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Full text of "Notas a lapis"

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I  de  Sotomai/or  d  almeida 

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PASSEIOS 


:  DIGRESSÕES  PENINSULARES 


POl^ 


D.  C.  SANCHES  DE  FRIAS 


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LISBOA 

JPlVRARIA  DE  ^tafrONIO  ^\fl.ABIA  jpERBIRA,  JÊDITOI* 
5o  —  fH»a  cAugu$ta  —  52 

1886 


P»\X-  £*-|7*-3l 


s 


HARVARD  C0LLE6E  LIBRARY 

COURT  OF  8AHTA  EULÁLIA 

COLLECTION 

8IFT0F 

m*  t  ITETWR,  Ir. 

DEC    9  1924 


LISBOA 

TYPOGRAPHIA    MATTOS    MOREIRA 

Traça  dos  Restauradores,  i5  e  16 
1886 


V 


Á  EX."*  SR.* 


D.  ÃDEII&  IML  CONDE  DE  MOURA 


Sff. 


O    autor. 


Minha  Senhora 


Se  os  actos  espontâneos,  livres  de  mesquinhezas 
convencionaes  e  de  circumstancias  coactivas,  são, 
no  dizer  dos  physiologistas,  revérberos  especiaes 
das  tendências,  que  dimanam  do  nosso  tempera- 
mento—  as  paginas  d'este  livro,  como  producto  de 
uma  actividade  independente,  representam  uma  fei- 
ção característica  das  minhas  predilecções  indivi- 
duaes. 

Se  outro  fora  o  motor,  adstricto  à  minha  penna, 
não  me  abalançaria  eu  a  jornadear  por  lugares  aon- 
de muita  gente  tem  ido,  a  esboçar  paizagens  retra- 
tadas por  outros,  a  dizer  couats  já  ditas,  finalmente 
a  escrever. . .  para  escrever. 

Pôde  V.  Ex.*  dizer-me  que  o  sol,  o  luzeiro  mil- 
lenarío  de  esplendor  inimitável,  enthesoura  em  si  a 


CARTA 


admiração  inninterrupta  de  todas  as  gerações,  que 
se  succedem,  e  que  os  quadros,  ainda  os  mais  sim- 
ples, da  natureza  que  elle  vivifica,  não  entram  no 
privilegio  exclusivo  de  pessoa  alguma,  e  podem  ser, 
como  são,  enlevo  ou  aprazimento  de  um,  ou  de  mui- 
tos milhares  de  individuos. 

E  verdade.  E  eu  acrescentarei,  se  me  conceder 
licença,  que  é  sempre  natural,  agradável  e  de  boa 
intimidade  contar  o  que  vimos  a  quem  nos  quizer 
ouvir,  e  que,  no  modo  de  narrar  os  assumptos,  exis- 
te a  tal  ou  qual  originalidade,  requerida  pelos  ouvin- 
tes fantasiosos  ou  pelos  simples  amadores  do  desco- 
nhecido. 

Algumas  d'estas  paginas  já  perderam  o  que  se 
pôde  chamar  opportunidade. 

Não  curo  d'isso,  porque  as  recordações  não  ca- 
recem d'ella  —  Contar  é  recordar  —  e  porque  sinto 
a  necessidade  de  escrever,  desprendido  de  occasião, 
escola  e  confrarias  litterarias,  quando  e  como  quero, 
senhor  absoluto  das  minhas  idéas  e  dos  meus  actos, 
como  muitos  precisam  conversar  desafogadamente ; 
como  outros  não  podem  deixar  de  cultivar,  para  re- 
galo do  espirito  ou  da  alma,  um  canteiro  de  flores, 
despidos  inteiramente  das  preoccupações  scientifi- 
cas  dos  naturalistas  e  das  investigações  minuciosas 
dos  botânicos. 

Uma  natural  e  singela  demonstração  do  meu  tem- 


CABTA 


peramento. . .  um  culto  intimo,  reservado  em  espe- 
cial á  intimidade  das  pessoas,  com  quem  convivo 
affectuosamente. 

No  numero  d'estas,  tenho  a  honra  de  contar  V. 
Ex.a:  d'ahi  o  motivo  da  offerta  das  minhas  Notas  a 
Lápis,  um  simples  compendio  de  memorias,  que  a 
ninguém  competia  mais,  porque  V.  Ex.â  formou  das 
viagens  um  ideal  perfeitíssimo,  onde  se  agrupam  to- 
dos os  elementos,  destinados  á  creação  completa  de 
uma  viajante  tão  destemida  como  infatigável. 

E,  em  verdade,  uma  sonhadora  impenitente. 

Viaja  a  conversar,  viaja  em  idéa,  viaja  em  musica. 

Quando  o  alegro  vivíssimo  e  scintillante  de  uma 
canção  característica  lhe  sae  dos  lábios,  a  sua  voz> 
minha  Senhora,  é  uma  calorosa  saudação,  mandada 
pela  idéa  a  todos  os  recantos  da  sua  romanesca  e 
formosa  Andaluzia ;  quando  o  trecho  de  uma  con- 
versa, a  folha  de  um  jornal  ou  as  tintas  de  um  qua- 
dro lhe  representam  as  sinuosidades  perigosas  de 
uma  ascensão  ás  poéticas  escarpas  dos  Alpes  suis- 
sos,  ou  um  passeio  ás  veigas  opulentas  de  paizes  tão 
bellos  como  o  nosso — V.  Ex.*  agarra  do  cajado  no- 
doso, e  lá  vae  idealisando  o  itenerario ;  quando  fi- 
nalmente a  sua  organisação  artística  lhe  suggere  mu- 
sicas originalíssimas,  algumas  das  quaes  este  livro 
pretende  agradecer  —  os  assumptos,  fugindo  da 
quietação  em  busca  de  um  movimento  vibrante, 


CARTA 


são  um  viajar  continuo  do  plangente  para  o  alegre 
irrequieto,  do  melodioso  para  a  harmonia  ruidosa — 
um  constante  jornadear  em  espirito. 

Por  tudo  isso,  ao  collocar  esta  prosa  ruim  na  es- 
tante da  sua  boa  musica,  fico-me  a  fazer  preces  in- 
timas para  a  completa  realisação  do  seu  ideal  — 
uma  viagem  á  roda  do  globo — ainda  assim  em  car- 
reira menos  vertiginosa  que  aquella,  que  V.  Ex.â 
costuma  imprimir  aos  dedos  amestrados,  quando  os 
passeia  pelo  teclado  do  seu  piano. 

Lisboa,  dezembro  de  1885. 


2/).     w.    ófancáeà  €U  ^Áúu. 


DE  LISBOA  AO  MONDEGO 


O  motlro  da  jornada.— Coitas  do  coração.— Pelo  caminho. 


Foi  a  28  de  junho  de  (880. 

Lisboa,  a  conquistadora  dos  mares,  nos  tempos  áu- 
reos da  navegação,  a  donairosa  cidade  das  sete  collinas, 
a  por  tantos  e  tão  bellos  titolos  decantada  e  formosa 
rainha  do  Tejo,  então  e  sempre,  a  capital  portogoeza, 
que  diariamente  subiria  de  valor  e  formosura,  se  de- 
vesse mais  ao  patriotismo  e  menos  á  politica  —  aca- 
bava ba  pouco  de  despir  as  primorosas  galas  de  uns 
enfeites,  com  que  se  adornava  por  occasião  do  mais 
assombroso  acontecimento  moderno,  que  os  seus  habi- 
tantes teem  visto,  suprema  consagração  á  maior  das 
suas  glorias,  o  grande  festival  em  honra  de  Gamões. 

Sentia-se  ainda  um  accentuado  rumor  de  plena  satis- 
fação, aquella  satisfação,  que  nos  entorna  dentro  da  al- 
ma as  gotas  de  um  suave  desvanecimento,  quando  des- 
cansámos, após  o  pagamento  de  uma  grande  divida  de 
honra,  que  os  nossos  antepassados  deixaram  de  solver; 
ou  quando  atirámos  comnosco  para  cima  de  uma  con- 
fortável ottomana,  a  relembrar  os  fastos  gloriosos  de 


10  NOTAS  A  LÁPIS 


uma  campanha  de  civilisadoras  consequências,  cum- 
prido o  nosso  rigoroso  dever. 

Todos  se  sentiam  satisfeitos. 

Poetas,  artistas,  trovadores  e  philosophos,  jornalistas 
e  litteratos  depunham,  entre  grinaldas  de  flores,  as 
pennas,  os  pincéis  e  o  buril,  com  que  haviam  engran- 
decido, e,  o  que  mais  é,  immortalisado  o  maior  e  mais 
estupendo  facto  nacional,  de  que  ha  memoria  nos  an- 
naes  do  patriotismo  contemporâneo. 

O  mármore,  o  gesso,  o  bronze,  a  gravura,  o  dese- 
nho, a  pintura,  a  typographia  ostentavam  ainda,  á  vista 
dos  curiosos  e  amadores,  tudo  o  que  o  talento  e  a  ins- 
piração, a  industria  e  a  arte  haviam  espalhado  pelos 
tbeatros,  pelas  escolas,  pelos  salões  aristocráticos,  pelos 
gabinetes  das  sociedades,  pelos  círculos  elegantes,  pe- 
las casas  de  commercio,  pelos  estabelecimentos  de  todo 
o  género. 

Achavamos-nos  também  repleto  do  nosso  quinhão  de 
ventura,  em  tão  faustoso  banquete ;  Lisboa  porém  es- 
caldava-nos  as  artérias,  objectava-nos  a  luz,  e  corrom- 
pia-nos  o  ar. 

E  no  entanto  havia  dezesete  annos,  longos  annos,  que 
a  não  viamos,  e  pouco  mais  de  mez  e  meio  que  a  ha- 
bitávamos! 

Seria  somente  a  enfermidade,  que  era  nós  actuava? 
O  nosso  mau-estar,  um  não  sabíamos  quê  de  melancó- 
lico, tristonho,  pesado  e  abafador,  que  nos  assoberbava 
o  organismo  —  seria  prova  única  de  que  o  corpo  sof- 
fria? 

Não. 

De  todas  as  expansões,  necessárias  á  nossa  alma,  fal- 
tava ainda  uma,  a  maior,  a  mais  volumosa  de  todas  el- 
las,  o  mais  forte  objectivo  dos  nossos  desejos,  amon- 
toados em  tão  longo  período. 

E  esse  ponto  culminante,  e  esse  fortíssimo  objectivo 
era— ver,  após  uma  longa  e  entranhada  saudade,  vêr, 
palpar  as  arvores,  os  campos  e  os  rios,  por  onde  nos 
correra  a  infância ;  os  lugares  e  as  terras,  onde  nos 


DR  LISBOA  AO  MONDIGO  ii 

haviam  sorrido,  ainda  que  palidameote,  os  primeiros  al- 
vores da  mocidade. 

Perdôe-nos  o  realismo,  que  quer  que  não  baja  mais 
coração  senão  para  sentir  as  podridões  sociaes;  perdôe- 
nos  elle,  a  quem  não  servem  já  os  arroubos  lyricos, 
que  se  prendem  ao  ar,  á  lympba  do  regato,  ao  murmu- 
rar das  arvores,  ao  aroma  das  flores,  ao  cantar  dos 
passarinhos,  ao  surgir  de  uma  aurora  limpida,  ao  decli- 
nar de  uma  tarde  de  primavera;  perdôe-nos  elle,  e  não 
nos  leia,  pois  nem  os  seus  desdéns  nos  offendem,  nem 
os  seus  applausos  nos  commovem. 

Dizíamos  nós  que  o  borborinbo  da  gente,  que  se 
apertava  suada  no  meio  dos  torvelinhos  de  uma  poeira 
suffocante,  a  subir  e  a  descer  do  Chiado,  a  pasmaceira 
tradicional  das  alamedas  do  Passeio,  e  emfim  a  athmos- 
phera,  respirada  atravez  das  roas  e  viellas  de  Lisboa, 
umas  poucas  limpas  de  dia  e  todas  mal  illuminadas  de 
noite;  dizíamos  que  tudo  isto  nos  escaldava  o  sangue, 
e  torturava  o  espirito. 

E  era  assim. 

Por  mais  que  o  movimento,  a  larga  convivência  com 
os  nossos  semelhantes,  o  exercício  pratico  das  cousas 
da  vida  —  nos  sejam  recommendados,  como  meios  po- 
derosíssimos da  conservação  das  nossas  faculdades  — 
occasiões  ha  em  que  tudo  isso  nos  irrita,  nos  enfastia, 
e  aborrece. 

E,  se  isto  se  dá  com  indivíduos,  nascidos,  creados 
n'um  grande  centro,  d'onde  nunca  sairam  —  o  que  di- 
remos d'aquelles,  que  gastaram  o  melbor  dos  seus  an- 
nos,  no  meio  de  grandes  e  diversas  populações,  sempre 
em  attrito  com  a  infinita  multiplicidade  de  sentimentos, 
que  agitam  os  homens,  e  sempre  em  lucta  com  a  sorte 
varia  e  varia  gente? 

Respondam  os  experimentados. 

Chega-se  a  ter  ímpetos  de  saltar  por  cima  de  todas 
as  conveniências,  e  fugir. . .  fugir  até  que  se  não  ouça 
mais  o  rumor  de  um  lugar  habitado,  ou  o  som  de  uma 
voz  humana. 


12  NOTAS  A  LAP18 


Das  enfermidades  do  espirito  é  esta  a  peor,  que  co- 
nhecemos. 

Se  não  nos  achávamos  no  estado  agudo  d'esta  triste 
moléstia,  bem  pouco  nos  faltava  para  isso. 

# 
#      # 

Ás  oito  horas  pois  do  mencionado  dia,  se  não  deitá- 
mos a  fugir  até  ás  cavidades  de  uma  longiqua  monta- 
nha, em  ermo  solitário  —  saímos  de  casa,  de  mala  na 
mão,  capote  de  linho  ás  costas  e  barrete,  de  seda  no 
bolso,  e  só  parámos  no  largo  dos  Caminhos  de  Ferro, 
a  uma  das  portas  da  respectiva  estação. 

Não  pretendemos  demonstrar  o  que  se  passa  nas  es- 
tações dos  caminhos  de  ferro  das  outras  partes;  pare- 
ceu-nos  porém  que  o  serviço  d'esta  deixa  muito  a  de- 
sejar, principiando  pelo  despacho  das  bagagens,  que 
soffrem  tratos  horríveis  para  o  conteúdo,  que  levam, 
desde  que  caem  na  balança  até  que  entram  no  com- 
boio. 

O  babu  ou  a  mala,  cujos  membros  não  sejam  guar- 
necidos de  fortes  prisões  de  ferro  —  arrisca-se  a  des- 
conjuntasse, para  melhor  conveniência  do  serviço  e 
maior  gloria  dos  respectivos  empregados,  que  teem  a 
sobranceria  de  quem  almoçou  copiosamente,  e  está  bem 
com  a  sua  consciência. 

Que  differença  porém  entre  a  elegante  estação,  que 
encontrávamos,  e  a  que  deixáramos,  ha  annos,  em  Santa 
Àpolonial 

Ao  primeiro  arranco  da  locomotiva,  raiou  um  sol  es- 
plendido, que  se  foi  divertindo  pelo  caminho  a  esmal- 
tar as  faces  do  nosso  formosissimo  Tejo,  e  a  entornar 
scin  ti  Ilações  deslumbrantes  nos  campos,  que  o  margi- 
nam, alegrando  ao  mesmo  tempo  os  vários  grupos  dos 
operários  das  fabricas  do  Beato  António,  um  circulosi- 
nho  manufactureiro,  que  faz  honra  ás  cercanias  de  Lisboa. 

Ao  movimento  pouco  accentuado,  mas  sempre  pro- 


DE  LISBOA  AO  MONDEGO  i3 

gressivo,  das  industrias  portoguezas  não  escapou  o  pró- 
prio convento  de  S.  João,  boje  convertido  em  larga  of- 
ficina,  distribuindo  assim,  consoante  as  necessidades  do 
século,  o  pão,  outr'ora  destinado  á  preguiça  e  ao  des- 
membramento da  espécie  bumana,  ás  muitas  famílias, 
que  lá  encontram  um  trabalho  honrado  e  productivo. 

Passada  a  segunda  estação,  começou  o  borisonte  a 
alargar-se,  á  proporção  que  se  estreitava  o  leito  do  le- 
gendário rio,  as  paizagens  a  enriquecer- se,  e  a  nossa 
vista  insaciável  a  absorver  com  soffreguidão  todas  as 
imagens,  e  o  nosso  coração  a  dilatar-se  pelo  encanto, 
que  lbe  proporcionavam  o  novo  ar  e  a  nova  luz,  em 
que  se  banhava. 

Ha  que  tempos  não  viramos  aquillo,  que  para  nós 
tinha  quasi  o  valor  do  desconhecido! 

Na  encosta  de  um  valle,  um  rebanho  de  gado,  segui- 
do do  pegureiro,  em  graciosas  curvas  torneando  um 
vallado,  ou,  n'uma  esplanada,  agrupado  ao  pé  de  uma 
arvore  copada,  a  ruminar  em  descanço;  uma  junta  de 
bois,  obedecendo  á  voz  potente  do  abegão,  a  abrir  em 
sulcos  symetricos  um  ou  outro  pedaço  de  terra,  já  des- 
pida da  ultima  sementeira;  no  cume  de  um  outeiro  o 
decantado  moinho  de  vento,  a  desafiar  com  as  longas 
azas  abertas  os  ímpetos  de  algum  Quichote  moderno; 
nas  eiras,  ao  pé  dos  casaes,  as  raparigas  de  saia  rufa- 
da na  cintura,  a  disporem  os  molhos  de  cereaes  tem- 
porões  para  a  próxima  malhada;  ranchos  de  trabalha- 
dores, occupados  alegremente  a  mondar  os  largos  cam- 
pos de  milho,  saudando  com  a  habitual  algazarra  a 
passagem  do  comboio,  em  desafio  com  os  passageiros 
da  terceira  classe,  que,  ás  portinholas,  agitavam  os  cha- 
péus, em  ar  de  galhofa,  umas  vezes  zombeteira  e  iró- 
nica, outras  verdadeiramente  sincera  e  expansiva;  final- 
mente em  toda  a  parte  a  graça,  a  diversão,  o  movi- 
mento e  a  vida. 

Tpdas  aquellas  antiquíssimas  povoações,  algumas  das 
quaes  se  remontam  a  épocas  anteriores  á  fundação  da 
monarchia,  no  rápido  golpe  de  vista,  que  sobre  ellas 


14  NOTAS  A  LÁPIS 


podíamos  lançar— nos  produziram  boa  impressão,  pelo 
alegre  da  sua  apparencia,  ou  pela  vetustez  das  suas  an- 
tigalbas  architectonicas. 

Uma  viagem,  em  camindo  de  ferro,  é  porém  pouco 
azada  a  investigações  históricas;  por  mais  que  torturás- 
semos ás  vezes  a  nossa  memoria,  á  procura  dos  factos 
passados  em  algumas  d'ellas,  nunca  chegávamos  a  com- 
pendiar meia  dúzia  de  coisas  com  nexo,  porque  a  pai- 
zagem  variava  de  instante  a  instante,  os  lugares  substi- 
tuiam-se  rapidamente  uns  aos  outros,  de  modo  que  só 
tínhamos  alma  para  ver,  e  não  para  recordar. 


II 


O  Carregado.— Recordações..— Uma  aventura  de  rapas. 


Não  nos  aconteceu  porém  o  mesmo,  quando  chegá- 
mos á  estação  do  Carregado;  ou  antes  aconteceu-nos  o 
mesmo,  quanto  a  casos  de  historia,  mas  não  pelo  que 
dizia  respeito  ao  que  alli  se  passara  comnosco,  havia  an- 
nos,  quando  o  trajecto  de  Coimbra  até  lá  se  fazia  em 
ma  la- posta,  com  demora  de  alguns  dias. 

Vincamos,  pela  primeira  vez,  caminho  de  Lisboa, 
onde  uma  pretenção,  concedida  havia  muito;  nos  trazia 
á  presença  de  um  fidalgote,  infelizmente  nosso  parente, 
que,  apesar  dos  titulos  nobiliários,  que  lhe  engrinalda- 
vam a  prosápia,  faltou  á  sua  palavra,  tão  miserável  e 
desastradamente,  como  o  não  faria  o  mais  reles  de  to- 
dos os  villões. 

Tivemos  portanto  de  pernoitar,  á  espera  do  comboio 
da  manhã,  em  uma  pobre  estalagem  d'alli  perto. 


DE  LISBOA  AO  MONDEGO  15 

Acompanhava-nos  um  sujeito,  contractador  de  cavai- 
los,  nédio  personagem,  que  ainda  boje  temos  gravado 
na  memoria,  um  d'estes  sujeitos  que  estão  bem  em  toda 
a  parte,  com  tanto  que  lbes  não  façam  gastar  dinheiro. 

Aberto  o  sacco  do  respectivo  farnel,  o  homem  convi- 
dou-oos  a  comer  um  naco  de  bom  toucinho  e  uma  per- 
na de  gallinha. 

N'esse  tempo  porém  já  Unhamos  o  horror,  que  ainda 
hoje  conservámos,  ás  carnes  frias,  e  portanto  negámos- 
nos  a  tomar  parte  na  refeição. 

O  dono  da  estalagem  vira  logo  em  nós  uns  fracos 
hospedes,  e  fora  para  o  interior  da  casa,  deixando-nos 
á  vontade. 

— Eh!  eh!— dizia-nos  o  nosso  companheiro,  a  rir-oos 
nas  bochechas,  com  a  bocca  atulhada  de  broa  amarella 
e  os  beiços  untados  de  toucinho.  —  Eh!  eh!  Então  o  me- 
nino não  quer  comer;  cuida  talvez  que  o  cobrem  ainda 
aqui  as  saias  de  sua  boa  avó.  Pois  está  enganado.  Bem 
se  vô  que  não  sabe  nada  da  vida. 

E  assim  continuou  o  homem  a  apostrophar-nos,  a  rir 
e  a  comer. 

A  esse  tempo  fazíamos  os  nossos  entes  de  rasão  so- 
bre os  recursos  da  magra  bolsa,  que  levávamos. 

O  nosso  mau  humor  mauifestou-se  ainda  mais,  se  bem 
nos  lembrámos,  quando  o  bom  do  homem  nos  convi- 
dou a  passar  a  noite,  a  um  cante  da  estrebaria,  ao  pé 
dos  cavallos  da  mala-posta. 

PTeste  ponto  rebelámos-nos  contra  a  provisória  tutela 
do  gordo  personagem,  e  investimos  pela  casa  dentro, 
até  chegarmos  á  cosinha,  onde  os  donos  d'ella  e  duas 
guapas  raparigas  comiam  socegadamente  um  caldo. 

—O  que  teem  por  cá  que  se  coma?  —  perguntámos, 
com  a  mais  santa  ingenuidade  de  estudante  provincia- 
no, não  sem  nos  embebermos  na  rápida  contemplação 
das  raparigas. 

—Olhe,  menino  —  respondeu-nos  a  mãe  das  moçoi- 
las, pessoa,  ao  que  parecia,  muito  lavada  de  bons  mo- 
dos—a dizer  a  verdade  pouco  temos,  porque  estiveram 


16  MOTAS  A  LÁPIS 


abi  uds  homens— t'arrenego!—e  que  comiam,  como  lo- 
bos, e  vae...  depois... 

— Ó  mulher— emendou  o  marido,  com  ar  bonachei- 
rão—  comeram,  mas  pagaram. 

— Pois  sim. . .  sim. . .  mas— continuou  a  mulher — 
se  hoje  viessem  hospedes  não  Unhamos  que  lhes  dar. 
Olhe,  menino,  se  quer  umas  sardinhas. . .  Sente-se  para 
aqui.  Ó  Maria. . .  chega-te.  * .  dá  lugar. 

A  rapariga,  a  mais  bonita  das  duas,  deu-nos  o  seu 
lugar,  e  foi,  por  ordem  da  mãe,  preparar  a  iguaria,  que 
os  nossos  olhos  de  dezesete  annos  deixaram  de  ver, 
para  se  cravarem  tola  e  constantemente  nos  da  graciosa 
hospedeira. 

A  nossa  imaginação  sonhara  desde  logo  um  romance, 
sem  que,  apesar  disso,  o  nosso  esopbago  deixasse  de 
insurreccionar-se  contra  a  demasiada  salmoura  do  peixe, 
capaz  de  inflammar  os  intestinos  mais  bem  formados. 

Chegou  a  hora  de  ir  para  a  cama,  que  mandáramos 
preparar. 

A  rapariga  caminhava  adiante,  com  a  candeia  na 
mão,  e  nós  estudávamos  uma  declaração  em  forma 
para  lh'a  pespegarmos  á  queima  roupa,  quando  ella 
nos  indicou  a  porta  aberta  de  um  pequeno  quarto,  e, 
entregandonos  bruscamente  a  candeia,  nos  disse,  vol- 
tando-nos  rapidamente  as  costas : 

— Muito  boas  noites,  menino. 

Aquelle  qualificativo  de  menino  soou-nos  mal  aos  ou- 
vidos, beliscou  o  nosso  amor  próprio,  e  não  sabemos 
se  chegou  a  fazer-nos  levar  a  mão  á  cara,  á  procura  do 
bigode,  que  estava  ainda  na  mais  completa  incubação. 

Meio  vestido  e  meio  despeitado,  deitámos-nos  na  cama 
soffrivelmente  limpa,  e  procurámos  chamar  o  somno,  que 
não  é  difficil  em  semelhantes  edades,  por  mais  que  a  vi- 
são de  uma  rapariga  bonita  nos  aguilhôe  o  pensamento. 

Alta  noite  porém  sentimos-nos  despertar,  no  meio  da 
mais  cruel  agonia,  e  tanto  que  chegámos  a  suppor  a 
existência  de  um  negro  crime,  perpetrada  na  nossa  hu- 
milde pessoa. 


DB  LISBOA  AO  MONDBGO  17 

Uma  sede  ardente,  como  nunca  sentíramos  em  nossa 
vida,  dilacerava-nos  as  entranhas  e  uma  cólica  fortís- 
sima parecia  qnerer  arrancar-nos  as  mesmas  entranhas. 

Para  juntar  a  tudo  isso,  que  nos  flagellava  interior- 
mente, sentimos  na  epiderme  uma  impressão  tão  estra- 
nha, como  se  nos  tivessem  dado  orna  forte  esfregação 
de  malagueta. 

De  bocca  aberta  e  língua  pegada  ao  sobreceu,  saltá- 
mos de  um  pulo  da  cama,  e  accendemos  um  phospboro. 

A  luz  e  o  raciocínio  deram-nos  então  a  explicação  do 
caso  estranho. 

As  sardinhas  salgadas  começavam  a  produzir-nos 
uma  formidável  irritação  de  intestinos,  que  se  conser- 
vou por  oito  dias ;  e  umas  centenas  de  enormes  perce- 
vejos, formados  em  vários  pelotões,  baviam-nos  atacado, 
com  tal  valentia  e  denodo  que  nem  o  somno  da  moci- 
dade foi  capaz  de  resistir-lbes.  Eguaes  áquella,  só  nos 
lembram  as  antigas  hospedarias  do  Minho,  de  que  nos 
falia,  com  tanto  espirito,  o  nosso  illustre  romancista  Ca- 
millo  C.  Branco.  O  que  fazer  em  tão  triste  conjunctura  ? 

Descer  pé  ante  pé  até  á  cosinba,  em  demanda  do 
pote  da  agua,  e  de  volta  ao  quarto  ficar  de  sentinella 
ás  fileiras  do  exercito  inimigo. 

Por  vergonha,  não  corremos  á  estrebaria,  onde  reso- 
nava  o  nosso  companheiro,  a  pedir-lhe  refugio  contra 
tão  duro  ataque,  e  a  lançar-Ihe  no  seio  as  lagrimas  do 
nosso  arrependimento,  por  não  termos  acceitado  o  tou- 
cinho e  a  perna  da  gallinha,  com  que  elle  se  regalara. 

— Bem  se  vé  que  o  menino  nada  entende  da  vida  — 
dissera  elle, 

E  d'aquella  vez  tinha  razão. 

Ao  outro  dia,  quando  o  gordo  do  homem  nos  entrava 
no  quarto,  a  dizer-nos  que  eram  horas  de  partir,  está- 
vamos nós  esguedelbado,  com  os  olhos  encovados  e  o 
rosto  pálido,  sentado  n'um  tamborete,  a  lér  os  annun- 
cios  de  um  pedaço  de  jornal,  em  que  trazíamos  embru- 
lhado um  par  de  sapatos.  Ao  depor  a  paga  da  hospe- 
dagem nas  mãos  do  dono  da  locanda,  nem  sequer  nos 


18  NOTAS  A  LÁPIS 


lembrávamos  já  dos  attractivos  da  formosa  rapariga,  tal 
era  a  anciedade  em  que  estávamos,  por  fugir  (Taquella 
casa,  onde  o  amor  e  as  sardinhas  nos  tinham  posto  no 
estado  de  precisar  hospital. 

E  vão  lá  fiar-se  nos  amores  dos  dezesete  annos,  que 
não  resistem  áquella  pitança  e  a  uma  simples  invasão 
de  percevejos ! 

Pois,  a  despeito  do  caso,  que  fica  revelado,  ao  che- 
garmos á  estação  do  Carregado,  quasi  que  desejámos 
encontrar  ainda  a  hospedaria,  que  nos  dera  tão  áspero 
agasalho,  e  sentirmos-nos  conduzir  pelos  cavallos  da 
posta,  tal  é  o  poder,  que  teem  sobre  nós  as  recorda- 
ções dos  tempos  idos. 

Se  esse  desejo  podesse  tornar-se  uma  realidade,  te- 
ríamos ao  menos  uma  grata  compensação — a  de  gosar- 
mos,  embora  por  instantes,  a  uns  cinco  kilometros  de 
distancia,  o  formoso  panorama  da  villa  de  Alemquer, 
povoação  manufactureira,  cortada  a  meio  pelo  rio  do 
mesmo  nome,  graciosa  pátria  de  Damião  de  Góes. 

Em  Chão  de  Maçãs  deram-nos  Ímpetos  de  tomar  o 
caminho  de  Leiria,  e  seguir  em  piedosa  romaria  até  á 
Batalha,  o  grandioso  monumento,  que,  apesar  d'isso  e 
dos  annos,  que  sobre  elle  teem  passado,  se  conserva 
imperfeito,  isto  é,  por  concluir,  como  acontece  á  má- 
xima parte  dos  monumentos  portuguezes;  mas  fomos 
obrigado  a  ceder  ao  plano  da  viagem,  que  era  outro. 

Ficava-nos  a  realisação  d'este  desejo  para  outra  occa- 
sião,  em  que  mais  tranquilla  eazadamente,  podessemos 
também  por  nossa  vez  pagar  o  tributo  de  admiração 
áquella  gigante  e  viva  prova  da  fé  religiosa  e  do  patrio- 
tismo de  outros  tempos,  descobrindo-nos  reverentemen- 
te diante  da  rendilhada  fabrica,  assombrosa  e  verdadeira 
relíquia,  que  surgiu  da  simples  vontade  e  intelligencia 
de  um  homem  só,  o  poeta-architecto,  como  lhe  chamou 
o  sr.  Pinheiro  Chagas,  em  concordância  com  a  opinião 
de  A.  Herculano,  que  assim  classificou  Àffonso  Domin- 
gues, ao  dar  o  titulo  de  poema  de  pedra  ao  edifício  go- 
thico-normando. 


DE  LISBOA  AO  M0RD1ÒO  19 

III 

Ot  campos  — á  emigração  —  Chegada 


Os  campos  e  as  habitações,  próximas  da  via  férrea, 
durante  o  trajecto,  eram  para  dós,  como  já  dissemos, 
motivo  de  constante  embevecimento  e  de  minuciosa  cu- 
riosidade. 

Ao  partir  do  entroncamento,  com  especialidade,  no- 
táramos, com  certa  estranheza,  que,  afora  alguns  peque- 
nitos, a  maior  parte  da  gente,  empregue  na  cultura  das 
hortas,  na  limpeza  do  caminho,  no  amanho  das  terras, 
do  movimento,  que  se  descobria  por  toda  a  parte,  per- 
tencia ao  sexo  feminino. 

A  servir  de  guardas  da  linha,  a  manejar  o  alvião,  a 
carrear  matto,  a  regar,  e  a  sachar  os  renovos,  a  cruzar- 
se  em  todas  as  direcções,  isoladamente  ou  aos  ranchos, 
só  víamos  mulheres. 

Estranhámos  o  facto,  que  nos  parecia  um  phenomeno, 
a  um  companheiro,  com  quem  estabelecêramos  assidua 
conversa. 

—  Que  quer,  meu  caro  I  Ha  por  cá  populações  intei- 
ras, onde,  afora  alguns  velhos,  que  já  mal  se  podem  ar- 
rastar até  á  lareira,  ou  a  uma  restea  de  sol,  no  inver- 
no—  só  ha  mulheres  e  creanças.  O  resto...  os  homens 
validos  de  todas  as  edades  e  de  todos  os  estados  foram- 
se  a  procurar  fortuna...  emigraram...  estão  pelo  Brazil. 

—  A  emigração...  o  sonhado  pouco  de  ouro...  a  des- 
lumbrante fascinação,  que  tantos  enganos  estabelece,  e 
tantas  desgraças  produzi 

—  A  quem  o  diz  o  senhor!  A  um  homem  competen- 
tíssimo, a  quem  eram  bem  conhecidas  as  estatísticas  dos 


20  NOTAS  A  LÁPIS 


consolados,  que  temos  do  estrangeiro,  já  eu  ouvi  dizer: 
Por  cada  mil  indivíduos,  que  saem  do  nosso  paiz,  onde 
o  Alemtejo  é  um  deserto  fertilissimo,  mas  inculto,  e  o 
Algarve  pouco  menos  —  voltam  dois...  ricos,  seis... 
remediados,  vinte  e  tantos. . .  pobres:  o  resto  vae  por 
lá  arrastando  uma  vida  de  misérias,  ou  jaz  nas  valias 
dos  cemitérios. 

Não  podemos  deixar  de  sentir  um  arripio  de  horror, 
ao  mesmo  tempo  que  uma  espécie  de  admiração  nos  fa- 
zia encarar  detidamente  aquelle  homem,  tão  conhecedor 
dos  resultados  da  emigração,  em  paiz,  onde  tão  pouco 
se  conhecem  essas  tristes  verdades  e  tudo  o  que  diz 
respeito  ao  emigrante  portuguez,  apesar  de  quantas  es- 
tatísticas ofíkiaes  possam  fornecer  os  consulados. 

E  no  entanto,  sem  fallar  nos  insulanos,  que  de  prefe- 
rencia procuram  os  Estados-Unidos,  anda-nos  pela  Amé- 
rica do  Sul  a  bagatella  de  cento  e  tantos  mil  homens, 
arrancados  á  industria,  ás  letras,  ao  commercio  e  sobre- 
tudo á  agricultura,  e  por  isso  ao  progresso  moral  e  ma- 
terial das  respectivas  populações,  onde,  apesar  da  via- 
ção, que  ha  uns  vinte  annos  para  cá  se  tem  alargado  e 
melhorado,  se  nota  um  desenvolvimento,  sem  nenhumas 
condições  de  vida. 

Se  ha  lugares,  a  que  os  palacetes  e  as  casas  de  mo- 
derna construcção,  devidos  ao  dinheiro  do  emigrante, 
emprestaram  mais  formosa  perspectiva  e  mais  assigna- 
lada  importância — muitíssimas  povoações  existem,  onde 
as  continuadas  deserções  para  fora  do  paiz  teem  produ- 
zido um  mal  immenso,  dando-lhes  um  aspecto  selvagem 
e  doentio,  um  terreno  sáfaro  e  inculto,  ou  mesmo  a 
completa  decadência. 

# 
#      # 

Muito  tempo  depois  de  tocar  n'este  doloroso  assum- 
pto, que  de  perlo  e  de  longe  tão  bem  conhecemos,  vi- 
nha-nos  ás  mãos  um  jornal,  onde  um  medico  portuguez, 


DE  LISBOA  AO  MONDEGO  21 

residente  no  Brazil,  fazia  estendal  copioso  dos  resulta- 
dos principaes  da  emigração,  exercida  torpemente  em 
grande  parte  por  agencias  assalariadas  e  immoralissi- 
mas. 

Offerecemos  pois  aos  cobiçosos  sonhadores  das  minas 
de  ouro,  que  em  toda  a  parte  existem,  desde  que  se 
lança  mão  de  um  trabalho  sensato  e  continuado,  a  parte 
do  jornal  que  se  referia  á  mortalidade. 

Diz  ella  : 

cPois  que  faltei  de  misérias...  apresentarei  outros 
factos  que  não  se  encontram  nos  livros  sobre  colonisa- 
ção  portugueza.  A  população  da  capital  do  Rio  de  Ja- 
neiro, pela  estatitisca  official  de  1873,  conta  228:743  ha- 
bitantes incluídos  78:583  estrangeiros,  dos  quaes  53:213 
são  portuguezes. 

a  Na  bypothese  menos  favorável  ao  meu  calculo,  todos 
estes  estrangeiros  chegaram  ao  Rio  de  Janeiro  entre  as 
edades  de  10  annos  até  aos  78.  Pela  taboa  da  mortali- 
dade de  Deparcieux,  desde  o  nascimento  até  á  edade 
de  10  annos,  e  desde  os  78  até  aos  94,  morre  um  nu- 
mero de  indivíduos  egual  ao  numero  de  óbitos  cora- 
prehendidos  desde  a  edade  de  10  alè  aos  94.  A  grande 
maioria  da  emigração  compõe-se  de  indivíduos  chegados 
Da  edade  de  16  a  30  annos,  em  que  o  termo  médio  de 
vida  provável  è  o  maior.  A  mortalidade  da  população 
pelas  estatísticas  dos  três  últimos  annos  revelava  uma 
media  superior  a  10:000  óbitos. 

cA  população  de  Lisboa  pelo  menos  é  egual,  se  não 
maior  de  228:743 :  a  media  da  mortalidade  em  Lisboa 
é  de  5:400  óbitos  por  anno.  Comparadas  as  populações 
das  duas  cidades,  as  suas  mortalidades,  as  suas  respe- 
ctivas populações  dos  súbditos  naturaes  dos  dois  paizes 
e  a  dos  estrangeiros  habitadores  desde  os  10  annos  por 
diante,  o  resultado  é  o  seguinte:— na  cidade  de  Lisboa, 
sobre  52:213  portuguezes,  desde  a  edade  dos  dez  até 
aos  setenta  e  oito  annos,  morrem,  cada  anno,  1:255  in- 
divíduos, sobre  egual  numero  de  portuguezes  entre  as 
mesmas  edades,  morrem  na  cidade  do  Rio  de  Janeiro 


NOTAS  A  LÁPIS 


3:125;  ou  melhor,  a  mortalidade  dos  portuguezes  do  Rio 
de  Janeiro  é  maior  149  por  cento  do  que  a  mortalidade 
de  Lisboa.» 
E'  triste,  mas  verdadeiro. 

# 
#      # 

Das  cruas  reflexões,  que  faziam  parte  da  conversa, 
veiu  arrancar-nos,  em  Pombal,  pátria  e  desterro  do  ho- 
mem mais  extraordinariamente  patriota,  que  ha  séculos 
tem  nascido  na  península,  um  affectuoso  abraço,  que 
nos  dava  um  sympatbico  e  talentoso  rapaz,  o  dr.  E.  de 
Carvalho,  que  já  uma  vez  se  havia  sentado  á  nossa  mo- 
desta meza  de  trabalho,  a  mil  e  tantas  léguas  de  dis- 
tancia, quando,  também  em  pouco  afortunada  peregri- 
nação, se  encontrara  comnosco  pela  primeira  vez. 

Fora  aquella  uma  agradabilíssima  surpreza,  somente 
devida  ao  capricho  do  acaso,  tão  longe  estávamos  nós 
ambos  de  nos  vermos  n'aquelle  lugar,  e  pela  segunda 
vez. 

Dêmos  as  mãos,  e  conversámos  muito  de  longes  ter- 
ras e  dos  mil  incidentes,  que  nos  diziam  respeito  e  a 
conhecidos  nossos,  com  aquella  expansão  e  accentuada 
franqueza,  com  que  os  veteranos  se  aprazem  de  recor- 
dar os  soffrímentos  de  uma  difficil  è  penosa  campa- 
nha. 

Na  próxima  estação,  fronteira  á  risonha  villa  de  Soure, 
forçoso  nos  foi  despedirmos-nos,  elle  para  se  entregar 
aos  seus  trabalhos  de  obscura  advocacia,  na  sua  terra 
natal,  onde  ninguém  costuma  ser  propheta,  quando  a 
sua  aptidão  e  as  suas  qualidades  pessoaes  requeriam 
maiores  e  mais  altos  destinos;  e  nós  para  proseguir  a 
viagem,  ao  menos  por  alguns  dias,  próxima  do  seu 
termo. 

Duas  estações  mais. . .  trinta  e  dois  kilometros. . .  e 
a  nossa  anciedade  diminuiria  de  volume,  e  a  nossa  sau- 
dade ficaria  satisfeita. 


Dl  LISBOA  AO  MONDEGO  23 

Com  effeito  o  comboio  galgara  rapidamente  aqnella 
distancia,  não  com  a  velocidade,  requerida  pela  nossa 
vontade,  com  que  ninguém  tinha  nada  que  ver,  mas  de 
maneira  a  reprimir  um  pouco  os  ímpetos  da  nossa  im- 
paciência, e  elevar  ainda  mais,  se  era  possível,  os  im- 
pulsos do  nosso  coração. 

A's  4  e  meia  horas  da  tarde,  pouco  mais  ou  menos, 
arquejava  elle  em  frente  da  estação  do  Mondego,  e  nós 
sobraçando  machinalmente  os  pequenos  volumes  da  nos- 
sa bagagem,  lançávamos  vistas  cubiçosas,  húmidas  de 
enternecimento,  sobre  a  cidade— presépio,  a  nossa  tão 
lembrada  e  estremecida  Coimbra. 


24  NOTAS  A  LÁPIS 


EM  COIMBRA 


Utilidade  de  dizer  coisas  já  ditas— Impressões  e  poetas 
Os  estudantes— Ruínas  humanas 


Coimbra,  a  jóia  de  vários  nomes,  possuída  por  varias 
gentes,  em  tempos  mal  conhecidos  boje!  a  querida  dos 
cônsules  romanos,  a  pérola  de  godos  e  califas,  a  tão 
disputada  corte  de  mouros  e  cbristãos !  a  mestra  mo- 
derna de  sábios  e  doctores! 

Coimbra! 

O  que  poderemos  nós  dizer,  na  pobreza  das  nossas 
notas  a  lápis,  que  já  não  esteja  dito?  Que  lustre  nos  será 
dado  acrescentar  a  assumptos  esgotados,  como  este  de 
fallar  de  lugares,  que  todos  conhecem;  descrever  im- 
pressões, já  tantas  vezes  sentidas;  estabelecer  analyses, 
atravez  de  um  prisma,  onde  não  podem  figurar  pessoas 
ou  cousas  novas,  e  especialmente  agora  em  que  é  de 
primeira  intuição,  de  verdadeiro  rigor  moderno  viajar 
no  estrangeiro,  trazendo  de  lá  os  olhos  embevecidos  por 
tudo  o  que  é  fino,  mimoso  e  grande,  a  imaginação  cheia 
de  quadros  multicores,  variados  em  feitio  e  forma,  e  o 
gosto  de  tal  modo  apurado  que  já  não  ha  contental-o 
com  as  mesquinharias  do  lar  domestico? 


EM  COIMBRA  25 


Uma  pagina  de  prosa  simples,  caseira,  despretenciosa 
poderá  lá  rastejar  pelos  períodos  brilhantes,  onde  a 
phrase  scintillante,  como  cristal  fino,  se  junta  ao  im- 
previsto da  narrativa  tão  rendilhada  como  os  estuques 
do  Alhambra,  ou  tão  florescente  como  os  jardins  de  Se- 
miramis? 

De  nenhum  modo. 

O  que  emporta  isso  porém  a  quem,  como  nós,  se 
arreda  voluntariamente  do  caminho,  que  nos  não  é  dado 
trilhar,  e  que  se  contenta  pura  e  simplesmente  com  re- 
cordar impressões,  que  outros  já  podem  ter  sentido  e 
descripto,  mas  que  no  fundo  da  sua  singeleza  chegarão 
talvez  o  encerrar  alguma  utilidade. 

E  essa  utilidade? 

Responda  a  maioria  dos  leitores  do  periódico,  onde 
foram  publicadas  estas  linhas,  o  Atlântico,  destinado  ao 
Brazil  e  ás  nossas  possessões  ultramarinas;  respondam 
os  nossos  compatriotas,  que,  longe  do  seu  paiz,  não  sa- 
bem, não  podem  desdenhar  um  instante  sequer  d'aquil- 
1q,  por  simples  que  seja,  que  possa  levar-lhes  ás  agru- 
ras da  saudade  unta  gota  de  bálsamo  consolador ;  fal- 
lem  elles,  que  lá  fora  sentem  o  que  nunca  sentiram  tão 
vivo. . .  um  entranhado  amor  por  tudo  o  que  pôde  ía- 
zer-lbes  lembrar  o  ninho  seu  paterno. 

E  essa  utilidade? 

Está  n'isto.  •  •  a  mais  suave  compensação,  que  podem 
ter  estas  paginas  de  mero  desenfado...  levar  a  tantos 
corações  amantíssimos  um  ecco  da  pátria,  doce  bafa- 
gem, que  vae  rescender-lhes  á  flor  da  larangeira  dos 
pomares,  á  esteva  dos  montes,  ou  á  madresilva  dos  ri- 
beiros, que  guarnecem  os  lugares,  onde  elles  se  forma- 
ram, e  cresceram. 

Adiante  pois  I 

Prestemos  nosso  sincero  culto  á  pátria  de  tantos  ho- 
mens illustres  pelo  sangue,  pelas  virtudes  e  patriotis- 
mo, por  artes  e  lettras,  ao  coito  florido  dos  poéticos 
amores  de  Ignez,  á  mimosa  terra  de  Sá  de  Miranda 
e  Machado  de  Castro,  á  encantadora  princesa  do  Mon- 


26  NOTAS  A  LÁPIS 


dego,  no  dizer  e  versejar  de  amas  poucas  de  gera- 
ções. 

Coimbra  I  Que  mundo  de  lembranças  suavíssimas  não 
inspira  este  nome  a  tantos  velhos,  encanecidos  nas  dif- 
ferentes  luctas  da  vida,  quando  uma  hora  despreoccu- 
pada  lhes  deixa  andar  o  coração  á  procura  de  recorda- 
ções passadas ! 

Quantos  homens,  que  hoje  trabalham  na  politica,  no 
commercio,  nas  lettras,  vivendo  nas  cidades  e  nas  al- 
deãs, dentro  e  fora  do  paiz,  se  comprazem  ainda  de 
commemorar,  nas  sessões  entre  amigos  e  condiscípulos, 
as  tumultuosas  arruaças  ou  os  entretenimentos  brandos 
da  sua  mocidade,  quando  eram  estudantes  em  Coimbra! 
quantos,  saídos  de  lá  ainda  hontem,  conservam  hábi- 
tos, que  alli  adquiriram,  gostos  que  lá  lhes  nasceram, 
imagens  que  não  conseguiram  nunca  riscar  da  memo- 
ria! 

E'  por  essa  indelével  e  poderosa  influencia  que  João 
de  Lemos,  o  dulcíssimo  poeta  do  Cancioneiro,  nos 
disse: 

—Cada  povo  tem  a  cidade  da  sua  poesia,  da  sua  ima- 
ginação, dos  seus  amores:  cada  povo  aponta  para  a  sua 
terra,  que  a  tradicção  vestiu  de  galas,  e  diz : — Lá,  lá ! 
oh !  que  não  ha  nada  mais  bello ! 

«O  portuguez  aponta  para  Coimbra. • 

E  assim  é !  Ninguém,  oh !  ninguém  que  le  tenha  pri- 
vado com  as  particularidades  da  vida  coimbrã,  n'essa 
edade,  em  que  na  imaginação  avultam  aos  milhões 
os  pensamentos  vagos,  as  aspirações,  os  pontos  in- 
definidos, e  em  que  o  mundo  inteiro  nos  parece  cons- 
tante irradiação'  de  um  Toco  luminoso  e  côr  de  rosa, 
atravez  de  uma  lente,  encravada  no  centro  das  nos- 
sas illusões  —  ninguém  poderá  dizer  que  não  seja  as- 
sim. 

Ao  darmos  entrada  na  rua  da  Sophia,  nós  também 
podíamos,  com  a  mão  no  coração,  exalçar  o  nosso  ju- 
bilo, a  ponto  de  exclamar  com  aquelles  conhecidos 
versos  do  autor  do  Cancioneiro : 


m  COMBBÀ  17 


Coimbra,  terra  de  encantos 
Do  Mondego  alegre  flor, 
Venho  pagar-te,  em  meus  cantos, 
Tributo  de  antigo  amor! 

Andei  por  longe»  terras, 
Tantas  cidades  que  vi, 
Outros  climas,  outras  serras. . . 
E  ás  vezes  scismava  em  ti  I 
De  Londres  vi  a  grandeza, 
Vi  o  encanto  de  Veneza, 
De  Paris  a  seducção ; 
E  mesmo  nesses  momentos 
Foi  fiel  meu  coração. 

O  Rheoo  com  seus  castellos, 
Vienna,  Milio,  Berlim, 
Da  Suissa  os  cantões  bellos 
Não  me  filiavam  a  mim  ; 
Não  fatiavam  como  falias, 
Coimbra,  nas  tuas  galas 
Que  eu  sei,  que  aprendi  de  cór, 
Não  diziam  o  que  dizes, 
N'esse  estendal  de  matizes, 
Que  tens  de  ti  ao  redor. 


Não  cantávamos  porém,  não  faltávamos  sequer,  ta- 
manha era  a  com  moção,  que  a  vista  d'aquelles  lugares 
tão  amados  e  tio  conhecidos  produzia  em  nosso  espi- 
rito, já  de  si  adoentado  e  fraco. 

Sentiamos-nos  succumbir. 

Se  não  fosse  o  medo  do  escândalo  e  do  descrédito» 
que  soffreria  o  nosso  juizo,  ternos-ia-mos  apeado  do 
americano  para  beijar  as  pedras  d'aquellas  calçadas  e 
os  muros  cTaquellas  habitações. 

A  nossa  phantasia,  demasiadamente  conservadora, 
apesar  de  tudo,  escandalisara-se,  logo  ao  começo,  pela 
sensível  mudança,  que  se  nota  em  alguns  pontos  da  ci- 
dade. 

Se  podessemos,  desandaríamos  a  cravelha  á  roda  do 
progresso,  para  nos  extasiarmos  somente  diante  d'aquil- 
lo,  que  havíamos  deixado,  começando  logo  pelo  largo 


NOTAS  A  LÁPIS 


de  Sausão,  onde,  ao  lado  direito  da  vetusta  e  quasi  so- 
terrada egreja  de  Santa  Cruz,  se  eleva  um  magnifico 
edifício,  onde  funcciona  uma  repartição  publica. 

Os  estudantes,  que  vagueavam  pelas  ruas,  esses.  . . 
pareceram-nos  o  que  o  nosso  povo  chama,  por  escar- 
neo,  a  quem  nas  pernas  traz  enfeite  ou  cousa  mal  ajus- 
tada—«pintos  calçudos». 

Decididamente,  em  que  pese  aos  innovadores,  o  ves- 
tuário económico,  mas  já  de  si  pouco  vistoso,  do  estu- 
dante perdeu  muito  em  elegância,  se  é  que  alguma  tem, 
com  o  uso  da  calça  caída. 

E  se  a  capa  e  a  batina  tradicionaes  visam  especial- 
mente á  justa  economia,  que  não  dá  lugar  a  perigosos 
estímulos,  deixando  differençar  o  pobre  do  rico— o  trajo 
académico  perdeu  ainda  mais  em  economia,  o  que  é 
muito,  do  que  na  elegância,  o  que  é  pouco. 

O  resto  do  dia  passamol-o  em  imprescindível  repouso, 
em  doce  convívio  com  alguns  parentes,  que  haviam  ac- 
corrido  á  nossa  chegada. 

Esses,  ao  contrario  de  todos  os  lugares,  onde  achára- 
mos innovações,  apresentavam-nos  nas  faces  as  ruínas 
da  edade;  deixaramol-os  em  pleno  vigor  de  vida,  e  ví- 
nhamos encontral-os. . .  velhos. 

Para  estes  encontros  não  ha  verdadeira  compensação. 
Ao  lado  das  mais  santas  alegrias,  como  qpe  a  recordar- 
nos  o  nada  da  existência,  lá  está  a  visão  dos  que  se 
sumiram  na  sepultura,  ou  a  imagem  descarnada  e  fria 
d'aquelles,  que  se  avisinham  d'ella. 


KM  COIMBRA  29 


II 


Passeios.— 0  jardim  botânico.  —  Uma  estroinice 
dos  dezoito  annos. 


Ao  outro  dia,  de  manhã,  antes  de  descermos  ao  Mon- 
dego, quizemos  visitar  os  sítios,  a  que  nos  prendiam 
maiores  e  melhores  recordações. 

Da  rua  da  Calçada,  tomámos  para  o  Arco  de  Alme- 
dina, monumento  árabe,  uma  das  portas  de  Coimbra, 
quando  mourisca,  marcada  por  D.  Manuel  com  as  armas 
do  reino  e  da  cidade  e  a  imagem  da  Virgem,  erguen- 
do-se-lhe  em  cima  a  chamada  torre  da  rrolaçom ;  subi- 
mos pelo  Quebra-Costas,  travessa  íngreme  e  celebre 
pelos  episódios  caricatos  e  dolorosos  de  muitos  milha- 
res de  quedas,  attenuadas  hoje  por  escadarias  moder- 
nas; embrenhamos-nos  pelas  tortuosidades  d'aquellas 
ruas  características  de  uma  época  bem  definida ;  e  pro- 
curámos o  lyceu. 

Fomos  achar  um  hospital,  no  vasto  e  velho  edifício, 
onde  o  havíamos  deixado. 

Não  tivemos  porem  muito  que  andar  para  darmos 
com  elle :  caminho  do  jardim  botânico,  lá  o  encontrá- 
mos na  casa,  onde  fora  outr'ora  o  collegio  de  S.  Bento. 

Julgámos  porem  que  o  estabelecimento  não  ganhou 
muito  na  troca,  pois,  segundo  nos  consta,  os  respecti- 
vos exames  são  feitos  na  egreja,  ao  que  nos  parece,  por 
falta  de  outro  lugar  mais  conveniente. 

Entrámos  no  jardim,  nomeadamente  o  melhor  de 
Portugal,  aquelle  vasto,  poético  e  accidentado  jardim, 
que  se  estende  atè  quasi  ás  margens  do  rio,  aquelle  in- 
comparável recreio  iostructivo,  cujos  primeiros  toques 


30  NOTAS  A  LÁPIS 


foram  dados  por  Brotero,  sob  as  ordens  do  famoso  mi- 
nistro de  D.  José,  Brotero,  o  sábio  botânico,  a  quem  a 
população  de  Coimbra  vae  agora  pagar  o  tributo  de  um 
monumento,  condigno  da  memoria  do  illustre  académi- 
co e  dos  brios  da  cidade  universitária. 

Depois  de  nos  termos  embebido  em  contemplação 
profunda  e  amorosa,  ao  darmos  uns  passos  vagarosos, 
automáticos  por  sitios  do  nosso  conhecimento,  fomos 
sentar-nos  a  conversar  com  as  nossas  lembranças,  n'um 
banco  da  segunda  avenida,  soberba  e  completamente 
assombreada  de  tílias  gigantescas. 

Uma  nespereira,  que,  á  direita,  estendia  os  ramos  da 
sua  abundante  folhagem,  sobre  um  tapete  de  cravos 
brancos,  fez-nos  sorrir;  e,  quem  sabe  se  chegou  a  per- 
suadirmos de  que  nos  sorria  também! 

Recordava-nos  ella  uma  estroinice,  que  nos  produziu 
uns  bons  oito  dias  de  verdadeira  abstinência. 

Ha  que  annos  lá  ia  o  caso!  e  no  entanto,  a  olharmos 
para  a  porta,  que  dá  para  o  lado  das  Ursulinas,  pare- 
cia-nos  vêr  ainda  lá  desenhados  os  vultos,  que  a  ha- 
viam escalado. 

Uma  tarde,  achavamos-nos  reunidos,  no  nosso  mo- 
desto quarto  do  bairro  de  S.  José,  três  estudantes  — 
um  parente  nosso,  commodamente  sentado  sobre  a  ban- 
ca de  estudo»  um  visinho,  encostado  ás  grades  do  leito 
de  ferro,  e  nós  meio  deitado  n'elle,  com  o  cotovello 
apoiado  n'um  velho  e  sebento  diccionario  latino,  que  já 
contava  talvez  o  seu  vigésimo  possuidor. 

Tratava-se  de  discutir  a  melhor  maneira  de  passar  a 
noite. 

N'isto  bateram  á  porta.  Cordeiro,  o  nosso  jovial  e 
bom  visinho,  foi  abrir. 

—Deixe-me,  senhor  doctor,  deixe-me.  Ai,  Jesus! 
Olhe  que  eu  chamo  por  meu  pae—  dizia  alguém,  n'uma 
gritaria  infernal,  em  lucta  aberta  com  o  nosso  obsequio- 
so hospede. 

Ào  sairmos  da  cama  para  indagar  do  caso,  recebe- 
mos em  cheio  nas  pernas  um  dos  nossos  sapatos,  com 


EM  COIMBRA  31 


que  ama  rapariga  bexigosa,  desdentada,  remelosa  e  ves- 
ga, um  monstro  de  fealdade»  se  defendia'  das  aggres- 
sões  do  estudante,  que  teimava  em  abraçal-a  extrava- 
gante e  ruidosamente. 

A  pobre  da  creatura,  filha  do  nosso  sapateiro,  que 
nos  engraixava  o  calçado,  a  seis  vinténs  por  mez,  tra- 
zia-nos  os  sapatos,  que  levara,  havia  instantes,  quando 
tivera  tão  pernicioso  encontro. 

O  peor  è  que  a  rapariga,  no  berreiro,  que  fazia,  es- 
tivera  a  ponto  de  engasgar-se  com  uma  nespera  das 
que  vinha  comendo  pelo  caminho,  e  tivera  a  negregada 
idéa  de  metter  na  bocca,  á  entrada  da  porta. 

Uma  formidável  gargalhada,  a  saudação  final  de  to- 
das as  estroinices  académicas,  desconcertara  por  tal 
modo  a  portadora  dos  sapatos,  que  d'abi  por  diante, 
preciso  lhe  foi  tomar  as  mais  serias  precauções,  ao 
abrir  da  porta. 

Restabelecido  o  socego,  o  nosso  parente  bateu  uma 
palmada  na  testa,  com  ar  inspirado,  e  disse-nos: 

—Já  sei.  Aquella  rapariga  é  um  anjo. . .  fez-me  lem- 
brar uma  coisa.  Estamos  servidos  por  esta  noite;  temos 
uma  grande  empreza. 

—Sim? -respondemos  os  dois  em  coro.— Pois  vamos 
a  isso. 

— O'  diabo! . .  é  que  a  coisa  é  um  bocado  arrisca- 
da. Se  os  archeiros  nos  apanhara... 

—Mas  o  que  é,  homem?  Desembucha. 

—Vocês  lembram-se  d'aquella  magnifica  nespereira, 
carregada  a  mais  não  poder,  que  tanto  nos  fez  crescer 
hontem  a  agua  na  bocca?...  Um  assalto  bem  combi- 
nado... e  teremos  nesperas  para  quinze  dias. 

— Mas  o  jardim  está  fechado  a  estas  horas. . . 

—Tu  és  um  asno.  Pois  a  que  horas  queres  tu  lá  en- 
trar, de  modo  que  te  não  vejam,  a  que  horas  que  não 
sejam  estas?  Estas...  não,  porque,  no  fim  de  contas, 
só  depois  da  meia  noite  poderemos  dar  o  assalto. 

— E  os  muros?  e  as  portas?  e  o  archeiro,  que  está 
na  guarita? 


32  NOTAS  A  LÁPIS 


— Sóbe-se  aos  muros,  escalam-se  as  portas,  e  man- 
da-se  o  archeiro  á  tábua. 

Planeado  o  ataque,  e  dada  a  bora,  lá  saímos  os  três, 
escondendo-nos  com  a  sombra  dos  muros  e  das  arvo- 
res, e  só  parámos  ao  pé  do  portão,  que  dá  para  o  lado 
do  seminário,  onde  melhor  êxito  nos  offerecia  a  empreza. 

Um  gorro  e  duas  fronhas  de  dois  compridos  traves- 
seiros, atadas  pelo  fundo,  eram  os  moveis  para  a  con- 
ducção  dos  despojos  da  intentada  campanha. 

Em  pouco,  havíamos  trepado  pela  alta  gradaria,  que 
forma  o  portão,  e  termina  no  alto  em  agudas  pontas  de 
ferro,  e,  com  mais  ou  menos  difficuldade,  achávamos- 
nos  dentro  do  jardim. 

O  barulho  da  agua,  que  caia  dos  repuxos,  e  murmu- 
rava nos  Ianques,  protegia-nos  os  passos. 

Chegados  á  nespereira,  cada  um  se  esforçou  por  le- 
var a  cabo  a  maior  e  mais  rápida  colheita  que  poude, 
com  excepção  do  nosso  parente,  que,  sentado  n'um  ra- 
mo, tratou  em  primeiro  lugar  de  fazer  no  estômago  uma 
avultada  provisão,  com  grande  desgosto  do  nosso  visi- 
nho,  que  tomara  vêr-se  cTalli  para  fora. 

—O'  glotão,  avia-te.  Esta  demora  é  capaz  de  nos 
comprometter  —  dizia  elle  —  sem  ter  ainda  provado  um 
único  fructo. 

Pelo  nosso  lado,  também  nos  não  sentiamos  mais  va- 
lente. 

