OBRAS DE CAMILLO CASTELLO BRANCO
Edição popular das suas principaes obras em So volumes
in-8.0, de 200 a 300 paginas
impressa em bom papei, typo elzévir
250 réis em brochara e 400 réis encadernado
1 — Coisas espantosas.
2 — As três irmana.
3 — A engeiiada.
4 — Doze casamentos felizes.
5 — O esqueleto.
G — O bem e o mal.
7 — O senhor do Paço deNinãea.
8 — Anathema.
9 — A mulher fatal.
10 — Cavar em ruínas.
11 e 12 — Correspondência epis-
tolar.
13 — Divindade de Jesus.
14 — A doida do Caudal.
15 — Duas horas de leitura.
16 — Fanny.
17, 18 e 19 — Novellas do Minho.
20 e 21 — Horas de paz.
22 — Agulha em palheiro.
23 — O olho de vidro.
24 — Annos de prosa.
25 — Os brilhantes do brasileiro.
28 — A bruxa do Monte -Córdova.
27 — Carlota Angela.
28 — Quatro horas innocentes.
29 — As virtudes antigas.
30 — A filha do Doutor Negro.
31 — Estrellas propicias.
32 — A filha do regicida.
33 e 34 — O demónio do ouro.
35 — O regicida.
36 — A filha do arcediago.
37 — A neta do arcediago.
38 — Delictos da mocidade.
39 — Onde está a felicidade?
40 — Um Lomem de brios.
41 — Memorias de Guilherme do
Amaral.
42, 43 e 44 — Mjsíerios de Lis-
boa.
45 e 46 — Livro negro de padre
Diniz.
47 e 48 — O judeu.
49 — Duas épocas da vida.
50 — Estrellas funestas.
51 — Lagrimas abençxtadas.
52 —
53 e
55 —
56 —
57 —
58 —
59 —
60 —
61 —
62 —
63 —
64 —
65 —
66 —
67 —
68 —
69 —
70 e
72 —
73 —
74 —
75 —
76 —
77 —
78 —
79-
80 —
Lucía de gigantes.
54 — Memorias do cárcere.
Mysterios de Fafe.
Coração, cabeça e estôma-
go.
O que fazem mulheres.
O retrato de Ricardina.
O sangue.
O santo da montanha.
Vingança.
Vinte horas de liteira.
A queda d'um anjo.
Scenas da Foz.
Scenas contemporâneas.
O romance d'um rapaz po-
bre.
Aventuras de Bazilio Fer-
nandes Enxertado.
Noites de Lamego.
Scenas innocentes da come-
dia humana.
71 — Os Martyres.
Um livro.
A Sereia.
Esboços de apreciações
litterarias.
Cousas leves e pesadas.
Thkateo: I — Agostinho de
Ceuta. — O marquez de
Torres-Novaa.
Theatro ; U — Poesia ou di-
nheiro f — Justiça. — Es-
pinhos e flores. — Purgató-
rio e Paraizo.
Theatro : III — O Morri-
do de Fafe em Lisboa. — O
Morgado de Fafe amoroso.
— O ultimo acto. — Aben-
çoadas lagrimas !
Thbatro : IV — O condem-
nado. — Como os anjos se
vincam. — Entre a flauta e
a viola.
Thkatho : V — O Lobis-
Homem. — A Morgadinha
de Val-d' Amores.
CAMILLIANA
Camillo Castello Branco — Notas d margem em vários li-
vros da sua biblioteca, recolhidas por Álvaro Neves. — i vol.
br, 600 rs. ; ene. 900.
Camillo Castello Branco — Tipos e episódios da sua gale-
ria, por Sérgio de Castro. — 3 vols., contendo inúmeras trans-
crições da obra de Camil!'^. br. i$7oo rs. ; ene. 2^400 rs.
Poesias dispersas de Camillo Castello Branco — i vol.
de 247 pag. em papel de linho nacional. Tiragem 48 ex., br.
6$ooo rs.
Hosanna I Por Camillo Castello Branco. Fiel reprodução zin-
cografica da i.'^ edição de 1852, hoje raríssima. Tiragem 60 ex.,
br. 2I500 rs.
Os pundonores desagravados, por Camillo Castello Bran-
co. Reprodução como acima da i.^ edição de t845. Também ra-
ríssima. Tiragem 60 ex., br. i|ooo
Prefacio da 1.^ edição do Diccionario de Azevedo, por
Camillo Castello Branco. — Fl. i|ooo.
COLLECÇÃO ECONÓMICA
Volumes in-16.» de 240 a 320 paginas
ROMANCES DOS MELHORES AUCTORES
A 150 réis o volume
VOLUMES PUBLICADOS
J — Aventuras prodigiosas de
Tartarin de Tarascon, se-
guidas de Tartarin nos Al-
pes, por A Daudet.
2 — Esgotado.
3 — Sérgio Pacine, por Jorge
Ohnet.
4 — Esgotado.
5 — Soror Philomena, por
Edmond e J. Goncourt.
6 — Esgotado.
7 — Os milhões vergonhosos,
por Heitor Malot.
8 — Esgotado.
— Esgotado.
10 — Esgotado.
11 — Esgotado.
VI — Esgotado.
1 3 — Um ooração de mulher, por
Paul Bourget.
14 — Esgotado. '
15 — Esgotado.
16 — Esgotado
17 — Esgotado.
18 — O ultimo amor, por Ohnet.
It) — Um búlgaro, por Ivan Tour-
gueneffe.
'20 — Memorias d'am suicida,
por Maxime du Camp.
CoLLECçÃo Económica
21 — Esgotado.
22 — Esgotado.
23 — Camilla, por G. Ginisty.
24 — Trahida, por Maxime Paz.
25 — Sua Magestade o Amor,
por A. Belot.
26 — Esgotado.
27 — Os reis no exilio, por A.
Daudet.
28 — Esgotado.
29 — Mentiras, por Paul Bourget.
30 — Marinheiro, por Pierre Loti.
31 —Esgotado.
32 — A Evangelista, por Daudet.
33— Aranha vermellia, por R.
d6 Pcnt Jest.
34 e 35— Esgotado.
36 — Parisienses I . . . por H. Da-
venel.
37 — Ao entardecer! . . . por Ive-
Jing Rambaud.
38 — A confissão de Carolina,
trad. de J. Sarmento.
.39 — EsgotP.do.
40 — Esgotado.
41 — O abbade de Faviéres, por
.1. Ohnet.
42 — Esgotado.
43 — Esgotado.
44 — A nihilista, por C. Mendes.
45 — Esgotado.
46 — Morta de amor, por Delpit.
47 — João Sbogar, por C. Nadier.
48 — Viagem sentimental, por
Steme.
49 — O milhão do tio Kaclot,
por Emile Richebourg.
50 — A confissão de um rapaz do
século, por Musset.
51 — Esgotado.
52 — O casíello de Loiírps, por
J. K. Huysmans.
53 — Amor de Miss, por J. Blain.
54 — A sogra, por Laforest.
55 — Colomba, por P. Merimée.
56 — Katia, por L. Tolstoí.
57 — Alma simples, por Dos-
toiewsky.
58 — Duplo amor, çor Rosny.
59 — Contos fantásticos, por Hof-
fmann.
60 — A princeza Maria, por Ler-
montoíF.
61 — Rosa de maio, por Ar-
mand Silvestre.
62 — Esgotado.
63 — O romance do homem ama-
rello, pelo generalTcheng-
Ki-Toug.
64 — A dama das violetas, por
F. Guimarães Fonseca.
65 e 66 — Nemrod & C», por
Jorge Ohnet.
67 — Prisma de amor, por Paul
Bonnhome.
68 — Historia d'uma mulher,
por Guy de Maupassant.
69 e 70 — Educação sentimen-
tal, por G. Flaubert.
71 — Depois do amor, por Ohnet.
72 — A fava de Santo Ignacio,
por Alexandre Pothey.
73 e 74 — O herdeiro de Red-
clyffe, por Mrs. Yongue.
75 — Uma ondina, por Theuriet.
76 — A família Laroche, por
Marguerite Sevray.
77 — As grandes lendas da hu-
manidade, por d'Humive.
78 e 79 — A filha do Dr. Jau-
fre, por Mareei Prevost.
80 — A dama das camélias, por
A. Dumas, Filho.
81 — Dezeseis annos..., por F.
G. Philips.
82 e 83 — O Desthronado, por
A. Ribeiro.
84 — Ninho'^d'amor, por A. Cam-
pos.
85 — Bodas Negras, por Alma-
chio Diniz.
86 — Do amor ao crime, por "Al-
phonse Karr.
37 — A ilha revoltada, por Ed
Lockroy
COILECCÃD âRTOiO IftFJi FESEIRA— 41" Vulmne
(KPHff
COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
ALBERTO PIMENTEL
jí^
NHO DE
VJCUl
NCHO
1<
LISBOA
Parceria ANTÓNIO MARIA PEREIRA
LIVRARIA-EDITORA
Rua Augusta^ 5o, 52 e 54
1903
LISBOA
Typographia d« Parceria António Maria Peneira
Rum d»s Correeiros, 70 e 72
RAZÃO DO TITULO
A ave conhecida pelo nome de guincho caça
durante a noite a provisão do seu ninho, que
procura ter sempre bem recheiado. Por isso
passa em provérbio o dizer-se metaphorica-
mcnte — achou ninho de guincho — quando
alguém descobriu um esconderijo de variados
objectos.
Este livro, pela diversidade dos assumptos,
certamente mais sortidos do que valiosos, é
um ninho de guincho, que eu fui abastecendo
na minha afanosa lucta pela existência, dia a
dia, umas vezes alegre, outras triste, mas
sempre conformado com a suprema direcção
de um mundo onde ha pessoas que vivem sem
trabalhar e pessoas que trabalham para viver
— sem que se possa dizer ao certo quaes são
as mais felizes.
Lisboa — 1902, dezembro
o PROPHETISMO E A RESTAURAÇÃO
Uma das armas empregadas no interesse da res-
tauração de 1640 foi o prophetismo: é esta uma ver-
dade histórica que merecia decerto ser largamente
desenvolvida e demonstrada. Não o podemos fazer
n'uma simples nótula; alguém, de mais firme pulso,
o fará um dia.
Quem principalmente manejou essa arma ? Foram
os jesuitas? O padre José Agostinho de Macedo as-
severou categoricamente que não entrou na revo-
lução nem um só jesuíta, mas que os religiosos da
Companhia, sempre dissimulados e verdadeiros ga-
tos na melancolia e na caça^ exploraram em pro-
veito próprio o movimento revolucionário que pôz
no throno D. João IV, fazendo acreditar que elle
era o promettido das prophecias populares (*). Re-
bello da Silva, pelo contrario, assignala a interven-
ção, que reputa poderosa, dos jesuitas, na conspi-
(^) Os sebastianistas^ Lisboa, 18 10, pag. Sg.
COLLECCAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
ração restauradora de 1640 e na consolidação da
dynastia brigantina. Recorda este illustre historiador
a propaganda do padre Luiz Alvares, que n'uni
sermão pregado perante o cardeal Alberto se affoi-
tára a dizer; «Sereníssimo príncipe! Levantae-vos,
tomae o fato e a cabana, e ide-vos para vossa ter-
ra'. . . é o que significam as palavras de Ghr!sto(')».
A crença de um novo império do mundo, para glo-
rificação da coroa restaurada de Portugal, digno de
figurar na historia universal depois dos impérios da
Babylonia, da Assyria, da Grécia e de Roma, foi
eloquentemente atiçada pelo padre António Vieira,
como se sabe, na Historia do futuro. Mas já então
a revolução estava consummada. Resta saber se os
jesuítas, recorrendo á arma do prophetismo, e a
outras não menos valiosas, a prepararam. Eis o
ponto que não está ainda nitidamente averiguado.
D. Francisco Manuel escreve nas Epanáphoras
que os padres da Companhia tacitamente contri-
buiam ás esperanças de alguma novidade. Este tes-
timunho é importante por ser contemporâneo dos
factos. Não obstante, a questão não está ainda suf-
íicientemente esclarecida, posto que recentemente
dois escriptores notabilissimos, Camillo Gastello
Branco e Oliveira Martins, esgrimissem denodada-
mente sobre tão importante assumpto, deixando
comtudo indecisa a victoria, porque ambos adduzi-
ram argumentos ponderosos, o primeiro negando,
em opposição ao segundo, que a Companhia de Je-
(*) Historia de Portugal^ tomo m, pag. 440.
NINHO DE GUINCHO
SUS tivesse intervindo pelo prophetism o na revolu-
ção de 1G40 para fa\er de Portugal o Par agua y
da Europa, segando a phrase de. Emílio Castellar
proferida no congresso hespanhol em 1884. Camillo
Castello BranCo adTiittia que os jesuítas acceitassem
D. Joáo IV coiTKí sendo o Encoberto, mas só úepois
de realisada a revolução de 1Õ40; antes não. Com-
batia, portanto, o argumento deOlíveirci Martins: que
fora por suggestÕss jesuíticas que rebentaram em
Évora os acontecimentos de iGSy, de todos conhe-
cidos. O que é certo é que a questão, brilhantemente
tratada de parte a parte, não ficou todavia bastante-
meiíte liquidada, de modo a não admittir a nienor
duvida perante a critica histórica, desapaixonada e
imparcial. Pode ter-se uma opinião, mais ou menos
justificável, e não devemos ocçultar que nos inclina-
mos á'de Camillo Castello Branco; mas parece-nos
ainda cedo para assentar uma convicção definitiva.
Como quer que seja, o que é certo é que o
prophetismo fora uma arma poderosa nas mãos
dos que favoreciam a restauração, quer os va-
mos procurar á Companhia ái Jesus ou fora
d'ella.
O calis da amargura trasbordava; o prophe-
tismo fortalecia os ânimos, pondo em vibraçãd a
credulidade popular, para evitar que fosse exgo-
tado até ás fezes. Na revolução d'Evora, emergira
principalmente o elemento popular; o typo do Ma-
nuelinho era uma synthese. O prophetismo apro-
veitou aquelle elemento, que sobrenadava á fior
dos acontecimentos, je explorou-o com vantagem.
Eis a verdade.
IO COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Todos OS processos que podiam fazer vibrar a
credulidade do povo foram utilisados. Recorda-
ram se as suppostas palavras de Ghristo a Affonso
Henriques nas cortes de Lamego, cuja authentici-
dade foi, aliás, combatida por Alexandre Herculano,
como se sabe. O Filho de Deus haveria promettido
ao primeiro rei portuguez a sua miraculosa interfe-
rência até ao tempo em que florecesse a decima
sexta geração, usque in decima sextam generaiionem.
Ora desde Sancho I até D. Henrique, inclusive,
succediam-se dezeseis gerações contadas de rei a
rei. S. Bernardo teria escripto a Aftonso Henriques
uma carta datada de Claraval, no anno de ii36, na
qual diria que ao — «reino de Portugal nunca falta-
riam reis portuguezes, salvo se pela grave\a de cul-
pas por algum tempo (Deus) o castigar; não será
porém tão comprido o praso d'este castigo, que che-
gue a termos de sessenta annost.
Gomo se vê, não podia ser mais artificiosamente
explorada pelo prophetismo a corda da credulidade
nacional.
Mas ha mais. Aos vaticínios de origem religiosa
accresciam os vaticínios de origem popular, fazendo
suppôr em intima communicaçao a alma do povo
com os prophetas directamente inspirados per Deus.
Assim, as prophecias de Bandarra foram interpre-
tadas n'um sentido inteiramente applicavel á res-
tauração da independência nacional pela acclamação
de D.' João IV.
Na Restauração prodigiosa de Portugal, com-
posta era 1643 por um jesuíta, o padre Manoel Es-
cobar, sob o pseudonymo de Gregório de Almeida,
NINHO DE GUINCHO I I
as trovas do vate sapateiro de Trancoso são ada-
ptadas á época:
Já o tempo desejado
É chegado.
Segundo firmai assenta,
Já cessaram os quarenta,
Que se emmenta
Por um douto já passado.
O rei novo é levantado,
Já dá brado,
Já assoma a sua bandeira,
Contra a grifa parideira
Logomeira,
Que taes prados tem gastado.
Saia, saia este infante,
Bem andante.
O seu nome é D. Joam.
Tire e leve o pendão
E o guião,
Poderoso e triumphante.
Vir Ihe-hão novas adeante,
E n'um instante,
D'aquellas terras presadas.
As quaes estão declaradas
E afRrmadas,
Tel-o por Rey em deante.
Inculcava-se, pois, que a éra de quarenta era pre-
destinada para grandes prodigios. N'uma egreja de
Alemquer haveria sido encontrada uma pedra com
esta inscripção, em lettras gothicas:
Anno de vinte, quem te não vira !
Anno de trinta, quem te passara!
Anno de quarenta, quem te gosára!
12 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
De mais a mais, na Escriptura Sagrada qua-
renta era um numero assignalado:. quarenta dias
estivera Moysés no Sinai; quarenta annos guiou
o Senhor ao povo de Israel pelo deserto. Ficava
assim confirmada a phrase : segundo Jirmal as-
senta.
Mas, além da auctoridade da Biblín, havia a de
S. Bernardo: que 5e ofvnenta, por um douto já pas-
sado.
Quanto á expressão rei nopo, não podia haver
duvidas: D. João IV era o primeiro monarcha de-
pois de interrompida" a serie dos reis portugue-
zes.
Saia, saia, significava a anciã com que todo o
reino pedia a acclamação de um soberano restaura-
dor.
Não podia, de feito, ser mais feliz a exegese. To-
davia, uma pequena difíicaldade apparecera: a pro-
phecia dizia: — Doni Foani, e não Dom Joam. Desde
o momento, porém, em que se encontrasse uma
explicação verosimii para a troca de uma lettra, a
prophecia ganharia foros de indiscutível veracida-
de. A desejada explicação encontrara-se, final-
mente: a troca de um / grande por um F fora alte-
ração adrede introduzida pelos sebastianistas •, res-
tava desfazer o que elles tinham feito, mudar o F
em /. A espada de Alexandre cortara mais uma
vez o nó gordio: Bandarra havia prophetisado D.
João IV.
E houve logo quem recordasse o testimunho de
pessoas contemporâneas de O. João III, affirmando
que Bandarra havia effeciivamente escripto
NINHO DE GUINCHO l3
O seu nome é D. Joam,
mas que — tão certo como dois e dois serem qua-
tro— os sebastianistas haviam adulterado a copia
maliciosamente.
D. João IV devia sorrir-se, para dentro, da cre-
dulidade ingénua dos seus vassallos, mas para não
inutilisar as armas do prophetismo, tão habilmeme
empregadas em seu proveito, não punha duvida em
declarar, perante os ferrenhos sebastianistas da
sua corte recemnascida, que se D. Sebastião vol-
tasse, immediatamente lhe entregaria o sceptro e a
coroa.
i885 — Fevereiro.
II
HISTORIA DE UM QUADRO
Champfleury, no seu livro Les excefitnques, dá o
logar de honra a um portuguez que se tornou no-
tável em França por muitas originalidades. Era o
commendador José Joaquim da Gama Machado,
conselheiro de legação em Pariz, gentil-homem da
casa real de Sua Magestade Fidelíssima, sócio da
Academia Real das Sciencias de Lisboa e de ou-
tras muitas corporações liiterarias.
Pertencendo a uma familia originaria de Portu-
gal, Machado foi para Pariz aos oito annos de edade
estudar no coUegio d'Harcourt, sob a direcção do
abbade Goesnon. Goncluida a aprendizagem littera-
ria, Machado viajou largamente e, quando já orçava
pelos cincoenta annos, explodiu no seu espirito, su-
bitamente, um grande enihusiasmo pela historia na-
tural.
Desde esse momento. Machado tornou-se um mo-
nomaniaco, um excêntrico, que vivia mais para os
pássaros do que para os homens.
Gorria todo Pariz assestando as suas lunetas de
NINHO DE GUINCHO l5
ouro para as gaiolas dos passarinheiros, e fazia
grandes compras de aves, com as quaes almoçava
em estreita camaradagem todos os dias, depois de
ter assistido ao banho de cada uma.
Havia, na habitação de Machado, uma sala occu-
pada por pequeninas thermas, onde os passarolos
mergulhavam hygienicamente, duas vezes ao dia,
sem que nenhum d'elles se equivocasse ao procurar
a sua tina.
Durante o almoço, o commendador prodigalisava
dedicadissimos cuidados aos seus hospedes.
— Se quero conservar a amisade de cada um
d'elles, dizia Machado, preciso não os enganar. O
trabalho de gabinete exige menos fadiga do que a
vigilância que reclamam os meus pequenos compa-
nheiros. Só com incessantes cuidados se consegue
preserval-os de enfermidades, e manter a paz no
seio d'esta pequena familia, onde a harmonia, como
entre nós, nem sempre reina.
Quando Machado viajava, acompanhavao inalte-
ravelmente um papagaio seu predilecto. Em mala-
posta, em caminho de ferro, em paquete, por mar
ou por terra, o papagaio favorito não se esquecia de
pedir o almoço, dando um grito, sempre á mesma
hora, com a precisão de um relógio de Genebra.
Este papagaio correspondia aos carinhos com que
Cra tratado pela cooperação que prestava ao com-
mendador no tratamento dos outros pássaros.
Quando algum adoecia, o papagaio avisava gri-
tando. Era uma espécie de irmã da caridade, de
enfermeiro officioso e solicito. Assim avisado, Ma-
chado punha em acção todo o seu arsenal théra-
l6 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
peutico: applicava homcepathicamente a belladona
para os casos de epilepsia, de que alguns pássaros
são atacados ; e empregava os glóbulos de açafrão
na época melindrosa da mudanÇa de penna.
Foi depois de muitos annos de convivência com
as aves que o commendador Machado conseguia
formular o seu systema da Thcoria d.is similhanças,
baseado sobre os meios de determinar as disposi-
ções características de cada animal, segundo as ana-
logias das formas, da cauda e das cores.
— A côr, dizia elle, é o verdadeiro piloto v... ■,!-
tureza para o conhecimento do valor das suas pro-
ducções, nos trtz reinos, animal, vegetal^ e mine-
ral. E' verdade que Bernardin de Saint-Pierre não
estava longe d'estas idéas. Nos Estudos da naíure:{a
diz elle que as cores dos animaes indicam, mais tal-
vez do que se pensa, os seus caracteres, e que a
côr virá por ventura a ser o gérmen de uma verda-
deira sciencia. As famosas analogias de Fourier
partem do mesmo principio.
A exemplificação das analogias encontradas por
Machado tomar-nos-ia grande espaço. Deixaremos
apenas indicado o assumpto, e transcreveremos al-
gumas das máximas doeste portuguez excêntrico,
que dizem respeito aos animaes.
«Os animaes nascem sábios sem passar pela edu-
cação, ao passo que os homens adquirem conheci-
mentos á força de maus tratos.»
«Falta ao macaco a palavra : este animal tem
conservado a sua plena liberdade.»
<Â côr é o móbil dos costumes entre os ani-
maes.»
NINHO DE GUWCHO I7
cA natureza parece ter privado o homem de senso
commum e havel-o dado aos animaes.»
Como se vê, o commendador Machado havia
constituído para si nriesmo toda uma sociedade de
pássaros, na convivência dos quaes ia rebaixando o
conceito que, por estudos comparativos, fazia do»
homem.
Era preciso acceotuar estes traços excêntricos da
physionomia de Machado, tal como nol-o apresenta
Champflcury, para entrarmos na matéria especial»,
que Julgamos ser inteiramente nova, d'este artigo.
Se o leitor quizer dar-se ao incommodo de visi-
tar o museu nacional de bellas artes, no palácio das
Janellas Verdes, ha de encontrar na sala D um qua-
dro a óleo, que tem o numero 868, e que, segunda
a indicação do respectivo catalogo, é do século pas-
sado.
Quanto ao assumpto do quadro, diz o catalogo:
«Loja de barbeiro. — Diversos macacos fazem of-
ficio de barbeiro, barbeando gatos.»
«Legado á academia.»
A' primeira vista, o quadro numero 868 da sala
D denuncia apenas a excentricidade de um artista,
a phantasia piccarcsca de um pintor que se occupou
imaginando uma loja de barbeiro, em que os esca-
nhoadores são macacos e os freguezes são gatos.
O catalogo contenta-se com dar uma indicação vaga
acerca da aquisição do quadro : legado á Acade-
mia. E' pouco, e é falso.
COLLECÇÂO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
O quadro não foi legado á Academia.. . mas á
Gamara dos Pares de Portugal. O testador foi o
commendador Gama Machado. E o quadro passou
mais tarde da Gamara dos Pares para a Academia
de Bellas Artes, como vamos mostrar.
Em data de 12 de outubro de 1861 o testamen-
teiro de Gama Machado participava á Gamara dos
Pares o legado de trez quadros, e pedia que lhe
fosse indicado o meio de envial-os.
Qjatro dias depois, o mesmo testamenteiro com-
municava que por aviso do presidente do tribunal
civil estava auctorisado a entregar o legado.
A 8 de dezembro, o testamenteiro participava ter
enviado o legado.
A 26 de fevereiro de 1862 a Gamara dos Pares
mandava officiar ao Ministério do Reino pedindo
que o legado lhe fosse entregue, e a 12 de junho
instava pela entrega.
A Gamara havia resolvido que os quadros, logo
depois de recebidos, fossem enviados para a Aca-
demia. Por isso, o director da Academia officiou
em 14 de junho, pedindo a remessa d'elles.
Foi-lhe respondido que ainda não haviam sido
entregues.
Só a 20 de dezembro foram recebidos na Gamara,
do que se lavrou o competente auto.
Os trez quadros de que constava o legado eram :
dois desenhos de Girodet, representando Galathea
e Pigmalião, e o quadro dos macacos e dos gatos,
pintado por Decamp — nada menos!
Gomo se acaba de ver, a indicação do catalogo
é não só deficiente, mas também inexacta.
NINHO DE GUINCHO IQ
A verdade é que o quadro de Decamp foi legado
por Gama Machado á Gamara dos Pares.
Seria este legado apenas uma excentricidade do
diplomata portuguez, inteiramente vasia de sentido?
Elle era intelligentc de mais para não pôr uma in-
tenção qualquer no que fazia.
E d'ahi talvez que o leitor, analysando o quadro,
possa encontrar a intenção irónica do testador.
Os macacos não serão os legisladores? os gatos
não serão os contribuintes?
Vão ver, e digam depois. . .
i"^86 — Janeiro.
III
UM PRÉDIO NOTÁVEL
A casa do Tateo do Tijolo onde Fontes Pereira
de Mello falleceu, tem, como se sabe, duas entradas,
uma pela travessa do Conde de Soure, que commu-
nica a rua Formosa com a rua da Rosa, a outra
pelo Pateo d'aquelle nome que liga a rua de D. Pe-
dro V com a entrada nobre do palácio.
N'este bairro, e principalmente n'este sitio, a re-
fundição de Lisboa tem sido profunda até nos nomes.
A inevitável chrisma municipal converteu a an-
tiga rua do Moinho de Vento em rua de D. Pedro
V. Porque ? Por coisíssima iietiJiuma, como diria um
ministro lendário. Aquella rua tanto poderia ser de
D. Pedro IV como de D. Pedro V, como de qual-
quer outro homem notável... que tivesse passado
por ella algumas vezes. A única denominação que
ajustava á sua historia era a de — Moinho de ventOf
porque, em verdade, ali houvera moinhos de vento
— e bem trabalhados pelo vento deviam sern'aquelle
alto os moinhos — quando ainda tudo por ali eram
terras de semeadura, ao tempo do terremoto, co-
NINHO DE GUINCHO 21
mo indicam os nomes mais ou menos bucólicos das
ruas circumjacentes.
Estamos, de feito, n'uma zona onde Ceres e Flora
tiveram seus dominios, como denunciam as designa-
ções de rua da Vinha, travessa das Parreiras^ tra-
vessa da Horta^ rua dos Cardaes, rua e travessa
da Palmeira, rua dos Jasmins, e, finalmente, Praça
das Flores.
A rua da Rosa faz, porém, excepção ; não deve
enganar o leitor. Esta rosa nada tem que ver com
bucolismos e pastoraes, pois que não se trata da
rosa dos prados, mas da Rosa . . . das partilhas,
uma demandista famosa do século XV.
Nós, os que vivemos agora, já não vimos velejar
no alto de S. Pedro de Alcântara os tradicionaes
moinhos de vento, que apparecem figurados no Ur-
bium procecipuarum mundi theatrum., mas conhece-
mos a rua do Moinho de Vento muito diffcrente,
ainda ha poucos annos, do que é hoje.
O leitor lembra-se por certo do renque de casas
humildes — até por signal bem mal habitadas. . . —
que corria desde a esquina da rua da Rosa até junto
da Patriarchal Queimada... perdão, da Praça do
Principe Real. Demoliram-se essas casas, construi-
ram-se no seu logar as lojas de commercio que
lá vemos agora, edificara mse em frente bellos prédios,
ultimamente demoliuse, depois de incendiado, O
palácio da familia Braamcamp — que sempre teve
a má sina de vêr os seus prédios incendiados —
desmoronou-se parte do solar dos Salemas, alargou-
se a rua, e ella ahi está hoje sendo uma das me-
lhores de Lisboa.
22 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Mas a mudança de nome é que eu não perdoo
nem desculpo.
Todos nós nos lembramos ainda de ver, no Pa-
teo do Tijolo^ os restos disformes do palácio dos
condes de Soure, titulares que estão actualmente
representados, pelo casamento de uma senhora, na
casa dos condes de Redondo.
O visconde Júlio de Castilho não pôde rastear a
data da fundação do palácio, mas pareceu-lhe en-
xergar nas ruinas vestígios de uma construcção do
século XVII.
Gomo quer que fosse, ahi habitavam, n'aquelle
século, os Soures, cujo condado fora em i652 con-
cedido a D. João da Gosta, casado com uma senhora
da casa Villa Verde.
Ahi, nas proximidades do seu solar, esteve o pri-
meiro conde de Soure para ser victima de uma ci-
lada nocturna que lhe armaram dois embuçados a
cavallo, e de que sahiu incólume.
Aconteceu que voltando de Inglaterra, viuva, a
rainha D. Gatharina de Bragança, fora alojar-se nos
paços do Galvario, d'onde se transferiu para o pa-
lácio dos condes de Redondo a Santa Martha, pas-
sando depois d'ahi para o dos condes de Soure,
junto aos iMoinhos de Vento.
Foi n'este prédio, onde, duzentos annos volvidos,
haviam de fallecer dois estadistas portuguezes, que
D. Gatharina de Bragança fez lavrar o seu testa-
mento, datado de 14 de fevereiro de 1699, no pa-
lácio sito ao Moinho de vento na corte e cidade de
Lisboa.
A rainha de Inglaterra não se demorou muito,
NINHO DE GUINCHO 2$
porém, no palácio dos condes de Soure; mudou se
para o dos condes de A-veiras, em Belém. Amda
ahi não ficou. Em julho de 1701 comprou seu ir-
mão D. Pedro lí terrenos na Bemposta para man-
dar lhe construir o palácio que hoje conhecemos por
esta designação.
A escriptura da compra vem publicada no Ga-
binete histórico de frei Cláudio da Conceição e tran-
scripta por Camillo Castello Branco no 1.° volume
do romance O judeu.
A esse tempo o representante dos Soures era o
terceiro conde do titulo. D. João José da Costa e
Sousa que, certamente para deixar livre o palácio
do Bairro Alto á rainha da Gran-Bretanha, iria ha-
bitar o outro palácio da sua familia, á Penha de
França.
Habituado talvez á sua residência n*este outro
palácio, não voltou o conde de Soure a occupar
o que D. Catharina de Bragança abandonara.
Então o palácio dos Moinhos de Vento, que ti-
nha hospedado uma rainha, passou a ter inquilinagem
menos nobre. Estabeleceuse ahi um theatro de ti-
teres, theatro onde depois se representaram as far-
ças do famoso judeu António José da Silva-, proto-
gonista do romance de Camillo, ha pouco citado.
Teve pois aquelle Bairro nada menos de trez thea-
tros: este, o velho theatro do Bairro Allo^ de ma-
rionettes^ aos Moinhos de Vento; o theatro nopo^ no
largo de S Roque, Pateo do Patriarcha (porque
foi no palácio dos Nizas que habitou o primeiro
patriarcha de Lisboa, D. Thomaz d'Almeida) e
no largo da Abegoaria a Academia de opera italiana.
S4 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Outros, de secunduria importância, haveria tal-
fez.
Disse eu já que a familia Braamcamp fora infe-
liz com incêndios. O pae do fallecido conselheiro
Anselmo Braamcamp habitava um grande prédio
no Terreiro do Paço entre a esquina da rua da
Prata e a da rua dos Fanqueiros. Esse prédio ar-
deu ahi por 1828, pois que o povo, depois de D Mi-
guel ter dado uma queda e de fallecer a rainha D.
Carlota Joaquina (7 de janeiro de i83o) cantava nas
ruas:
Foi o fogo do Braarrcamp
Cometa que annunciou
A morte da abelha mestra,
A queda do rti chegou.
O vasto prédio que o sr. conselheiro Anselmo
José Braamcamp habitava, no topo da alameda de
S. Pedro d'Alcantara, ardeu também, creio que em
1878, pelo que o finado chefe do partido progres-
sista comprou as ruinas do palácio dos condes de
Soure, mandando aproveitar as paredes mestras do
edifício.
As obras de reconstrucção começaram em julho
de 1879, e a refundição do palácio fez-se rapida-
mente, indo o sr. Anselmo José Braamcamp ha-
bital-o com sua familia.
Como se sabe, foi ahi que o illustre chefe do par-
tido progressista falleceu a i3 de novembro de i885,
quatro annos depois de ter abandonado a presi-
dência do conselho de ministros (25 de março de
1881).
NINHO DE GUINCHO 25
I
Mezes depois, o conspícuo estadista António Ma-
ria de Fontes Pereira de Mello, chefe do partido
regenerador, transferiu a sua residência, do palacete
do largo do Poço Novo, para o palácio do Pateo do
Tijolo, propriedade dos herdeiros do sr. Braam-
camp.
Está ainda na memoria de todos que a morte fe-
riu de improviso Fontes Pereira de Mello, na noite
de 22 de janeiro de 1887.
Logo se notou a triste coincidência de terem mor-
rido no mesmo prédio, apenas com o intervallo de
dois annos, os dois chefes dos partidos monarchi-
cos militantes.
Mas o que muita gente ignorava, e ignoraria tal-
vez ainda hoje, é que ali estivera hospedada a
rainha, viuva, da Gran-Bretanha, e que o mesmo
prédio passara depois a ser o velho theatro do Bairro
Alto.
Aos esplendores da realesa, representada na pes-
soa de D. Catharina de Bragança, cuja vida em In-
glaterra fora uma tragedia de amarguras, succedera
a comedia personificada no infeliz judeu António
José da Silva. Seguiu se um duplo drama de morte,
que cobriu de luto os partidos progressista e rege-
nerador.
Os dois estadistas não falleceram, porém, no mes-
mo quarto.
