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PASSEIOS
: DIGRESSÕES PENINSULARES
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D. C. SANCHES DE FRIAS
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LISBOA
JPlVRARIA DE ^tafrONIO ^\fl.ABIA jpERBIRA, JÊDITOI*
5o — fH»a cAugu$ta — 52
1886
P»\X- £*-|7*-3l
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HARVARD C0LLE6E LIBRARY
COURT OF 8AHTA EULÁLIA
COLLECTION
8IFT0F
m* t ITETWR, Ir.
DEC 9 1924
LISBOA
TYPOGRAPHIA MATTOS MOREIRA
Traça dos Restauradores, i5 e 16
1886
V
Á EX."* SR.*
D. ÃDEII& IML CONDE DE MOURA
Sff.
O autor.
Minha Senhora
Se os actos espontâneos, livres de mesquinhezas
convencionaes e de circumstancias coactivas, são,
no dizer dos physiologistas, revérberos especiaes
das tendências, que dimanam do nosso tempera-
mento— as paginas d'este livro, como producto de
uma actividade independente, representam uma fei-
ção característica das minhas predilecções indivi-
duaes.
Se outro fora o motor, adstricto à minha penna,
não me abalançaria eu a jornadear por lugares aon-
de muita gente tem ido, a esboçar paizagens retra-
tadas por outros, a dizer couats já ditas, finalmente
a escrever. . . para escrever.
Pôde V. Ex.* dizer-me que o sol, o luzeiro mil-
lenarío de esplendor inimitável, enthesoura em si a
CARTA
admiração inninterrupta de todas as gerações, que
se succedem, e que os quadros, ainda os mais sim-
ples, da natureza que elle vivifica, não entram no
privilegio exclusivo de pessoa alguma, e podem ser,
como são, enlevo ou aprazimento de um, ou de mui-
tos milhares de individuos.
E verdade. E eu acrescentarei, se me conceder
licença, que é sempre natural, agradável e de boa
intimidade contar o que vimos a quem nos quizer
ouvir, e que, no modo de narrar os assumptos, exis-
te a tal ou qual originalidade, requerida pelos ouvin-
tes fantasiosos ou pelos simples amadores do desco-
nhecido.
Algumas d'estas paginas já perderam o que se
pôde chamar opportunidade.
Não curo d'isso, porque as recordações não ca-
recem d'ella — Contar é recordar — e porque sinto
a necessidade de escrever, desprendido de occasião,
escola e confrarias litterarias, quando e como quero,
senhor absoluto das minhas idéas e dos meus actos,
como muitos precisam conversar desafogadamente ;
como outros não podem deixar de cultivar, para re-
galo do espirito ou da alma, um canteiro de flores,
despidos inteiramente das preoccupações scientifi-
cas dos naturalistas e das investigações minuciosas
dos botânicos.
Uma natural e singela demonstração do meu tem-
CABTA
peramento. . . um culto intimo, reservado em espe-
cial á intimidade das pessoas, com quem convivo
affectuosamente.
No numero d'estas, tenho a honra de contar V.
Ex.a: d'ahi o motivo da offerta das minhas Notas a
Lápis, um simples compendio de memorias, que a
ninguém competia mais, porque V. Ex.â formou das
viagens um ideal perfeitíssimo, onde se agrupam to-
dos os elementos, destinados á creação completa de
uma viajante tão destemida como infatigável.
E, em verdade, uma sonhadora impenitente.
Viaja a conversar, viaja em idéa, viaja em musica.
Quando o alegro vivíssimo e scintillante de uma
canção característica lhe sae dos lábios, a sua voz>
minha Senhora, é uma calorosa saudação, mandada
pela idéa a todos os recantos da sua romanesca e
formosa Andaluzia ; quando o trecho de uma con-
versa, a folha de um jornal ou as tintas de um qua-
dro lhe representam as sinuosidades perigosas de
uma ascensão ás poéticas escarpas dos Alpes suis-
sos, ou um passeio ás veigas opulentas de paizes tão
bellos como o nosso — V. Ex.* agarra do cajado no-
doso, e lá vae idealisando o itenerario ; quando fi-
nalmente a sua organisação artística lhe suggere mu-
sicas originalíssimas, algumas das quaes este livro
pretende agradecer — os assumptos, fugindo da
quietação em busca de um movimento vibrante,
CARTA
são um viajar continuo do plangente para o alegre
irrequieto, do melodioso para a harmonia ruidosa —
um constante jornadear em espirito.
Por tudo isso, ao collocar esta prosa ruim na es-
tante da sua boa musica, fico-me a fazer preces in-
timas para a completa realisação do seu ideal —
uma viagem á roda do globo — ainda assim em car-
reira menos vertiginosa que aquella, que V. Ex.â
costuma imprimir aos dedos amestrados, quando os
passeia pelo teclado do seu piano.
Lisboa, dezembro de 1885.
2/). w. ófancáeà €U ^Áúu.
DE LISBOA AO MONDEGO
O motlro da jornada.— Coitas do coração.— Pelo caminho.
Foi a 28 de junho de (880.
Lisboa, a conquistadora dos mares, nos tempos áu-
reos da navegação, a donairosa cidade das sete collinas,
a por tantos e tão bellos titolos decantada e formosa
rainha do Tejo, então e sempre, a capital portogoeza,
que diariamente subiria de valor e formosura, se de-
vesse mais ao patriotismo e menos á politica — aca-
bava ba pouco de despir as primorosas galas de uns
enfeites, com que se adornava por occasião do mais
assombroso acontecimento moderno, que os seus habi-
tantes teem visto, suprema consagração á maior das
suas glorias, o grande festival em honra de Gamões.
Sentia-se ainda um accentuado rumor de plena satis-
fação, aquella satisfação, que nos entorna dentro da al-
ma as gotas de um suave desvanecimento, quando des-
cansámos, após o pagamento de uma grande divida de
honra, que os nossos antepassados deixaram de solver;
ou quando atirámos comnosco para cima de uma con-
fortável ottomana, a relembrar os fastos gloriosos de
10 NOTAS A LÁPIS
uma campanha de civilisadoras consequências, cum-
prido o nosso rigoroso dever.
Todos se sentiam satisfeitos.
Poetas, artistas, trovadores e philosophos, jornalistas
e litteratos depunham, entre grinaldas de flores, as
pennas, os pincéis e o buril, com que haviam engran-
decido, e, o que mais é, immortalisado o maior e mais
estupendo facto nacional, de que ha memoria nos an-
naes do patriotismo contemporâneo.
O mármore, o gesso, o bronze, a gravura, o dese-
nho, a pintura, a typographia ostentavam ainda, á vista
dos curiosos e amadores, tudo o que o talento e a ins-
piração, a industria e a arte haviam espalhado pelos
tbeatros, pelas escolas, pelos salões aristocráticos, pelos
gabinetes das sociedades, pelos círculos elegantes, pe-
las casas de commercio, pelos estabelecimentos de todo
o género.
Achavamos-nos também repleto do nosso quinhão de
ventura, em tão faustoso banquete ; Lisboa porém es-
caldava-nos as artérias, objectava-nos a luz, e corrom-
pia-nos o ar.
E no entanto havia dezesete annos, longos annos, que
a não viamos, e pouco mais de mez e meio que a ha-
bitávamos!
Seria somente a enfermidade, que era nós actuava?
O nosso mau-estar, um não sabíamos quê de melancó-
lico, tristonho, pesado e abafador, que nos assoberbava
o organismo — seria prova única de que o corpo sof-
fria?
Não.
De todas as expansões, necessárias á nossa alma, fal-
tava ainda uma, a maior, a mais volumosa de todas el-
las, o mais forte objectivo dos nossos desejos, amon-
toados em tão longo período.
E esse ponto culminante, e esse fortíssimo objectivo
era— ver, após uma longa e entranhada saudade, vêr,
palpar as arvores, os campos e os rios, por onde nos
correra a infância ; os lugares e as terras, onde nos
DR LISBOA AO MONDIGO ii
haviam sorrido, ainda que palidameote, os primeiros al-
vores da mocidade.
Perdôe-nos o realismo, que quer que não baja mais
coração senão para sentir as podridões sociaes; perdôe-
nos elle, a quem não servem já os arroubos lyricos,
que se prendem ao ar, á lympba do regato, ao murmu-
rar das arvores, ao aroma das flores, ao cantar dos
passarinhos, ao surgir de uma aurora limpida, ao decli-
nar de uma tarde de primavera; perdôe-nos elle, e não
nos leia, pois nem os seus desdéns nos offendem, nem
os seus applausos nos commovem.
Dizíamos nós que o borborinbo da gente, que se
apertava suada no meio dos torvelinhos de uma poeira
suffocante, a subir e a descer do Chiado, a pasmaceira
tradicional das alamedas do Passeio, e emfim a athmos-
phera, respirada atravez das roas e viellas de Lisboa,
umas poucas limpas de dia e todas mal illuminadas de
noite; dizíamos que tudo isto nos escaldava o sangue,
e torturava o espirito.
E era assim.
Por mais que o movimento, a larga convivência com
os nossos semelhantes, o exercício pratico das cousas
da vida — nos sejam recommendados, como meios po-
derosíssimos da conservação das nossas faculdades —
occasiões ha em que tudo isso nos irrita, nos enfastia,
e aborrece.
E, se isto se dá com indivíduos, nascidos, creados
n'um grande centro, d'onde nunca sairam — o que di-
remos d'aquelles, que gastaram o melbor dos seus an-
nos, no meio de grandes e diversas populações, sempre
em attrito com a infinita multiplicidade de sentimentos,
que agitam os homens, e sempre em lucta com a sorte
varia e varia gente?
Respondam os experimentados.
Chega-se a ter ímpetos de saltar por cima de todas
as conveniências, e fugir. . . fugir até que se não ouça
mais o rumor de um lugar habitado, ou o som de uma
voz humana.
12 NOTAS A LAP18
Das enfermidades do espirito é esta a peor, que co-
nhecemos.
Se não nos achávamos no estado agudo d'esta triste
moléstia, bem pouco nos faltava para isso.
#
# #
Ás oito horas pois do mencionado dia, se não deitá-
mos a fugir até ás cavidades de uma longiqua monta-
nha, em ermo solitário — saímos de casa, de mala na
mão, capote de linho ás costas e barrete, de seda no
bolso, e só parámos no largo dos Caminhos de Ferro,
a uma das portas da respectiva estação.
Não pretendemos demonstrar o que se passa nas es-
tações dos caminhos de ferro das outras partes; pare-
ceu-nos porém que o serviço d'esta deixa muito a de-
sejar, principiando pelo despacho das bagagens, que
soffrem tratos horríveis para o conteúdo, que levam,
desde que caem na balança até que entram no com-
boio.
O babu ou a mala, cujos membros não sejam guar-
necidos de fortes prisões de ferro — arrisca-se a des-
conjuntasse, para melhor conveniência do serviço e
maior gloria dos respectivos empregados, que teem a
sobranceria de quem almoçou copiosamente, e está bem
com a sua consciência.
Que differença porém entre a elegante estação, que
encontrávamos, e a que deixáramos, ha annos, em Santa
Àpolonial
Ao primeiro arranco da locomotiva, raiou um sol es-
plendido, que se foi divertindo pelo caminho a esmal-
tar as faces do nosso formosissimo Tejo, e a entornar
scin ti Ilações deslumbrantes nos campos, que o margi-
nam, alegrando ao mesmo tempo os vários grupos dos
operários das fabricas do Beato António, um circulosi-
nho manufactureiro, que faz honra ás cercanias de Lisboa.
Ao movimento pouco accentuado, mas sempre pro-
DE LISBOA AO MONDEGO i3
gressivo, das industrias portoguezas não escapou o pró-
prio convento de S. João, boje convertido em larga of-
ficina, distribuindo assim, consoante as necessidades do
século, o pão, outr'ora destinado á preguiça e ao des-
membramento da espécie bumana, ás muitas famílias,
que lá encontram um trabalho honrado e productivo.
Passada a segunda estação, começou o borisonte a
alargar-se, á proporção que se estreitava o leito do le-
gendário rio, as paizagens a enriquecer- se, e a nossa
vista insaciável a absorver com soffreguidão todas as
imagens, e o nosso coração a dilatar-se pelo encanto,
que lbe proporcionavam o novo ar e a nova luz, em
que se banhava.
Ha que tempos não viramos aquillo, que para nós
tinha quasi o valor do desconhecido!
Na encosta de um valle, um rebanho de gado, segui-
do do pegureiro, em graciosas curvas torneando um
vallado, ou, n'uma esplanada, agrupado ao pé de uma
arvore copada, a ruminar em descanço; uma junta de
bois, obedecendo á voz potente do abegão, a abrir em
sulcos symetricos um ou outro pedaço de terra, já des-
pida da ultima sementeira; no cume de um outeiro o
decantado moinho de vento, a desafiar com as longas
azas abertas os ímpetos de algum Quichote moderno;
nas eiras, ao pé dos casaes, as raparigas de saia rufa-
da na cintura, a disporem os molhos de cereaes tem-
porões para a próxima malhada; ranchos de trabalha-
dores, occupados alegremente a mondar os largos cam-
pos de milho, saudando com a habitual algazarra a
passagem do comboio, em desafio com os passageiros
da terceira classe, que, ás portinholas, agitavam os cha-
péus, em ar de galhofa, umas vezes zombeteira e iró-
nica, outras verdadeiramente sincera e expansiva; final-
mente em toda a parte a graça, a diversão, o movi-
mento e a vida.
Tpdas aquellas antiquíssimas povoações, algumas das
quaes se remontam a épocas anteriores á fundação da
monarchia, no rápido golpe de vista, que sobre ellas
14 NOTAS A LÁPIS
podíamos lançar— nos produziram boa impressão, pelo
alegre da sua apparencia, ou pela vetustez das suas an-
tigalbas architectonicas.
Uma viagem, em camindo de ferro, é porém pouco
azada a investigações históricas; por mais que torturás-
semos ás vezes a nossa memoria, á procura dos factos
passados em algumas d'ellas, nunca chegávamos a com-
pendiar meia dúzia de coisas com nexo, porque a pai-
zagem variava de instante a instante, os lugares substi-
tuiam-se rapidamente uns aos outros, de modo que só
tínhamos alma para ver, e não para recordar.
II
O Carregado.— Recordações..— Uma aventura de rapas.
Não nos aconteceu porém o mesmo, quando chegá-
mos á estação do Carregado; ou antes aconteceu-nos o
mesmo, quanto a casos de historia, mas não pelo que
dizia respeito ao que alli se passara comnosco, havia an-
nos, quando o trajecto de Coimbra até lá se fazia em
ma la- posta, com demora de alguns dias.
Vincamos, pela primeira vez, caminho de Lisboa,
onde uma pretenção, concedida havia muito; nos trazia
á presença de um fidalgote, infelizmente nosso parente,
que, apesar dos titulos nobiliários, que lhe engrinalda-
vam a prosápia, faltou á sua palavra, tão miserável e
desastradamente, como o não faria o mais reles de to-
dos os villões.
Tivemos portanto de pernoitar, á espera do comboio
da manhã, em uma pobre estalagem d'alli perto.
DE LISBOA AO MONDEGO 15
Acompanhava-nos um sujeito, contractador de cavai-
los, nédio personagem, que ainda boje temos gravado
na memoria, um d'estes sujeitos que estão bem em toda
a parte, com tanto que lbes não façam gastar dinheiro.
Aberto o sacco do respectivo farnel, o homem convi-
dou-oos a comer um naco de bom toucinho e uma per-
na de gallinha.
N'esse tempo porém já Unhamos o horror, que ainda
hoje conservámos, ás carnes frias, e portanto negámos-
nos a tomar parte na refeição.
O dono da estalagem vira logo em nós uns fracos
hospedes, e fora para o interior da casa, deixando-nos
á vontade.
— Eh! eh!— dizia-nos o nosso companheiro, a rir-oos
nas bochechas, com a bocca atulhada de broa amarella
e os beiços untados de toucinho. — Eh! eh! Então o me-
nino não quer comer; cuida talvez que o cobrem ainda
aqui as saias de sua boa avó. Pois está enganado. Bem
se vô que não sabe nada da vida.
E assim continuou o homem a apostrophar-nos, a rir
e a comer.
A esse tempo fazíamos os nossos entes de rasão so-
bre os recursos da magra bolsa, que levávamos.
O nosso mau humor mauifestou-se ainda mais, se bem
nos lembrámos, quando o bom do homem nos convi-
dou a passar a noite, a um cante da estrebaria, ao pé
dos cavallos da mala-posta.
PTeste ponto rebelámos-nos contra a provisória tutela
do gordo personagem, e investimos pela casa dentro,
até chegarmos á cosinha, onde os donos d'ella e duas
guapas raparigas comiam socegadamente um caldo.
—O que teem por cá que se coma? — perguntámos,
com a mais santa ingenuidade de estudante provincia-
no, não sem nos embebermos na rápida contemplação
das raparigas.
—Olhe, menino — respondeu-nos a mãe das moçoi-
las, pessoa, ao que parecia, muito lavada de bons mo-
dos—a dizer a verdade pouco temos, porque estiveram
16 MOTAS A LÁPIS
abi uds homens— t'arrenego!—e que comiam, como lo-
bos, e vae... depois...
— Ó mulher— emendou o marido, com ar bonachei-
rão— comeram, mas pagaram.
— Pois sim. . . sim. . . mas— continuou a mulher —
se hoje viessem hospedes não Unhamos que lhes dar.
Olhe, menino, se quer umas sardinhas. . . Sente-se para
aqui. Ó Maria. . . chega-te. * . dá lugar.
A rapariga, a mais bonita das duas, deu-nos o seu
lugar, e foi, por ordem da mãe, preparar a iguaria, que
os nossos olhos de dezesete annos deixaram de ver,
para se cravarem tola e constantemente nos da graciosa
hospedeira.
A nossa imaginação sonhara desde logo um romance,
sem que, apesar disso, o nosso esopbago deixasse de
insurreccionar-se contra a demasiada salmoura do peixe,
capaz de inflammar os intestinos mais bem formados.
Chegou a hora de ir para a cama, que mandáramos
preparar.
A rapariga caminhava adiante, com a candeia na
mão, e nós estudávamos uma declaração em forma
para lh'a pespegarmos á queima roupa, quando ella
nos indicou a porta aberta de um pequeno quarto, e,
entregandonos bruscamente a candeia, nos disse, vol-
tando-nos rapidamente as costas :
— Muito boas noites, menino.
Aquelle qualificativo de menino soou-nos mal aos ou-
vidos, beliscou o nosso amor próprio, e não sabemos
se chegou a fazer-nos levar a mão á cara, á procura do
bigode, que estava ainda na mais completa incubação.
Meio vestido e meio despeitado, deitámos-nos na cama
soffrivelmente limpa, e procurámos chamar o somno, que
não é difficil em semelhantes edades, por mais que a vi-
são de uma rapariga bonita nos aguilhôe o pensamento.
Alta noite porém sentimos-nos despertar, no meio da
mais cruel agonia, e tanto que chegámos a suppor a
existência de um negro crime, perpetrada na nossa hu-
milde pessoa.
DB LISBOA AO MONDBGO 17
Uma sede ardente, como nunca sentíramos em nossa
vida, dilacerava-nos as entranhas e uma cólica fortís-
sima parecia qnerer arrancar-nos as mesmas entranhas.
Para juntar a tudo isso, que nos flagellava interior-
mente, sentimos na epiderme uma impressão tão estra-
nha, como se nos tivessem dado orna forte esfregação
de malagueta.
De bocca aberta e língua pegada ao sobreceu, saltá-
mos de um pulo da cama, e accendemos um phospboro.
A luz e o raciocínio deram-nos então a explicação do
caso estranho.
As sardinhas salgadas começavam a produzir-nos
uma formidável irritação de intestinos, que se conser-
vou por oito dias ; e umas centenas de enormes perce-
vejos, formados em vários pelotões, baviam-nos atacado,
com tal valentia e denodo que nem o somno da moci-
dade foi capaz de resistir-lbes. Eguaes áquella, só nos
lembram as antigas hospedarias do Minho, de que nos
falia, com tanto espirito, o nosso illustre romancista Ca-
millo C. Branco. O que fazer em tão triste conjunctura ?
Descer pé ante pé até á cosinba, em demanda do
pote da agua, e de volta ao quarto ficar de sentinella
ás fileiras do exercito inimigo.
Por vergonha, não corremos á estrebaria, onde reso-
nava o nosso companheiro, a pedir-lhe refugio contra
tão duro ataque, e a lançar-Ihe no seio as lagrimas do
nosso arrependimento, por não termos acceitado o tou-
cinho e a perna da gallinha, com que elle se regalara.
— Bem se vé que o menino nada entende da vida —
dissera elle,
E d'aquella vez tinha razão.
Ao outro dia, quando o gordo do homem nos entrava
no quarto, a dizer-nos que eram horas de partir, está-
vamos nós esguedelbado, com os olhos encovados e o
rosto pálido, sentado n'um tamborete, a lér os annun-
cios de um pedaço de jornal, em que trazíamos embru-
lhado um par de sapatos. Ao depor a paga da hospe-
dagem nas mãos do dono da locanda, nem sequer nos
18 NOTAS A LÁPIS
lembrávamos já dos attractivos da formosa rapariga, tal
era a anciedade em que estávamos, por fugir (Taquella
casa, onde o amor e as sardinhas nos tinham posto no
estado de precisar hospital.
E vão lá fiar-se nos amores dos dezesete annos, que
não resistem áquella pitança e a uma simples invasão
de percevejos !
Pois, a despeito do caso, que fica revelado, ao che-
garmos á estação do Carregado, quasi que desejámos
encontrar ainda a hospedaria, que nos dera tão áspero
agasalho, e sentirmos-nos conduzir pelos cavallos da
posta, tal é o poder, que teem sobre nós as recorda-
ções dos tempos idos.
Se esse desejo podesse tornar-se uma realidade, te-
ríamos ao menos uma grata compensação — a de gosar-
mos, embora por instantes, a uns cinco kilometros de
distancia, o formoso panorama da villa de Alemquer,
povoação manufactureira, cortada a meio pelo rio do
mesmo nome, graciosa pátria de Damião de Góes.
Em Chão de Maçãs deram-nos Ímpetos de tomar o
caminho de Leiria, e seguir em piedosa romaria até á
Batalha, o grandioso monumento, que, apesar d'isso e
dos annos, que sobre elle teem passado, se conserva
imperfeito, isto é, por concluir, como acontece á má-
xima parte dos monumentos portuguezes; mas fomos
obrigado a ceder ao plano da viagem, que era outro.
Ficava-nos a realisação d'este desejo para outra occa-
sião, em que mais tranquilla eazadamente, podessemos
também por nossa vez pagar o tributo de admiração
áquella gigante e viva prova da fé religiosa e do patrio-
tismo de outros tempos, descobrindo-nos reverentemen-
te diante da rendilhada fabrica, assombrosa e verdadeira
relíquia, que surgiu da simples vontade e intelligencia
de um homem só, o poeta-architecto, como lhe chamou
o sr. Pinheiro Chagas, em concordância com a opinião
de A. Herculano, que assim classificou Àffonso Domin-
gues, ao dar o titulo de poema de pedra ao edifício go-
thico-normando.
DE LISBOA AO M0RD1ÒO 19
III
Ot campos — á emigração — Chegada
Os campos e as habitações, próximas da via férrea,
durante o trajecto, eram para dós, como já dissemos,
motivo de constante embevecimento e de minuciosa cu-
riosidade.
Ao partir do entroncamento, com especialidade, no-
táramos, com certa estranheza, que, afora alguns peque-
nitos, a maior parte da gente, empregue na cultura das
hortas, na limpeza do caminho, no amanho das terras,
do movimento, que se descobria por toda a parte, per-
tencia ao sexo feminino.
A servir de guardas da linha, a manejar o alvião, a
carrear matto, a regar, e a sachar os renovos, a cruzar-
se em todas as direcções, isoladamente ou aos ranchos,
só víamos mulheres.
Estranhámos o facto, que nos parecia um phenomeno,
a um companheiro, com quem estabelecêramos assidua
conversa.
— Que quer, meu caro I Ha por cá populações intei-
ras, onde, afora alguns velhos, que já mal se podem ar-
rastar até á lareira, ou a uma restea de sol, no inver-
no— só ha mulheres e creanças. O resto... os homens
validos de todas as edades e de todos os estados foram-
se a procurar fortuna... emigraram... estão pelo Brazil.
— A emigração... o sonhado pouco de ouro... a des-
lumbrante fascinação, que tantos enganos estabelece, e
tantas desgraças produzi
— A quem o diz o senhor! A um homem competen-
tíssimo, a quem eram bem conhecidas as estatísticas dos
20 NOTAS A LÁPIS
consolados, que temos do estrangeiro, já eu ouvi dizer:
Por cada mil indivíduos, que saem do nosso paiz, onde
o Alemtejo é um deserto fertilissimo, mas inculto, e o
Algarve pouco menos — voltam dois... ricos, seis...
remediados, vinte e tantos. . . pobres: o resto vae por
lá arrastando uma vida de misérias, ou jaz nas valias
dos cemitérios.
Não podemos deixar de sentir um arripio de horror,
ao mesmo tempo que uma espécie de admiração nos fa-
zia encarar detidamente aquelle homem, tão conhecedor
dos resultados da emigração, em paiz, onde tão pouco
se conhecem essas tristes verdades e tudo o que diz
respeito ao emigrante portuguez, apesar de quantas es-
tatísticas ofíkiaes possam fornecer os consulados.
E no entanto, sem fallar nos insulanos, que de prefe-
rencia procuram os Estados-Unidos, anda-nos pela Amé-
rica do Sul a bagatella de cento e tantos mil homens,
arrancados á industria, ás letras, ao commercio e sobre-
tudo á agricultura, e por isso ao progresso moral e ma-
terial das respectivas populações, onde, apesar da via-
ção, que ha uns vinte annos para cá se tem alargado e
melhorado, se nota um desenvolvimento, sem nenhumas
condições de vida.
Se ha lugares, a que os palacetes e as casas de mo-
derna construcção, devidos ao dinheiro do emigrante,
emprestaram mais formosa perspectiva e mais assigna-
lada importância — muitíssimas povoações existem, onde
as continuadas deserções para fora do paiz teem produ-
zido um mal immenso, dando-lhes um aspecto selvagem
e doentio, um terreno sáfaro e inculto, ou mesmo a
completa decadência.
#
# #
Muito tempo depois de tocar n'este doloroso assum-
pto, que de perlo e de longe tão bem conhecemos, vi-
nha-nos ás mãos um jornal, onde um medico portuguez,
DE LISBOA AO MONDEGO 21
residente no Brazil, fazia estendal copioso dos resulta-
dos principaes da emigração, exercida torpemente em
grande parte por agencias assalariadas e immoralissi-
mas.
Offerecemos pois aos cobiçosos sonhadores das minas
de ouro, que em toda a parte existem, desde que se
lança mão de um trabalho sensato e continuado, a parte
do jornal que se referia á mortalidade.
Diz ella :
cPois que faltei de misérias... apresentarei outros
factos que não se encontram nos livros sobre colonisa-
ção portugueza. A população da capital do Rio de Ja-
neiro, pela estatitisca official de 1873, conta 228:743 ha-
bitantes incluídos 78:583 estrangeiros, dos quaes 53:213
são portuguezes.
a Na bypothese menos favorável ao meu calculo, todos
estes estrangeiros chegaram ao Rio de Janeiro entre as
edades de 10 annos até aos 78. Pela taboa da mortali-
dade de Deparcieux, desde o nascimento até á edade
de 10 annos, e desde os 78 até aos 94, morre um nu-
mero de indivíduos egual ao numero de óbitos cora-
prehendidos desde a edade de 10 alè aos 94. A grande
maioria da emigração compõe-se de indivíduos chegados
Da edade de 16 a 30 annos, em que o termo médio de
vida provável è o maior. A mortalidade da população
pelas estatísticas dos três últimos annos revelava uma
media superior a 10:000 óbitos.
cA população de Lisboa pelo menos é egual, se não
maior de 228:743 : a media da mortalidade em Lisboa
é de 5:400 óbitos por anno. Comparadas as populações
das duas cidades, as suas mortalidades, as suas respe-
ctivas populações dos súbditos naturaes dos dois paizes
e a dos estrangeiros habitadores desde os 10 annos por
diante, o resultado é o seguinte:— na cidade de Lisboa,
sobre 52:213 portuguezes, desde a edade dos dez até
aos setenta e oito annos, morrem, cada anno, 1:255 in-
divíduos, sobre egual numero de portuguezes entre as
mesmas edades, morrem na cidade do Rio de Janeiro
NOTAS A LÁPIS
3:125; ou melhor, a mortalidade dos portuguezes do Rio
de Janeiro é maior 149 por cento do que a mortalidade
de Lisboa.»
E' triste, mas verdadeiro.
#
# #
Das cruas reflexões, que faziam parte da conversa,
veiu arrancar-nos, em Pombal, pátria e desterro do ho-
mem mais extraordinariamente patriota, que ha séculos
tem nascido na península, um affectuoso abraço, que
nos dava um sympatbico e talentoso rapaz, o dr. E. de
Carvalho, que já uma vez se havia sentado á nossa mo-
desta meza de trabalho, a mil e tantas léguas de dis-
tancia, quando, também em pouco afortunada peregri-
nação, se encontrara comnosco pela primeira vez.
Fora aquella uma agradabilíssima surpreza, somente
devida ao capricho do acaso, tão longe estávamos nós
ambos de nos vermos n'aquelle lugar, e pela segunda
vez.
Dêmos as mãos, e conversámos muito de longes ter-
ras e dos mil incidentes, que nos diziam respeito e a
conhecidos nossos, com aquella expansão e accentuada
franqueza, com que os veteranos se aprazem de recor-
dar os soffrímentos de uma difficil è penosa campa-
nha.
Na próxima estação, fronteira á risonha villa de Soure,
forçoso nos foi despedirmos-nos, elle para se entregar
aos seus trabalhos de obscura advocacia, na sua terra
natal, onde ninguém costuma ser propheta, quando a
sua aptidão e as suas qualidades pessoaes requeriam
maiores e mais altos destinos; e nós para proseguir a
viagem, ao menos por alguns dias, próxima do seu
termo.
Duas estações mais. . . trinta e dois kilometros. . . e
a nossa anciedade diminuiria de volume, e a nossa sau-
dade ficaria satisfeita.
Dl LISBOA AO MONDEGO 23
Com effeito o comboio galgara rapidamente aqnella
distancia, não com a velocidade, requerida pela nossa
vontade, com que ninguém tinha nada que ver, mas de
maneira a reprimir um pouco os ímpetos da nossa im-
paciência, e elevar ainda mais, se era possível, os im-
pulsos do nosso coração.
A's 4 e meia horas da tarde, pouco mais ou menos,
arquejava elle em frente da estação do Mondego, e nós
sobraçando machinalmente os pequenos volumes da nos-
sa bagagem, lançávamos vistas cubiçosas, húmidas de
enternecimento, sobre a cidade— presépio, a nossa tão
lembrada e estremecida Coimbra.
24 NOTAS A LÁPIS
EM COIMBRA
Utilidade de dizer coisas já ditas— Impressões e poetas
Os estudantes— Ruínas humanas
Coimbra, a jóia de vários nomes, possuída por varias
gentes, em tempos mal conhecidos boje! a querida dos
cônsules romanos, a pérola de godos e califas, a tão
disputada corte de mouros e cbristãos ! a mestra mo-
derna de sábios e doctores!
Coimbra!
O que poderemos nós dizer, na pobreza das nossas
notas a lápis, que já não esteja dito? Que lustre nos será
dado acrescentar a assumptos esgotados, como este de
fallar de lugares, que todos conhecem; descrever im-
pressões, já tantas vezes sentidas; estabelecer analyses,
atravez de um prisma, onde não podem figurar pessoas
ou cousas novas, e especialmente agora em que é de
primeira intuição, de verdadeiro rigor moderno viajar
no estrangeiro, trazendo de lá os olhos embevecidos por
tudo o que é fino, mimoso e grande, a imaginação cheia
de quadros multicores, variados em feitio e forma, e o
gosto de tal modo apurado que já não ha contental-o
com as mesquinharias do lar domestico?
EM COIMBRA 25
Uma pagina de prosa simples, caseira, despretenciosa
poderá lá rastejar pelos períodos brilhantes, onde a
phrase scintillante, como cristal fino, se junta ao im-
previsto da narrativa tão rendilhada como os estuques
do Alhambra, ou tão florescente como os jardins de Se-
miramis?
De nenhum modo.
O que emporta isso porém a quem, como nós, se
arreda voluntariamente do caminho, que nos não é dado
trilhar, e que se contenta pura e simplesmente com re-
cordar impressões, que outros já podem ter sentido e
descripto, mas que no fundo da sua singeleza chegarão
talvez o encerrar alguma utilidade.
E essa utilidade?
Responda a maioria dos leitores do periódico, onde
foram publicadas estas linhas, o Atlântico, destinado ao
Brazil e ás nossas possessões ultramarinas; respondam
os nossos compatriotas, que, longe do seu paiz, não sa-
bem, não podem desdenhar um instante sequer d'aquil-
1q, por simples que seja, que possa levar-lhes ás agru-
ras da saudade unta gota de bálsamo consolador ; fal-
lem elles, que lá fora sentem o que nunca sentiram tão
vivo. . . um entranhado amor por tudo o que pôde ía-
zer-lbes lembrar o ninho seu paterno.
E essa utilidade?
Está n'isto. • • a mais suave compensação, que podem
ter estas paginas de mero desenfado... levar a tantos
corações amantíssimos um ecco da pátria, doce bafa-
gem, que vae rescender-lhes á flor da larangeira dos
pomares, á esteva dos montes, ou á madresilva dos ri-
beiros, que guarnecem os lugares, onde elles se forma-
ram, e cresceram.
Adiante pois I
Prestemos nosso sincero culto á pátria de tantos ho-
mens illustres pelo sangue, pelas virtudes e patriotis-
mo, por artes e lettras, ao coito florido dos poéticos
amores de Ignez, á mimosa terra de Sá de Miranda
e Machado de Castro, á encantadora princesa do Mon-
26 NOTAS A LÁPIS
dego, no dizer e versejar de amas poucas de gera-
ções.
Coimbra I Que mundo de lembranças suavíssimas não
inspira este nome a tantos velhos, encanecidos nas dif-
ferentes luctas da vida, quando uma hora despreoccu-
pada lhes deixa andar o coração á procura de recorda-
ções passadas !
Quantos homens, que hoje trabalham na politica, no
commercio, nas lettras, vivendo nas cidades e nas al-
deãs, dentro e fora do paiz, se comprazem ainda de
commemorar, nas sessões entre amigos e condiscípulos,
as tumultuosas arruaças ou os entretenimentos brandos
da sua mocidade, quando eram estudantes em Coimbra!
quantos, saídos de lá ainda hontem, conservam hábi-
tos, que alli adquiriram, gostos que lá lhes nasceram,
imagens que não conseguiram nunca riscar da memo-
ria!
E' por essa indelével e poderosa influencia que João
de Lemos, o dulcíssimo poeta do Cancioneiro, nos
disse:
—Cada povo tem a cidade da sua poesia, da sua ima-
ginação, dos seus amores: cada povo aponta para a sua
terra, que a tradicção vestiu de galas, e diz : — Lá, lá !
oh ! que não ha nada mais bello !
«O portuguez aponta para Coimbra. •
E assim é ! Ninguém, oh ! ninguém que le tenha pri-
vado com as particularidades da vida coimbrã, n'essa
edade, em que na imaginação avultam aos milhões
os pensamentos vagos, as aspirações, os pontos in-
definidos, e em que o mundo inteiro nos parece cons-
tante irradiação' de um Toco luminoso e côr de rosa,
atravez de uma lente, encravada no centro das nos-
sas illusões — ninguém poderá dizer que não seja as-
sim.
Ao darmos entrada na rua da Sophia, nós também
podíamos, com a mão no coração, exalçar o nosso ju-
bilo, a ponto de exclamar com aquelles conhecidos
versos do autor do Cancioneiro :
m COMBBÀ 17
Coimbra, terra de encantos
Do Mondego alegre flor,
Venho pagar-te, em meus cantos,
Tributo de antigo amor!
Andei por longe» terras,
Tantas cidades que vi,
Outros climas, outras serras. . .
E ás vezes scismava em ti I
De Londres vi a grandeza,
Vi o encanto de Veneza,
De Paris a seducção ;
E mesmo nesses momentos
Foi fiel meu coração.
O Rheoo com seus castellos,
Vienna, Milio, Berlim,
Da Suissa os cantões bellos
Não me filiavam a mim ;
Não fatiavam como falias,
Coimbra, nas tuas galas
Que eu sei, que aprendi de cór,
Não diziam o que dizes,
N'esse estendal de matizes,
Que tens de ti ao redor.
Não cantávamos porém, não faltávamos sequer, ta-
manha era a com moção, que a vista d'aquelles lugares
tão amados e tio conhecidos produzia em nosso espi-
rito, já de si adoentado e fraco.
Sentiamos-nos succumbir.
Se não fosse o medo do escândalo e do descrédito»
que soffreria o nosso juizo, ternos-ia-mos apeado do
americano para beijar as pedras d'aquellas calçadas e
os muros cTaquellas habitações.
A nossa phantasia, demasiadamente conservadora,
apesar de tudo, escandalisara-se, logo ao começo, pela
sensível mudança, que se nota em alguns pontos da ci-
dade.
Se podessemos, desandaríamos a cravelha á roda do
progresso, para nos extasiarmos somente diante d'aquil-
lo, que havíamos deixado, começando logo pelo largo
NOTAS A LÁPIS
de Sausão, onde, ao lado direito da vetusta e quasi so-
terrada egreja de Santa Cruz, se eleva um magnifico
edifício, onde funcciona uma repartição publica.
Os estudantes, que vagueavam pelas ruas, esses. . .
pareceram-nos o que o nosso povo chama, por escar-
neo, a quem nas pernas traz enfeite ou cousa mal ajus-
tada—«pintos calçudos».
Decididamente, em que pese aos innovadores, o ves-
tuário económico, mas já de si pouco vistoso, do estu-
dante perdeu muito em elegância, se é que alguma tem,
com o uso da calça caída.
E se a capa e a batina tradicionaes visam especial-
mente á justa economia, que não dá lugar a perigosos
estímulos, deixando differençar o pobre do rico— o trajo
académico perdeu ainda mais em economia, o que é
muito, do que na elegância, o que é pouco.
O resto do dia passamol-o em imprescindível repouso,
em doce convívio com alguns parentes, que haviam ac-
corrido á nossa chegada.
Esses, ao contrario de todos os lugares, onde achára-
mos innovações, apresentavam-nos nas faces as ruínas
da edade; deixaramol-os em pleno vigor de vida, e ví-
nhamos encontral-os. . . velhos.
Para estes encontros não ha verdadeira compensação.
Ao lado das mais santas alegrias, como qpe a recordar-
nos o nada da existência, lá está a visão dos que se
sumiram na sepultura, ou a imagem descarnada e fria
d'aquelles, que se avisinham d'ella.
KM COIMBRA 29
II
Passeios.— 0 jardim botânico. — Uma estroinice
dos dezoito annos.
Ao outro dia, de manhã, antes de descermos ao Mon-
dego, quizemos visitar os sítios, a que nos prendiam
maiores e melhores recordações.
Da rua da Calçada, tomámos para o Arco de Alme-
dina, monumento árabe, uma das portas de Coimbra,
quando mourisca, marcada por D. Manuel com as armas
do reino e da cidade e a imagem da Virgem, erguen-
do-se-lhe em cima a chamada torre da rrolaçom ; subi-
mos pelo Quebra-Costas, travessa íngreme e celebre
pelos episódios caricatos e dolorosos de muitos milha-
res de quedas, attenuadas hoje por escadarias moder-
nas; embrenhamos-nos pelas tortuosidades d'aquellas
ruas características de uma época bem definida ; e pro-
curámos o lyceu.
Fomos achar um hospital, no vasto e velho edifício,
onde o havíamos deixado.
Não tivemos porem muito que andar para darmos
com elle : caminho do jardim botânico, lá o encontrá-
mos na casa, onde fora outr'ora o collegio de S. Bento.
Julgámos porem que o estabelecimento não ganhou
muito na troca, pois, segundo nos consta, os respecti-
vos exames são feitos na egreja, ao que nos parece, por
falta de outro lugar mais conveniente.
Entrámos no jardim, nomeadamente o melhor de
Portugal, aquelle vasto, poético e accidentado jardim,
que se estende atè quasi ás margens do rio, aquelle in-
comparável recreio iostructivo, cujos primeiros toques
30 NOTAS A LÁPIS
foram dados por Brotero, sob as ordens do famoso mi-
nistro de D. José, Brotero, o sábio botânico, a quem a
população de Coimbra vae agora pagar o tributo de um
monumento, condigno da memoria do illustre académi-
co e dos brios da cidade universitária.
Depois de nos termos embebido em contemplação
profunda e amorosa, ao darmos uns passos vagarosos,
automáticos por sitios do nosso conhecimento, fomos
sentar-nos a conversar com as nossas lembranças, n'um
banco da segunda avenida, soberba e completamente
assombreada de tílias gigantescas.
Uma nespereira, que, á direita, estendia os ramos da
sua abundante folhagem, sobre um tapete de cravos
brancos, fez-nos sorrir; e, quem sabe se chegou a per-
suadirmos de que nos sorria também!
Recordava-nos ella uma estroinice, que nos produziu
uns bons oito dias de verdadeira abstinência.
Ha que annos lá ia o caso! e no entanto, a olharmos
para a porta, que dá para o lado das Ursulinas, pare-
cia-nos vêr ainda lá desenhados os vultos, que a ha-
viam escalado.
Uma tarde, achavamos-nos reunidos, no nosso mo-
desto quarto do bairro de S. José, três estudantes —
um parente nosso, commodamente sentado sobre a ban-
ca de estudo» um visinho, encostado ás grades do leito
de ferro, e nós meio deitado n'elle, com o cotovello
apoiado n'um velho e sebento diccionario latino, que já
contava talvez o seu vigésimo possuidor.
Tratava-se de discutir a melhor maneira de passar a
noite.
N'isto bateram á porta. Cordeiro, o nosso jovial e
bom visinho, foi abrir.
—Deixe-me, senhor doctor, deixe-me. Ai, Jesus!
Olhe que eu chamo por meu pae— dizia alguém, n'uma
gritaria infernal, em lucta aberta com o nosso obsequio-
so hospede.
Ào sairmos da cama para indagar do caso, recebe-
mos em cheio nas pernas um dos nossos sapatos, com
EM COIMBRA 31
que ama rapariga bexigosa, desdentada, remelosa e ves-
ga, um monstro de fealdade» se defendia' das aggres-
sões do estudante, que teimava em abraçal-a extrava-
gante e ruidosamente.
A pobre da creatura, filha do nosso sapateiro, que
nos engraixava o calçado, a seis vinténs por mez, tra-
zia-nos os sapatos, que levara, havia instantes, quando
tivera tão pernicioso encontro.
O peor è que a rapariga, no berreiro, que fazia, es-
tivera a ponto de engasgar-se com uma nespera das
que vinha comendo pelo caminho, e tivera a negregada
idéa de metter na bocca, á entrada da porta.
Uma formidável gargalhada, a saudação final de to-
das as estroinices académicas, desconcertara por tal
modo a portadora dos sapatos, que d'abi por diante,
preciso lhe foi tomar as mais serias precauções, ao
abrir da porta.
Restabelecido o socego, o nosso parente bateu uma
palmada na testa, com ar inspirado, e disse-nos:
—Já sei. Aquella rapariga é um anjo. . . fez-me lem-
brar uma coisa. Estamos servidos por esta noite; temos
uma grande empreza.
—Sim? -respondemos os dois em coro.— Pois vamos
a isso.
— O' diabo! . . é que a coisa é um bocado arrisca-
da. Se os archeiros nos apanhara...
—Mas o que é, homem? Desembucha.
—Vocês lembram-se d'aquella magnifica nespereira,
carregada a mais não poder, que tanto nos fez crescer
hontem a agua na bocca?... Um assalto bem combi-
nado... e teremos nesperas para quinze dias.
— Mas o jardim está fechado a estas horas. . .
—Tu és um asno. Pois a que horas queres tu lá en-
trar, de modo que te não vejam, a que horas que não
sejam estas? Estas... não, porque, no fim de contas,
só depois da meia noite poderemos dar o assalto.
— E os muros? e as portas? e o archeiro, que está
na guarita?
32 NOTAS A LÁPIS
— Sóbe-se aos muros, escalam-se as portas, e man-
da-se o archeiro á tábua.
Planeado o ataque, e dada a bora, lá saímos os três,
escondendo-nos com a sombra dos muros e das arvo-
res, e só parámos ao pé do portão, que dá para o lado
do seminário, onde melhor êxito nos offerecia a empreza.
Um gorro e duas fronhas de dois compridos traves-
seiros, atadas pelo fundo, eram os moveis para a con-
ducção dos despojos da intentada campanha.
Em pouco, havíamos trepado pela alta gradaria, que
forma o portão, e termina no alto em agudas pontas de
ferro, e, com mais ou menos difficuldade, achávamos-
nos dentro do jardim.
O barulho da agua, que caia dos repuxos, e murmu-
rava nos Ianques, protegia-nos os passos.
Chegados á nespereira, cada um se esforçou por le-
var a cabo a maior e mais rápida colheita que poude,
com excepção do nosso parente, que, sentado n'um ra-
mo, tratou em primeiro lugar de fazer no estômago uma
avultada provisão, com grande desgosto do nosso visi-
nho, que tomara vêr-se cTalli para fora.
—O' glotão, avia-te. Esta demora é capaz de nos
comprometter — dizia elle — sem ter ainda provado um
único fructo.
Pelo nosso lado, também nos não sentiamos mais va-
lente.
No entretanto o outro comia. . . comia, e só deixou
de o fazer, quando a vontade de comer o abandonou
inteiramente.
Elle reservara o gorro para si; menos tempo lhe le-
vou por isso a encher.
As fronhas haviam-se constituído em saccos esguios,
mas consideravelmente pesados.
As algibeiras traziamol as cheias de magniflcos cra-
vos brancos.
De volta, em frente do portão, surgiu-nos repentina-
mente uma difficuldade, quasi insuperável, em que não
havíamos pensado.
EM COIMBRA 33
Os volumes não cabiam atravez dos anneis da grade;
não podíamos dispengar as mios, para o necessário
apoio, quer a subir, quer a descer*. . como passar pois
para fora o fructo de tanto trabalho, que afinal não dei-
xava de ser um furto, que descoberto nos podia custar
caro?
Valemos-oos dos dentes, e lá fomos marinhando por-
ta acima, fazendo das fraquezas forças.
— Eu deixo cair o sacco. • • — dizia o Cordeiro por
entre dentes, encarapitado no alto.
— O' diabo, cala-te.., não faças tal — dizia-lhe o nos-
so parente, que, por matreiro, ia mais leve.
Nós, por vergonha, não dizíamos palavra, tamanha
era a dôr, que sentiamos nos dentes.
A muito custo, conseguimos descer, deixando-nos
cair na relva, que tapetava o chão.
Quando extenuados sobraçávamos a nossa presa, e
entravamos no quarto, o Cordeiro abriu o sacco, tirou
ama nespera, e approximou-a da bocca.
Acto continuo, levou as mãos ao rosto, como que a
segurar os queixos, e despediu um grande grito.
Ao contado da fructa, sentira todos os dentes abala-
dos, como nós egualmente Unhamos os nossos, e não
poderá mordel-a.
Durante uns oito dias só nos permittiram tomar cal-
do; as nesperas... essas apodreceram, ou foram dis-
tribuídas pelos nossos companheiros.
Se então, por fortuna, tivéssemos ao nosso lado um
moralista, não deixaria elle de nos citar o caso, como
um verdadeiro aphorismo.
Para que na nossa memoria podesse avultar, como
se fosse passado na véspera, nada faltava alli... lá es-
tavam... a mesma avenida... a mesma nespereira...
o mesmo portão de ferro.
No jardim ha * melhoramentos consideráveis; maior
opulência na a rb o ri sacão, maior numero de estufas, on-
de infelizmente não podemos entrar, ppr estarem fecha-
das, melhor disposição nos vários grupos de plantas, em
34 MOTAS A LÁPIS
todo o precnrso das loogas ruas, que os dividem, e a
que prestámos ama sôfrega attenção.
Gomo ponto de vista, pouco ba então qae se egaale
ao que se disfracta do lado esquerdo, na parte mais alta,
que pertenceu á cerca de S. Bento.
Fica-se extasiado diante do formosíssimo panorama,
que de lá se descobre: á esquerda, o jardim, ridente de
verdura, descendo em socalcos até á estrada da Beira,
que lbe forma com os salgueiraes do rio uma bordadu-
ra... um primor da mais vigorosa arborisaçâo; á direi-
ta, a cidade, descaindo amorosa e languidamente sobre
a encosta até á ponte; ao fundo, o Mondego, e defronte
um variadíssimo quadro, onde se desenham d'entre os
tufos da folhagem, que lbe serve de abobada, as casas
alvejantes das quintas e lugarejos circumvisinhos de San-
ta Clara, que se levanta, a ostentar galhardias com a ele-
vação, onde estamos.
Oh ! lugar encantado, tão próprio á meditação e á poe-
sia, como nos achámos bem no teu seio ! com que des-
cuido nos deslembrámos por instantes de tristezas e ma-
gnas passadas I com que sofreguidão consoladora aspi-
rámos esse ar balsâmico, que dos sinceiraes do Mondego
subia até aos nossos pulmões, cansados de respirar a
ardente viração do equador t
À hora que era, não podemos visitar a aula de botâ-
nica, estabelecida no primeiro pavimento do lyceu, nem
o herhario, devido aos cuidados e hábeis esforços do sr.
(Ir, Júlio Henriques; o que fizemos mais tarde com bas-
tante aprazimento nosso.
KM COIMBRA 35
III
0 aqueducto. — 0 Penado da Saudada.
Santo António dos Olivaes.— Penedo da Meditação.
Quinta de Santa Cru.
Do jardim fizemos-nos conduzir ao Penedo da Sauda-
de, visto que o nosso fim principal era matar saudades
e tão arraigadas» que datavam dos verdes annos da nos-
sa mocidade.
Ao passar pelo maltratado aqueducto de S. Sebastião,
considerado ainda assim como óptimo entre as obras
(Tesse género, lembrámos-nos da teima, que lhe deu ori-
gem, e de um episodio académico, que se refere á imagem
do santo, posta em nicho saliente e pintado de branco,
no lugar mais elevado, a meio dos vinte e dois arcos,
que em vistosa linha se estendem até ao bairro alto.
Os poderosos frades cruzios, em 1570. por occasião
de grande sécca, oppozeram-se tenazmente a que se for-
necesse das suas fontes abundantes a agua á população,
a quem fora usurpada, havia mais de quatrocentos annos.
O povo reclamou ao rei D. Sebastião, que mandou
abrir uma cava, para tirar parte das nascentes.
Os frades mandaram arrasal-a, e excommungaram o
dezembargador, operários e assistentes.
Outro magistrado mais enérgico levou a obra por
deante, e, ajudado pelos moradores, ergueu a aquedu-
cto, a que se deu o nome do monarcha, apesar das quei-
xas mandadas a Roma pelos caridosos frades, que ain-
da assim foram indemnisados com a posse de algumas
terras.
Tal é a origem do aqueducto.
36 NOTAS A LÁPIS
Um estudante, que modernamente por alli passeiava
frequentes vezes, a decorar as lições, começou a embir-
rar com as setas da imagem de S. Sebastião, e resolveu
alivial-o d'aquelle martyrio, por estroinice maliciosa.
Guindou-se, com grandes esforços de gymnastica, ao
nicho, e despojou o santo de todos os instrumentos do
supplicio.
Interrogado e reprehendido, respondeu com mal fin-
gida ingenuidade : — Então que querem ? Não pude re-
sistir. Era uma dor de coração ver o santo ainda a pa-
decer em época de tanta caridade.
Este engraçado episodio pertence aos fastos galhofei-
ros da academia.
Chegado ao ponto tão frequentado, que buscávamos»
d'onde se descobrem as fontes do Cidral e do Casta-
nheiro, a que concorrem os ranchos de raparigas, em
romaria milagreira, nas poéticas manhãs de S. João e
S. Pedro, no meio de um panorama dos mais variados
e opulentos; ao lançarmos a vista melancólica sobre as
herdades, pomares, casaes e olivedos, que, n'uma área
immensa, nos ficavam aos pés, veio-nos á idéa a em-
phase desdenhosa, com que, bem longe de lá, nos dizia
um individuo, ao fallar de Coimbra:
— Não ha coisa mais incomprehensivel do que a im-
portância, que tenho visto ligar ao tal Penedo, onde nada
vi que mereça a mais simples menção.
Poderá ! Todas as coisas teem uma originalidade pro-
priamente sua; d'ahi se deriva um culto, que só en-
contra adoradores nos corações, que o sabem, e podem
comprehender.
Ás almas essencialmente positivistas, que nunca so-
nharam acordadas, ao menos uma vez na vida, como
hão-de inspirar delicias, ou produzir enternecimentos lu-
gares como aquelle ?
Uma longa dynastia de poetas tem alli perpetuado as
mais intimas tradições, soltando fervorosos cantos, ao
impulso melancólico e suave de milhares de recordações
dos bons tempos da mocidade.
BM COIMBRA 37
Ainda ba pouco, n'um derradeiro canto de cysne, o
infortunado Luiz de Campos escrevia, no seu poema
Maria:
Penedo da Saudade que os suspiros
Ouviste á tantos ! Lapa dos Esteios,
Liada Fonte de Içnez, bellos retiros
Onde a infância se gasta em devaneios,
Quando, entreabrindo as portas da sciencia,
Não sonhámos sequer a realidade ! . . .
Permitti que eu, depois de longa ausência,
Escreva, e beije os nomes que a saudade
Me trouxe agora ao espirito, lembrança
D'um tempo de illusões e vago encanto,
Onde sorri constante o sol da esperança
Que se transforma após em mar de pranto 1 1
Quando mesmo não houvesse alli cousa que nos ca-
ptivasse a attenção, bastava a um espirito curioso co-
nhecer o sitio, onde a tradição colloca o vulto elegante
e enamorado de D. Pedro, que alli passava tardes e ma-
nhãs inteiras, a carpir saudades da sua Ignez, cuja fi-
gura poética e doce a óptica dos vidros de alcance lhe
entremostrava, para lá do rio, n'aquelle oceano de ver-
dura.
Do Penedo da Saudade continuámos a nossa romaria
até Sanlo António dos Olivaes, lugar, a que se prendem
recordações de tempos remotíssimos, já hoje quasi apa-
gadas na própria tradição popular.
— Porque nos faliam d este sitio, onde vemos uma
simples escadaria, uma ermida de pórtico ogival e um
cemitério moderno ? — pergunta com razão o visitante.
Porque foi assumpto de piedosa devoção, que ainda
se não extinguiu de todo, e monumento consagrado ás
virtudes do grande taumaturgo portuguez e paduano,
que alli viveu alguns annos.
Em 1218, D. Urraca, mulher de Affonso II, deu aos
franciscanos a capella de Santo Antão, que lá existia ;
estes levantaram-lhe ao pé um modestissimo hospício,
que foram habitar.
38 NOTAS A LÁPIS
Santo António, aspirando á penitencia rigorosa, dei-
xou de ser frade cruzio, e recolbeu-se á humildade do
habito de S. Francisco, indo fazer-lbes companhia, e
saindo mais tarde a pregar a sua grande fé.
Em 1539, fundou-se novo e maior convento, sob a
invocação do taumaturgo, mas ardeu completamente,
em novembro de 1851, ficando a pequena egreja, cujo
pórtico se suppõe ser o primitivo, uns restos da antiga
devoção e pouco mais.
Sigamos para delias, e d'alli, na direcção de Cose-
Ihas, para o Penedo da Meditação, ermo tão visitado por
poetas e académicos.
Figure-se a quem o não conhece, um enorme roche-
do, suspenso como por encanto no cume de um monte,
semelhando uma monstruosa bala de artilberia, que do
monte fronteiro fosse despedida por uma peça das mais
collossaes dimensões, e ficasse alli achatada como uma
cunha, somente presa de um lado, como que obedecen-
do a um pbenomeno magnético; á roda, collinas, oiteiros
e montanhas, revestidos completamente de pinheiraes e
olivedos, que espalham por toda a parte as tintas me-
lancólicas do seu verde esmaecido, em longes de uma
perspectiva scismadora; ao fundo uma garganta enorme,
tendo por base algumas terras cultivadas, em cujo cen-
tro se deslisa um ribeiro, á beira do qual uma mulher
nos pareceu uma creança, tamanha era a altura, a que
nos achávamos.
Eis ahi está o que é o Penedo da Meditação, lugar
talvez só consagrado aos que soffrem, mas nem por isso
de menos valia para os que pensam.
Prouvera a Deus que a arte, de mãos dadas com o
bom gosto, se quizesse emportar um dia com aquelle
sitio, único talvez em todo o paiz t
Vêr-se-ia então que motivo de curiosidade seria elle
para nacionaes e estrangeiros.
De volta, parámos em frente do portão da quinta de
Santa Cruz, a tão celebrada obra do sumptuoso reinado
de D. João V, outr'ora pertencente aos cónegos regran-
KM COIMBRA 39
tos de Santo Agostinho, e hoje, por desgraça, proprie-
dade particular.
Entrámos, e... oxalá nunca o tivéssemos feito, tão
contristado nos deixou essa visita.
Do soberbo pórtico, das escadarias monumentaes, la-
gos, estatuas, labyrintos, columnatas e fontes — apenas
restam destroços.
As longas ruas, as bordaduras de buxo e todos os
arbustos ornamentaes — uns desappareceram, outros es-
tão em miserável estado: muitas das arvores colossaes,
seculares, caíram aos golpes do machado, que as tem
reduzido a lenha.
De resto... alguns campos de milho, algumas videi-
ras, uma horta e. . . nada mais.
As arvores eram tão corpulentas, havia entre ellas lou-
reiros de tal importância, que o botânico Link, na sua
Voyage en Portugal, disse: — Quem quizer admirar lou-
reiros das índias e de Goa, em toda a sua magnificên-
cia, venha á cerca dos frades cruzios de Coimbra.
Inquestionavelmente não será muito fácil encontrar
povo mais indolente e avesso á conservação das relí-
quias venerandas de outros tempos do que o povo por-
tuguez; pois parece inacreditável, já não diremos á mas-
sa ignorante, porque essa è supinamente ignorante, mas
aos governos não tenha doido a destruição, em alguns
annos, de obras, que levaram séculos a construir.
As principaes bellezas cTaquella ainda não contam dois
séculos, mas o mesmo se pôde dizer de outras, espa-
lhadas pelo paiz.
Uma cousa, que n'outra parte representaria um mo-
numento nacional, e que para Coimbra podia ser ao me-
nos um logradouro publico, um passeio, em condições,
como poucas cidades o possuem, um lugar tão opulento
de formosura, devida tanto ao trabalho dos homens co-
mo ás manifestações da natureza, a troco de meia dú-
zia de contos de réis, deixa-se no mais completo aban-
dono, dá-se á exploração particular, impotente ou mer-
cenária, para que de tantas obras de arte e riqueza res-
40 NOTAS A LÁPIS
tem apenas simples recordações archeologicas, uma hor-
ta e um batatal.
Não pôde haver maior barbaridade, nem mais pro-
nunciado desleixo, nem maior desamor por aquillo, que
tanto custou a outros, e que nada nos custaria a nós,
além da conservação.
Decididamente o sol dos trópicos, onde a molleza é
um habito, mudou-se para esta nesga do meio dia da
Europa.
#
# #
Agora, passados quatro annos depois da publicação
d'estas linhas, abrimos gostosamente um parentbesis fi-
nal para declarar que o município conimbricense acaba
de comprar os venerandos restos da quinta de Santa
Cruz, para levar a effeito a idéa, egual á nossa, de a
converter era passeio publico, restaurando as fontes, as
estatuas, os lagos e repuxos, que forem dignos de res-
tauração.
Este acordar tardio de uma criminosa indifferença
ainda salva o nome coimbrão de uma grande vergonha,
e fornece á cidade um melhoramento, que vae ser, co-
mo jóia de alto preço, uma nova e brilhante fulguração,
collocada no centro do seu valioso e pitloresco diade-
ma, todo entretecido de amenidades campesinas.
KM COIMBRA 41
IV
A universidade. — Coimbra vista da torre. — O mnxen
Da quinta de Santa Cruz retrocedemos atè á cidade
alta, e dirigimos-nos aos paços da universidade.
íamos vêr uma edificação, cujos melhoramentos prin-
cipaes eram coevos dos da quinta, mas que, por força-
da excepção, lá se conservam ftinda em estado de se po-
derem visitar, sem repugnância.
Louvado seja Deus)
Da porta férrea á via latina e da capella á bibliotbe-
ca, ba muito que vêr, e admirar.
Na vastidão do edifício irregular figuram como prin-
cipal a sala dos actos, boje abandonada, e a dos capei-
los, ambas decoradas com os retratos apainelados dos
toonarcbas e reitores.
A capella de um gotbico singelo tem o seu magnifico
órgão, como cousa mais notável; é ampla e clara; a bi-
bliotbeca, apesar de acanhada, é uma verdadeira precio-
sidade, não só pelos livros muito importantes, que pos-
suo, como pela decoração das Ires salas, de que se com-
põe, n'um género, que não encontra similar em todo
o reino ; um capricho de ornatos, que são uma jóia de
enormíssimo valor.
As estantes de um feitio especial, em duas ordens,
guarnecidas de balaustres ponteagudos e cobertos de mi-
nuciosas pinturas acbaroadas, os primores de esculptu-
ra, allusivos ás diversas faculdades, as cimalhas, os te-
ctos, onde ba numerosíssimos quadros a fresco, e tão
frescos e tão formosos, como se abi fossem postos ha
dias; o pavimento, as mezas de ébano e gandurú, ma-
42 NOTAS A LÁPIS
gnificamente torneadas — formam um conjuncto sum-
ptuoso, como tudo o que se deve ao pródigo reinado
de D. João V, cujo retrato figura no topo da ultima saia.
Entre os seus valiosos manuscriptos, conta a livraria
uma biblia gotbica, com illuminuras, do século xn, feita
por um frade em pergaminho tão fino como papel de
seda, e outra, a mais rica, da mesma data, escripta em
hebreu, chaldaico e rabbino, que é o hebraico moderno,
ou árabe aperfeiçoado pelos judeus. Além das curiosís-
simas paginas, inteiramente cobertas de gregas e ara-
bescos, em desenhos minuciosos, é cheia de cercaduras
do mesmo género, pacientemente compostas de versícu-
los, em milhões de caracteres microscópicos, que a olho
nú parecem simples enfeites, e só podem ser vistos e li-
dos com o auxilio de unte boa lente.
Permitta o céu que a invernia, que tem deitado a ter-
ra os fustes rendilhados, os mármores e arcarias dos
monumentos antigos, não leve ahi qualquer dia nas azas
de um furacão aquelle precioso livro.
Pois se um estrangeiro já offereceu por elle doze con-
tos de réis, ao que nos disseram... Vejam se não è para
ter medo I
Os estrangeiros... esses, sim, bem sabem o que va-
lem estas ninharias, com que se teem locupletado, em
grande parle.
Por muito favor deixam-nos... a nós. que parámos,
de cithara na mão, a olhar para elles, e a descantar as
nossas glorias !
De volta da sala dos capellos, cuja bancada e ornatos
não correspondem á fama, que tem esse recinto, quize-
mos presenciar de uma galeria o acto de um estudante
de medicina; o nosso guia porém disse-nos. . . que era
isso vedado ao sexo feio... que uma senhora, que nos
acompanhava, sim... essa que podia assistir á coisa...
que eram ordens...
Á primeira vista, pareceu-nos semelhante ordem tão
original como ridícula, e lembrou-nos reagir, mas cur-
vámos-nos logo a tão sábia providencia, convencido, co-
KM COIMBRA 43
mo ficámos, do decidido horror, qoe os actuaes cathe-
draticos votam á promiscuidade dos sexos.
E teem razão.
As bancadas das aulas, de simples madeira com tos-
cas balaustradas pintadas de verde, são inferiores á mais
reles mobilia moderna das escolas primarias.
Á nossa estranheza responderam que os estudantes
não comportavatp cousa melhor, porque golpeavam a ca-
nivete todos os moveis de que se serviam; o que tive-
mos occasião de vêr.
Aquelles potros de supplicio correspondiam ao bom
gosto da brincadeira.
Achámos bem.
Já que estávamos alli, desejámos vêr Coimbra e os seus
arredores, de um só golpe de vista, subindo á torre, que
pela elevação, onde está, domina um vastíssimo horisonte.
N'um dos corredores, ao passar, deparámos com uma
grande collecção de quadros dos conventos, uns depen-
durados, outros encostados ás paredes, e alguns em
monte, no chão, arrumados ainda um pouco peior do
que aquelles, que estão nos claustros da bibliotheca na-
cional, em Lisboa, onde, valha a verdade, pouco admira
isso, ao lembrar-se a gente de que o pó das estantes
podia estercar um bom quintal, na occasião, em que o
visitámos, e de que a collecção de moedas, afora umas
dúzias delias, que se vêem n'uma pobre e acanhada
montra, que pertenceu talvez a algum vendedor de bo-
tões — está mettida em caixotios i
A ascensão á torre é difficil para quem não puder fa-
zer nos pulmões um vasto reservatório de ar.
Chegado aos sinos, tivemos de subir sósinbo, porque
os visitantes, que nos acompanhavam, declararam que
não passavam d'alli.
Para quem, como nós, mesmo ao ar livre, respirava
a custo, não foi pequena empreza.
Oht mas que suave e grandiosa compensação nos re-
sultou d'ahi! que alegria para os olhos t que enlevo para
o coração, tão ávido de cousas pátrias t
44 NOTAS A LÁPIS
O que a vista alcança para todos os lados, em tão ele-
vado ponto, surprehende, e encanta. Desde a estrada
da Louzã á da Figueira, n'uma linha immensa, segui-
da a meio pelo Mondego, e d'esta ao Bussaco; de San-
to António dos Olivaes até á maior altura de além do
rio — que variedade de matizes, que diversidade de
grupos, no meio dos quaes e á roda de nós, alveja a
cidade I que ridente panorama 1 que quadro formosís-
simo I
Dos paços da universidade dirigimos-nos ao museu,
estabelecido no collegio dos jesuítas, cuja egreja ficou
pertencendo ao bispado, com a denominação de Sé Nova.
Entre todos os conventos, espalhados pelo reino, e tão
mal apropriados a vários estabelecimentos, como acon-
tece em Lisboa, para não faltarmos de outros, á bibiio-
theca nacional, academia das bellas artes e hospital de
Rilhafolles — é ainda assim o museu de Coimbra um
dos que não teem peior alojamento.
O edifício é bello, e a sua organisação interior está
bem disposta, ao menos tanto quanto o permittem as
suas salas, já deficientes para as collecções, que encer-
ram, e promettem augmentar.
N'uma galeria, ha varias curiosidades e entre ellas
uns poucos de objectos archeologicos, como — algu-
mas armas, que serviram no cerco de Diu, e um fer-
rolho da porta do castello de Coimbra, de que já não
resta, ao menos que nos conste, uma simples pedra,
que atteste a memoria do grande heroísmo de Martin de
Freitas.
A secção zoológica encerra uma magnifica collecção
de aves nacionaes.
O theatro anatómico corresponde perfeitamente ao bom
nome, que tem.
Deve dizer-se, sem medo de errar, que ninguém con-
scienciosamente poderá sair d'alli, sem a boa impressão,
que nos deixam sempre as cousas, em que ha ordem,
methodo e asseio.
Com o fim do dia terminaram as nossas visitas.
KM COIMBRA 45
Ai fogueiras tradicionaas.
A estrada da Beira. — 0 caminho da Lousã.
A quinta da PorteUa.
A noite» que só por um caso gravíssimo deixaríamos
de passar alli, costumava em outros tempos ser uma
Boite de festa e de regosijo publico.
Quem não terá ouvido fallar nas fogueiras de S. João
e de S. Pedro, folguedos tradicionaes, em que a poesia
popular irradia fulgores dos lábios das formosas rapa-
rigas de Coimbra ?
Se Dão chegáramos a tempo da primeira, Dão perde-
ríamos por certo a segunda.
Gomo nem a tradição escapou á acção dos annos, co-
mo aquillo, que vimos, pouco se parece com o que era,
ainda Dão ba muito tempo, tentaremos demonstrar o que
foram as fogueiras.
Nas ruas, onde morava maior numero de estudantes
e onde havia mais casas de pequeno commercio, sema-
nas antes das duas noites festivas, organisava-se uma
commissão, á qual se agrupavam, por excepção, os dois
elementos principaes da cidade — o académico e o fu-
trica, ou paisano.
Corria uma subscripção pelos moradores, e dias an-
tes começavam a dispôr-se as cousas, que encontravam
ajuda e favor em todas as pessoas. Levantavam-se arcos
de buxo e rosmaninho, improvisavam-se repuxos e cas-
catas, cobria-se a calçada de flores desfolhadas e areia
branca, e fazia-se provisão de umas tantas carradas de
lenha.
Do meio d'esta azáfama saíam rivalidades, entre os
48 NOTAS A LÁPIS
Ó musa das tradições coimbrãs, perdôa-lhes. • . e não
veles a face t
De todos os melhoramentos modernos, que se teem
operado em Coimbra, merecem especial menção a pon-
te, o cães e a estrada da Beira, passeio favorito dos seus
habitantes, nas tardes de verão e em noites de luar.
Quem tiver conhecido a estreita e suja viella, que se-
parava o jardim botânico das margens do Mondego, fica
extasiado diante daquella transformação radical, ao de-
parar com uma bellissima e espaçosa avenida, ladeada
de assentos n'uma grande parte, e da mais opulenta e
variada arborisação, que se estende até á ponte da Por-
tella.
No dia seguinte ao das modernas fogueiras de S. Pe-
dro, passámos nós por alli, caminho da Louzã, onde nos
chamava o serviço de um amigo.
As bagas de suor. que nos alagavam a testa, entala-
do, como iamos, dentro do estreito recinto de uma di-
ligencia, entre a gordura adiposa de uma mulher disfor-
me e a somnolencia cabeceadorade um camponez, meio
avinhado — demol-as nós por bem desperdiçadas, desde
que entrámos na estrada da Beira, até nos apeiarmos,
depois de um precurso de vinte e tantos kilometros.
A não ser pelo que nos teem dito os viajantes, não
conhecemos os formosos despenhadeiros da Suissa, as
insuas fertilissimas, que se estendem pelas margens dos
seus pequenos rios, as cascatas, que se desprendem dos
seus penhascos, as poéticas gargantas, que se abrem no
sopé das suas montanhas.
Quer-nos parecer porém que o individuo, que se te-
nha maravilhado diante de tudo isso, não se dedignará
de dar um passeio pela estrada, que vae de Coimbra á
Louzã, em plena primavera, ou mesmo ao findar d'essa
estação, isto é, na época, em que por lá transitámos.
Imaginem-se duas serras, mais ou menos tortuosas e
cavadas quasi a prumo, correndo parai leias e apenas se-
paradas pelo rio Ceira, que se vae perder no Mondego,
ao lado da ponte da Portella.
BM COMBBA 49
A meio dorso da que se estende á direita-rio, aberta
na rocha, corre a estrada districtal, muito bem plantada
de eucalyptus, roseiras, arbustos de todo o género, ar-
vores fructiteras e ornamentaes, tendo de distancia a dis-
tancia abundantes nascentes de agua, recolhida em tan-
ques, para logradouro publico.
Do cume até mais de meio das serras, olivedos, que
só por milagre nos parecem conservar-se, e fructiflcar
ai li, onde será um esforço gigantesco ter-se um homem
de pé, durante a colheita da azeitona ; em continuação
aos olivedos, até ao fundo do enorme declive, numero-
sos socalcos, onde reverdecem plantações mais mimo-
sas; em baixo, nas estreitas planuras, que marginam o
rio, bordado de salgueiraes, viçosas iosuas de milho,
hortas, pomares, azenhas, casas rústicas, açudes, moi-
nhos e pequenas povoações, que acabam de dar áquelie
gracioso precurso o ar mais pittoresco e a feição mais
característica, que possa desejar um amador d'estas rús-
ticas bellezas.
À nós, peccadoraço incontricto do género, talvez por
havermos nascido entre montanhas, pareceu-nos aquillo
de uma formosura incomparável, e podemos certificar
que nada vimos de melhor, em todos os lugares, que
temos precorrido, do sul ao norte de Portugal.
Para cá da ponte, o cocheiro teve a amabilidade, mui-
to de agradecer entre a gente da sua classe, de nos lem-
brar um passeio á moderna quinta da Portella, proprie-
dade do sr. Daun e Lorena.
Olhámos a lembrança com certo desdém, porque o
lugar nos era inteiramente desconhecido, mas annuimos,
ao peso dos encómios, que ouvíamos.
O carro tomou á esquerda pela cancella principal, e
levou-nos, por entre uma bella estrada de frondosos eu-
calyptus, a um largo, onde verdejavam dois renques de
mimosas e rasteiras abeotas.
Ao fim estendia-se a gradaria de um jardim, que pre-
cedia uma boa casa de habitação, cercada de arvoredo
frondoso e vario.
30 MOTAS A LÁPIS
O caseiro franqaeou-nos a entrada* e acompanhou-nos
d'abi por diante.
As nossas duvidas caíram por terra e o termo da nos-
sa visita assentou em solidas bases o robusto convenci-
mento de que era aquella quinta a mais opulenta das
cercanias de Coimbra.
No jardim, bem arruado e vasto, um cultivo esmera-
do de plantas escolhidas, arbustos a desafiarem atten-
çôes e gabos, camélias a bracejarem frescor e viço, ri-
vaes de Cintra.
Na estufa, exemplares numerosos de uma flora inte-
ressante, a representarem climas diversos.
Á direita e á esquerda extensas propriedades rústicas,
terras de semeadura, laranjaes e vinhedos ; adiante de
nós uma copiosa matta em declive, lagos povoados de
cysnes, fontes de agua puríssima, ruas copadas de ar-
voredo, tortuosidades pittorescas, pontes, cânticos de
aves no intrincado das ramarias, sombras rumorejan-
tes, viveiros e pomares ; por ultimo o Mondego com o
seu arraial de lavadeiras, para onde se debruçam e
olham as bellezas d'aquelle lugar de delicias.
Quando atravessámos um túnel de condensada verdu-
ra, por onde o sol deixa escapar a muito custo umas fu-
gitivas arestas de tímida luz, para sairmos pela chamada
porta do mirante, collocada no extremo e á beira da es-
trada, o nosso desdém transformara-se em encanto de
formas indizíveis, e os nossos olhos embevecidos fecba-
vam-se ao primeiro despertar das saudades, que ainda
hoje sentimos por aquella formosíssima jóia do tão for-
moso Mondego.
51
VI
No Choupal. — O Mondego.
A feira de S. Bartholomen. — A economia coimbrã.
Regressando a Coimbra, fomos obrigado a interrom-
per as nossas visitas intra-muros, e a seguir outro des-
tino bem diverso, com que mais tarde nos entreteremos
também.
Só lá voltámos dois mezes depois, a 25 de agosto,
para nos encontrarmos com amigos, que d'ahi por diante
se tornaram mais do que isso, pois foram nossos com-
panheiros, em excursões de maior fôlego.
Celebrava-se a feira de S. Bartbolomeu, a que con-
corre o commercio de varias partes do reino, aconteci-
mento de alguns dias, que vem, por assim dizer, que-
brar a monotonia da cidade, devida á ausência dos estu-
dantes em ferias.
Wessa mesma tarde fomos ao Choupal.
Quem procurar definir aquelle silio encantador pelo
nome, que tem, ha-de decerto cair em erro, e commet-
ter injustiças.
O Choupal 1 Que de bellezas encerra este nome sim-
ples I Um areal, á beira do rio, outr'ora estéril e só po-
voado pelas arvores que Ibe dão o nome, converteu-se,
graças aos esforços da direcção das obras do Mondego,
n'uma perfeita mansão de fadas, a que nenhum visitante,
sem grave censura, deverá deixar de prestar o seu culto
da mais justificada admiração.
Pontes lançadas sobre riachos, que o cortam em va-
rias direcções; lagos, onde se reflectem, como em lami-
nas de cristal, os frondosos arbustos, que lhes formam
52 NOTAS A LÁPIS
docel ; renques de arvores gigantescas, moitas de flori-
das plantas, vergéis de suavíssimo matiz, viveiros de
opulenta floricultura, ruas extensas, ladeadas de trepa-
deiras, encostos naturaes e de artificio — misturam-se,
confundem-se, sorriem-nos, abraçam-nos, lançando-nos
a alma no mais intrincado labyrinto de poesia ineffavel.
Se todo o homem, ao menos uma vez na vida, sente
em si os arroubos de vanea dores, que se dizem consa-
sagrados ás musas, não deixará, ao entrar alli, quando
os pássaros saccodem as azas, aos raios melancólicos
do sol, que se inclina ao poente, e nos beija, por entre
a espessa ramagem do arvoredo — não deixará de ex-
clamar, ao menos de si para si: — Ó deliciosa estancia,
alindada pela mão das fadas, que vivem em constante
labutar com as formosuras da natureza, ó lugar encan-
tado, salve I a ti... a poesia única de toda a minba vidai
três vezes, salve f
De volta do Choupal, que, ainda, mal para os seus
amadores, fica a uma distancia considerável da cidade»
caminhávamos á borda do cães, em agradável e obse-
quiosa companhia de duas famílias, que se aggregaram
á nossa, com vivo sentimento de lá nos não podermos
demorar mais tempo.
O Mondego, como o Manzanares de Madrid, mas em
tudo mais formoso do que este, na época estiva, mos-
tra-nos o seu leito de fulgidas arêas, a descoberto, quasi
sécco ; apenas uma pouca de agua, que o mais estreito
ribeiro podia conter, sem esforço, alargando-se aqui e
alli, em poços ou em caprichosas curvas, lhe dá signaes
de vida.
O areal portanto transforma-se em pittoresco abarra-
camento, onde se tomam banhos, e as lavadeiras se
agrupam, aos ranchos.
Era ao extremo declinar da tarde.
Debruça mos-nos no gradeamento do cáes, a contem-
plar as alterosas bordaduras de salgueiros e mais arvo-
redo, que emolduram com a sua eterna verdura a man-
sidão d'aquellas aguas, tanto de temer na quadra inver-
KM COIMBRA 53
nosa ; a pensar dos arrulhos juvenis de tantos rapazes,
que por alli devaneiaram, e devaneiam ainda esperan-
ças fecundas de um afamado e risonho futuro ; a sentir
lembranças doce-azedas do modesto quinhão, que nos
coubera também na partilha das crenças incomparáveis
da mocidade; a carpir saudades de uns nadas, tão ama-
dos e para sempre perdidos ; e a presenciar o quadro
das lavadeiras, umas chilreadoras e guapas raparigas,
qae batiam a roupa, por entre uns descantes, cuja letra
só a espaços nos chegava aos ouvidos.
Desses versos, cantados mecbanica e singelamente,
entre uns laivos do sentimentalismo despretencioso e
chão, apenas duas quadras nos vieram completas.
Diziam assim :
Tenho om amor . . . tenho dois. . .
tenho três. . . não quero mais.
PYa que quero eu mais amores,
se elles não me são leaes?
O amor dos estudantes
não dura mais do que uma hora. .
ó como as aguas, que batem
nas pedras. . . e vão- se embora.
E nas pedras... também ellas batiam a roupa, tão
alegre e descuidosameote, como se nenhum cuidado
lbes perturbasse a serenidade do coração.
Chegada a noite, e ainda em caminho, perguntámos
pelos theatros, sem nos lembrarmos de que só abrem
as suas port§s ás companhias, que por lá passam, e uma
ou outra vez ás recitas de curiosos académicos.
Dirigimos-nos á feira de S. Bartholomeu, que não era
somenos espectáculo, tão concorrida estava ella, e tão
provida de cousas, necessárias á vida.
Desde a restea de cebollas até ao objecto de ourives,
mais rendilhado e custoso, nada faltava alli.
A economia domestica, que as donas de casa ainda
boje lá seguem escrupulosamente, encontrava n'aquelle
54 NOTAS A LÁPIS
abundante mercado largo campo para exercer as soas
funcções.
E por fadarmos em cebollas, lembrâmos-nos de que
ama das senhoras, que nos acompanhavam, mandou fa-
zer sortimento para o anno inteiro, isto é, comprar umas
mil e tantas, por que temos dado já uma libra e mais,
pela quantia de nove tostões, cousa que muito a escan-
dalisou, e lhe fez dizer, ao voltar-se para nós: — Veja o
senhor que carestia ! E assim é o mais; todos os géne-
ros, estão pela hora da morte.
A nós pareceu-nos inteiramente o contrario, e ainda
agora julgámos que se pôde ter em Coimbra um viver
farto e barato, taes são a fertilidade dos seus campos e
a riqueza dos seus productos.
Quem quizer regular-se pelos preços de hospedagem,
em um hotel, n'esta e em quasi todas as demais locali-
dades do paiz, ha-de forçosamente cair em enganos, por-
que taes casas, onde é raro encontrar bom serviço, aços-
tumaram-se ás tabeliãs dos hotéis de Lisboa, onde as
commodidades da vida são duplamente mais caras, e,
sejam quaes forem as circumstancias e os lugares, ten-
dem sempre a encarecer, e não a baratear.
A carestia é, em muitos casos, signal de progresso e
de correspondente riqueza; em matéria de hotéis, po-
rém, ha, entre nós e especialmente nas províncias, um
desequilíbrio tal que chega a ser uma especulação des-
regrada, se não um verdadeiro assalto á bolsa do via-
jante, que, as mais das vezes, farto de despezas avulta-
das nas locandas nacionaes, caras e más, foge para o
estrangeiro, onde, pelo mesmo preço ou pouco mais,
tem a disfructar cousas novas, e a regosijar-se com as
commodidades de uns adiantamentos, que nos faltam.
Não nos queixámos ; tirámos apenas uma conclusão
do que nos foi dado presenciar, nas localidades que pre-
corremos.
bm coimbbà 55
vn
A egreja da Santa Crus. — A té velha.
No dia seguinte, começámos o nosso passeio matinal,
entrando no vetusto e magestoso templo de Santa Cruz,
coevo da fundação da monarchia, monumento ião digno
de vôr-se, apesar de soterrado e puído pela acção do
tempo e petas inundações do Mondego, tanto de temer
na estação invernosa.
A egreja e convento primitivos foram estabelecidos
n'outro lugar, fora de portas ; não destoa ainda assim
chamar-lhes coevos do principio das nossas instituições»
pelos fragmentos e partes, encorporadas ás edificações
existentes da época de D. Manuel, a quem pertencem a
obra primorosa da fronlaria e o púlpito, esse capricho
da arte. que è uma verdadeira inspiração, e vale só por
si, pela vontade do esculptor João de Ruan, se è que
foi elle o autor, aquillo que a vontade de muitos homens
não é capaz de produzir.
Esta relíquia, em occasiões de festa, costuma estar
enfeitada e coberta com um trapo de soda qualquer. E
não ha autoridade civil ou ecclesiastica, que tenha o bom
senso de prohibir semelhante barbaridade !
Fora (Tesses dois objectos grandiosos, avultam como
cousas principaes o órgão e os túmulos de D. Affonso
Henriques e D. Sancho I, postos em occos, guarnecidos
de uma formosa ornamentação de pedra, que se eleva,
representando dois pórticos sumptuosos.
Em frente d'aquellas duas sepulturas manuelinas, que
ladeam a capella-inór, contrista- se a gente, ao vêl-as pro-
56 NOTAS A LÁPIS
fanadas pela procura de jóias e rapace cubica das hos-
tes francezas, negregadaraente imitadas por vândalos na-
cionaes, dos tempos de D. Miguel, últimos abutres, que
empolgaram os restos de alfaias e paramentos (Testa
enriquecida egreja, n'um acto de monstruosa selvage-
ria.
De tamanha opulência só appareceram na exposição
ornamental — um relicário de ébano com filigranas de
prata, outro do mesmo género com ornatos de bronze
e prata, uma coroa d'este metal, um cálix com arabes-
cos e um cofre forrado de madrepérola.
O primeiro órgão do reino. . . lá está, coitado, que era
tão merecedor de melhor sorte, ao lado do coro, em
tudo condigno d'aquelle magestoso templo, como sim-
ples lembrança do que foi, pois que ha bastantes annos
não funcciona, por necessitar de concerto; e assim pas-
sará, como devemos esperar, ao mais completo desman-
telo, se lhe não accudir a realisação de uns projectos,
em que ouvimos fatiar.
Os claustros, em cujas paredes se notam os vestigios
das repetidas cheias do rio, as capellas, a sacristia e as
obras de talha, que se acham espalhadas pela egreja —
são cousas dignas de attenção.
No claustro, chamado da Manga, ha uma capella, onde
Affonso I mandou reunir os ossos dos mais distinctos
portuguezes, mortos na campanha de Ourique, de cuja
identidade resa a chronica dos frades cruzios. Á imita-
ção da capella de Évora, as caveiras e os outros ossos
ornamentavam as paredes e o tecto, mas de ha muito
que se não vêem, por estar impedida a entrada per ta-
bique de pedra e cal.
O santuário, que se encontra no pavimento superior,
é muito notável pelas relíquias, verdadeiras ou apócri-
fas, que encerra, por sua abobada e pelo lustre, que
d'eíla pende, e finalmente pelos ricos ornatos e de-
mais objectos, que lhe guarnecem as parede» de forma
oval.
Acha-se em bom estado de asseio e conservação.
bm coimai 57
*
* *
E já que falíamos de egrejas Dão devemos esquecer a
Sé Velha, o mais precioso monumento d 'es te género,
que possue Coimbra, não só pela antiguidade, que se
attribue aos godos do século vi e posteriormente a moi-
ros, cuja mesquita fora, mas pelas preciosidades, ao me-
nos para nós, que lá estão, e ainda por seu valor his-
tórico.
O tempo, o eterno demolidor de tudo o que ha crea-
do, damnificou-lbe já o pórtico e a fachada lateral, onde
se observa o caixão de D. Sisnando e seu sobrinho, que
floresceram na época da conquista da cidade, ha oito sé-
culos; olbando-se porém, com certo recolhimento, para
aquelle todo escuro, para aquella massa de cantaria, sem
torres, nem feitio de templo christão, pôde parecemos
a nós. . . que ouvimos lá dentro o psalmear grave e pe-
sado das resas dos verdadeiros crentes.
O conde D. Sisnando, cujo epitaphio diz que foy gran-
de varam, sabedor e muito eloquente avondado e rico, e
agora he pequena cinza, ancorada em este moimento, co-
mo heroe principal da independência da sua terra natal,
passou vida agitada; esteve ao serviço dos árabes, che-
gando a ir á corte de Ibn-Àbbad, emir de Sevilha, com
quem mais tarde se desgostou, voltando a Coimbra ás
ordens de Fernando Magno, rei de Castella e Leão; e
foi por este nomeado governador do condado, que era
muito vasto.
Mais tarde conseguiu a plena independência do seu
senhorio, que se estendia até á serra da Estrella, posto
que nominalmente reconhecesse a mesma soberania es-
tranha; reedificou varias populações, dotou egrejas, co-
meçou o hospício dos cruzios, e morreu com grande fa-
ma, em 1091.
Em poucas partes se encontra o moderno misturado
com o antigo, como no interior d'este templo, onde, ape-
NOTAS A LAPI8
sar da irregularidade, que se nota, entre a construção
das varias épocas e as innovações de mau gosto, ha mui-
to que ver e admirar.
A' entrada do templo temos logo um soberbo mosai-
co em madeira; nas capellas lateraes, boas pinturas, so-
bresaindo entre ellas um quadro, que nos pareceu ma-
gnifico, representando as onze mil virgens, entre as quaes
avulta Santa Úrsula.
A pia baptismal de bello lavor, o mosaico de fausto-
síssimos e variados azulejos, que se dizem flamengos, o
retábulo de pedra da capella de S. Pedro e o do altar-
mór, e ainda os pórticos lateraes exteriores foram orde-
nados pelo bispo D. Jorge de Mendonça, fallecido em
1543, segundo resa a sua sepultura, erigida n'aquella
capella.
D'entre os túmulos antiquíssimos destaca-se um, de
esculptura grosseira, conforme ao pouco esmero artís-
tico da época, com a estatua de uma mulher, vestida de
religiosa, sobre a tampa, tendo á cabeceira dois anjos a
segurarem- lhe a almofada e aos pés um leão, por cima
de escudos ovaes, onde o relevo mostra, uma águia de
duas cabeças.
A inseri pçâo diz que alli jaz D. Be taça, neta do impe-
rador da Grécia.
Esta princeza, foragida, como sua mãe, recolbeu-se
ao reino de Aragão, entrando na corte de Pedro III.
Casando a filha (Teste, D. Izabel, com o nosso rei D.
Diniz, veio em sua companhia para Portugal em 1282,
e matrimoniou-se, mais tarde, com um fidalgo portuguez,
de quem enviuvou, sem filhos, legando toda a sua ri-
queza ao cabido da sé de Coimbra.
Alem d'este, ha na egreja outros túmulos, lapides,
inscripções e sepulturas, n'uma das quaes está o bispo
D. João de Távora, cujas innocentissimas cinzas não es-
caparam ao castigo, inflingido aos seus vindouros, como
o demonstra o brasão picado.
O altar-mór, como obra de talha, è uma pomposa re-
líquia, tal se nos mostra o seu custosissimo rendilhado,
labyrinto de madeira e ouro, que disputa belleus com
o mais delicado e precioso bordado.
Ao lado estão os altares do Santíssimo e de S. Pedro:
n'este ha o excedente retábulo de pedra, a que nos re-
ferimos; e n'aquelle ainda outro do mesmo material,
todo guarnecido de estatuas, em semicírculo.
Dos objectos pertencentes ás alfaias antigas, só pode-
mos vér uma campainha com rendilhados de prata.
Admirámos mais tarde, na exposição da arte orna-
mentei, trinta e quatro exemplares dos muitos que este
templo possue, ao contrario do de Santa Cruz, dos sé-
culos xu, xvi a xviu.
Em estofo, um panno de arras, representando uma
scena de amor, na tenda de um guerreiro; duas capas
de asperges, frontal, veu e tira de veludo e seda, com
sebastos ou listas de brocado, alamares e bordados de
ooro.
Em livros, um infolio-epistolario, encadernado em ve-
ludo e prata e dois (Teste metal com pastas de cera,
onde se tomavam notas das faltas dos cónegos.
Em prata branca e dourada, relicários, custodias, thu-
ríbulos, caldeirínhas, gomis e outras peças, doze das
quaes se acham desenhadas nos respectivos catálogos,
como objectos notáveis pelo estylo gotbico, columnelos,
nichos, figuras e relevos de grande valia.
Estes objectos estão hoje ao serviço da cathedral, ou Sé
Nova, onde os deverá procurar quem quizer admiral-os.
Não nos lembrámos em qual dos altares nos fez no-
tar o rapaz, que nos franqueara a egreja. a substituição
da imagem antiga, que lá se venerava, pela que moder-
namente se encontra.
— E porque retiraram d'aqui a imagem primitiva?—
perguntámos-lhe nós.
O rapaz olhou para as senhoras presentes, sorri u-se,
e não respondeu.
Insistimos na pergunta.
Elle então chamou-nos de parte, e segredou-nos que
a santa fora posta de lado, por... incapaz.
NOTAS A LÁPIS
— Por incapaz í — retorquimos — Ah ! estava que-
brada talvez...
—Nada, Dão senhor. E' que sim... Olhe... venha
commigo.
E, tomando a vela accesa de um castiçal, abriu uma
espécie de porta falsa, e levando-nos a um canto, onde
com efTeito nada se poderia ver sem luz, disse-nos,
apontando para um lado : — Está alli. E' a Senhora da
Boa Sorte.
Olhámos, e. . . então foi a nossa vez de rir, com de-
cidida vontade.
Uma imagem talvez de mais de um metro de altura,
muilo soffrivelmente esculpturada, mostrou-se-nos como
advogada de... de uma cousa deveras perigosa, e que
por isso não poderia escapar á sabia previdência dos
bons padres de outros tempos. . . o parto.
E' um exemplar de santa como nunca vimos, nem
nos consta que haja outro. . . uma celebridade. . . uma
santa, nem mais nem menos do que extremamente. . .
grávida !
Que santos varões, para não dizermos ratões, que
deveriam ser os sujeitos, que tiveram a lembrança e a
execução d'esta intercessora e advogada da multiplicação
do género humano i
O coro com as suas bancadas de pau santo, em quasi
tudo idêntico ao da egreja de Santa Cruz, mostra em
innovações de péssimo effeito, o dedo bárbaro das ir-
mandades, a que estão entregues os destinos (Teste e
de outros monumentos religiosos, onde o mau gosto
anda a par da mais supina ignorância.
Pois se até já chegaram a caiar, com as paredes, o
coro, o púlpito e os próprios azulejos, que ainda agora
bem mostram os vestígios da trolha, que os mascarou ? !
Felizmente o sr. bispo-conde sentiu os cabellos eri-
çados de horror, ao penetrar alli, e teve a caridade de
mandar lavar tudo aquillo, o melhor que lhe foi possí-
vel, dando mais uma vez, e ainda bem, a prova de que
o mel não é fabricado para a bocca do asno.
M
VIII
Santa Clara e ot tem pasteis.—» Quinta das Lagrimas.
Da Sé Velba fizemos-nos conduzir, pela ponte, á ou-
tra banda, a que por tantas e tio suaves recordações,
nos prendia a saudade.
Começámos por subir a Santa Clara, e do adro do
novo mosteiro vollámos-nos para Coimbra, a gosar a
vista da cidade, que se nos mostra inteira, agrupada,
serena, como um presépio, guarnecido ao fundo pela
prata das arôas e das aguas do rio, e franjado ao cimo
e dos lados pelo variado matiz dos arvoredos.
As ruínas do velbo mosteiro, onde residia santa Iza-
bel, lá estão ao fundo, meio soterradas pelas enchentes
do Mondego, como propriedade particular, carcomidas,
tristonhas, despresadas, e tanto que a parte da egreja.
a capella, onde demoraram por algum tempo os restos
de Ignez de Castro, serve hoje de. . . celleiro!
— E os pasteis? Que não esqueçam os appetitosos
pasteis de Santa Clara — ouvimos a uma voz.
Era justo.
Se o viver fosse um constante mar de delicias, talvez
se tornasse ainda mais custoso do que é. Alma e estô-
mago, poesia e prosa, alegria e pesar. . . repellem-se
moitas vezes, mas. . . andam juntos. . . são necessários
ao matiz da vida, que outra cousa não é que a conser-
vação da existência.
E lá 'fomos á celebrada pitança... aos pasteis das
freiras, que, apesar de o não quererem talvez, chega-
ram aos felizes tempos de prestarem para alguma cousa.
Ensinam creanças, e. . . e fazem pasteis.
62 NOTAS A LÁPIS
A rodeira deu-nos a quantidade pedida com certa
sofreguidão, e recebeu piedosamente a quantia estipu-
lada.
Mas. . . oh ! desillusão! ó afamados pasteis, até onde
vos arrasta a serapbica e meliflua ganância d'aquellas
filhas da oração !
Os doces accusavam uma edade provecta, a que os
dentes e o paladar lançavam maldições sem conta, e por
cabellos brancos mostravam na casca os alvos fios da
mais perfeita bolor.
O sacristão, um velho bonacheirão e trôpego, caracte-
rístico essencial de todos os sacristães, veio, a nosso
pedido, abrir as portas do templo, um vasto e sum-
ptuoso templo de esiylo romano, onde se conserva o
athaude de prata da rainha-santa Izabel, objecto, que
por largos annos estava na capella-mór, e foi transferido
para o coro, destinado ás freiras, onde nenhum curioso
poderá vel-o, a não ser nos dias da grande festividade
annual.
No corpo central, ha soberbas cimalbas, dois órgãos
e uns quatorze quadros, emoldurados também em ma-
gnifica obra de talha ; alem d'estes, ha mais quatro, ao
fundo e no cruzeiro, de maiores dimensões, em bom
estado, com excepção do da esquerda, onde figuram os
quatro doctores da egreja.
Os retábulos dos altares são em meio relevo.
Na capella-mór, vé-se correspondente magnificência ;
ladeiam-na seis bons quadros, que representam, segun-
do a ordem, em que estão— a conducção de santa Iza-
bel por seis bispos; a ascenção; o beija-mão da mesma
santa já cadáver; a morte de santa Clara; S. Francisco,
no acto de ler a regra ás freiras; e a tosquia do cabei-
lo, feita pelo mesmo santo, ás noviças.
Por baixo d'estes, ha mais quatro, onde figuram os
evangelistas.
Ao sair d'alli, sentimos a necessidade de outros as-
sumptos; requeríamos ar livre.
As magestosas arcarias dos templos já nos pesavam
EM COIMBRA 63
bastante sobre a nossa compleição adoentada, não ob-
stante acharmos-nos convencido, como ainda boje o esta-
mos, de que as egrejas são os primeiros monumentos
portuguezes; o que não admira, se attendermos ao nos-
so passado, demasiadamente fradesco.
*
* *
Em seguida encaminbamos-nos para a quinta do Pom-
bal dos frades cruzios, que já lá tinham a sua fonte de
amores, d'onde se fornecia a agua ao velho mosteiro de
Santa Clara, por encanamento. Foram elles que a de-
ram a Ignez de Castro, em troca de outras terras, vin-
do a ficar o palácio d'esta infeliz princeza, no lugar on-
de está uma aldeola, ao fundo da quinta e á borda do
Mondego, que lh'o deitou abaixo, depois do assassinato,
realisado a 7 de janeiro de 1355.
A moderna Quinta das Lagrimas não è portanto mais
do que uma parte da antiga propriedade.
É boje senhor d'esse lugar de poética e constante ro-
maria o sr. Miguel Osório.
Mau grado nosso, vem-nos aos bicos da penna, a nar-
ração do episodio simples e cru, que precedeu a nossa
visita.
Três senhoras, duas creanças, um cavalheiro e nós
chegáramos alli um pouco depois da hora determinada
para a entrada.
O guarda não nos permittia ingresso sem as ordens
do fidalgo, seu amo, prestes a chegar, segundo disse,
para inspeccionar uns operários, que lavravam pedra.
Perfilou-se, recolheu-se ao espirito, e não se dignou
offerecer-nos um banco, um resguardo para o sol que
dardejava ainda forte, uma commodidade qualquer das
muitas que tinha ao seu alcance.
Resignamos-nos a esperar, as senhoras sentadas n'uns
degraus de pedra, e nós no varal de um carro.
Depois de muito tempo, chegava o personagem ; as
64 NOTAS A LAW8
senhoras levantaram-se a fazer grupo comnosco e nós,
os homens, levámos a mão aos chapéus, em respeitoso
cumprimento ao dono da casa.
O homem encarou-nos, atirou com um monosylabo
de consentimento ao criado, e, sem a mais leve demons-
tração de correspondência ás nossas saudações e de ur-
banidade, tio usada para com as senhoras, virou-nos as
costas, e seguiu para junto dos seus operários, com ares
de quem jantara bem, e desempenhava á risca o papel
de regulo das selvas americanas, no dizer do nosso com-
panheiro.
Nós ainda então pouco costumados aos repellões e
maus modos da maioria da nossa gente, que tem a seu
cargo estabelecimentos visitados por nacionaes e estran-
geiros, embasbacámos ao contacto d'aquella falta de cor-
tezia muito portugueza, mas na verdade pouco fidalga.
Apesar da nossa má vontade, que nos aconselhava uma
retirada immediata, penetrámos na celeberrima proprie-
dade, a tão decantada Quinta das Lagrimas, as lagri-
mas. . .
da mísera e mesquinha,
que inda depois de morta foi rainha.
Quem antes de entrar, alma sensitiva, fizer uma rá-
pida compilação das scenas lá passadas e universal-
mente conhecidas pelos versos do mais elevado espirito
portuguez, ao penetrar em seguida n'aquella poética
mansão — não poderá fazel-o, sem sentir um agitado es-
tremecimento, sem condoer-se da desditosa, contra quem
os brutos matadores
No colio de alabastro, que sustinha
As obras, com que amor matou de amores
Aquelle, que depois a fez rainha,
As espadas banhando e as brancas flores,
Que ella dos olhos seus regados tinha,
Se encarniçavam fervidos e irosos
No futuro castigo não cuidosos.
EM COIMBRA. 65
/
Embora as sceoas se passassem de outro modo, em-
bora a lúgubre tragedia se tivesse realisado do antigo
edifício, de que nem resta um destroço, a nossa ima-
ginação abraça-se á lenda, e quer n'uns quadros muito
coloridos, que tudo alli aconteça, pullule e reviva.
Nada se tem feito para o alindameuto, que requeriam
o histórico local e suas dependências. Ha em tudo mui-
ta falta de asseio e de boa disposição, especialmente
na parte ajardinada, cujas divisões entretanto são, no
maior numero, feitas de limoeiros e laranjeiras, dobra-
das em sebe, como se fossem vimes ou simples trepa-
deiras.
O mesmp acontece ás roseiras de uma grossura des-
communal, especialmente a que se diz plantada pelas
próprias mãos de Igoez.
Tudo alli para nós tinha um encanto indefinível : o ar,
a luz, o ceu e as plantas— e cremos qne para muita
gente, d'aquella que lá tem deixado os nomes nos tron-
cos do arvoredo, raça estéril de corações piegas, na
phrase materialista do realismo, que não se entretém
com estas insignificâncias da natureza.
Caminho da • Fonte dos amores,» ao estremo da quin-
ta, e já á sombra de um d'aquelles cedros gigantescos,
que lhe cobrem os melancólicos murmúrios, desseden-
tamos-nos num estreito canal, onde corre uma agua lím-
pida, que a tradição popular tornou mais clara e for-
mosa ainda.
Diz-se que o canalsinho, outr'ora coberto, e livre
portanto da vista dos curiosos, fora um dos mais gra-
ciosos medianeiros da correspondência amorosa dos dois
namorados.
Para fora da quinta, em cofre precioso, exteriormente
forrado de cortiça, e a hora determinada, levava a cor-
rente a adorada missiva de Ignez ; para dentro, trazia a
a resposta o mesmo cofre, preso a uma linhar que a
confidente ou a própria princeza, sem nenhum esforço,
attraía a si.
Já referindo-se a isto, dizia Faria e Souza :
66 NOTAS A LÁPIS
cEI príncipe do podia hablar a Dona Idos todas las
vezes que lo deseavan ambos, porque, siendo eila dama
de la Reyna, su madre, era menester recato. Valia-se
para esto de aquella agua y de aquellos aqueductos,
porque por ellos y por ella le embiava los papeies que
le escrebia.
•Rorapió, parece, eu cierta parte el aqueducto, y me-
tiendo por alli los papeies, llevados ellos de la agua,
iban salir ai jardin, a donde Inês acudia a cogerlos.
cDe manera que et Amor vénia nadando; veniam las
llamas amorosas, passadas por agua. El príncipe, repre-
sentado en sus papeies, era el Leandro, que por olas
iba en busca de su Ero, con más felicidad que el otro,
pues alfim llegaba.
«Tales son las astúcias de los amantes.»
*
Que pouco realista 6 o espirito do nosso povo, que
tanto se apraz em colorir de mimosas lendas estes e
outros casos, que tiveram origem em assumptos de his-
tórica memoria !
Por fim, fomos sentar-nos ao lado da fonte e junto
da tosca lapide, um desastrado ornamento, que tão mal
fica aos versos, que encerra, e ao lugar, que comme-
mora.
Ainda assim aquelle único e reles padrão commemo-
rativo deve-se a um estrangeiro I
Foi o general inglez Trant que alli o mandou collo-
car em 1844, sentindo na fleugma do seu brítanismo
uma centelha de enthusiasmo reverenciador pelas seguin-
tes linhas de Camões, que lá se lêem :
As filhas do Mondego a morte escura
LoDgo tempo, chorando, memoraram,
E por memoria eterna, em fonte pura,
As lagrimas choradas transformaram.
O nome lhe pozeram, que inda dura,
Dos amores dlgoez, que alli passaram.
Vôde que fresca fonte rega as flores,
Que lagrimas são agua, e o nome amores.
Hf COIMBRA 67
As almas dos poetas teem voejado bastantes vezes
pelas aliaras cTaquellas arvores, e por sobre o tanque
que lá vimos, maltratado e pouco limpo, deve dizer-se,
embora isso destoe á amenidade do assumpto.
Ha um soneto anonymo, publicado no 3.° volume do
Archivo Pittoresco, arroubo de uma alma d'essas, que
nos falia assim :
Debaixo «faltos cedros enlaçados
One em vão de penetrar o sol porfia,
Rebentando de tosca penedia,
Aqaem virente masgo adorna os lados.
Puros crystaes se escoam apressados
Por leito de grosseira cantaria,
Vasto lago os recebe— e na sombria
Lympha, tremem os cedros debuxados.
Não se ouve das manadas o balido,
Mal soa alli a frauta dos pastores,
£ pouco dos rafeiros o latido.
Da malfadada Ignez só os clamores
Se imprimem n'alma, sem ferir o ouvido.
Eis a copia da Fonte doe Amares.
Pelo que nos toca, nós— com os olhos na argilla verme-
lha, tinta com o sangue da desditosa amante de D. Pe-
dro, segundo a mesma poética e antiga tradicção, que
já posteriormente fez de uns fios loiros de uma berva,
fina como seda, que lá está, os cabellos da mesma per-
sonagem; com os olhos pois n'uma e n'ootra coisa, no
sangue, transformado em pérolas de cristal pela corren-
te, que nasce do penhasco, e nos cabellos, anediados
pela prata das mesmas aguas, que corriam em terno
murmúrio, a despenhar-se no próximo tanque — senti-
mos, com todo o peso da sua verdade, aquella expres-
são de Hugo :
«Ha momentos, em que nos parece que a nossa alma
está de joelhos.»
68 NOTAS K LÁPIS
Até o próprio guarda da quinta, tão acostumado áquel-
ias piedosas romarias, se não atrevia a cortar o silencio,
que se fizera á volta de todas as pessoas presentes, so-
bre as quaes o anjo da melaucola desdobrara as suas
ternas azas.
Ao acordar d'aquella espécie de torpor eléctrico, cada
qual se muniu de uma relíquia, uma folha de bera, uns
fios de cabello, orvalhados das lagrimas, que «são agua
e o nome amores», e enviou um saudoso adeus ao lu-
gar, onde a sua alma permanecera, ajoelhada em cons-
tante adoração.
IX
A Lapa dos Esteios ou Lapa dos Poetas
Ao darmos entrada na cidade, era noite fechada.
Pelo caminho formara-se o plano de um novo passeio,
o ultimo, que o tempo ao nosso dispor nos permittia
dar; nada mais nem menos do que uma digressão pelo
rio até á Lapa dos Esteios, baptisada pelos bardos da
c Prima vera» em Lapa dos Poetas.
De facto, na manhã do dia 27, uma deliciosa manhã,
na escadaria de pedra ao lado esquerdo da ponte, en-
travamos n'um barco as duas famílias viajantes e uma
graciosa senhora de Coimbra, cujo metal de voz imita,
na máxima perfeição, os mais doces e ternos accentos,
que a Paladini imprime ao fallar, nas scenas intimas dos
seus melhores dramas.
É uma verdadeira e notável especialidade aquella voz.
A frouxa corrente do rio, n'esse tempo quasi secco,
SM COIMBRA
espreguiça va-se melancólica e pi acida mente, encostada
aos álamos e salgueiraes, que durante a passagem se
debruçavam sobre a embarcação, despedindo-nos de
quando em quando na cabeça umas crystalinas gotas
do seu orvalho.
O dono do barco ia e vinha, de vara encostada ao
peito, e por mais de uma vez se valeu do nosso auxilio
voluntário; as creanças debruçavam-se a apanhar punha-
dos de arêa, e chilreavam alegremente; as senhoras es-
tabeleciam comparações, commentavam as bellezas da
paizagem, e — quem sabe — se não se miravam no es-
pelho das aguas ; nós, os homens, fumávamos, cantan-
do, com certo espanto do barqueiro, que sorria a inter-
vallos, como quem desconfia um pouco da seriedade e
juizo dos seus hospedes.
As creanças toem, como ninguém, o poder de com*
municar a sua alegria instinctiva.
Quando saltámos ao pè da collina, sagrada pela inspi-
ração de umas poucas de gerações de poetas, iamos to-
dos animados, e bem nos poderíamos chamar um ran-
cho de creanças.
Descrever a quem as conhece as particularidades (Tes-
ta florida dependência da quinta das Cannas, tão damni-
ficada desde que passou a novo possuidor, seria ficar
muito áquem da verdade; fazel-as notar na sua simpli-
cidade, porque não ha alli opulências, que não sejam
productos da natureza; fazel-as sentir aos que nunca as
viram, com todas as suas minudencias, moitas de ar-
bustos, grupos de arvores, socalcos, alegretes, debru-
çados como que a espreitar as aguas do Mondego, men-
sageiras das harmonias dos cantores alados e dos mil se-
gredos, que as fadas e os trovadores por lá espalharam,
e de lá mandam á cidade, que a dois kilometros de dis-
tancia contempla todos os seus lugares privilegiados —
tornar-se-ia um esforço, a que não podemos annuir.
Se aquelles troncos, cobertos de iniciaes e caracteres
enigmáticos, se as paredes, onde não ha espaço, que não
contenha um nome, uma trova, um emblema ou uma
70 NOTAS A LÁPIS
simples data, podessem fallar, e dizer-nos tudo aquillo
de que toem sido testemunhas — quantas scenas român-
ticas, que longas paginas de amor 6 saudades, de risos
e lagrimas, de alegrias e pezares, esperanças e temo-
res—não veríamos nós desdobrar em nossa presen-
ça!
Certos lugares, como este, que a natureza esmerada-
mente dotou de um privilegio exclusivo, toem esse con-
dão de nos sorrir aos afagos, em que a nossa alegria
se expande, se somos felizes; e de nos corresponder ás
lagrimas, que chorámos, quando um golpe profundo nos-
alanceia o coração.
Entre as boas inscripções de quem as sabe e as pôde
fazer e as deslavadas lembranças dos que fazem alarde
da sua ignorância, que não se envergonham de subscre-
ver, encontrámos isoladamente, como que escondendo-
se e fugindo á companhia dos bons e dos maus visitan-
tes, em uma columna de pedra, á direita de uma fonte,
para onde dá a porta lateral do pateo da habitação dos
donos da quinta — deparámos com um nome simples,
escripto com mão nervosa, um nome só, que nos exci-
tou uma viva curiosidade.
