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Full text of "Ninho de guincho"

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OBRAS  DE  CAMILLO  CASTELLO  BRANCO 


Edição  popular  das  suas  principaes  obras  em  So  volumes 

in-8.0,  de  200  a  300  paginas 

impressa  em  bom  papei,  typo  elzévir 

250  réis  em  brochara  e  400  réis  encadernado 


1  —  Coisas  espantosas. 
2 — As  três  irmana. 

3  —  A  engeiiada. 

4  —  Doze  casamentos  felizes. 

5  —  O  esqueleto. 

G  —  O  bem  e  o  mal. 

7  —  O  senhor  do  Paço  deNinãea. 

8  —  Anathema. 

9  —  A  mulher  fatal. 

10  —  Cavar  em  ruínas. 

11  e  12  —  Correspondência  epis- 

tolar. 

13  — Divindade  de  Jesus. 

14  —  A  doida  do  Caudal. 

15  — Duas  horas  de  leitura. 

16  —  Fanny. 

17,  18  e  19 —  Novellas  do  Minho. 
20  e  21  —  Horas  de  paz. 

22  —  Agulha  em  palheiro. 

23  —  O  olho  de  vidro. 

24  —  Annos  de  prosa. 

25  —  Os  brilhantes  do  brasileiro. 
28  —  A  bruxa  do  Monte  -Córdova. 

27  —  Carlota  Angela. 

28  —  Quatro  horas  innocentes. 

29  —  As  virtudes  antigas. 

30  —  A  filha  do  Doutor  Negro. 

31  —  Estrellas  propicias. 

32  —  A  filha  do  regicida. 

33  e  34  —  O  demónio  do  ouro. 

35  —  O  regicida. 

36  —  A  filha  do  arcediago. 

37  —  A  neta  do  arcediago. 

38  —  Delictos  da  mocidade. 

39  —  Onde  está  a  felicidade? 

40  —  Um  Lomem  de  brios. 

41  —  Memorias  de  Guilherme  do 

Amaral. 

42,  43  e  44  —  Mjsíerios  de  Lis- 
boa. 

45  e  46  —  Livro  negro  de  padre 
Diniz. 

47  e  48  —  O  judeu. 

49  —  Duas  épocas  da  vida. 

50  —  Estrellas  funestas. 

51  — Lagrimas  abençxtadas. 


52  — 

53  e 

55  — 

56  — 

57  — 

58  — 

59  — 

60  — 

61  — 

62  — 

63  — 

64  — 

65  — 

66  — 

67  — 

68  — 

69  — 

70  e 

72  — 

73  — 

74  — 

75  — 

76  — 


77  — 


78  — 


79- 


80  — 


Lucía  de  gigantes. 
54  —  Memorias  do  cárcere. 
Mysterios  de  Fafe. 
Coração,  cabeça  e  estôma- 
go. 

O  que  fazem  mulheres. 
O  retrato  de  Ricardina. 
O  sangue. 

O  santo  da  montanha. 
Vingança. 

Vinte  horas  de  liteira. 
A  queda  d'um  anjo. 
Scenas  da  Foz. 
Scenas  contemporâneas. 
O  romance  d'um  rapaz  po- 
bre. 

Aventuras  de  Bazilio  Fer- 
nandes Enxertado. 
Noites  de  Lamego. 
Scenas  innocentes  da  come- 
dia humana. 
71  —  Os  Martyres. 
Um  livro. 
A  Sereia. 

Esboços  de  apreciações 
litterarias. 

Cousas  leves  e  pesadas. 
Thkateo:  I — Agostinho  de 
Ceuta.  —  O  marquez  de 
Torres-Novaa. 
Theatro  ;  U — Poesia  ou  di- 
nheiro f  —  Justiça.  — Es- 
pinhos e  flores.  —  Purgató- 
rio e  Paraizo. 

Theatro  :  III  —  O  Morri- 
do de  Fafe  em  Lisboa.  — O 
Morgado  de  Fafe  amoroso. 
—  O  ultimo  acto.  —  Aben- 
çoadas lagrimas ! 
Thbatro  :  IV  —  O  condem- 
nado.  —  Como  os  anjos  se 
vincam.  —  Entre  a  flauta  e 
a  viola. 

Thkatho  :  V  —  O  Lobis- 
Homem.  —  A  Morgadinha 
de  Val-d' Amores. 


CAMILLIANA 


Camillo  Castello  Branco  —  Notas  d  margem  em  vários  li- 
vros da  sua  biblioteca,  recolhidas  por  Álvaro  Neves.  —  i  vol. 
br,  600  rs. ;  ene.  900. 

Camillo  Castello  Branco —  Tipos  e  episódios  da  sua  gale- 
ria,  por  Sérgio  de  Castro.  —  3  vols.,  contendo  inúmeras  trans- 
crições da  obra  de  Camil!'^.  br.  i$7oo  rs.  ;  ene.  2^400  rs. 

Poesias  dispersas  de  Camillo  Castello  Branco  —  i  vol. 

de  247  pag.  em  papel  de  linho  nacional.  Tiragem  48  ex.,  br. 
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Hosanna  I  Por  Camillo  Castello  Branco.  Fiel  reprodução  zin- 
cografica  da  i.'^  edição  de  1852,  hoje  raríssima.  Tiragem  60  ex., 
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Os  pundonores  desagravados,  por  Camillo  Castello  Bran- 
co. Reprodução  como  acima  da  i.^  edição  de  t845.  Também  ra- 
ríssima. Tiragem  60  ex.,  br.  i|ooo 

Prefacio  da  1.^  edição  do  Diccionario  de  Azevedo,  por 

Camillo  Castello  Branco.  —  Fl.  i|ooo. 


COLLECÇÃO  ECONÓMICA 

Volumes  in-16.»  de  240  a  320  paginas 
ROMANCES    DOS    MELHORES   AUCTORES 


A  150  réis  o  volume 


VOLUMES  PUBLICADOS 


J  —  Aventuras  prodigiosas  de 
Tartarin  de  Tarascon,  se- 
guidas de  Tartarin  nos  Al- 
pes, por  A   Daudet. 

2  —  Esgotado. 

3  —  Sérgio   Pacine,   por  Jorge 

Ohnet. 

4  —  Esgotado. 

5  —  Soror   Philomena,    por 

Edmond  e  J.  Goncourt. 

6  —  Esgotado. 

7  —  Os  milhões  vergonhosos, 

por  Heitor  Malot. 

8  —  Esgotado. 
—  Esgotado. 


10  —  Esgotado. 

11  —  Esgotado. 
VI  —  Esgotado. 

1 3  —  Um  ooração  de  mulher,  por 

Paul  Bourget. 

14  —  Esgotado.         ' 

15  —  Esgotado. 

16  —  Esgotado 

17  —  Esgotado. 

18  —  O  ultimo  amor,  por  Ohnet. 
It)  —  Um  búlgaro,  por  Ivan  Tour- 

gueneffe. 
'20  —  Memorias  d'am  suicida, 
por  Maxime  du  Camp. 


CoLLECçÃo  Económica 


21  —  Esgotado. 

22  —  Esgotado. 

23  —  Camilla,  por  G.  Ginisty. 

24  —  Trahida,  por  Maxime  Paz. 

25  —  Sua    Magestade    o    Amor, 

por  A.  Belot. 

26  —  Esgotado. 

27  —  Os   reis  no  exilio,  por  A. 

Daudet. 

28  —  Esgotado. 

29  —  Mentiras,  por  Paul  Bourget. 

30  —  Marinheiro,  por  Pierre  Loti. 

31  —Esgotado. 

32  —  A  Evangelista,  por  Daudet. 
33—  Aranha   vermellia,   por  R. 

d6  Pcnt  Jest. 
34  e  35— Esgotado. 

36  —  Parisienses  I . . .  por  H.  Da- 

venel. 

37  —  Ao  entardecer! . . .  por  Ive- 

Jing  Rambaud. 

38  —  A    confissão    de   Carolina, 

trad.  de  J.  Sarmento. 
.39  —  EsgotP.do. 

40  —  Esgotado. 

41  — O  abbade  de  Faviéres,  por 

.1.  Ohnet. 

42  —  Esgotado. 

43  —  Esgotado. 

44  —  A  nihilista,  por  C.  Mendes. 

45  —  Esgotado. 

46  —  Morta  de  amor,  por  Delpit. 

47  —  João  Sbogar,  por  C.  Nadier. 

48  —  Viagem  sentimental,  por 

Steme. 

49  —  O   milhão    do    tio    Kaclot, 

por  Emile  Richebourg. 

50  —  A  confissão  de  um  rapaz  do 

século,  por  Musset. 

51  —  Esgotado. 

52  —  O  casíello  de  Loiírps,    por 

J.  K.  Huysmans. 

53  —  Amor  de  Miss,  por  J.  Blain. 

54  —  A  sogra,  por  Laforest. 

55  —  Colomba,  por  P.  Merimée. 

56  —  Katia,  por  L.  Tolstoí. 

57  —  Alma    simples,    por    Dos- 

toiewsky. 


58  —  Duplo  amor,  çor  Rosny. 

59  —  Contos  fantásticos,  por  Hof- 

fmann. 

60  —  A  princeza  Maria,  por  Ler- 

montoíF. 

61  —  Rosa    de    maio,    por    Ar- 

mand  Silvestre. 

62  —  Esgotado. 

63  —  O  romance  do  homem  ama- 

rello,  pelo  generalTcheng- 
Ki-Toug. 

64  —  A    dama  das  violetas,  por 

F.  Guimarães  Fonseca. 

65  e  66  — Nemrod   &  C»,  por 

Jorge  Ohnet. 

67  —  Prisma  de  amor,  por  Paul 

Bonnhome. 

68  —  Historia  d'uma  mulher, 

por  Guy  de  Maupassant. 

69  e  70  —  Educação  sentimen- 

tal, por  G.  Flaubert. 

71  —  Depois  do  amor,  por  Ohnet. 

72  —  A    fava   de  Santo  Ignacio, 

por  Alexandre  Pothey. 

73  e  74  —  O   herdeiro    de    Red- 

clyffe,  por  Mrs.  Yongue. 

75  —  Uma  ondina,  por  Theuriet. 

76  —  A   família   Laroche,   por 

Marguerite  Sevray. 

77  —  As  grandes  lendas  da  hu- 

manidade, por  d'Humive. 

78  e  79  —  A    filha    do  Dr.  Jau- 

fre,  por  Mareei  Prevost. 
80 —  A  dama  das  camélias,  por 
A.  Dumas,  Filho. 

81  —  Dezeseis  annos...,  por  F. 

G.  Philips. 

82  e  83  —  O    Desthronado,    por 

A.  Ribeiro. 
84 —  Ninho'^d'amor,  por  A.  Cam- 
pos. 

85  —  Bodas  Negras,   por   Alma- 

chio  Diniz. 

86  —  Do  amor  ao  crime,  por  "Al- 

phonse  Karr. 
37  —  A  ilha   revoltada,  por  Ed 
Lockroy 


COILECCÃD  âRTOiO  IftFJi  FESEIRA— 41"  Vulmne 


(KPHff 


COLLECÇÃO   ANTÓNIO   MARIA   PEREIRA 


ALBERTO  PIMENTEL 


jí^ 


NHO    DE 


VJCUl 


NCHO 


1< 


LISBOA 
Parceria  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

LIVRARIA-EDITORA 

Rua  Augusta^  5o,  52  e  54 
1903 


LISBOA 

Typographia  d«  Parceria  António  Maria   Peneira 

Rum  d»s  Correeiros,  70  e  72 


RAZÃO  DO  TITULO 


A  ave  conhecida  pelo  nome  de  guincho  caça 
durante  a  noite  a  provisão  do  seu  ninho,  que 
procura  ter  sempre  bem  recheiado.  Por  isso 
passa  em  provérbio  o  dizer-se  metaphorica- 
mcnte  —  achou  ninho  de  guincho  —  quando 
alguém  descobriu  um  esconderijo  de  variados 
objectos. 

Este  livro,  pela  diversidade  dos  assumptos, 
certamente  mais  sortidos  do  que  valiosos,  é 
um  ninho  de  guincho,  que  eu  fui  abastecendo 
na  minha  afanosa  lucta  pela  existência,  dia  a 
dia,  umas  vezes  alegre,  outras  triste,  mas 
sempre  conformado  com  a  suprema  direcção 
de  um  mundo  onde  ha  pessoas  que  vivem  sem 
trabalhar  e  pessoas  que  trabalham  para  viver 
—  sem  que  se  possa  dizer  ao  certo  quaes  são 
as  mais  felizes. 

Lisboa — 1902,  dezembro 


o  PROPHETISMO  E  A  RESTAURAÇÃO 


Uma  das  armas  empregadas  no  interesse  da  res- 
tauração de  1640  foi  o  prophetismo:  é  esta  uma  ver- 
dade histórica  que  merecia  decerto  ser  largamente 
desenvolvida  e  demonstrada.  Não  o  podemos  fazer 
n'uma  simples  nótula;  alguém,  de  mais  firme  pulso, 
o  fará  um  dia. 

Quem  principalmente  manejou  essa  arma  ?  Foram 
os  jesuitas?  O  padre  José  Agostinho  de  Macedo  as- 
severou categoricamente  que  não  entrou  na  revo- 
lução nem  um  só  jesuíta,  mas  que  os  religiosos  da 
Companhia,  sempre  dissimulados  e  verdadeiros  ga- 
tos na  melancolia  e  na  caça^  exploraram  em  pro- 
veito próprio  o  movimento  revolucionário  que  pôz 
no  throno  D.  João  IV,  fazendo  acreditar  que  elle 
era  o  promettido  das  prophecias  populares  (*).  Re- 
bello  da  Silva,  pelo  contrario,  assignala  a  interven- 
ção, que  reputa  poderosa,  dos  jesuitas,  na  conspi- 


(^)  Os  sebastianistas^  Lisboa,  18 10,  pag.  Sg. 


COLLECCAO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 


ração  restauradora  de  1640  e  na  consolidação  da 
dynastia  brigantina.  Recorda  este  illustre  historiador 
a  propaganda  do  padre  Luiz  Alvares,  que  n'uni 
sermão  pregado  perante  o  cardeal  Alberto  se  affoi- 
tára  a  dizer;  «Sereníssimo  príncipe!  Levantae-vos, 
tomae  o  fato  e  a  cabana,  e  ide-vos  para  vossa  ter- 
ra'. . .  é  o  que  significam  as  palavras  de  Ghr!sto(')». 
A  crença  de  um  novo  império  do  mundo,  para  glo- 
rificação da  coroa  restaurada  de  Portugal,  digno  de 
figurar  na  historia  universal  depois  dos  impérios  da 
Babylonia,  da  Assyria,  da  Grécia  e  de  Roma,  foi 
eloquentemente  atiçada  pelo  padre  António  Vieira, 
como  se  sabe,  na  Historia  do  futuro.  Mas  já  então 
a  revolução  estava  consummada.  Resta  saber  se  os 
jesuítas,  recorrendo  á  arma  do  prophetismo,  e  a 
outras  não  menos  valiosas,  a  prepararam.  Eis  o 
ponto  que  não  está  ainda  nitidamente  averiguado. 
D.  Francisco  Manuel  escreve  nas  Epanáphoras 
que  os  padres  da  Companhia  tacitamente  contri- 
buiam  ás  esperanças  de  alguma  novidade.  Este  tes- 
timunho  é  importante  por  ser  contemporâneo  dos 
factos.  Não  obstante,  a  questão  não  está  ainda  suf- 
íicientemente  esclarecida,  posto  que  recentemente 
dois  escriptores  notabilissimos,  Camillo  Gastello 
Branco  e  Oliveira  Martins,  esgrimissem  denodada- 
mente sobre  tão  importante  assumpto,  deixando 
comtudo  indecisa  a  victoria,  porque  ambos  adduzi- 
ram  argumentos  ponderosos,  o  primeiro  negando, 
em  opposição  ao  segundo,  que  a  Companhia  de  Je- 


(*)  Historia  de  Portugal^  tomo  m,  pag.  440. 


NINHO  DE  GUINCHO 


SUS  tivesse  intervindo  pelo  prophetism o  na  revolu- 
ção de  1G40  para  fa\er  de  Portugal  o  Par  agua  y 
da  Europa,  segando  a  phrase  de.  Emílio  Castellar 
proferida  no  congresso  hespanhol  em  1884.  Camillo 
Castello  BranCo  adTiittia  que  os  jesuítas  acceitassem 
D.  Joáo  IV  coiTKí  sendo  o  Encoberto,  mas  só  úepois 
de  realisada  a  revolução  de  1Õ40;  antes  não.  Com- 
batia, portanto,  o  argumento  deOlíveirci  Martins:  que 
fora  por  suggestÕss  jesuíticas  que  rebentaram  em 
Évora  os  acontecimentos  de  iGSy,  de  todos  conhe- 
cidos. O  que  é  certo  é  que  a  questão,  brilhantemente 
tratada  de  parte  a  parte,  não  ficou  todavia  bastante- 
meiíte  liquidada,  de  modo  a  não  admittir  a  nienor 
duvida  perante  a  critica  histórica,  desapaixonada  e 
imparcial.  Pode  ter-se  uma  opinião,  mais  ou  menos 
justificável,  e  não  devemos  ocçultar  que  nos  inclina- 
mos á'de  Camillo  Castello  Branco;  mas  parece-nos 
ainda  cedo  para  assentar  uma  convicção  definitiva. 

Como  quer  que  seja,  o  que  é  certo  é  que  o 
prophetismo  fora  uma  arma  poderosa  nas  mãos 
dos  que  favoreciam  a  restauração,  quer  os  va- 
mos procurar  á  Companhia  ái  Jesus  ou  fora 
d'ella. 

O  calis  da  amargura  trasbordava;  o  prophe- 
tismo fortalecia  os  ânimos,  pondo  em  vibraçãd  a 
credulidade  popular,  para  evitar  que  fosse  exgo- 
tado  até  ás  fezes.  Na  revolução  d'Evora,  emergira 
principalmente  o  elemento  popular;  o  typo  do  Ma- 
nuelinho  era  uma  synthese.  O  prophetismo  apro- 
veitou aquelle  elemento,  que  sobrenadava  á  fior 
dos  acontecimentos,  je  explorou-o  com  vantagem. 
Eis  a  verdade. 


IO  COLLECÇÃO  ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

Todos  OS  processos  que  podiam  fazer  vibrar  a 
credulidade  do  povo  foram  utilisados.  Recorda- 
ram se  as  suppostas  palavras  de  Ghristo  a  Affonso 
Henriques  nas  cortes  de  Lamego,  cuja  authentici- 
dade  foi,  aliás,  combatida  por  Alexandre  Herculano, 
como  se  sabe.  O  Filho  de  Deus  haveria  promettido 
ao  primeiro  rei  portuguez  a  sua  miraculosa  interfe- 
rência até  ao  tempo  em  que  florecesse  a  decima 
sexta  geração,  usque  in  decima  sextam  generaiionem. 
Ora  desde  Sancho  I  até  D.  Henrique,  inclusive, 
succediam-se  dezeseis  gerações  contadas  de  rei  a 
rei.  S.  Bernardo  teria  escripto  a  Aftonso  Henriques 
uma  carta  datada  de  Claraval,  no  anno  de  ii36,  na 
qual  diria  que  ao  —  «reino  de  Portugal  nunca  falta- 
riam reis  portuguezes,  salvo  se  pela  grave\a  de  cul- 
pas por  algum  tempo  (Deus)  o  castigar;  não  será 
porém  tão  comprido  o  praso  d'este  castigo,  que  che- 
gue a  termos  de  sessenta  annost. 

Gomo  se  vê,  não  podia  ser  mais  artificiosamente 
explorada  pelo  prophetismo  a  corda  da  credulidade 
nacional. 

Mas  ha  mais.  Aos  vaticínios  de  origem  religiosa 
accresciam  os  vaticínios  de  origem  popular,  fazendo 
suppôr  em  intima  communicaçao  a  alma  do  povo 
com  os  prophetas  directamente  inspirados  per  Deus. 
Assim,  as  prophecias  de  Bandarra  foram  interpre- 
tadas n'um  sentido  inteiramente  applicavel  á  res- 
tauração da  independência  nacional  pela  acclamação 
de  D.'  João  IV. 

Na  Restauração  prodigiosa  de  Portugal,  com- 
posta era  1643  por  um  jesuíta,  o  padre  Manoel  Es- 
cobar,  sob  o  pseudonymo  de  Gregório  de  Almeida, 


NINHO  DE   GUINCHO  I  I 

as  trovas  do  vate  sapateiro  de  Trancoso  são  ada- 
ptadas á  época: 

Já  o  tempo  desejado 

É  chegado. 
Segundo  firmai  assenta, 
Já  cessaram  os  quarenta, 

Que  se  emmenta 
Por  um  douto  já  passado. 
O  rei  novo  é  levantado, 

Já  dá  brado, 
Já  assoma  a  sua  bandeira, 
Contra  a  grifa  parideira 

Logomeira, 
Que  taes  prados  tem  gastado. 
Saia,  saia  este  infante, 

Bem  andante. 
O  seu  nome  é  D.  Joam. 
Tire  e  leve  o  pendão 

E  o  guião, 
Poderoso  e  triumphante. 
Vir  Ihe-hão  novas  adeante, 

E  n'um  instante, 
D'aquellas  terras  presadas. 
As  quaes  estão  declaradas 

E  afRrmadas, 
Tel-o  por  Rey  em  deante. 

Inculcava-se,  pois,  que  a  éra  de  quarenta  era  pre- 
destinada para  grandes  prodigios.  N'uma  egreja  de 
Alemquer  haveria  sido  encontrada  uma  pedra  com 
esta  inscripção,  em  lettras  gothicas: 

Anno  de  vinte,  quem  te  não  vira ! 
Anno  de  trinta,  quem  te  passara! 
Anno  de  quarenta,  quem  te  gosára! 


12  COLLECÇAO    ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

De  mais  a  mais,  na  Escriptura  Sagrada  qua- 
renta era  um  numero  assignalado:.  quarenta  dias 
estivera  Moysés  no  Sinai;  quarenta  annos  guiou 
o  Senhor  ao  povo  de  Israel  pelo  deserto.  Ficava 
assim  confirmada  a  phrase :  segundo  Jirmal  as- 
senta. 

Mas,  além  da  auctoridade  da  Biblín,  havia  a  de 
S.  Bernardo:  que  5e  ofvnenta,  por  um  douto  já  pas- 
sado. 

Quanto  á  expressão  rei  nopo,  não  podia  haver 
duvidas:  D.  João  IV  era  o  primeiro  monarcha  de- 
pois de  interrompida"  a  serie  dos  reis  portugue- 
zes. 

Saia,  saia,  significava  a  anciã  com  que  todo  o 
reino  pedia  a  acclamação  de  um  soberano  restaura- 
dor. 

Não  podia,  de  feito,  ser  mais  feliz  a  exegese.  To- 
davia, uma  pequena  difíicaldade  apparecera:  a  pro- 
phecia  dizia: — Doni  Foani,  e  não  Dom  Joam.  Desde 
o  momento,  porém,  em  que  se  encontrasse  uma 
explicação  verosimii  para  a  troca  de  uma  lettra,  a 
prophecia  ganharia  foros  de  indiscutível  veracida- 
de. A  desejada  explicação  encontrara-se,  final- 
mente: a  troca  de  um  /  grande  por  um  F  fora  alte- 
ração adrede  introduzida  pelos  sebastianistas  •,  res- 
tava desfazer  o  que  elles  tinham  feito,  mudar  o  F 
em  /.  A  espada  de  Alexandre  cortara  mais  uma 
vez  o  nó  gordio:  Bandarra  havia  prophetisado  D. 
João  IV. 

E  houve  logo  quem  recordasse  o  testimunho  de 
pessoas  contemporâneas  de  O.  João  III,  affirmando 
que  Bandarra  havia  effeciivamente  escripto 


NINHO   DE  GUINCHO  l3 


O  seu  nome  é  D.  Joam, 

mas  que  —  tão  certo  como  dois  e  dois  serem  qua- 
tro—  os  sebastianistas  haviam  adulterado  a  copia 
maliciosamente. 

D.  João  IV  devia  sorrir-se,  para  dentro,  da  cre- 
dulidade ingénua  dos  seus  vassallos,  mas  para  não 
inutilisar  as  armas  do  prophetismo,  tão  habilmeme 
empregadas  em  seu  proveito,  não  punha  duvida  em 
declarar,  perante  os  ferrenhos  sebastianistas  da 
sua  corte  recemnascida,  que  se  D.  Sebastião  vol- 
tasse, immediatamente  lhe  entregaria  o  sceptro  e  a 
coroa. 

i885  —  Fevereiro. 


II 


HISTORIA  DE  UM  QUADRO 


Champfleury,  no  seu  livro  Les  excefitnques,  dá  o 
logar  de  honra  a  um  portuguez  que  se  tornou  no- 
tável em  França  por  muitas  originalidades.  Era  o 
commendador  José  Joaquim  da  Gama  Machado, 
conselheiro  de  legação  em  Pariz,  gentil-homem  da 
casa  real  de  Sua  Magestade  Fidelíssima,  sócio  da 
Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa  e  de  ou- 
tras muitas  corporações  liiterarias. 

Pertencendo  a  uma  familia  originaria  de  Portu- 
gal, Machado  foi  para  Pariz  aos  oito  annos  de  edade 
estudar  no  coUegio  d'Harcourt,  sob  a  direcção  do 
abbade  Goesnon.  Goncluida  a  aprendizagem  littera- 
ria,  Machado  viajou  largamente  e,  quando  já  orçava 
pelos  cincoenta  annos,  explodiu  no  seu  espirito,  su- 
bitamente, um  grande  enihusiasmo  pela  historia  na- 
tural. 

Desde  esse  momento.  Machado  tornou-se  um  mo- 
nomaniaco,  um  excêntrico,  que  vivia  mais  para  os 
pássaros  do  que  para  os  homens. 

Gorria  todo  Pariz  assestando  as  suas  lunetas  de 


NINHO  DE  GUINCHO  l5 

ouro  para  as  gaiolas  dos  passarinheiros,  e  fazia 
grandes  compras  de  aves,  com  as  quaes  almoçava 
em  estreita  camaradagem  todos  os  dias,  depois  de 
ter  assistido  ao  banho  de  cada  uma. 

Havia,  na  habitação  de  Machado,  uma  sala  occu- 
pada  por  pequeninas  thermas,  onde  os  passarolos 
mergulhavam  hygienicamente,  duas  vezes  ao  dia, 
sem  que  nenhum  d'elles  se  equivocasse  ao  procurar 
a  sua  tina. 

Durante  o  almoço,  o  commendador  prodigalisava 
dedicadissimos  cuidados  aos  seus  hospedes. 

—  Se  quero  conservar  a  amisade  de  cada  um 
d'elles,  dizia  Machado,  preciso  não  os  enganar.  O 
trabalho  de  gabinete  exige  menos  fadiga  do  que  a 
vigilância  que  reclamam  os  meus  pequenos  compa- 
nheiros. Só  com  incessantes  cuidados  se  consegue 
preserval-os  de  enfermidades,  e  manter  a  paz  no 
seio  d'esta  pequena  familia,  onde  a  harmonia,  como 
entre  nós,  nem  sempre  reina. 

Quando  Machado  viajava,  acompanhavao  inalte- 
ravelmente um  papagaio  seu  predilecto.  Em  mala- 
posta,  em  caminho  de  ferro,  em  paquete,  por  mar 
ou  por  terra,  o  papagaio  favorito  não  se  esquecia  de 
pedir  o  almoço,  dando  um  grito,  sempre  á  mesma 
hora,  com  a  precisão  de  um  relógio  de  Genebra. 

Este  papagaio  correspondia  aos  carinhos  com  que 
Cra  tratado  pela  cooperação  que  prestava  ao  com- 
mendador no  tratamento  dos  outros  pássaros. 
Quando  algum  adoecia,  o  papagaio  avisava  gri- 
tando. Era  uma  espécie  de  irmã  da  caridade,  de 
enfermeiro  officioso  e  solicito.  Assim  avisado,  Ma- 
chado punha  em  acção  todo  o  seu  arsenal  théra- 


l6  COLLECÇÁO    ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

peutico:  applicava  homcepathicamente  a  belladona 
para  os  casos  de  epilepsia,  de  que  alguns  pássaros 
são  atacados  ;  e  empregava  os  glóbulos  de  açafrão 
na  época  melindrosa  da  mudanÇa  de  penna. 

Foi  depois  de  muitos  annos  de  convivência  com 
as  aves  que  o  commendador  Machado  conseguia 
formular  o  seu  systema  da  Thcoria  d.is  similhanças, 
baseado  sobre  os  meios  de  determinar  as  disposi- 
ções características  de  cada  animal,  segundo  as  ana- 
logias das  formas,  da  cauda  e  das  cores. 

—  A  côr,  dizia  elle,  é  o  verdadeiro  piloto  v...  ■,!- 
tureza  para  o  conhecimento  do  valor  das  suas  pro- 
ducções,  nos  trtz  reinos,  animal,  vegetal^  e  mine- 
ral. E'  verdade  que  Bernardin  de  Saint-Pierre  não 
estava  longe  d'estas  idéas.  Nos  Estudos  da  naíure:{a 
diz  elle  que  as  cores  dos  animaes  indicam,  mais  tal- 
vez do  que  se  pensa,  os  seus  caracteres,  e  que  a 
côr  virá  por  ventura  a  ser  o  gérmen  de  uma  verda- 
deira sciencia.  As  famosas  analogias  de  Fourier 
partem  do  mesmo  principio. 

A  exemplificação  das  analogias  encontradas  por 
Machado  tomar-nos-ia  grande  espaço.  Deixaremos 
apenas  indicado  o  assumpto,  e  transcreveremos  al- 
gumas das  máximas  doeste  portuguez  excêntrico, 
que  dizem  respeito  aos  animaes. 

«Os  animaes  nascem  sábios  sem  passar  pela  edu- 
cação, ao  passo  que  os  homens  adquirem  conheci- 
mentos á  força  de  maus  tratos.» 

«Falta  ao  macaco  a  palavra :  este  animal  tem 
conservado  a  sua  plena  liberdade.» 

<Â  côr  é  o  móbil  dos  costumes  entre  os  ani- 
maes.» 


NINHO  DE  GUWCHO  I7 

cA  natureza  parece  ter  privado  o  homem  de  senso 
commum  e  havel-o  dado  aos  animaes.» 

Como  se  vê,  o  commendador  Machado  havia 
constituído  para  si  nriesmo  toda  uma  sociedade  de 
pássaros,  na  convivência  dos  quaes  ia  rebaixando  o 
conceito  que,  por  estudos  comparativos,  fazia  do» 
homem. 

Era  preciso  acceotuar  estes  traços  excêntricos  da 
physionomia  de  Machado,  tal  como  nol-o  apresenta 
Champflcury,  para  entrarmos  na  matéria  especial», 
que  Julgamos  ser  inteiramente  nova,  d'este  artigo. 

Se  o  leitor  quizer  dar-se  ao  incommodo  de  visi- 
tar o  museu  nacional  de  bellas  artes,  no  palácio  das 
Janellas  Verdes,  ha  de  encontrar  na  sala  D  um  qua- 
dro a  óleo,  que  tem  o  numero  868,  e  que,  segunda 
a  indicação  do  respectivo  catalogo,  é  do  século  pas- 
sado. 

Quanto  ao  assumpto  do  quadro,  diz  o  catalogo: 

«Loja  de  barbeiro. — Diversos  macacos  fazem  of- 
ficio  de  barbeiro,  barbeando  gatos.» 

«Legado  á  academia.» 

A'  primeira  vista,  o  quadro  numero  868  da  sala 
D  denuncia  apenas  a  excentricidade  de  um  artista, 
a  phantasia  piccarcsca  de  um  pintor  que  se  occupou 
imaginando  uma  loja  de  barbeiro,  em  que  os  esca- 
nhoadores  são  macacos  e  os  freguezes  são  gatos. 
O  catalogo  contenta-se  com  dar  uma  indicação  vaga 
acerca  da  aquisição  do  quadro :  legado  á  Acade- 
mia. E'  pouco,  e  é  falso. 


COLLECÇÂO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 


O  quadro  não  foi  legado  á  Academia.. .  mas  á 
Gamara  dos  Pares  de  Portugal.  O  testador  foi  o 
commendador  Gama  Machado.  E  o  quadro  passou 
mais  tarde  da  Gamara  dos  Pares  para  a  Academia 
de  Bellas  Artes,  como  vamos  mostrar. 

Em  data  de  12  de  outubro  de  1861  o  testamen- 
teiro de  Gama  Machado  participava  á  Gamara  dos 
Pares  o  legado  de  trez  quadros,  e  pedia  que  lhe 
fosse  indicado  o  meio  de  envial-os. 

Qjatro  dias  depois,  o  mesmo  testamenteiro  com- 
municava  que  por  aviso  do  presidente  do  tribunal 
civil  estava  auctorisado  a  entregar  o  legado. 

A  8  de  dezembro,  o  testamenteiro  participava  ter 
enviado  o  legado. 

A  26  de  fevereiro  de  1862  a  Gamara  dos  Pares 
mandava  officiar  ao  Ministério  do  Reino  pedindo 
que  o  legado  lhe  fosse  entregue,  e  a  12  de  junho 
instava  pela  entrega. 

A  Gamara  havia  resolvido  que  os  quadros,  logo 
depois  de  recebidos,  fossem  enviados  para  a  Aca- 
demia. Por  isso,  o  director  da  Academia  officiou 
em  14  de  junho,  pedindo  a  remessa  d'elles. 

Foi-lhe  respondido  que  ainda  não  haviam  sido 
entregues. 

Só  a  20  de  dezembro  foram  recebidos  na  Gamara, 
do  que  se  lavrou  o  competente  auto. 

Os  trez  quadros  de  que  constava  o  legado  eram : 
dois  desenhos  de  Girodet,  representando  Galathea 
e  Pigmalião,  e  o  quadro  dos  macacos  e  dos  gatos, 
pintado  por  Decamp  —  nada  menos! 

Gomo  se  acaba  de  ver,  a  indicação  do  catalogo 
é  não  só  deficiente,  mas  também  inexacta. 


NINHO  DE  GUINCHO  IQ 

A  verdade  é  que  o  quadro  de  Decamp  foi  legado 
por  Gama  Machado  á  Gamara  dos  Pares. 

Seria  este  legado  apenas  uma  excentricidade  do 
diplomata  portuguez,  inteiramente  vasia  de  sentido? 
Elle  era  intelligentc  de  mais  para  não  pôr  uma  in- 
tenção qualquer  no  que  fazia. 

E  d'ahi  talvez  que  o  leitor,  analysando  o  quadro, 
possa  encontrar  a  intenção  irónica  do  testador. 

Os  macacos  não  serão  os  legisladores?  os  gatos 
não  serão  os  contribuintes? 

Vão  ver,  e  digam  depois. . . 

i"^86 — Janeiro. 


III 


UM  PRÉDIO  NOTÁVEL 


A  casa  do  Tateo  do  Tijolo  onde  Fontes  Pereira 
de  Mello  falleceu,  tem,  como  se  sabe,  duas  entradas, 
uma  pela  travessa  do  Conde  de  Soure,  que  commu- 
nica  a  rua  Formosa  com  a  rua  da  Rosa,  a  outra 
pelo  Pateo  d'aquelle  nome  que  liga  a  rua  de  D.  Pe- 
dro V  com  a  entrada  nobre  do  palácio. 

N'este  bairro,  e  principalmente  n'este  sitio,  a  re- 
fundição  de  Lisboa  tem  sido  profunda  até  nos  nomes. 

A  inevitável  chrisma  municipal  converteu  a  an- 
tiga rua  do  Moinho  de  Vento  em  rua  de  D.  Pedro 
V.  Porque  ?  Por  coisíssima  iietiJiuma,  como  diria  um 
ministro  lendário.  Aquella  rua  tanto  poderia  ser  de 
D.  Pedro  IV  como  de  D.  Pedro  V,  como  de  qual- 
quer outro  homem  notável...  que  tivesse  passado 
por  ella  algumas  vezes.  A  única  denominação  que 
ajustava  á  sua  historia  era  a  de  —  Moinho  de  ventOf 
porque,  em  verdade,  ali  houvera  moinhos  de  vento 
— e  bem  trabalhados  pelo  vento  deviam  sern'aquelle 
alto  os  moinhos  —  quando  ainda  tudo  por  ali  eram 
terras    de    semeadura,    ao  tempo  do  terremoto,  co- 


NINHO  DE  GUINCHO  21 

mo  indicam  os  nomes  mais  ou  menos  bucólicos  das 
ruas  circumjacentes. 

Estamos,  de  feito,  n'uma  zona  onde  Ceres  e  Flora 
tiveram  seus  dominios,  como  denunciam  as  designa- 
ções de  rua  da  Vinha,  travessa  das  Parreiras^  tra- 
vessa da  Horta^  rua  dos  Cardaes,  rua  e  travessa 
da  Palmeira,  rua  dos  Jasmins,  e,  finalmente,  Praça 
das  Flores. 

A  rua  da  Rosa  faz,  porém,  excepção ;  não  deve 
enganar  o  leitor.  Esta  rosa  nada  tem  que  ver  com 
bucolismos  e  pastoraes,  pois  que  não  se  trata  da 
rosa  dos  prados,  mas  da  Rosa . . .  das  partilhas, 
uma  demandista  famosa  do  século  XV. 

Nós,  os  que  vivemos  agora,  já  não  vimos  velejar 
no  alto  de  S.  Pedro  de  Alcântara  os  tradicionaes 
moinhos  de  vento,  que  apparecem  figurados  no  Ur- 
bium  procecipuarum  mundi  theatrum.,  mas  conhece- 
mos a  rua  do  Moinho  de  Vento  muito  diffcrente, 
ainda  ha  poucos  annos,  do  que  é  hoje. 

O  leitor  lembra-se  por  certo  do  renque  de  casas 
humildes  —  até  por  signal  bem  mal  habitadas. . . — 
que  corria  desde  a  esquina  da  rua  da  Rosa  até  junto 
da  Patriarchal  Queimada...  perdão,  da  Praça  do 
Principe  Real.  Demoliram-se  essas  casas,  construi- 
ram-se  no  seu  logar  as  lojas  de  commercio  que 
lá  vemos  agora,  edificara  mse  em  frente  bellos  prédios, 
ultimamente  demoliuse,  depois  de  incendiado,  O 
palácio  da  familia  Braamcamp  —  que  sempre  teve 
a  má  sina  de  vêr  os  seus  prédios  incendiados  — 
desmoronou-se  parte  do  solar  dos  Salemas,  alargou- 
se  a  rua,  e  ella  ahi  está  hoje  sendo  uma  das  me- 
lhores de  Lisboa. 


22  COLLECÇAO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

Mas  a  mudança  de  nome  é  que  eu  não  perdoo 
nem  desculpo. 

Todos  nós  nos  lembramos  ainda  de  ver,  no  Pa- 
teo  do  Tijolo^  os  restos  disformes  do  palácio  dos 
condes  de  Soure,  titulares  que  estão  actualmente 
representados,  pelo  casamento  de  uma  senhora,  na 
casa  dos  condes  de  Redondo. 

O  visconde  Júlio  de  Castilho  não  pôde  rastear  a 
data  da  fundação  do  palácio,  mas  pareceu-lhe  en- 
xergar nas  ruinas  vestígios  de  uma  construcção  do 
século  XVII. 

Gomo  quer  que  fosse,  ahi  habitavam,  n'aquelle 
século,  os  Soures,  cujo  condado  fora  em  i652  con- 
cedido a  D.  João  da  Gosta,  casado  com  uma  senhora 
da  casa  Villa  Verde. 

Ahi,  nas  proximidades  do  seu  solar,  esteve  o  pri- 
meiro conde  de  Soure  para  ser  victima  de  uma  ci- 
lada nocturna  que  lhe  armaram  dois  embuçados  a 
cavallo,  e  de  que  sahiu  incólume. 

Aconteceu  que  voltando  de  Inglaterra,  viuva,  a 
rainha  D.  Gatharina  de  Bragança,  fora  alojar-se  nos 
paços  do  Galvario,  d'onde  se  transferiu  para  o  pa- 
lácio dos  condes  de  Redondo  a  Santa  Martha,  pas- 
sando depois  d'ahi  para  o  dos  condes  de  Soure, 
junto  aos  iMoinhos  de  Vento. 

Foi  n'este  prédio,  onde,  duzentos  annos  volvidos, 
haviam  de  fallecer  dois  estadistas  portuguezes,  que 
D.  Gatharina  de  Bragança  fez  lavrar  o  seu  testa- 
mento, datado  de  14  de  fevereiro  de  1699,  no  pa- 
lácio sito  ao  Moinho  de  vento  na  corte  e  cidade  de 
Lisboa. 

A   rainha  de  Inglaterra  não  se  demorou  muito, 


NINHO  DE  GUINCHO  2$ 

porém,  no  palácio  dos  condes  de  Soure;  mudou  se 
para  o  dos  condes  de  A-veiras,  em  Belém.  Amda 
ahi  não  ficou.  Em  julho  de  1701  comprou  seu  ir- 
mão D.  Pedro  lí  terrenos  na  Bemposta  para  man- 
dar lhe  construir  o  palácio  que  hoje  conhecemos  por 
esta  designação. 

A  escriptura  da  compra  vem  publicada  no  Ga- 
binete histórico  de  frei  Cláudio  da  Conceição  e  tran- 
scripta  por  Camillo  Castello  Branco  no  1.°  volume 
do  romance  O  judeu. 

A  esse  tempo  o  representante  dos  Soures  era  o 
terceiro  conde  do  titulo.  D.  João  José  da  Costa  e 
Sousa  que,  certamente  para  deixar  livre  o  palácio 
do  Bairro  Alto  á  rainha  da  Gran-Bretanha,  iria  ha- 
bitar o  outro  palácio  da  sua  familia,  á  Penha  de 
França. 

Habituado  talvez  á  sua  residência  n*este  outro 
palácio,  não  voltou  o  conde  de  Soure  a  occupar 
o  que  D.  Catharina  de  Bragança  abandonara. 

Então  o  palácio  dos  Moinhos  de  Vento,  que  ti- 
nha hospedado  uma  rainha,  passou  a  ter  inquilinagem 
menos  nobre.  Estabeleceuse  ahi  um  theatro  de  ti- 
teres,  theatro  onde  depois  se  representaram  as  far- 
ças  do  famoso  judeu  António  José  da  Silva-,  proto- 
gonista  do  romance  de  Camillo,  ha  pouco  citado. 

Teve  pois  aquelle  Bairro  nada  menos  de  trez  thea- 
tros:  este,  o  velho  theatro  do  Bairro  Allo^  de  ma- 
rionettes^  aos  Moinhos  de  Vento;  o  theatro  nopo^  no 
largo  de  S  Roque,  Pateo  do  Patriarcha  (porque 
foi  no  palácio  dos  Nizas  que  habitou  o  primeiro 
patriarcha  de  Lisboa,  D.  Thomaz  d'Almeida)  e 
no  largo  da  Abegoaria  a  Academia  de  opera  italiana. 


S4  COLLECÇAO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

Outros,  de  secunduria  importância,  haveria  tal- 
fez. 

Disse  eu  já  que  a  familia  Braamcamp  fora  infe- 
liz com  incêndios.  O  pae  do  fallecido  conselheiro 
Anselmo  Braamcamp  habitava  um  grande  prédio 
no  Terreiro  do  Paço  entre  a  esquina  da  rua  da 
Prata  e  a  da  rua  dos  Fanqueiros.  Esse  prédio  ar- 
deu ahi  por  1828,  pois  que  o  povo,  depois  de  D  Mi- 
guel ter  dado  uma  queda  e  de  fallecer  a  rainha  D. 
Carlota  Joaquina  (7  de  janeiro  de  i83o)  cantava  nas 
ruas: 

Foi  o  fogo  do  Braarrcamp 
Cometa  que  annunciou 
A  morte  da  abelha  mestra, 
A  queda  do  rti  chegou. 

O  vasto  prédio  que  o  sr.  conselheiro  Anselmo 
José  Braamcamp  habitava,  no  topo  da  alameda  de 
S.  Pedro  d'Alcantara,  ardeu  também,  creio  que  em 
1878,  pelo  que  o  finado  chefe  do  partido  progres- 
sista comprou  as  ruinas  do  palácio  dos  condes  de 
Soure,  mandando  aproveitar  as  paredes  mestras  do 
edifício. 

As  obras  de  reconstrucção  começaram  em  julho 
de  1879,  e  a  refundição  do  palácio  fez-se  rapida- 
mente, indo  o  sr.  Anselmo  José  Braamcamp  ha- 
bital-o  com  sua  familia. 

Como  se  sabe,  foi  ahi  que  o  illustre  chefe  do  par- 
tido progressista  falleceu  a  i3  de  novembro  de  i885, 
quatro  annos  depois  de  ter  abandonado  a  presi- 
dência do  conselho  de  ministros  (25  de  março  de 
1881). 


NINHO  DE  GUINCHO  25 


I 


Mezes  depois,  o  conspícuo  estadista  António  Ma- 
ria de  Fontes  Pereira  de  Mello,  chefe  do  partido 
regenerador,  transferiu  a  sua  residência,  do  palacete 
do  largo  do  Poço  Novo,  para  o  palácio  do  Pateo  do 
Tijolo,  propriedade  dos  herdeiros  do  sr.  Braam- 
camp. 

Está  ainda  na  memoria  de  todos  que  a  morte  fe- 
riu de  improviso  Fontes  Pereira  de  Mello,  na  noite 
de  22  de  janeiro  de  1887. 

Logo  se  notou  a  triste  coincidência  de  terem  mor- 
rido no  mesmo  prédio,  apenas  com  o  intervallo  de 
dois  annos,  os  dois  chefes  dos  partidos  monarchi- 
cos  militantes. 

Mas  o  que  muita  gente  ignorava,  e  ignoraria  tal- 
vez ainda  hoje,  é  que  ali  estivera  hospedada  a 
rainha,  viuva,  da  Gran-Bretanha,  e  que  o  mesmo 
prédio  passara  depois  a  ser  o  velho  theatro  do  Bairro 
Alto. 

Aos  esplendores  da  realesa,  representada  na  pes- 
soa de  D.  Catharina  de  Bragança,  cuja  vida  em  In- 
glaterra fora  uma  tragedia  de  amarguras,  succedera 
a  comedia  personificada  no  infeliz  judeu  António 
José  da  Silva.  Seguiu  se  um  duplo  drama  de  morte, 
que  cobriu  de  luto  os  partidos  progressista  e  rege- 
nerador. 

Os  dois  estadistas  não  falleceram,  porém,  no  mes- 
mo quarto. 

Subindo,  da  rua  Formosa,  a  travessa  do  Conde 
de  Soure,  a  primeira  janella  do  segundo  andar  é  a 
do  aposento  em  que  Fontes  expirou. 

Quando  este  illustrc  estadista  foi  residir  n'aquelle 
prédio,  os  herdeiros  do  sr.  Braamcamp  conserva- 


26  COLLECÇÃO   ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

ram  fechado,  durante  muito  tempo,  o  quarto,  tam- 
bém situado  no  segundo  andar,  em  que  elle  tinha 
fallecido. 

Estavam  ainda  ali  alguns  moveis,  suppômos 
até  que  o  leito,  os  quaes  foram  depois  removidos 
por  ordem  da  familia  Braamcamp. 

Da  janella  do  quarto  onde  falleceu  Fontes  Pe- 
reira de  Mello  avista-se  um  dilatado  panorama,  que 
abrange  grande  parte  da  casaria  do  bairro  Occiden- 
tal, e  o  Tejo. 

