
coetâneos  do  mesmo  Rei:  a  saber,  o,  da  vida  de  S.  Thco- 
tonio,  que  se  conserva  manuscrito  em  Santa  Cruz  de  Coim- 
bra ,  e  o  da  Historia  da  Trasladação  das  Rcliquias  do  Mar- 
tyr  S.  Vicente ,  que  existe  também  manuscrito  num  Santo- 
ral  d'Alcobaça. 

Não  satisfeito  da  fé  destes  dous  manuscritos  ,  assina 
Fr.  António  Brandão  na  Terceira  Parte  da  Monarquia  Lu- 
sitana,  Livro  VIII,  cap.  26,  por  anno  do  nascimento  de 
ElRei  D.  AíFonço  Henriques,  o  anno  de  Christo  1110, 
fundado  no  testemunho  d'outro  manuscrito  d'Alcobaça,  que 
anda  entre  as  Obras  de  S.  Fulgencio. 

D.  José  Barbosa  no  seu  Catalogo  das  Rainhas  de  Por- 
tugal ^  achando  que  no  Livro  da  Noa  de  Santa  Cruz  de 
Coimbra  se  diz,  que  ElRei  D.  Affonço  Henriques  nascera 
no  anno  de  Christo  1 109,. deu  com  isto  por  decidida  a 
controvérsia.  No  que  eu  não  entendo,  por  que  regras  de 
critica  se  governava  D.  José  Barbosa.  Porque  clle  nunca 
poderia  mostrar,  que  o  Livro  da  Noa  fosse  Documento  de 
tnaior  authoridade  ^  (como  elle  o  chama)  do  que  os  outros 
Documentos ,  que  se  allegão  pelas  outras  opiniões. 

Ultimamente  a  Chronica  chamada  dos  Godos,  (que 
entre  Brandão  e  Barbosa  passa  por  huma  das  mais  antigas 

c 


l 


DAS  SciENciAs  DE  Lisboa.  301 

e  das  mais  fidedignas  deste  Reino)  p6e  nascido  ElRei  D. 
AlFonço  Henriques  no  anno  de  1113,  c  morto  seu  pai  no 
aiino  de   1 1 14. 

Nesta  tão  arande  discórdia  das  antigas  Memorias  , 
quem  poderá  estabelecer  ao  cerro  o  verdadeiro  anno  do 
nascimento  do  nosso  primeiro  Rei  ? 

O  Conde  D.  Pedro  no  seu  Nobiliário,  Titulo  dos 
Reis  de  Portugal ,  traz  huma  pratica  que  o  Conde  D. 
Henrique  estando  para  morrer  ícv,  ao  Príncipe  seu  filho , 
exbortando-o  a  que  quando  entrasse  a  governar  os  Estados 
que  clle  lhe  deixava,  o  fizesse  tendo  diante  dos  olhos  o 
serviço  de  Deos ,  e  o  bem  dos  seus  vassallos.  Esta  pratica 
suppõc  no  Príncipe  annos  de  plena  discrição,  O  que  de 
nenhuma  sorte  se  pckie  verificar  em  alguma  das  Épocas  re- 
feridas ,  salvo  na  primeira,  que  he  a  das  Chronicas  anti- 
gas :  visto  que  tendo  falecido  o  Conde  D.  Henrique  (se- 
gundo commumentc  se  crê)  no  anno  de  11  n,  se  o  Prin- 
cipe  D.  Aff:)nço  nasceO  em  11 10,  tinha  então  três  annos: 
se  nasceo  em  1109,  tinha  quatro:  se  nasceo  em  1106,  ti- 
nha sete:  e  só  suppondo-o  nado  em  1094,  tinha  elle  des- 
oito.  Mas  os  nossos  modernos  tem  dado  num  bello  expe- 
diente ,  para  se  desabafarem  do  peso  da  authoridade  do 
Conde  D.  Pedro ,  cm  tudo  o  que  incommoda  as  suas  opi- 
niões :  que  he  dizerem  ,  que  o  Texto  do  Conde  está  vi- 
ciado, ou  interpollado  em  tal  e  tal  parte. 

Quanto  he  porém  incerto ,  em  que  anno  nasceo  ElRei 
D.  AfFonço  Henriques;  tanto  he  cçrto ,  que  elle  começou 
a  reinar  no  anno  de  1128,  como  he  expresso  na  Chronic^ 
Gothica,  com  a  qual  concordáo  todas  as  outras  Memorias 
antigas,  cm  que  se  fundou  Brandão  para  as>im  mesmo  o 
estabelecer.  E  como  a  Rainha  D.  Tareja,  segundo  a  mes- 
ma Chronica ,  e  todas  as  outras  Memorias ,  faleceo  no  an- 
no de  1130,  claro  fica,  que  o  Principe  começou  a  reinar 
vivendo  ainda  sua  niãi ,  e  que  reinou  em  vida  delia  dous 
para  trcs  annos.  Porque  pela  dita  Chronica ,  o  Principe  co- 
meçou a  reinar  cm  dia  de  S.  João  Baptista ,  24  de  Junho 

de 


30i  Memokias  da  Academia  Real 

de  1128  ,   e  a  Rainha  morico  no  primeiro  de  Novembro 
de  II 30. 


DISSERTAÇÃO    XVIII. 

Sobre  de  qtie  Casa  era  a  Rainha  D.  Mafalda ,   mulher  d' El- 
Rei  D.  Alfunço  Henriques. 


K 


o  Livro  da  Noa  de  Santa  Cruz  de  Coimbra  anda  in- 
serta huma  Memoria,  que  diz,  que  a  Rainha  D.  Mafalda 
mulher  do  nosso  primeiro  Rei ,  era  filha  do  Conde  D,  Man- 
riqite  de  Lara ,  Senhor  de  Molina.  O  mesmo  se  aclia  no  No- 
biliário do  Conde  D.  Pedro  ,  Titulo  dos  Reis  de  Portu- 
gal. O  mesmo  se  transfundio  para  a  Chronica  antiga  do 
mesmo  Rei  D.  AfFonço  Henriques.  Mas  hoje  está  averi- 
guado e  assentado  ser  isto  falso.  Porque  na  Chronica  de 
ElRei  D.  Manoel  mostrou  Damião  de  Góes  de  três  Escri- 
turas authenficas  da  Torre  do  Tombo ,  que  a  Rainha  D. 
Mafalda  era  filha  d'Amadeu  Conde  de  Moriana.  O  que 
Brandão  no  Livro  X,  cap.  19  confirma  d'outras  Escrituras 
d'igual  fé  :  ás  quaes  se  devem  ajuntar  o  testemunho  da 
Chronica  Gothica ,  e  o  do  Arcebispo  de  Toledo  D.  Ro- 
drigo Ximenes  na  sua  Historia  d'  Espanha ,  Livro  VII , 
cap.  5".  Advirto  por  ultimo  ,  que  a  sobredita  Chronica  Go- 
thica chama  Matilde  j  a  que  todas  as  outras  Memorias  no- 
nieáo  Mafalda. 


DIS- 


DAS  ScienCiAs  de  Lisboa.  301 

DISSERTAÇÃO    XIX. 

Épocas  da  Batalha  d' Ourique^  e  da^  mais  que  se  lhe  seguirão 
fia  Estramadura  e  Âlemicjo ,  segundo  a  fé  da  antiga  Chro- 
vica  chamada  dos  Godos ,  de  que  usou  Resende ,  e  da  outra 
do  Livro  da  Noa  de  Santa  Cruz  de  Coimbra. 

§     I. 

ÂntiguLlade  e  authoridade  destas  duas  Chronicas. 


OR  primeiro  Appendix  da  Terceira  Parte  da  Monarquia 
Lusitana ,  publicou  Fr.  António  BranJão  huma  intitulada 
Cbronica  Gothorum  y  que  ellc  diz  fora  cxtrahida  d' hum  ma- 
nuscrito d'Andr<f  de  Resende  ,  que  por  morte  deste  viera 
ás  mãos  de  JVlmocl  Severim  de  Faria.  De  Brandão  a  rc- 
produzio  Fr.  Henrique  Flores  no  Tomo  XIV  da  Espanha 
Sagrada,  Appendix  XII  debaixo  do  Titulo,  CZ>rú«;VOT;  Lu- 
sitanum.  Esta  Chronica  depois  de  dar  huma  succinta  noti- 
cia dos  primeiros  Reis  de  Leão  desde  D.  Pelagio  até  D, 
Affonço  VI,  passa  logo  a  referir  com  muita  miudeza  e  ex- 
acção  os  illustrcs  feitos  do  nosso  primeiro  Rei  D.  AflPonço 
Henriques  ,  como  se  este  fora  o  seu  principal  assumpto : 
de  sorte  que  acaba  no  anno  de  Christo  1184,  que  foi  o 
penúltimo  do  Reinado  daquelle  invicto  Principe. 

Não  se  pôde  fixar  ao  certo  o  tempo  preciso,  em  que 
foi  escrita  est.i  Clironica.  Mus  o  allegar  seu  Author ,  quan- 
do falia  da  tomada  de  Coimbra  por  Almansor ,  com  o  que 
ouvira  a  muitos  velhos:  (sieut  a  mtiltis  seuibus  audiviímis :) 
o  apontar  o  tempo  dos  successos  com  tal  individuação  , 
que  d'ordinario  não  só  nota  o  dia ,  mez ,  e  anno  ,  mas  tam- 
bém que  dia  era  da  semana ,  e  que  hora  do  dia  ou  da  noi- 
te :   e  finalmente  não  passar  do  Reinado  d'  EIRei  D.  Af- 

fon- 


■504  Memorias  da  Academía  Reai. 

fonço  Henrique,  cujo  valor  e  acções  amplifica,  e  aiiula 
exaggcia  com  lium  afFecto  tão  particular,  que  o  faz  pare^ 
ccr  apaixonado.  Estas  c  outras  circunstancias  nos  detcrmi- 
não  a  ter  esta  Chronica  por  obra  d'Author,  que  alcansou 
os  tempos  do  dito  Rei ,  ou  pelo  menos  foi  mui  visinho 
dcUcs. 

Neste  mesmo  conceito  a  tiverão  òs  nossos  dous  famo- 
sos Antiquários  do  século  XVI  André  de  Resende ,  e  Gas- 
par Barreiros.  Dos  quaes  o  primeiro  no  Livro  IV  De  An- 
tiquitatihus  Lmitamiie  ^  pag.  216  cita  esta  Chronica  com  o 
nome  à,'' antigos  Annaes  que  tinha  em  seu  poder:  {Ut  mei 
reteres  annales  habent :)  e  delia  tirou  varias  circunstancias 
da  batalha  do  Campo  d'Ouriquc  :  como  o  ter  sido  morto 
nella  hum  sobrinho  do  Rei  Ismar,  por  nome  Homar  Ata- 
dor ,  que  era  neto  do  Rei  Hali.  O  segundo  logo  no  prin- 
cipio da  sua  Corografia  ,  allega  com  a  mesma  Chronica , 
como  citada  já  pelo  mesmo  Resende  na  outra  sua  Obra 
das  Antiguidades  d' Évora ,  para  mostrar,  que  em  tempos 
antigos  se  chamava  Pacca  a  cidade  de  Beja.  Isto  basta  ,  pa- 
ra esta  Chronica  se  dever  reputar  obra  d'  huma  veneranda 
e  mui  estirada  ancianidade :  como  depois  de  Resende  e  de 
Barreiros  a  reputou  também  Brandão. 

Pelo  que  toca  á  outra  Chronica  do  Livro  da  Noa  de 
Santa  Cruz  de  Coimbra ,  o  Padre  D.  José  Barbosa  no  Gi- 
talogo  das  Rainhas  de  Portugal  diz ,  que  por  lembrança  e  pe- 
tição sua  he  que  no  anno  de  1724  fora  remetida  á  Real 
Academia  da  Historia  Portugueza  a  Copia  authentica  des- 
ta Chronica,  que  D.  António  Caetano  de  Sousa  depois  im- 
primio  no  primeiro  Tomo  das  Provai  da  Historia  Genealó- 
gica da  Casa  Real  ^  pag.  375   e  segg. 

O  dito  D.  José  Barbosa  teve  esta  Chronica  por  ori- 
ginal em  todas  as  suas  partes:  isto  he  ,  por  huma  obra  que 
tudo  o  que  traz  foi  escrito  por  Authores  coetâneos  dos 
successos ,  que  referem.  Por  isso  dá  por  decidido .  que  hu- 
ma vez  que  a  Chronica  do  Livro  da  Noa  aponta  por  anno 
do  nascimento  d'ElRei  D.  Affonço  Henriques  o  de  1109, 

es- 


DAS  Ser F.Vc IAS  DE  Lisboa.  t^j^ 

este  he    o  que    se  deve  ter    por  verdadeiro    c  indubit'vel 
anno  deste  nascimento. 

Eu  govcrnaiido-inc  pela  outra  Copia  desta  Clironica, 
que  depois  da  que  veio  para  a  Academia  Real  da  Historia 
Portugucza ,  imprimio  Fr.  Henrique  Flores  da  Ordem  dos 
Eremitas  de  Santo  Agostinho,  no  Appendix  VIT  do  To- 
mo XXIII  da  Espanha  i'íigrada  :  ju\go  que  de  nenhum  prin- 
cipio SC  pôde  demostrar,  que  esta  Chronica  cm  todas  as 
suas  partes  seja  escrita  por  Authorcs  coetâneos  dos  respe- 
ctivos Reinados  ,  de  que  nclla  se  trata  :  e  que  assim  não 
teve  razão  D.  José  Barbosa  ,  para  antepor  o  testemunho 
desta  Chronica,  na  parte  que  faz  nado  a  ElRei  D.  Affon- 
ço  Henriques  no  anno  de  1109  aos  dous  Documentos  in- 
dubitavelmente coetâneos,  que  Brandão  produzira,  segundo 
os  quaes  nasceo  o  dito  Rei  no  anno  de   1106. 

O  primeiro  fundamento  deste  meu  juizo  hc  huma  Me- 
moria ,  ou  por  melhor  dizer  Interpollaçao ,  que  nesta  Chro- 
nica se  acha  enxerida  entre  a  tomada  de  Coimbra  por  Al- 
mansor ,  e  a  sua  resíauraçao  por  ElRei  D.  Fernando  o  Ma- 
gno, a  qual  diz  assim:  «  ElRey  Dom  Alfonço  o  primei- 
j>  ro  Filho  do  Conde  Dom  Anrique ,  e  da  Raynha  Dona 
í»  Tareija ,  porque  em  Espanha  non  podia  achar  cazamea- 
5J  to ,  que  non  fossem  tanto  sas  parentas  chegadas  ,  que 
í»  non  podia  cazar  com  ellas  sem  dispensazon  do  Papa  : 
>»  ove  a  cazar  com  Doíia  Mafalda  ,  filha  do  Conde  Dom 
j>  Manrique  de  Lara  ,  e  Senhor  de  Molina  ,  Irmano  do 
»  Conde  Dom  Nuno,  o  que  livrou  os  filhosdalgo  do  pei- 
»»  to  em  Burgos.  j> 

Se  o  Author  desta  Memoria  fora  contemporâneo  do 
successo,  de  que  trata,  não  diria  que  D.  Mafalda  mulher 
d'F.lRci  D.  Affonço  Henriques,  era  filha  do  Conde  Dom 
Manrique  de  Lara  Senhor  de  Molina  :  porque  por  sinco 
Escrituras  que  traz  Damião  de  Góes  na  Chronica  d'ElRei 
D.  Manoel  ;  pela  Chronica  Gothica  ;  e  pela  Historia  do 
Arcebispo  D.  Rodrigo  Ximenes,  he  notório,  que  ejta  D. 
Mafalda  era  filha  d'Amadco  Conde  de  Mauriana  e  de  Saboya. 
Tomo  IX.  Qa  ^ 


joí  Memorias  da  Academia  Real 

»  O  segundo  fundamento  he  ver,  que  nc&ta  Chronica 
a  cada  passo  se  está  invertendo  a  o/dem  chionologica  das 
Eras  c  dos  successos ,  pondo-se  o  que  he  mais  antigo  de- 
pois do  nuis  moderno.  Como  quando  depois  de  referido 
o  óbito  do  Bispo  de  Coimbra  D.  Bcrniudo  na  Era  de 
MCCXX ,  que  hc  o  anno  de  Cliristo  1182,  proscgue  im- 
m.ediatamente  dizendo ,  que  ElRci  D.  AíFvinço  Henriques 
nascera  na  Era  de  MCXVII ,  que  hc  o  anno  de  Chrjsto 
II 09.  Onde  he  evidente,  que  quem  attcstava  as  cousas 
do  anno  de  1109  não  era  contemporâneo  delias,  pois  as 
escrevia  depois  do  anno  de  1182.  O  mesmo  se  deve  di- 
zer ,  de  que  mais  adiante  póc  esta  Chronica  a  fundação 
do  Castello  de  Leiria  pelo  mesmo  Rei  D.  AíFonço  Hen- 
riques ,  na  Era  de  MCLXXIV,  que  he  o  anno  de  C^hristo 
II 36,  depois  de  referir  a  morte  d' hum  João  AíFonço  em 
tempo  d'  ElRei  D.  Affjnço  IV  na  Era  de  mil  e  CCC  e 
LXIIII ,  que  hc  o  anno  de  Christo  1326.  Onde  he  outra 
ve/  evidente ,  que  quem  apontava  a  fundação  do  Castello 
de  Leiria  feita  no  anno  de  11 36,  a  apontava  cento  e  no- 
venta annos  depois  do  tal  successo ;  porque  a  apontava  de- 
pois do  anno  de  1326.  Logo  nem  tudo  o  que  esta  Chro- 
nica traz,  foi  nclla  apontado  por  Authores  do  mesmo  tem- 
po ,  em  que  a  cousa  succedia  ;  mas  muitas  cousas  forão 
nella  escritas,  por  quem  vivia  muitos  annos  depois.  Logo 
'  dado  que  esta  Chronica  seja  original  a  respeito  d'alguns 
successos  ,  não  o  he  a  respeito  de  todos. 

Sobre  o  que  he  de  saber,  que  a  primeira  Parte  des- 
ta Chronica  hc  composta  em  Latim  ,  e  chega  até  o  anno 
de  Christo  1326.  A  segunda  he  composta  em  Portuguez , 
e  chega  até  o  anno  de  Christo  1406.  E  daqui  temos  que 
esta  Chronica  he  obra  pelo  menos  de  dous  Authores.  Por- 
que não  he  crivei ,  que  hum  mesmo  Author  num  mesmo 
pergaminho  escrevesse  primeiro  em  Latim  ,  depois  em  Por- 
tugucz.  Mas  ou  o  Author  fosse  hum  só ,  ou  fossem  dous , 
ou  fossem  muitos  mais:  (o  que  era  fácil  de  conhecer,  se 
os  que  tirarão  as  duas  Copias  que  correm  impressas,  tives- 
sem 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  307 

sem  tido  o  cuidado  de  notar  a  identidade  ou  differcnça 
dos  caracteres:)  como  todo  o  Livro  foi  escrito  em  tempo, 
que  os  annos  se  contavao  pelas  Eras  ;  daqui  se  convence 
com  toda  a  certeza  ,  que  todo  elle  foi  escrito  antes  do 
anno  de  1420.  Porque  neste  anno  he  que  por  huma  Lei 
sua  mandou  ElRei  D.  João  I ,  que  abolido  o  uso  da  Era 
de  César ,  se  contassem  os  annos  pelo  nascimento  de 
Christo. 

Outro  sinal  não  menos  certo  nos  offerece  a  mesma 
Chronica  ,  por  donde  se  pode  e  deve  concluir  ,  que  cila 
foi  acabada  d'escrcver  no  anno  de  Christo  1406.  Porque 
alem  de  não  conter  cousa  alguma  posterior  ao  dito  anno , 
nelle  depois  de  referido  hum  milagre  dos  Santos  Martyres 
de  Marrocos  ,  feito  num  moço  quebrado ,  prosegue  assim 
o  Aiithor :  E  eu  dou  de  my  termo ,  que  foi  esto  aqui  escrever 
Fernão  Gmizalves  Cónego  de  Santa  Cruz.  Palavras  que  mani- 
íjístamentc  denotao,  que  o  milagre  foi  escrito  no  mesmo 
anno,   em  que  succedeo  ,  que  foi  o  sobredito  de  1406. 

Destes  antecedentes  se  segue ,  que  a  Chronica  do  Li- 
vro da  Noa  na  sua  segunda  Parte ,  que  hc  a  Portugueza , 
merece  maior  fé  a  respeito  dos  successos,  que  lemos  nella , 
do  que  merece  a  primeira  Latina  a  respeito  dos  successos, 
que  nella  se  contém.  A  razão  he :  porque  da  segunda  par- 
te consta  ao  certo ,  que  foi  acabada  d'escrever  no  anno  de 
1406.  E  quem  escrevia  no  anno  de  1406  podia  ser  coe- 
tâneo dos  successos  que  alli  se  referem ,  não  só  do  tempo 
d'  ElRei  D.  João  I ,  mas  também  do  tempo  d'  ElRci  D. 
Fernando ,  e  ainda  do  d'  ElRei  D,  Pedro  I.  Os  successos 
porém  da  primeira  Parte  ,  que  são  os  do  tempo  d'  ElRei 
D.  Affonço  Henriques  até  princípios  d' ElRei  D.  Affonço 
IV,  como  delles  se  não  pode  alErmar  tempo  certo  em  que 
fossem  escritos  ,  senão  quando  muito  ,  que  forão  escritos 
depois  do  anno  de  1326,  em  que  a  primeira  Parte  acaba: 
de  nenhum  delles  in  individuo  se  pôde  dizer,  que  forão  es- 
critos por  Author  contemporâneo.  Assim  tenho  por  mui 
prudente  o  juizo,  que  desta  Chronica  formou  o  Padre  FIo- 

Qg  ii  res  , 


3o8  Memorias  DA  Ac  A  DEMiA  Real 

res  ,   quando  disse  ,   que  era  Copia  de  varias  Copias  ^  e  de 
varias  Cbrmicas. 

Mas  como  se  sabe  de  certo,  que  os  successos  da  pri- 
meira Parte  forão  escritos  antes  dos  da  segunda  :  tendo  os 
últimos  da  segunda  sido  escritos  no  anno  de  1406  ,  hc 
evidente  ,  que  os  da  primeira  forao  escritos  ou  no  mesmo 
anno  ,  ou  noutro  anterior  j  mas  todos  depois  do  anno  de 
1326. 

Estabelecida  assim  a  antiguidade  e  authoridade  destas 
duas  Chronicas,  da  Gothica  e  da  do  Livro  da  Noa  5  pas- 
semos já  a  expor  as  principaes  acções  e  conquistas  ,  que 
huma  e  outra  referem  do  nosso  primeiro  Rei. 

§     II. 

Época  da  Batalha  do  Campo  d'Ourique. 

Ambas  estas  Chronicas  concordao,  que  a  batalha  do 
Campo  d'Ourique  fòra  dada  e  ganhada  ao  Rei  Mouro  Is- 
mar  por  ElRei  D.  Affonço  Henriques  ,  no  dia  25  de  Ju- 
lho,  dia  de  Santiago,  do  anno  1139.  I»  loco  qui  vocatur 
Atilic  ,  diz  a  Gothica.  In  loco  qui  dicitur  Ouric ,  diz  a  do 
Livro  da  Noa.  Sobre  o  que  he  de  notar,  como  notou  Re- 
sende ,  que  esta  batalha  tomou  o  nome  d'Ourique ,  como 
da  Villa  mais  notável  daquella  Comarca  ou  Território :  ain- 
da que  o  sitio  preciso  da  batalha  foi  abaixo  da  Villa  de 
Castro  Verde ,  num  valle  que  fica  entre  os  dous  riachos 
Crobes  e  Terges  ,  que  a  pouca  distancia  confundido  já 
hum  no  outro ,  se  mettem  e  sepultão  no  Guadiana. 

A  circunstancia  de  vir  Ismar  acompanhado  d'outros 
quatro  Reis  Mouros  ,  nenhuma  das  duas  Chronicas  a  de- 
cLira.  Mas  declara-a  huma  antiga  Memoria  de  mão  de  San- 
ta Cruz  de  Coimbra  ,  que  Brandão  descreve  ;  e  declara-a 
o  Auto  do  Juramento  attribuido  a  ElRei  D.  Affonço  Hen- 
riques. E  destes  ou  outros  Documentos  a  tomarão  sem  du- 
vida as  antigas  Chronicas  do  mesmo  Rei. 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  3O9 

§      III. 

Época  da  tomada  de.  Santarém,  e  de  Lisboa. 

Ambas  as  mesmas  Chronicas  concordão ,  que  Santarcm 
foi  tomada  aos  Mouros  no  anno  de  1147.  Mas  só  a  Go- 
thica  nota  o  dia  ,  e  o  mez  :  dizendo  que  fora  no  quinto 
dos  Idos  de  Maio  ao  cantar  do  gallo,  amanhecendo  para 
o  dia  de  sabbado.  Qtmto  idtis  Maii  ad  galli  cantum ,  illiís- 
cescente  die  sabbati.  Que  Lisboa  foi  tomada  no  mesmo  anno 
de  1147  dizendo  ambas  que  no  mez  d'Outubro,  e  acres- 
centando a  Gothica  ,  que  no  dia  nono  das  Calendas  de 
Novembro,  á  sexta  hora  do  dia,  que  era  sexta  feira.  No- 
no Calendas  Novembris  feria  6,  sexta  diei  hora.  Segundo  a 
qual  relação  foi  tomada  Lisboa  no  dia  24  d'Outubro ,  vés- 
pera dos  Santos  Mártires  Crespim  e  Crespiniano.  O  que 
se  deve  entender  da  ultima  e  total  escala  da  cidade ,  para 
assim  se  conciliar  esta  Chronica  Gothica  com  outras  Me- 
morias do  mesmo  tempo ,  que  fazem  tomada  Lisboa  no 
dia  das  onze  mil  virgens,  21  do  mesmo  mez. 

§    IV. 

Épocas  da  tomada  de  Sintra  f  Almada ,  e  Palmella. 

Immediatamente  depois  de  referida  a  tomada  de  Lis- 
boa, pocm  ambas  as  Chronicas  â  tomada  de  Sintra,  Alma- 
da,  e  Palmella.  Mas  a  Gothica  diz ,  que  isto  fora  por  di- 
versos tempos  e  annos.  Per  diversa  têmpora  et  annos  accepit 
Sintriam  et  Jlmadavam  et  Palmellam.  A  do  Livro  da  Noa 
diz,  que  ElRei  as  tomara  no  mesmo  mez  d'Outubro.  Et 
Sintriam ,  et  Almadana  et  Palmeiam  in  eodem  mense.  E  como 
esta  Chronica  p6e  a  tomada  destas  três  villas  debaixo  do 
mesmo  anno  de  1147  em  que  põe  a  tomada  de  Lisboa; 
parece  que  a  sua  mente  he  dizer ,  que  o  Outubro  cm  que 

fo- 


3IO  Memorias  da  Academia  Real 

forão  tomadas  as  villas ,  foi  o  mesmo  em  que  foi  tomada 
a  cidade.  Alas  nao  he  crivei ,  que  tomada  Lisboa  a  vinte 
e  quatro  d'Outubro  de  1147  podessc  ElRei  dentro  do  mes- 
mo Outubro  tomar  Sintra  ,  Almada ,  e  Palmella  ,  Praças 
tão  fortes  por  sitio  e  por  guarnição  ?  Assim  o  que  diz  a 
Chronica  Gothica  ,  que  isto  fora  em  diversos  tempos  e 
annos,  parece  que  he  o  que  se  deve  preferir. 

§    V. 

Épocas  da  tomada  à^ Alcácer  do  Sal,  e  de  Beja. 

As  mesmas  duas  Chronicas  concordao ,  que  Alcácer 
do  Sal  foi  conquistada  no  anno  de  1158.  E  acrescenta  a 
Gothica,  que  no  sétimo  dia  das  Calendas  de  Julho,  se- 
gunda feira  ,  dia  de  S.  João  Baptista.  Septimo  Calendas  Ju- 
/ti  feria  2.  in  die  S.Joannis  Baptista.  Acsesccnta  mais,  que 
já  antes  por  duas  vezes  tinha  ElRei  posto  cerco  a  esta  vil- 
la  ,  ajudado  d'  huma  Armada  das  partes  do  Norte  :  mas 
que  só  desta  terceira  vez  fora  Deos  servido ,  que  elle  a 
rendesse. 

Goncordâo  outrosi  as  mesmas  duas  Chronicas  ,  que 
Beja  foi  conquistada  no  anno  de  1162.  E  acrescenta  a  Go- 
thica, que  em  30  de  Novembro,  na  noite  do  dia  do  Apos- 
tolo Santo  André.  Pridie  Calendas  Decembris  in  mete  Sancti 
Andre£  Âpostoli,  Acrescenta  mais ,  que  quem  a  tomou ,  por 
parte  d'  ElRei  D.  Aífonço  ,  fora  hum  Fernão  Gonsalves  , 
ajudado  d'alguns  soldados  paisanos.  Sinal  que  ElRei  se 
não  achou  em  pessoa  ,na  acção. 

Este  he  o  lugar  da  Chronica  Gothica  ,  que  eu  atraz 
notei  que  fora  allegado  primeiramente  por  André  de  Re- 
sende ,  depois  por  Gaspar  Barreiros ,  em  prova  de  que  Be- 
ja era  a  cidade ,  que  antigamente  se  chamava  Paz.  Porque 
diz  3  Chronica,  Civitas  Pace ,  id  est  Begia ,  como  impri- 
mio  Brandão:  ou  Civitas  Pacca,  id  est  Begia,  como  o  al- 
lega  Barreiros. 


DAS  SciENCiAs  DE  Lisboa.  311 

Época  da  tomada  à^Evora ,  ^oura ,  e  Serpa, 

Ambas  as  ditas  duas  Chronicas  concordão,  que  num 
mesmo  anno  ,  que  foi  o  de  1166  tomou  ElRci  aos  Mou- 
ros primeiro  Évora  ,  e  pouco  depois  Moura  e  Serpa.  E 
acrescenta  a  Gothica  ,  que  a  gloria  de  ser  entrada  e  es- 
bulhada Évora,  se  deve  ao  famoso  Giraldo  sem  pavor,  c 
aos  salteadores  seus  companheiros,  jíera  1204.  Civitas  Eh 
lora  capta  et  depredaía ,  et  noctu  ingressa  a  Giraldo  sine  pa- 
'vore ,  et  latronibits  sociis  ejus» 

§    VII. 

Emenda- se  a  Chrmiica  Gothica  pela  do  Livro  de  Noa,  solre  o 

anno   do  infortúnio  d^ElRei  D.  Jjfonço  Henriques ,  e  do 

seu  exercito  em  Badajoz. 

Infortúnio  d'ElRei  D.  Affonço  Henriques,  e  do  seu 
exercito  chamão  ambas  as  ditas  Chronicas,  o  desastre  que 
lhe  succedeo ,  quando  pretendendo  tomar  Badajoz  foi  o 
seu  exercito  roto  pelo  d' ElRci  D.  Fernando  de  Leão,  c 
cllc  por  ter  cahido  do  cavallo  em  que  hia  ,  ficou  prisio- 
neiro daquelle  Príncipe ,  que  era  seu  genro. 

Sobre  o  anno  deste  acontecimento,  he  este  hum  dos 
casos ,  em  que  a  Chronica  Gothica  sendo  alias  Documen- 
to mais  authorizado ,  deve  ser  emendada  pela  do  Livro 
da  Noa,  que  segundo  mostrei  acima,  não  he  no  seu  total 
de  tanta  fé. 

A  Chronica  Gothica  pois  alliga  este  successo  á  era 
de  César  1206,  que  he  o  anno  de  Christo  1168.  yEra  1206 
fnctum  est  infortunium  Regis  D.  Alfonsi  et  stii  exercitus  in 
Bndalioz  anno  41  Regni  ejus.  A  do  Livro  da  Noa  porém  o 
põj  na  Era  de  César  1207,  que  he  o  anno  de  Christo  11 69. 

Era 


312  Memorias  DA  Academia  Real 

Era  MCCVIl  facttim  est  infurtunhim  Regis  Âlfoiísi  centra  ex- 
ercííHS  ejus  in  civitate  Badalioz.  M  este  hc  o  que  se  deve 
ter  pelo  verdadeiro  anno  daquellc   infortúnio. 

Flores  no  Tomo  XXII ,  pag.  çj  e  yó  ,  o  demostra 
contra  Brandão,  primo  por  sinco  Escrituras  que  allega  coe- 
tâneas de  sinco  cidades  de  Galliza ,  Astorga ,  Mondonhe- 
do,  Orcnse ,  Pontevedra  ,  c  Tuy.  Secundo  pela  circunstan- 
cia que  aponta  a  mesma  Chronica  Gothica  ,  quando  diz  , 
que  o  infortúnio  d'  ElRei  D.  Affonço  fora  no  anno  quaren- 
ta e  hum  do  seu  Reinado,  jlnuo  41  Regni  ejus.  Forque  sC' 
gundo  a  mesma  Chronica,  ElRei  começou  a  reinar  na  Era 
de  1166,  que  he  o  anno  de  Christo  1128.  Acrescentemos 
a  estes  1128  aquelles  41   sahc  ao  justo  o  anno  de  Christo 

1169.  Logo  por  Era  do  infortúnio  d' ElRei  se  deve  ler 
na  Chronica  Gothica,  não  a  Era  de  1206,  que  he  o  anno 
de  Christo  ii68j  mas  a  Era  de  1207,  que  he  o  anno  de 

Christo  1169. 


M  E  M  o  Pv  I  A 

Sobre  uma  Provisão    ou  Carta    do  Siir.  D.  Affonso  II.  acerca 
de  mis  Decretos  chamados  Leis  de  Fr.  Siieiro  Gomes. 

Por  Jo5o  da  Cunha  Neves  e  Carvalho, 

Soão  Correspondente  da  Academia  Real  dai  Sciencias 
de  Lisboa. 


O 


OBJECTO    da  presente  Memoria  he  iim  ponto  impor- 
tante   da  Historia    geral  deste  Reino ,    importante    princi- 
palmente   para    a  Historia    da  Jurisprudência    Portugueza. 
Entre  vários  Escriptores  que  o  referem  ,   preferi  Fr.  Antó- 
nio Brandão  na  Parte  IV.  da  Monarchia  Lusitana  Liv.  XII. 
Cap.  XXII.  Em  o  anno  de    1220  (diz  o  mesmo  Chronis- 
ta  )  houve  em  Portugal  grandes. contendas  entre  ElRei  D. 
Affonso  c  D.  Fr.  Soeiro  Gomes ,  Prior  dos  Padres  Prega- 
dores :  foi  a  causa  delias  o  ajuntar-se  este  Prelado  com  al- 
guns de  seus  companheiros ,  e  ordenarem  certas  leis  sobre 
pontos  de   justiça  ,  declarando  os  casos  em  que  se  liavião 
de  cóndcmnar  os  homens  á  morte ,  ou  em  pena  pecuniária. 
Aceitou   ElRei  muito  mal  estas  ordenações,  e  tratou  logo 
de  obviar  a   introducçâo  delias  particularmente    em  Santa- 
rém, por  ficar  ;     is   visinho  do  auctor  delias.  Uiz  pois  em 
sumrna  a  Carta  u      IRei   D.  Affonso  escripta  á  Camará  de 
Santarém  sobre  esta  .nateria :  <í  Affonso  pela  graça  de  Deos 
j>  Rei   de  Portugal ,  ao  Alcaide  de  Santarém,  Auguasis,  e 
j>  todos  os  mais  homens,  que  nella  julgao  de  minhas  cou- 
>»  sas,  e  aos  Tabaliães  e  Conselho  saúde,    Mando-vos  fir- 
j>  mcmcnre  a  todos  que  não  haja  pessoa  alguma  em  essa 
>í  vossa  Villa  que   ouse  trazer  a  publico  aquellcs  decretos 
»  seculares  sobre  a  matéria  de  penas  pecuniárias,  os  quacs 
r.  7A'.  P.  /.  A  »»  Suei- 


3  MemoriaspaAcpemiaReal 

'5  Sueiro  Gomes  ,  Prior  da  Ordem  dos  Pregadores ,  ordenou 
«  com  os  frades  da  mesma  OrJcm :  porque  não  sou  contente 
j'  que  se  proceda  nos  cnsos  sobreditos  por  sua  lista,  e  assi 
»>  o  acordei  com  meus  privados.  Movo-me  a  isto  á  uma 
»  por  sahirem  os  tacs  decretos  cm  quebra  grande  dos  io- 
»  ros  de  minha  Corte  ,  e  dos  Reis  meus  successores ,  e 
3>  dos  meus  fidalgos,  e  em  summa  de  todas  as  pessoas  do 
j»  meu  Reino,  Fidalgos,  Vilhiõs,  Seculares,  e  Ecclesiasti- 
5»  cos.  E  taõbcm  por  encontrarem  aquelle  livro  aonde  se 
5>  diz  expressamente ,  que  se  não  admittao  novas  leis  ein 
5>  nosso  Reino  ,  o  qual  livro  contém  os  foros  ,  por  onde 
>j  devem  ser  julgados  os  fidaldos  de  Portugal.  Maiormen- 
j>  te  que  os  decretos  não  andarão  nunca  em  pratica  em 
)»  tempo  do  Conde  D.  Henrique  ,  nem  no  tempo  de  meu 
j5  Avô  ElRei  D,  Affonso ,  a  quem  o  Papa  Alexandre  III 
j>  por  seu  privilegio  confirmou  em  Rei  ,  e  a  sua  terra 
>j  em  Reino.  Nem  em  tempo  d'  ElRei  D.  Sancho  meu 
)»  Pai  que  teve  uma  carta  de  protecção  do  Papa  Clemen- 
s>  te  III.  Nem  tão  bem  em  meu  tempo  tendo  duas,  uma 
sj  de  Innocencio  III  ,  e  outra  de  Honório  III.  E  assi  por 
«  todas  estas  rasoes  todo  aquelle  que  quizer  sahir  a  pu- 
jj  blico  com  estes  decretos  me  pagará  mil  maravidís  de 
>j  condemnação  alem  de  fazer  em  sua  pessoa  ,  e  fazenda 
"  a  justiça  conveniente.  E  tenha  por  sem  duvida  o  meu 
j>  Rico  homem  em  cuja  terra  sahirem  os  decretos  sobrcdi- 
>>  tos  ,  que  alem  de  ficar  cm  desgraça  minha,  hade  perder 
5»  a  terra  que  de  mim  tiver.  O  Alcaide  perderá  a  minha 
j>  Alcaidaria,  e  o  meu  amor,  e  será  castigado  cm  fazenda, 
"  em  pessoa  como  for  direito  e  justiça.  E  dos  Aguasis  , 
"  Tabeliães,  e  mais  justiças  tomarei  justa  vingança  cm  cor- 
»>  pos  e  fazendas.  Mando  com  tudo  que  se  alguém  vender 
»  o  furto,  e  escondidamente  cousa  alguma  por  ser  contra 
j>  os  decretos  presentes,  que  neste  ponto  adniitto,  me  pa- 
>»  gará  de  pena  quinhentos  maravidís  e  será  castigado  em 
j>  sua  pessoa  ,  e  fazenda  alem  de  perder  a  cousa  vendida  : 
»  e  do  mesmo  modo  se  procederá  com  os  que  fizerem  com- 

»>  pras 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  3 

»>  pras  em  contrario  destes  decretos ,  que  alem  das  penas 
»  sobreditas  perderá  o  que  comprou,  e  o  dinheiro  que  por 
>»  ella  deu.  Dada  em  Santarém  a  19  de  Junho  por  man- 
>»  dado  d' ElRei.  >»  =:  «Não  pude  alcançar  (diz  o  mesnio 
»  Acutor)  m.iis  noticia  destas  Leis  que  ElRei  tanto  encon- 
"  trava.  Nem  he  de  crer  como  forao  tão  contrariadas  fi- 
»  casse  delias  memoria  no  Archivo  Real.  »  ^ 

Um  Religioso  posto  que  prelado  d'ourros  Religiosos , 
fazendo  leis  ou  decretos  seculares,  impondo  penas  tempo- 
raes  á  face  d'um  Rei  Portuguez  Legislador:  um  Soberano 
de  Portugal  cassando  e  anullando  com  toda  a  energia  da 
auctoridade  offendida  os  ditos  decretos ,  são  factos  muito 
curiosos  para  não  despertarem  a  attenção  dos  doutos  ,  e 
muito  transcendentes  para  deixarem  de  ser  prescrutados. 
JVl.is  não  existem  os  taes  decretos  ;  ou  pelo  motivo  pouco 
plausível  de  Fr.  António  Brandão,  ou  pela  incúria,  e  ru- 
deza dos  tempos :  a  Provisão  Real ,  que  os  proscrevera , 
não  nos  diz  quacs  elles  erão  ;  nenhum  Escriptor  que  eu 
saiba  se  deu  ainda  a  pena  de  dcscubrir  pelos  subsídios  da 
critica  a  sua  natureza  ;  e  o  resultado  he  admirar-se  a  audá- 
cia e  temerária  ingerência  de  Fr.  Sueiro  Gomes ,  aplaudir- 
se  o  lance  de  auctoridade  Real  do  Snr.  D.  AíFonso  II ,  las- 
timar-se  a  ignorância  dos  artigos  que  o  merecerão ,  e  ac» 
commodar  com  esta  como  forçada  obediência  a  um  dos 
niysterios  históricos  dos  fastos  da  Monarchia. 

Este  mysterio  he  o  que  fez  o  objecto  das  minhas  me- 
ditações, e  exames  interrompidos,  e  pouco  acabados  com 
outros  cuidados  das  minhas  obrigações  publicas ,  mysterio 
porém  que  eu  renho  tentado  explicar,  acrescentando  com 
um  facto  importante  a  serie  de  factos  da  historia  Portugue- 
Z.1 ,  e  rectificados  os  erros  e  absurdos  que  os  nossos  Escri- 
ptorcs  alias  illustrcs  pela  belleza  do  estilo,  e  pureza  de 
intenções,  espalharão  em  suas  obras,  perdidos  no  vago  de 
incertas  conjecturas. 

He  curioso  ver  como  homens  d'engenho  e  saber,  mas 
destituídos  das  regras  de  boa  critica,  tentarão  a  explanação 

A  ii  d'u- 


4  Me  MORiASDA  Academia  Real 

d'uma  cousa  desconhecida  na  sua  substancia  ,  mas  certa  e 
real  na  sua  existência;  cnibrenhar-se  n'uin  mundo  conjectu- 
ral, e  despenhar-se  cm  fim  em  arbitrins  atirados  ao  acaso, 
e  sempre  desmentidos  pela  contrariedade  ,  e  antilogía  dos 
acontecimentos  coevos.  Seria  f;istidioso  enumerar  todos  ; 
para  exemplos  poucos  bastão :  Fr.  António  Brandão  no  lu- 
í^ar  citado  refere  ::=;  que  os  tacs  decretos  erao  leis  que  Fr. 
Soeiro  e  seus  companheiros  ordcvárao  sobre  pontos  de  justiça  , 
declarando  os  casos  em  que  se  haviiío  de  condcmnar  os  homens 
d  morte ,  ou  em  pena  pecuniária.  í=  Nestes  termos ,  segundo 
o  Autor,  erâo  os  Decretos  seculares,  como  lhe  chama  a 
Provisão  Real  ,  uma  espécie  de  Código  Penal  \  c  se  assim 
fora  seria  esta  na  verdade  uma  pena ,  e  perda  grande  ao 
menos  para  o  conhecimento  dos  costumes  e  idifas  do  tem- 
po. 

Faria  e  Sousa  vai  pelo  mesmo  rumo ,  mas  foi  buscar 
motivo  plausível  que  preparasse  o  acontecimento  ;  achou-o 
nas  Leis  geraes  feitas  pelo  Snr.  D.  AfFonso  II  em  Coim- 
bra no  primeiro  anno  de  seu  reinado ,  e  suppondo  Fr.  Soei- 
ro e  seus  companheiros  irritados  e  escandalizados  daquella 
nova  legislação  civil  na  parte  em  que  coarctava  as  liber- 
dades e  isenções  do  clero,  apresenta-os  legislando  no  sen- 
tido contrario ,  como  para  contrabalançar  o  peso  e  effeitos 
das  disposições  Reaes.  «Sobre  estas  leis»  (diz  o  mesmo 
Faria  fallando  das  do  Snr.  D.  AfFonso  II)  <<  ousou  fazer  ou- 
»  trás  Fr.  Sueiro  Gomes,  Prior  dos  Dominicos ,  que  pouco 
5>  antes  com  humildade  religiosa  havia  pedido  lugar  para 
»  a  sua  fundação  neste  Reino.  Tão  antiga  hc  a  anciã  de 
5>  intrometter-sc  cada  um  no  mais  alheio  de  seu  instituto. 
j>  Nellas  ordenava  castigos  de  fazenda  e  morte  paia  os 
j>  criminosos  seculares.  Vedou-lho  EIRei,  »> 

La  Clede  na  Historia  de  Portugal  Liv.  V.  ao  anno  de 
1220  diz:  ti  Sueiro  Gomes,  Prior  da  Ordem  de  S.  Domin- 
'>  gos,  novamente  estabelecida  em  Portugal,  foi  tão  inso- 
»  .lente  ( j  e  que  não  fará  um  Monge ,  que  se  esquece  do 
>»  que    he!)    que  athe  ousou  publicar  varias  leis,  em  vir- 

>»  tu- 


DAS    SCIENCIAS    DE    LlSBOA,  ^ 

>»  tude  das  quacs  queria  que  fosse  punido  de  morte  todo 
»>  aqucUc  que  lhe  faltasse  ao  respeito.  Offendido  ElRei , 
»  tomou  conta  mais  que  nunca  do  género  de  vida  do  cle- 
j»  ro,  cuja  defesa  tomara  o  Arcebispo  de  Braga.» 

^lais  extravagante  que  os  outros,  ou  de  menos  boa 
fé  Fr.  Pedro  Monteiro  na  sua  Historia  da  Inquisição  P.  i. 
L.  2.  C;ip.  3.  não  duvidou  asseverar  =:  que  ElRci  o  Siir. 
D.  AíFonso  11,  a  quem  chama  o  Legislador  ^  tinha  commct- 
tido  a  Fr.  Suciro  fazer  umas  leis  geraes  para  o  bom  go- 
verno do  Reino:  ~  «Estas  leis  (continua  o  Autor)  revo- 
5>  gou  ElRei ,  como  refere  Brandão ,  sendo  pelas  cousas  an- 
"  darem  nesse  tempo  revoltas  entre  o  estado  Secular  e  Ec- 
j»  clcsiastico.  Atfirma-se  (he  ainda  o  mesmo  Autor)  que  nas 
5»  ditas  leis  pusera  o  venerável  Fr.  Suciro  uma  em  que  con- 
j»  dcmnava  a  pena  de  morte  aos  ladrões  e  aos  homicidas.  j> 
O  mesmo  Fr.  Pedro  querendo  compor  as  cousas,  altera 
ainda  outro  facto  histórico ,  porque  acrescenta :  «  Conhe- 
»  ccndo  ElRei  depois  o  seu  erro  ellegeo'ao  mesmo  Fr. 
>»  Suciro,  e  seu  companheiro  Fr.  Fernam  Pires  para  Juiz 
j>  árbitro  nas  duvidas  que  trazia  com  o  Arcebispo  de  Bra- 
»  ga.  »  Ora  isto  he  um  anacronismo ,  e  talvez  que  uma 
malicia:  quem  escolhco  Fr.  Sueiro  para  árbitro  da  tal  con- 
tenda foi  o  Srir.  D.  Sancho  II  depois  da  morte  de  seu  Pai 
cm  1223  ,  e  he  bem  conhecido  na  historia  de  Portugal  que 
FlRei  o  Sfír.  D.  AíFonso  II  falleccra  ainda  no  desagrado 
da  (juria  Romana,  não  menos  que  do  Arcebispo  de  Braga 
D.  Estevão  Soares  da  Silva. 

Mas  deixemos  os  Escriptores  e  seus  desvios,  e  apresen- 
temos o  nosso  próprio  cabedal.  Diz  Montesquieu,  que  he 
necessário  esclarecer  a  Historia  pelas  leis ,  e  as  leis  pela 
Historia',  a  Historia  dos  acontecimentos  do  tempo  na  ma- 
téria sugeita  será  o  grande  guia,  que  como  o  fio  da  fabula 
nos  hade  tirar  do  intrincado  labyrinto  :  a  mesma  Historia 
demonstrará  que  os  decretos  ou  leis  de  Fr.  Sueiro  Gomes, 
e  dos  seus  companheiros  não  erão  outra  cousa  senão  uma 
tentativa  da  introducção  do  Direito  Canónico  em  geral ;  e 

em 


6  MemoriasdaAcademiaReai, 

em  particular  a  publiciçao  e  execução  do  Canon  III  do 
Concilio  Laterancnse  IV  em  1215  ,  do  I."  do  Concilio  de 
Tolosa  do  anno  de  1220,  das  Bulias  do  Papa  Honório  111 
da  mesma  data,  e  daqiicllas  circulares  expedidas  nesse  tem- 
po pelo  mesmo  Summo  Pontífice  aos  Bispos  da  Itália  ,  Ale- 
manha ,  França ,  e  Hespanha  em  confirmação  e  ampliação 
do  mesmo  Concilio  ;  crão  n'uma  palavra  os  princípios  da 
Inquisição  nascente  plantada  no  Langucdoc  por  occasião 
da  guerra  chamada  àos  Jlbigenses  em  1205»,  (cjue  continuou 
com  mais  ou  menos  fcrA^or  até  os  tempos  de  S.  Luiz  Rei 
de  França ) ,  c  cxtendida  na  Htspanha  dos  hereges  Albigen- 
ses aos  Mouros  ,  c  Judeos  conversos  ,  mas  suspeitos,  ou  ac- 
cusados  de  apostasia. 

A  única  combinação  dos  tempos ,  antes  de  descer  a 
provas  mais  particulares  ,  está  persuadindo  a  abraçar  esta 
opinião  ,  e  uma  só  vista  rápida  pelos  successos  desta  épo- 
cha  produzidos  pelos  costumes  ,  e  idéas  recebidas  bastaria 
a  tornar  mui  vcrosimil  uma  assersão  ,  que  outros  factos 
mais  connexos  converterão  logo  em  quasi  certeza,  e  demon- 
stração. ^- Qual  era  então  o  quadro  da  Europa  semibarbara? 
Guerras  ,  e  dissensões  intestinas  produzidas  pela  anarchia 
regular  do  systema  feudal  dominante :  a  preponderância  do 
clero ,  e  desmesurado  poder  da  Cúria  Romana  adquirido  pe- 
la sciencia  quasi  exclusiva,  sustentado  pela  ignorância  ou 
antes  confusão  dos  princípios  do  Decreto  publico  univer- 
sal e  Ecclesiassico  ,  que  devia  marcar  os  razoáveis  limites 
do  Sacerdócio,  e  do  Império;  acarinhado  e  protegido  o 
mesmo  poder  pelos  Príncipes  seculares  como  a  única  e  po« 
dcrosa  barreira  contra  a  desobediência  e  rebelião  dos  po- 
tentados feudaes ;  e  acatado ,  e  obedecido  por  todos  como 
a  voz  de  Deos  pelo  ministério  do  seu  Vigário  naquelles 
tempos  de  mais  rudeza  sim  ,  mas  de  muito  maior  devoção, 
Juntou-se  á  piedade  o  espirito  de  cavallaria  introduzi- 
do universalmente  na  Nobreza.  As  invasões  dos  Tártaros  , 
e  Serracenos  nos  Lugares  Santos  da  Palestina  acarretarão 
essas  famosas  guerras  das  Cruzadas,  de  que  tanto  se  tem 

mo- 


DAS  SciEMCiAs  DE  Lisboa.  7 

mofado  por  espirito  de  contradicção  e  llbertinngem  ,  mas 
as  quacs  he  devedora  a  Europa  culta  de  grande  parte  dos 
seus  conhecimentos  c  civiiisação,  e  até -da  liberdade  dos 
povos,  e  da  queda  do  direito  feudal  por  força  de  combi- 
nações admiráveis  nos  seus  effcitos,  mas  muito  nacuraes'  pe- 
las causas  que   as  produzirão. 

No  meio  de  todo  este  aparato  de  devoção  exaltada  , 
e  de  pondonor  e  brio  militar  pelas  cousas  santas  e  reli- 
giosas ,  rebentou  a  celebre  heresia  dos  Albigenses  na  Ci- 
dade c  Condado  de  Tolosa  ,  fcudatario  da  Coroa  de  Fran- 
ça:  a  illustnição  e  créditos  dos  Condes  Soberanos  daquel- 
Je  Paiz ,  a  visinhança  da  Iralia  ,  a  catholicidade  das  Mo- 
narchias  iemítrofes  ,  e  a  tenacidade  e  poderio  d'um  povo 
inteiro,  que  proclamara  a  heresia,  devia  assustar  o  Orbe 
Catholico  ,  e  despertar  o  fervor  e  energia  da  Cúria  Ro- 
mana :  movem-se  exércitos  para  subjugar  os  rebeldes,  pu- 
blica-se  a  Cruzada  ,  apparecem  os  Delegados  do  Summo 
Pontifico,  c  com  elles  um  gcnio  raro  e  distincto  naquellcs 
tempos  pelos  seus  talentos,  zelo,  e  santidade,  S.  Domin- 
gos de  Gusmão,  visinho  e  testemunha  daquella  calamidade. 
A  este  enthusiasmo  religioso  veio  naturalmente  juntar- 
se  o  que  provinha  das  victorias  sobre  os  Mouros  de  Afron- 
so  IX  de  Castella.  O  celebre  Arcebispo  de  Toledo  D.  P^o- 
drigo  alcança  então  do  mesmo  Papa  Honório  o  privilegio 
da  Cruzada  contra  os  que  combatessem  os  Serracenos  das 
Hespanhas  ,  e  daqui  veio  a  famosa  tomada  d'Alcacer  do 
Sal  pelos  Cavalleiros  que  se  dirigião  por  mar  á  Terra  San- 
ta ,  e  cuja  armada  aportando  a  Setúbal ,  cedeo  a's  persua- 
sões ,  e  diligencias  do  Arcebispo  de  Lisboa  D.  Sueiro  ,  em- 
penhado naquella  conquista. 

Neste  tempo,  em  que  todo  o  meio  dia  da  Europa  fer- 
via em  guerras  contra  os  Musulmanos,  e  Albigenses,  confirma 
o  Papa  Honório  III  a  ordem  de  S.  Domingos  justamente 
reputado  então  a  escora  do  Vaticano,  e  o  açoute  dos  he- 
reges: o  instituto  desta  Religião  sendo  de  pregar,  e  ca- 
thequizar,   naturalmente  atrahia   os  projectos   e   vistas   da 

Cu- 


8  Memorias  DA  Academia  Real 

Cúria  Romana  toda  occupada  na  extirpação  das  heresias  ; 
e  cffectivamcnte  foi  S.  Domingos  c  seus  primeiros  compa- 
nheiros destinados  para  dirigir  a  empresa,  munidos  a  esse 
fim  com  aquelles  poderes  exuberantes  ,  que  a  necessidade  e 
a  devoção  daqueile  tempo  reputava  legítimos,  e  os  quaes 
ninguém  contrariava.  Repartiu  então  S.  Domingos  pelos 
seus  mais  zelosos  e  illustrados  companheiros  esta  missão 
sagrada;  a  França,  a  Itália,  e  a  Alemanha  forao  o  theatro 
destes  novos  Apóstolos;  o  mesmo  Santo  desenvdlveo  o  seu 
'/elo  por  ventura  demasiado  na  capital  da  Hespanha,  apoiado 
fortemente  pela  piedade  de  Fernando  III ,  o  Santo,  e  nesta 
partilha  apostólica  coube  Portugal  a  Fr.  Suciro  Gumes ,  Por- 
tuguez. 

Esta  missão,  esta  empresa  religiosa  foi  então  annun- 
ciada,  e  proclamada  nos  Decretos  seculares  de  matéria  até 
hoje  desconhecida  ,  que  fazem  o  objecto  da  presente  Me- 
moria ,  e  sobre  os  quaes  recahio  a  Provisão  d'  ElRei  o  Snr. 
D.  Affonso  II ,  a  quem  o  seu  génio  e  as  desavenças  com 
a  Corte  de  Roma  tornava  menos  dócil  as  pertenções  da 
Cúria,  e  mais  vigilante  na  conservação  dos  direitos  da  sua 
Coroa. 

Factos  positivos ,  provas  mais  próximas  ,  que  agora 
he  tempo  de  produzir,  vão  pôr  em  quasi  evidencia  o  que 
até  aqui  era  uma  opinião,  mas  opinião  muito  plausível,  e 
muito  connexa  com  o  espirito  da  Historia,  e  acontecimen- 
tos desta  épocha.  A  guerra,  e  Cruzada  publicada  contra  os 
Albigenses  na  pessoa  de  Raymundo ,  Conde  de  Tolosa, 
começou  no  anno  de  1205»;  a  sua  desfeita  ou  fingida  resi- 
gnação parcceo  acalmar  ao  principio  esta  tormenta  ;  porém 
a  mesma  perseguição  talvez  excessiva  ,  a  energia  do  Conde 
Raymundo,  e  os  soccorros  de  Pedro  II,  Rei  de  Aragão, 
demonstrarão  que  a  heresia  propagava,  e  se  extendia  ,  che- 
gando a  haver  symptonias  do  contagio  na  própria  capital 
de  França. 

O  zelo  e  constância  do  Papa  Innoccncio  III  sugerio-Ihe 
a  idéa  de  interessar  toda  a  Christandade  na  extincçáo  deste 

in- 


DAS  SciENciAs  DE  Lisboa.  9 

Incêndio  abrazador,  e  pnra  esrc  cffeito  convocou  o  Concilio 
Latcranense  IV,  celebrado  cm  iiij'  (a).  O  terceiro  Ca- 
non deste  Concilio  fulmina  com  anathcma  todas  as  heresias 
em  geral  contrarias  d  profissão  da  Fé  antecedentemente  es- 
tabelecida qualquer  que  seja  a  sua  denominação  ,  o  que 
denota  que  esta  exposição  hc  relativa  .aos  erros  daquelle 
tempo  ;  que  os  hereges  condemnados  serião  relaxados  ao 
braço  secular  para  receberem  o  competente  castigo,  e  sen- 
do Clérigos  serião  primeiramente  dcgrad;idos  das  Ordens  ; 
que  os  bens  dos  leigos  serião  confiscados,  e  os  dos  Clé- 
rigos applicados  á  Igreja  ,  da  qual  receberiao  a  sustenta- 
ção;  que  os  suspeitos  de  heresia  serião  compellidos  a  justi- 
ficar-se  pena  de  excommunhão  ;  que  as  pessoas  constituí- 
das em  poder  secular  serião  obrigadas  por  meio  de  cen- 
suras a  dar  juramento  de  expulsar  de  seus  respectivos  ter- 
ritórios todos  os  hereges  notados  pela  Igreja;  que  todo  o 
senhor  temporal  que  recusasse  purgar  as  suas  terras  dos 
hereges  seria  excommungado  pelo  Bispo  metropolitano,  e 
pelos  outros  Bispos  sufraganeos ;  e  não  satisfazendo  ainda 
dentro  d'um  anno  se  daria  aviso  ao  Papa  a  fim  de  absol- 
ver os  vassallos  do  juramento  de  fidelidade,  e  de  expor 
suas  terras  á  conquista  dos  Catholicos  a  fim  de  as  mante- 
rem em  paz  e  livre  de  heresias,  salvo  o  direito  do  senhor 
principal  do  território:  termina  o  Decreto  do  Concilio  de- 
pois de  muitas  outras  providencias  com  uma  ameaça  de  de- 
posição contra  os  Bispos  que  consentirem  hereges  em  suas 
Dioceses   {h). 

Fulco,  Bispo  de  Tolosa ,  havia  levado  comsigo  ao  di- 
to Concilio  a  S.  Domingos,  com  o  qual  estava  ligado  por 
um  ardente  zelo  da  salvação  das  almas  (c).  Aproveitou 
S.  Domingos  a  occasião,  e  propoz  ao  Papa  Innocencio  III 
sua  tenção  de  instituir  uma  Ordem  Religiosa  ,  ao  que  o 
r.  IX.  P.  7.  B  San- 

(n)     Fleiíry  Hist.  Eccl.  Liv.  77  §  40. 
(6)     Fleiíry  lugar  citado  até  §  48. 
(c)     O  mesmo  Kleury  §  54. 


IO  Memorias  pa  Academia  Real 

Santo  Padre  racilnieiite  accedeo ;  entretanto  a  morte  do 
Summo  Pontífice  atalhou  então  este  projecto,  que  pouco 
depois  foi  concluído,  e  confirmada  a  ordem  dos  Frades 
Pregadores  pelo  Papa  Honório  III  em  1216,  e  no  mesmo 
anno  se  estabeleceo  a  primeira  casa  regular  da  dita  Ordem 
na  Cidade  de  Tolosa.  > 

Neste  mesmo  anno  (continua  o  Abbade  Fleury)  manj 
dou  o  Santo  a  Hespanha  quatro  dos  seus  companheiros 
pregar  o  Evangelho ,  e  forão  Gomes ,  (que  he  o  nosso  Fr. 
Suciro)  Pedro ,  Miguel ,  e  Domingos ,  tempo  em  que  o 
Papa  Honório  escrevco  a  S.  Domingos  encarregando-o  de 
proscguir  na  fadiga  apostólica  da  conversão  dos  hereges 
no  Langucdoc ,  carta  de  26  de  Janeiro  de  1117.  Neste 
m«snio  anno  de  12 J7  suppóe  o  Auctor  da  Chronica  de 
S.  Domingos ,  que  entrara  Fr.  Suciro  Gomes  em  Portugal , 
e  tecendo  como  o  Diário  do  seu  estabelecimento  neste  Rci-i 
no,  conta  que  por  fugir  ao  desagrado  d' habitar  nas  ter- 
ras, em  que  se  havia  publicado  o  interdicto,  se  dirigira  o 
mesnio  Religioso  a  Alemquer,  senhorio  da  Infanta  irmã 
d'  ElRei ,  então  em  desavença  e  guerra  aberta  com  seu  ir- 
pião :  —  Qiie  no  anno  de  121 8  já  o  dito  Fr,  Sueiro  e  seus 
confrades  excrcitavao  a  vida  monástica  na  Serra  de  Monte 
Junto,  e  que  finalmente  a  referida  Infanta  o  mandara  a  Ro- 
ma advogar  sua  causa ,  e  que  effectivamente  trouxera  os 
Breves  do  Papa  em  seu  favor.  Esta  serie  chronologica  de 
Fr,  Luiz  de  Sousa ,  com  o  qual  se  conforma  Fr.  Pedro 
Monteiro  na  já  citada  Historia  àa  Inquisição ^  não  me  pa- 
rece provada,  nem  se  combina  bem  com  os  successos.  — 
He  porém  demonstrado,  que  S.  Domingos  viera  a  Hespa- 
nha  segunda  vez  em  1219,  e  visitara  as  duas  casas  do  seu 
instituto,  que  já  entãj  existião  em  Segóvia  e  Madrid,  c 
naturalrnente  entraria  acompanhado  da  famosa  carta  do  Pa» 
pa  Honório  para  Fernando  III,  Rei  de  Castela  ,  recommen- 
dando-lhc  acolhimento  c  protecção  para  os  Frades  Prega- 
dores empregados  na  perseguição  dos  hereges.  He  do  mes- 
mo anno  outra  carta  do  mesmo  Summo  Pontifice,  circular 


DAS  SciEMciAS  DE  Lisboa.  ii 

a  todos  os  Bispos  da  christandadc  para  receberem  os  ditos 
Frades,  e  auxiliarem  sua  pregação,  datada  a  dita  carta  em 
Roma  a  8   de  Dezembro  deste  dito  anno  (a). 

Esta  missão  tão  rccommcndada,  e  intimada  aos  Prín- 
cipes seculares  ,  e  Ecclcsiasticos  determinadamente  para  a 
conversão  e  perseguição  dos  hereges  de  qualquer  denomina- 
ção que  fossem ,  era  a  execução  das  disposições  já  referidas 
do  Concilio  Latcranense  IV,  que  sendo  particularmente  di- 
rigidas contra  os  Albigenses ,  comprehendia  os  Mouros  ,  e  ^ 
Judeos,  debaixo  das  expressões  geraes  =  qualquer  que  fosse 
o  nome  que  os  hereges  se  dessem  ,  =  empreza  em  que  o 
Papa  Honório  empenhou  todas  as  forças  então  formidáveis 
da  Santa  Sé ,  como  fica  apontado- 

Supponho  eu  pois,  á  vista  desta  congruência  e  coin- 
cidência de  factos  paralellos ,  que  neste  anno  de  12 19  he 
que  Fr,  Sueiro  Gomes  emprehcndeo  sua  pregação  em  exe- 
cução das  ordens  da  Cúria,  de  que  terião  sido  prevenidos 
antecedentemente  os  Bispos  de  Portugal ,  quando  o  não  fos- 
se também  ElRei  por  causa  do  interdicto  e  ruptura  com 
a  Santa  Sé.  E  com  cíFcito  he  deste  anno  o  Breve  que  trans- 
crcveo  por  inteiro  Fr.  Pedro  Monteiro  na  Historia  da  In- 
tjuisição  em  Portugal,  pag.  michi  35- ,  no  qual  o  Bispo  de 
Coimbra  D.  Pedro  Sueiro  (e  he  notável  a  identidade  do 
nome)  anctorisa  ao  dito  Padre  Pr.  Sueiro  Gomei  e  seus  com- 
panheiros para  pregarem  na  sua  Diocese ,  e  para  exercitarem  o 
poder  de  castigar  e  corrigir  todos  os  excessos  (b). 

João  Baptista  Llorente  na  sua  Historia  critica  da  In- 
quisição de  Hespanha  conforma-se  inteiramente  nestes  factos 
com  a  chronologia  do  Auctor  da  Historia  da  Inquisição  em 
Portugal  \  mas  previnidos  ambos  pelo  seu  propósito  de  exa- 
gerarem a  auctoridade  dos  primeiros  Inquisidores,  posto  que 
por  fins  oppostos,  e  querendo  dar  celebridade  e  apparato 

B  ii 


as 


(rt)     Fleury  Hiit.  Eccl.  Liv.  70 ,  6  30. 

(4)    Et  poustatcm  compelendi  et  Cfínis;eiidi  omites  excessus.  (  Dito  Bre» 
ve.  ) 


II  Memorias  DA  Academia  Real 

ás  funcções  inquisitoriaes,  attribuem-lhe  um  resultado  total- 
mente alheio  da  verdade  histórica.  Conta  o  dito  Fr.  Pe- 
dro Monteiro  :  Otiatulo  o  Patriarcha  S,  Domingos  mandou  o 
Padre  Fr,  Sueiro  Gomes  pregar  a  estes  Reinos,  e  tios  mais 
d^Hespanba  tãohcm  como  Inquisidor  Geral  que  era ,  lhe  deo  jun- 
tamente jurisdição  para  elle  inquirir  do  crime  de  heresia  pela 
noticia  que  o  próprio  Honório  III  lhe  dco  de  que  os  Jndcos  e 
Mouros  baptizados  apostatavao  ....  destes  aos  que  se  mos- 
travão  arrependidos  impunha  penitencias  segundo  os  Sagrados  Câ- 
nones,  e  aos  que  se  mostravao  obstinados  e  impenitentes  relaxa- 
va d  "Justiça  secular  que  iie/les  executava  com  o  fogo  o  tilti' 
mo  suplicio  (a). 

Sendo  verdadeiro,  como  he,  o  objecto  da  pregação, 
não  o  he  o  cxcrcicio  e  resultado  delia  ,  que  apomão  estes 
Auctores ;  antes  foi  tanto  pelo  contrario,  que  apenas  ElRei 
D.  AíFonso  II  soube  dos  capítulos  em  que  se  proclamara  a 
doutrina  e  missão  de  Fr.  Sueiro,  logo  acudio  com  a  famo- 
sa Provisão  Real ,  que  apontei ,  cassando  e  annullando  tal 
ingerência  como  oíFcnsiva  de  sua  auctoridade ,  e  indepen- 
dência no  poder  temporal ,  bem  como  das  liberdades  e  fo- 
ros dos  fidalgos  e  mais  vassallos  do  seu  Reino. 

Confrontemos  agora  a  usurpação  com  o  protesto ,  as 
disposições  Pontifícias  com  a  politica  do  Monarcha  Portu- 
guez,  e  veremos  e  admirarcnros  a  sabedoria  e  dignidade 
com  que  este  soube  sustentar  os  direitos  da  Coroa ,  e  a 
independência  do  império  Lusitano  n'um  tempo  cm  que 
outros,  por  não  dizer  todos,  os  mais  Potentados  da  Euro- 
pa Christá  se  curvavão  diante  dos  excessos  da  Cúria, 

Já  vimos  os  pontos  decretorios  do  Concilio  Latera- 
nense  IV  sobre  a  heresia  em  geral ,  e  a  imposição  das  pe- 
nas tcmporaes  do  confisco,  e  expulsão,  além  das  outras 
canónicas ;  noramos  os  esforços  do  Papa  Honório  escreven- 
do aos  Príncipes  e  Bispos  do  orbe  catholico  para  entregar 

a' 


(a)     Cap.  5.  pag.  43. 


DAsScjENCiASDK  Lisboa.  13 

a  sua  exccuqão  aos  Fndcs  Pregadores ,  resta  apontar  as  ou- 
tras medidas  ao  mesmo  respeito  tomadas  no  Concilio  de 
Tolosa ,  celebrado  neste  anno  de  1220.  No  primeiro  Ca- 
non deste  Concilio ,  segundo  o  transcreve  Mansi  na  sui 
collecção  ,  se  le  :  Defendemos  que  os  Prelados  ^  Barões  ,  Cava- 
leiros ,  e  outros  quaesquer  Senhores  de  Território  consintao  que  os 
Hereges  ou  seus  sequazes  tomem  as  Rendas  ,  e  Administrações 
de  suas  terras ;  uem  tão  pouco  os  admitíio  ou  tolerem  na  sua 
Família  ou  Conselho  quanda  apenas  os  acharem  suspeitos ,  oit 
infamados  de  heresia.  Devendo  reputar  e  haver  como  taes  aqtiel- 
les  contra  os  quaes  estiver  o  clamor  e  fama  publica  ,  ou  cuja 
suspeita  estiver  provada  com  boas  testemunhas  perante  o  Bipo 
do  Território  {a). 

A  mesmíssima  doutrina  do  Concilio  de  Tolosa  com  as 
ampliações,  que  veremos  sobre  as  liberdades  da  Igreja,  re- 
putadas legitimas  naquelle  tempo,  se  confirmou  no  chama- 
do Concilio  Romano  ,  celebrado  neste  anno  por  occasiâo 
da  coroação  do  Imperador  Federico  I  d'Alcmanha  :  òabei 
que  tios  ba  pouco  na  Basílica  de  S.  Pedro ,  Príncipe  dos  Apos' 
tolos  ,  estando  presente  nosso  Filho  caríssimo  em  Christo ,  Fe- 
derico ,  Imperador  dos  Romanos ,  illustre  e  sempre  Augusto , 
depois  que  em  sua  cabeça  puzemos  o  Diadema  Imperial^  es- 
commungamos  da  parte  de  Deos  todos  os  hereges  de  um  e  ou- 
tro sexo  debaixo  de  qualqu:r  denominação  que  sejão  ^  e  os  fau- 
tores e  rcceptadores  dos  mesmos ;  assim  como  escommutigamof 
rodes  aquellcs  que  de  futuro  observarem ,  oii  fizerem  observar 
e  guardar  teus  estatutos ,  costumes  ou  antes  abu^  Ôes  contra  a? 
liberdades  da  Igreja :  sendo  a  mesma  pena  igualmente  extendi- 

da 

{a )  luhibimus  ne  prccluti ,  baroties ,  mi/iícs  seu  (juiainiqtn;  domiiii  terra- 
rwn  hteretecis ,  vel  credeiitibus  ecn-um  òalivens ,  seu  adiniiuslratiOíics  terra- 
riwi  suariim  commitaiit ;  scd  nec  eos  aut  ctiain  alúpios  diffamatos  de  haire- 
H  ,  vel  tjiios  credunt  de  hoc  esses  siispectos  hi  sua  familúi  vcl  suo  Concilio 
hnbrre  vcl  rutincre  prtesumaiit.  Itlos  (lutcm  debent  pro  diffamatis  hnbere  con- 
tra quos  publica  fnmu  clamai ,  vcl  de  quorum  deflamatioiíe  apud  boiios  et 
graves  coram  Episcopo  loci  legume  coiistilerit  coiistàisse. 


14  Memorias  DA  Academia  Real 

da  aos  que  escreverem ,  dirigirem ,  ou  coordenarem  os  taes  esta- 
tutos,  &c.  (a) 

Reduzamos  a  artigos  toda  esta  doutrina  dos  trcs  Con- 
cílios ,  e  das  Bulias  c  Cartas  Pontifícias  para  a  sua  execu- 
•çáo ;  primeiro:  o  poder  attribuido  á  Igreja  não  só  de  pro- 
cessar e  julgar  o  crime  de  heresia  ,  c  impor  penas  canóni- 
cas, o  que  justissimamcnte  lhe  pertencia,  mas  o  de  con- 
demnar  a  confisco  de  bens ,  exíerminio ,  e  outras  penas  tein- 
poraes;  segundo:  conhecer  e  julgar,  os  fautores,  recepta- 
dores  e  defensores  dos  mesmos  hereges  de  qualquer  sei- 
ta ,  ou  de  qualquer  nome  de  que  usem  ;  terceiro  :  inhibir 
os  Príncipes,  Barões,  e  outros  senhores  feudaes  de  con- 
servar dentro  de  suas  terras  e  jurisdicçõcs  aos  hereges  ou 
infamados  de  heresia ,  obrigando-os  a  expulsa-los  e  extcr- 
mina-los  ;  quarto  :  prohibir  que  alguém  os  tivesse  no  nu- 
jncro  dos  seus  familiares,  cazeiros ,  oíEciaes,  e  administra- 
dores ;  quinto  :  finalmente  a  competência  de  cxcommungar 
todos  os  que  fizessem  ou  executassem  estatutos  ou  dispo- 
sições contrarias  ás  liberdades  em  geral  da  Igreja  ;  e  (  por 
eumulo  de  preoccupação)  ameaçar  os  Soberanos  e  Senhores, 
que  contraviessem  estes  decretos ,  d'absolvcr  seus  vassallos 
do  juramento  de  fidelidade,  e  entregar  seus  Reinos  á  con- 
quista dos  catholicos.  Erao  estes  em  todo  ou  em  parte  os 
pontos  da  missão  do  nosso  Fr.  Sueiro  ,  e  seus  companhei- 
ros encarregada  pela  Cúria,  e  promulgada  nas  intimações 
aos  Reis,  e  Bispos  da  christandade ,  como  temos  visto, 
approvada   c  auctorisada  neste  Reino  pelo  Bispo  D.  Pedro 

de 

(a)  íioveriiis  quod  nos  nuper  in  basilica  principú  apcstolorum  pi-ccsenl£ 
Áiaivaimo  in  Christo ,  Jilio  nostro  Fedarico  illusiri ,  Romanorum  Tmpcraíore , 
et  semj.fT  nugiisto  poslquam  capiti  suo  imposuimus  iniperii  Dúulcma  de  con- 
cilio Jtutriim  iiostiorum  excommutncarimiís  ev  pnrte  TJei  ....  omites  hare- 
ticos  utriusque  scxvs  quoqumqne  nomiite  ceiísmntur ,  et  fautmes  red  pintores 
et  defaisorts  cot  um  ,  tieu  non  d  qui.  de  acta  o  sercaii  Jccerwit  eslatuta  edi- 
ta,  coufuetudines,  rei  poíiiis  abuxiuiies  euiitra  Eccieúoc  libertateiii.  Nec  umi 
excoinmwávimus  slaluurios  et  escriptores ,  redores,  íl\c.  12  Calendas  Mai ia. 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSPOA.  15" 

de  Coimbra,  e  matéria  sem  duvida  dos  Decretos  seculares, 
que  a  l^rovisão  d'ElRei  D.  AíToitso  proscrevia,  e  anmiU 
lava. 

Vejamos  como  as  razoes  e  fundamenros  da  Provisão 
yictoriosamcnte  os  desfazia  •,  c  no  adequado  dos  argumen- 
tos acharemos  mais  uma  prova  da  natureza  dos  mesmos  De- 
cretos ,  e  do   nosso  descubrimento  acerca    do  seu   objecto. 

Diz  a  Provisão  ou  Qirta  P.egia  d'  ElKci  D.  AfFonso , 
primeiro  :  Ninguém  cuse  tra%er  a  publico  nqmlks  decretos  se- 
tularef  sobre  matéria  de  penas  peetiuiarias  e  castigos  tempo- 
raes.  O  que  caracterisa  muito  justamente  a  incompetência 
em  tal  caso  do  poder  Ecclesiastico  ,  a  que  não  pertence  o 
regimen  secular  e  politico  dos  outros  Estados ,  e  fundamen- 
ta a  improvação  do  Monarchi  temporal ,  e  alludc  ás  penas 
de  confisco  de  bens,  extermínio,  e  coacção  aos  Príncipes 
seculares  para  expulsarem  vassailos  seus,  posto  que  de  di- 
versa crença,  &c. ;  o  que  tudo  era  doutrina  dos  dois  Con* 
cílios  ,  e  objecto  das  Bulias  Pontifícias ,  que  haviao  de  ser 
o  modelo  de  taes   Decretos. 

Segundo:  (continua  a  Provisão)  Não  sou  centente  que 
se  proceda  nos  casos  sobre  ditos  por  sua  íista,  por  sair  cm  os  taes 
decretos  em  quebra  dos  Foros  da  minha  Corte ,  e  dos  meus  Fi* 
dalgos ,  e  em  suma  de  todas  tts  pessoas  do  meu  Reine.  E  com 
cffcito  attenta  a  politica  do  império  Portuguez  naquelle 
tempo,  c  o  estado  de  dcspovoTçao  das  terras,  acrescenta- 
da ainda  pelas  guerras  e  conquistas,  nada  seria  tão  absurdo 
e  prejudicial  do  que  a  expulsão  dos  indi-cidms  posto  qne  de  di- 
versa crença^  estabelecida  nas  disposições  dos  Concílios,  e 
nas  da  Cúria  ;  sendo  aliás  bem  constante  que  tanto  pelo  con- 
trario se  procedeo  nos  primeiros  tempos  da  Monarchia  ,  que 
o  Snr.  D.  Affonso  Henriques  conservou  e  legislou  para  os 
Mouros  de  Lisboa ,  e  seus  dois  successores  para  os  do 
Alemtcjo,  que  quizerão  permanecer  neste  Paíz.  E  por  iguics 
princípios  dizia  ElReí  ,  que  era  contra  os  Foros  dos  Fidal- 
gos ^  os  quaes  sendo  pela  Jurisprudência  daqu^lles  tempos 
Si-nhorcs  não  só  das  terras,  mas  dos  braços  e  serviços  dos 

po- 


l6  Memorias  DA  Academia  Real 

povoadores  ,  vinhao  pela  sahitla  dos  Mouros ,  c  Jiidcos  a 
ficar  privados  daquclla  pirte  do  seu  património.  Também 
contra  os  Forox  da  Corte ,  ou  administração  publica ,  que  fi- 
caria esbulhada  e  diminuída  com  a  perda  dos  tributos  c 
contribuições  grandes,  que  pagavão  os  Mouros,  c  Judeos, 
e  da  ganância  e  mercancia  destes  últimos,  que  até  forâo 
muitas  vezes  pelos  créditos  de  sua  habilidade  escolhidos 
pelos  Soberanos  Portuguczcs  para  Védurcs ,  c  Thesoureiros 
da  fazenda  publica. 

Terceiro:  E  tão  bem  (continua  a  Provisão)  por  encon- 
trarem aqtielle  livro  onde  se  diz  expressamente  que  se  niio 
admittão  novas  leis  em  nosso  Reino ,  o  qual  livro  contêm  os 
foros  por  onde  devem  ser  julgados  os  fidalgos  de  Portugal,  lista 
coarctada  denotava  ainda  a  illegalidade  e  incompetência 
dos  decretos  de  Fr.  Sueiro  Gomes  ,  pois  que  não  só  erão 
illegitimos  por  falta  d'auctoridade,  mas  ainda  pela  opposi- 
ção  que  resultava  das  Leis  até  alli  existentes  ,  e  praticadas 
no  Reino,  que  regulaváo  os  direitos  e  prerogativas  da  No- 
breza ;  ou  as  ditas  Leis  fossem  ( pois  a  Provisão  não  o  de- 
clara )  o  Código  Wisigotico  ,  ou  as  Leis  geraes  do  mes- 
mo Rei  o  Snr.  D.  Affonso  nas  Coites  de  Coimbra,  ou, 
como  eu  julgo ,  as  Cortes  de  Lamego. 

Qiiarto  :  Maioi^mente  que  os  taes  decretos  ( he  ainda  da 
Provisão )  nunca  andarão  em  pratica  em  tempo  do  Conde  D» 
Henrique ,  nem  tio  tempo  de  meu  Avô  ElRei  D.  Âjfonso ,  a 
quem  o  Papa  Alexandre  III  por  seu  privilegio  confirmou  em  Rei , 
e  a  sua  Terra  em  Reino.  Nem  em  tempo  d'ElRei  D.  San- 
cbo  meu  Pai ,  que  teve  uma  carta  de  protecção  do  Papa  Cle- 
mente III.  Nem  tão  bem  em  meo  tempo  tendo  dtias,  uma  de  In- 
vocencio  III  ^  e  outra  d*  Honório  III.  He  notável  este  argu- 
mento. Reprova  a  Carta  Regia  os  taes  Decretos ,  maior- 
mente  por  serem  cousa  nova  nunca  praticada  até  alli  neste 
Reino  desde  que  fora  independente  na  pessoa  do  Conde 
D.  Henrique  ,  c  seus  succcssorci  ;  e  scrvindo-sc  das  pró- 
prias armas  do  inimigo,  para  assim  me  explicar  ,  parece 
notar  a  contradicção  em  que  cahia  a  Cúria  Romana,   que 

icn- 


DAS   SCIENCIAS   DE   L I S  B  O  A.       '  I7 

tendo  confirmado  e  reconhecido  a  independência  deste  Rei- 
no, se  ingeria  na  suprema  Soberania,  mandando  pregar, 
e  estabelecer  suas  máximas  decretorias  sem  o  consentimen- 
to d'  ElRei ,  c  da  sua  Corte.  Esta  circumstancia  está  indi- 
cando mui  claramente  que  os  artigos  de  legislação  temporal 
ordenados  por  Fr.  Suciro ,  não  erao  reputados  obra  mera- 
mente sua  ,  mas  uma  derivação  originariamente  da  Cúria  , 
alias  seria  occioso ,  e  sem  objecto  allegar  aqui  com  as  con- 
firmações e  reconhecimento  dos  Summos  Pontifices  a  res- 
peito da  independência  deste  Reino  ;  e  por  isso  dissemos 
no  principio  desta  ultima  parte ,  que  no  adequado  dos  ar- 
gumentos da  Provisão  acharíamos  novas  provas  da  natureza 
daquellcs  Decretos  ,  e  do  nosso  descobrimento. 

Termina  em  fim  ElRei  o  Snr.  D.  AÍFonso  II  sua  Car- 
ta Regia  ,  ameaçando  com  o  rigor  das  penas  civis  o  que 
contravier  a  esta  revogação,  estabelecendo  com  tudo  duas 
limitações,  em  quanto  approva  e  ratifica  dois  pontos  dos 
taes  Decretos;  he  o  primeiro,  sobre  os  que  venderem 
cousa  furtada ,  ou  escondidamente ,  c  o  segundo  impondo 
semelhantemente  penas  aos  compradores  de  semelhantes 
cousas.  O  que  bem  longe  de  fazer  contrariedade  com  a 
nossa  supposiçâo  ,  se  conforma  ,  e  corrobora  o  que  temos 
diro  ;  por  quanto  sendo  a  pena  de  confisco  de  bens  im- 
posta pelos  Cânones  referidos  aos  hereges  e  mais  refractá- 
rios ,  era  uma  consequência  acautellar  as  vendas  clandesti- 
nas, que  os  léos  condemnados  em  perda  de  bens  procura- 
rião  fazer  para  illudir  o  julgado  ;  e  como  este  principio  agra- 
dou em  theoria  para  ser  aplicado  a  outros  respeitos,  con- 
servou-o  ElRei  o  Srir.  D.  Affonso  ,  convertendo-o  em  le- 
gislação propriamente  sua ,  e  ficando  a  regra  gerai  <t  que 
"  ninguém  vendesse  ,  nem  comprasse  as  cousas  letigiosas 
»  em  razão  do  crime ,  por  serem  equiparadas  as  alienações 
«  que  se  fazem  de  cousas  furtadas.  « 

Djsta  arte ,  e  por  meio  de  tentativas  parciaes  sobre 
objectos  particulares,  procurava  a  Cúria  Romana  costumar 
os  Príncipes,  e  os  povos  ao  Direito  Canónico,  bem  pre- 
T.  IX.  P.  L  c  fe- 


l8  MbmouiaS  BA  Academia  Rfal 

ferivel  ,  sem  duvida  aos  costumes  bárbaros ,  e  Jurisprudcn* 
cia  feudal  daquellc  tempo.  Com  este  resultado  geral  quasi 
hia  atinando  ás  apalpadelas  o  nosso  Chronista ;  o  qual  de* 
pois  de  protestar  que  não  tinha  conhecimento  dos  pontos 
legislativos  dos  tacs  Decretos ,  acrescenta  :  Porem  como  os 
Padres  que  as  fizerãe  erão  pessoas  tão  caUficadas  em  Religião 
e  letras ,  e  destas  onvesse  muita  falta  naquella  primeira  ida" 
de,  de  crer  be  que  serião  os  estatutos  ajustados  com  a  ra- 
zão ,  e  com  o  direito  civil ,  e  canónico ,  posto  que  a  ElRei ,  t 
a  seus  Conselheiros  assim  »ã«  parecesse  ,  que  como  andcvão  ja 
neste  tempo  mrii  revoltas  as  cousas ,  e  o  estado  Eclesiástico  deS' 
favm-ecido  £  ElRei ,  não  he  maravilha  que  ElRei  não  aceitas- 
se  bem  estas  leis.,  ainda  que  feitas  com  zelo,  e  consideração 
por  gente  tão  Religiosa.  E  com  effeito  se  na  luta  entre  as 
preoccupações  e  usos  recebidos ,  e  a  introducçao  d'um  me- 
lhor porém  novo  modelo  de  legislação  muitas  vezes  houve 
demasias  e  attentados  ;  somos  com  tudo  obrigados  a  con- 
fessar á  face  da  evidencia  da  Historia,  que  por  Uitimo  pre- 
valecco  a  sciencia  ,  e  a  sabedoria  :  o  Direito  Canónico  foi 
recebido  geralmente  na  Europa  ,  misturado  ja  com  o  civil 
Romano ,  e  corrigio  os  absurdos  do  antigo  systema  ;  e  os 
Príncipes  seculares  amestrados  pela  experiência ,  e  irresistí- 
vel força  da  verdade  ,  souberão  com  o  andar  dos  tempos 
conciliar  a  justa  deferência  ás  luzes,  e  documentos  práticos 
d  1  Igreja  còm  o  decoro ,  e  independência  da  sua  Coroa  ; 
sendo  o  feli2  resultado  a  civilisação  actual  dos  povos ,  a 
estabilidade  dos  Impérios ,  e  a  segurança  e  felicidade  geral. 


ME- 


DAS  SciENCIAS  DE  LiSBOA.  Ipi 


MEMORIA 

Sobre  a  restauração  das  barras  dos  portos  formados  nas  fozes 
dos  rios  em  geral  ^  e  sobre  a  appUcaçao  dos  principaes  fun- 
damentos destas  importantíssimas  restaurações  ao  melhora' 
mento ,  e  conservação  da  barra  do  Porto. 


Por  Luiz  Gomes  de  Carvalho. 


D 


'ivide-se  a  Memoria  em  duas  partes,  na  i.*  estabele- 
cem-se  os  incontestáveis  princípios  de  universal  applicação 
para  melhorar  as  fozes,  e  barras  de  todos  os  rios;  na  2.» 
se  faz  applicação  dos  mesmos  principios  á  foz,  e  barra  do 
Douro  :  mostra-se  que  esta  foz  e  barra  são  o  resultado  re- 
gular das  leis  hydraulicas  geraes  investigadas,  e  estabele- 
cidas na  I."  parte;  descreve-se ,  e  analysa-se  o  plano  da 
sua  restauração  ,  mbstrando-se  também  quaes  serão  os  seus 
transcendentes,  e  proveitosissimos  resultados;  faz-se  ver,  que 
taes  melhoramentos  não  podiao  conseguir-se  pelos  esforços 
praticados  ,  ou  plano  seguido  anteriormente  ;  e  que  nesse 
plano  foi  desconhecido  absolutamente ,  e  até  contrariado  o 
principio  restaurador  das  fozes,  e  barras  dos  rios,  estabe- 
lecido ,  e  demonstrado  na  i."  parte  ;  em  fim  compvova-se 
praticamente,  quanto  se  diz  nas  duas  partes  desta  memo- 
ria ,  mencionando  os  principaes  resultados  das  obras  que 
estão  feitas  já  na  barra  do  Porto. 

Primeira    Parte. 

O  que  forão  em  tempos  mui  remotos,  quando  o  glo- 
bo estivesse  pouco  provado  ,  os  leitos  dos  rios ,  suas  fo- 
zes e  barras ;  e  como  pelo  progressivo  augmento  da  popu- 

c  ii  la- 


»o  Memorias  DA  Academia  Real 

laçío  do  mesmo  globo  se  foráo  arruinando  os  leitos ,  e  fo- 
zes dos  ditos;  e  tormado  barras,  e  cabedelos  que  os  atra- 
vessão ,  e  quasi  tapSo  os  seus  leitos  nas  fozes  dos  mesmos 
rics  durante  o  estio;  quaes  os  estorvos,  e  perigos  que 
nesse  estado  decadente  sofFre  a  navegação  sobre  as  mesmas 
barras ,  c  fozes  ;  como  se  rcmedeião ,  e  até  que  ponto. 

§     I. 

Os  leitos  dos  rios  for  Sc  já  viais  largos ,  fundos ,  e  vave- 
gaveis  por  maiores  extensões  acima  daí  suas  fozes  proporcional- 
mente d  ordem  dos  mesmos  rios ,  e  d  natureza  dos  terrenos  , 
que  clles  através  são  mais  ou  menos  ^  susceptíveis  de  corrosão  pe- 
las agoas. 

Nas  remotas  épocas  do  mundo  o  nosso  globo  devia 
ser ,  e  foi  mui  despovoado  ,  e  os  poucos  homens  que  o 
habitavão  dcvião  ter  poucas  precisões  ,  e  pouca  industria , 
e  menos  certamente  doque  ainda  hoje  tem  muitos  bandos, 
ou  povos  selvagens  d'America  ,  que  vivem  unicamente  da 
caça,  e  da  pesca,  e  não  cultivão,  nem  edificao;  portan- 
to estaria  cubcrta  a  superfície  da  terra  de  arvores  ,  arbus- 
tos ,  c  plantas  indigcnas ,  de  que  se  veste  ,  quando  não  he 
estorvada  ;  e  as  agoas  das  chuvas  não  podião  chegar  aos 
leitos  dos  rios ,  senão  mui  vagarosamente  coadas  por  entre 
todos  esses  obstáculos  de  huma  vegetação  activa  ,  e  não 
estorvada,. que  ofFereccria  huma  continuada,  e  çspessa  ma- 
ta ;  e  passavão  além  disso  sobre  hum  terreno  virgem  for- 
tificado com  o  tecido  de  raízes  entrelaçadas  em  mil  diffe- 
rentcs  direcções,  que  jamais  a  charrua,  nem  outro  ferro  ha- 
via rompido;  e  portanto  pouco,  ou  nada  podião  escavar, 
e  as  agoas  pluviacs  chegarião  quasi  limpas  aos  leitos  dos 
rios ,  e  não  os  entupirião  :  o  vagar  com  que  as  mesmas 
agoas  erão  coadas ,  e  demoradas  por  cntie  tantos  obstácu- 
los, que  ofFerecia  essa  forte  vegetação  por  toda  a  superfí- 
cie do  globo,  penetrada  também  interiormente,  e  furada 
até  pelos  vácuos  que  deixao  as  raízes  que  apodrecem,  ar- 


-    DAS  Sgiencias  DE  Lisboa.  " '  i% 

rores,  c  plantas  que  morrem,  os  asilps,  e  cadáveres  dos. 
animaes ,  e  tendas  diversamente  dispu&tas  das  camadas  que 
compõem  o  seu  interior,  ctc.  tudo  isso  dava  lugar  a  se- 
rem as  mesmas  chuvas  em  grande  parte  absorvidas  pelos 
terrenos ,  onde  crão  demoradas ,  e  donde  SQhiáo  depois  de 
filtradas  ainda  mais  vagarosamente,  e  bem  repartidas  por 
meio  de  cristalinas  ,  e  abundantes  fontes  ,  que  cntretinháo 
fartos  d'agoa  os  mesmos  rios  durante  o  verão;  de  sorte ,| 
que  todas  as  agoas  das  chuvas  (a)  erao  ,  como  disse ,  huma 
parte  vagarosamente  coada  na  superfície  da  terra ,  e  outra 
filtrada  em  grande  massa  para  o  seu  interior ,  e  todas  dc- 
vião  chegar  limpas  ,  e  vagarosamente  aos  leitos  dos  rios 
para  os  alimentar  de  inverno,  e  no  verão  sem  os  entupir; 
e  por  isso  havião  de  ser  limpos,  fundos,  e  largos  segundo 
a  grandeza  de  cada  rio ,  e  a  natureza  do  terreno  que  occu- 
pavão ;  pois  erão  o  resultado  do  trabalho  diuturno  das  cor- 
rentes das  agoas  dos  mesmos  rios  sem  desconto  de  entupi- 
mentos ;  e  as  agoas  mais  bem  repartidas  para  todo  o  verão  por 
meio  de  abundantes  fontes,  os  terião  além  de  limpos,  lar- 
gos, e  fundos,  mais  abundantes  d'agoa  no  estio,  e  mais 
bem  navegáveis  ,  proporcionalmente  á  sua  ordem ;  e  não 
pfièrecerião  as  alternativas  medonhas  que  hoje  se  observâo 
no  estado  de  nudez ,  em  que  está  o  globo  ;  de  sorte ,  que 
no  inverno  os  rios  actualmente  não  cabem  nos  seus  leitos, 
e  insultão  os  campos,  e  as  povoações;  e  no  verão  pouco 
falta  que  não  sequem  todos  completamente.  Todos  os  rios 
offerccem  a  prova  desta  verdade  ,  e  o  Douro  he  hum  exem- 
plo des^a  lamentável  alternativa. 

§        2. 

Em  íguaes  ctrcumstancias  de  terrenos  os  rios  sertão  tant" 
hem  mais  largos ,  e  mais  fundos  d  medida  que  se  aproximassem 
das  suas  fozes  ^  onde  proporcionalmente  d  sua  ordem  ser  ião  ma- 
gestosos ,  e  de  óptima  navegação. 

Porque  em   i,"  i.ugar  g§  rias  .se  engrossão  succcessi.^ 

va- 


3,2  MemoriasdaAcademiaReal 

vãmente  desde  as  suas  origens  até  ás  suas  fozes  no  mar ,' 
com  as  agoas  que  recebem  lateraes;  em  2°  lugar,  porque 
o  volume  das  agoas  dos  mesmos  rios  era  augmcntado  pe- 
las marés,  que  entravão  até  mais  longe  das  suas  fozes  pe- 
los leitos  desentupidos,  e  fundos;  3.°  porque  os  declives 
dos  rios  se  augmentão  muito  perto  das  fozes  nas  horas  da 
baixa-mar,  cm  que  as  agoas  descem  14  ou  16  palmos  es- 
pecialmente andando  cheios ,  pois  levanta  o  rio  semque 
por  isso  o  mar  mude  o  seu  nivel ;  logo  augmcntando-se  a 
massa  d'agoas,  e  a  sua  velocidade  para  as  fozes  dos  rios, 
te  augnienraiáõ  as  proporções  do  leito,  que  são  o  resul- 
tado da  maior  força.  Ora  quanto  os  rios  são  mais  largos, 
e  mais  perto,  ou  próximos  estão  do  mar,  mais  a  agitação 
c'as  ondas,  e  a  força  dos  ventos,  que  alli  reinao,  combatem 
as  margens ,  ora  de  hum  ,  ora  de  outro  lado ;  e  com  esses 
movimentos  os  alargão  pouco  a  pouco;  e  por  todos  esses 
motivos  os  rios  serião  muito  mais  amplos,  e  fundos  á  me- 
dida que  se  aproximavão  das  fozes  ,  e  do  mar ,  fornecendo 
mais  amplos  ancoradouros  ,  e  huma  navegação  franca  dos 
rios  para  o  mar  nas  suas  fozes ,  e  barras ,  ainda  mais  fun- 
das,  c  amplas  doque  os  leitos,  por  ser  a  parte  mais  vi- 
sinha  do  mar,  e  onde  passava,  e  se  exercitava  a  máxima 
força  de  cada  rio. 

§     3- 

Os  mesmos  rios  fundos  nas  suas  fozes  deveriao  sempre  em 
igtíaes  circwnst anciãs  ,  ou  pouco  desiguaes  de  tenacidade  cava-- 
rem  mais  ftmdos  os  seus  leitos  naquella  parte  paraonde  as 
tormentas ,  e  fortes  ventos  os  encostão ,  quando  andão  cheios ;  e 
seria  pela  direita  v.  gr.  em  todos  os  que  tem  as  suas  fozes  na 
costa  Occidental  de  Portugal. 

Porque  perto  das  fozes,  e  do  mar,  os  rios  irão  neces^ 
sariamente  encostar  o  maior  volume  das  suas  agoas  á  mar- 
gem direita  dos  ditos  nossos  rios  durante  as  cheias  do  in- 
verno, e  quando  elles  cavão  mais  fundos  leitos,  obrigados 


DAS   SciENCrAS   DE   LlS,BOH.-  '  '  í? 

pelos  ventos  tcmpcstujsos ,  e  aturados  do  Sul,  Sud-oeste, 
etc.  e  por  todjs  os  do  3.°  quadrante  ,  que  então  reioáo 
mais  ordinariamente ,  e  pelas  ondas ,  que  os  encostão  tamr. 
bem  para  o  Norte,  ou  para  a  direita  do  leito;  e  porisso 
de^de  o  principio  dos  tempos  devom  ter  cavado  os  seus  lei» 
tos  mais  profundamente  pela  pirte  direita,  e  para  ella  en- 
costar-se ;  e  cm  gerai  do  lado  do  polo ,  que  está  sobre  o 
horisonte  a  respeito  de  qualquer  rio,  vistoque  as  chuvas 
maiores  vem  do  lado  do  Equador. 

§      4» 

O  lado ,  ou  margem ,  a  que  os  rios  se  encostão  nas  suai 
fozes ,  e  poronde  estabelecem  mais  fundos  os  seus  leitos  ,  fica- 
ra mais  saliente ,  ou  mais  avançado  para  o  mar  doque  o  ou- 
tro ;  e  nos  nossos  rios  da  costa  occidentat  do  reino ,  e  no  Dou- 
ro ,  que  he  bum  delles ,  serd  mais  avançada  a  margem  direita 
doque  a  esquerda ,  em  iguaes ,  ou  pouco  desiguaes  circumstan- 
cias  de  dureza ,  e  tenacidade. 

Já  se  disse ,  que  no  inverno ,  quiado  os  rios  trazem  mais 
agoas,  e  mais  correntes,  he  quando  ordinari.imente  soprão 
os  ventos  tormentosos  do  Oeste ,  O.S.O ,  S.O ,  Sul ,  e  to- 
dos do  7,.°  quadrante  ,  que  devem  arremessar  as  ondas  fu- 
riosamente contra  a  extremidade ,  e  parte  mais  avançada 
da  margem  opposta ,  ou  margem  direita ;  mas  estas  ondas 
tendo  de  atravessar  primeiro  o  rio,  apenas  combatem,  mas 
nlo  atravcssâo ,  ou  só  fracamente  atravessão  as  correntes  do 
rio  para  irem  atacar,  e  corroer  a  dita  margem  direita;  ou 
só  mui  pouco  quando  as  cheias ,  e  correntes  são  menores : 
a  margem  direita  também  fica  abrigada  nos  (5  ,  ou  7  me- 
ees  do  anno,  em  que  reinão  quasi  exclusivamente  os  ven- 
tas, ora  rijos,  ora  moderados  do  Norte,  e  Noroeste,  ou 
brandamente  os  outros;  os  quiíiís  pelo  contrario  vão  ainda 
atacar  a  margem  esquerda  ,  especialmente  quando  as  agoas 
na  foz ,  sem  corrente ,  que  defenda  a  esquerda ,  formão  hu- 
ma  bahiâ  maior  nas  preamares  das  grandes  marés,  e  qufi 

as 


34  Me-morta"s  da  Academia  Real 

as  ondas  podem  sem  obstáculo,  ou  pouco  contrariadas,  ir 
com  os  ventos  fortes  Nortes ,  c  Noroestes ,  que  reiíião  no 
verão,  atacar  a  margem  esquerda,  que  porisso ,  e  porque 
não  tem  defesa  a  sua  parte  mais  avançada  contra  as  tor- 
mentas do  inverno  ;  será  por  tudo  muito  mais  facilmente 
carcomida,  e  desfeita,  e  mais  entrante ,  ou  recolhida  fica- 
rá doquc  a  margem  direita  menos  atacada  ,  e  mais  bem 
defendida. 

Logo  Corol.  i."  As  margens  direitas  de  todos  os 
sobreditos  rios  ,  que  tem  as  fozes  na  costa  nccidental  do 
reino  ,  e  de  todo  o  nosso  hemisfério ,  serão  mais  abri- 
gadas ,  mais  fundas  ,  e  limpas  ,  e  menos  combatidas  do 
mar  doque  as  esquerdas ,  e  mais  próprias  para  ancoradou- 
ros das  embarcações ,  e  consequentemente  mais  próprias  pa- 
ra o  estabelecimento  ,  e  edificação  das  nossas  cidades ,  e 
villàs  dos  portos  de  mar  próximos  das  fozes  dos  rios,  além 
de  ser  essa  margem  mais  bem  conservada ,  e  mais  saliente 
para  o  mar ,  e  mais  própria  para  estabelecer  as  fortifica- 
ções para  a  sua  militar  defesa.  Todos  os  nossos  portos  , 
e  fozes  desde  o  Minho  até  ao  cabo  de  S.  Vicente  con- 
firmão  a  verdade  das  proposições  que  se  acabão  de  provar; 
os  rios  Minho,  Lima,  Cavado,  Ave,  Leça,  Douro,  Mon- 
dego ,  o  rio  d'Abbadia  na  costa  de  Nazareth  ,  Porto  de 
S.  Martinho  ,  o  Tejo  ,  e  o  Sado  estão  assim  dispostos  por 
eíFeito  daquellas  leis  invariáveis.  O  Liz ,  e  o  Vouga ,  que 
parecem  as  únicas  excepções  dessas  leis  geraes,  o  são  ago- 
ra ,  porque  nos  reinados  da  Senhora  Rainha  D.  Maria  I  , 
assim  como  no  actual  se  lhe  fizcrão  paredões  nas  margens 
esquerdas  (nos  lugares  onde  foi  preciso  fixar-Ihe  as  suas 
fozes)  que  por  natureza  não  tinhão  ,  e  estão  porisso  mui- 
to mais  salientes,  doque  as  margens  direitas,  e  são  por- 
tanto fozes  ,  a  que  se  deo  huma  disposição ,  que  não  tu 
nhão  antes  disso,  e  estavão  como  os  outros  rios  compre- 
hendidos  na  lei  geral. 