Subindo, da rua Formosa, a travessa do Conde
de Soure, a primeira janella do segundo andar é a
do aposento em que Fontes expirou.
Quando este illustrc estadista foi residir n'aquelle
prédio, os herdeiros do sr. Braamcamp conserva-
26 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
ram fechado, durante muito tempo, o quarto, tam-
bém situado no segundo andar, em que elle tinha
fallecido.
Estavam ainda ali alguns moveis, suppômos
até que o leito, os quaes foram depois removidos
por ordem da familia Braamcamp.
Da janella do quarto onde falleceu Fontes Pe-
reira de Mello avista-se um dilatado panorama, que
abrange grande parte da casaria do bairro Occiden-
tal, e o Tejo.
A mobília do quarto de Fontes era modesta. En-
trei ali na manhã do dia 23 de janeiro de 1887. O
cadáver do iliustre estadista, vestindo o seu uni-
forme de general, repousava sobre o leito. Recor-
do me de ter feito reparo em dois ou trez moveis,
elegantes, mas simples: uma commoda moderna e
um guarda-fato. Nenhum requinte de commodidade
opulenta •, nenhuma pompa de tapeçarias, nem bibe-
lots de preço. Todavia, no fundo da província, quan-
tos não imaginariam, com boa ou má fé, que os
aposentos de Fontes deviam ser principescos !
Conheci Fontes Pereira de Mello em quatro pré-
dios differentes, na rua de S. Bento, na travessa
de Santo Amaro, no Poço Novo, e no Pateo do Ti-
jolo, mas em nenhum delles a mobília e os estofos
das suas salas deslumbravam os olhos.
1889 — Janeiro.
IV
PETRARCHA E CAMÕES
A obra de Petrarcha tem sido copiosamente vul-
garisada em francez. Citarei de passagem a traduc-
ção de Ginguené, que é estimável. Mas no texto
original conheço a excellente edição de i34i por um
exemplar que pertence hoje ao meu prezado amigo
conselheiro Silveira da Motta, e que pertenceu
outr'ora a Camillo Castello Branco, que o anno-
tou.
Adquiriu, pois, Silveira da Motta uma dupla pre-
ciosidade bibliographica, que lhe peço licença para
descrever.
No reverso da i.* pagina, a lápis:
Ex-per feito.
No verso da 2.", também a lápis:
a Esta edição sahiu no 2° centenário da coroação
de Petrarcha em 1641. (Esta data está fortemente
escripta a tinta). O commentador Vellutello é o
mais apreciado dos antigos interpretes de Pe-
28 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
trarcha. N'esta edição ha versos chancellados pela
censura — são os que offendem os cardeaes. »
C. Caslello Branco.
E no reverso da 2.* pagina, a tinta:
Brunet — 60 fr.
C. Castello Branco.
Na ultima pagina, por baixo da rubrica typogra.
phica do impressor (In Vinegia per Giovann Antó-
nio di Nicolini da Sábio nel anno dei Signore
MDXLI de Genaro) tem o exemplar a assignatura
do seu antigo possuidor:
D. Jeronymo Corrêa da Silveira.
E por lettra de Gamillo:
E' neto de D. Diogo que adiante traduziu o
soneto de Petrarcha; morreu em 16 de maio de
1640.
C. Castello Branco.
Seguem-se trez paginas, sendo duas em branco,
certamente introduzidas pelo encadernador. Na i.%
porém, lê-se em caracteres manuscriptos:
Tresladação do soneto «aspro core e selvaggio»
(calligraphia antiga):
Dura vontade, cruel peito isento
N'uma suave, angélica figura,
Se tanta crueldade muito dura,
Pouco honrava de mim o vencimento.
NINHO DE GUJNCHO 29
Que eu de chorar não cesso um só momento
Quando a flor nasce e perde a formosura.
Bem tenho que queixar-me da ventura,
D'amor, e da que causa meu tormento.
Vivo só d'esperança imaginando
Qae mármore não hi que ao uso grande
De pouca agua continua se não renda.
Não ha tão duro peão, que chorando.
Rogando, amando, uma hora não se abrande.
Nem tão frio querer que não se accenda.
E por baixo, em lettra de Camillo:
«D. Diogo da Silveira foi 2.° conde da Sortelha e
guarda-mór d*el rei D. Sebastiam.»
Petrarcha fanatisou, pela sua obra poética e pela
sua tradição amorosa, todos os notáveis poetas por-
tuguezes da escola italiana, incluindo Camões.
Sá de Miranda, que introduziu em Portugal o
gosto pelos processos de metrificação á-la-moda de
Itália, faz n'um terceto o elogio de Petrarcha:
Depois co'a melhor lei entrou mais lume,
Suspirou-se melhor, veio outra gente ,
De que Petrarcha fez tão rico ordume.
No Filodemo de Gamões ha uma referencia a
Petrarcha, e á bella Laura porelle celebrada:
«...por quantos sonetos estão escriptos pelos
troncos das arvores do Vale Luso, nem por quan-
tas madamas Lauras vós idolatraes.»
DO COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Creio piamente que Vaie Luso foi primitivamente
um erro typographico, que até hoje tem corrido á
revelia nas numerosas edições em que as comedias
de Gamões andam reproduzidas. O poeta escreve-
ria certamente ^aie cliiuso. Toda a gente sabe que
em Avinhão o tumulo de Laura e a fonte de Petrar-
cha povoam ainda hoje de memorias românticas a
paisagem de Valchiusa. Castilho, referindo se na
Chave do enygma á solidão do poeta n'aquelle er-
mo, escreve na sua do:e prosa tocada pela suavi-
dade de frei Luiz de Sousa: « Valchiusa, ou, como
dizem, Voclusa, onde Petrarcha passa tantos annos
sonhando com o espectro, primeiro de uma viva,
que não vive para elle, e depois, de uma defunta
que nunca para elle morrerá, Valchiusa é para to-
dos brenha alpestre, cavernosa, brava, despovoada,
mas é vergel e universo para elle, e o casebre do
seu refugio, palácio orientai.»
Até i633 o tumulo de Laura tinha por único epi-
taphio apenas quatro lettras: M. L. M. L (Madonna
Laura morta jacet), mas, n'aquelte anno, passando
em Avinhão, caminho de Marselha, Francisco í
(que em matéria de poesia e amor tinha soberana
auctoridade) mandou levantar, em honra da beila
dama, um rico tumulo de mármore, com epitaphios
em differentes linguas, escrevendo elle próprio um
em francez.
António Prestes também faz referencia a Petrar-
cha, e por sign^l que é curiosissima. Vem no Aulo
do desembargador. Trata-se de um boi, que tem o
nome de Namorado.
NINHO DE GUINCHO 3l
Commendador:
Chamavam ao boi namorado;
vacca que visse no arado
lhe fazia mil sonetos.
Moço:
Isso era Petrarcha boi!
Commendador:
Qual Petrarcha! inda me aggravo
do Petrarcha, mui mais bravo
que dez mil Pctrarchas foi.
E O mais é que o Commendador do auto tinha
razão. Em amor, Petrarcha foi um inoffensivo, um
platónico, que gastou o coração em sonetos. Nada
ha tão irrisório como dizer: a Laura de Petrarcha!
A quem ella pertenceu foi a seu marido, Hugues
de Sade, do qual houve onze filhos. Esta cabazada
de fructos era bastante a esmagar prosaicamente as
flores que Petrarcha metrificava em honra de Laura.
Mas o poeta fechava-se na solidão de Valchiusa, ao
pé da fonte suspirosa, e gemia saudades pela mu-
lher de Hugues.
Foi n'uma egreja, onde se celebrava a semana
santa^ que Petrarcha a viu pela primeira vez.
Tinha ella então vinte annos, e uma belleza ra-
diosa:
Diz o soneto :
Era '1 gioino ch'al ai sol si scoloraro
Per lá pietá dei suo Fattor i rai,
Quand' i' fui preso, e non me ne guardai
C&e i bei vostr'occhí^ Donna, mi legaro.
32 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
A. Gamões aconteceu outro tanto. Foi também
n'uma egreja, e pela semana santa^ que elle viu
pela primeira vez a dama que lhe empolgou o co-
ração, fosse ou não fosse Gatharina d'Aihayde. O
soneto que principia:
O culto divinal se celebrava
No templo d'onde toda a creatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava
foi visivelmente calcado sobre aquelle de Petrar-
cha, o que fez attribuil-o unicamente a espirito de
imitação, a fanatismo petrarchiano. Mas o visconde
de Juromenha deu á estampa outro soneto de Ga-
mões, que desfaz qualquer apprehensão:
Todas as almas tristes se mostravam
Pela piedade do Feitor Divmo,
Onde ante o seu aspecto benino
O divmo tributo lhe pagavam.
Meus sentidos então livres estavam
Que até hi foi contente o seu destino,
Quando uns olhos de que eu não era dino
A furto da razão me salteavam.
A nova vista me cegou de todo,
Nasceu do descostume a extranheza
Da suave e angélica presença.
Para remediar-me não ha hi modo.
Oh! por que fez a humana natureza
Entre os nascidos tanta differencaf
NINHO DE GUINCHO 33
DÍ7. a lenda que foi na egreja das Chngas que
Luiz de Camões viu pela primeira vez a dama que
tanto veiu a amar. Eu, segundo uma opinião Já an-
tiga, pendo a crer que fosse em Coimbríi, onde, dil-o
o próprio poeta, tas suas maguas para nunca aca-
bar se começaram »
Camões tem, na sua biographia amorosa, muitos
pontos de contacto com Petrarcha, Qualquer dos
dois poetas resume toda a sua felicidade n'um so-
nho: bealo in sogno. Nenhum d'elles pôde possuir
a mulher amada, e ambos lhe sobreviveram. Mas
Camões, n'um só soneto. Alma minh.i gentil que te
paríislc, é muito superior em lacrimavel s udade a
Petrarcha nos vários sonetos que compoz chorando
a morte de Laura. Todo esse soneto, que é a pri-
meira explosão da angustia, vale mais, pela sua do-
çura etherea, que a longa écloga escripta á morte
de D. Gatharina de Athayde. Somente o lusitano,
medindo se am.orosamente com Petrarcha, acha
que a sua dama sobrepujava em belleza a do ita-
liano:
E que toda a toscana poesia
Que mais Phebo restaura,
Em Beatriz, nem Laura nunca via.
Camões, o Trinca fortes, o Diabo, abitido aos
pés de Nathercia — como Hercules aos pés de Om-
phale — não se nos afigura hoje, porém, tão piegas
como Petrarcha. E um guerreiro que ama, e que
chora. Mas Petrarcha vale-se infruciuosamente de
3
34 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
recursosinhos capciosos, faz a Laura o seu presen-
tinho de trufas, gaba-lhe o signo do Touro,
Quando '1 pianeta che rlistingue Tore
Ad albergar col Tauro si ritorna
c a bella Laura, sempre desentendida, parece di-
zer-lhe n'una silencio honesto: «Marra, bravo cora-
ção, contra a muralha da minha honra: não a aba-
larás.»
O Commendador do auto de António Prestes ti-
nha razão.
1889 — Fevereiro.
CHA PORTUGUEZ
Strozzi cantou o chocolate, Massieu o café. Não
me consta que algum poeta tenha cantado o chá,
e todavia ha bons duzentos annos que a Europa se
habituou a tomal-o, guindando-o ás honras de um
costume elegante.
Foi ao que parece o padre Matheus Ricci, jesuíta,
missionário na China, quem pela primeira vez o in-
dicou á Europa em 1Õ90. No século seguinte, ahi
por 16:0, os hollandezes introduziram o chá na
Europa, e a importação cresceu rapidamente, a
ponto que em i665 era quasi geral o uso do chá.
Subsiste uiua phrase indicativa de que tomar chá
foi desde logo um titulo de boa sociedade. De uma
pessoa grosseira costuma dizer-se : Não tomou chá
em pequeno. E não é porque o chá fosse recommen-
dado como proveitoso para a saúde das creanças.
Pelo contrario, o dr. Francisco da Fonseca Hen-
riques, medico de el rei D. João V, aconselha ni
sua Ancora Medicinal que se não dê chá aos me-
36 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
ninos, por ser bebida quente e dessecante, contra-
ria ao desenvolvimento do corpo.
A rasão da phrase está p is, certamente, em ter
sido o uso do chá adoptado peUs classes superio-
res da sociedade, generalisando-se depois por espi-
rito de imitação. Em Inglaterra foram dois lords,
Arlingíon e Ossor}', que o introduziram, sendo en-
tão caríssimo Aindi hoje ha na Inglaterra, e por
copia n'outros pa'Zcs, incluindo Portugal, o elegante
chá das cinco horjs.
Assim como era de fina gentileza offerecer a ou-
trem uma chávena de chá, o negal-a representava
uma sovinaria grosseira.
O bispo do Grão-Pará escrevia para Lisboa a
uma freira, D. Antónia Xavier, que se lhe queixara
de duas madres que lhe não ofTereciam do seu chá:
«Estimarei que esteja melhor de saúde para que
não necessite do chá das amigas-, quem nega uma
chicara de agua quente é capaz de negar um pú-
caro de agua fria, e também tem cara para negar
uma divida- o certo é que ha creaturas tão indiges-
tas, que todo o chá é pouco para ellas.»
Dar mau chá era talvez um pouco mars ridiculo
do que o não dar. Tolentino diz na conhecida quin-
tilha :
Em bule chamado inglez,
Que já para pouco serve,
Duab foinas liiiça ou trez
Do Cdnçado chá qae ferve
Com esta a secima vez.
E o Braz Carril, da Assembléa de Garção, ia ar-
ranjar dinheiro a casa do diabo para não deixar de
NINHO DE GUINCHO 87
dar ás visitas sequilhos e chá condignos da prosá-
pia de sua esposa a ex."'* D. Urraca Azevia.
Hoje o uso do chá firmou-se em todos os paizes
da Europa, bebem-n'o os ricos e os pobres, os sãos
e os doentes, os adultos e as creanças. Peior ou
melhor, entende-se. Não está já divmisado pelas
lendas que corriam a seu respeito quando começou
a ser importado. Dizia-se então que Darma, filho
de um rei das índias, havendo adquirido o habito
de viver solitário, passava as noites meditando no
seu jardim. Certa noite, porém, entrou com elle
um somno teimoso, e o principe, desesperado com
essa exigência animal, arrancou as pálpebras, arre-
messou-as á terra, onde ellas crearam raízes e pro-
duziram a planta que dá o chá. Hoje já não correm
esta e quejandas lendas, filhas da phantasia orien-
tal \ mas, em compensação, toda a gente tira das
pequeninas e tenras folhas do íheh dos chinezes e
do ísiaa dos japonezes, d'onde provavelmente veiu
o nosso vocábulo chá, todo o partido possível —
praticamente.
Diz-se que é bom o chá para curar as nevroses
dos olhos ; sabe-se que é excellente para tirar nó-
doas. Ha golld de casaca que tem bebido mais chá
talvez do que o dono da casaca. E é de bom cdn-
selho tomal-o quando se está indisposto, sendo já
um habito inveterado bebel-o sempre, esteja-se in-
disposto ou não.
Ninguém ha de dizer o traballio que dão a co-
lheita e o preparo da folha do chá. Em trez opera-
ções distinctas, qual d'ellas mais laboriosa, se pôde
dividir esse trabalho. Frei Leandro do Sacramento,
38 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
illustre professor brazileiro, licenciado em philoso-
phia pela Universidade de Coimbra, escreveu uma
interessante memoria sobre o assumpto, c é de
vêr o complicado processo que tem de seguir-se
desde que se colhem os rebentos da planta até que,
depois das folhas escaldadas, esmagadas, enroladas,
torradas, peneiradas, se chega á ultima torrefacção,
que é a terceira operação por que o chá tem de
passar antes de ir correr mundo.
Sempre quero dizer ao leitor o motivo que tive
para me lembrar hoje do chá. .. Eu devia ter co-
meçado por isto. Nenhum assumpto quadra me
Ihor a um jornal que tem estado sempre na brecha
a defender os interesses da instrucção, do commer-
cio e da industria. Foram as conferencias ultima-
mente realisadas pelo sr. José Júlio Rodrigues, no
theatro de S Carlos, que chamaram a minha atten.
cão para o chá dos Açores. Chá dos Açores I ex-
clamará com extranheza o leitor.
Tem razão para extranhar, porque é sestro por-
tuguez despresar as riquezas que temos de portas
a dentro. Pois o chá dos Açores é uma industria
creada, desenvolvida não.
Foi em 1878, que na ilha de S. Miguel se fize-
ram os primeiros ensaios da manipulação do chá.
A sociedade promotora da agricultura michaelense
mandou buscar dois chinezes, Lau-a-Pan, mestre
manipulador; e Lau-a Teng, intreprete e ajudante,
para procederem á fabricação, que uma já abun-
dante cultura permittia.
No dia 14 de março d'esse anno colhiam-se as
primeiras folhas nas propriedades do sr. José do
NINHO DE GUINCHO '39
Canto, e entravam em exercício os dois manipula-
dores chinezes, que a principio pretenderam guar-
dar certo mysterio sobre os processos da manipu-
lação.
Foi nomeado um fiscal dos chinezes, para que
pudesse ir apossando se dos segredos do fabrico.
Recaiu a escolha no sr. Raphael de Almeida, que,
por uma singular coincidência, é hoje collaborador
d'este jornal, e residente cm Lisboa.
Os chinezes, sempre disfarçados, procuravam
desorientar a pessoa que fora encarregada de vi-
gial-os. Contradiziam se a cada momento nas ex-
plicações que davam. Era preciso recorrer a meios
imagmosos para arrancar-lhes a verdade, e lembrou
um. Os dois fumavam ópio, e emquanto fumavam,
taziam inconscientemente revelações importantes.
Sonhava um com o dinheiro que tinha ganho e es-
condido a bom recado. Outro falava dos assumptos
relativos á sua profissão, contava minudencias do
fabrico, ria se talvez dos michaelenses que queriam
arrancar lhe o segredo da mais perfeita manipulação.
Dizia o primeiro:
— Com o meu dinheiro é que ninguém é capaz
de dar. Tenho-o bem escondido debaixo d'aquella
arca maior que está ao canto da casa. Eh! eh!
quando me for d'aqui irei rico, e os de S. Miguel
ficarão sem saber como é que se prepara o melhor
chá.
E o segundo, como que ouvindo vagamente o
outro na embriaguez do ópio, completava-lhe o pen-
samento :
— Eu explicolhes tudo ao contrario, de modo que
40 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
elles, em nós indo embora, não ficarão a ver chá,
mas unicamente navios! Tão tolo seria eu que lhes
fosse revelar um segredo da nossa raça, que cons-
titue uma das principaes riquezas do Celeste Impé-
rio ! Esperae por isso, que tendes que esperar !
O sr. Raphael d'Almeida ouvia-os, e no dia se-
guinte dizia so primeiro ;
— Lau a Teng, toma conta no teu dinheiro,
que tens escondido debaixo da arca maior, que
está ao canto da casa. Se t'o descobrem, podem
roubar-t'o, e tu deixarás de rir para ter muito que
chorar. Sou teu amigo, e aviso te, impondo-te o
dever de também seres meu amigo
Lau-a-Teng arregalava os olhos, ficava surprehen-
dido, attonito.
Voltando-se para o outro dizia o sr. Raphael de
Almeida :
— Mestre Lau-a-Pan, tu é que sabes fazer o me-
lhor chá. Aqui o Lau-a-Teng não percebe da missa
a metade. Ora tu foste contratado para ensinar
tudo o que sabes, mas procuras enganar-nos, fal-
tando á tua palavra e ao contrato que fizeste co n-
nosco. Tjma cuidado, mestre Laua-Pan, que tam-
bém nos Açores ha justiça, e tu estás muito longe
do Celeste Império, de modo que o Filho do Sol
não te poderá valer.
Lau a Pan não ficava menos assombrado do que
Lau-a-Teng.
— Este homem, diziam elles cochichando um com
o outro e referindo-se ao sr. Almeida, tem poder
sobrenatural: adivinha tudo! E' preciso respcital-o,
e obedecer-ihe.
NINHO DE GUINCHO 4I
Foi assim, por este processo imaginoso, que a
perfídia dos dois chinas pôde ser combatida e ven-
cida.
Na noite de 22 de novembro servia-se no Club
Michalense chá açoriano, sem que os sócios esti-
vessem prevenidos do caso. Nenhum reclamou,
porque não havia motivo para reclamar. O chá de
S. Miguel é excellente, foi analysado em Pariz pelo
prof ssor Schutzenberg, do Collegio de França. A
analyse dera o seguinte resultado :
Cellulose.
Resina,- insolúveis, 64,3.
Alumina.
Matéria gordurosa.
Ttína 4,2.
Tanino 1,1, solúveis 35,8.
Matéria gomosa 3o, 5.
Ora acontece que a maior parte do chá do com-
mercio não contém mais de 2 a 3 por cento de
teína, que é o principio activo do chá, ao passo que
o de S. Miguel possue 4 2.
Um illustre par do reino açoriano, que assistiu
ás conferencias do sr. José Júlio Rodrigues, quiz
que eu provasse o chá preto de S. Miguel. Fiquei
encantado, nunca tão bom o tinha bebido. O chá
verde élhe inferior, talvez porque Lau-a Pan era
menos perito em manipulalo.
Pensei então no abandono a que nós condemna-
mos as industrias que podiam dar a Portugal uma
grande prosperidade. Eu próprio nunca tinha ou-
42 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
vido falar do chá dos Açores, e, todavia, quantas
vezes o haveria tomado cuidando que estava be-
bendo chá da China! E' que o chá preto de S. Mi-
guel é inconnparavelmente mais barato, e comtudo
pôde bem passar por chinez. Assim succede tam-
bém com as laranjas de Setúbal, que, no pregão de
quem as vende, são sempre da China.
Dizia-me outro dia o sr. José Júlio Rodrigues a
respeito do chá:
— Ha uma maneira fácil de converter o chá n'uma
bebida deliciosíssima. E' fazel-o com agua distillada,
pondo no fundo de uma chávena trez ou quatro fo-
lhinhas e deixando-as abrir depois com a agua dis-
tillada, tapando a chávena.
Experimente o leitor, e verá como o chá real-
mente se transforma adquirindo um sabor que ja-
mais lhe reconhecemos.
Ahi fica, em breves traços, a historia do chá dos
Açores.
1891 — Julho.
VI
A CRUZ DE BERNY
(carta ao velho romântico dom castão)
Entre os livros que maior sensação produziram
n'essa época, já longinqua, em que o romantismo
litterario se traduzia n'uma forte corrente social,
n'uma espécie de dictadura psychologica a que
todas as almas obedeciam, não com repugnân-
cia, mas com essa fanática exaltação que victíma os
mariyres de qualquer seita, os fieis de qualquer
egreja, a Crw{ de Beni/, romance escripto por qua
tro das primeiras celebridades francezas, Madame
de Girardin, Theophilo Gautier, Méry e Júlio San-
deau, obteve um ruidoso triumpho, longamente re-
percutido n'uma lenta resonancia de applausos.
Em verdade, esse estranho livro, collaborado por
uma plêiade de espíritos febrilmente românticos,
cheios de imaginação, opulentos d'estylo, pródigos
de vibração e colorido, não era senão a addição re-
sultante da riqueza intellectual de cada um dos seus
collaboradorcs, o conjuncto phantastico de quatro
44 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA. PHREÍRA
sonhos extravagantes que se encontraram girando
sobre um mesmo pensamento, como outras tantas
rodas volteando vertiginosamente sobre um mesmo
eixo.
Tudo é inesperado, incerto, caprichoso n'essa fa-
mosa novella, a começar pelo liiulo — Cru^ de Ber-
ny — que o enredo não justifica e que o leitor,
chegando ao fim do volume, não sabe como expli-
car.
Este titulo, tão imaginosamante procurado, re-
salta como sendo a primeira excentricidade do livro.
Quando o gosto pelo Sport invadiu a França,
copiado dos inglezes, um dos arrabaldes de Pariz,
chamado Cro/.r de Berny, foi o kcal escolhido para o
síeeple-chase^ que desde logo se tornou o diverti-
mento elegante mais em voga.
Foi n'essa occasião que Madame Girardin, Gau-
tier, Méry e Sandeau se propuzeram realisar uma
espécie de coiirse hittranã, d& steeple-chase românti-
co, galopando intellectualmente no hypodromo de
Berny, saltando barreiras, vencendo obstáculos, lar-
gando rédeas á imaginação, como a um cavallo fo-
goso, n'uma vasta pista accidentada.
Tal a inesperada razão do titulo, razão que nin-
guém é capaz de descobrir no romance, e que apenas
muito vagamente, como se fosse um enygma, pode-
rá suspeitar-?en'esta phrase final^(Todos nós fizemos
uma coiirse desesperada para attingir a felicidade !
Só um chegou — morto!»
Como quatro jockeis muito destros e firmes (in-
cluindo Madame Girardin que amava o travesti,
pois que no mundo das lettras era conhecida por
NINHO DE GUINCHO 45
visconde de Laiinay), os auctores da Crui de Ber-
nj' guiaram galhardamente o corcel da sua phanla-
sia, fazendo prodígios de imaginação, armando ao
piitoresco e ao imprevisto, animando-se mutua e
lealmente na corrida com o grito enthusiastico que
symbolisava a divisa de cada um: Aléry, Pela índia!
madame Girardm, Pela Mulher! Gautier, Por Cons-
tantinopla! Siiideau, "Pelo amor!
Se acompanhardes o infatigável sleeple-chase
dos quatro, vereis que, effectivamente, através d'es-
sas trezentas paginas eriçadas de obstáculos e bar-
reiras, Méry sonha com a índia, que o encantou toda
a vida, madame Girardin glorifica a mulher na ele-
vação do talento feminino, Gautier é o poiychromo
prodigioso que descreveu Constantinopla, e San-
deau põe mais uma vez a sua imaginação aventu-
rosa ao serviço do amor.
Todos elles, hasteando o seu motto, correm ao
acaso para um desfecho à sensalion, mas todos el-
les giram como n'um carrousel, em torno do mes-
mo eixo, a mulher romântica, intelligente e ca-
prichosa, illu^trada e insubmissa, que no m.undo
das lettras se chamava, por exemplo, George Sand,
e no mundo da phantasia tomava differentes nomes
como a heroina do romance, agora Irene de'Cha-
teaudun, a rica herdeira, logo Louise Guérin, a
operaria, sendo aliás a mesma pessoa.
O que é, no fundo, este estranho romance ?
Uma mulher. A mulher do romantismo, entenda se,
um feixe de nervos aquecidos por um vulcão, a ca-
beça, e guiados por uma estrella, o amor. Hoje os
Goncourts, Zola^ Daudet, Huysmans, Maupassant
46 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
chamar-lhe-iam uma nevrotica, uma hysterica, uma
doente. N'aqaelle tempo dizia se simplesmente a —
mulher — porque toda a mulher era assim.
Glorificada pela edade-media na castellã que os
trovadores e os cavalleiros celebravam sacrifican-
do se até á loucura, a mulher teví a vertigem da
sua grandeza e, como era natural, arrastou comsi-
go os homens. Foi o romantismo isso. Tudo era
pela mulher n'esse tempo, como hoje tudo é pelo
dinheiro.. . até a própria mulher. Ao romantismo
succedeu o capitalismo. Sonhava-se então com
uma aventura, como hoje se sonha com um syndi-
cato.
A heroina da Croix de Berny, amada pelo prín-
cipe de Monbert (Méry), não acha n'esse amor ele-
gantemente aristocrático a realisação do seu ideal
romântico. Precisa correr os perigos de uma pai-
xão cheia de mysterios e aventuras. O que lhe tenta
a phantasia não é o amor calmo de um príncipe,
que a ama como quem é. mas a resolução de um
enygma, que avista da janella da sua antiga mansarda
de Pariz, onde habitou emquanto foi pobre. O que ella
ama não é precisamente um homem, mas uma luz,
sim, uma luz, que todas as noites, quando vivia na
miséria, via brilhar n'uma trapeira visinha. Ora
essa luz allumiava o quarto de um aventuroso rapaz,
um D. Quixote parisiense, que, entre muitas heroi-
cldades, praticara a de se reduzir voluntariamente á
pobreza para valer á desgraça de um amigo. E' o
conde de Villiers, isto é, Júlio Sandeau Ambos po-
bres, ella e elle, essa luz, para ambos mysteriosa^
é o traço de união que prende as suas almas.
NINHO DE GUINCHO 47
Fugindo ao amor do príncipe, como a uma pai-
sagem que á força de ser serena se torna monóto-
na, j.réne de Ghateaudun disfarça-se em operaria,
interna-se na provir-cia, e ahi encontra um terceiro
amor em Edgard de Meilhan (Gautier), que, louca-
mente apaixonado, chega a abandonar o seu outVora
tranquillo castello de família.
Acontece, porém, que são amigos os trez perso-
nagens masculinos do romance e que uns aos ou-
tros contam as peripécias da sua paixão pela mes-
ma mulher, que com nomes suppostos os deso-
riente. E' finalmente o conde de Víllíers, a quem o
amigo pagou tudo o que lhe devia, que consegue
desposai a, mas o príncipe de Monbert e Edgard
de Meilhan, vindo a reconhecer a identidade de
Irene de Chaleaudun, julgam-se ambos atraiçoados
pelo conde de Villiers, desafiam-n'o, e Edgard de
Meilhan mata-o em duello. Irene, fulminada pela
morte do seu noivo, morre de desgosto.
Tal é, muito em esboço, o enredo d'esta novella
cheia de imaginação e de imprevisto, ás vezes for-
çadamente romanesca, em que as maiores excen-
tricidades se acumulam e baralham, chegando ma-
dame Emile de Girardin a vestir phantasticamente
de turco Edgard Meilhan, certamente para líson-
gear Gautier, que encarnava aquelle personagem,
c que, como se sabe, adorava Constantinopla.
E' á índia, sua predilecta, que Méry vae buscar
muitas vezes, n^este romance, como em tantos ou-
tros, comparações brilhantes de pittoresco, como
quando descreve o ciúme dos tigres nos palmares.
Julio Sandeau foi dos quatro o que menos colla-
48 COLLECÇÃO ANTÓNIO MA.RIA. PEREIRA.
borou, mas, em compensação, quão vivo e imagi-
noso é todo o IV capitulo escripto por elJe^ quão
palpitante de humorismo o quadro em que salva de
um mcendio lady Penock, uma figura secundaria,
mas comicamente accentuaJa^ quão dramática a si-
tuação do sacnficio a que se condemnou o conde de
Villics em proveito do seu amigo Frederico!
Madame Emile de Girardin vence triumphalmen-
te a grande responsabilidade do seu papel de pro-
togonista E'ella que está sempre em scena e é ella
que, para assslm dizer, nortea a coUaboração dos
outros, dando lhes a deixa, como se diz no theatro,
proporcionando lhes o molipo qee clles a bel-prazer
variarão nos capítulos seguintes.
E por mais caprichosas c peregrinas que sejam
as variações de Gautier, de Méry e de Sandeauy
elld, sempre com a mesma firmeza de pulso, apa-
nha no ar as espheras de crystal com que elles se
entretiveram a fazer jogos malabares.
Ha varias traducções portuguezas da Dama das
camélias, está traduzida, em edição de luxo, a Vida
de um j^apai pobre, não posso explicar portanto o
facto de não ter sido nunca vertida para a nossa
lingua a Cru-^ de Berny, que se pode considerar a
torre Eiííel do romantismo, e que daria occasião a
que quatro escriptores portuguezes se medissem em
duello litterario com as sombras gloriosas de outros
tantos escriptores francezes. Uma tal traducção se-
ria duplamente interessante.
Meu caro Dom Gastão, ia a dizer meu caro. . .
(o seu nome, o seu verdadeiro nome) foi por con-
selho seu que eu li a Crui de Berny\ é pois em sua
NINHO DE GUINCHO
49
honra que eu escrevo esta carta e escreverei por
ventura outras, procurando sempre um assumpto
nas recordações saudosas do romantismo, de que
Você é ainda hoje um representante impenitente.
1891 — Setembro.
VII
ANDAR A FLAINO
(Carta a Cândido de Figueiredo)
Meu caro Cândido de Figueiredo :
Reli agora com muito praser, e algum aproveita-
mento, os seus artigos sobre lingua portugueza,
coordenados em livro e em segunda edição.
Você sabe que eu me dou á leitura d'estas coisas,
a que muitos chamam desdenhosamente bagaíellas,
e que o faço desde o tempo em que Camillo Cas-
tello Branco me emprestava os seus clássicos, para
que os eu estudasse.
O seu livro agradou-me principalmente como pro-
testo contra esta onda, sempre crescente, de inno-
vadores estrambóticos, galliciparlas epilépticos, que,
principalmente nos últimos annos, teem posto a po-
bre lingua portugueza pelas ruas da amargura. An-
da de rastos a pobre lingua, a pontapés de mau sen-
so e peior educação litteraria. Helds ! (como agora
^á se escreve á franceza) que miséria e que estrago!
NINHO DE GUINCHO 5l
Eu, meu caro Cândido, sou, pelo que toca á lín-
gua portugueza, e outras coisas egualmente portu-
guczas, um conservador moderado.
Explicarei.
Acho que a língua deve encostar se tanto quanto
possivel á auctoridade da sua origem, e conservar
os seus brasões de família, como qualquer homem,
não sendo engeitado, conserva os appellidos de seus
pães.
Mas não sou um intolerante em face da natural
evolução de todos os organismos vivos. Uma lingua
está sujeita a modificações que o tempo acarreta
inevitavelmente, porque o tempo traz factos novos,
de qualquer. ordem que sejam, a que necessaria-
mente hão de corresponder palavras novas.
D'ellas, umas são nacionalisadas pelo uzo, e até
pela necessidade de adopção, visto não possuirmos
termo equivalente. Outras são auctorisadas pela
marca da fabrica com que nasceram, como alguns
neologismos inventados por Castilho e Camillo.
Não pretendo que se escreva hoje como escre-
via frei Luiz de Sousa, mas não consinto que se
enxote brutalmente frei Luiz de Sousa, pelo facto
d'elle ter sabido e escripto a sua lingua a primor.
E' certo que nenhum de nós anda agora vestido
de casaca, calção e rabicho como n'outro tempo,
mas d'ahi até abandonarmos o mais opulento recheio
da nossa lingua para cosinharmos uma indigesta mi-
xordia de barbarismos acirrantes, vae uma grande
diíferença.
Pois o que se vê é isto, a mixordia manipu-
lada com uma extrangeirice petulante, que cobre
52 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
de escarros e salpica de lama a lingua portugueza.
Pelo que respeita á «>yntaxe, que é o principal
ponto de vista do seu excelleme livro, o que ahi se
vê, bem claramente visto, é que se faz gala de des-
presar uma coisa que se tem aperfeiçoado succes-
sivamente desde o tempo de Fernão de Oliveira, e
que por isso já é antiga : a g'"ammatica portugueza.