A  mobília  do  quarto  de  Fontes  era  modesta.  En- 
trei ali  na  manhã  do  dia  23  de  janeiro  de  1887.  O 
cadáver  do  iliustre  estadista,  vestindo  o  seu  uni- 
forme de  general,  repousava  sobre  o  leito.  Recor- 
do me  de  ter  feito  reparo  em  dois  ou  trez  moveis, 
elegantes,  mas  simples:  uma  commoda  moderna  e 
um  guarda-fato.  Nenhum  requinte  de  commodidade 
opulenta  •,  nenhuma  pompa  de  tapeçarias,  nem  bibe- 
lots  de  preço.  Todavia,  no  fundo  da  província,  quan- 
tos não  imaginariam,  com  boa  ou  má  fé,  que  os 
aposentos  de  Fontes  deviam  ser  principescos ! 

Conheci  Fontes  Pereira  de  Mello  em  quatro  pré- 
dios differentes,  na  rua  de  S.  Bento,  na  travessa 
de  Santo  Amaro,  no  Poço  Novo,  e  no  Pateo  do  Ti- 
jolo, mas  em  nenhum  delles  a  mobília  e  os  estofos 
das  suas  salas  deslumbravam  os  olhos. 

1889  —  Janeiro. 


IV 


PETRARCHA  E  CAMÕES 


A  obra  de  Petrarcha  tem  sido  copiosamente  vul- 
garisada  em  francez.  Citarei  de  passagem  a  traduc- 
ção  de  Ginguené,  que  é  estimável.  Mas  no  texto 
original  conheço  a  excellente  edição  de  i34i  por  um 
exemplar  que  pertence  hoje  ao  meu  prezado  amigo 
conselheiro  Silveira  da  Motta,  e  que  pertenceu 
outr'ora  a  Camillo  Castello  Branco,  que  o  anno- 
tou. 

Adquiriu,  pois,  Silveira  da  Motta  uma  dupla  pre- 
ciosidade bibliographica,  que  lhe  peço  licença  para 
descrever. 

No  reverso  da  i.*  pagina,  a  lápis: 

Ex-per feito. 

No  verso  da  2.",  também  a  lápis: 

a  Esta  edição  sahiu  no  2°  centenário  da  coroação 
de  Petrarcha  em  1641.  (Esta  data  está  fortemente 
escripta  a  tinta).  O  commentador  Vellutello  é  o 
mais    apreciado    dos    antigos    interpretes    de   Pe- 


28  COLLECÇÁO   ANTÓNIO  MARIA   PEREIRA 

trarcha.  N'esta  edição  ha  versos  chancellados  pela 
censura  —  são  os  que  offendem  os  cardeaes. » 

C.  Caslello  Branco. 

E  no  reverso  da  2.*  pagina,  a  tinta: 

Brunet  —  60  fr. 

C.  Castello  Branco. 

Na  ultima  pagina,  por  baixo  da  rubrica  typogra. 
phica  do  impressor  (In  Vinegia  per  Giovann  Antó- 
nio di  Nicolini  da  Sábio  nel  anno  dei  Signore 
MDXLI  de  Genaro)  tem  o  exemplar  a  assignatura 
do  seu  antigo  possuidor: 

D.  Jeronymo  Corrêa  da  Silveira. 

E  por  lettra  de  Gamillo: 

E'  neto  de  D.  Diogo  que  adiante  traduziu  o 
soneto  de  Petrarcha;  morreu  em  16  de  maio  de 
1640. 

C.  Castello  Branco. 

Seguem-se  trez  paginas,  sendo  duas  em  branco, 
certamente  introduzidas  pelo  encadernador.  Na  i.% 
porém,  lê-se  em  caracteres  manuscriptos: 

Tresladação  do  soneto  «aspro  core  e  selvaggio» 
(calligraphia  antiga): 


Dura  vontade,  cruel  peito  isento 
N'uma  suave,  angélica  figura, 
Se  tanta  crueldade  muito  dura, 
Pouco  honrava  de  mim  o  vencimento. 


NINHO  DE   GUJNCHO  29 


Que  eu  de  chorar  não  cesso  um  só  momento 
Quando  a  flor  nasce  e  perde  a  formosura. 
Bem  tenho  que  queixar-me  da  ventura, 
D'amor,  e  da  que  causa  meu  tormento. 

Vivo  só  d'esperança  imaginando 

Qae  mármore  não  hi  que  ao  uso  grande 

De  pouca  agua  continua  se  não  renda. 

Não  ha  tão  duro  peão,  que  chorando. 
Rogando,  amando,  uma  hora  não  se  abrande. 
Nem  tão  frio  querer  que  não  se  accenda. 


E  por  baixo,  em  lettra  de  Camillo: 

«D.  Diogo  da  Silveira  foi  2.°  conde  da  Sortelha  e 
guarda-mór  d*el  rei  D.  Sebastiam.» 

Petrarcha  fanatisou,  pela  sua  obra  poética  e  pela 
sua  tradição  amorosa,  todos  os  notáveis  poetas  por- 
tuguezes  da  escola  italiana,  incluindo  Camões. 

Sá  de  Miranda,  que  introduziu  em  Portugal  o 
gosto  pelos  processos  de  metrificação  á-la-moda  de 
Itália,  faz  n'um  terceto  o  elogio  de  Petrarcha: 

Depois  co'a  melhor  lei  entrou  mais  lume, 
Suspirou-se  melhor,  veio  outra  gente  , 

De  que  Petrarcha  fez  tão  rico  ordume. 

No  Filodemo  de  Gamões  ha  uma  referencia  a 
Petrarcha,  e  á  bella  Laura  porelle  celebrada: 

«...por  quantos  sonetos  estão  escriptos  pelos 
troncos  das  arvores  do  Vale  Luso,  nem  por  quan- 
tas madamas  Lauras  vós  idolatraes.» 


DO  COLLECÇÁO  ANTÓNIO   MARIA    PEREIRA 

Creio  piamente  que  Vaie  Luso  foi  primitivamente 
um  erro  typographico,  que  até  hoje  tem  corrido  á 
revelia  nas  numerosas  edições  em  que  as  comedias 
de  Gamões  andam  reproduzidas.  O  poeta  escreve- 
ria certamente  ^aie  cliiuso.  Toda  a  gente  sabe  que 
em  Avinhão  o  tumulo  de  Laura  e  a  fonte  de  Petrar- 
cha  povoam  ainda  hoje  de  memorias  românticas  a 
paisagem  de  Valchiusa.  Castilho,  referindo  se  na 
Chave  do  enygma  á  solidão  do  poeta  n'aquelle  er- 
mo, escreve  na  sua  do:e  prosa  tocada  pela  suavi- 
dade de  frei  Luiz  de  Sousa:  «  Valchiusa,  ou,  como 
dizem,  Voclusa,  onde  Petrarcha  passa  tantos  annos 
sonhando  com  o  espectro,  primeiro  de  uma  viva, 
que  não  vive  para  elle,  e  depois,  de  uma  defunta 
que  nunca  para  elle  morrerá,  Valchiusa  é  para  to- 
dos brenha  alpestre,  cavernosa,  brava,  despovoada, 
mas  é  vergel  e  universo  para  elle,  e  o  casebre  do 
seu  refugio,  palácio  orientai.» 

Até  i633  o  tumulo  de  Laura  tinha  por  único  epi- 
taphio  apenas  quatro  lettras:  M.  L.  M.  L  (Madonna 
Laura  morta  jacet),  mas,  n'aquelte  anno,  passando 
em  Avinhão,  caminho  de  Marselha,  Francisco  í 
(que  em  matéria  de  poesia  e  amor  tinha  soberana 
auctoridade)  mandou  levantar,  em  honra  da  beila 
dama,  um  rico  tumulo  de  mármore,  com  epitaphios 
em  differentes  linguas,  escrevendo  elle  próprio  um 
em  francez. 

António  Prestes  também  faz  referencia  a  Petrar- 
cha, e  por  sign^l  que  é  curiosissima.  Vem  no  Aulo 
do  desembargador.  Trata-se  de  um  boi,  que  tem  o 
nome  de  Namorado. 


NINHO  DE  GUINCHO  3l 


Commendador: 

Chamavam  ao  boi  namorado; 
vacca  que  visse  no  arado 
lhe  fazia  mil  sonetos. 
Moço: 

Isso  era  Petrarcha  boi! 

Commendador: 

Qual  Petrarcha!  inda  me  aggravo 
do  Petrarcha,  mui  mais  bravo 
que  dez  mil  Pctrarchas  foi. 

E  O  mais  é  que  o  Commendador  do  auto  tinha 
razão.  Em  amor,  Petrarcha  foi  um  inoffensivo,  um 
platónico,  que  gastou  o  coração  em  sonetos.  Nada 
ha  tão  irrisório  como  dizer:  a  Laura  de  Petrarcha! 
A  quem  ella  pertenceu  foi  a  seu  marido,  Hugues 
de  Sade,  do  qual  houve  onze  filhos.  Esta  cabazada 
de  fructos  era  bastante  a  esmagar  prosaicamente  as 
flores  que  Petrarcha  metrificava  em  honra  de  Laura. 
Mas  o  poeta  fechava-se  na  solidão  de  Valchiusa,  ao 
pé  da  fonte  suspirosa,  e  gemia  saudades  pela  mu- 
lher de  Hugues. 

Foi  n'uma  egreja,  onde  se  celebrava  a  semana 
santa^  que  Petrarcha  a  viu  pela  primeira  vez. 
Tinha  ella  então  vinte  annos,  e  uma  belleza  ra- 
diosa: 

Diz  o  soneto : 

Era  '1  gioino  ch'al  ai  sol  si  scoloraro 
Per  lá  pietá  dei  suo  Fattor  i  rai, 
Quand'  i'  fui  preso,  e  non  me  ne  guardai 
C&e  i  bei  vostr'occhí^  Donna,  mi  legaro. 


32  COLLECÇÃO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

A.  Gamões  aconteceu  outro  tanto.  Foi  também 
n'uma  egreja,  e  pela  semana  santa^  que  elle  viu 
pela  primeira  vez  a  dama  que  lhe  empolgou  o  co- 
ração, fosse  ou  não  fosse  Gatharina  d'Aihayde.  O 
soneto  que  principia: 

O  culto  divinal  se  celebrava 
No  templo  d'onde  toda  a  creatura 
Louva  o  Feitor  divino,  que  a  feitura 
Com  seu  sagrado  sangue  restaurava 

foi  visivelmente  calcado  sobre  aquelle  de  Petrar- 
cha,  o  que  fez  attribuil-o  unicamente  a  espirito  de 
imitação,  a  fanatismo  petrarchiano.  Mas  o  visconde 
de  Juromenha  deu  á  estampa  outro  soneto  de  Ga- 
mões, que  desfaz  qualquer  apprehensão: 

Todas  as  almas  tristes  se  mostravam 
Pela  piedade  do  Feitor  Divmo, 
Onde  ante  o  seu  aspecto  benino 
O  divmo  tributo  lhe  pagavam. 

Meus  sentidos  então  livres  estavam 
Que  até  hi  foi  contente  o  seu  destino, 
Quando  uns  olhos  de  que  eu  não  era  dino 
A  furto  da  razão  me  salteavam. 

A  nova  vista  me  cegou  de  todo, 
Nasceu  do  descostume  a  extranheza 
Da  suave  e  angélica  presença. 

Para  remediar-me  não  ha  hi  modo. 
Oh!  por  que  fez  a  humana  natureza 
Entre  os  nascidos  tanta  differencaf 


NINHO  DE  GUINCHO  33 

DÍ7.  a  lenda  que  foi  na  egreja  das  Chngas  que 
Luiz  de  Camões  viu  pela  primeira  vez  a  dama  que 
tanto  veiu  a  amar.  Eu,  segundo  uma  opinião  Já  an- 
tiga, pendo  a  crer  que  fosse  em  Coimbríi,  onde,  dil-o 
o  próprio  poeta,  tas  suas  maguas  para  nunca  aca- 
bar se  começaram  » 

Camões  tem,  na  sua  biographia  amorosa,  muitos 
pontos  de  contacto  com  Petrarcha,  Qualquer  dos 
dois  poetas  resume  toda  a  sua  felicidade  n'um  so- 
nho: bealo  in  sogno.  Nenhum  d'elles  pôde  possuir 
a  mulher  amada,  e  ambos  lhe  sobreviveram.  Mas 
Camões,  n'um  só  soneto.  Alma  minh.i  gentil  que  te 
paríislc,  é  muito  superior  em  lacrimavel  s  udade  a 
Petrarcha  nos  vários  sonetos  que  compoz  chorando 
a  morte  de  Laura.  Todo  esse  soneto,  que  é  a  pri- 
meira explosão  da  angustia,  vale  mais,  pela  sua  do- 
çura etherea,  que  a  longa  écloga  escripta  á  morte 
de  D.  Gatharina  de  Athayde.  Somente  o  lusitano, 
medindo  se  am.orosamente  com  Petrarcha,  acha 
que  a  sua  dama  sobrepujava  em  belleza  a  do  ita- 
liano: 

E  que  toda  a  toscana  poesia 

Que  mais  Phebo  restaura, 

Em  Beatriz,  nem  Laura  nunca  via. 

Camões,  o    Trinca  fortes,  o  Diabo,   abitido  aos 

pés  de  Nathercia — como  Hercules  aos  pés  de  Om- 

phale — não  se  nos   afigura  hoje,  porém,  tão  piegas 

como  Petrarcha.  E  um   guerreiro  que  ama,  e  que 

chora.  Mas  Petrarcha  vale-se  infruciuosamente  de 

3 


34  COLLECÇÁO    ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

recursosinhos  capciosos,  faz  a  Laura  o  seu  presen- 
tinho de  trufas,  gaba-lhe  o  signo  do  Touro, 


Quando  '1  pianeta  che  rlistingue  Tore 
Ad  albergar  col  Tauro  si  ritorna 


c  a  bella  Laura,  sempre  desentendida,  parece  di- 
zer-lhe  n'una  silencio  honesto:  «Marra,  bravo  cora- 
ção, contra  a  muralha  da  minha  honra:  não  a  aba- 
larás.» 

O  Commendador  do  auto  de  António  Prestes  ti- 
nha razão. 


1889  —  Fevereiro. 


CHA  PORTUGUEZ 


Strozzi  cantou  o  chocolate,  Massieu  o  café.  Não 
me  consta  que  algum  poeta  tenha  cantado  o  chá, 
e  todavia  ha  bons  duzentos  annos  que  a  Europa  se 
habituou  a  tomal-o,  guindando-o  ás  honras  de  um 
costume  elegante. 

Foi  ao  que  parece  o  padre  Matheus  Ricci,  jesuíta, 
missionário  na  China,  quem  pela  primeira  vez  o  in- 
dicou á  Europa  em  1Õ90.  No  século  seguinte,  ahi 
por  16:0,  os  hollandezes  introduziram  o  chá  na 
Europa,  e  a  importação  cresceu  rapidamente,  a 
ponto  que  em    i665  era  quasi  geral  o  uso  do  chá. 

Subsiste  uiua  phrase  indicativa  de  que  tomar  chá 
foi  desde  logo  um  titulo  de  boa  sociedade.  De  uma 
pessoa  grosseira  costuma  dizer-se :  Não  tomou  chá 
em  pequeno.  E  não  é  porque  o  chá  fosse  recommen- 
dado  como  proveitoso  para  a  saúde  das  creanças. 
Pelo  contrario,  o  dr.  Francisco  da  Fonseca  Hen- 
riques, medico  de  el  rei  D.  João  V,  aconselha  ni 
sua  Ancora   Medicinal  que  se  não  dê  chá  aos  me- 


36  COLLECÇÃO    ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 

ninos,  por  ser  bebida  quente  e  dessecante,  contra- 
ria ao  desenvolvimento  do  corpo. 

A  rasão  da  phrase  está  p  is,  certamente,  em  ter 
sido  o  uso  do  chá  adoptado  peUs  classes  superio- 
res da  sociedade,  generalisando-se  depois  por  espi- 
rito de  imitação.  Em  Inglaterra  foram  dois  lords, 
Arlingíon  e  Ossor}',  que  o  introduziram,  sendo  en- 
tão caríssimo  Aindi  hoje  ha  na  Inglaterra,  e  por 
copia  n'outros  pa'Zcs,  incluindo  Portugal,  o  elegante 
chá  das  cinco  horjs. 

Assim  como  era  de  fina  gentileza  offerecer  a  ou- 
trem uma  chávena  de  chá,  o  negal-a  representava 
uma  sovinaria  grosseira. 

O  bispo  do  Grão-Pará  escrevia  para  Lisboa  a 
uma  freira,  D.  Antónia  Xavier,  que  se  lhe  queixara 
de  duas  madres  que  lhe  não  ofTereciam  do  seu  chá: 
«Estimarei  que  esteja  melhor  de  saúde  para  que 
não  necessite  do  chá  das  amigas-,  quem  nega  uma 
chicara  de  agua  quente  é  capaz  de  negar  um  pú- 
caro de  agua  fria,  e  também  tem  cara  para  negar 
uma  divida-  o  certo  é  que  ha  creaturas  tão  indiges- 
tas, que  todo  o  chá  é  pouco  para  ellas.» 

Dar  mau  chá  era  talvez  um  pouco  mars  ridiculo 
do  que  o  não  dar.  Tolentino  diz  na  conhecida  quin- 
tilha : 

Em  bule  chamado  inglez, 

Que  já  para  pouco  serve, 

Duab  foinas  liiiça  ou  trez 

Do  Cdnçado  chá  qae  ferve 

Com  esta  a  secima  vez. 

E  o  Braz  Carril,  da  Assembléa  de  Garção,  ia  ar- 
ranjar dinheiro  a  casa  do  diabo  para  não  deixar  de 


NINHO  DE  GUINCHO  87 


dar  ás  visitas  sequilhos  e  chá  condignos  da  prosá- 
pia de  sua  esposa  a  ex."'*  D.  Urraca  Azevia. 

Hoje  o  uso  do  chá  firmou-se  em  todos  os  paizes 
da  Europa,  bebem-n'o  os  ricos  e  os  pobres,  os  sãos 
e  os  doentes,  os  adultos  e  as  creanças.  Peior  ou 
melhor,  entende-se.  Não  está  já  divmisado  pelas 
lendas  que  corriam  a  seu  respeito  quando  começou 
a  ser  importado.  Dizia-se  então  que  Darma,  filho 
de  um  rei  das  índias,  havendo  adquirido  o  habito 
de  viver  solitário,  passava  as  noites  meditando  no 
seu  jardim.  Certa  noite,  porém,  entrou  com  elle 
um  somno  teimoso,  e  o  principe,  desesperado  com 
essa  exigência  animal,  arrancou  as  pálpebras,  arre- 
messou-as  á  terra,  onde  ellas  crearam  raízes  e  pro- 
duziram a  planta  que  dá  o  chá.  Hoje  já  não  correm 
esta  e  quejandas  lendas,  filhas  da  phantasia  orien- 
tal \  mas,  em  compensação,  toda  a  gente  tira  das 
pequeninas  e  tenras  folhas  do  íheh  dos  chinezes  e 
do  ísiaa  dos  japonezes,  d'onde  provavelmente  veiu 
o  nosso  vocábulo  chá,  todo  o  partido  possível  — 
praticamente. 

Diz-se  que  é  bom  o  chá  para  curar  as  nevroses 
dos  olhos  ;  sabe-se  que  é  excellente  para  tirar  nó- 
doas. Ha  golld  de  casaca  que  tem  bebido  mais  chá 
talvez  do  que  o  dono  da  casaca.  E  é  de  bom  cdn- 
selho  tomal-o  quando  se  está  indisposto,  sendo  já 
um  habito  inveterado  bebel-o  sempre,  esteja-se  in- 
disposto ou  não. 

Ninguém  ha  de  dizer  o  traballio  que  dão  a  co- 
lheita e  o  preparo  da  folha  do  chá.  Em  trez  opera- 
ções distinctas,  qual  d'ellas  mais  laboriosa,  se  pôde 
dividir  esse  trabalho.  Frei  Leandro  do  Sacramento, 


38  COLLECÇÃO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 


illustre  professor  brazileiro,  licenciado  em  philoso- 
phia  pela  Universidade  de  Coimbra,  escreveu  uma 
interessante  memoria  sobre  o  assumpto,  c  é  de 
vêr  o  complicado  processo  que  tem  de  seguir-se 
desde  que  se  colhem  os  rebentos  da  planta  até  que, 
depois  das  folhas  escaldadas,  esmagadas,  enroladas, 
torradas,  peneiradas,  se  chega  á  ultima  torrefacção, 
que  é  a  terceira  operação  por  que  o  chá  tem  de 
passar  antes  de  ir  correr  mundo. 

Sempre  quero  dizer  ao  leitor  o  motivo  que  tive 
para  me  lembrar  hoje  do  chá. ..  Eu  devia  ter  co- 
meçado por  isto.  Nenhum  assumpto  quadra  me 
Ihor  a  um  jornal  que  tem  estado  sempre  na  brecha 
a  defender  os  interesses  da  instrucção,  do  commer- 
cio  e  da  industria.  Foram  as  conferencias  ultima- 
mente realisadas  pelo  sr.  José  Júlio  Rodrigues,  no 
theatro  de  S  Carlos,  que  chamaram  a  minha  atten. 
cão  para  o  chá  dos  Açores.  Chá  dos  Açores  I  ex- 
clamará com  extranheza  o  leitor. 

Tem  razão  para  extranhar,  porque  é  sestro  por- 
tuguez  despresar  as  riquezas  que  temos  de  portas 
a  dentro.  Pois  o  chá  dos  Açores  é  uma  industria 
creada,  desenvolvida  não. 

Foi  em  1878,  que  na  ilha  de  S.  Miguel  se  fize- 
ram os  primeiros  ensaios  da  manipulação  do  chá. 
A  sociedade  promotora  da  agricultura  michaelense 
mandou  buscar  dois  chinezes,  Lau-a-Pan,  mestre 
manipulador;  e  Lau-a  Teng,  intreprete  e  ajudante, 
para  procederem  á  fabricação,  que  uma  já  abun- 
dante cultura  permittia. 

No  dia  14  de  março  d'esse  anno  colhiam-se  as 
primeiras  folhas  nas  propriedades  do  sr.  José  do 


NINHO  DE  GUINCHO  '39 


Canto,  e  entravam  em  exercício  os  dois  manipula- 
dores chinezes,  que  a  principio  pretenderam  guar- 
dar certo  mysterio  sobre  os  processos  da  manipu- 
lação. 

Foi  nomeado  um  fiscal  dos  chinezes,  para  que 
pudesse  ir  apossando  se  dos  segredos  do  fabrico. 
Recaiu  a  escolha  no  sr.  Raphael  de  Almeida,  que, 
por  uma  singular  coincidência,  é  hoje  collaborador 
d'este  jornal,  e  residente  cm  Lisboa. 

Os  chinezes,  sempre  disfarçados,  procuravam 
desorientar  a  pessoa  que  fora  encarregada  de  vi- 
gial-os.  Contradiziam  se  a  cada  momento  nas  ex- 
plicações que  davam.  Era  preciso  recorrer  a  meios 
imagmosos  para  arrancar-lhes  a  verdade,  e  lembrou 
um.  Os  dois  fumavam  ópio,  e  emquanto  fumavam, 
taziam  inconscientemente  revelações  importantes. 
Sonhava  um  com  o  dinheiro  que  tinha  ganho  e  es- 
condido a  bom  recado.  Outro  falava  dos  assumptos 
relativos  á  sua  profissão,  contava  minudencias  do 
fabrico,  ria  se  talvez  dos  michaelenses  que  queriam 
arrancar  lhe  o  segredo  da  mais  perfeita  manipulação. 

Dizia  o  primeiro: 

— Com  o  meu  dinheiro  é  que  ninguém  é  capaz 
de  dar.  Tenho-o  bem  escondido  debaixo  d'aquella 
arca  maior  que  está  ao  canto  da  casa.  Eh!  eh! 
quando  me  for  d'aqui  irei  rico,  e  os  de  S.  Miguel 
ficarão  sem  saber  como  é  que  se  prepara  o  melhor 
chá. 

E  o  segundo,  como  que  ouvindo  vagamente  o 
outro  na  embriaguez  do  ópio,  completava-lhe  o  pen- 
samento : 

— Eu  explicolhes  tudo  ao  contrario,  de  modo  que 


40  COLLECÇAO    ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

elles,  em  nós  indo  embora,  não  ficarão  a  ver  chá, 
mas  unicamente  navios!  Tão  tolo  seria  eu  que  lhes 
fosse  revelar  um  segredo  da  nossa  raça,  que  cons- 
titue  uma  das  principaes  riquezas  do  Celeste  Impé- 
rio !  Esperae  por  isso,  que  tendes  que  esperar  ! 

O  sr.  Raphael  d'Almeida  ouvia-os,  e  no  dia  se- 
guinte dizia  so  primeiro ; 

—  Lau  a  Teng,  toma  conta  no  teu  dinheiro, 
que  tens  escondido  debaixo  da  arca  maior,  que 
está  ao  canto  da  casa.  Se  t'o  descobrem,  podem 
roubar-t'o,  e  tu  deixarás  de  rir  para  ter  muito  que 
chorar.  Sou  teu  amigo,  e  aviso  te,  impondo-te  o 
dever  de  também  seres  meu  amigo 

Lau-a-Teng  arregalava  os  olhos,  ficava  surprehen- 
dido,  attonito. 

Voltando-se  para  o  outro  dizia  o  sr.  Raphael  de 
Almeida : 

— Mestre  Lau-a-Pan,  tu  é  que  sabes  fazer  o  me- 
lhor chá.  Aqui  o  Lau-a-Teng  não  percebe  da  missa 
a  metade.  Ora  tu  foste  contratado  para  ensinar 
tudo  o  que  sabes,  mas  procuras  enganar-nos,  fal- 
tando á  tua  palavra  e  ao  contrato  que  fizeste  co  n- 
nosco.  Tjma  cuidado,  mestre  Laua-Pan,  que  tam- 
bém nos  Açores  ha  justiça,  e  tu  estás  muito  longe 
do  Celeste  Império,  de  modo  que  o  Filho  do  Sol 
não  te  poderá  valer. 

Lau  a  Pan  não  ficava  menos  assombrado  do  que 
Lau-a-Teng. 

— Este  homem,  diziam  elles  cochichando  um  com 
o  outro  e  referindo-se  ao  sr.  Almeida,  tem  poder 
sobrenatural:  adivinha  tudo!  E'  preciso  respcital-o, 
e  obedecer-ihe. 


NINHO  DE  GUINCHO  4I 

Foi  assim,  por  este  processo  imaginoso,  que  a 
perfídia  dos  dois  chinas  pôde  ser  combatida  e  ven- 
cida. 

Na  noite  de  22  de  novembro  servia-se  no  Club 
Michalense  chá  açoriano,  sem  que  os  sócios  esti- 
vessem prevenidos  do  caso.  Nenhum  reclamou, 
porque  não  havia  motivo  para  reclamar.  O  chá  de 
S.  Miguel  é  excellente,  foi  analysado  em  Pariz  pelo 
prof  ssor  Schutzenberg,  do  Collegio  de  França.  A 
analyse  dera  o  seguinte  resultado : 

Cellulose. 

Resina,- insolúveis,  64,3. 

Alumina. 

Matéria  gordurosa. 

Ttína  4,2. 

Tanino  1,1,  solúveis  35,8. 

Matéria  gomosa  3o, 5. 

Ora  acontece  que  a  maior  parte  do  chá  do  com- 
mercio  não  contém  mais  de  2  a  3  por  cento  de 
teína,  que  é  o  principio  activo  do  chá,  ao  passo  que 
o  de  S.  Miguel  possue  4  2. 

Um  illustre  par  do  reino  açoriano,  que  assistiu 
ás  conferencias  do  sr.  José  Júlio  Rodrigues,  quiz 
que  eu  provasse  o  chá  preto  de  S.  Miguel.  Fiquei 
encantado,  nunca  tão  bom  o  tinha  bebido.  O  chá 
verde  élhe  inferior,  talvez  porque  Lau-a  Pan  era 
menos  perito  em  manipulalo. 

Pensei  então  no  abandono  a  que  nós  condemna- 
mos  as  industrias  que  podiam  dar  a  Portugal  uma 
grande  prosperidade.   Eu  próprio  nunca  tinha  ou- 


42  COLLECÇAO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 


vido  falar  do  chá  dos  Açores,  e,  todavia,  quantas 
vezes  o  haveria  tomado  cuidando  que  estava  be- 
bendo chá  da  China!  E'  que  o  chá  preto  de  S.  Mi- 
guel é  inconnparavelmente  mais  barato,  e  comtudo 
pôde  bem  passar  por  chinez.  Assim  succede  tam- 
bém com  as  laranjas  de  Setúbal,  que,  no  pregão  de 
quem  as  vende,  são  sempre  da  China. 

Dizia-me  outro  dia  o  sr.  José  Júlio  Rodrigues  a 
respeito  do  chá: 

— Ha  uma  maneira  fácil  de  converter  o  chá  n'uma 
bebida  deliciosíssima.  E'  fazel-o  com  agua  distillada, 
pondo  no  fundo  de  uma  chávena  trez  ou  quatro  fo- 
lhinhas e  deixando-as  abrir  depois  com  a  agua  dis- 
tillada, tapando  a  chávena. 

Experimente  o  leitor,  e  verá  como  o  chá  real- 
mente se  transforma  adquirindo  um  sabor  que  ja- 
mais lhe  reconhecemos. 

Ahi  fica,  em  breves  traços,  a  historia  do  chá  dos 
Açores. 


1891  — Julho. 


VI 

A  CRUZ  DE  BERNY 

(carta  ao  velho  romântico  dom  castão) 

Entre  os  livros  que  maior  sensação  produziram 
n'essa  época,  já  longinqua,  em  que  o  romantismo 
litterario  se  traduzia  n'uma  forte  corrente  social, 
n'uma  espécie  de  dictadura  psychologica  a  que 
todas  as  almas  obedeciam,  não  com  repugnân- 
cia, mas  com  essa  fanática  exaltação  que  victíma  os 
mariyres  de  qualquer  seita,  os  fieis  de  qualquer 
egreja,  a  Crw{  de  Beni/,  romance  escripto  por  qua 
tro  das  primeiras  celebridades  francezas,  Madame 
de  Girardin,  Theophilo  Gautier,  Méry  e  Júlio  San- 
deau,  obteve  um  ruidoso  triumpho,  longamente  re- 
percutido n'uma  lenta  resonancia  de  applausos. 

Em  verdade,  esse  estranho  livro,  collaborado  por 
uma  plêiade  de  espíritos  febrilmente  românticos, 
cheios  de  imaginação,  opulentos  d'estylo,  pródigos 
de  vibração  e  colorido,  não  era  senão  a  addição  re- 
sultante da  riqueza  intellectual  de  cada  um  dos  seus 
collaboradorcs,  o  conjuncto  phantastico  de  quatro 


44  COLLECÇAO  ANTÓNIO  MARIA.  PHREÍRA 

sonhos  extravagantes  que  se  encontraram  girando 
sobre  um  mesmo  pensamento,  como  outras  tantas 
rodas  volteando  vertiginosamente  sobre  um  mesmo 
eixo. 

Tudo  é  inesperado,  incerto,  caprichoso  n'essa  fa- 
mosa novella,  a  começar  pelo  liiulo — Cru^  de  Ber- 
ny  —  que  o  enredo  não  justifica  e  que  o  leitor, 
chegando  ao  fim  do  volume,  não  sabe  como  expli- 
car. 

Este  titulo,  tão  imaginosamante  procurado,  re- 
salta  como  sendo  a  primeira  excentricidade  do  livro. 

Quando  o  gosto  pelo  Sport  invadiu  a  França, 
copiado  dos  inglezes,  um  dos  arrabaldes  de  Pariz, 
chamado  Cro/.r  de  Berny,  foi  o  kcal  escolhido  para  o 
síeeple-chase^  que  desde  logo  se  tornou  o  diverti- 
mento elegante  mais  em  voga. 

Foi  n'essa  occasião  que  Madame  Girardin,  Gau- 
tier,  Méry  e  Sandeau  se  propuzeram  realisar  uma 
espécie  de  coiirse  hittranã,  d&  steeple-chase  românti- 
co, galopando  intellectualmente  no  hypodromo  de 
Berny,  saltando  barreiras,  vencendo  obstáculos,  lar- 
gando rédeas  á  imaginação,  como  a  um  cavallo  fo- 
goso, n'uma  vasta  pista  accidentada. 

Tal  a  inesperada  razão  do  titulo,  razão  que  nin- 
guém é  capaz  de  descobrir  no  romance,  e  que  apenas 
muito  vagamente,  como  se  fosse  um  enygma,  pode- 
rá suspeitar-?en'esta  phrase  final^(Todos  nós  fizemos 
uma  coiirse  desesperada  para  attingir  a  felicidade  ! 
Só  um  chegou — morto!» 

Como  quatro  jockeis  muito  destros  e  firmes  (in- 
cluindo Madame  Girardin  que  amava  o  travesti, 
pois  que  no   mundo   das  lettras  era  conhecida  por 


NINHO  DE   GUINCHO  45 

visconde  de  Laiinay),  os  auctores  da  Crui  de  Ber- 
nj'  guiaram  galhardamente  o  corcel  da  sua  phanla- 
sia,  fazendo  prodígios  de  imaginação,  armando  ao 
piitoresco  e  ao  imprevisto,  animando-se  mutua  e 
lealmente  na  corrida  com  o  grito  enthusiastico  que 
symbolisava  a  divisa  de  cada  um:  Aléry,  Pela  índia! 
madame  Girardm,  Pela  Mulher!  Gautier,  Por  Cons- 
tantinopla! Siiideau,  "Pelo  amor! 

Se  acompanhardes  o  infatigável  sleeple-chase 
dos  quatro,  vereis  que,  effectivamente,  através  d'es- 
sas  trezentas  paginas  eriçadas  de  obstáculos  e  bar- 
reiras, Méry  sonha  com  a  índia,  que  o  encantou  toda 
a  vida,  madame  Girardin  glorifica  a  mulher  na  ele- 
vação do  talento  feminino,  Gautier  é  o  poiychromo 
prodigioso  que  descreveu  Constantinopla,  e  San- 
deau  põe  mais  uma  vez  a  sua  imaginação  aventu- 
rosa ao  serviço  do  amor. 

Todos  elles,  hasteando  o  seu  motto,  correm  ao 
acaso  para  um  desfecho  à  sensalion,  mas  todos  el- 
les giram  como  n'um  carrousel,  em  torno  do  mes- 
mo eixo,  a  mulher  romântica,  intelligente  e  ca- 
prichosa, illu^trada  e  insubmissa,  que  no  m.undo 
das  lettras  se  chamava,  por  exemplo,  George  Sand, 
e  no  mundo  da  phantasia  tomava  differentes  nomes 
como  a  heroina  do  romance,  agora  Irene  de'Cha- 
teaudun,  a  rica  herdeira,  logo  Louise  Guérin,  a 
operaria,  sendo  aliás  a  mesma  pessoa. 

O  que  é,  no  fundo,  este  estranho  romance  ? 
Uma  mulher.  A  mulher  do  romantismo,  entenda  se, 
um  feixe  de  nervos  aquecidos  por  um  vulcão,  a  ca- 
beça, e  guiados  por  uma  estrella,  o  amor.  Hoje  os 
Goncourts,  Zola^  Daudet,  Huysmans,  Maupassant 


46  COLLECÇÁO  ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 


chamar-lhe-iam  uma  nevrotica,  uma  hysterica,  uma 
doente.  N'aqaelle  tempo  dizia  se  simplesmente  a — 
mulher — porque  toda  a  mulher  era  assim. 

Glorificada  pela  edade-media  na  castellã  que  os 
trovadores  e  os  cavalleiros  celebravam  sacrifican- 
do se  até  á  loucura,  a  mulher  teví  a  vertigem  da 
sua  grandeza  e,  como  era  natural,  arrastou  comsi- 
go  os  homens.  Foi  o  romantismo  isso.  Tudo  era 
pela  mulher  n'esse  tempo,  como  hoje  tudo  é  pelo 
dinheiro..  .  até  a  própria  mulher.  Ao  romantismo 
succedeu  o  capitalismo.  Sonhava-se  então  com 
uma  aventura,  como  hoje  se  sonha  com  um  syndi- 
cato. 

A  heroina  da  Croix  de  Berny,  amada  pelo  prín- 
cipe de  Monbert  (Méry),  não  acha  n'esse  amor  ele- 
gantemente aristocrático  a  realisação  do  seu  ideal 
romântico.  Precisa  correr  os  perigos  de  uma  pai- 
xão cheia  de  mysterios  e  aventuras.  O  que  lhe  tenta 
a  phantasia  não  é  o  amor  calmo  de  um  príncipe, 
que  a  ama  como  quem  é.  mas  a  resolução  de  um 
enygma,  que  avista  da  janella  da  sua  antiga  mansarda 
de  Pariz,  onde  habitou  emquanto  foi  pobre.  O  que  ella 
ama  não  é  precisamente  um  homem,  mas  uma  luz, 
sim,  uma  luz,  que  todas  as  noites,  quando  vivia  na 
miséria,  via  brilhar  n'uma  trapeira  visinha.  Ora 
essa  luz  allumiava  o  quarto  de  um  aventuroso  rapaz, 
um  D.  Quixote  parisiense,  que,  entre  muitas  heroi- 
cldades,  praticara  a  de  se  reduzir  voluntariamente  á 
pobreza  para  valer  á  desgraça  de  um  amigo.  E'  o 
conde  de  Villiers,  isto  é,  Júlio  Sandeau  Ambos  po- 
bres, ella  e  elle,  essa  luz,  para  ambos  mysteriosa^ 
é  o  traço  de  união  que  prende  as  suas  almas. 


NINHO   DE  GUINCHO  47 

Fugindo  ao  amor  do  príncipe,  como  a  uma  pai- 
sagem que  á  força  de  ser  serena  se  torna  monóto- 
na, j.réne  de  Ghateaudun  disfarça-se  em  operaria, 
interna-se  na  provir-cia,  e  ahi  encontra  um  terceiro 
amor  em  Edgard  de  Meilhan  (Gautier),  que,  louca- 
mente apaixonado,  chega  a  abandonar  o  seu  outVora 
tranquillo  castello  de  família. 

Acontece,  porém,  que  são  amigos  os  trez  perso- 
nagens masculinos  do  romance  e  que  uns  aos  ou- 
tros contam  as  peripécias  da  sua  paixão  pela  mes- 
ma mulher,  que  com  nomes  suppostos  os  deso- 
riente. E'  finalmente  o  conde  de  Víllíers,  a  quem  o 
amigo  pagou  tudo  o  que  lhe  devia,  que  consegue 
desposai  a,  mas  o  príncipe  de  Monbert  e  Edgard 
de  Meilhan,  vindo  a  reconhecer  a  identidade  de 
Irene  de  Chaleaudun,  julgam-se  ambos  atraiçoados 
pelo  conde  de  Villiers,  desafiam-n'o,  e  Edgard  de 
Meilhan  mata-o  em  duello.  Irene,  fulminada  pela 
morte  do  seu  noivo,  morre  de  desgosto. 

Tal  é,  muito  em  esboço,  o  enredo  d'esta  novella 
cheia  de  imaginação  e  de  imprevisto,  ás  vezes  for- 
çadamente romanesca,  em  que  as  maiores  excen- 
tricidades se  acumulam  e  baralham,  chegando  ma- 
dame Emile  de  Girardin  a  vestir  phantasticamente 
de  turco  Edgard  Meilhan,  certamente  para  líson- 
gear  Gautier,  que  encarnava  aquelle  personagem, 
c  que,  como  se  sabe,  adorava  Constantinopla. 

E'  á  índia,  sua  predilecta,  que  Méry  vae  buscar 
muitas  vezes,  n^este  romance,  como  em  tantos  ou- 
tros, comparações  brilhantes  de  pittoresco,  como 
quando  descreve  o  ciúme  dos  tigres  nos  palmares. 

Julio  Sandeau  foi  dos  quatro  o  que  menos  colla- 


48  COLLECÇÃO  ANTÓNIO   MA.RIA.    PEREIRA. 

borou,  mas,  em  compensação,  quão  vivo  e  imagi- 
noso é  todo  o  IV  capitulo  escripto  por  elJe^  quão 
palpitante  de  humorismo  o  quadro  em  que  salva  de 
um  mcendio  lady  Penock,  uma  figura  secundaria, 
mas  comicamente  accentuaJa^  quão  dramática  a  si- 
tuação do  sacnficio  a  que  se  condemnou  o  conde  de 
Villics  em  proveito  do  seu  amigo  Frederico! 

Madame  Emile  de  Girardin  vence  triumphalmen- 
te  a  grande  responsabilidade  do  seu  papel  de  pro- 
togonista  E'ella  que  está  sempre  em  scena  e  é  ella 
que,  para  assslm  dizer,  nortea  a  coUaboração  dos 
outros,  dando  lhes  a  deixa,  como  se  diz  no  theatro, 
proporcionando  lhes  o  molipo  qee  clles  a  bel-prazer 
variarão  nos  capítulos  seguintes. 

E  por  mais  caprichosas  c  peregrinas  que  sejam 
as  variações  de  Gautier,  de  Méry  e  de  Sandeauy 
elld,  sempre  com  a  mesma  firmeza  de  pulso,  apa- 
nha no  ar  as  espheras  de  crystal  com  que  elles  se 
entretiveram  a  fazer  jogos  malabares. 

Ha  varias  traducções  portuguezas  da  Dama  das 
camélias,  está  traduzida,  em  edição  de  luxo,  a  Vida 
de  um  j^apai  pobre,  não  posso  explicar  portanto  o 
facto  de  não  ter  sido  nunca  vertida  para  a  nossa 
lingua  a  Cru-^  de  Berny,  que  se  pode  considerar  a 
torre  Eiííel  do  romantismo,  e  que  daria  occasião  a 
que  quatro  escriptores  portuguezes  se  medissem  em 
duello  litterario  com  as  sombras  gloriosas  de  outros 
tantos  escriptores  francezes.  Uma  tal  traducção  se- 
ria duplamente  interessante. 

Meu  caro  Dom  Gastão,  ia  a  dizer  meu  caro. . . 
(o  seu  nome,  o  seu  verdadeiro  nome)  foi  por  con- 
selho seu  que  eu  li  a  Crui  de  Berny\  é  pois  em  sua 


NINHO  DE  GUINCHO 


49 


honra  que  eu  escrevo  esta  carta  e  escreverei  por 
ventura  outras,  procurando  sempre  um  assumpto 
nas  recordações  saudosas  do  romantismo,  de  que 
Você  é  ainda  hoje  um  representante  impenitente. 


1891 — Setembro. 


VII 

ANDAR  A  FLAINO 

(Carta  a  Cândido  de  Figueiredo) 

Meu  caro  Cândido  de  Figueiredo  : 

Reli  agora  com  muito  praser,  e  algum  aproveita- 
mento, os  seus  artigos  sobre  lingua  portugueza, 
coordenados  em  livro  e  em  segunda  edição. 

Você  sabe  que  eu  me  dou  á  leitura  d'estas  coisas, 
a  que  muitos  chamam  desdenhosamente  bagaíellas, 
e  que  o  faço  desde  o  tempo  em  que  Camillo  Cas- 
tello  Branco  me  emprestava  os  seus  clássicos,  para 
que  os  eu  estudasse. 

O  seu  livro  agradou-me  principalmente  como  pro- 
testo contra  esta  onda,  sempre  crescente,  de  inno- 
vadores  estrambóticos,  galliciparlas  epilépticos,  que, 
principalmente  nos  últimos  annos,  teem  posto  a  po- 
bre lingua  portugueza  pelas  ruas  da  amargura.  An- 
da de  rastos  a  pobre  lingua,  a  pontapés  de  mau  sen- 
so e  peior  educação  litteraria.  Helds !  (como  agora 
^á  se  escreve  á  franceza)  que  miséria  e  que  estrago! 


NINHO  DE  GUINCHO  5l 

Eu,  meu  caro  Cândido,  sou,  pelo  que  toca  á  lín- 
gua portugueza,  e  outras  coisas  egualmente  portu- 
guczas,  um  conservador  moderado. 

Explicarei. 

Acho  que  a  língua  deve  encostar  se  tanto  quanto 
possivel  á  auctoridade  da  sua  origem,  e  conservar 
os  seus  brasões  de  família,  como  qualquer  homem, 
não  sendo  engeitado,  conserva  os  appellidos  de  seus 
pães. 

Mas  não  sou  um  intolerante  em  face  da  natural 
evolução  de  todos  os  organismos  vivos.  Uma  lingua 
está  sujeita  a  modificações  que  o  tempo  acarreta 
inevitavelmente,  porque  o  tempo  traz  factos  novos, 
de  qualquer. ordem  que  sejam,  a  que  necessaria- 
mente hão  de  corresponder  palavras  novas. 

D'ellas,  umas  são  nacionalisadas  pelo  uzo,  e  até 
pela  necessidade  de  adopção,  visto  não  possuirmos 
termo  equivalente.  Outras  são  auctorisadas  pela 
marca  da  fabrica  com  que  nasceram,  como  alguns 
neologismos  inventados  por  Castilho  e  Camillo. 

Não  pretendo  que  se  escreva  hoje  como  escre- 
via frei  Luiz  de  Sousa,  mas  não  consinto  que  se 
enxote  brutalmente  frei  Luiz  de  Sousa,  pelo  facto 
d'elle  ter  sabido  e  escripto  a  sua  lingua  a  primor. 

E'  certo  que  nenhum  de  nós  anda  agora  vestido 
de  casaca,  calção  e  rabicho  como  n'outro  tempo, 
mas  d'ahi  até  abandonarmos  o  mais  opulento  recheio 
da  nossa  lingua  para  cosinharmos  uma  indigesta  mi- 
xordia  de  barbarismos  acirrantes,  vae  uma  grande 
diíferença. 

Pois  o  que  se  vê  é  isto,  a  mixordia  manipu- 
lada com  uma  extrangeirice  petulante,   que  cobre 


52  COLLECÇÁO    ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

de  escarros  e  salpica  de  lama  a  lingua  portugueza. 

Pelo  que  respeita  á  «>yntaxe,  que  é  o  principal 
ponto  de  vista  do  seu  excelleme  livro,  o  que  ahi  se 
vê,  bem  claramente  visto,  é  que  se  faz  gala  de  des- 
presar  uma  coisa  que  se  tem  aperfeiçoado  succes- 
sivamente  desde  o  tempo  de  Fernão  de  Oliveira,  e 
que  por  isso  já  é  antiga  :  a  g'"ammatica  portugueza. 

Não  se  trata  de  siiber  se  tal  locução  é  conforme 
ao  génio  da  lingua  ou  pelo  menos  á  razão,  isto  é, 
se  pelo  menos  faz  sentido,  logicamente;  não  se  tra- 
ta de  saber  como  em  identidade  de  circumstancias 
os  bons  mestres  resolveram  o  caso  e  cortaram  a 
difficuldadfr;  finalmente,  não  se  investida  se  no  the- 
souro  escripto  dos  diccionarios  ou  no  thesouro  oral 
do  povo  seria  possível  encontrar  uma  locução  na- 
cional equivalente  ao  estrangeirismo  que  se  filou 
pelo  gasnete  n'um  romance  francez. 

Mas  isto  pôde  ser  escrever;  não  é  porém  a'te  de 
escrever,  ou,  se  quizerem,  escrever  com  arte. 

E'  encher  papel  como  se  enchem  chouriços:  en- 
sacar phrases  dentro  de  phrase<,  para  escrever  e 
andar,  como  os  cães  de  Nillo,  que  vão  andando  e 
bebendo. 