Maria I e nem uma data t e nem uma palavra mais t
Maria! Que mundo de esperanças ou que calvário
de infortúnios não representariam aquellas cinco le-
tras!
E quem sabe? Bem pôde ser que a nossa fantasia
tenha dado um colorido exaggerado áquelle nome.
Mas. . . que mão indifferente poderia chegar a traçal-o
assim ?
O acaso compellir-nos-ha bastantes vezes a escrever
uma trivialidade, umas palavras sem nexo, um nada sem
significação, mas um nome. . . e um doce nome de mu-
lher. . . quasi nunca.
Mariat recordação feliz, ou lembrança de infortúnios,
achaste um ecco nos recônditos da nossa fantasia, e isso
te deve bastar, fosse qual fosse a mão que te escre-
veu.
KM COIMBRA 71
Hoje, ao trasladar estas linhas para um livro, aqui
deixámos, ao lembrar-nos cTesse nome, um grito da al-
ma, que dos infelicita, e punge.
Mal diríamos nós então que do alto da nossa fantasia
havia de cair, desfeito em saudades, esse nome adorado
dentro do nosso coração, em tão pouco tempo.
Alaria t Mil vezes bemdito sejas tu, ó nome santo t
O alvoroço, que precedera o passeio, fizera-nos es-
quecer o almoço.
A hora adiantava-se, e nenhum dos visitantes sentia
forças para arrancar-se á amenidade e aos demais en-
cantos da Lapa.
Nem havia reunil-ps, tão tresmalhados andavam pelos
recantos da encosta.
Um companheiro nosso, tão bom companheiro, como
óptimo gastronomo, chegou-se a nós, e disse-nos, fa-
zendo tregeitos afflrmativos com a cabeça :
— Pois, sim, senhor. Cantos de aves, borboletas, flo-
res e poesia, repasto para o espirito, temos nós por toda
a parte, mas. . . pão para o estômago è que eu não vejo;
e, meu caro, não me sinto bem.
Dizer isto, e pedir-nos a nossa approvação para que
se enviasse o barqueiro á procura de almoço por aquel-
les arredores, foi tudo obra de alguns segundos.
— Mas senhor— dizia o bom do homem a coçar a ca-
beça—por aqui não ha hospedarias. . .
— O' creatura de Deus— retorquiu-lhe o nosso amigo
— hade haver uma tasca, seja o que fôr. Olhe... tra-
ga-nos o que achar. . . pão, umas sardinhas, um queijo,
azeitonas, vinho. . . o diabo que seja. Não me appareça
sem cousa, que se coma, e na maior abundância que
poder. Aqui tem dinheiro. Vá. . . e vá já.
72 NOTAS A LÁPIS
O barqueiro deitou a correr.
O caso passára-se entre dós; era somente segredo
nosso.
Decorreu uma longa hora. . . e nada de comer I
Ao reunirmos-nos ás senhoras, achámol-as sentadas
n'um banco de pedra, com certo ar de fadiga, como
quem descansa, e tem cumprido o seu dever.
Houve um momento de silencio.
— Que horas são ?— perguntou uma, passado elle.
— Onze e meia— respondeu o nosso amigo, sorrindo
intencionalmente.— Uma boa dose de poesia campestre
vale bem o mais opiparo almoço.
— E' verdade— accudiu logo outra, disfarçadamente,
como quem teve uma lembrança, devida ao acaso — o
almoço? E as creanças?. . . coitadinhas i
—Eu sei lá— respondeu um de nós.— Isto por aqui é
quasi um deserto. Ainda ao menos se o barqueiro esti-
vesse perto, regressaríamos á cidade, mas. . . o homem
pediu-nos licença para ir visitar um conhecimento, e
ainda não voltou.
Não o afirmámos, mas pareceu-nos que alguém em-
pallideceu, ao ouvir similhantes palavras.
— Vamos procural-o— concluímos nós, para tirar uma
partícula áquelle justo supplicio, que tinha a sua sede
no estômago.
E lá fomos os dois, em demanda da surpreza, que
preparávamos.
Ao meio dia, encontrámos o barqueiro todo esbafo-
rido, na estrada, a sair de uma taverna, onde lhe fomos
ajudar a fazer as provisões.
Ao entrar novamente na quinta, tomámos por um des-
vio, de modo que não fossemos presentidos, e no lugar
mais próximo estendemos sobre a relva as magras vi-
tualhas, que levávamos : excellente sardinha frita, salada
fresca a repolhuda, azeitonas, bom pão e óptimo vinho.
Quando os nossos companheiros lançaram a vista so-
bre tudo aquillo— houve um ha 1 prolongado, expansivo,
irrequieto.
KM COIMBRA 73
E. . . ceremonias para o lado. . ., todos á uma forma-
ram o seu plano de ataque, com tal valentia, como se
o jejum durasse ha três dias.
— E digam lá os poetas— exclamou o nosso compa-
nheiro, a saborear o terceiro copo — que se pôde viver
muito tempo só de arroubos lyricosi
— Pois a fome já produziu bons poemas— disse al-
guém—O nosso Camões por exemplo. . .
—Pois que lhe fizesse muito bom proveito! Eu cá
não faço versos, mas procuro, sempre que posso, ser
útil a alguém.
tE vou proval-o.
Nisto tirou um lápis da carteira, e na parede mais
próxima escreveu o seguinte :
cSardinhas, pão, salada, azeitonas e vinho— tudo com
abundância— para nove pessoas— SOO réis. Aviso aos
visitantes.
Arthur.*
Não podemos resistir ao que nos pareceu uma pro-
fanação, e accresentámos por baixo :
cA quem me disser que não ha regra sem excepção,
certificarei que, ao lado da poesia, andam sempre uni-
dos uns laivos de prosa. Exemplo. . . o precedente an-
nuncio.
David.*
Apesar de tudo, ainda hoje bemdizemos a prosa, que
tão bem nos soube t
Não concluiremos, para descargo da nossa consciên-
cia e satisfação, dada aos futuros amantes da poética
mansão da Primavera, sem recordarmos o que de mais
notável por lá vimos esculpido, pela bizarria e bom gosto
74 NOTAS A LAP18
do penúltimo possuidor d'aquella propriedade, o falle-
cido conde das Canoas.
Logo ao sopé da encosta e ao transpor os primeiros
degraus do desembarque, ha uma pedra commemora-
tiva, que diz assim :
Aqui celebrou A. F. de Castilho
com os seus amigos
a festa da primavera, d onde ao sitio se mudou
o nome de
Lapa dos Esteios do de Lapa dos Poetas.
Aqui voltou
a um do mesmo mez de 1862.
Esta memoria
para convite e incentivo perpetuo
aos cisnes de Coimbra,
a mandaram aqui pôr, no supracitado
anno
D. José Maria de Vasconcellos Azevedo Carvajdl
e
Gonçalo Tello de Magalhães Cdlaço.
E mais acima :
Doce mansão poética
O* Lapa dos Esteios,
Tu abres nossos seios
A' luz do eterno amor.
Almas sem crenças, gélidas
Correi ao tabernáculo,
Gosae este espectáculo,
Louvae ao Creador:
A' sombra d'estas arvores
Reclinae-vos, poetas,
Que as musas predilectas
Vos hão de abençoar.
Cantae em trovas magicas
Da Lapa as harmonias
As doces melodias
Do rio, a suspirar.
15 — Julho — 1874. Costa Goodolpkim.
BM COIMBRA 78
Na mesma parede e ao lado d'esses versos» se bem
nos lembrámos, lé-se :
O ULTIMO ABRAÇO DO «.• ANNO JURÍDICO
EM 1873
ÍTestes paços de Flora encantadores
Nos renne a voz terna da amisade ;
D'entre os abraços e por sobre as flores
Resoem mil suspiros de piedade t
E* o ultimo adens da mocidade 1
Distantes vamos ser, mas não ausentes :
Embora fnja a quadra da poesia,
Quadra de amor e sonhos resplendentes,
O affecto de irmãos, que nos prendia,
Esse fica. . . recresce cada dia.
Si— Maio— 1873. 7. Paiva.
Sobre a fonte, a que já nos referimos, no mais alto
da encosta, entestando com uma rua, coberta de orna
espessa e formosa abobada de verdura, ba uma lapide,
onde avulta uma lyra em relevo, tendo por baixo:
AO CANTOR DA PRIMAVERA
A. F. DE CASTILHO
Descendo d'esse lugar, a meio declive, caminho de
ama espécie de mirante, d'onde se disfructa o melhor
panorama, ha um segundo abraço, um espirituoso e poé-
tico abraço, onde figuram nomes, a que as letras por-
tuguezas devem não pequenos louvores.
E' este:
João de Lemos — Sobre as azas da poesia
Pinto Monteiro — Aqni nos trouxe a amisade,
Freire de Serpa — Cantámos em lyras de oiro
Costa Pereira — Esperanças da mocidade,
Rodrigues Cordeiro — E aos bardos da primavera
Augusto Lima — Mandamos uma saudade.
76 NOTAS A LÁPIS
Estes versos commemoram a despedida dos autores,
ao terminarem os seus estudos académicos, em 1844.
Raros são os poetas nacionaes, que não tenham con-
sagrado áquelle delicioso lugar um ou outro dos seus
cantares.
Lembram-nos ainda Tbomaz Ribeiro e J. F. de Serpa.
Disse o primeiro:
Que saudades imperam n'estas sombras !
Que macias, que lúbricas alfombras 1
O' poetas, que sítios para ameres t
Tem filtros estas aguas e estas flores.
e o segundo:
Oh t Quem eotrar n'esta gruta
Não faça juras fataes:
Aqui té os freixos amam,
Até as penhas dão ais.
— Se és poeta, versejarás — disse um escriptor, ao
fallar da Lapa dos Esteios.
Não sei se por isto, se por simples allucinação, que
nos fez juntar uma voz dissonante ao concerto de tantos
rouxinóes — tomámos o lápis, o das nossas ligeiras no-
tas, e lá deixámos também as seguintes e ultimas linhas,
consagradas a Coimbra:
Erguei-vos, memorias idas 1
morrei, saudades passadas,
sobre este chão, que inebria,
sobre estas margens floridas,
que tem por culto a poesia
por habitantes as fadas t
Banha as azas resequidas
no crystal d'esta magia,
coração, tristonho, e gasto
em tantas lutas perdidas;
e toma, como repasto,
o sol do amor e poesia,
1
_
EM COIMBRA 77
que se estende n'esu encosta,
que brilha nos arvoredos,
que se espalha n'essas aguas,
que a pobre d'alma antegosta,
como curativo ás magnas:
diz-lhe pois os teus segredos...
alegra-te 1 exulta, e canta )
Ouves a vaca harmonia,
que o Mondego rumoreja
nos siuceraes, que abrilhanta?
Põe- te a nú... faz que te veja...
e diz-lhe:— «Conheço a magia
«do teu leito perfumado
«onde ha célicas beldades,
«d'este sol, que me allumia 1
«Ergue -te, pois, meu passado !
«n'esto chão, que me inebria,
«ficae. . . morrei, saudades t»
78 NOTAS A LÁPIS
NO BUSSACO
De Coimbra a Luso. — Na matta. — Embevecimentos
Entre todos os meios de conducção directa, onde não
chega a via accelerada, nas. nossas províncias, o que
mais serviços presta è sem duvida o da diligencia, nem
sempre limpa e raras vezes com moda, mas preferível
aos outros, quando o numero dos viajantes attinge umas
certas proporções.
Sosinbo e livre de bagagem, renunciaremos a tudo
por uma boa e pacifica cavalgadura.
A chamada diligencia da carreira, em qualquer pon-
to que seja, deve porém ser sempre despresada por
quem se fizer acompanhar por sua família, para evitar
a semsaboria de levar um bêbedo, ou um malcreado,
por camarada, qualidades que os cocheiros raras vezes
deixam de ter, á falta de outras prendas.
A pratica será sempre o melhor dos mestres.
Aconselhados por ella, os nossos companheiros e nós,
quatro senhoras, duas creanças e dois amigos, mandá-
mos á cocheira tratar o vehiculo, e, ás 6 horas menos
alguns minutos da manhã, partimos de Coimbra, em di-
recção a Sargento-Mór, onde chegámos ás sete.
NO B088ACO 79
Era o que se costama chamar ama manhã de rosas.
O rapado das aldeias, visinhas das estradas, que mais
frequentadas se tornam, tem já inveterado o vicio de pe-
dir esmola a quem passa, com a persistência de quem
cultiva ama rendosa industria.
Uma chusma de pequenitos de ambos os sexos, tão
corados e robustos como sujos — o que seja dito em
louvor da boa alimentação e do respectivo esterco de
Sargento-Mór — saiu-nos ao encontro da diligencia, e
lá a foi acompanhando, em lamuriante peditório.
Um dos nossos amigos, que via n'aquillo o vicio e
não a necessidade, foi-se divertindo com elles, o melhor
que poude.
Fez-lhes ver que para ganhar dinheiro era preciso tra-
balhar, e portanto que não abriria o bolso senão diante
de um serviço qualquer, que elles lhe prestassem.
E mandou-os cantar, e lavar a cara no primeiro tan-
que.
A primeira cousa, que lhes cheirava a galhofa, fize-
ram elles sem esforço, no meio de uma berraria, capaz
de espantar o spleen mais inveterado; a segunda porém,
a que tocava a limpeza, não foi sem repugnância e as
mais reiteradas instancias que teve um soffrivel desem-
penho.
Suficientemente remunerados, os rapazes continua-
a pedir, a requerer mais, e a seguir a diligencia a uma
distancia tal que por pouco não chegou até á Mealhada.
Ora que o peditório para muita gente é um vicio, em
que tão perigosamente se industriam as creanças, mes-
mo nos grandes centros, onde chega a ser uma vergo-
nha— é caso por demais provado.
Sirva de exemplo o que ainda ha dias nos aconteceu,
não emporta em que lugar.
Seguíamos ao longo de uma praia, que fica em frente
de uma povoação, quando de sitios differentes nos vie-
ram ao encontro três rapazolas, que já podiam tomar
orna boa parte n'um campo ou n'uma officina, a pedir
esmola.
80 NOTAS A LÁPIS
— Não tenho pae, nem mãe — pareceu-nos que dis-
sera um.
A pessoa, que nos acompanhava, parou comnosco, e
voltou-se com a mão no bolso, condoída do pobre or-
phão.
— Qual é o que não tem pães? — perguntou.
— Eu não os tenho. Nem eu 1 Nem eu I — responde-
ram os três com o maior desembaraço.
Como viram porém o eíTeito que tamanha orphanda-
de poderia causar em nós, entraram de desmentir-se,
nomeando os pães de uns e outros, de modo que em
pouco nos fizeram comprehender todo o alcance da sua
industriosa lamuria.
É por isso que o homem de coração bemfazejo e des-
prevenido chega tantas vezes a proteger o vicio, cuidan-
do que pratica um bom acto, quando a pobreza enver-
gonhada, a que não pode estender a mão em publico,
invalida ou caduca, se estorce de fome no leito da mi-
séria.
#
# *
Mas... continuemos.
 Mealhada, villa plana e de bonita apparencia, a 31.»
estação da via férrea do norte, tão conhecida pelo com-
mercio dos excellentes vinhos da Bairrada, tem boas
construcções e muito férteis arrabaldes, a esse tempo
enriquecidos de óptimos fructos.
Aos lados da estrada, que d'alli segue para Luso, e
já perto d'esta localidade, especialmente á esquerda, ha
edificações modernas, chalets, guarnecidos de ramos de
sobreiro, cobertos naturalmente de cortiça, vistosas pro-
priedades ruraes e melhoramentos dignos de boa nota.
Ás nove horas e um quarto, apeiámos-nos em frente
do hotel Serra, o decano dos hotéis de Luso, povoação,
ainda ha poucos annos, de mediana importância, ehoje
um lugar, onde ha excellentes edificações e uma boa sq-
ciedade, que lá vae attraida pelos banhos, situados en-
NO B088AOO 81
tre os dois bairros, e pelas bellezas do Bassaco, tão jus-
tamente celebradas.
N'aquelles sítios já não ba recanto, qae não tenha
sido esquadrinhado, nem minuciosidade, que tenha fi-
cado sem descripção, tantos são os guias, livros e me-
morandos de todo o género, publicados a seu respeito.
Além das impressões de momento, como é nossa in-
tenção, nada temos pois que acrescentar ao que já está
dito.
Aquelles dos nossos companheiros, que desconheciam
as localidades, mostravam a maior avidez por fazer-se
conduzir á magestosa matta: nós, que passeiaramos por
lá os nossos dezeseis annos, não éramos o ultimo na
vehemencia dos desejos manifestados.
Encommendado o almoço, com a máxima brevidade,
saímos a contratar com a chusma dos pregoeiros dos
burros, agglomerados ás portas do hotel, o aluguel de
uns nove d'aquelles pacientes animaes, que fornecem
aos visitantes a mais conveniente e barata conducção.
Pouco depois estávamos a caminho, em alegre e fes-
tiva caravana.
A piedade christã de outros tempos attribue aos fun-
dadores dos conventos, espalhados por todos os paizes
calholicos, muitíssimas virtudes, por causa das locali-
dades, escolhidas por elles, desvios solitários, onde não
chegava facilmente o bulício tentador do mundo; a in-
vestigação moderna porém dá-lhes intenções mais com-
modas e menos pias, sem deixar de gabar-lhes o bom
dedo, que tinham para a escolha de tudo o quanto é
agradável á vida.
E na verdade, quem attentar miudamente nas edifica-
ções monásticas, que ainda boje restam, não pôde fur-
tar-se a encarecer o bom gosto que presidiu aos pontos
6
82 NOTAS A LÁPIS
preferidos, e o talento com que se attendia á bygiene e
á formosura do local, pasto para o corpo e regalo para
o espirito.
Nas melhores elevações, á beira-mar, a meio declive
das montanhas, cercadas de bellos campos e povoações
rústicas ; no alto das collinas, no centro das mattas e
jardins; nos pontos culminantes das cidades, em lugar
finalmente, onde houvesse bom ar, óptima luz e agra-
dáveis pontos de vista — ahi se punha a mira, e se con-
struía o convento.
Sirva de exemplo aquelle paraíso de poesia bucóli-
ca.. . o Bussaco.
Dizem-nos as chronicas, e a tristeza do edifício bem
o attesta, que os eremitas descalços se votavam á mais
completa humildade.
E' verdade isso; mas não se pode reputar por me-
nos verdadeira a asserção de que aquella montanha, cer-
cada por um muro de 3:800 metros, cujo recinto con-
tém a mais espessa arborisação, que se possa imaginar,
salva a das mattas virgens da America, carvalhos, pi-
nheiros de uma corpulência pasmosa, castanheiros e ce-
dros gigantes, que se dizem originários de Goa, e datam
de 1643, arbustos de todo o género, fontes de uma agua
finíssima, e por cima de tudo isto o mais formoso ponto
de vista de todo o paiz — é sem duvida o exemplo mais
frisante do que levamos dito, quanto á sábia perspicácia
dos fundadores da maior pgrte dos conventos.
Para habitar aquelle lugar encantado valia bem a pena
morar n'uma casa humilde, forrada de cortiça, desde
que se fosse o que eram os carmelitas descalços, ou
ainda mesmo um simples secular, desilludido e enfas-
tiado das cousas do mundo.
Mas. . . retrocedamos á porta de Luso, um moderno
portão de quinta, que contrasta com o que por lá se
encontra do tempo antigo, e vamos seguindo até aos
primeiros degraus da escadaria, que sobe á Fonte Fria,
outra innovação de peior gosto ainda, um aformosea-
mento, de que não seria capaz fr. Thomaz de S. Cyríl-
NO BUSSACO 83
lo, fondador da matta, nem nenhum dos eremitas que
lhe succederam.
Não que elles primavam no bom discernimento em
alliar a arte com a natureza.
Mais santos varões que os seus successores, seja dito
em honra sua, ainda assim julgamol-os capazes, já en-
tão, de inventar a fogueira da inquisição para torturar
aquelles que se lembrassem de caiar os mármores, os
rendilhados de madeira e os azulejos antigos, como
soem fazel-o os remendões, a quem está incumbida a
conservação de muitos dos nossos monumentos.
O péssimo effeito da escadaria desageitada e nua, já
em data posterior ao nosso escripto, foi felizmente di-
minuído com uma abertura central, em toda a longitude,
por onde as aguas da fonte se despenham, em quedas
graciosas e ouriçadas de pedras toscas, de lanço em
lanço, atè se esconderem sob a estrada, e cairem em
grande jorro no tanque inferior.
Bom remédio e óptima lembrança i
Quando lançámos a vista em todas as direcções, tanto
quanto nos permittia o emaranhado da folhagem, ao
transpor a augusta muralha, que se abraça zelosa ao
nosso único modelo das mattas virgens dos trópicos,
áquelle viveiro paradisíaco de aves canoras, que por tan-
tissimos annos teem unido os seus hymnos ao poético
rumorejar de muitos centos de romeiros — sentimos,
em toda a evidencia a melancólica effusão dos versos
de José Freire, e exclamámos também, mas interior-
mente e de lábios cerrados :
84 NOTAS A LÁPIS
Eil-o, que o vejo, esse sitio caro,
Essa montanha sacra, esse retiro,
Que basco, ha tanto ! eil-o, qne o conheço
Pelas pontas vergadas d'altos cedros,
Pelos prainos do mar, qne ao longe brilham,
Pelos ossos mirrados da caveira
E o tosco pedestal da cruz ingente.
Salve, asylo de paz e de pureza,
Onde a innocencia foragida vôa
A acoitar-se do mundo! Eu, foragido.
Também te busco : acolhe-me em teu seio,
O' sacro penetrai; acolhe os votos
D'um puro coração
Profanos pensamentos
Ora em sublime idéa se trocaram ;
Os olhos, que só viam pelo mundo
Enganoso fulgor de róseas faces,
Gastamse aqui a contemplar o Eterno;
E a voz, que almas caricias modulava
Ao som loução d'um menestrel de amores,
Ora, ao grave tanger d'harpa celeste,
Levanta a Jehovà hymnos de espr'ança
E cânticos de gloria.
*
* #
D'aqui a pouco tempo, do que era propriamente edi-
ficação dos frades nada poderá existir.
As doze capellas, destinadas para ermidas, ou casas
de expiação, os nove passos de Christo, dispostos, se-
gundo as medições mandadas vir de Jerusalém pelo
bispo D. João de Mello, estão por terra uns, e a cair a
pedaços os outros.
A devoção alvar da gente rude, que se tem divertido
a esmurrar as estatuas dós pharíseos, é menos culposa
do que a incúria de quem podia mandar reedificar
aquellas memorias, ou arrasal-as inteiramente?
Vale mais o seu eterno desapparecimento do que o
estado actual, em que se acham.
O mesmo diremos da grandiosa matta. Quando ai-
MO BD88ACO
guem se lembrar de continuar as devastações» que por
lá se notam n'um ou n'outro ponto — melhor será que
de uma vez para sempre se lance fogo áquillo tudo,
para que a barbara sei vage ria possa ser completa.
Talvez que das cinzas venham a surgir então alguns
campos de milho, para engordar a prosápia dos que
desconhecem inteiramente o valor de algumas relíquias,
que os estrangeiros nos invejam, e que nós tio mal sa-
bemos prezar.
Vamos até ao mosteiro, por baixo d'aquellas aboba-
de verdura, sombras venerandas, de que já em 1634
dizia a nossa poetisa, D. Bernarda de Lacerda :
negras sombras de robles
Que ali soa grandes y machos
Llenos de barbas por viejos,
Y eo las cabeças tan juntos
Que no suffrem los trapassse
El planeta rubicundo...
Quem poderá dispor de uma paleta magica, fornecida
das tintas precisas, para fazer uma circumstapciada pin-
tura d'aquelle emaranhado da mais esplendida arbori-
são!
Ó musa inspiradora das doces ternuras da alma, ó
suave melancolia, com que disvelo nos abraças tu alli. . .
alli, onde o teu império é lio vasto, e a tua benéfica in-
fluencia tão prodigiosa e incessante !
Os teus sorrisos, a suprema consolação dos tristes,
vêem illuminar-nos a fronte, n'um raio de sol furtivo,
que se escapa brincando por entre aquellas ondas de
fulgores verdejantes; a tua voz ouvimol-a em ternos ao
cordes no ramalhar compassado dos altivos cedros; a
tua imagem acariciadora segue-nos, e espreita-nos os
passos.
Se o pobre do coração vacilla, e cae ao peso das idéas
que nos sobrecarregam o espirito, tu, por entre os cândi-
dos beijos de uma piedade maternal, sentas-te comnos-
86 NOTAS A LÁPIS
40 sobre aquelles tapetes de musgo» sagrados pela tra-
dição; e recebes-nos a cabeça no regaço, cobrindo-nos
o corpo inteiro com as tuas azas de anjo consolador.
E dormimos assim... despegados do mundo, como
talvez dormiram outr'ora os cenobitas, de que tu foste
desvelada amiga, e sonhámos uns instantes de felicida-
de, que a sociedade nos não sabe, nem pode conce-
der.
Depois... deixâmos-te nos seios as lagrimas do nos-
so reconhecimento, e voltámos á realidade, a dura rea-
lidade, que nos não deixa dormir, e... sonhar eterna-
mente comtigo.
Desviámos-nos um momento das agruras da vida,
mas... lá ouvimos os guizos estridentes da comedia
humana, a chamarem por nós, e forçoso è voltar a to-
mar o papel, que nos foi distribuído.
Ainda assim, as recordações perduram na saudade;
sempre e sempre temos bênçãos para os momentos, fu-
gitivos embora, em que podemos exclamar, como então
o fizemos, no seio da veneranda floresta:
Bemdigo-te n'este instante,
em que a vida do coração,
no teu regaço de amante,
occultei á luz do dia,
ó terna melancolia,
ó deusa desta mansão 1
Bemdigo-te ! Foi ditoso
no enlace dos braços tens.
Senti -me morrer de goso,
d'aza tua ao doce abrigo,
pois dormir. . . sonhar comtigo. . .
é viver... sonhar com Deus t
E sonhávamos talvez, ao escrever estas linhas, quan-
do a gárrula expansão dos nossos companheiros nos veiu
arrancar á sombra protectora do arvoredo, que fica em
frente da portaria do mosteiro, cuja avenida havíamos
precorrido já.
MO BUSSÀCO 87
II
O mosteiro.— A Cruz Alta.— O escândalo de um hymno —
A perda de uma jóia.— Cantanhede.— As Febres.
Dos frades benedictioos passou a malta a ser pro-
priedade do bispado de Coimbra e mais tarde dos car-
melitas descalços, por doação do bispo-conde D. João
de Mello.
Em 7 de agosto de 1628, começou fr. Tbomaz de S.
Cyrillo a edificação do pobre mosteiro, posto á frente
de um terraço tijolado, para onde se sobe por degraus
e a meio do qual avulta um simples cruzeiro de pe-
dra.
Por três arcos singelos, entre paredes guarnecidas de
embrechados de pedras brancas, pardas e pretas, seme-
lhantes ás que revestem algumas das capellas, espalha-
das pela matta, atravessa-se um pequeno e lúgubre sa-
guão, e dá-se com a porta principal, pequena e tosca,
encimada pela significativa inscripção:
Haec est domus Dei et porta Cceli.
Guiados pelo velho Francisco António, guardião dos
últimos frades, ou cousa parecida, uma relíquia de 86
annos, chronica viva de todas as devastações e sacrilé-
gios, praticados no sagrado recinto, de que elle falia,
com a magua impotente de quem se vô esbulhado dos
direitos mais bem adquiridos d'este mundo, e não pode
reagir senão pela palavra, que ninguém respeita e ou-
ve — lá penetrámos na sombria tristeza d'aquelles mu-
ros, onde tudo respira humildade, que, junta aos vários
88 NOTAS A LÁPIS
remendos de edificação moderna, nos produz no espirito
uma dolorosa impressão.
Tudo alli é pobre, irregular, remendado, imperfeito,
apertado e mesquinho, tudo apropriado aos hábitos aus-
teros dos verdadeiros monges.
A cortiça dos forros e das celias vae gradualmente
caindo a pedaços, ou servindo para rolhas das garrafei-
ras dos romeiros e hospedes da matta; os quadros, pen-
durados nas paredes dos corredores, ou claustros, re-
clamam fogueira inquisitorial, tão golpeados a canivete,
ou furados a punhal, se voem, pelas mãos de alguns vi-
sitantes, que esgrimem (Testa bonita forma os seus brios
e talentos guerreiros, ao deixarem impressas na tela
esfarrapada as marcas da sua boa e apurada educação,
para lhe não chamarmos selvagem e requintada malvadez.
Não admira isto, desde que se souber, segundo o tes-
temunho de Francisco António, que o commandante de
um destacamento, que alli estivera, haverá doze annos,
se divertia nos seus ócios marciaes a deitar por terra
as cruzes e as obras das capellas, que se lhe depara-
vam pelo bosque.
O que pretenderia fazer de tudo aquillo, na sua arro-
jada valentia, aquelle Ferrabraz econoclasta?
Provavelmente ensaiava-se, para, de volta a Lisboa,
disputar aos moinhos de vento, espalhados pelos outei-
ros das suas cercanias, os invejados louros de uma cam-
panha quixotesca e formal.
Dos livros, que povoavam a bibliolheca não podemos
saber ao certo o destino; não nos lembrámos do que a
seu respeito nos disse o bom do velho. Quer-nos pare-
cer porém que não seria fácil reunil-os hoje, pois que,
desde a estada alli de lord Wellington, algumas precio-
sidades do mosteiro tornaram-se verdadeira roupa de
francezes.
Tanto assim foi que o menino Jesus, que na egreja
se vê no colo de S. José, ao lado esquerdo, já esteve
quatorze annos fora d'alli, em casa de uma família, -que
o levara, sem dar satisfação a pessoa alguma.
NO BTO8ACO
A egreja, sem porta principal, nem communicações
com o interior, a Dão ser por um lado, nada tem de no-
tável, afora a cabeça de Nossa Senhora das Dores, que
offerece o contraste de um alegre sorriso, e os bustos
de S. Magdalena e S. Pedro, duas esculpturas, que só
por si valem o mosteiro em peso.
De origem desconhecida são aquelles bustos duas
obras de arte, que nos prendem de um modo irresis-
tível os olhos do corpo, e nos fazem dilatar por tal for-
ma os olhos da alma, que não ha apartarmos-nos d'alli,
sem nos possuirmos da condoída expressão d'aquelles
rostos, onde a verdade indiscriptivel dos sentimentos,
que manifestam, nos arrasta ao cume do mais elevado
mysticismo.
De resto. . . o coro, elevado do pavimento apenas por
um degrau, um soffrivel presépio, algumas imagens sem
importância, umas grosseiras pinturas, devidas á curio-
sidade dos frades, que nunca conseguiram passar alem
de dezoito, isto é, menos dois do que a regra permit-
tia; e o sepulchro raso do doador, segundo se lê no con-
ceituoso epitapbio, que começa:
DOM-VIVCS NON MORTUUS
EáTAT NON JACET
D. JOANNES DE MELLO
CONIMfiaiCBNSIS EPIáCOPUS....
*
# #
Formada novamente a cavalgada, para lhe darmos
com esta denominação um tom mais aristocrático do
que em verdade o mereciam os magros burritos, que
havíamos trazido de Luso, lá partimos, em alegre con-
vívio, por meio d'aquelle emaranhado labyrintho de ca-
minhos e ladeiras, passando pelo Pretório, Calvário e
outros pontos notáveis, até ao ápice da montanha, a me-
morável e decantada Cruz Alta.
90 NOTAS A LÁPIS
Para seguirmos um caminho, que mais cedo dos fi-
zesse chegar ao ponto desejado, era forçoso caminhar a
pé, levando os burros de rédea, e marinhar serra acima
por um estreito e alcantilado carreiro.
Uma senhora porém quiz correr o risco da ascenção,
cavalgando o paciente animal, que, em certo lugar, es-
candalisado pela falta de regalias, concedidas aos seus
companheiros, achou conveniente o atirar comsigo ao
chão, de modo que a corajosa amazona lá foi rolando
pelo declive, na distancia de alguns metros, até que uma
espessa moita de arbustos a deteve e amparou.
A anciedade pelos resultados da desastrada queda
tornou-se geral.
Alem de um ligeiro susto porém e da picada de uns
espinhos na mão direita, nada mais soffrera, por um
feliz acaso, a nossa viajante, que apesar d'isso não quiz
arriscar-se, e com razão, a uma nova aventura.
Abraçado á Cruz Alta, dentro em pouco, podemos
então contemplar toda a magestade d'aquelle mundo
novo, que outra cousa se não poderá chamar ao vastís-
simo horisonte, que de lá se disfructa, em surpreza ma-
gica.
Tudo grande! tudo admirável! tudo deslumbrante!
Por cima. . . a immensidade do ceu, inundado de luz,
abobada resplendente de. brilho e aromas; por baixo. . .
ondulações frementes a cadenciar fantasias da aragem
e musicas de pássaros na ramaria dos altivos cedros e
da infinidade de arvores, que, povoando a extensa malta,
sobem, descem, agacham-se como pequenos arbustos
alindados á tbesoura, e formam no conjuncto um mas-
siço ondeante de graça e verdura, com os variados cam-
biantes de um riquíssimo colorido, em que figuram
todos os tons da esmeralda, a que nada falta nos toques
de luz e sombras; por diante. . . uns longes de fantástico
effeito, um panorama, que a vista abraça até se perder
na bordadura do Oceano, fila reluzente e extensa, posta
alli como que a servir de linha de demarcação, ou mol-
dura de quadro tão bello como enorme; á roda de nós
MO BUSftàGO 91
finalmente. . . a vastidão dos campos, semeados de al-
deias, de cidades, cerros e montanhas, que n'uma ex-
tensão de Coimbra a Lamego e do Porto a Braga, nos
parecem simples saliências de um brinquedo de fa-
das.
Ó Poetas devaneadores, que alli tendes confundido
com a viração da tarde os sons dos vossos cantares,
quem poderá fazer reflectir nos corações d'este povo
indolente o ecco das vossas palavras e a verdade dos
vossos sentimentos?!
Phenix renascida das cinzas de um desleixo tradicio-
nal, que lugar de delicias não seria então aquelle, quando
os vossos desejos podessem converter em instituição
nacional a verdadeira educação artística, que nos ensina
a ter bom gosto e o sentimento do bello!
#
* *
Desçamos do formoso ideal, que a palavra não pode
traduzir, deixemos n'uma pedra, no tronco de uma ar-
vore as iniciaes do nosso nome, como obscuro symbolo
de veneração, e volvamos ao prosaismo do mundo, isto
è, aquillo que de mais triste elle encerra ainda... a
commemoração de uma batalha.
Uma batalha I . . .Que forte irrisão para a solemnidade
d'aquelle sacrosanto tabernáculo de poesia !
Em frente da porta de Sulla, eleva-se a pyramide
quadrangular, sobranceira ao grande declive, onde se
feriu a maior parte da acção, pelejada em 27 de setem-
bro de 1810, entre os exércitos francez, ás ordens de
Massena, e anglo-luso, sob o mando de Wellington —
monumento glorioso, não pelo que vale, mas sim e uni-
camente pelos brios, que commemora e a que não pode
ser indiffe rente quem tenha em algum valor a terra, que
lhe deu o berço.
Como parle quasi integrante do monumento, comme-
morativo da batalha do Bussaco, não podiamos deixar
92 MOTAS A LÁPIS
de visitar a capella do Encarnadouro, que servia de
hospital de sangue, durante a refrega.
Eslava em obras, por ordem do governo, e ainda bem,
para que esse outro monumento histórico, onde, em
prol da pátria, se curtiram tantas dores, e se Soaram
tantas vidas, não fosse amanhã um monte de ruinas.
Vimos lá algumas gravuras de origem ingleza com os
planos e acção da batalha, um bello lavatório, formado
por uma concha de seis rebordos, assente sobre uma
elegante columna da fundição de canhões de Lisboa,
tendo a data de 1875, e uns paramentos antigos de
riquissimo bordado a seda, pertencentes ao collegio dos
Nobres, segundo nos disseram.
Ás quatro horas e meia parávamos na fonte de S.
Silvestre, á espera do jantar, que não poude ser ser-
vido, porque a mesa estava occupada por duas senho-
ras, que, como nós, haviam escolhido aquélle local.
Dirigimos-nos então á fonte do Carregal, onde ficá-
mos convencidos de que não perdêramos na troca.
Foi uma festa intima, animada, cheia de sorrisos e
de alegrias aquelle jantar, em plena flora do Bussaço.
Nem o mais luxuoso salão seria preferível ás opu-
lências da vegetação, que nos cercava, nem a melhor
orcbestra do mundo chegaria a ter para nós mais en-
cantos do que o rumorejar da folhagem.
A saúde final entoaram-na os homens, no meio da
Marselbeza, que os cedros ouviram escandalisados.
Alrevemos-nos a fazer uma observação, recordando-
nos talvez das scenas sanguinolentas de 1810.
— Pois, meu amigo — respondeu-nos um dos com-
mensaes, mancebo das mais avançadas ideas democrá-
ticas — quem ouviu o tinir das espadas, o estampido
da artilberia e os gritos dos feridos, em uma batalha,
como foi essa, não deve estranhar as coplas do hymno
patriótico de um grande povo.
— Hymno homicida, se me permitte— ajuntou a medo
outro companheiro — hymno, a cujos sons teem caido
por terra muitas cabeças decepadas.
MO BD88AGO 93
— Cabeças de tyranos, que obstruíam a passagem
para a conquista da liberdade, e que. . .
Foi preciso deitar agua na fervura. da discussão, que
ia começar : o que se conseguiu facilmente pela conti-
nuação do bymno em questão.
#
# #
Ao cair da noite, transpúnhamos a ultima porta da
malta, em direcção a Luso, despedindo-nos saudosos
d'aquelle formoso lugar, onde passáramos um excel-
lente dia, quando uma das senhoras, a mesma, que fora
mal succedida pela queda do burro, na ascenção á Cruz
Alta, levou a mão ao peito, e deu por falta de um ob-
jecto de valor.
Era um mimoso alfinete de ouro e platina, todo era*
vejado de pérolas, cuja perda significava a única som-
bra, que vinha projectar-se na limpidez do nosso con-
tentamento.
Parámos, e reunimos conselho.
A senhora afirmava que ao jantar ainda conservava
no peito o objecto perdido.
A'quella hora porém seriam baldados todos os passos,
que se dessem para rehavel-o.
De volta ao hotel, procurou-se um homem de con-
fiança, que, mediante boa espórtula, na madrugada se-
guinte, fosse á procura do objecto, não tanto pelo seu
valor, que não era pequeno, como pela sua estimativa,
que era maior.
Baldado empenho.
Apezar da laseira dos burros, que nos alugaram, e
que não nos deram provas de grande abundância de
recursos, não appareceu um homem, que quizesse aven-
turasse ao ganho promettido.
Tivemos pois occasião de felicitar aquella farta gente,
visto que a magreza não passava das alimárias.
Quando nos deitámos, a prostração era geral.
94 NOTAS A LÁPIS
Ápezar d'isso, ás 4 horas e meia da manhã, o nosso
obsequioso amigo Rodrigues da Silva e dós seguíamos
caminho de Bussaco, em exploração, cujo bom successo
não esperávamos.
E com razão. Achar uma jóia de insignificante vo-
lume, entre a folhagem secca, gravetos, fetos e sargaços
das muitas ruas e desvios da grande malta — cremos
que era mais ainda do que procurar, e achar agulha em
palheiro.
Caminhávamos a passo, tendo combinado a divisão
do terreno a meio, tomando cada um a sua parte, em
que ia filando a vista.
Não tardou porém quo os objectos se nos confundis-
sem diante dos olhos fatigados.
Parámos a descançar; e por bem pagos nos demos,
quando de uma imminencia, de que nos deslembrámos,
assistimos ao brilhante espectáculo do romper do sol.
por meio do noveiro, que se desenrolava do cume do
arvoredo, em novellos graciosos e collossaes, de uma
brancura diáfana e palpitante, difficil de imitar.
Um pouco acima da casa de Cai faz, tiveram um termo
feliz as nossas pesquizas, quando desesperávamos já do
seu bom êxito.
Um monosylabo, um hal de consoladora suspreza foi
a única exclamação, com que saudámos o appareci-
mento do alfinete, um milagre, deixem-nos dizer assim.
Satisfeitos voltámos, em direcção á Fonte Fria, onde
nos refrescámos convenientemente, bebendo e lavando
o rosto.
Chegámos ao hotel, onde recebemos as felicitações,
que o caso pedia, quando os nossos companheiros se
dispunham a almoçar ligeiramente... uma simples chá-
vena de café com leite.
A involuntária digressão abriu-nos o appetite.
Nós, os dois exploradores, reclamámos um bife. O
exemplo generalisou-se; e o café transformou- se em ex-
cellentes bifes, a que todos os companheiros fizeram as
honras devidas, apesar da hora matinal.
MO BUSSACO
*
* *
Ás 8 horas e um quarto, estávamos a caminho, e, em
pouco, atravessávamos de novo os excellentes e appe-
titosos vinhedos da Bairrada, para acudir a um gracio-
so convite, a uns 27 kilometros de distancia.
Na Mealhada, afastamos-nos da estrada de Coimbra,
formando um angulo recto até á Cordinha, e d'alli a
Cantanhede, seguindo entre estas duas povoações por
uma deliciosa estrada, bordada de álamos e parreiraes,
uma das mais encantadoras estradas, que temos visto.
Era domingo... havia grande movimento de povo.
em direcção ás egrejas.
Nas ruas notava-se um certo signal de festa.
Em Cordinha, saiu-nos ao encontro a característica
philarmonica do lugar, seguida do rapazio, em crepi-
tante alfazarra... um zabumba, um pifano e a com-
petente caixa de rufo. . . três rapagões, que imprimiam
aos respectivos instrumentos toda a força de uns pul-
mões mais valentes que os de um touro.
O do pifano levava ás costas uma gaita de folies, que
provavelmente servia para os trechos mais amaneirados
d'aquelle concerto infernal, a que as possantes bestas
da diligencia tiveram a valentia bondosa de nos arran-
car sem demora.
A's 11 menos um quarto, apeiavamos-nos á porta do
parocbo das Febres, o doctor Nazaretb, um mancebo,
cuja aptidão está requerendo uma collocação mais di-
gna dos seus merecimentos; um notabilissimo exemplar
do que deve ser o padre moderno, expurgado inteira-
mente de preconceitos retrógrados, um cavalheiro, a
quem as maneiras fidalgas do homem de sala, os co-
nhecimentos geraes das artes e sciencias ds nosso sé-
culo, a fina jovialidade de uma aprimorada educação
conferem um caracter distincto e único.
Um rapaz adorável.
96 NOTAS A LAMS
A sua casa, collocada ao pé da egreja, è uma habi-
tação alegre, onde ha muito ar e muita luz, um piano
e bons livros, tendo ao fundo um pomar, onde se en-
contram flores e fructos, e no meio um pateo para ca-
poeira e arrecadações; uma verdadeira abbadia moder-
na, confortável, sem excessos de ostentação; com moda,
sem demasias de qualquer género.
Acompanhava-nos o nosso amigo, já citado, um in-
dustrial, seu irmão e cavalheiro como elle, e as suas
duas irmãs, que se entregaram desde logo a todas as
funcções domesticas, destinadas a obsequiar os hospe-
des, de um modo, de que nunca nos poderemos olvi-
dar.
As horas, que lá passámos, a que não faltaram um
trecho de boa leitura, uns toques de piano, recitações,
dansa e flores, terminando tudo isto com o melhor jan-
tar, o jantar mais portuguez, a que temos assistido —
foram horas fugitivas, que boje nos apraz recordar,
como momentos de uma felicidade sem nuvens»
Da localidade pouco ha que dizer; é pobre e feia.
O único característico mais de notar encerra-se no
traje invariável, que vimos ás mulheres e ás creanças...
um mantéu, que lhes desce da cabeça, e um chapéu á
serrana, ambos mais vistosos e amaneirados do que a
capucha de burel e o chapéu dos pastores da Beira.
Com magua, não podemos acceder ás instancias do
nosso amabilissimo doctor, que pedia alguns dias de
demora.
Pouco depois das sete horas da tarde, seguíamos pela
estrada de Cantanhede; deixámos alli a da Mealhada, e
tomámos a de Coimbra, passando por Ançã, lugarejo
onde ninguém poderá imitar o canto do galo, sem le-
var uma boa sova de pau, preconceito, de que o cochei-
ro da diligencia nos não soube explicar a origem.
Era noite fechada.
T
mo Bosaàoo . 97
As senhoras e as creanças iam no interior do vehica-
lo; nós, os homens, ao ar livre.
Os nossos dois companheiros haviam emmudecido,
logo ao anoitecer; cabeceavam de somno, bamboando
o corpo a cada solavanco do carro.
Nós, ao lado do cocheiro» ouviamos-lhe orna longa
historia de broxas, cortada a mçio em Geria, para be-
bermos agua, e continuada até ás portas de Coimbra,
onde chegámos ás 10 horas, depois de um precurso de
outros 27 kilometros.
MOTAS A LÁPIS
POMBEIRO
Ainda o coração. — Erros de corographia
e historia. — Tradições.
No começo das nossas notas, dissemos que o movei
principal, que nos impellira a sair de Lisboa, era, após
uma longa e entranhada saudade, ver, palpar as arvo-
res, os campos e os rios, por onde nos correra a infân-
cia, os lugares e as terras, onde nos haviam sorrido,
ainda que pálida e tristemente, os primeiros alvores da
mocidade. *
E com rasâo.
Apesar do nosso Vieira considerar a terra como pá-
tria das dores, e de bem dolorosa nos ter sido aquella,
que nos viu nascer, ao lado das nossas mais bem cui-
dadas e santas aspirações, andou sempre o ardentíssimo
desejo de ao menos uma vez na vida, tornar a ver a
singela habitação, onde a imaginação nos collocava ao
lado de um vulto, que para nós encerrava a plena bea-
tificação dos entes predistinados para o bem, uma ver-
dadeira creação evangélica, a figura serena e ridente de
uma velhinha, duas vezes mãe, que nos fora arrimo e
consolação, e que, ainda mal para os nossos sentimen-
tos, jazia de ha muito nas profundezas da sepultura.
P0MBE1R0 99
£ quem dos diz a nós que não era essa mesma sepul-
tara que dos chamava ainda, com as vozes eloquentes
e irresistíveis de uma gratidão, que só terminará com
o ultimo alento da nossa obscura vida?
— Tirem-nos o coração, e nós seremos os seres da crea-
ção mais ditosos e mais completos— tem dito muita gente.
Pode ser. Mas. . . onde ha por abi homem que queira
trocar a sua vida de sentimento pela vida de esterilidade,
que aos que chamámos desalmados lhes forma o cen-
tro, onde gravitam ?
O coração, se é o foco das paixões, que muitas ve-
zes nos entravam o carro da ventura, e nos despenham
no declive das desgraças irremediáveis, também é o la-
boratório de todas as virtudes, que conquistam para
muita gente a bondade, a rectidão e todas as circums-
tancias de generosidade, adstrictas a esses predicados.
Toda a nossa indole, todas as nossas inclinações obe-
decem ao coração.
Quem pois o não tiver inteiramente perdido, ou esque-
cido de certas obrigações nativas, ha-de, sejam quaes fo-
rem as occupações e as distancias, a que estiver ligado,
voltar uma e muitas vezes o sentimento para as scenas
dos seus primeiros annos, para os lugares do seu nasci-
mento, por mais pobres e humildes, que lhes pareçam.
Obedecendo a esse pendor natural, foi que nós, na
bella tarde de 3 de julho de 1880, nos dirigimos por
montes e despenhadeiros, cuja viação se pode chamar
um verdadeiro caminho de cabras, a Po mb eiró, cabeça
da freguezia do mesmo nome e centro de varias aldeo-
las, o berço do nosso obscuro nascimento, uma pobre
e decadente povoação, pittorescamenle erguida na extre-
ma saliência de uma serra, que forma com outras um
curioso ouriçado de montanhas convergentes, principia-
das na serrania da Estrella; região de um accidentado
excepcional, onde diíficilmente se poderá encontrar um
kilometro de planura, desde a villa de Góes até ao rio
Alva, que lhe passa a menos de dois kilometros de dis-
tancia.
100 NOTAS A LÁPIS
Pombeiro i
A não ser pela antiga casa dos condes (Teste nome
e por um ou outro raappa corograpbico, que o note a
E. de Coimbra, a uns 30 kilometros, na Beira, e boje
Douro — quem poderá conhecer esta pobre terra, tão
decaída do seu primitivo ser, apesar das inexactidões
de alguns escriptores, que teimam em tornal-a aquillo,
que ella não è, ba tantissimos annos?
O sr. D. José de Lacerda, por exemplo, cbama-lbe
antiga villa, comarca de Louzada e concelho de Felguei-
ras, confundindo-a imperdoavelmente com o Pombeiro
minhoto; e mais modernamente o sr. Pinho Leal conti-
nua a denominal-a villa, comarca e concelho, quando
não passa de uma pequeníssima aldéa, na comarca e
concelho de Arganil e distrícto de Coimbra.
Que no passado foi uma villa, cabeça do concelho do
seu nome, com comarca e justiças próprias, pelo foral
concedido por D. Manuel, a 10 de novembro de 1513,
como também nota o minucioso e babilissimo autor do
Portugal antigo e moderno, não ha duvida alguma;
mas do que foi essa terra para o que é hoje ha uma
differença tamanha, que ninguém que a conheça deixará
de encarar como inexactidão irrisória a conservação
d'esses titulos nobiliários.
*
# *
Pelo que respeita ao pouco que se sabe da historia
da sua fundação, ha versões diversas, algumas das quaes
se confundem e misturam com as do outro Pombeiro
de Riba-Vizella, no Minho, a uns 11 kilometros de Gui-
marães.
Uns dizem-na fundação dos romanos, sob o nome de
cAufragia», «Auírazia», ou cEufrazia», de que era se-
POMBHRO 101
nhor Liciaoo, um dos companheiros do martyrio de
Santa Quitéria.
Manuel de Faria e Souza, no Epitome das historias
portuguezas, e diversos autores, ou «graves» autores,
como lhes chama o padre Carvalho, na sua Corographia,
querem que Pombeiro fosse edificação de uns povos,
entrados na Lusitânia, com o nome de tcolumbos», a
quem attribuem também a fundação de Coimbra.
Outros cbamam-lbe a cidade «Columbariai dos roma-
nos.
E finalmente o reitor de Farinha Podre, o padre Pe-
dro de Abreu, na Vida de Santa Quitéria, em 1651,
teia para si que Pombeiro foi a cidade «Aufragia».
Ora muito bem.
A primeira versão é abertamente semelhante ao que
se refere do Pombeiro minhoto. A lenda, contada, por
frei Bento de Ascensão, e resumida pelo sr. Pinho Leal,
dá Santa Quitéria a fugir de Braga, indo ter ao «vale
de Aufraziai, cTonde passou ao monte de Pombeiro,
que era perto, lugar do martyrio e domínio do tal «Len-
cianoi, «Lencivam» ou «Luciano», apóstata cbristão, e
depois novamente convertido.
A segunda está no mesmo caso, porque no escríplo
d'este ultimo autor esse monte do Minho também 9e
chama «columbino» ; havendo ainda por cima de tudo
um dos guardas, que fizeram sentinella á masmorra da
santa com o nome de «columbano».
N 'outra parte ha uma palpável contradição com esta
versão, pois do que se lê resulta a conclusão de que os
columbos não eram invasores da Lusitânia e sim povos
romanos, já estabelecidos e simples exploradores de
minas de chumbo.
O próprio padre João Baptista de Castro, no seu
Mappa de Portugal antigo e moderno, impresso em 1763,
na resenha, que faz dos primeiros povoadores, não men-
ciona semelhante gente; o que è mais um argumento,
contra os que a dão como raça distincta dos roma-
nos.
102 NOTAS À LÀHS
As duas ultimas afirmações são meras variantes das
primeiras, e ficam prejudicadas por isso pelo que fica
dito.
Braz Garcia Mascarenhas, referindo-se a Arganil, que
demora a 8 kilometros de distancia, diz no seu Viriato
Trágico.
AUi junto do Alva crystallino
Esteve Aufragia celebre e potente,
E perto (Telia, o monte columbino
ÍHoje Pombeiro) o mostra claramente :
)'onde orando Quitéria de contino,
El-Rei d'Aufragia, bispos e outra gente
Induziu ao martyrio, que alcançaram
N'aquelle santo monte, que illustraram.
#
# *
Resumindo o que uns e outros affirmam, temos por-
tanto... três Aufragias — a primeira em Arganil, a se-
gunda um Pombeiro da Beira e a terceira em Pombeiro
de Riba-Vizella, no Minho; temos... um monte colum-
bino para cada uma d'estas povoações, e... uma santa
Quitéria para o mesmo uso, santa, que n'este Pombeiro
é venerada, no tal monte, em capella de arcbitectura
gotbica, cTonde se disfructa uma bella vista , e n'aquelle,
no Pombeiro da Beira, em outra capella mais simples,
que dizem não ser a primitiva, no ápice de outro Aonte,
que o domina, entre o lugarejo, chamado «Chapinheirai
e a povoação do «Salgueiral,» de que fica mais próxi-
ma, n'uma altura, d'onde egualroente se gosa um for-
moso e extenso panorama para aquém e alem do rio
Alva.
N'este sitio ha uma feira annual, a i de novembro,
muito concorrida pelo commercio ambulante e mesmo
pelo de Coimbra, a que dá motivo a romaria á fes-
tividade da santa, pela qual os povos circumvisinbos
teem a máxima veneração.
POMBUBO 103
Além d'isso temos. • . duas capellas de S. Pedro.
Uma, de que não ba o minimo vestígio, mencionada
fantasiosamente pelo citado frei Ascenção, ao dizer que
a santa vivera algum tempo escondida, nas immediações
de Braga, junto á capella do apostolo.
Outra, na dobra da serra opposta áquella, em cujo
sopé se vê a actual ermida de S. Quitéria, na serra do
«Salgueiral,i na Beira, entre a «Cbapinbeirai e outro
lugarejo, denominado t Telhada,» sitio, onde existem
umas ruinas, que a tradição popular attribue á capella
de S. Pedro, ao pé da qual põe egualmente o martyrio
da santa.
#
# #
O que daria causa aos similares, que são meras sup-
posições históricas, a que não è estranha a lenda popu-
lar, cercada de estravagancias, entre as duas terras do
mesmo nome, mas tão distantes uma da outra?
Rivalidades entre os seus verdadeiros fundadores?
Ninguém o sabe, como nada se pode saber das fon-
tes já citadas, que se misturam, confundem, e contra-
dizem entre si.
Quanto á lenda, somente vem ao caso pelos lugares,
a que se refere, correndo tudo o mais por conta dos
santoraes, que chegam até a collocar a sua heroina em
três partes, como diversos autores fazem á Aufragia.
E se não vejamos.
O padre Abreu e o poeta Garcia Mascarenhas assi-
gnalam-lhe o lugar do martyrio, em Pombeiro da Bei-
ra; frei Ascenção, na obra já citada e José Pestana no
seu Poema-sacro, em Pombeiro de Braga ; e João de
Castro, a que já também nos referimos, quando trata
dos santos do Minho, dá-a martyrisada em Hespanha,
na cidade de Toledo, aos 22 de maio, levando em suas
mãos degolada a própria cabeça por espaço de duas lé-
guas até Marguelizza, onde na ermida de S. Pedro (já
temos egualmente três) foi sepultada e se conservam
iOi MOTAS A LAPiS
com grande veneração suas relíquias. E para isto cita o
Jardim de Portugal, de Bivar, a pag. 37.
Ainda mais.
Formando o centro de um angulo aberto com Pom-
beiro e Aldéa Nova, povoações, que se avistam a um
tiro de bala, em uma pequena imminencia, cercada de
soutos e terras cultivadas, ha uma capella antiga, cuja
origem se não conhece, sob a invocação de N. Senhora
do Loureiro, symbolisada apenas por uma moita de ar-
bustos d'este nome, que lbe florescem ao pé.
Na parede, ao lado direito e rente ao chão, ba uma
pedra romana, em que já mal se lê a seguinte inscripção:
Lovesius. . . Fugi F. sibi et Boteae filiae suae. Armo-
rum XI F. C.
cEsta obra mandou fazer Lovesio, filho de Apugio,
para si e sua filha Botea de onze annos de edade.»
Pois bem. Em Condeixa Nova, ainda segundo o sr.
Pinto Leal, ha na torre da egreja matriz outra inscri-
ção romana, que diz :
— Aos deuzes manes. Oticia e Portunata, sua irmã,
filhas de Félix, aquella mãe e esta tia de Botea, lbe con-
sagram esta memoria, i
E em Braga existem também umas palavras, n'uma
lapide, que faliam da familia dos Lovesios, cujo chefe
foi, ao que parece, um patrício romano.
Decididamente o Pombeiro primitivo foi uma terra,
além de afortunada, excepcional, pois aos muitos pri-
vilégios, que lbe concederam reis e donatários, juntava
um dom invejável,... o dom da ubiquidade para as
suas cousas e pessoas.
Tratando de Aufragia, diz o autor do t Portugal an-
tigo e moderno»:— Cidade antiquíssima do Minho, men-
cionada nos «agiologios e santoraes» e na ccorographia»
do padre Carvalho.
FOMBUBO 405
E mais adiante :
— Dizem outros que Aufragia existiu do valle de
«Adafroia», próximo á villa de Pombeiro, na Beira.»
E onde ficam aquelles, que affirmam qur a sua fun-
dação se operou em Arganil, suppondo-se, como bem
diz o mesmo escriptor, fundação dos gallo-celtas, alguns
séculos antes de Cbristo?
— Pelos fins do século passado — continua o mesmo
livro — appareceram nos montes próximos a Fareja 74
sepulturas de tempos remotíssimos.»
cisto confirma a opinião dos que sustentam que esta
cidade era no Minbo e não na Beira.»
Pois em contraposição ás 74 sepulturas de Fareja,
temos nós a mencionar a tradição popular, transmittida
de geração a geração.
Pergunte-se ainda boje a qualquer aldeão de Pom-
beiro, sujeito que nunca leu cbronicas, nem folheou ar-
chivos; que não conhece Faria e Souza, nem o sr. Pinho
Leal, e com maior rasão nos não ba-de ler a nós; per-
gunte-se-lhe pelo caso, e elle nos dirá :
— Homem, eu cá não sei muito bem dessas cousas,
mas.. . sempre ouvi dizer que aquelle valle, «ao fundo
da encosta, que sobe para o t Salgueiral», e se chama
hoje cDifroia» foi antigamente «Aufragia» e depois d'isto
Adafroia.
De tudo isto resulta que n'estas excavações históri-
cas, que se perdem na obscuridade dos tempos, de que
só nos chegaram noções infundadas, não ha meio de
conciliação possível.
106 NOTAS A LÁPIS
II
Versões antigas.— Os Furados. — Nobiliarchia. —
O solar dos Cunhas.
Em referencia ao estado do solo e ás partes metáli-
cas, que possam entrar na sua composição, pouco nos
pertence dizer, tão profano nos julgámos no assumpto;
quer-nos parecer porém que a exploração das minas
de chumbo, attríbuida aos columbos, não passa de mera
invenção, pois não ba vestígios, fossos, excavações, ou
depressão de terrenos, que nos levem a pensar o con-
trario.
N'esta, como nas outras partes, inclinámos-nos mais
a dar credito á tradição popular que diz chamar-se co-
lumbaria á cidade e columbos aos seus habitantes,
pela abundância e diversas castas de pombos, de que
eram insignes creadores, vindo pelos tempos adiante a
trocar-se o alatinado do nome pela palavra «Pombeiro»,
na verdade mais portugueza, segundo a força, que lbè
davam então de significar — viveiro de pombos.
Indubitavelmente é isto mais racional, attendendo á
origem romana do termo, porque, para designar minas
de chumbo, deveria a cidade chamar-se plumbaria ou
polumbaria, se quizerem, e não columbaria.
E não seriam os habitantes (Testes sitios os primei-
ros d'este nome, pois, segundo Rezende, houve, entre
outros, uns povos ahi pela Covilhã, Castello Branco e
parte da serra de Estreita, chamados plumbarios.
tOMBHRO 107
As próprias galerias subterrâneas, a que chamam
os Furados, afastadas uma da outra pela distancia de
mais de dois kilometros, abertas na rocha viva e no
sobpè do morro extremo de duas serras, onde o rio
Alva forma pronunciado cotovello á volta cTellas — não
nos parecem obra casual de exploração mineira, que
quasi sempre nas suas profurações segue a veia capri-
chosa da substancia procurada, formando agora uma
curva, logo uma recta, estreitando-se n'um lado, e alar-
gando-se no outro.
E esse trabalho de pasmosa dificuldade descreve uma
linha perfeitamente recta, atravez do monte, de um lado
ao outro do rio, e mostra que obedeceu a um plano,
que, a nosso vêr, linha por único fim o desvio de parte
das aguas, destinadas, como motor, a um mechanismo
qualquer, porque as recebe de uma banda para as lan-
çar pela outra, n'uma altura de uns seis metros, quando
muito, numa queda, cujo ruído se ouve a uma consi-
derável distancia.
As entradas estão perfeitamente niveladas com o leito
do rio, para receberem as aguas sem dificuldade ; no
precurso ha o necessário e quasi imperceptível declive
para o fácil escoamento; e as saídas teem a altura coro-'
petente para formarem catadupa de uma grande força
motora.
Estas obras esquecidas e desprezadas, tão dignas de
aproveitamento, hoje mais do que nunca, para larga in-
dustria fabril, devem-se aos romanos, aos árabes, ou
aos povos, que os precederam ?
Ninguém nol-o diz, como todos ignoramos o flm para
que foram destinadas.
Pode-se suppor, ainda assim, com probabilidade de
acertar, attendendo á época, a que naturalmente per-
tenceram, que as famosas catadupas serviram para lavar
108 NOTAS A LÁPIS
e estremar as faúlbas de ouro, em que as arêas do Alva
abundaram sempre.
A exploração aurífera mereceu a mouros e romanos
cuidados especiaes e constantes.
Os Furados de cima, que são os mais amplos, re-
cebem tamanha quantidade de agua, no próprio verão,
que impossibilita os pescadores de lhes sondarem os
poços interiores, onde a sua avidez lhes fantasia enor-
mes viveiros de peixe.
Não ha pois memoria de que os tenham atravessado
de lado a lado; e é por isso que a poesia popular, que
attribue aos mouros a abertura desses curiosíssimos
túneis, tem collocado lá, em mágicos salões de porphiro
e diamantes, as creações mais opulentas da grande famí-
lia dos trasgos, fadas e mouras encantadas, que, em
certos dias do anno, saem dos seus esplendurosos es-
condríjos para virem á luz do sol estender, no dorso
das montanhas, os seus mantos de pedraria e os seus
luzentes novellos de oiro.
Os Furados de baixo então, no estio, mediante um
simples tapume de estevas, fetos e ramos de medro-
nheiro, presos ás varas delgadas de um pinheiro novo,
e alguns cestos de terra e areia, dão fácil passagem,
não só aos pescadores, como ao rapazio, que se diverte
a nadar de um lado e outro do rio, atravessando a pé
nu a extensa galeria, em perfeitas condições de ar e luz,
pelo meio de um simples regato, que dimana das fendas
do tapume.
Por condição natural, que nos leva sempre a chorar
pelo passado, quizeramos, ao traçar estas linhas, voltar
ao tempo em que por mais de uma vez fizemos essa
travessia, de que tanto ao vivo nos recordámos f
Lá dentro è tudo regular, de alto a baixo, de um
lado o outro; uma depressão aqui ou acolá só é devida
ao attrito das aguas, que alli passam ha séculos imme-
moraveis.
Do que fica dito deprehende-se pois que os Furados
foram abertos para fim mui diverso do que se lhes at-
POMSKIBO 109
tribue; basta para isso observar a sua posição, o cara-
cter e egualdade de condições propositalmente unisonas,
e nenhuns vestígios de escavações mais á flor da terra
e por tanto mais accessiveis ao minério, os quaes natu-
ralmente se deveriam encontrar n'uma continuada e
longa serie de montes incultos por sua natureza, fragas
khmensas, onde nunca bouve cultura, que podesse apa-
gar esses vestígios.
E' ainda um erro o suppor-se que no Pombeiro, da
Beira, nasceu o primitivo solar dos condes do mesmo
titulo.
Tanto d'este como do Pombeiro, de Riba-Vizella, fo-
ram donatários os Gunbas, ligados por estreito paren-
tesco e por largos meios de influencia territorial e poli-
tica, que dimanam d 'uma época ainda anterior á funda*
ção da monarcbia.
Procede esta família de D. Guterre, companheiro do
conde D. Henrique, que lhe fez merco da Povoa de Var-
zim e de outras terras em Braga, Guimarães e Barcel-
los.
D'este tronco ramiScaram-se nnmerosos senhorios e
morgados, como o de Pombeiro, da Beira, os condes de
Pontevel, os senhores de Povolide, Táboa e outros, em
Portugal; e, em Gastella, os duques de Escalona e de
Ossuna, os marquezes de Vilhena, os conde de Buen-
dia e outras casas grandes, que procedem de Marlim
Vasques da Gunba e de seu irmão Vasques, que passa*
ram á Hespanha, ém tempos de el-rei D. Joio I.
O primitivo brasão de familia é— ura escudo em campo
de ouro, cunhas de ferro, em azul, firmadas e postas
em três palas. O timbre — um meio grypbo de ouro,
acunhado de azul, com azas acunhadas de ouro.
O ramo hespanhol orla o escudo com 24 bandei-
ras.
110 NOTAS A LÁPIS
#
# #
Gomo d'esta, ha ainda hoje noticias de muitas famí-
lias, espalhadas pela península, conservando o mesmo
appellido, o parentesco de eras remotas e a descendên-
cia do mesmo tronco, pela passagem de vários indiví-
duos de um para outro paiz, durante o largo período
de invasões e guerras.
Umas estão decadentes, em Portugal, e florescem em
Hespanha, e vice- versa; acham-se outras completamente
extinctas n'um e n'outro lado.
E já que faltámos disto e da terra da nossa naturali-
pade, permitta-se-nos citar, como em nota aparte, para
não ir mais longe, a familia do nosso apellido saído de
uma só origem, tão obscuramente ramificado hoje por
toda a Beira, Lisboa e província do Maranhão, no Bra-
zil, e pertencente ao numero dos decadentes, em Por-
tugal, e dos abastados, em Hespanha.
Gomo todps os apellidos da antiga nobreza, procede
este de uma façanha guerreira, praticada por dois irmãos,
que tomaram aos mouros, ahi por 720 da era christã,
a cidade de Frias, junto ao rio Ebro, na província de
Burgos, reinando o famoso rei D, Pelayo.
O ramo portuguez vem de um membro da familia,
emigrado, que foi estabelecer-se em Gêa, ao que se diz;
espaihou-se especialmente pelas duas Beiras, e apesar
da sua nobreza, a que provavelmente fadaram os meios
da necessária abastança, viveu sempre em Portugal mais
ou menos obscuro.
Em quanto que em Hespanha ha os fidalgos Yelasco
e os duques de Frias a attestarem a antiguidade da fa-
milia; em nosso paiz, alem do resgistro no nobiliário por-
tuguez e de uma pobreza franciscana espalhada por
tanta gente, resta apenas nma sepultura rasa na egreja
do mosteiro das freiras de Jesus, capuchas de Santa
Clara, em Setúbal, com as armas geneologicas, que são
POMBBIBO 111
— em campo de prata uma torr* azul, acompanhada de
dois leões de vermelho, postos em pè e virados para
ella. O pé da torre é ondeado de azul e prata ; a orla
vermelha carregada de aspas de ouro; o timbre a torre
do escudo.
Do meio das nossas escavações surgiu casualmente
esse esclarecimento de linhagem, a qne não ligámos im-
portância que não seja a da simples demonstração do
modo como se confundem, e ramificam pela península
as famílias antigas, ao fallarmos dos Cunhas.
As hierarchias fidalgas, por nobreza de sangue, são
hoje elementos anacbronicos, que não engrandecem pes-
soa alguma.
£ ainda bem para o nosso século.
O trabalho honrado e perseverante, as acções virtuosas
e grandes, as lutas do espirito, as pugnas da intelligen*
cia — são os verdadeiros títulos da fidalguia moderna.
Os pergaminhos acumulados de uma dezena de ge-
rações de fidalgos rudes, comilões ou preguiçosos são
documentos irrisórios em face da simples cartilha ma-
ternal de João de Deus.
Eis ahi a nossa profissão de fé, para que ninguém
possa bacorejar intenções balofas, que não temos.
*
# #
Voltando ao solar de Pombeiro, cuja origem antiguis-
sima já demonstrámos, è irrefutável, ainda mais pelo
que diremos em seguida, que á família Cunha perten-
ceu o senhorio, cercado dos maiores privilégios até ao
reinado de D. Affonso IV, e mesmo dabi por diante, de-
pois da alliança com os ascendentes dos condes actuaes.
No reinado d'aquelle monarcha e anno de 1355, é
que o domínio da villa passou para D. António de Cas-
telio Branco, 7.° senhor (Teste nome, pois ficando viuvo
sem filhos de D. Izabel de Noronha, filha do viso-rei da
índia D. Gracia de Noronha, casou com D. Maria de Bri*
112 NOTAS A LÁPIS
teyros, filha de Matbeu&da Ganha, senhor de Pombeiro,
e de sua mulher D. Leonor Coutinho, recebendo em
dote o respectivo senhorio.
Três séculos mais tarde, a 6 de abril de 1668, o seu
bisneto D. Pedro de Gastello Branco recebeu a nomea-
ção de 1.° visconde e depois conde de Pombeiro, rei-
nando D. AffoDSO VI, de quem foi capitão da guarda,
como já o havia sido nos últimos annos D. João IV; o que
prova que os Cunhas, ainda depois do casamento de Gas-
tello Branco, 7.° senhor d'este nome, por dois séculos
mais, continuaram a ter a suprema influencia alli e em
varias partes do reino, por onde estavam espalhados.
No centro de um terrapleno, sobranceiro á villa e de-
nominado o cPaçoi, a melhor posição da localidade,
convertido hoje em um bello campo de milho, conhece-
mos ainda umas béllas ruínas, compostas de dois arcos
da mais perfeita cantaria e duas altissimas paredes de
tão robusta composição que foram, durante séculos, res-
peitadas pelo tempo, e só cairam, ha meia dúzia de
annos, aos golpes da picareta agrícola, depois de um
trabalho de grandíssimos esforços, ruinas, que se dizia
terem feito parte da habitação feudal dos Cunhas.
Junto d'aquellas paredes venerandas, a cuja sombra
occorreram os nossos primeiros brinquedos, por anda-
rem na posse da nossa família, ligadas a propriedades
foreiras, que eram os pequenos restos do domínio d'essa
casa titular, havia uma eira, que servia para estendal de
todos os renovos, e que também já não existe.
D'essas memorias resta apenas uma pequena porta,
em arco, no extremo de um muro divisório, chamada
a porta do jardim, por se dizer que o espaçoso so-
calco, que deitava para a rua, e desappareceo ha pouco,
cortado pela estrada moderna, e estava ligado ao terra*
pleno— fora o sitio ajardinado do palácio.
Essa porta e esse muro, expostos ha tanto ao rigor
dos séculos, mostram ainda a robustez da sua construo
ção, cujo betume a tradição julga ter sido amassado
com azeite.
POMBBBO 113
*
#
Quem quizer porém certificar-se da influencia exer-
cida pelos primeiros donatários vá á egreja parochial, e
entre na capella-mór.
Ao lado direito de quem sobe, a meio de um arco,
mettido na parede, está o único monumento respeitado
e conservado até boje, como testemunho da nobliarchia
pombeirense.
E' um tumulo, sobre o qual repousa a figura, em
tamanho natural, de um homem vestido de guerreiro,
com sua cota de malha, tendo na base quatro leões,
em que descança, e na face principal, por cima d'elles,
uma figura de azas abertas, em meio relevo, segurando
nas mãos um pergaminho, onde se lê o seguinte :
aqui jaz o muito esforçado e estimado
mathkus da cunha, senhor que foi
d'esta yilla e tebra de pombeiro; o qual nosso
senhor tenha em sua santa gloria. amen.
Aos lados veem-se as respectivas armas, que são :
—um escudo, dividido verticalmente a meio, tendo na
metade direita nove cunhas, dispostas a três e três ; e
na esquerda, dividida horisontalmente, quatro escudetes
com as cinco chagas e quatro flores de liz.
Armas eguaes, que os Gastellos Branco não adopta-
ram, como condes de Pombeiro, pois as d'estes são :
— em campo azul um leão de ouro, rompente, armado
de purpura — ainda nos primeiros annos d'este século
figuravam no pelourinho, cuja demolição è a única, que
julgámos bem feita, e se. conservam hoje no frontispício
de uma capella, edificada ao fundo do largo do mesmo
nome, e consagrada a Santo António, em 1852, por um
voto do nosso primeiro mestre e respeitável amigo, o
sr. António Dias Ferreira, a quem se deve pois a guarda
d'aquella antiquíssima memoria.
8
114 NOTAS A LÁPIS
Matheus da Canha, que viveu sempre tranquilamente
no solar de Pombeiro, da Beira, foi contemporâneo do
seu parente João Lourenço da Cunha, domiciliado na
corte, senhor de Pombeiro, de Riba-Vizella, e infortu-
nado marido da tristemente celebre D. Leonor Telles,
a barregã, que depois foi mulher de D. Fernando.
Os bens de Joio Lourenço, que fugira para Çastella
em procura de uma vingança, foram-lbe confiscados por
carta de i de julho de 1379, e dados mais tarde a um
Fernando Affonso de Albuquerque, por seus serviços.
Restituído á pátria, reinando D. João I, o marido de
Leonor Telles entrou de novo na posse de todas as suas
terras, e morreu ao serviço do Mestre de Aviz.
Que ainda depois de Matheus da Cunha ter dado á
filha em dote o senhorio da villa, esta família continuou
a ter larguíssima influencia, durante séculos, provam-no
as memorias que nos restam, e todas lhe dizem res-
peito, como são. • . essas armas, o tumulo citado e uma
campa rasa, que foi posta junto d'elle, dois séculos de-
pois, segundo a data, que tem, de 7 de maio de 1564,
onde jaz sepultado um F. da Cunha, prior da localidade
e, segundo a tradição, da egreja de S. Martinho, da
Sanguinheda.
A inscripção d'esta sepultura já mal se pôde ler pela
passagem, que sobre ella se tem feito, e por haver sido
quebrada a pedra, juntamente com o tumulp e figura
de Matheus da Cunha pelos francezes, que julgavam,
como de costume, encontrar lá dentro as jóias, com
que, em algumas partes, era uso sepultar os fidalgos.
Além d'isso, o padre Carvalho da Costa, na sua Co-
rogrophia, de que em alguma coisa nos servimos, diz
que o prior e dr. António Ferreira Azevedo, de Arganil,
lhe mostrara um documento — o que deveria dar-se ahi
por 1706— em que, no anno de 1423, D. João I con-
cedera, por doação, o senhorio d'esta villa a Martin Vas-
ques da Cunha, por este lhe pedir semelhante mercê,
em vista do grande parentesco com os Cunhas de Pom-
beiro.
P0MBB1R0 115
Apezar do dote do senhorio, concedido a Gastello
Branco, em 1355, vé-se pois que a influencia dos Cu-
nhas continuou a ser sempre a mesma, e tanto que só
dois séculos depois, como já fizemos notar, foi conce-
dido ao bisneto d'aquelle o titulo de conde.
Vamos ainda mais longe.
Consíderamol-a a única influencia, que lá houve, pois
cremos que nem um só dos descendentes de Gastello
Branco foi dar um passeio a Pombeiro. Não ha lá cousa
que alteste o contrario.
E d esse abandono e do preconceito, que impedia a
antiga fidalguia de tratar dos seus negócios, como des-
douro que era, proveio um desmazelo absoluto, a ruina
total do. senhorio, pois da insignificância,. que ultima-
mente restava ao condado, se prova que alii não houve,
pelo tempo adiante, rei nem roque, e que cada um se
foi apropriando do que lhe pareceu.
Quando ha annos, se bem nos lembrámos, o pae do
sr. conde actual, acordando de um mau sonho de de-
cadência, devida ao desleixo de administrações passa-
das, quiz intentar demanda, para rebaver as suas nu-
merosas terras perdidas, esbarrou com um obstáculo
invencível - a posse de annos, e mesmo de séculos, e
milhares de direitos adquiridos, a formarem uma bar-
reira, contra que era impossível lutar.
116 NOTAS A LÁPIS
III
O Pombeiro moderno.— Decadência.— Fructos da rotina
O Pombeiro da actualidade Dão representa ao menos
uma leve sombra do que o passado nos diz que elle foi.
Gosta a crer, á vista de semelhante decadência, que
eile chegasse a representar o papel, que se lhe attribue,
e de que h\ provas inconcussas, desde os princípios da
monarcbia até á dominação pbilipina.
Essas provas dão-lbe uma importância superior á do
Pombeiro minhoto, e tanto que o seu parocho, que ainda
hoje conserva a dignidade de prior, usufruía uma côn-
grua de seiscentos mil réis, em qoanto que o cTeste ti-
nha apenas cento e cincoenta, e era simples vigário.
O numero de fogos, contidos em toda a freguezia,
que ainda boje orça por uns quinhentos, é ainda o du-
plo dos da freguezia de Riba-Vizella.
Centro das povoações, que mais se lhe avisinham,
occupa uma bonita posição, no extremo declive do
monte do Salgueiral, apezar do seu pequeno horisonte,
interceptado ao lado do sul pela cordilheira, que vem de
Góes, e que pode considerar-se, como outras, uma ra-
mificação da serra da Estreita.
Todos sabem que a Beira não tem planícies, qoe me-
reçam nota, tantas e tão diversas são as montanhas, que
a guarnecem, por todos os lados, e lhe fornecem a sua
principal feição característica.
Pombeiro e todas as terras, que lhe ficam a muitas
léguas ao redor, estão comprebendidas na parte mais
cheia de declives, saliências desiguaes, que se bifurcam
e confundem, despenhadeiros, desvios alpestres, pene-
dias e escabrosidades de todo o género.
POMBEiaO 117
Todo aquillo porém tem a sua belleza relativa.
As cumiadas dos montes ostentam-se vestidas da es-
pessa verdura dos pinhaes ; os declives menos áridos
são povoados de soutos e olivedos; nas collinas vêem-se
as vinhas; nos valles, entrecortados de ribeiros sussur-
rantes, as plantações mais mimosas, as hortas, os ce-
reaes e as arvores de fructo, formando tudo isso um
emaranhado de arborisação e uma variedade de mati-
zes, que não deixam de alegrar a vista e o coração.
Afora essas bellezas, que se podem chamar naturaes,
tudo o mais é... monótono, descurado, triste e accen-
tuadamente pobre, começando pelos povoados, que ainda
hoje nos dão a idéa do que poderiam ser as primeiras
habitações dos successores dos nossos primeiros pães.
Quem está costumado á perspectiva ou á simples
descripção de algumas aldeãs do Minho, que d'entre as
moitas do arvoredo começam de longe a sorrir ao vian-
dante, com os seus terraços ladrilhados, o luzir das
suas janellas envidraçadas, os respiradouros das suas
pequenas chaminés e a nítida alvura das suas paredes
—sente um violento aperto de coração ao contemplar,
mesmo fugitivamente, os tectos denegridos, as paredes
sem reboque, os muros de negro pedregulho, as casas
fétidas, como o esterco, que as circumda, baixas e quasi
geralmente térreas da maior parte dos lugarejos da Beira.
Ao presenciar aquellas misérias, chega a gente a per-
suadisse de que n'aquelles covis não pôde viver um
ente humano, e que esta parte da nação é uma cousa
estranha, apezar de collocada no meio d'ella, uma ex-
crecencia, um membro gangrenado, para o qual, ha tan-
tos séculos, ninguém dispensou protecção, nem olhares
de piedade.
#
# #
Antes de entrarmos em Pombeiro, voltemos a ver o
que elle era, em 1863.
Constituía uma povoação decadente e pobre, sujeita
118 NOTAS A LÁPIS
ás justiças de Arganil, tendo 10 casas de habitação,
uma única rua e duas pequenas travessas, que iam dar,
como hoje, á egreja, outras tantas famílias, que forma-
vam a população de umas oitenta pessoas, entre adultos
e creanças.
Abastança ninguém a possuía alli, desde que se ha-
viam arruinado as melhores casas da localidade, que
eram as de Araújo e D. Maria Rosa.
O próprio senhorio dos condes de Pombeiro estava
reduzido ao cPaço», ao olival da t Fonte» e ás encostas
maninhas dos cFurados» pequenos restos, que já hoje
lhe não pertencem.
Nas habitações mal cuidadas não havia conforto, nem
belleza, mas que nos lembre só uma casa se encontrava
em ruínas, e era a chamada t Residencial, que em ou-
tros tempos pertencia ao parocho, como património que
é da egreja.
Às autoridades eram — o ecclesiastico, juiz de direito,
escrivão e regedor.
A população Unha o característico alegre, cheio de
poéticas tradições, a que não faltavam os solaos e chá-
caras, passadas nos serões, nas desfolhadas, nas lides
do campo e nas romarias, atravez das gargantas argen-
tinas das raparigas.
Os rapazes, entre os quaes havia estudantes de Ar-
ganil e Coimbra, formavam com ellas innocente e jubi-
loso convívio no adro, em noites de luar, nos domingos
depois da missa, a que concorria toda a freguezia, com
os seus trajes mais asseiados.
O Santo António, o S. João, o Natal, a Semana Santa
e o entrudo tinham as suas festas próprias, as suas
cantigas tradicionaes, os seus folguedos característi-
cos.
Cada família possuia o seu rebanho de gado e as
suas terras; d'onde tiravam os meios necessários á
vida.
Tal era o Pombeiro de ha 17 annos, e tal o deixámos
então.
POMBHBO 119
Parece-nos que em todos os paizes possuidores da
tranquillidade, que disfructa o nosso ba uns trinta e tan-
tos annos, quando um individuo volta á sua terra, de-
pois de uma ausência como a nossa, acha sempre uns
signaes de adiantamento» que lbe satisfazem as neces-
sidades do coração, e insuflam o amor próprio, porque
tudo tende a progredir, quando as forças de um paiz,
as que o particular e a administração publica represen-
tam, se congregam em benefícios, que fazem a felicidade
dos povos.
Uma nova rua, a reedificação de um prédio, a cons-
tracção de outro, uma estrada, um jardim, um tanque,
um pomar, uma fonte, uma cousa emfim, que repre-
senta vontade, acção, progresso, vida—eis o que se es-
pera encontrar; a tendência para o melhoramento, que
è uma necessidade de primeira intuição— eis o que en-
contra quasi sempre quem um dia, depois de largos
annos de apartamento, tem a ventura de voltar aos pá-
trios lares.
Vejamos agora a que distancia, no caminbo do pro-
gresso, levou Pombeiro o seu carro brazonado de cidade
e villa, que foi, n'um decurso de 17 annos, que já não
representam somenos espaço para caminhar :
Construiu pessimamente, fora da povoação, em mau
local, e ainda assim porque a camará do concelho lhe
deu o dinheiro e alguns particulares de fora a madeira,
uma casa para a escola, construcção que dentro de
poucos annos, ao cair, attestará a imperícia ou má fé
de quem a levantou, e... abriu uma porta no cemi-
tério.
De resto... a negligencia, a falta de cultura moral e
intellectual, o desleixo, o voltar para os tempos primi-
tivos, a indolência mais pronunciada dos íncolas flores-
taes do qpvo mundo.
ISO NOTAS A LÁPIS
Dois dos prédios que indicámos, só teem hoje os ali-
cerces; seis poucos mais teem do que isso; o resto, com
excepção de uns dois, únicos que não ameaçam ruina,
vae pelo mesmo caminho; de modo que ao entrar, tive-
mos a suprema satisfação de passar por meio de des-
troços, muros caídos, montes de pedregulho, com a
mesma estranheza, com que o faria um antigo habitante
da cidade maldita, ao visitar as ruínas que houvessem
escapado ao fogo do ceu.
Aquellas paredes denegridas, atravez das quaes as-
sobia o vento os seus hymnos descompostos, aquellas
telhas, por onde no inverno escorre o gelo, aquelles
postigos, que dão ar e luz a possilgas insalubres— dão
habitação a 14 famílias, formando a população de 65
pessoas, incluindo 19 creanças.
Precorrendo a extensa freguezia, onde reina a mali-
dicencia de soalheiro, que traz os príncipaes persona-
gens em constante desunião, encontra-se o mesmo es-
pectáculo desolador, a começar pelas povoações, que
cercam Pombeiro, como o Salgueiral e o Campo, onde
de seis casas que tinha, só apresenta uma habitável,
Povoa, Àldôa Nova e Chans.
N'estas duas ultimas, ha os dois melhores prédios da
freguezia, commodas, asseiadas e vistosas habitações,
pertencentes aos srs. José e António Dias Ferreira, cuja
família é um modelo de boa união e auxilio mutuo.
Além de tudo, seccou-se a veia da poesia popular ;
já não ha descantes, a não ser o de uma ou outra pas-
torita erradia; já não ha estudantes a cursarem acade-
mias; não ha rapazio alegre, porque a negregada da
emigração lb'o rouba quotidianamente.
Demonstrações irreverentes, por occasião das festivi-
dades locaes, e tendência crescente para vicios, que lá
não havia, vimos nós em abundância nas pessoas de
quem menos o esperávamos, tanta fé depositámos ainda
na pureza e simplicidade dos costumes da gente rústica.
Resumindo, temos em 17 annos— o desmoronamento
da povoação, seus muros e divisões, uma adiantada cor-
POMBIIBO iíl
rupção de costumes, uma diminuição de vinte por cento
nos habitantes, descrecimento de cultura intellectual,
augmento da intriga mexeriqueira, a perda total da ale-
gria característica, que existia no povo, uma emigração
estéril e enoervadora, a carência absoluta de bons ca-
minhos, desvios e estradas.
Em compensação abriu-se uma porta no cemitério,
levantou-se um telheiro para a escola, e fez-se na rua
um arremedo de calçada.
O systema seguido, talvez por mais commodo e me-
nos trabalhoso, é o seguinte :
Desmoronou-se uma parede? Desviam-se as pedras
do caminho, e deixam-se Gear até que uma enxurrada
as possa levar. Gae um pedaço da casa? Recua-se para
o interior, e tapa-se a brecha com umas tábuas de pi-
nho. Secca uma plantação fruetifera? envelhece uma ar-
vore de estimação? Distribue-se a lenha pelos donos, e
não se reforma, nem se planta de novo.
E' pois uma vida patriarchal aquella.
Diógenes, o casmurro Diógenes, não pensava certa-
mente em que 2:290 annos depois da sua morte havia
de ter, iVeste cantinho da Europa, uma raça de pbilo-
sophos tão seriamente apologistas do seu sacco e da
sua escudei la.
Falta- lhes o tonel, mas è de crer que, depois de vir
a terra a ultima casa, os castanheiros seculares, que
por alli crescem ainda em abundância, forneçam as pre-
cisas vasilhas, para que aquella boa gente se possa
abrigar do rigor das estações.
#
• #
A's nossas queixas e interrogações pelo estado de-
plorável, em que encontrávamos tudo aquillo, respon-
deu alguém :
—Que quer? E'-se por cá muito pobre; não ha di-
nheiro para obras.
itt MOTAS A LÁPIS
Dinheiro para obras !
O que falta alli è ordem nos trabalhos, hábitos de
limpeza e asseio, systema económico e aos borrifos de
civilisação bem disposta.
Pois quel Gente costumada ao labor dos campos, ás
intempéries das estações, possuindo boas madeiras nos
seus pinhaps e soutos, pedra e barro quasi ao pé da
porta, nas horas vagas, uns oito dias cada mez, num
anno, dois ou três— não pode a pouco e pouco empre-
gar os seus filhos, as suas mulheres a conduzir, a pre-
parar o material para reconstruir um telhado, que
abate, ou uma parede, que se esboroa?
Pois umas pedras soltas, que caem do muro de um
quintal, não podem agora ou logo ser collocadas no seu
lugar, sem despendio de dinheiro, nem auxilio de pes-
soal estranho?
Pois uma figueira, um damasqueiro, uma pereira,
que secçaram ou envelheceram, não podem substituir-se
com pequeníssimo trabalho e sem gasto algum ?
Em alguns pontos, diz-se também:
— Esta casa pertence a quatro herdeiros; este quintal
a cinco; aquella parede divisória a três; e custa muito
pol-os de accordo.
E para que seguem tão insensato meio de partilhas?
Pois porque somos cinco herdeiros, temos uma nesga '
de terra que mede outros tantos metros, e havemos de
fazer cinco quinhões de metro cada um?
Não vêem que este detestável systema de dividir pro-
duz rivalidades, enfraquece a propriedade, estragando-
lhe o conjuncto, e diminuindo-lhe o valor?
Porque não hão-de os herdeiros de uma casa qual-
quer formar lotes, sem subdivisão, indemnisando-se uns
aos outros, ou trocando entre si, por meio de uma re-
cta avaliação ?
Não! não são as causas, que nos apontam, os entra-
ves á prosperidade d'aquella e de tantas localidades,
que definham pelo interior do paiz,
O que lhes falta è a influencia de boa administração
POMBHRO 113
publica, a acção benéfica de uma politica patriótica, que
raras vezes cbega ás aldéas de quatorze fogos ; o qoe
Ibes faltam são os benefícios, que se espalham pelos
grandes centros e soas visinhanças, onde se debatem os
interesses partidários ; o qoe lhes falta è a luz que di-
mana das escolas, os caminhos fáceis, os melhoramen-
tos de um proveitoso e sábio município, as estradas
districtaes, que facilitam a aproximação dos povos, a
concorrência aos mercados, onde os géneros de toda a
espécie se apresentam, creando incentivos, produzindo
e accumulando capitães ; o que falta finalmente a essa
pobre gente é o conhecimento dos seus deveres e obri-
gações, na vida civil, para se não deixar arrastar irra-
cional e inconscientemente, em dia de eleições, a uma
urna que vae auxiliar uma governação, que em nada
lhe presta, e de nada lhe serve.
IV
A instrucção concelhia. — A egreja. —As suas alfaias. —
Ponto final — Nota.
Já que falíamos em escolas, vejamos o qoe dizia uma
estatística de 1875, cujo extracto nos chegou ás mãos,
a mil e tantas léguas de distancia, datado de Lisboa,
em 26 de setembro do mesmo anno, extracto que ainda
agora encontrámos na nossa carteira, tanto ao vivo nos
tocou o seu contheudo.
Dizia assim:
IM MOTAS A LÁPIS
cNo concelho de Arganil, ha duas escolas do sexo fe-
minino ou uma escola para 18:972 bectometros qua-
drados, 2:400 fogos e 10:223 habitantes; e 11 escolas
do sexo masculino ou uma escola para 3:449 kilome-
tros quadrados, 436 fogos e 1:859 habitantes. No con-
celho de Góes, ha uma escola do sexo feminino para
28:872 hectometros quadrados, 2:988 fogos e 11:153
habitantes ; e cinco escolas do sexo masculino ou uma
escola para 5:774 bectometros quadrados, 597 fogos e
2:230 habitantes. No concelho de Pampilhosa, ha uma
escola do sexo feminino para 37:814 bectometros quadra-
dos, 2:240 fogos e 9:919 habitantes ; e seis escplas do
sexo masculino ou uma escola para 6:302 hectometros
quadrados, 373 fogos e 1:656 habitantes.!
Sem fatiarmos do numero lastimável das escolas de
rapazes, temos no concelho de Arganil — duas do sexo
feminino para a pequena cifra de 10:223 habitantes; no
de Góes, uma para a insignificância de 11:153; e no da
Pampilhosa outra para 9:919.
Uma estatística d'esta natureza é simplesmente...
uma vergonha, que, para credito do paiz, nunca devera
ter saído a publico, porque então não iria precorrer o
estrangeiro, onde de ba muito se sabe que três partes
da nossa população não sabem ler.
E para que precisa Pombeiro, com os seus 500 fo-
gos, de uma escola de raparigas, se lá não se toma um
banho de corpo inteiro, porque. . . faz mal; não se
cortam as unhas a uma creança de mama, porque... se
lhe retarda a falia; e se conserva o magnifico axioma
de que mulher lida é mulher perdida?
Sim. Para que precisa d'isso uma terra, onde o juiz,
que è a suprema autoridade da justiça local, se entre-
tém, em quanto passa o calor de um dia de verão, a
jogar as cartas com o escrivão, o official de justiça e as
partes, a uma garrafa de vinho, como ainda no anno
passado aconteceu, quando lá estávamos ?
Quem possue taes máximas e attríbutos e o mais que
rOMBBIBO iSB
fica dito, com um pedaço de estrada, qae de nada serve,
e foi feita por engano do decreto que a concebeu, por-
que a destinava ás Pombeiras e não a Pombeiro — de
pouco mais precisa para ser feliz, e reclamar breve-
mente a tanga dos Índios ou o tonel de Diógenes.
O' santa e sabia politica, bemdita sejas tu, que ha
quarenta annos dotaste aquella freguezia com... uma
ponte, a do Valle do Espinho, por intermédio de um
figurão, que por alli passou a sua mocidade ; e agora
a favoreceste com uma nesga de inútil estrada, por in-
tervenção de um ministro, que. . . se enganou!
— Mas. . . — pergnntar-nos-ha alguém de bom cora-
ção—essa pobre terra, entre os seus estudantes de
outr'ora, não creou homens illustrados, que tenham
compaixão de semelhante decadência?
Creou, e bastantes. Ainda boje, disseminados por va-
rias partes do paiz, se gloria e honra de contar por fi-
lhos... padres, advogados, médicos e outros persona-
gens, que occupam posições honrosas.
Esses, porém, cromos que em pouco lhe poderiam
valer, porque essas posições não avultam aos olhos da
politica, único movei de influencia creadora em nações
como a nossa, onde ella monopolisa as forças governa-
tivas, d'onde dimanam exclusivamente todos os melho-
ramentos públicos.
No meio d'essa plêiade brilhante de conterrâneos
nossos, sobresae porém um homem, em quem concor-
rem todos os predicados que faltam aos outros, pela
carreira a que se votou, carreira onde tem conquistado
altas posições sociaes e não menos elevadas funcções
do estado.
Todos o conhecem hoje como notabilidade e chefe de
uma parcialidade politica.
Gomo cavalheiro de um alto merecimento pessoal,
catbedratico distinctissimo da nossa universidade, ora-
dor dos mais notáveis, jurista entre os primeiros, vo-
tamos-lhe toda a nossa admiração; como politico, porém,
retirâmos-Ihe a nossa sympatia, não pela côr da soa
1*6 NOTAS A LÁPIS
bandeira, que dos é indifferente, como nol-o são as
outras que militam no paiz, mas sim e unicamente pelo
esquecimento a que tem votado aquellas terras, onde é
tão estimado e querido.
E ninguém nos diga que até boje os conterrâneos
d'este cavalheiro só lbe teem pedido a nomeação de um
escrivão, ou o livramento de um recruta; e que nisso
está a razão da nossa queixa.
Homem de idéas avançadas, elle bem sabe, sem que
ninguém lb'o diga, que a sua freguezia e as demais,
que lhe ficam visinbas, sejam pobres muito embora,
precisam de escolas, de caminhos fáceis, de estradas e
melhoramentos, que são boje o único movei, que en-
trava o derrancamento dos costumes, e levanta do aba-
timento, pela visita aos grandes centros, transito de
forasteiros, concorrência aos mercados e permuta do
commercio, artes e officios, as povoações desfavoreci*
das da fortuna.
Que o digam as pequenas ou grandes terras, que
possuem os requisitos, que apontámos, por mais en-
grato que seja o solo, por mais profunda que hajam
considerado a sua pobreza !
E que emporta ao homem de talento, investido dos
poderes de melhorar e crear, que um grupo de indiví-
duos ignorantes não comprebenda o próprio beneficio,
de que precisa ? Que vale que elles o peçam ? E como
bão-de ver a luz, se á volta d'elles tudo é sombra e
trevas?
Quantas idéas teem sido impugnadas, por mal com-
prebendidas? quantas medidas de utilidade publica, co-
mo por exemplo os cemitérios e o novo systema de pe-
sos, teem sido recebidas a marmeileiro pelas respecti-
vas localidades?
E que emporta isso aos intuitos benéficos e ao pa-
triotismo do verdadeiro estadista?
Onde mais poderosa se manifestar a influencia brutal
do cajado, mais prompta e rápida deve ser a creação da
escola.
POMBMRO IS7
* *
Reatemos porém o 6o descríptivo.
Os três valles, que cercam Porobeiro, constitoem a
soa primeira riqueza, pela fertilidade do solo, onde to-
da a espécie de vegetação se robustece, e ayigora de um
modo notável.
O primeiro começa no Paço, e desce ao lado da
egreja, até se encontrar com o segundo, que principia
á direita da Povoa, e termina na Azenha; o terceiro,
que è o principal e mais extenso, nasce no fundo do
Salgueiral, onde se chama Difroia, corrupção da sup-
posta denominação histórica de Aufragia, e sob vários
nomes, entre os quaes figuram os de Chão da Fonte
e da Estrada, encontrando-se ao extremo d'esta com o
do Idmeirinho, segue pela Azenha até ao Valle do Bis-
po; aqui termina n'uma garganta, por onde escorre a
ribeira, que o rega, e que vae desaguar no rio Alva.
Pela sua natureza e disposição, inclinâmos-nos a se-
guir a opinião dos que asseguram que foi a todo este
valle, como fica descripto, desde o rio ao Salgueiral,
que se chamou Aufragia.
A' sombra de um dos seus frondosos castanheiros,
foi que ouvimos a uma pastora estas conceituosas qua-
dras, no meio de outras, de que não podemos bem per-
ceber a letra:
Nãa ha machado que corte
a raiz ao pensamento;
não ha letrado que diga
onde tenho o meu intento.
Se todo o alho soubesse
quanto custa a sua mãe,
se pensasse sempre nisso,
não amava a mais ninguém.
Sio os restos esfarrapados da musa popular, que
está nos últimos paroxismos da agonia.
IW NOTAS A LATO
*
* *
Em face da antiga importância de Pombeiro, quando
vi II a, em rasão da sua posição e minas, que ainda ha
um quarto de século se viam espalhadas por aquelles
valles e collinas e por alguns objectos, encontrados em
varias escavações, temos, do mesmo modo por segura
a opinião de que elle, com as suas aldôas circumvisi»
nbas, formou uma só povoação.
As suas curiosidades mais notáveis, além dos Furados,
são três: a egreja parochial, sob a invocação de S. Sal-
vador, onde está o tumulo de Matbeus da Cunha, a ca-
pella de Nossa Senhora do Loureiro e a da Rainha Santa.
A primeira é um espaçoso templo de três naves»
pouco elegantes pela mesquinha altura do tecto, com
cinco arcos por banda, partindo os primeiros dos lados
da porta principal, apoiando-se os últimos na parede,
onde se forma o cruzeiro, e todos ao centro em quatro
columnas dóricas de granito, a uma das quaes se en-
costa o púlpito, da mesma pedra, tendo a forma de um
cálix, com a base cortada.
Encostada ás ultimas columnas, corre uma balaustra-
da de madeira, que tem de fora dois altares lateraes.
No da esquerda, formado por duas columnas compó-
sitas e rematado em cima por três cabeças de anjos no
meio de um sol, venera-se o Anjo Custodio, uma bella
esculptura de madeira, já quasi estragada pelos maus
tratos que lhe teem dado, por occasiio das procissões,
onde ella figura.
No da direita, mais acanhado e menos elegante, ape-
sar de se parecer com o anterior, está uma imagem, de
mérito egual ao do anjo, Nossa Senhora do Rosário, a
quem pertencem a dotação e maiores bens da egreja.
Transposta a balaustrada, temos dois altares aos la-
dos do cruzeiro, irmãos. na arcbitectura, revestidos de
columnas salomonieas, cujas espiraes acabam em arco,
e coalhadas em abundante relevo de aves do paraíso o
BOMBHBO 139
parras com fructos de uma execução inferior á do altar-
mór, de que são perfeita imitação.
O da direita tem como retábulo am painel antiquíssi-
mo, representando a Ceia, e serve ao Santíssimo.
O da esquerda tem por fundo ontro quadro, que se
não pode ver, por estar encoberto com uma macbineta
moderna, envidraçada, onde figura Nossa Senhora dos
Afilie tos, imagem de vestir, tamanho natural, pouco re-
commendavel pelos traços pbysionomicos, mas muito
querida do povo.
O altar-mór é a obra mais notável, entre todas; for-
mam-do quatro columnas compósitas e salomonicas por
banda, fechando egualmente em arcos, que servem de
baldaqoino ao sacrário, todas excellentemente ornamen-
tadas, em relevo, de anjos, aves do paraixo e parras
com fructos. A obra de talha prolonga-se em forma de
concha de modo a cobrir completamente o throno, mas
em nada se parece com os enfeites anteriores.
O sacrário, de um metro de altura, segue o mesmo
estylo e ornamentação salomonica, e apoia-se em qua-
tro colomninhas.
A falta dos dotes precisos para se estimarem todas
estas bellezas antigas e muito valiosas tem esmurrado,
no correr dos tempos, alguns dos preciosos ornatos da
talha, e umas tábuas supplementares para se vestir o
sacrário, o que nunca se deveria fazer, e para apoio de
castiçaes, desfeiam e prejudicam tão bello conjuncto.
Um painel movediço, destinado a tapar o desgracioso
throno, quando não houvesse exposição, representa a
transfiguração do Senhor, e está destinado a durar pou-
co, desde que se não faz uso delle.
Na sacristia encontra- se fora de nicho ou altar, o
orago S. Salvador, e, n'uma passagem escusa, maltra-
tado, esquecido e mutilado um sacrário gothico de ges-
so, uma jóia rendilhada e preciosa, que a ignorância
reduziu ao estado mais lastimável.
Ao lado do altar-mór, avulta o mais valioso padrão
bisjtorico de Pombeiro, o tumulo de Matheus da Cunha,
130 NOTAS A LÁPIS
servindo lastimavelmente para deposito de vasos, lan-
ternas e outros moveis.
A falta de uma irmandade intelligente e zelosa e de
um sacristão cuidadoso produz estes e outros effeitos
de desorganisação e absoluta carência de ordem, con-
servação, asseio e limpeza.
Às alfaias, que datam do século xvi, são ainda uma
prova da influencia dos Gunbas e objectos dignos de nota
especial, pelo seu valor intrínseco, estimativo e artístico.
Mandadas á Exposição de Arte Ornamental, de Lis-
boa, foram muito admiradas, e constam do respectivo
catalogo, que as classificou assim:
Naveta de prata em forma de galeão — comprimento
17 centímetros.
Corda de prata — altura 6 e diâmetro 9 cent.
Custodia de prata dourada — altura 49 cent. O reli-
cário e a baste teem ornatos da renascença, mas de ca-
da lado do primeiro um botaréu com coruchéus gotbi-
cos e um tintinabulo pendente.
Cálix de prata dourada — altura 26 cent. A base é
distribuída em gomos, e ornada de troncos, ramos e fo-
lhagens em relevo. A um lado tem um escudo com as
armas dos Âlbuquerques e dos Cunhas. Em baixo lê-se:
Este cales mãdov fazer lanalvares da Cvnha pêra a
igreja de Sã Salvador. O nó compõe-se de dois corpos
de arcarias gothicas com coruchéus. A copa é coberta
de rendilhado em alto relevo, folhagens e carrancas, de
cada uma das quaes pende um tintinabulo.
Cruz procissional de prata — altura lm,H. A baseé
formada por dois corpos hexagonos, com seis nichos
cada um, separados por pilastras, das quaes no corpo
inferior pendem seis tintinabulos. A haste e os braços
são ornados de arabescos e de cabeças de seraphins nas
extremidades.
Thuribulo de prata — altura 31 cent. Sobre uma base
hexagona, ornada de folhagens e carrancas, guarnecida
em cima de rendilhados, eleva-se um corpo também he-
xágono, formado de arcadas gothicas separadas por gi-
pombiibo 131
gantes, encimados de coruchéus, e guarnecido de ren-
dilhado. Sobre este corpo ergue-se outro em tudo se-
melhante, porém de menores dimensões, rematado por
uma pyramide hexagona. No rebordo da base lê-se o
seguinte: Este trõ tnàdov f. Ianalvares da Cvnha pêra
a igreja de Sã Salvador.
Esta magnifica alfaia, que está a pedir prompta e fiel
restauração, por se achar mordida pelo fogo, mereceu
as honras do desenho, concedidas somente ao que de
mais raro e precioso concorreu á exposição.
Está a pag. 78 das illustrações do volumoso catalogo.
Além de tudo, a egreja parocbial de Pombeiro é res-
peitável pela sua vetustez, que deve orçar por mais de
cinco séculos, época do senhorio de Matheus da Cunha,
pois diz-se construída ahi por 1325, segundo o risco e
direcção do seu amigo e contemporâneo o capitão-mór
Pedro Nunes da Silva. Até aos princípios (Teste século
ainda os parochos, á hora da missa, pediam um pater
noster pelo fundador, o capitão-mór de Pombeiro.
A sua sepultura, como outras muitas espalhadas pelo
corpo do templo, não foi respeitada pela indifferença
ignorante dos successivos reformadores.
. Sabe-se apenas que a pedra, que a cobriu, é a que
se encontra, gasta pelos pés dos devotos, á entrada da
porta principal, pelo lado interior.
O vandalismo, que deixou cair a pedaços o edifício
feudal do Paço, cujos capiteis rendilhados serviram para
calçar as panellas á lareira de umas poucas de gerações,
não podia ficar sem uma successão, digna d'estes feitos,
tão communs entra portuguezes.
#
# #
A capella da Senhora do Loureiro, onde havia festi-
vidade annual, que já caiu em desuso, torna- se recom-
mendavel pela sua posição e pelo cippo romano, de que
já tratámos.
132 NOTAS A LÁPIS
À da Rainha Santa, coberta de azulejos embricados
é orna construção octogona, a mais elegante e formosa,
que ba por aquelles sítios.
E' duvidosa a época da sua fundação, devida ao có-
nego Thomé Nunes Rodrigues Freire, sepultado á en-
trada em campa coberta de pedra, onde nada se pode
ler, por terem alli amassado cal, em occasião de re-
paros!
Este cónego era descendente do nobre solar dos Frei-
res de Andrade, estabelecido em Bobadella de Traz-os-
Montes, comarca de Gbaves, familia, que è representada
ainda boje, na Galliza, pelo marquez de Sória.
A graciosa capella está collocada a uns quinhentos
passos da Povoa, n'um sitio elevado de uma belleza im-
pressionavel, pelos toques de suavíssima melancolia,
que com tanta propriedade se espalham no variado pa-
norama, que de lá se disfructa.
O' sitio encantador, tão propicio á meditação, Deus
sabe quantas almas sertanejas, rescendendo á madre-
silva dos ribeiros e ao acre perfume das estevas, não
teem sonhado em teu seio com a magnólia das salas e
com as delicias, enganadoras embora, de uma vida de
grandezas I
E quantas, cegos os olhos do entendimento, não teem
passado por ti, sem te comprebenderem! Oh! quantas!
Dentro d'esta notável e formosa relíquia celebrava-se
ainda no tempo da nossa juventude uma poética roma-
ria, muito cheia de alegrias e perfumes de rosmaninho,
a 4 de julho; porém a gafeira decadente, que ba tanto
ameaça Pombeiro pelos alicerces, deu também cabo
d'ella.
Pobre terra de Matbeus da Gunba, quanto és digna
de commiseração !
Pobre mãe, como te lastimámos do fundo da nossa
alma!
POMBKIRO 133
NOTA
Apezar nosso, temos de abrir aqui ama nota, que seria um
ajuste de contas, se se não tratasse de um morto, de quem temos
a registrar ama deslealdade litteraria.
Os homens illastres, como eile foi, pertencem á historia do
seu paiz, e os seus nomes portanto não podem eximir-se ás res-
ponsabilidades que representam, á anaiyse de contemporâneos
e vindouros.
Usámos pois de um direito sagrado, e não temos a mais leve
intenção de melindrar cinzas respeitáveis, ainda quentes.
Quando elaborámos os apontamentos, que ahi ficam, e dizem
respeito a Pombeiro, procurámos servir-nos da maior fidelidade,
sem minudencias fastidiosas, delineando não um quadro com-
pleto, mas o maior e mais fiel que ativhoje se tem feito, como
simples homenagem á terra da nossa naturalidade.
Um amigo nosso, o corajoso editor do Portugal Antigo e Mo-
derno, vendo que notávamos incorrecções, lacunas e acrescenta-
mentos, que haviam escapado ao sr. Pinho Leal, lembrou que
este paciente e benemérito escriptor estimaria ler os nossos ar-
tigos, publicados com outros, sob o titulo Nota* a Lápis, no pe-
riódico Atlântico, em 1881.
Em fins d'este anno, enviarara-se-lhe pois os quatro números,
que diziam respeito a Pombeiro.
Em 30 de janeiro de 82, escrevia-nos o sr. Pinho Leal uma
carta um tanto azeda, querendo obrigar-nos a uma rectificação,
por termos observado que elle continuasse a chamar villa a uma
aldôa reles, fazendo a comarca e concelho; o que se dá, quanto
a esta ultima classificação, em virtude de um erro de redacção,
como adiante se pode ver.
Apezar de toda a aspereza das suas letras, o nosso illustre
contendor affirmava que lhe dávamos de Pombeiro valiosas in-
formações, que aproveitaria para a segunda edição do seu diccio-
nario!
A' sua carta respondemos:
134 MOTAS A LÁPIS
«Não se enganou V. Ex.*, quando suppoz ser eu o mandatário
dos quatro números do Atlântico, que motivaram a honra da sua
carta, a que vou responder, como me cumpre.
«Não foi por vaidade, nem espirito de censura que tomei essa
resolução, e sim pelo resultado de uma conversa com o nosso
Mattos Moreira, ao dizer-me este amigo que V. Ex.a muito dese-
java, como é natural, estar ao facto do que se escrevesse sobre
qualquer das localidades do nosso paiz.
«Além da muita consideração, que tenho pelo nome de V. Ex.*,
não houve outro motivo, para a remessa dos jornaes.
«Entremos porém no assumpto da carta.
«Começa V. Ex.a por notar, entre parenthesis com um ponto
de admiração e quatro reticencias, que eu chame Douro á parte
comprehendida na localidade, sobre que escrevi.