No  entretanto  o  outro  comia. . .  comia,  e  só  deixou 
de  o  fazer,  quando  a  vontade  de  comer  o  abandonou 
inteiramente. 

Elle  reservara  o  gorro  para  si;  menos  tempo  lhe  le- 
vou por  isso  a  encher. 

As  fronhas  haviam-se  constituído  em  saccos  esguios, 
mas  consideravelmente  pesados. 

As  algibeiras  traziamol  as  cheias  de  magniflcos  cra- 
vos brancos. 

De  volta,  em  frente  do  portão,  surgiu-nos  repentina- 
mente uma  difficuldade,  quasi  insuperável,  em  que  não 
havíamos  pensado. 


EM  COIMBRA  33 


Os  volumes  não  cabiam  atravez  dos  anneis  da  grade; 
não  podíamos  dispengar  as  mios,  para  o  necessário 
apoio,  quer  a  subir,  quer  a  descer*. .  como  passar  pois 
para  fora  o  fructo  de  tanto  trabalho,  que  afinal  não  dei- 
xava de  ser  um  furto,  que  descoberto  nos  podia  custar 
caro? 

Valemos-oos  dos  dentes,  e  lá  fomos  marinhando  por- 
ta  acima,  fazendo  das  fraquezas  forças. 

— Eu  deixo  cair  o  sacco.  •  •  —  dizia  o  Cordeiro  por 
entre  dentes,  encarapitado  no  alto. 

— O'  diabo,  cala-te..,  não  faças  tal — dizia-lhe  o  nos- 
so parente,  que,  por  matreiro,  ia  mais  leve. 

Nós,  por  vergonha,  não  dizíamos  palavra,  tamanha 
era  a  dôr,  que  sentiamos  nos  dentes. 

A  muito  custo,  conseguimos  descer,  deixando-nos 
cair  na  relva,  que  tapetava  o  chão. 

Quando  extenuados  sobraçávamos  a  nossa  presa,  e 
entravamos  no  quarto,  o  Cordeiro  abriu  o  sacco,  tirou 
ama  nespera,  e  approximou-a  da  bocca. 

Acto  continuo,  levou  as  mãos  ao  rosto,  como  que  a 
segurar  os  queixos,  e  despediu  um  grande  grito. 

Ao  contado  da  fructa,  sentira  todos  os  dentes  abala- 
dos, como  nós  egualmente  Unhamos  os  nossos,  e  não 
poderá  mordel-a. 

Durante  uns  oito  dias  só  nos  permittiram  tomar  cal- 
do; as  nesperas...  essas  apodreceram,  ou  foram  dis- 
tribuídas pelos  nossos  companheiros. 

Se  então,  por  fortuna,  tivéssemos  ao  nosso  lado  um 
moralista,  não  deixaria  elle  de  nos  citar  o  caso,  como 
um  verdadeiro  aphorismo. 

Para  que  na  nossa  memoria  podesse  avultar,  como 
se  fosse  passado  na  véspera,  nada  faltava  alli...  lá  es- 
tavam... a  mesma  avenida...  a  mesma  nespereira... 
o  mesmo  portão  de  ferro. 

No  jardim  ha  *  melhoramentos  consideráveis;  maior 
opulência  na  a  rb  o  ri  sacão,  maior  numero  de  estufas,  on- 
de infelizmente  não  podemos  entrar,  ppr  estarem  fecha- 
das, melhor  disposição  nos  vários  grupos  de  plantas,  em 


34  MOTAS  A  LÁPIS 


todo  o  precnrso  das  loogas  ruas,  que  os  dividem,  e  a 
que  prestámos  ama  sôfrega  attenção. 

Gomo  ponto  de  vista,  pouco  ba  então  qae  se  egaale 
ao  que  se  disfracta  do  lado  esquerdo,  na  parte  mais  alta, 
que  pertenceu  á  cerca  de  S.  Bento. 

Fica-se  extasiado  diante  do  formosíssimo  panorama, 
que  de  lá  se  descobre:  á  esquerda,  o  jardim,  ridente  de 
verdura,  descendo  em  socalcos  até  á  estrada  da  Beira, 
que  lbe  forma  com  os  salgueiraes  do  rio  uma  bordadu- 
ra... um  primor  da  mais  vigorosa  arborisaçâo;  á  direi- 
ta, a  cidade,  descaindo  amorosa  e  languidamente  sobre 
a  encosta  até  á  ponte;  ao  fundo,  o  Mondego,  e  defronte 
um  variadíssimo  quadro,  onde  se  desenham  d'entre  os 
tufos  da  folhagem,  que  lbe  serve  de  abobada,  as  casas 
alvejantes  das  quintas  e  lugarejos  circumvisinhos  de  San- 
ta Clara,  que  se  levanta,  a  ostentar  galhardias  com  a  ele- 
vação, onde  estamos. 

Oh !  lugar  encantado,  tão  próprio  á  meditação  e  á  poe- 
sia, como  nos  achámos  bem  no  teu  seio !  com  que  des- 
cuido nos  deslembrámos  por  instantes  de  tristezas  e  ma- 
gnas passadas  I  com  que  sofreguidão  consoladora  aspi- 
rámos esse  ar  balsâmico,  que  dos  sinceiraes  do  Mondego 
subia  até  aos  nossos  pulmões,  cansados  de  respirar  a 
ardente  viração  do  equador  t 

À  hora  que  era,  não  podemos  visitar  a  aula  de  botâ- 
nica, estabelecida  no  primeiro  pavimento  do  lyceu,  nem 
o  herhario,  devido  aos  cuidados  e  hábeis  esforços  do  sr. 
(Ir,  Júlio  Henriques;  o  que  fizemos  mais  tarde  com  bas- 
tante aprazimento  nosso. 


KM  COIMBRA  35 


III 


0  aqueducto.  —  0  Penado  da  Saudada. 
Santo  António  dos  Olivaes.— Penedo  da  Meditação. 
Quinta  de  Santa  Cru. 


Do  jardim  fizemos-nos  conduzir  ao  Penedo  da  Sauda- 
de, visto  que  o  nosso  fim  principal  era  matar  saudades 
e  tão  arraigadas»  que  datavam  dos  verdes  annos  da  nos- 
sa mocidade. 

Ao  passar  pelo  maltratado  aqueducto  de  S.  Sebastião, 
considerado  ainda  assim  como  óptimo  entre  as  obras 
(Tesse  género,  lembrámos-nos  da  teima,  que  lhe  deu  ori- 
gem, e  de  um  episodio  académico,  que  se  refere  á  imagem 
do  santo,  posta  em  nicho  saliente  e  pintado  de  branco, 
no  lugar  mais  elevado,  a  meio  dos  vinte  e  dois  arcos, 
que  em  vistosa  linha  se  estendem  até  ao  bairro  alto. 

Os  poderosos  frades  cruzios,  em  1570.  por  occasião 
de  grande  sécca,  oppozeram-se  tenazmente  a  que  se  for- 
necesse das  suas  fontes  abundantes  a  agua  á  população, 
a  quem  fora  usurpada,  havia  mais  de  quatrocentos  annos. 

O  povo  reclamou  ao  rei  D.  Sebastião,  que  mandou 
abrir  uma  cava,  para  tirar  parte  das  nascentes. 

Os  frades  mandaram  arrasal-a,  e  excommungaram  o 
dezembargador,  operários  e  assistentes. 

Outro  magistrado  mais  enérgico  levou  a  obra  por 
deante,  e,  ajudado  pelos  moradores,  ergueu  a  aquedu- 
cto, a  que  se  deu  o  nome  do  monarcha,  apesar  das  quei- 
xas mandadas  a  Roma  pelos  caridosos  frades,  que  ain- 
da assim  foram  indemnisados  com  a  posse  de  algumas 
terras. 

Tal  é  a  origem  do  aqueducto. 


36  NOTAS  A  LÁPIS 


Um  estudante,  que  modernamente  por  alli  passeiava 
frequentes  vezes,  a  decorar  as  lições,  começou  a  embir- 
rar com  as  setas  da  imagem  de  S.  Sebastião,  e  resolveu 
alivial-o  d'aquelle  martyrio,  por  estroinice  maliciosa. 

Guindou-se,  com  grandes  esforços  de  gymnastica,  ao 
nicho,  e  despojou  o  santo  de  todos  os  instrumentos  do 
supplicio. 

Interrogado  e  reprehendido,  respondeu  com  mal  fin- 
gida ingenuidade :  —  Então  que  querem  ?  Não  pude  re- 
sistir. Era  uma  dor  de  coração  ver  o  santo  ainda  a  pa- 
decer em  época  de  tanta  caridade. 

Este  engraçado  episodio  pertence  aos  fastos  galhofei- 
ros da  academia. 

Chegado  ao  ponto  tão  frequentado,  que  buscávamos» 
d'onde  se  descobrem  as  fontes  do  Cidral  e  do  Casta- 
nheiro, a  que  concorrem  os  ranchos  de  raparigas,  em 
romaria  milagreira,  nas  poéticas  manhãs  de  S.  João  e 
S.  Pedro,  no  meio  de  um  panorama  dos  mais  variados 
e  opulentos;  ao  lançarmos  a  vista  melancólica  sobre  as 
herdades,  pomares,  casaes  e  olivedos,  que,  n'uma  área 
immensa,  nos  ficavam  aos  pés,  veio-nos  á  idéa  a  em- 
phase  desdenhosa,  com  que,  bem  longe  de  lá,  nos  dizia 
um  individuo,  ao  fallar  de  Coimbra: 

—  Não  ha  coisa  mais  incomprehensivel  do  que  a  im- 
portância, que  tenho  visto  ligar  ao  tal  Penedo,  onde  nada 
vi  que  mereça  a  mais  simples  menção. 

Poderá !  Todas  as  coisas  teem  uma  originalidade  pro- 
priamente sua;  d'ahi  se  deriva  um  culto,  que  só  en- 
contra adoradores  nos  corações,  que  o  sabem,  e  podem 
comprehender. 

Ás  almas  essencialmente  positivistas,  que  nunca  so- 
nharam acordadas,  ao  menos  uma  vez  na  vida,  como 
hão-de  inspirar  delicias,  ou  produzir  enternecimentos  lu- 
gares como  aquelle  ? 

Uma  longa  dynastia  de  poetas  tem  alli  perpetuado  as 
mais  intimas  tradições,  soltando  fervorosos  cantos,  ao 
impulso  melancólico  e  suave  de  milhares  de  recordações 
dos  bons  tempos  da  mocidade. 


BM  COIMBRA  37 


Ainda  ba  pouco,  n'um  derradeiro  canto  de  cysne,  o 
infortunado  Luiz  de  Campos  escrevia,  no  seu  poema 
Maria: 

Penedo  da  Saudade  que  os  suspiros 
Ouviste  á  tantos !  Lapa  dos  Esteios, 
Liada  Fonte  de  Içnez,  bellos  retiros 
Onde  a  infância  se  gasta  em  devaneios, 
Quando,  entreabrindo  as  portas  da  sciencia, 
Não  sonhámos  sequer  a  realidade ! . . . 
Permitti  que  eu,  depois  de  longa  ausência, 
Escreva,  e  beije  os  nomes  que  a  saudade 
Me  trouxe  agora  ao  espirito,  lembrança 
D'um  tempo  de  illusões  e  vago  encanto, 
Onde  sorri  constante  o  sol  da  esperança 
Que  se  transforma  após  em  mar  de  pranto  1 1 

Quando  mesmo  não  houvesse  alli  cousa  que  nos  ca- 
ptivasse  a  attenção,  bastava  a  um  espirito  curioso  co- 
nhecer o  sitio,  onde  a  tradição  colloca  o  vulto  elegante 
e  enamorado  de  D.  Pedro,  que  alli  passava  tardes  e  ma- 
nhãs inteiras,  a  carpir  saudades  da  sua  Ignez,  cuja  fi- 
gura poética  e  doce  a  óptica  dos  vidros  de  alcance  lhe 
entremostrava,  para  lá  do  rio,  n'aquelle  oceano  de  ver- 
dura. 

Do  Penedo  da  Saudade  continuámos  a  nossa  romaria 
até  Sanlo  António  dos  Olivaes,  lugar,  a  que  se  prendem 
recordações  de  tempos  remotíssimos,  já  hoje  quasi  apa- 
gadas na  própria  tradição  popular. 

—  Porque  nos  faliam  d  este  sitio,  onde  vemos  uma 
simples  escadaria,  uma  ermida  de  pórtico  ogival  e  um 
cemitério  moderno  ?  —  pergunta  com  razão  o  visitante. 

Porque  foi  assumpto  de  piedosa  devoção,  que  ainda 
se  não  extinguiu  de  todo,  e  monumento  consagrado  ás 
virtudes  do  grande  taumaturgo  portuguez  e  paduano, 
que  alli  viveu  alguns  annos. 

Em  1218,  D.  Urraca,  mulher  de  Affonso  II,  deu  aos 
franciscanos  a  capella  de  Santo  Antão,  que  lá  existia  ; 
estes  levantaram-lhe  ao  pé  um  modestissimo  hospício, 
que  foram  habitar. 


38  NOTAS  A  LÁPIS 


Santo  António,  aspirando  á  penitencia  rigorosa,  dei- 
xou de  ser  frade  cruzio,  e  recolbeu-se  á  humildade  do 
habito  de  S.  Francisco,  indo  fazer-lbes  companhia,  e 
saindo  mais  tarde  a  pregar  a  sua  grande  fé. 

Em  1539,  fundou-se  novo  e  maior  convento,  sob  a 
invocação  do  taumaturgo,  mas  ardeu  completamente, 
em  novembro  de  1851,  ficando  a  pequena  egreja,  cujo 
pórtico  se  suppõe  ser  o  primitivo,  uns  restos  da  antiga 
devoção  e  pouco  mais. 

Sigamos  para  delias,  e  d'alli,  na  direcção  de  Cose- 
Ihas,  para  o  Penedo  da  Meditação,  ermo  tão  visitado  por 
poetas  e  académicos. 

Figure-se  a  quem  o  não  conhece,  um  enorme  roche- 
do, suspenso  como  por  encanto  no  cume  de  um  monte, 
semelhando  uma  monstruosa  bala  de  artilberia,  que  do 
monte  fronteiro  fosse  despedida  por  uma  peça  das  mais 
collossaes  dimensões,  e  ficasse  alli  achatada  como  uma 
cunha,  somente  presa  de  um  lado,  como  que  obedecen- 
do a  um  pbenomeno  magnético;  á  roda,  collinas,  oiteiros 
e  montanhas,  revestidos  completamente  de  pinheiraes  e 
olivedos,  que  espalham  por  toda  a  parte  as  tintas  me- 
lancólicas do  seu  verde  esmaecido,  em  longes  de  uma 
perspectiva  scismadora;  ao  fundo  uma  garganta  enorme, 
tendo  por  base  algumas  terras  cultivadas,  em  cujo  cen- 
tro se  deslisa  um  ribeiro,  á  beira  do  qual  uma  mulher 
nos  pareceu  uma  creança,  tamanha  era  a  altura,  a  que 
nos  achávamos. 

Eis  ahi  está  o  que  é  o  Penedo  da  Meditação,  lugar 
talvez  só  consagrado  aos  que  soffrem,  mas  nem  por  isso 
de  menos  valia  para  os  que  pensam. 

Prouvera  a  Deus  que  a  arte,  de  mãos  dadas  com  o 
bom  gosto,  se  quizesse  emportar  um  dia  com  aquelle 
sitio,  único  talvez  em  todo  o  paiz  t 

Vêr-se-ia  então  que  motivo  de  curiosidade  seria  elle 
para  nacionaes  e  estrangeiros. 

De  volta,  parámos  em  frente  do  portão  da  quinta  de 
Santa  Cruz,  a  tão  celebrada  obra  do  sumptuoso  reinado 
de  D.  João  V,  outr'ora  pertencente  aos  cónegos  regran- 


KM  COIMBRA  39 

tos  de  Santo  Agostinho,  e  hoje,  por  desgraça,  proprie- 
dade particular. 

Entrámos,  e...  oxalá  nunca  o  tivéssemos  feito,  tão 
contristado  nos  deixou  essa  visita. 

Do  soberbo  pórtico,  das  escadarias  monumentaes,  la- 
gos, estatuas,  labyrintos,  columnatas  e  fontes  —  apenas 
restam  destroços. 

As  longas  ruas,  as  bordaduras  de  buxo  e  todos  os 
arbustos  ornamentaes  —  uns  desappareceram,  outros  es- 
tão em  miserável  estado:  muitas  das  arvores  colossaes, 
seculares,  caíram  aos  golpes  do  machado,  que  as  tem 
reduzido  a  lenha. 

De  resto...  alguns  campos  de  milho,  algumas  videi- 
ras, uma  horta  e. . .  nada  mais. 

As  arvores  eram  tão  corpulentas,  havia  entre  ellas  lou- 
reiros de  tal  importância,  que  o  botânico  Link,  na  sua 
Voyage  en  Portugal,  disse: — Quem  quizer  admirar  lou- 
reiros das  índias  e  de  Goa,  em  toda  a  sua  magnificên- 
cia, venha  á  cerca  dos  frades  cruzios  de  Coimbra. 

Inquestionavelmente  não  será  muito  fácil  encontrar 
povo  mais  indolente  e  avesso  á  conservação  das  relí- 
quias venerandas  de  outros  tempos  do  que  o  povo  por- 
tuguez;  pois  parece  inacreditável,  já  não  diremos  á  mas- 
sa ignorante,  porque  essa  è  supinamente  ignorante,  mas 
aos  governos  não  tenha  doido  a  destruição,  em  alguns 
annos,  de  obras,  que  levaram  séculos  a  construir. 

As  principaes  bellezas  cTaquella  ainda  não  contam  dois 
séculos,  mas  o  mesmo  se  pôde  dizer  de  outras,  espa- 
lhadas pelo  paiz. 

Uma  cousa,  que  n'outra  parte  representaria  um  mo- 
numento nacional,  e  que  para  Coimbra  podia  ser  ao  me- 
nos um  logradouro  publico,  um  passeio,  em  condições, 
como  poucas  cidades  o  possuem,  um  lugar  tão  opulento 
de  formosura,  devida  tanto  ao  trabalho  dos  homens  co- 
mo ás  manifestações  da  natureza,  a  troco  de  meia  dú- 
zia de  contos  de  réis,  deixa-se  no  mais  completo  aban- 
dono, dá-se  á  exploração  particular,  impotente  ou  mer- 
cenária, para  que  de  tantas  obras  de  arte  e  riqueza  res- 


40  NOTAS  A  LÁPIS 


tem  apenas  simples  recordações  archeologicas,  uma  hor- 
ta e  um  batatal. 

Não  pôde  haver  maior  barbaridade,  nem  mais  pro- 
nunciado desleixo,  nem  maior  desamor  por  aquillo,  que 
tanto  custou  a  outros,  e  que  nada  nos  custaria  a  nós, 
além  da  conservação. 

Decididamente  o  sol  dos  trópicos,  onde  a  molleza  é 
um  habito,  mudou-se  para  esta  nesga  do  meio  dia  da 
Europa. 

# 
#      # 

Agora,  passados  quatro  annos  depois  da  publicação 
d'estas  linhas,  abrimos  gostosamente  um  parentbesis  fi- 
nal para  declarar  que  o  município  conimbricense  acaba 
de  comprar  os  venerandos  restos  da  quinta  de  Santa 
Cruz,  para  levar  a  effeito  a  idéa,  egual  á  nossa,  de  a 
converter  era  passeio  publico,  restaurando  as  fontes,  as 
estatuas,  os  lagos  e  repuxos,  que  forem  dignos  de  res- 
tauração. 

Este  acordar  tardio  de  uma  criminosa  indifferença 
ainda  salva  o  nome  coimbrão  de  uma  grande  vergonha, 
e  fornece  á  cidade  um  melhoramento,  que  vae  ser,  co- 
mo jóia  de  alto  preço,  uma  nova  e  brilhante  fulguração, 
collocada  no  centro  do  seu  valioso  e  pitloresco  diade- 
ma, todo  entretecido  de  amenidades  campesinas. 


KM  COIMBRA  41 


IV 


A  universidade.  —  Coimbra  vista  da  torre.  —  O  mnxen 


Da  quinta  de  Santa  Cruz  retrocedemos  atè  á  cidade 
alta,  e  dirigimos-nos  aos  paços  da  universidade. 

íamos  vêr  uma  edificação,  cujos  melhoramentos  prin- 
cipaes  eram  coevos  dos  da  quinta,  mas  que,  por  força- 
da excepção,  lá  se  conservam  ftinda  em  estado  de  se  po- 
derem visitar,  sem  repugnância. 

Louvado  seja  Deus) 

Da  porta  férrea  á  via  latina  e  da  capella  á  bibliotbe- 
ca,  ba  muito  que  vêr,  e  admirar. 

Na  vastidão  do  edifício  irregular  figuram  como  prin- 
cipal a  sala  dos  actos,  boje  abandonada,  e  a  dos  capei- 
los,  ambas  decoradas  com  os  retratos  apainelados  dos 
toonarcbas  e  reitores. 

A  capella  de  um  gotbico  singelo  tem  o  seu  magnifico 
órgão,  como  cousa  mais  notável;  é  ampla  e  clara;  a  bi- 
bliotbeca,  apesar  de  acanhada,  é  uma  verdadeira  precio- 
sidade, não  só  pelos  livros  muito  importantes,  que  pos- 
suo, como  pela  decoração  das  Ires  salas,  de  que  se  com- 
põe, n'um  género,  que  não  encontra  similar  em  todo 
o  reino ;  um  capricho  de  ornatos,  que  são  uma  jóia  de 
enormíssimo  valor. 

As  estantes  de  um  feitio  especial,  em  duas  ordens, 
guarnecidas  de  balaustres  ponteagudos  e  cobertos  de  mi- 
nuciosas pinturas  acbaroadas,  os  primores  de  esculptu- 
ra,  allusivos  ás  diversas  faculdades,  as  cimalhas,  os  te- 
ctos, onde  ba  numerosíssimos  quadros  a  fresco,  e  tão 
frescos  e  tão  formosos,  como  se  abi  fossem  postos  ha 
dias;  o  pavimento,  as  mezas  de  ébano  e  gandurú,  ma- 


42  NOTAS  A  LÁPIS 


gnificamente  torneadas  —  formam  um  conjuncto  sum- 
ptuoso, como  tudo  o  que  se  deve  ao  pródigo  reinado 
de  D.  João  V,  cujo  retrato  figura  no  topo  da  ultima  saia. 

Entre  os  seus  valiosos  manuscriptos,  conta  a  livraria 
uma  biblia  gotbica,  com  illuminuras,  do  século  xn,  feita 
por  um  frade  em  pergaminho  tão  fino  como  papel  de 
seda,  e  outra,  a  mais  rica,  da  mesma  data,  escripta  em 
hebreu,  chaldaico  e  rabbino,  que  é  o  hebraico  moderno, 
ou  árabe  aperfeiçoado  pelos  judeus.  Além  das  curiosís- 
simas paginas,  inteiramente  cobertas  de  gregas  e  ara- 
bescos, em  desenhos  minuciosos,  é  cheia  de  cercaduras 
do  mesmo  género,  pacientemente  compostas  de  versícu- 
los, em  milhões  de  caracteres  microscópicos,  que  a  olho 
nú  parecem  simples  enfeites,  e  só  podem  ser  vistos  e  li- 
dos com  o  auxilio  de  unte  boa  lente. 

Permitta  o  céu  que  a  invernia,  que  tem  deitado  a  ter- 
ra os  fustes  rendilhados,  os  mármores  e  arcarias  dos 
monumentos  antigos,  não  leve  ahi  qualquer  dia  nas  azas 
de  um  furacão  aquelle  precioso  livro. 

Pois  se  um  estrangeiro  já  offereceu  por  elle  doze  con- 
tos de  réis,  ao  que  nos  disseram...  Vejam  se  não  è  para 
ter  medo  I 

Os  estrangeiros...  esses,  sim,  bem  sabem  o  que  va- 
lem estas  ninharias,  com  que  se  teem  locupletado,  em 
grande  parle. 

Por  muito  favor  deixam-nos...  a  nós.  que  parámos, 
de  cithara  na  mão,  a  olhar  para  elles,  e  a  descantar  as 
nossas  glorias ! 

De  volta  da  sala  dos  capellos,  cuja  bancada  e  ornatos 
não  correspondem  á  fama,  que  tem  esse  recinto,  quize- 
mos  presenciar  de  uma  galeria  o  acto  de  um  estudante 
de  medicina;  o  nosso  guia  porém  disse-nos. . .  que  era 
isso  vedado  ao  sexo  feio...  que  uma  senhora,  que  nos 
acompanhava,  sim...  essa  que  podia  assistir  á  coisa... 
que  eram  ordens... 

Á  primeira  vista,  pareceu-nos  semelhante  ordem  tão 
original  como  ridícula,  e  lembrou-nos  reagir,  mas  cur- 
vámos-nos  logo  a  tão  sábia  providencia,  convencido,  co- 


KM  COIMBRA  43 


mo  ficámos,  do  decidido  horror,  qoe  os  actuaes  cathe- 
draticos  votam  á  promiscuidade  dos  sexos. 

E  teem  razão. 

As  bancadas  das  aulas,  de  simples  madeira  com  tos- 
cas  balaustradas  pintadas  de  verde,  são  inferiores  á  mais 
reles  mobilia  moderna  das  escolas  primarias. 

Á  nossa  estranheza  responderam  que  os  estudantes 
não  comportavatp  cousa  melhor,  porque  golpeavam  a  ca- 
nivete todos  os  moveis  de  que  se  serviam;  o  que  tive- 
mos occasião  de  vêr. 

Aquelles  potros  de  supplicio  correspondiam  ao  bom 
gosto  da  brincadeira. 

Achámos  bem. 

Já  que  estávamos  alli,  desejámos  vêr  Coimbra  e  os  seus 
arredores,  de  um  só  golpe  de  vista,  subindo  á  torre,  que 
pela  elevação,  onde  está,  domina  um  vastíssimo  horisonte. 

N'um  dos  corredores,  ao  passar,  deparámos  com  uma 
grande  collecção  de  quadros  dos  conventos,  uns  depen- 
durados, outros  encostados  ás  paredes,  e  alguns  em 
monte,  no  chão,  arrumados  ainda  um  pouco  peior  do 
que  aquelles,  que  estão  nos  claustros  da  bibliotheca  na- 
cional, em  Lisboa,  onde,  valha  a  verdade,  pouco  admira 
isso,  ao  lembrar-se  a  gente  de  que  o  pó  das  estantes 
podia  estercar  um  bom  quintal,  na  occasião,  em  que  o 
visitámos,  e  de  que  a  collecção  de  moedas,  afora  umas 
dúzias  delias,  que  se  vêem  n'uma  pobre  e  acanhada 
montra,  que  pertenceu  talvez  a  algum  vendedor  de  bo- 
tões —  está  mettida  em  caixotios  i 

A  ascensão  á  torre  é  difficil  para  quem  não  puder  fa- 
zer nos  pulmões  um  vasto  reservatório  de  ar. 

Chegado  aos  sinos,  tivemos  de  subir  sósinbo,  porque 
os  visitantes,  que  nos  acompanhavam,  declararam  que 
não  passavam  d'alli. 

Para  quem,  como  nós,  mesmo  ao  ar  livre,  respirava 
a  custo,  não  foi  pequena  empreza. 

Oht  mas  que  suave  e  grandiosa  compensação  nos  re- 
sultou d'ahi!  que  alegria  para  os  olhos  t  que  enlevo  para 
o  coração,  tão  ávido  de  cousas  pátrias  t 


44  NOTAS  A  LÁPIS 


O  que  a  vista  alcança  para  todos  os  lados,  em  tão  ele- 
vado ponto,  surprehende,  e  encanta.  Desde  a  estrada 
da  Louzã  á  da  Figueira,  n'uma  linha  immensa,  segui- 
da a  meio  pelo  Mondego,  e  d'esta  ao  Bussaco;  de  San- 
to António  dos  Olivaes  até  á  maior  altura  de  além  do 
rio  —  que  variedade  de  matizes,  que  diversidade  de 
grupos,  no  meio  dos  quaes  e  á  roda  de  nós,  alveja  a 
cidade  I  que  ridente  panorama  1  que  quadro  formosís- 
simo I 

Dos  paços  da  universidade  dirigimos-nos  ao  museu, 
estabelecido  no  collegio  dos  jesuítas,  cuja  egreja  ficou 
pertencendo  ao  bispado,  com  a  denominação  de  Sé  Nova. 

Entre  todos  os  conventos,  espalhados  pelo  reino,  e  tão 
mal  apropriados  a  vários  estabelecimentos,  como  acon- 
tece em  Lisboa,  para  não  faltarmos  de  outros,  á  bibiio- 
theca  nacional,  academia  das  bellas  artes  e  hospital  de 
Rilhafolles  —  é  ainda  assim  o  museu  de  Coimbra  um 
dos  que  não  teem  peior  alojamento. 

O  edifício  é  bello,  e  a  sua  organisação  interior  está 
bem  disposta,  ao  menos  tanto  quanto  o  permittem  as 
suas  salas,  já  deficientes  para  as  collecções,  que  encer- 
ram, e  promettem  augmentar. 

N'uma  galeria,  ha  varias  curiosidades  e  entre  ellas 
uns  poucos  de  objectos  archeologicos,  como  —  algu- 
mas armas,  que  serviram  no  cerco  de  Diu,  e  um  fer- 
rolho da  porta  do  castello  de  Coimbra,  de  que  já  não 
resta,  ao  menos  que  nos  conste,  uma  simples  pedra, 
que  atteste  a  memoria  do  grande  heroísmo  de  Martin  de 
Freitas. 

A  secção  zoológica  encerra  uma  magnifica  collecção 
de  aves  nacionaes. 

O  theatro  anatómico  corresponde  perfeitamente  ao  bom 
nome,  que  tem. 

Deve  dizer-se,  sem  medo  de  errar,  que  ninguém  con- 
scienciosamente poderá  sair  d'alli,  sem  a  boa  impressão, 
que  nos  deixam  sempre  as  cousas,  em  que  ha  ordem, 
methodo  e  asseio. 

Com  o  fim  do  dia  terminaram  as  nossas  visitas. 


KM  COIMBRA  45 


Ai  fogueiras  tradicionaas. 
A  estrada  da  Beira.  — 0  caminho  da  Lousã. 
A  quinta  da  PorteUa. 


A  noite»  que  só  por  um  caso  gravíssimo  deixaríamos 
de  passar  alli,  costumava  em  outros  tempos  ser  uma 
Boite  de  festa  e  de  regosijo  publico. 

Quem  não  terá  ouvido  fallar  nas  fogueiras  de  S.  João 
e  de  S.  Pedro,  folguedos  tradicionaes,  em  que  a  poesia 
popular  irradia  fulgores  dos  lábios  das  formosas  rapa- 
rigas de  Coimbra  ? 

Se  Dão  chegáramos  a  tempo  da  primeira,  Dão  perde- 
ríamos por  certo  a  segunda. 

Gomo  nem  a  tradição  escapou  á  acção  dos  annos,  co- 
mo aquillo,  que  vimos,  pouco  se  parece  com  o  que  era, 
ainda  Dão  ba  muito  tempo,  tentaremos  demonstrar  o  que 
foram  as  fogueiras. 

Nas  ruas,  onde  morava  maior  numero  de  estudantes 
e  onde  havia  mais  casas  de  pequeno  commercio,  sema- 
nas antes  das  duas  noites  festivas,  organisava-se  uma 
commissão,  á  qual  se  agrupavam,  por  excepção,  os  dois 
elementos  principaes  da  cidade  —  o  académico  e  o  fu- 
trica, ou  paisano. 

Corria  uma  subscripção  pelos  moradores,  e  dias  an- 
tes começavam  a  dispôr-se  as  cousas,  que  encontravam 
ajuda  e  favor  em  todas  as  pessoas.  Levantavam-se  arcos 
de  buxo  e  rosmaninho,  improvisavam-se  repuxos  e  cas- 
catas, cobria-se  a  calçada  de  flores  desfolhadas  e  areia 
branca,  e  fazia-se  provisão  de  umas  tantas  carradas  de 
lenha. 

Do  meio  d'esta  azáfama  saíam  rivalidades,  entre  os 


48  NOTAS  A  LÁPIS 


Ó  musa  das  tradições  coimbrãs,  perdôa-lhes.  • .  e  não 
veles  a  face  t 

De  todos  os  melhoramentos  modernos,  que  se  teem 
operado  em  Coimbra,  merecem  especial  menção  a  pon- 
te, o  cães  e  a  estrada  da  Beira,  passeio  favorito  dos  seus 
habitantes,  nas  tardes  de  verão  e  em  noites  de  luar. 

Quem  tiver  conhecido  a  estreita  e  suja  viella,  que  se- 
parava o  jardim  botânico  das  margens  do  Mondego,  fica 
extasiado  diante  daquella  transformação  radical,  ao  de- 
parar com  uma  bellissima  e  espaçosa  avenida,  ladeada 
de  assentos  n'uma  grande  parte,  e  da  mais  opulenta  e 
variada  arborisação,  que  se  estende  até  á  ponte  da  Por- 
tella. 

No  dia  seguinte  ao  das  modernas  fogueiras  de  S.  Pe- 
dro, passámos  nós  por  alli,  caminho  da  Louzã,  onde  nos 
chamava  o  serviço  de  um  amigo. 

As  bagas  de  suor.  que  nos  alagavam  a  testa,  entala- 
do, como  iamos,  dentro  do  estreito  recinto  de  uma  di- 
ligencia, entre  a  gordura  adiposa  de  uma  mulher  disfor- 
me e  a  somnolencia  cabeceadorade  um  camponez,  meio 
avinhado  —  demol-as  nós  por  bem  desperdiçadas,  desde 
que  entrámos  na  estrada  da  Beira,  até  nos  apeiarmos, 
depois  de  um  precurso  de  vinte  e  tantos  kilometros. 

A  não  ser  pelo  que  nos  teem  dito  os  viajantes,  não 
conhecemos  os  formosos  despenhadeiros  da  Suissa,  as 
insuas  fertilissimas,  que  se  estendem  pelas  margens  dos 
seus  pequenos  rios,  as  cascatas,  que  se  desprendem  dos 
seus  penhascos,  as  poéticas  gargantas,  que  se  abrem  no 
sopé  das  suas  montanhas. 

Quer-nos  parecer  porém  que  o  individuo,  que  se  te- 
nha maravilhado  diante  de  tudo  isso,  não  se  dedignará 
de  dar  um  passeio  pela  estrada,  que  vae  de  Coimbra  á 
Louzã,  em  plena  primavera,  ou  mesmo  ao  findar  d'essa 
estação,  isto  é,  na  época,  em  que  por  lá  transitámos. 

Imaginem-se  duas  serras,  mais  ou  menos  tortuosas  e 
cavadas  quasi  a  prumo,  correndo  parai  leias  e  apenas  se- 
paradas pelo  rio  Ceira,  que  se  vae  perder  no  Mondego, 
ao  lado  da  ponte  da  Portella. 


BM  COMBBA  49 


A  meio  dorso  da  que  se  estende  á  direita-rio,  aberta 
na  rocha,  corre  a  estrada  districtal,  muito  bem  plantada 
de  eucalyptus,  roseiras,  arbustos  de  todo  o  género,  ar- 
vores fructiteras  e  ornamentaes,  tendo  de  distancia  a  dis- 
tancia abundantes  nascentes  de  agua,  recolhida  em  tan- 
ques, para  logradouro  publico. 

Do  cume  até  mais  de  meio  das  serras,  olivedos,  que 
só  por  milagre  nos  parecem  conservar-se,  e  fructiflcar 
ai  li,  onde  será  um  esforço  gigantesco  ter-se  um  homem 
de  pé,  durante  a  colheita  da  azeitona ;  em  continuação 
aos  olivedos,  até  ao  fundo  do  enorme  declive,  numero- 
sos socalcos,  onde  reverdecem  plantações  mais  mimo- 
sas; em  baixo,  nas  estreitas  planuras,  que  marginam  o 
rio,  bordado  de  salgueiraes,  viçosas  iosuas  de  milho, 
hortas,  pomares,  azenhas,  casas  rústicas,  açudes,  moi- 
nhos e  pequenas  povoações,  que  acabam  de  dar  áquelie 
gracioso  precurso  o  ar  mais  pittoresco  e  a  feição  mais 
característica,  que  possa  desejar  um  amador  d'estas  rús- 
ticas bellezas. 

À  nós,  peccadoraço  incontricto  do  género,  talvez  por 
havermos  nascido  entre  montanhas,  pareceu-nos  aquillo 
de  uma  formosura  incomparável,  e  podemos  certificar 
que  nada  vimos  de  melhor,  em  todos  os  lugares,  que 
temos  precorrido,  do  sul  ao  norte  de  Portugal. 

Para  cá  da  ponte,  o  cocheiro  teve  a  amabilidade,  mui- 
to de  agradecer  entre  a  gente  da  sua  classe,  de  nos  lem- 
brar um  passeio  á  moderna  quinta  da  Portella,  proprie- 
dade do  sr.  Daun  e  Lorena. 

Olhámos  a  lembrança  com  certo  desdém,  porque  o 
lugar  nos  era  inteiramente  desconhecido,  mas  annuimos, 
ao  peso  dos  encómios,  que  ouvíamos. 

O  carro  tomou  á  esquerda  pela  cancella  principal,  e 
levou-nos,  por  entre  uma  bella  estrada  de  frondosos  eu- 
calyptus, a  um  largo,  onde  verdejavam  dois  renques  de 
mimosas  e  rasteiras  abeotas. 

Ao  fim  estendia-se  a  gradaria  de  um  jardim,  que  pre- 
cedia uma  boa  casa  de  habitação,  cercada  de  arvoredo 
frondoso  e  vario. 


30  MOTAS  A  LÁPIS 


O  caseiro  franqaeou-nos  a  entrada*  e  acompanhou-nos 
d'abi  por  diante. 

As  nossas  duvidas  caíram  por  terra  e  o  termo  da  nos- 
sa visita  assentou  em  solidas  bases  o  robusto  convenci- 
mento de  que  era  aquella  quinta  a  mais  opulenta  das 
cercanias  de  Coimbra. 

No  jardim,  bem  arruado  e  vasto,  um  cultivo  esmera- 
do de  plantas  escolhidas,  arbustos  a  desafiarem  atten- 
çôes  e  gabos,  camélias  a  bracejarem  frescor  e  viço,  ri- 
vaes  de  Cintra. 

Na  estufa,  exemplares  numerosos  de  uma  flora  inte- 
ressante, a  representarem  climas  diversos. 

Á  direita  e  á  esquerda  extensas  propriedades  rústicas, 
terras  de  semeadura,  laranjaes  e  vinhedos ;  adiante  de 
nós  uma  copiosa  matta  em  declive,  lagos  povoados  de 
cysnes,  fontes  de  agua  puríssima,  ruas  copadas  de  ar- 
voredo, tortuosidades  pittorescas,  pontes,  cânticos  de 
aves  no  intrincado  das  ramarias,  sombras  rumorejan- 
tes,  viveiros  e  pomares ;  por  ultimo  o  Mondego  com  o 
seu  arraial  de  lavadeiras,  para  onde  se  debruçam  e 
olham  as  bellezas  d'aquelle  lugar  de  delicias. 

Quando  atravessámos  um  túnel  de  condensada  verdu- 
ra, por  onde  o  sol  deixa  escapar  a  muito  custo  umas  fu- 
gitivas arestas  de  tímida  luz,  para  sairmos  pela  chamada 
porta  do  mirante,  collocada  no  extremo  e  á  beira  da  es- 
trada, o  nosso  desdém  transformara-se  em  encanto  de 
formas  indizíveis,  e  os  nossos  olhos  embevecidos  fecba- 
vam-se  ao  primeiro  despertar  das  saudades,  que  ainda 
hoje  sentimos  por  aquella  formosíssima  jóia  do  tão  for- 
moso Mondego. 


51 


VI 


No  Choupal.  —  O  Mondego. 
A  feira  de  S.  Bartholomen.  —  A  economia  coimbrã. 


Regressando  a  Coimbra,  fomos  obrigado  a  interrom- 
per as  nossas  visitas  intra-muros,  e  a  seguir  outro  des- 
tino bem  diverso,  com  que  mais  tarde  nos  entreteremos 
também. 

Só  lá  voltámos  dois  mezes  depois,  a  25  de  agosto, 
para  nos  encontrarmos  com  amigos,  que  d'ahi  por  diante 
se  tornaram  mais  do  que  isso,  pois  foram  nossos  com- 
panheiros, em  excursões  de  maior  fôlego. 

Celebrava-se  a  feira  de  S.  Bartbolomeu,  a  que  con- 
corre o  commercio  de  varias  partes  do  reino,  aconteci- 
mento de  alguns  dias,  que  vem,  por  assim  dizer,  que- 
brar a  monotonia  da  cidade,  devida  á  ausência  dos  estu- 
dantes em  ferias. 

Wessa  mesma  tarde  fomos  ao  Choupal. 

Quem  procurar  definir  aquelle  silio  encantador  pelo 
nome,  que  tem,  ha-de  decerto  cair  em  erro,  e  commet- 
ter  injustiças. 

O  Choupal  1  Que  de  bellezas  encerra  este  nome  sim- 
ples I  Um  areal,  á  beira  do  rio,  outr'ora  estéril  e  só  po- 
voado pelas  arvores  que  Ibe  dão  o  nome,  converteu-se, 
graças  aos  esforços  da  direcção  das  obras  do  Mondego, 
n'uma  perfeita  mansão  de  fadas,  a  que  nenhum  visitante, 
sem  grave  censura,  deverá  deixar  de  prestar  o  seu  culto 
da  mais  justificada  admiração. 

Pontes  lançadas  sobre  riachos,  que  o  cortam  em  va- 
rias direcções;  lagos,  onde  se  reflectem,  como  em  lami- 
nas de  cristal,  os  frondosos  arbustos,  que  lhes  formam 


52  NOTAS  A  LÁPIS 


docel ;  renques  de  arvores  gigantescas,  moitas  de  flori- 
das plantas,  vergéis  de  suavíssimo  matiz,  viveiros  de 
opulenta  floricultura,  ruas  extensas,  ladeadas  de  trepa- 
deiras, encostos  naturaes  e  de  artificio  —  misturam-se, 
confundem-se,  sorriem-nos,  abraçam-nos,  lançando-nos 
a  alma  no  mais  intrincado  labyrinto  de  poesia  ineffavel. 

Se  todo  o  homem,  ao  menos  uma  vez  na  vida,  sente 
em  si  os  arroubos  de vanea dores,  que  se  dizem  consa- 
sagrados  ás  musas,  não  deixará,  ao  entrar  alli,  quando 
os  pássaros  saccodem  as  azas,  aos  raios  melancólicos 
do  sol,  que  se  inclina  ao  poente,  e  nos  beija,  por  entre 
a  espessa  ramagem  do  arvoredo  —  não  deixará  de  ex- 
clamar, ao  menos  de  si  para  si:  —  Ó  deliciosa  estancia, 
alindada  pela  mão  das  fadas,  que  vivem  em  constante 
labutar  com  as  formosuras  da  natureza,  ó  lugar  encan- 
tado, salve  I  a  ti...  a  poesia  única  de  toda  a  minba  vidai 
três  vezes,  salve  f 

De  volta  do  Choupal,  que,  ainda,  mal  para  os  seus 
amadores,  fica  a  uma  distancia  considerável  da  cidade» 
caminhávamos  á  borda  do  cães,  em  agradável  e  obse- 
quiosa companhia  de  duas  famílias,  que  se  aggregaram 
á  nossa,  com  vivo  sentimento  de  lá  nos  não  podermos 
demorar  mais  tempo. 

O  Mondego,  como  o  Manzanares  de  Madrid,  mas  em 
tudo  mais  formoso  do  que  este,  na  época  estiva,  mos- 
tra-nos  o  seu  leito  de  fulgidas  arêas,  a  descoberto,  quasi 
sécco ;  apenas  uma  pouca  de  agua,  que  o  mais  estreito 
ribeiro  podia  conter,  sem  esforço,  alargando-se  aqui  e 
alli,  em  poços  ou  em  caprichosas  curvas,  lhe  dá  signaes 
de  vida. 

O  areal  portanto  transforma-se  em  pittoresco  abarra- 
camento,  onde  se  tomam  banhos,  e  as  lavadeiras  se 
agrupam,  aos  ranchos. 

Era  ao  extremo  declinar  da  tarde. 

Debruça mos-nos  no  gradeamento  do  cáes,  a  contem- 
plar as  alterosas  bordaduras  de  salgueiros  e  mais  arvo- 
redo, que  emolduram  com  a  sua  eterna  verdura  a  man- 
sidão d'aquellas  aguas,  tanto  de  temer  na  quadra  inver- 


KM  COIMBRA  53 

nosa ;  a  pensar  dos  arrulhos  juvenis  de  tantos  rapazes, 
que  por  alli  devaneiaram,  e  devaneiam  ainda  esperan- 
ças fecundas  de  um  afamado  e  risonho  futuro ;  a  sentir 
lembranças  doce-azedas  do  modesto  quinhão,  que  nos 
coubera  também  na  partilha  das  crenças  incomparáveis 
da  mocidade;  a  carpir  saudades  de  uns  nadas,  tão  ama- 
dos e  para  sempre  perdidos ;  e  a  presenciar  o  quadro 
das  lavadeiras,  umas  chilreadoras  e  guapas  raparigas, 
qae  batiam  a  roupa,  por  entre  uns  descantes,  cuja  letra 
só  a  espaços  nos  chegava  aos  ouvidos. 

Desses  versos,  cantados  mecbanica  e  singelamente, 
entre  uns  laivos  do  sentimentalismo  despretencioso  e 
chão,  apenas  duas  quadras  nos  vieram  completas. 

Diziam  assim : 


Tenho  om  amor . . .  tenho  dois. . . 
tenho  três. . .  não  quero  mais. 
PYa  que  quero  eu  mais  amores, 
se  elles  não  me  são  leaes? 

O  amor  dos  estudantes 
não  dura  mais  do  que  uma  hora. . 
ó  como  as  aguas,  que  batem 
nas  pedras. . .  e  vão- se  embora. 

E  nas  pedras...  também  ellas  batiam  a  roupa,  tão 
alegre  e  descuidosameote,  como  se  nenhum  cuidado 
lbes  perturbasse  a  serenidade  do  coração. 

Chegada  a  noite,  e  ainda  em  caminho,  perguntámos 
pelos  theatros,  sem  nos  lembrarmos  de  que  só  abrem 
as  suas  port§s  ás  companhias,  que  por  lá  passam,  e  uma 
ou  outra  vez  ás  recitas  de  curiosos  académicos. 

Dirigimos-nos  á  feira  de  S.  Bartholomeu,  que  não  era 
somenos  espectáculo,  tão  concorrida  estava  ella,  e  tão 
provida  de  cousas,  necessárias  á  vida. 

Desde  a  restea  de  cebollas  até  ao  objecto  de  ourives, 
mais  rendilhado  e  custoso,  nada  faltava  alli. 

A  economia  domestica,  que  as  donas  de  casa  ainda 
boje  lá  seguem  escrupulosamente,  encontrava  n'aquelle 


54  NOTAS  A  LÁPIS 


abundante  mercado  largo  campo  para  exercer  as  soas 
funcções. 

E  por  fadarmos  em  cebollas,  lembrâmos-nos  de  que 
ama  das  senhoras,  que  nos  acompanhavam,  mandou  fa- 
zer sortimento  para  o  anno  inteiro,  isto  é,  comprar  umas 
mil  e  tantas,  por  que  temos  dado  já  uma  libra  e  mais, 
pela  quantia  de  nove  tostões,  cousa  que  muito  a  escan- 
dalisou,  e  lhe  fez  dizer,  ao  voltar-se  para  nós: — Veja  o 
senhor  que  carestia !  E  assim  é  o  mais;  todos  os  géne- 
ros, estão  pela  hora  da  morte. 

A  nós  pareceu-nos  inteiramente  o  contrario,  e  ainda 
agora  julgámos  que  se  pôde  ter  em  Coimbra  um  viver 
farto  e  barato,  taes  são  a  fertilidade  dos  seus  campos  e 
a  riqueza  dos  seus  productos. 

Quem  quizer  regular-se  pelos  preços  de  hospedagem, 
em  um  hotel,  n'esta  e  em  quasi  todas  as  demais  locali- 
dades do  paiz,  ha-de  forçosamente  cair  em  enganos,  por- 
que taes  casas,  onde  é  raro  encontrar  bom  serviço,  aços- 
tumaram-se  ás  tabeliãs  dos  hotéis  de  Lisboa,  onde  as 
commodidades  da  vida  são  duplamente  mais  caras,  e, 
sejam  quaes  forem  as  circumstancias  e  os  lugares,  ten- 
dem sempre  a  encarecer,  e  não  a  baratear. 

A  carestia  é,  em  muitos  casos,  signal  de  progresso  e 
de  correspondente  riqueza;  em  matéria  de  hotéis,  po- 
rém, ha,  entre  nós  e  especialmente  nas  províncias,  um 
desequilíbrio  tal  que  chega  a  ser  uma  especulação  des- 
regrada, se  não  um  verdadeiro  assalto  á  bolsa  do  via- 
jante, que,  as  mais  das  vezes,  farto  de  despezas  avulta- 
das nas  locandas  nacionaes,  caras  e  más,  foge  para  o 
estrangeiro,  onde,  pelo  mesmo  preço  ou  pouco  mais, 
tem  a  disfructar  cousas  novas,  e  a  regosijar-se  com  as 
commodidades  de  uns  adiantamentos,  que  nos  faltam. 

Não  nos  queixámos ;  tirámos  apenas  uma  conclusão 
do  que  nos  foi  dado  presenciar,  nas  localidades  que  pre- 
corremos. 


bm  coimbbà  55 


vn 

A  egreja  da  Santa  Crus.  —  A  té  velha. 


No  dia  seguinte,  começámos  o  nosso  passeio  matinal, 
entrando  no  vetusto  e  magestoso  templo  de  Santa  Cruz, 
coevo  da  fundação  da  monarchia,  monumento  ião  digno 
de  vôr-se,  apesar  de  soterrado  e  puído  pela  acção  do 
tempo  e  petas  inundações  do  Mondego,  tanto  de  temer 
na  estação  invernosa. 

A  egreja  e  convento  primitivos  foram  estabelecidos 
n'outro  lugar,  fora  de  portas ;  não  destoa  ainda  assim 
chamar-lhes  coevos  do  principio  das  nossas  instituições» 
pelos  fragmentos  e  partes,  encorporadas  ás  edificações 
existentes  da  época  de  D.  Manuel,  a  quem  pertencem  a 
obra  primorosa  da  fronlaria  e  o  púlpito,  esse  capricho 
da  arte.  que  è  uma  verdadeira  inspiração,  e  vale  só  por 
si,  pela  vontade  do  esculptor  João  de  Ruan,  se  è  que 
foi  elle  o  autor,  aquillo  que  a  vontade  de  muitos  homens 
não  é  capaz  de  produzir. 

Esta  relíquia,  em  occasiões  de  festa,  costuma  estar 
enfeitada  e  coberta  com  um  trapo  de  soda  qualquer.  E 
não  ha  autoridade  civil  ou  ecclesiastica,  que  tenha  o  bom 
senso  de  prohibir  semelhante  barbaridade ! 

Fora  (Tesses  dois  objectos  grandiosos,  avultam  como 
cousas  principaes  o  órgão  e  os  túmulos  de  D.  Affonso 
Henriques  e  D.  Sancho  I,  postos  em  occos,  guarnecidos 
de  uma  formosa  ornamentação  de  pedra,  que  se  eleva, 
representando  dois  pórticos  sumptuosos. 

Em  frente  d'aquellas  duas  sepulturas  manuelinas,  que 
ladeam  a  capella-inór,  contrista- se  a  gente,  ao  vêl-as  pro- 


56  NOTAS  A  LÁPIS 


fanadas  pela  procura  de  jóias  e  rapace  cubica  das  hos- 
tes francezas,  negregadaraente  imitadas  por  vândalos  na- 
cionaes,  dos  tempos  de  D.  Miguel,  últimos  abutres,  que 
empolgaram  os  restos  de  alfaias  e  paramentos  (Testa 
enriquecida  egreja,  n'um  acto  de  monstruosa  selvage- 
ria. 

De  tamanha  opulência  só  appareceram  na  exposição 
ornamental  —  um  relicário  de  ébano  com  filigranas  de 
prata,  outro  do  mesmo  género  com  ornatos  de  bronze 
e  prata,  uma  coroa  d'este  metal,  um  cálix  com  arabes- 
cos e  um  cofre  forrado  de  madrepérola. 

O  primeiro  órgão  do  reino. . .  lá  está,  coitado,  que  era 
tão  merecedor  de  melhor  sorte,  ao  lado  do  coro,  em 
tudo  condigno  d'aquelle  magestoso  templo,  como  sim- 
ples lembrança  do  que  foi,  pois  que  ha  bastantes  annos 
não  funcciona,  por  necessitar  de  concerto;  e  assim  pas- 
sará, como  devemos  esperar,  ao  mais  completo  desman- 
telo, se  lhe  não  accudir  a  realisação  de  uns  projectos, 
em  que  ouvimos  fatiar. 

Os  claustros,  em  cujas  paredes  se  notam  os  vestigios 
das  repetidas  cheias  do  rio,  as  capellas,  a  sacristia  e  as 
obras  de  talha,  que  se  acham  espalhadas  pela  egreja  — 
são  cousas  dignas  de  attenção. 

No  claustro,  chamado  da  Manga,  ha  uma  capella,  onde 
Affonso  I  mandou  reunir  os  ossos  dos  mais  distinctos 
portuguezes,  mortos  na  campanha  de  Ourique,  de  cuja 
identidade  resa  a  chronica  dos  frades  cruzios.  Á  imita- 
ção da  capella  de  Évora,  as  caveiras  e  os  outros  ossos 
ornamentavam  as  paredes  e  o  tecto,  mas  de  ha  muito 
que  se  não  vêem,  por  estar  impedida  a  entrada  per  ta- 
bique  de  pedra  e  cal. 

O  santuário,  que  se  encontra  no  pavimento  superior, 
é  muito  notável  pelas  relíquias,  verdadeiras  ou  apócri- 
fas, que  encerra,  por  sua  abobada  e  pelo  lustre,  que 
d'eíla  pende,  e  finalmente  pelos  ricos  ornatos  e  de- 
mais objectos,  que  lhe  guarnecem  as  parede»  de  forma 
oval. 

Acha-se  em  bom  estado  de  asseio  e  conservação. 


bm  coimai  57 


* 
*      * 


E  já  que  falíamos  de  egrejas  Dão  devemos  esquecer  a 
Sé  Velha,  o  mais  precioso  monumento  d 'es  te  género, 
que  possue  Coimbra,  não  só  pela  antiguidade,  que  se 
attribue  aos  godos  do  século  vi  e  posteriormente  a  moi- 
ros, cuja  mesquita  fora,  mas  pelas  preciosidades,  ao  me- 
nos para  nós,  que  lá  estão,  e  ainda  por  seu  valor  his- 
tórico. 

O  tempo,  o  eterno  demolidor  de  tudo  o  que  ha  crea- 
do,  damnificou-lbe  já  o  pórtico  e  a  fachada  lateral,  onde 
se  observa  o  caixão  de  D.  Sisnando  e  seu  sobrinho,  que 
floresceram  na  época  da  conquista  da  cidade,  ha  oito  sé- 
culos; olbando-se  porém,  com  certo  recolhimento,  para 
aquelle  todo  escuro,  para  aquella  massa  de  cantaria,  sem 
torres,  nem  feitio  de  templo  christão,  pôde  parecemos 
a  nós. . .  que  ouvimos  lá  dentro  o  psalmear  grave  e  pe- 
sado das  resas  dos  verdadeiros  crentes. 

O  conde  D.  Sisnando,  cujo  epitaphio  diz  que  foy  gran- 
de varam,  sabedor  e  muito  eloquente  avondado  e  rico,  e 
agora  he  pequena  cinza,  ancorada  em  este  moimento,  co- 
mo heroe  principal  da  independência  da  sua  terra  natal, 
passou  vida  agitada;  esteve  ao  serviço  dos  árabes,  che- 
gando a  ir  á  corte  de  Ibn-Àbbad,  emir  de  Sevilha,  com 
quem  mais  tarde  se  desgostou,  voltando  a  Coimbra  ás 
ordens  de  Fernando  Magno,  rei  de  Castella  e  Leão;  e 
foi  por  este  nomeado  governador  do  condado,  que  era 
muito  vasto. 

Mais  tarde  conseguiu  a  plena  independência  do  seu 
senhorio,  que  se  estendia  até  á  serra  da  Estrella,  posto 
que  nominalmente  reconhecesse  a  mesma  soberania  es- 
tranha; reedificou  varias  populações,  dotou  egrejas,  co- 
meçou o  hospício  dos  cruzios,  e  morreu  com  grande  fa- 
ma, em  1091. 

Em  poucas  partes  se  encontra  o  moderno  misturado 
com  o  antigo,  como  no  interior  d'este  templo,  onde,  ape- 


NOTAS  A  LAPI8 


sar  da  irregularidade,  que  se  nota,  entre  a  construção 
das  varias  épocas  e  as  innovações  de  mau  gosto,  ha  mui- 
to que  ver  e  admirar. 

A'  entrada  do  templo  temos  logo  um  soberbo  mosai- 
co em  madeira;  nas  capellas  lateraes,  boas  pinturas,  so- 
bresaindo  entre  ellas  um  quadro,  que  nos  pareceu  ma- 
gnifico, representando  as  onze  mil  virgens,  entre  as  quaes 
avulta  Santa  Úrsula. 

A  pia  baptismal  de  bello  lavor,  o  mosaico  de  fausto- 
síssimos e  variados  azulejos,  que  se  dizem  flamengos,  o 
retábulo  de  pedra  da  capella  de  S.  Pedro  e  o  do  altar- 
mór,  e  ainda  os  pórticos  lateraes  exteriores  foram  orde- 
nados pelo  bispo  D.  Jorge  de  Mendonça,  fallecido  em 
1543,  segundo  resa  a  sua  sepultura,  erigida  n'aquella 
capella. 

D'entre  os  túmulos  antiquíssimos  destaca-se  um,  de 
esculptura  grosseira,  conforme  ao  pouco  esmero  artís- 
tico da  época,  com  a  estatua  de  uma  mulher,  vestida  de 
religiosa,  sobre  a  tampa,  tendo  á  cabeceira  dois  anjos  a 
segurarem- lhe  a  almofada  e  aos  pés  um  leão,  por  cima 
de  escudos  ovaes,  onde  o  relevo  mostra,  uma  águia  de 
duas  cabeças. 

A  inseri  pçâo  diz  que  alli  jaz  D.  Be  taça,  neta  do  impe- 
rador da  Grécia. 

Esta  princeza,  foragida,  como  sua  mãe,  recolbeu-se 
ao  reino  de  Aragão,  entrando  na  corte  de  Pedro  III. 

Casando  a  filha  (Teste,  D.  Izabel,  com  o  nosso  rei  D. 
Diniz,  veio  em  sua  companhia  para  Portugal  em  1282, 
e  matrimoniou-se,  mais  tarde,  com  um  fidalgo  portuguez, 
de  quem  enviuvou,  sem  filhos,  legando  toda  a  sua  ri- 
queza ao  cabido  da  sé  de  Coimbra. 

Alem  d'este,  ha  na  egreja  outros  túmulos,  lapides, 
inscripções  e  sepulturas,  n'uma  das  quaes  está  o  bispo 
D.  João  de  Távora,  cujas  innocentissimas  cinzas  não  es- 
caparam ao  castigo,  inflingido  aos  seus  vindouros,  como 
o  demonstra  o  brasão  picado. 

O  altar-mór,  como  obra  de  talha,  è  uma  pomposa  re- 
líquia, tal  se  nos  mostra  o  seu  custosissimo  rendilhado, 


labyrinto  de  madeira  e  ouro,  que  disputa  belleus  com 
o  mais  delicado  e  precioso  bordado. 

Ao  lado  estão  os  altares  do  Santíssimo  e  de  S.  Pedro: 
n'este  ha  o  excedente  retábulo  de  pedra,  a  que  nos  re- 
ferimos; e  n'aquelle  ainda  outro  do  mesmo  material, 
todo  guarnecido  de  estatuas,  em  semicírculo. 

Dos  objectos  pertencentes  ás  alfaias  antigas,  só  pode- 
mos vér  uma  campainha  com  rendilhados  de  prata. 

Admirámos  mais  tarde,  na  exposição  da  arte  orna- 
mentei, trinta  e  quatro  exemplares  dos  muitos  que  este 
templo  possue,  ao  contrario  do  de  Santa  Cruz,  dos  sé- 
culos xu,  xvi  a  xviu. 

Em  estofo,  um  panno  de  arras,  representando  uma 
scena  de  amor,  na  tenda  de  um  guerreiro;  duas  capas 
de  asperges,  frontal,  veu  e  tira  de  veludo  e  seda,  com 
sebastos  ou  listas  de  brocado,  alamares  e  bordados  de 
ooro. 

Em  livros,  um  infolio-epistolario,  encadernado  em  ve- 
ludo e  prata  e  dois  (Teste  metal  com  pastas  de  cera, 
onde  se  tomavam  notas  das  faltas  dos  cónegos. 

Em  prata  branca  e  dourada,  relicários,  custodias,  thu- 
ríbulos,  caldeirínhas,  gomis  e  outras  peças,  doze  das 
quaes  se  acham  desenhadas  nos  respectivos  catálogos, 
como  objectos  notáveis  pelo  estylo  gotbico,  columnelos, 
nichos,  figuras  e  relevos  de  grande  valia. 

Estes  objectos  estão  hoje  ao  serviço  da  cathedral,  ou  Sé 
Nova,  onde  os  deverá  procurar  quem  quizer  admiral-os. 

Não  nos  lembrámos  em  qual  dos  altares  nos  fez  no- 
tar o  rapaz,  que  nos  franqueara  a  egreja.  a  substituição 
da  imagem  antiga,  que  lá  se  venerava,  pela  que  moder- 
namente se  encontra. 