Admitto,  e  a  consciência  me  diz  qne  o  tenho  feito 
algumas  vezes,  que  de  longe  a  longe,  por  necessi- 
dade ou  ainda  por  variedade,  se  aproveite  uma  pa- 
lavra extranha  E',  deixe  me  assim  dizer,  um  eff-ito 
de  luz  que  o  pintor  parcimoniosamente  procura.  Mas 
recuso  em  absoluto  o  sj^stema,  que  hoje  vae  sendo 
contagioso,  de  prescindir  do  portuguez  para.  com  o 
fim  de  ter  evidencia  ou  de  acobertar  a  ignorância,  ir 
acintosamente  de  encontro  a  todas  os  boas  normas 


NINHO  DE   GUINCHO  53 

e  a  toda  a  disciplina  grammatical  da  nossa  lingua. 

Se  ibto  pudesse  ser  assim,  o  melhor  que  tinha- 
mos  a  fazer  era  fechar  a  porta  e  liquidar,  porque  a 
lingua  é  seguramente  um  dos  elementos  constituti- 
vos da  nacionalidade,  e  então  era  certo  que  estáva- 
mos a  deixar  de  ser  poriuguezes. 

Você,  meu  caro  Cândido  de  Figueiredo,  protesta 
contra  a  enxurrada,  erguendo  na  mão  os  melhores 
diccionanos  e  a  obra  dos  mestres  egualmente  au- 
ctorisada  como  exemplar  na  pureza  do  dizer. 

Eu  quizcra  também  que  Você  de  quando  em  quan- 
do fizesse  emergir  á  luz  da  publicidade  os  bons  lu- 
sitanismos,  que  andam  perdidos  na  linguagem  das 
províncias,  onde  a  nacionalidade  dos  costumes  é 
mais  int«.nsa  e  que  vantajosamente  podem  supprir 
algumas  frandulagens  de  contrabando. 

Ahi  vae  um  exemplo. 

A  pag.  209  do  seu  livro,  diz,  Você,  com  indiscuti- 
vel  verdade,  que  Jlanear  ou  /lanar  não  existe  em 
portuguez. 

E'  mais  uma  invenção  dos  francelhos,  que  nem 
sequer  gripham  o  vocabulc,  quando  o  empregam, 
obstando  assim  a  que  os  incautos  e  inexperientes 
façam  reparo  na  procedência  do  termo,  e  se  acau- 
telem. 

Mas,  meu  caro  amigo,  st  Jlanear  oujlanar  é  galli- 
ci-mo  cncruado,  andar  a  Jlaino  ou  talvez y/a/nar 
auctorisa-se  com  o  uso  da  linguagem  popular  falla- 
da  na  nossa  província  da  Extremadura. 

A  primeira  vez  que  eu  ouvi  dizer  andar  a  flaino, 
jusamcnte  na  accepçâo  do  flaner  francez,  foi  em 
Setúbal. 


54  COLLECÇÁO    ANTÓNIO  MARIA    PEREIRA 

Tinha-me  sentado  n'um  banco  do  Passeio  do 
Bomfim,  ao  lado  de  um  velhD  pescador,  que,  co- 
mo eu,  gosava  a  viração  suave  do  fim  de  uma  tar- 
de de  verão. 

Chegou-se  ao  pé  de  mim,  a  pedir  me  esmola,  um 
rapasito  maltrapido,  de  olhos  ladinos  e  rosto  tri- 
gueiro. Dei-lhe  dez  réis — era  ainda  o  tempo  do  di- 
nheiro—  e  o  velho  pescador,  logo  que  o  rapaz  se 
afiastou,  dirigiu-me  a  palavra  para  commentar  pou- 
co favoravelmente  o  meu  acto: 

—  Mal  empregada  esmola!  Este  rapaz  é  um  va- 
dio, que  anda  a  flaino,  envergonhando  as  barbas  do 
pae. 

Fez-me  impressão  o  andar  a  flaino,  que,  depois 
de  interrogado  o  pescador,  achei  ser  corresponden- 
te ao  flaner  francez,  isto  é,  andar  de  um  lado  para 
outro  sem  fazer  nada 

Paguei  a  dupla  lição  ao  pescador,  com  quanto  elle 
só  tivesse  em  vista  ensinar-me  uma  coisa :  que  era 
mais  necessitado  que  o  rapaz. 

Propuz-me  logo  a  tarefa  de  procurar  nas  obras 
de  Bocage  a  locução — andar  a  flaino.  Com  traba- 
lho e  paciência  tudo  se  consegue.  Encontrei-a  no 
soneto  intitulado  Furta  cores: 

Quando  has  de  consentir,  cruel  fortuna, 
Ao  magro,  de  olho  azul,  de  côr  morena, 
O  bem  de  andar  a  flaino.,  e  dá  ir  á  tuna  í 

Ora  é  verdade  que  José  Feliciano  de  Castilho 
suspeita  que  este  soneto  não  é  de  Bocage,  entre  ou- 
tras razões  pelo  emprego  da  expressão  íz;z<afar  a  flai- 
no, que  o  douto  critico  de  algum  modo  censura 


NINHO  DE  GUINCHO  55 

com  esta  pergunta  :  será  o  anti-bocagiano  gallicismo 
flaner? 

Mas  é  justamente  por  causa  do  andar  a  flaino 
que  eu  attribuo  a  Bocage  este  soneto. 

E'  expressão  da  sua  terra,  que  elle  ouviria  mui- 
tas vezes  em  pequeno,  e  que  relembraria  com  a 
mesma  desvanecida  saudade  com  que  o  grande  Ca- 
millo  empregava  as  expressões  da  província  de  Traz- 
os-Montes,  nobilitando-as  litterariamente  com  esta 
e  quejandas  notas:  «Eu  leio  muito  pelo  diccionario 
inédito  do  povo  d'aquellas  províncias,  que  sabe  a 
lingua  portugueza  como  frei  Luiz  de  Sousa  (O  bem 
e  o  mal,  cap.  III.) 

E  já  que  tornei  a  fallar  em  Camillo,  recordarei  a 
Você  que  elle  também  empregou  a  palavra //<2mo  vi- 
sivelmente no  mesmo  sentido  de  Bocage  e  do  pes- 
cador de  Setúbal : 

«Manuel  Vieira  não  applaudia  nem  censurava  as 
bandarrices  eo//^/';zo  aparalvilhado  do  seucollega.» 
(Demónio  do  ouro,  i.**  vol.,  pag.  75.) 

Vem  isto,  e  podiam  vir  ainda  outras  cousas  por 
suggestão  do  seu  livro,  para  dizer  que  nós  remenda- 
mos a  lingua  portugueza  por  irritante  ignorância 
do  que  temos  de  portas  a  dentro.  Lemos  só  fran- 
cezes,e  não  ouvimos  portuguezes,  os  instruídos  e  o 
povo,  que  também  tem  a  sua  linguagem  secular  não 
menos  nacional  por  ser  humilde. 

Em  boa  hora  venha  o  seu  protesto,  porque  pôde 
servir  de  exemplo.  Felicito-o,  porque  elle  significa 
que  Você  ama  a  sua  terra,  e  o  que  é  propriedade 
d'ella  por  direito  de  inventario.  Mas  lastimal-o  hei 
se  continuar  a  querer  convencer  os  impenitentes, 


56  COLLECÇÃO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

que  o  são  por  systema,  filho  de  uma  commodidade 
muito  aprasivel  á  ignorância.  Deixe  os  em  paz  e  vá 
andando;  aprenda  como  tem  feito  até  hoje,  para  en- 
sinar depois.  Não  veja  nomes  nem  homens,  queéa 
minha  philosophia;  salte  por  cima  de  vaidades  e  de 
conflictos,  para  honrar  a  necessidade  de  trabalhar 
com  alguma  cousa  que  seja  mais  prestadia  do  que 
responder  bem  aos  que  nos  querem  mal.  Olhe  que 
já  lá  disse  Gil  Vicente : 

Que  vanas  conversaciones 
No  traen  ningum  provecho. 


1891 — ^Novembro. 


VIII 


IMPARCIALIDADE    POLITICA 
DE  SANTO  ANTÓNIO 


Os  partidos  políticos  —  no  tempo  em  que  a  po- 
litica não  era  um  tarranjo»  de  occasião,  mas  um 
sacrifício  sincero  e  per  vezes  heróico  —  punham  a 
sua  fé  na  protecção  dos  santos  mais  abalisados  em 
cotação  milagrosa. 

Durante  as  ardentes  pugnas  entre  constitucionaes 
e  absolutistas,  durante  o  cerco  do  Porto,  os  migue- 
listas contavam  com  o  S.  João  do  Bomfim,  os  ema- 
lhados» com  o  S.  João  da  Lapa,  e  os  primeiros  re- 
publicanos portuenses,  porque  já  n"esse  tempo  os 
havia,  como  conta  Garrett,  confiavam  no  S.  João 
de  Cedofeita. 

Ora  Santo  António,  santo  de  casa,  o  mais  popu- 
lar entre  portuguezes,  por  ser  também  pcrtuguez, 
nío  podia  deixar  de  inspirar  a  devoção  dos  partidos 
iniluantes.  E  mililanles  eram  em  verdade,  porque 
pugnavam  com  as  armas  na  mão.  Aquillo  então  era 
a  valer;  hoje  é  a  fingir. 

Libcraes  e  miguelistas  se  apegavam  com  Santo 


58  COLLECÇÃO  ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

António.  Uns  e  outros  o  traziam  nas  palminhas:  — 
Meu  Santo  Antoninho  onde  te  porei  ? 

Mas  o  santo,  sendo  portuguez,  não  queria  favo- 
recer abertamente  uns  patrícios  contra  os  outros. 
Comtudo  não  lha  parecia  bem  conservar-se  absolu- 
tamente neutral,  indiíferente,  visto  que  se  tratava 
de  uma  questão  de  família,  e  elle  era  da  familia. 

Então,  como  homem  intelligente  e  illustrado  que 
tinha  sido,  resolveu  fazer  favor  para  a  direita  e  fa- 
vor para  a  esquerda,  de  modo  que  ninguém  pudesse 
queixar-se  de  que  um  santo  portuguez  se  fizesse 
surdo  a  clamores  de  portuguezes. 

Os  realistas  contavam  com  elle.  Os  frades,  prin- 
cipalmente, invocavam-n'o  como  um, protector  par- 
cial. Enganavam-se.  Santo  António  não  era  por  uns 
nem  por  outros.  Era  por  todos,  porque  uns  e  outros 
eram  portuguezes,  e  elle  também. 

Na  sua  cegueira  partidária,  os  miguelistas  iam  até 
ao  ponto  de  propalar  que  Santo  António  algumas 
vezes  fallára  em  favor  d'elles. 

Ahi  vai  um  exemplo. 

A  Chronica  Constitucional  do  Porto^  no  seu  nu- 
mero de  i3  de  agosto  de  i832,  dava  noticia  de  que 
um  piquete  do  batalhão  de  caçadores  3  encontrara 
no  sitio  da  Ramada  Alta  sete  guerrilhas  do  exercito 
do  visconde  de  Mont' Alegre,  que  andavam  rouban- 
do os  casaes. 

Dos  sete  aventureiros  miguelistas  seis  foram  mor- 
tos pelos  soldado^  liberaes  ;  o  sétimo  fugiu  ferido. 

Na  algibeira  de  um  dos  mortos^foi  encontrada 
esta  carta. 

«Meu  João.  Alembro-te  que  não  te  esqueças  do 


NINHO  DE  GUINCHO  5g 

que  te  disse  o  sr.  Fr.  José,  que  batalhasses  em 
defesa  de  nosso  Senhor  Jesus  Christo,  de  Sua  Mâi 
Maria  Santíssima,  e  do  Sr.  Santo  António  do  Con- 
vento, que  os  herejes  malhados  querem  desterrar 
de  Portugal.  Não  poupes  malhado  nenhum,  porque 
assim  o  disse  o  Sr.  Santo  António  á  Maria  Benta 
no  dia  da  Percincla  depois  da  Communhão,  e  noNo 
contou  o  Sr.  Fr.  José,  que  he  um  Santinho,  e  me 
tem  trazido  sempre  dinheiro  para  meu  sustento  e 
das  crianças.  Põe  sempre  os  olhos  em  Deus  e 
quando  saqueares  o  Porto  traze-me  algum  cordão 
de  oiro,  um  xaile  e  um  vestido  de  seda,  não  deixeis 
aos  malhados  uma  palha,  porque  os  herejes  não 
podem  possuir  nada,  e  pela  heresia,  tudo  fica  sendo 
da  Igreja  que  escomungão  e  do  Santo  Papa,  que 
deo  Bulia  para  nós  ficarmos  com  o  que  lhe  tirarmos. 
Deus  te  ajude  como  te  deseja  a  tua  —  adeusinho  — 
Rosa.y 

Mas  como  fosse  tardando  um  milagre  decisivo, 
abnram-se  pouco  a  pouco  os  olhos  aos  miguelistas. 
Perceberam  que  Santo  António  não  se  queria  com- 
prometter,  antes  viver  bem  com  todos.  Descobriram 
a  táctica  do  thaumaturgo,  e  diziam  então,  por  ironia, 
aos  malhados  que  se  não  fiassem  muito  no  santo, 
porque  lhes  não  valeria  tanto  que  os  livrasse  -de 
uma  grande  sova. 

Também  exemplificarei  este  caso,  soccorrendo- 
me  ainda  á  Chromca  Constitucional  do  Porto,  de  19 
de  setembro  de  i832. 

Transcrevo  textualmente : 

«Certa  Lésbia  portuense,  que  sempre  foi  exaltada 
liberal,  mas  que,   na  nossa  ausência,  se  afleiçoou 


6o  COLLECÇÂO  ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 

(por  não  perder  tempo)  d'um  Alferes  de  voluntários 
realistas,  recebeu  ha  dias  uma  carta  do  seu  amante. 
O  bravo  voluntário,  que  parece  ser  uma  das  boas 
columnas  do  altar  e  do  throno,  depois  de  rasgar 
muita  baeta  e  de  encarecer  as  penas  que  tem  cor. 
tido  pela  ausência  do  seu  mais  que  tudo,  remata 
assim:  «Sou  de  parecer  que  por  todos  os  modos 
possíveis  te  evadas  da  cidade,  porque  de  duas  uma: 
ou  nós  não  podemos  entrar  no  Porto,  e  nesse  caso 
não  fica  pedra  sobre  pedra,  pois  que  a  nossa  arti- 
Iheria  ha  de  fazer  o  seu  dever;  ou  entramos  depois 
d'uma  refrega  violenta,  e  então  o  saque  é  de  jé^  e 
os  excessos  hão  de  ser  inevitáveis.  Km  ultimo  caso, 
peço-te  que  fujas  do  sitio  por  onde  nós  entrarmos, 
pnrque  aos  primeiros  que  se  nos  apresentarem  nem 
Santo  António  é  capaz  de  valer.» 

«Temos  por  certo  que  nenhum  dos  membros 
d'este  argumento  bicorne  chegará  a  realisar-se. 
Vej  i  se  entretanto  quaes  são  as  intenções  de  tal 
gente.  Sangue,  roubos,  saques,  abominações  —  eis 
o  que  entretém  a  imaginação  da  canalha  miguelista. 
Mas  em  a  tropa  e  os  guerrilhas  se  convencendo  de 
que  não  pode  haver  saque,  porque  as  trincheiras 
não  se  levam  assim  ás  mão?  lavadas,  e  de  que  as 
bombas  não  produzem  estragos  nem  atemorisam 
ninguém,  adeus  Viscondes,  adeus  Gipitães-mores, 
adeus  frades! ! !  Levam  tamanha  sova  que  nem  Santo 
António  é  capa\  de  lhes  valer.» 

Kstavam  as  coisas  n'este  pé,  quando  uma  esper- 
talhona  de  Guimarães,  absolutista  até  á  raiz  dos 
cabellos,  se  lembrou  de  pôr  em  che  jue  Santo  An- 
tónio obrigando-o  a  «manifestar-se.» 


NINHO  DE   GUINCHO  6l 

E'  ainda  a  Chronica  Constitucional  (Je  24  de  se- 
tembro de  1832)  que  nos  vae  historiar  o  caso: 

«Kis  aqui  uma  anecdota  que  mostra,  a  um  tempo, 
como  tcem  procurado  e  consei^^uido  illudir  os  povos; 
e  quaes  são  os  sentimentos  religiosos  que  desgra- 
çadamente lhes  teem  inspindo.  , 

aCorreu  eri  Guimarães  que  o  exercito  mijjueiista 
entra /a  no  Porto  no  dia  24  de  agosto.  A  mulíier 
do  preg  eiró  d'3quella  villa  (péssima  mu  her,  com 
presumpção  de  beata),  moradora  á  Torre  dus  Cães, 
começou  a  dizer  em  o  dia  23  a  toda  a  vi.>inhmça 
«que  na  sexta  feira  24  se  ia  arrazar  e  queimar  a 
cidade  do  Porto,  e  todos  os  malhados  :  e  que  ella 
havia  de  ouvir  no  mesmo  dia  a  missa  das  almas, 
para  que  ellas  ajudassem  Gaspar  Teixeira  e  sua 
divisão  a  queimar  tudo.»  —  Com  effeito  na  sexta 
f^ira  de  madrugada,  a  boa  mulher  accendou  uma 
vella  a  Santo  António,  e  partiu  para  a  missa...» 

A  beata  da  Torre  dos  Cães  era  esperta,  mas 
Santo  António  ainda  o  foi  mais,  o  que  aliás  não 
admira. 

Apertado  entre  a  espada  e  a  parede,  Santo  An- 
tónio desentalou-se  habilmente. 

Sabem  o  que  aconteceu  ? 

Referindo  se  á  solerte  vimaranense,  continu'a  a 
Chronica : 

d.  .passado  pouco  tempo  vão  os  visinhos  cha- 
nnal-a  para  acudir  ao  fogo  em  sua  casa;  e  como  ali 
não  tocam  os  sinos  a  fogo,  ardeu  lhe  tudo,  sem  poder 
salvar  um  só  traste.» 

A  lição  foi  mestra.  A  beata  queria  incendiado 
o  Porto  com  o  auxilio  de  Santo  António  ;  e  o  incen- 


02  COLLECÇÃO  ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 

dio  lavrou  mas  foi  na  sua  própria  casa.  Toma  !  Bem 
feito  1 

Pena  tem  a  gente,  ás  vezes,  de  não  ser  santo... 
para  castigar  assim. 


1895— Maio. 


IX 


CHRYSÁNTHEMOS 


O  chrysánthemo,  continuando  na  sua  marcha  de 
triumpho,  foi  agora  receber  as  homenagens  dos 
portuenses,  em  plena  glorificação  no  Palácio  de 
Christal. 

Parece  uma  celebridade  que  faz  a  sua  tournée^ 
como  Sarah  Bernhardt,  como  Novelli,  arrancando 
appiausos,  conquistando  ovações. 

E'  um  potentado  do  Oriente,  um  príncipe  do  Ja- 
pão, ás  vezes  vestido  de  oiro,  como  na  Boule  d'orj 
outras  vezes  flammejado  de  purpura,  como  na  Aida, 
suas  bellas  variedades;  adorado  pela  Imperatri'{ 
Primavera^  biographado  por  Loti,  um  académico 
de  França,  é  a  flor  da  moda  na  Europa  elegante, 
admirada  pelas  mulheres,  cantada  pelos  jornaes. 

E,  comtudo,  este  maravilhoso  príncipe  do  Orien- 
te tem  em  Portugal  umas  obscuras  primas,  burgue- 
zas  e  modestas,  que  vivem  nos  quartos  andares  em 
vasos  de  barro  e  que  apparecem  nos  passeios  pu- 
blicos  misturadas  com  a  charra  hortênsia,  a  flor 
patarata  de  todos  os  arraiaes  saloios. 


64  COLLECÇÁO  ANTÓNIO  MARIA   PEREIRA 

São  as  meninas  Despedidas  de  verão,  que,  com  o 
seu  vestidinho  de  chila  bdrata,  e  os  seus  brincos 
falsos,  nem  sequer  ousam  ir  cumprimentar  o  ma- 
gestoso  parente,  que  certamente  as  não  quereria 
reconhecer. 

Em  Lisboa  deu-se  o  c;iso  notável  de  esrar  o 
chrysánihemo  do  Japão  sumptuosamente  hospedado 
no  palácio  da  Escola  Polytechnica,  e  das  meninas 
Despedidas  de  verão,  suas  primas,  não  passarem  do 
Jardim  do  Príncipe  Real,  onde  eu  próprio  as  vi 
n'um  canteiro  a  contarem  o  numero  de  trens  que 
passavam  para  o  beija  mão  do  seu  augusto  parente. 

Ha  destmos  bem  differentes  dentro  da  mesma 
arvore  genealógica! 

Ao  passo  que  as  Despedidas  de  verão,  anemicas, 
palhdas,  rachiiicas,  parece  terem  na^cido  fadadas 
para  viver  n'uma  trapeira  ou  n  um  caixote  de  pinho, 
o  chrysánthemo  do  Jdpão,  magestoso  e  ferie,  bel- 
lamente  colorido,  altivo  e  brilhante,  veio  ao  mundo 
para  ser  admirado  e  para  cingir  uma  coroa,  a  coroa 
do  outomno,  como  diz  Alphonse  Karr,  o  cortezão 
das  flores. 

Mas  não  pára  decerto  aqui  a  alta  predestinação 
do  chrysánthemo,  que,  florindo  no  fim  do  estio, 
como  que  estava  reservado  para  ser  a  flor  symbo- 
lica  de  todos  os  amores  tardios,  que  luctam  entre  o 
fogo  de  uma  primavera  extincta  e  o  gelo  de  um  in- 
verno próximo. 

Aqui  está  talvez  a  razão  por  que  o  chrysánthemo 
encontrou  tão  rapidamente  uma  acceitaçao  univer- 
sal, no  Levante  e  no  Ponente,  na  Ásia  e  na  Euro- 
pa, proclamandose  rival  da  encantadora  rosa,  que 


NINHO   DE   GUINCHO  63 

é  a  flor  da  primavera,  a  divisa  dos  novos,  o  sym- 
bolo  dos  corações  ricos  de  seiva  e  palpitantes  de 
sangue  vigoroso. 

Dividindo  entre  si  o  império  do  amor,  o  chrysán- 
tiiemo  e  a  rosa  ficaram  symbolisando  toda  a  am- 
pla historia  do  coração  humano,  representando  a 
profunda  psychologia  das  almas  deliciosamente 
atormentadas  pela  tempestade  de  uma  paixão  ar- 
dente. 

A  rosa,  posta  sobre  o  peito  dos  novos,  canta  um 
hymno  de  esperança,  parece  brotar  d'entre  cham- 
mas,  como  se  florisse  na  cratera  de  um  vulcão  em 
actividade. 

O  chrysánthemo,  enflorando  a  boulonnière  dos 
velhos,  nasce  de  cinzas  quentes,  que  soluçam  a  doce 
melodia  da  vaga  ao  expirar  amorosa  sobre  a  areia 
loira. 

A  rosa  perfuma  os  cânticos  dos  jovens  poetas 
com  a  fina  essência  capitosa,  que  parece  ter  sido 
destinada  para  as  estrophes  e  para  os  lenços,  por 
igual  rendilhados. 

Aqui  tenho  eu,  deante  de  mim,  o  livro  de  um  no- 
vo, o  Livro  da  minha  alma^  de  Luiz  Guimarães 
Júnior,  o  successor  de  uma  lyra  de  ouro;  e  o  aroma 
que  se  exhala  d'essas  paginas  em  flor,  cheias  de 
mocidade  e  de  fé,  é  o  aroma  vivo,  penetrante  da 
rosa,  que  desabrocha  em  abril. 


Do  altar  do  Amor  já  muito  pouco  disto. 
Vejo  na  aurora  que  a  neblina. encobre, 
A  doce  amada  que  entre  os  céus  avisto. 
Qual  Circe  linda  a  cujo  olhar  me  dobre. 


66  COLLECÇÃO   ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

E  é  esse  o  premio  que  a  sorrir  conquisto. . . 
Gosto  da  Infância,  tenho  amor  ao  pobre, 
Mas  faço  ainda  este  pedido  nobre. 
Oh  !  meu  sublime  e  incomprehenvlido  Ghristo  ! 


Se  cila  soltar  esta  innocente  queixa  : 

Qijc  eu  não  a  adoro  e  que  a  não  amo...  oh  !  deixa 

Sentir-lhe  a  voz  de  beijos  sufTocados, 


E  nos  seus  olho>  a  brilhar  incertos 
Ltr  o  que  dizem  quando  estão  abertos, 
Ler  o  que  pensam  quando  estão  fechados. 


E'  a  rosa  do  amor  a  florir  e  a  cantar  em  plena 
primavera  da  vida  sobre  a  batina  de  um  estudante 
de  Coimbra,  em  cuja  bocca  um  ligeiro  buço  de 
adolescente  não  póJe  encobrir  sorrisos  de  felicidade, 
nem  abafar  hymnos  de  esperança. 

Mas  ainda  ha  poucas  horas  encontrei,  no  polo 
opposto,  o  chrysánthemo  do  outomno,  vicejando 
sobre  os  destroços  de  uma  primavera  longínqua, 
bello  ainda  no  colorido  da  expressão,  mas  privado 
do  aroma  que  perfuma  a  corolla,  o  pequenino  bou- 
doir  da  rosa  primaveril. 

E'  outro  poeta  que  falia,  mas  triste  e  solitário, 
carpindose  de  que  já  vá  tão  adcantada  para  elle  a 
estação  invernosa,  que  até  as  creanças,  as  rosas  do 
jardim  da  infância,  a  mão  da  Fatalidade  lhe  desfolha, 
para  deixar  apenas  de  pé  o  chrysánthemo,  que  nas- 
ce tarde,  na  gleba  esfriada  pelo  gelo. 

E'  Bulhão  Pato  que,  no  Monte  de  Caparica,  chora 


NINHO  DE   GUINCHO  67 

a  perda  de  uma  creança  querida,  que  todos  os  dias 
costumava  ir  cantar  debaixo  da  sua  janella  uma 
niandolinata  feita  de  gorgeios  matutinos. 

Parece  que  os  versos  do  pjeta  passam  através 
de  um  chrysánthemo  de  oiro,  como  a  BoiíU  d'orf 
mas  frio^  porque  o  inverno  próximo  o  arrefece,  c 
desprovido  d'esse  gasto  aroma,  que  subiu  alto,  e  se 
dispersou  no  azul,  talvez  perto  das  estrellas. 

Não  vás  para  a  valia  escura; 
Vem  para  o  meu  coração ; 
Vem,  que  n'esta  sepultura 
De  tantos  sonhos  passados, 
Inda  os  mortes  adorados 
Vivem  da  minha  paixão  ! 

Vivem  da  minha  paixão,  dos  tempos  idos  em  que 
a  Paquilã  nascia,  vivem  em  novembro  como  o 
chrysánthemo,  o  chrysánthemo,  a  coroa  do  outomno, 
a  flor  symbolica  dos  amores  tardios,  que  luctam 
entre  o  fogo  de  uma  primavera  extincta  e  o  gelo  de 
um  inverno  próximo. . . 

Quem  é  que  não  teve  no  coração  uma  rosa,  em 
abril,  na  primavera  da  vida,  na  estação  do  sonho 
e  do  idillio,  uma  rosa  de  pétalas  carminadas,  res- 
cendente  de  inebriante  perfume? 

Mas  quem  é  que  não  encontrou  já  tarde,  entre 
as  ruinas  do  sonho  e  os  destroços  do  idillij,  um 
chrysánthemo  outomniço,  o  ultimo  sorriso  da  vida 
desenhado  no  corolla  de  uma  íljr  retardatária? 

Pierre  Loti  deu  o  titulo  de  Madame  Chrysanlhème 
a  um  dos  seus  livros. 


68,>  COLLECÇÃO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

Madame,    está   certo.   Nem   podia   ser  de   outro  . 
modo.  •  '   OKícdnb  'tt/v  .rr^^jl^^'^ 

A'  rosa  cabe,  porem  ^6  tratamento  de  madenioi-^ , 
selle,  porque  nenhuma:  outra  flor  traduz  m.elhor  do 
que  à  rosa  a  alegria,  a  graça,  a  frescura  da  mocin  v 
dadé^  ^-    -  ■    ■■   ■  ■     -  ra.  ; 

Madame    Chrysanthcme,    sim,    porque    também  ' 
nenhuma  outra  flor  traduz  melhor  do  que  ;oxhry^;j 
sánthemo  o  sonho  de  uma  sesta  de  amor,  quando 
o  sol  já  vai  alto,  ,e  as.  sombras  da  noite  começam  a 
descer  do  cimo  de  montanhas  geladas. 

Que  os  novos  tenham  paciência,  e-fiquem  espe- 
rando pelo  regresso  da  primavera, 'porque  aos  no- 
vos não  deve  ser  penoso  esperar,  visto  que  ainda 
ha  pouco  começaí-^m  a  viver. 

Agora,  o  momento  é  dos  velhos,  são  elles  que 
celebram  a  festa  do  chrysánthemo  com  o  enthiisias- 
mo  de  quem,  chegando  ao  quinto  acto  da  vida,  re- 
conhece que  as  actrizes  do  seu  tempo  foram  mu- 
lheres encantadoras,  que  ainda  '/alem  uma  ovação. 

Vem  ahi  Sarah  Bernhardt,  que  também  decerto 
tomará  logar  no  cortejo  do  chrysánthemo. 

Quando  ha  annos  ella  esteve  em  Lisboa,  mr.  Da- 
maia tinha-lhe  offerecido  uma  rosa,  que  a  grande 
actriz  viu  queimar-se  no  calor  do  seu  próprio  cora- 
ção. 

O  que  foi  feito  d'essa  flor  sêcca,  ninguém  sabe. 
Mr.  Damaia  partiu,  não  sei  para  onde  e,  ao  con-    . 
trario  das  andorinhas  errantes,  não  voltou. 

Sarah  Bernhardt  chega  de  novo  a  Lisboa,  na 
época  dos  chrysántemos,  e  será  essa,  provavelmente, 
a  flor  capaz  de  traduzir  o  que  se  pasSsf^io^^^ráfâo 


NINHO  DE  GUINCHO  69 

de  uma  grande  artista,  onde  a  paixão  resuscita  todas 
as  noites  e  um  polvilho  de  neve  começa  a  cair  leve- 
mente, annunciando  o  inverno  da  vida. 

Pois  bem.   Enfeixemos  um  bouquel  de  chrysán- 
themos  para  depor  aos  pés  de  Sarah  Bernhardt. 


1S95.  —  Novembro. 


CONTRATOS  DO  COR\CÃO 


Apesar  de  estarmos  n'um  periodo  de  penitencia, 
a  dois  passos  das  Endoenças,  o  Amor,  este  eterno 
pagão  de  todos  os  paizes,  não  perde  pitada. 

Ainda  ha  momentos  li  eu,  n'um  jornal  do  Alem- 
tejo,  a  pequenina  historia  d'uma  galanteria  amorosa 
implantada  em  Montemór-o-Novo  no  domingo  de 
Ramos. 

E'  a  dos  contratos  do  coração.  Sabem  ? 

Vou  transcrevel-a,  que  são  poucas  linhas : 

FESTA  DOS  RAMOS 

«A'manhã,  na  egreja  Matriz,  realisa-se  esta  tradicional 
festa,  dedicada  aos  novos 

oN'este  dia,  á  entrega  do  ramo  bento,  são  firmados  os  cha- 
mados contratos  do  coração. 

«Quantas  alegrias  e  felicidades  se  disfructa-n  pelo  fiel 
cumprimento  d'essas  escripturas  ?.. . 

«£  quantas  desillusões  e  misérias?... 

«Mas...  são  costumes.» 


NINHO  DE  GUINOÍO  7I 

Naturalmente  a  troca  de  ramos  estabelece  entre 
um  rapaz  e  uma  rapariga  um  contrato  de  escravi- 
dão amorosa. 

Foi  o  ramo  oíferecido  e  acceito?  Pois  bem!  o 
contrato  fica  lavrado:  devemo-nos  reciproca  lealda- 
de-, seremos  fieis  um  ao  outro  —  palavras  tabelliôas 
dos  contratos  de  amor. 

Mas  ás  vezes,  como  acontece  em  muitos  outros 
contratos,  não  é  respeitada  a  escriptura,  c  o  peior 
é  que,  no  amor,  o  lesado  nem  sequer  pode  voltar-se 
para  a  Boa  Hora,  aggravar  para  a  Relação,  recor- 
rer para  o  Su{  ren:o. 

Se  apitar,  não  lhe  acudirá  ninguém,  nem  a  poli- 
cia, nem  a  guarda  municipal,  ningue  n. 

Por  isso  figuraram  talvez  es  amigos  o  anror  n'um 
menino  alado. 

Como  a  creança,   tem    caprichos  indomáveis,  e 

quando  bate  as  azas  não  ha  meio  de  lhe  deitar  a  mão. 

A  este  respeito  sinto  me  tentado  a  contar-lhes  um 

caso   tão  authentico  como  o   diluvio  universal  e  a 

guerra  de  Troya. 

Era  uma  vez  uma  actriz. 
Ghamava-se  Leontina. 

Não  seria  este  o  nome  que  lhe  puzeram  ná  pia 
do  baptismo.  Uma  collega  dizia  malevolamente  que 
o  verdadeiro  nome  d'ella  era  Engracia  de  Jesus, 
segundo  resava  a  certidão  de  idade  que  mandara 
tirar  por  vingança  de  qualquer  conflictosinho  de 
bastidores.  E  ^quando  íallava  a  seu  respcitç  dizia 
sempre:  a  Engracia. 

Mas  o  cartaz,  que  fallava  mais  alto,  porque  fat- 
iava para  todos,  dizia :  Leontina. 


72  COLLECÇAO   ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

Engracia  ou  Lcontina,  o  que  é  certo  é  que  ella 
nascera  mais  para  Lcontina  do  que  para  Engra- 
cia. 

E  foi  ella  mesma  a  primeira  a  reconhece!-o,  por- 
que lendo  uma  vez  certo  romance  em  voga,  e  encon- 
trando ahi  o  nome  de  Leontina,  convenceu-se  de 
que  esse  nome  lhe  ficaria  tão  bem  como  o  ultimo 
chapéu  que  comprara. 

No  dia  seguinte,  quando  se  foi  contratar  com  o 
emprísario,  poz  o  chapéu  de  Pariz  na  cabeça  e  o 
nom(í  de  Leontina  na  escriptura. 

Ficou  encantadora,  porque  só  um.  nome  bonito 
lhe  faltava  para  o  ser  completamente. 

Leontina  lembrava  o  que  quer  que  fosse  de  leoa. . . 
Ella  tinha,  effcictivamente,  alguma  coisa  de  fera : 
despedaçava  corações,  dilacerava  peitos  apaixona- 
dos, espesinhava  illusões  e  esperanças. 

Mas,  tal  como  a  leoa  amorosa,  ás  vezes  tornava- 
se  fera  mansa,  submettia-se,  escravisava-se  vo- 
luntariamente... por  pouco  tempo. 

N'essas  occasiões  deveria  chamar-se  antes  Colum- 
bina. 

Accusavam-n'a  de  leviana.  Na  sua  vida  de  actriz 
tinha  sempre  dois  repertórios  :  o  das  peças  e  o  dos 
amantes.  E  estes  dois  repertórios  estavam  appen- 
sos  um  ao  outro  :  se  mudava  de  peça,  mudava  de 
amante. 

Uma  vez  appareceu  no  camarim  de  Leontina  um 
rapaz  de  família  ingleza,  que  lhe  fora  apresentado 
e  que*  lhe  offerecera  uma  rosa  de  estimação. 

Era  tão  correcto  e  pautado  de  maneiras,  que  da- 
ria á  primeira  vista  a  impressão  de  ser  frio. 


NINHO   DE   GUINCHO  -]'i 

Os  seus  amigos  diziam  n'o  um  vulcão  coberto  de 
gelo,  como  os  da  Islândia. 

A  rosa  foi  acccita  por  Leontina  com  um  sorriso: 
estava  lavrado  o  contrato,  como  os  dos  rapazes  e 
raparigas  da  Montemór-o  Novo  quando  em  domingo 
de  Ramos  trocam  flores  na  egreja. 

E'  certo  que  a  actriz  apenas  sorrira,  mas  os  seus 
sorrisos  eram  rosas. . .  caras. 

Havia  n'csse  rapaz,  que  talvez  se  chamasse  John 
como  todo  o  bom  inglez,  alguma  coisa  de  novidade 
para  Leontina  :  o  seu  caracter  primoroso,  as  suas 
maneiras  gentis. 

Os  outros  sempre  mais  ou  menos  davam  pretexto 
a  que  ella  se  desfizesse  d'elles. 

Para  esses,  Leontina  encontrava  facilmente  uma 
phrase  justificativa  : 

—  O  sr.  oífendeu-me  hontem. 
Ou  então : 

—  O  sr.  não  é  precisamente  o  homem  que  eu 
desejava  ter  encontrado. 

Equivalia  a  um  mandado  de  despejo,  que  alguns 
parecia  não  quererem  comprehender. 

Mas  Leontina,  n'essas  occasiões,  constituia-se  cm 
tribunal:  sentenciava,  e  o  réo,  ainda  que  estivesse 
innocente,  tinha  que  submetter-se. 

E  não  era  ella  mulher  que  se  incommodasse  muito 
com  as  cartas  amargas  que  os  despeitados  pudes- 
sem escrever  lhe  depois. 

Li  as,  rasgava-as  e  costumava  dizer  comsigo  mes- 
ma n'um  tom  de  profundo  desdém : 

—  Sempre  o  mesmo  estylo !  Hontem,  um  apai- 
xonado; hoje,  um  lacaio. 


74  COLLECÇÃO    ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

John,  entrincheirado  na  sua  galanteria  serena, 
muito  britannica,  prendera  Leontina  por  mais  tempo 
do  que  seria  de  esperar. 

Era  uma  novidade  na  sua  vida. 

Alguns  dias  assaltara-a,  vagamente",  a  ideia  de 
mudar  de  amor,  pois  que  já  tinha  mudado  de  cha- 
péu e  de  peça,  quatro  ou  cinco  vezes,  sem  mudar 
de  amante. 

—  Mas  este  homem  não  me  dá  um  pretexto!  ex- 
clamava Leontina,  quando  se  reconhecia  bella  deante 
do  espelho. 

John  chegava,  oíferecia-lhe  uma  flor,  pousava-lhe 
um  beijo  na  testa,  como  se  se  tratasse  de  uma  pri- 
meira entrevista. 

—  Como  hei  de  eu  dizer  a  este  homem,  pensava 
Leontina,  que  elle  já  alguma  vez  não  foi  bastante 
delicado  comigo ! 

Um  bello  dia,  depois  de  ter  comprado  um  cha- 
péu novo,  Leontina  sentiu  mais  que  nunca  a  sug- 
gestão  da  novidade. 

; — E'  do  chapéu!  disse  ella  de  si  para  si,  descul- 
pando-se. 

E  o  chapéu  completou  a  sua  obra  revolucioniria 
convidandoa  a  m.udar  de  rumo  no  amor,  sem  que 
ella  tivesse  comtudo  a  coragem  de  despedir  official- 
mente  a  Gran-Bretanha. 

John  veio  a  sabel-o.  Em  vez  de  recorrer  a  uma 
folha  de  papel,  para  despedir-se  segundo  o  estylo 
dos  outros,  enviou  lhe  uma  linda  rosa,  tão  bella 
como  a  primeira  que  ella  acceitára,  e  enviou  lh'a 
com  um  cartão  de  visita  em  que  escrevera  estas 
simples  palavras : 


NINHO  DE  GUINCHO  'jS 

fTenho  a  honra,  Leontina,  de  lhe  offerccer  a  mi- 
nha ultima  rosa  » 

Quando  Leontina  a  recebeu,  em  vez  de  desfo- 
Ihal-a,  como  teria  rasgado  uma  carta,  foi  pôl-a  n'uma 
pequenina  jarra  de  Sevres,  que  lhe  tinham  dado 
n'uma  noite  de  beneficio. 

A  rosa  emmurchcceu,  seccou,  mas  ficou  ali. 

Era  como  um  pequenino  cadáver  mumificado. 

Desde  essa  época,  Leontina  adoptou  uma  nova 
phrase  para  despedir  cada  amante  que  começava  a 
aborrecer-lhe: 

—  Ah!  decididamente,  John  foi  o  homem  mais 
amável  que  tenho  encontrado  em  toda  a  minha  vida! 

Scguia-se,  naturalmente,  uma  scena  de  ciúme. 
E. . .  rua. 

Uma  noite,  Leontina,  que  não  entrava  na  peça, 
tinha  ido  para  uma  frisa. 

.Rodeiavarn-n'a  quatro  ou  cinco  dos  seus  admira- 
dores. Conversavam,  riam.  Ella  parecia  triste. 

Depois  do  primeiro  acto,  John  entrara  na  pla- 
téa. 

Procurou  a  sua  cadeira:  ficava  próxima  á  frisa 
de  Leontina. 

John  viu  a  actriz,  cumprimentou  a  gravemente, 
sentou  se,  e  nunca  mais  tornou  a  volver  os  olhos 
para  procurai  a. 

Leontina  mudou  de  humor:  ria  por  tudo  e  por 
nada.  Mostrava-se  alegre,  jovial,  a  ponto  que  um 
dos  seus  companheiros  de  frisa  lhe  dissera  com  aze- 
dume: 

—  Estás  hoje  nas  tuas  noites  de  «bolha»,  Leon- 
tina! 


yÕ  COLLECÇÁO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

Eila  pensou  então:  .  .     . 

— De  «bolha» !  Aquelle  homem  que  ali  está  não 
seria  capaz  de  me  dizer  isto. 

E  Leontina  continuou  a  rir,  a  rir  muito,  a  rir 
sempre,  por  tudo  e  por  nada. 

D'ahi  a  dois  dias  John  recebeu  este  bilhete  de 
Leontina: 

(lEstou  muito  doente.  Pedia-lhe  o  favor  de  vir 
vêr-me.» 

John  não  se  fez  esperar  e  encontrou  Leontina 
muito  aborrecida,  sentada  n'uma  chaise-longiie,  com 
trez  ou  quatro  romances  postos  sobre  o  guéridoriy 
como  se  todos  quizesse  ler  e  nenhum  tivesse  aberto 
ainda. 

—  Ah!  disse  elle  ao  vêl-a.  Folgo  de  que  não  es- 
teja tão  doente  como  decerto  imaginou,  quando  teve 
a  bondade  de  me  escrever. 

—  Doente,  talvez  não,  talvez  sim.  Aborrecida, 
muito,  isso  muito.  Sabe  que  mais? 

—  Dir-me  ha. 

—  Faz-me  falta  um  bom  amigo. 

—  Pergunte  ao  seu  espelho,  Leontina,  se  essa 
phrase  podersT  ser  verdadeira. 

—  Faz-me  falta.  ..  o  senhor. 

—  Eu!? 

—  Sim,  porque  é  o  homem  mais  amável  que  eu 
tenho  encontrado  na  minha  vida. 

—  Não  seja  lisonjeira,  Leontina. 

N'este  momento  entrava  uma  amiga  da  actriz, 
sua  collega  de  outro  theatro. 

John  ergueu-se,  estendeu  a  mão  a  Leontina  e 
disse  com  uma  tranquillidade  glacial: 


NINHO   DE  GUIMCHO  77 

—  Desejo  immensamcnte  a  continuação  das  suas 
melhoras,  minha  bôa  Leontina. 

Logo  que  elie  voltou  costas,  a  collefra  de  Leonti- 
na, aproximando-sc  d'ella,  quasi  a  fallar-lhe  ao  ou- 
vido, perguntou-lhe: 

—  Então  isto  reatou-se? 

Leontina  suspirou,  pegou  ri'um  livro,  folheouo 
distraidamente,  e  disse  uni  momento  depois: 

—  Para  os  corações  leaes  o  amor  é  uma  coisa 
impertineniemente  séria!  Este  homem  é  tão  amá- 
vel, que  não  ousou  récordar-me  ainda  esta  verda- 
de. Mas  é  certo  que  não  voltará. 

—  Tens  razão,  filha,  os  homens  são  tão  grossei- 
ros, que  se  não  podem  aturar  1  O  meu  fez-me  uma 
grande  scena  esta  noite. 

—  Com  razão?  perguntou  Leontina  ironicamente. 

—  Não!  nunca ! 

Leontina  ergueu-se  da  chaise-longue,  estendeu  os 
braços  espreguiçando-se,  e  disse,  perfumando  a 
phrase  com  um  sorriso  triste: 

—  No  fim  de  contas,  eu  não  tenho  motivo  para 
queixar-me.  John  bateu  as  azas:  é  o  que  eu  tenho 
feito  muitas  vezes. 

—  Com  razão?  perguntou  a  outra  pagando-se  da 
ironia. 

—  Com  razão...  desde  que  John  me  foi  apre- 
sentado, porque  nenhum  homem  o  pôde  igualar 
ainda  em  gentileza  de  maneiras. 

Este  caso  é  uma  lição,  um  exemplo,  aliás  confir- 
mado pelo  jornalista  alemtejano,  que  pôz  estas  pa- 
lavras no  seu  jornalsinho: 

«tE  quantas  desillusões  e  misérias?... 


COLLECÇAO   ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 


«Mas...   são  costumes.» 

E'  que  o  mundo  de  Montemor  é  como  o  mundo 
de  toda  a  parte, 

As  flores  trocadas  na  egreja  em,  domingo  de  Ra- 
mos,  são   contratos   que  muitas  vezes  sa  rasgam. 

Pois  bem !  é  o  que  toda  a  gente  tem  feito  alguma 
vez  na  sua  vida :  rasgar  um  contrato. 


XI 


A  BROA 


Durante  a  semana  appareceram  em  alguns  jor- 
naes  epistolas  tendentes  a  recomoaendar  o  uso  do 
pão  de  millio  como  vantajoso  para  a  alimentação 
publica. 

Até  agora,  o  sul  do  reino  chamava  com  certo 
desdém  broeiros  aos  habitantes  do  norte  do  paiz, 
especialmente  aos  do  Porto.  A  familia  de  Gamillo 
Castello  Branco,  oriunda  de  Villa  Real  de  Traz-os- 
Montes,  recebeu  a  alcunha  de  Brocas  posta  em 
Coimbra  a  Domingos  Correia  Botelho,  e  tbem  ou 
mal  derivado,  explicou  o  grande  escriptor,  o  epithe- 
to  brocas  vem  de  broa.» 

Portanto  a  designação  de  broeiros,  que  pretendia 
ser  ridícula,  galgou  para  além  do  Porto,  e  alcançou 
todas  as  provincias  septentrionaes  onde  o  uso  do 
pão  de  milho  está  tradicionalmente  generalisado. 

Mas  o  que  foi  que  determinou  o  alvitre  dos  au- 


8o  COLLECÇÃO  ANTÓNIO   MARLV    PEREIRA. 

ctores  d'aquellas  epistolas?  Toda  a  gente  o  sabe. 
Foi  a  insufficiencia  do  trigo  nacional  para  o  consum- 
mo  publico;  o  elevado  direito  de  importação  esta- 
belecido peio  governo  sobre  o  trigo  extrangeiro ;  e 
a  exorbitância  do  prémio  do  oiro  com  que  este  tri- 
go tem  de  ser  pago  nos  paizes  exportadores. 

Então  lembrou  o  recurso. ao  pão  de  milho  como 
salvatério.  E  assim  como  um  doente  em  perigo  quer 
mudar  de  travesseiro,  para  ver  se  encontra  algum 
descanço  no  leito,  pretende-se  que  o  paiz  mude  de 
alimentação,  para  não  morrer  de  fom.e,  por  não  ter 
bastante  trigo  nacional,  nem  oiro  para  pagar  a  im- 
portação do  trigo  extrangeiro. 

O  sul,  clamante  e  apprehensivo,  volta-se  para  o 
norte  do  paiz  e  pede  que  lhe  acuda  com  a  sua  broa. 