«V. Ex.* sabe muito bem que o concelho de Arganil e outros
da Beira Baixa, pela actual divisão provincial, boa ou má, estão
encorporados ao Douro. Não atino pois com a razão d'aquella
admiração e das suas respectivas reticencias.
«Em seguida exclama que eu ou não li o diccionario ou curei
por informações, afirmando que V. Ex.a chama a Pombeiro con-
celho e comarca, e d'ahi tira a conclusão humorística de que lhe
levantei um falso testemunho.
«Nem uma cousa nem outra.
«A redacção e só a redacção da parte, que se lé a pag. 146 do
seu livro, é a causadora da minha affirmação.
«E se não, vejamos:
«Diz V. Ex.* — Pombriro-villa, Douro, (ora graças, que tam-
bém lhe chama Douro !) comarca, concelho e 3 kilometros a O.
de Arganil.
«Ora commigo pensará muita gente que aquelle lugar d'onde
não pôde passar por cima dos kilometros, uma circunstancia,
para chegar a concelho e comarca, attributos, salvo melhor juí-
zo, do verbo oceulto, apezar da conjuncção ligativa, que alli está
deslocada e por isso contraproducente.
«É evidente pois que essa redacção prejudicou a intenção, que,
como bem diz, se manifesta na linha 15.*, e é culpada única da
minha afirmativa.
«Quanto ao título de villa, ha-de permittirme que eu continue
a discordar da autorisada opinião de V. Ex.*, que tenho em muito
respeito, apezar das valiosas rasões, que me apresenta, sendo as
principaes — o foral de D. Manuel, concedido em 1513, a palavra
oficial de Bittencourt e a classificação de vários geographos.
«A muitas villas sabe muito bem Y. Ex.* que a legislação civil
e judiciaria concede attributos, que as distinguem das popula-
ções, que não gosam d*esse titulo; e Pombeiro, sujeito ás justi-
ças de Arganil, nada possue além do juizo ordinário, como cabe-
ça da freguezia do seu nome.
POMBBBO 135
«Além disso, embora o foral manuelino nio tenba sido até
hoje derogado, todos os papeis officiaes, que datam de muitos
annos, os que lhe teem vindo de dentro e fora do districto, lhe
ebamam lugar ou freguezia de Pombeiro, e nada mais.
«Nos tempos modernos, nenhum poder ou autoridade se lbe
tem dirigido por outra forma.
«Se o uso em muitos casos faz lei, ainda fora da lei, o que di-
remos quando os documentos successivos de muitas leis estabe-
lecem esse uso?
•Por estas razões, pela extrema decadência de Pombeiro, um
lugarejo, sem importância de notar, onde existem apenas duas
casas, que não ameaçam próximo desmoronamento, continuo
a affirmar, como nas minhas Nota* a Lápis, que ninguém dei-
xará de encarar como irrisória a conservação do seu titulo no-
biliario de villa, qne o mesmo seria chamar ao cadáver ente
vivo.
«V. Ex.a, estou certo, se por là desse um passeio, einquerisse
com minuciosidade do que levo dito, seria o primeiro a rir-se,
apezar de todos os foraes, que os documentos officiaes modernos
de administração e legislação teem feito caducar, embora falte
uma derogaçào formal.
«O diccionario de V. Ex.\ esse pasmoso trabalho de uma pa-
ciência inimitável, obra a que tem dedicado todos os seus conhe-
cimentos e os annos de uma existência inteira, apraz-me dizel-o,
como mero e simples amador de letras, é um verdadeiro monu-
mento nacional, que jà hoje pertence ao futuro, que o ha-de co-
brir de bênçãos e louvores.
«Tamanha porém é a sua e.«phera, tão vasta e tão profunda
que necessariamente ha de peccar aqui ou acolá, por uma lacuna,
uma inexactidão, devidas muitas vezes a informações falsas e a
não menos falsos documentos.
«Especialisemos alguma cousa, que diz respeito ao meu Pom-
beiro, e d'isto me ha-de desculpar V. Ex.«
• Como lacunas, temos o que digo da influencia dos Cunhas,
única que lá houve, pois os condes nem sequer por alli passeia-
ram, que eu saiba; a egreja, as armas do pelourinho, o tumulo
de Malheus da Cunha e a capella da Rainha Santa, a mais for-
mosa construcção da freguezia.
«.Como contradicções, tudo, absolutamente tudo o que se diz do
Pombeiro beirão e do Pombeiro minhoto, desde os princípios da
colonisação até á época moderna.
Como inexactidões, a distancia de 3 kiloroetros de Arganil,
quando é aproximadamente de oito; a existência dos Furados,
como minas de exploração de chumbo, quando a simples vista
está mostrando que serviram para desvio de parte das aguas do
Alva, destinadas a um motor qualquer, que ainda hoje poderia
ser excellentemente aproveitado para uma fabrica importante,
136
NOTAS A LÁPIS
se não fossemos a gente que somosj e a coilocaçio da egreja de
S. Pedro, ama beilissima construcçao cuthica, onde tantas vezes
entrei, em creança, como estudante de latim em Arganil, e ha
um anno como viajante, que mata saudades, coilocaçio posta
por Y. Ex.a entre Arganil e Pombeiro, quando a capella está si-
tuada entre Arganil e Sarzedo, como demonstra a seguinte fi-
gura :
DC 8. KOKO
[<*5t
«Alem d'isto, ha ainda a notar as numerosas montanhas,
que são quasi no todo troncos da serra da Estrella, e formam
um verdadeiro capricho da natureza pelas linhas e ramificações,
que descrevem, maiores elevações que as do Vallc do Pisoo e a
serra da Avelleira, mencionadas por V. Ex.a, sendo a mais alta a
Serra do Salgueiral, que começa n'um lugarejo chamado Chapi*
nheira, e vae d'aqui communicando com outras ató ao rio Alva
e caminhos de Arganil.
«Terminando por aqui, resta-me dizer que da melhor vontade
annúo á rectificação, lembrada por V. Ex.a, julgando para isso
melhor a publicação da parte essencial da carta de V. Ex.a e a
minha resposta, para o que lhe peco a necessária autorisação,
apezar do ataque humorístico^ que ficará publicamente pesando
sobre a minha pessoa. »
Collocado em mau terreno, o sr. Pinho Leal não annuiu á vul-
Íjarisação da nossa polemica particular — motivo por que n'este
ugar não estampamos as suas cartas — mas... desafogou o
seu despeito bem manifesto, aproveitando a parte das nossas
informações, não contestadas por elle, no fasciculo 471 do
seu diccionario, pag. 42 e seguinte, deturpando-as disfarça-
damente, para não citar, como costumava, a fonte, que Ih as
forneceu.
O desejo muito louvável de corrigir e acertar sempre, como
escriptor paciente e bom investigador, não o livrou, como ho-
mem, de significar um pequeno e dezarrasoado despeito, comet-
tendo uma deslealdade litteraria.
MO PORTO §37
NO PORTO
A ponte Maria Pia.— 0 monumento dos artistas. —
Os meroados. — A cordoaria
• a torre dos Clérigos. — Praças de D. Pedro e da Batalha. —
O Palaoio de Cristal.
Quem viaja, na sua terra muito embora, com a in-
tenção de contar o que vê, descendo ás minuciosidades
de um cbronista escrupuloso, tem de fazer uma larga
provisão de apontamentos, repetir exames, consultar
autores, e gastar um tempo de que nâo podíamos dis-
por nas nossas despretenciosas digressões.
O que temos contado pois não representa mais do
que o singelo transumpto d* nossas impressões, avi-
vadas aqui e acolá pela simplicidade das nossas notas,
filhas de um rápido e incompleto exame, exercido so-
bre as cousas, que mais nos prenderam a attenção.
Insistimos n'este ponto para que ninguém se lembre
de exigir-nos aquillo, que absolutamente não podemos
dar.
Não foi sem uma certa commoção de instinctiva ale-
gria que ouvimos annunciar a estação de Villa Nova de
Gaya, na manhã de 31 de agosto de 1880.
Depois de, n'um rápido pensamento, prestarmos culto
138 NOTAS A LÁPIS
de respeitosa veneração ao lugar» onde a nossa histo-
ria colloca a origem do nomo portuguez, aquelle Porto,
de caUe, de que a moderna Gaya, herdeira das antigas
tradições, se orgulha tanto — a nossa attenção voltou-se
toda para a direcção do comboio, prestes a atravessar
a nova ponte, esse arrojado monumento do progres-
so, com que iamos travar conhecimento, essa soberba
coostrucção metálica, que se estende na distancia de
352 metros, em taboleiro apoiado nas montanhas mar-
ginaes do rio Douro e sobre um só arco de uma altura
enorme.
Ha gente que ainda hoje calada e sorrateiramente
abandona o comboio n'aquella estação, e segue mais
adiante pela ladeira abaixo até á ponte pênsil, que atra-
vessa a pé ou de carruagem, tal è o receio, que lhe ins-
pira a grandiosa innovação.
Outros ha que se aventuram ao que suppõem em-
presa temerária, mas, ao sentirem-se impellidos por so-
bre o abysmo, cuja lembrança lhes faz cerrar o coração,
fecham egualmente os olhos, como que se isto lhes va-
lesse, em quanto dura a travessia.
N'este numero entram algumas das pessoas, especial-
mente as damas, que n'esse dia nos faziam companhia.
A animada conversação, em que vínhamos entretidos,
cessou im mediatamente á entrada da ponte, e não sabe-
mos se alguém mais mudou de côr, além de um cava-
lheiro, que nos ficava fronteiro, e que, convidado por
nós para tomar um lugapao postigo, não conseguiu mo-
ver-se d'onde estava.
—Não sei o que é— dizia-nos elle depois, com o seu
rosto franco e bonacheirão— não sei... mas sente-se
quasi uma vertigem, ao lembrar-se a gente que vae a
voar, e que lhe podem quebrar as azas.
— E diz bem — acrescentou outro.— Nem mesmo a
duração d'aquillo pôde ser longa.
. Não conseguimos suffocar uma exclamação.
—Sim senhor — continuou. — Disse-m'o um enge-
nheiro, meu amigo.
NO PORTO 139
— E em qae se Arada o seu amigo para. . .
— Assevera elle que a conservação do ferro, empre-
gado na ponte, depende das successivas pinturas, que
se lhe applicam. Ora, sendo ôccos os vigamentos e sup-
portes, e não podendo por isso receber a tinta no inte-
rior, a ferrugem il-os-ha corroendo lentamente; de modo
que, dentro de uns sessenta annos, será um gravíssimo
risco passar alli.
Dias depois ouvimos segunda opinião idêntica, que
podia ser um ecco da primeira.
De curta ou longa duração, conforme o juizo dos en-
tendedores, ou simplesmente dos que fingem sel-o, esse
arrojo de engenharia moderna, que a. certa distancia nos
parece simples brinquedo de creanças pela delicadeza
elegante das suas formas, representa uma época de no-
tável florescência, para a laboriosa capital do Douro,
tamanhos são os interesses de industria e commercio,
que se vêem ligados a semelhante melhoramento.
Que as suas quasi prodigiosas condições de altura e
apoio são excepcionalmente admiráveis, è uma cousa
innegavel, mas que d?abi resultem defeitos para a sua
durabilidade é o que não temos por averiguado.
Á hora do costume parávamos na estação de Campa-
nhã, futuro centro de outros ramos de communicação
accelerada, e por isso de pequenas dimensões.
Á pratica e amabilidade de dois amigos, que alli nos
aguardavam, devemos o não ficarmos esmagado á saída
n'aquella desordem de trens de praça, char-à-bancs,
americanos, carros de hotel e outros, que costumam tão
impropriamente estabelecer-se junto ás portas da esta-
ção, n'um local já de si acanhado, á chegada dos com-
boios.
Ninguém respeita distancias, nem posições de terreno,
de modo que o individuo, que não possa ou não queira
140 MOTAS A LAPI8
servir-se de semelhantes conducções, vé-se seriamente
embaraçado para, de mala na mio» ganhar o principio
da rua.
Tudo aquillo porém, mesmo desordenado como ê,
representa movimento e vida.
Dizia-nos um dia um amigo:— Se quizeres rapida-
mente fazer o joizo de orna cidade, visita-lbe os merca-
dos, e observa-Ihe a imprensa, porque todos os progres-
sos sociaes se affirmam pelo pio do corpo e do espi-
rito.
É uma verdade incontestável e sem variantes. Temol-a
experimentado tio bastas vezes, que já para nós tomou
os foros de máxima.
Que a imprensa portuense era excedente e que se
orgulha de possuir o primeiro jornal do paiz, 6abiamos
nós, como conhecíamos a importância dos productos do-
mésticos e agrícolas da localidade.
Estes porém nio nos haviam chegado ás mios, com
a facilidade e abundância dos do género litterarío.
Começámos portanto pelo mercado do Bulkào, edifi-
cado em 1850, na praça do mesmo nome. É um espa-
çoso e asseiado quadrilongo, guarnecido de divisões de
pedra e azulejo, viradas para o interior e cobertas de
zinco, servindo na maior parte para a venda de louças
inferiores, objectos de adelos, fructas e hortaliças.
Seguindo para a rua, que lhe Oca ao norte, a de Fer-
nandes Thomaz, o patriota de 1820, deparámos com o
singelo monumento, erigido em 1862 pelos artistas á
memoria de D. Pedro V, em agradecimento da sua ani-
madora visita ás fabricas de fundiçio e estamparia.
Compõe-se de uma columna, coroada por uma es-
treita e assente em pedestal de dois degraus, fechados
por gradeamento de ferro.
O seu principal merecimento está na intenção dos ar-
tistas e em ser a columna inteira, incluindo a base e o
capitel, um monolitho, que da pequena distancia de dois
kilometros levou 14 dias a ser conduzido por quarenta
homens e vinte juntas de bois.
NO PORTO iki
Na face principal, lôem-se estes versos, t5o pobres
di letra, como ricos de verdade e sentimento :
Ao rei D. Pedro Quinto— memorando—
Da Industria e Aries protector sabido,
Que as vaidades do sólio descurando,
Teve um throno d'amor na pátria erguido ;
Que as fabricas em frente visitando
Da— estampa e fundição— salvou do olvido. ..
Artistas, a quem deu favor e atento,
Consagram este humilde monumento.
Em seguida, encaminbámos-nos para o mercado do
Anjo, menos regular e asseiado, mas muito mais con-
corrido do que o presente, lugar, onde antigamente se
chamou o Campo do Olival e onde em 1672 se fundou
o recolhimento de orphSs do Anjo da Guarda, demolido
em 1834.
Tem um chafariz ao centro e muito pequeno espaço
para a affluencia diária dos frequentadores.
Junto da Cordoaria, onde está este mercado, encon-
trasse o do peixe, inaugurado em 1874, no sitio dos
celleiros públicos de velha data. É um edifício commo-
do, elegante, solido e mesmo pomposo, em quatro pa-
vimentos, bem ornados de portados e janellas, colu-
mnatas e terraços, que deitam para a rua Occidental do
Jardim.
Apezar da hora adiantada, notava-se ainda, um gran-
de abastecimento dos géneros de primeira necessidade
e uma correspondente animação entre os frequentado-
res, que pela diversidade de trajes e maneiras apresen-
tavam aos olhos do curioso os typos característicos da
gente da cidade e suas visinbanças, desde a vendedeira
de largas ramagens no lenço, cujas pontas vão á copa
do chapéu, até á criada de avental rufado em pregas e
lenço caido nos bombros* em ar de chaile, com um
dó sobre o peito; desde a peixeira de Valladares, Grés*
tuma ou Avintes, com o seu chapéu redondo e de alto
bordo, o lenço garrido, cruzado sobre o peito, mangas
445 MOTAS A LÁPIS
arregaçadas e saia de grande roda, até á mulher da
Maia ou de S. Cosme, com as orelhas e o pescoço a
regorgitarem de arrecadas em arco, grossos e pesados
trancelins, corações desmedidos, tudo de oiro rendado e
finíssimo, e o cabello muito bem caído sobre os hom
bros.
Havia por alli tal profusão de rostos frescos e bonitos,
olhos pretos e rasgados, no meio de todo aquelle mu-
lherio, que um lisboeta bairrista, costumado só e unica-
mente a ver entre o povo a belleza, já hoje rara, da
varina, que brilha ao lado da suja e desgraciosa saloia,
como astro sem satélites— ficaria necessariamente des-,
peitado.
De caminho entrámos no jardim da Cordoaria, um
local sem horisontes pelos edifícios que o cercam, mas
incontestavelmente o primeiro passeio central, Está bem
cuidado, tem um gracioso lago, bons assentos, agua em
abundância; é espaçoso e muito azado para as palestras
da tarde, em tempo de verão, quando se não queira ir
mais longe.
Depois de descançarmos um pouco, retrocedemos
para o jantar.
Este sitio fazia parte do já dito Campo das Oliveiras,
substituídas em 1611 por outras arvores, de que só res-
ta um corpulento negrilho, ou ulmus sylvestre, cercado
por assentos de granito, velho patriarcha de outras eras,
salvo por acaso da vandalica derrocada do cerco do Por-
to, que reduziu tudo a lenha.
O moderno arvoredo e o jardim datam pois de 1862,
quando a camará municipal tirou d'alli os cordoeiros
que lhe deram o nome*
Aqui temos, a poucos passos, a torre dos Clérigos,
uma das melhores da Europa e a mais alta do paiz,
com os seus 75 metros e oito campanários, cheios de
bons sinos, guia dos navegantes» construída n'uma la*
MO *OBTO 143
deira, ao cimo da rua do mesmo nome, em 1763, quin-
ze annos depois de começada, pelo architeclo italiano
Nicolao Maroni.
Pela sua capacidade, lavores e contornos, é um mo-
numento precioso, que contrasta com a simplicidade da
egreja, de que está separada, onde só notaremos a tri-
buna de hello mármore e alguns paramentos.
Desçamos lentamente a calçada dos Clérigos; encon-
traremos de ambos os lados bons estabelecimentos com-,
merciaes, que se ramificam nas ruas transversaes e na
praça de D. Pedro.
Este local, onde havia umas hortas no tempo de D.
João 1, chamado mais tarde praça Nova, antes da actual
denominação, é, por assim dizer, um valle entre immi-
nencias, um repouso para quem alli desemboca, venha
d'onde vier.
Tem de notável a estatua do Porto sobre a cornija
do paço da municipalidade, cujo archivo, seja dito de
passagem, é riquíssimo, e a estatua equestre de D. Pe-
dro IV, levantada, a meio da praça, de 1862 a 1865
pelo distincto esculptor Calmells, a quem se devem os
baixos relevos, abertos em mármore de Carrara. Mede
o monumento dez metros de altura, e a estatua é de
bronze, fundido por uma companhia belga.
Tomemos o fôlego, e subamos pela rua de Santo An-
tónio, o Chiado portuense, pelo esplendor dos seus ar-
mazéns, onde ha a melhor disposição, muita variedade
e luxo. Desde o cristal fino atè á seda lavrada, desde a
jóia atè ao chapéu e á luva, encontraremos bom sorti-
mento.
No topo entrámos na roa de Santa Catharina, talvez
a maior do Porto, com os seus oitocentos e tantos nú-
meros, e tomámos á direita para chegarmos á praça da
Batalha.
Demoremos-nos um pouco a examinar a estatua pe-
destre do malogrado rei D. Pedro V, o convicto e fir-
me liberal, a quem a cidade d'este nome ergueu uma me-
moria, pequena de mais para ennobrecer o homem, mas
141 NOTA* A LÁPIS
significativa, o quanto basta, para lhe attestar a alta ve-
neração de um povo, a quem o amor da pátria concede
inimitáveis privilégios.
A estatna de bronze, que data egaalmente de 4862,
é de um mérito inferior; eleva-se em meio do arvoredo
da praça, n'uma altura de dez metros, sobre pedestal
de mármore, assente em base octogona, cercada de gra-
deamento de ferro, onde ha medalhões com as legendas
dos principaes subscriptores. Nos quatro ângulos de
frente figuram as armas de Portugal, da casa de Bra-
gança, do Porto e de Saxe-Coburgo-Gotha, e nas faces
altos relevos, symbolisando as artes, a religião, agricul-
tura e industria. Além de outros, leem-se no monu-
mento as datas das diflerentes visitas do benemérito
monarcha á cidade invicta.
Aqui vemos também o theatro de S. João, erguido
no tempo de D. Maria I, em 1798, o qual, apezar da
simplicidade da sua architectura, onde apenas se dis-
tinguem as armas portuguezas bem escolpturadas, tem
um lugar distincto entre as melhores edificações. Elle e
a estatua formam um contraste notável com o nome
da praça, pois que ambos representam batalhas sim-
plesmente pacificas, e altamente civilisadoras — as da
arte, que tinha um formoso culto na alma adorável do
desditoso príncipe e uma decidida preferencia nos gos-
tos do desembargador Francisco de Almeida e Mendon-
ça, iniciador d'aquelle bello edifício, em cujo tecto, por
meio da pintura, se presta homenagem aos talentos
dramáticos e litterarios de Camões, Gil Vicente, Ba-
ptista Gomes e Garrett.
Regressámos ao hotel de Bntre-Paredes, onde, como
nos demais, desde o sul ao norte, salva alguma villa
ou povoação insignificante, notámos com tristeza o es-
tar <juasi inteiramente banida a tradicional e succuleata
cosinha portugueza.
Nem admira isto, desde que a mania estrangeiro-
phobica invadiu as próprias casas de educação, onde o
estudo da língua nacional é desdenhado a par dos idio-
NO PORTO 145
mas europeus mais em voga; vae atravessando as in-
dustrias e chegando aos costumes.
Producto fabril, que tenha marca importada de fora,
entra sem dificuldade no consumo diário; a roupa, que
vestimos, obedece a uns nomes arrevesados, em feitio
e qualidade, segundo o catalogo das fabricas alheias;
só ha boas camas á franceza, cadeiras á austríaca, mo-
veis á ingleza; e assim tudo o mais, que tem colação
nos círculos da moda, uma cousa pantafaçuda, que os
próprios estrangeiros, que nol-a dão, não querem para
seu uso.
E' que a galinha do nosso visinho, embora magra e
depenada, é sempre melhor do que a nossa — lá diz o
povo miúdo, o que não entra no mundo patarata, o
guarda inquebrantável de alguma cousa boa, que ainda
possuem os nossos costumes.
*
* *
De tarde transportamos-nos em americano, vehiculo
para que os annaes da nomenclatura pátria não acha-
ram também uma palavra adequada, um óptimo serviço
que nada Gca a dever aos mais bem organisados, e di-
rigimos-nos ao Palácio de Cristal.
Para os que conhecem o génio dos nossos capitalis-
tas, para quem ainda, ha annos, o único lugar seguro
do seu erário era a perna de meia, escondida na taboa
movei dt> soalho, ou a panella de barro, enterrada ao
canto da lareira, e que ainda hoje não aventuram di-
nheiro senão em emprezas, onde o lucro tenha uma
probabilidade de oitenta e cinco contra cem— será uma
cousa estranha que, de 1861 a 1865, se transformasse
aquelle sitio do que era então para o que se nos mos-
tra agora.
O edifício, desenhado pelo architecto inglez Sheidls,
occupa uma superfície de 7957 metros quadrados; cons-
ta de um corpo central, que se prolonga em todo o
10
446 NOTAS A LÁPIS
comprimento, e pode conter dez mil pessoas, e de dois
lateraes, terminados por quatro pavilhões quadrados. As
três naves são destinadas ás exposições constantes ou
periódicas, e o grande numero de salas e o pavimento
térreo a theatro, bilhar, gabinetes de leitura, e descan-
ço, galeria de quadros, refeitórios, cosinhas e arreca-
dações.
E flcâmos-nos por aqui, porque não ha quem Mo co-
nheça, de vista, por desenho ou descripção, o palácio,
onde se organisou a maior das nossas exposições.
Quando entrámos no salão do theatro Gil Vicente,
procedia-se a um leilão de prendas» a favor da socie-
dade humanitária dos bombeiros.
A concorrência era medíocre; os objectos expostos
numerosos e excellentes, sobresaindo entre elles valio-
sos trabalhos manuaes do bel lo sexo em cerâmica, ta-
peçarias e bordados.
Nos primeiros avultava, como mais notável, um ser-
viço completo de jantar, cuja execução era primorosa,
especialmente nas fructas e nos assados.
A visita ao restauram e ás duas naves lateraes, onde
a preço fixo ha mercadorias de todo o género, em ex-
tensos bazares, deixou-nos boa impressão, e fez-nos de-
sejar que, por influencia particular ou governamental—
aquelle centro de verdadeiro progresso e utilidade pu-
blica chegasse a adquirir a prosperidade, de que é me-
recedor.
O que ninguém, que o não tenha visto, pôde conce-
ber porém, è a belleza do local e os accessorios, que o
guarnecem á custa de muitos capitães, de que sabemos
não haver lucro para os respectivos accionistas, seja dito
em honra sua.
Não estaria o Porto, muito aferrado, como sempre foi,
aos seus hábitos de pachorra caseira, preparado ainda
para receber e apreciar, como devia, aquelle notável
melhoramento, d'onde se di^fructa um quadro extraor-
dinariamente bello, por poético e risonho?
Não estava. Tem-n'o demonstrado os esforços e sa-
MO PORTO 147
crificios de uma dúzia de pessoas, para attrair a con-
corrência, improvisando festas, estabelecendo bazares,
organisando concertos, promovendo vários certamens
artísticos e agrícolas, fomentando toda a espécie de in-
centivo para conservar e melhorar.
A sua grande avenida, a matta, as grutas e os jar-
dins, suspensos, como por encanto, sobre um monte de
granito, cortado a prumo, a olharem para o Douro, on-
de se reflectem os extensos e formosos panoramas da
outra banda, povoações rústicas, arvoredos sem conta,
oiteiros coroados de verdura, o Gandal, Gaya, a histó-
rica e memorável serra do Pilar— o que nos parece for-
mar uma segunda cidade separada pelo rio e posta em
communhão de hábitos pelas suas duas pontes, á es-
querda — e todo aquelle estendal de bellezas, desde a
serra da Arrábida atè aos areaes de Cabedello— são cou-
sas, que nos namoram, que nos prendem, que nos se-
duzem.
Esperemos a hora do pôr do sol, sigamos pela ave-
nida, paremos um pouco defronte da capei la do desdi-
toso rei da Sardenha, Carlos Alberto, edificada no local
onde foi a Torre da Marca, pela dedicação de sua irmã,
Augusta de Montlear, ao gosto e desenho italianos. Con-
templemos, se estiver aberta, a bella e correcta imagem
de mármore, que retrata S. Carlos Borromeu, e teve a
mesma procedência e, se o não estiver, toda aquella
formosa e leve construcção de bom granito; consagre-
mos um pensamento de respeito á memoria do illustre
exilado, e prosigamos atè ao lugar alcantilado, em cujo
cimo ha bancos, que nos offerecem toda a commodidade.
Sentemos-nos, e estendamos a vista para a frente.
Accendem-se as luzes na cidade; e por cima das
aguas, da casaria e dos montes, espalha-se, em ondu-
lações tépidas, a luz palpitante de um formoso luar.
Obi quadro magico de um effeito indescriptivel i
quem poderá contemplar-te uma vez que não sinta aba-
lados todos os recessos da alma, e não traga comsigo
uma recordação indelével das tuas tintas divinas?
148 NOTAS A LÁPIS
O' espíritos sonhadores, corações ideaes, se alli
áquella hora, não sentirdes as suaves emanações de mi*
lbares de philtros, que vos embriaguem, è que tendes
vasias as artérias do sentimento, e estaes prestes a cair
na sepultura, que vos cava a morte moral i
II
0 Atheneu Portuense. — A bibliotheca.
Um suicídio frustrado.— O cemitério do Repouso.— Os co-
cheiros. — O paço episcopal e a Sé.
Ao outro dia, começámos pela pequena egreja de S.
Lazaro, onde só ba de interessante a gradaria do coro,
em cujo centro figura, em altar dourado, a imagem do
Anjo Custodio; atravessámos o jardim, onde, apezar do
acanhado do sitio, se reúne muita gente, e dirigimos-nos
ao Atheneu Portuense, pertencente á academia das Bel-
las Artes.
É muito pobre. Alem da espada de Affonso Henri-
ques, da escrivaninha de frei Bartholomeu dos Martyres,
chapéu e óculo de D. Pedro IV, três ou quatro quadros,
o modelo em gesso da estatua do conde de Ferreira e
uma soffrivel collecção de gravuras — não tem cousa que
interesse.
Subimos á bibliotheca publica que nos pareceu muito
bem cuidada, e está a requerer maior espaço.
Se attendermos á sua curta duração, que data de
4833, não encontramos alli senão motivos para louvor.
E' numerosa a sua collecção de livros, que sobe a
mais de 200:000, apezar dos furtos, que se dizem pra-
NO PORTO 149
ticados no género e nos quadros das ordens religiosas,
em 1834, e afora uns mil e tantos manuscriptos, entre
os quaes ba alguns curiosíssimos, que pertencem a
Santa Cruz, de Coimbra.
O que tem o n.° 32 é o Testamentum Vetus, contendo
os livros sagrados até ao 2.° dos Machabeus, escriptos
em três columnas; conta 367 folhas de pergaminho, e,
aberto, 4 palmos.
O n.° 432 é o Livro de Brazões, feitos em desenho
colorido, copia do que possuía D. Duarte, neto de D. Ma-
nuel, e tem 1582 folhas.
O n.° 475, escripto em grego, hebraico, syriaco, ará-
bico e etbiopico, apresenta magnificas iliuminuras do
punho de frei Pedro, cónego de Santa Cruz, de Coimbra.
Nas suas antiguidades tem a bibliotheca uma obra
rara e preciosa, a Vita Cristi, primeiro livro, impresso
em Portugal, com gravuras em madeira, por frei Ber-
nardo de Alcobaça, em 1495.
Encontrámos também alli uma collecção de moedas
romanas, pertencentes ao museu, onde não cabem, e
bastantes medalhas commemorativas de varias épocas.
*
* *
D'alli descemos ás Fontainhas, onde bebemos a me-
lhor agua do Porto, em fonte, mandada construir, ao
mesmo tempo do aterro, muralha e plantação do arvo-
redo, pelo já citado iniciador do theatro de S. João, o
desembargador Mendonça, em 1790, e assistimos a um
coro de lavadeiras, que de saia arregaçada, perna gorda
e retinta, ar jovial e leiemente satyrico, entoavam á
borda do tanque o ladrão do negro melro. . .
Gosa-se dali um melancólico, mas* não menos at-
traente panorama.
Quizemos ver de perto a ponte melallica, e fomos
sentar- nos ao pè das magestosas ruinas do projectado
seminário episcopal. .
100 NOTAS À LÁPIS
Quando admirávamos aquella obra gigantesca, veia*
nos aos lábios um sorriso involuntário.
Quem nos visse poderia, sem o saber, tomar por me-
nospreço o que somente era filho de uma recordação
repentina.
Fora o caso.
Aqui, ha uns poucos de annos, o nosso amigo E. G.,
tão bom de coração como arrebatado de génio, um es-
tróina de vulto nos seus tempos de rapaz, passeiava
com um individuo das suas relações por detraz d'aquel-
las ruinas.
Passando a porta, adiante da qual nos achávamos»
pararam os dois, tomados de surpreza.
O que tinham elles visto?
A poucos passos, á borda d'aquelle medonho pe-
nhasco, que se debruça para a estrada marginal do rio,
onde o vulto de um homem nos parece o de uma creança,
estava um individuo a limpar os olhos, e a fazer por
vezes o signal da cruz.
E' um desalmado, que tenta suicidarse — disse E.
6., e precipitou-se sobre o homem, agarrando-o pela gola
da jaqueta.
—Deixe-me, senhor; quero matar-me... deixe-me —
gritava este.
—Mas... que diabo! você endoideceu?
— Não, não estou doido... sei bem o que faço... não
quero viver.
— Pois sim, mas... accomode-se... e conte nos o
que lhe fizeram— insistia E. 6., sem o largar.
— Não, posso. . . deixe-me.
— Querem ver que é uma questão de amores?. . . A
sua Dulcinea não lhe corresponde? atraiçoou-o? Está apai-
xonado? Accomode-se... esteja quieto... senão...
—Estou apaixonado, sim senhor. E o que tem o se-
nhor com isso?
— N'esse caso é um tolo. Ouça a voz da razão. Pois
você não vê, que, morrendo, deixa o campo livre á sua
aquella.. . e... #
NO POBTO 404
Novo empuxão do rapaz, que não attendia a reflexões,
e se obstinava em querer despedir-se do mondo.
—Ah! pois elle é isso — terminou E., a rir.— Eu já
lhe fallo.
E dito e feito, empurrou o homem para terreno firme,
e começou a zurzil-o desapiedadamente, sem conta, nem
medida.
Ao fim de alguns segundos, a victima pedia por to-
dos os santos que lhe não batessem mais.
G... segurou-o de novo, e perguntou-lhe se ainda
teimava em suicidar-se, para recomeçar a pancadaria»
que o seu génio estróina reputava uma justa correc-
ção.
O pobre diabo, como era natural, respondeu negati-
vamente.
— Pois então ande lá comnosco — concluiu G., fa-
zeodo-o caminhar adiante de si.
Chegados á primeira estação policial, entregou-o alli,
com estas palavras :
— Aqui teem este pobre apaixonado, que nós encon-
trámos a querer despenhar-se no Douro. Eu já lhe ap-
pliquei uma boa esfrega ; vejam agora por cá se lhe aca-
bam de curar a mania do suicídio.
— E o caso é — dizia-nos G. muitos annos depois» ainda
a rir — que o sujeito, toda a vez que me encontrava,
desfazia-se em cumprimentos, que eram naturalmente
om vivo testemunho de agradecimento á lição, que lhe
dei.
#
# #
Deixando as ruinas, que ainda podiam ser vantajo-
samente aproveitadas, caminhámos para o Prado do fle-
pouso, um vasto cemitério, muito povoado de arvoredo,
por onde adeja a poesia fúnebre, que vela o somno eterno
dos mortos, interrompido ás vezes pelo riso desculpá-
vel de um ou outro visitante, que não pode deixar de
152 NOTAS A LÁPIS
descer da sua gravidade, ao ler alguns epitapbios, vasios
de senso commum e grammatica, como os seguintes,
que servem de panno de amostra :
A MEMORIA DE MARTA DA LUS
CARRAMILLO VEIO AO MUNDO LAVARÇE
DO PECGADO VOÀO AO CEU GOSAR
A GLORIA SEU AVO— M. P. N.
MORESTEME NÓS BRAÇOS, NETO I QUERIDO.
QUANTAS DORES, MEIO PEITO TEM SENTIDO.
QUE LAGRIMAS, QUE SAUDADES TENHO SOFRIDO.
HE A PAIXÃO MAIS FORTE QUE TEM HAVIDO.
Este terreno, chamado o Prado, pertenceu á cerca do
antigo seminário episcopal, e servia para passeio dos
estudantes.
A capella, venerável pela sua antiguidade, pois data
cTesse tempo, è de uma exquisila apparencia exterior e
interiormente um bello octogono, com o seu altar de
mármores variados e um elegante coreto.
Entre os numerosos mausuleus figura um realmente
curioso, o sepulchro de Baquet, a quem pertenceu o
theatro do mesmo nome, um simples alfaiate hespanhol,
que se distinguiu pelo seu amor ás artes. Representa uma
gruta, artisticamente feita de pedra tosca, completa e
exteriormente coberta de heras e trepadeiras, tendo ao
cimo o seu busto em bronze, a sair dentre a folhagem.
Fecha-lhe a entrada uma grade de ferro, fingindo ramos
A' saída do cemitério, tomámos um trem de praça,
incidente, que não merecia as honras de uma linha, se
não tivéssemos de mencional-o com louvor.
Costumado á repellente e avinhada figura do cocheiro
de Lisboa, tirado de ordinário á classe dos criados sem
préstimo, um ente grosseiro e sem pudor, um maltra-
pilho arbitrário no serviço, que executa, sem tabeliã,
nem policia, uma espécie de salteador legal, que para
extorquir dinheiro ás victimas desce ao impropério e
r
NO PORTO 153
ao insulto dê taberna, especialmente se um individuo
qualquer leva senhoras em sua companhia — confessá-
mos que foi a medo que nos dirigimos ao primeiro co-
cheiro do Porto, quando isso nos foi absolutamente ne-
cessário.
Toda a vez porém que o fizemos, ao tratar de ajuste,
recebemos sempre em resposta;— E' o preço da tabeliã;
eil-a aqui está.
O resto era entregue á generosidade do freguez.
Ora isto com prebende- se, e è próprio de todas as ci-
dades, onde a policia superintende escrupulosamente
nos ramos de serviço publico, que lhe são adstrictos.
Perguntem ao cocheiro de Lisboa pela sua tabeliã.
Ou não lha dá, ou não responde sequer, e no ajuste
final mostra-se tal qual é.
—Mas o senhor é que tem a culpa ; queixe-se á po-
licia— diz muita gente.
Pois um homem limpo, em lugar muitas vezes reti-
rado, onde foi á pressa, a tratar de negócios, ou a fazer
uma visita— a troco de alguns tostues, desce lá a ques-
tionar com semelhante gente, e andar á procura da po-
licia ?
A culpa da extorção tem-na ella, tem-na o governo
civil, que não obriga o cocheiro da praça a trazer en-
caixilhada e segura no interior da, carruagem, d'onde
elle a não possa tirar, quando quizer, a respectiva ta-
beliã, como se usa nas principaes cidades do mundo.
Mas... subamos ao palácio episcopal, um edifício vasto,
apezar de incompleto, e examinemos a soberba escada-
ria, que tamanha fama lhe dá, e que constitue o seu
principal adorno. O primeiro lanço tem 25 degraus de
pedra inteira, com 11 pés de comprimento e dois de
largura, e outros tantos em cada lanço dos que sobem ao
I5& NOTAS A LÁPIS
pavimento; a copula que os cobre, è imponente, como
lhe competia ser.
N'este local existia um castello, ou fortaleza, que se
diz fundada pelos suevos ou pelos romanos, antes da
era christã. Pelo anno 1000, o bispo de Vandoma, e
mais ao diante do Porto, construiu alli um mosteiro,
que foi ampliado por uns, restaurado por outros, até
que em 1771, o filho do quarto conde de Valle de Reis,
o bispo D. João Raphael de Mendonça, cujas armas fi-
guram sobre a janella central do segundo andar, obe-
decendo á época faustosa de D. João V, mandou arrasar
as antigas edificações, e proceder á construcção do paço
actual, que è notável, apezar da simplicidade da sua ar-
cbitectura.
Das janellas, que dão para o rio, abrange-se um pa-
norama, que reputámos superior, salvas certas e deter-
minadas condições especiaes, ao que se gosa do Palácio
de Cristal.
Das proximidades da Foz até ás de Avintes, pasma-se,
livre e desafogadamente, diante de uma das principaes
bellezas das margens do Douro, que entra no quadro
vastíssimo, como ornamento principal, ao lado do Pilar,
Villa Nova, Gaia, Candal, ambas as pontes e uma grande
parte da cidade.
Desçamos, e entremos na egreja da Sé, a poucos pas-
sos da residência episcopal.
Não se conhecem bem os princípios d'este templo
sumptuoso, concluindo-se por affirmar qye a edificação,
damnificada pelos árabes, ao tempo do conde D. Hen-
rique, foi reformada desde os alicerces por este e sua
mulher, D. Thereza, ahi por 1108.
Os acrescentamentos e restaurações posteriores al-
teraram a obra de D. Henrique, de cuja época, ao que
se diz, só restam as duas torres, os gigantes que as
supportam, o granito das Ires naves, e uma imagem de
Nossa Senhora, que se vê n'um altar debaixo do coro,
imagem de pedra, achada entre umas silvas, tosca ao
principio quando se suppõe ter sido divindade pagã, e
NO PORTO IN
aperfeiçoada mais tarde, quando começou a ser vene-
rada especialmente pela mulher de D. Affonso Henri-
Sues, D. Mafalda, que lhe legou as suas jóias e vesti-
os.
No conjuncto, ha portanto differentes estylos de ar-
chitectura, mais ou menos discordes, sobresaindo em
belleza e harmonia a capellamór, cuja divisão é feita
por grade de bronze lavrado e balaustres de mármore
preto, as três naves sustentadas por grossas columnas
formadas de outras mais delgadas, o claustro e a sa-
. cristia.
A capella-mór foi ordenada pelo bispo frei Gonçalo
de Moraes em 1609, pelo risco de um discípulo de Mi-
guel Angelo, o architecto Valentim, a quem se devem
os bellos mármores pretos, roxos, encarnados e bran-
cos, espalhados pelas cornijas e pavimento.
A excellente bancada, que fica aos lados do altar, è
de jacarandá, guarnecido de metal amarello ; o quadro
da direita, que nos pareceu bom, representa Santa Ma-
falda, em adoração á Virgem.
O claustro, mandado fazer em 1385 pelo bispo D.
Joio, terceiro d'este nome, com ajuda do município, é
uma preciosidade de puro gothico, uma reliquia, de que
Bâo conhecemos similar, e a que dá um tom especial a
multiplicidade das suas columnatas, em numero de 304,
ligadas em molho, como as das naves, mas ainda com
maior graça e correcção. Tem capellas nos ângulos e
bellas paredes, guarnecidas de bons azulejos, onde es-
tão pintadas algumas passagens do Velho Testamento.
A sacristia é vasta e bem ornamentada.
Aos lados da porta, fontenarios de mármore, ao centro
mezas do mesmo calcareo, nas paredes quadros sacros,
no tecto pinturas a fresco, a uma banda grandes e ópti-
mos contadores de jacarandá, marchetados de bronze dou-
rado; no topo um bel lo Cbristo e um quadro da Virgem,
attribuido na máxima parte a Raphael. E dizemos assim,
porque ha quem assevere que elle o deixara incompleto,
depois de dar os últimos toques á magnifica e soberba
156 NOTAS A LÁPIS
cabeça de S. José, faltando apenas as mãos da Virgem.
Effectivamente, demorando- se a attenção sobre esta ul-
tima e pequena parte, parece evidente que alli não tra-
balhou o mesmo pincel.
A capella do Santíssimo, em cujo altar se guardam
as relíquias de S. Pantaleão, padroeiro da cidade, é ri-
quíssima pelo seu retábulo, sacrário e frontal de prata
massiça e lavrada.
De prata egual são as varas do palio de custosissimo
e pesado damasco de seda.
Havia alli mais seis lâmpadas, tocheiros e banquetas
do mesmo metal, levadas pelos francezes, o eterno mote
do latrocínio em toda a península, d'onde desapparece-
ram innumeras preciosidades de grande valor artístico
e monetário.
Julga-se porém que essas jóias e alguns paramentos
da sacristia não foram todos para França, repousando
alguns tranquilamente nos museus inglezes e em casas
particulares e nacionaes, cujos chefes, com alliados e
invasores, andaram de mão commum em toda a sorte
de depredações.
Uma prova, que não diz respeito a estranhos.
Numa procissão, que se costumava fazer de sete em
sete annos, figurava um riquíssimo cofre de prata, em
forma de galeão, dado por D. Manuel para guarda das
relíquias do padroeiro, S. Pantaleão, um objecto que
dizem de grande valor estimativo e artístico.
N'um bello dia, desappareceu elle da própria procis-
são, já depois de 1834, e está hoje muito bem conservado
e estimado n'um museu estrangeiro, ao que se affirma.
A este respeito, diz Pinho Leal, no seu diccionario :
t Tinha muito que faltar sobre o roubo d'este cofre,
o que não faço por considerações, sendo a principal en-
volver n'esle abominável crime pessoas de alta cathego-
ria, que se não podem defender por estarem já cobertas
com a louza da sepultura.»
A' brilhante exposição de Arte Ornamental mandou
a Sé apenas seis objectos— uma Cruz relicário de prata
NO PORTO 157
dourada e pedras, uma excellente custodia do mesmo
metal esmaltado, uma urna de prata favrada, um cálix,
uma casula de lbama branca, bordada a ouro, e uma
capa de asperges, que foi de Santa Cruz de Coimbra.
E para o que precisa de coisas artísticas e raras quem
com semelhantes exemplos de furtos continuados não
reuniu ainda, n'um só lugar, alguns centos de reliquias,
que nos Acaram, e que andam por todo o paiz á merco
de confrarias, ás vezes ignorantes e pouco escrupulo-
sas, e de tanta gente, que as não sabe, nem pode esti-
mar?
.Que melbor e mais precioso museu podia inaugurar-se
em breve do que aquelle, que tivesse por fim encorpo-
rar n'um só edifício todos os objectos de antiguidade,
comprados aos seus donos, ou garantidos por títulos
de propriedade?
Alguns restos da nossa passada grandeza ainda não
ba muito tempo obtiveram em Inglaterra, a cuja expo-
sição concorreram, um invegal apreço, despertando a
admiração dos verdadeiros entendedores; e em 1882,
quando vieram a Lisboa, em maior numero, abi servi-
ram de assombro a quem teve alma para os saber ava-
liar.
Não será isto um soberbo argumento a favor de um
museu nacional de arte decorativa, ou uma exposição
permanente, onde podessem ser vistos e bem conserva-
dos?
158 NOTAS À LÁPIS
III
As almas da ponte de pênsil. —
A alfândega e a Bolsa.— Hospital da Misericórdia.—
Duvidas de amante e sentimentos de pae.
Dos theatros do Porto só trabalhava o Príncipe Real.
Fomos alli ver a Perichole, de Offembach, desempe-
nhada por companhia menos de medíocre, como sSo
todas aquellas, em que os nossos actores dramáticos,
com raras excepções, tomam parte como cantores.
Continuámos a passeiar.
De volta da Outra Banda, depois de termos atraves-
sado a ponte pênsil que data de 1842 detivemos-nos
um pouco no cães da Ribeira, onde o quadro das al-
mas nos fez condoer da triste sorte de 4000 desgraça-
dos, que alli se afundaram em 29 de março de 1809,
motivo porque em dia e mez eguaes, a irmandade de
S. José das Taipas vae todos os annos em procissão
celebrar n'aquelle sitio piedosos suffragios.
A' entrada do general Soult, começou alguma gente
a fugir para Villa Nova de. Gaya, e depois de passar
levantou os alçapões da ponte, que era de madeira fir-
mada sobre barcas, para evitar a perseguição dos sol-
dados francezes. Os fugitivos, que se seguiram em tu-
multo, ignorando essa circumstancia, despenharam-se
no abysmo, e lá ficaram sem vida.
D'alli seguimos para a alfandega, a primeira do paiz,
começada a construir em 1859, na praia de Miragaya,
á borda de rio. Tem três corpos com 220 metros de
comprimento, salas baixas e altas, onde o serviço é
auxiliado por excellentes elevadores, armazéns especiaes
NO PORTO 189
para inflammaveis, trilhos de ferro, que postos em linha
dariam kilometro e meio, e dois grandes subterrâneos,
sustentados, em cada um, por 72 pilares de cantaria,
n'uma capacidade de 2050 metros quadrados.
Retrocedendo á rua de Ferreira Borges, por caminhos
onde tem havido uma transformação, que parecerá pro-
digiosa a quem tiver conhecimento do Porto antigo, en-
trámos na Bolsa.
Palácio rico, encravado nas ruinas do convento de
S. Francisco, obedece na fachada á ordem dórica, e no
interior a uma construcção não muito regular e escor-
reita. Para o .pateo quadrangular dão galerias, arcadas,
portas e janellas dos diversos pavimentos.
Grande parte das suas salas pode considerar-se um
verdadeiro capricho, pela obra de talha, tectos e estu-
ques, que teem tido a grande utilidade de servirem de
escola pratica a bons artistas nacionaes.
O salão de respeito occupa 94 metros quadrados; as
paredes são estucadas, imitando mármore, e estão or-
namentadas com os retratos de alguns membros da fa-
mília real; o tecto é almofadado e pintado a fresco, com
o esmero, que fornece ao espectador a perfeita seme-
lhança do relevo ; e o pavimento compõe-se de um xa-
drez de bellas madeiras.
A sala nobre ou de recepção é a verdadeira maravilha
cTaquelles trabalhos; apresenta a forma de um paralle-
logrammo, com os ângulos cortados, occupa o espaço de
342 metros quadrados; e tem á roda uma galeria,
assente em columnatas e formada por arcarias.
Os pavimentos são de mosaico de madeiras precio-
sas, jacarandá, pau setim, rosa, plátano e mogno, e o
estylo geral da ornamentação o puro mourisco, o fan-
tasioso e deslumbrante estylo do Alhambra, a que, no
dizer dos entendidos, não è inferior, no seu pouco, que
se pode chamar uma habitação encantada.
As paredes e os tectos, arcadas e cornijas estão, por
completo, estucadas a ouro e cores, em relevo e fundo
branco, ao feitio árabe; e nos fechos da arcaria avultam
160 NOTAS A LÁPIS
entre arabescos as armas dos paizes, com que temos
maior commercio.
O único movei, que lá vimos, pois a sala não tinha
ainda accessorios completos, foi uma meza, que nos dis-
seram estar destinada ás sessões da directoria, e que
não destoava de todo aquelle esplendor, com os seus
sumptuosos embutidos das madeiras dos pavimentos e
ornatos faciaes relevados, a demonstrarem uma execução
primorosa e verdadeiramente excepcional.
Em muitos casos o bairrismo tradicional dos portuen-
ses è bem cabido.
Quando admirávamos a perfeita execução cTaquelle
deslumbrante trabalho moderno, não podemos deixar
de tributar elogios a quem deveras os merecia, con-
cluindo por estas palavras :
— Sim senhor; tudo isto faz honra aos artistas por-
tuguezes.
—Aos. . . do Porto. . . aos do Porto — disse, com a
maior naturalidade (Teste mundo, um amigo, que nos
acompanhava.
Não podemos deixar de rir, e comnosco lodos os vi-
sitantes, que não conheciam ainda até que ponto se pôde
levar uma questão de preferencia.
Quanto a nós, ficámos sabendo, e alli patenteámos
por isso o nosso pasmo, que o portuense, nas suas as-
pirações exclusivistas, tentava emancipar-se da commu-
nhão portugueza.
Abençoado e desculpável bairrismo porém o que se
firma sempre em coisas. úteis, que podem attestar pro-
gresso e trazer lustre ao nome de um paiz !
# »
Na egreja de S. Francisco, fundada por D. Fernan-
do, em 1383, em substituição da antiga, e muito pro-
tegida por D. João 1, superabundam os ornatos doura-
MO PORTO 161
dos e obra de talha, sobresaindo entre esta as arvores
de Jessé e os quadros dos martyres da China e Marro-
cos.
Passando cTalli á capella, onde ba pinturas de Vieira
Portuense, tivemos occasião de descer ao cemitério sub-
terraneo, uma antiguidade, que nos maravilhou, pois
nunca visitáramos cousa semelhante.
Àpproximava-se a hora dada para entrar no hospital
de Santo António.
Tomando pela rua das Flores, a antiga rua dos ouri-
ves e mercadores de panno, onde nos esperava um
mordomo, que obsequiosamente se offerecera para nos
acompanhar, em breve nos achámos ao extremo do lar-
go da Cordoaria, em face da grandiosa e imponente
frontaria, que já nos havia estasiado.
Na verdade quem contemplar aquella fachada collos-
sal, dividida em três grandes corpos, deve suppôr ma-
ravilhas por detraz da sua extructura.
No entanto. . . oh I desillusão ! . . . sentimos o effeito
de uma miragem enganadora ao penetrar no interior do
hospital, onde nada, absolutamente nada, a não ser a
caridade lá exercida, corresponde á grandeza admirável
do exterior.
Enfermarias acanhadas, 4 excepção de umas quatro
recentemente feitas, salas pequenas, estreitas escadarias
de madeira, escaninhos, mesquinhas divisões, corredo-
res sem razão de ser— tudo comparativamente nos fez
cair das nuvens.
Não conhecemos o plano, e nada sabemos das razões
que sustaram as obras d'aquelle edifício, começado em
1770; quer-nos parecer porém, e o incompleto d'elle o
attesta, que o plano interior não foi riscado pela mão
que delineou e executou a frontaria.
Ao regressar da sua lavanderia a vapor, fomos assis-
tir, em presença do escrivão e do mordomo de servi-
ço, á distribuição do jantar para 600 doentes.
Não se podem requerer maior perfeição e brevidade,
nem exigir melhor qualidade, maior abundância e va-
li
161 NOTAS A LÁPIS
riedade de comida, que provámos detidamente, desde
a primeira á ultima espécie.
Pondo de parte senões, de que ninguém tem culpa
actualmente, podemos affirmar que é suprema honraria
para os portuenses o poderem estipendiar um hospital
de caridade d'aquella magnitude.
Facto extraordinário, que pela primeira vez nos acon-
teceu em estabelecimentos d'aquella natureza— a comi-
da attraiu-nos, conseguindo despertar um appetite. que
raramente nos visita.
«
* * *
Chegámos tarde ao botei.
Quando procurámos um companheiro, com quem lo-
go nos primeiros dias tomámos intimo conhecimento,
havia elle descido ao quarto, a fazer o seu café, cousa
que não concedia a outrem, por mais virtudes que visse
attribuir ao café alheio.
Depois de comer, fomos bater-lhe á porta, em busca
da costumada palestra.
—Entre—disse elle, depois de nos ter reconhecido a
voz.
Homem dos seus cincoenta annos, com todo o vigor
de uma edade mais curta, tinha a pbysionomia expres-
siva de quem a si deve aquillo que vale.
A praticada vida adquirira-a elle na America do Sul,
d'onde lhe vinham os proventos de uma soffrivel abas-
tança.
De hábitos simples, conseguira viver socegadamente
uns três ânuos em Paris, d'onde viera havia oito me-
zes.
Tinha porém a mania de nSo acreditar no que lhe
diziam, nem mesmo no que via, em pontos de gravi-
dade, senão depois de uma prova cabal e irrefutável;
era o seu fraco.
Por tanto dava-se ás vezes ares de demasiado des-
crente.
NO PORTO 163
Ao entrar, encontrámol-o com os cotovelos apoiados
na mesa e a cabeça entre as mãos, a fixar um papel
aberto, qae nos pareceu uma carta.
—Não pôde ser I— disse, como final de um monolo-
go, qae devia ter sido violento, e levantou-se distraida-
mente, para nos cumprimentar.
O álcool da cafeteira ardia na trempe, collocada so-
bre uma commoda.
Nos olhos e em todo o rosto d'aquelle homem havia
signaes de profunda commoção, luz e sombras, que elte
nio sabia encobrir.
—Seriamos importuno? — Foi o que a nós mesmo
perguntámos.
Vendo-nos um pouco embaraçado, procurou domi-
nasse, e sentou- se comnosco, convidando-nos a parti-
lhar do café, a sua predilecta beberagem.
—Obrigado— respondemos. — Bem sabe que as pres-
cripções do medico. . . me não deixam ter esse prazer.
Mas... eu retiro-me... cuido que ia escrever... e
por isso. . .
—Nada, não senhor; fique, peço-lh'o eu. Uma carta,
chegada hoje...
Suspendeu-se, tomou da carta e começou a dobral-a,
dando lhe vários piparotes, e continuando:— Uma carta,
como ha muitas... uma farça...
E levantou-se para acudir á cafeteira em ebulição.
Preparou cuidadosamente um chávena do que elle cha-
mava— a sua cachaça — e voltou a sentasse, com ella
na mão.
—Ora diga-me— recomeçou depois do primeiro gole
— o senhor nunca teve fraquezas na sua vida?
—Se tive fraquezas... Eu... eu...
—Sim, fraquezas. Ha dois dias apenas que nos co-
nhecemos*., e fazer-lhe assim uma pergunta d'estas...
confesso ser. . . o que quizer. • . um atrevimento. . •
um simples contrasenso... uma leviandade...
— Mas, sr. B...
—Nada... não me diga nada. Fraquezas... todos
164 NOTAS A LÁPIS
nós as temos, e eu devo á maior da minha vida a si-
tuação do meu espirito.
—Não tenho direito a confidencias; não necessito pois
que justifique a sua pergunta.
—Mas eu é que quero, e preciso dizer-lbe tudo. A
minha pratica do mundo torna-me desconfiado. Diga-me,
meu caro, parece-lhe que a minha pessoa chegue a ins-
pirar interesse a alguém ?
—Ora essa! E porque não? Aqui estou eu que...
— Não me expliquei bem. Acha que uma mulher nova
e bonita possa guardar fidelidade a um homem, como
eu, a descambar já para a noite da vida ?
— E porque não? repilo ainda. Os deveres de uma
esposa . . .
—Alto lá. Lembre-se de que lhe fallei em uma fra-
queza, e se o casamento o é não tratei ainda de averi-
guai-o. Trata-se de uma amante.
—Uma amante mesmo. . .
—Tal tal tal Lá vem uma lisonja. Perde o seu tempo,
meu amigo. Não pôde ser. . . não o creio. E que nos
emporta a fidelidade de uma amante? — dirá o se-
nhor.
—Se sentimos por ella uma decidida affeição, deve
emportar-nos muito. . .
— Affeição! Pôde ser. .0 caso está em que um ho-
mem, como eu, possa fazer-se amar, e isso. . . Mas...
adiante. Uma rapariga, a que eu tive a fraqueza de li-
gar-me, na minha estada em Paris, pareceu-me desinte-
ressada, um tanto carinhosa e boa, por calculo, já se
vê, e acabou por inspirar-me certo interesse...
— Até aqui vamos bem.
— E. . . sempre atè á minha partida.
—Não vejo pois que...
—Li vamos. Um bello dia, mezes antes da minha
despedida, appareceu-me com um creança nos braços,
de que me dizia pae. . . O que diz o senhor a isto?
— Eu...
—Sim, diga-me:— Pôde ser?
NO PtRTO 165
—Se pôde ser. . . Acho tudo isso a coisa mais natu-
ral cTeste mundo.
— E eu digo-lbe que se engana. Olbe bem para mim.
Com este pbysico póde-se tá acreditar aquella mulher,
e jurar a verdade da sua estranha revelação?
—Mas. . . não nos entendemos. . .
— E não, digo-lb\) eu, porque me conheço. Não nos
entenderemos nunca. Era-me precisa uma prova de fi-
delidade, e essa prova ninguém m'a pôde dar.
—Deve tel-a encontrado no estudo, que fez do cara-
cter da sua amante, nos seus modos, nas suas tendên-
cias, nos seus carinhos. . .
— Nada d'isso me satisfaz. Não pôde ser. E' verdade
que diziam as pessoas do nosso conhecimento que a
creança . . .
—Era o rosto do pae. . . hein?
— Isso mesmo. Com os diabos —exclamou B... le-
vantando-se vivamente agitado— se assim fossei... E'
linda... uma menina. O' meu amigo... uma creança
loura. . . sim, loura. . . e de uma finura de feições. . .
Qual historia! Sou um asno. Esta duvida... Nada...
não pôde ser.
—Mas, homem, as semelhanças. . .
— E diz bem. Parecia-se. . . o demónio da pequena...
quero dizer... achavam todos que... sim... que se
parecia... Quando ella, com sete mezes, já começava
a chilrear. . . a estender os bracinhos. . . e que braços
tão bonitos. . . E o olhar? aquelle olhar. . . Hei-de fa-
zer caso delia, creia, muito embora me chamem tolo.
— E deve fazel-o. . .
— Não devo, não, senhor. Ninguém me prova que
aquella creança seja minha. E depois... uma mulher
nova... um homem como eu... Ora adeus I Olhe,
agora recebi uma carta... escripta no dia em que ella
fazia os seus quatorze mezes. Está um mimo, diz a mãe.
Veja. . . veja. . . aqui a tem.
A mão de B. . . aquelle desgraçado, que sentia uns
vislumbres das alegrias do ceu, por entre umas duvi-
168 N0TÀ8PÀ LAPÍ8
A meio da egreja, no mesmo plano do altar de Santa
Victoria, ba uma vidraça, para que o sacristão nos cha-
mou a attenção, dizendo estar alli o corpo inteiro da
santa.
Affirmámos-nos, e vimos, vestida com trajes de co-
res extravagantes, atirando ao aso oriental, uma flgura
encolhida, que apenas nos mostra os ossos dos braços,
por baixo da manga rendada, que os cobre: rosto e
peito são de pura cora.
Vínhamos já no meio do campo de S. Ovidio, quan-
do nos lembrámos do cemitério da Lapa.
Retrocedemos, não tanto para admirar os numerosos
e vários mausoléus, que povoam as suas duas partes,
antiga e moderna, como para render o nosso mesqui-
nho preito ás cinzas de um dos maiores homens, que
lá repousam, o infeliz e melodioso poeta Soares de Pas-
sos, de cujo sepulcro trouxemos uma relíquia, uma
folha de arbusto, tão mimosa como a alma do autor
do Firmamento.
E para contrastar com a delicadeza do sentimento e
com as tristes preoccupaçôes, suggeridas pelos emble-
mas da morte, collocados sobre a porta principal, trou-
xemos a nota alegre do seguinte epitaphio, dedicado
por um Sr. Basto a D. Gaetana, sua mulher:
Doeste mundo fugiu pra eternidade,
Minha esposa muito querida e amada,
Deixou me com filhos cheios de saudade,
Lagrimas correndo dfagua envoltada.
O nosso companheiro, ao atravessar de novo o cam-
po de S. Ovidio, lembrou-se dos versos de um poeta
da sua terra, os quaes começavam assim:
NO PORTO Í69
Ó amor, ó amor aço,
leve o diabo esta paixão !
se não chego a engalfinhar -te,
voumorrer-me da maleita.
Estes, se não eram tão sentidos, primavam por mais
correctos.
E, se ba cemitérios formosos; vem a pello mencionar
aqui o mais formoso e moderno de todos, o de Agramonte.
Collocado n*um plano e em sitio de agradável bori-
sonte, possbe bons subterrâneos para deposito de cadá-
veres, túmulos imponentes, arruamentos e uma elegante
capella gothica, com bons mármores e primorosos es-
tuques em relevo
Por cima de tudo, avulta a estatua pedestre do conde
de Ferreira, um monumento de soberbo mármore e
ainda mais soberba execução.
Ao observar aquella opulenta esculptura, bão-de per-
mittir-nos que lastimemos o vel-a collocada alli, quando
uma praça a exigia, e podia orgulhar-se com ella, se a
memoria do fallecido tem para o Porto a importância
que parece.
Quando as escolas, devidas á sua philantropia e espa-
lhadas pelo paiz, não fossem de sobra para lhe conferir
essa prova de publica homenagem — bastava para isso
o legado, que deixou com destino ao hospício de alie-
nados, que se está construindo na Cruz das Regateiras
a dois kilometros da cidade, e vae ser o primeiro de
Portugal, pela vastidão e requisitos necessários ao per-
feito alojamento de tantos infelizes, que se afastam em
vida de toda a communhão social.
Construído em forma de H, cercado de boas mura-
lhas, paleos e jardins, em sitio elevado e hygienico,
despido de enfeites architectonicos, que lhe não ficavam
bem, mas o solido e bello — se este edifício já é por si só
um padrão memorável — não representa comtudo mais
que os sentimentos do seu instituidor, a quem publica-
mente se deve ainda a prova de gratidão, a que nos
parece ter incontestável direito.
170 NOTAS k LÁPIS
Pelo que diz respeito ás fabricas interiores, merece,
como outras, bonrosa nota a de fiação e tecidos, esta-
belecida em Salgueiros e dirigida pelo sr. Carneiro e
Silva, laborioso industrial e antigo negociante do Pará.
Tem um motor de grande força, duzentos teares, bons
armazéns e dependências, e sustenta uns quatrocentos
operários.
Entre o melbor que vimos, resta-oos mencionar o
museu portuense, conhecido por museu Allen, o nome
de um homem que possuia uma alma de artista, capaz
de abranger todos os variados sentimentos do bello,
um negociante que, com o ser, sabia, como poucos,
alliar á materialidade das cifras tudo quanto o coração
humano pôde encerrar de mais fino e delicado, duas coi-
sas, que muitissima gente julga irreconciliáveis em com-
mercio, poesia e prosa, matéria e espirito.
João Allen, descendente, por seu pae, de uma família
ingleza, foi um collecionador muito notável e um cida-
dão de grandes préstimos associativos, commerciaes e
philantropicos. Durante as suas viagens e em occasiues
de venda publica e particular de objectos curiosos, le-
vou a fazer acquisições valiosas, por mais de trinta an-
nos.
A sua vida foi accidentada e laboriosa, e a sua morte
occorreu em maio de 1848, no meio de desgostos e con-
tratempos commerciaes, devidos á infidelidade do seu
sócio.
Aos seus herdeiros comprou a camará municipal a
importante collecção do museu portuense, que continua
a figurar na rua da Restauração, em edifício acanhado
de mais para tamanho repositório de cousas valiosas e
de rara estima.
Copias e originaes de Sequeira, Vieira Portuense,
Salvador Rosa, Murillo, Rubens, Van-Dick, Corregio,
NO POMO 171
Guido e outros, mioeraes, mármores nacionaes e es-
trangeiros, producções vulcânicas e marinhas, pedras de
Herculano e Pompeia, conchas, moedas, medalhas antigas
e modernas e vários exemplares de outros e muitos
objectos raros e bellos— tudo alli se encontra e se im-
põe á admiração de quem tiver alma para aquilatar o
trabalho consciencioso de um homem só, umas minu-
ciosidades artísticas, naturaes e históricas, cuja selecção
e valor fazem honra á cultura do seu delicado senti-
mento.
Que nos conste, não ha homenagem publica, que re-
lembre aos estudiosos, patriotas e beneméritos, o nome
d'esse homem, que foi apostolo infatigável do trabalho,
e cultor esmerado dos assumptos de bom gosto; sabe-
mos apenas da existência de um simples retrato litho-
grapbado, onde os seus amigos e admiradores íntimos
mandaram escrever o seguinte:
As artes agradecidas
Contra o tempo, que as consome,
Te erigem um monumento
Que vae basear teu nome.
Bella intenção, mas fraco monumento este t
•
Entremos no americano, que a meio caminho será
impellido por uma pequena locomotiva, e sigamos, em
gracioso convívio com outros para a Foz, passeio obri-
gado para todo o visitante.
Exposição permanente de ócios e luxo, na estação
dos baphos, a que a moda, e não a medicina, prescre-
veu foros de alta importância, como em quasi todas as
praias de Portugal, é a Foz um verdadeiro centro de
reunião elegante.
Uma povoação accidentada e guarnecida de bons pre-
17* NOTAS A LÁPIS
dios, um vastíssimo horisonte sobre o mar, um velbo
castello, uns restos de fortificação miguelista, a egreja
central e a peior das praias, destinadas aos banhos —
eis tudo.
Sigamos até Matlosinhos e Leça de Palmeira, duas
risonhas povoações, separadas pelo rio Leça.
A manhã está deliciosa. O caminho, uma grande pla-
nície, á beira- mar, tem á esquerda o decrépito castello
do Queijo e á direita algumas elegantes e ligeiras edifi-
cações e o vasto hypodromo do Club Portuense.
Chegámos.
Para além do rio, temos como melhor o ponto de
vista, que ha a gosar do cume de um outeiro, onde
branqueja a capei la de Santa Âuna; para aquém, isto é,
em Mattosinbos, devemos homenagem á estatua do
grande democrata e estadista Passos Manuel, natural de
Bouças, a uma escola do metbodo de João de Deus, que
visitámos á hora, em que íunccionava sob a direcção
de um babil professor, e á afamada egreja do Bom Jesus.
O adro, para onde se sobe por ampla escadaria, está
bem arborisado e é espaçoso. Aos lados vèem-se seis
capellas, commemorando os passos do Senhor em figu-
ras do tamanho natural, algumas das quaes teem um
soffrivel merecimento.
A egreja é de três naves, sendo a do centro susten-
tada por oito columnas corintbias de pedra, pintada com
as cores do mármore variegado, o tecto è de bom gos-
to, e o chão mostra ainda antigas sepulturas, muito bem
divididas por bordaduras de pedra, tendo a um lado,
ao pé da parede, seis bancos de collegiada, os quaes
indicam antiguidade remota.
Nos altares ha grande somma de obra de talha, avul-
tando no principal o Gbristo, de tamanho collossal e tão
má esculptura, como as duas imagens que o ladeiam.
A1 esquerda da egreja ha um bom edificio moderno,
destinado para hospital e repositório dos objectos, offe-
recidos pela devoção do povo, e dos retratos consagra-
dos á memoria dos bemfeitores.
NO PORTO 173
A má esculptura do Bom Jesus desculpa-se pela an-
tiguidade, que se lhe attríbae.
Esta imagem de grande e remotíssima devoção está
cercada de milagres sem conta e de lendas curiosíssi-
mas, entre as quaes avulta, como mais de notar, a de
ter sido feita por Nicodemus, o pagão convertido, que
despregou da cruz o corpo do Senhor e o ajudou a le-
var para o sepulcro, e apparecer com um braço de
menos, trazida pelas aguas desde o Mediterrâneo na era
cbristã de 124, no lugar do Espinheiro, onde por me-
moria se ergueu um cruzeiro de pedra, que lá se vé.
Acrescenta mais a lenda que a imagem foi venerada
durante cincoenia annos, com a falta que trouxera, por
que todos os braços, que lhe queriam pôr, não ajusta-
vam ao corpo, por mais que os artistas se esforçassem
para isso; e que uma pobre mulher, indo á praia, em
busca de cousa que podesse queimar, trouxera entre
outros um bocado de pau, que saltou da fogueira, todas
as vezes que a serva de Deus o pretendeu queimar.
Uma sua filha muda bradou então: — Ó màe, veja que
é um braço, e pertence ao Nosso Senhor de Bouças ; o
que todo o povo alarmado foi verificar, e achou exacto,
razão porque a imagem está completa.
Que a muda fatiasse não admira pouco, mas que a
mulher, tendo vista, não distinguisse um braço de um
tosco pedaço de madeira, ainda admira mais.
Forçosamente era cega.
A lenda esqueceu-se d'isso.
#
* *
Despedindo-nos do Porto, a ciosa e bella cidade, de
que muito tínhamos ainda que dizer, íazeraol-o com a
alma repleta de boas e indeléveis impressões.
Bairros inteiramente refundidos, ruas melhoradas ou
abertas de novo, edificações modernas, canalisações,
obras municipaes e particulares, terminadas umas, ou-
176 NOTAS A LAM8
Onde ha imaginação, que resista a tantas descripções,
consagradas ao empório do vinho verde, das regueifas
e frigideiras, bem peiores do que elle?
J. B. de Castro, no século passado, diz-nos no seu
Mappa:
cO seu temperado clima, summa fertilidade, benigni-
dade de ares, affluencia de rios e delicia dos seus cam-
pos fizeram dizer a Manoel de Faria que, se no mundo
houve Campos Elysios, existiram n'esta província ; e
se os não houve, merecia que somente os houvesse
n'e!la. E assim o vemos, porque a maior parte d'ella
está sempre cheia de arvoredo que organisa um conti-
nuado bosque perpetuo e aprazível, composto de lou-
reiros, azinheiros, murtas, pinheiros e cyprestes, que
nem de inverno perdem a folha, além de castanheiros,
carvalhos, nogueiras e outras arvores, que produzem
excellentes madeiras e tão abundantes, que ha casta-
nheiro que dá 60 alqueires de castanha e 40 almudes
de vinho de uma só cepa, que n'elle está entrelaçada
ou entalada ; nogueira que dá 60 alqueires de nozes ;
laranjeira que dá 5 carros de laranjas ; carvalho meio
moio de bolota e algum tão grande que o não abrangem
quatro homens »
E assim por diante continua Castro e outros autores,
antes e depois d'elle, a dizer-nos maravilhas da produc-
ção natural e agrícola das terras do Minho.
Em verdade, á medida que nos internámos no coração
da província, salta-nos á vista a especialidade d'aquellas
vinhas, montadas sobre arvoredo, a formarem com este
graciosos ramalhetes, á borda dos caminhos, os poma-
res e as hortas muito frescas e ameníssimas planuras
cultivadas, tendo por muros divisórios numerosos ren-
ques de arvores fructiferas, casinhas brancas a alveja-
rem na encosta dos outeiros, por entre as moitas de
verdura.
As casas brancas porém e por consequência as al-
deãs, que nos encantam os olhos, fazem-nos o effeito
das nossas pastoras, decantadas pelos poetas.
EM BRAGA 177
À zagaia, na coimada doa montes, pastoreando o re-
banho de ovelhas, brancas como a sua alma de virgem,
com as tranças soltas ao capricho da brisa tépida, que
lhe imprime na fronte uns beijos, rescendentes ao trevo
dos valles e á madresilva dos ribeiros, soltando aos
eccos da montanha trovas e descantes— é uma cousa
muito formosa, lida n'uma boa pagina de poesia ; mas
bem differente se nos mostra quasi sempre a realidade,
quando deparámos com uma rapariga desgrenhada, suja
e mal vestida, sem um só dos attributos, que a nossa
fantasia lhe emprestou.
Assim as casinhas, que branquejam atravez do arvo-
redo, habitações térreas, de um interior acanhado, po-
bre e ás vezes repellente — só fazem bom effeito, vistas
de longe.
Foi isto o que presenciámos nas poucas aldeãs, que
tivemos de atravessar. Manda a verdade porém que se
diga que o aspecto d'aquellas povoações, olhadas em
distancia, é alli mais agradável do que em outras pro-
víncias. D'ahi os ataques de poesia bucólica, que nos
assaltam em caminho.
#
♦ #
Chegámos a Braga, fundação dos bracaros — gallo-
celtas, alcunhados assim pelo uso das suas braças, ou
calças curtas— segundo uns, e dos turdulos da Andalu-
zia, segundo outros; residência faustosa dos godos, dos
romanos, de quem foi a Bracara Augusta, dos suevos
e árabes ; boje a Braga christianissima, a que a gente
chama, como á Guarda, cidade feia, fria e farta, e de
que só tivemos occasião de apreciar o primeiro titulo.
São nove horas.
Ao sair da estação do caminho de ferro, e quando
nos dirigimos para o americano, somos assaltados por
um exercito de maltrapilhos, garotos e pedintes, que nos
puxam pelo braço, que nos batem nas costas, e se agar-
12
178 NOTAS A LÁPIS
ram a nós, de modo tão importuno e desusado que a
gente receia ser presa de algum mau sonho, em meio
de salteadores.
Vendo porém que estamos ás portas da capital mi-
nhota, deplora-se a infinidade de vadios, que alli vege-
tam á sombra dos nichos, e a absoluta falta de policia,
cuja intervenção seria alli um acto providencial.
Paremos no antigo campo da Vinha, hodierna praça
de Santa Anna, a melhor da cidade, o moderno passeio
publico, e contemplemos a pequena e alegre fachada
do theatro, construído por. uma empreza particular, em
1857, e dedicado ao arcebispo bracarense S. Geraldo,
que se diz ter baptisado o fundador da monarchia; pas-
semos em revista os bons prédios modernos, que se
lhe seguem; entremos ao cimo do jardim, um quadri-
longo espaçoso e bem tratado, e saiamos ao fundo para
ver a estatua de D. Pedro V, monumento a que os
bracarenses tiveram a magnanimidade de conceder um
lugar, que estava talvez destinado a conter a imagem
de algum milagroso santo.
Depois do almoço, escovado o casaco, e após um li-
geiro descanço, continuemos a passeiar.
Vestígios e restos de edificações antigas, algumas das
quaes apresentam o característico romano, ruas tortuo-
sas e pouco limpas, alminhas, nichos de santos, cuida-
dos durante o dia e alumiados durante a noile, cruci-
fixos pelas paredes e largos— encontram-se á farta.
E no entanto a Braga fanática por excellencia tem ca-
minhado, ainda que lentamente, a poder dos embates
civilisadores dos tempos modernos.
E' cedo ainda.
Vamos até ao monte de Santa Margarida, onde está
a capella da senhora de Guadalupe, e gosemos o melhor
panorama da cidade, uma planura extensa e variada em
matizes, uma formosa e verdejante bacia, tendo no ex-
tremo horizonte as poéticas alturas do Bom Jesus e o
monte Sameiro.
Ao subir das escadarias, segue-nos uma multidão de
SM BRAGA Í79
pedintes, gente ociosa, muito eivada de rezas e benti-
nhos, uma verdadeira calamidade, que nunca havemos
encontrado em nossa vida.
Na impossibilidade de dar esmola a tanta gente, que
a não merece, falíamos uma lingua estrangeira, para que
nos não persigam, e nos deixem caminhar, sem emba-
raços.
— Donos alguma coisa, para que Deus Nosso Senhor
o livre do diabo» que já tem no corpo— diz a voz de
uma mulher, ainda moça e robusta, já persuadida de
que não a entendemos t
*
• *
Realmente contrista o coração o vér o aspecto mise-
rável dos moradores de certos bairros, onde a par das
rezas não andam as mais insignificantes noções do traba-
lho, creador de estímulos e gerador da abundância, tão
necessária á prosperidade domestica como á felicidade
individual.
Passávamos em frente da egreja do Carmo, uma das
vinte e oito, que possue Braga, incluindo os conventos,
e nova multidão de pedintes e ociosos nos embargou o
passo.
Vimol-a aberta. Entrámos para ver o templo, onde
está sepultado o popular frei João de Neiva, cuja me-
moria já tem para o povo verdadeiro cheiro de santidade.
É interessante a biographia cTeste homem, nosso con-
temporâneo, a quem deram lustre a sua boa educação,
virtudes e humildade.
Fr. João da Ascenção, apellidado ultimamente o fra-
dinho de Braga, era natural de S. Romão de Neiva, dis-
tricto de Vianna. Professou na ordem dos carmelitas
descalços, em Lisboa, foi mandado para um convento
do Porto e depois para o de Braga, onde completou a
soa ordenação e estudos de professorado, em 1810 ;
transferido para Figueiró dos Vinhos, para Évora e Car-
Í80 NOTAS A LÁPIS
níde, em Lisboa, foi aqui substituto na direcção do col-
legio de S. João da Cruz.
Nomeado lente de theologia dogmática para o colle-
gio de S. José, de Coimbra, voltou novamente para
Carnide, como prior do collegio já dito, tornando-se no-
tável pelo acerto e boa direcção, com que geria a commu-
nidade, e pelas predicas, que fez em varias egrejas e
localidades.
Eram muito conhecidas e veneradas a sua austera hu-
mildade e completa abstenção de pompas. Apezar dos
altos cargos, que desempenhou, a sua bagagem com-
poz-se sempre de uma camisa de sarja, o habito, o bre-
viário, as sandálias e disciplinas.
Com a extincção dos conventos, recebeu o virtuoso pa-
dre uma impressão descommunal. Voltando para Bra-
ga, acolheu-se a casa de um amigo, e tomou-se desa-
lentado, taciturno e desleixado no trajar e praticas ex-
teriores; o que lhe valeu assuadas do vulgacho e o ser
mettido na cadeia, onde pouco se demorou.
O conhecimento das suas virtudes e saber fez com
que, em 1833, um decreto régio o nomeasse arcebispo
de Gôa. Âs honras de primaz do Oriente aterravam-no de
novo ; a sua recusa inabalável seguiu-se logo ao decreto,
mau grado os rogos dos seus amigos e admiradores.
Alquebrado ao peso da sua austeridade e desgostos,
assim viveu humildemente até aos 73 annos, morrendo
em 16 de março de 486J, com a merecida fama de san-
to, a quem o povo tributa accentuado culto, ao visitar-
lhe a sepultura, a que nos referimos.
Voltemos á nossa visita á egreja do Carmo.
Era a hora da ultima missa . . . cruzavam-se os pa-
dres pelo meio do povo e ao pé dos altares.
Quando a olhar passávamos em exame os dourados
da egreja, que os tem em demasia, a começar pelo púl-
pito e suas escadas e a acabar nos altares, tivemos de
ajoelhar, como nos cumpria, á elevação da ostia.
Peza-nos dizer que nos custou a conter o riso de uma
boa e franca gargalhada, riso que pouco depois se fun-
EM BRAGA i8i
dia em pezar, que nos inspirava a influencia do beate-
rio, que alli víamos representado.
Homens e mulheres, com raríssimas excepções, de
bruços, quasi deitados de rosto contra o cbão, levavam
a mão direita á cara, e esbofeteavam-se em estalidos
compassados i
Penitencia e miséria, fanatismo e ociosidade são cou-
sas a Ilíadas a todos os excessos da crença religiosa, e
ninguém boje, pelo que vimos, as possue em Portugal
como a gente de Braga. .
O templo mais digno de nota, pelo seu esplendor e
muita antiguidade, anterior á fundação do reino, é sem
duvida a Sé, cuja reedificação se attribue ao conde D.
Henrique e a sua mulher, D. Thereza, lá sepultados.
Julga-se que pouco resta d'esse tempo; a frontaria
porém, com as suas torres, uma das quaes é encimada
por um sino, demonstra grande vetustez.
As columnas que sustentam as três naves prejudi-
cam, pelo pouco espaço relativo, onde estão assentes,
a elegância interior, e estão mascaradas de branco.
A capella-mór data de 1510 e é obra de D. Diogo de
Sousa, um dos arcebispos mais zelosos e o mais notá-
vel pela sua actividade, emprçgue em constantes me-
lhoramentos urbanos e construcções religiosas. Jaz em
soberbo mausuleu na egreja da Misericórdia, contigua
á da Sé.
Conta este templo em si e nas capellas lateraes 35
altares, um dos quaes dizem ser ainda o primitivo, isto
è, o anterior á primeira reforma.
Perto (Teste vê-se a capella, onde estão os túmulos
dos pães de D. Affonso Henriques, os reediflcadores,
bem como o corpo simulado, inteiro ou tostado, de D.
Lourenço, com a seguinte inscripção, posta na parte
superior da vidraça:
182 NOTAS A LÁPIS
D. Lourenço arcebispo (n.° 86) s senhor de Braga,
primaz das espanhas.
Falleceu em 1397; foi achado inteiro b incorrupto.
Na face conserva bem visível a cutilada memoranda,
que apanhou na batalha de Aljubarrota, onde morreu.
N'outra capella, á esquerda, ha um quadro, que tem
por thema — Deus a coroar a Virgem — attribuido a João
Glama, mestre de Vieira Portuense.
O coro, a estante e a bapcada de pau santo, que em
parte tiveram o mau gosto de mandar dourar, avanta-
jam-se, com uma notável superioridade, ao que n'esse
género existe nos templos nacionaes, onde temos en-
trado.
Por baixo, á direita de quem entra, em tumulo de
bronze, mal conservado, estão as cinzas do infante D.
Affonso, fllho de D. João I.
Os dois órgãos e a formosa cúpula, que os cobre,
são um primor de arte ornamental.
Os azulejos attribuem-se á época dos Felippes.
N'uma das capellas, officiava-se ainda ha pouco, e
não sabemos se boje se officia, segundo o rito mozara-
.be, de que adiante damos explicação, quando nos refe-
rimos á cathedral de Toledo; por onde se vê que esta
cidade hespanbola e Braga, disputando ha tanto o pri-
mado das Hespanhas, conservam perfeita semelhança de
usos e ritos.
Entre as curiosidades9 de maior valia, se não é a me-
lhor e a mais preciosa delias, figura o frontal da capel-
la do Santíssimo, uma esculptura em madeira inteiriça,
que mede 11 palmos de comprimento e conta perto de
três séculos. Os seus magníficos relevos, por que já foi
offerecida uma avultada somma para um muzeu estran-
geiro, representam a complicada e vistosa allegoria da
Egreja Triumphante.
È obra dos biscainhos, que trabalharam ás ordens do
arcebispo D. Diogo, e deram nome a uma rua da cida-
de, onde alguns se domiciliaram.
KM BRAGA. 183
I T
Segundo a chronica viva cTeste templo, soffreo elle
roubos importantes, no tempo da invasão franceza : do
que pertencia ao culto divino levaram- lhe objectos de
prata lavrada, que pezavam aproximadamente uns 45
kilogrammas. Dessas depredações escaparam uma ima-
gem de N. Senhora, de prata relevada a cinzel, obra de
1653, e uma coroa, cravejada de pedras preciosas, das
quaes não conserva boje uma só, e ninguém nos soube
dizer o paradeiro.
No seu arcbivo porém conserva ainda boje o arcebis-
pado varias jóias de valor.
Na sacristia, quando os poderes governamentaes se
resolverem a orçanisar um muzeu nacional de antigui-
dades, a que já nos referimos, far-se-ia uma larga co-
lheita.
Além de quatro imagens de prata, entre outras curio-
sidades, vimos— o cálix, por onde celebrava S. Giraldo
e o riquíssimo cofre cylindrico de marfim, obra hispa-
no-mourisca, que a encerra, obra de maior valor que o
mesmo cálix, pelo seu finíssimo rendilhado cheio de ar-
carias, figuras humanas, aves e outros animaes; um va-
so idêntico, um primor artístico de prata perfumada,
época de 1509 e serviço de D. Diogo de Souza; parte
do báculo de S. Ouvidio, terceiro arcebispo; paramen-
tos, ricamente bordados em França, e dados de prezen-
te a D. Gaspar de Bragança, filho bastardo de D. João
V; sapatos, meias, chapéu e luvas do mesmo prelado;
os sapatos, com que officiava D. Rodrigo de Moura Tel-
les, fundador da confraria e templo do Bom Jesus, obje-
cto notável pela enorme saliência dos tacões, visto ser
homem baixo e só se permittir aos padres o celebrarem
com uma certa altura; e finalmente uma soberba collec-
ção de frontaes bordados a flores de ouro sobre tela
de prata, com as diversas cores do ritual, em perfeita
harmonia com os respectivos paramentos; alguns dos
quaes figuraram na exposição de Arte Ornamental, com
a estatueta de N. Senhora, o cofre e o cálix de D. Diogo.
Para descargo da consciência e aviso a futuros visi-
184 NOTAS A LÁPIS
tantes convém advertir que os vários cicerones, encar-
regados de acompanhar o forasteiro, constituem-se em
sociedade nominal de ganância illimitada, tantos são el-
les, para ama exploração tão bem combinada, que nos
maravilha, e enfraquece as algibeiras.
Dentro de um só edifício nunca vimos tanta gente
officiosa e um serviço especulativo mais bem distribuído.
Um mostra -nos uma capella e um altar, conta-nos uma
historia, muito circumstanciada, com uma loquela de
espantar, e com grandes cortezias dá por finda a sua
missão; outro entretem-nos com os episódios da vida e
milagres de muitos santos, cujas ossadas lá se veneram,
e entrega-nos a um velho trôpego, que nos leva ao co-
ro; este passa-nos a novas mãos, que nos apontam mais
uma parte, e assim por diante até â porta da sacristia,
onde nos recebe o ultimo sujeito, a revolver entre os
dedos um molho de pequenas chaves.
II
Memorias religiosas.— Os hotéis e as frigideiras.
O Bom Jesus do Monte.
Devoto á força.— O Sameiro.— A ponte do Pico.
Às memorias de caracter religioso abundam por to-
da a parte, nas ruas, nas praças, nos oiteiros, nos lar-
gos, como já dissemos.
A própria columna lavrada» que está a meio da pra-
ça da Alegria, é rematada por uma esphera sobre a
qual pousa um cruzeiro.
Á entrada d'esta praça, situada no começo da cidade,
EM BRAGA 185
do lado da via férrea, está um arco triumphal, encima-
do pela estatua de Braga, construído onde foram as ao-
tigas portas, em 1760, por D. Gaspar de Bragança, já
mencionado.
O Passeio das Carvalheiras è um sitio agradável,
povoado de boas arvores e soffrivelmente mal tratado:
desperta-nos muito interesse pelos seus 16 marcos mi-
liarios, encontrados nas escavações e estradas circum-
visinhas, què formavam os cinco caminhos, de que se
serviam os romanos, e mandados pôr alli e á roda da
capei la de S. Sebastião, onde ba um bom quadro do
mesmo santo, pelo arcebispo D. Rodrigo.
Os boteis de Braga dão alojamento regular servindo
aos hospedes, quando elles o pedem, as tradicionaes fri-
gideiras, a pitança preferida pelos naturaes, um detes-
tável composto de carne e assucar, e o puro vinho ver-
de, a que todos os bons estômagos costumam render
decidido preito.
Agora que já nos enfada o passeio dentro da cidade,
intra muros, vamos novamente ao campo de Santa Anna
tomar o americano, em que teremos de precorrer uns
ires kilomelros, passando pela Senhora a Branca, rua
das Casas Novas e Santa Eulália de Tenões; e a come-
çar d'esta ultima localidade, entremos a enlevar-nos nas
bellezas, que se desprendem do Alto do Bom Jesus até
á estrada, que precorremos.
*
• *
Não è nossa intenção demorar-nos a relatar o que
vimos desde a porta principal, a porta de D. Rodrigo
de Moura Telles, cujas armas lá figuram, ao fundo da
escadaria, que se encontra em zig-zagues pela monta-
nha acima até ao elevado cume do Sameiro. A estampa,
o jornal e o livro teem espalhado por toda a parte a&
minudencias do afamado sanctuario, a que os bracaren-
ses e ainda muitos visitantes prestam o culto mais en-
186 NOTAS A LÁPIS
comiastico. Basta saber-se que o arcebispo D. Rodrigo,
conseguindo a pacificação de umas dissidências de longa
data, que tinham por pleiteador principal o vigário da
povoação mais próxima, S^nta Eulalja de Tenões, dea
começo ás obras da montanha, onde só figurava uma
ermida, em 4722, obras continuadas por seus sucesso-
res, devotos e confrarias.
Tudo alli é symbolico — capelias, escadorios dos
cinco sentidos e das virtudes theologaes,' chafariz das
lagrimas, estatuas, fontes e accessorios, sendo as fon-
tes em grande parte, dedicadas a assumptos mytholo-
gicos.
—Quanto dinheiro malbaratado pela mão estéril dos
antigos prelados e pela fanática prosápia das modernas
confrarias!— exclamou um companheiro nosso, a limpar
a testa, quando chegámos ao adro da egreja.
— Cale-se, que o podem ouvir.
— Calar-me?. . . e porque? Todo o mundo sabe a
quanto monta, ha tantissimos annos, a somma extor-
quida á devoção dos pascacios (Testes arredores, para
obras de religião, que nunca appareceram umas, e ou-
tras, que o meu amigo acaba de encontrar... umas
pedras. . . ou antes. . . uns arrebiques tristes. . . gros-
sos.. . pesados. . . quasi fúnebres. . .
—Que teem custado, ainda nos tempos mais recentes,
aquillo com que se estipendiava a útil e civilisadora
creação de uma boa centena de escolas, ou de uma
dúzia de hospícios, onde as virtudes christãs lançariam
mais profundas raizes do que nos alcantis (Testa serra,
cheia por si só de bellezas naturaes, que auxiliadas um
pouco pela arte dariam os melhores e mais poéticos
resultados, sem estes tristíssimos mármores, que, vis-
tos a certa distancia, por entre o variegado matiz do
arvoredo, nos parecem ossadas brancas de esqueletos,
puídos pelo tempo.
O nosso amigo acompanhava as palavras de grandes
gestos, que chamavam a attenção de um ou outro indi-
viduo que passava.
KM BRAGA 187
— Cautella com a língua, se tem amor ás costellas —
dizia-lhe outro companheiro nosso.
Elle parou, na altura do rosto, com o lenço, com que
ia limpar-se, e tomado de um certo pasmo, pareceu não
entender bem.
O que fallava repetiu a pbrase, e contou-nos o se-
guinte :
Um official superior, commandante do destacamento,
ao serviço de Braga, combinou certo dia com um dos
seus subordinados, um capilão seu affeiçoado, uma di-
gressão recreativa ao sanctuario do Bom Jesus.
Chegados á porta do fundo da encosta, resolveram
subir a pé.
De escada em escada, de capella em capella, em cuja
frente o nosso commandante se descobria, quando lhe
examinava o interior, atravez das grades — lá foram os
dois em voluntária romaria até ao lugar mais elevado.
Notara porém o commandante, com viva estranheza,
que o seu subordinado, um rapaz alegre, motejador e
inteiramente desabusado, desde que entrara a porta prin-
cipal nunca mais pozera na cabeça o bonné, e que muito
recolhido se persignava ao passar pelas capellas, des-
fazendo-se em mezuras e gestos de extrema devoção.
Pareceu- lhe aquillo forçado e por tanto fora do natu-
ral ; e logo que chegou ao quartel indagou de outro
official o que poderia ser semelhante demonstração, tão
contraria á índole e costumes do rapaz.
— Meu commandante — obteve em resposta— gato es-
caldado. . . Esse resultado vem da ultima vez, em que
ambos estivemos aqui destacados, era elle alferes. Bem
sabe que génio é o seu. Em dia de concorrência, foi
para o sanctuario, precorreu as capellas de bonné na
cabeça, com ar petulante e endiabrado, tecendo madri-
gaes ás raparigas e epigrammas ás velhas, de modo
que á saída em premio de tantas fadigas, levaram-lhe
ás costas o peso de alguns marmeleiros. Isso tudo pois
resulta de uma boa sova de pau.
O nosso amigo, com ar incrédulo e cómico, encolheu
Í88 NOTAS A LÁPIS
os hombros, e ajuntou á narrativa uns commentarios,
que nos fizeram rir, com boa vontade, durante o espaço
que levámos até á entrada da egreja, aberta a essa hora.
Este templo não é da época de D. Rodrigo e sim do
seu successor, o já citado D. Gaspar de Bragança ; foi
principiada em 1784, segundo o risco do seu porteiro
de camará Carlos Amarante, que, pelo seu muito enge-
nho, conseguiu mais tarde ser nomeado ofiQcial de en-
genharia e lente de desenho, no Porto.
A frontaria, cheia de resaltos e janellas, não obedece
a um só estylo, que tende para a renascença, sem ter
a monotonia das suas linhas; è ladeada por duas bellas
torres, coroadas de largos coruchéus vasados com py-
ramides menores nos ângulos.
O interior de uma só nave é vasto e claro; o altar da
capella mór representa o calvário em figuras do tama-
nho natural, em meio de quatro formosas columnas, qne
seguram uma grande coroa, em forma de baldaquino.
O Cbristo é uma formosa esculptura italiana, manda-
da vir por D. Gaspar, em 1776, annos antes da funda-
ção do edifício.
N'uma das capellas do cruzeiro, ha uma linda custo-
dia, com relíquias do Santo Lenho, concedidas por Cle-
mente XIV, em 1773; e nas duas sacristias, entre ou-
tros objectos, a imagem do Senhor dos Navegantes, um
grande crucifixo de marfim, esculpturado na índia e de
origem moderna, retratos de arcebispos, juizes e bem-
feitores e dentro de uma redoma um lindo movei de
madeira e prata, ostentando no meio a Senhora da Con-
ceição, feita do mesmo metal, e ladeada de columnasi-
nhas, fustes e rendilhados de muito merecimento.
#
Os melhores e mais notáveis pontos de vista são— o
que se gosa, ao sul do escadario das Virtudes, ao vir
da Cascata» n'um terrapleno, a que dá uma deliciosa
EM BRAGA 189
sombra um cedro gigantesco, tendo á roda uma mesa
e bons assentos de mármore, lagar, a que é preciso
consagrar um tempo demorado, tão formoso e adequa-
do á ternura dos nossos sentimentos se nos mostra elle
— e o ponto mais elevado, o do terreiro dos Evangelis-
tas, de onde se desenrola um soberbo panorama.
Que differença porém entre estas e as beliezas do
Bussaco f
Nas escadarias, no sanctuario, na matta do Bom Je-
sus e nos campos de Braga, que se observam de perto,
ha mais trato e mais arte, se assim o quizerem; os
montes sobranceiros porém áquelle, em que estamos,
limitam-nos o horisonte, aproximam-nos mais da huma-
nidade, emquanlo que, nas alturas do Bussaco, as mon-
tanhas, que avistámos, somem-se ou agacbam-se aos
nossos olhos, até se perderem no infinito.
A cultura dos campos e jardins apparecenos aqui a
um alcance relativamente pequeno, está-nos sob a mão;
lá desapparece o artificio, para dar lugar á natureza,
que fornece mais attractivos a quem preferir a poesia,
sem os adornos do homem.
O que, sem duvida alguma, nos captiva e nos encanta
é o espaçoso e pittoresco lago, que serve de coroa
áquelle gracioso conjuncto.
Os férteis arredores de Braga espantam-nos pela abun-
dância das suas aguas, que rebentam da terra com uma
admirável espontaneidade; o que nos maravilha porém
é que em semelhantes alturas possa haver um manan-
cial de tamanho volume, embora consideremos o Bom
Jesus a parle mais baixa da pequena cordilheira, que
desce do monte Sameiro.
Entremos no bote, que se nos offerece, colhamos uma
flor das muitas, que nas margens se debruçam, a ale-
grar-nos a passagem, e tornee-mos aquellas aguas fas-
cinadoras, uma e muitas vezes, meltendo-nos pelos ca-
naes e desvios, atravessados por pontesinhas rústicas,
e detenhamos-nos alguns instantes ao pé das grutas ru-
morejantes, cobertas de fartos massiços de relva, es-
190 NOTAS A LÁPIS
trellada de reluzentes gotas de uma iympba pura'e
leve.
Gomo isto é bom e bello i como isto dos deleita, e
faz bem i
Depois de bem saciados de aromas e frescura, agora
que nos sentimos mais leves de espirito, entreguemos-
nos a essa outra poesia ... a do estômago, a única que
muita gente só chega a experimentar em toda a vida,
e vamos-nos para o almoço.
A poucos passos do lago, já extramuros, temos um
bom serviço no Hotel Universal, o mais moderno dos
três, que na santa montanha nos offerecem hospeda-
gem.
Muito bem. Agora lastimemos a falta dos pacientes
burritos, que, em Cintra, na Figueira, no Bussaco e
n'outros lugares tão bons serviços prestam aos viajan-
tes, e intentemos a pé a ascenção ao monte Sameiro.
O que vamos lá encontrar?
A belleza dos contrastes. . . uma imminencia escal-
vada e nua, tendo no topo uma egreja em construcção,
aonde ainda ha pouco foram em devota romaria, os po-
vos de muitas léguas ao redor, e um monumento er-
guido em honra da Senhora da Conceição, mais vulgar-
mente conhecida pela Virgem do Sameiro.
Data de 1863 o começo d'estas obras, feitas á custa
de novos devotos, que juram dar celebridade ao novo
local.
Semelhante concorrência, ao que nos disseram, en-
trou já a inspirar ciúmes profanos á confraria do Bom
Jesus, que vem a soffrer nos seus rendimentos, e tanto
que, ha pouco, um mesario, provavelmente no fervor
da sua devoção, proferiu com grave imprudência esta
apostrophe, medianamente devota:
— A Senhora do Sameiro foi o diabo, que appareceu
ao Bom Jesus !
KM BRAGA iM
A imagem da egreja é de esculptura italiana ; a do
monumento... portuense.
Formam-lhe a base escadarias sobrepostas de boa
cantaria; na ultima, em forma octogona de sete degraus,
assenta sobre uma columna quadrangular a estatua de
mármore, representando a Senhora, de pé, com a mão
esquerda sobre o peito e a direita na attitude de aben-
çoar os lugares, que de, lá se avistam, e que são mui-
tos e variados, desde Braga a Guimarães e desta ao
Porto.
Vista a pequena distancia, -quando, em manhã de
névoa o sol Ibe sobredoira a fronte, e o seu vulto ma-
gestoso rompe d'entre as nuvens lentamente, a curtos
espaços, bem poderemos semelhar aquella soberba es-
tatua a uma apparição celeste, posta alli, como sentinella
vigilante e protectora, nuncia de boas novas para o
viandante, que lhe lance olbos piedosos, estrella ruti-
lante, que é um pbarol de bonança para os que lbe pe-
dem luz e crenças.
* *
Tão boas impressões, que hoje se fundem em sau-
dades, trouxemos comnosco, ao voltar a Braga, que
não resistimos então ao desenho de avistar uma vez
ainda aquellas cumiadas, onde a nossa alma se delei-
tara, em momentos de um bem estar límpido, sem nu-
vens.
Às nossas despedidas fizemol-as do monte de Santa
Margarida.
Chamava-nos outro passeio, um precurso de uns 27
kilometros, por entre aldeãs térreas e feias, aquellas a
que nos referimos, quando só desejámos vel-as de longe,
a começar pela de S. Jeronymo até á ponte do Prado,
lançada sobre as aguas misturadas dos dois rios Cavado
e Homem, entre a povoação d'aquelle nome e a fregue-
zia da Palmeira.
O pittoresco da estrada, onde, como era para dese-
192 NOTAS A LÁPIS
jar, caminhava a carruagem lentamente, a amenidade dos
campos e a formosura dos parreiraes, que desciam so-
bre nós, mostrando d'eotre a ramagem, as uvas em
principio de maturação — pagavam-nos a fealdade das
aldeãs.
Para retroceder, fomos encontrar-nos com a estrada
dos Arcos, que é melhor e mais vistosa ainda, e só
parámos sobre a magnifica ftonte do Pico, no lugar,
onde fazem juncção os dois citados rios.
Surprehendeu-nos alli a marinha mais formosa, que
temos visto, e uma das melhores paisagens, que co-
nhecemos.
Começa na margem, que diz respeito ao pequeno rio
Homem, onde as lavadeiras, em diversos pontos, batiam
a roupa, á hora em que por lá passámos.
Os flocos de espuma que lhes escorria das mãos,
como voláteis novellos ao lume das aguas, umas arvo-
res, que saiam aqui e acolá do meio da corrente, ilho-
tas disseminadas por toda a parte, obrigando as aguas
a formarem curvas e desvios, grandes penedos mettidos
de permeio, arbustos rasteiros a matizarem o areal, o
marulhar das correntes, que se revolviam ao mistura-
rem-se, moitas de juncos, azenhas, murmúrios e stin-
tillações arrancadas pelo sol decadente—tudo isso pro-
digiosamente disposto reclamava um pincel habilissimo,
para poder ser visto de longe e nunca as pálidas linhas
da nossa penna.
Se esta paisagem pode contar na província algumas
rivaes, juntas áquillo, que de melhor por lá vimos, des-
contada a fealdade das mulheres da capital e suas cer-
canias, bem andavam os antigos em chamarem ao Minho
o mimoso Éden das Hespanhas.
DE VIÀNNÀ A. VALENÇA. 103
DE VIANNA A VALENÇA
BUonhice portogueza.— O Lethes da fabula.— Passeios.
As raparigas de Vianna. — Fr. Bartholomen dos Martyres.
O Castello.— Apologia do Lima.— Comparações.
Nos caminhos de ferro portuguezes não é muito fácil
encontrar entre os passageiros a familiaridade de hábi-
tos e conversação, que se estabelecem lá fora, como meio
de passatempo, destinado a aligeirar ás boras e ameni-
zar o espirito dos indivíduos, que, sem differença de
sexo, posição ou edade, se vêem forçados a partilhar en-
tre si os commodos ou encommodos de uma viagem ás
vezes longa e demorada.
Não raro, vemos sentar-se ao nosso lado um sujeito
grave, ou uma mulher cheia da sua pessoa, que durante
um dia ou uma noite se conserva no mais absoluto si-
lencio, interrompido apenas, lá de quando em quando,
pelo escarrar não menos grave e pausado, ou pelo ronco
de uma somnolencia, interrompida a espaços.
Quem leva comsigo parentes, amigos ou simples co-
nhecidos triumpha sempre d'esta semsaboria, com gran-
de vantagem para os seus sentimentos e expansões.
Nós, felizmente, achavamos-nos n'este ultimo caso.
Quando, ao regressar de Braga, nos annunciaram a
estação de Nine, o entroncamento, onde tínhamos de
13
194 NOTAS A LÁPIS
mudar de comboio, oem nos passava pela idéa a riso-
nha freguezia de Villa Nova de Famalicão.
Seriam 6 */» horas, quando de novo nos pozemos a
caminho: a tarde começava a declinar, e a deixar-nos
livre dos ardores do sol a faculdade de podermos mais
á vontade examinar as paisagens, que nos ficavam ao
alcance da vista.
Até ao ponto, que demandávamos, só tínhamos a pre-
correr quatro estações : a de S. Bento, em cujo caminho
se encontram dois túneis, o ultimo dos quaes leva 2 l/t
minutos a atravessar, Tamel, onde se nos depara nova
perfuração, Barroselas e Dar que.
#
# #
Ás 8 horas» em pleno crepúsculo, atravessávamos a
ponte mais extensa, que por cá temos, com grande admi-
ração nossa por essa magnifica obra, e dávamos entrada
em Vianna do Castello, a princeza do poético Lima, um
dos rios Lethes da antiga e fabulosa tradição, nome in-
fernal, pouco desculpável, embora os poetas da época
attribuissem áquellas aguas a especialidade de os faze-
rem esquecer, pelas suas muitas bellezas marginaes,
dos males do passado.
E' um dos numerosos contrasensos da poesia mytbo-
logica.
As artes e o próprio sentimento repellem a monoto-
nia—a perpetuidade da luz sem o contraste da sombra.
A ventura do presente é duas vezes agradável, se do
passado ha lembranças de amargura.
Que
O rio que verás tão socegado
Que te parecerá que se arrepende
De levar agua doce ao mar salgado.
como disse Diogo Bernardes, perdoe, por sua infinita
belleza, aos ingénuos cognominadores da antiguidade.
DE VIANNA A VALENÇA 195
■
Fomos alojar-nos perto da praça da Rainha, onde to-
cava uma pbilarmonica, por ser dia festivo, no moderno
botei Central, um estabelecimento de luxo, excessiva-
mente caro e extraordinariamente mal servido.
Na manhã do dia seguinte, começámos o nosso pas-
seio pela nova estação do caminho de ferro, onde nos
não foi permittida a entrada, disputada quasi a murro
por uns sujeitos de má catadura, Cerberos de uma só
cabeça, que abundam por toda a parte, no meio de uma
recua de malcreados, a quem desgraçadamente estão en-
tregues muitas cousas, que mais ou menos interessam
o forasteiro.
A estação, que estava a concluir, pareceu-nos espa-
çosa e boa.
D'alli seguimos para a ponte, que atravessáramos na
véspera, uma magnifica construcção de pedra e ferro,
assente sobre 11 pegões, dando simultaneamente pas-
sagem ao comboio, n'um taboleiro inferior, e ás car-
ruagens, peões e cavalleiros no leito superior, muita
bem gradeado, n'uma extensão de 1:300 passos.
Levantada a pequena distancia da velha ponte de ma-
deira, cujos restos se vêem ainda na parte mais larga
do rio Lima, que em ligeiro T,otovello á volta da cidade
se vae perder no mar— é essa obra moderna um dos
principaes melhoramentos do paiz.
Pena é que as areias accumuladas á entrada da barra
não permittam a navegação de grande cabotagem, em
uma terra, que no passado teve já um florescente e lar-
go commercio marítimo.
#
# #
Da balaustrada da ponte, a pequena distancia, á bor-
da do rio, avistámos grande multidão de gepte, em ex-
tenso arraial.
Era o mercado, com o simples apparato de uma fei-
ra, sem barracas, nem alinhamento.
No chão, por baixo das arvores, havia grande esten-
196 NOTAS A LÁPIS
dal de louça indígena, tamancos de bico, ao uso da
terra, e lenços de chita ramalhuda.
O mulherio formava grupos, agachava-se, ia e vinha
em todas as direcções, em procura dos objectos, de que
necessitava.
Sedento de um oásis, que nos quebrassq a estéril mo-
notonia e a notável fealdade do povo de Braga, a nossa
vista recreava-se em tudo aquillo, onde a espaços ful-
guravam os rostos bonitos e os corpos airosos de gen-
tis raparigas, com os seus trajes typicos de uma belle-
za, que ainda não Unhamos presenciado.
Uma saia curta de vistosa barra, mostrando um pè
muito bem calçado em tamanquinho leve e bem feito,
quasi sempre forrado de baétilha escarlate; um collete
egualmente curto e guarnecido de uma barra preta ou
da côr da saia, com muitos enfeites e bordados, dei-
xando ver as mangas muito alvas da camisa; um aven-
tal garrido, com uma algibeira sobreposta ao lado; um
lenço de largos ramos passado em cruz sobre o peito e
mettido na cintura, muito ourp ao pescoço, quatro ou
cinco pares de volumosos brincos nas orelhas; outro
lenço, quasi sempre de côr viva, atado graciosamente á
volta do cabello luzidio, •em forma de carapuço — tudo
isso muito limpo, muito airoso e bem cuidado, dá ás
raparigas viannenses, bonitas ou feias, um donaire e
uma graça especiaes.
Não ha por Vianna muito que admirar.
O passeio publico tem tanto de bem situado á borda
da estrada, que margina o rio, como de pequeno e mal
tratado.
Aqui e acolá eocontram-se alguns prédios modernos
de bella apparencia, e outros que attestam notável an-
tiguidade, como a Misericórdia e a cadeia, perto do lar-
go da Ra|nha, .onde ha um chafariz, que abastece de
agua a maior parte da população.
O seu tbeatro, situado na rua de SanfAnna, estava
ainda em construcção; é hoje um bom edifício e uma
das melhores casas de espectáculo de todo o paiz.
DE YIANNA A VÁLRNÇÀ 197
Dos templos, que vimos, ha a notar além dos azule-
jos da egreja da Misericórdia uns quatro quadros da de
Monserrate e a obra de talha do altar-mór da de S. Do-
mingos.
Este templo, annexo ao antigo convento, que está oc-
cupado pelas obras publicas, è o mais vasto.
Na sacristia tem um grande quadro representando o
presépio e ao fundo o retraio de frei Bartholomeu dós
Martyres, cujo tumulo singelo se vô ao lado esquerdo
da capella-mór.
Este illustrado e virtuoso frade, que resignara o ar-
cebispado bracarense para se recolher ao convento, go-
sa entre os povos do Minho da mais completa beatifica-
ção.
A própria mulher do sacristão, uma mocetona muito
lavada de ares, que nos foi mostrar a egreja, não se far-
tava de dizer:— T'arrenego, senhor papa, ou lá quem é
que governa nas cousas de Deus! Não fazerem caso
d'este santinho, que tantos milagres já tem mostrado e
que tanto merecia ter para abi a sua bemdita imagem
n'algum d'esses altares... é forte teima.
—O papa está muito longe, mulhersinha, e depois. . .
— Longe ! Quem deu lá ! Pois olhe muito mais longe
chegam as virtudes do s^nto, que costuma soccorrer
logo quem se pega com elle. Que o digam as offertas,
que chovem de toda a parte. No entanto, ha por ahi
outros santos. . . Cala-le, bôcca !
 mulher collocou por um momento a mão sobre os
lábios, e continuou a dar á lingua affirmando os mila-
grosos predicados de frei Bartholomeu dos Martyres, e
enumerando os valiosos prezentes depostos annual-
mente junto ao venerando tumulo, entre os quaes figu-
ravam cântaros e bilhas de azeite, em que ella prova-
velmente não era das partes menos interessadas.