Não se trata de siiber se tal locução é conforme
ao génio da lingua ou pelo menos á razão, isto é,
se pelo menos faz sentido, logicamente; não se tra-
ta de saber como em identidade de circumstancias
os bons mestres resolveram o caso e cortaram a
difficuldadfr; finalmente, não se investida se no the-
souro escripto dos diccionarios ou no thesouro oral
do povo seria possível encontrar uma locução na-
cional equivalente ao estrangeirismo que se filou
pelo gasnete n'um romance francez.
Mas isto pôde ser escrever; não é porém a'te de
escrever, ou, se quizerem, escrever com arte.
E' encher papel como se enchem chouriços: en-
sacar phrases dentro de phrase<, para escrever e
andar, como os cães de Nillo, que vão andando e
bebendo.
Admitto, e a consciência me diz qne o tenho feito
algumas vezes, que de longe a longe, por necessi-
dade ou ainda por variedade, se aproveite uma pa-
lavra extranha E', deixe me assim dizer, um eff-ito
de luz que o pintor parcimoniosamente procura. Mas
recuso em absoluto o sj^stema, que hoje vae sendo
contagioso, de prescindir do portuguez para. com o
fim de ter evidencia ou de acobertar a ignorância, ir
acintosamente de encontro a todas os boas normas
NINHO DE GUINCHO 53
e a toda a disciplina grammatical da nossa lingua.
Se ibto pudesse ser assim, o melhor que tinha-
mos a fazer era fechar a porta e liquidar, porque a
lingua é seguramente um dos elementos constituti-
vos da nacionalidade, e então era certo que estáva-
mos a deixar de ser poriuguezes.
Você, meu caro Cândido de Figueiredo, protesta
contra a enxurrada, erguendo na mão os melhores
diccionanos e a obra dos mestres egualmente au-
ctorisada como exemplar na pureza do dizer.
Eu quizcra também que Você de quando em quan-
do fizesse emergir á luz da publicidade os bons lu-
sitanismos, que andam perdidos na linguagem das
províncias, onde a nacionalidade dos costumes é
mais int«.nsa e que vantajosamente podem supprir
algumas frandulagens de contrabando.
Ahi vae um exemplo.
A pag. 209 do seu livro, diz, Você, com indiscuti-
vel verdade, que Jlanear ou /lanar não existe em
portuguez.
E' mais uma invenção dos francelhos, que nem
sequer gripham o vocabulc, quando o empregam,
obstando assim a que os incautos e inexperientes
façam reparo na procedência do termo, e se acau-
telem.
Mas, meu caro amigo, st Jlanear oujlanar é galli-
ci-mo cncruado, andar a Jlaino ou talvez y/a/nar
auctorisa-se com o uso da linguagem popular falla-
da na nossa província da Extremadura.
A primeira vez que eu ouvi dizer andar a flaino,
jusamcnte na accepçâo do flaner francez, foi em
Setúbal.
54 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Tinha-me sentado n'um banco do Passeio do
Bomfim, ao lado de um velhD pescador, que, co-
mo eu, gosava a viração suave do fim de uma tar-
de de verão.
Chegou-se ao pé de mim, a pedir me esmola, um
rapasito maltrapido, de olhos ladinos e rosto tri-
gueiro. Dei-lhe dez réis — era ainda o tempo do di-
nheiro— e o velho pescador, logo que o rapaz se
afiastou, dirigiu-me a palavra para commentar pou-
co favoravelmente o meu acto:
— Mal empregada esmola! Este rapaz é um va-
dio, que anda a flaino, envergonhando as barbas do
pae.
Fez-me impressão o andar a flaino, que, depois
de interrogado o pescador, achei ser corresponden-
te ao flaner francez, isto é, andar de um lado para
outro sem fazer nada
Paguei a dupla lição ao pescador, com quanto elle
só tivesse em vista ensinar-me uma coisa : que era
mais necessitado que o rapaz.
Propuz-me logo a tarefa de procurar nas obras
de Bocage a locução — andar a flaino. Com traba-
lho e paciência tudo se consegue. Encontrei-a no
soneto intitulado Furta cores:
Quando has de consentir, cruel fortuna,
Ao magro, de olho azul, de côr morena,
O bem de andar a flaino., e dá ir á tuna í
Ora é verdade que José Feliciano de Castilho
suspeita que este soneto não é de Bocage, entre ou-
tras razões pelo emprego da expressão íz;z<afar a flai-
no, que o douto critico de algum modo censura
NINHO DE GUINCHO 55
com esta pergunta : será o anti-bocagiano gallicismo
flaner?
Mas é justamente por causa do andar a flaino
que eu attribuo a Bocage este soneto.
E' expressão da sua terra, que elle ouviria mui-
tas vezes em pequeno, e que relembraria com a
mesma desvanecida saudade com que o grande Ca-
millo empregava as expressões da província de Traz-
os-Montes, nobilitando-as litterariamente com esta
e quejandas notas: «Eu leio muito pelo diccionario
inédito do povo d'aquellas províncias, que sabe a
lingua portugueza como frei Luiz de Sousa (O bem
e o mal, cap. III.)
E já que tornei a fallar em Camillo, recordarei a
Você que elle também empregou a palavra //<2mo vi-
sivelmente no mesmo sentido de Bocage e do pes-
cador de Setúbal :
«Manuel Vieira não applaudia nem censurava as
bandarrices eo//^/';zo aparalvilhado do seucollega.»
(Demónio do ouro, i.** vol., pag. 75.)
Vem isto, e podiam vir ainda outras cousas por
suggestão do seu livro, para dizer que nós remenda-
mos a lingua portugueza por irritante ignorância
do que temos de portas a dentro. Lemos só fran-
cezes,e não ouvimos portuguezes, os instruídos e o
povo, que também tem a sua linguagem secular não
menos nacional por ser humilde.
Em boa hora venha o seu protesto, porque pôde
servir de exemplo. Felicito-o, porque elle significa
que Você ama a sua terra, e o que é propriedade
d'ella por direito de inventario. Mas lastimal-o hei
se continuar a querer convencer os impenitentes,
56 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
que o são por systema, filho de uma commodidade
muito aprasivel á ignorância. Deixe os em paz e vá
andando; aprenda como tem feito até hoje, para en-
sinar depois. Não veja nomes nem homens, queéa
minha philosophia; salte por cima de vaidades e de
conflictos, para honrar a necessidade de trabalhar
com alguma cousa que seja mais prestadia do que
responder bem aos que nos querem mal. Olhe que
já lá disse Gil Vicente :
Que vanas conversaciones
No traen ningum provecho.
1891 — ^Novembro.
VIII
IMPARCIALIDADE POLITICA
DE SANTO ANTÓNIO
Os partidos políticos — no tempo em que a po-
litica não era um tarranjo» de occasião, mas um
sacrifício sincero e per vezes heróico — punham a
sua fé na protecção dos santos mais abalisados em
cotação milagrosa.
Durante as ardentes pugnas entre constitucionaes
e absolutistas, durante o cerco do Porto, os migue-
listas contavam com o S. João do Bomfim, os ema-
lhados» com o S. João da Lapa, e os primeiros re-
publicanos portuenses, porque já n"esse tempo os
havia, como conta Garrett, confiavam no S. João
de Cedofeita.
Ora Santo António, santo de casa, o mais popu-
lar entre portuguezes, por ser também pcrtuguez,
nío podia deixar de inspirar a devoção dos partidos
iniluantes. E mililanles eram em verdade, porque
pugnavam com as armas na mão. Aquillo então era
a valer; hoje é a fingir.
Libcraes e miguelistas se apegavam com Santo
58 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
António. Uns e outros o traziam nas palminhas: —
Meu Santo Antoninho onde te porei ?
Mas o santo, sendo portuguez, não queria favo-
recer abertamente uns patrícios contra os outros.
Comtudo não lha parecia bem conservar-se absolu-
tamente neutral, indiíferente, visto que se tratava
de uma questão de família, e elle era da familia.
Então, como homem intelligente e illustrado que
tinha sido, resolveu fazer favor para a direita e fa-
vor para a esquerda, de modo que ninguém pudesse
queixar-se de que um santo portuguez se fizesse
surdo a clamores de portuguezes.
Os realistas contavam com elle. Os frades, prin-
cipalmente, invocavam-n'o como um, protector par-
cial. Enganavam-se. Santo António não era por uns
nem por outros. Era por todos, porque uns e outros
eram portuguezes, e elle também.
Na sua cegueira partidária, os miguelistas iam até
ao ponto de propalar que Santo António algumas
vezes fallára em favor d'elles.
Ahi vai um exemplo.
A Chronica Constitucional do Porto^ no seu nu-
mero de i3 de agosto de i832, dava noticia de que
um piquete do batalhão de caçadores 3 encontrara
no sitio da Ramada Alta sete guerrilhas do exercito
do visconde de Mont' Alegre, que andavam rouban-
do os casaes.
Dos sete aventureiros miguelistas seis foram mor-
tos pelos soldado^ liberaes ; o sétimo fugiu ferido.
Na algibeira de um dos mortos^foi encontrada
esta carta.
«Meu João. Alembro-te que não te esqueças do
NINHO DE GUINCHO 5g
que te disse o sr. Fr. José, que batalhasses em
defesa de nosso Senhor Jesus Christo, de Sua Mâi
Maria Santíssima, e do Sr. Santo António do Con-
vento, que os herejes malhados querem desterrar
de Portugal. Não poupes malhado nenhum, porque
assim o disse o Sr. Santo António á Maria Benta
no dia da Percincla depois da Communhão, e noNo
contou o Sr. Fr. José, que he um Santinho, e me
tem trazido sempre dinheiro para meu sustento e
das crianças. Põe sempre os olhos em Deus e
quando saqueares o Porto traze-me algum cordão
de oiro, um xaile e um vestido de seda, não deixeis
aos malhados uma palha, porque os herejes não
podem possuir nada, e pela heresia, tudo fica sendo
da Igreja que escomungão e do Santo Papa, que
deo Bulia para nós ficarmos com o que lhe tirarmos.
Deus te ajude como te deseja a tua — adeusinho —
Rosa.y
Mas como fosse tardando um milagre decisivo,
abnram-se pouco a pouco os olhos aos miguelistas.
Perceberam que Santo António não se queria com-
prometter, antes viver bem com todos. Descobriram
a táctica do thaumaturgo, e diziam então, por ironia,
aos malhados que se não fiassem muito no santo,
porque lhes não valeria tanto que os livrasse -de
uma grande sova.
Também exemplificarei este caso, soccorrendo-
me ainda á Chromca Constitucional do Porto, de 19
de setembro de i832.
Transcrevo textualmente :
«Certa Lésbia portuense, que sempre foi exaltada
liberal, mas que, na nossa ausência, se afleiçoou
6o COLLECÇÂO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
(por não perder tempo) d'um Alferes de voluntários
realistas, recebeu ha dias uma carta do seu amante.
O bravo voluntário, que parece ser uma das boas
columnas do altar e do throno, depois de rasgar
muita baeta e de encarecer as penas que tem cor.
tido pela ausência do seu mais que tudo, remata
assim: «Sou de parecer que por todos os modos
possíveis te evadas da cidade, porque de duas uma:
ou nós não podemos entrar no Porto, e nesse caso
não fica pedra sobre pedra, pois que a nossa arti-
Iheria ha de fazer o seu dever; ou entramos depois
d'uma refrega violenta, e então o saque é de jé^ e
os excessos hão de ser inevitáveis. Km ultimo caso,
peço-te que fujas do sitio por onde nós entrarmos,
pnrque aos primeiros que se nos apresentarem nem
Santo António é capaz de valer.»
«Temos por certo que nenhum dos membros
d'este argumento bicorne chegará a realisar-se.
Vej i se entretanto quaes são as intenções de tal
gente. Sangue, roubos, saques, abominações — eis
o que entretém a imaginação da canalha miguelista.
Mas em a tropa e os guerrilhas se convencendo de
que não pode haver saque, porque as trincheiras
não se levam assim ás mão? lavadas, e de que as
bombas não produzem estragos nem atemorisam
ninguém, adeus Viscondes, adeus Gipitães-mores,
adeus frades! ! ! Levam tamanha sova que nem Santo
António é capa\ de lhes valer.»
Kstavam as coisas n'este pé, quando uma esper-
talhona de Guimarães, absolutista até á raiz dos
cabellos, se lembrou de pôr em che jue Santo An-
tónio obrigando-o a «manifestar-se.»
NINHO DE GUINCHO 6l
E' ainda a Chronica Constitucional (Je 24 de se-
tembro de 1832) que nos vae historiar o caso:
«Kis aqui uma anecdota que mostra, a um tempo,
como tcem procurado e consei^^uido illudir os povos;
e quaes são os sentimentos religiosos que desgra-
çadamente lhes teem inspindo. ,
aCorreu eri Guimarães que o exercito mijjueiista
entra /a no Porto no dia 24 de agosto. A mulíier
do preg eiró d'3quella villa (péssima mu her, com
presumpção de beata), moradora á Torre dus Cães,
começou a dizer em o dia 23 a toda a vi.>inhmça
«que na sexta feira 24 se ia arrazar e queimar a
cidade do Porto, e todos os malhados : e que ella
havia de ouvir no mesmo dia a missa das almas,
para que ellas ajudassem Gaspar Teixeira e sua
divisão a queimar tudo.» — Com effeito na sexta
f^ira de madrugada, a boa mulher accendou uma
vella a Santo António, e partiu para a missa...»
A beata da Torre dos Cães era esperta, mas
Santo António ainda o foi mais, o que aliás não
admira.
Apertado entre a espada e a parede, Santo An-
tónio desentalou-se habilmente.
Sabem o que aconteceu ?
Referindo se á solerte vimaranense, continu'a a
Chronica :
d. .passado pouco tempo vão os visinhos cha-
nnal-a para acudir ao fogo em sua casa; e como ali
não tocam os sinos a fogo, ardeu lhe tudo, sem poder
salvar um só traste.»
A lição foi mestra. A beata queria incendiado
o Porto com o auxilio de Santo António ; e o incen-
02 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
dio lavrou mas foi na sua própria casa. Toma ! Bem
feito 1
Pena tem a gente, ás vezes, de não ser santo...
para castigar assim.
1895— Maio.
IX
CHRYSÁNTHEMOS
O chrysánthemo, continuando na sua marcha de
triumpho, foi agora receber as homenagens dos
portuenses, em plena glorificação no Palácio de
Christal.
Parece uma celebridade que faz a sua tournée^
como Sarah Bernhardt, como Novelli, arrancando
appiausos, conquistando ovações.
E' um potentado do Oriente, um príncipe do Ja-
pão, ás vezes vestido de oiro, como na Boule d'orj
outras vezes flammejado de purpura, como na Aida,
suas bellas variedades; adorado pela Imperatri'{
Primavera^ biographado por Loti, um académico
de França, é a flor da moda na Europa elegante,
admirada pelas mulheres, cantada pelos jornaes.
E, comtudo, este maravilhoso príncipe do Orien-
te tem em Portugal umas obscuras primas, burgue-
zas e modestas, que vivem nos quartos andares em
vasos de barro e que apparecem nos passeios pu-
blicos misturadas com a charra hortênsia, a flor
patarata de todos os arraiaes saloios.
64 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
São as meninas Despedidas de verão, que, com o
seu vestidinho de chila bdrata, e os seus brincos
falsos, nem sequer ousam ir cumprimentar o ma-
gestoso parente, que certamente as não quereria
reconhecer.
Em Lisboa deu-se o c;iso notável de esrar o
chrysánihemo do Japão sumptuosamente hospedado
no palácio da Escola Polytechnica, e das meninas
Despedidas de verão, suas primas, não passarem do
Jardim do Príncipe Real, onde eu próprio as vi
n'um canteiro a contarem o numero de trens que
passavam para o beija mão do seu augusto parente.
Ha destmos bem differentes dentro da mesma
arvore genealógica!
Ao passo que as Despedidas de verão, anemicas,
palhdas, rachiiicas, parece terem na^cido fadadas
para viver n'uma trapeira ou n um caixote de pinho,
o chrysánthemo do Jdpão, magestoso e ferie, bel-
lamente colorido, altivo e brilhante, veio ao mundo
para ser admirado e para cingir uma coroa, a coroa
do outomno, como diz Alphonse Karr, o cortezão
das flores.
Mas não pára decerto aqui a alta predestinação
do chrysánthemo, que, florindo no fim do estio,
como que estava reservado para ser a flor symbo-
lica de todos os amores tardios, que luctam entre o
fogo de uma primavera extincta e o gelo de um in-
verno próximo.
Aqui está talvez a razão por que o chrysánthemo
encontrou tão rapidamente uma acceitaçao univer-
sal, no Levante e no Ponente, na Ásia e na Euro-
pa, proclamandose rival da encantadora rosa, que
NINHO DE GUINCHO 63
é a flor da primavera, a divisa dos novos, o sym-
bolo dos corações ricos de seiva e palpitantes de
sangue vigoroso.
Dividindo entre si o império do amor, o chrysán-
tiiemo e a rosa ficaram symbolisando toda a am-
pla historia do coração humano, representando a
profunda psychologia das almas deliciosamente
atormentadas pela tempestade de uma paixão ar-
dente.
A rosa, posta sobre o peito dos novos, canta um
hymno de esperança, parece brotar d'entre cham-
mas, como se florisse na cratera de um vulcão em
actividade.
O chrysánthemo, enflorando a boulonnière dos
velhos, nasce de cinzas quentes, que soluçam a doce
melodia da vaga ao expirar amorosa sobre a areia
loira.
A rosa perfuma os cânticos dos jovens poetas
com a fina essência capitosa, que parece ter sido
destinada para as estrophes e para os lenços, por
igual rendilhados.
Aqui tenho eu, deante de mim, o livro de um no-
vo, o Livro da minha alma^ de Luiz Guimarães
Júnior, o successor de uma lyra de ouro; e o aroma
que se exhala d'essas paginas em flor, cheias de
mocidade e de fé, é o aroma vivo, penetrante da
rosa, que desabrocha em abril.
Do altar do Amor já muito pouco disto.
Vejo na aurora que a neblina. encobre,
A doce amada que entre os céus avisto.
Qual Circe linda a cujo olhar me dobre.
66 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
E é esse o premio que a sorrir conquisto. . .
Gosto da Infância, tenho amor ao pobre,
Mas faço ainda este pedido nobre.
Oh ! meu sublime e incomprehenvlido Ghristo !
Se cila soltar esta innocente queixa :
Qijc eu não a adoro e que a não amo... oh ! deixa
Sentir-lhe a voz de beijos sufTocados,
E nos seus olho> a brilhar incertos
Ltr o que dizem quando estão abertos,
Ler o que pensam quando estão fechados.
E' a rosa do amor a florir e a cantar em plena
primavera da vida sobre a batina de um estudante
de Coimbra, em cuja bocca um ligeiro buço de
adolescente não póJe encobrir sorrisos de felicidade,
nem abafar hymnos de esperança.
Mas ainda ha poucas horas encontrei, no polo
opposto, o chrysánthemo do outomno, vicejando
sobre os destroços de uma primavera longínqua,
bello ainda no colorido da expressão, mas privado
do aroma que perfuma a corolla, o pequenino bou-
doir da rosa primaveril.
E' outro poeta que falia, mas triste e solitário,
carpindose de que já vá tão adcantada para elle a
estação invernosa, que até as creanças, as rosas do
jardim da infância, a mão da Fatalidade lhe desfolha,
para deixar apenas de pé o chrysánthemo, que nas-
ce tarde, na gleba esfriada pelo gelo.
E' Bulhão Pato que, no Monte de Caparica, chora
NINHO DE GUINCHO 67
a perda de uma creança querida, que todos os dias
costumava ir cantar debaixo da sua janella uma
niandolinata feita de gorgeios matutinos.
Parece que os versos do pjeta passam através
de um chrysánthemo de oiro, como a BoiíU d'orf
mas frio^ porque o inverno próximo o arrefece, c
desprovido d'esse gasto aroma, que subiu alto, e se
dispersou no azul, talvez perto das estrellas.
Não vás para a valia escura;
Vem para o meu coração ;
Vem, que n'esta sepultura
De tantos sonhos passados,
Inda os mortes adorados
Vivem da minha paixão !
Vivem da minha paixão, dos tempos idos em que
a Paquilã nascia, vivem em novembro como o
chrysánthemo, o chrysánthemo, a coroa do outomno,
a flor symbolica dos amores tardios, que luctam
entre o fogo de uma primavera extincta e o gelo de
um inverno próximo. . .
Quem é que não teve no coração uma rosa, em
abril, na primavera da vida, na estação do sonho
e do idillio, uma rosa de pétalas carminadas, res-
cendente de inebriante perfume?
Mas quem é que não encontrou já tarde, entre
as ruinas do sonho e os destroços do idillij, um
chrysánthemo outomniço, o ultimo sorriso da vida
desenhado no corolla de uma íljr retardatária?
Pierre Loti deu o titulo de Madame Chrysanlhème
a um dos seus livros.
68,> COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Madame, está certo. Nem podia ser de outro .
modo. • ' OKícdnb 'tt/v .rr^^jl^^'^
A' rosa cabe, porem ^6 tratamento de madenioi-^ ,
selle, porque nenhuma: outra flor traduz m.elhor do
que à rosa a alegria, a graça, a frescura da mocin v
dadé^ ^- - ■ ■■ ■ ■ - ra. ;
Madame Chrysanthcme, sim, porque também '
nenhuma outra flor traduz melhor do que ;oxhry^;j
sánthemo o sonho de uma sesta de amor, quando
o sol já vai alto, ,e as. sombras da noite começam a
descer do cimo de montanhas geladas.
Que os novos tenham paciência, e-fiquem espe-
rando pelo regresso da primavera, 'porque aos no-
vos não deve ser penoso esperar, visto que ainda
ha pouco começaí-^m a viver.
Agora, o momento é dos velhos, são elles que
celebram a festa do chrysánthemo com o enthiisias-
mo de quem, chegando ao quinto acto da vida, re-
conhece que as actrizes do seu tempo foram mu-
lheres encantadoras, que ainda '/alem uma ovação.
Vem ahi Sarah Bernhardt, que também decerto
tomará logar no cortejo do chrysánthemo.
Quando ha annos ella esteve em Lisboa, mr. Da-
maia tinha-lhe offerecido uma rosa, que a grande
actriz viu queimar-se no calor do seu próprio cora-
ção.
O que foi feito d'essa flor sêcca, ninguém sabe.
Mr. Damaia partiu, não sei para onde e, ao con- .
trario das andorinhas errantes, não voltou.
Sarah Bernhardt chega de novo a Lisboa, na
época dos chrysántemos, e será essa, provavelmente,
a flor capaz de traduzir o que se pasSsf^io^^^ráfâo
NINHO DE GUINCHO 69
de uma grande artista, onde a paixão resuscita todas
as noites e um polvilho de neve começa a cair leve-
mente, annunciando o inverno da vida.
Pois bem. Enfeixemos um bouquel de chrysán-
themos para depor aos pés de Sarah Bernhardt.
1S95. — Novembro.
CONTRATOS DO COR\CÃO
Apesar de estarmos n'um periodo de penitencia,
a dois passos das Endoenças, o Amor, este eterno
pagão de todos os paizes, não perde pitada.
Ainda ha momentos li eu, n'um jornal do Alem-
tejo, a pequenina historia d'uma galanteria amorosa
implantada em Montemór-o-Novo no domingo de
Ramos.
E' a dos contratos do coração. Sabem ?
Vou transcrevel-a, que são poucas linhas :
FESTA DOS RAMOS
«A'manhã, na egreja Matriz, realisa-se esta tradicional
festa, dedicada aos novos
oN'este dia, á entrega do ramo bento, são firmados os cha-
mados contratos do coração.
«Quantas alegrias e felicidades se disfructa-n pelo fiel
cumprimento d'essas escripturas ?.. .
«£ quantas desillusões e misérias?...
«Mas... são costumes.»
NINHO DE GUINOÍO 7I
Naturalmente a troca de ramos estabelece entre
um rapaz e uma rapariga um contrato de escravi-
dão amorosa.
Foi o ramo oíferecido e acceito? Pois bem! o
contrato fica lavrado: devemo-nos reciproca lealda-
de-, seremos fieis um ao outro — palavras tabelliôas
dos contratos de amor.
Mas ás vezes, como acontece em muitos outros
contratos, não é respeitada a escriptura, c o peior
é que, no amor, o lesado nem sequer pode voltar-se
para a Boa Hora, aggravar para a Relação, recor-
rer para o Su{ ren:o.
Se apitar, não lhe acudirá ninguém, nem a poli-
cia, nem a guarda municipal, ningue n.
Por isso figuraram talvez es amigos o anror n'um
menino alado.
Como a creança, tem caprichos indomáveis, e
quando bate as azas não ha meio de lhe deitar a mão.
A este respeito sinto me tentado a contar-lhes um
caso tão authentico como o diluvio universal e a
guerra de Troya.
Era uma vez uma actriz.
Ghamava-se Leontina.
Não seria este o nome que lhe puzeram ná pia
do baptismo. Uma collega dizia malevolamente que
o verdadeiro nome d'ella era Engracia de Jesus,
segundo resava a certidão de idade que mandara
tirar por vingança de qualquer conflictosinho de
bastidores. E ^quando íallava a seu respcitç dizia
sempre: a Engracia.
Mas o cartaz, que fallava mais alto, porque fat-
iava para todos, dizia : Leontina.
72 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Engracia ou Lcontina, o que é certo é que ella
nascera mais para Lcontina do que para Engra-
cia.
E foi ella mesma a primeira a reconhece!-o, por-
que lendo uma vez certo romance em voga, e encon-
trando ahi o nome de Leontina, convenceu-se de
que esse nome lhe ficaria tão bem como o ultimo
chapéu que comprara.
No dia seguinte, quando se foi contratar com o
emprísario, poz o chapéu de Pariz na cabeça e o
nom(í de Leontina na escriptura.
Ficou encantadora, porque só um. nome bonito
lhe faltava para o ser completamente.
Leontina lembrava o que quer que fosse de leoa. . .
Ella tinha, effcictivamente, alguma coisa de fera :
despedaçava corações, dilacerava peitos apaixona-
dos, espesinhava illusões e esperanças.
Mas, tal como a leoa amorosa, ás vezes tornava-
se fera mansa, submettia-se, escravisava-se vo-
luntariamente... por pouco tempo.
N'essas occasiões deveria chamar-se antes Colum-
bina.
Accusavam-n'a de leviana. Na sua vida de actriz
tinha sempre dois repertórios : o das peças e o dos
amantes. E estes dois repertórios estavam appen-
sos um ao outro : se mudava de peça, mudava de
amante.
Uma vez appareceu no camarim de Leontina um
rapaz de família ingleza, que lhe fora apresentado
e que* lhe offerecera uma rosa de estimação.
Era tão correcto e pautado de maneiras, que da-
ria á primeira vista a impressão de ser frio.
NINHO DE GUINCHO -]'i
Os seus amigos diziam n'o um vulcão coberto de
gelo, como os da Islândia.
A rosa foi acccita por Leontina com um sorriso:
estava lavrado o contrato, como os dos rapazes e
raparigas da Montemór-o Novo quando em domingo
de Ramos trocam flores na egreja.
E' certo que a actriz apenas sorrira, mas os seus
sorrisos eram rosas. . . caras.
Havia n'csse rapaz, que talvez se chamasse John
como todo o bom inglez, alguma coisa de novidade
para Leontina : o seu caracter primoroso, as suas
maneiras gentis.
Os outros sempre mais ou menos davam pretexto
a que ella se desfizesse d'elles.
Para esses, Leontina encontrava facilmente uma
phrase justificativa :
— O sr. oífendeu-me hontem.
Ou então :
— O sr. não é precisamente o homem que eu
desejava ter encontrado.
Equivalia a um mandado de despejo, que alguns
parecia não quererem comprehender.
Mas Leontina, n'essas occasiões, constituia-se cm
tribunal: sentenciava, e o réo, ainda que estivesse
innocente, tinha que submetter-se.
E não era ella mulher que se incommodasse muito
com as cartas amargas que os despeitados pudes-
sem escrever lhe depois.
Li as, rasgava-as e costumava dizer comsigo mes-
ma n'um tom de profundo desdém :
— Sempre o mesmo estylo ! Hontem, um apai-
xonado; hoje, um lacaio.
74 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
John, entrincheirado na sua galanteria serena,
muito britannica, prendera Leontina por mais tempo
do que seria de esperar.
Era uma novidade na sua vida.
Alguns dias assaltara-a, vagamente", a ideia de
mudar de amor, pois que já tinha mudado de cha-
péu e de peça, quatro ou cinco vezes, sem mudar
de amante.
— Mas este homem não me dá um pretexto! ex-
clamava Leontina, quando se reconhecia bella deante
do espelho.
John chegava, oíferecia-lhe uma flor, pousava-lhe
um beijo na testa, como se se tratasse de uma pri-
meira entrevista.
— Como hei de eu dizer a este homem, pensava
Leontina, que elle já alguma vez não foi bastante
delicado comigo !
Um bello dia, depois de ter comprado um cha-
péu novo, Leontina sentiu mais que nunca a sug-
gestão da novidade.
; — E' do chapéu! disse ella de si para si, descul-
pando-se.
E o chapéu completou a sua obra revolucioniria
convidandoa a m.udar de rumo no amor, sem que
ella tivesse comtudo a coragem de despedir official-
mente a Gran-Bretanha.
John veio a sabel-o. Em vez de recorrer a uma
folha de papel, para despedir-se segundo o estylo
dos outros, enviou lhe uma linda rosa, tão bella
como a primeira que ella acceitára, e enviou lh'a
com um cartão de visita em que escrevera estas
simples palavras :
NINHO DE GUINCHO 'jS
fTenho a honra, Leontina, de lhe offerccer a mi-
nha ultima rosa »
Quando Leontina a recebeu, em vez de desfo-
Ihal-a, como teria rasgado uma carta, foi pôl-a n'uma
pequenina jarra de Sevres, que lhe tinham dado
n'uma noite de beneficio.
A rosa emmurchcceu, seccou, mas ficou ali.
Era como um pequenino cadáver mumificado.
Desde essa época, Leontina adoptou uma nova
phrase para despedir cada amante que começava a
aborrecer-lhe:
— Ah! decididamente, John foi o homem mais
amável que tenho encontrado em toda a minha vida!
Scguia-se, naturalmente, uma scena de ciúme.
E. . . rua.
Uma noite, Leontina, que não entrava na peça,
tinha ido para uma frisa.
.Rodeiavarn-n'a quatro ou cinco dos seus admira-
dores. Conversavam, riam. Ella parecia triste.
Depois do primeiro acto, John entrara na pla-
téa.
Procurou a sua cadeira: ficava próxima á frisa
de Leontina.
John viu a actriz, cumprimentou a gravemente,
sentou se, e nunca mais tornou a volver os olhos
para procurai a.
Leontina mudou de humor: ria por tudo e por
nada. Mostrava-se alegre, jovial, a ponto que um
dos seus companheiros de frisa lhe dissera com aze-
dume:
— Estás hoje nas tuas noites de «bolha», Leon-
tina!
yÕ COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Eila pensou então: . . .
— De «bolha» ! Aquelle homem que ali está não
seria capaz de me dizer isto.
E Leontina continuou a rir, a rir muito, a rir
sempre, por tudo e por nada.
D'ahi a dois dias John recebeu este bilhete de
Leontina:
(lEstou muito doente. Pedia-lhe o favor de vir
vêr-me.»
John não se fez esperar e encontrou Leontina
muito aborrecida, sentada n'uma chaise-longiie, com
trez ou quatro romances postos sobre o guéridoriy
como se todos quizesse ler e nenhum tivesse aberto
ainda.
— Ah! disse elle ao vêl-a. Folgo de que não es-
teja tão doente como decerto imaginou, quando teve
a bondade de me escrever.
— Doente, talvez não, talvez sim. Aborrecida,
muito, isso muito. Sabe que mais?
— Dir-me ha.
— Faz-me falta um bom amigo.
— Pergunte ao seu espelho, Leontina, se essa
phrase podersT ser verdadeira.
— Faz-me falta. .. o senhor.
— Eu!?
— Sim, porque é o homem mais amável que eu
tenho encontrado na minha vida.
— Não seja lisonjeira, Leontina.
N'este momento entrava uma amiga da actriz,
sua collega de outro theatro.
John ergueu-se, estendeu a mão a Leontina e
disse com uma tranquillidade glacial:
NINHO DE GUIMCHO 77
— Desejo immensamcnte a continuação das suas
melhoras, minha bôa Leontina.
Logo que elie voltou costas, a collefra de Leonti-
na, aproximando-sc d'ella, quasi a fallar-lhe ao ou-
vido, perguntou-lhe:
— Então isto reatou-se?
Leontina suspirou, pegou ri'um livro, folheouo
distraidamente, e disse uni momento depois:
— Para os corações leaes o amor é uma coisa
impertineniemente séria! Este homem é tão amá-
vel, que não ousou récordar-me ainda esta verda-
de. Mas é certo que não voltará.
— Tens razão, filha, os homens são tão grossei-
ros, que se não podem aturar 1 O meu fez-me uma
grande scena esta noite.
— Com razão? perguntou Leontina ironicamente.
— Não! nunca !
Leontina ergueu-se da chaise-longue, estendeu os
braços espreguiçando-se, e disse, perfumando a
phrase com um sorriso triste:
— No fim de contas, eu não tenho motivo para
queixar-me. John bateu as azas: é o que eu tenho
feito muitas vezes.
— Com razão? perguntou a outra pagando-se da
ironia.
— Com razão... desde que John me foi apre-
sentado, porque nenhum homem o pôde igualar
ainda em gentileza de maneiras.
Este caso é uma lição, um exemplo, aliás confir-
mado pelo jornalista alemtejano, que pôz estas pa-
lavras no seu jornalsinho:
«tE quantas desillusões e misérias?...
COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
«Mas... são costumes.»
E' que o mundo de Montemor é como o mundo
de toda a parte,
As flores trocadas na egreja em, domingo de Ra-
mos, são contratos que muitas vezes sa rasgam.
Pois bem ! é o que toda a gente tem feito alguma
vez na sua vida : rasgar um contrato.
XI
A BROA
Durante a semana appareceram em alguns jor-
naes epistolas tendentes a recomoaendar o uso do
pão de millio como vantajoso para a alimentação
publica.
Até agora, o sul do reino chamava com certo
desdém broeiros aos habitantes do norte do paiz,
especialmente aos do Porto. A familia de Gamillo
Castello Branco, oriunda de Villa Real de Traz-os-
Montes, recebeu a alcunha de Brocas posta em
Coimbra a Domingos Correia Botelho, e tbem ou
mal derivado, explicou o grande escriptor, o epithe-
to brocas vem de broa.»
Portanto a designação de broeiros, que pretendia
ser ridícula, galgou para além do Porto, e alcançou
todas as provincias septentrionaes onde o uso do
pão de milho está tradicionalmente generalisado.
Mas o que foi que determinou o alvitre dos au-
8o COLLECÇÃO ANTÓNIO MARLV PEREIRA.
ctores d'aquellas epistolas? Toda a gente o sabe.