Logo  Corolário  2°  Se  alguma  margem  esquerda  dos 
nossos  rios,  e  dos  ^ue  tem  as  fozes  para  o  occidente  no 

nos- 


DAS  SciENCIAS   DE  LiSBOA.  25- 

nosso  hemisfério,  foi  pouco  consistente,  e  a  direita  mui 
dura ,  esta  ficará  mui  avançada  no  mar  a  respeito  daquclla ; 
e  assim  acontece  no  Tejo,  e  no  Mondego,  onde  por  es- 
sa causa  se  verificáo  as  differenças  densas  margens,  que  são 
no  Tejo  de  4  Icgoas ,  e  no  Mondego  de  huma  legoa.  No 
Douro,  e  cm  outros  são  menos  desiguaes,  porque  ha  gran- 
de dureza  em  ambas  as  margens ;  e  no  Douro  até  são  pou- 
co desiguaes  as  antigas  margens  por  serem  as  Pedras  do 
cão  na  esquerda  ainda  mais  duras  ,  do  que  os  rochedos  de 
Filgueiras  na  direita. 

Logo  Corolário  3.°  Se-nos  ditos  rios,  que  olhlo  para 
Oeste  no  nosso  hemisfério ,  a  margem  direita  for  mui  frá- 
gil ,  ou  arêa  solta  ,  e  a  esquerda  mui  solida  ,  esta  será  por 
excepção  da  regra  geral  (que  suppôc  a  igualdade  ,  ou  pou- 
ca desigualdade  de  circumstancias  [4]  )  mais  avançada  ,  pois 
apesar  de  ser  mais  atacada ,  deve  ser  menos  destruída.  He 
isto  o  que  acontece  no  nosso  Vouga  ,  e  no  Liz ,  onde  de- 
pois que  se  lhes  fizerão  margens  esquerdas  com  paredões 
até  ao  mar  ,  nas  novas  fozes  que  conveio  dar-lhe ,  tendo 
ficado  as  direitas  desses  rios  no  areal  ,  ou  praia  de  arêa 
solta,  lá  estão  constantemente  essas  margens  direitas  mais 
curtas  ,  do  que  as  esquerdas  ;  sendo  por  arte  que  essas 
duas  fozes  se  achão  exceptuadas  da  regra  geral  em  que  es- 
tavão  comprehendidas  antes  das  obras  feitas  nellas  no  actual , 
e  anterior  reinado  :  satisfazendo  nesse  estado  ao  3.°  Co- 
rolário da  mesma  geral  proposição. 

Corolário  4.°  Logo  também  pelos  dous  theoremas 
(304)  terão  por  via  de  regra  os  rios  do  hemisfério  Bo- 
real ,  que  tiverem  fozes  voltadas  para  o  poente ,  as  mar- 
gens direitas  mais  avançadas  para  o  mar,  do  que  as  esquer- 
das ;  e  ao  longo  daquellas  serão  mais  fundos  nas  visinhan- 
ças  das  suas  fozes ;  e  dalli  estarão  os  melhores  ancoradou- 
ros,  e  o^  portos  juntos  ao  mar:  o  inverso  acontecerá  áquel- 
Ics  ,  que  no  mesmo  hemisfério  Boreal  estiverem  virados 
para  nascente  :  no  hemisfério  Austral  será  tudo  pelo  con- 
trario do  que  acontece,  e  se  diz  para  o  nosso  hemisfério, 
T,  IX.  P.L  o  e 


i6  Memorias  da  Academia  Keav 

e  por  idênticos  motivos ;  com  tanto  que  alguma  causa  mui 
poderosa  não  contrarie  o  eíFeito  das  leis  geracs  (3  e  4 ) , 
que  tem  lugar  na  igualdade,  ou  pouca  desigualdade  de  cir- 
cumstancias  locaes ,  de  tenacidade  relativa  das  matérias  das 
duas  margens,  e  do  leito  de  cada  rio,  e  que  estes  andem 
cheios  no  inverno  respectivo  quando  soprao  os  ventos , 
que  vem  do  Equador  ,  e  do  mar ,  ou  donde  lhe  vem  as 
grandes  chuvas ;  pois  ha  rios  ,  que  tem  cheias  periódicas 
de  verão,  como  o  Nilo,  o  Niger ,  etc.  procedidas  da  fu- 
sjo  de  neves  nas  montanhas ,  donde  tem  a  origem  ,  que  se 
faz  em  tempo  quente  ,  c  gastao  taes  cheias  mczes  para 
chegarem  ás  suas  fozes  ,  e  se  evacuarem  todas  as  suas 
grandes  agoas  :  nestes  rios  ha  necessariamente  excepções  , 
e  pelos  mesmos  princípios  demonstrados.  Quanto  aos  rios 
que  tem  fozes  para  o  Norte  ,  ou  para  o  Sul ,  ou  sobre  la- 
gos ,  c  mares  no  centro  do  Continente ,  terão  em  geral 
margens  mais  curtas  do  lado ,  donde  lhes  vem  os  ventos  , 
que  lhe  trazem  mais  abundantes ,  e  aturadas  chuvas  ;  pois 
a  todos  se  applicao  raciocínios  análogos  aos  que  se  fizerão , 
(3  e  4)  em  quanto  aos  que  olhao  para  o  Poente  no  nos- 
so hemisfério ,  e  no  nosso  Portugal. 

§     5- 

O  augmento  da  poptdaçHo  Ao  gloho  tem  motivado  o  entti- 
fimento  siiccessivo  dos  leitos  dos  rios  desde  o  ponto  onde  come- 
ção  até  ás  suas  fozes  ,  e  continuará  até  d  quasi  total  ruina 
dos  mesmos ,  e  das  suas  fozes ,  e  barras. 

A'  força  de  séculos  o  globo  se  povoou  de  milhões  de 
homens ;  civilisárao-se ,  formarão  grandes  nações ,  commu- 
nicárão-se  estas,  commerciárâo,  augmentárão  as  suas  preci- 
sões ao  infinito  ,  e  dcrão  extensão  demasiada  ás  suas  com- 
modidades  por  meio  das  Artes ,  que  o  tempo ,  a  necessi- 
dade ,  o  luxo ,  e  a  competência  tem  aperfeiçoado  ;  daqui  a 
edificação  rural,  civil,  militar,  e  naval;  as  maquinas  de 
toda  a  espécie ;  os  utensílios ,  as  fabricas,  e  os  diferentes 

mo- 


\' 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  27 

moveis  do  uso  domestico:  huma  extcn^ia  cultura,  c  huma 
immensa  quantidade  de  animaes  domésticos ,  para  nos  aju- 
dar a  supportar  o  monstiuoso  trabalho,  que  pcza  sobre  o 
homem  no  seu  estado  de  grande  civilisaçao,  puzeráo  cm 
pezada ,  e  cada  vez  mais  violenta  contribuição  á  superfície 
da  terra:  o  ferro,  e  o  fogo  a  despojarão  successivamente 
das  arvores,  arbustos,  e  plantas,  que  fazião  o  seu  orna- 
mento, e  dcfendião  contra  os  insultos  das  chuvas,  das  ne- 
ves, das  tempestades,  e  dos  enchurros  ;  do  mesmo  modo 
que  o  cabello ,  e  a  pclle  decórão ,  e  defendem  os  animaes 
do  rigor  das  estações;  a  charrua,  e  os  diversos  instrumen- 
tos de  agricultura  romperão,  e  dilacerarão  também  a  cô- 
dea ,  ou  tecido  superficial  formado  pelas  folhas  ,  e  raizes 
dos  vegetacs  ,  que  a  cobrião,  e  ajudaváo  a  conservar  in- 
tacta; neste  estado  de  nudez,  em  que  o  homem  civilizado 
pôz  a  maior  parte  da  superfície  do  globo,  nosso  commum 
património ,  as  aguas  pluviaes ,  c  as  das  neves  derretcndo- 
se ,  não  tendo  quem  as  demorasse,  nem  coasse  na  super- 
fície para  se  filtrarem  ,  e  formarem  as  fontes  ,  que  alimen- 
tão  os  rios  no  verão ,  correrão  sobre  ella  sem  obstáculo ,  e 
formarão  alluviões,  e  arrastarão  desde  então  para  os  leitos 
dos  rios  os  despojos  da  superfície  da  terra  cavados  pelas 
agoas  com  que  os  forão  entupir;  os  quaes  não  tendo  força 
para  levar  até  ao  mar,  tudo  quanto  as  chuvas,  e  as  tem- 
pestades arrastavão  das  montanhas,  e  terrenos  mais  alcan- 
tilados até  diversas  distancias  do  mesmo  leito,  forão  obri- 
gados a  correr  sobre  esses  montões  de  ruínas  ,  e  a  abrir 
passagem  por  cima  dos  entulhos ,  segundo  as  direcções  por 
onde  essas  matérias,  arrastadas,  e  distribuídas  em  desordem 
pelos  leitos  lhes  permittião  mais  fácil ,  e  mais  franca  pas- 
sagem. He  por  isso  que  os  seus  leitos  entupidos,  e  faltos 
d'agu3,  ou  quasi  secos  por  falta  de  fontes,  que  os  alimen- 
tem, serpejão  hoje  sobre  os  antigos  leitos  entupidos,  que 
formão  os  campos,  e  terrenos  baixos,  que  bordão  os  nos- 
sos rios  actuaes  ,  e  estão  ainda  esses  velhos  leitos  assas 
bem  marcados  pelos  outeiros  ,  e  terrenos  mais  altos ,   que 

o  ii  la* 


«8  Memorias  da  Academia  Rbal 

lateralmente  se  correspondem  de  ambas  as  margens  desses 
campos,  ou  antigos  leitos,  e  que  ainda  hoje  lhes  servem 
no  inverno,  quando  os  rios  andão  mais  cheios j  assim  como 
proporcionalmente  mais  secos  no  verão  ,  havendo  quasi  se- 
cado as  fontes  que  nessa  estação  os  alimentavão  pelo  mo- 
tivo retcrido  de  que  as  aguas  pluviaes  se  não  tlemorao  á 
supciEcie  para  serem  absorvidas,  c  todas  de  montão,  e  re- 
pentinamente passão  aos  leitos  dos  rios;  além  da  diminui- 
ção das  chuvas ,  que  a  falta  de  arvores  occasicna  cm  hum 
paiz ,  que  não  tem  ,  ou  pcrdeo  os  seus  arvoredos  ;  nós  ve- 
mos por  toda  a  parte ,  c  por  isso  também  no  Douro  ,  os 
rios  atacando  as  cidades  no  inverno  com  indizível  furor,  c 
quasi  moribundos  durante  o  estio  ;  huns  negando  p  váo  , 
c  pastagem  dos  gados  no  inverno  sobre  os  campos  adja- 
centes ,  e  não  podendo  quasi  sacinr-lhes  a  sede ,  ou  regar 
os  frutos  queimados  pelo  ardor  do  sol  no  estio  sobre  os 
mesmos  campos  !  Os  rios  entupidos  na  sua  origem  entre 
as  montanhas  ,  pelos  entulhos  grossos  levantao  os  leitos  , 
e  ganhão  declive  para  os  arrastar  até  mais  abaixo ,  e  assim 
successivamente  até  ás  suas  fozes  ,  e  até  ao  mar,  vão  le- 
vando as  partes  mais  leves  ,  ou  mais  atenuadas  daquellcs 
entulhos  ,  e  assim  se  irão  entupindo  ,  e  levantando  ,  até 
que  possío  arrastar  pedras  até  lá;  então  os  terrenos  actuaes, 
c  os  pequenos  rios  ,  e  regatos  não  tendo  queda  para  os 
leitos  dos  rios  maiores  assim  alteados ,  ficaráo  encharca- 
dos ,  e  até  invadidos  por  clles ;  e  o  globo  sem  os  seus 
principaes  esgotadores  se  cobrirá  de  charcos ,  e  lagoas , 
deixando  os  restos  mais  altos  na  rocha  viva  lavados  pelas 
tormentosas  chuvas,  de  que  já  vemos  grandes  amostras  nos 
picos  das  montanhas ;  os  rios  ficarád  sem  navegação ,  e  as 
fozes  serão  hunias  cascatas  de  pedragulho  estendidas  pelo 
mar  dentro  nas  suas  fozes;  as  nações  (se  então  as  poder 
haver  que  mereção  esse  nome  )  se  não  poderáõ  communicar 
entre  si  ,  nem  humas  com  outras  pelo  auxilio  da  navega- 
ção dos  rios.  Então  na  terra  quasi  despovoada ,  e  reduzi' 
das  a  muito  pouco  as  precisões  do  luxo  dos  seus  poucos 

ha- 


DAS    SCIENCIAS    DE    LiSEOA.  Zff 

habitadores,    de  novo  começarão  os  arvoredos,   c  bosques 
a  prospcrnr    pela  decadência,    c  nullidade   do  homem   stu 
implacável  inimigo  ;    e  pouco    a   pouco    as  aqoas  já  então 
mais  abundantes ,  c  mais  bem  repartidas  pelo  bemf^zejo  in- 
fluxo dos  arvoredos ,  exercendo  novamente   a  sua  acção  so- 
bre os  actuacs  leitos  entupidos  dos  rios  conseguirão  abril- 
los  novamente,  assim  como  primitivamente   os  abrirão  nos 
rochedos  ;    tornando   em   fim    a   apparecer  os   terrenos  sub- 
mergidos ,  que  também  a  seu  turno  se  vestiráó  successiva- 
mente  de  arvores,  e  plantas;  e  a  superfície  do  globo  assim 
restaurada ,  e  formosa  se  prestará  de  novo   ao  engrandeci- 
mento da  espécie  humana ,  que  ainda  tornará  talvez  a  des- 
fazer a  obra   desse  largo  periodo   de   regeneração  pelo  effi- 
caz  ,    protentoso,  e  espontâneo  influxo  da  vegetação  gene- 
ralisada   por  toda    a   terra.    Assim   he  que   o   homcffl   póJe 
preparar  largos  períodos  de  desolação ,  c  de  luto  pelo  cri- 
minoso frenesim   de  gozar  desmedidamente  ;   sem   que  bas- 
tem parciaes  esforços   de  ânimos  generosos  contra  a  inva- 
são universal ,  que  vai  quasi  aniquilar  o  reino  vegetal.  As- 
sim he  que  tantos  males  abysmaráõ  o  homem  ,  que  os  mo- 
tiva ;    pois    a    natureza    periodicamente   contrariada    tomará 
vingança,  reparando  tudo  na  sua  marcha  constante,  e  fir- 
me obedecendo  ao  magestoso  impulso  que  recebco  do  Crea- 
dor  !  BuflFon  diz  grandemente  quando  outras  considerações 
o  conduzem  a  asseverar   que  o  homem  devasta  o  globo , 
tirando-lhe  mais  do  que  lhe  restitue  ,  e  que  pelo  contrario 
as  arvores ,   e   a  vegetação  podem  reparar   as   suas  ruinas , 
e  devastação.    ^  Que   diria   elle   se  tivesse  olhado   para   os 
effeitos  do  engrandecimento  da  nossa  espécie  debaixo  des- 
te ponto  de  vista  ?    Mas   retiremos   os  olhos  de  hum  qua- 
dro tão  horroroso  para  nós  qual  o  da  natureza  vingada  do 
nosso  abuso  !  Felizmente  para  nós ,  e  para  muitas  gerações 
que   de  mais  perto  nos  interessão  ;  esse  montão  de  males 
está  ainda  longe  de  pesar  sobre  a  espécie  humana ,  posto 
que  para  lá  cammha  ;   e  feHzmente   tamhem  os  nossos  es- 
forços parciaes   podem  reurdar  .  em  cada  rio  ,   a  cpoca  da 

fa- 


30  Memorias  DA  Academia  Real 

fatal  ruina  das  suas  barras ;  e  por  isso  com  mais  disvcllo 
vou  proscguir  em  estabelecer  os  princípios ,  que  ainda  fal- 
tão  para  os  applicar  a  melliorar  as  de  todos  os  rios  do. 
mundo  ,  e  a  do  Douro ,  que  tanto  influe  nos  destinos  de 
Portiigalj! 

§     6, 

No  estndo  actual  todos  os  rios  formão  bancos ,  ou  barras 
de  aréa  dentro  no  mar ,  que  circundao  de  mm  perto  as  suas 
fozes  ^  mais  ou  menos  distantes  delias .,  segundo  a  ordem  da 
grande::a  ,  e  força  dos  mesmos  rios. 

A  corrente  dos  rios  ,  que  especialmente  na  vasante  de 
maré  (c  ainda  mais  havendo  cheias)  leva  involvidas  parte 
das  arcas  do  seu  leito  até  ao  mar,  diminue  mui  rapida- 
mente, assim  que  faz  a  juncção,  e  fica  cm  contacto  com 
elle  ;  i.°  porque  como  os  rios  na  sua  marcha  para  o  mar 
vão  em  nivcl  superior  lançar-se  nesse  vaso  indefinito ,  o 
qual  por  isso  que  he  immenso  ,  não  levanta  o  seu  nivel 
recebendo  as  aguas  dos  mesmos  rios ,  que  sobre  elle  tem 
queda,  e  a  conserváo ,  todos  se  derramao  para  todos  os 
lados  ,  e  cm  todos  os  sentidos  se  espalhão  quando  entrão 
no  mar;  e  assim  aflfrouxão  as  correntes,  e  se  enfraquecem. 
2-°  porque  a  massa  fluida  do  mar,  que  os  rios  vão  pene- 
trar ,  ou  por  em  movimento ,  lhes  resiste  também  com  o 
que  se  chama  força  de  inércia  proporcional  á  massa  que 
lhe  apresenta  o  dito  fluido  do  mar,  em  que  entrão  (sup- 
pondo-o  mesmo  em  perfeito  socego )  o  qual  oppondo-se  a 
todo  o  instante  á  força  dos  rios ,  ou  transmitindo  estes  a 
sua  força  para  dar  movimento  ás  agoas  do  mar,  que  suc- 
ccssivamente  chocâo  atravessando-as  ,  pouco  depois  se  en- 
fraquecem as  correntes  dos  ditos  rios,  e  as  pequenas  distan- 
cias das  suas  fozes  se  aniquilão ;  e  tanto  mais  perto  quanto 
os  rios  forem  menos  vigorosos.  Pois  sendo  sempre  o  mar 
quem  destroe  a  corrente  com  que  os  rios  entrão  nelle, 
mais  depressa  o  consegue  nos  fracos ,  e  pequenos  rios :  se 

á 


.    DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  Jt 

á  força  de  inércia ,  que  o  mar  em  soccgo  oppòc  aos  ri(-s , 
se  ajunta  a  íorça  das  ondas ,  que  por  leis  hydrauiicas  vem 
dirigir-se ,  e  quebrar-se  nas  praias  por  direcções  perpendi- 
culares ás   mesmas   praias   {b)   a  corrente  dos  me5>m(  s  rios 
se  extinguirá   mais  depressa  ,  e  mais  ainda  sendo  o  vento 
opposto  á  mesma   corrente   dos  rios  ,  ou  sendo  ventos  do 
mar  ;  logo  todos  os  rios  entrando  no  mar ,  perdem  total- 
mente as  suas  correntes  em  distancias  das  suas  fozes,  que 
varião  em  todos  os  rios ,   e  a  todo  o  momento  no  mesmo 
rio ,  segundo  o  estado  delle ,  e  a  hora  da  maré ;   e  conse- 
quentemente as  arêas  que  os  rios  arrastão  até  ao  mar,  vão 
também  por  esse  motivo  ficar  depositadas  perto  da  sua  em- 
bocadura,  onde  a  corrente  antes  de  se  extinguir  deixa   de 
as  poder  levar  mais  adiante,  e  alii   se  formaiá  hum  depo- 
sito das   mesmas  arcas,   ou  banco,    visto  que  nem  os  rios 
dalli  as  podem  levar  mais  adiante,  pela  hypothese,  nem  o 
mar  as  pode  fazer  recuar  nesse  ponto  do  presupposto  equi- 
líbrio entre  as  duas  forças  oppostas  do  rio,  e  do  mar.  Lo- 
go todos  os  ri(>s  tem  hum  banco  de  arêa  dentro  no  mar, 
o  qual   banco  circunda  as  suas  fozes  ,  e  estorva  a  navega- 
ção ,   mais,   ou    menos  distante  delias  segundo  for  maior, 
ou  menor  a  força   de  cada  rio  ;    sendo  certo ,  e  evidente , 
que  os  mais  valentes  poderão  resistir  até  mais  longe  á  op- 
posição  do  mar ,   que  gradual ,  e  successiva mente  aniquila 
as  suas  correntes.  Desta  proposição  se  deduzem  os  seguin- 
tes corolários. 

Corolário  i.°  Logo  os  bancos^  ou  barras  de  todos  os 
rios  do  mundo  são  moveis ,  visto  que  são  variáveis  ao  in- 
finito a  força  dos  mesmos  rios  nas  differcntes  estações  ,  as- 
sim como  a  do  mar  nos  seus  differentes  estados  de  agita- 
ção,  e  de  maré  para  lhe  resistir  no  periódico  fluxo,  e  re- 
fluxo das  mesmas  marés. 

Corol.  2."  Logo  quanto  maior  for  hum  rio,  e  mais 
velocidade  tiver  a  sua  corrente  ao  entrar  no  mar,  ou  quan- 
to mais  cheio  andar  o  mesmo  rio,  e  mais  rijo  também  as- 
soprar o  vento  terral ,  ou  do  lA  e  a.°  quadrantes  nos  de 

Por- 


^^-vj 


■31  Memorias  da  Academia  Reaií 

Portugal ,   e  mais  manso  estiver  o  mar  j  mais  longe  o  rio 
poderá  arrojar  o  banco. 

Corol.  3.°  Logo  em  circumstancias  iguaes  quanto  mais 
bravo  estiver  o  mar;  mais  forte  for  o  vento  mareiro,  que 
soprar  de  lá  (ou  do  3.°  e  4.°  quadrantes  nas  fozes  dos  nos- 
sos rios)  para  se  oppor  á  força  dos  mesmos  rios ,  e  mais 
secos  então  andarem ,  mais  perto  das  suas  fozes  se  forma- 
rá o  banco,  ou  barra  de  qualquer  rio. 

Corol.  4.°  Logo  quanto  mais  perpendicular  for  o  lei- 
to do  rio  sobre  a  costa ,  e  quanto  menor  for  a  secção  da 
boca  do  rio  na  foz  a  respeito  da  largura  do  leito  alli  mes- 
mo ,  ou  mais  igualmente  avançadas  para  o  mar  estiverem 
as  suas  duas  margens ,  e  por  esse  modo  ficar  perpendicular 
ao  leito  ,  e  offerccer  o  menor  numero  de  pontos  de  con- 
tacto entre  o  rio  ,  e  o  mar  ao  entrar  neste  ;  mais  longe 
da  foz  irá  formar-se  o  banco. 

§     7- 

Quanto  maior  for  hum  rio ,  mais  fundo  haverá  sobre  o  hatt' 
CO  ^  e  mais  bem  navegável  será  em  iguaes  circumstancias. 

Pois  que  o  mar  destroe  igualmente  a  força ,  e  anulla 
a  acção  de  todos  os  rios  mais ,  ou  menos  longe  das  fozes , 
onde  parão  as  arcas ,  e  se  formão  os  bancos ,  parece  que 
nenhum  rio  seria  navegável  sobre  o  banco ,  onde  acaba  a 
força  de  todos ,  e  se  accumulão ,  e  parão  os  entulhos , 
qualquer  que  fosse  a  ordem  ,  a  abundância  d'aguas ,  e  a 
força  de  hum  rio  na  sua  foz,  do  mesmo  modo  que  o  não 
são  as  barras  dos  pequenos  rios.  E  certamente  assim  acon- 
teceria se  não. existissem  as  periódicas,  e  nunca  interrom- 
pidas alternativas  dos  verões  e  dos  invernos  ,  sendo  estes 
mais  ou  menos  abundantes  de  chuvas,  e  de  neves  diversa- 
mente distribuídas,  e  aquelles  mais  ou  menos  secos,  e  nun- 
ca na  mesma  ordem  ;  a  alternativa  da  baixamar  á  preamar, 
e  estados  intermediários  repetidos  duas  vezes  em  cada  34 
horas  j  a  alternativa  de  marés  vivas  da  lua ,  ás  marés  mor- 
tas 


DAS  SCIEKCIAS  t)E  LiSBOA.  3^ 

tas  dos  quartos ;  das  grandes  marés  de  equinoccio  em  Mar-' 
ço,  e  Setembro,  ás  pequenas  dos  solsticios  em  Junho,  e 
Dezembro;  a  posição  relativa,  e  as  distancias  á  terra  dos 
astros  do  nosso  systcma  solar ,  c  finalmente  o  balanço  ou 
oscillaçáo  das  aguas,  e  as  ondas^ maiores  ou  menores;  as- 
sim como  as  differençns  dos  ventos  moderados  aos  tempes- 
tuosos, cm  direcções,  e  com  forças  sempre  variadas ,  sem- 
pre desiguaes ,  etc. :  eis-aqui  a  variedade  admissível  ,  que 
a  todo  o  momento  muda  em  hum  rio,  que  entra  no  mar, 
o  lugar  do  equilibrio  entre  as  forças  oppostas  ,  onde  se 
formão  os  bancos ,  e  as  barras  no  estado  presente  d  i  rui- 
na,  e  decadência  dos  rios;  e  as  barras  lhe  devem  o  haver 
ainda  huma  passagem  praticável  para  a  navegação  pnr  ci- 
ma,  e  a  través  desses  bancos  nas  fozes  dos  rios ,  que  por 
serem  maiores  entrão  com  mais  força ,  e  abundância  d'agua9 
no  mar,  como  se  vai  provar. 

Com  cíFcito  ,  se  a  força  de  qualquer  rio  fosse  con- 
stante,  e  invariável,  e  se  o  mar,  e  os  ventos  etc.  se  op- 
posessem  sempre  do  mesmo  modo  com  huma  força  tam- 
bém constante,  e  invariável,  o  lugar  do  equilibrio  entre 
o  rio  ,  e  o  mar  seria  invariável  para  cada  rio,  e  haveria 
hum  banco  fixo  ,  ou  dormente ,  que  o  rio  iria  successiva- 
mente  estendendo  para  o  mar,  ainda  que  a  diíFerentes  dis- 
tancias da  foz  nos  difFercntcs  rios  (6 ,  corol.  3) ;  e  também 
seria  mui  largo ,  e  extenso  o  banco ;  porque  o  mar  arras- 
taria arêa  até  alli  ,  e  o  rio  a  levaria  também  até  lá  pela 
hypothcse  de  ser  alli  o  lugar  do  equilibrio  ,  ou  de  ne- 
nhum estorvo  reciproco;  e  como  nem  o  mar,  nem  o  rio 
poderião  levantar  o  dito  banco  sem  que  este  estorvasse  o 
rio  de  correr  como  até  alli;  faria  isso  represar,  e  subir  as 
aguas  ,  e  augmentar  a  sua  força  ,  e  romper  o  equilibrio 
preexistente  da  hypothese  ;  por  isso  o  banco  só  se  exten- 
deria  formando  grande  baixio  no  mar,  e  sobre  essa  gran- 
de superfície,  onde  não  ha  corrente  para  cavar  fundo,  nem 
o  rio  consentiria  entupir  de  todo ;  nenhuma  navegação  da- 
ria alli,  e  huma  barreira  eterna  vedaria  para  sempre  a  com- 
T.  IX,  P.  I.  F.  mu- 


34  Memorias  da  Acíademia  Real 

municação  dos  navios  do  alto  mar  para  dentro  dos  rios; 
mesmo  em  quanto  ellcs  tran^^portão  arca,  e  em  quanto  iiáo 
chega  essa  época  fatal  de  arrastarem  grossas  pedras  (5)  : 
mas  a  effcctiva  variedade  de  cada  hiima  destas  duas  forças, 
a  do  rio  ,  e  a  do  mar ,  oper;mdo  na  foz ;  procedida  das 
causas  acima  ponderadas ,  faz  com  que  estas  forças  scjao 
desiguaes  a  cada  instante,  que  o  lugar  do  equilíbrio  delias 
a  cada  instante  mude ,  consequentemente  que  o  bnnco  mu- 
de também  de  local ,  e  ande  para  dentro ,  e  para  fora  che- 
gando-se  mais  para  a  terra ,  quando  o  mar  se  embravece , 
ou  o  rio  affrouxa ,  e  afastando-se  mais  para  o  mar ,  quan- 
do o  rio  propondcra  sobre  elle  a  respeito  do  momento 
precedente  ;  e  como  áquem  do  banco  ha  canal  tanto  mais 
extenso ,  profundo ,  e  largo  ,  quanto  maior  he  o  rio ,  que 
o  cava  antes  de  lá  chegar ;  e  além  do  mesmo  banco  onde 
o  rio  nao  vai  entupir,  nem  estorvar,  também  as  ondas  ca- 
vâo  o  mar  mais  profundamente  ,  e  tanto  mais  quanto  fica 
mais  ao  largo,  o  que  acontece  nos  maiores  rios,  nos  quaes 
os  bancos  se  formão  mais  longe  das  tozcs  {6  corol.  i.)  se- 
mie  se ,  que  quando  o  banco  muda  de  lugar,  as  arêas  que 
o  formão  cabem  em  leito  mais  espaçoso  ,  e  fundo  nos 
grandes  rios ,  de  que  nos  pequenos  ;  e  por  isso  o  cortão 
sem  entupir  de  modo  que  estorve  a  navegação;  não  tendo 
tempo  de  formar  banco  no  lugar,  onde  o  começa  momen- 
taneamente ,  e  se  verifica  o  equilíbrio  ;  porque  pela  mes- 
ma razão  muda  logo,  e  não  deposita  mais  nada  no  lugar 
onde  o  começava,  e  onde  ou  o  mar,  ou  o  rio  começaráô 
outra  vez  a  profundar ,  segundo  andar  para  dentro ,  ou  pa- 
ra fora  ;  e  são  além  disso  tanto  maiores  as  alternativas  ,  e 
a  capacidatlc  do  espaço,  por  onde  o  banco  começa  a  formar- 
sc  sem  se  chegar  a  formar ,  quanto  o  seu  leito  he  mais  exten- 
so, e  mais  depende  das  circumstancias  variadas  de  hum  paia 
mais  vasto  ,  e  extenso  ,  que  o  alimenta  ;  e  por  isso  nunca  se 
altêa  muito  o  dito  banco  nos  grandes  rios,  e  menos  quando 
se  dcsencontrão  a  propósito  grandes  marés ,  grandes  choques 
do  mar,  e  grandes  correntes  de  cheias  dos  rios  com  mar  mansoi 


DAS  SclEVCtAS  t»E   LiSBOAí  ''  ^f 

Logo  OS  grandes  rios  terão  esses  bancos  tanto  menos 
supcrficiaes  quanto  forem  maiores,  emais  valentes,  e  con- 
sequentemente mais  navegáveis;  e  os  pequenos  não  permit- 
tiraõ   navegação  sobre  os  ditos  bancos.  Tal  he  o  proce>s(> 
admirável   que  a  natureza  emprega   para  conservar  abertos 
ainda   para    a  navegação  muitos   rios  apesar   dos   estragos  ^ 
que  os  mesmos   tem   sofrido  ,    e  os   portos  em   geral  ,   ac- 
crcsccndo",   que  pela  artenuação  das  matérias  chocadas  en- 
tre si  nos  leitos,  e  depois  envolvidas  nas  ondas,  o  mesmo 
admirável  processo    as  arroja   dos  lados    do  banco    para  as 
praias  lateraes  á  barra ,  donde  as  marés ,  e  ondas  as  arras- 
tão mais  para  fora  ,   e  depois  os  ventos  as  tornão  a  resti- 
tuir  ao  Continente  ;   e   nós  vemos   que  muitos  terrenos   á 
beiramar  são  o  resultado  dessa  operação  reparadora  de  par- 
te dessas  perdas ,  que  fazem  as  chuvas ,  e  os  rios  sobre  o 
Continente.  Desta  proposição  se  deduzem  os  seguintes  co- 
rolários.    i.°  Logo  quanto   mais  rico  d'aguas  for  hum  rio, 
mais  fundo,   e  navegável  será  sobre  o  banco,  ou  barra,  e 
mais    affastado   estará    este    habitualmente    da  sua   foz,    e 
vicc-versa.    2.°   Logo    os  rios  devem  entrar   do  leito  para 
mar  nas  suas  fozes  com  adequada  secção  de  boca,  e  a  me- 
nor a  respeito  da  largura  do  leito,  ou  còm  margens  iguacs, 
e    pela    direcção    perpendicular    á  costa    para   formarem    o 
banco    mais  ■  longe  delia;   e  até  para  que    as  ondas  vindas 
nessa  direcção  atacar  as  praias  não  fiquem  obliquas  ao  ca- 
nal sobre  o  banco,  e  o  não  entuplo  de  lado,  ou  na  tota- 
lidade,   mas  andem   só  com   o  banco  para  dentro,   e  para 
fora   na  direcção  do  fundo  canal ,   que  o  rio  abre  até  ao 
mesmo  banco  segundo  à  direcção  do  seu  cumprimento;  as- 
sim nunca  as  ondas  atravessarão   o  canal   transversalmente 
para    o   entupir ,    e   só  accidentalmente   nas  tormentas    de 
hum  vento  decidido ,   e  transversal  ,   como  o  do  Sul ,  etc. 
alterarão  hum  pouco  a  direcção  geral  das  ondas  pela  per- 
pendicular ás  praias.    3.°  Logo   os  pequenos  rios  não  po- 
derão ter  barras  navegáveis  senão  no  caso  de  terem  leitos 
salgados  mui  amplos ,  onde  possão  entrar  grandes  volumes 
í.  JE  ii  d'a- 


5^  Me  l^xy^  rt  aj  ji?*  A  <j  a  o  s  *w1  ;R  eia  l 

^'agyasíiaígadasnajs  marés  ^  que  supiSo  na  vasante,  õu  no 
s&u  gyro  a  falta  daSí,ngu^s.}PÍuviaes  desses  pequenos  rios  ^ 
como.  acontece  uo  Vouga ,  ou  barrfl  de  Aveiro  ,  e  na  de- 
Setúbal  j  o  Limaj  e,:o  Mondego  tem  leitos  menores,  e.as 
suas  barras,  saa  mi-iito? inferiores  áquellas,  sendo  o  Monde-* 
go  m^hor  do  qup  o  Vouga;  mas  o  leito  salgado. do  Vouga 
tem  51  J.cgoas  !  4°, Logo  a  barra  de  hum  rio  pecrará  oc- 
c^paud»  po)ç5e$  do  rPcu  Jeit».  sailgtído ,  onde  consequente^ 
rotiitc  se  lhe. jiiío.  deve  tirar  .cousa,  alguma  menos,  que 
n.ío  íjçjp  para  ;Ihe,  procurar  alguma,  outra  vantagem  maior,, 
e?  s<:mpre  o  sactif^ciò;  do  leito  devç  ,sef  mui  pequeno  ,  e 
somente  ncssc;  caso  necessário,  j'."  Logo  finalmente  todas 
as  çaus^Sj  qué  .fict».  concorrido  .para  ;o  entupimento  dus 
leitos  dos  rioSi.até!á»;jsuas  fozes ,  privando>os  de 'huma:  par» 
tç  d4  capacidade  ^o  seU  leito  salgado  ,  onde  recebem  as 
marés  do  mar;  e  empobrecidos  seus  mananciacs ,  concorrem 
igUí|lm'-'níe-.  pata  destruir  a  navegação  sobre  as  suas  barras^ 
ajém  jde  qonduzireníi  para  cilas  mais  e  mais  grossos  entu^ 
lhos.  Logo  também  .finalmente  as  barras  de  todos  os  rios 
1^0  p.çqrqndA  atéquc  fiiialmente  acabarão  as  dos  grandes 
tipSi,,,CQmo,  já  acabarão  as  dos  pequenos ,  que,  tiverâo  fun- 
dos, quando. nada  transportavão,  ou  quando  só  transporta- 
YÃo  mui-  pquças ,  e  ligeiras  matérias  ,  as  quaes  não.  entu* 
pião  9  quC' elles  cavavão  nos  ia^^efuos. ;  ou  quando  não  :ti4 
nhão  com  qUe  formar  essas  mesmas  barras,  ou  bancos,  nem 
obstruir, o?  leitos;  devendo  durar  mais  as  barras  pertencen-r 
tes  aos  fiop  mais  ricos  d'aguas  pluvlaes,  e  mais  bem  pror 
vidos  ao  mesrOo  tempo  de  Içitos  salgados ,  para  auxilia* 
rem  majs  a  força  pluvial  dos  rios:  mas  todos  finalmente 
acabarão,  como  jã  disse,  (y)  e  com  dor  o  repito  neste 
lugar,  porqpe^  as  ondas  não  removerão  o  banco  quando  elle 
não  f'Jr  de  arcas ,  ou  quando  o  leito  já  pelo  seu  alteamen-! 
t(í.,4esdí^a.  sa»,  prigçnx.aDf  ao  inai:.poder.ari[a3tar.:pedras.:  .; 

-r.n   n^fj    »rj(í    í:nr\onD'irt   Jto    nt)...!   ".t     .;-;i:iq   ?^    TP-IudÍLí;   rr 


a  •.  D  A  s,  S  ftiEHCJ  As  íjrf.  :L  X  tXfíísí  M  fji 

§     8. 

£?«  todos  os  rios  da  Costa  Occidental  de  Portugal  deve  tio 
estado  actual  dos  mestnos  rios  ^  iaver  bum.  banco  alto  de  aréa 
superior  ds  marés  chamado  Cabedelo ,  o  qual  atravessa  nas 
suas  foz£s  bvina  parte  do  antigo  leito  dos  rios  ^  começando  da 
testa  da  margem  esquerda  para  a  directa ,  ou  do  Sul  para  o 
Narte  ;  ou  mais  geralmente  começando  ■  da  testa  da  margem 
mais  cttrta  para  a  mais  avançada  na. .mar,  y  ou.  d»,  Equador. 
para  o  Polo  nos  rios  de  todo  o  mundo,  ;rO'v')  "o::  ■./ 
ii; .  I  Ziesdc  que  os  rios  se  empobrecerão  d'aguas  pelas  cau- 
sas-.exposras  (3),  e  começarão  a  entupir  os  seus  leitos,  c 
a  arrojai'  para  dentro  do  mar  montões  de  arêas  ,  e  entu- 
lhos (6) ,  os  Titesmos  rios  não  poderão  mais  conservar  aber- 
ta ,  e  menos  de  verão ,  toda  a  sua  antiga  foz  limpa  ,  e 
funda;  porque  desde  então  o  mar^  arrojando  quanto  pode 
para  encostar  as  fozes  dos  rios  parte  desses  bancos  que  os 
mesmos  rios  formão  dentro  no  mar  perto  das  suas  fozes 
(6  coro!,  t.  i)i  conseguirão  arrojallos  mais  para  dentro  dos 
leitos  por  aquella  parte  dos  mesmos  leitos  por  onde  a 
corrente  lhe  oppunha  menor  resistência,  a  saber,  por  on- 
de erão  menos  fundos ,  ou  corria  menos  volume  d'asuas ; 
logo  seria  a  parte  do  leito  do  lado  esquerdo,  donde  os 
nossos  rios  s€  retirao  para  se  encostarem  á  direita  (3),  e 
lá  se  formaVão  bancos  ,  que  se  engrossao  com  as  ondas 
«em  opposição  dos  rios  ,  tapando  huma  porção ,  e  a  mais 
fraca  dos  leitos  ,  tanto  maior  quanto  os  mesmos  rios  tem 
perdido  mais  a  força  para  os  repcllir ,  e  arrastar  para  o 
mar ;  c  quanto  a  corrente  actual  dos  rios  nas  fozes  lho 
consente,  e  não  he  capaz  de  desfazer  no  mesmo  tempa 
em  que  o  mar  as  accuraula,  e  por  isso  atravessão ,  nos  di- 
tos nossos  rios  da  costa  Occidental  ,  os  leitos  da  esquerda 
para  a  direita,  ou  do  Sul  para  o  Norte:  estes  bancos,  ou 
cabadeJos  formão ,  no  estado  actual  e  decadente  dos  rios^ 
»s  margons  esquerdas  dos  meamos  j  margens  elásticas ,  quç 

SC 


3?  MeMORiA^s  DA  AcademFa  RlAt, 

se  avisinhão  á  direita,  quanto  nas  diftcrentes  estações,  e 
estado  dos  rios  ,  a  corrente  alli  apertada  e  constrangida , 
lho  pôde  pcrmittir  sem  as  defazer  ou  alargar  :  cstts  cabe- 
delos assim  formados  nas  fozes  àe  perpetuâo,' engrossão  , 
c  levantáo  ,  recebendo  da  banda  do  mar  as  arêas  que  as 
ondas,  e  os  ventos  lhe  accumulão ,  e  lá  ficão  parte  delias; 
porque  cada  porção  ultima  das  ondas  ,  que  montão  esse 
banco  de  arêa  ,  sobe  levando  arêas  envolvidas  nellas,  e  não 
descem  todas,  porque  a  agua  filtra-se,  e  some-se  no  dito 
banco  esponjoso  deixando  a  arêa  coada  sobre  o  dito  ban- 
co ,  e  os  ventos  depois  de  maior  seca,  qu  sendo  mais  ri- 
jos ,  as  vão  accumulando  mais  para  cima  ,  onde  as  ondas 
não  chegão ,  nem  lá  as  podcrião  levar ;  chegando  por  esse 
modo  os  cabedelos  a  ser  como  são  altos,  lurgos  ,  e  mui 
robustos  tapumes ,  que  todos  os  rios  tem  atravessados  nas 
suas  fozes  do  Sul  para  o  Norte  na  nossa  costa  occidentd. 
Estes  cabedelos  se  engrossarião  continuamente  pelos  ventos 
do  mar  á  custa  dos  leitos  ,  se  os  rios  quando  vão  cheios 
lhe  não  cortassem  huma  grande  talhada  longituc^inilmcnte 
pelo  Norte,  e  Nascente;  corte  que  o  mar  supre  logo  que 
o  rio  adelgaça  muito  o  cabedelo ,  ou  o  faz  mui  estreitos , 
pois  então  nas  grandes  marés  as  ondas  o  salvão  de  parte 
a  parte  por  não  ter  grossura  para  absorver  as  ondas ,  e  por 
esse  modo  logo  o  alargão  sobre  o  rio  até  o  tornarem  a  pôr 
ajudadas  do  vento,  na  grossura  que  tinha  ,  e  mais  o  não 
salvarem  ,  nem  alargarem  ,  e  só  lhe  metterem  arêas ,  com 
que  o  engrossão,  e  prolongão  passadas  as  cheias,  e  maio- 
res correntes;  conservando  com  este  movimento  continuo, 
pelo  decurso  de  séculos,  e  com  proporções  quasi  inalterá- 
veis ,  huns  bancos  ,  que  tantas  causas  poderosas  tendem  a 
formar,  a  engrandecer,  e  a  destruir;  os  quaes  mesmo  no 
curto  periodo  de  hum  anno ,  fazem  tantas  mudanças  ,  mas 
debaixo  de  periodos  quasi  regulares  ,  e  que  não  excedem 
certos  limites.  Logo  também  visto  que  os  rios  se  encos^ 
tão  junto  das  fozes  desde  mui  remota  época,  ao  lado  da 
maior  margem  (4) ,  os  cabedelos  serão  sempre  do  lado  da 

me- 


CAS  SCIENCIAS  DE  LrSB^A.  §9 

menor  nos  rios  de  todo  o  mundo ,  situados  como  se  disse 
(4  corol.  4) ,  isto  he  ,  na  esquerda  dos  que  no  nosso  he- 
misfério olhão  para  o  Pocnrc ,  e  da  direita  dos  que  olhao 
para  Nascente  ,  e  tudo  pelo  contrario  no  hemisfério  Aus- 
tral;  e  mais  geral  do  lado  do  Equador,  ou  donde  soprão 
os  ventos  com  que  mais  chove  no  paiz. 

§     9- 

No  estado  actual  da  decadência  dos  rios,  iodos  os  da  cos' 
ta  Occidental  do  Reino  tem  a  sua  esquerda  sobre  hum  cabede- 
lo ,  e  não  na  sua  antiga  margem ;  e  essa  margem  esquerda  no 
cabedelo  he  sempre  a  menos  avançada  ,  e  em  todos  os  rios  do 
mundo  a  margem  sobre  o  cabedelo ,  he  sempre  a  mais  curta. 

Porque  mesmo  em  iguaes  circumstancias  de  tenacida- 
de seria  mais  curta;  e  sendo  ella  hum  areal  solto  e  incon- 
sistente, mais  lugar  tem  a  lei  geral  (4),  que  até  demostra 
por  excepção ,  que  no  caso  de  extraordinária  differença  en- 
tre huma  margem  durissima  ,  e  outra  de  arêa  solta  ,  será 
então  a  mais  curta  do  lado  do  areal,  ou  da  inconsistente 
margem  ,  ainda  que  fique  á  direita  nos  nossos  rios  (4  corol.  3). 
Logo  Cgrande  consequência)  na  época  actual  da  decadência 
dos  rios ,  todos  os  da  costa  occidental  do  Reino ,  e  o  Dou- 
ro, que  he  hum  dclles ,  tem,  e  terão  por  leis  necessárias, 
e  universaes  ,  ás  suas  margens  esquerdas  não  sobre  a  anti- 
ga margem  ,  mas  sobre  os  seus  respectivos  cabedelos ,  e 
mais  recolhidas  ,  ou  mais  curtas  ;  e  as  suas  margens  direi- 
tas roais  avançadas  para  o  mar ,  ou  mais  compridas ,  e  en- 
costadas sempre  a  antiga  margem  direita ,  acontecendo  o 
mesmo  nos  rios  que  olhão  para  o  Poente  no  nosso  hemis- 
fério-, e  viceversa  nos  que  olhão  para  Nascente ,  ou  estão 
noutro  hemisfério.  Nós  vamos  ver  o  que  se  passa  nas  fozes 
dos  rios  de  margens  desiguaes,  que  geralmente  todos  tem 
tomado. 


40  Memorias  da  Academia  Real 


IO. 


Todos  os  rios  que  tem  margens  desiguaes ,  ou  desigualmen- 
te avançadas  m  mar,  mtidão  a  direcção^  que  traztm  no  lei- 
to até  alli ,  e  se  lanção  no  mar  para  o  lado  da  margem  mais 
curta  ;  isto  he ,  para  a  esquerda ,  ou  para  algum  ponto  entre 
o  Sul,  e  o  Oeste,  ou  para  dentro  do  ^.°  Qtiadrante  em  todos  os 
nossos  rios  que  tem  fozes  naturaes  na  costa  occidental  do  Rei- 
no ,  ou  que  em  todo  o  nosso  hemisfério  estão  virados  para  o 
Poente ,  e  -viceversa :  ou  mais  geral  ao  sair  na  foz  inclinão  a 
corrente  procurando  o  Equador. 

Por  que  nos  rios  de  margens  desiguaes  o  fluido  entre 
cilas  contido ,  e  em  nivcl  superior  ao  mar  para  onde  cor- 
re,  na  vasante  se  ha  de  derramar  sobre  elle  logo  que  as 
ditas  margens  lhe  não  obstem  ,  isto  he  ,  logo  que  vencer 
a  testa  da  menos  avançada  ;  e  como  o  fluido,  ou  cada  hu- 
ma  das  suas  particulas  ,  e  camadas  fluidas  decidem  o  seu 
riovimento  pela  direcção  da  maior  queda,  ou  da  mais  cur- 
ta distancia  do  lugar  em  que  se  achao  áquelle  para  onde 
vão  passar  ,  o  farão  na  foz  pelas  perpendiculares  á  linha 
de  contacto,  ou  commum  secção  entre  o  rio,  e  o  mar,  ou 
á  linha  que  une  as  duas  testas,  e  he  propriamente  a  boca 
do  rio  entrando  no  mar ;  porém  o  mesmo  fluido ,  ou  cada 
huma  das  suss  moléculas,  devendo  obedecer  á  força,  que 
as  move  por  essas  direcções  perpendiculares  á  secção  com- 
mum ,  ou  á  linha  que  une  as  testas  das  duas  margens  na 
boca  do  rio  ,  trazem  já  o  outro  movimento  adquirido  no 
leito  com  que  se  moviâo  até  alli  ,  conclue-se  ,  que  essas 
moléculas  seguiráõ  huma  direcção  media  comprchendida 
cnrrc  a  que  traziao  as  aguas  no  leito  perto  da  foz  ,  e  a 
perpendicular  á  linha  que  une  as  duas  testas  das  margens , 
c  mede  a  boca  do  rio  ;  seja  qual  for  a  direcção  das  aguas 
no  leito ,  e  seja  qual  for  o  angulo  que  essa  linha  faça  com 
as  suas  margens ;  e  mesmo  no  caso  do  rio  ser  mettido  en- 
trv  margens  parallclas ,   e  rectas  ^   e  (^ue  a  corrente  fosse 

pa- 


DAS   SCIENCIAS  DE   LlSBOA.  4I 

parallela  a  ellas.  Para  mais  clareza  repito  a  demonstração 
sobre  figura  era  nota  (*) ,  e  mais  claros  ficaráó  os  corolá- 
rios seguintes. 


\    I  •«-    :^      éT ,V  «t--,_   p      r 

y^nmimniimililJinillllMIIIITmill I i mirmmiTmiipililninimmijiiiM a mnmii.jiTnmmmTmlnilllIiilllliiiilniiiiiiiiinHiiiilj llilijiiimBili.inil 

D 

i."  corol.  Logo  quanto  mais  desiguaes  forem  as  mar- 
gens de  hum  rio  ,  mais  também  a  direcção  que  o  mesmo 
rio  tomará,  lançando-se  na  foz  para  o  mar,  fugirá  da  di- 
recção, que  trazia  no  leito,  pois  que  a  perpendicular  á  li- 
nha que  une  as  testas  se  faz  mais  perpendicular  ao  leito  , 
e  maior  angulo  faz  com  a  que  trazia  no  mesmo  leito ,  lan- 
çando-se para  o  lado  da  menor  margem ,  ou  para  a  esquer- 
da nos  rios  da  nossa  costa  occidentul ,  e  por  consequên- 
cia  no  Douro. 

2.°  corol.  Logo  quando  se  conseguisse  metter  hum 
rio  junto  da  sua  foz  entre  margens  solidas  de  paredões , 
parallelos ,  e  que  a  corrente  nelle  fosse  parallela  ás  ditas 
margens,  ou  paredões,  e  o  rio  alli  ficasse  perfeitamente  di- 
rigido ,  e  encanado ;  assim  mesmo ,  se  as  mesmas  margens 
ficarem  desigualmente  avançadas  ,  o  rio  ao  entrar  no  mar 
deveria  mudar  a  direcção  que  tivesse  nesse  leito  parallelo , 
e  se  lançaria  para  o  lado  da  menor  margem  ,  ou  para  a  es- 
querda nos  nossos  rios  da  costa  Occidental ,  ou  para  03.** 
quadrante  entre  o  Sul ,  e  Oeste  }  e  o  mesmo  acontecerá 
no  Douro,  que  he  hum  delles. 

3.°  corol.  Logo  também  se  as  margens  forem  igual- 
mente avançadas,  a  perpendicular  á  secção  entre  o  rio  e  o 
mar,  ou  á  linha  que  une  as  testas,  que  he  a  boca  do  rio, 
seguirá  a  direcção  da  linha  que  passa  pelo  meio  longitu- 
dinal do  leito,  e  as  paralisias  a  ella,  e  não  fará  desviar 
Z.  IX.  F.  L  *  neiu 


42>  Memorias  da  Academia  Real 

nem  para  hum,  nem  para  outro  lado  a  direcção  que  ò  rio 
traz,  e  com  que  chega  á  toz  para  se  lançar  no  mar;  an- 
tes tende  a  cncaminhalla  para  o  meio  do  leito,  c  scgudlo 
se  nelle  vieísc  algum  tanto  obliqua  5  e  se  as  margens  fo- 
rem rectas,  e  parallclas  a  essa  coricnte,  além  de  iguacs, 
o  rio  sahirá  para  o  mar  com  a  sua  máxima  força  por  ser 
a  somma  das  correntes  parallclas  ,  e  entrará  na  direcção , 
que  trazia  no  leito  sem  fazer  obliquidade  para  a  direita  , 
ou  esquerda  a  respeito  do  mesmo  leito,  e  pela  perpendi- 
cular á  boca  do  rio,  que  he  a  menor  secção,  que  pods 
ter  o  leito  do  mesmo  rio  entrando  no  raarj  e  melhor  bar- 
ra dará  sobre  o  banco  (7  corol.  2). 

A.°  corol.  Lo2;o  se  as  margens  forem  igualmente  avan- 
çadas a  corrente  procurando  o  meio  longitudinal  do  lei- 
to ,  e  suas  parallclas  ,  não  deixará  formar  o  cubedelo  a  hum 
lado  dentro  no  leito  ;  apenas  consentirá  ,  trazendo  o  rio 
menos  aguas,  e  sobejando  leito,  a  formação  de  fachas  de 
arêa  ,  ou  praias ,  que  o  estreitem  parallelamente  á  linha  , 
que  passa  pelo  dito  meio  longitudinal  desse  leito,  encos- 
tadas essas  fichas,  ou  praias  ás  margens;  mas  não  cabede- 
lo ano-ular:  e  ficará  o  leito  recto,  e  de  margens  parallclas 
no  verão ,  ou  havendo  poucas  aguas ,  mas  não  cabedelo 
pontawudo  para  o  leito ;  e  assim  acontecerá  no  Douro  quan- 
do tiver  margens  igualmente  avançadas  para  o  mar. 

j-,°  corol.  Logo  para  que  hum  rio  não  mude  a  direc- 
ção que  traz  no  leito  junto  da  foz  quando  se  lança  no 
mir ,  he  preciso  absolutamente  que  as  margens  do  mesmo 
fio  sejão  igualmente   avançadas  para  o  mar. 

6.°  corol.  Logo  querendo-se  mudar  a  direcção  de  hum 
riò  ao  entrar  no  mar  para  a  direita,  ou  para  a  esquerda, 
bastará  avançar  convenientemente  mais  para  o  mar  a  mar- 
gem opposta  áquella  para  onde  se  pertender  inclinar  a  di- 
recção do  rio ,  ou  a  barra.  As  fozes  do  Vouga ,  e  do  Liz 
offerecem  huma  prova  desta  verdade  ;  lá  se  fizerao  fozes 
artificiaes ,  adiantando  para  o  mar  as  margens  esquerdas 
com  fortes  paredões ,  ficando  as  suas  direitas  sobre  o  arêal, 

i  .\  .  \  '.     que 


DAS  SciENCIAS  DE  Li  S  BOA.  43 

que  logo  se  encurtarão  pela  sua  tragilidade  (4  corol.  3.) ; 
e  estes  rios  se  lanção  no  mar  para  a  direita  ,  ou  para  den- 
tro do  4.°  Quadrante  ,  quazi  pelos  rumos  de  Nor-Oeste  , 
e  ON-O;  justamente  o  contrario  das  fozes  naturaes  ,  que 
tem  naturalmente  solida ,  e  mais  avançada  a  sua  margem 
direita  ,  e  a  esquerda  sobre  a  arca  solta  do  cabedelo. 


II. 


Nos  rios  de  margens  desigualmente  avançadas  no  mar , 
as  correntes  nas  etichentes  das  marés  virdo  entrar  fbliqitanien- 
te  no  leito ,  do  lado  da  mais  curta  margem ,  dirigidas  trans' 
versalmente  contra  o  lado  da  maior  j  eu  nos  nossos  rios  entra- 
rdõ  transversalmente  da  esquerda  para  a  direita  \  e  do  lado  do  E- 
quador  para  o  do  Polo  nos  nos  de  todo  o  mundo. 

Porque  como  as  aguas  do  mar  entrão  para  o  leito  do 
rio  na  enchente  pelas  mesmas  leis ,  com  que  sahem  ,  is- 
to he  ,  em  razão  i."  da  superioridade  ,  que  então  tem  as 
aguas  do  mar  sobre  as  do  rio,  para  o  qual  se  lançarão  pe- 
ias perpendiculares  á  secção  da  sua  boca,  ou  da  linha, 
que  une  as  testas  ;  2  "  de  hum  movimento  geral  adquirido 
lá  no  largo,  quando  marchão  para  a  foz  do  rio;  segue-se 
que  estas  aguas  entrando  no  leito  fluvial ,  tomaráô  huma 
direcção  media  entre  aquella  ,  que  as  aguas  trazem  da  bar- 
ra para  a  foz ,  e  aquella ,  com  que  ao  chegar  á  mesma 
foz  pertendem  lançar-se  no  rio  pela  perpendicular  á  sec- 
ção entre  o  rio  ,  e  o  mar  ,  ou  i  boca  do  rio ,  ou  á  linha , 
que  une  as  duas  testas  das  suas  margens  ;  entrarão  pois  trans- 
versalmente no  leito,  e  tanto  mais,  quanto  mais  desigual- 
mente avançadas  forem  as  duas  margens,  ou  mais  obliqua 
for  com  o  leito  a  secção,  ou  boca  do  rio  na  foz.  Desta 
proposiçâ),  e  da  antecedente  (lo)  se  deduz  a  grande 
consequência  :  Que  em  todos  os  rios  ,  que  tiverem  as  suas 
margens  desigualmente  avançadas  no  mar ,  as  correntes  en- 
trarão nas  enchentes  das  marés  obliquamente  no  leito  pe- 
lo lado  da  menor  margem  3  e  na  vasante  sahiráô  do  mesmo 

F    ii  OíO" 


44  Memorias  DA  Academia  Real 

raodo  obliquamente  para  ornar  por  esse  mesmo  lado',  que 
he  o  do  Sul  cm  todas  as  fozes  naturaes  dos  nossos  ri(  s  da 
costa  Occidental  do  Reino  ;  bem  ccmo  acontece  no  Dou- 
ro que  hc  hum  dtlles  ,  e  de  todos  os  que  olhao  para  O. 
no  nosso  hemisfério.  Isto  posto  continuemos  a  examinar 
o  que  se  passa  nas  fozes  ,  e  barras  dos  rios  ,  que  tem  as 
suas  duas  margens   desigualmente  avançadas  para  o  mar. 

§        Í2. 

Se  em  hum  rio  contido  entre  tnnrgens ,  entrar  btima  cor- 
rente obliqua  ,  fdzendo  angu/o  come/las,  e  ta  corrente  atraves- 
sando o  ria  ira  chocar  a  margem  para  onde  se  dirige ,  e  en- 
(ostar-se  a  ella  ,  perdendo  allt  hiinia  parte  da  força ,  e  corroeU' 
do  a  mesma  margem  ;  encostará  para  ella  a  corrente  ,  e  as  a- 
guas  do  rio ;  e  fornurd  no  leito  hum  seco  ,  ou  estreitamente 
na  parte  opposta ,  o  qual  será  tanto  maior ,  quanto  essa  direc- 
ção de  corrente  ,  que  entrar  obliquamente  no  leito  ,  se  aproxi- 
mar  mais  da  perpendicular  á  margem  ,  que  vai  ferir. 

Porque  as  particulas  ,  ou  moléculas  atravessando  o  rio 
vão  bater  na  margem  opposta,  ela  perdem  tanta  mais  for- 
ça ,  quanto  menos  a  direcção  da  corrente  se  desvia  da  per- 
pendi^ul.ir  á  mesma  margem  ;  e  com  a  restante  força  hc 
que  se  movem  dalli  em  diante  parallelamente  á  mesma 
margem  ;  estas  primeiras  particulas  depois  de  haverem  ba- 
tido na  margem  suo  successivamente  chocadas  pelas  que  se 
Jhe  seguem ,  e  obrigadas  de  novo  a  encostar  mais  á  mes- 
ma margem  essas  direcções  parallelas,  donde  alguma  elas- 
ticidade tenderia  a  desvia-las  hum  pouco ;  e  por  esse  mo- 
do as  aguas  alli  se  encostarão  todas ,  e  com  bastante  esfor- 
ço trabalharão  em  corroer  a  margem  naquelle  lugar;  e  se- 
rá curva  a  escavação  que  alli  fizerem  ,  porque  as  forças , 
que  alli  opérao  ,  e  a  formão,  ou  pertendem  forma-la,  são 
a  cada  instante  novamente  chocadas  ,  de  sorte  que  a  sua 
direcção  varíi  successivamente  ,  e  nisso  consiste  o  movimen- 
to curvilíneo.    Ora  pela  mesma  razão  que  o  rio  se  vai  en- 

cos- 


.       DAsSciENCIASDÇLlSBOA.  45" 

costar  a  esta  margem  chocada,  as  suas  aguas,  e  correntes 
se  ausentarão  proporcionalmente  da  margem  opposta  que 
por  isso  se  deixará  entupir,  e  estreitar;  c  mais  ainda  se 
a  margem  atacada  pela  corrente  se  deixar  corroer ,  c  para 
lá  se  possa  mais  encostar  o  mesmo  riodcsviando-se  da  mar- 
gem opposta ;  e  assim  crescerá  mais  o  seco  que  hc  o  re- 
sultado da  maior  ausência  d'aguas  ,  e  correntes  :  para  maior 
clareza  ,  e  rigor  vai  em  nota  demonstrada  com  figura  esta 
proposição  (a):  o  rio  encostado  com  violência  contra  a 
margem  para  onde  as  correntes  obliquas  o  empurrão  ,  con- 
tido ,  c  apertado  entre  ella ,  e  a  força  da  mesma  corrente 
engrossa  o  seu  volume ,  o  estreita  e  o  eleva  hum  pouco ; 
donde  se  segue  que  mais  abaixo ,  quando  se  escapa  i  for- 
-ça  que  o  encostava  á  margem  ,  se  dirige  ao  lado  opposto, 
.para  onde  terá  declive  por  terem  abaixado  alli  as  aguas  pro- 
porcionalmente á  accumuliição  ,  que  tem  no  lugar  da  mar- 
gem   chocada ,    e    de  alguma    elasticidade  ;    de  novo    pois 


«      p 

atravessarão  o  alveo ,  ainda  que  mais  fracamente  ,  e  menos 
.obliquamente  pela  força  perdida  no  primeiro  choque  ;  mas  se 
íiver  feita  corrosão  curvilínea  sahirá  sim  mais  fraca ,  po- 
rém mais  obliquamente  do  que  se  for  incorroivel  ,  e  ficar 
recta  a  margem  chocada  ,  o  que  deverá  proseguir  até  de 
todo  se  extinguir  da  força  obliqua  a  parte  que  for  perpen- 
dicular ás  margens,  quando  se  decompõem  no  choque,  e 
£car  só  a  parallela  ás  margens  que  he  a  que  não  soffrc  di- 
jTiiouiçáo  ,  ou  soffre  muito  pouca  nos  choques  contra  as  di- 
.ta$  margens. 

Corol.  i.°  —  Logo  as  correntes  obliquas  fascm  os  lei- 
tos 


46  Memorias  da  Academia  Real 

tos  tortuosos,  atacando  as  margens,  cavandoas,  juntando 
as  aguas  a  esse  lado ,  entupindo  os  alveos  no  lado  oppos- 
to  que  ficão  alli  mais  estreitos  ,  e  obrigando  as  aguas  a 
subir  no  leito  acima  desse  estreitamente  para  ganharem  a 
necessária  corrente  ,  c  com  ella  o  rio  se  desonerar  como 
antes  de  formado  o  estreitamento;  e  como  da  força  obli» 
qua  se  destroe  cuntra  as  margens  em  cada  choque  a  parte 
perpendicular  ,  se  estas  margens  forem  incorroiveis ,  e  pa- 
rallelas  chegarão  a  fazer  as  correntes  parallelas  ao  leito , 
e  ás  margens.  —  Corol.  2.''  —  Logo  hum  rio  de  margens 
rectas  susceptíveis  de  corrosão  não  pódc  existir  sem  que  a 
corrente  seja  parallcla  a  cada  huma  delias,  e  serem  portan- 
to parallelas  entre  si  as  mesmas  margens.  —  Corol.  3.°  — 
Logo  as  correntes  rectas  ,  e  parallelas  no  alveo  dão  mar- 
gens rectas  parallelas  ás  ditas  correntes  ,  sendo  as  margens 
corroiveis,  c  os  rios  as  farão  espontânea,  e  naturalmente; 
os  mesmos  rios  se  alargarão  no  lugar  das  voltas,  as  cor- 
rentes alli  diminuirão,  e  as  aguas  rio  acima  a  respeito  das 
voltas  abaixarão  naturalmente  não  sendo  estorvadas  porcau- 
zas  externas.  —  Corol.  4."  —  Logo  se  huma  corrente  se 
fizer  parallela  a  huma  margem  fixa  ,  invariável ,  e  incorroi- 
vcl ,  o  leito  se  cortará  parallelamente  a  essa  margem  ;  e 
a  opposta  ,  ainda  que  seja  angular,  se  poder  ser  corroída 
pela  corrente  ,  se  fará  de  si  mesma  parallela  ;  e  se  for  mais 
frágil  como  v.  g.  arêa  se  cortará  em  pouco  tempo  ,  e  fi- 
cará parallcla  á  primeira  corrente  ;  isto  he  o  que  acontece  nas 
cheias  violentas  do  Douro.  Corol.  y.°  Logo  se  hum  rio 
por  qualquer  cauza  fizer  angulo  no  seu  leito,  ou  se  en- 
tortar ,  estreitará  o  mesmo  leito  antes  parallelo  na  parte 
convexa  da  volta ,  e  tanto  mais  quanto  maior  for  o  angu- 
lo da  volta  ;  o  rio  se  encostará  ao  lado  concavo  ;  e  para  se 
desonerar  alli  por  leito  menor,  ou  de  menor  secção,  subi- 
rão as  aguas  acima  da  volta  que  o  rio  fizer,  e  se  formará 
nella  gruide  corrente.  Logo  também  se  por  qualquer  mo- 
do se  tirar  a  volta  de  hum  rio ,  ou  se  fizer  parallelo  á  cor- 
rente no  mesmo  lugar ,  em  que  até  alli  era  obliqua  ,  acon- 

tc- 


DAS   SciENCIAS   DE    LiSBOA.  47 

tecera  o  contrario,  isto  he,  o  mesmo  rio  se  alargará  espon- 
taneamente, as  aguas  abaixaráõ  acima  da  volta  ,  e  a  cor- 
rente que  ncUe  havia  diminuirá  ,  e  se  fará  regular  no  lei- 
to, iguilando  á  que  tinha  abaixo,  e  acima  do  estreitamen- 
to. Tudo  iato  tem- lugar  ainda  mesmo  suppondo  o  rio  de 
margens  rectas,  e  parallelas  ,  o  que  as  correntes  tendem 
a  fazer  quando  ha  huma  certa  homogenidade  de  matérias 
no  leito  ,  e  nas  margens  ;  mas  não  a  havendo  os  rios  es- 
cavarão com  desigualdade  os  leitos,  e  fará  isso  as  vezes 
de  voltas  que  ainda  que  rasteiras  sempre  influirão  para  dcs' 
viar  as  correntes  ,  e  fazer  variar  também  suas  direcções  as- 
sim como  para  perderem  o  parallelismo  supposto.  Corol.  6." 
Logo  se  diminuir  a  corrente,  ou  volume  das  aguas  de  hum 
rio,  cm  cujo  leito  hajão  correntes  parallelas  ao  leito,  ou 
alinha  que  o  devide  longitudinalmente  pelo  meio,  o  rio 
se  estreitará  parallclamente  a  essa  linha ,  que  divide  assim 
o  leito  longitudinalmente  pelo  meio  ,  ou  ás  duas  margens 
sendo  ellas  parallelas  entre  si  ;  porque  seguirá  sempre  o 
seu  parallelismo  ao  meio  do  leito ,  não  lhe  permittindo 
a  direcção  de  tal  corrente  atacar  nenhum  dos  lados  ,  nem 
consequentemente  fazer  estreitamento  junto  ,  ou  encostado 
a  algum  delles  ,  nem  formar  os  secos  angulares  na  parte 
opposta  j  e  por  isso  igualadas  as  margens  para  tirar  a  obli- 
quidade  das  correntes  dos  rios,  nenhum  cabedelo  na  foz 
será  angular,  nem  poderá  tomar  essa  forma;  os  rios  de 
verão ,  não  podendo  occupar  todo  o  leito  do  inverno  ,  se 
estreiraráo  formando  fachas  de  arêa  ,  ou  praias  parallelas 
encostadas  ás  margens  dos  mesmos  rios  nas  suas  fozes ,  e 
sempre  os  leitos  ficaráó  rectos  alem  de  mais  largos.  Co- 
rol.  1° 

§.     13. 

Se  bum  rio  ao  contrario  conservar  correntes  parallelas  ds 

margens  ,  ou  d  linha ,  que  divide  o  leito  longitudinalmente ,  tn^t 

for  o  leito  quem  faça  angulo  ,    é  mude  de  direcção ,    a  mesma 

corrente    ir  d  ferir  a  margem   na  volta  y    que  fica  para  dentro 

>.  ^  da 


48  Memorias  da  Academia  Real 

àa  direcção ,  que  a  corrente ,  e  o  leito  trazião ,  isto  he ,  o  con- 
cavo da  volta ,  e  tudo  alli  se  passará  corno  se  as  margens  ,  e 
o  leito  se  tivessem  conservado  rectos ,  e  fosse  a  corrente  quettt 
tivesie  tomado  essa  ohltquidade. 

Porque  as  torças  das  aguas  sendo  as  mesmas ,  e  ferin- 
do ,  ou  chocando  com  os  mesmos  ângulos  a  margem  ,  sof- 
frcm  iguacs  perdas  no  choque  ,  e  dão  a  mesma  força  re- 
sultante paralleb ;  pois  tudo  seria  idêntico;  logo  a  corren- 
te parallela  chocando  a  margem  que  faz  angulo  para  den- 
tro da  direcção  ,  que  o  rio  trazia  ,  e  que  a  corrente  vai 
ferir,  ajuntará  sobre  cila  a  corrente,  e  as  aguas  do  rio  a- 
tacardõ,  e  corroerão  essa  margem  abaixo,  e  ao  pé  da  vol- 
ta no  concavo  delia  ,  e  alli  fará  corrosão  curvilínea  j  o  rio 
se  estreitará  da  parte  opposta  ou  convexa  da  volta ,  a  cor- 
rente se  augmentará  nesse  estreitamento  ,  e  tudo  o  mais  que 
acontece  entrando  obliquamente  huma  corrente  em  hum  rio  , 
acontecerá  fazendo  o  rio  essa  mesma  volta  ,  ou  angulo  com 
o  leito  até  alli ,  e  no  qual  a  corrente  viesse  parallela  ás 
margens.  Logo  se  hum  rio  que  tiver  leito  angular ,  ou  fi- 
zer volta  ,  se  endireitar  ,  elle  se  alargará  espontaneamente 
no  lugar  da  volta  ,  á  custa  da  parte  saliente ,  ou  conve- 
xa, que  estreita  o  rio,  sendo  corroivel  ;  ausentar-se-ha  da 
concavidade,  que  havia  feito  sobre  a  margem  da  parte  con- 
cava da  volta,  e  essa  concavidade  se  entulhará,  diminuin- 
do as  correntes  no  lugar  da  volta,  e  fazendo-se  uniformes 
ou  regulares  no  leito  mais  espaçoso. 

§     14. 

Nos  rios  de  margens  desigtiaes  ,  ou  de  correntes  olliquas 
na  foz  ,  que  tnotivão  estreitamentos  no  leito ,  formando  cabe' 
de/os  na  mesma  foz ,  as  cheias  terão  grande  difficuldade  em 
alargar  alli  promptamente  o  leito  para  se  desonerarem ,  e  serão 
por  isso  respectivamente  muito  maiores  do  que  seriao  sem  aqueh 
ia  causa  ,  que  entorta  ,  e  estreita  o  leito. 

Pois  que  as  correntes  se  encostão  ao  lado  concavo  quan^» 

do 


DAS  SCIENCIÁS  DE  LlSBOA.  4«> 

do  OS  rios  fazem  voltas  (13),  ou  áquella  margem  para 
onde  dirigem  as  suas  correntes  obliquas ,  quando  os  mes- 
mos leitos  são  rectos  (12)  deixando  fazer  estreitamentos 
de  entulho  no  lado  opposto  ,  donde  as  correntes  se  ausen- 
tão  ,  e  onde  não  cavâo  ;  obrigando  taes  estreitamentos  a 
fazer  subir  as  aguas  rio  acima  a  respeito  dos  ditos  estrei- 
tamentos para  este  se  desonerar  por  menor  leito,  que  ne- 
cessariamente alli  tem  ,  segue-se  que  nas  fozes  dos  rios,  on- 
de os  cabedelos  se  estendem ,  e  formão  por  essas  causas 
os  estreitamentos  ,  e  fazem  tortuosos  ,  e  angulares  os  lei- 
tos ,  as  cheias  de  inverno  terão  ao  principio  muita  diffi- 
culdade  em  cortar  a  ponta  do  mesmo  cabedelo  ou  estrei- 
tamento, apesar  de  ser  área  solta  ,  donde  as  correntes  fo- 
gem atacando  inutilmente  a  outra  margem,  que  he  soli- 
da ;  com  isso  a  cheia  subirá  muito  ,  a  fim  de  ganhar  maior 
queda ;  e  só  assim  ,  e  com  demora  poderá  cortar  a  primeira  por- 
ção mais  saliente  do  cabedelo ,  e  começar  a  fazer  o  leito 
menos  tortuoso ,  seguindo-se  que  as  correntes  atacarão  me- 
lhor o  mesmo  cabedelo  ,  por  irem  ficando  menos  obliquas 
(  12  );  e  as  cheias  principiarão  então  a  accelerar  o  corte 
do  mesmo ,  e  a  ampliar  o  leito  cada  vez  com  mais  facili- 
dade,  e  rapidez;  mas  tudo  isso  depois  deter  passado  pe- 
la crise  da  maior  cheia  :  logo  o  leito  tortuoso  de  hum 
rio ,  obra  da  obliquidade  das  correntes  na  foz ,  procedida 
da  desigualdade  das  margens ,  augmenta  a  elevação  das 
cheias  pluviaes ,  não  as  deixando  cortar  com  facilidade  as 
arêas  dos  cabedelos ,  que  quasi  tapão  as  suas  fozes  ;  e  eis- 
aqui  o  que  vemos  no  Douro  aonde  este  fenómeno  natural 
he  mui  notável. 

§  ly. 

Ora  as  ditas  arêas  dos  cabedelos  nas  fozes ,  segundo 
a  sua  diversa  gravidade  especifica,  e  o  seu  diverso  granu- 
lado conforme  o  que  eu  mesmo  tenho  observado  muitas 
vezes ,  e  todo  o  mundo  pôde  observar ,  movem-se  onde 
a  agua  tem  2  até  3  palmos  de  velocidade  por  segundo  de 
T.  IX.  P.  /.  o  'em« 


ço  Memorias  da  Academia  Real 

tempo:  mas  no  Douro  cm  as  vasantes  das  màiés  vivas  no 
verão,  c  no  principio  das  cheias  de  inverno,  ha  lo,  ii, 
e  15-  palmos  de  velocidade  d'agua  por  segundo  ao  longo 
da  margem  direita  ;  quando  defronte  no  cabedelo  apenas 
se  observa  1  até  2  palmos ;  conseguintemente  o  rio  não 
cortando  cousa  alguma  no  cabedelo  por  ser  alli  fraco,  tam- 
bém não  corta  na  direita  ,  onde  todo  se  dirige  furiosamen- 
te ,  por  ser  a  margem  mui  solida;  e  assim  o  mesmo  rio, 
íendo  aliás  tanta  força ,  fica  sem  acção  para  alargar  o  seu 
leito  naqucUe  lugar  ?  Mas  se  esta  corrente  estivesse  distri- 
buída igualmente,  e  fosse  parallcla  ao  leito,  teria  por  to* 
do  cUc  o  termo  médio  da  cjue  se  observa  nas  duas  margens 
nessa  occasião  ,  isto  he  6  ,  7  ,  e  8  palmos  por  segundo 
no  cazo  referido,  e  esta  força  obraria  então  contra  o  ca- 
bedelo, a  cuja  corrente  não  resistem  as  arêas ,  pois  seria 
preciso  alli  a  largura  do  rio  fosse  a  mais  do  seu  dobro  pa- 
ra ficar  a  corrente  menor  de  3  palmos  ,  e  em  equilibrio 
com  a  resistência  que  as  arêas  oppoem  ao  movimento,  vis- 
to que  cilas  se  movem  com  a  velocidade  de  2  até  3  pal- 
mos fvo'-  segundo  da  parte  das  aguas  ,  que  as  atacão :  lo- 
go sendo  a  corrente  de  hum  rio  ,  quasi  nuUa  no  convexo 
Áa  sua  parte  angular,  ou  na  ponta  do  cabedelo,  quando 
nelle  não  faz  corte,  segue-se  que  hum  mesmo  rio  com  cor- 
jentes  rectas  ,  e  parallelas  conservando  elle  a  mesma  força  , 
fi  o  mesmo  volume  d'aguas ,  será  tantas  vezes  mais  largo  , 
iquanias  vezes  se  contiver  a  velocidade  de  3  palmos  (que 
já  corta  bem  a  arêa)  no  meio  termo  das  velocidades,  que 
se  observar  haver  junto  das  duas  margens  concava,  e  con- 
vexa no  estado  do  leito  angular,  ou  quando  ha  correntes 
obliquas  no  leito  recto  ;  .e  portanto  o  Douro  deverá  ter 
habitualmente  mais  de  dobrada  largura  quando  as  correntes 
-das  majés  ,  e  íheias  pequenas  ,  bu  aguas  ordinárias  de  in- 
-verno ,  forem  regularmente  distribuídas  no  leito  por  meio 
de  correntes  parallelas  no  alveo  ,  as  quaes  se  obtém  pela  i- 
.gualdade  das  margens ,  e  nessa  disposição  as  grandes  cheiafi! 
:nunca.  acharáo.JdLto-  Câtreita^  aem  cor^osa  j  mas  largo ,  e 


DAS   SciENGIAS    DE   LíSBOA.  ft 

recto ,  para  lhes  dar  a  mais  prompta  sahida  ,  sem  as  de- 
morar nem  fazer  subir  as  aguas  ;  e  serão  para  sempre  mi- 
noradas ,  e  muito  minoradas  as  cheias  deste  rio. 

§     i6. 

Nos  rios  de  margens  desigtiaes  ,  oii  de  correntes  obliquas  , 
que  fazem  estreitamentos  dos  leitos  nas  fozes  ,  entrará  ,  e  sa- 
hirá  menos  agua  de  maré  salgada  em  proporção  do  estreita' 
mento  ,  que  houver  derivado  dessa  maior  desigualdade  das  mar- 
gens ,  da  qual  resulta  a  maior  obliquidade  da  correyite. 

Estreitado  o  leito  na  foz  por  os  motivos  que  fazem 
crescer  os  cabedelos  (  da  esquerda  para  a  direita  v.  g.  nos 
rios  da  nossa  costa  occidental  )  ;  a  enchente  da  maré  não 
fará  entrar  o  volume  d'aguas  necessário  para  formar  a  prea- 
mar nos  mesmos  rios,  como  acontecia  durante  a  mesma 
maré  quando  o  leito  era  mais  largo  ,  pois  não  pôde  reali- 
sar-sc  o  contrario  sem  que  o  mar  tome  maior  superiorida- 
de de  nivel  sobre  os  rios  ,  e  augmente  proporcionalmente 
a  corrente  ;  seguindo-se  que  as  aguas  do  mar  na  sua  prea- 
mar est.irião  mui  superiores  ás  do  rio;  mas  aquellas  não  so- 
bem mais  da  sua  conta  ,  e  logo  começâo  a  vasar  na  costa 
passado  esse  momento  de  preamar ,  deixão  pois  ficar  o  rio 
com  a  mencionada  falta  ,  e  este  não  se  nivela  com  a  prea- 
mar do  mar  alto;  mas  sim  com  o  mar,  quando  já  desce 
consideravelmente  na  costa ,  deixando  então  de  correr  pa- 
ra dentro  do  rio  a  agua  na  foz ,  isto  he  ,  algum  tempo 
depois  de  vasar  a  maré  no  mar.  O  mesmo  acontece  na  va- 
sante ;  porque  para  o  rio  despejar  as  aguas  do  leito  por 
mais  estreito  canal,  preciza  formar  maior  corrente  durante 
todo  o  tempo  da  rasante,  e  mesmo  quando  o  mar  está  na 
5ua  baixa-mar  correrá  muito  de  dentro  dos  rios  para  ornar, 
o-,  que  indicará  a  superioridade  de  nivel  do  rio  sobre  o  mar 
nesse  momepto  da  baixa-mar;. Jogo  não  descerá  tanto  a  a- 
gua  no  rio  como  no  mar,  porque  logo  começa  de  novo 
a  encher ;  e  tanto  menos  descerá ,  quanto  maior  for  o  es- 

G  ii  trei- 


5*2  Memorias  DA  Ac  ADEMi A  Re  At, 

treitamcnto  na  foz ,  e  mais  incorroivel  o  leito  para  não 
poder  augmentar  a  sua  capacidade  profundando-o.  Logo  a 
maré  dos  rios  na  preamar  ficará  menos  alta  ,  e  na  baixa- 
mar  menos  descarnada  ou  menos  baixa  ,  e  consequentemen- 
te menor  volume  d'aguas  entrará  ,  e  sahirá  pelas  barras  cm 
cat^a  n  aré  ,  e  menos  auxilio  receberão  diariamente  no  ve- 
rão os  mesmos  rios  pelas  marés  do  seu  leito  salgado,  e  tan- 
to menos,  quanto  maior  for  o  estreitamento,  ou  a  desi- 
gualdade das  margens,  que  o  motiváo  (  ii  ,  e  12).  Ora 
como  as  mares  sobem  apenas  14  palmos  nas  aguas  vivas 
junto  ao  mar,  e  no  fim  do  leito  salgado,  até  onde  che- 
ga a  maré  nada  sobe,  ou  sobe  zero,  o  meio  termo  da  al- 
tura de  maré  do  leito  são  apenas  7  palmos  por  todo  elle 
entre  a  baixa-mar ,  e  a  preamar  ;  e  basta  que  hum  estrei- 
tamento do  leito  na  foz  prive  a  maré  de  subir  meio  pal- 
mo na  preamar ,  e  de  descer  meio  palmo  na  baixa-mar  pa- 
ra se  diminuir  hum  palmo  de  altura  d'agua  por  todo  o  lei- 
to  em  cada  maré,  isto  he ,  para  diminuir  huma  sétima  par- 
te o  volume  das  aguas  ,  que  entrão  e  sahem  em  cada  ma- 
ré ,  ou  a  principal  força  dos  rios  durante  o  verão.  Logo  a 
obliquidade  da  corrente  na  foz,  ou  a  desigualdade  das  mar- 
gens dos  rios,  donde  procede  essa  obliquidade  fio),  e 
aquelles  estreitamentos  de  alveos  ,  na  dita  foz  farão  dimi- 
nuir proporcionalmente  as  marés,  que  poderião  admittir  os 
leitos  salgados  dos  rios ,  e  tirar-lhe-hão  portanto  huma 
grande  parte  da  melhor ,  e  mais  constante  força  que  09 
conserva,  e  ás  barras  durante  o  verão,  quando  os  mesmos 
rios  são  huns  regatos,  e  muito  os  auxilião  nas  outras  es- 
tações :  se  ajuntarmos  ainda  a  esta  perda  de  forças ,  que 
causâo  as  margens  desiguaes  na  foz ,  a  que  se  perde  ,  e 
inutiliza  por  essa  disposição  obliqua  contra  a  margem  di- 
reita na  entrada  ,  e  sabida  das  aguas  ,  se  verá  que  a  dita 
desigualdade  das  margens  destroe,  e  inutiliza  a  maior  par- 
te da  força  de  hum  rio  na  sua  foz,  e  na  barra. 

-:j.;  ii  o  S 


DAS  SciENCIAS  DE  LiSBOA.  ^^ 

§       17. 

Conclusão  geral  dos  princípios  estabelecidos, 

Demonstrou-se,  que  todos  os  rios  tem  na  época  actual 
da  sua  progressiva  decadência  hum  banco  no  mar  (6) ,  hum 
cabedelo  na  foz  ,  e  o  seu  leito  cada  vez  mais  entupido  , 
e  mesquinho  (ç) ,  estes  males  universaes ,  resultado  de  cau- 
sas poderosas  ,  são  especialmente  derivados  dos  progressos 
da  população  ,  e  civilisaçao  da  espécie  humana ,  e  não  se 
podem  remover,  pois  seria  preciso  quasi  destruir  o  homem, 
ou  fazcllo  recuar  para  o  primitivo  estado  da  natureza.  He 
portanto  necessário  supportar  esses  males  ,  e  embaraços 
communs  á  navegação  de  todos  os  rios  do  globo  povoado , 
c  civilisado;  o  meu  plano  descreve,  mas  não  pôde  atalhar 
(nem  algum  poder  humano)  es  períodos  fataes  desse  mal 
universal  proveniente  de  causas  tão  sabidas ,  porém  cujo 
remédio  ,  humanamente  fallando ,  he  inexequível  :  os  se- 
guintes ,  a  que  vou  resumidamente  passar  revista ,  são  re- 
mediáveis, e  o  meu  plano  os  remediará  todos  facilmente, 
e  com  eíFeito.  Demonstrou-se  também,  que  na  mesma  épo- 
ca actual  da  decadência  dos  rios,  todos  os  da  costa  occi- 
dental  do  Reino,  por  exemplo,  ou  de  fozes  virados  para 
o  Poente  no  nosso  hemisfério,  tem  as  suas  margens  esquer- 
das sobre  hum  cabedelo  menos  avançadas  para  o  mar,  do 
que  as  suas  margens  direitas  (9)  :  que  dessa  disposição  de 
margens  desigualmente  avançadas  resulta ,  que  as  correntes 
dos  mesmos  rios  sahindo  do  leito  na  foz  ,  se  lanção  no 
mar  obliquamente ,  deixando  a  direcção ,  que  trazião  até 
alli ,  e  tomão  outra  media  entre  ella  e  a  perpendicular  á 
linha  ,  que  mede  a  boca  dos  rios,  ou  que  une  as  duas 
testas  das  suas  margens,  dirigindo-se  desta  sorte  as  mesmas 
correntes  para  algum  ponto  entre  o  Sul  e  Oeste  ,  ou  pa- 
ra dentro  do  3.°  quadrante  (10),  ou  mais  geralmente  para 
o  lado   do  Equador ,    o  que  motiva  barraa   aieaos  fundas 

(7 


54  Memorias  da  AcademiX  R.eíial 

( 7  corol.  2  ) ,  além  de  ficarem  muito  mal  collocadas  pio- 
longando-se  de  perto  com  os  cabedelos ,  ficando  nessa  di- 
recção os  navios  atravessados  ás  ondas  que  vem  para  as 
praias  qucbrar-se  por  duccçôes  perpendiculares  a  ellas,  ou 
a  esses  cabedelos,  e  accrcscendo  não  lhes  serem  favoráveis 
os  ventos  do  mar ,  que  os  encostariao  aos  mesmos  cabe- 
delos -y  nem  os  Nortes ,  ou  do  Sul ,  que  para  as  entradas  e 
sabidas  ficariao  muito  ponteiros,  e  são  os  que  reinão  no 
bom  tempo,  em  que  mais  se  frequentão  as  barras  respecti- 
vas do  nosso ,  e  do  outro  hemisfério  ;  defeitos  estes ,  que 
se  remedeião  igualando  as  margens  dos  rios  ,  pois  da  sua 
desigualdade  procedem  os  mesmos  defeitos  (lo  corol.  y) , 
e  dirigindo-as  nos  nossos  rios  quanto  poder  ser  para  o  Oes- 
te ,  ou  antes  pela  perpendicular  d  praia  proximamente 
(7  corol.  2) ;  o  mesmo  raciocinio  se  applica  ás  fozes  vira- 
das para  Nascente ,  e  ás  do  hemisfério  Austral  (4  corol.  4). 
1..  Pela  mesma  desigualdade  das  margens  nos  ditos  nossos 
rios  (11  e  12)  as  correntes  das  marés  nas  enchentes  de- 
vem vir  obliquamente  entrar  no  leito  do  lado  esquerdo  pa- 
ra o  direito,  ou  do  lado  do  Equador  para  o  Polo  vizivel 
nos  rios  de  todo  o  mundo,  e  formar:  i.°  Huma  enseada 
contra  essa  margem  direita ,  ou  em  geral  do  lado  do  Polo 
visível  cada  vez  maior,  e  encostar  para  ella  o  rio  desvian» 
do-o  do  verdadeiro  leito:  2.°  Estreitar  o  mesmo  rio  no  la- 
do opposto ,  fronteiro  á  enseada ,  obrigando  por  esse  modo 
a  avançar-se  o  cabedelo  sobre  o  bom  leito,  e  occupar  to- 
do,  ou  grande  parte  delle  :  3.°  Formar  na  foz  estreitamen- 
tos entre  a  dita  enseada  curva,  e  o  cabedelo,  que  se  es- 
tende defronte  para  ella ,  estreitando  o  leito ,  e  fazendo-o 
tortuoso ,  ou  angular ,  com  correntes  mui  fortes  encostadas 
á  mesma  enseada,  inconvenientes  estes  que  crescem  á  me- 
dida que  a  margem  menor  estiver  mais  curta  ,  e  a  outra 
mais  carcomida  na  enseada  ,  o  que  faz  também  cada  vez 
mais;  obliqira  a  coirrénte  no  Jeito»  Estes  capitães  defeitos 
das  barras,  e  fozes  são  augmentados  na  vasante  da  maré, 
OU-  na.  evacuação  das  cheias-^  pprque  -dirigindo  os  rios  aa 

^ ;  cor- 


I 


PAS  SciENCIAS   DE   LiSBOA.  5"^ 

Correntes  que  trazem  de  cima  por  leitos  tortuosos,  que  as 
enchentes  de  marés  tormão  na  toz  quando  entrão  obliqua- 
mente no  dito  leito,  vem  as  vasantes ,  e  cheias  a  fa/.er  nos 
ditos  leitos  tortuosos  o  mesmo  que  fazem  essas  correntes 
obliquas  das  mares  na  enchente,  e  com  todo  o  peso,  e 
furor  de  huma  cheia  (13):  i^to  he ,  augmentaráÓ  a  ensea- 
da da  direita,  farão  mais  tortuoso  o  leito  para  depois  cres- 
cer mais  o  cabedelo,  e  mais  se  estreitar  o  leito,  concor- 
rendo assim  para  se  augmentarem  esses  mesmos  capitães 
defeitos  das  fozes,  e  barras,  os  quaes  se  manifestão  logo 
que  os  niesmos  rios  estão  no  estado  ordinário ,  ou  de  ve- 
rão ,  ainda  que  as  cheias  as  tenhâo  rasgado ,  e  melhorado 
temporariamente.  Igualmente  se  demonstrou  (14),  que  os 
estreitamentos  na  foz  derivados  da  desigualdade  das  mar- 
gens fazem  levantar  mais  as  cheias  nos  rios ,  e  fazem  mais 
difficil  o  alargamento  da  sua  foz  para  se  desonerarem  ,  es- 
pecialmente no  começo  das  cheias ,  cujo  esforço  se  dirige 
contra  a  margem  curva  da  banda  do  polo,  e  só  levemente 
ataca  o  cabedelo,  que  os  rios  sem  taes  estreitamentos  an- 
gulares curvilineos  na  foz  serião  alli  habitualmente  muito 
mais  largos,  e  as  correntes  muito  mftis  moderadas  ;  e  que  o 
Douro  pode  por  esse  meio  mais  que  duplicar  a  largura  do 
seu  leito  na  foz,  e  conservallo  assim  habitualmente,  e  iriui 
recto  (ij).  Demonstrou-se  (16),  que  os  estreitamentos  dos 
rios  nas  suas  fozes,  derivadas  sempre  da  desigualdade  das 
suas  margens,  diminuem  o  volume  das  aguas,  que  cm  ca- 
da maré  devem  circular  no  leito  ,  na  foz ,  e  na  barra ,  e 
que  são  a  principal  força  dos  mesmos  rios  durante  as  es- 
tações mais  secas  para  conservar  a  navegação  quando  jils» 
tamehte  ella  mais  se  frequenta.  Todos  estes  inconvenien- 
tes ,  que  provêm  da  desigualdade  natural  em  que  se  achão 
ôs 'margens  de  todos  os  rios  nas  suas  fozes  pelo  império 
das  causas  expostas  são  remediáveis ,  e  todos  se  evitaráq 
iguaIando-a$  artificialmente  por  meio  .de  fortes  paredões 
bem  construídos,  e  bem  collocados  em  todos  os  ditos  rios 
do  lado  do.Equadorj  ciitcs  paredões,  que  a  respeito  <io3 

rios 


56  Memorias  DA  Academia  Real 

rios  da  costa  occidcntal  do  Reino  de  Portugal  formaráô 
margens  esquerdas  fixas  ,  permanentes ,  e  igualmente  avan- 
çadas no  mar,  ou  quasi  do  mesmo  modo,  que  o  estiverem 
as  suas  direitas.  Logo  grande  consequência  j  se  se  der  ao 
Douro,  que  he  hum  desses  rios,  huma  margem  esquerda 
penranente,  bem  coUocada  ,  e  igualmente  avarç.ida  para  o 
mar  a  respeito  da  sua  margem  direita,  todos  os  grandes 
defeitos  ponderados  da  barra  ,  e  foz  do  Douro  desappare- 
ceráo,  e  a  força  deste  rio  será  grandemente  augmentada, 
e  aproveitada  em  beneficio  da  barra ,   e  foz. 

Tal  he  a  final ,  e  mui  feliz  conclusão  geral ,  base 
fundamental  deduzida  da  serie  dos  meus  princípios  rigoro- 
samente demonstrados  nesta  I.  Parte  sobre  que  fundei  o 
piano  da  restauração  das  fozes  ,  e  barras  dos  portos  dos 
rios  navegáveis  ,  e  por  natural  applicação  ao  da  barra  do 
Porto,  que  vou  descrever  na  seguinte. 


Sequnoa    Parte. 

Descripção  do  Douro ,   e  do  plano  da  restauração  da  sua 
barra  ,  e  foz,. 


V-/  DOURO  he  o  resultado   regular  de  todas  as  leis ,  e 
prmcipios  estabelecidos  na  Primeira  Parte. 

Na  antecedente  parte  se  mostrou  o  que  forão  os  lei- 
tos ,  fozes ,  e  barras  dos  rios  do  mundo  ;  como  chegarão 
ao  que  são  actualmente;  e  até  o  que  serão  para  o  futuro: 
quanto  nas  suas  fozes  ,  e  barras  acontece  em  geral ,  foi 
|>articula(raeate  applicado  át^uelles  que  as  tem  na  cosra 
tSíi  oc- 


dasScienciasdeLisboa.  ^7 

Occidental  de  Portugal  ,  por  isso  que  sendo  nossos  maia 
nos  interessão ,  e  porque  desse  modo  fazia  huma  rigorosa 
applicaçiio  ao  Douro,  que  hc  hum  dellcs,  c  faz  o  digno 
objecto  da  segunda  parte  desta  Memoria.  Porem  como  a- 
qucllas  leis  gcraes  ,  que  estabeleci  ,  e  formão  huma  boa 
parte  das  que  a  natureza  exercita  nas  fozes  dos  rios  ,  são 
modificadas  pelas  circumstancias  locacs  próprias  de  cada  rio, 
taes  como  a  dureza  ,  e  tenacidade  relativa  das  duas  mar- 
gens,  e  do  leito  nos  diíFerentcs  pontos  da  sua  extensão, 
c  largura  (  4  corol.  2  ,  e  3  )  ,  e  (  i  2  corol.  y  ) ,  assim  co- 
mo pela  collocaçâo  geographica  ,  e  topographica  dos  mes- 
mos portos  ,  mais  ou  menos  abrigados  deste ,  ou  daquelle 
vento,  e  da  costa  mais,  ou  menos  sugeita  ás  tempestades ; 
alem  de  que  os  rios  tem  mesmo  as  suas  cheias  mais  ,  ou 
menos  simultâneas  com  os  ventos  ,  e  tormentas  dos  inver- 
nos &c.  Os  rios  digo  apesar  de  estarem  sobordinados  ás 
mesmas  leis  geraes ,  não  formão  figuras  cm  tudo  perfei- 
tamente semelhantes  nas  suas  fozes  ,  e  barras ,  e  aprescn- 
tão  ainda  huma  grande  variedade  de  circumstancias  ,  que 
seexplicão  pelas  leis  prescriptas,  e  invariáveis,  pelas  quaes 
igualmente  se  explicão  as  anomalias  motivadas  por  essas 
circumstancias  locaes  ,  que  hum  observador  menos  exercita- 
do ou  menos  attento ,  poderia  olhar  como  provindas  de 
outras  causas  que  não  saberia  ,  nem  poderia  explicar  :  ve- 
jamos até  que  ponto  o  Douro  he  o  resultado  dessas  leis 
universaes,  e  o  que  neste  rio  ha  que  lhe  seja  particular  a 
respeito  do  seu  leito  ,  e  da  sua  foz ,  e  barra. 

Pela  lei  geral  ( 2 )  o  Douro  perto  da  sua  foz  deve 
ser  mais  largo  ,  e  fundo  á  medida  que  se  avisinha  da  bar- 
ra ,  e  assim  acontece  das  Loheiras  do  Ouro  para  a  foz  ape- 
sar da  excessiva  largura  do  leito  nesse  intervallo  a  respei- 
to do  mesmo  leito  dalli  para  cima  ,  que  o  Douro  ainda 
não  pôde  alargar  mais  pela  excessiva  dureza  das  suas  mar- 
gens desde  a  foz  até  ao  Ouro ;  e  menos  do  Ouro  ate  GuiU' 
daes  ;  c  menos  ainda  dos  Guindaes  subindo  até  OtiebrantÕes^ 
até  onde  he  enfragado  de  ambas  as  margens  j  a  impossibi- 

r.  IX.  p.  I.  H  li- 


jS  Memorias  DA  Academia  Real 

lidade  de  se  alargar  mais,  o  obrigou  a  cavar  mais  fundo 
leito  ,  onde  mais  estreito  ficou  ;  assim  mesmo  cavou  mais 
largo,  e  fundo  perto  da  foz,  onde  chamiío  asDesoito  bra- 
ças do  que  nos  Guindacs  acima  da  cidade  do  Porto ,  a- 
pesar  de  ser  apedra  das  margens  nasDesoito  braças  incom- 
paravelmente mais  dura  do  que  nos  Guindacs. 

Pela  lei  geral  (  3  )  o  Douro  deve  nas  vizinhanças 
da  foz  correr ,  c  ter  mais  fundo  leito  encostado  pela  di- 
reita ,  ou  pelo  lado  do  Norte,  e  ser  mais  baixo,  mais  en- 
tupido ,  e  mais  seco  pela  esquerda  :  assim  se  verifica.  Este 
rio  encosta-se  ao  Ouro,  meia  legoa  acima  da  barra,  ásLo- 
bciras  de  iobreiras  ,  á  Craz  de  Ferro  ,  á  Bateria  do  uíiijo  , 
á  Oliiidã  ,  Toiro  ,  Catatulas  ,  Caltota  ,  e  lilgtteiras  ,  com  hu- 
ma  largura  de  leito  fundo  de  quasi  140  braças,  termo  mé- 
dio ,  c  quasi  parallelo  ,  que  segue  pelo  Sul  as  rochas  de- 
nominadas Caranguejeiras  ,  Pcrlongas  ,  Filhas  de  Perlo7igas  , 
com  a  sua  restinga ,  que  diverge  para  Fogamanadas  ;  e  se- 
gue também  para  o  nascente  de  Caranguejeiras  pelo  rio  a- 
cima  quasi  na  mesma  largura  ;  o  resto  do  antigo  leito  até 
á  Pedra  do  Cão  ,  e  montes  ,  que  terminao  a  antiga  margem 
pelo  Sul  tem  muita  largura  ,  he  seco  ,  e  até  semeado  de 
rochedos,  que  o  rio  nunca  poralli  cortou  inteiramente,  e 
dos  quacs  ,  huns  são  mui  superficiacs  c  viziveis  ,  outros  pou- 
ca profundidade  tem  abaixo  d'agua  e  das  arêas  que  os  cer- 
cão ,  ou  os  cobrem  ;  e  o  mesmo  cabedelo  assenta  desde  a 
Pedra  do  Cão  até  i  borda  do  leito  fundo,  ou  até  a  res- 
tinga ,  que  liga  Caranguejeiras  com  as  Perlongas  ,  sobre 
penedia  inavegavel  ,  o  que  se  tem  visto  quando  alguma  ex- 
traordinária cheia  do  Douro  tem  levado  a  arêa  do  leito  ,  e 
do  cabedelo,  que  cobre  a  penedia,  e  baixios  dessa  parte 
esquerda ,  ou  pouca  funda  do  leito. 

Pela  lei  geral  ( 4 )  o  Douro  deve  ter  a  sua  margem 
direita  ,  ou  a  do  Norte  mais  avançada  ,  e  saliente  para  o 
mar  do  que  a  sua  esquerda  ,  e  assim  o  vemos ;  os  rochedos 
de  Filgueiras  para  Bezerras ,  Gilreu  &c.  restos  mais  visí- 
veis da  extremidade    da  margem   direita,    e  da  costa  adja- 

cen- 


DAS   SCIENCIAÍ   DE   LlSBOA.  f^, 

ccntc,  estão  mais  avançados  para  o  mar  do  que  a  Pedra 
do  cão,  testa  da  sua  antiga  margem  esquerda,  que  por 
ser  duríssima  ,  tem  resistido  muito  ;  c  o  Douro  não  tem 
por  isso  tanta  desigualdade  nas  antigas  margens  ,  como  ha 
no  Tejo ,  no  Mondego  ,  no  Lima  &c. ;  e  assim  devia  a- 
contccer  segundo  a   mesma  lei  geral  (  4  corol.   2 ). 

Pela  lei  geral  (  5- )  o  Douro  deve  ter  huma  parte 
do  seu  leito  antigo  não  só  menos  fundo  por  todo  ,  mas 
esse  mesmo  achar-se  mais  entupido  sobre  a  rocha  ate  onde 
n'outro  tempo  o  pôde  cavar;  e  assim  está;  nós  o  vemos 
seco  pela  banda  do  Sul  desde  a  foz  até  ao  Ouro  meia  le- 
goa  acima  da  barra  ;  de  Q^iebrantôes  para  a  Pedra  salgada , 
e  Ribeira  do  Abbade  \  e  geralmente  o  está  onde  as  suas  mar- 
gens lhe  consentirão  cavar  leito  mais  espaçoso  ,  e  tortuo- 
so ;  e  onde  a  dureza  das  margens  lho  não  permittio  ,  se 
vai  entupindo  de  arêa ,  e  diminuindo  o  seu  fundo  por  to- 
do o  alveo  que  conserva ,  obedecendo ,  apesar  da  ferocida- 
de da  sua  corrente  nas  cheias ,  á  lei  ,  e  causa  geral  que 
os  entupe  successivamente  a  todos. 