O Castello de Vianna que tanto figurou na historia
militar do nosso passado, uma construcção de varia s
épocas, uma vasta fortificação de guerra, capaz de con-
ter dentro das suas grossas muralhas um formidável
198 NOTAS A LAHS
troço de exercito, está hoje completamente desmantela-
do, e só por irrisão conserva ainda dentro dos seus
fossos orna guarda de alguns soldados.
Se, como meio de defeza, não vale nada aquelia for-
taleza, o que duvidámos, porque se não transforma ella
em alguma cousa útil, num aquartelamento, por exem-
plo, para o que tem óptimas proporções, com a vanta-
gem de possuir ao pé um bello campo de manobras?
Por detraz do castello e ao Hm do grande largo da
Agonia, a que faltam melhoramentos e belleza, vê-se a
capella do mesmo nome, onde existem uns seis quadros
de algum merecimento.
Subindo-se á varanda da torre, ou a um plano so-
branceiro á fonte, que lhe fica ao lado, offerece-se-nos
o melhor panorama de Vianna, tendo á esquerda a ci-
dade e á direita e em frente a magestade do Oceano.
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Dizia-nos, ha annos, um inglez muito apreciador das
nossas cousas que quem tivesse ido ao Porto, sem se
ter aventurado em bote a um passeio pelo Douro, devia
envergonbar-se de faltar na cidade da Virgem.
O mesmo se faz notar ás pessoas, quç, uma vez en-
tradas em Vianna, deixam de precorrer em carroagem
a farmosa estrada, que d'alli parte acompanhando o rio
alè á villa de Ponle de Lima, n'uma distancia de uns
20 kilometros.
E para isso concorre poderosamente o haver muito
qaem julgue as margens do Lima superiores ás bellezas
do Douro.
Pelo quenos respeitava, uma vez alli, tendo bem viva
na memoria a recommendação do nosso amigo Samuel
J. O. e Silva, um altíssimo coração e um verdadeiro
patriota, sem refolhos de basofia estrangeirophobica,
como acontece a muitos que julgam sel-o, não podíamos,
ainda mesmo com sacrifício que felizmente não havia,
Dl VIÁNNÀ A VALINÇA 199
deixar de tributar áqoelle bello sitio a singela homena-
gem da nossa admiração.
Além da descripção apologética do nosso amigo, um
paciente e meticuloso colleccionador, que n'uma recente
visita ao paiz do seu nascimento fizera de doiá álbuns
um rico e curiosíssimo repositório dos melhores typos
e costumes do povo— tínhamos a incitarmos a ardência
dos nossos desejos Insaciáveis, pelo que toca ás digres-
sões de qualquer género.
—Se um dia lá fores— dizia-nos Samuel com o mais
vivo enthusiasmo, bem longe d'aqui— se lá fores, não
deixes, ainda mesmo que te faças conduzir em braços,
de contemplar uma vez ao menos esse admirável reta-
lho da nossa querida pátria, tão invejada por estranhos
e tão mal comprebendida pelos naturaes. Ó amigo, tu
não fazes idéa do que são e do que valem as margens
do rio Lima t uma cousa que a Suissa não possue ) um
encanto ! uma maravilha t um montão de bellezas indes-
criptiveis.
Ás 2 horas da tarde estávamos a caminho, deixando
para o lado esquerdo a capella de S. Silvestre, que se
avista no cume do monte Sorlei.
Entre Mia dei la e Santa Martba deparou-se-nos um es-
pectáculo inteiramente novo para nós.
Á beira da estrada, um pequeno, com a melhor cara
de saúde e robustez d'este mundo, pedia-nos esmola,
de joelhos e com as mãos erguidas.
O caso inesperado fez-nos lembrar a boa sorte dos
dois rapazes, que ao sr. D. Luiz mereceram a mais de-
cidida protecção por semelhante maneira.
Cuidaria aquelle pequeno industrioso que, na modesta
carruagem ond£ íamos, se abrigava a magestade?
Se assim o pensou, ficou-Ihe a desillusão, que em
nós se traduziu em lastima, não pela sua humilde po-
sição, que nos repugnou, mas pela falta de severos prin-
cípios de educação familiar, que ensinem a evitar uma
usurpação feita aos verdadeiros necessitados — os invá-
lidos, os cegos, os aleijados, e tanta miséria, a mais
SOO NOTAS A LÁPIS
deplorável de todas, a que esconde as suas lagrimas na
sombra.
A nossa modesta esmola, n'aquelle caso, só teve a
a intenção de poder sua visar a quem estivesse em qual-
quer d'essas circumstancias, de que a creança podia
muito bem ser a medianeira, o que duvidámos, por co-
nhecermos a quanto chega a indiLStria, que costuma
explorar a credulidade dos viandantes em certas e de-
terminadas occasiões.
#
# #
Além das duas citadas povoações, deparam-se-nos
mais as de S. Salvador, Villamonde, Lanhede, Bertian-
dos, onde está o solar, uma edificação de fraca apparen-
cia, dos condes do mesmo nome, e Santa Combadão.
É realmente formoso tudo quanto se avista da estrada
e se encontra á roda dos povoados, d'onde se desen-
tranham os trabalhos agrícolas, que vão fecundar aquel-
las terras, já de si em extremo productivas.
As margens de áquem do rio formam extensas insuas,
entrecortadas de pomares, onde campeam frondosas ar-
vores de fructo, vinhedos e canaviaes, a que correspon-
dem, formando um conjuncto da mais luxuriante verdu-
ra, as margens da outra banda, a que dão um constante
e risonho aspecto as aldeãs alvejantes, que se debruçam
dos declives.
As terras comprebendidas entre S. Salvador e Villa-
monde e as que vão de Lanhede a Bertiandos são as
que mais nos prendem e impressionam pela sua exten-
são, destinada pela maior parte á cultura do milho, do
meio do qual, a formar os vários matizís da paisagem,
aqui e acolá, em fileiras divisórias, ou marginando as
aguas, sobresae o arvoredo, diverso na folhagem e na
côr do fruclo.
A serie de impressões, que recebemos, não apresen-
ta um só instante de interrupção, ate á entrada da pon-
te, que nos conduz á villa.
DB VIANNA A VAUtNÇA 201
E essas impressões, fazendo justiça aos encómios do
nosso amigo, podemos affirmal-o Acaram indeléveis no
mais fundo da nossa alma.
Ha-de permittir-nos elle porém que sobreponhamos
ás margens do formoso Lima, que lbes prefiramos, que
julguemos de uma belleza mais penetrante os mimosos
campos de Coimbra/
For nossa vez lhe pedimos, se um dia volver á pá-
tria, que no florir da primavera, ou na quadra mais
amena do estio, se disponha a um passeio, desde a
Louzã atè à ponte da Portella, e d'alli a Monte-mór o
Velho.
Ha-de, estamos certo, notar a differença que encon-
trámos, e vem a ser:— Eraquanto no rio Lima os mon-
tes escalvados, sem um toque de verdura, formam pal-
pitante contraste com as bellezas das suas margens ;
aqui, nos campos do Geira e do Mondego, a cultura
vae até ao mais alto das montanhas, em graciosos so-
calcos, coroados de olivedos e pinheiraes, harmoni-
sando um estendal de matizes, em quadros de tal na-
tureza, que, se encontram alma que os sinta, não teem
mão que os descreva no papel ou na tela,
SOS KOTAS A LAPI8
II
Ponte do Lima. — Theatro e hotel..
Caso horripilante. — Cantatas ao lnar. — Até Valença.
A terceira praça de guerra. — Tuy.
Ao primeiro declinar da tarde, chegámos á villa de
Ponte do Lima, a querida de Pedro I, que lhe mandou
fazer e executar a planta, muito cheia de tortuosidades
e más ruas; a favorecida de D. Manuel, que lhe au-
gmentou a população e os privilégios.
Até ha pouco, a primeira curiosidade da terra era a
ponte, guarnecida de ameias e de duas torres, estimá-
veis padrões dos costumes de outras eras, dois bellos
ornamentos da antiguidade.
A camará municipal, á imagem e semelhança de mui-
tas das suas collegas, que são incapazes de compre-
bender o valor das nossas velharias preciosas, foi-se ás
torres e ameias, e arrancou-as, para maior commodida-
de e gloria sua.
A villa possue um theatro, chamado... Lethes, e
como tal, segundo deve suppôr-se, destinado a todos
os actores, que se encarreguem de adormecer o publico;
por onde se prova que alli os nomes e costumes anti-
gos são superiores ás obras de pedra e cal das mesmas
épocas; tem um extenso cães, um bel lo iittoral moder-
no, em cuja praia brincavam por sobre a areia uns por-
cos brancos da maior corpulência que temos visto;
e conta com especialidade na parte mais arborisada
DR V1ANNA Á VALRNÇA 903
bons prédios de construcção moderna, sobresaindo en-
tre estes um palacete, que está distanciado das outras
casas, ao pé da praça dos Touros, uma opulenta edifi-
cação, destinada aos confortos de um celibatário, que,
pelo que nos disseram, prefere aos encargos de familia
a solidão dos seus luxuosos aposentos.
Chegado a esta praça, tivemos de ceder ás instancias
dos nossos companheiros e ás necessidades do estôma-
go, valha a verdade, e pozemos-nos a indagar onde po-
deríamos alojar-nos para o jantar.
Felizmente a poucos passos de nós, n'uma casa de
má apparencia e interior correspondente, havia uma ta-
bolela que annunciava —Hotel Estreita do Lima.
Não era occasião para escrúpulos.
Subimos, e em boa hora o fizemos, porque recebe-
mos uma excel lente hospedagem, dada pela familia de
um homem delicadíssimo, uma verdadeira es t reli a, que
n'aquelle mau Olympo nos serviu, depois de pequena
demora, com limpeza e a preço barato— umas bellas e
saborosas sardinhas da Galliza, uma boa pescada e um
doce de damasco, rescendente á fructa, tão saboroso e
fino como a mais preciosa geléa.
O nosso amigo T. P., a cujas qualidades gastronó-
micas rendemos o mais rasgado preito, devorava com
uma pasmosa sofreguidão, mostrando assim que não
ha mostarda superior a uma boa fome.
#
# #
Em quanto elle dava a ultima demão áquella emprei-
tada devastadora, começámos nós a passar em revista
um jornal, que estava dobrado n'um dos cantos da mesa.
Era o Commercio do Lima de 1 de setembro de 1880,
isto é, de ha 16 dias.
Chegando ao noticiário, entrámos casualmente a lér,
em voz alta, o seguinte, que obedecia no topo da se-
gunda columna ao titulo de
204 NOTAS A LÁPIS
MYSTERIO :
fDura respeitável cavalheiro d'esta villa, cuja honra-
dez e probidade garantimos, recebemos a seguinte car-
ta, relatando um acontecimento tão extraordinário, que
vae por certo despertar a curiosidade publica.
cNão publicámos o nome do signatário da carta por
nos ter pedido a máxima reserva, mas affirmámos que
o seu caracter e a sua posição nos levam a crer que
seria incapaz de vir para a imprensa narrar um facto
d'esta ordem, por simples passatempo, tendo dado como
garantia da veracidade d'elle, a sua palavra d'bonra.
cSr. redactor. — Na sexta feira passada, pelas 2 ho-
ras da noite, na occasião em que seguia d'esta villa para
Coura, um pouco adiante da casa das sr.as Gamas, em
Faldejães, deparou-se-me um quadro, que a principio
nada tinha de extraordinário, mas que foi tomando pro-
porções aterradoras. A noite estava escuríssima. De
repente, parei. Parecia-me ouvir a distancia uns gru-
nhidos roucos d'aiguma pessoa a quem pretendessem
estrangular. Piquei disporás o cavallo. Os gritos lor-
navam se cada vez mais distinctos, quasi ao pé de mim.
Apeei e accendi phosphoros. Na banqueta da estrada es-
tava estirado um homem, com os pés e as mãos ata-
dos por umas cordas delgadas e fortes.
•Não tinha ferimentos visíveis, mas estava horrivel-
mente desfigurado.
tDos cantos da bocca sahiam-lhe dois fios de sangue»
como d'um cadáver em decomposição. Tinha os olhos
horrivelmente espantados e o rosto d'uma pallidez mar-
mórea. Quando me olhou, abriu a bocca desmesurada-
mente, quiz faltar, e apenas soltou um rugido inintelli-
givel, d'envolta com uma golfada de sangue.
tPareceu-me que o moribundo tinha a língua corta-
da. Abaixei-me para lhe cortar as cordas que o ligavam.
Mas quando ia a levantar-me, senti no pescoço uma
frialdade metálica — a bocca d'um rewolver ou a folha
d'um punhal. Voltei-me de repente. Tinha em frente de
DE VIANNA A VALENÇA 205
mim uma mulher vestida de preto» e com um florete
em punho apontado para o meu peito.
cEra alta e magra. Trazia o rosto completamente es-
condido n'uma comprida mascara de panno encarnado,
e a sua cabeça descoberta era absolutamente calva. Da-
va idèa d'uma bola de bilhar, d'exaggeradas dimensões,
—-contrastando singularmente na sua alvura cebacea com
o negro carregado dos vestidos. Do outro lado estava
um homem espadaúdo e forte, também mascarado e
calvo. Pelos movimentos fáceis parecia ainda novo.
«Apontou-me um rewolver, quando me voltava para
elle, e disse-me fi'um francez correcto apesar da forte
accentuaçJo hespanhola: Que, se pedisse soccorro ou
se tentasse resistir, soffreria o mesmo castigo do trai-
dor que alli via estendido. Em seguida, apitou, e appa-
receram immediatamente vários indivíduos todos mas-
carados e calvos, que arrastaram o moribundo, e des-
appareceram pela estrada de Brandara. Não posso des-
crever-lhe as sensações que experimentei n'esta horrorosa
noite, nem pintar-lhe o estado em que fiquei, vendo-me
ao lado d'aquella gente, de estranha procedência, desar-
mado e só. Faça v. sobra- o assumpto os commentarios
que entender, e chame a attenção das auctoridades para
este facto.
cDisseram-me que os dois indivíduos calvos, a sinis-
tra mulher e o seu diabólico companheiro, já foram en-
contrados na Lapa e na alameda de S. João.
cPóde publicar esta carta no seu jornal, mas peço-
lhe que por emquanto não revele o meu nome.
c Recebi uma carta pela posta interna em que me fa-
ziam certas ameaças. Isso, porém, nada me intimida.
0 que desejo é que se faça luz sobre o caso.
cSou
Ponte do Lima 29 d'agosto.
De v. etc.
# # *
cVae sem commenfarios e com a devida reserVa.»
206 NOTAS A LÁPIS
#
# #
Concluída esta terrífica leitura, olbei para T. P., e
vi-o com a bocca cheia, suspenso, de olbos esgaseados.
Depois de forçar até ás guelas o ultimo bocado de
doce, aos impulsos de um copo de bom vinho, reflectiu
elle a limpar os beiços:
— Ó diabo! isso é grave.
E levou a mão ao bolso, onde conservava o rewolver.
— E nós, que lemos de regressar # noite — aventurou
uma senhora, com as cores do rosto um pouco desbo-
tadas pelo susto.
Interrogado o bom do dono da locanda, nada nospou-
de esclarecer.
Mandando abrir a carruagem ao sopro da fresca ara-
gem do crepúsculo, e o resto á sorte, partíamos dentro
em pouco, pelo mesmo caminho, em direcção a Vianna.
A noite não se fez demorar, mas para afugentar ter-
rores, que em verdade deviam ser estranhos áquella
estrada, tão cheia de encanto», derramou-se sobre a cha-
pada dos montes, por sobre o espelho das aguas, nas
planuras, nos campos, em tudo, á volta de nós, por
cima das nossas cabeças, ás lufadas tépidas, o mais for-
moso e diáfano luar.
Dissipou-se a ultima nuvem produzida pelo maldito
jornal.
— Morramos contentes!— exclamou T. P.
E pediu-nos que recitássemos a Canção de Soares de
Passos, e começou depois disso a cantar, com verda-
deiro enthusiasmo de bom patriota, que é, a Maria da
Fonte, o hymno da Carla, e por fim a Marselheza, pe-
daços de operas e mais não nos lembrámos quantas
cousas, no que era soffrivelmente secundado por nós.
Ó meu Samuel, isto não me descreveste tu, porque
o não viste ! *
Que arroubos de lyrismo se apoderam das nossas fa-
DE YIANNA A VALENÇA 887
culdades r que bellezas de perspectiva t que goso para
o espirito t
Vem, amigo, vem assistir ao espectáculo mais bri-
lhante, que talvez te seja dado gosar em toda a vida,
que tão curta é, e tão cheia de amarguras. Vem ao teu
poético rio, passeia por elle em noite estiva e de for-
moso luar, e verás então a sua formosura inteira, um
encantamento, um caudal de infinita poesia t
#
* #
Ao meio dia seguinte, commentávamos ainda no com-
boio, em direcção a Valença, a historia, que havíamos
lido no Commercio do Minho, uma intriga, que mais
tarde circulava nos jornaes, sob a denominação de Qua-
drilha dos Carecas, um mero gracejo, que deu que
pensar e que fazer á policia d'aquelles sitios, om ver-
dadeiro e novo Mysterio da estrada de Cintra.
As bellezas de perspectiva, no caminho de ferro,
desde o Douro ao Minho podem dividir se em qua-
tro secções distinctas : um tanto agreste a parte com-
prehendida entre o Porto e Nine ; mais suave e aprazí-
vel a que vae de Nine a Vianna ; bella a que começa
n'esta cidade, sempre á beira- mar, passando por Ancora,
onde ha uma boa praia de banhos, e terminando na ri-
sonha villa de Caminha, onde desagua o Minho, e se co-
meçam a ver terras de Hespanha; formosíssima, um
caprichoso jardim, a parte que vae de Caminha a Va-
lença.
Alli começa o rio a acotnpanhar-nos e na sua linha
divisória a mostrar-nos a porção mais brilhante de uma
riqueza característica. Com as margens da Galliza, po-
rém, contrastam os campos porluguezes, pelos esplen-
dores la sua vegetação, cultivo e manifesta superiori-
dade.
Ás 3 horas da tarde, chegávamos á estação de Se*
goedães, a ultima, a uns 2 kilometros de Valença, cujo
J08 NOTAS A LAPI8
trajecto se faz em más diligencias e por maus cami-
nhos.
Esta praça de armas, com as suas três pontes levadi-
ças do lado de Seguedães, onde era mais accessivel ao
ataque do inimigo, è uma relíquia das antigas villas for-
tificadas.
Pelos outros lados, as suas grossas muralhas e os
seus grandes fossos tornavam-n'a, em outros tempos,
quasi inexpugnável, depois de fechadas as quatro por-
tas, que se chamam— Gabiarra, Coroada, a da Fonte e
a do Sul, as ultimas das quaes funccionam ainda hoje,
cerrando-se a certa hora da noite.
Em que estado porém vimos nós tudo aquillo, que
diz respeito á nossa terceira praça de guerra de pri-
meira classe?
A artilheria impotente montada e desmontada a esmo,
as edificações damnificadas, os muros musgosos a in-
fundir tristeza e miséria.
Nos baluartes, nas ruas e beccos, que se lhe avisi-
nham, crescem desafogadamente bervas e silvas, por
entre immundicies de todo o género.
E' preciso caminhar por alli, com a máxima cautella
e de lenço no nariz, rogando pragas a quem compete a
responsabilidade de tanta porcaria e desleixo.
Em compensação, os soldados, que guarnecem a for-
taleza desmantelada, um dos pontos príncipaes de de-
feza n'aquella parte da nossa fronteira e um documento
da maior vergonha, passeiam indolentemente, de mãos
atraz das costas e cigarro ao canto da bocca, pelas pra-
ças, ruas e tabernas, porque a libérrima amplitude das
modernas leis militares lhes não consente trabalho, além
do tratamento das suas pessoas.
Mas... por Deust Se o soldado mandrião não deve
concorrer com a força do seu braço para o asseio e. lim-
peza dos postos militares, incumba-se cTesse servjfco quem
é obrigado a velar pela honra do paiz, especialmente em
pontos d'aquella natureza.
Nem procurámos, nem nos emporta saber o que tem
DE VIANNA A VALENÇA.
decidido a táctica de guerra moderna, acerca d'aquelle
apoio de defeza nacional, porque, seja qual foro apreço
em que se tenham aquellas venerandas muralhas, não
podemos deixar de censurar o que por lá vimos, seja
devido a incúria do poder civil ou á da gerência militar.
Mas. . . continuemos.
A pez ar do viver farto e barato de Valença, escasseiam
por lá os commodos de uma boa hospedagem.
A antiga locanda Lusobrasileira está abaixo de toda
a critica, e o moderno hotel Rio Minho, estabelecido
fora das portas, ao fundo da ladeira e junto á praia,
cTonde se passa para Tuy, é propriedade de um su-
jeito, pouco attencioso, que a impar de estulta bacha-
relice, com que a todo o momento enfada as pessoas,
que se lhe dirigem — faz-se pagar por um preço exor-
bitante.
Disseram-nos lá que os ventos da fortuna o teem ele-
vado aquellas alturas.
Bem haja elle por tanto i
Do baluarte do Scccorro, que' dá sobre o rio e nos
mostra, sob um aspecto risonho, a cidade de Tuy, go-
sa-se um formoso panorama.
Ao lado direito tem Valença uma fertilissima bacia,
e, ao pè da estrada, que desce para o cães, um bonito
jardim, onde ha musica aos domingos e uma assidua
concorrência das melhores famílias da povoação portu-
gueza e da hespanhola, que se visitam e obsequeiam
muitas e repetidas vezes, e que mais do que ninguém
devem estimar a construcção da ponte internacional.
Na parte do Minho, que precorremos, foi lá que vi-
mos as mulheres mais formosas.
O cães é de ambos os lados insignificante e despido
de melhoramentos. * *
De cá para a fiscalisação, ha quatro guardas civis; de
14
2tO NOTAS A LÁPIS
lá carabineiros, com o seu chapéu de bicos e o seu uni-
forme garrido.
O serviço dos barcos, obtido por concurso perante a
camará municipal, é péssimo e feito quasi sempre no
meio de nm chuveiro de disparates, a que não faltam
pragas e obscenidades de todo o jaez.
Uma digressão a Vigo não é fácil, porque tendo-se
de ir alcançar em diligencia o caminho de ferro, que
passa a uns tantos kilometros de Tuy, acontece muitas
vezes ser a hora da partida do comboio da manhã a
mesma, em que se permitte a entrada na fronteira hes-
panhola.
Foi o que nos aconteceu, visto que nos não quizemos
sujeitar a passar uma má noite nas encommodas hospe-
darias de Tuy.
Toda a impressão agradável, que nos offerece de lon-
ge a contemplação d'esta cidade, desapparece inteira-
mente, ao penetrarmos nas suas ruas tortuosas, sujas
e mal edificadas.
Era domingo. Nas viellas e nos mercados, inferiores
á mais reles das nossas feiras, nada vimos que tenha
direito a simples menção, nem em coisas, nem em pes-
soas; estas geralmente mal parecidas, sem adorno typi-
co nos trajes, nem distincção característica nas maneiras.
Por mais que nos esforçássemos, não nos foi possí-
vel a acquisição de um recuerdo qualquer, que mereces-
se um minuto de attenção.
Um passeio a Tuy porém torna-se digno da maior
recommendação, simples e unicamente para uma visita
á sua cathedral, construccão antiquíssima, com resaibos
de mesquita, e um portal, que nos recorda o da Sé de
Coimbra.
O interior é pesado e desgracioso, tantas são as co-
lumnas, escaninhos, portas e recantos, que tem, entre
muitos acrescentamentos modernos de péssimo gosto.
O que vale tudo isso no entanto, o que vale a cathe-
dral inteira é a riquíssima bancada, que está collocada
debaixo do órgão, no meio do templo, ao contrario de
DE VIANNA A VALENÇA 211
todas as outras egrejas, que temos visto, e que conser-
vam as bancadas quasi sempre no coro oa aos lados da
capella-mór.
É toda de pau santo nos assentos, encostos e guarni-
ção, e ostenta, desde o tamanho natural até á miniatu-
ra, uma pasmosa abundância de relevos, que celebram
as melhores passagens da historia sagrada.
No meio está uma estante carregada de enormes vo-
lumes de canteiros e rituaes, todos enriquecidos de illu-
minuras próprias da época.
Infelizmente tudo isso está ás escuras, e não pode
ser, á falta de luz, observado minuciosamente, como
requer tamanha preciosidade artística, de que no seu
género nio conhecemos rival.
Não é menos digna de demorada attenção a sacristia,
onde em retábulos sobrepostos ao mostrador, que guar-
da os paramentos, ha relevos eguaes em pau amarello,
consagrados aos doze apóstolos e a outros personagens
do novo testamento.
A concorrência de padres, a cruzarem -se em todas
as direcções, dentro e fora do templo, fez-nos lembrar
de Braga, onde as mulheres necessitadas nos pedem es-
molas para que Deus, Nosso Senhor, nos livre do diabo,
que podemos trazer no corpo.
Ao mesmo Deus pedimos nós fervorosamente, ao des-
cer a rampa, que conduz ao cães, fronteiro a Valença,
que nos desse de vez em quando para admirar obras
de arte, como as da cathedral, d'onde vínhamos, mas. . .
que nos livrasse, por sua infinita misericórdia, de cida-
des como Tuy.
212 NOTAS A LÁPIS
CALDAS DO GEREZ
A necessidade de uma excursão scientiflca ao Gerez. — A ca-
minho.—As aguas, soa antiguidade e temperatura.— Carên-
cia de analyse— A camará de Bouro.— Atrazo e rotina.
A idéa, aventada pela benemérita Sociedade de Geo-
graphià, de se mandar uma commissão scientiflca em
exploração á cordilheira de Gerez, devia merecer o apoio
dos poderes governativos e o caloroso applauso de to-
dos os que trabalham, e lidam a bem da humanidade»
em geral, e do progresso e bom nome do nosso paiz,
em particular.
Essa exploração porem necessitava de ser larga e de-
morada, pela natureza do solo, que se diz pertencer ao
primeiro período geológico, solo crivado de silex e ou-
tros quartzos mais importantes, como as torquezas e
amethistas, e de alguns fosseis; pelos estudos meteriolo-
gicos, em altitudes enormes; pela variedade de exem-
plares sylvicolas, já muito damniflcados pela fouce dos
naturaes, por serem covis de feras; e afinal e principal-
mente pelo exame, de que necessitam as aguas ther-
maes.
Á parte o beneficio, que deve resultar para a scien-
cia de todos os outros elementos de estudo, grande ser-
CALDAS DO GEREZ 213
viço se prestará a muitos centenares de pessoas, que
alli vão annualmente procurar allivio a padecimentos do
estômago, anemia e fígado, com a analyse, que a medi-
cina por certo exercerá sobre as aguas, ha tantissimos
annos julgadas milagrosas.
Já escrevemos algures, e è certo, que ha pelo nosso
pequeno paiz zonas tão descuradas dos poderes públi-
cos, tão precisadas de uns borrifos de civilisação bem
applicada, que mais parecem membros dispersos de
um todo, do que partes componentes d'esta abençoada
nesga peninsular.
As terras do Bouro e o Gerez por consequência es-
tão o'este caso.
Tudo alli è primitivo, rude e pautado pelos acanha-
dos conhecimentos dos séculos passados.
Quando em junho de 1882, nos dispúnhamos a se-
guir de Lisboa para as Caldas do Gerez, muito boa
gente, com o ar mais innocente d'este mundo, nos per-
guntava:—Mas. . . onde fica isso? É. . . é na Hespanha?
À justificação d'esta pergunta lá a fomos encontrar
em tudo o que vimos, e observámos.
#
# #
Numa distancia de uns 40 kilometros de Braga, dei-
xemos a estrada, que conduz a Chaves, nologarejo cha-
mado Penedo, e entremos na locanda da senhora Lia-
nor, uma guapa rapariga de olhos rasgados e bellos,
que illuminam um bonito rosto, cheio de vivacidade e
bons modos, como única coisa boa em meio d'aquella
possilga, exemplar fiel das antigas estalagens, que amol-
lentaram os ossos dos nossos maiores.
Arreiadas as magras cavalgaduras, que podiam ainda
assim desafiar na perícia de galgar despenhadeiros o
mais anafado cavallo, amestrado nas lides hyppicas de
todos os circos europeus, façamos o signal da cruz, e
ponhamos-nos em cautelosa marcha por caminhos, im-
214 NOTAS A LÁPIS
possíveis de descrever, n'um declive medonho, a cujo
aspecto mais de uma pessoa já tem recuado, e desisti-
do de continuar a viagem.
Lá, no fundo da enorme ladeira, corre o Cávado, 'em
leito pedregoso, ao receber o affluente, conhecido ai li
pelo nome de Caldo, devido provavelmente á sua nas-
cente, pouco acima das Caldas do Gerez.
Á ponte, uma obra moderna, é o único lugar, onde
podemos tomar fôlego, ao darmos graças a Deus, se
temos a ventura de não fracturar uma costella.
—Meu caro — dizia-nos mais tarde uma senhora, que
alli passa ha 28 annos— dê... dê verdadeiros agrade-
cimentos ao Altíssimo. Quando em outro tempo aqui se
chegava, já se julgava finda a viagem e passado o maior
perigo. Hoje só as costellas correm maior risco; e n'es-
sa época muito havia a temer pela bolsa e pela vida.
Muitas vezes precisei vir escoltada pela gente do cam-
po, de umas aldéas para as outras. Isto boje é um favo
de mel, creia.
Bemdita seja a ci vi li sacão dos nossos dias, se aquillo,
que só nos pede maldições contra a incúria da respec-
tiva camará municipal, que nem ao menos se tem lem-
brado de mandar limpar o caminho dos enormes ca-
lhaus, que o obstruem, coisa de pequeno dispêndio ;
bemdita seja ella, se aquillo, que nós viamos horrorísa-
do, já foi um dia peor do que hoje se mostra !
Camará municipal— dissemos? Nem tanto era preciso:
bastava que os verdadeiros interessados, os moradores
dos arredores, se agremiassem para melhorar o caminho,
que lhes dá serventia, porque os calhaus, pela maior
parte soltos, ou presos por um só lado, esperam apenas
um ligeiro impulso para rolarem até ao fundo do rio.
Santa e tradicional pasmaceira a d'aquella gentel
Com pequenas variantes, desde o Penedo, por meio
de duas enormes montanhas, até ás Caldas, é o transi-
to difficil e escabroso, um carreiro de cabras, onde os
estreitos carros de bois, aos solavancos, se desconjun-
tam e á carga, que se lhes confia.
CALDAS DO GIBBZ 215
Que o digam as malas da nossa bagagem t
Lançando a vista por aquellas terras, que marginam
o rio, condoèmos-nos da desleixada cultura» que ellas
apresentavam, nua, despida quasi em absoluto de arbo-
risação.
Nem arvores de fructo nas planícies, nem ao menos
um pinhal nas encostas I
No entanto que fertilidade de solo, cortado, a peque-
nos espaços, ainda no maior rigor da estação calmosa,
de cristalinas vertentes de agua, que se despenha sus-
surrando dos montes e valles !
Montanhas coroadas de penedos graníticos, á volta
dos quaes, correndo até ao sopé, se admira uma terra
escura, repleta de adubos creadores, dão-nos uma ver-
dadeira semelhança das serranias e terra preta de Cin-
tra, tão justamente apreciada.
Aquelles povos teem pela arborisação um horror tra-
dicional, não poupando os próprios medronheiros, que
se atrevem a nascer ao acaso nas encostas, e a que lan-
çam fogo, com medo das feras, segundo lá nos disse-
ram, á falta de outra coisa, com que podessem descul-
par a sua emperrada inércia.
#
• #
A' proporção, que nos avisinhámos, mais se nos aper-
ta o horisonte, e mais se eleva a crista das duas ser-
ras, que nol-o estreitam.
Precorridos uns 8 kilometros, depois de termos sen-
tido um arrepio de horror, ao contemplar a triste e som-
bria povoação de Villar da Veiga, que encontrámos na
passagem, no lugar mais estreito e á borda do rio, de-
parámos com umas quarenta casas, agrupadas em des-
ordem, uma massa granítica de más habitações, que nos
impressionam tristemente.
Estamos nas Caldas do Gerez, distante uns oito kilo-
metros da fronteira hespanhola.
216 MOTAS A LAMS
Entrando em mais demorada revista, essa impressão
desfaz-se lentamente, e acbámos em tudo aquillo uma
ceria belieza característica.
Os pequenos campos elevam-se em socalcos aos lados
da montanha; de toda a parte desprendem-se mananciaes
de excellente agua, um prodígio, que humedece livre-
mente terras, casas e ruas, até se metter no rio, que
borda a povoação, por um dos lados.
Uma extraordinária fertilidade, um solo privilegiado
e. . . um pasmoso desleixo.
Nem orbori sacão, que valha, nem cultura, que prestei
Decididamente não ha povo mais indolente do que o
nosso. A quem conhece, como nós, a incúria do índio
e a molleza do tapuio repugna confessar, e custa immen-
so desgosto o fazel-o, que o nosso aldeão lhes leva a
palma.
— Mas...— dir-se-hajtalvez, ao avistar-se no melhor
local, uma bonita casa de construcção moderna, perten-
cente a um proprietário de Guimarães, um homem de
bom gosto, que alli recuperara a sua saúde arruinada—
porque è que a terra não tem melhorado, com a visita
de tanta gente, que ha largos annos afflue áquelles sitios?
Porque o natural, aferrado aos seus usos, apertado
n'um* circulo de inveja mesquinha, peculiar a toda a gen-
te rude, não cria, não inventa, não melhora, e não con-
sente que os outros o façam.
Porque se nega á venda de uma nesga de terreno,
com medo de que outrem lhe faça sombra, costumado
como está a encarar o visitante como meio único de
exploração inevitável e annual.
Porque aquelle, que, grato á localidade, em virtude
das suas aguas, desejando crear uma regalia, toda ten-
dente a engrandecel-a, pretende construir um prédio,
vô-se na impossibilidade de o fazer, como ainda dão ha
muito aconteceu ao sr. dr. Gramacbo, do Porto.
Porque a própria camará das terras do Bouro, cujo
presidente, um bacharel, ardente defensor da santa in-
quisição, lastima que se fundem escolas, d'onde, na sua
CALDAS DO GERBZ 117
opinião, só saem petroleiros, em vez de templos, que
julga ainda poucos— se tem esquivado, segundo nos af-
firmaram, a que as suas informações sejam proveitosas
a quem deseja tornar as aguas conhecidas e generalisadas.
Porque os nossos governos, a quem ellas pertencem
ha cento e cincoenta annos, ainda ibes não prestaram a
menor attenção.
Porque finalmente essas aguas, custa a dizel-o, ape-
zar de tantas curas, que teem produzido, ainda não fo-
ram official e seriamente analysadas.
Diz-se que já eram òonbecidas no tempo dos roma-
nos; que os frades Bernardos se serviram cTellas e as
preconisaram; e que frei ChristovSo dos Reis foi o pri-
meiro a escrever acerca das suas propriedades therapeu-
ticas.
Modernamente, além do que o sr. visconde de Villa
Maior disse delias, nada ha de importante.
Affirmaram-nos que do tempo dos frades existe ainda
um manuscrípto, em mão do sr. Gregório Florêncio
Gannas, morador em Belém.
Ao fim da rua principal, encostadas á montanha, vêem-
se umas esquisitas construcções, que formam seis cones,
caiados de branco, sendo cinco com paredes e tecto de
granito, um com paredes da mesma pedra e cobertura
de telha e, por fim, um telheiro raso, ao todo sete di-
visões, com nove nascentes e onze poços, que datam de
1735, como já mal se pode lér em uma pedra, que diz
assim :
E9TAS OBRAS MANDOU FAZER EL-REY
NOSSO SENHOR, D. JOÃO V, Á CUSTA DOS
POVOS, SENDO SUPERINTENDENTE DALLAS
O DR. GASPAR PIMENTA DE AVELLAR,
PROYEDOR DA COMARCA DE GUIMARÃES,
B PARA SE FAZER CONCORREU COM MUITO
ZELO O DR. FRANCISCO PEREIRA DA CRUZ,
DEPUTADO DO SANTO OFFICIO
E DESEMBARGADOR DA SUPPLICAQÂM
DE LISBOA. ABRIL li DE
MDCCXXXV
218
NOTAS A LAH8
Para que se possa fazer ama idèa da temperatura das
aguas, pelas denominações das esburacadas portas, que
indicam os poços» copiamos o que as imperfeitas ana-
lyses teem produzido, em graus Reaumur e centígrados:
Almas
Santo António
Bica
Fígado
Duas Bicas...
Taboa
Borges
Figueira
Aguas Novas.
Contraforte..
Forte
HAumm
GINTIOtADOS
27
33 y,
29
36.1/4
32
40
28
38
24
30
35
43 »/4
27
33 V*
31
38 3/4
30
37 »/,
35
43»/*
38
47 Ví
i.* nascente
2*
3.*
4.»
6-
7.«
8.»
9.-
A temperatura d'esta ultima nascente, como se vê,
custaria a supportar por alguns segundos: escalda-nos.
São sulphurosas estas aguas?
Não.
Apresentam alguns saes?
Insignificantíssimos.
Teem cheiro ou sabor?
Não. Depois de frias fazem óptimo cbá.
O que conteem ellas então ?
Sabemos apenas, que a analyse da exposição de Pa-
ris, em 1867, achou, em cada kilogramma de agua, 0,2
gr. 675 de princípios fixos-silicatos e chloruretos alca-
linos e uma pequena dose de saes calcareos e de ma-
gnesia.
Ora esta analyse foi exercida no estado frio e demorado.
Que propriedade conteem as aguas, ao sair da nas-
cente, quando ha opiniões, que nos parecem muito jus-
ti ficáveis, de que a acção principal è produzida por um
CALDAS DO GlftBZ 119
certo fluido magnético, que desapparece pelo resfria-
mento?
Não o sabemos, e, que nos conte, ninguém o sabe.
#
* #
Pode calcular-se em perto de mil pessoas o numero
de doentes, que annualmente, de junbo a setembro, pro-
curam estas aguas, especialmente para moléstias de es-
tômago e fígado, apezar de todas as dificuldades, en-
commodos e dispêndios a que é preciso sujeitarem-se.
Para não se estranhar o estado de rotina e atrazo, em
que tudo aquillo se encontra, basta saber-se, que o mi-
lagroso manancial é propriedade do governo, que o en-
tregou até nova deliberação, ba tantissimos annos, á ge-
rência e cuidados da camará municipal das Terras de
Bouro, que o traspassa por arrematação.
O actual arrematante, um bomem emprehendedor, o
sr. Salgado, negociante na rua Augusta, em Lisboa, de
ha muito que requereu ao governo uma concessão para
a encorporação de uma empreza, destinada a elevar ao
grau de prosperidade necessária, a bem da humanidade
e do credito do paiz, abundante de aguas medicinaes,
como poucos, as Caldas do Gerez, mandando analysar
as aguas, creando estabelecimentos balneares, montando
um vasto hotel, e realisando todos os melhoramentos
indispensáveis, para o que está prompto a offerecer as
necessárias garantias.
Os papeis, desencaminhados já de uma vez, lá dor-
mem na repartição competente o somno dos predestina-
dos, aquelle somno despiedado, verdadeira praga tradi-
cional, que, salvas as honrosas excepções, amollenta a
actividade e a consciência do funccionalismo publico.
O edital, que pretende ser o regulamento, diz no seu
art.° i.° e § único, entre muitas letras maiúsculas, que
supprimimos por brevidade:
«Ninguém poderá usar, interna ou externamente, das
220 NOTAS A LAP18
aguas das Caldas do Gerez, sem que primeiro faça uma
inscripção em casa do director ou facultativo do estabe-
lecimento, em que declare o nome, edade, estado, pro-
fissão, naturalidade e moléstia que padece.
• Por esta inscripção receberá do director a pessoa
inseri p ta um bilhete, que lhe dará direito ao uso inter-
no das aguas e a pedir hora e banho ao administrador
ou arrematante, mediante a retribuição ao tempo em
vigor.»
Pois, senhores, nem uma só d'estas letras se cumpre;
impera a lei do arbítrio, da rotina e de alguma expe-
riência, que faz de cada morador da localidade um medi-
co ad hoc.
A bica da agua despeja-se na rua, de noite e dia;
ninguém se inscreve; ninguém recebe bilhete; cada qual
faz o que lhe parece, por seu voto próprio, ou por con-
selho de algum experiente; não ha director; não ha me-
dico.
Perdão ! Ha um velhinho com esse titulo, um facul-
tativo á imagem e semelhança da camará das Terras de
Bouro, a quem se perdoa a ironia, em desconto dos
nossos peccados e dos d'ella também.
Ao diante trataremos desse respeitável personagem,
a quem votámos a mais extraordinária admiração.
CALDAS DO CttBKZ SM
II
Commodidades. — Vingança de montanheses. — O hotel Uni-
versal — O que seria o Geres. — Vidago e as aguas. —
Garls-badenu — Agua a jorros. — A festividade. — Cantigas
populares. — Peditório em verso. — Recursos medico-phar-
maceuticos.
Justo é que faltemos agora das commodidades, que
esperam um doente, que ás vezes para alli precisa ser
conduzido em braços.
Até ao Sm do anno passado, não havia lá uma hos-
pedaria, por mesquinha que fosse; todas as casas arvo-
ravam este titulo, precisando o desgraçado forasteiro de
levar comsigo desde o colchão para dormir até ao pra-
to para comer.
Apezar d'isso, quem não tivesse recursos, ou lutasse
com a affluencia, havia de alojar-se nos curraes do gado,
porque a hospedagem fazia-se pagar por preços exor-
bitantes, havendo por lá casarão frio e desabrigado, que
custava de iO a 20 libras ao mez.
O instincto da ganância não falta por certo ás outras
virtudes da nossa gente rude.
A lavagem da nossa roupa, feita no rio e ao pé da*
porta, custou-nos preço superior ao de Lisboa.
Quando se precisava de um pão ou de uma gallinha,
ia-se em certos dias ao caminho assaltar o vendedor, em
risco ainda de voltar sem o objecto, de que se necessitava.
A falta de recursos servia até para as vinganças mes-
quinhas, de que a gente aldeã sabe tirar tão vil partido.
O distincto medico do Porto, o sr. dr. Gramacho, a
quem, por meio de subscripção entre os doentes, em
L^
212 NOTAS A LÁPIS
cojo numero entrava, se deve o embelezamento da úni-
ca nesga de passeio, que lá existe, ao pé de uns bons
castanheiros, teve grave desgosto por causa de uma des-
sas vinganças, exercida n'um amigo seu.
Fora o caso :
Tendo de celebrar-se, a 15 de julho, a festividade de
S. Eufemia, orago da capella das Caldas, correu, como
é costume, uma subscripção, em que os forasteiros avul-
tam de preferencia.
O amigo do nosso doctor por qualquer circumstancia,
de que não tinha obrigação de dar satisfações a quem
quer que fosse, recusou-se a assignal-a.
Ao outro dia, quando a sua criada saiu a comprar o
leite costumado para o almoço, foi-lhe negada a venda.
O sr. dr. Gramacho, a quem a população devia bons
serviços clínicos, muito respeito e consideração, man-
dou na manhã seguinte com a sua a vasilha do sen
amigo.
Baldado empenho. A venda do leite continuou a ser
negada.
Justamente offendido pela contumácia de tão pequeni-
no desforço, desde essa época, nunca mais o distincto
medico voltou ao Gerez, onde os seus bons serviços tão
necessários eram.
Pela villeza, que resumbra (Teste facto, se pôde cal-
cular o grau de recursos e amabilidades, que por lá se
encontravam ainda ha pouco.
N'este anno, porém, graças á iniciativa do sr. Martins
Ribeiro, único homem que alli podia emprehender tal
• melhoramento, pelo conhecimento, que tem, de outras
terras, e por suas maneiras, que denunciam o trato com
boa gente— levantou-se sobre a modesta casa dos frades
bernardos o Hotel Universal, um estabelecimento, que
se pôde reputar por bom para a localidade, e óptimo
se poderá chamar quando o seu proprietário lhe forne-
cer, quanto a certos viveres e arranjos dos quartos, os
melhoramentos, de que ainda muito precisa.
Ao rez-do-chão fica a espaçosa sala de jantar, com
CALBA8 DO GBRSZ 113
bufete e casa de bilhar» innovações que fizeram embas-
bacar a população inteira.
Ao sr. Martins Ribeiro não faltam predicados recom-
mendaveis, entre os quaes sobresaem ama extrema de-
licadeza e cavalheirismo no trato, coisa rara e preciosa
em semelhante género de industria, brilhante de grande
valia no meio da aspereza d'aquellas serranias.
Mais tarde terá o Gerez de agradecer de mãos pos-
tas ao sr. Martins Ribeiro a creação do seu estabeleci-
mento, verdade verdade, ainda mal olhado e compre-
hendido pelos naturaes ; o que era de esperar.
Os benefícios começam desde já a manifestar-se.
Os doentes, cansados das torturas passadas, afflui-
ram em massa ao hotel, que só não alojou aquelles,
que ignoravam a sua existência.
As casas particulares baixaram as suas exigências,
pintaram as suas paredes, e promettem toroar-se habi-
táveis, limpas e decenies.
E tudo isto porque ?
Porque o Hotel Universal lhes accendeu em face um
pequenino facho civilisador.
A vista d'isto, um ponto quasi imperceptível no cen-
tro de uma esphera de óptimos emprehendimentos a
realisar, imagine-se o que poderia ser o Gerez se o go-
verno se lembrasse não de gastar dinheiro que ninguém
lhe pede, mas de crear para si próprio uma fonte de
receita, offerecendo aquillo a uma empreza, que era fá-
cil encontrar, não uma empreza monopolisadora, que
fizesse vender no paiz as aguas mineraes mais caras do
que as que nos vêem do estrangeiro, apezar de sobre-
carregadas com diversas despezas, como acontece com
as aguas do decantado Vidago, bem dignas de melhor
sorte ; mas uma empreza seriamente empenhada, a par
do sed lucro indispensável, em bem servir a humani-
dade soffredora.
Em quanto que as aguas de Vidago só serviriam para
os ricos pelo excessivo preço, que teem, dois terços
mais do que deveriam custar ; as aguas do Gerez, as
294 NOTAS A LAWS
das Felgueiras e as de tantas localidades por abi fóra,
bem administradas, circulariam por toda a parte, dando
lucros, grandes créditos e bonra ao paiz.
Nem era muito que sonhássemos um Carls-baden, no
nosso Portugal, e outros estabelecimentos estrangeiros
de aguas mineraes, que são a admiração e o encanto
de quem os visita.
Bazares, jardins, passeios, fornecidos de tudo quanto
é necessário á vida, commodidades de todo o género,
accessiveis a todas as bolsas, e proporcionadas ao re-
gimen de pessoas doentes, um deslumbramento de tudo
quanto a civilisação moderna pôde inventar, e crear, alli
se encontra á farta.
E o que tem realisado todas essas maravilhas em
Carls-baden, para não fallar de outras localidades?
Um simples tributo, lançado sobre os forasteiros, que
lá vão annualmente, um tributo, pago á entrada, con-
forme a profissão de cada um.
Àquelle dinheiro, administrado religiosamente, só é
empregado em melhoramentos locaes, e de modo ne-
nhum tem um fim diverso.
Não ba nada mais fácil, nem mais profícuo.
Mas. . . o que devemos nós esperar de quem nega,
ou descura, ha século e meio, uma simples analyse ás
aguas do Gerez?
#
# #
Às maiores curiosidades da terra são a capella de Santa
Eufemia, a cuja festividade assistimos a 15 de julho, os
cones das nascentes, o acanhado socalco, gradeado de
ferro, que serve de passeio publico, e um carreiro de
cabras, chamado passeio dos Castanheiros.
Ao contemplar os mananciaes de finíssima agua, que se
despenha por alli abaixo, desperdiçada e inútil, galgando
sobre uma terra preta, immensamente creadora mas in-
culta, dá-nos vontade de ter uma força sobrenatural para
apeiar as montanhas, e arrasar tudo aquillo.
CALDAS DO GSRIZ 215
Costumes populares não os ba, que mereçam nota.
No dia de S. Joio, festejado pelos hospedes do Hotel
Universal com foguetes e musica, vinda de uma distan-
cia considerável, gruparam-se as raparigas da terra, mal
trajadas e pouco do na irosas, garganteando lá de vez em
quando uma toada monótona e invariável, com este des-
lavado e correcto estribilho:
Chora, Dulovina,
Dulovina, Chora f
Cbora, Dulovina,
Que te vaes embora (
E d'aqui não passavam.
No dia da festividade da santa, nem dansas, nem des-
cantes, nem cousa alguma característica ; notaremos só
na procissão um andor, revestido de três andares em
repartimentos, de cerca de quatro metros de altura,
muito cheio de enfeites e galões, postos em chapa, como
adornos e ligaduras de múmia, e um christo trazido
para o meio da rua e collocado sobre uma mesa, á volta
da qual passou a procissão.
Não podemos saber a significação d'isto.
Na véspera da nossa saída, que era domingo, vieram
alguns populares, acompanhados de dois violões, re-
beca, cavaquinho e clarinete, n'uma cadencia, que não
podemos classificar, tocar e cantar sob as janellas do
hotel, em peditório de vinho e dinheiro.
Eram dois os cantadores, um homem dos seus 50
annos, alegre, vivo, enthusiasta, de palhoça ás costas e
a tocar, como se fora uma viola, n'uma roça doura, e
um rapaz farçola, que improvisava bem.
O melhor typo do rancho porém era um dos dois
violões — olhos postos em alvo, sem pastenejar, cabeça
hirta, chapéu inclinado para traz, ares de verdadeira
inspiração.
A uma das portas do bilhar, fazíamos grupo o Dr.
António Francisco Tavares, ajudante do procurador ré-
gio, o negociante brasileiro da praça de Lisboa, João,
15
226 NOTAS A LÁPIS
Martins de Barros, dois cavalheiros, de quem conser-
vámos saudosas e mui gratas recordações, e nós.
Os improvisos para o peditório corriam todos os cir-
cumstantes.
Chegada a nossa vez, o cantador fitou-nos sorrindo,
e garganteoo :
Ó meu senhor do bonné
E mailo senhor Antoninho,
Não se esqueçam de nos dare
Uma pinguita de binko.
O do bonné era Joio de Barros, e o Antoninho o dono
do hotel, o Ribeiro, que estava a poucos passos de nós.
E continuou:
Ó senhor Juiz Tavares
E mailr-o senhor doutore,
Para a esmola recebere
Aqui estou ao seu dispôre.
O titulo de magistrado era dado ao verdadeiro ba-
charel, emquanto que o de doctor se referia á nossa
humilde pessoa.
Era esta uma das occasiões, em que mais vale pa-
recel-o do que sel-o.
De resto... um rilhmo monótono, desgracioso e in-
variável, i
A gafeira, que váe apodrecendo o espirito do nosso
povo, manifesta-se já nas opulentas tradições da sua
poesia, cuja veia era julgada inexgotavel.
*
# #
Não fecharemos estas ligeiras notas, sem dar uma
idéa dos recursos médicos e pharmaceuticos, com que
podem contar as centenas de doentes, que vão procu-
rar melhoras ás Caldas do Gerez, na considerável dis-
tancia de dez léguas de Braga.
CALDAS DO GKBEZ 217
É natural que se pergunte, para um caso repentino,
entre uma colónia de pessoas achacadas e ás vezes gra-
vemente, quaes os meios, de que se pôde dispor.
Botica só ha uma, no lugar, a que já nos referimos
em caminho, Villar da Veiga, cabeça da freguezia, na
distancia de alguns kilometros, uma relíquia, cuja hy-
giene e adiantamento se podem aferir pelos enterramen-
tos na egreja, caso, *que nós tivemos a innocencia de
acreditar que já não podesse dar-se em Portugal.
O dono da pharmacia, o sr. Luiz Moreira, curandeiro
d'aquellas redondezas, só é encontrado no estabeleci-
mento até ás 10 horas da manhã, gastando o resto do
tempo em visitar os seus numerosos clientes.
Para se conseguir um purgante de magnesia, pela
bagatella de 800 réis, gastaram-se uns 2 dias, se bem
nos lembrámos.
O enfermo era o dr. Custodio Freire, secretario ge-
ral do governo civil de Braga, um excellente compa-
nheiro, possuidor de uma loquella humorística das mais
graciosas, que temos encontrado.
À torcer-se em um violento ataque de figado, que lhe
produziu uma grave inflamação intestinal, com inchação
nas pernas e nos pés, dizia-nos elle, a olhar para uns
reverendos padres, que lá estavam em uso das aguas :
— Diacho f Que eu venha aqui. . . explica-se; mas. . .
aquellas anafadas creaturas de que padecimento se
queixarão? por que estarão ellas aqui? Ah! já sei.
Vêem procurar melhoras para alguma fome devastado-
ra . . . d'aquellas, de que os padres são muilo achaca-
dos.
NOTAS A LÁPIS
III
O sábio José Luiz, medico enviado pela sabia camará das
Terras de Bouro. — Apresentação.— Receitas clinicas. — A
copia viva do Rosalino, — Ezcerptos de nm livro, escripto
durante quarenta annos successivos, com muita somma
de azeite e de estudos.
Fa liemos dos recursos médicos, que, apezar dos sof-
frimentos que o prostraram na cama, deram largas do-
ses de bom bumor ao espirituoso do nosso dr. Freire.
É tempo de lbes apresentar o sr. José Luiz, o medico,
que a camará das Terras de Bouro, em sua alta muni-
ficência, ba por bem dispensar, como grande e desve-
lada mercê, aos enfermos do Gerez.
Estatura mediana, rosto redondo, cabellos quasi total-
mente brancos, olbos pequenos e vivos, orlados de ru-
gas symetricas, bocca franzida, cujos lábios de uma vo-
lubilidade mecbanica se alongam, e contraem á mercê
da phrase, que modulam ; ares sentenciosos com laivos
de mysteriosa proficiência, empbase desmedida no apru-
mado da figura no maior ardor da peroração, cbapeu
que denuncia a passagem de duas gerações, e uns se-
tenta e oito annos bçm conservados — eis o pallido re-
trato do nosso bomem.
Nunca bebeu agua, nem vinbo, e alimenta-se, na
maior parte, de vegelaes.
Só uma única vez em sua vida se atreveu a ir ao
Porto; não nos diz onde adquiriu os vastos conheci-
mentos, que possue; desconhece os eccos do mundo
moderno, que ainda não tiveram tempo de chegar ao
CALDAS DO GKBBZ 2S9
seu ouvido ; tem sempre engatilhada uma citação latina,
nem sempre escorreita de macula ; e dorme tranquilla-
meole, á sombra de uma consciência limpa.
— Os meus remédios nunca mataram ninguém— diz
elle, alevantando o rosto á altura das circumstancias, e
batendo no peito com força.
E não. Honra lhe seja ! Alguns casos da sua clinica
bem nol-o mostram.
Um doente, ao expor-lhe os differentes motivos do
seu padecimento, interrogou-o sobre a conveniência e
inconveniência do uso das aguas.
—O que não faz bem... faz mal— disse-lhe elle—
Vá tomando. . . Se sentir melhoras, continue. . • No ca-
so contrario. . . faça pausa !
Uma pobre mulher queixou -se- lhe de uma demorada
desin teria, pediu-lhe, naturalmente, conselho.
—Olhe— obteve em resposta— quando sentir o ven-
tre assim... assim... vocemecê bem me entende...
vá. . . vá. . . por esses beccos. . . alliviar, que a coisa
ha-de passar.
Um terceiro individuo, torturado por uns teimosos so-
luços, que haviam resistido a todas as mesinhas casei-
ras, resolveu-se a consultar o doutor.
— Meu amigo— aconselhou este— arranje um palito,
e metta-o de vez em quando pelo nariz acima. Isso. . .
isso ha-de ser falta de espirrar.
Encontrando um dia nas mãos de um seu cliente um
mysteriosojvidrinbo, apossou-se d*elle, revolveu-o entre
os dedos, e perguntou:
—Como se chama a droga ?
—Grânulos de arseniato.
— E para que diabo serve isto?
— Eu não sei bem. . . receitaram m'o. . .
— Francezismos! — concluiu elle, abespinhado— france-
zismos, modernices, que dão cabo do interior de uma
pessoa. .. e nada mais.
Um sábio pois... um verdadeiro sábio... o nosso
medico.
230 NOTAS A LAPI8
#
4t *
Foi do quarto do dr. Freire que tivemos a honra de
lhe ser apresentado.
O enfermo, revestido de uma seriedade cómica, diante
da qual não podemos conter-nos, despedia em cada phra-
se uma aguda frecha, que felizmente se perdia ao tocar no
alvo; tratava de vér se podia conseguir um diagnostico
qualquer; o que não conseguiu nunca desentranhar das
nebulosidades scientificas do respeitável Esculápio, que
o reprehendia por ter bebido um copo de boa agua.
— A medicina — observou elle, passeiando a vista pelos
circumstantes — è ou opiniativa ou scienlifica! O doente
de ordinário pecca em três faculdades... vital, natural e
nervosa. Vital... o estômago; natural... os humores;
nervosa. . . os nervos. A agua é estimulante; o doctor
não devia bebel-a, pois bem vé que um cavallo, se anda
muito, precisa que se lhe dê para traz; e assim a moléstia.
—Muito obrigado ! . . . mais lhe devo— disse o Frei-
re, quasi engasgado, e fazendo-nos desconcertar, a pon-
to de precisarmos sair do quarto.
Quando Joaquim de Almeida, um dos nossos melho-
res actores, o mais correcto (Telles, se não descamba
para a farça, nos apresentou o typo do Rosalino, crea-
ção especial, a que somente a sua aptidão podia dar
relevo, nós fomos dos que mais o applaudiram, não sem
protestar um pouco contra certas linhas características,
onde nos parecia não haver rigorosa verdade.
Agora unimos as mãos, em ruidosa e entbusiastica
ovação ao distincto actor, e só nos resta perguntar-lhe
se alguma vez passeiou pelas Caldas do Gerez, na épo-
ca das aguas.
O ar de imposição aos encomicos dos circumstantes,
a gesticulação pausada e grave, a accentuação da phra-
se, meliflua e surda por vezes, altisona e trovejante dou-
tras, as citações substanciosas, os conceitos, as máxi-
mas, o incessante trabalhar a bem da humanidade —
CALDAS DO GRIZ 231
tudo. . . todo fielmente possue o grande e afamado me-
dico José Luiz.
— Eu não escrevo motes— dizia elle, a fallar de um
livro de versos, onde havia completa falta d'elles— lido,
estudo e trabalho em coisas úteis e humanitárias.
Um grande bemfeilor da humanidade, não ha duvida!
E como tal, pretendemos nós, quanto couber em nos-
sas acanhadas forças, expol-o á admiração dos seus com-
patriotas, já que nos não cabe aspirar á divulgação uni-
versal d'este ligeiro escripto.
#
* #
Ha quarenta e tantos annos, que o illustre sábio des-
pende azeite e estudos, para a elaboração de taes obras,
já encadernadas apezar de manuscríptas, obras, que a
posteridade, em geral, e os doenles do Gerez, em par-
ticular, hão-de reverenciar, e bemdizer de joelhos.
Trataremos da primeira e mais volumosa das três, a
obra capital, onde o philologo, o medico, o analysta, o
philosopbo e o naturalista lêem muito a observar e
aprender.
As citações, que publicámos, com a devida autorí-
sação, escusado é dizel-o, são téxtuaes, copiadas com
o maior escrúpulo.
Intitula-se o livro :
Luz da Medicina
Pratica, Racional E Methodka
Do Medico de si mesmo.
Trata Da Natureza, Saúde,
e Morte Do Homem.
Útil e Necessária Para Meu
Directório.
Complido
Por
José Luiz da SUva Boavista
Caldas do Gerez Anno 1880.
232 NOTAS A LÁPIS
Na pagina seguinte, repete-se o titulo, de mistura com
outros dizeres.
À pag. 7 e do cap. 4.° encontra-se logo esta primei-
ra lição:
•Para conservar a saúde, convém saber o tempera-
mento dos sólidos, e dos humores, e fluidos ou líqui-
dos, aliás dos espíritos, e tudo se conserva com o co-
mer e beber; e para conservar a saúde, è necessário o
uso d'elles bem regulado.»
Nada mais claro e unctuoso.
Apezar do seu génio conservador, percebe-se que o
nosso douto escriptor é um tanto amigo de in novações,
pois que, rompendo pela velharia que dá nos livros o
começo onde é o começo, apresenta-nos a pag. 9 o
PROLOGO-1NTRODUÇÀO
Se não andou aqui a elevada idéa da innovação, o
bello de tudo isso deve-se ao immenso jorro de inspi-
ração, que passou de enfiada por aquellas Tolhas até pa-
rar na citada pagina.
Foi redem piora essa pausa, que bem nos mostra que
todo o tempo è tempo.
Vejamos o melhor tfesse—prologo-introdução:
•Dilatado e espaçoso campo se offerece boje ao dis-
curso «Diz a Águia e Africa.»
«Temerário seremos expor-nos a uma sciencia de tão
alta consideração como a de que vamos tratar; mas que
a curiosidade me chama e a vontade me excita, ainda
que bem sei, que ha muitos que me podem ensinar;
mas não fallo com estes; mas sim com quem o não sabe.
«E n'esta sciencia muito folgo de saber muitas miu-
dezas; porque algumas vezes parecem nada, e se não
fosse estudalas, as ignorava.
«Se algum leitor lhe não der appreço não me afelige;
CALDAS DO GtRRZ 233
porque a Aranha, occupando-se em fiar, urdir e tecer,
forma curiosas e repetidas teias, e como não agradam,
atiram-lhe de relance, escapa-se fugindo: e nem por isso
deixa de continuar na sua lide.»
E conclue o prologo :
«Todo o corpo è pbelenmatico e bumural em qualquer
estado, seja de doença ou de saúde.
cA saúde dos corpos consiste na egualdade dos hu-
mores.»
Sempre doutrinário... até nos prologos-introducções t
À pag. 14, fisgado ás crinas do Pégaso inspirador,
eleva-se o seu espirito philosophico, rasgando ares e
montanhas, á altura, que denuncia o titulo :
PHISIOLOG1A HISTÓRICA. HOMEM
Attenção !
«Se está de Deus que principiemos sonhando vá em-
bora de phantesia: prendam-se os sentidos, e durmam
os desacordados da rasão, solte-se o discurso, e acor-
dem os lethargos da ignorância.
«É o homem aquella alta milagrosa Idéa, preclara,
magestosa Obra, a quem o Architipo Divino compoz
por milagre, alentou por prodigio, e expendeu por ma-
ravilha I decretando-o por príncipe absoluto da sublunar
Monarcbia.
«Não permitia minha develidade a expor-me a esta
obra ; mas não pude resistir ao desejo de insistir a es-
tas idéas de que sou apaixonado; mas o recreio do meu
espirito, assim o demanda.
«Zombai vós, e ride muito embora das minhas frases,
234 NOTAS A LÁPIS
e se inda encontrares algumas coisas dignas de louvor,
entre outras merecedoras de sençura, não pelijemos por
isso, roi umas e come outras muito ao teu paladar, que
eu também poderei fazer o mesmo, quando no fértil cam-
po da tua sciencia sairem á luz as tuas eruditas obras.
cPara a fundação d'esta obra por largos dias do meu
retiro, estudei, notei, li e escrevi, se te parece que fiz
pouco, eu affirmo-te que trabalhei muito, se te enfada-
res com somente o ler, eu ainda não me enfadei com
ler, escrever, notar e esludar,
cAffirmando que em toda a minha vida, tenho gasto
mais em azeite para estudar, do que em vinho para be-
ber: Assim o juro.
•As obrigações de beneficência me obrigam a tradusír
esta obra a alguns dos meus collegas • médicos de si mes-
mo» se ella lhe servir de regra para conservação de sua
saúde por modo possível, é o objecto da minha pretenção.
cEm que finalmente: o Homem para respirar abre a
bocca, e lança fora o ar quente, com que o coração abafa,
e recebe o frio com que o refrigera.»
Muito bem. Ora que todos os grandes homens se
bão-de arreceiar um pouco, agora ou logo, da morde-
dura dos zoilos t
Pois quem vive no reinado da Sublunar Monarchia,
detesta o vinho, e bebe azeite... não é isto... quem
gasta tanto azeite no retiro a trabalhar, traduzindo a
obra aos collegas, e abrindo a bocca para respirar, pelo
grande esforço mental e physico, já se vê — pode lá te-
mer sençurasf
Nada, não pode ser. Mais firmeza e... menos modés-
tia, amigo doctor.
#
* #
Ghegando-se a pag. 15, o que pensam que vamos en-
contrar? A continuação de tão vasta matéria, apimentada
com boas regras, refundida, ampliada ?
CALDAS DO G1BEZ
Upa ! upa !
Os rasgos de attenção benévola e paternal, consagra-
dos pelo autor á grande humanidade, não teem limi-
tes.
Fiel ás melhores crenças da religião, o doctor consi-
dera-se mano em Ghrísto de todos os homens natos.
E n'esta situação, esquecendo no arrasoado preambu-
lar de pag. 9 algumas observações pedagogico-especiaes,
soccorreu-se da luminosa e sempre moderníssima idéa
de consagrar mais um
PROLOGO AO IRMÃO LEITOR
onde não se cansa de formular para a direita e para a
esquerda, começando na botica, e acabando na cosi-
nha.
E tudo isto. . . sabem porque?. . . por causa dos w-
chimentos.
•A arte de cosinha — diz elle — bem a ser, e não á
arte melhor para conservar a saúde, que bem a ser,
cansasso para lhe saber bem o jentar, e temperança no
Jentar para lhe saber bem aceia, (e nada de Enchimen-
tos.)»
Gondemna depois a arte de cosinhar com grandes
temperos, citando Alexandre Magno, que mandara des-
terrar do seu exercito famosos cosinheiros.
•Quanto ao apetite vicioso — continua— se vé naquel-
les, que apetecem comeres desusados, como torra, bar-
ro, ou carbões, etc.
cAs cruesas, que residem na bocca do estômago,
mordicando-o causam semelhantes appetencias. Neste
caso é a cruesa mais de appetites. Todas as vezes, que
a cruesa debilitou a faculdade, offende-se com contrá-
rios, e padece vários desejos: abraça o máo, e repudea
o bom.»
236 NOTAS A LÁPIS
«Destas e outras implicâncias, que não permite refe-
rir a brevidade da reflexão, haja comiudo Frugalidade,
conforme lhe for indicado n'este livrinho.
c Ainda não gastei todo; mas fico-me para não fatigar
o curioso leitor.»
Ora implicâncias de repetida modéstia usa sempre
comnosco o autor.
Fatigar o leitor, quando vemos á larga, aqui e acolá,
por um lado e outro, de cima e de baixo. . . sim. . .
como o outro que diz. . . quando nós vemos. . •
Mas... adiante, que temos matéria transcendente e
erudição a jorros !
IV
Ainda o nosso homem.— Continuação dos excerptos.— O qne
▼em a ser a cabeça humana.— Exame das aguas.— Outro
livro.— Títulos e capítulos.— Surjam os editores.— Bemdita
sapiência.
Passemos com a mais acrisolada reverencia por cima
do que encontrámos até pag. 21, e detenhamos-nos
ahi. .. abi onde está a gemma da monumental produc-
çío.
Acbamos-nos possuído de tal sofreguidão, que não
sabemos por onde principiar.
Principiemos pelo principio, pedindo desculpa ao mes-
tre, que nos dá o salutar e metaphysico exemplo de co-
meçar pelo meio.
Entremos pelo titulo dentro:
CAÍDAS DO OBBEZ 387
Região Animal. — Cabeça. — Principio
de Tudo. — Prodígios.
Prosigâmos :
tO Limpo do Homem, é a Cabeça, Tribunal da Ra-
zão, e Corte dos sentidos.
t Por ella tem explicado prodígios o Tempo* Emflm
ella é a parte mais excelsa do composto Phisico e Po-
litico do homem.
t Da Terra é Cabeça o Ceo, das Cidades Roma, e o
mais, assim em proporção.
cE ultimamente tudo o que é singular entre muitos,
é Cabeça na estimação de todos.
cEla é o principio de qualquer coisa; por ser também
a cabeça, verdadeiro principio do bomem
fingirão os Antigos jeste provérbio: nec caput, nec pedes:
Nem pés, nem cabeça. Insinuando nestas palavras que
assim como o bomem se estriba nos pés, como prin-
cipio de segurança e se termina na cabeça como fim do
corpo, assim um negocio deve ser vigoroso. •
Diante disto, mordam-se os raivosos e
t Aprendam cTaqui os homens, que desejam acertar, a
não se applicarem mais que a uma só coisa, para satu-
rem felismente com o fim a que aspirão.
cEotregue-se cada um, não a tudo, mas todo a parte,
e segundo Aristóteles, que foi o bomem, que tudo teve
pé para dizer (I) e cabeça para acertar. A razão dá Oví-
dio.»
Pois quem tiver pés e cabeça siga-nos, rastejando
embora até ás altas regiões, onde sobe o sr. José Luiz,
cujos pés não tivemos tempo de observar, porque nos
deslumbrou a cabeça, que é. . . jurámos. . . o que elle
descreve assim :
t Na verdade se pode chamar a cabeça do bomem chi-
mine, ou fornalha do corpo, pela qual se transigirão
todos os vapores, e flugens, que se elevam das offici-
228 NOTAS A LÁPIS
nas ; mas se estas por algna cousa se impedem, e de-
tém n'aquella parte, porturbam e amotinam todo o na-
tural governo do composto pbisico; porque gravão e
opprimem a cabeça, que faz o primeiro papel na dispo-
sição económica.
t A Cabeça é hierogliphico da Divindade, a fonte do
génio, *s olhos do amor; as faces da vergonha, as so-
brancelhas do fausto ; os ouvidos da memoria, os ca-
bellos do luto, o nariz da zombaria, o peito do conse-
lho, os joelhos da misericórdia, a mão direita da Mages-
tade, a esquerda da ladroisse, e a barba é simbolo da
gravidade, da arrogância, da bonra, e da sabedoria! !! »
E o que nos dizem a isto? Ha alguma coisa por ahi
mais eloquente, profunda e persuasiva?
Abençoado José Luizt Abençoados sejam a nossa pêra
e o nosso bigode, que nos tornam grave, honrado e sá-
bio!
«Para todas as partes do homem manda Deos pelo
Correio da terra especiaes cartas de favor» — conclue
este raríssimo trecho.
Bem sabemos. Todos nós temos recebido algumas.
Depois de comparar a cabeça a uma noz, diz :
«Nenhum discreto deve ignorar o acrisolado das três
Regiões, Animal, Vital, e Natural, que compõem a ex-
celsa fabrica do homem.
«Na primeira se descobre systemas, Moralidades, Pro-
dígios, Ritos, Sacrifícios e outras mais observações da
Cabeça Humana, ou Região Animal; outro sim desco-
brirá, e comprebenderá simpathias, em que doutrinal-
mente se ensinuam Anatomias, achaques com suas Es-
sências, causas, signaes, prognósticos, e curas, tudo
pertencente á mesma Região; e a mesma ordem guar-
dará na segunda e terceira.
Deuses pantagruelicos, vinde em nosso auxilio ! Tão
assombrosa erudição espanta-nos, acrisola-nos, fazendo-
CALDAS DO GKRBZ 239
dos barafustar, como cego sem Uno, n*este estrondoso
labyriniho de phenomenos raros e nunca percebidos.
Continuemos :
«Na cabeça residem as potencias da alma, Entendi*
mento, Memoria, e vontade, com a providencia da qual,
se governa o corpo, e partes inferiores.
•No bomem se situa a preclarissima Região vital,
qual é o peito do mesmo bomem, praça dos espíritos,
arca da vida, Etbana do amor, Mogibelo do ódio, Ve-
súvio da vontade, Erário do Segredo, e Morgado do
coração.»
Oh I maravilhas da creação t . . Etbanas, Mogibelos,
Vesuvios e cordiaes Morgadios, até onde nos eleva o
espirito observador da medicina das terras do Bouro t
Mas. . . não nos aturdamos. . . avancemos. . .
•No homem ultimamente se funda a nobilíssima re-
gião natural, qual é o seu próprio ventre, dispenseiro
commum da nutrição, armazém dos viveres, crisol útil,
coloaca do inútil, e refetorio universal de todo o corpo,
e tanto que faltando o provimento n'esta officina, já no
todo se perturbou a consonância. Jejunus venter non
audit verba libenter.*
Beatus venter qui te portavit Josephum Ludovicum
Maxirnum t — bradámos por nossa vez, para dizer al-
guma coisa, pois lodo somos uma couvulsão febrici-
tante, que ameaça despenhar-nos das cumiadas do su-
blime, onde o teu grandioso engenho nos fez subir, com
grave risco das nossas faculdades.
Paz I paz ao simples mortal, que não possue o espi-
rito dos videntes para se librar comtigo ás regiões do
infinito, onde em monumentaes reviravoltas de uma sa-
rabanda mystica se debatem os teus Ritos, Sacrifícios,
Moralidades e Prodígios t
Que os naturalistas nos digam que as pedreiras inex-
ploradas do Gerez, nos quartzos que lhes afogam os
240 NOTAS A LATO
leitos* só possuem bellos carbúnculos e formosas ame-
thistas, que nol-o affirmem, que nós lhes lançaremos
ás faces as pérolas de sapiência, que a nossa mão in-
competente ba tido a fortuna de desfiar sobre este li-
vro» aos olhos da posteridade.
#
# #
Mas. . . saiamos cTeste deslumbramento, que nos em-
briaga, e, mal refeitos ainda da prodigiosa fascinação,
continuemos.
A pag. 33 trata o preclarissimo varão das recom-
pensas moraes, ganhas pelos sacerdotes da medicina ;
o que facilmente se deprehende das palavras e titulo
seguintes :
Do medico louriado
Medico cercado de louros.
•Em fim chegou ao medico a sua ora. . . etc
E lá vae indo em elogio, que remata a fallar da lín-
gua, «nascida entre paredes, que são as nossas quei-
xadas.»
Com magico fervor, exclama que não ba nada na
terra como o medico, a quem, entre muitos nomes,
chama :
cSóberano e adeosodo ministro do excelsa Monarchia
de Apollo.i
No meio das suas graves locubrações, não lhe teem
passado desapercebidos os processos das differentes es-
colas, como era de esperar.
Dando a entender que a nova medicina é filha da an-
tiga, diz:
cFraca è a Ave que não dá um boo mais longe, do
que sua mãe o ensinou. •
CUDA8 DO GKE1Z 114
Saltando a pag. 47 temos um capitulo consagrado a
Flores, Esperanças, Provérbios
Basta-nos um para amostra:
cMuitas promesças faz o tempo, que au diente não
cumpre, largas esperanças, fins nunca alcançados, gran-
des promessas, escassos comprimentos.
E termina:
«D'estas e doutras doutrinas, pôde o esperto leitor
eitrabir comprincipios para os maiores acertos, e deri-
var para a sua pessoa a mais crescida gloria.»
Muito obrigado pelo nosso quinhão!
Profano, como somos, cá nos vamos refocilando nes-
tas macias alfombras doutrinarias, e aconchegando dos
hombros uma ponta do vasto manto de gloria.
Fallandonos pela voz do Oráculo, a pag. 51, mos-
tra-nos o
Reino Animal. Provinda da Terra. Paronimia Moral.
Vejamos meia dúzia de linhas apenas:
•Tem as queixas seos prohibentes, e indicantes na
precisa determinação das Medecinas; os affeitos frios in-
dicio remédios cálidos; as intemperanças seccas pedem
remédios húmidos e prohibem tudo o que não for hú-
mido e cálido: St enim calidum est. (dis o Oráculo de
Cóos.)
A cautella è um dos predicados mais salientes, que
revelam a grave e veneranda pessoa do sábio escri-
ptor.
Não bastando ás suas previsões sobre o futuro os
dois títulos do livro, acrescenta-lhe a pag. 59 mais um,
16
Jftl fcOTAS A LArtS
onde prescreve «algo ris meios eGientcos» com uma nova
introducção ainda, onde nem mais nem menos nos en-
sina a
«Applicar meios conducentes a praticar Theologias.»
caso estupendo para a moderna sciencia, e elevadíssimo
descobrimento, que vem revestir o cura de almas do
predicado de cura-corpos.
* *
Ao terminar a sua terceira introducção, dá-nos o ma-
ravilhoso philosopbo a medida exacta dos seus unrver-
saes conhecimentos geographoscientificos n'estas pala-
vras :
«Em todo o mundo á doenças e enfermos, e em pou-
cas partes cTelle se achão os Médicos.
«Na Europa, onde florecem as Artes, são esses mais
vulgares ; porém, nas mais partes são raríssimos, ou
totalmente desconhecidos.»
^Deixemos aos entendidos uma Arte de Formular, onde
nada se formula, para maior commodidade e acerto do
leitor, no fim do livro, e terminemos a pag. 33 por um
assumpto, que a todos nos interessa, pequenos e gran-
des, sábios e ignorantes.
E' o óptimo resultado do exame e observações do
medico sobre as qualidades therapeuticas das milagro-
sas aguas, descobertas pelos frades Bernardos, ta tan-
tissimos annos.
Camará e governos dormem tranquillos á sombra
d 'este magnifico juizo; e d'ahi se deriva a falta absoluta
de outros exames, que todos julgarão desnecessários,
visto que o mestre disse a sua ultima palavra.
Fique, pois, conhecendo o mundo inteiro que:
«As Caldas do Gerez, tem a virtude confòrtativa no
que convém, e tem de mais a virtude absorvente dos
caldas oo eum JM8
ácidos errantes; participam do minaral por onde pas-
sam depois do enxofre que lhe dá calor, e este tal mi-
naral absorve as qualidades surphureas e communica
as soas próprias; e por conseguinte são boas para aquel-
les achaques para que servem as pílulas absorventes e
outros para as bodropasias.
tEUas absorvem confortando. Convém para corrigir,
a temprarem, e delgaçar qoaesquer umores crassos,
viscosos, glutinosos, e accidos, e por conseguinte, coi-
venientes para desvanecer qualquer espécie de abstrac-
ções das glândulas, por ter a propriedade de evacuar
os umores damnosos e perdomfnantes, ou por camará
ou por ourína, sem causar alguma diminuição de força.
• Por tanto convenientes a todos que cultivam a vida
sedentária, e aos que comettem excessos, com vevidas
torpes.»
#
Grandes desejos tínhamos nós de faltar detidamente
das outras duas obras do eminente personagem.
Intitula-se uma — Observação sobre as aguas do Ge*
rez — quer dizer ampliação minuciosa do juizo, acima
exarado, e começa por esta cooceituosa citação latina
— Prima milia passarorum
A outra e ultima entra, com denodo, pela seara den-
tro das letras amenas, prova exacta dos talentos ency-
clopedicos do autor ; chama-se — Ramalhete das senho-
ras — e trata de algumas amabilidades dirigidas ao bello
sexo, receitas e explicações das moléstias secretas, que
lhe são peculiares. .
Para se formar um juizo aproximado da sua grande
valia, è bastante conhecermos os títulos seguintes de al-
guns capítulos :
Dos mezes demasiados, que não guardam ordem.
Da relação do útero quando abocca e sae fora.
Da mola que gera o útero.
Felôres... esperanças.
•244 NOTAS A LÁPIS
*
# *
Felorida sapiência t Do alto da nossa incompetência
nós te bemdizemos, chamando em altos gritos por to-
dos os editores portuguezes, para que se não deixe de
dar á estampa, na integra, para completo luzeiro das
Caldas do Gerez, bonra e fama da camará das terras de
Bouro, esse inexgotavel repositório de verdades e lições
académicas, que se chamam as obras, que para seu di-
rectório compliu o douto medico José Luiz da Silva
Boavista, homem pyramidal e maciço, a quem Deus
guarde por muitos annos e bons.
MADRID B O CINTRNAilO Dl GALDBBON 245
MADRID E O CENTENÁRIO OE CALDERON
Um estrangeirophobo.
Do entroncamento a Badajoz. — D. José Santamaria.
Do Guadiana ao Manianares.
Em começos de 1881, um (Testes indivíduos muito
enthusiastas pelas cousas estranhas, bom comedor e
portanto extrenuo admirador das galinhas dos seus vi-
sinhos, que achava sempre mais gordas que as suas,
dizia-nos, depois de ter.falladb das producções agrícolas
de alguns paizes :
—O amigo, já atravessou a nossa fronteira para ter-
ras de Hespanha ?
— Apenas uma vez para além do Minho, onde a cul-
tura e a belleza dos nossos campos não teem nada, ab-
solutamente nada a invejar aos dos nossos visinhos —
respondemos.
—Qual historia t £ incurável o nosso desleixo. Tem
lá comparação comnosco o que se encontra d'aqui para
fora? À ultima viagem que fiz, por via de Badajoz, aca-
bou de convencer-me, de. . .
E o nosso homem, em frases laudatorias muito de
notar, alargou a conversação, fazendo-nos descer um
pouco do juízo, que formávamos da estremadura hes-
H& BOTAS A LARg
panhola, que apenas conhecíamos por algumas noções
de geographia fisica.
Às suas palavras, forçoso é confessal-o, produziram-
nos certo abalo, e vieram-nos á lembrança, na noite de
20 de maio d'esse anno, quando á 1 hora e meia lar-
gávamos do entroncamento, com destino a Madrid, em
companhia de um amigo, de alguns dos nossos jorna-
listas, curiosos uns e outros commissionados para assis-
tirem, como nós, ás Testas, que haviam de celebrar- se,
no centenário de Calderon.
Mariano Pina, cuja palidez habitual nos não denun-
ciava fortes disposições de bom estômago, desde Lis-
boa, que se queixava de grande fome,\]ue só terminou
á meza do restauram, d'onde não houve forças que o
arrancassem senão depois de uma hora e meia, que ta-
manha foi a demora do comboio, á espera da gente,
que tinha de vir do Porto.
Ao conchegar da cabeça o extravagante barrete cóni-
co, cujas proporções fizeram a admiração de Bordallo
Pinheiro, e foram mais tarde reproduzidas pelo seu lá-
pis— arrancou-nos elle á lembrança essas expressões en-
comiásticas, quando nos chamou a attenção para a for-
mosíssima marinha, que se estendia desde a Barquinha
até á estação da Praia, uma paisagem fatídica, tendo
por centro a figura melancólica do castello de Almourol,
cujas ameias derrocadas vinham reflecHr-se, em crispa-
ções fantásticas sobre as aguas do nosso Tejo, onde a
arborísação marginal se retratava também, estabelecen-
do as sombras do quadro, illuminado pelos toques diá-
fanos de um bello luar.
De Tramagal em diante, os nossos campos, que ai li
são extensos e planos, pareceram-nos mal cultivados.
Terá razão o nosso homem?— pensávamos nós, ás 7
horas da manhã, quando éramos convidado pelo nosso
companheiro, atacado pela fúria gastronómica do Pina,
para fazermos uma visita ao farnel, no momento em
que chegávamos a Elvas.
O farnel i Nunca elle veia mais a propósito.
MADRID B O CglfTONABJO QE CALDKRQN $tf
Os desgraçados, que o não levaram, e resistiram por
cerimonia ao convite dos previdentes, esbarraram con-
tra as paredes noas e sujas de uma tasca, que tinha de .
restaurante apenas o letreiro. Afora um café simples,
aguardente e uma toalha para duas dúzias de pessoas,
que lá foram lavar a cara, nada havia.
Ás 8 horas» chegávamos ás margens do Guadiana, e
avistávamos os primeiros carabineros, na estação de
Badajoz.
A revisão da bagagem foi demorada e minuciosa.
Eduardo Coelho, no meio de um borborinbo estontea-
dor, agitava no ar a coroa, que a associação dos Jorna-
listas, de Lisboa, mandava a Madrid, para que lb'a não
esmagassem.
Um sujeito, já idoso, mas ainda forte e ágil, rosto
aberto e extremamente animado, com modos sobrema-
neira açodados e obsequiadores, ia de um lado a outro,
erguendo os braços, e gritava entusiasticamente a um
revisor :
—Dejalos, hombre. Son periodistas portugueses. Lle-
vam algunos regalitos para las fiestas y no mas.
Vivam nuestros amigos 1 Viva la prensa de ambos
paizesl
Vivam nuestros huespedes t viva la fraternidad I viva
Portugal!
O guarda, pouco commovido com esta demonstração
de apreço ás nossas pessoas, continuava a tarefa, ser
cundada pelos collegas.
No entanto o bom humor do nosso homem, que alli
viera tomar o comboio, e foi sempre um companheiro
excel lente, por incansável, previdente e obsequiador,
continuava nas suas acclamações, abraçando as pessoas
que conhecia, fazendo-se apresentar ás outras, correndo
(Taqui para alli, barafustando da direita para a esquerda.
Era o proprietário e director do Ecco de Estremadura,
periódico de Badajoz, D. José Santamaria, que então
víamos pela primeira vez, apezar de ser conhecido em
Usboa, onde tem estado por vezes.
248 NOTAS A LÁPIS
— Viajeros ai tren /—gritaram os condactores do ca-
minho de ferro, terminada a minuciosa e impertinente
revista das bagagens* ao dar das 9 horas, e ao fechar
da bolsa dos que entraram no botequim da estação, on-
de pagaram sete vinténs por cada chicara de chocolate.
Dizendo um adeus á fronteira pòrtugueza, começámos
a recreiar a vista pelas grandes planícies, em tudo eguads
ás nossas, várzeas, onde lourejavam largas sementeiras
de trigo, desde as margens do Guadiana até aos sobrei-
raes de Talavera.
Vistosas manadas de porcos serpenteavam á borda
dos caminhos.
Até Montijo, o comboio desenvolveu a máxima ve-
locidade, durante uma hora, cortando planuras mais
agrestes, semeadas apenas de oliveiras e sobreiros, ar-
• borisação que descresceu ainda á vista de Garrovetla,
povoado superior em fealdade aos que atè alli Unhamos
encontrado, aldeolas compostas de casas térreas, d'on-
de se destaca apenas a torre ponteaguda das egrejas.
Esta povoação forma contraste notável e entristecedor,
no centro de um quadro campesino: é completamente
despida de arvoredo; não se lhe avista um pomar; não
tem um quintal.
Mais adiante, encontrámos-nos de novo com o Guadia-
na, envergonhado da moldura, que o aperta, umas ri-
bas sem vegetação, nem belleza.
Aqui veio- nos á idéa, ancioso como iamos por esta-
belecer confrontos, a opinião do encarniçado apologista
dos campos para alem de Badajoz, e sorrimos-nos de
verdadeiro desdém, interrompido apenas á vista dos
formosos restos de uma arcaria romana, exposta á acção
do tempo, perto de Mérida, e parallelos a um aquedu-
cto moderno.
A Emérita Augusta dos romanos, a cidade de Mèri-
MADRID B O CBNTBNÀRIO DB CALDRHON tt9
da, cercada de pomares insignificantes, só tem a recom-
mendal-a essa antigualba e poucas mais de egual valor,
restos preciosos, ainda assim, dos tempos do impera-
dor Augusto, seu fundador.
Ao meio dia chegávamos a Guarena, nona estação,
d'onde se avistam extensos e bellos vinhedos, grande
numero de arvores, em bons alinhamentos e óptima dis-
posição.
D'ahi por diante, montanhas áridas a bordarem o ho-
risonte, á direita, e algumas paisagens de aspecto mais
agradável, á esquerda.
Na povoação de Villanueva, as mesmas casas térreas
de pequeníssimas janellas, entre as quaes, á guisa das
localidades anteriores, se distingue o templo, com a tor-
re quadrada e guarnecida de oito ventanas.
Abafava-se de calor e poeira, de que nos aliviámos
um pouco no botequim de Almorcbon.
A aldéa Gabeza dei Buey, agachada no fundo de um
monte, taes são as proporções mesquinhas dos seus
edifícios enegrecidos e faltos de cal, só se descobre pe-
lo campanário, digno em tudo dos accessorios, que o
fazem sobresair.
— Verdadeiras cidades são as nossas aldéas, á vista
das que temos encontrado até aqui — dizia o nosso com-
panheiro.
— Má lingua t —responderia o palrador, de que falía-
mos, no começo (festas linhas.
Para nos suavisar um pouco a aridez do caminho,
aberto d'ahi em diante entre as penedias de umas pou-
cas de montanhas, deparámos, perto de Belalcázar com
o estreito rio Sugar, marginado aqui e acolá por peque-
nas searas e sobreiros esguios.
Seguiram-se alguns retalhos mais amenos, e depois
charnecas de uma notável braveza, onde se debatiam
famosos exércitos de gafanhotos.
Declinava a tarde, quando passámos em frente de
Almadenejos, povoação circumdada de muralhas, bas-
tante accessiveis ; tem três portas e foi tbeatro de va-
XXt NOTAS A Li*»
rias façanhas praticadas por occasiio da primeira guerra
cartista.
Por noite fechada, entrámos em Ciudad-ReaJ, o en-
troncamento, com bastante magua nossa, por ser a ter-
ra mais importante do nosso ileoerario, já conhecido,
e, ao que nos disseram, muito bem provida de fabricas
e bons edifícios públicos.
Foi alli que as armas francezas, em 1809, alcançaram
lima das suas maiores victorias, em território hespanhol.
Com a mudança de comboio, áquella hora, houve a
costumada confusão e borborinho, seguidos de algumas
imprecações pouco beatificas, por não venderem pão e
agua no botequim, não podemos averiguar porque, con-
seguindo-se apenas uma ou outra garrafa de vinho or-
dinarissimo por dois tostões.
A noite vinha contrariar-nos extraordinariamente, eão
só por se oppôr ao nosso exame, como por nos não
proporcionar o necessário descanço, tão refractário so-
mos a um bom somno em caminho de ferro.
Depois de estafada a conversa, que caiu naturalmente
sobre as impressões do dia, os nossos companheiros,
forcejando ainda a intervallos por cortar a monotonia,
que não tardou a estabelecer-se com o seu cortejo de
somnolencias e bocejos, servindo-se de um dito picante
ou de uma observação ligeira, cabecearam de vez, acom-
modando-se como poderam, não tanto á ingleza que não
respeitassem o melhor possível as pernas e os quadris
dos seus visinhos.
Muito depois da meia noite, a fadiga de um intenso
mau-estar atordoou-nos; fechámos os olhos, e dormimos
também até ás 4 horas da madrugada.
#
* *
Raiava então uma manhã deliciosa, que vinha offerecer-
nos uma larga compensação para o mau commodo da
noite. Era domingo. Chegávamos á estação de Algodor.
MADRID B O OfifTONARIO DE CALDERON JBt
Correndo á jaoella da carruagem, não podemos dei*
xar de acordar o ultimo dormente.
Tínhamos diante de nós orna vastíssima e verdejante
planície, encastoada n'um bello horisonte de montanhas,
e cortada a meio pelo rio, ujue dá o nome á estação, rio
qm d'ahi a pouco atravessávamos sobre uma ponte,
graciosa e poeticamente lançada junto de um açude, a
85 kilometros de Madrid.
O ruído das engrenagens do comboio sobre a ponte,
o valente murmúrio das aguas a saltarem do açude, a
frescura da madrugada e a vista alegre da paisagem —
sacudiram-nos o ultimo torpor de um somno mal refeito.
N'um precurso de 7 kilometros, os mesmos campos,
onde só havia cereaes, ás leiras semeadas de papoulas,
sem uma arvore de fructo, sem um arbusto de notar.
Bello em começo, monótono por fim.
Umas pequenas oliveiras, encontradas d'ahi até á es-
tação de Geles y Esquivias, foram saudadas com enthu-
siasmo.
A começar (Testa localidade, o horisonte era mais es-
treito, mais accidentado e por isso de muito melhor as-
pecto, especialmente do lado direito, onde verdejavam
boas plantaçOes, vinhas e olivedos.
Em Torrejon de Velasco, escasseou de novo o arvo-
redo; as searas voltaram a ter uma apparencia enfezada
e doentia.
Haviamos encontrado poucos povoados, e quasi todos
a considerável distancia das estações.
Na ultima, em Getafe, ficava- nos a povoação á direita,
pouco recommendavel pelas habitações e menos ainda
peta cultura do terreno.
Em resumo : de Badajoz a Ciudad-Beal, muita pene-
dia alpestre, muitas aldéas miseráveis, muitos campos
agrestes, muito calor, muita aridez e carência absoluta
de boa agua. De Algodor até ás portas da capital bes-
panbola, largos horisontes, cultura pouco notável, o mes-
mo campanário a sair das aldèas baixas e desprovidas
das casinhas alvejantes a debruçarem-se pelas encostas
252 NOTAS A LAH8
d'entre os tufos de uma vegetação espessa e ridente,
sem as estradas e os ribeiros a serpearem por meio de
campos ubérrimos, a pulularem de seiva e verdura— de
uma grande parte do nosso pequeno torrão, seja dito
francamente, patriotismo á parte.
Isto não é decerto uma novidade para quem sabe que
as regiões, que acabávamos de atravessar, são das me*
nos bellas e productivas do paiz visinho, mas não deixa
de ser, mau grado nosso, um desmentido ás baforadas
encomiásticas do nosso comedor, que só tem bons olhos
e arrancos de appetite selvagem para as galinhas, que
lhe não pertencem.
Á vista da cidade coronada, já nos esquecêramos
d'elle, perdoe-nos a sua intolerância.
II
O aspecto da cidade.— Ornamentos do Prado.
Jardim botânico.— Estatua de Murillo.— Museu de pintura.
Jeronymos.— Fonte de Neptuno —Praça Dois de maio.
Madrid não tem bellezas de perspectiva.
Posto que não desconhecêssemos inteiramente a sua
posição topograpbica, não foi boa a impressão, que rece-
bemos ao avistal-a do postigo do comboio. Plana, des-
provida de jardins, pomares e arborisação, que a cir-
cundem, espreguiça-se humildemente á borda do esguio
Manzanares, a que nos deu vontade de lançar o copo
de agua de Alexandre Dumas, Filho, agua providencial,
que iria orvalhar os estendae* de roupa, que davam ás
suas margens um aspecto extravagante, pouco de appe-
tecer e louvar.
MADBID B O CWTINÀHIO DE CALDIB0N 283
A estacio das Delicias, onde chegámos ás 8 f/s da bel-
lissima manhã, a que já dos referimos, ao flm de 36 */s
horas de viagem, gastas em 780 kilometros de caminho,
ou sejam 142 léguas de 20 ao grau— 6 excellente.
A concorrência de forasteiros era extraordinária, e
extraordinários portanto o movimento e animação.
Não havia na gare nem uma só carruagem de praça.
Uns carros, chamados de serviço publico, uns peque-
nos omnibus, puxados por maus animaes, a preço ra-
zoável, valha a verdade, eram a conducçáo, de que ti-
vemos de servir-nos. Pertencem a diversas emprezas,
cujo numero se vê no bonné dos conductores, aos quaes
podemos entregar, com toda a confiança, as nossas pes-
soas e as nossas bagagens.
O trajecto até ao Prado é escabroso e feio. Estava
em obras. As longas avenidas d'este celebrado passeio
captivam-nos, logo á entrada.
Deixando á direita o caminho da Atocha, deparámos
com o jardim botânico, gradeado de ferro, pequeno,
mas bem provido de plantas, escassamente classifica-
das, ao que nos pareceu. Não tem floricultura amena,
nem viveiros, e deve-se a Carlos III.
Defronte da sua porta principal, figura a estatua de
Murillo, do lado de fora, n'um quadrado, que entesta
egoalmente com a fachada sul do Museo dei Prado.
A estatua, montada em pedestal, onde estão em singelo
relevo uma paleia, um pincel e duas coroas de louro,
è de bronze, modelado pelo esculptor Medina, e foi
inaugurada em 3 de abril de 1871.
*
* *
Continuando assim, em razio do itinerário, que se-
guimos, a antecipar-nos um pouco na indicação do que
vimos em visitas posteriores, fatiaremos já do museu
de pintura.
m MOTAS A LATO
Do lado do passeio avulta a saa fachada principal,
composta de uma dupla galeria entre dois corpos avan-
çados, tendo ao centro um peristilo dorico, cujas co-
lumnas, em numero de seis, teem figuras aos lados,
e abrangem a altura de ambas as galerias.
Compõe-se a mais alta de 28 columnas jónicas e a
inferior de 14 arcos. No centro da cornija ba um corpo,
onde as Artes recebem coroas das mios de Minerva.
Nos intercolumnios da galeria baixa, -figuram estatuetas,
vasos de mármore e bustos de artistas.
Este magestoso edifício, construído por Carlos III
para museu de sciencias naturaes, e damnificado peta
artilberia, durante a invasão franceza, foi restaurado
por Fernando VII, recebendo os primeiros quadros e
escnlpturas em 13 de novembro de 1819.
Considerado por muitas opiniões aotorisadas como
o primeiro de museus de pintura europeus, tem este
estabelecimento tamanho numero de quadros que a
descripção exacta e minuciosa de todos elles seria
tarefa de annos para o maior e melhor dos entendedo-
res.
Quando parávamos embasbacado, pela terceira vez,
em visita de muitas horas, n'uma (Taquellas preciosas
galerias, e soltávamos um qualificativo qualquer, em
meio de um desnorteamento, de que não podemos dar
idéa — ouvimos alguém, que nos respondia:
—Ainda vocô acha um termo para classificar o que
vê; eu. . . eu. . . não posso fallar.
Era Mariano Pina, que se declarava inteiramente es
tonteado. A sua mudez porém era bem superior á nossa
exclamação.
Para se formar uma ligeira idéa das numerosas ri-
quezas, que alli se observam, basta dizer que todas as
escolas de pintura lá teem representantes, em larga es-
cala, em especial a italiana, a hespanhola, a allemã* e a
franceza.
Pelo que respeita á Itália, citaremos— Ligli ó Lírios,
Salvator Rosa e Vaccaro, da escola napolitana — Bene-
MADRID B O CKTONÀRIO DB CALDBRON
detto Crespi e Corregio, da lombarda— Manfredi e Ra-
fael, da romana — Guido « Domrâicbmo, da bolonheza
— Vinci e Miguel Angelo, da florentina— Ticiano, Pátrio
Verooese, Tintoretto, Francesco Bassano e Cario Vero-
nese, da veneziana.
Hespanha — Zurbarao, Murillo, e Iríarte, da escola
sevilhana — Maro, Velasquez, Escalante, Leonardo e
Árias, da madrilena; e, alem (Testes, Morales, Joannes,
Toledo, Goya e Ri bera.
Escolas germânicas — Jordan, Rubens, Van-Dyck,
David e Temers, da flammenga — Rembrant, Dúrer,
Wouvermans, Moro, e Botb, da hollandeza—Mengs, da
allemã.
França— Poussin e Vernet.
Nio se imagine porem qae a citação (Testes nomes
revela apenas a existência de um quadro de cada autor.
Rubens está representado por 66 quadros, sendo 33
origioaes, 17 copias e 16 modelos da sua escota! Ti-
ciano par 33 originaes e 9 copias I Paulo Veronese por
21 telas, Rihera por 59! Tintoretto por 25 originaes e
8 segundo a escola I Rafael por 10 quadros e 10 co-
pias! Guido por 15 quadros e muitas copias e telas do
seu estyloi Poussin por 20 quadros! Vernet por 6,
Mengs por 21! Van-Dyck por 21, 3 copias e 9 segando
a sua escola e estylo! Temers por 53! Wouvermans
por 10, Moro por 13 e Both por 12 !
Uma ninharia ! Mais de 424 quadros só em 15 pin-
tores de primeira plana !
Desde a pintura desmesurada, que occupa a parte
inteira de uma sala ou de um corredor até á miniatura
de proporções ínfimas, vé-se por essa ligeira amostra
de que modo estão representadas as principaes escolas.
O catalogo de 1878, que não menciona as novas acqui-
sições e os quadros modernos, em especial de Rosales
e Pradilla, apresenta-nos 400 autores e 2525 quadros,
onde entram as pinturas anonymas e as das escotas
incertas.
D'estes dois autores hespanhoes, não podemos deitar
IK NOTA* A LAW8
de mencionar o notabilissimo quadro, Testamento de
Izabel, a Catholica, de Rosales, Joanna, a Louca, e o
Entetro de FeUppe, o Formoso, de Pradilla.
Este ultimo tem as dimensões de uns poucos de me-
tros.
Alem d'isso, existem nas salas do pavimento inferior
uma boa collecçSo de esculpturas, sendo realmente no-
tável o busto em mármore de Isabel II, cujas feições se
descobrem atra vez do veu, admiravelmente rendilhado,
mesas com soberbos embutidos de mármores de cores,
um movei envidraçado com muitos objectos de cristal,
alabastro e pedraria e, em outra parte, a sala Goya,
com 46 tapeçarias cTeste autor.
Entre os artistas modernos, de que não resa o cata-
logo, figuram Ferrant, Domingues, Jover, Fierros, Hes-
panboleto, Gontreras e Hernandes, Sala, Gusman e Mer-
cada.
A maior tela, verdadeiramente colossal, é a morte
de Lucrécia, de Plasencia.
O quadro que tem o n.° 775, é de assumpto portu-
guez: mede 3^07 de altura e 4m,61 de largura, e inti-
tulasse a Morte de Viriato. Representa em figuras de
tamanho natural o momento, em que os soldados lusi-
tanos vio encontrar morto na cama o seu famoso cau-
dilho. No fundo, veem-se a tenda do general e uma parte
do acampamento. Foi executado em Roma pelo celebre
Madrazo, pintor de camará de Carlos IV.
Afora os visitantes, encontra va-se pelas galerias» gran-
de numero de pintores, homens e senhoras, a tirarem
copias dos bons modelos: o que não era somenos diyer-
sio para os forasteiros, e constituía uma prova incon-
cussa de que a nobilíssima arte de pintar é innata nos
Agora que demos profanamente uma leve idéa das
verdadeiras preciosidades do museu de pintura, é tempo
de sairmos d'este encantamento, que nos assoberbou
durante três dias consecutivos, e de continuarmos o
nosso despretencioso passeio atravez de Madrid.
MADRID B O <OífTKNÀ WO DB GALDKBON 187
*
* *
Por detraz do museu, vô-se o convento de S. Jero-
nymo, fundação de Isabel, a calbo)ica; deteriorado pelos
francezes, acha-se ainda boje em mau estado» apezar de
servir de parque para artilberia!
Seguindo um pouco para a esquerda, encontrámos a
formosa Fonte de Neptuno. No meio de um tanque cir-
cular, ergue-se um carro de mármore branco, em forma
de concha, tirado por dois ca vai los, sobre o qual sobre-
sae a figura do deus mitbologico, de pé, tendo uma co-
bra enroscada na mão direita e o tridente na esquerda.
Deve-se a Pascual de Mena.
Um pouco mais, e estamos na Plaza Dos de May o,
que é para os madrilenos um lugar sagrado, onde ás
recordações sangrentas de uma batalha memorável se
vão juntar as saudades pelos que alli deram a vida em
defeza da pátria e as manifestações ardentes do patrio-
tismo, cruelmente ferido durante a invasão franceza de
1808.
Não foi uma batalha; foi uma carnificina o que aquella
data regista, e que o monumento, que se levanta a meio
da praça commemora, como necrotério illustre, a exo-
rar orações e piedade, a relembrar feitos heróicos e mi-
lagres de bravura.
Entre maciços de verdura, entremeiados de cypres-
tes e cercados por uma verga de ferro, elevam-se sobre
um polygono de oito lados quatro degraus de granito
berroquenho, onde assenta, ladeado de urnas funerárias,
um sarcófago quadrado, e sobre este uma pedra bran-
ca de Colmenar, tendo em cima o corpo principal, que
è de granito roxo.
Na frente está a urna, que encerra as cinzas dos he-
roes, ou antes dos martyres, e no lado opposto um
leão em relevo, defendendo as armas de Hespanba; na
parte superior uma medalha em baixo relevo com os
17
256 NOTA* A LÁPIS
retratos de Daoiz e Velarde, os dois principaes beroes
da restauração; na face contraria as armas de Madrid,
aos lados coroas de louro.
Sobre a coberta do sarcófago, ergue-se outro corpo
octogono, onde assenta um pedestal quadrado de ordem
dórica, entre as estatuas da Constância, Valor, Virtude
e Patriotismo; sobre e$se pedestal levanta-se o obelisco,
remate final do monumento, que mede cerca de 32 me-
tros de altura, e contem as seguintes inscripções :
LAS CENIZAS
DE LAS VICTIMAS DHL DOS DE MAYO DE 1808
DESCANSAM EN ESTE CAMPO DE LA LBALTAD
REGADO GON SU SANGRE.
HONOR BTIRNO AL PATRIOTISMO !
A LOS MÁRTIRES
DE LA INDEPENDÊNCIA ESPANOLA
LA NAC10N AGRADECIDA.
CONCLUÍDO POR LA M. H. VILLA DE MADRID.
EN EL ANO DE 1848
É em frente d'esta preciosa recordação de tristezas
passadas, de uma época de cruas atrocidades que annual-
mente, a dois de maio, considerado de festa nacional,
vêem desfilar as tropas e uma procissão cívica, que,
atravessando as principaes ruas da cidade, desde a egre*
ja de S. Isidro, onde se executam sumptuosos funeraes,
acaba alli de prestar todas as homenagens do seu res-
peito, commiseração e saudade ás victimas do mais ar-
dente patriotismo.
Dêmos, como é justo, o nosso quinhão de sentimen-
tos a essa tristissima commemoração, e prosigâmos.
MAMUD B O (WTBNA1IIO DE CALDKBON JMM)
III
0 primeiro dia de festas. — Uma feira no Prado. — Batalha
de Tetuan. — Museus de artilheria e engenharia. — O Buen
Retiro. — Praça de touros. — Via castelhana e outras.— Por-
ta de Alcalá. — Fonte de Cibele. —Monte flelicon.
A nossa chegada coincidia com o primeiro dia de fes-
tas do centenário de Calderon.
Madrid regorgitava de forasteiros; toda a gente mais
ou menos desoccupada redemoinhava pelos lugares, on-
de houvesse cousa, que podesse despertar-lbe a atten-
ção; as ruas, as praças e os largos apresentavam um
borborinbo, uma confusão de trajes, um mistiforio de
cores, uma animação geral, muito para ver e apreciar.
Ao longo do Prado, n'uma extensão talvez superior
a kilometro e meio, estendia-se, com surpreza nossa,
uma feira que se ramificava pelas ruas e saidas late-
raes, uma feira das Amoreiras, em ponto vinte vezes
maior, com as suas barracas de quinquilharias, os seus
grupos de bonecos, cosmoramas, bodegas, theatros, ex-
posições de raridades sérias e burlescas, arlequins, mo-
mos e saltimbancos de procedência cosmopolita, que,
de voz em grita, agitando os chapéus ponteagudos e
truanescos, gesticulando, fazendo esgares, tocando bu-
zinas e campainhas, suados, esbaforidos, cobertos de
alvaiade colorido, treslacando a bafio, exhalado do pan-
ninho de cores garridas e do veludilho dos trajes des-
botados— disputavam primores de dicção bombástica,
palavriado dirigido aos passeiaotes, que eram convida-
dos a assistir, por preço commodo, ás exhibições mais
gigantescas e estapafúrdias, executadas por homens e
SGO BOTAS A LÁPIS
mulheres de todos os recantos do mundo, sábios, físi-
cos, funambulos, gymnastas, músicos, pbenomenos de
toda a espécie, raridades de todo o género conhecido e
ignorado.
Seguindo á direita da praça Dois de Maio, encontra-
va-se uma vasta construcção de lona, onde se mostrava
a melhor e principal curiosidade da feira— a grande vista
cosmoramica da batalha de Tetuan, a pezeta por bilhete.
O espectador, cot locado ao centro, em posição ele-
vada, que fingia uma montanha, auxiliado por um bom
binóculo, disfructava os principaes episódios da tre-
menda campanha, parecendo-Ibe que ouvia o choque
das armas, o tinir das espadas, o troar da artilheria, os
gemidos dos agonisantes, o rodar das carretas, as im-
precações dos vencidos, o rinchar dos cavallos; ao
mesmo tempo que via o desfilar das tropas, as em-
buscadas, os postos avançados, as columnas de reserva»
as principaes refregas, n'uma das quaes o malogrado
general Prim avultava á frente de um troço do exercito,
que perseguia valorosamente uma leva numerosa das
tropas marroquinas, taes eram os effeitos ópticos da ma-
gnifica pintura circular e os objectos reaes, espadas, es-
pingardas, canhões e apetrechos bellicos, que se con-
fundiam com a tela, e se apresentavam em volta do es-
pectador.
Caminhando pela rua de la Leatiad, subamos á di-
reita a um ponto mais elevado, e entremos no museu
de Artilheria, que se acha estabelecido nos restos do
antigo palácio do Ruen Retiro.
Ào rez-do-cbão, vé-se uma collecção de objectos al-
guns dos quaes datam do século XII, em que começou
a utilisar-se a artilheria ; no andar superior, ha apenas
três salas; na primeira, encontram-se modelos de armas,
plantas em madeira, o leito e o pavilhão de guerra de
Carlos V, espadas e bandeiras históricas ; na segunda,
modelos de peças e cartucbame ; na terceira, deposito
de espingardas, muito inferior ao das nossas bellissimas
salas de armas.
MADRID B O CENTENÀMO DB GALDBRON 861
*
* *
Deixando á esquerda o museu de Engenharia que se
compõe de modelos, materiaes de construcção, pontes
militares, objectos para trincheiras e fossos e mais effei-
tos de acampamento, demos entrada nos jardins do Buen
Retiro e actualmente Parque de Madrid, sitio predilecto
do duque de Olivares. Jardins è um modo de dizer,
porque no vastíssimo parque não ha flores, como não
existem em nenhum dos lugares públicos, onde abun-
dam em geral os maciços de relva.
Subida a escadaria de pedra, achámos -nos no Passeio
das Estatuas, más estatuas de alguns reis, e vamos dar
a um grande lago, que mede 143 metros de compri-
mento e 60 de largura ! As coostrucções, que se lhe
avisinbam, o vaporsinbo e o bole, que lá navegam, não
teem bellezas, nem importância.
Entre as numerosas fontes, lagos, viveiros, edificações
e avenidas, só estas são dignas de lisongeira menção.
A grande Via de carruajes, que figura para o madri-
leno o passeio principal do bosque de Bolonha, è real-
mente notável, quando a riqueza heráldica e argentaria,
as celebridades e o mundo elegante vão em procissão
picaresca assoalhar ao longo do arvoredo as suas equipa-
gens, os seus sorrisos, o seu fastio ou os seus galanteios.
Da curva principal, onde ha uma estufa, muito des-
guarnecida de boas plantas, gosa-se um soffrivel ponto
de vista para os lados da Atocha e estação do caminho
de ferro do sul.