Foi a insufficiencia do trigo nacional para o consum-
mo publico; o elevado direito de importação esta-
belecido peio governo sobre o trigo extrangeiro ; e
a exorbitância do prémio do oiro com que este tri-
go tem de ser pago nos paizes exportadores.
Então lembrou o recurso. ao pão de milho como
salvatério. E assim como um doente em perigo quer
mudar de travesseiro, para ver se encontra algum
descanço no leito, pretende-se que o paiz mude de
alimentação, para não morrer de fom.e, por não ter
bastante trigo nacional, nem oiro para pagar a im-
portação do trigo extrangeiro.
O sul, clamante e apprehensivo, volta-se para o
norte do paiz e pede que lhe acuda com a sua broa.
Se o alvitre indicado fosse acceito pelos povos do
sul, o que não seria fácil de conseguir, teríamos que
a mudança de alimentação acarretaria uma trans-
formação nos costumes, nas idéas e disposições do
paiz, porque, segundo o testemunho da sciencia, a
alimentação influe nos actos da vida psychica pela
acção directa que exerce nos órgãos essenciaes á
economia animal-
O lisboeta, conhecido no norte do paiz pela desi-
gnação irónica de alfacinha, passaria, se o alvitre,
pudesse ser adoptado, a ser broeiro como o minho-
to, o transmontano e o beirão, e d"'ahi lhe provi-
riam certamente idéas, aptidões e sentimentos dif-
ferentes d'aquelles que téem até hoje constituído a
sua differenciação com os povos do norte do paiz.
Mas o habito forma uma segunda natureza, e
Lisboa, que está habituada ao pão de trigo, não
NINHO DE GUINCHO 8l
acceitará facilmente o uso da broa de milho, com
que não foi educada, a não ser que lhe seja impos-
ta, n'um caso extremo, pela força da legislação co-
mo o caldo negro aos hahitantes de Sparta.
E' certo que entre as familias gradas das provín-
cias septentrionaes, o moUéte^ pão molle, como lá
chamam ao pão de trigo, já ganhou terreno, sup-
piantando quasi a broa, mas o povo dessas pro-
víncias contmiía a alimentar- se de pão de milho, e
so n'um dia de festa se permitte, como gulodice,
cravar o dente no «pão alvo», outra designação
vulgar do molléte.
Já no século XVÍ era tão raro o ccnsummo do
pão de trigo no Alto Minho, que o foral dado por
D. Manuel á villa de Monção não o considerava
uma fonte de receita para o cofre do concelho ;, —
por isso de cada fornada de pão bregado (talvez
rala) e de callo (mistura) que se vendesse na pra-
ça, mandava cobrar um real ; «porque de pam mol-
léte não pagarão nada.» A base do consummo do
pão era, pois, o milho, e por isso sobre elie incidia
o respectivo imposto de real por cada fornada.
Alimentado pela broa, o homem do povo no norte
do paiz, cavador ou artifice, differe profundamente
nos costumes e sentimentos do maltez ou do oJDe-
rario das províncias meridionaes.
E' forte, resistente, valoroso, e tão softreaor que
não exige ter broa fresca para a sua alimentação
quotidiana. Ordinariamente os operários de cons-
trucção, no Porto, voltam de casa na segunda fei-
ra, de madrugada, e trazem dentro de um sacco a
broa que hão de comer durante toda a semana. Da
82 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
taberna apenas gastam a sardinha assada e o caldo
verde. Nos últimos dias da semana o pão está sec-
CO, mas assim mesmo o comem. E quando reco-
lhem a casa, no sabbado ao anoitecer, vão encon-
trar a mulher p-^eparando a nova fornada de que
elles se hão de alimentar na semana seguinte.
Tudo vae bem para o trabalhador do norte em-
qunto o milho não encarece. Quando este facto se
dá, a fome ameaça-o, e o motim popular não tar-
da. Assim aconteceu no Porto, ahi por i86õ, quan-
do a carestia dos cereaes alvoroçou o povo, que
largou a cantar em grande algazarra:
Viva D. Pedro V !
Vinho a pataco e milho a pinto !
Que tempos aqueiles!
O povo, ameaçado de perto pela fone, e temen-
do-a, revoltava-se, mas, na revolta, dava vivas ao
rei. Hoje, o diccionario do povo não tem palavras
amáveis para exprimir a indignação e a ironia
E' certo que o trigo, rico em glúten, possue pro-
priedades alimentícias superiores ao milho, mas não
padece duvida que o trabalhador do norte do paiz,
que só do pão de milho se alimenta, é sadio e ro-
busto, seja pelas condições da sua própria existên-
cia ou por selecção de raça, ao passo que o traba-
lhador do sul, alimentado a trigo, se fizermos ex-
cepção do cartaxeiro, que é um typo á^ robustez e
actividade, lhe fica muito inferior em faculdades de
trabalho.
A alimentação dura e parca enrigece o caracter,
NINHO DE GUINCHO 83
torna o homem forte para resistir ás tentações dis-
pendiosas. O trabalhador do Douro e do Minho não
applica as suas economias senão ao ouro, porque
ouro é o que ouro vale. Não compra fundos por-
tuguezes, porque mudam de coração. E" pratico. Se
precisa vender o cordão ou as arrecadas de ouro,
que são da mulher, apenas perderá o feitio i o
peso não varia como as cotações dos fundos. Não
v.-íi ao theatro, a não ser de graça, quando os ret-
:{en'OS representam autos pelo Natal para se diverti-
rem uns aos outros
Que o pão de milho, por isso mesmo que possue
matérias gordas, satisfaz plenamente ás necessida-
des da alimentação, prova-o á evidencia- o povo do
norte, que d'eile se nutre, e de pouco mais.
So na doença é que os lavradores e os operários
d'aquella região comem molléte, aconselhado pelo
medico, por ser de mais fácil digestão. Logo que a
saúde volta, volta com ella o regime da broa.
Pode affoitamente dizer-se que todos os homens
notáveis das províncias do norte já hoje mortos ou
velhos, foram educados na alimentação da broa.
Passos Manuel, filno de um lavrador de Bouças,
não comeu na infância outro pão. fcl na sua legisla-
ção ha o que quer que seia de fone e salutar cohno
o pão de milho. Na litteratura, Camillo, que foi
educado em Traz-os-Montes e viveu no Minho,
Arnaldo Gam.a, que residiu sempre no Porto, são
dois exemplares magníficos de que o estylo é o pão
que se come Camillo, se se lhe toma o verdadeiro
sabor, nem é o pão francez, nem o pão de Mele-
cas, nem o moUéte nacional ; é o miolo da broa
84 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
aperfeiçoado n'uma cosedura habii, e cosido n'um
forno bem quente ; Arnaldo Gama é a broa enco-
deada, mais dura, mas saborosa e nutriíiva.
Herculano, com ser alfacinha, nada e creado em
Lisboa, parece na rigesa do estylo e na solidez dos
conceitos um escriptor educado a broa Isto tem
explicação. Elle viveu alguns annos no Porto, onde
foi bibiiothecario, além de ter comido o pão negro
do Cerco desde i832 a i833.
Se me fornecerem prosa de trez escriptores do
Porto e de trez escriptores de Lisboa, occultando
os nomes dos auctores, aposto que vou dizer sem
hesitação onde é que está o trigo (ainda que o trigo
tenha joio. • o que frequentemente acontece por cá)
e onde é que está o milho, quaes escriptores são de
Lisboa e quaes do Porto.
Pelo que respeita aos poetas, parece-me poder
asseverar que no Firmamento de Soares de Passos
SG reconhece á primeira vista a farinha do milho
que alimentou o poeta. Junqueiro, na satyr-a poli-
tica, é um broeiro escodeando as instituições para
as mastigar melhor. Nos epigrammas e ironias de
Tolentino ha um «palhinha» de dicção só compatí-
vel com a digestão branda do pão trigo em torra-
das. A satyra do Juvenal lisboeta agrada ao pala-
dar, mas derrete-se como a manteiga E Garrett ?
perguntar-me-hão. Garrett era portuense, e quando
comeu a broa dura no quartel dos Grillos, fez o
Arco de SanVAnyia; quando digeria o pão alvo de
Lisboa, escreveu as Viagens na minha terra.
Ahi fica a resposta, sem cercear a nenhuma d'es-
tas duas obras o seu valor real.
NINHO DE GUINCHO 85
A fabricação da b7'ôa no Porro exige um pessoal
sadio e robusto, alimentado por ella. São as cam-
ponezas de Crestuma e Avintes que a padejam,
passando noites inteiras ao calor do forno em cham-
mas ; foram ellas mesmas que fizeram a amassa-
dura ; foram ellas, também, que conduziram, atra-
vés dos montes, o milho ao moinho*, são ainda ellas
que remando os seus bircos, com uma esbelta so-
lidez de movimentos, vão levar a broa ao mercado
na cidade.
Em Lisboa, as machinas de moagem farinam o
trigo, que vai ser descarregado á porta do padeiro.
Mas para amassar a farinha e forneal-a. para o tra-
balho mais duro de toda a panificação, são chama-
dos os beirões, os transmontanos, os minhotos, ra-
pazes fortes como sovereiros, tão fortes e alegres,
que depois do trabalho se divertem pulando com
uma viola na mão.
Ora os alvitres propostos parecem-me illusorios,
porque os hábitos adquiridos pelo corpo tornam-se
ainda mais tenazes que os do espirito. Seria tão
difficil habituar Lisboa a comer a broa de milho,
como acostumar o Porto a almoçar fava-rica ou
burrié, Succede até que o minhoto, se durante al-
guns annos deixou de alimentar-se a pão de milho,
já não consegue voltar a essa alimentação. Os bra-
:{ileiros do Minho, que foram creados com a broa,
rejeitam-n'a quando regressam á pátria. E' um^ fa-
cto todos os dias presenciado n'aquella província. O
«pão nosso de cada dia» é não só a mais urgente
necessidade da alimentação publica, mas também o
mais inveterado de todos os hábitos.
86 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREiRA
Estou convencido de que pedindo o opão nosso
de cada dia- cada um pede o pão que esta habi-
tuado a comer, e não outro.
i8q6 — Dezembro.
Meu caro sr. Trindade Coelho: Teve v. ex.^ a
amabilidade de me escrever cinco cartas sans voyel-
le, como agora estão fazendo em França alguns lit-
teratos engenhosos, com a differença de que a vo
gal supprimida por v. ex/' era justamente. . . uma
consoante. Refiro-me ás cinco variedades de pão
transmontano, com que me presenteou, e nas quaes
o 1 milho» era o cereal supprimido. Escuso dizer-
Ihe que me regalou a sua amável lembrança, e a
achei muito mais saborosa do que as epistolas sans
voyelle com que o Petit Journal está engenhosa-
mente provando a existência de uma litteratura «fim
de século».
Pois, meu presado amigo, quando vi deante de
mim os cinco specimens de pão transmontano, ho-
nestamente vestidos de burel, como v. ex.* disse
com muita propriedade, entrei a crer que essa sin-
gelesa de toilètte e a face morena do pão do Mo-
gadouro haviam forçosamente de crear homens
muito diflerentes. no pensar e sentir, dos que se
alimentam com mimoso pão alvo de trigo fino.
Porque a verdade é que até o pão-trigo de Traz-
os-Montes, solidamente enrolado em carolo, faz uma
differença enorme do molléte que os nossos buro-
NINHO DE GUINCHO 87
cratas lancham ahi pelas repartições, com recheio
de linguiça.
Sempre os transmontanos tiveram fama de va-
lentes, e não admira. Pão duro, volto á minha, faz
homens fortes e robustos. A população rústica de
Traz-os Montes é capaz de, gingando um cacete,
varrer uma feira. As damas que ao serão comem
bolo de azeite em vez de bolacha Maria, são floren-
tes de boas cores e boleiadas de formas esculptu-
raes. Os escriptores alimentados a pão de centeio
e carolo de trigo, não podem ter um estylo desner-
vado, nem uma linguagem molle. E a prova, meu
presado amigo, está em v. ex." mesmo.
Não sei se foram os provincianos do norte que
puzeram aos peraltas alambicados de Lisboa a al-
cunha diminutiva de pãeshihos. Mas olhe que é uma
definição; uma synthese. Quanto ás damas alfaci-
nhas, que não comem ao chá bolo d'azeite nem ao
jantar carolo de trigo, ahi as tem v. ex.^ no Chiado
para se desenganar de que florescem menos, no
colorido e no boleio, do que as portuguezas de
Traz-os Montes.
Pelo que respeita á arraia-miuda, ao Zé-Poptnho,
como dizemos hoje, olhe lá se elle ginga, nas desor-
dens, um cacete. Qual! Mette na manga da ja-
queta uma navalha, com um gesto certeiro puxa- a
até á palma da mão, segura-a entre os dedos, e
crava-a á falsa fé.
Admiram-se em Lisboa de que os faquistas de
maior polpa sejam uns «fracas figuras». Pudera!
Uma navalha peza pouco. E para dar um golpe não
é preciso ser valente; basta ser cobarde.
88 COLLECÇÀO ANTÓNIO MARIA PER El KA
Os transmontanos, que comem pão de centeio,
os minhotos, que comem pão de milho, até na mal-
querença são leaes. Erguem o varapau á luz do
sol, para que se veja bem, fazem-n'o zenir na es-
grima, para que todos oiçam, e so depois se jul-
gam auctorisados a desmiolar a cabeça do adversá-
rio.
E' a força, a coragem, a nobresa do duello: aqui
vou eu; defende-te lá.
Um amigo meu, natural de Lisboa, objectou-me
que a minha asserção, de que o estylo é o pão que
se come, naufragava no padre António Vieira, que
no escrever parecia creado a pão duro, sendo aliás
alfacinha por nascimento.
E' verdade que sim; mas uma excepção confirma
a regra. Comecei depois a procurar qualquer outra
excepção, e não a encontrei.
Ora o mesmo padre Vieira ligava ao pão tama-
nha importância, que chegou a d'zer do púlpito
abaixo: «Lançae os olhos por todo o mundo, e ve-
reis que todo elle se vem a resolver em buscar o
pão para a bocca.» Se para mim o pão é o estylo,
para o grande Vieira era a vida.
«Que faz o lavrador na terra, perguntava elle,
cortandoa com o arado, cavando, regando, mon-
dando, semeando? Busca pão Que faz o soldado
na campanha carregado de ferro, vigiando, pele-
jando, derramando o sangue? Busca pão. Que faz
o navegante no mar, içando, amainando, sondando,
luctando com as ondas, e com o vento? Busca o
pão.»
E' certo que o padre António Vieira nasceu em
NINHO DE GUINCHO 89
Lisboa e se creou a pão alvo. mas não é menos
certo que andou pela Europa c pelo Brazil comendo
o apão que o diabo amassou». Não pôde haver pão
mais duro.
Dos habitantes do Minho, Douro e Beira Alta,
que se alimentam a pão de milho, os que eu co-
nheço melhor são os do Minho e Douro.
Em pequeno, regalava-me de andar, no estio, por
umas serras fragosas em companhia dos pastores
da minha idade. Durante horas consecutivas co-
míamos um naco de broa e uma cebola crua. Era
um manjar! Perdão, eram dois manjares. Os pas-
tores cantavam, não tristezas á maneira de so-
lau, que, como diz Bernardim Ribeiro, «era o que
nas cousas tristes se acostum.ava», e ainda menos
as melancolias chorosas do Fado. Não, senhor!
Pendurados sobre rochedos imminentes á cor-
rente torva do Douro, lages escorregadias como
Tarpeas, os pastores da minha idade implicavam,
cantando improvisos dicazes, com os marinheiros
dos barcos rabêllos. que do meio do rio, ao com-
passo vigoroso dos remos, lhes respondiam a ponto,
em genitivo de injuria.
Vida áspera, mas alegre, que se não parecia
absolutamente nada com a do proletário ou do 'va-
dio de Lisboa, pendido sobre a guitarra, ao fundo
de uma taberna do Bairro Alto ou d'Alfama, a re-
penicar o Fado entre decilitros de Torreano e bu-
chas de pão trigo — com a navalha sempre na algi-
beira, para o que der e vier.
Os povos de Traz os-Montes e da Beira Baixa,
que se alimentam a pão de centeio (salvo em Traz-
gO COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
os-Montes os da Régua e ainda os de Vílla-Real
que também comem pão de milho, o que v. ex.*
explica, e a meu vêr muito bem, por estarem mais
visinhos do Douro) conheço-os menos, mas sei lhes
da fama de valentes, e ahi temos visto em Lisboa,
no parlamento, alguns exemplares de raça fina, que
até falando usara cacete oratório, e empregtm tro-
pos rijos como arrochos.
Nas províncias do sul predomina o trigo, e vê-se
bem. O sul não faz revoluções; quando muito faz
tum.ultos. Gomes Freire quiz im.plantar o constitu-
cionalismo com> homens do sul, e tropeçou. . . n'uma
sentença de morte. Foi do Porto que veio a revo-
lução liberal, posta em obra. Foi do Minho que veio
a Maria da Fonte A Janeirinha e o «3i de janei-
roí também vieram do Porto. E no principio do
século, o Junot, que entrou pelo sul, ficou; para
expulsar de vez os francezes foi preciso varre! os lá
de cima, com alma.
No Alemtejo come-se pão trigo, comquanto no
disiricto d'Evora, por exemplo, também se consum-
ma algum pão de centeio. Os aiemtejancs, salvo
algumas regiões sezonaticas, são robustos e sadios,
porque a lavoira os fortifica. Mas são indolentes
para tudo o mais. Luctam frequentes vezes com as
crises agrícolas, e chiam pouco. Quando o anno
corre mal, gemem na miséria, mas tão frouxa-
mente, que raras vezes se fazem ouvir em Lis-
boa ...
Para o duro trabalho das ceifas no Alemtejo é
chamado, em reforço, o beirão, o ratinho, que desce
das suas montanhas vestido de saragoça, cheio de
NINHO DE GUINCHO QI
pó e sol, com a cabaça a tiracoUo e a colher de
pau atravessada no chapéu. Vem ceifar, vem talvez
morrer asphyxiado pelo calor. Diz Fragoso de Si-
queira, nas Memorias económicas da Academia, que
n'um só anno morreram em Elvas 400 ceifões abra-
zados pelo sol. E' a Beira Alta, «o pão de milho»,
é a Beira Baixa, «o pão de centeio», acudindo, no
trabalho mais violento do anno agricola, ao Aiem-
tejo, «o pão de trigo.»
Os algarvios tambenn se alimentam a pão de
trigo, em certas regiões importado de Hespanha.
Ora os algarvios, que elles me perdoem, cantam
muito, e vae-se-lhes o tempo no cantar. São as ci-
garras de Portugal. Estiveram annos e annos a pe-
dir um caminho de ferro, que ^ó muito tarde che-
gou. E elles lá se iam resignando com a sua alfar-
roba. O norte, mais decidido, bateu o pé, e teve
logo dois caminhos de ferro em vez de um : o do
Minho e o do Douro.
São factos, ou antes. . . é o pão.
Já vae longa esta carta, mas não chega ainda a
ser maior do que a minha gratidão para com v. ex.®
A culpa foi sua, em me dar pão e conversa. Mas
agora me lembra que ainda está no fundo do tin-
teiro uma coisa que eu queria dizer a respeito -do
bolo de azeite.
Sabe? Fez-me lembrar de uma superstição popu-
lar do Douro, que ainda não vi contada por ne-
nhum dos colleccionadores de folk-lore.
Quando uma creança anda desmedrada como se
tivesse visto bruxa, dão-lhe a comer, atraz de uma
porta, um bolo de milho amassado em azeite. Diz-
92 COLLECÇÂO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
se lá que essa creança anda ougada, «aguada», e
crê-se que comendo o tal bolo, que sabe tanto a
azeite como a «bolacha» transmontana, começará a
medrar e a ter boas cores.
Aguados andamos nós todos depois de certa ida-
de. Por isso, quando cá apanhei o bolo de azeite,
que V. ex.* me .mandou, metti-me atraz de uma
porta, e mastiguei o.
Pode ser que faça bem ; mal não me fez ne-
nhum.
E, quanto ao mais, que Lisboa possa habi-
tuar-se ao milho e ao centeio, são lerias dos econo-
mistas.
Seria preciso começar por mudar o Chiado para
a Serra da Estrella ou do Marão, c o Marão e a
Estrella para o Chiado.
Não é fácil.
De V. ex.'^, com a maior considera-
ção litteraria e estima pessoal,
agradecido camarada
Alberto Pimentel.
i8n6 — Dezembro.
XII
VINHO NOVO
Notava o Diário de Noticias que a noite de S.
Martinho passara este anno quasi despercebida.
A culpa foi talvez da chuva, porque o vinho
aguado não presta.
Gonta-se o caso de certo borracho que, estando
muito doente, foi pelo medico assistente intimado a
que deixasse de beber vinho.
— Isso não pode ser! respondeu convictamente o
enfermo. Se deixar de beber vinho, morrerei mais
depressa.
— E' o que lhe parece, porque gosta de o be-
ber.
— Conheço-me, doutor. E não quero tazer a ex-
periência, porque receio vir a morrer antes de estar
curado. . .
— Mas então beba menos e com agua.
— Ah ! isso pode ser. Mas que sacrifício !
— Resigne-se, porque a outro doente não consen-
tiria eu que bebesse nenhum.*
— Gomo assim ? !
— E' que os médicos precisam transigir um pou-
94 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
CO com OS hábitos adquiridos, que constituem uma
segunda natureza.
— Então, se a medicina é uma sciencia amável,
consinta que eu beba só vinho. . . por amabilidade.
— Nem tanto ao mar. , .
— Não me falle d'agua, doutor!
— Deixe-se de gracejar, e faça o que lhe recom-
mendo, se quizer viver.
— Com que então agua e vinho?
— Seguramente
— A.h ! doutor! resignar-me-hei. Mas olhe !á...
— Diga.
— Em vez de agua e vinho, eu não poderia beber
vinho e agua ?
— E' a mesma coisa !
— Não é tal. Dá-se o logar de honra ao vinho,
que vai á frente, e eu devo-lhe essa consideração.
— Pois seja
Quando chegou a hora do jantar, a mulher do
doente levou-lhe vinho com agua.
— O que foi que tu deitaste primeiro no copo ?
— O vinho.
— Já estou arrependido de ter dito isso!
— Por que ?
— Porque o vinho ficou no fundo e a agua é que
está ao de cima. Foi o que eu senti primeiro na
bocca.
E erguendo o copo, depois ter provado a bebida,
exclama o enfermo .sentenciosamente :
— Dizec-se que a união faz a força I Olha p'ra
isto !
Depois, tomando um novo golo :
NJNHO DE GUINCHO 95
— O' mulher, tu dizes ás vezes que é uma excel-
lente bebida a agua. . . .
— Eu bebo muita.
— E eu acho que não ha melhor bebida que o
vinho.
— Cada um falia por si.
— Mas a verdade falia mais alto que todos. A
agua é boa ? O vinho é bom ? Pois bem ! juntar o
vinho com a agua é estragar duas bebidas boas !
Ora assim aconteceu este anno na noite S. Mar-
tinho : o vinho foi estragado pela agua, que era
muita de mais, como diria, o Garrett.
Choveu a potes, e não ha calor de vinho que re-
sista a uma valente carga d'agua.
Mas. na província, pouco importou que chovesse.
O temporal não conseguiu prejudicar a folia de
S. Martinho, e, por lá, ainda se conserva a tradição
de fazer do dia 1 1 de novembro uma espécie de
terça feira gorda.
Todas as liberdades e satyras são permittidas
n'esse dia.
E a policia, se a ha, não tem que dizer nada.
E' o costume da terra.
Ainda de tarde saiem para a rua alguns patus-
cos da localidade, munidos de campainhas, choca-
lhos e caldeiros, fazendo um barulho infernal.
Enchem-se as janellas de mulheres e creanças
para ver passar a airmandade de S. Martinho».
E' uma espécie de bando burlesco, que annun-
cia a grande solemnidade consagrada a Baccho,
Percorre o bando todas as ruas da povoação ba-
tendo a uma ou outra porta.
gO COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
— Está cá O sr. Fulano?
E' a casa de algum sujeito conhecido por gostar
de boa pinga.
No caso de ser pessoa de boa feição, vem elle
próprio falar ao bando :
— Estou, sim, senhor.
— Pois nós vimos aqui distribuir-lhe a cera para
a festa.
A «cera», velas ou cirios, são palhas de centeio
ou vimes.
Uma troça pegada,
E no acto da entrega da cera o rapazio faz ruído
nos caldeiros, badaleja com os chocalhos e as cam-
painhas.
— Pois muito obrigado pela cera e podem contar
que não deixarei de festejar o nosso grande santo.
Se o sujeito é de génio arrebatado, dá cavaco
com a brincadeira.
E então pode ficar certo de que não dormirá toda
a noite.
Volta e meia o bando passa-lhe á porta, fazendo
uma assuada enorme, capaz de accordar os mortos
no cemitério.
— O' sr. Fulano, venha receber a cera!
— Aqui está o cirio !
— Já são horas de começar a festa !
— Olhe que os outros «irmãos» estão á espera!
— Tome sentido, que vae sendo tarde !
E bumba ! pancadaria nos caldeiros, repiques de
campainhas, dobres de chocalhos.
De modo que o melhor que o sujeito tem a fazer
é embebedarse logo para não ouvir a algazarra in-
NJNHO DE GUINCHO 97
fernal, que de momento a momento se repete cada
vez mais atroadora.
Também é costume andar distribuindo por portas
as listas para a eleição dos mesarios, que devem
gerir durante o anno os negócios da irmandade de
S. Martinho.
Em cada lista vem escripto o nome de um bebe-
dor conhecido.
E deixa-selhe a lista em casa.
Quando o sujeito tem graça, tira partido da situa-
ção:
— O que?I Pois inscreveram-me? Não pôde ser!
Ha outras pessoas mais qualificadas para esse cargo.
— Nós é que fazemos a eleição.
— Mas se eu sou elegivel, também sou eleitor. O
meu voto é a favor de Fulano. . .
E cita um nome, que ás vezes tinha esquecido, e
que é eifectivamente o de uma pessoa que não
regatea sacrifícios a Baccho.
Este anno, segundo dizem de S. João da Pes-
queira, eram onze horas da noite e ainda nas ruas
da povoação andava o aiegre bando tangendo cam-
painhas e chocalhos, repenicando nos caldeiros.
Um amável correspondente d'ali, mandando no-
ticia do caso á redacção do Popular, commenta-a
com esta consideração :
aQuando todos os costumes tradicionaes tendem
a extinguir-se lentamente, pasma-se ao ver o enthu-
siasmo frenético, a exaltação febril com que em
muitas terras do reino, principalmente no norte, se
festeja o S. Martinho ou antes o Deus Baccho.»
Emquanto o i apazio se esfalfa a gritar pelas
7
g8 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PKREIRA
ruas, os felizes que teem pipa em casa, tratam de
metter-sc na adega a tirar a prova do seu vinho
novo.
Os portuguezes' antigos diziam : Em dia de S.
Maninho, lume, castanha e vinho.
Que, no fim de contas, o S. Martinho é uma festa
agrícola para celebrar a «novidade» do anno, e com-
prehende se que nas regiões vinhateiras seja essa
festa mais ruidosa do que nos logares aonde a tradi-
ção pode ter chegado, mas onde a cultura da vinha
é quasi nulla ou insignificante.
No Douro e no Minho ha folia rija.
A «novidade» do anno é desflorada no dia de S.
Martinho, principalmente á noite, em convívio de
amigos e visinhos.
E chovem os commentarios:
— Boa «novidade»!
— De se lhe tirar o chapéu!
Porque, a respeito de vinho, os lavradores pare-
cem-se com os litteratos, no juizo que fazem da
ultima producção : é sempre a melhor.
E não é improficua a prova para o effeito da ven-
da, porque os visinhos e os amigos vão espalhar
pela povoação a fama do vinho novo que prova-
ram.
— Quem tem uma rica pinga este anno, é Fu-
lano !
— Um néctar !
— Um bálsamo !
Se é no Minho, está claro que não é precisamente
um bálsamo, mas um valsamo.
— Este anno, o bej^de de Fulano é um valsamol
NINHO DE GUINCHO 99
E estalejam com a ponta da lingua no ceu da
bocca para dar a impressão de que ainda se não
fartaram de saborear o valsamo berde.
O correspondente da Pesqueira acrescenta á sua
interessante informação este pormenor :
«Alguns dos que em sua casa tiram a prova do
vinho novo, fazem no tão desastradamente, que
adormecem nas adegas por não atinarem com a
cama ou lhes parecer a noite muito quente e não
poderem supportar o calor que os cobertores lhes
causariam.»
Mas quanto mais feliz é a vida da província do
que a da capital — até na rapioca do S. Martinho!
Na província pode uma pessoa embebedar-se na
sua própria casa, dentro da sua adega, e adorme-
cer ali.
Em Lisboa tem de ir embebedar se á taberna ou
ao 1'estaiirant e não sabe o que succederá até con-
seguir dar entrada em casa.
Conta-se de um alfacinha que na noite de S.
Martinho, não podendo equilibrar se, por ver andar
á roda todas as casas, se sentara no passeio da rua
e ali se deixara ficar.
Veiu a policia.
— O que é que faz aqui ?
— Estou á espera que passe a minha casa para
enfiar pela porta dentro.
ibyS — Novembro.
XII
BONECOS E LOIÇA DE BARRO
Decerto viram nos jornaes a noticia de que es-
tava actualmente fazendo sensação em Berlim uma
exposição de bonecos?
E talvez ririam. . .
Mas, que diabo ! a Allemanha não é precisa-
mente um paiz frivolo e fútil, que dê importância a
ninharias ridículas
A exposição não foi promovida por uma creança
ou por um maníaco, senão que por uma illustre
dama, que tem na Europa uma evidente posição
social.
A iniciativa deve-se á rainha da Romania, conhe-
cida no mundo litterario pelo pseudonymo de Cár-
men Sylva.
Quem deu execução á ideia da iniciadora foi outra
dama, de quasi igual evidencia na aristocracia eu-
ropea : a princesa de Wiede.
NINHO DE GUINCHO 101
Devemos então reflectir um momento n*esta sim-
ples coisa : que não se reuniriam duas senhoras dis-
tinctas, intelligentes e nobres, para realisar uma
empresa balda de qualquer pensamento alto e ex-
pressivo.
Eífectivamente, os bonecos agora expostos em
Berlim não constituem um brinquedo de creanças,
uma enfantillage frivola, mas um facto de impor-
tância scientifica, de interessante valor ethologico,
porque os bonecos representam uzos e costumes de
varias épocas e paizes.
A. collecção mais admirada é a que pertence á
rainha da Romania, composta de manequins vesti-
dos com os trages uzados na região dos Balkans.
N'esta «expressão» histórica reside principalmente
o interesse da exposição, á parte o valor artístico
da esculptura, da pintura, e o valor material da ri-
queza dos fatos.
Eu fiquei contentíssimo com a noticia d'esta ex-
posição, que infelizmente não posso ver.
E á sombra d'essa empresa, iniciada e realisada
por duas princesas, tratei de abrigar a minha anti-
ga predilecção pelos bonecos de barro, que repre-
sentam costumes portuguezes, e que, nas horas que
eu passo trabalhando, me rodeiam alegremente em
numero não inferior a quatrocentos.
Tem cada pessoa a sua mania, e se as manias
não molestam ninguém, são dignas de absolvição.
A fallar verdade, pouco me importa que me
absolvam ou condemnem ; sou assim, e já agora é
tarde para mudar de caminho.
O boneco que mais me interessa e encanta é o
102 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
pequenino, de um decimetro de altura, ás vezes de
uma ingenuidade de esculptura verdadeiramente pri-
mitiva :omo obra de arte, mas tocado de uma certa
expressão de naturalidade na physionomia e na alti-
tude.
Conheço desde creança os bonecos do Porto, que
teem o triplo da altura dos de Lisboa, e que são
primorosos como obra de arte, sobretudo no apuro
e perfeição dos trajos.
Lá estão ainda expostos á venda na rua da As-
sumpção ou, como na minha infância se dizia, atra^
dos Clcrigôs. Lisboa conhece alguns exemplares,
que apparecem aqui á venda n'uraa ou n'outra lo^a,
e cujo preço vacilla entre i8 e 25 tostões. Exceptue-
mos os grupos, como o carro de bois. que custa
sete ou oito mil réis, e a procissão, que pode custar
cinco ou seis libras.
Conheço os bonecos da ilha da Madeira, em terra
cotta, de que possuo apenas dois exemplares, que
me enviou do Funchal o sr. conselheiro Sousa e
Silva, quando ali era governador civil.
Mas a minha sympathia foge para os bonequinhos
de Lisboa, que ordinariamente se compram a cinco
e seis vinténs, e aue representam a vida das ruas,
a expressão caracteristica do nosso povo em plena
actividade.
Sim, coUecciono furiosamente esses bonequinhos,
que algumas creanças despedaçam sem piedade, e
que eu vou reunindo com dedicado empenho.
Outras pessoas ha que pacientemente orgaiiisam
coUecçÓes de sellos, bengalas, pinturas, loiças, crys-
taes, leques, alfinetes, etc.
NINHO DE GUINCHO Io3
Eu collecciono bonecos de barro e confesso com
franqueza qu'.' é esse um dos maiores regalos e pra-
zeres do meu espirito.
Como nasceu esta mania? Não sei bem. Como
nascem as paixões e as doenças ? Quasi nunca se
sabe ao certo. Um dia, sem que me lembre já onde
e quando isso foi, comprei os primeiros bonecos,
cujo valor ethologico avultou aos meus olhos, apesar
da imperfeição da esculptura.
N'esse tempo, creio poder aííirmal-o, apenas as
creanças iam ás capellistas comprar bonecos de
barro, especialmente pelo Natal, em que teem maior
procura as figuras de Presépio.
Lembro-me de que uma vez, conversando com o
lojista Prior, na rua Augusta, lhe perguntei se eram
muitas as pessoas adultas que entravam no seu es-
tabelecimento a comprar bonecos de barro.
— Não, senhor, respondeu elle. Apenas creanças
e extrangeiros.
— Extrangeiros ?
— Sim, senhor. Quando toca algum paquete em
Lisboa, muitos passageiros, especialmente allemães
e inglezes, aqui vem procurar os bonecos, que apre-
ciam muito.
— Pudera! repliquei eu n'um afogo de coUeccio-
nador apaixonado. Isso comprehende-se. São pes-
soas intelligentes, que passando por um paiz, e não
podendo levar os homens e as mulheres que viram
e representam os uzos e costumes d'esse paiz, com-
pram como recordação os bonequinhos que dispen-
sam os viajantes de estar copiando de afogadilho
trajos e physionomias nas paginas do seu álbum.
104 COLLECÇAO ANTONÍO MARIA PEREIRA
E alguns não saberiam desenhar, infelicidade que
também me acontece a mim. Mas o boneco de bar-
ro salva a situação, porque é, no fim de contas, a
miniatura de um povo.