Pela  lei  geral  (6)  o  Douro  deve  terna  nossa  épo- 
ca da  decadência  dos  rios  hum  banco,  ou  barra  dentro  no 
mar  ,  pouco  distante ,  e  em  torno  da  sua  foz  ,  que  deve 
ser  navegável  ,  por  pertencer  esse  banco  a  hum  grande  rio 
(  7  )  ,  o  qual  deve  ter  huma  posição  variável  ,  ou  incon- 
stante ;  e  deve  ficar  mais  longe  da  foz  ,  quando  o  rio  por 
andar  cheio  pôde  arrastallo  para  mais  longe  ;  e  mais  ain- 
da quando  o  vento  for  da  terra  ,  e  rijo,  isto  he  ,  do  i." 
e  2.°  Quadrantes;  ou  quando  o  mar  estiver  mais  manso, 
e  por  mais  tempo :  deve  ao  contrario  este  banco  aproxi- 
inar-se  á  foz  do  rio  quando  este  traz  pouca  agua  ,  quando 
o  vento  he  rijo ,  e  do  mar  ,  ou  do  3.°  e  4.°  Qiiadrantes , 
c  quando  o  mar  estando  mais  bravo  ,  e  por  mais  tempo  , 
poder  arrastar  esse  banco  com  mais  força:  finalmente  o 
rio  deve  ser  mais  bem  navegável  depois  das  cheias  do  in- 
verno ,  e  primavera ,  do  que  durante  o  verão ,  e  nos  princi- 

H  ii  pios 


6o  Memorias  DA  AcADEitt  lA  Real 

pios  do  outono:  o  Douro  tem  com  effcito  aquelle  banco, 
e  com  estas  variações,  ou  alternativas. 

Pela  lei  geral  (  7.  corol.  163)0  Douro  deve  ter 
huma  barra  muito  boa  como  rio  da  primeira  ordem  entre  os  nos- 
sos rios  ,  ainda  que  menor  do  que  pede  a  sua  mesma  or- 
dem (pois  hc  quasi  igual  ao  Tejo),  por  ter  o  seu  leito 
salgado,  mui  limitado  (  7.  corol.  3.°  );  e  se  o  Douro 
não  satisfaz  a  esta  lei  na  qualidade  da  sua  barra  actual, 
he  pelos  estragos  ,  má  disposição ,  e  defeitos  da  sua  foz 
no  estado  actual  procedido  das  suas  margens  desigualmen- 
te avançadas  (ro,  11,  12,  13,  14,  ij,  16,  e  conclu- 
são geral  17)  ;  c  nisso  mesmo  se  conforma  com  os  princí- 
pios demonstrados  ,  os  quaes  também  mostrão  que  ella  ad- 
mitte  grande  melhoramento. 

Pela  lei  geral  (8)0  Douro  deve  ter  hum  cabedelo 
atravessando  a  maior  parte  do  seu  leito  antigo  na  foz  co- 
meçando no  Sul ,  ou  testa  da  margem  esquerda  ,  donde  vem 
para  o  Norte,  estreitando  o  leito  na  foz,  encostando-o  pa- 
ra a  direita;  e  servindo-lhe  a  testa  do  mesmo  cabedelo, 
como  estremidade  da  margem  esquerda,  que  será  a  mais 
curta  sempre  (9),  e  assim  está;  nós  vemos  esse  cabede- 
lo inalteravelmente  assim  formado  e  disposto ;  as  cheias 
lhe  cortáo  a  testa  pelo  Norte  ,  e  também  o  cortão  longitu- 
dinalmente do  Sul  para  o  Norte  da  banda  do  rio,  ou 
de  Leste ,  corte  que  o  mar  supre  salvando-o  com  as  on- 
dds ,  logo  que  elle  está  mui  delgado ,  e  o  mar  anda  bra- 
vo ,  ou  são  marés  vivas,  que  salvando  o  cabedelo,  lanção  á- 
Icm  delle  as  arêas  em  quanto  o  não  engrossão  ;  e  entretan- 
to que  continuão  a  salvallo  ,  e  depois  quando  só  montão  par- 
te délle  deixão  Coadas  as  arêas  na  sua  grossura  esponjoza 
onde  parte  das  ondas  se  somem  ,  ou  são  absorvidas  e  fil- 
tradas deixando  depositadas  as  arêas  que  levão  involvidas 
e  assim  o  levaíitão  ;  movimento  este  continuo ,  que  conscr* 
vâ  o  cabedelo  em  huma  grossura  ,  e  altura  quasi  inaltera* 
vel ;  tendo  tambcm  alternativas  na  sua  testa  ,  que  huma  ho' 

ra 


DAS    SCIENCIAS    DE    LiSBOA.  6t 

ra  as  cheias  cortão  ,  e  outr'hora  o  mar  ,  ou  as  correntes 
obliquas  estendem  quando  o  rio  se  não  oppoem ;  mas  tu- 
do SC  faz  dentro  de  períodos,  que  quasi  se  repetem  com 
regularidade  ;  e  o  todo  do  cabedelo  se  conserva ,  ou  faz 
pouca  differença  de  século  para  século  no  meio  de  tantjs, 
c  tão  poderozas  causas  ,  que  tendem  a  destruillo ,  e  a  for- 
mallo   alternativamente. 

Pela  lei  geral  (  lo  )  o  Douro  tendo  as  suas  margens 
dcsiguacs,  c  a  esquerda  mais  curta  (9),  deve  ao  entrar 
no  Occeano  inclinar  a  direcção  da  sua  corrente  para  o  la- 
do do  Equador  a  onde  fica  o  cabedelo  ,  ou  para  a  esquer- 
da ,  fazendo  hum  angulo  com  o  leito  na  foz  ,  e  com  a  mar- 
gem direita  mais  avançada  qualquer  que  seja  a  figura  e  di- 
recção, que  tem  tido  essa  margem;  e  assim  acontece.  O 
Douro  ao  sahir  do  seu  leito  na  foz  encaminha-se  para  en- 
tre o  Sul,  e  Oeste,  ou  para  algum  ponto  do  3.°  Quadran- 
te; c  se  ás  veses  o  vemos  depois  de  huma  grande  cheia 
ficar  mais  derigido  para  Oeste ,  ou  N.  O. ,  he  porque  o 
corte  do  cabedelo  ,  sendo  então  mui  grande  no  Douro  for- 
ma accjdentalmente  huma  restinga  d'arêa  pela  esquerda  até 
a  diante  das  Perlongas  ,  que  lhe  fazem  as  vezes  de  mar- 
gem esquerda  ,  quasi  igual ,  e  ate  a's  vezes  mais  avançada 
no  mar  que  a  direita  ;  e  em  quanto  toma  essa  disposição 
-endireita  a  barra  ,  que  fica  mais  funda  ,  e  mesmo  a  muda 
para  N.  O.  no  3.°  Quadrante,  como  deve  acontecer  (  10 
coroi.  5");  mas  pouco  deve  durar  essa  margem  arenosa, 
frágil,  c  da  parte  esquerda,  pois  que  pela  lei  geral  (4. 
oorol.  2.)  deve  logo  encurtar-se:  e  tudo  isto  assim  acon» 
tece  ,  comprovando  as  doutrinas  estabelecidas ,  e  fazendo 
antever  as  vantagens ,  que  o  Douro  na  sua  foz  ,  e  barra , 
receberá  quando  se  IheJfizer  ajnargem  esquerda  mais  avan- 
•^da,  e  permanente.  :■  u      .  .     <v  i-.o   ;. 

Pela  lei  geral  (11  e  ia)  o  Douro ,  em  cujo  leito 
a  corrente  entra  obliquamente  da  esquerda  para  a  direita 
•nt  enchente  da  maré ,  por  ter  aquella  margem  menos  avan- 
^da ,  deve  ter  huma  enseada  curva  sobre  a  direiu ,  ou  do 

la- 


6i  Memorias  DA  Academia  Real 

lado  do  Polo  feita  por  aquella  corrente  obliqua ,  que  na 
enchente  da  maré  bate  contra  a  dita  margem  :  lá  existe 
com  cíFeito  esta  enseada  em  S.  Joáo  da  tbz  entre  a  ca- 
pella  do  Anjo,  c  o  Castello ,  formando  hum  archipclago , 
ou  perigoso  leito,  que  as  aguas  não  poderão  ainda  afundar 
por  todo  elle  ,  nem  destruir  inteiramente  alguns  pedaços , 
por  ser  rocha  de  excessiva  dureza.  Deve  também  o  Douro 
encostar-se  a  esta  enseada  abandonando  a  maior  parte  de 
todo  o  seu  antigo,  verdadeiro,  e  bom  leito,  quasi  recto, 
limpo  ,  e  mui  fundo  ,  sobre  o  qual  se  prolonga  o  cabede- 
lo ,  atravessando  ,  c  occupando  esse  bom  leito  defronte  da 
dita  enseada,  e  estreitando-o  tanto  mais,  e  formando  cor- 
rentes alli  tjnto  mais  violentas  ,  quanto  mais  transversalmen- 
te a  corrente  na  maré  atravessar  o  leito  ,  ou  quanto  mais 
desigualmente  avançadas  estiverem  as  suas  duas  margens 
{12),  ou  mais  curta  estiver  a  que  he  variável  na  esquer- 
da sobre  o  cabedelo ,  que  he  quando  de  lá  não  houver  res- 
tinga que  as  cheias  formão  ,  e  as  ondas  desfazem  pouco  a 
pouco  e  anumâo  para  o  mesmo  cabedelo  ,  isto  he  no  fim 
do  verão ,  e  muito  mais  quando  não  tem  precedido  cheias 
de  inverno  que  o  cortem  e  estendão  para  o  mar  pois  que 
he  firme  e  invariável  a  sua  margem  direita  ;  e  tudo  isto 
alli  se  observa. 

Pela  lei  geral  (ij)  as  cheias  do  Douro  devem  su- 
bir muito  mais  no  leito ,  em  razão  do  estreitamento  feito 
pelo  cabedelo  na  foz,  resultado  das  correntes  obliquas, 
que  procedem  da  desigualdade  das  margens  ,  e  de  haver 
mais  difficuldade  em  alargar  o  leito  tortuoso  na  mesma 
foz ,  visto  que  as  correntes  se  ausentão  da  parte  convexa 
da  volta,  que  he  a  testa  do  cabedelo,  ou  pouco  o  atacão, 
e  todo  o  esforço  se  dirige  inutilmente  contra  a  parte  con- 
cava da  volta,  ou  contra  a  direita,  que  são  rochedos,  fi- 
cando por  isso  inutilisada  a  sua  força  para  rasgar  a  mes- 
ma foz  ,  e  subindo  por  isso  mais  as  cheias  para  com  força 
•maior  o  conseguirem;  mas  depois  de  passar  por  essa  cri- 
se^ e pelas  suas  tristes  .coosequeticias. tudo  isso  alli  aconte- 

-..*  ce : 


DAS   SCIENCIAS  DE   LiSBOA.  áj 

cc  :  e  que  sem  aquclle  estreitamento  que  a  desigualdjiie 
das  margens  motiva,  o  Douro  terá  mais  que  ckibrada  ,  ou 
triplicada  a  sua  liabitual  largura  que  se  reduzia  habitual- 
mente a  mui  pouco  ,  ou  a  pouco  mais  de  30  braças  no 
verão. 

Pela  lei  geral  (16)  os  grandes  estreitamentos  do 
leito  na  foz  motivarão  menor  preamar,  e  menor  baixa-mar 
no  rio ,  e  assim  se  observou  em  Setembro  ,  e  Outubro  de 
181 8,  quando  o  cabedelo  extraordinariamente  recolhido 
a  respeito  do  mar  encurtando  a  margem  esquerda  ,  que 
esteve  quasi  tocando  a  pedra  João  Boi  da  margem  direita  , 
da  qual  chegou  a  distar  só  dez  braças;  apparecendo  consc- 
guintemente  a  navegação  quasi  interceptada  ,  e  a  Praça 
do  Porto  no  maior  sobresalto.  Tudo  pois  se  verifica  des- 
graçadamente no  Douro,  produsindo  os  mais  terríveis  de- 
feitos da  sua  foz,  edasua  barra;  mas  comprovão  felizmen- 
te a  solidez  dos  meus  princípios  estabelecidos  na  primeira  parte 
mostrando  estes  princípios,  que  he  possível  remediar aquel- 
jes  defeitos  executancío  o  meu  novo  plano  respectivo;  e 
concluindo-se  igualmente  ,  que  o  Douro  he  o  resultado  re- 
gular das  mesmas  leis  geraes,  que  consegui  estabelecer 
para  todos  os  rios  ;  c  que  a  desigualdade ,  das  suas  duas 
margens  (  17  )  he  o  foco,  donde  emanão  todos  os  males 
que  se  sofrem  na  sua  barra,  e  foz;  concJue-se  pois  que  i- 
gualallas  pela  arte,  he  o  único,  e  infallivel  meio  de  re- 
mediar tudo.  Nesta  igualação  e  na  collocaçao  da  margem 
esquerda  a  respeito  da  direita  existente  consiste  o  novo 
plano.  Eu  vou  descrever  este  plano. 

§.     2. 

Descripçao ,  e  execução  do  novo  plano. 

Tendo  demonstrado  rigorosamente  na  primeira  parte  , 
c  verificada  nesta  pela  analyse  ,  e  mais  rigorosa  applicação 
dos  mesmos   princípios  ao  Douro,    que  os  defeitos  da  sua 

foz. 


04  MemoriasdaAcademxaReal 

foz,  e  barra,  na  cpoca  actual  da  decadcncia  dos  rios,  são 
motivados  pela  desigualdade  das  suas  duas  m.irgcns  ,  pois 
tem  a  esquerda  menos  avançada  no  mar  do  que  a  direita  j 
seguc-se  que  hum  paredão  ou  dique  ( Fig. )  LGC.  cons- 
truido  na  esquerda  ,  ou  pelo  Sul  da  foz  do  Douro  ,  e  con- 
venientemente coUocado  ,  que  prolongando,  e  fixando  es- 
ta margem  artificial  a  iguale  com  a  direita  natural  que  fi- 
naiisa  em  Filgueiras  (ainda  que  já  mui  destruida ,  e  inter- 
rompida desde  Galiota  até  lá)  fará  cessar  todos  os  males , 
e  tirará  todos  os  defeitos  essenciacs  da  barra  ,  e  foz  do 
Douro  ,  tornando-a  conseguintcmcnte  muiro  boa.  Este  pa- 
redão LGC.  fica  pelo  meu  plano  collocado  sobre  a  restin- 
ga dos  rochedos  mais  ,  ou  menos  visíveis  das  Caranguejei- 
ras pata  Perlongas  ,  Filhas  de  Perlongas  &c.  para  ficar  mais 
solido,  mais  barato,  e  não  occupar  nada  pela  esquerda  do 
bom  leito  ,  fundo  ,  e  limpo  ,  e  navegável  do  Douro  ,  e  tam- 
bém deixado  amplo  ,  e  espaçoso  para  o  mesmo  Douro  se 
desonerar  nas  suas  maiores  cheias :  e  com  effeito  tendo  os 
rios  nas  fozes  mais  corrente  do  que  no  resto  do  seu  leito 
para  cima  (  2  ) ,  e  porisso  cavando  alli  alveos  mais  largos 
e  fundos ,  bastaria  que  o  Douro  fosse  na  foz  tão  largo , 
como  nos  differentes  pontos  mais  apertados  do  seu  leito 
até  á  cidade  ,  Guindaes ,  e  Quebrantões  por  onde  o  rio 
passa  nas  maiores  cheias  para  evacuar  sem  embaraço  as  a- 
guas  quando  chegassem  á  mesma  foz  ;  logo  ficando  a  foz 
de  largura  de  164  braças,  e  tendo  o  Douro  ás  Desoito 
braças  (  meia  Icgoa  acima  da  foz )  só  80  braças ;  e  aos 
Guindaes,  junto  á  ribeira  do  Porto  63  ditas,  e  entre  Guin- 
daes ,  e  Quebrantões  hum  quarto  de  Icgoa  mais  acima , 
tendo  só  j2  braças,  vem  pelo  meu  plano  a  ficar  ainda  o 
Douro  na  foz  de  triplicada  largura ,  da  que  tem  nesses  pon- 
tos mais  estreitos  por  onde  o  rio  passa  mais  acima  delia  ; 
e  consequentemente  o  seu  leito  será  mais  folgado  na  foz , 
e  sobejo  para  as  maiores  cheias  :  isto  mesmo  está  demons- 
trado também  pela  experiência  ;  porque  tendo  até  agora  o 
Douro    toda  a  liberdade  de  coitar  no  cabedelo  durante  as 

cheias , 


dasScienciasdeLisboa.  Sff' 

cheias,  em  lugar  de  profundar  mais  o  leito  ,  e  a  bana  co- 
mo muito  conviria  ;  ha  30  annos  que  as  primeiras  obras  da 
barra  começarão ,  e  nenhuma  cheia  tem  chegado  a  formar 
leito  na  foz  da  largura  que  lhe  deixa  o  dique  LGC ,  que 
eu  colloco  na  esquerda  do  Douro  ,  cujo  dique  deve  obri- 
gar as  aguas  a  cavar  mais  fundo  o  leito  ( e  até  a  rocha 
mesma,  que  fica  yo  pahnos  inferior  ao  nivel  da  baixa-mar ) 
quando  o  rio  lá  chegasse,  e  antes  disso  (16)  ;  melhor 
pois  dará'  passagem  a  qualquer  cheia  ,  que  melhor  passará 
por  164  braças  de  largura  na  foz  de  leito  recto  ,  e  fundo 
defronte  do  Anjo  visto  haver  passado  por  leito  de  52  en- 
tre Guindaes ,  e  Quebrantóes  ;  e  por  80  ás  Desoito  bra- 
ças ;  acrescendo  que  nas  fozes  os  rios  se  evacuão  melhor  do 
que  rio  acima  como  disse.  Logo  este  dique  LGC  está  a  to- 
dos os  respeitos  vantajosamente  collocado ;  também  está 
bem  dirigido  quasi  a  Oeste  j  SO  ,  ou  quasi  perpendicular 
á  costa ,  ou  praia ,  direcção  que  mais  convém  ao  leito  ,  e 
á  barra  (  7  corol.  z  )  por  tanto  resta  só  dizer  alguma  cou- 
sa sobre  o  modo  da  execução  do  plano ,  que  reduzi  a  cinco 
principaes  operações. 

PRIAIEIRA    OPERAqXO. 

Occupar-se-ha  toda  a  restinga  visível  do  rochedo ,  que 
segue  para  nascente  das  Caranguejeiras  com  a  porção  LG 
do  dique  ,  que  será  forte ,  e  bem  construido ,  porque  hade 
ser  a  margem  esquerda ,  e  suportar  o  peso  das  correntes 
do  Douro  nas  suas  cheias ,  e  mesmo  as  ondas  do  mar.  NB. 
Neste  lugar  he  que  se  haviao  já  lançado  algumas  barca- 
das  de  pedra  em  1819  para  deposito,  e  fundação  dessa 
obra ,  que  eu  desejava  tanto  adiantar  logo  que  S.  Mages- 
tade  approvasse  o  plano,  em  que  eu  trabalhava,  no  que  o 
mesmo  Senhor  conveio ,  e  a  que  a  Illustrissima  Junta  se 
prestou. 

T,IX.  P.7.  i  SK- 


66  Memorias  DA  Ac ADEMiA  Real 

SEGUNDA    OPERAqXO. 

Feita  a  porção  do  dique  LG,  de  8o  até  loo  braças 
corrcráô  aguas  bastantes  especialmente  nas  cheias  do  Dou- 
ro ,  e  nas  grandes  marés  á  testa  G.  dessa  obra  cntie  as 
Caranguejeiras  (  Fig. )  e  o  cabedelo;  e  se  formará  hum  es- 
paço suificientcmcnte  fundo  ,  no  qual  se  poderá  fundar  hu- 
ma  porção  GA.  do  mesmo  dique  LGC ;  e  assim  se  hade 
caminhar  com  a  obra  do  rio  para  o  mar :  por  este  proces- 
so de  execução  o  cabedelo  será  o  escudo  contra  os  insul- 
tos domar  ,  que  fazem  três  obras  muitas  vezes  mais  caras, 
e  mais  demoradas ;  e  o  Douro  será  o  agente  empregado 
para  cavar  o  fundo  cabouco  da  obra  no  mesmo  cabedelo, 
o  que  de  outro  modo  seria  impossível ;  e  dará  seguro ,  e 
plácido  canal  para  conduzir  com  maior  felicidade  as  obras 
pelo  mesmo  rio  para  dentro  do  mar  a  coberto ,  e  ao  abri- 
go do  cabedelo  ;  então  se  poderão  fazer  annualmente  boas 
porções  bd ,  de,  ef,e  &c.  do  dique  LGC ,  em  que  se 
poderá  trabalhar  no  verão ,  e  de  inverno  ,  e  em  todas  as 
estações  do  anno ,  á  medida  que  o  rio  for  abrindo  leito  no 
cabedelo  á  testa  da  porção  do  dique  LGa ,  LGb.  &c.  que 
estiver  feito,  onde  quer  que  ella  se  for  achando  nas  diver- 
sas épocas  da  obra. 

TERCEIRA    OPERAqSO. 

-     o       r.  i 

Como  o  cabedelo  pelo  andamento  progressivo  do  di- 
que LGC.  se  irá  adelgaçando  defronte  da  testa  a  ,  b ,  d  , 
do  mesmo  dique ,  onde  ella  se  for  achando  no  seu  anda- 
mento ,  e  o  mar  hade  então  poder  salvar  o  cabedelo  na- 
quelle  lugar,  e  entupir  o  leito,  ou  cabouco,  que  o  rio 
for  fazendo  com  algumas  aguas  ,  que  por  alli  correm  para 
esse  fim,  embaraçando  desse  modo  a  edificação,  e  tirando 
o  giro  das  poucas  aguas  á  testa  da  obra  onde  quer  que 
ella  se  achar  j  será  indispensavelmente  necessário  obrigar  o 
-J2  .  ,i  .*i  ."li  Ci' 


DAS  SciENCIAS  DE  LiSBOA*  (tf 

cabedelo  a  ir  andando  para  o  mar  para  se  engrossar  por 
fora  do  que  vai  perdendo  em  grossura  por  dentro  ,  o  que 
se  conseguirá  por  dois  modos  ,  i."  começando  no  fim  da 
primavera,  (quando  o  cabedelo  estiver  ainda  mais  engros- 
sado por  eflPeito  de  alguma  cheia  de  inverno,  que  o  te- 
nha estendido  mais  para  fora,  ou  para  o  mar)  huma  por- 
ção mn.  no  dique  LGC  ,  porque  o  cabedelo  acompanha- 
rá logo  essa  obra  até  á  sua  resta,  e  outro  tanto  se  engrossa- 
rá para  o  mar  ,  tomando  as  cautellas  necessárias  para  que 
o  mar  não  abra  caminho  ou  passagem  pela  cauda  dessa  pe- 
quena obra  destacada  ,  e  a  deixe  isolada  no  mar ;  por  es- 
sa occasião  ,  e  até  nova  cheia  ,  que  a  tornasse  a  ligar  ao 
cabedelo ,  inconveniente  que  se  pôde  ,  e  hade  acautelar ; 
por  este  modo  se  andará  com  a  obra  das  Caranguejeiras 
até  alli  ;  mas  em  chegando  a  este  ponto  mn  ,  onde  princi- 
piou a  obra  a  descoberto  para  engrossar  o  cabedelo  sobre 
o  mar,  não  poderá  mais  ser  continuada  pelo  mesmo  modo , 
porque  acabaria  o  giro  das  aguas  entretido  entre  a  testa 
da  obra  ,  que  marcha  ,  e  o  restante  cabedelo  no  embaraço , 
que  achará  pela  porção  feita  mn.  ao  mar  do  cabedelo  em 
huma  das  suas  situações ,  e  seria  preciso  fazer  o  restante 
nc.  da  obra  a  peito  descoberto  ,  e  a  braços  com  o  furor 
das  ondas ,  e  tormentas ,  o  que  faria  essa  ultima  porção 
nc.  do  dique  LGC.  mui  difficil  ,  despendiosa  ,  e  demora- 
da ;  por  tudo  isso  será  muito  preferivel  o  segundo  expediente  , 
que  consiste  em  fazer  mais  para  o  sul  do  alinhamento  do 
dique  LGC  na  mesma  praia  do  cabedelo  da  banda  domar, 
e  quando  ella  estiver  convenientemente  avançada  para  lá, 
huma  obra  interina  de  fachinas  tecidas  com  estacas ,  e  ver- 
gastes,  ou  pinheiros  novos,  e  carregados  de  pedra  pq. 
como  tenho  feito  muitos  em  Aveiro,  as  quaes  obras,  fa- 
zendo o  mesmo  officio ,  e  melhor  ainda  do  que  a  porção 
do  dique  verdadeiro  mn ,  são  muito  mais  baratas ,  e  vão 
avançando  pouco  a  pouco  para  o  mar  á  medida  que  o  ca- 
bedelo avança  ,  ao  qual  acompanhao  pelo  seu  mesmo  effei- 
to  j  e  não  cmbaração  depois  o  giro  das  aguas  do  Douro  á 

i  ii  tes- 


68  Memorias  da  Academia  Real 

testa  da  obra  principal,  quando  lá  chegar,  ficando  as  di- 
tas obras  interinas  pq.  competentemente  distantes  do  a- 
linlumcnto  do  dique  LGC.  para  haver  sufficiente  leito  en- 
tre cilas ,  e  este  dique  ,  e  formação  do  cabouco  :  deste 
modo  he  que  se  poderá  obter  a  vantagem  inapreciável  de 
fazer  toda  ,  ou  quasi  roda  essa  grande  obra  do  dique  res- 
taurador LGC  ,  ou  nova  margem  esquerda  do  Douro ,  ao 
abrigo  do  cabedelo  ,  e  edificar  no  mar  huma  tão  grande  o- 
bra  sem  sahir  quasi  do   abrigo   do  rio  ! 

Com  este ,  e  outros  recursos ,  economisar-se-ha  im-^ 
menso  tempo,  evitar-se-hão  grandes,  e  inevitáveis  avarias , 
poupar-sc-hão  grandes  cabcdaes  ,  e  chcgar-se-ha  ,  com  mais 
brevidade  a  conseguir  fins ,  ou  resultados  mui  importantes , 
e  transcendentes:  a  experiência  de  tacs  trabalhos,  alguma 
constância  ,  e  paciência  para  elles  ,  me  tem  habilitado  pa- 
ra poder  usar  de  diversos  recursos  accommodados  ás  circum- 
stancias  dilíerentes  ,  e  infinitamente  variadas,  em  que  sea- 
charem  os  trabalhos  nas  diversas  épocas,  e  circumstancias 
do  seu  andamento  ,  sendo  tanto  mais  impossível  descrevei- 
los,  quanto  ellas  são  filhas  das  circumstancias  favoráveis, 
ou  desfavoráveis ,  que  se  iriao  succedendo  com  huma  va- 
riedade incalculável  ;  por  isso  ficão  reservadas  para  a  exe- 
cução da  obra  ,  e  debaixo  desse  ponto  de  vista  ,  se  me  não 
engano ,  o  Douro  me  fornecerá  opportuna  occasião  de  ser- 
Ihe  útil. 

QUARTA    OPERAqXO. 

t  'Km 

Igualada  a  margem  esquerda  em  C,  com  a  direita  a- 
té  Galiota  ,  que  he  até  onde  ha  contiguidade  visivel  de 
margem  direita,  a  barra  experimentará  grande  melhoramen^ 
to  em  tudo,  isto  he,  em  profundidade,  largura,  suaves, 
e  bem  repartidas  correntes  parallelas  no  leito  ,  bom  rumo  , 
prompta  evacuação  de  cheias ,  maiores  marés  no  rio  &c.  e 
&c. ;  e  então  para  lhe  dar  todas  as  vantagens  de  que  cila 
he  susceptível  ,  convém  começar  o  reparo  da  ruina  dessa 
liiargem   direita,   continuando  a  obra  para  Filgueiras  sobre 


» 

Ir 


DAS   SCIENCIAS   DE   L  I  S  E  O  A.  6^ 

O  alicerce  ,  que  alli  se  acha  já  mui  adiantado  pelo  plano 
que  se  seguia  ;  nus  ao  mesmo  tempo  que  esta  obra  da  mar- 
gem direita  avançar,  também  o  dique  LGCF.  avançará  pro- 
porcionalmente para  F.  a  fim  de  não  perturbar  a  igualda- 
de ,  ou  conveniente  proporção  das  duas  margens  ,  de  que 
depende  sobre  tudo  a  bondade  da  barra,  e  foz  do  Douro; 
até  que  a  obra  chegue  pela  direita  a  Filgueiras  ,  c  peia  es- 
querda a  F.  igual ,  ou  quasi  igualmente  avançada  para  o 
mar  como  Filgueiras  ;  ficando  assim  dirigido  o  leito  com 
huma  só,  e  menor  boca  ao  entrar  no  mar  ,  e  abrindo  hu- 
ma  só  barra  a  mais  vantajosa  que  possa  ter  o  Douro.  Eis- 
aqui  como  as  obras  do  novo  plano  fazem  aproveitar  com 
utilidade  as  do  antigo,  que  nesta  parte  seria  perjudicial  , 
não  havendo  o  dique  pela  esquerda  LGCF.  pois  promove- 
rião  a  maior  desigualdade  das  margens  de  que  adiante  fal- 
larci  ,  c  este  ponto  F.  ficará  quasi  igualado  a  Filgueiras  ; 
alli  hc  que  se  hade  determinar  a  final  o  seu  verdadeiro  lu« 
gar,  e  o  verdadeiro  comprimento  da  margem  esquerda  ,  e 
onde  ella  deve  ficar;  porque  como  os  ventos  soprão  mais 
de  hum  lado,  do  que  do  outro,  e  o  rio  tem  desigualda- 
des no  leito  (  12.  corol.  j. )  e  as  aguas  no  Oceano  huma 
pequena  corrente,  ou  movimento  continuado  do  Norte  pa- 
ra o  Sul  (c)  estas  circumstancias  que  ajudão  a  obliquar  as 
aguas  ao  sahir ,  e  entrar  na  foz ,  lhes  dão  huma  certa  obli- 
quidade  que  deve,  ou  pôde  exigir  algumas  braças  de  mais , 
ou  de  menos  no  paredão,  ou  dique  LGCF.  na  margem 
esquerda  do  Douro ,  para  que  o  seu  leito  ,  e  a  sua  corren- 
te fique  na  mais  recta  parai  leia ,  e  bem  dirigida  disposi- 
ção apesar  desses  incidentes ,  que  assim  entrão  em  linha 
de  conta ;  pois  a  direcção  do  rio  na  foz  obedece  a  qual- 
quer desigualdade  de  margens  (  lo.  corol.  6.);  e  qualquer 
desigualdade  bastaria  para  tirar  a  tendência  que  as  ditas 
causas  podem  dar-lhe  para  hum  ,  ou  outro  lado  ;  e  mesmo 
não  ha  precisão  de  marcar  já  esse  ponto  a  onde  necessa- 
riamente hade  ficar  a  testa  F.  do  dique  LGCF ;  pois  que 
indo  a  obra  da  terra,  ou  antes . do  rio  para  o  mar,  quan- 
do 


yo  Memorias  DA  Academia  R EA I, 

do  se  for  aproximando  da  igualdade  de  margens,  o  leito 
hade  ir  chegando  ao  seu  máximo  gráo  de  largura  rcctili- 
nea ,  e  parallela  (12.  corol.  y.)»  ^  cabedelo  angular  dcs- 
vanecer-sc-ha  ,  em  lugar  delle  ficaráõ  duas  fachas  de  arêa 
parallelas  á  linha  do  meio  longitudinal  do  leito  ( 10.  co- 
rol. 3.)  ,  ca  corrente  será  paialkJa  a  essa  linha  ,  e  a  g?- 
sas  margens  (  10.  corol.  4  ),  o  que  fará  o  rio  de  melhor 
serviço,  e  dará  ás  obras  a  maior  bellcza  ,  e  segurança  ;  dan- 
do tambcm  á  barra,  e  foz  as  máximas  vantagens:  quando 
isso  estiver  obtido ,  não  se  avança  mais  com  a  obra  ,  pois 
aliás  começaria  a  desigualdade  em  sentido  inverso  ,  e  a  mar- 
gem esquerda  mais  avançada  faria  formar  restinga  ou  cabe- 
delo do  ouno  lado  do  Norte  ,  e  começaria  a  dirigir-se  a 
barra  pelo  rumo  d'entre  Oeste ,  e  o  Norte  ,  começando 
também  a  apparecer  todos  os  symptomas  ,  ou  effeitos  da  desi- 
gualdade das  margens  em  proporção  dessa  mesma  desigual- 
dade ;  deve  pois  o  dique  LGCF.  parar  defronte  de  Fil- 
gueiras  ,  desde  que  a  barra ,  e  a  foz  ficarem  sem  os  defei- 
tos actuaes  ,  resultantes  da  desigualdade  das  margens  mo- 
dificadas com  as  dos  incidentes  do  leito,  e  do  mais  expen- 
dido neste  §  da  4.  operação,  os  quaes  terão  assim  entra- 
do em  linha  de  conta  j  e  se  verá  o  Douro  sem  cabedelo 
ponteagudo ,  com  margens  rectas ,  e  parallelas  na  foz  em 
todo  o  tempo;  cora  hum  leito,  cuja  largura  excederá  mui- 
to a  que  costuma  ter,  e  sendo  a  sua  corrente  parallela  a 
essas  margens ,  e  ao  seu  leito  ;  alem  de  que  as  Lages  d'Â- 
bra ,  Picão ,  e  Lage  £Agu\ão  que  formão  grande  perigo  na 
barra  ficarão  á  boca  do  leito  ,  ou  na  foz ,  e  por  isso  soce- 
gado  esse  lugar  que  he  agora  o  mais  critico ,  ou  perigo- 
'zo  depois  do  baixo  do   banco  mais  fora  da  barra. 

QUINTA    OPERA qJO. 

Avançará  dos  rochedos  das  Eiras  na  direita  do  Dou- 
ro ,  e  contigua  á  foz  logo  acima  do  Anjo  huma  porção 
de  diqu.e  AB.  de  ^o  até  So  braças  pouco  mais ,  ou  menos 

«.;->  no 


DAS  SctÊMtílAS  OE  LrSfiOA.  7f 

no  alinhamento  dalli  ao  saliente  da  mesma  margem  defron- 
te das  Lobciras  de  Sobreiras  ,  quasi  parnllclo  á  parte  LG. 
do  dique  da  esquerda  LGCF ,  e  distante  delie  i8o  bra- 
ças proximamente  :  esta  obra  tem  dous  fins  mui  utcis :  o 
II."  he  metter  o  Douro  logo  acima  da  foz  entre  margens 
rectas,  e  parallelas  no  lugar  onde  alguma  corrente  vindo 
K  entrar  hum  pouco  obliqua  por  efFeiro  de  alguma  tempes- 
tade de  ventos  transversaes  ao  leito  na  foz  poderia  (  12. 
corol.  6.)  ir  fazer  alguma  obliquidade  no  leito;  porque 
tacs  margens  incorroiveis,  rectas  e  parallelas  nos  rios  ten- 
dem a  endireitar  correntes  obliquas  que  por  qualquer  cau- 
sa possão  entrar  no  leito  ,  assim  do  lado  do  mar  ,  como 
do  lado  das  cheias  (12.  corol.  i  )  ,  que  das  Desoito  braças  ^ 
c  de  outros  pontos  sahem  tomando  direcções  modificadas, 
segundo  a  grandeza  das  mesmas  cheias,  o  2.°  fim  he  a- 
brigar  o  espaço  entre  esse  dique  AB,  e  a  praia  e  cães 
de  S.  João  acima  do  Anjo  ,  que  he  o  único  abrigo  para 
o  grande  numero  de  barcos  de  pescadores,  e  catraios  do 
serviço  da  barra ,  e  da  povoação  de  S.  João  da  foz  ;  esta 
enseada  preciosa  será  com  efteito  abrigada  ,  e  conservada 
com  a  dita  obra  ,  que  pôde  ser  interrompida  em  dous  ,  ou  trez 
pontos  z.  para  melhor  serviço ,  e  conservação ,  porque  o 
rio  se  communica  pelas  extremidades  A,  B,  e  as  aguas 
circulâo  alli  para  conserva-la  desentupida,  como  está  d'a- 
rêa ,  ou  lodo;  actualmente  ainda  hê  mui  desabrigada  do 
S,  O,  Sul,  S.  E,  e  Este,  o  que  precisa  muitos  barcos, 
e  muitas  catraias  a  encalhar  em  terra  sobre  o  cães  com  gran- 
de incommodo  de  seus  donos ,  estorvo  do  publico  e  sem 
ficarem  promptas  para  qualquer  serviço ,  ou  para  acudirem 
a  qualquer  naufrágio,  ou  a  qualquer  necessidade  repentina. 
NB,  Na  restinga  de  Eiras  por  aquella  direcção  AB  , 
c  pelos  mesmos  motivos ,  ou  no  mesmo  tempo  ,  em  que 
se  formou  o  deposito  de  Caranguejeiras,  lançando  pedra 
pelo  alinhamento  LGC.  se  começou  também  a  formar  o 
deposito  das  Eiras  no  alinhamento  AB,  na  margem  direi- 
ta do  Douro  «m   1819. 

§ 


7*  Memoriasda  Academia  Real 

§     3. 

Concluirei    esta  segunda  parte,    dizendo  ainda,   que 

0  meu  plano  de  igualar  as  margens  ,  cuja  desigualdade  mo- 
tiva as  correntes  obliquas  na  toz  ,  e  barra  ,  ou  toda  a  desor- 
dem da  barra  do  Porto ,  alem  de  fundado  em  sólidos  prin- 
cípios, confirmados  pelo  que  se  observa  nas  fozes,  e  bar- 
ras de  todos  os  nossos  rios  sem  exclusão  do  Douro    (  c;ip- 

1  e  2)  pode  mostrar  a  sua  efficacia ,  e  infallibilidade  com- 
provadas pelos  factos  acontecidos  em  Aveiro  ,  e  no  mes* 
mo  Douro:  1.°  facto  —  Quando  abri  a  barra  d'Avciro  cm 
1808  ,  a  margem  esquerda  ficou  encostada  ate  ao  mar  cm 
hum  paredão,  ou  dique  de  1210  braças  de  comprimento; 
e  a  direita  sobre  o  areal,  ou  praia  igualmente  avançada» 
no  momento  d'abertura  da  dita  barra :  em  quanto  esta  mar- 
gem direita  se  conservou  igual ,  ou  quasi  igual  á  esquerda 
firme  ,  e  solida  ,  o  leito  do  Vouga  junto  á  foz  por  mais 
de  600  braças  era  recto  ,  as  margens  ,  e  a  corrente  paral- 
lelas  ,  e  não  havia  cabedelo  ponteagudo  para  o  leito ,  a 
barra  demorava  Este  Oeste  na  direcção  do  leito ,  e  mais 
funda  como  devia  acontecer  (  10.  corol.  5-.  e  16);  mas 
pela  outra  lei  encurtando-se  successivamente  a  margem 
frágil,  e  arenosa,  ou  arêa  solta  da  direita  (4.  corol.  2.  e 
3  )  ,  as  correntes  do  rio  para  dentro  ,  e  para  fora ,  se  fize- 
râo  obliquas  no  leito  do  Vouga  principiando  a  atravessai- 
lo  da  parte  do  lado  mais  curto,  ou  d'arêa  contra  o  dique, 
ou  margem  solida  ,  que  se  conservou  im movei  ,  e  mais  a- 
vançada  para  o  mar  ,  a  qual  foi  vigorosamente  atacada  , 
pela  corrente  obliqua  para  formar  enseada ,  e  como  o  pa- 
redão resistio ,  ao  longo  delle  afundou  o  leito  até  Sj  pal- 
mos ,  o  mesmo  leito  se  estreitou  no  lado  opposto  ,  forman- 
do cabedelo  angular ,  e  leito  tortuoso  ;  as  correntes  se  fi- 
zcrão  furiosas  ,  a  barra  declinou  para  a  direita  por  ser  es- 
sa a  mais  curta  margem,  dirigio-se  para  o  N.  O.,  ou  pa- 
ra dentro  do  4.°   Quadrante    (  10  )  e  todos  os  máos  effei- 

tos, 


DA  S  SciENCIAS  DE  LiSB  OA.  75< 

tos,  que  deve  produzir  a  desigualdade  das  margens  sema- 
nifcsturão  na  nova  barra  de  Aveiro,  onde  a  natureza  exer- 
citando as  suas  leis  já  descriptas  Jhe  deu  a  forma  t]ue 
lhe  convinha,  c  lhe  competia  em  virtude  delias.  Em  1818 
principiei  hum  paredão  do  lado  do  cabedelo  para  o  mar , 
a  fim  de  avançar  a  margem  mais  curta  ,  e  fiz  60  braças  de 
extensão  com  que  diminuio  outro  tanto  a  desigualdade  das 
duas  margens  ,  que  ainda  estão  mui  longe  da  igualdade  ; 
o  rezultado  foi  fazer-se  a  barra  d'Aveiro  mais  para  Este 
Oeste  ,  alargou  muito  o  leito  na  foz ,  a  onde  chegou  qua- 
si  a  dobrar;  fez-se  mais  recto,  e  parallelo,  a  corrente  fi- 
cou menos  obliqua  ,  o  cabedelo  alem  de  mais  afastado  per- 
dco  na  sua  testa  a  figura  pontcaguda  ,  e  angular  ,  forman- 
do boleado  largo  ,  que  se  aproxima  á  parallela  da  margem 
recta  do  dique  da  esquerda ;  e  a  corrente  se  moderou  á 
testa  do  cabedelo,  onde  era  furioza.  Tal  he  a  influencia 
da  desigualdade  das  margens  para  o  transtorno  das  barras  , 
e  fozes  dos  rios  ;  influencia  que  pude  praticamente  demons- 
trar no  Vouga  assim  pelo  que  succedeu  em  quanto  teve 
margens  iguaes ,  e  quando  se  forao  fazendo  cada  vez  mais 
desiguaes ,  como  pelo  que  succede  agora  quando  lhe  pro- 
movo arteficialmente  a  igualdade  destruída  pelas  leis  na- 
turaes  em  exercido  nas  fozes  dos  rios  :  e  tal  he  o  poder 
de  suspender  o  exercício  delias  segundo  convier,  ou  desu- 
geitar  á  arte  a  magestosa  força  dos  rios,  do  mar,  e  das 
tormentas ,  derivado  dos  princípios  estabelecidos ;  poder 
que  torna  infallivel  o  conseguimento  do  immeriso  benefi- 
cio ,  que  se  deve  esperar  de  igualar  as  margens  por  mão 
da  arte ,  como  eu  projecto  para  restaurar  a  barra  do  Por- 
to. 2°  facto  :  O  Douro  sendo  hum  rio  da  primeira  or- 
dem tem  grandes  cheias  no  inverno ,  e  preciza  de  leito 
amplo  na  sua  foz  para  se  desonerar ;  alem  de  que  como 
tem  proporcionalmente  pequeno  ,  ou  estreito  leito  salgado , 
e  esse  mesmo  ainda  se  inutiliza  em  parte  pelo  estreitamen- 
to na  foz,  que  diminue  as  suas  marés  (  15  ,  e  i<$),  he 
pobre  d'aguas  no  verão  ;  e  mais  ainda  por  esta  causa  se 
7.  IX.  P.  L  K  es- 


74  Memorias  da  Academia  Re-al 

estreita    na  foz   o  seu    leito  ;    consequentemente  as  cherass 
cortão  huma  grande   porção  do  cabedelo  ;  c  se  cJlas  são  graiin 
des,    ou  aturadouras     Icváo    huma    porção   desse  cabeuclo , 
com  que    formão   hum  extenso  banco  estendido  pelo  rumo 
de    Sudoeste  ,    pouco    mais,    ou    menos,    con-.cçando  do 
mesmo   cabedelo  ,  para  onde  o  Douro  se  lança ,  levando  as 
arêas  para  esse  lado,  e  muito  para  dentro  do  mar;  os  ban- 
cos dos  annos   1792,     1818,  c   muitos   outros  ficarão  mais 
avançados    na  esquerda,    do  que  está  Fiiguciras  na  dirciça 
(  Fig. )  :  estes  bancos  fazem  então  as  vezes  de  margem  ou 
de  dique    natural ,    que    serve    de  margem   csquerdn  ,    que 
iguala  ,  e  ás  vezes  excede  a  direita  ;  e  em  quanto  dura  es- 
ta disposição  a  barra  ,    e  a   foz  do   Douro   he   mais   larga  , 
mais  funda,  mais  bem  dirigida  pelo  rumo  de  Oeste ;  acor- 
rente no  leito  mais  parallela  ás  margens  sem  se  dirigir  con- 
tra ellas ,  e  sem  grandes  variações  ,  ou  divergências  ,  pois 
todas  as  correntes  se  tornão  mais  parallelas  ao  meio  do  lei- 
to ;  as  mesmas  correntes  afrouxão  nesse  leito  mais  amplo, 
e  sem  voltas;  o  cabedelo  perde  atesta  ponteaguda  ,  e  for- 
ma huma  margem   mais  recta  ,    ou  mais  na  direcção  da  li- 
nha do  meio  longitudinal  do  leito  ,    que  he  a  da  corrente 
nessa   occasião  ;    e  em  quanto  dura  a  restinga  avançada  pa- 
ra o  mar ,  o  cabedelo  não  se  faz  ponteagudo  ,  nem  atraves- 
sa o  leito ,  mas  se  vai  engrossando  na  sua  totalidade  pou- 
co   a  pouco ,    estereitando    parallelamente  o  leito  ,    como 
deve  ser  quando  ha  menos  agua  ,  e  tem  passado  a  cheia , 
porém  sem  o  fazer  angular ,  e  sem  correntes  obliquas  nel- 
íe :  passada  a  cheia  ,  as  ondas  ,  e  as  correntes  pela  lei  ge- 
ral   4  ,    e  9  encurtão  essa  restinga  successivamente  para  a 
terra ,    recuando    para  o  cabedelo  ;    logo  que  esta  restinga 
SC  aproxima  das  Perlongas,    c  fica  essa  margem  considera- 
velmente   mais  curta  do  que  a  direita  ,    as  correntes  se  fa- 
zem   outra    vez    obliquas  ,    o  cabedelo    cresce    com  passos 
agigantados  por  eflfeito  delias,  atravessando  o  bom  leito  na 
foz  ,  fazcndo-o  tortuoso  ,  estereitando-o  ,  e  encostando-o  pa- 
ra a  direita ,  donde  se  segue  voltar  tudo  ao  estado  lamen- 
ta- 


DA  S   SCIENCIAS    DE   LlSBOA.  "J^ 

tavcl ,  em  que  esta  baira  existe,  e  muito  mais  lamentável 
logo  que  os  invernos  não  dão  grandes  cheias ,  que  façúo 
aquclla  restinga,  ou  margem  artificial  ;  ou  que  o  seu  effei- 
to  não  dure  até  ao  verão  seguinte ;  e  por  i^so  as  cheias  no 
fim  da  primavera  lhe  são  as  mais  proficuas  para  chegar  o 
beneficio  ao  verão,  que  se  segue;  porque  em  quanto  se 
encolhe,  ou  recua  sobre  o  cabedelo  a  restinga  que  lhe  ser- 
ve temporariamente  de  margem  esquerda  ,  se  passa  a  esta- 
ção mais  critica  do  verão,  e  comcçao  de  novo  as  chuvas 
seguidas  pelas  cheias  do  outono,  e  do  inverno  immcdia- 
to.  Tudo  isto  demonstra  praticamente  a  necessidade  do  di- 
que LGCF  do  meu  plano  ,  e  prova  praticamente  a  infa- 
libilidade dos  bons  resultados,  que  elle  hade  produzir.  Es- 
te banco  que  nas  cheias  grandes,  e  duradouras  se  estende 
pela  esquerda  até  alem  de  Filgueiras,  que  estão  na  direi- 
ta, he  que  faz  voltar  para  e.^tc  lado  a  corrente  do  Dou- 
ro, e  abrir  a  barra  doNor-Oeste,  ficando  inteiramente  es- 
ta margem  arenoza  mais  avançada  do  que  a  direita  ;  como 
esta  barra  se  não  entupe  tanto  porque  se  forma  quando  já 
o  cabedelo  está  cortado  ,  e  tem  formado  da  arêa  resultan- 
te a  restinga  tão  extensa  para  o  mar  ,  que  excede  Filguei- 
ras ,  assim  se  conserva  no  verão  ainda  que  com  alguma  di- 
minuição :  depois  começa  a  recuar  a  restinga  para  a  terra , 
ou  para  o  cabedelo  ,  e  a  barra  a  caminhar  também  para  a 
sua  habitual  posição  do  Sul-Oeste ;  entre  tanto  cava  pelo 
Oeste,  em  quanto  as  margens  são  iguaes  na  ida,  e  na  vol- 
ta ,  c  nessa  direcção  fica  algum  tempo  o  leito  largo  ali- 
nhado com  cilas,  em  quanto  não  he  muito  sensivel  a  des- 
igualdade das  margens  :  esta  singularidade  do  Douro  de 
formar  duas  barras  motivada  pela  grande  restinga  ,  ou  mar- 
gem temporária,  c  mui  extensa  na  esquerda  com  as  gran- 
des cheias  que  esse  rio  tem  ,  fica  explicada  pelos  mesmos 
principios ,  e  o  meu  plano  que  reduz  as  duas  barras  a  hu- 
nia  só  pela  permanência  da  margem  esquerda  iguallada , 
ou  antes  bem  proporcionada  á  direita  ,  deve  ter  alem  de 
todas  as  vantagens  que  expuz  (  17)  j  a  de  tirar  huma  tão 

K.  ii  no* 


76  Memorias  DA  Ac  ADEMiA  Real 

notável  alternativa  do  corte  do  cabedelo ;  e  a  de  reduzir  as 
duas  barras  a  huma  só  mais  ampla ,  mais  iunda  ,  c  mais 
bem  dirigida;  logo  o  dique  LGÇF  do  meu  plano  eleva- 
rá a  mui  subido  gráo  a  ordem  ,  ou  as  vantagens  da  barra 
do  Dt)uro ,  e  a  vai  restaurar  perfeitamente. 

Com  este  dique  LGCF  posso  cu  levar  a  barra  do 
Porto  pelo  Sul  das  Lages  que  he  hum  dos  perigos ,  c  o 
maior  da  barra  depois  do  seco  do  banco  ,  onde  ainda  ha 
poucos  mczes  se  pcrdeo  o  bello  navio  Oceano  na  volta  da 
sua  primeira  viagem  ;  e  para  isso  bastaria  adianta-lo  hum 
pouco  mais  do  que  está  de  Filgueiras  na  direita:  neste  ca- 
zo  a  barra  ficaria  perto  do  rumo  de  O.  j  N.  O.  por  cffei- 
to  daquciia  pequena  desigualdade  (10.  corol.  6),  a  cor- 
rente viria  no  mesmo  rumo  ferir  hum  pouco  a  margem  es- 
querda ,  alimparia  alli  o  leito  de  arêa ,  e  o  faria  navegá- 
vel por  alli  mesmo  encostado  ao  dique  LGCF,  entre  o 
oua!  ,  e  as  Lages  passariao  os  navios  na  maior  segurança  ; 
pí)rcm  não  se  preciza  ,  nem  dessa  perfeição  para  fe  passar 
alli  com  segurança,  nem  perder  a  vantagem  do  rumo  Es- 
te-Oestc ,  que  mais  convém  á  barra,  náo  só  para  a  boa 
navegação,  e  maior  profundidade  sobre  o  banco  (7.  co- 
rol. 2  ) ,  mas  também  para  que  as  arêas  do  leito  levadas 
pela  corrente  para  o  mar  possao  passar  para  o  Sul  sem 
entrarem  no  canal  da  barra  ;  porque  ficando  pelo  meu 
plano  as  Lages  já  na  foz  do  Douro ,  c  longe  do  banco , 
haverá  alli  socego  de  ondas,  e  haverão  margens  lateraes; 
os  navios  passarão  sem  perigo  entre  ellas  ,  onde  ha  fundo, 
e  largura  sufficiente ,  havendo  socego  para  as  aproveitar ; 
c  mesmo  grande  parte  do  anno  passarão  ao  Sul  delias ;  por- 
que o  rio  com  margens  iguaes  feitas  pelo  dique  LGCF 
conservará  leito  recto,  largo,  e  navegável  pelo  meio  do 
grande  leito  entre  a  margem  direita,  e  o  dique  LGCF. 

Se  não    temesse   ser  excessivamente  extenso ,  faria  ver 
que    o  meu     plano    não  reconhece  limites  para  dar  á  barra 
do  Porto  as   disposições  ,  ou  vantagens  ,  que  se  precizão  ; 
ç  que  o  Douro  fica  absolutamente  subordinado  a  este  pla- 
no, 


DAS  SciENCIAS  DE  LiSBOA.  77 

no,  asslmcomo  áquella  obra  do  dique  da  esquerda  LGCF, 
que  deve  dar  á  sua  foz,  c  barra  a  forma,  o  fundo  dez.cja- 
do  ,  e  a  direcção  que  mais  lhe  convier  na  actual  ,  e  geral 
decadência  dos  rios  para  delie  se  tirar  o  máximo  partido , 
e  para  prolongar  também  por  muitos  séculos  a  sua  duração 
como  porto  de  mar. 

§     4' 

Havendo  cu  demonstrado  que  a  cauza  dos  males  ,  e 
defeitos  que  se  fazem  sentir  na  barra  do  Porto  deriva  ,  na 
época  actual  da  decadência  dos  rios ,  de  ter  a  sua  margem 
esquerda  no  cabedelo  necessariamente  menos  avançada  no 
mar  do  que  a  direita  ;  eque  hum  Paredão  ,  ou  dique  LGCF, 
convenientemente  avançado  a  respeito  da  direita  considera- 
da em  Filgueiras  ,  deve  tirar-lhe  todos  os  capitães  defeitos, 
c  restaurar  a  mesma  barra:  segue-se  que  o  paredão  ROIiD 
feito  conforme  o  plano  anterior  ao  meu  ,  ainda  que  na  par- 
te ROE  era  de  alguma  utilidade  ,  posto  que  mui  secun- 
daria (  e  só  em  quanto  diminuia  a  enseada  de  S.  João  da 
foz  ,  máo  leito  para  onde  o  rio  se  encostava ,  concorrendo 
a  obliquar  a  corrente  no  alveo  ) ;  de  modo  algum  ataca  o 
principio,  donde  derivão  os  defeitos  da  barra,  e  foz  do 
Douro  ,  que  está  na  desigualdade  das  duas  margens  ,  e  do 
qual  essa  mesma  enseada  he  hum  effeito  necessário  (11  e 
•12)  :  cm  tudo  o  mais  o  dito  plano  que  se  seguio  desde 
■1790  ate  fim  de  i8i6,  e  que  eu  não  segui,  nem  devia 
ecguir  até  para  cumprir  ás  instrucções  Regias,  (d)  visto 
que  com  elle  me  não  conformava  j  reduzia-se  a  adiantar 
mais  a  margem  direita  ,  que  já  era  mais  comprida  e  mais 
avançada  para  o  mar  ,  a  qual  propriamente  chegava  só  até 
á  Galiota  E ,  sendo  visivel  unicamente  o  resto  delia  mais 
alto  ,  e  avançado  em  Filgueiras  D  ,  cm  cujo  intervallo  ED 
havia  era  1790  fundo  até  24  palmos  no  mais  fundo  dessa 
restinga ,  por  onde  logo  se  fez  alicerce  nos  annos  seguintes 
levantado  até  baixa-már  de  marés  vivas  :  por  felicidade  não 

su- 


78  Memorias  da  Academia  Real 

subio  mais  o  paredão ,  e  ficou  em  alicerces  ,  para  náo  fa- 
xer  grande  mal.  No  mesmo  plano  se  reprova  como  inútil , 
desnecessário  ,  e  até  prejudicial  qualquer  obra  na  margem 
esquerda  do  Douro,  (e)  promovendo  desta  sorte  a  maior 
desigualdade  das  suas  duas  margens,  c  por  consequência 
o  progresso  dos  defeitos  da  barra  ;  donde  se  segue  que  o 
plano  hc  certamente  errado ,  e  não  preciza  de  outra  analy- 
se,  pois  sendo  deametralmente  opposto  ao  que  se  demons- 
trou ser  bom,  será  necessariamente  máo  :  entrei  porém  nes- 
ta analyse  quando  em  Abril  de  1820  conclui  huma  me- 
moria ,  ou  plano  ,  que  aprezentei  na  Illustrissima  Junta  da 
Companhia  geral  do  Alto  Douro,  Inspectora,  e  Adminis- 
tradora das  obras  da  mesma  barra  ,  o  qual  deve  existir  no 
seu  archivo ,  e  a  elle  me  refiro  ;  nesta  analyse  destrui  hum 
nor  hum  os  débeis  fundamentos ,  e  errados  principies  em 
que  se  fundou ;  querendo  ,  e  devendo  quanto  poí-sivel  fos- 
se deixar  me  entender  de  todos,  e  por  todos  os  modos  es- 
clarecer de  huma  vez  para  sempre  o  cahos  ,  em  que  tem 
jazido ,  e  o  laberinto  de  erros  ,  em  que  por  tanto  tempo 
tem  sido  involvida  a  questão  importantissima  do  melhora- 
mento tão  urgente,  e  tão  dczejado  da  barra  do  Porto,  de 
que  aprezento  em  fim  a  solução  ,  deixando-a  também  eluci- 
dada em  geral ,  e  de  huma  vez  para  sempre  a  quem  quer 
que  se  tinha  occupado  ,  ou  para  futuro  se  quizer  occupar 
delia,  e  mesmo  quando  eu  já  não  existir;  pois  no  meu 
entender  será  sempre  de  interesse  transcendente  para  a  mi- 
nha pátria  :  e  foi  o  dezejo  invencível  de  nada  omittir  que 
podesse  utilizar,  quem  me  obrigou  a  seguir  o  trilho  ele- 
mentar ,  e  a  ser  diíFuso. 

§    ^ 

Finalmente   tendo   decorrido    quasi  4  annos  desde   2$ 
de  Abril   de   1820,    data    em  que   conclui    e  aprezentei  a 
dita  memoria,   até    hoje  em  que  pelo  seu  geral,    e  parti- 
cular objecto  de  utilidades  transcendentes  procuro  a  honra 
'•:i  de 


DAS    SCIENCIAS    DE    LlSIíOA.  79 

de  oflfcreccr  este  meu  escripto  á  Academia  Reaj  das  Scicn- 
cias  ;  e  havendo  Sua  Magcstade  approvado  cm  30  de  Julho 
de  1821  o  referido  plano,  cuja  execução  comecei  logo  no 
Agosto  seguinte  do  mesmo  anno  ;  tenho  a  satisfação  de  po- 
der accrescentar  hoje  que  as  leis  geraes  estabelecidas  na 
primeira  parte  desta  Memoria  ,  e  a  sua  rjgoroza  applicação 
na  segunda  para  restaurar  a  foz  e  barra  do  Diiuro  ,  se 
achao  felizmente  comprovadas  pela  experiência  ,  quero  dizer  , 
pelos  resultados  da  eífectiva  ,  e  successiva  execução  da  par- 
te que  está  feita  desde  o  referido  anno  de  1821  atéago- 
ra  ,  pois  achando-se  apenas  adiantado  hum  bocado  de  tos- 
co paredão  ««  pela  extensão  de  humas  280  braças  para  ali- 
cerce, e  massiço  da  correspondetirc  parte  do  dique  LGCF, 
e  estando  apenas  levantado  metade  desse  pedaço  un  até  al- 
tura de  meia  maré  viva ,  assimcomo  a  outra  metade  para 
o  lado  do  mar,  ou  de  ?i,  só  pela  baixa-mar  das  ditas  ma- 
rés vivas  termo  médio,  já  os  seus  eíFeitos,  ou  rezultados 
bem  fazejos  são  mui  grandes  ;  visto  que  elFecti vãmente  cxis- 
tio  em  todo  o  anno  de  1823,  e  existe  agora  mesmo  a  lar- 
gura da  foz  do  Douro  em  frente  da  testa  do  cabedelo  ,  on- 
de se  formavão  tcrriveis  estreitamentos,  constantemente 
humas  poucas  de  vezes  maior  do  que  era  ordinariamente 
em  estações  correspondentes  :  a  mesma  foz  se  acha  muito 
rnais  recta  do  rio  para  o  mar ,  e  a  barra  constantemente 
muito  mais  funda,  e  a  navegação  pela  barra  muito  mais 
facilitada,  a  ponto  de  com  frequência  em  todo  o  dito  anno 
passado  de  1823  entrarem,  e  sahirem  navios  menores  tam- 
bém na  baixa-mar,  e  com  vazante;  accrcscendo  estarem  ao 
mesmo  tempo  entrando  e  sahindo  á  vella  os  navios  mer- 
cantes bordejando  na  foz  ,  e  na  barra  ,  sem  o  conflicto  das 
excessivas  tortuosas  ,  e  turbulentas  correntes  da  mesma  foz  , 
que  também  deo  já  navegação  pelo  Sul  das  Lages  mui 
aturada  em  todo  o  referido  anno  próximo  passado.  O  que 
tudo  se  mostra  pelos  officios  authenticos  do  Piloto-mor  da  bar- 
ra do  Porto ,  de  que  adiante  transcrevo  hum ,  que  mais  se 
explica  sobre  o  estado  do  melhoramento  da  barra  j    e  pela 

com- 


8o  Memorias  da  Academia  Real 

comparação  das  sondas  da  dita  barra  extrahidas  dos  officios 
e  partes  do  dito  Piloto  ,  e  lançadas  na  Tabeliã  que  adian- 
te segue  das  três  épocas  mais  notáveis  ,  e  mais  importan- 
tes :  a  primeira  desde  que  principiarão  as  primeiras  obras  cm 
175)0  até  1792,  donde  se  colhe  o  estado  da  barra  nostrez 
annos  decorridos  desde  o  principio  das  obras  :  a  segunda  desde 
j8i7,  em  que  fui  tomar  conta  das  obras  até  1820,  em 
que  também  se  não  fez  nada  de  obra  na  mesma  barra ,  ex- 
ceptuando 1819,  pois  então  lançou-sc  alguma  pedra  em 
alguns  pontos  do  alinhamento  do  dique  LGCF  da  esquer- 
da ;  c  em  AB  na  direita  da  foz,  como  depozitos ,  e  com 
permissão  de  Sua  Magcstade  para  adiantar  a  obra  nova  ,  e 
não  se  perder  tempo  em  quanto  o  novo  plano  se  não  con- 
cluia  ;  e  mostrão  estas  sondas  o  estado  em  que  estava  a 
barra  ,  quando  tomei  conta  delia.  Terceira  finalmente  as  sondas 
desde  1821  em  que  comecei  a  plena  execução  das  obras 
do  meu  plano,  até  fim  de  1823,  todas  extrahidas,  como 
disse  das  partes  officiaes  dos  respectivos  Pilotos ,  ou  Pilo- 
tos mores  da  mesma  barra  ;  cujos  rezultados  tão  constan- 
tes ,  e  tamanhos  se  tem  mostrado  gradualmente  nascircum- 
stancias  correspondentes  á  medida  que  se  adianta  a  obra  do 
dique  da  esquerda  LGCF  ,  que  os  motiva  ,  única  em  que 
desde  então  se  tem  trabalhado  na  barra  ,  como  justamente 
devia  acontecer  segundo  os  princípios  geraes  estabelecidos , 
e  demonstrados  nesta  memoria  ,  os  quaes  forão  applicados 
rigorozamente  á  foz,  e  barra  do  Porto:  sendo  não  menos 
admirável  que  a  despeza  média  dos  trez  últimos  annos  dos 
trabalhos  propriamente  do  novo  plano ,  he  apenas  os  dous 
quintos  da  despeza  média  annual  dos  trinta  annos  preceden- 
-^  tes   de     1790    até     1820;    e    nisso    mesmo   se  confirma   o 

que  eu  disse  (§  2.°  —  3.  Operação). 

Concluo  transcrevendo  os  documentos  do  officio  e  Ta- 
beliã acima  mencionados  «  lUustrissimo  Sfír.  Luiz  Gomes 
j»  de  Carvalho  =  Cumprindo  com  a  determinação  de  V.  S. , 
»  tenho  a  honra  de  communicar-lhe  que  sondando  esta 
»>  barra  do  Porto  no  dia  xo  de  Setembro  prezente,   achei 

í»  pc- 


DAS  SciEífClAS  DE  LiSBOA.  8r 

j»  pelo  N.  o.  31  palmos  de  agua;  e  pelo  N.  N.  O.  2^ 
»  palmos  ;  c  pelo  O.  S.  O.  20  palmos  em  três  cjuortos 
j>  de  maré  (f).  Também  repeti  a  mesma  sonda  em  21  do 
»  dito  mez ,  achei  ter  pelo  N.  N.  O.  33  palmos  d'agua  , 
>»  e  pelo  N.  O.  28  palmos;  c  pelo  O.  S.  O.  25^  palmos, 
j>  sendo  feita  esta  sonda  na  preamar :  A  ponta  dò  cabede- 
>»  lo  desde  o  mez  de  Fevereiro  de  1823  até  ao  prezente 
»  mex  de  Setembro  do  dito  anno  n3o  tem  crescido  para  o 
»  norte  ,  o  que  sempre  costumava  fazer  logo  que  vinhãõ 
)>  as  aguas  de  infestos  ,  c  agora  he  pelo  contrario  que  to- 
j»  do  este  tempo  a  mudança  que  a  dita  ponta  do  cabe- 
j»  dclo  tem  feito ,  he  o  ter  crescido  para  o  leste  pelo  sul 
»  do  cães  que  está  principiado  ;  a  barra  também  se  tem 
>»  conservado  com  a  mesma  altura  d'iigua  todo  este  dito 
>»  tempo,  e  por  isso  que  a  foz,  e  barra  seachão  tão  lar- 
5»  gas,  e  fundas,  e  as  aguas  estão  correndo  em  direcções 
»  mui  rectas  do  rio  para  o  mar  com  correntes  mais  iguaes 
»  c  sem  voltas ,  havendo  rasgado  também  leito  fundo 
»'  até  pelo  Sul  das  Lages  ,  o  que  dá  a  esta  barra  grande 
»  vantagem ;  os  navios  menores  estão  entrando  ,  e  sahin- 
5>  do  todo  este  anno  até  na  baixa-mar,  e  em  toda  amare, 
»  acontecendo  que  ás  vezes  ao  mesmo  tempo  huns  navios 
"  estejão  sahindo ,  e  outros  entrando  á  vella ,  e  de  todo 
»í  o  modo  :  mas  he  este  o  primeiro  verão  que  a  barra  do 
»»  Porto  se  aprezenta  neste  grande  estado  de  melhoramen- 
»  to  larga  ,  funda ,  e  recta  ;  sendo  a  sua  actual  largura 
3>  na  foz  ;  em  todo  este  anno  humas  poucas  de  vezes  maior 
a>  do  que  era  atégora  em  tal  estação  ;  porque  raras  ve- 
í»  zes  huma  grande  cheia  do  Douro  chegava  a  pô-la  tão 
"  larga ,  como  ella  agora  está  constante  neste  verão  ;  e 
>»  acontecia  que  passada  qualquer  cheia  a  foz  se  começava 
"  a  estreitar  até  difficultar  muito  a  passagem  dos  navios  ; 
>»  cujo  mal  desapareceo  totalmente  neste  anno  ,  conservan- 
>'  do  a  toz  toda  a  largura  do  leito  desde  Caranguejeiras 
»  pelo  Sul  do  rio ,  onde  se  está  fazendo  o  novo  paredão 
>j  á  dous  annos ,  e  a  margem  do  norte.  =  Dcos  guarde 
Tonto  IX,  jL,  •  y  a 


8a  Memorias  da  Academia  Real 

>»  a  V.  S.  muitos  annos.  =  S.  João  da  foz  29  de  Sctcm- 
j>  bro  de  1823.  =  De  V.  S.  muito  attento  venerador  e 
j>  creado  =  João  Pinto  de  Souza.  =  Reconheço  a  letra , 
>»  e  assignatura  supra  ser  do  próprio.  =  Foz  do  Douro  30 
>»  de  Setembro  de  1823.  =  Signal  do  reconhecimento.  = 
j>  Joze  Joaquim  de  Araújo.  » 


NOTAS. 

(a)  As  chuvas  então  também  serião  mais  abundantes , 
e  mais  bem  repartidas  nas  diversas  estações  pelo  poderozo 
influxo  da  vegetação ,  que  estaria  no  maior  auge  e  activi- 
dade nesses  mesmos  tempos  •,  e  mais  regulares  ,  e  suaves 
serião  as  mesmas  estações ,  como  mui  elegantemente  o  des- 
creve Mr.  Rauch  nas  suas  Harmonias  Hydro-vegetaes ,  pro- 
pondo as  plantações  dos  arvoredos  para  evitar  os  males, 
que  elle  sentia ,  e  que  eu  receio ,  os  quaes  amcação  con- 
duzir á  extincçâo  dos  rios. 

{h)  As  praias  são  as  paredes ,  que  contém  o  grande  va- 
zo fluido  do  mar  ;  e  toda  a  pressão  de  qualquer  fluido  se 
exercita  perpendicularmente  contra  as  paredes  do  vazo  ,  que 
o  contém ,  como  se  prova  nas  sciencias  fysico  mathemati- 
cas.  Logo  &c.  As  direcções  perpendiculares  ás  praias  são 
também  as  de  mais  curta  distancia  ;  por  ellas  a  queda  he 
mais  rápida ,  por  ellas  pois  conseguintemente  as  aguas  le- 
vantadas em  ondas,  formadas  lá  no  largo,  buscão  as  praias 
mais  baixas  ,  paraonde  tem  queda  e  decidem  o  seu  movi- 
mento. 

(*)  Seja  AD  a  margem  mais  avançada  para  ornar,  EG 
a  mais  recolhida  de  hum  rio  AECD  perto  da  sua  foz  ; 
CD  será  a  secção  commum  do  rio  com  o  mar  ;  seja  ia  a 
direcção    da    corrente ,    ou   a    de  huma   partícula    da  agua 

den- 


DAS   SCIENCIAS   DE   LlSBOA.     "  8^ 

dentro  no  leito;  esta  partícula  ou  molécula,  e  todas  as 
mais  chegando  perto  da  boca  CD,  ou  secção  commum  do 
mar  e  do  rio ,  forcejarão  para  se  lançarem  no  mar  por  di- 
recções am  perpendiculares  a  ellas ,  ou  pela  mais  curta  dis- 
tancia entre  o  leito  mais  elevado ,  e  o  mar  ;  porém  como 
se  movião  já  no  leito  com  as  direcções  ia ,  e  velocidades 
suppostas  íi/»,  seguiráõ  a  direcção  fl»,  que  será  sempre  en- 
tre a  direcção  da  agua  no  leito,  e  a  perpendicular  am  a 
CD,  sofrendo  esta  direcção  variações  dentro  destes  limites  , 
segundo  a  relação ,  que  entre  si  tiverem  as  forças  compo- 
nentes am  c  apy  e  quanto  mais  desiguaes  forem  as  mar- 
-gens,  ou  mais  recolhida  estiver  a  testa  C  a  respeito  da 
testa  D,  mais  am  se  faz  perpendicular  ao  leito,  e  mais 
a  direcção  resultante  an  foge  da  direcção  ia  que  trazia  no 
leito,  ou  da  do  mesmo  leito;  e  com  maior  angulo  sahe  pa- 
ra o  mar,  ou  declina  para  o  lado  da  menor  margem,  ou 
para  a  esquerda  nos  nossos  rios;  donde  se  segue  tudo  quan* 
to  se  diz  no  texto  ,  e  seus  corolários. 

{a)  Em  hum  rio  BCEF  de  margens  parallelas ,  ou  não 
parallelas ,  sejão  bg  rs  as  direcções  da  corrente  obliqua  no 
leito,  fazendo  ângulos  com  as  margens  BC  e  EF  ;  nm.  re- 
prezente  a  velocidade  da  partícula ,  ou  molécula  do  flui- 
do ^ ;  mp  a  força  destruída  contra  a  margem  a  que  he 
perpendicular ;  mo  a  força  parallela  com  que  continuão  a 
mover-se  as  particulas  fluidas  parallelamente  aEF,  as  quacs 
ainda  são  novamente  encostadas  a  esta  margem  pelas  ou- 
tras particulas  rs ,  que  chegão  alli  posteriormente  :  logo  a 
escavação,  que  a  corrente  fizer  na  margem  será  curvelma  , 
pois  as  forças ,  que  as  formão  mudão  de  direcção  a  cada 
instante ,  por  serem  chocadas  novamente  a  cada  instante 
pelas  particulas  ,  que  vem  chegando  :  mp  depende  do  an- 
gulo miip  ^toE.  Logo  perde  a  força  tanto  mais,  e  tanto 
mais  se  encosta  o  rio  á  margem ,  quanto  mais  se  aproxima 
o  angulo  Z>wE  do  recto ,  ou  im  da  perpendicular  á  mar- 
gem. Logo  &c.  &c.  e  segue-se  quanto  vai  dito  no  texto. 

(f)     Talvez    o  movimento  do  Oceano   do  norte  para  o 

L  ii  sul 


54  Memorias  da  Academia  Real 

sul  na  noísa  costa  seja  cauzado ,  ou  muito  ajudado  ao  me- 
nos pelas  correntes  de  todos  os  rios  ,  que  nelle  tem  suas 
fozes  ,  e  que  se  dirigem  para  OS.  O  ,  oQ  mais  rigorosa- 
mente fallando  para  o  3.°  QLiadrante,  c  muito  concorrão  pa- 
ra formar,  ou  formem  esse  perpetuo  movimento,  cuja  cau- 
sa he  de  outro  modo  inexplicável,  por  ser  constante  todo 
o  anno  :  mais  ao  largo  e  quasi  insensivelmente  essa  corren- 
te terá  revessa  cm  sentido  contrario,  sem  o  que  o  Oceano 
fugiria  todo  do  norte  para  o  sul ,  o  que  não  acontece. 

(d)  No  2.°  §.  das  ditas  Instrucções  Regias  dadas  em 
1790  para  governo  do  Director  das  obras  da  barra,  cujo 
original  se  acha  no  archivo  da  Illustrissima  Junta  da  Com- 
panhia geral  do  Alto  Douro,  Sua  Magestade  depois  de  ter 
mandado  que  se  execute  inalteravelmente  o  plano  que  en- 
tão se  adoptou  ,  se  exprime  deste  modo  :  «  se  com  tudo 
j>  no  progresso  das  obras  parecer  necessário  ,  ou  útil  fazer- 
j»  lhe  ou  em  qualquer  artigo  alguma,  ou  algumas  altera- 
j>  çocs ,  ou  inovações  ,  V.  mercê  dará  conta  na  Junta  da 
»  Companhia  que  deve  ouvir  o  Fiscal ,  para  ser  tudo  pre- 
»  sente  a  Sua  Magestade  e  resolver  o  que  for  justo.  j> 

(e)  Eis-aqui    copiadas    algumas    passagens   do  §   z."  do 
plano    original  que  se  seguia  ,    e  eu  possuo    ««  Para  o  fim 
»  de  melhorar  a  navegação  ,  e  facilitar  a  entrada  ,  e  sahi- 
v  da    da   barra,    creio    que  será  bastante  este  cães  '»  (fa- 
>»  lando    de  ROED    da  direita ,    única   obra  do  seu  plano 
»  de    barra )  e  julgo    inútil ,    e  desnecessário    fazer   outro 
j»  fronteiro  na  outra  margem  do  Douro  da  parte  do  cabe- 
j>  delo  &c.  >»  Concluo  este  mesmo  paragrafo  dizendo :  «  Lo- 
>»  go  seria  nocivo  hum  cães  da  banda  do  Sul  >»  affirmativa 
ainda  mais  notável  por  isso  que  seguindo  os  bons  conheci- 
dos princípios   de  Fabre  ,    somente  hum  paredão  tal  como 
LQ^ poderia  precizar  o  rio  a  cavar  mais  funda  barra,    be- 
neficio   este   que    todavia  deixaria  de  ser  duradouro ,    logo 
que    as  margens  ficassem  desiguaes  ,    pois  aconteceria  pre- 
ci/amente   o  que   a  este  respeito  mencionei  no  artigo  de- 
nominado 2."  facto. 

(f) 


DAS   SciENCIAS  DE   LiSBOA.  85* 

(f)  A  diffcrença  de  baixa-mar  á  preamar  he  de  12  a  14 
palmos ,  c  por  tanto  ás  ditas  sondas  tomadas  nos  ~  de  ma- 
ré se  deve  acrescentar  bons  3  palmos  ,  donde  se  segue  que 
ficão  de  34,  29,  25-  palmos  de  altura  na  preamar  corres- 
pondente aos  differcntcs  canaes  ,  ou  rumos,  cm  cuja  direc- 
ção ha  fundo  na  barra  :  mas  a  verdadeira  barra  he  por  on- 
de ha  o  maior  fundo,  por  tanto  nesta  sonda  do  dia  10 
de  Setembro  a  barra  he  pelo  O.  N.  O.,  e  tem  34  palmos 
de  fundo  ,  e  assim  das  outras  :  a  tabeliã  que  apresento 
foi  construida  debaixo  deste  principio. 


ME- 


MEMORIA    TOPOGRÁFICA 

E  ECONÓMICA 

D  A 
COMMARCA    DOSILHEOS 

Por  Balthazar  da  Silva  Lisboa. 


CAPITULO    I. 


Da  Capitania  de  S.  Jorge  dos  Ilhéos  ,   sua  doação  ,    e  impos- 
sibilidade ,   que  encontrarão  os  primeiros  colonos  em  a  po- 
voar j    e  engrandece-la. 


A 


§    I- 


Villa  de  S.  Jorge  dos  Ilhéos,  cabeça  da  commar- 
ca  daqijclle  nome,  he  situada  na  altura  de  14.°  645',  no 
polo  do  sul;  a  sua  poziçao  lie  entre  dois  oiteiros  vizinhos, 
ficando  hum  da  parte  do  sul  ,  e  outro  de  oeste ,  separados 
por  1063  braças,  que  váo  do  pontal  chamado  ^»;m»; ,  até 
a  ponta  da  terra  conhecida  com  oappellido  de  Pernambuco  y 
encostado  á  qual  se  entra  na  barra,  onde  se  achâo  osves- 
tjgios  de  huma  pequena  fortificação  pelos  Hollandezes  eri- 
gida,  no  tempo,  que  tomarão  a  Bahia.  Do  pontal  do  Amo- 
rim corre  o  rio  ,  que  o  banha  em  linha  obliqua  ,  a  huma 
pedra ,  que  do  Pimenta  tomou  o  nome ,  com  largura  de 
iri  braças  ao  rumo  de  noroeste;  e  de  cuja  pedra  cm  li- 
nha recta  se  busca  a  entrada  de  outro  rio ,  por  Furado  co- 
nhecido, que  divide  a  ilhota,  que  alli  ha,  a  qual  dos  Pa- 
dres 


88  Memorias  da  Academia  Real 

àreí  tomou  o  nome  ,  para  o  rio  conhecido  da  Esperança. 
Tem  a  barra  40  braças  de  largo  ,  com  fundo  de  20  pal- 
mos na  baxamar ,  sem  ter  em  seu  canal  banco  algum  de 
pedra ,  ou  de  arèa ,  e  hc  por  isso  immutavel. 


2. 


Quando  os  habitantes  intentao  a  navegação  para  a  Ba- 
hia ,  dirigem  as  suas  embarcações  para  o  norte  ,  com  res- 
peito unicamente  aos  baixos,  que  tem  avista,  bem  conhe- 
cidos pelo  nome  de  Ilhéos ,  os  quaes  são  (a)  compostos 
de  hum  cordão  de  pedras  altas  saxoaas  ,  que  os  navegan- 
tes descobrem  quatro  legoas  ao  mar ,  chamadas  Sororvcas 
humas  ,  Itapitntigas  outras,  no  idioma  natural  do  paiz,  to- 
das arranjadas  ao  correr  do  ilhéo  ,  do  norte  da  barra,  hu- 
ma  Icgoa  ,  encaminhando-se  ao  sul ,  pouco  mais  na  mes- 
ma distancia ,  fronteiras  á  barra.  Entre  estas  mencionadas 
pedras  ,  e  o  ilhéo  ,  assim  á  terra  delias  ,  como  da  parte  do 
mar ,  podem  navegar ,  e  fundear  á  roda  ainda  os  mais 
grandes  vazos ;  para  accomctterem  com  tudo  a  barra  ,  ca- 
recem os  navegantes  de  ventos  favoráveis  ,  taes  são  os  de 
nordeste  ,  até  les-sueste ,  e  para  a  sahida ,  dos  terraes  do 
sul  sudoeste. 

§•     3- 

Ao  norte  da  barra  huma  legoa  desemboca  o  rio  de 
Tihipe,  que  tem  nascimento  nas  caxoeiras  da  aldêa  dos 
índios  da  povoação  de  Almada  ,  o  qual  com  os  riaxos  das 
serras ,  que  circulão  a  formoza  lagoa ,  que  ahi  existe  , 
augmenta  por  tal  forma  suas  aguas,  que  rompendo  as  mar- 
gens do  seu  leito  ,  allaga  todas  as  férteis  vargens  ,  que  a 
bordeão.    A  sua  barra  apenas  dá  entrada  a  canoas  j  e  a  pe- 

que- 


(a)     Veja-se  a  Nota  1.*  no  fim  desta  memoria. 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  2y 

quenas  lanchas  ,  dcsviando-sc  estas  dos  bancos  de  arêa  pro- 
ximos  aos  pontacs. 

§     4' 

He  fundada  a  villa  em  huma  baixa  de  engrnçada  var- 
jaria  á  borda  do  mar,  rodeada  de  coqueiraes  ,  que  íórma 
huma  vista  summamcnre  agradável.  Não  pude  descobrir  o 
tempo,  em  que  foi  fundada,  sendo  aliás  certo,  por  antigos 
documentos  extrahidos  da  Torre  do  Tombo,  que  em  1SS9 
era  já  povoada  com  quatro  engenhos  de  assucar.  {a)  He 
innegavel ,  que  depois  da  descoberta  do  novo  mundo  por 
Christovão  Colombo ,  e  pela  demarcação  que  o  Pontific.e 
Alexandre  6°  de  commum  accordo  com  os  Soberanos  de 
Portugal  eHcspanha  havia  feito  (b)  limitando  as  possessões 
de  cada  hum  ,  pelas  balizas  das  ilhas  de  Cabo  Verde ,  e  a 
barlavento  mais  occidental ,  que  julgou  ser  de  Santo  Antão  22.° 
ao'  equinocial,  de  17  legoas  e  meia  por  cada  hum,  de- 
termina-se  a  linha  meridional  de  norte  a  sul  ,  assentando 
que  as  terras  e  ilhas  por  descobrir  da  p„~rtc  do  oriente 
fossem  pertencentes  á  coroa  de  Portugal  ;  (  por  cuja  demar- 
cação Ihepcrtenceo  oBrazil,  descoberto  por  Pedro  Alvares 
Cabral,  senhor  de  Azurara)  desde  aponta  do  rio  das  Ama- 
zonas da  parte  de  oeste  ,  pela  terra  dos  Caribás ,  e  pelo  cer- 
tão  dentro  correndo  ao  sul ,  alem  da  barra  de  S.  Mathias  , 
por  45:.°  distantes  da  equinocial;  forão  os  Soberrnos  portu- 
guezes ,  senhores  do  Brazil ,  assim  pelo  direito  da  con- 
quista ,  como  por  aquelle  que  então  se  julgava  unicamen- 
te poderozo  (c) ,  por  cuja  razão  concebendo  os  Soberanos 
portuguezes  altas  idéas  assim  da  riqueza  das  colónias , 
como  principalmente  de  trazerem  ao  grémio  da  religião 
verdadeira  tantos  povos ,  tomarão  as  mais  serias  medidas 
para  se  povoar  províncias  tão  vastas  edezertas;  e  o  meio, 
Tomo  IX.  M  que 

(«)     Vpja-se  a  Nota  II. 
(i)     Vfja-se  a  Nota  IIÍ. 
(c)     Vtja-se  a  JNota  IV. 


ço  MemoriasdaAcademiaReal 

que  pareceo  então  conveniente ,  foi  ciividir  o  Brazil  em  ca- 
pitanias,  destribuindo-as  o  Scnhot  Dom  João  3."  poraqucl- 
les  fidalgos ,  que  tinhao  merecido  a  sua  confiança  pelos 
bons  serviços,  que  lhe  tinhao  feito. 

§     5. 

Foi    por  taes  motivos  dada  a  capitania  dos  Ilhdos    a 
Jcrge  de  Figueiredo ,  fidalgo    da  Caza  Real  ,    e  Escrivão 
da  fazenda  ,  de  juro ,  e  herdade    para  elle  e  seus  filhos  ,  ne- 
tos e  successores ,  assim  descendentes,    como  transvcrsaes, 
c  colateracs;    cuja  doação  constava  de  50  Icgoas  de  terra, 
começando  na  ponta   do  sul  da  Bahia,  onde   hoje  hc  a  for- 
taleza   do    morro    de  S.   Paulo ,    ao  longo    da  costa  ,    com 
igual  largura  pelo  certão  dentro  ,  e  ilhas  adjacentes  ,  alem 
de   10  kgoas   na  fronteira,    e  demarcação    das   50;    sendo 
outrosi    nomeado    governador    e    capitão    delias ,    com   ex- 
pressa  faculdade  de  poder    nomear,    e  pôr    ouvidores   com 
alçada  até  morte  natural  nos  peões  ,    e  nas  pessoas    graves 
em  degredo  por  dez   anno5 ;    consignando  se-lhe  rendas  as- 
sim na  metade  do  pescado,    como  nos  direitos  que   tocas- 
sem  á  coroa  ,    e  á  ordem    de  Christo  ,    a  ventcna    do  páa 
Brazil  ,    que    se  remeteria    para    o  reino  da  dita  sua  capi- 
tania ,  e24   escravos,  que  anniialmentc  concedia  poder  en- 
viar ao  porto  de  Lisboa ,    e  em  seus    navios  ,    e  por  mari- 
nheiros e  grumetes,  todos  quantos  escravos  bem  quizesse; 
e  finalmente  as  rendas  das  alcaidarias  ,    e  das  moendas    pa- 
ra engenhos  de  assucar,    os  quaes   sem  sua  licença  se  não 
podião  levantar;  as  salinas,  e aforamentos  nas  dez  legoas, 
ficando  porem  assim  elle ,    como   os  moradores   izentos  de 
pagarem  quaesquer outros  tributos  ,  fintas,  saboarias  ,  sizas, 
ou  outros  direitos    á  excepção  ,    dos  que    no  foral    fossem 
estabelecidos. 

§     6, 

Foi  naquelles  tempos  Francisco  Romeiro  encarregado 

de 


DAS  SciENciAS  DE  Lisboa.  pr 

de  navios  de  transporte  ,  e  gente  da  mizeravel  classe  co 
Reino,  para  a  povoação  da  colónia.  Já  então  os  Hespanhoes 
por  huma  cspantoza  barbaridade ,  horrivcl  carnagcoí ,  celc- 
bravão  a  gloria  dos  seus  herocs  Pissaro  ,  Corrcz ,  e  outros 
horríveis  tragadorcs  da  humanidade ,  que  derramarão  o  sus- 
to, o  terror,  a  mortandade  entre  as  innocentes  victimas  da 
sua  rapacidade,  assignalados  pelo  mais  grande  orgulho, 
ambição,  despotismo,  furor  e  desprezo  da  moral  christa, 
sustentavão  sem  commettcr  a  mais  leve  culpa  ,  que  era  li- 
cito matar  os  insulanos,  naturaes  do  paiz,  que  entregando 
o  que  possuiâo  ,  perderão  com  a  liberdade,  a  pátria,  os 
thezouros  ,  suas  familias  ,  e  seus  principes,  restando  ape- 
nas mui  poucos,  que  escapando  de  tantas  desgraças,  rcfe- 
rião  a  quantos  encontravão,  os  grandes  estragos,  as  trai- 
ções ,  a  cruenta  carnagem  exercidas  sobre  os  seus  ,  por  ho- 
mens que  dizião  amar  e  conhecer  o  verdadeiro  Deos  ,  econ- 
sumavão  os  mais  execrandos  projectos  da  total  destruição 
de  seus  companheiros. 

§      7. 

A  pratica  de  taes  máximas ,  era  por  todos  sabida :  os 
-princípios  da  mais  sã  moral ,  que  fazia  a  felicidade  dos 
índios ,  e  dos  Europeos  ,  e  que  seguraria  os  mais  sólidos 
interesses  dos  conquistadores ,  naquelles  tempos,  erão  olha- 
dos até  como  traidores  ao  throno  ,  e  que  na  crua  guerra 
com  os  índios ,  nos  descobertos  dos  veios  do  ouro  ,  e  dro- 
gas do  paiz ,  no  despojo  da  liberdade  dos  desgraçados  ha- 
bitantes ,  nos  continues  horrores  da  guerra  ,  espantozas  mor- 
tes ,  se  devião  assignalar  os  sanguinolentos  fructos  da  ava- 
reza ,  ambição  ,  c  cegueira  dos  conquistadores  :  daqui  veio 
a  desconfiança  sempiterna  dos  índios  com  os  Europeos ,  e 
a  perda  desgraçada  de  tantos,  a  quem  se  pretendia  fazer 
conhecer  a  luz  da  verdadeira  felicidade. 


AI   ii  § 


91  Memorias  da  Academia  Real 

§     8. 

Náo  lançarão  os  novos  povoadores  da  capitania  dos 
Ilhdos  òs  tundamentos  da  colónia ,  pelos  sólidos  princí- 
pios ,  que  firmarião  a  sua  felicidade  ,  dispondo  ,  e  promo- 
vendo o  trabalho,  regulando  a  industria,  estabelecendo  a 
sobriedade ,  fortificando  pela  paciência  a  confiança  mútua 
entre  os  índios,  arreigando-a  pela  perfeição  dos  costumes , 
boa  fé,  e  lealdade,  com  o  que  a  ordem  publica  se  resta- 
beleceria ;  pelo  contrario  qui/erão  somente  haver  sem  tra- 
balho o  ouro  ,  captivando  os  índios ,  e  maltratando-os  por 
todas  as  maneiras  ;  ate  por  força  ,  tomando-lhes  suas  mu- 
lheres, e  suas  escassas  provizõcs  ,  ^"  que  se  devia  então  es- 
perar? O  que  naturalmente  acconteceo,  e  foi"  excitar-se  a 
lembrança  de  antigos  ódios  contra  os  Europcanos  ,  e  arma- 
reni-se  os  valentes  Tupinanquins  ,  para  expulsarem  hospe- 
des tão  incómodos  ,  que  projectavão  sobre  elles  erigir  o  as- 
sento da  tirania  c  escravidão  5  e  daqui  na-cêrao  tantas  guer- 
ras ,  e  desconfianças  ,  e  o  ódio  ,  que  dos  oppressores  ainda 
hoje  çonservão  çs  naturaçs,  pela  fpemoria  de  factos,  que 
traspa3sa'rão  os  quç  escapando  dos  seus  furores  se  embrenha- 
rão nas  mattas. 

§     9- 

Aindaqiie  Mem  de  Sá ,  antes  da  sua  partida  á  conquis- 
ta de  villa  Galhon  no  Rio  de  Jajieiro  ,  tivesse  reduzido 
aqucllcs  índios  a  pacificação ,  depois  de  huma  crua  guer- 
ra ;  com  tudo  jamais  a  capitania  pode  prosperar ;  assim  pe- 
la desconfiança  e  vingança  dos  índios ,  como  pela  má  cou- 
ducra  dos  colonos ,  que  de  continuo  os  excitava  aos  mais 
desesperados  exce^^sos  de  furor  e  vingança  ,  contra  os  seus 
oppressores  ;  ra/ão  por  que  nomeandp  Jorg;e  de  Figueiredo 
successor  á  capitania  o  filho  mais  moço  Jeronymo  Lavão 
de  Figueiredo,  em  12  de  Dezembro  de  i^fj  ,  sendo-lhe 
pelo  Soberano  confirmada  a  nomeação  por  G^rta  de  Alva- 
rá 


casScienciAsdeLisboa.  95 

rá  de  14  de  Maio  de  if  60  ,  se  vio  impossibilitado  de  sus- 
tentar e  manter  a  mesma  capitania  ,  por  estar  quazi  asso- 
lada pelos  índios  ,  que  tinhâo  passado  ao  furor  de  queima- 
rem os  engenhos ,  c  cazas  dos  povoadores ;  e  foi  obrigado 
a  pedir  á  Rainha  Dona  Catharina  ,  que  visto  ter  chegado 
a  sua  capitania  a  extremidade  tal,  que  lhe  não  podia  dar 
mais  firmeza,  c  estabilidade,  e  nem  era  possível  esperar 
algum  soccorro  dos  novos  colonos,  receava  nlo  sem  justa 
cauza,  perde-la  de  todo  j  e  por  este  motivo,  rogava  lhe 
concedesse  faculdade  de  a  vender  a  Lucas  Giraldes  por 
preço  de  4:835'  cruzados;  valor  pelo  qual  outra  igual  havia 
vendido  Leonor  de  Campos  ao  Duque  d'Aveiro,  para  com 
aqucUe  dinheiro  comprar  tença,  ou  renda,  com  que  se  pu- 
desse sustentar  no  Reino. 

§      10. 

A  Rainha,  que  governava  na  menoridade  do  Senhor 
Rey  Dom  Sebastião,  por  Alvará  do  primeiro  de  Outubro 
de  lyóo  approvou  a  venda,  debaixo  da  condição  de  se 
pòr  o  dinheiro  produzido  delia  em  mão  segura  ,  para  ser 
empregada  em  tença  ,  ou  renda  de  juro  ,  a  favor  do  mesmo  Je- 
ronymo  Lavão  de  Figueiredo  ,  e  seus  filhos ,,  herdeiros ,  e 
succcssores,  Lucas  Giraldes  não.  teve  duvida  na  compra, 
pagando  pela  capitania  a  quantia  convencionada  ,  receben- 
do o  vendedor  em  pagamentos  três  mil  cruzados ,  que  El- 
Rei  por  hum  conhecimento  em  forma  ,  passado  por  Pedro 
Rodrigues,  Escrivão  da  Gaza  da  índia  de  Lisboa  em  18 
de  Fevereiro  de  iJyS  ,  com  Alvará  datado  em  18  de  Fe- 
vereiro do  mesmo  anno  mandava  ,  que  da  factura  daquella 
a  trcs  annos  ,  pagasse  na  Gaza  da  índia  os  ditos  trcs  mil 
cruzados ,  de  qualquer  dinheiro ,  que  houvesse  por  venda 
de  especiaria ,  ou  por  qualquer  outra  via  ;  e  que  no  cazo 
de  que  o  sobredito  Giraldes  quizesse  mais  antes  efFeituado 
o  pagamento  em  juro  de  12:500  o  milhar  com  a  condição 
de  retro  ,  apenas  se  completasse  o  tempo  do  pagamento  , 
se  fizesse  este  etn  forma   de  juro ,    a  razãa   de  12:500    o 

mi- 


94  MemoriasdaAcademiaReal 

milhar  ,  com  todas  as  claux.ulas  e  condições  ,  praticadas  nos 
padrões  de  juro,  em  qualquer  das  cazas  de  Lisboa,  ou 
alfandegas,  e  almoxarifados  dos  seus  Rcim.s  ,  onde  eile 
quisesse,  assim  em  dinheiro,  como  no  juro  retcrido  ,  com 
o  pacto  de  retro^ 

§      II. 

Lucas  Giraldes  ,  ainda  cedendo  aquelles  três  mii  cru- 
zados, com  o  juro  de  12:^00  o  milhar,  não  preenchia 
o  pagamento  estipulado  ;  porem  como  alem  daqucUe  padrão, 
tinha  outro  de  72:377  réis  detença  igualmente  de  juro  com 
o  mesmo  pacto  de  retro  ,  assentado  na  alfandega  de  Lis- 
boa em  o  I."  dejaneiro  de  içói  ,  delle  desmembrou  58:400 
do  dito  preço  de  I  2:500  o  milhar  ,  em  que  montaváo  os  r.825' 
cruzados,  para  inteira  suisfaçao  com  a  clauzula  ,  que  que- 
rendo elle  remir  o  padrão  pelo  pacto  de  retro  ^  o  dinhei- 
ro seria  depozitado  por  authoridade  judicial,  cm  mãos  de 
pessoas  fieis  ,  e  abonadas  ,  para  se  empregar  em  outro  ju- 
ro de  renda  perpetua  ,  renunciando  a  lei  do  1.°  4.°  §, 
30,  e  quaesquer  outras  ordenações,  cnmo  a  do  1.°  2/  §. 
49  ,  para  o  que  celebrarão  cscriptura  pública  em  20  de  Ja- 
neiro dei5'6i,  confirmada,  eapprovada  pela  Rainha  ,  man- 
dando passar  carta  da  capitania  a  Lucas  Giraldes,  por 
Alvará  de  19  de  Agosto  de  1566.,  declarando  que  nella 
entraria  seu  filho  Francisco  Giraldes  por  seu  falecimento. 
Em  virtude  daquella  carta  tomou  posse  da  capitania  o  di- 
to Giraldes  por  seu  procurador  Balthazar  Ferreira  Garvo- 
to. 

§     12. 

A  mesma  impossibilidade ,  que  teve  Jeronymo  Lavão 
de  sustentar  a  capitania,  fortifica-la,  e  augmenta-la,  en- 
controu Lucas  Giraldes  e  seu  filho  ,  poisque  naquelle  tem- 
po sofrerão  os  colonos  os  maiores  estragos  de  mizeria.  Os 
índios  com  implacável  ódio,  c  insaciáveis  na  vingança, 
olhavão  para  os  Portuguezes ,  como  duros  oppressores  ,   e 

os 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  ()^ 

OS  Portuguezcs  desvairados  do  verdadeiro  caminho  das  ri. 
quczas  ,  que  o  trabalho  produz  ,  só  prctendiáo  do  suor  e 
fadiga  dos  índios  deduzir  suave  ,  e  commoda  subsisiencia : 
naqucllc  estado  levados  os  índios  ,  como  besta  vil  ao  ser- 
viço particular,  ou  público  ,  a  prizáo ,  aos  açoutes,  força- 
dos a  sofrer  todo  o  género  de  insulto,  sem  dcsaggravo  ,  re- 
médio ,  ou  indemnização ;  a  desesperação  e  vingança  natu- 
ral os  revestirão  de  todo  o  seu  turor ;  e  a  villa ,  e  povoa- 
ções forão  reduzidas  a  dezertos  ,  e  em  theatrcs  de  niize' 
ria ,   carnagem ,  e  salvageria. 

§      13* 

A  tanta  lastima  chegou  a  capitania  ,  que  o  seu  do- 
natário impossibilitado  de  a  conservar  ,  foi  obrigado  a  so- 
frer,  que  cila  fosse  até  penhorada  por  divida  civil,  e  pos- 
ta em  leilão,  a  requerimento  de  D.  João  de  Gastro,  em 
nome  ,  e  como  legitimo  administrador  de  Dona  Helena  de 
Souza  sua  filha,  para  pagamento  de  três  contos  e  quaren- 
ta e  oito  mil  seiscentos  e  setenta  ç  dois  réis  ;  c  corridos 
os  pregoes  legaes ,  foi  arrematada  pelo  Arcediago  André 
Dias  Prestes  ,  em  nome ,  e  como  procurador  de  D.  João 
de  Castro  em  10  de  Julho  de  lóij'.  E  acodindo  iquelle 
donatário  com  embargos  á  arrematação  ,  lhe  forão  por  equi- 
dade concedidos  nove  mezes ,  para  remir,  ou  dar  a  ella  lan- 
çador; e  como  o  não  desse,  nem  remisse  a  divida,  foi  ar- 
rematada pelo  dito  Prestes  com  todos  os  foros,  rendas, 
engenhos,  ilhas,  pescarias,  dezertos,  jurisdições,  datas 
de  officios,  assim  ,  e  da  maneira  que  possuirá  Jorge  de  Fi- 
gueiredo em  19  de  Maio  de  1620  :  assignou-se  ao  dona- 
tário oito  dias  para  remir  a  capitania  com  a  satisfação  ou 
execução,  não  tendo  elle  podido  conseguir,  foi  lançado 
da  remissão  ,  c  nomeou  então  D.  João  de  Castro  a  Manoel 
d' Aranha  seu  criado,  para  arremata-la  novamente  na  rua  dos 
Ferros  cm  Lisboa  a  4  de  Junho  de  1620  pelos  referidos 
dezesetc  mil  cruzados,  e  á  Exccllcntissima  Dona  Helena  de  Cas- 
tro , 


i)G  Memorias  DA  Academia  Real 

tro ,  Condessa  de  Castro  se  passou  carta  de  confirmação , 
e  succcssão  delia,  com  todas  as  jurisdições,  e direitos  por 
Alvará  assignado  em  17  de  Outubro  de  162$  ;  e  depois  a 
sua  successora  a  Exccllentissima  Dona  Anna  Alaria  de  Atahi- 
de  por  Alvará  de  13  de  Julho  de  1646,  com  todos  os  di- 
reitos ,  c  previiegios  ,  de  que  estava  de  posse  a  Exccllen- 
tissima Dona  Helena  de  Castro  ,  com  a  declaração  porem  , 
c]ue  não  ficava  confirmado  o  capitulo  da  doação  ,  que  con- 
cedia o  poderem  os  donatários  mandar  cada  anno  ao  Rei- 
no 24  escravos,  para  delles  fazerem  o  que  bem  lhes  vies- 
se ;  por  ter  sido  prohibida  já  anteriormente  a  passagem 
dos  escravos  ao  Reino  ,  por  Provizão  do  Senhor  D.  Sebas- 
tião,  de  20  de  Março  de  ijóo;  e  que  da  mesma  sorte  se 
não  confirmava  a  alçada  concedida  até  morte  incluzive  ;  pois 
que  devia  haver  appellação  no  cazo  de  morte  para  maior 
alçada  ;  e  que  nos  cazos  rezervados  na  doação  ,  houvesse 
também  para  a  mesma  appellação  5  e  que  finalmente  não  era 
confirmada  na  parte  que  impedia  hirem  alçadas  á  capitania ; 
porque  poderiao  entrar  as  justiças  Reaes,  como  se  enten- 
desse ser  conveniente  ao  Real  serviço ,  e  boa  governança 
da  terra. 

§     14- 


Por  diversas  successões  governarão  a  capitania  de  Ilhéos 
os  Excellentissimos  Condes  de  Rezende ,  atéque  a  mesma 
capitania  se  encorporou  na  Real  coroa,  em  virtude  da 
subrogação  feita  com  o  Excellentissimo  ,  e  ultimo  donatá- 
rio D.  António  Jozé  de  Castro ,  a  quem  se  havia  passado 
carta  de  doação  em  22  de  Junho  de  i75'2  ,  sendo  parti- 
cipada a  subrogação  ao  Ouvidor  da  commarca  da  Bahia  , 
por  Provizão  do  Conselho  Ultramarino  de  4  de  Março  de 
17Ó1  ,  paraque  da  capitania  tomasse  posse  para  a  coroa, 
e  delia  tomou  o  Desembargador  Luiz  Freire  De  Veras  em, 
19  de  Julho  daquelle  anno  de  1761  ;  em  cujo  tempo  foi 
também  servido  o  Senhor  Rey  D.  Jozé  i.°  de  saudoza  me- 
moria ,    fazer    da  capitania    huma    commarca    separada    da 

Ba- 


DAS   SciEKClXs  DE   LiSBOA.  97 

Bailia ,   nomeando    por  Ouvidor    delia   ao    Desembargador 
Miguel  de  Ares  Lobo. 

§     if' 

Não  foi  somente  a  dissenção  com  os  índios  ,  o  que 
impossibilitou,  e  retardou  os  progressos  da  industria,  c  da 
lavoura  de  tão  vasta,  e  rica  capitania;  muitas  outras  cau- 
zas  concorrerão,  e  derão-se  as  mãos,  para  completarem  a 
sua  fatal  ruina  ;  muito  principalmente  concorreo  a  ignorân- 
cia dos  principios  da  verdadeira  fonte  das  riquezas  ,  autho- 
rizada  pela  ambição  dehiima  corporação  podcroza  ,  que  mo- 
nopolizava o  dominio  de  quazi  todas  as  terras  delia,  absor- 
vendo toda  a  subsistência  do  povo;  cuja  corporação  ainda- 
que  por  hum  lado  fizesse  grandes  serviços  ao  estado  na  edu- 
cação dos  índios  ,  por  outro  inoculava  a  gangrena  nas  mais 
cssenciaes  entranhas,  donde  só  dependia  a  vida  espiritual, 
e  civil  dos  mesmos  índios. 