—  E  porque  retiraram  d'aqui  a  imagem  primitiva?— 
perguntámos-lhe  nós. 

O  rapaz  olhou  para  as  senhoras  presentes,  sorri u-se, 
e  não  respondeu. 

Insistimos  na  pergunta. 

Elle  então  chamou-nos  de  parte,  e  segredou-nos  que 
a  santa  fora  posta  de  lado,  por...  incapaz. 


NOTAS  A  LÁPIS 


—  Por  incapaz  í  —  retorquimos  —  Ah !  estava  que- 
brada talvez... 

—Nada,  Dão  senhor.  E'  que  sim...  Olhe...  venha 
commigo. 

E,  tomando  a  vela  accesa  de  um  castiçal,  abriu  uma 
espécie  de  porta  falsa,  e  levando-nos  a  um  canto,  onde 
com  efTeito  nada  se  poderia  ver  sem  luz,  disse-nos, 
apontando  para  um  lado :  —  Está  alli.  E'  a  Senhora  da 
Boa  Sorte. 

Olhámos,  e. . .  então  foi  a  nossa  vez  de  rir,  com  de- 
cidida vontade. 

Uma  imagem  talvez  de  mais  de  um  metro  de  altura, 
muilo  soffrivelmente  esculpturada,  mostrou-se-nos  como 
advogada  de...  de  uma  cousa  deveras  perigosa,  e  que 
por  isso  não  poderia  escapar  á  sabia  previdência  dos 
bons  padres  de  outros  tempos. . .  o  parto. 

E'  um  exemplar  de  santa  como  nunca  vimos,  nem 
nos  consta  que  haja  outro. . .  uma  celebridade. . .  uma 
santa,  nem  mais  nem  menos  do  que  extremamente. . . 
grávida ! 

Que  santos  varões,  para  não  dizermos  ratões,  que 
deveriam  ser  os  sujeitos,  que  tiveram  a  lembrança  e  a 
execução  d'esta  intercessora  e  advogada  da  multiplicação 
do  género  humano  i 

O  coro  com  as  suas  bancadas  de  pau  santo,  em  quasi 
tudo  idêntico  ao  da  egreja  de  Santa  Cruz,  mostra  em 
innovações  de  péssimo  effeito,  o  dedo  bárbaro  das  ir- 
mandades, a  que  estão  entregues  os  destinos  (Teste  e 
de  outros  monumentos  religiosos,  onde  o  mau  gosto 
anda  a  par  da  mais  supina  ignorância. 

Pois  se  até  já  chegaram  a  caiar,  com  as  paredes,  o 
coro,  o  púlpito  e  os  próprios  azulejos,  que  ainda  agora 
bem  mostram  os  vestígios  da  trolha,  que  os  mascarou  ? ! 

Felizmente  o  sr.  bispo-conde  sentiu  os  cabellos  eri- 
çados de  horror,  ao  penetrar  alli,  e  teve  a  caridade  de 
mandar  lavar  tudo  aquillo,  o  melhor  que  lhe  foi  possí- 
vel, dando  mais  uma  vez,  e  ainda  bem,  a  prova  de  que 
o  mel  não  é  fabricado  para  a  bocca  do  asno. 


M 


VIII 
Santa  Clara  e  ot  tem  pasteis.—»  Quinta  das  Lagrimas. 


Da  Sé  Velba  fizemos-nos  conduzir,  pela  ponte,  á  ou- 
tra banda,  a  que  por  tantas  e  tio  suaves  recordações, 
nos  prendia  a  saudade. 

Começámos  por  subir  a  Santa  Clara,  e  do  adro  do 
novo  mosteiro  vollámos-nos  para  Coimbra,  a  gosar  a 
vista  da  cidade,  que  se  nos  mostra  inteira,  agrupada, 
serena,  como  um  presépio,  guarnecido  ao  fundo  pela 
prata  das  arôas  e  das  aguas  do  rio,  e  franjado  ao  cimo 
e  dos  lados  pelo  variado  matiz  dos  arvoredos. 

As  ruínas  do  velbo  mosteiro,  onde  residia  santa  Iza- 
bel,  lá  estão  ao  fundo,  meio  soterradas  pelas  enchentes 
do  Mondego,  como  propriedade  particular,  carcomidas, 
tristonhas,  despresadas,  e  tanto  que  a  parte  da  egreja. 
a  capella,  onde  demoraram  por  algum  tempo  os  restos 
de  Ignez  de  Castro,  serve  hoje  de. . .  celleiro! 

— E  os  pasteis?  Que  não  esqueçam  os  appetitosos 
pasteis  de  Santa  Clara  —  ouvimos  a  uma  voz. 

Era  justo. 

Se  o  viver  fosse  um  constante  mar  de  delicias,  talvez 
se  tornasse  ainda  mais  custoso  do  que  é.  Alma  e  estô- 
mago, poesia  e  prosa,  alegria  e  pesar. . .  repellem-se 
moitas  vezes,  mas. . .  andam  juntos. . .  são  necessários 
ao  matiz  da  vida,  que  outra  cousa  não  é  que  a  conser- 
vação da  existência. 

E  lá 'fomos  á  celebrada  pitança...  aos  pasteis  das 
freiras,  que,  apesar  de  o  não  quererem  talvez,  chega- 
ram aos  felizes  tempos  de  prestarem  para  alguma  cousa. 

Ensinam  creanças,  e. . .  e  fazem  pasteis. 


62  NOTAS  A  LÁPIS 


A  rodeira  deu-nos  a  quantidade  pedida  com  certa 
sofreguidão,  e  recebeu  piedosamente  a  quantia  estipu- 
lada. 

Mas. . .  oh !  desillusão!  ó  afamados  pasteis,  até  onde 
vos  arrasta  a  serapbica  e  meliflua  ganância  d'aquellas 
filhas  da  oração ! 

Os  doces  accusavam  uma  edade  provecta,  a  que  os 
dentes  e  o  paladar  lançavam  maldições  sem  conta,  e  por 
cabellos  brancos  mostravam  na  casca  os  alvos  fios  da 
mais  perfeita  bolor. 

O  sacristão,  um  velho  bonacheirão  e  trôpego,  caracte- 
rístico essencial  de  todos  os  sacristães,  veio,  a  nosso 
pedido,  abrir  as  portas  do  templo,  um  vasto  e  sum- 
ptuoso templo  de  esiylo  romano,  onde  se  conserva  o 
athaude  de  prata  da  rainha-santa  Izabel,  objecto,  que 
por  largos  annos  estava  na  capella-mór,  e  foi  transferido 
para  o  coro,  destinado  ás  freiras,  onde  nenhum  curioso 
poderá  vel-o,  a  não  ser  nos  dias  da  grande  festividade 
annual. 

No  corpo  central,  ha  soberbas  cimalbas,  dois  órgãos 
e  uns  quatorze  quadros,  emoldurados  também  em  ma- 
gnifica obra  de  talha ;  alem  d'estes,  ha  mais  quatro,  ao 
fundo  e  no  cruzeiro,  de  maiores  dimensões,  em  bom 
estado,  com  excepção  do  da  esquerda,  onde  figuram  os 
quatro  doctores  da  egreja. 

Os  retábulos  dos  altares  são  em  meio  relevo. 

Na  capella-mór,  vé-se  correspondente  magnificência ; 
ladeiam-na  seis  bons  quadros,  que  representam,  segun- 
do a  ordem,  em  que  estão— a  conducção  de  santa  Iza- 
bel por  seis  bispos;  a  ascenção;  o  beija-mão  da  mesma 
santa  já  cadáver;  a  morte  de  santa  Clara;  S.  Francisco, 
no  acto  de  ler  a  regra  ás  freiras;  e  a  tosquia  do  cabei- 
lo,  feita  pelo  mesmo  santo,  ás  noviças. 

Por  baixo  d'estes,  ha  mais  quatro,  onde  figuram  os 
evangelistas. 

Ao  sair  d'alli,  sentimos  a  necessidade  de  outros  as- 
sumptos; requeríamos  ar  livre. 

As  magestosas  arcarias  dos  templos  já  nos  pesavam 


EM  COIMBRA  63 


bastante  sobre  a  nossa  compleição  adoentada,  não  ob- 
stante acharmos-nos  convencido,  como  ainda  boje  o  esta- 
mos, de  que  as  egrejas  são  os  primeiros  monumentos 
portuguezes;  o  que  não  admira,  se  attendermos  ao  nos- 
so passado,  demasiadamente  fradesco. 

* 
*      * 

Em  seguida  encaminbamos-nos  para  a  quinta  do  Pom- 
bal dos  frades  cruzios,  que  já  lá  tinham  a  sua  fonte  de 
amores,  d'onde  se  fornecia  a  agua  ao  velho  mosteiro  de 
Santa  Clara,  por  encanamento.  Foram  elles  que  a  de- 
ram a  Ignez  de  Castro,  em  troca  de  outras  terras,  vin- 
do a  ficar  o  palácio  d'esta  infeliz  princeza,  no  lugar  on- 
de está  uma  aldeola,  ao  fundo  da  quinta  e  á  borda  do 
Mondego,  que  lh'o  deitou  abaixo,  depois  do  assassinato, 
realisado  a  7  de  janeiro  de  1355. 

A  moderna  Quinta  das  Lagrimas  não  è  portanto  mais 
do  que  uma  parte  da  antiga  propriedade. 

É  boje  senhor  d'esse  lugar  de  poética  e  constante  ro- 
maria o  sr.  Miguel  Osório. 

Mau  grado  nosso,  vem-nos  aos  bicos  da  penna,  a  nar- 
ração do  episodio  simples  e  cru,  que  precedeu  a  nossa 
visita. 

Três  senhoras,  duas  creanças,  um  cavalheiro  e  nós 
chegáramos  alli  um  pouco  depois  da  hora  determinada 
para  a  entrada. 

O  guarda  não  nos  permittia  ingresso  sem  as  ordens 
do  fidalgo,  seu  amo,  prestes  a  chegar,  segundo  disse, 
para  inspeccionar  uns  operários,  que  lavravam  pedra. 

Perfilou-se,  recolheu-se  ao  espirito,  e  não  se  dignou 
offerecer-nos  um  banco,  um  resguardo  para  o  sol  que 
dardejava  ainda  forte,  uma  commodidade  qualquer  das 
muitas  que  tinha  ao  seu  alcance. 

Resignamos-nos  a  esperar,  as  senhoras  sentadas  n'uns 
degraus  de  pedra,  e  nós  no  varal  de  um  carro. 

Depois  de  muito  tempo,  chegava  o  personagem ;  as 


64  NOTAS  A  LAW8 


senhoras  levantaram-se  a  fazer  grupo  comnosco  e  nós, 
os  homens,  levámos  a  mão  aos  chapéus,  em  respeitoso 
cumprimento  ao  dono  da  casa. 

O  homem  encarou-nos,  atirou  com  um  monosylabo 
de  consentimento  ao  criado,  e,  sem  a  mais  leve  demons- 
tração de  correspondência  ás  nossas  saudações  e  de  ur- 
banidade,  tio  usada  para  com  as  senhoras,  virou-nos  as 
costas,  e  seguiu  para  junto  dos  seus  operários,  com  ares 
de  quem  jantara  bem,  e  desempenhava  á  risca  o  papel 
de  regulo  das  selvas  americanas,  no  dizer  do  nosso  com- 
panheiro. 

Nós  ainda  então  pouco  costumados  aos  repellões  e 
maus  modos  da  maioria  da  nossa  gente,  que  tem  a  seu 
cargo  estabelecimentos  visitados  por  nacionaes  e  estran- 
geiros, embasbacámos  ao  contacto  d'aquella  falta  de  cor- 
tezia  muito  portugueza,  mas  na  verdade  pouco  fidalga. 

Apesar  da  nossa  má  vontade,  que  nos  aconselhava  uma 
retirada  immediata,  penetrámos  na  celeberrima  proprie- 
dade, a  tão  decantada  Quinta  das  Lagrimas,  as  lagri- 
mas. . . 

da  mísera  e  mesquinha, 

que  inda  depois  de  morta  foi  rainha. 

Quem  antes  de  entrar,  alma  sensitiva,  fizer  uma  rá- 
pida compilação  das  scenas  lá  passadas  e  universal- 
mente conhecidas  pelos  versos  do  mais  elevado  espirito 
portuguez,  ao  penetrar  em  seguida  n'aquella  poética 
mansão  —  não  poderá  fazel-o,  sem  sentir  um  agitado  es- 
tremecimento, sem  condoer-se  da  desditosa,  contra  quem 


os  brutos  matadores 

No  colio  de  alabastro,  que  sustinha 

As  obras,  com  que  amor  matou  de  amores 

Aquelle,  que  depois  a  fez  rainha, 

As  espadas  banhando  e  as  brancas  flores, 

Que  ella  dos  olhos  seus  regados  tinha, 

Se  encarniçavam  fervidos  e  irosos 

No  futuro  castigo  não  cuidosos. 


EM  COIMBRA.  65 

/ 

Embora  as  sceoas  se  passassem  de  outro  modo,  em- 
bora a  lúgubre  tragedia  se  tivesse  realisado  do  antigo 
edifício,  de  que  nem  resta  um  destroço,  a  nossa  ima- 
ginação abraça-se  á  lenda,  e  quer  n'uns  quadros  muito 
coloridos,  que  tudo  alli  aconteça,  pullule  e  reviva. 

Nada  se  tem  feito  para  o  alindameuto,  que  requeriam 
o  histórico  local  e  suas  dependências.  Ha  em  tudo  mui- 
ta falta  de  asseio  e  de  boa  disposição,  especialmente 
na  parte  ajardinada,  cujas  divisões  entretanto  são,  no 
maior  numero,  feitas  de  limoeiros  e  laranjeiras,  dobra- 
das em  sebe,  como  se  fossem  vimes  ou  simples  trepa- 
deiras. 

O  mesmp  acontece  ás  roseiras  de  uma  grossura  des- 
communal,  especialmente  a  que  se  diz  plantada  pelas 
próprias  mãos  de  Igoez. 

Tudo  alli  para  nós  tinha  um  encanto  indefinível :  o  ar, 
a  luz,  o  ceu  e  as  plantas— e  cremos  qne  para  muita 
gente,  d'aquella  que  lá  tem  deixado  os  nomes  nos  tron- 
cos do  arvoredo,  raça  estéril  de  corações  piegas,  na 
phrase  materialista  do  realismo,  que  não  se  entretém 
com  estas  insignificâncias  da  natureza. 

Caminho  da  •  Fonte  dos  amores,»  ao  estremo  da  quin- 
ta, e  já  á  sombra  de  um  d'aquelles  cedros  gigantescos, 
que  lhe  cobrem  os  melancólicos  murmúrios,  desseden- 
tamos-nos  num  estreito  canal,  onde  corre  uma  agua  lím- 
pida, que  a  tradição  popular  tornou  mais  clara  e  for- 
mosa ainda. 

Diz-se  que  o  canalsinho,  outr'ora  coberto,  e  livre 
portanto  da  vista  dos  curiosos,  fora  um  dos  mais  gra- 
ciosos medianeiros  da  correspondência  amorosa  dos  dois 
namorados. 

Para  fora  da  quinta,  em  cofre  precioso,  exteriormente 
forrado  de  cortiça,  e  a  hora  determinada,  levava  a  cor- 
rente a  adorada  missiva  de  Ignez ;  para  dentro,  trazia  a 
a  resposta  o  mesmo  cofre,  preso  a  uma  linhar  que  a 
confidente  ou  a  própria  princeza,  sem  nenhum  esforço, 
attraía  a  si. 

Já  referindo-se  a  isto,  dizia  Faria  e  Souza : 


66  NOTAS  A  LÁPIS 


cEI  príncipe  do  podia  hablar  a  Dona  Idos  todas  las 
vezes  que  lo  deseavan  ambos,  porque,  siendo  eila  dama 
de  la  Reyna,  su  madre,  era  menester  recato.  Valia-se 
para  esto  de  aquella  agua  y  de  aquellos  aqueductos, 
porque  por  ellos  y  por  ella  le  embiava  los  papeies  que 
le  escrebia. 

•Rorapió,  parece,  eu  cierta  parte  el  aqueducto,  y  me- 
tiendo  por  alli  los  papeies,  llevados  ellos  de  la  agua, 
iban  salir  ai  jardin,  a  donde  Inês  acudia  a  cogerlos. 

cDe  manera  que  et  Amor  vénia  nadando;  veniam  las 
llamas  amorosas,  passadas  por  agua.  El  príncipe,  repre- 
sentado en  sus  papeies,  era  el  Leandro,  que  por  olas 
iba  en  busca  de  su  Ero,  con  más  felicidad  que  el  otro, 
pues  alfim  llegaba. 

«Tales  son  las  astúcias  de  los  amantes.» 

* 

Que  pouco  realista  6  o  espirito  do  nosso  povo,  que 
tanto  se  apraz  em  colorir  de  mimosas  lendas  estes  e 
outros  casos,  que  tiveram  origem  em  assumptos  de  his- 
tórica memoria ! 

Por  fim,  fomos  sentar-nos  ao  lado  da  fonte  e  junto 
da  tosca  lapide,  um  desastrado  ornamento,  que  tão  mal 
fica  aos  versos,  que  encerra,  e  ao  lugar,  que  comme- 
mora. 

Ainda  assim  aquelle  único  e  reles  padrão  commemo- 
rativo  deve-se  a  um  estrangeiro  I 

Foi  o  general  inglez  Trant  que  alli  o  mandou  collo- 
car  em  1844,  sentindo  na  fleugma  do  seu  brítanismo 
uma  centelha  de  enthusiasmo  reverenciador  pelas  seguin- 
tes linhas  de  Camões,  que  lá  se  lêem : 


As  filhas  do  Mondego  a  morte  escura 
LoDgo  tempo,  chorando,  memoraram, 
E  por  memoria  eterna,  em  fonte  pura, 
As  lagrimas  choradas  transformaram. 
O  nome  lhe  pozeram,  que  inda  dura, 
Dos  amores  dlgoez,  que  alli  passaram. 
Vôde  que  fresca  fonte  rega  as  flores, 
Que  lagrimas  são  agua,  e  o  nome  amores. 


Hf  COIMBRA  67 

As  almas  dos  poetas  teem  voejado  bastantes  vezes 
pelas  aliaras  cTaquellas  arvores,  e  por  sobre  o  tanque 
que  lá  vimos,  maltratado  e  pouco  limpo,  deve  dizer-se, 
embora  isso  destoe  á  amenidade  do  assumpto. 

Ha  um  soneto  anonymo,  publicado  no  3.°  volume  do 
Archivo  Pittoresco,  arroubo  de  uma  alma  d'essas,  que 
nos  falia  assim : 

Debaixo  «faltos  cedros  enlaçados 
One  em  vão  de  penetrar  o  sol  porfia, 
Rebentando  de  tosca  penedia, 
Aqaem  virente  masgo  adorna  os  lados. 

Puros  crystaes  se  escoam  apressados 
Por  leito  de  grosseira  cantaria, 
Vasto  lago  os  recebe— e  na  sombria 
Lympha,  tremem  os  cedros  debuxados. 

Não  se  ouve  das  manadas  o  balido, 
Mal  soa  alli  a  frauta  dos  pastores, 
£  pouco  dos  rafeiros  o  latido. 

Da  malfadada  Ignez  só  os  clamores 

Se  imprimem  n'alma,  sem  ferir  o  ouvido. 

Eis  a  copia  da  Fonte  doe  Amares. 

Pelo  que  nos  toca,  nós— com  os  olhos  na  argilla  verme- 
lha, tinta  com  o  sangue  da  desditosa  amante  de  D.  Pe- 
dro, segundo  a  mesma  poética  e  antiga  tradicção,  que 
já  posteriormente  fez  de  uns  fios  loiros  de  uma  berva, 
fina  como  seda,  que  lá  está,  os  cabellos  da  mesma  per- 
sonagem; com  os  olhos  pois  n'uma  e  n'ootra  coisa,  no 
sangue,  transformado  em  pérolas  de  cristal  pela  corren- 
te, que  nasce  do  penhasco,  e  nos  cabellos,  anediados 
pela  prata  das  mesmas  aguas,  que  corriam  em  terno 
murmúrio,  a  despenhar-se  no  próximo  tanque  —  senti- 
mos, com  todo  o  peso  da  sua  verdade,  aquella  expres- 
são de  Hugo : 

«Ha  momentos,  em  que  nos  parece  que  a  nossa  alma 
está  de  joelhos.» 


68  NOTAS  K  LÁPIS 


Até  o  próprio  guarda  da  quinta,  tão  acostumado  áquel- 
ias  piedosas  romarias,  se  não  atrevia  a  cortar  o  silencio, 
que  se  fizera  á  volta  de  todas  as  pessoas  presentes,  so- 
bre as  quaes  o  anjo  da  melaucola  desdobrara  as  suas 
ternas  azas. 

Ao  acordar  d'aquella  espécie  de  torpor  eléctrico,  cada 
qual  se  muniu  de  uma  relíquia,  uma  folha  de  bera,  uns 
fios  de  cabello,  orvalhados  das  lagrimas,  que  «são  agua 
e  o  nome  amores»,  e  enviou  um  saudoso  adeus  ao  lu- 
gar, onde  a  sua  alma  permanecera,  ajoelhada  em  cons- 
tante adoração. 


IX 


A  Lapa  dos  Esteios  ou  Lapa  dos  Poetas 


Ao  darmos  entrada  na  cidade,  era  noite  fechada. 

Pelo  caminho  formara-se  o  plano  de  um  novo  passeio, 
o  ultimo,  que  o  tempo  ao  nosso  dispor  nos  permittia 
dar;  nada  mais  nem  menos  do  que  uma  digressão  pelo 
rio  até  á  Lapa  dos  Esteios,  baptisada  pelos  bardos  da 
c  Prima  vera»  em  Lapa  dos  Poetas. 

De  facto,  na  manhã  do  dia  27,  uma  deliciosa  manhã, 
na  escadaria  de  pedra  ao  lado  esquerdo  da  ponte,  en- 
travamos n'um  barco  as  duas  famílias  viajantes  e  uma 
graciosa  senhora  de  Coimbra,  cujo  metal  de  voz  imita, 
na  máxima  perfeição,  os  mais  doces  e  ternos  accentos, 
que  a  Paladini  imprime  ao  fallar,  nas  scenas  intimas  dos 
seus  melhores  dramas. 

É  uma  verdadeira  e  notável  especialidade  aquella  voz. 

A  frouxa  corrente  do  rio,  n'esse  tempo  quasi  secco, 


SM  COIMBRA 


espreguiça  va-se  melancólica  e  pi  acida  mente,  encostada 
aos  álamos  e  salgueiraes,  que  durante  a  passagem  se 
debruçavam  sobre  a  embarcação,  despedindo-nos  de 
quando  em  quando  na  cabeça  umas  crystalinas  gotas 
do  seu  orvalho. 

O  dono  do  barco  ia  e  vinha,  de  vara  encostada  ao 
peito,  e  por  mais  de  uma  vez  se  valeu  do  nosso  auxilio 
voluntário;  as  creanças  debruçavam-se  a  apanhar  punha- 
dos de  arêa,  e  chilreavam  alegremente;  as  senhoras  es- 
tabeleciam comparações,  commentavam  as  bellezas  da 
paizagem,  e  —  quem  sabe  —  se  não  se  miravam  no  es- 
pelho das  aguas ;  nós,  os  homens,  fumávamos,  cantan- 
do, com  certo  espanto  do  barqueiro,  que  sorria  a  inter- 
vallos,  como  quem  desconfia  um  pouco  da  seriedade  e 
juizo  dos  seus  hospedes. 

As  creanças  toem,  como  ninguém,  o  poder  de  com* 
municar  a  sua  alegria  instinctiva. 

Quando  saltámos  ao  pè  da  collina,  sagrada  pela  inspi- 
ração de  umas  poucas  de  gerações  de  poetas,  iamos  to- 
dos animados,  e  bem  nos  poderíamos  chamar  um  ran- 
cho de  creanças. 

Descrever  a  quem  as  conhece  as  particularidades  (Tes- 
ta florida  dependência  da  quinta  das  Cannas,  tão  damni- 
ficada  desde  que  passou  a  novo  possuidor,  seria  ficar 
muito  áquem  da  verdade;  fazel-as  notar  na  sua  simpli- 
cidade, porque  não  ha  alli  opulências,  que  não  sejam 
productos  da  natureza;  fazel-as  sentir  aos  que  nunca  as 
viram,  com  todas  as  suas  minudencias,  moitas  de  ar- 
bustos, grupos  de  arvores,  socalcos,  alegretes,  debru- 
çados como  que  a  espreitar  as  aguas  do  Mondego,  men- 
sageiras das  harmonias  dos  cantores  alados  e  dos  mil  se- 
gredos, que  as  fadas  e  os  trovadores  por  lá  espalharam, 
e  de  lá  mandam  á  cidade,  que  a  dois  kilometros  de  dis- 
tancia contempla  todos  os  seus  lugares  privilegiados — 
tornar-se-ia  um  esforço,  a  que  não  podemos  annuir. 

Se  aquelles  troncos,  cobertos  de  iniciaes  e  caracteres 
enigmáticos,  se  as  paredes,  onde  não  ha  espaço,  que  não 
contenha  um  nome,  uma  trova,  um  emblema  ou  uma 


70  NOTAS  A  LÁPIS 


simples  data,  podessem  fallar,  e  dizer-nos  tudo  aquillo 
de  que  toem  sido  testemunhas — quantas  scenas  român- 
ticas, que  longas  paginas  de  amor  6  saudades,  de  risos 
e  lagrimas,  de  alegrias  e  pezares,  esperanças  e  temo- 
res—não veríamos  nós  desdobrar  em  nossa  presen- 
ça! 

Certos  lugares,  como  este,  que  a  natureza  esmerada- 
mente dotou  de  um  privilegio  exclusivo,  toem  esse  con- 
dão de  nos  sorrir  aos  afagos,  em  que  a  nossa  alegria 
se  expande,  se  somos  felizes;  e  de  nos  corresponder  ás 
lagrimas,  que  chorámos,  quando  um  golpe  profundo  nos- 
alanceia  o  coração. 

Entre  as  boas  inscripções  de  quem  as  sabe  e  as  pôde 
fazer  e  as  deslavadas  lembranças  dos  que  fazem  alarde 
da  sua  ignorância,  que  não  se  envergonham  de  subscre- 
ver, encontrámos  isoladamente,  como  que  escondendo- 
se  e  fugindo  á  companhia  dos  bons  e  dos  maus  visitan- 
tes, em  uma  columna  de  pedra,  á  direita  de  uma  fonte, 
para  onde  dá  a  porta  lateral  do  pateo  da  habitação  dos 
donos  da  quinta  —  deparámos  com  um  nome  simples, 
escripto  com  mão  nervosa,  um  nome  só,  que  nos  exci- 
tou uma  viva  curiosidade. 

Maria  I  e  nem  uma  data  t  e  nem  uma  palavra  mais  t 

Maria!  Que  mundo  de  esperanças  ou  que  calvário 
de  infortúnios  não  representariam  aquellas  cinco  le- 
tras! 

E  quem  sabe?  Bem  pôde  ser  que  a  nossa  fantasia 
tenha  dado  um  colorido  exaggerado  áquelle  nome. 

Mas. . .  que  mão  indifferente  poderia  chegar  a  traçal-o 
assim  ? 

O  acaso  compellir-nos-ha  bastantes  vezes  a  escrever 
uma  trivialidade,  umas  palavras  sem  nexo,  um  nada  sem 
significação,  mas  um  nome. . .  e  um  doce  nome  de  mu- 
lher. . .  quasi  nunca. 

Mariat  recordação  feliz,  ou  lembrança  de  infortúnios, 
achaste  um  ecco  nos  recônditos  da  nossa  fantasia,  e  isso 
te  deve  bastar,  fosse  qual  fosse  a  mão  que  te  escre- 
veu. 


KM  COIMBRA  71 


Hoje,  ao  trasladar  estas  linhas  para  um  livro,  aqui 
deixámos,  ao  lembrar-nos  cTesse  nome,  um  grito  da  al- 
ma, que  dos  infelicita,  e  punge. 

Mal  diríamos  nós  então  que  do  alto  da  nossa  fantasia 
havia  de  cair,  desfeito  em  saudades,  esse  nome  adorado 
dentro  do  nosso  coração,  em  tão  pouco  tempo. 

Alaria  t  Mil  vezes  bemdito  sejas  tu,  ó  nome  santo  t 


O  alvoroço,  que  precedera  o  passeio,  fizera-nos  es- 
quecer o  almoço. 

A  hora  adiantava-se,  e  nenhum  dos  visitantes  sentia 
forças  para  arrancar-se  á  amenidade  e  aos  demais  en- 
cantos da  Lapa. 

Nem  havia  reunil-ps,  tão  tresmalhados  andavam  pelos 
recantos  da  encosta. 

Um  companheiro  nosso,  tão  bom  companheiro,  como 
óptimo  gastronomo,  chegou-se  a  nós,  e  disse-nos,  fa- 
zendo tregeitos  afflrmativos  com  a  cabeça : 

— Pois,  sim,  senhor.  Cantos  de  aves,  borboletas,  flo- 
res e  poesia,  repasto  para  o  espirito,  temos  nós  por  toda 
a  parte,  mas. . .  pão  para  o  estômago  è  que  eu  não  vejo; 
e,  meu  caro,  não  me  sinto  bem. 

Dizer  isto,  e  pedir-nos  a  nossa  approvação  para  que 
se  enviasse  o  barqueiro  á  procura  de  almoço  por  aquel- 
les  arredores,  foi  tudo  obra  de  alguns  segundos. 

— Mas  senhor— dizia  o  bom  do  homem  a  coçar  a  ca- 
beça—por aqui  não  ha  hospedarias. . . 

— O'  creatura  de  Deus— retorquiu-lhe  o  nosso  amigo 
— hade  haver  uma  tasca,  seja  o  que  fôr.  Olhe...  tra- 
ga-nos  o  que  achar. . .  pão,  umas  sardinhas,  um  queijo, 
azeitonas,  vinho. . .  o  diabo  que  seja.  Não  me  appareça 
sem  cousa,  que  se  coma,  e  na  maior  abundância  que 
poder.  Aqui  tem  dinheiro.  Vá. . .  e  vá  já. 


72  NOTAS  A  LÁPIS 


O  barqueiro  deitou  a  correr. 

O  caso  passára-se  entre  dós;  era  somente  segredo 
nosso. 

Decorreu  uma  longa  hora. . .  e  nada  de  comer  I 

Ao  reunirmos-nos  ás  senhoras,  achámol-as  sentadas 
n'um  banco  de  pedra,  com  certo  ar  de  fadiga,  como 
quem  descansa,  e  tem  cumprido  o  seu  dever. 

Houve  um  momento  de  silencio. 

—  Que  horas  são  ?—  perguntou  uma,  passado  elle. 

— Onze  e  meia— respondeu  o  nosso  amigo,  sorrindo 
intencionalmente.— Uma  boa  dose  de  poesia  campestre 
vale  bem  o  mais  opiparo  almoço. 

— E'  verdade— accudiu  logo  outra,  disfarçadamente, 
como  quem  teve  uma  lembrança,  devida  ao  acaso  —  o 
almoço?  E  as  creanças?. . .  coitadinhas  i 

—Eu  sei  lá— respondeu  um  de  nós.— Isto  por  aqui  é 
quasi  um  deserto.  Ainda  ao  menos  se  o  barqueiro  esti- 
vesse perto,  regressaríamos  á  cidade,  mas. . .  o  homem 
pediu-nos  licença  para  ir  visitar  um  conhecimento,  e 
ainda  não  voltou. 

Não  o  afirmámos,  mas  pareceu-nos  que  alguém  em- 
pallideceu,  ao  ouvir  similhantes  palavras. 

— Vamos  procural-o— concluímos  nós,  para  tirar  uma 
partícula  áquelle  justo  supplicio,  que  tinha  a  sua  sede 
no  estômago. 

E  lá  fomos  os  dois,  em  demanda  da  surpreza,  que 
preparávamos. 

Ao  meio  dia,  encontrámos  o  barqueiro  todo  esbafo- 
rido, na  estrada,  a  sair  de  uma  taverna,  onde  lhe  fomos 
ajudar  a  fazer  as  provisões. 

Ao  entrar  novamente  na  quinta,  tomámos  por  um  des- 
vio, de  modo  que  não  fossemos  presentidos,  e  no  lugar 
mais  próximo  estendemos  sobre  a  relva  as  magras  vi- 
tualhas, que  levávamos :  excellente  sardinha  frita,  salada 
fresca  a  repolhuda,  azeitonas,  bom  pão  e  óptimo  vinho. 

Quando  os  nossos  companheiros  lançaram  a  vista  so- 
bre tudo  aquillo— houve  um  ha  1  prolongado,  expansivo, 
irrequieto. 


KM  COIMBRA  73 


E. . .  ceremonias  para  o  lado. . .,  todos  á  uma  forma- 
ram o  seu  plano  de  ataque,  com  tal  valentia,  como  se 
o  jejum  durasse  ha  três  dias. 

— E  digam  lá  os  poetas— exclamou  o  nosso  compa- 
nheiro, a  saborear  o  terceiro  copo — que  se  pôde  viver 
muito  tempo  só  de  arroubos  lyricosi 

— Pois  a  fome  já  produziu  bons  poemas— disse  al- 
guém—O  nosso  Camões  por  exemplo. . . 

—Pois  que  lhe  fizesse  muito  bom  proveito!  Eu  cá 
não  faço  versos,  mas  procuro,  sempre  que  posso,  ser 
útil  a  alguém. 

tE  vou  proval-o. 

Nisto  tirou  um  lápis  da  carteira,  e  na  parede  mais 
próxima  escreveu  o  seguinte : 

cSardinhas,  pão,  salada,  azeitonas  e  vinho— tudo  com 
abundância— para  nove  pessoas— SOO  réis.  Aviso  aos 
visitantes. 

Arthur.* 

Não  podemos  resistir  ao  que  nos  pareceu  uma  pro- 
fanação, e  accresentámos  por  baixo : 

cA  quem  me  disser  que  não  ha  regra  sem  excepção, 
certificarei  que,  ao  lado  da  poesia,  andam  sempre  uni- 
dos uns  laivos  de  prosa.  Exemplo. . .  o  precedente  an- 
nuncio. 

David.* 

Apesar  de  tudo,  ainda  hoje  bemdizemos  a  prosa,  que 
tão  bem  nos  soube  t 


Não  concluiremos,  para  descargo  da  nossa  consciên- 
cia e  satisfação,  dada  aos  futuros  amantes  da  poética 
mansão  da  Primavera,  sem  recordarmos  o  que  de  mais 
notável  por  lá  vimos  esculpido,  pela  bizarria  e  bom  gosto 


74  NOTAS  A  LAP18 


do  penúltimo  possuidor  d'aquella  propriedade,  o  falle- 
cido  conde  das  Canoas. 

Logo  ao  sopé  da  encosta  e  ao  transpor  os  primeiros 
degraus  do  desembarque,  ha  uma  pedra  commemora- 
tiva,  que  diz  assim : 

Aqui  celebrou  A.  F.  de  Castilho 

com  os  seus  amigos 

a  festa  da  primavera,  d  onde  ao  sitio  se  mudou 

o  nome  de 

Lapa  dos  Esteios  do  de  Lapa  dos  Poetas. 

Aqui  voltou 

a  um  do  mesmo  mez  de  1862. 

Esta  memoria 

para  convite  e  incentivo  perpetuo 

aos  cisnes  de  Coimbra, 

a  mandaram  aqui  pôr,  no  supracitado 

anno 

D.  José  Maria  de  Vasconcellos  Azevedo  Carvajdl 

e 

Gonçalo  Tello  de  Magalhães  Cdlaço. 


E  mais  acima : 

Doce  mansão  poética 
O*  Lapa  dos  Esteios, 
Tu  abres  nossos  seios 
A'  luz  do  eterno  amor. 
Almas  sem  crenças,  gélidas 
Correi  ao  tabernáculo, 
Gosae  este  espectáculo, 
Louvae  ao  Creador: 

A'  sombra  d'estas  arvores 
Reclinae-vos,  poetas, 
Que  as  musas  predilectas 
Vos  hão  de  abençoar. 
Cantae  em  trovas  magicas 
Da  Lapa  as  harmonias 
As  doces  melodias 
Do  rio,  a  suspirar. 

15  —  Julho  — 1874.  Costa  Goodolpkim. 


BM  COIMBRA  78 

Na  mesma  parede  e  ao  lado  d'esses  versos»  se  bem 
nos  lembrámos,  lé-se : 

O  ULTIMO  ABRAÇO  DO  «.•  ANNO  JURÍDICO 
EM  1873 

ÍTestes  paços  de  Flora  encantadores 
Nos  renne  a  voz  terna  da  amisade ; 
D'entre  os  abraços  e  por  sobre  as  flores 
Resoem  mil  suspiros  de  piedade  t 
E*  o  ultimo  adens  da  mocidade  1 
Distantes  vamos  ser,  mas  não  ausentes : 
Embora  fnja  a  quadra  da  poesia, 
Quadra  de  amor  e  sonhos  resplendentes, 
O  affecto  de  irmãos,  que  nos  prendia, 
Esse  fica. . .  recresce  cada  dia. 

Si— Maio— 1873.  7.  Paiva. 

Sobre  a  fonte,  a  que  já  nos  referimos,  no  mais  alto 
da  encosta,  entestando  com  uma  rua,  coberta  de  orna 
espessa  e  formosa  abobada  de  verdura,  ba  uma  lapide, 
onde  avulta  uma  lyra  em  relevo,  tendo  por  baixo: 

AO  CANTOR  DA  PRIMAVERA 
A.  F.  DE  CASTILHO 

Descendo  d'esse  lugar,  a  meio  declive,  caminho  de 
ama  espécie  de  mirante,  d'onde  se  disfructa  o  melhor 
panorama,  ha  um  segundo  abraço,  um  espirituoso  e  poé- 
tico abraço,  onde  figuram  nomes,  a  que  as  letras  por- 
tuguezas  devem  não  pequenos  louvores. 

E'  este: 

João  de  Lemos       —  Sobre  as  azas  da  poesia 
Pinto  Monteiro       —  Aqni  nos  trouxe  a  amisade, 
Freire  de  Serpa      —  Cantámos  em  lyras  de  oiro 
Costa  Pereira         —  Esperanças  da  mocidade, 
Rodrigues  Cordeiro  —  E  aos  bardos  da  primavera 
Augusto  Lima        —  Mandamos  uma  saudade. 


76  NOTAS  A  LÁPIS 


Estes  versos  commemoram  a  despedida  dos  autores, 
ao  terminarem  os  seus  estudos  académicos,  em  1844. 

Raros  são  os  poetas  nacionaes,  que  não  tenham  con- 
sagrado áquelle  delicioso  lugar  um  ou  outro  dos  seus 
cantares. 

Lembram-nos  ainda  Tbomaz  Ribeiro  e  J.  F.  de  Serpa. 

Disse  o  primeiro: 

Que  saudades  imperam  n'estas  sombras ! 
Que  macias,  que  lúbricas  alfombras  1 
O'  poetas,  que  sítios  para  ameres  t 
Tem  filtros  estas  aguas  e  estas  flores. 

e  o  segundo: 

Oh  t  Quem  eotrar  n'esta  gruta 
Não  faça  juras  fataes: 
Aqui  té  os  freixos  amam, 
Até  as  penhas  dão  ais. 

—  Se  és  poeta,  versejarás  —  disse  um  escriptor,  ao 
fallar  da  Lapa  dos  Esteios. 

Não  sei  se  por  isto,  se  por  simples  allucinação,  que 
nos  fez  juntar  uma  voz  dissonante  ao  concerto  de  tantos 
rouxinóes  —  tomámos  o  lápis,  o  das  nossas  ligeiras  no- 
tas, e  lá  deixámos  também  as  seguintes  e  ultimas  linhas, 
consagradas  a  Coimbra: 

Erguei-vos,  memorias  idas  1 
morrei,  saudades  passadas, 
sobre  este  chão,  que  inebria, 
sobre  estas  margens  floridas, 
que  tem  por  culto  a  poesia 
por  habitantes  as  fadas  t 

Banha  as  azas  resequidas 
no  crystal  d'esta  magia, 
coração,  tristonho,  e  gasto 
em  tantas  lutas  perdidas; 
e  toma,  como  repasto, 
o  sol  do  amor  e  poesia, 


1 


_ 


EM  COIMBRA  77 


que  se  estende  n'esu  encosta, 
que  brilha  nos  arvoredos, 
que  se  espalha  n'essas  aguas, 
que  a  pobre  d'alma  antegosta, 
como  curativo  ás  magnas: 
diz-lhe  pois  os  teus  segredos... 

alegra-te  1  exulta,  e  canta ) 
Ouves  a  vaca  harmonia, 
que  o  Mondego  rumoreja 
nos  siuceraes,  que  abrilhanta? 
Põe- te  a  nú...  faz  que  te  veja... 
e  diz-lhe:—  «Conheço  a  magia 

«do  teu  leito  perfumado 
«onde  ha  célicas  beldades, 
«d'este  sol,  que  me  allumia  1 
«Ergue -te,  pois,  meu  passado ! 
«n'esto  chão,  que  me  inebria, 
«ficae. . .  morrei,  saudades  t» 


78  NOTAS  A  LÁPIS 


NO  BUSSACO 


De  Coimbra  a  Luso.  —  Na  matta.  —  Embevecimentos 


Entre  todos  os  meios  de  conducção  directa,  onde  não 
chega  a  via  accelerada,  nas.  nossas  províncias,  o  que 
mais  serviços  presta  è  sem  duvida  o  da  diligencia,  nem 
sempre  limpa  e  raras  vezes  com  moda,  mas  preferível 
aos  outros,  quando  o  numero  dos  viajantes  attinge  umas 
certas  proporções. 

Sosinbo  e  livre  de  bagagem,  renunciaremos  a  tudo 
por  uma  boa  e  pacifica  cavalgadura. 

A  chamada  diligencia  da  carreira,  em  qualquer  pon- 
to que  seja,  deve  porém  ser  sempre  despresada  por 
quem  se  fizer  acompanhar  por  sua  família,  para  evitar 
a  semsaboria  de  levar  um  bêbedo,  ou  um  malcreado, 
por  camarada,  qualidades  que  os  cocheiros  raras  vezes 
deixam  de  ter,  á  falta  de  outras  prendas. 

A  pratica  será  sempre  o  melhor  dos  mestres. 

Aconselhados  por  ella,  os  nossos  companheiros  e  nós, 
quatro  senhoras,  duas  creanças  e  dois  amigos,  mandá- 
mos á  cocheira  tratar  o  vehiculo,  e,  ás  6  horas  menos 
alguns  minutos  da  manhã,  partimos  de  Coimbra,  em  di- 
recção a  Sargento-Mór,  onde  chegámos  ás  sete. 


NO  B088ACO  79 


Era  o  que  se  costama  chamar  ama  manhã  de  rosas. 

O  rapado  das  aldeias,  visinhas  das  estradas,  que  mais 
frequentadas  se  tornam,  tem  já  inveterado  o  vicio  de  pe- 
dir esmola  a  quem  passa,  com  a  persistência  de  quem 
cultiva  ama  rendosa  industria. 

Uma  chusma  de  pequenitos  de  ambos  os  sexos,  tão 
corados  e  robustos  como  sujos  —  o  que  seja  dito  em 
louvor  da  boa  alimentação  e  do  respectivo  esterco  de 
Sargento-Mór  —  saiu-nos  ao  encontro  da  diligencia,  e 
lá  a  foi  acompanhando,  em  lamuriante  peditório. 

Um  dos  nossos  amigos,  que  via  n'aquillo  o  vicio  e 
não  a  necessidade,  foi-se  divertindo  com  elles,  o  melhor 
que  poude. 

Fez-lhes  ver  que  para  ganhar  dinheiro  era  preciso  tra- 
balhar, e  portanto  que  não  abriria  o  bolso  senão  diante 
de  um  serviço  qualquer,  que  elles  lhe  prestassem. 

E  mandou-os  cantar,  e  lavar  a  cara  no  primeiro  tan- 
que. 

A  primeira  cousa,  que  lhes  cheirava  a  galhofa,  fize- 
ram elles  sem  esforço,  no  meio  de  uma  berraria,  capaz 
de  espantar  o  spleen  mais  inveterado;  a  segunda  porém, 
a  que  tocava  a  limpeza,  não  foi  sem  repugnância  e  as 
mais  reiteradas  instancias  que  teve  um  soffrivel  desem- 
penho. 

Suficientemente  remunerados,  os  rapazes  continua- 
a  pedir,  a  requerer  mais,  e  a  seguir  a  diligencia  a  uma 
distancia  tal  que  por  pouco  não  chegou  até  á  Mealhada. 

Ora  que  o  peditório  para  muita  gente  é  um  vicio,  em 
que  tão  perigosamente  se  industriam  as  creanças,  mes- 
mo nos  grandes  centros,  onde  chega  a  ser  uma  vergo- 
nha— é  caso  por  demais  provado. 

Sirva  de  exemplo  o  que  ainda  ha  dias  nos  aconteceu, 
não  emporta  em  que  lugar. 

Seguíamos  ao  longo  de  uma  praia,  que  fica  em  frente 
de  uma  povoação,  quando  de  sitios  differentes  nos  vie- 
ram ao  encontro  três  rapazolas,  que  já  podiam  tomar 
orna  boa  parte  n'um  campo  ou  n'uma  officina,  a  pedir 
esmola. 


80  NOTAS  A  LÁPIS 


—  Não  tenho  pae,  nem  mãe —  pareceu-nos  que  dis- 
sera um. 

A  pessoa,  que  nos  acompanhava,  parou  comnosco,  e 
voltou-se  com  a  mão  no  bolso,  condoída  do  pobre  or- 
phão. 

—  Qual  é  o  que  não  tem  pães?  —  perguntou. 

—  Eu  não  os  tenho.  Nem  eu  1  Nem  eu  I  —  responde- 
ram os  três  com  o  maior  desembaraço. 

Como  viram  porém  o  eíTeito  que  tamanha  orphanda- 
de  poderia  causar  em  nós,  entraram  de  desmentir-se, 
nomeando  os  pães  de  uns  e  outros,  de  modo  que  em 
pouco  nos  fizeram  comprehender  todo  o  alcance  da  sua 
industriosa  lamuria. 

É  por  isso  que  o  homem  de  coração  bemfazejo  e  des- 
prevenido chega  tantas  vezes  a  proteger  o  vicio,  cuidan- 
do que  pratica  um  bom  acto,  quando  a  pobreza  enver- 
gonhada, a  que  não  pode  estender  a  mão  em  publico, 
invalida  ou  caduca,  se  estorce  de  fome  no  leito  da  mi- 
séria. 

# 
#      * 

Mas...  continuemos. 

  Mealhada,  villa  plana  e  de  bonita  apparencia,  a  31.» 
estação  da  via  férrea  do  norte,  tão  conhecida  pelo  com- 
mercio  dos  excellentes  vinhos  da  Bairrada,  tem  boas 
construcções  e  muito  férteis  arrabaldes,  a  esse  tempo 
enriquecidos  de  óptimos  fructos. 

Aos  lados  da  estrada,  que  d'alli  segue  para  Luso,  e 
já  perto  d'esta  localidade,  especialmente  á  esquerda,  ha 
edificações  modernas,  chalets,  guarnecidos  de  ramos  de 
sobreiro,  cobertos  naturalmente  de  cortiça,  vistosas  pro- 
priedades ruraes  e  melhoramentos  dignos  de  boa  nota. 

Ás  nove  horas  e  um  quarto,  apeiámos-nos  em  frente 
do  hotel  Serra,  o  decano  dos  hotéis  de  Luso,  povoação, 
ainda  ha  poucos  annos,  de  mediana  importância,  ehoje 
um  lugar,  onde  ha  excellentes  edificações  e  uma  boa  sq- 
ciedade,  que  lá  vae  attraida  pelos  banhos,  situados  en- 


NO  B088AOO  81 


tre  os  dois  bairros,  e  pelas  bellezas  do  Bassaco,  tão  jus- 
tamente celebradas. 

N'aquelles  sítios  já  não  ba  recanto,  qae  não  tenha 
sido  esquadrinhado,  nem  minuciosidade,  que  tenha  fi- 
cado sem  descripção,  tantos  são  os  guias,  livros  e  me- 
morandos de  todo  o  género,  publicados  a  seu  respeito. 

Além  das  impressões  de  momento,  como  é  nossa  in- 
tenção, nada  temos  pois  que  acrescentar  ao  que  já  está 
dito. 

Aquelles  dos  nossos  companheiros,  que  desconheciam 
as  localidades,  mostravam  a  maior  avidez  por  fazer-se 
conduzir  á  magestosa  matta:  nós,  que  passeiaramos  por 
lá  os  nossos  dezeseis  annos,  não  éramos  o  ultimo  na 
vehemencia  dos  desejos  manifestados. 

Encommendado  o  almoço,  com  a  máxima  brevidade, 
saímos  a  contratar  com  a  chusma  dos  pregoeiros  dos 
burros,  agglomerados  ás  portas  do  hotel,  o  aluguel  de 
uns  nove  d'aquelles  pacientes  animaes,  que  fornecem 
aos  visitantes  a  mais  conveniente  e  barata  conducção. 


Pouco  depois  estávamos  a  caminho,  em  alegre  e  fes- 
tiva caravana. 

A  piedade  christã  de  outros  tempos  attribue  aos  fun- 
dadores dos  conventos,  espalhados  por  todos  os  paizes 
calholicos,  muitíssimas  virtudes,  por  causa  das  locali- 
dades, escolhidas  por  elles,  desvios  solitários,  onde  não 
chegava  facilmente  o  bulício  tentador  do  mundo;  a  in- 
vestigação moderna  porém  dá-lhes  intenções  mais  com- 
modas  e  menos  pias,  sem  deixar  de  gabar-lhes  o  bom 
dedo,  que  tinham  para  a  escolha  de  tudo  o  quanto  é 
agradável  á  vida. 

E  na  verdade,  quem  attentar  miudamente  nas  edifica- 
ções monásticas,  que  ainda  boje  restam,  não  pôde  fur- 
tar-se  a  encarecer  o  bom  gosto  que  presidiu  aos  pontos 

6 


82  NOTAS  A  LÁPIS 


preferidos,  e  o  talento  com  que  se  attendia  á  bygiene  e 
á  formosura  do  local,  pasto  para  o  corpo  e  regalo  para 
o  espirito. 

Nas  melhores  elevações,  á  beira-mar,  a  meio  declive 
das  montanhas,  cercadas  de  bellos  campos  e  povoações 
rústicas ;  no  alto  das  collinas,  no  centro  das  mattas  e 
jardins;  nos  pontos  culminantes  das  cidades,  em  lugar 
finalmente,  onde  houvesse  bom  ar,  óptima  luz  e  agra- 
dáveis pontos  de  vista — ahi  se  punha  a  mira,  e  se  con- 
struía o  convento. 

Sirva  de  exemplo  aquelle  paraíso  de  poesia  bucóli- 
ca.. .  o  Bussaco. 

Dizem-nos  as  chronicas,  e  a  tristeza  do  edifício  bem 
o  attesta,  que  os  eremitas  descalços  se  votavam  á  mais 
completa  humildade. 

E'  verdade  isso;  mas  não  se  pode  reputar  por  me- 
nos verdadeira  a  asserção  de  que  aquella  montanha,  cer- 
cada por  um  muro  de  3:800  metros,  cujo  recinto  con- 
tém a  mais  espessa  arborisação,  que  se  possa  imaginar, 
salva  a  das  mattas  virgens  da  America,  carvalhos,  pi- 
nheiros de  uma  corpulência  pasmosa,  castanheiros  e  ce- 
dros gigantes,  que  se  dizem  originários  de  Goa,  e  datam 
de  1643,  arbustos  de  todo  o  género,  fontes  de  uma  agua 
finíssima,  e  por  cima  de  tudo  isto  o  mais  formoso  ponto 
de  vista  de  todo  o  paiz — é  sem  duvida  o  exemplo  mais 
frisante  do  que  levamos  dito,  quanto  á  sábia  perspicácia 
dos  fundadores  da  maior  pgrte  dos  conventos. 

Para  habitar  aquelle  lugar  encantado  valia  bem  a  pena 
morar  n'uma  casa  humilde,  forrada  de  cortiça,  desde 
que  se  fosse  o  que  eram  os  carmelitas  descalços,  ou 
ainda  mesmo  um  simples  secular,  desilludido  e  enfas- 
tiado das  cousas  do  mundo. 

Mas. . .  retrocedamos  á  porta  de  Luso,  um  moderno 
portão  de  quinta,  que  contrasta  com  o  que  por  lá  se 
encontra  do  tempo  antigo,  e  vamos  seguindo  até  aos 
primeiros  degraus  da  escadaria,  que  sobe  á  Fonte  Fria, 
outra  innovação  de  peior  gosto  ainda,  um  aformosea- 
mento,  de  que  não  seria  capaz  fr.  Thomaz  de  S.  Cyríl- 


NO  BUSSACO  83 


lo,  fondador  da  matta,  nem  nenhum  dos  eremitas  que 
lhe  succederam. 

Não  que  elles  primavam  no  bom  discernimento  em 
alliar  a  arte  com  a  natureza. 

Mais  santos  varões  que  os  seus  successores,  seja  dito 
em  honra  sua,  ainda  assim  julgamol-os  capazes,  já  en- 
tão, de  inventar  a  fogueira  da  inquisição  para  torturar 
aquelles  que  se  lembrassem  de  caiar  os  mármores,  os 
rendilhados  de  madeira  e  os  azulejos  antigos,  como 
soem  fazel-o  os  remendões,  a  quem  está  incumbida  a 
conservação  de  muitos  dos  nossos  monumentos. 


O  péssimo  effeito  da  escadaria  desageitada  e  nua,  já 
em  data  posterior  ao  nosso  escripto,  foi  felizmente  di- 
minuído com  uma  abertura  central,  em  toda  a  longitude, 
por  onde  as  aguas  da  fonte  se  despenham,  em  quedas 
graciosas  e  ouriçadas  de  pedras  toscas,  de  lanço  em 
lanço,  atè  se  esconderem  sob  a  estrada,  e  cairem  em 
grande  jorro  no  tanque  inferior. 

Bom  remédio  e  óptima  lembrança  i 


Quando  lançámos  a  vista  em  todas  as  direcções,  tanto 
quanto  nos  permittia  o  emaranhado  da  folhagem,  ao 
transpor  a  augusta  muralha,  que  se  abraça  zelosa  ao 
nosso  único  modelo  das  mattas  virgens  dos  trópicos, 
áquelle  viveiro  paradisíaco  de  aves  canoras,  que  por  tan- 
tissimos  annos  teem  unido  os  seus  hymnos  ao  poético 
rumorejar  de  muitos  centos  de  romeiros  —  sentimos, 
em  toda  a  evidencia  a  melancólica  effusão  dos  versos 
de  José  Freire,  e  exclamámos  também,  mas  interior- 
mente e  de  lábios  cerrados : 


84  NOTAS  A  LÁPIS 


Eil-o,  que  o  vejo,  esse  sitio  caro, 

Essa  montanha  sacra,  esse  retiro, 

Que  basco,  ha  tanto !  eil-o,  qne  o  conheço 

Pelas  pontas  vergadas  d'altos  cedros, 

Pelos  prainos  do  mar,  qne  ao  longe  brilham, 

Pelos  ossos  mirrados  da  caveira 

E  o  tosco  pedestal  da  cruz  ingente. 

Salve,  asylo  de  paz  e  de  pureza, 

Onde  a  innocencia  foragida  vôa 

A  acoitar-se  do  mundo!  Eu,  foragido. 

Também  te  busco :  acolhe-me  em  teu  seio, 

O'  sacro  penetrai;  acolhe  os  votos 

D'um  puro  coração 


Profanos  pensamentos 
Ora  em  sublime  idéa  se  trocaram ; 
Os  olhos,  que  só  viam  pelo  mundo 
Enganoso  fulgor  de  róseas  faces, 
Gastamse  aqui  a  contemplar  o  Eterno; 
E  a  voz,  que  almas  caricias  modulava 
Ao  som  loução  d'um  menestrel  de  amores, 
Ora,  ao  grave  tanger  d'harpa  celeste, 
Levanta  a  Jehovà  hymnos  de  espr'ança 
E  cânticos  de  gloria. 

* 
*       # 

D'aqui  a  pouco  tempo,  do  que  era  propriamente  edi- 
ficação dos  frades  nada  poderá  existir. 

As  doze  capellas,  destinadas  para  ermidas,  ou  casas 
de  expiação,  os  nove  passos  de  Christo,  dispostos,  se- 
gundo as  medições  mandadas  vir  de  Jerusalém  pelo 
bispo  D.  João  de  Mello,  estão  por  terra  uns,  e  a  cair  a 
pedaços  os  outros. 

A  devoção  alvar  da  gente  rude,  que  se  tem  divertido 
a  esmurrar  as  estatuas  dós  pharíseos,  é  menos  culposa 
do  que  a  incúria  de  quem  podia  mandar  reedificar 
aquellas  memorias,  ou  arrasal-as  inteiramente? 

Vale  mais  o  seu  eterno  desapparecimento  do  que  o 
estado  actual,  em  que  se  acham. 

O  mesmo  diremos  da  grandiosa  matta.  Quando  ai- 


MO  BD88ACO 


guem  se  lembrar  de  continuar  as  devastações»  que  por 
lá  se  notam  n'um  ou  n'outro  ponto  —  melhor  será  que 
de  uma  vez  para  sempre  se  lance  fogo  áquillo  tudo, 
para  que  a  barbara  sei  vage  ria  possa  ser  completa. 

Talvez  que  das  cinzas  venham  a  surgir  então  alguns 
campos  de  milho,  para  engordar  a  prosápia  dos  que 
desconhecem  inteiramente  o  valor  de  algumas  relíquias, 
que  os  estrangeiros  nos  invejam,  e  que  nós  tio  mal  sa- 
bemos prezar. 

Vamos  até  ao  mosteiro,  por  baixo  d'aquellas  aboba- 
de verdura,  sombras  venerandas,  de  que  já  em  1634 
dizia  a  nossa  poetisa,  D.  Bernarda  de  Lacerda : 


negras  sombras  de  robles 

Que  ali  soa  grandes  y  machos 
Llenos  de  barbas  por  viejos, 
Y  eo  las  cabeças  tan  juntos 
Que  no  suffrem  los  trapassse 
El  planeta  rubicundo... 


Quem  poderá  dispor  de  uma  paleta  magica,  fornecida 
das  tintas  precisas,  para  fazer  uma  circumstapciada  pin- 
tura d'aquelle  emaranhado  da  mais  esplendida  arbori- 
são! 

Ó  musa  inspiradora  das  doces  ternuras  da  alma,  ó 
suave  melancolia,  com  que  disvelo  nos  abraças  tu  alli. . . 
alli,  onde  o  teu  império  é  lio  vasto,  e  a  tua  benéfica  in- 
fluencia tão  prodigiosa  e  incessante ! 

Os  teus  sorrisos,  a  suprema  consolação  dos  tristes, 
vêem  illuminar-nos  a  fronte,  n'um  raio  de  sol  furtivo, 
que  se  escapa  brincando  por  entre  aquellas  ondas  de 
fulgores  verdejantes;  a  tua  voz  ouvimol-a  em  ternos  ao 
cordes  no  ramalhar  compassado  dos  altivos  cedros;  a 
tua  imagem  acariciadora  segue-nos,  e  espreita-nos  os 
passos. 

Se  o  pobre  do  coração  vacilla,  e  cae  ao  peso  das  idéas 
que  nos  sobrecarregam  o  espirito,  tu,  por  entre  os  cândi- 
dos beijos  de  uma  piedade  maternal,  sentas-te  comnos- 


86  NOTAS  A  LÁPIS 


40  sobre  aquelles  tapetes  de  musgo»  sagrados  pela  tra- 
dição; e  recebes-nos  a  cabeça  no  regaço,  cobrindo-nos 
o  corpo  inteiro  com  as  tuas  azas  de  anjo  consolador. 

E  dormimos  assim...  despegados  do  mundo,  como 
talvez  dormiram  outr'ora  os  cenobitas,  de  que  tu  foste 
desvelada  amiga,  e  sonhámos  uns  instantes  de  felicida- 
de, que  a  sociedade  nos  não  sabe,  nem  pode  conce- 
der. 

Depois...  deixâmos-te  nos  seios  as  lagrimas  do  nos- 
so reconhecimento,  e  voltámos  á  realidade,  a  dura  rea- 
lidade, que  nos  não  deixa  dormir,  e...  sonhar  eterna- 
mente comtigo. 

Desviámos-nos  um  momento  das  agruras  da  vida, 
mas...  lá  ouvimos  os  guizos  estridentes  da  comedia 
humana,  a  chamarem  por  nós,  e  forçoso  è  voltar  a  to- 
mar o  papel,  que  nos  foi  distribuído. 

Ainda  assim,  as  recordações  perduram  na  saudade; 
sempre  e  sempre  temos  bênçãos  para  os  momentos,  fu- 
gitivos embora,  em  que  podemos  exclamar,  como  então 
o  fizemos,  no  seio  da  veneranda  floresta: 

Bemdigo-te  n'este  instante, 
em  que  a  vida  do  coração, 
no  teu  regaço  de  amante, 
occultei  á  luz  do  dia, 
ó  terna  melancolia, 
ó  deusa  desta  mansão  1 

Bemdigo-te !  Foi  ditoso 
no  enlace  dos  braços  tens. 
Senti -me  morrer  de  goso, 
d'aza  tua  ao  doce  abrigo, 
pois  dormir. . .  sonhar  comtigo. . . 
é  viver...  sonhar  com  Deus  t 

E  sonhávamos  talvez,  ao  escrever  estas  linhas,  quan- 
do a  gárrula  expansão  dos  nossos  companheiros  nos  veiu 
arrancar  á  sombra  protectora  do  arvoredo,  que  fica  em 
frente  da  portaria  do  mosteiro,  cuja  avenida  havíamos 
precorrido  já. 