Adquiridos os primeiros bonecos, começou a pas-
sar me pelo espirito a ideia de que seria possível
aperfeiçoal-os. Entre os imperfeitos escolhi os mais
perfeitos, e tratei de averiguar quem tinha sido o
oleiro que os produzira.
Fui a sua casa, e por signal que dei um*a boa ca-
minhada.
Entrei n'uma mansarda que respirava pobresa e
miséria. E encontrei um doente postado deante de
uma banca de pinho a fazer bonecos.
Sentei-me, e mettendo a mão no bolso do palctot
tirei um archeiro. . . de barro.
Pul-o sobre a banca e disse ao obscuro artista :
— Foi o sr. quem fez este archeiro?
— Não sr. Devia ser Fulano.
Citou o nome de outro oleiro amador.
Ora o archeiro que eu levava, era um mamarra-
cho pintado a almagre e ocre, em barro crú, com
umas pantorrilhas enfunadas, os hombros depremi-
dos, os braços pregados ao corpo, as mãos incha-
das de frieiras, e uma casaca de chéché. Nenhuma
expressão humana, nenhum brio profissional, isto é,
ausência de po?,e e «caracter o de classe.
— iMas diga me uma coisa, tornei eu, não se sen-
te com forças de fazer em barro cosido um archeiro
melhor do que este ?
O homem respondeu com convicção e desvane-
cimento :
NINHO DE GUINCHO 105
— Sinto, sim, sr. M:is não vale a pena, porque
as lojas pagam muito mal.
— Não se trata de lojas ; trata-se de mim. Sou eu
quem lhe encommendo um archeiro, cujo preço não
discutirei.
— Pois bem ! Farei um archeiro de que o sr. ha
de gostar. Se quizer pagar bem, pode custar-lhe um
crusado.
— Conte com cinco tostões, se sahir como eu de-
sejo. Quando posso voltar ?
— Para o fim da semana.
— Adeus, até sabbado.
Não faltei, e obtive um archeiro com expressão,
bella pose, um fato bem pintado, uma alabarda
de papelão prateado : uma figurinha que represen-
tava um grande progresso na esculptura dos bo-
necos de barro, se bem que as pernas deixassem
ainda alguma coisa a desejar em verdade anató-
mica.
D'ali por deante comecei a encommendar outros
bonecos ao mesmo artista, que se foi aperfeiçoando
successivamente, a ponto de produzir dez ou doze
figuras que são ainda hoje das melhores da minha
collecção.
Era eu que lhe indicava os typos. E alguns, como
o vendilhão ambulante, o padeiro, o fadista, sahiram
magníficos; regalei-me de os ver.
Pouco depois notava eu que nas lojas do Prior
na rua Augusta e do Cardoso na Bitesga começa-
vam a apparecer bonecos muito mais perfeitos, se
bem que mais caros.
Desvaneci-me de ter concorrido para esse pro-
I06 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
gresso, e, para o animar, comprava os bonecos,
€mbora os tivesse repetidos.
Mas comecei a achar um novo encanto no facto
mesmo da repetição dos bonecos : o de ter deante
de mim a historia da evolução do boneco de barro
como obra de arte.
Ultimamente, no Costa da rua do Ouro e no
Joyce do Gaihariz, tenho comprado deliciosas figu-
rinhas cheias de expressão e de verdade.
Ainda ha poucos dias, estando presente o oleiro,
encommendei na loja do Calhariz uma sopeira em
coUoquio amoroso com um soldado da guarda mu-
nicipal.
Quarenta e oito horas depois mostravam-me ali
o specimen da sopeira em barro crú. Não digo que
seja uma maravilha^ mas tem verdade, especial-
mente no trajo. Eu sou, indirectamente, o pae doesta
sopeira, o que é, talvez, a melhor maneira de ser
pae.
Que querem ? Alegra-me, quando pela manha abro
a janella do meu escriptorio, ver animar-se com a
luz do sol todo esse mundo de figurinhas portugue-
zas, que representam os uzos e costumes do meu
paiz, e que do alto das prateleiras em que se ali-
nham me dão a impressão de partir cada uma d'ellas
para o seu destino, para o seu trabalho quotidiano,
para as suas occupações diárias : o vendilhão e a
varina para as ruas, o archeiro para o Paço, o offi-
cial e o soldado para o quartel, o padre para a
egreja, o operário para a fabrica, o cosinheiro para
a ucharia, o engraxador para o seu vão de es-
cada.
NINHO DE GUINCHO IO7
E parece-me até que algumas vezes trocamos pa-
lavras de estimulo e conforto.
— Vamos a isto, digo eu aos meus bonecos de
barro, começando a trabalhar-.
— Nós já cá estamos, respondem elles. Você hoje
levantou-se mais tarde, seu mandrião 1
Ha poucos mezes ainda, um dos meus bonecos
faltou á sua apresentação matutina. Vi uma lacuna
na collecção ;, fui saber se algum d'elles teria parti-
do para as suas occupaçóes sem me haver dado os
bons-dias.
Então encontrei estatelado na prateleira um chefe
de esquadra, que costumava ser muito pontual no
serviço. Tive um desgosto grande. Era o primeiro
morto da minha collecção.
De que morreria elle, coitado ? Alguma congestão
cerebral, talvez? Gahira, e partira pelo meio, como
se tivesse quebrado. . . a espinha dorsal.
Haveria crime ? Haveria suicídio ? Os outros en-
trincheiraram-se n'um silencio impenetrável. E as
investigações da judiciaria não deram resultado.
Pois era um bom chefe de esquadra, elegante,
airoso, com certa attitude marcial.
Nem sequer pude desejar que a terra lhe fosse
leve, porque o deitaram no barril do lixo e foi d'aii
para a carroça.
A acquisição dos bonecos trouxe me o desejo de
estudar a sua fabricação através dos tempos em
Portugal. Dei-me a esse trabalho, e creio que ainda
ninguém iria mais longe em recolher dados, porme-
nores, minúcias. Mas é um trabalho pesado o de
emprehender a coordenação de todo esse maré ma-
108 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
gnum de apontamentos, e não me sinto realmente
em boa disposição de espirito para realisal-o agora.
, Se ha tanto quem de animo ligeiro escreva a res-
peito de tudo !
Para que hei de eu estar a cançar me em ensinar
os outros, que m'o não agradecerão ?
Contento-me com olhar para os meus bonecos,
ouvil-os, conversai os, entendel-os e responder-lhes.
Acreditem : é um grande prazer.
Talvez os senhores duvidem de mim ? Pois vão
perguntal-o á rainha da Romania e á princesa de
Wiede.
1S98 — Dezembro.
II
Se torno a fallar nas figurinhas de barro, não e
porque essa minha predilecção se vá tornando mo-
nomania, nem porque eu ufanamente queira cele-
brar o glorioso facto do boneco nacional ter já con-
quistado o Chiado.
Mas a verdade é que conquistou. Lá estão na
montre do Bénard algumas figurinhas, guarda avan-
çada do exercito conquistador. Finalmente chega-
ram á rua mais elegante de Lisboa, onde até agora
apenas tinham accesso os bonecos francezes e al-
mães. Subiram, treparam, anstócratisaram-se! Deus
queira que se não estraguem. .. de vaidade.
Que, a fallar verdade, deve ser para endoide-
cer o frágil barro de que é feito o boneco e. . . o
homem, vêr-se fora da humilde lojinha de capella,
NINHO DE GUINCHO IO9
onde viveu tantos annos obscuramente, achar-se
de um momento para outro em exposição no Re-
gent-Street de Lisboa, dar nas vistas ás senhoras do
tom e aos janotas da élite, sentir-se afidalgado deante
do povo boquiaberto que certamente exclamará :
«Olha quem elles são! Conheci os laranjeira nas ca-
pellistas de Alfama e do Bairro Alto!»
Teve o Bénard, honra lhe seja, a lembrança de
fazer uma exhibição portugueza: um trecho das no-
vas obras do porto de Lisboa. Sobre a muralha
coUocou alguns bonequinhos de barro, typos po-
pulares, adquiridos no Centro Commercial^ Agrí-
cola e Industrial^ da rua do Loreto. Ficou uma
linda montre, que o povo não se farta de admi-
rar.
E isso, em pleno Chiado, já não é pequena glo-
ria para envaidecer os bonecos de barro.
Quanto aos homens, que. segundo a Biblia, são
feitos da mesma massa, sei eu que entontecem de
orgulho e tomam grandes ares de toleima quando
se encostam a uma porta do Chiado. Muitos d'el-
les não valem um chavo gallego, mas é vel os ali,
e acreditar, porque elles o acreditam, que valem
um dobrão de D. João V.
Quanto aos bonecos, também de barro, que ap-
pareceram agora ali na moníre do Bénard, fizeram-
me melhor impressão, achei-os menos irritantes e
muito mais modestos do que os homens. Estão
bem! nem acanhados, nem arrogantes ; nem timi-
dos, nem philauciosos. Muito discretos, sem gauche-
rie e sem pretensão. Uma lindeza de bonecos !
Mas se eu volto a fallar d'elles, é a propósito e
lio COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
por causa dos Presépios, agora expostos ao publico
nas egrejasque os possuem.
Já não me quero referir ás casas particulares,
porque além do Presépio que as creanças organi-
sam de um dia para o outro n'esta época do anno,
com figurinhas compradas em qualquer loja de ca-
pella, rara é a casa de família antiga onde por esse
paiz tora não haja um Presépio de algum valor, e
endoideceria quem. se propuzesse fazer a sua re-
senha ou descripção.
Todos os conventos, de frades ou freiras, tinham
seu Preesepio, obra aceiada, e até conta frei Luiz
de Sousa, na Historia de S. Domingos, que foi uma
freira do mosteiro do Salvador em Lisboa quem,
em consequência de uma devota visão, mandou fa-
zer o primeiro Presépio que se viu em Portugal.
Seria assim ou não seria. Mas frei Luiz de Sousa
lá o diz, na chronica : «E d'aqui se começaram a fa-
zer por outras egrejas os presépios que hoje se fa-
zem em quasi todas.»
Tenho um montão de apontamentos sobre Pre-
sépios que vi em conventos da provincia, e alguns,
quantos! me terão escapado. Mas quero fallar, ain-
da que seja rapidamente, de um só, porque notei
n'elle uma circumstancia digna de menção especial.
E' o do Varatojo. Como ainda hoje acontece em
quasi todos os Presépios, ha n'esse um tocador de
gaita- de-folles, que figura de cego, com uma borra-
cha de vinho a tiracoUo. E o moço do cego, apro-
veitando-se da confusão, vae bebendo subrepticia-
mente o vinho da borracha.
Tem graça. E' uma novidade jocosa, que falta
NINHO DE GUINCHO l l l
/
n'outrGs Presépios, e que de algum modo o anima
e embrinca.
Ramalho Ortigão, no livro O culto da arte em
Portugal ^ chama «encantadoras» ás figurinhas dos
Presépios que sahiram das mãos de Faustino José
Rodrigues, de António Ferreira e Machado de Cas-
tro. Tem razão. E' realmente um encanto para os
olhos esse lindo Presépio da Sé Patriarchal, que
está ainda completo — o que é raro — e que se en-
contra na 3.* capella da charola, isto é, por deiraz
da capelia-mór.
As figuras foram modeladas pelo famoso Ma-
chado de CastrO; por encommenda de um benefi-
ciado de appellido Oliveira, que depois as doou á
Sé.
Além do Presépio da Sé, Ramalho Ortigão falia
dos da Madre de Deus, Coração de Jesus e mar-
quez de Borba, que se destroçaram.
Mas cumpre mencionar ainda o da Estrella,. cujas
figuras também são de Machado de Castro (1776 a
1800) e o de Belém.
O da Estrella é decerto o maior de Lisboa. Tem
figuras muito bem tratadas, posto que os anachro-
nismos sejam em barda. Ha um bello gruposinho^
de judeus que estão jogando as cartas (as cartas
santo Deus !) tão feliz na expressão e tão perfeito^
na esculptura, que já por trez vezes o quizeram
roubar. Outras figuras foram mutiladas pelas crean-
ças que d'antes podiam aproximar se do Presépio,
e agora não. Bera entendido; pena foi ser já tarde.
Também merece especial menção o Presépio de
Santo António dos Capuchos, que paga bem a ma-
I I 2 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PERKIRA
cada de subir ao Campo de Sant'Anna para o ir
ver.
E' comtudo preciso estar de pé atraz com uma
infinidade de figuras, queporahi nos inculcam como
tendo sido feitas por Machado de Castro. Nos bi^ic-
à-bracs, quando apparece á venda algum Presépio
de casa particular, é sempre de Machado de Cas-
tro—por força! E pedem por elles quantias fabu-
losas, que não valem, porque de Machado de Cas-
tro não teem nada.
E' certo que este artista, que morreu muito ve-
lho, trabalhou muito, mas ainda que tivesse tido
dobrada existência, não lhe chegaria o tempo para
todos os bonecos que lhe são attribuidos.
O sr. visconde de Castilho diz judiciosamente
que o Presépio é o vestígio derradeiro do mysterio
medieval. Farei comtudo uma observação : vestígio,
sim ; derradeiro, não. Ainda hoje, por essas aldeãs
do Minho fora, se representam mysterios, de uma
ingenuidade verdadeiramente mediévica, e até na
maior parte das vezes são representados deante de
algum Presépio. •
Mas não padece duvida que a singela iconogra-
phia dos Presépios tem o perfume das ultimas flo-
res sêccas da idade-media, cuidadosamente conser-
vadas na tradição popular.
Muitos dos seus anachronismos são deliciosos de
ingenuidade, e demonstram, a meu vêr, a força de
resistência da religião christã. Os oleiros, segundo
sua época, vão collocando no Presépio as figuras
do seu tempo, e talvez ainda venham a apparecer
em torno da lapinha de Bethlem personagens de
NINHO DE GUINCHO Il3
chapéu alto descendo pela montanha, reis magos
vestidos de generalíssimos. Mas isso quer dizer que
o christianismo vae passando de geração em gera-
ção, de moda em moda, sem se sentir defraudado
na fé e culto que inspira, como sendo uma religião
que resiste a todas as revoluções philosophicas, in-
cluindo a do chapéu alto. . . oco de philosophia.
Nos Presépios portuguezes figuram os nossos
pastores do norte ou os nossos saloios do sul, co-
mo se Bethlem fosse uma terreola do Minho ou
da Extremadura.
Mas quanta cor local n'essas figurinhas dos Pre-
sépios I como ellas, em relação ao nosso paiz, são
verdadeiras no trage, na physionomia, e na altitu-
de! Perdoa-se-lhes o anachronismo pelo bem que
parecem. E' uma vasta collecção de figuras portu-
guezas representando um grande drama que não
foi portuguez, nem pelo protogonista, nem. pelo lo-
cal da acção.
No Anatómico jocoso vém descriptas algumas
d'ellas, que são nossas, muito nossas, ainda hoje
vivas. Querem ver a saloia dos queijos ? Pois e!la
ahi vae :
... a senhora
saloia dos queijos,
cara de toranja,
olhos de morcego,
gibão de prestinas,
collete vermelho,
saia debruada,
manteo amarello.
Ahi vem agora descendo para a lapinha a pas-
tora de Odivellas — outra saloia :
8
114 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
lenço soqueixado,
manteo de parrilhaf
bota até o artelho,
gibão de pretinas.
E' O Presépio portuguez do sul em toda a sua
verdade ethologica.
Nos Presépios do norte as botas das pastoras são
substituídas pelas solêtas, os lenços da cabeça pe-
los chapéus redondos e pequeninos, os cabazes pe-
las canastras, as capas dos homens pelas palhoças
e o barrete de lá pelo sombreiro de Braga.
Deante de todas estas figuras do sul ou do norte,
sente-se a vida simples, singela de Portugal, a al-
ma boa e crédula do nosso povo agrícola, e perce-
be-se que um Presépio, assim constituído, seja um
forte traço de união para reunir, na noite de Natal,
todas as pessoas da mesma família n'um serão de-
licioso de intimidade.
Mas o costume vae a acabar, especialmente no sul.
Em Lisboa ha os theatros, os colyseus, as associa-
ções de dar á perna, que dispersam as famílias. No
norte, ha ainda o Presépio, sempre o Presépio, o
auto religioso ou mysterio^ a ceia de vinho quente,
as rabanadas, os ovos mexidos, os bolinhos de ba-
calhau e bolina, a congregação da família toda á
volta da mesa, porque até os filhos pródigos voltam
n'essa noite á casa paterna e são perdoados.
Quando a invasão dos costumes modernos inun-
dar as villas das províncias do norte, quando ceder
o logar á guarda municipal ou á policia civil, ver-
se hão dois policias de sentínella á lapa de Be-
thlem, esquadrões de lanceiros descendo a montanha
NINHO DE GUINCHO Il3
illuminada por candieiros de gaz, reporíers de jor-
naes tomando apontamentos á pressa, mas o Pre-
sépio subsistirá, amoldado ás circumstancias do
tempo, e com o Presépio triumphará, através de
todas as idades, a recordação do grande facto his-
tórico, que se memora e commemora religiosamente
na noite de Natal.
Se os senhores querem ver um lindo Presépio,
que seja digno de ver-se, vão ali á Sé ou á Es-
trella, que hão de dar o seu tempo por bem em-
pregado.
Mas passem primeiro pelo Chiado e parem um
momento deanie da montre do Bénard a observar
as figurinhas de barro, que lá estão expostas, e
que conseguiram aristocratisar-se a ponto de fica-
rem entaladas entre duas lojas chies, uma com ja-
notas á porta, outra com viscondes dentro.
1898 — Dezembro.
III
E' costume, nos Passos de Carnide, os alumnos
do collegio militar marcharem, atraz do pallio,
muito garbosos e sérios — com a consciência de se-
rem o exercito. . . do futuro.
Hontem, na Luz, vi a procissão, mas não vi os
alumnos, que faltaram, dizia-se que por causa da
chuva.
Em todo o caso, na ausência d'essas figurinhas
vivas de jovens militares, lembrou-me, não sei bem
dizer como, certa nota de Filinto Elysio a respeito
Ij6 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
de uma antiga procissão que outr'ora se fazia na
quaresma, em Lisboa, e na qual as imagens e os
penitentes eram ainda mais pequenos, decerto, que
os alumnos do collegio militar.
Eram de barro — eu amo as figuras de barro, )á
sabem — e os estudantinhos da Luz também o são,
porque, lá diz muito bem o auctor dos Avisos do
ceu : «mais barro, menos barro, tudo n'este mundo
é barro.»
Não somos outra coisa.
Chegando a casa comecei a folhear Filinto no
empenho de encontrar a nota.
— Pois você tem em casa o Filinto! que peste!
dirá algum leitor mais sábio entre os sábios moder-
nos.
Tenho, sim, porque esse diabo de homem, que
era um duro poeta, refractário á rima, tem um vo-
cabulário tão seu, e tão nosso, um geito de phrase
tão pittoresco e luzitano, uma ironia tão funda e ao
mesmo passo tão ingénua, que não se pode pres-
cindir d'elle n'uma livraria que valha alguma coisa.
< Sempre me ha de lembrar que o antigo profes-
.sor do Lyceu do Porto, o sr. Manuel Emílio Dantas,
que foi meu mestre, me dizia uma vez no botequim
da Águia d' ouro :
— Não se pode saber portuguez sem se ter to-
mado o gosto á traducção de De rebus Emanuelis
por Filinto Elysio.
— Acha isso, sr. Dantas?! perguntei eu, que en-
tão não podia entrar com o bom do Francisco Ma-
nuel.
Preferia-lhe Soares de Passos, o das tristezas, o
NINHO DE GUINCHO II 7
i
doce poeta da morte, que era em poesia o meu
evangelista.
E não sei se ainda será. . . porque não topei me-
lhor— nem maior.
O professor Dantas desfechou-me na cara uma
d'aquellas pyramidaes gargalhadas, que retumba-
vam quando lhe sahiam dos lábios como uma bomba
de dynamite, e, descançando um momento, disse
entre alegre e auctoritario:
— Não trate você de entender-se com o F^ilinto e
queixe-se depois.
Esse Dantas era bem meu amigo, e, alguns an-
nos mais tarde, lembrando-me o seu conselho, se-
gui-o.
Entendi-me com o Filinto.
Pois bem. Chegando a casa, á volta de Carnide,
fui procurar a nota. Deu-me algum trabalho a en-
contral-a; mas encontrei. Eil-a aqui:
«Se já não vem pela quaresma a Charola da
Ajuda dar um descante ao Divino, pelas ruas de
Lisboa, necessário será contar aos rapazes de agora
a composição d'ella. Pelo pouco que me recordo,
creio que era um andorsinho assentado em dois va-
rapaus, cangado nos hombros de dois saloios, aco-
bertado c'uma toalha de mãos, como carro de roma-
gem, com muitos senhorinhos dos Passos, muitos
penitentes brancos, todos de barro pintado, e tudo
por dentro allumiado com rolinhos de cera-, e em
roda, por detraz, e por diante muito aldeão berrando
certa lenga-lenga devota; e pedindo muita esmola,
que espalhadas pelas mãos e algibeiras dos canto-
res,^ e mais matula (porque ali n'aquella confraria
Il8 COLLECÇÁO ANTÓNIO MâRIÂ PEREIKA
todos são thesoureiros) iam diminuindo pelas baiu-
cas, até chegar á Ajuda, sem pada.»
Digam-n'o melhor, se são capazes.
Não são.
E, parando deante da nora de Filinto, como ti-
nha parado deante da procissão de Carnide, come-
cei a pensar na delicia que eu sentiria se possuisse
alguns dos bonequinhos da charola da Ajuda e pu-
desse dizer a mim próprio authenticando-os:
— São os mesmos de que falia Filinto I
Não tenho essa procissão, mas tenho outra, a
dos Passos moderna, toda, completa, até com a
guarda municipal, cuja banda me parece ir tocando
as marchas do sr. visconde de Oliveira Duarte,
tanto vivem aquelles inanimados bonequinhos.
E então comecei eu a pensar n'uma noticia que
tinha visto nos jornaes e que, ao ler a nota de Fi-
linto, me acudiu á lembrança por associação de
ideias.
Que o Atheneu Commercial vae fazer uma expo-
sição de cerâmica portugueza.
Toma lá I
O Popular já disse, e com razão, que essa expo-
sição era muito difficil de organisar e que, mal feita,
seria meluor não fazer-se.
Pois assim mesmo é que é.
Uma exposição d'esse género, para corresponder
inteiramente ao seu fim, deve abranger os bonecos
e as loiças. São dois capitulos vastos — especial-
mente as loiças.
Querem uma ideia das dificuldades que terão a
vencer os organisadores d'essa exposição ?
NINHO DE GUINCHO 1 I9
Ahi vae. Em Lisboa e em todo o paiz são muito
conhecidas as bilhas de Estremoz, e bem o mere-
cem, porque são as melhores, mas em muitas re-
giões de Portugal se fabricam potes, cântaros, bi-
lhas, talhas, infusas, pucarinhas sui getierisj que an-
dam até mencionados nos poetas antigos.
Lembram-se d'aquellas lindas voltas de Camões?
Leva na cabeça o pote,
O testo nas mãos de prata,
Cinta de fina escarlata,
Sainho de chamalote :
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura ;
Vae formosa, e não segura.
Também se hão de lembrar da glosa de Rodri-
gues Lobo sobre o mesmo assumpto:
A talha leva pedrada,
Pucarinho de feição.
Saia de còr de limão,
Beatilha suqueixada:
Cantando de madrugada,
Pisa as flores na verdura,
Vae formosa e não segura.
A's pucarinhas, que ainda hoje são uzadas.para
guardar mel, se refere Gil Vicente no Auto da Feira,
quando chega ao tablado Branca Annes e diz fei-
rando :
Eu queria ua pucarinha
Pequenina para mel.
Pois em quasi todo o paiz se fabricam vasilhas
de barro para agua e mel, não obstante ter a pri-
I20 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PtREIRA
masia Estremoz, que é a bem dizer a cidade de
Andujar portugueza.
Os senhores sabem que a riquesa vital da antiga
cidade de Andujar, na Andaluzia, é um barro leve,
amarello-pardacento, de que ali se fazem as vasi-
lhas que téem o nome de — alcara:^as.
Postas ao ar, refrescam e purificam a agua, como
acontece com as bilhas de Estremoz.
Trez quartas partes dos habitantes de Andujar
são oleiros.
Isto é que não acontece em Estremoz, onde ha
apenas actualmente cinco casas que, verdadeira-
mente em família, fabricam bilhas e moringues.
Uma d'essas casas é a de António Guerreiro
(Peixe), sexagenário quasi inválido, que trabalha
com dois sobrinhos, um de quarenta annos e doen-
te^ o outro, um rapaz de quatorze annos, cujo tra-
balho, a bem dizer, sustenta o estabelecimento.
Casa de José Gallego, homem de mais de cin-
coenta annos, com um filho rachitico.
Casa de José Feiticeiro, sexagenário.
Estas trez olarias terão um movimento annual de
5oo©ooo réis cada uma.
Casa de José Maria Firme, o qual já completou
cincoenta annos, e tem filhos, aliás pouco aprovei-
táveis para a industria.
O seu movimento annual será de Sooííooo réis.
Casa de Caetano Augusto da Conceição, conhe-
cida pela designação de Casa Alfacinha. Concei-
ção não é oleiro de origem, mas dedicou-se a esta
industria, em que educou trez filhos e trez filhas,
das quaes já morreu uma. Além da família, traba-
NINHO DE GUINCHO 121
Iham na officina mais dois homens e cinco mulhe-
res. Conceição exporta loiça para a Africa, Brazil
e Inglaterra. Já foi premiado por duas vezes, em
1884 e 1890.
O movimento annual d'esta casa orça por
i:ooo;37500o réis. Mas o proprietário lucta com a falta
de capital, que lhe não permitte ter bons fornos.
A industria em Estremoz está decadente, quasi
ameçada de morte. Quando o Conceição ali se es-
tabeleceu, havia ainda i5 officinas; agora, apenas 5.
Os donos d'essas olarias foram morrendo na po-
bresa, sem deixar descendentes habilitados. Assim
como desappareceu em Estremoz a linda loiça
branca, que ali se fabricava no século XVIII e ainda
no principio do século XIX, a loiça vermelha
tende a desapparecer, e desapparecerá, se a Casa
Alfacinha cessar por qualquer motivo.
O barro, em Estremoz, encontra-se a rodos, por
toda a parte, abundando principalmente nos ater-
ros que em tempo se fizeram para as muralhas.
As bilhas são de duas espécies.
j .^ — Lavradas, com ornatos representando pás-
saros, flores e fructas ; e pedradas, com embrecha-
dos de calcareo muito branco.
O famoso poeta Christovam Falcão, que ' era
alemtejano e viveu no século XVI, descreve as bi-
lhas de Estremoz quando diz :
Ua coifa não lavrada,
Antes sem nenhum lavor,
E em cima, por mais dor,
Ua talhinha pedrada
Ou um pedrado atanor.
122 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREiRA
Christovam Falcão escreve atanor, designando
esta vasilha ; mas no portuguez antigo encontram-se
quatro formas : atanor, atenor, tanor e tenor.
2.* espécie: bilhas lisas, muito polidas, lustrosas;
a simplicidade não lhes prejudica a bellesa.
Em Andujar está garantida a fabricação das ai-
caraças, porque quasi todos os habitantes são olei-
ros.
Em Estremoz, onde a loiça é linda, comquanto
os bonecos, que também lá os fazem, sejam de-
testáveis, a industria agonisa, morrerá talvez.
Mas faz pena isto, vêr os poderes públicos, ver
principalmente a repartição de industria, tratando
de coisas grandes e problemáticas, sem curar de
acudir a uma pobre industria alemtejana, que de-
finha ali em Estremoz á mingua de recursos.
O governo lerá folhetins ? Talvez não. Se lesse,
eu abençoaria a hora em que, principiando por vêr
a procissão de Passos em Carnide, me lembrei da
nota de Filinto e, depois, da projectada exposição
do Atheneu Gommercial, até que vim parar, não
sei bem como, na famosa loiça de Estremoz.
O meu dever é conversar com o leitor ; conver-
sei o que me lembrou.
Se o leitor não gostou, outra vez gostará mais
— se gostar.
1899 — Março.
XIV
o SILENCIO
Durante toda esta semana se fallou de mais.
Um supposto assassino contou a um guarda-por-
tão a historia dos seus crimes.
E desde então toda a gente, imitando o guarda-
portão, começou a faliar, a fallar, a fallar... sem sa-
ber ao certo o que dizia.
Faz lembrar aquella linda canção popular da Gré-
cia, imitada por muitos poetas, segundo a qual dois
namorados se beijaram tendo por única testemunha
o ceu brilhante.
Mas cahiu n'esse momento uma estrella, que foi
contar ao mar o que viu. Passava pouco depois
um navio, e o mar — naturalmente recommendan-
do sempre o maior segredo — contou ao leme esse
terno segredo de amor que havia surprehendido.
O leme não descançou emquanto não disse tudo
ao piloto, que desembarcando o contou logo á sua
amante. E d'ahi a pouco tempo toda a gente o sa-
bia. Até os rapazes da rua cantavam a historia do
beijo.
124 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Com razão disse o propheta Jeremias que o maior
castigo da humanidade, a morte, subiu pelas janel-
las. Ascendit mórs per fenestras.
Santo Ambrósio explica o que sejam estas janel-
las, que se tornaram perigosas por terem estado
abertas.
E' que nossa mãe Eva abriu a bocca para con-
versar com a serpente, a qual também de certo não
fechou a bocca para fallar.
D'estas duas janellas imprudentemente abertas
veio a maior semsaboria da vida : a morte.
Foi como se entrasse uma corrente de ar, que to-
lheu a humanidade inteira.
Eu estou de perfeito accordo com o padre Ma-
nuel Bernardes quando exclama: t Veja se se im-
porta tapar bem esta janella, pois por ella mal ta-
pada entrou a ruina de todos os filhos de Adão »
Li isto ha muitos annos e nunca mais me esque-
ceu.
A's vezes, quando me sinto tentado a fazer uma
confidencia, obedecendo á Índole expansiva de to-
dos osmeridionaes, sinto um braço invisível tocar-me
para me conter.
Já sei quem é Detenho-me. E oiço então a voz
do padre Manuel Bernardes segredar-me ao ou-
vido : .
— Fecha a janella.
E cerro a adufa.
Nunca me arrependi de ter fallado de menos,
pelo que estou intimamente convencido da profun-
da verdade d'aquelle provérbio oriental que diz.: «A
eloquência é de prata; mas o silencio é de oiro. >
NINHO DE GUINCHO 125
E se algum oiro possuo é ainda o silencio. Tam-
bém já não ha outro.
Conta se que existiu um certo bispo, muito lido
nos Santos Padres, que tinha horror de fallar.
Lembrava-se constantemente do apostolo S. Thia-
go, que judiciosamente observou ter sido a taga-
rellice de Eva uma pequena faisca de que se origi-
nou o incêndio de um bosque inteiro.
O silencio constituirá n'esse discreto bispo um
habito inveterado, de modo que se estava doente o
constrangia muito ter de responder ás perguntas
do medico.
Era uma seca.
— Dorme bem, vossa ex.*^'* reverendissima ?
— Não.
— E vontade de comer ?
— Pouca.
— Uma grande apathia, não é assim ?
— Sim.
— Bocca saburrosa ?
— Muito.
— Grande cançaço ?
— Bastante.
Por mais insignificante que fosse a doença, o ques-
tionário do medico era sempre fatigante.
A's vezes o prelado dizia comsigo mesmo : «Quan-
do eu tiver uma doença grande, como poderei atu-
rar o doutor?»
E esta ideia entristecia-o quasi tanto como o te-
mor da enfermidade.
Passaram annos, acabrunhou-se-lhe a velhice,
que é já de si mesma a maior das doenças.
120 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
O coração, o fígado, os rins começaram a regu-
lar'mal, como um relógio que está cançado de tra-
balhar.
Aconselharam sua excellencia reverendíssima a
que chamasse um medico.
— Valha-me Deus ! dizia o bispo coçando na ca-
beça. Os médicos fazem tantas perguntas !
Mas veio o medico, porque os familiares do bispo
assim o quizeram ; na casa dos grandes quem go-
verna são os pequenos.
Realisou-se o que o prelado receiava : maior doen-
ça, maior interrogatório.
Tão fatigado ficou o bispo com as perguntas do
medico, que se lembrou de fingir que estava melhor
só para não ter que aturar outra vez o doutor.
Mas era preciso mentir, e a mentira repugnava-lhe.
— Se eu pudesse fechar a janella... pensava o
prelado.
O medico voltava no dia seguinte e abria-a de
par em par — vidraça e portas.
Se sentia aquillo? se sentia aquelFoutro ? se o re-
médio fizera effeito ? se o havia tomado a horas ?
se não haveria engano nas doses ?
Certa manhã o bispo lembrou-se de que os irra-
cionaes eram mais felizes do que os homens, por-
que não tinham que responder a perguntas nenhu-
mas quando estavam doentes.
Felizes brutos ! pensou o bispo, que se curam sem
fallar !
Sempre cogitando n'esta idéa, de consequência
em consequência, lembou-se de que ali ao pé da
porta do paço morava um alveitar de grande fama.
NJNHO DE GUINCHO I27
Chamou um dos fâmulos mais Íntimos e disse-Ihe
que desejava ser tratado pelo alveitar.
Espantou se o fâmulo ; era a primeira heresia que
tinha ouvido ao seu prelado.
— Faça o que lhe digo, insistiu o bispo. E quero
que elle me trate pelo systema das bestas.
— Meu senhor !
— Não quero abrir a janella, nem que elle tam-
bém a abra, Ascendit mors per fenestras. Quando
os alveitares tratam as cavalgaduras perguntam-
Ihes alguma coisa ?
— Não, meu senhor.
— E não as curam tantas vezes ?
— Sim, meu senhor.
— Os mudos não são tratados á semelhança das
bestas sem que ninguém lhes pergunte coisa nenhu-
ma ?
— São, meu senhor.
— Pois eu, que não sou mudo, desejo que o al-
veitar me trate como irracional. O que pode aconte-
cer de peior? Que me não cure? Mas, ao menos, não
me terá maçado.
Veio o alveitar muito em segredo, e bem indus-
triado pelo fâmulo : que não dissesse nada mais e
nada menos do que dizia ás bestas que tratava.'
Que sim ; que faria do mesmo modo, visto que
era isso o que o senhor bispo queria.
Entrou o 'alveitar e sem dizer palavra apontou
para o leito, indicando ao prelado que se deitasse
para ser examinado melhor.
O bispo obedeceu em silencio.
Então o alveitar, arremangando a camisa, es-
128 COLLECÇÃO ANTONMO MARIA PEREIRA
palmando as grandes mãos calosas, começou a apal-
par as costelias do bispo.
Mas quando chegou a tocar-lhe no fígado, o bis-
po doeu-se tanto, que se contorceu violentamente.
E o alveitar, proseguindo serenamente apostro-
phou :
— Chó !