Se  o  alvitre  indicado  fosse  acceito  pelos  povos  do 
sul,  o  que  não  seria  fácil  de  conseguir,  teríamos  que 
a  mudança  de  alimentação  acarretaria  uma  trans- 
formação nos  costumes,  nas  idéas  e  disposições  do 
paiz,  porque,  segundo  o  testemunho  da  sciencia,  a 
alimentação  influe  nos  actos  da  vida  psychica  pela 
acção  directa  que  exerce  nos  órgãos  essenciaes  á 
economia  animal- 

O  lisboeta,  conhecido  no  norte  do  paiz  pela  desi- 
gnação irónica  de  alfacinha,  passaria,  se  o  alvitre, 
pudesse  ser  adoptado,  a  ser  broeiro  como  o  minho- 
to, o  transmontano  e  o  beirão,  e  d"'ahi  lhe  provi- 
riam certamente  idéas,  aptidões  e  sentimentos  dif- 
ferentes  d'aquelles  que  téem  até  hoje  constituído  a 
sua  differenciação  com  os  povos  do  norte  do  paiz. 

Mas  o  habito  forma  uma  segunda  natureza,  e 
Lisboa,   que    está   habituada  ao  pão  de  trigo,  não 


NINHO   DE  GUINCHO  8l 

acceitará  facilmente  o  uso  da  broa  de  milho,  com 
que  não  foi  educada,  a  não  ser  que  lhe  seja  impos- 
ta, n'um  caso  extremo,  pela  força  da  legislação  co- 
mo o  caldo  negro  aos  hahitantes  de  Sparta. 

E'  certo  que  entre  as  familias  gradas  das  provín- 
cias septentrionaes,  o  moUéte^  pão  molle,  como  lá 
chamam  ao  pão  de  trigo,  já  ganhou  terreno,  sup- 
piantando  quasi  a  broa,  mas  o  povo  dessas  pro- 
víncias contmiía  a  alimentar- se  de  pão  de  milho,  e 
so  n'um  dia  de  festa  se  permitte,  como  gulodice, 
cravar  o  dente  no  «pão  alvo»,  outra  designação 
vulgar  do  molléte. 

Já  no  século  XVÍ  era  tão  raro  o  ccnsummo  do 
pão  de  trigo  no  Alto  Minho,  que  o  foral  dado  por 
D.  Manuel  á  villa  de  Monção  não  o  considerava 
uma  fonte  de  receita  para  o  cofre  do  concelho ;, — 
por  isso  de  cada  fornada  de  pão  bregado  (talvez 
rala)  e  de  callo  (mistura)  que  se  vendesse  na  pra- 
ça, mandava  cobrar  um  real ;  «porque  de  pam  mol- 
léte não  pagarão  nada.»  A  base  do  consummo  do 
pão  era,  pois,  o  milho,  e  por  isso  sobre  elie  incidia 
o  respectivo  imposto  de  real  por  cada  fornada. 

Alimentado  pela  broa,  o  homem  do  povo  no  norte 
do  paiz,  cavador  ou  artifice,  differe  profundamente 
nos  costumes  e  sentimentos  do  maltez  ou  do  oJDe- 
rario  das  províncias  meridionaes. 

E'  forte,  resistente,  valoroso,  e  tão  softreaor  que 
não  exige  ter  broa  fresca  para  a  sua  alimentação 
quotidiana.  Ordinariamente  os  operários  de  cons- 
trucção,  no  Porto,  voltam  de  casa  na  segunda  fei- 
ra, de  madrugada,  e  trazem  dentro  de  um  sacco  a 
broa  que  hão  de  comer  durante  toda  a  semana.  Da 


82  COLLECÇÃO  ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 


taberna  apenas  gastam  a  sardinha  assada  e  o  caldo 
verde.  Nos  últimos  dias  da  semana  o  pão  está  sec- 
CO,  mas  assim  mesmo  o  comem.  E  quando  reco- 
lhem a  casa,  no  sabbado  ao  anoitecer,  vão  encon- 
trar a  mulher  p-^eparando  a  nova  fornada  de  que 
elles  se  hão  de  alimentar  na  semana  seguinte. 

Tudo  vae  bem  para  o  trabalhador  do  norte  em- 
qunto  o  milho  não  encarece.  Quando  este  facto  se 
dá,  a  fome  ameaça-o,  e  o  motim  popular  não  tar- 
da. Assim  aconteceu  no  Porto,  ahi  por  i86õ,  quan- 
do a  carestia  dos  cereaes  alvoroçou  o  povo,  que 
largou  a  cantar  em  grande  algazarra: 

Viva  D.  Pedro  V  ! 

Vinho  a  pataco  e  milho  a  pinto  ! 

Que  tempos  aqueiles! 

O  povo,  ameaçado  de  perto  pela  fone,  e  temen- 
do-a,  revoltava-se,  mas,  na  revolta,  dava  vivas  ao 
rei.  Hoje,  o  diccionario  do  povo  não  tem  palavras 
amáveis  para  exprimir  a  indignação  e  a  ironia 

E'  certo  que  o  trigo,  rico  em  glúten,  possue  pro- 
priedades alimentícias  superiores  ao  milho,  mas  não 
padece  duvida  que  o  trabalhador  do  norte  do  paiz, 
que  só  do  pão  de  milho  se  alimenta,  é  sadio  e  ro- 
busto, seja  pelas  condições  da  sua  própria  existên- 
cia ou  por  selecção  de  raça,  ao  passo  que  o  traba- 
lhador do  sul,  alimentado  a  trigo,  se  fizermos  ex- 
cepção do  cartaxeiro,  que  é  um  typo  á^  robustez  e 
actividade,  lhe  fica  muito  inferior  em  faculdades  de 
trabalho. 

A  alimentação  dura  e  parca  enrigece  o  caracter, 


NINHO  DE  GUINCHO  83 

torna  o  homem  forte  para  resistir  ás  tentações  dis- 
pendiosas. O  trabalhador  do  Douro  e  do  Minho  não 
applica  as  suas  economias  senão  ao  ouro,  porque 
ouro  é  o  que  ouro  vale.  Não  compra  fundos  por- 
tuguezes,  porque  mudam  de  coração.  E"  pratico.  Se 
precisa  vender  o  cordão  ou  as  arrecadas  de  ouro, 
que  são  da  mulher,  apenas  perderá  o  feitio  i  o 
peso  não  varia  como  as  cotações  dos  fundos.  Não 
v.-íi  ao  theatro,  a  não  ser  de  graça,  quando  os  ret- 
:{en'OS  representam  autos  pelo  Natal  para  se  diverti- 
rem uns  aos  outros 

Que  o  pão  de  milho,  por  isso  mesmo  que  possue 
matérias  gordas,  satisfaz  plenamente  ás  necessida- 
des da  alimentação,  prova-o  á  evidencia-  o  povo  do 
norte,  que  d'eile  se  nutre,  e  de  pouco  mais. 

So  na  doença  é  que  os  lavradores  e  os  operários 
d'aquella  região  comem  molléte,  aconselhado  pelo 
medico,  por  ser  de  mais  fácil  digestão.  Logo  que  a 
saúde  volta,  volta  com  ella  o  regime  da  broa. 

Pode  affoitamente  dizer-se  que  todos  os  homens 
notáveis  das  províncias  do  norte  já  hoje  mortos  ou 
velhos,  foram  educados  na  alimentação  da  broa. 
Passos  Manuel,  filno  de  um  lavrador  de  Bouças, 
não  comeu  na  infância  outro  pão.  fcl  na  sua  legisla- 
ção ha  o  que  quer  que  seia  de  fone  e  salutar  cohno 
o  pão  de  milho.  Na  litteratura,  Camillo,  que  foi 
educado  em  Traz-os-Montes  e  viveu  no  Minho, 
Arnaldo  Gam.a,  que  residiu  sempre  no  Porto,  são 
dois  exemplares  magníficos  de  que  o  estylo  é  o  pão 
que  se  come  Camillo,  se  se  lhe  toma  o  verdadeiro 
sabor,  nem  é  o  pão  francez,  nem  o  pão  de  Mele- 
cas,  nem   o  moUéte   nacional ;  é    o   miolo   da  broa 


84  COLLECÇÃO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

aperfeiçoado  n'uma  cosedura  habii,  e  cosido  n'um 
forno  bem  quente  ;  Arnaldo  Gama  é  a  broa  enco- 
deada,  mais  dura,  mas  saborosa  e  nutriíiva. 

Herculano,  com  ser  alfacinha,  nada  e  creado  em 
Lisboa,  parece  na  rigesa  do  estylo  e  na  solidez  dos 
conceitos  um  escriptor  educado  a  broa  Isto  tem 
explicação.  Elle  viveu  alguns  annos  no  Porto,  onde 
foi  bibiiothecario,  além  de  ter  comido  o  pão  negro 
do  Cerco  desde  i832  a  i833. 

Se  me  fornecerem  prosa  de  trez  escriptores  do 
Porto  e  de  trez  escriptores  de  Lisboa,  occultando 
os  nomes  dos  auctores,  aposto  que  vou  dizer  sem 
hesitação  onde  é  que  está  o  trigo  (ainda  que  o  trigo 
tenha  joio.  •  o  que  frequentemente  acontece  por  cá) 
e  onde  é  que  está  o  milho,  quaes  escriptores  são  de 
Lisboa  e  quaes  do  Porto. 

Pelo  que  respeita  aos  poetas,  parece-me  poder 
asseverar  que  no  Firmamento  de  Soares  de  Passos 
SG  reconhece  á  primeira  vista  a  farinha  do  milho 
que  alimentou  o  poeta.  Junqueiro,  na  satyr-a  poli- 
tica, é  um  broeiro  escodeando  as  instituições  para 
as  mastigar  melhor.  Nos  epigrammas  e  ironias  de 
Tolentino  ha  um  «palhinha»  de  dicção  só  compatí- 
vel com  a  digestão  branda  do  pão  trigo  em  torra- 
das. A  satyra  do  Juvenal  lisboeta  agrada  ao  pala- 
dar, mas  derrete-se  como  a  manteiga  E  Garrett  ? 
perguntar-me-hão.  Garrett  era  portuense,  e  quando 
comeu  a  broa  dura  no  quartel  dos  Grillos,  fez  o 
Arco  de  SanVAnyia;  quando  digeria  o  pão  alvo  de 
Lisboa,  escreveu  as  Viagens  na  minha  terra. 

Ahi  fica  a  resposta,  sem  cercear  a  nenhuma  d'es- 
tas  duas  obras  o  seu  valor  real. 


NINHO  DE   GUINCHO  85 

A  fabricação  da  b7'ôa  no  Porro  exige  um  pessoal 
sadio  e  robusto,  alimentado  por  ella.  São  as  cam- 
ponezas  de  Crestuma  e  Avintes  que  a  padejam, 
passando  noites  inteiras  ao  calor  do  forno  em  cham- 
mas  ;  foram  ellas  mesmas  que  fizeram  a  amassa- 
dura  ;  foram  ellas,  também,  que  conduziram,  atra- 
vés dos  montes,  o  milho  ao  moinho*,  são  ainda  ellas 
que  remando  os  seus  bircos,  com  uma  esbelta  so- 
lidez de  movimentos,  vão  levar  a  broa  ao  mercado 
na  cidade. 

Em  Lisboa,  as  machinas  de  moagem  farinam  o 
trigo,  que  vai  ser  descarregado  á  porta  do  padeiro. 
Mas  para  amassar  a  farinha  e  forneal-a.  para  o  tra- 
balho mais  duro  de  toda  a  panificação,  são  chama- 
dos os  beirões,  os  transmontanos,  os  minhotos,  ra- 
pazes fortes  como  sovereiros,  tão  fortes  e  alegres, 
que  depois  do  trabalho  se  divertem  pulando  com 
uma  viola  na  mão. 

Ora  os  alvitres  propostos  parecem-me  illusorios, 
porque  os  hábitos  adquiridos  pelo  corpo  tornam-se 
ainda  mais  tenazes  que  os  do  espirito.  Seria  tão 
difficil  habituar  Lisboa  a  comer  a  broa  de  milho, 
como  acostumar  o  Porto  a  almoçar  fava-rica  ou 
burrié,  Succede  até  que  o  minhoto,  se  durante  al- 
guns annos  deixou  de  alimentar-se  a  pão  de  milho, 
já  não  consegue  voltar  a  essa  alimentação.  Os  bra- 
:{ileiros  do  Minho,  que  foram  creados  com  a  broa, 
rejeitam-n'a  quando  regressam  á  pátria.  E'  um^  fa- 
cto todos  os  dias  presenciado  n'aquella  província.  O 
«pão  nosso  de  cada  dia»  é  não  só  a  mais  urgente 
necessidade  da  alimentação  publica,  mas  também  o 
mais  inveterado  de  todos  os  hábitos. 


86  COLLECÇÃO  ANTÓNIO   MARIA  PEREiRA 

Estou  convencido  de  que  pedindo  o  opão  nosso 
de  cada  dia-  cada  um  pede  o  pão  que  esta  habi- 
tuado a  comer,  e  não  outro. 

i8q6  —  Dezembro. 


Meu  caro  sr.  Trindade  Coelho:  Teve  v.  ex.^  a 
amabilidade  de  me  escrever  cinco  cartas  sans  voyel- 
le,  como  agora  estão  fazendo  em  França  alguns  lit- 
teratos  engenhosos,  com  a  differença  de  que  a  vo 
gal  supprimida  por  v.  ex/'  era  justamente.  .  .  uma 
consoante.  Refiro-me  ás  cinco  variedades  de  pão 
transmontano,  com  que  me  presenteou,  e  nas  quaes 
o  1  milho»  era  o  cereal  supprimido.  Escuso  dizer- 
Ihe  que  me  regalou  a  sua  amável  lembrança,  e  a 
achei  muito  mais  saborosa  do  que  as  epistolas  sans 
voyelle  com  que  o  Petit  Journal  está  engenhosa- 
mente provando  a  existência  de  uma  litteratura  «fim 
de  século». 

Pois,  meu  presado  amigo,  quando  vi  deante  de 
mim  os  cinco  specimens  de  pão  transmontano,  ho- 
nestamente vestidos  de  burel,  como  v.  ex.*  disse 
com  muita  propriedade,  entrei  a  crer  que  essa  sin- 
gelesa  de  toilètte  e  a  face  morena  do  pão  do  Mo- 
gadouro haviam  forçosamente  de  crear  homens 
muito  diflerentes.  no  pensar  e  sentir,  dos  que  se 
alimentam  com  mimoso  pão  alvo  de  trigo  fino. 

Porque  a  verdade  é  que  até  o  pão-trigo  de  Traz- 
os-Montes,  solidamente  enrolado  em  carolo,  faz  uma 
differença   enorme    do  molléte  que  os  nossos  buro- 


NINHO   DE  GUINCHO  87 

cratas  lancham  ahi  pelas  repartições,  com  recheio 
de  linguiça. 

Sempre  os  transmontanos  tiveram  fama  de  va- 
lentes, e  não  admira.  Pão  duro,  volto  á  minha,  faz 
homens  fortes  e  robustos.  A  população  rústica  de 
Traz-os  Montes  é  capaz  de,  gingando  um  cacete, 
varrer  uma  feira.  As  damas  que  ao  serão  comem 
bolo  de  azeite  em  vez  de  bolacha  Maria,  são  floren- 
tes de  boas  cores  e  boleiadas  de  formas  esculptu- 
raes.  Os  escriptores  alimentados  a  pão  de  centeio 
e  carolo  de  trigo,  não  podem  ter  um  estylo  desner- 
vado,  nem  uma  linguagem  molle.  E  a  prova,  meu 
presado  amigo,  está  em  v.  ex."  mesmo. 

Não  sei  se  foram  os  provincianos  do  norte  que 
puzeram  aos  peraltas  alambicados  de  Lisboa  a  al- 
cunha diminutiva  de  pãeshihos.  Mas  olhe  que  é  uma 
definição;  uma  synthese.  Quanto  ás  damas  alfaci- 
nhas, que  não  comem  ao  chá  bolo  d'azeite  nem  ao 
jantar  carolo  de  trigo,  ahi  as  tem  v.  ex.^  no  Chiado 
para  se  desenganar  de  que  florescem  menos,  no 
colorido  e  no  boleio,  do  que  as  portuguezas  de 
Traz-os  Montes. 

Pelo  que  respeita  á  arraia-miuda,  ao  Zé-Poptnho, 
como  dizemos  hoje,  olhe  lá  se  elle  ginga,  nas  desor- 
dens, um  cacete.  Qual!  Mette  na  manga  da  ja- 
queta uma  navalha,  com  um  gesto  certeiro  puxa- a 
até  á  palma  da  mão,  segura-a  entre  os  dedos,  e 
crava-a  á  falsa  fé. 

Admiram-se  em  Lisboa  de  que  os  faquistas  de 
maior  polpa  sejam  uns  «fracas  figuras».  Pudera! 
Uma  navalha  peza  pouco.  E  para  dar  um  golpe  não 
é  preciso  ser  valente;  basta  ser  cobarde. 


88  COLLECÇÀO   ANTÓNIO  MARIA  PER  El  KA 

Os  transmontanos,  que  comem  pão  de  centeio, 
os  minhotos,  que  comem  pão  de  milho,  até  na  mal- 
querença são  leaes.  Erguem  o  varapau  á  luz  do 
sol,  para  que  se  veja  bem,  fazem-n'o  zenir  na  es- 
grima, para  que  todos  oiçam,  e  so  depois  se  jul- 
gam auctorisados  a  desmiolar  a  cabeça  do  adversá- 
rio. 

E'  a  força,  a  coragem,  a  nobresa  do  duello:  aqui 
vou  eu;  defende-te  lá. 

Um  amigo  meu,  natural  de  Lisboa,  objectou-me 
que  a  minha  asserção,  de  que  o  estylo  é  o  pão  que 
se  come,  naufragava  no  padre  António  Vieira,  que 
no  escrever  parecia  creado  a  pão  duro,  sendo  aliás 
alfacinha  por  nascimento. 

E'  verdade  que  sim;  mas  uma  excepção  confirma 
a  regra.  Comecei  depois  a  procurar  qualquer  outra 
excepção,  e  não  a  encontrei. 

Ora  o  mesmo  padre  Vieira  ligava  ao  pão  tama- 
nha importância,  que  chegou  a  d'zer  do  púlpito 
abaixo:  «Lançae  os  olhos  por  todo  o  mundo,  e  ve- 
reis que  todo  elle  se  vem  a  resolver  em  buscar  o 
pão  para  a  bocca.»  Se  para  mim  o  pão  é  o  estylo, 
para  o  grande  Vieira  era  a  vida. 

«Que  faz  o  lavrador  na  terra,  perguntava  elle, 
cortandoa  com  o  arado,  cavando,  regando,  mon- 
dando, semeando?  Busca  pão  Que  faz  o  soldado 
na  campanha  carregado  de  ferro,  vigiando,  pele- 
jando, derramando  o  sangue?  Busca  pão.  Que  faz 
o  navegante  no  mar,  içando,  amainando,  sondando, 
luctando  com  as  ondas,  e  com  o  vento?  Busca  o 
pão.» 

E'  certo  que  o  padre  António  Vieira  nasceu  em 


NINHO  DE  GUINCHO  89 


Lisboa  e  se  creou  a  pão  alvo.  mas  não  é  menos 
certo  que  andou  pela  Europa  c  pelo  Brazil  comendo 
o  apão  que  o  diabo  amassou».  Não  pôde  haver  pão 
mais  duro. 

Dos  habitantes  do  Minho,  Douro  e  Beira  Alta, 
que  se  alimentam  a  pão  de  milho,  os  que  eu  co- 
nheço melhor  são  os  do  Minho  e  Douro. 

Em  pequeno,  regalava-me  de  andar,  no  estio,  por 
umas  serras  fragosas  em  companhia  dos  pastores 
da  minha  idade.  Durante  horas  consecutivas  co- 
míamos um  naco  de  broa  e  uma  cebola  crua.  Era 
um  manjar!  Perdão,  eram  dois  manjares.  Os  pas- 
tores cantavam,  não  tristezas  á  maneira  de  so- 
lau,  que,  como  diz  Bernardim  Ribeiro,  «era  o  que 
nas  cousas  tristes  se  acostum.ava»,  e  ainda  menos 
as  melancolias  chorosas  do  Fado.  Não,  senhor! 

Pendurados  sobre  rochedos  imminentes  á  cor- 
rente torva  do  Douro,  lages  escorregadias  como 
Tarpeas,  os  pastores  da  minha  idade  implicavam, 
cantando  improvisos  dicazes,  com  os  marinheiros 
dos  barcos  rabêllos.  que  do  meio  do  rio,  ao  com- 
passo vigoroso  dos  remos,  lhes  respondiam  a  ponto, 
em  genitivo  de  injuria. 

Vida  áspera,  mas  alegre,  que  se  não  parecia 
absolutamente  nada  com  a  do  proletário  ou  do 'va- 
dio de  Lisboa,  pendido  sobre  a  guitarra,  ao  fundo 
de  uma  taberna  do  Bairro  Alto  ou  d'Alfama,  a  re- 
penicar o  Fado  entre  decilitros  de  Torreano  e  bu- 
chas de  pão  trigo — com  a  navalha  sempre  na  algi- 
beira, para  o  que  der  e  vier. 

Os  povos  de  Traz  os-Montes  e  da  Beira  Baixa, 
que  se  alimentam  a  pão  de  centeio  (salvo  em  Traz- 


gO  COLLECÇÃO    ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 

os-Montes  os  da  Régua  e  ainda  os  de  Vílla-Real 
que  também  comem  pão  de  milho,  o  que  v.  ex.* 
explica,  e  a  meu  vêr  muito  bem,  por  estarem  mais 
visinhos  do  Douro)  conheço-os  menos,  mas  sei  lhes 
da  fama  de  valentes,  e  ahi  temos  visto  em  Lisboa, 
no  parlamento,  alguns  exemplares  de  raça  fina,  que 
até  falando  usara  cacete  oratório,  e  empregtm  tro- 
pos rijos  como  arrochos. 

Nas  províncias  do  sul  predomina  o  trigo,  e  vê-se 
bem.  O  sul  não  faz  revoluções;  quando  muito  faz 
tum.ultos.  Gomes  Freire  quiz  im.plantar  o  constitu- 
cionalismo com>  homens  do  sul,  e  tropeçou.  .  .  n'uma 
sentença  de  morte.  Foi  do  Porto  que  veio  a  revo- 
lução liberal,  posta  em  obra.  Foi  do  Minho  que  veio 
a  Maria  da  Fonte  A  Janeirinha  e  o  «3i  de  janei- 
roí  também  vieram  do  Porto.  E  no  principio  do 
século,  o  Junot,  que  entrou  pelo  sul,  ficou;  para 
expulsar  de  vez  os  francezes  foi  preciso  varre!  os  lá 
de  cima,  com  alma. 

No  Alemtejo  come-se  pão  trigo,  comquanto  no 
disiricto  d'Evora,  por  exemplo,  também  se  consum- 
ma  algum  pão  de  centeio.  Os  aiemtejancs,  salvo 
algumas  regiões  sezonaticas,  são  robustos  e  sadios, 
porque  a  lavoira  os  fortifica.  Mas  são  indolentes 
para  tudo  o  mais.  Luctam  frequentes  vezes  com  as 
crises  agrícolas,  e  chiam  pouco.  Quando  o  anno 
corre  mal,  gemem  na  miséria,  mas  tão  frouxa- 
mente, que  raras  vezes  se  fazem  ouvir  em  Lis- 
boa ... 

Para  o  duro  trabalho  das  ceifas  no  Alemtejo  é 
chamado,  em  reforço,  o  beirão,  o  ratinho,  que  desce 
das  suas  montanhas  vestido  de  saragoça,  cheio  de 


NINHO  DE   GUINCHO  QI 


pó  e  sol,  com  a  cabaça  a  tiracoUo  e  a  colher  de 
pau  atravessada  no  chapéu.  Vem  ceifar,  vem  talvez 
morrer  asphyxiado  pelo  calor.  Diz  Fragoso  de  Si- 
queira, nas  Memorias  económicas  da  Academia,  que 
n'um  só  anno  morreram  em  Elvas  400  ceifões  abra- 
zados  pelo  sol.  E'  a  Beira  Alta,  «o  pão  de  milho», 
é  a  Beira  Baixa,  «o  pão  de  centeio»,  acudindo,  no 
trabalho  mais  violento  do  anno  agricola,  ao  Aiem- 
tejo,  «o  pão  de  trigo.» 

Os  algarvios  tambenn  se  alimentam  a  pão  de 
trigo,  em  certas  regiões  importado  de  Hespanha. 
Ora  os  algarvios,  que  elles  me  perdoem,  cantam 
muito,  e  vae-se-lhes  o  tempo  no  cantar.  São  as  ci- 
garras de  Portugal.  Estiveram  annos  e  annos  a  pe- 
dir um  caminho  de  ferro,  que  ^ó  muito  tarde  che- 
gou. E  elles  lá  se  iam  resignando  com  a  sua  alfar- 
roba. O  norte,  mais  decidido,  bateu  o  pé,  e  teve 
logo  dois  caminhos  de  ferro  em  vez  de  um  :  o  do 
Minho  e  o  do  Douro. 

São  factos,  ou  antes.  .  .  é  o  pão. 

Já  vae  longa  esta  carta,  mas  não  chega  ainda  a 
ser  maior  do  que  a  minha  gratidão  para  com  v.  ex.® 
A  culpa  foi  sua,  em  me  dar  pão  e  conversa.  Mas 
agora  me  lembra  que  ainda  está  no  fundo  do  tin- 
teiro uma  coisa  que  eu  queria  dizer  a  respeito  -do 
bolo  de  azeite. 

Sabe?  Fez-me  lembrar  de  uma  superstição  popu- 
lar do  Douro,  que  ainda  não  vi  contada  por  ne- 
nhum dos  colleccionadores  de  folk-lore. 

Quando  uma  creança  anda  desmedrada  como  se 
tivesse  visto  bruxa,  dão-lhe  a  comer,  atraz  de  uma 
porta,  um  bolo  de  milho  amassado  em  azeite.  Diz- 


92  COLLECÇÂO    ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

se  lá  que  essa  creança  anda  ougada,  «aguada»,  e 
crê-se  que  comendo  o  tal  bolo,  que  sabe  tanto  a 
azeite  como  a  «bolacha»  transmontana,  começará  a 
medrar  e  a  ter  boas  cores. 

Aguados  andamos  nós  todos  depois  de  certa  ida- 
de. Por  isso,  quando  cá  apanhei  o  bolo  de  azeite, 
que  V.  ex.*  me  .mandou,  metti-me  atraz  de  uma 
porta,  e  mastiguei  o. 

Pode  ser  que  faça  bem ;  mal  não  me  fez  ne- 
nhum. 

E,  quanto  ao  mais,  que  Lisboa  possa  habi- 
tuar-se  ao  milho  e  ao  centeio,  são  lerias  dos  econo- 
mistas. 

Seria  preciso  começar  por  mudar  o  Chiado  para 
a  Serra  da  Estrella  ou  do  Marão,  c  o  Marão  e  a 
Estrella  para  o  Chiado. 

Não  é  fácil. 

De  V.  ex.'^,  com  a  maior  considera- 
ção litteraria  e  estima  pessoal, 
agradecido  camarada 

Alberto  Pimentel. 
i8n6  —  Dezembro. 


XII 
VINHO  NOVO 


Notava  o  Diário  de  Noticias  que  a  noite  de  S. 
Martinho  passara  este  anno  quasi  despercebida. 

A  culpa  foi  talvez  da  chuva,  porque  o  vinho 
aguado  não  presta. 

Gonta-se  o  caso  de  certo  borracho  que,  estando 
muito  doente,  foi  pelo  medico  assistente  intimado  a 
que  deixasse  de  beber  vinho. 

—  Isso  não  pode  ser!  respondeu  convictamente  o 
enfermo.  Se  deixar  de  beber  vinho,  morrerei  mais 
depressa. 

—  E'  o  que  lhe  parece,  porque  gosta  de  o  be- 
ber. 

—  Conheço-me,  doutor.  E  não  quero  tazer  a  ex- 
periência, porque  receio  vir  a  morrer  antes  de  estar 
curado. . . 

—  Mas  então  beba  menos  e  com  agua. 

—  Ah !  isso  pode  ser.  Mas  que  sacrifício ! 

—  Resigne-se,  porque  a  outro  doente  não  consen- 
tiria eu  que  bebesse  nenhum.* 

—  Gomo  assim  ?  ! 

—  E'  que  os  médicos  precisam  transigir  um  pou- 


94  COLLECÇÁO    ANTÓNIO  MARIA    PEREIRA 

CO  com  OS  hábitos  adquiridos,  que  constituem  uma 
segunda  natureza. 

—  Então,    se   a  medicina  é  uma  sciencia  amável, 
consinta  que  eu  beba  só  vinho.  .  .  por  amabilidade. 

—  Nem  tanto  ao  mar.  ,  . 

—  Não  me  falle  d'agua,  doutor! 

—  Deixe-se   de  gracejar,  e  faça  o  que  lhe  recom- 
mendo,  se  quizer  viver. 

—  Com  que  então  agua  e  vinho? 

—  Seguramente 

—  A.h  !   doutor!   resignar-me-hei.   Mas  olhe  !á... 

—  Diga. 

—  Em  vez  de  agua  e  vinho,  eu  não  poderia  beber 
vinho  e  agua  ? 

—  E'  a  mesma  coisa  ! 

—  Não  é  tal.  Dá-se  o  logar  de  honra  ao  vinho, 
que    vai  á  frente,  e  eu  devo-lhe  essa  consideração. 

—  Pois  seja 

Quando  chegou  a  hora  do  jantar,  a  mulher  do 
doente  levou-lhe  vinho  com  agua. 

—  O   que   foi  que  tu  deitaste  primeiro  no  copo  ? 

—  O  vinho. 

—  Já  estou  arrependido  de  ter  dito  isso! 

—  Por  que  ? 

—  Porque  o  vinho  ficou  no  fundo  e  a  agua  é  que 
está  ao  de  cima.  Foi  o  que  eu  senti  primeiro  na 
bocca. 

E  erguendo  o  copo,  depois  ter  provado  a  bebida, 
exclama  o  enfermo  .sentenciosamente  : 

—  Dizec-se  que  a  união  faz  a  força  I  Olha  p'ra 
isto  ! 

Depois,  tomando  um  novo  golo  : 


NJNHO  DE   GUINCHO  95 

—  O'  mulher,  tu  dizes  ás  vezes  que  é  uma  excel- 
lente  bebida  a  agua. .  . . 

—  Eu  bebo  muita. 

—  E  eu  acho  que  não  ha  melhor  bebida  que  o 
vinho. 

—  Cada  um  falia  por  si. 

—  Mas  a  verdade  falia  mais  alto  que  todos.  A 
agua  é  boa  ?  O  vinho  é  bom  ?  Pois  bem  !  juntar  o 
vinho  com  a  agua  é  estragar  duas  bebidas  boas  ! 

Ora  assim  aconteceu  este  anno  na  noite  S.  Mar- 
tinho :  o  vinho  foi  estragado  pela  agua,  que  era 
muita  de  mais,  como  diria,  o  Garrett. 

Choveu  a  potes,  e  não  ha  calor  de  vinho  que  re- 
sista a  uma  valente  carga  d'agua. 

Mas.  na  província,  pouco  importou  que  chovesse. 

O  temporal  não  conseguiu  prejudicar  a  folia  de 
S.  Martinho,  e,  por  lá,  ainda  se  conserva  a  tradição 
de  fazer  do  dia  1 1  de  novembro  uma  espécie  de 
terça  feira  gorda. 

Todas  as  liberdades  e  satyras  são  permittidas 
n'esse  dia. 

E  a  policia,  se  a  ha,  não  tem  que  dizer  nada. 

E'  o  costume  da  terra. 

Ainda  de  tarde  saiem  para  a  rua  alguns  patus- 
cos da  localidade,  munidos  de  campainhas,  choca- 
lhos e  caldeiros,  fazendo  um  barulho  infernal. 

Enchem-se  as  janellas  de  mulheres  e  creanças 
para  ver  passar  a  airmandade  de  S.  Martinho». 

E'  uma  espécie  de  bando  burlesco,  que  annun- 
cia  a  grande  solemnidade  consagrada  a  Baccho, 

Percorre  o  bando  todas  as  ruas  da  povoação  ba- 
tendo a  uma  ou  outra  porta. 


gO  COLLECÇÃO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 


—  Está  cá  O  sr.  Fulano? 

E'  a  casa  de  algum  sujeito  conhecido  por  gostar 
de  boa  pinga. 

No  caso  de  ser  pessoa  de  boa  feição,  vem  elle 
próprio  falar  ao  bando  : 

—  Estou,  sim,  senhor. 

—  Pois  nós  vimos  aqui  distribuir-lhe  a  cera  para 
a  festa. 

A  «cera»,  velas  ou  cirios,  são  palhas  de  centeio 
ou  vimes. 

Uma  troça  pegada, 

E  no  acto  da  entrega  da  cera  o  rapazio  faz  ruído 
nos  caldeiros,  badaleja  com  os  chocalhos  e  as  cam- 
painhas. 

—  Pois  muito  obrigado  pela  cera  e  podem  contar 
que   não  deixarei  de  festejar  o  nosso  grande  santo. 

Se  o  sujeito  é  de  génio  arrebatado,  dá  cavaco 
com  a  brincadeira. 

E  então  pode  ficar  certo  de  que  não  dormirá  toda 
a  noite. 

Volta  e  meia  o  bando  passa-lhe  á  porta,  fazendo 
uma  assuada  enorme,  capaz  de  accordar  os  mortos 
no  cemitério. 

—  O'  sr.  Fulano,  venha  receber  a  cera! 

—  Aqui  está  o  cirio  ! 

—  Já  são  horas  de  começar  a  festa ! 

—  Olhe   que  os  outros  «irmãos»  estão  á  espera! 

—  Tome  sentido,  que  vae  sendo  tarde  ! 

E  bumba  !  pancadaria  nos  caldeiros,  repiques  de 
campainhas,  dobres  de  chocalhos. 

De  modo  que  o  melhor  que  o  sujeito  tem  a  fazer 
é  embebedarse  logo  para  não  ouvir  a  algazarra  in- 


NJNHO  DE  GUINCHO  97 


fernal,  que  de  momento  a  momento  se  repete  cada 
vez  mais  atroadora. 

Também  é  costume  andar  distribuindo  por  portas 
as  listas  para  a  eleição  dos  mesarios,  que  devem 
gerir  durante  o  anno  os  negócios  da  irmandade  de 
S.  Martinho. 

Em  cada  lista  vem  escripto  o  nome  de  um  bebe- 
dor conhecido. 

E  deixa-selhe  a  lista  em  casa. 

Quando  o  sujeito  tem  graça,  tira  partido  da  situa- 
ção: 

—  O  que?I  Pois  inscreveram-me?  Não  pôde  ser! 
Ha  outras  pessoas  mais  qualificadas  para  esse  cargo. 

—  Nós  é  que  fazemos  a  eleição. 

—  Mas  se  eu  sou  elegivel,  também  sou  eleitor.  O 
meu  voto  é  a  favor  de  Fulano. .  . 

E  cita  um  nome,  que  ás  vezes  tinha  esquecido,  e 
que  é  eifectivamente  o  de  uma  pessoa  que  não 
regatea  sacrifícios  a  Baccho. 

Este  anno,  segundo  dizem  de  S.  João  da  Pes- 
queira, eram  onze  horas  da  noite  e  ainda  nas  ruas 
da  povoação  andava  o  aiegre  bando  tangendo  cam- 
painhas e  chocalhos,  repenicando  nos  caldeiros. 

Um  amável  correspondente  d'ali,  mandando  no- 
ticia do  caso  á  redacção  do  Popular,  commenta-a 
com  esta  consideração : 

aQuando  todos  os  costumes  tradicionaes  tendem 
a  extinguir-se  lentamente,  pasma-se  ao  ver  o  enthu- 
siasmo  frenético,  a  exaltação  febril  com  que  em 
muitas  terras  do  reino,  principalmente  no  norte,  se 
festeja  o  S.  Martinho  ou  antes  o  Deus  Baccho.» 

Emquanto   o    i  apazio    se    esfalfa   a  gritar   pelas 

7 


g8  COLLECÇÃO    ANTÓNIO    MARIA   PKREIRA 

ruas,  os  felizes  que  teem  pipa  em  casa,  tratam  de 
metter-sc  na  adega  a  tirar  a  prova  do  seu  vinho 
novo. 

Os  portuguezes'  antigos  diziam  :  Em  dia  de  S. 
Maninho,  lume,  castanha  e  vinho. 

Que,  no  fim  de  contas,  o  S.  Martinho  é  uma  festa 
agrícola  para  celebrar  a  «novidade»  do  anno,  e  com- 
prehende  se  que  nas  regiões  vinhateiras  seja  essa 
festa  mais  ruidosa  do  que  nos  logares  aonde  a  tradi- 
ção pode  ter  chegado,  mas  onde  a  cultura  da  vinha 
é  quasi  nulla  ou  insignificante. 

No  Douro  e  no  Minho  ha  folia  rija. 

A  «novidade»  do  anno  é  desflorada  no  dia  de  S. 
Martinho,  principalmente  á  noite,  em  convívio  de 
amigos  e  visinhos. 

E  chovem  os  commentarios: 

—  Boa  «novidade»! 

—  De  se  lhe  tirar  o  chapéu! 

Porque,  a  respeito  de  vinho,  os  lavradores  pare- 
cem-se  com  os  litteratos,  no  juizo  que  fazem  da 
ultima  producção :  é  sempre  a  melhor. 

E  não  é  improficua  a  prova  para  o  effeito  da  ven- 
da, porque  os  visinhos  e  os  amigos  vão  espalhar 
pela  povoação  a  fama  do  vinho  novo  que  prova- 
ram. 

—  Quem  tem  uma  rica  pinga  este  anno,  é  Fu- 
lano ! 

—  Um  néctar  ! 

—  Um  bálsamo  ! 

Se  é  no  Minho,  está  claro  que  não  é  precisamente 
um  bálsamo,  mas  um  valsamo. 

—  Este   anno,  o  bej^de  de  Fulano  é  um  valsamol 


NINHO  DE  GUINCHO  99 

E  estalejam  com  a  ponta  da  lingua  no  ceu  da 
bocca  para  dar  a  impressão  de  que  ainda  se  não 
fartaram  de  saborear  o  valsamo  berde. 

O  correspondente  da  Pesqueira  acrescenta  á  sua 
interessante  informação  este  pormenor  : 

«Alguns  dos  que  em  sua  casa  tiram  a  prova  do 
vinho  novo,  fazem  no  tão  desastradamente,  que 
adormecem  nas  adegas  por  não  atinarem  com  a 
cama  ou  lhes  parecer  a  noite  muito  quente  e  não 
poderem  supportar  o  calor  que  os  cobertores  lhes 
causariam.» 

Mas  quanto  mais  feliz  é  a  vida  da  província  do 
que  a  da  capital  —  até  na  rapioca  do  S.  Martinho! 

Na  província  pode  uma  pessoa  embebedar-se  na 
sua  própria  casa,  dentro  da  sua  adega,  e  adorme- 
cer ali. 

Em  Lisboa  tem  de  ir  embebedar  se  á  taberna  ou 
ao  1'estaiirant  e  não  sabe  o  que  succederá  até  con- 
seguir dar  entrada  em  casa. 

Conta-se  de  um  alfacinha  que  na  noite  de  S. 
Martinho,  não  podendo  equilibrar  se,  por  ver  andar 
á  roda  todas  as  casas,  se  sentara  no  passeio  da  rua 
e  ali  se  deixara  ficar. 

Veiu  a  policia. 

—  O  que  é  que  faz  aqui  ? 

—  Estou  á  espera  que  passe  a  minha  casa  para 
enfiar  pela  porta  dentro. 

ibyS  —  Novembro. 


XII 


BONECOS  E  LOIÇA  DE  BARRO 


Decerto  viram  nos  jornaes  a  noticia  de  que  es- 
tava actualmente  fazendo  sensação  em  Berlim  uma 
exposição  de  bonecos? 

E  talvez  ririam. . . 

Mas,  que  diabo !  a  Allemanha  não  é  precisa- 
mente um  paiz  frivolo  e  fútil,  que  dê  importância  a 
ninharias  ridículas 

A  exposição  não  foi  promovida  por  uma  creança 
ou  por  um  maníaco,  senão  que  por  uma  illustre 
dama,  que  tem  na  Europa  uma  evidente  posição 
social. 

A  iniciativa  deve-se  á  rainha  da  Romania,  conhe- 
cida no  mundo  litterario  pelo  pseudonymo  de  Cár- 
men Sylva. 

Quem  deu  execução  á  ideia  da  iniciadora  foi  outra 
dama,  de  quasi  igual  evidencia  na  aristocracia  eu- 
ropea  :  a  princesa  de  Wiede. 


NINHO  DE  GUINCHO  101 

Devemos  então  reflectir  um  momento  n*esta  sim- 
ples coisa  :  que  não  se  reuniriam  duas  senhoras  dis- 
tinctas,  intelligentes  e  nobres,  para  realisar  uma 
empresa  balda  de  qualquer  pensamento  alto  e  ex- 
pressivo. 

Eífectivamente,  os  bonecos  agora  expostos  em 
Berlim  não  constituem  um  brinquedo  de  creanças, 
uma  enfantillage  frivola,  mas  um  facto  de  impor- 
tância scientifica,  de  interessante  valor  ethologico, 
porque  os  bonecos  representam  uzos  e  costumes  de 
varias  épocas  e  paizes. 

A.  collecção  mais  admirada  é  a  que  pertence  á 
rainha  da  Romania,  composta  de  manequins  vesti- 
dos com  os  trages  uzados  na  região  dos  Balkans. 

N'esta  «expressão»  histórica  reside  principalmente 
o  interesse  da  exposição,  á  parte  o  valor  artístico 
da  esculptura,  da  pintura,  e  o  valor  material  da  ri- 
queza dos  fatos. 

Eu  fiquei  contentíssimo  com  a  noticia  d'esta  ex- 
posição, que  infelizmente  não  posso  ver. 

E  á  sombra  d'essa  empresa,  iniciada  e  realisada 
por  duas  princesas,  tratei  de  abrigar  a  minha  anti- 
ga predilecção  pelos  bonecos  de  barro,  que  repre- 
sentam costumes  portuguezes,  e  que,  nas  horas  que 
eu  passo  trabalhando,  me  rodeiam  alegremente  em 
numero  não  inferior  a  quatrocentos. 

Tem  cada  pessoa  a  sua  mania,  e  se  as  manias 
não  molestam  ninguém,  são  dignas  de  absolvição. 

A  fallar  verdade,  pouco  me  importa  que  me 
absolvam  ou  condemnem  ;  sou  assim,  e  já  agora  é 
tarde  para  mudar  de  caminho. 

O   boneco  que  mais  me  interessa  e  encanta  é  o 


102  COLLECÇAO  ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

pequenino,  de  um  decimetro  de  altura,  ás  vezes  de 
uma  ingenuidade  de  esculptura  verdadeiramente  pri- 
mitiva :omo  obra  de  arte,  mas  tocado  de  uma  certa 
expressão  de  naturalidade  na  physionomia  e  na  alti- 
tude. 

Conheço  desde  creança  os  bonecos  do  Porto,  que 
teem  o  triplo  da  altura  dos  de  Lisboa,  e  que  são 
primorosos  como  obra  de  arte,  sobretudo  no  apuro 
e  perfeição  dos  trajos. 

Lá  estão  ainda  expostos  á  venda  na  rua  da  As- 
sumpção ou,  como  na  minha  infância  se  dizia,  atra^ 
dos  Clcrigôs.  Lisboa  conhece  alguns  exemplares, 
que  apparecem  aqui  á  venda  n'uraa  ou  n'outra  lo^a, 
e  cujo  preço  vacilla  entre  i8  e  25  tostões.  Exceptue- 
mos os  grupos,  como  o  carro  de  bois.  que  custa 
sete  ou  oito  mil  réis,  e  a  procissão,  que  pode  custar 
cinco  ou  seis  libras. 

Conheço  os  bonecos  da  ilha  da  Madeira,  em  terra 
cotta,  de  que  possuo  apenas  dois  exemplares,  que 
me  enviou  do  Funchal  o  sr.  conselheiro  Sousa  e 
Silva,  quando  ali  era  governador  civil. 

Mas  a  minha  sympathia  foge  para  os  bonequinhos 
de  Lisboa,  que  ordinariamente  se  compram  a  cinco 
e  seis  vinténs,  e  aue  representam  a  vida  das  ruas, 
a  expressão  caracteristica  do  nosso  povo  em  plena 
actividade. 

Sim,  coUecciono  furiosamente  esses  bonequinhos, 
que  algumas  creanças  despedaçam  sem  piedade,  e 
que  eu  vou  reunindo  com  dedicado  empenho. 

Outras  pessoas  ha  que  pacientemente  orgaiiisam 
coUecçÓes  de  sellos,  bengalas,  pinturas,  loiças,  crys- 
taes,  leques,  alfinetes,  etc. 


NINHO  DE  GUINCHO  Io3 

Eu  collecciono  bonecos  de  barro  e  confesso  com 
franqueza  qu'.'  é  esse  um  dos  maiores  regalos  e  pra- 
zeres do  meu  espirito. 

Como  nasceu  esta  mania?  Não  sei  bem.  Como 
nascem  as  paixões  e  as  doenças  ?  Quasi  nunca  se 
sabe  ao  certo.  Um  dia,  sem  que  me  lembre  já  onde 
e  quando  isso  foi,  comprei  os  primeiros  bonecos, 
cujo  valor  ethologico  avultou  aos  meus  olhos,  apesar 
da  imperfeição  da  esculptura. 

N'esse  tempo,  creio  poder  aííirmal-o,  apenas  as 
creanças  iam  ás  capellistas  comprar  bonecos  de 
barro,  especialmente  pelo  Natal,  em  que  teem  maior 
procura  as  figuras  de  Presépio. 

Lembro-me  de  que  uma  vez,  conversando  com  o 
lojista  Prior,  na  rua  Augusta,  lhe  perguntei  se  eram 
muitas  as  pessoas  adultas  que  entravam  no  seu  es- 
tabelecimento a  comprar  bonecos  de  barro. 

—  Não,  senhor,  respondeu  elle.  Apenas  creanças 
e  extrangeiros. 

—  Extrangeiros  ? 

—  Sim,  senhor.  Quando  toca  algum  paquete  em 
Lisboa,  muitos  passageiros,  especialmente  allemães 
e  inglezes,  aqui  vem  procurar  os  bonecos,  que  apre- 
ciam muito. 

—  Pudera!  repliquei  eu  n'um  afogo  de  coUeccio- 
nador  apaixonado.  Isso  comprehende-se.  São  pes- 
soas intelligentes,  que  passando  por  um  paiz,  e  não 
podendo  levar  os  homens  e  as  mulheres  que  viram 
e  representam  os  uzos  e  costumes  d'esse  paiz,  com- 
pram como  recordação  os  bonequinhos  que  dispen- 
sam os  viajantes  de  estar  copiando  de  afogadilho 
trajos  e   physionomias  nas  paginas  do  seu  álbum. 


104  COLLECÇAO  ANTONÍO   MARIA    PEREIRA 

E  alguns  não  saberiam  desenhar,  infelicidade  que 
também  me  acontece  a  mim.  Mas  o  boneco  de  bar- 
ro salva  a  situação,  porque  é,  no  fim  de  contas,  a 
miniatura  de  um  povo. 

Adquiridos  os  primeiros  bonecos,  começou  a  pas- 
sar me  pelo  espirito  a  ideia  de  que  seria  possível 
aperfeiçoal-os.  Entre  os  imperfeitos  escolhi  os  mais 
perfeitos,  e  tratei  de  averiguar  quem  tinha  sido  o 
oleiro  que  os  produzira. 

Fui  a  sua  casa,  e  por  signal  que  dei  um*a  boa  ca- 
minhada. 