De volta, encontra-se a Casa de las fieras, cuja parte
zoológica é por demais insignificante.
• #
* #
Saindo pela porta da esquerda, já meio fatigados, po-
demos dirigir-nos â Carretera de Aragon, e chegar á
Plaza de Toros, construcção monumental, como devia
56 1 NOTAS A LÁPIS
ser o recinto espectaculoso do bárbaro divertimento, fa-
vorito dos hespaohoes.
No exterior, tijolo que Ibe dá ama apparencia espe-
cial, do interior granito e ferro, que supportam e enla-
çam arcos e arabescos ; espaçosas entradas e galerias,
duzentas e trinta portas e janellas e uma pista de 90
metros.
Foi estreiado em 1874.
Nenhum forasteiro, por medianamente observador e
curioso, deve deixar, em dia de espectáculo, de tomar
parte no cortejo, que symbolisa la ida para los toros.
A Puerta dei Sol é o ponto de partida.
Todos os espectáculos, por occasião do centenário
calderoniano, se podiam considerar festas de gala.
Imagine-se pois, na tarde do dia da nossa chegada,
que era domingo, o panorama que se disfructava de
uma janella da rua de Alcaiá, ao ver distilar qoasi to-
das as carruagens madrilenas, publicas e particulares,
conduzindo uma multidão sorridente, na apparencia feliz,
alegre e entbusiasta, ostentando todos os re quesitos da
fidalguia, riqueza, luxo, mocidade e elegância !
Em quanto todos os apaixonados e curiosos deliciam
os olhos e as narinas no fumegar do sangue, que se
espalha a jorros na praça, e das tripas de 16 cavados,
que lá morreram, aos gritos delirantes das acclamações
enthusiaslicas dos cavalheiros e das mais nobres damas,
que lançam coroas e flores, sorrisos provocadores e
olhares concupiscentes sobre os beroes da brutal carni-
ficina — retrocedamos nós pelo Paseo de la Castellana,
calle Serrano até ao de Ricoletos, por avenidas e ruas
modernas, que se podem ainda chamar dependências do
Buen Retiro, estando algumas em terreno, que lhe per-
tenceu.
A via Castellana é preferível ao Prado; á 'direita,
tem o duque de Anglada um soberbo palácio; á es-
querda, está o Indo, edificio, onde se ba-de inaugurar
a exposição geral de Bellas Artes.
Não ha manifestação de progresso nacional, que se
MADRID B O CENTENÁRIO DE CALDERON 163
d3o lenha aproveitado para realce das festas do afamado
poeta.
Voltemos em direcção ao Buen Retiro, e paremos em
(rente da porta de Alcalá, ao centro da Plaza de la In-
dependência.
E' um corpo de granito e pedra Colmenar, com cinco
entradas ; três em arco occupam o meio, e duas rectan-
gulares os lados; tem bons ornatos de esculptura, e foi
construído para solemnisar a chegada de Carlos III, em
1778.
Antes de chegarmos novamente ao Prado, vamos
observar uma obra formosa e monumental, a Fuente de
Cibeles, feita de mármore de Montes Claros por Michel
e Gutierrez. No centro de um lago circular e sobre ro-
chedos, está a deusa, sentada em elegantíssima carrua-
gem, tirada por dois bellos leões; da bocca de uma ca-
raça fabulosa, a de um tritão naturalmente, jorra a agua
sobre os dois leões, em espadanas sussurrantes.
Um pouco mais adiante, á entrada da rua de Alcalá,
vamos encontrar uma edificação festiva, uma grande
montanha, escabrosa e de difficil accesso, em cujo cimo
figura o busto de Calderon, uma bella alegoria aos seus
trabalhos e á conquista, que fez do império das musas,
a cujo lado se assentou ; o monte Helicon finalmente,
em cujo dorso se lê o seguiuie:
Madrid al mas illustre de sus hijos, D. Pedro
Calderon de la Barca. Honro su pátria
gomo perfeito caballero, soldado vale roso e venbrablb
sacerdote. gomo dramático
inundou de luz al mundo con los resplendores de su génio
#
# ♦
Estamos realmente fatigado. Para um dia é de mais
o que temos visto, sem entrar no coração da cidade,
pois é preciso saber-se que o Prado, Buen Retiro, rua
Affonso XII, Recoletos, via Castellana, rua Serrano e
SM NOTAS A LÁPIS
bairro Salamanca sSo coisas seguidas ou parallelas; que
se encontram a um lado da cidade e extra-muros, n'um
prolongamento superior talvez a três kilometros.
E é pena que assim aconteça, e que uma parte laquei-
las avenidas se não espalhe por outros pontos e pela ci*
dade, tão pobre de boas praças e lugares arborisado*.
Gbega a gente a enfastiar-se e a maldizer-se, querendo
ver a pé, como requerem minuciosidades, todos aqael-
les passeios, largos e desvios.
Voltando ao Prado, tomemos pela Carrera S. Gero-
nimo, que coto a rua de Alça lá forma as duas melhores
saídas para aquelles lugares, e vamos alojarmos no
n.° 32, segundo piso, casa de huespedes particular, a
40 reales por cabeça, segundo telegramma prévio, no
que ba a levantar as mãos para o ceu, n'esta época, em
que as próprias trapeiras dos hotéis custam um dobrão
ou cem reales.
IV
Os reaccionários.— A exposição dos Grandes de Hespanha. —
As edificações madrilenas.— Gamara dos deputados.— Lem-
branças das velharias lisboetas.— Os narizes das damas.—
As estatuas de Cervantes e Calderon.
O brilhantismo excepcional das festas madrilenas de-
veu-se em grande parte ao concurso publico e particular
do rei e do governo, que forneceram elementos valiosos
facilitando meios, a que só podia cbegar-se pela via of-
ficial, offerecèndo tropas e dinheiro, e fazendo coincidir
a inauguração de exposições e melhoramentos com os
dias festivos.
MADRID B O -CKNTEXABIO DE CÀLDERON
A antiga fidalguia e o clero porem, esses núcleos de
idéas reaccionárias, no retrogradar constante das soas
aspirações conservadoras, não viram com boas olhos a
eeíebração do centenário calderoniano, e encerraram-se
n'uma abstenção aliás inoffensiva, que passaria sem
ninguém a perceber, se não fora o artigo de fundo do
Liberal, que d'ahi a oito dias a denunciava, sob uma
forma clara e incisiva.
A imprensa conservadora retorquiu que a fidalguia
discutira largamente se devia fazer-se representar no
préstito civico, mas que se abstivera, porque nada a
aotorisava a mostrar-se n'estas exhibições publicas.
Ouçamos algumas linhas da resposta do Liberal :
«Os nobres, agoazis do Santo Officio em outro tempo,
exhibiam-se publicamente nos autos de fé, celebrados
para queimar berejes. Aquillo fazia parte do seu ideal,
e o enthusiasmo religioso obrigavaos a fazer gaia pu-
blica dos seus sentimentos.
«Em nossos dias, a nobreza sae em procissão pu-
blica, formando o cortejo dos reis, aos quaes acompa-
nha em peregrinações de egreja em egreja, e figura a
seu lado, diante de todo o mondo, em certas solemni-
dades officiaes.
c Porque é pois que o clero, a nobreza e as ordens
militares brilharam por sua ausência, na manifestação
mais solemne e entbusiasta em honra do génio? Porque,
em virtude da sua essência, lembranças e tradições, vi-
vem mais no passado que no presente, porque os seus
idéaes não são os que agitam os povos, que caminham
a passos largos na via do progresso.»
Continuando por este sentido e verdadeiro theor, o
Liberal verberava-os convenientemente, salvando só as
excepções dignas de o serem.
A fidalguia porém não foi de uma abstenção absoluta.
Contando com a admiração dos trinta mil forasteiros,
que correram a Madrid, deu pasto á sua vaidade, ou ao
sentimento caritativo, pôde bem ser, atirando com al-
gumas das suas antigualbas para a Plateria de Marti-
M6 NOTAS A LAWS
nez, onde costuma haver exposição permanente de pin-
toras, a 10 reales a entrada, a favor não sabemos de
que bospicio.
Consultemos o programma das festas. É boje a inau-
guração.
Jantemos, e, voltando ao Prado, que nos fica perto,
vamos comprar bilhete, que diz isto :
Centenário de Calderon
Deputadon permanente de la Grandeza de Espana.
Em quatro salas, dispostos nas paredes, aos lados,
no centro, em profusão sensata e superiormente coor-
denada, como memorias grandiosas de épocas brilhan-
tes, veem-se objectos de uns poucos de séculos, rique-
zas fascinadoras, que nos assoberbam o espirito, ao
peso do valor artístico ou material, recordação histórica
ou lendária, que encerram.
Sobra-nos a boa vontade, mas falta-nos o tempo, que
seria preciso para uma breve descripção de tudo o que
vemos — moveis da renascença e do primeiro império,
jarras esmaltadas do Japão, leques, objectos de nácar,
jaspe, prata e ouro, espadas históricas, armaduras li-
sas e buriladas, tapeçarias de Bruxellas, hespanbolas e
flammengas, porcellanas da Saxonia e Sevres, cadeiri-
nhas de varias épocas, cofres, armários, medalhões e
pinturas de todo o género.
Demos relação do que mais nos captivou o gosto e
a attenção. •
Quanto a livros, um Lapidado do século xnr, a Histo-
ria natural de Plinio, século xv, o Doctrinario dos caval-
leiros e um Diccionario de Izabel, a catholica, da mesma
época, outro de Felippe III, um Saltério do século xvi,
um Diccionario de Carlos V, e outro de Felippe II —
pertencentes á bibliotheca do Escoriai; o Livro de mon-
taria de Affonso II, um Diccionario com riquíssima ca-
pa de ouro esmaltado e o Saady, obra persa do século
xvi — vindos da bibliotheca do rei.
MADRID B O CENTENÁRIO DR GALDRRON 367
Quanto a objectos sacros — um jarro de prata e ou-
ro, um diptico de marfim, dois quadros de porcelana
em baixo relevo> um retábulo de prata, do século xvi,
ws\ velador de porcelana de Sevres com bronzes de Tho-
mire, do século passado, o relicário de prata dourada,
cristal e pedras, dado peio duque de Mantua a Felippe
II, outro de ferro marchetado de ouro e prata, trabalho
milanez do século xvi e uma imagem de marfim, en-
volta em rede de malba de uma finura e correcção es-
meradíssimas— pertencentes ao Escoriai; uma casula
bordada a ouro e pérolas, no século passado, uma mol-
dura de ouro e esmaltes, encerrando uma carta auto-
grapha de S. Caetano — trazidas da capei la do palácio
real, a que pertencem muitos artigos de prata, ouro e
pedras finas dos séculos xiv, xvi e xviii.
Como verdadeiras e ricas curiosidades — os leques
da rainha, uma grande caixa de coral e prata, obra do
século xvu, os arreios do cavai lo de Mahomet, no anno
de 1331 ; uma escrivaninha de marfim, trabalho ita-
liano, representando nos embutidos cartas geographicas
e plantas de varias cidades, com pasmosa e correctís-
sima minuciosidade ; uma mesa folheada de tartaruga e
marfim, com 17 quadros esmaltados; uma mesa do sé-
culo xvin, com o taboleiro de seda bordada, um qua-
dro com esmaltes de Limoges, século xvu, retratos em
cera de século xvu e muitas pinturas em cobre, seda e
pergaminho; finalmente um Eldorado, cheio de obras
de um mérito e valor inapreciáveis, de que só podem
dar idéa, em maior se não mais rica escala, os objectos,
que mais tarde formaram a nossa exposição de arte
ornamental.
#
# *
Grande parte das edificações madrilenas conserva uns
resaibos pronunciados do estylo árabe, predominando
na ornamentação interna e externa o estuque, sem os
bellos mármores, que dão is nossas construcções aris-
388 lfOTAS A LÁPIS
tocraticas ou monomentaes orna distincção 0 solidez,
que alli não encontram rivaes. Em face de Madrid, de-
ve Lisboa ser considerada orna cidade de pedra.
De quanto podem a cal, a areia e o gesso é vaKosa
prova o palácio dos duques de Medinaceli, que termina
a rua Jovellanos, por onde vamos retrocedendo para a
Garrera S. Geronimo até pararmos em frente do Con-
gresso de los DtputadoSy bello ediâcio moderno, con-
cluído em 1850.
A fachada principal é de granito, excepção feita das
guarnições das portas, janellas e frisos, que são de cal-
careo de Ruiduena. O pórtico é saliente e sustentado
por seis columnas corintbias e estriadas ; dá-lhe accesso
uma espaçosa escadaria, ladeada por dois leões de bron-
ze, assentados sobre as patas trazeiras, e fundidos em
Sevilha com a artilheria, tomada na guerra de Africa.
Na parte respectiva, ha um bello frontão, represen-
tando a Hespanha, entre^ figuras alegóricas, no momen-
to de abraçar a constituição do Estado.
O pórtico só é franqueado na abertura das cortes;
a entrada ordinária faz-se pela rua Floridablanca.
O corpo da guarda está na parte inferior, onde ba
deposito dos vários objectos de uso do edifício. Na par-
te nobre, encontram-se os gabinetes dos ministros, os
de leitura e archivo e um bello salão de conferencias,
decorado com pitastras jónicas e vinte e oito medalhões
com os bustos de oradores e publicistas notáveis. No
tecto representa m-se as quatro antigas partes do mun-
do, entre a Religião, a Lei, a Abundância e a Justiça ;
nos quatro ângulos figuram os bustos de Martinez de
la Rosa, Toreno, Arguilles e Olózaga.
O lugar mais notável, como é de ver, foi reservado
para a sala das sessões, disposta em forma de amfi-
teatro e luxuosamente ornamentado. O tecto è uma so-
berba pintura de Rivera, tendo no centro os homens ce-
lebres nacionaes e á roda os oradores mais eminentes.
A meio das columnas de ferro, que formam as galerias»
veem-se os escudos brazonados das 49 províncias do
MADRID B O CWTHIABIO DE CÀLDKBON fti
paii e sobre as portas da sala ume lapides de mármo-
re branco, oodo se* lêem, em caracteres dourados, os
nomes de muitos homens illustres» Os assentos dos mi-
wstros são estofados de azul, e os dos deputados teem
cor escarlate; a cadeira presidencial é ladeada de duas
estatuas de reis catbolicos e dois excellentes quadros—
O juramento das cortes de Cadiz e Dona Ataria de Mo-
Una, por Gisbert.
Á saída do Congresso dos deputados hespanhoes, ví-
nhamos pensando, como tantas vezes o temos feito, que
a apropriação dos edifícios para fins contrários á sua
origem, como acontece pela maior parte entre nós, ha-de
ser sempre risível ou defeituosa, e que só são dignos de
consideração e cabalmente úteis os estabelecimentos
construídos expressamente para as funcções, a que fo-
ram destinados.
O casarão de S. Bento, afora a sala dos pares, o fú-
nebre e remendado hospital de S. José, o immundo e
lastimável pardieiro da Boa Hora, o acanhado e vergo-
nhoso Rilhafolles e outros edifícios nacionaes, que seria
doloroso mencionar, constituem umas pobres mantas de
sórdidos retalhos, em que miseravelmente se embiúca
a donairosa Lisboa, tão bella e tão digna de melhores
destinos.
Coitada ! Tão aferrada ás suas velharias, tão roncei-
ra no seu caminhar, tão embrulhada gosta de andar
sempre no seu capote e lenço tradicionaes, que ainda
não reformou um certo pbraseado local, ôcco, tolo e va-
sio de senso commum para os tempos hodiernos.
Haja vista para os letreiros palavrosos de grande par-
te das suas ruas, para os fanqueiros, como vendedores
de tecidos, para as capettas, como lojas de quinquilharias,
para os bancos dos bospitaes e para os pelouros da ca-
mará municipal, coisas que ninguém sabe o que são no
presente, e os estrangeiros, ainda os que melhor conhe-
cem a nossa língua, se dão a perros para adivinhar.
E se ella é assim formosa e suja, garrida e conserva-
dora, se pisca um olho ao progresso e os dois ao seu
t70 KOTAS A LáPIS
passado, como havemos de qoerer que ella reforme o
seu rio, destinado a ser o melhop porto europeu; que
illumine as ruas, á noite; que tenha edifícios públicos,
dignos da civilisação moderna; que vele incessantemen-
te sobre a qualidade dos géneros da sua alimentação;
que não prenda os gatunos boje para os mandar furtar
ao outro dia; que não aprebenda as navalhas, deixando
os faquistas impunes; que na organisação dos agentes
da segurança publica, não admitta o policia a exercer
vinganças mesquinhas, a tirar desforras condemnaveis,
porque é ao mesmo tempo testemunha e parte, o que
repugna ao simples bom senso do mais obscuro munícipe?
#
* *
Mas. . . deixemos-nos de rabugices intempestivas,
inúteis e deslocadas, e continuemos a recreiar-nos atra-
vessando por esta multidão de gente, onde abundam as
grandes tournures, os grandes olhos e os grandes nari-
zes, que são, perdoem-nos ellas, o principal caracterís-
tico das madrilenas, ainda as de melhor cara.
Á testa do congresso, encontrámos a Plaza de las
Cortes, um jardim sem flores, em cujo centro avulta a
estatua de Cervantes, projecto hespanbol e fundição de
dois artistas prussianos. O pedestal tem um baixo rele-
vo, com dois leões, e outro, que representa D. Qui-
chote e o seu companheiro Sancho Pança, ao partirem
para as suas aventuras, levando a Loucura por guia.
A inscripção diz:— A Miguel de Cervantes Saavedra,
príncipe de los ingenios espafíoles, afio de 1836.
Gomo fica perto, e nos interessa bastante, vamos á
Plaza de Santa Anna contemplar outra estatua, melhor
que a precedente, a do heroe das festas madrilenas.
É de mármore de Garrara, e está collocada também
a meio de um jardim e cercada por bom arvoredo, que
lhe dá uns formosos toques de meias sombras.
A base compõe-se de três corpos salientes, entremeia-
MADRID B O CENTENÁRIO DE CALDERON 971
dos de degraus corvos e recolhidos: oa segunda parle
quadrada e de ângulos quebrados» represeutam-se algu-
mas scenas das obras de Calderon, que assenta no ulti-
mo corpo, vestido de babitos talares, tendo na mio di-
reita uma penna e na esquerda um livro aberto, que se
lhe apoia nos joelhos.
A apparencia meditativa do poeta e a sua postura são
correctas. O conjuncto do monumento é agradável, sem
imponência.
La Puerta dei SoL— Viva la gracia.— Contra os gatunos.— On-
das de gente.— Os cafòs e a moeda nacional.— 0 theatro
Apolo.— Os nomes dos lagares nas casas de espectáculo.
Entremos de novo na Carrera S. Geronimo, e sigamos
até á tão faltada Puerta dei Sol, visto que esta rua, cor-
rendo parallela á de Alcalá, è um dos melhores cami-
nhos a seguir.
Ardemos de impaciência por entrar no coração de
Madrid, e conhecer o centro principal do seu movi-
mento.
Eis-nos. Viva la gracia ! Salud a los toreros, que nos
offuscam com os seus trajes fantasiosos e os seus bri-
lhantes muito bem postos nos collarinhos desgravatados,
encostando«se elegantemente, conversando em grupo,
ás portas do café Imperial, e distribuindo sorrisos en-
tendidos ou provocadores ás ninas guapas, que se cru-
zam ligeiras e saltitantes em todas as direcções, aonde
teem de levar as suas pessoas e as suas mantilhas.
Salero! que me dá la gana de seguirias! Vivai que
272 NOTAS A LÁPIS
mona que ést Que esbeltezl Uit Se la encuentro otra
vez, por dios que voy a perderme l
Pareceu-nos ouvir distinctamente estas e outras pala-
vras, saídas do grupo.
Pois viva la grada, d salero, las morenas, las rubias
e tudo o mais que quizerem, mas... abotoar casacos,
que os rateros já hoje tomaram o peso, e avaliaram
uma boa dúzia de relógios, sendo o primeiro a ficar sem
elle o ministro fraocez, que nem por isso fez do caso
uma questão diplomática, liraitando-se, segundo cremos,
a ser de outra feita mais acautelado, abotoando-se até
ao pescoço, como manda o uso da terra.
Vae por aqui uma gritaria infernal de vendedores de
programmas, jornaes, medalhas e publicações, que an-
nunciam, e descrevem as solemnidades do dia.
Esses e os demais vendedores ambulantes, também
como nós, teem em muita conta os merecimentos dos
larápios, porque as bolsas de couro, destinadas ao di?
nheiro. apresentam boas fechaduras, e descem-lhes do
pescoço, seguras a bons tirantes de ferro.
O transito é difficil. A descer das tranvias, que fazem
d'aquelle centro o primeiro ponto de saída, nas embo-
caduras das melhores ruas, que lá vêem convergir, ás
portas dos estabelecimentos commerciaes, acotovella-se
o povo, que se agita em ondas compactas.
Examinemos a praça. Nada tem de notável para o
renome, que possue, pois a mesma porta, que lhe deu
o titulo* nio existe já. É bastante irregular, formando
uma recta de um lado, onde está o Ministério de la Go-
bernacion, e uma curva dos outros, onde ha bons pré-
dios e óptimas casas commerciaes. Ao centro um for-
tíssimo repuxo, que eleva as aguas acima dos telhados,
recolhendo-as n'um tanque de pedra, ladeado por dois
mais pequenos e despido dos ornatos, que deveria ter.
A celebridade da Puerta dei Sol está pois em ser o
coração da capital, o centro dos principaes cafés e es-
tabelecimentos de luxo, o local privilegiado, aonde ne-
nhum cidadão deixa de ir posar um rato.
MADRID B O CENTENÁRIO DE CALDERON 273
#
# #
Os cafés podem considerar-se verdadeiras instituições
nacionaes. O Imperial, defrontando com a praça, atra-
vessa um quarteirão inteiro, vae da Carrera S. Gerony-
mo á rua de Alcalá: alem (Teste contam-se alli, pela or-
dem da sua importância, o Universal, Oriental, Coitem-
nas, Levante e Lisboa; e perto da rua Alcalá, o For-
nos, Biarritz, El Brilhante, Madrid, Suizo e Cervantes.
• Os espelhos, os mármores, os lagos guarnecidos de
plantas exóticas, as pinturas muraes e os tectos, os es-
tuques e as orchestras, que guarnecem e alindam o in-
terior de grande parle d'elles— elevara-nos á cathegoria
de estabelecimentos dignos de uma demorada visita, em
especial o Fornos, o principal de todos elles, onde, á
bora a que nos referimos, não encontrámos banco vasio,
apezar de uma boa centena de mezas de bello mármo-
re, que lá vemos; onde não poderemos obter um sim-
ples succarillo, o nosso caramelo, por mais que algu-
mas dezenas de criados circundem por toda a parte.
O diplomata, o politico, o jornalista, o toureiro, o es-
tudante, o militar de baixa e alta graduação, a dama
aristocrata, a simples mulber do povo, o artista distin-
cto, o modesto operário, o banqueiro, o burguez paci-
fico, sentados, a sós, separados, aos grupos — fumam,
bebem, mastigam, conversam, gritam, gesticulam, aper-
tam-se, nivelam-se, num convívio atroador, que receia-
mos ver descambar em pandemonium infernal.
Nada d'isso acontece porém ; a ida ao café está nos
hábitos de todos. Uns dão lugar a outros ; esta camada
succede áquella, todos os dias, a qualquer hora, e em
especial á noite, quando se discutem os acontecimentos
do dia, onde entram a politica, as artes, os costumes,
as aventuras dos grandes, os escândalos dos pequenos,
as mulheres da moda, os escriptos mais em voga ; onde
se tiram, e fazem reputações, se realisam entrevistas,
18
274 NOTAS A LAPIB
se estabelecem planos» se fazem projectos, se armam e
desmancham pendências, onde se trata de tudo, e se
falia de todos.
Verdadeiras instituições nacionaes os cafés de Ma-
drid !
Uma das primeiras difficuldades para o forasteiro è
conhecer o valor e o padrão do monetário hespanhol, e
fazer a distincção entre o novo e o antigo. Tão mistu-
rado anda elle que até os ochavos mouros, juntos a ou-
tra moeda estrambótica, os cuartos, são dados em tro-
cos miúdos.
Os criados dos cafés enganam-se frequentemente no,
cambio, que nos fazem, e o dinheiro falso circula em
abundância.
Ao darmos uma moeda para troco, o individuo, que
a recebe, bate-a com toda a sem-cerimonia a toda a al-
tura do nosso nariz, mira-a, mau grado o cunho nacio-
nal, que outro não admitte elle ; mas não é caso de es-
tranhar se nos achámos mais tarde com algumas pesetas
de chumbo no bolso, que, valham a verdade e a expe-
riência própria, não é difficil passar da mesma forma,
por que as recebemos.
Fez-nos impressão ver, a todas as horas e com espe-
cialidade á noite, as differentes classes da sociedade,
sem exclusão de uma só, representadas nos cafés, onde
toda a gente é obrigada a fazer despeza, desde que alli
vae tomar um lugar.
— Meu amigo — respondeu-nos um natural, que nos
acompanhava, e conhecia alguns dos costumes portugue-
zes — entre os senhores, furta-se ao estômago, muitas
vezes, para dar ao vestuário : um bom casaco, um bel-
lo vestido custam a certa gente privações e misérias ;
tenhamos chá ao almoço e uma açorda ao jantar, com
tanto que possamos ir ao alfaiate ou á modista. Pois
essas privações e essas misérias existem, e pralicam-se
entre nós, com tanto que não faltemos. . . ao café, seja
qual for a nossa condição. Muitos d'esses sujeitos, que
por ahi vê, são uns desgraçados, que gastarão esta noi-
MADRID E O CENTENÁRIO DE GALDERON 275
te o ultimo real, embora nada tenham para o almoço de
amanhã.
O café portanto, podemos repetir, é uma instituição
característica do povo madrileno.
#
# #
Abandonemos ás commissões a velada liricoliteraria,
que se ha-de realisar esta noite, como ultima parte da
programma do dia, e sigamos rua Alcalá a baixo alé ao
theatro Apolo.
É uma construcção moderna, devida ao plano de um
arcbitecto francez. À fachada -de pedra branca tem três
arcadas, destinadas ao vestíbulo coberto, onde penetram
as carruagens.
Aos lados ficam as entradas para os peões.
A este segue-se outro vestíbulo, com escadarias de
mármore, coisa rara nos theatros de Madrid, escadarias
que 'levam ao andar superior.
O recinto não é grande, apezar dos dois mil espec-
tadores, que pode conter ; o tecto e a cúpula são muito
bem pintados; a plateia luxuosamente estofada, como
em todos os theatros principaes, só apresenta uma or-
dem completa de camarotes, a segunda ; a primeira e a
terceira teem alguns próximos da scena ; o resto dos
lados e o fundo são galerias.
Para conhecer a nomenclatura dos diversos lugares
nos theatros hespanhoes, é preciso um estudo longo e
aturado, nada inferior ao requerido para a moeda.
Ainda que se saiba que palcos são camarotes e buta-
cos as cadeiras, ao comprar bilhete, querendo certo e
determinado local, é preciso conhecer os palcos-plateas,
entresuelos, principales e segundos, as butacas das mes-
mas espécies, os sillones de platea, os de balconcillo,
as galerias dê platea e delanteras de anfiteatro principal,
as delanteras de paraíso, os asientos de anfiteatro prin-
cipal e segundo ; e, se querem ir aos touros, terão além
276 NOTAS A LÁPIS
do que ahi fica — as bameras, as contrabarreras, os ta-
bloncillos, os centros, um mistiforio de nomes, que nem
o indígena distingue bem, uma arenga que nos intriga
diabolicamente, quando caímos nas mãos dos contracta-
dores, se logo de manhã nos não prevenimos com bi-
lhete.
A representação constou de umas comedias soltas,
que nos agradaram mediocremente, e de uns interval-
los de gymnastica, executada por uma familia ingleza,
cuja mulher descia lentamente de toda a altura da sala,
perto das galerias, até ao palco, suspensa pelos dentes,
onde depois segurava um trapesio, dependurada de ou-
tro, com a cabeça para baixo, emquanto o marido e os
filhos lá faziam numerosos exercícios.
Uma valente queixada aquella t
E agora tornemos pela rua dei Turco, celebre pelo
assassinato do general Prim, e vamos deitar-nos, porque
nos sentimos extremamente fatigado.
VI
Segundo dia. — A cathedral da Atocha.
0 museu anthropologico. — O de historia natural.
O Naval. — Considerações.
Bem. O somno restabeleceu-nos as forças. O novo dia
amanheceu formoso.
O programma das solemnidades pouco nos interessa;
aproveitemos o tempo, continuando a precorrer a cidade.
É-nos preciso retroceder, e voltar a lugares que já
vimos.
Desde que nos entendemos que nos anda a espicaçar
MADRID E O CENTENÁRIO DE GALDERON 277
a curiosidade uma das celebridades de Madrid, oo pelo
menos considerada como tal, pelos actos religiosos de
maior valia, casamentos reaes e principescos, ceremo-
nias lithurgicas da alta clerezia madrilena; ardemos de
impaciência por entrar na tão conhecida, ou pelo menos
tão faltada cathedral de Atocha, uma hyperbole façanhu-
da, um nome bombástico, que sempre ouvimos pronun-
ciar á bocca cheia.
Tomemos a tranvia, o americano, á falta de nome me-
lhor, não reparemos no cocheiro mal vestido de ganga
azul, a fazer-nos lembrar o nosso aguadeiro, e sigamos
Pradp abaixo até ao Paseo de Atocha, em cujo topo,
tendo á vista a estação do caminho de ferro, encontra-
remos o objecto de tamanha anciedade.
— Hace usted el favor de me decir onde es la.. . la
cathedral de Atocha?— perguntámos a um homem, ao
saltar do carro, na extremidade da linha.
—La gran basílica, quiere decir usted, onde los reyes
asistem á la salve, todos los sábados ? — emendou o in-
terrogado, impertigando-se.
— St, seftor.
— Está en su frente, hombre!
E estava com effeito, e não dávamos por isso. Es-
fregámos os olhos, julgando-nos com a vista embaciada,
ao ver um amontoado de casarões sem arte nem archi-
tectura, semeados de muitas cruzes, irregulares no ta-
manho e na altura, umas construcções de varias épocas,
entre as quaes avultava mediocremente a parte princi-
pal do templo, que iamos visitar.
—Rocha bruta a servir de envoltório a um formoso
brilhante— pensámos nós.
Penetrando n'aquella casaria, atravessámos um átrio,
digno delia, e soffretnos a mesma impressão, ao enca-
rar com uma pobre frontaria de egreja.
A porta estava aberta aos devotos. Entrámos reveren-
temente, e com mais reverencia ainda, começámos a ler
um grande papel encaixilhado, muito bem impresso e
pregado no exterior do guarda-vento.
278 NOTAS A LAPrs
Continha esta succuienta e proveitosa advertência :
Todos los fieles de ambos sexos que confesados y co-
mulgados, 6 verdaderamente arrepentidos con propósito
de confesion, visitaren esta real basílica de Nuestra Se-
hora de Atocha, rogando a Dios por la exaltacion de la
Santa Madre Iglesia, extirpacion de las heregias y la
paz y concórdia entre los príncipes christianos, ganan
todas las gradas esperituales, indulgências parciales y
plenárias con remision de todos sus pecados, como si
personalmente visitaren las iglesias, altares, capillas,
cofradias y lugares piadosos de la Sacrosanta Iglesia
Catedral Papal Luteranense de Roma. Estas indulgên-
cias y gracias esperituales pueden aplicar-se por las
bemditas almas dei Purgatório. Dado en Roma, a 13 de
junio de 1863. Ato 17 dei Pontificado de N. S. P. P.
Pio IX.
Se não fora esta piedosa leitura, bem mal disposto
dos acharíamos, ao penetrar no templo, que não passa
de um largo e triste corredor, escuro e despido de ata-
vios de arte e belleza, destoando apenas de semelhante
situação algumas bandeiras históricas, suspensas do tecto.
Despenhado da máxima altura da nossa boa fé, dêmos
ainda assim o tempo da visita por bem empregue, por-
que ha alli três objectos de valor— os túmulos de már-
more do marquez dei Duero e do duque de Bailen, que
estão á direita, e o do general Prim, que se admira a
meio de uma capella lateral.
É este um leito mortuário, onde descança a estatua
jacente do valente militar, cercada por uma bellissinaa
grade relevada, tudo de ferro e bronze» um exemplar ar-
tístico de elevado merecimento, devido a Zuloaga.
Acreditámos de bom grado na lei natural das com-
pensações.
E ainda bem para o nosso despeito.
MADRID E O CENTENÁRIO DE CALDERON 179
De regresso, a. meio do Paseo de Atocha, encontra*
mos o Museu Antropológico, construído a expensas e sob
a direcção de um devotado sacerdote da s ciência, o Dr.
Gonzales de Velasco, um edifício, que data apenas de
1875.
Atravessando um pequeno jardim, cercado por verga
de ferro, sobe-se uma longa escadaria de pedra até um
peristilo, a que sobresae um frontão triangular, susten-
tado por quatro columnas jónicas. Os relevos centraes
representam a cabeça de Minerva, circundada de plan-
tas medecinaes em partes entrelaçadas, que teem por
baixo a inscripção : Nosce te ipsum.
Á esquerda do peristilo, vô-se a estatua de Miguel
Servet, sábio aragonez, que descobriu a circulação do
sangue, e foi queimado em Genebra, por ordem de Cal-
vin o, em 1553; á direita a de Vallés de Govarrubias,
medico privado de Felippe II.
A cirurgia e a medecina estão representadas nas pin-
turas muraes, que aformoseiam o topo da escadaria.
O interior com põe -se de duas salas, guarnecidas de
galerias, e contem numerosos exemplares da sciencia
especialista, coordenados e dispostos, segundo o que os
nossos olhos de profano poderam observar, com o bom
gosto e óptima classificação de perfeito entendedor.
A parte experimental da anthropologia, que se prende
á medicina, pareceu-nos a mais completa e interessante
da collecção.
Da secção pbenomenal não nos podemos esquecer ain-
da de um exemplar moderno e curiosíssimo : a pelle e
o esqueleto de um rapaz provinciano, que morreu aos
26 aonos, tendo de altura dois metros e trinta e cinco
centímetros. Um gigante.
Quando, em frente das riquezas scientiBcas que se a-
montoam n'aquelle recinto, pensámos que tudo aquillo
é devido ao labutar incessante, ás investigações, estudos
e dispêndio de um homem só, sentimos uma imperiosa
necessidade de lhe tributarmos toda a nossa admiração,
todos os nossos maiores respeitos, e de imprimirmos
280 NOTAS A LÁPIS
sobre as oossas desconfianças pessimistas o cunho da
verdadeira fé. v
Tomemos pela moderna rua Affonso XII, que corre
paratlela aos jardins do Buen Retiro, que nos fica á di-
reita, passemos sob a porta de Alcalá, já descri p ta, e
sigamos pela calle do mesmo nome, sem nos emportar-
mos com alguns edifícios públicos, que ba por alli; en-
tremos no que mais nos interessa — o Museo de Historia
Natural, no edifício da academia das Bellas Artes, fun-
dado em 4771.
Incontestavelmente a Hespanba é a terra das pinturas
e o mais opulento repositório das obras dos verdadei-
ros mestres nacionaes e estrangeiros.
Pelas escadarias e salas da entrada, bem mal dispos-
tos e faltos de boa luz, valha a verdade, encontrámos
mais de tresentos quadros, em grande parte de incon-
testável valia, como por exemplo a Annunciação, Santo
Izabel de Portugal, curando os pobres, a Ressurreição t
outros de Murillo, a Sacra Família de VanDyck, os
dois S. Joões de Rubens, a Ceia de Tintoretto e algi-
mas telas de Corregio, Velasquez, Zurbaran, Goya e ou-
tros.
A amabilidade, com que fôramos recebido até alli, em
todos os estabelecimentos, que visitáramos, esbarrou
d'esta vez diante de uns guardas casmurros e poaco
attenciosos : o que nos fez lembrar dos Cerberos, aos
quaes está incumbida a vigilância da maior parte dos
nossos estabelecimentos, e em especial os palácios riaes,
uma recua de malcriados, presumidos e ignorantes; que
só por favor podem ser comparados a verdadeiros cães
de quinta.
— Cá e lá . . . más fadas ha — pensámos, ainda assim
com immensa desvantagem nossa.
Foi talvez por essa circumstancia que não achámos
bem cuidada a disposição do que vimos nas onze salas,
de que se compõe o museu.
As duas primeiras conteem a mineralogia, muito bem
representada, havendo a notar uma mesa, toda feita de
MADRID B O CENTENÁRIO DE CALDERON 181
lava : dos armários da terceira, algumas aves, ao centro
ruminantes e pachidermes ; oas três seguintes, mamífe-
ros, reptis e peixes ; na sétima, rochas e fosseis, ao cen-
uma espécie de rhinoceronte fóssil, o celebre Megathe-
rio, achado a 16 kilometros de Buenos Ayres, género
em que os sábios dizem ser férteis os terrenos de alia-
vião de uma parte da America do Sul ; na oitava e nona,
moluscos, crustáceos e zoopbitos ; na decima, anatomia
comparada, no meio três grandes dentes de elephante,
um incisivo e dois molares, encontrados junto á ponte
de Toledo ; na ultima, a secção entomologica ou dos in-
sectos.
#
# #
Alguns passos mais, e desembocaremos na Puerta dei
Sol ; sigamos na mesma direcção, e entremos ao fundo
da praça na rua Arenal, que nos levará a oulra, a de
Izabel II, onde nada temos a notar.
Caminhando á direita, chegaremos a um largo irre-
gular, como todos, onde está o Ministério de Marinha.
Demos uma vista de olhos á bibliolheca nacional, onde
nos farão andar piedosamente de chapéu na mão diante
das estantes, bem providas de livros, e, já que Madrid
é a terra dos museus, entremos em mais um, o Museo
Naval.
Aqui aprenderemos a ordenar um vasto estabeleci-
mento, onde são poucos os originaes e immensos os mo-
delos, as copias e as recordações de homens distinctos,
tudo espalhado em dez salas, que nos despertam o má-
ximo interesse, secções, onde notámos os differentes ty-
pos das peças fundidas nos arsenaes e dos navios do
estado, bandeiras históricas, os galões de um general,
o retrato de um almirante, os pedaços da farda d'este,
as dragooas, o bonnè e a espada de outro, planos de
fortalezas e construcções de todo o género, effigies de
descobridores, bustos de marinheiros, amostras de ma-
deira, modelos de instrumentos náuticos, uns de pau,
282 NOTAS A LÁPIS
outros de ferro e bronze, uma agglomeração paciente e
barata de milhares de objectos, para incentivo, recorda-
ção e estado, uma exbibição patriótica do mais elevado
alcance moral e pratico.
As salas cbinezas e a da pesca são dignas de espe-
cial menção, aquellas pelos specimens da industria de
um povo tão original, e esta pelos differentes typos de
redes e mais instrumentos da vida piscatória, aves aquá-
ticas e peixes.
Á saída do museu naval, cuja visita tanto nos agra-
dou e satisfez, vínhamos pensando nas bênçãos devidas
aos governos intelligentes, aos homens de boa vontade e
iniciativa correspondente, que attestam, na sua passa-
gem pelos altos poderes do estado, o quanto vale o pa-
triotismo, estribado no pundonor de cada individuo.
Aquelle estabelecimento, sem valor intrínseco, é uma
riqueza nacional, porque se baseia no estimulo, dado
aos estudiosos, na consideração tributada a homens be-
neméritos, no incentivo para os operários, que vêem
alli representadas as provas do seu mérito, na venera-
ção posthuma de actos valorosos, no propósito de tor-
nar bem patente, aos olhos de nacionaes e estrangeiros,
que se resolvem difficuldades, que se vencem escolhos,
que se lida, que se trabalha, que se vive emOm.
MADRID E O GBNTENARIO DE GALDERON 283
VII
ás estrebarias reaes. — As carruagens de gala.
O theatro da Zarsuela.— Uma aventura.
Temos diante de nós ama construcção moderna, bai-
xa e povoada de postigos, um parailelogrammo, que se
prolonga com a roa Bailen, n'uma grande extensão.
Interessa-nos isto. O que será ?
São as cavalhartças reaes, que se acham á esquerda
do palácio. Facultam-nos a entrada; não desperdiçaremos
a occasião de admirar uma das feições mais importan-
tes da sumptuosa corte hespanbola.
As dependências interiores são vastíssimas; o asseio
e a boa ordem excedentes; já vimos 226 cavallos de to-
das as raças, com o respectivo nome baptismal, escrip-
to na porta divisória dos differentes alojamentos. Entre
as extravagâncias da nomenclatura, citaremos a de cin-
co cavallos, que se chamam— Viriato, Cómico, Escriptor,
Unionista e Aumale, com manifesta desvantagem para
os homens, a quem competem semelhantes títulos.
Ironia ou menospreço? Em todo o caso, lembrança
muito da moda, mas ôcca, reles e de muito mau gosto.
Das 36 mulas, que povoam a estrebaria, duas obede-
cem aos nomes de Priora e Generala.
Quando dissemos que as cavalhariças reaes eram uma
prova da espaventosa prosápia do monarcha hespanhol,
não nos enganámos, pois, passando aos compartimen-
tos, onde se guardam os trens, deram-nos relação de 10
carruagens antigas e 127 modernas I
As mais notáveis são — a de ébano, chamada de Joan-
na, a louca, mulher de Felippe I, a de maior valia e a
primeira, que possuiu a corte, no século XVI; a de
284 NOTAS A LAPtS
guarnições vermelhas e douradas, de Carlos IV; a de
tartaruga, dadiva de Napoleão 1 a este monarcha; o co-
che de respeito de âmbar e dourados a fogo, mandado
fazer em 1827 por Fernando VII, e outro mais simples
do mesmo reinado; a de Carlos 111; o coche de Maria
Luiza, mulher de Carlos IV; o de nácar e dourados, of-
ferta de Napoleão III; dois mandados fazer em Paris por
Izabel II; o landau, dado a Christina por Fernando VII,
e mais uns três de meia gala; quatorze ao todo.
Apezar de todo o valor, arte e belleza d'estas carrua-
gens, nada vimos que podesse egualar-se aos apparato-
sos e riquíssimos coches de gala dos reis portnguezes.
Na praça do Oriente, que nos fica perto, trabalham
com actividade nos preparativos para as futuras illumi-
nações e para a decoração geral.
Voltaremos amanhã, que o dia não chega para mais.
♦
* #
Depois de jantar, pensaremos em ir a novo theatro,
que será o de la Zarzuela, na rua Jovellanos.
Eis-nos. É um edifício espaçoso, elegante e moderno»
tendo três ordens de camarotes, aos lados, e o fundo
convertido em bancadas, dispostas em ampbitheatro ao
uso da maioria dos theatros madrilenos.
Como o titulo indica, o género das exbibições sceni-
cas é a musica nacional, a opera característica, que tem
a especialidade de se não confundir com outra, qualquer
que seja.
O conjuncto do que se representava no primeiro acto
não nos deixara grande impressão, ao cair do panno.
Sentiamos-nos fatigado de corpo e de espirito, e não
quizemos sair no intervallo, que foi demasiado longo
para os nossos nervos amortecidos. Os olhos fecharam-
se-nos naturalmente, e quando demos por nós foi a uma
cabeçada do nosso companheiro, que dormia egualmente,
como era provável, por effeito reflexivo.
MADRID E O CENTENÁRIO DE* CALDERON
Olhámos-nos espantado, e podemos abranger a fraca fi-
gura da nossa posição. Haveria por alli sorriso zombe-
teiro á volta de nós ? a pacata placidez do nosso somno
seria para muitos a diversão do intervallo?
— Ninguém deu pelo nosso somno, julgo eu. Parece
que. . . que não resonámos — disse o collega.
— Penso que não ; ao contrario, pelo que lhe diz res-
peito, ter-nos-iam posto lá fora, em plena rua.
O nosso companheiro parece que não fez muito caso
da ligeira apostropbe, que se referia a uns grunhidos,
com que elle ameaçava dar-nos cabo do socego, todas
as noites, e, o que mais seria, revolucionar a casa de
huespedes ; e dispoz-se para dormir de novo.
Apezar da plateia estar pouco povoada, a reincidên-
cia escandalisou-nos. O homem porém era insensível ás
cotoveladas, que lhe imprimíamos no lado esquerdo. Se
estrugisse um ronco possante, podíamos attrair os olha-
res de toda a gente; era o nosso receio.
Duas filas de butacas adiante de nós, um pouco para
a direita, uma mulher, que se sentava entre algumas
pessoas, virara-se por vezes, encarando-nos com uma
insistência de notar. Ora, de todos» os ridículos, espa-
lhados por esse mundo, o que mais desconcerta e hu-
milha o sexo forte è o que lhe é inflingido por uma
mulher elegante, nova e bonita.
Presenciara o nosso somno, sem duvida, ria-se de nós,
e tinha bem boa razão para isso.
Nova cotovelada no companheiro, e ainda sem resultado!
No rosto da deidade, que continuava a observar-nos
com impertinência, havia uma expressão singular, muito
differente do ar zombador.
N'um momento, em que ella trocava algumas pala-
vras com o homem, que tinha á esquerda, applicámos
ao nosso dormente um rigoroso beliscão, com óptima
efficacia.
— Parece-me que sonhava — disse, acordando de cho-
fre, visivelmente contrariado. — Para que é que você. . .
— Para que o acordei? Para o furtar ás zombarias
286 MOTAS A LÁPIS
do olbar de uma mulher, que mofa de nós, haverá um
bom quarto de hora. ..
— Uma mulher, que...
Indiquei-lh'a exactamente na occasiâo, jem que ella
se voltava de novo, em quanto o homem, com quem
conversava, fazia o mesmo.
Era um reconhecimento, não havia duvida.
O nosso companheiro, mau grado seu, deu um pulo
na cadeira, e tregeitou com visível embaraço, ao procu-
rar fazer uma careta, que se assimilhava a um cumpri-
mento, a que os dois corresponderam, elle com rasga-
da cortezia, ella com extrema dificuldade.
E voltaram á primeira posição.
— Oh t desgraça imprevista 1 oh t ventura inesperada
—exclamou baixinho o nosso companheiro.
— Duas cousas tão diversas, ao mesmo tempo !
— É certo comtudo. Quem tal adivinhara! Desgraça. . .
porque não poderei furtar-me ás suas justas recrimina-
ções; ventura. . . porque ainda gosto d'ella, e. . .
—Mas... não entendo.
— Ó homem, aquella creatura è a Juanita, a minha
companheira do alte-mar, a. . .
Recordámos-nos então de uma historia, passada abor-
do de um vapor transatlântico, em viagem para Lisboa,
haveria uns dois mezes, segundo a narrativa intima, que
nos fora feita.
Um toureiro hespanhol aportara á capital de uma das
republicas de Prata, onde fora a negócios do seu officio.
Parecendo-lhe mais commodo voltar á pátria em com-
panhia de alguém do seu intimo agrado, raptou uma
bella rapariga, que se deixara seduzir talvez pelos en-
cantos de uma viagem ao velho mundo.
O raptor porem era mais ciumento que o Bardo de
Castilho, e mais furioso que um Otbelo. A rapariga en-
fastiava-se, e arrependia-se a todos os momentos.
Foi n'estas bçllas disposições que o nosso amigo os
encontrara, quando o vapor chegou a Pernambuco, onde
elle o esperava.
MADRID E O CENTENÁRIO DE CALDERON 287
Travaram relações, e, n'um momento dado, a Juanita
expoz a sua situação, que o novo viajante escutou com-
pungido, acabando por offerecer coração e serviços, que
foram acceites com alvoroço.
Tanto a bordo do navio, como no lazareto, alcançou
favores especiaes de incontestável reconhecimento, com
a promessa de que em Lisboa se effectuaria novo rapto,
ficando elle inteiro possuidor do objecto amado.
As ásperas lufadas de um violento nordeste porem
arrefeceram consideravelmente as escandecencias amo-
rosas do nosso amigo, e elle. . . o desalmado. . . traiu
a fé jurada. . . olvidou os calorosos promettimentos de
um momento de extrema ventura, e deixou-se ficar no
seu quarto, desconhecido da bella, emquanto a desdicha-
da lá ia para Madrid, maldizendo a sua sorte, e não
pensando certamente no acaso, que a 1 li lhe havia de pôr
á vista indignada o cruel, o fementido, a quem dera
tamanhos agrados.
Cremos, com bom fundamento, que a Juanita não co-
nhecia o vigor excepcional dos versos do nosso grande
poeta dos Ciúmes; ao contrario, tel-os-ia parodiado, ex-
clamando in mente :
Raça cruel de cascavéis dolosos . . .
podesse outro vapor contel-os todos
e o piloto fosse eu. . . vingança eterna !
livre era o mundo e as fêmeas satisfeitas I
Não sabemos se a idéa lhe ruminava palavras: o cer-
to era que os olhos despediam queixumes acerbos.
Subiu novamente o panno. O nosso amigo não via
muito a claro o que se passava em scena.
— E agora ? — monologava elle.
— Desapparecer. .. mais uma vez — respondemos.
— Isso é que eu não faço. Parece que li algures
que a zanga das mulheres ainda é um signal do seu
amor.
t Talvez podesse ainda conseguir. . . »
NOTAS A LAPH
— 0' homem, mas isso é requintada maldade. Desa-
socegar de novo aquelle espirito. . .
— Desasocegado está elle, ha muito tempo.
— Fatuidade e agua benta. . .
— Eu tomo a dose, que entendo dever tomar. Vou
comprimental-os, no intervallo que segue. Mas. . . como
lhe bei-de fazer saber a minba morada, a ella só. . .
— Para que vá ter comsigo?
— Para me dar noticias suas, ao menos.
— E se ella pretender tirar uma desforra ! Não é um
laço, que vae armar a si próprio?
— Oh I diabo I não me lembrava.
A aventura dava-nos boas doses de bom humor, com
que o nosso companheiro não estava de pleno acordo,
ao arcbitectar na imaginação o que lhe iamos referindo,
em simples probabilidades: um punhal luzente, a sair
de uma liga de seda, um grito de furor, uma scena de
sangue, um escândalo monumental, e não sabemos quan-
tas cousas mais.
Tempo perdido 1 palavras malbaratadas!
Puxando da carteira, rasgou-Ihe uma folha, escreveu
algumas palavras no pedaço, que reduziu ao menor vo-
lume possível, e, ao cair do panno, levantou-se, e foi
cumprimentar os dois indivíduos, com quem se demo-
rou a conversar, durante o intervallo inteiro.
— E então? — perguntámos por fim.
— Um tremendo arrufo. As palavras tremiam-lhe nos
lábios. Lá ficou o bilhete. Esperemos.
— Espere o meu amigo, que não eu. Detesto as sce-
nas violentas.
— Pois seja, como quizer.
E entrou radiante no nosso quarto de dormir.
MADRID E O GBNT1NÀWO DE CALDERON
VIII
Terceiro dia. — 0 commercio. — Um sapateiro poeta.— Praça
do Oriente. — Estatua de Felippe IV. — O palácio real e a
sua capella. — Egreja de S. Isidro. — Armoria Real.— Porta
de S. Vicente. — A Segóvia, antiga Mouraria, — O Pardo.—
O theatro hespanhol. — Lá como cá.
O programma do novo dia resumia-se na collocação
da pedra fundamental de uma escola, em virtude do
testamento de um ricaço qualquer, na inauguração do
monumento alegórico da rua de Alcalá, o Helicon, a
que já nos referimos, El Monte Helicona, no dizer dos
cartazes, onde era manifesta a nacionalisação de todos
os termos, quaesquer que fossem ; e em nova velada-
lyrico-litteraria do Ateneo.
A nossa curiosidade cbamava-nos para outros assump-
tos de maior interesse individual.
Depois do serviço quotidiano de entregar a cara a um
barbeiro, que, ao uso da terra, nol-a empastava em sa-
bão, que adberia á pelle, como mascara pegajosa e suf-
focante, onde só nos luziam os olhos, esmurrando-nos
as ventas com prodigiosa agilidade, e rapando-nos com
egual amabilidade — saímos para o ponto de partida, a
Puerta dei Sol, e começámos por entreter-nos, entrando
em algumas casas de commercio, que nos pareceu mui-
to importante, á parte o campanudo das taboletas, em
que tudo é grande — grandes zapaterias, gran sastreria,
grandes almacenes, granlampisteria, gran bazar, e gran
estabelecimiento de vinos, onde uma arroba de liquido
comporta 22 garrafas.
As casas mais vastas e espectaculosas são— a de los
19
290 NOTAS A LÁPIS
Diamantes, na Carrera S. Geronimo, a Union Mercan-
til, na calle Mayor, onde, á maneira dos armazéns do
Louvre, qoalquer de nós pode comprar tudo o que lhe
for preciso para seu uso, desde a gravata até á cama
para dormir, a preços marcados, serviço especial e bem
feito.
Como a época era excepcional, todos os estabeleci-
mentos primavam pelas novidades e enfeites e annun-
cios, a que não faltavam boas lembranças, para o ne-
cessário reclamo.
Uma sapataria da rua Mayor, com filial na praça do
mesmo nome, dirigia-se em verso ao publico e em es-
pecial aos forasteiros.
O melhor do papel dizia assim :
Que en todas estas fiestas
dei mes de raayo :
Sao Isidro, la feria
y el centenário,
sin gastar guasas !
quisiera yo que honraseis
estas dos casas.
El que se calza en esta
za pater ia,
en seguida le toca
la loteria;
porque la suerte
la meto entre la suela
y el contraforte.
Cuantas I ay I de las ninas
que yo he calzado
se aburrian solteras !
pues se ha d casado t
con que... animar- sei
que lo logra el que á casa
viene á calzar-ae.
À coxa musa do sapateiro, apezar de possuir mais
cerol que letras, não deixa de ter graça e um certo sa-
bor ao reclamo americano.
MADRID £ O CENTENÁRIO DE CALDERON 291
Voltemos ao ponto, onde findou o nosso passeio da
véspera, indo pela rua Arenal até á moderna Plaza dei
Oriente, a melhor e mais vasta, apezar de irregular.
Compõe-se de uma via exterior, por onde circulam os
vehiculos, e de outra interna e gradeada de ferro, em
plano superior, guarnecida por 44 estatuas de reis, de
má pedra e em parte mutiladas.
Ao centro, o mesmo jardim sem flores das outras
praças, um arelvado mais ou menos vistoso, a enqua-
drar a estatua equestre de Felippe IV, que estivera no
Buen Retiro, uma bella estatua de bronze, notável pela
attitude do cavallo, que se ergue, e sustenta o grande
peso seu e do cavalleiro nas patas e na extremidade da
cauda.
O pedestal é rectangular, tendo aos lados dois baixos
relevos, que representam o acto do rei, ao condecorar
Velasquez com a cruz de S. Thiago, e uma alegoria da
protecção dispensada por elle ás letras e ás artes.
Os quatro ângulos teem outros tantos leões; na frente
e no lado posterior dois tanques, em forma de concha,
recebem a agua das fontes, que jorram do pedestal.
Umas casinhotas, pouco agradáveis á vista e ao bom
gosto, vendem bugiarias, aos lados da via interior, que
foi transformada em lamaçal pela pouca chuva da noite.
Algumas juntas de bois, meneiando a cabeça, para
desviarem dos olhos as franjas garridas, que lb'a enfei-
tam, ao uso da terra, conduzem objectos para a illumi-
naçâo e para o transporte de uma estatua, ad kocy de
Calderon, em cuja base já se pôde ler o titulo de uma das
suas obras — La vida es sueflo.
Os dois melhores edifícios da praça são o palácio real
e o theatro do mesmo nome', a Opera.
O palácio, cuja pedra principal se collocou em 1738,
é apparatoso, apezar de incompleto, como o da Ajuda;
tem quatro fachadas, terminadas por pavilhões, e guar-
292 MOTAS A LÁPIS
necidas de orna balaustrada interrompida a espaços por
pedestaes com jarrões.
O lado sul, fachada principal, que olha para a praça
e forma a sua maior parte recta, tem as janellas do pri-
meiro andar, alternadas, com fecho triangular e de meia
volta, e direitas as do segundo. A porta é um átrio, en-
cimado por uma esfera de relógio, que tem, aos lados,
o sol precorrendo o zodíaco, superiormente um escudo
de armas e em baixo um medalhão de Hespanha.
Dizem-nos que está aberta a capella. O movimento da
gente, que entra e sae, assim o indica.
Entremos também.
O átrio, para onde deitam as galerias altas e baixas
do interior, e onde se revesam as guardas do palácio, è
vasto e guarnecido de bons moveis, pinturas e tapeçarias.
A escadaria em três lanços, um para a ida e dois para a
volta, tem os degraus e todos os accessorios de mármore.
A capella real é sem duvida o melhor templo de to-
dos os que vimos em Madrid, pois convém saber que
as egrejas alli não correspondem ao passado religioso
da Hespanha, incluindo a de S. Isidro, considerada a
melhor e mais espaçosa, e tanto que n*ella se celebram
as solemnidades religiosas de caracter official.
E já que falíamos n'ella, diremos que tem a frontaria
de pedra silicada e parda, ou berroquenha, uma espécie
de granito do Porto, com quatro columnas ao centro e
nos ângulos duas torres incompletas. O interior é uma
cruz latina com pilastras dorico-corinthias, feitas de uma
argamassa qualquer sobre pedestaes da pedra já citada,
muitos dourados e algumas capellas lateraes, sendo de
notar apenas as que ladeam o altar-mor, consagradas ao
Santíssimo e a N. S. da Soledade— edificação esta que
não pode comparar-se sequer com uma das boas egre-
jas secundarias de Lisboa.
Olhando retrospectivamente para a hespanha fanática
de todos os tempos, causa-nos grande admiração que a
sua capital não tenha um templo digno do seu nome e
importância, quando em algumas das suas províncias
MADRID E O CENTENÁRIO DE CÀLDERON 293
existem grandiosos monumentos d'esse género ; e isto
mesmo embora saibamos que até Felippe II foi sempre
considerada uma população secundaria.
Fora da capella real, ha duas bellas estatuas de ex-
cellente mármore dos reis catholicos, Fernando e Izabel;
á entrada os quatro evangelistas, modelados em gesso;
as próprias columnas interiores, que nos pareceram de
mármore preto, assentam em pedestaes de pedra e cal.
O conjunctô porem è sumptuoso, sendo realmente no-
táveis as pinturas do zimbório e os quadros dos dois
últimos altares.
Depois de ouvirmos alguns trechos de uma excedente
melodia religiosa, executada pelos músicos da camará
real, saiamos que o aperto de gente é grande, e os nos-
sos nervos não levam a bem os differentes empurrões,
que somos obrigado a supportar.
Cá fora paremos um instante ao pé dos operários,
que trabalham na madeira e na lona, que vão completar
a estatua calderoniana, e viremos-nos ainda uma vez
para a frontaria do palácio. Lá está, preso exteriormente
á balaustrada de uma varanda, um objecto que temos
visto em grande parte dos balcões madrilenos, e que
nos anda a picar a curiosidade. Parece-nos uma canna
ramalhuda e secca.
Perguntemos o que quer dizer aquelle ornato extra-
vagante.
Muchas gradas t É uma palma de domingo de ramos,
posta alli para preservar o edifício dos eslragos do raio.
Ficámos sabendo, e mais que, apezar d'aquelle pre-
servativo, o invento de Franklin não é inteiramente ba-
nido da capital hespanbola.
#
# #
Sigamos até á Armeria Real, collocada em um edifí-
cio da pequena praça do mesmo nome. Está em obras
este bello e rico museu de antiguidades militares.
294 NOTAS A LÁPIS
Só por bondade especial, nos é concedida a en-
trada.
O único meio de corresponder á amabilidade, que
houve para comnosco, é o abreviar a visita, bem a pe-
zar nosso, valha a verdade.
Desde a espada de Boabdil, ultimo rei mouro de Gra-
nada, até ás cadeiras de campanha de Carlos V; desde
o elmo de Jayme, o conquistador, até aos estandartes de
Lepanto ; desde a vestidura de Christovão Colombo até
á espada de Felippe IV; em bandeiras, armaduras, ca-
pacetes, pendões, escudos, rodelas, armas de toda a es-
pécie e recuerdos históricos de todo o género— os obje-
ctos expostos contam-se aos milhares.
Descendo pelo extremo da rua de Bailen, vamos en-
contrar-nos com a Puerta de S. Vicente, ou antes duas
porias, separadas por um arco, formado por duas co-
lumnas unidas, sustentando a cornija e um frontão trian-
gular, coroado de tropheus.
Vê-se por aqui que a predilecção especial de Carlos
III era dotar Madrid cora muitas portas triumphaes, por
onde podesse passar á vontade a fama do seu nome, que
não é todavia dos maiores.
Á direita ficam-nos um quartel moderno e a estação
do caminho de ferro do Norte; á esquerda um pequeno
campo arborisado, o passeio dei Pardo, á borda do Man-
zanares.
Sigamos por este caminho e a meio pouco mais ou
menos, voltemos-nos para a cidade, em cujo extremo
nos achámos, e subamos pelas espaçosas e elevadas es-
cadarias, que nos ficam em frente, na Cuesta de la Vega
até ao mais elevado do bairro de Segóvia.
Estamos na Mouraria, na Madrid antiga, na Alfama
de lá, mas em vão procurámos a morada dos califas;
apenas aqui ou além se nos deparam uns casebres mi-
seráveis d'esses tempos longínquos; a rasoira da civili-
sação tem desmoronado o que havia, abrindo ruas, apla-
nando declives, levantando edifícios, e cortando tudo
isso, por sobre o enorme desfiladeiro, que separava o
MADRID E O CENTENÁRIO DE GALDERON 295
bairro, com uma boa ponte de ferro, a 23 metros de
aítura, o viaducto de Segóvia.
De toda a cidade, tão pobre em pontos de vista, è
este o melhor de todos elles, porque dá sobre o rio e
sobre as quintas e pomares, que se avistam para alem
da sua margem esquerda, disfruclando-se um horisonte
extenso, pelo achatado dos montes, que se lhes seguem.
As propriedades pareceram-nos em geral pouco cui-
dadas, á excepção da Casa dei Campo, quinta do mo-
narcha, para onde se passa em uma ponte sobre o Man-
zanares, atravessando-se depois um pequeno túnel. Diz-
se que entre o palácio real e o passeio dei Pardo, ba
outro túnel secreto para fins especiaes, valha a verdade,
passando por baixo do edifício, desde o Campo dei Jtfo-
ro9 sitio hoje muito pouco frequentado, ao contrario de
outros tempos, em que alli concorria a corte, como se
deprehende da comedia deCalderon — Mafíanas de abril
y mayo.
A falta de frequência dos passeianles estende-se até
muito além do Pardo, apezar de correr á borda do Man-
zanares, onde apenas as lavadeiras estabelecem um mo-
vimento regular, dando a tudo aquillo um aspecto de
traparia bem pouco agradável, como acontece para os
lados da estação do meio-dia.
Muito esguio e pobre o tão conhecido rio !
#
* #
Procuremos a rua Mayor, aonde Jeremos de voltar
amanhã, e depois de jantar escolhamos novo theatro,
para a diversão instructiva da noite.
Os annuncios respectivos annunciam a representação
da celebrada peça do grande poeta, heroe dos festejos,
La vida es sueflo, no theatro Espanol.
Prefiramos este. O theatro Hespanhol, primitivo circo
de cavallinhos, ressente-se da sua origem, e é por isso
inferior aos que temos visto.
996 NOTAS A LÁPIS
Não tem os chamados proscénios, camarotes de bocca;
o arco apresenta um certo numero de medalhões com
os bustos de alguns dramaturgos; a primeira ordem é
ininterrupta; as outras são cortadas ao fundo por gale-
rias. O camarote do chefe do Estado distingue-se ape-
nas pela coroa real e um cortinado de veludo carmezim.
Esta casa de espectáculos destina-se especialmente ao
drama, e não tem orcbestra. A innovação, imputada ao
tbeatro francez de declamação, não caiu ainda no agrado
do publico, segundo o que podemos deprehender das
opiniões, que ouvimos; o que não admira em terra de
tão boa musica.
Lá, como cá, as zarzuelas, a comedia ligeira e des-
nudada e a bufoneria das operetas— são a febre amarella
dos tbeatros dramáticos, que arrastam uma existência
de enfermos.
A boa litteratura amollenta os espíritos, a poesia clás-
sica dá profunda somnolencia.
O festejado Calderon, se assistisse, como nós, á re-
presentação da sua Vida es sueno, fugiria espavorido
para as maiores profundezas do seu tumulo, amaldi-
çoando a indifferença da nossa época e os gostos do
nosso tempo, que quer gastar se a rir.
Elle alvoroçara os indígenas, e chamara a Madrid vinte
mil forasteiros, que alli tinham vindo em honra sua, e
todavia uns e outros mostravam pelas suas obras a mais
significativa desattenção, e, se lhe fallavam no nome,
era porque isso estava em voga, como novidade de al-
guns dias.
O tbeatro Hespanhol achava-se pouco menos de vasio,
emquanto que os espectáculos de funambulismo e risota
regorgitavam de espectadores.
MADRID B O CENTENÁRIO DE CALDERON 197
IX
Quarto dia.— O correio não Tende sellos.— Cerimonia fnnebre.
—O desfilar das tropas.— A casa do poeta.— A praça Mayor
e a estatua de Felippe IIL— Recuerdos— Rua de Toledo.—
Praça da CeVada. — O museu archeologico.— Exageros.— Três
egrejas.— Os ricaços lisboetas.- Theatro das variedades.
O novo dia amanheceu orvalhado e carrancudo, sendo
o primeiro consagrado ás festas populares. Uma ligeira
pirraça que contrariou muita gente.
Os tiros dos canonazos acordaram-nos ao alvorecer, e
umas quatorze bandas de musica militar, precorrendo
as ruas principaes, ás 7 horas, pozeram-nos fora da
cama, uma péssima cama de 19, que nos esbrazeiava o
corpo, augmentandp-nos a antypatia, que votamos ao
género.
Vamos levar ao correio a nossa modesta correspon-
dência. Isto é um modo de faltar, porque o correio não
vende sellos 1 as tabacarias são os seus delegados, e é
lá que temos de haver-nos, mesmo para os nossos tele-
grammas, porque no fadado edifício é preciso pagal-os
em estampilhas; não se recebe dinheiro.
Para quem gostar de originalidades, ahi fica mais
essa, notando que nem todas as tabacarias teem á porta
as caixas receptoras.
Os balcões e as janellas geralmente guarnecidos de
sedas vistosas, nas casas dos ricos, e de simples pan-
ninho com as cores nacionaes, nos domicílios dos me-
nos abastados, uma cousa barata e de óptimo effeito,
davam ás ruas uma nota alegre e verdadeiramente fes-
tiva, sendo de notar os enfeites de três— Serrano, Al-
298 NOTAS A LÁPIS
calá e Príncipe, esta especialmente, apezar de mais pe-
quena.
Ás H horas, celebram-se na modesta egreja de S.
José, orações fúnebres por alma de Calderon, officiando
o cardeal Moreno, e assistindo elrei. As autoridades e
os convidados dirigir-se-hão depois processionalmente
para a singelíssima capella de S. Pedro, na rua Torre-
cilla dei Leal, onde repousam os restos mortaes do gran-
de poeta.
O* transito da procissão official está ladeado pelas tro-
pas; a concorrência do povo é enormissima.
Só de uma carruagem podemos observar o desfilar
dos soldados, que vieram passar em columnas de honra
defronte da estatua de Calderon, na praça do Oriente e
junto do palácio real, em cujos balcões se via toda a
familia do rei e a corte; eram em numero superior a
doze mil homens, sob o commando do capitão general,
conde de Valmaseda, e compunham-se de tropa de li-
nha, caçadores, guarda civil, engenheiros, telegraphis-
tas, regimentos de montanha, artilheria e lanceiros, for-
mando pela garridice diversa dos uniformes, pelo nu-
mero e boa marcha, um espectáculo imponente.
Nas figuras emproadas e garridas dos commandantes
dos corpos ha uma nota burlesca, perdoem-nos elles, e
vem a ser uma bengala suspensa do peito, como dis-
tinctivo do mando. Em verdade, não ha nada menos ele-
gante, nem mais desgracioso n'uma farda de militar.
— - Meu amigo — dizia-nos o nosso companheiro, re-
ceiando talvez as fúrias da Juanita, com quem não po-
derá chegar a um acordo— aquillo é de uma alta pre-
vidência. Quando nos falharem outras armas, sempre
será bom ter á mão um cacete qualquer.
#
# #
•
Apezar do aspecto carrancudo do dia, que resolveu
associar-se ás demonstrações de respeito pelas cinzas
de poeta, rompamos de casaco abotoado, como anda to-
MADRID E O CENTENÁRIO DE CALDKRON 299
da a gente, pelo apertão dos curiosos, que se agglome-
raram para ver o desfilar das tropas, e voltemos á calle
Mayor, para continuar o nosso passeio atravez da cidade.
Ao defrontar com a casa estreita e singela de três an-
dares, que tem o n.° 95, descubramos-nos com reve-
rencia, porque — Aqui vivió y moriô don Pedro Calde-
ron de la Barca — segundo se lê n'uma simples lapide
de mármore.
Chegámos á Plaza Mayor, que foi antigamente lugar
de fogueiras inquisitoriaes e theatro de varias peripé-
cias politicas. Hoje é um quadrilongo, cercado de edi-
fícios uniformes, guarnecidos de supportes, apoiados
em columnatas, ao rez do chão.
No centro do jardim, levanta-se em alto e bom pe-
destal, onde figuram acanhados relevos, a estatua eques-
tre de Felippe III, pouco recommendavel, apezar de ser
de bronze modelado por Juan de Bolonia, pela exces-
siva gordura do cavallo, que é em todas as suas linhas
proporcionaes uma soffrivel monstruosidade.
Os intercòlumnios são occupados por estabelecimen-
tos de quinquilharias ; as saídas fazem-se por quatro ar-
cos de meio ponto.
Com ser pequena, é esta a única praça regular de
Madrid.
Saiamos pela porta, que dá para a rua de Toledo.
Os vendedores de quinquilharias perseguem-nos, a
otferecer recuerdos. Pois façamos-lhes a vontade, com-
prando uma navalha nacional, uma enorme cuchila de
dois palmos de comprido, com muitos embutidos e en-
feites no cabo j) alguns arabescos na folha, um traste
verdadeiramente typico ; e um cachimbo marroquino, de
tubo dourado, cabeça de barro cosido e algumas meias
luas pendentes de uma cadeiasinha de metal luzente,
para podermos dizer um dia, á imitação de muitos via-
jantes, «que já tivemos trato em terra de infiéis.
A rua de Toledo é uma das mais concorridas e com-
merciaes, tornandose digna de uma demorada visita,
para os que desejarem conhecer diversas amostras da in-
900 NOTAS A LÁPIS
dustria hespanhola, como os pannos de Bejar e de San-
ta Maria de Nieva, os lenços de Barcelona e os coberto-
res de Palencia, alpercatas, pandeiros e muitos objectos
de cosinha,
A perspectiva geral é picaresca, porque os tecidos de-
pendurados nas paredes ligam-se de uns estabelecimen-
tos para os outros, em vistoso estendal.
Ao dar uma volta pelo Hospital de la Latina, encon-
tra-se a Plaza de la Cevada, o primeiro mercado de Ma-
drid, estabelecido no antigo sitio official das execuções,
de que entre outros foi victima o distincto general Ra-
fael dei Biego, por cuja memoria se deu ao lugar o no-
me de Mercado de Biego. À praça è pequena, irregular
e de rampa, mas foi muito bem aproveitada, fazendo-
se-lbe um pavimento subteraneo, em cujo espaço aboba-
dado, penetram pelo lado mais baixo os carros de hor-
taliças e outros géneros.
Tomando para a rua dos Embajadores, no lugar mais
conhecido por Huerta dei Clérigo Bayo, vamos ter ao
Museo Arqueológico, inaugurado em 9 de Julho de 1871.
Não nos cansaremos de repetir que a capital da Hes-
panba è, em toda a península, a terra por excellencia
da boa pintura e dos bons museus.
O museu archeologico é um repositório vastíssimo de
riquezas incalculáveis. A sua divisão scientifica reparte-
se em quatro secções — Tempos primitivos, Edade me-
dia, Numismática e Ethnographia.
Na primeira sala do pavimento inferior, veem-se as
collecções pre-historicas, instrumentos de pedra, cra-
neos de troglodytas, povos antigos da Ethiopia, objectos
de madeira, marfim, osso, esparto e alguns de cerâmica.
Na segunda sala, antiguidades egypcias e romanas, ar-
mas, insígnias militares, instrumentos agrícolas, cerâ-
mica mais abundante que a precedente, e um monolitbo
egypcio de 45 centímetros de alto. No gabinete, que se
segue, magníficos vasos e lâmpadas de bronze. Na sala
immediata, um sepulcro romano, fragmentos archile-
ctonicos, mosaicos parietaes e esculpturas.
MADRID B O CENTENÁRIO DE GALDBBON 30i
No segundo pavimento, pedras lavradas, camapbeas
e a collecçSo numismática, a mais numerosa e opulenta,
que temos visto ; a sala árabe, muito bem abastecida de
objectos da arte mahometana, de diversas épocas ; a des-
tinada á Edade Media, onde ha numerosas curiosidades,
para cujo exame nos falha o tempo ; e a sala ethnogra-
phica, que possue boas collecções de objectos, destina-
dos ao estudo dos costumes de differentes nações, em
que o Brazil está especialmente muito bem represen-
tado.
#
# #
Á saída do museu, dêmos com um ajuntamento, a
poucos passos de distancia, e parámos, como a outra gen-
te, a saber o que o motivara.
— El pequeno se moriôt se ha matado! — dizia um
bomem em ademanes descompostos.
Que desgraça ! Quizemòs conhecer o malaventurado,
e vimos, entre o circulo de gente pasmada, um rapazito,
com a roupa cheia de lama, a sacudir-se, já de pé, por-
que dera uma simples queda, em plena rua. O morto,
3ue nem sequer fizera uma arranhadura, acbou-se vivo
e mais para semelhante arruaça, e deitou a correr, são
e salvo.
— Meu amigo — exclamou o nosso companheiro, que
sempre tinha nas melhores occasiões motivo para remo-
ques—Não me demovo da minha. Isto é a terra excepcio-
nal dos grandes olhos, grandes narizes e grandes ancas,
naturaes ou postiças, quanto ao femenino, e dos gran-
des exageros e fanfarronadas, quanto ao masculino.
No regresso a casa, tivemos occasiáo de entrar em
mais três egrejas — na de S. André, onde os confessio-
nários e as caixas, a supplicar limosna para las almas
dei purgatório, são em numero espantoso ; na de S.
Francisco, na praça do mesmo nome, uma espécie de
pantheon, ao que podemos deprehender da inscripção ex-
terior — Espana a sus preclaros hijos. Depois de termi-
302 NOTAS A LÁPIS
Dadas as obras, a que se procedia, deve ser um bom
templo em terra, onde, como já notámos, são pouco di-
gnas de nota as construcções d'este género.
A terceira, a egreja de San Justo y Pastor, tem uma
bella apparencia, com as suas duas torres-zimborios,
uma janella central, ladeada das estatuas da Fé e Espe-
rança e um baixo-relevo sobre a porta de entrada.
O interior nada tem que se recommende, a não ser
um caixilho, pendente do guarda-vento, onde o nosso
companheiro e eu lemos com o recolhimento, devido a
tão pia e útil advertência, o seguinte:
Alabado sea Dios ! Se recomienda a los fieles que no
escupan en el suelo, ni traigan perros á la Iglesia y guar-
den en ella el respeto debido á la casa dei Senor.
Os dizeres intermédios não ficaram sem uma nota
epigrammatica do nosso amigo.
— Fico sabendo— dizia elle— que um desgraçado, que
soffra azia, está privado de vir a esta egreja.
— Pôde salivar no lenço:
— Se a cerimonia fôr curta. Ao contrario, depois do
lenço encharcado, terá de cuspir nos fieles, seus com-
panheiros, ou pelo menos em si mesmo.
—Que traga bom fornecimento de pannos, ou.. .
—Que recorra ao guarda-roupa da sacristia, não me
recordava.
A subir a escada da Casa de Huespedes, para o jan-
tar, perguntou-nos ainda o nosso companheiro :
— Onde estará a gente dinheirosa de Lisboa, que a
não vejo em parle nenhuma, em época tão solemne?
—Respira os olores do Aterro, e engorda á beira-
Tejo, após as suas longas viagens.
—As viagens? Pois essas creaturas viajam?
—Até Cacilhas. Acha pouco? Pois saiba que ainda se
aventuram a mais longe. Em dias de festa, deitam-se
até Belém, a chupar rebuçados, adquiridos n'uma con-
MADRID E O CENTENÁRIO DE CALDERON 303
feitaria da baixa, ou até ao Lumiar, entro boas piladas
de poeira e rapé.
— E os banhos e os passeios de verão ?
— Os banhos... de lavagem... nas barcas; os pas-
seios hygienicos. . . no Rocio.
— E engordam. Essa é que é a verdade.
—Que o digam. . . O Bussaco, os arredores de Coim-
bra, as paisagens do Minho, as diversas Caldas, que
nunca viram por iá senão os rheumaticos, os doentes do
figado ou do estômago, os anemicos e tantos desgraça-
dos, que regressam da Africa e do Brazill
— Por isso tudo é tão bom, tão commodo e tão ba-
rato í
—Ermos— que são cá fora um attractivo e um encanto
permanentes— uns; lugares sujos, encommodos e caros,
os outros.
— Que falle a minha bolsa. Com o dinheiro gasto,
dentro de alguns mezes, nas locandas mal servidas, nas
conducções mal organisadas, nas excursões difflceis e dis-
pendiosas do nosso paiz, podia transportar-me á China,
demorando-me alguns dias em cada um dos pontos in-
termediários, e não sei se viajar meio globo.
O jantar interrompeu-nos critica tão pungente e tãp
verdadeira.
De facto, os portuguezes que vimos em Madrid, por
occasião tão festiva e original, como não virá outra nos
nossos tempos, compunham-se de jornalistas, estudantes
de Coimbra, uns tantos artistas e alguns devotos de me-
dianos haveres.
 noite, fomos ver as luminárias, em verdade pouco
importantes, e entrámos no- theatro das Variedades, rua
da Magdalena.
A sala é pequena, mas muito bonita e bem ornamen-
tada.
Só na ultima das ires ordens de camarotes é que ba
as costumadas galerias.
Entre algumas peças soltas, figurava uma revista do
anno, muito desalinha vada e desgraciosa, uma critica ás
30* . NOTAS A LÁPIS
differentes nações, onde a figura de Portugal era repre-
sentada por um pequeno, impotente e muito declamador
das suas glorias, uma espécie de fadista fanfarrão, em
que não abunda muito joizo.
Doloroso, mas. . . verdadeiro.
Quinto dia.— Um sacristão patriota.— Hospício municipal.—
A procissão escolar.— Hurrah pela mocidade 1— Gommoção.
— O poro e o futuro de Hespanha.— Theatro Eslava.— 0 so-
nho de Boethoven.
Para o segundo dia das festas populares, estava mar*
cada a procissão da mocidade escolar, ás 2 horas da
tarde.
Depois do almoço, o nosso companheiro separara-se
de nós, não nos occorre por que motivo. Procurámos
aligeirar as horas, vendo algo de novo.
Lembrando-nos de que havia algures uma egreja, que
se chama de San António de los Portuguezes, pergun-
támos por ella. Indicaram-nos a Corredera Baja, to-
mando á direita da Puerta -dei Sol.
Depois de muitas voltas e passos inúteis, um policia
amável, como todos os que encontrámos, guiou-nos ao
lugar indicado. A egreja exteriormente nada tinha de
notável.
Quizemos ver o interior, estava a porta fechada. Uma
boa mulhersinha indicou-nos outra porta lateral, onde
estaria o sacristão, no dizer d'ella.
MADRID E O CKNTÍ NABIO DE CALDKRON 905
Com effeito, lá fomos dar com um casmurro qual-
quer, que não se prestou ao que desejávamos, acaban-
do por dizer com enfado: —La iglesia se llama de los
portuguezes, pêro não hay lá ninguno.
Cremos que a este varrer de testada estrangeira não
escapava o próprio Santo António.
Muito patriota e muito esclarecido o nosso sacristão f
Sem duvida era primo coirmão dos guardas do museu
de historia natural.
Continuámos a andar para a direita e para a esquer-
da, entretendo mediocremente a nossa curiosidade, e
por fim vimos-nos perdido, até que demos comnosco na
rua de Fuencarral, em frente do Tribunal de Cuentas.
Para o lado opposto, entrava muita gente. Reparámos
então no portal granítico, que essa gente transpunha.
Era uma obra delicadíssima, que mais tarde soubemos
ter sido executada pelo notável Cburriguera em mil se-
te centos e tantos.
Fomos na onda.
Estávamos no Hospício Municipal e em dia de visita
publica. O edifício de planta baixa tem muitas depen-
dências, todas irregulares e simplçs. No parque tocava
a musica numerosa e bem organisada entre os rapazes
asylados. Fomos ao refeitório, ás aulas, aos dormitó-
rios.
Em tudo o asseio e a boa ordem, sendo de notar que
no topo e por cima da cabeça do professor, nas aulas, e
pendentes das paredes lateraes; nos outros compartimen-
tos, havia crucifixos e imagens de N. Senhora, em ex-
traordinária profusão, não obstante o edifício ter capei-
la própria.
Por ultimo, demos comnosco no bairro de Chamberi;
n'este lugar, valeu-nos a tranvia.
Para se fazer idéa da enorme caminhada, basta lem-
brar que pagámos por duas vezes para chegarmos á
Puerta dei Sol, como acontece do Rocio a Relem, com
a differença de que o transito não tem, pelas numerosas
curvas, uma recta egual.
20
306 NOTAS A LAPrS
#
# #
O dia, envolvido em brumas constantes, apresentava-
se triste e ventoso. No entanlo já mal se podia romper
pelas ruas, por onde devia passar o cortejo das escolas,
Sue, ao lado do nosso amigo, fomos esperar á Puerta
el Sol.
Rompiam a formosíssima procissão 300 jovens guar-
das civis; a estes seguiam-se 800 creanças do sexo mas-
culino e 600 meninas, vestidas de branco, perpetuas ao
peito e ramalhetes ou coroas nas mãos, umas e outras
pertencentes ás escolas municipaes, acompanhadas todas
dos respectivos professores, e distinguindo-se pelos estan-
dartes, que marcavam as differentes aggremiações de
cada escola; os asylados de S. Bernardo, com musica e
estandarte; os surdos-mudos e cegos, ostentando os pré-
mios do seu adiantamento; hospicianos da cidade; col-
legios de S. Ildefonso e do Escurial, levando este visto-
sa bandeira e coroas de louros; a musica do regimento
de artilheria; os doze professores e o director do Fomen-
to de las Artes; instituto e collegio de S. Isidro; os alum-
nos do instituto do Cardeal Cisneros e annexos; os da
escola normal, com a sua musica de jovens carabineiros
e os de declamação e musica; os alumnos dos differen-
tes professorados, com os seus mestres á frente; os es-
tudantes de veterenaria, artes, officios, commercio e
agricultura; musica de rapazes, vestidos ao século XVII;
os alumnos da faculdade de fiíosophia e. letras, trajando
egualmente á época de Calderon, com pluma e laço azues-
celestes; os da escola diplomática, os de pintura e gra-
vados, os da faculdade de sciencias, vestidos também
ao século XVII, os de architectura e caminhos, seguidos
estes por musica juvenil de guardas civis; os de minas,
os do estado maior, os de pharmacia, uniformisados co-
mo os das faculdades universitárias; os de medicina, com
laços amarellos, os de direito, com distinctivos escarla-
MADRID B O CENTENÁRIO DE GALDBRON 307
tes; a musica do Hospício Municipal; os do instituto ba-
lear, com riquíssimo estandarte branco, bordado a ouro,
e os da universidade de Salamanca, com trajes da época
calderoniana; e por ultimo a nossa commissão de estu-
dantes de Coimbra e muitas corporações de professores
e representantes do ensino superior nacional e estran-
geiro, fechando este formosíssimo préstito os alumnos
das escolas de carabineiros, fardados e armados.
Pelo numero de escolas, que bem se adivinham entre
tantos milhares de alumnos, pelas faculdades apontadas
e pelos differentes ramos de estudo, que ellas determi-
nam, pode-se fazer idéa do modo como a capital hespa-
nhòla prepara os seus homens de amanhã. Á vista do
asseio, galhardia e boa ordem, com que se movia toda
aquella brilhante e extensa multidão de mancebos de
ambos os sexos e de todas as edades, calcula-se ao cer-
to a disciplina, de que se faz timbre entre as differen-
tes corporações, a que pertencem.
Viva Deus ! que não «morre uma nacionalidade, que
assim faz estendal publico da sua mocidade escolar!
Hurrah pela camará municipal e pelo professorado !
hurrah por Madrid !
*
Ào passarem junto de nós, que emmudecemos dian-
te de tão resplendente e significativo espectáculo, os
dois milhares de creanças das escolas municipaes, sen-
timos os olhos húmidos de commoção, e quando o cor-
tejo inteiro de outros escolares, ligados a essas creanças
ia por fim, na nossa alma havia o quer que era do en-
thusiasmo, que deslumbra, e um turbilhão de bênçãos,
que a palavra não pode reproduzir.
Nós nada soffreramos para presenciar aquillo tudo.
Pois valia bem a pena o ter tido uma viagem penosa,
cheia de fadigas e de contratempos, para chegar até al-
li. . . alli, onde muitos milhares de corações juvenis ar-
diam n'um firme e sincero embevecimento em honra da
308 NOTAS A LÁPIS
soa pátria, já quasi inteiramente redemida do predomí-
nio dos fanáticos e das épocas sanguinolentas de um
passado ainda recente; alli, onde se expandia inteira e
luxuriante a alma de toda a Hespanha, que aspira á ple-
na conquista da liberdade, cujos clarões redemptores
lhe vão talando já os campos e as cidades.
O verdadeiro talento é a lanterna magica do progres-
so. E as quinhentas coroas, que a mocidade escolar de
Madrid, em procissão cívica e imponente, foi depositar
em volta da estatua do seu grande poeta, significavam
uma agglomeração incalculável de afirmações progres-
sistas, provavam um adiantamento moderno, digno de
boa nota, marcavam nos annaes patrióticos uma pagina
de effeitos deslumbrantes.
E o povo humilde, o eterno lazaro do obscurantismo,
o cordeiro, á mesa dos potentados, o leão inconsciente
e sanguinário, ao alcance dos ambiciosos e perturbado-
res—escancarava os lábios, em sorrisos apaixonados e
acariciadores, agitava os braços em vivas ruidosos, e
parecia comprehender, em sua infinita rudeza, que aquei-
le cortejo civilisador era uma prova evidente de que a
instrucção lhe ia batendo ás portas, e que só por ella se
redimem, e engrandecem os povos de hoje.
E por isso applaudia, e por isso juntava a sua mani-
festação ás das cem mil pessoas, nacionaes e estrangei-
ros, com os quaes se acotovelava nas janellas, nos cor-
redores, nas praças e nas ruas.
#
# #
Á noite, passámos novamente em revista os prin-
cipaes cafés, onde tumultuava meia população, e onde
seria difficil encontrar lugar vasio.
Cerca das 8 horas, tomámos pela rua Arenal, a meio
da qual ou pouco mais Unhamos de entrar, á esquerda,
para o Pasadiso de San Ginés, em busca do theatro Es-
lava.
MADRID E O CENTENÁRIO DE CALDERON 309
Acbando-nos em frente do café de Granada, parámos
atai por não vermos edifício, que dos parecesse um
tbeatro.
Ao lado da porta central, vendiam-se bilhetes. Pro-
curámos esclarecimentos. Era alli mesmo, no piso su-
perior.
Pedimos entradas.
—Quiere usted una sola funcion f— perguntou o bi-
lheteiro.
Hesitámos, mostrando preferir que desejávamos as-
sistir ao espectáculo inteiro. Deram-nos cinco bilhetes,
pelo equivalente de cinco tostões.
Reparando nos compradores, notámos que uns por
um tostão jomavam lugares para a primeira funcion, ou-
tros para a segunda, e assim por diante.
Gomprehendemos então que os actos se vendiam em
separado, devendo as peças a representar ser egual-
mente destacadas, como de facto eram, segundo mais
tarde podemos ver.
Nada mais justo, nem mais commodo; nada mais eco-
nómico, nem mais popular.
Quem não pôde passar além de um tostão escolhe o
acto, que melhor lhe parece, e não deixa de ir ao thea-
tro; aquelles, a quem por doença ou habito fizer mal o
deitar tarde, terão a faculdade de ver espectáculos com-
pletos, pelo tempo que lhes approuver.
Os que só teem a ver uma peça nova compram o bi-
lhete correspondente, e não são obrigados a assistir ao
todo, quando só desejam ver uma parte. Uma familia,
que passa casualmente, sem destino, á procura de uma
hora de distracção, vae passar um rato ai teatro, e re-
colhe-se a casa, quando lhe appetece.
É uma organisação original, commoda e barata, muito
para notar e seguir. Parece-nos que em qualquer dos
nossos theatros populares este exemplo, posto em pra-
tica, devia dar óptimos resultados a uma empreza, que
soubesse formar espectáculos attraentes e bem dividi-
dos.
310 NOTAS A LÁPIS
O Eslava é um bello rbodelo.
Os seos frequentadores dão entrada no café, sentam-
se ás suas mezas, refrescara-se, comem, bebem, fumam,
conversam e. á hora competente, dirígem-se a qualquer
das escadas lateraes, e por ellas vão ter ao salão de es-
pectáculos, guarnecido de uma vistosa galeria, em parte
dividida em camarotes.
A plateia é vasta, e o todo elegante.
Antes do signal da chamada, fomos tomar o nosso lu-
gar na terceira fila de butacas.
Gomo as pinturas abundam por toda a Madrid, o Es-
lava não podia deixar de conter algumas. A mais im-
portante, onde até ao fim do espectáculo tivemos por
vezes o olhar fixo e embevecido, é a que enche o fron-
tão sobranceiro ao panno de bocca.
São tantas as figuras, que de lá se destacam, tão va-
riados e differentes os trajes que as vestem, é tamanha
a multiplicidade de cores que guarnecem a tela, tão
complicada a mistura dos typos, tão diversas as posi-
ções e tamanho das figuras, tão variados os effeitos da
perspectiva, tão apparentemente emaranhado o assum-
pto—que, só depois de um aturado exame, è que po-
demos comprohender toda a belleza e significação d'a-
quelle formoso conjuncto.
No primeiro plano, em vasto e sumptuoso gabinete
de estudo, vé-se um piano aberto, com musicas na es-
tante; sobre o teclado debruça-se a figura adormecida
do executante, que se deixara vencer pela fadiga. O
rosto está voltado para o espectador e os cabellos flu-
ctuam-lhe desalinhados; na pbísionomia espelham-se-lhe
as irradiações de um sonho de verdadeira inspiração.
Aos lados, sobre os moveis, no chão, livros, papeis
e objectos de arte. Sobre o piano, em altitude ascen-
dente, eleva-se o espirito do grande artista, que vae en-
carnar-se na sua própria figura, no segundo plano. Ahi
vemol-o de batuta em punho, irradiante, magestoso.
inspirado, a reger uma orchestra universal, onde á va-
riedade dos instrumentos se alliam os trajes dos diffe-
MADRID E O CENTENÁRIO DE CALDERON 311
rentes paizes, que poderiam compor essa extraordinária
agglomeração de músicos.
O grande artista è Boethoven, e o quadro, onde fi-
gura, uma allusão ao seu sonho, uma formosa repro-
ducção, em grande, de uma gravura muito apreciada e
valiosa.
Ao darmos ligeira idèa d'essa ampliação, sem apon-
tamentos tomados á vista, em traços devidos á nossa
memoria tão fallivel e tão gasta, sentimos não saber o
nome do reproductor, que a levou a effeito, para o ci-
tarmos com o encarecimento devido á sua obra, digna
de ser vista por todos os que, entendidos ou não, ren-
dem preito ás boas provas da arte, qualquer que seja
o seu género.
Os cinco actos da representação compozeram-se de
cinco peças differentes, comedias e zarzuelas; em todos
elles, a camada dos espectadores se reformou quasi por
inteiro.
Ao colorido do bello quadro, a que nos referimos,
preferiu o nosso companheiro as cores scintillantes de
uns olhos sevilhanos e travessos, que dardejavam en-
cantos sobre a sua imaginação tão impressiona vel como
leviana.
Em questões de arte, não é fácil acertar com o me-
lhor.
É velho, porém mais que certo que as opiniões são
tão variáveis como os gostos.
Para os farejadores dos prazeres momentâneos e pou-
co reflexivos, a arte animada apresenta sobre a sua con-
traria as vantagens, qué a vida tem sobre a natureza
morta.
312 HÕTÀS A LftPIS
XI
Sexto dia.— Aspecto das mas, destinadas ao cortejo. — Pro-
cissão histórica. — Idéa sobre o sen extraordinário luzi-
mento. — Juízos da imprensa, egnaes ao nosso.
O dia 27 era» o ultimo dos três, destinados ás festas
populares.
Logo após a hora do almoço, a população começou a
precorrer a grande distancia, que vae do extremo da
rua Major á cpUe Serrano, atulhando completamente os
lugares mais espaçosos, como a Pnerta dei Sol e a Pla-
za de la Independência.
Calculava-se que haviam chegado de manhã umas oito
mil pessoas, gente das cercanias e arrabaldes.
Da feira picaresca do Prado desertaram pelotiqueiros,
vendilhões e saltimbancos. Aos lados das ruas, nos por-
taes mais largos e nos intercolumnios das arcarias, onde
as havia, dava-se a ultima demão ás bancadas de ma-
deira, cujos lugares se disputavam por bom preço ; as
janellas de aluguel custavam sommas fabulosas ; chega-
ram a vir para a rua escadas de mão, mochos, cadei-
ras e todos os géneros de apoio.
Ninguém pedia commodidades, ninguém aspirâf* *
regalias especiaes. Uma posição encommoda, d'onde
qualquer podesse elevar a cabeça por cima da multidão,
que se apinhava junto aos prédios, ao longo das ruas»
n'um precurso de sete kilometros — era uma conquista
digna do maior apreço.
O commercio fechara as suas portas ; os arrabaldes e
os bairros longínquos estavam desertos.
MADRID B O CENTENÁRIO DE CALDERON 313
Á uma bora da tarde, devia começar a organisar-se,
na rua Serrano, o maior (eito d'aquella época festiva» o
préstito civico, a que se deu o nome bem cabido de
procissão histórica.
Ao meio dia, nas janellas e telhados, nos balcões e
nos terraços da praça da Independência, Porta do Sol,
ruas Alcalá, Mayor, Bailen, Ferraz, Ventura Rodrigues,
Prínceza, praças do Oriente e S. Marcial — agrupa v a m-
se os espectadores, que todos esses lugares podiam con-
ter, tendo nos rostos a anciã, a animação e o entbu-
siasmo, que ia produzir-lhes o espectáculo nunca visto.
Nós estávamos a meio da caile Mayor, n'um dos lu-
gares superiores e á frente de um tablado, onde, por
empenho especial, obtivemos entrada por noventa rea-
les.
Ás 2 horas, houve signal de que a grande procissão
Começara a desfilar. O transito ao lado dos passeios era
guarnecido por espessa fileira de soldados, que se viam
obrigados a firmar-se nas espingardas, para oppor paci-
fica resistência ás multidões do povo, que tentava cor*
tar-lhe o vistoso e immenso cordão, destinado a deixar
livre o centro das ruas.
Tudo aquillo já por si só formava não somenos espe-
ctáculo, onde sobresafam os difTerentes contrastes dos
vestuários, entre. milhares de indivíduos, cidadãos e bur-
guezes, homens e mulheres.
Seria impossível reunir em uma só tela as cores de
quadro tão profusamente organisado.
#
# #
O lugar, onde estávamos, dominava toda a rua até
mais de meio da Porta do Sol.
Quando os brados do enthusiasmo popular chegaram
aos nossos ouvidos, quando vimos perto de nós os arau-
tos, que rompiam o préstito, e lançámos a vista até á
praça sobre a cavalgada, insígnias, estandartes, cores e
314 NOTAS A LÁPIS
dourados, que se moviam rutilantes sob as lufadas de
um sol animador, que transformava em stalactites fui-
gorosas o chuveiro copioso do graode repuxo central,
cuja altura deitava acima dos tectos mais elevados da
praça — sentimos-nos tomado de uma magia indescripti-
vel, cuidámos por instantes que éramos presa de um
sonho de fadas.
Tentemos consagrar umas linhas de succinta relação
do que diante da nossa vista atónita e da nossa alma
commovida, se desenvolveu, como em kaleidoscopo fan-
tasmagórico, durante duas horas, que tanto foi o tempo
necessário á exhibição de todas aquellas grandezas, que
nunca lográramos imaginar, que nunca viramos e não
veremos jamais.
Um numeroso piquete de cavallaria civil explorava a
marcha.
Abriam o cortejo oito pagens-arautos, vestindo uni-
forme azul, dalmaticas de côr amarellada e viva, com
as armas reaes e a coroa da Áustria, segundo o século
xvii, bordadas ao centro, e chapéus emplumados; leva-
vam lanças com au rifla mm a, e cavalgavam a dois e dois
soberbos cavallos, arreiados conforme o uso dos reis
de armas da mesma época.
A charanga do batalhão de Arapiles tocava uma mar-
cha tríumphal.
Todos os artistas do theatro de la Comedia, vestidos
de casaca e gravata branca, agrupavam-se em volta do
seu bel lo estandarte com as cores italianas, onde se
lia : — La compaflia Italiana á Calderon ; seguiam-se-
lbes os artistas dos outros theatros, com bandeiras, em
grande numero.
Marchando em filas de sete pessoas, sessenta indiví-
duos ostentavam outros tantos estandartes, onda se viam
escriptos os títulos de todas as obras do poeta.
No coice d'estes, a musica do regimento de Mallorca.
Em seguida, o primeiro earro tríumphal, o do Bair-
ro de Chamberí, cheio de vistosas alegorias, tirado por
oito cavallos brancos, figurando uma grande concha
1IADUD B O CENTENÁRIO DE CALDERON 315
apoiada sobre uma plataforma; cercavam-no muitos indi-
víduos com bandeiras e estandartes.
Atráz destes, o carro dos Caminhos de Ferro do Nor-
te, um coche de primeira classe, aberto, com o busto
de Galderon ao centro, tirado por seis cavallos casta-
nhos, empeoachados de azul e branco. Lá dentro distri-
buiam-se versos.
Superior aos dois era sem duvida o carro pertencente
ao Grémio dos ferreiros e serralheiros, uma alegoria mi-
tho lógica, d'onde se destacava a figura de Vulcano, ro-
deiado pelos seus operários, rigorosamente vestidos á
sua época.
A officina estava em movimento. O serralheiro prin-
cipal e seis operários forjavam ferro, ao compasso da
musica, que os precedia.
Depois da banda, iam os operários, pertencentes á
associação dos Carpiuteiros do patriarcha S. José, levan-
do atributos de trabalho nas mãos, e bordados na ban-
deira as insígnias do seu grémio.
Notava-se logo, como uma das mais significativas e
sumptuosas, a carroça do Fomento de las Artes, repre-
sentando a agricultura, a industria, as artes e a impren-
sa. Na plataforma anterior, estava collocado um prelo
tosco e pesado do século XVII e outro do século XIX,
attestando o enorme progresso, que se mettia entre am-
bos. Dois compositores, dois machinistas e os seus aju-
dantes, vestidos á época moderna e á calderoniana, iam
compondo e imprimindo, durante o trajecto, três poe-
sias, que se distribuiam, acto continuo, ainda húmidas
da machina, ao publico, que as disputava com justa ra-
zão, pressuroso e enthusiasmado !
O estandarte do Fomento, ricamente bordado seguia
o seu carro, digno de preduravel menção.
Os numerosos grémios dos fabricantes de tapeçarias»
dos armazenistas de vinhos e dos mercieiros eram re-
presentados por uma pyramide, artisticamente disposta
e ornamentada com differentes objectos e productos
d'essas industrias, posta sobre uma elegante padiola, le-
316 MOTAS A LAP18
vada aos hombros, e acompanhada por todos os asso*
dados.
O carro, que seguia essa multidão de gente, era o
dos Mestres de obras, levando vários atributos da classe.
Fingia ser puxado por pombas, e era movido por ho-
mens, que iam occultos debaixo d'elle.
Atraz tremulava a bandeira da Cruz Roxa, abrindo o
cortejo dos seus cem sócios, que se distinguiam pelo
laço branco com uma cruz roxa, posto no braço esquer-
do, e pelo gorro da mesma côr e com a mesma cruz,
como recordação viva dos muitos serviços, prestados em
outros tempos por esta sociedade nos campos de batalha.
A academia dos professores de primeiras letras leva-
va um bello estandarte e uma riquíssima coroa.
Logo depois, o carro do Circulo de la Union Mercan-
til, semelhando uma galeota antiga, em cuja popa se le-
vantava um pavilhão apoiado em seis columnas jónico-
gregas, apresentando no entablamento superior os no-
mes dos dramaturgos clássicos mais notáveis, e figuran-
do o theatro grego. Dentro pyras em bellos vasos; á
entrada o busto de Calderon, tendo na base os masca-
rdes da Comedia e da Tragedia. A meio da galeota,
avançando para o busto e em altitude de coroal-o, as
figuras da Industria e do Commercio; á proa, recostada
e de tridente em punho a figura de Neptuno.
Puxavam este carro oito cavados emplumados, cober-
tos de óptimos xairéis, e levados á mão por oito indi-
víduos com trajes de mercadores da época. Ao redor
iam mais cinco cavalleiros, vestidos egualmente, osten-
tando outros tantos estandartes, em recordação dos cinco
grémios principaes de Madrid, no século xvn.
Seguiam depois as associações dos architectos, le-
vando ao centro quatro creanças, que seguravam uma
bandeja, onde se via uma coroa; o grémio central dos
engenheiros industriaes, com duas bandeiras; os repre-
sentantes da escola de Barcelona e a musica do regi-
mento das Canárias.
O carro da Imprensa era dos que arrancava maiores
MADRID E O CENTENÁRIO DE CALDERON 317
applausos. N'uma parte, sobreposta a um grupo forma-
do por lanças, bandeiras e dois leões heráldicos, viam-
se as armas de Hespanha; na outra, a estatua de Gut-
temberg, levando na mão direita a alegoria da impren-
sa; e nos quatro ângulos d'este corpo, quatro génios
alados, offerecendo-lbe coroas; no centro quinhentas co-
roas de louro, offerecidas pelos jornaes da cidade, cujos
títulos se liam em numerosos estandartes, que ladeavam
o carro, seguido pelas commissões da imprensa das
províncias, da associação dos Jornalistas e Escriptores
Portuguezes, da Sociedade de Geographia de Lisboa,
Àtheneu de Madrid e Sociedade de sciencias e letras dos
Alpes Marítimos.
Depois d'este luzido acompanhamento, vinha o carro
da Associação dos Escriptores e Artistas, representando
na parte dianteira umas ruinas do theatro clássico, os-
tentando lyras, mascaras, instrumentos gregos e os bus-
tos de Aristopbanes e Eschylo. No centro, uma columna
emblemática do génio de Galderon, com a sua lyra e
busto. Na outra parte, um scenario moderno, onde fi-
guravam creanças de ambos os sexos, vestidas com os
trajes dos principaes personagens das obras dramáticas
do poeta t
A isto seguiam-se a musica escolar, composta de 160
estudantes, vestidos ao século xvn; a respectiva com-
missão de escriptores e artistas; o professorado repre-
sentado em todas as classes e gerarchias e os autores
dramáticos, levando coroas.
O ultramar estava assignalado por Cuba e Porto Rico,
n'um carro triumphal de óptima concepção artistica. Na
parte dianteira, as columnas de Hercules, com a inscri-
pção— iVon plus ultra\ sobre um pedestal o busto de
Galderon, cercado de louros dourados, em forma de
arco, como que ligando as columnas; em seguida Co-
lombo, segurando um pergaminho, onde se liam as pa-
lavras—flw* ultra, e apontando para a America, cuja
figura, empunhando a bandeira nacional, estava na ex-
tremidade da carroça, com as mesmas palavras aos pés,
318 NOTAS A LÁPIS
sob um riquíssimo docel, entretecido de plantas ameri-
canas e coroado com as armas d*essas duas colónias
bespanholas. Dos bambus do docel caía um vistoso
panno, onde se lia, em letras douradas: — A Calderon
Cuba y Puerlo Rico. Entre os dois corpos descriptos,
um pedaço de mar, onde nadava um golphinho, mon-
tado por duas creanças, que offereciam ao poeta mimo-
sas coroas t
Os cavallos, revestidos de custosas mantas e enfeites,
eram levados de rédea por outros tantos palafreneiros.
Seguiase a charanga do batalhão de Manila.
Depois o carro do Exercito, representando Marte de
pé, a proteger a Poesia, assentada em sua frente e res-
guardada pelo escudo, que elle ostentava no braço es-
querdo. O pedestal (Testas duas estatuas era formado
por uma rodela, sustentada por dez canhões de bronze
do século xvii, em feixe, apoiado em montes de balas,
a que se encostavam quatro escudos com as cruzes das
Ordens militares; na frente, dois anjos segurando um
medalhão com o busto de Calderon; atraz, lanças, ban-
deiras, espingardas, estandartes, armaduras e outros
objectos militares do mesmo século.
Tiravam esta carroça dezeseis cavallos das estreba-
rias reaes, arreiados ao uso de egual época, e levados
á mão por homens, vestidos caracteristicamente.
Logo, a musica dos engenheiros e, depois grandes
troços de infanteria, cava liaria e artilheiros, com os tra-
jes rigorosíssimos dos séculos xvii e xvni, produzindo
pelo seu ar marcial, numero, trajes e equipagens visto-
sas e curiosíssimas, grandes acclamações e um effeito
brilhantíssimo !
O importante carro da Marinha representava a popa
de uma galera da época calderoniana sobre rochas e o
mar, adornada de tropheus e enfeites de ébano e ouro.
Na frente, duas caçoilas de perfumes formadas por con-
chas e ancoras douradas; em seguida, a Inspiração poé-
tica, em altíssimo tabernáculo, cencada pelas imagens
em busto da Comedia e Tragedia, livros, pennas e ou-
MADRID E O CENTENÁRIO DE CALDERON 319
tros accessorios; a meio um varandim com armas e tro-
pheus; á popa, uma concha de Dacar, sostida pela Fama,
que apregoava as glorias do poeta, cujo busto lhe fi-
cava ao lado. Os trajes dos marinheiros, as bandeiras e
adornos eram rigorosamente imitados da galera Capi-
taria, que em fevereiro de 1668 conduziu á Itália a fi-
lha de Filippe IV !
Esta carroça era puxada por oito fogosos cavados,
ricamente ajaezados e conduzidos por palafreneiros e la-
caios, vestidos de uniformes roxos e cinzentos, ao sé-
culo XVII.
Marchava em seguimento uma escolta de marinha,
com a sua musica á frente.
A Deputação Provincial de Madrid apresentou um
carro, tirado por doze cavados, cercado pela garrida e
original guarda amarella, que existiu no século xvn, e
seguida pelos maceiros e mais servidores da deputa-
ção.
Às camarás municipaes das províncias, com trajes an-
tigos e modernos, com os seus maceiros, guarda-cha-
ves, aguazis e outros empregados, e os guardas civis de
Barcelona formavam um curioso ajuntamento, sendo
muito de notar a commissao da municipalidade de Za-
mora, que ostentava o seu precioso estandarte históri-
co, seguro na ponta da haste .pelo braço de um guer-
reiro.
O panno tem uma tira ou faxa superior verde-esme-
ralda e oito tiras inferiores encarnadas, representando as
oito batalhas consulares, em que Viriato ficou vencedor
das tropas romanas.
O Município de Madrid apresentou o seu carro, seve-
ro e simples, carregado de flores e puxado por oito ca-
vados; e a commissao executiva, que iniciou as festas do
centenário, outro intitulado Carroza de Espafta, tirado
por oito cavados pretos, emplumados de branco, com
xairéis da mesma còr, bordados a ouro. Constava de
um grupo, ao centro, a Hespanha coroando Calderon,
sob um docel vasto e sumptuoso.
&0 KOfáfi A UMPIS
A isto seguiam-se as differentes commissões das uni-
versidades oacionaes e estrangeiras, os estudantes de
Coimbra, Barcelona e Salamanca.
O ultimo dos quatorze carros Iriumphaes, pouco no-
tável pelo feitio, era o de Joanna, a louca, todo cons-
truído de ébano lavrado^conforme já notámos.em outra
parte.
Foi mandado por el-rei, e era puxado por oito formo-
sos cavallos, ajaezados com o máximo luxo, cercados
de escolta e guiados por palafreneiros vestindo librés
sumptuosas, ao uso da casa real, no século XVII.
A municipalidade de Madrid, com o seu presidente,
sr. Abascal, á frente, os representantes da de Lisboa,
diversas autoridades e a commissão do centenário ter-
minavam a imponentíssima e deslumbrante comitiva.
O regimento de cavallaria húsare cobria a marcha fi-
nal, fechava o grandioso préstito, que depois de ter pas-
sado em continência por diante da estatua de Calderon,
na praça do Oriente, só poude dispersar, decorridas
cinco horas, desde a sua formação no bairro de Posas,
ás seis da tarde i
Romero Ortiz, o illustre jornalista, o benemérito ini-
ciador do centenário, assistiu ao desfilar da procissão
histórica das janellas de sua casa, na rua Serrano.
A imprensa estrangeira tinha uma tribuna especial, e
foi saudada calorosamente.
A commissão portugueza e os estudantes de Coimbra
foram acclamados em muitas partes do trajecto.
As damas hespanholas lançavam flores e bravos sobre
as tropas, os estudantes e os quatorze carros triumphaes,
o povo respondia em brados de enthusiasmo.
As associações, ao depositarem as coroas no pedes-
tal da estatua, em frente do palácio de Affonso XII, na
praça do Oriente, eram correspondidas nas saudações,
que despertavam, por toda a família real, que presen-
ciava o deslumbrante festejo dos balcões e janellas do
grande edifício, ao lado dos ministros, altos funcciona-
rios e corpo diplomático.
MADRID E O CRNT1NARIO DE CALDERON 3ftt
#
Só os dados oflBciaes, que desconhecemos, poderão
dar contai dos milhares de milhares de indivíduos, entre
tropas antigas e modernas, corporações mechanicas, in-
dustriaes, académicas e scientificas, que formaram o
grandioso préstito, para cujo encarecimento e devido
apreço nos sobram, mas nos faltam palavras condignas.