O bispo gostou muito, porque tinha encontrado
uma pessoa que se propunha tratalo sem gastar
mais que um monosyllabo.
Não ha em verdade maior delicia para o espirito,
nem menos perigosa, do que a de estar entregue
cada um aos seus próprios pensamentos.
Sinto em mim duas costelias de frade cartuxo.
E tenho reconhecido que o silencio triumpha muito
mais que a linguarice.
O duque de Loulé foi o presidente de conselho
que menos tem fallado em Portugal.
Batiam se contra elle os grandes oradores d'esse
tempo, que fôramos maiores do regime parlamentar.
O duque levantava-se, sempre muito correcto na
sua pose elegante, e dizia apenas duas palavras.
Pois eram essas duas palavras que valiam.
Porque a camará, depois de as ter ouvido, sabia
que o governo não tornaria a fallar. . .
E por ellas ficava orientada sobre o que lhe cum-
pria fazer.
Gonta-se que um ancião virtuoso, e visinho da
montanha que hoje se chama Bussaco, ia ali pas-
sar grandes temporadas no silencio do ermo.
Negócios de sua casa obrigavam-n'o a voltar ao
povoado, mas, quando descia da montanha, toda a
NINHO DE GUINCHO 1 29
(
geme pasmava que voltasse remoçado, mais novo e
guapo do que fôra.
Elle dava uma explicação do caso:
— D'aquelle monte saco bus.
Gomo se dissesse : venho saturado de silencio,
que é uma coisa que faz muito bem á saúde.
Ou, segundo a lição do propheta Jeremias: «Fe-
chei a janella emquanto lá estive.»
Crêem alguns que d'estas palavras saco bus veio,
por caprichosa transposição, a dizer-se — Bussaco.
E assim o dava a entender aquelle monge do
painel que estava á entrada da porta no mosteirinho
da serra, e que não sei se ainda lá está, o qual mon-
ge, com o dedo indicador erguido sobre a bocca,
recommendava silencio.
Uma vez encontrei em Mafra uma ingleza velha,
ha muitos annos residente no Porto, que andava
vendo o templo.
Fui achai a no vestíbulo parada deante da ima-
gem de S. Bruno, o fundador da ordem dos cartu-
xos, imagem que, pela expressão da physionomia e
pela verdade das roupas, é uma verdadeira mara-
vilha artística.
Essa dama ingleza, que logo trocou comigo a sua
admiração deante d'essa bella imagem, chamou par-
ticularmente a minha attenção para o bem cinze-
lado do habito, aqui apanhado, ali cabido, com uma
verdade inexcedivel.
— S. Bruno, respondi eu, não precisaria talvez
d'esta bella imagem para sua gloria. Bastar-lhe-ia
decerto a de ter sido o fundador da Cartuxa, cujos
monges pensavam muito e fallavam pouco.
9
l3o COLLECÇÂO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
A dama ingleza voltou a sua luneta para mim e
fixou-me irónica dizendo :
— Pois é um portuguez que diz isso?!
Apaniiei o pião á unha. Senti cahir em cheio so-
bre mim um epigramma, que abrangia todos os
meus compatriotas.
Entramos na egreja quasi ao mesmo tempo.
A ingleza dizia-me coisas, ia chamando a minha
attenção para isto e para aquillo.
Eu não respodia nada. Fechei a janella paradesaf-
frontar o paiz. Quando nos separámos, a ingleza
apertou-me a mão em silencio e foi almoçar para o
hotel Moreira. Se a lição me tinha aproveitado, não
lhe aproveitou menos a ella.
Vinguei Portugal, mas o caso não veio ás gaze-
tas e por isso não cheguei a apanhar uma portaria
de louvor.
Silencio! gelosia da alma, defesa do espirito, que
falta fizeste esta semana!
A faisca, despedida da bocea de Eva, ainda agora
está abrazando o mundo.
Fallou-se nas ruas e botequins a respeito do Bi-
gode. (*) Fallou-se na camará dos pares a respeito
do milho e do trigo. Cada par do reino fallou du-
rante dois dias para mostrar talvez que um par do
reino o deve ser em tudo — até nos dias que con-
some fallando.
(^) Appellido de um individuo julgado e condemnado na co-
marca de Almada como auctor da morte de uma mulher.
NINHO DE GUINCHO l3l
O propheta Jeremias bem dizia do alto da clara-
bóia da sala:
— Fechai a janella.
Ah! bispo! bispo! se tu pudesses resuscitar para
dirigir este paiz, ha muito tempo que elle não seria
tratado senão por alveitares. . .
E talvez já estivesse curado.
iSqq — Abnl.
[
XV
o FUNDADOR DO ASYLO
Era um homem velho, mais de sessenta annos,
nutrido, muito sereno no andar e no fallar, sempre
com um sorriso indulgente nos lábios.
A expressão dos seus olhos, entre generosa e
resignada, revelava uma infinita doçura, calma e
profunda.
Rico, muito rico, tinha regressado do Brazil á
sua terra natal, urna linda cidadesinha do norte do
paiz, onde os salgueiros engrinaldam as margens de
um rio que parece feito de crystal.
A sua familia eram duas filhas, duas creaturinhas
morenas e languidas, cujos olhos tinham clarões
mais brilhantes do que longos. O olhar quebrava-
se-lhes, a breve trecho, n'uma calmaria doce, que
lembrava o apagar de um occaso.
Eram conhecidas pelas — brazileiras — e conside-
radas ^os melhores casamentos de sete léguas em
redor.
O pae, tendo desposado a filha de um capitalista
do Rio Grande, enviuvara aos quarenta annos e,
saudoso da pátria, escolhera para viver aquella mo-
NINHO DE GUINCHO l33
desta terra de província, onde havia nascido pobre.
Não o deslumbraram as grandes capitães da Eu-
ropa, onde a vida é alegre e faustosa. Procurara os
montes e as arvores que primeiro amara. Julgou
não precisar de mais nada para ser absolutamente
feliz na opulência.
Das suas duas filhas, a mais velha principiara a
manifestar symptomas de tuberculose hereditária.
A mãe tinha morrido tysica no Brazil. E para sal-
var a vida da filha, o bra:{ileiro da Praça, como
na sua terra diziam, fora passar alguns invernos na
ilha da Madeira, porque n'aquelle tempo não se
fallava ainda em climas de altitude.
Todos estes cuidados, dispensados a peso de
oiro, apenas conseguiram retardar a marcha da
doença. O bra:{ileiro vira morrer a sua primeira
filha ao cabo de quatro annos de soffrimento, quan-
do já a outra revelava inquietadores signaes d'essa
terrível herança de familia.
N'uma tristeza tranquilla, cheia de resignação e
de conformidade, o bra'{ileiro dedicara- se á vida e
á saúde da sua segunda filha.
Fizera largas viagens por mar, voltara a passar
os invernos no Funchal, n'uma bella quinta que só
tinha sido habitada por lords inglezes e pnn'cipes
russos.
Mas a tuberculose seguira a sua marcha, e o bra-
:[ileiro perdera a segunda filha como já havia per-
dido a primeira.
Ficara só no mundo, com o seu dinheiro que era
muito, e que chegava a pesar-lhe como uma coisa
inútil de que a gente se esquece.
i:'4 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Procurara lenitivos na caridade, fonte inexgota-
vel de resignação.
Mandou construir um vasto asylo para velhos e
velhas e, desde pela manhã cedo até ao fim da tar-
de, elle próprio fiscalisava as obras, estimulava a
actividade dos operários gratificando-os, e indicava
as alterações que julgava preciso introduzir no pro-
jecto do edifício para maior commodidade dos asy-
lados.
Conciuida a obra, que levou muito menos tempo
do que toda a gente imaginava, rapidamente se
povoou o asylo com velhos e velhas, «que não ti-
nham familia.»
Era esta a condição única, que elle impunha na
escolha dos asylados.
Levantando se ao romper da manhã, o brasileiro
sahia logo do seu palacete na Praça em. direcção
ao asylo.
Ia assistir á oração, depois ao almoço. Adoenta-
do ás vezes, nem por isso faltava. O m.ais solicito
empregado não poderia excedel-o no zelo e cari-
nho com que elle tratava «os seus velhos e as suas
velhas», quasi todos rabujentos, muitos d'elles já
dem.entes.
A's vezes um velho, de olhar desvairado, parava
deante d'elle a querer deter-lhe os passos e a di-
zer-lhe :
— E's o meu Ricardo, sim, és tu mesmo. . . Fos-
te embora ha tanto tempo, e não tinhas appareci-
do. . . Ingrato ! . . . Não me lembro bem como isso
foi, mas nunca mais tornaste a apparecer a teu pae.
E o brasileiro, em cujos olhos se avivava mais a
NINHO DE GUINCHO ^ 1 35
expressão calma de profunda doçura, parava a ou-
vjl-o com bondade, sem ousar dizer-lhe uma única
palavra, que pudesse roubar ao pobre velho a illu-
são de ter encontrado seu filho ha muito tempo au-
sente, e talvez já morto.
Havia no asylo uma velha — eu mesmo a vi e ou-
vi algumas vezes — que tinha um ódio profundo ao
brasileiro.
Estava paralytica- das pernas e passava os dias
sentada na cama a regougar ameaças, a cantar, com
voz roufenha, cantigas de uma vaga nebulosidade
apocalyptica, que ninguém podia entender.
Quando via o fundador do asylo, exaltava-se, ges-
ticulava, fazendo menção de aggredil-o; tentava ar-
remessar-lhe a almofada do leito.
— Foi este mesmo, foi este monstro, bramia ella
— que desgraçou a minha Carlota. . . Estás nes pro-
fundas do inferno, monstro I Hei de matar-te um
dia e mandar te de presente ao diabo, que não ha
de ficar rico comtigo.
O brasileiro passava rapidamente ao longo do
dormitório, fugindo para não prolongar a exaltação
da velha asylada.
E ia dizendo: «coitadinha! coitadinha!» cheio de
ternura e de misericórdia.
E voltando-se para o fiscal que o acompanhava
sempre :
— Tratem-n'a muito bem, muito bem. E nunca
procurem convencel-a de que eu não sou o homem
que )ulga. Ao menos, assim, desabafa a sua,,dôr.
Coitadinha! coitadinha!
A' porta da capella, sentada n'um degrau, cos
l36 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
tumava pousar, esbaguando as contas do rosário,
uma velha que resava muito, que resava sempre,
desde que se levantava até que adormecia.
Quando o brasileiro passava, ella erguia-se do
degrau, avançava para elle, detinha-o e dizia lhe:
— Resemos um Padre Nosso pelas almas do Pur-
gatório.
E o bra:{ileiro resava também:
— Padre Nosso, que estaes no ceu, santificado
seja o vosso nome.
Depois, muito satisfeita por ter conquistado mais
um allivio para as almas do Purgatório, a velha do
rosário ia sentar-se no degrau da capella e conti-
nuava a rezar — Padre Nosso.
Quando o brasileiro chegava á secretaria, de cu-
jas paredes pendiam os retratos das suas duas fi-
lhas, demorava o olhar nos retratos, e nunca os seus
olhos pareciam mais doces do que n'essa occasião.
Depois, já sentado na cadeira de couro tauxiado,
que lhe era reservada, dizia habitualmente: Coi-
tadinhos! coitadinhos d'elles, os meus velhos!»
E examinava as contas, as tabeliãs, os mappas,
pagava aos fornecedores, dava instrucções aos em-
pregados.
A's vezes, quando sahia, ouvia cantar a velha
que o costumava insultar, e recommendava ao fiscal:
—Não a desilludam nunca, coitadinha I coitadinha !
E já na rua, se encontrava alguém:
— Venho de ver os meus velhos, que são a mi-
nha íamilia.
1900 — Julho.
XVI
o PAPAGAIO
Entrou o inverno em scena — e a Duse também.
Duas celebridades consagradas, ambas colossaes,
porque uma é o vendaval e o trovão e a outra tem
o que quer que seja de revolta tempestade de talen-
to e de nervos . . .
Ambas inimitáveis, porque a chuva e a trovoada
no theatro ficam muito áquem da verdade da na-
tureza, e a Duse não pode ser copiada por ninguém,
tão complicada é a sua orgánisação artistica, tão
carregados de electricidade vibram os seus nervos
de actriz originalíssima.
Alem do que, o inverno parece-se com os actores
famosos, em não mudar de repertório, visto que
tanto um como os outros dão a volta ao mundo sem-
pre com o mesmo scenario e as mesmas peças.
Assim, a Segunda mulher de Tanqueray e a Trin-
cesa George estalam de acto para acto em ribombos
de ciúme, mas a ^ama das camélias é como um
ICO COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
dia de sol romântico intercallado n'uma semana de
temporal, o que ás vezes acontece e ainda esta se-
mana aconteceu.
Pelo que respeita a toilettes, são roçagantes ema-
gestosas tanto as das grandes invernias como as das
grandes actrizes.
Qualquer dia de cerração, como os que temos ti-
do agora, obriga a natureza a vestido preto cónstel-
lado de gotas d'agua.
Na Segunda mulher de Tanqueray, a Duse appa-
receu também de preto, com pérolas, parecendo
que essa soberba toiletle era realmente feita de nu-
vens e de gotas de agua.
Ha pessoas que gostam muito do inverno, dor-
mindo melhor quando ouvem cahir a chuva ou as-
sobiar o vento, e jantando vorazmente depois de te-
rem apanhado uma formidável molhadella.
Do mesmo modo, ha quem só esteja deliciado no
theatro quando vê em scena famosas celebridades,
embora representem n'uma lingua extranha, de que
se perde pelo menos metade das palavras.
Outras pessoas não gostam senão dos dias sere-
nos e inoffensivos, e tios actores que não façam agi-
tar muito os nervos.
Quanto ao inverno, eu acho-o uma estação insup-
portavel, a mais deprimente de todas para o orgulho
dos homens.
Ver uma pessoa na rua, n'um dia de temporal
desfeito, com as botas enlameadas, o paletot escor-
rendo agua e o chapéu de chuva esfrangalhado, é
humilhante para a nossa espécie.
Não ha celebridade que resista a um aguaceiro.
NINHO DE GUINCHO iSg
Encharcados, todos os homens são iguaes. Perdida
a elegância, o aprumo, a impassibilidade gentil, real
ou apparente, que uma pessoa aífecta possuir quan-
do sai de casa, não fica mais que a «junca do bre-
jo» a que se referia Herculano, uma coisa reles e
mesquinha, o manequim desconcertado pelo vento,
pela chuva e pela lama das ruas.
Resta, é verdade, o recurso do trem.
Mas se o trem tem o que quer que seja de trium-
phal n'um dia de sol, quando parece que vac con-
duzindo heroes e rodando para o Capitólio, n'um
dia de chuva faz lembrar uma carruagem cellular,
que transporta penitenciários empilhados uns con-
tra os outros, dobrados sobre si mesmos, priva-
dos de ver a luz e de respirar livremente.
Um exercito, ainda que marche victorioso, se o
fizer n'um dia de temporal, perde todo o seu garbo
militar, todo o seu brilho marcial, as bayonetas não
scintillam, as plumas não fluctuam, a côr das fardas
não vive.
Quanto a celebridades de theatro, ha muitas pes-
soas que não dão um passo para ir vêl-as.
Teem-lhes medo como á tempestade e contentam-
se de ler nos jornaes a noticia do espectáculo, como
se se tratasse de saber onde foi que na véspera c'aiu
uma faísca eléctrica, ou onde foi que a inundação
causou maiores estragos.
Entram n'este numero as sr. '^ Germundes, que
durante toda a semana não puzeram pé no theatro
D. Amélia e andaram passando as noites por casa
de algumas das suas amigas, as quaes pensam do
mesmo modo a respeito de celebridades dramáticas.
140 COLLECÇÃO ANTONÍO MARIA PEREIRA
Em que se entretiveram todas essas boas senho-
ras nos serões de tão calamitosas noites de inverno,
como as que temos tido agora ?
Nas mil bagatellas que podem entreter a conver-
sação n'uma sala, com alguns números de piano e
alguns expedientes de phantasia para aligeirar as
horas.
Terça feira, noite em que as senhoras Noronhas
receberam, uma d'ellas fallou do seu totó, que pa-
rece ensinado por qualquer palhaço do Colyseu.
Anda a pé, com as mãos no ar, pára, marcha, vol-
teia, segundo as vozes de commando que lhe dão.
Veio á sala o totó para fazer prova publica das
suas habilidades, e todas desempenhou com notável
galanteria.
Levantou-se, íirmou-se, marchou, parou, volteou.
Um encanto!
Mas a D. Gabriella Germunde, que é a mais la-
dina de todas as Germundes hystericas, não se deu
por deslumbrada com esta exhibição maravilhosa
do canito bailarino, e apregoou que o seu papagaio,
que o padrinho lhe trouxera do Pará, não era infe-
rior em habilidades e prendas.
— Que fallava como o José Estevam ! affirmou.
Movimento de incredulidade na assembléa.
— Ora essa!
— Esta Gabriella tem exaggeros !
— O' menina ! por que não fizeste deputado o teu
papagaio?
A Germundesinha estomagou-se.
— Não acreditam ! Pois é certo que apanha um
assumpto no ar e discorre logo sobre elle.
NINHO DE GUINCHO 14I
— Sobre o ar ?
— Nãol sobre o assumpto.
— O' filha! deves andar pelo mundo a mostrar
essa maravilha de bicho.
— Duvidam ainda I Pois como trouxemos o cria-
do, vou mandar buscar o papagaio.
As irmãs gritaram logo :
— Que tolice, Gabriella! deixa-ie de creancices.
Quando estas senhoras lá forem a casa, poderão
vêr.
— Ha de ser hoje, que eu não gosto de estar sob
a suspeita de mentir.
As outras senhoras fizeram coro :
— -Isto não é ponto de honra, Gabriella!
— Olha que não vale a pena !
— Quando nós lá formos.
Mas a Germundesinha quiz liquidar a questão do
papagaio e mandou o criado a casa buscal-o.
Chovia. Disseram-lh'o. Não se importou. Contra-
poz que os criados não faziam apenas serviço no
bom tempo. De mais a mais moravam perto.
Como era de suppor, o criado, quando soube que
ia buscar o papagaio, aborreceu-se.
Estava a namorar uma criada na cosinha das No-
ronhas. Empregou argumentos para não ter qlie
sahir: que o papagaio podia constipar-se; que lhe
faria mal perder o somno, etc.
Mas a Germundesinha bateu o pé com auctori-
dade : que fosse immediatamente.
O criado foi.
Quando elle entrou em casa das Germundes vo-
ciferava :
142 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
— Com uma noite d'estas mandam as toleironas
buscar o papagaio!
O animal abriu os olhos no poleiro e mostrou-se
espantado de que o fossem incommodar áquella
hora.
— Tem paciência, meu bicho I
A cosinheira das Germundes perguntou ao criado
o que tinha vindo fazer a casa para incommodal-a
a abrir a porta.
O criado continuou a vociferar :
— Com uma noite d'estas mandam as toleironas
buscar o papagaio I
E pegando no poleiro, muito indignado, desceu
a escada resmungando.
O guarda-portão, que ouviu bater com força a
porta do segundo andar, accordou no seu cubiculo e
perguntou:
— O' sr. José ! que veio você cá fazer ?
Teve logo a resposta:
— Com uma noite d'estas mandam as toleironas
buscar o papagaio !
E sahiu a porta com o poleiro abrigado debaixo
do chapéu de chuva.
Assim que a Germundesinha, em casa das Noro-
nha», ouviu tocar a campainha, correu ao corredor
a esperar o papagaio.
Estavam tomando chá, á roda da mesa, onde col-
locou o poleiro.
O papagaio parecia mono, dorminhoco.
Mas foi excitado por Gabriella, que lhe bateu as
palmas, maneira habitual de o fazer fallar.
Houve um momento de espectativa anciosa.
NINHO DE GUINCHO 14^
Gabriella insistia com repetidas palmadas e com
algumas phrases de animação e estimulo : «Falia,
meu loiro. Não me deixes ficar mal, meu bicho.»
Finalmente, o papagaio fitou-a muito sereno, re-
solveu-se a fallar e disse de rijo :
— Com uma noite d'estas mandam as toleironas
buscar o papagaio !
1900 — Dezembro.
XVII
VILLA E FIDALGA
No opúsculo A vilan fidalga ou aventuras e trans-
formações da filha de um moleiro conhecida em Lisboa
pela alcunha de D. Marianna Joaquina Franchiost
Rolem Portugal^ publicado em Lisboa (1840) por
Luiz Caetano da Rocha, conta-se que esta D. Ma-
rianna, famcsa aventureira, tinha uma filha cuja
paternidade attribuia a D. iMiguel de Bragança.
Não parece coisa fácil saber se D. Marianna era,
eflectjvamente, a mãe d'essa creança, pois que du-
rante algum tempo a apresentou como sua afilhada,
filha de uma mulher que lhe fazia serviços, e de-
pois a declarava sua filha e de D. Miguel.
Também se dizia que era filha de um inglez.
A própria D. Marianna, se realmente era mãe da
creança, não saberia dizer ao certo quem fosse o
pae, tão variada e numerosa foi a galeria dos seus
amantes.
Uma coisa, apenas, parece bem clara : é que D.
Marianna teve relações intimas com D. Miguel, cu-
NINHO DE GUINCHO I45
jos aposentos frequentava dia sim, dia não, e cuja
causa politica servia fazendo espionagem.
Camilio Gastello Branco encontrou no folheto
de Luiz José da Rocha a mãe e a filha, que intro-
duziu como personagens no romance O carrasco de
Victor Hugo José Alves.
Diz ahi, para conduzir a acção da novella, que
D. Marianna era a mesma dona da casa de hospe-
des, onde o príncipe Lichnowsky se aposentou na
rua do Corpo Sanco, junto ao Cães do Sodré.
E' certo que D. Marianna teve uma hospedaria,
mas em outro local : ao pé da Praça da Figueira
na rua dos Douradores,
A pessoa a quem o príncipe Lichnowsky se re-
fere não se chamava Marianna; era a Carlota dos
pés grandes, cuja filha, sua e de D. Miguel, foi D.
Maria da Assumpção de Bragança, que falleceu em
Roma no mez de julho de 1897.
Devo ao marquez de Vallada, que chegou a co-
nhecer a Carlota dos pés grandes., a informação de
que ella fora a mãe d'aquella princesa bastarda, e
de que tivera, ao Corpo Santo, a casa de hospedes
onde Lichnowsky se aposentou
Camilio urdiu phantasiosamente, sobre o folheto
de Luiz Caetano da Rocha o enredo do Carrasco
de Victor Hugo José Alves.
Apenas corresponde á verdade histórica a iden-
tidade de D. Marianna, cuja vida, n'um impulso de
vingança, o Rocha assoalhou cruelmente, se bem
que ella tivesse sido uma aventureira que explorou
o amor escorripichando, sedenta, os corações e as
algibeiras do próximo.. . masculino.
146 COLLECÇÂO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
No romance de Gamillo, a filha de D. Marianna
e de D. Miguel, se é que o foi, chama-se Maria José,
luveira estabelecida na rua Nova da Palma, depois
condessa de Baldaque.
A filha da Carlota dos pés gi^andes, que o roman-
cista identificou imaginosamente com a filha de D.
Marianna. viveu em Roma sustentada por uma pe-
quena pensão do Instituto Portuguez de Santo An-
tónio.
A folha parisiense O Figaro, de 10 de julho de
1897, dando noticia do seu fallecimento, dizia ter
havido um momento em que D. Maria d'Assumpçáo
de Bragança esperou obter a situação de princesa de
sangue, mas que a morte de el rei D. Luiz impedi-
ra que os seus desejos tivessem solução favorável.
Isto não é verdade, nem o podia ser, segundo o
decreto de 18 de março de 1884 e a carta de lei
de iq de setembro do mesmo anno.
O que é certo é ter o papa Pio IX querido reco-
nhecer D. Maria d'Assumpção como filha de D.
Miguel de Bragança, e ter o cardeal Antonelli con-
trariado este desígnio por se não saber se relativa-
mente á mãe haveria algum impedimento canónico.
Posto isto vamos n'um relance contar a biogra-
phia de D. Marianna, a famosa aventureira, que teve
intimidades com D. Miguel de Bragança.
Esta mulher, segundo a versão do folheto A vi-
lan fidalga, é um typo completo de romance rea-
lista.
Precedeu Zola e todos os outros luminares da
photographia litteraria que reproduz em flagrante os
costumes torpes.
NINHO UE GUINCHO I47
Foi baptisada aos 2 de novembro de 1797 na
freguezia da Santa Izabel em Lisboa, como filha de
Euzebio Joaquim, moleiro em Azeitão, e de Ma-
rianna Joaquina, recebendo o mesmo nome da
mãe.
Muito nova ainda, fugiu ao pae com um official
de marinha, que a trouxe para Lisboa, onde lhe poz
casa junto á Fundição
Depois, rotas essas ligações, teve artes de apanhar
um marido acommodaticio, João Lopes Gonçalves,
natural da Covilhã, sombreireiro de profissão, com
quem casou em Villa Fresca de Azeitão a 25 de ou-
tubro de 1814, tendo ella de;iesete annos de idade.
A breve trecho o marido fugiu-lhe, talvez por se
desenganar de que Marianna era rebelde á rehabi-
litação canónica.
De 1817 para 1818 vamos encontrai a em casa de
madame Chapsal como criada de servir.
Quatro annos depois, Marianna tinha achado me-
lhor collocação como governante de um padeiro
rico^ Manuel Rodrigues, estabelecido na travessa do
Secretario da Guerra e domiciliado n'um i." andar
do pateo do Picadeiro a S. Carlos.
A esse tempo, a aventureira assignava-se Ma-
rianna Joaquina da Conceição Elisia, nome plebeu,
em que aliás denunciava uma certa tendência para
futura aristocratisação.
iMarianna puxava-se aos Elisios.
Cinco annos durou a cohabitação com o padeiro.
Mas um beilo dia Marianna passou-lhe o pé, rou-
bando-lhe anneis de diamantes, colheres de prata,
dinheiro e roupas.
148 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
O padeiro deu querella em juizo. e Marianna foi
pronunciada como ladra.
Mas não consta que fosse presa, certamente por-
que a esse tempo já dispunha de protecções valio-
sas e. . . numerosas.
Os valores subtraidos ao padeiro serviram-lhe
para estabelecer na rua dos Douradores uma hos-
pedaria, destinada a fins occultos, e muito bem fre-
quentada.
Ahi encontrou Marianna Joaquina não só fregue-
zes, mas também apaixonados, que ella acccitava
sem olhar a idades, e sem distincção entre paisanos
e militares.
Assim foi que teve por amantes Luiz da Motta
Feo, o coronel de milicias Barrão, o tenente de ca-
vallaria A^ntonio Sicard, um tal Rego cuja posição
social ignoro, e o desembargador Ferraz, a cuja
casa, na travessa do Pombal, Marianna Joaquina ia
todos os dias.
Foi com o auxilio do desembargador que ella co-
meçou a aristocratisar-se.
Largou a hospedaria e a rua dos Douradores,
vindo morar para o largo do Carmo.
Subia. Já lhe não servia a Baixa.
O desembargador Ferraz, cabelleira lamecha, ati-
rou com a beca por cima dos moinhos, e entregou-
se d'alma e vida aos encantos de Marianna Joaquina.
Poz-lhe carruagem, e esteve por ura triz a accei-
tar a paternidade de um menino de que fora padri-
nho e de que ella se dizia mãe, o qual tinha sido
baptisado como filho de pais incógnitos na fregue-
zia de S. Nicolau.
NINHO DE GUINCHO 149
A esse tempo já a famosa aventureira se intitu-
lava D. Marianna Joaquina de Portugal, no que aliás
não mentia, por ser effectivamente Marianna Joa-
quina, e de Portugal — por ser portugueza.
O desembargador Ferraz morreu quasi de re-
pente, e Marianna apoderou-se de um bahu em que
elle tinha os seus papeis.
A fim de que não pudessem facilmente encon-
tral-a, nem ao bahu, mudou-se furtivamente do
largo do Carmo para o Paço do Boi Formoso.
Cada vez mais audaciosa, tentou conseguir que
o prior de S. Nicolau alterasse o assento de ba-
ptismo do menino, de modo que figurasse como pai
o desembargador, que por procuração se havia feito
representar como padrinho.
Uma trapalhada.
O prior resistiu a esta tentativa de suborno, e
Marianna Joaquina teve artes de arrancar ao. vigá-
rio geral do patriarchado uma ordem para que o
referido parocho fizesse investigações sobre a pa-
ternidade authentica do menino.
Foram ouvidas como testemunhas trez mulheres,
indicadas por Marianna Joaquina, mas o prior de
S. Nicolau surprehendeu-as cm contradicções, que
plenamente lhe confirmaram o embuste.
Finalmente, um preto, de nome José de Faria,
que alternadamente tinha sido criado do prior e de
Marianna Joaquina, poz tudo a claro : declarou que
ella havia comprado o menino para o impingir ao
desembargador, primeiro como afilhado, depois
como filho.
Aqui falhou a audácia, porque a trapaça não pegou.
lOO COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Continuando a subir na escala da sua profissão,
Marianna Joaquina principiou a habitar prédios ca-
ros, nas ruas da Emenda e da Magdalena.
Não lhe foi difficil captar as boas graças de D.
Diogo de Menezes Ferreira d'Eça, terceiro conde
da Louzã, ministro e secretario dos negócios da fa-
zenda em 1828, no governo do infante D. Miguel.
Data d'esta época o valimento politico de Ma-
rianna Joaquina, que principiou a explorar a indus-
tria de protectora de pretendentes.
De ministro para cima estava natural e logica-
mente indicado o príncipe reinante : por isso Ma-
rianna Joaquina tratou de enfeitiçar o infante D.
Miguel, crescendo em audácia a ponto de lhe que-
rer impingir uma filha por o mesmo processo que
tinha seguido com o desembargador Ferraz.
Quando veio D. Pedro, D. Marianna Joaquina
Franchiosi Rolem Portugal tinha-se naturalisado
franceza.
Diz Luiz Caetano da Rocha que seria para mais
facilmente poder evitar que a policia liberal a per-
seguisse como creatura de D. Miguel e dos migue-
listas.
A causa não pôde ter sido esta, porque um do-
cumento, que o próprio Rocha publica, mostra que
já em i83i, isto é, antes de vir D. Pedro, Marian-
na Joaquina tinha adoptado o appellido Rolem,
graphado á portugueza ; e que o moleiro de Azei-
tão e a mulher, para favorecerem a nobilitação da
filha, haviam declarado perante um tabellião que
elles não eram seus pais, nem parentes, mas que Ma-
rianna lhes tinha sido confiada na infância para crear.
NINHO DE GUINCHO l5l
Pendo a crer que a aventureira, estonteada pela
convivência do ministro da fazenda e do principe
reinante, apenas pretendia aristocratisar-se, e que,
para maior verosimilhança de uma origem nobre,
inventou que não era filha de seus pais e que sendo
— de Portugal — não era portugueza.
Dignos pais de tal filha! digna filha de taes pais!
Em 1839, Luiz Caetano da Rocha, o auctor do
folheto A vil layi fidalga, quiz fazer valer um titulo
de divida que Marianna Joaquina lhe tinha passado.
Ella declarou em juizo que a sua assignatura havia
sido falsificada por elle.
O Rocha foi processado, esteve 80 dias preso e,
na audiência para ratificação da pronuncia, o juiz
obstou a que o advogado do réo, o dr. António
José Dique da Fons&ca,.puzesse ao sol toda a vida
de Marianna Joaquina, lacuna que o próprio Rocha
depois suppriu publicando o folheto em seu desag-
gravo.
O jury não ratificou a pronuncia; e reconheceu
ter havido dolo na querella
O delegado do ministério publico não teve mão
em si que não censurasse fogosamente os jurados
em pleno tribunal.
Depois' de 1840 perde-se a pista de Marianna
Joaquina Franchiosi Rolem Portugal.
Ella devia ser ainda uma bcUa mulher de 46 an-
nos, cuidadosa e ciosa do seu corpo, que tão lucra-
tivos serviços lhe havia prestado.
E' de suppôr que causasse outros damnos e con-
flictos, porque lhe estavam na massa do sangue as
manhas de aventureira seductora.
l52 COLLECÇÁO ANTONIU MARIA PEREIRA
E O que o berço dá a tumba o leva.
Camillo explorou libcrrimamente o opúsculo de
Luiz Caetano da Rocha, e em parte o contrariou
fazendo suppôr aos leitores do Can^asco de Victor
Hugo José Alpes, que Marianna Joaquina não era fi-
lha do moleiro de Azeitão, mas sim quarta neta de
uma filha de Aífonso VI.
Uma filha de Aífonso VI parece coisa inverosí-
mil.
Tanto mais que teria nascido de uma Catharina
Arrais, a qual havia fugido de Coimbra com um
primo, Manoel Arrais, e com elle vivia quando lhe
foi violentamente arrancada dos braços por ordem
de Affonso VI.
Para o effeito da paternidade acho que o Arrais
seria mais apto marinheiro do que o platónico pi-
loto que succedeu no throno a D. João IV e que,
segundo reza a fama, naufragou sempre nos mares
deleitosos do amor.
Quer isto dizer que não creio nada na historia da
filha de Aífonso VI, e que Marianna Joaquina nem
foi neta de reis, nem mãe de príncipes, mas ape-
nas — o que já não é pouco — uma aventureira de
trez assobios.
1901 — Janeiro.
XVIII
A MENINA DOS ROUXINOES
No dia i.*" de setembro de 1901 passei algumas
deliciosas horas no logar de Argemil, concelho e
fregaezia de Santo Thyrso, onde um parente e
amigo meu, Guilherme da Gosta Leite, me oíFere-
ceu um jantar de familia e uma festa campestre.
N'esse dia, que não posso esquecer, por muitas
vezes me acudiu ao espirito o nome de Garrett, e
não sei que vaga mas insistente lembrança das Via-
gens na minha terra.
Isto até certo ponto explica-se.
Eu também andava viajando na minha terra, não
ao sul, como Garrett, mas ao norte, e n'uma pro-
vinda, que Almeida Garrett conheceu e amou, onde
residem pessoas que teem o seu appellido.
Argemil é um logar deleitoso, á beira do Ave,
eapaz de competir em formosura e amenidade com
o Valle de Santarém, o antigo, que o actual está
muito mudado e diíferente do que era.
Garrett pintou assim o Valle : «não ha ah nada
grandioso nem sublime, mas ha uma como sj^me-
l54 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
tria de côres, de sons, de disposição em tudo quanto
se vê e se sente, que não parece senão que a paz,
a saúde, o socego do espirito e o repouso do cora-
ção devem viver ali, reinar ali um reinado de amor
e benevolência».
No tempo em que Almeida Garrett o visitou, era
aquelle logar muito mais pittoresco do que hoje é.
Toda a região de vinhos desde o Cartaxo até ao
Valle de Santarém cançava pela sua monotonia, e
uma aridez desolada extendia-se em vasta charneca
até ao ponto em que se encontrava o caminho do
Valle.