Entrei  n'uma  mansarda  que  respirava  pobresa  e 
miséria.  E  encontrei  um  doente  postado  deante  de 
uma  banca  de  pinho  a  fazer  bonecos. 

Sentei-me,  e  mettendo  a  mão  no  bolso  do  palctot 
tirei  um  archeiro. . .  de  barro. 

Pul-o  sobre  a  banca  e  disse  ao  obscuro  artista  : 

—  Foi  o  sr.  quem  fez  este  archeiro? 

—  Não  sr.  Devia  ser  Fulano. 

Citou  o  nome  de  outro  oleiro  amador. 

Ora  o  archeiro  que  eu  levava,  era  um  mamarra- 
cho  pintado  a  almagre  e  ocre,  em  barro  crú,  com 
umas  pantorrilhas  enfunadas,  os  hombros  depremi- 
dos,  os  braços  pregados  ao  corpo,  as  mãos  incha- 
das de  frieiras,  e  uma  casaca  de  chéché.  Nenhuma 
expressão  humana,  nenhum  brio  profissional,  isto  é, 
ausência  de  po?,e  e  «caracter o  de  classe. 

—  iMas  diga  me  uma  coisa,  tornei  eu,  não  se  sen- 
te com  forças  de  fazer  em  barro  cosido  um  archeiro 
melhor  do  que  este  ? 

O  homem  respondeu  com  convicção  e  desvane- 
cimento : 


NINHO  DE  GUINCHO  105 


—  Sinto,  sim,  sr.  M:is  não  vale  a  pena,  porque 
as  lojas  pagam  muito  mal. 

—  Não  se  trata  de  lojas ;  trata-se  de  mim.  Sou  eu 
quem  lhe  encommendo  um  archeiro,  cujo  preço  não 
discutirei. 

—  Pois  bem !  Farei  um  archeiro  de  que  o  sr.  ha 
de  gostar.  Se  quizer  pagar  bem,  pode  custar-lhe  um 
crusado. 

—  Conte  com  cinco  tostões,  se  sahir  como  eu  de- 
sejo. Quando  posso  voltar  ? 

—  Para  o  fim  da  semana. 

—  Adeus,  até  sabbado. 

Não  faltei,  e  obtive  um  archeiro  com  expressão, 
bella  pose,  um  fato  bem  pintado,  uma  alabarda 
de  papelão  prateado :  uma  figurinha  que  represen- 
tava um  grande  progresso  na  esculptura  dos  bo- 
necos de  barro,  se  bem  que  as  pernas  deixassem 
ainda  alguma  coisa  a  desejar  em  verdade  anató- 
mica. 

D'ali  por  deante  comecei  a  encommendar  outros 
bonecos  ao  mesmo  artista,  que  se  foi  aperfeiçoando 
successivamente,  a  ponto  de  produzir  dez  ou  doze 
figuras  que  são  ainda  hoje  das  melhores  da  minha 
collecção. 

Era  eu  que  lhe  indicava  os  typos.  E  alguns,  como 
o  vendilhão  ambulante,  o  padeiro,  o  fadista,  sahiram 
magníficos;  regalei-me  de  os  ver. 

Pouco  depois  notava  eu  que  nas  lojas  do  Prior 
na  rua  Augusta  e  do  Cardoso  na  Bitesga  começa- 
vam a  apparecer  bonecos  muito  mais  perfeitos,  se 
bem  que  mais  caros. 

Desvaneci-me   de  ter   concorrido  para  esse  pro- 


I06  COLLECÇÃO   ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

gresso,   e,   para  o  animar,   comprava  os  bonecos, 
€mbora  os  tivesse  repetidos. 

Mas  comecei  a  achar  um  novo  encanto  no  facto 
mesmo  da  repetição  dos  bonecos  :  o  de  ter  deante 
de  mim  a  historia  da  evolução  do  boneco  de  barro 
como  obra  de  arte. 

Ultimamente,  no  Costa  da  rua  do  Ouro  e  no 
Joyce  do  Gaihariz,  tenho  comprado  deliciosas  figu- 
rinhas cheias  de  expressão  e  de  verdade. 

Ainda  ha  poucos  dias,  estando  presente  o  oleiro, 
encommendei  na  loja  do  Calhariz  uma  sopeira  em 
coUoquio  amoroso  com  um  soldado  da  guarda  mu- 
nicipal. 

Quarenta  e  oito  horas  depois  mostravam-me  ali 
o  specimen  da  sopeira  em  barro  crú.  Não  digo  que 
seja  uma  maravilha^  mas  tem  verdade,  especial- 
mente no  trajo.  Eu  sou,  indirectamente,  o  pae  doesta 
sopeira,  o  que  é,  talvez,  a  melhor  maneira  de  ser 
pae. 

Que  querem  ?  Alegra-me,  quando  pela  manha  abro 
a  janella  do  meu  escriptorio,  ver  animar-se  com  a 
luz  do  sol  todo  esse  mundo  de  figurinhas  portugue- 
zas,  que  representam  os  uzos  e  costumes  do  meu 
paiz,  e  que  do  alto  das  prateleiras  em  que  se  ali- 
nham me  dão  a  impressão  de  partir  cada  uma  d'ellas 
para  o  seu  destino,  para  o  seu  trabalho  quotidiano, 
para  as  suas  occupações  diárias  :  o  vendilhão  e  a 
varina  para  as  ruas,  o  archeiro  para  o  Paço,  o  offi- 
cial  e  o  soldado  para  o  quartel,  o  padre  para  a 
egreja,  o  operário  para  a  fabrica,  o  cosinheiro  para 
a  ucharia,  o  engraxador  para  o  seu  vão  de  es- 
cada. 


NINHO  DE   GUINCHO  IO7 

E  parece-me  até  que  algumas  vezes  trocamos  pa- 
lavras de  estimulo  e  conforto. 

—  Vamos  a  isto,  digo  eu  aos  meus  bonecos  de 
barro,  começando  a  trabalhar-. 

—  Nós  já  cá  estamos,  respondem  elles.  Você  hoje 
levantou-se  mais  tarde,  seu  mandrião  1 

Ha  poucos  mezes  ainda,  um  dos  meus  bonecos 
faltou  á  sua  apresentação  matutina.  Vi  uma  lacuna 
na  collecção ;,  fui  saber  se  algum  d'elles  teria  parti- 
do para  as  suas  occupaçóes  sem  me  haver  dado  os 
bons-dias. 

Então  encontrei  estatelado  na  prateleira  um  chefe 
de  esquadra,  que  costumava  ser  muito  pontual  no 
serviço.  Tive  um  desgosto  grande.  Era  o  primeiro 
morto  da  minha  collecção. 

De  que  morreria  elle,  coitado  ?  Alguma  congestão 
cerebral,  talvez?  Gahira,  e  partira  pelo  meio,  como 
se  tivesse  quebrado. . .  a  espinha  dorsal. 

Haveria  crime  ?  Haveria  suicídio  ?  Os  outros  en- 
trincheiraram-se  n'um  silencio  impenetrável.  E  as 
investigações  da  judiciaria  não  deram  resultado. 

Pois  era  um  bom  chefe  de  esquadra,  elegante, 
airoso,  com  certa  attitude  marcial. 

Nem  sequer  pude  desejar  que  a  terra  lhe  fosse 
leve,  porque  o  deitaram  no  barril  do  lixo  e  foi  d'aii 
para  a  carroça. 

A  acquisição  dos  bonecos  trouxe  me  o  desejo  de 
estudar  a  sua  fabricação  através  dos  tempos  em 
Portugal.  Dei-me  a  esse  trabalho,  e  creio  que  ainda 
ninguém  iria  mais  longe  em  recolher  dados,  porme- 
nores, minúcias.  Mas  é  um  trabalho  pesado  o  de 
emprehender  a  coordenação  de  todo  esse  maré  ma- 


108  COLLECÇÁO    ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

gnum  de  apontamentos,  e  não  me  sinto  realmente 
em  boa  disposição  de  espirito  para  realisal-o  agora. 

,  Se  ha  tanto  quem  de  animo  ligeiro  escreva  a  res- 
peito de  tudo  ! 

Para  que  hei  de  eu  estar  a  cançar  me  em  ensinar 
os  outros,  que  m'o  não  agradecerão  ? 

Contento-me  com  olhar  para  os  meus  bonecos, 
ouvil-os,  conversai  os,  entendel-os  e  responder-lhes. 

Acreditem  :  é  um  grande  prazer. 

Talvez  os  senhores  duvidem  de  mim  ?  Pois  vão 
perguntal-o  á  rainha  da  Romania  e  á  princesa  de 
Wiede. 

1S98  —  Dezembro. 

II 

Se  torno  a  fallar  nas  figurinhas  de  barro,  não  e 
porque  essa  minha  predilecção  se  vá  tornando  mo- 
nomania,  nem  porque  eu  ufanamente  queira  cele- 
brar o  glorioso  facto  do  boneco  nacional  ter  já  con- 
quistado o  Chiado. 

Mas  a  verdade  é  que  conquistou.  Lá  estão  na 
montre  do  Bénard  algumas  figurinhas,  guarda  avan- 
çada do  exercito  conquistador.  Finalmente  chega- 
ram á  rua  mais  elegante  de  Lisboa,  onde  até  agora 
apenas  tinham  accesso  os  bonecos  francezes  e  al- 
mães.  Subiram,  treparam,  anstócratisaram-se!  Deus 
queira  que  se  não  estraguem.  ..  de  vaidade. 

Que,  a  fallar  verdade,  deve  ser  para  endoide- 
cer o  frágil  barro  de  que  é  feito  o  boneco  e. .  .  o 
homem,   vêr-se  fora  da  humilde  lojinha  de  capella, 


NINHO  DE  GUINCHO  IO9 


onde  viveu  tantos  annos  obscuramente,  achar-se 
de  um  momento  para  outro  em  exposição  no  Re- 
gent-Street  de  Lisboa,  dar  nas  vistas  ás  senhoras  do 
tom  e  aos  janotas  da  élite,  sentir-se  afidalgado  deante 
do  povo  boquiaberto  que  certamente  exclamará  : 
«Olha  quem  elles  são!  Conheci  os  laranjeira  nas  ca- 
pellistas  de  Alfama  e  do  Bairro  Alto!» 

Teve  o  Bénard,  honra  lhe  seja,  a  lembrança  de 
fazer  uma  exhibição  portugueza:  um  trecho  das  no- 
vas obras  do  porto  de  Lisboa.  Sobre  a  muralha 
coUocou  alguns  bonequinhos  de  barro,  typos  po- 
pulares, adquiridos  no  Centro  Commercial^  Agrí- 
cola e  Industrial^  da  rua  do  Loreto.  Ficou  uma 
linda  montre,  que  o  povo  não  se  farta  de  admi- 
rar. 

E  isso,  em  pleno  Chiado,  já  não  é  pequena  glo- 
ria para  envaidecer  os  bonecos  de  barro. 

Quanto  aos  homens,  que.  segundo  a  Biblia,  são 
feitos  da  mesma  massa,  sei  eu  que  entontecem  de 
orgulho  e  tomam  grandes  ares  de  toleima  quando 
se  encostam  a  uma  porta  do  Chiado.  Muitos  d'el- 
les  não  valem  um  chavo  gallego,  mas  é  vel  os  ali, 
e  acreditar,  porque  elles  o  acreditam,  que  valem 
um  dobrão  de  D.  João  V. 

Quanto  aos  bonecos,  também  de  barro,  que  ap- 
pareceram  agora  ali  na  moníre  do  Bénard,  fizeram- 
me  melhor  impressão,  achei-os  menos  irritantes  e 
muito  mais  modestos  do  que  os  homens.  Estão 
bem!  nem  acanhados,  nem  arrogantes ;  nem  timi- 
dos,  nem  philauciosos.  Muito  discretos,  sem  gauche- 
rie  e  sem  pretensão.  Uma  lindeza  de  bonecos ! 

Mas  se  eu  volto  a  fallar  d'elles,  é  a  propósito  e 


lio  COLLECÇAO  ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 

por  causa  dos  Presépios,  agora  expostos  ao  publico 
nas  egrejasque  os  possuem. 

Já  não  me  quero  referir  ás  casas  particulares, 
porque  além  do  Presépio  que  as  creanças  organi- 
sam  de  um  dia  para  o  outro  n'esta  época  do  anno, 
com  figurinhas  compradas  em  qualquer  loja  de  ca- 
pella,  rara  é  a  casa  de  família  antiga  onde  por  esse 
paiz  tora  não  haja  um  Presépio  de  algum  valor,  e 
endoideceria  quem.  se  propuzesse  fazer  a  sua  re- 
senha ou  descripção. 

Todos  os  conventos,  de  frades  ou  freiras,  tinham 
seu  Preesepio,  obra  aceiada,  e  até  conta  frei  Luiz 
de  Sousa,  na  Historia  de  S.  Domingos,  que  foi  uma 
freira  do  mosteiro  do  Salvador  em  Lisboa  quem, 
em  consequência  de  uma  devota  visão,  mandou  fa- 
zer o  primeiro  Presépio  que  se  viu  em  Portugal. 

Seria  assim  ou  não  seria.  Mas  frei  Luiz  de  Sousa 
lá  o  diz,  na  chronica  :  «E  d'aqui  se  começaram  a  fa- 
zer por  outras  egrejas  os  presépios  que  hoje  se  fa- 
zem em  quasi  todas.» 

Tenho  um  montão  de  apontamentos  sobre  Pre- 
sépios que  vi  em  conventos  da  provincia,  e  alguns, 
quantos!  me  terão  escapado.  Mas  quero  fallar,  ain- 
da que  seja  rapidamente,  de  um  só,  porque  notei 
n'elle  uma  circumstancia  digna  de  menção  especial. 
E'  o  do  Varatojo.  Como  ainda  hoje  acontece  em 
quasi  todos  os  Presépios,  ha  n'esse  um  tocador  de 
gaita- de-folles,  que  figura  de  cego,  com  uma  borra- 
cha de  vinho  a  tiracoUo.  E  o  moço  do  cego,  apro- 
veitando-se  da  confusão,  vae  bebendo  subrepticia- 
mente  o  vinho  da  borracha. 

Tem   graça.  E'   uma   novidade  jocosa,  que  falta 


NINHO   DE   GUINCHO  l  l  l 

/ 

n'outrGs  Presépios,  e  que  de  algum  modo  o  anima 
e  embrinca. 

Ramalho  Ortigão,  no  livro  O  culto  da  arte  em 
Portugal ^  chama  «encantadoras»  ás  figurinhas  dos 
Presépios  que  sahiram  das  mãos  de  Faustino  José 
Rodrigues,  de  António  Ferreira  e  Machado  de  Cas- 
tro. Tem  razão.  E'  realmente  um  encanto  para  os 
olhos  esse  lindo  Presépio  da  Sé  Patriarchal,  que 
está  ainda  completo  —  o  que  é  raro  —  e  que  se  en- 
contra na  3.*  capella  da  charola,  isto  é,  por  deiraz 
da  capelia-mór. 

As  figuras  foram  modeladas  pelo  famoso  Ma- 
chado de  CastrO;  por  encommenda  de  um  benefi- 
ciado de  appellido  Oliveira,  que  depois  as  doou  á 
Sé. 

Além  do  Presépio  da  Sé,  Ramalho  Ortigão  falia 
dos  da  Madre  de  Deus,  Coração  de  Jesus  e  mar- 
quez  de  Borba,  que  se  destroçaram. 

Mas  cumpre  mencionar  ainda  o  da  Estrella,.  cujas 
figuras  também  são  de  Machado  de  Castro  (1776  a 
1800)  e  o  de  Belém. 

O  da  Estrella  é  decerto  o  maior  de  Lisboa.  Tem 
figuras  muito  bem  tratadas,  posto  que  os  anachro- 
nismos  sejam  em  barda.  Ha  um  bello  gruposinho^ 
de  judeus  que  estão  jogando  as  cartas  (as  cartas 
santo  Deus !)  tão  feliz  na  expressão  e  tão  perfeito^ 
na  esculptura,  que  já  por  trez  vezes  o  quizeram 
roubar.  Outras  figuras  foram  mutiladas  pelas  crean- 
ças  que  d'antes  podiam  aproximar  se  do  Presépio, 
e  agora  não.  Bera  entendido;  pena  foi  ser  já  tarde. 

Também  merece  especial  menção  o  Presépio  de 
Santo  António  dos  Capuchos,  que  paga  bem  a  ma- 


I  I  2  COLLECÇAO  ANTÓNIO  MARIA  PERKIRA 

cada  de  subir  ao  Campo  de  Sant'Anna  para  o  ir 
ver. 

E'  comtudo  preciso  estar  de  pé  atraz  com  uma 
infinidade  de  figuras,  queporahi  nos  inculcam  como 
tendo  sido  feitas  por  Machado  de  Castro.  Nos  bi^ic- 
à-bracs,  quando  apparece  á  venda  algum  Presépio 
de  casa  particular,  é  sempre  de  Machado  de  Cas- 
tro—por força!  E  pedem  por  elles  quantias  fabu- 
losas, que  não  valem,  porque  de  Machado  de  Cas- 
tro não  teem  nada. 

E'  certo  que  este  artista,  que  morreu  muito  ve- 
lho, trabalhou  muito,  mas  ainda  que  tivesse  tido 
dobrada  existência,  não  lhe  chegaria  o  tempo  para 
todos  os  bonecos  que  lhe  são  attribuidos. 

O  sr.  visconde  de  Castilho  diz  judiciosamente 
que  o  Presépio  é  o  vestígio  derradeiro  do  mysterio 
medieval.  Farei  comtudo  uma  observação  :  vestígio, 
sim  ;  derradeiro,  não.  Ainda  hoje,  por  essas  aldeãs 
do  Minho  fora,  se  representam  mysterios,  de  uma 
ingenuidade  verdadeiramente  mediévica,  e  até  na 
maior  parte  das  vezes  são  representados  deante  de 
algum  Presépio.  • 

Mas  não  padece  duvida  que  a  singela  iconogra- 
phia  dos  Presépios  tem  o  perfume  das  ultimas  flo- 
res sêccas  da  idade-media,  cuidadosamente  conser- 
vadas na  tradição  popular. 

Muitos  dos  seus  anachronismos  são  deliciosos  de 
ingenuidade,  e  demonstram,  a  meu  vêr,  a  força  de 
resistência  da  religião  christã.  Os  oleiros,  segundo 
sua  época,  vão  collocando  no  Presépio  as  figuras 
do  seu  tempo,  e  talvez  ainda  venham  a  apparecer 
em  torno    da   lapinha   de  Bethlem  personagens  de 


NINHO  DE   GUINCHO  Il3 

chapéu  alto  descendo  pela  montanha,  reis  magos 
vestidos  de  generalíssimos.  Mas  isso  quer  dizer  que 
o  christianismo  vae  passando  de  geração  em  gera- 
ção, de  moda  em  moda,  sem  se  sentir  defraudado 
na  fé  e  culto  que  inspira,  como  sendo  uma  religião 
que  resiste  a  todas  as  revoluções  philosophicas,  in- 
cluindo a  do  chapéu  alto. . .  oco  de  philosophia. 

Nos  Presépios  portuguezes  figuram  os  nossos 
pastores  do  norte  ou  os  nossos  saloios  do  sul,  co- 
mo se  Bethlem  fosse  uma  terreola  do  Minho  ou 
da  Extremadura. 

Mas  quanta  cor  local  n'essas  figurinhas  dos  Pre- 
sépios I  como  ellas,  em  relação  ao  nosso  paiz,  são 
verdadeiras  no  trage,  na  physionomia,  e  na  altitu- 
de! Perdoa-se-lhes  o  anachronismo  pelo  bem  que 
parecem.  E'  uma  vasta  collecção  de  figuras  portu- 
guezas  representando  um  grande  drama  que  não 
foi  portuguez,  nem  pelo  protogonista,  nem.  pelo  lo- 
cal da  acção. 

No  Anatómico  jocoso  vém  descriptas  algumas 
d'ellas,  que  são  nossas,  muito  nossas,  ainda  hoje 
vivas.  Querem  ver  a  saloia  dos  queijos  ?  Pois   e!la 

ahi  vae : 

...  a  senhora 
saloia  dos  queijos, 
cara  de  toranja, 
olhos  de  morcego, 
gibão  de  prestinas, 
collete  vermelho, 
saia  debruada, 
manteo  amarello. 

Ahi  vem  agora  descendo  para  a  lapinha  a  pas- 
tora de  Odivellas  —  outra  saloia  : 

8 


114  COLLECÇAO    ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

lenço  soqueixado, 
manteo  de  parrilhaf 
bota  até  o  artelho, 
gibão  de  pretinas. 

E'  O  Presépio  portuguez  do  sul  em  toda  a  sua 
verdade  ethologica. 

Nos  Presépios  do  norte  as  botas  das  pastoras  são 
substituídas  pelas  solêtas,  os  lenços  da  cabeça  pe- 
los chapéus  redondos  e  pequeninos,  os  cabazes  pe- 
las canastras,  as  capas  dos  homens  pelas  palhoças 
e  o  barrete  de  lá  pelo  sombreiro  de  Braga. 

Deante  de  todas  estas  figuras  do  sul  ou  do  norte, 
sente-se  a  vida  simples,  singela  de  Portugal,  a  al- 
ma boa  e  crédula  do  nosso  povo  agrícola,  e  perce- 
be-se  que  um  Presépio,  assim  constituído,  seja  um 
forte  traço  de  união  para  reunir,  na  noite  de  Natal, 
todas  as  pessoas  da  mesma  família  n'um  serão  de- 
licioso de  intimidade. 

Mas  o  costume  vae  a  acabar,  especialmente  no  sul. 
Em  Lisboa  ha  os  theatros,  os  colyseus,  as  associa- 
ções de  dar  á  perna,  que  dispersam  as  famílias.  No 
norte,  ha  ainda  o  Presépio,  sempre  o  Presépio,  o 
auto  religioso  ou  mysterio^  a  ceia  de  vinho  quente, 
as  rabanadas,  os  ovos  mexidos,  os  bolinhos  de  ba- 
calhau e  bolina,  a  congregação  da  família  toda  á 
volta  da  mesa,  porque  até  os  filhos  pródigos  voltam 
n'essa  noite  á  casa  paterna  e  são  perdoados. 

Quando  a  invasão  dos  costumes  modernos  inun- 
dar as  villas  das  províncias  do  norte,  quando  ceder 
o  logar  á  guarda  municipal  ou  á  policia  civil,  ver- 
se hão  dois  policias  de  sentínella  á  lapa  de  Be- 
thlem,  esquadrões  de  lanceiros  descendo  a  montanha 


NINHO  DE   GUINCHO  Il3 


illuminada  por  candieiros  de  gaz,  reporíers  de  jor- 
naes  tomando  apontamentos  á  pressa,  mas  o  Pre- 
sépio subsistirá,  amoldado  ás  circumstancias  do 
tempo,  e  com  o  Presépio  triumphará,  através  de 
todas  as  idades,  a  recordação  do  grande  facto  his- 
tórico, que  se  memora  e  commemora  religiosamente 
na  noite  de  Natal. 

Se  os  senhores  querem  ver  um  lindo  Presépio, 
que  seja  digno  de  ver-se,  vão  ali  á  Sé  ou  á  Es- 
trella,  que  hão  de  dar  o  seu  tempo  por  bem  em- 
pregado. 

Mas  passem  primeiro  pelo  Chiado  e  parem  um 
momento  deanie  da  montre  do  Bénard  a  observar 
as  figurinhas  de  barro,  que  lá  estão  expostas,  e 
que  conseguiram  aristocratisar-se  a  ponto  de  fica- 
rem entaladas  entre  duas  lojas  chies,  uma  com  ja- 
notas á  porta,  outra  com  viscondes  dentro. 

1898 — Dezembro. 

III 

E'  costume,  nos  Passos  de  Carnide,  os  alumnos 
do  collegio  militar  marcharem,  atraz  do  pallio, 
muito  garbosos  e  sérios  —  com  a  consciência  de  se- 
rem o  exercito. . .  do  futuro. 

Hontem,  na  Luz,  vi  a  procissão,  mas  não  vi  os 
alumnos,  que  faltaram,  dizia-se  que  por  causa  da 
chuva. 

Em  todo  o  caso,  na  ausência  d'essas  figurinhas 
vivas  de  jovens  militares,  lembrou-me,  não  sei  bem 
dizer  como,  certa  nota  de  Filinto  Elysio  a  respeito 


Ij6  COLLECÇÃO  ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

de  uma  antiga  procissão  que  outr'ora  se  fazia  na 
quaresma,  em  Lisboa,  e  na  qual  as  imagens  e  os 
penitentes  eram  ainda  mais  pequenos,  decerto,  que 
os  alumnos  do  collegio  militar. 

Eram  de  barro  —  eu  amo  as  figuras  de  barro,  )á 
sabem — e  os  estudantinhos  da  Luz  também  o  são, 
porque,  lá  diz  muito  bem  o  auctor  dos  Avisos  do 
ceu :  «mais  barro,  menos  barro,  tudo  n'este  mundo 
é  barro.» 

Não  somos  outra  coisa. 

Chegando  a  casa  comecei  a  folhear  Filinto  no 
empenho  de  encontrar  a  nota. 

—  Pois  você  tem  em  casa  o  Filinto!  que  peste! 
dirá  algum  leitor  mais  sábio  entre  os  sábios  moder- 
nos. 

Tenho,  sim,  porque  esse  diabo  de  homem,  que 
era  um  duro  poeta,  refractário  á  rima,  tem  um  vo- 
cabulário tão  seu,  e  tão  nosso,  um  geito  de  phrase 
tão  pittoresco  e  luzitano,  uma  ironia  tão  funda  e  ao 
mesmo  passo  tão  ingénua,  que  não  se  pode  pres- 
cindir d'elle  n'uma  livraria  que  valha  alguma  coisa. 
<  Sempre  me  ha  de  lembrar  que  o  antigo  profes- 
.sor  do  Lyceu  do  Porto,  o  sr.  Manuel  Emílio  Dantas, 
que  foi  meu  mestre,  me  dizia  uma  vez  no  botequim 
da  Águia  d' ouro  : 

—  Não  se  pode  saber  portuguez  sem  se  ter  to- 
mado o  gosto  á  traducção  de  De  rebus  Emanuelis 
por  Filinto  Elysio. 

—  Acha  isso,  sr.  Dantas?!  perguntei  eu,  que  en- 
tão não  podia  entrar  com  o  bom  do  Francisco  Ma- 
nuel. 

Preferia-lhe  Soares  de  Passos,  o  das  tristezas,  o 


NINHO  DE  GUINCHO  II  7 


i 


doce  poeta   da  morte,   que   era   em  poesia  o  meu 
evangelista. 

E  não  sei  se  ainda  será. . .  porque  não  topei  me- 
lhor—  nem  maior. 

O  professor  Dantas  desfechou-me  na  cara  uma 
d'aquellas  pyramidaes  gargalhadas,  que  retumba- 
vam quando  lhe  sahiam  dos  lábios  como  uma  bomba 
de  dynamite,  e,  descançando  um  momento,  disse 
entre  alegre  e  auctoritario: 

—  Não  trate  você  de  entender-se  com  o  F^ilinto  e 
queixe-se  depois. 

Esse  Dantas  era  bem  meu  amigo,  e,  alguns  an- 
nos  mais  tarde,  lembrando-me  o  seu  conselho,  se- 
gui-o. 

Entendi-me  com  o  Filinto. 

Pois  bem.  Chegando  a  casa,  á  volta  de  Carnide, 
fui  procurar  a  nota.  Deu-me  algum  trabalho  a  en- 
contral-a;  mas  encontrei.  Eil-a  aqui: 

«Se  já  não  vem  pela  quaresma  a  Charola  da 
Ajuda  dar  um  descante  ao  Divino,  pelas  ruas  de 
Lisboa,  necessário  será  contar  aos  rapazes  de  agora 
a  composição  d'ella.  Pelo  pouco  que  me  recordo, 
creio  que  era  um  andorsinho  assentado  em  dois  va- 
rapaus, cangado  nos  hombros  de  dois  saloios,  aco- 
bertado c'uma  toalha  de  mãos,  como  carro  de  roma- 
gem, com  muitos  senhorinhos  dos  Passos,  muitos 
penitentes  brancos,  todos  de  barro  pintado,  e  tudo 
por  dentro  allumiado  com  rolinhos  de  cera-,  e  em 
roda,  por  detraz,  e  por  diante  muito  aldeão  berrando 
certa  lenga-lenga  devota;  e  pedindo  muita  esmola, 
que  espalhadas  pelas  mãos  e  algibeiras  dos  canto- 
res,^ e  mais  matula  (porque  ali  n'aquella  confraria 


Il8  COLLECÇÁO  ANTÓNIO   MâRIÂ   PEREIKA 


todos  são  thesoureiros)  iam  diminuindo  pelas  baiu- 
cas,  até  chegar  á  Ajuda,  sem  pada.» 

Digam-n'o  melhor,  se  são  capazes. 

Não  são. 

E,  parando  deante  da  nora  de  Filinto,  como  ti- 
nha parado  deante  da  procissão  de  Carnide,  come- 
cei a  pensar  na  delicia  que  eu  sentiria  se  possuisse 
alguns  dos  bonequinhos  da  charola  da  Ajuda  e  pu- 
desse dizer  a  mim  próprio  authenticando-os: 

—  São  os  mesmos  de  que  falia  Filinto  I 

Não  tenho  essa  procissão,  mas  tenho  outra,  a 
dos  Passos  moderna,  toda,  completa,  até  com  a 
guarda  municipal,  cuja  banda  me  parece  ir  tocando 
as  marchas  do  sr.  visconde  de  Oliveira  Duarte, 
tanto  vivem  aquelles  inanimados  bonequinhos. 

E  então  comecei  eu  a  pensar  n'uma  noticia  que 
tinha  visto  nos  jornaes  e  que,  ao  ler  a  nota  de  Fi- 
linto, me  acudiu  á  lembrança  por  associação  de 
ideias. 

Que  o  Atheneu  Commercial  vae  fazer  uma  expo- 
sição de  cerâmica  portugueza. 

Toma  lá  I 

O  Popular  já  disse,  e  com  razão,  que  essa  expo- 
sição era  muito  difficil  de  organisar  e  que,  mal  feita, 
seria  meluor  não  fazer-se. 

Pois  assim  mesmo  é  que  é. 

Uma  exposição  d'esse  género,  para  corresponder 
inteiramente  ao  seu  fim,  deve  abranger  os  bonecos 
e  as  loiças.  São  dois  capitulos  vastos  —  especial- 
mente as  loiças. 

Querem  uma  ideia  das  dificuldades  que  terão  a 
vencer  os  organisadores  d'essa  exposição  ? 


NINHO  DE   GUINCHO  1  I9 

Ahi  vae.  Em  Lisboa  e  em  todo  o  paiz  são  muito 
conhecidas  as  bilhas  de  Estremoz,  e  bem  o  mere- 
cem, porque  são  as  melhores,  mas  em  muitas  re- 
giões de  Portugal  se  fabricam  potes,  cântaros,  bi- 
lhas, talhas,  infusas,  pucarinhas  sui  getierisj  que  an- 
dam até  mencionados  nos  poetas  antigos. 

Lembram-se  d'aquellas  lindas  voltas  de  Camões? 

Leva  na  cabeça  o  pote, 
O  testo  nas  mãos  de  prata, 
Cinta  de  fina  escarlata, 
Sainho  de  chamalote  : 
Traz  a  vasquinha  de  cote, 
Mais  branca  que  a  neve  pura ; 
Vae  formosa,  e  não  segura. 

Também  se  hão  de  lembrar  da  glosa  de  Rodri- 
gues Lobo  sobre  o  mesmo  assumpto: 

A  talha  leva  pedrada, 
Pucarinho  de  feição. 
Saia  de  còr  de  limão, 
Beatilha  suqueixada: 
Cantando  de  madrugada, 
Pisa  as  flores  na  verdura, 
Vae  formosa  e  não  segura. 

A's  pucarinhas,  que  ainda  hoje  são  uzadas.para 
guardar  mel,  se  refere  Gil  Vicente  no  Auto  da  Feira, 
quando  chega  ao  tablado  Branca  Annes  e  diz  fei- 
rando : 

Eu  queria  ua  pucarinha 
Pequenina  para  mel. 

Pois  em  quasi  todo  o  paiz  se  fabricam  vasilhas 
de  barro  para  agua  e  mel,  não  obstante  ter  a  pri- 


I20  COLLECÇÃO    ANTÓNIO   MARIA   PtREIRA 

masia  Estremoz,  que  é  a  bem  dizer  a  cidade  de 
Andujar  portugueza. 

Os  senhores  sabem  que  a  riquesa  vital  da  antiga 
cidade  de  Andujar,  na  Andaluzia,  é  um  barro  leve, 
amarello-pardacento,  de  que  ali  se  fazem  as  vasi- 
lhas que  téem  o  nome  de  —  alcara:^as. 

Postas  ao  ar,  refrescam  e  purificam  a  agua,  como 
acontece  com  as  bilhas  de  Estremoz. 

Trez  quartas  partes  dos  habitantes  de  Andujar 
são  oleiros. 

Isto  é  que  não  acontece  em  Estremoz,  onde  ha 
apenas  actualmente  cinco  casas  que,  verdadeira- 
mente em  família,  fabricam  bilhas  e  moringues. 

Uma  d'essas  casas  é  a  de  António  Guerreiro 
(Peixe),  sexagenário  quasi  inválido,  que  trabalha 
com  dois  sobrinhos,  um  de  quarenta  annos  e  doen- 
te^ o  outro,  um  rapaz  de  quatorze  annos,  cujo  tra- 
balho, a  bem  dizer,  sustenta  o  estabelecimento. 

Casa  de  José  Gallego,  homem  de  mais  de  cin- 
coenta  annos,  com  um  filho  rachitico. 

Casa  de  José  Feiticeiro,  sexagenário. 

Estas  trez  olarias  terão  um  movimento  annual  de 
5oo©ooo  réis  cada  uma. 

Casa  de  José  Maria  Firme,  o  qual  já  completou 
cincoenta  annos,  e  tem  filhos,  aliás  pouco  aprovei- 
táveis para  a  industria. 

O  seu  movimento  annual  será  de  Sooííooo  réis. 

Casa  de  Caetano  Augusto  da  Conceição,  conhe- 
cida pela  designação  de  Casa  Alfacinha.  Concei- 
ção não  é  oleiro  de  origem,  mas  dedicou-se  a  esta 
industria,  em  que  educou  trez  filhos  e  trez  filhas, 
das  quaes  já  morreu  uma.  Além  da  família,  traba- 


NINHO  DE  GUINCHO  121 

Iham  na  officina  mais  dois  homens  e  cinco  mulhe- 
res. Conceição  exporta  loiça  para  a  Africa,  Brazil 
e  Inglaterra.  Já  foi  premiado  por  duas  vezes,  em 
1884  e  1890. 

O  movimento  annual  d'esta  casa  orça  por 
i:ooo;37500o  réis.  Mas  o  proprietário  lucta  com  a  falta 
de  capital,  que  lhe  não  permitte  ter  bons  fornos. 

A  industria  em  Estremoz  está  decadente,  quasi 
ameçada  de  morte.  Quando  o  Conceição  ali  se  es- 
tabeleceu, havia  ainda  i5  officinas;  agora,  apenas  5. 
Os  donos  d'essas  olarias  foram  morrendo  na  po- 
bresa,  sem  deixar  descendentes  habilitados.  Assim 
como  desappareceu  em  Estremoz  a  linda  loiça 
branca,  que  ali  se  fabricava  no  século  XVIII  e  ainda 
no  principio  do  século  XIX,  a  loiça  vermelha 
tende  a  desapparecer,  e  desapparecerá,  se  a  Casa 
Alfacinha  cessar  por  qualquer  motivo. 

O  barro,  em  Estremoz,  encontra-se  a  rodos,  por 
toda  a  parte,  abundando  principalmente  nos  ater- 
ros que  em  tempo  se  fizeram  para  as  muralhas. 

As  bilhas  são  de  duas  espécies. 

j  .^  —  Lavradas,  com  ornatos  representando  pás- 
saros, flores  e  fructas ;  e  pedradas,  com  embrecha- 
dos  de  calcareo  muito  branco. 

O  famoso  poeta  Christovam  Falcão,  que '  era 
alemtejano  e  viveu  no  século  XVI,  descreve  as  bi- 
lhas de  Estremoz  quando  diz  : 

Ua  coifa  não  lavrada, 
Antes  sem  nenhum  lavor, 
E  em  cima,  por  mais  dor, 
Ua  talhinha  pedrada 
Ou  um  pedrado  atanor. 


122  COLLECÇÁO  ANTÓNIO   MARIA  PEREiRA 


Christovam  Falcão  escreve  atanor,  designando 
esta  vasilha  ;  mas  no  portuguez  antigo  encontram-se 
quatro  formas  :  atanor,  atenor,  tanor  e  tenor. 

2.*  espécie:  bilhas  lisas,  muito  polidas,  lustrosas; 
a  simplicidade  não  lhes  prejudica  a  bellesa. 

Em  Andujar  está  garantida  a  fabricação  das  ai- 
caraças,  porque  quasi  todos  os  habitantes  são  olei- 
ros. 

Em  Estremoz,  onde  a  loiça  é  linda,  comquanto 
os  bonecos,  que  também  lá  os  fazem,  sejam  de- 
testáveis, a  industria  agonisa,  morrerá  talvez. 

Mas  faz  pena  isto,  vêr  os  poderes  públicos,  ver 
principalmente  a  repartição  de  industria,  tratando 
de  coisas  grandes  e  problemáticas,  sem  curar  de 
acudir  a  uma  pobre  industria  alemtejana,  que  de- 
finha ali  em  Estremoz  á  mingua  de  recursos. 

O  governo  lerá  folhetins  ?  Talvez  não.  Se  lesse, 
eu  abençoaria  a  hora  em  que,  principiando  por  vêr 
a  procissão  de  Passos  em  Carnide,  me  lembrei  da 
nota  de  Filinto  e,  depois,  da  projectada  exposição 
do  Atheneu  Gommercial,  até  que  vim  parar,  não 
sei  bem  como,  na  famosa  loiça  de  Estremoz. 

O  meu  dever  é  conversar  com  o  leitor ;  conver- 
sei o  que  me  lembrou. 

Se  o  leitor  não  gostou,  outra  vez  gostará  mais 
—  se  gostar. 

1899 — Março. 


XIV 


o  SILENCIO 


Durante  toda  esta  semana  se  fallou  de  mais. 

Um  supposto  assassino  contou  a  um  guarda-por- 
tão  a  historia  dos  seus  crimes. 

E  desde  então  toda  a  gente,  imitando  o  guarda- 
portão,  começou  a  faliar,  a  fallar,  a  fallar...  sem  sa- 
ber ao  certo  o  que  dizia. 

Faz  lembrar  aquella  linda  canção  popular  da  Gré- 
cia, imitada  por  muitos  poetas,  segundo  a  qual  dois 
namorados  se  beijaram  tendo  por  única  testemunha 
o  ceu  brilhante. 

Mas  cahiu  n'esse  momento  uma  estrella,  que  foi 
contar  ao  mar  o  que  viu.  Passava  pouco  depois 
um  navio,  e  o  mar  —  naturalmente  recommendan- 
do  sempre  o  maior  segredo  —  contou  ao  leme  esse 
terno  segredo  de  amor  que  havia  surprehendido. 
O  leme  não  descançou  emquanto  não  disse  tudo 
ao  piloto,  que  desembarcando  o  contou  logo  á  sua 
amante.  E  d'ahi  a  pouco  tempo  toda  a  gente  o  sa- 
bia. Até  os  rapazes  da  rua  cantavam  a  historia  do 
beijo. 


124  COLLECÇAO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

Com  razão  disse  o  propheta  Jeremias  que  o  maior 
castigo  da  humanidade,  a  morte,  subiu  pelas  janel- 
las.  Ascendit  mórs  per  fenestras. 

Santo  Ambrósio  explica  o  que  sejam  estas  janel- 
las,  que  se  tornaram  perigosas  por  terem  estado 
abertas. 

E'  que  nossa  mãe  Eva  abriu  a  bocca  para  con- 
versar com  a  serpente,  a  qual  também  de  certo  não 
fechou  a  bocca  para  fallar. 

D'estas  duas  janellas  imprudentemente  abertas 
veio  a  maior  semsaboria  da  vida  :  a  morte. 

Foi  como  se  entrasse  uma  corrente  de  ar,  que  to- 
lheu a  humanidade  inteira. 

Eu  estou  de  perfeito  accordo  com  o  padre  Ma- 
nuel Bernardes  quando  exclama:  t Veja  se  se  im- 
porta tapar  bem  esta  janella,  pois  por  ella  mal  ta- 
pada entrou  a  ruina  de  todos  os  filhos  de  Adão  » 

Li  isto  ha  muitos  annos  e  nunca  mais  me  esque- 
ceu. 

A's  vezes,  quando  me  sinto  tentado  a  fazer  uma 
confidencia,  obedecendo  á  Índole  expansiva  de  to- 
dos osmeridionaes,  sinto  um  braço  invisível  tocar-me 
para  me  conter. 

Já  sei  quem  é  Detenho-me.  E  oiço  então  a  voz 
do  padre  Manuel  Bernardes  segredar-me  ao  ou- 
vido :  . 

—  Fecha  a  janella. 
E  cerro  a  adufa. 

Nunca  me  arrependi  de  ter  fallado  de  menos, 
pelo  que  estou  intimamente  convencido  da  profun- 
da verdade  d'aquelle  provérbio  oriental  que  diz.:  «A 
eloquência  é  de    prata;  mas  o  silencio  é  de  oiro. > 


NINHO  DE  GUINCHO  125 

E  se  algum  oiro  possuo  é  ainda  o  silencio.  Tam- 
bém já  não  ha  outro. 

Conta  se  que  existiu  um  certo  bispo,  muito  lido 
nos  Santos  Padres,  que  tinha  horror  de  fallar. 

Lembrava-se  constantemente  do  apostolo  S.  Thia- 
go,  que  judiciosamente  observou  ter  sido  a  taga- 
rellice  de  Eva  uma  pequena  faisca  de  que  se  origi- 
nou o  incêndio  de  um  bosque  inteiro. 

O  silencio  constituirá  n'esse  discreto  bispo  um 
habito  inveterado,  de  modo  que  se  estava  doente  o 
constrangia  muito  ter  de  responder  ás  perguntas 
do  medico. 

Era  uma  seca. 

—  Dorme  bem,  vossa  ex.*^'*  reverendissima  ? 

—  Não. 

—  E  vontade  de  comer  ? 

—  Pouca. 

—  Uma  grande  apathia,  não  é  assim  ? 

—  Sim. 

—  Bocca  saburrosa  ? 

—  Muito. 

—  Grande  cançaço ? 

—  Bastante. 

Por  mais  insignificante  que  fosse  a  doença,  o  ques- 
tionário do  medico  era  sempre  fatigante. 

A's  vezes  o  prelado  dizia  comsigo  mesmo :  «Quan- 
do eu  tiver  uma  doença  grande,  como  poderei  atu- 
rar o  doutor?» 

E  esta  ideia  entristecia-o  quasi  tanto  como  o  te- 
mor da  enfermidade. 

Passaram  annos,  acabrunhou-se-lhe  a  velhice, 
que  é  já  de  si  mesma  a  maior  das  doenças. 


120  COLLECÇÁO   ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

O  coração,  o  fígado,  os  rins  começaram  a  regu- 
lar'mal,  como  um  relógio  que  está  cançado  de  tra- 
balhar. 

Aconselharam  sua  excellencia  reverendíssima  a 
que  chamasse  um  medico. 

—  Valha-me  Deus !  dizia  o  bispo  coçando  na  ca- 
beça. Os  médicos  fazem  tantas  perguntas  ! 

Mas  veio  o  medico,  porque  os  familiares  do  bispo 
assim  o  quizeram ;  na  casa  dos  grandes  quem  go- 
verna são  os  pequenos. 

Realisou-se  o  que  o  prelado  receiava  :  maior  doen- 
ça, maior  interrogatório. 

Tão  fatigado  ficou  o  bispo  com  as  perguntas  do 
medico,  que  se  lembrou  de  fingir  que  estava  melhor 
só  para  não  ter  que  aturar  outra  vez  o  doutor. 

Mas  era  preciso  mentir,  e  a  mentira  repugnava-lhe. 

—  Se  eu  pudesse  fechar  a  janella...  pensava  o 
prelado. 

O  medico  voltava  no  dia  seguinte  e  abria-a  de 
par  em  par — vidraça  e  portas. 

Se  sentia  aquillo?  se  sentia  aquelFoutro  ?  se  o  re- 
médio fizera  effeito  ?  se  o  havia  tomado  a  horas  ? 
se  não  haveria  engano  nas  doses  ? 

Certa  manhã  o  bispo  lembrou-se  de  que  os  irra- 
cionaes  eram  mais  felizes  do  que  os  homens,  por- 
que não  tinham  que  responder  a  perguntas  nenhu- 
mas quando  estavam  doentes. 

Felizes  brutos !  pensou  o  bispo,  que  se  curam  sem 
fallar ! 

Sempre  cogitando  n'esta  idéa,  de  consequência 
em  consequência,  lembou-se  de  que  ali  ao  pé  da 
porta  do  paço  morava  um  alveitar  de  grande  fama. 


NJNHO  DE  GUINCHO  I27 

Chamou  um  dos  fâmulos  mais  Íntimos  e  disse-Ihe 
que  desejava  ser  tratado  pelo  alveitar. 

Espantou  se  o  fâmulo  ;  era  a  primeira  heresia  que 
tinha  ouvido  ao  seu  prelado. 

—  Faça  o  que  lhe  digo,  insistiu  o  bispo.  E  quero 
que  elle  me  trate  pelo  systema  das  bestas. 

—  Meu  senhor ! 

—  Não  quero  abrir  a  janella,  nem  que  elle  tam- 
bém a  abra,  Ascendit  mors  per  fenestras.  Quando 
os  alveitares  tratam  as  cavalgaduras  perguntam- 
Ihes  alguma  coisa  ? 

—  Não,  meu  senhor. 

—  E  não  as  curam  tantas  vezes  ? 

—  Sim,  meu  senhor. 

—  Os  mudos  não  são  tratados  á  semelhança  das 
bestas  sem  que  ninguém  lhes  pergunte  coisa  nenhu- 
ma ? 

—  São,  meu  senhor. 

—  Pois  eu,  que  não  sou  mudo,  desejo  que  o  al- 
veitar me  trate  como  irracional.  O  que  pode  aconte- 
cer de  peior?  Que  me  não  cure?  Mas,  ao  menos,  não 
me  terá  maçado. 

Veio  o  alveitar  muito  em  segredo,  e  bem  indus- 
triado pelo  fâmulo :  que  não  dissesse  nada  mais  e 
nada  menos  do  que  dizia  ás  bestas  que  tratava.' 

Que  sim  ;  que  faria  do  mesmo  modo,  visto  que 
era  isso  o  que  o  senhor  bispo  queria. 

Entrou  o  'alveitar  e  sem  dizer  palavra  apontou 
para  o  leito,  indicando  ao  prelado  que  se  deitasse 
para  ser  examinado  melhor. 

O  bispo  obedeceu  em  silencio. 

Então   o   alveitar,   arremangando   a  camisa,   es- 


128  COLLECÇÃO    ANTONMO  MARIA    PEREIRA 

palmando  as  grandes  mãos  calosas,  começou  a  apal- 
par as  costelias  do  bispo. 

Mas  quando  chegou  a  tocar-lhe  no  fígado,  o  bis- 
po  doeu-se   tanto,  que  se  contorceu  violentamente. 

E  o  alveitar,  proseguindo  serenamente  apostro- 
phou  : 

—  Chó  ! 

O  bispo  gostou  muito,  porque  tinha  encontrado 
uma  pessoa  que  se  propunha  tratalo  sem  gastar 
mais  que  um  monosyllabo. 