Á mingua do colorido necessário para quadro de tão
extraordinárias dimensões, façamos nossos alguns pe-
ríodos, traduzidos do jornal madrileno, La Pátria, on-
de o amor próprio não debuxou a minima sombra de
exagero:
«Essa imponente manifestação deve fazer palpitar de
legitimo orgulho todos os corações hespanhoes, esse es-
pectáculo cheio de magestade, de que se não pode for-
mar idéa cabal, sem o haver presenciado.
«A nação que honra os seus filhos illustres, como a
Hespanha acaba de honrar a memoria de Calderon de
la Barca, ao findarem duzentos annos depois da sua
morte, mostra toda a virilidade, todo o nobre enthusias-
mo que encerra em seu seio; attesta o seu adiantamen-
to em todos os ramos de progresso e illustração, porque
essas honras não as tributa ella a um génio guerreiro,
que subjugou pela força das armas grande numero de
povos a um monarcha poderoso, que reuniu sob o sce-
ptro ferrenho estranhos e dilatados paizes, mas a um
escriptor insigne, que pelos primores da sua penna con-
quistou maior gloria para a sua pátria do que poderiam
ter-lbe proporcionado as mais brilhantes victorias da
guerra.
«Estrangeiros, tão illustrados como imparciaes, que
ha pouco tempo ainda tiveram a satisfação de assistir
ao centenário de Rubens, celebrado em Bruxellas, e
ao que se exhibiu em Portugal para commemorar a glo-
ria de Camões, proclamam em voz alta que nenhum
21
3S2 NOTAS A LAMS
(Telles, apezar da sua grandeza, offereceu á vista tama-
nho esplendor, nem se via rodeiado de tanto enthusias-
mo, como a Testa organisada pela população de Madrid,
com auxilio de todas as províncias hespanbolas, para
honrar a memoria de Galderon.
cA procissão histórica excede, pela sumptuosidade e
grandeza, tudo o que se possa imaginar.
«O mais digno de fixar a attenção é que não foram
classes determinadas da sociedade, nem determinada
província, as que uniram esforços para lhe dar todo o
brilhantismo; foram todas as classes e todas as gerar-
chias sociaes, todas as províncias do continente e do ul-
tramar; foi em fim a Hespanha inteira, que empenhou
toda a sua alma, toda a emulação do seu patriotismo em
cercar de esplendor e da grandeza mais culminante as
festas realisadas em honra do grande poeta.»
E, ao terminar com a confirmação plena d'essas pala-
vras, repetiremos que espectáculos tão custosos, tão si-
gnificativos e tão brilhantes, como foram as procissões
escolar e histórica, por occasião do centenário de Galde-
ron—nunca as lográramos imaginar, nunca as vimos, e
não as veremos mais talvez, ainda que se repitam em nos-
sos* dias em memoria de qualquer outro homem illustre.
E, para não enodoar o quadro das nossas impressões,
deixaremos de consignar aqui o que nos suggere a com-
paração entre os dois centenários da península, já que
a politica individual e truanesca do nosso paiz se empe-
nha todos os dias em mostrar que lavra nos nossos sen-
timentos uma degeneração assustadora, que nos ha-de
conquistar as honras de um povo fóssil, a descambar
para os dominios da archeologia.
MADRID E O CSNTfNABIO DE CALDBRON 313
XII
Sétimo dia. — Retenha das publicações mais importantes.
Ida ao Escoriai. — Opera on Theatro Real.
Fatiemos do dia seguinte, sem dos emportarmos com
as representações dos lheatros da véspera, apezar de
em todos elles se representarem obras de Calderon, nem
tão pouco com a grande serenata militar.
É justo porém que mencionemos algumas das muitas
publicações, as principaes, que saíram a lume, em edi-
ções de todos os géneros e formatos, como é uso nes-
tas solemnidades.
As mais importantes foram :
Revista Ilustrada, numero 20, com 14 paginas em
prosa e verso. Da ultima poesia, assignada por Rodri-
gues Penilla, destacámos esta bellissima estropbe :
Piadozo, sagaz, profundo
Su espirito de alto vuelo,
Era, por lo hermoso— um mundo;
Por lo brillante y fecundo,
— De luz vivo manantial.
Ah 1 Si Espana, por su mal,
Otras glorias no tuviera,
Solo con su gloria fuera
Feliz, famosa, inmortal f
Madrid Cómico, caricaturas, satyras em prosa e verso
e assignaturas autograpbas de vários escriptores na ul-
tima das suas 16 paginas. Em contraposição ao titulo
324 NOTAS A LÁPIS
da peça de Calderon, Mariano Ghaiel escreveu uns ver-
sos intitulados— El sueflo es vida, a ultima estrophe dos
quaes diz:
Asi paso la vida distraída
sonando que la paso menos mal.
La vida es sumo, pêro el sumo es vida,
y yo no quiero nunca despertar.
La llustracion Militar, luxuosa edição, bellos retra-
tos, óptimas gravuras, referentes á procissão histórica;
vinte paginas, onde ha escriptos e versos, como estes
de Garbonell, ao fallar de Cuba :
AIH es el verde suelo riente paraíso
en donde tiene el árbol ropage brillador,
y hay valles y horisontes en donde el cielo quizo
verter á manos llenas aromas y esplendor.
La llustracion Espafíola y Americana, dois números,
sendo o primeiro o ordinário da sua publicação e o se-
gundo especial, o mais notável pelas gravuras de gran-
de formato, representando scenas das obras de Calde-
ron, e pela collaboração de escriptores catalães, gallegos,
valencianos e portuguezes. O nosso illustre poeta Si-
mões Dias escreveu estas duas quadras :
La vida es sumo — disseste,
Alçando os olhos ao cen ;
Mas, quando tal escreveste,
Uma excepção te esqueceu.
Nem tudo é sonho na vida,
Nem tudo tem sorte egual ;
Se ha nomes que o mundo olvida,
O teu. . . não, que é immortal.
El Loro, jornal satyrico de Barcelona. Retrato de Cal-
deron e uma bel la pagina colorida. Referindo-se ao poe-
ta, escreve Rafael de Castillo:
MADRID E O CENTENABIO DE CALDIBON 326
Y mieotras dei arte el sol
preste sus rayos ai mando,
será ta génio fecundo,
laz dei teatro espaàol.
El Parenthesis, jornal satyríco-politico illustrado, im-
presso a Unta encarnada. Alludindo a um certamen lit-
terario, de que se queixa, zombando, diz Trichina,
pseudónimo que firma os primeiros versos :
Si la gloria y realidad,
Como digo el gran poeta,
(Jn sueno tan solo soo,
O enganadora quimera
Eq que el hombre se revuelve,
Sin dejar sombra ni huella;
Inútil es que yo escriba
Pensando en la recompensa
Que pueda dar-me el jurado
Em su falia ó su sentencia.
El Dia, a publicação mais característica da época,
por serem todas as suas numerosas gravuras e escri-
ptos do século calderoniano; in-folio impresso em elze-
vir e papel melado. Uma amostra de uma carta, escri-
pta da Catalunha ao grande poeta pelo capitão Valdina-
to, em abril de 1641 :
Gataluna, lastimada
Con mortales desafueros
Suplicando por sus fueros
Está ya desaforada.
Que suele talvez, neftada
A los vasallos la audiência
T cansada la lealtad,
Perder á la Magestad
El respeto y la obediência.
El Globo, dá o retrato de Galderon, artigos especiaes
e versos, onde ha uma poesia de Manuel dei Palácio,
que termina assim :
226 NOTAS A LÁPIS
Pasarán generaciones
Y monumentos y edades,
Grandezas y vanidade»,
Y virtudes e ambiciones.
Yolaran las ilusiones
De la nada en los desiertos:
Nuestrog sepulcros abiertQs
Diran, á lo sumo : — Fuét
Calderon seguirá en pié;
No nay tumba para esos muertos t
Memorial de Artilleria, um curiosíssimo livro de 223
paginas, publicação militar, que conta já 37 ânuos de
existência. Traz no principio um esludo sobre o poeta
e o seu tempo, e mostra com proficiência o estado da
arte dos artilheiros no século xvn, reproduzindo em
boas fototypias os apetrechos, fabricados n'essa época,
e os utensílios usados em campanha.
Referindo-se á pouca fortuna de Calderon, no que
respeitava á arte da guerra, e á influencia da poesia nos
seus destinos, transcreve a seguinte oitava de D. Gas-
par de Lara, que a escreveu em 1684.
Gon prudente valor, en la milícia
De esfuerzo invicto dió nobles senales,
Por las cuales le diera la justicia
Puestos, 9i militara entre mortales.
Y sintiendo á Belona no propieia,
En paz dejó los campos marciales,
Conduciendole Apolo á mis riberas
Gapitan General de sus banderas.
Alem d'estas publicações, que foram as mais dignas
de nota, formigavam por toda a parte os vendedores de
retratos do poeta, photographias da sua estatua e dos
monumentos da cidade, cromos tauromachicos, paginas
soltas, jornaes políticos e litterarios, annuncios e pro-
grammas.
MADRID B O CENTENÁRIO DK CALDBRON 3t7
*
* *
O tempo, mau grado nosso, apezar de o não desper-
diçarmos, não nos deixa ensanchas para grandes expla-
nações e minuciosidades. Estes fugitivos apontamentos
são tomados em carruagem do caminho de ferro do
Norte, que nos vae levar ao Escurial, de que adiante
nos occuparemos, em secção especial.
Regressámos d'està curiosa visita, á noite.
Depois do jantar, reagimos contra a fadiga, que amea-
çava prostrar-nos, e fomos ao Teatro Real, o principal
de todos, o theatro da opera, onde não havíamos en-
trado ainda.
A fachada principal de pedra branca olha para a praça
do Oriente; afecta a forma de uma ferradura, e tem ao
centro um baixo relevo, representando as musas, algu-
mas figuras alegóricas e quatro estatuas, que symboli-
sam a Tragedia, a Comedia, a Opera e o Baile. A re-
matar a fachada, vê-se a Fama, sustentando o escudo de
Hespanha, e nas extremidades as figuras de duas crean-
ças, personificando a Musica e o Bailado.
O lado posterior deita para a praça de Izabel II, on-
de a meio de um pequeno jardim está a estatua da Co-
media.
N'essa parte do edificio funccionam um salão de con-
certos e o conservatório de musica e declamação.
Entrando pelo vestíbulo, penetra-se na sala de des-
canço, luxuosa pelos espelhos e bancos estofados de ve-
ludo encarnado, que ladeam as columnas, e pelos da-
mascos que forram as paredes.
D'alli partem duas escadarias, que levam aos cama-
rotes e lugares superiores; ao centro, a porta que dá
ingresso á plateia. Esta pode conter quinhentos lugares
commodos e almofadados com o mesmo estofo e còr da
sala de espera. Os lados compoem-se de três ordens de
3tS NOTAS A LÁPIS
camarotes e duas de galerias, sendo a ultima a da en-
trada geral, a chamada Paraíso, com lugares para sete-
centas pessoas !
A illuminação é distribuída por candelabros lateraes;
o tecto ostenta magnificas pinturas.
O rei tem dois camarotes, o official e o particular,
collocado á bocca da scena; alem (Testes, vimos alguns
com as paredes sumptuosamente almofadadas de broca-
do de seda.
Penetrando nos corredores, empallidece a impressão
produzida pelo apparato, já descripto; as escadarias, que
lhes dão accesso, são de madeira tf apenas um ou outro
patamar é guarnecido de ladrilho.
A representação da noite era dramática, e como tal
não tinha orchestra; constava da Hija dei Aire, onde,
por concepção especial, entrava o decano dos artistas,
o afamado actor Calvo, cuja declamação, atirando para
o melodrama e para a tragedia, nos produziu mediana
impressão, perdoem-nos os seus merecimentos e mais
partes, que concorrem na sua pessoa.
MADRID B O CENTENÁRIO DE CALDBRON 319
XIII
Oitavo dia.— Vantagem de não representar consa alguma.—
Na casa da moeda.— Uma hespanholad a. —Exposição de ga-
do.—Exposição de Bellas Artes.— Dois dias mais e um adens
a Madrid.
Estamos no domingo, 29, o ultimo dos oito dias de
ininterruptas Testas, saraus, representações, luminárias,
procissões cívicas e religiosas, banquetes, bailes e ex-
posições, em honra do heroe do centenário.
A nossa curiosidade de touriste amador não afrouxou
uma hora, durante esse tempo, estendeu-se aonde pou-
de, com uma insistência esmagadora, com uma activi-
dade, que mal nos deixava tempo para comer e dormir.
Todos os meios de locomoção nos serviram, de todos
tomámos conhecimento pratico; desprezámos etiquetas
e ceremoniaes, que podiam encurtar-nos as horas, sem
interesse real, assistimos ao que nos pareceu melhor, e
andámos, e andámos sempre, sentindo não possuir o*
dom da ubiquidade, para completa satisfação do nosso
insaciável desejo de ver.
Encontrámos-nos por vezes com alguns dos nossos
companheiros de viagem.
— Ó homem— diziam-nos uns— que é feito de você,
que não lográmos vel-o ?
— Ando pelas praças, pelos bairros, pelas egrejas,
pelos museus...
— Ó diabo! Nós pouco temos visto. Umas ceias, uns
convites particulares..»
—Que diz o meu amigo a isto?— diziam-nos outros,
no museu de pintura.
330 NOTAS A LÁPIS
Aventáramos um adjectivo qualquer, dizendo que era
a terceira vez que lá iamos.
—Pois quanto a nós é a primeira e ultima. Não te-
mos tempo. Visitas aos collegas madrilenos^ desempe-
nho das nossas obrigações, cumprimentos, uma mas-
sada constante. . . não nos deixam um momento de so-
cego. Venba aggremiar-se comnosco para tal e tal cousa.
Escusámos-nos sempre» porque bem sabíamos que
um caracter qualquer, que não Tosse o particular, nos
havia de tolher a liberdade das nossas acções, que, na
primeira visita a uma localidade mais ou menos im-
portante, não desejámos nunca enfraquecer ou contra-
riar.
*
* *
N'aquelle dia, tínhamos ainda muito que ver, a prin-
cipiar pela extracção da lo teria, que se havia de realisar
n'uma das dependências da Casa de la moneda. Dese-
jávamos visitar este estabelecimento, que funcciona em
moderno e bom edifício próprio, dispondo de três mo-
tores a vapor e de todos os utensílios necessários á fun-
dição, cinzelados, cortes e amoedação dos metaes.
Dirigimos-nos ao Paseo de R$coletos9 e depois á rua
Jorge Juan, dando entrada na casa das loterias.
- Mal podemos penetrar no salão, onde se extraiam os
números, algarismos por algarismos, que, depois de
circularem no grande reservatório, eram tirados por
creanças e, mostrados ao publico, que tomava notas,
com uma escrupulosa e methodica attenção.
Saindo d'alli, achámos-nos no átrio da casa da moeda,
que, ao que nos disseram vae ser ajardinado, e receber
no centro a estatua de Colombo. Á esquerda, havia por-
tas abertas, que davam para a fabrica e estampagem
dos sellos; deparámos com um guarda, que nos mostrou
essa repartição com tudo o que continha, desde a ma-
téria prima, o papel, até ás machinas que o imprimiam,
e notámos em tudo bons processos modernos.
MADRID B O CBNTENARIO DE CALDERON ' 331
Olhando para as janellas e portas do resto do edifí-
cio, vimos que estavam fechadas, com a única exce-
pção de uma.
Perguntámos ao guarda se nos seria permittido o vi-
sitar a parte da amoedação metallica; respondeu-nos em
contrario, indicando-nos ainda assim a porta aberta,
onde acharíamos um companheiro seu, que podia es-
clarecer-nos melhor.
Dirigimos-nos lá, e dêmos com um sujeito, uma es-
pécie de Cerbero, verdadeiro guarda de thesouros.
Ás nossas perguntas, respondeu negativamente, acres-
centando que não se mostraria o edifício durante as fes-
tas, porque havia em Madrid trinta mil estrangeiros, e
porque a natureza especial da casa da moeda exigia cau-
telas e tal et caetera.
Insistimos, allegando a nossa qualidade de forasteiro
pacifico e simplesmente curioso, referimos-nos ás rega-
lias concedidas aos periodistas, a que entendemos dever
associar-nos, para ver se levávamos o convencimento às
durezas do nosso guarda.
Em nossa suprema vaidade, depois de empregarmos
na nossa linguagem o melhor hespanhol, de que podía-
mos dispor, quando julgávamos o homem a descambar
para um verdadeiro tfiternecimento, elle aprumou-se,
abriu muito os olhos, mediu-nos de alto a baixo, e res-
pondeu categoricamente :
— Dijo a usted que la Casa de la moneda es cerrada
para usted, para mi propio, para Su Magestad mismo,
para todo el mundo, y mas. . . se lo huviera.
Irra ! que não havia que insistir I
— Este diabo não acredita no mundo tbeologico de
alem tumulo— dizia o nosso companheiro, a rir como
um perdido— senão talvez concedesse aos mortos o que
nega aos vivos. Está decidido. No arreganho da expres-
são estes hespanhoes são capazes de amalgamar céus e
terra, antes do dia de juizo.
Pela nossa parte, também ainda hoje não podemos
lembrar-nos do caso, sem um farto sorriso.
332 N0TA8 A LAMS
*
♦ *
D'alli seguimos para o Retiro, onde Da espaçosa ex-
planada, que deita para a rua Affonso XII, se inaugu-
rava a Esposicion de gatiados, por iniciativa da camará
municipal.
Pareceu-nos insignificante; a concorrência era pe-
quena.
Os gados só apresentavam bons exemplares nos ca-
vallos das estrebarias reaes, em poucos dos particula-
res, em alguns touros, ovelhas e carneiros, notáveis pela
corpulência e differenças de raça.
Restava-nos ainda uma visita, e essa seria a ultima
digna de nota, a Esposicion General de Bellas Artes, que
virá confirmar a opinião de que a Hespanba é, ainda
mais no presente do que no passado, a verdadeira terra
da pintura.
Esta exposição, inaugurada na Fuente Castellana, di-
vidia-sa em três secções— pintura, esculptura e arcbi-
tectura.
Na primeira, figuravam 711 quadros, quasi todos na-
cionaes e modernos, e dizemos qpasi todos porque ape-
nas lá vimos, com bastante aprazimento nosso, algu-
mas pequenas telas de autores portuguezes, que, sabe
Deus, com que sacrificios pessoaes conquistaram a en-
trada. Foram estes Annunciação, Malhoa, Silva Porto,
Ferreira Chaves, Arthur Loureiro, Silva Oliveira, Ra-
malho, Nunes Júnior, Ribeiro e Pedrosos, tio e sobri-
nho, com provas de gravura em madeira.
Entre os quadros melhores e de maiores dimensões,
citaremos, pela originalidade dos assumptos e valor
real:
A Lenda do Rei Monge, de Casado. Tem por assum-
pto uma tradição histórica do século xu. D. Ramiro II,
de Aragão, ferido pelo menospreço dos soberbos ma-
gnates do reino, no que respeitava á sua autoridade e
MADRID E O CENTENÁRIO DE CALDERON 333
aos foros do seu povo, pensou n'uma vingança terrível,
que trouxesse á obediência os grandes e os pequenos
vassallos. Avisado de uma nova conspiração, no mo-
mento em que os nobres se reuniam em Huesca para
celebrarem cortes, mandou prender os principaes, e de-
capital-os, dispondo as cabeças em circulo, na sala do
conselho, em cujo centro fluctuava, dependurada pelos
cabellos, a do arcebispo, que era o mais poderoso. Con-
vidados os outros para a sala, deu-lhes a presenciar o
sanguinolento espectáculo, como amostra da sorte, que
os esperava, se não houvesse emenda. A figura do rei
vingativo, os semblantes atónitos dos fidalgos, que se
aggromeravam estarrecidos de pavor, á entrada do con-
selho, as cabeças dos mortos e todo aquelle conjuncto,
admirável de verdade, forma uma tela de 3,56 metros
de alto por 4,74 de largo.'
A Penha dos Namorados, de Rincon, propriedade da
camará municipal, com 3,20 de alto por 2,20 de lar-
gura.
Um joven escravo de Granada namorou -se da filha do
seu senhor, que depositava n'elle grande confiança. Cor-
respondido, resolveu fugir com a donzella, temendo os
furores do pae. Ao chegarem ao sopé de um monte es-
carpado, a joven mjpulmana sentou-se a descançar;
n'isto chegava o pae, em sua busca, acompanhado por
numerosa cavalgada. Os dois amantes começaram a su-
bir em direcção ao cume, mas, vendo-se perdidos e não
sabendo que partido tomar, abraçaram-se estreitamente,
e despenharam-se nas escarpas, vindo cair mutilados
aos pês do seu perseguidor.
Esta scena, tragicamente poética, está rigorosamente
fiel no desempenho e na época, a que se refere.
Numancia, de Vera, medindo 3,35 de altura e 5 de
largo. Cercados os numanticos pelas tropas de Scipião
Emiliano, acbando-se, depois de rigorosa e desesperada
resistência, na impossibilidade de realizar novas investi-
das, e combater com bom resultado, preferiram incen-
diar a cidade, e morrer, a entregar-se á escravidão ro-
334 NOTAS A LÁPIS
mana. Este quadro, verdadeiramente apparatoso e no-
tável, attraia sempre grande numero de visitantes.
Othelo e Desdemona, de Mu noz, hoje muito conhecido
peias copias, que ha d'elle, por ter figurado na nossa
exposição de Arte Ornamentai, e por pertencer ao nosso
modesto museu de pintura.
A secção de esculptura era pouco numerosa. Figura-
vam alli Simões d'Almeida, com uma estatua em már-
more— SiuUo, pouco ou nada—e duas em gesso — O ór-
fão e a Juventude, e Alberto Nunes, com a sua bella
estatua em mármore— O Mendigo — e um busto de Sal-
danha.
Em architectura, vimos 7 quadros de José António
Gaspar, de Lisboa, representando o projecto de um pa-
lácio da justiça, e outros de José Luiz Monteiro, da
mesma cidade, com o projecto da restauração do templo
de Antonino e Faustina, em Roma; e de Soler, do Porto,
o seu projecto do monumento ao duque da Terceira.
Gomo appendice, figurava no salão central uma va-
liosa collecção de tapeçarias, pertencentes á coroa e at-
tribuidas na maior parte aos debuxos dos pintores flam-
mengos, que mais de perto imitaram Raphael de Ur-
bino.
São tecidos de lã e seda, e representam diversos qua-
dros do Velho Testamento, sendo os mais notáveis os
do Apocalypse e os dos Vicio* e Virtudes.
*
* *
Dois dias mais, para uma visita a Toledo e algum
descanço imprescindível, e diremos adeus á cidade co-
ronada, de que levaremos óptimas recordações.
As duas procissões cívicas do centenário calderonia-
no, os seus museus, o seu commercio de pannos e se-
das, alguns dos seus tbeatros, monumentos e edifícios
modernos, os cafés e o movimento dos seus moradores
—são suficiente titulo de recommendação, para que a
MADRID B O CKNTKNABK) DB CALDERON 335
soa memoria predure do espirito dos que tiveram a for-
tuna de lá ir, em occasião tão memorável.
Quanto ao mais, cidade de gesso e areia, sem os bel-
los mármores, de que se orgulham outras capitães da
Europa, pequena em relação aos seus habitantes, des-
pida de praças regulares e de bellos pontos de vista,
de notáveis e antigos monumentos da arte religiosa ou
profana e muito apertada pelo seu triste Manzanares,
mas muito ávida de alargamento, de melhores praças e
ruas, que a tornarão muito mais formosa, quando se
concluírem as obras da Estação do Norte, de Segóvia,
dos bairros Chamberí e Saladero até á Via Castelhana.
A commemoração do segundo centenário de Calde-
ron, cuja idéa partiu da Associação dos Escriptores e
Artistas, realisada de um modo bizarro, espectaculoso
e a todos os respeitos notável, com o concurso dos al-
tos poderes do Estado, dos municípios madrileno e pro-
vincial, do exercito e de todas as sociedades scientificas,
artísticas, mercantis e industriaes — deu a todos os fes-
tejos um caracter verdadeiramente nacional, e provou
até á evidencia que todas as facções se empenharam pa-
trioticamente em promover um espectáculo grandioso,
que já pertence aos fastos históricos da península, como
o feito melhor e mais glorioso da Hespanha moderna.
Um sincero adeus e um bravo enthusiastico a Madrid !
336 NOTAS A LÁPIS
O ESCURIAL
Madrid ás 6 horas.— Caminho do Escoriai.
Parte histórica. — Coustrucção de Felippe n. — Obras
dos seus successores.
A fadiga proveniente dos nossos passeios atravez de
Madrid, durante o dia e grande parte da noite, não nos
deixava ser suficientemente madrugador para podermos
observar os primeiros movimentos da sua população,
ao levantar da cama.
Fizéramos porem firme tenção de não sair d'alli, sem
nos embrenharmos uma vez ao menos por beccos e ruas,
ás seis horas da manhã.
Essa manhã, como deixámos apontado, foi a destinada
á partida para o Escurial, no domingo, 29 de maio, oi-
tavo da nos$a chegada e ultimo dos festejos calderonia-
nos.
Tomando pela rua Arenal, em voluntários zig-zagues,
notámos com bastante repulsão e desprazimento corres-
pondente que Madrid ainda atirava para as caUes, du-
rante a calada da noite, o seu lixo, á espera que as
carroças municipaes lh'o transportassem a outra parte.
Os gatos e os cães vadios ou madrugadores atira-
vam-se aos monturos, e espalhavam sofregamente aquel-
O EJCURIÀL 397
las immundicies todas, em procura de alguns restos culi-
nários do seu agrado.
Entravam na cidade os primeiros vendedores de leite
e hortaliça dos arrabaldes, e aqui ou alem trabalhavam
já os empregados do município.
Ás 7 horas e 50 minutos, partiamos da estação pro-
visória do caminho de ferro do Norte, e ás 10 e 43 mi-
nutos descíamos na do Escurial, em frente da fabrica
de Mathias Lopes, estabelecimento bem montado, mas
sem a vastidão e apuro de machinismos, que havia a
esperar da fama dos seus chocolates.
O trajecto até alli nada tem de notável, a não ser o
arvoredo da Casa dei Campo, que se encontra á saída
de Madrid, a aridez do terreno pedregoso e inculto, po-
voado n'um ou n'outro ponto de sobreiros esguios, al-
guns pequenos pontos dfe vista e numerosas pedreiras
de granito escuro, de que è feito o afamado edifício, de
que vamos dar uma ligeira idèa.
Está elle situado a meio da montanha, conhecida desde
tempos immemoriaes por serra Carpetana, entre duas
povoações, o Escurial de Riba e o Escurial de Abajo
cercárO uma cordilheira, que, ao nascente e ao sul
deixa ver um largo horisonie e, n'um dia claro, obser
\ar Madrid, d'onde dista uns quarenta e quatro kilome
tros.
Algumas linhas da sua parte histórica.
Felippe II, chamado mais tarde pelas suas acções e
caracter o demónio do Meio Dia, um anno depois de su-
bir ao throno, animando as aventuras do seu exercito,
que ás ordens dos duques de Alba e Saboya cercava
Roma, na Itália, e a praça de S. Quintino, em França,
transportou-se para este ultimo acampamento, onde per-
maneceu até que o cerco terminou pela rendição da
praça, em 27 de agosto de 1557.
Tão ambicioso como fanático, voltou á Hespanha, e
22
338 notas 4 LÁPIS
entrou a sentir uns remorsos quaesquer, por ter des-
truído um mosteiro de S. Lourenço, para a tomada da
praça franceza, e pensou em reconciliar-se com os deu-
zes offendidos, mandando construir um sumptuoso con-
vento de egual denominação, que ao mesmo tempo lhe
desaggravasse a consciência, e commemorasse os fei-
tos de armas dos seus soldados n'essa campanha.
Nomeou uma commissão de architectos, médicos e
philosophos, para a escolha do local,- sendo João Baptista
de Toledo, que pertencia aos primeiros, o encaregado
do plano do edifício, cujas obras de simples terraplana-
gem duraram um anno, e começaram em abril de 1562.
No mesmo mez e no anno seguinte, o rei collocou a
primeira pedra da egreja, depois das bênçãos do bispo
de Cuenca, fr. Bernardo de la Fresneda, e mandou cons-
. truir uma casa abarracada para recolher os monges, de
que estava rodeiado, servindo lhe de palácio a casita do
cura, de throno um tripó feito do tronco de uma arvore,
em que se sentava para dar audiência, e para aquecer
os pés á lareira, no inverno.
O culto celebrava-se n'um pequeno aposento, forrado
com um toldo branco, para se não verem as telhas; o
adorno do altar era um crucifixo pintado a carvão, na
parede, por um frade ; os paramentos de panno velho ;
a cadeira, d'onde o rei assistia á missa, carcomida e
para maior decência ornamentada com um grande lenço.
Tempos depois, procedeu-se a outra construcção, onde
havia umas pequenas cellas para os doze monges da
communidade, mas o monarcha dos dois mundos e o
seu bobo Miguel de Antono sentavam-se aos offlcios di-
vinos» em um banco tosco, ao lado de um homem do
povo.
Grandeza e miséria, soberba e humildade, orações e
divertimentos truanescos eram muito próprios do tempo
e do rei.
Apezar dos esforços de Felippe II, as obras marcha-
vam lentamente, de modo que só nove annos depois,
em 1571, se concluíram alguns claustros e a chamada
O ESCOMAL 339
Iglesia Vieja com o seu coro e bancadas, arranjando-se
debaixo d'isso tudo um aposento e tribuna, para o rei
assistir á missa.
Era tal o seu fervor religioso que, trazendo-se-lhe a
nova de que seu irmão, D. João de Áustria, vencera a
celebre batalha de Lepanto contra os turcos, na occasião
das vésperas, celebradas em dia de Todos os Santos,
não se desconcertou, nem o seu rosto deu signaes de
alteração, até que porfim mandou cantar um Te Deum,
em acção de graças por esse feito.
Seis annos depois, na noite de 21 de julho de 1577,
a obra que tamanha satisfação dava á Magestade Calho*
Uca soffreu um desastre gravíssimo. Os numerosos raios,
que cairam durante uma horrorosa tempestade, destruí-
ram, alem de outras cousas, a torre do poente, cujos
sinos ficaram completamente derretidos.
Os trabalhos continuaram, e em todas as partes do
reino se preparavam objectos, destinados ao Escurial.
A 15 de maio do anno seguinte, completou Felippe
II cincoenta e um annos de edade, e entregou ao offer-
torio da missa outras tantas moedas, chamadas coroas
e mais uma, como era costume, que só acabou em Fer-
nando VII.
Foi rvesta occasião que lhe deram a noticia da morte
do rei de Portugal, D. Sebastião, e da perda do seu
exercito em Alcacer-Quibir.
Não nos dizem se Felippe II teve alguma previsão do
futuro, que este desastroso acontecimento lhe prepara-
ria, e se houve Te Deum, depois da missa, em virtude
d'isso.
Em 1593 terminaram as obras do mosteiro, trinta e
um annos depois do seu começo, mandando o monar-
cha levantar na villa do Escurial a egreja, que hoje tem,
em recompensa dos serviços prestados pela população.
É curiosa a nota dos jornaes dos operários, a quem
haviam sido marcados pelo próprio rei.
Apezar dos aparelhadores ganharem pouco mais de
200 réis por dia, os immediatos 140, os guardas dos
340 NOTAS A LÁPIS
materiaes 480, o escrivão 240, os canteiros 480, os pe-
dreiros 440 .e os outros jornaleiros 445, custou o mos-
teiro a cifra, enormíssima para o tempo, de três mil
contos.
Aos 74 annos de edade, Felippe II tinha, segundo é
de crer, a alma purificada pelas rezas, mas o corpo apo-
drecido por uma enfermidade repugnante, que o redu-
ziu a um lazaro fétido e digno de compaixão.
Conhecendo o seu fim próximo, mandou fazer o cai-
xão dos restos da madeira, que sobrara do crucifixo do
altar-mor, prevenindo que o seu corpo, que exhalava já
um mau cheiro insupportavel, fosse envolvido em outro
de chumbo.
Ora essa madeira, que pertencera a uma arvore, cha-
mada angeli, da india oriental, fora mandada arrancar
por elle da quilha do galeão porluguez Cinco Chagas,
que havia muitos annos se achava no porto de Lisboa,
quando veio tomar posse da usurpação, que fizera.
Era lai a lizura da sua consciência beata, que atè não
queria descer á sepultura, sem ir amortalhado em cou-
sa, que lhe não pertencesse.
Bons tempos aquelles, em que brilhavam, ao lado
dos frades e dos bobos, tão poderosos e santos varões,
como o foi tão devotíssimo rei !
#
# #
A pez ar da installação definitiva dos frades e da pre-
tendida conclusão do edificio, todos os monarchas, seus
successores, tiveram obras a emprehender, e dispensa-
ram carinhosos cuidados ao mosteiro de S. Lourenço
do Escurial.
No reinado de Felippe III, fez-se aos monges a entre-
ga das valiosas prebendas, com que os dotara o seu
antecessor; adquiram-se alfaias, entre as quaes figurava
uma custodia de ouro, cravejada de pérolas, diamantes
e rubis, que foi modernamente roubada pelos franeezes
O ESCURIÀL 341
invasores da península; augmentou-se a bibliotheca com
preciosos manuscriptos árabes, turcos e persas, trazi-
dos de Marrocos por Pedro de Lara, capitão das gale-
ras hespanbolas, e deu se começo em 4617 ás obras do
pantheon dos reis, sob a direcção de Crescencio, irmão
do cardeal do mesmo nome e de procedência romana.
Nos tempos de Felippe IV, as riquezas do mosteiro
eram taes que desafiaram a cobiça dos coriezãos, á tes-
ta dos quaes figurava o conde-duque de Olivares, que
se empenhou fortemente, com demandas e argucias, em
despojal-o da maior parte das suas rendas.
Não Ibe valeu porem a poderosa influencia, que exer-
cia nas acções do monarcba,
Conta-se até que este Ibe dissera terminantemente,
um dia, aconchegando do corpo o seu luxuoso ferra gou-
lo:— Desenganaste, homem. Esses bens pertencem aos
religiosos tão inteiramente, como este capote me per-
tence a mim.
Em novembro de 1645, continuaram as obras do pan-
theon, ás ordens de fr. Nicolas, vigário do mosteiro, se-
gundo os desenhos de Carbonell, architecto do paço e
execução do toledano Bartholomeu Zumbigo, insigne
marmorista.
Nove annos depois, fez-se o regulamento para os de-
pósitos dos cadáveres, determinando-se que só lá pode-
riam entrar os corpos dos reis, proprietários da coroa,
e as rainhas, de quem houvesse successão.
Inhumaram-se então Carlos V, primeiro de Hespanha,
ao qual o beaterio attribuiu grandes virtudes, porque o
seu corpo sepultado havia noventa annos, apparecera
incorrupto em todas as suas partes, á excepção do na-
riz, os Felippes II e III, a imperatriz D. Izabel e as rai-
nhas D. Anna, D. Margarida e D. Izabel de Bourbon,
primeira esposa do monarcha reinante.
A Carlos II estava reservado o desgosto de ver des-
truir parte da obra monumental dos seus antecesso-
res.
Um pavoroso incêndio, que durou 15 dias, embrave-
341 NOTAS A LÁPIS
eido por forte ventania, zombou dos esforços dos ope-
rários e de toda a população, que não poderam evitar
que toda a cobertura do lado do norte viesse a terra,
em menos de três horas.
O carrilhão dos sinos ficou destruído; queimaram-se
mais de quatro mil manuscriptos, árabes na maior par-
te, as estantes da bibliotheca, que eram de nogueira,
e o estandarte turco da batalha de Lepanto. Salvaram-
se a egreja, alguns pavimentos do mosteiro e palácio
annexo, duas torres, as alfaias do culto, grande parte
das obras litterarias e artísticas, os frescos das salas
capitulares, a habitação prioral e a sacristia.
Ainda assim, o prejuízo foi calculado em mais de seis-
centos contos.
O rei era creança ainda. A rainha regente ordenou
aos povos de oito léguas em redondo que acudissem a
trabalhar na desobstrucção dos destroços, e começou a
restauração, em outubro de 1672, de modo que dentro
de quatro annos ficaram concluídas todas as obras ex-
teriores, e em mais seis o resto, que era o mais impor-
tante.
As despezas eguaes, aos prejuízos, foram costeadas
pelo convento em duas partes e no terço pelo monarcha,
já então de maior edade.
São d'essa época o altar da sacristia, onde figura o
celebre quadro de Cláudio Coelho, a Santa Forma, e
um sacrário de filigrana de prata, ouro e pedrarias, que
desappareceu pela invasão franceza.
Coelho levou seis annos a pintar a sua tela.
O rei ao ver tamanha demora disse»lbe:
— Este quadro e mais uma dúzia estariam já promp-
tos, se a encommenda fosse feita a Jordan.
—Não duvido, senhor— respondeu o artista, seguro
do seu mérito, que lhe desculpa a pbrase — mas o meu
quadro valerá todos os de Jerdan.
A opinião geral era que o Escurial renascera d'entre
as chammas do incêndio mais grandioso e mais enri-
quecido.
O BSGUBIAL 343
*
* *
Felippe V dispensou egualraente ama larga protecção
ao mosteiro, realizando mais algumas obras bos claus-
tros e janellas, em 1726.
Repetiram-se as tempestades, tão funestas ao edifício.
Um raio occasionou bastantes prejuízos, junto á torre
do seminário; completas essas obras e dezoito annos
mais tarde, novo incêndio, produzido por outra faisca,
destruiu o pateo e os armazéns annexos, onde havia
sempre um numero considerável de operários e artífi-
ces,
Fernando VI, succedendo o seu pae, reparou estes
prejuízos, e deu ao convento mais uma renda de tre-
zentos mil reales.
Terminados os despendiosos reparos, bouve grande
receio de que o mosteiro, soffredor de tantos desastres,
desabasse por inteiro. O terremoto de 1 de novembro
de 1755, que foi uma tremenda calamidade para Lis-
boa, sentiu-se alli, produzindo um terrível abalo em to-
da aquella fabrica gigantesca, n'uma oscillação de alguns
minutos. O susto porem foi o único prejuízo de então.
Em memoria, disso, toda a communidade, d'alli em dian-
te, celebrava annualmente e n'aquelle dia um apparato-
so Te Deum.
Carlos III também quiz contribuir para o aformosea-
mento da localidade, e mandou construir á sua custa o
que hoje se chama Casa de Abajo, ao fundo da cerca,
dotando-o com muitos objectos de valor real e artístico,
alguns dos quaes mencionaremos em outra parte.
Durante o reinado de Carlos IV porem houve uma
época de verdadeira decadência.
Em 1799, deu o convento para as urgências do Es-
tado mais de doze arrobas de prata das alfaias de me-
nor necessidade e importância. Em outubro do mesmo
anno, desappareceu da sacristia o riquíssimo peitoral,
344 NOTAS A LAPI8
que usava o prior nas grandes solemoidades, sem que
até hoje se saiba onde pára. Era de ouro esmaltado e
todo cravejado de esmeraldas, diamantes, rubis e péro-
las, a maior das quaes era do tamanho de um ovo de
pomba.
Por denuncia de um francez, Frederíc Quillet, que
conseguira insinuar-se na confiança dos frades, e conhe-
cer o sitio, onde se guardavam as melhores alfaias, os
chefes das tropas de Napoleão apoderaram-se das me-
lhores preciosidades do convento, desmontando alé al-
guns altares e objectos, que não poderam levar, e trans-
formando em quartel o afamado edifício.
Sal vou-se apenas a custodia, onde hoje se guarda a santa
forma, escondida n'uma parede por um dos poucos fra-
des que permaneceram alli.
Fernando VII, tentou reparar semelhantes destroços,
dispendendo grossas quantias, ordenando ao prior que
procurasse averiguar o paradeiro de algumas alfaias,
roubadas por particulares, á sombra das tropas france-
zas, e reclamando do governo de Paris as pinturas e
objectos do culto.
Aquellas voltaram na sua maior parte, perdendo-se
ainda assim mais de duzentos originaes, mas estes nunca
mais volveram ao Escurial.
Recobraram-se a bibliotheca, com grandes perdas, o
tabernáculo e por diligencias do prior, algumas roupas
e livros.
Eis tudo.
São d'este reinado, os dois púlpitos, que, pela des-
harmonia e acanhado das proporções, estabelecem uma
robusta prova de mau gosto.
Nos tempos de Izabel II, por causa da guerra civil
entre esta e D. Carlos, traslada ram-se para Madrid os
quadros de maior valia, incluindo os da Casa de Abajo,
as melhores alfaias e os objectos do palácio, de modo
que, á saída dos frades, só ficou de pé o edificio, um
tanto damnificado aqui e acolá, e acompanhado do re-
nome da sua grandeza de outrora.
O B8GUBIAL
Hoje o mosteiro do Escuríal e suas dependências es-
tio encorporados aos bens da coroa, servindo de escola
e recreio a seminaristas e militares e de curiosidade a
estudiosos e viajantes.
II
Parte descriptiva.— O exterior do mosteiro.— O templo.
A stfa do lavatório.
A sacristia.— O coro e o zimbório.
Continuaremos a servir-nos dos Apuntes, que temos,
quanto á parte descriptiva, mencionando somente o que
nos parecer digno de maior nota, e formando uma ana»
lyse ligeira, como é nosso costume, ao sabor das nossas
impressões, que indvidualisâmos sempre com a máxima
independência.
O aspecto geral do mosteiro de S. Lourenço, incluindo
toda a sua vasta co&strucção, convento, egreja e palácio,
a despeito da sua grandeza, é triste e pesado, em oppo-
sição manifesta á lelleza typica do local.
É todo de grarfto escuro, a que lá chamam pedra
berroquenba, obedece na maior parte á simplicidade da
ordem dórica, e <ccupa uma superfície de quarenta e
cinco mil metros quadrados, aos lados e em frente de
uma praça irregubr, cercada por pilares e correntes de
ferro.
À frontaria, onde está a porta principal, do lado do
occidente, mede luzentos e trinta e cinco metros, tem
duas torres nas extremidades, terminando n'uma es-
phera da metal, teimada pela cruz.
916 NOTAS A LÁPIS
A portaria apresenta dois corpos. O primeiro vae até
á cornija, que abraça o edifício; o segundo de ordem
jónica ostenta a figura de S. Lourenço, em estatua do
mesma granito, á excepção da cabeça, pés e mãos, que
são de mármore branco; o que dá ao santo um aspecto
extravagante. Entre os dois corpos, avultam as armas
reaes. Os umbraes de pedra inteiriça foram conduzidos, ,
ao que se diz, em uma só carreia por 48 juntas de bois.
De cada lado ba duas portas eguaes, que dão para o
seminário, para os claustros e cosinbas, e em toda a
frontaria duzentas sessenta e seis janellas, incluindo as
das torres, unicamente para as três portas mencionadas.
A fachada do sul, que medirá cento noventa e um
metros, deita sobre a cerca ; tem quatro ordens, ou pa-
vimentos, com duzentas noventa e seis janellas para
cinco portas muito pequenas, três ao centro e uma em
cada torre.
A do nascente é um triste amontoado de construc-
ções irregulares com trezentas ntventa e seis janellas,
duas torres, que pretendem barmonisar com as da fron-
taria, e cinco portas, que deitam para o jardim. .
A do norte, com egual distancia á do sul, visto que
a planta é um parallelogrammo rectângulo, tem cento e
oitenta janellas e quatro portas, qie levam a do meio
ás cosinbas e depósitos do palácio, a da direita ao col-
legio, a da esquerda ás habitações reaes e a quarta á
chamada Torre das damas.
Por estas ligeiras minnciosidades se pôde fazer idéa
da feição irregular, triste e pesada c'este grande misti-
forio architectonico.
#
# #
Depois da porta principal, atravessa-se um saguão, e
entra-se no Pateo dos Reis, assim chanado por seis es-
tatuas, que o guarnecem, e represeitam outros tantos
monarcbas do Velho Testamento— losafat, Ezequias,
David, Salomão, Josias e Manacés.
O ESCUMAL 347
Tem cada uma perto de seis metros de ai tora, cabe-
ça, mãos e pès de mármore, e foram tiradas com a de
S. Lourenço de uma só pedra, segundo a cbronica,
d'oode veio a dizer-se :
Seis Reyes y un Santo
Salieron de este canto,
E quedo para otro tanto.
Ao fundo, duas torres e em seguida o átrio aboba-
dado, que precede a egreja. Forma esta um quadrado
de cincoenta e cinco metros, e é da mesma ordem dó-
rica e granito escuro, que guarnece todo o edifício; as
arcarias das duas naves formam uma perfeita cruz gre-
ga, estylo bysantino.
No extremo da nave principal a frontaria dos dois ór-
gãos, que já não funccionam; ao centro o lanternim,
no ápice do zimbório, que fornece a luz por trinta e
oito janellas vidraçadas.
O altar-mór, a que se sobe por doze degraus de mar-
more sanguíneo, é sumptuoso, e contrasta com a seve-
ridade do templo. O pavimento, onde terminam os pri-
meiros degraus é de mármore de cores, que formam
beilos desenhos; depois de mais cinco, que são os se-
gundos, chegámos ao altar de jaspes e pedras embuti-
das, sendo a que o cobre toda consagrada em ara, in-
teiriça e de jaspe.
Àos lados do altar, duas portas com enfeites de jas-
pe verde, pelas quaes se chega ao sacrário.
O retábulo compõe-se de quatro corpos. No primei-
ro, seis columnas de ordem dórica e mármore sanguí-
neo, com bases e capiteis de bronze dourado a fogo,
correspondendo a outras de menor importância; nos in-
tercolumnios lateraesas estatuas dos quatro doctores da
egreja e dois quadros de Tibaldi, que representam o
nascimento do Senhor e a adoração dos Magos; ao fun-
do um arco com os mencionados enfeites de jaspe ver*
de, onde está o sacrário, cheio de pinturas alegóricas,
348 NOTAS A LÁPIS
a que fornece a luz uma janella, aberta no pateo da ha-
bitação real.
O segundo corpo, de ordem jónica, tem as columnas
e a distribuição do anterior, as estatuas dos evangelis-
tas, o quadro da flagelação e o da cruz ás costas, de
Zucbaro, e no centro o martyrio de S. Lourenço, por
Tibaldi.
O terceiro é corinthio, conta quatro columnas, e tem
ao fundo a Annunciação da Virgem e aos lados a Res-
surreição e a vinda do Espirito Santo, por Zucharo. Nas
extremidades e sob a cornija do templo duas pyrami-
des de jaspe verde e as estatuas de Santo Àndrè e S.
Tbiago.
O ultimo é de ordem compósita, com duas colum-
nas, que sustentam um frontão triangular, remate de
todo o retábulo, encimado pelas estatuas de S. Pedro
e S. Paulo, feitas, como as outras, por Leão Leoni.
Ao fundo (Teste corpo um revestimento de mármore
verde, ao centro o grande crucifixo feito de madeira,
arrancada da quilha do navio porluguez Cinco Cha-
gas.
O tabernáculo, que é uma obra muito aprimorada e
muitíssimo valiosa, assenta n'um sócco de jaspes, ^on-
de sobem oito columnas corintbias de diaspro sanguí-
neo, listado de branco, em cujo trabalho, pela extrema
dureza da pedra, foi necessário empregar diamantes.
As bases e os capiteis são de bronze dourado a fogo.
Aos pontos cardeaes correspondem quatro portas, as
do nascente e poente abertas e defendidas por crista es,
as outras duas fechadas por uma prancha de alabastro.
Nos inlercolumnios, quatro estatuas de apóstolos;
sobre a cornija, quatro pedestaes resaltados, servindo
de peanbas a outras tantas figuras dos mesmos santos.
A cúpula é franjada de bronze, guarnecida de pedra-
ria de diversas cores e encimada por um pequeno lan-
ternim, que serve de base á figura do Salvador.
Tem esta valiosíssima construcção a altura de cinco
metros e metade no seu diâmetro.
O E9CUBIAL 319
Os quarenta e dois altares restantes não tem impor-
tância que não seja a de alguns dos painéis, que os com-
põem.
Os púlpitos do tempo de Fernando VII, apezar do
seu alabastro e mármores tinos, bronzes e mais ador-
nos, sâo obra acanhada, que destoa no meio do conjun-
cto geral do templo, cujas abobadas são inteiramente
cobertas de pinturas, a fresco, do antigo e novo Testa-
mento, com extraordinária profusão e variedade de as-
sumptos.
Em plano superior e em frente da sacristia, estão os
oratórios reaes, correspondendo o da epistola ao quar-
to, onde morreu Filippe II; e no topo das naves infe-
riores os relicários, onde ba corpos inteiros, cabeças e
ossos, em numero incalculável.
#
# #
Caminho da sacristia, encontrasse a sala do lavatório,
que é uma vasta peça de mármore inteiriço. Todas as
pinturas do tecto são executadas a fresco e do género
grotesco, á excepção do centro, um pedaço de ceu
aberto, d'onde baixa um anjo, trazendo nas mãos toa-
lha e jarro. Nas paredes figuram bons quadros de Jor-
dan, Ri vera e outros.
A sacristia, alumiada por quatorze janellas, colloca-
das do lado do oriente, junto ao pavimento e sob a cor-
nija, é quadrilonga e ampla, como uma das peças prin-
cipaes do edificio. Na parede, fronteira nove figuras, que
correspondem ás janellas superiores, e por baixo os ga-
vetões do guarda-roupa, em dois corpos, construídos
de buxo, nogueira, ébano, cedro e outras madeiras cus-
tosas.
O primeiro corpo é dividido por pilastras em sete
portas eguaes, cheias de molduras e embutidos, tendo
cada uma quatro gavetões, que podem guardar os para-
mentos desdobrados, ainda os de maiores dimensões.
380 NOTAS A LAHS
O segundo e mais importante, pelos bronzes que
tem, é de ordem corinlhia, cujas columnas servem co-
mo que de molduras ás portas dos armários, onde se
depositam os vasos e outras alfaias do culto.
Ao centro um bello espelho, guarnecido de cristal da
rocha, presente da mãe de Carlos II, e aos lados seis
mais pequenos. O ehão é de mármores escuros e bran-
cos, eguaes aos do templo, e a abobada pintada gro-
tescamente, como a da sala anterior.
Nas paredes uma boa collecção de quadros, para
cuja analyse minuciosa nos faltou o tempo.
A invasão franceza fez desapparecer a maior parte
dos paramentos, em grande numero bordados sobre lha-
ma de ouro e prata, segundo os desenhos de bons pin-
tores. Bestam ainda três ternos completos, onde em
campo de prata, salpicada de ouro, reproduziram os
monges bordadores muitos quadros sacros, pelos debu-
xos de Peregrino, o mudo, e um capitulario, in folio
escripto por frei Martin de Palencia, monge benedicti-
no, e adornado de dezoito vinhetas, pintadas por três
co I legas seus.
Ê aqui que está o altar da Santa Forma, tio faltado
pelo quadro movei de Cláudio Coelho.
Manda a verdade porém que se diga que uma cousa
è digna da outra.
No topo principal do quadrílongo, levantam-se seis
pilastras de jaspe, com embutidos de mármore e ador-
nos de bronze dourado; sobre o entablamento, que for-
mam, quatro columnas, com bases e capiteis do mesmo
metal; entre duas pilastras, o altar transparente, atra-
vessando os dois corpos de alto a baixo.
Aos lados, doas portas, lavradas em madeiras finas
e enfeitadas com bronzes e conchas, castellos e leões do
mesmo metal, tendo nas vergas um leão, sustentando
nas garras dianteiras um globo e um sceptro.
Entre a verga e a cornija, um nicho, coberto de már-
more branco relevado, e encimado por uma águia de
bronze, com o tosão de ouro pendente do bioo. No prí-
O EiCUWAL 351
meiro nicho, representa-se o imperador Rodolfo II, no
acto de entregar a Santa Forma aos commissionados
de Felippe II; no outro, este monarcha, na occasião de
a receber.
No segundo corpo, ha serapbios de mármore branco
de Génova, e na voluta, a toda a altura do transparen-
te, anjos de bronze sentados, ladeando outro, que está
coroado de louros, e ostenta nas mãos uma inscripção
allusiva.
Sobre as columnas extremas, pousam novos anjos e
dois baixos relevos, representando os berejes, que pi-
saram as ostias, e o arrependimento do chefe, á vista
do milagre operado.
O sacrário è um templosinbo de bronze dourado a
fogo, executado com certa perfeição por um monge lei-
go do convento.
Tanto este como o transparente ficam occultos pelo
famoso quadro de Cláudio Coelho, que lá reproduzia a
sacristia e a procissão, que houve na trasladação da
Santa Forma para o altar.
Em occasiões solemnes, o quadro baixa até ao pavi-
mento, onde se occulta, e o altar fica inteiramente a
descoberto.
O coro, para onde se entra pelos arcos, em que ter-
minam os antecoros, podia só por si abranger uma
egreja regular, tamanha é a sua vastidão.
E essa vastidão, o pavimento de mármores, as duas
ordens de bancadas corinlhias, feitas de madeiras finas,
a estante central, a maior que temos visto, as pinturas
do tecto — representam óptima commodidade e corres-
pondente grandeza.
Entre as duas ordens de assentos ha espaço, que dá
volta ao coro. A primeira é simples, a segunda egual
até ao espaldar, que serve de pedestal a uma ordem de
columnas inteiras, estriadas de alto a baixo, com bases
352 NOTAS A LÁPIS
e capiteis de buxo lavrado, formando com outras um
entablamento de cedro, que serve de baldaquino a cada
cadeira.
Ao fundo, no topo que olha para o altar-mór, o as-
sento prioral, collocado a meio de um troço de colam-
nas, que formam arco ao centro, e emolduram um qua-
dro do Senhor com a cruz ás costas, acabando em fron-
tão, onde se vé a estatua de S. Lourenço.
Por detraz desta cadeira, ha varandas que dão para
o pateo dos Beis, e no o eco, feito no macisso da pare-
de, um altar, onde se admira um crucifixo de mármore
branco, uma obra prima, esculpturada por Benevuto
Celini, em Florença, no anno de 4562.
O chríslo, cuja cabeça nos impressiona vivamente pe-
lo toque inimitável das suas feições e contornos, é de
tamanho natura), e está cravado n'uma cruz de mármore
preto de Garrara, que, por sua vez, assenta n'outra de
madeira. »
Ao lado do portentoso crucifixo, ha dois quadros da
Virgem e S. João, devidos ao pincel de Peregrino, a
que já nos referimos, por lhe pertencerem os debuxos
dos paramentos.
No angulo direito, tendo ao lado uma porta, por on-
de Felippe II recebia recados ou noticias, sem chamar
a attenção da communidade, a cadeira que pertenceu a
este monarcha, movei, que só pela largura se differença
dos cento e vinte e quatro, pertencentes aos frades.
Desde a bancada superior até á cornija, que è a mes-
ma que dá volta ao templo, ba soffriveis pinturas e a
meio dos dois lados um balcão de bronze para os can-
tores, adiante dos órgãos, feitos de pinho de Cuenca,
com frontaria dourada e de ordem coriotbia, a que obe-
dece toda a construcção do coro.
Aos lados dos órgãos, figuram quatro bellos quadros
de Gincinnato — S. Lourenço, seguindo o pontífice Sixto,
quando era conduzido ao martyrio— O acto da apresen-
tação dos pobres, como symbolo da egreja christã, ao
martyrisador—S. Gregório, escrevendo os commenta-
J
O ESCUBIAL 353
rios da bíblia, com um anjo, que lhe toca uma trombe*
ta, no primeiro plano, e, a distancia, o mesmo santo a
fazer penitencia— e por ultimo, ainda S. Gregório, ex-
plicando a bíblia aos frades, e, nos longes do quadro,
o seu enterro.
O facistol rodante. ou a estante quadrangular, que
se vê collocada a meio do coro, è enorme e curiosa. O
socco é de jaspe sanguíneo e mármore branco; d'alli
partem quatro pilastras de bronze dourado e uns varões
de ferro, que vão unir-se à um centro também de ferro,
em forma de annel, onde gira o espigão da estante, fei-
ta de espinheiro, com faxas de bronze dourado, doze
metros de circumferencia, que vae diminuindo para apoio
dos livros n'uma diíTerença de três, e um peso de qui-
nhentas arrobas.
As esquinas estão cortadas, e teem uma abertura ou
viseira, por onde se pode observar o altar-mór.
Sobre a cornija, em que termina, ha quatro esferas
• de bronze; sobre ellas assenta, em forma de cruz, a ba-
se de um templosinbo, sustentado por doze columnas;
nas quatro extremidades outras tantas fachadas triangu-
lares; no meio, que ellas formam, a cupulasita de ex-
cellentes madeiras lavradas.
Debaixo do templete, uma estatua da Virgem, sobre
a cúpula um crucifixo, como remate do movei, notabi-
lissimo a todos os respeitos.
A estante, nas quatro faces, só pode levar outros
tantos livros, que são em tudo dignos d'ella.
A collecção, que se guarda nos differentes antecoros,
compõe-se de 219, prefazendo um total de dezesete
mil folhas de grosso pergaminho, piei de macho, com
5 palmos de alto por 4 de largura !
Estas pelles, perfeitamente curtidas, brancas e pacien-
temente manuscriptas, procedem na maior parte de Va-
lência e algumas de Flandres.
É tal o tamanho da escripta, que uma pagina, nos
s&us cinco palmos de altura, tem apenas quatro ordens de
cantochão, e onde elle não è preciso dez Hnhas de texto.
23
354 MOTAS A LÁPIS
Os artistas nacionaes, encarregados d'este trabalho,
durante annos, alem dos bons ordenados, que eram
contados por cada oito folhas concluídas, Unham casa,
medico e botica, e foram Cristobal Ramires, de Valên-
cia, frei Martin de Valência, benedictino de Valladolid,
Francisco Hernandes, das cercanias de Segóvia, Pedro
Saloverte, de Burgos, e Pedro Gomes, de Cuenca.
As virgulas, as letras iniciaes e as vinhetas, muito
bem illuminadas, foram executadas pelos leigos do mos-
teiro, frei Ândrès de Leon, frei Julião de Fuente e Am-
brósio Salazar.
A encadernação, de asinheira, tem o forro, cantonei-
ras e guarnições de bronze, dois medalhões entalhados,
e a meio d'elles umas grelhas e uma tira de pergami-
nho, indicando a parte do officio divino, a que corres-
ponde o volume, que è cerrado por fechos de bronze,
e apresenta na parte inferior três rodas para a facilida-
de do manejo nas estantes, tamanho é o seu peso.
Posto que o zimbório do templo nos desperte muita
attenção pela sua forma e tamanho, pouco nos detere-
mos com elle, indicando apenas que para lá chegar é
preciso subir quatro escadas differentes, até á balaus-
trada, que precede a cúpula, aonde se sobe por outras
tantas escadarias de caracol, abertas, como era costume,
no macisso dos pilares.
Al li chega-se a outra balaustrada, e gosa-se a vista
geral do edifício e um bellissimo panorama, emoldura-
do pelas montanhas. Fica-nos ainda por cima o lanter-
nim, cuja abobada serve de apoio a uma pyramide de
pedra estriada, encimada por uma esfera e cruz enor-
mes, que pesam 209 arrobas.
Um ponto brilhante, que se vê a meio da pyramide,
é uma chapa de cobre dourado a fogo, que fecha o lu-
gar, onde o devotíssimo fundador do mosteiro teve o
O BSCUBIAL 355
mau gosto de mandar encerrar umas relíquias de S.
Pedro, S. Paulo e Santa Barbara, que, talvez despeita-
da por essa lembrança, não empregou o seu prestigio
na defeza do convento, tantas vezes invadido e damni-
ficado pelos raios.
Voltando á egreja, e saindo d'ella á esquerda do al-
tar-mór, desceremos uns doze degraus até ao retrato de
frei Nicolás de Madrid, que se destinguiu na obra, que
vamos apontar, e baixando ainda para a esquerda mais
treze, chegaremos á portaria do afamado pantheon dos
Reis.
III
O Panteon de los Reyes.— Ot pndrideroi .— O Panteon de los
Infantes. —Claustros e bibliotheca.— O palácio.— Casas de
Arriba e Abajo.— Prevenção inesperada, como ponto final.
A frontaria, esta obra notável do Panteon de los
Reyes, foi traçada pelo arcbitecto Bartbolomeu Zumbigo,
em dois corpos de ordem compósita, que occupam o
claro de um arco, sendo o primeiro dois soccos, onde
se firmam as columnas e pilares, em meias cannas, que
sustentam a cornija, sobre a qual avultam duas figuras
de execução italiana, representando a da direita a Na-
tureza desfallecida, ao cair-lbe a coroa e ao abandonar
o sceptro para suster um pergaminho, onde se lê—iVa-
tura occidit— e a da esquerda a Esperança, empunhan-
do n'uma das mãos um facho e na outra a inscripçSo
—Spes exaltat. Pilastras, columnas e revestimentos são
de bello mármore; bases, capiteis e figuras de bronze
dourado.
356 NOTAS A LÁPIS
O segundo corpo forma-o a porta de grade, em dois
batentes, formada de balaustres (Teste metal dourado a
fogo sobre largos soccos de género egual. Por cima á
bordada cornija, uma inscripção latina formada por le-
tras douradas sobre lapide de mármore preto, ladeada
de dois dragões de bronze e vários adornos da mesma
pedra branca.
Abertos os dois batentes, á frouxa claridade que se
gosa, descobre-se uma estreita, mas sumptuosa escada-
ria, em três lanços e trinta e quatro degraus de jaspe
de Tortosa e mármore de Toledo, tão bem unidos e fa-
ceados, que se confundem, retratando a nossa figura
como espelhos luzentes.
Do que se encontra aos lados faltaremos á volta.
Chegados ao fundo, achâmos-nos no pantheon, collo-
cado sob o altar-mór, n'uma sumptuosíssima peça octo-
gona, que obedece na architectura á ordem, bronzes e
jaspes do portal e da escadaria.
O pavimento tem ao centro um florão de pedras e jas-
pes de cores, d'onde saem faxas a formar estreita ; a abo-
bada outro florão de bronze, a meio de um annel de jas-
pes, d'onde pende uma lâmpada, ou aranha, obra feita
em Génova por Virgilio Faneli. Contem 24 braços em
três ordens ; os primeiros, que são sustentados por ca-
beças de dragões antepostos a outras tantas águias ; os
segundos por anjos ajoelhados sobre misulas, que ser-
vem de cadeias, e os terceiros por figurinhas aladas, sen-
tadas á borda da bacia. Debaixo as figuras dos quatro
evangelistas e em toda a peça adornos e tropheus mili-
tares, formando na parte superior dois dragões sobre
uma coroa real e na inferior quatro cobras enroscadas.
O altar fronteiro á escadaria tem um crucifixo de
bronze em cruz de mármore preto de Biscaia, feito por
Pedro Taça, de Ca r rara, e collocado alli por Velasquez ;
e o retábulo da mesa sagrada um baixo relevo, repre-
sentando o enterro do Senhor, esculpturado pelos leigos
Eugénio de la Cruz e Juan de la Concepcion.
As urnas muraes, destinadas aos cadáveres reaes, oc-
O ESCDRIAL 357
cupam todo o espaço de alto a baixo, e são feitas de
mármore escuro, sustidas em quatro garras de leão, e
tem ao centro uma lamina de bronze, com o nome do
rei ou rainha, cujos restos lá repousam.
A impressão, que nos produz tudo aquillo, obedece
a sentimentos de encontrada natdreza — mesquinhez e
grandeza, sumptuosidade e mau gosto.
Grandeza e sumptuosidade, pelo custoso material da
construcção e pelas provas de uma execução aprimo-
rada ; mesquinhez e mau gosto, porque a escadaria de
mármores e jaspes não chega a medir dois metros de
largura, e o recinto tem apenas doze de diâmetro; por-
que se procurou desnecessariamente um subterrâneo hú-
mido, sem ar nem luz, e tão húmido que foi preciso
cortar a veia de uma fonte, que nasce no jardim, de um
modo que não evita pequenas mas prejudiciaes infiltra-
ções, e porque finalmente o acanhado do espaço preju-
dica o effeito geral, que ninguém pode observar plena-
mente, por falta de claridade.
Custa a crer realmente que se emprehendesse, e le-
vasse a cabo obra de tal cunho, em circumstancias tão
condemnaveis de acanhamento e mau gosto, que se es-
tendem ás dependências, onde vamos entrar— os Pudri-
deros e o Panteon de los Infantes, cujas portas se encon-
tram no segundo lanço da escadaria de jaspes.
Os Pudrideros, que na verdade representam deplorá-
veis podridões em semelhante lugar, são quartos escu-
ros, onde os cadáveres reaes ficam vinte ou trinta annos
a escorrer os soros fétidos até serem conduzidos para o
pantheon. Depois dos respectivos responsos, pegam no
caixão de chumbo, que encobre o morto, collocamno
ao centro do quarto sobre cunhas de madeira, praticam-
lhe uns furos, por onde possam sair humidades e mau
cheiro, e fecham a porta com tabique, que deitam abaixo
no fim dos annos, destinados á dissecação do cadáver.
O pantheon dos Infaotes, nome tão campanudo como
immodesto, esse nem merece duas linhas de recorda-
ção; tem dois pudrideros no primeiro pavimento, e no
358 NOTAS A LAPTS
segundo umas caixas de pinho, com pinturas a fingir
mármore, em três ordens pobríssimas.
Se com todos aquelles subterrâneos pretenderam in-
dicar humildade, muito mal fizeram em dar ao lugar,
destinado aos reis, tanto fausto e tamanha sumptuosidade.
Se, ao contrario, quizeram construir um monumento,
digno de ser duplamente chamado pantbeon, em peor e
mais deplorável situação ficaram, porque o local, as
proporções de tamanho, ar, largueza e luz, e as edifica-
ções annexas são de uma imprevidência, mau gosto e
desconcerto, levados ao extremo.
A entrada principal para os lados do convento está no
vestíbulo, situado entre o Pateo dos Reis e a porta do
templo. Por alli se vae aos claustros inferiores, que se
estendem em vasta galeria, cheia de nichos, pinturas
sacras, aos lados, e altares nos quatro ângulos, tendo a
meio um espaço, chamado o Pátio de los Evangelistas,
representados em estatuas de mármore genovez.
Daqui se passa ao jardim, onde ha opulentos macis-
sos e bellos desenhos de buxo, lagos e flores, ainda
boje cultivados com certo esmero.
As salas do capitulo são três. A do meio, que è a
mais pequena, servia de antecâmara ; a pintura da abo-
bada representa o ceu aberto, d'onde baixam anjos com
grinaldas nas mãos, no meio de outras pinturas de gé-
nero grotesco ; em doze nichos Job e os profetas.
N'uma das outras, a chamada Vigarial, ha uma pin-
tura de Ticiano — S. Jeronymo no deserto — e dois bai-
xos relevos de porfido sobre fundo de mármore branco ;
alguns nichos com santos e altares com embutidos de
jaspe e adornos de bronze.
Na ultima, a Prioral, a mesma decoração, sendo o
assumpto da pintura, devido também a Ticiano —a Ora-
cão no horto.
O ESCURIAL
Em ambas, Bguram assentos de espaldar, feitos de
nogueira e pinbo de Cuenca, e os tectos pintados a gro-
tesco.
A escadaria principal, que leva aos claustros superio-
res è uma das peças mais notáveis do edifício, e foi de-
lineada pelo italiano Castelo, chamado o Bergamasco,
por ser natural de Bergamo, pintor e arcbitecto, dis-
cípulo de Miguel Angelo; occupa um occo de desanove
metros e meio, e tem no primeiro lanço vinte e seis de-
graus de cinco metros e vinte oito centímetros de lar-
gura, em pedras inteiriças de granito berroquenbo; no
segundo treze até ao andar, onde forma três grandes
nichos, dividindose ahi em dois ramaes parallelos de
26 degraus até aos outros claqstros mais elevados.
No tecto de uma sala, chamada Celda Priorai, vè-se
uma pintura a fresco de Urbino, uma preciosidade, a
única (Teste autor que ha no edifício, porque a morte
o surprehendeu ao pôr-lbe termo. Representa os quatro
evangelistas, as Virtudes, alguns profetas e o primeiro
juizo de Salomão, ao centro.
Na Sala de Capas, onde se guardavam as que ser-
viam aos cantores do coro, ba um S. Miguel calcando
o diabo, memorável por ser obra de mulher, D. Luiza
Roldão, esculptora de camará de Carlos II.
Num pequeno compartimento, a que se dá o nome
de Camarin, existem alguns objectos valiosos, sendo
os principaes— um livro de S. Agostinho, manuscripto
do século vn, os evangelhos da egreja grega, no tempo
de S. João Ch ri sos to mo, quatro livros autographos de
Santa Thereza de Jesus e o tinteiro, de que ella se ser-
viu para os escrever.
A bibliotheca, situada sobre o saguão da portaria
principal, merecia, por sua vastidão, pinturas e ornamen-
tos, uma descripção demorada, que uma rápida visita
nos não permitte.
O pavimento é de mármores pardos e brancos; as
estantes dóricas, luxuosas e de óptimas madeiras, cedro,
buxo, ébano, nogueira e outras, teem cinco mesas de
360 NOTA& À LÁPIS
mármore escoro, ao centro, guarnecidas de bronze, dois
veladores de porfido, globos e esferas armilares; nas
paredes e nos tectos uma profusão admirável de bons
frescos.
Estas pinturas estão divididas em sete secções, avul-
tando como figuras principaes— na primeira, a Gram-
ma Uca, sentada entre nuvens e cercada de creanças a
ler; na segunda, a Rethorica com caduceo na mão e um
leão ao lado; na terceira, a Dialéctica, em figura de ma-
trona, coroada pela lua em quarto minguante; na quar-
ta, a Arithmetica, rodeada de rapazes com tábuas alga-
rismadas; na quinta, a Musica, empunhando a lyra; na
sexta, a Geometria, fazendo medições a compasso; na
sétima, a Astronomia, recostada sobre o globo celeste.
Para mitigar o profano d'estas figuras, todos os acces-
sorios representam santos varões, qne professaram es-
sas difie rentes matérias.
Esta sala, chamada a principal, guarda os impressos,
e a segunda, muito mais simples e baixa, collocada no
segundo andar por cima d'aquella, é reservada aos ma-
nuscriptos, uns e outros ainda bastante numerosos e
importantes, apezar das vicissitudes por que passou o
mosteiro em diversas épocas. Os quatorze devocionários,
pertencentes a vários monarcbas, a collecção dos códi-
ces florentinos do século xv, comprehendendo os clássi-
cos latinos, e o hervario collado ás folhas de treze gros-
sos volumes— são objectos dignos da maior attenção, não
esquecendo' os esboços, que lá se conservam, de vários
architectos e pintores, incluindo os cartões de Urbino.
#
# #
O palácio, parte componente do edifício, occupa meia
fachada do Norte, a que dá para o largo irregular, e
outra meia da do Oriente, a que deita para os jar-
dins.
A construcção interiof obedece á severidade geral do
O SSGURIAL 361
mosteiro, sendo em alguns pontos ainda mais simples,
a principiar pela escadaria principal.
Os compartimentos, onde ha verdadeiros primores de
esculptura, são quatro pequenas habitações, situadas
sob a torre, e ornamentadas por Carlos IV. Os pavi-
mentos, as janellas, os frisos e as portas conteem minu-
ciosidades de um valor artístico admirável e digno dos
tempos d'aquelle monarcha, que se vangloriava de ser
óptimo torneiro.
Depois das tapeçarias, que cobrem as paredes dos
aposentos reaes, verdadeiras riquezas, na maior parte
devidas á fabrica de Madrid, segundo os desenhos de
Goya e algumas á arte flamenga e aos debuxos de Da-
vid Teniers, mostra-se-nos como mais notável a Sala
de Batallas, pintadas grotescamente por Fabrieio e Gra-
nelio, filhos do pintor Bergamasco, a que já nos referimos.
As pinturas muraes d'esta vasta galeria, que entesta
com a egreja, tiveram por origem uns desenhos encon-
trados n'uns cofres velhos do alcácer de Segóvia, repre-
sentando a batalha, dada aos mouros de Granada por
D. João II de Castella, em 1431, batalha chamada de
Higueruela, nome dado ao campo, onde ella começou.
Apresentados a Felippe II, ordenou este aos dois ar-
tistas que os reproduzissem na parede, corrigindo os
debuxos, mas sem alterar a forma das armas, nem a
distribuição das figuras.
Fingiram estes três pannos, pendentes de escapulas;
pintaram no primeiro o acampamento do rei de Castel-
la, com as suas tendas e meios de defeza; no segundo,
os exércitos combatentes em ordem de batalha: n'uma
parte o rei, armado de todas as armas, ao centro das
tropas, e, mais adiante, em meio de refrega, combaten-
do ao lado do general, o condestavel D. Álvaro de Lu-
na; no terceiro, a derrota dos mouros e o exercito cas-
telhano ás portas de Granada.
Nos topos, figuram as expedições da armada de Fe-
lippe II á ilha Terceira ; nos interstícios das nove janel-
las, que dão luz á galeria — o cerco da praça de S.
362 NOTAS A LATO
Quintino, a batalha de 10 de agosto de 1557, em que
Montmorency ficou prisioneiro, o assalto e tomada da
praça, a rendição do forte de Ghatelete, em 6 de setem-
bro do mesmo anno; o movimento das tropas, á saida
de S. Quintino; o incêndio da população de Han e a to-
mada do castello, em 11 d'este mez, vendo-se a ermida,
onde o rei se abrigou durante o combate ; a tomada de
Noyon; a batalha do duque de Alba contra o Prior do
Crato, junto a Lisboa; e finalmente a revista do rei ás
tropas, em julho de 1580, na defeza de Cantillana, de
que era capitão general o mesmo duque de Alba.
Gomo se vê, representam estas nove pinturas todos
os fastos guerreiros do rei Filippe II, fundador do mos-
teiro.
O género da pintura grotesca, boje com razão muito
pouco seguido, é dos menos recommendados, e, se não
nos agrada á vista, muito menos serve para nos agitar
os sentimentos.
A primorosa execução cTesse género de frescos a traço
simples, em todas as suas partes e nos conjunctos diffe-
rentes, subordinados todos a assumptos militares, è que
deu áquella galeria do palácio a celebridade, que tem.
O visitante por ultimo, com a imaginação invadida a
todo o instante pelo nome do fundador d'aquella fabrica
collossal, sente uma curiosidade vivíssima e uns desejos
invencíveis de ver os aposentos, onde viveu, e morreu
Filippe II.
Ficam co I locados a espaldar do altar-mór da egreja,
como convinha á extrema devoção do poderoso e faná-
tico rei, tão fanático como cruel, e são, pode-se dizer,
os mais simples do palácio, uns compartimentos de re-
lativa pequenez,- sem pinturas nem outros revestimen-
tos artísticos.
O gabinete do despacho tinha apenas uma estante e
mesa de nogueira, que ainda lá se conservam, e o quarto
de dormir a cama, a cadeira, em que o monarcba se
sentava, descaqçando a perna gotosa em dois banqui-
nhos, forrados de estofo bordado.
O ESCURIAL 363
Estes aposentos communicavam coro os oratórios
reaes, e, abertas as portas» punham o altar-mór intei-
ramente a descoberto.
Ao sair d'aqui, poremos nós o ponto final á ligeira
serie dos nossos apontamentos» dedicados com toda a
sua simplicidade aos curiosos, que procuram encontrar
nos monumentos de uma determinada época elementos
de estudo comparativo e ethnograpbico.
E esse estudo, conscienciosamente exercido ainda pe-
los mais profanos sobre as velharias grandiosas de outros
tempos, verdadeiras inutilidades modernas, a que só a
lenda, a tradição e a historia dão boas cores e óptimos
relevos — facultados a medida exacta da superioridade
da nossa época ; o que não è somenos compensação a
trabalhos de espirito e a fadigas de imaginação.
Parece que a austeridade de S. Lourenço do Escurial
servia de pouco enlevo aos ímpetos juvenis do moç<5
príncipe das Astúrias, que mais tarde se chamou Car-
los IV.
E isto pode-se facilmente suppor, ao perguntar a ra-
zão, que o levaria a mandar edificar as duas casas de
Arriba e de Abajo, conhecidas ambas por Casinos dei
Príncipe, onde não deixaremos de entrar, por serem
cousas recommendadas ao visitante.
A Casa de Arriba, situada n*um alto, ao poente do
mosteiro, entre um pequeno bosque e alguns pedaços
de terreno ajardinado, è um quadrado de pedra berro-
quenha, e só tem uma sala central digna de boa nota.
A Casa de Abajo, começada em 1772, collocada a
oriente do convento, quasi ao fundo do valle, por onde
se estendia a cerca, è uma formosa miniatura, que nos
faz pensar n'uns galanteios mysteriosos, n'uns banque-
tes íntimos, numas noites de prazer incomparável, n'uns
dias de ócio regalado, n'utnas aventuras clandestinas,
364 NOTAS A LÁPIS
rfuma fogosa e dourada mocidade, n'umas tendências
indomáveis para o apuro das artes e para o exercido
de um accehtuado bom gosto.
Uns ligeiros loques a mais. . . e aquella deliciosa mo-
rada seria a fantástica habitação de uma fada, inteira-
mente presa ás fascinações irresistíveis de um príncipe
encantado.
Este notabilissimo e poético rez-do-cbão, que bem se
lhe pode chamar assim, está cercado de jardins, assom-
breados de bellas arvores, matta extensa e frondosa, va-
rias e formosas alamedas, que se estendem, bifurcam,
e serpenteam pelo declive da curiosa montanha.
Do centro, formado por uma olegante torrecilla, par-
tem três braços eguaes para os lados do nascente, poente
e sul, (içando ao norte, em 33 metros de extensão, a fa-
chada, que tem a meio um corpo, sustentado por qua-
tro columnas dóricas estriadas de alto a baixo, emoldu-
rando uma grade de ferro, com adornos dourados, que
serve de portada.
Sobre este, outro corpo com uma porta e duas ja-
nlllas aos lados; entre a parede e as columnas, um pe-
queno espaço ou saguão, e em seguida a entrada, que
dá para uma salinha de espera, com o tecto pintado por
Gomez, as paredes, sanefas e cadeiras com estofos flo-
ridos de tela e desenho eguaes. Ao centro um velador
com taboleiro, trabalhado em relevo pelo chinez Tho
Mir; aos lados jarras e fructeiros pintados a óleo, dois
quadros de Jordan e um de Annibal Caracci.
A sala seguinte, que devia ser a de recepção, tem o
tecto egualmente ornamentado por. Gomez, as paredes,
cortinados e tamboretes cobertos de estofo carmesi, en-
tremeiado de flores brancas, e nove vistas de Arangúez,
pintadas as figuras por Mirandi e os accessorios por
Brambilla.
O gabinete da rainha apresenta o tecto do autor das
salas precedentes, as paredes, assentos e guarnições de
estofo branco, sanefas côr de roza e vinte e cinco qua-
dros, entre os quaes uma pintura em cobre de Rubens,
O BSGURIAL 365
representando a Virgem, S. João e o menino entre anjos,
que coíbem flores, e um anão de Velasquez.
Por estes três compartimentos, se pode ajuizar dos
outros quinze que seguem, todos pequenos, mas por
egual luxuosos e cheios de ricas mobilias, tapeçarias,
objectos de esculptura, telas de Dominiquo, Jordan, Du-
que, Brambilla, Perez, Durero e outros, o Sacrifício de
Isaac, de Rubens, e Duas fabricas, de Goya, formando
um total de mais de duzentos quadros.
Distinguem-se das outras, pela especialidade da sua
construcção, três salinhas, chamadas as Piezas de ma-
deras finas, por serem d'esta qualidade as portas, ja-
nellas e soalhos, onde os embutidos formam um sem
numero de gregas, folhagens, adornos e flores de uma
execução primorosa.
Fechaduras, guarnições e puxadores são de ferro poli-
do e esmaltado de ouro, em certos e determinados pontos.
Duas d'ellas teem os tectos estucados e guarnecidos
de enfeites dourados, devidos a Ferroni, cadeiras e pa-
redes forradas de seda verde, matizada de flores e 23
retratos da familia Bourbon, desde Carlos IV até ao ul-
timo dos filhos varões do infante D. Francisco, na maior
parte pintados por Coma.
O tecto da terceira tem a meio do estuque um cir-
culo, onde se representa Ganimedes, pintado a óleo por
Maella; a mobilia e paredes são forradas de seda azul
listada e os 37 quadros, que a guarnecem, de marfim,
moldurado de ébano.
Os quatro maiores e mais delicados foram executados
em pasta, e figuram os sonhos de Faraó, a filha d 'este
ao tirar Moysés das aguas do Nilo, Susana a sair do ba-
nho e o sa cri fiei o de Isaac.
Sobre uma bel la mesa, uma manga de vidro, cobrindo
outro trabalho de marfim— o primeiro juizo de Salomão
e duas estatuetas de elevado merecimento artistico e do
mesmo material— a figura de um homem nú, meio en-
volto n'uma rede, tendo um génio alaao ao pé de si—
e uma mulher também nua, engrinaldada de flores e
366 M0TA8 Â LÁPIS
coberta com véus transparentes, que lhe deixam perce-
ber as formas.
À escada, que leva ao pequeno andar intermédio, en-
, cimado pelo torreão, é de jaspes; o corrimão de ferro
e bronze dourado. As pinturas da cúpula recordam a
Fama e a Hespanba, segurando nas mãos o pendão rea],
e as das paredes diversas batalhas.
Seria longa a descripção dos quadros, estatuetas, bus-
tos, jarrões, espelhos, objectos de jaspe, madeira e
bronze dourado a fogo, que deixámos de apontar, e que
formam d'aquella pequena casa um grande repositório
de bellas artes, um selecto e custoso museu, que só por
si è bastante para attrair uma extraordinária concorrên-
cia de visitantes, entretendo de sobejo a imaginação dos
curiosos e a investigação dos entendedores.
#
* *
Quando, ao cair da tarde, compendiávamos em resu-
mo as impressões da nossa rápida visita, em direcção
ao caminho de ferro, lançando um substancioso olhar
de despedida para o enorme arcaboiço do mosteiro do
Escurial, que lobrigávamos por entre a ramaria da sua
matta e jardins— pergunta va-nos um compatriota nosso,
em peroração a algumas palavras, que soltáramos :
—Já viu a nossa Mafra ?
—Ainda não.
— Pois procure vel-a, e até lá peço-lhe que suspenda
qualquer juízo definitivo, que tenha a formular sobre a
visita de hoje.
Replicámos com um sorriso incrédulo, mas resolve-
mos tacitamente aguardar a occasião recommendada pa-
ra o complemento d'esse juízo; o que dependia sim-
plesmente de uma digressão até ao lugar, onde se le-
vanta o maior padrão das liberalidades ruinosas de D.
João V, menos desculpável, attenta a differença das épo-
cas, que o seu collega, fundador do Escoriai-
O ESCURIÁL 367
O resultado cTessa visita, que não pretende estabele-
cer confrontos inúteis, nem rivalidades bairristas, mais
escusadas ainda, encontrar-se-ha .em paginas, que vão
adiante, e são, como estas, uns longes de analyse im-
perfeita, impressões de momento, chamadas a preen-
cher uns ócios, subordinados a uma tendência natural.
Nada mais.
368 NOTAS A LÁPIS
UM DIA EM TOLEDO
Noções corographico-historicas. — Uma Alfama em ponto
grande.— A capella de Santa Catalina.— 0 Taller dei Moro.
— Santa Maria La Blanca. — 0 estylo plateresco — A er-
mida £1 Transito. — San Juan de los Reyes.
0 viajante, flue, para suavisar intervallos de uma vida
positiva, trabalhosa e árida, se entregar por vezes ao
romantismo platónico das eras, que foram, fantasiando
sociedades extinctas, fados occultos na obscuridade dos
tempos, interrogando as paredes musgosas das edifica-
ções seculares, arcbitectando e cirzindo na idéa solera-
nidades lendárias, religiões e feitos -das gerações remo-
tas, salvas apenas do esquecimento pelas investigações
da historia, pelas notas fantásticas da tradição e pelas
trovas apaixonadas do cancioneiro popular — n5o deve
deixar, ao ver-se em Madrid, de fazer uma excursão de
romaria devota á antiga capital da província Carpetana,
ao poderoso Toletum, de que nos falia Tito Livio, á cu-
bicada Toleitola dos árabes.
A três boras de Madrid, em caminho de ferro, que
tem o seu entroncamento na estação de Algodor, mos-
tra-se-nos essa reliquia de umas poucas de gerações dif-
ferentes, como coroa de sete pequenos montes, reuni-
dos em grupo e quasi inteiramente cercados pelo Tejo,
UM DIA SM TOLEDO
o famoso e formoso Tejo, que alli passa envergonhado,
anonymo, deixem-nos dizer assim, occultando o seu po-
der e nome n'um leito, só digno de uma ribeira.
As campinas estéreis, que descem até ao rio, e as
numerosas penedias, que as bordam, não conseguem
entristecer o aspecto risonho da pequena cidade, grim-
pada ao ápice da montanha.
* Uma via accidentada e moderna leva-nos, por entre
arvores, desde a estação á ponte mourisca e cTaqui la*
deira acima, até á entrada, onde, lendo passado pelas
ruinas do castello de S. Cervantes, fortaleza do rei cas-
telhano Àlonso VI, deparámos com a Puerta dei Sol,
arco triumpbal de procedência e typo árabes, construido
em fins do século xu, quando florescia o terceiro pe-
ríodo das suas artes.
Antes da ponte — que só por habito vulgar se diz
mourisca, pois é chamada de Alcântara, e foi construída,
em substituição da primitiva, em meado do século xni
— a meio da via arborisada, temos em pedra mutilada
um documento, que nos falia da dominação goda — uma
estatua, em cujo sócco lemos isto:
Wamba rei de los godos ensancho i muro a Toledo,
vendo ai tirano Paulo, que se rebelo contra el en la Gá-
lia Gótica i le troxe en triumfo con sus generales a To-
ledo, donde despues renuncio ai mundo para servir a
Dios en el monasterio de Pampliega.
#
# #
D'onde procede a fundação da antiquíssima cidade?
Não o sabe a historia, não o indicam os monumentos,
porque se referem todos á existência de romanos, que
alli tiveram as suas vias latina e sacra, dos árabes e
mesmo dos judeus, que por alli deixaram também as
suas synagogas.
O que se conta, e sabe é que os romanos, sendo pre-
tor Marco Fulvio, duzentos annos antes da era chrístã,
24
MO NOTAS A LÁPIS
se assenhorearam de Toledo ; que nos princípios do sé-
culo v foram subjugados e substituídos pelos godos, tor-
nando-se então esta cidade a primeira povoação de Hes-
• panha, como capital de vastíssimos estados.
Edificaram-se a antiga catbedral, algumas egrejas e
mosteiros, no decorrer dos tempos.
Vencido o ultimo rei godo, D. Rodrigo, em começos
do século viu, nas margens do rio Guadalete, pelos ára-
bes, vindos da Africa, caiu a cidade em poder (Testes,
que lhe conheceram e conservaram toda a importância
estratégica, convertendo-a em califado, que mais tarde
degenerou em monarchia mais ou menos independente,
pela annexação de algumas províncias visinbas.
Mau grado a intolerância dos costumes mouriscos, foi
consentida a existência do culto cbristão, d'onde nasce-
ram o nome e o ryto mozarabes.
D. Alonso VI, rei de Castella, tomou a peito a con-
quista de Toledo, e conseguiu-a, depois de um cerco
de uns poucos de annos, em 25 de maio de 1085.
Desde então cresceu de importância a cubicada cidade,
tornando-se a corte dos monarcbas castelhanos, até ao
meiado do século xvi, época, em que Filippe II trans-
feriu a sua residência para Madrid.
E ao pensar n'isto, não admira tanto que a corte mo-
derna da devotíssima Hespanba não apresente bons do-
cumentos de edificações religiosas, ao contrario de ou-
tras cidades provincianas, por ser tida até áquelle tempo
como população mediana e secundaria, sendo de crer
que Felippe II, ao começar a grandiosa fabrica do Egcu-
rial, não pensava ainda na transferencia da sua c rte
das margens do Tejo para as tristes ribas do Manzana^es.
Toledo, que em verdade não correspondia, por sua es-
treiteza de proporções, ás exigências da corte hespanh ola,
desceu do seu fastígio, e é hoje uma cidade de terceira
classe, capital de uma província de segunda ordem, com
uma população de 18,000 almas, que habitam 3,000
cazas, entre as quaes se devem contar trinta egrejas e
capellas' e nada menos de doze conventos de freiras 1
CM DIA EM TOLEDO 371
Não é muito difficil dar uma idéa das ruas e edifica-
ções da cidade a quem conheça uma parte da nossa Lis-
boa antiga. Toledo, semeada a espaços de ruínas, mu-
ralhas, castellos, egrejas, mesquitas, miranetes e syna-
gogas, è uma Alfama em ponto grande, com ruas ainda
mais estreitas e tortuosas, segundo o systema de defeza
árabe, declives, escabrosidades e ladeiras, que a tor-
nam verdadeiramente característica, e como tal digna
de attenção.
Á nossa chegada, o dia, que desde manhã se mos-
trara carregado e brusco, começou a desfazer-se em
aguaceiros intervallados e impertinentes. Pois vimos-nos
obrigado a supportal-os de guarda-chuva fechado, ao
atravessar certas ruas, porque o espaço não nos per-
mettia que o abríssemos, parecendo-nos a distancia que
os telhados das casas se uniam uns aos outros.
O que é fácil, em vários pontos, è darem-se os visi-
nhos as mãos, e conversarem a meia voz, como se es-
tivessem senhores do mesmo compartimento.
Curioso, extremamente curioso aquillo!
Deixando de mencionar no nosso itinerário os edifí-
cios modernos e outros de mediana importância, come-
çaremos por entrar na egreja de S. Salvador, levantada
sobre as ruinas de uma mesquita, para ver a capella
de Santa Catalina, edificada em fins do século xv, por
D. Fernando Alvares de Toledo, secretario dos reis ca-
tholicos, em puro gotbico, que a guarnece interior e
exteriormente.
Separa-a da egreja uma bella grade de ferro; o altar
tem três esculpluras apreciáveis, segundo a época; os
lados doze pinturas em madeira e boa obra de talha,
sobresaindo a todas as suas partes o oratório, que ser-
viu de sarcopbago á familia do fundador, pelo seu tecto,
onde se admiram arabescos do mais fino e precioso lavor.
372 NOTAS A LÁPIS
O Taller dei Moro, na roa (Teste nome, representa
os restos mutilados de um palácio musulmano, n'ura
corpo, onde se podem admirar os lavores de puro ára-
be, que dão renome aos alcáceres de Sevilha e Granada.
Passando pela bella portada gothica do conde de Fuen-
salida, perguntaremos pela egreja de Santa Maria la
Blanca.
É uma construcção hebraica do século vn, realisada
em eslylo de transição árabe pelos habitantes do bairro,
que se chamava a Juderia, sem exterioridades dignas
da mais pequena nota. O interior porem, formado por
um quadrilongo, è excellente exemplar d'aquelle género
de edificações; tem cinco naves sustentadas por 28 ar-
cos de ferradura, que se apoiam em pilastras octogonas,
com capitães de estuque lavrado, semelhando a ordem
corínthia. Sobre os arcos, rematados por rosetões de
estuque relevados, elevam-se os muros, que separam
as naves, todos cheios de arabescos, e encimados por
pequenas arcarias, columnadas com peças de óptimo
lavor mourisco.
O tecto é um curioso composto de bellos arte zoes do
pinus larix9 pinheiro roxo dos Alpes, sustentados por
grossos tirantes.
A esta parte, que foi a verdadeira synagoga, acres-
centou a architectura christã outras de importância mui-
to inferior, onde só nos merece attenção um retábulo do
século xvi, muito cheio de entalhes, medalhões, escudos
e estatuetas, apresentando no todo o eslylo plateresco.
A principio julgámos que este modo de ornamentar,
muito usado em Hespanha, caracterisava uma feição na-
cional.
O estylo plateresco porem è arbitrário, na sua mul-
tiplicidade de enfeites, e qualquer artista o pode variar
a seu talante, fantástica e caprichosamente, contra to-
das as regras de arte moderna ou antiga.
Resultam d'aqui, muitas vezes, a monotonia e um
amalgama desgracioso, quando o executor de uma obra
não tem a delicadeza e o bom gosto da inventiva; pri-
UM DIA EM TOLEDO 373
mores e bellezas filhas de uma execução superior, quan-
do o artista obedece aos impulsos creadores e talento-
sos de um génio inspirado.
Perto (Testa egreja, ha uma ermida, chamada El Tran-
sito, que foi outra synagoga, erigida pelo opulento is-
raelita Samuel Levi, thesoureiro de D. Pedro, o cruel,
em 1366.
Pertence, segundo os entendedores, ao terceiro emais
florescente período da arte serracena, á architectura ára-
be andaluza.
É no exterior revestida de ladrilho, interiormente de
estuque alvíssimo, e de uma só nave.
A ornamentação é tão elegante como rica.
Occulto pelo retábulo do altar cbristão, está um gran-
de nicho, onde assentava a cathedra do gran rabbino,
explicador da lei, ao centro do muro oriental, cheio de
tão delicados arabescos, que parecem fina tapeçaria,
taes são os mimos e a variedade da execução. Em am-
bos os lados do altar e a distancia egual, leem-se ins-
cripções hebraicas, que exaltam, e louvam o reinante
D. Pedro, o mandatário da obra Samuel Levi e o seu
executor Rabi Meir, ao mesmo tempo que outros, es-
criptos no friso geral do templo, recordam salmos e
pontos lithurgicos, por entre escudos das armas de Gas-
tei la e Leão e alguns mais guarnecidos de lyrios, que
se cré pertencerem a D. Branca, mulher do monarcha.
Na testeira opposta ao altar, abrem-se três arcos,
cheios de novos caprichos de ornamentação, servindo
de janellas, e por cima do friso lavrado, que circula o
recinto, ergue-se a pequena arcaria, característica d'a~
quelle género de architectura, muito bem dividida, sus-
tentada por columnas de capiteis variados e caprichosos.
Por cima d'este corpo, corre o tecto de madeira egual
á da synagoga visinha, augmentado nas figuras geomé-
tricas, que se emaranham, e ligam, n'uma profusão ad-
mirável a todos os respeitos.
Os cinco altares cbristãos, apezar da structura gothi-
ca do principal, obra atribuída ao fim do século xv e
374 NOTAS A LÁPIS
aos cavalleiros religiosos da ordem de Calatrava, que
tanto figurou nas batalhas contra os mouros— parecem
deslocados alli, onde todo é de género differente e es-
sencialmente característico.
# #
Seguindo pela rua dei Angel, o guia conscencioso fal-
lar-nos-ha em San Juan de los Reyes, edifício monásti-
co, destinado no seu começo para uma collegiata, e da-
do por fim aos frades franciscanos.
Tendo morrido Henrique IV, de Castella, depois de
reconhecer em testamenlo a sua filha D. Joanna, neta
de el-rei D. Duarte, de Portugal, e de contractar o seu
casamento com Affonso V, successor d'este e viuvo de
D. Izabel, surgiram enormes difficuldades, tecidas pelos
reis catholicos Fernando V e sua mulher, que ambicio-
navam a coroa de Castella.
Este consorcio, apezar da falta de dispensa de paren-
tesco e da opposição dos partidários hespanhoes, que
chamavam a D. Joanna a Beltraneja, por a dizerem fi-
lha adulterina de Beltran de la Cueva e não legitima de
D. Henrique, celebrou-se em 1475.
Animado por influencias locaes, pelas promessas dos
grandes de differentes cidades e pelos seus direitos á
coroa castelhana, Affonso V entrou em Hespanha com
vinte e cinco mil homens, mesmo antes cTesse acto,
mas foi desastradamente vencido na batalha de Toro,
cidade a noroeste de Salamanca, nos estados de Leão.
Para celebrar o triumpho, obtido n'essa guerra, fun-
daram Fernando V e sua mulher D. Izabel o edificio de
S. Juan de los Reyes, em Toledo, segundo a direcção e
plano de Juan Guas, que seguiu na construcçâo o esty-
lo gothico florido.
O templo é um quadrilongo desigual de pedra escu-
ra, ou granito berroquenho, no exterior, que tem uma
apparencia graciosa e correcta, apezar das pequenas
ogivas, parapeitos calados, pyramides, estatuas de reis
UM DIA EM TOLEDO 375
de armas, collocadas em misulas e cobertas por balda-
qoinos correspondentes, e outros adornos, que o guar-
necem.
O que desde logo chama a attenção do visitante, pe-
lo effeito extravagante e único em muros de egreja, são
umas cadeias, já bastante damniOcadas pela acção do
tendão, pendentes de vários sitios e em numero considerá-
vel.
Commemoram a conquista de Granada, e pertence-
ram a outros tantos captivos, resgatados alli.
A porta principal, que não é a primitiva aberta em
outro lugar, é lateral e de data mais moderna; foi come-
çada pelo famigerado Àlonso de Cpvarrubias, em 1530,
e concluída no século xvu, não correspondendo por is-
so á elegância e correcção dos adornos interiores.
Consta de um arco entre quatro columnas, remata^
por pyramides cristadas e guarnecido de estatuas, a que
sobresae a do orago, do escudo e iniciaes dos reis fun-
dadores e de mais duas esculpturas lateraes de dois
guerreiros romanos, ao que parecem.
Porta e accessorios são da mesma pedra berroque-
nha, e obedecem á forma mixta do gothico e renascen-
ça, ou meio circulo perfeito.
O interior de uma só nave e pedra branca é muito
valioso, especialmente no cruzeiro, alumiado por sober-
bo zimbório, e ladeado por duas tribunas de riquíssi-
mo lavor, correspondente á ornamentação da capella
gotbica simi-circular e a todos os magestosos ornatos,
que enchem as paredes, guarnições e janellas, duas das
quaes conservam ainda os primitivos vidros de cores.
Os das outras janellas, as bancadas do coro, altares,
retábulos e a bibliotheca foram destruídos no incêndio
de 1809, devido á malvadez dos soldados francezes.
Do templo passa-se ao claustro principal, que lhe cor-
responde inteiramente. É um quadrado de 26 metros
de comprimento, ajardinado ao centro, sustentado por
bellos pilares gothicos e coberto por abobadas, cruzadas
por arestas de pedra, segundo esse estylo.
376 • NOTAS A LÁPIS
As pilastras são guarnecidas até meio de estatuas de
tamanho quasi natural e enriquecidas de custosos rele-
vos, onde figuram folhagens de óptimo lavor, tendo nos
frizos em caracteres gothicos a repetição dos nomes dos
reis e fundadores e o seu elogio.
N'um dos ângulos está a sacristia, gothica lambem
como a sua bellissima portada, e á esquerda d'ella*co-
meça a grande escadaria, que leva ao claustro alto, e
foi executada pelo já dito Covarrubias.
É de estylo plateresco e coberta por bella cúpula de
pedra branca, baseada em corpos com a forma de con-
cha.
Os entalhes apresentam, sustidos por anjos, escudos
de armas dos reis catholicos e de seu filho D. Carlos,
em cujo reinado se fez aquella obra, e alguns floreies
4e bom effeito.
O claustro alto, erguido sobre o principal, é formado
por arcarias gothicas, com balaustres da mesma pedra,
e não nos produz a impressão do primeiro, por ser mais
baixo e menos opulento.
N'uma das habitações, mostra-se-nos a celta do car-
deal Cisneros, primeiro noviço, que tomou o habito da
ordem.
O resto do edificio, escadaria, claustros e sacristia
estão convertidos em museu provincial de pintura e es-
culptura, collecção de pouco vulto, principalmente no
que respeita á ultima parte, mas de summa utilidade.
Representa elle cuidados de louvar, muito sympati-
cos e úteis para a conservação das obras dos estabele-
cimentos devolutos, ao contrario do que se pratica entre
nós, que não temos bons museus, havendo por todo opaiz
tanta cousa abandonada, perdida, e em risco de se perder.
Ainda assim, sendo a collecção de esculpturas insi-
gnificante, encontram-se por lá fragmentos lavrados, mo-
saicos, arabescos, inscripções romanas, lapides sepul-
craes, antiguidades encontradas em ex cavações e obje-
ctos dos conventos supprimidos, que formam boas curio-
sidades archeologicas.
UM DIA EM TOLEDO 377
II
Egrejas de S. Jaan de la Penitencia, Andrés e Miguel. — El
Alcazar. — Ermita dei Cristo de la Los. — Egreja de S.
Thiago. —Hospital de Afnera. — Roinai romanas.— A fa-
brica de armas.
Começando o nosso segundo itenerarío pelo mais im-
portante, por não termos tempo nem cabeça para visi-
tar um grande numero de templos e conventos, entra-
remos, indo pela Plaztiela de D. Fernando, na egreja de
San Juan de la Penitencia, para admirarmos os diffe-
rentes estylos da sua architectura e adornos.
Fundou-a o cardeal Cisneros, em 1514, e ampliou-a
pouco depois o seu companheiro de habito e familiar
D. Francisco Ruiz, bispo de A vila.
O convento comprehende algumas obras, salas e cor-
redores mouriscos, acommodados ao todo do edifício ;
e a egreja tem a portaria e as janellas da capella-mor
gothicas ; os ornatos da nave e os do cruzeiro árabes ;
a cúpula d'este, a grade da capella e a tribuna da en-
trada, da renascença e platerescas; alguns altares e ou-
tros accessorios greco-romanos.
O mais singular é que todo este mixto de formas e
ornatos está bem combiaado, e não offende o conjuncto.
Os retábulos obedecem á amalgama geral, e são no-
táveis pelos painéis e esculpturas, que seria longo des-
crever.
A cousa mais custosa, que lá se encontra, é o tumu-
lo do refundidor, D. Francisco Ruiz, fallecido em 1528,
segundo oepitaphio; é de mármore branco, e tem ao
fundo um altar com grande retábulo, que occupa o lado
378 NOTAS A LÁPIS
do Evangelho. Sobre a urna funerária, avulta a estatua
jacente do bispo, cercado por um grande numero de
outras estatuas, bustos, medalhões relevados, anjos e
demais ornatos análogos, formando um todo opulento
e verdadeiramente curioso.
As egrejas de San Andrés e de San Miguel conser-
vam pronunciados resaibos da edificação mourisca ; a
primeira nas abobadas e muros das duas capetlas, que
estão nos extremos das pequenas naves, e a segunda
nos tectos, naves, torre e claustro.
Saindo d'esta ultima egreja, veremos na sua frente,
no numero 10 da rua do mesmo nome, alguns fragmen-
tos árabes e gothicos, e indo á Plazuela dei Seco e to-
mando á direita pela calle de la Soledad. no numero 13,
podemos admirar o portal e o pateo d'essa edificação, que
foi hospedaria de templários, e que apresenta nas vigas e
nos tectos um grande numero de inscripções mouriscas.
El Alcazar, que nos fica perto, num dos pontos mais
elevados da cidade, é um lugar de vastíssimas recorda-
ções históricas, e um dos edifícios que mais soffreram
as vicissitudes de conquistas e reconquistas, invasões e
assédios, durante um largo período de séculos.
Os romanos tiveram alli uma fortaleza, que os godos
e os árabes conservaram egualmente. Àlonso, ou Affon-
so VI, o rei de Castella e reconquistador de Toledo,
reconheceu logo á entrada, em 1085, que a ampliação
d'aquelle baluarte faria conter em respeito a população,
composta ainda em grande parte dos mouros, que ha-
viam capitulado ; constituiu o em cidadella fortificada,
dando-lhe maior extensão e segurança, e entregou o seu
commando ao vencedor de tantos reis mouros, ao gran-
' de heroe da época, Ruy Diaz de Vivar, o Cid Campea-
dor, que só com os seus vassalos e amigos fez nume-
rosas conquistas, e praticou desmedidas façanhas, onde
entrava a rendição da própria Toledo.
De augmento em augmento, de mudança em mudan-
ça, El Alcazar tornou-se moradia principesca, no tempo
dos reis catholicos, e foi completamente reformado por
UM DIA. EM TOLEDO 379
seu filho Carlos V, e acrescentado ainda, mais tarde,
por Felippe II, o monarcha de ambos mundos.
Na celebre guerra da successão,* movida ao chefe da
casa bourbonica, Felippe V, pelo archiduque de. Áus-
tria, D. Carlos, as tropas adiadas, compostas de aus-
tríacos, inglezes, allemães, hollr.ndezes e portuguezes,
ao occuparem a cidade, em 1710, incendiaram o Alca-
zar, destruindo quasi por inteiro aquelle riquíssimo
acervo de artes diversas e custosas.
Restaurado pelo cardeal de Lorenza, a quem o cede-
ra Carlos III para hospício de caridade, foi novamente
incendiado, em 1810, pelos soldados francezes, esca-
pando d'este novo desastre apenas as muralhas e pare-
des, arcarias do pateo, alguns salões do primeiro pavi-
mento, abobadas e cavalhariças, ruínas venerandas, que
ainda hoje alli se admiram.
O edifício è quadrado ; cada fachada é de differente
época, acabando em torreões. A do norte, é plateresca:
o portal da direcção de Covarrubias é um grande arco
entre columnas jónicas, que sustentam o cornijamento,
onde se lê o nome do imperador Carlos V e a data de
1551, e onde se apoia o segundo corpo, composto de
bellas esculpturas, representando um volumoso escudo
das armas reaes, as columnas de Hercules e dois arau-
tos; aos lados da portada, erguem-se sobre grandes
pedestaes as estatuas gigantescas dos reis godos Ren-
cesvinto e Chindasvinto.
A fachada opposta, ou do sul, é de Juan Herrera, e
data de 1571 ; mostra quatro pavimentos; é de pedm
berroquenha, de ordem dórica e a menos interessante.
A do occidente suppõe-se do século xv, época de João
II e de Fernando e Izabel, pois deve-se também a Co-
varrubias. O estylo é renascença, e o portal, cheio de
abundantes e óptimos relevos, plateresco.
A do oriente é de Carlos V; apresenta o aspecto de um
castello com duas fortes muralhas e torreões centraes re-
dondos, que fazem jogo com as torres quadradas dos
extremos.
380 NOTAS A LÁPIS
No interior, apezar dos destroços produzidos pelo
vandaiico incêndio dos francezes, ha ainda arcarias, es-
cadas, salas, abobadas, pilastras, tribunas e objectos,
que nos fazem remontar, em imaginação, a épocas di-
versas, alinhando diante de nós muitas sociedades dis-
tinctas, com os seus dias de luta, riquezas, esplendo-
res, gozos e alegrias, de que nos faliam todas aquellas
ruinas, que estão a cargo do Colégio de Cadetes, e po-
diam ainda ser arrancadas ao simples domínio da ar-
cbeologia, pelo aproveitamento e restauração, de que
são dignas.
. *
* *
Continuando, pela estreiteza do tempo e pelas diffi-
culdades de introducção, inberentes ao visitante apres-
sado, entregue por necessidade inadiável ao primeiro
guia officioso, que lhe offereceu os seus serviços, a com-
memorar em traços rápidos o que de mais importante
nos feriu a attenção, principiaremos o nosso terceiro
itinerário descendo á Ermita dei Cristo de la Luz, uma
das boas antiguidades, que Toledo nos offerece em lar-
ga copia.
Divergem as opiniões acerca da época da sua edifi-
cação, inclinando- se a maior parte d'ellas a remontal-a
ao tempo dos godos, dizendo que continuou a ser egreja
christã, durapte a dominação dos árabes, até que mais
tarde foi reconstruída e ampliada.
* O caso é que Affonso VI, ao fazer em 25 de maio de
1085 a sua entrada triumphal em Toledo pela antiga
porta de Visagra, como fosse este pequeno templo o
primeiro, que encontrou, mandou alli celebrar missa,
acto continuo, pelo abbade de Sahagun, D. Bernardo,
e, em memoria d'este facto, depositou no altar o seu
escudo, que se vê suspenso do arco, que divide o corpo
da ermida da capella-mór, acompanhado da respectiva
inscripção. É uma peça de madeira com uma simpies
cruz branca, em campo vermelho.
UM DIA BM TOLEDO 381
0 pequeno edifício pode dividir-se em duas partes.
A primeira, mais antiga e importante, é o corpo da er-
mida, quadrado, contendo seis pequenas naves, que se
cruzam a três e três em direcção opposta, formando
nove abobadas differentes, de um bello effeito, susten-
tadas por arcos toscos de ferradura, que se apoiam em
quatro columnas ainda mais toscas, cujos capiteis, no
dizer dos entendidos, são restos innegaveis da edifica-
ção primitiva e goda.
Sobre este corpo levanta-se outro de pequeninas ar-
carias duplas sobre columnatas semelhantes ás debaixo.
O eslylo geral è arabe-bysantino, ou do período an-
tecedente ao da transição da arte mourisca, quando esta
descurou a sua verdadeira originalidade.
A segunda parte tfu acrescentamento é árabe também,
incluindo o ábside, onde está o altar do Gbristo da Cruz
e da Virgem da Luz, verdadeiro nome da ermida.
As imagens e o retábulo não correspondem ao typo
notável (Taquella interessantíssima e curiosa antigalha.
Continuando a descer para o arrebalde mais extenso,
logo em começo poderemos ver a egreja de S. Thiago,
reconstruída em 1247, segundo uns pelos cavalleiros
d'este titulo, ajudados por D. Sancho II, de Portugal;
segundo outros, por este próprio monarcha, durante o
período dos dois annos, que passou em Toledo, em
exercícios religiosos, para esquecer os muitos desgos-
tos da sua vida.
A construcção é puramente árabe, interna e externa-
mente, inclusive a torre e uma peça de abundantissimp
merecimento artístico, o púlpito, onde pregou S. Vicente
Ferrer, cuja estatua, em hábitos de dominico, lá se en-
contra com um crucifixo na mão direita. O interior, onde
deparámos com lapides sepnlchraes antiquíssimas, está
bastante desfigurado pelas reparações bastardas de mau
gosto e época moderna.
Deitando uma vista de olhos para a moderna e para
a antiga porta de Visagra, que data dos fins do século
ix, quando florescia o primeiro período de architectura
NOTAS A LÁPIS
árabe, chegaremos ao hospital de Afuera, ou de San
Juan Bautisía, grandioso edifício incompleto, fundado
em 1540 pelo cardeal arcebispo, D. João Tavera, rei-
nando o imperador Carlos V, ou I de Hespanha.