§     r6. 

Formou  os  alicerces  das  vastas  pozições  daquella  cor- 
poração a  doação  de  Mem  de  Sá  ,  que  havendo  consegui- 
do do  donatário  Jorge  de  Figueiredo  huma  sesmaria  de 
doze  Icgoas  quadradas  ,  que  começava  ao  norte  do  rio  de 
Contas  para  Camumú ,  levado  do  amor  para  com  os  Jesuí- 
tas, em  seu  favor  cedeu  a  mesma  sesmaria,  de  que  cele- 
brarão escripturas ,  que  tiverão  a  Real  approvação  ;  era 
virtude  da  qual  forão  appossados  em  3  de  Dezembro  de 
156:5;  querendo  então  os  Jesuítas  segurar  tão  poderozo  do- 
minio ,  mandarão  medir  as  terras  ,  offerecendo-se-lhe  pros- 
pera occazião  a  chegada  do  Ouvidor  do  donatário  o  Licen- 
ciado Martim  Leitão,  ao  Serenhaem,  no  anno  de  1583, 
pedindo-lhe  ,  que  não  mandasse  citar  {a)  ao  donatário ,  e 
Tomo  IX.  \r:  y.    -  n  obti- 

(a)     CousU   dos  auttos ,   que  se  acbão   110  arcbivo    da  caza    da  Fa- 
zciula. 


98  Memorias  da  Academia  Real 

obtivcráo  felizmente ,  que  aquella  medição  principiasse    da 
boca  do  rio  de  Contas  para  o  norte. 

§      í7' 

Logoque  se  retirou  aquelle  ministro ,  os  medidores 
se  prestarão  tão  favoravelmente  á  medição ,  que  chegarão 
a  Boipeba,  preenchendo  10  legoas  de  18,  que  vadea- 
rão ,  e  forão  buscar  duas  ao  sul  do  rio  de  Contas ,  para 
completarem  as  12  legoas,  no  lugar  por  Tacaré ,  conhe- 
cido, jo  braças  ao  sul  do  boqueirão  de  hum  riaxo  ,  cha- 
mado Urizícutiba  ^  distante  4  legoas  do  rio  de  Contas. 
Medidas,  e  demarcadas  assim  as  terras  da  sesmaria,  admitti- 
rão  para  a  sua  cultura  vários  forciros  ,  aos  quacs  impoze- 
rão  o  ónus  de  não  cortarem  pãos  Reaes  ,  nem  sipó  ver- 
dadeiro ,  sem  sua  licença. 

§     i8. 

Pertendendo  posteriormente  Balthazar  Ferreira  Garvo- 
to  ,  governador  posto  pelo  donatário  Lucas  Giraldes , 
levantar  huma  villa  no  destricto  de  Camamú ,  comprchen- 
dida  na  doação  de  12  legoas,  comettendo  as  suas  vezes  a 
João  de  Andrada ,  o  qual  fez  cazas  de  feitoria ,  creou  es- 
crivães,  e  justiças,  e  levantou  a  villa  com  o  titulo  de 
Andrada  ,  e  repartio  as  terras  circumvizinhas.  Immcdiata- 
mente  se  oppnzcrão  os  Jesuítas,  e  conseguirão  por  senten- 
ça dada  na  Bahia  depois  de  muitos  annos  cm  16  de  Agos- 
to de  1 644  ,  que  se  reduzisse  a  villa  ao  estado  de  al- 
deã ,  que  d'antcs  era  ,  e  que  os  capitães  do  donatário  não 
inquietassem ,  ou  perturbassem  mais  o  collcgio ,  e  pagas- 
sem as  custas. 

§     19. 

Não  erâo  os  Jesuítas  somente  senhores  das  terras  de 
Jequié ,  pela  terra  firme  ,  e  de  Boipeba  pela  costa  até  ao 
Tacaré ,    ao  sul  de  rio    de  Contas  j   mas  também  o  forão 

das 


DAS  SciENCiAs  DE  Lisboa.  ^9 

das  mattas  ,  que  seguem  pela  costa  procclloza  ,  para  Ma- 
moan,  aonde  possuirão  huma  data,  mais  adiante  huma  ilho- 
ta junto  á  villa  dos  Ilhcos  ,  e  dentro  delia  ,  alem  de  4 
braças,  com  12  palmos  de  frente  para  caza  de  sua  rezi- 
dencia ,  tinhâo  mais  outros  pedaços  contiguos  ácjuelles  ,  c 
junto  3  igreja  outros ,  alem  de  huma  sorte  de  terras ,  que 
servia  de  cerca  e  cazas  ,  que  lhe  pagavão  renda  ;  aceres- 
cia-lhes  outra  porção  de  terras  no  oiteiro  da  villa  Velha  ■; 
e  o  engenho  de  Santa  Anna  com  4  legoas  da  parte  do 
sul  até  á  pequena  ilha  dos  Coqueiros  ;  e  pelo  norte  até 
ao  rio  Sauipe  ,  e  huma  legoa  alem  daquclla  possessão  , 
contestando  com  o  rio  ,  aonde  chamao  Coroa  graníie.  No 
rio  do  Fundão  tinhão  também  duas  legoas  de  terra  ,  con- 
testando huma  com  o  rio  peia  parte  de  este,  e  outra  ,  que 
principiava  no  lugar  chamado  o  Pimenta  ,  ou  Jacaraiba , 
pela  parte  de  oeste.  No  rio  Ataipe ,  onde  chamão  Getima- 
va  ,  tinhão  mais  trcs  sortes  de  terras  ,  contestando  com  o 
rio,  huma  parte  pelo  oeste,  e  as  duas  pelo  este.  Dos  Ilhéos 
para  o  sul  possuião  mais  huma  sorte  de  terras  no  rio  de 
Messó ,  e  outra  no  rio  de  Bambepé,  alem  da  legoa  dada 
aos  índios  de  Olivença  j  sendo  quazi  todas  aquellas  immen- 
sas  possessões  adquiridas  por  doaçÓes  ,  e  gratificações  dos 
habitantes,  que  lhas  conferirão,  principalmente  nas  occa* 
ziões  de  testar. 

§     20. 

Não  restava  mais  algum  terreno ,  ou  mattas  ,  que  as 
do  confim  da  capitania  para  o  sul,  povoada  então  de  gen- 
tios pataxos  ;  e  pequenas  porções  para  o  norte ,  cobertas 
de  Amores  ,  Tupinanquins  ,  e  Pataxos ,  que  por  muitos  e 
dilatados  annos  infestarão  aos  moradores,  que  povoavão  a 
villa,  e  destrictos  do  Cairú,  e  Jequiriçá.  Erão  seguramen- 
te os  Jezuitas  não  só  senhores  dos  terrenos  referidos  ;  mas 
«obre  tudo  das  pessoas  dos  índios  ,  que  lhe  forão  entregues 
para  a  sua  direcção  espiritual,  e  temporal,  reduzidos  não 
só  a  escravidão ,    mas    condemnados   á  infeliz    situação  de 

N   ii  cx- 


loo  Memokias  da  Academia  Real 

extinguirem  pela  mistura  dos  cazamentos  com  os  negros    e 
negras    (a  que  forão  propensos)    o  gérmen  da  sua  natural 
fecundidade:  elles  não  conhecião  o  direito  da  propriedade , 
que  he  a  angular    pedra    do  cdifficio   da  civiliznçao ;    pois» 
que  os  seus  bens  erao  dirigidos  ,    segundo  a  arbitraria  dis- 
poziçao  de  seus  padres ,    que    se  atribuiao    o  excluzivo  di- 
reito da  habitação  das  suas  terras ,    e  contra  os  quaes  tal- 
vez, se  poderia  applicar    a  exclamação    do  Profeta  =r  JVir^«- 
qiiid  soli  habítahitis  terram\  =  Até  erao  privados  da  proprie- 
dade do  pobre ,  que  consiste  no  producto ,  e  devida  remu- 
neração dos  seus  serviços,  e  braços,   em  tanta  forma,    que 
sendo  concedido  a  hum  índio,  por  nome  ^o/ío  Taveira ^  o 
habito  de  Christo  com  tença  ,    pelo    relevante    serviço  por 
elle  feito  ,   de  mettcr  a  pique  huma  náo  Hollandcza  na  bar- 
ra grande  de  Camamú  ,    conseguindo   valorozamente   tratar 
a  mesma  náo  ,    sem  ser  percebido  dos  inimigos ;  pois  quan- 
do acodirão  ao  inexperado  successo  ,  o  não  poderão  evitar, 
e  pagarão    com  a  perda  das  vidas ,    è  da  náo    sua    ouzada 
temeridade  \  ornava-se  aquelle  mizeravel   índio  com  a  insí- 
gnia de   honra  ,  que  lhe  foi  dada  em  testemunho  perpetuo 
da  sua  fidelidade  e  valor    summo ,    arrecadando    porem    os 
padres  para  si  a  tença ;    e  ainda    hoje    se  conserva  aquelle 
habito  na  familia  dos  Taveiras,    e  ordinariamente    nas  ta- 
vernas de  Barcellos  empenhado  por  agoardente. 

§       21. 

Para  se  entrar  em  huma  dilucidação  mais  clara  sobre 
a  importância  da  capitania  ,  seria  talvez  a  propozito  divi- 
dir em  diversos  capitulos,  quantas  são  as  villas,  que  ella 
comprehende,  discorrendo  sobre  o  estado  de  cada  huma, 
sua  agricultura  e  commercio  ,  povoação  ,  costumes ,  e  na- 
vegação ;  indicando  o  que  pôde  melhorar  a  condição  de 
seus  habitantes;  alem  dos  cortes  de  madeiras,  que  consti» 
tuem  o  mais  importante  objecto  a  bem  dos  povos ,  e  da 
marinha  Real ,  e  mercantil. 

CA- 


DAS  SciENCi AS  DE  Lisboa.  íoi 

CAPITULOU. 
Da  villày  e  âestrictos  de  S.  Jorge  dos  llhéos. 

§     I. 

Tem  a  villa  de  S,  Jorge  ,  cabeça  da  commarca  dos 
llhéos  ,  a8o  fogos  com  2000  almas  :  os  seus  habitantes 
não  tendo  braços  sufficientcs  para  a  lavoura ,  carecem  das 
riquezas,  que  introduz  o  commercio  ,  não  cxportão  para  a 
Bahia  senão  algum  jacarandá  ,  arroz  ,  peixe  salgado  ,  co- 
cos, e  insignificantes  porções  de  farinhas  de  mandioca;  os 
homens  s3o  ágeis  ,  e  tem  capacidade  de  se  applicarcm  com 
proveito  em  todo  o  género  de  artes  ,  e  industria  ;  se  ha  quem 
íhcs  excite  o  enthusiasmo  patriótico  ,  são  zelozos  da  cauza 
pública  ,  e  bons  servidores  dos  seus  Soberanos.  Os  princi- 
paes  do  paiz  ,  fazem-se  sem  algum  motivo ,  descendentes , 
não  só  da  principal  nobreza  do  Reino  ;  mas  ainda  de  san- 
gue Rcgio,  ao  mesmo  tempo  que  elles  nem  ainda  tocdrão 
o  primeiro  estado  da  civilização;  as  suas  faculdades,  os 
seus  sentimentos  ,  e  os  seus  dezejos  são  inteiramente  apro- 
priados á  sua  situação ;  a  idéa ,  que  elles  tem  da  sua  per- 
feição ,  e  felicidade ,  consiste  na  figurada  grandeza  de  seu 
nascimento  ,  sem  alguma  educação  civil  ;  e  por  isso  não 
encontrão  alguns  objectos  de  prazer ,  senão  naquelles ,  a 
que  estão  acostumados  ;  a  caça ,  a  pesca  ,  a  lavoura  da  man- 
dioca ,  he  o  seu  mais  nobre  emprego  ,  que  realça  na  ser- 
Tentia  dos  cargos  da  Camará  ,  que  preferem  a  toda  outra 
consideração.  As  suas  necessidades  são  com  muito  pouco 
custo  satisfeitas  ;  porque  elles  privadamente  andao  quazi  nus  , 
em  fraldas  de  camiza  ,  e  se  cobrem  de  huma  túnica  de  bam- 
ba ,  ou  de  chita  ,  a  que  chamao  limão  ;  quando  recebem 
algum  hospede  de  cumprimento ,  as  suas  cazas  são  despi- 
das de  todo  o  ornato ;  tendo  o  peixe  ,  ou  o  marisco ,  e  a 
carne  do  certáo,  não  ambicionão  as    iguarias  ^  que  conten- 

tão 


I02  *  Memorias  DA  Academia  Real 

tão  a  guUa :  as  suas  mulheres  quazi  nuas  se  dcixao  ver  no 
público  ,  poisque  com  ricas  capas  de  seda  sobre  a  cabe- 
ça ,  ou  nos  hombros  descobrem  debaixo  do  véo  de  huma 
camiza  de  cassa  transparente  todo  o  seio,  andão  descalças, 
ainda  quando  sahem  á  rua  ,  nas  suas  cazas  apparccem  setn 
capa  ,  lenço ,  ou  outra  decente  cobertura  ;  as  ricas  se  des- 
tinguem  pelos  cordões  de  oiro  ,  e  outras  peças  do  mesmo 
metal ,  de  que  se  adornâo  ;  a  satisf;ição  dos  prazeres  do  sentido 
he  dominante  paixão  do  paiz  ,  e  a  fonte  da  imaginação  públi- 
ca ;  as  mulheres  cazadas  são  cruelmente  atormentadas  pelo 
desprezo  dos  maridos  ,  que  se  enlação  logo  no  amor  impu- 
ro com  suas  escravas  ,  e  quanto  mais  ricas ,  mais  infelizes 
se  reputão  ;  poisque  seus  maridos  se  arrogao  então  o  di- 
reito de  ter  tantas  concubinas,  quantas  sáo  as  escravas, 
que  corrompem  ;  o  que  he  transcendente  a  todos  os  povos 
da  capitania. 

As  terras  são  fortíssimas ,  e  a  maior  parte  cobertas  do 
húmus,  ou  massapé.  As  margens  do  Tahipe  ,  que  os  banha  , 
allaga  e  fecunda  as  suas  vargens,  admittindo  a  navegação 
de  hum  dia  inteiro  por  todo  elle  até  huma  lagoa  em  a 
qual  desemboca  ;  a  qual  fica  duas  legoas  e  meia  ao  sul  da 
JNIamoan  ,  distante  da  costa  do  mar.  Tem  aquella  lagoa 
huma  Icgoa  de  comprimento  ,  e  de  largura  em  partes  mais 
de  hum  quarto  de  legoa  ,  e  em  partes  menos ,  e  no  fim 
despede  sobre  ellas  formozas  caxoeiras  ,  suas  cristalinas  agoas  , 
estando  huma  fronteira  á  outra  cm  caminho  de  nordeste  , 
onde  lhe  disputa  a  sua  beleza  ,  a  outra  das  Caldeiras  assim 
chamada,  pela  forma  que  lhe  tem  dado  as  escavações, 
feitas  pelas  agoas,  que  sobre  ellas  precipita ,  espalhando-as 
com  agradável  suavidade ,  entre  pequenos  assaltos ,  pelos 
quaes  sobem  os  saborozos  piaos :  fronteira  aquella  ,  outra 
se  encaminha  ,  rodeando  para  o  sul ,  chamada  Pepico  por 
huma  rocha  de  pedra  aggregada  de  seixo ,  e  arêa  com  es- 
patto ,  de  dez  braças  de  comprimento. 

§ 


l 


PAS   SCIENCIAS  DE   LiSBOA.  IO3 

§     3- 

Copioza  abundância  de  saborozo  pescado  nutre  a  la- 
goa no  seu  seio  ,  a  qual  tem  de  fundo  cm  parte  8o  braças, 
o  que  faz  persuadir  ser  produzido  de  algum  braço  de  mar, 
que  privarão  os  pontacs  de  arca  da  sua  communicação ,  para 
dar  áquellcs  colonos  tão  commoda  e  prospera  sustentação. 
Nella  se  encontra  huma  quantidade  de  vários  pescados  ,  co- 
mo são  as  gostoza*;  paraíbas  ,  que  ás  tainhas  se  assemelhao  ; 
os  roballos  ,  carapebas,  camoropins  ,  da  grandeza  dos  me- 
ros ,  os  camoreassús  ,  que  dos  roballos  tomarão  a  forma  , 
mas  não  o  corpo  ;  os  piaos ,  trairás ,  bicudos ,  xaréos 
pequenos  ,  e  guaribeiras. 

§     4. 

As  mattas ,  que  bordeao  são  soberbamente  vestidas  as- 
sim dos  páos  de  construcção  ,  como  dos  que  servem  para 
obras  de  cazas  ;  e  abundantemente  se  topão  as  socupiras , 
sapucaias,  jatahis,  óleos,  jacarandás  &c.  As  suas  margens 
são  guarnecidas  de  hum  sem  numero  de  trepadeiras  ,  de 
que  a  baunilha  entre  outras,  com  o  agradável  do  seu  chei- 
ro ,  toma  a  primazia ,  formando  sobre  as  arvores  mil  en- 
graçadas formas  de  pirâmides,  columnas,  &ç.  ,  esmaltadas 
nas  estnç6cs  próprias  de  lindas  cores  das  suas  brilhantes  e  I 
delicadas,  e  aromáticas  flores:  acompanhao  esta  plauzivel 
vista  as  fluctuantes  aningas ,  figurando  muitas  ilhas ,  que 
á  vontade  dos  ventos  são  conduzidas  ora  para  este ,  ora 
para  aquelle  lugar. 

§     ?. 

Mas  de  que  servem  tão  preciozos  terrenos ,  cortados 
de  vários  rios ,  se  nao  ha  algum  industriozo  estabelecimen- 
to ,  que  facilite  e  promova  com  o  trabalho  ,  a  agricultu- 
ra, e  commcrcio  ,  perennes  bazes  da  grandeza  dos  estados, 
e  raiz  mestra  da  civilização  dos  povos?  A  Camará  não  tem 

rcn- 


104  Memorias  da  Academia  Real 

rendas  para  supprir  ainda  ás  dcspczas  ordinárias  ;  hum  pcíjue- 
no  canal  de  130  braças  fazia  conimunicavcl  o  rio  Tahi- 
pc,  ou  Atahipe  com  o  da  Esperança,  ou  Fundão,  que 
vem  até  á  villa  ;  sem  este  canal  os  lavradores  dcsacorat^oa- 
dos  apenas  plantão  ,  quanto  baste ,  a  mante-los  na  escassa 
sustentação ,  poisque  chegando  á  barra  daquclle  Tahipe  , 
são  forçidos  a  encalharem  as  canoas  ,  para  caminharem  hu- 
ma  legoa  pela  costa  até  á  villa  ,  c  dalli  despedirem  ca- 
noas pelo  rio  Fundão  por  mais  de  duas  legoas  a  recebe- 
rem os  seus  cfFeitos,  que  os  negros  conduzem  daquelle 
a  este  porto  ;  entre  tanto  quaes  são  os  inconvenientes  ,  se  pe- 
la inconstância  do  tempo,  a  chuva  não  deu  lugar  a  pôr 
os  géneros  a  bom  recato  nas  canoas  enviados  áquclle  rio? 

§     6. 

He  evidentemente  manifesto  ,  quanto  convinha  á  agri- 
cultura e  commeicio  daquelle  povo  a  impozição  de  hu- 
ina  finta  naquella  mesma  passagem ,  para  tão  indispensável 
canal ;  poisque  huma  tal  despeza  se  compensava  com  o 
augmcnto  do  annual  producto  dos  géneros,  população,  e 
rique/as  daquelle  paiz ;  e  aindaque  para  cila  o  povo  todo 
concorresse ;  esse  gravame ,  e  despeza  desapparecia ,  pela 
inestimável  vantagem  da  extensão  da  cultura  ,  e  facilidade 
d.iscommunicações  interiores.  O  estado  tiraria  também  não 
menos  interesse  na  extracção  das  suas  madeiras  de  con- 
strucção  ,  poupando  a  despeza  do  arrasto  por  terra  da  barra 
do  Tahipe  ao  F^undão. 

§     7. 

Fica  na  vizinhança  da  lagoa  a  caxoeira ,  que  de  Al- 
mada tomou  o  nome ,  onde  foi  ao  sudoeste  situada  a  al- 
deia dos  índios  mansos  da  geração  dos  Grens ,  para  servir 
de  h-irreira  ás  incursões  do  gentio  bárbaro ,  que  em  outro 
tempo  a  abordarão ,  cuja  aldeia  foi  reduzida  a  frcguezia 
de  nossa  Senhora  da  Conceição  pelo  Senhor  Rei  Dom  Jo- 
sé 


DAS  SciENCIAS  DE   LlSBOA.  ICf 

zé  I."*,  e  pela  pobreza  dos  habitantes;  a  Igreja  he  redu- 
zida a  huina  pequena  caza  de  taipa  ,  coberta  de  palha. 
Vivem  os  poucos  índios ,  a  que  a  aldeia  está  reduzida ,  da 
pesca,  e  caça,  errantes  ora  em  huns,  ora  cm  outros  bos- 
ques. As  aguas  daquella  caxoeira  se  derigem  á  lagoa  com 
o  ribeirão  de  Inohupe  ,  que  nasce  na  serra  superior ;  as 
terras  são  férteis,  e  abundao  de  madeiras  de  construcçao; 
o  bosque  porem  he  povoado  de  animaes,  para  a  sustentação 
dos  habitantes  ,  aindaque  não  no  inverno  pelo  ar  ,  lindas  cores 
de  pássaros,  e  aves  attrahem  os  olhos  domais  frio  viandan- 
te, o  qual  ao  mesmo  tempo  he  forçado  acautcliar  os  seus 
passos,  por  hum  sem  numero  de  peçonhentas  cobras,  que 
nos  caminhos  enroscadas,  nas  arvores  penduradas,  e  debai- 
xo do  capim  escondidas ,  mandão  a  morte  ao  incauto  , 
que  as  piza,  e  se  não  desvia  de  seus  botes;  abundão  as 
mattas  de  sorocucús  de  amarello  e  preto  lavrados ,  das  ca- 
ninánas ,  jararacas,  caissacas,  cobras  de  serro  verde,  co- 
ral ,  sipó  do  chão  ,  brucuá  ,  que  tem  a  forma  de  jararaca , 
porem  com  barriga  amarella ;  e  os  feridos  desses  terríveis 
reptis  curão  os  naturaes  com  feliz  successo  nas  morde- 
duras dos  sorucucús  com  o  sumo  da  Jussara  ,  palmeira 
bem  conhecida  pela  resistência  do  seu  grosseiro  linho  para 
os  arrastos  dos  páos  de  construcção ,  e  para  as  outras  co- 
bras (a)  se  servem  do  entrecasco  do  angelim  ousocupiza, 
Tomo  IX.  o  do 

(a)  Jle  tal  a  superstição  dos  povos,  que  tem  para  si,  que  curando- 
se  por  curadores  antes  de  mordidos  das  cobras  ,  não  faz  mal  o  veneno , 
quando  sejão  mordidos  j  ehc  acura  do  moéo  seguinte  zz:  Torrão  ao  fo- 
^o  qualquer  cobra  venenoza  morta,  e  feita  em  pó  preto  o  guardão; 
e  quando  curão  a  pessoa  ,  tomão  hum  dente  de  cobra,  ou  ferro  cor- 
tante, e  com  elle  fazem  na  pessoa  cm  cada  pé  bum  pequeno  golpe, 
ou  arranhadura;  e  alli  então  com  o  pó  da  cobra  qiicimada,  e  nos  pul- 
sos ,  e  com  o  pó  de  algumas  raizes  contra  o  veneno ,  e  depois  dão  a 
beber  ao  mesmo  que  se  cura  do  mesmo  pó  dacobra  ,  e  raizes  em  agua 
;norna,  ou  aguardente;  e  a  isto  chamão  curar,  para  quando  for  mor- 
dido da  cobra  não  lhe  fazer  o  veneno  mal.  Outros  curadores  o  fazem 
com  rezas,  e  certas  cruzes  feitas  com  huma  faca  sobre  o  rosto,  ou  pe- 
gada do  j)é  da  pessoa,  que  se  cura.  Outros  curão  aos  que  são  mordi- 
dos com  rezas  cutre  as  quaes  uzão  da  seguinte  =:  Jesus,  Maria,  «lozé, 


io6  Memorias  da  Academia  Real 

do  azeite ,   e  sumo    da    mucuba ,   e   banhas  do    amamcto 
branco. 

§     8. 

Com  pouco  mais  de  dois  dias  de  viagem  desse  lugar, 
se  pizuo  as  catingas  do  certão ,  que  se  dirigem  ás  mi- 
nas do  rio  Pardo ,  e  rio  de  Contas ,  estrada  que  sendo 
aberta  ,  produziria  hunia  vantagem  incalculável  pela  rápida 
e  activa  circulação  do  commcrcio  ,  pelos  cfícitos  exporta- 
dos das  províncias  centraes  ,  remotíssimas  dos  portos  de  mar, 
alem  do  gado,  que  he  conduzido  por  estradas  intratáveis 
longuíssimas  e  tortuozas,  ese  exportaria  o  salitre  dos  mon- 
tes altos  ao  mercado;  porque  o  custo  do  transporte,  pe- 
las estradas ,  que  existem  ,  absorvem  todo  ,  ou  quazi  todo  o 
valor  dos  géneros,  com  geral  desmaio  doproductor,  con- 
ductor ,  e  mesmo  do  consumidor ;  por  aquella  nova  estra- 
da adquiiiriao  asproducçõcs  do  ccrtáo  hum  valor,  que  dan- 
tes não  tinhão  ,  pela  facilidade  com  que  chegariao  ao  por- 
to de  mar  os  seus  cffeitos  ,  o  que  lhe  daria  interesse  em 
cultivar  melhor  as  suas  terras;  fazia  crescer  a  emulação  dos 
proprietários  vizinhos  ,  para  suprirem  com  quantidade  pro- 
porcional o  consumo  ,  e  a  exportação  ,  por  huma  maneira 
a  mais  perfeitamente  económica  ,  que  desafiasse  a  preferen- 
cia aos  compradores  ;  cxaltava-se  sem  duvida  muito  mais  a 
industria  ,  e  o  público  com  uzura  recmbolçava  o  soccorro 
que  para  ella  mandasse  prestar;  e  toda  a  imposição  que  se 
julgasse  conveniente  para  a  sua  sustentação  ,  não  seria  sen- 
tida pelos  viandantes,  que  a  pagassem;  poisque  por  tão 
justa  applicação  ganhavuo  mais  doque  perdião  no  descm- 
bolço  do  imposto ,  sendo  proporcional  ao  seu  ganho  ;  pois 
que  somente  era  obrigado  a  ceder  huma    parte    delle    pela 

bon- 

S.  Qeuto:  Padre  nosso,  Ave  Maria  oíTerecido  a  S.  Bento,  fazendo  hu- 
jjia  cruz  sobre  a  feridfi :  Graucie  o  uouie  de  JeâUS  tff  S.  Beuto  >{i  e 
de  sua  uiai  Saati^sima  ^  §,  iieatQa 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  I07 

bondade  da  estrada,    diminuição   do  caminho  e  dcspczas, 
(.]uc  deixava  de  fazer  para  lucrar  tudo  o  mais. 

§     9- 

São  atacados  assim  os  habitantes  da  lagoa,  e  rio 
como  os  das  povoações  circumvizinhas  ,  e  os  da  villa,  de 
sezões;  avista  moribunda,  que  em  algumas  occaziões  aquel- 
les  infelizes  mostrão  ,  imprimindo  no  animo  ,  dos  que  de  no- 
vo entrão  a  vizita-los  ,  todo  o  horror  da  sua  situação  ,  he 
a  mais  persuaziva  ,  e  eloquente  ,  para  despcrsuadir-lhes  to- 
do o  projecto  de  se  conservar  em  lugares  tão  doentios.  Tem 
origem  aquellas  sezões,  e  febres  intermitentes  da  estagna- 
ção das  aguas ;  poisque  os  rios  nas  enchentes  delias  ,  tras- 
bordando suas  margens ,  allagão  as  varjarias  ,  onde  apodre- 
cendo ,  enchem  o  ar  de  hum  gaz  mefítico  ,  capaz  de  pro- 
duzir espantozissimos  effeitos.  O  remédio  geralmente  appli- 
cado  áqucllas  febres,  são  sangrias  e  frangos  que  os  levão 
á  hydropezia  ,  em  que  mormente  acabão ,  emquanto  ou- 
tros mais  sábios  ,  seguindo  a  natureza  ,  se  approveitão  dos 
saudáveis  amargos,  extrahidos  da  casca  de  varias  arvores, 
sobre  tudo  das  bem  conhecidas  por  cavaco  de  grem  ,  e  qui- 
na de  camamú ,  com  os  quaes  felizmente  se  curão  ,  alem 
da  ipecacuanha  ,  com  que  vomitao  ,  e  da  batatinha  de  pur- 
ga ,  e  jalapa ,  que  tomão  desfeita  era  agua ,  ou  aguarden- 
te para  descarregar  as  primeiras  vias  do  humor  da  bí- 
lis degenerada. 

§     10. 


Não  tendo  para  as  outras  enfermidades  ,  que  são  como 
geraes  na  commarca  ,  meios  de  consultarem  os  Médicos  da 
cidade:  elles  chamão  as  experiências,  e  a  superstição  em 
seu  soccorro  ;  nos  pleuriíes  ,  que  são  frequentes  no  inverno  , 
sangrão  logo  os  enfermos,  e  depois  de  lhe  darem  o  vomi- 
tório de  ipecacuanha  ,  de  que  os  mattos  abundâo  ,  dão  a 
beber  ao  enfermo  o  cozimento  de  parreira  brava  com  sumo 

o  ii  de 


io8  Memorias  da  Academia  Real 

de  limão ,   c  esfregão    a  parte  da  pontada  com  sal  e  vina- 
gre. Para  camarás  de  sangue  ,  que  no  verão  dcspovoão  mui- 
tas cazas  ,   uzão  de  vomitório  ,  e  ajuda  de  ipecacuanha ,    e 
introdu/xm  no  anus  hum  limão  esbrugado  :  dão  a  beber  ao 
doente  canja  de  arroz,    cozimento    do  talio  da  banana  de 
S.  Thomé  ,    e  alfavaca  ,    e  crista  de  galo ,   ícdegozo ,  tudo 
cozido  ,    c  coado ,    e  dado    morno  a  beber  ,     e  sobrevindo 
vómito,  rcputão  sjgnal  jnfallivel  de  morte ;  também  outros 
ajuntáo  o  cozimento    do  urucú  ,    e  o  entrecasco  da  raiz  de 
mangabcira  ,  e  outros  dão  ao  doente  hum  ovo  assado  bran- 
damente ,  ajuntando-se-lhe  três  pingas  de  bálsamo,  emet. 
tendo  o  doente  no  rio  por  espaço  de  algum   tempo  ,  e  por 
vezes  repetidas,    Uzão  outros  de  tomar  duas  gemas  de  ovo 
com  vinagre  misturado,   deitado  no  ctildo  de  galinha  ,  tem- 
perado ,  e  posto  em  fogo  brando ,    que  coalhe  brandamen-r 
te  ,  e  ajuntão  huma  gema  de  ovo  desfeita  em  agua  de  tan- 
chagcm  com  assucar ,  feito  papas,  c  da-io  a  beber  ao  doen- 
te.   Outros  tem  gçhado-se  bem,   com   tomarem    8    até   i» 
cravos  amarellos    pizados  ,    e  o  sumo    misturado    com  agua 
ou  vinho  ,  e  dado  a   beber  por  três  vezes  no  dia  ,  c  tam- 
bém as  raízes  do  algodão,  e  os  seus  olhos  cozidos,  e  da- 
do a  beber    atéque    parem    os  cursos ,   uzando    ao  mesmo 
tempo  da  ajuda  de  cevada  com  assucar,    e  para  adoçar   as 
fendas  ,    que    fazem  ,    lavando  com  agua  cozida  do  capim 
pé  de  galinha  ;  e  ha  quem  uze  de  tomar  por  trcs  vezes  do 
pó  de  canclU  de  defunto ,  em  porção  de  duas  oitavas.  Nas 
camarás  brancas  uzão  da  caapericoba  ,    que  he  a  nossa  ver» 
bena  applicada    com  cebo  de  boi    em  forma   de  emprasto, 
com  duas  outras  folhas  de  ortelaã,    bebendo-a    com  sumo 
de  romãs  azedas  ,    e  rezina    de  almecega ,    ou  também  cas- 
tanhas de  bicuibas ,   ou  uzão   do  xarope    de  mattapasto,   e 
bebendo  o  sumo  do  sipó    purgativo   chamado    de  camarás ; 
çsta  he  a   maneira  de  se  curarem  taes    enfermidades ,    que 
tinha  sido  praticada   pelos  Jesuítas,  quando    existirão   nas 
gr.mdiozas  fazendas  que  possuião  na  çommarca. 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  IO9 


II. 


Para  os  que  padeciao  gota  nos  pds ,  felizmente  u/.a- 
vão  do  sumo  da  serralha  ,  com  leite  de  peito  posto  no  lu- 
gar enfermo ;  as  pessoas  tolhidas  de  ar  untavão  as  solas 
dos  pés,  palmas,  mãos,  e  nariz  de  mostarda  verde  piza- 
da  coin  raiz,  folha,  e  flor,  c  p(jndo  sobre  a  dor  a  pellc 
de  guariba  ,  e  defumando  a  parte  leza  com  bosta  de  anta. 
Aos  c)ue  padccião  tinha,  observei,  que  lhe  untavão  a  ca- 
beça com  mel  de  enxame  novo  ,  c  lixo  de  ratos,  rapando 
a  cabeça  quatro  vezes.  Vi  cheio  de  espanto ,  evitarem  o 
ferro  do  cirurgião  em  postemas  ,  saindo  estas  peia  cútis 
com  as  folhas  da  hcrva  chamada  cazadinha  ,  ajuntando-lhe 
a  outra  chamada  Maria  preta  ^  e  juntamente  as  conhecidas 
por  fedegozo,  maimiqueres,  enxerto  de  passarinhos,  vas- 
soura moida  ,  artemija  ,  mastruço,  tudo  bem  pizado  com 
luim  bolo  de  carimá  secco ,  c  posto  em  cima  da  postcma, 
amparada  por  cima  com  huma  tolha  de  capeba ,  e  cobrin- 
do tudo  isto  hum  pano  de  linho.  E  paraque  as  mesmas 
postemas  se  rezolvão  com  discripção  uzão  dos  óleos  roza- 
dos  de  marcella,  endro,  ruda ,  com  enxúndia  de  galinha, 
de  pato  ,  banha  de  porco ,  cebo  de  carneiro  ,  tutanos  de 
vaca,  malvas  cozidas,  açafrão,  gemas  de  ovo,  farinha  de 
cevada  ,  herva  baboza  assada  ,  e  pizada  ,  caroço  de  algodão , 
alfavaca  pizada  com  mel  de  abelhas  feito  emplasto  ;  man- 
dioc*  puba  pizada  com  açafrão  ,  folhas  de  pariroba  ,  piza- 
das  e  quentes ,  postas  nas  postenus. 

§     12. 

Curao  o  mal  venéreo  com  ajudas  de  sipó,  chamado 
de  axougue  ,  tomando  duas  oitavas  ,  com  huma  pollegada 
de  sabugo  de  milho ,  e  irez  olhos  de  capim ,  chamado  pé 
de  galinha  posto  a  ferver  em  huma  panella  com  quartilho 
e  nacio  de  agua,  que  fique  na  metade,  tomado  morno  de- 
pois 


lio  Memorias  da  Academia  Real 

pois  do  almoço  ,    e  os  jactos    sendo    excessivos  suspendem 
o  seu  cffeito  ,  tomando  hum  banho  de  cozimento  do    mes- 
mo capim  pé  de  galinha :    tomao    também  o  cozimento  da 
salça  panilha  ,    que  de  sete  variedades  são  bem  conhecidas 
no  paiz  ,  e  com  grande  proveito  da  humanidade  são  appli- 
cadas  aqucllas  ajudas,  e  cu  tenho  visto  muitas  pcsscas  to- 
lhidas de  dores  ,    e  cobertas   de  chagas  venéreas  se  desem- 
baraçarem com  o  uzo  de  taes  ajudas  ,    e  bebendo    o  ^uma 
de  salsa  fresca  ,  com  huma  colher  de  assucar ,    e  as  chiigas 
antigas  que  pareciao  incuráveis  ,    lavadas    no  cozimento  da 
mesma  salsa ,  e  pondo  sobre  as  mesmas  o  bagasso  ,    ou  em- 
plasto da  rczina  de  huma  arvore    conhecida    por  luudiraua  , 
nao  só  tornarem  a  bom  estado,  mas  fecharem-se  de  todo, 
ficando  os  doentes  inteiramente  restabelecidos.  Ha  alem  des- 
te ,  outro  si  pó  chamado  cainana  ,  com  que  se  purgão  os  doen- 
tes da  intermidade    céltica,    aindaq^e    os  seus   eíFeitos   são 
menos  seguros,  e  algumas  vezes  tem  sido  o  seu  uzo  fatal 
aos  que  forão  applicados,    talvez  pela  inexperencia  da  ap- 
plicaçáo  da  doze ,  que  muitas  vezes  tem  produzido  dissolu- 
ção de  sangue. 

§     13' 

As  pessoas  ,  que  deitão  sangue  pela  boca  ,  vi  ,  que  lhes 
mandavão  tomar  hum  cozimento  de  urucú  pizado,  ferven- 
do-se  de  quatro  onças ,  e  que  de  três  canadas  de  agua  se 
reduzisse  a  huma,  e  coado  o  cozimento  lhe  ajuntavão  a  sua 
calda  de  assucar  de  lambedor,  com  huma  onça  de  urucú 
em  pó  subtil ,  bebendo  deste  lambedor  o  doente  duas  co- 
lheres de  manhã  ,  e  á  noute  ,  uzando  de  dieta  ,  e  evitan- 
do os  golpes  do  sol ,  ou  a  humidade  do  sereno ,  e  todo  o 
contacto  feminino  ,  e  comer  e  mastigar  os  olhos  de  oricuiba. 
N»3  erisipelas  (hoje  quazi  hum  mal  geral  no  Brazil)  di- 
minuem a  força  das  febres  inflamatórias  com  o  uzo  do  co- 
zimento de  fedegozo  bravo ,  arbusto  bem  conhecido  no  paiz , 
que  promovendo  a  transpiração ,  diminue  os  seus  terríveis 
cffeitos ,   c  passada    a  febre ,  untâo  a  parte  leza  com  agua 

de 


l 


DAS  SciENciAs  DE  Lisboa.  iii 

de  bananeira  ,  e  purgão  o  cnfernno  com  a  batatinha  cu  jj- 
lapa  espontaneamente  ahi  produzida  ,  e  encontrada  :  outros, 
untão  o  lugar  doente  com  azeite  de  bicuiba  ,  e  abaíáo  a 
parte  para  desinchar  com  mciws  dores ;  superstiozos  rezao 
sobre  o  doente  ,  uzando  das  seguintes  palavras  Pedro  e  Pau- 
lo caminhou  para  Roma  ,  e  Jestu  Pedro  encontrou  ,  /ego  lhe 
perguntou  ^  Pedro ,  que  vai  lã  no  tuonte  ?  Senhor  ;  ei-isipéia. 
Alai ^  torna  para  lá,  Pedro  dizellio,  que  jc  cure  com  o  óleo 
da  minha  oliveira ,  erisipela  nunca  mal  terd  em  nome  do  Pa- 
dre ,  de  Filho ,  do  Espirito  Santo. 

§      14- 

Os  que  padecem  hérnias  se  dão  bem  com  o  uzo  de 
banhos  de  agua  quente  ,  em  que  se  faz  ferver  nove  olhos 
de  guaiabeira  e  pedrahume  ,  em  nove  canadas  de  agua  pa- 
ra ficar  em  huma ,  e  abafando  a  parte  pelo  tempo  dos  ditos 
banhos,  e  sendo  aquozas,  uzao  do  cozimento  ,  ou  folhas, 
e  raiz  de  jarro.  Nas  esquincncias  uziíc  de  gargarejos  da  her- 
va  chamada  piissarinbo  ,  cozida  com  pedrahume  ,  rozas ,  e 
assucar  refinado  ,  ou  xarope  de  xá  de  vassourinha ,  com  vi- 
nagre e  assucar ;  nas  opibções  mui  uzuaes  no  paiz,  pela 
humidade  das  mattas ,  tomão  os  doentes  purgantes  do  leite 
da  arvore  chamada  gameleira ,  e  uzao  de  tomar  pela  ma- 
nha cm  nove  dias  o  sumo  da  fruta  anands ,  e  outros ,  cal- 
do de  agriões  sem  sal ,  adoçado  com  mel  de  abelhas  ,  cha- 
mada" Je/âi/;  e  também  fazem  emplastos  de  agriões  afo- 
gados em  azeite,  e  postos  sobre  o  bofe  ,  quando  elle  he 
obstruído ,  ou  naquella  entranha  que  padece  o  mal. 

§     i^. 

Nas  quebraduras  ,  cm  que  sahem  as  tripas  ,   pegão  em 
dois  peilaços  de  banha  de  porco   cozidos  em   dois  pedaços 
do  pano  de  linho  cada  hum  ,   e  postos  em  agoa  bem  quen- 
te ,   com  elles  untão  as  tripas ,  e  apertando-as  paraquc  en- 
trem 


111  Memorias  da  Academia  Real 

trem  para  dentro ;  fazem  também  esfregações  com  olco  re- 
zado ,  ou  manteiga  de  cacáo  quente  ,  e  untando  a  parte  , 
levantando  as  pernas  do  enfermo  para  cima  ,  applicando-lhe 
algumas  ajudas;  deitão  no  buraco  pós  de  incenso  mistu- 
rado com  mel  de  abelhas  e  bosta  de  vaca  frita  em  azeite 
e  vinho  ,  posto  sobre  as  tripas  ,  que  as  faz  tornar  ao  seu 
lugar ,  e  se  com  aquelles  remédios  não  consegue  o  doente 
o  bom  effeito  que  espera  ;  então  lhe  dão  a  beber  azougue 
vivo.  Para  soldar  as  quebraduras ,  vi  ,  que  muitas  pessoas 
ficarão  perfeitamente  sãs  com  o  emplasto  do  Jeitc  da  ga- 
meleira extrahido  na  lua  nova,  com  almecega  ,  incenso,  e 
rezina ,  de  S.  Thomé ,  própria  do  paiz ,  e  cingindo  o  en- 
fermo com  a  sua  funda,  posto  oito  dias  em  socego ,  dei- 
tado na  cama,  repetindo-se  o  mesmo  emplasto  por  mais 
oito  dias  ,  se  nos  primeiros  se  não  conseguio  a  perfeita 
consolidação. 

§     i6. 

Nas  quedas  dão  a  beber  ao  enfermo  o  sumo  da  cai- 
pcba  ,  ou  de  mastruço  amornado,  ou  olhos  de  imbauba  com 
carimá  desfeita  em  agua:  aos  que  padecem  debilidade  de 
estômago  que  não  coze  o  comer  ,  dão  a  beber  cm  jejum 
hum  copo  de  vinho  branco  fervido  com  mostarda ,  losna  y 
equina  docamamú.  Para  a  asma  costumão  tomar  huma  quan- 
tidade de  flores  ,  e  folhas  do  alecrim  seco  ao  ar,  que  cor- 
responde a  hum  arrátel ,  depois  de  reduzido  a  pó  fino  ,  e 
misturado  em  huma  canada  de  mel  bem  cozido,  e  posto 
a  serenar  ,  tomando  huma  colher  d  noite  ,  e  outra  de  ma- 
nhã pelo  tempo  de  oito  dias;  se  o  doente  aos  nove,  ou 
quinze  dias  tiver  maior  toce ,  tomão  por  bom  signal ,  e  se 
hc  elle  cálido  ,  em  lugar  do  mel  ajuntão  assucar  fino.  Para 
matar  os  vermes  das  tripas,  mandão  beber  em  jejum  o  su- 
mo de  gravata  ,  ou  cozimento  de  feto  macho ,  e  losna , 
ou  pós  da  fruta  do  angelim  verdadeiro ,  purgando  o  doen- 
te com  jalapa. 


UAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  IIJ 

Os  que  padecem  dores  de  dentes  mandão  mastigar  a 
herva  barreguda  ,  ou  tomar  bochechas  do  cozimento  da  mes- 
ma :  também  uzão  do  cozimento  da  ortclaã ,  tomando-sc 
suadoiro  na  face,  em  que  corresponde  o  mal  ;  outros  re- 
conhecem o  allivio  ,  pondo  o  sumo  com  bagaço  de  páo 
chamado  topanbtitno  na  parte  doente  :  o  mesmo  proveito  acha- 
rão outros  no  entrecasco  da  espirituoza  jerema  ,  ou  no 
cozimento  da  raiz  do  espinheiro  amarello ;  porem  outros  ti- 
verão  allivio  com  o  óleo  da  bicuiba ,  ou  com  o  cozimen- 
to cm  vinho  de  pepinos  de  S.  Gregório.  Na  dor  de  cabe- 
ça observei  que  algumas  pessoas  referião  achar  alivio  com 
o  uzo  das  folhas  de  jarro  pequeno ,  postas  na  cabeça  ,  e  se 
ella  procedia  de  apanhar  o  sol ,  depois  de  emborcarem  hum 
copo  de  agoa  na  cabeça  ,  os  expunhao  ao  sol.  Para  dor  de 
tripas,  nenhum  outro  remédio  vi  applicar,  que  folhas  de 
alfavaca  fritas  com  olco  rozado ,  ou  de  amêndoas  doces , 
ou  nnro  de  porco  postas  na  barriga.  Na  dor  de  olhos,  vi 
tomar  o  sumo  dos  olhos  de  urucú  ,  e  botar  nos  olhos,  la- 
var os  mesmos  com  agua  de  cozimento  de  limões,  e  un- 
tar a  capella  com  unguento  feito  com  azeite ,  alvaiade  , 
e  leite  de  peito.  Para  as  pessoas  atacadas  de  vigilias ,  lhes 
dão  a  beber  a  samambaia  de  infuzão  em  TÍnho. 

§     18. 

Na  horrível  enfermidade  das  bexigas ,  em  que  os  pais 
desampárão  os  temos  filhos ,  o  marido  a  chara  espoza  ,  e 
esta  a  seu  marido  e  filhos,  os  doentes  são  expostos  ao  maior 
desamparo,  vi  apenas  applicar  para  sahircm  as  bexigas  o 
esterco  de  ovelhas  desfeito  em  agua  com  mingáo  de  eari- 
má  com  assucar  para  ser  bebido,  e nenhum  outro  remédio 
applicão;  se  as  bexigas  são  absolutamente  malignas,  todos 
perecem,  e  as  yillas  se  convertem  emdezertos  espantozos. 
Tomo  IX.  9  Nos 


114  Memorias  D  A  Academia  Real 

Nos  corrimentos  com  dores ,  elles  apanhão  os  olhos  das 
canas  bravas  ,  quando  nascem  ,  e  pizados  põem  sobre  hu- 
ma  pedra,  quente  ,  tomando  aquelle  bafo  ;  e  sendo  corrimen- 
tos frios ,  untão  a  parte  com  unto  de  cão  quente  ao  fogo. 
Para  os  cravos  do  pé,  mandão  tomar  suadoiros  de  capim  , 
e  ouvi  dizer,  se  sentião  bem.  Na  hydropezia  era  receitua- 
do  pelos  Jesuítas  o  seguinte  =  Infusão  de  duas  onças  de 
salsa  parrilha  por  14  horas  em  duas  canadas  de  agua  quen- 
te ,  huma  mão  cheia  de  cevada ,  duas  onças  de  aço  prepa- 
rado, duas  de  escoria  de  ferro,  de  tudo  isto  se  fazia  hum 
cozimento  ,  que  ficasse  em  meia  canada  ,  e  coado  se  lhe 
ajuntava  huma  onça  de  sumo  da  raiz  de  lirio  ,  outra  de 
sumo  de  folhas  de  rabãos  ,  duas  de  senne  ,  e  ao  fogo  se 
lhe  dava  huma  fervura ,  com  hum  quartilho  de  aguardente 
do  reino  ,  quatro  onças  de  manteiga  de  vacca  ,  quatro  de 
azeite  de  ruda  ,  quatro  de  amêndoas  doces ,  e  outras  qua- 
tro de  óleo  de  louro  ,  fervendo  tudo  até  se  consumir  a  agua, 
e  no  fim  lhe  deitavao  hum  pouco  de  sumo  de  lirio ,  tor- 
nando a  ferver  hum  pouco ,  e  com  isto  untava-se  a  barri- 
ga de  manhã ,  ao  jantar  ,  e  á  noute. 

§     19. 

Para  tirar  as  setas ,  ou  espinhos  do  corpo ,  tomão  as 
folhas  de  pepinos  de  S.  Gregório  com  figos  passados  bem 
pizodos,  e  postos  na  ferida :  raiz  de  endro  com  mel  de  abe- 
lhas ,  pós  de  minhocas  queimadas  com  o  mesmo  mel ,  fel 
misturado  com  almecega  ,  e  posto  na  ferida :  para  as  beli- 
das  dos  olhos  expremem  no  olho  o  quilho  branco  do  olho 
do  ananás.  Querendo  extrahir  os  vermes,  que  entrão  nos 
corpos,  nenhum  outro  meio  vi  felizmente  empregar  se  não 
do  emplasto  de  almecega  sobre  o  lugar  ,  e  expremida  a  par- 
te sahir  o  verme  morto.  Sendo  tão  frequente  e  incommo- 
da  a  entrada  dos  bichos  nos  pés  que  produzem  muitas  vezes 
inflammaçõcs  erizipelozas  ,  untão  os  pés  com  rczina  de  lan- 
di rana  ,  o  que  he  bastante  para  evitar-lhcs  a  entrada  j  ou- 
tros 


DAsScIENCIASDeLiSJOA.  II  f 

tros  uzao  da  bosta  de  boi  queimada  ,  desfeita  na  polvorj  , 
ajuntando  o  sumo  de  litnão.  Nas  impigcns  untão  o  lugar 
com  o  pó  de  arariba  com  azeite,  c  cilas  immediatanuntc 
desapparccem.  Finalmente  nas  febres' malignas ,  u/ão  beber 
o  sumo  de  limão  ,  e  o  caldo  da  herva  de  sangue  bem  co- 
zido com  fedegozo  ,  e  ajuntão  o  cozimento  do  sumo  de 
maracujá,  e  limonadas  do  fructo  do  maracujamcrim  ,  e  aju- 
das de  matapasto  ,  e  fumo  bravo ,  c  maracujá  com  assucar : 
nas  febres  intermitentes  depois  de  vomitados ,  e  purgados 
os  enfermos  lhe  applicao  o  sumo  dos  limões  com  o  cozi- 
mento da  herva  de  sangue  ,  que  os  xiriris  chamão  uukri  , 
e  o  cozimento  do  fedegozo,  pedra  de  S.  Paulo,  a  raiz  de 
parreira  brava,  ou  butua  desfeita  em  agua  ,  e  a  carimá  pos- 
ta a  serenar,  ajuntando  a  quina  do  paiz.  Nos  fluxos  de 
sangue ,  nas  feridas  uzao  do  pó  da  arvore  capororoca  ,  e  al- 
mecega  ,  sangue  de  drago  ,  sumo  de  tanchagem  com  clara 
de  ovo  ,  e  urtiga  pizada.  Este  o  curativo  prático  das  mo- 
léstias do  paiz. 

§     20. 

Tornando  a  observar  o  local  dos  ilhéos,  encontrámos 
ainda  outro  famozo  rio,  que  o  banha  intitulado  Espera» fa^ 
e  por  outros  o  Fundão  ,  não  menos  importante  ,  que  aquel- 
le  já  descrito,  o  qual  se  une  ao  rio  da  caxoeira  da  villa, 
murado  da  mais  singular  matta  ,  abundante  de  todo  o  gé- 
nero de  madeiras  de  construcção  ,  e  páo  Brazil  ,  assim  da 
parte  do  norte  como  do  sul ;  alli  se  encontrão  os  úteis  vi- 
nhatiqos  ,  e  putumujus  tão  buscados  para  a  marinha ,  e  pe- 
los particulares  empregados  nas  obras  de  macenaria.  Que- 
rendo o  governador  da  Bahia  tomar  conhecimento  do  útil 
serviço  ,  que  a  marinha  podia  conseguir  neste  lugar  na  aber- 
tura de  hum  corte  de  madeiras  ,  ordenou  por  modo  de  ex- 
periência ,  que  aquelle  se  estabelecesse  em  tão  ricas  posses- 
sões ,  c  o  successo  correspondeu  á  sua  expectação  ,  rece- 
bendo-se  nos  departamentos  da  marinha  em  Junho  de  1800, 
37  braços,  ly  cavernas  para  huma  náo  de  74,  e  2p  falcas 

í  li  de 


ii6  Memokias  da  Academia  Rbai^ 

de  vinhatlco  por  preços  os  mais  proporcionados ,  capazes 
de  desafi.ir  a  ambição  mercantil  ,  e  para  pôr  em  movimen- 
to o  trabalho  e  a  industria  do  povo  ,  com  manifesta  utili- 
dade da  Real  fazenda  ;  porem  ordenando  o  mesmo  gover- 
nador a  suspenção  do  corte  das  madeiras  tão  vantajozo  pe- 
la bondade  delias  ,  e  favoráveis  custos  cm  que  sahião  ,  man- 
dou ao  mesmo  tempo  expedir  ordem  para  se  fazerem  re- 
crutas e  soldados  a  tal  extremo,  que  muitas  madeiras  já 
nas  praias  promptas  para  se  embarcarem  forao  destruídas 
do  gu/.ano  ,  por  terem  desamparado  as  povoações,  todas  as 
pessoas  que  podião  pegar  em  armas. 

§        21. 

Hum   paiz  pobre  ,    que  não  tem  braços  para   a  lavou- 
ra ,    industria ,    e   commercio  colonial ,    não  pode  fornecer 
braços  ,  que  não  tem  ,    ás  tropas  de  linha ,    que  sendo  em 
toda  a  parte  de  pezo  ás  authoridades  das  grandes    nações , 
são  de  hum  sibrccarrego  immenso  em  paizes  despovoados, 
aonde  a   experiência  tem  mostrado  quaes  são  os  seus   funes- 
tíssimos eíFeitos.  Muitos  sábios  tem  julgado  mais  utilosys- 
tema  de  tropas  milicianas  ,    onde    o  ministério    de  soldado 
não  he   profissão  destincta  ,  nem  a  cargo  do  público  ,  nem 
a  sua  disciplina  tão  rigoroza  ;  parecendo  talvez   mais  con- 
forme ao  interesse  dos  coloniaes  ,  cntreter-se  somente  hum 
pequeno  numero  de  tropas  pago  pelo  estado  ,  e  constituin- 
do estes  as  suas  forças  em  puras  milícias,    que    se  exerci- 
tassem nas  evoluções    militares,    sem    se  apartarem   jamais 
dos  ministérios  das  suas  respectivas   profissões.  O  excellcn- 
tissimo  Marquez  do  Lavradio  ,  nas  instrucções ,  que  deixou, 
quando  sahio  do   Rio  de  Janeiro  ao  seu  tão  digno  succes' 
sor  o  exccllentissimo  Luiz  de  Vasconcellos  e  Souza  ,  mui- 
to sabiamente  propõe  tão  útil  systema  de  defeza ,    louvan- 
do assaz  o  estado ,    em  que    ficarão  as  tropas    milicianas , 
por  elle  mesmo  disciplinadas  ;    o  estado  tem  ,  alem  disso  a 
vantagem  de  não  divertir ,  e  arrancar  tantos  braços  da  agri- 

cul- 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  117 

cultura,  manufacturas,  e  industria,  que  tirados  daqucllcs 
importantes  empregos,  necessariamente  se  hão  de  diminuir 
as  riquc/.as  do  pai/.;  não  era  forçado  então  o  Soberano  a  es- 
tabelecer ,  e  augmcnrar  tributos  para  sustentar  tropas  de 
linha,  deduzidos  de  fundos  já  desfalcados,  mantendo  hu- 
ma  classe  de  cidadãos,  que  consomem,  e  nada  produzem; 
alem  de  que  se  estragaria  muito  menos  a  população  c  a  mo- 
ralidade. 

Ninguém  pódc  duvidar  de  que  os  milicianos  com  bra- 
ços e  corações  de  verdadeiros  patriotas  são  os  mais  inte- 
ressados em  defenderem  o  paiz  para  se  segurarem  do  go- 
zo, c  v?ntagcns ,  que  nelle  desfrutao  ;  o  que  não  acconte- 
ce  nas  tropas  de  linha,  que  muitas  vezes  tem  sido  traido- 
ras a  seus  próprios  Soberanos;  e  por  isso  apenas  se  deve 
conservar  hum  pequeno  corpo ,  para  servir  de  reunião  ao 
indcfinito  recrutamento  das  tropas  milicianas  no  tempo  da 
guerra  ;  para  acudir  na  paz  a  qualquer  tumulto,  ainda  nos 
confins  do  reino;  e  para  fazer  respeitar  a  authoridade  do 
Soberano;  de  mais  a  mais  as  colónias  não  tem  que  temer 
lioje  irrupção  de  bárbaros,  nem  pode  ser  de  algum  pezo 
o  pânico  terror  de  invazão  extena ,  pelos  obstáculos  que 
com  sigo  arrasta  tão  temerária  empreza;  pois  alem  dosna- 
turaes  do  paiz  terem  todo  o  interesse  de  fazer  abortivos 
os  projectos  de  estabelecimento  de  qualquer  nação  invasô-r 
ra  ,  não  era,  nem  tão  povoado,  nem  tão  civilizado  oBra- 
zil  ,  quando  com  poucos  milicianos  ,  e  com  total  falta  de 
soccorro  do  reino  ,  que  em  tão  críticos  tempos  os  não  po- 
dia dar,  sacudio  em  todos  os  pontos  o  jugo  dos  hollarv- 
dczcs  guerreiros ,  e  estabelecidos  já  no  continente  :  não  ha 
cinco  annos ,  que  poucos  milicianos  .em  Porto  seguro  im- 
pedirão o  desembarque  das  tropas  francezas  ,  afiançando 
por  isso  continuas  victorias  a  Portugal  contra  os  desespe- 
rados que  o  pertcndessem  surprender. 

§ 


Ii8  Memorias  DA  Academia  Real 

§     i3- 

A  forma ,  com  que  sempre  tenho  visto  proceder  em 
taes  dilligencias  de  recrutas ,  ainda  mais  attcrra  os  povos , 
que  conscguintcmente  procurao  por  todos  os  meios  fugir 
de  tão  grande  mal ,  embrenhando-se  pelas  mattas  e  certões  ; 
as  leis  que  rcgulão  a  forma  c  maneira  destes  recrutamen- 
tos,  jamais  tenho  visto  observar,  antes  os  encarregados  re- 
cebem (  c  muitas  vezes  quem  os  manda  )  grandes  utilida- 
des ,  prendendo,  e  soltando  conforme  o  favor,  e  o  ódio 
sugere  ;  sendo  conimumente  os  pobres  e  os  desvallidos  os 
que  sao  mandados  assentar  praça  nos  corpos  de  linha,  on- 
de em  poucos  dias,  ou  morrem  de  bexigas  ,  ou  dezcrtão 
para  os  certões  e  províncias  mais  distantes  ;  sendo  imprati- 
cável conseguirem  os  governadores  encher  o  numero  das 
praças  vagas  ,  e  todos  sabem  que  taes  deligencias  são  objecto 
de  altas  negociações  dos  agentes,  que  vendem  a  bom  pre- 
ç)  a  soltura  daquelles ,  que  podem  com  mais  razão  servir 
a  pv;trÍ3,  e  domarem  o  seu  natural  desenvolto  com  a  sobor- 
dinação  a  seus  chefes  ,  no  serviço  a  que  são  destinados  •  por 
cuja  ra/So  apenas  se  concebe ,  que  ha  ordens  para  recrutas , 
as  brenhas  immediatamente  se  povoao,  e  no  centro  delias 
entre  os  horrores  da  fome  ,  e  mizcria  acabão  muitos  ,  que 
para  alli  se  refugiao ,  e  outros  se  retirão  para  os  certões 
distantes,  onde  se  entregâo  ás  lavouras  de  algodão,  milho, 
c  feijão  ,  ou  em  negociações  de  gado  vacum  ,  e  sua  crea- 
ção  ,  e  são  assim  approveitados ,  se  tiverão  a  ventura  de 
cscapirem  dos  furores  dos  encarregados  de  fazer  recrutar 
os  povos  da  marinha. 

§     24. 

Nem  os  governadores  da  capitania,  nem  os  ministros, 
que  tem  servido  na  commarca ,  jamais  tem  dado  algumas 
providenciaes  para  a  educação  do  povo ,  e  sem  que  haja 
hum  systema  de  educação  religioza ,  civil ,  e  literária ,  ^  co-. 

é  mo 


DAS  SciENci  AS  DE 'Lisboa.  119 

mo  será  possível  obtcr-se  moralidade  nos  cidadãos  ?,  e  sem 
esta  moralidade  he  evidente  serem  impotentes  as  leis.  On- 
de  a  nação  civilizada,  que  nlo  se  gloria  de  extender  a  ge- 
neralidade de  instrucção  i  cerca  dos  esscnciaes  objectos  da 
felicidade  do  homem ;  assim  na  vida  temporal  ,  como  na 
eterna,  paraque  sejao  attentos  aos  dictamcs  da  consciên- 
cia ,  e  observadores  escrupulozos  dos  deveres  para  com  hum 
Dcos  de  bondade,  providente  ,  remunerador,  que  ordena 
o  trabalho,  e  reciproca  amizade  entre  os  homens,  ajudan- 
do a  todos  ,  para  encherem  dignamente  o  seu  fim  ;  ensinan- 
do-lhes  na  contemplação  para  gozo  do  summo  bem  a  ver- 
dade, e  todas  as  virtudes  :  Este  oefFeito  da  educação  chris- 
tã;  Hum  povo  assim  educado,  he  dócil,  e  humano  ,  hu- 
milha-se,  e  obedece  á  voz  do  superior;  poucas  leis  bastão 
para  a  sua  direcção :  a  despeza  tendente  a  esta  instrucção  , 
he  não  só  útil ,  mas  necessária  ;  poisque  a  instrucção  he 
o  contraveneno  da  impiedade  ,  hypocrezia  ,  superstição  ,  e 
barbaridade ,  preguiça  ,  pobreza  ,  e  rebeldia. 

§     ^S' 

Aquelle  desgraçado  povo  ,  não  tem  tido  ategora  hum 
mestre  para  ensinar  a  seus  filhos ,  nem  ainda  as  primeiras 
letras  ;  por  esta  cauza  a  maior  parte  dos  cidadãos  não  sabe 
ler ,  e  escrever ;  apenas  tiverão  hum  parocho ,  chamado 
Jozé  do  Amaral,  digno  das  suas  justas  lagrimas,  perten- 
deo-o  até  para  termo  das  suas  desventuras.  Elles  tem  hum 
niagcstozo  templo  para  sua  matriz  arruinado  ,  e  desprovi- 
do das  alfaias  sagradas ,  para  se  celebrar  com  decência  ,  e 
respeito  as  sagradas  funções  do  altar:  assisti  a  huma  festa, 
em  que  as  alfaias  rotas,  e  sujas,  indicavâo  bem  a  mizeria 
e  desprezo  da  freguezia ;  a  muzica  era  composta  de  huma 
viola  e  arpa  desafinadas  ;  os  muzicos  erão  o  juiz  de  órfãos 
da  vilia  ,  e  o  filho  sachristão,  e  hum  velho;  e  isto  impri- 
me não  sei  que  descrédito  á  sublime  religião ,  que  pro- 
fessamos ,  tendo-se  alem  disso  esquecido  inteiramente  os  fa- 

bri- 


no  Memorias  DA  Academia  Real 

briqueiros  da  Sé  metropolitana  ,  a  quem  a  Real  fazenda 
paga  seis  mil  reis  de  todas  as  igrejas  ,  paraque  postas  em 
massa  ,  se  remedccm  as  necessidades  de  cada  liuma ,  de  re- 
meter para  esta  os  ornamentos  indispensáveis.  Alem  da  ma- 
triz se  vem  dois  outros  antigos  templos ,  dedicados ,  hum 
a  S.  Sebastião  ,  e  outro  a  Nossa  Senhora  daVictoria,  aquel- 
Ic  na  borda  de  agua ,  c  este  no  cume  do  monte  ,  que  o 
mar  lav?,  e  são  redu/idos  a  cazas  de  morcegos,  sem  te- 
rem as  sagradas  e  veneráveis  imagens ,  de  que  se  honravão , 
o  adorno  competente  :  ainda  ,  finalmente  ,  se  encontra  ou- 
tro templo,  que  foi  dos- Jesuítas  com  o  frontespicio  no 
chão  ,  e  o  restante  sem  alguma  veneração  pública,  ou  par- 
ticular. 

§     i6. 

^  Os  necessitados  e  mizeraveis  expostos ,  longe  dos 
hospitaes  ,  porque  mizerias  não  passão  ?  He  verdade  que  a 
lei  tem  estabelecido  a  impoziçãj  das  fintas,  para  creação 
dos  expostos;  aporem  aquelle  meio,  quanto  na  pratica  se 
mostra  insuficiente  ?  Hum  povo  i-em  cultura ,  consultando 
sua  própria  vontade  ,  e  não  o  interesse  público ,  julga  por 
oppressão  taes  impoziçôes,  como  gravozas  aos  seus  débeis 
patrimónios  ,  ficando  por  tanto  aquelles  mizeraveis  sem  o 
soccorro  do  pai  da  pátria  :  os  poucos  que  escapão  da  mor- 
te i  porque  géneros  de  mizerias  não  são  sacrificados  ? 

$     27. 

Não  contribuio  pouco  para  a  incivilização  e  pobreza 
do  povo  ,  o  não  serem  frequentemente  vizitados  por  minis- 
tros sábios  e prudentes:  tinhão  decorrido  vinte  annos  ,  sem 
que  os  ouvidores  fossem  áquella  villa ,  sendo  eu  o  primei- 
ro que  nella  entrei  depois  de  tantos  annos  ;  se  não  para 
remediar  os  males ,  ao  menos  para  apontar  o  remédio ,  e 
consolalos  ;  ficando  muito  distante  das  outras  villas  aqueU 
la ,  por  caminhos  de  terra  incoromodos  e  dezertos ,  não  achao» 

do- 


DAS   SciENCIAS   DE    LiSBOA.  IJt 

do  meio  de  recompensar  as  fadigas,  c  incommodos  de  hu- 
ma  tal  vingcm  ,  fyltando  alli  ocommercio,  a  navegação, 
c  riquc/.as ,  niío  se  podem  encontrar  cauzas ,  cujas  assigna- 
turas  igualem  as  despezas  feitas  ,  o  que  faz  que  os  ouvi- 
dores deixem  de  hir  alli  de  correição  ,  não  tendo  outro  or» 
denado  ,  que  trezentos  mil  réis,  insufficicnte  para  sua  de- 
cente mantcnça ,  c  de  suas  famílias;  por  tanto  será  absur- 
do esperar,  que  elles  facão  prodígios  de  integridade ,  e  re- 
zistão  a  corrupção,  e  venalidade;  cheios  de  necessidades 
renascentes  ,  e  não  suprimidas  de  huma  maneira  adquada  á 
sua  graduação  civil  ;  se  não  tem  rendimentos  próprios  de 
hum  fundo  permanente ,  hão  de  buscar  a  subí-istencia  por 
outro  género  de  occupação  ou  trafico,  senão  chcgao  mes- 
mo a  devorar  a  infâmia  ,  com  escandalozo  dcscan.mcnto  de 
receber  peitas  de  interessados  no  êxito  das  couzas,  e  mi- 
nistérios da  policia,  e economia  do  paiz;  sendo  impossível 
em  tacs  cazos  exercer  dignamente  ministério  de  tanta  de- 
licadeza, e  confiança,  distrahindo-se  em  minuciozas  merce- 
nárias, e  sórdidas  occupaçoes  lucrativas;  poisque  em  tal 
cazo  a  administração  da  justiça  cm  lugar  de  ser  o  azilo 
da  innocencia ,  e  do  direito,  se  converte  em  receptáculo 
da  mais  facínoroza  im moralidade  ,  e  corrupção. 

§     28. 

Ho  o  desinteresse  no  serviço  público ,  o  mais  grande 
ornamento  do  magistrado  ;  mas  nem  por  isso  o  governo  de- 
ve deixa-lo  sem  a  decente  sustentação  ;  pois  olhando-se  para 
a  natureza  humana  ,  se  não  pode  acreditar  que  o  homem 
de  talento,  virtude,  e  espirito  independente,  queira  antes 
morrer  de  fome  ,  como  se  expressa  o  sábio  Edmundo  Burke  , 
na  sua  falia  ao  parlamento  de  Inglaterra ,  passando  por  in- 
dcccncias  ,  importunidades  ,  e  tortura  dos  seus  amigos  do- 
que  procurar  a  sua  côngrua  subsistência  á  custa  do  públi- 
co ,  para  quem  assidua  ,  e  ardentemente  trabalha  :  he  mui- 
to honesto  c  gloriozo ,  a  quem  possue  património  solido, 
Tomo  IX,  q  ser- 


122  Memorias  da  Academia  Rkal 

servir  ao  seu  Príncipe,  e  a  pátria  sem  salários,  ou  recom- 
pensa; mas  também  não  hc  menos  da  dignidade  Real,  não 
receber  gratuitos  taes  serviços  ,  que  pode  pagar:  e  se  ou- 
tro patriota  animado  dos  mais  puros  motivos  se  oflfcicce  a 
servir  assim  ,  renunciando  a  paga  do  estado  ,  muitos  se  afoi- 
tarão com  hypocrito  zelo  a  blazonar  de  desinteressados  com 
o  sinistro  designio  de  completar  projectos  de  ambição,  e 
malignidade ;  e  todo  o  mundo  está  bem  persuadido ,  que 
ellcs  se  indemnizarão  por  meios  clandestinos,  c  infinitiimcn- 
tc  injuriozos  ,  e  prejudiciaes  ao  público  :  não  ha  muitos  tem- 
pos ,  que  os  cortes  de  madeiras ,  tendo  sido  encarregados  a 
administradores  pobres,  sem  ordenados,  ellcs  sahirao  ricos 
da  administração  ,  que  poucos  annos  exercerão ,  deixando 
hum  delles  á  sua  família  huma  propriedade  de  duzentos  mil 
cruzados. 

§      29. 

Ora  tendo  o  ouvidor  dos  Ilhéos  tão  pequeno  ordena- 
do, he  consequência,  que  cm  lugar  de  se  entregar  todo 
ao  público,  para  promover  os  seus  interesses,  eo  dos  po- 
vos ,  se  prepare  a  fazer  as  correições  rendozas ,  promoven- 
do os  pleitos  ,  armando  a  intriga ,  as  chicanas  forenses  de 
todos  os  seus  embustes,  para  desunir  os  povos  ,  consumir, 
e  dissipar  a  sua  substancia,  transmettindo  de  família  em  fa- 
milia  implacáveis  ódios,  que  as  frias  cinzas  das  sepulturas 
não  tem  força  para  extinguir;  e  por  este  motivo  o  escri- 
vão mais  velhaco  ,  sem  honra  e  moralidade ,  he  o  mais  digno  ; 
poisquc  eem  o  seu  ministério  se  não  pode  colher  os  sazo- 
nados fructos  da  malicia,  nem  conseguir-se  com  insaciável 
sede  de  dinheiro  a  rendoza  correição,  acompanhando  a  rá- 
bolas  sem  vergonha ,  e  immorigerados ,  que  ajuntão  lenha 
á  fogueira  da  discórdia,  para  terem  parte  em  tão  infame 
partilha. 

§     30- 

He  sem  duvida  muito  conveniente  ao  bem  público    a 

es- 


DAS  Scien(MAs'd"e  Lisboa;'  .tij 

escolha  dos  ministros  sábios,  que  ponhaofa^^sua  gloria  cm 
sacrificar  as  suas  pessoas,  e;tempo  ao'^'st'ÍViça\do' fcsradò 
na  certeza  ,  de  que  cstepwVfetá  na  slia  côngrua  sustcíitiição 
em  maneira,  que*  possa  viver,  e  apparecer  c(  m  decência', 
attrahindo  pela  sua  irreprehensLvél  conducta  e  decente  faus- 
to o  respeito,  e  veneração  do  povo  ,  que  commbmcritc 
SC  rege  por  exterioridades.  Alguns  ministros,  repres'entando 
ao  throno  o  augmcnto  -«.los  ordenados ,.  foráo  estes  acrescen- 
tados por  consulta  do  conselho  ultramarino  ,  aos  ouvidores 
de  Pernambuco,  S.  Paulo,  capitania  do  Espiriio '  Sjnto , 
Angola,  &c. ,  e  não  sendo  creada  iiàquelle  tempo  a  co- 
marca dos  Ilhéos ,  ella  ficou  tendo  o  ordenado  da  sua  crea- 
ção,  igual  áquelle,  que  percebe  o  ouvidor  da  Bahia,  d'on- 
de  esta  commarca  foi  separada  ,  com  o  que  não  he  possi' 
vcl  nianter-sc  hum  magistrado  com  á  decência  ,  e  frugali- 
dade,  que  convém. 

§     3i« 

Continuemos  a  observar  a  natureza  dos  terrenos  ,  que 
ficão  ajsul  dos  Ilhéos,  onde  terminao  os  districtos  de  sua 
juri^di';ão.  ,;  Quem  não  pasmará  vendo  vestidos  todos  os 
seus  immensos  bosques  de  madeira'  de  construcção ,  alem 
do  páo  Brazil  ,  do  Jacarandá  ,  e' tantos  outros  cortados  por 
navegáveis  rios ,  como  mais  a  baixo  se  verá  ?  Entrando  na 
costa  cm  busca  de  Olivença  por  três  legoas  de  praia  ,  se  to- 
pa no  meio  o  rio  Cururupe  ,  que  veda  a  passagem  aos  vian- 
dantes de  maré  cheia  ,  deixando  sem  embaraço  porem  o  ca- 
minho os  dois  ribeirões  do  Tapoan  e  Maranhão  appellida- 
dos ,  que  no-mar  buscão  esconder-se  com  os  outros  riachos 
Sirihlba  e  Panuna ,  hum  quarto  de  Icgoa  antes  de  se  avis- 
tar a  povoação  ,  sahindo  do  campo  do  Tapoan  por  entre 
as  pedras  aggregadas ,  cobertas  de  ferro  e  vetriolo. 

§     3^* 

Reinando   o  Senhor    Rei    D.  Jozé  i.°,    por  provizão 

Q  ii  de 


IJ4  Memorias  DA  A  c  ADEMiA.  Real 

de  21   tlc  Dezembro  de   I7j8,    foi    levantada    cm   villa    n 
povoação  de  indios  ,    que  na<juelle   lugar  vivjao  debaixo  do 
governo  jesuítico  ,  dando-lhe  o  ouvidor  da  ^ahJa  í^uiz  Frei- 
re de  Veras  o  titulo  de  villa  nov^  de  Olivença,  eoíQ  as  in- 
strucçôes  do  direito,  feito  para  os  indios  do  Maranhão,  He 
situada  aquclla  villa  em  hum  aprazjvel  monte  superior    ao 
occcano ,  que  o  refresca  de  saudáveis  e  permaneotes  virações  , 
com  huma  bella  igreja  de  pedrg ,    e  cal ,    da  invocação  da 
Senhora  da  Escada.    Consta    a  povoação  de  quinhentas  ca- 
zas,    os  naturaes    vivem  quazi    nús,    conjo  se  das  mãos  da 
natureza  tivessem  prezcntcmcnte  sahido  ;  as  su;iS  cazas  sÍo 
feitas  de  taipa,  coberta?  de  palha,    faltando  lhes  as  neces- 
sárias accommodações  para  as  suasdiffcrcntcs  familiàs  ;  o  or- 
nato delias  consiste  na  rede  de  algodão,  que  tecem,  no  fo- 
go ,  que  lhes  serve  de  cçbertura  ,  e  no  pote  de  carum  ,  com 
que  se  refrescao ;  estas   as  suas  alfaias;    os  filhos,    e  filhas 
innocentes  são  antecipadaniente  corrompidas  pela  vista  bru- 
tal ,  com  que  os  pais  de  continuo  satisfazem  diante  delles 
o  fogo  da  concupiscência.  EUes  são  oriundos  da  lingoa  ge- 
fal  ,  robustos  ,  membrudos  ,  sadios  ,  e  tão  fortes ,  que  em  seus 
hombros  carregâo  hum    homem    por  do^c    legoas   no  dia  j 
tão  ágeis,  e  capazes  de  todo  o  serviço;    destros  falqueja- 
dores,  e  bons  torneiros:  a  sua  ordinária  occupação  consis- 
te, fora  da  cassa,  ou  pesca,  em  que  mais  as  mulheres  tem 
parte ,  em  fazer  cordas  de  imbé ,    coptas  de  rezar ,    cocos 
de  beber  agoa ,  esteiras ,  cestos,  obras  de  tataruga  ,  e  ou- 
tras galanterias;  e  os  lucros  que  dahi  percebem  vão  imme- 
diatamcnte  entregar  nas  tavernas  deUhéos,  ou  nas  estabe- 
lecidas pelas  fazpndas  situadas  á  margem  da  costa. 

§     33' 

As  instrucçoes  do  directório  feito    para    os  indios    do 
Maranhão  ,  tão  imperfeitas  ,  e  impróprias  em  certos  capítulos , 
não  podião  produzir  algum  effeito  saudável  a  favor  dos  in- 
dios, antqs  sim  perpetua-los  na  inçivilização,   e  selvajaria; 
*       *  mui- 


I 


n  AS    SciEKCIAS    DE   Lis  BOA.  IIJ' 

muito  bem  concebidas  trao  sem  duvida  as  providencias 
da  carta  Regia  á  poucos  annos  expedida  aos  governado- 
res ,  durante  o  ministério  do  secretario  de  estado  do  ultra- 
mar Dom  Rodrigo  de  Souza  Coutinho,  annuindo  Sua  Al- 
teza favoravelmente  ao  que  lhe  havia  proposto  ,  a  respeito 
dos  Índios  do  Pará,  o  Excellentis';imo governador  Dom  Fran- 
cisco de  Souza  Coutinho  ,  cuja  carta  Regia ,  concebida 
nos  termos  mais  sensatos  e  humanos ,  produziria  na  sua  exe- 
cução os  mais  belJos  cffeitos  ,  poisque  entre  outras  cou- 
Z3S  ,  ordenava  o  cazamcnto  das  indias  com  os  portuguczes  , 
(a)  o  que  sem  duvida  abriria  a  porta  á  civilização  dos  fi- 
lhos ,  que  adquiririão  pela  união  com  os  portuguezes  os 
seus  mesmos  costumes  e  educação. 

§     34' 

Sahirão  os  índios  das  mattas,  e  vivem  ainda  nas  po- 
voações, como  SC  não  tivessem  tido  algum  ensino:  j  que 
educação  christã  ,  e  politica  lhes  inspirarão  os  mizeraveis 
directores  ignorantes,  que  procurão  aquclle  lugar  pela  té- 
nue pensão  de  sessenti  mil  réis  !  j  Que  moralidade  lhes  inspi- 
rará, prostituindo  a  virgindade  das  indias,  com  quem  logo 
seenlação!  [Que  exemplos  de  virtude  lhes  dará  oparocho, 
chamado  ,  não  por  Deos  ,  mas  por  violência  aos  mandados 
do  seu  prelado  ,  cu  por  interesse ,  não  tendo  huma  corí- 
grua  sufficiente  para  manter-se  ,  e  que  não  quer  approvei- 
tar-se  do  retiro,  para  enriquecer  o  seu  espirito  de  luzes, 
buscando  só  na  satisfação  de  impuros  dezejos  ,  e  em  tor- 
tuozos  meios,  huma  subsistência  menos  precária! 


(a)  Nota  doauthor  =  Aiudaque  senão  podessem  verificar  tão  ufeis 
pffi-itos  daquellrs  cazamentos  com  os  pais ,  que  pelo  seu  estado  de  bru- 
lalitiade  são  mais  propensos  para  as  negras;  contudo  era  iuuegavel  cou- 
scguir-se  dos  filhos  que  principiassem  a  ser  bem  educados. 


126  Memorias  da  Academia  Real 

§     3^ 

Não  he  insensível  aos  índios  o  seu  máo  estado  :  e!leg 
me  rogarão  ,  servindo  de  ouvidor ,  que  lhes  desse  hum  di- 
rector, que  ensinasse  os  seus  filhos,  e  hum  parocho,  que 
lhes  desse  bom  exemplo  ;  provocando-me  até  as  lagrimas , 
a  expressão  das  suas  magoas ,  e  ainda  mais  ardentes  demon- 
strações de  alegria  ,  com  que  saudavao  os  augustos  nomes 
dos  nossos  Soberanos,  rogando-me  com  muitas  instancias, 
quizesse  remettcr  para  o  reino  dois  de  seus  filhos  a  apren- 
derem as  sciencias  naturaes  ,  que  elles  se  obrigavão  a  pôr 
em  porto  de  embarque  annualmente  para  sua  sustentação , 
vinte  dúzias  de  pranxóes  de  jacarandá,  e  sem  perda  de  tem- 
po os  forão  cortar ;  projecto  que  se  mallogrou  ,  por  lhe 
obstar  o  déspota  daquelle  lugar ;  e  pelo  pouco  apreço  ,  que 
o  governador  fez  de  semelhante  propozição. 

§     3(5. 

Nenhuma  povoação  de  indios  está  mais  atrazada  do- 
que  esta  na  civilização.  Com  clles  ,  á  excepção  do  parocho, 
c  director,  não  vivem  portuguezes ,  e  só  de  passagem  en- 
trão  na  vílla  a  vender-lhes  aguardente ,  ou  alguma  estopa , 
e  por  ella  trocarem  os  seus  cíFeitos.  As  mulheres  nuas  não 
sentem  as  bellezas  do  ornato  ,  e  de  se  fazerem  amadas ; 
contudo  .pelas  observações  que  tenho  feito ,  não  posso  con- 
cluir serem  elles  de  huma  raça  tão  estúpida,  como  se  de- 
clinia,  incapazes  de  adquirirem  idéas  de  religião  ,  e  de  per- 
feição ,  para  serem  acommodados  ás  instituições  da  vida  ci- 
vil ,  aindaque  não  seja  menos  certo,  que  no  estado  actual, 
sem  muito  trabalho ,  paciência  ,  e  tempo  ,  não  he  possível 
elevar  os  pais  ao  menor  gráo  da  civilização. 


DAS  SciENCiAs  DE  Lisboa.  127 

§     37» 

He  certo ,  que  sobre  o  caracter  geral  dos  indios  se 
tem  dividido  em  opiniões  os  filósofos  ;  alguns  na  descober- 
ta do  novo  mundo ,  espantados  de  verem  tão  vastos  conti- 
nentes ,  occupados  de  huma  raça  de  gente  nua  ,  timida  , 
ignorante,  sustentarão  insensutamente ,  que  esta  parte  do 
globo  tinha  ficado  mais  longo  tempo  coberto  das  agoas  do 
mar,  que  a  antiga  terra  conhecida,  imprópria  de  ser  habi- 
tada pelo  homem  ,  parcccndo-lhcs  continuamente  encontrar 
vestígios  de  hum  nascimento  moderno ;  concluindo  que  os 
seus  habitantes ,  chamados  á  tão  pouco  tempo  á  sua  exis- 
tência,  erão  inferiores  áquelks  do  antigo  mundo:  imagi- 
narão outros  ,  que  taes  homens  dominados  pela  influencia 
de  hum  clima  pouco  favorável  ,  que  enfraquecia  o  princi- 
pio da  vida  ,  não  podião  chegar  pela  sua  natureza  ao  grão 
de  perfeição  ,  ficando  hum  animal  de  huma  classe  inferior, 
sem  força  na  sua  constituição  fiiica  ,  sem  sensibilidade  e  vi- 
gor nas  suas  faculdades  moraes  :  outros  finalmente  de 
diverso  parecer  pretenderão,  que  o  homem  chegava  ao  mais 
alto  grão  de  sua  dignidade  e  excellencia ;  não  chegando  a 
tocar  o  estado  de  civilização ,  afirmando  ,  que  na  simpleza 
da  vida  selvagem  possuião  huma  elevação  da  alma ,  e  sen- 
timentos de  independência  ,  calor  de  affectos ,  que  inutil- 
mente SC  poderia  encontrar  nos  membros  da  sociedade  ci- 
vil ,  concluindo,  que  o  estado  do  homem  era  tanto  mais  per- 
feito, quanto  participava  menos  da  civilização  ,  systemas  in- 
teiramente erróneos,-  absurdos,  mutilantes,  e  antireligio- 
zos ,  com  que  pretenderão  enganar  os  ignorantes. 

§     38. 

Não  se  pôde  duvidar,  que,  assim  aquelles  indios,  co- 
mo todos  os  do  Brazil ,  a  quem  tenho  observado  ,  e  vizi- 
tado  suas  povoações ,  e  com  elles  concorrido  ,  vivem  entre 

si 


128  Memorias  da  Academia  Real 

si  sem  alguma  união ,  como  independentes  ,  pelo  vicio  da 
organização  moral  e  civil.  Antes  de  se  aldearem ,  vivião 
nas  cabeceiras  das  mattas  ,  errantes  de  huns  a  outros  luga- 
res, acoutando-se  deb;.ixo  do  manto  danoutc,  para  de  ma- 
drugada fazerem  suas  incursões  hostis  sobre  as  povoações , 
mandando  nas  pontas  das  taquaras  envenenadas  a  morte 
dqucllcs ,  que  caliião  desacautcladamente  nos  seus  braços. 
Todos  são  de  huma  mesma  côr  ,  e  forma  ,  vermelhos  es- 
curos ,  cabellos  negros  e  compridos  sem  barba  ,  cara  redon- 
da ,  testa  pequena ,  as  orelhas  compridas ,  grossos  os  bei- 
ços ,  o  nariz  chato,  olhos  negros  c  pequenos,  sem  pello 
em  todo  o  corpo  ,  ágeis ,  desconfiados ,  dotados  de  força , 
indcffcrentes  commumente  a  todo  o  motivo  de  interesses, 
ou  de  reconhecimento. 

§      39- 

Alguns  pretenderão,  que  a  falta  de  barba,  e  de  pel- 
lo no  corpo    era    fraqueza ,   e  vicio  da  organização  fizica , 
e  a  sua  particularidade  attribuião    aos  alimentos    insípidos, 
que  uzavão;   e  outros    ao  pouco  alimento,    que  tomavao  ; 
nem  hum  ,  nem  outro  motivo  porem  tem  razões  solidas  em 
que  se  firme  :  sofrem  ,  he  verdade  ,  os  Índios  a   fome  mais 
que  algum  outro  homem  ;    mas    quando    tem    que    comer , 
são  insaciáveis  na  voracidade  ,    com  que  satisfazem  aquelle 
appetite  :  os  que  estão ,  e  vivem  nas  povoações  fazem  tam- 
bém uzo  dos  salgjdos  ,  o  que  não  hc  possível  aos  que  vi- 
vem errantes  nas  mattas.  O  calor  da  zona  tórrida  ,  disserão 
outros,  influía  na  fraqueza  da  sua  constituição,  e  que  daqui 
vinha  o  desprezo,  com  que  tratavao  as  suas  mulheres,  su- 
geitas  commumente  aos  trabalhos  mais  fortes  :  hum  tal  absur- 
do he  por  todos  os  princípios  insustentável.    ^- Quem  dirá, 
que  a  paixão  do  amor  destinada  á união  social,  e  como  hu- 
ma fonte  preparada  pela  natureza  de  ternura,    e  que    mais 
ardentemente  abraza  o  coração  humano ,    seja  commum  ao 
homem  civil ,   e  ao  selvagem  ?   Se  as  mulheres    são  delles 
tratadas  com  frieza,  e  indifferença ,  ^nlo  he  para  admirar, 

quan- 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  129 

quando  vemos,  que  nas  sociedades  polidas,  onde  as  pai- 
xões tomão  outra  energia  ,  e  que  a  religião  faz  adoçar  as 
suas  penas  e  trabalhos  na  sustentação,  c  educação  da  pro- 
le, e  de  toda  a  f..mili.i ,  que  muitas  mulheres  são  entre- 
gues á  dor,  e  á  desesperação,  pela  indiff^rença  ,  c  n-esmo 
desprezo  de  seus  maridos  ?  Sc  o  índio  olha  a  mulher  como 
interior  a  si  ,  não  í-e  occupando  de  ganhar  o  seu  íflPecto 
por  continuos  cuidados  e  serviços ,  e  menos  de  conserva-lo 
por  complnccncia ,  e  doçura,  he  porque  a  paixão  do  amor 
parece  nelles  mais  antes  hum  instincto  da  natureza ,  e  por- 
que lhes  falta  a  delicadeza  de  sentimentos  da  religião , 
que  dá  vigor  á  sensibilidade  da  alma  ,  e  que  a  penetra  das 
mais  ternas  aflFeições ,  que  dirige  o  amor  á  racionabilidade 
e  pureza  ,  que  he  própria  do  sacramento ;  ^  e  dizemos  ,  que 
se  não  acha  o  mesmo  nas  sociedades  polidas  ,  onde  ha 
tanta  variedade  entre  os  dous  sexos ,  e  explosões  tão  hor- 
riveis  ,  c  espantosas  ? 

§     40. 

He  verdade ,  que  os  índios  não  tem  idéa  de  castida- 
de-, nem  he  virtude  que  aprecião  pela  ignorância ,  em  que 
vivem,  e  pela  falta  de  instrucção  nas  cousas  da  fé,  e  cren- 
ça ,  por  cujo  motivo  são  os  pais  muitas  vezes  ,  os  que 
aguilhoando  a  innocencia  da  filha  a  corrompem  ,  e  os  fi- 
lhos não  tem  horror  de  se  ajuntarem  com  as  parentas ,  e 
mesmo  com  suas  próprias  mais.  Tanta  he  a  cegueira ,  em 
que  vivem  pela  falta  de  educação  civil  e  religiosa  ;  vicio 
não  somente  a  ellcs  familiar,  mas  ainda  aos  colonos  desta 
comarca;  poisque  as  devassas  geraes  da  correição  estão 
cheias  de  semelhantes  horrores,  commettidos  ainda  por  ec- 
clesiasticos  depravados ,  e  corrompidos  em  hum  excesso  o 
mais  incomprehensivel  :  he  daquclla  mesma  fonte ,  que  sa- 
Jicm  todos  os  inacreditáveis  horrorçs  de  entregarem  os  ín- 
dios as  suas  mulheres  >  e  mesmo  as  filhas ,  por  aguarden- 
7omo  IX.  R  te , 


ijo  Memorias  DA  Ac  ADE  MIA  R  EAL 

te,  a  que  são  nimia,  e  desgraçadamente  propensos,  e  pela 
qual  tudo  sacrificáu. 

§     41. 

D'onde  vierão  os  índios  ,  e  a  maneira  ,  por  que  se 
passarão  ao  novo  mundo,  he  questão  difficil  de  resolver; 
porque  a  obscuridade  dos  passados  séculos  nenhuma  me- 
moria transmittio  aos  presentes  :  se  alguma  violenta  con- 
cussão de  tremores  de  terra  violentos  separou  ou  não  o 
Krasil  das  três  partes  do  mundo  ,  ninguém  pôde  segurar. 
He  certo,  que  no  Brasil  senão  vio  exi>tencia,  ou  vcstigios 
de  animaes  da  Europa,  Ásia,  ou  Africa,  que  he  bem  na- 
tural se  topassem  ,  se  este  paiz  fosse  algum  dia  communi- 
cado  com  aquelle  antigo  mundo.  Somente  as  observações 
dos  filósofos  modernos  parecem  decidir,  que  a  comnumi- 
CJção  proveio  de  alguma  colónia  de  Tártaros  pelo  nordes- 
te da  Ásia  ;  havendo  muito  bons  razões  para  suppôr-se , 
que  os  antepassados  das  nações  da  America,  desde  o  cabo 
de  Horn  até  ás  extremidades  meridionaes  do  Lavrador,  vic- 
rão  antes  da  Ásia  que  da  Europa  ,  poisque  entre  aqucUes 
asiáticos  ,  e  os  americanos  ha  muito  grande  semelhança  , 
a-^sim  na  sua  constituição  fysica,  como  nas  qualidades  mo- 
raes ,  que  dão  fundamentos  de  concluir ,  que  os  asiáticos 
estabelecidos  nas  partes  da  America  ,  onde  os  Russos  des- 
cobrirão a  visinhança  dos  dois  continentes  ,  se  espalhariao 
por  gráos  a  diversas  regiões  da  America ,  idéas  que  pare- 
cem muito  conformes  com  a  tradição  dos  mexicanos,  po- 
vos os  mais  polidos  da  America,  que  pretendião,  que  os 
seus  antepassados  viessem  de  hum  paiz  situado  ao  nordes- 
te do  seu  império ,  sendo  os  lugares ,  que  clles  indicarão  ,  pre- 
cisamente aquclles,  em  que  se  suppõem  vierão  da  Ásia  os 
Selvagens  tártaros.  No  governo  do  Exc."'"  D.  Rodrigo  José 
de  Menezes  forlo  achados  nos  certóes  da  Rassaca  perten- 
centes a  esta  comarca ,  em  lugares  desertos ,  pelo  capi- 
tão mór  João_Gonsalres  da  Costa,  vários  pedaços  de  loiça 

da 


DAS    SCIENCI  AS    DE    LiSBO  A.  i^i 

da  Ásia  com  jcroglificos  orientaes ;  os  qtiaes  forao  remet- 
tidos  para  se  verem  na  Academia  Re.il  das  Scicncias  de  Lis* 
boa;  c  atégora  não  pude  s..ber  o  que  elles  indicaváo,  nem 
quacs  scriáo  as  opiniões  dos  sábios  a  este  respeito. 

§     42- 

Continuando  a  ver  a  costa  para  o  sul  de  Olivença  até 
o  rio  Aqui,  di-stancia  de  3  Icgoas  e  ^,  encostado  ao  mar, 
se  encontrão  matas  prodigiosas  :  mas  não  admitte  o  lo- 
cal desembarque  favorável  pela  braveza  da  costa  O  rio 
Aqui,  que  desemboca  no  mar,  nasce  de  huma  ribeira  raza  , 
que  fica  ao  norte  da  serra  chamada  das  Baitarafas  :  pelo  in- 
terior das  matas  admitte  navegação  de  canoas  por  alguns 
diiis,  e  engrossa  a  sua  corrente  as  aguas  de  hum  ribeirão, 
que  nelle  desagua  ,  deitando  hum  braço  para  o  sul  ,  pelo 
qual  he  navegável  dois  dias  de  canoas  em  tal  tórmu  ,  que 
se  não  toma  váo  em  algumas  paragens  ,  e  elle  tem  a  Fua 
origem  da  serra  grande ,  apanhando  o  rio  Maruhi ,  que  ao 
mar  vem  terminar  a  sua  correnteza:  os  bosques,  que  vadea 
e  banha,  são  cobertos  de  infinidade  de  sipipiras  ,  jacaran- 
dás, e  de  outras  muitas  preciosas  madeiras. 

§     43' 

r 

Segue  a  costa  com  pontaes  de  arêa  d'aquelle  ao  rio 
Messo  por  espaço  de  duas  Icgoas,  o  qual  desagua  no  mar, 
vindo  de  hum  braço  do  rio  Maruhi ,  que  se  une  ao  rio 
que  de  Una  se  appellida,  e  se  topão  entre  este  e  aquelle 
rio  duas  pequenas  lagoas ,  situadas  ,  huma  para  o  norte  de 
hum  quarto  de  legoa  de  comprimento  ,  e  desemboca  as 
suas  aguas  no  rio  Maruhi,'  quiàndo  pelas  trovoadas  tras- 
borda das  suas  margens,  e  fora  des-ta  occasiao  parece  hu- 
ma agua  morta,  aindaque  se  embravece  com  os  nordestes, 
c  no  seu  seio  cria  peixes  de  agua  doce.  A  lagoa  do  sul 
desagua    no    rio  Arassari   mostrando    suas    alegres  vatjarias 

R  ii  pa- 


131  Memorias  da  Academia  Ríal 

para    a  crcaçiío  do  gado  vaccum  ,    e  para  todo  gcnero  de 
lavouras,  de  que  atcgora  se  vê  privado. 

§     44. 

Continua   a  costa  em  pontaes  até  o  rio  Arassari ,  dis- 
tante daquelle  huma  legoa  ,   o  qual  nasce  no  rio  Maruhi, 
e  este  na  serra  das  Baitaraças,  c  velozmente  corre  para  o 
rio  Una,  revestindo  assim  as  suas  margens,  como  todo  o 
interior    dos  bosques  ,   de   todo    o  gcnero  de  madeiras  de 
construcção  ,  e  hum  quarto  adiante  ficao  os  pontaes  da  bar- 
ra do  rio  de  Una  ,  que  nasce  do  Sincori  do  rio  de  Con- 
tas das  Minas  ,  navegável  muitos  dias  de  viagem  ,  e  unin- 
do   a  sua   corrente    com    a   do   rio   Maruhi  ,    faz    barra    ao 
mar  com  7  palmos  de  agua  no  baixamar  ,  cuja   barra ,  sen- 
do de  arca  ,   se  fecha  com  os  estes ,  e  se  abre  no   tempo 
que  rcináo  os  ventos  sul ,   sudoeste ,  &c.  Encaminha-se  es- 
te rio  duas  legoas   para    o  sul    ao  lugar  chamado  Captai , 
e  dahi  procura   ao   poente  hum  quarto  de  legoa  ,    e  de  lá 
vira  ao  sudoeste  meia  legoa  a  t)par  o  braço  do  sul,  onde 
volta  para  o  nordeste  com  algumas  pequenas  voltas ,  bus- 
cando porém  ao  poente  até  á  primeira  pancada ,  que  he  ra- 
ra,    e  depois  de  ^  de  legoa  ao  Poção  assim  chamado  por 
ter  hum  fundo  de  14  braças  ;  e  então  se  encaminha  direi- 
to ao  braço  grande,  acompanhado  de  terras  montanhosas, 
vestidas  de  angelins ,   óleos ,   sucupiras  ,   jacarandás ,  e  vi- 
nhaticos.  AUi  se  topa  hum  banco  de  1 3  palmos  de  alto ,  e 
dalli   por  diante,  ora  para  huma,  ora  para  outra  parte  se 
achão  cachoeiras  raras ,  pelas  quaes  os  índios  acommettem 
em   suas  canoas  a  navegação  em  huma  legoa  de  distancia. 

§     4S' 

O  braço  do  norte  dirigindo-se  a  nordeste,  procura  a 
cachoeira  do  sul,    navegável  de  canoas,    aindaque  com  al- 
gum trabalho  ppr.  3.  a  4  dias  de  viagem.  Como  deita  hum 
_,^  ■  ^  bra- 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  I3J 

braço  ao  sul ,  este  se  dirige  para  o  interior  da  serra.  Na 
beira  do  rio  na  visinhança  da  costa  moráo  alguns  índios 
de  Olivença,  e  só  o  capitão  mór  dcllcs  ,  faz  aIJi  as  suas 
lavouras  de  arroz  ,  e  mandioca ,  e  tece  cabos  de  cmbira  , 
e  os  poucos  que  se  detcm  naquelle  lugar  se  entretém  nas 
pescarias  para  sua  sustentação.  O  governador  que  foi  da 
Bahia,  D.  Fernando  José  de  Portugal,  mandou  abrir  n'a- 
quclle  lugar  hum  pequeno  córtc  de  madeira  de  construcçao 
por  experiência  ,  e  se  fizcrao  vinte  peças ,  que  alli  ainda 
existem. 

§     46. 

Faz  naquelle  lugar  a  costa  três  grandes  enseadas  para 
a  barra  de  Comandatuba  em  distancia  de  4  legoas.  Nasce 
o  rio  de  Comandatuba  acima  da  serra  das  Bjitaraças,  e  a 
sudoeste  forma  sua  barra  ao  mar  com  f  palmos  de  agua, 
fazendo  hum  pontal  de  300  braças,  e  o  rio  com  tortuosas 
voltas  se  dirige  a  barra  do  rio  Puxim,  que  trazendo  sua 
origem  do  rio  Patipe ,  ou  rio  Pardo,  forma  naquelle  lugar 
a  sudoeste  formosa  embocadura  ao  mar ,  com  20  pal- 
mos de  agua ,  bordadas  as  suas  margens ,  e  o  interior  dos 
bosques  de  todas  as  preciosas  madeiras  para  construcção  e 
macenaria.  Em  outros  tempos  foi  povoada  de  alguns  co- 
lonos ,  que  estabelecerão  a  sua  subsistência  pela  lavoura  da 
mandioca  ,  e  se  levantou  huma  igreja  de  freguezia  a'qucl- 
les  habitantes,  da  invocação  de  S.  Boaventura;  mas  des- 
graçadamente se  poderão  conservar  pelas  frequentes  incur- 
sões do  gentio  Pataxó ,  que  40  annos  infestarão,  e  perse- 
guirão a  povoação,  pondo  aos  moradores  era  tanto  aperto 
e  desesperação,  que  desampararão  o  lugar,  e  se  refugiarão 
para  Patipe.  Acaba  aquelle  rio  no  Porto  do  Mato  ,  e  he 
a  sua  navegação  de  barcos  desde  a  Comandatuba  de  6  a 
8  horas  de  viagem  ;  nas  margens  do  rio ,  e  á  flor  da  ter- 
ra, se  encontra  prodigiosa  quantidade  de  pingos  de  agua, 
e  alguns  topázios,  e  ouro. 

§ 


134  Memorias  da  Academia  Real 

§     47* 

O  Porto  do  Mato  he  huma  pequena  povonçao  com 
onze  casas  ,  as  quacs  vivem  da  caça  ,  c  pesca  ,  e  ca  insi- 
gnificante lavoura,  que  fazem  de  mandioca  e  feijão;  ella 
he  huraa  ilhota  cercada  de  hum  lado  dos  rios  já  mencio- 
nados ,  e  do  outro  do  mar  salgado  ,  em  tanta  forma  ,  que 
do  porto  da  povoação,  em  dit,tjncia  de  '-  àc  legoa  ,  >sc  to- 
pa o  rio  salgado,  onde  desagua  ao  mar  o  rio  Patipe,  que 
forma  huma  restinga  de  mar ,  indo  a  costa  por  fora  ,  e  o 
rio  por  dentro  ,  até  sahir  aquelle  pela  barra  íóra  ,  ficando 
no  meio  a  ilha  ch-imada  Patipe  ,  cuja  barra  he  de  9  pal- 
mos de  agua  na  baixamar  com  30  braças  de  largo,  e  o 
seu  canal  se  dirige  a  este,  voltando  para  sueste  a  caminho 
do  sul.  Aquelle  famoso  rio  tem  seu  nascimento  no  rio 
Pardo ,  e  com  aguas  do  rio  da  salsa  ,  e  hum  braço  de  Bel- 
monte ,  ou  Jatinhonha  ,  forma  duas  barras  visinhas  huma 
da  outra  ,  com  fundo  ,  huma  de  7  ,  outra  de  9  palmos  de 
agua  na  baixamar  muito  mais  larga  ,  que  a  do  Patipe,  e 
os  terracs  soprando  livre  do  embaraço  dos  mangues ,  presta 
aos  navegantes  a  mais  prospera  sahida  ,  e  segurança  :  são 
conhecidas,  huma  debaixo  do  nome  da  barra  das  Canaviei- 
ras,  c  a  outra  da  Embuça,  distantes  3  legoas  da  de  Pati- 
pe :  c  como  o  mar ,  e  correntezas  do  rio  vão  cavando  o 
seu  leito,  he  de  esperar,  que  rompendo  os  rios  para  o  sal- 
gado, para  onde  já  a  natureza  os  encaminha,  com  bem  pou- 
co trab.ilho  ,  conseguida  a  abertura  ,  formará  hum  canal  mais 
fundo  para  navegarem  por  elle  embarcações  de  maior  porte 
das  sumacas :  corre  actualmente   o  canal  das  barras  a  este. 