Não  ha  em  verdade  maior  delicia  para  o  espirito, 
nem  menos  perigosa,  do  que  a  de  estar  entregue 
cada  um  aos  seus  próprios  pensamentos. 

Sinto  em  mim  duas  costelias  de  frade  cartuxo. 
E  tenho  reconhecido  que  o  silencio  triumpha  muito 
mais  que  a  linguarice. 

O  duque  de  Loulé  foi  o  presidente  de  conselho 
que  menos  tem  fallado  em  Portugal. 

Batiam  se  contra  elle  os  grandes  oradores  d'esse 
tempo,  que  fôramos  maiores  do  regime  parlamentar. 

O  duque  levantava-se,  sempre  muito  correcto  na 
sua  pose  elegante,  e  dizia  apenas  duas  palavras. 

Pois  eram  essas  duas  palavras  que  valiam. 

Porque  a  camará,  depois  de  as  ter  ouvido,  sabia 
que  o  governo  não  tornaria  a  fallar. . . 

E  por  ellas  ficava  orientada  sobre  o  que  lhe  cum- 
pria fazer. 

Gonta-se  que  um  ancião  virtuoso,  e  visinho  da 
montanha  que  hoje  se  chama  Bussaco,  ia  ali  pas- 
sar grandes  temporadas  no  silencio  do  ermo. 

Negócios  de  sua  casa  obrigavam-n'o  a  voltar  ao 
povoado,  mas,  quando  descia  da  montanha,  toda  a 


NINHO   DE  GUINCHO  1  29 


( 


geme  pasmava  que  voltasse  remoçado,  mais  novo  e 
guapo  do  que  fôra. 

Elle  dava  uma  explicação  do  caso: 

—  D'aquelle  monte  saco  bus. 

Gomo  se  dissesse :  venho  saturado  de  silencio, 
que  é  uma  coisa  que  faz  muito  bem  á  saúde. 

Ou,  segundo  a  lição  do  propheta  Jeremias:  «Fe- 
chei a  janella  emquanto  lá  estive.» 

Crêem  alguns  que  d'estas  palavras  saco  bus  veio, 
por  caprichosa  transposição,  a  dizer-se  —  Bussaco. 

E  assim  o  dava  a  entender  aquelle  monge  do 
painel  que  estava  á  entrada  da  porta  no  mosteirinho 
da  serra,  e  que  não  sei  se  ainda  lá  está,  o  qual  mon- 
ge, com  o  dedo  indicador  erguido  sobre  a  bocca, 
recommendava  silencio. 

Uma  vez  encontrei  em  Mafra  uma  ingleza  velha, 
ha  muitos  annos  residente  no  Porto,  que  andava 
vendo  o  templo. 

Fui  achai  a  no  vestíbulo  parada  deante  da  ima- 
gem de  S.  Bruno,  o  fundador  da  ordem  dos  cartu- 
xos, imagem  que,  pela  expressão  da  physionomia  e 
pela  verdade  das  roupas,  é  uma  verdadeira  mara- 
vilha artística. 

Essa  dama  ingleza,  que  logo  trocou  comigo  a  sua 
admiração  deante  d'essa  bella  imagem,  chamou  par- 
ticularmente a  minha  attenção  para  o  bem  cinze- 
lado do  habito,  aqui  apanhado,  ali  cabido,  com  uma 
verdade  inexcedivel. 

—  S.  Bruno,  respondi  eu,  não  precisaria  talvez 
d'esta  bella  imagem  para  sua  gloria.  Bastar-lhe-ia 
decerto  a  de  ter  sido  o  fundador  da  Cartuxa,  cujos 
monges  pensavam  muito  e  fallavam  pouco. 

9 


l3o  COLLECÇÂO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 


A  dama  ingleza  voltou  a  sua  luneta  para  mim  e 
fixou-me  irónica  dizendo  : 

—  Pois  é  um  portuguez  que  diz  isso?! 

Apaniiei  o  pião  á  unha.  Senti  cahir  em  cheio  so- 
bre mim  um  epigramma,  que  abrangia  todos  os 
meus  compatriotas. 

Entramos  na  egreja  quasi  ao  mesmo  tempo. 

A  ingleza  dizia-me  coisas,  ia  chamando  a  minha 
attenção  para  isto  e  para  aquillo. 

Eu  não  respodia  nada.  Fechei  a  janella  paradesaf- 
frontar  o  paiz.  Quando  nos  separámos,  a  ingleza 
apertou-me  a  mão  em  silencio  e  foi  almoçar  para  o 
hotel  Moreira.  Se  a  lição  me  tinha  aproveitado,  não 
lhe  aproveitou  menos  a  ella. 

Vinguei  Portugal,  mas  o  caso  não  veio  ás  gaze- 
tas e  por  isso  não  cheguei  a  apanhar  uma  portaria 
de  louvor. 

Silencio!  gelosia  da  alma,  defesa  do  espirito,  que 
falta  fizeste  esta  semana! 

A  faisca,  despedida  da  bocea  de  Eva,  ainda  agora 
está  abrazando  o  mundo. 

Fallou-se  nas  ruas  e  botequins  a  respeito  do  Bi- 
gode. (*)  Fallou-se  na  camará  dos  pares  a  respeito 
do  milho  e  do  trigo.  Cada  par  do  reino  fallou  du- 
rante dois  dias  para  mostrar  talvez  que  um  par  do 
reino  o  deve  ser  em  tudo  —  até  nos  dias  que  con- 
some fallando. 


(^)  Appellido  de  um  individuo  julgado  e  condemnado  na  co- 
marca de  Almada  como  auctor  da  morte  de  uma  mulher. 


NINHO  DE  GUINCHO  l3l 


O  propheta  Jeremias  bem  dizia  do  alto  da  clara- 
bóia da  sala: 

—  Fechai  a  janella. 

Ah!  bispo!  bispo!  se  tu  pudesses  resuscitar  para 
dirigir  este  paiz,  ha  muito  tempo  que  elle  não  seria 
tratado  senão  por  alveitares. .  . 

E  talvez  já  estivesse  curado. 


iSqq — Abnl. 


[ 


XV 


o  FUNDADOR  DO  ASYLO 


Era  um  homem  velho,  mais  de  sessenta  annos, 
nutrido,  muito  sereno  no  andar  e  no  fallar,  sempre 
com  um  sorriso  indulgente  nos  lábios. 

A  expressão  dos  seus  olhos,  entre  generosa  e 
resignada,  revelava  uma  infinita  doçura,  calma  e 
profunda. 

Rico,  muito  rico,  tinha  regressado  do  Brazil  á 
sua  terra  natal,  urna  linda  cidadesinha  do  norte  do 
paiz,  onde  os  salgueiros  engrinaldam  as  margens  de 
um  rio  que  parece  feito  de  crystal. 

A  sua  familia  eram  duas  filhas,  duas  creaturinhas 
morenas  e  languidas,  cujos  olhos  tinham  clarões 
mais  brilhantes  do  que  longos.  O  olhar  quebrava- 
se-lhes,  a  breve  trecho,  n'uma  calmaria  doce,  que 
lembrava  o  apagar  de  um  occaso. 

Eram  conhecidas  pelas  —  brazileiras  — e  conside- 
radas ^os  melhores  casamentos  de  sete  léguas  em 
redor. 

O  pae,  tendo  desposado  a  filha  de  um  capitalista 
do  Rio  Grande,  enviuvara  aos  quarenta  annos  e, 
saudoso  da  pátria,  escolhera  para  viver  aquella  mo- 


NINHO  DE  GUINCHO  l33 


desta  terra  de  província,  onde  havia  nascido  pobre. 

Não  o  deslumbraram  as  grandes  capitães  da  Eu- 
ropa, onde  a  vida  é  alegre  e  faustosa.  Procurara  os 
montes  e  as  arvores  que  primeiro  amara.  Julgou 
não  precisar  de  mais  nada  para  ser  absolutamente 
feliz  na  opulência. 

Das  suas  duas  filhas,  a  mais  velha  principiara  a 
manifestar  symptomas  de  tuberculose  hereditária. 
A  mãe  tinha  morrido  tysica  no  Brazil.  E  para  sal- 
var a  vida  da  filha,  o  bra:{ileiro  da  Praça,  como 
na  sua  terra  diziam,  fora  passar  alguns  invernos  na 
ilha  da  Madeira,  porque  n'aquelle  tempo  não  se 
fallava  ainda  em  climas  de  altitude. 

Todos  estes  cuidados,  dispensados  a  peso  de 
oiro,  apenas  conseguiram  retardar  a  marcha  da 
doença.  O  bra:{ileiro  vira  morrer  a  sua  primeira 
filha  ao  cabo  de  quatro  annos  de  soffrimento,  quan- 
do já  a  outra  revelava  inquietadores  signaes  d'essa 
terrível  herança  de  familia. 

N'uma  tristeza  tranquilla,  cheia  de  resignação  e 
de  conformidade,  o  bra'{ileiro  dedicara- se  á  vida  e 
á  saúde  da  sua  segunda  filha. 

Fizera  largas  viagens  por  mar,  voltara  a  passar 
os  invernos  no  Funchal,  n'uma  bella  quinta  que  só 
tinha  sido  habitada  por  lords  inglezes  e  pnn'cipes 
russos. 

Mas  a  tuberculose  seguira  a  sua  marcha,  e  o  bra- 
:[ileiro  perdera  a  segunda  filha  como  já  havia  per- 
dido a  primeira. 

Ficara  só  no  mundo,  com  o  seu  dinheiro  que  era 
muito,  e  que  chegava  a  pesar-lhe  como  uma  coisa 
inútil  de  que  a  gente  se  esquece. 


i:'4  COLLECÇÃO   ANTÓNIO  MARIA   PEREIRA 


Procurara  lenitivos  na  caridade,  fonte  inexgota- 
vel  de  resignação. 

Mandou  construir  um  vasto  asylo  para  velhos  e 
velhas  e,  desde  pela  manhã  cedo  até  ao  fim  da  tar- 
de, elle  próprio  fiscalisava  as  obras,  estimulava  a 
actividade  dos  operários  gratificando-os,  e  indicava 
as  alterações  que  julgava  preciso  introduzir  no  pro- 
jecto do  edifício  para  maior  commodidade  dos  asy- 
lados. 

Conciuida  a  obra,  que  levou  muito  menos  tempo 
do  que  toda  a  gente  imaginava,  rapidamente  se 
povoou  o  asylo  com  velhos  e  velhas,  «que  não  ti- 
nham familia.» 

Era  esta  a  condição  única,  que  elle  impunha  na 
escolha  dos  asylados. 

Levantando  se  ao  romper  da  manhã,  o  brasileiro 
sahia  logo  do  seu  palacete  na  Praça  em.  direcção 
ao  asylo. 

Ia  assistir  á  oração,  depois  ao  almoço.  Adoenta- 
do ás  vezes,  nem  por  isso  faltava.  O  m.ais  solicito 
empregado  não  poderia  excedel-o  no  zelo  e  cari- 
nho com  que  elle  tratava  «os  seus  velhos  e  as  suas 
velhas»,  quasi  todos  rabujentos,  muitos  d'elles  já 
dem.entes. 

A's  vezes  um  velho,  de  olhar  desvairado,  parava 
deante  d'elle  a  querer  deter-lhe  os  passos  e  a  di- 
zer-lhe  : 

—  E's  o  meu  Ricardo,  sim,  és  tu  mesmo. . .  Fos- 
te embora  ha  tanto  tempo,  e  não  tinhas  appareci- 
do. .  .  Ingrato  ! . . .  Não  me  lembro  bem  como  isso 
foi,  mas  nunca  mais  tornaste  a  apparecer  a  teu  pae. 

E  o  brasileiro,  em  cujos  olhos  se  avivava  mais   a 


NINHO   DE   GUINCHO  ^  1 35 

expressão  calma  de  profunda  doçura,  parava  a  ou- 
vjl-o  com  bondade,  sem  ousar  dizer-lhe  uma  única 
palavra,  que  pudesse  roubar  ao  pobre  velho  a  illu- 
são  de  ter  encontrado  seu  filho  ha  muito  tempo  au- 
sente, e  talvez  já  morto. 

Havia  no  asylo  uma  velha  —  eu  mesmo  a  vi  e  ou- 
vi algumas  vezes  —  que  tinha  um  ódio  profundo  ao 
brasileiro. 

Estava  paralytica- das  pernas  e  passava  os  dias 
sentada  na  cama  a  regougar  ameaças,  a  cantar,  com 
voz  roufenha,  cantigas  de  uma  vaga  nebulosidade 
apocalyptica,  que  ninguém  podia  entender. 

Quando  via  o  fundador  do  asylo,  exaltava-se,  ges- 
ticulava, fazendo  menção  de  aggredil-o;  tentava  ar- 
remessar-lhe  a  almofada  do  leito. 

—  Foi  este  mesmo,  foi  este  monstro,  bramia  ella 
—  que  desgraçou  a  minha  Carlota.  .  .  Estás  nes  pro- 
fundas do  inferno,  monstro  I  Hei  de  matar-te  um 
dia  e  mandar  te  de  presente  ao  diabo,  que  não  ha 
de  ficar  rico  comtigo. 

O  brasileiro  passava  rapidamente  ao  longo  do 
dormitório,  fugindo  para  não  prolongar  a  exaltação 
da  velha  asylada. 

E  ia  dizendo:  «coitadinha!  coitadinha!»  cheio  de 
ternura  e  de  misericórdia. 

E  voltando-se  para  o  fiscal  que  o  acompanhava 
sempre : 

—  Tratem-n'a  muito  bem,  muito  bem.  E  nunca 
procurem  convencel-a  de  que  eu  não  sou  o  homem 
que  )ulga.  Ao  menos,  assim,  desabafa  a  sua,,dôr. 
Coitadinha!  coitadinha! 

A'  porta  da  capella,  sentada  n'um  degrau,  cos 


l36  COLLECÇÃO  ANTÓNIO   MARIA    PEREIRA 

tumava  pousar,  esbaguando  as  contas  do  rosário, 
uma  velha  que  resava  muito,  que  resava  sempre, 
desde  que  se  levantava  até  que  adormecia. 

Quando  o  brasileiro  passava,  ella  erguia-se  do 
degrau,  avançava  para  elle,  detinha-o  e  dizia  lhe: 

—  Resemos  um  Padre  Nosso  pelas  almas  do  Pur- 
gatório. 

E  o  bra:{ileiro  resava  também: 

—  Padre  Nosso,  que  estaes  no  ceu,  santificado 
seja  o  vosso  nome. 

Depois,  muito  satisfeita  por  ter  conquistado  mais 
um  allivio  para  as  almas  do  Purgatório,  a  velha  do 
rosário  ia  sentar-se  no  degrau  da  capella  e  conti- 
nuava a  rezar  —  Padre  Nosso. 

Quando  o  brasileiro  chegava  á  secretaria,  de  cu- 
jas paredes  pendiam  os  retratos  das  suas  duas  fi- 
lhas, demorava  o  olhar  nos  retratos,  e  nunca  os  seus 
olhos  pareciam  mais  doces  do  que  n'essa  occasião. 

Depois,  já  sentado  na  cadeira  de  couro  tauxiado, 
que  lhe  era  reservada,  dizia  habitualmente:  Coi- 
tadinhos! coitadinhos  d'elles,  os  meus  velhos!» 

E  examinava  as  contas,  as  tabeliãs,  os  mappas, 
pagava  aos  fornecedores,  dava  instrucções  aos  em- 
pregados. 

A's  vezes,  quando  sahia,  ouvia  cantar  a  velha 
que  o  costumava  insultar,  e  recommendava  ao  fiscal: 

—Não  a  desilludam  nunca,  coitadinha  I  coitadinha ! 

E  já  na  rua,  se  encontrava  alguém: 

—  Venho  de  ver  os  meus  velhos,  que  são  a  mi- 
nha íamilia. 

1900  — Julho. 


XVI 


o  PAPAGAIO 


Entrou  o  inverno  em  scena  —  e  a  Duse  também. 

Duas  celebridades  consagradas,  ambas  colossaes, 
porque  uma  é  o  vendaval  e  o  trovão  e  a  outra  tem 
o  que  quer  que  seja  de  revolta  tempestade  de  talen- 
to e  de  nervos . .  . 

Ambas  inimitáveis,  porque  a  chuva  e  a  trovoada 
no  theatro  ficam  muito  áquem  da  verdade  da  na- 
tureza, e  a  Duse  não  pode  ser  copiada  por  ninguém, 
tão  complicada  é  a  sua  orgánisação  artistica,  tão 
carregados  de  electricidade  vibram  os  seus  nervos 
de  actriz  originalíssima. 

Alem  do  que,  o  inverno  parece-se  com  os  actores 
famosos,  em  não  mudar  de  repertório,  visto  que 
tanto  um  como  os  outros  dão  a  volta  ao  mundo  sem- 
pre com  o  mesmo  scenario  e  as  mesmas  peças. 

Assim,  a  Segunda  mulher  de  Tanqueray  e  a  Trin- 
cesa  George  estalam  de  acto  para  acto  em  ribombos 
de   ciúme,   mas   a  ^ama  das  camélias  é  como  um 


ICO  COLLECÇÁO   ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

dia  de  sol  romântico  intercallado  n'uma  semana  de 
temporal,  o  que  ás  vezes  acontece  e  ainda  esta  se- 
mana aconteceu. 

Pelo  que  respeita  a  toilettes,  são  roçagantes  ema- 
gestosas  tanto  as  das  grandes  invernias  como  as  das 
grandes  actrizes. 

Qualquer  dia  de  cerração,  como  os  que  temos  ti- 
do agora,  obriga  a  natureza  a  vestido  preto  cónstel- 
lado  de  gotas  d'agua. 

Na  Segunda  mulher  de  Tanqueray,  a  Duse  appa- 
receu  também  de  preto,  com  pérolas,  parecendo 
que  essa  soberba  toiletle  era  realmente  feita  de  nu- 
vens e  de  gotas  de  agua. 

Ha  pessoas  que  gostam  muito  do  inverno,  dor- 
mindo melhor  quando  ouvem  cahir  a  chuva  ou  as- 
sobiar o  vento,  e  jantando  vorazmente  depois  de  te- 
rem apanhado  uma  formidável  molhadella. 

Do  mesmo  modo,  ha  quem  só  esteja  deliciado  no 
theatro  quando  vê  em  scena  famosas  celebridades, 
embora  representem  n'uma  lingua  extranha,  de  que 
se  perde  pelo  menos  metade  das  palavras. 

Outras  pessoas  não  gostam  senão  dos  dias  sere- 
nos e  inoffensivos,  e  tios  actores  que  não  façam  agi- 
tar muito  os  nervos. 

Quanto  ao  inverno,  eu  acho-o  uma  estação  insup- 
portavel,  a  mais  deprimente  de  todas  para  o  orgulho 
dos  homens. 

Ver  uma  pessoa  na  rua,  n'um  dia  de  temporal 
desfeito,  com  as  botas  enlameadas,  o  paletot  escor- 
rendo agua  e  o  chapéu  de  chuva  esfrangalhado,  é 
humilhante  para  a  nossa  espécie. 

Não  ha  celebridade  que  resista  a  um  aguaceiro. 


NINHO   DE  GUINCHO  iSg 

Encharcados,  todos  os  homens  são  iguaes.  Perdida 
a  elegância,  o  aprumo,  a  impassibilidade  gentil,  real 
ou  apparente,  que  uma  pessoa  aífecta  possuir  quan- 
do sai  de  casa,  não  fica  mais  que  a  «junca  do  bre- 
jo» a  que  se  referia  Herculano,  uma  coisa  reles  e 
mesquinha,  o  manequim  desconcertado  pelo  vento, 
pela  chuva  e  pela  lama  das  ruas. 

Resta,  é  verdade,  o  recurso  do  trem. 

Mas  se  o  trem  tem  o  que  quer  que  seja  de  trium- 
phal  n'um  dia  de  sol,  quando  parece  que  vac  con- 
duzindo heroes  e  rodando  para  o  Capitólio,  n'um 
dia  de  chuva  faz  lembrar  uma  carruagem  cellular, 
que  transporta  penitenciários  empilhados  uns  con- 
tra os  outros,  dobrados  sobre  si  mesmos,  priva- 
dos de  ver  a  luz  e  de  respirar  livremente. 

Um  exercito,  ainda  que  marche  victorioso,  se  o 
fizer  n'um  dia  de  temporal,  perde  todo  o  seu  garbo 
militar,  todo  o  seu  brilho  marcial,  as  bayonetas  não 
scintillam,  as  plumas  não  fluctuam,  a  côr  das  fardas 
não  vive. 

Quanto  a  celebridades  de  theatro,  ha  muitas  pes- 
soas que  não  dão  um  passo  para  ir  vêl-as. 

Teem-lhes  medo  como  á  tempestade  e  contentam- 
se  de  ler  nos  jornaes  a  noticia  do  espectáculo,  como 
se  se  tratasse  de  saber  onde  foi  que  na  véspera  c'aiu 
uma  faísca  eléctrica,  ou  onde  foi  que  a  inundação 
causou  maiores  estragos. 

Entram  n'este  numero  as  sr. '^  Germundes,  que 
durante  toda  a  semana  não  puzeram  pé  no  theatro 
D.  Amélia  e  andaram  passando  as  noites  por  casa 
de  algumas  das  suas  amigas,  as  quaes  pensam  do 
mesmo  modo  a  respeito  de  celebridades  dramáticas. 


140  COLLECÇÃO    ANTONÍO    MARIA   PEREIRA 

Em  que  se  entretiveram  todas  essas  boas  senho- 
ras nos  serões  de  tão  calamitosas  noites  de  inverno, 
como  as  que  temos  tido  agora  ? 

Nas  mil  bagatellas  que  podem  entreter  a  conver- 
sação n'uma  sala,  com  alguns  números  de  piano  e 
alguns  expedientes  de  phantasia  para  aligeirar  as 
horas. 

Terça  feira,  noite  em  que  as  senhoras  Noronhas 
receberam,  uma  d'ellas  fallou  do  seu  totó,  que  pa- 
rece ensinado  por  qualquer  palhaço  do  Colyseu. 
Anda  a  pé,  com  as  mãos  no  ar,  pára,  marcha,  vol- 
teia, segundo  as  vozes  de  commando  que  lhe  dão. 

Veio  á  sala  o  totó  para  fazer  prova  publica  das 
suas  habilidades,  e  todas  desempenhou  com  notável 
galanteria. 

Levantou-se,  íirmou-se,  marchou,  parou,  volteou. 
Um  encanto! 

Mas  a  D.  Gabriella  Germunde,  que  é  a  mais  la- 
dina de  todas  as  Germundes  hystericas,  não  se  deu 
por  deslumbrada  com  esta  exhibição  maravilhosa 
do  canito  bailarino,  e  apregoou  que  o  seu  papagaio, 
que  o  padrinho  lhe  trouxera  do  Pará,  não  era  infe- 
rior em  habilidades  e  prendas. 

—  Que  fallava  como  o  José  Estevam !  affirmou. 
Movimento  de  incredulidade  na  assembléa. 

—  Ora  essa! 

—  Esta  Gabriella  tem  exaggeros  ! 

—  O'  menina !  por  que  não  fizeste  deputado  o  teu 
papagaio? 

A  Germundesinha  estomagou-se. 

—  Não  acreditam !  Pois  é  certo  que  apanha  um 
assumpto  no  ar  e  discorre  logo  sobre  elle. 


NINHO  DE  GUINCHO  14I 

—  Sobre  o  ar  ? 

—  Nãol  sobre  o  assumpto. 

—  O'  filha!  deves  andar  pelo  mundo  a  mostrar 
essa  maravilha  de  bicho. 

—  Duvidam  ainda  I  Pois  como  trouxemos  o  cria- 
do, vou  mandar  buscar  o  papagaio. 

As  irmãs  gritaram  logo  : 

—  Que  tolice,  Gabriella!  deixa-ie  de  creancices. 
Quando  estas  senhoras  lá  forem  a  casa,  poderão 
vêr. 

—  Ha  de  ser  hoje,  que  eu  não  gosto  de  estar  sob 
a  suspeita  de  mentir. 

As  outras  senhoras  fizeram  coro : 

— -Isto  não  é  ponto  de  honra,  Gabriella! 

—  Olha  que  não  vale  a  pena  ! 

—  Quando  nós  lá  formos. 

Mas  a  Germundesinha  quiz  liquidar  a  questão  do 
papagaio  e  mandou  o  criado  a  casa  buscal-o. 

Chovia.  Disseram-lh'o.  Não  se  importou.  Contra- 
poz  que  os  criados  não  faziam  apenas  serviço  no 
bom  tempo.  De  mais  a  mais  moravam  perto. 

Como  era  de  suppor,  o  criado,  quando  soube  que 
ia  buscar  o  papagaio,  aborreceu-se. 

Estava  a  namorar  uma  criada  na  cosinha  das  No- 
ronhas.  Empregou  argumentos  para  não  ter  qlie 
sahir:  que  o  papagaio  podia  constipar-se;  que  lhe 
faria  mal  perder  o  somno,  etc. 

Mas  a  Germundesinha  bateu  o  pé  com  auctori- 
dade  :  que  fosse  immediatamente. 

O  criado  foi. 

Quando  elle  entrou  em  casa  das  Germundes  vo- 
ciferava : 


142  COLLECÇÃO  ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 

—  Com  uma  noite  d'estas  mandam  as  toleironas 
buscar  o  papagaio! 

O  animal  abriu  os  olhos  no  poleiro  e  mostrou-se 
espantado  de  que  o  fossem  incommodar  áquella 
hora. 

—  Tem  paciência,  meu  bicho  I 

A  cosinheira  das  Germundes  perguntou  ao  criado 
o  que  tinha  vindo  fazer  a  casa  para  incommodal-a 
a  abrir  a  porta. 

O  criado  continuou  a  vociferar : 

—  Com  uma  noite  d'estas  mandam  as  toleironas 
buscar  o  papagaio  I 

E  pegando  no  poleiro,  muito  indignado,  desceu 
a  escada  resmungando. 

O  guarda-portão,  que  ouviu  bater  com  força  a 
porta  do  segundo  andar,  accordou  no  seu  cubiculo  e 
perguntou: 

—  O'  sr.  José !  que  veio  você  cá  fazer  ? 
Teve  logo  a  resposta: 

—  Com  uma  noite  d'estas  mandam  as  toleironas 
buscar  o  papagaio  ! 

E  sahiu  a  porta  com  o  poleiro  abrigado  debaixo 
do  chapéu  de  chuva. 

Assim  que  a  Germundesinha,  em  casa  das  Noro- 
nha», ouviu  tocar  a  campainha,  correu  ao  corredor 
a  esperar  o  papagaio. 

Estavam  tomando  chá,  á  roda  da  mesa,  onde  col- 
locou  o  poleiro. 

O  papagaio  parecia  mono,  dorminhoco. 

Mas  foi  excitado  por  Gabriella,  que  lhe  bateu  as 
palmas,  maneira  habitual  de  o  fazer  fallar. 

Houve  um  momento  de  espectativa  anciosa. 


NINHO  DE  GUINCHO  14^ 


Gabriella  insistia  com  repetidas  palmadas  e  com 
algumas  phrases  de  animação  e  estimulo :  «Falia, 
meu  loiro.  Não  me  deixes  ficar  mal,  meu  bicho.» 

Finalmente,  o  papagaio  fitou-a  muito  sereno,  re- 
solveu-se  a  fallar  e  disse  de  rijo : 

—  Com  uma  noite  d'estas  mandam  as  toleironas 
buscar  o  papagaio ! 


1900  —  Dezembro. 


XVII 


VILLA  E  FIDALGA 


No  opúsculo  A  vilan  fidalga  ou  aventuras  e  trans- 
formações da  filha  de  um  moleiro  conhecida  em  Lisboa 
pela  alcunha  de  D.  Marianna  Joaquina  Franchiost 
Rolem  Portugal^  publicado  em  Lisboa  (1840)  por 
Luiz  Caetano  da  Rocha,  conta-se  que  esta  D.  Ma- 
rianna, famcsa  aventureira,  tinha  uma  filha  cuja 
paternidade  attribuia  a  D.  iMiguel  de  Bragança. 

Não  parece  coisa  fácil  saber  se  D.  Marianna  era, 
eflectjvamente,  a  mãe  d'essa  creança,  pois  que  du- 
rante algum  tempo  a  apresentou  como  sua  afilhada, 
filha  de  uma  mulher  que  lhe  fazia  serviços,  e  de- 
pois a  declarava  sua  filha  e  de  D.  Miguel. 

Também  se  dizia  que  era  filha  de  um  inglez. 

A  própria  D.  Marianna,  se  realmente  era  mãe  da 
creança,  não  saberia  dizer  ao  certo  quem  fosse  o 
pae,  tão  variada  e  numerosa  foi  a  galeria  dos  seus 
amantes. 

Uma  coisa,  apenas,  parece  bem  clara  :  é  que  D. 
Marianna  teve  relações  intimas  com  D.  Miguel,  cu- 


NINHO   DE   GUINCHO  I45 


jos  aposentos  frequentava  dia  sim,  dia  não,  e  cuja 
causa  politica  servia  fazendo  espionagem. 

Camilio  Gastello  Branco  encontrou  no  folheto 
de  Luiz  José  da  Rocha  a  mãe  e  a  filha,  que  intro- 
duziu como  personagens  no  romance  O  carrasco  de 
Victor  Hugo  José  Alves. 

Diz  ahi,  para  conduzir  a  acção  da  novella,  que 
D.  Marianna  era  a  mesma  dona  da  casa  de  hospe- 
des, onde  o  príncipe  Lichnowsky  se  aposentou  na 
rua  do  Corpo  Sanco,  junto  ao  Cães  do  Sodré. 

E'  certo  que  D.  Marianna  teve  uma  hospedaria, 
mas  em  outro  local :  ao  pé  da  Praça  da  Figueira 
na  rua  dos  Douradores, 

A  pessoa  a  quem  o  príncipe  Lichnowsky  se  re- 
fere não  se  chamava  Marianna;  era  a  Carlota  dos 
pés  grandes,  cuja  filha,  sua  e  de  D.  Miguel,  foi  D. 
Maria  da  Assumpção  de  Bragança,  que  falleceu  em 
Roma  no  mez  de  julho  de  1897. 

Devo  ao  marquez  de  Vallada,  que  chegou  a  co- 
nhecer a  Carlota  dos  pés  grandes.,  a  informação  de 
que  ella  fora  a  mãe  d'aquella  princesa  bastarda,  e 
de  que  tivera,  ao  Corpo  Santo,  a  casa  de  hospedes 
onde  Lichnowsky  se  aposentou 

Camilio  urdiu  phantasiosamente,  sobre  o  folheto 
de  Luiz  Caetano  da  Rocha  o  enredo  do  Carrasco 
de  Victor  Hugo  José  Alves. 

Apenas  corresponde  á  verdade  histórica  a  iden- 
tidade de  D.  Marianna,  cuja  vida,  n'um  impulso  de 
vingança,  o  Rocha  assoalhou  cruelmente,  se  bem 
que  ella  tivesse  sido  uma  aventureira  que  explorou 
o  amor  escorripichando,  sedenta,  os  corações  e  as 
algibeiras  do  próximo..  .  masculino. 


146  COLLECÇÂO   ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

No  romance  de  Gamillo,  a  filha  de  D.  Marianna 
e  de  D.  Miguel,  se  é  que  o  foi,  chama-se  Maria  José, 
luveira  estabelecida  na  rua  Nova  da  Palma,  depois 
condessa  de  Baldaque. 

A  filha  da  Carlota  dos  pés  gi^andes,  que  o  roman- 
cista identificou  imaginosamente  com  a  filha  de  D. 
Marianna.  viveu  em  Roma  sustentada  por  uma  pe- 
quena pensão  do  Instituto  Portuguez  de  Santo  An- 
tónio. 

A  folha  parisiense  O  Figaro,  de  10  de  julho  de 
1897,  dando  noticia  do  seu  fallecimento,  dizia  ter 
havido  um  momento  em  que  D.  Maria  d'Assumpçáo 
de  Bragança  esperou  obter  a  situação  de  princesa  de 
sangue,  mas  que  a  morte  de  el  rei  D.  Luiz  impedi- 
ra que  os  seus  desejos  tivessem  solução  favorável. 

Isto  não  é  verdade,  nem  o  podia  ser,  segundo  o 
decreto  de  18  de  março  de  1884  e  a  carta  de  lei 
de  iq  de  setembro  do  mesmo  anno. 

O  que  é  certo  é  ter  o  papa  Pio  IX  querido  reco- 
nhecer D.  Maria  d'Assumpção  como  filha  de  D. 
Miguel  de  Bragança,  e  ter  o  cardeal  Antonelli  con- 
trariado este  desígnio  por  se  não  saber  se  relativa- 
mente á  mãe  haveria  algum  impedimento  canónico. 

Posto  isto  vamos  n'um  relance  contar  a  biogra- 
phia  de  D.  Marianna,  a  famosa  aventureira,  que  teve 
intimidades  com  D.  Miguel  de  Bragança. 

Esta  mulher,  segundo  a  versão  do  folheto  A  vi- 
lan  fidalga,  é  um  typo  completo  de  romance  rea- 
lista. 

Precedeu  Zola  e  todos  os  outros  luminares  da 
photographia  litteraria  que  reproduz  em  flagrante  os 
costumes  torpes. 


NINHO  UE  GUINCHO  I47 


Foi  baptisada  aos  2  de  novembro  de  1797  na 
freguezia  da  Santa  Izabel  em  Lisboa,  como  filha  de 
Euzebio  Joaquim,  moleiro  em  Azeitão,  e  de  Ma- 
rianna  Joaquina,  recebendo  o  mesmo  nome  da 
mãe. 

Muito  nova  ainda,  fugiu  ao  pae  com  um  official 
de  marinha,  que  a  trouxe  para  Lisboa,  onde  lhe  poz 
casa  junto  á  Fundição 

Depois,  rotas  essas  ligações,  teve  artes  de  apanhar 
um  marido  acommodaticio,  João  Lopes  Gonçalves, 
natural  da  Covilhã,  sombreireiro  de  profissão,  com 
quem  casou  em  Villa  Fresca  de  Azeitão  a  25  de  ou- 
tubro de  1814,  tendo  ella  de;iesete  annos  de  idade. 

A  breve  trecho  o  marido  fugiu-lhe,  talvez  por  se 
desenganar  de  que  Marianna  era  rebelde  á  rehabi- 
litação  canónica. 

De  1817  para  1818  vamos  encontrai  a  em  casa  de 
madame  Chapsal  como  criada  de  servir. 

Quatro  annos  depois,  Marianna  tinha  achado  me- 
lhor collocação  como  governante  de  um  padeiro 
rico^  Manuel  Rodrigues,  estabelecido  na  travessa  do 
Secretario  da  Guerra  e  domiciliado  n'um  i."  andar 
do  pateo  do  Picadeiro  a  S.  Carlos. 

A  esse  tempo,  a  aventureira  assignava-se  Ma- 
rianna Joaquina  da  Conceição  Elisia,  nome  plebeu, 
em  que  aliás  denunciava  uma  certa  tendência  para 
futura  aristocratisação. 

iMarianna  puxava-se  aos  Elisios. 

Cinco  annos  durou  a  cohabitação  com  o  padeiro. 
Mas  um  beilo  dia  Marianna  passou-lhe  o  pé,  rou- 
bando-lhe  anneis  de  diamantes,  colheres  de  prata, 
dinheiro  e  roupas. 


148  COLLECÇÃO    ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

O  padeiro  deu  querella  em  juizo.  e  Marianna  foi 
pronunciada  como  ladra. 

Mas  não  consta  que  fosse  presa,  certamente  por- 
que a  esse  tempo  já  dispunha  de  protecções  valio- 
sas e.  . .  numerosas. 

Os  valores  subtraidos  ao  padeiro  serviram-lhe 
para  estabelecer  na  rua  dos  Douradores  uma  hos- 
pedaria, destinada  a  fins  occultos,  e  muito  bem  fre- 
quentada. 

Ahi  encontrou  Marianna  Joaquina  não  só  fregue- 
zes,  mas  também  apaixonados,  que  ella  acccitava 
sem  olhar  a  idades,  e  sem  distincção  entre  paisanos 
e  militares. 

Assim  foi  que  teve  por  amantes  Luiz  da  Motta 
Feo,  o  coronel  de  milicias  Barrão,  o  tenente  de  ca- 
vallaria  A^ntonio  Sicard,  um  tal  Rego  cuja  posição 
social  ignoro,  e  o  desembargador  Ferraz,  a  cuja 
casa,  na  travessa  do  Pombal,  Marianna  Joaquina  ia 
todos  os  dias. 

Foi  com  o  auxilio  do  desembargador  que  ella  co- 
meçou a  aristocratisar-se. 

Largou  a  hospedaria  e  a  rua  dos  Douradores, 
vindo  morar  para  o  largo  do  Carmo. 

Subia.  Já  lhe  não  servia  a  Baixa. 

O  desembargador  Ferraz,  cabelleira  lamecha,  ati- 
rou com  a  beca  por  cima  dos  moinhos,  e  entregou- 
se  d'alma  e  vida  aos  encantos  de  Marianna  Joaquina. 

Poz-lhe  carruagem,  e  esteve  por  ura  triz  a  accei- 
tar  a  paternidade  de  um  menino  de  que  fora  padri- 
nho e  de  que  ella  se  dizia  mãe,  o  qual  tinha  sido 
baptisado  como  filho  de  pais  incógnitos  na  fregue- 
zia  de  S.  Nicolau. 


NINHO  DE  GUINCHO  149 


A  esse  tempo  já  a  famosa  aventureira  se  intitu- 
lava D.  Marianna  Joaquina  de  Portugal,  no  que  aliás 
não  mentia,  por  ser  effectivamente  Marianna  Joa- 
quina, e  de  Portugal  —  por  ser  portugueza. 

O  desembargador  Ferraz  morreu  quasi  de  re- 
pente, e  Marianna  apoderou-se  de  um  bahu  em  que 
elle  tinha  os  seus  papeis. 

A  fim  de  que  não  pudessem  facilmente  encon- 
tral-a,  nem  ao  bahu,  mudou-se  furtivamente  do 
largo  do  Carmo  para  o  Paço  do  Boi  Formoso. 

Cada  vez  mais  audaciosa,  tentou  conseguir  que 
o  prior  de  S.  Nicolau  alterasse  o  assento  de  ba- 
ptismo do  menino,  de  modo  que  figurasse  como  pai 
o  desembargador,  que  por  procuração  se  havia  feito 
representar  como  padrinho. 

Uma  trapalhada. 

O  prior  resistiu  a  esta  tentativa  de  suborno,  e 
Marianna  Joaquina  teve  artes  de  arrancar  ao. vigá- 
rio geral  do  patriarchado  uma  ordem  para  que  o 
referido  parocho  fizesse  investigações  sobre  a  pa- 
ternidade authentica  do  menino. 

Foram  ouvidas  como  testemunhas  trez  mulheres, 
indicadas  por  Marianna  Joaquina,  mas  o  prior  de 
S.  Nicolau  surprehendeu-as  cm  contradicções,  que 
plenamente  lhe  confirmaram  o  embuste. 

Finalmente,  um  preto,  de  nome  José  de  Faria, 
que  alternadamente  tinha  sido  criado  do  prior  e  de 
Marianna  Joaquina,  poz  tudo  a  claro :  declarou  que 
ella  havia  comprado  o  menino  para  o  impingir  ao 
desembargador,  primeiro  como  afilhado,  depois 
como  filho. 

Aqui  falhou  a  audácia,  porque  a  trapaça  não  pegou. 


lOO  COLLECÇÁO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 


Continuando  a  subir  na  escala  da  sua  profissão, 
Marianna  Joaquina  principiou  a  habitar  prédios  ca- 
ros, nas  ruas  da  Emenda  e  da  Magdalena. 

Não  lhe  foi  difficil  captar  as  boas  graças  de  D. 
Diogo  de  Menezes  Ferreira  d'Eça,  terceiro  conde 
da  Louzã,  ministro  e  secretario  dos  negócios  da  fa- 
zenda em   1828,  no  governo  do  infante  D.  Miguel. 

Data  d'esta  época  o  valimento  politico  de  Ma- 
rianna Joaquina,  que  principiou  a  explorar  a  indus- 
tria de  protectora  de  pretendentes. 

De  ministro  para  cima  estava  natural  e  logica- 
mente indicado  o  príncipe  reinante  :  por  isso  Ma- 
rianna Joaquina  tratou  de  enfeitiçar  o  infante  D. 
Miguel,  crescendo  em  audácia  a  ponto  de  lhe  que- 
rer impingir  uma  filha  por  o  mesmo  processo  que 
tinha  seguido  com  o  desembargador  Ferraz. 

Quando  veio  D.  Pedro,  D.  Marianna  Joaquina 
Franchiosi  Rolem  Portugal  tinha-se  naturalisado 
franceza. 

Diz  Luiz  Caetano  da  Rocha  que  seria  para  mais 
facilmente  poder  evitar  que  a  policia  liberal  a  per- 
seguisse como  creatura  de  D.  Miguel  e  dos  migue- 
listas. 

A  causa  não  pôde  ter  sido  esta,  porque  um  do- 
cumento, que  o  próprio  Rocha  publica,  mostra  que 
já  em  i83i,  isto  é,  antes  de  vir  D.  Pedro,  Marian- 
na Joaquina  tinha  adoptado  o  appellido  Rolem, 
graphado  á  portugueza ;  e  que  o  moleiro  de  Azei- 
tão e  a  mulher,  para  favorecerem  a  nobilitação  da 
filha,  haviam  declarado  perante  um  tabellião  que 
elles  não  eram  seus  pais,  nem  parentes,  mas  que  Ma- 
rianna lhes  tinha  sido  confiada  na  infância  para  crear. 


NINHO  DE  GUINCHO  l5l 

Pendo  a  crer  que  a  aventureira,  estonteada  pela 
convivência  do  ministro  da  fazenda  e  do  principe 
reinante,  apenas  pretendia  aristocratisar-se,  e  que, 
para  maior  verosimilhança  de  uma  origem  nobre, 
inventou  que  não  era  filha  de  seus  pais  e  que  sendo 
—  de  Portugal  —  não  era  portugueza. 

Dignos  pais  de  tal  filha!  digna  filha  de  taes  pais! 

Em  1839,  Luiz  Caetano  da  Rocha,  o  auctor  do 
folheto  A  vil layi  fidalga,  quiz  fazer  valer  um  titulo 
de  divida  que  Marianna  Joaquina  lhe  tinha  passado. 
Ella  declarou  em  juizo  que  a  sua  assignatura  havia 
sido  falsificada  por  elle. 

O  Rocha  foi  processado,  esteve  80  dias  preso  e, 
na  audiência  para  ratificação  da  pronuncia,  o  juiz 
obstou  a  que  o  advogado  do  réo,  o  dr.  António 
José  Dique  da  Fons&ca,.puzesse  ao  sol  toda  a  vida 
de  Marianna  Joaquina,  lacuna  que  o  próprio  Rocha 
depois  suppriu  publicando  o  folheto  em  seu  desag- 
gravo. 

O  jury  não  ratificou  a  pronuncia;  e  reconheceu 
ter  havido  dolo  na  querella 

O  delegado  do  ministério  publico  não  teve  mão 
em  si  que  não  censurasse  fogosamente  os  jurados 
em  pleno  tribunal. 

Depois'  de  1840  perde-se  a  pista  de  Marianna 
Joaquina  Franchiosi  Rolem  Portugal. 

Ella  devia  ser  ainda  uma  bcUa  mulher  de  46  an- 
nos,  cuidadosa  e  ciosa  do  seu  corpo,  que  tão  lucra- 
tivos serviços  lhe  havia  prestado. 

E'  de  suppôr  que  causasse  outros  damnos  e  con- 
flictos,  porque  lhe  estavam  na  massa  do  sangue  as 
manhas  de  aventureira  seductora. 


l52  COLLECÇÁO  ANTONIU   MARIA   PEREIRA 

E  O  que  o  berço  dá  a  tumba  o  leva. 

Camillo  explorou  libcrrimamente  o  opúsculo  de 
Luiz  Caetano  da  Rocha,  e  em  parte  o  contrariou 
fazendo  suppôr  aos  leitores  do  Can^asco  de  Victor 
Hugo  José  Alpes,  que  Marianna  Joaquina  não  era  fi- 
lha do  moleiro  de  Azeitão,  mas  sim  quarta  neta  de 
uma  filha  de  Aífonso  VI. 

Uma  filha  de  Aífonso  VI  parece  coisa  inverosí- 
mil. 

Tanto  mais  que  teria  nascido  de  uma  Catharina 
Arrais,  a  qual  havia  fugido  de  Coimbra  com  um 
primo,  Manoel  Arrais,  e  com  elle  vivia  quando  lhe 
foi  violentamente  arrancada  dos  braços  por  ordem 
de  Affonso  VI. 

Para  o  effeito  da  paternidade  acho  que  o  Arrais 
seria  mais  apto  marinheiro  do  que  o  platónico  pi- 
loto que  succedeu  no  throno  a  D.  João  IV  e  que, 
segundo  reza  a  fama,  naufragou  sempre  nos  mares 
deleitosos  do  amor. 

Quer  isto  dizer  que  não  creio  nada  na  historia  da 
filha  de  Aífonso  VI,  e  que  Marianna  Joaquina  nem 
foi  neta  de  reis,  nem  mãe  de  príncipes,  mas  ape- 
nas —  o  que  já  não  é  pouco  —  uma  aventureira  de 
trez  assobios. 


1901 — Janeiro. 


XVIII 


A  MENINA  DOS  ROUXINOES 


No  dia  i.*"  de  setembro  de  1901  passei  algumas 
deliciosas  horas  no  logar  de  Argemil,  concelho  e 
fregaezia  de  Santo  Thyrso,  onde  um  parente  e 
amigo  meu,  Guilherme  da  Gosta  Leite,  me  oíFere- 
ceu  um  jantar  de  familia  e  uma  festa  campestre. 

N'esse  dia,  que  não  posso  esquecer,  por  muitas 
vezes  me  acudiu  ao  espirito  o  nome  de  Garrett,  e 
não  sei  que  vaga  mas  insistente  lembrança  das  Via- 
gens na  minha  terra. 

Isto  até  certo  ponto  explica-se. 

Eu  também  andava  viajando  na  minha  terra,  não 
ao  sul,  como  Garrett,  mas  ao  norte,  e  n'uma  pro- 
vinda, que  Almeida  Garrett  conheceu  e  amou,  onde 
residem  pessoas  que  teem  o  seu  appellido. 

Argemil  é  um  logar  deleitoso,  á  beira  do  Ave, 
eapaz  de  competir  em  formosura  e  amenidade  com 
o  Valle  de  Santarém,  o  antigo,  que  o  actual  está 
muito  mudado  e  diíferente  do  que  era. 

Garrett  pintou  assim  o  Valle :  «não  ha  ah  nada 
grandioso  nem  sublime,  mas  ha  uma  como  sj^me- 


l54  COLLECÇÁO    ANTÓNIO    MARIA    PEREIRA 

tria  de  côres,  de  sons,  de  disposição  em  tudo  quanto 
se  vê  e  se  sente,  que  não  parece  senão  que  a  paz, 
a  saúde,  o  socego  do  espirito  e  o  repouso  do  cora- 
ção devem  viver  ali,  reinar  ali  um  reinado  de  amor 
e  benevolência». 

No  tempo  em  que  Almeida  Garrett  o  visitou,  era 
aquelle   logar  muito  mais  pittoresco  do  que  hoje  é. 

Toda  a  região  de  vinhos  desde  o  Cartaxo  até  ao 
Valle  de  Santarém  cançava  pela  sua  monotonia,  e 
uma  aridez  desolada  extendia-se  em  vasta  charneca 
até  ao  ponto  em  que  se  encontrava  o  caminho  do 
Valle. 