MO  BUSSÀCO  87 


II 


O  mosteiro.— A  Cruz  Alta.—  O  escândalo  de  um  hymno  — 
A  perda  de  uma  jóia.—  Cantanhede.— As  Febres. 


Dos  frades  benedictioos  passou  a  malta  a  ser  pro- 
priedade do  bispado  de  Coimbra  e  mais  tarde  dos  car- 
melitas descalços,  por  doação  do  bispo-conde  D.  João 
de  Mello. 

Em  7  de  agosto  de  1628,  começou  fr.  Tbomaz  de  S. 
Cyrillo  a  edificação  do  pobre  mosteiro,  posto  á  frente 
de  um  terraço  tijolado,  para  onde  se  sobe  por  degraus 
e  a  meio  do  qual  avulta  um  simples  cruzeiro  de  pe- 
dra. 

Por  três  arcos  singelos,  entre  paredes  guarnecidas  de 
embrechados  de  pedras  brancas,  pardas  e  pretas,  seme- 
lhantes ás  que  revestem  algumas  das  capellas,  espalha- 
das pela  matta,  atravessa-se  um  pequeno  e  lúgubre  sa- 
guão, e  dá-se  com  a  porta  principal,  pequena  e  tosca, 
encimada  pela  significativa  inscripção: 

Haec  est  domus  Dei  et  porta  Cceli. 

Guiados  pelo  velho  Francisco  António,  guardião  dos 
últimos  frades,  ou  cousa  parecida,  uma  relíquia  de  86 
annos,  chronica  viva  de  todas  as  devastações  e  sacrilé- 
gios, praticados  no  sagrado  recinto,  de  que  elle  falia, 
com  a  magua  impotente  de  quem  se  vô  esbulhado  dos 
direitos  mais  bem  adquiridos  d'este  mundo,  e  não  pode 
reagir  senão  pela  palavra,  que  ninguém  respeita  e  ou- 
ve —  lá  penetrámos  na  sombria  tristeza  d'aquelles  mu- 
ros, onde  tudo  respira  humildade,  que,  junta  aos  vários 


88  NOTAS  A  LÁPIS 


remendos  de  edificação  moderna,  nos  produz  no  espirito 
uma  dolorosa  impressão. 

Tudo  alli  é  pobre,  irregular,  remendado,  imperfeito, 
apertado  e  mesquinho,  tudo  apropriado  aos  hábitos  aus- 
teros dos  verdadeiros  monges. 

A  cortiça  dos  forros  e  das  celias  vae  gradualmente 
caindo  a  pedaços,  ou  servindo  para  rolhas  das  garrafei- 
ras dos  romeiros  e  hospedes  da  matta;  os  quadros,  pen- 
durados nas  paredes  dos  corredores,  ou  claustros,  re- 
clamam fogueira  inquisitorial,  tão  golpeados  a  canivete, 
ou  furados  a  punhal,  se  voem,  pelas  mãos  de  alguns  vi- 
sitantes, que  esgrimem  (Testa  bonita  forma  os  seus  brios 
e  talentos  guerreiros,  ao  deixarem  impressas  na  tela 
esfarrapada  as  marcas  da  sua  boa  e  apurada  educação, 
para  lhe  não  chamarmos  selvagem  e  requintada  malvadez. 

Não  admira  isto,  desde  que  se  souber,  segundo  o  tes- 
temunho de  Francisco  António,  que  o  commandante  de 
um  destacamento,  que  alli  estivera,  haverá  doze  annos, 
se  divertia  nos  seus  ócios  marciaes  a  deitar  por  terra 
as  cruzes  e  as  obras  das  capellas,  que  se  lhe  depara- 
vam pelo  bosque. 

O  que  pretenderia  fazer  de  tudo  aquillo,  na  sua  arro- 
jada valentia,  aquelle  Ferrabraz  econoclasta? 

Provavelmente  ensaiava-se,  para,  de  volta  a  Lisboa, 
disputar  aos  moinhos  de  vento,  espalhados  pelos  outei- 
ros das  suas  cercanias,  os  invejados  louros  de  uma  cam- 
panha quixotesca  e  formal. 

Dos  livros,  que  povoavam  a  bibliolheca  não  podemos 
saber  ao  certo  o  destino;  não  nos  lembrámos  do  que  a 
seu  respeito  nos  disse  o  bom  do  velho.  Quer-nos  pare- 
cer porém  que  não  seria  fácil  reunil-os  hoje,  pois  que, 
desde  a  estada  alli  de  lord  Wellington,  algumas  precio- 
sidades do  mosteiro  tornaram-se  verdadeira  roupa  de 
francezes. 

Tanto  assim  foi  que  o  menino  Jesus,  que  na  egreja 
se  vê  no  colo  de  S.  José,  ao  lado  esquerdo,  já  esteve 
quatorze  annos  fora  d'alli,  em  casa  de  uma  família,  -que 
o  levara,  sem  dar  satisfação  a  pessoa  alguma. 


NO  BTO8ACO 


A  egreja,  sem  porta  principal,  nem  communicações 
com  o  interior,  a  Dão  ser  por  um  lado,  nada  tem  de  no- 
tável, afora  a  cabeça  de  Nossa  Senhora  das  Dores,  que 
offerece  o  contraste  de  um  alegre  sorriso,  e  os  bustos 
de  S.  Magdalena  e  S.  Pedro,  duas  esculpturas,  que  só 
por  si  valem  o  mosteiro  em  peso. 

De  origem  desconhecida  são  aquelles  bustos  duas 
obras  de  arte,  que  nos  prendem  de  um  modo  irresis- 
tível os  olhos  do  corpo,  e  nos  fazem  dilatar  por  tal  for- 
ma os  olhos  da  alma,  que  não  ha  apartarmos-nos  d'alli, 
sem  nos  possuirmos  da  condoída  expressão  d'aquelles 
rostos,  onde  a  verdade  indiscriptivel  dos  sentimentos, 
que  manifestam,  nos  arrasta  ao  cume  do  mais  elevado 
mysticismo. 

De  resto. . .  o  coro,  elevado  do  pavimento  apenas  por 
um  degrau,  um  soffrivel  presépio,  algumas  imagens  sem 
importância,  umas  grosseiras  pinturas,  devidas  á  curio- 
sidade dos  frades,  que  nunca  conseguiram  passar  alem 
de  dezoito,  isto  é,  menos  dois  do  que  a  regra  permit- 
tia;  e  o  sepulchro  raso  do  doador,  segundo  se  lê  no  con- 
ceituoso  epitapbio,  que  começa: 


DOM-VIVCS  NON  MORTUUS 
EáTAT  NON  JACET 
D.  JOANNES  DE  MELLO 
CONIMfiaiCBNSIS  EPIáCOPUS.... 


* 
#         # 


Formada  novamente  a  cavalgada,  para  lhe  darmos 
com  esta  denominação  um  tom  mais  aristocrático  do 
que  em  verdade  o  mereciam  os  magros  burritos,  que 
havíamos  trazido  de  Luso,  lá  partimos,  em  alegre  con- 
vívio, por  meio  d'aquelle  emaranhado  labyrintho  de  ca- 
minhos e  ladeiras,  passando  pelo  Pretório,  Calvário  e 
outros  pontos  notáveis,  até  ao  ápice  da  montanha,  a  me- 
morável e  decantada  Cruz  Alta. 


90  NOTAS  A  LÁPIS 


Para  seguirmos  um  caminho,  que  mais  cedo  dos  fi- 
zesse chegar  ao  ponto  desejado,  era  forçoso  caminhar  a 
pé,  levando  os  burros  de  rédea,  e  marinhar  serra  acima 
por  um  estreito  e  alcantilado  carreiro. 

Uma  senhora  porém  quiz  correr  o  risco  da  ascenção, 
cavalgando  o  paciente  animal,  que,  em  certo  lugar,  es- 
candalisado  pela  falta  de  regalias,  concedidas  aos  seus 
companheiros,  achou  conveniente  o  atirar  comsigo  ao 
chão,  de  modo  que  a  corajosa  amazona  lá  foi  rolando 
pelo  declive,  na  distancia  de  alguns  metros,  até  que  uma 
espessa  moita  de  arbustos  a  deteve  e  amparou. 

A  anciedade  pelos  resultados  da  desastrada  queda 
tornou-se  geral. 

Alem  de  um  ligeiro  susto  porém  e  da  picada  de  uns 
espinhos  na  mão  direita,  nada  mais  soffrera,  por  um 
feliz  acaso,  a  nossa  viajante,  que  apesar  d'isso  não  quiz 
arriscar-se,  e  com  razão,  a  uma  nova  aventura. 

Abraçado  á  Cruz  Alta,  dentro  em  pouco,  podemos 
então  contemplar  toda  a  magestade  d'aquelle  mundo 
novo,  que  outra  cousa  se  não  poderá  chamar  ao  vastís- 
simo horisonte,  que  de  lá  se  disfructa,  em  surpreza  ma- 
gica. 

Tudo  grande!  tudo  admirável!  tudo  deslumbrante! 

Por  cima. . .  a  immensidade  do  ceu,  inundado  de  luz, 
abobada  resplendente  de.  brilho  e  aromas;  por  baixo.  . . 
ondulações  frementes  a  cadenciar  fantasias  da  aragem 
e  musicas  de  pássaros  na  ramaria  dos  altivos  cedros  e 
da  infinidade  de  arvores,  que,  povoando  a  extensa  malta, 
sobem,  descem,  agacham-se  como  pequenos  arbustos 
alindados  á  tbesoura,  e  formam  no  conjuncto  um  mas- 
siço  ondeante  de  graça  e  verdura,  com  os  variados  cam- 
biantes de  um  riquíssimo  colorido,  em  que  figuram 
todos  os  tons  da  esmeralda,  a  que  nada  falta  nos  toques 
de  luz  e  sombras;  por  diante. . .  uns  longes  de  fantástico 
effeito,  um  panorama,  que  a  vista  abraça  até  se  perder 
na  bordadura  do  Oceano,  fila  reluzente  e  extensa,  posta 
alli  como  que  a  servir  de  linha  de  demarcação,  ou  mol- 
dura de  quadro  tão  bello  como  enorme;  á  roda  de  nós 


MO  BUSftàGO  91 


finalmente. . .  a  vastidão  dos  campos,  semeados  de  al- 
deias, de  cidades,  cerros  e  montanhas,  que  n'uma  ex- 
tensão de  Coimbra  a  Lamego  e  do  Porto  a  Braga,  nos 
parecem  simples  saliências  de  um  brinquedo  de  fa- 
das. 

Ó  Poetas  devaneadores,  que  alli  tendes  confundido 
com  a  viração  da  tarde  os  sons  dos  vossos  cantares, 
quem  poderá  fazer  reflectir  nos  corações  d'este  povo 
indolente  o  ecco  das  vossas  palavras  e  a  verdade  dos 
vossos  sentimentos?! 

Phenix  renascida  das  cinzas  de  um  desleixo  tradicio- 
nal, que  lugar  de  delicias  não  seria  então  aquelle,  quando 
os  vossos  desejos  podessem  converter  em  instituição 
nacional  a  verdadeira  educação  artística,  que  nos  ensina 
a  ter  bom  gosto  e  o  sentimento  do  bello! 

# 
*      * 

Desçamos  do  formoso  ideal,  que  a  palavra  não  pode 
traduzir,  deixemos  n'uma  pedra,  no  tronco  de  uma  ar- 
vore as  iniciaes  do  nosso  nome,  como  obscuro  symbolo 
de  veneração,  e  volvamos  ao  prosaismo  do  mundo,  isto 
è,  aquillo  que  de  mais  triste  elle  encerra  ainda...  a 
commemoração  de  uma  batalha. 

Uma  batalha  I . .  .Que  forte  irrisão  para  a  solemnidade 
d'aquelle  sacrosanto  tabernáculo  de  poesia ! 

Em  frente  da  porta  de  Sulla,  eleva-se  a  pyramide 
quadrangular,  sobranceira  ao  grande  declive,  onde  se 
feriu  a  maior  parte  da  acção,  pelejada  em  27  de  setem- 
bro de  1810,  entre  os  exércitos  francez,  ás  ordens  de 
Massena,  e  anglo-luso,  sob  o  mando  de  Wellington  — 
monumento  glorioso,  não  pelo  que  vale,  mas  sim  e  uni- 
camente pelos  brios,  que  commemora  e  a  que  não  pode 
ser  indiffe rente  quem  tenha  em  algum  valor  a  terra,  que 
lhe  deu  o  berço. 

Como  parle  quasi  integrante  do  monumento,  comme- 
morativo  da  batalha  do  Bussaco,  não  podiamos  deixar 


92  MOTAS  A  LÁPIS 


de  visitar  a  capella  do  Encarnadouro,  que  servia  de 
hospital  de  sangue,  durante  a  refrega. 

Eslava  em  obras,  por  ordem  do  governo,  e  ainda  bem, 
para  que  esse  outro  monumento  histórico,  onde,  em 
prol  da  pátria,  se  curtiram  tantas  dores,  e  se  Soaram 
tantas  vidas,  não  fosse  amanhã  um  monte  de  ruinas. 

Vimos  lá  algumas  gravuras  de  origem  ingleza  com  os 
planos  e  acção  da  batalha,  um  bello  lavatório,  formado 
por  uma  concha  de  seis  rebordos,  assente  sobre  uma 
elegante  columna  da  fundição  de  canhões  de  Lisboa, 
tendo  a  data  de  1875,  e  uns  paramentos  antigos  de 
riquissimo  bordado  a  seda,  pertencentes  ao  collegio  dos 
Nobres,  segundo  nos  disseram. 

Ás  quatro  horas  e  meia  parávamos  na  fonte  de  S. 
Silvestre,  á  espera  do  jantar,  que  não  poude  ser  ser- 
vido, porque  a  mesa  estava  occupada  por  duas  senho- 
ras, que,  como  nós,  haviam  escolhido  aquélle  local. 

Dirigimos-nos  então  á  fonte  do  Carregal,  onde  ficá- 
mos convencidos  de  que  não  perdêramos  na  troca. 

Foi  uma  festa  intima,  animada,  cheia  de  sorrisos  e 
de  alegrias  aquelle  jantar,  em  plena  flora  do  Bussaço. 

Nem  o  mais  luxuoso  salão  seria  preferível  ás  opu- 
lências da  vegetação,  que  nos  cercava,  nem  a  melhor 
orcbestra  do  mundo  chegaria  a  ter  para  nós  mais  en- 
cantos do  que  o  rumorejar  da  folhagem. 

A  saúde  final  entoaram-na  os  homens,  no  meio  da 
Marselbeza,  que  os  cedros  ouviram  escandalisados. 

Alrevemos-nos  a  fazer  uma  observação,  recordando- 
nos  talvez  das  scenas  sanguinolentas  de  1810. 

— Pois,  meu  amigo  —  respondeu-nos  um  dos  com- 
mensaes,  mancebo  das  mais  avançadas  ideas  democrá- 
ticas —  quem  ouviu  o  tinir  das  espadas,  o  estampido 
da  artilberia  e  os  gritos  dos  feridos,  em  uma  batalha, 
como  foi  essa,  não  deve  estranhar  as  coplas  do  hymno 
patriótico  de  um  grande  povo. 

— Hymno  homicida,  se  me  permitte— ajuntou  a  medo 
outro  companheiro  —  hymno,  a  cujos  sons  teem  caido 
por  terra  muitas  cabeças  decepadas. 


MO  BD88AGO  93 


—  Cabeças  de  tyranos,  que  obstruíam  a  passagem 
para  a  conquista  da  liberdade,  e  que. . . 

Foi  preciso  deitar  agua  na  fervura. da  discussão,  que 
ia  começar :  o  que  se  conseguiu  facilmente  pela  conti- 
nuação do  bymno  em  questão. 

# 
#      # 

Ao  cair  da  noite,  transpúnhamos  a  ultima  porta  da 
malta,  em  direcção  a  Luso,  despedindo-nos  saudosos 
d'aquelle  formoso  lugar,  onde  passáramos  um  excel- 
lente  dia,  quando  uma  das  senhoras,  a  mesma,  que  fora 
mal  succedida  pela  queda  do  burro,  na  ascenção  á  Cruz 
Alta,  levou  a  mão  ao  peito,  e  deu  por  falta  de  um  ob- 
jecto de  valor. 

Era  um  mimoso  alfinete  de  ouro  e  platina,  todo  era* 
vejado  de  pérolas,  cuja  perda  significava  a  única  som- 
bra, que  vinha  projectar-se  na  limpidez  do  nosso  con- 
tentamento. 

Parámos,  e  reunimos  conselho. 

A  senhora  afirmava  que  ao  jantar  ainda  conservava 
no  peito  o  objecto  perdido. 

A'quella  hora  porém  seriam  baldados  todos  os  passos, 
que  se  dessem  para  rehavel-o. 

De  volta  ao  hotel,  procurou-se  um  homem  de  con- 
fiança, que,  mediante  boa  espórtula,  na  madrugada  se- 
guinte, fosse  á  procura  do  objecto,  não  tanto  pelo  seu 
valor,  que  não  era  pequeno,  como  pela  sua  estimativa, 
que  era  maior. 

Baldado  empenho. 

Apezar  da  laseira  dos  burros,  que  nos  alugaram,  e 
que  não  nos  deram  provas  de  grande  abundância  de 
recursos,  não  appareceu  um  homem,  que  quizesse  aven- 
turasse ao  ganho  promettido. 

Tivemos  pois  occasião  de  felicitar  aquella  farta  gente, 
visto  que  a  magreza  não  passava  das  alimárias. 

Quando  nos  deitámos,  a  prostração  era  geral. 


94  NOTAS  A  LÁPIS 


Ápezar  d'isso,  ás  4  horas  e  meia  da  manhã,  o  nosso 
obsequioso  amigo  Rodrigues  da  Silva  e  dós  seguíamos 
caminho  de  Bussaco,  em  exploração,  cujo  bom  successo 
não  esperávamos. 

E  com  razão.  Achar  uma  jóia  de  insignificante  vo- 
lume, entre  a  folhagem  secca,  gravetos,  fetos  e  sargaços 
das  muitas  ruas  e  desvios  da  grande  malta  —  cremos 
que  era  mais  ainda  do  que  procurar,  e  achar  agulha  em 
palheiro. 

Caminhávamos  a  passo,  tendo  combinado  a  divisão 
do  terreno  a  meio,  tomando  cada  um  a  sua  parte,  em 
que  ia  filando  a  vista. 

Não  tardou  porém  quo  os  objectos  se  nos  confundis- 
sem diante  dos  olhos  fatigados. 

Parámos  a  descançar;  e  por  bem  pagos  nos  demos, 
quando  de  uma  imminencia,  de  que  nos  deslembrámos, 
assistimos  ao  brilhante  espectáculo  do  romper  do  sol. 
por  meio  do  noveiro,  que  se  desenrolava  do  cume  do 
arvoredo,  em  novellos  graciosos  e  collossaes,  de  uma 
brancura  diáfana  e  palpitante,  difficil  de  imitar. 

Um  pouco  acima  da  casa  de  Cai  faz,  tiveram  um  termo 
feliz  as  nossas  pesquizas,  quando  desesperávamos  já  do 
seu  bom  êxito. 

Um  monosylabo,  um  hal  de  consoladora  suspreza  foi 
a  única  exclamação,  com  que  saudámos  o  appareci- 
mento  do  alfinete,  um  milagre,  deixem-nos  dizer  assim. 

Satisfeitos  voltámos,  em  direcção  á  Fonte  Fria,  onde 
nos  refrescámos  convenientemente,  bebendo  e  lavando 
o  rosto. 

Chegámos  ao  hotel,  onde  recebemos  as  felicitações, 
que  o  caso  pedia,  quando  os  nossos  companheiros  se 
dispunham  a  almoçar  ligeiramente...  uma  simples  chá- 
vena de  café  com  leite. 

A  involuntária  digressão  abriu-nos  o  appetite. 

Nós,  os  dois  exploradores,  reclamámos  um  bife.  O 
exemplo  generalisou-se;  e  o  café  transformou- se  em  ex- 
cellentes  bifes,  a  que  todos  os  companheiros  fizeram  as 
honras  devidas,  apesar  da  hora  matinal. 


MO  BUSSACO 


* 
*         * 


Ás  8  horas  e  um  quarto,  estávamos  a  caminho,  e,  em 
pouco,  atravessávamos  de  novo  os  excellentes  e  appe- 
titosos  vinhedos  da  Bairrada,  para  acudir  a  um  gracio- 
so convite,  a  uns  27  kilometros  de  distancia. 

Na  Mealhada,  afastamos-nos  da  estrada  de  Coimbra, 
formando  um  angulo  recto  até  á  Cordinha,  e  d'alli  a 
Cantanhede,  seguindo  entre  estas  duas  povoações  por 
uma  deliciosa  estrada,  bordada  de  álamos  e  parreiraes, 
uma  das  mais  encantadoras  estradas,  que  temos  visto. 

Era  domingo...  havia  grande  movimento  de  povo. 
em  direcção  ás  egrejas. 

Nas  ruas  notava-se  um  certo  signal  de  festa. 

Em  Cordinha,  saiu-nos  ao  encontro  a  característica 
philarmonica  do  lugar,  seguida  do  rapazio,  em  crepi- 
tante alfazarra...  um  zabumba,  um  pifano  e  a  com- 
petente caixa  de  rufo. . .  três  rapagões,  que  imprimiam 
aos  respectivos  instrumentos  toda  a  força  de  uns  pul- 
mões mais  valentes  que  os  de  um  touro. 

O  do  pifano  levava  ás  costas  uma  gaita  de  folies,  que 
provavelmente  servia  para  os  trechos  mais  amaneirados 
d'aquelle  concerto  infernal,  a  que  as  possantes  bestas 
da  diligencia  tiveram  a  valentia  bondosa  de  nos  arran- 
car sem  demora. 

A's  11  menos  um  quarto,  apeiavamos-nos  á  porta  do 
parocbo  das  Febres,  o  doctor  Nazaretb,  um  mancebo, 
cuja  aptidão  está  requerendo  uma  collocação  mais  di- 
gna dos  seus  merecimentos;  um  notabilissimo  exemplar 
do  que  deve  ser  o  padre  moderno,  expurgado  inteira- 
mente de  preconceitos  retrógrados,  um  cavalheiro,  a 
quem  as  maneiras  fidalgas  do  homem  de  sala,  os  co- 
nhecimentos geraes  das  artes  e  sciencias  ds  nosso  sé- 
culo, a  fina  jovialidade  de  uma  aprimorada  educação 
conferem  um  caracter  distincto  e  único. 

Um  rapaz  adorável. 


96  NOTAS  A  LAMS 


A  sua  casa,  collocada  ao  pé  da  egreja,  è  uma  habi- 
tação alegre,  onde  ha  muito  ar  e  muita  luz,  um  piano 
e  bons  livros,  tendo  ao  fundo  um  pomar,  onde  se  en- 
contram flores  e  fructos,  e  no  meio  um  pateo  para  ca- 
poeira e  arrecadações;  uma  verdadeira  abbadia  moder- 
na, confortável,  sem  excessos  de  ostentação;  com  moda, 
sem  demasias  de  qualquer  género. 

Acompanhava-nos  o  nosso  amigo,  já  citado,  um  in- 
dustrial, seu  irmão  e  cavalheiro  como  elle,  e  as  suas 
duas  irmãs,  que  se  entregaram  desde  logo  a  todas  as 
funcções  domesticas,  destinadas  a  obsequiar  os  hospe- 
des, de  um  modo,  de  que  nunca  nos  poderemos  olvi- 
dar. 

As  horas,  que  lá  passámos,  a  que  não  faltaram  um 
trecho  de  boa  leitura,  uns  toques  de  piano,  recitações, 
dansa  e  flores,  terminando  tudo  isto  com  o  melhor  jan- 
tar, o  jantar  mais  portuguez,  a  que  temos  assistido  — 
foram  horas  fugitivas,  que  boje  nos  apraz  recordar, 
como  momentos  de  uma  felicidade  sem  nuvens» 

Da  localidade  pouco  ha  que  dizer;  é  pobre  e  feia. 

O  único  característico  mais  de  notar  encerra-se  no 
traje  invariável,  que  vimos  ás  mulheres  e  ás  creanças... 
um  mantéu,  que  lhes  desce  da  cabeça,  e  um  chapéu  á 
serrana,  ambos  mais  vistosos  e  amaneirados  do  que  a 
capucha  de  burel  e  o  chapéu  dos  pastores  da  Beira. 

Com  magua,  não  podemos  acceder  ás  instancias  do 
nosso  amabilissimo  doctor,  que  pedia  alguns  dias  de 
demora. 


Pouco  depois  das  sete  horas  da  tarde,  seguíamos  pela 
estrada  de  Cantanhede;  deixámos  alli  a  da  Mealhada,  e 
tomámos  a  de  Coimbra,  passando  por  Ançã,  lugarejo 
onde  ninguém  poderá  imitar  o  canto  do  galo,  sem  le- 
var uma  boa  sova  de  pau,  preconceito,  de  que  o  cochei- 
ro da  diligencia  nos  não  soube  explicar  a  origem. 

Era  noite  fechada. 


T 


mo  Bosaàoo    .  97 

As  senhoras  e  as  creanças  iam  no  interior  do  vehica- 
lo;  nós,  os  homens,  ao  ar  livre. 

Os  nossos  dois  companheiros  haviam  emmudecido, 
logo  ao  anoitecer;  cabeceavam  de  somno,  bamboando 
o  corpo  a  cada  solavanco  do  carro. 

Nós,  ao  lado  do  cocheiro»  ouviamos-lhe  orna  longa 
historia  de  broxas,  cortada  a  mçio  em  Geria,  para  be- 
bermos agua,  e  continuada  até  ás  portas  de  Coimbra, 
onde  chegámos  ás  10  horas,  depois  de  um  precurso  de 
outros  27  kilometros. 


MOTAS  A  LÁPIS 


POMBEIRO 


Ainda  o  coração.  —  Erros  de  corographia 
e  historia.  —  Tradições. 


No  começo  das  nossas  notas,  dissemos  que  o  movei 
principal,  que  nos  impellira  a  sair  de  Lisboa,  era,  após 
uma  longa  e  entranhada  saudade,  ver,  palpar  as  arvo- 
res, os  campos  e  os  rios,  por  onde  nos  correra  a  infân- 
cia, os  lugares  e  as  terras,  onde  nos  haviam  sorrido, 
ainda  que  pálida  e  tristemente,  os  primeiros  alvores  da 
mocidade.      * 

E  com  rasâo. 

Apesar  do  nosso  Vieira  considerar  a  terra  como  pá- 
tria das  dores,  e  de  bem  dolorosa  nos  ter  sido  aquella, 
que  nos  viu  nascer,  ao  lado  das  nossas  mais  bem  cui- 
dadas e  santas  aspirações,  andou  sempre  o  ardentíssimo 
desejo  de  ao  menos  uma  vez  na  vida,  tornar  a  ver  a 
singela  habitação,  onde  a  imaginação  nos  collocava  ao 
lado  de  um  vulto,  que  para  nós  encerrava  a  plena  bea- 
tificação dos  entes  predistinados  para  o  bem,  uma  ver- 
dadeira creação  evangélica,  a  figura  serena  e  ridente  de 
uma  velhinha,  duas  vezes  mãe,  que  nos  fora  arrimo  e 
consolação,  e  que,  ainda  mal  para  os  nossos  sentimen- 
tos, jazia  de  ha  muito  nas  profundezas  da  sepultura. 


P0MBE1R0  99 

£  quem  dos  diz  a  nós  que  não  era  essa  mesma  sepul- 
tara que  dos  chamava  ainda,  com  as  vozes  eloquentes 
e  irresistíveis  de  uma  gratidão,  que  só  terminará  com 
o  ultimo  alento  da  nossa  obscura  vida? 

— Tirem-nos  o  coração,  e  nós  seremos  os  seres  da  crea- 
ção  mais  ditosos  e  mais  completos— tem  dito  muita  gente. 

Pode  ser.  Mas. . .  onde  ha  por  abi  homem  que  queira 
trocar  a  sua  vida  de  sentimento  pela  vida  de  esterilidade, 
que  aos  que  chamámos  desalmados  lhes  forma  o  cen- 
tro, onde  gravitam  ? 

O  coração,  se  é  o  foco  das  paixões,  que  muitas  ve- 
zes nos  entravam  o  carro  da  ventura,  e  nos  despenham 
no  declive  das  desgraças  irremediáveis,  também  é  o  la- 
boratório de  todas  as  virtudes,  que  conquistam  para 
muita  gente  a  bondade,  a  rectidão  e  todas  as  circums- 
tancias  de  generosidade,  adstrictas  a  esses  predicados. 

Toda  a  nossa  indole,  todas  as  nossas  inclinações  obe- 
decem ao  coração. 

Quem  pois  o  não  tiver  inteiramente  perdido,  ou  esque- 
cido de  certas  obrigações  nativas,  ha-de,  sejam  quaes  fo- 
rem as  occupações  e  as  distancias,  a  que  estiver  ligado, 
voltar  uma  e  muitas  vezes  o  sentimento  para  as  scenas 
dos  seus  primeiros  annos,  para  os  lugares  do  seu  nasci- 
mento, por  mais  pobres  e  humildes,  que  lhes  pareçam. 

Obedecendo  a  esse  pendor  natural,  foi  que  nós,  na 
bella  tarde  de  3  de  julho  de  1880,  nos  dirigimos  por 
montes  e  despenhadeiros,  cuja  viação  se  pode  chamar 
um  verdadeiro  caminho  de  cabras,  a  Po  mb  eiró,  cabeça 
da  freguezia  do  mesmo  nome  e  centro  de  varias  aldeo- 
las, o  berço  do  nosso  obscuro  nascimento,  uma  pobre 
e  decadente  povoação,  pittorescamenle  erguida  na  extre- 
ma saliência  de  uma  serra,  que  forma  com  outras  um 
curioso  ouriçado  de  montanhas  convergentes,  principia- 
das na  serrania  da  Estrella;  região  de  um  accidentado 
excepcional,  onde  diíficilmente  se  poderá  encontrar  um 
kilometro  de  planura,  desde  a  villa  de  Góes  até  ao  rio 
Alva,  que  lhe  passa  a  menos  de  dois  kilometros  de  dis- 
tancia. 


100  NOTAS  A  LÁPIS 


Pombeiro  i 

A  não  ser  pela  antiga  casa  dos  condes  (Teste  nome 
e  por  um  ou  outro  raappa  corograpbico,  que  o  note  a 
E.  de  Coimbra,  a  uns  30  kilometros,  na  Beira,  e  boje 
Douro  —  quem  poderá  conhecer  esta  pobre  terra,  tão 
decaída  do  seu  primitivo  ser,  apesar  das  inexactidões 
de  alguns  escriptores,  que  teimam  em  tornal-a  aquillo, 
que  ella  não  è,  ba  tantissimos  annos? 

O  sr.  D.  José  de  Lacerda,  por  exemplo,  cbama-lbe 
antiga  villa,  comarca  de  Louzada  e  concelho  de  Felguei- 
ras, confundindo-a  imperdoavelmente  com  o  Pombeiro 
minhoto;  e  mais  modernamente  o  sr.  Pinho  Leal  conti- 
nua a  denominal-a  villa,  comarca  e  concelho,  quando 
não  passa  de  uma  pequeníssima  aldéa,  na  comarca  e 
concelho  de  Arganil  e  distrícto  de  Coimbra. 

Que  no  passado  foi  uma  villa,  cabeça  do  concelho  do 
seu  nome,  com  comarca  e  justiças  próprias,  pelo  foral 
concedido  por  D.  Manuel,  a  10  de  novembro  de  1513, 
como  também  nota  o  minucioso  e  babilissimo  autor  do 
Portugal  antigo  e  moderno,  não  ha  duvida  alguma; 
mas  do  que  foi  essa  terra  para  o  que  é  hoje  ha  uma 
differença  tamanha,  que  ninguém  que  a  conheça  deixará 
de  encarar  como  inexactidão  irrisória  a  conservação 
d'esses  titulos  nobiliários. 

* 
#      * 

Pelo  que  respeita  ao  pouco  que  se  sabe  da  historia 
da  sua  fundação,  ha  versões  diversas,  algumas  das  quaes 
se  confundem  e  misturam  com  as  do  outro  Pombeiro 
de  Riba-Vizella,  no  Minho,  a  uns  11  kilometros  de  Gui- 
marães. 

Uns  dizem-na  fundação  dos  romanos,  sob  o  nome  de 
cAufragia»,  «Auírazia»,  ou  cEufrazia»,  de  que  era  se- 


POMBHRO  101 

nhor  Liciaoo,  um  dos  companheiros  do  martyrio  de 
Santa  Quitéria. 

Manuel  de  Faria  e  Souza,  no  Epitome  das  historias 
portuguezas,  e  diversos  autores,  ou  «graves»  autores, 
como  lhes  chama  o  padre  Carvalho,  na  sua  Corographia, 
querem  que  Pombeiro  fosse  edificação  de  uns  povos, 
entrados  na  Lusitânia,  com  o  nome  de  tcolumbos»,  a 
quem  attribuem  também  a  fundação  de  Coimbra. 

Outros  cbamam-lbe  a  cidade  «Columbariai  dos  roma- 
nos. 

E  finalmente  o  reitor  de  Farinha  Podre,  o  padre  Pe- 
dro de  Abreu,  na  Vida  de  Santa  Quitéria,  em  1651, 
teia  para  si  que  Pombeiro  foi  a  cidade  «Aufragia». 

Ora  muito  bem. 

A  primeira  versão  é  abertamente  semelhante  ao  que 
se  refere  do  Pombeiro  minhoto.  A  lenda,  contada,  por 
frei  Bento  de  Ascensão,  e  resumida  pelo  sr.  Pinho  Leal, 
dá  Santa  Quitéria  a  fugir  de  Braga,  indo  ter  ao  «vale 
de  Aufraziai,  cTonde  passou  ao  monte  de  Pombeiro, 
que  era  perto,  lugar  do  martyrio  e  domínio  do  tal  «Len- 
cianoi,  «Lencivam»  ou  «Luciano»,  apóstata  cbristão,  e 
depois  novamente  convertido. 

A  segunda  está  no  mesmo  caso,  porque  no  escríplo 
d'este  ultimo  autor  esse  monte  do  Minho  também  9e 
chama  «columbino» ;  havendo  ainda  por  cima  de  tudo 
um  dos  guardas,  que  fizeram  sentinella  á  masmorra  da 
santa  com  o  nome  de  «columbano». 

N 'outra  parte  ha  uma  palpável  contradição  com  esta 
versão,  pois  do  que  se  lê  resulta  a  conclusão  de  que  os 
columbos  não  eram  invasores  da  Lusitânia  e  sim  povos 
romanos,  já  estabelecidos  e  simples  exploradores  de 
minas  de  chumbo. 

O  próprio  padre  João  Baptista  de  Castro,  no  seu 
Mappa  de  Portugal  antigo  e  moderno,  impresso  em  1763, 
na  resenha,  que  faz  dos  primeiros  povoadores,  não  men- 
ciona semelhante  gente;  o  que  è  mais  um  argumento, 
contra  os  que  a  dão  como  raça  distincta  dos  roma- 
nos. 


102  NOTAS  À  LÀHS 


As  duas  ultimas  afirmações  são  meras  variantes  das 
primeiras,  e  ficam  prejudicadas  por  isso  pelo  que  fica 
dito. 

Braz  Garcia  Mascarenhas,  referindo-se  a  Arganil,  que 
demora  a  8  kilometros  de  distancia,  diz  no  seu  Viriato 
Trágico. 

AUi  junto  do  Alva  crystallino 
Esteve  Aufragia  celebre  e  potente, 
E  perto  (Telia,  o  monte  columbino 

ÍHoje  Pombeiro)  o  mostra  claramente : 
)'onde  orando  Quitéria  de  contino, 
El-Rei  d'Aufragia,  bispos  e  outra  gente 
Induziu  ao  martyrio,  que  alcançaram 
N'aquelle  santo  monte,  que  illustraram. 


# 
#       * 


Resumindo  o  que  uns  e  outros  affirmam,  temos  por- 
tanto... três  Aufragias  —  a  primeira  em  Arganil,  a  se- 
gunda um  Pombeiro  da  Beira  e  a  terceira  em  Pombeiro 
de  Riba-Vizella,  no  Minho;  temos...  um  monte  colum- 
bino para  cada  uma  d'estas  povoações,  e...  uma  santa 
Quitéria  para  o  mesmo  uso,  santa,  que  n'este  Pombeiro 
é  venerada,  no  tal  monte,  em  capella  de  arcbitectura 
gotbica,  cTonde  se  disfructa  uma  bella  vista ,  e  n'aquelle, 
no  Pombeiro  da  Beira,  em  outra  capella  mais  simples, 
que  dizem  não  ser  a  primitiva,  no  ápice  de  outro  Aonte, 
que  o  domina,  entre  o  lugarejo,  chamado  «Chapinheirai 
e  a  povoação  do  «Salgueiral,»  de  que  fica  mais  próxi- 
ma, n'uma  altura,  d'onde  egualroente  se  gosa  um  for- 
moso e  extenso  panorama  para  aquém  e  alem  do  rio 
Alva. 

N'este  sitio  ha  uma  feira  annual,  a  i  de  novembro, 
muito  concorrida  pelo  commercio  ambulante  e  mesmo 
pelo  de  Coimbra,  a  que  dá  motivo  a  romaria  á  fes- 
tividade da  santa,  pela  qual  os  povos  circumvisinbos 
teem  a  máxima  veneração. 


POMBUBO  103 

Além  d'isso  temos.  • .  duas  capellas  de  S.  Pedro. 

Uma,  de  que  não  ba  o  minimo  vestígio,  mencionada 
fantasiosamente  pelo  citado  frei  Ascenção,  ao  dizer  que 
a  santa  vivera  algum  tempo  escondida,  nas  immediações 
de  Braga,  junto  á  capella  do  apostolo. 

Outra,  na  dobra  da  serra  opposta  áquella,  em  cujo 
sopé  se  vê  a  actual  ermida  de  S.  Quitéria,  na  serra  do 
«Salgueiral,i  na  Beira,  entre  a  «Cbapinbeirai  e  outro 
lugarejo,  denominado  t Telhada,»  sitio,  onde  existem 
umas  ruinas,  que  a  tradição  popular  attribue  á  capella 
de  S.  Pedro,  ao  pé  da  qual  põe  egualmente  o  martyrio 
da  santa. 

# 
#      # 

O  que  daria  causa  aos  similares,  que  são  meras  sup- 
posições  históricas,  a  que  não  è  estranha  a  lenda  popu- 
lar, cercada  de  estravagancias,  entre  as  duas  terras  do 
mesmo  nome,  mas  tão  distantes  uma  da  outra? 

Rivalidades  entre  os  seus  verdadeiros  fundadores? 

Ninguém  o  sabe,  como  nada  se  pode  saber  das  fon- 
tes já  citadas,  que  se  misturam,  confundem,  e  contra- 
dizem entre  si. 

Quanto  á  lenda,  somente  vem  ao  caso  pelos  lugares, 
a  que  se  refere,  correndo  tudo  o  mais  por  conta  dos 
santoraes,  que  chegam  até  a  collocar  a  sua  heroina  em 
três  partes,  como  diversos  autores  fazem  á  Aufragia. 

E  se  não  vejamos. 

O  padre  Abreu  e  o  poeta  Garcia  Mascarenhas  assi- 
gnalam-lhe  o  lugar  do  martyrio,  em  Pombeiro  da  Bei- 
ra; frei  Ascenção,  na  obra  já  citada  e  José  Pestana  no 
seu  Poema-sacro,  em  Pombeiro  de  Braga ;  e  João  de 
Castro,  a  que  já  também  nos  referimos,  quando  trata 
dos  santos  do  Minho,  dá-a  martyrisada  em  Hespanha, 
na  cidade  de  Toledo,  aos  22  de  maio,  levando  em  suas 
mãos  degolada  a  própria  cabeça  por  espaço  de  duas  lé- 
guas até  Marguelizza,  onde  na  ermida  de  S.  Pedro  (já 
temos  egualmente  três)  foi  sepultada  e  se  conservam 


iOi  MOTAS  A  LAPiS 


com  grande  veneração  suas  relíquias.  E  para  isto  cita  o 
Jardim  de  Portugal,  de  Bivar,  a  pag.  37. 

Ainda  mais. 

Formando  o  centro  de  um  angulo  aberto  com  Pom- 
beiro  e  Aldéa  Nova,  povoações,  que  se  avistam  a  um 
tiro  de  bala,  em  uma  pequena  imminencia,  cercada  de 
soutos  e  terras  cultivadas,  ha  uma  capella  antiga,  cuja 
origem  se  não  conhece,  sob  a  invocação  de  N.  Senhora 
do  Loureiro,  symbolisada  apenas  por  uma  moita  de  ar- 
bustos d'este  nome,  que  lbe  florescem  ao  pé. 

Na  parede,  ao  lado  direito  e  rente  ao  chão,  ba  uma 
pedra  romana,  em  que  já  mal  se  lê  a  seguinte  inscripção: 

Lovesius. . .  Fugi  F.  sibi  et  Boteae  filiae  suae.  Armo- 
rum  XI  F.  C. 

cEsta  obra  mandou  fazer  Lovesio,  filho  de  Apugio, 
para  si  e  sua  filha  Botea  de  onze  annos  de  edade.» 

Pois  bem.  Em  Condeixa  Nova,  ainda  segundo  o  sr. 
Pinto  Leal,  ha  na  torre  da  egreja  matriz  outra  inscri- 
ção romana,  que  diz : 

— Aos  deuzes  manes.  Oticia  e  Portunata,  sua  irmã, 
filhas  de  Félix,  aquella  mãe  e  esta  tia  de  Botea,  lbe  con- 
sagram esta  memoria,  i 

E  em  Braga  existem  também  umas  palavras,  n'uma 
lapide,  que  faliam  da  familia  dos  Lovesios,  cujo  chefe 
foi,  ao  que  parece,  um  patrício  romano. 

Decididamente  o  Pombeiro  primitivo  foi  uma  terra, 
além  de  afortunada,  excepcional,  pois  aos  muitos  pri- 
vilégios, que  lbe  concederam  reis  e  donatários,  juntava 
um  dom  invejável,...  o  dom  da  ubiquidade  para  as 
suas  cousas  e  pessoas. 


Tratando  de  Aufragia,  diz  o  autor  do  t  Portugal  an- 
tigo e  moderno»:— Cidade  antiquíssima  do  Minho,  men- 
cionada nos  «agiologios  e  santoraes»  e  na  ccorographia» 
do  padre  Carvalho. 


FOMBUBO  405 

E  mais  adiante : 

—  Dizem  outros  que  Aufragia  existiu  do  valle  de 
«Adafroia»,  próximo  á  villa  de  Pombeiro,  na  Beira.» 

E  onde  ficam  aquelles,  que  affirmam  qur  a  sua  fun- 
dação se  operou  em  Arganil,  suppondo-se,  como  bem 
diz  o  mesmo  escriptor,  fundação  dos  gallo-celtas,  alguns 
séculos  antes  de  Cbristo? 

— Pelos  fins  do  século  passado  —  continua  o  mesmo 
livro  —  appareceram  nos  montes  próximos  a  Fareja  74 
sepulturas  de  tempos  remotíssimos.» 

cisto  confirma  a  opinião  dos  que  sustentam  que  esta 
cidade  era  no  Minbo  e  não  na  Beira.» 

Pois  em  contraposição  ás  74  sepulturas  de  Fareja, 
temos  nós  a  mencionar  a  tradição  popular,  transmittida 
de  geração  a  geração. 

Pergunte-se  ainda  boje  a  qualquer  aldeão  de  Pom- 
beiro, sujeito  que  nunca  leu  cbronicas,  nem  folheou  ar- 
chivos;  que  não  conhece  Faria  e  Souza,  nem  o  sr.  Pinho 
Leal,  e  com  maior  rasão  nos  não  ba-de  ler  a  nós;  per- 
gunte-se-lhe  pelo  caso,  e  elle  nos  dirá : 

— Homem,  eu  cá  não  sei  muito  bem  dessas  cousas, 
mas.. .  sempre  ouvi  dizer  que  aquelle  valle,  «ao  fundo 
da  encosta,  que  sobe  para  o  t Salgueiral»,  e  se  chama 
hoje  cDifroia»  foi  antigamente  «Aufragia»  e  depois  d'isto 
Adafroia. 

De  tudo  isto  resulta  que  n'estas  excavações  históri- 
cas, que  se  perdem  na  obscuridade  dos  tempos,  de  que 
só  nos  chegaram  noções  infundadas,  não  ha  meio  de 
conciliação  possível. 


106  NOTAS  A  LÁPIS 


II 


Versões  antigas.— Os  Furados.  —  Nobiliarchia.  — 
O  solar  dos  Cunhas. 


Em  referencia  ao  estado  do  solo  e  ás  partes  metáli- 
cas, que  possam  entrar  na  sua  composição,  pouco  nos 
pertence  dizer,  tão  profano  nos  julgámos  no  assumpto; 
quer-nos  parecer  porém  que  a  exploração  das  minas 
de  chumbo,  attríbuida  aos  columbos,  não  passa  de  mera 
invenção,  pois  não  ba  vestígios,  fossos,  excavações,  ou 
depressão  de  terrenos,  que  nos  levem  a  pensar  o  con- 
trario. 

N'esta,  como  nas  outras  partes,  inclinámos-nos  mais 
a  dar  credito  á  tradição  popular  que  diz  chamar-se  co- 
lumbaria  á  cidade  e  columbos  aos  seus  habitantes, 
pela  abundância  e  diversas  castas  de  pombos,  de  que 
eram  insignes  creadores,  vindo  pelos  tempos  adiante  a 
trocar-se  o  alatinado  do  nome  pela  palavra  «Pombeiro», 
na  verdade  mais  portugueza,  segundo  a  força,  que  lbè 
davam  então  de  significar  —  viveiro  de  pombos. 

Indubitavelmente  é  isto  mais  racional,  attendendo  á 
origem  romana  do  termo,  porque,  para  designar  minas 
de  chumbo,  deveria  a  cidade  chamar-se  plumbaria  ou 
polumbaria,  se  quizerem,  e  não  columbaria. 

E  não  seriam  os  habitantes  (Testes  sitios  os  primei- 
ros d'este  nome,  pois,  segundo  Rezende,  houve,  entre 
outros,  uns  povos  ahi  pela  Covilhã,  Castello  Branco  e 
parte  da  serra  de  Estreita,  chamados  plumbarios. 


tOMBHRO  107 


As  próprias  galerias  subterrâneas,  a  que  chamam 
os  Furados,  afastadas  uma  da  outra  pela  distancia  de 
mais  de  dois  kilometros,  abertas  na  rocha  viva  e  no 
sobpè  do  morro  extremo  de  duas  serras,  onde  o  rio 
Alva  forma  pronunciado  cotovello  á  volta  cTellas  —  não 
nos  parecem  obra  casual  de  exploração  mineira,  que 
quasi  sempre  nas  suas  profurações  segue  a  veia  capri- 
chosa da  substancia  procurada,  formando  agora  uma 
curva,  logo  uma  recta,  estreitando-se  n'um  lado,  e  alar- 
gando-se  no  outro. 

E  esse  trabalho  de  pasmosa  dificuldade  descreve  uma 
linha  perfeitamente  recta,  atravez  do  monte,  de  um  lado 
ao  outro  do  rio,  e  mostra  que  obedeceu  a  um  plano, 
que,  a  nosso  vêr,  linha  por  único  fim  o  desvio  de  parte 
das  aguas,  destinadas,  como  motor,  a  um  mechanismo 
qualquer,  porque  as  recebe  de  uma  banda  para  as  lan- 
çar pela  outra,  n'uma  altura  de  uns  seis  metros,  quando 
muito,  numa  queda,  cujo  ruído  se  ouve  a  uma  consi- 
derável distancia. 

As  entradas  estão  perfeitamente  niveladas  com  o  leito 
do  rio,  para  receberem  as  aguas  sem  dificuldade ;  no 
precurso  ha  o  necessário  e  quasi  imperceptível  declive 
para  o  fácil  escoamento;  e  as  saídas  teem  a  altura  coro-' 
petente  para  formarem  catadupa  de  uma  grande  força 
motora. 

Estas  obras  esquecidas  e  desprezadas,  tão  dignas  de 
aproveitamento,  hoje  mais  do  que  nunca,  para  larga  in- 
dustria fabril,  devem-se  aos  romanos,  aos  árabes,  ou 
aos  povos,  que  os  precederam  ? 

Ninguém  nol-o  diz,  como  todos  ignoramos  o  flm  para 
que  foram  destinadas. 

Pode-se  suppor,  ainda  assim,  com  probabilidade  de 
acertar,  attendendo  á  época,  a  que  naturalmente  per- 
tenceram, que  as  famosas  catadupas  serviram  para  lavar 


108  NOTAS  A  LÁPIS 


e  estremar  as  faúlbas  de  ouro,  em  que  as  arêas  do  Alva 
abundaram  sempre. 

A  exploração  aurífera  mereceu  a  mouros  e  romanos 
cuidados  especiaes  e  constantes. 

Os  Furados  de  cima,  que  são  os  mais  amplos,  re- 
cebem tamanha  quantidade  de  agua,  no  próprio  verão, 
que  impossibilita  os  pescadores  de  lhes  sondarem  os 
poços  interiores,  onde  a  sua  avidez  lhes  fantasia  enor- 
mes viveiros  de  peixe. 

Não  ha  pois  memoria  de  que  os  tenham  atravessado 
de  lado  a  lado;  e  é  por  isso  que  a  poesia  popular,  que 
attribue  aos  mouros  a  abertura  desses  curiosíssimos 
túneis,  tem  collocado  lá,  em  mágicos  salões  de  porphiro 
e  diamantes,  as  creações  mais  opulentas  da  grande  famí- 
lia dos  trasgos,  fadas  e  mouras  encantadas,  que,  em 
certos  dias  do  anno,  saem  dos  seus  esplendurosos  es- 
condríjos  para  virem  á  luz  do  sol  estender,  no  dorso 
das  montanhas,  os  seus  mantos  de  pedraria  e  os  seus 
luzentes  novellos  de  oiro. 

Os  Furados  de  baixo  então,  no  estio,  mediante  um 
simples  tapume  de  estevas,  fetos  e  ramos  de  medro- 
nheiro, presos  ás  varas  delgadas  de  um  pinheiro  novo, 
e  alguns  cestos  de  terra  e  areia,  dão  fácil  passagem, 
não  só  aos  pescadores,  como  ao  rapazio,  que  se  diverte 
a  nadar  de  um  lado  e  outro  do  rio,  atravessando  a  pé 
nu  a  extensa  galeria,  em  perfeitas  condições  de  ar  e  luz, 
pelo  meio  de  um  simples  regato,  que  dimana  das  fendas 
do  tapume. 

Por  condição  natural,  que  nos  leva  sempre  a  chorar 
pelo  passado,  quizeramos,  ao  traçar  estas  linhas,  voltar 
ao  tempo  em  que  por  mais  de  uma  vez  fizemos  essa 
travessia,  de  que  tanto  ao  vivo  nos  recordámos  f 

Lá  dentro  è  tudo  regular,  de  alto  a  baixo,  de  um 
lado  o  outro;  uma  depressão  aqui  ou  acolá  só  é  devida 
ao  attrito  das  aguas,  que  alli  passam  ha  séculos  imme- 
moraveis. 

Do  que  fica  dito  deprehende-se  pois  que  os  Furados 
foram  abertos  para  fim  mui  diverso  do  que  se  lhes  at- 


POMSKIBO  109 

tribue;  basta  para  isso  observar  a  sua  posição,  o  cara- 
cter e  egualdade  de  condições  propositalmente  unisonas, 
e  nenhuns  vestígios  de  escavações  mais  á  flor  da  terra 
e  por  tanto  mais  accessiveis  ao  minério,  os  quaes  natu- 
ralmente se  deveriam  encontrar  n'uma  continuada  e 
longa  serie  de  montes  incultos  por  sua  natureza,  fragas 
khmensas,  onde  nunca  bouve  cultura,  que  podesse  apa- 
gar esses  vestígios. 


E'  ainda  um  erro  o  suppor-se  que  no  Pombeiro,  da 
Beira,  nasceu  o  primitivo  solar  dos  condes  do  mesmo 
titulo. 

Tanto  d'este  como  do  Pombeiro,  de  Riba-Vizella,  fo- 
ram donatários  os  Gunbas,  ligados  por  estreito  paren- 
tesco e  por  largos  meios  de  influencia  territorial  e  poli- 
tica, que  dimanam  d 'uma  época  ainda  anterior  á  funda* 
ção  da  monarcbia. 

Procede  esta  família  de  D.  Guterre,  companheiro  do 
conde  D.  Henrique,  que  lhe  fez  merco  da  Povoa  de  Var- 
zim e  de  outras  terras  em  Braga,  Guimarães  e  Barcel- 
los. 

D'este  tronco  ramiScaram-se  nnmerosos  senhorios  e 
morgados,  como  o  de  Pombeiro,  da  Beira,  os  condes  de 
Pontevel,  os  senhores  de  Povolide,  Táboa  e  outros,  em 
Portugal;  e,  em  Gastella,  os  duques  de  Escalona  e  de 
Ossuna,  os  marquezes  de  Vilhena,  os  conde  de  Buen- 
dia  e  outras  casas  grandes,  que  procedem  de  Marlim 
Vasques  da  Gunba  e  de  seu  irmão  Vasques,  que  passa* 
ram  á  Hespanha,  ém  tempos  de  el-rei  D.  Joio  I. 

O  primitivo  brasão  de  familia  é— ura  escudo  em  campo 
de  ouro,  cunhas  de  ferro,  em  azul,  firmadas  e  postas 
em  três  palas.  O  timbre  —  um  meio  grypbo  de  ouro, 
acunhado  de  azul,  com  azas  acunhadas  de  ouro. 

O  ramo  hespanhol  orla  o  escudo  com  24  bandei- 
ras. 


110  NOTAS  A  LÁPIS 


# 
#         # 


Gomo  d'esta,  ha  ainda  hoje  noticias  de  muitas  famí- 
lias, espalhadas  pela  península,  conservando  o  mesmo 
appellido,  o  parentesco  de  eras  remotas  e  a  descendên- 
cia do  mesmo  tronco,  pela  passagem  de  vários  indiví- 
duos de  um  para  outro  paiz,  durante  o  largo  período 
de  invasões  e  guerras. 

Umas  estão  decadentes,  em  Portugal,  e  florescem  em 
Hespanha,  e  vice- versa;  acham-se  outras  completamente 
extinctas  n'um  e  n'outro  lado. 

E  já  que  faltámos  disto  e  da  terra  da  nossa  naturali- 
pade,  permitta-se-nos  citar,  como  em  nota  aparte,  para 
não  ir  mais  longe,  a  familia  do  nosso  apellido  saído  de 
uma  só  origem,  tão  obscuramente  ramificado  hoje  por 
toda  a  Beira,  Lisboa  e  província  do  Maranhão,  no  Bra- 
zil,  e  pertencente  ao  numero  dos  decadentes,  em  Por- 
tugal, e  dos  abastados,  em  Hespanha. 

Gomo  todps  os  apellidos  da  antiga  nobreza,  procede 
este  de  uma  façanha  guerreira,  praticada  por  dois  irmãos, 
que  tomaram  aos  mouros,  ahi  por  720  da  era  christã, 
a  cidade  de  Frias,  junto  ao  rio  Ebro,  na  província  de 
Burgos,  reinando  o  famoso  rei  D,  Pelayo. 

O  ramo  portuguez  vem  de  um  membro  da  familia, 
emigrado,  que  foi  estabelecer-se  em  Gêa,  ao  que  se  diz; 
espaihou-se  especialmente  pelas  duas  Beiras,  e  apesar 
da  sua  nobreza,  a  que  provavelmente  fadaram  os  meios 
da  necessária  abastança,  viveu  sempre  em  Portugal  mais 
ou  menos  obscuro. 

Em  quanto  que  em  Hespanha  ha  os  fidalgos  Yelasco 
e  os  duques  de  Frias  a  attestarem  a  antiguidade  da  fa- 
milia; em  nosso  paiz,  alem  do  resgistro  no  nobiliário  por- 
tuguez e  de  uma  pobreza  franciscana  espalhada  por 
tanta  gente,  resta  apenas  nma  sepultura  rasa  na  egreja 
do  mosteiro  das  freiras  de  Jesus,  capuchas  de  Santa 
Clara,  em  Setúbal,  com  as  armas  geneologicas,  que  são 


POMBBIBO  111 

— em  campo  de  prata  uma  torr*  azul,  acompanhada  de 
dois  leões  de  vermelho,  postos  em  pè  e  virados  para 
ella.  O  pé  da  torre  é  ondeado  de  azul  e  prata ;  a  orla 
vermelha  carregada  de  aspas  de  ouro;  o  timbre  a  torre 
do  escudo. 

Do  meio  das  nossas  escavações  surgiu  casualmente 
esse  esclarecimento  de  linhagem,  a  qne  não  ligámos  im- 
portância que  não  seja  a  da  simples  demonstração  do 
modo  como  se  confundem,  e  ramificam  pela  península 
as  famílias  antigas,  ao  fallarmos  dos  Cunhas. 

As  hierarchias  fidalgas,  por  nobreza  de  sangue,  são 
hoje  elementos  anacbronicos,  que  não  engrandecem  pes- 
soa alguma. 

£  ainda  bem  para  o  nosso  século. 

O  trabalho  honrado  e  perseverante,  as  acções  virtuosas 
e  grandes,  as  lutas  do  espirito,  as  pugnas  da  intelligen* 
cia  —  são  os  verdadeiros  títulos  da  fidalguia  moderna. 

Os  pergaminhos  acumulados  de  uma  dezena  de  ge- 
rações de  fidalgos  rudes,  comilões  ou  preguiçosos  são 
documentos  irrisórios  em  face  da  simples  cartilha  ma- 
ternal de  João  de  Deus. 

Eis  ahi  a  nossa  profissão  de  fé,  para  que  ninguém 
possa  bacorejar  intenções  balofas,  que  não  temos. 

* 
#      # 

Voltando  ao  solar  de  Pombeiro,  cuja  origem  antiguis- 
sima  já  demonstrámos,  è  irrefutável,  ainda  mais  pelo 
que  diremos  em  seguida,  que  á  família  Cunha  perten- 
ceu o  senhorio,  cercado  dos  maiores  privilégios  até  ao 
reinado  de  D.  Affonso  IV,  e  mesmo  dabi  por  diante,  de- 
pois da  alliança  com  os  ascendentes  dos  condes  actuaes. 

No  reinado  d'aquelle  monarcha  e  anno  de  1355,  é 
que  o  domínio  da  villa  passou  para  D.  António  de  Cas- 
telio  Branco,  7.°  senhor  (Teste  nome,  pois  ficando  viuvo 
sem  filhos  de  D.  Izabel  de  Noronha,  filha  do  viso-rei  da 
índia  D.  Gracia  de  Noronha,  casou  com  D.  Maria  de  Bri* 


112  NOTAS  A  LÁPIS 


teyros,  filha  de  Matbeu&da  Ganha,  senhor  de  Pombeiro, 
e  de  sua  mulher  D.  Leonor  Coutinho,  recebendo  em 
dote  o  respectivo  senhorio. 

Três  séculos  mais  tarde,  a  6  de  abril  de  1668,  o  seu 
bisneto  D.  Pedro  de  Gastello  Branco  recebeu  a  nomea- 
ção de  1.°  visconde  e  depois  conde  de  Pombeiro,  rei- 
nando D.  AffoDSO  VI,  de  quem  foi  capitão  da  guarda, 
como  já  o  havia  sido  nos  últimos  annos  D.  João  IV;  o  que 
prova  que  os  Cunhas,  ainda  depois  do  casamento  de  Gas- 
tello Branco,  7.°  senhor  d'este  nome,  por  dois  séculos 
mais,  continuaram  a  ter  a  suprema  influencia  alli  e  em 
varias  partes  do  reino,  por  onde  estavam  espalhados. 

No  centro  de  um  terrapleno,  sobranceiro  á  villa  e  de- 
nominado o  cPaçoi,  a  melhor  posição  da  localidade, 
convertido  hoje  em  um  bello  campo  de  milho,  conhece- 
mos ainda  umas  béllas  ruínas,  compostas  de  dois  arcos 
da  mais  perfeita  cantaria  e  duas  altissimas  paredes  de 
tão  robusta  composição  que  foram,  durante  séculos,  res- 
peitadas pelo  tempo,  e  só  cairam,  ha  meia  dúzia  de 
annos,  aos  golpes  da  picareta  agrícola,  depois  de  um 
trabalho  de  grandíssimos  esforços,  ruinas,  que  se  dizia 
terem  feito  parte  da  habitação  feudal  dos  Cunhas. 

Junto  d'aquellas  paredes  venerandas,  a  cuja  sombra 
occorreram  os  nossos  primeiros  brinquedos,  por  anda- 
rem na  posse  da  nossa  família,  ligadas  a  propriedades 
foreiras,  que  eram  os  pequenos  restos  do  domínio  d'essa 
casa  titular,  havia  uma  eira,  que  servia  para  estendal  de 
todos  os  renovos,  e  que  também  já  não  existe. 

D'essas  memorias  resta  apenas  uma  pequena  porta, 
em  arco,  no  extremo  de  um  muro  divisório,  chamada 
a  porta  do  jardim,  por  se  dizer  que  o  espaçoso  so- 
calco, que  deitava  para  a  rua,  e  desappareceo  ha  pouco, 
cortado  pela  estrada  moderna,  e  estava  ligado  ao  terra* 
pleno— fora  o  sitio  ajardinado  do  palácio. 

Essa  porta  e  esse  muro,  expostos  ha  tanto  ao  rigor 
dos  séculos,  mostram  ainda  a  robustez  da  sua  construo 
ção,  cujo  betume  a  tradição  julga  ter  sido  amassado 
com  azeite. 


POMBBBO  113 


* 

# 


Quem  quizer  porém  certificar-se  da  influencia  exer- 
cida pelos  primeiros  donatários  vá  á  egreja  parochial,  e 
entre  na  capella-mór. 