§     48. 

Tem  o  rio  de  fundo  16  a  20  braças,  aindaque  em 
algumas  partes  menos:  he  navegável  por  30  legoas,  an- 
tes  de  mostrar  a  primeira  cachoeira  j  .as  suas  margens ,  c 

in- 


DAS    SCIENCIAS   DE    LiSBOA.  135' 

interior  dos  montes  descobre,  aos  que  ncllas  entrão,  toda  a. 
qualidade  de  madeiras  de  construcção,  e  maccnaria ,  o  páo 
brasil  das  duas  espécies  conhecidas  ,  os  atartcrugados  jaca- 
randás,  e  todos  quantos  úteis  arvoredos  se  podem  desejar. 
As  ribanceiras  e  veios  do  rio  contém  pingos  de  agua ,  cris- 
taes  ,  ouro ,  e  diamantes  ;  e  o  sábio  mctallurgib^ta  nelle 
acharia  vastas  campinas  para  estender  a  esfera  dos  seus  co- 
nhecimentos, com  grande  utilidade  da  historia  natural,  e 
proveito  incalculável  do  património  Real. 

§     49- 

^  Que  seguros  interesses  não  perceberia  a  marinha  no 
estabelecimento  de  cortes  regulares  de  madeiras  naquelle 
lugar ,  que  por  estarem  á  borda  da  agua  evitava  a  grande 
despeza  dos  transportes  de  terra,  e  muito  principalmente 
por  se  acharem  alli  como  juntas  em  viveiro  todas  quantas 
espécies  a  marinha  emprega  ?  Quasi  todas  as  arvores  dão 
nestes  férteis  bosques  os  precicsos  liames ,  as  grandes  ca- 
vernas ,  curvas  ,  braços ,  &c.  Paraque  a  utilidade  do  corte 
se  fizesse  mais  palpável ,  foi ,  a  minhas  instancias  ,  aberto 
hum  corte  de  experiência,  e  o  arsenal  de  marinha  já  vio, 
e  verá  o  de  Lisboa  por  se  remetterem  na  nova  náo  os 
páos  alli  cortados  para  cavernas,  aposturas ,  e  braços;  ten- 
do sido  já  entregues  no  departamento  da  Bahia  90  dos 
ditos  páos,  além  de  5-  mastros,  1  verga,  e  4  falcas  de 
vinhatico  ,  os  quaes  forâo  conduzidos  em  hum  barco,  que  a 
meus  olhos  fiz  construir  de  93  palmos  de  quilha,  com  32^ 
de  boca,  que  sem  algum  risco  entrou  e  sahio  pelas  barras, 
ora  de  Patipc ,  ora  de  Canavieiras. 

§     fo. 

Aquelle  corte  de  madeiras  forneceria  a  huma  e  outra 
marinha  todos  os  liames  para  os  maiores  navios  pelos  mais 
favoráveis  preços:  as  rodas  de  proa  de  3a  pés  de  compri- 
do. 


136  Memorias  da  Academia  Real 

do,  cora  IS  pollegadas  de  largo,  e  20  de  grosso  alli 
cortadas ,  ficarão  no  porto  de  embarque  por  Ucoo  reis  : 
hum  dos  mastros,  que  chegou  a  maior  despeza  de  6o<j)  reis, 
foi  vendido  no  Arsenal  da  Bahia  para  hum  navio  de  com- 
mcrcio  por  6oo(J)  reis.  As  curvas  grandes  para  turcos,  as 
cavernas  mestras  no  porto  de  embarque  apenas  chegarão  a 
despeza  de  6  a  8(í)  reis.  Além  disto  o  rio  he  abundantís- 
simo de  todo  o  género  de  saboroso  pescado  ;  as  mtsmas 
capoeiras  (a)  são  tâo  férteis ,  que  produzem  com  admiração, 
e  espanto  do  lavrador  cem  sirios  de  farinha  por  mil  co- 
vas de  mandioca;  cem,  c  duzentos  alqueires  de  feijão  por 
hum  de  semente ;  cem  sirios  de  arroz  por  huma  medida  : 
o  milho  alli  produz  igualmente  bem  ,  e  dá  muito  boa  co- 
lheita sem  mais  industria  doque  as  queimadas  para  a  pro- 
ducção  das  sementes  ,  que  com  tanta  vantagem  a  natureza 
offcrcce  aos  colonos ,  sollicit.indo-os  para  serem  felices  pe- 
la agricultura ,  poisque  com  pouco  trabalho  podem  con- 
seguir commoda  sustentação,  e  prospera  fortuna. 

§     yi. 

Apartando-se  o  viandante  das  margens  do  rio  em  hura 
só  dia  de  viagem  pela  terra  dentro  avista  prodigiosas  pla- 
niccs ,  que  catinga  são  chamadas,  as  quaes  se  dirigem  ás 
cabeceiras  do  rio  de  Contas  e  rio  Pardo.  Aquellas  var- 
gens abertas  e  frequentadas  por  huma  estrada  geral  áquel- 
les  ricos  paizes ,  ^  que  riqueza  não  produziriâo  ?  O  rio 
Pardo  cncostando-se  ao  sul ,  corre  apressadamente  ,  logoque 
o  avista  a  misturar  nclle  a  sua  rápida  corrente;  e  por  tan- 
to a  distancia  da  terra  ,  que  o  separa  he  de  25-  a  30  le- 
goas,  pouco  mais  ou  menos:  quando  succedem  as  enchen- 
tes do  rio,  vem  algumas  vezes  parar  na  povoação  da  barra 
o  gado  morto ,  precipitado  nas  aguas  daquelles  certões  cul- 

ti- 

(a)     Chamão-se  capoeiras  as  matas  baixas  produzidas,  e  creadas  em 
(crreuos  ,  que  já  forao  agricultados. 


DAS    SCIENCIAS    DE    LiSBOA.  1^7 

tivados  da  resaca.  No  meio  da  mata  vivem  muitos  índios 
selvagens  ,  que  muitas  vezes  descem  até  ás  feitorias  dos 
cortes  de  madeira  ,  em  lotes  de  30  a  40  ,  e  se  rctirão  sem 
causar  damno ,  na  caça  e  pesca  entretidos ,  errantes  na- 
quclles  bosques  á  margem  do  rio  ;  os  quacs  sem  duvida 
reconciliados  ,  sendo  com  brandura  e  caricias  buscados ,  aju- 
darião  a  abrir  aquclla  tão  útil  e  necessária  communicação , 
cstabclccendo-se  novos  registos  para  impedir  a  extracção 
dos  diamantes,  e  do  ouro  ,  cm  que  abunda  aquelle  rio  ,  prin- 
cipalmente no  braço  do  rio  de  Salsa  ,  que  vem  do  Jetinho- 
nha  ,  por  falta  de  cuja  communicação  os  contrabandistas 
impunemente  se  ousao  aos  projectos  insaciáveis  de  desco- 
brir, e  recolher  os  occultos  haveres,  alli  pela  natureza  de- 
positados ,  para  engrandecer  o  throno  ,  e  para  fornecer 
a  industria  ,  e  as  artes  de  muitas  vantagtns  desconhe- 
cidas. ^  Que  meios  tão  seguros  de  subsistência  não  forne- 
ceria aos  habitantes  de  Ilheos  definhados  de  miséria,  e  de 
pobreza?  Os  índios,  civilisados  por  huma  maneira  própria 
e  conveniente,  attrahirião  outros  a  seu  exemplo,  com  o 
soccorro  daqucllas  pequenas  cousas  ,  que  a  Real  fazenda 
costuma  repartir  em  seu  beneficio.  Seria  aquclla  entrada 
mais  frequentada  que  nenhuma  outra  pela  planície  do  cami- 
nho ,  e  pequena  extensão  delle  ,  e  pela  commodidade  im- 
pagável dos  pastos  naturaes,  nas  margens  do  rio  Pardo, 
para  sustentação  da  infinidade  de  animaes ,  e  finalmente  pe- 
lo soccorro  do  sustento  do  peixe  ,  que  o  mesmo  rio  am- 
plamente fornece. 

§     j-i. 

As  extensas  e  férteis  campinas  de  pastos  naturaes  en- 
gordarião  os  gados  descidos  dos  certões  ,  para  fornecer  de 
carnes  não  só  a  faminta  comarca  dos  Ilheos  ,  mas  a  me- 
tropoli  cidade  de  todos  os  Santos  ;  e  assim  as  carnes,  como 
os  couros  estabelecerião  novos  ramos  de  economia ,  e  inte- 
resses públicos ,  bemcomo  os  queijos  e  manteigas  extra- 
Tomo  IX.  s  hi- 


ijR  Memorias  da  Academia  Reai. 

hidas  das  vacas,  que  á  borda  d'agua  nas  margens  salitro- 
zas  eiigoidão  ,  c  dao  abundantemente  o  precioso  leite  ,  e 
pela  commodidade  d*  exportação  por  mar  para  a  cidade  , 
darião  novos  alentos  ao  cultivador,  e  productor,  com  ale- 
gria e  satisfação  de  emular  aos  da  Europa  ,  trazendo  os 
seus  queijos  e  manteigas  ;  com  o  que  hum  novo  género 
de  commercio.  colonial  renderia  ao  throno  votos  fieis  de 
corações  agradecidos,  e  afortunados;  poisque  aos  bcnefi- 
cios  do  governo  dcviao  tao  importantes  interesses. 

§     53- 

j  Estas  incomparáveis  vantagens  forão  por  mim  repre- 
sentadas ao  sábio ,  e  incomparável  governador  Francisco  da 
Cunha  Menezes  ,  elle  annuio  favoravelmente  a  tão  justas 
spllicitações  ,  ordenando  ao  capitão  mor  da  conquista  João 
Gonsalves  d?  Gosta ,  paraque  á  custa  da  Real  fazenda 
abrisse  buma  picada  ,  pela  qual  elle  podesse  exactamente 
cooiprchcnder  a  brevidade  e  bondade  desse  novo  caminho  j 
rnas  desejando  fechar  a  porta  a'  calumnia  dos  ânimos  inve- 
josos, e  turbulentos  em  offiçio  de  37  de  Setembro  de  1813 
offereci  ao  mesmo  governador  abr:-!o  á  minha  custa;  e  elle 
deixou  para  huma  conferencia  pessoal  a  resolução,  que  sem 
duvida  será  sempre  conforme  aos  inalteráveis  princípios , 
que  dirigem  o  seu  sábio ,  c  luminoso  governo. 

§     5^4. 

Na  enseada  do  Furado  da  parte  do  sul  de  Canaviei- 
ras ,  entra  o  rio  intitulado  da  Embuça,  o  qual  descendo  do 
caoal  alli  formado  ,  chamado  por  todos  o  Fttrado  ,  entra 
para  o  rio  conhecido  pelo  nome  do  rio  da  Salsa,  em  ra- 
auoi  de  estarem  as  suas  margens  cobertas  de  salsa  parrilha 
de  Fonduras;  o  qual  rio  cncaminhando-se  ao  sul,  por  dis- 
tancia de  í  legoas  se  mistura  com  o  ribeirão ,  que  vem 
do  rio  de  Belmonte,  ou  Jatinhonha,  com  o  nome  de  Peitasr 

Stty 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  T39 

sti ,  o  qual  engrossando  a  sua  corrente  no  rio  Sdlsa  a 
encaminha  para  o  certáo ,  até  o  lugar  que  de  Banibuzal  . 
tem  o  nome  \  deste  então  se  faz  necessário  arrastar  as  ca- 
noas por  causa  dos  saltos,  e  pancadas,  que  são  alli  for- 
madas ,  margeadas  as  vargens  de  todo  género  de  madei- 
ra de  construcção  ,  e  macenaria  ,  e  logoque  se  vadca 
aquclle  lugar,  corre  o  rio  por  hum  leito  limpo,  e  fundo 
por  3  legoas.  O  rio  da  Embuça  se  dirige  até  á  barreta 
das  farinhas,  e  termina  na  distancia  de  huma  Icgoa  na  bor- 
da da  praia  ,  e  o  rio  Grande  procura  em  caminho  do  nor- 
te a  povoação  de  Canavieiras ,  e  Patipe. 

§     5S- 

Ao  sul  de  Canavieiras ,  huma  legoa ,  prosegue  o  rio 
chamado  Jacaré  ,  onde  finda  o  que  vai  para  Belmonte   (que 
era    a    antiga    divisão    da    comarca    dos   Ilhcos    com    a    de 
Porto  seguro)   no   lugar  chamado    o  Fezo  de  Belmonte.    São 
aqucllcs    fcrteis    e   importantes    lugares    quasi  ermos  ,  pois- 
que  apenas  se  encontrão  37   casaes  na  povoação  de  Cana- 
vieiras ,    aonde  existe  a  freguezia  da  invocação  de  S,  Boa- 
ventura,   cuja  igreja  de  taipa  coberta  de  telha  he  despida 
de    todo    ornato ,    e    decência    conveniente     a    lugares     da 
publica  adoração  ao  supremo    creador.    Em  Patipe  habitao 
14  casaes,  e  na  Juliana  hum,   no  Porto   do  Mato,   como 
já  disse ,    II,    em  Puxim  3  ,   em  Una  5^  ,    formando  todas 
estas  pequenas  povoações  em  tão  desvairados  lugares ,  hu- 
ma  associação    de  5-00   pessoas ,   unidas   por  vinculos  des- 
iguaes  ,   compondo-se  a  maior  parte  de  mulatos  e  índios , 
e  he  de  admirar  vcr-se   em  huma  mesma  farailia  gente  de 
todas  as  cores ,  sendo  huns  brancos ,  outros  mulatos ,  e  ou- 
tros laribocas  da  mistura  com  os  indios  e  pretos,  que  bus- 
carão naquelle  favorável  asilo  ,    tudo  o  que  podia   favore- 
cer a  mais  cómmoda  e  tranquilla  sustentação  em  hum  cli- 
ma benigno  e  fértil ,  cortado  de  rios  navegáveis ,  não  lhes 
restando  para  ultimar  projectos  da  mais  completa  felicida- 

:í  ii  de, 


140  Memorias  da  Academia  Real 

de ,  senão  o  que  contribue  em  seu  soccorro  entre  a  indus- 
tria ,  e  o  trabalho  do  homem. 

§     yó. 

Aquellas  tão  prodigiosas  matas ,  na  distancia  de  4  le- 
c;0as ,  torão  tombadas  á  minha  custa  para  o  património 
Real ,  por  se  acharem  aquellas  devolutas ,  parecendo  desti- 
nadas pelo  creador  aos  importantes  fins  da  grandeza,  e  es- 
plendor da  marinha  portugueza.  Aquellé  he  o  extensíssimo 
fim  do  termo  da  villa  dos  liheos ,  e  se  atégora  a  bon- 
dade do  clima,  e  fertilidade  da  terra,  tem  só  favorecido 
a  indolência  dos  habitantes,  e  prestado  hum  seguro  asilo 
aos  desertores,  e  criminosos,  que  para  alli  se  refugiarão, 
não  o  será  mais  daqui  em  diante  ,  raiando  nesse  hemisfério 
as  luzes  do  governo  do  mais  amável  dos  Soberanos  o  Prin- 
cipc  Nosso  Senhor,  tão  empenhado  na  felicidade  de  seus 
vassallos,  mandando  crear  huma  vitla,  para  unir  os  braços 
e  corações  no  serviço  publico,  e  se  ajudarem  os  moradores 
dos  cortes  de  madeiras  ,  e  de  commercio  ,  que  deve  rapi- 
damente crescer  com  a  abertura  dos  canaes ,  e  estradas  pa- 
ra os  ccrtões  do  rio  Pardo,  com  tanta  gloria  da  monar- 
chia  ,  e  bem  dos  povos,  que  em  tropel  correráõ  a  povoar 
tão  ditosos  climas,  para  nelle  firmarem  a  base  da  mais  so- 
lida ,  e  durável  felicidade. 

§     S7- 

Dos  liheos  para  o  rio  de  Contas  he  a  costa  procel- 
Josa ,  e  sem  ancoradouro  ou  jazigo,  ainda  para  canoas,  que 
apenas  lhe  presta  o  rio  de  Mamoan ,  que  no  mar  a  sua 
pequena  corrente  mistura  :  então  se  formão  na  costa  cinco 
grandes  enseadas ,  até  á  barra  do  Itahipe  ,  com  pontaes  de 
p.;dras  ao  mar ;  na  primeira  das  quaes  se  acha  fabrica- 
do hum  pequeno  reducto  de  terra  ,  para  embaraçar  algum 
descmbarq^uc  j  na  segunda  formou  a  natureza  hum  pe- 
que- 


DAS   SciENCIAS   DE   LlSBOA.  I4I 

queno  canal  para  as  canoas  se  recolherem  ;  na  terceira 
detende  a  costa  hum  alto  monte  ,  que  vai  banhar-se 
no  mar ,  com  escarpados  penedos  no  seu  cume  ;  na  quarta 
formou  a  natureza  huma  grande  pedra ,  por  buraco  de 
tmrcego  appellidada  ,  sobre  hUrrt  monte  de  pedra,  que 
no  mar  acaba  ;  a  ultima  se  fecha  com  o  soberbo  monte 
de  penedia,  onde  o  embravecido  mar,  quebrando  a  sua 
maior  fúria  ,  lhe  lava  os  pés  ,  formando  pontal  da  parte  do 
sul  para  fazer  a  pequena  barra  do  Ituhipe  ,  que  só  da  en- 
trada a  pequenas  lanchas,  e  canoas.  Prosegue  então  a  cos- 
ta, formando  para  o  norte  huma  enseada  de  Icgoa  e  meia, 
ao  lugar  chamado  Barra  nova  ^  que  descobre  terrenos  alaga- 
diços, e  matas  baixas,  seguindo  outra  enseada  de  legoa  c 
nieia  até  o  pontal  de  Santa  Rita  ,  formando  a  costa  ou- 
tra de  huma  legoa  ,  que  termina  na  barra  do  rio  de  Ala- 
moan ,  continuando  depois  com  quatro  enseadas  por  dis- 
tancia de  duas  Icgoas  até  o  rio  de  Sagi ,  que  no  mar  ve- 
lozmente se  introduz  ;  buscando  na  distancia  de  duas  le- 
goas  por  outras  duas  enseadas  o  rio  Tijuhipe,  aonde  já 
se  avistão  matas  grossas,  elevadas  montanhas,  que  ás  nu- 
vens parece  quererem  chegar,  proseguindo  até  a  serra  gran- 
de ,  bem  conhecida  pela  sua  assombroza  eminência  ,  que 
nega  a  passagem  aos  viandantes  pela  costa  do  mar,  a  qual 
formando  duas  enseadas  de  huma  legoa  de  extensão  ,  bus- 
ca encontrar-se  no  rio  Jacaré,  e  por  huma  enseada  de  três 
quartos  de  legoa  o  rápido  Jeribucassú  ,  cuja  corrente  no 
procelloso  mar  emboca  :  então  a  costa  não  permitte  por 
ella  mais  alguma  passagem;  porque  prosegue  entre  es- 
carpada e  medonha  penedia ,  formando  montes ,  que  por 
Tromba  são  conhecidos  pelos  navegantes,  por  tomarem  aqucl- 
la  forma ,  com  que  investe  a  braveza  dos  mares  ,  abrindo 
o  canal  da  barra  ,  por  cuja  causa  os  viandantes  seguem  pe- 
la terra  do  Jeribucassú  a  pancada  da  cachoeira  do  engenho, 
até  entrar  nos  campos  naturaes  ,  que  se  dirigem  para  o 
rio  de  Contas ,  bem  próprios  para  a  creação ,  e  propaga- 
ção do  gado  vacum, 

CA- 


141  Memorias  da  Academia  Real 

CAPITULO    III. 

Da  villa  de  S.  José  da  barra  do  rio  de  Contas. 

§     I. 

r  01  levantada  em  villa  a  povoação  da  barra  do  rio  de 
Contas ,  por  determinação  da  Ex.'""  donatária  Condessa  de 
Resende  em  27  de  Janeiro  de  1731  :  he  situada  beiramar 
com  huma  bella  e  proporcionada  igreja  matriz  ,  cujo  ora- 
go  he  o  arcanjo  S.  Miguel.  Começa  a  povoação  na  di- 
recção de  norte  a  sul,  de  hum  oiteiro  chamado  o  Forte  y 
porque  a  sua  raiz  de  pedra  solida  ,  formando  o  pontal  , 
serve  de  conter  o  rio  no  seu  leito,  quando  embravecido, 
c  precipitado  por  sua  rápida  corrente  nas  occasiões  das 
tiovoadas  procura  transbordando  sahir  dos  limites,  que  a  na- 
tureza lhe  formou  \  aquelle  oiteiro ,  estendendo-se  ao  norues- 
tc  ,  busca  a  villa  em  caminho  de  sueste ,  correndo  o  cer- 
tão  ao  sudoeste.  O  terreno  he  agradável ,  assim  pela  vista 
do  mar ,  e  coqueiraes  da  costa  ,  como  pela  planície  dos 
campos  ,  cercado  de  morros  pela  parte  de  traz  mais  ou 
menos  afastados  huns  dos  outros.  Corre  pela  parte  do  sul 
huma  ponta  de  terra  alta ,  que  segue  até  ao  mar ,  intitula- 
da a  Trombinha  ^  que  se  dirige  para  este  hum  quarto  de 
legoa  distante  da  villa  ,  ,  circulado  de  pedras  arenosas  e 
seixosas  pelo  lado  de  este ,  e  nordeste. 


Tem  a  barra  na  baixamar  ia  palmos  de  agua  com  10 
braças  de  largura  :  buscao  os  navegantes  para  acommetter 
a  altura  o  outeiro  defronte ,  que  lhe  fica  ao  sul ,  chamado 
a  Tromhinba  ;  ao  norte  desta  corre  hum  recife  de  pedra , 
que  forma  hum  pontal  buscando  o  norte  ^  e  desta  ponu 

par 


TAS   SCIENCIAS   DE   LlSBOA.  I4J 

para  o  norte  fica  a  barra  ;  alli  principião  os  baixo?',  que  fi- 
cáo  tambcm  ao  norte.  Ua  ponta  para  dcntio ,  quasi  meia 
legoa  ,  o  IuikÍo  lie  cubcrio  de  hunia  tnorme  pedra,  por 
causa  da  qual  a  barra  núo  admittc  embarcação  grande  ,  á 
excepção  de  lanchas  c  barcos  ,  que  para  entrarem  ou  sa- 
hirem  nccessitão  de  ventos  favoráveis.  Vencida  a  ponta  da 
barra,  e  a  pedra,  que  fica  no  meio  delia,  se  faz  então  ca- 
minho de  sudoeste:  aquclla  ptdra  he  redonda,  e  scbre  ella 
passão  as  cmbarca;ções  com  8  palmos  de  apua  no  baixa- 
mar ,  contendo  canaes,  assim  pelo  norte  ccnio  pela  parte 
do  sul  com  2  braçis  de  largo,  e  a  do  norte  com  duas, 
ficando  a  barra  distante  unicamente  da  villa  cem  braças,  e 
ca  ponta  para  dentro  faz  huma  enseada  chamada  z  Concha, 
a  qual  acaba  ,  e  vai  fazer  ponta  do  norte  ,  e  se  enterra  no 
rio  com  hum  recife  de  pedra  ,  á  qual  os  naturaes  chamão 
])ouía  do  Xíirdo,  que  dista  jo  br-ças  da  villa. 

§     3- 

Tem  nascimento  aquelle  rio  acima  do  rio  de  Contas 
de  Minas  ,  e  vem  com  vários  riachos  até  o  lugar  chamado 
dos  Ftiniz^  onde  parece  esconder -se  por  baixo  das  pedras, 
e  vai  apparccer  ensoberbecido  de  aguas  até  o  porto  conhe- 
cido com  o  nome  de  Acaris^  por  muitas  legoas  navegável 
de  canoas  ,  aindaque  em  alguns  lugares  a  navegcção  he 
trabalhosa  ,  c  até  perigosa  pelas  pancadas  de  varias  ca- 
chocims  ,  pasfadas  as  quaes  por  abundantes  remansos  de 
agua  busca  o  porto  da  pancada,  navegável  hum  quarto  de 
legoa,  c  dalii  prosegue  até  a  serra  de  agua,  onde  abordão 
as  lanchas ,  para  receberem  as  farinhas ,  que  fazem  o  obje- 
cto do  trafico ,  e  viver  dos  habitantes. 

§     4- 

As  matas,  que  existião  i  beira  do  rio  até  os  Futiiz  por 
cinco  a  dez  legoas,  sç  acabarão,  em  razão  de  as  haverem 

quei- 


144  Memorias  da  Academia  Real 

queimado  ,  e  assolado  os  moradores  para  a  plantação  da 
mandioca,  que  alli  apenas  colhem  onze  cirios  por  mil  co- 
vas ,  e  os  mais  ricos  ,  e  acreditados  plantão  de  yo  a  8o 
mil  covas.  No  anno  de  1799  constava  a  exportação  daqucl- 
le  género  para  o  celeiro  da  Bahia  a  trinta  mil  alqueires, 
cincocnta  de  gomnia  ,  alem  de  cento  e  cincoenta  de  arroz. 
Ellcs  cultivão  muitas  variedades  de  mandiocas,  conhecidas 
por  differentes  nomes,  e  são:  olho  roxo  de  duas  qualida- 
des, camoquemgue  da  branca  e  da  preta,  alandi  ,  pexo- 
to,  paraunc ,  saracura,  milagrosa,  branquinha,  muUati- 
nha,  sotinga  verdadeira,  mangue,  corecoré ,  uruba ,  São 
Pedro,  mato  negro,  paçaré ,  monica  de  ramalhete,  cara» 
vella,  pitanga,  cobra,  Sanca  Igncz ,  alagôa,  aipimpóca 
verdadeiro  ,  e  do  amarello. 

§   ^ 

o  methodo  geralmente  praticado  na  lavoura  da  man- 
dioca consiste  em  roçar  os  matos  pequenos,  que  ficão  pe- 
lo meio  dos  grossos,  e  derrubão  então  aquelles  ,  e  estan- 
do seco  o  roçado ,  largao  fogo ,  e  se  achão  depois  da  quei- 
mada, que  ficarão  ainda  os  lenhos  grossos  mal  queimados, 
os  cortão  novamente  de  machado ,  e  os  finos  com  facões , 
e  ajuntando  os  pedaços  ,  que  ficão  dispersos  ,  lhe  largão 
o  fogo  ,  e  a  este  serviço  chamão  coivaras ,  que  ardem  vá- 
rios dias :  estando  o  fogo  apagado ,  se  limpa  o  roçado  to- 
do,  e  principião  a  fazer  covas  no  chão,  distantes  humas 
das  outras  mela  braça ;  e  estando  estas  feitas ,  cortão  a 
mandioca  do  comprimento  de  hum  palmo ,  ou  de  mais 
conforme  a  opinião  dos  que  a  plantão ,  e  passão  a  finca-^ 
las  naquellas  covas  algum  tanto  deitadas,  e  não  aprovei 
tão  as  cinzas  para  a  potassa. 

§     6. 

Aquella  he   a  maneira   de  preparar   a  terra,   e  modo 

de 


DAS   SciENCIAS   DE   L  I  S  B  O  A.  í^^ 

de  se  fazer  a  plantação  da  mandioca ,  que  antes  de  anuo 
e  meio  não  tem  a  raiz  capaz  de  arrancar-se  para  descas- 
cada ralar-sc ,  apurar-sc  nos  taipitis  a  massa ,  para  levar-se 
ao  forno  para  se  cozer,  c  torrar-se  gradualmente  cm  fogo 
brando ,  para  então  passar-se  ás  tulhas ,  aonde  vão  comprar 
os  negociantes  nos  difiPerentes  portos  dos  lavradores  ,  que 
assistem  commummentc  nas  suas  fazendas,  privados  de  to- 
da a  particular  communicação  por  terra ,  de  huns  com  ou- 
tros visinhos ,  para  não  serem  vistos  no  interior.  Vivem 
quasi  todos  em  summa  penúria  de  sustento ,  se  a  podre 
carne  do  certão,  o  peixe  do  alto  nos  tempos  favoráveis, 
os  camarões  do  rio,  ou  alguma  caça  do  mato  não  vem  ma- 
tar-lhcs  a  fome.  Não  plantão ,  além  da  farinha  e  algum  ar- 
roz, outro  algum  legume  ,  e  menos  cultiváo  a  creação  dos 
gados,  com  tão  vastas  campinas  de  pastos  naturacs  ,  que 
lhe  darião  o  estrume  para  adubar  as  suas  terras;  alli  falta 
todo  o  género  de  educação  civil  e  religiosa  ,  os  homens 
grosseiros ,  e  ignorantes  tem  os  costumes  dos  povos  bár- 
baros da  sua  origem. 

§    7; 

Contém  as  matas  naquelle  território  todo  o  género  de 
madeira  de  construcção  ,  e  no  tempo  do  serviço  do  Dcs- 
embarpador  Francisco  Nunes  da  Costa  ,  delias  se  extrahí- 
rão  muitas  dúzias  do  precioso  tapmhoa ,  e  as  mastreações 
da  fragata  Carlota  ;  hoje  porém  as  matas  próximas  ás  po- 
voações estão  queimadas ,  e  as  que  contém  os  importantes 
■lenhos  ficão  mui  distantes  da  borda  d'agua ,  á  excepção  das 
que  existem  para  cima  dos  Fmiz ,  ainda  intactas ;  poisque 
a  distancia  e  o  temor  do  gentio  tem  servido  de  salvaguar- 
da ao  assolador  ferro  dos  mandioqueiros.  A  povoação  da 
villa  e  seu  termo  apenas  comprehende  duas  mil  almas,  he 
com.posta  principalmente  de  escravos,  e  de  mulatos,  e  ape- 
nas conterá  cem  pessoas  brancas :  a  maior  parte  não  tem 
terras  próprias  para  suas  lavouras ,  e  as  trazem  de  arren- 
Tonio  IX.  T  da- 


14^  Memorias  da  Academia  Real 

damento  aos  senhorios  ,  que  as  arrematarão  no  fisco  Real , 
pelo  sequestro  feito  aos  proscriptos  Jesuítas ;  e  apenas  al- 
guns tem  a  propriedade  de  pequenas  porções  pelas  com- 
pras ,  que  depois  fizcrao  aquelles  compradores  do  fisco 
Real. 

§     8. 

Sendo  governador  da  Bahia  Manoel  da  Cunha  Me- 
nezes ,  fiJ:ilgo  illustre  de  muita  actividade  ,  e  zelo  pelo 
bem  publico,  foi  acertadamente  determinada  a  abertura  de 
huma  communicação  interior  dos  ccrtões  da  Rassaca  a  sa- 
hir  á  barra  do  rio  de  Contas.  Porém  ao  tempo  que  to- 
mava as  suas  medidas  ,  e  havia  encarregado  ao  capitão 
mdr  João  Gonsalves  da  Costa  a  conquista  do  gentio  ,  que 
habitava  nas  cabeceiras  ,  e  a  abertura  do  dito  caminho , 
tendo  este  feita  a  abertura  á  sua  custa  até  aos  Funiz ,  e 
dalli  para  a  villa  os  moradores  delia ,  foi  rendido  pelo 
Marquez  de  Valença,  c  durante  o  seu  governo,  e  do  seu 
successir  se  não  fallou  mais  desta  communicação  com  os 
povos  ccntraes. 

§     9. 

Parecia  ,  que  a  gloria  de^te  grandioso  serviço  estava 
reservada  para  D.  Fernando  José  de  Portugal  ;  poisque 
a  chegada  dos  gentios  daquelles  ricos  certoes  á  Bahia  o 
desafiava  para  abrir  o  caminho  da  prosperidade  desta  co- 
lónia. Forão  á  presença  daquelle  illustre  c  circumspecto  go- 
vernador varioí  Índios  da  conquista  das  Salinas,  rogando- 
Ihe  que  lhes  desse  hum  parocho,  que  os  instruísse  na  re- 
ligião catholica  (a).  Foi  então  com  a  maior  satisfação  que 
fe/,  remetter  os  Índios  ao  Desembargador  Francisco  Nunes 
da  Costa  em  25-  de  Junho  de  1790,  significando-lhe  o  pra- 
zer 

(«)     Veja-se  as  Notas  V,  VI,  e  Vil  no  fim  desta  Memoria. 


n 


DAS   SciENCIAS   OE    LlSBOA.  I47 

zer ,  que  tinha  de  terem  vindo  aquelles  índios ,  e  encom- 
mendando-lhe  ,  que  désse  as  mais  efficazcs  providencias  , 
a  £m  de  se  lhes  fazer  hum  estabelecimento  permanente. 


10. 


Não  sei ,  por  que  fatal  desgraça  se  não  effcituou  o  es- 
tabelecimento da  aloca  abaixo  dos  Futiiz  do  rio  de  Contas, 
talvez  por  se  aggregarem  á  nova  aldêa  indios,  que  se  man- 
darão vir  daquclla  de  Almada  da  nação  Grun  ,  não  se  se- 
guindo outro  eífeito  do  estabelecimento  ,  que  a  perda  da 
despeza ,  com  que  a  Real  fazenda  se  prestou  a  favorecer 
aquelle  tão  útil  projecto.  Os  indios  cm  pouco  tempo  de- 
zcrtárão,  e,  embrcnhando-sc  pelos  ccrtões  das  matas,  bus- 
carão os  seus  primeiros  lares,  não  obstante  se  lhes  ter  con- 
cedido huina  legoa  de  terras  para  as  suas  plantações. 


II. 


Desamparada  a  povoação ,  era  forçoso  igualmente ,  que 
a  estrada  já  aberta  fosse  menos  e  menos  frequentada  até 
vir  a  tapar-se  de  todo  ,  ficando  os  povos  centraes  privados 
de  tão  util  communicação  ,  que  tanto  anhelavão ,  suppli- 
cando  até  ao  mesmo  governador  fizesse  estender  a  jurisdic- 
ção  do  ouviJor  dos  liheos  até  áquellas  províncias,  pois- 
que  distaria  zj  a  30  Icgoas ,  quando  para  a  commarca  da 
Jacobina,  a  quem  pertenciâo ,  distavão  mais  de  200,  o  que 
era  visivelmente  do  mais  incomprehensivel  detrimento  aos 
povos,  e  se  seguião  muitas  ruinas,  e  irreparáveis  damnos. 
O  governador  logo  se  prestou  favorável  a  tão  justas  re- 
presentações, e  assim  o  resolveo*,  mas  como  não  fosse  por 
ordem  Regia  estabelecida  tal  demarcação ,  se  oppoz  ,  e 
até  a  illudio  o  ouvidor ,  e  com  ellcs  as  justiças  da  Jaco- 
bina ;    e  os  povos  centraes  gemem  inconsolavelmente  de- 

T  ii  bai- 


148  Memorias  da  Acatíemia  Real 

baixo  do  peso  da  mais  sensivcl  oppressão ,  de  que  se  se- 
guem muitos  desserviços ,  e  ruina  dos  seps  civis  estabele- 
cimentos. 

§     12. 

Por  aquella  communicação  pela  margem  do  rio  de  Con- 
tas seguirão  vários  tropeiros  dos  ccrtões  ,  e  o  capitão  mor 
João  Gonsalves  navegou  por  vários  annos  em  canoas  pelo 
dito  rio  conduzindo  seus  eflfeitos ;  havia  pouco  a  fazer  pa- 
ra ser  frequentada  ,  tirando-se  algumas  voltas  ,  e  estivan- 
do-se  em  alguns  lugares  ,  poronJe  vários  córregos  c  ria- 
chos a  atravessão  e  cortao.  O  rio  abunda  de  peixe ,  as 
margens  são  férteis  para  as  lavouras  ,  e  tem  quantidade  su- 
perabundante de  pão  brasil ,  além  de  todas  as  outras  madei- 
ras de  construcção. 

§     13- 

Era  da  mais  reconhecida  utilidade  o  estabelecimento 
da  aldêa  ,  no  lugar  acima  dos  Fiinizi  do  dito  no  de  Con- 
tas,  que  pela  vi^inhança  dos  certoes  da  Rassaca  ,  Silinas, 
&c.  se  construiria  em  poucos  annos,  cofn  a  communicação 
e  mistura  dos  portuguezes  ,  civilisada  ,  povoada,  e  rica  j 
como ,  porque  servia  igualmente  de  registo  aos  viandantes 
de  Minas,  e  contrabandistas,  ou  para  arrecadação  dos  di- 
reitos, que  se  julgasse  conveniente  impôr-se.  Ficando  fre- 
quentada a  estrada  com  pastagens  convenientes  ,  desceria 
por  ella  o  gado  para  abastecer  a  faminta  commarca ,  au- 
gmentava-se  a  industria  do  povo ,  adquiria  "actividade  o 
commercio  interior,  e  cultivava-se  o  algodão  com  mais  afin- 
co, d'onde  provirião  recrescentes  meios  de  abundância,  ci- 
vilisação ,  e  riqueza  do  paiz. 

§     14- 

Protegendo  o  governo  a  communicação  proposta,  ne« 

ces- 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  I49 

cessaríamentc  os  rios  teriâo  novos  meios  de  acummular  os 
seus  fundos,  com  os  quacs  crescia  a  povoação  e  a  riquc/a ,  e 
com  ella  o  redito  publico ,  que  se  não  pôde  augmcntar , 
e  pcrpctuar-se  ,  semquc  cresça  a  opulência  dos  vassallos, 
c  a  sua  população.  O  rio  de  Contas  he  cm  grande  parte 
navegável  ,  e  poderia  ser  todo ,  ao  menos  tm  certas  épo- 
cas, quebrando  algumas  cachoeiras,  e  praticando  se  o  en- 
canamento pelos  meios,  que  a  arte  ensina,  não  havenda 
alguma  invencível  difficuldade  ,  quando  ainda  sem  algum 
beneficio  as  canoas  seguem  pelos  saltos  c  correntezas,  guia- 
das pelos  hábeis,  e  destros  remadores  índios,  sem  algum 
perigo  ,  exportando  os  géneros ,  de  que  são  capazes  aquel- 
Ids  embarcações. 

§      if. 

Desaguão  neste  famoso  rio  os  auriferos  córregos ,  que 
de  Oiieiíitado j  e  Gricmgugi  tem  o  nome,  os  quaes  contém 
tanto  ouro  ,  que  á  muitos  annos  os  contrcbandistas  não 
pudérão  c^^gota  lo  ,  e  persistem  a  fazer  muitas  escavações. 
Devem  portanto  ser  examinadas  pelo  hábil  mctaliurgico  , 
que  saiba  umbem  o  trabalho  das  minas.  A'quclles  rios  se 
unem  outros,  que  merecem  ser  observados,  e  com  quanta 
utilidade  da  Real  fazenda  ,  poisque  o  trabalho  das  minas 
attrahe  huma  immcnsa  povoação ,  como  a  experiência  tes- 
tifica cm  todos  os -idênticos  estabelecimentos. 

§      16. 

Alguns  fisiocratas  sustentao ,  que  as  minas  são  prejudi* 
ciaes  ao  estado ,  que  as  possue  ,  e  pretendem  ,  que  só  a 
agricultura  seja  a  uníca  fonte  da  sua  permanente  riqueza. 
Porém  de  que  tem  servido  aos  povos  do  Brasil  as  suas 
immensas  possessões  em  terrenos  férteis  ,  que  produzem 
com  espanto  dos  seus  mesmos  proprietários  protentosas  co- 
lheitas ,  se  não  ha  consumidores,  e  não  tem  facilidade  de 
transportes  para  dar  sahida  ás  producções,  que  sobejão  da 

sua 


15*0  Memorias  da  Academia  Real 

sua  subsistência  ?  He  constante  verdade ,  que  se  não  pode 
chamar  rico  o  que  somente  possue  terras ,  c  tem  copiosos 
fructos  da  sua  lavoura;  mas  sim  aquclle,  cujas  producçóes 
são  buscadas  ,  e  ha  das  mesmas  grande  prcciião  j  e  he  isto 
o  que  dá  valor  á  sua  propriedade. 

§      I7« 

Nao  sendo  a  riqueza  proporcional  á  grandeza  das  fa- 
zendas ,  mas  sim  ao  valor  das  producçõcs  ,  fica  evidente, 
que  o  dinheiro  será  quem  determina  o  grão  do  valor  dos 
géneros,  de  que  precisa  para  acudir  a's  necessidades  dos  po- 
vos ,  poisquc  vende  cada  hum  a  dinheiro  ,  o  que  lhe  so- 
beja, e  compra  com  elle,  o  que  necessita;  e  conseguinte- 
mentc  a  massa  das  producçõcs  augmentorá,  ou  diminuirá 
de  valor,  quanto  maior  ou  menor  for  a  abundância  de  di- 
nheiro ,  e  houver  maior  ou  menor  necessidade  dos  gcneros ; 
os  quaes  jamais  constituem  riqueza  permanente  ,  poisque 
só  o  dinheiro  he ,  o  que  pôde  dar ,  e  constituir  a  riqueza  do 
pivo,  ou  da  nação,  que  o  possuir;  pois  com  elle  ninguém 
teme  deixar  de  comprar,  e  ter  as  producçõcs,  mas  com 
aquellas  nem  sempre  poderão  ter  dinheiro. 


Ora  como  os  povos  das  minas  do  Brasil  tem  muitas  pro- 
ducçóes ,  e  a  sua  massa  he  superior  ás  suas  necessidades;  he 
difficultoso  pelas  longuissimas  estradas  ,  e  actuaes  commu- 
nicações  interiores  de  terra,  e  pelos  rios,  exportar  para  as 
povoações  marítimas  o  seu  excedente ,  portanto  os  seus 
géneros  serão  sempre  baratos  no  próprio  paiz ,  e  tudo  quan- 
to lhes  vier  de  fora,  caríssimo;  por  isso  que  elles  não  tem 
dinheiro,  com  que  possao  comprar  aquclies,  que  necessitão ; 
tendo  alias  producçõcs  sem  valor.  O  governo  não  lhes  per- 
mitte  estabelecimento  algum  industrioso,  antes  pelo  con- 
trario tem  repetidas  vezes  mandado  queimar  os  seus  tea- 
res, 


DAS   SctENriAÍDK   LtSBOA.    '""  Ifl' 

rcs,  onde  se  teciáo  finos  e  delicados  fustões,  e  gangas  &c., 
com  que  contrabalançariáo  .  o,  valor;  dos  generus  estangei- 
ros ,  que  recebem  caríssimos  ,  quando  aquelles  são  de  geral 
consummo,  o  que  constitue  huma  carestia  opprcssiva;  e  co- 
mo nao  tem  dinheiro,  com  qi/e  satisfação  a5  suas  necessida- 
des ,  necessariamente  lhes  resulta  o  lamentável  estado ,  e 
empate  das  suas  subsistências,  e  õ  descrédito  para  com  os 
commcrciantcs  da  marinha.  Acresce  a  tudo  isto  a  falta  de 
instrucção  metaliurgica,  e  do  trabalho  das  minas,  e  a  op- 
prcssão  de  muitos  governadores  e  magistrados  ,  que  lhes 
promovem  a  ruina  de  suas  fortunas. 

§     19. 

O  despotismo  de  hum  vice  rei  do  Brasil  abrio  as  im- 
penetráveis brenhas,  e  fez  por  infinitas  estradas  communi- 
caveis  as  minas  com  as  povoações  do  mar  por  tropas  im- 
niensas  de  desertores,  que  cada  dia  se  refugiavao  aquelles 
ditosos  climas  ;  os  registos  das  estradas  gcraes  ficarão  in- 
úteis ,  e  os  contrabandos  do  ouro  e  diamantes  entrarão  a 
ser  frequentados  com  segurança  para.  o  rio  de  Janeiro  e 
Bahia  ;  desde  então  immensos  traficantes  transitarão  fora 
das  estradas  do  registo ,  e  as  barras  de  ouro  começarão  a 
girar  para  Monte  Video ,  Inglaterra  ,&c. ;  factos  incontes- 
táveis ,  e  de  que  poderia  produzir  provas  ,  mas  que  não 
são  a  propósito  nesta  Memoria  ,  sendo  a  todas  as  luzes  evi- 
dente ,  que  os  povos  mineiros  não  são  tão  ricos  por  se 
não  entregarem  á  lavoura,  que  tem- em  superabundante  quan- 
tidade para  sua  subsistência  j  mas  porque  aquelles  não  tem  o 
valor  competente,  por  se  não  carecer  do  excesso,  e  não 
haver  até  ao  presente  meios  de  exporta-lo ;  não  são  pobres 
só  pela  razão  de  serem  as  minas  o  principal  maneio  ,  po- 
rém sim  pela  incúria  do  seu  trabalho,  extravios,  e  outras 
causas ,  que  não  são  desconhecidas  aos  economistas.  Todos 
sabem ,  que  na  Europa  as  nações ,  que  tem  minas ,  nem  por 
isso  (leixão  de  tirar  delias  os  interesses ,  que  lhes  resulta 

de 


íyi  Memorias  DA  Ac ademia^Real 

de  huma   tal  propriedade  ,   protegendo    o   governo   os  ou- 
tros ramos  ,■  que  constituem  a  sua  prosperidade  e  riqueza. 


C  A  P  I  TU  L  O  .IV. 

!  Da  villa  de  Marabii, 

.tdfiiiaffi 

§      I. 

ROSEGUiNno-SE  do  rio  de  Contas  a  Marahú ,  ou  se  bus-| 
ca  o  interior  por  campinas  baixas  a  encontrar  o  rio  Pira- 
canga  salgado  ,  e  depois  a  passagem  do  rio  Aubim  ,  onde 
as  canoas  e  lanchas  proseguem  ao  porto  da  villa ,  ou  se 
busca  a  esconsa  praia  de  arêa  solta  por  3^  legoas  a  entrar 
na  mata  ,  huma  legoa  distante  do  rio  Aubim  ,  que  faz  a 
barra  no  mar ;  e  então  se  caminha  ^  de  legoa  pelo  interior 
da  mata  até  entrar  na  povoação  da  villa  ,  que  foi  creada 
em  23  de  Julho  de  1761  pelo  ouvidor  da  Bahia  Luiz  Frei- 
re de  Veras,  por  ordem  do./Senhor  Rei  D.  José  I  pela  sup- 
plica  dos  habitantes,  os  qiraes  constituem  huma  povoação 
de  du-is  mil  pessoas.  Foi^lhe  dado  por  termo  o  lugar  da 
aldéa  velha  ^  e  a  praia  do  sul  chamada  do  Passeio ,  come- 
çando da  barra  grande  de  Camamú  até  os  certões  do  Cau- 
bi ,  e  Caibro  por  hum  rio  fundo  navegável  de  lanchas,  e 
sumaquinhas  até  á  villa  ;  largo  c  espaçoso  ,  que  corre  da 
barra  grande  ,  e  ponta  do  Mutá  até  o  Caubi ,  ou  passa- 
gem ,  onde  termina  ,  comprehendendo  seis  legoas  de  distan- 
cia no  rumo  de  sudoeste. 


2. 


Ao  entrar  da  b^rra  grande  na  ponta  do  Mutá ,  se  ta- 
pa da  parte  do  sul  huma  alta  pedra ,  que  de  Sioba  tem  o 
nomej  e  dalli  para  dentro  em  pequena  distancia  o  recife, 
que  de  Taipaba  se  appellida ,    fronteiro  ao  no  Caripi tan- 
gai > 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  15-3 

gui ,  que  corre  ao  nordeste  :  dali  em  diante  ,  cm  pouco  r.  m- 
po  se  consegue  a  navegação  para  Marahú  ,  topando-se  a 
oeste  três  ilhas  chamadas  da  cruz  ,  demorando  a  òsre  outra, 
que  do  lurmiga  se  chamou,  entrando  delia  hum  rio,  que 
por  Taipú  hc  conhecido  ,  e  ficao  pouco  mais  adiante  ou- 
tras trcs  ilhas  ,  de  que  huma  de  Santa  Anna  he  nomeada  , 
Tatus  a  segunda,  c  Moconan  a  terceira,  correndo  defron- 
te de  Santa  Anna  o  rio  Paratigimerim  no  rumo    de  oeste. 

§     3. 

Logoque  se  avista  a  villa ,  que  he  situada  á  margem 
do  rio  sobre  hum  pequeno  oiteiro ,  se  descobre  ao  norte 
huma  grande  pedra  de  lo  ou  12  braças  levantada  acima 
das  aguas  ,  que  Sapanhutw  lhe  chamarão  os  naturaes ,  fican- 
do fronteiras  recomendáveis  barreiras  de  argila  ,  de  branco, 
amarello  ,  e  roxo  matizadas ;  ficando  pouco  adiante  no  meio 
do  canal  as  pedras  chamadas  de  São  Roque ,  que  faz  a  na- 
vegação só  praticável  de  canoas  e  pequenas  lanthas  dali  até 
o  Caubi.  Tem  o  rio  da  barra  grande  até  ás  ilhas  de  San- 
ta Anna  quatrocentas  braças  de  largo,  e  em  partes  mais, 
e  desde  então  se  vai  estreitando  até  cem  braças ,  e  ainda 
menos. 

§     4- 

Os  habitantes  são  grosseiros ,  e  ignorantes ,  sem  edu- 
cação ,  com  os  costumes  ,  e  vicios  de  povos  bárbaros.  São 
poucos  os  brancos,  que  alli  rezidem :  a  maior  parte  da  po- 
voação se  compõe  de  mulatos :  elles  tem  hoje  hum  pa- 
rocho  virtuozo ,  que  lhes  inspira  o  horror  do  vicio  ,  e  o 
amor  da  virtude  ,  e  da  gloria ,  a  que  são  insensíveis ,  por 
serem  acostumados  á  vida  feroz  e  brutal ,  em  que  seus  pas- 
sados os  deixarão,  e  por  isso  não  podem  ver  os  seus  vi- 
cios combatidos  por  hum  pastor  irreprehensivel ,  assiduo 
ao  pé  do  altar  da  matriz  da  invocação  de  S.  Sebastião*, 
única  igreja  da  freguezia ,  e  que  tem  attrahido  a  milagro- 
Tomo  IX.  V  ^a 


r5'4  MEMOni  AS  DA  Academia  Real 

za  imagem  do  Santo  padroeiro  a  A^encraçao  dos  povos  , 
que  vem  de  mui  longe  tributar  aos  seus  pés  os  votos  de 
reconhecimento  aos  muitos  benefícios  dellc  recebidos;  e  talvcx 
por  esta  cauza  lie  ornado  o  templo  das  mais  ricas  altaias , 
que  se  não  topao  nos  outros  da  commarca. 

§    ^ 

A  lavoura  da  cana ,  para  se  destilar  em  aguardente  , 
faz  a  principal  parte  da  occupaçao  dos  habitantes:  elles 
também  se  empregão  na  lavoura  da  mandioca  ,  e  a  sua  ex- 
portação consiste,  alem  daquellas,  em  alguns  fructos  e  em 
remos  de  voga  ,  sendo  a  da  farinha  até  4<J)  akjucires  ,  de 
aguardente  ^^  canadas,  oitenta  a  cem  potes  de  mellado, 
cincoenta  alqueires  de  goma  ,  sessenta  a  cem  dúzias  de  re- 
mos de  voga,  alguns  centos  de  cocos,  melancias,  e  ana- 
nazes ,  que  corresponde  em  valor  metálico  a  cinco  contos 
de  réis ,  pouco  mais  ou  menos. 

§     6. 

Não  se  encontra  já  nenhuma  mata  virgem  nosdistrictos 
daquella  villa  ,  á  excepção  de  meia  legoa  acima  do  porto 
do  noviciado  ,  onde  as  matas  são  vestidas  de  óleo ,  pão 
roxo,  tapinhoãs,  e  alguma  sepipira ;  e  da  mesma  forma 
as  matas  do  Caibro  ao  sul,  até  a  distancia  de  oito  Icgoas, 
o  que  procede  das  grandes  lavouras,  que  os  jesuítas  tinhão 
feito  nnquelle  lugar,  sendo  forçozo  reduzir  por  isso  a  cin- 
zas as  grandes  arvores,  para  se  poder  fazer  a  grandioza 
plantação  de  mandioca,  que  elles  tinhão:  ainda  vi  luga- 
res, onde  o  fogo  perdoou  a  existência  de  alguns  mons- 
truozos  páos  de  óleo  de  140  e  mais  palmos  de  comprimen- 
to com  16  e  20  de  roda  ,  arruinados  interiormente  pa- 
ra extracção  do  óleo ,  que  os  naturacs  vão  vender  nas  bo- 
ticas da  cidade. 

"         "  '  CA- 


1 


H. 


DAS    SciENClAS    DE    LiSBOA.  I^^ 

CAPITULO    V. 

Da  villa  de  Barcelhs. 
§     I. 


I 


.UMA  Icgoa  abaixo  do  rio  de  Marahú  ,  ena  parte  op- 
posta  em  hum  alto  e  vistozo  monte,  está  situada  a  villa 
nova  dos  indios  de  Barcellos  com  frcguezia  da  invocação 
da  Senhora  das  Candêas  ;  foi  erecta  pelo  ouvidor  Luiz.  Frei- 
re de  Veras  no  anno  de  1758  por  provizão  do  c(;nsclho 
ultramarino;  poisque  com  o  extermínio  dos  jesuítas  ,  se 
mandarão  crear  em  villas  todas  as  povoações  dos  inuios , 
debaixo  do  directório  feito  para  os  indios  de  Maranhão. 
O  único  edifício  de  pedra  e  cal,  que  tem  a  villa,  he  a 
igreja,  c  collegio  dos  jesuítas  ,  que  tem  sotrido  grande 
ruina  :  nao  tem  a  villa  duzentos  indios  de  povoação  ,  c  se 
occupão  em  fazer  remos  ,  tornear  contas  ,  e  pouco  se  em« 
pregão  nas  lavoiras  :  são  bons  serradores  e  falquejadores  : 
plantão  mandioca,  quanto  baste  para  escas';a  provizão  de  sua 
família  ;  são  hábeis  para  todo  o  género  de  industria.  Com 
elles  assistem  vários  portuguezes  ,  pagando- lhes  arrendamen- 
to das  terras ,  em  que  plantão  e  cultivao  ,  e  fazem  para 
a  cidade  huma  exportação  de  500  a  600  alqueires  de  fa- 
rinha ,  100  de  arroz,  ijoo  a  1600  canadas  de  aguarden- 
te, IODO  remos  de  voga,  éooo  dúzias  de  contas,  de  cu- 
jos géneros  se  reputa  o  seu  valor  em  moeda  3000^000 
réis. 

§     a. 

Os  jesuítas  applicárao  aquelles  indios  á  muzica  ,  e  erão 
tão  inclinados  áquella  arte  ,  que  hum  entre  elles  ,  por  no- 
me Jozé  de  Almeida,  sem  saber  muzica  fez  huma  arpa, 
e  hum  rebecão  ,  com  os  quaes  instrumentos  acompanhava 
na  missa  de  três  vozes  ,  sem  perder  hum  dos  tons.  Na  ul- 

Y  ii  ti- 


j^6  Memorias  DA  Academia  Real 

tima  correição,  que  alli  fiz,  me  expoz  hum  indio  velho 
com  as  lagrimas  nos  olhos  a  deplorável  situação  dos  seus  ; 
c  que  elle  morria  com  o  desgosto  de  comsigo  levar  á  se- 
pultura ,  o  que  sabia  de  muzica ,  por  não  haver  na  villa 
hum  só  menino  ,  que  soubesse  ler ,  a  quem  elle  ensinasse  ; 
rogando-me ,  que  lhe  desse  hum  director,  que  fizesse  a  sua 
obrigação,  Ellcs  chegarão  á  ultima  degradação  de  civiliza- 
ção :  o  uso  da  aguardente,  vicio  commum  entre  cUes,  os 
tem  conduzido  a  total  pobreza  e  niizeria.  As  lagrimas  da- 
quclles  mizcraveis  me  tocáião  o  coração,  a  fim  de  promo- 
ver os  seus  verdadeiros  interesses  ;  fiz  o  que  pude  procu- 
rando conferir  com  o  governador,  aquém  o  throno  confiou 
a  sua  civilização. 

§     3- 

Sobre  este  objecto,  aliás  im.portantissimo ,  os  bons  de- 
zejos  dos  amigos  da  humanidade  serão  ineficazes,  huma 
vez  que  a  civilização  dos  indios  não  for  ordenada  por  ca- 
minho diffjrcntc  daquclle  ategora  praticado.  ^  De  que 
serve  ao  indio  servir  de  juiz  ordinário,  de  capitão  mór, 
&c. ,  se  elles  não  amao  ,  nem  conhecem  a  sociedade  e  a 
cultura  do  espirito  humano  ,  que  se  augmcnta ,  segunda 
os  grãos  de  civilização  ?  Ve-se  ainda  em  touos  ,  que  a  sa- 
tisfiição  dos  prazeres  dos  sentidos  he  a  sua  primeira  incli* 
nação  ,  a  da  aguardente  a  sua  maior  alegria  e  contentamen- 
to ,  e  tudo  ,  quanto  for  contrario  a  destruir  entretanto  aquel- 
les  sentimentos ,  elles  tomão  por  oppressão  a  mais  violenta. 
Huma  vez ,  que  os  cazamcntos  dos  indios  com  os  portugue- 
'zes  se  não  effcituarem  por  privilégios,  que  amplamente  se 
acordem  ,  aos  que  se  enlaçarem  nos  matrimónios  com  as  indias 
para  receberem  a  educação  portugueza ,  e  senão  habituarem 
assicuamente  aó  trabalho  ,  e  por  elle  adquirirem  a  industria 
■e  anwr  de  ganho ,  que  naturalmente  se  introduz  ,  conforme 
os  gráos  de  civilização ,  a  geração  dos  indios  ,  sempre  homo- 
génea nos  seus  sentimentos ,  será  a  mesma  em  todos  os 
tempos ,  como  desgraçadamente  a  experiência  testifica.  Sina 

.  he 


DAS   SciEHCIAS   nE   LiSBOA.  IJ7 

he  verdade,  que  cUcs  são  inclinados  ás  negras  ,  ou  pela  ana- 
logia da  escravidão,  ou  pelo  ódio,  c  desconfiança  para 
com  os  brancos  seus  oppressores;  mas  não  ha  tunda mcntfí 
para  desesperar  da  applieaçao  daquelle  reir.edio ,  que ,  se 
náo  produzir  o  effcito  da  de;zejada  civilização  dos  pais , 
contribuirá  sem  duvida  para  a  dos  filhos  ,  educados  civil  e 
chrisrãmenre  debaixo  da  protecção  do  governo.  Na  ultima 
correição ,  que  fiz  naquclla  villa  ,  misturei  nas  eleições  da 
justiça  os  portuguezes  com  os  indios ,  bemque  este  meio 
não  era  da  ultima  efficacia ,  faltando  aos  indjos  os  conhe- 
cimentos, que  lhes  convém  para  serem  homens  e  cidadãos. 
He  verdade  ,  que  elles  tem  hum  director ;  ^  mas  quem  seria- 
mente SC  persuadirá ,  que  hum  homem  ingénuo  ,  cem  co- 
nhecimentos e  capacidade  de  servir  a  si ,  e  á  sociedade  ,  se 
metta  a  viver  com  os  indios  ,  e  educa-los  civil  e  christã- 
jnente  por  sessenta  mil  réis ,  que  lhes  dá  a  fazenda  Real  ? 
^  Podem  ser  ardentes  os  trabalhos  de  hum  parocho  a  favor 
dos  seus  parochianos ,  quando  nem  he  levado  áquelle  sagra- 
do ministério  por  vocação  divina  ,  nem  póJe  ser  movido 
á  gloria  e  interesse  temporal ,  por  huma  pequena  côngrua , 
que  não  o  mantêm ;  e  por  isso  commumcntc  violenta- 
do pelo  seu  prelado ,   para  servir  de  parocho  em  taes  fre- 


guezias  ? 


§     4. 


!  Qiianto  mais  acertado  e  gloriozo  seria  mandar-se  pa- 
ra aquellas  povoações  sacerdotes  regulares  de  avanç  da 
idade,  costumados  ao  retiro  da  clauzura  dos  seus  conven- 
tos ,  com  intelligencia  da  lingoa  geral  dos  indios ,  para  dar 
jíquelles  povos  hum  bom  exemplo ,  e  abrir-lhes  a  carreira 
da  industria ,  tendo  sempre  mostrado  a  experiência  ,  que 
elles  tem  conseguido  nas  aldeãs  ,  a  que  tem  sido  enviados  , 
conciliar,  o  quanto  he  possível,  o  amor  de  Deos  com  a  obe- 
diência aos  príncipes  ,  a  educação  dos  meninos  com  a  civi- 
lidade ,  o  trabalho  das  suas  mãos  com  menos  prodigalida- 
de dispendidos,  os  templos  aceados,  e  reparados,  o  respei- 
to 


ijS  Memorias  da  Academia  Real 

to  com  o  amor  dos  povos  ;  o  que  jamais  se  encontrará  em 
todas  quantas  igrejas  dominão  os  clérigos  seculares  ,  pela 
maior  parte  n'aquellc  paiz  ignorantes,  e  corrompidos! 

§    ^ 

^  Que  nobres  sentimentos  ,  em  que  só  tem  parte  a  na- 
tureza não  corrompida, "achei  naqucllcs  homens,  não  estan- 
cio embriagados  ?  ^  Com  que  valor  não  forão  elles  no  tem- 
po, que  os  hollandezes  occupárão  oBrazil,  guiados  pelo  seu 
chefe  João  Taveira  á  barra  grande  do  Camamú ,  mergulha* 
dos  n'agua  ,  para  tradarcm  huma  grande  náo  daquella  na- 
ção ,  que  foi  a  pique?  ^  Que  exemplos  de  valor,  c  fideli- 
dade não  tem  clles  dado  em  todos  os  tempos  ?  ^  Com  que 
boa  vontade  se  prestão  ao  serviço  do  Soberano ,  quando  são 
chamados  ,  sem  embargo  das  injustiças  ,  que  tem  sofrido  , 
e  de  serem  tão  mal  pagos  dos  seus  serviços  ?  Mas  elles  es- 
perão  no  actual  governo  melhorarem  sua  triste  sorte  confia- 
dos na  justiça,  e  sabedoria  das  suas  deliberações,  susten- 
tando a  educação  daquellcs  infelizes  habitantes  ,  por  cami- 
nhos luminozos  ,  seguindo  o  exemplo  dos  inglezes  ameri- 
canos, e  da  nova  Galis ,  cujos  estabelecimentos,  aindaque 
modernos  no  tempo,  parecem  ter  chegado  aquclles  indios 
á  civilização  ,  que  os  nossos  de  tão  remota  antiguidade  ain- 
da não  tocarão.  A  carta  Regia  de  28  do  Janeiro  de  169J  , 
escripta  a  Fr.  Ignacío  da  Graça.,  provincial  do  convento 
de  nossa  Senhora  do  Carmo ,  encomendava  ,  que  não  só  pro- 
curasse conservar  os  seus  religiozos ,  e  augmenta-los  no  es- 
tado perfeito  de  religião ;  mas  que  se  inclinassem  ao  exer- 
cício das  missões ,  tomando  a  prática  da  lingoa  dos  indios , 
exercitand:)-se  tambcm  ,  quanto  antes  fosse  possivel ,  naquel- 
les  actos  de  caridade  ,  e  pobreza  ,  que  são  necessários  para 
viver  nas  aldêas  da  doutrina  dos  indios ,  escuzando-se  por 
este  modo  os  missionários  estrangeiros  ,  que  pelo  menos 
fazião  entender  das  partes  ,  d'onde  vinhão  ,  que  nos  seus  Rcaes 
domínios  não  havia ,  os  que  se  requerião  para  tao  santo  mi- 
nis- 


DAS  SCIENCIAS  DE  LiSBOA.  I5'9 

nisterio.  Oxalá,  que  tao  pias,  e  Rcaes  intenções  fossem 
praticadas  na  sua  total  extcnção,  que  muito  adiantaria  a 
civilização  dos  índios  ! 


CAPITULO    VI. 

Da  villa  do  Camamú. 


A< 


.CHA-SE  situada  a  villa  de  Camamú  na  altura  de  14.°, 
Foi  edificada  sobre  huma  colina  á  borda  da  caxocira  cha- 
mada da  Villa.  Compõe  se  de  mil  fogos,  com  seis  mil  ha- 
bitantes ,  entrando  nelles  o  numero  dos  escravos.  Nos  quin- 
tacs  da  villa  ,  arrabaldes  ,  e  destrictos  fazem  a  importan- 
te colheita  do  café,  introduzida  pelo  Desembargador  Fran- 
cisco Nunes  da  Costa,  que  naquella  villa  deixou  cm  cada 
pé  de  cafezeiro  immortalizado  o  seu  nome  ,  pelos  benefícios, 
que  aquclla  plantação  trouxe  a  estes  povos  ,  que  exportão 
■para  a  cidade  vinte  mil  arrobas.  O  terreno  he  apropriado 
para  aquella  nova  cultura  ,  e  a  pobreza  da  villa  desappare- 
cco  depois  da  soa  introducção.  A  lavoura  principal,  que 
faz  a  estabelidade  do  povo,  he  a  da  mandioca  :  alguns  tam- 
bém plantão  canas  para  se  destilar  em  aguardente.  A'  ex- 
cepção do  engenho  de  Acarahi ,  em  que  o  proprietário  Jo- 
y.é  de  Sã  Bitancourt ,  e  seus  irmãos  fazem  assacar ,  não 
ha  alguma  outra  propriedade  para  aquelle  fim.  A  exportação 
da  mandioca  consta  de  400  mil  alqueires,  mil  canadas  mais 
ou  menos  de  aguardente ,  e  o  engenho  de  assucar  até  para 
ao  caixas:  a  plantação  do  arroz  he  de  menos  consideração, 
a  colheita  apenas  chega  a  mil  alqueires.  Alguns  habitantes 
não  se  applicão  á  lavoura  ,  e  somente  ao  corte  dos  tapi- 
nhoãs ,  e  de  taboados  de  caixaria ,  que  vão  vender  nos 
engenhos  para  transportar  o  assucar ;  a  total  exportação  cor- 
responde ao  valof  metálico  de   18  a  20  contos  de  réis. 


ióo  Memorias  DA  Academia  Real 

§      2. 

A  agricultura  he  ainda  aqui,  como  em  todo  o  Bra- 
zil  ,  praticada  por  hiima  cega  rotina.  Sendo  ella  huma  arte 
de  cultivar  a  terra  ,  e  fertiliza-la  ,  para  produzir  grãos ,  fru- 
tos ,  e  todo  o  género  de  plantas  utcis  á  necessidade  dos 
homens,  epara  conservar  também  os  animaes  ;  não  sei  ,  por 
que  razão  ,  sendo  tão  grande  a  sua  importância  ,  se  não 
aprende  ,  como  as  de  mais  artes ,  que  são  necessarijs  ao 
tizo ,  c  commodidades  da  vida  ?  Não  ha  quem  não  esteja 
persuadido  da  verdade  exposta  ;  porem  todos  scjulgáo  dis- 
pensados de  se  instruir  nos  seus  principios.  Columela  di- 
zia em  outro  tempo  aos  Romanos  ,  que  era  necessário  ex- 
plica-la aos  seus  compatriotas ;  o  mesmo  hoje  devemos  dizer 
aos  nossos  senhores  de  engenho  e  lavradores  ,  que  a  agri- 
cultura exige  hum  preliminar  estudo,  reunindo  a  pratica, 
e  a  theorica. 

§     3. 

Ha  pessoas,  que  conhecem  a  agricultura  só  pela  li- 
ção dos  livros ,  fallão ,  e  decidem  de  lodos  os  objectos  ru- 
racs ,  sem  terem  alguma  idéa  do  campo  ,  poisque  nunca 
sahírão  do  seu  gabinete:  ecomo  dogmatizão  sem  a  voz  das 
experiências  ,  a  menor  circumstancia  local  desarranja  ,  e  mu- 
da todas  as  suas  esperanças.  No  Brazil  cultiva-se  geralmen- 
te a  terra,  precedidas  as  grandes  desvastações  ,  e  incêndios 
das  matas,  sem  alguma  reflexão,  esem  principios,  só  por- 
que assim  praticarão  os  seus  antepassados :  hum  só  se  não 
sente  pelo  amor  da  gloria  ,  e  do  interesse  próprio  impeli- 
do pela  grandeza  dos  objectos  ,  que  a  natureza  pródiga  e 
liberal  lhe  aprczenta,  a  apcrfeiço.ir  o  mcthodo  da  cultura 
do  seu  paiz ,  substituindo  algum  menos  despendiozo  ,  eda 
mais  vantajoza  utilidade.  Não  se  unindo  a  pratica  com  a 
theorica  he  dificultozo  ,  para  não  dizer  impossível,  fazer 
com  acerto  qualquer  experiência ,  por  faltar  a  guia  de  hum 

prin- 


DAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  l6l 

principio  certo  d'onde  se  deve  partir.  O  bem  da  agricul- 
tura exige,  como  essencial  bazc  ,  cm  que  se  sustenta^ 
conhecimentos  relativos  ao  estado  do  pai/,  habitado,  á  sua 
expozição,  á  sua  altura  do  nivcl  do  mar,  cjual  a  nature- 
za do  terreno  ,  sua  profundidade  ,  e  camadas ,  que  o  re- 
cobre ;  se  deixa  passar  a  agua  ,  ou  se  as  rctcm  :  conhe- 
cimentos indespensaveis  para  assignalar  acertadamente  o  gé- 
nero de  lavoira  ,  que  mais  convém  a  este,  ou  áquelle  lu- 
gar. 

§     4. 

Alem  da  total  ignorância  dos  princípios  expostos,  que 
fazem  florecente  a  agricultura  ,  não  podiao  os  Camamoanos 
exerce-la  com  actividade,  por  ser  todo  o  seu  território  do 
dominio  dos  jesuitas:  a  extincçáo  daquella  corporação,  e 
a  venda  ,  que  sescguio  das  12  legoas  em  quadro  ,  que  pos- 
suião  a  titulo  de  doação ,  que  lhes  fizera  Mem  de  Sá ,  de- 
rão  aos  habitantes  meios  de  se  empregarem  na  lavoura  prá- 
tica do  paiz.  O  Alvará  publicado  em  27  de  Fevereiro  de 
1701  ordenava  aos  governadores,  que  com  os  ouvidores 
geraes  fizessem  plantar,  e  semear  mantimentos  nas  terras, 
que  costumavão  a  dar,  e  nas  mais  que  fossem  capazes  des- 
ta cultura,  e  deo  cauza  a  preferencia  da  mandioca.  O  ex- 
cellentissimo  Marquez  de  Valença  por  hum  bando ,  que 
fez  publicar  em  16  de  Fevereiro  de  1781  cm  observância 
do  referido  Alvará  ,  e  do  bando  ,  que  se  publicara  em  i75'o  , 
mandou  ,  que  todos  os  lavradores  de  mandioca  plantassem 
annualmente  quinhentas  covas  por  cada  escravo  de  serviço  ; 
e  que  os  senhores  de  engenho  e  lavradores  de  cana  e  ta- 
baco do  recôncavo  ,  que  morassem  em  terras  ,  em  que  fos- 
se praticável  aquella  plantação ,  o  fizessem  para  a  sua  sus- 
tentação ,  e  de  suas  fabricas  ;  e  que  da  mesma  maneira  os 
senhorios  dos  navios ,  que  commerciassem  para  a  costa  da 
Mina  e  Angola  ,  plantassem  mandiocas  necessárias  em  sí- 
tios convenientes  ,  como  determinava  a  citada  lei ,  para  te- 
rem as  farinhas ,  com  que  podessem  abastecer  suas  em- 
Totm  IX,  í;  bar- 


'j6i  Memorias  da  Academia  Real 

barcações  ;  e  que  os  lavradores  dentro  em  seis  mczes  fa- 
liáo  certo  nas  respectivas  camarás  ,  terem  cumprido  com  a 
plantação  das  quinhentas  covas ,  por  cada  escravo ;  c  da 
mesma  forma  os  senhores  de  engenho ,  lavradores  de  cana , 
e  tabaco,  c  proprietários  dos  navios,  debaixo  da  pena  de 
50^  réis  pagos  da  cadêa ,  applicados  para  as  obras  públi- 
cas ,  alem  de  dois  mezes  de  prizão  ;  e  sendo  comprehen- 
dida  a  pena  em  pessoa  de  qualidade  ,  expiaria  este  a  da 
prizão  no  forte  de  Santo  António  ,  alem  do  do  Carmo.  Final- 
mente estabelecia  ,  que  no  cazo  ,  que  os  lavradores  de  fa- 
rinha deixassem  aquella  cultura  ,  para  se  empregarem  em 
outras,  serião  forçados  a  continuar  na  da  mandioca,  ciem 
de  pagar  cem  mil  léis  de  condemnaçao  da  cadêa. 

§     S' 

Qiiando  o  governo  dirige  o  trabalho  dos  cidadãos  , 
com  respeito  á  sua  ordem  natural ,  proporções  e  circumstan- 
cias  opportunas,  tendo  por  objecto  primário  a  subsistência  , 
segurança,  e  mantença  dos  particulares,  e  doestado,  e  de- 
pois o  que  hc  commodo  ,  e  agradável ,  e  finalmente  o 
que  serve  de  ornato  e  mero  luxo ,  se  tem  visto  progressi- 
vos adiantamentos  da  industria  ;  porem  a  experiência  demons- 
tra quazi  sempre  ,  que  a  industria  dos  povos  cresce  mais 
rapidamente  ,  quando  a  escolha  do  trabalho  he  espontanea- 
mente dos  cidadãos;  poisque  cada  hum  pela  sua  pessoal, 
e  local  capacidade,  e  conforme  a  sua  actividade,  e  fundos 
he  mais  capaz  de  dar  ao  seu  trabalho  mais  vantajoza  uti- 
lidade ,  a  qual  jamais  pode  produzir  as  imperativas  ope- 
rações do  governo  ,  que  só  deve  facilitar  a  destribuição  ge- 
ral dos  empregos  ,  e  mais  géneros  da  industria  pelas  fun- 
dariicntaes  bazcs  do  bem  público  ,  protegendo  constantemen- 
te todos  os  ramos  da  prosperidade  do  paiz.  Nem  todos  os 
terrenos  são  próprios  para  a  cultura  da  mandioca  :  geralmen- 
te tenho  ouvido  a  antigos  lavradores,  que  as  matas,  que  não 
contem  pindobas  (espécie  de  palmeira),  vinhaticos,  e  se- 

pi- 


nAS   SciENClAS   DE   LiSBOA.  l^J 

pipiras  ,  nâo  são  aptas  para  aquella  lavoura;  ^c  seria  justo 
cbrigar-se  a  fazer  plantações  com  tao  graves  despczas ,  e 
perda  das  matas  cm  terrenos  impróprios  ,  cjue  não  pagão 
o  trabalho  do  mizcravel  lavrador?  Sc  hum  dado  terreno  he 
mais  próprio  para  a  plantação  da  cana,  e  o  asfucar  tem 
boa  sabida  nos  mercados  da  curopa  ;  ^  porque  deve  empre- 
gar as  suas  faculdades  o  lavrador  naquclla ,  e  não  nesta  cul- 
tura ?  Se  as  terras  não  estrumadas  são  próprias  para  o  al- 
godão, cacáo,  e  pimenteira  da  índia,  ^*  ha  de  ser  força- 
do a  plantar  mandioca,  com  que  se  arruina,  e  não  os  no- 
vos géneros ,  com  que  se  alenta  ,  e  enriquece  ? 

§     6. 

São  naturalmente  inclinados  os  povos  á  cultura  da 
mandioca,  por  ser  o  pão  de  que  se  alimentão  ,  por  exigir 
aquella  menos  braços  que  a  da  cana  para  assucar  ,  ou  aguar- 
dente ,  e  favorece  a  fatal  indolência  do  povo  ,  que ,  tendo 
aqucUe  pão,  c  o  peixe  do  mar,  ou  rios,  e  o  marisco  dos 
mangues ,  e  a  carne  do  ccrtão  ,  estão  mais  regalados  do- 
que  os  príncipes  nas  suas  sumptuozas  ,  magnificas  ,  e  deli- 
ciozas  mezas.  Commumente  não  plantão  o  milho,  feijão, 
ou  algum  outro  grão  ,  apenas  batatas ,  a  que  chamão  ca- 
rás de  diversas  cores  e  qualidades  ,  e  os  seus  insonsos 
inhames,  poucas  arvores  fructiferas,  ou  ahi  elimitadas  ;  não 
formão  pastagens  para  conservação  do  gado  ,  não  adubão 
as  terras ,  nem  as  rasgão  pelos  arados  ,  tão  conhecidos  nas 
europcanas  lavouras  ;  não  tratão  dos  seus  escravos  ,  conce- 
dendo-lhes  apenas  o  sabbado  para  adquirirem  o  alimento  , 
e  mais  commodidades  da  vida  ,  donde  vem  a  fonte  do  des- 
coroçoamento  da  lavoura ,  que  sem  aquelles  braços  não  po- 
de medrar,  e a  perda  de  tantas  famílias,  que  jamais  podem 
perpetuar  em  sua  posteridade  seu  nome,  e  sua  riqueza. 


a:  u 


104  Memorias  DA  Academia  Real 

§     7. 

Lê-se  na  carta  Regia  de  31  de  Janeiro  de  1701  ,  di- 
rigida ao  governador  do  Rio  de  Janeiro  Artur  de  Sá  e 
Menezes  ,  que  ,  mandando-se  ver  no  conselho  ultramarino  , 
o  que  rcprezentára  a  junta  das  missões  sobre  os  senhores 
de  engenho  darem  o  sabbado  livre  aos  seus  escravos  para 
cultura  das  suas  roç.is  ,  ficando  desembaraçados  os  domin- 
gos e  dias  santos  para  assistirem  á  doutrina  christã ,  e 
officios  divinos ,  se  conhecera  ser  gravissima  a  matéria  ,  4 
que  se  lhe  devia  applicar  todo  o  remédio  possivcl ;  e  que 
assimcomo  conforme  a  direito  divino  e  hum.mo  erao  os 
escravos  obrigados  a  servir  a  seu  senhor,  também  este  ti- 
nha obrif^ação  de  lhes  dar  o  sustento  necessário,  paraque 
não  morressem  ,  e  devião  ser  obrigados ,  ou  a  lhes  dar  sus- 
tento ,  ou  hum  dia  na  semana  ,  para  poderem  com  á  sua 
industria  grangça-lo :  e  que  desta  alternativa  escolhessem  os 
ditos  scnliores.  O  governador  duvidou  pôr  em  execução 
aquclla  ordem  pela  diiEcuIdade  de  averiguar-se  a  observân- 
cia delia;  e  lhe  foi  ordenado  pela  carta  Regia  de  16  de 
Novembro  de  1701  ,  que  observasse  inviolavelmentc  a  or- 
dem ,  castigando  os  transgressores  delia  com  penas  condi- 
gnas a  seu  delicto ;  e  quando  acontecesse  cazo,  cm  que  se 
não  podesse  averiguar  no  todo  ,  ao  menos  cm  parte ,  se  po- 
deria dar  pelo  meio  do  castigo  o  remédio ,  que  se  procu- 
va. 

§.     8. 

Qiiazi  em  todo  o  Brazil  foi  adoptado  o  permittir-se 
o  sabbado  aos;  escravos,  para  adquirirem  com  o  serviço 
delle  a  sua  subsistência.  A  triste  condição  de  hum  escravo, 
em  paiz  estranho ,  de  diversa  religião  e  costumes ,  aban- 
donado á  discripção,  e  humor  tirannico  dos  seus  senho- 
res não  pôde  deixar  de  ser  desgraçado  com  os  mesmos 
senhores  a  todas  as  vistas,  paraonde  se  volte.  ^- Como  pô- 
de 


DAS   SciENCIAS   DF.   LiSBOA.  Í6^. 

àc  O  senhor  achar  soccorro ,  c  fidelidade  no  escravo  nú , 
definhado  de  fome ,  de  mizcria ,  e  de  dcsesiperação  ?  Os 
senhores,  nascidos  no  grémio  da  mais  pura  e  santa  rchgião, 
não  duvidao  entrcgar-se  a  todas  as  paixões  sensuacs ,  inspi- 
rando aos  escravos  os  sentimentos  de  corrupção  e  pcrfidia  j 
e  comtudo  esperao  ,  que  o  temor  dos  horriveis  suplícios 
faça  encontrar  naqueiles  ,  que  não  conhecem  as  virtudes  y 
a  continência  ,  e  os  outros  dons,  que  só  a  religião,  a  edu- 
cação, e  o  habito  conferem;  e  assim  mesmo  difficilmente 
conseguem  flizer  praticar.  As  familias  não  se  consei  vão  sem 
a  união  do  amor  conjugal.  Como  pois  se  pertcnde  associa- 
ção de  escravos  de  paizes  diversos  sem  os  unir  por  vinculos 
sagrados  no  amor  da  família,  onde  rezidem  ,  fizendi  não  só 
parte  uella,  mas  á  mesma  família?  Repartindo-se  com  el- 
]es  alguma  propriedade  das  terras  ,  ^- quanto  não  serão  aquel- 
]es  braços  utilmente  empregados  na  própria  fortuna  dos  se- 
nhores,  e  na  prosperidade  de  suas  familias? 

§     9- 

Estremece  o  escravo  á  voz  do  feitor  deshumano ,  ou 
do  próprio  senhor ,  que  ainda  mal  tem  pronunciado  huma 
palavra  ,  já  hum  sem  numero  de  açoutes  he  descarregado 
sobre  aqucUc  infeliz  ,  quando  não  são  dependurados  pelos 
braços  nas  arvores,  ou  nos  postes  elevados,  ou  nas  esca- 
das amarrados,  para  sofrerem  centos  de  açoutes,  applican- 
do-se  depois  ás  feridas  novo  tormento  com  a  cura  de  su- 
mo de  limão,  e  pimentas.  Os  animaes  ferozes  cederíão  aos 
gritos  lamentáveis  daquellas  victimas ;  mas  não  cedem  al- 
guns, dos  seus  senhores ,  que  de  continuo  estudâo  inventar 
novos  e  bárbaros  castigos  ,  de  que  se  horroriza  a  humani- 
dade ,  e  de  que  talvez  algum  dia  tomará  vingança  1  Muitos 
escravos  acabão  taes  castigos  em  desesperação  ,  voltando 
a  iingoa,  para  não  refolgarem ,  deitando-se  outros  a  afoga r- 
se  nos  rios ,  ou  no  mar  ,  degolando-sc  a  si ,  comendo  ter- 
ra,   ou  sal,   se  nos  mesmos  açoutes  não  exhalão  alguns  o 

ul- 


i66  Memorias  da  Academia  Real 

ultimo    suspiro;    assim  estão  persuadidos    os  senhores,    de 
que  devem  aterrar  os  escravos  ,  paraquc  estes  se  não  levan- 


tem ,  e  os  assassinem  ! 


IO. 


Por  carta  Regia  de  20  de  Março  de  1688,  sendo 
informado  o  Soberano  de  taes  horrores  praticados  contra 
os  escravos  ,  quando  só  era  licito  aos  serihores  o  castigo 
moderado,  e  querendo  evitar,  que  os  escravos  padecessem, 
como  se  explica  a  mesma  carta  Regia,  sobre  lhes  faltar  a 
liberdade  a  tirannia  e  vingança  de  seus  senhores  ,  ordena- 
va ,  que  em  todas  as  devassas  geraes  se  perguntasse  pelos 
senhores,  que  com  crueldade  castigassem  a  seus  escravos, 
e  fossem  obrigados  a  vende-los  a  pessoas,  que  lhes  dessem 
bom  trato;  e  se  tomassem  denuncias  contra  os  senhores, 
que  commettessem  semelhantes  castigos  ,  sendo  ainda  estas 
dadas  pelos  mesmos  escravos  castigados  ;  e  ainda  quando 
se  não  provassem  as  denuncias  ,  e  qucrellas ,  fossem  notifi- 
cados os  senhores  para  lhes  não  fazer  damno  algum  por 
aquclle  motivo.  Por  outra  carta  Regia  de  25  de  Março 
do  dito  anno  se  ordenou,  que  os  governadores  tomas- 
sem informações  verbaes  ,  e  summarias  do  modo  ,  com  que 
os  senhores  trativão  os  escravos  ;  e  que  achando-se  exce- 
derem a  moderação ,  os  punissem  arbitrariamente ,  e  os 
que  fossem  comprehendidos  em  excesso  grave  ,  os  fizesse 
processar  summariamente,  remettendose  ao  ouvidor  o  co- 
nhecimento do  excesso  para  os  sentencear  immediatamen- 
te  com  adjuntos,  evitando,  quanto  fosse  possível,  que 
chegasse  á  noticia  dos  escravos  este  remédio ,  paraque  com 
menos  justificada  cauza  não  arguissem  seus  senhores;  e  no 
cazo  ,  que  se  entendesse  ,  que  bastaria ,  que  os  senhores 
soubessem  a  forma ,  com  que  se  mandava  proceder  con- 
tra elles ,  achando-se  alguns  comprehendidos  em  maior  ex- 
cesso ,  alem  das  penas  ,  que  lhes  fossem  dadas  ,  fossem 
obrigados  a  vende-los,  com  a  condição  do  novo  senhor  obri- 
gar-se  a  trata-los  com  castigo  moderado  j  e  se  fizesse  saber 

ao 


dasSciekciasdeLisboa.  167 

ao  bispo,  que  se  lhe  constasse,  que  alguém  punia  os  escra- 
vos com  crueldade  e  tirannia,  procedesse  contra  ellc  na  for- 
ma referida  ,  mandando  dar  parte  do  excesso  ao  governa- 
dor. 

§     II. 

Por  outra  carta  Regia  de  13  de  Fevereiro  de  líftp  , 
SC  mandou  suspender  a  execução  daqucllas  duas  cartas  Re- 
gias,  por  grandes  inconvenientes,  que  se  rcprcztntarão , 
mandando-sc  observar  unicamente,  o  que  dispunha  a  lei  cm 
commum  sobre  os  senhores,  que  a  seus  escravos  davão  im- 
moderado  castigo.  Finalmente  por  outra  carta  Regia 
de  7  de  Fevereiro  de  1698  se  encommendou  aos  governa- 
dores, que  se  evitassem  os  castigos  immoderados  dos  escra- 
vos por  aquellcs  meios ,  que  parecessem  mais  prudentes 
c  cíficizes  ,  cm  forma  ,  que  não  cauzasse  algum  alvoroço 
nos  povos ;  e  se  conseguisse  o  fim  sem  ruido ,  ou  alteração 
nos  escravos. 

§     12. 

Ficou  em  virtude  daquellas  ordens  dependente  da  pru- 
dência ,  e  zelo  dos  governadores  a  applicaçâo  dos  meios 
convenientes  de  conter  os  senhores  no  immoderado  castigo; 
e  os  escravos  na  sobordinação  ,  e  temor  dos  seus  senhores. 
O  sahbado,  deixado  para  sustentação  dos  escravos,  não  po- 
dia alimenta-los  ,  principalmente  tendo  filhog  :  o  amor  des- 
tes,  e  da  mulher,  a  ambição,  e  prazer  da  pequena  pro- 
priedade ,  que  poucos  senhores  humanos ,  e  sensatos  lhes 
tem  concedido  ,  são,  e  tem  sido  seguros  meios  da  sua  con- 
servação. Hum  único  conheci  ,  que  alem  do  sabbado  susten- 
tava de  feijão  c  farinha  com  o  seu  toucinho  aos  escravos. 
De  outra  maneira  elles  se  não  podem  contentar  ,  de  neces- 
sidade se  aquilombão  nns  matos  ,  onde  de  noutc  sahem  a 
roubar  as  rossas  do  senhor  ,  ou  dos  vizinhos  :  as  matas  se 
vão  enchendo  de  descontentes    escravos  ,    quc^  algum    dia 

po- 


i68  Memorias  da  Academia  Real 

podem  invadir  o  paiz  habitado,  e  produzir  espantozas  ex- 
plozóes. 

§     13' 

Parecião  acertadas  as  providencias  do  governo  sobre  a 
moderação  do  castigo  dos  escravos  ;  porem  nao  se  devia  pres- 
cindir o  cuidado  da  sua  educação  ,  forçando  os  senhores 
tirannos  a  entrarem  nos  seus  verdadeiros  interesses ,  que  es- 
tão pendentes  da  conservação  dos  braços  dos  escravos  ,  fa- 
zendo-Ihes  suave,  e  doce  a  escravidão  pelos  conhecimentos 
da  religião  ,  em  que  são  obrigados  a  instrui-los  não  vio- 
lentamente ,  mas  com  brandura  per.suaziva  ;  diiignando-lhes 
por  caz.imentos  próprios  da  mesma  religião  os  successores 
do  seu  amor,  e  fidelidade  ;  sustentando-os  conforme  as  suas 
possibilidades  ,  permirtindo-lhes  certas  porções  de  terra  pa- 
ra as  suas  lavoiras ,  para  terem ,  com  que  vestir-se  ,  c  suas 
mulheres;  e  para  satisfazerem  osappetites,  de  que  he  sus- 
ceptível a  natureza  humana ,  fazendo-ihcs  ensinar  os  instru- 
nKMitos  de  muzica ,  a  que  são  propensos,  para  suavizaras 
tristezas  da  escravidão ,  e  esquecerem  no  êxtase  da  sua 
alegria  a  dureza  da  sua  condição,  e  dos  filhos;  entreten- 
do-os  pelo  trabalho  nos  dias  delle,  e  até  nas  suas  festivi- 
dades ,  longe  dos  viciozos  passos  ,  que  deve  pervenir  e  evi- 
tar ;  então  a  lavoira  do  paiz  produzirá  grandes  utilidades , 
então  se  perpetuarão  as  fabricas  delle  de  familia  em  fami- 
lia ;  o  estado  será  sempre  florecente;  poisque  na  prosperi- 
dade geral  o  paiz  agricula  firma  a  sua  eterna  duração. 

§      M- 

Tão  importante  objecto  não  tem  assas  merecido  algu- 
ma consideração  politica.  Huma  só  ordem  ,  ou  insinuação 
vi ,  tendente  a  conseguir  a  conservação  dos  escravos  pelo 
interesse  do  bem  geral  da  agricultura  das  colónias  ;  poisque 
sem  ellcs  as  terras  não  tem  algum  valor.  Os  governado- 
les    em  observância  das  ordens,    c[ue  reccbião  do  throno, 

pro- 


DAS    SCIENCIAS    DE    LiSBOA.  l60 

proseguiáo  sem  algum  exame  do  local  ,  a  mandarem  fazer 
somente  as  lavouras  da  mandioca.  Dom  Rodrigo  Jozé  de 
Menezes  expedio  cartas  circulares  a  todas  as  camarás  em 
data  de  1 2  de  Setembro  de  178$'  exigindo  a  observância 
das  ordens  dadas  pelos  seus  antecessores  áquclle  fim,  e  man- 
dando ,  que  de  seis  em  seis  mezes  ,  se  remettesscm  á  secre- 
taria do  governo  as  listas  das  plantações  praticadas  ;  c  cm 
carta  de  10  de  Março  de  1787,  a  observância  do  plano, 
e  instrucçôcs  feiras  pelo  Desembargador  Francisco  Nunes 
da  Costa  a  respeito  da  cultura  da  mandioca ;  c  que  por 
qualquer  ommissao  serião  emprazadas  as  camarás  para  darem 
as  cauzas  ,  porque  não  observarão  as  suas  ordens.  Obriga- 
va aquelle  plano  a  todas  as  pessoas  a  plantarem  certo  nu- 
mero de  covas  ,  as  quaes  serião  obrigadas  annualmcnte  duas 
vezes  vizitar,  e  correr  todas  as  rossas ,  fazendo  lançar  em 
hum  livro,  para  esse  fim  creado  ,  o  numero  das  covas,  o 
lugar ,  o  nome  do  lavrador ,  e  o  numero  dos  escravos  de 
serviço. 

§     15". 

Aquelle  mesmo  systema  adoptou  o  excellentissimo  D. 
Fernando  Jozé  de  Portugal  na  sua  carta  circular  de  ly  de 
Abril  de  1788,  ratificando  a  approvação  do  mencionado 
plano,  e  ordenando,  que  se  vigiasse  na  sua  observância, 
obrigando  as  camarás  a  communicar-lhe ,  por  mappas,  os 
géneros,  que  para  o  celeiro  público  se  transportassem  ,  pa- 
ra cujo  fim  levarião  guia  as  embarcações  do  giro  ,  a  carga 
que  tinhão  a  seu  bordo ,  e  prohibindo  ,  que  as  embarcações 
das  outras  capitanias  viessem  carregar  nesta  sem  ordem  do 
governo ;  segurando  na  dita  carta ,  que  por  outra  maneira 
não  podia  promover  a  abundância  ,  que  anciozamente  deze- 
java  ,  para  ter  os  povos  contentes  ,  e  livres  da  oppressão 
da  fome.  E  para  ter  hum  exacto  conhecimento  da  lavoura , 
e  seu  adiantamento  ,  ordenava  ,  que  em  cada  semestre  en- 
viassem todas  as  camarás  á  secretaria  do  governo  as  listas 
das  covas  da  mandioca  dos  lavradores ,  e  a  importância  da 
Tomo  IX,  X  sua 


170  Memorias  da  Academia  Real 

sua  colheita,  promettendo  tomar  debaixo  da  sua  protecção 
os  lavradores ,  que  se  distinguissem  naquclle  género  de  \à- 
voira  ,  e  lhe  cumpriria  os  seus  previlegios  bem  como  cas- 
tigaria a  omissão ,  dos  que  contraviessem  a  tão  saudavi-is 
providencias. 

§     i^. 

As  grandes  fomes  ,  que  dcvora'rão  Pernambuco  por  mui- 
tos annos  ,  augmentou  consideravelmente  a  plantação  da 
mandioca:  o  grande  preço,  a  que  subio  aquelJc  género  da 
primeira  necessidade  ,  vigorizou  o  trabalho  daquella  cultu- 
ra,  que  devendo  ser  favorecida  a  colheita  pelos  meios, 
que  dcspertão  a  industria  ,  e  que  removem  todv  s  os  obstá- 
culos que  a  descoroçoão,  paraque  os  lavradores  encontras- 
sem constante,  c  recrescente  interesse  na  sua  produção; 
pelo  contrario  se  prohibio  a  exportação  para  Pernambuco, 
armárão-se  assentistas  ,  que  roubarão  os  interesses  dos  po- 
vos, e  os  lucros,  que  deviâo  ter  os  lavradores  pjssárâo 
pira  as  mãos  daquelles ,  e  das  guardas  militares,  que  se 
apostarão  ,  como  a  fazer  guerra  á  industria  e  trabalhos  do 
lavrador:  tarde  foi  reconhecido  tão  fatal  erro  no  governo 
do  excellentissimo  Francisco  da  Cunha  e  Menezes  ;  pois 
logooue  deixou  aos  povos  a  indefinida  extensão  do  seu 
mercado  ,  augmentau-se  extraordinariamente  aquella  lavoira 
em  maneira  tal  ,  que  Pernambuco  foi  copiozamente  abas- 
tecido ,  e  o  celeiro  público  da  Bahia  vendeo  a  farinha  a 
320  réis  o  alqueire,  preço,  porque  ha  mais  de  20  annos 
não  chegou  ao  seu  mercado  público, 

§      17» 

Propagando-se  a  lavoura  da  mandioca  com  o  maior  afin- 
co ,  era  natural  que  se  destruíssem  os  mais  densos  ,    e  im- 
penetráveis bosques.    Este  tão  grande  embaraço  obrigou  o 
ouvidor,  que  então  era  da  commarca  o  Desembargador  Fran- 
cis- 


DAS    SCIENCIAS    DE    LrSBOA.  171 

cisco  Nunes  da  Costa  a  dirigir  ao  throno  a  mais    enérgi- 
ca reprezentaçao  ;  assim  ccnicebida. 

"  Senhora;  A  inspecção  dos  Rcaes  cortes  de  madeiras , 
»  que  Vossa  Magcstadc  foi  servida  cncarregar-me  no  dcs- 
j'  tricto  desta  capitania  ,  c  que  prczentemcnte  se  mandão 
>'  laborar  com  mais  extensão  ,  acaba  de  confirmar-me  na 
s>  prcciza  diligencia  de  procurar  pela  Regia  authoridade  o 
»  remcdio  competente  ao  estrago,  com  que  as  admiráveis 
j»  matas  da  mesma  capitania  se  vão  arruinando  e  mostran- 
j'  do  já  a  perda  mais  scnsivcl  para  Vossa  Magcstadc,  pa- 
«  ra  o  commcrcio  ,  e  para  os  moradores  ,  que  se  ajudavão 
"  desta  riquissima  extracção ,  pela  prodigioza  abundância 
j»  das  madeiras,  que  pareciáo  inexhauriveis  nos  primitivos 
»  tempos  desta  colónia,  ou  talvez  pelo  menor  calibre  dos 
>»  navios  ,  e  menor  numero  dcllcs  ,  sendo  o  fornecimento 
>»  das  matas  da  Europa  muito  superabundante ,  se  não  esta- 
j>  beleceu  methodo ,  ou  legislação  competente,  para  regu- 
3>  lar  a  extracção,  e  conservação  das  deste  contmente  ;  e 
j>  apenas  a  primeira  cautela,  que  se  encontra  a  este  respei- 
jí  to ,  he  a  simples  recomendação  feita  ao  governador  da 
j>  Relação,  que  nos  últimos  annos  do  intruso  Filippe  IV. 
»>  se  lhe  fez  no  regimento  da  sua  creação  na  cidade  da 
j>  Bahia  ,  sustentada  depois  no  segundo  regimento  ,  que  lhe 
»>  deu  em  i  (5 5-3  o  Senhor  Rey  D.João  IV,  tendo  concor- 
»  rido  depois  alguma  provizão  do  Conselho  ultramarino, 
j»  em  que  se  excita  a  mesma  recommcndação  ;  mas  todas  es- 
>}  tas  providencias  destituídas  de  sanção  ,  que  pela  quali- 
»  dade  da  pena  fizesse  conhecer  o  valor  das  matas  ,  e  abo- 
»  minação  dos  incendiários  ,  e  destruidores  das  mesmas. 
í>  A  população  e  cultura  principalmente  do  assucar ,  não 
>»  tinhão  fertilizado  de  sorte  ,  que  exigisse  huma  exacta 
>»  combinação  dos  interesses  desta  cultura ,  commoda  con- 
»  servação  das  matas  ;  e  por  isso  se  derão  de  sesmaria  ;  e 
í»  se  assignárão  mesmo  por  mercês  Regias  ,  domínios  par- 
>»  ticulares,  na  extenção  da  costa,  que  a  invenção  e  des- 
*»  cobrimento  fizerão  de  Vossa  Magcstadc  j  pois  bemque  o 

X  ii  »  ne- 


J> 


172  Memokias  da  Academia  Real 

>»  nexo  do  império    assim    o  persuadisse ,    ainda   mesmo    a 

>»  authoridadc  e  direito  público  das  nações,  confere  o  do- 

j>  minio  dos  lugares  inaccessiveis  ao  imperante,    de   forma 

>»  que  pela  sua  natureza  nenhum  particular   pode  subtcntar- 

«  se  nelle,   sem  assignaçáo,  e  ajudicação  dos  mesmos  do- 

Ȓ  minios.    Hugo   Grocio   no  seu    tratado    da  guerra  ,    c  da 

paz  1.''    2°   cap.   2.°  §.  3.°  do  n.°  2.°    até    6."    com  seus 

>»  adnotadorcs   mostrão  admirável ,  e  concizamente.  Nasceu 

»>  desta  abundância  ,  por  huma   parte  a  dcmaziada  fncilida- 

>»  de  nas  sesmarias ,   por  outra   parte  ,  a  introdução  dos  di- 

»  versos    proprietários   sem  este    titulo,    e  ultimamente    a 

»  omissão  do  direito  Forestal  ,  cujo  uzo  he  distinctamcnte 

>>  conhecido   em  toda   a  Europa  ,  na  França  ,   reduzido  a  cor- 

»   po  ;  na   Alemanha  ,   a   systema  ,  do  que  se  lembra  Bohc- 

j>  mero  no  seu  bom  tratado  do  direito   público  ,    parte    es- 

5>  pecial  1.°,  2.°  cap.  10  §.   17.    Nem  deixarão  os  augustos 

»  predecessores  de  Vossa   Magestade  intacta    esta  jurispru- 

»  dencia ,    os  diversos    regimentos  sobre  o  pinhal  de  Lei- 

»  ria  ,  e  a  ultima  creação  de  hum  magistrado  ,  para  vigiar 

»  sobre  elle  ,    as  amplas    providencias  incorporadas   no  re- 

»  gimento  do  Monteiro  mor,  e  ainda  a  recommendação  que 

«  a  lei  do  reino  faz  aos  corregedores  das  commarcas  ,   no 

»  respectivo   regimento ,    dão    huma    adequada    e  perfeita 

>>  idéa ,  de  que  a  menos  circumspecção   a  respeito  do  Bra- 

j>  zil  teve  por  baze  a  sua  original,    e  famoza    abundância. 

j>  Mas  agora  que  a  falta  já  he  sensivel  ,    e  que   o  abuzo, 

j>  o  ferro ,  o  fogo ,    a  ignorância ,    e  a  ambição  tem  estra- 

»  gado  rapidamente  a  fértil ,  e  riquissima  mata  de  Jiquiri- 

>»  çd  ;    e   pouco    menos  todas  as  que  decorrem  para  o  sul 

j>  até  o  rio  de  Contas  ,  e  que    este  flagelo  continua  com 

j»  tal  abuzo,  que  até  se  tem  estabelecido  a  máxima,    que 

>»  as   matas  são  livres,   e  de  hum  direito  público,    e  com- 

j>  mum  ,   he   necessário    a  revindicação   e  uzo    dos  direitos 

j'  Régios ,  para  vedar  e  impedir  tão  ruinozo  progresso :    a 

>»  authoridade  provizional  ,    que    me  he  licita  ,    e  que  me 

»>  faz  cargo ,  como  corregedor  da  commarca ,   estabelecida 

>»  por 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  1/3 

j)  por  hum  capitulo  de  correição,    não   podendo  exceder  a 

»  impozição  de  multa,  ou  coima,  mais,   ou  menos  severa, 

j>  he  írcia  débil  para  conter  tantos    airuinadorcs ,    como  o 

»  summario  mostra  ;  pretizamente  se  deve  recorrer  ao  meio 

»  cHicaz  e   pozitivo  ,  que  pela    sanção  contenha  esses   ini» 

)»  migos  doestado.  O  mesmo  summario,  e  a  própria  inspec- 

»  ção   e  exame ,   provão  qual  seja  a  incomprehensivel  bre- 

»  vidade,  com  que  incendiadas  já  muitas  Icgoas  se  aproxi- 

>j  mão  sem  remédio  as  maiores   despezas  dos  trans-purtes  ; 

»  e  até  a  extinção  das   matas  ,    o  que  he  bem   crivei  ,  lo- 

»  go    que  foi    reflectido  ,    que   estes   quazi  bárbaros ,    não 

j>  costumão   no    mesmo    terreno    repetir  a  cultura  ,    e  pas- 

>»  são  adiante  com  incrivel  rapidez,  fazendo  novos  roçados, 

>»  por  supporem   nestes  mais  fertilidade  ,   e   nutrindo  assim 

»  a  iguaria,   com   que   adubados,  e  surribados  por  cultura 

j>  hábil ,  os  deixados  terrenos  ,  podcrião  sem  duvida  algu- 

»  ma  dar  a  vantajoza  producção ,  relativa  ao  consummo  dos 

j>  habitantes  ;    os  estragos    que  tem   cauzado  os  intitulados 

>»  roceiros  de  Nazareth  tem  sido  tão  graves ,  que  extenden- 

»  do-sc  a    menos    de  seis  annos,    pelo  espaço  de  mais  de 

j>  doze   legu-is  ,  se  achão  actualmente  occupando  as  cabe- 

«  ceiras  do  rio  de  Jiquiriça' ,    onde    desprezando    continuas 

»  advertências,  e  até  as  notificações  judiciaes,  tem  reduzido 

»  a  cinzas ,  maras   preciozas ,   e  tão   antigas  como  o  mun- 

>»  do,  fazendo  huma  perda,  qual  não   ha  calculo  que  pos- 

»  sa  computar.    Esta    mata    de  Jiquiriça,   a  mais    próxima 

»  da  Bahia  ,  foi    hum   rico  depozito  de  onde  se  extrahirão 

»  as  melhores  peças,    seja    para  o  reparo,  e  concerto  das 

»>  náos  de  guerra ,  seja  para  a  construcção  dos  navios  par- 

>»  ticulares,  que  se  tem  construido  nos  estaleiros  desta  ci- 

»>  dade  ,  nestes  últimos  annos ,  ella  he  a  única  mata  de  on- 

>i  de   se  extrahem  os    importantes  pranchões  ,    e  taboados 

»  de  vinhatico ,  os  melhores  pela  sua  qualidade ,  e  os  mais 

»  commodos    pela  conveniência  da  descida  do   rio  ,    todas 

j>  estas  riquezas    desprezadas    por  estes   homens  rústicos  e 

»  ambiciozos ,    estão  próximas    a  extinguir-se ,   se  de  todo 

não 


174  Memorias  da  Academia  Real 

>»  nao  forem  detidos  estes  incendiários  ,  e  se  por  outras 
»  conveniências  não  forem  as  matas  dcfczas  vcdadns,  e 
»  guardadas  com  o  mesmo  ,  ou  maior  cuidado  ,  com  que 
»  pelo  regimento  do  Monteiro  mor  se  mandarão  acautc- 
»  lar  até  as  matas  dos  particulares,  que  pela  proximida- 
»  de  dos  rios  se  fazião  as  suas  madeiras  convenientes  para 
>»  as  armadas  Rcaes.  Este  o  único  ponto  de  vista  o  mais 
»  importante  da  reprezcntaçao  ,  que  tenho  a  honra  de  pôr 
>'  na  prezença  de  Vossa  Mngesrade,  consiste  em  se  guarda- 
j>  reni ,  estenderem,  e  demarcarem  as  matas  virgens,  que 
»»  ainda  resta )  livres  do  ferro  e  fogo  dos  roceiros,  ficando 
>'  estes  homens  obrigados  a  fazerem  as  suas  plantações  nas 
j>  immensas  matas  já  approveitadas ,  ou  nas  vulgarmente 
»  chamadas  capoeiras  ;  fazcndo-se  das  matas  Reacs  ,  tom- 
"  bo  ,  com  as  mesmas  clare/as  ,  confrontações  ,  e  divizões, 
j>  que  se  observao  no  referido  regimento  do  Monteiro 
j>  mor  do  Reino ,  e  dando-se  todas  as  mais  providencias  , 
«  que  Vossa  Magestade  for  servida.  »> 

§     i8. 