Era  uma  azinhaga  onde  a  vegetação  crescia  livre- 
mente. A  um  dos  lados  deslisavam  as  aguas  de  um 
arroyo  claro.  Lindo  prologo  do  Valle,  que  finalmente 
apparecia,  sempre  bello,  delicioso  pomar  de  laranja 
onde,  no  tempo  da  flor,  os  aromas  que  se  espalha- 
vam no  ar  eram  inebriantes  e  suavíssimos. 

Tudo  isto  preparava  agradavelmente  o  espirito, 
dispondo-o  para  os  devaneios  da  imaginação. 

Fácil  foi,  pois,  a  Garrett,  a  um  tal  homem  como 
Garrett,  poetisar  a  casa  do  Valle  e  encantar-se 
deante  da  janella  onde  uma  cortina  branca  deixava 
entrever  o  vulto  de  Joanninha,  a  menina  dos  rouxi- 
noes  e  dos  olhos  verdes 

Eu  sempre  estive  capacitado  de  que  Joanninha 
era  a  recordação  de  uma  pessoa  querida  na  vida  de 
Garrett,  posta  ali,  n'aquelle  então  formoso  Valle  de 
Santarém,  como  se  pôe  uma  tela  de  estimação  na 
melhor  moldura  que  pôde  encontrar-se,  embora  a 
tela  tenha  vindo  de  longe  á  procura  de  moldura 
condigna. 


MNHO   DE   GUINCHO  IDS 

Lancei  os  olhos  para  o  passado  do  poeta,  em 
bus;a  de  uma  prima,  de  uma  companheira  e  amiga 
de  infância,  de  uma  creatura  meiga  e  boa,  talvez 
nada  formosa,  que,  annos  volvidos,  lembra  de  re- 
pente com  profunda  e  doce  saudade,  n'um  sitio  em 
que  a  gente  experimenta  um  grato  bem-estar  do 
espirito  no  meio  da  paz  e  da  harmonia  da  natureza. 

Disse  isto  uma  vez  ao  dr.  Carlos  Guimarães, 
genro  de  Garrett.  Elle  não  repelliu  esta  hypothese 
e  ficou  de  fazer  uma  revisão  a  toda  a  correspon- 
dência intima  do  poeta,  no  empenho  de  encontrar 
algum  documento  que  me  desse  razão.  Achou  uma 
carta,  de  uma  prima,  que  vivia  na  quinta  da  Car- 
reira, em  S.  Miguel  das  Aves,  actualmente  conce- 
lho de  Santo  Th3Tso,  também. 

E  essa  prima  chamava-se  «Joanna»,  e  na  carta 
fazia  recriminações  a  Garrett  por  a  ter  esquecido 
na  vida  tumultuosa  de  Lisboa. 

Gritamos  :  «Eureka  !»  Mas  appareceu  também  um 
retrato  da  sijsnataria  da  carta,  e  esse  retrato— Deus 
meul  — abriria  conflicto  com  a  esthetica  de  qualquer 
poeta  vulgar,  quanto  mais  um  poeta  de  tão  fino 
gosto  como  Garrett. 

Não  ha  duvida  que  as  Viagens  dizem  a  respeito 
da  menina  dos  rouxinoes :  «Joanninha  não  era  bel  la, 
talvez  nem  galante  siquer  no  sentido  popular  e  ex- 
pressivo que  a  palavra  tem  em  portuguez,  mas  era 
o  typo  da  gentileza,  o  ideal  da  espiritualidade.» 

Eu  não  vi  o  retrato,  mas  encontrou-o  e  viu-o  o 
dr.  Carlos  Guimarães,  que  o  deve  ter  deixado  no 
seu  espolio;  e  foi  elle  mesmo,  o  genro  de  Garrett, 
que  me  disse  e  affiançou  que  a  «prima  da  Carreira» 


l66  COLLECÇÀO   ANTÓNIO   MARIA   PEREIRA 

não  revelava  nenhum  traço  de  identificação  com  «a 
menina  dos  rouxmoes.» 

Mas  a  carta  lá  estava  —  e  deve  estar  no  espolio 
do  dr.  Carlos  Guimarães  —  e  continha  queixumes, 
lamentações  da  signatária  por  haver  sido  esquecida, 
talvez  em  razão  de  não  ser  bella,  nem  sequer  ga- 
lante como  a  menina  dos  rouxinoes,  e  nem  ao  me- 
nos tão  gentil  e  espiritual  como  ella. 

O  que  restava,  pois  ?  Identificar  a  alma  dedicada, 
leal  e  dolorida  da  «prima  da  Carreira»  com  a  gentile- 
za, a  graça,  a  physionomia  e  a  figura  de  outra  mulher. 

Ora  isso  é  o  que  eu  vou  fazer. 

Tenho  que  fallar,  portanto,  de  duas  mulheres. 
Comecemos  pela  primeira,  a  prima.  A  boa  lógica 
manda  começar  pelo  principio. 

A  prima  de  Garrett  tinha  duas  irmãs  :  uma,  An- 
tónia, que  desposou  José  de  Menezes,  residente  na 
Gollegã ;  outra,  Maria  Antónia,  que  parece  ter  sido 
freira  professa  em  Aveiro. 

Seus  pais  chamavam-se  Thomaz  de  Aquino  e 
Almeida  e  D.  Anna  Lima  Barreto. 

D'este  consorcio  também  houve  um  filho :  foi  o 
cónego  Thomaz  de  Aquino  de  Lima  e  Almeida. 

Joanna  deixou  todos  os  seus  bens  a  uma  senhora 
D.  Thomasia  Maria  Amália  do  Amaral,  creio  que 
sua  sobrinha. 

Foi  esta  senhora  que  por  sua  vez  deixou  em  tes- 
tamento a  quinta  da  Carreira  a  Alexandre  Gar- 
rett *,  irmão  do  poeta. 


1  Pai  de  Rodrigo,  José  Maria  e  Gonçalo  Garrett  ;  este  ul- 
timo é  lente  de  mathematica  na  Universidade. 


[ 


NJNHO   DE   GUINCHO  167 

O  registo  do  testamento  fez-se  na  administração 
do  concelho  de  Santo  Thyso  em  27  de  abril  de 
i838. 

A  testadora  deve  ter  fallecido  n'essa  occaziao  em 
S.  Miguel  das  Aves,  solteira. 

A  quinta  da  Carreira  ficou  pagando  uma  pensão 
á  baroneza  de  Almeida.  Quando  esta  titular  falle- 
ceu,  a  pensão  passou  para  sua  irmã  D.  Henriqueta 
de  Menezes.  Estas  duas  irmãs  eram  mais  próximas 
parentas  de  Joanna  que  os  Garretts. 

Eis  aqui  o  que  eu  pude  averiguar  á  cerca  da  pri- 
ma de  Garrett,  segundo  os  apontamentos  que  me 
deu  o  dr.  Carlos  Guimarães. 

Resta  tornar  a  dizer  que  era  feia,  tando  um  boc- 
ca  quazi  defeituosa  pela  má  implantação  dos  den- 
tes. 

Mas  esta  «prima  da  Carreira»,  que  chorava  sau- 
dades do  primo,  c  que  lh'o  dizia,  chamava-se  «Joan- 
na», que  foi  o  nome  que  Almeida  Garrett  poz  á 
menina  do  Vaile. 

O  Carlos  das  Viagens  era  prim.o  de  Joanninha^  e 
Garrett  era  primo  da  menina  da  Carreira. 

Eu  creio  ainda  que  a  Joaninha  do  Valle  é  a  Joan- 
ninha  da  Carreira  ao  menos  no  nome,  no  parentes- 
co e  por  suave  recordação  de  infância. 

Em  tudo  o  mais.  , .  ha  outra.  Quem  é? 

Procurei  sabel-o  por  intermédio  duma  pessoa  que 
conhecesse  a  preceito  o  Valle  de  Santarém. 

Essa  pessoa  appareceu,  foi  o  meu  illustre  amigo 
e  digno  par  do  reino  sr.  Luiz  António  Rebello  da 
Silva,  filho  do  fallecido  e  brilhante  escriptor  d'estes 
appellidos.  Tem  casa  no  Valle,  herdada  de  seu  avô, 


l58  COLLECÇÁO    ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 


desembargador ;  casa  que  serviu  de  quartel  gene- 
ral ás  brigadas  que  ali  se  acantonaram  em  1810, 
i833  e  1846. 

O  sr.  Rebello  da  Silva,  para  me  obsequiar,  co- 
lheu o  depoimento  de  um  velho  do  Valle,  Belchior 
da  Costa,  que  tem  perto  de  90  annos,  e  toda  a  lu- 
cidez de  espirito,  ainda. 

Oiçamos  o  que  disse  a  tradição  oral  colhida  no 
Valle': 

O  nonagenario  Belchior  da  Costa  crê  que  a  «me- 
nina dos  rouxinoes»  fosse  D.  Maria  Ritta  de  Oli- 
veira, tia  de  Rodrigo  da  Costa  Alvares,  senhora 
muito  intelligente,  instruída  e  sympathica.  De  mais 
a  mais,  tinha  os  olhos  verdes. 

No  tempo  em  que  o  visconde  de  Almeida  Gar- 
rett passou  no  Valle,  Rodrigo  da  Costa  Alvares, 
residente  na  casa  onde  actualmente  está  a  viuva 
Monteiro,  trazia  de  arrendamento  a  quinta  do  Bico, 
onde,  em  pleno  Valle,  D.  Maria  Ritta  ia  passar 
muitos  dias. 

Não  admira  que  Almeida  Garrett  a  visse,  e  re- 
parasse na  côr  dos  olhos,  e  conversasse  a  dama,  e 
ficasse  encantado  com  a  sua  graça  e  intelligencia. 
Nem  também  deve  admirar  que,  por  conveniência 
social,  lhe  occultasse  o  nome,  e  fosse  buscar  para 
ella  o  nome  da  aprima  da  Carreira»,  ao  qual  viria 
presa  alguma  recordação  da  infância:  assim  tam- 
bém o  verde  frouxel  do  musgo  vem  preso  á  pedri- 
nha que  se  arrancou  a  um  muro  velho  como  recor- 
dação de  algum  logar. 

Não  se  me  dá  de  apostar  que  a  «prima  da  Car- 
reira» teria  os  olhos  pretos,  a  que  Garrett  chamou 


NINHO  DE  GUINCHO  1  Bg 


OS  mais  sinceros  e  leaes.  Leaes  e  sinceros,  porque 
ainda  o  viam  de  longe,  e  choravam  por  elle.  Con- 
fessa Garrett  que  «nasceu»  na  religião  dos  olhos 
pretos.  Mas  uma  única  ve^  na  sua  vida  viu  os 
olhos  verdes,  e  encantou-se.  Foi  quando  passou  no 
Valle,  e  encontrou  D   Maria  Ritta  de  Oliveira. 


iq02  —  Abril. 


XIX 


o  PRIMEIRO  TORMENTO  DE  UMA  RAINHA 


Toda  a  correnteza  de  lindas  salas,,  que  constituem 
o  pavimento  inferior  do  palácio  de  Queluz,  brilhava 
n'uma  ardentia  immensa  de  candelabros,  talha  dou- 
rada e  espelhos,  como  se  um  polvilho  luzente  e  pal- 
pitante cahisse  do  ar  esvoaçando  n'um  incessante 
adejo. 

As  paredes,  ouro  e  crystal.  O  chão  em  mármore 
de  cores  e  xadrez  de  madeira  com  phantasiosos  em- 
butidos. Os  tectos  caprichosamente  apainelados  por 
notáveis  pintores.  O  mobiliário  sumptuoso  e  des- 
lumbrante :  tremós  e  cadeiras  do  tempo  de  D.  João  V, 
adquiridos  pelo  infante  D.  Francisco ;  grandes  ta- 
lhas do  Japão,  especialmente  n'uma  das  salas,  a  que 
deram  o  nome ;  escabellos  e  tamboretes,  branco  e 
oiro,  estofados  depreciosas  almofadas  de  Damasco 
azul  ou  vermelho;  coxins  e  supedáneos  de  velludo 
escarlate  com  altos  relevos  doirados ;  columnas  de 
ébano  torneado  sustentando  bustos  e  estatuetas ; 
jarras  da  índia  guarnecidas  de  preciosas  flores  ar- 


NINHO  DE   GUINCHO  l()I 

tificiaes  manipuladas  nos  conventos  de  freiras;  co- 
fres de  madre-perola,  de  tartaruga,  de  xarão,  de 
prata  repoussée,  alguns  de  oiro,  cravejados  de  pedras 
preciosas  \  infinidade  de  custosos  bibelots  vindos  de 
longe  por  mimo  realengo  e  esparsos  sobre  os  con- 
tadores e  as  misulas. 

Todas  as  portas,  abrindo  sobre  o  jardim,  deixa- 
vam entrar  a  frescura  da  noite,  o  aroma  das  flores, 
o  murmúrio  da  agua. 

Das  arvores  pendiam  lanternas  multicores,  que 
esmaltavam  a  verdura  e  illuminavam  os  canteiros, 
riscados  á  italiana,  as  estatuas,  os  vasos  de  már- 
more, as  estufas,  os  lagos,  os  repuxos,  os  canaes  e 
as  pontes. 

A  grande  cascata,  por  entre  jorros  de  agua  e  de 
luz,  liquefazia  diamantes  que  rolavam  cantantes  e 
phosphorescentes  sobre  um  fundo  esculptural  de 
mármore  branco. 

No  vasto  terreiro,  que  se  enobrece  com  a  fachada 
do  palácio,  muito  embrincada  de  ornatos,  jónicos 
e  dóricos,  ardiam  fogueiras  e  cantavam  saloias,  ce- 
lebrando, sob  o  favor  real,  a  noite  tradicionalmente 
alegre  do  Precursor. 

Em  Queluz  podia  haver  serenins  e  opera  em  qual- 
quer noite  do  anno,  distracção  predilecta  da  corte 
de  D.  Maria  I,  como  já  o  fora  no  tempo  de  seu  pae : 
a  pintura  do  tecto  n'uma  sala  do  palácio  testemunha 
ainda  hoje  as  aptidões  musicaes  da  familia  real  por- 
tugueza,  guiadas  sob  a  direcção  do  maestro  David 
Peres. 

Mas  as  duas  noites  de  maior  brilho  e  animação 

em  Queluz,  durante  todo  o  anno,  eram  a  de  S.  João, 

II 


102  COLLECCÁO  ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 


por   tradição  popular,  e  a  de  S.  Pedro,  nome  do 
marido  da  rainha,  seu  tio  paterno. 

A'  festa  da  corte,  n'essas  privilegiadas  noites, 
correspondia  a  festa  da  rua.  Duplicava-se  o  regosijo, 
fora  e  dentro  do  palácio:,  dir-se-ia  uma  obra  com- 
posta em  dois  tomos  e  inspirada  por  uma  alegria 
commum. 

Na  corte  resplandeciam  ainda  os  últimos  fogachos 
de  grandeza  cezárea,  que  D.  João  V  re:juintára  com 
os  olhos  postos  em  Luiz  XIV ,  e  que  tendiam  a  apa- 
gar-se  agora,  como  um  sol  no  ozciso  A  realeza, 
amparada  pela  frouxa  mão  de  uma  ramha  timida 
e  excessivamente  escrupulosa,  decahia  de  antigas 
pompas  e  do  fausto  que  a  engrandecera.  No  palá- 
cio dos  nossos  reis  ia  se  perdendo  a  alegria  de  vi- 
ver, a  consciência  e  orgulho  do  poder  real.  Era  como 
se  tivesse  soado  a  ultima  hora  das  magnificentes 
elegâncias,  copiadas  de  França  ;  do  esplendor  dos 
saraus,  das  caçadas  e  dos  torneios;  das  aventuras 
amorosas  de  capa  e  espada ;  e  até  d'essa  polychro- 
mia  estonteante  dos  estofos  vivazes  que  revestiam 
as  salas  e  os  corpos  n'uma  opulência  de  cores,  que 
as  duas  cortes  de  Luiz  XIV  e  Luiz  XV  haviam  posto 
em  moda. 

O  cezarismo  amara  as  tintas  claras,  os  tecidos 
luminosos,  as  jóias  rutilantes,  as  fitas  e  plumas 
variegadas. 

Era  um  symptoma  inconsciente  da  sua  própria 
vitalidade. 

Na  rua,  as  festas  populares  reflectiam,  ainda  ao 
iniciar-se  o  reinado  de  D.  Maria  I,  o  brilho  de  que 
se  opulentava  o  devocionário  dos  reis. 


NINHO  DE   GUINCHO  lÓ3 


As  de  Queluz,  no  S.  João  e  S.  Pedro,  eram  rui- 
dosas e  largamente  subsidiadas  pela  munificência 
régia  ^  além  das  fogueiras  e  descantes,  havia  um 
grandioso  fogo  de  artificio,  a  que  a  família  real  vi- 
nha assistir  da  ampla  janella  do  pavilhão  central. 

Na  corte,  o  esplendor  dos  saraus  tinha  a  alimen- 
tal-o  não  só  os  últimos  vestígios  do  cezarismo  mo- 
ribundo, mas  também  a  feliz  coincidência  de  haver 
em  torno  da  rainha  um  grupo  de  princesas  suas 
irmãs,  que,  juntando-lhes  todas  as  suas  camareiras, 
damas  de  honor,  donas  da  camará  e  açafatas,  cons- 
tituíam uma  interessante  e  graciosa  constellação 
feminina. 

E  já  Francisco  I,  o  mais  entendido  dos  monar- 
chas  em  assumptos  de  galanteria,  havia  dito  com 
grande  conhecimento  de  causa  :  que  uma  corte  sem 
mulheres  é  um  anno  sem  primavera  e  uma  prima- 
vera sem  rosas. 

N'este  requisito  essencial,  a  corte  de  D.  Maria  I 
devia  contentar  os  mais  exigentes. 

A  começar  pela  rainha. .  . 

Quando  sua  magestade  subiu  ao  throno  tinha  já 
completado  quarenta  e  dois  annos  de  idade,  e  havia 
dezesete  que  estava  casada.  Era  mãe  de  seis  filhos. 
Não  fora  nunca  um  modelo  de  belleza,  mas  devia 
considerar-se  um  perfeito  exemplar  de  raça  fina. 
Aspecto  nobre  e  insinuante,  maneiras  ao  mesmo 
passo  discretas  e  suaves :  o  que  quer  que  fosse  de 
auctoridade  e  brandura. 

Lord  Beckford,  tão  sabido  em  coisas  de  corte, 
exigente  como  estrangeiro  e  artista  que  era,  viu  a 
rainha  de  Portugal  e  achou-a  talhada  para  exercer 


164  COLLECÇÁO  ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

O  mando,  porque  ao  mesmo  tempo  diíFundia  respeita 
e  agrado. 

A  infanta  D.  Marianna,  pouco  mais  nova  que  a 
rainha,  conservava  nas  suas  linhas  geraes  o  typo  de 
familia ;  era  distincta,  se  bem  que  menos  brilhante 
que  as  outras  suas  irmãs. 

Faltava  já  no  grupo  uma  infanta,  D.  Maria  Fran- 
cisca Dorothea,  que  a  morte  acommettera  aos 
trinta  e  dois  annos  de  idade. 

Mas  a  infanta  D.  Maria  Benedicta,  quarta  filha 
de  el-rei  D  José,  tinha  belleza  e  prestigo  de  sobra 
para  compensar  com  seus  encantos,  n'esta  florida 
corbelha  de  princesas,  a  perda  de  uma  d'ellas,  por 
mais  estimável  que  fosse 

Era  agora  princesa  árt  Brazil,  pois  casara  com 
seu  sobrinho  o  príncipe  herdeiro  D.  José,  rapaz  de 
quinze  annos  apenas,  mas  já  de  tão  levantados  es- 
píritos e  graves  maneiras,  que  toda  a  corte  e  todo 
o  reino  punham  n'elle  os  olhos  como  na  promessa 
de  um  grande  rei. 

N'esta  noite  de  S.  João,  do  anno  de  1777,  esta- 
vam noivos  de  quatro  mezes,  adorando-se  um  ao 
outro  como  desposados  felicíssimos;  que  a  distincção 
das  mulheres  attenua-lhes  a  idade  no  amor,  e  a 
princesa  parecia  ter  tanta  mocidade  como  o  príncipe, 
comquanto  se  differençasse  no  dobro  dos  annos. 

A  rainha,  acclamada  havia  pouco  mais  de  um 
mez,  estava  tranquilla  e  contente  das  alegrias  de 
familia  e  do  ligeiro  gravame  que  lhe  davam  então 
os  negócios  do  Estado. 

Não  tinha  desgostos  como  esposa,  porque  se  ha- 
bituara honestamente  á  convivência  de  um  marido, 


NINHO  DE   GUINCHO  1  65 

que,  falho  de  dotes  superiores,  não  merecia  pos- 
suil-a ;  e,  mãe  e  irmã  dedicada,  estimava  ver  tão 
bem  encaminhado  o  futuro  do  principe  herdeiro, 
aUiado  ao  de  uma  princesa  que  deveria  fehcitar  o 
marido  e  o  reino. 

Politicamente,  a  situação  parecia  bem  definida  e 
calma  ;  dir-se-ia  que  todo  o  passado  se  apagara  com 
um  só  golpe  de  penna,  sem  deixar  vestigios.  Os 
nobres  e  os  jesuítas  ejstavam  satisfeitos,  em  caminho 
de  plena  rehabiliiação. 

O  marquez  de  Pombal  fora  ja  apelado  com  um 
simples  decreto,  apparentemente  honroso;  os  presos 
regressaram  a  suas  casas  e  famílias ;  aos  desterra- 
dos mandou  a  rainha  levantar  o  interdicto. 

O  indulto  geral  serenara,  no  primeiro  momento, 
os  ânimos;  e  a  revisão  dos  processos,  exigida  pela 
nobreza,  acabaria  certamente  por  sentenciar  a  inno- 
cencia  de  vivos  e  mortos. 

Era  o  inicio  feliz  de  um  reinado,  que  se  annun- 
ciava  de  clemência  e  paz,  tanto  enganam  as  primei- 
ras horas  nas  grandes  emprezas,  e  não  ha  empreza 
maior  que  a  de  governar  nações  e  acalmar  ódios 
antigos 

Cada  aurora  traz  um  sorriso  de  esperança,  mui- 
tas vezes  maliogrado,  e  n'aquelle  mez  de  junho  de 
1777  amanhecia  sereno  o  reinado  tempestuoso  de 
uma  rainha  infeliz. 

Das  festas  de  Queluz  apenas  poderiam  blasphe- 
mar  os  amigos  do  marquez  de  Pombal,  se  elle  os 
tivesse  ainda.  Mas  onde  costumam  estar  os  amigos 
dos  ministros  decahidos  ?  Ninguém  os  viu,  nem  tem 
visto,  na  hora  da  desgraça. 


l66  COLLECÇÃO    ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 

Toda  a  corte  folgava,  pois,  e  com  ella  a  rainha, 
e  com  a  rainha  o  povo. 

Que  o  povo  deixa-se  embair  como  as  creanças ; 
recebe  os  golpes  e  não  os  sente  logo. 

Começara  o  sarau  do  paço  de  Queluz  por  um 
serenim  em  que  a  princesa  do  Brazil  brilhara,  como 
sempre,  na  interpretação  de  uma  ária  de  Jomelli. 

Depois  viera  a  familia  real  á  janelia  para  ver  quei- 
mar, entre  saudações  e  applausos  populares,  o  fogo 
de  artificio. 

Foi  ahi  que  a  camareira-mór,  D.  Constança  Ma- 
nuel, marqueza  de  Tancos,  principiando  a  notar 
certo  constrangimento  na  rainha,  lhe  perguntou : 

—  Sente  vossa  magestade  alguma  indisposi- 
ção ? 

—  Nenhuma,  respondeu  D.  Maria  I  sorrindo  com 
o  nobre  agrado  que  lhe  era  peculiar. 

Se  não  era  indisposição,  o  que  poderia  ser  ?  O 
povo  estava  contente,  a  corte  rambem.  E  a  voz 
queixosa  do  marquez  de  Pombal,  desterrado,  não 
podia  ouvir-se  ali. .  . 

Mas  a  rainha,  para  quem  de  perto  a  conhtcia, 
tinha  o  que  quer  que  fosse  que  a  inquietava. 

Também  a  princesa  do  Brazil  o  notou,  e  o  disse 
ao  marido,  que  foi  interrogar  a  mãe. 

—  Nada,  meu  filho,  não  tenho  nada  que  me  aíflija. 
E'  apprehensão  vossa. 

Mas  o  fogo  de  artificio  ardera  e  a  familia  real  re- 
gressou ás  salas  para  dançar  o  minuete  de  Haydn, 
que  era  o  epilogo  obrigado  de  uma  noite  de  festa 
palaciana. 

A  rainha,  ao  tomar  assento  no  throno,  ao  lado 


NINHO  DK   GUINCHO  167 

de  seu  marido,  viu  o  truão  Falperra  fazer  duas  mo- 
mices  graciosas  e,  contra  o  seu  costume,  ficou  in- 
ditíerente. 

O  arcebispo  de  Thessalonica,  espirito  alegre  e 
desempoeirado,  confessor  da  rainha,  notou  este  facto 
e,  subindo  os  degraus  do  throno,  aproximou-se  de 
sua  magestade,  fallando-lhe  ao  ouvido. 

D.  Maria  I  respondeu-lhe  também  em  muita  con- 
fidencia. 

O  arcebispo  sorrira.  Entre  confessor  e  confessada 
não  havia  segredos :  elle  tinha  o  direito  de  pergun- 
tar ;  ella  o  dever  de  responder.  Se  era  um  escrú- 
pulo que  inquietava  sua  magestade,  de  pouca  mon- 
ta devia  ser,  pois  que  o  arcebispo  tinha  sorrido.  Mas 
algum  mysterio  desvendara  elle,  que  tornou  atraz 
para  lembrar  á  rainha  a  humildade  de  Job  no  sof- 
frimento : 

—  Levo  um  cilicio  cosido  sobre  a  minha  pelle,  e 
cobri  de  cinza  a  minha  carne. 

O  mestre-sala  D.  Antão  de  Almada  bateu  palmas 
e  logo  a  musica  da  real  camará  deu  o  alamiré  do 
minuete. 

Organisaram-se  os  pares. 

A  rainha  mandou  convidar  para  seu  parceiro  o 
velho  duque  de  Lafões,  ágil  e  distincto  ainda  apvesar 
de  velho.  A  escolha  de  sua  magestade  tinha  eviden- 
temente um  propósito  politico.  O  duque,  D.  João 
de  Bragança,  acabava  de  voltar  do  desterro  a  que 
o  marquez  de  Pombal  o  havia  condemnado.  De 
modo  que  o  braço  da  rainha,  encurvando-se  no  mi- 
nuete para  encontrar  a  mão  do  duque  de  Lafões, 
era  como  um  arcoiris,  signal  ostensivo  de  alliança, 


l6S  COLLECÇÃO  ANTÓNIO   MARIA    HERlilRA 

que  se  desenhasse  benigno  entre  a  monarchia  e  a 
nobreza. 

El-rei  D.  Pedro  dançou  com  a  duqueza  D.  Hen- 
riqueta, certamente  por  indicação  da  rainha,  para 
tornar  ainda  mais  evidente  o  alto  significado  politi- 
co da  reconciliação. 

O  principe  D.  José  teve  como  parceira  a  sua  noi- 
va, tão  enamorados  andavam  aquelles  recem-casa- 
dos  ditosos,  a  quem  a  lua  de  mel  sorria  promessas 
de  longa  felicidade,  que  uma  prematura  catastro- 
phe  mallográra. 

Teve  este  minuete  algum  tanto  de  bellamente 
mythologico,  porque  n'elle  figuraram  as  Tr^e:^  Gra- 
ças. Assim  eram  designadas  na  corte  as  encanta- 
doras filhas  do  marquez  de  Marialva  :  D.  Maria  do 
Carmo,  marqueza  de  Loulé;  D  Joaquina,  marqueza 
de  Louriçal ;  D.  Henriqueta,  duqueza  de  Lafões. 

Entre  as  damas  gentis,  que  em  tão  avultado  nu- 
mero floresciam  nas  salas  de  Queluz,  sobresahia 
também,  n'um  alto  relevo  de  distincção,  a  alegre  e 
espirituosa  duqueza  de  Cadaval,  irmã  do  duque  de 
Luxemburgo. 

Os  penteados  altos,  toucados  de  pérolas  e  mara- 
bus;  as  cores  vivas  dos  vestidos  roçagantes;  os 
pingentes,  estrellas  e  collares  de  pedras  preciosas ; 
as  rendas  que  pendiam  em  flocos  de  espuma  al- 
vinitente  sobre  os  braços  nus ;  e,  mais  que  tudo 
isto,  a  belleza,  a  elegante  plástica,  o  quid  nobre  das 
raças  finas,  divinisavam  todas  aquellas  lindas  figu- 
ras de  mulher,  dignas  de  serem  agrupadas  n'um 
leque  de  Watteau. 

A   rainha  ostentava  um  rico  vestido  de  Damasco 


NINHO   DE   GUINCHO  1  6y 


azul  claro,  ricamente  lavrado  em  florões  e  laçarias. 
O  justilho,  muito  espartilhado,  refulgente  de  estrel- 
las  de  brilhantes,  rematava  em  angulo  agudo  sobre 
a  cintura.  Um  decote  modesto  aflorava  d'entre  as 
rendas  do  collo.  Sobre  os  cabellos  levantados,  o 
diadema  real.  Nas  orelhas,  pingentes  que  se  articu- 
lavam em  duas  phalanges  de  pedras  raras.  Nas 
mãos,  luvas  bordadas,  que  subiam  até  cobrir  todo 
o  ante-braço.  Pendente  de  um  cordão  de  ouro,  uma 
ventarola  de  grandes  pennas  de  avestruz,  constel- 
lada  de  pequeninas  esmeraldas  muito  vivas. 

Ao  começar  o  minuete,  a  rainha  não  parecia  mais 
tranquilla  do  que  no  momento  em  que  o  arcebispo 
de  Thessalonica  lhe   recordou  o  versículo  de  Job- 

Soífria.  Na  sua  face,  doce  e  grave,  passava  sub- 
tilmente uma  contracção  dolorosa,  que  se  repetia 
por  vezes,  e  que  sua  magestade  procurava  disfar- 
çar sorrindo.  Bem  quizera  D.  Maria  I  ser,  n'essa 
hora  de  requintada  elegância,  uma  das  rudes  cam- 
ponezas  que  folgavam  em  liberdade  no  terreiro  do 
palácio.  Sua  magestade  parecia  querer  retrair  por 
momentos  a  sua  mão  direita,  que  o  duque  de  La- 
fões segurava  respeitosamente  na  ponta  dos  dedos. 

O  minuete  evolucionara  n'um  rythmo  lento,  cor- 
tado de  cadencias  mesuradas.  Ouvia-se  a  marcação 
choreographica  dos  passos  no  mármore  do  pavi- 
mento. As  plumas  dos  penteados  baloiçavam  em 
ondulações  isóchronas,  e  os  pares  dançantes  reque- 
bravam-se  em  meneios  gentis,  e  successivas  flexões, 
pautadas  e  certas.  Os  espelhos  enquadravam  em 
sumptuosas  molduras  de  talha  dourada  a  reprodu 
cção  d'este  minuete  palaciano,  dividindo-o  em  gru- 


170  COLLECCAO  ANTÓNIO  MARIA    PEREIRA 


pos,  e  dando  assim  maior  destaque  e  mais  brilho  a 
cada  par  e  a  cada  figura. 

A  rainha  viu-se  de  relance  n'um  espelho,  e  ella 
mesma  reconheceu  que  a  sua  physionomia  estava 
perturbada. 

Logo  o  versículo  de  Job  lhe  tornou  a  lembrar,  e 
d'elle  pareceu  receber  sua  magestade  um  novo  es- 
timulo de  resignação  e  paciência. 

Quando  o  minuete  terminou,  e  com  elle  o  sarau, 
a  corte,  esperando  os  coches  no  vestíbulo  do  palá- 
cio, trocava  rápidas  impressões  sobre  o  dessocego 
da  rainha,  que  a  pouco  e  pouco  se  tornara  evidente 
aos  menos  Íntimos. 

A  nobreza  mostrava-se  apprehensiva,  receiando 
que  sua  magestade  começasse  a  enfraquecer  subi- 
tamente na  sua  obra  de  restauração  politica. 

O  marquez  de  Pombal  ainda  de  longe  assustava, 
esmagado. 

O  que  teria  a  rainha  ?  perguntava-se. 

Esta  pergunta  ficou  sem  resposta  durante  annos, 
e  só  a  obteve  quando  já  não  inquietava. 

Por  morte  do  arcebispo  de  Thessalonica  appare- 
ceu  no  seu  diário  o  seguinte  apontamento  referido 
ao  anno  de  1777  :  aNoite  de  ò'.  João — Sua  Mages- 
tade a  Rainha,  segundo  ella  própria  me  declarou  á 
puridade,  foi  atormentada  no  sarau  da  corte  em 
Queluz  por  uma  pulga  contumaz  e  raivosa,  que  re- 
petidas vezes  a  mordeu,  e  muito  a  maltractou,  sem 
que  Sua  Magestade  pudesse  acudir  a  este  molesto 
incidente  por  ser  contra  a  etiqueta  retírar-se  antes 
de  terminado  o  minuete.  Deus  ordena  ás  vezes  seus 
grandes  ensinamentos  por  intermédio  de  minuscu- 


NINHO  DK  GUINCHO  I7I 

los  objectos,  mas  a  lição  que  vem  do  alto  deve 
aproveitar-se  sempre  porque  é  portadora  de  philo- 
sophia  divina.» 

Só  então  se  ficou  sabendo  que  n'aquella  noite  de 
S.  João,  em  Queluz,  a  divina  philosophia  tomou  a 
forma  de  uma  pulga. 


1902 


XX 


o  GALLO 


A  feira  estava  na  sua  hora  de  maior  bulicio  e 
movimento. 

Havia  um  ruido  atroador  e  uma  ondulação  vio- 
lenta de  guardasoes  vermelhos,  brancos  ou  verdes 
com  que  os  grupos  de  camponezes  se  defendiam  da 
calma  intensa  do  sol. 

Palavras  de   amor,  trocadas  em  verso  no  estylo 
da   Maia,  "perdiam-se  no  coro  immenso  de  outras 
vozes  humanas,   pregões   de  vendedores,  guinchos 
do  rapazio,   gargalhadas  alvares,  assobios  estridu 
los. 

Por  sua  parte,  os  animaes  dependentes  do  homem 
imitavam-n'o  n'esta  inferneira  colossal,  ingente  :  as 
gallinhas  cacarejavam,  os  bois  mugiam,  os  burros 
zurravam,  os  porcos  grunhiam,  e  de  vez  em  quan- 
do ouvia-se  ganir  um  cão,  que  os  lavradores  repel- 
liam  a  pontapés. 

De  espaço  a  espaço  chegavam  chay^-à-bancs  enor- 
mes, frágeis  charrettes  pintadas  de  amare  lio,  breaks 
repudiados  pelos  antigos  donos. 


NINHO   DE   GUINCHO  lyS 

Fez-me  impressão  um  dos  char-ã-bancs,  que  en- 
trou na  feira  rodando  vagaroso  por  entre  os  grupos 
para  os  não  atropellar  e  para  não  espantar  as  rezes. 

Conduzia  um  homem  e  sete  mulheres. 

O  carro  parou  á  porta  da  estalagem  do  Carneiro, 
despertando  a  attenção  de  muitas  pessoas. 

Logo  ah  se  disse  que  o  homem  era  o  Brazileiro 
da  Portella,  com  as  suas  sete  mulheres. 

Um  serralho  ambulante  ! 

Fiz  então  maior  reparo  no  sujeito. 

Teria  45  annos.  Estatura  meã,  hombros  largos, 
oeiços  grossos,  olhinhos  pequenos,  muito  vivos. 

Trazia  chapéu  de  palha  e  collete  branco,  esses 
dois  característicos  infalliveis  do  trajo  de  qualquer 
brazileiro  minhoto. 

Foi  elle  que  desceu  primeiro.  Apeiou-se  e  esten- 
deu a  mão  a  uma  das  sete  mulheres,  que  dispen- 
sou, sorrindo^  a  galanteria  do  macho.  Aquella  era 
a  Favorita ;  logo  ali  disseram.  As  outras  seis  des- 
ceram umas  atraz  das  outras,  todas  ellas  saltando 
galhardamente,  em  pinchos  acrobáticos,  sem  que 
o  Brazileiro  lhes  oíferecesse  o  mesmo  galante  ap- 
poio. 

Trajavam  saia  de  flanella,  refegada,  chambre  de 
merino,  lenço  de  seda  na  cabeça ;  calçavam  meia 
preta  e  solêtas. 

Nenhuma  tinha  ainda  trinta  annos. 

Eram  bons  exemplares  de  moçoilas  do  Minho, 
accusando  robustas  florescencias  de  sebo  e  cevo. 

Emquanto  o  autócrata  entrou  na  estalagem  do 
Carneiro,  a  encommendar  o  almoço,  as  sete  mu- 
lheres   ficaram    á    porta,    charlando    alegremente, 


174  COLLECÇÁO    ANTÓNIO    MAR* A   PEREIRA 

n'uma  familariedade  muito  intima,  em  que  não  vis- 
lumbrava a  menor  reserva  de  ciúme. 

Vi  o  Brazileiro  a  falar  com  a  cosinheira  da  esta- 
lagem, que  era  uma  raparigaça  escarolada  e  sadia, 
e  que  parecia  dizer-lhe  n'um  sorriso  attractivo :  «Se 
precisar  da  oitava,  cá  estou  eu.» 

E  elle,  os  olhinhos  mexendo  muito  vivos  e  gaia- 
tos, respondia-lhe  n'um  olhar  demorado:  «Pôde 
ser.  Cesteiro  que  faz  um  cesto,  faz  um  cento.» 

Encommendado  o  almoço,  o  Brazileiro  juntou-se 
ás  sete  mulheres  e  foram  todos  passeiar  pela  feira, 
onde  ellas  compraram  lenços  de  Guimarães,  chai- 
les  de  casimira  e  anneis  de  cornalina. 

O  povo  abria  passagem  ao  sultão  da  Portella  e 
seu  harém,  dando  mostras  de  respeito  e  acatamento, 
d'onde  inferi  que  a  gente  do  Minho  não  sente  re- 
pugnância nenhuma  pelos  costumes  turcos. 

Contaram-me  então  a  vida  do  Brazileiro,  sobre  a 
qual  eu  lanço  um  véu  discreto,  comquanto  elle, 
Brazileiro,  trazendo  o  serralho  a  passeio,  parecesse 
não  gostar  de  pudibundos  véus,  nem  de  arcas  en- 
couradas. 

Fazia  jogo  franco. 

Mas  contarei  apenas  a  historia  do  gallo  vivo, 
symbolo  heráldico  da  casa  burgueza  da  Portella. 

O  Brazileiro  possuia  um  lindo  gallo,  muito  alto 
e  empennachado,  opulento  de  cores  rutilantes,  que 
era  tratado  com  as  maiores  deferências  e  attençÓes 
por  todo  o  serralho,  porque  uma  cigana,  lendo  a 
sina  do  sultão,  lhe  dissera  que  o  seu  destino  era  o 
mesmo  do  gallo  e  que  ambos  haviam  de  morrer  no 
mesmo  dia. 


NINHO   DE   GUINCHO  17D 


O  Brazileiro,  pensando  n'este  vaticínio,  encontrou 
facilmente  uma  certa  relação  de  semelhança  entre 
as  duas  existências,  e,  querendo  conservar-se  a  si 
próprio,  conservava  o  gallo. 

Achei  originalidade  n'este  pormenor,  que  me  não 
<:squcceu  durante  um  anno. 

Uma  vez  escrevi  para  a  provmcia,  e  perguntei : 
«O  gallo  vive  ?»  Responderam-me  :  «Vivem ambos.» 

A  cigana  continuava  a  acertar,  apesar  do  descré- 
dito em  que  teem  cahido  as  prophecias. 

Mas,  passados  alguns  mezes,  recebi  uma  noticia 
inesperada. 

O  Brazileiro  da  Portella  tinha  morrido  repenti- 
namente depois  de  uma  ceia  de  orelheira  e  feijão 
branco,  como  um  odre  que  rebentasse. 

Não  fez  testamento,  e  o  serralho  ficou  indignado 
com  essa  imprevidência  que  o  reduzia  á  miséria, 
porque  appareceram  logo  sobrinhos  do  defunto,  que 
tomaram  conta  do  espolio,  guardando  todas  as  cha- 
ves das  gavetas  e  do  cofre. 

Ahi  pelo  meio  dia  ainda  as  sete  mulheres  não 
tinham  comido,  e  comtudo  já  os  herdeiros  as  ha- 
viam despedido,  severamente,  em  nome  da  moral 
publica  ultrajada. 

As  raparigas,  antes  de  abandonar  a  casa  da  Por- 
tella, lembraram-se  do  gallo,  como  de  um  salvate- 
rio  único. 

Deitaram-lhe  a  mão,  amarraram-Ihe  o  bico  com 
um  lenço,  e  levaram-n'o  sonegado. 

Depois  sahiram  estardalhando  gargalhadas  e  fo- 
ram cosinhar  e  comer  o  gallo  na  adega  do  Padrão  que, 
também  pertencia  ao  Brazileiro,  e  ficava  distante. 


170  COLLECÇÃO   ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

Foi  um  ágape  formidável  de  estroinice ;  uma 
pandega  rasgada. 

Todas  ellas  beberam  verdasco  á  «saúde  do  mor- 
to» e  da  cigana. 

Depois,  dispersaram-se  á  procura  do  pão  nosso 
das  odaliscas. 

Dizem-me  que  umas  foram  para  o  Porto,  outras 
para  Braga  e  algumas  talvez  para  a  Turquia,  visto 
já  estarem  habitudas  aos  costumes  ottomanos. 

Minho — iqo2. 


XXI 


o  GlUME 


Dizia  um  jornal  ha  quatro  dias: 

«Foi  hontem  presa  uma  mulher  que  sç  vestiu  de 
homem  para  espionar  o  marido. 

«Aconteceu  lhe  ter  ido  para  o  calabouço  n.°  4, 
onde  se  conservou  em  travesti  até  que  de  casa  lhe 
mandaram  vestidos  próprios  do  seu  sexo. 

aO  ciúme  é  negro,  e  o  calabouço  não  o  é  me- 
nos.» 

No  amor  tudo  é  negro  quando  deixa  de  ser  cor 
de  rosa. 

Os  meios  tons  são  próprios  dos  sentimentos  que 
envelheceram:  da  amizade,  por  exemplo.  E  não  se 
diga  que  por  ser  antiga  e  apenas  colorida  a  meias 
tintas,  a  amizade  vale  menos.  Não.  Ella  é  como  o 
marfim,  que  se  valorisa  quando  amarellece  ligeira- 
mente ou  como  os  monumentos  archeologicos  quan- 
do a  patina  os  reveste,  pregoando-lhes  a  antiguidade. 


178  COLLECÇÁO  ANTÓNIO    MARIA  PEREIRA 

O  amor,  se  é  verdadeiro,  vae  aos  extremos  :  á 
confiança  ou  ao  ciúme.  Ou  embriaga  docemente 
como  o  champagne  ou  requeima  doentiamente  co- 
mo o  absintho.  E,  como  creança  que  é,  segundo  a 
figuração  ra3^thologica,  tão  depressa  crê  como  des- 
crê •,  agora  confia,  logo  desconfia ;  hoje  sujeita-se> 
amanhã  revolta-se. 

Acontece  ás  vezes  que  da  amizade  nasce  o  amor, 
como  da  luz  mdecisa  da  madrugada  nasce  o  clarão 
brilhante  do  sol.  Mas  é  menos  vulgar  isso  do  que 
degenerar  o  amor  em  amizade,  empallidecendo  nas 
tintas  e  fixando-se  apenas  no  desenho. 

Havia  dois  primos... 

As  historias  de  amor  mettem  ordinariamente  pri- 
mos. 

EUa  chamava-se  Laura  e  elle  Carlos. 

Tinham  sido  companheiros  de  infância,  vivido 
juntos,  sem  que  entre  os  dois  houvesse  mais  do  que 
uma  agradável  intimidade. 

Qualquer  d'elles  passara  algumas  vezes  pelo^íW; 
ella  com  algum  rapaz  que  encontrara  na  sociedade; 
elle  com  alguma  rapariga  com  quem  dançara  uma 
valsa. 

Os  dois  poderiam  fallar  de  tudo  um  ao  outro  — 
menos  de  amor. 

A'  mesa  de  familia,  como  dois  casados  velhos, 
tomavam  o  seu  chá  com  torradas  na  companhia  pa- 
triarchal  dos  respectivos  tios. 

—  O'  Carlos,  fazes  favor  de  me  passar  os  biscoi- 
tos de  Oeiras  ? 

—  O'  Laura,  se  me  fizeses  favor  de  passar  as  tor- 
radas. . . 


NINHO  DE  GUINCHO  179 

Um  bello  dia,  quando  ambos  andavam  nos  vin- 
te e  dois  annos,  deram  juntos  um  passeio  ao 
campo. 

Ella,  mignotme  e  graciosa,  com  um  vestido  claro 
e  fresco,  appareceu  calçando  as  luvas. 

Carlos  teve  um  deslumbramento  inesperado  a  que 
pretendeu  esquivar-se  dizendo  com  os  seus  botões: 
«Que  tolice!  Então  não  me  está  parecendo  hoje 
muito  bonita  a  Laura!» 

Ella,  com  a  perspicácia  de  todas  as  mulheres, 
surprehendeu  essa  impressão. 

Partiram  de  carruagem  para  o  campo  com  os 
pacs:  fallavam  menos  que  de  costume  j  mostra- 
vam-se  algum  tanto  sonhadores. 

A'  noite,  quando  voharam,  tiveram  visitas  e  en- 
treiiveram-se  todos  escrevendo  perguntas  enygma- 
ticas  em  bocadinhos  de  papel,  que  iam  passando  de 
mão  em  mão. 

Laura  escreveu:  «Amas-me,  Carlos?»  e  passou 
o  papellinho  ao  primo,  que  respondeu  logo :  «Des- 
de esta  tarde.» 

Dentro  de  poucos  mezes  estavam  casados. 

Estes  casos  são,  é  certo,  menos  vulgares  que  o  do 
incêndio  degenerar  em  rescaldo,  o  amor  abrandar- 
se  em  amizade  —  o  que  constitue  o  pão  nosso  do 
coração 

Vê-se  todos  os  dias. 

Mas  o  amor,  no  seu  periodo  de  evolução,  não 
passou  nunca  por  boa  pessoa :  é  um  doido  que  de 
tempos  a  tempos  precisa  coUete  do  forças. 

Não  usa  robe-de- chambre  nem  sapatos  de  trazer 
por  casa,  como  a  amizade. 


l80  COLLECÇÁO    ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

Não  põe  ao  acaso  esta  ou  aquella  gravata,  co- 
mo a  indifferença. 

Se  se  julga  feliz  e  confia,  colioca  na  botoeira, 
não  uma  só  flôr,  mas  uma  ramalhoça  campanuda; 
se  o  ciúme  o  desorienta,  pisa  a  pés  juntos  a  rama- 
lhoça, rasga  o  fato,  dilacera  com  as  unhas  o  co- 
ração. 

Achava-se  certamente  n'este  período  agudo  a  mu- 
lher que  ha  dias  se  vestiu  de  homem  para  espionar 
o  marido. 

Antigamente  o  ciúme  era  uma  paixão  sanguiná- 
ria. Foi  isso  nos  bons  tempos  da  Cólchida.  Medea 
era  uma  fera,  que  nem  sequer  poupava  as  crean- 
ças  innocentes,  como  se  pode  ver  em  Euripedes  e 
Gorneille. 