Ao  lado  direito  de  quem  sobe,  a  meio  de  um  arco, 
mettido  na  parede,  está  o  único  monumento  respeitado 
e  conservado  até  boje,  como  testemunho  da  nobliarchia 
pombeirense. 

E'  um  tumulo,  sobre  o  qual  repousa  a  figura,  em 
tamanho  natural,  de  um  homem  vestido  de  guerreiro, 
com  sua  cota  de  malha,  tendo  na  base  quatro  leões, 
em  que  descança,  e  na  face  principal,  por  cima  d'elles, 
uma  figura  de  azas  abertas,  em  meio  relevo,  segurando 
nas  mãos  um  pergaminho,  onde  se  lê  o  seguinte : 


aqui  jaz  o  muito  esforçado  e  estimado 

mathkus  da  cunha,  senhor  que  foi 

d'esta  yilla  e  tebra  de  pombeiro;  o  qual  nosso 

senhor  tenha  em  sua  santa  gloria.  amen. 


Aos  lados  veem-se  as  respectivas  armas,  que  são : 
—um  escudo,  dividido  verticalmente  a  meio,  tendo  na 
metade  direita  nove  cunhas,  dispostas  a  três  e  três ;  e 
na  esquerda,  dividida  horisontalmente,  quatro  escudetes 
com  as  cinco  chagas  e  quatro  flores  de  liz. 

Armas  eguaes,  que  os  Gastellos  Branco  não  adopta- 
ram, como  condes  de  Pombeiro,  pois  as  d'estes  são : 
— em  campo  azul  um  leão  de  ouro,  rompente,  armado 
de  purpura  —  ainda  nos  primeiros  annos  d'este  século 
figuravam  no  pelourinho,  cuja  demolição  è  a  única,  que 
julgámos  bem  feita,  e  se. conservam  hoje  no  frontispício 
de  uma  capella,  edificada  ao  fundo  do  largo  do  mesmo 
nome,  e  consagrada  a  Santo  António,  em  1852,  por  um 
voto  do  nosso  primeiro  mestre  e  respeitável  amigo,  o 
sr.  António  Dias  Ferreira,  a  quem  se  deve  pois  a  guarda 
d'aquella  antiquíssima  memoria. 

8 


114  NOTAS  A  LÁPIS 


Matheus  da  Canha,  que  viveu  sempre  tranquilamente 
no  solar  de  Pombeiro,  da  Beira,  foi  contemporâneo  do 
seu  parente  João  Lourenço  da  Cunha,  domiciliado  na 
corte,  senhor  de  Pombeiro,  de  Riba-Vizella,  e  infortu- 
nado marido  da  tristemente  celebre  D.  Leonor  Telles, 
a  barregã,  que  depois  foi  mulher  de  D.  Fernando. 

Os  bens  de  Joio  Lourenço,  que  fugira  para  Çastella 
em  procura  de  uma  vingança,  foram-lbe  confiscados  por 
carta  de  i  de  julho  de  1379,  e  dados  mais  tarde  a  um 
Fernando  Affonso  de  Albuquerque,  por  seus  serviços. 

Restituído  á  pátria,  reinando  D.  João  I,  o  marido  de 
Leonor  Telles  entrou  de  novo  na  posse  de  todas  as  suas 
terras,  e  morreu  ao  serviço  do  Mestre  de  Aviz. 

Que  ainda  depois  de  Matheus  da  Cunha  ter  dado  á 
filha  em  dote  o  senhorio  da  villa,  esta  família  continuou 
a  ter  larguíssima  influencia,  durante  séculos,  provam-no 
as  memorias  que  nos  restam,  e  todas  lhe  dizem  res- 
peito, como  são.  • .  essas  armas,  o  tumulo  citado  e  uma 
campa  rasa,  que  foi  posta  junto  d'elle,  dois  séculos  de- 
pois, segundo  a  data,  que  tem,  de  7  de  maio  de  1564, 
onde  jaz  sepultado  um  F.  da  Cunha,  prior  da  localidade 
e,  segundo  a  tradição,  da  egreja  de  S.  Martinho,  da 
Sanguinheda. 

A  inscripção  d'esta  sepultura  já  mal  se  pôde  ler  pela 
passagem,  que  sobre  ella  se  tem  feito,  e  por  haver  sido 
quebrada  a  pedra,  juntamente  com  o  tumulp  e  figura 
de  Matheus  da  Cunha  pelos  francezes,  que  julgavam, 
como  de  costume,  encontrar  lá  dentro  as  jóias,  com 
que,  em  algumas  partes,  era  uso  sepultar  os  fidalgos. 

Além  d'isso,  o  padre  Carvalho  da  Costa,  na  sua  Co- 
rogrophia,  de  que  em  alguma  coisa  nos  servimos,  diz 
que  o  prior  e  dr.  António  Ferreira  Azevedo,  de  Arganil, 
lhe  mostrara  um  documento — o  que  deveria  dar-se  ahi 
por  1706— em  que,  no  anno  de  1423,  D.  João  I  con- 
cedera, por  doação,  o  senhorio  d'esta  villa  a  Martin  Vas- 
ques  da  Cunha,  por  este  lhe  pedir  semelhante  mercê, 
em  vista  do  grande  parentesco  com  os  Cunhas  de  Pom- 
beiro. 


P0MBB1R0  115 

Apezar  do  dote  do  senhorio,  concedido  a  Gastello 
Branco,  em  1355,  vé-se  pois  que  a  influencia  dos  Cu- 
nhas continuou  a  ser  sempre  a  mesma,  e  tanto  que  só 
dois  séculos  depois,  como  já  fizemos  notar,  foi  conce- 
dido ao  bisneto  d'aquelle  o  titulo  de  conde. 

Vamos  ainda  mais  longe. 

Consíderamol-a  a  única  influencia,  que  lá  houve,  pois 
cremos  que  nem  um  só  dos  descendentes  de  Gastello 
Branco  foi  dar  um  passeio  a  Pombeiro.  Não  ha  lá  cousa 
que  alteste  o  contrario. 

E  d  esse  abandono  e  do  preconceito,  que  impedia  a 
antiga  fidalguia  de  tratar  dos  seus  negócios,  como  des- 
douro que  era,  proveio  um  desmazelo  absoluto,  a  ruina 
total  do.  senhorio,  pois  da  insignificância,. que  ultima- 
mente restava  ao  condado,  se  prova  que  alii  não  houve, 
pelo  tempo  adiante,  rei  nem  roque,  e  que  cada  um  se 
foi  apropriando  do  que  lhe  pareceu. 

Quando  ha  annos,  se  bem  nos  lembrámos,  o  pae  do 
sr.  conde  actual,  acordando  de  um  mau  sonho  de  de- 
cadência, devida  ao  desleixo  de  administrações  passa- 
das, quiz  intentar  demanda,  para  rebaver  as  suas  nu- 
merosas terras  perdidas,  esbarrou  com  um  obstáculo 
invencível  -  a  posse  de  annos,  e  mesmo  de  séculos,  e 
milhares  de  direitos  adquiridos,  a  formarem  uma  bar- 
reira, contra  que  era  impossível  lutar. 


116  NOTAS  A  LÁPIS 


III 


O  Pombeiro  moderno.— Decadência.— Fructos  da  rotina 


O  Pombeiro  da  actualidade  Dão  representa  ao  menos 
uma  leve  sombra  do  que  o  passado  nos  diz  que  elle  foi. 

Gosta  a  crer,  á  vista  de  semelhante  decadência,  que 
eile  chegasse  a  representar  o  papel,  que  se  lhe  attribue, 
e  de  que  h\  provas  inconcussas,  desde  os  princípios  da 
monarcbia  até  á  dominação  pbilipina. 

Essas  provas  dão-lbe  uma  importância  superior  á  do 
Pombeiro  minhoto,  e  tanto  que  o  seu  parocho,  que  ainda 
hoje  conserva  a  dignidade  de  prior,  usufruía  uma  côn- 
grua de  seiscentos  mil  réis,  em  qoanto  que  o  cTeste  ti- 
nha apenas  cento  e  cincoenta,  e  era  simples  vigário. 

O  numero  de  fogos,  contidos  em  toda  a  freguezia, 
que  ainda  boje  orça  por  uns  quinhentos,  é  ainda  o  du- 
plo dos  da  freguezia  de  Riba-Vizella. 

Centro  das  povoações,  que  mais  se  lhe  avisinham, 
occupa  uma  bonita  posição,  no  extremo  declive  do 
monte  do  Salgueiral,  apezar  do  seu  pequeno  horisonte, 
interceptado  ao  lado  do  sul  pela  cordilheira,  que  vem  de 
Góes,  e  que  pode  considerar-se,  como  outras,  uma  ra- 
mificação da  serra  da  Estreita. 

Todos  sabem  que  a  Beira  não  tem  planícies,  qoe  me- 
reçam nota,  tantas  e  tão  diversas  são  as  montanhas,  que 
a  guarnecem,  por  todos  os  lados,  e  lhe  fornecem  a  sua 
principal  feição  característica. 

Pombeiro  e  todas  as  terras,  que  lhe  ficam  a  muitas 
léguas  ao  redor,  estão  comprebendidas  na  parte  mais 
cheia  de  declives,  saliências  desiguaes,  que  se  bifurcam 
e  confundem,  despenhadeiros,  desvios  alpestres,  pene- 
dias e  escabrosidades  de  todo  o  género. 


POMBEiaO  117 

Todo  aquillo  porém  tem  a  sua  belleza  relativa. 

As  cumiadas  dos  montes  ostentam-se  vestidas  da  es- 
pessa verdura  dos  pinhaes ;  os  declives  menos  áridos 
são  povoados  de  soutos  e  olivedos;  nas  collinas  vêem-se 
as  vinhas;  nos  valles,  entrecortados  de  ribeiros  sussur- 
rantes, as  plantações  mais  mimosas,  as  hortas,  os  ce- 
reaes  e  as  arvores  de  fructo,  formando  tudo  isso  um 
emaranhado  de  arborisação  e  uma  variedade  de  mati- 
zes, que  não  deixam  de  alegrar  a  vista  e  o  coração. 

Afora  essas  bellezas,  que  se  podem  chamar  naturaes, 
tudo  o  mais  é...  monótono,  descurado,  triste  e  accen- 
tuadamente  pobre,  começando  pelos  povoados,  que  ainda 
hoje  nos  dão  a  idéa  do  que  poderiam  ser  as  primeiras 
habitações  dos  successores  dos  nossos  primeiros  pães. 

Quem  está  costumado  á  perspectiva  ou  á  simples 
descripção  de  algumas  aldeãs  do  Minho,  que  d'entre  as 
moitas  do  arvoredo  começam  de  longe  a  sorrir  ao  vian- 
dante, com  os  seus  terraços  ladrilhados,  o  luzir  das 
suas  janellas  envidraçadas,  os  respiradouros  das  suas 
pequenas  chaminés  e  a  nítida  alvura  das  suas  paredes 
—sente  um  violento  aperto  de  coração  ao  contemplar, 
mesmo  fugitivamente,  os  tectos  denegridos,  as  paredes 
sem  reboque,  os  muros  de  negro  pedregulho,  as  casas 
fétidas,  como  o  esterco,  que  as  circumda,  baixas  e  quasi 
geralmente  térreas  da  maior  parte  dos  lugarejos  da  Beira. 

Ao  presenciar  aquellas  misérias,  chega  a  gente  a  per- 
suadisse de  que  n'aquelles  covis  não  pôde  viver  um 
ente  humano,  e  que  esta  parte  da  nação  é  uma  cousa 
estranha,  apezar  de  collocada  no  meio  d'ella,  uma  ex- 
crecencia,  um  membro  gangrenado,  para  o  qual,  ha  tan- 
tos séculos,  ninguém  dispensou  protecção,  nem  olhares 
de  piedade. 

# 
#       # 

Antes  de  entrarmos  em  Pombeiro,  voltemos  a  ver  o 
que  elle  era,  em  1863. 
Constituía  uma  povoação  decadente  e  pobre,  sujeita 


118  NOTAS  A  LÁPIS 


ás  justiças  de  Arganil,  tendo  10  casas  de  habitação, 
uma  única  rua  e  duas  pequenas  travessas,  que  iam  dar, 
como  hoje,  á  egreja,  outras  tantas  famílias,  que  forma- 
vam a  população  de  umas  oitenta  pessoas,  entre  adultos 
e  creanças. 

Abastança  ninguém  a  possuía  alli,  desde  que  se  ha- 
viam arruinado  as  melhores  casas  da  localidade,  que 
eram  as  de  Araújo  e  D.  Maria  Rosa. 

O  próprio  senhorio  dos  condes  de  Pombeiro  estava 
reduzido  ao  cPaço»,  ao  olival  da  t  Fonte»  e  ás  encostas 
maninhas  dos  cFurados»  pequenos  restos,  que  já  hoje 
lhe  não  pertencem. 

Nas  habitações  mal  cuidadas  não  havia  conforto,  nem 
belleza,  mas  que  nos  lembre  só  uma  casa  se  encontrava 
em  ruínas,  e  era  a  chamada  t Residencial,  que  em  ou- 
tros tempos  pertencia  ao  parocho,  como  património  que 
é  da  egreja. 

Às  autoridades  eram  —  o  ecclesiastico,  juiz  de  direito, 
escrivão  e  regedor. 

A  população  Unha  o  característico  alegre,  cheio  de 
poéticas  tradições,  a  que  não  faltavam  os  solaos  e  chá- 
caras, passadas  nos  serões,  nas  desfolhadas,  nas  lides 
do  campo  e  nas  romarias,  atravez  das  gargantas  argen- 
tinas das  raparigas. 

Os  rapazes,  entre  os  quaes  havia  estudantes  de  Ar- 
ganil e  Coimbra,  formavam  com  ellas  innocente  e  jubi- 
loso convívio  no  adro,  em  noites  de  luar,  nos  domingos 
depois  da  missa,  a  que  concorria  toda  a  freguezia,  com 
os  seus  trajes  mais  asseiados. 

O  Santo  António,  o  S.  João,  o  Natal,  a  Semana  Santa 
e  o  entrudo  tinham  as  suas  festas  próprias,  as  suas 
cantigas  tradicionaes,  os  seus  folguedos  característi- 
cos. 

Cada  família  possuia  o  seu  rebanho  de  gado  e  as 
suas  terras;  d'onde  tiravam  os  meios  necessários  á 
vida. 

Tal  era  o  Pombeiro  de  ha  17  annos,  e  tal  o  deixámos 
então. 


POMBHBO  119 


Parece-nos  que  em  todos  os  paizes  possuidores  da 
tranquillidade,  que  disfructa  o  nosso  ba  uns  trinta  e  tan- 
tos annos,  quando  um  individuo  volta  á  sua  terra,  de- 
pois de  uma  ausência  como  a  nossa,  acha  sempre  uns 
signaes  de  adiantamento»  que  lbe  satisfazem  as  neces- 
sidades do  coração,  e  insuflam  o  amor  próprio,  porque 
tudo  tende  a  progredir,  quando  as  forças  de  um  paiz, 
as  que  o  particular  e  a  administração  publica  represen- 
tam, se  congregam  em  benefícios,  que  fazem  a  felicidade 
dos  povos. 

Uma  nova  rua,  a  reedificação  de  um  prédio,  a  cons- 
tracção  de  outro,  uma  estrada,  um  jardim,  um  tanque, 
um  pomar,  uma  fonte,  uma  cousa  emfim,  que  repre- 
senta vontade,  acção,  progresso,  vida—eis  o  que  se  es- 
pera encontrar;  a  tendência  para  o  melhoramento,  que 
è  uma  necessidade  de  primeira  intuição— eis  o  que  en- 
contra quasi  sempre  quem  um  dia,  depois  de  largos 
annos  de  apartamento,  tem  a  ventura  de  voltar  aos  pá- 
trios lares. 

Vejamos  agora  a  que  distancia,  no  caminbo  do  pro- 
gresso, levou  Pombeiro  o  seu  carro  brazonado  de  cidade 
e  villa,  que  foi,  n'um  decurso  de  17  annos,  que  já  não 
representam  somenos  espaço  para  caminhar : 

Construiu  pessimamente,  fora  da  povoação,  em  mau 
local,  e  ainda  assim  porque  a  camará  do  concelho  lhe 
deu  o  dinheiro  e  alguns  particulares  de  fora  a  madeira, 
uma  casa  para  a  escola,  construcção  que  dentro  de 
poucos  annos,  ao  cair,  attestará  a  imperícia  ou  má  fé 
de  quem  a  levantou,  e...  abriu  uma  porta  no  cemi- 
tério. 

De  resto...  a  negligencia,  a  falta  de  cultura  moral e 
intellectual,  o  desleixo,  o  voltar  para  os  tempos  primi- 
tivos, a  indolência  mais  pronunciada  dos  íncolas  flores- 
taes  do  qpvo  mundo. 


ISO  NOTAS  A  LÁPIS 


Dois  dos  prédios  que  indicámos,  só  teem  hoje  os  ali- 
cerces; seis  poucos  mais  teem  do  que  isso;  o  resto,  com 
excepção  de  uns  dois,  únicos  que  não  ameaçam  ruina, 
vae  pelo  mesmo  caminho;  de  modo  que  ao  entrar,  tive- 
mos a  suprema  satisfação  de  passar  por  meio  de  des- 
troços, muros  caídos,  montes  de  pedregulho,  com  a 
mesma  estranheza,  com  que  o  faria  um  antigo  habitante 
da  cidade  maldita,  ao  visitar  as  ruínas  que  houvessem 
escapado  ao  fogo  do  ceu. 

Aquellas  paredes  denegridas,  atravez  das  quaes  as- 
sobia o  vento  os  seus  hymnos  descompostos,  aquellas 
telhas,  por  onde  no  inverno  escorre  o  gelo,  aquelles 
postigos,  que  dão  ar  e  luz  a  possilgas  insalubres— dão 
habitação  a  14  famílias,  formando  a  população  de  65 
pessoas,  incluindo  19  creanças. 

Precorrendo  a  extensa  freguezia,  onde  reina  a  mali- 
dicencia  de  soalheiro,  que  traz  os  príncipaes  persona- 
gens em  constante  desunião,  encontra-se  o  mesmo  es- 
pectáculo desolador,  a  começar  pelas  povoações,  que 
cercam  Pombeiro,  como  o  Salgueiral  e  o  Campo,  onde 
de  seis  casas  que  tinha,  só  apresenta  uma  habitável, 
Povoa,  Àldôa  Nova  e  Chans. 

N'estas  duas  ultimas,  ha  os  dois  melhores  prédios  da 
freguezia,  commodas,  asseiadas  e  vistosas  habitações, 
pertencentes  aos  srs.  José  e  António  Dias  Ferreira,  cuja 
família  é  um  modelo  de  boa  união  e  auxilio  mutuo. 

Além  de  tudo,  seccou-se  a  veia  da  poesia  popular ; 
já  não  ha  descantes,  a  não  ser  o  de  uma  ou  outra  pas- 
torita  erradia;  já  não  ha  estudantes  a  cursarem  acade- 
mias; não  ha  rapazio  alegre,  porque  a  negregada  da 
emigração  lb'o  rouba  quotidianamente. 

Demonstrações  irreverentes,  por  occasião  das  festivi- 
dades locaes,  e  tendência  crescente  para  vicios,  que  lá 
não  havia,  vimos  nós  em  abundância  nas  pessoas  de 
quem  menos  o  esperávamos,  tanta  fé  depositámos  ainda 
na  pureza  e  simplicidade  dos  costumes  da  gente  rústica. 

Resumindo,  temos  em  17  annos— o  desmoronamento 
da  povoação,  seus  muros  e  divisões,  uma  adiantada  cor- 


POMBIIBO  iíl 

rupção  de  costumes,  uma  diminuição  de  vinte  por  cento 
nos  habitantes,  descrecimento  de  cultura  intellectual, 
augmento  da  intriga  mexeriqueira,  a  perda  total  da  ale- 
gria característica,  que  existia  no  povo,  uma  emigração 
estéril  e  enoervadora,  a  carência  absoluta  de  bons  ca- 
minhos, desvios  e  estradas. 

Em  compensação  abriu-se  uma  porta  no  cemitério, 
levantou-se  um  telheiro  para  a  escola,  e  fez-se  na  rua 
um  arremedo  de  calçada. 

O  systema  seguido,  talvez  por  mais  commodo  e  me- 
nos trabalhoso,  é  o  seguinte : 

Desmoronou-se  uma  parede?  Desviam-se  as  pedras 
do  caminho,  e  deixam-se  Gear  até  que  uma  enxurrada 
as  possa  levar.  Gae  um  pedaço  da  casa?  Recua-se  para 
o  interior,  e  tapa-se  a  brecha  com  umas  tábuas  de  pi- 
nho. Secca  uma  plantação  fruetifera?  envelhece  uma  ar- 
vore de  estimação?  Distribue-se  a  lenha  pelos  donos,  e 
não  se  reforma,  nem  se  planta  de  novo. 

E'  pois  uma  vida  patriarchal  aquella. 

Diógenes,  o  casmurro  Diógenes,  não  pensava  certa- 
mente em  que  2:290  annos  depois  da  sua  morte  havia 
de  ter,  iVeste  cantinho  da  Europa,  uma  raça  de  pbilo- 
sophos  tão  seriamente  apologistas  do  seu  sacco  e  da 
sua  escudei  la. 

Falta- lhes  o  tonel,  mas  è  de  crer  que,  depois  de  vir 
a  terra  a  ultima  casa,  os  castanheiros  seculares,  que 
por  alli  crescem  ainda  em  abundância,  forneçam  as  pre- 
cisas vasilhas,  para  que  aquella  boa  gente  se  possa 
abrigar  do  rigor  das  estações. 

# 
•      # 

A's  nossas  queixas  e  interrogações  pelo  estado  de- 
plorável, em  que  encontrávamos  tudo  aquillo,  respon- 
deu alguém : 

—Que  quer?  E'-se  por  cá  muito  pobre;  não  ha  di- 
nheiro para  obras. 


itt  MOTAS  A  LÁPIS 


Dinheiro  para  obras ! 

O  que  falta  alli  è  ordem  nos  trabalhos,  hábitos  de 
limpeza  e  asseio,  systema  económico  e  aos  borrifos  de 
civilisação  bem  disposta. 

Pois  quel  Gente  costumada  ao  labor  dos  campos,  ás 
intempéries  das  estações,  possuindo  boas  madeiras  nos 
seus  pinhaps  e  soutos,  pedra  e  barro  quasi  ao  pé  da 
porta,  nas  horas  vagas,  uns  oito  dias  cada  mez,  num 
anno,  dois  ou  três— não  pode  a  pouco  e  pouco  empre- 
gar os  seus  filhos,  as  suas  mulheres  a  conduzir,  a  pre- 
parar o  material  para  reconstruir  um  telhado,  que 
abate,  ou  uma  parede,  que  se  esboroa? 

Pois  umas  pedras  soltas,  que  caem  do  muro  de  um 
quintal,  não  podem  agora  ou  logo  ser  collocadas  no  seu 
lugar,  sem  despendio  de  dinheiro,  nem  auxilio  de  pes- 
soal estranho? 

Pois  uma  figueira,  um  damasqueiro,  uma  pereira, 
que  secçaram  ou  envelheceram,  não  podem  substituir-se 
com  pequeníssimo  trabalho  e  sem  gasto  algum  ? 

Em  alguns  pontos,  diz-se  também: 

— Esta  casa  pertence  a  quatro  herdeiros;  este  quintal 
a  cinco;  aquella  parede  divisória  a  três;  e  custa  muito 
pol-os  de  accordo. 

E  para  que  seguem  tão  insensato  meio  de  partilhas? 

Pois  porque  somos  cinco  herdeiros,  temos  uma  nesga  ' 
de  terra  que  mede  outros  tantos  metros,  e  havemos  de 
fazer  cinco  quinhões  de  metro  cada  um? 

Não  vêem  que  este  detestável  systema  de  dividir  pro- 
duz rivalidades,  enfraquece  a  propriedade,  estragando- 
lhe  o  conjuncto,  e  diminuindo-lhe  o  valor? 

Porque  não  hão-de  os  herdeiros  de  uma  casa  qual- 
quer formar  lotes,  sem  subdivisão,  indemnisando-se  uns 
aos  outros,  ou  trocando  entre  si,  por  meio  de  uma  re- 
cta avaliação  ? 

Não!  não  são  as  causas,  que  nos  apontam,  os  entra- 
ves á  prosperidade  d'aquella  e  de  tantas  localidades, 
que  definham  pelo  interior  do  paiz, 

O  que  lhes  falta  è  a  influencia  de  boa  administração 


POMBHRO  113 

publica,  a  acção  benéfica  de  uma  politica  patriótica,  que 
raras  vezes  cbega  ás  aldéas  de  quatorze  fogos ;  o  qoe 
Ibes  faltam  são  os  benefícios,  que  se  espalham  pelos 
grandes  centros  e  soas  visinhanças,  onde  se  debatem  os 
interesses  partidários ;  o  qoe  lhes  falta  è  a  luz  que  di- 
mana das  escolas,  os  caminhos  fáceis,  os  melhoramen- 
tos de  um  proveitoso  e  sábio  município,  as  estradas 
districtaes,  que  facilitam  a  aproximação  dos  povos,  a 
concorrência  aos  mercados,  onde  os  géneros  de  toda  a 
espécie  se  apresentam,  creando  incentivos,  produzindo 
e  accumulando  capitães ;  o  que  falta  finalmente  a  essa 
pobre  gente  é  o  conhecimento  dos  seus  deveres  e  obri- 
gações, na  vida  civil,  para  se  não  deixar  arrastar  irra- 
cional e  inconscientemente,  em  dia  de  eleições,  a  uma 
urna  que  vae  auxiliar  uma  governação,  que  em  nada 
lhe  presta,  e  de  nada  lhe  serve. 


IV 


A  instrucção  concelhia.  —  A  egreja.  —As  suas  alfaias.  — 
Ponto  final  — Nota. 


Já  que  falíamos  em  escolas,  vejamos  o  qoe  dizia  uma 
estatística  de  1875,  cujo  extracto  nos  chegou  ás  mãos, 
a  mil  e  tantas  léguas  de  distancia,  datado  de  Lisboa, 
em  26  de  setembro  do  mesmo  anno,  extracto  que  ainda 
agora  encontrámos  na  nossa  carteira,  tanto  ao  vivo  nos 
tocou  o  seu  contheudo. 

Dizia  assim: 


IM  MOTAS  A  LÁPIS 


cNo  concelho  de  Arganil,  ha  duas  escolas  do  sexo  fe- 
minino ou  uma  escola  para  18:972  bectometros  qua- 
drados, 2:400  fogos  e  10:223  habitantes;  e  11  escolas 
do  sexo  masculino  ou  uma  escola  para  3:449  kilome- 
tros  quadrados,  436  fogos  e  1:859  habitantes.  No  con- 
celho de  Góes,  ha  uma  escola  do  sexo  feminino  para 
28:872  hectometros  quadrados,  2:988  fogos  e  11:153 
habitantes ;  e  cinco  escolas  do  sexo  masculino  ou  uma 
escola  para  5:774  bectometros  quadrados,  597  fogos  e 
2:230  habitantes.  No  concelho  de  Pampilhosa,  ha  uma 
escola  do  sexo  feminino  para  37:814  bectometros  quadra- 
dos, 2:240  fogos  e  9:919  habitantes ;  e  seis  escplas  do 
sexo  masculino  ou  uma  escola  para  6:302  hectometros 
quadrados,  373  fogos  e  1:656  habitantes.! 

Sem  fatiarmos  do  numero  lastimável  das  escolas  de 
rapazes,  temos  no  concelho  de  Arganil  —  duas  do  sexo 
feminino  para  a  pequena  cifra  de  10:223  habitantes;  no 
de  Góes,  uma  para  a  insignificância  de  11:153;  e  no  da 
Pampilhosa  outra  para  9:919. 

Uma  estatística  d'esta  natureza  é  simplesmente... 
uma  vergonha,  que,  para  credito  do  paiz,  nunca  devera 
ter  saído  a  publico,  porque  então  não  iria  precorrer  o 
estrangeiro,  onde  de  ba  muito  se  sabe  que  três  partes 
da  nossa  população  não  sabem  ler. 

E  para  que  precisa  Pombeiro,  com  os  seus  500  fo- 
gos, de  uma  escola  de  raparigas,  se  lá  não  se  toma  um 
banho  de  corpo  inteiro,  porque. . .  faz  mal;  não  se 
cortam  as  unhas  a  uma  creança  de  mama,  porque...  se 
lhe  retarda  a  falia;  e  se  conserva  o  magnifico  axioma 
de  que  mulher  lida  é  mulher  perdida? 

Sim.  Para  que  precisa  d'isso  uma  terra,  onde  o  juiz, 
que  è  a  suprema  autoridade  da  justiça  local,  se  entre- 
tém, em  quanto  passa  o  calor  de  um  dia  de  verão,  a 
jogar  as  cartas  com  o  escrivão,  o  official  de  justiça  e  as 
partes,  a  uma  garrafa  de  vinho,  como  ainda  no  anno 
passado  aconteceu,  quando  lá  estávamos  ? 

Quem  possue  taes  máximas  e  attríbutos  e  o  mais  que 


rOMBBIBO  iSB 

fica  dito,  com  um  pedaço  de  estrada,  qae  de  nada  serve, 
e  foi  feita  por  engano  do  decreto  que  a  concebeu,  por- 
que a  destinava  ás  Pombeiras  e  não  a  Pombeiro  —  de 
pouco  mais  precisa  para  ser  feliz,  e  reclamar  breve- 
mente a  tanga  dos  Índios  ou  o  tonel  de  Diógenes. 

O'  santa  e  sabia  politica,  bemdita  sejas  tu,  que  ha 
quarenta  annos  dotaste  aquella  freguezia  com...  uma 
ponte,  a  do  Valle  do  Espinho,  por  intermédio  de  um 
figurão,  que  por  alli  passou  a  sua  mocidade ;  e  agora 
a  favoreceste  com  uma  nesga  de  inútil  estrada,  por  in- 
tervenção de  um  ministro,  que. . .  se  enganou! 

— Mas. . .  —  pergnntar-nos-ha  alguém  de  bom  cora- 
ção—essa pobre  terra,  entre  os  seus  estudantes  de 
outr'ora,  não  creou  homens  illustrados,  que  tenham 
compaixão  de  semelhante  decadência? 

Creou,  e  bastantes.  Ainda  boje,  disseminados  por  va- 
rias partes  do  paiz,  se  gloria  e  honra  de  contar  por  fi- 
lhos... padres,  advogados,  médicos  e  outros  persona- 
gens, que  occupam  posições  honrosas. 

Esses,  porém,  cromos  que  em  pouco  lhe  poderiam 
valer,  porque  essas  posições  não  avultam  aos  olhos  da 
politica,  único  movei  de  influencia  creadora  em  nações 
como  a  nossa,  onde  ella  monopolisa  as  forças  governa- 
tivas, d'onde  dimanam  exclusivamente  todos  os  melho- 
ramentos públicos. 

No  meio  d'essa  plêiade  brilhante  de  conterrâneos 
nossos,  sobresae  porém  um  homem,  em  quem  concor- 
rem todos  os  predicados  que  faltam  aos  outros,  pela 
carreira  a  que  se  votou,  carreira  onde  tem  conquistado 
altas  posições  sociaes  e  não  menos  elevadas  funcções 
do  estado. 

Todos  o  conhecem  hoje  como  notabilidade  e  chefe  de 
uma  parcialidade  politica. 

Gomo  cavalheiro  de  um  alto  merecimento  pessoal, 
catbedratico  distinctissimo  da  nossa  universidade,  ora- 
dor dos  mais  notáveis,  jurista  entre  os  primeiros,  vo- 
tamos-lhe  toda  a  nossa  admiração;  como  politico,  porém, 
retirâmos-Ihe  a  nossa  sympatia,  não  pela  côr  da  soa 


1*6  NOTAS  A  LÁPIS 


bandeira,  que  dos  é  indifferente,  como  nol-o  são  as 
outras  que  militam  no  paiz,  mas  sim  e  unicamente  pelo 
esquecimento  a  que  tem  votado  aquellas  terras,  onde  é 
tão  estimado  e  querido. 

E  ninguém  nos  diga  que  até  boje  os  conterrâneos 
d'este  cavalheiro  só  lbe  teem  pedido  a  nomeação  de  um 
escrivão,  ou  o  livramento  de  um  recruta;  e  que  nisso 
está  a  razão  da  nossa  queixa. 

Homem  de  idéas  avançadas,  elle  bem  sabe,  sem  que 
ninguém  lb'o  diga,  que  a  sua  freguezia  e  as  demais, 
que  lhe  ficam  visinbas,  sejam  pobres  muito  embora, 
precisam  de  escolas,  de  caminhos  fáceis,  de  estradas  e 
melhoramentos,  que  são  boje  o  único  movei,  que  en- 
trava o  derrancamento  dos  costumes,  e  levanta  do  aba- 
timento, pela  visita  aos  grandes  centros,  transito  de 
forasteiros,  concorrência  aos  mercados  e  permuta  do 
commercio,  artes  e  officios,  as  povoações  desfavoreci* 
das  da  fortuna. 

Que  o  digam  as  pequenas  ou  grandes  terras,  que 
possuem  os  requisitos,  que  apontámos,  por  mais  en- 
grato  que  seja  o  solo,  por  mais  profunda  que  hajam 
considerado  a  sua  pobreza ! 

E  que  emporta  ao  homem  de  talento,  investido  dos 
poderes  de  melhorar  e  crear,  que  um  grupo  de  indiví- 
duos ignorantes  não  comprebenda  o  próprio  beneficio, 
de  que  precisa  ?  Que  vale  que  elles  o  peçam  ?  E  como 
bão-de  ver  a  luz,  se  á  volta  d'elles  tudo  é  sombra  e 
trevas? 

Quantas  idéas  teem  sido  impugnadas,  por  mal  com- 
prebendidas?  quantas  medidas  de  utilidade  publica,  co- 
mo por  exemplo  os  cemitérios  e  o  novo  systema  de  pe- 
sos, teem  sido  recebidas  a  marmeileiro  pelas  respecti- 
vas localidades? 

E  que  emporta  isso  aos  intuitos  benéficos  e  ao  pa- 
triotismo do  verdadeiro  estadista? 

Onde  mais  poderosa  se  manifestar  a  influencia  brutal 
do  cajado,  mais  prompta  e  rápida  deve  ser  a  creação  da 
escola. 


POMBMRO  IS7 


*        * 


Reatemos  porém  o  6o  descríptivo. 

Os  três  valles,  que  cercam  Porobeiro,  constitoem  a 
soa  primeira  riqueza,  pela  fertilidade  do  solo,  onde  to- 
da a  espécie  de  vegetação  se  robustece,  e  ayigora  de  um 
modo  notável. 

O  primeiro  começa  no  Paço,  e  desce  ao  lado  da 
egreja,  até  se  encontrar  com  o  segundo,  que  principia 
á  direita  da  Povoa,  e  termina  na  Azenha;  o  terceiro, 
que  è  o  principal  e  mais  extenso,  nasce  no  fundo  do 
Salgueiral,  onde  se  chama  Difroia,  corrupção  da  sup- 
posta  denominação  histórica  de  Aufragia,  e  sob  vários 
nomes,  entre  os  quaes  figuram  os  de  Chão  da  Fonte 
e  da  Estrada,  encontrando-se  ao  extremo  d'esta  com  o 
do  Idmeirinho,  segue  pela  Azenha  até  ao  Valle  do  Bis- 
po; aqui  termina  n'uma  garganta,  por  onde  escorre  a 
ribeira,  que  o  rega,  e  que  vae  desaguar  no  rio  Alva. 

Pela  sua  natureza  e  disposição,  inclinâmos-nos  a  se- 
guir a  opinião  dos  que  asseguram  que  foi  a  todo  este 
valle,  como  fica  descripto,  desde  o  rio  ao  Salgueiral, 
que  se  chamou  Aufragia. 

A'  sombra  de  um  dos  seus  frondosos  castanheiros, 
foi  que  ouvimos  a  uma  pastora  estas  conceituosas  qua- 
dras, no  meio  de  outras,  de  que  não  podemos  bem  per- 
ceber a  letra: 

Nãa  ha  machado  que  corte 
a  raiz  ao  pensamento; 
não  ha  letrado  que  diga 
onde  tenho  o  meu  intento. 

Se  todo  o  alho  soubesse 
quanto  custa  a  sua  mãe, 
se  pensasse  sempre  nisso, 
não  amava  a  mais  ninguém. 

Sio  os  restos  esfarrapados  da  musa  popular,  que 
está  nos  últimos  paroxismos  da  agonia. 


IW  NOTAS  A  LATO 


* 
*        * 


Em  face  da  antiga  importância  de  Pombeiro,  quando 
vi II a,  em  rasão  da  sua  posição  e  minas,  que  ainda  ha 
um  quarto  de  século  se  viam  espalhadas  por  aquelles 
valles  e  collinas  e  por  alguns  objectos,  encontrados  em 
varias  escavações,  temos,  do  mesmo  modo  por  segura 
a  opinião  de  que  elle,  com  as  suas  aldôas  circumvisi» 
nbas,  formou  uma  só  povoação. 

As  suas  curiosidades  mais  notáveis,  além  dos  Furados, 
são  três:  a  egreja  parochial,  sob  a  invocação  de  S.  Sal- 
vador,  onde  está  o  tumulo  de  Matbeus  da  Cunha,  a  ca- 
pella  de  Nossa  Senhora  do  Loureiro  e  a  da  Rainha  Santa. 

A  primeira  é  um  espaçoso  templo  de  três  naves» 
pouco  elegantes  pela  mesquinha  altura  do  tecto,  com 
cinco  arcos  por  banda,  partindo  os  primeiros  dos  lados 
da  porta  principal,  apoiando-se  os  últimos  na  parede, 
onde  se  forma  o  cruzeiro,  e  todos  ao  centro  em  quatro 
columnas  dóricas  de  granito,  a  uma  das  quaes  se  en- 
costa o  púlpito,  da  mesma  pedra,  tendo  a  forma  de  um 
cálix,  com  a  base  cortada. 

Encostada  ás  ultimas  columnas,  corre  uma  balaustra- 
da de  madeira,  que  tem  de  fora  dois  altares  lateraes. 

No  da  esquerda,  formado  por  duas  columnas  compó- 
sitas e  rematado  em  cima  por  três  cabeças  de  anjos  no 
meio  de  um  sol,  venera-se  o  Anjo  Custodio,  uma  bella 
esculptura  de  madeira,  já  quasi  estragada  pelos  maus 
tratos  que  lhe  teem  dado,  por  occasiio  das  procissões, 
onde  ella  figura. 

No  da  direita,  mais  acanhado  e  menos  elegante,  ape- 
sar de  se  parecer  com  o  anterior,  está  uma  imagem,  de 
mérito  egual  ao  do  anjo,  Nossa  Senhora  do  Rosário,  a 
quem  pertencem  a  dotação  e  maiores  bens  da  egreja. 

Transposta  a  balaustrada,  temos  dois  altares  aos  la- 
dos do  cruzeiro,  irmãos. na  arcbitectura,  revestidos  de 
columnas  salomonieas,  cujas  espiraes  acabam  em  arco, 
e  coalhadas  em  abundante  relevo  de  aves  do  paraíso  o 


BOMBHBO  139 


parras  com  fructos  de  uma  execução  inferior  á  do  altar- 
mór,  de  que  são  perfeita  imitação. 

O  da  direita  tem  como  retábulo  am  painel  antiquíssi- 
mo, representando  a  Ceia,  e  serve  ao  Santíssimo. 

O  da  esquerda  tem  por  fundo  ontro  quadro,  que  se 
não  pode  ver,  por  estar  encoberto  com  uma  macbineta 
moderna,  envidraçada,  onde  figura  Nossa  Senhora  dos 
Afilie  tos,  imagem  de  vestir,  tamanho  natural,  pouco  re- 
commendavel  pelos  traços  pbysionomicos,  mas  muito 
querida  do  povo. 

O  altar-mór  é  a  obra  mais  notável,  entre  todas;  for- 
mam-do  quatro  columnas  compósitas  e  salomonicas  por 
banda,  fechando  egualmente  em  arcos,  que  servem  de 
baldaqoino  ao  sacrário,  todas  excellentemente  ornamen- 
tadas, em  relevo,  de  anjos,  aves  do  paraixo  e  parras 
com  fructos.  A  obra  de  talha  prolonga-se  em  forma  de 
concha  de  modo  a  cobrir  completamente  o  throno,  mas 
em  nada  se  parece  com  os  enfeites  anteriores. 

O  sacrário,  de  um  metro  de  altura,  segue  o  mesmo 
estylo  e  ornamentação  salomonica,  e  apoia-se  em  qua- 
tro colomninhas. 

A  falta  dos  dotes  precisos  para  se  estimarem  todas 
estas  bellezas  antigas  e  muito  valiosas  tem  esmurrado, 
no  correr  dos  tempos,  alguns  dos  preciosos  ornatos  da 
talha,  e  umas  tábuas  supplementares  para  se  vestir  o 
sacrário,  o  que  nunca  se  deveria  fazer,  e  para  apoio  de 
castiçaes,  desfeiam  e  prejudicam  tão  bello  conjuncto. 

Um  painel  movediço,  destinado  a  tapar  o  desgracioso 
throno,  quando  não  houvesse  exposição,  representa  a 
transfiguração  do  Senhor,  e  está  destinado  a  durar  pou- 
co, desde  que  se  não  faz  uso  delle. 

Na  sacristia  encontra- se  fora  de  nicho  ou  altar,  o 
orago  S.  Salvador,  e,  n'uma  passagem  escusa,  maltra- 
tado, esquecido  e  mutilado  um  sacrário  gothico  de  ges- 
so, uma  jóia  rendilhada  e  preciosa,  que  a  ignorância 
reduziu  ao  estado  mais  lastimável. 

Ao  lado  do  altar-mór,  avulta  o  mais  valioso  padrão 
bisjtorico  de  Pombeiro,  o  tumulo  de  Matheus  da  Cunha, 


130  NOTAS  A  LÁPIS 


servindo  lastimavelmente  para  deposito  de  vasos,  lan- 
ternas e  outros  moveis. 

A  falta  de  uma  irmandade  intelligente  e  zelosa  e  de 
um  sacristão  cuidadoso  produz  estes  e  outros  effeitos 
de  desorganisação  e  absoluta  carência  de  ordem,  con- 
servação, asseio  e  limpeza. 

Às  alfaias,  que  datam  do  século  xvi,  são  ainda  uma 
prova  da  influencia  dos  Gunbas  e  objectos  dignos  de  nota 
especial,  pelo  seu  valor  intrínseco,  estimativo  e  artístico. 

Mandadas  á  Exposição  de  Arte  Ornamental,  de  Lis- 
boa, foram  muito  admiradas,  e  constam  do  respectivo 
catalogo,  que  as  classificou  assim: 

Naveta  de  prata  em  forma  de  galeão  —  comprimento 
17  centímetros. 

Corda  de  prata  —  altura  6  e  diâmetro  9  cent. 

Custodia  de  prata  dourada  —  altura  49  cent.  O  reli- 
cário e  a  baste  teem  ornatos  da  renascença,  mas  de  ca- 
da lado  do  primeiro  um  botaréu  com  coruchéus  gotbi- 
cos  e  um  tintinabulo  pendente. 

Cálix  de  prata  dourada  —  altura  26  cent.  A  base  é 
distribuída  em  gomos,  e  ornada  de  troncos,  ramos  e  fo- 
lhagens em  relevo.  A  um  lado  tem  um  escudo  com  as 
armas  dos  Âlbuquerques  e  dos  Cunhas.  Em  baixo  lê-se: 
Este  cales  mãdov  fazer  lanalvares  da  Cvnha  pêra  a 
igreja  de  Sã  Salvador.  O  nó  compõe-se  de  dois  corpos 
de  arcarias  gothicas  com  coruchéus.  A  copa  é  coberta 
de  rendilhado  em  alto  relevo,  folhagens  e  carrancas,  de 
cada  uma  das  quaes  pende  um  tintinabulo. 

Cruz  procissional  de  prata  — altura  lm,H.  A  baseé 
formada  por  dois  corpos  hexagonos,  com  seis  nichos 
cada  um,  separados  por  pilastras,  das  quaes  no  corpo 
inferior  pendem  seis  tintinabulos.  A  haste  e  os  braços 
são  ornados  de  arabescos  e  de  cabeças  de  seraphins  nas 
extremidades. 

Thuribulo  de  prata  — altura  31  cent.  Sobre  uma  base 
hexagona,  ornada  de  folhagens  e  carrancas,  guarnecida 
em  cima  de  rendilhados,  eleva-se  um  corpo  também  he- 
xágono, formado  de  arcadas  gothicas  separadas  por  gi- 


pombiibo  131 

gantes,  encimados  de  coruchéus,  e  guarnecido  de  ren- 
dilhado. Sobre  este  corpo  ergue-se  outro  em  tudo  se- 
melhante, porém  de  menores  dimensões,  rematado  por 
uma  pyramide  hexagona.  No  rebordo  da  base  lê-se  o 
seguinte:  Este  trõ  tnàdov  f.  Ianalvares  da  Cvnha  pêra 
a  igreja  de  Sã  Salvador. 

Esta  magnifica  alfaia,  que  está  a  pedir  prompta  e  fiel 
restauração,  por  se  achar  mordida  pelo  fogo,  mereceu 
as  honras  do  desenho,  concedidas  somente  ao  que  de 
mais  raro  e  precioso  concorreu  á  exposição. 

Está  a  pag.  78  das  illustrações  do  volumoso  catalogo. 

Além  de  tudo,  a  egreja  parocbial  de  Pombeiro  é  res- 
peitável pela  sua  vetustez,  que  deve  orçar  por  mais  de 
cinco  séculos,  época  do  senhorio  de  Matheus  da  Cunha, 
pois  diz-se  construída  ahi  por  1325,  segundo  o  risco  e 
direcção  do  seu  amigo  e  contemporâneo  o  capitão-mór 
Pedro  Nunes  da  Silva.  Até  aos  princípios  (Teste  século 
ainda  os  parochos,  á  hora  da  missa,  pediam  um  pater 
noster  pelo  fundador,  o  capitão-mór  de  Pombeiro. 

A  sua  sepultura,  como  outras  muitas  espalhadas  pelo 
corpo  do  templo,  não  foi  respeitada  pela  indifferença 
ignorante  dos  successivos  reformadores. 

.  Sabe-se  apenas  que  a  pedra,  que  a  cobriu,  é  a  que 
se  encontra,  gasta  pelos  pés  dos  devotos,  á  entrada  da 
porta  principal,  pelo  lado  interior. 

O  vandalismo,  que  deixou  cair  a  pedaços  o  edifício 
feudal  do  Paço,  cujos  capiteis  rendilhados  serviram  para 
calçar  as  panellas  á  lareira  de  umas  poucas  de  gerações, 
não  podia  ficar  sem  uma  successão,  digna  d'estes  feitos, 
tão  communs  entra  portuguezes. 

# 
#      # 

A  capella  da  Senhora  do  Loureiro,  onde  havia  festi- 
vidade annual,  que  já  caiu  em  desuso,  torna- se  recom- 
mendavel  pela  sua  posição  e  pelo  cippo  romano,  de  que 
já  tratámos. 


132  NOTAS  A  LÁPIS 


À  da  Rainha  Santa,  coberta  de  azulejos  embricados 
é  orna  construção  octogona,  a  mais  elegante  e  formosa, 
que  ba  por  aquelles  sítios. 

E'  duvidosa  a  época  da  sua  fundação,  devida  ao  có- 
nego Thomé  Nunes  Rodrigues  Freire,  sepultado  á  en- 
trada em  campa  coberta  de  pedra,  onde  nada  se  pode 
ler,  por  terem  alli  amassado  cal,  em  occasião  de  re- 
paros! 

Este  cónego  era  descendente  do  nobre  solar  dos  Frei- 
res de  Andrade,  estabelecido  em  Bobadella  de  Traz-os- 
Montes,  comarca  de  Gbaves,  familia,  que  è  representada 
ainda  boje,  na  Galliza,  pelo  marquez  de  Sória. 

A  graciosa  capella  está  collocada  a  uns  quinhentos 
passos  da  Povoa,  n'um  sitio  elevado  de  uma  belleza  im- 
pressionavel,  pelos  toques  de  suavíssima  melancolia, 
que  com  tanta  propriedade  se  espalham  no  variado  pa- 
norama, que  de  lá  se  disfructa. 

O'  sitio  encantador,  tão  propicio  á  meditação,  Deus 
sabe  quantas  almas  sertanejas,  rescendendo  á  madre- 
silva  dos  ribeiros  e  ao  acre  perfume  das  estevas,  não 
teem  sonhado  em  teu  seio  com  a  magnólia  das  salas  e 
com  as  delicias,  enganadoras  embora,  de  uma  vida  de 
grandezas  I 

E  quantas,  cegos  os  olhos  do  entendimento,  não  teem 
passado  por  ti,  sem  te  comprebenderem!  Oh!  quantas! 

Dentro  d'esta  notável  e  formosa  relíquia  celebrava-se 
ainda  no  tempo  da  nossa  juventude  uma  poética  roma- 
ria, muito  cheia  de  alegrias  e  perfumes  de  rosmaninho, 
a  4  de  julho;  porém  a  gafeira  decadente,  que  ba  tanto 
ameaça  Pombeiro  pelos  alicerces,  deu  também  cabo 
d'ella. 

Pobre  terra  de  Matbeus  da  Gunba,  quanto  és  digna 
de  commiseração ! 

Pobre  mãe,  como  te  lastimámos  do  fundo  da  nossa 
alma! 


POMBKIRO  133 


NOTA 


Apezar  nosso,  temos  de  abrir  aqui  ama  nota,  que  seria  um 
ajuste  de  contas,  se  se  não  tratasse  de  um  morto,  de  quem  temos 
a  registrar  ama  deslealdade  litteraria. 

Os  homens  illastres,  como  eile  foi,  pertencem  á  historia  do 
seu  paiz,  e  os  seus  nomes  portanto  não  podem  eximir-se  ás  res- 
ponsabilidades que  representam,  á  anaiyse  de  contemporâneos 
e  vindouros. 

Usámos  pois  de  um  direito  sagrado,  e  não  temos  a  mais  leve 
intenção  de  melindrar  cinzas  respeitáveis,  ainda  quentes. 

Quando  elaborámos  os  apontamentos,  que  ahi  ficam,  e  dizem 
respeito  a  Pombeiro,  procurámos  servir-nos  da  maior  fidelidade, 
sem  minudencias  fastidiosas,  delineando  não  um  quadro  com- 
pleto, mas  o  maior  e  mais  fiel  que  ativhoje  se  tem  feito,  como 
simples  homenagem  á  terra  da  nossa  naturalidade. 

Um  amigo  nosso,  o  corajoso  editor  do  Portugal  Antigo  e  Mo- 
derno, vendo  que  notávamos  incorrecções,  lacunas  e  acrescenta- 
mentos, que  haviam  escapado  ao  sr.  Pinho  Leal,  lembrou  que 
este  paciente  e  benemérito  escriptor  estimaria  ler  os  nossos  ar- 
tigos, publicados  com  outros,  sob  o  titulo  Nota*  a  Lápis,  no  pe- 
riódico Atlântico,  em  1881. 

Em  fins  d'este  anno,  enviarara-se-lhe  pois  os  quatro  números, 
que  diziam  respeito  a  Pombeiro. 

Em  30  de  janeiro  de  82,  escrevia-nos  o  sr.  Pinho  Leal  uma 
carta  um  tanto  azeda,  querendo  obrigar-nos  a  uma  rectificação, 
por  termos  observado  que  elle  continuasse  a  chamar  villa  a  uma 
aldôa  reles,  fazendo  a  comarca  e  concelho;  o  que  se  dá,  quanto 
a  esta  ultima  classificação,  em  virtude  de  um  erro  de  redacção, 
como  adiante  se  pode  ver. 

Apezar  de  toda  a  aspereza  das  suas  letras,  o  nosso  illustre 
contendor  affirmava  que  lhe  dávamos  de  Pombeiro  valiosas  in- 
formações, que  aproveitaria  para  a  segunda  edição  do  seu  diccio- 
nario! 

A'  sua  carta  respondemos: 


134  MOTAS  A  LÁPIS 


«Não  se  enganou  V.  Ex.*,  quando  suppoz  ser  eu  o  mandatário 
dos  quatro  números  do  Atlântico,  que  motivaram  a  honra  da  sua 
carta,  a  que  vou  responder,  como  me  cumpre. 

«Não  foi  por  vaidade,  nem  espirito  de  censura  que  tomei  essa 
resolução,  e  sim  pelo  resultado  de  uma  conversa  com  o  nosso 
Mattos  Moreira,  ao  dizer-me  este  amigo  que  V.  Ex.a  muito  dese- 
java, como  é  natural,  estar  ao  facto  do  que  se  escrevesse  sobre 
qualquer  das  localidades  do  nosso  paiz. 

«Além  da  muita  consideração,  que  tenho  pelo  nome  de  V.  Ex.*, 
não  houve  outro  motivo,  para  a  remessa  dos  jornaes. 

«Entremos  porém  no  assumpto  da  carta. 

«Começa  V.  Ex.a  por  notar,  entre  parenthesis  com  um  ponto 
de  admiração  e  quatro  reticencias,  que  eu  chame  Douro  á  parte 
comprehendida  na  localidade,  sobre  que  escrevi. 

«V.  Ex.*  sabe  muito  bem  que  o  concelho  de  Arganil  e  outros 
da  Beira  Baixa,  pela  actual  divisão  provincial,  boa  ou  má,  estão 
encorporados  ao  Douro.  Não  atino  pois  com  a  razão  d'aquella 
admiração  e  das  suas  respectivas  reticencias. 

«Em  seguida  exclama  que  eu  ou  não  li  o  diccionario  ou  curei 
por  informações,  afirmando  que  V.  Ex.a  chama  a  Pombeiro  con- 
celho e  comarca,  e  d'ahi  tira  a  conclusão  humorística  de  que  lhe 
levantei  um  falso  testemunho. 

«Nem  uma  cousa  nem  outra. 

«A  redacção  e  só  a  redacção  da  parte,  que  se  lé  a  pag.  146  do 
seu  livro,  é  a  causadora  da  minha  affirmação. 

«E  se  não,  vejamos: 

«Diz  V.  Ex.*  —  Pombriro-villa,  Douro,  (ora  graças,  que  tam- 
bém lhe  chama  Douro !)  comarca,  concelho  e  3  kilometros  a  O. 
de  Arganil. 

«Ora  commigo  pensará  muita  gente  que  aquelle  lugar  d'onde 
não  pôde  passar  por  cima  dos  kilometros,  uma  circunstancia, 
para  chegar  a  concelho  e  comarca,  attributos,  salvo  melhor  juí- 
zo, do  verbo  oceulto,  apezar  da  conjuncção  ligativa,  que  alli  está 
deslocada  e  por  isso  contraproducente. 

«É  evidente  pois  que  essa  redacção  prejudicou  a  intenção,  que, 
como  bem  diz,  se  manifesta  na  linha  15.*,  e  é  culpada  única  da 
minha  afirmativa. 

«Quanto  ao  título  de  villa,  ha-de  permittirme  que  eu  continue 
a  discordar  da  autorisada  opinião  de  V.  Ex.*,  que  tenho  em  muito 
respeito,  apezar  das  valiosas  rasões,  que  me  apresenta,  sendo  as 
principaes  —  o  foral  de  D.  Manuel,  concedido  em  1513,  a  palavra 
oficial  de  Bittencourt  e  a  classificação  de  vários  geographos. 

«A  muitas  villas  sabe  muito  bem  Y.  Ex.*  que  a  legislação  civil 
e  judiciaria  concede  attributos,  que  as  distinguem  das  popula- 
ções, que  não  gosam  d*esse  titulo;  e  Pombeiro,  sujeito  ás  justi- 
ças de  Arganil,  nada  possue  além  do  juizo  ordinário,  como  cabe- 
ça da  freguezia  do  seu  nome. 


POMBBBO  135 


«Além  disso,  embora  o  foral  manuelino  nio  tenba  sido  até 
hoje  derogado,  todos  os  papeis  officiaes,  que  datam  de  muitos 
annos,  os  que  lhe  teem  vindo  de  dentro  e  fora  do  districto,  lhe 
ebamam  lugar  ou  freguezia  de  Pombeiro,  e  nada  mais. 

«Nos  tempos  modernos,  nenhum  poder  ou  autoridade  se  lbe 
tem  dirigido  por  outra  forma. 

«Se  o  uso  em  muitos  casos  faz  lei,  ainda  fora  da  lei,  o  que  di- 
remos quando  os  documentos  successivos  de  muitas  leis  estabe- 
lecem esse  uso? 

•Por  estas  razões,  pela  extrema  decadência  de  Pombeiro,  um 
lugarejo,  sem  importância  de  notar,  onde  existem  apenas  duas 
casas,  que  não  ameaçam  próximo  desmoronamento,  continuo 
a  affirmar,  como  nas  minhas  Nota*  a  Lápis,  que  ninguém  dei- 
xará de  encarar  como  irrisória  a  conservação  do  seu  titulo  no- 
biliario  de  villa,  qne  o  mesmo  seria  chamar  ao  cadáver  ente 
vivo. 

«V.  Ex.a,  estou  certo,  se  por  là  desse  um  passeio,  einquerisse 
com  minuciosidade  do  que  levo  dito,  seria  o  primeiro  a  rir-se, 
apezar  de  todos  os  foraes,  que  os  documentos  officiaes  modernos 
de  administração  e  legislação  teem  feito  caducar,  embora  falte 
uma  derogaçào  formal. 

«O  diccionario  de  V.  Ex.\  esse  pasmoso  trabalho  de  uma  pa- 
ciência inimitável,  obra  a  que  tem  dedicado  todos  os  seus  conhe- 
cimentos e  os  annos  de  uma  existência  inteira,  apraz-me  dizel-o, 
como  mero  e  simples  amador  de  letras,  é  um  verdadeiro  monu- 
mento nacional,  que  jà  hoje  pertence  ao  futuro,  que  o  ha-de  co- 
brir de  bênçãos  e  louvores. 

«Tamanha  porém  é  a  sua  e.«phera,  tão  vasta  e  tão  profunda 
que  necessariamente  ha  de  peccar  aqui  ou  acolá,  por  uma  lacuna, 
uma  inexactidão,  devidas  muitas  vezes  a  informações  falsas  e  a 
não  menos  falsos  documentos. 

«Especialisemos  alguma  cousa,  que  diz  respeito  ao  meu  Pom- 
beiro, e  d'isto  me  ha-de  desculpar  V.  Ex.« 

•  Como  lacunas,  temos  o  que  digo  da  influencia  dos  Cunhas, 
única  que  lá  houve,  pois  os  condes  nem  sequer  por  alli  passeia- 
ram,  que  eu  saiba;  a  egreja,  as  armas  do  pelourinho,  o  tumulo 
de  Malheus  da  Cunha  e  a  capella  da  Rainha  Santa,  a  mais  for- 
mosa construcção  da  freguezia. 

«.Como  contradicções,  tudo,  absolutamente  tudo  o  que  se  diz  do 
Pombeiro  beirão  e  do  Pombeiro  minhoto,  desde  os  princípios  da 
colonisação  até  á  época  moderna. 

Como  inexactidões,  a  distancia  de  3  kiloroetros  de  Arganil, 
quando  é  aproximadamente  de  oito;  a  existência  dos  Furados, 
como  minas  de  exploração  de  chumbo,  quando  a  simples  vista 
está  mostrando  que  serviram  para  desvio  de  parte  das  aguas  do 
Alva,  destinadas  a  um  motor  qualquer,  que  ainda  hoje  poderia 
ser  excellentemente  aproveitado  para  uma  fabrica  importante, 


136 


NOTAS  A  LÁPIS 


se  não  fossemos  a  gente  que  somosj  e  a  coilocaçio  da  egreja  de 
S.  Pedro,  ama  beilissima  construcçao  cuthica,  onde  tantas  vezes 
entrei,  em  creança,  como  estudante  de  latim  em  Arganil,  e  ha 
um  anno  como  viajante,  que  mata  saudades,  coilocaçio  posta 
por  Y.  Ex.a  entre  Arganil  e  Pombeiro,  quando  a  capella  está  si- 
tuada entre  Arganil  e  Sarzedo,  como  demonstra  a  seguinte  fi- 
gura : 


DC  8.  KOKO 


[<*5t 


«Alem  d'isto,  ha  ainda  a  notar  as  numerosas  montanhas, 
que  são  quasi  no  todo  troncos  da  serra  da  Estrella,  e  formam 
um  verdadeiro  capricho  da  natureza  pelas  linhas  e  ramificações, 
que  descrevem,  maiores  elevações  que  as  do  Vallc  do  Pisoo  e  a 
serra  da  Avelleira,  mencionadas  por  V.  Ex.a,  sendo  a  mais  alta  a 
Serra  do  Salgueiral,  que  começa  n'um  lugarejo  chamado  Chapi* 
nheira,  e  vae  d'aqui  communicando  com  outras  ató  ao  rio  Alva 
e  caminhos  de  Arganil. 

«Terminando  por  aqui,  resta-me  dizer  que  da  melhor  vontade 
annúo  á  rectificação,  lembrada  por  V.  Ex.a,  julgando  para  isso 
melhor  a  publicação  da  parte  essencial  da  carta  de  V.  Ex.a  e  a 
minha  resposta,  para  o  que  lhe  peco  a  necessária  autorisação, 
apezar  do  ataque  humorístico^  que  ficará  publicamente  pesando 
sobre  a  minha  pessoa. » 

Collocado  em  mau  terreno,  o  sr.  Pinho  Leal  não  annuiu  á  vul- 

Íjarisação  da  nossa  polemica  particular  —  motivo  por  que  n'este 
ugar  não  estampamos  as  suas  cartas  — mas...  desafogou  o 
seu  despeito  bem  manifesto,  aproveitando  a  parte  das  nossas 
informações,  não  contestadas  por  elle,  no  fasciculo  471  do 
seu  diccionario,  pag.  42  e  seguinte,  deturpando-as  disfarça- 
damente, para  não  citar,  como  costumava,  a  fonte,  que  Ih  as 
forneceu. 