Por  oflicio  de  lo  de  Julho  de  1784  rogou  aquelle 
tão  hábil  magistrado  ao  excellentissimo  D.  Rodrigo  Jozé 
de  Menezes ,  governador  ,  que  se  dignasse  levar  á  Real 
prezença  tão  justa  reprezcntaçao,  e  que  entre  tanto  desse 
aquellas  providencias  ,  que  julgasse  necessárias  para  a  con- 
servação das  matas,  e  para  serem  despejados  os  roceiros, 
que  por  authoridade  própria  se  situarão  no  centro  delias , 
sem  o  titulo  de  sesmarias,  e  sem  o  reconhecimento  do  supe- 
rior dominio,  e  que  as  ordens  que  fosse  servido  expedir  se 
participassem  ao  corregedor  da  Bahia ,  paraque  de  sua  parte 
£s  fizesse  observar  na  camará  de  Jaguaripe ;  a  cujo  districto 
percencião  as  matas  das  vertentes  do  Jiquiriçá  devastadas 
pelos  roceiros  da  povoação  de  Nazareth. 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  175- 

§     i9- 

Prcstando-se  o  governador  favoralmente  a'qucllas  rcpre- 
zentações  ,  cxpedio  a  seguinte  portaria  que  está  copiada 
no  livro  chamado  i.°  da  inspecção  dos  cortes  de  madeira  a 
f".  76. 

>>  Porquanto  não  sendo  bastantes  as  providencias, 
>»  que  Sua  Magcstadc  tem  dado  para  evitar  os  estragos  que 
5>  os  roceiros  ta/.em  nas  matas  desta  Ci^pitania  ,  me  c<  nsta 
"  que  os  de  Na/areth  ,  e  Jiquiriçá  do  termo  da  villa  de 
j'  Jaguaripe  ,  continuão  a  destruir  estas  matas  tão  preciozas 
»  pelas  madeiras  que  em  si  tem  ,  e  utillissimas  ámeitra  Se- 
>»  nhora  ,  na  cxtraçáo  delias  para  fabrico,  e  apresto  prcmpto 
»  das  na'os  e  fraguas  da  Real  armada,  por  cauza  da  pro- 
>»  ximidadc  cm  que  ficão  ao  poito  do  mar;  e  attcndtndo  a 
»»  este  prcjuizo  ,  e  a  falta  que  com  semelhantes  ubtrturas  de 
tf  roçados  experimentarão  ainda  os  povos  desta  cidade  , 
>»  com  as  madeiras,  e  taboados ,  para  edificarem,  e  concer- 
>'  tarem  as  suas  propriedades  :  ordeno  ao  Desembargador 
»  Francisco  Nunes  da  Costa  ,  Ouvidor  da  commarca  dos 
>»  Ilhéos  ,  que  se  acha  encarregado  por  ordem  de  Sua  Ma- 
»  gestadc  ,  e  instruções  minhas,  da  inspeção  dos  Reaes 
>»  cortes  de  madeiras  ,  que  passe  aos  districros  menciona- 
>»  dos  de  Nazareth ,  e  Jiquiriçá  ,  e  mandando  passar  huma 
j>  linha  imaginaria  nas  duas  matas  pela  latitude  delias  ao 
j>  porto  do  mar,  em  que  se  facilite  a  extracção  e  conducção 
>»  das  madeiras,  prohiba  aos  roceiros,  ou  outras  quaesquer 
»  pessoas  ,  o  corte  ,  e  abertura  de  roçados ,  com  pena  de 
"  serem  autuados  ,  immediatamente  ,  que  me  constar  passão 
>»  dos  limites  prohibidos,  castigados  rigorozamente  a  meu 
j'  arbítrio,  c  paraque  me  conste  da  notificação,  que  se  H- 
>»  zcr  aos  mencionados  roceiros ,  e  das  distancias  que  se 
»»  linitára  ,  e  se  pohibíta,  me  remetard  o  mesmo  Desembar- 
>»  gndor  Francisco  Nunes  da  Costa  huma  certidão  authen- 
"  tica ,   deixando    as  próprias    em   sua  mão   para  proceder 

»»  o 


jy6  M  EMoniAS  DA  Academia  Real 

j>  o  auto  ,  e  a  prizao  nas  pessoas  que  transgredirem  es*^ 
»  minha  ordem  ,  por  que  lhe  confiro  a  comissão  de  assi'Ti 
»  o  praticar  ,  postoque  seja  fora  da  sua  commarca  ,  pc- 
>»  la  inspecção  de  que  se  acha  encarregado,  remettendo-me 
»  logo  os  prezos  ,  para  contra  ellcs  mandar  proceder,  co- 
»>  mo  inimigos  da  utilidade  pública  :  esta  mesma  providcn- 
t(  cia  dará  o  dito  Desembargador  Francisco  Nunes  da  Cos- 
«  ta  na  sua  própria  commarca,  de  que  igualmente  manda- 
}>  rá  certidão  a  esta  Secretaria  de  Estado  ,  pela  qual  man- 
»  do  se  expessão  as  ordens  necessárias  para  ficar  scientc 
»»  do  determinado  ao  Desembargador  ouvidor  desta  commar- 
>»  ca  ,  á  commarca  daquclia  villa  de  Jaguaripe  ,  capitão 
j>  mor  das  ordenanças  delia,  e  mais  officijcs  ,  commandan- 
>»  tes  dos  districtos  de  Nazarcth  ,  e  Jiquiriçá  ,  para  pela 
»  parte,  que  lhes  toca  ,  darem  inteiro  cumprimento  a  es- 
j>  ta  minha  ordem,  auxiliarem,  c  promptamente  executarem 
5>  as  que  a  respeito  deste  particular  lhes  enviar  o  sobredi- 
»>  to  Desembargador  Francisco  Nunes  da  Costa  ,  e  mando , 
>»  que  esta  se  registe  nos  livros  da  Secretaria  de  Estado  , 
>j  e  nos  da  camará  de  Jaguaripe  ,  e  mais  partes  onde  con- 
>»  vier,  paraque  a  todo  o  tempo  conste.  =  Bahia  28  de 
>»  Setembro  de  1784.  =  Rubrica  do  Govei^nador.  =  Dom 
»>  Rodrigo  Jozé  de  Menezes,  »» 


20. 


Não  era  possível  executarem-se  com  formalidade  le- 
gal aquellas  ordens  ,  scmque  se  conciliasse  a  lavoura  da 
mandioca  com  a  conservação  das  matas ,  por  se  não  prati- 
car aquellas  sem  as  derrubadas  ,  assolamcnto ,  e  destruição 
dos  bosques  :  adubar  as  terras  ,  e  preparalas  como  em  Por- 
tugal ,  e  cm  todas  as  partes  civilizadas  he  costume  ,  era  impos- 
sível então  praticar-se  nesta  capitania  ,  que  não  tinha  ga- 
dos para  os  estrumes  ,  nem  animaes  que  a  prestasem  ;  de- 
homens  grosseiros  ,  cuja  sustentação  do  rico  he  o  peixe , 
e  marisco ,  e  na  falta  a  carne  do  sertão ,  se  não  podia  es- 

pe- 


DAS  SciENCiAS  DE  Lisboa.  177 

perar  que  tivessem  industria,  que  só  as  artes  e  civilização 
subminiátra  para  preparar  estéreis  terrenos,  de  modo  que 
ficassem  .iprospara  asdiffcrentes  culturas,  que  os  prcductos 
levados  á  terra  exigem  :  as  terras  de  capoeiras  não  submi- 
nistrão  a  raiz  de  mandioca  com  satisfiição  dos  pcnozos  tra- 
balhas do  lavrador,  alem  de  serem  enxames  {a)  de  for- 
migas, que  elles  jamais  tiráo ,  e  que  no  discurso  dos 
tempos  ficão  pela  immensa  propagação  delias  incapazes  de 
cultura,  vistoque  a  preguiça,  c  indolência  lhes  tira  as 
forças  para  atacar  as  formigas  ,  e  destrui-las. 

§     21. 

Por  principios  oppostos  ao  augmento  da  lavoira  de 
mnndióca,  era  encaminhada  outra  rcprczent.  çao  ao  mesmo 
Excellcntissimo  D,  Rodrjgo  Jozé  de  Menezes  cm  15  de 
Setembro  de  178c  ,  expondo-se  a  necessidade  de  hum  re- 
gimento para  guardar  as  mat-s ,  e  conserva-las ;  poisque 
da  nul  entendida  liberdade,  que  tinhão  os  habitantes  de 
entrar  ncllas  ,  a  seu  arbitrio,  sem  escolha,  nem  cbserv. çao, 
nascia  a  scnsivel  falta  das  madeiras  ,  que  cada  dia  se  ex- 
perimentava ;  poisque  cada  hum  cortava  poronde  que- 
ria,  desperdiç3ndo-se  infinitos  páos  em  navios  mercantis, 
que  devião  ser  rczervados  para  se  empregarem  em  peças 
da  primeira  ordem  e  grandtza ,  e  que  entre  tanto  que  Sua 
Magestade  não  rezolvia  a  conta ,  que  sobre  este  objecto 
tinha  subido  á  Real  prezença  ,  julgava  conveniente  ,  que 
se  nomeasse  a  Manoel  Gonsulves  Tarrozo  por  mestre  e 
guarda  das  matas  Reaes  desde  Mapendipé  ,  até  as  matas  de 
Tomo  IX.  z  San- 

ca) iNáo  III'  tanto  peJo  maior  rendimento,  que  conimuniniente  en- 
contrão os  lavradores  na  plantação  da  mandioca  na  inata  virgem  ,  que 
laz  aquella  preferencia  á  plantação  das  capoeiras,  como  por  evitar 
o  trabalho  da  capinação,  que  nas  capoeiras  he  três  vezes  mais  doque 
succedc  nas  matas  virgens,  onde  apenas  hunia  he  sufficiente  ,  e  na  re- 
planta desta  se  topa  os  mesmos  eiuames  de  formigas,  Esta  uota  he  do 
author. 


178  Memorias  DA  Academia  Real 

Santarém,  e  Igrapiuma  ,  com  a  providencia  de  se  não  po- 
derem extrahir  madeiras  para  navios  particulares  ,  scmquc 
precedesse  despacho ,  e  licença  de  sua  Excellencia ,  e  cum- 
prida na  inspecção  das  madeiras  ,  c  por  ella  se  assignasse 
o  destricto,  e  mata,  em  que  se  deviao  abrir  os  cortes;  e 
que  as  peças  principaes  ,  como  talões  de  quilha  ,  couce  , 
rodas ,  mastreações ,  e  semelhantes  ,  se  não  podessem  cortar  , 
semque  precedesse  exame,  e  escolha  do  referido  mestre 
c  guarda  das  matas ;  vivamente  reprez.entando  áquelle 
Ex '""  governador,  que  só  por  tal  meio  se  poderia  evitar 
o  fdtal  e  ruinozi)  estrago  ,  que  se  experimentava ,  e  que 
acrescentasse  a  estas  providencias  as  outras  já  dirigidas  pa- 
ra   impedir  os  roçados. 


22. 


Conveio  o  Ex."""  governador  na  sua  portaria  {d)  de  3  de 
Outubro  de  lySy  em  tudo  que  lhe  propo/,  aqucUe  ministro, 
c  mandou  expedir  as  competentes  ordens  ,  para  ter  cm  a 
mais  littcral  observância.  Vio-se  porém  ,  que  na  pratica  se 
não  podião  observar  as  ordens  tendentes  á  prohibiçao  dos 
roçados,  pelo  grande  clamor  dos  povos,  que  viviao  da 
lavoira,  e  pela  sensível  falta  ,  que  entrou  a  sentir-se  do  pão 
da  mandioca  no  celleiro  público.  Não  se  podia  lançar  a 
linha  imaginaria  prescripta  pelo  governador  pela  confuzao 
dos  domínios,  e  posse,  em  que  estavao  os  povos,  em  vir- 
tude dos  titulos  do  dominio  de  direito  natural ,  provenien- 
te da  occupação  e  cultura  ,  que  carecia  desenvolver-se,  e 
nssiirnalar-se  prudentemente  ,  e  com  conhecimento  de  cau- 
'/a.  Entretanto  o  governador  em  carta  de  17  de  Setembro 
de  1785'  cscreveo  ao  mesmo  ouvidor,  paraque  facilitasse 
a  cultura  da  mandioca  pela  falta  daquclle  mantimento  da 
primeira  necessidade  ,  que  se  experimentava ,  recommendan- 

do- 

(1)     Acha-se  a  copia   desta   portaria  uo  dito  livro   1.°  da  inspecção 
dus  cortes  de  maJeiías  f.7U. 


I 


DAS  SciENCiAs  DE  Lisboa.  i-t/^ 

dolhc  ,  que  nas  ordens,  que  desse  para  a  cocservrçuo  díir; 
matas,  declarasse  ,  que  a  prohlbição  dos  roçados  semente 
se  entendia  nas  matas  próximas  ao  mar,  e  rios,  cm  que 
se  podcsse  conduzir  as  madeiras,  e  que  lora  daqucllas  cm 
todas  as  mais  se  praticasse  a  cultura  da  mandioca. 

§     23. 

Em  virtude  daquella  ordem ,  foi  forçado  o  ouvidor 
da  commarca  contradictoriamente  aos  princípios  da  conser- 
vação das  matas  permittir  as  derrubadas  para  a  plantação 
da  mandioca  fora  dos  lugares  á  borda  d'agua  ,  dirigindo 
em  23  de  Setembro  de  1785-  suas  ordens  aos  officiacs  da 
camará  ,  em  que  lhes  declarou  ,  que  cmquanto  se  não  pratica- 
va huma  demarcação,  que  acabasse  de  regular,  e  demons- 
trar quacs  cráo  as  matas,  que  deviao  ficar  reservadas  para 
os  Rcaes  cortes,  se  podesse  continuar  na  cultura  da  man- 
dioca ,  comtantoque  se  desviem  os  lavradores  das  vizinhan- 
ças do  mar ,  e  dos  rios ,  ficando  livres  todas  as  mais  dis- 
tantes dos  portos,  para  roçarem  e  plantarem. 

§      24- 

Faleceu  pouco  depois  aquelle  ministro ;  não  se  pro- 
cedeu até  ao  prczente  na  demarcação  do  domínio  dos  par- 
ticulares, ou  do  público;  destruirão-se ,  e  assolla'rão-se  to- 
das as  matas  aborda  d' agua,  com  irreparável  perda;  pois- 
que  as  matas  que  se  propagão ,  e  crescem  nas  capoeiras 
não  produzem  arvores  suflícientes  para  o  serviço  dos  navios 
de  guerra.  A  experiência  diurna  confirma  serem  para  sempre 
perdidos  todos  os  bosques  ,  onde  entrou  o  assolador  ferro 
dos  mandioqueiros  ,  e  o  fogo,  aindaque  tenha  passado  hum 
século  d'annos  sobre  aquelles  horriveis  incêndios.  Verda- 
de incontestável  á  vista  das  capoeiras  grossas  desampara- 
das da  agricultura  dos  indios ,  na  descoberta  da  colónia, 
(.ndc   hum   só  páo  se  não  encontra  que  tenha  grossura,   e 

z  ii  com- 


i8o  Memorias  DA  Academia  Real 

comprimento,  que  a  marinha  possa  utilizar;  porquanto  as 
uionstruozas  arvores  não  tomão  corpo  e  bellc/a  nos  luga- 
res descobertos ,  e  somente  nas  sombrias  matas  procuião 
disputar  ,  qual  primeira  se  apprezentará  ao  grande  astro  , 
que  as  aviventa  ,  e  lhes  dá  tão  soberana  grandeza. 

O  Excellcntissinio  D.  Fernando  Jozé  de  Portugal , 
proscguio  com  a  mesma  contradição  do  seu  Excellcntissi- 
mo  antecessor,  persuadido  da  destruição  das  matas,  que 
crescia  na  razão  do  maior  augmcnto  da  cultura  da  mandio- 
ca ,  mandou  fazer  as  maiores  indagações ,  que  hum  t  d 
objecto  exigia ,  e  indignado  da  destruição  daqucUas  adja- 
centes aos  rios  de  Jiquiriçá  ,  ao  de  Donas,  e  suas  cabe- 
ceiras ,  mandou  que  fossem  despejados  os  roceiros  ,  c  que 
só  approveitassem  as  plantações  feitas  ,  e  se  consignasse^ 
para  o  despejo  ,  termo  racionavel  ,  e  os  que  não  obcdctesseni 
fossem  prczos,  e  summariados  ;  ficiíndo  porem  conscrva-\ 
dos  todos  quantos  estivessem  situados  em  lugares  distantes 
dos  sobreditos  rios  para  fazerem  as  recommendadas  plantações 
da  mandioca. 

§     26. 

Aquellas  ordens  forão  somente  dirigidas ,  mas  não 
executadas  ;  e  não  era  possivel  a  execução ,  não  se  assi- 
gnalando  o  limite  certo  ,  que  devia  ser  intacto  ao  ferro  , 
e  fogo.  Os  fabricantes  de  madeiras ,  que  nellas  plau/ivel- 
mente  se  internavão  ,  reprezentavão  ,  que  não  podiao  fa- 
zer os  cortes,  semque  lhes  pcrmittisse  as  derrubadas,  pa- 
ra terem  do  que  se  sustentar  coma  plantação  da  mandioca: 
aquellas  razões  apparentemente  convencião  aquelle  Excel- 
lentissimo  governador ,  elles  ganhavão  e  proseguirão  nas 
su.is  derrubadas  ,  com  irreparável  perda  do  património  Real , 
assim  na   destruição,  dos  preciozos    putunuijús,  vinhatico , 

páo 


dasSgienciasdeLisboa.  1.8  r 

fáo  brazil  ,  que  se  qucimavao ,  como  por  quç  faziao  ccíi- 
tcs  ,  que  a  sua  desmarcada  ,  e  mal  calculada  smbiçã.o  não 
podia  approvcitar ;  poisque  sendo  aqucllas  mauis  realen- 
gas ,  cada  hum  entrava  e  derrubava  cem ,  duzentos ,  c 
mais  páos,  conforme  podiâo,  paraque  outrog  se  não  ap- 
proveitasscm  delles  ,  e  não  os  podendo  falquejar ,  c  abrir , 
a  maior  parte  ficáriío  podres,  e  perdidos  nas  matas.  Já  ho- 
je são  raras  aquellas  arvores,  e  ficão  em  distancia  tão  con- 
siderável ,  que  em  poucos  annos  custará  á  Real  fazenda 
por  huma  só  falca  ,  ou  prancha  de  vinhatico ,  ou  putumu- 
jú,  aquelle  mesmo  preço,  pelo  qual  ainda  hoje  se  obtém 
por  huma  dúzia. 


§1       27. 

Estando-sc  na  incerteza  dos  meios  de  conservar  as 
matas,  quercndo-se  ao  mesmo  tempo,  que  nellas  se  fizes- 
sem derrubadas ,  e  queimadas  para  a  plantação  da  mandio- 
ca ,  chegou  ao  governador  o  Excellentissimo  D.  Fernando 
Jozé  de  Portugal  a  rezolução  das  suas  contas,  tendentes  á 
conservação  das  matas  ,  e  que  fez  o  objecto  da  carta  regia 
de  13  de  Março  de  1797,  para  se  organizar  hum  plano 
cm  sessões ,  que  se  devião  celebrar ,  e  de  que  o  Excellen- 
tissimo governador  seria  oprezidente,  e  adjuntos  dclle  o 
intendente  da  marinha  Jozé  Francisco  de  Perné  ,  o  ouvidor, 
que  foi  das  Alagoas  Jozé  de  Mendoça  de  Matos  Morei- 
ra,  e  o  ouvidor ,  que  se  havia  de  nomear  para  a  comniar- 
ca  dos  Ilhéos ,  dizendo-se  na  dita  carta  regia,  que  o  di- 
to Excellentissimo  governador  não  poderia  pretender  algu- 
ma mercê  ainda  em  remuneração  de  serviços  ,  sem  mostrar  a 
execução,  que  tiolia  dado  aos  objectos  importantes  da  dita 
carta    regia. 

§     28. 

Nomeou  interinamente  o  governador  para   administra- 
do- 


iSx  Memorias  da  Academia  Real 

dores  dos  cortes  de  Cairú  ao  capitão  mor  João  BnptlstJ  Tei- 
xeira, ao  sargento  mor  Luiz  Bernardo  de  Souza  ,  eaocapi- 
pitáo  Gabriel  Pinto   de  Pinho  ,  a  quem  deo  as  mais  apertadas 
ordens  ,  para  se  não  consentirem  os  roçados  nas  maias  gros- 
sas ,  onde   erão  os  cortes  de  madeiras  ,  nem  cstabeleccr-se 
algum  lavrador  nas  cabeceiras  daquellas  matas.   As  camarás 
fizcrão  reprezentaçóes  ,  que  não  podião  conservar-sc  as  povoa- 
ções ,    sem  os  roçado  para  as  suas  plantações  ,   e  do  contrario 
scriáo  forçados  a  dezcrtarem  as  viUas  para  não  morrerem  de 
fome  ,  e  não  se  dando  algum  remédio  a  tão  grave  mal ;  e  fi- 
zeráo  tanto  pezo  as  razões  offerecidas  pelas  camarás  ,  que  o 
Excellentissimo  governador  por  portaria  de  23  de  Setembro 
de   1797  ampliou  as  ordens,   que  tinha  dirigido  para  a  con- 
servação das  matas,  declarando,  que  aquellas  ,  que   mandara 
executar    tendentes    áquelle    fim  ,    em   datas  de    3   e   7   de 
Junho  do  mesmo  anno ,  prohibindo  que  os  lavradores   cor- 
tassem,   roçissem ,    ou  queimassem  as  matas,    só  compre- 
hendia    os  terrenos,    em  que  havia   madeiras  de  construc- 
ção  ,  ou  páos  Rcaes  próprios  para  nãos  ,  fragatas  ,  e  mais 
embarcações     do    Soberano  ,      e    não    aquellas     que    erao 
assignaladas   para    as  lavouras ;    poisque   nestas  devião  pra- 
ticar   aquellas    derrubadas  ,    não  só  em   beneficio  commum 
dos    lavradores,    e  mais  habitantes;    mas  também  dos   tra- 
balhadores ,    occupados  nos  mesmos  cortes  ;  por  cujo  mo- 
tivo mandou ,    que  os  referidos  administradores  ,    destinas- 
sem aos  lavradores    limites  certos  ,    em  que  podessem  con- 
tinuar as    suas  plantações ,    emquanto    não  dava  outra  pro- 
videncia,   precedendo    huma  vestoría  pelos  mestres,  e  ad- 
ministradores   dos  referidos  cortes,    a  fim  de   conhecer,  se 
os  lugares,    que  se  pretendia  abrir  para  a  lavoura  ,  tinhão 
ou   não    madeiras    Reaes;   não    se  consentindo   jamais  que 
na    altura  dos  cortes  ,  ou  nas  cabeceiras  se   estabelecessem 
lavradores  ,    ainda  com  o  titulo  de  sesmarias  ,  pelo  estrago 
ouc  podião  cauzar  nas  matas,  e  finalmente ,  scriao  responsá- 
veis   os  referidos   administradores  pelo  excesso  que  houves- 
se na  execução  das  ordens  mencionadas. 

§ 


dasScienciasdeLisboa,  i8;> 

§     29. 

Como  o  dominio  dos  bosques  se  achava  por  cccupa- 
çáo  geral ,  nos  diíF^rcntes  particulares  ,  promiscuamciite  se 
permitdrão  as  lavouras  nos  mesmos  lugares  dos  cortes  ,  so- 
ccgando  os  administradores  ao  Exccllcntissimo  governador, 
(]uc  as  plantações  e  derrubadas  se  fazião  onde  já  não  ha- 
via madeiras  ,  por  ter  passado  o  corte ,  ou  mais  para  ci- 
ma ,  ou  para  algum  dos  lados.  Era  incontestavelmente  cer- 
to,  que  desde  Jiquiriçá  até  Pinaré  ,  abundao  as  matas  de 
todo  o  género  de  madeiras  de  construcção ,  e  marchetaria , 
c  edificação  dos  prédios  urbanos  ,  existentes  não  amontua- 
damente  neste  ,  ou  aquclle  lugar ,  mas  sim  entre  huma 
infinidade  de  arvores,  cujo  uzo  ainda  se  desconhece  no 
comercio,  as  quacs  crescem  até  o  seu  máximo  ponto,  e 
adoecem  e  morrem,  e  nascem  ao  mesmo  tempo  muitas 
outrjs  ,  para  substituir  a  natureza  a  falta  daquellas ,  que 
perecerão,  ou  que  se  cortarão  j  portanto  não  significa  na- 
da passar  o  corte  por  alguma  parte  da  mata  ,  para  se  jul- 
gar despida  das  arvores,  cujo  corte  he  proveitoso  á  ma- 
rinha ;  poisque  durante  o  serviço  do  desembargador  Fran- 
cisco Nunes  da  Costa,  não  se  encontrando  na  rica  mata 
de  Mapendipe  arvores  ,  de  cujos  troncos  se  podesse  tirar  as 
peças  ,  que  exigião  os  constructores  para  a  fragata  Carlota , 
depois  de  doze  annos  forão  encontradas  naquelle  mesmo 
lugar  ,  que  servirão  para  a  náo  de  74  Príncipe  do  Brazil  j 
confirmando  a  experiência ,  que  toda  a  mata  intacta  do 
ferro  e  fogo  se  conserva  em  toda  a  sua  espontânea  repro- 
dução das  arvores  próprias  do  seu  local ,  e  que  na  ma- 
dureza dos  fructos  a  natureza  se  occupa  de  perpetuar  a  sua 
geração ,  emquanto  outras  sobem  ao  seu  máximo  cresci- 
mento ,  para  pruduzir  hum  corte  vantajozo ;  assimcomo 
largando-lhe  o  fogo  ficou  perdida  ,  e  incapaz  de  produzir 
arvores ,  cujo  c(Srte  possa  nos  futuros  tempos  ser  profícuo 
ás  Rcaes  construcções. 


184  Memorias  da  Academia  Re  Ar. 

§     30. 

Formalizou-se  com  a  minha  chegada  á  Bahia  hum 
plano  ,  que  teve  provizional  approvaçao ,  e  do  qual  se  da- 
rá a  historia ,  e  inutilidade  quando  tratnr  dos  cortes  de 
madeiras  do  Caiiú.  Os  povos  de  Camamú  ficarão  cm  toda 
a  sua  liberdade  para  as  plantações  da  mandioca,  e  os 
principaes  do  paiz  constituirão  os  seus  estabelecimentos  para 
o  Serenhacm  nas  terras  dos  indios  de  Santarém ,  e  para  o 
braço  do  Acaraiii ,  e  Caxoeira  da  villa  ,  exportando  para 
a  cidade  a  farinha  de  mandioca  ,  e  também  para  Pernam- 
buco, durante  a  fome,  a  que  se  reduzirão  pela  falta  da- 
quelle  essencial  género  de  sustentação  dos  povos  :  aquel- 
le  novo  plano,  ftito  para  a  conservação  djs  matas,  os  dei- 
xou na  posse  de  fazer  as  suas  derrubadas  pira  as  planta- 
ções da  mandioca  ,  por  não  serem  aquelles  terrenos  com- 
prehen  lidos  na  demarcação  dos  cortes,  á  excepção  de  hu- 
nia  legoa  de  terras,  entre  o  Serenhaem  ,  eo  Pinaré. 

§     31- 

A  famoza  barra  do  Camamií ,  abre  o  caminho  da  in- 
dustria áquelle  povo;  e,  se  elle  tivesse  chegado  a  maior 
gráo  de  civilização,  tiraria  sem  duvida  grande  vantagem 
de  huma  barra  susceptível  de  receber  em  si  os  maiores  va- 
zos,  e  para  maior  inteligência,  descreverei  primeiro  a  ou- 
tra pequena  barra  do  Serenhaem,  com  a  costa,  e  rios, 
que  seguem,  e  tomão  diversas  direcções,  a  formar  o  mais 
bello,  e  útil  recôncavo.  Quando  os  ventos  não  pcrmit- 
t.m  t'imjr  a  barra  grande,  as  embarcações  entrando  então 
ro  presidio  do  Morro  ,  buscão  o  interior  dos  rios ,  que 
desaguão  na  barra  dos  Carvalhos,  que  fica  em  13°  45'  com 
fundo  de  13  braças,  para  buscarem,  ou  a  barra  grande, 
ou  o  Serenhaem  ,  e  poderem  ancorar  na  villa  :  o  canal  da 
barra   dos  Carvalhos  he  estreito  3    e  por  isso  carece  de  se 

en- 


DAS    SCIENCIAS    DE    LiSBOA.  [í!^ 

entrar  com  pratico  delia,  por  ser  acompnnIuHÍi  t^c  pc- 
o.ras  ,  que  se  dcixao  bem  perceber  ao  norte  ,  pela  rrjnJo 
rebentação,  que  faz,  e  acompanha  esse  recife  toda  a  en- 
seada da  costa  até  á  ponta  chamada  dns  Ciuvalhos  ,  c  ptla 
parte  do  sul  hum  baixo  de  arêa  ,  formado  da  ponta  da  bar- 
ra ,  o  qual  continua  até  o  Cordão ,  onde  se  forma  a  barra ; 
c  desde  então  se  navega  por  liuma  enseada  larga  sem  risco 
dando-se  apenas  resguardo  ás  pedras ,  que  estão  no  meio 
da  enseada  ,  defronte  da  embocadura  do  rio  ,  que  de  Pi.ra- 
tegi  tem  o  nome  ,  e  desagua  na  costa  ao  sul  da  mesma  bar- 
ra. 

§     3^' 

Aqucllas  pedras,  que  do  rio  tomarão  o  nome  ,  são  for- 
madas por  vermes,  que  lhes  dão  diíFerentes  figuras  de  ar- 
voredos, formando  nas  suas  ramificações  grandes  cabeços  , 
que  se  unem  ao  tronco  principal  ,  c  vem  de  hum  grande 
fundo  ,  e  sáo  tão  brandas  que  se  quebrão.com  toda  a  faci- 
lidade pelas  embarcações  ,  quando  por  descuido  nellas  to- 
cão  de  maré  vazia,  das  quacs  queimadas  se  extrahe  muito 
boa  cal.  Quando  o  mnr  está  embravecido  ,  de  longe  se 
deixão  ver  pela  sua  rebentação  :  entre  aquellns  pedras  ,  c  a 
costa  do  Parategí  ha  porém  hum  canal ,  pelo  qual  borde- 
jão  livremente  as  embarcações.  Passadas  aquellas  pedras, 
ou  pelo  canal  de  terra ,  ao  largo  se  demanda  a  barra  do 
Sercnhaen  que  na  lingoa  geral  dos  indios,  significa  couza 
que  está  no  prato  ,  e  sem  perigo  se  navega  até  encontrar 
os  baixos  chamados  do  Gordão,  que  principião  da  costa  da 
parte  de  oeste,  para  este  até  a'  ilha  do  Guiepe  ,  que  na 
lingoa  geral  exprime   enseada  que  faz  a  ponta  de  terra. 

§     33- 

Ao  pé  do  Guiepe  se  topa  huma  pedra  ,    onde    termi- 
nando o  Cordão,  faz  hum  pequeno  canal,  pelo  qual  passâo 
Toma  IX.  Aa  as 


i86  Memorias  da  Academia  Real 

as  embarcações  na  maré  cheia.  Seguem  logo  pela  ponta  de 
este  os  baixos  encostados  á  ilha ,  que  são  de  pedra  ,  e  se 
navega  para  dentro,  pelo  canal  do  rio  Scvtnhacn  ,  cheio 
de  baixos  pela  parte  de  oeste ,  onde  fieão  os  medonhos  bai- 
xos ,  que  de  Apaga  fogo  se  intitulão  ,  e  peia  parte  do  sul 
os  escaracéos ,  e  ondas  dos  baixos  conhecidos  por  Saltão  e 
Coroei  grande  com  canal  pelo  meio  ^  que  não  dá  passagem 
ás  embarcações  maiores  ,  senão  nas  marés  grandes  e  es- 
tando cheia.  Fieão  então  ao  norte  da  Coroa  grande  o  rio 
de  Serenhacn  bastantemente  fundo  na  sua  embocadura  ,  e 
dá  o  nome  a  esta  barra  ,  tendo  de  fundo  esta  doze  palmos 
no  prcimar.  Na  costeira  que  dos  Tubarões  se  appcllida  ,  se 
encontra  hum  baixo  de  pedra  chamado  Sororocussú  que  na 
lingoa  dos  indios  significa  maré  que  bate  na  praia  e  ronca  ^ 
e  a  costa  proscgue  até  á  ponta  que  de  S.  Miguel  he  invo- 
cada, da  qual  hum  banco  de  arêa  procura  a  ilha  do  Guiepe: 
pasmados  aquelles  bancos  ,  dando-se  resgujrdo  á  pedra  do 
Sororocussú ,  e  a  outra  Pedra  furada  que  fica  ao  sul,  toda 
a  mais  costa  he  limpa  e  funda  até  dobrar  a  ponta  da 
ilha  ,  onde  vem  desembocar  o  rio  Igrapiuna  com  bom  fun- 
du  y  ficando  fronteira   a  ilha  de  Camamú, 

§     34. 

Estando-se  éste-oestc  com  Taipumerim  ao  mar  das 
Pontas,  distancia  de  -^  de  Icgoa  se  topa  o  Guiepe  a  nor- 
Tiorocste,  ea  costa  corre  para  a  barra  grande  a  noroeste: 
cstando-se  no  mar  largo  ,  e  abra  aberta  com  a  barra  se  na- 
vega ao  longo  da  parte  do  sul  da  costa  ,  desviando-se  uni- 
camente do  que  apparece  á  vista  ;  e  logoquc  se  for  do- 
brando a  ponta  do  Muta  ,  se  deve  dar  resguardo  a  pedra 
Sioba  que  fica  encostada  á  ponta  ,  junto  de  terra.  A  barra 
grande  e-^^tá  a  14°  ao  sul,  com  fundo  de  18.  braças,  ten- 
do capacidade  de  ancorarem  nclla  as  embarcações  de  alto 
bordo;  he  abrigada  dos  ventos  este,  e  sul  desde  a  ponta 
da   barra  até  o  Campinho ,    e  na  distancia  de  huma  legoa 

po- 


DAS    SCIENCIAS    DE    LiSBOA,  1S7 

podem  estar  fundeadas,  muitas  e  grandes  embarcações  por 
ser  a  costa  limpa  até  o  rolo  da  praia  ,  tendo  apenas  tm 
meia  enseada  ao  pé  de  terra  hum  pequeno  recife  na  boca 
do  rio  Carapiranguí ,  que  tem  o  nome  de  Taipaba  ,  o 
qual  não  embaraça  a  amarração  dos  navios  ,  por  estar  qua» 
zi    no  seco  ,    c  rolo  da  praia. 

§     3f- 

Tem  aquella  enseada  cu  bahia  da  barra  pela  parte 
do  norte  ,  em  distancia  de  j  de  legoa  ,  a  ilha  de  Guicpe  , 
que  forma  os  baixos  do  Saltão  ,  ou  ponta  do  sul  ,  e  a  ilha 
de  Camamú  a  oeste :  cria-se  naquella  ilha  do  Guiepe  bcl- 
las  plantas,  c  algumas  arvores,  de  cujos  préstimos  a 
medicina  ,  e  as  artes  tirarião  muitas  utilidades ,  em  pro- 
veito não  menos  da  humanidade  ,  se  fossem  cxtrahidas  pe- 
la hábil  mão  do  botanista ;  o  milhomens ,  o  alcaçuz ,  o 
salsafraz  ,  o  sipó  de  chumbo,  a  tarrinha  ,  a  butua  ,  batata, 
quina,  ea  ipecacoanha  são  alli  encontradas  sem  trabalho, 
e  muitas  outras.  Tornando  á  descripçao  da  costa  ,  vencida 
a  entrada  da  barra  ,  logo  se  vai  buscar  a  villa  de  Camamú 
por  muito  bom  fundo  ,  navegando  até  á  ponta  da  pedrei- 
ra ,  e  ao  sul  da  Pedra  furada  ,  que  he  huma  ilha  ,  cuja 
entrada  a  natureza  embellezou  com  hum  arco  de  pedia 
e  dentro  contêm  varias  grutas,  onde  os  pescadores  achâo 
refugio  nas  tempestades. 

§     3^- 

Navegando-se  ao  sul ,  se  encontra  outra  pedra ,  que 
de  Cavallo  tem  o  nome  pela  sua  figura  ,  dobrando-se  esta 
pedra  se  costêa  a  ilha,  em  que  podem  fundear  sumacas, 
dcsviando-se  da  ponta ,  que  por  Tupú  he  conhecida ,  con- 
tendo huma  pedra  do  mesmo  nome,  que  forma  canal  para 
pequenas  embarcações,  entre  aquella  ponta  ea  pedra; 
e    os  ique  com  mais  segurança  nayegão  ,    seguem  por  fora 

Aa  ii  da 


i88  Memorias  DA  A  CADEMiA  Real 

da  pedra,  encostados  ao  baixo  da  pedra  do  rio  Jgroptmay 
e  então  se  vem  buscar  a  villa  por  algumas  das  seis  bocas  que 
íem  entrada  no  rio  delia,  as  quaes  sáo  conhecidas  pelo  canal 
de  Pinaré  ,  canal  do  Vinho  ,  canal  da  Estaca  ,  canal  das  Bana- 
nas ,  canal  dos  Braços ,    canal  do  Condurú. 

§      37- 

Entrando-sc  por  qualquer  das  bocas  referidas  ,  logo 
em  pequena  distancia  se  encontra  o  riacho  Mavemo  sem  sa- 
bida, e  pouco  depois  o  canal,  ou  riacho  Jerni,  e  mais 
distante  outro  chamado  laguaripe  ,  e  logo  se  chega  á  pon- 
ta e  ilha  do  Gato,  eo  rio  seguindo  até  á  villa,  prosegue 
logo  para  cima  ,  com  voltas  tortuozas  ,  muda  ahi  o  nome 
para  Acarahi  em  caminho  de  ocstesudoeste ,  ficando  para 
o  sul  em  pouca  distancia  huma  ilha  ,  que  da  Cruz  se  appel- 
lida  ,  que  segye  para  o  rio  chamado  da  Caxocira  da  villa. 
Daquelle  porto  do  Acarahi  se  topa  o  córrego  do  Gravata 
em  distancia  de  hum  quarto  de  iegoa  ,  d'i  nde  principia 
huma  groza  de  mato  grosso,  que  segue  pelo  caminho  do 
Braço  até  o  oiteiro  do  Morro  por  huma  Iegoa  circulada 
de  capoeiras  ,  nao  se  achando  matas  virgens  senão  de- 
pois de  se  vadear  duas  ,  e  mais  legoas. 

'    "'■^'-  §     38. 

Também  se  faz  a  navegação  de  outra  n^aneira  ,  dei- 
xando o  rio  de  Marahú  ,  c  as  ilhas  de  Camímú  se  busca 
o  rio  Araguahi  ao  norte  pela  costeira  chamada  da  Cújahiha 
a  buscar  a  boca  do  rio  Matapéza  que  corre  ao  sul  ,  ficando 
para  o  norte  a  ilha  de  Mangue  conhecida  por  Marangu- 
assíi  ,  por  entre  3  qual  fica  o  canal  do  rio  Matapéza  ,  fi- 
cando defronte  aquclla  outra  ,  que  tem  o  nome  de  Ma- 
Tttnguamjrim  ,  com  hum  baixo  de  aréa  e  pedra  a  oeste, 
a  que  lhe  chunlo  J^nce  grande  .^  desde  então,  navegando- 
Se  pelo  mesmo  canal  ,  se  topa  a  ponta  do  Camarão  em 
camiiihq  do  &\^  <,  com  suas  voltas  ,  fincando  na  boca  do  rio 
;     u  pa- 


TAS  SciENCiAs  DE  Lisboa.  189- 

para  oeste  a  ilha  de  Garças  com  cnseatia  para  oeste, 
tendo  no  meio  do  rio  duas  ilhas  appçllidadas  Ilha  grande 
para  a  parte  de  éi.te  ;  a  navegação  he  então  com  niiiitjs 
voltas  até  a  Caxoeira  com  fundo  até  o  poço  :  aquclle  lugr 
he  povoado  com  muitos  lavradores,  e  as  matas  virgens  fi- 
cão  três  legoas  arredadas  do  pprto  ,  fazendo-se  naquclks 
terrenos  as  lavoiras  de  mandioca ,   caffé ,  e  canas. 

§     39- 

Se  a  navegação  he  encaminhada  á  ponta  do  Chiqueiro 
para  o  norte ,  se  topa  huma  ilha  de  mangues  entre  sete 
barras  ;  cujas  bocas  entrão  por  Finaré ,  Camocin ,  e  Igra- 
puina  ,  c  seguindo  a  costa  fica  para  o  norte  o  rio  C^iba 
com  huma  ilhota  de  mangues  na  boca  ,  e  nesta  direcção 
se  vai  á  villa  pelo  caminho  do  Pmaré ,  ou  dos  bosques. 
A  villa  foi  situada  sobre  huma  colina  (como  ja  disse)  nas 
vizinhanças  da  Caxoeira,  que  a  faz  gozar  das  percnnes 
virações  do  mar,  que  a  refrescão ;  tem  huma  só  rua  prin- 
cipal com  ca/as  por  hum  e  outro  lado,  quazi  todas  ter- 
reaes  ,  despidas  de  ornato  e  decência  ;  porem  próprias  ao  ca- 
racter, e  possibilidades  do  povo  5  não  vivem  ahi  pessoas 
de  nobreza  conhecida ;  poisquc  a  maior  parte  se  com- 
põem da  classe  da  mulataria,  e  daquelles  mizeraveis ,  que 
vicrão  do  reino  por  marinheiros  nos  navios  melhorar  sua 
triste  condição,  e  alli  cazárão.  O  templo  da  matriz  era 
accomodado ,  e  proporcionado  ao  estado  do  povo ,  de  bai- 
xo da  protecção  de  N.  S,  da  Assumpção ,  que  he  o  orácu- 
lo ;  mas  a  desenvoltura  de  hum  clérigo  fez ,  que  se  arra- 
iasse por  terra :  alem  daquelle  ,  existe  outro  no  fim  da 
villa,  da  invocação  da  Senhora  do  desterro,  e  outro  cléri- 
go administrador  da  igreja  ,  tendo  consumido  os  rendimen- 
tos a  deixou  em  termos  de  vir  ao  chão.  Os  povos  igno- 
rantes c  teimozos  são  inclinados  a  chicanas  do  foro,  e 
por  este  motivo  os  ouvidores  fazem  allí  a  maior  assistência 
por  lhes  render  a  vara  mais  dinheiro  j  que  em  alguma  ou- 
tra 


IÇO  Memorias  da  Academia  Real 

tra  villa :  a  corrupção  dos  costumes  he  alli  cm  seu  auge. 
Tem  havido  parodio,  coadjuctor,  e  mais  sacerdotes  da  villa, 
que  não  dão  ao  povo  a  competente  instrucçao  ,  nem  exem- 
plos capazes  de  o  tirar  da  sua  ignorância  ,  e  immoregirada 
conducta. 

§     40- 

O'  proprietário  do  engenho  do  Acarahi  Jczé  de  Sá 
BitJncourt,  e  seus  irmãos  fazem  com  razão  a  primeira  fi- 
gura no  paiz  pelos  seus  talentos ,  cducnçao  ,  e  rcprezcnta- 
ç3o  em  que  se  achão  :  elle  foi  encarregado  pelo  governo 
de  ordem  da  corte  ,  de  examinar  o  salitre  natural  dos  mon- 
tes altos,  allí  espontaneamente  produzido:  diligencia  que 
lhe  deo  sem  dúvida  direito  a  pedir  huma  justa  remunera- 
ção. Ha  muitos  annos  se  não  ignora  a  existência,  e  abun- 
cia  daquelle  tão  preciozo  sal  ,  nos  montes  altos,  e  outros 
lugares  ;  poisque  no  reinado  do  Senhor  Rei  D.  João  IV, 
iá  Garcia  Rodrigues  senhor  da  Torre,  rico,  e  potentado, 
possuindo  mais  de  noventa  fazendas  naquelle  tempo  ,  pe- 
los certões  ,  revestido  de  grandes  poderes  sobre  os  indios , 
oíFereceo  hum  certo  número  de  quintaes  de  salitre,  se  con- 
seguisse a  mercê  de  Cavallciro  na  ordem  de  Christo,  mais 
o  foro  de  fiJilgo,  e  o  senhorio  de  huma  villa;  porém  en- 
contrando difficuldade  na  condução,  rogou  ao  mesmo  Sobe- 
r.ino  ,  se  dignasse  mandar  receber  sessenta  mil  cruzados  por 
aquella  obrigação  ,  e  entregou  o  dinheiro  ,  e  não  o  salitre. 
A  Real  fazenJa ,  depois  de  despender  mais  de  trezentos 
mil  cruzados  em  explorações,  e  estabelecimento  da  fabrica 
pira  a  extracção  dclle,  mandou  o  Senhor  Rei  D.  Jozé  I. 
ao  Conde  D.  Marcos,  que  fosse  examinar  pessoalmente, 
e  com  cUe  o  chanccller'Thomaz  Robim  aquellas  minas; 
eo  ultimo  rczultado  depois  de  pessoacs  exames,  foi  man- 
dar-sc  suspender  a  fabrica;  julgando  assim  o  governador, 
como  o  ministro  informante,  não  convir  á.Real  fazenda 
a  extracção,  e  cc7nducção  por  sua  conta  ,  e  que  antes  se  en- 
tregasse   ao  commercio    aquelle   novo    género    da  colónia. 

Con- 


dasScienciasiieLisboa.  ]9>% 

Constamlo    no    nainisterio   tocJos  estes,  factos ;    ooçituiio  a» 
circumstancias    de  huma   guerra;  tão   assi.cn^broiiaí, :  dtrãQ  o 
justo    valor  áí  amostras   que  levou  Jo/.é  de  Sá»  c  stí  csspc- 
dírão    ao    governador    c   capitâio    general    da.  Bahi»»   ordens, 
para  mandar  abrir  á    custa   da  Real  fazenda  a  cstxada.  paro* 
a    conducção    dcllc,    pelos    lugares  que  expunha  o  mesmo 
Sá  ser  conveniente  ,  e  com  promessas  de  grandes  acrescenta- 
mentos chegou   á   Bahia   para  dar  principio  á  estrada  ,   que 
se    abrio  já  para  os  montes  altos  ;  mas  que  as  cireuiíistan- 
cias  do  tempo  tem  impedido    o  tomarem-se   a  esse  respeito 
medidas  serias,  e  decizivas. 

§     4i« 

Seria  talvez  conveniente  ,  que  o  salitre  fosse  conduzido 
pelas  estradas  já  estabelecidas  com  taz(,nd^s,  e  povoações 
para  Nazareth  ou  Caxocira ,  livres  de  pasí>agem  d^s  barras , 
e  hoje  bem  dirigidas  com  tanta  gloria  do  crpitão  nu  r  da 
conquista  João  Gotisalves  ,  nos  cones  que  ft/  em  Santa 
Igne/-  evitando  seis  dias  de  viagem  por  caminho  impossível 
de  povoar-se  sem  intervallo  de  longos  annos.  A  estrada  do 
rio  de  Contas,  antigamente  aberta  para  os  funjs  e  dalli 
para  Camamú  ,  podia  ser  aproveitada  ,  evitando  a  Real 
fazenda  a  despeza  da  nova  abertura  ,  que  podia  ser  appli- 
cada  para  o  estabelecimento  da  fabrica  ,  e  despezas  da  ex- 
portação do  salitre:  e  quando  ainda  assim  aquellas  frequen- 
tadas communicaçóes  não  produzissem  o  dezejado  cffeito 
de  ficar  o  salitre  na  marinha  por  custos  proporcionados  , 
que  antes  de  tudo  se  deve  exactamente  calcular,  ainda 
restava  outro  meio  de  o  fazer  conduzir  pelo  rio  de  S. 
Francisco  até  á  pancada  ou  Caxoeira  de  Paulo  Affonso, 
aonde  os  cazaes  ,  que  forão  remcttidos  do  Reino  para  po- 
voar a  nova  estrada  se  podião  estabelecer ,  porquanto 
passado  aquelle  grande  salto  do  rio  ,  já  navegao  as  suma- 
cas ,  e  bircos  na  exportação  do  sal,  e  na  retirada  podião 
conduzir  o  salitre  para  Pernambuco,  ou  para  aquelle  porto, 

c^ue 


I9a  Memorias  da  Academia  Real 

que  o  governo  julgasse  pela  experiência  e  calculo  das  des- 
pegas da  exportação  ser  mais  conveniente  ,  vistique  as 
montanhas  dos  montes  altos  estão  cobertos  de  salitre  ,  c  he 
a  sua  abundância  muito  superior  áqucUa  ,  que  no  ministe» 
rio  se  tem  feito  sconstar. 

§     42. 

Tem  a  communicação  ,  que  se  fez  de  Camamií  pnra 
os  certôos,  o  grande  inconveniente  de  se  vadear  mais  de 
20  legoas  de  matas  virgens,  onde  se  faz  custoza  a  aber- 
tura de  fazendas  ,  e  de  pastagens  para  subsistência  dos 
passageiros,  e  conservação  dos  gados  ,  que  por  cila  houves- 
sem de  transitar;  vistoque  os  indolentes  paizanos,  ha 
mais  de  dois  séculos,  apenas  tem  feito  lavoiras  na  distancia 
de  j  de  legoa  ,  tirando  dos  mangues  o  marisco  ,  c  do  rio 
o  peixe  para  a  sua  subsistência  ,  motivos  que  lhes  impe- 
dem o  penetrarem  o  centro  das  matas  ;  são  alem  disso 
aquelles  terrenos  montuozos  de  incómmoda  passagem  em 
alguns  lugares ,  e  quando  os  ventos  do  mar  se  cncontrã9 
com  os  terraes  contribuem  para  a  precipitação  de  grandes 
chuveiros ,  que  fazem  nao  só  vicioza  a  vegetação ;  mas 
também  concorrem  para  se  formar  huma  atmosfera 
húmida  ,  e  mefítica  ,  onde  desapiedadamente  ficarão  victi- 
mas  alguns  desgraçados  ilheos  ,  que  forão  constrangidos  a 
subsistir  em  taes  lugares,  morrendo  de  hidropezia  huns,  e 
outros  de  pura  mizeria  ;  alguns  mais  afortunados  desampa- 
rarão tão  funestas  habitações  ;  e  a  Real  fazenda  veio  a 
perder  não  só  a  despeza  feira  com  a  conducçao  daquelles 
cazacs ,  como  também  a  compra  dos  escravos,  que  lhes 
foi  promcttida ,  alem  de  sessenta  mil  cruzados  despendidos 
com  a  abertura  da  nova  estrada  ;  poisque  os  viandantes 
dos  certocs  acharão  ,  pela  falta  dos  pastos  e  fazendas  , 
muis  conveniente  exportarem  os  seus  géneros  por  aqueilas 
já  frequentadas  ,  as  povoações  de  Nazareth  e  Caxoeira  , 
que   de  virem  buscar  a  de  Gamamú,    temendo  a  perda  de 

seus 


DAS    SCIENCIAS    DE    L  I  S  B  O  A.  IÇJ 

seus  animacs,    e  receando  a  pouca  extracção  dos  seus  cffci- 
tos. 

§     43- 

Continuemos  a  observar  as  communicaçoes  interiores , 
que  a  barra  grande  subministra  para  o  recôncavo  daquella 
viUa  ,  e  acharemos,  que  dobrando-se  a  lingoa  de  terra  da 
barra  para  este,  se  chega  a  huma  ponta,  poronde  entra 
o  rio  do  Campo,  c  do  Ananáz  navegável  de  canoas;  por 
cuja  boca  se  segue  para  ambos  ,  ficando  o  rio  do  Campo 
a  éstc ,  e  a  entrada  a  nornordeste  ,  findando  depois  de  va- 
rias voltas  a  sueste  :  a  oeste  se  acha  então  huma  ponta  de 
mangue,  e  mato,  a  que  lhe  chamão  acosta,  que  entran- 
do por  entre  ella,  e  a  boca  do  rio  do  Campo,  vai  até  o 
lio  de  Mutum  com  embocadura  ao  norte  deste  :  navcgando- 
se  por  de  traz  daquella  ponta ,  em  caminho  do  norte , 
e  voltando  depois  ao  nornordeste  se  entra  para  a  tromba 
deixando  huma  ponta  de  mangue  para  a  parte  de  este  , 
poronde  entra  o  rio  de  Mutum  com  hum  furado  para  a 
mesma  tromba  ,  e  pela  mesma  boca  entra  também  o  rio 
da  Mata   em  rumo  de  nornordeste  com  voltas. 

§     44- 

Para  oeste  se  avista  a  ilha ,  que  do  Ganna  se  hon- 
rou ,  circulada  do  mar,  e  dá  entrada  a  canoas  por  dctraz 
delia  ,  ficando  fronteiro  ao  rio  da  Mata  outro  ,  que  para  a 
povoação  de  Taboroê  se  encaminha :  diante  se  topa  outra 
ilha  ,  que  do  papagaio  se  chamou  ,  e  per  entre  a  qual  fica 
a  ilha  da  alta  finca ,  junto  a  outra  ilha  chamada  Romão 
com  hum  rio ,  que  em  caminho  do  sul  vai  ao  porto  da 
villa  dos  Índios  de  Santarém ,  com  outro  braço  do  rio  , 
que  voltejando  no  mesmo  rumo  finda  na  Caxoeira  grande, 
ficando  atraz  as  ilhas  da  pescaria  do  Sipó  ,  e  Aracaripe 
com  os  riachos  Semeáo ,  S.  António :  defronte  de  Santarém 
fica  a  ilha  chamada  Pericoara ,  e  o  rio  ^  que  vai  para  o 
Tomo  IX.  sb  por- 


194  Memorias  da  Academia  Real 

porto  da  villa.  Vem-se  vestidas  as  matas  da  terra  firme 
de  todo  o  género  de  madeiras  de  construcção  ,  ainda  na 
vizinhança  dos  portos;  pijacipalmente  no  rio  do  Campo  , 
caminho  de  nordeste,  onde  ficiío  as  ilhas  da  Estiva,  da 
Palha  ,  das  Canoas  ,  e  todas  as  cabeceiras  do  rio  do  Campo. 

§     4J- 

A  villa  de  Santarém  aprezenta  a  mais  brincada  vista 
das  suas  ilhas  ,  que  a  fazem  alegre  ,  e  formoza  ,  sobre  o 
alto  monte  coUocada  ;  mostra  aos  habitantes  de  hum  lado 
as  ricas  matas  ,  aindaque  hunia  legoa  dcstruidas  á  borda 
de  agua  ,  ç  de  outro  os  diversos  portos  ,  e  barras ,  que 
a  providencia  lhes  liberalizou,  para  exercerem  a  mais  acti- 
va circulação  do  commercio :  meia  Icgoa  adiante  lhes 
aponta  a  vista  das  matas  da  Caxueira  grande  ,  que  o  seu 
proprietário  o  padre  Joaquim  Francisco  Malta  conserva  in- 
tactas i  e  legoa  e  meia  regada  do  rio  que  faz  hum  bcllo 
porto  de  desembarque  com  dois  braços,  que  dirigem  para 
o  norte  ,  e  sul  e  diante  a  nova  freguezia  de  Nossa  Senhora 
das  Dores  de  Igrapiuna  com  portos  accomodados  á  con- 
ducção  de  todo  o  género  de  madeiras.  As  matas  de  Igra- 
piuna forão  destruídas  cm  distancia  de  duas  Icgoas  ,  sendo 
tão  abundantes  de  madeiras  de  construcção  ,  que  em  hum 
pequeno  rossado  mais  de  quinhentos  páos  forao  por  mim 
vis.^>s  abrazidos.  As  matas  do  Finaré  em  capoeiras  até 
legoa  e  meia  são  cobertas  de  sipipir.is ,  e  naqucUes  terre- 
nos nãcOí  achão  os  lavradores  da  mandioca  conveniência  em 
as  plmtar,  por  ser  aterra  muito  árida,  em  a  qual  as  sipi- 
piras  se  nutretn,  e  crescem  direitas  sem  esgalharem. 

§     4^« 

Foi  erigida  aq'.vella  villa,  assimcomo  as  mais  dos 
inJios,  pelo  ouvidor  Luiz  Freire  de  Veras  no  anno  de 
i7j!i:    compõe-se  de    70    cazaes;,    os    quaes    se    occupao 

nus 


DAS    SCIENCIAS   DE   LlSBOA.  Ipj" 

nos  cortes  de  madeiras ,  e  de  as  descer  pela  caxocira  do 
rio  de  Jcquió ,  com  extremo  valor  c  destreza  assentados  , 
ou  em  pé  sobre  as  falcas  de  vinhatico ,  ou  piiiumupi, 
desviando-as  com  liuma  vara  na  mão  das  pedras  ,  accumet- 
tcndo  pcrigozas  passngens  e  correntezas  das  caxociras ,  por 
duas  patacas,  que  se  lhe  paga  pela  descida  de  cada  liuma : 
vivem  como  os  de  mais  Índios  viciozos ,  entregues  a 
aguardente  ,  dissipando  cm  huma  hora  o  que  ganharão  nas 
mnt.is,  para  as  quaes  não  tornão  a  subir,  semque  os  por- 
tuguczes  ,  com  quem  se  ajustão,  lhes  dem  novos  suppri- 
mentos  de  dinheiro,  e  fazenda  para  si,  c  suas  Famílias; 
por  cujo  motivo  estão  sempre  devedores  aos  f^ibiicnnies 
das  madeiras,  e  alguns  para  se  desonerarem  de  lhes  pagar 
forão  trabalhar  para  a  nova  estrada  do  Camamú,  de  onde 
dczcrtárão  para  as  villas  do  sul.  Plantão  mandioca  ,  quunto 
baste  para  a  sua  sustentação,  o  que  he  serviço  das  mulhe- 
res ;  a  pesca  entretém  a  alguns  ,  porém  no  tempo  de  chu- 
va nao  sahem  de  ca^a  deitados  na  rede  com  o  f"go  ao 
pc ,  e  o  pote  de  cauim  ,  que  he  huma  bebida  espirituoza  , 
c  produzida  da  fermentação  da  mandioca  ,  ou  aipim  pizado 
levado  a  ferver  ao  fogo  ,  e  deixado  a  fermentar.  Sfio  as 
mulheres  as  que  vão  buscar  a  mandioca  para  ralar,  e  fazer 
a  farinha,  e  as  que  diligenceião  o  marisco  dos  mangues, 
eo  peixe,  entre  tanto  que  os  maridos  se  sévão  na  preguiça, 
e  se  entregão  aos  vicios  da  sensualidade.  Os  pais  dormem 
juntamente  com  os  filhos  e  filhas  cazadas  e  solteiras ,  e 
todos  prezenceão  a  sua  corrompida  brutalidade;  e  muitas 
vezes  são  elles  mesmos,  que  abrem  a's  suas  filhas  o  cami- 
nho, das  prostituições;  o  que  he  geral  nas  povoações  dos 
Índios ,  e  ainda  nas   dos  portuguezes. 

§     47. 

Na  legoa  de  terra  ,  que  lhes  foi  consignada  para  as 
suas  lavoiras  ,  morão  de  arrendamento  alguns  portuguezes  , 
que  fazem  muito  boa  plantação  de  mandioca  e  caffé ,  com 

Bb  ii  que 


iptf  Memorias  DA  Academia  Real 

que  adquirirão  huma  subsistência  honrosa  ,  e  continuao  nel- 
la ,  por  ser  o  terreno  próprio  para  aquella  plantação  ;  po- 
rem os  Índios  não  seguem  o  exemplo  dos  foreiros,  nem 
as  continuas  rccommeiídações  ,  que  durante  o  tempo  do  meu 
serviço  em  ouvidor  da  commarca  lhes  fiz,  chegando  a  sua 
indolência  ,  e  ignorância  a  tal  extremidade  ,  que  depois 
de  terem  plantado  nos  seus  quintaes  muitos  pds  de  cacáo, 
ás  minhas  solicitações  ,  promettendo-Ihes  para  os  animar  j 
de  lhes  pagar  a  arroba  de  cacáo  por  hum  preço  superior 
que  os  contentasse  ,  meterão  ncllcs  os  machados  ,  depois 
que  chegou  o  novo  ouvidor  da  commarca  ,  dizendo  ,  que 
de  nada  lhes  servião  aquellas  arvores  j  nem  porora  existe 
alguma  esperança  de  melhoramento. 


CAPITULO    VIL 

Da  vi/la  de  Boipeba. 

§      1. 

XjL  vii.la  de  Boipeba  ,  que  os  naturacs  pronuncião  Unboi- 
peba^  exprime  o  mesmo  que  cobra  chata  ^  he  huma  das 
mais  antigas  da  commarca ,  situada  em  huma  ilha ,  que 
lhe  dá  três  barras ;  a  snber ,  a  do  presidio  de  S.  Paulo 
do  Morro,  onde  principia  a  ilha,  a  barra  da  villa  ,  e  a 
dos  Carva!hos.  Tem  por  termo  o  mesmo  presidio  situado 
na  altura  de  13°  30',  a  sua  figura  lhe  dá  o  nome,  princi- 
piando a  maior  eminência  quasi  a  perpendiculo ,  sem  base 
piramidal,  em  que  se  sustente  no  lugar  e  ponta,  que 
olha  para  o  norte,  e  pelos  lados  corre  ao  mar,  tendo  a 
costa  pelo  este  ,  que  vai  correndo  por  fora  da  ilha  para 
fls  villas  do  sul ,  pelo  oeste  o  mar  navegável  ,  entre  o 
mesmo  Morro ,  e  terra  firme  de  Giquiriçá  ,  com  largura 
de  meia  legoa,  que  vai  continuando  por  dentro  do  mesmo 

.     .    .  pre- 


DAS    SciENCIAS    DE    LlSBOA.  I97 

presidio ,  cm  hum   mar  bonançoso  para  as  mesmas  ilhas  do 
iul ,  ou  terra  firme. 

§     2. 

Occupava  a  guarniçlo ,  e  os  moradores  delle  meia 
Icgoa  de  cerra  ,  sem  foro  algum ,  por  ser  a  terra  da  coroa , 
em  que  fizeráo  casas  de  vivenda,  e  seus  quartclanjcntos: 
pela  parte  da  costa  do  mar  largo  ,  corre  o  caminho  para 
u  sul,  dividindo  o  rio  chamado  Ziniho ,  c  terra  de  João 
Liques  ,  e  pela  parte  da  Gamboa  lazendo  caminho  de  susu- 
este  ,  parte  com  outro  rio  ,  e  terras  de  Manoel  Fernandes , 
e  dalli  por  diante  continuão  as  propriedades  dos  morado- 
res da  ilha  cm  terras  próprias  ou  arrendadas.  Ha  seis  an- 
nos  porem  torão  desapossados  os  miseros  soldados ,  e  pai- 
zanos  desta  sua  posse ,  confirmada  no  tombamento  ,  que  fez 
para  a  Real  Coroa  ,  o  chanceler  que  foi  da  Bahia  Áliguel 
Serrão  Diniz  cm  14  de  Outubro  de  1772,  pelo  governador 
daqueilc  presidio,  fraudulentamente  comprando  a  dois  sol- 
dados humas  porções,  que  diziao  ter,  e  em  nome  de  ou- 
tros herdeiros  o  restante ,  e  semque  elles  percebessem  o 
valor  da  arrematação  feita  em  Cairú  ,  se  chamou  ao  senho- 
rio, quando  tacs  herdeiros  nada  tinhao  pelos  seus  titulos 
na  terra  dada  pelos  antepassados,  para  a  fortaleza  ,  que  se 
erigio  no  tempo  do  governador  o  Excellentissimo  D.  Vasco 
Fernandes  Conde  de  Sabugoza  ,  como  consta  da  inscripção, 
que  se  acha  na  porta  da  fortaleza  com  armas  Reaes ,  nem 
se  oppozerâo  ao  tombamento  ,  tendo  aquelle  ministro  fei- 
to citar  por  edital,  que  se  fixou  cm  8  de  Maio  de  1772, 
c  com  aquclles  titulos  illudido  o  Excellentissimo  governa- 
dor D.  Fernando  José  de  Portugal  ,  o  mandou  conservar 
na  posse  delles ,  contra  a  da  Real  fazenda  ,  e  de  se  acha- 
rem aquellas  terras  no  tombamento  nos  dos  próprios  Reaes 
/  na  caza  da  arrecadação  da   fazenda  da  capitania  da  Bahia  , 

e  tombando  as  mesmas  terras  para  si  ,  exigio  o  aforamento 
injusto,  que  está  percebendo  <le  má  fé  dos  soldados  e 
paizanos. 

$ 


198  Memorias  da  Academia  Rbal 


§ 


3* 


Fortificava-se  aquelle  presidio  do  Morro  com  huma 
grande  bataria  na  raiz  da  montanha  ,  e  pancada  do  mar , 
tendo  a  sua  maior  resistência  no  angulo  da  ponta  e  prin- 
cipio do  Morro,  onde  está  o  forte,  que  se  intitula  de 
S.  Paulo,  que  flanquca  o  mar  por  dentro  da  dita  ilha  ;  a 
sua  figura  he  de  hum  rectângulo,  com  33  palmos  de 
comprimento,  e  120  de  largo,  fazendo  a  bataria  frente  pa- 
ra a  entrada  do  mar,  e  no  meio  delia  está  a  bandeira, 
e  tinha  18  peças  de  ferro  montadas:  a  entrada  he  pela 
parte  da  montanha  no  pavimento  do  terreno  fronteiro  , 
cm  que  está  o  corpo  ^da  guarda,  caza  ,  e  quartéis,  com  a 
face  para  o  interior  do  terrapleno.  Unia-se  a  este  forte  a 
cortina  exterior  da  grande  muralha ,  que  parte  do  sul ,  e 
interior  do  presidio ,  cingindo  a  raiz  da  montanha  ,  e  o  ca- 
minho em  ângulos  salientes  obtusos ,  e  outros  reintrantes : 
avançava  no  meio  daqucUa  cortina  para  o  mar  o  angulo 
saliente  maior,  com  seus  flancos,  que  tem  o  nome  de  for- 
te velho  ,  e  que  tinha  três  peças  de  ferro  de  dezoito  ; 
a  mais  cortina ,  e  a  muralha  seiscentos  passos  de  compri- 
mento ,  seguindo  a  figura  do  angulo  e  flancos  ,  desde  o 
forte  da  barra  ,  até  a  rampa  principal  da  servidão  do  mar 
para  o  corpo  do  presidio  ,  em  que  está  o  corpo  da  guar- 
da ,  que  tem  de  comprido  90  palmos ,  incluindo  o  armazém 
do  armamento,  tulha  de  farinha  ,  c  mais  cómmodo  dos  offi- 
ciacs ;  c  da  parte  esquerda  para  a  ladeira,  que  sobe  .para 
a  praça  ou  parada  da  guarnição  ,  em  cujo  lugar  foi  erigido 
o  oratório  para  os  officios  divinos  em  huma  casa  de  taipa, 
e  adiante  fica    o  quaitcl    do  governador. 

§     4- 

Sobindo  da  praça  para  a  montanha  de  Morro  em  meia 
ladeira  está   huma  muralha  ,    que  atravessa  o  caminho  ,com 

ser- 


DAS    SCIENCIAS    DE    L  I  S  B  O  A.     "  Içp 

scrvidáo  para  huma  rotura ,  feita  na  rucsma  muralha  ,  qiic 
serve  de  fechar  a  entrada  para  cima,  cujo  muro  era  de  loo 
palmos ,  c  íii7,cr\áo  angulo  continuava  com  6o  paJcjioB  ,  e 
tornando  a  voltar  proseguia  com  loo  palmos,  e  no  centra 
da  quadra  tem  a  caza  da  pólvora  ,  com  o  âmbito  fecha» 
do  do  muro  por  fora  ,  de  mais  de  6o  palmos  por  cada  l^r 
do  :  superior  á  dita  caza  da  pólvora  está  hum  terreno  alto , 
em  pouco  espaço,  do  qual  flanqueão  a  entrada  do  presidio, 
sobre  a  bataria  grande  da  pancada  do  mar  ,  pela  vantagem 
daquclle  tempo  três  peças  de  ferro  montadas ,  e  huma 
bandeira. 

§    y. 

Tem  o  corpo  da  guarda  e  palamenta  36  palmos;  e 
allí  hc  a  guarnição  para  as  sentindlas  explorarem  as  novi»- 
dadcs  do  mar  da  parte  da  entrada  do  presidio  ,  continuan- 
do a  montanha  maior  subida  para  o  alto  cume  ,  e  cabeça 
do  morro,  no  qual  se  encontra  a  antiga  capella  abatida, 
e  toda  arruinada  e  descoberta ,  e  continuando  para  o  sul 
por  hum  lado  ou  passo  estreito  ,  entre  dois  despenhadeiros 
dos  lados ,  na  extremidade  da  cabeça  do  morro ,  que  circum- 
(Cxplora  o  mar  largo,  fica  hum  reducto  de  60  palmos, 
chamado  o  Zimbeiro ,  cora  três  peças  de  ferro  montadas, 
que  flanqueão  a  prainha  ,  por  estar  com  igual  direcção  so- 
bre o  forte  de  S.  Luiz  ,  como  também  flanquea  a  costa 
do  niar ,  por  se  dominar  tudo  do  alto. 

$     6. 

Tinha  aquelie  presidio  de  guarnição  duas  companhias 
de  soldados ,  huma  de  artelharia ,  outra  de  infanteria  ;  po- 
rem gx)vernando  a  Bahia  o  Excelientissimo  Manoel  da  Cu- 
nha e  Menezes,  mandou  retirar  «  companhia  de  artelharia, 
e  deixou  a  outra  ,  com  hum  com  mandante  governador  , 
pira  cuja  utilidade  parece  ser  ella  unicamente  dirigida  ; 
poisque  os  soldados  são  out^pg  tantos  escravos  empregados 

na 


200  Memorias  da  Academia  Real 

na  lavoura  ,  pesca  ,  factura  de  madeiras  ,  e  armnçõcs  de 
baleas,  e  outros  particulares  serviços,  e  fieis  satélites  da 
sua  impetuosa  arrogância.  No  plano  feito  no  governo  do 
Excellcntissimo  Marquez  de  Angeja  para  a  fortificação  da 
marinha,  pelo  engenheiro  Masié  ^  talvez  se  entendesse, 
que  aquella  fortificação  servia  de  guardar  as  villas  do  C;ii- 
rú  ,  Camamú  ,  Boipeba  ,  c  rio  de  Contas  ,  que  se  podião 
chamar  então  os  celleiros  da  Bahia,  pela  exportação  da 
farinha,  que  naquelles  tempos  praticaváo,  ou  para  acudir 
aos  moradores  perseguidos  do  bravo  Ainoré.  Ella  porém 
hoje  deforma  alguma  pode  impedir  (a)  a  entrada  dos  inimi- 
gos na  commarca  ou  cellciro  da  Bahia  ;  poisque  he  muito 
mais  fácil  e  commodo  aos  inimigos  buscarem  ,  como  fizerâo 
os  Holandezcs  em  1623,  o  seguro  canal  da  barra  grande 
de  Gamamú ,  que  até  o  Campinho  presta  hum  ancoradouro 
seguro  3  maior  armada  ,  e  onde  fundiada  ,  expideria  o  cor- 
so para  impedir  o  commercio  interior,  e  a  sua  communi- 
cação  com  a  capital  ,  que  de  virem  accometter ,  ainda 
sem  algum  risco  de  damno ,  que  o  presidio  podesse  causaf- 
Ihe ,  huma  estreita  barra  sem  ancoradouro ,  e  onde  os  seus 
baixos  fazem  o  naufrágio  inevitável  a  pequenas  embarca- 
ções,  quanto  mais  aos  navios  de  alto  bordo,  que  só  o 
local  defende  a  entrada  ,  c  não  o  presidio.  Ainda  quando 
todos  estão  persuididos  da  impossibilidade  de  defeza  era 
hum  paiz  ,  onde  o  pão  natural  he  a  mandioca,  que  depois 
de  três  mezes  se  corrompe;  a  pólvora  se  não  pode  conser- 
var em  paiz  húmido  por  mais  de  anno  ;  e  por  isso  a  defe- 
za está  unicamente  na  fidelidade,  e  amor  dos  povos ,  e  no 
interesse  da  sua  conservação  no  paiz  onde  vivem. 


(1)  As  tres  villns  do  Caird ,  Boipeba  e  Camaniú  se  obrigarão  á 
sustciitação  de  farinha  da  guarnição  do  presidio  do  Morro  por  alguus 
aanos  ,  e  se  chamava  essa  contribuição  voluntária  farinha  de  Conchave, 
e  forão  desobrigados,  pelo  provimento  de  10  de  Março  de  1738.  Ve- 
ja-se  a  nota  8.  no  fim  desta  memoria. 


X)AS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  aOI 

§      7. 

Estíiva  persuadido  o  governador  passado  da  inutili- 
dade da  fortificação,  quando  o  commandantc  delia  lhe 
expoz  vivamente  taes  afectadas  utilidades,  que  obteve  o 
mandar-se  reparar  parte  do  presidio  com  grande  dcspen- 
dio  da  Real  fazenda  ,  plano  que  não  dá  pouco  interesse 
aos  commandnntes  ,  para  quem  somente  he  útil;  porquanto 
alem  das  obras,  que  se  pcrmitte,  clles  tem  a  grande  mina 
das  esmollas  dos  soldados  ,  cujo  fundo  era  no  tempo  do 
desembargador  Francisco  Nunes  da  Costa  de  14  mil 
cruzados,  destinados  para  a  tactura  da  igreja  da  Senhora 
da  Luz  ,  e  que  andava  a  juros  até  o  tempo  do  actual  go- 
vernador ,  que  achou  mais  conveniente  amortizallos  em 
hum  cofre,  que  accumular  o  fundo  com  os  juros  ,  que  pa- 
gaváo  pessoas  abonadas.  Vem-se  ainda  no  mesmo  lugar 
do  desembarque  as  carretas  ,  que  forao  enviadas  para  o  re- 
paro da  artelharia,  e  o  tempo  as  tem  consumido,  e  arrui- 
nado ;  e  a  artelharia  está  desmontada  e  perdida :  a  face 
da  cortina  da  parte  do  mar  toda  no  chão  ,  e  estes  são  os 
intcesses,  que  a  Real  fazenda  tira  de  taes  administradores, 
e  da  fortificação :  ellcs  adquirem  entretanto  grande  poder 
sobre  os  miseráveis  commarções  ,  a  quem  opprimem  ,  toman- 
do-se  por  torça  os  seus  géneros,  com  o  titulo  de  irem 
para  as  obras  Reacs  do  presidio,  e  que  tomao  destino  parti- 
cular ,  c  para  favorecer  seus  designios  a  todo  o  custo  se  bus- 
ca a  protecção,  e  amizade  do  ouvidor  da  commarca  ,  paraque 
impunes  fiquem  suas  animozas  atrocidades. 

§     8. 

Tem  a  barra  daqucllc  presidio  oito  braças  de  fundo ; 
porem   fronteira  a  ella  ficão  os  baixos  chamados  de  Sebas- 
tião Gonsalves  ,    a  oeste  ,    cm  distancia  ainda  menos  de  j  de 
legoa ,    c  então    se  dirige    a  embarcação    grande  em   rumo 
Tomo  IX,  cc  de 


202  Memorias  da  Academia  Reai, 

de  sudoeste  a  desviar-se ,  do  que  tem  aos  olhos  presente  ,  e 
do  sotavento  da  coroa  grande  ,  cncostando-sc  sempre  ao 
morro ,  pelo  canal  ,  que  não  tem  bom  fundo  para  fundear 
as  embarcações  pelas  pedras  nclle  produzidas ,  por  mais 
de  loo  braças,  até  o  rio  da  Gamboa,  e  depois  de  vencer 
para  nordeste  o  lugar  chamado  do  Curral  pode  fundear  até 
á  povoação  do  Galeão  qualquer  embarcação,  não  sendo 
de  grande  lotação  j  porque  estas  apenas  tem  fundo  até  o 
Curral.  O  canal  he  então  limpo,  e  fundo  de  5-  a  8  braças, 
menos  para  a  boca  do  rio  Patipe  do  norte  ,  que  tem  pe- 
dras, e  por  cuja  cauza  a  embarcação  se  deve  encostar  para 
o  sul ,  onde  o  manguinho  he  conhecido  ,  pelo  meio  do 
canal  até  a  povoação  do  galeão  ;  mas  nunca  se  approxi- 
mando  á  terra  ,  c  somente  depois  de  descoberto  o  porto 
do  galeão  éste-oeste ,  he  que  pode  a  embarcação  encos- 
tar-se  a  ella. 

§     9- 

As  terras  daquelle  presidio  são  áridas  ,  e  não  dão  man- 
dioca ,  que  compense  o  trabalho  e  a  despeza.  A  pesca  , 
e  os  cortes  de  madeiras  de  machado  fazem  o  estabeleci- 
mento dos  paizanos  e  soldados ,  e  hoje  a  da  balêa  ,  e 
do  azeite  de  cação  que  se  extrahe;  mas  que  não  he  per- 
mittido  vcndcr-sc  sem  crime  ,  a  não  ser  ao  commandantc  , 
e  da  mesma  forma  o  saboroso  peixe  ,  que  pescâo  no  mar 
alto  ;  portanto  em  hum  ptiiz  assim  regulado  não  ha  a  me- 
nor sombra  de  contentamento  e  felicidade.  \ 

§     10. 

Seguindo  da  Gamboa  pela  costeira,  setopao  duas  ilho' 
tas  de  mangues,  e  ao  pé  delia  huma  grande  enseada,  que 
no  montar  da  mesma  entra  o  rio  Saruhé  ,  que  vai  sahir 
ao  pé  da  povoação  do  galeão  ,  notável  pela  devoção  dos 
povos  a  S.  Francisco  Xavier  j  que  se  venera  em  huma  pe- 
quena   capella    erigida    no  cume  da  montanha ,    como  pela 

mi- 


DAS    SCIENCIAS    DE.LiSBOA.  2Ó3 

mina  de  ferro  cristaUzado  no  seu  contorno,  e  deixando  i 
direita  a  ilha  do  Saruhé.  O  rio  he  fundo  de  8  braças ,  e 
e  em  parte  menos  até  j  ,  com  lo  de  largo,  que  admitte 
a  navegação  de  barcos  e  íanchas ,  e  fica  próximo  ao  galeão , 
o  riacho  do  Pegica  fronteiro  a  huma  ilha  de  mangues  ,  em 
distancia  de  400  braças  de  comprimento:  encaminhando-se 
pela  mesma  costa  se  topa  a  ilha  de  Mocurandiba  circulada 
do  rio,  que  vai  sahir  a  outro,  chamado  o  Taiihenga ,  ou 
Tororó ,  que  se  dirige  perto  da  costa  de  Carapúa ,  sem 
romper  a  mesma  ,  dirigindo-se  a  dstc  com  suas  voltas  na- 
quellc  rio  ;  findando  a  ilha  segue  a  enseada  até  á  ponta, 
chamada  da  Ericeira^  e  em  rumo  do  sul  passa  por  Cairú, 
e  da  parte  de  oeste  o  rio  Sambauna  com  hum  braço  para 
o  rio  Aritiba ;  defronte  do  qujl  para  este  fica  na  sua  cos- 
teira a  ponta  da  terra  chamada  do  Pacohtí ,  e  no  meio 
huma  ilha  de  mangues,  a  qual  àt Papagaios  se  appellidou; 
e  para  este  do  rio  Pacobú  segue  a  navegação  de  canoas; 
e  logo  adiante  fica  o  rio  Caritanguí  em  rumo  de  norte, 
ficando  para  oeste  outro  intitulado  do  Jubim  navegável  só 
de  canoas.  E  seguindo  a  mesma  derrota  ,  apparece  huma 
ponta  de  terra  com  4  ilhas  de  mangues  ,  onde  se  ajuntão 
as  enchentes  das  aguas  do  Carvalho  ,  Boipeba ,  e  o  Mor- 
ro ,  e  nas  vasantes  para  as  mesmas  barras  despede,  fican- 
do fronteiro  o  rio  Carapitanguí  grande  ,  em  huma  ensea- 
da espaçoza  e  bella  ,  correndo  as  aguas  do  rio  a  este 
com  voltas,  a  formar  porto  junto  á  costa  do  mar,  nave- 
gável de  lanchas. 

§     II. 

Fronteiro  ás  ilhotas  da  parte  de  oeste  fica  o  rio,  que 
de  Amaro  tem  o  nome ,  navegável  de  lanchas ,  ficando  alli 
a  enseada  do  Tapuia  ,  defronte  da  povoação  de  Canaviei- 
ras  ,  e  nestas  ilhas  se  encontrão  todo  o  género  de  madei- 
ras de  construcção,  e  de  casas.  Logo  adiante  de  Canaviei- 
ras  se  topa  o  rio ,  que  para  Boipeba  se  navega ;  e  na 
distancia   de  10  braças    o  rio    grande,  que    segue    para  a 

cc  ii  mes- 


204  Memorias  da  Academia  Real 

mesma  villa ,  despedindo  para  o  sul  o  rio ,  que  de  Infer- 
no se  appellida  ,  pelo  enfadonho  de  suas  voltas,  a  s.ihir 
aquella  villa  navegável  de  canoas,  estando  a  maré  cheia, 
e  o  rio  grande  seguindo  para  o  norte  com  diversas  voltas 
vai  acabar  na  raza  barra  da  villa  ,  poronde  entrao  e  sahem 
para  o  mar  largo  as  lanchas  de  maré  cheia. 


12. 


Tudo  o  que  fica  descripto ,  comprehende  a  ilha  do 
Morro  pelo  interior  dos  rios  :  resta  agora  vê-la  pela  costa 
do  mar.  Logoque  se  sahe  do  Moiro  em  distancia  de  800 
braças  ,  se  topa  humas  ilhotas  de  mangue  e  pedras  com- 
postas,  €  quasi  na  mesma  distancia  a  barrcta  do  Zimbo  , 
que  forma  huma  enseada ,  onde  entrao  e  sahem  as  lanchas 
contendo  recifes  situados  no  meio  da  barreta :  Em  distan- 
cia de  600  braças  fica  a  boca  do  rio  Caranpitanguí  d'agua 
doce ,  que  desagua  no  mar  ;  e  depois  de  800  braças  se 
descobre  a  barra  de  Panampanan,  onde  hum  rio  d'agua 
doce  sahe  pela  sua  embocadura  ,  e  a  admitte  entrada  ás 
lanchas :  as  matas  desse  lugar  contém  madeiras  de  constru- 
ção ,  e  o  páo  amarcllo  ou  tatagiba ,  e  o  rio  banha  as 
matas  da  costa ;  desde  huma  legoa  do  seu  nascimento  con- 
tinua a  costa  com  varias  enseadas  por  espaço  de  duas  le- 
goas  do  Panampanan ,  e  se  entra  então  na  formoza  ensea- 
da ,que  forma  a  barra  chamada  do  Carapuhá  ,  a  qual  tem  seus 
baixios  de  arêa  e  pedra  com  recifes,  que  horrorizando  aos 
navegantes  lhes  presta  comtudo  pelo  meio  entrada  ás  lanchas 
para  se  abrigarem  do  tempo  ,  com  mais  seguro  ancoradoiro 
da  parte  de  dentro  ,  sendo  a  entrada  da  barra  de  ésre  a  oes- 
te ,  e  passados  os  baixos  de  pedra  se  topa  o  rio  da  Gamboa , 
que  vem  das  matas. 

§     13. 

Continuando   a  navegação   pela    costa ,   em    toda  ella 
se  avistlo   recifes ,    e  enseadas  até  o  pontal  da  barreta  da 

vil- 


DAS   SCIENCIAS    DE    LiSBOA.  lOJ 

villa  àc  Boipeba,  trcs  legoas  distante  de  Carapuá^  cuja 
barrota  se  vadea  a  pé  de  maré  vasia  ,  com  entrada  de  este 
a  oeste.  Para  alem  do  pontal  hc  que  toi  situada  a  villa 
sobre  huma  pequena  colina  de  fundo  de  arca ,  contendo 
sua  praça  irregular;  e  no  fim  delia  foi  edificada  a  matriz, 
da  invocação  do  Divino  Espirito  Santo,  com  dois  mil 
habitantes,  que  na  plantação  da  mandioca,  e  arroz,  e  nos 
cortes  de  madeiras  tirão  escassa  subsistência.  Formosêa  a 
vista  alegre  do  mar,  c  não  a  agricultura,  que  apenas  para 
a  cidade  fazem  huma  limitada  exportação  de  farinha,  que 
apenas  chega  a  quinhentos  alqueires  cm  alguns  annos ,  e 
de  arroz  da  terra  a  3^0  até  400  alqueires;  20  a  30  car- 
radas de  casca  de  mangues,  algumas  porções  de  ripas,  e 
feixes,  e  piassaba;  cana  brava;  achas  de  lenha,  com  al- 
guns potes  de  peixe  salgado,  e  frutas  do  paiz  ,  como  se- 
jão  ananáz,  melancia,  coco,  abobara,  cachos  de  bananas, 
que  se  dão  muito  bem  nos  terrenos  arenosos,  e  onde  a 
odorífera  baunilha,  aindaque  embalsame  o  olíacto  com  a 
sua  agradável  suavidade  ,  he  comtudo  desprezada  ,  e  entre- 
gue ao  sustento  das  cobras  ,  que  nellas  encontrão  delicio- 
za  mantença  ,  e  corresponde  a  exportação  ao  valor  metá- 
lico de  cinco  mil  cruzados. 

§     14. 

O  povo  he  hum  dos  mais  pobres,  e  miseráveis  da 
commarca ;  nos  passados  annos  acharão  grande  interesse  na 
extracção  do  zimbo  da  praia ,  que  se  vendia  a  bom  preço 
aos  commerciantes  da  costa  d'Africa,  e  as  praias  forão 
então  cobertas  de  immensos  exploradores  do  zimbo ;  po- 
rém aquelle  género  barateou  pela  abundância  encontrada 
no  mar  grande ,  e  vizinhanças  da  cidade ;  e  desde  logo 
buscarão  na  pequena  lavoira  ,  e  cortes  de  madeiras  ,  e  nas 
cazas  de  mangue  huma  precária  subsistência  ,  mas  certa- 
mente as  suas  necessidades  são  satisfeitas  com  poucas  coi- 
zas  ;  por  isso  que  as  costas  e  rios ,  superabundao  de  pesca- 
do^ 


2o6  Memorias  da  Academia  Real, 

do  ,  de  que  todos  se  mantcm  annual mente.  Qiiasi  todos  , 
ainda  os  mais  distinctos  do  paiz ,  andSo  dcscalsos ,  com 
h.ima  cami/a,  e  calção  de  esiôpa ,  ou  algodão,  com  huma 
túnica  ,  que  se  denomina  xambrc  ,  de  bamba  ,  ou  chita , 
estão  ornados  e  vestidos;  e  quasi  da  mesma  "maneira  an- 
dão  suas  mulheres,  não  invejando  o  luxo  dos  povos  civi- 
lizados ;  e  tão  poucas  coisas  bastão  para  conseguir  o 
restante  dos  seus  desejos  ,  não  ambicionando  outras  honras 
que  os  postos  das  ordenanças,  e  cargos  do  conselho,  co- 
mo intalliveis  provas  da  sua  nobreza,  e   graduação. 

§      ^S- 

Forma  a  povoação  de  Jcquié ,  a  mais  importante  do 
termo  daqucUa  villa  ,  hum  grande  ramo  de  commercio  de 
taboados  de  vinhatico  ,  putuniupi  ,  cedro ,  e  louro  ,  pela 
facilidade  ,  com  que  são  conduzidas  as  falcas  daquellas  ma- 
deiras pelo  rio  ,  que  o  banha  ,  e  que  lhe  deu  o  nome  , 
encaminhando-se  para  cUe  os  habitadores  da  villa ,  e  ter- 
mo ,  pela  enseada  do  Tapuia  ,  pela  boca  do  rio  da  Torri- 
nha ,  que  se  une  ao  rio  dos  Patos  e  Furados,  que  dcscm- 
bocão  no  rio  Jequié  ,  e  no  de  Mutupiranga  ,  onde  ha  hu- 
ma capella  de  Santo  António  ;  e  tcin  o  rio  25-  braças  de 
largo  ,  c  sufficiente  fundo  para  as  embarcações  ,  que  nave- 
gão  carregadas  de  madeiras  para  a  cidade.  Também  deita 
hum  braço  para  a  povoação  ,  e  capella  de  N.  Senhora  da 
Boa  Morte  do  Jordão.  He  daquelle  famoso  rio ,  que  se 
cxtrahem  as  exccllontes  pranchas  de  putumupi  ,  e  vinhati- 
co ,  outras  madeiras  monstruosas  na  grandeza  ,  eternas  na 
duração  ,  c  de  importantes  usos  á  marinha  ,  ás  artes  ,  e  á 
humanidade  principalmente  nas  margens  do  rio  do  Peixe 
e  das  Almas,  onde  parece  que  a  natureza  as  plantou  com 
preferencia  a  todas  as  mais  arvores  ,  não  lhes  negando  o 
páo  brasil ,  e  rcproduzindo-as  por  huma  maneira  a  mais 
admirável ,  liberalizando    os  seus    dons ,   paraque  huma ,  c 

ou* 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  20/ 

outra    marinha,    assim    a  Real,    como  a  mercantil  podesse 
tirar  as  maiores  utilidades. 

§     t6. 

Existem  ainda  outras  particulares  communicaçoes  ,  pe- 
las quncs  se  diriqem  os  habitantes  pnra  a  barra  dos  car- 
valhos, pelo  interior  dos  rios  descri p tos  ,  como  já  se  no- 
tou ;  agora  busquemos  a  este  a  ilha  de  mangues ,  com 
riacho,  que  Pcrcquara  se  appellida  ,  navegando  em  distan- 
cia de  i8o  braças  a  oeste  por  entre  huma  ilha  de  loo 
braças  a  entrar  pelos  rios,  pequeno  Tambe  e  Dedinzeiro , 
que  entrão  no  rio  da  barra  dos  Carvalhos ,  fronteiros  á 
ilhota  do  Titum  ;  e  alli  cm  distancia  de  300  bragas  se 
encontra  a  boca  de  outro  rio ,  que  de  Semeao  he  chamado 
cm  rumo  de  oeste,  que  segue  com  variadas  voltas,  com 
dez  braças  de  largo  ,  navegável  somente  de  canoas ;  e  então 
dahi  segue  a  costa  do  mar  para  a  barra  do  Serenhaem , 
e  o  rio  grande  vem  misturar  com  o  mar  sua  corrente  na 
dita  barra  dos  Carvalhos ,  ficando  a  este  huma  ilha,  quede 
João  Rego  se  appellidou ,  de  pedras  arenosas,  e  seixos 
composta,  com  dez  braças  de  comprimento,  e  forma  a 
ponta  de  este  daquella  barra  ,  seguindo  as  enseadas  dos 
Castelhanos,  do  Catú,  Itapoan,  Bainema ,  Moraré,  Taci- 
nierim  ,  entre  penhascos  calcareos  e  seixozos  em  busca  de 
Boipeba  com  três  riachos,  que  buscão  esconder-se  no  Oc- 
ceano,  e  que  termina  a  ilha  do  Morro. 

§      17- 

Qi;iando  as  brl/as  do  nordeste  permanecem  ,  buscâo 
então  as  embarcações  do  sul  o  refugio  da  mencionada  bar- 
ra dos  Carvalhos  ,  e  depois  de  ncUa  entrarem  na  distancia 
de  huma  Icgoa  topão  as  primeiras  pedras  a  norte ,  4.°  de 
nordeste  ,  e  o  rio  tomando  a  volta  das  pedras  busca  a 
direcção  de  nordeste ,  e  voltando  depois  a  norte  por  huma 

le- 


idí  Memorias  da  Academia  Real 

1-egoa  vai  ao  lugar,  que  cliamíio  os  Fiigiííos;  e  onde  então 
a  nordcsre  se  encaminha  a  povoação  de  Cnnaviciras,  que 
he  de  pescadores  cominumente  ,  em  distancia  de  hum  quar- 
to de  legoa ;  e  logo  em  outra  iguul  distancia  vai  para 
nordeste,  e  meia  legoa  depois  a  noroeste,  e  com  hum 
quarto  de  legoa  passa  a  banhar  a  viila  do  Cairú ,  de  que 
vamos  a  tratar  no  seguinte  capitulo. 


CAPITULO     VIII. 
Da  vHla  do  Cairií. 


íí, 


I. 


E  situada  a  villa  de  N.  Senhora  do  Rozario  de  Cai- 
rú,  fronteira  ao  presidio  do  Morro,  na  distancia  de  duas 
legoas  ,  cm  huma  pequena  ilhota  de  três  quartos  de  legoa 
em  algumas  partes,  que  em  outras  apenas  chega  a  hum 
quarto  de  legoa  ,  na  margem  do  rio  ,  que  desemboca  no 
Morro:  esta  he  huma  das  cinco  antigas  villas  ,  de  que  se 
compunha  a  capitania ,  e  foi  erecta  no  tempo  do  primei- 
ro donatário  Jorge  de  Figueiredo  :  tinha  por  termo  os  ca- 
zaes  estabelecidos  desde  o  rio  Patipe  do  norte  até  o  Jor- 
dão,  e  pelo  lado  do  sul  ao  lugar  de  Sambauna.  Aquelle 
rio  fica  na  enseada  ,  que  vem  da  costeira  da  parte  do  norte 
com  seis  braças  de  largo  na  embocadura  ,  voltejando  ,  se 
dirige  á?  matas  grossas.  Navcgando-se  pela  costeira  se 
topa  ,  a  buscar  os  limites  do  termo  ,  o  rio  de  Una ,  que 
na  lingoa  geral  exprime  rio  preto  ;  poisque  a  sombra  das 
iiumstruo/as  arvores  ,  c  o  seu  grande  fundo  ,  fez  por  isso 
parecer  negras  as  suas  aguas ;  este  rio  entra  em  caminho 
de  este  para  a  povonção  ,  que  delle  tomou  o  nome ,  tendo 
300  braças  de  embocadura  ,  e  quasi  ao  sahir ,  na  enseada 
se  une  com  o  rio  de  Mapendipe  ,  ou  Mapendiuva  na  lingua 
geral   dos  índios ,  que  dco  o  nome  a  povoação ,  que  alli  se 

for- 


DAr>   SciENCIÁS   DE  LiSBOA»  ZOÇ 

formou  ,  e  que  tem  huma  capei  la  da  invocação  de  S.  João 
Baptista.  Na  boca  daqucllc  se  topa  huTna  ilha  de  man- 
gues ,  que  por  todos  hc  chamada  o  Cabeço ,  a  qual  divide 
o  mar  com  a  costeira  da  povoação  do  Galeão :  fica  na 
mesma  direcção  outro  rio,  que  Tapccisicn  lhe  chamarão,  o 
qual  cm  rumo  de  oeste  busca  a  povoação,  que  ilellc  tomou 
o  nome:  logo  mais  adiante  está  outro  rio,  que  Aíaricoabo , 
ou  Bartraqitdvaa ,  segundo  o  idioma  indico  ,  hc  appellida- 
do ,  e  de  seu  nome  se  conhece  a  povoação  existente  com 
sua  capella  ,  da  invocação  de  S.  José  de  Desterra  :  depois 
o  rio  de  Caiaiva  ,  que  também  deo  o  seu  nome  a  outra 
povoação  ;  antes  daquelles  rios  se  topuo  as  ilhas  chamadas 
de  Sauna  y  do  Meio  ^  e  do  Cascalho^  ou  Sabacií  y  com  hum 
canil ,  que  vai  para  a  povoação  de  Taperogua  ,  e  hum 
furado  para  o  rio  de  Una ,  c  na  mesma  navegação  se  des- 
cobrem os  rips  do  Campo  ,  o  da  Galé  ,  o  do  Pitanga  o 
de  Sarapuhi ,  Engenho  ,  Camorogi  ,  que  igualmente  dei- 
chárão  seus  nomes  as  povoações  hoje  tão  recommendaveis 
pelas  lavoiras  da  mandioca,  arroz,  café,  e  cortes  de  ma- 
deiras ,  que  constituem  a  riqueza  dos  habitantes.  A  povoa- 
ção de  Camorogi  terri  huma  capella  de  N.  Senhora  d'Aju<- 
da,  de  que  he  administrador  o  padre  João  Muniz  Barreto, 
huma  das  mais  ricas  pessoas  da  commarca.  Fica  logo  adian- 
te a  grande  povoação  de  Taperoaá  com  bello  porto  de 
desembarque,  com  huma  capella  de  S.  Braz  ,  de  que  he 
administrador  o  capitão  mor  Luiz  Bernardo  de  Souza  :  pro- 
segue  orlo  grande  a  embocadura  do  Jequié,  avista-se 
então  o  rio  Jordão ,  que  por  este  lado  termma  o  termo  da 
villa  do  Cairú,  e  busca  então  para  o  sul  differentes  ilhas, 
e  rios  ,  que  vão  até  Cabossú  ,  e  S.  Tiago  ,  que  pela  cos- 
teira do  norte  se  dirige  á  ponta  grossa ,  e  rio  Aritiba , 
que  sahe  no  lugar  que  Sambauna  se  chamou  ,  com  o  qual 
divide  ,  e  forma  a  ilha  do  Cairú  ,  ou  caza  do  sol  ,  na  Jin- 
goa  geral ;  povoada  a  terra  firme ,  e  ilhas  com  cinco  eqíI 
habitantes.  -'. 

lomo  IX,  od.  § 


•aro  Memorias  da  Academia  Real 


Tem  aquclla  villa  liuma  só  rua ,  que  vai  do  porto 
i  matriz  da  invocação  de  N.  Senhora  do  Rozario  :  e  para 
o  outro  lado  fica  o  convento  dos  religiosos  capuchinhos,  da 
provincia  de  S.  António  da  Bahia.  O  templo  da  matriz 
hc  proporcionado  ,  com  quatro  altares ,  alem  da  capclhi  mór , 
ornado  decentemente,  c  he  huma  das  freguezias,  que  tem 
as  alfaias  necessárias ,  para  se  celebrarem  as  funções  da  rc- 
lit^ião:  celcbrão-sc  as  festividades  no  mez  de  Outubro, 
para  as  quaes  todos  concorrem  ,  e  vão  assistir  talvez  mais 
por  divertimento  público,  que  por  motivo  de  hum  culto 
espiritual.  Concorre  de  todas  as  partes  o  povo  ;  e  he  en- 
tretido nas  tardes  das  festividades  com  cavalhadas ,  e  d  noi- 
te com  comedias,  reprczentadas  pelos  seus  mesmos  concida- 
dãos ,  que  não  tem  intelligencia  e  gosto  das  peças  ,  que 
produ7em  em  público,  depois  das  dez  horas  da  noite,  ar- 
mando-se  hum  theatro  portátil  no  mesmo  dia  do  diverti- 
mento, defronte  do  convento  dos  franciscanos,  ou  da  frc- 
guezia.  O  convento  tem  toda  a  proporção  e  grandeza  ;  ha 
vinte  artnos  occupava  vinte  e  mais  religiosos  ,  que  se  cm- 
pregavão  no  ensino  da  mocidade ,  alem  das  funções  do  seu 
ministério :  hoje  apenas  se  contão  nelle  quatro  velhos , 
que  edificando  os  povos  com  o  exercício  da  virtude  ,  não 
podem  pela  idade  e  moléstias  servir  ao  público ,  nem  a  si 
mesmos ,  faltando-Ihes  as  esmolas  para  se  manterem ,  e 
conservarem  o  mesmo  convento. 

§     3- 

O  local  da  villa ,  e  os  estreitos  limites  delia ,  faz  que 
tiâo  possa  subsistir  o  povo,  se  os  habitantes  da  terra  firme 
lhes  não  fornecem  a  carne ,  farinha ,  e  mais  géneros,  Deo 
motivo  áquella  tão  imprópria  situação  o  temor  dos  selva^ 
gens  y  que  de  continuo  insurgião  sobre  as  povoações ,  fre- 

chan- 


DAS   SclENCIAS   DE   LfSBOA.  ílt 

chando  ,  e  matando  quantos  encontraváo  ,  ou  quê  desacau- 
tcladamente  cahiao  cm  suas  mãos;  e  por  isso  se  refugia- 
rão na  pequena  ilhota , '  para  melhor  se  defenderem  ,  e  se 
livrarem  dos  horríveis  damnos ,  que  o  gentio  lhes  fazia, 
entrando  em  grandes  corpos  nas  pequenas  fazendas  ,  em  que 
cstavão  estabelecidos  alguns  colonos  ,  e  até  arrombaVao  as 
portas  das  capellas ,  erigidas  cm  Una,  c  M.ípcndipe  ,  es- 
palhando por  terra,  e  pi/.ando  as  sagradas  alfaias;  taes 
erão  os  Tupinambãs  ,  c  Amores  destemidos  ,  que  parecia 
se  dispunhão  a  acabar  e  destruir  todas  as  povoações  da 
terra  firme. 