Hoje  o  ciúme  entrou  no  caminho  mais  pratico  da 
surpreza  e  do  ardil.  Sem  deixar  de  ser  uma  paixão 
violenta,  que  rasga  o  fato  e  o  coração,  é  comtudo 
menos  brutal  e  feroz:  já  não  estrangula  creanças. 

Pelos  processos  do  artificio,  pela  «habilidade»  dos 
tempos  modernos,  atiinge  muita  vez  o  triumpho,  o 
que  não  quer  dizer  que  não  sofFra  ás  vezes  desas- 
tres. 

Essa  pobre  creatura  ciumenta,  de  que  resa  a  no- 
ticia, errou  o  caminho,  como  a  trágica  Medea  po- 
dia errar  a  punhalada. 

Querendo  encontrar  o  marido,  encontrou  o  cala- 
bouço. 

Adeus!  é  um  desastre  como  outro  qualquer. 

Os  grandes  syndicateiros  da  actualidade  também 
ás  vezes  teem  que  fallir,  e  todavia  ganham  a  par- 
tida muitas  outras  vezes. 


NINHO   DE   GUINCHO  101 


E'  um  azar:  ganhar  ou  perder.  O  jogo  não  tem 
outra  lei. 

Para  contrapor  a  esta  «partida  perdida»,  lembro- 
me  agora  de  um  bello  i'ober  que  foi  ganho  por 
certa  dama  no  whist  do  ciúme. 

Quem  pírdeu  foi  o  marido  e. . .  a  outra. 

O  marido  tinha  uma  amante  com  quem  gastava 
rios  de  dinheiro. 

A  mulher  legitima  veio  a  sabel-o  por  um  acaso 
muito  interessante. 

Tinha  entrado  n'um  luveiro  da  rua  do  Ouro  Es- 
tava escolhendo  luvas,  quando  no  espelho  da  loja 
viu  passar  n'um  /a/ííia// uma  mulher  apparentemente 
loira. 

—  Quem  é  aquella  creatura,  sabe? 

O  luveiro  respondeu,  dando  informações  para 
se  tornar  amável : 

—  E'  a  amante  de  Fulano. 

A  dama  empallideceu.  Ouvira  o  nome  do  marido. 
O  luveiro  continuou : 

—  Mora  na  rua  de  S.  Domingos  á  Lapa,  n'um  pré- 
dio cinzento  Vive  com  um  estadão  de  princesa.  Tem 
carruagem  da  Companhia  e  camarote  em  S.  Carlos. 

E  calçando  á  dama  as  luvas  que  ella  tinha  esco- 
lhido : 

—  Aquillo  é  pintura,  porque  ella  não  é  loira. 
A  dama  aâectando  serenidade : 

—  Sim  ? .  .  .  Como  todas . . . 

Escusado  será  dizer  que,  depois  de  tão  fulmi- 
nante revelação,  a  esposa  atraiçoada  foi  d'ali  á  rua 
de  S.  Domingos  á  Lapa  ver  qual  era  o  prédio  em 
que  morava  a  amante  de  seu  marido. 


l82  COLLFCÇÁO    ANTÓNIO    MARIA   PKRFIRA 

Não  podia  chegar  em  melhor  occasião.  A'  porta 
de  um  prédio  cinzento  parara  um  landaii:  uma  loi- 
raça  apeiava-se.  Era  eila,  a  amante,  a  mesma  que 
vira  passar  na  rua  do  Ouro. 

Fixado  o  numero  da  porta,  a  esposa  atraiçoada 
começou  desde  aquelle  momento  a  machinar  o  modo 
de  dar  cabo  d'esse  ménage  de  contrabando. 

Fazer  uma  scena  violenta,  era  deitar  azeite  no 
fogo. 

Todo  o  homem  que  ama  tem  trez  costellas  de 
cão:  se  o  contrariam,  morde. 

Era  preciso  recorrer  a  qualquer  processo  habili- 
doso;  mas  importava  que  fosse  efficaz. 

Ora,  ha  uma  Providencia,  que  vale  por  um  con- 
selho de  estado  :  é  a  dos  que  precisam  achar  uma 
ideia.  Acode-lhes  sempre.  O  caso  é  invocal-a  com 
confiança. 

Uma  vez  fui  procurar  á  rua  da  Paz  o  illustre 
escriptor  que  se  chamou  António  Augusto  Teixeira 
de  Vasconcellos. 

Mandou-me  entrar  logo  que  me  annunciaram. 

Encontrei-o  em  toiktte  de  trabalho,  deitado  so- 
bre o  leito,  de  papo  para  o  ar,  a  fumar  charuto. 

—  Está  doente?  perguntei  lhe. 

—  Não.  Estou  a  procurar  dinheiro. 

—  Como  ? ! 

—  De  um  modo  muito  simples.  Quando  preciso 
dinheiro,  estendo  me  na  cama,  accendo  um  charuto 
e  ponho-me  a  olhar  para  o  ar.  Ao  cabo  de  algum 
tempo,  começo  a  ver  cahir  dinheiro  do  tecto. 

Sorri-me. 

Ella  acrescentou  : 


NINHO  DE  GUINCHO  l83 

—  Ou  a  ver  cahir  alguma  ideia,  que  vale  dinhei- 
ro. E  cai  sempre. 

Acudia-lhe  a  Providencia  dos  torturados,  quando 
Teixeira  de  Vasconcellos  a  invocava  com  firme  con 
fiança. 

Ora  essa  mesma  Providencia  acudiu  á  esposa 
atraiçoada. 

D'ahi  a  dias  leu  no  Diário  de  Noticias  um  annun- 
cio  que  dizia:  «Criada  de  quarto  —  Precisa-se  uma 
na  rua  de  S.  Domingos  á  Lapa,  n.'\  .  .   i.*^  andar.» 

Era  o  andar  da  loiraça,  no  prédio  cinzento. 

Deixou  sahir  o  marido,  pediu  emprestado  o  fato 
de  uma  das  suas  criadas,  disse  que  ia  jantar  com  a 
mãe  e  partiu  para  a  rua  de  S.  Domingos  á  Lapa — 
toda  afadigada,  como  quem  tem  pressa  de  chegar. 

—  E'  aqui  que  precisam  uma  criada  de  quarto? 

—  E',  sim.  Tem  informações? 

—  Estive  em  casa  da  senhora  marqueza  de. . . 

Quando  uma  criada  atira  com  o  nome  de  um  ti- 
tular é  como  se  trouxesse  attestado  de  bom  com- 
portamento—  em  papel  sellado. 

—  Entre  para  se  ajustar. 

A  esposa  encontrou  se  em  presença  da  amante, 
estando  disposta  a  acceitar  todas  as  condições. 

—  O  ordenado  é  tanto. 

—  Sim,  minha  senhora. 

-r  Obrigações  :  ajudar-me  a  vestir,  tratar  do  meu 
banho  e  do  meu  quarto,  e  servir  o  chá  á  noite,  quan- 
do vem  ^'O  senhor». 

—  Creio  que  v.  ex.*  não  terá  razão  de  queixa. 

—  Pois  então  estamos  tratadas.  Não  trouxe  a  sua 
roupa  ? 


l52  COLLECÇÁO  ANTÓNIO   MARIA  PEREIRA 

—  Irei  buscal-a  amanhã,  se  v.  ex.*  der  licença. 
A's  nove  horas  da  noite,  tocou-se  á  campainha. 
A  cosinheira  disse:  E'  ao  senhor». 

A  criada  nova  pediu  lhe; 

—  Faça  favor  de  ir  abrir,  por  hoje,  que  eu  vou 
arranjar-me  á  pressa.  Gomo  não  sabia  a  hora,  não 
estava  preparada. 

A^s  II  horas  aa  senhora»  poz  o  dedo  no  timbre 
para  que  servissem  o  chá. 

A  criada  de  quarto  pegou  na  bandeja,  parou  á 
porta  do  gabinete  cor  de  rosa,  pediu  licença  para 
entrar. 

—  E'  o  chá,  minha  senhora. 

O  amante  da  loiraça,  ouvindo  aquella  voz,  deu 
um  salto  na  cadeira  e  voltou-se  rapidamente  para  a 
porta. 

A  criada  pousou  serenamente  a  bandeja  sobre  o 
bufete. 

Fulminado  pela  surpreza,  o  marido  reconheceu  a 
mulher. 

—  O'  Clementina,  disse  elle  para  a  amante,  fa- 
zes favor  de  ir  ver  ao  teu  quarto  se  eu  deixei  lá  a 
minha  carteira  hoje  pela  manhã? 

—  Estás  inquieto  ! 

—  Julgo  que  a  perdi. 

A  loiraça  levantou-se  em  boa  fé,  e  foi  procurara 
carteira. 

Entretanto  o  marido  dizia  á  esposa : 

—  Quero  que  saias  já  d'esta  casa.  Vem  comigo  e 
perdoa-me. 

Quando  a  loiraça  voltava  sem  a  carteira,  ouviu 
bater  a  porta  da  escada. 


NINHO  DE  GUINCHO  l85 


Era  o  amante  que  tinha  fugido  com  a  criada,  de 
braço  dado. 

Foi  uma  lição  salutar  por  ter  sido  bem  succe- 
dida. 

Mas,  para  se  triamphar  alguma  vez,  é  preciso 
correr  o  risco  de  fazer  fiasco. 

Não  perder  nunca  de  vista  este  principio  fun- 
damental de  todos  os  jogos :  que  o  melhor  jogador 
é  o  que  joga  mais  serenamente. 

A  mulher  vestida  de  homem  não  ganhou  a  par- 
tida, porque  foi  logo  ás  do  cabo. 

Sendo  mulher,  vestiu  se  de  homem:  é  o  maior 
de  todos  os  cabos  para  uma  mulher. 

Pode-se-lhe  chamar:  das  Tormentas. 

E  fci. 


fiSqq  —  Maio. 


XXII 


A  VESPA 


Meio  dia.  Cae  uma  calma  suave,  de  estio  mode- 
rado \  é  o  mez  de  agosto  a  chamar  já  pelo  outono. 

Os  velhos  dizem  que  nunca  se  viu  coisa  assim  : 
estranham  não  ter  havido  canicula. 

Toda  a  villa  parece  anesthesiada  n'uma  quietação 
lethal.  Janellas  fechadas;  portas  entre-abertas.  O 
silencio  da  rua  é  apenas  quebrado  pela  vozinha  in- 
consistente de  uma  rapariguita,  que  repete,  dentro 
de  casa,  uma  cantiga  nova,  de  que  todo  o  norte  do 
paiz  está  inçado  n'este  momento : 

Ora  vai  tu, 
Ora  vai  tu, 
Ora  vai,  vai, 
Que  eu  bem  quero. 
Mas  não  posso. 
Ai!  Ai! 

As  vespas  e  as  moscas,  enganadas  pelo  calendá- 
rio, procuram  sustentar  as  tradições  do  antigo  ve- 


NINHO  DE   GUINCHO  I  87 


rão  portugucz.  Passeiam  no  ar,  zumbindo,  mais  in- 
quietas do  que  nunca,  porque  lhes  parece  que  o 
sol  não  é  bastante  fone,  o  verão  bastante  quente. 
Acham-se  roubadas.  Que  é  feito  do  grande  calor 
de  agosto,  que  asphixiava  outr'ora  os  passarinhos  ? 
Não  sabem.  Está  falsificado;  misturaram-lhe  kaoli- 
no    E'  um  verão  mixordia. 

E  as  vespas  e  as  moscas,  desesperadas,  aborre- 
cem-se  no  ar,  zumbindo. 

As  janellas  estão  fechadas;  as  portas  apenas  en- 
tre-abertas,  em  respeito  á  tradição  dos  dias  de  agos- 
to ardentes. 

A  rapariga  continua  cantando  dentro  de  casa ; 

Orá  vai  tu, 
Ora  vai  tu. 

Mas  para  onde  é  que  ellas  hão  de  ir,  as  vespas  e 
as  moscas  ? 

Eis  que  uma  vespa,  talvez  por  ser  mais  supers- 
ticiosa que  as  outras,  parece  tirar  bom  agoiro  das 
palavras  da  canção,  que  a  rapariga  continua  can- 
tando dentro  de  casa. 

Affoita-se  a  percorrer  toda  a  rua  solitária  e  morna. 

Procura  uma  porta  aberta,  bem  aberta,  por  onde 
possa  entrar  sem  receio  de  alguma  cilada :  enjtrar  e 
sahir  depressa  se  for  preciso. 

Depara-se-lhe  uma  única,  a  do  confeiteiro  da  vil- 
la,  que  tem  na  montre  a  sua  fornada  de  bolos  finos  e 
de  pão  de  ló  de  Margaride,  ainda  quentes  do  forno. 

Bem  fez  a  vespa  em  fiar-se  no  vaticínio  da  trova: 

Ora  vai  lu. 
Ora  vai  tu. 


COLLECÇAO    ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 


Foi,  e  encontrou  um  lauto  banquete  de  gulodices 
exposto  na  montre  do  confeiteiro. 

Corre  a  dar  aviso  ás  outras  vespas  e,  dentro  de 
pouco  tempo,  um  enxame  enorme  acampa  sobre  a 
vidraça,  prompto  a  realisar  o  primeiro  assalto  logo 
que  tenha  occasiao  de  penetrar  na  montre. 

As  moscas  seguem  o  caminho  das  vespas  e  poi- 
sam, contentes,  na  vidraça,  parecendo  dispostas  a  im- 
por ás  vespas  o  dilemma  do  sapateiro  de  Braga : 
«Ou  havemos  de  comer  todos  ou  ha  de  aqui  haver 
moralidade, > 

Pobres  moscas!  Elias  não  estão  ao  corrente  do 
direito  internacional  moderno :  la  force  prime  le 
droit. 

As  vespas,  mais  instruídas,  ouvem  a  imposição  das 
moscas  e  riem-se  da  sua  ingenuidade  politica. 

Passa  na  rua  um  rapazito  commendo  um  bocado 
de  broa. 

E'  o  pão  que  teem  comido  todos  os  grandes  ho- 
mens do  norte,  desde  Passos  Manuel,  grande  pelo 
talento,  até  ao  conde  de  S.  Bento,  grande  pelo  di- 
nheiro. 

E  quem  sabe  se  aquelle  rapazinho  virá  a  ser  um 
grande  homem  do  norte? 

Pára  diante  da  ?7iontre  a  contemplar,  cubiçoso,  os 
jesuiias,  as  carnações,  os  pasteis  de  Santa  Clara. 

Sente-se  tantalisado  pelo  appetite:  um  d'aquelles 
bolos  fal-o-ia  feliz. 

Mas  está  separado  d'elles  pela  muralha  da  China 
de  um  vidro. 

Acha-se  em  frente  do  seu  ideal,  e  não  pôde  at- 
tingil-o. 


NJNHO  DE  GUINCHO  189 

Tem  acontecido  isso  tantas  vezes  aos  grandes  ho- 
mens. .  .  e  aos  pequenos  I 

E  elle  é  pequeno  duas  vezes,  por  ser  creança  e 
por  ser  pobre. 

De  repente  parece  encontrar  um  meio  de  acal- 
mar o  seu  appetite,  rcsignando-se  á  pobreza. 

Esfrega  o  pão  de  milho  pela  vidraça  da  montre  e 
come-o  depois. 

Sabe-lhe  talvez  a  doce,  por  suggestão. 

Felizes  as  creanças,  porque,  na  sua  mesma  inge- 
nuidade, sabena  achar  um  meio  de  enganar  o  seu 
ideal  insaciado. 

Não  acontece  sempre  isso  aos  grandes,  principal- 
mente aos  grandes  homens. . . 

E,  satisfeito,  o  rapazito  desencosta-se  da  montre, 
segue  o  rumo  que  levava,  cantando  como  a  creadi- 
ta,  como  toda  a  gente,  como  este  Minho  todo, 
agora : 

Ora  vai  tu, 
Ora  vai  tu, 
Ora  vai,  vai, 
Que  eu  bem  quero, 
Mas  não  posso, 
Ai!  Ai! 

Sento-me  no  clássico  banco  de  pinho,  dentro  da 
loja  do  confeiteiro.  Pego  nos  jornaes  recem-chega- 
dos  do  Porto,  e  o  seu  noticiário  afoga-me  n'um  di- 
luvio de  falsificações,  pão  falsificado,  documentos 
falsificados,  suicídio  falsificado.  Tudo  falso...  até  o 
o  verão.  Aborreço-me,  pedindo  mentalmente  a  re- 
surreição  d'aquelle  famoso  Epaminondas,  que  nem 
por  gracejo  falseava  a  verdade. 


IQO  COLLECÇAO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

Do  que  nós  precisamos  é  de  muitos  Epaminon- 
das. 

Chego  a  esta  conclusão  desoladora, 

Poniio-me  a  olhar  para  a  vidraça  da  montre  e  ob- 
servo as  vespas  e  as  moscas,  em  campo,  luctando 
pela  vida  umas  e  outras. 

Como  a  vidraça  se  não  abre  para  lhes  dar  entra- 
da, todas  ellas  precisam  ir  pensando  em  outra  coisa. 

E  então  as  vespas  pensam  nas  moscas. 

La  force  prime  le  droit:  a  vespa  pôde  mais  do 
que  a  mosca. 

Por  isso  se  entretém  a  dar-lhe  caça,  com  uma  fe- 
rocidade selvagem,  que  irrita  os  nervos  do  obser- 
vador. 

Ah!  Deus  sabe  muito  bem  o  que  fez.  e  porque  o 
fez.  Se  a  vespa  fosse  maior,  seria  até  para  o  homem 
um  inimigo  terrível. 

Quero  ser  o  libertador  das  moscas,  e  lanço  mão 
de  uma  toalha  para  enxotar  as  vespas. 

O  confeiteiro  avisa-me  dos  perigos  da  empreza, 
dizendo: 

—  Não  faça  isso.  A  vespa  é  vingativa  e  audaz. 
Se   o  homem   a  persegue,  persegue  ella  o  homem. 

E  então,  assim  avisado  sabiamente,  resigno-me 
a  ver  a  hecatombe  das  moscas  consumada  pelas 
vespas. 

Umas  e  outras  esvoaçam  sobre  a  vidraça. 

A  vespa  manobra  como  um  pirata,  capeando  as- 
tuciosamente, para  abordar  a  presa 

Dá  saltos  acrobáticos:  poisa  aqui.  poisa  acolá. 

Se  encontra  outra  vespa  no  caminho,  tem  com 
ella  um  conflicto  rápido. 


NINHO  DE  GUINCHO  I9I 

Diz-se  que  o  homem  é  mau  para  o  seu  semelhan- 
te. Nem  sempre  é  bom,  realmente.  Mas  os  outros 
animaes  são  bem  peiores  para  os  da  sua  mesma  es- 
pécie. A  própria  pomba,  symbolo  da  candura,  quan- 
do investe  contra  outra  pomba,  não  tem  nada  de 
cândida,  nem  sequer  nas  pennas,  que,  ás  vezes,  fi- 
cam enodoadas  de  sangue. 

Depois  de  algumas  investidas  infructiferas,  a  ves- 
pa consegue  prear  a  mosca.  E'  a  força  opprimindo 
o  direito :  a  diplomacia  em  acção. 

O  primeiro  cuidado  da  vespa  é  cortar  as  azas  á 
mosca,  para  que  não  possa  fugir-lhe. 

Aqui  nos  encontramos  outra  vez  com  um  sym- 
bolo do  ideal. 

Cortar  as  azas  1  Quantas  vezes,  buscando  um 
ideal  querido,  não  se  nos  depara  a  vespa  traiçoeira, 
que  não  quer  de  nós  outra  coisa  senão  cortar-nos 
as  azas  ! 

Todos  nós  alguma  ve*z  temos  encontrado  isso :  a 
vespa  que  nos  assalta  na  lucta  pela  existência. 

Emquanto  a  mosca,  perdidas  as  azas,  se  agita 
ainda,  a  vespa  passeia-a  sobre  a  vidraça  n'um  feroz 
triumpho. 

E  logo  que  a  victima  já  não  pôde  libertar-se,  a 
vespa,  convencida  da  segurança  da  conquista,  altêa 
o  voo  e  vae,  no  seu  favo,  devorar  a  mosca,  tran- 
quillamente. 

Para  que  é  preciso  pôr  a  gente  o  pensamento  na 
Roma  dos  Gezares,  nos  combates  do  Golyseu,  nos 
espectáculos  terriveis  dos  gladiadores  romanos  ? 

Esta  vidraça  de  confeiteiro  é  também  um  Goly- 
seu. 


192  COLLECÇAO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

Postos  frente  a  frente  o  fraco  e  o  forte,  quem  suc- 
cumbe  é  o  fraco. 

Pois  aqui  se  vê  isso,  sobre  um  vidro  que  resguar- 
da yeswíVas,  :{amacoes,  pasteis  de  Santa  Clara,  ainda 
quentes,  sabidos  ha  pouco  do  forno. 

O  mundo  é  grande,  e  todo  elle  não  é  senão  isto: 
o  combate  da  vespa  contra  a  mosca. 

O  ideal  é  um  sonho  da  imaginação,  e  as  contra- 
riedades que  o  difficultam  podem  bem  representar- 
se  na  vespa  cortando  as  azas  á  mosca. 

A  rapariguita,  dentro  de  casa,  continuava  can- 
tando: 

Ora  vai  tu, 
Ora  vai  tu, 
Ora  vai,  vai, 
Oue  eu  bem  quero, 
Mas  não  posso. 
Ai !  Ai  ! 

Maus  versos  e  boa  philosophia. 
A  mosca  quer  penetrar  na  montre;  vae  a  vespa 
e  corta-lhe  as  azas. 
Ai!   Ai!   Gomo  diz  o  estribilho  da  canção  nova. 


Minho — 1902. 


XXIII 


o  BIGODE  POSTIÇO 


N'estes  dias  de  carnaval  vai  a  pique  a  seriedade 
de  muita  gente  boa. 

E  o  diabo  arma  as  coisas  de  modo,  que  sempre 
fica  de  fora  o  rabo  do  gato. 

Vem  a  saber-se  tudo. 

Bem  serio  e  grave  era  aquelle  nosso  Filinto  Ely- 
sio,   velho  e  triste,  exilado  e  indigente,  e  comtudo 
ellc  mesmo    conta   numa   das   suas  odes  —  talvez 
para  fazer  penitencia   publica — o  que  lhe  aconte 
ccu  em  certo  dia  de  carnaval. 

F]mborrachou-se. 

Se  elle  o  não  dissesse,  ninguém  o  acreditaria. 
Mas  disse-o  n'aquclle  seu  estylo,  aliás  pittoresco, 
que  cheira  a  rapé  ultra-classico  : 

Uma  noute  do  tres-loucado  Entrudo, 
De  alto  barulho,  e  dançatriz  farófia, 
De  longo  rabo-leva,  e  surriada, 
De  pós,  talco,  filhos,  peruns,  carniça; 
Eu  co'a  cabeça  quente,  e  nebulosa 

i3 


i94  COLLECÇÃO   ANTÓNIO    MARIA   PEREIRA 

Co'os  vapores  de  Baccho  ebri-festante, 
A  redonda  barriga  ainda  himpando 
Co'o  saboroso- atola-dente  lombo 
E  certas  trouxas  de  ovos  comesinhas — 
Embrulhado  na  rede,  em  Casa  aos  passos 
(Não  mui  seguros)  punha  a  pontana; 
E  já  Morpheu,  das  pontas  dos  cabellos 
Se  prendia,  trepando-se  á  moleira, 
Para  no  leito  me  baquear  d'um  golpe, 
Mal  que  os  Penates  curto  saudasse. 

Dispo-me  a  trancos  do  prolixo  fato. 
Aqui  me  cai  o  lenço,  ali  se  entorna 
A  caixa  do  tabaco;  —  mal  sostidos 
No  braço  da  cadeira,  se  debruçam 
Os  calções  co'o  relógio... 

Um  clássico  em  cuecas  !  Vejam  se,  fora  do  car- 
naval, seria  possivel  que  o  austero  Filinto  se  exhi- 
bisse  sem  calções  á  troça  de  francelhos  e  gallici- 
parlas ! 

e  da  algibeira 

Pingam  vinténs,  retinem  no  ladrilho, 
E  vão,  em  caracol^  correndo;  —  o  gato 
Pula  áquem,  pula  alem;  —  co'a  garra  leve 
Dá-!he  um  boféte,  os  tomba  e  os  atabafa. 
Dou  pouco  tino  do>  vinténs  rodantes 
Do  subtil  gato  resonante  presa; 
Antes  durmo,  sem  ver,  sem  ouvir  soca; 
Como  quem  faz  focinho  so  mundo  inteiro 
Comparado  c'um  bom  dormir  machucho. 
Entre  fofos  colchões  aboborado. 
De  mortaes  barafundas  esquecido. 

Se  isto  não  é  uma  bebedeira,  não  sei  o  que  seja. 
Mas  o  beber  e  o  dormir  teem  ainda  sua  descul- 


NINHO   DE   GUINCHO  196 

pa,  porque  os  homens  não  são  de  ferro,  incluindo 
os  clássicos.  Bem  forte  era  o  porto  de  Leixões, 
feito  de  blocos  enormes,  mas  porque  ultimamente 
tomou  grandes  pancadas  de  agua  do  mar,  foi-se 
abaixo  como  Filinto. 

Ha  escândalos  peiores  no  carnaval,  e  para  a 
gente  descobrir  alguns  tem  que  suar  o  topete. 

Gomtudo,  quem  redige  gazetas  chega  a  adquirir 
um  tal  ou  qual  faro  de  agente  de  policia ;  com  a 
vantagem  de  poder  inventar  quando  não  chega  a 
descobrir  nada. 

D'esta  vez,  porem,  puz  em  descanço  a  imagina- 
ção, porque  descobri  um  caso  verdadeiro,  tão  cer- 
to como  o  commendador  Julião  Rainho  ser  casado 
com  uma  fresca  dama  quarentona,  de  lindas  carnes 
e  cores,  mulher  sisuda,  que  era  conhecida  no  sitio 
do  Arieiro  pela  designação  um  pouco  invejosa  de 
—  commendadeira. 

Muito  amigos  estes  esposos,  que  passavam  o  dia 
na  janella,  conversando  um  com  o  outro  na  mais 
perfeita  harmonia  conjugal. 

Mas  justamente  porque  fossem  muito  janelleiros, 
a  visinhança.  que  os  via  cochichar  á  puridade,  jul 
gava-se  criticada   por  elles :    d'ahi  a  alcunha  de  — 
commendadeira,   dada   á  mulher  de  Julião  Rainho. 

A's  vezes  o  commendador  sahia  de  casa  para  vir 
á  Baixa  tratar  dos  seus  negócios,  receber  as  suas 
rendas. 

De  charuto  ao  canto  da  bocca,  dizia  adeus  á  mu- 
lher, já  da  rua,  uma  e  muitas  vezes,  acenando  lhe 
risonho  com  a  ponta  dos  dedos. 

Ella,  quando  o  via  sumir-se  ao  longe,  recolhia-se 


igÔ  COLLECÇÁO  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 


para  dentro,  e  não  tornava  a  apparecer  até  que  ellc 
voltasse. 

Os  visinhos,  as  visinhas  principalmente,  davam 
se  a  perros  por  não  haver  naquella  casa  um  escân- 
dalo,  que   amarrotasse   a   independência,  a  altivez 
fleugmatica  do  commendador  e  da  mulher. 

Elle  era  considerado  no  Arieiro  como  um  phos- 
phoro  amorpho.  . .  antigo. 

D'antes,  os  phosphoros  amorphos  accendiam  só  na 
caixa ;  agora,  depois  do  monopólio,  nem  mesmo  na 
caixa  se  inflammam. 

Perdeu-se  uma  bclla  comparação ! 

A  commendadcira,  que  se  chamava  D.  Thereza 
—  único  pormenor  que  os  visinhos  sabiam  da  sua 
vida  —  era,  pois,  a  caixa  do  coração  amorpho  de 
seu  marido,  n'aquelles  bons  tempos  anteriores  ao 
monopólio  dos  phosphoros. 

O  que  é  certo  é  que  os  homens  da  visinhança 
davam  razão  ao  commendador  Kainho  para  gostar 
de  sua  mulher,  que  fazia  lembrar  ainda  na  frescura 
dos  quarenta  annos  um  morango  do  Porto.  Nem 
sequer  lhe  faltavam,  completando  a  comparação, 
uns  signaesinhos  pretos  pelo  rosto,  como  os  dos 
morangos.  Coisa  apetitosa  para  os  entendedores. 
Que  n'isto  de  mulheres  o  entender  é  tudo.  Muitas 
se   perdem  por   não  terem  sido  entendidas  nunca. 

O  commendador,  quando  vinha  á  Baixa,  via 
muitas  mulheres  magritas,  esticadmhas,  pessoasi- 
nhas  de  metter  no  bolso  para  trocos  miúdos.  Não 
gostava.  Eram  morangos  de  Cintra,  que  é  cada 
um  para  a  cova  de  um  dente.  Elle  tinha  lá  em  casa 
um  morango  do  Porto,  de  boa  polpa,  carne  branca 


NINHO   DE  GUINCHO  197 

e    signaesinhos   pretos   engraçados,   que   pareciam 
postos  a  pincel. 

De  mais  a  mais  depositava  plena  confiança  no 
fando  de  honestidade  da  mulher,  porque  n'aquelle 
tempo  ainda  podia  hâver  confiança  em  quaesquer 
fundos  portuguezes. 

Não  chegara  a  ter  nunca  uma  suspeita,  um  re- 
ceio, a  mais  leve  apprehensão  sequer.  Quando  pre- 
cisava sahir,  punha  o  chapéu  na  cabeça,  mettia  a 
mulher  no  coração,  e  vinha  por  ahi  abaixo  tão  tran- 
quillo  como  se  trouxesse  a  D.  Thereza  bem  agar 
rada  pelo  braço. 

Não  tinham  filhos,  o  que  estimava,  porque  os  fi- 
lhos tiram  ao  casamento  o  ar  de  namoro  chronico. 

Dão-lhe  horas  de  alegria  e  contentamento,  é  cer- 
to, mas  roubam  ao  lar  conjugal  o  que  quer  que 
seja  de  sonho,  que  é  bom  conservar  sempre. 

O  amor  é  de  todas  as  coisas  a  que  menos  resiste 
á  divisão. 

Também  parecia  ao  commendador  Rainho  que 
fora  bem  feliz  com  a  criada,  uma  rapariga  de  Santa 
Casa,  que  os  dois  esposos  educaram  a  seu  modo : 
nada  de  conversas  com  os  visinhos,  nada  de  par- 
lendas  com  os  padeiros,  indifferença  absoluta  pela 
guarda  municipal. 

Uma  Vestal  engeitada,  que  alimentava  o  fogo  sa- 
grado. , .   do  fogão. 

Mas  o  commendador  Rainho  ignorava  de  todo  o 
ponto  que  o  que  perde  as  cosinheiras  é  a  symbo- 
lica  do  abano. 

Quando  ellas  espertam  o  lume,  lembram-se  de 
que  a  monotonia  da  sua  vida,  que  é  como  a  mo- 


198  COLLECÇÃO  ANTONÍO   MARIA  PEREIRA 

dorra  das  brazas,  despertaria  se  uma  forte  mão  as 
abanasse  também  a  ellas. 

E  começam  a  procurar  um  abano  no  amor. 

Depois  um  abano  envelhece,  gasta-se  ;  vem  ou- 
tro, comtanto  que  se  pareça  com  o  antigo. 

E'  por  isso,  talvez,  que  as  criadas  de  servir  não 
mudam  de  tropa:  ficam  sempre  na  guarda  muni- 
cipal. 

Derivav.i  placidamente  a  vida  do  commendador 
Rainho  na  sua  casa  do  Arieiro  entre  o  charuto  e  a 
mulher,  a  janella  e  a  mesa,  a  mesa  e  o  leito. 

Não  havia  ali  perturbações  domesticas,  nem  des- 
gostos Íntimos. 

E,  para  cumulo  de  felicidade,  a  rapariga  da  Santa 
Casa  não  roubava  quando  ia  á  porta  comprar  as 
hortaliças  e  os  legumes. 

O  commendador  e  a  mulher  estavam  convencidos 
d'isso  —  d'isso  e  d'outras  coisas  igualmente  falsas. 

Mas,  pelo  que  respeita  á  felicidade  de  cada  fa- 
milia,  n'uma  hora  cai  a  casa. 

Certa  segunda-feira  gorda,  á  hora  em  que  o  ra- 
pazio  do  Arieiro  andava  pelo  sitio  a  tocar  castanho- 
las, o  commendador  ficou  depois  de  almoço,  sen- 
tado n'uma  chaise-longue  da  casa  do  jantar,  a  ler  o 
Diário  de  Noticias. 

Tinha  almoçado  bem,  que  é  uma  característica 
das  pessoas  felizes. 

Não  sabe  o  que  é  ter  felicidade  completa  na  terra 
quem  se  levanta  sem  apetite  e  com  a  bocca  sabur- 
rosa. 

O  commendador  linha  posto  a  charutcira  ao  pé 
de   si,   em<:juanto  viajava  mentalmente  por  Lisboa 


NINHO  DE  GUINCHO  199 


através  do  Diário  de  Noticias,  passando  das  noti- 
cias para  os  annuncios  e  de  um  bairro  para  outro. 

Deu  um  geito  ao  corpo  para  maior  commodidade 
do  estômago  satisfeito,  e  a  charuteira  cahiu-lhe  para 
traz  da  chaise-longue. 

Querendo  apanhal-a,  estendeu  um  braço,  e  en- 
controu no  chão  uma  coisa  ao  mesmo  passo  ás- 
pera e  molle,  que  não  era  seguramente  a  charu- 
teira. 

Teve  curiosidade  de  ^  er  o  que  era,  e  viu  um  bi- 
gode postiço. 

O  seu  primeiro  pensamento  foi  de  surpresa  ;  o 
segundo  de  terror  \  o  terceiro  de  cólera. 

O  inferno  do  ciúme  fizera  a  sua  estreia  n'aqueila 
casa,  accendera  as  fornalhas,  puzera  rubro  o  cora- 
ção do  commendador. 

Elle  nunca  jamais  tinha  comprado  na  sua  vida 
um  bigode  postiço,  nem  Ih'o  haviam  dado  ou  em- 
prestado. 

Como  estava  ali  aquelle  ?  Quem  o  puzera  ali? 

Mysterio  !  tenebroso  mysterio  talvez  ! 

Em  sua  casa  entrava  decerto  um  homem,  que 
vinha  disfarçado,  e  que  alguma  vez  se  esqueceria 
do  disfarce  deixando-o  ali. 

Chamou  a  mulher  gritando.  Ella  acudiu  affjicta, 
porque  só  estava  habituada  a  ouvir  suas  falias  bran- 
das e  doces. 

—  O  que  é  isto  ?  !  perguntou  ellc  truculento. 

—  Isso  o  que  ?  Julião! 

—  Faça-se  tola  I  A  senhora  não  vê  ? !  E'  um  bi- 
gode ! 

—  Llm  bigode  !  Meu  não  é  com  certeza. 


200  COLLECCAO  ANTÓNIO   MARIA  PERíilRA 


—  Que  não  é  seu,  sei  eu.  Mas  seria  de  alguém 
que  por  sua  causa  o  quizesse  pôr. 

—  O'  Julião  !  tu  enlouqueceste  !  Eu  nunca  vi  n'esta 
casa  senão  o  teu  bigode. 

—  O  meu  bigode,  diz  muito  bem;  mas  é  que  eu 
não  consentirei  jamais  em  ser  bigodeado. 

—  Valha-me  Deus  !  Ora  como  se  explica  que  ap- 
parecesse  na  nossa  casa  um  bigode  ?  ! 

—  E'  o  que  eu  não  sei,  mas  ha  de  saber-se  por 
força,  por  bem  ou  por  mal,  por  força,  entendes  tu  ? 
Sou  capaz  de  te  matar  e  de  matar-me.  Acaba-se 
hoje  a  mais  feliz  familia  do  Arieiro  I  Que  desgraça  ! 

—  O'  Julião,  tudo  isso  por  causa  de  um  bigode! 
■ — E   que    dirias   tu   se  me  encontrasses  na  algi- 
beira uma  trança  de  cabello  ? 

—  Dizia  que  não  era  tua. 

—  Está  bem  de  vêr  que  eu  não  uso  rabicho  como 
os  chinezes.  Mas  não  suspeitavas  de  nada  ? 

—  Eu  !  De  alguma  brincadeira,  talvez. 

—  Mas  quem  é  que  vem  brincar  a  nossa  casa? 
Somos  só  dois  e  a  criada.  .  .  A  criada  !  é  verdade  ! 
O'  Honorina  ! 

—  Meu  senhor. 

—  Anda  cá. 

A  rapariga  da  Santa  Casa  entra  de  semblante 
alegre. 

—  Sabes  o  que  é  isto  ? 
A  criada  affirmando-se  : 

—  Isso?  meu  senhor  !  Quer  que  diga  ? 

—  Pois  está  claro:  quero. 

—  Isso  parece-me  um  bigode  dos  senhores  ho- 
mens, mas  não  estou  bem  certa. 


NINHO   l)K   GUINCHO  .10  I 


—  Como  veiu  isto  aqui  parar? 

—  Eu  cá  não  sei,  meu  senhor. 

—  Tu  mcttes  cá  em  casa  algum  marmanjo,  que 
vem  disfarçado ! 

—  Não,  meu  senhor,  Nunca  entrou  aqui  nem  ho- 
mem, nem  bigode  nenhum. 

—  Fala  verdade,  Honorina,  que  ainda  estás  a 
tempo  de  evitar  uma  grande  desgraça. 

—  O'  meu  rico  senhor!  eu  juro  que  não  metti 
homem  nenhum  cá  em  casa. 

—  E  a  senhora  ? 

—  O'  sr.  commendador!  a  senhora  não  era  ca- 
paz d'uma  patifaria  d'essas.  Guarda  todo  o  respeito 
ao  sr.  commendador. 

—  Guarda-me  todo  o  respeito,  mas  apparece  na 
minha  casa  um  bigode.  . .  todo!  Pois  bem.  Acabe- 
mos com  isto.  Vou  lá  dentro  pôr  uns  papeis  em  or- 
dem, para  levar  comigo,  e  nunca  mais  quero  saber 
d'esta  casa. 

Julião  Rainho  rompe  em  direcção  ao  seu  escripto- 
rio;  mas  de  repente  volta-se  e  diz  muito  solemne  : 

—  Thereza,  confessa  a  verdade  toda,  se  não  que- 
res que  aconteça  uma  grande  desgraça. 

Ouve-se  uma  voz  de  mulher :  a  da  criada. 

—  Sr.  commendador!  eu  é  que  confesso  tudo:  com 
prei  esse  bigode,  porque  fui  hontem  vestida  de  ho- 
mem ao  baile  de  mascaras  quando  os  senhores  ador- 
meceram, e  tinha-o  ali  escondido. 

—  Desavergonhada  !  Escondido  o  homem  ? 

—  Não,  senhor  ;  o  bigode. 


FIM 


índice 


Razão  do  titulo 5 

I  O  prophetismo  e  a  restauração  7 

II  Historia  de  um  quadro 14 

III  Um  prédio  notável 20 

IV  Petrarcha  e  Camões 27 

V  Chá  portuguez 35 

VI  A  cruz  de  Berny 43 

VII  Andar  a  flaino 5o 

VIII  Imparcialidade  politica  de  Santo  António 57 

IX  Chrysánthemos . . .  • 63 

X  Contratos  do  coração 70 

XI  A  broa 79 

XII  Vinho  novo gS 

XIII  Bonecos  e  loiça  de  barro 100 

XIV  O  silencio 1 2J 

XV  O  fundador  do  asylo 1 32 

XVI  O  papagaio 137 

XVII  Villã  e  fidalga 144 

XVIII  A  menina  dos  rouxinoes i53 

XIX  O  primeiro  tormento  de  uma  rainha 160 

XXOgallo 172 

XXI  O  ciúme 177 

XXII  A  vespa 18G 

XXIII  O  bigode  postiço igS 


ERRATAS 
Pig.  33,  lin.  17.  onde  se  lê  «eclogai,  leia-se  «elegiai. 
Pag.  5o,  lin.  16  onde  se  lê  «Helis»,  leia-se  «Hélati. 


Collecção  ANTÓNIO  MARIA  PEREIRA 

VULGARISAÇAO    DOS    MELHORES    LIVROS 

DAS 

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Romances,  Coutos,  Yiãgêiis,  llisloria,  etc,  etc. 


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VoluLiues  piil>lica*lo<s 


1  —  Tristezas  á  beira-mar,  por 

Pinheiro  Chagas. 

2  —  Contos   ao  luar,  por  Júlio 

César  Machado. 

3  —  Cármen,  trad.  de  M. Levei. 

4  —  A  Feira  de  Paris,  por  Iriel. 

5  —  O   direito   dos  filhos,    por 

George  Ohnet. 

6  —  John    Buli    e  a    sua  ilha, 

trad.  de  P.  Chagas. 

7  —  Esgotado. 

8  —  A  lenda  da  meia  noite,  por 

M.  Pinheiro  Chagas. 

9  —  A  jóia  do  vice-rei,  por  P. 

Chagas. 

10  —  Vinte  annos  de  vida  litte- 

raria,   por  A.  Pimentel. 

1 1  —  Honra  a'artista,  trad.  de  P. 

Chagas. 

12  —  Esgotado. 

13  e  14  —  A  aventura  d'um  po- 

laco, trad.  de  Maria  A.  Vaz 
de  Carvalho. 
15  —  Os  contos  do  Tio  Joaquim, 
por  R.  Paganino. 


16  —  Esgotado. 

17  —  Noites  de  Cintra,  por  Al- 

berto Pimentel. 

18  e  19  — Esgotado. 

20  e  21  —  A   irmã  da   caridade, 

Sor  Emilio  Gastellar,  trad. 
e  L.  Q.  Chaves. 

22  —  Migalhas  de  historia  portu- 

gueza,  por  P.  Chagas. 

23  —  Esgotado. 

24  —  Contos,  por  AffonsoRoteUio. 

25  —  Esgotado. 

26  —  O  mysterio  da  estrada  de 

Cintra,  por  Eça  de  Queiroz 
e  R.  Ortigão. 

27  —  O  naufrágio  de  Vicente  So- 

dré,  por  Pinheiro  Chflgas. 

28  —  Vida    airada,    por    Alfredo 

Mesquita. 

29  —  O    bacharel    Ramires,    por 

Cândido  de  Figueiredo. 

30  e  31 — Amor   á   antiga,    por 

Caiei . 
32  —  As  netas  do  Padre  Eterno, 
por  A    Pimentel. 


CoLLEcçXo  António  Maeia  Pereira 


33  —  Contos,  por  Pedro  Ivo. 

34  —  O     correio    de   Lyão,    por 

Pierre  Zaccone. 

35  —  Yida  de  Lisboa,  por  Alber- 

to Pimentel. 

36  —  Historias    de    frades,    por 

Lino  d'Assumpção. 

37  —  Obras    primas,    por    Cha- 

teaubriand 

38  —  O  exilado,  por  Mauricia  C. 

de  Figueiredo. 

39 — Poema  da  Mocidade,  por 
Pinheiro  Chagas. 

40  e  41  —  A  vida  em  Lisboa, 
por  Júlio   César  Machado. 

42  e  43  —  Espelho  de  portugue- 
ses,  por  Alberto  Pimentel. 

44  —  A  fada  d'Auteuil,  trad.  de 

Pinheiro  Chagas. 

45  —  A  volta  do  Chiado,  por  E. 

de  Barros  Lobo. 

46  —  Seca    e    Meca,    por   Lino 

d' Assumpção. 

47  —  Ninho  de  guincho,  por  Al- 

berto Pimentel. 

48  —  Vasco,  por  A.  Lobo  d' Ávila. 

49  —  Leituras   ao   serão,  por  A. 

X.  Rodrigues  Cordeiro. 

50  —  Luz    coada  por  ferros,  por 

D.  Anna  A.  Plácido. 

51  —  A  flor  sêcca,  por  P.  Chagas. 

52  —  Relâmpagos,  por  Annando 

Ribeiro. 

53  —  Historias  rústicas,  por  Vir- 

gílio Várzea. 

54  —  Figuras   humanas,  por  Al- 

berto Pimentel. 

55  —  Dolorosa,     por     Francisco 

Acebal,  trad.  de  Caiei. 

56  —  Memorias   de    um  fura-vi- 

das,  por  A.  de  Mesquita. 

57  —  Dramas   da   corte,  por  Al- 

berto de  Castro. 

58  —  Os  mosqueteiros  d'A{rica, 

por  Mendes  Leal. 

59  —  A    divorciada,    por    José 

Augusto  Vieira. 

60  —  Phototypias  do  Minho,  por 

J.  Augusto  Vieira. 

61  —  Insulares,    por    Moniz    de 

Bettencourt. 

62  e  63  —  Historia  da    civilisa- 


<;ão    na    Europa,   trad.    do 
Marquez  de  Sousa  Holstein. 

64  —  Tríplice  alliança,  de  Raul 

de  Azevedo. 

65  —  Retalhos    de   verdade,  por 

Caiei. 

66  —  A  pasta    d'um    jornalista, 

peloVisconde    de   S.    Boa- 
ventura. 

67  —  Os  argonautas,  por  Virgí- 

lio Várzea. 

68  —  Fitas    de    animatographo, 

Íor    Alberto    Pimentel. 
O  —  Poesias  do  Abbade  de 
Jazente,  annotadas  por  Jú- 
lio de  Castilho. 

71  —  Aspectos  e   sensações,    de 

Raul  d'Azevedo. 

72  —  Contos  e  narrativas,  por  P. 

W.  de  Brito  Aranha. 

73  —  Quadros  e  letras,  historias 

e  romanceies,  por  Sanches 
de  Frias. 

74  —  Individualidades,  por  Hen- 

rique das  Neves 

75  —  Alfacinhas,  por  Alfredo  de 

Mesquita. 

76  —  Pátria    amada,   pelo    Vis- 

conde de  S.  Boaventura. 

77  —  Historias  e  romancêtes,  por 

Sanches  de  Frias. 

78  —  Esbocetos   individuaes,  por 

Henrique  das  Neves 

79  —  Recordações   da  mocidade, 

por  Adolpho  Loureiro. 

80  —  Sorrisos,   novellas  e  chro- 

nicas,  por  A.  Campos. 

81  —  Liicta   de  sentimentos,  por 

Maria  0'Neill. 

82  —  Do  Rocio  ao  Chiado,  por  P. 

de  Vasconcellos. 

83  —  A    dança   do   destino,    por 

Luthgarda  de  Caires. 
Si  —  Um  drama  de   ciame,  por 

Maria  CNeill. 
85  e[^86  —  Resumo  da  origem  de 

todos  os  cultos,  por  C.  F. 

Dupuis. 

87  —  Vencido,  romance  por  F.  A. 

M.  de  Faria  e  Maia. 

88  —  Elogio  da  loucura,  critica 

de  costumes,  por  Erasmo. 


OUTRAS  OBRAS 


Azevedo  (Domingos  de) 

Diccionario   ((irande)  contempo 
ranço  franccz-portuai»'"-  " 

No   prelo  a  2."  e^      


apren 
fre,  CD 

Lições  pi 
francez 

Ollendd 
aprendo 
('2  voI.)| 

Carvalh 


Ao  correr 

ene.  0001 
Arte  de 

líOOOrsl 
Aventura 

br.  400 
Cartas  a  inj 

ene.  900 
Cérebros  e 

ene.  900 
Chronicas 

rs.,  ene. 
Coisas  d'ag(! 

900  rs. 
Contos  e  jihi 

ene.  900 
Em  l*ort.ugal 

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Figuras  de  bl 

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Hcroisino   d( 

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