A planta è quadrada, e forma quatro paleos com uma
egreja ao centro. A entrada a meio da fachada meridio-
nal, è insignificante; a abobada recta do vestíbulo tem
merecimento. D'aqui passa-se ás extremas galerias, que
dividem os dois pateos principaes, á direita e á esquer-
da, em duas ordens, alta e baixa, sendo a primeira dó-
rica e a segunda jónica, e produzindo um sumptuoso
golpe de vista.
 roda (festas galerias, estendem-se as enfermarias
e todos os mais compartimentos existentes.
A egreja é sem duvida a parte mais notável e uma
das melhores, que possue a cidade. A sua architectura
é dórica, mas a portada principal è um primor da arte,
executada em bello mármore de carrara pelo insigne
Alonso de Berruguete, pois parece na sua simplicidade
e pureza um trabalho moldado em cera; e o interior,
uma cruz latina, é amplo, formoso e harmónico, com a
sua grande nave, o seu pavimento de mármores branco
e preto, o seu altíssimo lauternim e os seus altares jó-
nicos e corinthios, guarnecido de estatuas.
Ao centro do cruzeiro, avulta o objecto mais interes-
sante do edifício, o tumulo do fundador, a ultima obra
de Berruguete, feito em mármore de Itália, com tal pro-
fusão de ornatos, desde a estatua jacente até á mais pe-
guena parte do monumento funerário, que a sua descri-
pção completa, mesmo tomada pela rama, seria difficili-
ma para quem, como nós, dispõe de um tempo tão curto.
#
# #
Descendo, por detraz do quartel de S. Lazaro, á ex-
planada de la Vega, a via sacra dos romanos, se bem
nos lembrámos, onde se admiram ainda as ruinas do
UM DIA EM TOLEDO 383
Circo Máximo, da Naumáchia, ou circo de jogos na-
vaes, e do templo de Hercules — iremos á celebrada Fa-
brica de Espadas, onde poderemos adquirir como re-
cuerdo um alfinete, um punhal, um canivete esmaltado,
polido ou burilado, entre os muitos e delicadíssimos
productos d'aquelle importantíssimo estabelecimento na-
cional, appenso á direcção do corpo de artilberia.
O edifício, que data de Carlos 111, não tem bellezas
artísticas, e está collocado na margem direita do Tejo,
cujas aguas lhe formam os elementos principaes da sua
força motriz.
È um vastíssimo conjuncto de construcções irregula-
res e officinas, onde trabalham artistas de uma capaci-
dade superior e característica, verdadeiros sustentáculos
da fama universal, tributada á especialidade das armas
brancas, fabricadas n'aquelle lugar, que tem adquirido
uma incontestável celebridade.
Aqui temos nós os recuerdos, que alcançámos — uma
pequena navalha burilada, um pequeno florete esmal-
tado e um alfinete para gravata, em forma de alfange,
que não cessámos de admirar pelos arabescos, que con-
teem e pela perfeição, que os torna em jóias de fino
ouro, quanto ao custo, e em preciosidades, quanto ao
valor estimativo.
Quando Toledo não fosse por si um attraente valio-
síssimo, como antiguidade opulenta e pittoresca, bastar-
lhe-ia, para ser procurada, o possuir aquelle patriótico
exemplar de uma industria tão bem caracterisada e tão
perfeita.
384 NOTAS A LÁPIS
III
A CathedraL— O que diz a tradição histórica.
O exterior. — O interior onde se abrigam Tinte e seis
capeUai ! — Ponto final.
Muito de propósito, deixámos para o Gnal das nossas
indicações, a referencia ao primeiro e principal dos mo-
numentos toledanos, ao mais volumoso de todos elles,
pela sua forma, pelos seus ornamentos, historia varia e
differenças de época; uma creação gigantesca, difficil de
conceber de um só jacto, como o altestam as obras de
tantos e tão diversos executores; uma monstruosidade,
no mixto de estylos e objectos, divisões e acrescenta?
mentos, que precisariam de um grosso volume para uma
descripção completa, do que Deus se sirva livrar-nos ao
leitor e a nós.
O que dissermos, ainda assim, com ser relativamente
pouco, pela sequidão do assumpto, só è dedicado aos
devotos do género.
Referimos-nos á Cathedral, uma das mais notáveis
em todo o mundo catbolico, collocada no coração da ci-
dade, em espaço, que occupará uns nove mil metrcRfqoa-
arados, pelo que respeita ao corpo central, sem contar
a superfície das suas vinte e seis capellas, sacristia, sala
do capitulo, tbesouraria, claustros e restantes divisões,
que a circundam, alargam e completaml
Diz a tradição que, já no tempo dos godos, havia
n'aquelle lugar uma pequena egreja, convertida mais
tarde pelos árabes em mesquita-mór, feitos os alarga-
mentos necessários, segundo uma inscripção, encontrada
no parapeito de um poço de aguas fluviaes, existente
UM DIA EM TOLEDO 385
no ex-convento dos dominicos de S. Pedro, martyr, com
a data de 1045.
Quarenta annos mais tarde, Àlonso VI conquistava To-
ledo, e os mouros nos ajustes da capitulação reserva-
ram para as suas praticas religiosas a mesquita-mór,
que alguns mezes depois, na ausência do monarcha, foi
tomada de assalto pelos christãos, e acommodada ao
seu culto, por acordo entre a rainha e o arcebispo
D. Bernardo.
Mais tarde, o conquistador de Sevilha, rei de Cas-
tella e Leão, D. Fernando III, o santo, ainda por con-
selho de outro arcebispo, D. Rodrigo Jimenez de Rada,
pensou em deitar abaixo a construcção godo-arabe, e
edificar um templo sumptuoso, que desse ao mundo
catholico perfeita demonstração da sua fé e magnificên-
cia; o que se executou, assentando-se a primeira pe-
dra da cathedral, com as maiores pompas e ceremonial
da época, em 14 de agosto de 1227, sendo o archite-
cto Pedro Peres.
Tamanha foi a grandeza da obra encetada, que se gas-
taram 266 annos nos seus trabalhos, até ao fecho das
ultimas abobadas, não contando ainda algumas capellas,
portadas e muitos compartimentos, que se fizeram pos-
teriormente.
Foi isto em janeiro de 1493, governando Fernando
a Isabel, os catholicos introductores da inquisição e os
engratos conspurcadores das glorias de Colombo, a quem
deram auxilio no começo dos seus era prehendi mentos,
e aviltaram por fim, como tão próprio era dos costumes
de então.
#
# #
À architectura d'este soberbo edificio, cujo aspecto é
prejudicado pelo terreno baixo, cercado de ruas estrei-
tas e agglomeração de casas visinhas, pertence ao gé-
nero gotbico; a planta é quadrilonga, arredondada na
trazeira, parallela á frente ; o exterior de granito berro-
25
386 NOTAS A LÁPIS
quenho, e o interior de cantaria branca, arrancada das
pedreiras Olihuelas, a duas léguas da cidade.
A frontaria principal, chamada La fachada delPerdon,
está voltada para o occidente e para um pequeno largo ;
tem nos extremos, de um lado a torre e do outro a cú-
pula da capella mozarabe, correndo entre estes dois cor-
pos salientes uma gradaria- de ferro, sustentada por pi-
lastras com jarrões, a fechar o átrio, para onde abrem
três portas — a central ou dei Perdon e as lateraes de
los Escribanos, á direita, e de la torre, á esquerda, com-
postas de três arcos de pedra branca, cheios de laça-
rias, folhagens, estatuetas e grande collecção de anjos,
cabeças de santos e reis nas arcbivoltas, distinguindo-se
sobre a do centro um baixo relevo da Virgem no acto
de pór a casula a S. Ildefonso, na da direita o Juizo
Final e na outra estrellões com rostos e cabeças.
O segundo corpo da frontaria compõe-se de peque-
nas arcarias a emoldurar estatuas de santos, tendo ao
centro um troço de architectura com a representação da
Ceia em figuras superiores ao tamanho natural ; o ter-
ceiro tem a meio um grande arco, partido por um pi-
lar, que leva a luz a um rosetão envidraçado e interior
ou clarabóia, que entesta com a nave central, coroan-
do-o um varandim de pedra, onde se ostenta a estatua
collossal da Religião.
Obedecendo ao género gothico todas as partes, que
deixámos apontadas, as galerias greco-romanas de or-
dem jónica, que completam o ultimo corpo, aos lados
d'essa estatua, são de um mau gosto transcendente, por
absurdas e inharmonicas.
A fachada meridional apresenta a porta hiena de pouca
importância relativa, com o seu feitio do género das
mencionadas galerias, cornijamento triangular, apoiado
em duas grandes columnas, e La puerta de los lionês,
que forma assumpto curioso e pouco vulgar.
Como corpo saliente, seis columnas de mármore in-
teiriço sustentam uma vergaria de ferro e outros tantos
leões,* segurando escudos de armas ; segue-se um grande
UM DIA EM TOLEDO 387
arco de género gothico, tendo aos lados, por cima e Da
archivolta adornos, relevos numerosos e estatuas cober-
tas por baldaquinos ; no fundo, que forma abobada ares-
tada, um grupo de esculpturas, commemorando a As-
sumpção de N. Senhora; e no alto, como remate, me-
dalhões com bustos em alto relevo e novas figuras, a
que succede um frontão encimado pela estatua gigan-
tesca de S. Agostinho.
O todo é tão complicado como imponente.
Torneando as doas fachadas restantes, encontraremos
La puerta dei Réloj, mais antiga que as precedentes,
arcada gotbica, com acrescentamentos bastardos de me-
diana importância, e La portada de santa Catalina, ogi-
va ainda de data anterior, século xiv, dividida em duas
entradas por uma columna, cujo capitel representa em
baixo relevo o acto dos anjos ao sepultar o corpo da
santa, que figura em effigie no alto da columna. Sobre
a verga da porta, admira-se uma bella pintura de Luiz
Velasco, representando a Annunciação de N. Senhora.
* Segue-se depois La portada de la Presentacion, que,
sem apparatos de grandeza, se pode considerar a mais
formosa.
É de pedra branca e gosto plateresco, extraordinaria-
mente florido, e data de 1565.'
Consta de um arco encravado n'um composto de pi-
lastras, frisos, cornijamento e remate triangular, semea-
do inteiramente de minuciosos relevos, desde a base
alé á cúspide, e decorado com estatuas, medalhões e
escudos, apresentando no fecho do arco um oval, onde
em meio relevo se vê o Mysterio da apresentação da
Virgem.
E já que estamos aqui, antes de entrar no templo,
poderemos dar uma volta de olhos aos claustros, fechan-
do assim o nosso passeio quadrangular, á volta do gran-
de corpo central.
O Claustro bajo occupa o lugar, que os judeus cha-
mavam Alcana, utilisando-o para o seu mercado; tem
quatro galerias de granito escuro, ou berroquenho, for-
388 NOTAS A LÁPIS
madas por arcarias gotbicas, e nas paredes grande va-
riedade de frescos damnificados pela humidade.
A cousa mais valiosa, que lá se encontra, é para o
antiquário um padrão histórico, achado n'uma escava-
ção de 1591, mandado collocar num pedestal, a meio
dà galeria oriental. Consta de uma pedra cylindrica de
mármore branco, com uma inscripção em caracteres la-
tinos do século vi, que se refere á consagração da egre-
ja á Virgem Maria em 12 de abril do anno 587, primei-
ro do reinado de Recaredo, que foi cognominado o ca-
íholico pelos wisigodos.
Deixando de referir-nos ao Claustro alto, por mes-
quinho, á sala capitular, para onde se entra por uma
portada gothica, que está na frente do padrão histórico,-
á bibliotheca, e á sala dos gigantones, umas figuras gro-
tescas de dez metros de altura, vestidas de seda antiga,
que em épocas passadas abrilhantaram a procissão de
Corpus Christi — penetraremos na capiUa de S. Bios,
que fica n'um angulo do claustro baixo.
A sua bella porta gothica tem todos os resaltos das
archivoltas do arco, capiteis e mais adornos dourados,
e por cima ainda a Assumpção de N. Senhora em es-
culpturas de tamanho pouco inferior ao natural.
O interior obedece ao mesmo estylo, mostra-nos três
altares com retábulos pintados, havendo no principal
uma estatua da Virgem coroada, feita de pedra inteiriça
e pintada, e guarda em urnas de mármore, sustidas por
leões, as cinzas do bispo fundador D. Pedro Tenório,
fallecido em 1399 e as do seu capellão, cujas estatuas
jacentes, vestidas de pontifical, descançam sobre as urnas.
#
* *
Passemos ao interior do magestoso e vastíssimo templo.
São cinco as naves; a maior e central mede 38 me-
tros de altura; as lateraes descem gradualmente, servin-
do de apoio umas ás outras, e sustentando o todo con-
UM DIA EM TOLEDO
sideravel de 72 abobadas de tamanhos differentes, sobre
88 grupos de pilares, ou molhos de columnatas, que va-
riam de oito a dezeseis, com bases e capiteis adornados.
Dos pilares arrancam os arcos ogivaes, d'onde par-
tem as numerosíssimas arestas, que fortalecem as abo-
badas, e se cruzam em todas as direcções.
Um xadrez de mármores brancos e azulados forma o
pavimento; a luz é destribuida por 750 janellas de diffe-
rente estylo gothico, onde entram três enormes e exqui-
sitos rosetões, collocados um no topo da nave central,
á entrada e os dois nos extremos do cruzeiro. Todos os
vidros são pintados a fogo, e representam em quadros
sacros o trabalho de umas poucas de gerações de artistas.
Nos quarenta intercolumnios das ultimas naves late-
raes e no topo da egreja, ha vinte e três capellas, gra-
deadas de ferro lavrado, varias portas e a communica-
ção para a escadaria do palácio arcebispal, construído
á esquerda do edifício, junto aos claustros.
No centro figura a capella-mór, ou presbitério, como
lá se chama, e o coro dos prebendados, defrontando-se
ambos, completamente despegados das outras partes,
segundo o commum das catbedraes gothicas, e separa-
dos pelo espaçoso cruzeiro, que vae de norte a sul.
Tal é o aspecto geral.
Começando por partes, notaremos que as portadas ex-
teriores são objectos novos, observados pelo lado interior.
A central daí frontaria, a dei Perdon já dita, é dividi-
da em duas metades, fechando com madeira chapeada
de metal, e tem nos ângulos estatuas de profetas; no
segundo corpo, uns arcos duplos com a vidraria pinta-
da a fogo; no remate, o grande rosetão ou transparente
de cristal do mesmo género; e aos lados, sobre peanhas
de mármore preto e branco, um quadro de S. José e
outro da Puríssima Conceição.
As duas portas lateraes são simples, e mostram-nos
pinturas e inscripções commemorativas.
Caminhando á direita temos :
A Capilla Muzárabe, chamada assim, porque alli se
390 KOTAS A LÁPIS
celebraram, e celebram ainda hoje diariamente os offi-
eios divinos e a missa, segundo o rito dos godos, con-
servado pelos christãos, que viveram sob a dominação
dos mouros, e que se denominam por isso mozarabes.
Esta capella foi ampliada, em 1519, por compra e or-
dem do cardeal Cisneros, e a cúpula terminada, em 1626,
por um filho do pintor Dominico Greco. O arco da en-
trada, fechado por grade, é plateresco, e gothico o nicho
que se lbe sobrepõe com a esculptura de N. Senhora da
Piedade. Tem um só altar, magnifico pelo mosaico, que
occupa o intercojumnio do retábulo, e representa a Vir-
gem com o menino, em attilude de ferir o dragão infer-
nal, que lbe estrebuxa aos pés.
Esta riquíssima obra, que nos fez recordar dos pre-
ciosos mosaicos da nossa capella de S. João Baptista, e
parece delicadíssima pintura a óleo, foi, como estes,
comprado em Roma, em 1794, pelo cardeal Lorenzana,
por mais de dezoito contos de réis, ou 400,000 reates.
Sobre o retábulo, avulta um crucifixo, feito de uma
só raiz de funcho arbóreo, trazida da America pelo do-
minico frei Gabriel de Villafane, em 1590.
O fresco, que enche o occo do arco fronteiro ao da
entrada, commemora alguns epysodios da conquista de
Oran, na Argélia, ordenada em 1509 por Cisneros; fal-
ta-Ibe perspectiva, mas sobra-lbe a verdade dos trajes,
armas e maneira de batalhar da época.
#
# #
Observadas as cousas principaes (festa capella, abri-
mos um parenthesis para os curiosos, que desejem sa-
ber as differenças, que existem entre a celebração das
missas romana e mozarabe, respigadas de envolta com
outros apontamentos do Toledo á la mano, obra moder-
na, folhuda, milagreira e massuda do mui conspícuo e
devoto senhor D. Sixto Parro.
Move-nos a isso o praticarem se ainda em Toledo,
UM DIA. Hl TOLEDO 391
como já dissemos, os exercícios do rito godo; o que é
especial e característico.
Vejamos as differenças.
O celebrante, depois da confissão e preces prelimi-
nares, logo que sobe ao altar, desprega os corporaes,
examina a hóstia, deita agua e vinho no cálix, e cobre- o.
Antes da epistola, ha uma profecia; entre ambas can-
ta-se um responsorio; a aleluia segue-se ao evangelho,
o credo á consagração, tendo o sacerdote a hóstia elevada
sobre o cálix, e collocando-a sempre sobre a patena e
nunca sobre os corporaes, antes e depois de consagrada.
Antecedendo o prefacio e depois do offertorio, cantam-
se varias orações, e dá-se a paz. Os prefácios são sem*
pre largos, ao passo que o cânone é sempre curto.
O cálix, ao elevar-se, está coberto; a fracção da hós-
tia faz-se em nove partículas, que se collocam em cruz
sobre a patena, representando cada uma um mysterio
do Senhor.
O Pater Noster é cantado ou resado, dividido nas
suas sete petições, á maior parte das quaes o coro res-
ponde—4roen, assim como ás três da benção, que é
recebida de joelhos pelo povo, para quem o celebrante
se não volta, e se segue logo depois da immersão da
nova partícula da hóstia dentro do cálix, que se faz ter-
minado o Pater Noster.
O memento pelos defuntos faz-se, tendo o padre a oi-
tava partícula da hóstia sobre o cálix, depois da benção,
e o dos vivos, antes do Pater.
A missa não tem o evangelho ultimo, termina com
uma frase equivalente ao ite missa est; o sacerdote ajoe-
lha depois, resa a salve, levanta-se, volta-se para o po-
vo, e dá-lhe a benção.
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♦ #■
Continuando o nosso passeio ao longo da nave late-
ral, veremos:
A Capilla de la Epifania, ou adoração dos Magos.
392 MOTAS A LAFfS
Século xv, altar de gothico puro, pintoras em madei-
ra, estatuas de mármore pintado.
Capilla de la Concepcion. Século, género e semelhan-
ça eguaes, melhores pinturas, sepulcro e estatua jacente
de bello alabastro.
Capilla de San Martin. Século e arcbitectura eguaes,
lavores e filetes dourados, retábulo plateresco, compos-
to de. quadros em madeira, nichos do mesmo estylo,
sarcopbagos e bustos excellentes dos fundadores.
Capilla de San Eugénio. Século xiii, restaurada mais
tarde, segundo se lé n'um tumulo plateresco, adornado
de estatua em pontifical, e trabalhado em custoso ala-
bastro»
Em seguimento d'esta capella, temos a architectura
interior da Puerta de Leonês, menos a p par a tosa, mas
sem duvida mais delicada e bella, vista (Teste lado.
Um arco magestoso é dividido a meio por um pilar
gothico, que estabelece dois batentes com almofadas e
talha admiráveis. Sobre a verga um medalhão semicir-
cular, mostrando em meio relevo a arvore geneologica da
Virgem, rematada pela sua imagem com o menino nos
braços, e na ramagem os patriarchas, seus progenitores.
Mais acima, no centro de quatro columnas balaus-
tradas onde sobresaem duas estatuas de profetas, um
novo medalhão com a coroação da Senhora; depois um
friso geral de estylo plateresco, com varanda, que ser-
ve de peitoril a um excel lente órgão, alumiado no alto
por um grande rosetão de vidros coloridos.
Á direita d'esta porta, está uma urna funerária, no
meio de esculpturas e ornamentação gothicas, sem ins-
cripção nem distinctivo; pelo que se suppõe estar va-
sia; e ao lado esquerdo a sepultura do cónego D. Àlon-
so de Rojas, com muitos relevos, um resguardo de ferro
e a sua estatua ajoelhada.
Rodeando ao fundo do cruzeiro, passámos por uma
caixa, chapeada de bronze e cheia de baixos relevos go-
thicos, destinada n'outros tempos ás esmolas, vemos
pinturas diversas» bustos e medalhões, e entrámos na :
UM WA EM TOLEDO 993
Capilla de S. Lúcia, gothica, pequena e muito anti-
ga; epitapbios do século xm, altar de mármore, retábu-
lo pintado entre molduras da mesma pedra.
Capilla de Reyes Viejos, vasta, clara e ogival. Funda-
da em 1290 pelo arcebispo Palomeque, para si e seus
parentes, serviu até 1498 para este effeito. Adquirida
então por D. Sancho, o bravo, os sepulcros foram mu-
dados para a anterior, ou de S. Lúcia, e os escudos de
familia substituídos pelas armas reaes. Tem altares pia-
terescos, coro e sacristia, que fica por detraz do altar-
mor.
Capilla de S. Anna. Pequena e escura, com retábu-
los relevados e a estatua ajoelhada do cónego, seu res-
taurador.
Capilla de S. Juan Bautista. Século xm. No muro
fronteiro, ha um nicho com uma cruz de ébano e ima-
gem de marfim sobre peanha de bronze, onde sobre-
saem as imagens da Virgem e S. João evangelista, ao
pé de três anjos, que recolhem em vasos o sangue que
escorre das chagas do Salvador. É uma obra de arte de
bom cunho e mérito e o objecto mais valioso, que lá se
encontra.
Capilla de San Gil. Greco-romana, pequena e rica,
restaurada em 1573. Altar e retábulo de calcareos de
cores, abobada pintada a fresco, estatuas e medalhões
apreciáveis.
Capilla de la Trinidad. Encontra-se, passada a cabe-
ceira semicircular da egreja; foi reformada em 1522, e
tem o sepulcro do restaurador.
Capilla de San Ildefonso. Muito interessante na sua
decoração, verdadeiro pantheon de vários personagens.
No exterior, pilares funerários com medalhões, a formar
um portÍ60 com abobada pintada a fresco; no interior,
estylo gothico e planta octogona, altar moderno de már-
mores, jaspes, bronze e ordem corinthia. As duas co-
lumnas, que o guarnecem teem caneluras, capiteis e pe-
destaes de bronze, e o retábulo, em meio relevo, re-
presenta a Virgem no acto de pôr a cazula ao santo.
394 NOTAS A LAfIS
Ao centro e aos lados, túmulos e estatuas dos séculos
xiv e xv.
Gapilla de San Tiago. Fundada em 1435 no lugar on-
de já existira outra pelo afamado D. Álvaro de Lona,
gran-mestre da Ordem, e destinada para seu enterra-
mento, tem a forma octogona, primorosos entalhes, la-
vores gothicos e três altares. No principal, figuram a
esculptura do santo e pinturas, onde se vêem os retra-
tos do fundador e de sua mulher; por cima do retábu-
lo um grande meio relevo do apostolo, patrono da Hes-
panba, no devoto entretenimento de matar mouros ! Os
seis túmulos cTeste recinto são luxuosos, especialmente
os dois do centro, pertencentes aos fundadores, cujo
chefe veste armadura completa e manto da ordem de
S. Tbiago.
Capilla de Reyes Nuevos, nome que a distingue da
dos reis velhos, já dita. Foi erigida em outro lugar por
Henrique II, em 1374, mudada para alli e ampliada no
tempo de Carlos V, sendo Covarrubias encarregado da
obra. Ê do mais elegante e florido género plateresco,
tendo a entrada em arco, ladeado por dois reis de ar-
mas com maças, átrio, uma nave dividida em três abo-
badas por arcos, coalhados de molduras douradas e re-
levos, e órgão que mostra por cima um estandarte en-
rolado e uma armadura completa. Confundindo-se entre
si muitas insígnias christãs e mouriscas, ha duvidas so-
bre a procedência «Testes objectos históricos. Dizem uns
que o estandarte foi tomado aos portuguezes na batalha
de Toro, em 1476, e que a armadura pertenceu ao por*
ta-bandeira D. Duarte de Almeida; outros que datam de
1340, e foram tomados na refrega de Benamarin, ou do
Salado, ao príncipe sarraceno Abuc-Melic.
O altar-mor é de mármore branco; os túmulos de reis
e rainhas são os primitivos, e apresentam estatuas ajoe-
lhadas e jacentes; as alfaias são numerosas, e servem
para outras capellas.
Capilla de S. Leocadia. É uma das contemporâneas
do templo, e foi restaurada pelo cónego D. Juan de Ri-
UM DIA EM TOLEDO
vera, que lá jaz desde 1539, em companhia de outro.
A sua particularidade essencial está na pintura do altar»
que, representando a santa em corpo inteiro e tamanho
natural, e sendo boa, foi executada em 1786 por Ra-
mon Seiro, homem aleijado de ambas as mãos.
Capilla dei Cristo de la columna. Simples e insigni-
ficante, com as suas estatuas, altar e retábulo de pedra
pintada.
A este espaço segue-se a porta da sacristia, onde não
entraremos agora, apezar da monotonia que nos cerca,
pela visita continuada de capella em capella, propósito
um tanto fastidioso, mas necessário á ordem dos nossos
apontamentos, que nos não enfadam.
Outro tanto não dirá o leitor, cuja paciência invocá-
mos para o seguimento que vae em resumo, talvez sec-
co em demasia como até aqui, porque nos limitámos a
apontar o que melhor nos pareceu, e não a descrever ;
do que Deus se sirva livrar-nos.
Deixando a porta, que tem as umbreiras e a verga
de mármore preto e, como remate, um áttico com le-
treiros de alabastro, entraremos na :
Capilla de la Virgen dei Sacrário, precedida de dois
pilares despegados com pinturas e medalhões. Chama-se
na obra já citada o principaltsimo departamento de la
catedral, porque em verdade occupa o espaço de uma
egreja com suas dependências, divididas assim — as ca-
pellas da Virgem e de S. Marina, o sacrário ou Ochavo,
a sacristia, a sua ante camará, vestuário e guarda-cus-
todia, pateo, pequeno claustro e casa do thespureiro.
Data de 1595 o começo da obra e de 1606 a conclu-
são, devida ao cardeal D. Bernardo Sandoval y Rojas;
o todo forma um parallelogrammo greco-romano.
A primeira capella, a de S. Marina, é o vestíbulo da
segunda, e tem no pavimento uma grande lamina de
cobre, onde se lê — Aqui yace polvo, ceniza y nada
HOTAS A LÁPIS
— epitaphio da sepultara do arcebispo Porlocarrero,
morto em 4709. A portada é de mármores em grupos
de colomnas e pilastras compósitas, que sustentam o
comijamento, base do áttico onde estão o escudo de
Saudoval e três estatuas, que são a Virgem adorada por
S. Bernardo e S. Ildefonso. A abobada è pintada a fresco
e os altares guarnecidos de jaspes e painéis.
A segunda, a Virgen dei Sacrário, é outro quadrado
de maiores dimensões, corinthio e luxuoso, inteiramenie
revestido de mármores, pinturas e bronzes, matéria que
forma as duas estatuas de S. Pedro e S. Paulo, aos la-
dos do arco da entrada, as bases e os capiteis das pi-
lastras. As faces lateraes teem balcões, janellas, qua-
dros e os túmulos do cardeal e de sua família ; no fundo
está o altar tão elegante como valioso, pela sua grada-
ria, chapeada de prata, e pelo throoo composto por in-
teiro (Tesse metal dourado, n'uma quantidade de mui-
tas arrobas.
A imagem da Senhora è muito venerada pelos devo-
tos e pelos archeologos, que lhe attribuem uma extraor-
dinária antiguidade, a época goda. Diz a tradição que
os christãos, á vinda dos árabes, a esconderam em um
poço, onde esteve durante os 370 annos do seu domí-
nio e mais alguns, até que foi casualmente encontrada,
e trazida para a egreja, a que succedeu a catbedral. É
de madeira escura muito rija, forrada de uma cbapa
de prata, á excepção do rosto e mãos, e está sobre
a peanha sentada em cadeira do mesmo metal, tudo
coberto hoje pelos vestidos de seda e Goa pedraria, que
egualmente lhe aformoseia a garganta e a cabeça, onde
brilha uma coroa imperial.
Aos lados do altar, ha duas passagens gradeadas que
dão para o vestíbulo do Relicário, vulgarmente chama-
do Ochavo, por ser de planta octogona. Em nichos de
formas e dimensões differenies, existem 357 relíquias
em caixas de prata, nácar e ouro, em custodias, cruzes,
estatuas, bustos, vasos e Gguras, que representam gran-
de riqueza e respectiva inutilidade.
UM DIA EM TOLEDO 397
Precorrendo a sacristia e casa do thesoureiro, temos
novas portadas, pintaras de diversas escolas nas aboba-
das e nos muros, dois mil manuscriptos árabes e opu-
lentíssimas alfaias.
Daremos nota de algumas :
La Custodia, collocada em rico armário, tem mais de
três metros de altura ! a forma de pyramide e o estylo
ogival florido, com grandes adornos e 260 estatuetas de
vários tamanhos; é de prata branca e dourada, pesa
muitas arrobas, e serve de templete á verdadeira custo-
dia, toda de pedras preciosas e ouro, o primeiro que
Christovão Colombo trouxe da America para a rainha
Izabel, a catholica, que a mandou fazer para seu uso.
El vestido y manto de la Virgen estão em dois arma*
rios immediatos; formam duas peças de enormíssimo va-
lor bordadas em lhama de prata a ouro e froco, com
numerosíssimos recamos de aljôfar, pérolas, rubis, bri-
lhantes, esmeraldas e mais pedras preciosas, dadivas
successivas de pessoas reaes e dinheirosas.
La cruz de la manga é processional, gothica e de
prata dourada. A imagem, que tem por baixo uma ca-
veira e ossos de ouro esmaltado, é bem cinzelada. Da-
ta do século xvi, e é obra de Gregório de Varona, ou-
rives toledano.
Las cuatro partes dei mundo distinguem-se entre as
numerosas alfaias, que não mencionámos, por serem
globos de prata, onde estão gravados os mappas da Eu-
ropa, Ásia, Africa e America; tem no alio figuras enfei-
tadas de pedraria, como emblemas humanos d'essas re-
giões, e por baixo alguns exemplares da fauna respe-
ctiva.
Las manillas 6 pulseras da Senhora são tão ricas como
a coroa imperial, e teem esmaltes e pedras de altíssi-
mo valor.
La biblia de oro compoe-se de três volumes em per-
gaminho; tem nas capas em laminas de ouro três minia-
turas, representando cada uma a passagem do antigo tes-
tamento, correspondente ao versículo, que se vê ao la-
398 NOTAS A LAMS
do. Data do século xn, e foi presente de S. Luiz, bis-
po de Toloza.
E ficaremos por aqui, porque nos seria impossível
fallar de cálices relevados, bapdejas cinzeladas, quadros,
esmaltes, pedraria e ouro, que compõem o numeroso
grupo das alfaias da catbedral.
*
# #
Voltando sobre os nossos passos, e continuando a de-
morada peregrinação atravez da ultima nave lateral, ao
redor do templo, pararemos em frente da puerta dei
Reloj, notando as estatuas da Virgem e de S. Gabriel
— annunciando-lhe a encarnação do Verbo, e o meio re-
levo circular, onde se representa o milagre da appari-
ção de S. Leocadia a S. Ildefonso, quando ^lle se levan-
tou do tumulo, em presença do rei godo Rencesvinto,
da sua corte e povo. Segue-se a :
Capilla de San Pedro. Século xv. Portada gothica com
relevos e estatuas, no meio das quaes figura o patrono,
uma só nave com três abobadas, arestas e resaltos do
mesmo estylo, cinco altares de mármores, bancadas de
nogueira, pinturas e tumulo do fundador.
Caminhando passaremos pela porta de Santa Catati-
na, ornada de estatuas, pyramides e enfeites ogivaes
floridos, e entramos na:
Capilla de la Virgen de la Piedad. Século xv, restau-
rada modernamente ao gosto greco-romano.
Capilla de la pila bautismal, com arco gothico, coroa-
do de adorno pyramidal a tocar no teclo da nave, qua-
tro columnas de mármore com estatuas de evangelistase
profetas, concha baptismal de bronze, cheia de Énolduras
e folhagens de alto relevo, e pinturas de mediano valor.
Nuestra Sefiora la antigua, altar immediato ao baptis-
tério, com retábulo gothico de pedra branca e três ni-
chos, onde ha grupos de esculpturas. O do centro é
occupado pela Virgem sentada com o menino nos joe-
UM DIA BM TOLEDO 399
lhos, já venerada, segundo a tradição, na cathedral go-
thica, e por isso chamada la antigua, tendo sido a tes-
temunha benéfica do baptismo das bandeiras dos reis
castelhanos nas refregas contra os mouros. O nicho da
direita representa o commendador-mór da ordem de
S. Thiago, em Leão, D. Gulierre de Cardenas, offere-
cendo o filho á senhora ; o da esquerda sua mulher,
Teresa Henriquez, fazendo o mesmo á filha, como fun-
dadores, que foram, cTeste altar, no século xvi.
Capilla de D. Tereza de Haron sua fundadora no sé-
culo anterior. É gothica e chamada também de las ca-
charas, insígnias que figuram no escudo desta senhora,
mulher do marechal Padilla.
Capilla de la descencion, em frente d'esta. É da for-
ma pyramidal da torre do templo, de mármore branco
e pequena; altar e retábulo de alabastro com bel los ador-
nos de bronze dourado a fogo. Conjuncto de columnas,
estatuas e abobada muito notável e sumptuoso.
Capilla de San Juan, a vigésima sexta e ultima, tam-
bém chamada da torre e dos cónegos, por ser reserva-
da á missa do cabido, forma symetria com a mozarabe,
e consta de um arco redondo, tendo ao centro um cor-
po de architectura balaustrada com lavores platerescos,
em cima o busto de S. João e aos lados seis estatuas
com ornamentação gothica; e no segundo corpo o gru-
po de Jesus e S. Pedro, infagens da capella primitiva,
que data de 1523, e vários escudos de armas.. O inte-
rior é quadrado, com pinturas numerosas, pavimento
de mármore, tecto de pedra fileteada de preto e ouro,
formando vistosos artezões estalactiticos, três altares de
obra de talha dourada e género plateresco.
Ao findar tão curioso e fatigante precurso, onde se
encontram milhares de objectos de arte religiosa de
umas poucas de gerações, não tentámos sequer bulir
nas minuciosidades de pinturas e ornamentos, porque
estava isso fora do nosso propósito e habilitações, e
porque o espirito se abale, emaranha, e confrange pe-
rante a multiplicidade de assumptos e objectos, que
400" MOTAS A LÁPIS
enchem aquella sacra e extraordinária Babel, onde ha
pilastras despegadas, quadros, portas inferiores, escul-
pturas soltas, relevos, janellas e sítios memoráveis, em
que não tocámos sequer para diminuir a extensão e
monotonia d 'estes apontamentos, que são pela brevida-
de seccos e áridos.
#
# #
Para que possam interromper a leitura, e revestir-se
de coragem para a continuação delia, avisámos os me-
nos interessados n'estes assumptos de velharias artísti-
cas, que se admiram como em parte alguma nos mo-
numentos religiosos da península ibérica, avisamol-os
de que teem de nos acompanhar ainda aos lugares in-
termediários da grande cathedraf.
Já dissemos que o Presbyterio, ou capella-mór, fica
ao lado do coro, a meio da egreja, em planta corres-
pondente a esta, semi-circular no topo e rectangular nos
lados. É um templo dentro de outro.
No pavimento, bello mosaico de mármores brancos e
encarnados ; nas abobadas arestadas e nos arcos pintu-
ras a azul e ouro na junctura das pedras e em metade
dos pilares, que, assim como as paredes, são cobertos
d'ahi para baixo de resaltos e adornos enfeitados, esta-
tuas de anjos, santos, reis^ arcebispos.
Para se subir á capella, ha uma escadaria dos már-
mores do pavimento; em cima de arcos lateraes correm
galerias de arquitos árabes, servindo de base ás gran-
des janellas e clarabóias, coalhadas de vidraria pintada;
sobre as columnas divisórias da arcaria árabe estatuas
collossaes.
Occupa a entrada uma soberba grade de ferro e bron-
ze, em dois corpos de lavores platerescos, assente em
mármore e guarnecida de pyras, candelabros, escudos
de armas e caprichos de vario género. É obra de Vil-
lalpando, data de 4548, reinando o imperador Carlos V e
o pontífice Paulo III, segundo resam as suas inscripções.
UM DIA EM TOLEDO 401
O retábulo é gothico-florido, na sua talha e composi-
ção delicadíssimas e complicadas, de que só á vista se
poderá formar idèa segura, tantos s5o os contornos, ni-
chos, figuras, ogivas, folhagens e relevos, que enchem
o topo, desde o pavimento ao tecto, em conjuncto ver-
dadeiramente collossal.
O sacrário occupa o centro em templete ou custodia
pyramidal, ladeada de estatuas, cobertas de rendilhados
baldaquinos.
Separada a meio do presbyterio está sobre degraus
de mármore e jaspe entalhados a meza do altar, guar-
necida de óptima banqueta de bronze, dourado a fogo.
Nos extremos da gradaria da entrada, elevam-se os
púlpitos, duas magnificas peças de bronze, cheias de
delicadissimos adornos platerescos.
As paredes são quasi por inteiro guarnecidas de ni-
chos e misulas caprichosas, onde figuram innumeraveis
esculpturas de vários géneros e tamanhos, no meio de
lavores e enfeites notáveis a todos os respeitos, com-
memorando factos históricos, sacros e profanos de uma
edade, em que uns e outros andavam unidos.
Todo o espaço, ao lado do evangelho, é occupado
pelo sumptuoso mausuleu do arcebispo D. Pedro Gon-
zalez de Mendoza, fallecido em 1495, um soberbo mo-
numento de finíssimos mármores e duas fachadas. A
primeira olha para o exterior, e consta de um altar com
relevo, onde adoram a cruz S. Helena, S. Pedro e o
arcebispo ajoelhado; a segunda deita para o interior, e
tem o sarcopbago com a estatua jacente, cercado tudo
por doze estatuas, pyras, escudos, resaltos dourados e
bronzes caprichosos, ao gosto plateresco, attribuidos a
Covarrubias.
Restam-nos como cousas principaes, que das secun-
darias nos nâo emporlámos nós aqui, os sepulcros reaes,
onde estão depositados os corpos, que jazeram por
muito tempo na capella de los reyes viejos. São duas
construcções condignas d'aquelle grandioso recinto, col-
locadas no alto do presbyterio, a um e outro lado do
26
401 NOTAS A LAPI8
retábulo sobre arcos abertos e vedados por grades dou-
radas e em cima das abobadas, que esses arcos formam.
Os remates elevam-se até á nave da egreja n'um míxto
pyramidal de architectura gotbica, cheia de florões, es-
tatuas e formas douradas.
Os sarcophagos sio os primitivos, e descançam em ni-
chos próprios. Todos teem epitaphios e estatua, á ex-
cepção da urna, onde jaz o nosso D. Sancho II, e das dos
infantes— arcebispos do mesmo nome. Sabendo-se onde
estão e quem foram esses indivíduos, conhecida a iden-
tidade de pessoa e lugar, não atinámos com a differença
humilbadora.
Rosando os letreiros funerários de outros Sanchos,
não se pode suppor uma proscripção votada áquelles
nomes.
Coitado dó monarcha portuguez! Tendo espalhado á
larga as suas orações e o seu dinheiro por toda a To-
ledo, não achou atravez de tantos séculos freiraticos,
alma secular ou fradesca, onde o seu nome tivesse di-
reito a umas letras, que lhe recordassem a pessoa,
morta indubitavelmente com verdadeiro cheiro de san-
tidade I
Muito justos e patriotas os poderosos mantenedores
da cathedral toledana t
# #
Correspondendo ao centro da abobada, com que re-
mata a grande nave principal, e portanto nas costas do
retábulo da capella-mór, ergue-se a mole enorme e
monstruosa do chamado Transparente, que é um altar
do principio do século passado, ordenado pelo cabido
para deposito da sagrada partícula, e pago na maior
parte pelo cardeal arcebispo D. Diogo de Âstorga y Cés-
pedes, que lá jaz em sepultura coberta por lamina de
bronze, aos pés do altar.
Não podemos dar idéa d'essa custosissima obra, por-
que não é fácil seguir as minudencias do estylo churri-
UM DIA EM TOLEDO 403
gueresco, tão censurado pelos puristas, as ramificações
(fesse plano extravagante de mármores e bronzes, que
estabelecem um labyrintho apparatoso, mas pouco de-
licado.
O propósito dos edificadores foi dar enfeite collossal
ás espaldas da capella-mór, de modo que, praticando
na abobada fronteira uma espaçosa clarabóia, que lá se
vé, a luz jorrasse atravez do oval collocado ao centro do
retábulo.
Dahi o nome de transparente, que deixa de sel-o
praticamente, porque o grande resplendor de um sol de
bronze, collocado em frente do oval, lhe obstrue a cla-
ridade, com. manifesto detrimento do bom senso que
devia presidir á execução.
Nos muros lateraes da capella-mór, ao rez do chão,
notam-se umas grades de ferro; levam aô subterrâneo,
chamado Copilla dei santo sepulcro, por duas escadarias
eguaes, lugar inútil, como muitos, reservado a três al-
tares, collocados sob outras tantas abobadas baixas e
escuras. O principal tem boa esculptura em pedra, que
assignala a deposição do corpo do glorioso martyr no
sepulcro, em presença de sua mãe, S. João, Nicodemus,
José e as Marias.
#
# #
Resta-nos visitar uma das obras melhores do templo,
o coro, levantado debaixo da quarta e quinta abobadas
da nave central, em largura egual á da capella-mór,
com que defronta, fazendo intermédio o espaçoso cru-
zeiro, para onde abre a sua face principal, vedada por
grade plateresca de ferro e bronze lavrados, ornada
de pyras, escudos e ornatos, em harmonia- com os da
capei ia, sua contemporânea. As outras três partes são
fechadas por muro, que sobe até menos de meio dos
pilares da nave, seguindo-se d'ahi para cima uma tri-
buna corrida com parapeitos de ferro dourado, e sobre
ella dois grandes órgãos, um em frente do outro.
401 NOTAS A LÁPIS
Estes muros estão cercados de ogivas entre cincoenta
e duas columnas de mármore e jaspes, com bellos or-
natos do género, em contraste inexplicável e defeituosís-
simo com uns medalhões relevados, representando as-
sumptos do velbo testamento, collocados sobre esse
excedente corpo.
Aos dois lados dos muros ainda temos quatro altares
exteriores, guarnecidos de columnas jónicas, mármores,
bronzes e algumas estatuas; e no fundo outro, onde se
venera a Virgen de la Estreito com o menino nos bra-
ços, esculptura de tamanho natural, e onde está, aos
pés do altar, a sepultura do arcebispo Losa, morto em
1720. *
O interior tem o pavimento revestido de lousas de
mármore branco entre marcos pardos com embutidos
do mesmo calcareo. No primeiro plano, um altar sepa-
rado, chamado de Prima, por lá se dizerem as missas,
ao terminar essa hora canónica, e cercado por verga de
ferro e bronze, onde se ostentam muitos enfeites. A ef-
figie venerada é a de la Virgen de la Manca, apezar da
sua esculptura ser trabalhada em pedra escura, disfar-
çada por vestidos de brocado e luxuosa coroa.
Em frente d'este altar, a meio do coro, avulta o fa-
cistol principal, a estante rotatória, formando uma águia
enorme, que recebe os livros nas azas abertas de fino
bronze. Ê obra de Vicente Salinas, data de 1646, e des-
cança sobre peanba gothica, magnifico trabalho allemão,
destinado a outro effeito e de época anterior, ou 1425.
Representa um castello araeiado de planta exagona, em
dois andares, cercado de pilares rematados por estatue-
tas de santos, padres e doutores e pelos doze apóstolos
— tudo de bronze dourado.
A esta seguem-se mais duas estantes fixas do mesmo
metal, ferro e aço burnido, correspondendo á bancada
inferior e a um mérito regular, e outras portáteis de
boas madeiras embutidas.
As bancadas de nogueira são indubitavelmente os ob-
jectos mais valiosos do coro. A inferior, ou primeira, é
UM DIA EM TOLEDO 405
um secalo mais antiga, foi encomraendada pelo cardeal
Mendoza, e concluída em 4495 pelo entalhador Rodrigo,
que seguiu o género gothico florido, ornamentando-a
profusa e admiravelmente com figuras grotescas, ao uso
da época, animaes, folhagens, relevos e, nos espalda-
res, com medalhões, onde se representam differentes
epysodios da conquista de Granada e outras partes do
reino, levada a cabo pelos reis catholicos. Cada relevo,
que se resente da dureza e incorrecções do tempo, tem
o nome da fortaleza, povoação ou cidade, correspon-
dente ao assumpto, e fornece aos estudiosos meio fácil
de observar os trajes e armaduras dos fins do século xv.
A bancada alta, lavrada em meiados do século xvi,
ou em plena renascença, por Berrugaete e Vigarni, ou
Felippe de Borgonha, é mais perfeita e muito mais va-
liosa, material e artisticamente fallando. Dos 70 luga-
res, onde figura o escudo do cardeal Ta vera, pertence
a metade da direita á execução do primeiro, e a outra
metade da esquerda á do segundo, todos mettidos em
nichos cobertos, divididos por lindíssimas columnas de
jaspe, com bases e capiteis de alabastro, cuja matéria
reveste as abobadas das coberturas.
A nogueira è de alto a baixo coalhada de debuxos
primorosos, segundo o estylo plateresco, a que obedece
o conjuncto, em embutidos de outras madeiras ; sobre
os espaldares ha peanhas, onde pousam figuras inteiras
de patriarchas, santos e profetas, e, sobre o lugar mais
elevado da cúpula dos nichos, medalhões de alabastro
entre columnitas balaustradas e muitos lavores com re-
levos, representando por sua ordem todos os ascendei
tes de Jesus Christo.
A cadeira arcebispal, destinada á execução de Vi-
garni, foi pela morte d'este construída pelo seu compa-
nheiro e competidor Berruguete; occupa o centro do
fundo do coro, e distingue-se das demais pela sua po-
sição, architectura e escudo do cardeal Silicéo, em cujo
tempo foi concluída. As columnas, que lhe sustentam a
abobada, são de bronze resaltado com preciosos lavo-
406 NOTAS A LÁPIS
res ; o medalhão do espaldar representa em alabastro o
repetido assumpto da Senhora, no acto de pôr a casula
a S. Ildefonso; e o remate é formado por esculptura
colossal, figurando o monte Tabor, com seis estatuas
de tamanho natural — Jesus em sua transfiguração, os
profetas Moysés e Elias e um pouco mais abaixo os três
discípulos assombrados, nuvens, anjos e mais accesso
rios, lendo isso tudo a estranha particularidade de ser
feito de uma só peça de alabastro t
Salvas as numerosas lacunas, que não podemos, nem
foi nosso propósito supprir, temos dado aos curiosos
uma nota ligeira d'esse opulento repositório de artes
antigas e modernas, d'essa gigantesca creação de pedra,
madeira e bronzes, bastarda por vezes, pura e gran-
diosa em tantas outras, segundo os gostos, adiantamento
e tendências das differentes épocas, d'essa necropole se-
cular, mole enormissima, pantbeon de summidades cie-
ricaes, a que se chama cathedral de Toledo.
O descolorido monótono da descripção, se as honras
d'esse nome se lhe podem dar, foi aconselhado pela
brevidade precisa em matéria de tão largas e variadas
ensanchas, portentoso mealheiro, exemplar curioso de
tantas inutilidades maravilhosas , que formavam a gran-
deza do tempo dos nossos maiores.
Á nossa despedida de Toledo, esse venerando refle-
ctor da vida e usos de umas quatro raças distinctas,
appellavamos ainda para uma visita mais demorada ; le-
vávamos saudades do convívio imaginário de algumas
horas com os personagens lendários, que viveram nas
faixas de uma civilisação barbarisada; com os feudalis-
tas intransigentes de um absolutismo ferrenho; com as
soberbias ostentosas de um clericalismo poderoso; com
as imagens suavíssimas de umas damas beatas e roma-
nescas, com tudo emfim que se abraça, e prende aos
UM DIA EM TOLEDO 407
objectos sacros e profanos, que transformaram a antiga
corte dos reis castelhanos n'om erário inexgotavel de
memorias passadas, n'uma cidade-moseu.
Toledo, em verdade, perante as transformações dos
nossos dias e no decorrer dos séculos por vir, se o
camartelo dos maus innovadores modernos a não detur-
par— continuará sempre a ostentar o nome pomposo e
justo de verdadeira cidade-museu.
108 NOTAS A LÁPIS
CINTRA
Os burros.— A povoação.— Tão pobre como rica.— O palácio
real— Um bom exemplar das nossas cadeias.— Os barriquei -
ros.— Quintas do Saldanha, marqueses de V aliada e Vian-
na.— A Pena.
Para que ao descolorido dos nossos esboços não falte
um toque romântico, começaremos por dizer, que era
por uma bella manhã de primavera, que parliamos de
Cintra, com destino a Mafra, em pittoresca cavalgada
de burros, nobilitados pelos nomes do baptismo, que
lhes applicam os burriqueiros d'aquetla terra, uma raça
de vadios de uma espécie antiga, mas ainda hoje mal
classificada, semi-ruminantes que levam no inverno a
digerir o que comem no verão, porque só n'esta época
usam e abusam do seu mister.
O numero de romeiros e visitantes é que estabelece
o preço das alimárias, no geral muito mansas, indife-
rentes aos signaes e aos berros dos ca vai lei ros, mas
sempre dispostas para um galope desenfreado a um sim-
ples mover de lábios dos donos ou conductores.
O largo principal da villa è o centro dos agentes, a
praça do commercio alquilador, onde baixa ou sobe o
cambio, conforme as variantes da concorrência.
Ào faltarmos de Cintra, è natural que nos peçam meia
CINTRA 409
dúzia de linhas sobre a opulência das mattas e quintas,
serranias e penhascos coroados de eterna verdura, os
seus decantados jardins e aguas puríssimas, casas rús-
ticas, monumentos e alamedas.
Quem não conhece os esplendores d'esse retalho pri-
vilegiado, tão encarecido, estudado e revisto por nacio-
naes e estrangeiros? Quem ignora hoje as minuciosida-
des descriptivas cTaquella localidade, doirada pelos ar-
gentados, invadida pelos artistas, frequentada pelos fe-
lizes, e visitada anonymamente pelos poetas e pelos so-
nhadoras, que são os que menos entram n'essa cohorte
brilhante dos mundanos felizes ?
Admittindo que haja alguém, que não tenha feito ain-
da ablução sanitária na fonte da Sabuga, passámos a
dar umas fugitivas indicações do melhor que por lá
existe.
#
# #
Cinthia, denominada também pelos romanos Promon-
tório da Lua, em virtude do templo consagrado a Dia-
na, porque em linguagem fabulosa todos esses três no-
mes indicam a mesma divindade — é, por corrupção dos
tempos antigos, a Cintra dos porluguezes.
Contam uns que ella fora conquistada pelo conde D.
Henrique, e outros que seu filho, o fundador da monar-
chia, a tomara aos mouros, que por lá deixaram curio-
sos vestigios da sua passagem, sendo os principaes o
castello e o palácio, que, depois de precorrermos a bel-
lissima estrada desde a casa da Sapa pelo Ramalhão
até ao novo bairro Estepbania, nos apparece já de longe,
á entrada da villa, com as suas duas chaminés, dois
cones monstruosos, que talvez em sonho se tenham
apresentado a muita gente como pequenos modelos das
pyramides do Egypto.
A povoação em si é pobre e desmembrada, estreita
e pouco limpa; não poderia viver dos seus recursos, se
410 NOTAS A LÁPIS
lbe não acudissem as terras visinhas, que a fornecem
de muitos artigos necessários ao sen sustento.
Árvores ornamentaes, flores, casas e quintas de re-
creio improductivas e estéreis para o amanho da vida,
muitos burros, muita poesia, largas recordações histó-
ricas e romanescas— eis tudo.
Nem pomares, nem hortas, nem commercio, que não
seja o dos hotéis, nem gados, nem plantas fructiferas.
Um paraíso sem figueiras a aproveitar, nem fructos
a prohibir; uma terra opulenta e pobre, estéril eproduc-
tiva, mansão de ricos e ninho de absoluta pobreza.
O palácio real è uma cònstrucção irregular, accusan-
do varias épocas, a primitiva das quaes é a mourisca,
pelas janellas em arabescos e grinaldas de bom typo,
pelos azulejos e certas divisões interiores— tudo masca-
rado, confundido e desorganisado nos concertos e ree-
dificações, que começaram em D. João I.
Guiado pelosôr António, um' fâmulo da casa real, uma
hydra de uma só cabeça, um malcreado, que se não
tem rei na barriga, como costuma dizer-se, aninha por
lá grande somma de importância balofa e brutalidade,
que são uma vergonha em semelhante lugar, vamos en-
trar no primeiro dos três pavimentos, porque os outros
são indignos de tal nome.
Notaremos a casa do café, pelo seu ponto de vista
sobre a serra, e a sala dos cysnes, pelas pinturas des-
tes animaes, applicadas ao tecto e pelos azulejos late-
raes.
As lendas, filhas legitimas das tradições oraes, andam
ligadas, aqui e em toda a parte, á historia das edifica-
ções antigas» e raro è não encontrarmos a resposta a
umas interrogações naturaes, como a que fazemos ao
ver a que lie tecto monotonamente coberto de aves do
mesmo género, ornadas de gorjaes e campainhas, em
27 painéis octogonos.
Foi o caso. Uma embaixada de gentis homens veio
de Flandres a Cintra, em 1429, pedir a D. João I a mão
da infanta D. Jzabel para o duque de Borgonha, Felippe,
CINTRA 4ii
o bom, 6 entre os presentes, ao uso da época, trouxe
um par de bellos cysnes domésticos, bellos e brancos
como o mais formoso arminho. A princeza ficou encan-
tada com as aves, e tanto que por suas mãos lhes fez
logo uns gorjaes de veludo amarello, guarnecidos de
sonoras campainhas, pedindo ao pae que mandasse con-
struir um tanque especial para o banho dos seus queri-
dos animaes. Ao retirar-se a infanta para ir ser con-
dessa dos Estados de Flandres, D. João I desafogou a
sua profunda saudade, ordenando ao seu pintor Álvaro
de Pedro que lhe retratasse fielmente no tecto d'aquelle
compartimento as aves predilectas de sua filha.
Passaremos á sala do conselho, um gabinete guarne-
cido de pesados assentos, ornamentado de azulejos, re-
presentando folhas de vide. Foi aqui que D. Sebastião
surprehendeu os seus conselheiros com os planos e re-
solução, que tomara, sobre a desastrosa viagem da
Africa.
Depois temos a sala das pegas, pintadas em profusão
nos tectos e nos frisos, com laços pendentes dos bicos,
onde se lê — por bem — e uma rosa segura na garra.
Vamos ao que se diz, em resposta á interrogação que
também fazemos pela originalidade de semelhante pin-
tura. O caso é mais galante que o dos cysnes, e faz-nos
recordar dos motivos, que se deram para a creação da
ordem da Jarreteira.
D. João I#foi surprehendido por sua mulher D. Fe-
lippa a beijar uma das suas damas, ao offerecer-lhe uma
rosa. A rainha naturalmente agastou-se, interrogando-o,
e elle justificou-se attribuindo o acto a amizade sincera,
e terminando por dizer que tudo aquillo fora por bem.
A rainha, convencida ou não, respondeu sorrindo —
// me plait — e ambos ajuntaram esses motes por divisa
ás suas armas, como se pode ver nos túmulos, que
existem na capella particular do mosteiro da Batalha,
onde jazem.
Immediatamente, por um sentimento de extrema gen-
tileza, mandou o rei pintar aquella allegoria no lugar,
412 NOTAS A LÁPIS
onde fora sarprehendido, para que as pegas, como fal-
ladoras, podassem apregoar a innocencia da dama ca-
lumniada.
Próxima está outra sala, onde se vê, apezar de es-
murrado, um bello e valioso fogão de mármore, que já
ouvimos attríbuir a Miguel Angelo, mandado para alli
dos paços de Almeirim, dos tempos do marquez de
Pombal.
A casa do banho, considerada mourisca pelo similar,
que existe no Alcácer de Sevilha, é uma sala tijolada,
com as faces lateraes crivadas de orifícios, quasi imper-
ceptíveis, estabelecendo um cruzamento de aguas,' que
alagam rapidamente, em suaves mas successivas insti-
gações, quem estiver collocado a meio.
A capella é escura e pobríssima; a cosinha só no-
tável pelas chaminés.
No segundo pavimento, mencionaremos a sala do la-
go, casa de jantar, attríbuida egualmente aos mouros
pelos seus bellos azulejos relevados de verde-azul e pe-
las quatro portas de mármore entrelaçado, á semelhança
de troncos de arvores, que formam os humbraes, orna-
dos de bellos arabescos. Ao centro uma concha de már-
more polido, formando vistosas quedas de agua.
Próxima a esta, outra sala, onde existem ainda em
soffrivel estado de conservação três bons objectos de
arte chineza— o palácio de Pekim e as suas duas torres
de treze andares, feitos de marfim vasado, 'algumas lou-
ças e chicaras de pedra Ventorína.
No terceiro pavimento, temos a sala de D. Manuel,
chamada dos Cervos, por ser ornamentada com as pin-
turas d'estes animaes, d'onde pendem os escudos da
principal nobreza de então. No centro da abobada, as
armas reaes; em volta, os brazões dos infantes; nos es-
paços, os 74 escudos das famílias nobres, onde era in-
cluída o dos Tavoras, que se vê aspado. As paredes são
guarnecidas, em parte, de bellos azulejos, desenhando
cavalleíros com antigas armaduras, e teem á roda, dis-
tribuídos em letras douradas, estes pobres versos:
CINTRA 413
Pois com esforços leaes
Serviços foram ganhados,
Com estes e outros taes
Devem de ser conservados.
Formando contraste doloroso com esta sala, espaçosa
e nobre, cujo portal é bello, e se attribue a Francisco
Lagarto pelo F gravado sobre o lombo do reptil, que
a adorna— depara-se com um mesquinho aposento, cujo
ladrilho foi gasto pelos pés de Affonso VI, que alli curtiu
a prisão ignominiosa, durante 15 annos, sendo alumiado
por uma só janella de grade, e recebendo a comida por
uma fresta, collocada na parte inferior de uma das portas.
Quem tiver uns certos dotes de coração não poderá
alli entrar, sem que a mais nobre partícula de piedade
se lhe desprenda da alma, e caia sobre a algidez d'a-
quellas pedras, testemunhas imprestáveis de um nefan-
do martyrio, que importou um fratricídio lento e dupla-
mente repugnante.
No ultimo pavimento, ha um deposito de aguas, que
não podemos ver.
Corredores, escadarias e mais dependências são um
amontoado de irregularidades e sobejas provas de mau
gosto, incluindo os alojamentos reaes, mandados prepa-
rar, no reinado de D. Pedro V.
Pode-se pois dizer que, afora as salas apontadas, os
vestígios mouriscos, que são importantes, os ladrilhos,
as chaminés, que formam a abobada da cosinha, por
maneira notável, e pouco mais — o palácio só se recom-
menda pelas tradições históricas, ligadas ao passado da
casa real, figurando n'ellas o nosso Gamões, que alli foi
por vezes, em romaria poética, para ver, e decantar a sua
Gatharina de Athaide.
#
# #
A nossa morada, onde os percevejos nos attestam a
respeitável vetustez dos moveis coxos e* a pouca amabi-
lidade, com que se atiram aos forasteiros, fica muito
414 NOTAS A LAPI8
perto da cadeia, que è mais um documento recommen-
davel da nefasta organisação das nossas prisões civis.
Os encarcerados, como os demais, comem á custa do
Estado, que lhes não impõe trabalho algum, dormem,
fazem algazarra, e passam vida regalada.
Uma palavrada a quem passa, uns assobios atroado-
res, umas risadas de troça, um descaramento nascido
no ócio, autorisado por lei — são o colorido predomi-
nante dos presos das nossas cadeias.
Contra esta miséria repugnante de costumes, apenas
se levanta de vez em quando a voz lamuriante de algum
sonhador, que pede livros para os criminosos, e não sa-
bemos se alguns diplomas de bacharéis.
Em trabalho é que ninguém falia, esquecendo-se to-
dos de que a ociosidade, no conceituoso dizer dos nos-
sos velhos, é a mãe de todos os vicios, e de que só
pela absorpção de idéas, empregues em coisa útil, se
pôde regenerar um ente, que a sociedade expulsou do
seu grémio, onde na maior parte dos casos a falta do
sentimento brioso, a que o trabalho incita, è o movei
único de repetidos crimes.
As nossas cadeias, taes como são, não punem delin-
quentes — alimentam vadios, e ordenam aos criminosos
que, n'uma repugnante promiscuidade, estudem novos
crimes.
Apezar do zelo, contrario ás arruaças dos presos, em-
pregue pelo delegado do ministério publico de Cintra,
ao tempo em que lá estivemos, a cadeia da terra era
um triste exemplar do género.
Faltando d'isto e dos criminosos, que andam a monte
em todo o districto, contou-nos esta autoridade, entre
outras gentilezas, o seguinte caso, fruclo genuíno de
uma condemnavel ociosidade.
Uma mulhersita levara ao mercado, que fica perto e
se estende até ás grades da prisão, algumas aves do-
mesticas. Um bello gallo pavoneaya-se a pequena dis-
tancia, quando foi cubicado pelos presos, que, reunidos
em conciliábulo, resolveram furtal-o, e banquetear-se
CINTRA 415
com elle. Enfiaram pacientemente alguns grãos de mi-
lho n'um cordel, e lançaram-nos atravez de orna grade,
ao rez-dochão, aproveitando um descuido da mulher,
que estava de costas viradas.
O animal correu á negaça, e, quando cuidava ter en-
gulido a são e salvo o appetitoso manjar, sentiu-se ra-
pidamente içado pelo cordel, como se fora peixe fisgado,
e deu rápida entrada na cadeia, onde foi logo depenado
e posto a cozer.
D*ahi a pouco a vendedora de gallinhas deu pela falta,
e arrepellava-se por não comprehender o modo como
lhe desapparecera o gallo. Afflicta chegou-se ás grades,
e fez perguntas.
—Olhe— responderam-lhe— nós vimol-o ha pouco, a
correr, a correr por ahi fora; pelo andar, que levava,
já a estas horas deve estar na Fervença.
Fervença não significava por certo na bocca do preso
a freguezia minhota d'este nome; era uma rajada do seu
espirito, uma ironia, que acobertava o destino do gallo.
Levantaram-se suspeitas contra os malandros encar-
cerados, e a mulher fez a sua queixa, mas a revista pas-
sada á cadeia, não deu resultado, porque ninguém se
lembrou do pote da agua, onde o animal foi mettido por
elles. O gabarem-se do succedido foi mais tarde o. único
certificado da verdade, que é um caso gracioso d'essas
escolas de verdadeira immoralidade, a cujas grades se
pede esmola ou se espumam obscenidades, em cujo seio
se joga o murro, a navalhada, ou a bisca.
A emparelhar com os presos, só os conductores de
burros, que não conhecem, nem praticam outro ser-
viço.
No inverno, o burriqueiro pôde tiritar de frio e fome,
mas não deita a mão a trabalho algum. O seu ordenado,
no verão, orça pelo dos burros que aluga.
Um burro vale um homem, ou, se querem vale dois
burros, incluindo o dono, que ganha o mesmo.
A nós e á nossa família esperam-nos quatro, todos
crismados com nomes pomposos, aliás cinco, entrando
416 NOTAS A LÁPIS
o conductor, qae, á semelhança dos collegas, pretende
que os visitantes vejam Cintra á destilada para mats
cedo procurar novos freguezes.
Ponhamos-lbe cobro á ganância incommoda, prohibin-
d o- lhe expressamente o fustigar os animaes, e, a mon-
tante da villa, bifurcado no jerico, que dá pelo nome
de Rotschild, tomemos pela estrada, que vae á Sabuga.
*
* *
A encosta até ás ruínas do castello mourisco é um
formoso estendal de ramarías luxuriantes, entremeadas
de penedos altíssimos, de que o mais formoso exemplar
está na quinta Saldanha, que nos fica á direita, uma pe-
dra enormíssima, suspensa, ao que nos parece, por um
milagre de equilíbrio, no mais alto da vertente, onde se
chega em zig-zags d'uma encantandora amenidade rus*
Uca.
Sendo as propriedades de Cintra lugares de simples
regalo, as circumstancias dos proprietários medem-se
logo pelo esmero do cultivo.
À quinta Saldanha, que nio nosemporta saber a quem
pertence, está pouco menos de abandonada.
Seguindo até S. Pedro, por boa estrada a espaços
ladeada de arvoredo, temos a vér a pequena quinta do
sr. marquez de Va liada, digna d'uma visita demorada
pela sua posição, bellezas naturaes e de arte rústica.
A grande cascata não funcciona ; ruas e arvores estão
mal cuidadas.
O seu jardim das estatuas, a sala das folhas, o jar-
dim dos lagos, que são bellos, os seus desvios e pontes
e a sua fonte lacrimejante — são lugares onde rumore-
jam melancolias suavíssimas e delicias de um bem-es-
tar inspirador.
Assim o indicam os pensamentos e nomes, gravados
a canivete nas largas folhas das suas opulentas pitei-
ras.
CINTRA. M?
A propriedade do marquez de Vianna, mais vasta do
que esta, entristece-nos vivamente, porque os arrenda-
tários, no empenho do lucro, teem devastado o que por
alli havia de melhores tempos.
O vento, que se esforça por encrespar as aguas lodo-
sas do seu grande lago, assobia-nos as trovas de uma de-
cadência esmagadora.
Subindo -ao ponto mais elevado, iremos ter á Pena,
a sumptuosa moradia campezina do sr. D. Fernando,
um co nj une to de bellezas naturaes, desbravadas e en-
grandecidas pelo apuro mais aturado da arte architecto-
níca, florestal, sylvicola e floricultora, de que ha exem-
plo em Portugal.
O apparato insolente do homem dinheiroso, o em-
prego de estatuas custosas mal espalhadas por montes
e valles, o espalhafato de uns arrebiques pesados, que
só denunciam o valor da moeda, as concepções amanei-
radas, que revelam uma fidalguia balofa e tacanha, as
demonstrações de uma grandeza òca e pedante, as su-
perfluidades do mau gosto — não existem alli.
À organisaçâo de um delicadíssimo poeta, a alma in-
teira de um artista superior — circulam voejantes, dia-
pbanas, alvíssimas, por cima d'aquelles penhascos his-
tóricos, pelas vertentes da serrania, pelo fundo dos val-
les, pelo emmaranbado dos bosques, á beira das estra-
das, junto dos lagos, á borda das fontes, em convívio
permanente com o acre perfume dos pinheiros e das
giestas, com o fino aroma das plantas ornamentaes e
das flores dos jardins.
Cintra ! Pôde ser uma preciosa mansão de encantos ;
verdadeiro paraíso, que nos faz perder a inveja á deli-
ciosa morada dos nossos primeiros pães — é-o só a Pena,
que vale todas as mattas, todos os palácios, todas as
quintas, que por lá se encontram ; a Pena, que repre-
senta a gloria de um nome immorredouro nos annaes do
bom gosto ; a Pena, que não tem similar no paiz, e que
lá fora não poderá temer rivalidades, por mais faustosas
e afamadas que sejam.
*7
418 NOTAS A LÁPIS
Dos poucos dias, essencialmente ditosos, que n'esta
vida nos teem cabido em sorte, passámos um d'elles a
caminhar, a correr, a embevecer-nos pelos desvios e re-
cantos da Pena.
Seguia-nos um ente querido, que boje só podemos
entrever pelos olhos de uma saudade infinda, chilreando
amenidades, communicando impressões, poetando mo-
dilbos soltos, enlaçando-se angelicamente ao rendilhado
de uns pensamentos, que a palavra não pôde retratar.
Sorri lá do alto, santa companheira, porque a mim
apraz-me acreditar que me sorris atravez das nuvens,
onde tantas vezes ponho a vista á procura do teu rosto
suavíssimo e bello; sorri, desditosa, que este parentbe-
sis é só teu; sorri, Maria, que as lembranças da Pena
são reflexo indelével d'aqueílas, que te envolveram, e
me hão-de amortalhar a mim.
Dizias-me tu, com a candura da tua bondade:
—Abençoado dinheiro, que taes bellezas sustenta, e
que se converte em pão remunerador para tanta gente,
empregue aqui I
—Abençoado capricho — acrescentei eu — que satusa
de goso um bomem, que pôde e sabe gosar, revelando
nas obras, que dirige, os sentimentos delicados de uma
natureza privilegiada I
Transpondo o portão da graciosa herdade, fica-nos á
esquerda o pittoresco accidentado de um pinheiral, e á
direita a linha caprichosa dos muros do castello mouris-
co, para além de um valle, inteiramente arborisado.
D'abi para cima, torneámos uns poucos de socalcos
ajardinados, e á entrada da matta podemos descançar
CINTRA 419
n'uma planura circular, completamente rodeada de ar-
vores, destinada a picadeiro e a outras diversões.
Subindo á direita, em tortuosidades, que regorgitam
de frescuras e sombras opulentas, chegaremos á estra-
da, aberta nos rochedos, atravessando um arco de gra-
nito, uma ponte levadiça e as curvas de um corredor
abobadado e cheio de vasos com plantas de ornamenta-
ção em duas ordens lateraes.
Estamos em frente da curiosa e artística morada do
sr. D. Fernando, construída no mais alto pico da mon-
tanha basáltica e sobre os restos do convento de dezoi-
to frades Jeronymos, pertencentes ao mosteiro de Belém,
edificado por D. Manuel no sitio cTonde avistara a frota
de Vasco da Gama, ao voltar do glorioso descobrimen-
to das Índias, segundo o risco do florentino André Con-
tucci de Sansovino.
O estylo da architectura, dizem-n'o os entendidos, é
o gothico normando, refundimento do velho gothico, ad-
mittindo a forma ogival, a angulosa e a variedade de
ornamentação, tão subdividida pelos gostos dos differen-
tes povos, que d'ella teem feito uso, desde o puro go-
thico da edade media.
Dois arcos de calcareo branco adornam as entradas,
sendo o principal um valiosíssimo trabalho de ogiva. A
volumosa cabeça de um tritão, onde as raízes de uma
arvore, feita da mesma pedra, fingem a cabelleira, coroa
o fecho, que vae apoiar-se em troncos entrelaçados de
um lavor e belleza eguaes.
Aos lados, duas torres, guarnecidas de muralhas, se-
teiras e ameias; passado o arco, um pateo e o resto da
edificação em pittoresca promiscuidade, a moradia real,
um torreão, a egreja, torres ameiadas, muralhas com
seteiras, o átrio, formado por columnas de granito, or-
namentadas com arabescos, cruzes de Christo e florões,
como as portas e as janellas, e por fim os restos do
mosteiro, fielmente restaurado.
Sentimos não poder faltar mais do que da egreja, por
não termos entrado no edifício principal e suas depen-
420 MOTAS Â LÁPIS
dencias, onde se accumulam em disposição surpreheo-
dente, ao que dos dizem, verdadeiros thesouros de arte
ornamental e domestica.
A parte mais notável do pequeno templo, que não
chega a medir vinte metros, e apresenta os lados cober-
tos de azulejos verde-azues e o tecto revestido de már-
more enflorado e da cruz de Cbristo, é a capella-mór.
O altar, que dizem começado em D. Manuel e termi-
nado em D. João III, é de alabastro, tendo em nichos,
ornados de columnellos e folhagens, figuras representan-
do algumas passagens de Cbristo e tia Virgem— tudo
feito do mesmo material, como o próprio sacrário, bel-
lissima peça em dois corpos, um cylindrico, exterior e
rotatório, e outro de cinco ângulos ou pentagonal, in-
terno e relevado, com a inscripção na porta— Pernis qui
de coelo descendit—e a data de 1531.
As suas paredes teem a transparência do mais formo-
so cristal.
O crucifixo é de marfim, e os vidros de cores, que
illuminam o coro, ainda guarnecido das antigas banca-
das, são de origem allemã, valha a verdade, e represen-
tam nas suas pinturas, D. Manuel, Vasco da Gama ao
partir do Restello, e outros assumptos diversos.
A pequena sacristia tem varias copias de bons qua-
dros, uma valiosa columna de marfim e uma estatua in-
teiriça de S. Sebastião, uma riquissima peça de arte.
Quem se costuma deixar prender pelos bons quadros
da natureza, ao debruçar-se de uma parte das ameias
do castello da Pena, não poderá definir todas as cores
de uns sentimentos oppostos, que o hão-de cercar e eu*
volver.
A surpreza do imprevisto, ao lançar os olhos sobre o
immenso valle, que desce á povoação, sobre os poma-
res e vinhedos de Coitares até ao Cabo da Roca e sobre
CINTRA 4)1
o oceano com a sua caprichosa immensidade; o susto,
ao ver-se guindado, como águia altaneira, ao cimo de
escarpas talhadas a pique e transformadas no ápice,
como por vara magica, em deliciosa mansão de fadas e
a meio e ao fundo em verdura e flores, que se desen-
tranham do seio das próprias pedras ; a admiração pe-
los despenhadeiros, sinuosidades, jardins e lagos da
preciosa matta ; o desejo de abraçar todas essas mons-
truosidades de belleza rústica e de arte aprimorada,
que sobem, descem, e caminham por dilatados e pito-
rescos desvios ; um prurido de bem entendida inveja ;
um embevecimento profundo, um devaneiar de loucura»
uma alegria pasmo dica, um roçar de azas de anjos e
uma aspiração para o vago, povoado de mysteriosas de-
licias, para o infinito rendilhado de arabescos fantasiosos
— tudo, tudo nos sacode o espirito, nos pullula na alma,
nos invade, enthusiasma, tortura, commove e alegra.
Sacudámos o torpor magico, que nos assoberba, e
desçamos, despedindo o conductor, que nos diz, como
todos, enganando-nos em virtude de uma torpe ganância,
que pouco mais ha que vér, e que devemos sair pela
chamada porta dos lagos.
Ordenemos-lhe que espere ahi por nós, se quizer,
mas deixemos-nos errar ao acaso, perdendo-nos uma e
muitas vezes no labyrinto das estradas, no frondoso do
bosque ; e caminhemos, caminhemos, dessedentando-nos
na fonte principal ; transpúnhamos o caniçado dos jar-
dins, parando diante dos numerosos grupos das camé-
lias, dos massiços de relva, das plantas de uma flora uni-
versal; sentemos-nos entre os pinheiros, que cobrem
vários exemplares de floricultura menos delicada ; suba-
mos aos combros arrelvados, e colleemos tortuosidades
até chegarmos ao chalet da rnadama, situado entre jar-
dins, entremeado de regatos, grupos de pedras a en-
quadrar arbustos, dóceis de ramaria virente, assentos
rústicos, arcarias de granito ponteagudo, arvores, cor-
tiços de abelhas, e tantos e tantos adornos naturaes e
artísticos.
422 NOTAS A LÁPIS
Admiremos aquelle capricho de edificação interior,
porque o exterior é simples ferro pintado, a fingir bello
taboado de pinho ; aqaelles compartimentos, onde as mia
mosas pinturas das paredes são emolduradas por milha-
res de pequeninos e delgados tios de cortiça, talhada a
canivete, n'uma profusão fascinadora de elegantes ara-
bescos ; aquellas mobílias, emfim, que, n'uma dulcíssima
e discreta meia luz, convidam aos prazeres da intimidade
e aos mais ardentes devaneios do amor.
Se houvesse entrado um grupo de fadas no aformo-
seamento da Pena, esse asylo encantador deveria ter
sido o mysterioso olympo da soberana, que lhes presi-
disse aos poéticos destinos.
E agora andemos mais e muito até avistarmos, atra-
vez da folhagem altaneira do arvoredo copado, o sym-
bolo augusto do martyr gloriosíssimo da fraternidade
universal.
A ardência estimulante de um sol vivíssimo lança-nos
na passagem umas arestas de oiro, que nos não offus-
cam ; temos sombras, zumbido de insectos, gorgeios de
aves, arruamentos esmerados, alamedas rumorejantes,
amenidade, frescura e todas as harmonias de uma natu-
reza formosa e possante.
Cá estamos na Cruz Alta! no lado opposto ao cas-
tello, em sitio mais elevado talvez do que elle, tendo
diante de nós horisontes vastíssimos, onde distinguimos
a serra de Monsanto e o monte da Penha.
Abracemos-nos áquelle vetusto emblema do christia-
nismo, posto alli sobre massas enormes de altíssimos
rochedos, no píncaro mais erguido, como sentinella vi-
gilante, a dominar o espaço, e digamos-lhe, os que
formos crentes :
f— O' cruz, tu, como nós que te venerámos, guar-
dada a proporção devida, também no teu livro da exis-
CINTRA 423
tencia tens paginas de triumpho e períodos de desgosto,
dias de alegria e épocas de tristeza.
«Floresceste ridente nos corações amantíssimos, nas
aspirações nobres, nos actos singelos e puros dos teus
sinceros evangelisadores ; foste mãe complacente, mise-
ricordiosa e boa; assististe magoada aos conciliábulos
do mundanismo fanático, respiraste o fumegar das car-
nificinas, que se fizeram em teu nome, dominaste pelo
terror, pelo ferro e pelo fogo dos ambiciosos e dos hy-
pocritas ; foste madrasta insensível, crua e má.
«Tua não era a culpa.
«Ao tempo das glorias, como aos embates da adver-
sidade, resististe sempre; ao fraquejar dos indifferentes,
aos inimigos da tua ultima época de decadência, ao es-
calpello da sciencia, que pretende derribar-te do teu pe-
destal de séculos — vaes resistindo hoje !
«Mais forte do que esta natureza luxuriante, que nos
cerca, és tu ainda; nós temos os pulmões arquejantes
de bom ar, o peito cheio de aspirações e sonhos, mas. . .
a nossa fraqueza é grande, mas sofifremos na luta, mas
precisámos de amparo e de coragem.
«Abraça-nos pois, ó cruz, porque tu és o emblema
da força, como o teu Christo foi o symbolo do bem!
**>
414 90TA8 A LATO
II
O castello dos mouros.— O conventinho da Serra.— Um pinhei-
ro notável— Mais quintas e tapadas.— Escuro-mania do sr.
de Monserrate. — Setiaes.— Passeio á Várzea de Collares.—
A pedra de Alvidrar.— Um professor classificado pelos dis-
cípulos.—Quinta do Ramalhão.— Trovas e recordações.
O castello mourisco, egualmente propriedade do sr.
D. Fernando, é ama pagina rasgada do que foi nos seus
bons tempos.
Situado em plano inferior ao da habitação da Pena,
como que no mesmo prolongamento, deve os restos do
seu bárbaro estylo arcbitectonico ao bom gosto do seu
novo proprietário, que vê n'aquellas ruínas uma relíquia,
muito cheia de recordações históricas, porque godos e
romanos, mouros e christãos, castelhanos e portugue-
zes alli viveram, e batalharam, em épocas e situações;
diversas.
Torreões, portados, mesquita, differentes caminhos
subterrâneos e as divisões interiores adivinham-se ape-
nas, uns pelos destroços existentes e outros pelos sim-
ples vestígios quasi apagados pelo abandono de séculos.
A única parte miraculosamente subtraída aos destroços
do tempo é a cisterna abobadada, que se encontra par-
to da mesquita, um excellente deposito das aguas plo-
viaes, a que o abbade de Castro, no seu fanático zelo
de investigador benemérito, attribue erradamente um ma-
nancial maravilhoso.
A estrada que conduz ao castello, os reparos para
conservação e os melhoramentos realisados são digios
de boa nota. Não se fez porem ainda tudo o que podia
enfTRÁ 425
e devia fazer-se na reediflcação das muralhas ameiadas,
que ainda se conservam unidas sobre os rochedos, sitio
cTonde se gosa uma vista das mais importantes da loca-
lidade, por dominar a villa inteira. Essa restauração
nos pontos arruinados era fácil e pouco dispendiosa.
E, chegado aqui, devemos estabelecer uma prevenção
a favor dos visitantes menos entendidos encontra o far-
çante do guarda, que offerece descaradamente umas coi-
sas de mármore, na maior parte sem as proporções
nem o acabamento devidos, por objectos de boa arte,
feitos pelos restauradores do altar da egreja da Pena.
É um logro, que os devotos imperitos de recordações
teem pago por bom dinheiro.
* *
Precorrendo uma longa estrada, que passa em frente
de varias propriedades, um pouco adiante do limite das
terras do sr. D. Fernando, depara-se-nos uma das maio-
res curiosidades de Cintra, uma verdadeira preciosida-
de, que raros visitantes logram ver, pela pouca impor-
tância ligada pela maior parte a assumptos d'aquella na-
tureza.
Referimos-nos ao Convenlinho da Serra, habitado ou-
trora sob a invocação de Santa Cruz, por capuchos ou
franciscanos, por aquelles que faziam voto da mais ex-
trema humildade, e pelos que delinquiam, e eram des-
terrados para alli em expiação disciplinar voluntária ou
imposta pelos superiores.
Esta notável antigalba monástica pertenceu aos des-
cendentes de D. João de Castro e portanto á casa Pe-
namacor, que a vendeu ao visconde de Monserrate, seu
dono actual.
A entrada, coberta por dois penedos, é formada por
troncos de sobreiro, e dá para um átrio quadrangu-
lar, que tem á esquerda uma bica de agua e no topo
um como altar de conchas, búzios e larga copia de pe-
416 MOTAS A LÁPIS
drinhas de côr, mostrando do meio oval uma grosseira
imagem de N. Senhora.
Á direita (festa, uma capellioba do Senhor dos Pas-
sos; do lado contrario a porta da egreja, cuja capella-
mór foi cavada de baixo de um enorme penedo com a
superfície inferior espalmada, que lhe serve de cober-
tura, curiosamente aproveitada até ao cruzeiro. O reves-
timento do altar é de bello mosaico com embutidos de
mármore de quatro cores; da mesma pedra de uma só
còr é o pequeno sacrário, que para inteiro contraste
tem a porta de cortiça. De cada lado, três nichos de
mármore preto, cujas imagens foram d alli tiradas pelo
vendedor cTaquellas relíquias, que, formando no todo
uma interessante miniatura de egreja» nos despertam a
curiosidade de um modo attraente. Na parede da es-
querda estão as armas de D. João de Castro, sobrepos-
tas a uma lapide, onde se lê que aquella fundação foi
realisada por D. Álvaro de Castro, seu filho, no anno
de 1560, segundo as suas ordens e mandado; e que se
concedem muitas indulgências a quem alli assistir ao
santo sacrifício da missa.
As divisões interiores do conventinho, se tal nome
apezar de diminutivo se pôde dar áquella construcção,
toscamente elaborada entre penedias, revestidas de más
paredes e entremeiadas de cortiça aqui e além— são em
geral pequenas, acanhadas, irregulares e pobríssimas,
verdadeiros covis de almas penadas, ou sepulcros, onde
só podiam enterrar-se em vida creaturas de um ascetis-
mo levado ao cumulo mais extraordinário das privações
d'este mundo e da fé inquebrantável, a que dessem
apoio constante as idealidades de um mundo melhor.
Para se ajuizar ao certo da rudeza e pequenez d'aquel-
las habitações, basta lembrar que as portas da$ celtas
estreitíssimas e húmidas tinham cinco palmos de altura;
que o refeitório se realisava em cima de uma pedra
tosca; que para a sala do capitulo do tamanho de um
quarto regular, ninguém podia dar entrada sem se cur-
var; que nas prisões, superiores ao que ha de mais pe-
CINTRA 427
doso no systema cellular, não havia luz, e que a comi-
da aos presos era fornecida por um simples buraco.
Durante o dominio da casa Penamacor, tudo aquillo
foi barbaramente invadido e devastado. O visconde de
Monserrate mandou reconstruir, sob a antiga feição ca-
racterística, alguma cousa do que existe, para evitar
uma ruina completa, mas apezar da sua opulência e al-
gumas provas de bom gosto, não fez metade do que
devia.
A situação do conventinbo é magnifica, como quasi
todas as que foram destinadas ao viver dos frades de
todas as ordens e épocas; as terras dependentes esten-
dem-se desde o alto do monte, em pittoresco declive;
e alindadas ao sabor rústico da sua natureza poderiam
Ser uma graciosa miniatura da Pena.
A certa distancia do edifício, encontra-se, debaixo de
dois penedos, uma cova para onde se desce por quatro
degraus, gruta bumilima e tosca, bumida e desconfor-
tável, onde se diz que viveu 14 annos de rigorosa pe-
nitencia, e morreu ao fim d'elles S. Honório, que pre-
cisaria conservar-se constantemente sentado, porque a
altura é muito inferior á de um homem e a largura aca-
nhada, para que qualquer pessoa possa deitar-se á von-
tade. Sobre o tecto levanta-se uma cruz sobreposta a
lapide, que diz :— Hic Honorius vitam finivit et deo cum
deo vitam revivit. Obiit in armo Dei 1596,
No mais alto do monte, ha uma larga e formosa gru-
ta, formada naturalmente por volumosos penedos e as
ruinas de um altar um pouco mais abaixo, onde se dis-
tinguem ainda uns restos de pintura mural. O ponto de
vista é muito bonito, e o local presta-se a grandes afor-
moseamentos.
Descendo por caminho mais ou menos ledeado de ar-
vores mal cuidadas, encontra-se um pinheiro manso de
uma edade tão respeitável que bem nos podia descrever
por miúdo tantos dos quadros antigos, que alli nos oc-
correm á imaginação, se elle nos podesse dizer tudo
aquillo, de que foi testemunha silenciosa. O seu feitio
418 NOTAS Â LAPTS
è ainda mais reoommendado do que a edade. Partindo
do pé de um enorme calhau, que lhe abriga a maior
parte das raízes, dobra-se-lbe por cima, vem tocar no
chão do lado opposto, continua em curvas a abaixar-se
e a erguer-se, e levanta por fim os ramos galhardamente,
medindo do entroncamento d*elles até á base o impor-
tante comprimento de 30 metros.
Deu-lbe aquelle feitio a mão do homem? É obra sim-
ples da natureza? Em qualquer dos casos, constituo
uma incontestável raridade aquella arvore superior no
género a tudo o que temos visto.
 mais de meio da ladeira, depara-se com uma cons-
trucção simples, a maior e melhor da localidade, cha-
mada celleiro dos frades; ao fundo umas hortas do guarda
e nada mais.
O que vimos porem è o bastante para tornar aquelle
lugar cubicado, tal como está; e muito, muito mais o
seria, se o seu proprietário se dignasse espalhar por alli
umas migalhas da sua abastança, em restaurações fáceis
e obras de boa nota, não menos realisaveis.
*
♦ *
Se a quinta do Vianna nos escapou á ida, podemos
entrar n'ella á volta, e pouco nos demoraremos porque»
apezar da sua extensão, grandes arruamentos de ale-
crim e arborisações, nada tem de recommendavel, mes-
mo nas próprias edificações, que são vulgares.
Para regressar, tomaremos por meio da tapada do
Monte ChrisfQ, hoje Fonceca, tão notável como a quinta
do mesmo nome; aquella por sua posição, espaço de
que dispõe, e bellissima estrada, quasi toda aberta entre
vistosos renques de pinheiros australianos ; e esta pela
parte ajardinada e pelo lago, onde se reflectem as ondu-
lações de poéticas ramarias, que o cercam.
A tapada do Roma é continuação da do Monte Ghristo.
Ao passar por ella, avistámos o solar da família Pe-
ONTRA 419
namacôr, muito desmantelado e egualmente cheio das
armas de D. João de Castro, cujas barbas, valha a ver-
dade, estão hoje em poder do visconde de Monser-
rate, que é o foreiro d'aqoillo tudo, e sel-o-ha por no-
venta annos, ao que nos disseram. O solar está pintado
de ocre amarello-escuro, porque o sr. de Monserrate é
inimigo capital das cores claras, especialmente da branca,
tão inimigo cTellas como das arvores fructiferas.
— É mat feito — vae-nos a dizer o burriqueiro. — O
diabo do inglez mandou arrancar tudo o que dava fru-
cto ; só quer arvores de regalo. Olhe que o povo não
gosta nada cTisso. Quanto ás cores é mais bonito ainda.
Se por acaso estiver á janella, e vir ao longe um muro
branco, ou cousa que tenha a mesma côr, vae logo dar
por lá um passeio, espeta uma bandeira nos sitios, que
quer, e um creado lá vae pintar de escuro o que elle
marcou. Os próprios penedos claros são mascarados de
cal misturada com poses de sapato*. Forte embirração
a do homem t
Chegámos finalmente á bellissima estrada, que é a
artéria principal entre Cintra e Collares, e acbâmos-nos
em frente do campo dos Sete ais, o moderno Setiaes,
espécie de passeio publico, n'um quadrado magnifico
por sua capacidade e posição, mas pobre e desmante-
lado, em egualdade de circumstancias com o elegante
edifício, que se levanta na sua extremidade, outr'ora
pertencente á casa do Louriçal e hoje á de Loulé.
Os dois corpos d'aquelle bonito palacete, histórico
pela convenção de Junot, em 1808, para a evacuação
completa das suas tropas em terras portuguezas, são
ligados por um arco rematado por tropheus e uma ins-
cripção latina de 1802, dedicada a D. João VI; possuem
numerosas salas, e comporão em breve um lastimável
acervo de ruinas.
Elegante edificio aquelle para os paços da camará mu-
nicipal da localidade ! Formoso passeio publico o campo
de Seteaes, se a camará e o districto se emporlassem
com elle t
430 NOTÀ8 Â LAPI8
Desgraçadamente Dão é de esperar semelhante melho-
ramento, porque nem a uma nem a outro se devem
quaesquer innovações locaes. As estradas modernas, os
alindamentas públicos são unicamente devidos á influen-
cia dos ricos, que por alli teem os seus regalos e as
suas quintas.
Arte e natureza notáveis nas encostas, onde os ar-
bustos rebentam prodigiosamente dos moroiços e das
fendas dos penedos, com exhuberancia excepcional ; es-
terilidade não menos sensivel nas planuras, para alem
da povoação, onde não braceja uma arvore; moradias lu-
xuosas e pobreza extrema— eis Cintra, incapaz absolu-
tamente de viver só por si, sem o soccorro das terras
visinhas e a concorrência dos forasteiros.
O passeio a Coitares, a pátria do bom vinho d'este
nome, é dos mais recommendados e certamente um
dos mais apreciáveis, em especial pelo formoso pre-
curso de uns cinco kilometros, feito na estrada, a que
já nos referimos, guarnecida por ambos os lados de
frondosas ramadas, que se debruçam amorosamente
sobre a nossa cabeça, na extremidade das mattas, ao
longo dos muros de um grande numero de quintas de
recreio, em sítios onde a amenidade e a frescura nos
enleiam e prendem, nas escassas planuras e nos nume-
rosos declives, com uma profusão extraordinária, com
uma força de vegetação espantosa e única.
Entre as luxuosas habitações campezinas, a que mais
se impõe pelas bellezas exteriores do seu mármore ren-
dilhado é a casa de Monserrate, onde não conseguimos
entrar, sendo-nos apenas consentido observar a distan-
cia, por uma porta entreaberta, o corredor principal
do pavimento inferior, uma deslumbrante galeria, em
cujos espelhos parietaes se reflectem as aguas do seu
CINTRA 431
repuxo central e as do exterior» que aformoseam o pe-
queno jardim da entrada.
Da soa espaçosa quinta nada nos convém dizer, como
não faltaremos das outras, que encontrarmos, porque
tudo o que nos suggerisse esse assumpto ficaria muito
abaixo das impressões, que nos deixou a Pena, a que
nada se pode comparar.
A pequena villa de Collares, encravada no meio de
umas terras, onde os vinhedos, as plantações producti-
vas, herdades e pomares formam notável contraste com
os de Cintra, onde só ha relvados, bosques, penedias
sobrepostas entre moitas de arbustos, vegetação alte-
rosa, formando verdadeiras grandezas de ornamentação
—não tem edifícios famigerados, alem de umas ruinas
e do convento de Santa Anna.
O seu vinho tão apreciado, a largueza e amenidade
da sua Vargea e o riacho, a que formam docel copadas
laçarias de vimes e salgueiros, e em cujas aguas nos
deixámos embalar poeticamente em bote, que deslisa
por ellas, muitas vezes seguido pelas saudações chil-
reantes e alegres dos pássaros ribeirinhos—são os me-
lhores attributos do seu nome.
Caminhando d'ahi para o extremo da serrania de
Cintra, que finda no cabo da Roca, os terrenos mudam de
aspecto, as penedias escalvadas e os serros agrestes dão-
nos a perfeita imagem de uma natureza desolada e estéril.
Mas nós precisámos chegar á borda do Oceano por
carreiros alcantilados, onde a burricada tropeça por ve-
zes, até á serra, a que se encosta a Pedra de Alvidrar,
tão recommendada, com sobeja razão, á curiosidade dos
visitantes. Desmontemos pois, ao fundo do valle, por
commiseração votada ás alimárias, e mais ainda por
amor ás nossas costellas, e façamos a ascensão a pé.
Logo que chegarmos ao cume, temos a certeza de
que nos vêem ao encontro uns sujeitos, muito cortezes
em altenção á nossa bolsa, a offerecerem-se como artis-
tas consumados nos exercícios de subir e descer o me-
donho alcantil.
43* NOTA* A LÀW5
—Senhores— dizia um— cá está o António, queéca-
paz de ir buscar um calhau ao fundo do mar.
— Eu também vou— dizia outro.— Hão-de gostar; te-
rão. A fama d'esta pedra é fatiada em todo o reino da
Europa.
E lá nos levaram até ao ponto indicado, d'onde deve-
ríamos observar os exercícios.
O penhasco de Alvidrar é sem duvida uma cousa
muito digna de ver-se. Cortado quasi a prumo, sem de-
pressões favoráveis, nem pontos de apoio, nú, escalva-
do, estende-se até ao mar, numa altura de uns seis an-
dares, ou 115 metros, segundo a medição de um curioso,
e è vencido por aquelles homens, que descalços, ârman-
do-se apenas nas pomas dos pés e das mãos, sobem, o
descem, todas as vezes <jue se lhe encommenda esse
serviço, executando verdadeiros milagres de equilíbrio.
As ondas irrequietas, debatendo-se entre si em ia**
petos mais ou menos violentos, erguem-se ao ar, for-
mando vistosas quedas de agua espumante, que n'uma
parte de terreno, para cá do penhasco, penetra com
ruido atroador n'uma furna funicular, que se abre em
toda aquella grande altura á flor da terra, em cujo bor-
do as pessoas nervosas se deitam para poderem alongar
a cabeça, e ouvir as ondas, que rugem noseiodaquel-
las medonhas cavidades.
Não nos esquecerá que, á volta, n'uma povoação cha-
mada Almocegeme, bebíamos, no meio de uma passagei-
ra merenda, devida á obsequiosidade de um conhecimento
de um amigo nosso, o melhor vinho que provámos em
todo o districto, quando nos invadiram umas poucas de
creanças, a pedir os cinco réis do mau costume sertanejo.
Lembrámos-nos de lhes perguntar se sabiam ler*
—Eu ando na escola, ha annos — respondeu uma —
mas ainda não sei ler bem.
—Eu também sei pouco— acrescentou outra,— O nos-
so mestre é. . . é um burro.
— Egual aos nossos ?
—Nada, não senhor. É um homem.
CWTOA 4W
è borro— eoaoluiram todas em coro.
Maravilbámos-nos da tlassificação original, dada t8o
desassombradamente pela mocidade escalar de Almoce*
gene ao seu professor, mas a&o tivemos tempo de ave-
riguar se era plenamente verdadeira.
Fique registrada, em virtude da nossa fidelidade de
cbronista, por conta de quem pertencer.
Não aos lembra por que motivo deixemos de visitar
a pequena propriedade da Penha Verde, deixada por
D. João de Castro aos seus herdeiros, com a recom-
mendaçio de a cultivarem para seu recreio.
Devia ter sido uma habitação tio humilde como o seu
Coo ven linho da Serra; e, apesar das antiguidades india-
nas, entre as quaes figura uma lapide com tnaeripção
sanscrita, trazidas alli pelo seu amor pátrio, essa casa
devia orçar pela pobreza, de que elle fallava ao seu
awgo S. Francisco Xavier, n'estes termos tão conheci-
dos: — «O vice-rei da índia morre tão pobre que nem
tem dinheiro para comprar uma galinha.»
#
# #
Vamos concluir por onde devêramos ter principiado
talvez, ao passar pela quinta do Ramalhão, em cujas
immediações se bifurcam a estrada antiga, que leva a
S. Pedro, e a moderna que vae ao novo bairro Este*
phãmia, uma parte de Cintra muito alegre, muito cheia
de boas edificações modernas, algumas das quaes só
teem de caricato o nome de villas, que a mania estran-
geirophobiea dos nossos argentarios não consiguirá im-
plantar no paiz, onde esse nome significa cousa bem
diversa.
Como todos sabem, o Ramalhão, antigo infantado e
propriedade da rainha Carlota Joaquina, é boje domi-
na) de um particular, o visconde de Valmor, e uma
sombra do que foi no passado.
O palaek) é vasto e a soa posição óptima, dando so-
28
m* hotjj ktàm
bre os lagos» onde «b agna existe já, e pare o melhor
Mo da qainta, soa principal fachada longitudinal. A
srcbitectora é simples. As soas salas interiores, apenas
saparadas por arcarias, deviam proporcionar brilhantes
reuniões nos seus meibores tempos» A mais notável è
a de jantar, ornada de boas e antigas pintores ftores-
taes, oito cascatas nas quatro faces e um repuxo ao cen-
tro da grande mesa, rusticameote guarnecida de oerâ$a
o ladeada de candelabros sob mangas de vidro, onde
se vêem as armas nacionaes.
Guarnecida a mesa de bons manjares, entremeiadoe
de bellos jarrOes de flores, cheio o ambiante de mur-
múrios de agua sussurrante e flascida, e jorrando dos
candelabros uma lns intensa e clara— aqoeUa sala. de-
veria produzir um brilhantíssimo effeitn.
A eapella é boa; o tbrooo em espiral do sen altar bas-
tante apreciável. Uma mobília completa de casa de ja*
Ur, com cadeiras de espaldar almofadadas de bom
carvalho lavrado, foi em moveis o qae vimos de me-
lhor.
Os terrenos da quinta, que nos pareceram fertilissimos,
differem dos de Cintra em serem completamente des-
pidos de penedias, e sio muito próprios para a lavoera,
nos sMos onde ha manos arborisaçio, que ainda é maito
valiosa.
Os lagos estio na maior parte desguarnecidos o nem
agua ; as extensas avenidas de baio, que forma abo-
bada compacta, com arvores de grande altura* e oa lar-
gos pomares— mal tratados.
No meio de tudo aquillo, que denuncia um pronun-
ciado desamor e talvez a ausência do proprietário, bra-
cejam vigorosas, ataviadas e frescas, por nío precisa-
rem de auxilio agrícola, excellentes e corpulentas «ira*
carias.
Passase ainda por alli uma baila tarde, manda aaen-
dade que ae diga: basta para isso uma nesga de ventu-
ra, que é a própria tranquilidade.
Do convMo <e tradições 4es seus nnmeronon *#sttan-
«mu* m
tes conserva o Ramalfelo Mmerosos «listados, inseri-
dos a lápis nas paredes de ama fonte, mie está na rua
principal e mais sombreada.
Entre uma infinidade de nomes, dat*s, trivialidades
e baboseiras, notámos aqui e alli ornas linhas românti-
cas e uns tersos mais ou menos correctos. '
Um anonymo, ao lembrar-se da soa amada, entendeu
dedicanlbe um pensamento, e rimou a cousa assim 3
Se os poetas nVratros tempos
Fizeram versos a Thália,
Que fariam hoje em dia
Se vissem a linda Amália?
Linda aqui será um modo de dteer, porque qoem o
feio ama...
Outro, moralista por convicto eu por experiência,
BMstroo a sua aversio i bisca ou á roleta dtette mode:
O jogo do oe» ó filho,
Casa depois co'a avareza;
Pródigo ser é seu fructo,
Seu cabedal a pobreza.
Só a boa pratica das virtudes sociaes poderá absolver
semelhante aspereza métrica, dura como as paredes da
fonte.
Uma creatura qualquer, jungida involuntariamente á
companhia pouco amável de uns entes femininos, aos
quaes nío cantava 16a s, manifestou os seus suspiros
n'esta terníssima despedida:
6 quinta do Ramalhâo,
Lugar de tantas delicias,
Eu te deixo com saudade
P'ra acompanhar as Patrícias.
Elias qw lb'o agradeçam.
Nos seguintes versos de Esproneeda pareoethnes, pe-
los traços calygraphicos, descobrir a delicada mio de
ftè NOTAS A 1APIS
HsJasdslarMeaUss
Jugotftes dei víento, mu
Las ilasiones perdidas !
Ay t son hojas desprendidas
De) arbol dei corazon.
i
Abaixo do nome do poeta, bavia a dita— 1 9—7—6©
e as inidaes L. C.
Uma lístta posterior, com a data de 2—8—69 e at
iniciaes E. S. escreveu por baixo:
Estes versos trouxeram-me á memoria
recordações passadas. E que recordações t
E já que esse mal aflfecta tantissima gente, já que de
illusões perdidas e recordações diversas se nos povoa
a existência, no correr dos sonos, também «és 'voltare-
mos o coração desolado e saudoso para o tempo, em
que alli tomámos os ligeiros apontamentos, que fazem
parte d'estas notas.
»JIH '1 rll:
MAFRA
O ESGURIAL POBTUGUEZ
k Graaía.^A gynmastica ntma ertela naoicimel
0 voto de D. Joio V.— Parte histórica.
Dizíamos nós, ao traçar as primeiras linhas, consa-
gradas a Cintra, de que não ba roteiro nem ornas sim-
ples photograpbias, sega mencionado de passagem, que
partíramos d'aqui, em pittoresca cavalgada de burros,
com destino á Granja, onde nos devi» esperar t carrua-
gem, que nos conduzia a Mafra.
E assim foi. E por faltar n'istor devemos declarar que
a quinta regional do Estado, que é um centro de estu-
do agrícola e das suas industrias correlativas, não nos
satisfez inteiramente*
Os utensílios nio nos pareceram dos mais aperfeiçoa-
dos; a charrua mechanica fazia resistentes esforças havia
muito, segundo nos dissseram, para abrir uns sulcos,
com perfeita dificuldade. Á nossa vista partiu ella o ti-
rante por duas vezes. As queijadeiras não faziam queijos,
as chocadeiras nio tiravam pintos; o fabrico da mantei-
ga era peqoeno e deficiente; arribaaa* e estrebarias es-
tavam em geral muito desprovidas de bom gfdow Qaval-
los* beis e aves— tudo em mesquinha copia.
mê nojÉÊ m um
Podem «feer-uos que aquelte estabelecimento é ape-
nas a base dos estudos práticos e n8o uma industria
productiva; que portanto o gado, os aparelhos agrícolas
e domésticos são ama simples demonstração appHcada
á pratica.
Esto bem. Mas, se a quinta regional nlo pertence,
como nos apraz de crer, ao numero de umas institui-
ções que se sustentam pro formnla, e mo dio resulta-
dos de boa nota, por falta de estudos prévios e pessoas
technicas — porque nfo ha-de ser um manancial de in-
dustria agrícola e por conseguinte de largo tirocínio
pratico, condição que lhe diminuiria os encargos, e
augmentaria as forças, qoe tão débeis nos parece-
ram?
Digam-no os que se interessam pela especialidade,
que Ho BeeesMria noa é, mmo pata essoortaimento
agrícola.
Nio ha muito tempo ainda, visitámos nós, em compa-
nhia de um professor primário de Coimbra, que dese-
java conhecer as fonovagões introduzidas me eaeblas
aranidpaes de Lisboa, um d'estes estabelecimentos, m
dos mais modernos e bem providos.
Quando pfeiçunttmes pelos objectos, que de*faatf eer-
Mt w deaenvotviflietíto das forças, á elasticidade «'toa
acção dos movimentos, que slo a base da gynmastfea
jdvettíl — »briram-nòs um armário, ofcde ettos jaaiam
cobertos de vistoso pó, de atrtfgw e abmdaatos teias
de aranha, mostraudo^oos por isso e pornãoiwdícaram
uso algum que estavam virgens, ou pouco menos disse!
Bram objectos pr& fmrnOa qoe a Granja alo deve,
nem pode* ter nunca.
Ertreteufeamos**e agora*con o fawoeo^editefcvde
D. *Mão V, porquê a tilla de Mafra em si nlo contem
outros monumentos, com que vattoa cl pena demorarmos-
nem betteesa Ai termo 41* noa possa» atoair ou
deter em extasia bucólicos, apezar da soa appareo-
m Dia deixar inteiramente de ser agradável e ptito-
Estes grandes colossas de architectura monástica, no
nosso paia e fora d'eHe, nasceram qoasi sempre de uns
votos* feito* por monsrchas e fidalgos» E Mafra» copio
o Escartat, mau grada a larga difierença da época, è
detida ao «esmo motivo.
< Disem-nos que D. Joio V, magnado por falta da soe-
oassofes legítimos ao tbrono» fiaera voto para haver fi-
lhos de erigir um grandioso mosteiro, destinado aos
frades awabidos, qoe alli viviam em pobríssimo hospí-
cio.
Contrariasse este voto, dizendo-se que os filbofesw»
ramaotoe da começada construção* wm *Upg**ae tam-
bém, que, dois aonos depois de ter casado, o rei pedira
fariarosameate a um padre de apregoadas virtude», frei
Àatooto de S. José, que rogasse a Deos pela successio,
e f»o ríassa época fizera a promessa, a que sempre fi-
cara ligado.
Além d'isso prova*se o voto pelas inscripções gra-
vadsa nas pedras dos alicerces» especialmente pela que
fitou no local, onde assenta a capaUa-mór* inscripçoes
de qee existem copias . autbenticas.
£ nio admira que o voto, feito em 1710, só viesse a
ter execução sete annos depois, se nos lembrarmos de
que em toda essa época o monareba devia ter voltados
ee cuidado* e attençfio para as lutas e divergências com
a tleqpanba o a França, e por ultimo para. os preparati-
vos e expedição da esquadra, mandada em soccorgo do
papa Clemente, que via a Itália a ponto de ser comple-
tamente invadida pelos turcos.
Os perigos que lhe ameaçavam o tbrono, a paz e a
integridade dos seus estados, onde eoirava o Brasil
priacipatmeote» apezar das escaramuças ao pelejarem
umpeooo loage, por compwnissos o alliançasenlte
oatt*<ias~?*aram de sobra pasa obstar a> qualquer ma-
#0 XOlftftAJLiHg
■Maiteçtn amii irtsiiniim *i
rie.
A nés ponto 10» emporte saber a carito, po*qm<*ó
em 1747 se começaram as obras d'aquella iiwhuíIimiu
inutilidade, a que se chama convento de< Mafra»
O facto é que ellaa eoaaeçaram o'esae awHH-neaéiio
escolhido pelo rei e denominado a Vdat dopeis d*«er
preferido dentre os que se apresentaram o deaeofa» de
Ludovico, esculptor e modelador atonia, que, investido
de boas teofas e largas tomarias, fiai mais tarde no-
meado per D. José awfaitecfcHBór do nsmo» com asèio
e patente de brigadeiro.
Os trabalhos de Ludovico ttteram por emitiam os
mestres canteiros Carlos e António Garvo, irmãos i
A terraplanagem foi demorada, deapeodioae/+nMb,
e o plano primitivo, já quando a construção da egreja
attingiu a um elevado grau de adiantamento; foi «lar-
gado, procedeodo*se a novas expropriações,, de*qnt a
seu tempo se lavraram 33 eecriptures, oampMbenáondo
os terrenos de edificação, tapada e cerca. - »
D'abi por diante, começaram a ezpedir-ee ordene ter-
minantes is autoridades de todo o pafe para manear
opeasrios, sendo oa particulares da locattdadeioMga-
doe a concorrer por semana oem dois dias de trabalhe,
que sempre lbe foi pago, come a iodos os empregados
permanentes.
Mafra eonstiUHi*»se um notável e vaafcsime acampa-
mento, muito bem provido de oficinas, banana» afee-
goarias, eeeriptorioa, alojamentos» eotemarias, medioes,
cirurgiões, cosiofaeiíos» boticários, serventes, artistas*
operários, cuja media por dia se calculou em 3ã*úâ0
pessoas, entre as quaes foi chamada a manter» ras-
peito e a ordem uma Corça mUMar de 7,000 boi
intotee e eavaUeirosi
Laoçaram-se pontes por toda a parte, desd*<l
até lá, sobre oe barrancas e desÉtadetos* <pare lamlitar
a eondnçie dos maieriaes, em que só * cas* ttai eaa-
pN§M*fla» jmtfea de heíe; oe fomos d» caU «feto
desde Caacaes até Mafra, de que ainda se
itram signas vestígios, orçavam por eealenares;
a empregar-se diariamente 450 homens no
simples- aêftvito de pau o cerda ; encentra*a»iee* nas
«strôdas «ais de mil carros, e foram precisos por ve-
»» 40 juntas de bóie para o transporte de «ma pe-
dm; -
A que forma a varanda de uma janella grande,, aberta
fia tasa, ekaaada d» bêmdiaè*ne, gastou seis dias a
cbegar da» pedreira* de Pêro Ptnbeino, e foi posada
por cem juntas de bois.
Á abertura dos alicerces, onde se lançaram inscri-
pções, moedas de ouro, prata e cobre e os* objectos da
cerimonia inaugural, presidiram festas estrondosas,* e a
«frafi» do templo* a que ainda faltava o zimbório,
fez*e 17 annos depois eam assistência da famtiia real,
patriarcba, cardeaes, bispos e trezentos frades franeia-
ícanas, que ficaram daada logo no convento.
Et» 1736, ires annos depois d"eete acto e daaoito do
começo des trabalhos, estavam coneluidas iodas «sobras
eaterieres, e em poucos aras» dando-se empreitadas e
prosegiHDdo-ae nos trabalbos inioterroptaasente # tem
iaioaaiima actividade, deu-se por terminado aquettecol-
tosse de edificação, oode a cantaria e mármores varie-
gados sáo naciooaaa e oa madeiramentos da» preciosas
maltas do BraziL
Afoette capricha de ^steotaçlo, concebido tal ver en-
toe aa^deç«ras de alguns amores freiralieos, muito bem
entretecidos de meles e cantata» dos poetas da época—
quanto custaria ao rei, aos cofres do Estado e ao» paiz
fetssro?