§     4» 

Os  diuturnos  gemidos,    c  consternação  fatal  do  povo, 
os  lastimosos    accidentcs ,    que    todos   os   dias  assignalavao 
por  continuas  e  dcsastrozas  mortes,   aafflição,   e  a  dor  de 
muitas  famílias,   que  erão   forçadas  a  abandonar  as  suas  ha- 
bitações, chegarão    a  ter  fim,   logoque  o  Vicerei  o  Con- 
de   das    Galveas  ,    condoido    por  extremo  das  lagrimas  do 
povo  afflicto  ,  se  dignou  attender  á  reprezentação ,  que  lhe 
dirigio    a  camará    em  24    de  Fevereiro  de  173 1,    onde  se 
expunha  vivamente  o  grande  destroço ,  e  mortandade  ,  que 
os  bárbaros    acabavâo    de  fazer    naquelle     mesmo   tempo, 
nas   rossas  de  Francisco  AíFonso  da  Silva.  Mandou  o  Vice- 
rei   aos  Coronéis  da  conquista ,  que  com  as  tropas  do  pre- 
sidio do  Morro  ,  e  indios  mansos  atacassem  aquelles ,  que 
vagavão  nas  cabeceiras  das  matas ,    e  a  João  Ferreira  Riba 
encarregou    a  entrada  ,    paraque    se  estabelecesse  nas  cabe- 
ceiras   daquelles   destrictos  ,   formando  arraiacs  com  planta- 
ções   sufficientes    para    a    sustentação    das    pessoas ,    que  o 
acompanhavão ,    é  seguisse  ao  gentio,  todas  as  vezes,  que 
tivesse  noticia  dclle  ,  trazendo  sempre  huma  bandeira  ,  cor- 
rendo  todas  as  matas  para  embaraçar ,  pelo  menos  ,  aos  bár- 
baros   novos    assaltos.    E  paraque  o  projecto  na  execução  ^ 
não  encontrasse  algum  embaraço,  ordenou  aos  juizes,  eoíFu 

od  ii  ciaes 


ai%  MeMOBI^S.DA    ACA.DEMIA   RçAL 

ciaçs  da  camará ,  ^  4<ísí«pfíj  áquclle  eoronel  todaa  ajudsie  fa-» 
vor  para  aqucUe  estabelecimento  ;;  e  o  mesmo  fizesse  a  iQr 
4os.  os  officiaeS' de  milícias,  lembrando  áqucille  Jaão  Fer- 
reira Riba  a  expectação  em  que  ficava,  de  que  desempe- 
nharia tão  importantfiçommissão,  segurando  ser  Ihç  proce- 
desse nella  como  devia ,  e  elle  esperava  ,  o  havia  de  atten- 
der  pos  seus  requerimentos  ,  e  recommi:adar  na  Rçal  prc;» 
sença  Q^íSeu  préstimo,  e  merecimento ^  e  dss  mais  pesr 
soas  que  o  acompanhassem,  c  se  distinguissem  neste  servi- 
ço ;  advertindo-lhe  porcMii ,  que  por  nenhuma  maneira  fizes- 
se algum  exame  por  descobrir  ouro  naquellas  vjsinhanças  , 
em  distancia  menos  de  8o  Icgoas  da  bciramar ,  por  ser 
contra  as  ordens  de  S.  Magestade.  Com  estas  instrucções 
dcspedio  edito  coronel  em  22  de  Fevereiro  de    1736. 

§     S- 

Erão  instruídos  05  Índios  selvagens  do  estado  da  ter- 
ra por  aquelles  ,  que  se  intitulavão  mansos  ,  acornpanhan- 
do-os  :  taes  erao  pas  suas  incursões  hostis  os  indios  de 
huma  aldêa  estabelecida'  sobre  a  grande  propriedade  edifi- 
cada então  na  cachoeira  do  rio  de  Una  ,  que  possuia  o 
potentado  Sebastião  de  Pontes,  derrotada  e  perdida  com 
a  sua  prisão.  Aquclla  propriedade  se  ennobrecia  pela  sua 
grande  fabrica  de  assucar ,  e  outras  officinas  ,  alem  de  es- 
cravos,  tinha  no  seu  serviço,  humá  aldêa  de  indios.  Na- 
quelles  tempos  vinháo  as  charruas  ao  presidio  do  Morro  , 
c  na  paragem  chaniada  o  Curral  y  fundeavão  para  receber 
a  seu  bordo  as  Reaes  madeiras ,  qqe  se  cortavão  nas  ma- 
tas de  Una  e  Mapendipe ,  com  vigia  e  cautclla  ,  por  cau- 
za  do  gentio ;  e  como  succedesse  que  hum  dos  olficiaes 
da  charrua  olhasse  amorosamente  para  huma  das  mamelu- 
cas daquelle  Pontes  ,  este  surprehendendo-o  mandou  que  se 
lhe  marcasse  as  costas  com  huma  enchada  abrazada  de  fo- 
go. Aquelle  insulto  r  prezentado  ao  Senhor  Rei  D.  João  V, 
O  commandante  teve   ordem  para,  o  prender,  e  o  conse- 

guio 


dasScienciasdeLisboa.    "  ei5 

puio  atifliçoadoaicnte  apanhando  em  seu  bordo  ao  ditQ 
Pontes,  a  quym  rinlia  convidado  para  jantar,  c  logo  levan» 
tando  a  ancora  ,  c  soltando  as  velas  ,  navegou  pela  barra 
do.  presidio  do  Alorro.  Foi  então  que  aquelic  desgfíçado 
conheceu  o  engario ,  e  a  sua  perda  ;  a  cólera  se  manifestou 
no  !>cu  scniblantc  ,  a  indignação  se  revcstio  inutilmente  do 
seu  furor  ;  mas  o  infeliz  det-arxnado  se  abraidonou  á  dor, 
c  á  melancolia,  e  cm  poucos  dias  terminou,  comi  a  morte 
a  sua  infausta  carreira ;  daquelle  successo  se  originou  a  per- 
da da  propriedade,  o  dispcrsamcnto  dos  índios,  que  se 
unirão  aos  bárbaros  habitadores,  das  brenhas,  para  atacarem 
e  destruírem  aos  visinhos ,  que  abordavio  a   marinha. 

§      6. 

Pcrsuadio-se    o  Viccrci ,     que    povoando    as    cabecei- 
ras,    afugentaria    o  gentio  bárbaro,    ou  pelo  menos  emba- 
raçaria   suas  hostis  incursões :    para  conseguir  aquelle  fim  , 
nomeou    a  João    Vieira   de  A/.cvcdo    por  administrador  ,  e 
governador  das  aldêas    dos   indios  ,  que  pertendia  levantar: 
mandou   ao  capitão    mor    das  cinco  villas  então  existentes  , 
ao  ouvidor  da  commarca  ,  e  officiacs  de  milícias  dessem  aquel- 
le administrador   todo    o  favor    e  ajuda,    debaixo   da  pena 
de  serem  rigorozamente  castigados ,   se  deixassem    de  con- 
correr para  a  execução  do  que  para  aquelle  estabelecimento 
lhes    pedisse    o    dito    administrador.    Daqui    nascerão  for- 
marcm-se   bandos    de   aventureiros,    que  debaixo    de    seus 
chefes    particulares    se   cncorporárâo  para  atacar  os  indios , 
e  destruilos ,    e  de  cujo  expediente  se  valeu  Manoel  Fran- 
cisco dos  Santos  Soledade  para  alcançar  ,    como  conseguio 
por    doação    regia  ,   que  se  acha  no  caderno  que  sérvio  na 
villa    do  Cairú    no    anno  de  1741  a  f,   134,  40  legoas  de 
matas,    por    provisão  datada  em  Lisboa  a    19  de  Abril  de 
17:59,  a  qual  foi  posteriormente  invalidada  pela  Real  reso- 
lução   tomada   no  Conselho   ultramarino  em  37  de  Março 
de   i???,   tendo  precedido  a  informação  do  Conde  de  Ar- 
cos ,   Vicerei    do  Brazil ,   e  respostas   dos  procuradores  ré- 
gios, 


114  Memorias  ha   Academia  Reai, 

gios,  tomando-se  por  fundamento  daquella  Real  resolução 
que  nao  podião  ser  profícuas  as  mercês  mencionadas  na 
provisão  e  decreto  de  17  de  Abril  de  1739,  por  serem 
aquellas  de  contracto  onorozo ,  que  obrigava  igualmente 
a  ambas  as  partes  estipulantes,  que  cada  hum  devia  á^r 
satisfação  do  que  se  sujeitava  ;  e  como  aquclle  Manoel  Fran- 
cisco não  tinha  satisfeito  da  sua  parte  com  o  descobrimen- 
to das  minas,  a  que  se  obrigara,  e  re/ultasse  damno  con- 
siderável aos  moradores  contíguos  ,  e  á  Coroa  ,  a  quem  per- 
tenciâo  as  terras,  não  devia  proceder  áquclla  doação,  e 
mais  antes  se  devia  pôr  cota  nella ,  para  não  produzir  mais 
algum  effeitj  sensivej. 


Segurou  a  camará,  e  principaes  do  paiz  ao  Viccrei, 
o  prestarem-se  á  sustentação  dos  indios  por  hum  anno  , 
logoque  elles  se  aldeassem  nas  cabeceiras  das  matas ,  e 
lhes  consignaria  também  huma  legoa  de  terras  para  a  cul- 
tura de  mandioca.  Não  podendo  o  Vicerei  fundar  as  po- 
voações,  que  dezejava  ,  sem  afugentar  os  indios,  se  em- 
penhou na  sua  destruição  ;  engrossou  os  corpos  armados , 
que  partirão  com  os  indios  Cariris  a  explorar  as  matas : 
unio  a  estas  forças  a  aldêa  dos  indios  do  rio  de  Contas , 
conduzida  pelo  missionário  Fr.  Bernardino  de  Milão ,  ca- 
puchinho italiano,  e  seu  capitão,  por  nome  Adâò  ,  os 
quaes  encontrando  os  Amores,  e  Tupinambás ,  atacou,  ma- 
tou, e  afugentou.  Appareceo  morto  entre  elles,  hum  paren- 
te daquelle  indio  Adão  ,  o  qual  chorando  ,  e  dando  gran- 
des urros  pela  morte  do  seu  parente  ,  prometteo ,  logoque 
alliviasse  a  sua  dor,  de  hir  buscar  os  indios,  que  até 
então  se  tinhão  mostrado  inimigos,  paraque  vivessem  pa- 
cificados com  os  portuguezes ,  segurando  que ,  se  dentro  em 
4  luas  não  viesse,  temessem  o  despique,  que  os  indios  cos- 
tumão  tomar  da  injuria  na  guerra  recebida :  pouco  depois 
se   embrenhou   nas  matas  cora  os  seus  dois  filhos  Bernabé 

Dias  , 


nAs  SciEWciAS  n  e  Lisboa.  2ij 

Dias,   e  Pedro    Dias,  e  seus   dois    sobrinhos  Leonardo  ,  ç 
Domingos  Geraldo  a  demandar  o  gentio. 

§     8. 

Com  a  partida  daquellcs  índios,  impacientes  fica'râo 
os  moradores  pelo  êxito  do  bom  succe^^so ,  que  csperavão 
ter,  se  Adão  c  seus  companheiros  podessem  reduzir  e  ca- 
pacitar tão  poderosos  inimigos,  a  receberem  a  paz  e  ami- 
zade dos  portuyuezcs  :  espalhao-se  assustadoras  vozes ,  ora 
da  nova  insurreição  hostil  dos  itidios  bravos ,  ora  da 
desgraçada  morte  de  Adão  e  seus  companheiros ,  que  ti- 
nhão  sido  devorados  pelos  ferozes  ,  c  dcshumanos  Amores , 
quando  punhao  só  nelle  a  sua  esperança  ,  e  confijnça  Cor- 
reo  velozmente  o  tempo ,  o  prazo  da  promessa  se  encheo  , 
quando  hum  novo  sobrcsalto  cobre  todos  os  ânimos  da  pa- 
lidez da  morte,  pelo  constante  ecco  dos  urros,  e  algazar- 
ras dos  Índios,  que  de'  todas  as  partes  retumbava  nas  ma- 
tas; porém  de  repente  se  converteo  a  dor  em  gritos  de 
alegria  ;  poisque  erão  já  vindos  os  mensageiros  de  Adão , 
seguidos  de  hum  grande  numero  de  selvagens ,  que  pc- 
dião  a  paz ,  e  vinhão  deliberados  a  habitarem  pacificos  o 
paiz  ;  então  os  povos  tumultuosamente  largao  as  cazas  j 
e  correm  ao  lugar  do  rio  de  Una  ,  que  de  Repartimeuto  se 
intitula  ,  a  esperar  c  receber  os  hospedes  ,  que  hiâo  chér 
gando ,  e  conduzirão  grande  copia  de  mantimentos  para  sa» 
ciar  a  voraz  h)me  dos  bárbaros,  de  bugigangas  ,  que  elle* 
aprccião  ,  como  fosse  ,  facas  ,  espelhos  ,  machados  ,  &c.  Se- 
guirão os  portuguezes  os  capuchinhos  italianos ,  recomen- 
dáveis pelas  suas  virtudes  ,  o  Padre  Fr,  Francisco  de  Jesus 
Maria,  e  Fr.  André  no  dia  2  de  Novembro  de  lyjó,  três 
legoas  marcharão  acima -tdò  lugar ,  onde  depois  a  aldéa , 
entre  vivas  de  alegria  foi  kvãntada ;  e  alli  o  Padre  Fr.  Fian* 
cisco  disse  três  missas ,  e  de  então  até  hoje  se  ficou  cor», 
servando  a  lembrança  do  succesfio,  chamando-se  aquelie  lú* 
gar  as  três  missas.  Ahi ,  pcl*  vez  primeira ,  a  cru?  do  SaU 

va- 


Ii6  Memorias  da  Academia  Real 

vador  foi  levantada ,  c  os  olficios  divinos  se  celebrarão  com 
grande  devoção  dos  portuguezes ,  c  corti  admiração  ,  e  es- 
panto dos  bárbaros  ,  que  tiverão  sempre  cm  graiidc  vene- 
ração aquelles  barbadinhos. 

§     9' 

Foi  escolhido  para  o  lugar  da  estabilidade  da  aldêa 
aquelle  ,  que  de  S.  Fidelis  tomou  o  nome ,  e  patrocínio  , 
onde  se  conservarão  pouco  tempo  os  novos  habitantes  ;  por 
que  estranhando  os  alimentos  salgados  ,  e  sobrcvindo-lhes 
as  bexigas  ,  pereceo  huma  grande  parte  ,  fugirão  muitos 
outros  para  os  certócs ,  o  restante  se  foi  acostumando  aos 
alimentos,  e  trato  com  os  índios  mansos  c  portuguezes; 
de  sorte  ,  que  ainda  prezentemente  existem  alguns.  Adão 
se  contentou  com  a  pequena  remuneração  que  pcdio  ,  de 
que  se  passasse  a  seu  filho  Bcrnabé  .a  patente  de  capitão 
mór  daquella  povoação,  que  lhe  foi  permittido ;  e  succe- 
deu  por  falecimento  daquelle  ,  no  posto  vago  ,  João  Ri- 
beiro, e  depois  José  Ribeiro,  o  qual  ainda  vive  :  este  indo 
cazuaimente  com  os  seus  camaradas  ver  as  suas  rossas, 
sentindo  o  rasto  da  passagem  ,  dos  pataxos  ,  os  seguio , 
vendo-os  os  atacou  ,  matou-lhes  dez  pessoas  ,  e  aprizionou 
sete ,  que  forão  remettidos  ao  governador ,  que  então  era 
da  Bahia  ,  o  Excellentissimo  Manoel  da  Cunha  e  Menezes , 
o  qual  os  fez  logo  repartir  pelas  melhores  cazas  da  cida- 
de para  os  educar. 

§       IO. 

Esta  he  a  origem  do  estabelecimento  da  interessante 
aldêa  de  S.  Fidelis  ,  situada  huma  legoa  acima  da  povoa- 
ção da  villa  do  rio  de  Una  :  a  ella  se  deve  a  prosperida- 
de dos  habitantes  da  terra  firme  ,  e  o  prodigioso  augmen- 
to  da  lavoura ,  e  a  actividade  do  commercio  dos  cortes 
de  madeiras.  Os  capuchinhos  italianos  dirigirão  por  muitos 
annos  aquella  aldêa ,   e  muito  trabalharão  na  sua  civilização 

in- 


J)AS    SclENCIAS    DE    LiSBDA.  ÍI7 

intioduzindo-Ihes  o  amor  do  rraBalho  da  lavoira ,  co  pia, 
zcr  da  crcação  dos  gados*  Forão  substituídos  em  seu  lu- 
gar clérigos  scciílaics:  nao  se  vê  hoje  na  aldca,  que  a 
pintura  da  sua  primeira  barbaridade.  Elles  são  óptimos  ca- 
rapinas  de  machado  (carpinteiros),  e  os  unieos  que  valo- 
rosamente descem  os  importantes  vinhaticos  ,  e  putumujús 
t  loiros ,  de  que  as  matas  copiosamente  se  vestem  ,  c  da- 
quelles  páos  tira  a  Real  construcçao  muito  proveito,  e  ri- 
queza os  povos ,  que  com  os  mesmos  traficão.  Tiverão 
hum  parocho  ,  por  nome  António  Nogueira,  que  em  to- 
das aquellas  matas  deixou  seu  nome  recommcndavel  pelas 
suas  virtudes  ;  mas  a  frcguezia  se  abolio  ,  com  a  cre;içáo 
da  do  Coração  de  Jesus,  da  villa  nova  de  Valença;  e 
ellcs  forão  reduzidos  á  desesperação  ,  não  se  lhes  conce- 
dendo ao  menos  hum  coadjuctor;  e  por  esta  cauza  vão  de- 
zertando  para  Jequiriçá;  c  o  cabido  da  Sé  metropolitana 
insensivcl  ás  suas  lagrimas,  e  representações,  depois  da 
morte  do  seu  santo  prelado ,  os  deixou  persuadidos  de 
que  não  tcrião  jamais  os  soccorros  espirituaes  ,  que,  co- 
mo filhos  da  igreja  ,  buscavao  com  o  maior  afinco  ,  e  o 
Real  serviço  sente  já  por  isso  huma  grande  falta  de  bra- 
ços ,  por  tão  frequentes  dezerções  para  outros  lugares. 


1 1. 


Firmada    a  paz    e  amizade    dos    indios  com  os  mora- 
dores ,    que    habitavão    os  paizes    próximos    á  marji.ha ,  a 
agricultura   tomou  logo  novos  alentos ,  e  os  cortes  de  ma- 
deiras se  fizerão  amplamente  ,  sem  se  poupar  algum  género 
de  esforço.    Tinha    naquelles   primeiros   tempos  o  governo 
jnandado    estabelecer  huma  feitoria  nas  margens  do  rio  de 
Una,    e  em  Mapendipe,    paraonde  forão  assistir  os  mes- 
tres ,    e  falquejadores  ,    os  quaes  erao  eficazmente  protegi- 
dos   no  governo   do  Excellentissimo    Manoel    da  Cunha  e 
]Menezes ;    os    cortes    forão   então  abertos   desde  Jequiriçá 
até  Jcquié  :  aquelle  ramo  de  industria  deo  grandes  soccor- 
Totno  IX  EC  ros. 


41?  Memorias  da  Academia  Real 

ros ,  que  empregavão  nâo*só  os  seus  escravos  naquelles  ser- 
viços do  mato  ,  mas  aiigmentárao  ,  c  propagarão  a  crcaç.lo 
dos  gados  para  os  arrastos  dos  pa'os  ;  c  cííCc  era  o  seu  mais 
nobre  emprego  5  poisque  nenhuma  das  authorizadas  no 
paiz  ,  deixaváo  de  lavrar  os  páos  com  os  seus  maciíados  , 
e  de  se  armarem  das  aguilliadas  ,  para  conduzirem  os  bois 
para  os  arrastos  dos  mesmos  páos  ,  c  até  seiravao  com  os 
seus  escravos  os  diíFerentes  páos  cm  taboados  ,  para  a  ven- 
da pública  delles.  As  sommas  ,  que  se  rcmcttiao  da  Bahia  , 
para  a  satisfação  dos  serviços  feitos,  vigorizarão  por  tal 
maneira  as  faculdades  dos  moradores  ,  que  cilcs  se  applieá- 
rão  á  lavoira  com  todo  o  afinco  ,  c  esta  a  primeira  época 
do  seu  nascimento  neste  paiz,  e  a  principal  fonte  da  sua 
riqueza. 

§     ia. 

Os  dizimes  se  augmentárão  extraordinariamente  ,  c  os 
administradores  obtiverâo  imprevista  liqueza  :  os  artigos 
da  lavoira  consistião  na  mandioca ,  e  na  plantação  do  ar- 
roz de  Veneza ,  cuja  colheita  chegou  a  produzir  mil  alquei- 
res de  dizimo ,  e  a  exportação  somente  deste  género , 
chegou  ao  valor  metallico  de  vinte  contos  de  reis,  e  ainda 
mais ;  a  da  farinha  da  mandioca ,  não  foi  tão  considerável. 
A  nova  cultura  do  café  tem  periodicamente  crescido  com 
a  emulação  dos  vizinhos,  e  com  a  sabida  nos  mercados 
na  Bahia,  e  a  sua  colheita,  anda  hoje  de  S  a  10  mil 
arrobas,  c  se  vende  no  principio  delia  a  1280  ,  e  a  1600, 
e  depois  chega  a  ifóo,  e  3200  na  porta  do  lavrador.  As 
plantações  da  pimenta  da  índia,  caneleiras  por  mim  intro- 
duzidas ,  vão-se  felizmente  propagando ;  e  em  poucos  an- 
nos  emulará  i  exportação  aziatica,  com  grande  proveito 
das  nossas  colónias.  As  madeiras  constituem  o  maior  trafi- 
co dos  povos ;  a  exportação  para  a  Bahia  no  anno  de 
1800  se  contava,  entre  mastros  grandes,  e  pequenos, 
e  raastareos  e  vergas  z5'3  páos  ;  entre  frexaes  e  vigas  azjjo; 
ripas  de  camassares  1427  dúzias  j  taboados  de  loiro ,  vi- 
nha- 


DAS    SciENCIAS    DE    LiSBOA.  219 

nhatico  ,  e  oiti  doze  mil  e  oitenta  e  quatro  dúzias;  car- 
radas de  caixaria  19^,  duas  mil  arrobas  de  estopa  da  ter- 
ra cxtrahida  da  casca  do  páo  ,  chamado  biriba  ;  440  feixes 
de  piassaba  ,  e  12  barcadas  de  casca  de  mangue.  Não  cn- 
trão  nesta  exportação  aquellas  das  madeiras  de  construcçao 
dos  navios  de  S.  Mngestade ,  c  somente  as  do  commercio , 
que  o  seu  valor  mctallico  monta  mais  de  trinta  contos  déreis. 

§      13- 

Suppos^oque  os  cortes  das  madeiras  tenlião  ,  ha  qua- 
zi  hum  século,  aberto  no  paiz  incxgotaveis  fontes  da 
sua  riqueza  ;  comtudo  ainda  aquelles,  hoje  se  praticao  sem 
alguma  arte:  indistinctamente  se  mette  o  machado  no 
tronco  das  monstruozas  arvores  ,  que  cahindo  ,  levâo  com- 
sigo  muitas  outras ,  c  ordinariamente  adquirem  grandes 
fendas  no  violento  choque  da  sua  estrondoza  queda  ,  fican- 
do algumas  vezes  inteiramente  perdidas ,  mormente  na 
occa2Íão  do  seu  cio:  não  procurão  decepar  os  galhos , 
que  prcstão  excellentes  peças  para  braços  e  cavernas ,  e 
a  maior  parte  se  partem  na  queda  das  arvores.  A  incompre- 
hensivel  força  dos  cabos  frescos  da  palmeira  jussára  ,  tal- 
vez facilitasse  os  meios  de  abater  a  força  da  arvore  corta- 
da ,  fazendo  a  sua  queda  mais  doce.  O  tronco  ,  que  ainda 
resta  sobre  a  raiz ,  reduzido  a  huma  superficie  plana  ,  cura- 
da a  grande  chaga  com  o  çumo  de  tanxagem  ,  e  bosta  de 
boi ,  pode  ainda  ser  aproveitada  nos  futuros  tempos  ,  con- 
servados os  renovos ,  quantos  forem  necessários  á  conser- 
vação da  nova  arvore. 

§     14- 

Assimcomo  a  natureza  de  sua  própria  mão,  plantou 
sobre  as  montanhas  do  Hartz  ,  na  baixa  Alemanha ,  nos 
Alpes,  Perineos,  nos  montes  Jura  ,  nos  Vorges ,  Borgo- 
nha, Forez ,  e  Auvergne,  as  bellas  arvores,  cuja  situação 
he    favorável    á  sua   espontânea    reproducçãoj    também  na 

EC  ii  Arae- 


220  Memorias  da  Academia  Real 

America  ,  tanro  ao  norte ,  como  ao  meio  dia ,  nas  caxleias 
das  montanhas ,  que  por  cordilheiras  são  conhecidas ,  situou 
eternos  bosques,  que  se  renovão  sem  cessar  de  si  mesmos, 
sobre  terrenos  montanhosos,  indicando-nos  que  a  natureza 
e  clima  dellcs  contêm  hum  principio  favorável  á  sua  exis- 
tência. Os  homens  porém  do  Brazil  acostumados  a  rece- 
ber tudo  çem  trabalho  do  seu  delicioso  clima  ,  julgao-se 
dispensados  de  unir  os  seus  esforços  áquclles  de  huma  na- 
tureza tão  liberal.  Assimcomo-  aquclla  sabiamente  promo- 
ve 3  existência  de  novas  gerações  para  substituir,  as  que 
acabão  e  morrem  ;  porque  seremos  insensiveis  ao  seu  mo- 
do de  obrar,  deixando  de  cultivar  em  viveiro,  todaá 
quantas  espécies  de  arvores  são  úteis  ,  examinando  pelos 
seus  passos  a  infância,  adolescência,  e  velhice,  bemco- 
mo  as  suas  enfermidades ,  e  cauzas  que  as  produz  ,  o  que 
pode  prevenir  o  mal ,  e  curalo.  Nesta  escola  as  recompen- 
sas ,  que  o  governo  julgasse  próprias,  attrahiria  entendi- 
dos agricultores ,  cuja  prática  formaria  discipulos ,  que 
perpetuassem  na  sua  feliz  posteridade  a  sabedoria  ,  e  in- 
dustria. Seria  muito  conveniente  ordenar  não  se  fazer  al- 
gum corte  das  arvores  ,  sem  substituirem  aquellas  por  ou- 
tras plantadas ;  e  até ,  que  os  proprietários  fossem  constran- 
gidos a  cercarem  as  margens  das  estradas  ,  onde  estão  si- 
tuadas as  suas  fazendas  ,  com  arvores  de  construcçao  :  pro- 
videncias ,  que  nas  futuras  épocas  se  conheceria  a  impor- 
tância ,  e  emendaria  os  males  provenientes  da  mal  calcu- 
lada avareza  dos  colonos  ,  e  da  sua  ignorância. 

§     if. 

Convém  todos  os  agrónomos,  em  que  os  meios  favo- 
ráveis á  reproducçâo  dos  bosques  consistem  na  plantação 
das  arvores  em  caminhos  públicos,  nas  bordas  das  fazendas 
dos  particulares ,  e  nas  terras  vagas ,  e  devolutas.  Vê-se 
por  isso  na  França ,  e  nos  Paizes  baixos  as  estradas  povoa- 
das   de    arvores ,    sobre    hum    plano    regular    e  seguido : 

achâo- 


DAS   ScIENCIAS   DE    LiSBOA.  121 

nchão-se  por  todos  os  caminhos  arvores  raras  ,  plantadas , 
níío  ao  acazo ,  mas  por  luima  bcmfeitora  mão.  A  Inglaterra 
tem  tambcm  ordenado  e  feito  plantar  as  suas  estradas  de 
úteis  arvoredos  ,  e  todo  o  mundo  admira  aqucUcs  estabele- 
cimentos ,  que  dão  honra  c  riqueza  ao  paiz  ,  oíFerecendo 
aos  viajantes  a  mais  piauzivel  vista,  que. subministrão  as 
arvcres ,  alem  de  os  cobrir  dos  ardores  do  sol ,  e  impetuozi- 
dade  do  ar.  As  propriedades  cercadas  de  arvores  de  con- 
strucção  adquiririão  hum  inestimável  valor  ,  poisque  fornc- 
ccriiío  páos  duros  ,  debaixo  de  diffcrcntcs  formas  para  o 
serviço  da  marinha.  Todos  sabem  ,  que  Flandres  e  Brabante 
por  aquclle  meio  subministrão  á  Europa  os  melhores  páos  , 
que  fírmão  a  sua  riqueza  ,  e  que  os  seus  proprietários  re- 
zervão  para  os  momentos  das  suas  necessidades ,  ou  para 
o  estabelecimento  de  seus  filhos.  Adoptando-se  aquelle  me- 
thodo  de  cultura  dos  bosques ,  se  faria  desnecessária  a 
plantação  das  terras  devolutas ,  pelo  grande  trabalho  da 
extinção  das  formigas,  e  más  hervas ,  que  nellas  espanto- 
zamentc  se  propagão. 

§     16. 

Crescendo  a  destruição  das  matas  com  o  progressivo 
augmento  da  lavoira ,  assolando-se  bosques  immensos  a 
ferro ,  c  a  fogo ,  entrarão  os  governadores  e  capitães  ge- 
ncracs  a  dirigirem  reprezentaçõcs  ao  throno ,  exigindo-se 
providencias  as  mais  efficazes ,  para  conter  os  lavradores  j 
e  appareceo  huma  provizão  do  Real  Erário  de  28  de  Ju- 
lho de  i/Sf,  que  entre  outros  objectos,  recommendava  á 
junta  da  fazenda  da  Bahia  ,  que  recorresse  ao  governador , 
para  impedir  aos  lavradores  de  Nazareth  a  destruição  das 
matjs:  cxpedio-se  depois  huma  carta  regia  de  13  de  Mar- 
ço de  1797  ,  de  que  já  se  fez  menção,  que  ordenava,  se 
formalizasse  hum  plano,  que  emendasse  os  passados  damnos, 
e  acautelasse  para  o  futuro  se  não  commetessem  novos. 


i2i  Memorias  da  Academia  Reai. 

§      17- 

Estava-se   na   suppoxiçao    de    haver    ainda    inatas    não 
doadas    em    sesmaria   nos    dcstrictos  dos    cortes  ,    e  outras 
doadas  ,    c  queria    o   governo  ,     que    jamais    se   desse    em 
sesmaria  aquellas  ,  e  que  as  outras  revertessem  para  a  Co- 
roa ,    informando    o   governador  da   indemnização,    que   se 
fazia    praticável.    As  pessoas    nomeadas  na  dita  carta  regia 
pársí  3  organização  do  plano,  julgarão  comprehensiveis  na 
sua'   dispozição    as   matas  ,     que    dccorrião    de   Mapcndipe 
ate  Pinaré,    c  as  do   rio  Aqui  até  Belmonte  do  sul  da  Ba- 
ilia";  e  as  propu/erão    para    serem  coutadas  para  as  Reaes 
construcçóes.  Surgirão   immediítamente  algumas  reprezenta- 
ções  de  proprietários,  sem  outros  titulos,  que  os  de  possuí- 
rem   por  diíFerentes  transacções  ,    que  tiverão  principio  na 
posse  natural,  que  tomarão  os  primeiros  possuidores ,  der» 
rubando    as  arvores ,    e  fazendo  plantações  ,  ou  por  terem 
entrado    nas    matas    em'  procura    do  gentio  Amoré,  Tupi- 
nambás ,   e  ainda   dos    Pataxós ;   e  conseguirão    por    deter- 
minação   Real    o  serem    novamente  ouvidos ,    e  de  se  não 
impor  nas  suas   propriedades  algum  ónus  ,    sem   ter  havido 
huma    pozitiva.  e  Real  ordem.  Mandou  o  ExccUentissimo 
governador  D.  Fernando  Jozé  de  Portugal  ,  a  quem  tão  im- 
portante   negocio    foi  commcttido  ,    que  fossem  elles  con- 
servados   nos  seus  titulos ,    e  permittio-lhes  o  uzo  das  ma- 
deiras   achadas  nas  matas  coutadas ,    e    finalmente    toda  a 
faculdade. ,    que    d'antes   plenamente   gozavao    de   entrarem 
nas  matas,  e  de  praticarem  todo  o  género  de  assolamento; 
e  dando  conta  das  novas  dispozições,    que   alteravão  as  do 
nlano  já  provizoriamente  approvado  na  carta  Regia  de    1 1 
do  Julho    de     179^.    Ainda    pende    a  sua    approvação  da 
Real  vontade. 

§      18. 

Dcsdcque  por  carta  Regia  de  a  de  Janeiro  de  1666 

se 


DAS    SciFNClAS    DE    LiSBOA-  225 

se  mandou  estabelecer  por  Sebastião  Lambert  huma  fa- 
brica de  fragatas ,  se  uzou  impôr-sc  nas  propriedades  ,  o 
ónus  de  conservarem  os  seus  proprietários  (js  páos  chama- 
dos ãe  lei.  A  conservação  das  matas  he  hum  objecto  de 
tanta  importância ,  quanta  he  a  do  estado ,  tjue  não  pode 
fundar  a  sua  prosperidade  ,  ícm  manter  a  marinha  Real , 
e  mercantil :  a  irreparável  perda  dos  monstruozos  páos 
queimados,  e  perdidos  para  a  marinha  e  serviço  público", 
seria  mais  que  justificado  motivo,  para  se  tomarem  medidas 
seguras  de  embaraçar  o  progresso  das  derrubadas  ;  quanto 
mais,  que  da  conservação  das  matas  depende  a  fertilida- 
de do  paiz  ,  pelos  methcoros  e  cffluvios  terrestres  ,  que  el- 
las  produzem  ,  e  que  dão  nascimento  ás  periódicas  chuvas, 
que  deixando  de  cahir ,  e  de  regar  a  terra ,  tornarão  os 
bellos  terrenos  áridos ,  e  infecundos  ;  matará  a  seca  os  ani- 
maes  ,  com  grandissima  perda  dos  lavradores ,  e  da  subsis- 
tência dos  povos ,  tornando-se  as  povoações  em  espantozos 
dczcrtos. 

§      19. 

Vemos  na  França  ,  desde  o  Rei  Filippe  em  1318  im- 
portantes regulamentos  para  a  conservação  das  matas  ,  que 
servirão  de  baze  ás  legislações  de   1388,   1402,    e  1515". 
Fizerão-sc    outros   em    1669  no  titulo  21  ,    a  respeito  dos 
páos   Reaes,    e  nos    titulos    24   e  26    sobre  aquelles  dos 
particulares,  e  corpos  de  mão  morta,  e  determinou  a  sen- 
tença do  conselho  de  7  de  Setembro  de  1692  não  se  transpor- 
tassem os  páos  por  mar  ,    ou  terra ,  sem   pagar  os  devidos 
direitos ;   e  estabeleceu   outra    sentença    do    dito  conselho 
em  27  de  Setembro  de  1700  -as  formalidades  ,    que  se  de- 
vião    praticar  com  os  páos  da  marinha  ,   prohibindo-se  por 
outra    de  23  de  Julho  de  1748  ás  corporações   ecclesiasti- 
cas ,    seculares ,    regulares  ,    e  leigos ;    e  ainda     aos    parti- 
culares proprietários  cortarem  as  arvores  dos  bosques  ,  que 
tivessem    a  marca   do  martello  da  marinha.  Creárão-se  em 
27   de  Setembro  de  1776  engenheiros  constructores ,   es» 


2*4  Memorias  da  Academia  Real 

palhados  pelo  reino ,  que  tinhão  debaixo  das  suas  ordens 
os  mestres  c  contramestres  ,  para  indagar  os  pa'os  nos 
departamentos  ,  que  se  lhes  assignalava  ;  c  aqucllcs  ,  que 
devião  fazer  objecto  dos  seus  exames,  forao  dcclaiados  no 
artigo  5-.°  da  sentença  do  conselho  de  28  de  Setembro, 
pela  qual  os  proprietários  dos  bosques ,  situados  seis  Ic- 
goas  das  ribeiras  navegáveis ,  e  quinze  do  mar  ,  não  abri- 
riio  nellas  cortes  ,  se  seis  mezes  antes  não  fizessem  as  suas 
declarações  no  respectivo  tribunal  dos  bosques  ,  onde  os 
páos  existiao,  mencionando  a  quantidade,  qualidade,  es- 
sência ,  situação  ,  distancia  do  mar ,  ou  ribeiras  navegá- 
veis,  debaixo  da  pena  de  três  mil  libras  (48o(^  rs.)  de 
condemnação ,  e  confiscação  dos  paos  cortados. 


J 


20. 


Assim  legislou  tão  grande  nação  no  zenith  da  sua 
gloria  ,  e  na  situação  a  mais  perigoza  da  republica  ;  quan- 
do por  motivo  das  calamidades  públicas,  se  propoz  a  ven- 
da do  bosque  de  Brest,  com  pena  de  morre,  se  prohibio 
fazer-se  huma  tal  propoziçao  ,  e  apenas  o  primeiro  côn- 
sul recebeo  o  poder ,  que  o  povo  ,  e  o  senado  lhe  confe- 
rio ,  creou  conservadores  das  matas.  He  da  sua  conserva- 
ção que  o  Papa  ,  e  tantos  outros  príncipes  tirão  immen- 
sas  rendas ,  e  florecem  em  seus  Estados. 


21- 


Creárão-se  por  cartas  regias  de  n  de  Julho  de  1799 
as  conservatórias  dos  Ilheos  ,  e  das  Alagoas  ;  não  se  fixou 
a  competente  jurisdição  daquelles  novos  magistrados  ,  que 
devem  ser  formados  pelos  estudos  agrónomos ,  connexos 
com  os  da  botânica ,  geometria  ,  fizica  das  arvores  ,  e  ar- 
chitectura  naval ,  para  adiantarem  os  conhecimentos  de 
huma  tão  nobre  sciencia ,  e  forão  reduzidos  aquelles  em- 
pregos ,  ou  a  mandarem  cortar  os  páos ,  que  se  lhes  encom- 

men- 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOÁ.  llj* 

tnenilava,  ou  a  comprarem  os  já  falqucjados  ,  segundo  as 
cncomincndas  c]uc  lhes  são  dirigidas.  E  estes  jamais  podem 
ser  os  fins  daquella  creação ;  porque  então  qualquer  car- 
pinteiro as  desempenhará.  A  palavra  conservador  está  incul- 
cando o  seu  destino  de  conservar  as  matas  ,  de  melhorar 
o  estabelecimento  dos  cortes,  por  luminozos  princípios j 
que  faça  ,  que  os  páos  cortados  sejao  não  somente  da  boa 
qualidade,  e  em  perfeita  sezão  derrubados,  quando  já  se 
não  espera  que  cresção  mais ,  e  que  tendem  a  adoecer ; 
como  aproveitar  todas  as  peças,  que  as  bellas  arvores  pos- 
são  produzir,  conservando  a  flexibilidade  das  suas  fibras  ^ 
sua  compatibilidade  c  dureza  ,  conservar  os  gados  para 
os  arrastos  dos  páos  ,  conhecer  as  suas  enfermidades  ,  tra- 
tar das  mesmas.  O  carbúnculo  dcstroe  nos  destrictos  dos 
cortes  boiadas  inteiras,  e  ordinariamente  quando  sobrevem 
aos  ardentes  calores  copiozas  chuvas  das  trovoadas  ;  a  ou- 
tras boiadas  sobrevem  horríveis  diarréas,  pelas  quaes  cahem 
em  mortal  desfalecimento,  que  a  morte  termina:  crião 
outras  grandes  papeiras ,  e  emagrecem  por  tal  maneira  ^ 
que  se  não  podem  levantar ,  atéque  os  Urubus  festejão 
a  sua  morte,  devorando  seus  definhados  cadáveres:  alguns 
bois  estando  gordos  tremendo  ,  cahem  e  morrem  repenti- 
namente. As  hervas  venenozas  ,  os  silvestres  fructos  produ- 
zidos nas  costas ,  que  de  Gairus  tem  o  nome ,  os  mata 
também  subitamente. 

§       2  2. 

He  inteiramente,  no  paiz  ,  desconhecida  a  arte  vete- 
rinária. ^Qi.ianto  não  serião  úteis  os  seus  conhecimentos? 
As  veterinárias  escolas  de  Leão,  c  de  Charenton  ,  que  vas- 
tas instrucções  não  derão  aos  habitantes  da  França  sobre 
tão  importante  ramo  da  agricultura  económica  ^  Mas  se 
«ntre  nós  muitos  sábios  ignorão  até  a  existência  de  tacs 
artes,  ^- como  saberão  os  lavradores  ignorantes,  c  mizera* 
veis  ?  Deve  sem  dúvida  olhar-se  com  grande  attcnção  o 
Tomo  IX.  Ff  tra- 


iiô  Memorias  da  Academia  Real- 

tratamento  dos  animaes  ,  e  promover-se  n  cultura  das  gra- 
mas não  só  naturaes ,  mas  também  daquellas ,  que  se  tem 
climatado  ,  como  seja  o  capim  de  Guiné  ,  que  tão  avida- 
mente com  preferencia  ás  mais  gramas  ,  buscao  assim  os 
animaes  vacuns,  como  os  cavallarcs,  para  se  saciarem, 
e  com  que  cngordão  extraordinariamente. 

§     23- 

A  preguiça,  e  indolência  tom-se  dado  as  mãos  neste 
paiz  para  não  serem  soccorridos  ,  nem  tratados  os  animucs; 
e  algumas  vezes  os  acompanha  também  a  superstiçíío  ,  pa- 
ra obstar  aos  variados  objectos  da  sua  industria.  Todo  o 
gado  dos  diversos  particulares  he  largado  em  pastos,  que 
não  cultivão ,  nem  cercão  os  próprios  donos,  ou  com  li- 
moeiros ,  ou  cajueiros  ,  que  fariao  cercas  defensáveis  ,  e 
uceis  á  sustentação  dos  animaes  ,  que  saboreão-se  daqucllcs  fru- 
ctos:  os  animaes  soltos  sem  pastor,  que  os  vigie,  e  guar- 
de ,  não  encontrando  sufficiente  grama  espontaneamente  re- 
produzida nos  pastos  ,  ou  cazualmente  encontradas  nos  pe- 
quenos capões  ,  que  capoeiras  se  intitulão ,  correm  as  cos- 
tas do  mar  para  buscarem  os  fructos  silvestres  :  não  dor- 
mem recolhidos ,  nem  se  lhes  dá  alguma  ração  :  quando 
são  vistos  com  bixeiras ,  que  as  varejas  depõem  sobre  qual- 
quer ferida ,  ou  ranhadura  ,  ou  que  os  bizouros ,  e  os  ver- 
mes ,  e  os  morcegos  lhe  cauzárão ,  são  então  felizmente 
curados  com  o  sumo  da  herva  conhecida  vulgarmente , 
por  tinheirão ,  a  qual  expremida  com  o  sumo  da  laranja  da 
terra  mata  immediatamente  osbixos:  unta-se  depois  a  fe- 
rida com  a  manteiga  da  bicuiba ,  ou  azeite  delia ,  ou  com 
alcatrão. 

§     34« 

Empregão  também  para  aquelle  fim  meios  supcrsti- 
ciozos ,  e  de  que  se  persuadem  conseguir  bons  eíFeitos  pe- 
la formula  seguinte  :   tendo  ,  por  exemplo  ,  hum  tal  boi  hu- 

ma 


DAS   SCIENCIAS     DE    LiSBOÀ,  «2^ 

ma  bixcira  na  parte  direita  j  cu  esquerda,  ou  em  outro 
qualquer  Jugar  «♦  Bixos  mãos,  que  comeis,  c  a  Deos  não 
»  louvais,  amaldiçoados  sejais  de  Deos,  e  da  Virgem 
>j  M?.ria ,  de  S.  Pedro  c  S.  Paulo,  e  todos  os  santos  da 
»  corte  do  ceo  ,  que  em  três  horas  caião  todos  ,  e  não 
»>  produzão  mais  »  Com  esta  reza  ,  que  repetem  por  rres 
vezes,  e  outras  tantas  benzendo,  e  rezando  três  Padre 
nossos,  três  Ave  Marias,  e  três  Gloria  Patri  ,  á  morte 
e  paixão  de  Jcsu  Christo,  crêm ,  que  os  bixos  cahcm ,  e 
ficão  os  animacs  sãos.  Outros  formão ,  quando  ha  sol  ma- 
nifesto ,  huma  cruz  no  rosto  do  animal  ,  com  duas  folhi- 
nhas verdes  da  parte  dianteira ,  ou  trazeira.  Tal  he  o  eftei- 
to  da  ignorância,  e  superstição  ! 

§     25". 

Se  os  bois  são  encontrados  proximamente  mordidos 
de  cobra  surucucú ,  elles  os  salvão  da  morte  ,  espremendo 
na  boca  do  ferido  o  sumo  de  jussára  ,  e  pondo  o  bagasso 
na  ferida.  Se  a  que  mordco  foi  jararacossú ,  se  servem  do 
sumo  da  jarrinha  com  a  jussára,  e  enxotar,  ou  fumo  de 
tabaco ,  ou  da  raiz  do  espinheiro  amarello ,  e  do  sumo  da 
butua.  Se  foi  jararaca,  que  raordeo,  he  curado  immediatamen- 
te  o  animal  ,  com  o  sumo  bebido  do  entrecasco  do  ange- 
lim  ,  ou  sicupira  ;  remédios ,  que  tem  aproveitado  igual- 
mente aos  homens  feridos  daquclles  terríveis ,  e  medonhos 
reptis.  Esta  he  toda  a  sciencia  veterinária  dos  proprietá- 
rios, que  tem   bois. 

§     26. 

Foi  levantada  em  villa  a  povoação  da  margem  do 
rio  de  Una ,  debaixo  do  titulo  de  villa  nova  de  Valença 
do  Coração  de  Jesus  em  virtude  da  carta  Regia  de  1 1  de 
Julho  de  1799.  Den-se-lhe  por  limite  as  povoações,  que 
decorrem    dç  Mapendipc    até  o  rio  de  Gale,    e  constitue 

pf  ii  hu- 


íi?  Memorias  da  Academia  RSal 

huma  povoação  de  três  mil  habitantes.  A  carta  Regia  j 
naquclla  nova  creação ,  teve  cm  vista  ,  segundo  cila  expies* 
áa ,  o  segurar  a  boa  ordem  dos  cortes  de  Cairá.  Obtiveráo 
os  povos  igualmente  a  crcaçao  de  huma  nova  frcguczia 
com  parocho  próprio ,  e  coUado ,  que  lhes  abre  o  caminho 
da  virtude  pela  pratica  delia  ,  instruindo-os  nos  principios 
da  solida  c  verdadeira  felicidade ,  que  lhes  adquire  a  pra- 
tica dos  preceitos  da  Religião,  dos  quaes  havia  a  mais 
crassa  ignorância.  Formárão-se  corpos  de  ordenança  para 
a  execução  das  ordens  militares,  e  civilização  dos  habitantes 
pela  obediência,  que  devem  ter  aos  seus  superiores,  e  dentro 
de  quatro  annos  esta  villa  tomou  a  face  mais  floreccnte , 
que  cauza  emulação  ás  vizinhas  pela  sua  agricultura  , 
gramicza  dos  seus  edifícios,  e  pelo  luxo ,-  e  seu  commcr- 
cio.  He  a  única  villa  abastecida  de  carnes  frescas  pelas 
frequentes  boiadas,  que  descem  dos  certõcs ,  e  vem  ahi  a 
vendcr-se  em  mercado  público.  A  estrada,  que  abri  de  com- 
municação  com  as  Lagens  e  Cortamâo  ,  lhes  subministra  a 
facilidade  das  communicaçôes  interiores,  e  descem  todos 
os  sabbados  immcnsas  cargas  de  mantimento  ,  com  que  toda 
a  villa  se  farta ,  e  vende  o  sobejo  para  fora. 

As  novas  plantações,  e  cultura  da  canella,  pimenteira 
tia  índia,  árvore  do  papel,  ou  morus  paperifera  ,  café,  è 
cacáo,  vão  tendo  hum  prodigiozo  augmento ,  para  dar  á 
estes  povos  huma  riqueza  immensuravel.  As  matas  da  vizi- 
nhança da  costa  são  cobertas  de  baunilha  ,  atégora  des- 
prezada ;  e  cuja  cultura  lhes  subministrará  novos  ramos  de 
cnmmercio  ,  bemcomo  as  pescadas  tartarugas ,  que  pas- 
sciãò  as  costas  ha  depoziçao  dos  .seus  ovos ,  que  enterrão 
na  arêà  para  os  chocar,  e  reprodifeirem- se  aquelles  immert- 
sos  anfibios ,  cujos  lindos  cascos  constituem  hum  tão 
grâirde  ramo  Úc  commercio.  Aquelles  animaes  ,  de  huma 
só  vez ,  põem  doze ,   e  mais  dúzias  de  ovos.  Os  naturaes 

do 


J 


CAS  SciE  ^f  CIAS  DE  Lisboa.   '  12^ 

do  paíz  os  comem  ,  a  carne  porém  a  desprezao ;  pois  logo* 
que  apanhão  as  tartarugas  ,  depois  de  mortas  as  enterrao 
na  arca,  c  passados  cito  dias  cavão  o  lugar  marcado, 
onde  forão  enterradas ,  e  achão  os  cascos  separados  da  car- 
ne ,  os  alimpão  ,  e  vendem  a  quem  os  procura :  commu- 
mente  reputáu  a  mil  reis  o  valor  de  huma  libra  de  casco 
pcrtcito.  A  carne  preparada  he  de  hum  cxccUente  gosto  ; 
os  seus  figados ,  c  entranhas  dao  azeite ,  que  pode  ser 
aproveitado. 

§     28. 

A  grande  falta  de  azeite  de  peixe ,  e  o  extraordinário 
preço  a    que  subio   pela  desmarcada  ambição  dos  proprietá- 
rios   das  armações  ,    que  pnra   attrahir  ás  suas  fabricas  ,  os 
melhores    arpoadorcs ,    e  taraonciros ,    lhe    cfferecêrão  pré- 
mios  desproporcionados  ,    que  jamais    tiverão  no  tempo  da 
administração    do  contracto  das  ballêas,    e  por  outras  cau- 
las    provenientes    da  falta    de  economia,    e  de    principios 
tendentes  a    conseguir  pela  menor  degpeza  o  maior  lucro , 
que    não    são    capay.es  conceber  aquellcs  proprietários  pela 
crassa  ignorância  ,  em  que  vivem  ,   não  considerando ,  que 
alem  de  depender  a  pesca  de  dcspezas  enormes ,    erão  in- 
certos   os  successos    da  morte    dos    peixes ,    para  saldar  as 
despezas ,    levantarão    o  preço    do    azeite  ,    que    sendo  no 
tempo  do  contracto  a  320  reis  a  canada  ,    elles  o  elevarão 
a  1820,  eo  preço  infimo ,  a- que  chegou,  foi  de  800  reis; 
porem  a  necessidade    descobrio    aos  povos  novos,  e  indus- 
triozos  meios  de  serem  soccorridos ,    fazendo  ,   para  se  re- 
mediarem   com  muito  maior  ventagcm  ,    ô  azeite  do  coco 
de  piassaba,  e  de  outras  palmeiras,  de  que  âs  matas  da  cos- 
ta abundão  :    outros    acharão  nos  seus  quintaes  e  capoeiras 
o  remédio   ás  suas    necessidades,    extrahindo    o  azeite  dos 
caroços    de  algodão  ,  e  da  mamoneira  ,  com  que  illudirão 
as  esperanças  mal  calculadas  dos  lucros ,  <jue  esperavão  ter 
os  ambiciozos  proprietários  das  armações ,  com  a  extracção 
do  seu  azeite  j  akq[i  disto  a  providencia  os  soccorreu  ain" 

da 


■130  Memorias  da  Academia  Reai, 

da  por  outras  naturaes  maneiras,  levando  ás  costas  do  maf 
muitas    balças    mortas  >    que    os    povos    aproveitavao    para 
supprirem  a  urgente  fiilta  ,  que  scntiao ,  e  ainda  tivcrao  pa- 
ra vender  aos  seus  vizinhos. 

§     29. 

Dão  muitas  balêas  mortas  na  costa  ,  e  por  isso  succede 
encontrarem -se  algumas  vezes  o  âmbar  gris,  que  alguns 
celebres  naturalistas,  que  viajarão  o  mundo,  atribuem  ao 
escremento  ,  ou  alguma  outra  substancia  de  huma  espécie 
de  balêa  :  o  cheiro  nauseozo  do  âmbar  gris  faz ,  que  não 
seja  recolhido  para  ser  preparado  pelos  meios  chimicos, 
que  a  arte  ensina,  e  se  vender  no  commercio,  ainda  quan- 
do he  hum  género  de  tão  grande  valor  ,  por  isso  ainda 
encontrado  frequentemente  nas  costas  ,  no  tempo  da  pes- 
ca das  balêas  ,  não  he  recolhido  nem  se  faz  delle  alguma 
estimação,  atéque  a  maré  sepulta  no  abismo  das  aguas 
aquelle  dcpozito ,  que  trouxe  de  tanta  utilidade  ,  por  não 
ser  o  uzo  e  préstimo  daquelle  bálsamo  conhecido  dos  ha- 
bitantes. 

§     30- 

Esta  a  coramarca  dos  Ilheos ,  sua  costa ,  rios ,  incli- 
nações ,  e  commercio  de  seus  habitantes.  Vêm-se  os  cos- 
tumes serem  ainda  de  povos ,  que  não  tem  cultura ,  e  de 
onde  vem  a  ociozidade  ,  e  apathía  ,  em  que  a  maior  par- 
te vive ;  quazi  todos ,  vendo  o  prezente ,  se  ligão  aos 
seus  inveterados  costumes ,  e  nada  do  futuro  pertendem, 
Supersticiozos  accreditão  os  enredos  dos  velhacos  ignoran- 
tes ,  que  feiticeiros  se  appellidão :  o  seu  maior  empenho 
he  de  brilharem  entre  os  seus  cidadãos  nos  postos  de  or- 
denança ,  e  nos  cargos  da  camará.  Cobrem-se  de  galões  de 
curo  ,  que  parecem  todos  generaes ,  com  grandes  chapas 
daquelle  metal  nos  pés,  e  he  nisso  que  fazem  consistir 
a  sua  mór  nobreza ,  riqueza ,  e  ostentação ,  mostrando  p»> 

rêm 


I 


t)AS  SCIENCIAS  DE   LiSBOA.  IJ» 

rcm  o  exterior  c  interior  das>  suas  cazas  ,  a  sua  pouca  cul- 
tura. O  clima,  cm  (^ue  nas*;cráo ,  he  doce  e  saudável:  o 
continente  he  todo  aberto  por  vnstus  braços  do  Oceano  : 
as  costas  por  bahias  e  barras,  matizadas  de  grandes  e  fér- 
teis ilhas,  regadas  de  hum  sem  numero  de  navegáveis  rios , 
muitas  Icgoas  pelo  interior  ;  o  que  dá  sem  duvida  a  estes 
povos  as  mais  bem  fundadas  esperanças  da  sua  prosperida- 
de ,  e  lhes  augura  aquella  ao  mesmo  tempo  as  auri  terás 
minas ,  que  a  natureza  cm  seu  ceio  descobre ,  restando 
que  o  trabalho ,  e  a  industria  accelere  o  progresso  da  civi- 
lização ,  dando-sC'lhcs  por  guia  bcmfazcjas  mãos  ;  poisque 
em  tão  puros  votos  de  Icacs  peitos  gravarão  ao  nome 
dos  seus  soberanos  padrões  eternos  de  gloria:  ver-se-hão, 
pelas  luzes  reverberadas  do  thrcno  ,  neste  hemisfério  es- 
clarecidos os  verdadeiros  principies  da  felicidade  dos  po- 
vos ;  o  trabalho  consolidado  ,  a  instrucçao  pública  ,  a  ele- 
gância das  artes  ,  a  agricultura ,  c  o  commcrcio  derrama- 
rão immediatamente  nestes  ricos  e  férteis  continentes  suas 
benignas  influencias ,  e  constituirão  as  sólidas  bazes  da  sua 
eterna  prosperidade. 


NO- 


tjí  Memorias  da  Academia  Real 


NOTAS. 


N 


OTA 


Conhece-se  pela  descripção  da  barra  dos  Ilhcos  o 
engano  ,  com  que  cscrcvco  Rocha  Pitta  na  sua  historia  da 
America  Portugueza  ,  liv.  2.  f.  1 1 1  §  75-  ,  quando  diz  :  «4  Em 
»  15-°  escassos  tem  assento  a  província  dos  Ilheos ,  assim 
f*  chamada,  pelos  que  a  natureza  lhe  poz  na  foz  do  rio.» 

Nota     II. 

Da  Torre  do  tombo  me  foi  dada  por  copia  a  carta 
cscripta  pelo  Padre  Manoel  da  Nóbrega  em  o  primeiro  de 
Junho  de  ij6o,  pela  qual  faz  saber  a  ElRei  D.  João  III.  , 
entre  outras  matérias,  a  conquista  dos  gentios  dos  Ilheos, 
pela  forma  seguinte :  «t  A  paz  de  Christo  sija  sempre  em 
j>  continuo  favor  e  ajuda  de  V.  Alteza  ,  em  que  me  manda  que 
jj  lhe  escreva ,  e  avize  das  couzas  desta  terra ,  que  elle 
»»  deve  saber.  E  pois  assim  mo  manda,  lhe  darei  conta 
j»  do  que  V.  Alteza  mais  folgará  de  saber,  que  he  da 
>»  convtrsão  do  gentio  ,  a  qual  depois  da  vinda  deste  go- 
»>  vernador  Mem  de  Sá  cresceo  tanto,  que  por  falta  de 
»  operários  muitos  deixamos  de  fazer  muito  fructo ,  e 
»>  todavia  com  esses  poucos ,  que  somos ,  se  fizerão  quatro 
»>  igrejas,  em  povoações  grandes  ,  onde  se  ajuntou  muito 
>»  número  de  gentios ,  pela  boa  ordem ,  que  a  isso  deu  Mem 
jj  de  Sá  ,  cora  os  quaes  se  faz  muito  fructo  pela  sugeição 
»i  e  obediência,    que    tem   ao   governador,   e  em  mentes 

du- 


I 


D  AS  SciENClAS  DE  Lr  SBOAi  2^3 

j>  Jurar  o  zclK)  delle  se  hirião  ganhando  muitos  ;  mas 
>»  cessando  em  breve,  se  acabará  tudo,  ao  menos  entre 
»  tanto ,  que  não  tem  ainda  lançadas  boas  raizcs  na  fé , 
"  e  bons  costumes.  A  cauza  por  que  no  tempo  deste  go- 
j'  vcrnador  se  faz  isto,  e  não  antes  não  por  agora  haver 
j'  m;iis  gente  na  Bahia  ;  mas  por  que  pode  vencer  Mcn 
"  de  Sá  a  contradicçáo  de  todos  os  xpãos  desta  terra  ,  que 
"  era  querer  que  os  indios  se  comessem  ;  por  que  nisso 
"  punhúo  a  segurança  da  terra,  c  quererem  que  os  indios 
>»  se  furtassem  huns  aos  outros  para  ellcs  terem  escravos, 
"  e  quererem  tomar  as  terras  aos  indios  contra  razão , 
"  e  justiça  ,  e  liranizarem-nos  por  todas  as  vias  ,  e  não 
>»  querem  que  se  ajuntem  para  serem  doutrinados,  por 
'>  os  terem  mais  a  seu  propozito  ,  e  de  seus  serviços ,  e 
"  outros  inconvenientes  desta  maneira ,  os  quaes  todos  el- 
»  le  vence ,  a  qual  eu  não  tenho  por  menor  victoria  ,  que 
"  as  outras  ,  que  Nosso  Senhor  lhe  deu  ,  e  defendeu  a 
í»  carne  humana  aos  indios  tão  longe ,  quanto  seu  poder 
"  se  extcndia  ,  a  qual  antes  se  comia  ao  redor  da  cidade 
»  c  ás  vezes  dentro  nella ,  prendendo  aos  culpados  ,  e 
"  tcndo-os  prezos ,  até  que  clles  bem  conhecessem  seu 
"  erro ,  sem  nunca  mandar  matar  ninguém ,  e  isto  só  bas- 
»  tou  para  subjugar  a  muitos  ,  e  obrigalos  a  viver  segun- 
"  do  a  lei  da  natureza,  como  agora  se  obrigão  a  viver  j 
>'  mas  isto  custou-lhe  descontentar  a  muitos ,  e  por  isso 
"  ganhar  inimigos  ,  e  certifico  a  V.  Alteza  que  nesta  ter- 
"  ra  ,  mais  que  cm  nenhuma  outra  não  poderá  hum  go- 
»>  vernador ,  e  hum  bispo ,  c  outras  pessoas  públicas  con- 
"  tentar  a  Deos  Nosso  Senhor  ,  e  aos  homens  ,  e  o  mais 
"  certo  signal  de  não  contentar  a  Nosso  Senhor  he  não 
>»  contentar  a  todos  ,  por  estar  o  mal  mui  introduzido  na 
"  terra  por  costume.  Depois  succedeu  a  gerra  dos  ilheos  , 
j'  a  qual  começou  por  matarem  hum  indio  no  caminho  de 
"  Porto  seguro,  e  creio,  que  foi  por  desastre,  ou  por 
»  melhor  dizer,  querer  Nosso  Senhor  castigar  aquellés 
"  ilheos,  e  fcrillos  para  os  curar  e  sarar  j  e  foi  assim  ^ 
Tomo  IX.  Gg  >»  que 


254  Memorias  da  Academia  Real 

»  que  estando  os  engenhos  todos  quatro  queimados  ,  c 
»»  roubados,  e  a  gente  recolhida  na  villa  em  muito  apcr- 
»  to,  foi  lá  o  governador  a  soccorrer  com  lho  contradizc- 
»  rem  os  mais,  ou  todos  da  Bahia,  por  temerem  que  hin- 
„  do  elle  se  poderião  levantar  os  da  Bahia ;  mas  com  elle 
>»  levar  muitos  indios  da  Bahia  comsigo  cessava  todo  este 
)>  inconveniente  ;  e  o  que  he  muito  para  louvar  a  Nosso 
j,  Senhor  ,  he  que  sendo  i<t:>  no  tempo  do  inverno  em 
»  monções  contrarias  para  hir  aos  iiheos ,  na  ora  que  foi 
))  embarcado  lhe  concertou  o  tempo ,  e  lhe  veio  o  vento 
)i  prospero,  tanto,  quiinto  lhe  era  necessário,  e  não  mais, 
n  nem  menos;  e  lá  dco-se  tão  boa  mão  ,  que  em  menos  de 
it  dois  niezes  ,  que  lá  esteve,  deixou  os  indios  sugeitos  e 
„  tributários ,  e  restituirão  o  mal  todo  que  tinhão  feito , 
>}  assim  aquellc  presente ,  como  todo  o  passado ,  e  obrigaf- 
j»  dos  a  refazerem  os  engenhos,  e  não  comerem  carne  hu- 
tt  mana ,  c  receberem  a  doutrina ,  quando  houvessem  Padre?; 
»>  para  lha  dar.  De  maneira  ,  que  já  agora  a  geração  dos 
j»  Tupinanquins ,  que  he  muito  grande  poderá  entrar  ram- 
j»  bem  no  reino  do  Ceo.  Neste  tempo,  que  o  govcrna- 
j>  dor  era  hido  ao  soccorro  dos  iiheos ,  succedeo  que  huns 
»  pescadores  da  Bahia  se  desmandarão,  e  forão  pescar  na 
>»  terra  dos  indios  do  Paraguassú  ,  os  quaes  sempre  forão 
»  inimigos  dos  xpãos  ,  posto  que  a  este  tempo  alguns  ti- 
j»  nhão  feito  pazes  com  o  governador  ;  e  lá  forão  toma- 
»»  das ,  e  mortas  quatro  pessoas.  Depois  tornando  o  gover- 
>»  nador  lhes  mandou  pedir  os  matadores  ,  e  por  não  lhos 
>»  quererem  dar  lhes  apregoou  guerra  ,  e  foi  a  elles  com 
>»  toda  a  gente  da  Bahia,  que  era  para  pelejar,  e  com  mui- 
j»  tos  indios,  entrou  pelo  Paraguassú,  matando  muitos,  quei- 
M  mando  muitas  aldéas ,  entrando  muitas  cercas,  destruin- 
j»  do-lhes  seus  mantimentos  ,  couza  nunca  imaginada  que 
>»  podia  ser  ,  porque  geralmente  quando  se  nisso  fallava  , 
»»  dizião ,  que  nem  todo  o  poder  de  Portugal  bastaria  por 
»»  ser  terra  mui  fragosa ,  e  cheia  de  muita  gente ,  e  foi  a 
3>  vexação  que  lhes  derão,  que  elles  ganharão  entendimen- 

'»  to. 


TAS   SCIENCIAS   DE   LiSBOA.  23^ 

»  to,  para  pedir  pazes  ,  c  derão-lhas  com  cllcs  darem  dous 
»'  matadores  que  tinháo,  c  com  restituírem  aos  xpaus  quan- 
>'  tos  escravos  lhes  tinhão  comido,  e  com  ficarem  tribuca- 
>»  rios  e  Miçcitos  ,  e  obrigados  a  receberem  a  palavra  de 
»  Nosso  Senhor ,  quando  Jha  pregassem.  Esta  gente  está 
»>  agora  mui  disposta  para  neiles  se  fruciificar  muito.  Dis- 
»  to  poderá  V.  Alteza  entender  quantos  operários  da  nus- 
»>  sa  Companhia  ha  mister  tão  grande  messe  como  esta  , 
»  que  cada  dia  se  hirá  fazendo  maior,  tanto,  quanto  a  su- 
»  gciçâo  dos  gentios  se  continuar.  Depois  stndo  o  go- 
»»  vcrnador  de  muitos  requerido  ,  que  fosse  vingar  a  mor- 
»  te  do  Bispo  ,  e  dos  que  cc  m  elle  hião  ,  por  ser  hum 
»  grande  opróbrio  dos  xpáos ,  ser  causa  dos  índios  ganha- 
»  rem  muita  soberba,  porque  morrerão  alli  muita  gente, 
>»  e  muito  principal,  elle  se  fazia  prestes  aparelhando  mui- 
>'  tos  Índios  da  Bahia  ^  mas  isto  estorvou  a  vinda  da  arma- 
j»  da  que  veio,  com  a  vinda  da  qual  se  determinou  de  hir 
»  livrar  o  Rio  de  Janeiro  do  poder  dos  francezes  todos 
»>  luteranos.  E  partio  vizitando  algumas  capitanias  da  cos- 
>»  ta  ,  até  chegar  ao  Espirito  Santo ,  capitania  de  Vasco 
»  Fernandes  Coutinho  ,  onde  achou  huma  pouca  de  gen- 
j'  te ,  em  grande  perigo  de  serem  comidos  dos  índios ,  e 
>'  tomados  dos  francezes ,  os  quaes  todos  pedirão  ,  que  , 
>'  ou  tomasse  a  terra  por  ElRey ,  ou  os  levasse  dalli ,  por 
í'  não  poder  jamais  sustentar-se ,  e  o  mesmo  requeria  Vas- 
5>  co  Fernandes  Coutinho  por  suas  cartas  ao  governador: 
»  depois  de  tomado  sobre  isto  conselho ,  a  acceitou ,  dan- 
>'  do  esperanças,  que  da  tomada  a  fortaleceria,  e  favore- 
»>  ceria  no  que  podesse ,  por  não  ter  tempo  para  mais  ,  e 
9'  por  não  se  estorvar  do  negocio  a  que  vinhão  do  Rio 
j>  de  Janeiro.  Esta  capitania  se  tem  por  a  melhor  couia 
í>  do  Brazil  depois  do  Rio  de  Janeiro  :  nella  temos  huma 
%»  caza  onde  se  faz  fructo  com  xpãos ,  e  com  escravos ,  e 
íí  com  huriia  geração  de  indios,  que  allí  está,  que  se  cha- 
»  mão  do  Gato,  que  ahi  mandou  vir  Vasco  Fernandes  Co u- 
»»  tinho  do  Rio  de  Janeiro ,   entendendo-se  também  com 

Gg  ii  í>  ai- 


ijô  Memorias  da  Academia  Real 

f»  alguns  Tupinaiiquins  ,  e  se  Nosso  Senhor  der  tão  boa 
í»  mão  ao  governador  á  tornada,  como  lhe  deo  cm  todas 
"  as  outras  partes,  que  os  ponha  a  todos  em  sugeiçao,  e 
>'  obediência,  poder-se-ha  fazer  muito  fructo,  porque  este 
j»  he  o  melhor  meio  que  pode  haver  para  a  sua  convcr- 
>>  são.  Dalli  nos  partimos  ao  Rio  de  Janeiro,  e  asscnrcu- 
»  se  no  conselho ,  que  darião  de  supito  no  Rio  ,  de  noite 
>>  para  tomarem  os  íiancezes  dasaperccbidos,  e  mandou  o 
»»  governador  a  hum  que  sabia  bem  aquelle  rio  ,  que  tosse 
»  adiante,  guiando  a  armada,  e  que  ancorasse  perto  de 
j»  onde  pudessem  os  bateis  deitar  gente  em  terra  ,  a  qual 
>»  havia  de  hir  por  certo  lugar  ;  mas  isto  acconteceu  de 
>»  outra  maneira  ,  do  que  se  ordenara  ,  porque  este  guia  , 
j»  ou  por  não  saber ,  ou  por  não  querer  fez  ancorar  a  ar- 
))  mada  tão  longe  do  porto  ,  que  não  poderão  os  bateis 
j>  chegar  se  não  de  dia ,  com  andarem  muita  parte  da  noi- 
»>  te,  e  foi  loffo  vista  e  sentida  a  armada.  No  mesmo  dia 
>j  que  chegámos  ,  se  tomou  huma  nao ,  que  estava  no 
jj  Rio,  para  carregar  do  Brazil :  a  gente  delia  fugio  para 
»  terra  ,  e  recolheo-se  na  fortaleza.  Tomou-se  conselho 
s>  no  que  se  faria ,  e  vendo  todos  a  fortaleza  do  sitio  em 
j>  que  estavão  os  francezes ,  o  que  tinhão  comsigo  os  in- 
3»  dios  da  terra  ,  temerão  de  a  combaterem  ,  e  mandarão 
j>  pedir  ajuda  de  gente  a  S.  Vicente ;  mas  os  de  S.  Vicen- 
»i  te  sabendo  primeiro  da  vinda  do  governador  ao  rio , 
»  já  vinhão  por  caminho ,  e  como  chegarão  ,  determinou- 
»j  se  o  governador  de  os  combater ;  mas  toda  a  sua  gen- 
sj  te  lho  contradizia,  porque  tinhão  já  bem  expiado  tudo, 
i>  e  parecia-lhes  couza  impossível  entrar-se  couza  tão  íoi- 
«  te  ,  e  sobre  isso  lhe  fizerão  muitos  desacatamentos  ,  e 
j»  desobediências  ;  mas  eu  sobre  isto  tudo  a  maior  dificul- 
>»  dade ,  que  lhe  achava ,  era  ver  aos  capitães  da  armada 
JJ  tão  pouco  unidos  com  o  governador ,  e  ver  tão  pouca 
JJ  obediência  em  muitos,  toda  aquella  viagem  em  que  me 
»  achei  prezente ,  e  isto  nasceo  de  se  dizer  publicamente , 
»  e  saberem  que  o  governador   estava  mal  acreditado  no 

>»  rei- 


bAS  SciBNCrAS  DE  LiSBOA.  i-lT 

reino  com  V.  Alteza,  e  que  se  liavião  lá  dado  capítu- 
los dellc  por  pessoas,  que  com  paixão  informarão  lá  mal 
a  V.  Alteza  ,  e  parece  que  com  pouca  razão ;  porque 
as  mais  das  couzas  me  passavão  pela  mão,  como  tercei- 
ro que  era  nellas  para  as  remediar ;  e  por  isso  quem  quer 
se  lhe  atrevia,  e  por  dizerem  que  tinha  lá  inimigos  no 
reino,  e  poucos  que  favorecessem  suas  cauzas ,  o  que 
lhe  tirou  muito  a  liberdade  de  governar  bem;  mas  ago- 
ra veja  V.  Alteza  as  grandezas  de  Nosso  Senhor.  A  pri- 
meira me  parece  foi  dar  Nosso  Senhor  graça  ao  gover- 
nador ,  para  saber  sofrer  tudo  ,  c  dar-lhc  prudência  para 
em  tal  tempo  saber  trazer  as  vontades  de  todos  tão  con- 
trarias ás  suas ,  a  condescenderem  com  aquillo  ,  que  elle 
entendia  ,  e  Nosso  Senhor  lhe  inspirava  ,  e  foi  assim  , 
que  a  huns  por  vergonha,  e  a  outros  por  vontade  lhes 
parecco  bem  de  commetterem  a  fortaleza.  A  segunda 
maravilha  de  Nosso  Senhor ,  foi  que ,  depois  de  comba- 
tida dois  dias  ,  e  não  se  podendo  entrar  ,  c  não  tendo 
já  os  nossos  pólvora  mais  que  as  que  tinhão  nas  cama- 
rás para  atirar ,  e  tratando-se  já ,  como  se  poderiâo  re- 
colher aos  navios  sem  os  matarem  todos ,  e  como  pode- 
riâo recolher  a  artilharia  ,  que  havia  posto  em  terra  , 
sabendo  que  na  fortaleza  estavãp  çiais  de  6o  francezes 
de  peleja,  e  mais  de  800  indios,  e  que  erão  já  mortos 
dos  nossos  dez  ou  doze  homens  eom  bombardas ,  e  es- 
pingardas ,  mostrou  então  Nosso  Senhor  sua  mizericor- 
dia  ,  e  deo  tão  grande  medo  aos  francezes  e  aos  in- 
dios,  que  com  elles  estavão  ,  que  se  acolherão  da  for- 
taleza ,  e  fugirão  todos  ,  deixando  o  que  tinhão  sem  o 
puderem  levar.  Estes  francezes  seguião  as  hcrezias  de 
Alemanha  ,  principalmente  3  de  Calvino  ,  que  está  em 
Genebra,  segundo  soube  delles  mesmos,  e  pelos  livros 
que  lhe  acharão  muitos  ,  e  vinhâo  a  estít  terra  semear 
estas  hcrezias  pelo  gentio ,  e  segundo  soube  tinhão  man- 
dado muitos  meninos  do  gentio  a  aprendelas  do  mesmo 
Calvino,  e  em  outras  partes,  para  depois  serem  mestres, 


438  Memorias  da  Academia  Real 

j,  e  destes  levou  alguns  o  Villagalhão  ,  que  era  o  que  fi- 
j,  zeia  aquella  fortaleza  ,    e  se  intitulava  Rcy    do  Brazil. 
„  Deste  se  conta,  que  dizia,  que  quando  llll^cy  de  Fian- 
j,  ça  o  nâo  queira  favorecer  para  poder  ganhar  esta  terra , 
j,  que  se  havia  de  hir  confederar  com  o  Turco ,  promet- 
„  tendo-Ihe  de  lhe  dar  por  esta  parte  a  conquista  da  In- 
„  dia ,  e  as  náos  dos  portuguezes  ,  que  de  lá  viessem ,  pa- 
5,  ra  que   poderia    aqui  fazer   o  Turco   suas  armadas    com 
,,  muita  madeira   da  terra  ;    mas    o  Senhor  olhou  do  alto 
„  tanta  maldade ,  c  houve  mizerieordia  da  terra  ,  e  de  tan» 
j,  ta  perdição  d'almas,  ementita  est  iniquitas  sibi ,  e  dcsfez- 
„  lhe   o  ninho  ,    c    deu  sua  fortaleza    em  mão  dos  portu- 
guezes, a  qual  se  destruio  ,  c  o  que  delia  se  podia  dcr- 
,  rubar ,    por  não  ter  o  governador  gente  para  logo  po- 
voar  e  fortificar  como  convinha.    Esta   gente  ficou  com 
„  os  Índios ,  e  esperão  gente  e  soccorro  de  França ,  maior- 
„  mente  que  dizem  que  por  ElRey  de  França  os  mandar, 
estavão  alli  ,    para  descobrir   os  metaes   que  houvessem. 
Assim  ha  muitos  francezes  espalhados   por  diversas  par- 
,  tes,  para  melhor  buscarem.  Parece  muito  necessário  po- 
,,  voar-se  o  Rio  de  Janeiro ,  e  fazer-se  nelle  outra  cidade , 
,,  como  a  da  Bahia  5  porque  com  ella  ficará  tudo  guarda- 
,,  do ;  assim  esta  capitania  de  S.  Vicente ,  como  a  do  Es- 
„  pirito  Santo,   que  agora  estão  bem  frescas,    e  os  fran- 
3,  cezes  lançados   de  todo  fora  ,    e  os  indios    se  poderem 
„  melhor  sugeitar,  e  para  isso  mandar  mais  moradores  que 
„  soldados  ,   porque  de  outra  maneira  podesse  temer  com 
,,  razão  :    neredeat  immttndtis  spús  ctim  aliis  septem  neqitiori- 
„  bus  se    et  sint  novissima  peiora  priorihtts ;   porque   a  forta- 
,,  leza  ,    que  se  desmanchou  ,    como  era   de  pedras  e  ro- 
,  chás ,  que  cavarão  a  picão ,  facilmente  se  pode  tornar  a 
j,  reedificar ,  e  fortalecer  muito  melhor.  Depois  de  tomada 
„  a  fortaleza ,    deo    o  governador  em  huma   aldêa  de  in- 
j,  dios ,  e  matou  muitos ,  e  não  poude  fazer  mais ,  porque 
„  tinha  necessidade  de  concertar  os  navios ,  que  das  bom- 
5,  bardas  ficarão  mal  aviados,  e  fazelos  prestes  para  se  tor- 


?> 


na- 


UAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  237 

„  ivarcm  j  o  que  veio  fazer  a  esta  capitania  de  S.  Vicen- 
„  te ,  ontle  cu  fico ,  por  assim  o  ordenar  a  obediência  :  o 
„  c^ue  houver  mais  para  escrever,  o  Provincial,  que  ago- 
„  ra  hc  ^  o  Padre  Luiz  de  Granho,  o  fará  da  Bahia.  Nos- 
jy  so  Senhor  Jesu  Christo  de  a  V.  Alteza  sempre  a  sua 
„  graça.  Amert.  De  S.  Vicente  o  i.°  de  Junho  de  lyóo/ 
j,  z:  Manoel  de  Nóbrega.  >> 

Nota     III. 

O  Sereníssimo  Infante  D,  Henrique   foi  o  primeitó  ,• 
que  pelos  vastos  conhecimentos  do  seu  espirito  ,  venceo  a 
difficuldade  da  navegação  do  Cabo  Bojador,   qUe  descobrio* 
com  a  costa  de  Gume.    O  Papa  r^icoláo  V   por  Bulia  dada 
no  anno  de   t45'4  ,    concedeo    a    Portugal    a  conquista,   e 
descobrimento    de  todos   os  mares,   terras.j   ítrinas  j  e'  sUas 
ilhas  do  oriente   e  meio  dia.    Calisto  III  no  anno  de  14^6 
não  só  confirmou  aquella  Bulia  ;  mas  concedeo  ao  mesmo 
Infante  ,   que    era  Grão  mestre    da  ordem    de  Christo  ,   a 
provimento    dos  benefícios  ecciesiasticos    nas   terras  desco- 
bertas.   Xisto  IV   em    1481   confirmou    todas   aquellas  gra- 
ças, exceptuando  as  ilhas  Canárias  a  favor  d'ElR.ey  d'Hes- 
panha  ,    concedendo  toda  a  mais  navegação,  conquista,  e 
descobrimento   ao  Senhor  Rei   D.  Afionso  V,   e  seus  suc- 
cessores.  Estando  as  cousas  neste  estado  ,  appareceo  o  fa- 
moso descobrimento   das  Antilhas  por  Christovão  Colom- 
ba ,  reinando  em  Portugal  o  Senhor  D.João  II.  Com  aquel- 
le  descobrimento  oíferecêrão-se  duvidas  sobre  a  divisão  dos 
limites  ,  as  quaes  se  ajustarão  entre  Portugal  e  Hespánha 
no  tratado   de  Tordesilhas,   que  foi  celebre  ainda  mais  pe- 
la Bulia  da  Alexandre  VI  datada  em   1493,   que  terminou 
os  dominios  dos  dois  príncipes,  mandando  formar  huma  li- 
nha imaginaria ,  lançada  mathematicamcnte  do  norte  a  sul. 
Pelos  poios,  dividio  o  orbe  em  duas  partes  iguacs,  dando 
a   de    este    á  monarchia  portugueza  ,     e  a   de  oeste   á  de 
Hcspanha.   Aquelle  parallelo ,  que  devia  ter  ponto  certo, 


140  Memorias  da  Academia  Real 

e  principio  determinado  ,  se  dispoa  na  mesma  Bulia ,  que 
fosse  huma  das  ilhas  dos  Açores ,  e  Cabo  verde  ,  e  que 
lançando-se  a  linha  cem  Icgoas  a  éstc  do  mesmo  ponto  , 
tudo  o  que  ficasse  para  o  occidcnte  pertenceria  a  Gastclla, 
e  a  Portugal  o  que  ficasse  para  o  oriente.  No  mesmo  an- 
no  de  1493  se  oppoz  o  Senhor  D,Jo3o  II  ao  cun^primento 
da  Bulia,  quanto  ao  curso  que  devia  fazer  a  linha,  e  no- 
mcárão-se  embaixadores  por  ambas  as  potencias,  os  quaes 
SC  ajuntarão  na  villa  de  Tordesilhas  com  poderes  de  ajus- 
tar o  negocio ,  e  convieráo  de  commum  consentimento , 
que  a  hnha  da  demarcação  fosse  lançada  de  polo  a  polo 
370  legoas  ao  poente  das  ilhas  de  Cabo  verde,  ficando  o 
descobrimento  ,  e  conquista  da  parte  oriental  pertencente 
a  Portugal ,  e  toda  a  conquista  da  parte  occidental  ao 
reino  d'  Hespanha ,  e  que  dentro  em  dous  mezes  se  man- 
darião  duas  ,  ou  quatro  embarcações  por  huma  e  outra  coroa 
com  pilotos  e  pessoas  intelligentes ,  que  podessem  fazer  a 
demarcação,  e  se  ajuntarião  na  ilha  Grão  Canária ,  aonde  aU 
ternativamente  se  embarcassem  castelhanos,  e  portuguezes 
nas  embarcações  de  ambos  os  reinos ,  os  quaes  hirião  con- 
junctamente  demandar  as  ilhas  de  Cabo  verde  ,  seguindo 
dahi  para  o  oecidente  a  fixar  o  marco ,  onde  fizessem  ter- 
mo as  370  legoas,  que  serviriao  de  baliza  naquella  parte, 
aonde  cortasse  a  linha  de  demarcação  de  norte  sul ,  com 
outras  mais  clausulas  pertencentes  á  firmeza  do  contracto. 
Tudo  isto  foi  ratificado  ,  e  firmado  por  ambos  os  Sobera- 
nos no  anno  de  1494.  Por  30  annos  esteve  em  silencio 
€Ste  negocio ,  atéque  as  contendas  das  Molucas  o  fizerao 
lembrado;  e  então  se  acordou  elegerem  doze  juizes,  seis 
castelhanos,  e  seis  portuguezes,  os  quaes  se  ajuntarião  em 
Badajoz  para  concordarem  a  questão  das  Molucas ,  de  que 
cada  hum  dos  príncipes  pertcndia  o  domínio.  Formou- se 
a  junta  cm  Badjjoz ,  fizerão-se  conferencias,  e  despedírao- 
se  os  juizes  sem  conclusão  alguma. 

Passados   cinco   annos ,    se  ajustou  o  Imperador  Car- 
los V  com  o  Senhor  Rei  D.  João  111  ?  por  escritura  feita 

em 


DAS   SciENCIAS    DE   LlSBOA.  I49 

Santo  Emigílio  ,  e  participarão  o  successo  ao  governador 
de  Buenosiiyrcs,  e  ao  Vicerei  de  Lima,  que  mandou  or- 
dem a  D.  Bruno  Maurício  Escavalla ,  que  marchasse  com 
a  genre  de  Buenosayres  ,  Santa  fé,  Córdova,  e  de  las 
Sictc  correntes,  a  destruir  os  de  Parnguay.  Aqucllas  for- 
ças SC  ajuntarão  no  rioTibicori,  atacarão  aos  de  Paraguay 
sem  proveito,  e  capituLirSo,  dizendo  os  paraguayanos  ,  que 
estaváo  cm  terras  d'  ElRei  de  Portugal ,  c  náo  conscnti- 
riáo ,  que  se  tirassem  os  seus  marcos  alli  mettidos  ha  tan- 
tos annos.  Tal  era  a  veneração,  que  aquelles  Índios  tinhão 
aos  portuguezcs  ,  pelo  trato  amigável ,  e  carinhoso  ,  que 
recebêi.ío  de  Martim  AfFonso. 

Charlevois  no  tomo  I,  anno  1^16  ^  foi.  43  refere, 
que  aquelle  Marrim  AíFonso  explorara  huma  e  outra  mar- 
gem do  rio,  aindaque  falsamente  refere,  que  Sebastião  Ca- 
boto nas  visinhanças  do  rio  trinta  legoas  acima  de  Buenos- 
ayres,  vira  chegar  ao  seu  campo  hum  capitão  portuguez, 
por  nome  Diogo  Garcia ,  que  ao  reconhecer  o  paiz  se  en- 
caminhara por  ordem  do  capitão  gerai  do  Brazil,  e  toma- 
ra posse  em  nome  de  EIRei  de  Portugal  ,  e  que  Gaboto 
não  tendo  forças  para  impedir,  que  os  portuguezes  se  as- 
senhoreassem daquellas  partes  ,  se  resolvera  corromper  ao 
dito  Garcia,  hospedando  no  forte  do  Espírito  Santo.  Aquel- 
la  asserção  do  escriptor  francez  se  convence  de  falsa ;  pois 
^  como  era  possível  encontrar  Martim  Affonso ,  ou  seus  of- 
íiciaes ,  a  Giboto  nas  visinhanças  do  rio  da  Prata  no  anno 
<íe  1526,  se  nesse  tempo  Martim  Affonso  estava  em  Lis- 
boa ? 

No  anno  de  ifoo  descobrlo  o  Brazil  Pedro  Alves  Ca- 
bral no  reinado  do  Senhor  Rei  D.  Manoel.  No  anno  de 
1501  continuou  o  descobrimento  Américo  Vespucio ,  man- 
dado pelo  mesmo  Rei  investigar,  e  demarcar  exactaments 
as  províncias  do  novo  mundo  ,  e  este  entrou  até  ao  rio 
da  Prata  ,  con^^^  consta  das  suas  relações  e  cartas,  que  es- 
creveo  a  Mcsser  Petro  Sodrino ,  contando  os  successos  da 
sua  primeira  viagem,  e  as  povoações  portuguezas  se  pro- 
Tomo  IX.  li  lon- 


7^o  Memorias  da  Academia  Rsal 

longáfãò ,  desde  logo  por  toda  aquella  costa ,  até  á  lagôa 
dos  Patos  cm  altura  de  32°.  Affirma  isto  mesmo  Horácio 
Tiircelino  no  Epitome  das  historias  do  mundo  ^  \\v.  lo  ,  foi. 
379,  o  Padre  João  Marianna  ,  liv.  aí,  foi.  149,  n,  ifoo, 
e  o  Padre  Simão  de  Vasconcellos  no  liv.  i.  n.  18,  foi.  ij, 
Sjlorzano ,  liv.  i.  cap.  4,  n.  12,  o  Padre  MafFcii ,  liv.  2. 
da  Historia  Indica  ^  Cláudio  Bartholomcu  na  sua  historia  Or- 
l/is  maritimtts ,  e  muitos  outros.  '.> '/vi  ' 

No  anno  de  ifif  João  Dias  de  Solis ,  indo  no  des- 
cobrimento do  caminho  das  Molucas  ,  chegou  a  S.  Gabriel  , 
onde  dizem  desembarcara ,  fazendo  todos  es  actos  posses- 
sórios para  Castella  ,  quando  já  Américo  Vespucio  o  tinha 
antecedentemente  feito  quinze  annos  antes ;  e  por  isso  a  co- 
roa de  Castella  mandando  Sebastião  Gaboto  ,  piloto  mór  no 
anno  de  15"  15"  ao  rio  da  Prata,  lhe  deo  por  ordem  fizesse 
a  viagem  pelos  limites  da  demarcação  de  Hcspanha ,  e  não 
nos  que  pertencessem  a  Portugal  ,  e  aquelle  piloto  ,  reco- 
nhecendo as  terras  de  Portugal,  levantou  fortaleza  na  mar- 
gem Occidental  do  rio  da  Prata.  Seguio-se  áquelle  no  an- 
no de  I5'26  o  Conde  D.  Fernando  de  Andrada ,  e  reccbeo 
daquclla  coroa  as  mesmas  instrucçoes  dadas  a  Gaboto.  Co^ 
nhecia-se ,  que  o  melhor  fundo  do  rio  da  Prata  ,  era  junto 
á  sua  margem  occidental  ;  e  comtudo  D.  Pedro  de  Men- 
doça  edificou  a  cidade  de  Buenosayrcs  na  opposta  mar? 
gem  Occidental  ,  por  pertencer  a  margem  occidental ,  e 
ilha  de  8.  Gabriel  á  demarcação  de  Portugal. 

No  archivo  real  da  corte  se  achão  aquelles  actos  de 
posse ,  e  jurisdição  exercidos  pelos  soberanos  de  Portugal 
com  reconhecimento  de  Hespanha  relativamente  aquelles 
dominios ;  poisque  he  innegavel ,  como  se  vio  ter  entrado 
em  ijBi  no  rio  da  Prata  Martim  Affonso;  e  tanto  reconhe- 
cião  os  Reis  catholicos ,  que  na  união  das  duas  coroas  con- 
firmarão as  mercês  das  doações  ,  que  naquellas  tinhão  os 
successores  dos  donatários ,  pelos  secretários  e  ministros  por- 
tuguezes ,  e  mostra  a  que  fez  Filippe  IV  ao  mestre  de 
campo  Luiz  Barbatho  Bezerra   na  enseada  de  Fucuay,  e 

DO 


DAS  Sciencia"s  de  Lisboa.  ij"! 

no  governo  do  sercnissimo  principe  o  Senhor  D.  Pedro  as 
doações  do  Visconde  de  Asseca  ,  e  a  seu  irmão  D.  João 
Corrêa  de  Sá  no  continente  de  S.  Gabriel. 

Nota     IV. 

Doação  da  capitania  dos  Ilheos. 

Dom  João  por  graça  de  Dcos ,  Rei  de  Portugal ,  e  dos 
Algarves  d'aquem ,  e  d'alem  mar,  em  Africa  senhor  de 
Guiné,  e  da  conquista,  navegação^  commcrcio  da  iithio- 
pia  ^  Arábia  j  Pérsia  da  índia,  &c.  Faço  saber  a  quantos 
esta  minha  Carta  virem  ,  que  ,  considerando  eu  pelo  servi- 
ço de  Deos ,  e  meu,  proveito  bem  de  meus  reinos  e  se^ 
nhorios  ,  e  dos  naturacs  ,  e  súbditos  dclles  ,  o  ser  minha 
costa  c  terras  do  Brazil  mais  povoada  doque  até  agora 
foi;  assim  para  nellas  se  haver  de  celebrar  o  culto,  e  of- 
ficios  divinos^  e  se  exaltar  a  nossa  santa. fé  catholica ,  con-' 
tratasse  provocar  a  ella  os  naturaes  das  ditas  terras  ,  in- 
fiéis, e  idolatras,  como  pelo  muito  proveito,  que  se  se- 
guião  a  meus  reinos  c  senhorios  ,  e  aos  naturaes  e  súb- 
ditos delles,  de  se  povoar  as  ditas  terras,  houve  por  bem 
de  mandar  repartir  e  ordenar  em  capitanias  de  certas ,  e 
em  certas  legoas ,  para  delias  prover  aquellas  pessoas ,  que 
bem  me  parecer ;  pelo  qual  guardando  eu  os  muitos  servi- 
ços i  que  lorge  de  Figueiredo  Corrêa  ,  fidalgo  da  minha 
casa,  e  escrivão  da  minha  fazenda,  a  mim  tem  feito,  e 
pelo  que  espero,  que  ao  diante  me  fará:  por  todos  esses 
respeitos ,  e  por  alguns  outros  ,  que  a  isto  me  movem  , 
por  folgar  de  lhe  fazer  mercê  ,  de  meu  próprio  motuo , 
certa  sciencia,  poder  real,  e  absoluto,  sem  cllc  mo  pedir, 
nem  outrem  por  elle.  Hei  por  bem  ,  e  me  praz  de  lhe  fa- 
zer, como  de  effeito  por  esta  presente  Carta  faço  mer- 
cê ,  sem  mover  doiçao  em  serviços  valedorcs  ,  deste  dia 
para  todo  o  sempre,  de  juro,  e  herdade  para  elle,  c  pa- 
ra todos  os  seus  filhos,  netos,  herdeiros,  e  successores  j 

li  ii  que 


^$2.  MemokiaS  da  Academia  R-eal 

que  depois  dellc  vierem ,  assim  descendentes ,  como  trans- 
versaes,  e  collateracs,  segundo  ao  diante  he  declarado,  de 
cincocnta  legoas  de  terra  na  dita  costa  do  Brazil,  que  co- 
meçaráõ  na  ponta   da  Baiiia  do   todos   os  Santos  da  banda 
do  sul,  quanto  couber  nas  ditas  cincoenta  legoas,  as  quaes 
se  entenderão  ,    e  serão  de  largo  ao  longo  da  costa  entre 
si  da  mesma  largura  peio  certao  ,  terra  firme  dentro  ,    quan- 
to poderem  entrar,  e  for  da  minha  conquista:  com  todas 
as  ilhas    que   houver   até    dez  legoas   ao  mar  na  fronteira, 
e  demarcação  das  ditas  cincoenta   legoas,  da  qual  terra  e 
sobredita  demarcação  lhe  faço  doação,  e  mercê  de  juro  e 
herdade  para  todo  o  sempre  como  dito  he ,  e  quero  e  me 
praz,   que  o  dito  Jorge  de  Figueiredo  Corrêa,  e  todos  os 
áeus  herdeiros  ,    que   ao  diante   tiver ,    herdarem  ,   e  succe- 
derem  ,   se  possão  chamar ,  e  se  chamem   capitães ,  e  go- 
vernadores   delias ;   e    outrosim   lhe   faço    doação    e   mercê 
de  juro  ,    e  herdade  para  todo    o  sempre   para   elle  ,    seus 
'descendentes,  e  successores  no  modo  sobredito  da  jurisdic- 
ção  civil  e  crime  da  dita  terra,  da  qual  clle  dito  Jorge  de 
Figueiredo  Corrêa ,  e  seus  herdeiros ,  usaráõ  na  maneira ,  e 
forma  seguinte.  Poderá  por  si ,  e  seu  ouvidor  estar  á  elei- 
ção dos  juizes  e  officiaes ,  apurar,  e  alimpar  as  pautas,  e 
passar  carta   de  confirmação    aos  ditos  juizes ,  e   olficiaes , 
os  quaes  se  chamarão  pelo  dito  capitão    e  governador ,    e 
elle  para  o  ouvidor,  que  poderá  conhecer  das  acções  no- 
vas a  dez  legoas,  onde  estiver,  e  de  appellação,  e  aggra- 
vos  conhecerá  de  toda  a  capitania  ,  e  governança ,  e  os  di- 
tos juizes   darão  appellação    para   o  dito   seu   ouvidor   nas 
quantias  que  mandão  minhas  ordenações ,  e  do  que  seu  ou- 
vidor julgar  assim   por  acção  nova,  como   por  appellação, 
e  aggravo,  e  sendo  em  cousas  eiveis  não  haverá  appella- 
ção até  á  quantia  de  cem  mil  reis,  e  dahi  para  cima  dará 
appellação   á  parte   que  quizer  appellar.    Em  casos   crimes 
hei  por  bem ,  que  o  dito  capitão  e  governador  e  seu  ouvi- 
dor tenha  jurisdição,  e  alçada  de  morte  natural  inclusive, 
em  escravos ,  e  gentios ,  e  o  mesmo  em  peões  christâos  , 

ho- 


PAS   SciKNCIAS    DE   LiSBOA.  IfJ 

homem  livre  em  todos  os  casos,  assim  para  absolver,  co- 
mo condemnar  sem  haver  appcUação ,  e  aggravo ,  e  nas 
pessoas  de  maior  qualidade  terá  alçada  de  dez  annos  de  de- 
gredo, até  cem  cruzados  de  pena,  sem  appellação  nem 
aggravo ;  porém  nos  quatro  casos  seguintes  ,  convém  a  sa- 
ber ,  heresia  ,  quando  o  herético  lhe  íor  entregue  pelo  ec- 
clcsiastico,  traição,  sodomia,  e  moeda  falsa,  terão  alçada 
em  toda  a  pessoa  de  qualquer  qualidade  que  seja  ,  para 
condemnar  aos  culpados  á  morte  ,  c  dar  suas  sentenças  á 
execução  sem  appellação  nem  aggravo ;  porém  nos  ditos 
quatro  casos  para  absolver  de  morte ,  postoque  outra  pena 
lhe  queirão  dar  menos  de  morte,  darão  appellação  e  aggra- 
vo por  parte  da  justiça  ;  e  outrosim  me  praz,  que  o  dito 
seu  ouvidor  possa  conhecer  das  appellações ,  e  aggravos  , 
que  a  elle  houverem  de  hir  ou  lugar  da  dita  capitania  em 
que  estiver  posto ,  precisamente  apartado  deste  lugar ,  on- 
de assim  estiver;  comtantoque  seja  na  própria  capitania, 
e  o  dito  capitão  e  governador  poderá  pôr  meirinho  danre 
seu  ouvidor  e  escrivães,  e  outros  quaesquer  officiaes  neces- 
sários ,  e  costumados  nestes  Reinos  ;  assim  na  correição 
da  ouvidoria  ,  como  em  todas  as  villas  e  lugares  da  dita 
capitania  ,  e  governança  ,  e  será  o  dito  capitão  governa- 
dor ,  e  seus  successores  obrigados  ,  quando  a  dita  terra  for 
povoada  ,  em  tanto  augmento  ,  que  seja  necessário  outro 
ouvidor  de  o  pôr ,  onde  por  mim ,  e  meus  successores  for 
ordenado  «  outrosim  me  praz ,  que  o  dito  capitão  o  go- 
vernador ,  e  todos  os  seus  successores  possão  por  si  fazer 
villas  a  quaesquer  povoações  ,  que  nas  tiitas  terras  se  fize- 
rem ,  e  a  elles  lhes  parecer,  que  o  devem  ser,  as  quaes 
lhe  chamarão  villas ,  e  terão  termo ,  e  jurisdição ,  segundo 
for  costume  de  meus  Reinos ,  liberdades ,  e  insignias  de 
villas.  E  isto  porém  se  entenderá,  que  poderáõ  fazer  todas 
as  villas  ,  que  quizerem  das  povoações ,  que  estiverem  ao 
longo  da  costa  da  dita  terra  dos  rios,  que  se  navegarem; 
porque  dentro  da  terra  firme  pelo  certão  as  não  poderáõ  fa- 
zer ,  menos  espaço  de  seis  legoas  de  terra ,  c  termo ,    c 

ca- 


2j"4  Memorias  da  Academia  Real 

cada  huma  das  ditas  villas ,  e  ao  tempo  que  assim  fizerem 
as  ditas  villas,  ou  cada  huma  delias,  limitarão,  e  assigna- 
ráõ  logo  termo  para  cilas ,  c  depois  não  poderão  da  terra  , 
que  assim  tiverem  dado  por  termo,  fazerem  outra  villa  sem 
minha  licença.  E  outrosim  lhe  faço  doação,  e  mercê  de 
juro,  e  herdade  para  sempre  das  alcaidarias  mores  de  to- 
das as  villas  ,  e  povoações  da  dita  terra  ,  com  todas  a'i 
rendas,  direitos,  foros,  tributos  j  que  a  elles  pertencerem  ^ 
segundo  são  escriptas  c  declaradas  no  foral ,  os  quaes  o 
dito  capitão  e  governador,  seus  successores  haveriío ,  e  ar- 
recadarão para  si  ,  e  no  modo  ,  e  maneira  no  dito  foral 
conteúdo  ,  c  segundo  a  forma  delle ,  e  ás  pessoas  ,  que  as 
ditas  alcaidarias  mores  forem  entregues  da  mão  do  dito  ca- 
pitão e  governador,  lhes  tomará  homenagem  delias,  segun- 
do a  forma  das  minhas  ordenações.  Outrosim  me  praz ,  por 
fazer  mercê  ao  dito  Jorge  de  Figueiredo  Corrêa  ,  e  a  to- 
dos os  seus  successores,  a  que  esta  capitania,  e  governan- 
ça de  juro  e  herdade  para  sempre  ,  que  elles  tenhão  ,  e 
hajão  moendas  ^de  agua  ,  e  marinhas  de  sal ,  e  quaesquer 
outros  engenhos  de  qualquer  qualidade  que  sejâo,  que  na 
dita  capitania  e  governança  se  poderem  fazer ,  e  hei  por 
bem,  que  pessoa  alguma  possa  fazer  as  ditas  moendas,  ma- 
rinhas ,  nem  engenhos  senão  o  dito  capitão  e  governador 
aquellas  a  que  para  isso  elle  der  licença  ,  de  que  lhe  paga- 
rão aquelle  foro  ,  ou  tributo  ,  que  com  elle  se  concertar. 
Outrosim  lhe  faço  doação  ,  e  mercê  de  juro  je  herdade 
para  sempre  de  dez  legoas  de  terra  ao  longo  da  costa  da 
dita  capitania  e  governança ,  e  entraráõ  pelo  certão  ,  tan- 
to ,  quanto  poderem  entrar ,  e  for  da  minha  conquista  , 
aquella  terra  será  sua,  livre,  izenta  ,  e  sem  dcUa  pagar  fo- 
ro, tributo,  nem  direito  algum,  somente  o  dizimo  á  Or- 
dem do  Mestrado  de  Nosso  Senhor  Jesu  Christo ,  e  dentro 
de  vinte  dias,  que  o  dito  governador  tomar  posse  da  dita 
terra,  poderá  escolher  e  tomar  as  ditas  dez  legoas  de  ter- 
ra, em  qualquer  parte ,  que:  mui  quizcr ,  não  tomando  po- 
rém juntas  senão  repartidas  em  quatro,   ou  cinco  partes, 

sen- 


dAs  Scienoias  de  Lisroa.  iS$- 

sendo  de  liuma  a  outra  menos  de  duas  legoas ,  -9S  quacs 
tcrrns  o  dito  capitão  c  governador,  e  seus  successorws  po- 
derão arrendar,  e  aforar  em  fatucsim  ,  ou  cm  pessoas,  ovi 
c<»mo  quiserem,  e  lhes  bem  vier,  e  pelos  foros  e  tribu- 
tos ,  que  qiiizerem  ;  c  as  dit;is  terras  não  serão  aforadas  , 
ou  a  renda  delias  ,  qiinndo  forem  ,  viráõ  sempre  a  quem 
succcder  a  dita  capitania,  c  governança,  pelo  rnado  nesta 
doação  conteúdo,  e  das  novidades,  que  as  ditas  terras  de- 
rem, não  será  o  dito  capitão  governador,  nem  as  pessoas, 
que  de  sua  mao  estiverem  obrigulos  a  me  pagar  tôm  ,  nem 
direito  algum.  Só  o  dizimo  a  Deos,  que  gcralmeptç  sví.h^ 
de  pagcir  cm  todas  as  outras  terras  da  dita  eapitjnia  ,  co,- 
mo  abaixo  irá  declarado.  Item ,  o  dito  capitão  e  governa- 
dor ,  c  nem  os  que  depois  dclle  vierem  podcráõ  tomar 
terra  alguma  de  sesmaria  na  dita  capitania  para  si ,  nenj 
para  sua  mulher,  nem  para  o  filho  herdeiro  delia,  e  antes 
darão  ,  e  podcráõ  dar ,  e  repartir  todas  as  ditas  terras  dç 
sesmarias,  e  quacsquer  pessoas  de  qualquer  qualidade,  e 
condição  que  sejao  ,  e  lhes  bem  parecer  livremente  seiu 
foro  nem  direito  algum,  e  somente  o  dizimo  a  Deos,  que 
serão  obrigados  a  passar  á  Ordem  de  Chrjsto  de  tudo  que 
nas  ditas  terras  houver ,  segundo  he  declarado  no  foral ,  c 
pela  mesma  maneira  poderão  dar  e  repartir  por  seus  filhos 
íóra  do  morgado  ,  e  assim  por  seus  parentes  ;  porém  aos 
ditos  filhos ,  e  parentes  não  poderão  dar  mais  terra  da  que 
derão ,  ou  tiverem  dado ,  a  qual  por  outra  pessoa  estranha , 
e  todas  as  ditas  terras  ,  que  assim  derem  de  sesmaria  asr 
sim  a  humas  ,  como  aos  outros  será  conforme  ás  ordena.- 
çóes  das  sesmarias  com  as  obrigações  delias  ,  pelas  quaes 
estará  o  dito  capitão  e  governador,  e  os  seus  succes^ores, 
€  não  poderio  em  tempo  algum  t  )maf  para  si ,  nem  par^ 
sua  mulher,  nem  .filho,  como  dito  he ,  nem  polias  em  ou- 
trem para  elles  possuírem  por  modo  aJgum  que  seja  :  so- 
mente as  podcráõ  haver  por  titulo  de  compra  verdadeira 
das  pessoas  ,  que  lhes  quizcrcm  vender  passados  oito  pn- 
nos  depois  das  terras  serem  aproveitadas  de  outra  maneira. 