Era uma azinhaga onde a vegetação crescia livre-
mente. A um dos lados deslisavam as aguas de um
arroyo claro. Lindo prologo do Valle, que finalmente
apparecia, sempre bello, delicioso pomar de laranja
onde, no tempo da flor, os aromas que se espalha-
vam no ar eram inebriantes e suavíssimos.
Tudo isto preparava agradavelmente o espirito,
dispondo-o para os devaneios da imaginação.
Fácil foi, pois, a Garrett, a um tal homem como
Garrett, poetisar a casa do Valle e encantar-se
deante da janella onde uma cortina branca deixava
entrever o vulto de Joanninha, a menina dos rouxi-
noes e dos olhos verdes
Eu sempre estive capacitado de que Joanninha
era a recordação de uma pessoa querida na vida de
Garrett, posta ali, n'aquelle então formoso Valle de
Santarém, como se pôe uma tela de estimação na
melhor moldura que pôde encontrar-se, embora a
tela tenha vindo de longe á procura de moldura
condigna.
MNHO DE GUINCHO IDS
Lancei os olhos para o passado do poeta, em
bus;a de uma prima, de uma companheira e amiga
de infância, de uma creatura meiga e boa, talvez
nada formosa, que, annos volvidos, lembra de re-
pente com profunda e doce saudade, n'um sitio em
que a gente experimenta um grato bem-estar do
espirito no meio da paz e da harmonia da natureza.
Disse isto uma vez ao dr. Carlos Guimarães,
genro de Garrett. Elle não repelliu esta hypothese
e ficou de fazer uma revisão a toda a correspon-
dência intima do poeta, no empenho de encontrar
algum documento que me desse razão. Achou uma
carta, de uma prima, que vivia na quinta da Car-
reira, em S. Miguel das Aves, actualmente conce-
lho de Santo Th3Tso, também.
E essa prima chamava-se «Joanna», e na carta
fazia recriminações a Garrett por a ter esquecido
na vida tumultuosa de Lisboa.
Gritamos : «Eureka !» Mas appareceu também um
retrato da sijsnataria da carta, e esse retrato— Deus
meul — abriria conflicto com a esthetica de qualquer
poeta vulgar, quanto mais um poeta de tão fino
gosto como Garrett.
Não ha duvida que as Viagens dizem a respeito
da menina dos rouxinoes : «Joanninha não era bel la,
talvez nem galante siquer no sentido popular e ex-
pressivo que a palavra tem em portuguez, mas era
o typo da gentileza, o ideal da espiritualidade.»
Eu não vi o retrato, mas encontrou-o e viu-o o
dr. Carlos Guimarães, que o deve ter deixado no
seu espolio; e foi elle mesmo, o genro de Garrett,
que me disse e affiançou que a «prima da Carreira»
l66 COLLECÇÀO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
não revelava nenhum traço de identificação com «a
menina dos rouxmoes.»
Mas a carta lá estava — e deve estar no espolio
do dr. Carlos Guimarães — e continha queixumes,
lamentações da signatária por haver sido esquecida,
talvez em razão de não ser bella, nem sequer ga-
lante como a menina dos rouxinoes, e nem ao me-
nos tão gentil e espiritual como ella.
O que restava, pois ? Identificar a alma dedicada,
leal e dolorida da «prima da Carreira» com a gentile-
za, a graça, a physionomia e a figura de outra mulher.
Ora isso é o que eu vou fazer.
Tenho que fallar, portanto, de duas mulheres.
Comecemos pela primeira, a prima. A boa lógica
manda começar pelo principio.
A prima de Garrett tinha duas irmãs : uma, An-
tónia, que desposou José de Menezes, residente na
Gollegã ; outra, Maria Antónia, que parece ter sido
freira professa em Aveiro.
Seus pais chamavam-se Thomaz de Aquino e
Almeida e D. Anna Lima Barreto.
D'este consorcio também houve um filho : foi o
cónego Thomaz de Aquino de Lima e Almeida.
Joanna deixou todos os seus bens a uma senhora
D. Thomasia Maria Amália do Amaral, creio que
sua sobrinha.
Foi esta senhora que por sua vez deixou em tes-
tamento a quinta da Carreira a Alexandre Gar-
rett *, irmão do poeta.
1 Pai de Rodrigo, José Maria e Gonçalo Garrett ; este ul-
timo é lente de mathematica na Universidade.
[
NJNHO DE GUINCHO 167
O registo do testamento fez-se na administração
do concelho de Santo Thyso em 27 de abril de
i838.
A testadora deve ter fallecido n'essa occaziao em
S. Miguel das Aves, solteira.
A quinta da Carreira ficou pagando uma pensão
á baroneza de Almeida. Quando esta titular falle-
ceu, a pensão passou para sua irmã D. Henriqueta
de Menezes. Estas duas irmãs eram mais próximas
parentas de Joanna que os Garretts.
Eis aqui o que eu pude averiguar á cerca da pri-
ma de Garrett, segundo os apontamentos que me
deu o dr. Carlos Guimarães.
Resta tornar a dizer que era feia, tando um boc-
ca quazi defeituosa pela má implantação dos den-
tes.
Mas esta «prima da Carreira», que chorava sau-
dades do primo, c que lh'o dizia, chamava-se «Joan-
na», que foi o nome que Almeida Garrett poz á
menina do Vaile.
O Carlos das Viagens era prim.o de Joanninha^ e
Garrett era primo da menina da Carreira.
Eu creio ainda que a Joaninha do Valle é a Joan-
ninha da Carreira ao menos no nome, no parentes-
co e por suave recordação de infância.
Em tudo o mais. , . ha outra. Quem é?
Procurei sabel-o por intermédio duma pessoa que
conhecesse a preceito o Valle de Santarém.
Essa pessoa appareceu, foi o meu illustre amigo
e digno par do reino sr. Luiz António Rebello da
Silva, filho do fallecido e brilhante escriptor d'estes
appellidos. Tem casa no Valle, herdada de seu avô,
l58 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
desembargador ; casa que serviu de quartel gene-
ral ás brigadas que ali se acantonaram em 1810,
i833 e 1846.
O sr. Rebello da Silva, para me obsequiar, co-
lheu o depoimento de um velho do Valle, Belchior
da Costa, que tem perto de 90 annos, e toda a lu-
cidez de espirito, ainda.
Oiçamos o que disse a tradição oral colhida no
Valle':
O nonagenario Belchior da Costa crê que a «me-
nina dos rouxinoes» fosse D. Maria Ritta de Oli-
veira, tia de Rodrigo da Costa Alvares, senhora
muito intelligente, instruída e sympathica. De mais
a mais, tinha os olhos verdes.
No tempo em que o visconde de Almeida Gar-
rett passou no Valle, Rodrigo da Costa Alvares,
residente na casa onde actualmente está a viuva
Monteiro, trazia de arrendamento a quinta do Bico,
onde, em pleno Valle, D. Maria Ritta ia passar
muitos dias.
Não admira que Almeida Garrett a visse, e re-
parasse na côr dos olhos, e conversasse a dama, e
ficasse encantado com a sua graça e intelligencia.
Nem também deve admirar que, por conveniência
social, lhe occultasse o nome, e fosse buscar para
ella o nome da aprima da Carreira», ao qual viria
presa alguma recordação da infância: assim tam-
bém o verde frouxel do musgo vem preso á pedri-
nha que se arrancou a um muro velho como recor-
dação de algum logar.
Não se me dá de apostar que a «prima da Car-
reira» teria os olhos pretos, a que Garrett chamou
NINHO DE GUINCHO 1 Bg
OS mais sinceros e leaes. Leaes e sinceros, porque
ainda o viam de longe, e choravam por elle. Con-
fessa Garrett que «nasceu» na religião dos olhos
pretos. Mas uma única ve^ na sua vida viu os
olhos verdes, e encantou-se. Foi quando passou no
Valle, e encontrou D Maria Ritta de Oliveira.
iq02 — Abril.
XIX
o PRIMEIRO TORMENTO DE UMA RAINHA
Toda a correnteza de lindas salas,, que constituem
o pavimento inferior do palácio de Queluz, brilhava
n'uma ardentia immensa de candelabros, talha dou-
rada e espelhos, como se um polvilho luzente e pal-
pitante cahisse do ar esvoaçando n'um incessante
adejo.
As paredes, ouro e crystal. O chão em mármore
de cores e xadrez de madeira com phantasiosos em-
butidos. Os tectos caprichosamente apainelados por
notáveis pintores. O mobiliário sumptuoso e des-
lumbrante : tremós e cadeiras do tempo de D. João V,
adquiridos pelo infante D. Francisco ; grandes ta-
lhas do Japão, especialmente n'uma das salas, a que
deram o nome ; escabellos e tamboretes, branco e
oiro, estofados depreciosas almofadas de Damasco
azul ou vermelho; coxins e supedáneos de velludo
escarlate com altos relevos doirados ; columnas de
ébano torneado sustentando bustos e estatuetas ;
jarras da índia guarnecidas de preciosas flores ar-
NINHO DE GUINCHO l()I
tificiaes manipuladas nos conventos de freiras; co-
fres de madre-perola, de tartaruga, de xarão, de
prata repoussée, alguns de oiro, cravejados de pedras
preciosas \ infinidade de custosos bibelots vindos de
longe por mimo realengo e esparsos sobre os con-
tadores e as misulas.
Todas as portas, abrindo sobre o jardim, deixa-
vam entrar a frescura da noite, o aroma das flores,
o murmúrio da agua.
Das arvores pendiam lanternas multicores, que
esmaltavam a verdura e illuminavam os canteiros,
riscados á italiana, as estatuas, os vasos de már-
more, as estufas, os lagos, os repuxos, os canaes e
as pontes.
A grande cascata, por entre jorros de agua e de
luz, liquefazia diamantes que rolavam cantantes e
phosphorescentes sobre um fundo esculptural de
mármore branco.
No vasto terreiro, que se enobrece com a fachada
do palácio, muito embrincada de ornatos, jónicos
e dóricos, ardiam fogueiras e cantavam saloias, ce-
lebrando, sob o favor real, a noite tradicionalmente
alegre do Precursor.
Em Queluz podia haver serenins e opera em qual-
quer noite do anno, distracção predilecta da corte
de D. Maria I, como já o fora no tempo de seu pae :
a pintura do tecto n'uma sala do palácio testemunha
ainda hoje as aptidões musicaes da familia real por-
tugueza, guiadas sob a direcção do maestro David
Peres.
Mas as duas noites de maior brilho e animação
em Queluz, durante todo o anno, eram a de S. João,
II
102 COLLECCÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
por tradição popular, e a de S. Pedro, nome do
marido da rainha, seu tio paterno.
A' festa da corte, n'essas privilegiadas noites,
correspondia a festa da rua. Duplicava-se o regosijo,
fora e dentro do palácio:, dir-se-ia uma obra com-
posta em dois tomos e inspirada por uma alegria
commum.
Na corte resplandeciam ainda os últimos fogachos
de grandeza cezárea, que D. João V re:juintára com
os olhos postos em Luiz XIV , e que tendiam a apa-
gar-se agora, como um sol no ozciso A realeza,
amparada pela frouxa mão de uma ramha timida
e excessivamente escrupulosa, decahia de antigas
pompas e do fausto que a engrandecera. No palá-
cio dos nossos reis ia se perdendo a alegria de vi-
ver, a consciência e orgulho do poder real. Era como
se tivesse soado a ultima hora das magnificentes
elegâncias, copiadas de França ; do esplendor dos
saraus, das caçadas e dos torneios; das aventuras
amorosas de capa e espada ; e até d'essa polychro-
mia estonteante dos estofos vivazes que revestiam
as salas e os corpos n'uma opulência de cores, que
as duas cortes de Luiz XIV e Luiz XV haviam posto
em moda.
O cezarismo amara as tintas claras, os tecidos
luminosos, as jóias rutilantes, as fitas e plumas
variegadas.
Era um symptoma inconsciente da sua própria
vitalidade.
Na rua, as festas populares reflectiam, ainda ao
iniciar-se o reinado de D. Maria I, o brilho de que
se opulentava o devocionário dos reis.
NINHO DE GUINCHO lÓ3
As de Queluz, no S. João e S. Pedro, eram rui-
dosas e largamente subsidiadas pela munificência
régia ^ além das fogueiras e descantes, havia um
grandioso fogo de artificio, a que a família real vi-
nha assistir da ampla janella do pavilhão central.
Na corte, o esplendor dos saraus tinha a alimen-
tal-o não só os últimos vestígios do cezarismo mo-
ribundo, mas também a feliz coincidência de haver
em torno da rainha um grupo de princesas suas
irmãs, que, juntando-lhes todas as suas camareiras,
damas de honor, donas da camará e açafatas, cons-
tituíam uma interessante e graciosa constellação
feminina.
E já Francisco I, o mais entendido dos monar-
chas em assumptos de galanteria, havia dito com
grande conhecimento de causa : que uma corte sem
mulheres é um anno sem primavera e uma prima-
vera sem rosas.
N'este requisito essencial, a corte de D. Maria I
devia contentar os mais exigentes.
A começar pela rainha. . .
Quando sua magestade subiu ao throno tinha já
completado quarenta e dois annos de idade, e havia
dezesete que estava casada. Era mãe de seis filhos.
Não fora nunca um modelo de belleza, mas devia
considerar-se um perfeito exemplar de raça fina.
Aspecto nobre e insinuante, maneiras ao mesmo
passo discretas e suaves : o que quer que fosse de
auctoridade e brandura.
Lord Beckford, tão sabido em coisas de corte,
exigente como estrangeiro e artista que era, viu a
rainha de Portugal e achou-a talhada para exercer
164 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
O mando, porque ao mesmo tempo diíFundia respeita
e agrado.
A infanta D. Marianna, pouco mais nova que a
rainha, conservava nas suas linhas geraes o typo de
familia ; era distincta, se bem que menos brilhante
que as outras suas irmãs.
Faltava já no grupo uma infanta, D. Maria Fran-
cisca Dorothea, que a morte acommettera aos
trinta e dois annos de idade.
Mas a infanta D. Maria Benedicta, quarta filha
de el-rei D José, tinha belleza e prestigo de sobra
para compensar com seus encantos, n'esta florida
corbelha de princesas, a perda de uma d'ellas, por
mais estimável que fosse
Era agora princesa árt Brazil, pois casara com
seu sobrinho o príncipe herdeiro D. José, rapaz de
quinze annos apenas, mas já de tão levantados es-
píritos e graves maneiras, que toda a corte e todo
o reino punham n'elle os olhos como na promessa
de um grande rei.
N'esta noite de S. João, do anno de 1777, esta-
vam noivos de quatro mezes, adorando-se um ao
outro como desposados felicíssimos; que a distincção
das mulheres attenua-lhes a idade no amor, e a
princesa parecia ter tanta mocidade como o príncipe,
comquanto se differençasse no dobro dos annos.
A rainha, acclamada havia pouco mais de um
mez, estava tranquilla e contente das alegrias de
familia e do ligeiro gravame que lhe davam então
os negócios do Estado.
Não tinha desgostos como esposa, porque se ha-
bituara honestamente á convivência de um marido,
NINHO DE GUINCHO 1 65
que, falho de dotes superiores, não merecia pos-
suil-a ; e, mãe e irmã dedicada, estimava ver tão
bem encaminhado o futuro do principe herdeiro,
aUiado ao de uma princesa que deveria fehcitar o
marido e o reino.
Politicamente, a situação parecia bem definida e
calma ; dir-se-ia que todo o passado se apagara com
um só golpe de penna, sem deixar vestigios. Os
nobres e os jesuítas ejstavam satisfeitos, em caminho
de plena rehabiliiação.
O marquez de Pombal fora ja apelado com um
simples decreto, apparentemente honroso; os presos
regressaram a suas casas e famílias ; aos desterra-
dos mandou a rainha levantar o interdicto.
O indulto geral serenara, no primeiro momento,
os ânimos; e a revisão dos processos, exigida pela
nobreza, acabaria certamente por sentenciar a inno-
cencia de vivos e mortos.
Era o inicio feliz de um reinado, que se annun-
ciava de clemência e paz, tanto enganam as primei-
ras horas nas grandes emprezas, e não ha empreza
maior que a de governar nações e acalmar ódios
antigos
Cada aurora traz um sorriso de esperança, mui-
tas vezes maliogrado, e n'aquelle mez de junho de
1777 amanhecia sereno o reinado tempestuoso de
uma rainha infeliz.
Das festas de Queluz apenas poderiam blasphe-
mar os amigos do marquez de Pombal, se elle os
tivesse ainda. Mas onde costumam estar os amigos
dos ministros decahidos ? Ninguém os viu, nem tem
visto, na hora da desgraça.
l66 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Toda a corte folgava, pois, e com ella a rainha,
e com a rainha o povo.
Que o povo deixa-se embair como as creanças ;
recebe os golpes e não os sente logo.
Começara o sarau do paço de Queluz por um
serenim em que a princesa do Brazil brilhara, como
sempre, na interpretação de uma ária de Jomelli.
Depois viera a familia real á janelia para ver quei-
mar, entre saudações e applausos populares, o fogo
de artificio.
Foi ahi que a camareira-mór, D. Constança Ma-
nuel, marqueza de Tancos, principiando a notar
certo constrangimento na rainha, lhe perguntou :
— Sente vossa magestade alguma indisposi-
ção ?
— Nenhuma, respondeu D. Maria I sorrindo com
o nobre agrado que lhe era peculiar.
Se não era indisposição, o que poderia ser ? O
povo estava contente, a corte rambem. E a voz
queixosa do marquez de Pombal, desterrado, não
podia ouvir-se ali. . .
Mas a rainha, para quem de perto a conhtcia,
tinha o que quer que fosse que a inquietava.
Também a princesa do Brazil o notou, e o disse
ao marido, que foi interrogar a mãe.
— Nada, meu filho, não tenho nada que me aíflija.
E' apprehensão vossa.
Mas o fogo de artificio ardera e a familia real re-
gressou ás salas para dançar o minuete de Haydn,
que era o epilogo obrigado de uma noite de festa
palaciana.
A rainha, ao tomar assento no throno, ao lado
NINHO DK GUINCHO 167
de seu marido, viu o truão Falperra fazer duas mo-
mices graciosas e, contra o seu costume, ficou in-
ditíerente.
O arcebispo de Thessalonica, espirito alegre e
desempoeirado, confessor da rainha, notou este facto
e, subindo os degraus do throno, aproximou-se de
sua magestade, fallando-lhe ao ouvido.
D. Maria I respondeu-lhe também em muita con-
fidencia.
O arcebispo sorrira. Entre confessor e confessada
não havia segredos : elle tinha o direito de pergun-
tar ; ella o dever de responder. Se era um escrú-
pulo que inquietava sua magestade, de pouca mon-
ta devia ser, pois que o arcebispo tinha sorrido. Mas
algum mysterio desvendara elle, que tornou atraz
para lembrar á rainha a humildade de Job no sof-
frimento :
— Levo um cilicio cosido sobre a minha pelle, e
cobri de cinza a minha carne.
O mestre-sala D. Antão de Almada bateu palmas
e logo a musica da real camará deu o alamiré do
minuete.
Organisaram-se os pares.
A rainha mandou convidar para seu parceiro o
velho duque de Lafões, ágil e distincto ainda apvesar
de velho. A escolha de sua magestade tinha eviden-
temente um propósito politico. O duque, D. João
de Bragança, acabava de voltar do desterro a que
o marquez de Pombal o havia condemnado. De
modo que o braço da rainha, encurvando-se no mi-
nuete para encontrar a mão do duque de Lafões,
era como um arcoiris, signal ostensivo de alliança,
l6S COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA HERlilRA
que se desenhasse benigno entre a monarchia e a
nobreza.
El-rei D. Pedro dançou com a duqueza D. Hen-
riqueta, certamente por indicação da rainha, para
tornar ainda mais evidente o alto significado politi-
co da reconciliação.
O principe D. José teve como parceira a sua noi-
va, tão enamorados andavam aquelles recem-casa-
dos ditosos, a quem a lua de mel sorria promessas
de longa felicidade, que uma prematura catastro-
phe mallográra.
Teve este minuete algum tanto de bellamente
mythologico, porque n'elle figuraram as Tr^e:^ Gra-
ças. Assim eram designadas na corte as encanta-
doras filhas do marquez de Marialva : D. Maria do
Carmo, marqueza de Loulé; D Joaquina, marqueza
de Louriçal ; D. Henriqueta, duqueza de Lafões.
Entre as damas gentis, que em tão avultado nu-
mero floresciam nas salas de Queluz, sobresahia
também, n'um alto relevo de distincção, a alegre e
espirituosa duqueza de Cadaval, irmã do duque de
Luxemburgo.
Os penteados altos, toucados de pérolas e mara-
bus; as cores vivas dos vestidos roçagantes; os
pingentes, estrellas e collares de pedras preciosas ;
as rendas que pendiam em flocos de espuma al-
vinitente sobre os braços nus ; e, mais que tudo
isto, a belleza, a elegante plástica, o quid nobre das
raças finas, divinisavam todas aquellas lindas figu-
ras de mulher, dignas de serem agrupadas n'um
leque de Watteau.
A rainha ostentava um rico vestido de Damasco
NINHO DE GUINCHO 1 6y
azul claro, ricamente lavrado em florões e laçarias.
O justilho, muito espartilhado, refulgente de estrel-
las de brilhantes, rematava em angulo agudo sobre
a cintura. Um decote modesto aflorava d'entre as
rendas do collo. Sobre os cabellos levantados, o
diadema real. Nas orelhas, pingentes que se articu-
lavam em duas phalanges de pedras raras. Nas
mãos, luvas bordadas, que subiam até cobrir todo
o ante-braço. Pendente de um cordão de ouro, uma
ventarola de grandes pennas de avestruz, constel-
lada de pequeninas esmeraldas muito vivas.
Ao começar o minuete, a rainha não parecia mais
tranquilla do que no momento em que o arcebispo
de Thessalonica lhe recordou o versículo de Job-
Soífria. Na sua face, doce e grave, passava sub-
tilmente uma contracção dolorosa, que se repetia
por vezes, e que sua magestade procurava disfar-
çar sorrindo. Bem quizera D. Maria I ser, n'essa
hora de requintada elegância, uma das rudes cam-
ponezas que folgavam em liberdade no terreiro do
palácio. Sua magestade parecia querer retrair por
momentos a sua mão direita, que o duque de La-
fões segurava respeitosamente na ponta dos dedos.
O minuete evolucionara n'um rythmo lento, cor-
tado de cadencias mesuradas. Ouvia-se a marcação
choreographica dos passos no mármore do pavi-
mento. As plumas dos penteados baloiçavam em
ondulações isóchronas, e os pares dançantes reque-
bravam-se em meneios gentis, e successivas flexões,
pautadas e certas. Os espelhos enquadravam em
sumptuosas molduras de talha dourada a reprodu
cção d'este minuete palaciano, dividindo-o em gru-
170 COLLECCAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
pos, e dando assim maior destaque e mais brilho a
cada par e a cada figura.
A rainha viu-se de relance n'um espelho, e ella
mesma reconheceu que a sua physionomia estava
perturbada.
Logo o versículo de Job lhe tornou a lembrar, e
d'elle pareceu receber sua magestade um novo es-
timulo de resignação e paciência.
Quando o minuete terminou, e com elle o sarau,
a corte, esperando os coches no vestíbulo do palá-
cio, trocava rápidas impressões sobre o dessocego
da rainha, que a pouco e pouco se tornara evidente
aos menos Íntimos.
A nobreza mostrava-se apprehensiva, receiando
que sua magestade começasse a enfraquecer subi-
tamente na sua obra de restauração politica.
O marquez de Pombal ainda de longe assustava,
esmagado.
O que teria a rainha ? perguntava-se.
Esta pergunta ficou sem resposta durante annos,
e só a obteve quando já não inquietava.
Por morte do arcebispo de Thessalonica appare-
ceu no seu diário o seguinte apontamento referido
ao anno de 1777 : aNoite de ò'. João — Sua Mages-
tade a Rainha, segundo ella própria me declarou á
puridade, foi atormentada no sarau da corte em
Queluz por uma pulga contumaz e raivosa, que re-
petidas vezes a mordeu, e muito a maltractou, sem
que Sua Magestade pudesse acudir a este molesto
incidente por ser contra a etiqueta retírar-se antes
de terminado o minuete. Deus ordena ás vezes seus
grandes ensinamentos por intermédio de minuscu-
NINHO DK GUINCHO I7I
los objectos, mas a lição que vem do alto deve
aproveitar-se sempre porque é portadora de philo-
sophia divina.»
Só então se ficou sabendo que n'aquella noite de
S. João, em Queluz, a divina philosophia tomou a
forma de uma pulga.
1902
XX
o GALLO
A feira estava na sua hora de maior bulicio e
movimento.
Havia um ruido atroador e uma ondulação vio-
lenta de guardasoes vermelhos, brancos ou verdes
com que os grupos de camponezes se defendiam da
calma intensa do sol.
Palavras de amor, trocadas em verso no estylo
da Maia, "perdiam-se no coro immenso de outras
vozes humanas, pregões de vendedores, guinchos
do rapazio, gargalhadas alvares, assobios estridu
los.
Por sua parte, os animaes dependentes do homem
imitavam-n'o n'esta inferneira colossal, ingente : as
gallinhas cacarejavam, os bois mugiam, os burros
zurravam, os porcos grunhiam, e de vez em quan-
do ouvia-se ganir um cão, que os lavradores repel-
liam a pontapés.
De espaço a espaço chegavam chay^-à-bancs enor-
mes, frágeis charrettes pintadas de amare lio, breaks
repudiados pelos antigos donos.
NINHO DE GUINCHO lyS
Fez-me impressão um dos char-ã-bancs, que en-
trou na feira rodando vagaroso por entre os grupos
para os não atropellar e para não espantar as rezes.
Conduzia um homem e sete mulheres.
O carro parou á porta da estalagem do Carneiro,
despertando a attenção de muitas pessoas.
Logo ah se disse que o homem era o Brazileiro
da Portella, com as suas sete mulheres.
Um serralho ambulante !
Fiz então maior reparo no sujeito.
Teria 45 annos. Estatura meã, hombros largos,
oeiços grossos, olhinhos pequenos, muito vivos.
Trazia chapéu de palha e collete branco, esses
dois característicos infalliveis do trajo de qualquer
brazileiro minhoto.
Foi elle que desceu primeiro. Apeiou-se e esten-
deu a mão a uma das sete mulheres, que dispen-
sou, sorrindo^ a galanteria do macho. Aquella era
a Favorita ; logo ali disseram. As outras seis des-
ceram umas atraz das outras, todas ellas saltando
galhardamente, em pinchos acrobáticos, sem que
o Brazileiro lhes oíferecesse o mesmo galante ap-
poio.
Trajavam saia de flanella, refegada, chambre de
merino, lenço de seda na cabeça ; calçavam meia
preta e solêtas.
Nenhuma tinha ainda trinta annos.
Eram bons exemplares de moçoilas do Minho,
accusando robustas florescencias de sebo e cevo.
Emquanto o autócrata entrou na estalagem do
Carneiro, a encommendar o almoço, as sete mu-
lheres ficaram á porta, charlando alegremente,
174 COLLECÇÁO ANTÓNIO MAR* A PEREIRA
n'uma familariedade muito intima, em que não vis-
lumbrava a menor reserva de ciúme.
Vi o Brazileiro a falar com a cosinheira da esta-
lagem, que era uma raparigaça escarolada e sadia,
e que parecia dizer-lhe n'um sorriso attractivo : «Se
precisar da oitava, cá estou eu.»
E elle, os olhinhos mexendo muito vivos e gaia-
tos, respondia-lhe n'um olhar demorado: «Pôde
ser. Cesteiro que faz um cesto, faz um cento.»
Encommendado o almoço, o Brazileiro juntou-se
ás sete mulheres e foram todos passeiar pela feira,
onde ellas compraram lenços de Guimarães, chai-
les de casimira e anneis de cornalina.
O povo abria passagem ao sultão da Portella e
seu harém, dando mostras de respeito e acatamento,
d'onde inferi que a gente do Minho não sente re-
pugnância nenhuma pelos costumes turcos.
Contaram-me então a vida do Brazileiro, sobre a
qual eu lanço um véu discreto, comquanto elle,
Brazileiro, trazendo o serralho a passeio, parecesse
não gostar de pudibundos véus, nem de arcas en-
couradas.
Fazia jogo franco.
Mas contarei apenas a historia do gallo vivo,
symbolo heráldico da casa burgueza da Portella.
O Brazileiro possuia um lindo gallo, muito alto
e empennachado, opulento de cores rutilantes, que
era tratado com as maiores deferências e attençÓes
por todo o serralho, porque uma cigana, lendo a
sina do sultão, lhe dissera que o seu destino era o
mesmo do gallo e que ambos haviam de morrer no
mesmo dia.
NINHO DE GUINCHO 17D
O Brazileiro, pensando n'este vaticínio, encontrou
facilmente uma certa relação de semelhança entre
as duas existências, e, querendo conservar-se a si
próprio, conservava o gallo.
Achei originalidade n'este pormenor, que me não
<:squcceu durante um anno.
Uma vez escrevi para a provmcia, e perguntei :
«O gallo vive ?» Responderam-me : «Vivem ambos.»
A cigana continuava a acertar, apesar do descré-
dito em que teem cahido as prophecias.
Mas, passados alguns mezes, recebi uma noticia
inesperada.
O Brazileiro da Portella tinha morrido repenti-
namente depois de uma ceia de orelheira e feijão
branco, como um odre que rebentasse.
Não fez testamento, e o serralho ficou indignado
com essa imprevidência que o reduzia á miséria,
porque appareceram logo sobrinhos do defunto, que
tomaram conta do espolio, guardando todas as cha-
ves das gavetas e do cofre.
Ahi pelo meio dia ainda as sete mulheres não
tinham comido, e comtudo já os herdeiros as ha-
viam despedido, severamente, em nome da moral
publica ultrajada.
As raparigas, antes de abandonar a casa da Por-
tella, lembraram-se do gallo, como de um salvate-
rio único.
Deitaram-lhe a mão, amarraram-Ihe o bico com
um lenço, e levaram-n'o sonegado.
Depois sahiram estardalhando gargalhadas e fo-
ram cosinhar e comer o gallo na adega do Padrão que,
também pertencia ao Brazileiro, e ficava distante.
170 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Foi um ágape formidável de estroinice ; uma
pandega rasgada.
Todas ellas beberam verdasco á «saúde do mor-
to» e da cigana.
Depois, dispersaram-se á procura do pão nosso
das odaliscas.
Dizem-me que umas foram para o Porto, outras
para Braga e algumas talvez para a Turquia, visto
já estarem habitudas aos costumes ottomanos.
Minho — iqo2.
XXI
o GlUME
Dizia um jornal ha quatro dias:
«Foi hontem presa uma mulher que sç vestiu de
homem para espionar o marido.
«Aconteceu lhe ter ido para o calabouço n.° 4,
onde se conservou em travesti até que de casa lhe
mandaram vestidos próprios do seu sexo.
aO ciúme é negro, e o calabouço não o é me-
nos.»
No amor tudo é negro quando deixa de ser cor
de rosa.
Os meios tons são próprios dos sentimentos que
envelheceram: da amizade, por exemplo. E não se
diga que por ser antiga e apenas colorida a meias
tintas, a amizade vale menos. Não. Ella é como o
marfim, que se valorisa quando amarellece ligeira-
mente ou como os monumentos archeologicos quan-
do a patina os reveste, pregoando-lhes a antiguidade.
178 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
O amor, se é verdadeiro, vae aos extremos : á
confiança ou ao ciúme. Ou embriaga docemente
como o champagne ou requeima doentiamente co-
mo o absintho. E, como creança que é, segundo a
figuração ra3^thologica, tão depressa crê como des-
crê •, agora confia, logo desconfia ; hoje sujeita-se>
amanhã revolta-se.
Acontece ás vezes que da amizade nasce o amor,
como da luz mdecisa da madrugada nasce o clarão
brilhante do sol. Mas é menos vulgar isso do que
degenerar o amor em amizade, empallidecendo nas
tintas e fixando-se apenas no desenho.
Havia dois primos...
As historias de amor mettem ordinariamente pri-
mos.
EUa chamava-se Laura e elle Carlos.
Tinham sido companheiros de infância, vivido
juntos, sem que entre os dois houvesse mais do que
uma agradável intimidade.
Qualquer d'elles passara algumas vezes pelo^íW;
ella com algum rapaz que encontrara na sociedade;
elle com alguma rapariga com quem dançara uma
valsa.
Os dois poderiam fallar de tudo um ao outro —
menos de amor.
A' mesa de familia, como dois casados velhos,
tomavam o seu chá com torradas na companhia pa-
triarchal dos respectivos tios.
— O' Carlos, fazes favor de me passar os biscoi-
tos de Oeiras ?
— O' Laura, se me fizeses favor de passar as tor-
radas. . .
NINHO DE GUINCHO 179
Um bello dia, quando ambos andavam nos vin-
te e dois annos, deram juntos um passeio ao
campo.
Ella, mignotme e graciosa, com um vestido claro
e fresco, appareceu calçando as luvas.
Carlos teve um deslumbramento inesperado a que
pretendeu esquivar-se dizendo com os seus botões:
«Que tolice! Então não me está parecendo hoje
muito bonita a Laura!»
Ella, com a perspicácia de todas as mulheres,
surprehendeu essa impressão.
Partiram de carruagem para o campo com os
pacs: fallavam menos que de costume j mostra-
vam-se algum tanto sonhadores.
A' noite, quando voharam, tiveram visitas e en-
treiiveram-se todos escrevendo perguntas enygma-
ticas em bocadinhos de papel, que iam passando de
mão em mão.
Laura escreveu: «Amas-me, Carlos?» e passou
o papellinho ao primo, que respondeu logo : «Des-
de esta tarde.»
Dentro de poucos mezes estavam casados.
Estes casos são, é certo, menos vulgares que o do
incêndio degenerar em rescaldo, o amor abrandar-
se em amizade — o que constitue o pão nosso do
coração
Vê-se todos os dias.
Mas o amor, no seu periodo de evolução, não
passou nunca por boa pessoa : é um doido que de
tempos a tempos precisa coUete do forças.
Não usa robe-de- chambre nem sapatos de trazer
por casa, como a amizade.
l80 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Não põe ao acaso esta ou aquella gravata, co-
mo a indifferença.
Se se julga feliz e confia, colioca na botoeira,
não uma só flôr, mas uma ramalhoça campanuda;
se o ciúme o desorienta, pisa a pés juntos a rama-
lhoça, rasga o fato, dilacera com as unhas o co-
ração.
Achava-se certamente n'este período agudo a mu-
lher que ha dias se vestiu de homem para espionar
o marido.
Antigamente o ciúme era uma paixão sanguiná-
ria. Foi isso nos bons tempos da Cólchida. Medea
era uma fera, que nem sequer poupava as crean-
ças innocentes, como se pode ver em Euripedes e
Gorneille.