O  desejo  muito  louvável  de  corrigir  e  acertar  sempre,  como 
escriptor  paciente  e  bom  investigador,  não  o  livrou,  como  ho- 
mem, de  significar  um  pequeno  e  dezarrasoado  despeito,  comet- 
tendo  uma  deslealdade  litteraria. 


MO  PORTO  §37 


NO  PORTO 


A  ponte  Maria  Pia.—  0  monumento  dos  artistas.  — 

Os  meroados.  —  A  cordoaria 

•  a  torre  dos  Clérigos.  —  Praças  de  D.  Pedro  e  da  Batalha.  — 

O  Palaoio  de  Cristal. 


Quem  viaja,  na  sua  terra  muito  embora,  com  a  in- 
tenção de  contar  o  que  vê,  descendo  ás  minuciosidades 
de  um  cbronista  escrupuloso,  tem  de  fazer  uma  larga 
provisão  de  apontamentos,  repetir  exames,  consultar 
autores,  e  gastar  um  tempo  de  que  nâo  podíamos  dis- 
por nas  nossas  despretenciosas  digressões. 

O  que  temos  contado  pois  não  representa  mais  do 
que  o  singelo  transumpto  d*  nossas  impressões,  avi- 
vadas aqui  e  acolá  pela  simplicidade  das  nossas  notas, 
filhas  de  um  rápido  e  incompleto  exame,  exercido  so- 
bre as  cousas,  que  mais  nos  prenderam  a  attenção. 

Insistimos  n'este  ponto  para  que  ninguém  se  lembre 
de  exigir-nos  aquillo,  que  absolutamente  não  podemos 
dar. 

Não  foi  sem  uma  certa  commoção  de  instinctiva  ale- 
gria que  ouvimos  annunciar  a  estação  de  Villa  Nova  de 
Gaya,  na  manhã  de  31  de  agosto  de  1880. 

Depois  de,  n'um  rápido  pensamento,  prestarmos  culto 


138  NOTAS  A  LÁPIS 


de  respeitosa  veneração  ao  lugar»  onde  a  nossa  histo- 
ria colloca  a  origem  do  nomo  portuguez,  aquelle  Porto, 
de  caUe,  de  que  a  moderna  Gaya,  herdeira  das  antigas 
tradições,  se  orgulha  tanto  —  a  nossa  attenção  voltou-se 
toda  para  a  direcção  do  comboio,  prestes  a  atravessar 
a  nova  ponte,  esse  arrojado  monumento  do  progres- 
so, com  que  iamos  travar  conhecimento,  essa  soberba 
coostrucção  metálica,  que  se  estende  na  distancia  de 
352  metros,  em  taboleiro  apoiado  nas  montanhas  mar- 
ginaes  do  rio  Douro  e  sobre  um  só  arco  de  uma  altura 
enorme. 

Ha  gente  que  ainda  hoje  calada  e  sorrateiramente 
abandona  o  comboio  n'aquella  estação,  e  segue  mais 
adiante  pela  ladeira  abaixo  até  á  ponte  pênsil,  que  atra- 
vessa a  pé  ou  de  carruagem,  tal  è  o  receio,  que  lhe  ins- 
pira a  grandiosa  innovação. 

Outros  ha  que  se  aventuram  ao  que  suppõem  em- 
presa temerária,  mas,  ao  sentirem-se  impellidos  por  so- 
bre o  abysmo,  cuja  lembrança  lhes  faz  cerrar  o  coração, 
fecham  egualmente  os  olhos,  como  que  se  isto  lhes  va- 
lesse, em  quanto  dura  a  travessia. 

N'este  numero  entram  algumas  das  pessoas,  especial- 
mente as  damas,  que  n'esse  dia  nos  faziam  companhia. 

A  animada  conversação,  em  que  vínhamos  entretidos, 
cessou  im mediatamente  á  entrada  da  ponte,  e  não  sabe- 
mos se  alguém  mais  mudou  de  côr,  além  de  um  cava- 
lheiro, que  nos  ficava  fronteiro,  e  que,  convidado  por 
nós  para  tomar  um  lugapao  postigo,  não  conseguiu  mo- 
ver-se  d'onde  estava. 

—Não  sei  o  que  é— dizia-nos  elle  depois,  com  o  seu 
rosto  franco  e  bonacheirão— não  sei...  mas  sente-se 
quasi  uma  vertigem,  ao  lembrar-se  a  gente  que  vae  a 
voar,  e  que  lhe  podem  quebrar  as  azas. 

— E  diz  bem  —  acrescentou  outro.— Nem  mesmo  a 
duração  d'aquillo  pôde  ser  longa. 
.  Não  conseguimos  suffocar  uma  exclamação. 

—Sim  senhor  —  continuou.  —  Disse-m'o  um  enge- 
nheiro, meu  amigo. 


NO  PORTO  139 

— E  em  qae  se  Arada  o  seu  amigo  para. . . 

— Assevera  elle  que  a  conservação  do  ferro,  empre- 
gado na  ponte,  depende  das  successivas  pinturas,  que 
se  lhe  applicam.  Ora,  sendo  ôccos  os  vigamentos  e  sup- 
portes,  e  não  podendo  por  isso  receber  a  tinta  no  inte- 
rior, a  ferrugem  il-os-ha  corroendo  lentamente;  de  modo 
que,  dentro  de  uns  sessenta  annos,  será  um  gravíssimo 
risco  passar  alli. 

Dias  depois  ouvimos  segunda  opinião  idêntica,  que 
podia  ser  um  ecco  da  primeira. 

De  curta  ou  longa  duração,  conforme  o  juizo  dos  en- 
tendedores, ou  simplesmente  dos  que  fingem  sel-o,  esse 
arrojo  de  engenharia  moderna,  que  a.  certa  distancia  nos 
parece  simples  brinquedo  de  creanças  pela  delicadeza 
elegante  das  suas  formas,  representa  uma  época  de  no- 
tável florescência,  para  a  laboriosa  capital  do  Douro, 
tamanhos  são  os  interesses  de  industria  e  commercio, 
que  se  vêem  ligados  a  semelhante  melhoramento. 

Que  as  suas  quasi  prodigiosas  condições  de  altura  e 
apoio  são  excepcionalmente  admiráveis,  è  uma  cousa 
innegavel,  mas  que  d?abi  resultem  defeitos  para  a  sua 
durabilidade  é  o  que  não  temos  por  averiguado. 


Á  hora  do  costume  parávamos  na  estação  de  Campa- 
nhã, futuro  centro  de  outros  ramos  de  communicação 
accelerada,  e  por  isso  de  pequenas  dimensões. 

Á  pratica  e  amabilidade  de  dois  amigos,  que  alli  nos 
aguardavam,  devemos  o  não  ficarmos  esmagado  á  saída 
n'aquella  desordem  de  trens  de  praça,  char-à-bancs, 
americanos,  carros  de  hotel  e  outros,  que  costumam  tão 
impropriamente  estabelecer-se  junto  ás  portas  da  esta- 
ção, n'um  local  já  de  si  acanhado,  á  chegada  dos  com- 
boios. 

Ninguém  respeita  distancias,  nem  posições  de  terreno, 
de  modo  que  o  individuo,  que  não  possa  ou  não  queira 


140  MOTAS  A  LAPI8 


servir-se  de  semelhantes  conducções,  vé-se  seriamente 
embaraçado  para,  de  mala  na  mio»  ganhar  o  principio 
da  rua. 

Tudo  aquillo  porém,  mesmo  desordenado  como  ê, 
representa  movimento  e  vida. 

Dizia-nos  um  dia  um  amigo:— Se  quizeres  rapida- 
mente fazer  o  joizo  de  orna  cidade,  visita-lbe  os  merca- 
dos, e  observa-Ihe  a  imprensa,  porque  todos  os  progres- 
sos sociaes  se  affirmam  pelo  pio  do  corpo  e  do  espi- 
rito. 

É  uma  verdade  incontestável  e  sem  variantes.  Temol-a 
experimentado  tio  bastas  vezes,  que  já  para  nós  tomou 
os  foros  de  máxima. 

Que  a  imprensa  portuense  era  excedente  e  que  se 
orgulha  de  possuir  o  primeiro  jornal  do  paiz,  6abiamos 
nós,  como  conhecíamos  a  importância  dos  productos  do- 
mésticos e  agrícolas  da  localidade. 

Estes  porém  nio  nos  haviam  chegado  ás  mios,  com 
a  facilidade  e  abundância  dos  do  género  litterarío. 

Começámos  portanto  pelo  mercado  do  Bulkào,  edifi- 
cado em  1850,  na  praça  do  mesmo  nome.  É  um  espa- 
çoso e  asseiado  quadrilongo,  guarnecido  de  divisões  de 
pedra  e  azulejo,  viradas  para  o  interior  e  cobertas  de 
zinco,  servindo  na  maior  parte  para  a  venda  de  louças 
inferiores,  objectos  de  adelos,  fructas  e  hortaliças. 

Seguindo  para  a  rua,  que  lhe  Oca  ao  norte,  a  de  Fer- 
nandes Thomaz,  o  patriota  de  1820,  deparámos  com  o 
singelo  monumento,  erigido  em  1862  pelos  artistas  á 
memoria  de  D.  Pedro  V,  em  agradecimento  da  sua  ani- 
madora visita  ás  fabricas  de  fundiçio  e  estamparia. 

Compõe-se  de  uma  columna,  coroada  por  uma  es- 
treita e  assente  em  pedestal  de  dois  degraus,  fechados 
por  gradeamento  de  ferro. 

O  seu  principal  merecimento  está  na  intenção  dos  ar- 
tistas e  em  ser  a  columna  inteira,  incluindo  a  base  e  o 
capitel,  um  monolitho,  que  da  pequena  distancia  de  dois 
kilometros  levou  14  dias  a  ser  conduzido  por  quarenta 
homens  e  vinte  juntas  de  bois. 


NO  PORTO  iki 


Na  face  principal,  lôem-se  estes  versos,  t5o  pobres 
di  letra,  como  ricos  de  verdade  e  sentimento : 

Ao  rei  D.  Pedro  Quinto— memorando— 
Da  Industria  e  Aries  protector  sabido, 
Que  as  vaidades  do  sólio  descurando, 
Teve  um  throno  d'amor  na  pátria  erguido ; 
Que  as  fabricas  em  frente  visitando 
Da— estampa  e  fundição— salvou  do  olvido. .. 
Artistas,  a  quem  deu  favor  e  atento, 
Consagram  este  humilde  monumento. 

Em  seguida,  encaminbámos-nos  para  o  mercado  do 
Anjo,  menos  regular  e  asseiado,  mas  muito  mais  con- 
corrido do  que  o  presente,  lugar,  onde  antigamente  se 
chamou  o  Campo  do  Olival  e  onde  em  1672  se  fundou 
o  recolhimento  de  orphSs  do  Anjo  da  Guarda,  demolido 
em  1834. 

Tem  um  chafariz  ao  centro  e  muito  pequeno  espaço 
para  a  affluencia  diária  dos  frequentadores. 

Junto  da  Cordoaria,  onde  está  este  mercado,  encon- 
trasse o  do  peixe,  inaugurado  em  1874,  no  sitio  dos 
celleiros  públicos  de  velha  data.  É  um  edifício  commo- 
do,  elegante,  solido  e  mesmo  pomposo,  em  quatro  pa- 
vimentos, bem  ornados  de  portados  e  janellas,  colu- 
mnatas  e  terraços,  que  deitam  para  a  rua  Occidental  do 
Jardim. 

Apezar  da  hora  adiantada,  notava-se  ainda,  um  gran- 
de abastecimento  dos  géneros  de  primeira  necessidade 
e  uma  correspondente  animação  entre  os  frequentado- 
res, que  pela  diversidade  de  trajes  e  maneiras  apresen- 
tavam aos  olhos  do  curioso  os  typos  característicos  da 
gente  da  cidade  e  suas  visinbanças,  desde  a  vendedeira 
de  largas  ramagens  no  lenço,  cujas  pontas  vão  á  copa 
do  chapéu,  até  á  criada  de  avental  rufado  em  pregas  e 
lenço  caido  nos  bombros*  em  ar  de  chaile,  com  um 
dó  sobre  o  peito;  desde  a  peixeira  de  Valladares,  Grés* 
tuma  ou  Avintes,  com  o  seu  chapéu  redondo  e  de  alto 
bordo,  o  lenço  garrido,  cruzado  sobre  o  peito,  mangas 


445  MOTAS  A  LÁPIS 


arregaçadas  e  saia  de  grande  roda,  até  á  mulher  da 
Maia  ou  de  S.  Cosme,  com  as  orelhas  e  o  pescoço  a 
regorgitarem  de  arrecadas  em  arco,  grossos  e  pesados 
trancelins,  corações  desmedidos,  tudo  de  oiro  rendado  e 
finíssimo,  e  o  cabello  muito  bem  caído  sobre  os  hom 
bros. 

Havia  por  alli  tal  profusão  de  rostos  frescos  e  bonitos, 
olhos  pretos  e  rasgados,  no  meio  de  todo  aquelle  mu- 
lherio, que  um  lisboeta  bairrista,  costumado  só  e  unica- 
mente a  ver  entre  o  povo  a  belleza,  já  hoje  rara,  da 
varina,  que  brilha  ao  lado  da  suja  e  desgraciosa  saloia, 
como  astro  sem  satélites— ficaria  necessariamente  des-, 
peitado. 


De  caminho  entrámos  no  jardim  da  Cordoaria,  um 
local  sem  horisontes  pelos  edifícios  que  o  cercam,  mas 
incontestavelmente  o  primeiro  passeio  central,  Está  bem 
cuidado,  tem  um  gracioso  lago,  bons  assentos,  agua  em 
abundância;  é  espaçoso  e  muito  azado  para  as  palestras 
da  tarde,  em  tempo  de  verão,  quando  se  não  queira  ir 
mais  longe. 

Depois  de  descançarmos  um  pouco,  retrocedemos 
para  o  jantar. 

Este  sitio  fazia  parte  do  já  dito  Campo  das  Oliveiras, 
substituídas  em  1611  por  outras  arvores,  de  que  só  res- 
ta um  corpulento  negrilho,  ou  ulmus  sylvestre,  cercado 
por  assentos  de  granito,  velho  patriarcha  de  outras  eras, 
salvo  por  acaso  da  vandalica  derrocada  do  cerco  do  Por- 
to, que  reduziu  tudo  a  lenha. 

O  moderno  arvoredo  e  o  jardim  datam  pois  de  1862, 
quando  a  camará  municipal  tirou  d'alli  os  cordoeiros 
que  lhe  deram  o  nome* 

Aqui  temos,  a  poucos  passos,  a  torre  dos  Clérigos, 
uma  das  melhores  da  Europa  e  a  mais  alta  do  paiz, 
com  os  seus  75  metros  e  oito  campanários,  cheios  de 
bons  sinos,  guia  dos  navegantes»  construída  n'uma  la* 


MO  *OBTO  143 

deira,  ao  cimo  da  rua  do  mesmo  nome,  em  1763,  quin- 
ze annos  depois  de  começada,  pelo  architeclo  italiano 
Nicolao  Maroni. 

Pela  sua  capacidade,  lavores  e  contornos,  é  um  mo- 
numento precioso,  que  contrasta  com  a  simplicidade  da 
egreja,  de  que  está  separada,  onde  só  notaremos  a  tri- 
buna de  hello  mármore  e  alguns  paramentos. 

Desçamos  lentamente  a  calçada  dos  Clérigos;  encon- 
traremos de  ambos  os  lados  bons  estabelecimentos  com-, 
merciaes,  que  se  ramificam  nas  ruas  transversaes  e  na 
praça  de  D.  Pedro. 

Este  local,  onde  havia  umas  hortas  no  tempo  de  D. 
João  1,  chamado  mais  tarde  praça  Nova,  antes  da  actual 
denominação,  é,  por  assim  dizer,  um  valle  entre  immi- 
nencias,  um  repouso  para  quem  alli  desemboca,  venha 
d'onde  vier. 

Tem  de  notável  a  estatua  do  Porto  sobre  a  cornija 
do  paço  da  municipalidade,  cujo  archivo,  seja  dito  de 
passagem,  é  riquíssimo,  e  a  estatua  equestre  de  D.  Pe- 
dro IV,  levantada,  a  meio  da  praça,  de  1862  a  1865 
pelo  distincto  esculptor  Calmells,  a  quem  se  devem  os 
baixos  relevos,  abertos  em  mármore  de  Carrara.  Mede 
o  monumento  dez  metros  de  altura,  e  a  estatua  é  de 
bronze,  fundido  por  uma  companhia  belga. 

Tomemos  o  fôlego,  e  subamos  pela  rua  de  Santo  An- 
tónio, o  Chiado  portuense,  pelo  esplendor  dos  seus  ar- 
mazéns, onde  ha  a  melhor  disposição,  muita  variedade 
e  luxo.  Desde  o  cristal  fino  atè  á  seda  lavrada,  desde  a 
jóia  atè  ao  chapéu  e  á  luva,  encontraremos  bom  sorti- 
mento. 

No  topo  entrámos  na  roa  de  Santa  Catharina,  talvez 
a  maior  do  Porto,  com  os  seus  oitocentos  e  tantos  nú- 
meros, e  tomámos  á  direita  para  chegarmos  á  praça  da 
Batalha. 

Demoremos-nos  um  pouco  a  examinar  a  estatua  pe- 
destre do  malogrado  rei  D.  Pedro  V,  o  convicto  e  fir- 
me liberal,  a  quem  a  cidade  d'este  nome  ergueu  uma  me- 
moria, pequena  de  mais  para  ennobrecer  o  homem,  mas 


141  NOTA*  A  LÁPIS 


significativa,  o  quanto  basta,  para  lhe  attestar  a  alta  ve- 
neração de  um  povo,  a  quem  o  amor  da  pátria  concede 
inimitáveis  privilégios. 

A  estatna  de  bronze,  que  data  egaalmente  de  4862, 
é  de  um  mérito  inferior;  eleva-se  em  meio  do  arvoredo 
da  praça,  n'uma  altura  de  dez  metros,  sobre  pedestal 
de  mármore,  assente  em  base  octogona,  cercada  de  gra- 
deamento de  ferro,  onde  ha  medalhões  com  as  legendas 
dos  principaes  subscriptores.  Nos  quatro  ângulos  de 
frente  figuram  as  armas  de  Portugal,  da  casa  de  Bra- 
gança, do  Porto  e  de  Saxe-Coburgo-Gotha,  e  nas  faces 
altos  relevos,  symbolisando  as  artes,  a  religião,  agricul- 
tura e  industria.  Além  de  outros,  leem-se  no  monu- 
mento as  datas  das  diflerentes  visitas  do  benemérito 
monarcha  á  cidade  invicta. 

Aqui  vemos  também  o  theatro  de  S.  João,  erguido 
no  tempo  de  D.  Maria  I,  em  1798,  o  qual,  apezar  da 
simplicidade  da  sua  architectura,  onde  apenas  se  dis- 
tinguem as  armas  portuguezas  bem  escolpturadas,  tem 
um  lugar  distincto  entre  as  melhores  edificações.  Elle  e 
a  estatua  formam  um  contraste  notável  com  o  nome 
da  praça,  pois  que  ambos  representam  batalhas  sim- 
plesmente pacificas,  e  altamente  civilisadoras — as  da 
arte,  que  tinha  um  formoso  culto  na  alma  adorável  do 
desditoso  príncipe  e  uma  decidida  preferencia  nos  gos- 
tos do  desembargador  Francisco  de  Almeida  e  Mendon- 
ça, iniciador  d'aquelle  bello  edifício,  em  cujo  tecto,  por 
meio  da  pintura,  se  presta  homenagem  aos  talentos 
dramáticos  e  litterarios  de  Camões,  Gil  Vicente,  Ba- 
ptista Gomes  e  Garrett. 

Regressámos  ao  hotel  de  Bntre-Paredes,  onde,  como 
nos  demais,  desde  o  sul  ao  norte,  salva  alguma  villa 
ou  povoação  insignificante,  notámos  com  tristeza  o  es- 
tar <juasi  inteiramente  banida  a  tradicional  e  succuleata 
cosinha  portugueza. 

Nem  admira  isto,  desde  que  a  mania  estrangeiro- 
phobica  invadiu  as  próprias  casas  de  educação,  onde  o 
estudo  da  língua  nacional  é  desdenhado  a  par  dos  idio- 


NO  PORTO  145 


mas  europeus  mais  em  voga;  vae  atravessando  as  in- 
dustrias e  chegando  aos  costumes. 

Producto  fabril,  que  tenha  marca  importada  de  fora, 
entra  sem  dificuldade  no  consumo  diário;  a  roupa,  que 
vestimos,  obedece  a  uns  nomes  arrevesados,  em  feitio 
e  qualidade,  segundo  o  catalogo  das  fabricas  alheias; 
só  ha  boas  camas  á  franceza,  cadeiras  á  austríaca,  mo- 
veis á  ingleza;  e  assim  tudo  o  mais,  que  tem  colação 
nos  círculos  da  moda,  uma  cousa  pantafaçuda,  que  os 
próprios  estrangeiros,  que  nol-a  dão,  não  querem  para 
seu  uso. 

E'  que  a  galinha  do  nosso  visinho,  embora  magra  e 
depenada,  é  sempre  melhor  do  que  a  nossa  — lá  diz  o 
povo  miúdo,  o  que  não  entra  no  mundo  patarata,  o 
guarda  inquebrantável  de  alguma  cousa  boa,  que  ainda 
possuem  os  nossos  costumes. 

* 
*      * 

De  tarde  transportamos-nos  em  americano,  vehiculo 
para  que  os  annaes  da  nomenclatura  pátria  não  acha- 
ram também  uma  palavra  adequada,  um  óptimo  serviço 
que  nada  Gca  a  dever  aos  mais  bem  organisados,  e  di- 
rigimos-nos  ao  Palácio  de  Cristal. 

Para  os  que  conhecem  o  génio  dos  nossos  capitalis- 
tas, para  quem  ainda,  ha  annos,  o  único  lugar  seguro 
do  seu  erário  era  a  perna  de  meia,  escondida  na  taboa 
movei  dt>  soalho,  ou  a  panella  de  barro,  enterrada  ao 
canto  da  lareira,  e  que  ainda  hoje  não  aventuram  di- 
nheiro senão  em  emprezas,  onde  o  lucro  tenha  uma 
probabilidade  de  oitenta  e  cinco  contra  cem— será  uma 
cousa  estranha  que,  de  1861  a  1865,  se  transformasse 
aquelle  sitio  do  que  era  então  para  o  que  se  nos  mos- 
tra agora. 

O  edifício,  desenhado  pelo  architecto  inglez  Sheidls, 
occupa  uma  superfície  de  7957  metros  quadrados;  cons- 
ta de  um  corpo  central,  que  se  prolonga  em  todo  o 

10 


446  NOTAS  A  LÁPIS 


comprimento,  e  pode  conter  dez  mil  pessoas,  e  de  dois 
lateraes,  terminados  por  quatro  pavilhões  quadrados.  As 
três  naves  são  destinadas  ás  exposições  constantes  ou 
periódicas,  e  o  grande  numero  de  salas  e  o  pavimento 
térreo  a  theatro,  bilhar,  gabinetes  de  leitura,  e  descan- 
ço,  galeria  de  quadros,  refeitórios,  cosinhas  e  arreca- 
dações. 

E  flcâmos-nos  por  aqui,  porque  não  ha  quem  Mo  co- 
nheça, de  vista,  por  desenho  ou  descripção,  o  palácio, 
onde  se  organisou  a  maior  das  nossas  exposições. 

Quando  entrámos  no  salão  do  theatro  Gil  Vicente, 
procedia-se  a  um  leilão  de  prendas»  a  favor  da  socie- 
dade humanitária  dos  bombeiros. 

A  concorrência  era  medíocre;  os  objectos  expostos 
numerosos  e  excellentes,  sobresaindo  entre  elles  valio- 
sos trabalhos  manuaes  do  bel  lo  sexo  em  cerâmica,  ta- 
peçarias e  bordados. 

Nos  primeiros  avultava,  como  mais  notável,  um  ser- 
viço completo  de  jantar,  cuja  execução  era  primorosa, 
especialmente  nas  fructas  e  nos  assados. 

A  visita  ao  restauram  e  ás  duas  naves  lateraes,  onde 
a  preço  fixo  ha  mercadorias  de  todo  o  género,  em  ex- 
tensos bazares,  deixou-nos  boa  impressão,  e  fez-nos  de- 
sejar que,  por  influencia  particular  ou  governamental— 
aquelle  centro  de  verdadeiro  progresso  e  utilidade  pu- 
blica chegasse  a  adquirir  a  prosperidade,  de  que  é  me- 
recedor. 

O  que  ninguém,  que  o  não  tenha  visto,  pôde  conce- 
ber porém,  è  a  belleza  do  local  e  os  accessorios,  que  o 
guarnecem  á  custa  de  muitos  capitães,  de  que  sabemos 
não  haver  lucro  para  os  respectivos  accionistas,  seja  dito 
em  honra  sua. 

Não  estaria  o  Porto,  muito  aferrado,  como  sempre  foi, 
aos  seus  hábitos  de  pachorra  caseira,  preparado  ainda 
para  receber  e  apreciar,  como  devia,  aquelle  notável 
melhoramento,  d'onde  se  di^fructa  um  quadro  extraor- 
dinariamente bello,  por  poético  e  risonho? 

Não  estava.  Tem-n'o  demonstrado  os  esforços  e  sa- 


MO  PORTO  147 


crificios  de  uma  dúzia  de  pessoas,  para  attrair  a  con- 
corrência, improvisando  festas,  estabelecendo  bazares, 
organisando  concertos,  promovendo  vários  certamens 
artísticos  e  agrícolas,  fomentando  toda  a  espécie  de  in- 
centivo para  conservar  e  melhorar. 

A  sua  grande  avenida,  a  matta,  as  grutas  e  os  jar- 
dins, suspensos,  como  por  encanto,  sobre  um  monte  de 
granito,  cortado  a  prumo,  a  olharem  para  o  Douro,  on- 
de se  reflectem  os  extensos  e  formosos  panoramas  da 
outra  banda,  povoações  rústicas,  arvoredos  sem  conta, 
oiteiros  coroados  de  verdura,  o  Gandal,  Gaya,  a  histó- 
rica e  memorável  serra  do  Pilar— o  que  nos  parece  for- 
mar uma  segunda  cidade  separada  pelo  rio  e  posta  em 
communhão  de  hábitos  pelas  suas  duas  pontes,  á  es- 
querda —  e  todo  aquelle  estendal  de  bellezas,  desde  a 
serra  da  Arrábida  atè  aos  areaes  de  Cabedello— são  cou- 
sas, que  nos  namoram,  que  nos  prendem,  que  nos  se- 
duzem. 

Esperemos  a  hora  do  pôr  do  sol,  sigamos  pela  ave- 
nida, paremos  um  pouco  defronte  da  capei  la  do  desdi- 
toso rei  da  Sardenha,  Carlos  Alberto,  edificada  no  local 
onde  foi  a  Torre  da  Marca,  pela  dedicação  de  sua  irmã, 
Augusta  de  Montlear,  ao  gosto  e  desenho  italianos.  Con- 
templemos, se  estiver  aberta,  a  bella  e  correcta  imagem 
de  mármore,  que  retrata  S.  Carlos  Borromeu,  e  teve  a 
mesma  procedência  e,  se  o  não  estiver,  toda  aquella 
formosa  e  leve  construcção  de  bom  granito;  consagre- 
mos um  pensamento  de  respeito  á  memoria  do  illustre 
exilado,  e  prosigamos  atè  ao  lugar  alcantilado,  em  cujo 
cimo  ha  bancos,  que  nos  offerecem  toda  a  commodidade. 

Sentemos-nos,  e  estendamos  a  vista  para  a  frente. 

Accendem-se  as  luzes  na  cidade;  e  por  cima  das 
aguas,  da  casaria  e  dos  montes,  espalha-se,  em  ondu- 
lações tépidas,  a  luz  palpitante  de  um  formoso  luar. 

Obi  quadro  magico  de  um  effeito  indescriptivel  i 
quem  poderá  contemplar-te  uma  vez  que  não  sinta  aba- 
lados todos  os  recessos  da  alma,  e  não  traga  comsigo 
uma  recordação  indelével  das  tuas  tintas  divinas? 


148  NOTAS  A  LÁPIS 


O'  espíritos  sonhadores,  corações  ideaes,  se  alli 
áquella  hora,  não  sentirdes  as  suaves  emanações  de  mi* 
lbares  de  philtros,  que  vos  embriaguem,  è  que  tendes 
vasias  as  artérias  do  sentimento,  e  estaes  prestes  a  cair 
na  sepultura,  que  vos  cava  a  morte  moral  i 


II 


0  Atheneu  Portuense.  —  A  bibliotheca. 
Um  suicídio  frustrado.— O  cemitério  do  Repouso.— Os  co- 
cheiros. —  O  paço  episcopal  e  a  Sé. 


Ao  outro  dia,  começámos  pela  pequena  egreja  de  S. 
Lazaro,  onde  só  ba  de  interessante  a  gradaria  do  coro, 
em  cujo  centro  figura,  em  altar  dourado,  a  imagem  do 
Anjo  Custodio;  atravessámos  o  jardim,  onde,  apezar  do 
acanhado  do  sitio,  se  reúne  muita  gente,  e  dirigimos-nos 
ao  Atheneu  Portuense,  pertencente  á  academia  das  Bel- 
las  Artes. 

É  muito  pobre.  Alem  da  espada  de  Affonso  Henri- 
ques, da  escrivaninha  de  frei  Bartholomeu  dos  Martyres, 
chapéu  e  óculo  de  D.  Pedro  IV,  três  ou  quatro  quadros, 
o  modelo  em  gesso  da  estatua  do  conde  de  Ferreira  e 
uma  soffrivel  collecção  de  gravuras — não  tem  cousa  que 
interesse. 

Subimos  á  bibliotheca  publica  que  nos  pareceu  muito 
bem  cuidada,  e  está  a  requerer  maior  espaço. 

Se  attendermos  á  sua  curta  duração,  que  data  de 
4833,  não  encontramos  alli  senão  motivos  para  louvor. 

E'  numerosa  a  sua  collecção  de  livros,  que  sobe  a 
mais  de  200:000,  apezar  dos  furtos,  que  se  dizem  pra- 


NO  PORTO  149 


ticados  no  género  e  nos  quadros  das  ordens  religiosas, 
em  1834,  e  afora  uns  mil  e  tantos  manuscriptos,  entre 
os  quaes  ba  alguns  curiosíssimos,  que  pertencem  a 
Santa  Cruz,  de  Coimbra. 

O  que  tem  o  n.°  32  é  o  Testamentum  Vetus,  contendo 
os  livros  sagrados  até  ao  2.°  dos  Machabeus,  escriptos 
em  três  columnas;  conta  367  folhas  de  pergaminho,  e, 
aberto,  4  palmos. 

O  n.°  432  é  o  Livro  de  Brazões,  feitos  em  desenho 
colorido,  copia  do  que  possuía  D.  Duarte,  neto  de  D.  Ma- 
nuel, e  tem  1582  folhas. 

O  n.°  475,  escripto  em  grego,  hebraico,  syriaco,  ará- 
bico e  etbiopico,  apresenta  magnificas  iliuminuras  do 
punho  de  frei  Pedro,  cónego  de  Santa  Cruz,  de  Coimbra. 

Nas  suas  antiguidades  tem  a  bibliotheca  uma  obra 
rara  e  preciosa,  a  Vita  Cristi,  primeiro  livro,  impresso 
em  Portugal,  com  gravuras  em  madeira,  por  frei  Ber- 
nardo de  Alcobaça,  em  1495. 

Encontrámos  também  alli  uma  collecção  de  moedas 
romanas,  pertencentes  ao  museu,  onde  não  cabem,  e 
bastantes  medalhas  commemorativas  de  varias  épocas. 

* 
*      * 

D'alli  descemos  ás  Fontainhas,  onde  bebemos  a  me- 
lhor agua  do  Porto,  em  fonte,  mandada  construir,  ao 
mesmo  tempo  do  aterro,  muralha  e  plantação  do  arvo- 
redo, pelo  já  citado  iniciador  do  theatro  de  S.  João,  o 
desembargador  Mendonça,  em  1790,  e  assistimos  a  um 
coro  de  lavadeiras,  que  de  saia  arregaçada,  perna  gorda 
e  retinta,  ar  jovial  e  leiemente  satyrico,  entoavam  á 
borda  do  tanque  o  ladrão  do  negro  melro. . . 

Gosa-se  dali  um  melancólico,  mas* não  menos  at- 
traente  panorama. 

Quizemos  ver  de  perto  a  ponte  melallica,  e  fomos 
sentar- nos  ao  pè  das  magestosas  ruinas  do  projectado 
seminário  episcopal.  . 


100  NOTAS  À  LÁPIS 


Quando  admirávamos  aquella  obra  gigantesca,  veia* 
nos  aos  lábios  um  sorriso  involuntário. 

Quem  nos  visse  poderia,  sem  o  saber,  tomar  por  me- 
nospreço  o  que  somente  era  filho  de  uma  recordação 
repentina. 

Fora  o  caso. 

Aqui,  ha  uns  poucos  de  annos,  o  nosso  amigo  E.  G., 
tão  bom  de  coração  como  arrebatado  de  génio,  um  es- 
tróina de  vulto  nos  seus  tempos  de  rapaz,  passeiava 
com  um  individuo  das  suas  relações  por  detraz  d'aquel- 
las  ruinas. 

Passando  a  porta,  adiante  da  qual  nos  achávamos» 
pararam  os  dois,  tomados  de  surpreza. 

O  que  tinham  elles  visto? 

A  poucos  passos,  á  borda  d'aquelle  medonho  pe- 
nhasco, que  se  debruça  para  a  estrada  marginal  do  rio, 
onde  o  vulto  de  um  homem  nos  parece  o  de  uma  creança, 
estava  um  individuo  a  limpar  os  olhos,  e  a  fazer  por 
vezes  o  signal  da  cruz. 

E'  um  desalmado,  que  tenta  suicidarse  —  disse  E. 
6.,  e  precipitou-se  sobre  o  homem,  agarrando-o  pela  gola 
da  jaqueta. 

—Deixe-me,  senhor;  quero  matar-me...  deixe-me — 
gritava  este. 

—Mas...  que  diabo!  você  endoideceu? 

— Não,  não  estou  doido...  sei  bem  o  que  faço...  não 
quero  viver. 

— Pois  sim,  mas...  accomode-se...  e  conte  nos  o 
que  lhe  fizeram— insistia  E.  6.,  sem  o  largar. 

— Não,  posso. . .  deixe-me. 

— Querem  ver  que  é  uma  questão  de  amores?. . .  A 
sua  Dulcinea  não  lhe  corresponde?  atraiçoou-o?  Está  apai- 
xonado? Accomode-se...  esteja  quieto...  senão... 

—Estou  apaixonado,  sim  senhor.  E  o  que  tem  o  se- 
nhor com  isso? 

— N'esse  caso  é  um  tolo.  Ouça  a  voz  da  razão.  Pois 
você  não  vê,  que,  morrendo,  deixa  o  campo  livre  á  sua 
aquella.. .  e...         # 


NO  POBTO  404 


Novo  empuxão  do  rapaz,  que  não  attendia  a  reflexões, 
e  se  obstinava  em  querer  despedir-se  do  mondo. 

—Ah!  pois  elle  é  isso  — terminou  E.,  a  rir.— Eu  já 
lhe  fallo. 

E  dito  e  feito,  empurrou  o  homem  para  terreno  firme, 
e  começou  a  zurzil-o  desapiedadamente,  sem  conta,  nem 
medida. 

Ao  fim  de  alguns  segundos,  a  victima  pedia  por  to- 
dos os  santos  que  lhe  não  batessem  mais. 

G...  segurou-o  de  novo,  e  perguntou-lhe  se  ainda 
teimava  em  suicidar-se,  para  recomeçar  a  pancadaria» 
que  o  seu  génio  estróina  reputava  uma  justa  correc- 
ção. 

O  pobre  diabo,  como  era  natural,  respondeu  negati- 
vamente. 

—  Pois  então  ande  lá  comnosco — concluiu  G.,  fa- 
zeodo-o  caminhar  adiante  de  si. 

Chegados  á  primeira  estação  policial,  entregou-o  alli, 
com  estas  palavras : 

— Aqui  teem  este  pobre  apaixonado,  que  nós  encon- 
trámos a  querer  despenhar-se  no  Douro.  Eu  já  lhe  ap- 
pliquei  uma  boa  esfrega ;  vejam  agora  por  cá  se  lhe  aca- 
bam de  curar  a  mania  do  suicídio. 

— E  o  caso  é — dizia-nos  G.  muitos  annos  depois»  ainda 
a  rir — que  o  sujeito,  toda  a  vez  que  me  encontrava, 
desfazia-se  em  cumprimentos,  que  eram  naturalmente 
om  vivo  testemunho  de  agradecimento  á  lição,  que  lhe 
dei. 

# 
#      # 

Deixando  as  ruinas,  que  ainda  podiam  ser  vantajo- 
samente aproveitadas,  caminhámos  para  o  Prado  do  fle- 
pouso,  um  vasto  cemitério,  muito  povoado  de  arvoredo, 
por  onde  adeja  a  poesia  fúnebre,  que  vela  o  somno  eterno 
dos  mortos,  interrompido  ás  vezes  pelo  riso  desculpá- 
vel de  um  ou  outro  visitante,  que  não  pode  deixar  de 


152  NOTAS  A  LÁPIS 


descer  da  sua  gravidade,  ao  ler  alguns  epitapbios,  vasios 
de  senso  commum  e  grammatica,  como  os  seguintes, 
que  servem  de  panno  de  amostra : 

A  MEMORIA  DE  MARTA  DA  LUS 

CARRAMILLO  VEIO  AO  MUNDO  LAVARÇE 

DO  PECGADO  VOÀO  AO  CEU  GOSAR 

A  GLORIA  SEU  AVO— M.  P.  N. 

MORESTEME  NÓS  BRAÇOS,  NETO I  QUERIDO. 
QUANTAS  DORES,  MEIO  PEITO  TEM  SENTIDO. 
QUE  LAGRIMAS,  QUE  SAUDADES  TENHO  SOFRIDO. 
HE  A  PAIXÃO  MAIS  FORTE  QUE  TEM  HAVIDO. 

Este  terreno,  chamado  o  Prado,  pertenceu  á  cerca  do 
antigo  seminário  episcopal,  e  servia  para  passeio  dos 
estudantes. 

A  capella,  venerável  pela  sua  antiguidade,  pois  data 
cTesse  tempo,  è  de  uma  exquisila  apparencia  exterior  e 
interiormente  um  bello  octogono,  com  o  seu  altar  de 
mármores  variados  e  um  elegante  coreto. 

Entre  os  numerosos  mausuleus  figura  um  realmente 
curioso,  o  sepulchro  de  Baquet,  a  quem  pertenceu  o 
theatro  do  mesmo  nome,  um  simples  alfaiate  hespanhol, 
que  se  distinguiu  pelo  seu  amor  ás  artes.  Representa  uma 
gruta,  artisticamente  feita  de  pedra  tosca,  completa  e 
exteriormente  coberta  de  heras  e  trepadeiras,  tendo  ao 
cimo  o  seu  busto  em  bronze,  a  sair  dentre  a  folhagem. 
Fecha-lhe  a  entrada  uma  grade  de  ferro,  fingindo  ramos 


A'  saída  do  cemitério,  tomámos  um  trem  de  praça, 
incidente,  que  não  merecia  as  honras  de  uma  linha,  se 
não  tivéssemos  de  mencional-o  com  louvor. 

Costumado  á  repellente  e  avinhada  figura  do  cocheiro 
de  Lisboa,  tirado  de  ordinário  á  classe  dos  criados  sem 
préstimo,  um  ente  grosseiro  e  sem  pudor,  um  maltra- 
pilho arbitrário  no  serviço,  que  executa,  sem  tabeliã, 
nem  policia,  uma  espécie  de  salteador  legal,  que  para 
extorquir  dinheiro  ás  victimas  desce  ao  impropério  e 


r 


NO  PORTO  153 


ao  insulto  dê  taberna,  especialmente  se  um  individuo 
qualquer  leva  senhoras  em  sua  companhia  —  confessá- 
mos que  foi  a  medo  que  nos  dirigimos  ao  primeiro  co- 
cheiro do  Porto,  quando  isso  nos  foi  absolutamente  ne- 
cessário. 

Toda  a  vez  porém  que  o  fizemos,  ao  tratar  de  ajuste, 
recebemos  sempre  em  resposta;— E'  o  preço  da  tabeliã; 
eil-a  aqui  está. 

O  resto  era  entregue  á  generosidade  do  freguez. 

Ora  isto  com  prebende- se,  e  è  próprio  de  todas  as  ci- 
dades, onde  a  policia  superintende  escrupulosamente 
nos  ramos  de  serviço  publico,  que  lhe  são  adstrictos. 

Perguntem  ao  cocheiro  de  Lisboa  pela  sua  tabeliã. 
Ou  não  lha  dá,  ou  não  responde  sequer,  e  no  ajuste 
final  mostra-se  tal  qual  é. 

—Mas  o  senhor  é  que  tem  a  culpa ;  queixe-se  á  po- 
licia— diz  muita  gente. 

Pois  um  homem  limpo,  em  lugar  muitas  vezes  reti- 
rado, onde  foi  á  pressa,  a  tratar  de  negócios,  ou  a  fazer 
uma  visita— a  troco  de  alguns  tostues,  desce  lá  a  ques- 
tionar com  semelhante  gente,  e  andar  á  procura  da  po- 
licia ? 

A  culpa  da  extorção  tem-na  ella,  tem-na  o  governo 
civil,  que  não  obriga  o  cocheiro  da  praça  a  trazer  en- 
caixilhada e  segura  no  interior  da,  carruagem,  d'onde 
elle  a  não  possa  tirar,  quando  quizer,  a  respectiva  ta- 
beliã, como  se  usa  nas  principaes  cidades  do  mundo. 


Mas...  subamos  ao  palácio  episcopal,  um  edifício  vasto, 
apezar  de  incompleto,  e  examinemos  a  soberba  escada- 
ria, que  tamanha  fama  lhe  dá,  e  que  constitue  o  seu 
principal  adorno.  O  primeiro  lanço  tem  25  degraus  de 
pedra  inteira,  com  11  pés  de  comprimento  e  dois  de 
largura,  e  outros  tantos  em  cada  lanço  dos  que  sobem  ao 


I5&  NOTAS  A  LÁPIS 


pavimento;  a  copula  que  os  cobre,  è  imponente,  como 
lhe  competia  ser. 

N'este  local  existia  um  castello,  ou  fortaleza,  que  se 
diz  fundada  pelos  suevos  ou  pelos  romanos,  antes  da 
era  christã.  Pelo  anno  1000,  o  bispo  de  Vandoma,  e 
mais  ao  diante  do  Porto,  construiu  alli  um  mosteiro, 
que  foi  ampliado  por  uns,  restaurado  por  outros,  até 
que  em  1771,  o  filho  do  quarto  conde  de  Valle  de  Reis, 
o  bispo  D.  João  Raphael  de  Mendonça,  cujas  armas  fi- 
guram sobre  a  janella  central  do  segundo  andar,  obe- 
decendo á  época  faustosa  de  D.  João  V,  mandou  arrasar 
as  antigas  edificações,  e  proceder  á  construcção  do  paço 
actual,  que  è  notável,  apezar  da  simplicidade  da  sua  ar- 
cbitectura. 

Das  janellas,  que  dão  para  o  rio,  abrange-se  um  pa- 
norama, que  reputámos  superior,  salvas  certas  e  deter- 
minadas condições  especiaes,  ao  que  se  gosa  do  Palácio 
de  Cristal. 

Das  proximidades  da  Foz  até  ás  de  Avintes,  pasma-se, 
livre  e  desafogadamente,  diante  de  uma  das  principaes 
bellezas  das  margens  do  Douro,  que  entra  no  quadro 
vastíssimo,  como  ornamento  principal,  ao  lado  do  Pilar, 
Villa  Nova,  Gaia,  Candal,  ambas  as  pontes  e  uma  grande 
parte  da  cidade. 

Desçamos,  e  entremos  na  egreja  da  Sé,  a  poucos  pas- 
sos da  residência  episcopal. 

Não  se  conhecem  bem  os  princípios  d'este  templo 
sumptuoso,  concluindo-se  por  affirmar  qye  a  edificação, 
damnificada  pelos  árabes,  ao  tempo  do  conde  D.  Hen- 
rique, foi  reformada  desde  os  alicerces  por  este  e  sua 
mulher,  D.  Thereza,  ahi  por  1108. 

Os  acrescentamentos  e  restaurações  posteriores  al- 
teraram a  obra  de  D.  Henrique,  de  cuja  época,  ao  que 
se  diz,  só  restam  as  duas  torres,  os  gigantes  que  as 
supportam,  o  granito  das  Ires  naves,  e  uma  imagem  de 
Nossa  Senhora,  que  se  vê  n'um  altar  debaixo  do  coro, 
imagem  de  pedra,  achada  entre  umas  silvas,  tosca  ao 
principio  quando  se  suppõe  ter  sido  divindade  pagã,  e 


NO  PORTO  IN 


aperfeiçoada  mais  tarde,  quando  começou  a  ser  vene- 
rada especialmente  pela  mulher  de  D.  Affonso  Henri- 
Sues,  D.  Mafalda,  que  lhe  legou  as  suas  jóias  e  vesti- 
os. 

No  conjuncto,  ha  portanto  differentes  estylos  de  ar- 
chitectura,  mais  ou  menos  discordes,  sobresaindo  em 
belleza  e  harmonia  a  capellamór,  cuja  divisão  é  feita 
por  grade  de  bronze  lavrado  e  balaustres  de  mármore 
preto,  as  três  naves  sustentadas  por  grossas  columnas 
formadas  de  outras  mais  delgadas,  o  claustro  e  a  sa- 
.  cristia. 

A  capella-mór  foi  ordenada  pelo  bispo  frei  Gonçalo 
de  Moraes  em  1609,  pelo  risco  de  um  discípulo  de  Mi- 
guel Angelo,  o  architecto  Valentim,  a  quem  se  devem 
os  bellos  mármores  pretos,  roxos,  encarnados  e  bran- 
cos, espalhados  pelas  cornijas  e  pavimento. 

A  excellente  bancada,  que  fica  aos  lados  do  altar,  è 
de  jacarandá,  guarnecido  de  metal  amarello ;  o  quadro 
da  direita,  que  nos  pareceu  bom,  representa  Santa  Ma- 
falda, em  adoração  á  Virgem. 

O  claustro,  mandado  fazer  em  1385  pelo  bispo  D. 
Joio,  terceiro  d'este  nome,  com  ajuda  do  município,  é 
uma  preciosidade  de  puro  gothico,  uma  reliquia,  de  que 
Bâo  conhecemos  similar,  e  a  que  dá  um  tom  especial  a 
multiplicidade  das  suas  columnatas,  em  numero  de  304, 
ligadas  em  molho,  como  as  das  naves,  mas  ainda  com 
maior  graça  e  correcção.  Tem  capellas  nos  ângulos  e 
bellas  paredes,  guarnecidas  de  bons  azulejos,  onde  es- 
tão pintadas  algumas  passagens  do  Velho  Testamento. 

A  sacristia  é  vasta  e  bem  ornamentada. 

Aos  lados  da  porta,  fontenarios  de  mármore,  ao  centro 
mezas  do  mesmo  calcareo,  nas  paredes  quadros  sacros, 
no  tecto  pinturas  a  fresco,  a  uma  banda  grandes  e  ópti- 
mos contadores  de  jacarandá,  marchetados  de  bronze  dou- 
rado; no  topo  um  bel  lo  Cbristo  e  um  quadro  da  Virgem, 
attribuido  na  máxima  parte  a  Raphael.  E  dizemos  assim, 
porque  ha  quem  assevere  que  elle  o  deixara  incompleto, 
depois  de  dar  os  últimos  toques  á  magnifica  e  soberba 


156  NOTAS  A  LÁPIS 


cabeça  de  S.  José,  faltando  apenas  as  mãos  da  Virgem. 
Effectivamente,  demorando- se  a  attenção  sobre  esta  ul- 
tima e  pequena  parte,  parece  evidente  que  alli  não  tra- 
balhou o  mesmo  pincel. 

A  capella  do  Santíssimo,  em  cujo  altar  se  guardam 
as  relíquias  de  S.  Pantaleão,  padroeiro  da  cidade,  é  ri- 
quíssima pelo  seu  retábulo,  sacrário  e  frontal  de  prata 
massiça  e  lavrada. 

De  prata  egual  são  as  varas  do  palio  de  custosissimo 
e  pesado  damasco  de  seda. 

Havia  alli  mais  seis  lâmpadas,  tocheiros  e  banquetas 
do  mesmo  metal,  levadas  pelos  francezes,  o  eterno  mote 
do  latrocínio  em  toda  a  península,  d'onde  desapparece- 
ram  innumeras  preciosidades  de  grande  valor  artístico 
e  monetário. 

Julga-se  porém  que  essas  jóias  e  alguns  paramentos 
da  sacristia  não  foram  todos  para  França,  repousando 
alguns  tranquilamente  nos  museus  inglezes  e  em  casas 
particulares  e  nacionaes,  cujos  chefes,  com  alliados  e 
invasores,  andaram  de  mão  commum  em  toda  a  sorte 
de  depredações. 

Uma  prova,  que  não  diz  respeito  a  estranhos. 

Numa  procissão,  que  se  costumava  fazer  de  sete  em 
sete  annos,  figurava  um  riquíssimo  cofre  de  prata,  em 
forma  de  galeão,  dado  por  D.  Manuel  para  guarda  das 
relíquias  do  padroeiro,  S.  Pantaleão,  um  objecto  que 
dizem  de  grande  valor  estimativo  e  artístico. 

N'um  bello  dia,  desappareceu  elle  da  própria  procis- 
são, já  depois  de  1834,  e  está  hoje  muito  bem  conservado 
e  estimado  n'um  museu  estrangeiro,  ao  que  se  affirma. 

A  este  respeito,  diz  Pinho  Leal,  no  seu  diccionario : 

t  Tinha  muito  que  faltar  sobre  o  roubo  d'este  cofre, 
o  que  não  faço  por  considerações,  sendo  a  principal  en- 
volver n'esle  abominável  crime  pessoas  de  alta  cathego- 
ria,  que  se  não  podem  defender  por  estarem  já  cobertas 
com  a  louza  da  sepultura.» 

A'  brilhante  exposição  de  Arte  Ornamental  mandou 
a  Sé  apenas  seis  objectos— uma  Cruz  relicário  de  prata 


NO  PORTO  157 


dourada  e  pedras,  uma  excellente  custodia  do  mesmo 
metal  esmaltado,  uma  urna  de  prata  favrada,  um  cálix, 
uma  casula  de  lbama  branca,  bordada  a  ouro,  e  uma 
capa  de  asperges,  que  foi  de  Santa  Cruz  de  Coimbra. 

E  para  o  que  precisa  de  coisas  artísticas  e  raras  quem 
com  semelhantes  exemplos  de  furtos  continuados  não 
reuniu  ainda,  n'um  só  lugar,  alguns  centos  de  reliquias, 
que  nos  Acaram,  e  que  andam  por  todo  o  paiz  á  merco 
de  confrarias,  ás  vezes  ignorantes  e  pouco  escrupulo- 
sas, e  de  tanta  gente,  que  as  não  sabe,  nem  pode  esti- 
mar? 

.Que  melbor  e  mais  precioso  museu  podia  inaugurar-se 
em  breve  do  que  aquelle,  que  tivesse  por  fim  encorpo- 
rar  n'um  só  edifício  todos  os  objectos  de  antiguidade, 
comprados  aos  seus  donos,  ou  garantidos  por  títulos 
de  propriedade? 

Alguns  restos  da  nossa  passada  grandeza  ainda  não 
ba  muito  tempo  obtiveram  em  Inglaterra,  a  cuja  expo- 
sição concorreram,  um  invegal  apreço,  despertando  a 
admiração  dos  verdadeiros  entendedores;  e  em  1882, 
quando  vieram  a  Lisboa,  em  maior  numero,  abi  servi- 
ram de  assombro  a  quem  teve  alma  para  os  saber  ava- 
liar. 

Não  será  isto  um  soberbo  argumento  a  favor  de  um 
museu  nacional  de  arte  decorativa,  ou  uma  exposição 
permanente,  onde  podessem  ser  vistos  e  bem  conserva- 
dos? 


158  NOTAS  À  LÁPIS 


III 


As  almas  da  ponte  de  pênsil. — 

A  alfândega  e  a  Bolsa.— Hospital  da  Misericórdia.— 

Duvidas  de  amante  e  sentimentos  de  pae. 


Dos  theatros  do  Porto  só  trabalhava  o  Príncipe  Real. 

Fomos  alli  ver  a  Perichole,  de  Offembach,  desempe- 
nhada por  companhia  menos  de  medíocre,  como  sSo 
todas  aquellas,  em  que  os  nossos  actores  dramáticos, 
com  raras  excepções,  tomam  parte  como  cantores. 

Continuámos  a  passeiar. 

De  volta  da  Outra  Banda,  depois  de  termos  atraves- 
sado a  ponte  pênsil  que  data  de  1842  detivemos-nos 
um  pouco  no  cães  da  Ribeira,  onde  o  quadro  das  al- 
mas nos  fez  condoer  da  triste  sorte  de  4000  desgraça- 
dos, que  alli  se  afundaram  em  29  de  março  de  1809, 
motivo  porque  em  dia  e  mez  eguaes,  a  irmandade  de 
S.  José  das  Taipas  vae  todos  os  annos  em  procissão 
celebrar  n'aquelle  sitio  piedosos  suffragios. 

A'  entrada  do  general  Soult,  começou  alguma  gente 
a  fugir  para  Villa  Nova  de.  Gaya,  e  depois  de  passar 
levantou  os  alçapões  da  ponte,  que  era  de  madeira  fir- 
mada sobre  barcas,  para  evitar  a  perseguição  dos  sol- 
dados francezes.  Os  fugitivos,  que  se  seguiram  em  tu- 
multo, ignorando  essa  circumstancia,  despenharam-se 
no  abysmo,  e  lá  ficaram  sem  vida. 

D'alli  seguimos  para  a  alfandega,  a  primeira  do  paiz, 
começada  a  construir  em  1859,  na  praia  de  Miragaya, 
á  borda  de  rio.  Tem  três  corpos  com  220  metros  de 
comprimento,  salas  baixas  e  altas,  onde  o  serviço  é 
auxiliado  por  excellentes  elevadores,  armazéns  especiaes 


NO  PORTO  189 

para  inflammaveis,  trilhos  de  ferro,  que  postos  em  linha 
dariam  kilometro  e  meio,  e  dois  grandes  subterrâneos, 
sustentados,  em  cada  um,  por  72  pilares  de  cantaria, 
n'uma  capacidade  de  2050  metros  quadrados. 

Retrocedendo  á  rua  de  Ferreira  Borges,  por  caminhos 
onde  tem  havido  uma  transformação,  que  parecerá  pro- 
digiosa a  quem  tiver  conhecimento  do  Porto  antigo,  en- 
trámos na  Bolsa. 

Palácio  rico,  encravado  nas  ruinas  do  convento  de 
S.  Francisco,  obedece  na  fachada  á  ordem  dórica,  e  no 
interior  a  uma  construcção  não  muito  regular  e  escor- 
reita. Para  o  .pateo  quadrangular  dão  galerias,  arcadas, 
portas  e  janellas  dos  diversos  pavimentos. 

Grande  parte  das  suas  salas  pode  considerar-se  um 
verdadeiro  capricho,  pela  obra  de  talha,  tectos  e  estu- 
ques, que  teem  tido  a  grande  utilidade  de  servirem  de 
escola  pratica  a  bons  artistas  nacionaes. 

O  salão  de  respeito  occupa  94  metros  quadrados;  as 
paredes  são  estucadas,  imitando  mármore,  e  estão  or- 
namentadas com  os  retratos  de  alguns  membros  da  fa- 
mília real;  o  tecto  é  almofadado  e  pintado  a  fresco,  com 
o  esmero,  que  fornece  ao  espectador  a  perfeita  seme- 
lhança do  relevo ;  e  o  pavimento  compõe-se  de  um  xa- 
drez de  bellas  madeiras. 

A  sala  nobre  ou  de  recepção  é  a  verdadeira  maravilha 
cTaquelles  trabalhos;  apresenta  a  forma  de  um  paralle- 
logrammo,  com  os  ângulos  cortados,  occupa  o  espaço  de 
342  metros  quadrados;  e  tem  á  roda  uma  galeria, 
assente  em  columnatas  e  formada  por  arcarias. 

Os  pavimentos  são  de  mosaico  de  madeiras  precio- 
sas, jacarandá,  pau  setim,  rosa,  plátano  e  mogno,  e  o 
estylo  geral  da  ornamentação  o  puro  mourisco,  o  fan- 
tasioso e  deslumbrante  estylo  do  Alhambra,  a  que,  no 
dizer  dos  entendidos,  não  è  inferior,  no  seu  pouco,  que 
se  pode  chamar  uma  habitação  encantada. 

As  paredes  e  os  tectos,  arcadas  e  cornijas  estão,  por 
completo,  estucadas  a  ouro  e  cores,  em  relevo  e  fundo 
branco,  ao  feitio  árabe;  e  nos  fechos  da  arcaria  avultam 


160  NOTAS  A  LÁPIS 


entre  arabescos  as  armas  dos  paizes,  com  que  temos 
maior  commercio. 

O  único  movei,  que  lá  vimos,  pois  a  sala  não  tinha 
ainda  accessorios  completos,  foi  uma  meza,  que  nos  dis- 
seram estar  destinada  ás  sessões  da  directoria,  e  que 
não  destoava  de  todo  aquelle  esplendor,  com  os  seus 
sumptuosos  embutidos  das  madeiras  dos  pavimentos  e 
ornatos  faciaes  relevados,  a  demonstrarem  uma  execução 
primorosa  e  verdadeiramente  excepcional. 

Em  muitos  casos  o  bairrismo  tradicional  dos  portuen- 
ses è  bem  cabido. 

Quando  admirávamos  a  perfeita  execução  cTaquelle 
deslumbrante  trabalho  moderno,  não  podemos  deixar 
de  tributar  elogios  a  quem  deveras  os  merecia,  con- 
cluindo por  estas  palavras : 

— Sim  senhor;  tudo  isto  faz  honra  aos  artistas  por- 
tuguezes. 

—Aos. . .  do  Porto. . .  aos  do  Porto  — disse,  com  a 
maior  naturalidade  (Teste  mundo,  um  amigo,  que  nos 
acompanhava. 

Não  podemos  deixar  de  rir,  e  comnosco  lodos  os  vi- 
sitantes, que  não  conheciam  ainda  até  que  ponto  se  pôde 
levar  uma  questão  de  preferencia. 

Quanto  a  nós,  ficámos  sabendo,  e  alli  patenteámos 
por  isso  o  nosso  pasmo,  que  o  portuense,  nas  suas  as- 
pirações exclusivistas,  tentava  emancipar-se  da  commu- 
nhão  portugueza. 

Abençoado  e  desculpável  bairrismo  porém  o  que  se 
firma  sempre  em  coisas. úteis,  que  podem  attestar  pro- 
gresso e  trazer  lustre  ao  nome  de  um  paiz ! 


#  » 


Na  egreja  de  S.  Francisco,  fundada  por  D.  Fernan- 
do, em  1383,  em  substituição  da  antiga,  e  muito  pro- 
tegida por  D.  João  1,  superabundam  os  ornatos  doura- 


MO  PORTO  161 

dos  e  obra  de  talha,  sobresaindo  entre  esta  as  arvores 
de  Jessé  e  os  quadros  dos  martyres  da  China  e  Marro- 
cos. 

Passando  cTalli  á  capella,  onde  ba  pinturas  de  Vieira 
Portuense,  tivemos  occasião  de  descer  ao  cemitério  sub- 
terraneo,  uma  antiguidade,  que  nos  maravilhou,  pois 
nunca  visitáramos  cousa  semelhante. 

Àpproximava-se  a  hora  dada  para  entrar  no  hospital 
de  Santo  António. 

Tomando  pela  rua  das  Flores,  a  antiga  rua  dos  ouri- 
ves e  mercadores  de  panno,  onde  nos  esperava  um 
mordomo,  que  obsequiosamente  se  offerecera  para  nos 
acompanhar,  em  breve  nos  achámos  ao  extremo  do  lar- 
go da  Cordoaria,  em  face  da  grandiosa  e  imponente 
frontaria,  que  já  nos  havia  estasiado. 

Na  verdade  quem  contemplar  aquella  fachada  collos- 
sal,  dividida  em  três  grandes  corpos,  deve  suppôr  ma- 
ravilhas por  detraz  da  sua  extructura. 

No  entanto. . .  oh  I  desillusão ! . . .  sentimos  o  effeito 
de  uma  miragem  enganadora  ao  penetrar  no  interior  do 
hospital,  onde  nada,  absolutamente  nada,  a  não  ser  a 
caridade  lá  exercida,  corresponde  á  grandeza  admirável 
do  exterior. 

Enfermarias  acanhadas,  4  excepção  de  umas  quatro 
recentemente  feitas,  salas  pequenas,  estreitas  escadarias 
de  madeira,  escaninhos,  mesquinhas  divisões,  corredo- 
res sem  razão  de  ser— tudo  comparativamente  nos  fez 
cair  das  nuvens. 

Não  conhecemos  o  plano,  e  nada  sabemos  das  razões 
que  sustaram  as  obras  d'aquelle  edifício,  começado  em 
1770;  quer-nos  parecer  porém,  e  o  incompleto  d'elle  o 
attesta,  que  o  plano  interior  não  foi  riscado  pela  mão 
que  delineou  e  executou  a  frontaria. 

Ao  regressar  da  sua  lavanderia  a  vapor,  fomos  assis- 
tir, em  presença  do  escrivão  e  do  mordomo  de  servi- 
ço, á  distribuição  do  jantar  para  600  doentes. 