Ninguém o» sabe,. ao certo. Para que a ninguém fosse
esmerilhar o< computo de lio largo desperdício,
truncaram-se ao contas no mínimo, e dest#ok>a»*ae.ao
0. alqueire de trigo custava então 300 réis, o da ce-
tmàitAÔtíi um arraiei devaeaa as, de poro*^ um ai-
ROT*»» «AM8
mvde ** vinho 710, a eaaad* d* •a**iWtimmm
d* pedreiro e carpinteiro entra 800 e 800 réis.
Conhecidos este* pratos, e «ibe»de««ft«ja«i6««M>
ctos*> do zimbório d» «gmja foi d*d*<«m — mrliiln
(«ia somm* de 1W:000#00», mae «a «awMWoa carta-
ram 800:0000000, os paramentos « atiam» «ante «oa»
o edifício e que o tbesouro ícoo eigotado—imagioe-se
quantos milhares de contos de réis não foram precisos
para levar a effeito a obra de D. Joio V.
Se isso ainda não for bastante, pense-se em que a
90» neta, D* Maria I, despendes 6300 coaâoa «om a
basílica da Estreita, obra muito maia poqnoaa o tee-
se-ha Mio uma idéa da enormíssima despesa- do «es-
tante de Mafra.
Foi este habitado até D. Joio I pelos imentea frades
franciscanos, já ditos, que então se viram sobatitaédee
petos cónegos regrantes de S. Agostinho, senhora* de
largos haveres, a qoe se devem vários melhoramento*,
a conclusão da bibliotneca e a reedifloaçio do lanteroJm
do zimbório, destruide em 18 de fevereiro de 1705 «or
om raio, qoe deitou peio aunei <da abobada abundantes
lascas de pedra, para a remonto da» qaaes ferem-***
OMsarios ans poucos de carros.
Mais tarde, considerando a devotíssima D. Maria I
qoe o convento fora por om voto dedicado a fradattae-
aores, fez reintegração de* r*ttgi*s«s arraMdes, ^
Os cónegos regrantes volveram a S. Vicente de Roca,
d'aqoi voltaram ainda ama vez para Mafra, *»<4034,
por ordem de D. Pedro IV, e m pwmaaoatMBK até
qoe foram eitinetas as ordens religiosas,
O edificio devoluto está boje » cargo das obra* sa-
blicas e da casa real. AqueJIa» toem aUi um «oesrra-
gado dos relógios e earrímOes, om ajadautov 4**s sor-
vastes e «m exeeotanto das arnicas, <m carreto**** ;
**j* o» almoxarife, om ajaadaiii», eiiearnpm**, .«lo
sabemos com que direito e porque razão, da btòtiatbate,
ptramentOB e alfaias, e três empregados menores..
A egreja está a cargo do p*wdio4a tocalM*i*w AM
fWtê do edMdto ffaftecfcnaa» o tribunal jiHiteisrki e orna
escola elemeéfar, subsidiada por etnrei.
- Bata dWtefo e subdivida, que nto obedece» a um
fptaw de aproveitamento e conservaçlo, condigno* At
fefcftl, acompanham Mtacttferamente ama pronunciada
ffictiria, que se nota ena ioda a parte.
Deixemos isso, com que adiante nos havemos de oe-
par, e remontemos-nos ainda i época da faustosa e no-
tável edificação.
O sr. Joaquim da Conceição Gomes, um cavalheiro
lie muito boas intenções, revelando nos seus modos e
dizer ttlustrada educação e correspondente delicadeza,
contemporâneo dos últimos frades, de quem ainda
chegou a receber lições, e modernamente simples aju-
dante do encarregado doe carrilhões t apezar de perten-
cer á associação dos Jornalistas e Escriptores Porto-
guezes e á dos arcMteotos, e de leccionar latim e fran-
*e*i' gratuitamente na escola, a que nos referimes— è
o autor da única descripçlo, que lá se vende ao viai-
'tattl*.
< Dtonos eMe, como devoto benemérito da obra de D.
João V, a que dedica a maior veneração eenthusiasmo,
que o toxooso monarcha, cheio de gloria e orgulho, ao
despeifcse dos operários, teavia de exclamar:
— Ceando* vetardes a vossas casas, bastará- dizerdes
—Eu trabalhei no edifício de Mafra— para que se res-
ponda:—Eis aqtóiMft grande artista.
Deveria ser assim. Mas nès, e comoosco todos os que
-se orgulham, e gloriam de pertencer a esta época de
crenças definidas, Hberaes e utilitárias, ao lembrarmoe-
nos d*s sarau» de OdiveMas, das ediflcaçíe» da» Neces-
ttdides, Betem, Pegões, Vendas Novas, capeila dè S.
Joio Baptista e Mafra, não esquecendo as custeis «t-
pedif&es á «oma— exumámos com verdadefettitagua:
IH M0T****àM8
—Inconsequente e rmoom beaterto eqoetlei -Mak<e»
pregadas riquezas do Braâl a dai tediai J . .
D. Joio V, que aliás revelou qualidades de tomam
empiebendedor a active, ne seu titulo 4a-#Vdrttiai«%
per onde se espalhara» es numcroses recam*ido<ec*-
rio portogoez, entre oa engastes da mediana vafer aé
tem uma pedra rutilante — os arcos das Aguas Uvre*.
II
Parte descriptiva. — A ffontaria.— As taces lah&áes.
A quarta fechada.— 0 templo, capellas e zimbório.
O edificio, que pretendeu rivaliear, e rmlieaem Wk-
tissimos pontos com o Escoriai, comprebeode, oomnee-
te, convento, egreja, e palácio; é rectangular, e oeajpa
o espaço de 40,000 metros quadrados, segunde eeedn
o ar. Gomes, a que ha pouco nos referimos. Affirmsadp
porém, que a frootaria ae estende numa 4i*ianaar4e
220 e as Unhas lateraes em 205, temea um quaduoe
de 45,000, desprezando as fracções, aguai ae do mos-
teiro bespanhol.
Os confrontos far-se tóo mais adiante»
Oecupando o mesmo piano da povoação, fea-ee o<coa-
vento em mau lugar, que vem a aer o eiteeaae de ver-
tente, o sitio mais baixo da tapada» ondenie pede-ee-
bresairo seu todo, já de ai muito sombrio e menetene.
Precisámos de chegar perto d'eUe, para o observe*
mos na sua apparencia deselegante mas correcta. : i
A (achada do templo, terminada por duaa tonaugeatá
entravada 110 meio da frontaría ; am perwtik> de seis
colamnas jonicts de mármore, dividiado ires grandes
#eo$, fechados por bellas grades de ferro— fofma-lbe a
entrada do vestíbulo, pêra onde se soke por três lanços
de escadas também de mármore»
* Sobre as ooiumnas do arco central, a varanda da casa
de beniiReêione, balaustrada de mármore» tendo 3 janeU
las, divididas por 6 colomnas compósitas, ornados os
capiteis de anjos e flores, e na janella do meio as esta*
tuas de S. Domingos e S. Francisco, trabalhadas em
calcareo de Garrara.
Um frontão triangular, bordado de mármore brinco,
tendo no tímpano nm meio relevo de jaspe, representan-
do a Virgem, o Menino e S. António— termina a fachada
do templo, rematado por grande crnz de ferro.
Às torres, de bella forma pyraraidal e de 68 metros
de altura, confundem-se com o edifício até aos terraços,
tendo no entanto três corpos distinctos — o pórtico da
base, que dá para os lados exteriores do templo, um
arco egual ao do vestíbulo, com que emparelha, ladea-
do de estatuas em nichos, coroados por um frontão, e
ama janettà de saceada, no mesmo piano do palácio,
aberta entre pflastras e colamnas compósitas.
lyahi para cima, isto é, desde o terraço, contam-se
egualmente três corpos: no primeiro, domina a ordem
dórica, e appareee o mostrador dos relógios muito bem
ornamentado de festàes de mármore, com ponteiros de
mais de dote metros de comprido e letras de 65 cerni
metros, marcando o do norte as horas em romano e o do
sul em portuguez; no segundo, guarnecido de columuas
corinlhias, estSo «es machinismos dos carrilhões; no ter-
ceiro, formada de arcos segurados por coiomnas com-
pósitas, os stoos para o serviço do coito.
Na cinfttba' dJeste trtthno corpo, assenta 4 cúpula
de gracioso effeito rematada por uma espbera, aci-
mtr' de quatro grandes pyramides, que partem dos ân-
gulos.
: 'Vohando * Achada da egnfa, encaixilhada pelas tor-
NOTA»*
ree, vemos duas Unhas ego**, que mmptoêm*
laria do edtficio, e termíoam por dois torreões quadre^
dos de oioeoenta metros de altera, cempashendendone
todo a parte do palácio, composto de troa pavimentos»
o térreo ou de estrada, o destinado a dependência*, do
pago e da egreja, e o terceiro e ultimo, que compre^
hendende o domínio real propriamente dito» de cu* fa-
zem parte integrante» em todos oa pavimentes, os dois
torreões, que possuem a mais subterrâneos bem inomi-
nados, onde íuocciooavam as casinhas.
Os torreões de fignra enorme teem oa altura doa ter-
raçotf, que servem de telhados a toda a edificaçào, e
sio accessiveis por vários sítios, orna varanda com ba-
laustres de pedra, donde parte a copnb, que cobre oa
aposentos e camarás regias, situados no terceiro pavi-
mento, de ordem compósita* O segundo continha cont-
partímeotos diversos e o térreo as ucharias.
Toda a frootaria eomprehende 220 metros..
Em linha com os torreões, proiongam-se as laces la*
teraes, revestidas dos mesmos três pavimentos, que-
brados a meio por ângulos reentrantes, que continuam
rectos e findam em dois bons corpos de mármore, cujo
fim principal è o de illuminar as escadarias, que vão aos
terraços, guarnecidos de piatibandas de metro de altura.
N'esses aagulos começa a parte do convento, que dá
volta ao resto do edifício, do mesmo modo que o pala*
cio dalli para traz, ficando por isso a egreja a meio
cercada por ambos, mediando a conveniente separaçta,
que a toma parte distiocta.
Ao centro das linhas interruptoras ha grandes pórti-
cos columnados com vestíbulos de mármore, que eaam
aa portarias do mosteiro, ootaodo-se na lioba 4o norte,
por differeoças do terreno, ornas jenetlas «o rea do chio*
que davam para os subterrâneos, destinadas ás ensi»
nhãs, muito bem providas de agua em todos oa pintos.
O total de cada uma d'essas fachadas prolongada
n'um comprimento de 205 metros.
A quarta fretada, parallela.á da frente e íechodo
m
rectângulo, em cMkwm\Ga&o&m a cerca, pocqaeojart
dfan fica interiormente toiro ella e a egreja, trai a mais
um corpo satteote, sustentado por arearia de mármore»
onde se compreheode o grandioso espaço da bibliotheea,
e coma iOS melros lougttudkiaes, ou menos dezesete
do que a frente» pelo estreitamento, que parte dos angu»
loa reentrantes das fachadas tateraes.
Cortando deste lado 230 portas e jaaellas exteriores,
podemos dar a todo o edéficio numero muito superior
a mil» que são oa máxima parte dignas d'elle*
Vistas assim de relance e a traços excessivamente
ligeiros as suas formas externas» um tanto sombrias,
em especial pelos talhados» bem entendida e commoda*
mente transformados em terraços convexos» por. oade
sempre se passeiou e transitou livremente, e as aguas
da chuva se embebem boje em infiltrações damnificado-
ras — passemos a dar do interior» com a mesma conci-
sio, uma któa do principal que por lá vimos, n'uma só
visita de algumas horas»
O vestíbulo do templo, guarnecido de revestimentos
colossaes em harmonia com o seu plano geral, apresen*
t*»nos o chio «*n vistoso xadrez e a abobada apaine-
lada de marmeres de cores ; quatorze nichos de fundo
aznl e frontões regularas, com outras tantas estatuas de
procedência italiana e material de fino Garrara, já mi
parte esmurradas peias pedradas de garotos, despedi-
das atravez das grades do peristilo com o pronunciado
vandalismo portuguez, que não encontra rival com íaoi-
lidade entre gente que se prese, e mesmo talvez entre
o gentio de qualquer regiio insulta.
Algumas aio correctas» em especial as que teem aast
«natura.
A porta principal das Ires» que a meio do vesliboJe
d8o entrada para o templo» sustenta sobre bailas cotam-
NOTA» A, ftàM»
dm caasbdao * compósitas ma fíreatto, em eojoeaaftro
delicadamente ornamentado encrava uma lamina cinca*
lar de ja»pe, representando em baixo relevo a Virgem*
o Menino e S. António, tutelares do edifício.
Transpostos três degrau», danos ingresso na egreja*
que pela correcçio da soa architeckira romana. peU
abundância de luz, que recebe» como corpo distmeto que
é,-pela soa forma de cruz latina, de qoe a nave do céu*
tro representa a haste principal— no» impressiona, desde
logo, mo»traodo«se-noa elegante, clara, valiosa e mesmo
magnifica*
O 'entablameato geral é de ordem compósita ; as Ao»
btdas e os pavimentos de mármores nactenaes branco»»
azoes, pardos, amarello» liso» e listados, côr de roca
mesclada e pretos, formando o» do centro do crusek»
um mosaico, que, visto de perto e especialmente de
longe e do alto, forma um tapete de primoroso matiz*
Sobre a porta principal, por onde entrámos, assenta
um baixo relevo de uma execução muito corre&ayitom
um crucifixo esculpido em meio do» paramentos e mais
objectos, necessários á celebração de uma missa de pon-
tifical, como que dispostos ao acaso; aos lados duas es-
tatuas de jaspe — a Religião e a Fé; por cima as tribu-
na» reaes, a eommanicar com o palácio; e, como re-
mate, uma espaçosa janella ornada de festões.
A nave central, sustentada por coUmna» de calcara»
compósitas e caneladas, sobre soco» de mármore côr
de rosa com vivo» brancos, è alumiada por oito jaftek
las; e a» lateraes, chegando ao cruzeiro, quebram ali-
nha recta, e torneamno e á capella-mór* abrindo aos lar
dos d'esta duas capei las collaieraes com portas e arca*
ria», symetricamente disposta».
Do cruzeiro para baixo teem estas nave» mais três
capella» cada uma, lugares separados, ma» que eemtto-
ftfoam entre si por soberbo» pórticos de mármore poli-
do preto, com orpatos de cores em festões, rematado»
por semi-circulo» de Garrara, onde em baixos relevos
•se recordam passagens da eacrjptura.
Apear das opiniões diferentes que temos ouvido, os
retábulos dos altares d'essas capellas, a cujos angolas
se encostam quatro estatuas, saindo da forma usual dia
pintura e da madeira entalhada, pois são de fino már-
more branco emolduradas em columnas da. mesma espé-
cie, côr de rosa— constituem objectos excepcionalmente
distinctos e valiosos, alguns por bepa feitos e todos por
pouco vulgares.
A primeira capella da nave direita cbama-se das Vir*
gens, e tem no retábulo um numeroso grupo de figuras
femininas, entre as quaes se distinguem a rainha Santa
Izabel de Portugal, a da Hungria e Santa Clara, acober-
tadas pelo manto de Nossa Senhora, que se destaca do
plano superior coroada por dois anjos, como que saí-
dos d'entre outros envolvidos em nuvens.
A segunda, denominada dos Confessores, contem a
Virgem com o menino nos braços, cercada de anjos,
um dos quaes lhe offerece um açafate de flores, S. Luiz
rei de França, S. JoSo^S. Bernardino e outros, sendo
este ultimo de uma correcção admirável, tanto na figura
cwno nas roupagens.
A terceira chama-se dos Martyres, representados em
grupo,, dominado pela Virgem com o menino entre se-
raphins, portadores de coroas, palmas e açafates de flo-
res.
Passando á nave do lado esquerdo, temos:
A primeira capella, a do Santo Chri&to, com o Se-
nhor crucificado entre a Virgem, S. João e as ires Ma*
rias, uma das quaes se abraça á cruz. A expressão da
dôr, manifestada em lagrimas, fornece a iodas essas fi-
guras uns toques de irreprehensivel correcção, que se
espalha por egual em todo o retábulo, o melhor da col-
lecçâo.
A segunda capella, a dos Bispos f apresenta-nos o
grupo de alguns mais notáveis, a Virgem, o Menino e
muitos anjos, sustentando as insígnias d'aquelles prín-
cipes da egreja. São muito de notar as roupagens e to-
das as rendas que as guarnecem.
29
480 NOTAS A LÁPIS
Na terceira, chamada do Rosário, objecto que a Vir-
gem entrega a S. Domingos, vê-se, alem d'essas figu-
ras, S. Francisco a orar e alguns anjos, d'entre os quaes
se destaca o principal a offerecer um cabaz de flores.
Como se vê, á esculptura d'esses retábulos presidiu
ama extrema devoção consagrada á Virgem, cuja ima-
gem predomina em todos elles.
A regularidade proporcional das figuras, as suas at-
titudes, os vários sentimentos religiosos, que lhes illu-
minam as feições, a verdade da expressão e o cinzela-
mento das flores e demais accessorios— tomam-nos seis
pecas de arte de subido valor, onde entra o mérito de
serem todos feitos em Mafra, sob a direcção do estatuá-
rio Alexandre Giosti, que creou alli uma verdadeira es-
cola, d'onde sairam bons discípulos, no numero dos
quaes se conta o tão conhecido e babilissimo Joaquim
Machado de Castro.
*
* •
O magestoso cruzeiro, formado por quatro arcos com
as voltas guarnecidas de flores em alto relevo, tem ao
lado direito, fechada por grades de ferro ornamentado
de bronze, feitas, como as demais obras d'este género,
em Antuérpia e Liege— a capella da Coroação com al-
tar erguido entre duas columnas compósitas de már-
more vermelho, apresentando no retábulo de jaspe a
coroação da Virgem, e, no candelabro, suspenso da abo-
bada, sete lâmpadas pendentes da bocca de outras tan-
tas serpentes, entrelaçadas em ramagens.
As duas portas, que communicam com o prolonga-
mento lateral, sustentam umas tribunas reaes, cercadas
e cobertas de baldaquinos.
Ao lado esquerdo, a capella da Sacra Família, re-
presentada egualmente em retábulo de jaspe, entre doas
columnas de mármore côr de rosa ; as mesmas portas
coroadas de tribunas e um candelabro de três tampa-
das.
MAFRA 461
À enquadrar as doas capellas, apparecem quatro gran-
des órgãos, apoiados em coretos sustidos por columoas
jónicas de mármore, quatro grandes objectos de excel-
lente madeira do Brazil talbada, polida e ornamentada
de bronze.
Alem das tribunas mencionadas, contam-se mais qua-
tro nos ângulos interiores do cruzeiro.
A capella-mór, collocada no extremo da cruz latina
que forma o templo, era fechada por grades de ferro,
que foram modernamente substituídas por balaustres de
calcareo variegado, e occupa 192 metros quadrados;
tem dois órgãos superiores no trabalho de ornamentação
emblemática, nos bronzes dourados a fogo e em todos
os accessorios aos quatro do cruzeiro; mais duas capel-
las collateraes com bellos painéis, columnas e ornatos
de mármores de cores, duas valiosas bancadas de ma-
deira do Brazil e quatro tribunas da mesma pedra, que
se communicam entre si, curiosamente, por corredor,
cavado nas paredes, dando volta ao templo, e termi-
nando na galeria do palácio.
Entre os retábulos de mármore das capellas lateraes
ba um, cujo desenho é copia da Annunciação de Cor-
regio.
O aliar, coroado por frontão que lhe serve de bal-
daquino, tem sobre elle, entre dois anjos postos em
adoração, um magnifico crucifixo de jaspe, que mede
quatro metros e dois decimetros de comprido, mos-
trando no entretranto, pela altura a que está, o vulto da
imagem em tamanho natural.
O quadro do altar è uma pintura da Virgem, o Afe-
mino e Santo António, encaixilhada em rica moldura
de mármore preto guarnecido de metal, feito por Tre-
visani, autor de um quadro que está no Louvre, e da
Crucificação, sua obra prima, existente em For li, na
Balia.
Sendo a feição predominante das capellas principaes os
retábulos de bello mármore, aquelle quadro, por muito
merecimento que tenha, destoa-nos alli onde quizera-
452 NOTAS A LÁPIS
mos contemplar a melhor e mais colossal das esculpta-
ras sacras.
E não dos fallem na monotonia, que moitas vezes re-
sulta da uniformidade, porque ella deixa de existir na
arte, desde que nos moldes se encontra a variedade dos
assumptos.
Que o digam as galerias de todo o mundo I
Voltando ao cruzeiro» paremos a olbar ainda uma vez
para o precioso mosaico do pavimento, e ergamos a ca-
beça para o magestoso zimbório, que o illumina.
Os florões dos arcos e umas poucas de misulas sus-
tentam a cimalba circular, gradeada de ferro, que for-
ma uma bella e espaçosa galeria, aonde vamos su-
bir.
Ahi assentam os socos de mármore vermelho, base
do zimbório e sustentáculo de um segundo corpo octo-
gono, revestido de 16 columnas corinthias, caneladas,
de mármore egual ao das pilastras intermédias, que se-
guram o enlablamento da cúpula, considerada o terceiro
corpo e o mais valioso.
As janellas, abertas em todos os lados do octogono,
tem de altura mais de 4 metros, na parte inferior algu-
mas cornucopias, na superior, como fecho/uma cabeça
de anjo, cercada de arabescos.
Do entablamento acima dito, partem 8 festões de
mármores de cores, que vão terminar no annel aberto
da abobada, onde se apoia o lanternim final, quarto e
ultimo corpo. Estas faxas da mais bella folhagem, en-
tretecida de bagas pretas, apresentam nos intervallos
painéis guarnecidos de novos florões, e completam uma
combinação de mármores e cores de effeito surpreben-
dente e execução primorosa.
Sobre o annel da abobada fórma-se nova galeria» para
onde se sobe por 10 degraus, e ergue-se o lanternim,
guarnecido interior e exteriormente de columnas jóni-
cas e alumiado por 8 janellas, correspondentes ao seu
formato : ao centro da sua cúpula, uma pomba, symbo-
lisando o Espirito Santo, abre as azas em formosa atti-
■Anu 483-
tilde, e termina esta construcção tio elegante como gran-
diosa.
Os dois effeitos mais notáveis de perspectiva são —
o que se gosa da primeira g* leria, olhando para o pa-
vimento do cruzeiro, onde nos parece brilhar o mais
faustoso dos tapetes orientaes ; e d'aqui para cima, es-
pecialmente quando observámos a poiqba, que nos appa-
rece no seu tamanho natural, perfeito è correcto, quando
mede 1 metro e 5 decimetros de uma á outra extremi-
dade das azas.
Nota-se, como já dissemos, o mesmo effeíto no Chrlsto,
que se eleva sobre a capella-mór, em todas as guarni-
ções e nas próprias banquetas, cujos castiçaes são enor-
mes.
Às velas de alguns tocbeiros, que serviam em certas
solemnidades, teem a grossura de uma perna, e o apa-
gador é maior do que a copa de um chapéu.
— Para alumiar um Chrísto e um Espírito Santo —
d'aquelle tamanho, n'uma egreja de semelhantes dimen-
sões, só uns tocbeiros d'aquelle feitio — dizia graciosa
e maravilhadamente um dos nossos companheiros.
— Alguns dos modelos d'estas figuras gigantescas—
respondeu o sacristão— vão vel-os na sacristia. Pois aqui
ha tempos um visitante inglez não acreditou nos mode-
los, e deu-nos bastante trabalho, porque só se conven-
ceu depois de ir medir, por suas próprias mãos e no
próprio lugar, as obras, que tamanha admiração lhe
causaram.
4H NOTAS A UM8
m
DiTiiões annexas.— Alfaias e paramentos.— Corredor das au-
las.— Sala dos actos.— Casa do capitulo— 0 campo santo.—
Refeitório e cosinha.— Lavatório e enfermaria.— Portaria-
mor.— Escadarias, cellas, eipulgatorioi e jardim.
Seria ama looga e enfadonha tarefa procurar descre-
ver oe subterrâneos, que cercam as capeUas lateraas,
os corredores, asas de lavatório e arrecadação, escadas,
oratórios, saguões e desvios, que se encontram, agglo-
meram, e ramificam, aos lados da egreja e junto do
cruzeiro, como partes campooentes e harmónicas do
grande templo, no espaço que d'alli segue para o coo*
vento.
Occupando-Dos apenas do mais importante, se ò que
na edificação de Mafra existem cousas inteiramente des-
pidas de importância, sairemos pelo pórtico de mármo-
re preto, junto á capplla da Conceição, uma das colla-
teraes, a que nos referimos de passagem, e, penetran-
do n'um corredor xadrezado e claro com as paredes
apaioeladas de calcareo de cores, chegaremos á sacristia.
Gontiguamente passámos á casa do lavatório, que
tem mesa de mármore côr de rosa ao centro, para on-
de pende um candieiro de metal com quatro lumes, e
aos lados quatro urnas com differentes e minuciosos
lavores e seis torneiras de bronze cada uma; em segui-
da á capella das Graças, onde se guardam os modelos
dos retábulos e estatuas da egreja; depois á casa da
Ar cação, onde ha a notar uma arrojada escadaria, que
vae findar junto á abobada, dando accesso a varias ar-
recadações; e por ultimo ao deposito, chamado caga da
***** m
fazenda, dividido em compartimentos cheios de arma-,
rios e gavetões, que guardam alfaias, paramentos e
utensílios do culto, n'uma profusão admirável.
Vendo de passagem os ca&tiçaes, cornucopias e vasos
de bronze modelado e esculpido da primeira secção»
iremos a segunda, onde se nos deparam o círio paschal,
o candieiro das trevas e as serpentinas, cousas enormes
e massiças do mesmo tnetal, banquetas, lanternas, apa-
gadores, relicários, tburibulos e navetas, estas ires ul-
timas espécies com ornamentações abertas ou releva-
das, representando medalhões, grinaldas, festões de fo-
lhagens e flores de um subido valor artístico, onde en-
tra inquestionavelmente a chamada banqueta grande,
ornada de folhas de videira e espigas de trigo levanta-
das, cujos castiçaes teem o comprimento de 3 metros
e 5 centímetros, assentam no altar sobre duas cariaii-
des, e foram feitos, ao que se sabe» no nosso arsenal
da exerâlo por João José de Aguiar.
Os maiores apagadores de latão lavrado em relevo»
apalpados pelo nosso grande poeta Castilho, que não
podia vel-os, fizeram-lhe exclamar ha annos, segundo
lá se conta:— Oh! são estes certamente os apagadores
do sol 1
Passapdo a outras casas, veremos sob a impressão de
um espanto indizível, votado ás riquezas materiaes e ar-
tísticas que nos apresentam — dóceis» porteiras, pavi-
lhões, sanefas, pálios, almofadas de gorgorão è damasco
bordados a Go de seda de Itália, e roupas brancas da
linho com rendas do 22 centímetros em peças diversas,
que se contam aos centenares.
Para todas as solemnidades se encontram paramentos,
próprios nas cores e nos ornamentos, O destinado á
festa de Corpus Christi compoe-se de 146 peças de gor-
gorão e damasco brancos, na maior parte minuciosa-
mente bordados a torçal amarello. Ha mais dois da
mesma eòr, um de gorgorão e outro de selim, egual-
meule bordados; um roxo de selim meio bordado e ou-
tro liso da mesma cor; dois em condição egual de selim
ttt NOTA à' LÁPIS
verde; dote pretos do mesmo estofo; e dois*
ambos bordados, sendo um d'eiles tom flores de Hz
soltas.
A todo isto juntam-se os objectos espeeiaes roxos e
pretos» destinados á semana santa, nm graudisftimo na-
moro de casulas, estolas, bolsas, manipules, frontaes e
mats pertences.
Os dóceis, as porteiras, os espaldares, os pálios e os
pavilhões dos sacrários, bordados e lisos, sio em pra-
fbsSo correspondente a esse gigantesco desperdício de
dinheiro, que è ao mesmo tempo nm acervo notável de
btiHezas de arte.
O paramento ornado de flores de liz, ires dóceis so-
berbamente bordados e franjados de retroz, xm jpaffD
de seda branca e nm pavilhão de gorgorlo bordado da
mesma côr— sSo de origem franceza; qoast tudo omfais
pertence a bordadores de Génova e ttitio.
Dizemos qnasi todo, porque algoma cousa existo' de
Industria portugueza, distingoindo-se um frontal do le-
fim encarnado, bordado por um frade que segtiv oe
modelos italianos.
Esta peça mereceu as honras da estampa tio cátalbgo
da exposição de Arte Ornamental— essa feito glorioso
do Portugal moderno, tio glorioso quanto ignorado peta
desorganisaçâo preliminar— e fez parte de outros dtyfe»
ctos que lá figuraram, e deixámos apontados. ;
Descrever minuciosamente, catalogar por sua* ordem,
valor real e estimativo todos os objectos de bronze,
latão, damasco* linho e seda, alfaias, modelos e pari-
mentos, que atulham as estantes, armários e gavetas
das casai dê fazenda do convento de Maírt— serittiMrèfa
impraticável para um simples visitante e mesmo ftt*
um homem só.
Se rfeste paiz, os sentimentos artísticos e de bom
gosto nio fossem coisas meramente nominaes em grande
parte dos indivíduos oficialmente nomeados para catytt,
que representam a arte e o bom gosto, desde mofo
que isso estaria feito; haveria muito que tu*r aquflto—
lArtu - km
parameotos, rouparias, modelos, utensílios e todos os
objeelos moveis comporiam aos milhares, que sSo, uma
riquíssima e nío menos curiosa collecção, exposta nos
salões vastos e ermos do convento de Mafra, porque só
fesoé bastante para dou verter aquèlle édifickrn'uiá mu-
seu Importante e valioso, paga a entrada pelo» vfeitaa-
tes, que concorreriam gostosamente, como se fez lá
fora, para as despesas de guarda, vigilância e cmser-
vaç5o, tio necessárias alli, onde o desmazelo espalha
por tftda a ftarte a sua acção condemnavel e destruidora.
Se a magestosa torre de Belém, hoje em que nada
vale para a defeza de Lisboa, deveria estar convertida
n'um museu de antiguidades' militares, com mais mio
ainda as salas principaes do mosteiro de Mafra deviam
abrigar lodos os objectos, que lá estão a monte, em ex-
posição permanente, bem regulada e bem distribuída.
E diremos com mais razão ainda, porque a torre de
Belém nada encerra, e Mafra tudo tem — egreja, alfaias,
modelos e paramentos, que podem, repetimos, consti-
tuir um valioso museu.
Uma analyse rápida de todos aquelles adereços» que
a tradição diz terem custado a D. João Y uma somma
egual á da sua edificação monumental, onde tudo é gran-
de, produzia-nos um estonteamento muito próximo da
embriaguez.
Ê preciso saberão que, alem dos cálices e custodias,
a ordem franciscana n5o podia usar metaes preciosos.
— Pois bem— protestou o rei fundador— eu vos darei
bronzes, gorgorões e sodas, que valham tanto como
ouro do melhor e mais custoso.
E cumpriu. Os bordados lisos, cheios ou relevados,
quando olhámos mesmo a considerável distancia para
os paramentos, parecem-nos lhama de finíssimo ouro;
e os bronzes dos castíçaes e outros objectos, pelos seus
lavores, valor material e artístico, deveriam custar com
os paramentos quantidades do metal precioso quasi
eguaes ao seu peso.
Nem mais nem menos.
NOTA* 4 Mi»
*
* *
VeUando i sacristia» * subindo pela ampla eaoa daria,
feiia como as demais da formidáveis peças inteiriças de
calcarão branco, chegámos ao soberbo corredor im ou»
la$, cqja extensão de 487 metros, por uma largara de
5» se acha boje interceptada por tapumes. Aa sul está,
a seta 4* acto$, occupaodo tomo orna das melborea o
eapago de 235 metros quadrados: tem aos lados duas
baixadas» erguidas por três degraus, e guarnecidas da
balaustre* de mármore; ao topo a cadeira, magisUaà*
abeiKO de uma legenda latina, encimada per foltegeae
de mármore de cores; e em frente um bem quadro de
seis metros de altura com moldura de mármore preto».
representando a Virgem, que tem nos braços o aaeniuo
e aos pés uma serpente» em euja bocca a divina oreeflG»*
mette e extremidade da crua» segura nou» das sua»
mios. i
£ piuture romaua do cavalleiro Sebastiio Conca. •
A cosa do capitulo, alumiada por 28 janellas, iotei*
rameoie despida de lavores, é notável pelo seu espaço,
peta altura da sua abobada e sobretudo por sua fórma
ellipUca» que mede no seu eiio maior 26 metros, e r**
pretas, es vozes em ecco distfoeiissimo. Tem sobre a
porta da entrada uma tribuna» e no ebio um beUew*
dnsa» como o precedente*
Ao norte do corredor temos o Cawpo Senão» ou de*:
posito dos cadáveres dos frades, com 286 metros, que»
drado*. Na capella» duas entupias com fmtfa4aj»P*-
more preto, bases e capiteis amaretloa, harapems** m»
cores como xadrez dopavimeofco, e enquadrem eaHac,
onde figura a Ceèa. teia de assumpto e&travagpnt» per»,
semelhante local, pintada alli mesm<H>eMíWçez *•***■
Quillard, discípulo de Wateau* Esta <5oric#a. extern
as campas sepulcraes fora da capella,,o peftiopps dttfri
grandes tribunas de mármore bfaopQ. . *» . • .'
Do mesmo lado norte encontrámos o Refeitório, des-
guarnecido de ornatos, mas formado de um rectângulo»
que se estende no considerável espaço de 463 metros
quadrados.
E insistimos em algumas d'estas medições para que
se ajuíze das nossas palavras, quando afirmámos que
no mosteiro de Mafra tudo é espaçoso e grande.
Este salão é alumiado por 20 janellas, tem ao centro
e »aoa lados 36 mesas quadriloogas de 4m,5 de compri-
mento, todas de madeira do Brazil, com lugares para
300 talheres; no topo, uma mesa atravessada, sobre
elia. um painel, representando a C0ta,,e* meio das li*
nbas lateraea dois pulpitos9 para a leitura do evangelho
e -predicas, durante a refeição. .
A luz, á noite, era fornecida por 9 candieiros de la-
tio de 4 lumes cada um, suspensos da abobada.
A coeinha toda azulejada, communicando e prolongan-
do*«e com o refeitório, mede 220 metros quadrados.
Tem nas extremidades duas . grandes chaminés, fo-
gões, engenhos para o levantamento dos caldeirões e
pias de granito; ao centro quatro mesas de wttoareo
branco.
A este ligam-se muitos e variados compartimentos
para depósitos geraes das ucharias, divididos por exten-
sas corredores de fácil communicação, saguões* escada-
rias; que levam ás cellas e aos terraços, numa rede ad-
miravelmente alumiada e bem distribuída.
No topo do refeitório fica-nos a casa De profundis*
com 242 metros quadrados, e em seguida a do Jmwío-
rio, de forma octogona, guarnecida de lavatórios de már-
more e torneiras de bronze,
É ainda ao norte do corredor das Aulas que Dcam a
Enfermaria e as casas dos convalescentes, para onde
se soba por escadaria egual ã que communica com o
mesmo corredor, ao vír-se da sacristia. A enfermaria,
que é a mais vasta, occupa um quadrilongo de 28á me-
lros quadrados, está cercada de beliches, e tem no topo
principal um altar, ornamentado com duas columnas de
MOTAS AfAFtt
mármore vermelho, um quadro da Virgem, 3. José e
anjos, festões de bom acabamento e ura frontio, como
*
* #
Passaremos agora ao que se ebama a yortaria-mór
do convento, situada na face lateral do sul, por ser uma
das soas portas que mais nos chamam a atteoçáo, e
d9abi aos dormitórios.
Um bom pórtico de mármore, erguido exteriormente
sobre quatro degraus, e fechado por cancellas de ferro,
dá para o vestíbulo vasto, de ornamentaçio simples,
pavimento xadrezado e lados gaaruectdes de bancos
também de mármore.
Pela porta do íondo, entrámos n'ura pequeno corre»
dor, e passaodo por outra meHo bem festonada, che-
gámos a om salio de 474 metros quadrados, pouco en-
feitado, com abobada em arcos, que vio apoiar-se em
dmatba ornada de filetes, chamada a com 4$ entrada
da portarianuór, e ladeada, como tal, de bancos de ma-
deira das terras de Santa Cruz.
O pavimento obedece ao gosto do anterior, e as ca-
beceiras apresentam dois bellos qaadros da escola ro-
mana, em moldaras de mármore azai — A Virgem,
Menino e Santo António, assumpto já tio repetido, obra
do portagaez Ignncio Bernardes — o Cbriato irado» a
Virgem sopplicante, ao pé de S. Domingos e 8. Fran-
cisco ajoelhados em oração, valiosa pintura do italiano
Pedro Manehi.
Sio muitas as escadarias, que dSo accesso aos dife-
rentes lugares e pavimentos do convento; a principal
porem, a mais notável, om soberbo exemplar do gene*
re, é a que vamos encontrar, saindo da casa de entra-
da. Gompoem-na varies lanças de 9 degraus de mar*
more, inteiramente ladeado de balaustres da mesma pe-
dra, partindo em sentidos oppostos, eocontrando-se nee
patamares, alumiados per grandes janelias.
HAF1U kêi
Duas lanternas, colloeadas nos terraços, d'oade par-
tem cadeias de ferro, que segaram dois volumosos can-
dieiros de metal, acabam de dar uma luz abundante a
todo este magnifico corpo, com o qual communicam o
pavimento térreo— onde, alem de outras divisões, exis-
tem os cárceres — e os três que se lhe seguem oceu-
pados pelos dormitórios.
Estendem-se estes em corredores de 170 metros de
comprido, ladeados de celtas, as melhores e mais espa-
çosas que temos visto, pois medem 6 metros de longo,
e sSo todas~aclaradas por uma boa janella. A disposi-
ção d 'estes corredores, as suas communicaçfós fáceis e
correctas, em todos os andares, o local das escadas, a
distribuição das sentinas e os próprios espulgatorios —
obedecem a uma combinação perfeita, irreprebensi-
vel. :
Teem originalidade os taes espulgatorios; sSo um cu-
rioso appendice a tudo quanto a imaginação fradesca
inventava para sua coaamodidade e regalo; e todos os
podem ver em ead# um dos corredores, ao parar diante
de umas casttas, que em lugar de soalho mostra» umas
grades de pau, aonde os religiosos sabiam para sacudir
a roupa, ou mais ctaramento as pulgas, como indica o
Dome.
Os que tanto se emportevam com a safraçf o das al-
mas, em geral, e com o bem-estar do seu corpo, em
particular, não se podiam esquecer de um condimento
delicadíssimo para a vista e para o ol fato— um jardim
ioterior, que se disfructa das ptatibandas dos terraços
e das 346 janellas e portas, applicadas ás jceHas e á bi-
bliotbeca.
Compõe-se o jardim, estabelecido a meio do conven-
to, de um quadrado de< 00 metros* por baoda; 8 ruas
convergentes ao centro, onde brttba um lago; cascatas
j&m forma de concha, vasos e assentos lateraes.
Concluiremos n'este ponto as rápidas notas, dedica-
das á parte monacal d'esta grandiosa fabrica, habitada
até. Dh José por 300 <faaneif casts, e em seguida pelos
MS MOftfSl LÁPIS
cónegos regrantes de S. Agostinho, como afras fica di-
to; om mundo de edtflcaçlo, qoe só o tradicional des-
leixo, ignaro e vil, dos nossos governantes pode deixar
sem aproveitamento condigno.
IV
O palacie.- tareias.— Capalla raaL— DihUetfceaa
Carrilhões a terraços. — Aproveite-se o **e é MtavsL
Copfroitos entre Mafra e o EscariaL
A entrada principal, destinada á parte oocopada pelo
palácio, faz-se por dois pórticos dóricos, qoe dSo para
os vestíbulos, cobertos de abobada, sustentada em ar-
cos, e inteiramente egoaes nas soas proporções e feitio.
Na face lateral de cada om começa a sumptuosa es-
cadaria, repartida em quatro lanços de 24 degraus de
mármore, muito bem Hloroinados por janellas de largas
dimensões.
Três lanços dio para o átrio, quartos de emprega-
dos, enfermaria e capei la, conforme os aodarer, e o ul-
timo abre de um lado para umas escadas, que sobem
aos mtziamnos, no ultimo pavimento, pequenas casas
e corredores sem importância, collocados discreta e ar-
tisticamente, ao que parece, para apoio das abobadas
dos terraços; e do outro lado por três portas egoaes
para o palácio propriamente dito, que está em commu-
nicação directa com a egreja, pelas tribunas e corredores.
Chegando abi, e caminhando até ao ponto extremo,
hmça-se a vista sorpreza para uma importantíssima Hnha
de salas, que se prolongam por toda a frente do edifi-
cio, na extensão de 120 metros, e obtena-se « *oo§r-
mação plena da soa extraordinária grandeza.
Ao centro desta enorme galeria, está a cada efetette-
dictione, a melhor do palácio, de 174 metros quadrados,
abobada apainetada de mármores de cores em belBssi-
mo mosaico e apoiada em pilastras lateraes, pavimento
a rivalisar com a abobada, janellas rasgadas, tendo a
do meio 6 metros de altura e a famosa varanda assente
na pedra, que em 4 de largura e 8 de comprimento
preenche o espaço de 32 metros quadrados, e gastou
6 dias a vir do Pêro Pinheiro, puxada por tOO juntas
de bois.
No lado da egreja, tem a sala e as tribunas, que de-
frontam com a capella-mór; nos ângulos internos duas
escadas dando para os corredores cavados na parede,
que levam aos órgãos, ás tribunas do corpo do templo
e ás capellas do cruzeiro, n'um abraço de architectura
muito para ver e admirar.
Gomo vestíbulos desta balia sala, ficam^be aos lados
dois compartimentos octogonos, egualmente xadrezaéefc,
o junto d'estes duas escadas concêntricas ás do átrio,
por fón&a tal e tão curiosa que dois indivíduos, subin-
do ou descendo para as naves lateraes do templo, aon-
de vfto ter, podem conversar, sem se verem.
As outras salas vastas e nuas, como se encoatram,
nada teem digno de menção, nem mesmo as pintoras
mithologieas dos tectos, insignificantes em geral*. Os
quadro*, que as guarneceram, importantes pelonunero
e assumptos, que se referiam aos homens principies
das nossas gloriosas descobertas, e pelos autores, que
foram Taborda, Foscbini, Callisto, Sequeira e Cyrilto,
arrebatou-os D. João VI, na sua precipitada fofa para
o Bio de Janeiro, d'onde nunca voltaram.
Os torreões, situados nas extremidades da frontaria,
comprefaendem os aposentos reaes. O do sul tem a nova
sala de recepção, casa de jantar e outras de menor im-
portância, bem como uma capei la; o do norte- a Mia
de audiência, pintada a fresco, representando n» tecto o
NOlAfcAtLATO
4tyf*f* e, cemo contristo • eaee composto mitholopso,
nas paredes, figuras alegóricas de differentes Virtude*;
a sala ia Tocha, egualmento pintada a fresco, recordan-
do orna caçada de Diana, o banho das Nymphas, saiy-
ros e outros personagens fabulosos, e por ultimo segun-
da capeila e a sala da guardo..
O prolongamento dos ângulos comprehende uma lon-
ga série de compartimento*, que s2o, incluindo alguns
doa torreões, a pacte menos importante do edifício; o
qoe nío estranhámos, divergindo da opinião de muitos
visitantes, porque os reis, dispondo de um pessoal me-
nos numeroso que o dos frades, não tinham como estes
uma. residência permanente alli, onde se lhes offerecia
alojamento condigno na galeria da frente, vasta, e beHa
ainda boje, e sumptuosa, quando estivesse guarnecida
de bons moveis.
No lado norte, eneontra-se a capeila rêah recommen-
davel pela pintura da abobada, altar fechado por balaus-
tres dê calcamos de cores, bellissimos arabescos e fes-
tões» colomnas de mármore côr de rosa com capiteis
caprichosos, sustentando um frontio de mosaico sobre-
posto ao quadro da Virgem, qoe tem na parte inferior
uma cornucopia de calcarão branco, erguida em fundo
de pórfiro feldspathico, ou duríssimo, d'ondo &aem flo-
res e froctos. A banqueta é também de rocha feldspa-
thiea, ou eurite, o frontal de precioso mosaico. Os qua-
dros lateraes, entre que se contam a Coroação da Vir-
gem de Giaquinto Corrado, o Lava-pé$ de Quillard» a
Conceição de Sebastião Conca, N. Senhora e o$ marty-
re* de Agostinho Massuci e a Sacra família de Vieira
Lusitano, como mais correctos — pertenceram aos altares
do templo, antes de serem substituídos pelos retábulos
de mármore.
Esta capeila é uma das melhores peças e a mais va-
liosa, pala decoração, entre, todas as do palácio, qoe es-
tá qoast por ioteiro despido de mobílias, e que se nio
Mcommenda peias pinturas.
Aquelles aposentos desertos ressumbram pexadume,
MÀHU
bafio, humidade e tristeza, apesar da uns pobre* ador-
nes, que em alguns d'elles parecem indicar am aerviço
temporário, durante es pasaeioe e caçadas das peama
reaea, por Mafra.
*
O extremos lateraes do prolongamento do palácio ter-
minam em duas salas eguaes, que servem como que de
antecâmaras á bibliothêca, situada 6obre a habitação dos
frades em parte do corpo saliente, que figura na quar-
ta linha do edifício, parallela á da frente. «
Esta peça oruciforme, aclarada por 50 janellas ordi-
nárias e de saccada com balaustres marmóreos, eaten-
dendo-ae num comprimento de 88 metros, afastando-se
da linha rectangular ao centro, onde quatro arcos sus-
tentam a abobada, aformoseada a meio e a 13 metros de
altura por largo circulo de mármore festonado, a emol-
durar o sol dardejaute — forma o salão de biblietheca
mais vasto, mais bem illuminado e magestaso que le-
mos visto; o que é fácil deprehender da sua capacidade
tão simples como grandiosa, espalhada na enorme su-
perfície de 836 metros quadrados 1
O chão, obedecendo ao revestimento das partes mais
notáveis do edifício, é de bello mosaico de mármores
de cores, variado ao centro, de modo a produzir o ef-
feito de uma alcatifa caprichosamente bordada. Cento e
cincoenta estantes guarnecem as paredes, em duas or-
dens, uma que sobe a 4 metros de altura até uma es-
paçosa e elegante varanda balaustrada de formosa obra
de talha, e outra que se eleva d'ahi para cima, circulan-
do ambas as faces lateraes e os desvios symetrieos 4o
centro.
As estantes teem uma simples pintura de branco» co-
mo base dos dourados e alindamento, que se não che-
garam a fazer, e conteem a importante colleccão de 30*000
volumes pacientemente distribuídos por matérias, em
aiwumação aipbabetica»
466 MOIA0 A LÁPIS
Fm pena o desaproveitamento de ião grande numero
de livros, entre os quaes, não faltando dos assumptos
meramente tbeologioos, ha velames de scieocíis, letras,
industrias, artes e officios, em muitas línguas e em lar-
ga copia, luxuosas edições latinas de 4470, incluindo as
de Virgílio e Ovídio, illuminuras, chronicas, pinturas
numismáticas e um dos mais nitidos exemplares dos
Lusíadas do morgado Matheus.
Em assumptos religiosos, notam-se grande variedade
de bíblias il lustradas e outras de muito mérito, entran-
do como principal a polyglota, a que a bibliograpbia dá
um grande valor; a phisíca sagrada com bellissimas es-
tampas e alguns manuscriptos ricamente illuminados so-
bre pergaminho.
Gomo livros de consulta sobre assumptos de letras e
e artes, seriam elles mais um opulento subsidio para o
museu, a que alludimos, depois de bem descriptos no
catalogo geral dos objectos expostos.
Cremos bem que nio se fará isso nunca, nem se da-
rão ao edifício de Mafra a importância e o aproveitamen-
to, que merece; em primeiro lugar pela feição dos nos-
sos hábitos de gente amollecida, e depois pelo vermos
esquecido no traçado do caminho de ferro de Torres,
quando para o maior numero de visitantes è tio moro-
sa e cara uma viajata de Lisboa alli.
Besta-nos subir aos terraços, que formam a cobertu-
ra geral do edifício, por qualquer das suas dtfferentes
escadas, para gosarmos um variado e attraente panora-
ma, que se abre desafogado e vasto em torno de dós,
e para lastimarmos as deteriorações infiltradoras das
aguas pluviaes, destinadas a conspurcar as paredes dV
quetta fabrica gigantesca, e a preparar-lhe uma ruioa
lastimável em praso mais ou menos remoto» pelo inoor-
MAFRA 467
rigivel desamor, com que se costuma olhar para a con-
servação dos nossos monumentos.
De caminho, entraremos nas doas torres, onde negre-
jam 114 sinos de differente capacidade, divididos por
egual. O maior em cada uma d'ellas pesa 42,000 kito-
gra romãs, é tocado por um badalo de 280, e tem dois
metros e tanto de diâmetro e uma altura ainda maior.
Nas festividades dobram todos ao mesmo tempo, for-
mando um conjuncto de sons atroadores, que se ouvem
u'uma distancia de 45 kilometros.
O sino immediato em volume pesa ainda assim 40,000
kilogrammas; é o chefe dos 48 que formam o celebre
carrilhão, e vão diminuindo em escala chromatica, cor-
recta e afinada, até ao Ínfimo peso de 30 kilogrammas.
Todo o machinismo é sustido em vigas de ferro, que
se apoiam em pilastras e columnas do mesmo género,
com capiteis compósitos de bronze, e divide-se em duas
partes— a que pertence ao relógio, que pode dar os
quartos e as horas, por meio de desarmes próprios, e
fazer tocar todos os sinos, o que acontece em occasião
solemne— e a que diz respeito ao cylindros do carrilhão,
dois corpos enormes de 4m,8 de diâmetro e 2*,4 de
comprido, á maneira dos das caixas de musica.
Partem (Telles uns arames, correspondendo aos seus
dentes e presos superiormente a martellos exteriores e
badalos interiores, em numero de 96; os quaes arran-
cam as notas de quatro peças de musica, executadas
automaticamente e escriptas em 50 compassos quater-
nários cada uma. Os registros são dois em cada cylin-
dro e eguaes portanto ao numero de peças, tocadas pe-
los 48 sinos.
Alem da forma automática, que não pode passar das
quatro musicas diffe rentes, funcciona o carrilhão por
meio de um teclado de 4 oitavas, prolongado no inte-
rior de uma caixa de ferro, apoiada em cariatides da
mesma matéria.
As teclas apresentam duas ordens distinctas; da ex-
tremidade de cada uma parte um arame, que, passan-
NOTAS A LÁPIS
6o por diversos jogos de alavancas, vae prender aos
martellos dos sinos.
O eiecutanto, que pode desempenhar qualquer mu-
sica, sem variações, attenta a natureza do instrumento,
escripta nas duas claves sol e fá, nSo excedendo a 4
oitavas — assenta-se como se fora diante de um piano, em
banco elevado, mette os dois dedos das mios immedia-
tos 90 polegar em luva de couro, e com elles bate pesa-
damente nas teclas da primeira ordem, que correspondem
á mio direita do piano, e com os pés fere as da segun-
da, correspondente á esqoerda, produzindo assim as
notas graves, medias e agudas, como e quando precisa.
Os cylfndros e as rodas de bronze, adaptadas a eixos
de ferro polido, os teclados de aço, a complicada rede
dos arames e correntes diversas, as alavancas, as figu-
ras e ornatos, o relógio com o seu grande pêndulo, os
enormes pesos de chumbo suspensos de grossas cadeias,
os cordames e manivelas e as outras peças de dififerente
applicação, peso e metal, que se calcula em 217,000
kilogrammas — compõem no todo 5 jogos distinctos de
movimento, quartos, horas, e desempenho das musicas,
e completam um mecbanismo collossal, admirável e
complicadíssimo, que se mostra egual em ambas as tor-
res, divergindo apenas, quanto ao relógio, no dar as
horas, na torre do sul, ao uso commum; e qa do norte,
segundo o systema romano, isto é, por metade, seis ao
meio dia e outras tantas á meia noite.
Qual foi a cifra real d'estas enormidades mechanicas,
mandada a Nicolau Levache e Guilherme Withloch, fa-
bricantes de Antuérpia?
Diz-se que, remettido o plano para a cidade belga, se
fizera a encommenda de um só carrilhão, e que, com-
pulsadas as difficuldades e a importância da execução,
os artistas desconfiaram de que o monarcba portuguez
n5o tivesse dinheiro para tanto, ou que n§o soubesse o
que encommenda va, ao fixarem o preço nmimo de um
milbfio de cruzados. Declararam pois a quantia, e pedi-
ram resposta para seu governo.
majtcá 469
O rei, offendido no seu caracter faustoso e no sem
provado amor próprio, mandou responder: — Não cui-
dei que era tilo barato o custo de um só carrilhão; man-
dem-me dois.
E' isto o que a tradição nos conta, e a ser exacta
quanto á cifra despendida, resulta-nos a elevadíssima
verba de 800:0000000 réis, para dois únicos objectos
dos muitos que adornaram e adornam ainda o convento
de Mafra.
Juntando a isso os paramentos e mais adereços do
culto, os quadros e pinturas fixas, as mobílias e a con-
strucçâo geral do grandioso edifício, podemos com fa-
cilidade imaginar uma somma extraordinariamente avul-
tada, excessivamente fabulosa.
Bem andou o seu fundador em destruir as parcellas
d'essa conta monstruosa, para que nas excavações bis-
toricas do futuro <se não lançasse a corvdemnação exacta
de tamanhos desperdícios !
A edificação de Mafra foi, incluindo outras, o resul*
tado das tendências fanáticas de D. João V? foi uma ne-
cessidade do seu temperamento perdulário e gastador ?
o característico do seu tempo? um escrúpulo de con-
sciência, ligada a um voto solemne? um capricho de or-
gulho? uma demonstração de fausto mal entendido?
uma superfluidade ruinosa e desnecessária? uma crea-
ção monstruosa, que nos levou o oiro das nossas coló-
nias mais ricas e toda a somma depositada no nosso
erário ?
* Foi tudo isso; e é hoje para o fim, a que se destina-
va, uma grande inutilidade.
Pois conserve-se essa inutilidade, e dê-se-lbe uma ap-
pHeaçio conveniente, que a pôde e deve ter, pois nfo
abundam no paiz edifícios d'aqueUa vastidão e solidez I
Tiremos alguma coisa boa do facto consummado, a
470 MOTAS A LAMS
que as nossas declamações hodiernas nfo valem» nem
aproveitam, e envergoohemos-nos de que os remediáveis
destroços do tempo se mantenham alli, como em coisa
abandonada, e que as chovas, como acontece já no beUe
recinto da egreja, tenham o encargo de lavar e destruir
os mosaicos variegados dos marmorbs nactooaes, os ca-
piteis festonados, os retábulos preciosos, as arcarias
msgestosas, por onde se espalhou á larga orna enorme
porção do nosso dinheiro.
Quando nós, i imitaçio da nossa visfeba Hespanha,
para não ir mais longe, creassemos um curso completo
de artes e officios, nenhum alojamento melhor poderia*
mos encontrar, porque alli ba muito espaço, havendo
muito que ver e admirar em todos os ramos, que se
ligam ao estudo d'essas variadas matarias»
Quando mais nio seja, repetimos o que dissemos
n'outro lugar, o edifício de Mafra, com todo o que tem
dentro e o mais que andará por fóra — pode rapidamen-
te constituir-se n'um dos mais curiosos e ricos museus
do nosso paiz, oude elles nio primam, nem abundam.
Que nos vale o saber o custo da sua construcçio, o
fim a que o destinaram, e a prosápia ou sentimento,
que lhe deu origem?
O certo é que elle existe; que é notável como edifí-
cio e como atestado da opulência dos nossos calcarees
' e da intelligencia e aptidões de muitos dos nossos ar-
tistas; que está ainda de pé, e que é necessário conser-
vado assim, utiHsando-o ou nio, para que nos não cha-
mem os bárbaros inconscientes, os iconoclastas estere»
e burlescos do meio dia da Europa» em pleno século
dezenove.
A verdade é que, ao sair d'alli um tanto estonteado,
após uma visita de meio dia completo, vínhamos con-
vencido de que também possuíamos um Escuruú.
Pouco nos emportava saber o tamanho da honraria,
MiFEA 471
qo* «os provem d'ahi, mus folgámos em reconhecer a
razão, que assistia ao nosso compatriota, quando noa
dizia em Hespanha: —Suspenda o seu juízo até que pos-
sa visitar a nossa Mafra.
E, posto isto, passaremos a fazer rápida e succinta
exposição dos pontos de contacto entre as duas notar
veis edificações, e das vantagens, em que se pode fir-
mar a sua rivalidade, como simples objecto de curiosi-
dade e nada mais.
Occupam ambos os edificios a superfície de 45,000
metros quadrados, com mil e tantas portas e jaaelías e
as torres da mesma altura. O Escurial, medindo 235
metros de frente e 191 por banda, è mais largo e me-
nos comprido; Mafra, tendo 220 por 205, é mais com-
prido e menos largo.
A favor do Escurial, contaremos— o numero e qua-
lidade das suas pinturas» o coro, a sacristia, a magni-
ficência do pantbeon dos reis, a collecção de impressos
e manuscriptos, os pannos de Arraz, a quantidade de
objectos espalhados por toda a parte, o seu estado de
limpeza e asseio e por ultimo a sua pittaresca e bellis-
siaa posição.
Contra — o seu aspecto, a feia e mi qualidade de sua
pedra berroqueoba, o tamanho das suas portas e janel-
las, a má qualidade das estatuas» a collooação do pan-
tbeon e a inferioridade do palácio.
A favor de Mafra — o regular do edifício e a sua di-
visão interior, as torres e carrilhões, a profusão e a bel-
leza dos mármores, a vastidão das salas e dormitórios,
os vestíbulos, as janellas, portadas e cantarias, o local
e a qualidade do palácio, os subterrâneos, os paramen-
tos, alfaias e a distribuição de luz, que forma assumpto
de verdadeira admiração»
Contra —o vasio das suas salas, uma parte da edi-
ficação a menos, bem occupada pelo jardim interior, a
chuva que lhe vae destruindo algumas das suas partes,
a começar pelo templo, e a sua má posição, que o não
deixa brilhar a distancia.
4fS MOTA» A UttTS
A egreja bespanbola, formando cruz grega, 6 maia
larga e escora; a portagneza, pela soa craz latina, é
mais elegante e tem melhor luz.
O Escoriai» pela época atrazada da soa constroeçio,
que Ibe attenoa om pooco as irregularidades, e peio seo
estado actual, pode arrogar superioridade.
Mafra, em atteoçio ao seo material e divisões e i hu-
mildade da ordem, a que era dedicada, pode conside-
rasse muito mais faustosa.
Aos edifícios, como obra dos homens, acontece-lhes
o que se dá com os indivíduos, que se hão de distin-
guir sempre, por mais que tentem nivelar-se. Une pri-
mam pela intelligencia, outros pelos dotes moraes; es-
tes pelo bom gosto, aqoelles peto bom senso; taes pela
bondade de caracter, economia e trabalho, muitos pela
proéfeaMade e pelos mãos fastinetos.
Os homens e os ediBdos, retratam e immortalisam
oma época, com as soas belletas e os sem defeitos.
Em presença pois de dois vultos, que podem arro-
gar circumstancias completas de rivalidade, quando se
procura dar~lhes <palificaç8o dtstinota, não é faeil a ex-
htbição de um juízo seguro, vasado muito embora nos
moldes de oma perfeita imparcialidade.
for se fazer muitas vezes, nio deiía de ser tarefa ár-
dua e diffieilima, de que podemos prescindir no caso
presente, pelo caracter singelo, superficial e despreten-
cioso, dos nossos apontamentos.
PA8SHtlM» A OàGBRES 493
PASSEIO RÉGIO A CÁCERES
Prologo.— Ne caminho.
Sm Valenoia do Aleaatara,— EflUuMiatme pgpalar.
Aposta entre camponesa*.
Bafe e povo*— Ctara, éesorfeniaayio e Une.
O prologo desta narrativa paasou-se no eseriplerio
do Oerrmo da Noite* na antevéspera da partida do com-
boio real para Valência de Alcântara, onde oe das «o-
narobas da península deviam encontrar-«e, para inau-
gorarem a linba Corrêa de Cáceres, a convite de Segis-
muado Moret, engenheiro chefe da respectiva- compa-
nhia,
O desejo de assistir a mais uma festa em terras de
Hespanha, onde eltas de ordinário costumam ser calo-
rosas e cheias de tons irradiantes, que estabelecem en-
tre nós e os nossos visinhos uma differença de caracter
expansivo, muito de notar em povos, cuja ascendência
e tradições se confundem, e entram desassombrada*
mente por um período de muitos séculos — levoa-oos
a traçar o plane d,easa pequena viagem a uma parte
da Extremadura.
Em conversa com Eduardo Guimarães, que tenciona-
va faaer parte da unprenea, representando o Pr*grma>
411. ROffàt A LâftS
jornal muito bem cabido» pelo aeo nome, n'umá verda-
deira íudcçío de adeantameuto social, commanieáaio* a
nossa tenção, e falíamos na compra antecipada de um
bilhete.
— Nio ba veoda de bilhetes— respondeo-oos elle —
nem outros passageiros que nio sejam el-rei, a saa co-
mitiva e alguns convidados, em que entram os adega-
dos da imprensa.
— Nio sabia d'isso. Confesso-me nm tanto contrariado.
— Ê fácil remover aquillo, que te parece um obstacolo.
—De que modo ?
—Indo como delegado do Correio da NoiU, de qoe
nio ba representante.
—Delegado de um jornal politico, eu ?
— É meio tão simples como o fim, que se qaer con-
seguir. Nada de escrúpulos. Bem sabemos que te é ín-
differente a politica.
—Nem 4anto. A minha falta de aggremieçãa* qual»
quer dos partidos militantes nio quer dizer uma abs-
tenção completa.
—Então és intransigente, ou meramente utopisia.
—O utopista é sempre intransigente. Se .o acreditar
n'oaa pronunciada degeneração do nosso meio social, %
o não adherir a elle senão por um protesto simplesmen-
te tácito e individual podem significar tudo isso, serei
ambas as cousas.
—Uma representação nominal de jornalismo, durante
algumas horas, não irá deslustrar aa tuas convicções.
E o caso urge. É preciso resolver.
A «cellente companhia do noseo amigo èra, acima
de tudo, o melhor incentivo para uma deliberação que
se nio demorou.
Acoeitámos; e meia bora depois da meia noite de 7
de outubro de 1881, lá seguíamos no comboio real, que
se componha de um carro de bagagens, precedendo a
machina, dois salões para a direcção do caminho de ferro
e chefes do serviço, duas carruagens de primeira classe
para coaridados, fiscats do governo e officiaes de el*rei,
PA88UO IMO A GACKRES 475
o salie de Soa Magestade, três salões para ministros,
camaristas e conselho administrativo da companhia, um
carro de primeira ciasse para a imprensa e outro de
segunda para os correios e empregados do movimento;
om comboio ftustoso a regorgitar de fardas e plumas,
gatões dourados e casacas pretas.
A imprensa, entre a qual se nos depararam bons
companheiros da viagem calderoniana, representava
uma colónia folgasã e pacifica, onde todas as idéas se
haviam dado tréguas, estabelecendo substanciosa alliança.
A regeneração dava mãos á imparáalidade, a utopia
gargalhava oom o progressismo, este com a republica,
que não era a menos risonha, embora passeiada em
trem régio, uma anomalia devida necessariamente á for-
ça das circunstancias.
Apezar de tantos elementos contrários, nunca se fez
viagem mais segura, porque alem da macbina de explo-
ração, qae, preeedeiido-nos, assegurava o bom estado
da via férrea, havia de distancia em distancia vigias ex-
traordinários com archotes accesos, tropas nas estações,
musicas e iHominações festivas.
Ás 7 horas da manbi, parávamos na estação de Cas-
tetlo de Vide, a aoMquissima viita alemtojana, pátria de
Goaçato Ames, om dos beroes de Aljubarrota, em 1385,
e de grande estadista moderno Mousinho da Silveira,
cujo solar vae buscar a sua origem a uma época ante-
rior i constituição da mooarchia.
O espectáculo era gracioso. O 4 povo, com os seus
melhores trajes de gata, apinha va-se na estação, que
fica a considerável distancia da villa; parte formava oor-
tojo ás autoridades locaes, parte dominava as saliências
da encosta; mulheres e rapazes, trepados aos muros e
aos carros, que estavam parados na liaha, acoenavam
com os lenços e os barretes, e juntavam ruidosos vivas
aos da muKidão, que se apertara mi torno; laneeiros e
cavaUaria 4 faziam continência; duas philarmonicas to-
cavam o bymoo real.
Saodaftdo o vetusto caeteHo, aitóado n* Gumieda de
47* mau a iim
om cerro, que domina a povoaçio, de si mesma eslreí-
tada por montanhas, posemos-oes dentro de posto ta»»
po em vigoroso andamento, parando is .8 bocas, a uns
12 kitometros da raia, em Marvio, ultima estaçío por-
tugueza, collocada também om tanto longe da vetea lo-
calidade, qoe demora na vertente da serra do mesmo
nome.
Era oeeasiio de madar de trajes, para quem tivesse
de fazel-o, oa de endireitar collarinhos, e escovar a rock
pa, para os qoe não necessitassem da mudança.
Havíamos parado para isso; e bom seria apmeoter-
mo8HM>s aos nossos amphitriões coaa a maior galhardia,
da qoe fossemos capazes.
*
* *
Os vestuários da gente que corria a presenciar a pas-
sagem do comboio denuuciava-nes a aproximação da
fronteira. Exactamente a meio da ponta, lançada sobra
o Tejo, desde a época de Trajano, «alba a verdade, tinha
divisória dos dois paizes peninsulares, a municipalidade
de Valência de Alcântara tinha maodado levantar um
arco de folhagens e flores, com dois tacos escriptos, em
honra de D. Luiz, do lado do território português, e de
Affbnso XU, da parle de Hespaaha.
Um pouco mais, e estávamos na estaçi» d» Valendo»
onde formava um numeroso destacamento de guardas
civis, e onde soava o bymno portuguez.
N'um oampo próximo, estabelecera-se om vasto abar-
racamento, cheio de legendas, arcos trtampbaes e tendas
adornadas da colchas e paanos custosos, que cobriam
os diversos alojamentos para refeições o desoaoço, tremu-
lando sobre eiles as baodeiras das daas nacionalidades.
As tropas de misnteria e guardas civis, o povo, oa
trajes garridos de uns e outros, as musicas e os vivas»
erguidos ao encontro dos monarobas, acabavam de com-
pietar o quadro realmente ptttoreaee e formoso.
PAsm» amo a gacebbs €77
O séquito do rei bsspanbol era luzido e grande. A
apresentação dos cortea&s fez*se ao ar livre, simples-
mente, sen fornia exaeta de etiqueta.
A imprensa e maia convidados, que em rigor só por
accidente faziam parte das comitivas regias, na oecaaiio
do almoço, tiveram de aecomodar*se como poderam,
porque os preparativos e boa vontade dos promotores
da festa não conseguiram evitar uma certa desordem
no serviço;
Dado o signal de partida, os reis e todos os seus com-
panheiros tomaram lugar no comboio hespaohol, por
entre as acclamações ruidosas dos que ficavam, caloro-
sas demonstrações de enthusiasmo, que se repetiram
durante todo o trajecto, especialmente na estação de
Herrernela, onde éramos esperados por extraordinária
multidão de gente, camponezes de uma apparencia ty-
pica, quanto aos trajes, mulheres adornadas com ves-
tuários de todas as cores e matizes garridos.
Incluindo as magestades, todos os passageiros iam ás
portinholas das carruagens, a cuja plataforma, ao parar
do trem, correu muito povo, soltando exclamações de
alegria.
— Ai! Gomo são bonitos os reis — diziam uns.
—Onde estão eltes ? — clamavam outros, confundidos
com tamanha quantidade de fardas e chapéus armados.
—O' senhor — pedia-eos uma mulher, cercada por
toda a família — nós somos de muito longe; viemos
aqui só para conhecer os reis ; diga-nos onde estie. Sio
aquelles ?
E apontava para dois officiaes emplumados, na ver-
dade mais epparatosos que os próprios monaroba*.
Desfeito o engano, foi o caso de novo pasmo, que valia
um preito de verdadeira adoração.
— Es verdad. Alatmdo sea Diosí Como $on bonitos t
ff guapos los reges t — clamou a mulbershiha, de mios*
postas, sem fazer caso dos empurrões que levava.
A este tempo faltava D. Affonso, debruçado da por-
tinhola, a opa grupo de camponeses» que haviam trepado
UB HOTAi A fcál»
á plataforma, e tregeitavam, gritando, aeotovetado*e,
6 estendeodo as mãos calpsas para o monareba, qae
lh'as apertava com effusio, do qoe 1*9 secundado por
el-rei D. Luiz, a quem os bomena se dirigiam egoal-
mente.
—Foi ea — gritava um»
—Foi eu; fui eu, senhor— berrava ootro, estendeodo
as mios possantes, para que lta'as apertassem lambem.
— Viva nuestro padre I — exclamava outro, atirando
o chapéu ao ar.
— Vwon lo$ reyes— acciamaram todos, num òettrío
cbio, sincero, expansivo, commovedor.
E pediam para os abraçar, e quiseram saodal-os de
perto, e empurravam-se, e teimavam, e soltavam pala-
vras de amizade entbusiastica, como se as dissessem
aos seus eguaes.
Bello e enternecedor tudo aquillo !
Fora o caso.
Ao passar para Valência de Alcântara, o monarcha
bespanhol soubera de uma aposta feita entre alguns po-
pulares, que nunca o haviam visto nem em retrato,
aposta que passaria ás mios do primeiro, que o distin-
guisse entre os numerosos persooagoos do seu séquito.
Na volta para Cáceres e ao chegar, vendo o açodamento
daquelle grupo, que pretendia tel-o reconhecido á pri-
meira vista, acercou* se da portinhola, e perguntou com
o seu sorriso sympatico e franco pelo resultado da
aposta.
Os camponezes agradavelmente surprehendidos péla
amável interferência do rei n'uma particularidade, que
só eltes julgavam saber, possuiram*se de extraordinário
jubilo, e d ahi o fermento principal das suas acctama-
ções sinceras, dos seus regoséjos pacificamente tumul-
tuosos, das suas expansões verdadeiramente ruidosas e
boas, uma disputa calorosa e os gritos apressados de—
Fui eu, senhor; fui eu; e eu também; e nós que o co-
nhecemos logo; e mais aquelle, e mais aqueloutro.
Se os reis nem sempre podem romper pela etiqueta
PAS8M0 IBfilO A CÁCERES 419
de tradição» por causa dos dasasisados e importunos,
que vêem o'elles a fonte inexgotavel de todas as mercês,
venturas e proventos— bem fácil se lbes torna a popu-
laridade, desde qúe desçam a intervallos, sensatamente,
em accidentes imprevistos, até ao coração do povo, a
eterna e rude creança, capaz de todos os desvarios e
estroinices, quando a maltratam ou a não sabem guiar,
propensa a todas as exaltações generosas e a todas as
demonstrações de affecto, quando o respeito calculado
e o carinho sincero lbes sabem impor bondosa e doce-
mente a força dos seus attractivos conciliadores.
O quadro, com que, n'uns desvarios de sonhador hu-
manitário, nos enternecêramos também, dava-nos a me-
dida exacta de umas verdades que, por muito assentes
já nos moldes da regeneração social, não podem ser con-
tradictadas.
O dia até alli um tanto carrancudo, mas sereno, tol-
dara-se a pouco e pouco, de modo que ao aproximar-
nos do termo da viagem, começou a fustigar-nos uma
chuva miúda e constante, que ainda engrossou levemente
ao chegarmos a Cáceres, onde ella se fazia sentir desde
a véspera.
Foi uma contrariedade, que rapidamente se apoderou
do animo de todos.
Ao primeiro silvo do comboio, algumas peças de cam-
panha deram a salva da etiqueta; as autoridades civis
e militares e o bispo de Placencia, á frente dos solda-
dados de linha e guardas civis, que faziam as honras
devidas, esperavam os régios personagens.
Feitos apressadamente os cumprimentos, por cansa
da chuva, que teimava em lançar uma triste nota em
tão festiva solemnidade, procedeu-se á benção das loco-
motivas.
A estação bellamente adornada apresentava no extre-
mo da linha uma larga tribuna descoberta» onde havia
410 NOTAS A UW*
somente doas cadeiras de espaldar, para os monarcbas
que se não sentaram. Á nota lamacenta da chuva jun-
tou-se o burlesco dos chapéus abertas e calças arrega-
çadas. Tudo se passou de pé e rapidamente. Às loco-
motivas embandeiradas avançaram arquejando; o bispo
já de antemão paramentado laoçou-lbes a benção; as
macbinas apitaram e as musicas romperam o bymno na-
cional, seguido de vivas e felicitações.
O estrado, onde chovia incessantemente, ficou logo
deserto, e ninguém mais se entendeu d'ahi por diante*
Depois da partida dos reis, a confusão e o desnortea-
mento, devidos, é força confessal-o, á má organisação
dos commissionados subalternos, encarregados da hos-
pedagem aos convidados, foram completos.
A cidade ficava a pouco menos de um kik>mfttr*4e
distancia; a estrada mal macadamisada de frasco forma-
va rigueiras de agua barrenta, que descreviam estrava-
gantes figuras geométricas, invariavelmente bordadas de
lama espessa e pegajosa com altura de uns dez centí-
metros.
Daqui a melhor pincelada cómica do caso.
Tinham-nos dito em Valência que nos seriam foaw-
cidos bilhetes para hospedagem, direcção» entrada nos
divertimentos e reuniões solemoes.
Não appareceram bilhetes; ninguém nos sabia dizer
cousa alguma a tal respeito; nos poucos carros que ti-
nham chegado á estação, porque a cidade não possuia
mais, haviam partido autoridades superiores e chefes de
estação.
Uma desordem absoluta.
Alguns dos nossos companheiros, que olhavam uns
para os outros, sem saberem muito bem o que seria da
sua vida, deitaramse comnosco á estrada, a exemplo de
outros que nos haviam precedido.
Um bom dito humorístico de Eduardo Guimarães
desanuviou-nos a fronte, húmida da chuva, e li segui-
mos, de casaca e gravata branca, calças levantadas aci-
ma do tornozelo, botas a entrarem e a saírem descom-
1
PAsmo «KR* A CACKBES «81
passadamente dentre a massa da lama, como verdadeiros
siphões de esgoto.
A um cento de metros da estação lobrigámos um
char-á-bancs, que corria para dós á desfilada, entre nu-
vens liquidas de agua e terra, erguidas a grande altura
pelas rodas do vebiculo e pelas patas das alimárias, um
vigoroso reboque que ia empastando com regularidade
o cocheiro e a traquitana.
Soltámos uma exclamação estonteada, e dm cttftnnna
cerrada mandámos fazer alto.
—Senhores— exdamtrti o cocheiro— Mo devo demo-
rar-me; vou buscar Fulano e Beltrano. Mo pò&Sô con-
duzidos agora. Eu voltarei.
—Nada, não pode ser. Somos nós as pessoas que
você vae procarar-HMsfttiQo», e iMbàioe» o trert.
—Pêro, settores . . ..
—Hombre— gritou o Eduardo, encarapitado no estri-
bò— >llame usted um sacerdote, y dénos rápido la étuer-
te. Es mas suave que dejarnos aqui en este diluvio de
lama.
O cocheiro sorriu bondosamente» e retrocedeu srtn
mais palavras.
dl
482 MOTAA A. LAI»
Em Cáceres.— Peregrinação forçada.— Calote involuntário.—
Uma, tourada heipanhola.— Imperícia de Frascnelo.— Chuva
e carnificina.- Um encontro providencial.— Sagásta com-
notço.— 0 jantar.— Enthuiiaimos de Santamaria.— Um voto
á Divindade.
Pelo caminho fomos eocontraodo moita dos paren-
tes, que soUicitavam um lugar, que náo havia» invejosos
da nossa grande fortuna.
A velha cidade de Cáceres, a aoliguissima Castra
CacUia dos romanos, de que não sabemos se nos lem-
brámos então, regorgitava de povo e signaes de festa um
tanto demasiada, porque nio havia um só estabelecimento
aberto, onde podessemos escapar da chuva. Colcbaa ás
janellas, bandeiras hespanbolas e portoguezas, arcos e
galhardetes— tudo nos passou desapercebido; mal tínha-
mos tempo de olhar para o estado lastimável das nos-
sas pessoas.
Quando sob o alpendre do bel lo edificio moderno da
camará municipal, deitámos a vista em volta de nós,
só vimos o Eduardo, o nosso infatigável companheiro.
Os mais tinham desapparecido no turbilhão.
Defronte ficava a catbedral, onde a essa hora se ce-
lebrava o Te Deum. Entrar era impossível, tal era a
agglomeraçio de povo, que formava cauda até ás esca-
das da municipalidade.
— E agora ?— perguntei ao meu collega.
— E agora. • • é andar por ahi, a ver se deparámos
com alguém, conhecido ou desconhecido, que possa
orientar-nos n'este dédalo infernal.
PASSEIO ttttHtr A CÁCERES 483
E deitámos a andar pelas ruas e vielas próximas, onde
todos os estabelecimentos estavam litteralmente fechados.
Quando voltámos, descoroçoados, ao primeiro ponto,
havia terminado a cerimonia religiosa, e os reis e suas
comitivas tinham regressado aos paços municipaes, on-
de deviam jantar.
Subimos as escadas, e, ao encolher de hombros de
guardas e empregados, que iam e vinham, de um lado
para o outro, atarantados, esbaforidos, desandámos no-
vamente para a rua, onde por entre a multidão de curio-
sos não deparámos com uma cara conhecida.
Um café, uma tasca qualquer seria para nós uma nes-
ga das delicias do paraíso, a própria salvação. Princi-
piávamos a arrefecer, pela humidade da roupa; e uma
constipação por cima de todo seria um fecho de orna-
mentação pouco vistoso e nada de appetecer.
Procedemos a perguntas e indagações.
Sorríu-nos o sol da ventura. Indicaram-nos um lugar,
onde entrámos, uma reles e lobrega bodega, a cuja
balcão envernizado pelas sorosidades das mãos de não
sabemos quantas gerações, se encontrava uma mulher
tio madura como feia.
— Tiene usted algo que comer?
— P/o seftor.
—No hay licor? Café?
— Tan poço.
— Entonces ?
— De bebidas tengo vino y aguardiente.
— Vengan dos copas de esta.
Tomámos dois cálices de uma soffrivel aguardente
temperada com herva doce, e servida com o melhor
agrado d'este mundo.
Quando fomos a pagar uma quantia insignificantíssi-
ma, a boa da mulher disse-nos que não recebia moeda
portugueza, cinco tostões em prata; que satisfaríamos a
divida, quando cambiássemos o dinheiro ; o que nunca
chegou a acontecer, porque não tivemos necessidade,
nem maneira de o fazer.
484 wota* a lo»
Perdoe-nos a nossa amarei bospedrfra o calote Vo-
luntário, que nio sabemos como resgatar, visto que nio
tomámos nota da seu nome e morada.
Que a boa fonema dob leve um dia a Cáceres» para
completa rebabilitaçio do nosso credito» que deve an-
dar ao desbarato, pela primeira e única vez em nossa
vida!
#
* #
Como nos faltasse bilhete ou indicação para assistir
ao quer que fosse, tencionámos continuar a andar até á
noite, resolvidos a nio comer e descançar, por nio ter-
mos aonde
N'esta situaçio, servia-nos de refrigério a extrema
delicadeza dos naturaes, que nos indicavam as melho-
res mas da velha e tortuosa cidade, e abriam alas, á
nossa passagem» dizendo obsequiosamente aqui e aoolá:
— Dejen posar, que son portugueses. Vtean! Vioa P&r~
íugal !
Pela tarde, lembrámos-nos de que nas diversões fes-
tivas, destinadas a obsequiar os visitantes, entrava uma
luzida tourada, e de que a imprensa linha camarotes
especiaes.
N'aquelta caminhada ashaemca, sem norte, debaixo
de um chuvisco continuado, surgia-nos implacável a ab-
soluta necessidade de expedientes rápidos ; e nós, (pie
conseguíramos escapar aos espectáculos taureroacbicos,
na nossa estada anterior de muitos dias na capital bes-
panhola, viamosnos fatalmente ímpellido para uma cou-
sa, de que nos bastavam as descripções, pela repugnân-
cia que nos inspirava.
k necessidade nio é só inimiga da virtude ; obriga
os sequiosos a nio exclamarem: — Desta agua nio be-
beremos.
Agua em semelhante occasiio, era um modo de faltar,
porque d'ella Unhamos nós abundância em demasia nos
pés e no vestuário desordenado e húmido.
PASSEIO R*GK> A CMSRES
-Has 09 bilhete*? Cem© seriamos adroittMos á entra-
da? Onde era o circo?
Foi fácil sabel-o, como facílima foi a entrada para o
espectáculo, qne á nossa chegada já tinba começado ;
demonstração tacita, que. logo ao atravessar o primeiro
corredor para subirmos aos camarotes» nos fez o esta-
do de um pobre toureiro, que ia conduzido em braços,
por ter sido ferido na arena.
Para começo já não era mau. A obra predilecta dos
nossos visinbos apresentava um prologo divertidíssimo
e completo.
Uma estrondosa vozeria, entrecortada de exclama-
ções e brados, soava-nos aos ouvidos como bachanal
desenfreada, ás lufadas, em caudal possante jorrado
de milhares de boecas, que provavelmente se escanca-
ravam em saudações, consagradas á valentia do touro,
que prostrara o desventurado artista.
Ao entrar no camarote, onde só encontrámos gente
desconhecida, a vozeria descrescia; os exaltados, que se
tinham posto de pé, retomavam os seus lugares ; duas
mulas enfeitadas arrastavam da arena dois cavallos es-
tripados; dois criados cobriam de areia e serradura as
poças de sangue espadanado para a direita e para a es*
querda ; o touro, entretido pelos capinhas, escarvava o
cMo á espera de novas vtelimas; ia coatiauar o gracio-
so e substancial espectáculo, onde deviam entrar os pri*
meiros espadas nacionaes Frascuelo e Lagar tijo, vindos
expressamente para maior lustre da tourada real.
Quem não conhece este género bárbaro de espectá-
culos, tradição sanguinária, imitada dos lendários circos
romanos, fique sabendo que a manha e destreza* que
alli chamam arte, só pertencem ao espada, o matador
do touro; e que todos os artistas se podem chamar me-
ros comparsas, comparados coca etle.
D'ahi vem a fama, que lbes dá grande importância e
renome e abastança de verdadeiros príncipes e senho-
res.
• NSo somos por tourada* de nenhuma espécie, mas,
496 wms k hàm
a admittílas, convém dfaer que na bmiorétltar dosais»
sos artistas, peões e cavalleiros, do seu brmcar cora as
feras, ba muita elegância, distiacçáo e arte, desde o
começo até ao fim das nossas foncções tauromach*»
cas.
Em Hespanba não. O empresário manda comprar os
touros para a corrida, agaça-lhes as pontas, faz adqui-
siçSo de vinte ou trinta cavaHos, cançados de trabalhar,
inotHisados, magros oo doentes. Começa o espectáculo.
Dois oo três d'esses desgraçados animaes vêem para o
circo, montados por cavalleiros, armados de varas; sol*
ta-se o touro ; não faz caso dos cavallos. * . levam-se-
Ibe ao encontro ; ba scenas de larga e repugnante car-
nificina; os montadores á queda docavalk) estripado de
muitas maneiras saltam ligeiros, para se oio cootoadi-
rem ou evitarem qualquer marrada do touro, que a es*
se tempo é logo entretido pelos bomens da capa; tiram-
Ibe o aparelho que vae servir de novo ; vêem as sit-
ias e arrastam pelo cabresto os cavallos mortos ; se-
guem-se os outros e nova matança.
Depois de seis ou mais cavallos espbaoeiaâos, o toar©
está caoçado, ébrio de sangue; apparece o espada, a
estrella flammejante d'aquelle olympo sanguinário, o de-
pois de algumas sortes, destinadas a enfraquecer a fera,
enterra-Ihe o ferro no cachaço até aos copos, obliqua*
mente para que a ponta Ibe possa chegar ao coração oo
perto d'elle.
Quando o golpe é bem dado, o touro cambaleia* e^àe
logo ; applicam-lbe uma pancada entre chifres, para a
morte rápida e completa ; e vêem as mulas arrastal-o
para fora da arena, como fizeram aos cavallos, no meio
dos applausos estrepitosos e delirantes dos espectado-
res.
As outras partes da foncção compõe-se do mesmo a»»
sumpto.
Por esta perfuoctoria idéa, pode-se ajuizar dos recur-
sos artísticos, que são postos em pratica.
As praças de touros entram em Hespanba na ordem
passkio mm k CAOBIS 487
dot ediftoios mais ponpoaos. A de Cáceres é um antigo
e visto amfitbeatro de cantaria e tijolo, de que são guar-
necidas as próprias bancadas descobertas.
Conforme indicámos, á nossa entrada, saiam os últi-
mos cavallos mortos, e seguiam-se mais dois, convenien-
temente montados. 0 touro estava ao fundo. 0 primeiro
cavallo vendado reeusava»se a andar; o cavalleiro es-
poreava-o para sitio, onde a negaça produzisse melhor
effeito ; o touro investiu pela trazeira, e enterrou-lbe o
chifre direito no grosso de uma perna, d'onde espadanou
um jorro de sangue, que lhe borrifou as ventas. O ca-
valk) contraindo-se á violência da dôr, quiz fugir; o ca-
vaUairo reteve**), atravessando-o na frente do touro;
este bufou, e em nova investida, ferindo-o no coração,
deitou-o por terra sobre um lago de sangue. O caval-
leiro levantara a perna direita, para a livrar do choque,
saltou para o lado, e o capinha desviou a atteoção da.
fera para o outro animal.
O que se seguiu é monstruoso e fantástico.
Dando pelo novo cavallo, o boi soltou dois urros me»
donbos, encarou-o medonhamente» e foi apanhal-o de
travez, entre o ventre e a espádua, d'onde golfaram logo
espadanas de um vermelho fumegante ; recuou depois
disso, e em novo bote, mais furioso ainda, espetou-lhe
um chifre em plena barriga, ficando-se por largo espaço a
ferir, a rasgar, meneando a cabeça, como que a saborear
o liquido quente, que escorria dos intestinos, parte dos
qnaes caíram na areia ensopada peto sangue e pela
chuva.
O. cavallo foi a terra, e o cavalleiro desmontou, des-
apparelbando-o. Por um esforço supremo, por ultimo
instiacto de conservação, o pobre animal, com quasi
todas as tripas de rastos, tentou e conseguiu põr-se.
ainda de pé ; então o boi, que recuara alguns passos,
investiu ainda de cabeça baixa, e levantou no ar aquelle
arcaboiço dilacerado, atirando-o de encontro á trincheira,
onde foi produzir um som cavo e um arranco medonho
de extrema agonia. . .
Os apptaosos soavank estridentes; os tenreiros }é tra-
balhavam decalco», para lio escorregarem no terreno
molhado e crivado de manches rubras de sangue e doe
fragmentos do intestinos; parte dos espectadoras» sea-
tados nas bancadas de pedra, qne por soa antiguidade
já ealavam puídas e gastas, formando covas de agw*
nfie sentia, a bnmidade peoetrar-lfae nas carões, nem ti*
gava importância aos demais effaitos 4a obnva, iôe sô-
fregos de eommoçio estavam todos, tão radiante» 4o
preser, tio alegremente aferrados is peripécias do-es»
peetaculo,
Pentastteo todo aquillo I horrivelmente fantástico i
O tooro estava em sazão para o espada; gtitowe por
elte; o nome de Frasooeio retumbo* por todos os doo»
vios do amfitbeatro; houve murmúrios de mparionflia.
Da rapento estrondeen orna ovação; o torneiro eelra-
va de passo eadenciado, lançava a toda a paste a vista
magestatica, bombeando a figura elegante para tedesos
lados; agradecia trinmpbanteraenie, e incbnava-ee com
respeito diante da tribuna real; dahi a pouco, escondia
o ferro lusente na capa, que em varias sorte* apresa»
mava do focinho do touro; este manifestava já «ma^erta
merbides de movimentos, estava estonteado, mas, como
ora possante, prestasse á lide.
A um momento dado, a espada, aos grilos frenéticos
da moltidio, ia direita ao cachaço do animal, onde ficou
enterrada até aos copos.
Porem... ehi fracasso 1 oh! rabia t Segoto*se orna
berraria infernal de applausos e reprovações; o golpe
nio fora bem dado; o tooro extoreendo^e não caía;
cammbava ainda, eníurecta^e, escarvava; os bomats
punham-se de pé; as senhoras debruçavam-se i tente
dos camarotes, gesticulando, fritando também :<
—M#al matai
— Tmnro. . . Que es «ao?
—Se km qmeooaáo ustedi
—Caramba! meda tumHI
—Matai mala 4 ioroí . . > „/.* ,
PÀSSKKKWMO À «KlRES 4&
"» '
— P&r fltó§ / mata, hombret
E rugiam furiosos, lançavam ditas picantes, e foliam
baralho; as mulheres batiam com os leques no corrimão
dos camarotes, os homens com as bengalas e os pés no
caio, nio porque o animal, passeiado na arena com ima
espada embebida no corpo até ás guardas, lhes inspi-
rasse qualquer vislumbre de compaixio, e toes desper-
tasse um bocadinho de sensibilidade, mas sim porque
elles representavam as tradicç&es sangrentas e odtoeas
da Ramfrdiswitota; estavam embriagados m cater da car-
nificina, e bradavam impropérios, porque o getpe Mv»
mal applieado, porque o átbteta desmerecera da ma Ah
ma, porqbe o saagoe se nio derramara logo, porque
bania atada mais mortes a fazer, e a chuva caia e o
tampe nio era largo.
' Em quanto se esperava debalde que o boi eateae, á
força de se rebitar interiormente a si próprio, e sere»
qutetieu novo torro, gastaram-se uns dez minutos, ao
fim dos quaes o animal ajoelhava, tombando para o te»
do, sob -o eflfeite de nova estocada» d%st* vex certeira
e* contento de todos;
Quando irromperem de toda a parte as demonstra-
ções, que reconquistavam plenamente os créditos do
afamado toureiro, por um instante abalados, relanceá-
mos um olbar para o camarote real, e vimos a majes-
tade beepanboia, com os olbos fitos no heroe do cireo,
a apptaudir freneticamente, em quanto que «toei D;
Lvte, e ainda bem para os seus hábitos e sentimentos,
se limitava a bater com as pontas dos dedos da mio
direita nas costas da esquerda, passeiandoo olbar petos
armeretes, em soppoeta preoocupaçâo e bem longeva
arena ensanguentada.
A nós prod*&ire*íM)g aquilto uma espécie de «atonte*
mento, visinbo do delíquio, tamanha repognafteie *e as-
senhoreou das nossas faculdades.
Dêmos o espectáculo por todo, eimpellitoe* o nosso
companheiro para o meio da ma, onde a chu*a oenti* >
nume a tombar, lenta e JmpertmoDteminte.
#
# #
Pira onde iríamos? o que seria de dós, até i hm
do regresso a Lisboa ?
Conaoltavamos-oos, maldiaeodo a nossa serie, quan-
do um braço entbosiasta e possante nos cáagiu pelas
costas, ao som destas palavras :
— Amigee méo$, á mi tawpoco me guskm la$ ira%
Eêtímo encontrarias. Vivan nuesiros campafierot! Vim
van hm reyeet Viva Portugal/
A estas palavras, mais correctas e aogmentadas, osfor
do sobre dós, como o chuveiro qns dos molhava, to»
zio-nos uma estrella redemptora. D. José Saotamãria»
o aympatfeo jornalista de Badajoz, o nosso conhecido
amigo, o nosso amabilissimo companheiro da época de
Catderoo, apparecia-nos como enviado extraordinarioda
Bondade Suprema, para dos consolar.
— Venga um abraso. Vwa la prema J Vivan. ..
—Viva todo o que qoizer, meu amigo, mes*. * dós
nío sabemos das nossas pessoas ; temes fome e frio ;
acnda-nos por quem è; indique-nos. . .
Que oáo faltava nada, que a companhia do caminho
de ferro Unha jantar lauto para toda a comitiva; que
viéssemos com elle a casa do director, o sr. Morai; que.
lá podíamos descalçar avé á hora mareada— diua*es o
bondoso homem, caminhando Da frente, a bracejar con-
stantemente, e a dizer-nos amabilidades.
S assim aconteceu. No meio da balbúrdia, que se
observava na sede da companhia, lá podemos entoadas*
dos, e encontrar-nos com dois ou três dos nossos com*
panbetros, descontentes e mais esfomeados do que nós,
porque náo respeitaram um pão desgarrado e umoo»
que se atreveu a espreitar a nossa passagem, através
dos vidros de um armário, encontrado n'um gabinete
escuse* onde elles foram á descoberta.
Depois de «ma amabilissima e larga conversa wm o ,
PASSEIO HfltO A GAOUBS 494
sr. Sagasta, presidente do conselho, durante a qual esse
homem importante da nação visinba mostrou conhecer
a fundo o nosso caracter de povo económico, prudente
e amigo do progresso, tecendo encómios ao nosso viver
social, onde descobriu apenas, como elemento pernicio-
so» a linguagem libérrima de uma parte da nossa imprensa
— seguimos para o Instituto Provincial, extineto coe ven-
to, onde no claustro principal estava disposto o jantar;
servido peio café Fornos de Madrid, e destinado pela
companhia dos caminhos de ferro á comitiva de suas
magestades, os jornalistas, militares, diplomatas e bo-
mens de letras, um jantar para mais de duzentos talhe-
res, uma reunião brilhantíssima, em que tomaram par-
te algumas das prihcipaes notabilidade da corte de
Heapwha.
Ao tomarmos assento entre o nosso companheiro e o
bom do Saotamaria, procurámos descobrir os collegas,
no correr das duas longas filas de convivas, os últimos
dos quaes não podiam distinguir as feições dos da par-
te extrema, tão comprida era a mesa, occupada por
cesto e tantos indivíduos, em cada lado. Com desgosto
nosso, rimos que não chegavam a meia dúzia os por*
tuguezes presentes; os outros, enlameados, perdidos,
desnorteados no meio d'aquella notável desorganisaçlo
de festejos* vagueavam talvez pélas ruas da cidade, já
de ha muito escurecidas pela noite, ou haviam tomado
o caminho da estação, para porem um termo rasoavel
aos seos matos.
Pelo que nos tocava, embora em situação differeote,
a nossa sorte não era menos digna de lastima: repugna-
vam-oos as comidas frias, a que sempre tivemos tédio,
sentíamos os artelhos e os pés húmidos, invadia-nos um
aceentuado mau humor, estávamos irritado, nervoso*
enfastiado; os homens de fardas agaloadas transforma-
vam-se em toureiros, as tripas fumegantes dos cavai los
estripados no circo bailavam-nos na cabeça, reprodu»
ziam-se nos pratos, á volta de nós, em dansa infernal,
a que puubam os necessários toques rubros de sangue
49Í iwtis a txns
espadanado os vinhos, que espumavam noa copos* da-
rante a animação das saodes.
Santamaria incitava*nos a peleja, com a palavra e com
o exemplo, bracejava sempre, brandia o talher para a
direita e para a esquerda, acotovelava-nos, e nós mal
dávamos por todo isso, que noutra occasiio nos pro-
duziria um effeito bem diverso.
Quando Moret acabava de usar da soa palavra rio*
quente, congratolando-se com Hespanha e Portugal pe-
la uniio dos sens interesses communs, representados
pelo novo caminho de ferro, e expondo em termos ca*
lorosos e em extremo sympaticos todos os graus de
con fraternidade, que promettia á pepinsula um grandio-
so futuro — sentimos um soco violento n'nm quadril e
a voz caliente do nosso collega de Badajoz convidar-nos
a uma resposta immediata.
Que vivessem Portugal, a boa amizade dos dois pai*
zes, o presente e o futuro; que pedíssemos a palavra;
que queria ouvir discursar em portagoez; qae era pre-
ciso faltar; qôe nos tornávamos desmancba-prazeres, um
teimoso impenitente; que esquecêssemos o nosso encom-
modo; qne vivêssemos todos, pátria, parentes «amigos;
que emponhassemos o copo; qne nos ergoessemoecom
mH diabos.
Nós resistíamos, delegando o encargo, se o era, no
Eduardo Guimarães, o nosso amigo e companheiro coos*
tante; este oemia desassombrada e tranqoiUaffleiít* ju-
rando aos seus deuses que nio abriria a boeca, senio
para as fonoçSes da mastigação.
O homem pedia entbusiasmo, e contíonava a insistir.
Felizmente por entle, Mariano Pina, sentado alista*
da, fazía-nos sem o saber o grandíssimo obsequio de
tomar sobre os hombros a cruz oratória, que nos im-
punha o nosso collega, e respondia a Moret.
Resfolegámos por um pouco. Aqoelte dia porem cons-
tituira-se numa serie continuada de infortúnios inespe-
rados.
Sentado o Pina» aos applaaaos merecidos e unania»s-
passeio mo a cacbsis 493
da assembleia, lembrou-se o director do jornal, a Chro-
tdca da Extremadura, de levantar á imprensa portugueza
um brinde especial, ruidosamente correspondido.
Findo que foi, as luzes deixaram de brilhar para nós,
e o claustro cobriu-se de sombras, a um sciu prolonga-
do, que pedia silencio: achámos-nos erguido nos braços
do amável Santa mana, secundado pelo companheiro da
direita, e fatalmente obrigado ao sacrifirio de uma li-
geira peroração, tio escorregadia e fastidiosa, como a
arena ensanguentada, que o divertimento tauromacbico
dos assentara no espirito.
Quando ás 11 horas da noite, caminhávamos a pé,
por falta de conducçio, entre filas de tropas e homens
do povo munidos de archotes, que illuminavam a estra-
da, por onde o cortejo real se dirigia á estação, calcando
um profundo lodaçal, e maldizendo a nossa vida, abría-
mos toda a nossa alma á Divindade Summa, rogando-
Ihe com a máxima devoçáo e a mais sincera reverencia
que nos deixasse pôr pé, sem noves contratempos, no
estribo do comboio, onde— oh i caso tão louvável como
imprevisto i — fomos encontrar alguns dos nossos com-
panheiros, a comer traaquillameote um farnel preventi-
vo, e a rir*e de nds, et» bem mesquinha piedade.
Por fim, com a alma atanceada de torturas, pedimos
á mesma Providencia que de futuro nos poupasse a fes-
tejos régios, onde as chuvas e as touradas bespanholas
se deesem alttaoça para obsequiar os hospedes.
ÍNDICE
Pag.
De MsfcM ao Mondego
I— 0 motivo da jornada— Coisas do coração— Pelo ca-
minho 9
II— 0 Carregado— Recordações— Uma atentara de ra-
par 14
III— Os campos— A emigração— Chegada i9
Em Coimbra
I— Utilidade de dizer cousas )á ditas— Impressões e
poetas— Os estudantes— Raioas humanas 24
II— Passeios— O jardim botaaico— Uoa estuotetee dos
dezoito annos 29
IH— 0 aqueducio— 0 Penedo da Saudade— Santo An-
tónio dos Olivaes— Penedo da Meditação— Quinta de
Santa Crui 35
IV— A uwversidâde— Coimbra mta 4a tom— O mu-
seu 41
V— As fogueiras— A estrada da Beira— 0 caminho da
Louzã— A quinta da Portella 45
VI— No Choupal— O Mondego— A feira de S. Bartholo-
meu— A economia coimbrã. 51
VII— A egreja de Santa Cruz— A sé velha 55
VIII— Santa Clara e os seus pasteis— Quinta das La-
grimas 61
XIX— A Lapa dos Esteio* ou Lapa doa poetas........ 68
nrotoc W5
Pag.
No Missaco
I— De Coimbra a Luso— Na matta— Embevecimentoa. 78
D— 0 mosteiro— A Cruz alta— 0 escândalo de um
hymno— A perda de uma jóia— Cantanhede— As Fe-
bres 87
Ponafeelro
I— Ainda o coração— Erros de corographia e historia
—Tradições 98
II— Versões antigas— Os Furados— Nobiliarc||to 0 so-
lar dos Cunhas 106
III— O Pombeiro moderno— Decadência— Fructos da ro-
tina 116
IV — A instrucção concelhia— A egreja e as suas alfaias
—Ponto finai— Nota. 123
No Porto
I— A pente Maria Pia— O monumento dos artistas— Os
mercados— A cordoaria e a torre dos Clérigos— Pra-
ças de D. Pedro e da Batalha— O palácio de Cris-
tal 137
D— O Atheneu portuense— A bibliotheca— Um suicídio
frustrado— O cemitério do 'Repouso—Os cocheiros
—O paço episcopal e a Sé 148
III— As almas da ponte pênsil— A alfandega e a Bolsa
— Hospital da Misericórdia— Duvidas de amante e
sentimentos de pae 158
IV— Egreias e cemitérios— O conde de Ferreira e o
hospital dos doidos— O museu Allen— Da Foz a Mat-
tosinhos e Leça 167
Em Bra^a
I— O Minho — Pedintes e vadios— A praça de Sant'An-
na— A egreja do Carmo e o fradinho de Braga— Bo-
fetadas devotas— A Sé e os cicerones .' 175
II— Memorias religiosas— Os hotéis e as frigideiras—
O Bom Jesus do Monte— Devoto á força— O Sameiro
—A ponte do Pico 184
Be Vftauna a Valença
I— Bisonhíce portctgueia— O Lethes da fabula— Pas-
seios—As raparigas de Vianna— Fr. Bartholomeu
dos Martyres— O castello— Apologia do Lima— Com-
parações 193
II— Ponte de Lima— Tbeatro e hotel— Caso horripilante
—Cantatas ao luar— Até Valença— A terceira praça
de guerra— Tuy 202
Caldas do «érea
I— Necessidade de uma excursão scientifica ao Gèrez
—A caminho— A» aguas, soa antiguidade e tampe*
496 mmei
País.
ratura— Carência de analyse— A camará 4b Beoro
—Atraio e roiioa 2i2
II— Commodidades— Vingança de montanhezes— O ho-
tel Universal— O que seria o Gere*— Vidago e as
aguas— Caris-Baden— Agua a jorros— A festividade
— Cantigas populares— Peditório em verso— Recor-
toa medico- pèarmaeeutieos 221
III— O sábio José Luiz, medico enviado pela sabia ca-
mara^jdas Terras de Bouro— Receitas clinicas— A
copia viva do Rosalino— Excerptos de um livro es-
erfpto durante 40 annos com muito azeite e esta-
dos 228
TV— Ainda o nosso homem— Continuação dos excer-
ptos—O que vem a ser a cabeça humana— Exame
das aguas— Outro livro— Titulos e capitulo»— Sur-
jam oe editores— Bemdita sapiência 236
e o Mateaarfto de CaMerem
I— Um estrangeiropbobo— Do entroncamento a Bada-
joz—D. José Santamaria— Do Guadiana ao Manza-
aares 245
II— O aspecto da cidade— Ornamentos do Prado— Jar-
dim botânico— Estatua de Murillo— Museu de pin-
tura—Jerooymos— Fonte de Neptuno— Praça Dois
de maio 252
III— O primeiro dia de festas— Uma feira no Prado —
Batalha de Tetuan— Museus de artilhena e eneenae-
ria— O Buen Retiro— Praça de touros— Via Gastei-
lana e outras— Porta de Alcalà— Fonte de Cibele—
Monte Helicon 259
IV— Os reaccionários— A exposição dos Grandes de
Hespanha— As edificações madrilenas— Camará dos
deputados— Lembranças das velharias lisboetas—
Os narizes das damas— As estatuas de Cervantes e
Calderon 264
V— La Puerta dei Sol— Viva la graeia— Contra os ga-
tunos—Ondas de gente— Os cafés e a moeda nacio-
nal—O theatro Apollo— Os nomes dos lugares nas
casas de espectáculo 271
VI— Segundo dia— A catnedral da Atocha— O museu
anthropologico— O de historia natural— O Naval—
Considerações 276
VII— As estrebarias reaes— As carruagens de gala—
O theatro da Zarzuela— Uma aventura. 263
VIII— Terceiro dia— O commercio— Um sapateiro poe-
ta—Praça do Oriente— Estatua de Felippe IV— O pa-
lácio real e a sua capella— Egreja de & Isidro— Ar-
-^
197
Pag.
meria Real— Porta de S. Vicente—A Segóvia, antiga
Mouraria— O Pardo — O tbeatro Hespanbol— Lá co-
mo cá 289
IX— Quarto dia— O correio não vende sellos— Ceri-
monia fúnebre— O destilar- das tropas- A casa do
poeta— A praça Mayor e a estatua de Felippe III—
Recuerdos— Rua de Toledo— Praça da Cevada— O
museu areheologieo— Exageros— Três egrejas— Os
ricaços lisboetas— Tbeatro das Variedades»,. ..... 297
X— Quinto dia— Um sacristão patriota — Hospício mu-
nicipal— A procissão escolar— Hurra h pela mocida-
de!—Com moção— O povo e o futuro de Hespanha
—Tbeatro Eslava— O sonho de Boethoven. ........ 304
XI— Sexto dia— Aspecto das ruas, destinadas ao cor-
tejo— Procissão historicH— Idéa sobre o seu extraor-
dinário luzimento— Juízos da imprensa, egnaes ao
nosso 312
XII— Sétimo dia— Resenha das publicações mais im-
portantes—Ida ao Escurial— Opera ou theatro Real. 323
XIII — Oitavo dia— Vantagem de não representar cou-
sa alguma— Na casa da moeda— Uma hespanholada
—Exposição de gado— Outra de Bellas Artes— Dois
dias mais e um adeus a Madrid 329
O Escoriai
I— Madrid ás 6 horas— Caminho do Escurial— Parte
histórica— Consirueçâo de Felippe II— Obras dos
seus suecessores 336
II— Parte descriptiva — O exterior do mosteiro — O tem-
plo—A sala do lavatório — A sacristia — O coro e o
zimbório 345
III — Paoteon de los Reyes— Os pudrideros — Opanteon
de los Infantes— Claustros e bibliotbeca— O palácio
— Casas de Ariba e Abajo— Prevenção inesperada,
como pooto fioal 355
Uni dia em Toledo
I— Noções corographico-historicas— Uma Alfama em
ponto grande— A capella de Santa Catalina— O Tal-
ler dei Moro— Santa Maria La Blanca— O estylo pla-
teresco— El Transito— S. Juan de los Reys 368
II— Egrejas de S. Juan de la Penitencia, Andrés e Mi-
guel—El Aleazar— Ermita dei Cristo de la Luz—
Egreja de S. Thiagò— Hospital de Afuera— Ruinas
romanas— A fabrica de armas 377
Hl— A Calhedral— O que diz a tradieção histórica— O
exterior — O interior, onde se abrigam vinte e seis
capellas— Ponto final 384
32
7
ÍNDICE
Pag..
Clatra
I — Os borro»— A povoação-^Tâo pobre como rica— -0
palácio real— Um bom exemplar das nossas cadeias
—Os borriqoeiros— Quintas do Saldanha, marqoe-
zes de Vallada e Vianna— A Pena 408
- II— O castello dos mouros— O conventinho da Serra—
Um pinheiro notável— Mais quintas e tapadas— Es-
coro-mania do sr. de Monserrate— Seliaes— Passeio
á Vaiva de Collares— A pedra de Alvidrar— Um
Srofessor classificado pelos discípulos— Quinta do
iamalhão— Trovas e recordações 424
■afra— O Escoriai português
I— A Granja— A gymnastica n'uma escola municipal
\ _o voto de D. João V— Parte histórica 437
D— Parte descriptiva— A frontaria— As faces lateraes
— A quarta fachada— O templo, capellas e zimbório 444
Hl— Divisões annexas— Alfaias e paramentos— Corre-
dor das anlas— Sala dos actos- Casa do capitulo—
O campo santo— Refeitório e cosinha— Lavatório e
enfermaria— Portaria-mór— Escadarias, cellas, es-
pnlgatorios e jardim 454
IV— O palácio — Torreões— Capella real— Bibliotheca
—Carrilhões e terraços— Aproveite- se o qne é notá-
vel—Confrontos entre Mafra e o Escoriai 462
Passeio reglo a Cáceres
I— Prologo— No caminho— Em Valência de Alcântara
— Enthosiasmo popular— Aposta entre camponeses
—Reis e povo— Chuva, desorçanisaçâo e lama — 473
II— Em Cáceres— Peregrinação forçada— Calote invo-
luntário—Uma tourada h espanhol a— Imperícia de
Frascoelo— Chova e carnificina— Um encontro pro-
videncial— Sagasta comnòsco— O jantar— Enthusias-
mos de Santamaria— Um voto à Divindade 482
Aos cuidados da revisão escaparam algumas erratas, como
adornava por adornara, a pag. 9, linha ii — melancola por me-
lancolia, pag. 68, linha 4 — ponte de pênsil por ponte pênsil,
pag. 158, linha i — uma letra de mais ou de menos aqui ou
acolá, diabruras typographicas, ainda assim de pequena monta,
que o leitor facilmente desculpará, ao corrigil-as.
OBKAS
DE
D. C. SAJTCHES DE FEIAS
A. Mulher, soa infância, educação e
influencia na sociedade — estudo critico-
doctrinario i volume
O Sello da Roda, drama extrahido
do notável romance de Pedro Ivo I volume
Jor^e de A^uilar, drama extra-
hido do Remorso Vivo i volume
Guia de Contabilidade, para
uso do commercio e das escolas Opúsculo
Horas perdida», collecção de poe-
sias com o retrato do autor I volume
Uma Yiagem ao Amazonas,
noções verdadeiras da fauna, flora, costu-
mes e lendas gentílicas do grande-rio —
obra luxuosa e illustrada com gravuras
de pagina por Bordallo Pinheiro, Casano-
va, M. de Macedo e Armando Pedroso.. . i volume
Maria de Frias, memorias bio-
graphicas e paginas intimas — edição
commemorativa e particular i volume
Notas a Lápis, passeios e digres-
sões peninsulares — revista amena de pe-
quenas viagens e visitas a lugares, cida-
des, paisagens e monumentos de Portu-
gal e Hespanha i volume
W