Ou- 


15^6  Memorias  t)A  Academia  R  EAL 

Outrosim  lhe  faço  doação ,  e  mercê  de  juro  e  herdade 
para  sempre  de  metade  da  dizima  do  pescado  da  dita  ca- 
pitania ,  que  a  mim  pertencer ;  porque  a  outra  metade  se 
ha  de  arrecadar  para  mim  segundo  he  no  foral  declarado  j 
a  qual  metade  da  dita  dizima  se  entenderá  do  pescado,  que 
se  matar  cm  toda  a  capitania  fora  das  dez  legoas  do  dito 
capitão  e  governador  ;  porquanto  as  ditas  dez  legoas  são 
livres,  e  izentas,  segundo  atraz  hc  declarado.  R  outrosim 
lhe  faço  doação,  e  mercê  de  juro  e  herdade  para  sempre 
da  redizima  de  todas  as  rendas,  e  direitos,  que  á  dita  Or- 
dem ,  e  a  mim  de  direito  na  dita  capitania  pertencer ;  con- 
A^em  a  saber,  que  todo  o  rendimento,  que  á  dita  Ordem, 
e  a  mim  couber ,  assim  dos  dízimos  ,  como  de  quaesquer 
outras  rendas,  ou  direitos  de  qualquer  qualidade  que  s?ja  , 
haja  o  dito  capitão ,  e  governador ,  e  seus  successores , 
huma  dizima  ,  que  he  de  dez  partes  huma.  Outrosim  me 
praz  ,  por  respeito  do  cuidado  ,  que  o  dito  capitão  e  gover- 
nador ,  e  seus  successores  hão  de  ter  e  guardar,  e  conser- 
var o  Brazil ,  que  na  dita  terra  houver,  de  lhe  fazer  doa- 
ção ,  e  mercê  de  juro  e  herdade  para  sempre  da  vintena 
parte ,  do  que  liquidamente  render  para  mim ,  forro  de  to- 
dos os  custos ,  o  Brazil ,  que  se  trouxer  da  dita  capitania 
a  estes  Reinos ,  e  a  conta  do  tal  rendimento  se  fará  na 
casa  da  Mina  da  cidade  de  Lisboa ,  onde  o  dito  Brazil  for 
vendido,  e  arrecadado  o  dinheiro  delle ,  lhe  será  logo  pa- 
go ,  e  entregue  em  dinheiro  de  contado  pelos  feitores ,  e 
bfficiaes  delia  áquelle ,  que  por  boa  conta  na  dita  vintena 
montar  ,  e  isto  porque  todo  o  Brazil ,  que  na  dita  terra 
houver,  hade  ser  sempre  meu ,  e  de  meus  successores  sem 
o  dito  capitão  e  governador ,  nem  outra  alguma  pessoa  po- 
der desfructar  nelle,  nem  vende-lo  para  fora,  somente  po- 
derá o  dito  capitão,  e  assim  os  moradores  da  dita  capita- 
nia ,  aproveitar-sc  do  dito  Brazil  na  terra ,  no  que  lhe  for 
necessário ,  segundo  he  declarado  no  foral ,  e  tratado  nel- 
ie,  e  vendendo-o  para  fora  incorrerá  nas  penas  conteudas 
flQ  mesmo  foral.  Outrosim  me  praz;  fazer  mercê,  e  doação 

ao 


I 


I 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  24I 

em  Saragoça  no  anno  de  1^2^  em  lhe  vender  por  preço 
de  35'o  mil  ducados  de  ouro,  pagos  em  moeda  corrente, 
a  acção  do  domínio ,  propriedade  ,  posse  ,  ou  quasi  pos- 
sessão ,  e  todo  o  direito  de  navegar ,  contractar ,  e  com- 
merciar  por  qualquer  modo  que  fosse  ;  declarando  outro- 
sim  ,  que  as  capitulações  feitas  entre  os  Senhores  Reis  Ca- 
tholicos  D.Fernando,  e  Dona  Isabel,  e  o  Senhor  D. João 
de  Portugal ,  sobre  a  demarcação  do  mar  Oceano ,  ficarião 
firmes,  e  valiosas  em  tudo,  e  por  tudo,  como  nclles  era 
conteúdo ,  exceptuando  as  cousas  que  neste  contracto  fos- 
sem concordadas  ,  e  assentadas.  Com  isto  cessou  a  ques- 
tão da  demarcação  por  aquella  parte ,  atéque  por  fataes 
desgraças  se  unirão  por  muitos  annos  os  dominios  das  duas 
coroas  ,  com  a  sugcição  de  Portugal  a  Hespanha  no  rei- 
nado dos  Filippes. 

He  pois  certo ,  que  se  ajustarão  as  3Ó0  legoas  no 
tratado  de  Tordesilhas  ;  e  que  a  Bulia  assignalou  não  só 
as  ilhas  de  Caboverde  ,  mas  copulativamente  as  dos  Aço- 
res. Era  preciso  achar  pois  esse  ponto  para  principiar  a 
demarcação,  e  a  direcção  para  proseguir.  Se  se  applicas- 
sem  aquellas  nas  ilhas  de  Caboverde  proseguindo  pelo 
seu  parallelo  ,  ficavao  excluídas  as  ilhas  então  dos  Açores. 
Se  se  punha  o  ponto,  começando  no  seu  meridiano,  e 
continuando  pelo  seu  parallelo,  então  ficavâo  fora  da  de- 
marcação as  ilhas  de  Caboverde.  Começar  no  meridiano 
de  ambas  não  era  possível ,  pela  diíFerença  que  hia  entre 
cilas  de  4  a  5"  gráos  de  longitude  :  proseguir  por  ambos 
os  seus  parallelos  também  não  podia  ser,  pela  grande  dif- 
ferença  de  suas  alturas }  poisque  se  devia  principiar  pelo 
meridiano  dos  Açores ,  como  dispunha  a  Bulia ,  e  proseguir- 
se  pelo  parallelo  de  Caboverde ,  como  declarava  o  con- 
tracto, de  que  se  fez  menção,  paraque  a  reciproca  divi- 
são dos  meridianos  dos  Açores ,  como  parallelo  das  ilhas 
de  Caboverde  fosse  o  verdadeiro  ponto  da  linha ,  de  ou- 
tra sorte  não  se  podia  verificar  o  principio  e  direcção  para 
concordar  a  Bulia  com  O  contracto  celebrado  entre  os  dois 
Temo  IX.  ah  SO' 


24^  Memorias  da  Academia  Real 

soberanos  em  Tordesilhas ,  que  dispi!Z2r3o ,  que  a  raia ,  ou 
linha,  que  se  devia  lançar  do  pólo  artico  ao  antartico  havia 
distar  370  legoas  das  ilhas  de  Caboveruc  para  a  parte 
do  poente,  por  gráos ,  ou  por  outra  maneira,  que  mais 
brevemente  se  podesse  computar.  Havia  ainda  outia  duvi- 
da em  qual  das  ilhas  se  hivia  começar  a  contar  as  legoas. 
Os  authores  de  grande  nota  assentarão ,  que  se  devia  prin- 
cipiar do  meridiano  ,  que  passa  pela  margem  occidental  da 
ilha  de  Santo  Antão,  por  ser  a  que  fica  mais  ao  occidente 
de  todas  as  de  Caboverde,  que  estia  em  18°  de  altura, 
cm  cujo  parallelo  estendidas  as  370  legoas  para  o  occiden- 
te ,  fazião  22°  gráos  20'  de  longitude,  e  tantos  se  havia 
de  contar  entre  o  meridiano  ,  que  passa  pela  margem  Occi- 
dental da  ilha  de  Santo  Antão  ,  e  o  meridiano  da  demar- 
cação ,  que  deve  dividir  o  que  pertence  a  cada  huma  das 
coroas. 

Não  se  ajuntarão  as  embarcações  hespanholas  e  portu- 
guesas para  o  exame  do  parallelo  e  determinação  do  ponto, 
em  que  se  contarião  as  370  legoas,  nem  era  então  prati- 
cável aquclla  operação  ,  por  não  estar  ao  tempo  do  con- 
tracto de  Tordesilhas  descoberto  promontório  algum,  ou 
terra  d'Ameri ca  meridional,  até  a  controvérsia  das  Molu- 
câs  ,  que  deo  occasião  ás  duvidas  recontadas  ,  e  opiniões 
sobre  os  pontos ,  em  que  cortaria  o  meridiano  da  demarca- 
ção de  huma ,  e  de  outra  costa  distante  do  porto  de  San- 
to Antão  370  legoas,  numeradas  no  parallelo  18°,  altura 
scptentrional  da  mesrtia  ilha,  que  na  equinocial  fazião 
22°  20'.  Variárâo-se  aquelles  pontos  n'America  com  poli- 
tica ,  c  industria ,  a  fim  de  que  ficassem  as  Molucas  perten- 
centes á  Hespanha.  António  Ferreira  na  historia  geral  das^ 
Índias,  dec.  i."  livro  2.  cap.  10,  exprime-se  assim  sobre 
as  convenções  dos  soberanos  de  Hespanha ,  e  Portugal. 

<c  En  siete  de  Junio  dei  afio  de  1493  acordaron,  que 
>»  la  linca  de  la  demarcacion  se  echasse  270  legoas,  mas 
3»  adelante  hazía  el  ponicnte  de  la  linea ,  contenida  en  Ia 
n  Bulia   dei  Papa    dés    de    Ias  islãs    de   Caboverde    hazia 

»  el 


J 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  243 

»  cl  ponicnte ,  y  que  dcs  de  este  meridiano  todo  lo  rcs- 
»  tante  ai  ponicnte  fucssc  de  los  rcys  de  Castilla  yLcon, 
jj  y  dés  de  alli  ai  oriente  ,  fuesse  de  la  navigation ,  con- 
»»  quista ,  y  descobrimiento  de  los  reys  de  Portugal.  j> 

Contradizcndo-se  miseravelmente  aquellc  author  assim 
nos  pontos  geográficos ,  como  nos  que  assignalou  o  referido 
meridiano  nas  terras  do  Brazil,  como  se.  lê  na  sua  Dcc.  3. 
liv.  6. ,  cap.  7. 

j>  Pues  este  meridiano  viene  a  cortar  la  costa  dei 
>'  nucrte  dei  Brazil  por  la  boca  dei  rio  Maraíion  ,  dci- 
»»  xando  toda  la  boca  ai  occidcnte,  y  la  costa  dei  Brazil, 
>»  que  mira  ai  oriente  ,  la  costa  por  el  rio  de  San  Antoti 
»  y  Organos ;  y  este  meridiano  corta  por  la  parte  dei  orien- 
»»  te  en  la  índia  por  la  ciudad  de  Malaca  ,  deixando  to~ 
j»  da  la  China,  islã  de  los  Malucos,  y  Philippinas  en  la 
j'  demarcacion  de  Castilla  ,  scgun  lo  qual  nó  solamente  el 
"  rio  de  la  Plata  ;  pêro  toda  la  costa ,  que  hay  de  la  ba- 
»  hia  de  S.  Vicente  ai  rio  de  la  Plata,  cahê  en  la  demar- 
»  cacion  de  Castilla  ;  porque  queda  de  la  linea  de  la  de- 
»  marcacion  ai  occidente.  » 

Enganou-se  aquelle  escriptor,  quando  affirmou  que  os 
terrenos  do  Brazil  se  estendião  pela  boca  do  Maranhão  ao 
norte  ,  e  Órgãos  ao  sul ,  e  que  aquelles  dois  terrenos  ao 
meridiano  do  Brazil  cortava  no  oriente  a  cidade  de  Malaca. 

Suppondo  o  meridiano  dividido  em  duas  partes  iguaes 
precisamente  se  teria  o  circulo  máximo  lançado  sobre  a 
supcrficie  do  mesmo  globo,  e  sobre  o  seu  centro,  que  o 
corta  igualmente.  Pertende  aquelle  author,  que  o  meridiano 
venha  do  ponto,  onde  se  contao  os  22"  20'  em  procura 
do  rio  Maranhão  ,  e  montes  Órgãos  ,  e  então  não  cinge 
cUe  o  mundo  pelos  seus  pólos ,  mas  o  desvia  do  seu  cen- 
tro ;  pois  não  he  possível,  que  seja  parallelo  o  meridiano 
de  Santo  Antão,  vindo  a  acabar  nos  Órgãos  em  menor  dis- 
tancia do  dito  parallelo;  porque  se  o  tal  meridiano  cahis- 
se  pela  boca  do  rio  Maranhão  ,  necessariamente  havia  de 
cortar  muito  adiante  da  bahia  de  S.  Vicente  j  porque  en- 

Hh  ii  trc 


244  Memorias  da  Academia  Real 

trc  o  cabo  de  Santo  Agostinho ,  c  o  rio  Maranhão  vão 
14°  40'  de  longitude  ,  c  entre  o  cabo  de  Santo  Agosti- 
nho ,  e  a  Bahia  de  S.  Vicente  não  ha  mais  longitude 
que  de  10°;  e  por  conseguinte  a  linha  de  demarcação  não 
pôde  dirigir-se  por  aquelles  dois  lugares;  porque,  sendo  o 
meridiano  huma  linha  de  norte  a  sul ,  tanta  distancia  deve 
haver  do  cabo  de  Santo  Agostinho  ao  rio  de  Maranhão, 
como  daquelle  á  bahia  de  S.  Vicente. 

Continuou  se  a  torcer  o  meridiano  pela  boca  do  rio 
Maranhão ,  porque  passa  muitos  gráos  além  do  rio  das 
Amazonas.  Não  ha  da  ilha  de  Santo  Antão  ao  cabo  de 
Santo  Agostinho ,  senão  3  gráos  de  longitude  ;  e  ainda 
menos  ,  c  do  cabo  de  Santo  Agostinho  ao  rio  Maranhão 
14°  40',  que  juntas  fazem  17°  40',  e  por  esta  demarcação 
he  manifesto  se  não  completão  os  22°  20'  concedidos  a 
Portugal ,  por  lhe  faltar  4.°  40'.  Convencido  desta  verdade , 
diz  elle  em  outro  lugar: 

ít  Despues  á  cá  se  ha  hallado  esta  linea  de  demarca- 
»  cion ,  y  la  descrive  un  meridiano,  que  passa  por  22 
j>  gráos ,  y  un  tercio ,  mas  ai  occidente  de  la  islã  de  Saa 
3>  Anton.  >> 

João  Botero  Benesse  assignala  o  verdadeiro  meridiano 
do  Brazil  os  22°  20'  a  distancia  formada  ao  poente  de  San- 
to Antão,  e  doutíssima  e  exactamente  mostrarão  Jorge  Rey- 
nal ,  Fernão  Rodrigues  de  Castellobranco  ,  Bartholomeii 
Velho,  e  o  celebre  Pedro  Nunes  nas  cartas  de  cálculos, 
que  fizerão  das  terras  do  Brazil  ,  pelas  quaes  se  vê ,  que 
comcção  aquellas  ao  norte  do  rio  do  Amazonas  pela  boca 
do  rio  Fresco  ,  e  cabo  dos  Hunos  ao  sul  84  legoas  além 
do  rio  da  Prata.  Pedro  de  Magalhães  de  Gandavo  na  his- 
toria da  província  de  Santa  Cruz ,  descreve  assim  o  Brazil. 

«  Esta  província  de  Santa  Cruz  está  situada  naquella 
»  grande  America ,  huma  das  quatro  partes  do  mundo ,  dis- 
»  ta  o  seu  principio  2"  da  equinocial  para  o  sul ,  e  dahi 
»»  se  vai  estendendo  para  o  mesmo  45''',  que  vem  a  ser  até 
>»  á  bahia  de  S.  Mathias.  >» 

Ge- 


1 


\ 


DAS   SCIENCIAS    DE    LiSBOA.  245" 

Gerardo  Mercador  na  sua  geografia  universal  fui.  365, 
assim  dcscrcvco  os  limites : 

„  Resta  descrevermos  a  terra  do  Brazil  mais  occiden- 
jj  tal  da  America ,  que  tomou  o  nome  do  páo  vermelho , 
j,  que  ahi  nasce  ....  Está  situada  entre  os  dois  rios  Ma- 
„  ranhão,  e  o  da  Prata.  „ 

O  Lexicon  geográfico  de  Filippe  Ferrario  foi.  64  no 
artigo  Argenteiis  fluvííis  ^  diz  o  seguinte: 

'<  O  rio  da  Prata  ,  como  alguns  querem  ,  nasce  da 
„  região  do  Paraguay ,  além  do  lago  chamado  Xarays  ^  da- 
j,  qui  por  longo  intervallo  divide  por  duas  partes  a  pro- 
„  vincia  Paraguay  ,  corre  ao  sul  ,  regando  outras  provin- 
„  cias,  assimcomo  os  lugares  de  Buenosayres ,  Visita- 
,,  çuo ,  Conceição  ,  Santa  fé ,  Assumpção ,  e  Sete  corren- 
„  tes  ,  c  augmentando  com  os  rios  Picolmayo  ,  Paraná , 
„  Negro,  Carcona ,  e  outros  muitos  sahem  no  mar  brazi- 
„  lico  por  huma  boca  de  40  Icgoas.  „ 

Salorzano  seguindo  a  Gerardo  Mercador  no  tomo  i.° 
cap.  6.  n.  $<)  de  Jure  Indiarttm  y  diz  : 

"  Aquella  região,  que  se  chama  Brazil,  que  se  de- 
,,  vide  dos  confins  do  reino  de  Peru,  e  se  exime  da  júris- 
„  dição  do  seu  Vicerey ,  se  fecha  com  os  dois  grandes 
„  rios  Maranhão  pela  parte  do  norte ,  e  o  da  Prata  pelo 
„  sul.  „ 

Filippe  Cluverio  nas  suas  introducções  geográficas , 
c  descripçõcs  do  Brazil,  liv.  6,  foi.  367,  diz  o  seguin- 
te : 

"  O  mais  celebre  porto  do  Brazil,  he  o  da  Bahia  de 
„  todos  os  Santos;  no  certão  as  cidades  de  Paraguay,  e 
,,  Assumpção  são  as  mais  populozas.  „ 

O  Padre  Simão  de  Vasconcellos  ,  Noticias  das  couzat 
âo  Brazil^  liv.  i.  n.  13,  usa  do  seguinte  discurso: 

"  Para  este  intento  mandou  naquella  Bulia  ,  que  se 
„  lançasse  huma  linha  de  norte  a  sul  cem  legoas  das  ilhas 
„  dos  Açores ,  e  Caboverde  a  mais  occidental  para  o 
„  poente.  „ 

£ 


246  Memorias  da  Academia  Real 

E  continuando  a  mesma  historia  diz  no  n.  1 4  : 
*'  ElRcy  D.Joáo  o  II,  que  neste  tempo  reinava  cm  For- 
„  tugal,  reclamou  esta  Bulia,  pedindo  ao  summo  Pontífice 
„  outras  300  legoas  ao  poente  sobre  as  cento,  que  tinha 
,,  destinado.  E  como  estaváo  os  Reys  de  Cnstella  tiío  apa- 
,,  rcntados  com  os  de  Portugal ,  c  o  csperavao  estar  mais , 
„  vicrão  facilmente  no  que  pedia  ElRey  D,  João ,  e  de 
„  boa  conformidade  e  parecer  do  summo  Pontífice,  se  con- 
„  cederão  mais  270  legoas,  além  do  concedido  na  Bulia 
„  a  7  de  Junho  de  1494  :  o  que  supposto  aquella  linha 
„  imaginaria  lançada  de  norte  a  sul  na  conlormidadc  so- 
„  brcdira,  que  vem  a  ser  do  ultimo  ponto  das  370  legoas 
„  de  huma  das  ilhas  dos  Açores,  e  Caboverde  mais  occi- 
,,  dental  (que  dizem  foi  a  ilha  de  Santo  Antão)  ao  poen- 
„  te,  he  o  fundamento  da  divisão,  e  demarcação  do  Bra- 


„  zil.  „ 


O  livro  intitulado  Theatnim  orhis  na  taboada  do  Bra- 
zil ,  e  Gothofrcdo  Archontologia  Cósmica  foi.  3 18,  cor- 
roborão  o  parecer  daquelles  authores  com  a  posse  continua- 
da de  muitos  annos ,  em  actos  e  povoações  successivas.  Luiz 
Coelho  de  Barbuda  nas  Emprezas  militares  de  Lusitanos  , 
iiv.  14  foi.  2^5:,  convém  nas  370  legoas  da  demarcação  ge- 
ral, e  attendendo  as  operações  geográficas,  diz  ,  que  o  me- 
ridiano passa  pelo  Grão  Pará  ,  e  que  assim  fica  incluída  a 
boca  do  rio  da  Prata  dentro  dos  limites  de  Portugal.  Bar- 
tholomcu  Leonardo  y  Argensola  na  sua  historia  da  Con- 
quista das  Molucas ,  diz ,  que  a  linha  corta  mais  adiante  do 
rio  da  Prata ;  e  a  sua  authoridade  he  de  grande  pezo ,  por 
ser  hcspanhol ,  e  ter  dedicado  a  sua  obra  a  Filippe  III. 

Pedro  Ordonho  de  Sabalhos  historiador  hespanhol  no 
livro  Biajen  dei  Mundo,  Iiv.  3.  foi.  272,  fazendo  menção 
das  ilhas  e  terra  firme,  que  na  America  occupão  os  hes- 
panhócs  ,  firma  por  termo  do  grande  império  a  província 
de  Buenosayres ,  dizendo ,  que  tudo  mais  he  Brazil.  Se- 
guio  aquelle  Garibay  estando  no  interior  de  Guipussuca  , 
t.  2.  Iiv.  15»,  cap.  4,    e  t.  4.   Iiv.  25-,  cap.  25- j  assimco- 


mo 


DAS   SciENCIAS   DE    L  I  S  B  O  A.  247 

mo  tambf!in  o  Padre  Marianna  no  liv.  26  ^  foi.  408.  Fr. 
António  de  S.  Romão  ,  que  escrcvco  em  1603  a  historia 
dii  índia  oriental,  liv.  i.  cap.  6,  não  só  convcm  nas  370 
Icgoas  da  situação  do  meridiano  ,  que  dividio  o  mundo  ; 
mas  affirma  com  Garibay,  e  Marianna,  que  o  dito  meridia- 
no SC  lançou  470  legoas  da  ilha  de  Santo  Antão  para  o 
poente. 

Barleo  ,  diz  :  "  O  Brazil  para  a  parte  occidental  vê 
j,  de  mui  largo  os  dezcrtos  dos  Caribes,  o  Perií  das  pro- 
„  víncias  do  novo  mundo  a  mais  nobre,  e  ultimamente  os 
,,  cumes  de  huns  altos  montes  para  o  sul,  desconhecidas 
„  regiões ,  ilhas ,  mares ,  estreitos ,  as  costas  occiden- 
,,  taes :  o  Occeano  atlântico ,  e  os  boreas  combatem  a  parte 
j,  scptentrional  ,  os  portuguezes  o  terminão  pelo  rio  da 
„   Prata  ,  e  pelo  rio  Maranhão.  „ 

O  Atlas  universal  do  mundo,  foi  o  juiz  imparcial  da 
questão ,  na  carta  geral  da  America ,  onde  asNÍgnala  entre 
a  margem  occidental  da  ilha  de  Santo  Antão ,  e  a  boca  do 
rio  da  Prata  21°  de  longitude,  faltando  para  o  complemen- 
to dos  22°  30'  do  meridiano  estabelecido  da  ilha  de  San- 
to Antão  1°  20',  ficando  evidente,  que  o  meridiano  da  de- 
marcação corre  além  da  boca  do  rio  da  Prata  para  a  par- 
te do  occidente  mais  de  1°  que  falta  para  a  satisfação 
de  22°  20'  de  que  se  compÔe  este  parallelo  ;  e  até  a  na- 
tureza parece  se  empenhou  cm  tirar  esta  duvida ,  dividindo 
os  limites  com  o  notável  Lago  doirado  ou  Xaray ,  que  si- 
tuou no  coração  da  America ,  e  quasi  no  centro  delia ,  cin- 
gindo-a  com  dois  braços ,  que  são  como  o  império  das 
aguas ,  e  dão  origem  aos  dois  famosos  rios ,  dos  quaes 
hum  corre  para  o  norte  com  o  titulo  do  Amazonas ,  ou 
Maranhão  com  mais  de  80  legoas  de  embocadura ,  e  ou- 
tro para  o  sul  cora  o  nome  de  rio  da  Prata  com  40  le- 
goas de  largo. 

Daquelle  rio  da  Prata  tomou  posse  no  principio  do 
descobrimento  do  Brazil  Américo  Vespucio ,  e  depois  Mar- 
tim  Affonso  de  Sousa,  e  se  convence  de  hama  carta  do  Snr. 

Rei 


248  Memorias  da  Academia  Real 

Rei  D.  João  III  de  28  de  Setembro  de  1532,  dizendo- 
Ihe ,  que  pelas  cartas ,  que  lhe  enviara  por  João  de  Sou- 
sa ,  soubera  da  sua  chegada  ao  Brazil ,  e  que  hia  correndo 
o  rio  da  Prata  ,  e  que  já  lhe  havia  respondido  no  anno 
antecedente  ,  louvando-lhe  as  prezas  ,  que  fez  dos  navios 
francezes  ,  e  encomendou  as  noticias,  do  que  houvesse 
encontrado  ,  a  respeito  dos  descobertos  ,  como  do  rio  da 
Prata.  Martim  AíFonso  desempenhou  dignamente  a  commis- 
são:  descobrio  o  Rio  de  Janeiro,  e  todas  as  terras  do  sul, 
onde  entrou  ,  e  fez  povoação  na  Bertioga  ,  levantou  pa- 
drões nos  lugares  convenientes  para  segurar  a  posse  de 
Portugal ,  que  depois  de  dois  séculos  ainda  forão  achados 
pelo  coronel  António  Botelho  de  Sampaio  em  16  de  Janei- 
ro de  1767.  Na  altura  de  30"  descobrio,  o  que  junto  da 
barra ,  se  appellida  da  Prata  ;  na  ilha  do  Maldonado  assen- 
tou hum  marco  com  as  quinas  de  Portugal ,  reconheceo  as 
duas  margens  do  rio  ,  e  de  ambas  tomou  posse ,  pondo 
padrões  ,  e  forâo  achados  taes  padrões  na  cidade  de  As- 
sumpção de  Paraguay,  os  quaes  pertcndendo  arrancar  o  go- 
vernador D.  Diogo  de  los  Reys  se  amotinarão  os  indios, 
e  lho  impedirão  :  retirou-se  o  governador  para  as  missões 
dos  Padres  da  Companhia ,  para  vir  arrancalos  com  aquel- 
les  indios ,  e  não  o  pôde  conseguir  pela  opposição  dos 
de  Paraguay,  do  que  resultou,  que  participando  esta  no- 
ticia o  dito  governador  para  Buenosayres  ,  onde  estava  o 
Tenentc-rci  D.  Balthasar  Garcia  ,  e  o  Bispo ,  que  tinha 
vindo  de  Cusco  ,  se  pozérão  em  marcha  pelo  rio  Iraruaya , 
que  vai  desaguar  ao  rumo  do  sul  ,  e  dalli  entrarão  pelas 
missões  do  rio  Capigú  ,  e  de  lá  para  o  povo  de  Santa 
Maria  ,  chamado  Policarpo ,  e  marcharão  para  o  rio  Tabe- 
queri ,  onde  armarão  campo :  sahírao  ao  encontro  os  indios 
de  Paraguay  com  o  seu  governador ,  que  elegerão  D.  José 
de  Antiqucra  e  Castro  ,  e  o  ouvidor  da  Real  audiência 
de  Suquicaca ,  que  dando  batalha  ao  meio  dia  ,  obrarão 
por  tal  maneira  os  paraguayanos  ,  que  em  duas  horas  po- 
zérão  era,  fuga   os  cabos   e  soldados  para   a  povoação  de 

San- 


1 


DAS  ScrENCiAs  DE  Lisboa.  i^j 

ao  dito  capitão  e  goycrnador ,  e  a  seus  successores  de  ju- 
ro e  herdade  para  sempre ,  que  dos  escravos,  que  elles  res- 
gatarem ,  e  houverem  na  dita  terra  do  Brasil ,  possão  man- 
dar a  estes  reinos  vinte  e  quatro  peças  cada  anno  para  fa- 
zer dcllcs  o  que  lhes  bem  vier ,  os  quaes  escravos  viráó 
ao  porto  e  cidade  de  Lisboa  ,  c  não  algum  outro  porto  , 
e  mandarão  com  elles  certidão  dos  ofíiciaes  da  dita  terra  , 
de  como  são  seus ,  pela  qual  certidão  lhe  serão  cá  despa- 
chados os  ditos  escravos  forros  sem  delles  pagar  direito 
algum,  nem  cinco  por  cento,  e  além  destas  vinte  e  qua- 
tro peças,  que  assim  cada  anno  poderá  mandar  forros:  Hei 
por  bem  ,  que  possa  trazer  por  marinheiros  e  gurometes  era 
seus  navios  todos  os  escravos  que  quizerem  ,  e  lhes  forem 
necessários.  Outrosim  me  praz  ,  por  fazer  mercê  ao  dito 
capitão  c  governador ,  e  seus  successores ,  e  assim  aos  mo- 
radores,  e  visinhob  da  dita  capitania,  que  nella  não  pos- 
sa em  tempo  algum  haver  direito  de  sizas ,  nem  imposi- 
ções, saboarias  ,  tributos  de  sal,  nem  outros  alguns  tribu- 
tos, nem  direitos  de  qualquer  qualidade  que  sejão  ,  salvo 
aquellq* ,  que  por  bem  desta  doação ,  e  do  foral  ao  pre- 
zente  são  ordenados  que  haja.  Item  hei  por  bem ,  e  me 
praz ,  que  só  se  dê  e  succeda  de  juro  e  herdade  para  todo 
sempre  pelo  dito  capitão  e  governador,  e  seus  descen- 
dentes filhos  e  filhas  legitimas  com  tal  declaração ,  que 
emquanto  houver  filho  legitimo  varão  no  mesmo  gráo ,  não 
succeda  filha  ,  postoque  seja  em  maior  idade  doque  o  fi- 
lho ;  e  não  havendo  macho ,  ou  havendo-o ,  e  não  tendo 
então  propinquo  gráo  ao  ultimo  possuidor  como  a  fêmea , 
que  então  succeda  a  fêmea  ,  e  emquanto  houver  descen- 
dentes legitimos  machos,  ou  fêmeas,  que  não  succeda  na 
dita  capitania  bastardo  algum,  e  não  havendo  descendentes 
machos  ,  nem  fêmeas  legitimos ,  então  supcederâo  os  bas- 
tardos,  não  sendo  porém  de  danado  coito,  e  succederáo 
pela  mesma  ordem  de  legitimos,  primeiro  machos,  e  de- 
pois as  fêmeas  em  igual  gráo,  e  com  tal  condição,  que  os 
possuidores  da  dita  capitania  a  quizerem  antes  deirar  a  algum 
Tomo  IX,  Kk  seu 


9f8  MfMORIAS  DA   ACADEMIA    KeAL 

seu  parente  transversal ,  que  aos  descendentes  bastardos , 
quandi)  não  tiyer  legitiroos  ,  o  possa  fazer,  e  não  havendo 
descendentes  rtuchos  ,  nem  fcmeas  Jegitimos ,  nem  bastar* 
dos  da  maneira ,  que  dito  he ,  em  tal  c^so  succederáõ  os 
ascendentes  machos,  e  fêmeas,  primeiro  os  machos,  e  cm 
falta  delles  as  fêmeas,  e  não  havendo  descendentes,  nera 
ascendentes  ,  succederáõ  os  transversaes  pelo  modo  sobre- 
dito, sendo  primeiro  os  machos,  que  forem  em  igual  gráo , 
e  depois  as  fcmeas  ,  e  no  caso  do^s  bastardos  ,  ou  possui- 
dor, poderá  se  quizer  deixar  a  dita  capiunia  a  hum  trans- 
versal legitimo ,  e  tira-la  aos  bastardos ,  postoque  sejão 
descendentes  cm  muito  mais  próximo  gráo ;  e  isto  hei  as- 
sim por  bem  ,  sem  embargo  da  lei  mental ,  que  diz  ,  que 
não  succcda  fêmea ,  nem  bastardos  ,  nem  transversaes ,  nem  as- 
cendc:ites ;  porque  sem  embargo  de  tudo  me  praz  ,  que 
nesta  capitania  succedao  fêmeas  ,  e  bastardos  ,  não  sendo 
de  coito  danado ,  e  transversaes  e  ascendentes  do  modo 
que  já  hc  declarado.  Outrosim  quero ,  e  me  praz  ,  que 
em  tempo  algum  serão  por  elles  a  dita  capitania  e  gover- 
nança ,  e  todas  as  cousas ,  que  por  esta  doação  dou  ao  di- 
to Jorge  de  Figueiredo  Corrêa  não  possa  partir ,  nem  es- 
cambar ,  cspedaçar ,  nem  em  casamento  a  filho  ou  filha , 
nem  a  outra  pessoa  dar ,  nem  para  tirar  pai ,  ou  filho ,  ou 
alguma  pessoa  do  captiveiro ,  nem  para*  outra  cousa,  ain- 
daque  seja  mais  piedoso  ,  porque  minha  tenção  e  vontade 
hc  que  a  dita  capitania  e  governança  ,  e  cousas  ao  dito 
capitão  e  governador  nesta  doação  dadas  ,  andem  sempre 
juntas ,  e  se  não  partão  ,  nem  alienem  em  tempo  algum 
aquelle  que  a  partir,  ou  alienar,  espedaçar,  ou  der  em  ca- 
samento, ou  para  outra  cousa,  poronde  haja  de  ser  parti- 
da ,  aindaquc  seja  mais  piedosa  por  esse  mesmo  effeito , 
perca  a  dita  capitania  e  governança,  e  passe  direitamente 
aquelle ,  que  houver  de  hir  pela  ordem  de  succeder  sobre- 
dita ,  se  o  tal  que  isto  assim  não  cumprir  fosse  morto.  E 
outrosim  me  praz,  que  para  caso  algum  de  qualquer  qua- 
lidade que  seja ;  c  o  dito  capitão  governador  commetta  , 

por- 


DAS   SciENCIAS   DE   LiSBOA.  SJ-p 

porque  segundo  o  direito ,  e  leis  deste  Reino  ,  mereça  per- 
der a  dita  capitania  c  governança,  jurisdição,  e  renda  del- 
ia ,  a  nâo  perca ,  salvo  se  o  succcssor  for  traidor  á  coroa 
destes  reinos,  e  em  outros  casos,  que  commctter,  será 
punido,  quanto  o  crime  o  obrigar;  porém  o  seu  successor 
não  perderá  por  isso  a  dita  capitania  e  governança,  juris- 
dição ,  rendas,  e  bens  delia,  como  dito  he.  Item  me  praz , 
e  hei  por  bem ,  que  o  dito  Jorge  de  Figueiredo  Corrêa , 
e  todos  os  seus  successorcs ,  a  que  esta  capitania  e  gover- 
nança vier,  use  inteiramente  de  todo  o  poder,  jurisdição, 
e  alçada  nesta  doação,  com  a  renda  assim,  e  da  maneira, 
que  nella  hc  declarado  ,  e  pela  confiança  ,  que  delles  te- 
nho ,  que  guardarão  nisso  tudo  o  que  cumpre  a  serviço  de 
Deos ,  e  meu,  a  bem  do  povo,  c  direito  das  partes.  Hei 
outrosim  por  bem,  e  me  praz,  que  nas  terras  da  dita  ca- 
pitania não  entre  ,  nem  possa  entrar  em  tempo  algum  cor- 
regedor ,  nem  alçada  ,  nem  outras  algumas  justiças ,  para 
nella  usar  de  jurisdição  alguma,  por  nenhuma  via,  ou  mo- 
do que  seja ,  nem  menos  será  o  dito  capitão  suspenso  da 
dita  capitania  ,  governança ,  e  jurisdição  delia  :  porém  se 
o  dito  capitão  cahir  em  algum  erro ,  c  fizer  alguma  cou- 
sa ,  por  que  mereça ,  c  deva  ser  castigado ,  Eu ,  ou  os  meus 
successorcs  o  mandaremos  vir  para  ser  ouvido  com  sua  jus- 
tiça ,  e  lhe  ser  dada  aquella  pena  ou  castigo ,  que  de  di- 
reito o  tal  caso  merecer.  Outrosim  me  praz  ,  por  fazer  mer- 
cê ao  dito  Jorge  de  Figueiredo  Corrêa ,  que  elle  possa  no- 
mear em  sua  vida,  ou  por  seu  falecimento  a  successão  a 
qualquer  dos  seus  filhos,  ou  filhas,  que  elle  quizer,  pos- 
toque  nesta  doação  seja  declarado ,  que  a  successão  da  dita 
capitania  a  qualquer  de  seus  filhos  depois  do  seu  faleci- 
mento seja  primeiro  ao  mais  velho  ,  não  tendo  filho  al- 
gum ,  a  sua  filha ;  porem  por  falecimento  de  filho ,  ou  fi- 
lha ,  que  elle  assim  na  dita  capitania  ,  e  governança  no- 
mear,  virá  a  successão  delia  i  pessoa,  que  de  direito  a  de- 
va de  haver ,  c  herdar ,  assim ,  e  no  modo ,  que  no  capi- 
tulo  da  successão  da  dita  capitania  he  declarado ,  e  não 

xk  ii  no- 


200  Memorias  da  Academia  Real 

nomeando,  em  tal  caso  virá  a.,succes^ãiQ  da  tal  capitania  4 
pessoa  ,  a  que  por  bem  do  dito  capitulo  da  succcssao  deve 
vir,  ., Item  porquanto  o  ditp  Jorge  de  Figueiredo  Corrêa 
fee.  o  primeiro  capitão  €  governador  desta  capitania  :  hei 
por  bem ,  e  me  praz  de  lhe  faz,çr  mcrce ,  e  ficar  memoria 
delle ,  que  t<?dos  i>«  seus  successores ,  e  pessoas,  que  á  di- 
ta capitania  vierem  ,  se  chamem  Figueiredo  ;  sob  pena  de 
que,  o  quç  não  se  chamar  dç  Figueiredo  perderá  3  dita  ca- 
pitania ,  e  governança  ,  e  não  poderá  em  maneira  alguma 
suçccder  iae)la ,  a  qual  capitania  ,  e  governança  por  elle 
tnesmo  passará  logo  a  QUtro  successor ,  a  que  de  direito 
pertenceria,  se  o  tal  que  isto  asi-im  não  cumprir  fosse  mor- 
to,  e  serão  assim  mesmo. obrigados  todos  os  seus  sucees- 
sores  a  tra'*er  as  armas  dos  Figueredos.  Esta  mercê  lhe  far 
ço ,  como  í^ei  e  Senhor  destes  Reinos ,  e  assim  como  go- 
vernador ,  e  prepetw  administrador ,  que  sou  da  ordem  e 
cavai laria  do  mestrado  de  nosso  Senhor  Jesu  Christo  ,  e 
por.e^ta  prezente  carta,  dou  poder,  e  authoridade  ao  dito 
Jorge  de  Figueiredo  Corrêa ,  que  elle  por  si ,  e  por  quem 
lhe  parecer ,  possa  tomar ,  e  tome  posse  real ,  corporal , 
c  actual  das  terras  d^  dita  capitania  e  governança ,  e  das 
rendas ,  e  bens  delia  ,  e  todas  as  mais  cousas  conteudas 
nesta  doação  ,  e  use  de  tudo  inteiramente ,  como  ntlla  se 
contêm;  a  qual  doação  hei  por  bem,  quero,  e  mando, 
que  se  cumpra  e  guarde  em  tudo  ,  e  por  tudo  com  todas 
as  clausulas ,  condições ,  e  declarações  nellas  conteudas ,  e 
declaradas,  sem  mingoa  nem  desfalecimento  algum:  e  pa- 
ra tudo  o  que  dito  he  ,  derogo  a  Icí  mental  ,  c  quaesr 
quer  outras  leis  ,  ordenações  ,  direitos  ,  glozas  ,  e  costu- 
mes,  que  em  direito  disto  haja,  e  possa  haver,  por  qual- 
quer modo,  e  via  que  seja,  postoque  sejao  taes ,  que  fos- 
se necessário  serem  aqui  expressas  e  declaradas  ,  de  verho 
ad  vcrhnn ,  sem  embargo  da  ordenação  do  livro  2.  tit.  49 , 
que  dii  que  quando  as  taes  leis  e  direitos  se  derogarem ,  se 
faça  expressa  menção  delias  ;  e  por  esta  prometto  ao  dito 
Jorge  de  Figueiredo  Corrêa,  e  a  todos  os  seus  successo- 


res, 


DAS   SCIENCIAS   OE   LiSBOA.  z6í 

res ,  que  nunca  em  tempo  algum  hirci ,  nem  consentirei  iiir 
contra  esta  minha  ordem  ,  c  doação  em  parte  ,  nem  cm 
todo.  E  rogo ,  e  encommendo  a  todos  os  meus  succcsso- 
res  ,  que  lhe  cumprao  e  guardem  ,  mandem  cumprir  c  guar- 
dar. Assim  mando  a  todos  os  meus  Corregedores ,  Desem- 
bargadores ,  Ouvidores  ,  Juizes  ,  c  Justiças ,  OfEciaes,  e  pes- 
soas dos  mesmos  reinos ,  e  senhorios  ,  cumprao  ,  e  guar- 
dem ,  e  f;içiIo  cumprir,  c  guardar  esta  minha  carta  de  doa- 
ção, c  todas  as  cousas  nella  contendas,  sem  nisso  lhes  ser 
posta  duvida  ,  nem  embargo  ,  nem  contradição  alguma  , 
porque  ansim  hc  a  minha  mercê  ;  e  por  firmeza  delia  lhe 
mandei  dar  esta  carta  por  mim  assignada  ,  e  sellada  do 
scUo  pendente  de  cera  da  minha  Chancellaria  ,  a  qual  vai 
escripta  em  cinco  folhas  ,  e  com  esta  do  meu  signal  ,  e 
com  a  primeira,  em  que  esta  doação  começou  da  parte  de 
dentro  ,  as  quaes  todas  são  assignadas  ao  pé  de  cada  huma 
por  D.  Miguel  da  Silva ,  Bispo  de  Viseu ,  do  meu  Con- 
selho ,  c  meu  Escrivão  da  puridade.  Vicente  Fernandes  a 
fez  em  Évora  aos  vinte  e  sete  dias  do  mez  de  Julho  do 
anno  de  i5'24.  E  eu  Fernão  Alvares  Thesoureiro  mor  d'El- 
Rei  nosso  Senhor,  Escrivão  da  sua  Fazenda  a  fiz  escre- 
ver. :=,  Rei. 

Nota     V. 

Carta  do  Governador  sohre  os  índios, 

A  S  do  corrente  se  me  apresentou  o  indio  Manoel 
Filippc  Monteiro  de  Aguiar  com  cinco  índios,  e  huma  Ín- 
dia ,  acompanhados  de  huma  carta  do  capitão  mor  das  Or- 
denanças de  Jiquiriçá  Francisco  António  da  Silva  preten- 
dendo estabeleccr-se  no  lugar  chamado  das  Salinas^  e  pe- 
dindo-me  parocho ,  que  os  instruísse  na  Religião  Catholi- 
ca  ;  requerendo-me  ao  mesmo  tempo ,  que  os  não  pozesse 
debaixo  da  subordinação  ,  e  direcção  do  capitão  mor  da 
Rassaca  João  Gonsalvcs  j  e  estranhando  a  vinda  destes  ho- 
mens. 


202  Memorias  da  Academia  Real 

inens  ,  por  não  ser  acompanhada  de  carta  de  v.  in, ,  cjue 
se  aclia  encarregado  por  este  Governo  do  negocio  impor- 
tante da  conquista  do  gentio  daquellc  continente  ,  os  rc- 
metto  na  presente  occasião,  depois  de  serem  assistidos  com 
o  vestuário  e  comida  necessária,  paraque  v.  m.  á  vista  do 
que  elles  lhe  ponderarem  ,  e  do  que  julgar  mais  convenien- 
te ao  serviço  de  Deos ,  e  de  S.  Magestade ,  os  fuça  habi- 
tar aquclle  lugar,  que  lhe  parecer  mais  próprio,  lembran- 
do-se  de  que  pela  informação  ,  que  se  me  dá  ,  são  sete 
aldêas ,  que  se  pretendem  unir,  o  que  será  fácil  de  conse- 
guir ,  por  fallarem  todos  o  mesmo  idioma ,  procurando  fa- 
zer esta  diligencia  de  sorte,  que  fiquem  contentes,  e  sa- 
tisfeitos os   mesmos  indios. 

Ao  dito  capitão  mor  de  Jequiriçá  escrevo  ,  reprehen- 
dendo-o  de  os  remetter ,  sem  ter  primeiro  participado  a 
V.  m.  semelhante  remessa ,  que  pretendeo  embaraçar  u  sar- 
gento mor  Luiz  Gonsalves  da  Silva ,  como  v.  m.  me  com- 
munica   na  sua  carta  de  8  do  corrente. 

O  portador  desta  pretende  ser  capitão  mór  dos  indios 
da  aldêa  de  Jequiriçá  j  sobre  o  que  v.  m.  me  informará  , 
e  quando  se  offerecer  occasião  ,  me  dará  parte  das  provi- 
dencias ,  que  der  a  respeito  dos  mesmos  indios.  Deos  guar- 
de a  v.  m.  Bahia  28  de  Abril  de  1790.  =;  D.  Fernando 
José  de  Portugal,  z:  Senhor  Desembargador  Francisco  Nu- 
nes da  Costa ,  Ouvidor  da  commarca  dos  Ilheos. 

N  o  T  A      VI. 

Fico  entregue  da  carta,  que  v.  m.  me  dirigio  com  da- 
ta de  10  de  Maio  passado  em  resposta  ,  da  que  lhe  es- 
crevi em  28  de  Abril  do  corrente  anno,  quando  foi  a  re- 
messa dos  indios  do  certao  da  Rassaca  ,  pelo  conductor 
Manoel  Filippe  Monteiro  de  Aguiar,  e  approvando  as  pro- 
videncias ,  que  v.  m.  deu  a  este  respeito ,  só  me  resta 
Icmbrar-lhe  ,  que  me  communique  a  chegada  dos  ditos  in- 
dios a  essa  sua  commarca ,  para  se  darem  aquellas  provi- 

den- 


DAS   SciENCIAS   DE    LiSBOA.  263 

dencias,  que  se  julgarem  necessárias.  Deos  guarde  a  v.  m. 
Bahia  25  de  Junho  de  1790.  =;  D.  Fernando  José  de  Por- 
tugal. =;  Senhor  Desembargador  Ouvidor  da  commarca  dos 
Ilhcos,  Francisca  Nunes  da  Costa. 

Nota     VII. 

Os  Índios ,  que  vicrao  do  certão  da  Rassaca ,  c  que 
com  esta  serão  apresentados  a  v.  m.  ,  os  repartirá  pelas 
povoações ,  que  julgar  conveniente ,  recommendando  aos 
parochos,  que  os  cathequizem  para  se  baptizarem,  e  aos  di- 
rectores ,  que  lhes  dcm  bom  tratamento ,  paraque  se  possa 
conseguir  não  só  a  conservação  dos  mesmos  indios  na- 
quellas  povoações ,  mas  paraque  se  facilite  o  transporte  dos 
outros  muitos ,  que  se  achao  pelas  matas,  Deos  guarde  a 
V.  m.  Bahia  23  de  Agosto  de  1790.  7Z  D.  Fernando  José 
de  Portugal,  z:  Senhor  Desembargador  Ouvidor  da  com-» 
marca  dos  ilheos  Francisco  Nunes  da  Costa. 

Nota     VIII. 

Provisão  (/»)  em  que  forao  alliviados  os  povos  da  contriluiçao 
da  farinha  para  o  presidio  do  Morro. 

D.  João  por  graça  de  Deos ,  Rei  de  Portugal,  e  dos 
Algarves,  d'aquem  ,  e  d'alem  mar,  em  Africa  Senhor  de 
Guiné ,  &c.  Faço  saber  a  vós  Conde  das  Galveas ,  Vicerei 
e  Capitão  general  de  mar  e  terra  do  Estado  do  Brazil , 
que  vendo  o  que  me  escrevestes  em  cartas  de  nove  de  Ju- 
lho de  mil  setecentos  e  trinta  c  seis  ,  e  de  doze  de  Agosto 
do  anno  passado  sobre  a  guarnição  do  Morro  de  S,  P;juIo 
ser  paga  pela  Provedoria  dessa  cidade  de  fardas  e  soccor- 
ros  ,  mas  não  de  ração  de  farinha  ,  de  que  era  muito  mal 
satistcita  ;  porque  á  tal  ração  se  havião  obrigado  os  mora- 
dores das  villas  de  Boipeba  ,   Cairú ,    e  Camamú ,   a  qual 

obri- 

(a)     Ac)ia-se  esta  Provisão  no  Livro  6."  de  Registos  de  Cartas  e  Or- 
deus  na  Provedoria  da  Fazenda  Real  da  EaLia  a  f.  8. 


a64  Memorias  da  Academia  Real 

obrigação ,  por  estar  ha  muitos  annos  cxtincta  ,  duvidavao 
os  ditos  moradores  continuar  com  a  dita  distribuição  ,  e 
principalmente  por  haver  crescido  a  muito  maior  numero 
os  soldados  e  artilheiros,  que"  assistem  naquelle  prezidio, 
por  cuja  causa  havia  huma  continua  vexação  na  cobrança 
da  dita  farinha  ,  c  os  soldados  c  artilheiros  padecião  a  fal- 
ta de  não  serem  nunca  inteirados  das  suas  rações ,  nem  se- 
ria possível  o  fossem  ,  não  só  pelo  augmento  das  praças  , 
senão  também  pela  pobreza,  com  que  vivião  os  referidos  mo- 
radores;  e  attendendo  ás  razões,  que  me  expuzestes  nesta 
matéria,  Sou  servido,  por  Resolução  de  vinte  e  sete  de 
Fevereiro  deste  presente  anno  ,  cm  consulta  do  Meu  Con- 
selho ultramarino,  alliviar  os  moradores  das  referidas  villas 
da  dita  obrigação,  ordenando,  que  da  mesma  sorte,  que 
são  soccorridos  de  farinha  os  militares  dessa  praça,  o  sejão 
também  os  do  dito  prezidio  do  Morro  de  S.  Paulo  ,  dan- 
do-se-lhe  huma  quarta  de  dez  em  dez  dias  a  cada  hum  , 
ajuntando-sc  para  este  effeito  com  as  Camarás  mais  visi- 
nhas ,  ou  alguma  de  maior  possibilidade ,  que  mandem  to- 
dos os  mezes  aquella  porção  de  farinha  sufficiente ,  que  baa- 
tar  ao  numero  daquella  guarnição,  e,  entregue  que  seja  ao 
Almoxarife  do  dito  prezidio,  com  conhecimento  de  sua  re- 
ceita, irão  os  barqueiros,  que  a  conduzirem,  cobrar  o  seu 
producto  á  Provedoria  mor  dessa,  sendo  distribuída  a  dita 
farinha  por  mappas  ,  para  a  despeza  do  dito  Almoxarife, 
a  quem  se  ha-de  carregar  logo  em  receita  no  mesmo  in- 
stante que  a  receber  ,  o  que  assim  fareis  executar.  ElRei 
Nosso  Senhor  o  mandou  pelos  Doutores  Manoel  Fernandes 
Vargas ,  e  Alexandre  Metello  de  Sousa  e  Menezes ,  Conse- 
lheiros do  seu  Conselho  ultramarino,  e  se  passou  por  duas 
vias.  Bernardo  Félix  da  Silva  a  fez  em  Lisboa  occidental 
a  dez  de  Março  de  mil  setecentos  trinta  e  oito.  Z5  O  Se- 
cretario Manoel  Caetano  Lopes  da  Lavra  a  fez  escrever , 

e  assignou.  O  Conselheiro  Thomé  Gomes  Moreira.  =:  Ale- 
xandre Mct;f;llo  de  Sousa  e  Menezes,  s  Thomé  Gomes  Mo- 
reira. 

OB- 


OBSERVAÇÃO. 


N.1  pag.  XL  linha  ip  ,  depois  zn  da  villa  de  Cêa  — 
deverá  lêr-se  í=  de  monte  mor  o  novo  t=  de  Torres  vcdras 
:=;  de  longroiva  tr  de  Azeitão  í=  da  Torre  de  moncorvo  = 
do  lugar  da  marinha  grande  nz  de  parte  do  território  da 
comarca  de  Thomar  tr  de  Coimbra  e  seus  arredores  c:  do 
território  denominado  Alto  Douro  ti  da  província  do  Alcm- 
tejo. 


Tomo  IX.  i\  ME- 


r 


RESUMO 

DA   RECEITA   DOS   RENDIMENTOS    DA   CAPITANIA    DE   MINAS   GERAES , 

Qiie  entrarão  na  Thesouraria  geral  cm  todo  o  anno  de  1818, 
pertencente  ao  rendimento  do  mesmo  anno,  e  dos  antece- 
dentes. 

A  saber : 

Do  rendimento  de  Direitos  deiitradas     ----------  767:i97çÍJ074 

Dizimos     -------------  114:955(^111 

Passagens    -..--.--.----  2:788(^96} 

Obra  pia 5S4á)8i5 

Propinas  de  munições  de  guerra    ------  1:845(2!)  j6t 

Donativos  de  officios  de  justiça     ------  2:169^^812 

Ter<,as  partes  de  ditos    ---------  1:2)1^)04 

Novos  direitos  de  ditos,  e  cartas  de  seguro      -     -  2:484(3^)12 

Correio      .-..--....---  2:9(9(^1)9 

Extraordinário       ...---...-.  5:879(^5060 

Pólvora ..--r-.-  j:6jo,^S5S 

jo6:o7j(2Í)i;79 

Taxas  dos  sellos 5:927,^202 

Decima  dos  prédios  urbanos      -......-       2:652(^)95 

Dita  testamentária      -----------       6:5))(2)857 

Sizas - 27:472^640 

Carne  verde y.iiT(^6o^ 

4J:903<Í)S9* 

Producto  do  oiro,   do  quinto  fundido  para  assistência 

da  extracção  diamantina        .----.-.     52:700(^)844 
Importância  com  que  se  llie  suprio  do  rendimento  do 

subsidio  voluntário     ..--------     21:221 ,5Í)47  5 

73:922(^)19 

Dinheiro  que  se  recunhnu  ,  e  permuta  a  trocar  por  moeda       -     .     -     -        1:4)2(^4)6 
Depósitos  geraes ,  e  das  casas  administradas     .---.----     j2:i82(^oi4 

Contribuição  voluntária,  e  outras  arrecadações  para  se 

remetterem  ao  Real  Erário    --------  92  5(á)96S 

Pcns  dauscnres      -     -     -   idem     -------     2j:j69(J)ij8 

Impostos  para  o  Eanco  do  Brasil     -.-----       6:675(^1141 

50:970(^)244 


488:484,^59° 
Saldo  existente  em  cofte  no  fim  de  1817  ,  e  passou  para  1818  a.^  79:127,^220 


Reis         507:61  i(á)8  10 


DESPESA 

DA     THESOURARIA     GERAL 
NO    ANNO    DE    l8l8. 


A  snher  : 
Ao  Thesoureiro  Pagador   da  Tropa  ,  ordenados  ,  e  mais   despesas   da 

Real  Fazenda,  para  os  pagamentos  de  sua  estação     -----  247:5661^052 

Ao  da  Intendência  de  Villa-rica      -...-.---.-  j  y.o66^yoo 

Ao  da  villa  do  Sabará       •-.--.•_..-..-  lorooo^Jooo 

Ao  da  villa  de  S.  João  d"EIRei       ....---...-  ^-.400^000 

Ao  da  villa  do  Príncipe          ----..--....-  9:700(5)000 

Ao  dos  diamantes  para  soldos  dos  pedrestes  da  mesma        -    -     -    *  4:6582854* 

Ao  Administrador   do  Correio  desta  villa   para  soldos    dos  emprega- 
dos no  giro  das  mallas       -..-.-....-.-  i:o84<;^050 

Ao  Hospital  militar  desta  villa  para  despesas  do  mesmo     .     -     -     -  jiooOí^ooo 

Diversas  despesas  pagas  pela  Tliesouraria  geral   -..-...  I59(jj626 

Assistência  á  Real  extracção  dos  diamantes  do  arraial  do  Tyúco      -  90:000^000 

Pagamento  dos  depósitos,  e  passagem  para  abono  de  diversos       -    -  48:1675^5654 

Permutas      .-------.--.----..  t^z^-joo 

Imposto  para  o  Eanco ,  temettido  ao  Real  Erário       -       6:142(^706 

Bens  d'auscntes  ,  e  outras  arrecadações         -     -     -     -     22:65012)675 

■ 28:77j(^j8l 

Saldo  existente  em  cofre,   t|ue  passou    para  o  anno   de   1819       -  103:28  i;J)i05 

{Em  bilhetes  da  Real  extracção  dos  diamantes  5j:440^9i2-j 

V  567:6111^)810 
Em  dinheiro   -----.----     49:842^^)1 9  j -^ 


(Entre  pag.  20  e  2 1    dat  Mtm.  de  Sucias ,  T.  IX.  P,  I.) 


2()7 


MEMORIAS, 

QUE  SE  CONTÉM   NESTE  TOMO  NONO. 

Historia. 

XJjSCURSO  do  Sereníssimo  Senhor  Infante  D.  Mi- 
guel ,  Presidente  da  Academia ,  por  occasião  da  Ses- 
são publica  da  mesma  Academia  em  ^J  de  Junho  de 
1823.  Pag.  I 

Discurso  Histórico  recitado  na  Sessão  publica  de  27  de 
Junho  de  1823  ,  pelo  Sccrerario  José  Maria  Dan- 
tas Pereira.  m 

Discurso  recitado  pelo  Secretario  José  Maria  Dantas  Pe- 
reira no  Paço  da  Bemposta ,  perante  ElRey  Nos  to  Se- 
nhor^  por  occasião  da  felicíssima  restauração  do  Thro- 
no   Lusitano.  xi 

Discurso  recitado  pelo  Secretario  José  Maria  Dantas  Pe- 
reira no  Paço  da  Bemposta ,  perante  o  Sereníssimo  Se- 
nhor Infante  D.  Miguel ,  Presidente  da  Academia  ,  por 
occasião  da  felicíssima  restauração  do  Throno  Lusitano.      xiii 

Discurso  recitado  pelo  Secretario  José  Maria  Dantas  Pe- 
reira no  Paço  da  Bemposta  y  perante  ElRey  Nosso  Se- 
nhor ,  por  occasião  do  acontecimento  de  Cadiz ,  e  do 
venturoso  anniversario  do  Sereníssimo  Senhor  Infante 
D,  Miguel y  Presidente  da  Academia.  xv 

Discurso  recitado  pelo  Secretario  José  Maria  Dantas  Pe- 
reira 710  Paço  da  Bemposta ,  perante  o  Sereníssimo  Se- 
nhor Infante  D.  Miguel ,  Presidente  da  Academia ,  por 
occasião  do  feliz  anniversario  de  S.  A.  R. ,  e  do  acon- 
tecimento de  Cadiz.  xviii 

Programma  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa, 
annunciado  na  Sessão  publica  de  z-j  de  Junho  de  i^^i-        xx 

l1  ii  Dis- 


268 

Disíurso  recitado  na  Sessão  publica  de   i  de  Jtilho  de 

1824    pelo  Secretario  José  Maria  Dantas   Pereira,  xxvii 

Programma  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa  , 

annmciado  na  Sessão  publica  de  i    de  Julho  de  1^2  j^.       ux 

Elogio  Histórico  de  Sebastião  Francisco  de  Mendo  Tri- 
goso  Homem  de  Magalhães,  Lido  na  Sessão  publica 
de  2^  de  "Junho  de  1822  por  Manoel  José  Maria 
da  Costa  e  Sá.  ,  txvii 

Lista  dos  Sócios  da  Academia  Real  das  Sciejtcias.  xci 

Relação  dos  Membros ,   e  Correspondentes  da  Instituição 

Faccinica  da  Academia  Real  das  Sciencias.  xcix 

Memorias  de  Sócios. 

Noticias ,  e  reflexões  estadisticasy  a  respeito  da  Provinda 

de  Minas  Geraes,  por  Guilherme  ,  Barão  d'Eschwege.  i 

Memoria  sobre  o  começo ,  progressos ,  e  decadência  da  lit- 
teratura  Hebraica  entre  os  Portugueses  Catholicos  Ro- 
manos j  desde  a  fundação  deste  Reino  até   ao  reinado 
d'ElRei  D.  José  1 ,  por  Fr.  Fortunato  de  S.  Boa- 
ventura. 29 
Addit amento  ã  dita  Memoria.                                                   6z 
Dissertações  do  Padre  António  Pereira  de  Figueiredo. 
Dissertação  I.  Os  Fenícios  em  Espanha  mil  e  quatro  cetf' 

tos  e  mais  ânuos  antes  da  era  de  Christo.  6^ 

Diss.  II.  Etymologia  dos  nomes  Ibéria  ^  Celtiberia  ^  His- 
pânia ,  Lusitânia.  80 
Diss.  III.  Os  Gregos  em  Espanha  des  dos  tempos  Herói- 
cos. 8  6 
Diss.  IV.  Das  Egoas  da  Lusitânia.                                     100 
Diss.  V.  Sobre  dotis  notáveis  lugares  de  Heródoto.               107 
Diss.  VI.  Etymologia  do  nome  de  Pyreneos.                          120 
Diss.  VII.  Império  dos  Carthaginezes  em  Espanha.              128 
Diss    VIII.  Império  dos  Romanos  em  Espanha.                    162 
Diss.  IX,  Das  diversas  divisões ,  que  os  Romanos  Jize- 
rão  em  Espanha. 

Diss, 


Diss.  X.  Entrada  dos  Godos ,  Suevos ,  Alanos  e  Vânda- 
los em  Espanha.  217 
Diss.  XI.  Do  Ceremonial  e  Legislação  dos  Reis  Godos.  247 
Diss,  XII.    Destruição  do  Reino  Godo  em  Espanha  pela 

entrada  dos  Mouros.  25  j 

Diss.  XIII.  Principios  do  Reino  de  Portugal,  270 
Diss.  AlV.   D'hum  notável  lugar   do  Arcebispo   de  To- 

ledo.  2p3 

Diss.  XV.    Segundo  Casamento  da  Rainha  D.  Tareja.  295' 

Diss  XVI.    Verdadeira  Época  da  morte  de  S.  Giraldo.  2p8 
Diss.  XVII.    Incerteza    do  anuo   em  que  nasceo  ElRei 

D.  Affonso  Henriques.  299 
Diss.  XVIII.  Sobre  de  que  Casa  era  a  Rainha  D  Ma- 
falda. 302 
Diss.  XIX.  Épocas  da  Batalha  de  Ourique.  303 

Memorias  de  Correspondentes. 

Memoria  sobre  uma  Provisão  ou  Carta  do  Siir.  D.  Af- 
fonso II  acerca  de  uns  Decretos  chamados  Leis  de 
Fr.  Suciro  Gomes ,  por  João  da  Cunha  Neves  e 
Carvalho.  2 

Memoria  sobre  a  restauração  das  barras  dos  portos  for- 
madas nas  fozes  dos  rios  em  geral ,  e  sobre  a  appli- 
cação  dos  principaes  fundamentos  destas  impor tantissi- 
mas  restaurações  ao  melhoramento ,  e  conservação  da 
barra  do  Porto  ^  por  Luiz  Gomes  de  Carvalho.     -       19 

Memoria  topográfica  e  económica  da  Commarca  dos  Ilheos , 
por  Balthazar  da  Silva  Lisboa.  S7 


CA- 


%^:    r 


'a  Jú  Cai 


■^rk c^:r  x^ 


^j^^-X 


:..:..n. 


*^' 


■tl_^._t. 


n 


"•!br 


I 


t  , 


ri,A.\Ti    HA   KOZ  HO   IIOIKO   ATK  (Jl  KIIKAMOK.VS; 

/W/r/  m/Z/Z/f/f/ifí^  f/p /fafín  //fí  ffi//Anni/ftr/i/fí  f/a /ta/m  í/fí  ffJfíTY/. 


■■^ 


/•"  /»t  «»#  ^  ^.^«A-  /■«-■' v^  r,™/.  •  /j.^ 


.1. '  \ 


Das  sondas  da  barra  do  Porto  nas  três  épocas  notavc 
o  principio  de  1817,  em  que  tomei  conta  das  ot 
lançou  sobre  alguns  pontos  da  direcção  do  dique 
meu  plano,    até  fim  de  1823,    de  cuja  compara^: 
feitas  da  parte  do  dique  LGC. 


Sondas  na 

Datas 

Rumos 

FREAMAK  DA 

Datas 

I.'  Época 

Lua. 

Anno  de  1790 

Palmos 

Anno  de  1817 

Junho     .     .    . 

Sul  . 

...     21 

}i  de  Março  . 

Julho      .     .     . 
Agosto  .     .     . 

Sul  . 

Sul  . 

.     .     .     21 
•     .     .     2  j 

I  7  de  Abril     . 

25  Setembro   . 

Sul  . 

.     .     .     24 

2i   dito     .     . 

Outubro     .     . 

Sul  . 

...        20 

8  de  Maio     . 

Dezembro    .     . 

Sul  . 

.       .        .        20 

7  de  Julho  . 

20  dito      .     . 

Anno  de  1791 
Janeiro  ;    ,     . 

Sul  . 

...        20 

Anno  de  1818 

Fevereiro    .     . 

Sul  . 

...        25 
■       .       .        2} 

Março    .     . 

Sul  . 

8  de  Outubro 

Maio      .     .     . 

Sul  . 

22 

18  dito      .     . 

Setembro    .     . 

Sul  . 

•       .      .       22 

28   dito     .     . 

Novembro  .     . 

Sul  . 

...       24 

7  de  Novemb. 
1 5    dito      .     . 

1 2  de  Dezemb. 

18   dito     . 

Anno  de  1792 
Fevereiro    . 

não  diz 

0  rumo  .  26 

Dezembro    . 

Sud.  0. 

...     27 

Anno  de  1819 

flieio  termo  das  sondas  nes 

ta  I.  época  2) 

22  de  Janeiro 
24  de  Fevereiro 

2.»  Época 

Anno  de  1817 

I  Janeiro    . 
5  Fevereiro 
22  Março    .     . 

NOr.O 
SO     . 
SO     . 

...     24 
32  m.  mou  2  j 

•      .      .       2J 

14  de  Março  . 
27   dito     .     . 
Abril   7 
5  de  Julho   " 

conseSo  JlÍTj^.^rlÍ":^.''  Tof '   "7  '"=»^"'°  '.  "" 
fins  de  Setembro,  e  Om^b°o  d' ,1?.'^  Í'"^-  '""""  **  "'^'"" 

zt-  "^^  ?="S?  =.-  Ki";-°,t  te 


T   A   B  E   L   L  A 

Das  sondas  da  barra  do  Porto  nas  três  épocas  notáveis,  a  saber:  i.'  desde  1790,  em  que  começou  a  primeira  obra  da  barra,  até  1792  inclusive:  a.' desde 
o  principio  de  1817,  em  que  tomei  conta  das  obras  até  1810,  em  que  quasi  se  não  trabaiiiou  na  barra  á  excepção  de  1819,  em  que  alguma  pedra  se 
lançou  sobre  alguns  pontos  da  direcção  do  dique  LGC  da  esquerda,  e  alguma  AB  na  direita:  3.'  desde  o  anno  de  1821  ,  em  que  comecei  a  executar  o 
meu  plano,  até  fim  de  1823,  de  cuja  comparação  se  conliece  o  melhoramento  progressivo,  que  a  barra  tem  recebido  nesse  pouco  tempo  pelas  obras 
feitas  da  parte  do  dique  LGC. 


I  Janeiro  . 
5  Fevereiro 
22  Marrjo    . 


NOr.O 
SO  . 
SO     . 


...     24 
22  m.  mou  2  j 

.       .       .        2i 


Anno  de  i  S 1 9 

22  de  Janeiro 

SO    . 

24  de  Fevereiro 

VS} 

14  de  Março  . 

NO  . 

27   dito      .     . 

NO  . 

Abril  7      .     . 

NO  . 

5  de  Julho   . 

0  . 

25  em  l^íJemaré 
27em|  detn. ou  o 
i^ 


j.'  Época 

Anno  de  i?2i 

20  de  Janeiro 

NNO 

1  1   de  Fever. 

NO  . 

j  de  Abril    . 

NO  . 

8  de  Julho   . 

i\0  . 

jo  de  Julho    . 

NO  . 

Anno  de  1222 

I  de  i^Iarço  . 

NO  . 

í  j  em  1  ou 


i« 


Desde  Janeiro  até 
29  de  Juiilio     . 
29  de  Julho 

20  de  Agosto   . 

21  de  Setembro    . 
26  de  Outubro 

2í  de  Novembro   . 
10  de  Dezembro    , 


NO  . 

NO  . 
NNO  . 
NNO. 
NNO  . 

NO  . 
NNO  . 
NNO  , 


2+  em  J  de  maré  j  ( 
2í  meia  maré  (Jil  29 
26  meia  mjrc  ou  J2 


Meio  termo  das  sondas  na  J."  época 


NB  Além  do  melhoramento  das  sondas,  que  mostráo  a  maior  profundidade  da  barra  en  virtude  das  obras  do  novo  plano,  que  se  estS  executando  desde  1S21  ,  a^^  ^^  ^^^^^  ^  ^^^  reduzido  lios 
conservado  mais  funda,  larga,  e  recta,  pois  a  sua  largura  se  reduzia  de  (o  até  40  braças,  logo;ue  as  cheas  passavão,  e  o  rio  andava  pouco  ''^""'^^"'' .'^ ''"'''  '^:.„  ^„„,tou  a  praça  do  Horto;  agora 
fins  de  Setembro,  e  Outubro  de  1817  extraordinariamente  a  bumas  10  braças,  que  tanto  havia  la  testa  do  Cabedelo  a  pedra  João  Boi  da  margem  direita,  ° ''"J  ,  r.beJelo  demorava  ao  Sul  do  dique 
:  desde   o  principio  de  Janeiro  até  fiin  de  Setembro  do  anno  passado   de  1821  ,   a  sua  largura  esteve  sempre  maior  de  200  braças,  pois      testa  ^^  ^  ^^^  ^^^    ^^^^^^ 

c  a  falta  dagua  tao  notável  na 
influxo  do  que  já  está  feito  da 
que  nunca  se  vio  na  bana  do 


CWem.  VA  AcíB.  T.  JX.  í,  1.  M,m,  d,  Ç«rfr.  pag.  h) 


f 


DA   EXPORTAÇÃO  DA  CAPITANIA   DE 


Valoi 


128^000 


4(JSoo 


2à)4'^o 


4^000 


JfflOOO 


(fc7iO 


èíi^o 


1^600 


4áicoo 


6^J)C0o 


i/d 


Arroba 


Arroba 


Arroba 


Arjoba 


Arroba 


Arroba 


Arroba 


Arroba 


Anoba 


Registos   nci  limiits    da 
cofitama 


Amethisti'! 


Cera   d.i  terra 


Sabão 


Puniada 


Tabaco ,  ou  tomo 


Hipecaconlia 


Salitre 


Warmelada 


Farinha  de  trigo 


2^000     I     Arroba      |     Toicinlio  e  carne  sal;rada 
4^00 


N." 


N.- 


Parrís 


K- 


B.' 


Kir 


A1+' 


AW 


Aiq.' 


Cantinho  ttO' 
'jo  j  ou  Ma- 
tbiaí  harboia 


Rio   freto 


T  residi  o    do 
no  preto 


)5 


12J2 

10  +  71 


Gado  1  accu:n 


Queijos  I  o  em  arrr^ba 


ftljiitaí  óalsod.lo 


Aiuardente  de  canna 


Azeite  de  mamona 


Perdizes 


Carne  de  porco 


Estribos 


Arrcz 


Feijão 


Milho 


Alq.' 


Farinha  de  milho 


ç^óoo         Alq.' 


Farinha  de  mandioca 


6944S 
1624 


10)70) 


457Í' 


260 


i6 


JO962 
'  (999 


)45i57 


55' 


16 


192  1 


24 
40  1 


2015  7  V 
j   27541" 


7S78} 


■2)7 


60 


Porto   (/<"■ 

Cu.  !,a  a 


5'2 


14CO 


.  00 


O 


o 

c 


to 


pijooo 


^6^0 


Toalhas  com  guardanapos 


Vara 


Aljodjo  tecido 


97)Í45 


Para    o   Rio 
de  Janeiro 


\C  ,   120 


iiiS;6 


50702 


Para   o  Rio     Para   o  Rio 
Al  Janeiro        de  Janeiro 


350 


'.  E 


Para  o  I  _= 

de  Janei 


« 

DA   EXPORTAq 

MAP.PA         • 

^O   DA   CAPITANIA   DE   MINAS   GERAES,   QO   MEZ    DE  JULHO   DE   1818,   ATÉ   O   FIM   DE  JULHO   DE    1819. 

yjor 

l/ú 

Regiiloí    nos  limita    da 

Cantinho  no- 
vo ,  en   Alj- 

Rid  firtto 

Prrujio    de 
"•  V"" 

Eurrú   da 

Maitiriieira 

J,,^™,. 

Canipailio  dt 

Itajuba. 

Sflpiiíohimi- 

MJk„l, 

Ria  yardo 

S.,.-,to    Anna 
no     r,a     dm 
vclhu> 

Sflmma 

Valor  total 

0 

128^000 

Atroba 

A  me  t  Insta.' 

)» 

"      1      'H 

" 

1» 

.,            1            ., 

» 

.. 

„ 

>> 

„ 

18L 

IJ 

4.5S00 

Atrr^ba 

C-ta    ri.i    ttrra 

«7i 

..      1      .6i 

" 

" 

•' 

1            „ 

.. 

..      1      „ 

„ 

„ 

104 

4'>9iÍi=^o 

-a 

2(íi403 

Atroba 

iíabáo 

" 

'               1             •■ 

„            1            „ 

„ 

„      1       „ 

,, 

„ 

, 

2 1^400 

Ti 

cr 

i^aSo 

AnoU 

Puniada 

„ 

1 

„ 

„ 

„ 

,, 

„      1       „ 

„ 

„ 

, 

lájS40 

0 

li£t200 

Arroba 

Tabaco,  ou  fumo 

M 

4W' 

'!"  i 

)í 

9» 

41  j  t  'j 

61Ó 

29( 

11, 2Í 

2^8 

„ 

wo 

«» 

186S7I. 

70;íÍ()^qoo 

0 

I9lá>200 

Atroba 

Hii^ecacoiilia 

;JS  i        1            " 

)) 

i8s 

5» 

.. 

" 

» 

>> 

>j 

M 

»l 

»» 

)981 

7'-6í  iá)2Co 

4ÔC&0 

Artoba 

Salitie 

12)2              1 

24 

„ 

„ 

„ 

...            1             ,. 

.. 

„ 

„ 

„ 

„ 

I21« 

S:oi4àJoo 

g. 

1^)000 

Arroba 

Marmelada 

10  +  71           1               ló-í               1              40    - 

»» 

22» 

.. 

1. 

'» 

" 

" 

1)7 

íí 

»» 

ni.í. 

1  i:t(6^(oo 

jál^^co 

Arioba 

Fanilia  de  trigo 

j                  i* 

„ 

„ 

." 

780 

'  i7l 

.. 

1110 

„ 

„ 

„ 

ii'19 

10:107  jicoo 

c 

2ÃC30      1      Artobs 

Toicinliot:  cartií  salrada 

09445         1         50962                 Júis;   i. 

il2 

.. 

'. 

" 

>' 

1  í4l 

.. 

1)2[ 

168Ó 

íf 

I4Í478Í 

6n2J^ooo 

â- 

ici^oo 

Arroba 

Caie 

9256          1             4> 

ai» 

151 

„ 

„ 

., 

., 

1  = 

.1 

,. 

97  19 

29:21 7áiooo 

.!2 

sà)>^oo 

Artoba 

A«ucar 

12686        1            117 

997 

72 

.. 

20 

„ 

,. 

., 

8842 

1 10 

22844 

45:688ál°'^o 

S 

0640 

Anobfl 

AliidJão  em  rama 

Ó74H 

ÍO439 

1)88 

120 

,. 

2J10 

„ 

» 

„ 

„ 

3426 

7819 

69 

91994 

í8:Í7Óí.ióo 

1 

i^ooo 

Duz. 

Chicotes 

.. 

7  = 

„ 

.. 

„ 

„ 

,. 

., 

., 

72 

7^^000 

a 

íçitoco 

Ull7. 

Taboado 

„ 

.. 

„ 

,, 

„ 

„ 

67 

„ 

.. 

<i7 

mòooa 

r^ 

^6co 

N."  . 

Oameids 

» 

,, 

20 

>. 

„ 

„ 

„ 

), 

., 

20 

12^000 

* 

(fii^:> 

N.° 

t^acJS 

„      1       ., 

io 

„ 

.. 

c     " 

" 

.. 

n 

" 

» 

iO 

Í^Ôcoo 

s 

2(èiOOO 

N.= 

Chajvoj  de  lã 

,.      1      4= 

36 

,, 

„ 

„             1            .. 

„ 

„ 

" 

" 

61 

1 16^000 

.2 

N.» 

belbs 

.,    .  1      .^7 

J4 

>, 

.. 

„ 

" 

>. 

.. 

„ 

.. 

„                1             161              1             ÓÚ^^COO 

1 

N." 

Couios  dtf  veado 

..            1           M4 

.1'' 

400 

„ 

" 

„ 

» 

„ 

,. 

„ 

1            „            1          i»o          1          '74èooo 

N.° 

Giurcs   á^   l""'' 

„ 

5  94 

Si 

„ 

„ 

„ 

„ 

,. 

..      1     .'" 

90           1            ,.             1          «77 

i  16^200 

0 

,il6oo 

[Sj-t. 

Sou 

iaoi7 

4li 

J4 

,. 

iS 

„ 

1             "4 

" 

\        \Ui6 

ii:i7i,á>6oo 

0 

0. 

N.° 

Fatos 

„ 

„ 

190 

.. 

., 

» 

" 

1 

" 

„                 \               I9J              1                  2ÍJ)iOD 

vT 

Am'^ 

N.* 

Galinbaí 

,iHi 

aSlSj 

10277 

27S9 

90 

Í4S0 

i4i 

17900 

7aao 

'• 

„                            114054 

í7:i9M''^o 
90:  (07^000 

.§ 

c 

J  ^coo 

2}<ÈOOO 

1  o^oco 

4á>c.oo 
1^74° 

N." 
N.° 

n;- 

N.- 
1'atf.s 

PobTOS 

Itsia! 

Cav.llns 
Carneiros 

G^du  rj;a;:n 
Queijos   10  cm   arrr-l-j 
Wantaí  dj|'^odfio 
Aguardente  de  taiina 
Aieitt  de   mamona 

4 

14+ 

ao    *• 
1614 
10176) 
1712 

64 

a47" 

Í41IÍ7 

^i4l 

2,jíl 

787»! 

2i7 

60 

9 

I4LO 

2991 

loico 

26!0 

104 

J76100 

)u4!0 

íio 
f7ío 

toioo 

206 
!o! 

21000 

48  i 
«jO 

ilU 

242 

í62(           , 
2Djl 

7707 

ní7 

94 
4Í» 

1100 

,i429 
foí7 
9M) 
6310,. 
1:0)9607 
11651 

i02 
2Í) 

90:72  iál^oo 

J":S7OúJ0°o 

9:iífáloco 

248:4141^1  owg 

6:996^(600 
i8i(j>ioo 

!liá)200 

22CÍ)000 

CO 

T 

e 
0 

1 

2 

4(£)C0D 

^600 

B.' 
B.' 
Par 

AIl],' 

1     ^l^l'" 
!      Alq/ 
1      Alq.' 
1     Alq.' 

Ptftdiíes 

Carne   du  porco          c 

Estribos 

Artcz 

I.c,jio 

Milho 

farinha   de   millio 

Farinha  de  mandioca 

Toalhas  com  guardanapos 

9 

1             .. 

16,     120 

.. 

" 

40 

•■ 

120 

70 
276 

4)) 

4207 

>t 

■• 

9 
fí 

70 
jyú 
4ÍÍ 
40 

4207 
1 ó , 1 20 

jídcco 

7.-.d)cco 
2!7è6°=' 

139^1900 
i.àí.-o 

i44é>í«« 

-T3 

5  0 

*640 

Vara 

Algodão  tecido 

97JÍ4Í 

Ill!s6 

5070. 

iS=^ 

a;oo         j        joooo 

,, 

„ 

„ 

„ 

2426 

78)9 

61 

91994 

'<;. 

r.-a     0    Rio      Fará    0    R  JO 
de   Jaiíeiio          de   Janeiro 

hdia    0  Rio 
de  Jín^ito 

Pjra  0  Rio 

de  Jn.icito 

Para    0  Rio 

de  Janeiro 

l'ii»    0  Rio 

de  J.,„i,o 

Para  S.Paulo 

Hjra  :;.  l*julo 

Para  S.  Paulo 

Pjri  S.  halo 

K'aKalii3,  e 
fetr.inibuío 

Para   a  tíahia 

eRiodeJan." 

1     (^kM.  D/  Ac^i>.  T.  IX.  P.  i- 


Mcin.  òt  Sue.  i>a; 


DA  IMPORTAÇÃO  DA  CAPITANIA  DE 


Arroba 


Reghtoj   no;  limlus    da 
cflpittiiita 


Cuniinlio  110' 
vo ,  011  Ma- 
iJiiiis  Btirboia 


Arroba 


Arroba 


Arroba 
Arroba 


A!iude7a5 


Assiicar  em  raiudiira 
Passas ,  e  figos 


l'áo  trazil 


Cera 


Arroba 
Arroba 


Arroba 


Arroba 


N." 


N." 


N.^' 


N.° 


N." 


N.=> 


N.° 


Alq/ 


e'"  p5o,e  velas  |      649,  ,S 

Reinedios  de  botica  ' 


harinl.a  ds  trii:o 


20?)  ,  24 
1462 


Leiria ,  e  niat  as 


297 


Presuntos,  e  paios 
ierxc  salj'ado 


2S 


4161 


Agoardente  do  Reino 


95 


Areite  doce 


40 


Escravos  novos 


Í)I 


Cavallos  novos 


Bestas 


Vinho  e)T>  barris  ou  caixas 


Vinap.re  em  barris  ou  caixas 


A2eitonas  em  barris 


Armas  de  fojo 


Fspadas  em  caixões 


«5774 


2061 


6í 


S'a!  em  bruacas 


S-194 


Rij  preta 


Prcildio    do 
rto  priitií 


Porto  do 
Cu/ilia 


'4 


ií 


S2S 


,S 


42S 


74 


529 


19 


4J3 


2j6;4 


i  09 


7,;,  6 


J09 


64 


7480 


>i5 


~Zj 


Artohd 
Aiirjl» 


Arnilu 
Anui'! 


Ali),' 


M  À  P  P  A 

HA   I^^OKTACXO   OA   CAP.TAX.A   OH  M.XAS   CEa.VES.OO  MEZ   OS  J.XHO  OE   .3.S.  ATÉ  O  MEZ  DE  JULHO  OE   .S.. 


(fif>ilanta 


Miudeiit 


Aiiucir  em  ia]U(fii[a 


PaH« ,  c  fi;;oi 


Fáo  if  j2i] ' 


Caminha  «*- 
v«,  0u  Ma' 
tt.im  Barbata 


Ria  preta 


Cera  cm  p5o,  t  itlii  |      (j^^  ^  jj 


Rcmviiiot  de  botica 


(■irínltA  de  lh;'n 


ao;(. a* 


Lctriii,  c  nurai 


WciUIltO),   C   I 


J97 

31 


Praídh   d» 
rtc  preta 


P»ua  é, 

CuaU 


Vkws  tal^adu 


iiltxorar 


Qtiimbo 


i  tutiliri  cm  obrai 


Litdi.tifi  ciit  barid 


Cobre  cm  obrai 


Cnbrc  om  chj|<a 


1 340,   \% 


146 


1>l  .  «6 


Iriro  lultio 


Irtto  ticno  cm  barra,  c  cliajia 


LRUi,d,  e  viJnH 


CaÚLÍci  de  dupcoí 


riicnda  ircâ  em  miiai 


Fnicnili  trc*  cm  fjíffot 


Itonii 

Ar<Mi'íínre  <Sf  ..uv. 

Af;r«ii!;ric  tto  Rciívi 

Afeite  Axf 

Cavallot  novo» 


Vintio  em  barril  ou  caiMi 


Vinagre  em  baniiouraúit 


n  Uittit 


Armai  de  fofo 


t\\c^%      I 


7(1 


Ml 


ll|7>  4 


ripj<*aa  em  caW.Vt 


Sal  rm  bniara» 


4aS 


.69 


p«'iíii 


Maati^utlrm 


]'-iur. 


Ii-,-Í4, 


Í90>  "7      I 


19.  M       I 


6;,  il 


«61 


'r-: 


:.- 

» 

„ 

.. 

.. 

ti 

»i 

— ,'; — 

»» 

»  f*rdt 


11 

>i 

., 

M 

t» 

M 

., 

„ 

,. 

.. 

a 

1 

t 

•• 

.. 

•41» 


St-ta    Anta 


SumiTu 


açl 


iúffi,   17 


f6( 


Itireldv  de 

Entrada 


ft^t  7 1  o 


■HHÍÍtM 


":<itívftiio 


IM^>(o 


•  l^tc^i 


niiièiTi 


ll6ÍH'c» 


nilojjííat  I    -g 


la^tfil 


loíiiri 


•r:in^«71 
iiaiocrjoo  I 


l^õJi  I 


Vi).  JJoffO  i 


>4M 


yt, 


4'-lÚ9«jt^.>-' 


11777*10 


i:0|4fíiCiai 


lilliilCit 


at.';voi^iJt 


1:1114^71:»^ 


7iJttA(u 


B 

,s 

«1 

l 

a 


6:siSi£a)< 


i:«io^tc<' 


7lèi>> 


ò 


í64^7(0 


iH:0<'írf»'-<'-' 


S 


|lj:1ii(f'J'  I 


2     CMi*  UA  Atíi».  T,  HL  **.  I.  ^í""-  '*  *«•  P^X-  ^7/ 


CATALOGO 

Das  Ohras  impressas ,  e  mandadas  publicar  pela  Academia  Real 

das  Sciencias  de  Lisboa ;  com  os  preços ,  por  que  cada  uma 

delias  se  vende  brochada. 


I.  OReves  Instrucç6es  aos  Correspondentes  da  Academia 
sobre  as  remessas  dos  productos  naturaes,  para  formar  um 
Museu  nacional  y  folbero  em  8.°      --------       120 

II.  Memorias  sobre  o  modo  de  aperfeiçoar  a  manufactura 
do  azeite  em  Portugal,  remettidas  á  Academia  por  João 
António  Dalla  Bella,  Sócio  da  mesma,  i  vol.  em  4.°-    -      480 

III.  Memorias  sobre  a  cultura  das  oliveiras  em  Portugal , 
pelo  mesmo.  Segunda  edição  accrescentada  pelo  Sócio  Se- 
bastião Francisco  de  Mendo  Trigoso,  i  vol.  em  4.°  -    -      480 

IV.  Memorias   de  agricultura  premiadas  pela  Academia,  2 

yol.  em  8.°---------------       960 

V.  Paschalis  Josephi  Melli  Freirii ,  Historiae  Júris  Civilis 
Lusitani  liber  singularis ,  r  vol.  em  4.  °     ------      640 

VI.  Ejusdem  Institutiones  júris  civilis  et  criminalis  Lusita- 
ni ,  5"  vol.  em4.  ° .._.-.    2400 

VII.  Osmia,  Tragedia  coroada  pela  Academia,  folheto  em  4.'       240 

VIII.  Vida  do  Infante  D.  Duarte,  por  André  de  Rezende, 
folheto  em  4.°     --------------       160 

IX.  Vestígios  da  lingoa  arábica  em  Portugal ,  ou  Lexicon 
etymologico  das  palavras,  e  nomes  portuguezes  ,  que  tem 
origem  arábica ,   composto  por  ordem  da  Academia ,    por 

Fr.  João  de  Souza  ,  i  vol.  em4.  °       .-_.---      480 

X.  Dominici  Vandelli  Viridarium  Grysley  Lusitanicum  Lin- 
naeanis  nominibus  illustratum ,  r  vol.  em  8."     -     .     -     -       aoo 

XI.  Ephemerides  náuticas ,  ou  Diário  astronómico  para  os 
annos  de  1789  até  1798  inclusivamente  ,  calculado  para  o 
meridiano  de  Lisboa ,  e  publicado  por  ordem  da  Academia  : 

-  para  cada  anno  i  vol.  em  4.°---------       363 

O  mesmo  para  o  anno  de  1826.      .-.-----      480 

XII.  Memorias  económicas  da  Academia  Real  das  Sciencias 
de  Lisboa,  para  o  adiantamento  da  agricultura,  das  artes, 

e  da  industria  cm  Portugal ,  e  suas  conquistas ,  ç  vol.  em  4.°    4000 

XIIL 


ijt  Catalogo. 

XIII.  CollecçSo  de  Livros  inéditos  de  Historia  portugueza , 
desde  o  Reinado  do  Senhor  Rei  D.  Diniz,  até  o  do  Se- 
nhor Rei  D.  João  II. ,  j  vol.  eni  folio       .-..*-.    5000 

XIV.  Avisos  interessantes  sobre  as  mortes  apparentes ,  man- 
dados recopilar  por  ordem  da  Academia  , /o/too  em  8.°  gf. 

XV.  Tratado  de  educação  fysica  para  uso  da  na^ao  por- 
tugueza, publicado  por  ordem  da  Academia  Real  da|  Scien- 

cias,  por  Francisco  de  Mello  Franco,   i  vol.   em  4.°  -    -       360 

XVI.  Documentos  arábicos  da  Historia  portugueza,  copia- 
dos dos  originaes  da  Torre  do  Tombo  com  permissão  de 
S.  Magestade,  e  vertidos  em  portuguez,  de  ordem  da  Aca- 
demia ,  por  Fr.  João  de  Sousa  ,  i  vol.  em  4.  °  -    -     -     -       48c 

XVII.  Observações  sobre  as  principaes  causas  da  decadên- 
cia dos  portuguezes  na  Ásia ,  escritas  por  Diogo  de  Couto 
em  forma  de  dialogo  ,  com  o  titulo  de  Soldado  Pratico , 
publicadas  por  ordem  da  Academia  Real  das  Sciencias,  por 
António  Caetano  do  Amaral ,  Sócio  eíFectivo  da  mesma,  i 

tom.  em  8,° ._-.__-       480 

XVIII.  Flora  Cochinchinensis,  sistens  plantas  in  Regno  Co- 
ciiinchinae  nascentes.  Quibus  accedunt  aliae  observatae  in 
Sinensi  Império ,  Africa  orientali  ,  Indiaeque  locis  variis ; 
labore  ac  studio  Joannis  de  Loureiro ,  Regiae  Scientiarum 
Academiae  Ulyssiponensis  Socii :  Jussu  Academiae  in  lucem 

edita  ,  2  vol.  em  4.  °  viai. __._-     2400 

XIX.  Synopsis  Chronologica  de  subsídios ,  ainda  os  mais  ra- 
ros ,  para  a  Historia ,  e  estudo  criticf^  da  Legislação  por- 
tugueza ;  mandada  publicar  pela  Academia  Real  das  Scien- 
cias, e  ordenada  por  José  Anastasio  de  Figueiredo,  Cor- 
respondente do  numero  da  mesma  Academia,  2,  vol.  de4.°     180© 

XX.  Tratado  de  educação  fysica  para  uso  da  nação  por- 
tugueza, publicado  por  ordem  da  Academia  Real  das  Scien- 
cias ,  por  Francisco  José  de  Almeida  ,  i  vol.  em  4.*    -    -       3Ó0 

XXI.  Obras  poéticas  de  Pedro  de  Andrade  Caminha,  pu- 
blicadas de  ordem  da  Academia,  i  vol.  cm  8.°      _     -    -       5oo 

XXII.  Advertências  sobre  os  abusos ,  e  legitimo  uso  das  agoas 
mineraes  das  Caldas  da  Rainha,  publicadas  de  ordem  da 
Academia  Real  das  Sciencias,  por  Francisco  Tavares,  Só- 
cio livre  da  mesma  Academia , /o/èfío  em  4.°    -     -    -    -       120 

XXIII.  Memorias  de  Litteratura  portugueza  ,  8  vol.  em  4.  °     6400 

XXIV.  Fontes  próximas  do  código  Filippino,  por  Joaquim 

José  Ferreira  Gordo,  l  vol.  em  4.°      -     - 400 

XXV.  Diccionario  da  lingoa  portugueza ,  i  vol.  zm  folio  mai.    Áqo 

XXVL 


I 


Catalogo.  173 

XXVI.  Compendio  da  theorica  dos  limites ,  6u  IiUroducção 
ao  methodo  das  fluxôes ,  por  Francisco  de  Borja  Garção 
Stockler,  Sócio  da  Academia,  em  8.° -     -       240 

XXVII.  Ensaio  económico  sobre  o  commercio  de  Portugal, 
e  suas  Colónias,  oíferecido  ao  Serenissimo  Principe  da  Bei- 
ra o  Senhor  D.  Pedro,  e  publicado  de  ordem  da  Academia 
Real  das  Sciencias,  pelo  seu  Sócio  D.  José  Joaquim  da 
Cunha   de  Azeredo  Coutinho.   Segunda  edição  corrigida , 

e  accrescentada  pelo  mesmo  amtor ,  i  vol.  em  4,°      -     -       480 

XXVIII.  Tratado  de  agrimensura,  por  Estevão  Cabral,  Só- 
cio da  Academia ,  1  vol.  em  8.  °      .-,-----       2^0 

XXIX.  Analyse  chymica  da  agoa  das  Caldas ,  por  Guilher- 
me  Withering,    em  portuguez   e   \ng\e7. ,  folheto  em  4.^       240 

XXX.  Principios  de  táctica  naval ,  por  Manoel  do  Espirito 
Santo  Limpo ,  Correspondente    do  numero   da  Academia , 

I  vol.  em  8.°      ----------.-._       480 

XXXI.  Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias ,  9  vol. 

tm  folio     --.-.------ 18000 

XXXIf.     Memorias  para  a  Historia  da  capitania    de  S.  Vi- 

•    cente,  i  vol.  em  4.° ._...       ^go 

XXXIII.  Observações  históricas  e  criticas  para  servirem  de 
Memorias  ao  systema  da  diplomática  portugueza,  por  João 
Pedro  Ribeiro,  Sócio  da  Academia,  Parte  i.  em  4. *  -    -      480 

XXXIV.  J.  H.  Lambert  Supplementa  tabularam  logarithmi- 
carum,  et  trigonometricarum ,   i  vol.  em  4.°       -    .    -     .      pfo 

XXXV.  Obras  poéticas  de  Francisco  Dias  Gomes,  1  vol. 
em4.  °-. -_..._.      800 

XXXVI.  Compilação  de  reflexões  de  Sanches,  Pringle,  etc. 
sobre  as  causas  e  prevenções  das  doenças  dos  exércitos, 
por  Alexandre  António  das  Neves :  para  distribuir-se  ao 
exercito  ^oxiugMez ,  folheto  em  12.   -------     -       gr. 

XXXVII.  Advertências  dos  meios  para  preservar  da  peste. 
Segunda  edição  accrescentada  com  o  Opúsculo  de  Tliomaz 
Alvares  sobre  a   peste  de  i^<)^  ,  folheto  em  12.      -     -     -       120 

XXXVIII.  Hippolyto  ,  Tragedia  de  Euripides,  vertida  do 
grego    em   portuguez  ,   pelo  Director   de  uma   das  classes 

da  Academia ;  com  o  texto ,  l  vol.  em  4.  °    -     -     -    -     -       480 

XXXIX.  Taboas  logarithmicas ,  calculadas  até  á  sétima  casa 
decimal,  publicadas  de  ordem  da  Real  Academia  das  Scien- 
cias por  J.  M.  D.  P.,  em  8.°    -    -    -    -    -    -    .    -    -      480 

XL.  índice  Chronologlco  Remissivo  da  Legislação  Portu- 
gueza posterior  á  publicação  do  código  Filippino,  por  João 
Tom.  IX.  iMQi  Pe- 


274                            Catalogo. 
Pedro  Ribeiro,  C  vol.  61114.° j^^^o 

XLI.  Obras  de  Francisco  de  Borja  Garção  Stockler,  Secre- 
tario da  Academia  Real  das  Sciencias ,  i.°  vol.  em  8.  °  -       800 

XLIi.  Collecçâo  dos  principaes  auctores  da  Historia  portu- 
gueza ,  publicada  com  notas  pelo  Director  da  classe  de 
Litteratura  da  Academia  Real  das  Sciencias ,  8  Tom.  em  8.°     4800 

XLIII.     Dissertações  chronologicas ,  e  criticas,  por  João  Pe- 
dro Ribeiro  ,  3  vol.  em  4.  °-.     --------     2400 

O  tom.  IV.  parte  I.      -.----....-.      ^qq 

XLIV.     Collecçâo  de  noticias   para  a   Historia   e  Geografia 

das  nações  ultramarinas ,  Tom.  I.  Números  i.°,  3.",  3.°,  e  4,'       doo 

0  Tomo  II.  -----.-----.-._       goo 
XLV.     Hippolyto,  Tragedia  de  Senec?. ;  e  Piíedra,  Tragedia 

de  Racine;  traduzidas  em  verso,  pelo  Sócio  da  Academia 
Sebastião  Francisco  de  Mendo  Trigoso  ,  com  os  textos.  600 

XLVI.     Opúsculos  sobre  a  vaccina :  Números  I.  até  XIII.  300 

XLVII.  Elementos  de  Hygiene ,  por  Francisco  de  Mello 
Franco ,  Sócio  da  Academia.  Terceira  edição  correcta , 
e  augiiientada  pelo  mesmo  auctor ,  i  vol.  em  4.°       -    -      960 

XLV  111.  Memoria  sobre  a  necessidade  e  utilidades  do  plan- 
tio de  novos  bosques  em  Portugal ,  por  José  Boniracio  de 
Andrada  e  Silva ,  Secretario  da  Academia  Real  das  Scien- 
cias ,  I  vol.  em4.  °      ._--_.._.__.        .q^ 

XLIX.  Taboadas  perpetuas  astronómicas  para  uso  da  na- 
vegação portugueza,  i  vol.  em  4.°      ---....      ^qo 

L.  Elementos  de  Geometria ,  por  Francisco  Villela  Barbosa , 
Sócio  da  Academia  Real   das  Sciencias.   Segunda  edição, 

1  vol.  em  8.°      ----------.-._      ^£q 

LI.     Memoria    para  servir  de  índice  dos    foraes  das   terras 

do  reino  de  Portugal ,  e  seus  domínios  :  por  Francisco  Nu- 
nes Franklin,  i  vol.  em  4.°----------       480 

LII.  Tratado  de  policia  medica ,  no  qual  se  comprehendem 
todas  as  matérias ,  que  podem  servir  para  organizar  hum 
regimento  de  policia  de  saúde  para  o  interior  do  reino 
de  Portugal,  por  José  Pinheiro  de  Freitas  Soares,  em  4.°       800 

L,III.     Tratado  de  Hygiene  militar  e  naval,  pelo  Sócio  Joa- 

qiiim  Xavier  da  Silva  ,  i  voL  em4.  °       ..--._      ^qq 

LIV.  Princípios  de  Musica ,  ou  Exposição  methodica  das 
doutrinas  da  sua  composição  e  execução  ,.  pelo  Sócio  Ro- 
drigo Ferreira  da  Costa:  a  vol.  em  4..°  ..'!  .-í;  ■.7^-.'-     -     2400 

LV.  Tratado  de  Trigonometria  rectilínea  e  esférica,  por 
Mattheus  Valente  de  Couto,  Terceira  edição ,  i  vol.  em  4.°      360 

LVL 


Catalogo.  275- 

LVI.  Ensaio  dermosographico  ,  ou  succinta  e  fystcmatica 
descripçlo  das  doenças  cutâneas,  etc.  por  Bernardino  An- 
tónio Gomes,  1  vol.  em  4.°       --.-..-_.     1200 

LVII.     Memorias    par.i   a    Historia   da  Medicina    lusitana  , 

por  José  Maria  Soares ,  i  vol.  em  4.  °      ------       joo 

LVIII.  Ensaio  sobre  alguns  synonymos  da  lingoa  portu- 
gueza  ,  por  Fr.  Francisco  de  S.  Luiz  ,  Segunda  edição , 
I  vol.  em  4.°      --------------      720 

LIX.  Grammatica  philosophica  da  lingoa  portugueza  ,  ou 
principios  da  Grammatica  geral  applicados  á  nossa  lingua- 
gem,  por  Jeronymo  Soares  Barbosa,  r  vol.  em  4.°    -     ♦       póo 

LX.     Collecção  de  Cortes.   Congresso  do  Braço  da  Nobreza 

nas  de  1697  e  1698,  i  vol.  bom  papel    --._--      600 

Nova  Carta  do  Brazil  e  da  America  Portugueza   -    -    -     1200 


Vendem-se  em  Lisboa  nas  lojas  dos  mercadores  de  livros  na 
rua  das  portas  de  Santa  Catharina  j  e  em  Coimbra ,  e  no  Porto  tam- 
bém pelos  mesmos  preços. 


^?^f^ 


I 


i 


1*1"  ■*"•■-"  U.Í' 


:v--X-.V>- 


■fyy\.-;V* 


?9%K- 


.-f 


,  *„  •<»♦. 


*»■■ 


Si^.