Não  se  podem  requerer  maior  perfeição  e  brevidade, 
nem  exigir  melhor  qualidade,  maior  abundância  e  va- 
li 


161  NOTAS  A  LÁPIS 


riedade  de  comida,  que  provámos  detidamente,  desde 
a  primeira  á  ultima  espécie. 

Pondo  de  parte  senões,  de  que  ninguém  tem  culpa 
actualmente,  podemos  affirmar  que  é  suprema  honraria 
para  os  portuenses  o  poderem  estipendiar  um  hospital 
de  caridade  d'aquella  magnitude. 

Facto  extraordinário,  que  pela  primeira  vez  nos  acon- 
teceu em  estabelecimentos  d'aquella  natureza— a  comi- 
da attraiu-nos,  conseguindo  despertar  um  appetite.  que 
raramente  nos  visita. 

« 
*    *  * 

Chegámos  tarde  ao  botei. 

Quando  procurámos  um  companheiro,  com  quem  lo- 
go nos  primeiros  dias  tomámos  intimo  conhecimento, 
havia  elle  descido  ao  quarto,  a  fazer  o  seu  café,  cousa 
que  não  concedia  a  outrem,  por  mais  virtudes  que  visse 
attribuir  ao  café  alheio. 

Depois  de  comer,  fomos  bater-lhe  á  porta,  em  busca 
da  costumada  palestra. 

—Entre—disse  elle,  depois  de  nos  ter  reconhecido  a 
voz. 

Homem  dos  seus  cincoenta  annos,  com  todo  o  vigor 
de  uma  edade  mais  curta,  tinha  a  pbysionomia  expres- 
siva de  quem  a  si  deve  aquillo  que  vale. 

A  praticada  vida  adquirira-a  elle  na  America  do  Sul, 
d'onde  lhe  vinham  os  proventos  de  uma  soffrivel  abas- 
tança. 

De  hábitos  simples,  conseguira  viver  socegadamente 
uns  três  ânuos  em  Paris,  d'onde  viera  havia  oito  me- 
zes. 

Tinha  porém  a  mania  de  nSo  acreditar  no  que  lhe 
diziam,  nem  mesmo  no  que  via,  em  pontos  de  gravi- 
dade, senão  depois  de  uma  prova  cabal  e  irrefutável; 
era  o  seu  fraco. 

Por  tanto  dava-se  ás  vezes  ares  de  demasiado  des- 
crente. 


NO  PORTO  163 

Ao  entrar,  encontrámol-o  com  os  cotovelos  apoiados 
na  mesa  e  a  cabeça  entre  as  mãos,  a  fixar  um  papel 
aberto,  qae  nos  pareceu  uma  carta. 

—Não  pôde  ser  I—  disse,  como  final  de  um  monolo- 
go, qae  devia  ter  sido  violento,  e  levantou-se  distraida- 
mente, para  nos  cumprimentar. 

O  álcool  da  cafeteira  ardia  na  trempe,  collocada  so- 
bre uma  commoda. 

Nos  olhos  e  em  todo  o  rosto  d'aquelle  homem  havia 
signaes  de  profunda  commoção,  luz  e  sombras,  que  elte 
nio  sabia  encobrir. 

—Seriamos  importuno?  —  Foi  o  que  a  nós  mesmo 
perguntámos. 

Vendo-nos  um  pouco  embaraçado,  procurou  domi- 
nasse, e  sentou- se  comnosco,  convidando-nos  a  parti- 
lhar do  café,  a  sua  predilecta  beberagem. 

—Obrigado— respondemos. — Bem  sabe  que  as  pres- 
cripções  do  medico. . .  me  não  deixam  ter  esse  prazer. 
Mas...  eu  retiro-me...  cuido  que  ia  escrever...  e 
por  isso. . . 

—Nada,  não  senhor;  fique,  peço-lh'o  eu.  Uma  carta, 
chegada  hoje... 

Suspendeu-se,  tomou  da  carta  e  começou  a  dobral-a, 
dando  lhe  vários  piparotes,  e  continuando:— Uma  carta, 
como  ha  muitas...  uma  farça... 

E  levantou-se  para  acudir  á  cafeteira  em  ebulição. 
Preparou  cuidadosamente  um  chávena  do  que  elle  cha- 
mava—  a  sua  cachaça  —  e  voltou  a  sentasse,  com  ella 
na  mão. 

—Ora  diga-me— recomeçou  depois  do  primeiro  gole 
— o  senhor  nunca  teve  fraquezas  na  sua  vida? 

—Se  tive  fraquezas...  Eu...  eu... 

—Sim,  fraquezas.  Ha  dois  dias  apenas  que  nos  co- 
nhecemos*., e  fazer-lhe  assim  uma  pergunta  d'estas... 
confesso  ser. . .  o  que  quizer. • .  um  atrevimento. .  • 
um  simples  contrasenso...  uma  leviandade... 

— Mas,  sr.  B... 

—Nada...  não  me  diga  nada.  Fraquezas...  todos 


164  NOTAS  A   LÁPIS 


nós  as  temos,  e  eu  devo  á  maior  da  minha  vida  a  si- 
tuação do  meu  espirito. 

—Não  tenho  direito  a  confidencias;  não  necessito  pois 
que  justifique  a  sua  pergunta. 

—Mas  eu  é  que  quero,  e  preciso  dizer-lbe  tudo.  A 
minha  pratica  do  mundo  torna-me  desconfiado.  Diga-me, 
meu  caro,  parece-lhe  que  a  minha  pessoa  chegue  a  ins- 
pirar interesse  a  alguém  ? 

—Ora  essa!  E  porque  não?  Aqui  estou  eu  que... 

— Não  me  expliquei  bem.  Acha  que  uma  mulher  nova 
e  bonita  possa  guardar  fidelidade  a  um  homem,  como 
eu,  a  descambar  já  para  a  noite  da  vida  ? 

— E  porque  não?  repilo  ainda.  Os  deveres  de  uma 
esposa . . . 

—Alto  lá.  Lembre-se  de  que  lhe  fallei  em  uma  fra- 
queza, e  se  o  casamento  o  é  não  tratei  ainda  de  averi- 
guai-o.  Trata-se  de  uma  amante. 

—Uma  amante  mesmo. . . 

—Tal  tal  tal  Lá  vem  uma  lisonja.  Perde  o  seu  tempo, 
meu  amigo.  Não  pôde  ser. . .  não  o  creio.  E  que  nos 
emporta  a  fidelidade  de  uma  amante?  — dirá  o  se- 
nhor. 

—Se  sentimos  por  ella  uma  decidida  affeição,  deve 
emportar-nos  muito. . . 

— Affeição!  Pôde  ser.  .0  caso  está  em  que  um  ho- 
mem, como  eu,  possa  fazer-se  amar,  e  isso. . .  Mas... 
adiante.  Uma  rapariga,  a  que  eu  tive  a  fraqueza  de  li- 
gar-me,  na  minha  estada  em  Paris,  pareceu-me  desinte- 
ressada, um  tanto  carinhosa  e  boa,  por  calculo,  já  se 
vê,  e  acabou  por  inspirar-me  certo  interesse... 

— Até  aqui  vamos  bem. 

— E. . .  sempre  atè  á  minha  partida. 

—Não  vejo  pois  que... 

—Li  vamos.  Um  bello  dia,  mezes  antes  da  minha 
despedida,  appareceu-me  com  um  creança  nos  braços, 
de  que  me  dizia  pae. . .  O  que  diz  o  senhor  a  isto? 

— Eu... 

—Sim,  diga-me:— Pôde  ser? 


NO  PtRTO  165 


—Se  pôde  ser. . .  Acho  tudo  isso  a  coisa  mais  natu- 
ral cTeste  mundo. 

— E  eu  digo-lbe  que  se  engana.  Olbe  bem  para  mim. 
Com  este  pbysico  póde-se  tá  acreditar  aquella  mulher, 
e  jurar  a  verdade  da  sua  estranha  revelação? 

—Mas. . .  não  nos  entendemos. . . 

— E  não,  digo-lb\)  eu,  porque  me  conheço.  Não  nos 
entenderemos  nunca.  Era-me  precisa  uma  prova  de  fi- 
delidade, e  essa  prova  ninguém  m'a  pôde  dar. 

—Deve  tel-a  encontrado  no  estudo,  que  fez  do  cara- 
cter da  sua  amante,  nos  seus  modos,  nas  suas  tendên- 
cias, nos  seus  carinhos. . . 

—  Nada  d'isso  me  satisfaz.  Não  pôde  ser.  E'  verdade 
que  diziam  as  pessoas  do  nosso  conhecimento  que  a 
creança . . . 

—Era  o  rosto  do  pae. . .  hein? 

— Isso  mesmo.  Com  os  diabos —exclamou  B...  le- 
vantando-se  vivamente  agitado— se  assim  fossei...  E' 
linda...  uma  menina.  O'  meu  amigo...  uma  creança 
loura. . .  sim,  loura. . .  e  de  uma  finura  de  feições. . . 
Qual  historia!  Sou  um  asno.  Esta  duvida...  Nada... 
não  pôde  ser. 

—Mas,  homem,  as  semelhanças. . . 

— E  diz  bem.  Parecia-se. . .  o  demónio  da  pequena... 
quero  dizer...  achavam  todos  que...  sim...  que  se 
parecia...  Quando  ella,  com  sete  mezes,  já  começava 
a  chilrear. . .  a  estender  os  bracinhos. . .  e  que  braços 
tão  bonitos. . .  E  o  olhar?  aquelle  olhar. . .  Hei-de  fa- 
zer caso  delia,  creia,  muito  embora  me  chamem  tolo. 

— E  deve  fazel-o. . . 

— Não  devo,  não,  senhor.  Ninguém  me  prova  que 
aquella  creança  seja  minha.  E  depois...  uma  mulher 
nova...  um  homem  como  eu...  Ora  adeus I  Olhe, 
agora  recebi  uma  carta...  escripta  no  dia  em  que  ella 
fazia  os  seus  quatorze  mezes.  Está  um  mimo,  diz  a  mãe. 
Veja. . .  veja. . .  aqui  a  tem. 

A  mão  de  B. . .  aquelle  desgraçado,  que  sentia  uns 
vislumbres  das  alegrias  do  ceu,  por  entre  umas  duvi- 


168  N0TÀ8PÀ  LAPÍ8 


A  meio  da  egreja,  no  mesmo  plano  do  altar  de  Santa 
Victoria,  ba  uma  vidraça,  para  que  o  sacristão  nos  cha- 
mou a  attenção,  dizendo  estar  alli  o  corpo  inteiro  da 
santa. 

Affirmámos-nos,  e  vimos,  vestida  com  trajes  de  co- 
res extravagantes,  atirando  ao  aso  oriental,  uma  flgura 
encolhida,  que  apenas  nos  mostra  os  ossos  dos  braços, 
por  baixo  da  manga  rendada,  que  os  cobre:  rosto  e 
peito  são  de  pura  cora. 


Vínhamos  já  no  meio  do  campo  de  S.  Ovidio,  quan- 
do nos  lembrámos  do  cemitério  da  Lapa. 

Retrocedemos,  não  tanto  para  admirar  os  numerosos 
e  vários  mausoléus,  que  povoam  as  suas  duas  partes, 
antiga  e  moderna,  como  para  render  o  nosso  mesqui- 
nho preito  ás  cinzas  de  um  dos  maiores  homens,  que 
lá  repousam,  o  infeliz  e  melodioso  poeta  Soares  de  Pas- 
sos, de  cujo  sepulcro  trouxemos  uma  relíquia,  uma 
folha  de  arbusto,  tão  mimosa  como  a  alma  do  autor 
do  Firmamento. 

E  para  contrastar  com  a  delicadeza  do  sentimento  e 
com  as  tristes  preoccupaçôes,  suggeridas  pelos  emble- 
mas da  morte,  collocados  sobre  a  porta  principal,  trou- 
xemos a  nota  alegre  do  seguinte  epitaphio,  dedicado 
por  um  Sr.  Basto  a  D.  Gaetana,  sua  mulher: 

Doeste  mundo  fugiu  pra  eternidade, 
Minha  esposa  muito  querida  e  amada, 
Deixou  me  com  filhos  cheios  de  saudade, 
Lagrimas  correndo  dfagua  envoltada. 

O  nosso  companheiro,  ao  atravessar  de  novo  o  cam- 
po de  S.  Ovidio,  lembrou-se  dos  versos  de  um  poeta 
da  sua  terra,  os  quaes  começavam  assim: 


NO  PORTO  Í69 

Ó  amor,  ó  amor  aço, 
leve  o  diabo  esta  paixão ! 
se  não  chego  a  engalfinhar -te, 
voumorrer-me  da  maleita. 

Estes,  se  não  eram  tão  sentidos,  primavam  por  mais 
correctos. 

E,  se  ba  cemitérios  formosos;  vem  a  pello  mencionar 
aqui  o  mais  formoso  e  moderno  de  todos,  o  de  Agramonte. 

Collocado  n*um  plano  e  em  sitio  de  agradável  bori- 
sonte,  possbe  bons  subterrâneos  para  deposito  de  cadá- 
veres, túmulos  imponentes,  arruamentos  e  uma  elegante 
capella  gothica,  com  bons  mármores  e  primorosos  es- 
tuques em  relevo 

Por  cima  de  tudo,  avulta  a  estatua  pedestre  do  conde 
de  Ferreira,  um  monumento  de  soberbo  mármore  e 
ainda  mais  soberba  execução. 

Ao  observar  aquella  opulenta  esculptura,  bão-de  per- 
mittir-nos  que  lastimemos  o  vel-a  collocada  alli,  quando 
uma  praça  a  exigia,  e  podia  orgulhar-se  com  ella,  se  a 
memoria  do  fallecido  tem  para  o  Porto  a  importância 
que  parece. 

Quando  as  escolas,  devidas  á  sua  philantropia  e  espa- 
lhadas pelo  paiz,  não  fossem  de  sobra  para  lhe  conferir 
essa  prova  de  publica  homenagem  — bastava  para  isso 
o  legado,  que  deixou  com  destino  ao  hospício  de  alie- 
nados, que  se  está  construindo  na  Cruz  das  Regateiras 
a  dois  kilometros  da  cidade,  e  vae  ser  o  primeiro  de 
Portugal,  pela  vastidão  e  requisitos  necessários  ao  per- 
feito alojamento  de  tantos  infelizes,  que  se  afastam  em 
vida  de  toda  a  communhão  social. 

Construído  em  forma  de  H,  cercado  de  boas  mura- 
lhas, paleos  e  jardins,  em  sitio  elevado  e  hygienico, 
despido  de  enfeites  architectonicos,  que  lhe  não  ficavam 
bem,  mas  o  solido  e  bello — se  este  edifício  já  é  por  si  só 
um  padrão  memorável  —  não  representa  comtudo  mais 
que  os  sentimentos  do  seu  instituidor,  a  quem  publica- 
mente se  deve  ainda  a  prova  de  gratidão,  a  que  nos 
parece  ter  incontestável  direito. 


170  NOTAS  k  LÁPIS 


Pelo  que  diz  respeito  ás  fabricas  interiores,  merece, 
como  outras,  bonrosa  nota  a  de  fiação  e  tecidos,  esta- 
belecida em  Salgueiros  e  dirigida  pelo  sr.  Carneiro  e 
Silva,  laborioso  industrial  e  antigo  negociante  do  Pará. 
Tem  um  motor  de  grande  força,  duzentos  teares,  bons 
armazéns  e  dependências,  e  sustenta  uns  quatrocentos 
operários. 

Entre  o  melbor  que  vimos,  resta-oos  mencionar  o 
museu  portuense,  conhecido  por  museu  Allen,  o  nome 
de  um  homem  que  possuia  uma  alma  de  artista,  capaz 
de  abranger  todos  os  variados  sentimentos  do  bello, 
um  negociante  que,  com  o  ser,  sabia,  como  poucos, 
alliar  á  materialidade  das  cifras  tudo  quanto  o  coração 
humano  pôde  encerrar  de  mais  fino  e  delicado,  duas  coi- 
sas, que  muitissima  gente  julga  irreconciliáveis  em  com- 
mercio,  poesia  e  prosa,  matéria  e  espirito. 

João  Allen,  descendente,  por  seu  pae,  de  uma  família 
ingleza,  foi  um  collecionador  muito  notável  e  um  cida- 
dão de  grandes  préstimos  associativos,  commerciaes  e 
philantropicos.  Durante  as  suas  viagens  e  em  occasiues 
de  venda  publica  e  particular  de  objectos  curiosos,  le- 
vou a  fazer  acquisições  valiosas,  por  mais  de  trinta  an- 
nos. 

A  sua  vida  foi  accidentada  e  laboriosa,  e  a  sua  morte 
occorreu  em  maio  de  1848,  no  meio  de  desgostos  e  con- 
tratempos commerciaes,  devidos  á  infidelidade  do  seu 
sócio. 

Aos  seus  herdeiros  comprou  a  camará  municipal  a 
importante  collecção  do  museu  portuense,  que  continua 
a  figurar  na  rua  da  Restauração,  em  edifício  acanhado 
de  mais  para  tamanho  repositório  de  cousas  valiosas  e 
de  rara  estima. 

Copias  e  originaes  de  Sequeira,  Vieira  Portuense, 
Salvador  Rosa,  Murillo,  Rubens,  Van-Dick,  Corregio, 


NO  POMO  171 

Guido  e  outros,  mioeraes,  mármores  nacionaes  e  es- 
trangeiros, producções  vulcânicas  e  marinhas,  pedras  de 
Herculano  e  Pompeia,  conchas,  moedas,  medalhas  antigas 
e  modernas  e  vários  exemplares  de  outros  e  muitos 
objectos  raros  e  bellos— tudo  alli  se  encontra  e  se  im- 
põe á  admiração  de  quem  tiver  alma  para  aquilatar  o 
trabalho  consciencioso  de  um  homem  só,  umas  minu- 
ciosidades  artísticas,  naturaes  e  históricas,  cuja  selecção 
e  valor  fazem  honra  á  cultura  do  seu  delicado  senti- 
mento. 

Que  nos  conste,  não  ha  homenagem  publica,  que  re- 
lembre aos  estudiosos,  patriotas  e  beneméritos,  o  nome 
d'esse  homem,  que  foi  apostolo  infatigável  do  trabalho, 
e  cultor  esmerado  dos  assumptos  de  bom  gosto;  sabe- 
mos apenas  da  existência  de  um  simples  retrato  litho- 
grapbado,  onde  os  seus  amigos  e  admiradores  íntimos 
mandaram  escrever  o  seguinte: 

As  artes  agradecidas 
Contra  o  tempo,  que  as  consome, 
Te  erigem  um  monumento 
Que  vae  basear  teu  nome. 

Bella  intenção,  mas  fraco  monumento  este  t 


• 


Entremos  no  americano,  que  a  meio  caminho  será 
impellido  por  uma  pequena  locomotiva,  e  sigamos,  em 
gracioso  convívio  com  outros  para  a  Foz,  passeio  obri- 
gado para  todo  o  visitante. 

Exposição  permanente  de  ócios  e  luxo,  na  estação 
dos  baphos,  a  que  a  moda,  e  não  a  medicina,  prescre- 
veu foros  de  alta  importância,  como  em  quasi  todas  as 
praias  de  Portugal,  é  a  Foz  um  verdadeiro  centro  de 
reunião  elegante. 

Uma  povoação  accidentada  e  guarnecida  de  bons  pre- 


17*  NOTAS  A  LÁPIS 


dios,  um  vastíssimo  horisonte  sobre  o  mar,  um  velbo 
castello,  uns  restos  de  fortificação  miguelista,  a  egreja 
central  e  a  peior  das  praias,  destinadas  aos  banhos — 
eis  tudo. 

Sigamos  até  Matlosinhos  e  Leça  de  Palmeira,  duas 
risonhas  povoações,  separadas  pelo  rio  Leça. 

A  manhã  está  deliciosa.  O  caminho,  uma  grande  pla- 
nície, á  beira- mar,  tem  á  esquerda  o  decrépito  castello 
do  Queijo  e  á  direita  algumas  elegantes  e  ligeiras  edifi- 
cações e  o  vasto  hypodromo  do  Club  Portuense. 

Chegámos. 

Para  além  do  rio,  temos  como  melhor  o  ponto  de 
vista,  que  ha  a  gosar  do  cume  de  um  outeiro,  onde 
branqueja  a  capei  la  de  Santa  Âuna;  para  aquém,  isto  é, 
em  Mattosinbos,  devemos  homenagem  á  estatua  do 
grande  democrata  e  estadista  Passos  Manuel,  natural  de 
Bouças,  a  uma  escola  do  metbodo  de  João  de  Deus,  que 
visitámos  á  hora,  em  que  íunccionava  sob  a  direcção 
de  um  babil  professor,  e  á  afamada  egreja  do  Bom  Jesus. 

O  adro,  para  onde  se  sobe  por  ampla  escadaria,  está 
bem  arborisado  e  é  espaçoso.  Aos  lados  vèem-se  seis 
capellas,  commemorando  os  passos  do  Senhor  em  figu- 
ras do  tamanho  natural,  algumas  das  quaes  teem  um 
soffrivel  merecimento. 

A  egreja  é  de  três  naves,  sendo  a  do  centro  susten- 
tada por  oito  columnas  corintbias  de  pedra,  pintada  com 
as  cores  do  mármore  variegado,  o  tecto  è  de  bom  gos- 
to, e  o  chão  mostra  ainda  antigas  sepulturas,  muito  bem 
divididas  por  bordaduras  de  pedra,  tendo  a  um  lado, 
ao  pé  da  parede,  seis  bancos  de  collegiada,  os  quaes 
indicam  antiguidade  remota. 

Nos  altares  ha  grande  somma  de  obra  de  talha,  avul- 
tando no  principal  o  Gbristo,  de  tamanho  collossal  e  tão 
má  esculptura,  como  as  duas  imagens  que  o  ladeiam. 

A1  esquerda  da  egreja  ha  um  bom  edificio  moderno, 
destinado  para  hospital  e  repositório  dos  objectos,  offe- 
recidos  pela  devoção  do  povo,  e  dos  retratos  consagra- 
dos á  memoria  dos  bemfeitores. 


NO  PORTO  173 


A  má  esculptura  do  Bom  Jesus  desculpa-se  pela  an- 
tiguidade, que  se  lhe  attríbae. 

Esta  imagem  de  grande  e  remotíssima  devoção  está 
cercada  de  milagres  sem  conta  e  de  lendas  curiosíssi- 
mas, entre  as  quaes  avulta,  como  mais  de  notar,  a  de 
ter  sido  feita  por  Nicodemus,  o  pagão  convertido,  que 
despregou  da  cruz  o  corpo  do  Senhor  e  o  ajudou  a  le- 
var para  o  sepulcro,  e  apparecer  com  um  braço  de 
menos,  trazida  pelas  aguas  desde  o  Mediterrâneo  na  era 
cbristã  de  124,  no  lugar  do  Espinheiro,  onde  por  me- 
moria se  ergueu  um  cruzeiro  de  pedra,  que  lá  se  vé. 

Acrescenta  mais  a  lenda  que  a  imagem  foi  venerada 
durante  cincoenia  annos,  com  a  falta  que  trouxera,  por 
que  todos  os  braços,  que  lhe  queriam  pôr,  não  ajusta- 
vam ao  corpo,  por  mais  que  os  artistas  se  esforçassem 
para  isso;  e  que  uma  pobre  mulher,  indo  á  praia,  em 
busca  de  cousa  que  podesse  queimar,  trouxera  entre 
outros  um  bocado  de  pau,  que  saltou  da  fogueira,  todas 
as  vezes  que  a  serva  de  Deus  o  pretendeu  queimar. 

Uma  sua  filha  muda  bradou  então: — Ó  màe,  veja  que 
é  um  braço,  e  pertence  ao  Nosso  Senhor  de  Bouças ;  o 
que  todo  o  povo  alarmado  foi  verificar,  e  achou  exacto, 
razão  porque  a  imagem  está  completa. 

Que  a  muda  fatiasse  não  admira  pouco,  mas  que  a 
mulher,  tendo  vista,  não  distinguisse  um  braço  de  um 
tosco  pedaço  de  madeira,  ainda  admira  mais. 

Forçosamente  era  cega. 

A  lenda  esqueceu-se  d'isso. 

# 
*      * 

Despedindo-nos  do  Porto,  a  ciosa  e  bella  cidade,  de 
que  muito  tínhamos  ainda  que  dizer,  íazeraol-o  com  a 
alma  repleta  de  boas  e  indeléveis  impressões. 

Bairros  inteiramente  refundidos,  ruas  melhoradas  ou 
abertas  de  novo,  edificações  modernas,  canalisações, 
obras  municipaes  e  particulares,  terminadas  umas,  ou- 


176  NOTAS  A  LAM8 


Onde  ha  imaginação,  que  resista  a  tantas  descripções, 
consagradas  ao  empório  do  vinho  verde,  das  regueifas 
e  frigideiras,  bem  peiores  do  que  elle? 

J.  B.  de  Castro,  no  século  passado,  diz-nos  no  seu 
Mappa: 

cO  seu  temperado  clima,  summa  fertilidade,  benigni- 
dade de  ares,  affluencia  de  rios  e  delicia  dos  seus  cam- 
pos fizeram  dizer  a  Manoel  de  Faria  que,  se  no  mundo 
houve  Campos  Elysios,  existiram  n'esta  província ;  e 
se  os  não  houve,  merecia  que  somente  os  houvesse 
n'e!la.  E  assim  o  vemos,  porque  a  maior  parte  d'ella 
está  sempre  cheia  de  arvoredo  que  organisa  um  conti- 
nuado bosque  perpetuo  e  aprazível,  composto  de  lou- 
reiros, azinheiros,  murtas,  pinheiros  e  cyprestes,  que 
nem  de  inverno  perdem  a  folha,  além  de  castanheiros, 
carvalhos,  nogueiras  e  outras  arvores,  que  produzem 
excellentes  madeiras  e  tão  abundantes,  que  ha  casta- 
nheiro que  dá  60  alqueires  de  castanha  e  40  almudes 
de  vinho  de  uma  só  cepa,  que  n'elle  está  entrelaçada 
ou  entalada ;  nogueira  que  dá  60  alqueires  de  nozes ; 
laranjeira  que  dá  5  carros  de  laranjas ;  carvalho  meio 
moio  de  bolota  e  algum  tão  grande  que  o  não  abrangem 
quatro  homens » 

E  assim  por  diante  continua  Castro  e  outros  autores, 
antes  e  depois  d'elle,  a  dizer-nos  maravilhas  da  produc- 
ção  natural  e  agrícola  das  terras  do  Minho. 

Em  verdade,  á  medida  que  nos  internámos  no  coração 
da  província,  salta-nos  á  vista  a  especialidade  d'aquellas 
vinhas,  montadas  sobre  arvoredo,  a  formarem  com  este 
graciosos  ramalhetes,  á  borda  dos  caminhos,  os  poma- 
res e  as  hortas  muito  frescas  e  ameníssimas  planuras 
cultivadas,  tendo  por  muros  divisórios  numerosos  ren- 
ques de  arvores  fructiferas,  casinhas  brancas  a  alveja- 
rem na  encosta  dos  outeiros,  por  entre  as  moitas  de 
verdura. 

As  casas  brancas  porém  e  por  consequência  as  al- 
deãs, que  nos  encantam  os  olhos,  fazem-nos  o  effeito 
das  nossas  pastoras,  decantadas  pelos  poetas. 


EM  BRAGA  177 

À  zagaia,  na  coimada  doa  montes,  pastoreando  o  re- 
banho de  ovelhas,  brancas  como  a  sua  alma  de  virgem, 
com  as  tranças  soltas  ao  capricho  da  brisa  tépida,  que 
lhe  imprime  na  fronte  uns  beijos,  rescendentes  ao  trevo 
dos  valles  e  á  madresilva  dos  ribeiros,  soltando  aos 
eccos  da  montanha  trovas  e  descantes— é  uma  cousa 
muito  formosa,  lida  n'uma  boa  pagina  de  poesia ;  mas 
bem  differente  se  nos  mostra  quasi  sempre  a  realidade, 
quando  deparámos  com  uma  rapariga  desgrenhada,  suja 
e  mal  vestida,  sem  um  só  dos  attributos,  que  a  nossa 
fantasia  lhe  emprestou. 

Assim  as  casinhas,  que  branquejam  atravez  do  arvo- 
redo, habitações  térreas,  de  um  interior  acanhado,  po- 
bre e  ás  vezes  repellente — só  fazem  bom  effeito,  vistas 
de  longe. 

Foi  isto  o  que  presenciámos  nas  poucas  aldeãs,  que 
tivemos  de  atravessar.  Manda  a  verdade  porém  que  se 
diga  que  o  aspecto  d'aquellas  povoações,  olhadas  em 
distancia,  é  alli  mais  agradável  do  que  em  outras  pro- 
víncias. D'ahi  os  ataques  de  poesia  bucólica,  que  nos 
assaltam  em  caminho. 

# 
♦      # 

Chegámos  a  Braga,  fundação  dos  bracaros  —  gallo- 
celtas,  alcunhados  assim  pelo  uso  das  suas  braças,  ou 
calças  curtas— segundo  uns,  e  dos  turdulos  da  Andalu- 
zia, segundo  outros;  residência  faustosa  dos  godos,  dos 
romanos,  de  quem  foi  a  Bracara  Augusta,  dos  suevos 
e  árabes ;  boje  a  Braga  christianissima,  a  que  a  gente 
chama,  como  á  Guarda,  cidade  feia,  fria  e  farta,  e  de 
que  só  tivemos  occasião  de  apreciar  o  primeiro  titulo. 

São  nove  horas. 

Ao  sair  da  estação  do  caminho  de  ferro,  e  quando 
nos  dirigimos  para  o  americano,  somos  assaltados  por 
um  exercito  de  maltrapilhos,  garotos  e  pedintes,  que  nos 
puxam  pelo  braço,  que  nos  batem  nas  costas,  e  se  agar- 

12 


178  NOTAS  A  LÁPIS 


ram  a  nós,  de  modo  tão  importuno  e  desusado  que  a 
gente  receia  ser  presa  de  algum  mau  sonho,  em  meio 
de  salteadores. 

Vendo  porém  que  estamos  ás  portas  da  capital  mi- 
nhota, deplora-se  a  infinidade  de  vadios,  que  alli  vege- 
tam á  sombra  dos  nichos,  e  a  absoluta  falta  de  policia, 
cuja  intervenção  seria  alli  um  acto  providencial. 

Paremos  no  antigo  campo  da  Vinha,  hodierna  praça 
de  Santa  Anna,  a  melhor  da  cidade,  o  moderno  passeio 
publico,  e  contemplemos  a  pequena  e  alegre  fachada 
do  theatro,  construído  por.  uma  empreza  particular,  em 
1857,  e  dedicado  ao  arcebispo  bracarense  S.  Geraldo, 
que  se  diz  ter  baptisado  o  fundador  da  monarchia;  pas- 
semos em  revista  os  bons  prédios  modernos,  que  se 
lhe  seguem;  entremos  ao  cimo  do  jardim,  um  quadri- 
longo  espaçoso  e  bem  tratado,  e  saiamos  ao  fundo  para 
ver  a  estatua  de  D.  Pedro  V,  monumento  a  que  os 
bracarenses  tiveram  a  magnanimidade  de  conceder  um 
lugar,  que  estava  talvez  destinado  a  conter  a  imagem 
de  algum  milagroso  santo. 

Depois  do  almoço,  escovado  o  casaco,  e  após  um  li- 
geiro descanço,  continuemos  a  passeiar. 

Vestígios  e  restos  de  edificações  antigas,  algumas  das 
quaes  apresentam  o  característico  romano,  ruas  tortuo- 
sas e  pouco  limpas,  alminhas,  nichos  de  santos,  cuida- 
dos durante  o  dia  e  alumiados  durante  a  noile,  cruci- 
fixos pelas  paredes  e  largos— encontram-se  á  farta. 

E  no  entanto  a  Braga  fanática  por  excellencia  tem  ca- 
minhado, ainda  que  lentamente,  a  poder  dos  embates 
civilisadores  dos  tempos  modernos. 

E'  cedo  ainda. 

Vamos  até  ao  monte  de  Santa  Margarida,  onde  está 
a  capella  da  senhora  de  Guadalupe,  e  gosemos  o  melhor 
panorama  da  cidade,  uma  planura  extensa  e  variada  em 
matizes,  uma  formosa  e  verdejante  bacia,  tendo  no  ex- 
tremo horizonte  as  poéticas  alturas  do  Bom  Jesus  e  o 
monte  Sameiro. 

Ao  subir  das  escadarias,  segue-nos  uma  multidão  de 


SM  BRAGA  Í79 

pedintes,  gente  ociosa,  muito  eivada  de  rezas  e  benti- 
nhos, uma  verdadeira  calamidade,  que  nunca  havemos 
encontrado  em  nossa  vida. 

Na  impossibilidade  de  dar  esmola  a  tanta  gente,  que 
a  não  merece,  falíamos  uma  lingua  estrangeira,  para  que 
nos  não  persigam,  e  nos  deixem  caminhar,  sem  emba- 
raços. 

— Donos  alguma  coisa,  para  que  Deus  Nosso  Senhor 
o  livre  do  diabo»  que  já  tem  no  corpo— diz  a  voz  de 
uma  mulher,  ainda  moça  e  robusta,  já  persuadida  de 
que  não  a  entendemos  t 


* 
•      * 


Realmente  contrista  o  coração  o  vér  o  aspecto  mise- 
rável dos  moradores  de  certos  bairros,  onde  a  par  das 
rezas  não  andam  as  mais  insignificantes  noções  do  traba- 
lho, creador  de  estímulos  e  gerador  da  abundância,  tão 
necessária  á  prosperidade  domestica  como  á  felicidade 
individual. 

Passávamos  em  frente  da  egreja  do  Carmo,  uma  das 
vinte  e  oito,  que  possue  Braga,  incluindo  os  conventos, 
e  nova  multidão  de  pedintes  e  ociosos  nos  embargou  o 
passo. 

Vimol-a  aberta.  Entrámos  para  ver  o  templo,  onde 
está  sepultado  o  popular  frei  João  de  Neiva,  cuja  me- 
moria já  tem  para  o  povo  verdadeiro  cheiro  de  santidade. 

É  interessante  a  biographia  cTeste  homem,  nosso  con- 
temporâneo, a  quem  deram  lustre  a  sua  boa  educação, 
virtudes  e  humildade. 

Fr.  João  da  Ascenção,  apellidado  ultimamente  o  fra- 
dinho de  Braga,  era  natural  de  S.  Romão  de  Neiva,  dis- 
tricto  de  Vianna.  Professou  na  ordem  dos  carmelitas 
descalços,  em  Lisboa,  foi  mandado  para  um  convento 
do  Porto  e  depois  para  o  de  Braga,  onde  completou  a 
soa  ordenação  e  estudos  de  professorado,  em  1810 ; 
transferido  para  Figueiró  dos  Vinhos,  para  Évora  e  Car- 


Í80  NOTAS  A  LÁPIS 


níde,  em  Lisboa,  foi  aqui  substituto  na  direcção  do  col- 
legio  de  S.  João  da  Cruz. 

Nomeado  lente  de  theologia  dogmática  para  o  colle- 
gio  de  S.  José,  de  Coimbra,  voltou  novamente  para 
Carnide,  como  prior  do  collegio  já  dito,  tornando-se  no- 
tável pelo  acerto  e  boa  direcção,  com  que  geria  a  commu- 
nidade,  e  pelas  predicas,  que  fez  em  varias  egrejas  e 
localidades. 

Eram  muito  conhecidas  e  veneradas  a  sua  austera  hu- 
mildade e  completa  abstenção  de  pompas.  Apezar  dos 
altos  cargos,  que  desempenhou,  a  sua  bagagem  com- 
poz-se  sempre  de  uma  camisa  de  sarja,  o  habito,  o  bre- 
viário, as  sandálias  e  disciplinas. 

Com  a  extincção  dos  conventos,  recebeu  o  virtuoso  pa- 
dre uma  impressão  descommunal.  Voltando  para  Bra- 
ga, acolheu-se  a  casa  de  um  amigo,  e  tomou-se  desa- 
lentado, taciturno  e  desleixado  no  trajar  e  praticas  ex- 
teriores; o  que  lhe  valeu  assuadas  do  vulgacho  e  o  ser 
mettido  na  cadeia,  onde  pouco  se  demorou. 

O  conhecimento  das  suas  virtudes  e  saber  fez  com 
que,  em  1833,  um  decreto  régio  o  nomeasse  arcebispo 
de  Gôa.  Âs  honras  de  primaz  do  Oriente  aterravam-no  de 
novo ;  a  sua  recusa  inabalável  seguiu-se  logo  ao  decreto, 
mau  grado  os  rogos  dos  seus  amigos  e  admiradores. 

Alquebrado  ao  peso  da  sua  austeridade  e  desgostos, 
assim  viveu  humildemente  até  aos  73  annos,  morrendo 
em  16  de  março  de  486J,  com  a  merecida  fama  de  san- 
to, a  quem  o  povo  tributa  accentuado  culto,  ao  visitar- 
lhe  a  sepultura,  a  que  nos  referimos. 

Voltemos  á  nossa  visita  á  egreja  do  Carmo. 

Era  a  hora  da  ultima  missa . . .  cruzavam-se  os  pa- 
dres pelo  meio  do  povo  e  ao  pé  dos  altares. 

Quando  a  olhar  passávamos  em  exame  os  dourados 
da  egreja,  que  os  tem  em  demasia,  a  começar  pelo  púl- 
pito e  suas  escadas  e  a  acabar  nos  altares,  tivemos  de 
ajoelhar,  como  nos  cumpria,  á  elevação  da  ostia. 

Peza-nos  dizer  que  nos  custou  a  conter  o  riso  de  uma 
boa  e  franca  gargalhada,  riso  que  pouco  depois  se  fun- 


EM  BRAGA  i8i 


dia  em  pezar,  que  nos  inspirava  a  influencia  do  beate- 
rio,  que  alli  víamos  representado. 

Homens  e  mulheres,  com  raríssimas  excepções,  de 
bruços,  quasi  deitados  de  rosto  contra  o  cbão,  levavam 
a  mão  direita  á  cara,  e  esbofeteavam-se  em  estalidos 
compassados  i 

Penitencia  e  miséria,  fanatismo  e  ociosidade  são  cou- 
sas a  Ilíadas  a  todos  os  excessos  da  crença  religiosa,  e 
ninguém  boje,  pelo  que  vimos,  as  possue  em  Portugal 
como  a  gente  de  Braga.    . 

O  templo  mais  digno  de  nota,  pelo  seu  esplendor  e 
muita  antiguidade,  anterior  á  fundação  do  reino,  é  sem 
duvida  a  Sé,  cuja  reedificação  se  attribue  ao  conde  D. 
Henrique  e  a  sua  mulher,  D.  Thereza,  lá  sepultados. 

Julga-se  que  pouco  resta  d'esse  tempo;  a  frontaria 
porém,  com  as  suas  torres,  uma  das  quaes  é  encimada 
por  um  sino,  demonstra  grande  vetustez. 

As  columnas  que  sustentam  as  três  naves  prejudi- 
cam, pelo  pouco  espaço  relativo,  onde  estão  assentes, 
a  elegância  interior,  e  estão  mascaradas  de  branco. 

A  capella-mór  data  de  1510  e  é  obra  de  D.  Diogo  de 
Sousa,  um  dos  arcebispos  mais  zelosos  e  o  mais  notá- 
vel pela  sua  actividade,  emprçgue  em  constantes  me- 
lhoramentos urbanos  e  construcções  religiosas.  Jaz  em 
soberbo  mausuleu  na  egreja  da  Misericórdia,  contigua 
á  da  Sé. 

Conta  este  templo  em  si  e  nas  capellas  lateraes  35 
altares,  um  dos  quaes  dizem  ser  ainda  o  primitivo,  isto 
è,  o  anterior  á  primeira  reforma. 

Perto  (Teste  vê-se  a  capella,  onde  estão  os  túmulos 
dos  pães  de  D.  Affonso  Henriques,  os  reediflcadores, 
bem  como  o  corpo  simulado,  inteiro  ou  tostado,  de  D. 
Lourenço,  com  a  seguinte  inscripção,  posta  na  parte 
superior  da  vidraça: 


182  NOTAS  A  LÁPIS 


D.  Lourenço  arcebispo  (n.°  86)  s  senhor  de  Braga, 

primaz  das  espanhas. 

Falleceu  em  1397;  foi  achado  inteiro  b  incorrupto. 

Na  face  conserva  bem  visível  a  cutilada  memoranda, 
que  apanhou  na  batalha  de  Aljubarrota,  onde  morreu. 

N'outra  capella,  á  esquerda,  ha  um  quadro,  que  tem 
por  thema — Deus  a  coroar  a  Virgem — attribuido  a  João 
Glama,  mestre  de  Vieira  Portuense. 

O  coro,  a  estante  e  a  bapcada  de  pau  santo,  que  em 
parte  tiveram  o  mau  gosto  de  mandar  dourar,  avanta- 
jam-se,  com  uma  notável  superioridade,  ao  que  n'esse 
género  existe  nos  templos  nacionaes,  onde  temos  en- 
trado. 

Por  baixo,  á  direita  de  quem  entra,  em  tumulo  de 
bronze,  mal  conservado,  estão  as  cinzas  do  infante  D. 
Affonso,  fllho  de  D.  João  I. 

Os  dois  órgãos  e  a  formosa  cúpula,  que  os  cobre, 
são  um  primor  de  arte  ornamental. 

Os  azulejos  attribuem-se  á  época  dos  Felippes. 

N'uma  das  capellas,  officiava-se  ainda  ha  pouco,  e 
não  sabemos  se  boje  se  officia,  segundo  o  rito  mozara- 
.be,  de  que  adiante  damos  explicação,  quando  nos  refe- 
rimos á  cathedral  de  Toledo;  por  onde  se  vê  que  esta 
cidade  hespanbola  e  Braga,  disputando  ha  tanto  o  pri- 
mado das  Hespanhas,  conservam  perfeita  semelhança  de 
usos  e  ritos. 

Entre  as  curiosidades9  de  maior  valia,  se  não  é  a  me- 
lhor e  a  mais  preciosa  delias,  figura  o  frontal  da  capel- 
la do  Santíssimo,  uma  esculptura  em  madeira  inteiriça, 
que  mede  11  palmos  de  comprimento  e  conta  perto  de 
três  séculos.  Os  seus  magníficos  relevos,  por  que  já  foi 
offerecida  uma  avultada  somma  para  um  muzeu  estran- 
geiro, representam  a  complicada  e  vistosa  allegoria  da 
Egreja  Triumphante. 

È  obra  dos  biscainhos,  que  trabalharam  ás  ordens  do 
arcebispo  D.  Diogo,  e  deram  nome  a  uma  rua  da  cida- 
de, onde  alguns  se  domiciliaram. 


KM  BRAGA.  183 

I  T 

Segundo  a  chronica  viva  cTeste  templo,  soffreo  elle 
roubos  importantes,  no  tempo  da  invasão  franceza :  do 
que  pertencia  ao  culto  divino  levaram- lhe  objectos  de 
prata  lavrada,  que  pezavam  aproximadamente  uns  45 
kilogrammas.  Dessas  depredações  escaparam  uma  ima- 
gem de  N.  Senhora,  de  prata  relevada  a  cinzel,  obra  de 
1653,  e  uma  coroa,  cravejada  de  pedras  preciosas,  das 
quaes  não  conserva  boje  uma  só,  e  ninguém  nos  soube 
dizer  o  paradeiro. 

No  seu  arcbivo  porém  conserva  ainda  boje  o  arcebis- 
pado varias  jóias  de  valor. 

Na  sacristia,  quando  os  poderes  governamentaes  se 
resolverem  a  orçanisar  um  muzeu  nacional  de  antigui- 
dades, a  que  já  nos  referimos,  far-se-ia  uma  larga  co- 
lheita. 

Além  de  quatro  imagens  de  prata,  entre  outras  curio- 
sidades, vimos— o  cálix,  por  onde  celebrava  S.  Giraldo 
e  o  riquíssimo  cofre  cylindrico  de  marfim,  obra  hispa- 
no-mourisca,  que  a  encerra,  obra  de  maior  valor  que  o 
mesmo  cálix,  pelo  seu  finíssimo  rendilhado  cheio  de  ar- 
carias, figuras  humanas,  aves  e  outros  animaes;  um  va- 
so idêntico,  um  primor  artístico  de  prata  perfumada, 
época  de  1509  e  serviço  de  D.  Diogo  de  Souza;  parte 
do  báculo  de  S.  Ouvidio,  terceiro  arcebispo;  paramen- 
tos, ricamente  bordados  em  França,  e  dados  de  prezen- 
te  a  D.  Gaspar  de  Bragança,  filho  bastardo  de  D.  João 
V;  sapatos,  meias,  chapéu  e  luvas  do  mesmo  prelado; 
os  sapatos,  com  que  officiava  D.  Rodrigo  de  Moura  Tel- 
les, fundador  da  confraria  e  templo  do  Bom  Jesus,  obje- 
cto notável  pela  enorme  saliência  dos  tacões,  visto  ser 
homem  baixo  e  só  se  permittir  aos  padres  o  celebrarem 
com  uma  certa  altura;  e  finalmente  uma  soberba  collec- 
ção  de  frontaes  bordados  a  flores  de  ouro  sobre  tela 
de  prata,  com  as  diversas  cores  do  ritual,  em  perfeita 
harmonia  com  os  respectivos  paramentos;  alguns  dos 
quaes  figuraram  na  exposição  de  Arte  Ornamental,  com 
a  estatueta  de  N.  Senhora,  o  cofre  e  o  cálix  de  D.  Diogo. 

Para  descargo  da  consciência  e  aviso  a  futuros  visi- 


184  NOTAS  A  LÁPIS 


tantes  convém  advertir  que  os  vários  cicerones,  encar- 
regados de  acompanhar  o  forasteiro,  constituem-se  em 
sociedade  nominal  de  ganância  illimitada,  tantos  são  el- 
les,  para  ama  exploração  tão  bem  combinada,  que  nos 
maravilha,  e  enfraquece  as  algibeiras. 

Dentro  de  um  só  edifício  nunca  vimos  tanta  gente 
officiosa  e  um  serviço  especulativo  mais  bem  distribuído. 

Um  mostra -nos  uma  capella  e  um  altar,  conta-nos  uma 
historia,  muito  circumstanciada,  com  uma  loquela  de 
espantar,  e  com  grandes  cortezias  dá  por  finda  a  sua 
missão;  outro  entretem-nos  com  os  episódios  da  vida  e 
milagres  de  muitos  santos,  cujas  ossadas  lá  se  veneram, 
e  entrega-nos  a  um  velho  trôpego,  que  nos  leva  ao  co- 
ro; este  passa-nos  a  novas  mãos,  que  nos  apontam  mais 
uma  parte,  e  assim  por  diante  até  â  porta  da  sacristia, 
onde  nos  recebe  o  ultimo  sujeito,  a  revolver  entre  os 
dedos  um  molho  de  pequenas  chaves. 


II 


Memorias  religiosas.— Os  hotéis  e  as  frigideiras. 

O  Bom  Jesus  do  Monte. 

Devoto  á  força.— O  Sameiro.— A  ponte  do  Pico. 


Às  memorias  de  caracter  religioso  abundam  por  to- 
da a  parte,  nas  ruas,  nas  praças,  nos  oiteiros,  nos  lar- 
gos, como  já  dissemos. 

A  própria  columna  lavrada»  que  está  a  meio  da  pra- 
ça da  Alegria,  é  rematada  por  uma  esphera  sobre  a 
qual  pousa  um  cruzeiro. 

Á  entrada  d'esta  praça,  situada  no  começo  da  cidade, 


EM  BRAGA  185 


do  lado  da  via  férrea,  está  um  arco  triumphal,  encima- 
do pela  estatua  de  Braga,  construído  onde  foram  as  ao- 
tigas  portas,  em  1760,  por  D.  Gaspar  de  Bragança,  já 
mencionado. 

O  Passeio  das  Carvalheiras  è  um  sitio  agradável, 
povoado  de  boas  arvores  e  soffrivelmente  mal  tratado: 
desperta-nos  muito  interesse  pelos  seus  16  marcos  mi- 
liarios,  encontrados  nas  escavações  e  estradas  circum- 
visinhas,  què  formavam  os  cinco  caminhos,  de  que  se 
serviam  os  romanos,  e  mandados  pôr  alli  e  á  roda  da 
capei  la  de  S.  Sebastião,  onde  ba  um  bom  quadro  do 
mesmo  santo,  pelo  arcebispo  D.  Rodrigo. 

Os  boteis  de  Braga  dão  alojamento  regular  servindo 
aos  hospedes,  quando  elles  o  pedem,  as  tradicionaes  fri- 
gideiras, a  pitança  preferida  pelos  naturaes,  um  detes- 
tável composto  de  carne  e  assucar,  e  o  puro  vinho  ver- 
de, a  que  todos  os  bons  estômagos  costumam  render 
decidido  preito. 

Agora  que  já  nos  enfada  o  passeio  dentro  da  cidade, 
intra  muros,  vamos  novamente  ao  campo  de  Santa  Anna 
tomar  o  americano,  em  que  teremos  de  precorrer  uns 
ires  kilomelros,  passando  pela  Senhora  a  Branca,  rua 
das  Casas  Novas  e  Santa  Eulália  de  Tenões;  e  a  come- 
çar d'esta  ultima  localidade,  entremos  a  enlevar-nos  nas 
bellezas,  que  se  desprendem  do  Alto  do  Bom  Jesus  até 
á  estrada,  que  precorremos. 

* 
•      * 

Não  è  nossa  intenção  demorar-nos  a  relatar  o  que 
vimos  desde  a  porta  principal,  a  porta  de  D.  Rodrigo 
de  Moura  Telles,  cujas  armas  lá  figuram,  ao  fundo  da 
escadaria,  que  se  encontra  em  zig-zagues  pela  monta- 
nha acima  até  ao  elevado  cume  do  Sameiro.  A  estampa, 
o  jornal  e  o  livro  teem  espalhado  por  toda  a  parte  a& 
minudencias  do  afamado  sanctuario,  a  que  os  bracaren- 
ses e  ainda  muitos  visitantes  prestam  o  culto  mais  en- 


186  NOTAS  A  LÁPIS 


comiastico.  Basta  saber-se  que  o  arcebispo  D.  Rodrigo, 
conseguindo  a  pacificação  de  umas  dissidências  de  longa 
data,  que  tinham  por  pleiteador  principal  o  vigário  da 
povoação  mais  próxima,  S^nta  Eulalja  de  Tenões,  dea 
começo  ás  obras  da  montanha,  onde  só  figurava  uma 
ermida,  em  4722,  obras  continuadas  por  seus  sucesso- 
res, devotos  e  confrarias. 

Tudo  alli  é  symbolico  —  capelias,  escadorios  dos 
cinco  sentidos  e  das  virtudes  theologaes,'  chafariz  das 
lagrimas,  estatuas,  fontes  e  accessorios,  sendo  as  fon- 
tes em  grande  parte,  dedicadas  a  assumptos  mytholo- 
gicos. 

—Quanto  dinheiro  malbaratado  pela  mão  estéril  dos 
antigos  prelados  e  pela  fanática  prosápia  das  modernas 
confrarias!— exclamou  um  companheiro  nosso,  a  limpar 
a  testa,  quando  chegámos  ao  adro  da  egreja. 

— Cale-se,  que  o  podem  ouvir. 

— Calar-me?. . .  e  porque?  Todo  o  mundo  sabe  a 
quanto  monta,  ha  tantissimos  annos,  a  somma  extor- 
quida á  devoção  dos  pascacios  (Testes  arredores,  para 
obras  de  religião,  que  nunca  appareceram  umas,  e  ou- 
tras, que  o  meu  amigo  acaba  de  encontrar...  umas 
pedras. . .  ou  antes. . .  uns  arrebiques  tristes. . .  gros- 
sos.. .  pesados. . .  quasi  fúnebres. . . 

—Que  teem  custado,  ainda  nos  tempos  mais  recentes, 
aquillo  com  que  se  estipendiava  a  útil  e  civilisadora 
creação  de  uma  boa  centena  de  escolas,  ou  de  uma 
dúzia  de  hospícios,  onde  as  virtudes  christãs  lançariam 
mais  profundas  raizes  do  que  nos  alcantis  (Testa  serra, 
cheia  por  si  só  de  bellezas  naturaes,  que  auxiliadas  um 
pouco  pela  arte  dariam  os  melhores  e  mais  poéticos 
resultados,  sem  estes  tristíssimos  mármores,  que,  vis- 
tos a  certa  distancia,  por  entre  o  variegado  matiz  do 
arvoredo,  nos  parecem  ossadas  brancas  de  esqueletos, 
puídos  pelo  tempo. 

O  nosso  amigo  acompanhava  as  palavras  de  grandes 
gestos,  que  chamavam  a  attenção  de  um  ou  outro  indi- 
viduo que  passava. 


KM  BRAGA  187 

— Cautella  com  a  língua,  se  tem  amor  ás  costellas  — 
dizia-lhe  outro  companheiro  nosso. 

Elle  parou,  na  altura  do  rosto,  com  o  lenço,  com  que 
ia  limpar-se,  e  tomado  de  um  certo  pasmo,  pareceu  não 
entender  bem. 

O  que  fallava  repetiu  a  pbrase,  e  contou-nos  o  se- 
guinte : 

Um  official  superior,  commandante  do  destacamento, 
ao  serviço  de  Braga,  combinou  certo  dia  com  um  dos 
seus  subordinados,  um  capilão  seu  affeiçoado,  uma  di- 
gressão recreativa  ao  sanctuario  do  Bom  Jesus. 

Chegados  á  porta  do  fundo  da  encosta,  resolveram 
subir  a  pé. 

De  escada  em  escada,  de  capella  em  capella,  em  cuja 
frente  o  nosso  commandante  se  descobria,  quando  lhe 
examinava  o  interior,  atravez  das  grades — lá  foram  os 
dois  em  voluntária  romaria  até  ao  lugar  mais  elevado. 

Notara  porém  o  commandante,  com  viva  estranheza, 
que  o  seu  subordinado,  um  rapaz  alegre,  motejador  e 
inteiramente  desabusado,  desde  que  entrara  a  porta  prin- 
cipal nunca  mais  pozera  na  cabeça  o  bonné,  e  que  muito 
recolhido  se  persignava  ao  passar  pelas  capellas,  des- 
fazendo-se  em  mezuras  e  gestos  de  extrema  devoção. 

Pareceu- lhe  aquillo  forçado  e  por  tanto  fora  do  natu- 
ral ;  e  logo  que  chegou  ao  quartel  indagou  de  outro 
official  o  que  poderia  ser  semelhante  demonstração,  tão 
contraria  á  índole  e  costumes  do  rapaz. 

— Meu  commandante — obteve  em  resposta— gato  es- 
caldado. . .  Esse  resultado  vem  da  ultima  vez,  em  que 
ambos  estivemos  aqui  destacados,  era  elle  alferes.  Bem 
sabe  que  génio  é  o  seu.  Em  dia  de  concorrência,  foi 
para  o  sanctuario,  precorreu  as  capellas  de  bonné  na 
cabeça,  com  ar  petulante  e  endiabrado,  tecendo  madri- 
gaes  ás  raparigas  e  epigrammas  ás  velhas,  de  modo 
que  á  saída  em  premio  de  tantas  fadigas,  levaram-lhe 
ás  costas  o  peso  de  alguns  marmeleiros.  Isso  tudo  pois 
resulta  de  uma  boa  sova  de  pau. 

O  nosso  amigo,  com  ar  incrédulo  e  cómico,  encolheu 


Í88  NOTAS  A  LÁPIS 


os  hombros,  e  ajuntou  á  narrativa  uns  commentarios, 
que  nos  fizeram  rir,  com  boa  vontade,  durante  o  espaço 
que  levámos  até  á  entrada  da  egreja,  aberta  a  essa  hora. 

Este  templo  não  é  da  época  de  D.  Rodrigo  e  sim  do 
seu  successor,  o  já  citado  D.  Gaspar  de  Bragança ;  foi 
principiada  em  1784,  segundo  o  risco  do  seu  porteiro 
de  camará  Carlos  Amarante,  que,  pelo  seu  muito  enge- 
nho, conseguiu  mais  tarde  ser  nomeado  ofiQcial  de  en- 
genharia e  lente  de  desenho,  no  Porto. 

A  frontaria,  cheia  de  resaltos  e  janellas,  não  obedece 
a  um  só  estylo,  que  tende  para  a  renascença,  sem  ter 
a  monotonia  das  suas  linhas;  è  ladeada  por  duas  bellas 
torres,  coroadas  de  largos  coruchéus  vasados  com  py- 
ramides  menores  nos  ângulos. 

O  interior  de  uma  só  nave  é  vasto  e  claro;  o  altar  da 
capella  mór  representa  o  calvário  em  figuras  do  tama- 
nho natural,  em  meio  de  quatro  formosas  columnas,  qne 
seguram  uma  grande  coroa,  em  forma  de  baldaquino. 

O  Cbristo  é  uma  formosa  esculptura  italiana,  manda- 
da vir  por  D.  Gaspar,  em  1776,  annos  antes  da  funda- 
ção do  edifício. 

N'uma  das  capellas  do  cruzeiro,  ha  uma  linda  custo- 
dia, com  relíquias  do  Santo  Lenho,  concedidas  por  Cle- 
mente XIV,  em  1773;  e  nas  duas  sacristias,  entre  ou- 
tros objectos,  a  imagem  do  Senhor  dos  Navegantes,  um 
grande  crucifixo  de  marfim,  esculpturado  na  índia  e  de 
origem  moderna,  retratos  de  arcebispos,  juizes  e  bem- 
feitores  e  dentro  de  uma  redoma  um  lindo  movei  de 
madeira  e  prata,  ostentando  no  meio  a  Senhora  da  Con- 
ceição, feita  do  mesmo  metal,  e  ladeada  de  columnasi- 
nhas,  fustes  e  rendilhados  de  muito  merecimento. 

# 

Os  melhores  e  mais  notáveis  pontos  de  vista  são— o 
que  se  gosa,  ao  sul  do  escadario  das  Virtudes,  ao  vir 
da  Cascata»  n'um  terrapleno,  a  que  dá  uma  deliciosa 


EM  BRAGA  189 


sombra  um  cedro  gigantesco,  tendo  á  roda  uma  mesa 
e  bons  assentos  de  mármore,  lagar,  a  que  é  preciso 
consagrar  um  tempo  demorado,  tão  formoso  e  adequa- 
do á  ternura  dos  nossos  sentimentos  se  nos  mostra  elle 
—  e  o  ponto  mais  elevado,  o  do  terreiro  dos  Evangelis- 
tas, de  onde  se  desenrola  um  soberbo  panorama. 

Que  differença  porém  entre  estas  e  as  beliezas  do 
Bussaco  f 

Nas  escadarias,  no  sanctuario,  na  matta  do  Bom  Je- 
sus e  nos  campos  de  Braga,  que  se  observam  de  perto, 
ha  mais  trato  e  mais  arte,  se  assim  o  quizerem;  os 
montes  sobranceiros  porém  áquelle,  em  que  estamos, 
limitam-nos  o  horisonte,  aproximam-nos  mais  da  huma- 
nidade, emquanlo  que,  nas  alturas  do  Bussaco,  as  mon- 
tanhas, que  avistámos,  somem-se  ou  agacbam-se  aos 
nossos  olhos,  até  se  perderem  no  infinito. 

A  cultura  dos  campos  e  jardins  apparecenos  aqui  a 
um  alcance  relativamente  pequeno,  está-nos  sob  a  mão; 
lá  desapparece  o  artificio,  para  dar  lugar  á  natureza, 
que  fornece  mais  attractivos  a  quem  preferir  a  poesia, 
sem  os  adornos  do  homem. 

O  que,  sem  duvida  alguma,  nos  captiva  e  nos  encanta 
é  o  espaçoso  e  pittoresco  lago,  que  serve  de  coroa 
áquelle  gracioso  conjuncto. 

Os  férteis  arredores  de  Braga  espantam-nos  pela  abun- 
dância das  suas  aguas,  que  rebentam  da  terra  com  uma 
admirável  espontaneidade;  o  que  nos  maravilha  porém 
é  que  em  semelhantes  alturas  possa  haver  um  manan- 
cial de  tamanho  volume,  embora  consideremos  o  Bom 
Jesus  a  parle  mais  baixa  da  pequena  cordilheira,  que 
desce  do  monte  Sameiro. 

Entremos  no  bote,  que  se  nos  offerece,  colhamos  uma 
flor  das  muitas,  que  nas  margens  se  debruçam,  a  ale- 
grar-nos  a  passagem,  e  tornee-mos  aquellas  aguas  fas- 
cinadoras,  uma  e  muitas  vezes,  meltendo-nos  pelos  ca- 
naes  e  desvios,  atravessados  por  pontesinhas  rústicas, 
e  detenhamos-nos  alguns  instantes  ao  pé  das  grutas  ru- 
morejantes,  cobertas  de  fartos  massiços  de  relva,  es- 


190  NOTAS  A  LÁPIS 


trellada  de  reluzentes  gotas  de  uma  iympba  pura'e 
leve. 

Gomo  isto  é  bom  e  bello  i  como  isto  dos  deleita,  e 
faz  bem  i 

Depois  de  bem  saciados  de  aromas  e  frescura,  agora 
que  nos  sentimos  mais  leves  de  espirito,  entreguemos- 
nos  a  essa  outra  poesia ...  a  do  estômago,  a  única  que 
muita  gente  só  chega  a  experimentar  em  toda  a  vida, 
e  vamos-nos  para  o  almoço. 

A  poucos  passos  do  lago,  já  extramuros,  temos  um 
bom  serviço  no  Hotel  Universal,  o  mais  moderno  dos 
três,  que  na  santa  montanha  nos  offerecem  hospeda- 
gem. 


Muito  bem.  Agora  lastimemos  a  falta  dos  pacientes 
burritos,  que,  em  Cintra,  na  Figueira,  no  Bussaco  e 
n'outros  lugares  tão  bons  serviços  prestam  aos  viajan- 
tes, e  intentemos  a  pé  a  ascenção  ao  monte  Sameiro. 