Hoje o ciúme entrou no caminho mais pratico da
surpreza e do ardil. Sem deixar de ser uma paixão
violenta, que rasga o fato e o coração, é comtudo
menos brutal e feroz: já não estrangula creanças.
Pelos processos do artificio, pela «habilidade» dos
tempos modernos, atiinge muita vez o triumpho, o
que não quer dizer que não sofFra ás vezes desas-
tres.
Essa pobre creatura ciumenta, de que resa a no-
ticia, errou o caminho, como a trágica Medea po-
dia errar a punhalada.
Querendo encontrar o marido, encontrou o cala-
bouço.
Adeus! é um desastre como outro qualquer.
Os grandes syndicateiros da actualidade também
ás vezes teem que fallir, e todavia ganham a par-
tida muitas outras vezes.
NINHO DE GUINCHO 101
E' um azar: ganhar ou perder. O jogo não tem
outra lei.
Para contrapor a esta «partida perdida», lembro-
me agora de um bello i'ober que foi ganho por
certa dama no whist do ciúme.
Quem pírdeu foi o marido e. . . a outra.
O marido tinha uma amante com quem gastava
rios de dinheiro.
A mulher legitima veio a sabel-o por um acaso
muito interessante.
Tinha entrado n'um luveiro da rua do Ouro Es-
tava escolhendo luvas, quando no espelho da loja
viu passar n'um /a/ííia// uma mulher apparentemente
loira.
— Quem é aquella creatura, sabe?
O luveiro respondeu, dando informações para
se tornar amável :
— E' a amante de Fulano.
A dama empallideceu. Ouvira o nome do marido.
O luveiro continuou :
— Mora na rua de S. Domingos á Lapa, n'um pré-
dio cinzento Vive com um estadão de princesa. Tem
carruagem da Companhia e camarote em S. Carlos.
E calçando á dama as luvas que ella tinha esco-
lhido :
— Aquillo é pintura, porque ella não é loira.
A dama aâectando serenidade :
— Sim ? . . . Como todas . . .
Escusado será dizer que, depois de tão fulmi-
nante revelação, a esposa atraiçoada foi d'ali á rua
de S. Domingos á Lapa ver qual era o prédio em
que morava a amante de seu marido.
l82 COLLFCÇÁO ANTÓNIO MARIA PKRFIRA
Não podia chegar em melhor occasião. A' porta
de um prédio cinzento parara um landaii: uma loi-
raça apeiava-se. Era eila, a amante, a mesma que
vira passar na rua do Ouro.
Fixado o numero da porta, a esposa atraiçoada
começou desde aquelle momento a machinar o modo
de dar cabo d'esse ménage de contrabando.
Fazer uma scena violenta, era deitar azeite no
fogo.
Todo o homem que ama tem trez costellas de
cão: se o contrariam, morde.
Era preciso recorrer a qualquer processo habili-
doso; mas importava que fosse efficaz.
Ora, ha uma Providencia, que vale por um con-
selho de estado : é a dos que precisam achar uma
ideia. Acode-lhes sempre. O caso é invocal-a com
confiança.
Uma vez fui procurar á rua da Paz o illustre
escriptor que se chamou António Augusto Teixeira
de Vasconcellos.
Mandou-me entrar logo que me annunciaram.
Encontrei-o em toiktte de trabalho, deitado so-
bre o leito, de papo para o ar, a fumar charuto.
— Está doente? perguntei lhe.
— Não. Estou a procurar dinheiro.
— Como ? !
— De um modo muito simples. Quando preciso
dinheiro, estendo me na cama, accendo um charuto
e ponho-me a olhar para o ar. Ao cabo de algum
tempo, começo a ver cahir dinheiro do tecto.
Sorri-me.
Ella acrescentou :
NINHO DE GUINCHO l83
— Ou a ver cahir alguma ideia, que vale dinhei-
ro. E cai sempre.
Acudia-lhe a Providencia dos torturados, quando
Teixeira de Vasconcellos a invocava com firme con
fiança.
Ora essa mesma Providencia acudiu á esposa
atraiçoada.
D'ahi a dias leu no Diário de Noticias um annun-
cio que dizia: «Criada de quarto — Precisa-se uma
na rua de S. Domingos á Lapa, n.'\ . . i.*^ andar.»
Era o andar da loiraça, no prédio cinzento.
Deixou sahir o marido, pediu emprestado o fato
de uma das suas criadas, disse que ia jantar com a
mãe e partiu para a rua de S. Domingos á Lapa —
toda afadigada, como quem tem pressa de chegar.
— E' aqui que precisam uma criada de quarto?
— E', sim. Tem informações?
— Estive em casa da senhora marqueza de. . .
Quando uma criada atira com o nome de um ti-
tular é como se trouxesse attestado de bom com-
portamento— em papel sellado.
— Entre para se ajustar.
A esposa encontrou se em presença da amante,
estando disposta a acceitar todas as condições.
— O ordenado é tanto.
— Sim, minha senhora.
-r Obrigações : ajudar-me a vestir, tratar do meu
banho e do meu quarto, e servir o chá á noite, quan-
do vem ^'O senhor».
— Creio que v. ex.* não terá razão de queixa.
— Pois então estamos tratadas. Não trouxe a sua
roupa ?
l52 COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
— Irei buscal-a amanhã, se v. ex.* der licença.
A's nove horas da noite, tocou-se á campainha.
A cosinheira disse: E' ao senhor».
A criada nova pediu lhe;
— Faça favor de ir abrir, por hoje, que eu vou
arranjar-me á pressa. Gomo não sabia a hora, não
estava preparada.
A^s II horas aa senhora» poz o dedo no timbre
para que servissem o chá.
A criada de quarto pegou na bandeja, parou á
porta do gabinete cor de rosa, pediu licença para
entrar.
— E' o chá, minha senhora.
O amante da loiraça, ouvindo aquella voz, deu
um salto na cadeira e voltou-se rapidamente para a
porta.
A criada pousou serenamente a bandeja sobre o
bufete.
Fulminado pela surpreza, o marido reconheceu a
mulher.
— O' Clementina, disse elle para a amante, fa-
zes favor de ir ver ao teu quarto se eu deixei lá a
minha carteira hoje pela manhã?
— Estás inquieto !
— Julgo que a perdi.
A loiraça levantou-se em boa fé, e foi procurara
carteira.
Entretanto o marido dizia á esposa :
— Quero que saias já d'esta casa. Vem comigo e
perdoa-me.
Quando a loiraça voltava sem a carteira, ouviu
bater a porta da escada.
NINHO DE GUINCHO l85
Era o amante que tinha fugido com a criada, de
braço dado.
Foi uma lição salutar por ter sido bem succe-
dida.
Mas, para se triamphar alguma vez, é preciso
correr o risco de fazer fiasco.
Não perder nunca de vista este principio fun-
damental de todos os jogos : que o melhor jogador
é o que joga mais serenamente.
A mulher vestida de homem não ganhou a par-
tida, porque foi logo ás do cabo.
Sendo mulher, vestiu se de homem: é o maior
de todos os cabos para uma mulher.
Pode-se-lhe chamar: das Tormentas.
E fci.
fiSqq — Maio.
XXII
A VESPA
Meio dia. Cae uma calma suave, de estio mode-
rado \ é o mez de agosto a chamar já pelo outono.
Os velhos dizem que nunca se viu coisa assim :
estranham não ter havido canicula.
Toda a villa parece anesthesiada n'uma quietação
lethal. Janellas fechadas; portas entre-abertas. O
silencio da rua é apenas quebrado pela vozinha in-
consistente de uma rapariguita, que repete, dentro
de casa, uma cantiga nova, de que todo o norte do
paiz está inçado n'este momento :
Ora vai tu,
Ora vai tu,
Ora vai, vai,
Que eu bem quero.
Mas não posso.
Ai! Ai!
As vespas e as moscas, enganadas pelo calendá-
rio, procuram sustentar as tradições do antigo ve-
NINHO DE GUINCHO I 87
rão portugucz. Passeiam no ar, zumbindo, mais in-
quietas do que nunca, porque lhes parece que o
sol não é bastante fone, o verão bastante quente.
Acham-se roubadas. Que é feito do grande calor
de agosto, que asphixiava outr'ora os passarinhos ?
Não sabem. Está falsificado; misturaram-lhe kaoli-
no E' um verão mixordia.
E as vespas e as moscas, desesperadas, aborre-
cem-se no ar, zumbindo.
As janellas estão fechadas; as portas apenas en-
tre-abertas, em respeito á tradição dos dias de agos-
to ardentes.
A rapariga continua cantando dentro de casa ;
Orá vai tu,
Ora vai tu.
Mas para onde é que ellas hão de ir, as vespas e
as moscas ?
Eis que uma vespa, talvez por ser mais supers-
ticiosa que as outras, parece tirar bom agoiro das
palavras da canção, que a rapariga continua can-
tando dentro de casa.
Affoita-se a percorrer toda a rua solitária e morna.
Procura uma porta aberta, bem aberta, por onde
possa entrar sem receio de alguma cilada : enjtrar e
sahir depressa se for preciso.
Depara-se-lhe uma única, a do confeiteiro da vil-
la, que tem na montre a sua fornada de bolos finos e
de pão de ló de Margaride, ainda quentes do forno.
Bem fez a vespa em fiar-se no vaticínio da trova:
Ora vai lu.
Ora vai tu.
COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Foi, e encontrou um lauto banquete de gulodices
exposto na montre do confeiteiro.
Corre a dar aviso ás outras vespas e, dentro de
pouco tempo, um enxame enorme acampa sobre a
vidraça, prompto a realisar o primeiro assalto logo
que tenha occasiao de penetrar na montre.
As moscas seguem o caminho das vespas e poi-
sam, contentes, na vidraça, parecendo dispostas a im-
por ás vespas o dilemma do sapateiro de Braga :
«Ou havemos de comer todos ou ha de aqui haver
moralidade, >
Pobres moscas! Elias não estão ao corrente do
direito internacional moderno : la force prime le
droit.
As vespas, mais instruídas, ouvem a imposição das
moscas e riem-se da sua ingenuidade politica.
Passa na rua um rapazito commendo um bocado
de broa.
E' o pão que teem comido todos os grandes ho-
mens do norte, desde Passos Manuel, grande pelo
talento, até ao conde de S. Bento, grande pelo di-
nheiro.
E quem sabe se aquelle rapazinho virá a ser um
grande homem do norte?
Pára diante da ?7iontre a contemplar, cubiçoso, os
jesuiias, as carnações, os pasteis de Santa Clara.
Sente-se tantalisado pelo appetite: um d'aquelles
bolos fal-o-ia feliz.
Mas está separado d'elles pela muralha da China
de um vidro.
Acha-se em frente do seu ideal, e não pôde at-
tingil-o.
NJNHO DE GUINCHO 189
Tem acontecido isso tantas vezes aos grandes ho-
mens. . . e aos pequenos I
E elle é pequeno duas vezes, por ser creança e
por ser pobre.
De repente parece encontrar um meio de acal-
mar o seu appetite, rcsignando-se á pobreza.
Esfrega o pão de milho pela vidraça da montre e
come-o depois.
Sabe-lhe talvez a doce, por suggestão.
Felizes as creanças, porque, na sua mesma inge-
nuidade, sabena achar um meio de enganar o seu
ideal insaciado.
Não acontece sempre isso aos grandes, principal-
mente aos grandes homens. . .
E, satisfeito, o rapazito desencosta-se da montre,
segue o rumo que levava, cantando como a creadi-
ta, como toda a gente, como este Minho todo,
agora :
Ora vai tu,
Ora vai tu,
Ora vai, vai,
Que eu bem quero,
Mas não posso,
Ai! Ai!
Sento-me no clássico banco de pinho, dentro da
loja do confeiteiro. Pego nos jornaes recem-chega-
dos do Porto, e o seu noticiário afoga-me n'um di-
luvio de falsificações, pão falsificado, documentos
falsificados, suicídio falsificado. Tudo falso... até o
o verão. Aborreço-me, pedindo mentalmente a re-
surreição d'aquelle famoso Epaminondas, que nem
por gracejo falseava a verdade.
IQO COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Do que nós precisamos é de muitos Epaminon-
das.
Chego a esta conclusão desoladora,
Poniio-me a olhar para a vidraça da montre e ob-
servo as vespas e as moscas, em campo, luctando
pela vida umas e outras.
Como a vidraça se não abre para lhes dar entra-
da, todas ellas precisam ir pensando em outra coisa.
E então as vespas pensam nas moscas.
La force prime le droit: a vespa pôde mais do
que a mosca.
Por isso se entretém a dar-lhe caça, com uma fe-
rocidade selvagem, que irrita os nervos do obser-
vador.
Ah! Deus sabe muito bem o que fez. e porque o
fez. Se a vespa fosse maior, seria até para o homem
um inimigo terrível.
Quero ser o libertador das moscas, e lanço mão
de uma toalha para enxotar as vespas.
O confeiteiro avisa-me dos perigos da empreza,
dizendo:
— Não faça isso. A vespa é vingativa e audaz.
Se o homem a persegue, persegue ella o homem.
E então, assim avisado sabiamente, resigno-me
a ver a hecatombe das moscas consumada pelas
vespas.
Umas e outras esvoaçam sobre a vidraça.
A vespa manobra como um pirata, capeando as-
tuciosamente, para abordar a presa
Dá saltos acrobáticos: poisa aqui. poisa acolá.
Se encontra outra vespa no caminho, tem com
ella um conflicto rápido.
NINHO DE GUINCHO I9I
Diz-se que o homem é mau para o seu semelhan-
te. Nem sempre é bom, realmente. Mas os outros
animaes são bem peiores para os da sua mesma es-
pécie. A própria pomba, symbolo da candura, quan-
do investe contra outra pomba, não tem nada de
cândida, nem sequer nas pennas, que, ás vezes, fi-
cam enodoadas de sangue.
Depois de algumas investidas infructiferas, a ves-
pa consegue prear a mosca. E' a força opprimindo
o direito : a diplomacia em acção.
O primeiro cuidado da vespa é cortar as azas á
mosca, para que não possa fugir-lhe.
Aqui nos encontramos outra vez com um sym-
bolo do ideal.
Cortar as azas 1 Quantas vezes, buscando um
ideal querido, não se nos depara a vespa traiçoeira,
que não quer de nós outra coisa senão cortar-nos
as azas !
Todos nós alguma ve*z temos encontrado isso : a
vespa que nos assalta na lucta pela existência.
Emquanto a mosca, perdidas as azas, se agita
ainda, a vespa passeia-a sobre a vidraça n'um feroz
triumpho.
E logo que a victima já não pôde libertar-se, a
vespa, convencida da segurança da conquista, altêa
o voo e vae, no seu favo, devorar a mosca, tran-
quillamente.
Para que é preciso pôr a gente o pensamento na
Roma dos Gezares, nos combates do Golyseu, nos
espectáculos terriveis dos gladiadores romanos ?
Esta vidraça de confeiteiro é também um Goly-
seu.
192 COLLECÇAO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Postos frente a frente o fraco e o forte, quem suc-
cumbe é o fraco.
Pois aqui se vê isso, sobre um vidro que resguar-
da yeswíVas, :{amacoes, pasteis de Santa Clara, ainda
quentes, sabidos ha pouco do forno.
O mundo é grande, e todo elle não é senão isto:
o combate da vespa contra a mosca.
O ideal é um sonho da imaginação, e as contra-
riedades que o difficultam podem bem representar-
se na vespa cortando as azas á mosca.
A rapariguita, dentro de casa, continuava can-
tando:
Ora vai tu,
Ora vai tu,
Ora vai, vai,
Oue eu bem quero,
Mas não posso.
Ai ! Ai !
Maus versos e boa philosophia.
A mosca quer penetrar na montre; vae a vespa
e corta-lhe as azas.
Ai! Ai! Gomo diz o estribilho da canção nova.
Minho — 1902.
XXIII
o BIGODE POSTIÇO
N'estes dias de carnaval vai a pique a seriedade
de muita gente boa.
E o diabo arma as coisas de modo, que sempre
fica de fora o rabo do gato.
Vem a saber-se tudo.
Bem serio e grave era aquelle nosso Filinto Ely-
sio, velho e triste, exilado e indigente, e comtudo
ellc mesmo conta numa das suas odes — talvez
para fazer penitencia publica — o que lhe aconte
ccu em certo dia de carnaval.
F]mborrachou-se.
Se elle o não dissesse, ninguém o acreditaria.
Mas disse-o n'aquclle seu estylo, aliás pittoresco,
que cheira a rapé ultra-classico :
Uma noute do tres-loucado Entrudo,
De alto barulho, e dançatriz farófia,
De longo rabo-leva, e surriada,
De pós, talco, filhos, peruns, carniça;
Eu co'a cabeça quente, e nebulosa
i3
i94 COLLECÇÃO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
Co'os vapores de Baccho ebri-festante,
A redonda barriga ainda himpando
Co'o saboroso- atola-dente lombo
E certas trouxas de ovos comesinhas —
Embrulhado na rede, em Casa aos passos
(Não mui seguros) punha a pontana;
E já Morpheu, das pontas dos cabellos
Se prendia, trepando-se á moleira,
Para no leito me baquear d'um golpe,
Mal que os Penates curto saudasse.
Dispo-me a trancos do prolixo fato.
Aqui me cai o lenço, ali se entorna
A caixa do tabaco; — mal sostidos
No braço da cadeira, se debruçam
Os calções co'o relógio...
Um clássico em cuecas ! Vejam se, fora do car-
naval, seria possivel que o austero Filinto se exhi-
bisse sem calções á troça de francelhos e gallici-
parlas !
e da algibeira
Pingam vinténs, retinem no ladrilho,
E vão, em caracol^ correndo; — o gato
Pula áquem, pula alem; — co'a garra leve
Dá-!he um boféte, os tomba e os atabafa.
Dou pouco tino do> vinténs rodantes
Do subtil gato resonante presa;
Antes durmo, sem ver, sem ouvir soca;
Como quem faz focinho so mundo inteiro
Comparado c'um bom dormir machucho.
Entre fofos colchões aboborado.
De mortaes barafundas esquecido.
Se isto não é uma bebedeira, não sei o que seja.
Mas o beber e o dormir teem ainda sua descul-
NINHO DE GUINCHO 196
pa, porque os homens não são de ferro, incluindo
os clássicos. Bem forte era o porto de Leixões,
feito de blocos enormes, mas porque ultimamente
tomou grandes pancadas de agua do mar, foi-se
abaixo como Filinto.
Ha escândalos peiores no carnaval, e para a
gente descobrir alguns tem que suar o topete.
Gomtudo, quem redige gazetas chega a adquirir
um tal ou qual faro de agente de policia ; com a
vantagem de poder inventar quando não chega a
descobrir nada.
D'esta vez, porem, puz em descanço a imagina-
ção, porque descobri um caso verdadeiro, tão cer-
to como o commendador Julião Rainho ser casado
com uma fresca dama quarentona, de lindas carnes
e cores, mulher sisuda, que era conhecida no sitio
do Arieiro pela designação um pouco invejosa de
— commendadeira.
Muito amigos estes esposos, que passavam o dia
na janella, conversando um com o outro na mais
perfeita harmonia conjugal.
Mas justamente porque fossem muito janelleiros,
a visinhança. que os via cochichar á puridade, jul
gava-se criticada por elles : d'ahi a alcunha de —
commendadeira, dada á mulher de Julião Rainho.
A's vezes o commendador sahia de casa para vir
á Baixa tratar dos seus negócios, receber as suas
rendas.
De charuto ao canto da bocca, dizia adeus á mu-
lher, já da rua, uma e muitas vezes, acenando lhe
risonho com a ponta dos dedos.
Ella, quando o via sumir-se ao longe, recolhia-se
igÔ COLLECÇÁO ANTÓNIO MARIA PEREIRA
para dentro, e não tornava a apparecer até que ellc
voltasse.
Os visinhos, as visinhas principalmente, davam
se a perros por não haver naquella casa um escân-
dalo, que amarrotasse a independência, a altivez
fleugmatica do commendador e da mulher.
Elle era considerado no Arieiro como um phos-
phoro amorpho. . . antigo.
D'antes, os phosphoros amorphos accendiam só na
caixa ; agora, depois do monopólio, nem mesmo na
caixa se inflammam.
Perdeu-se uma bclla comparação !
A commendadcira, que se chamava D. Thereza
— único pormenor que os visinhos sabiam da sua
vida — era, pois, a caixa do coração amorpho de
seu marido, n'aquelles bons tempos anteriores ao
monopólio dos phosphoros.
O que é certo é que os homens da visinhança
davam razão ao commendador Kainho para gostar
de sua mulher, que fazia lembrar ainda na frescura
dos quarenta annos um morango do Porto. Nem
sequer lhe faltavam, completando a comparação,
uns signaesinhos pretos pelo rosto, como os dos
morangos. Coisa apetitosa para os entendedores.
Que n'isto de mulheres o entender é tudo. Muitas
se perdem por não terem sido entendidas nunca.
O commendador, quando vinha á Baixa, via
muitas mulheres magritas, esticadmhas, pessoasi-
nhas de metter no bolso para trocos miúdos. Não
gostava. Eram morangos de Cintra, que é cada
um para a cova de um dente. Elle tinha lá em casa
um morango do Porto, de boa polpa, carne branca
NINHO DE GUINCHO 197
e signaesinhos pretos engraçados, que pareciam
postos a pincel.
De mais a mais depositava plena confiança no
fando de honestidade da mulher, porque n'aquelle
tempo ainda podia hâver confiança em quaesquer
fundos portuguezes.
Não chegara a ter nunca uma suspeita, um re-
ceio, a mais leve apprehensão sequer. Quando pre-
cisava sahir, punha o chapéu na cabeça, mettia a
mulher no coração, e vinha por ahi abaixo tão tran-
quillo como se trouxesse a D. Thereza bem agar
rada pelo braço.
Não tinham filhos, o que estimava, porque os fi-
lhos tiram ao casamento o ar de namoro chronico.
Dão-lhe horas de alegria e contentamento, é cer-
to, mas roubam ao lar conjugal o que quer que
seja de sonho, que é bom conservar sempre.
O amor é de todas as coisas a que menos resiste
á divisão.
Também parecia ao commendador Rainho que
fora bem feliz com a criada, uma rapariga de Santa
Casa, que os dois esposos educaram a seu modo :
nada de conversas com os visinhos, nada de par-
lendas com os padeiros, indifferença absoluta pela
guarda municipal.
Uma Vestal engeitada, que alimentava o fogo sa-
grado. , . do fogão.
Mas o commendador Rainho ignorava de todo o
ponto que o que perde as cosinheiras é a symbo-
lica do abano.
Quando ellas espertam o lume, lembram-se de
que a monotonia da sua vida, que é como a mo-
198 COLLECÇÃO ANTONÍO MARIA PEREIRA
dorra das brazas, despertaria se uma forte mão as
abanasse também a ellas.
E começam a procurar um abano no amor.
Depois um abano envelhece, gasta-se ; vem ou-
tro, comtanto que se pareça com o antigo.
E' por isso, talvez, que as criadas de servir não
mudam de tropa: ficam sempre na guarda muni-
cipal.
Derivav.i placidamente a vida do commendador
Rainho na sua casa do Arieiro entre o charuto e a
mulher, a janella e a mesa, a mesa e o leito.
Não havia ali perturbações domesticas, nem des-
gostos Íntimos.
E, para cumulo de felicidade, a rapariga da Santa
Casa não roubava quando ia á porta comprar as
hortaliças e os legumes.
O commendador e a mulher estavam convencidos
d'isso — d'isso e d'outras coisas igualmente falsas.
Mas, pelo que respeita á felicidade de cada fa-
milia, n'uma hora cai a casa.
Certa segunda-feira gorda, á hora em que o ra-
pazio do Arieiro andava pelo sitio a tocar castanho-
las, o commendador ficou depois de almoço, sen-
tado n'uma chaise-longue da casa do jantar, a ler o
Diário de Noticias.
Tinha almoçado bem, que é uma característica
das pessoas felizes.
Não sabe o que é ter felicidade completa na terra
quem se levanta sem apetite e com a bocca sabur-
rosa.
O commendador linha posto a charutcira ao pé
de si, em<:juanto viajava mentalmente por Lisboa
NINHO DE GUINCHO 199
através do Diário de Noticias, passando das noti-
cias para os annuncios e de um bairro para outro.
Deu um geito ao corpo para maior commodidade
do estômago satisfeito, e a charuteira cahiu-lhe para
traz da chaise-longue.
Querendo apanhal-a, estendeu um braço, e en-
controu no chão uma coisa ao mesmo passo ás-
pera e molle, que não era seguramente a charu-
teira.
Teve curiosidade de ^ er o que era, e viu um bi-
gode postiço.
O seu primeiro pensamento foi de surpresa ; o
segundo de terror \ o terceiro de cólera.
O inferno do ciúme fizera a sua estreia n'aqueila
casa, accendera as fornalhas, puzera rubro o cora-
ção do commendador.
Elle nunca jamais tinha comprado na sua vida
um bigode postiço, nem Ih'o haviam dado ou em-
prestado.
Como estava ali aquelle ? Quem o puzera ali?
Mysterio ! tenebroso mysterio talvez !
Em sua casa entrava decerto um homem, que
vinha disfarçado, e que alguma vez se esqueceria
do disfarce deixando-o ali.
Chamou a mulher gritando. Ella acudiu affjicta,
porque só estava habituada a ouvir suas falias bran-
das e doces.
— O que é isto ? ! perguntou ellc truculento.
— Isso o que ? Julião!
— Faça-se tola I A senhora não vê ? ! E' um bi-
gode !
— Llm bigode ! Meu não é com certeza.
200 COLLECCAO ANTÓNIO MARIA PERíilRA
— Que não é seu, sei eu. Mas seria de alguém
que por sua causa o quizesse pôr.
— O' Julião ! tu enlouqueceste ! Eu nunca vi n'esta
casa senão o teu bigode.
— O meu bigode, diz muito bem; mas é que eu
não consentirei jamais em ser bigodeado.
— Valha-me Deus ! Ora como se explica que ap-
parecesse na nossa casa um bigode ? !
— E' o que eu não sei, mas ha de saber-se por
força, por bem ou por mal, por força, entendes tu ?
Sou capaz de te matar e de matar-me. Acaba-se
hoje a mais feliz familia do Arieiro I Que desgraça !
— O' Julião, tudo isso por causa de um bigode!
■ — E que dirias tu se me encontrasses na algi-
beira uma trança de cabello ?
— Dizia que não era tua.
— Está bem de vêr que eu não uso rabicho como
os chinezes. Mas não suspeitavas de nada ?
— Eu ! De alguma brincadeira, talvez.
— Mas quem é que vem brincar a nossa casa?
Somos só dois e a criada. . . A criada ! é verdade !
O' Honorina !
— Meu senhor.
— Anda cá.
A rapariga da Santa Casa entra de semblante
alegre.
— Sabes o que é isto ?
A criada affirmando-se :
— Isso? meu senhor ! Quer que diga ?
— Pois está claro: quero.
— Isso parece-me um bigode dos senhores ho-
mens, mas não estou bem certa.
NINHO l)K GUINCHO .10 I
— Como veiu isto aqui parar?
— Eu cá não sei, meu senhor.
— Tu mcttes cá em casa algum marmanjo, que
vem disfarçado !
— Não, meu senhor, Nunca entrou aqui nem ho-
mem, nem bigode nenhum.
— Fala verdade, Honorina, que ainda estás a
tempo de evitar uma grande desgraça.
— O' meu rico senhor! eu juro que não metti
homem nenhum cá em casa.
— E a senhora ?
— O' sr. commendador! a senhora não era ca-
paz d'uma patifaria d'essas. Guarda todo o respeito
ao sr. commendador.
— Guarda-me todo o respeito, mas apparece na
minha casa um bigode. . . todo! Pois bem. Acabe-
mos com isto. Vou lá dentro pôr uns papeis em or-
dem, para levar comigo, e nunca mais quero saber
d'esta casa.
Julião Rainho rompe em direcção ao seu escripto-
rio; mas de repente volta-se e diz muito solemne :
— Thereza, confessa a verdade toda, se não que-
res que aconteça uma grande desgraça.
Ouve-se uma voz de mulher : a da criada.
— Sr. commendador! eu é que confesso tudo: com
prei esse bigode, porque fui hontem vestida de ho-
mem ao baile de mascaras quando os senhores ador-
meceram, e tinha-o ali escondido.
— Desavergonhada ! Escondido o homem ?
— Não, senhor ; o bigode.
FIM
índice
Razão do titulo 5
I O prophetismo e a restauração 7
II Historia de um quadro 14
III Um prédio notável 20
IV Petrarcha e Camões 27
V Chá portuguez 35
VI A cruz de Berny 43
VII Andar a flaino 5o
VIII Imparcialidade politica de Santo António 57
IX Chrysánthemos . . . • 63
X Contratos do coração 70
XI A broa 79
XII Vinho novo gS
XIII Bonecos e loiça de barro 100
XIV O silencio 1 2J
XV O fundador do asylo 1 32
XVI O papagaio 137
XVII Villã e fidalga 144
XVIII A menina dos rouxinoes i53
XIX O primeiro tormento de uma rainha 160
XXOgallo 172
XXI O ciúme 177
XXII A vespa 18G
XXIII O bigode postiço igS
ERRATAS
Pig. 33, lin. 17. onde se lê «eclogai, leia-se «elegiai.
Pag. 5o, lin. 16 onde se lê «Helis», leia-se «Hélati.
Collecção ANTÓNIO MARIA PEREIRA
VULGARISAÇAO DOS MELHORES LIVROS
DAS
LiTTEBâiyR&s mjmm i [stbíhgeiíiâs
Romances, Coutos, Yiãgêiis, llisloria, etc, etc.
Volumes in-S" de 160 a 240 paginas, em corpo 8 ou 10,
excellente edição, em optiiiao papel.
Pre<,'o de cada volume 250 ra. brochado, ou 400 rs
elegantemente encadernado em percalina.
P.íra as provineias accresce o porte do correio, 20 réis cada volume
VoluLiues piil>lica*lo<s
1 — Tristezas á beira-mar, por
Pinheiro Chagas.
2 — Contos ao luar, por Júlio
César Machado.
3 — Cármen, trad. de M. Levei.
4 — A Feira de Paris, por Iriel.
5 — O direito dos filhos, por
George Ohnet.
6 — John Buli e a sua ilha,
trad. de P. Chagas.
7 — Esgotado.
8 — A lenda da meia noite, por
M. Pinheiro Chagas.
9 — A jóia do vice-rei, por P.
Chagas.
10 — Vinte annos de vida litte-
raria, por A. Pimentel.
1 1 — Honra a'artista, trad. de P.
Chagas.
12 — Esgotado.
13 e 14 — A aventura d'um po-
laco, trad. de Maria A. Vaz
de Carvalho.
15 — Os contos do Tio Joaquim,
por R. Paganino.
16 — Esgotado.
17 — Noites de Cintra, por Al-
berto Pimentel.
18 e 19 — Esgotado.
20 e 21 — A irmã da caridade,
Sor Emilio Gastellar, trad.
e L. Q. Chaves.
22 — Migalhas de historia portu-
gueza, por P. Chagas.
23 — Esgotado.
24 — Contos, por AffonsoRoteUio.
25 — Esgotado.
26 — O mysterio da estrada de
Cintra, por Eça de Queiroz
e R. Ortigão.
27 — O naufrágio de Vicente So-
dré, por Pinheiro Chflgas.
28 — Vida airada, por Alfredo
Mesquita.
29 — O bacharel Ramires, por
Cândido de Figueiredo.
30 e 31 — Amor á antiga, por
Caiei .
32 — As netas do Padre Eterno,
por A Pimentel.
CoLLEcçXo António Maeia Pereira
33 — Contos, por Pedro Ivo.
34 — O correio de Lyão, por
Pierre Zaccone.
35 — Yida de Lisboa, por Alber-
to Pimentel.
36 — Historias de frades, por
Lino d'Assumpção.
37 — Obras primas, por Cha-
teaubriand
38 — O exilado, por Mauricia C.
de Figueiredo.
39 — Poema da Mocidade, por
Pinheiro Chagas.
40 e 41 — A vida em Lisboa,
por Júlio César Machado.
42 e 43 — Espelho de portugue-
ses, por Alberto Pimentel.
44 — A fada d'Auteuil, trad. de
Pinheiro Chagas.
45 — A volta do Chiado, por E.
de Barros Lobo.
46 — Seca e Meca, por Lino
d' Assumpção.
47 — Ninho de guincho, por Al-
berto Pimentel.
48 — Vasco, por A. Lobo d' Ávila.
49 — Leituras ao serão, por A.
X. Rodrigues Cordeiro.
50 — Luz coada por ferros, por
D. Anna A. Plácido.
51 — A flor sêcca, por P. Chagas.
52 — Relâmpagos, por Annando
Ribeiro.
53 — Historias rústicas, por Vir-
gílio Várzea.
54 — Figuras humanas, por Al-
berto Pimentel.
55 — Dolorosa, por Francisco
Acebal, trad. de Caiei.
56 — Memorias de um fura-vi-
das, por A. de Mesquita.
57 — Dramas da corte, por Al-
berto de Castro.
58 — Os mosqueteiros d'A{rica,
por Mendes Leal.
59 — A divorciada, por José
Augusto Vieira.
60 — Phototypias do Minho, por
J. Augusto Vieira.
61 — Insulares, por Moniz de
Bettencourt.
62 e 63 — Historia da civilisa-
<;ão na Europa, trad. do
Marquez de Sousa Holstein.
64 — Tríplice alliança, de Raul
de Azevedo.
65 — Retalhos de verdade, por
Caiei.
66 — A pasta d'um jornalista,
peloVisconde de S. Boa-
ventura.
67 — Os argonautas, por Virgí-
lio Várzea.
68 — Fitas de animatographo,
Íor Alberto Pimentel.
O — Poesias do Abbade de
Jazente, annotadas por Jú-
lio de Castilho.
71 — Aspectos e sensações, de
Raul d'Azevedo.
72 — Contos e narrativas, por P.
W. de Brito Aranha.
73 — Quadros e letras, historias
e romanceies, por Sanches
de Frias.
74 — Individualidades, por Hen-
rique das Neves
75 — Alfacinhas, por Alfredo de
Mesquita.
76 — Pátria amada, pelo Vis-
conde de S. Boaventura.
77 — Historias e romancêtes, por
Sanches de Frias.
78 — Esbocetos individuaes, por
Henrique das Neves
79 — Recordações da mocidade,
por Adolpho Loureiro.
80 — Sorrisos, novellas e chro-
nicas, por A. Campos.
81 — Liicta de sentimentos, por
Maria 0'Neill.
82 — Do Rocio ao Chiado, por P.
de Vasconcellos.
83 — A dança do destino, por
Luthgarda de Caires.
Si — Um drama de ciame, por
Maria CNeill.
85 e[^86 — Resumo da origem de
todos os cultos, por C. F.
Dupuis.
87 — Vencido, romance por F. A.
M. de Faria e Maia.
88 — Elogio da loucura, critica
de costumes, por Erasmo.
OUTRAS OBRAS
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Figuras de bl
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