O  que  vamos  lá  encontrar? 

A  belleza  dos  contrastes. . .  uma  imminencia  escal- 
vada e  nua,  tendo  no  topo  uma  egreja  em  construcção, 
aonde  ainda  ha  pouco  foram  em  devota  romaria,  os  po- 
vos de  muitas  léguas  ao  redor,  e  um  monumento  er- 
guido em  honra  da  Senhora  da  Conceição,  mais  vulgar- 
mente conhecida  pela  Virgem  do  Sameiro. 

Data  de  1863  o  começo  d'estas  obras,  feitas  á  custa 
de  novos  devotos,  que  juram  dar  celebridade  ao  novo 
local. 

Semelhante  concorrência,  ao  que  nos  disseram,  en- 
trou já  a  inspirar  ciúmes  profanos  á  confraria  do  Bom 
Jesus,  que  vem  a  soffrer  nos  seus  rendimentos,  e  tanto 
que,  ha  pouco,  um  mesario,  provavelmente  no  fervor 
da  sua  devoção,  proferiu  com  grave  imprudência  esta 
apostrophe,  medianamente  devota: 

— A  Senhora  do  Sameiro  foi  o  diabo,  que  appareceu 
ao  Bom  Jesus ! 


KM  BRAGA  iM 

A  imagem  da  egreja  é  de  esculptura  italiana ;  a  do 
monumento...  portuense. 

Formam-lhe  a  base  escadarias  sobrepostas  de  boa 
cantaria;  na  ultima,  em  forma  octogona  de  sete  degraus, 
assenta  sobre  uma  columna  quadrangular  a  estatua  de 
mármore,  representando  a  Senhora,  de  pé,  com  a  mão 
esquerda  sobre  o  peito  e  a  direita  na  attitude  de  aben- 
çoar os  lugares,  que  de, lá  se  avistam,  e  que  são  mui- 
tos e  variados,  desde  Braga  a  Guimarães  e  desta  ao 
Porto. 

Vista  a  pequena  distancia, -quando,  em  manhã  de 
névoa  o  sol  Ibe  sobredoira  a  fronte,  e  o  seu  vulto  ma- 
gestoso  rompe  d'entre  as  nuvens  lentamente,  a  curtos 
espaços,  bem  poderemos  semelhar  aquella  soberba  es- 
tatua a  uma  apparição  celeste,  posta  alli,  como  sentinella 
vigilante  e  protectora,  nuncia  de  boas  novas  para  o 
viandante,  que  lhe  lance  olbos  piedosos,  estrella  ruti- 
lante, que  é  um  pbarol  de  bonança  para  os  que  lbe  pe- 
dem luz  e  crenças. 

*      * 

Tão  boas  impressões,  que  hoje  se  fundem  em  sau- 
dades, trouxemos  comnosco,  ao  voltar  a  Braga,  que 
não  resistimos  então  ao  desenho  de  avistar  uma  vez 
ainda  aquellas  cumiadas,  onde  a  nossa  alma  se  delei- 
tara, em  momentos  de  um  bem  estar  límpido,  sem  nu- 
vens. 

Às  nossas  despedidas  fizemol-as  do  monte  de  Santa 
Margarida. 

Chamava-nos  outro  passeio,  um  precurso  de  uns  27 
kilometros,  por  entre  aldeãs  térreas  e  feias,  aquellas  a 
que  nos  referimos,  quando  só  desejámos  vel-as  de  longe, 
a  começar  pela  de  S.  Jeronymo  até  á  ponte  do  Prado, 
lançada  sobre  as  aguas  misturadas  dos  dois  rios  Cavado 
e  Homem,  entre  a  povoação  d'aquelle  nome  e  a  fregue- 
zia  da  Palmeira. 

O  pittoresco  da  estrada,  onde,  como  era  para  dese- 


192  NOTAS  A  LÁPIS 


jar,  caminhava  a  carruagem  lentamente,  a  amenidade  dos 
campos  e  a  formosura  dos  parreiraes,  que  desciam  so- 
bre nós,  mostrando  d'eotre  a  ramagem,  as  uvas  em 
principio  de  maturação  —  pagavam-nos  a  fealdade  das 
aldeãs. 

Para  retroceder,  fomos  encontrar-nos  com  a  estrada 
dos  Arcos,  que  é  melhor  e  mais  vistosa  ainda,  e  só 
parámos  sobre  a  magnifica  ftonte  do  Pico,  no  lugar, 
onde  fazem  juncção  os  dois  citados  rios. 

Surprehendeu-nos  alli  a  marinha  mais  formosa,  que 
temos  visto,  e  uma  das  melhores  paisagens,  que  co- 
nhecemos. 

Começa  na  margem,  que  diz  respeito  ao  pequeno  rio 
Homem,  onde  as  lavadeiras,  em  diversos  pontos,  batiam 
a  roupa,  á  hora  em  que  por  lá  passámos. 

Os  flocos  de  espuma  que  lhes  escorria  das  mãos, 
como  voláteis  novellos  ao  lume  das  aguas,  umas  arvo- 
res, que  saiam  aqui  e  acolá  do  meio  da  corrente,  ilho- 
tas disseminadas  por  toda  a  parte,  obrigando  as  aguas 
a  formarem  curvas  e  desvios,  grandes  penedos  mettidos 
de  permeio,  arbustos  rasteiros  a  matizarem  o  areal,  o 
marulhar  das  correntes,  que  se  revolviam  ao  mistura- 
rem-se,  moitas  de  juncos,  azenhas,  murmúrios  e  stin- 
tillações  arrancadas  pelo  sol  decadente—tudo  isso  pro- 
digiosamente disposto  reclamava  um  pincel  habilissimo, 
para  poder  ser  visto  de  longe  e  nunca  as  pálidas  linhas 
da  nossa  penna. 

Se  esta  paisagem  pode  contar  na  província  algumas 
rivaes,  juntas  áquillo,  que  de  melhor  por  lá  vimos,  des- 
contada a  fealdade  das  mulheres  da  capital  e  suas  cer- 
canias, bem  andavam  os  antigos  em  chamarem  ao  Minho 
o  mimoso  Éden  das  Hespanhas. 


DE  VIÀNNÀ  A.  VALENÇA.  103 


DE  VIANNA  A  VALENÇA 


BUonhice  portogueza.— O  Lethes  da  fabula.— Passeios. 

As  raparigas  de  Vianna.  —  Fr.  Bartholomen  dos  Martyres. 

O  Castello.— Apologia  do  Lima.— Comparações. 


Nos  caminhos  de  ferro  portuguezes  não  é  muito  fácil 
encontrar  entre  os  passageiros  a  familiaridade  de  hábi- 
tos e  conversação,  que  se  estabelecem  lá  fora,  como  meio 
de  passatempo,  destinado  a  aligeirar  ás  boras  e  ameni- 
zar o  espirito  dos  indivíduos,  que,  sem  differença  de 
sexo,  posição  ou  edade,  se  vêem  forçados  a  partilhar  en- 
tre si  os  commodos  ou  encommodos  de  uma  viagem  ás 
vezes  longa  e  demorada. 

Não  raro,  vemos  sentar-se  ao  nosso  lado  um  sujeito 
grave,  ou  uma  mulher  cheia  da  sua  pessoa,  que  durante 
um  dia  ou  uma  noite  se  conserva  no  mais  absoluto  si- 
lencio, interrompido  apenas,  lá  de  quando  em  quando, 
pelo  escarrar  não  menos  grave  e  pausado,  ou  pelo  ronco 
de  uma  somnolencia,  interrompida  a  espaços. 

Quem  leva  comsigo  parentes,  amigos  ou  simples  co- 
nhecidos triumpha  sempre  d'esta  semsaboria,  com  gran- 
de vantagem  para  os  seus  sentimentos  e  expansões. 

Nós,  felizmente,  achavamos-nos  n'este  ultimo  caso. 

Quando,  ao  regressar  de  Braga,  nos  annunciaram  a 
estação  de  Nine,  o  entroncamento,  onde  tínhamos  de 

13 


194  NOTAS  A  LÁPIS 


mudar  de  comboio,  oem  nos  passava  pela  idéa  a  riso- 
nha freguezia  de  Villa  Nova  de  Famalicão. 

Seriam  6  */»  horas,  quando  de  novo  nos  pozemos  a 
caminho:  a  tarde  começava  a  declinar,  e  a  deixar-nos 
livre  dos  ardores  do  sol  a  faculdade  de  podermos  mais 
á  vontade  examinar  as  paisagens,  que  nos  ficavam  ao 
alcance  da  vista. 

Até  ao  ponto,  que  demandávamos,  só  tínhamos  a  pre- 
correr  quatro  estações :  a  de  S.  Bento,  em  cujo  caminho 
se  encontram  dois  túneis,  o  ultimo  dos  quaes  leva  2  l/t 
minutos  a  atravessar,  Tamel,  onde  se  nos  depara  nova 
perfuração,  Barroselas  e  Dar  que. 

# 
#      # 

Ás  8  horas»  em  pleno  crepúsculo,  atravessávamos  a 
ponte  mais  extensa,  que  por  cá  temos,  com  grande  admi- 
ração nossa  por  essa  magnifica  obra,  e  dávamos  entrada 
em  Vianna  do  Castello,  a  princeza  do  poético  Lima,  um 
dos  rios  Lethes  da  antiga  e  fabulosa  tradição,  nome  in- 
fernal, pouco  desculpável,  embora  os  poetas  da  época 
attribuissem  áquellas  aguas  a  especialidade  de  os  faze- 
rem esquecer,  pelas  suas  muitas  bellezas  marginaes, 
dos  males  do  passado. 

E'  um  dos  numerosos  contrasensos  da  poesia  mytbo- 
logica. 

As  artes  e  o  próprio  sentimento  repellem  a  monoto- 
nia—a perpetuidade  da  luz  sem  o  contraste  da  sombra. 
A  ventura  do  presente  é  duas  vezes  agradável,  se  do 
passado  ha  lembranças  de  amargura. 

Que 

O  rio  que  verás  tão  socegado 
Que  te  parecerá  que  se  arrepende 
De  levar  agua  doce  ao  mar  salgado. 

como  disse  Diogo  Bernardes,  perdoe,  por  sua  infinita 
belleza,  aos  ingénuos  cognominadores  da  antiguidade. 


DE  VIANNA  A  VALENÇA  195 

■ 

Fomos  alojar-nos  perto  da  praça  da  Rainha,  onde  to- 
cava uma  pbilarmonica,  por  ser  dia  festivo,  no  moderno 
botei  Central,  um  estabelecimento  de  luxo,  excessiva- 
mente caro  e  extraordinariamente  mal  servido. 

Na  manhã  do  dia  seguinte,  começámos  o  nosso  pas- 
seio pela  nova  estação  do  caminho  de  ferro,  onde  nos 
não  foi  permittida  a  entrada,  disputada  quasi  a  murro 
por  uns  sujeitos  de  má  catadura,  Cerberos  de  uma  só 
cabeça,  que  abundam  por  toda  a  parte,  no  meio  de  uma 
recua  de  malcreados,  a  quem  desgraçadamente  estão  en- 
tregues muitas  cousas,  que  mais  ou  menos  interessam 
o  forasteiro. 

A  estação,  que  estava  a  concluir,  pareceu-nos  espa- 
çosa e  boa. 

D'alli  seguimos  para  a  ponte,  que  atravessáramos  na 
véspera,  uma  magnifica  construcção  de  pedra  e  ferro, 
assente  sobre  11  pegões,  dando  simultaneamente  pas- 
sagem ao  comboio,  n'um  taboleiro  inferior,  e  ás  car- 
ruagens, peões  e  cavalleiros  no  leito  superior,  muita 
bem  gradeado,  n'uma  extensão  de  1:300  passos. 

Levantada  a  pequena  distancia  da  velha  ponte  de  ma- 
deira, cujos  restos  se  vêem  ainda  na  parte  mais  larga 
do  rio  Lima,  que  em  ligeiro  T,otovello  á  volta  da  cidade 
se  vae  perder  no  mar— é  essa  obra  moderna  um  dos 
principaes  melhoramentos  do  paiz. 

Pena  é  que  as  areias  accumuladas  á  entrada  da  barra 
não  permittam  a  navegação  de  grande  cabotagem,  em 
uma  terra,  que  no  passado  teve  já  um  florescente  e  lar- 
go commercio  marítimo. 

# 
#      # 

Da  balaustrada  da  ponte,  a  pequena  distancia,  á  bor- 
da do  rio,  avistámos  grande  multidão  de  gepte,  em  ex- 
tenso arraial. 

Era  o  mercado,  com  o  simples  apparato  de  uma  fei- 
ra, sem  barracas,  nem  alinhamento. 

No  chão,  por  baixo  das  arvores,  havia  grande  esten- 


196  NOTAS  A  LÁPIS 


dal  de  louça  indígena,  tamancos  de  bico,  ao  uso  da 
terra,  e  lenços  de  chita  ramalhuda. 

O  mulherio  formava  grupos,  agachava-se,  ia  e  vinha 
em  todas  as  direcções,  em  procura  dos  objectos,  de  que 
necessitava. 

Sedento  de  um  oásis,  que  nos  quebrassq  a  estéril  mo- 
notonia e  a  notável  fealdade  do  povo  de  Braga,  a  nossa 
vista  recreava-se  em  tudo  aquillo,  onde  a  espaços  ful- 
guravam os  rostos  bonitos  e  os  corpos  airosos  de  gen- 
tis raparigas,  com  os  seus  trajes  typicos  de  uma  belle- 
za,  que  ainda  não  Unhamos  presenciado. 

Uma  saia  curta  de  vistosa  barra,  mostrando  um  pè 
muito  bem  calçado  em  tamanquinho  leve  e  bem  feito, 
quasi  sempre  forrado  de  baétilha  escarlate;  um  collete 
egualmente  curto  e  guarnecido  de  uma  barra  preta  ou 
da  côr  da  saia,  com  muitos  enfeites  e  bordados,  dei- 
xando ver  as  mangas  muito  alvas  da  camisa;  um  aven- 
tal garrido,  com  uma  algibeira  sobreposta  ao  lado;  um 
lenço  de  largos  ramos  passado  em  cruz  sobre  o  peito  e 
mettido  na  cintura,  muito  ourp  ao  pescoço,  quatro  ou 
cinco  pares  de  volumosos  brincos  nas  orelhas;  outro 
lenço,  quasi  sempre  de  côr  viva,  atado  graciosamente  á 
volta  do  cabello  luzidio,  •em  forma  de  carapuço — tudo 
isso  muito  limpo,  muito  airoso  e  bem  cuidado,  dá  ás 
raparigas  viannenses,  bonitas  ou  feias,  um  donaire  e 
uma  graça  especiaes. 

Não  ha  por  Vianna  muito  que  admirar. 

O  passeio  publico  tem  tanto  de  bem  situado  á  borda 
da  estrada,  que  margina  o  rio,  como  de  pequeno  e  mal 
tratado. 

Aqui  e  acolá  eocontram-se  alguns  prédios  modernos 
de  bella  apparencia,  e  outros  que  attestam  notável  an- 
tiguidade, como  a  Misericórdia  e  a  cadeia,  perto  do  lar- 
go da  Ra|nha,  .onde  ha  um  chafariz,  que  abastece  de 
agua  a  maior  parte  da  população. 

O  seu  tbeatro,  situado  na  rua  de  SanfAnna,  estava 
ainda  em  construcção;  é  hoje  um  bom  edifício  e  uma 
das  melhores  casas  de  espectáculo  de  todo  o  paiz. 


DE  YIANNA  A  VÁLRNÇÀ  197 

Dos  templos,  que  vimos,  ha  a  notar  além  dos  azule- 
jos da  egreja  da  Misericórdia  uns  quatro  quadros  da  de 
Monserrate  e  a  obra  de  talha  do  altar-mór  da  de  S.  Do- 
mingos. 

Este  templo,  annexo  ao  antigo  convento,  que  está  oc- 
cupado  pelas  obras  publicas,  è  o  mais  vasto. 

Na  sacristia  tem  um  grande  quadro  representando  o 
presépio  e  ao  fundo  o  retraio  de  frei  Bartholomeu  dós 
Martyres,  cujo  tumulo  singelo  se  vô  ao  lado  esquerdo 
da  capella-mór. 

Este  illustrado  e  virtuoso  frade,  que  resignara  o  ar- 
cebispado bracarense  para  se  recolher  ao  convento,  go- 
sa  entre  os  povos  do  Minho  da  mais  completa  beatifica- 
ção. 

A  própria  mulher  do  sacristão,  uma  mocetona  muito 
lavada  de  ares,  que  nos  foi  mostrar  a  egreja,  não  se  far- 
tava de  dizer:— T'arrenego,  senhor  papa,  ou  lá  quem  é 
que  governa  nas  cousas  de  Deus!  Não  fazerem  caso 
d'este  santinho,  que  tantos  milagres  já  tem  mostrado  e 
que  tanto  merecia  ter  para  abi  a  sua  bemdita  imagem 
n'algum  d'esses  altares...  é  forte  teima. 

—O  papa  está  muito  longe,  mulhersinha,  e  depois. . . 

— Longe !  Quem  deu  lá !  Pois  olhe  muito  mais  longe 
chegam  as  virtudes  do  s^nto,  que  costuma  soccorrer 
logo  quem  se  pega  com  elle.  Que  o  digam  as  offertas, 
que  chovem  de  toda  a  parte.  No  entanto,  ha  por  ahi 
outros  santos. . .  Cala-le,  bôcca  ! 

  mulher  collocou  por  um  momento  a  mão  sobre  os 
lábios,  e  continuou  a  dar  á  lingua  affirmando  os  mila- 
grosos predicados  de  frei  Bartholomeu  dos  Martyres,  e 
enumerando  os  valiosos  prezentes  depostos  annual- 
mente  junto  ao  venerando  tumulo,  entre  os  quaes  figu- 
ravam cântaros  e  bilhas  de  azeite,  em  que  ella  prova- 
velmente não  era  das  partes  menos  interessadas. 

O  Castello  de  Vianna  que  tanto  figurou  na  historia 
militar  do  nosso  passado,  uma  construcção  de  varia  s 
épocas,  uma  vasta  fortificação  de  guerra,  capaz  de  con- 
ter dentro  das  suas  grossas  muralhas  um  formidável 


198  NOTAS  A  LAHS 


troço  de  exercito,  está  hoje  completamente  desmantela- 
do, e  só  por  irrisão  conserva  ainda  dentro  dos  seus 
fossos  orna  guarda  de  alguns  soldados. 

Se,  como  meio  de  defeza,  não  vale  nada  aquelia  for- 
taleza, o  que  duvidámos,  porque  se  não  transforma  ella 
em  alguma  cousa  útil,  num  aquartelamento,  por  exem- 
plo, para  o  que  tem  óptimas  proporções,  com  a  vanta- 
gem de  possuir  ao  pé  um  bello  campo  de  manobras? 

Por  detraz  do  castello  e  ao  Hm  do  grande  largo  da 
Agonia,  a  que  faltam  melhoramentos  e  belleza,  vê-se  a 
capella  do  mesmo  nome,  onde  existem  uns  seis  quadros 
de  algum  merecimento. 

Subindo-se  á  varanda  da  torre,  ou  a  um  plano  so- 
branceiro á  fonte,  que  lhe  fica  ao  lado,  offerece-se-nos 
o  melhor  panorama  de  Vianna,  tendo  á  esquerda  a  ci- 
dade e  á  direita  e  em  frente  a  magestade  do  Oceano. 

♦ 
#      # 

Dizia-nos,  ha  annos,  um  inglez  muito  apreciador  das 
nossas  cousas  que  quem  tivesse  ido  ao  Porto,  sem  se 
ter  aventurado  em  bote  a  um  passeio  pelo  Douro,  devia 
envergonbar-se  de  faltar  na  cidade  da  Virgem. 

O  mesmo  se  faz  notar  ás  pessoas,  quç,  uma  vez  en- 
tradas em  Vianna,  deixam  de  precorrer  em  carroagem 
a  farmosa  estrada,  que  d'alli  parte  acompanhando  o  rio 
alè  á  villa  de  Ponle  de  Lima,  n'uma  distancia  de  uns 
20  kilometros. 

E  para  isso  concorre  poderosamente  o  haver  muito 
qaem  julgue  as  margens  do  Lima  superiores  ás  bellezas 
do  Douro. 

Pelo  quenos  respeitava,  uma  vez  alli,  tendo  bem  viva 
na  memoria  a  recommendação  do  nosso  amigo  Samuel 
J.  O.  e  Silva,  um  altíssimo  coração  e  um  verdadeiro 
patriota,  sem  refolhos  de  basofia  estrangeirophobica, 
como  acontece  a  muitos  que  julgam  sel-o,  não  podíamos, 
ainda  mesmo  com  sacrifício  que  felizmente  não  havia, 


Dl  VIÁNNÀ  A  VALINÇA  199 

deixar  de  tributar  áqoelle  bello  sitio  a  singela  homena- 
gem da  nossa  admiração. 

Além  da  descripção  apologética  do  nosso  amigo,  um 
paciente  e  meticuloso  colleccionador,  que  n'uma  recente 
visita  ao  paiz  do  seu  nascimento  fizera  de  doiá  álbuns 
um  rico  e  curiosíssimo  repositório  dos  melhores  typos 
e  costumes  do  povo— tínhamos  a  incitarmos  a  ardência 
dos  nossos  desejos  Insaciáveis,  pelo  que  toca  ás  digres- 
sões de  qualquer  género. 

—Se  um  dia  lá  fores— dizia-nos  Samuel  com  o  mais 
vivo  enthusiasmo,  bem  longe  d'aqui— se  lá  fores,  não 
deixes,  ainda  mesmo  que  te  faças  conduzir  em  braços, 
de  contemplar  uma  vez  ao  menos  esse  admirável  reta- 
lho da  nossa  querida  pátria,  tão  invejada  por  estranhos 
e  tão  mal  comprebendida  pelos  naturaes.  Ó  amigo,  tu 
não  fazes  idéa  do  que  são  e  do  que  valem  as  margens 
do  rio  Lima  t  uma  cousa  que  a  Suissa  não  possue )  um 
encanto !  uma  maravilha  t  um  montão  de  bellezas  indes- 
criptiveis. 

Ás  2  horas  da  tarde  estávamos  a  caminho,  deixando 
para  o  lado  esquerdo  a  capella  de  S.  Silvestre,  que  se 
avista  no  cume  do  monte  Sorlei. 

Entre  Mia  dei  la  e  Santa  Martba  deparou-se-nos  um  es- 
pectáculo inteiramente  novo  para  nós. 

Á  beira  da  estrada,  um  pequeno,  com  a  melhor  cara 
de  saúde  e  robustez  d'este  mundo,  pedia-nos  esmola, 
de  joelhos  e  com  as  mãos  erguidas. 

O  caso  inesperado  fez-nos  lembrar  a  boa  sorte  dos 
dois  rapazes,  que  ao  sr.  D.  Luiz  mereceram  a  mais  de- 
cidida protecção  por  semelhante  maneira. 

Cuidaria  aquelle  pequeno  industrioso  que,  na  modesta 
carruagem  ond£  íamos,  se  abrigava  a  magestade? 

Se  assim  o  pensou,  ficou-Ihe  a  desillusão,  que  em 
nós  se  traduziu  em  lastima,  não  pela  sua  humilde  po- 
sição, que  nos  repugnou,  mas  pela  falta  de  severos  prin- 
cípios de  educação  familiar,  que  ensinem  a  evitar  uma 
usurpação  feita  aos  verdadeiros  necessitados — os  invá- 
lidos, os  cegos,  os  aleijados,  e  tanta  miséria,  a  mais 


SOO  NOTAS  A  LÁPIS 


deplorável  de  todas,  a  que  esconde  as  suas  lagrimas  na 
sombra. 

A  nossa  modesta  esmola,  n'aquelle  caso,  só  teve  a 
a  intenção  de  poder  sua  visar  a  quem  estivesse  em  qual- 
quer d'essas  circumstancias,  de  que  a  creança  podia 
muito  bem  ser  a  medianeira,  o  que  duvidámos,  por  co- 
nhecermos a  quanto  chega  a  indiLStria,  que  costuma 
explorar  a  credulidade  dos  viandantes  em  certas  e  de- 
terminadas occasiões. 

# 
#      # 

Além  das  duas  citadas  povoações,  deparam-se-nos 
mais  as  de  S.  Salvador,  Villamonde,  Lanhede,  Bertian- 
dos,  onde  está  o  solar,  uma  edificação  de  fraca  apparen- 
cia,  dos  condes  do  mesmo  nome,  e  Santa  Combadão. 

É  realmente  formoso  tudo  quanto  se  avista  da  estrada 
e  se  encontra  á  roda  dos  povoados,  d'onde  se  desen- 
tranham os  trabalhos  agrícolas,  que  vão  fecundar  aquel- 
las  terras,  já  de  si  em  extremo  productivas. 

As  margens  de  áquem  do  rio  formam  extensas  insuas, 
entrecortadas  de  pomares,  onde  campeam  frondosas  ar- 
vores de  fructo,  vinhedos  e  canaviaes,  a  que  correspon- 
dem, formando  um  conjuncto  da  mais  luxuriante  verdu- 
ra, as  margens  da  outra  banda,  a  que  dão  um  constante 
e  risonho  aspecto  as  aldeãs  alvejantes,  que  se  debruçam 
dos  declives. 

As  terras  comprebendidas  entre  S.  Salvador  e  Villa- 
monde e  as  que  vão  de  Lanhede  a  Bertiandos  são  as 
que  mais  nos  prendem  e  impressionam  pela  sua  exten- 
são, destinada  pela  maior  parte  á  cultura  do  milho,  do 
meio  do  qual,  a  formar  os  vários  matizís  da  paisagem, 
aqui  e  acolá,  em  fileiras  divisórias,  ou  marginando  as 
aguas,  sobresae  o  arvoredo,  diverso  na  folhagem  e  na 
côr  do  fruclo. 

A  serie  de  impressões,  que  recebemos,  não  apresen- 
ta um  só  instante  de  interrupção,  ate  á  entrada  da  pon- 
te, que  nos  conduz  á  villa. 


DB  VIANNA  A  VAUtNÇA  201 

E  essas  impressões,  fazendo  justiça  aos  encómios  do 
nosso  amigo,  podemos  affirmal-o  Acaram  indeléveis  no 
mais  fundo  da  nossa  alma. 

Ha-de  permittir-nos  elle  porém  que  sobreponhamos 
ás  margens  do  formoso  Lima,  que  lbes  prefiramos,  que 
julguemos  de  uma  belleza  mais  penetrante  os  mimosos 
campos  de  Coimbra/ 

For  nossa  vez  lhe  pedimos,  se  um  dia  volver  á  pá- 
tria, que  no  florir  da  primavera,  ou  na  quadra  mais 
amena  do  estio,  se  disponha  a  um  passeio,  desde  a 
Louzã  atè  à  ponte  da  Portella,  e  d'alli  a  Monte-mór  o 
Velho. 

Ha-de,  estamos  certo,  notar  a  differença  que  encon- 
trámos, e  vem  a  ser:— Eraquanto  no  rio  Lima  os  mon- 
tes escalvados,  sem  um  toque  de  verdura,  formam  pal- 
pitante contraste  com  as  bellezas  das  suas  margens ; 
aqui,  nos  campos  do  Geira  e  do  Mondego,  a  cultura 
vae  até  ao  mais  alto  das  montanhas,  em  graciosos  so- 
calcos, coroados  de  olivedos  e  pinheiraes,  harmoni- 
sando  um  estendal  de  matizes,  em  quadros  de  tal  na- 
tureza, que,  se  encontram  alma  que  os  sinta,  não  teem 
mão  que  os  descreva  no  papel  ou  na  tela, 


SOS  KOTAS  A  LAPI8 


II 


Ponte  do  Lima.  —  Theatro  e  hotel.. 

Caso  horripilante.  —  Cantatas  ao  lnar.  —  Até  Valença. 

A  terceira  praça  de  guerra.  —  Tuy. 


Ao  primeiro  declinar  da  tarde,  chegámos  á  villa  de 
Ponte  do  Lima,  a  querida  de  Pedro  I,  que  lhe  mandou 
fazer  e  executar  a  planta,  muito  cheia  de  tortuosidades 
e  más  ruas;  a  favorecida  de  D.  Manuel,  que  lhe  au- 
gmentou  a  população  e  os  privilégios. 

Até  ha  pouco,  a  primeira  curiosidade  da  terra  era  a 
ponte,  guarnecida  de  ameias  e  de  duas  torres,  estimá- 
veis padrões  dos  costumes  de  outras  eras,  dois  bellos 
ornamentos  da  antiguidade. 

A  camará  municipal,  á  imagem  e  semelhança  de  mui- 
tas das  suas  collegas,  que  são  incapazes  de  compre- 
bender  o  valor  das  nossas  velharias  preciosas,  foi-se  ás 
torres  e  ameias,  e  arrancou-as,  para  maior  commodida- 
de  e  gloria  sua. 

A  villa  possue  um  theatro,  chamado...  Lethes,  e 
como  tal,  segundo  deve  suppôr-se,  destinado  a  todos 
os  actores,  que  se  encarreguem  de  adormecer  o  publico; 
por  onde  se  prova  que  alli  os  nomes  e  costumes  anti- 
gos são  superiores  ás  obras  de  pedra  e  cal  das  mesmas 
épocas;  tem  um  extenso  cães,  um  bel  lo  iittoral  moder- 
no, em  cuja  praia  brincavam  por  sobre  a  areia  uns  por- 
cos brancos  da  maior  corpulência  que  temos  visto; 
e  conta  com  especialidade  na  parte  mais  arborisada 


DR  V1ANNA  Á  VALRNÇA  903 

bons  prédios  de  construcção  moderna,  sobresaindo  en- 
tre estes  um  palacete,  que  está  distanciado  das  outras 
casas,  ao  pé  da  praça  dos  Touros,  uma  opulenta  edifi- 
cação, destinada  aos  confortos  de  um  celibatário,  que, 
pelo  que  nos  disseram,  prefere  aos  encargos  de  familia 
a  solidão  dos  seus  luxuosos  aposentos. 

Chegado  a  esta  praça,  tivemos  de  ceder  ás  instancias 
dos  nossos  companheiros  e  ás  necessidades  do  estôma- 
go, valha  a  verdade,  e  pozemos-nos  a  indagar  onde  po- 
deríamos alojar-nos  para  o  jantar. 

Felizmente  a  poucos  passos  de  nós,  n'uma  casa  de 
má  apparencia  e  interior  correspondente,  havia  uma  ta- 
bolela  que  annunciava  —Hotel  Estreita  do  Lima. 

Não  era  occasião  para  escrúpulos. 

Subimos,  e  em  boa  hora  o  fizemos,  porque  recebe- 
mos uma  excel lente  hospedagem,  dada  pela  familia  de 
um  homem  delicadíssimo,  uma  verdadeira  es  t  reli  a,  que 
n'aquelle  mau  Olympo  nos  serviu,  depois  de  pequena 
demora,  com  limpeza  e  a  preço  barato— umas  bellas  e 
saborosas  sardinhas  da  Galliza,  uma  boa  pescada  e  um 
doce  de  damasco,  rescendente  á  fructa,  tão  saboroso  e 
fino  como  a  mais  preciosa  geléa. 

O  nosso  amigo  T.  P.,  a  cujas  qualidades  gastronó- 
micas rendemos  o  mais  rasgado  preito,  devorava  com 
uma  pasmosa  sofreguidão,  mostrando  assim  que  não 
ha  mostarda  superior  a  uma  boa  fome. 

# 
#       # 

Em  quanto  elle  dava  a  ultima  demão  áquella  emprei- 
tada devastadora,  começámos  nós  a  passar  em  revista 
um  jornal,  que  estava  dobrado  n'um  dos  cantos  da  mesa. 

Era  o  Commercio  do  Lima  de  1  de  setembro  de  1880, 
isto  é,  de  ha  16  dias. 

Chegando  ao  noticiário,  entrámos  casualmente  a  lér, 
em  voz  alta,  o  seguinte,  que  obedecia  no  topo  da  se- 
gunda columna  ao  titulo  de 


204  NOTAS  A  LÁPIS 


MYSTERIO  : 

fDura  respeitável  cavalheiro  d'esta  villa,  cuja  honra- 
dez e  probidade  garantimos,  recebemos  a  seguinte  car- 
ta, relatando  um  acontecimento  tão  extraordinário,  que 
vae  por  certo  despertar  a  curiosidade  publica. 

cNão  publicámos  o  nome  do  signatário  da  carta  por 
nos  ter  pedido  a  máxima  reserva,  mas  affirmámos  que 
o  seu  caracter  e  a  sua  posição  nos  levam  a  crer  que 
seria  incapaz  de  vir  para  a  imprensa  narrar  um  facto 
d'esta  ordem,  por  simples  passatempo,  tendo  dado  como 
garantia  da  veracidade  d'elle,  a  sua  palavra  d'bonra. 

cSr.  redactor.  —  Na  sexta  feira  passada,  pelas  2  ho- 
ras da  noite,  na  occasião  em  que  seguia  d'esta  villa  para 
Coura,  um  pouco  adiante  da  casa  das  sr.as  Gamas,  em 
Faldejães,  deparou-se-me  um  quadro,  que  a  principio 
nada  tinha  de  extraordinário,  mas  que  foi  tomando  pro- 
porções aterradoras.  A  noite  estava  escuríssima.  De 
repente,  parei.  Parecia-me  ouvir  a  distancia  uns  gru- 
nhidos roucos  d'aiguma  pessoa  a  quem  pretendessem 
estrangular.  Piquei  disporás  o  cavallo.  Os  gritos  lor- 
navam  se  cada  vez  mais  distinctos,  quasi  ao  pé  de  mim. 
Apeei  e  accendi  phosphoros.  Na  banqueta  da  estrada  es- 
tava estirado  um  homem,  com  os  pés  e  as  mãos  ata- 
dos por  umas  cordas  delgadas  e  fortes. 

•Não  tinha  ferimentos  visíveis,  mas  estava  horrivel- 
mente desfigurado. 

tDos  cantos  da  bocca  sahiam-lhe  dois  fios  de  sangue» 
como  d'um  cadáver  em  decomposição.  Tinha  os  olhos 
horrivelmente  espantados  e  o  rosto  d'uma  pallidez  mar- 
mórea. Quando  me  olhou,  abriu  a  bocca  desmesurada- 
mente, quiz  faltar,  e  apenas  soltou  um  rugido  inintelli- 
givel,  d'envolta  com  uma  golfada  de  sangue. 

tPareceu-me  que  o  moribundo  tinha  a  língua  corta- 
da. Abaixei-me  para  lhe  cortar  as  cordas  que  o  ligavam. 
Mas  quando  ia  a  levantar-me,  senti  no  pescoço  uma 
frialdade  metálica  —  a  bocca  d'um  rewolver  ou  a  folha 
d'um  punhal.  Voltei-me  de  repente.  Tinha  em  frente  de 


DE  VIANNA  A  VALENÇA  205 

mim  uma  mulher  vestida  de  preto»  e  com  um  florete 
em  punho  apontado  para  o  meu  peito. 

cEra  alta  e  magra.  Trazia  o  rosto  completamente  es- 
condido n'uma  comprida  mascara  de  panno  encarnado, 
e  a  sua  cabeça  descoberta  era  absolutamente  calva.  Da- 
va idèa  d'uma  bola  de  bilhar,  d'exaggeradas  dimensões, 
—-contrastando  singularmente  na  sua  alvura  cebacea  com 
o  negro  carregado  dos  vestidos.  Do  outro  lado  estava 
um  homem  espadaúdo  e  forte,  também  mascarado  e 
calvo.  Pelos  movimentos  fáceis  parecia  ainda  novo. 

«Apontou-me  um  rewolver,  quando  me  voltava  para 
elle,  e  disse-me  fi'um  francez  correcto  apesar  da  forte 
accentuaçJo  hespanhola:  Que,  se  pedisse  soccorro  ou 
se  tentasse  resistir,  soffreria  o  mesmo  castigo  do  trai- 
dor que  alli  via  estendido.  Em  seguida,  apitou,  e  appa- 
receram  immediatamente  vários  indivíduos  todos  mas- 
carados e  calvos,  que  arrastaram  o  moribundo,  e  des- 
appareceram  pela  estrada  de  Brandara.  Não  posso  des- 
crever-lhe  as  sensações  que  experimentei  n'esta  horrorosa 
noite,  nem  pintar-lhe  o  estado  em  que  fiquei,  vendo-me 
ao  lado  d'aquella  gente,  de  estranha  procedência,  desar- 
mado e  só.  Faça  v.  sobra-  o  assumpto  os  commentarios 
que  entender,  e  chame  a  attenção  das  auctoridades  para 
este  facto. 

cDisseram-me  que  os  dois  indivíduos  calvos,  a  sinis- 
tra mulher  e  o  seu  diabólico  companheiro,  já  foram  en- 
contrados na  Lapa  e  na  alameda  de  S.  João. 

cPóde  publicar  esta  carta  no  seu  jornal,  mas  peço- 
lhe  que  por  emquanto  não  revele  o  meu  nome. 

c  Recebi  uma  carta  pela  posta  interna  em  que  me  fa- 
ziam certas  ameaças.  Isso,  porém,  nada  me  intimida. 
0  que  desejo  é  que  se  faça  luz  sobre  o  caso. 

cSou 

Ponte  do  Lima  29  d'agosto. 

De  v.  etc. 
#  #  * 

cVae  sem  commenfarios  e  com  a  devida  reserVa.» 


206  NOTAS  A  LÁPIS 


# 
#         # 


Concluída  esta  terrífica  leitura,  olbei  para  T.  P.,  e 
vi-o  com  a  bocca  cheia,  suspenso,  de  olbos  esgaseados. 

Depois  de  forçar  até  ás  guelas  o  ultimo  bocado  de 
doce,  aos  impulsos  de  um  copo  de  bom  vinho,  reflectiu 
elle  a  limpar  os  beiços: 

— Ó  diabo!  isso  é  grave. 

E  levou  a  mão  ao  bolso,  onde  conservava  o  rewolver. 

— E  nós,  que  lemos  de  regressar  #  noite — aventurou 
uma  senhora,  com  as  cores  do  rosto  um  pouco  desbo- 
tadas pelo  susto. 

Interrogado  o  bom  do  dono  da  locanda,  nada  nospou- 
de  esclarecer. 

Mandando  abrir  a  carruagem  ao  sopro  da  fresca  ara- 
gem do  crepúsculo,  e  o  resto  á  sorte,  partíamos  dentro 
em  pouco,  pelo  mesmo  caminho,  em  direcção  a  Vianna. 

A  noite  não  se  fez  demorar,  mas  para  afugentar  ter- 
rores, que  em  verdade  deviam  ser  estranhos  áquella 
estrada,  tão  cheia  de  encanto»,  derramou-se  sobre  a  cha- 
pada dos  montes,  por  sobre  o  espelho  das  aguas,  nas 
planuras,  nos  campos,  em  tudo,  á  volta  de  nós,  por 
cima  das  nossas  cabeças,  ás  lufadas  tépidas,  o  mais  for- 
moso e  diáfano  luar. 

Dissipou-se  a  ultima  nuvem  produzida  pelo  maldito 
jornal. 

— Morramos  contentes!— exclamou  T.  P. 

E  pediu-nos  que  recitássemos  a  Canção  de  Soares  de 
Passos,  e  começou  depois  disso  a  cantar,  com  verda- 
deiro enthusiasmo  de  bom  patriota,  que  é,  a  Maria  da 
Fonte,  o  hymno  da  Carla,  e  por  fim  a  Marselheza,  pe- 
daços de  operas  e  mais  não  nos  lembrámos  quantas 
cousas,  no  que  era  soffrivelmente  secundado  por  nós. 

Ó  meu  Samuel,  isto  não  me  descreveste  tu,  porque 
o  não  viste !  * 

Que  arroubos  de  lyrismo  se  apoderam  das  nossas  fa- 


DE  YIANNA  A  VALENÇA  887 

culdades  r  que  bellezas  de  perspectiva  t  que  goso  para 
o  espirito  t 

Vem,  amigo,  vem  assistir  ao  espectáculo  mais  bri- 
lhante, que  talvez  te  seja  dado  gosar  em  toda  a  vida, 
que  tão  curta  é,  e  tão  cheia  de  amarguras.  Vem  ao  teu 
poético  rio,  passeia  por  elle  em  noite  estiva  e  de  for- 
moso luar,  e  verás  então  a  sua  formosura  inteira,  um 
encantamento,  um  caudal  de  infinita  poesia  t 

# 
*      # 

Ao  meio  dia  seguinte,  commentávamos  ainda  no  com- 
boio, em  direcção  a  Valença,  a  historia,  que  havíamos 
lido  no  Commercio  do  Minho,  uma  intriga,  que  mais 
tarde  circulava  nos  jornaes,  sob  a  denominação  de  Qua- 
drilha dos  Carecas,  um  mero  gracejo,  que  deu  que 
pensar  e  que  fazer  á  policia  d'aquelles  sitios,  om  ver- 
dadeiro e  novo  Mysterio  da  estrada  de  Cintra. 

As  bellezas  de  perspectiva,  no  caminho  de  ferro, 
desde  o  Douro  ao  Minho  podem  dividir  se  em  qua- 
tro secções  distinctas :  um  tanto  agreste  a  parte  com- 
prehendida  entre  o  Porto  e  Nine ;  mais  suave  e  aprazí- 
vel a  que  vae  de  Nine  a  Vianna ;  bella  a  que  começa 
n'esta  cidade,  sempre  á  beira- mar,  passando  por  Ancora, 
onde  ha  uma  boa  praia  de  banhos,  e  terminando  na  ri- 
sonha villa  de  Caminha,  onde  desagua  o  Minho,  e  se  co- 
meçam a  ver  terras  de  Hespanha;  formosíssima,  um 
caprichoso  jardim,  a  parte  que  vae  de  Caminha  a  Va- 
lença. 

Alli  começa  o  rio  a  acotnpanhar-nos  e  na  sua  linha 
divisória  a  mostrar-nos  a  porção  mais  brilhante  de  uma 
riqueza  característica.  Com  as  margens  da  Galliza,  po- 
rém, contrastam  os  campos  porluguezes,  pelos  esplen- 
dores la  sua  vegetação,  cultivo  e  manifesta  superiori- 
dade. 

Ás  3  horas  da  tarde,  chegávamos  á  estação  de  Se* 
goedães,  a  ultima,  a  uns  2  kilometros  de  Valença,  cujo 


J08  NOTAS  A  LAPI8 


trajecto  se  faz  em  más  diligencias  e  por  maus  cami- 
nhos. 

Esta  praça  de  armas,  com  as  suas  três  pontes  levadi- 
ças  do  lado  de  Seguedães,  onde  era  mais  accessivel  ao 
ataque  do  inimigo,  è  uma  relíquia  das  antigas  villas  for- 
tificadas. 

Pelos  outros  lados,  as  suas  grossas  muralhas  e  os 
seus  grandes  fossos  tornavam-n'a,  em  outros  tempos, 
quasi  inexpugnável,  depois  de  fechadas  as  quatro  por- 
tas, que  se  chamam— Gabiarra,  Coroada,  a  da  Fonte  e 
a  do  Sul,  as  ultimas  das  quaes  funccionam  ainda  hoje, 
cerrando-se  a  certa  hora  da  noite. 

Em  que  estado  porém  vimos  nós  tudo  aquillo,  que 
diz  respeito  á  nossa  terceira  praça  de  guerra  de  pri- 
meira classe? 

A  artilheria  impotente  montada  e  desmontada  a  esmo, 
as  edificações  damnificadas,  os  muros  musgosos  a  in- 
fundir tristeza  e  miséria. 

Nos  baluartes,  nas  ruas  e  beccos,  que  se  lhe  avisi- 
nham,  crescem  desafogadamente  bervas  e  silvas,  por 
entre  immundicies  de  todo  o  género. 

E'  preciso  caminhar  por  alli,  com  a  máxima  cautella 
e  de  lenço  no  nariz,  rogando  pragas  a  quem  compete  a 
responsabilidade  de  tanta  porcaria  e  desleixo. 

Em  compensação,  os  soldados,  que  guarnecem  a  for- 
taleza desmantelada,  um  dos  pontos  príncipaes  de  de- 
feza  n'aquella  parte  da  nossa  fronteira  e  um  documento 
da  maior  vergonha,  passeiam  indolentemente,  de  mãos 
atraz  das  costas  e  cigarro  ao  canto  da  bocca,  pelas  pra- 
ças, ruas  e  tabernas,  porque  a  libérrima  amplitude  das 
modernas  leis  militares  lhes  não  consente  trabalho,  além 
do  tratamento  das  suas  pessoas. 

Mas...  por  Deust  Se  o  soldado  mandrião  não  deve 
concorrer  com  a  força  do  seu  braço  para  o  asseio  e. lim- 
peza dos  postos  militares,  incumba-se  cTesse  servjfco  quem 
é  obrigado  a  velar  pela  honra  do  paiz,  especialmente  em 
pontos  d'aquella  natureza. 

Nem  procurámos,  nem  nos  emporta  saber  o  que  tem 


DE  VIANNA  A  VALENÇA. 


decidido  a  táctica  de  guerra  moderna,  acerca  d'aquelle 
apoio  de  defeza  nacional,  porque,  seja  qual  foro  apreço 
em  que  se  tenham  aquellas  venerandas  muralhas,  não 
podemos  deixar  de  censurar  o  que  por  lá  vimos,  seja 
devido  a  incúria  do  poder  civil  ou  á  da  gerência  militar. 

Mas. . .  continuemos. 

A  pez  ar  do  viver  farto  e  barato  de  Valença,  escasseiam 
por  lá  os  commodos  de  uma  boa  hospedagem. 

A  antiga  locanda  Lusobrasileira  está  abaixo  de  toda 
a  critica,  e  o  moderno  hotel  Rio  Minho,  estabelecido 
fora  das  portas,  ao  fundo  da  ladeira  e  junto  á  praia, 
cTonde  se  passa  para  Tuy,  é  propriedade  de  um  su- 
jeito, pouco  attencioso,  que  a  impar  de  estulta  bacha- 
relice,  com  que  a  todo  o  momento  enfada  as  pessoas, 
que  se  lhe  dirigem  —  faz-se  pagar  por  um  preço  exor- 
bitante. 

Disseram-nos  lá  que  os  ventos  da  fortuna  o  teem  ele- 
vado aquellas  alturas. 

Bem  haja  elle  por  tanto  i 

Do  baluarte  do  Scccorro,  que'  dá  sobre  o  rio  e  nos 
mostra,  sob  um  aspecto  risonho,  a  cidade  de  Tuy,  go- 
sa-se  um  formoso  panorama. 

Ao  lado  direito  tem  Valença  uma  fertilissima  bacia, 
e,  ao  pè  da  estrada,  que  desce  para  o  cães,  um  bonito 
jardim,  onde  ha  musica  aos  domingos  e  uma  assidua 
concorrência  das  melhores  famílias  da  povoação  portu- 
gueza  e  da  hespanhola,  que  se  visitam  e  obsequeiam 
muitas  e  repetidas  vezes,  e  que  mais  do  que  ninguém 
devem  estimar  a  construcção  da  ponte  internacional. 

Na  parte  do  Minho,  que  precorremos,  foi  lá  que  vi- 
mos as  mulheres  mais  formosas. 


O  cães  é  de  ambos  os  lados  insignificante  e  despido 
de  melhoramentos.  *  * 

De  cá  para  a  fiscalisação,  ha  quatro  guardas  civis;  de 

14 


2tO  NOTAS  A  LÁPIS 


lá  carabineiros,  com  o  seu  chapéu  de  bicos  e  o  seu  uni- 
forme garrido. 

O  serviço  dos  barcos,  obtido  por  concurso  perante  a 
camará  municipal,  é  péssimo  e  feito  quasi  sempre  no 
meio  de  nm  chuveiro  de  disparates,  a  que  não  faltam 
pragas  e  obscenidades  de  todo  o  jaez. 

Uma  digressão  a  Vigo  não  é  fácil,  porque  tendo-se 
de  ir  alcançar  em  diligencia  o  caminho  de  ferro,  que 
passa  a  uns  tantos  kilometros  de  Tuy,  acontece  muitas 
vezes  ser  a  hora  da  partida  do  comboio  da  manhã  a 
mesma,  em  que  se  permitte  a  entrada  na  fronteira  hes- 
panhola. 

Foi  o  que  nos  aconteceu,  visto  que  nos  não  quizemos 
sujeitar  a  passar  uma  má  noite  nas  encommodas  hospe- 
darias de  Tuy. 

Toda  a  impressão  agradável,  que  nos  offerece  de  lon- 
ge a  contemplação  d'esta  cidade,  desapparece  inteira- 
mente, ao  penetrarmos  nas  suas  ruas  tortuosas,  sujas 
e  mal  edificadas. 

Era  domingo.  Nas  viellas  e  nos  mercados,  inferiores 
á  mais  reles  das  nossas  feiras,  nada  vimos  que  tenha 
direito  a  simples  menção,  nem  em  coisas,  nem  em  pes- 
soas; estas  geralmente  mal  parecidas,  sem  adorno  typi- 
co  nos  trajes,  nem  distincção  característica  nas  maneiras. 

Por  mais  que  nos  esforçássemos,  não  nos  foi  possí- 
vel a  acquisição  de  um  recuerdo  qualquer,  que  mereces- 
se um  minuto  de  attenção. 

Um  passeio  a  Tuy  porém  torna-se  digno  da  maior 
recommendação,  simples  e  unicamente  para  uma  visita 
á  sua  cathedral,  construccão  antiquíssima,  com  resaibos 
de  mesquita,  e  um  portal,  que  nos  recorda  o  da  Sé  de 
Coimbra. 

O  interior  é  pesado  e  desgracioso,  tantas  são  as  co- 
lumnas,  escaninhos,  portas  e  recantos,  que  tem,  entre 
muitos  acrescentamentos  modernos  de  péssimo  gosto. 

O  que  vale  tudo  isso  no  entanto,  o  que  vale  a  cathe- 
dral inteira  é  a  riquíssima  bancada,  que  está  collocada 
debaixo  do  órgão,  no  meio  do  templo,  ao  contrario  de 


DE  VIANNA  A  VALENÇA  211 

todas  as  outras  egrejas,  que  temos  visto,  e  que  conser- 
vam as  bancadas  quasi  sempre  no  coro  oa  aos  lados  da 
capella-mór. 

É  toda  de  pau  santo  nos  assentos,  encostos  e  guarni- 
ção, e  ostenta,  desde  o  tamanho  natural  até  á  miniatu- 
ra, uma  pasmosa  abundância  de  relevos,  que  celebram 
as  melhores  passagens  da  historia  sagrada. 

No  meio  está  uma  estante  carregada  de  enormes  vo- 
lumes de  canteiros  e  rituaes,  todos  enriquecidos  de  illu- 
minuras  próprias  da  época. 

Infelizmente  tudo  isso  está  ás  escuras,  e  não  pode 
ser,  á  falta  de  luz,  observado  minuciosamente,  como 
requer  tamanha  preciosidade  artística,  de  que  no  seu 
género  nio  conhecemos  rival. 

Não  é  menos  digna  de  demorada  attenção  a  sacristia, 
onde  em  retábulos  sobrepostos  ao  mostrador,  que  guar- 
da os  paramentos,  ha  relevos  eguaes  em  pau  amarello, 
consagrados  aos  doze  apóstolos  e  a  outros  personagens 
do  novo  testamento. 

A  concorrência  de  padres,  a  cruzarem -se  em  todas 
as  direcções,  dentro  e  fora  do  templo,  fez-nos  lembrar 
de  Braga,  onde  as  mulheres  necessitadas  nos  pedem  es- 
molas para  que  Deus,  Nosso  Senhor,  nos  livre  do  diabo, 
que  podemos  trazer  no  corpo. 

Ao  mesmo  Deus  pedimos  nós  fervorosamente,  ao  des- 
cer a  rampa,  que  conduz  ao  cães,  fronteiro  a  Valença, 
que  nos  desse  de  vez  em  quando  para  admirar  obras 
de  arte,  como  as  da  cathedral,  d'onde  vínhamos,  mas. . . 
que  nos  livrasse,  por  sua  infinita  misericórdia,  de  cida- 
des como  Tuy. 


212  NOTAS  A  LÁPIS 


CALDAS  DO  GEREZ 


A  necessidade  de  uma  excursão  scientiflca  ao  Gerez.  —  A  ca- 
minho.—As  aguas,  soa  antiguidade  e  temperatura.— Carên- 
cia de  analyse— A  camará  de Bouro.— Atrazo  e  rotina. 


A  idéa,  aventada  pela  benemérita  Sociedade  de  Geo- 
graphià,  de  se  mandar  uma  commissão  scientiflca  em 
exploração  á  cordilheira  de  Gerez,  devia  merecer  o  apoio 
dos  poderes  governativos  e  o  caloroso  applauso  de  to- 
dos os  que  trabalham,  e  lidam  a  bem  da  humanidade» 
em  geral,  e  do  progresso  e  bom  nome  do  nosso  paiz, 
em  particular. 

Essa  exploração  porem  necessitava  de  ser  larga  e  de- 
morada, pela  natureza  do  solo,  que  se  diz  pertencer  ao 
primeiro  período  geológico,  solo  crivado  de  silex  e  ou- 
tros quartzos  mais  importantes,  como  as  torquezas  e 
amethistas,  e  de  alguns  fosseis;  pelos  estudos  meteriolo- 
gicos,  em  altitudes  enormes;  pela  variedade  de  exem- 
plares sylvicolas,  já  muito  damniflcados  pela  fouce  dos 
naturaes,  por  serem  covis  de  feras;  e  afinal  e  principal- 
mente pelo  exame,  de  que  necessitam  as  aguas  ther- 
maes. 

Á  parte  o  beneficio,  que  deve  resultar  para  a  scien- 
cia  de  todos  os  outros  elementos  de  estudo,  grande  ser- 


CALDAS  DO  GEREZ  213 


viço  se  prestará  a  muitos  centenares  de  pessoas,  que 
alli  vão  annualmente  procurar  allivio  a  padecimentos  do 
estômago,  anemia  e  fígado,  com  a  analyse,  que  a  medi- 
cina por  certo  exercerá  sobre  as  aguas,  ha  tantissimos 
annos  julgadas  milagrosas. 

Já  escrevemos  algures,  e  è  certo,  que  ha  pelo  nosso 
pequeno  paiz  zonas  tão  descuradas  dos  poderes  públi- 
cos, tão  precisadas  de  uns  borrifos  de  civilisação  bem 
applicada,  que  mais  parecem  membros  dispersos  de 
um  todo,  do  que  partes  componentes  d'esta  abençoada 
nesga  peninsular. 

As  terras  do  Bouro  e  o  Gerez  por  consequência  es- 
tão o'este  caso. 

Tudo  alli  è  primitivo,  rude  e  pautado  pelos  acanha- 
dos conhecimentos  dos  séculos  passados. 

Quando  em  junho  de  1882,  nos  dispúnhamos  a  se- 
guir de  Lisboa  para  as  Caldas  do  Gerez,  muito  boa 
gente,  com  o  ar  mais  innocente  d'este  mundo,  nos  per- 
guntava:—Mas. .  .  onde  fica  isso?  É. . .  é  na  Hespanha? 

À  justificação  d'esta  pergunta  lá  a  fomos  encontrar 
em  tudo  o  que  vimos,  e  observámos. 

# 
#      # 

Numa  distancia  de  uns  40  kilometros  de  Braga,  dei- 
xemos a  estrada,  que  conduz  a  Chaves,  nologarejo  cha- 
mado Penedo,  e  entremos  na  locanda  da  senhora  Lia- 
nor,  uma  guapa  rapariga  de  olhos  rasgados  e  bellos, 
que  illuminam  um  bonito  rosto,  cheio  de  vivacidade  e 
bons  modos,  como  única  coisa  boa  em  meio  d'aquella 
possilga,  exemplar  fiel  das  antigas  estalagens,  que  amol- 
lentaram  os  ossos  dos  nossos  maiores. 

Arreiadas  as  magras  cavalgaduras,  que  podiam  ainda 
assim  desafiar  na  perícia  de  galgar  despenhadeiros  o 
mais  anafado  cavallo,  amestrado  nas  lides  hyppicas  de 
todos  os  circos  europeus,  façamos  o  signal  da  cruz,  e 
ponhamos-nos  em  cautelosa  marcha  por  caminhos,  im- 


214  NOTAS  A  LÁPIS 


possíveis  de  descrever,  n'um  declive  medonho,  a  cujo 
aspecto  mais  de  uma  pessoa  já  tem  recuado,  e  desisti- 
do de  continuar  a  viagem. 

Lá,  no  fundo  da  enorme  ladeira,  corre  o  Cávado, 'em 
leito  pedregoso,  ao  receber  o  affluente,  conhecido  ai  li 
pelo  nome  de  Caldo,  devido  provavelmente  á  sua  nas- 
cente, pouco  acima  das  Caldas  do  Gerez. 

Á  ponte,  uma  obra  moderna,  é  o  único  lugar,  onde 
podemos  tomar  fôlego,  ao  darmos  graças  a  Deus,  se 
temos  a  ventura  de  não  fracturar  uma  costella. 

—Meu  caro — dizia-nos  mais  tarde  uma  senhora,  que 
alli  passa  ha  28  annos— dê...  dê  verdadeiros  agrade- 
cimentos ao  Altíssimo.  Quando  em  outro  tempo  aqui  se 
chegava,  já  se  julgava  finda  a  viagem  e  passado  o  maior 
perigo.  Hoje  só  as  costellas  correm  maior  risco;  e  n'es- 
sa  época  muito  havia  a  temer  pela  bolsa  e  pela  vida. 
Muitas  vezes  precisei  vir  escoltada  pela  gente  do  cam- 
po, de  umas  aldéas  para  as  outras.  Isto  boje  é  um  favo 
de  mel,  creia. 

Bemdita  seja  a  ci  vi  li  sacão  dos  nossos  dias,  se  aquillo, 
que  só  nos  pede  maldições  contra  a  incúria  da  respec- 
tiva camará  municipal,  que  nem  ao  menos  se  tem  lem- 
brado de  mandar  limpar  o  caminho  dos  enormes  ca- 
lhaus, que  o  obstruem,  coisa  de  pequeno  dispêndio ; 
bemdita  seja  ella,  se  aquillo,  que  nós  viamos  horrorísa- 
do,  já  foi  um  dia  peor  do  que  hoje  se  mostra ! 

Camará  municipal— dissemos?  Nem  tanto  era  preciso: 
bastava  que  os  verdadeiros  interessados,  os  moradores 
dos  arredores,  se  agremiassem  para  melhorar  o  caminho, 
que  lhes  dá  serventia,  porque  os  calhaus,  pela  maior 
parte  soltos,  ou  presos  por  um  só  lado,  esperam  apenas 
um  ligeiro  impulso  para  rolarem  até  ao  fundo  do  rio. 

Santa  e  tradicional  pasmaceira  a  d'aquella  gentel 

Com  pequenas  variantes,  desde  o  Penedo,  por  meio 
de  duas  enormes  montanhas,  até  ás  Caldas,  é  o  transi- 
to difficil  e  escabroso,  um  carreiro  de  cabras,  onde  os 
estreitos  carros  de  bois,  aos  solavancos,  se  desconjun- 
tam e  á  carga,  que  se  lhes  confia. 


CALDAS  DO  GIBBZ  215 


Que  o  digam  as  malas  da  nossa  bagagem  t 

Lançando  a  vista  por  aquellas  terras,  que  marginam 
o  rio,  condoèmos-nos  da  desleixada  cultura»  que  ellas 
apresentavam,  nua,  despida  quasi  em  absoluto  de  arbo- 
risação. 

Nem  arvores  de  fructo  nas  planícies,  nem  ao  menos 
um  pinhal  nas  encostas  I 

No  entanto  que  fertilidade  de  solo,  cortado,  a  peque- 
nos espaços,  ainda  no  maior  rigor  da  estação  calmosa, 
de  cristalinas  vertentes  de  agua,  que  se  despenha  sus- 
surrando dos  montes  e  valles ! 

Montanhas  coroadas  de  penedos  graníticos,  á  volta 
dos  quaes,  correndo  até  ao  sopé,  se  admira  uma  terra 
escura,  repleta  de  adubos  creadores,  dão-nos  uma  ver- 
dadeira semelhança  das  serranias  e  terra  preta  de  Cin- 
tra, tão  justamente  apreciada. 

Aquelles  povos  teem  pela  arborisação  um  horror  tra- 
dicional, não  poupando  os  próprios  medronheiros,  que 
se  atrevem  a  nascer  ao  acaso  nas  encostas,  e  a  que  lan- 
çam fogo,  com  medo  das  feras,  segundo  lá  nos  disse- 
ram, á  falta  de  outra  coisa,  com  que  podessem  descul- 
par a  sua  emperrada  inércia. 

# 

•      # 

A'  proporção,  que  nos  avisinhámos,  mais  se  nos  aper- 
ta o  horisonte,  e  mais  se  eleva  a  crista  das  duas  ser- 
ras, que  nol-o  estreitam. 

Precorridos  uns  8  kilometros,  depois  de  termos  sen- 
tido um  arrepio  de  horror,  ao  contemplar  a  triste  e  som- 
bria povoação  de  Villar  da  Veiga,  que  encontrámos  na 
passagem,  no  lugar  mais  estreito  e  á  borda  do  rio,  de- 
parámos com  umas  quarenta  casas,  agrupadas  em  des- 
ordem, uma  massa  granítica  de  más  habitações,  que  nos 
impressionam  tristemente. 

Estamos  nas  Caldas  do  Gerez,  distante  uns  oito  kilo- 
metros da  fronteira  hespanhola. 


216  MOTAS  A  LAMS 


Entrando  em  mais  demorada  revista,  essa  impressão 
desfaz-se  lentamente,  e  acbámos  em  tudo  aquillo  uma 
ceria  belieza  característica. 

Os  pequenos  campos  elevam-se  em  socalcos  aos  lados 
da  montanha;  de  toda  a  parte  desprendem-se  mananciaes 
de  excellente  agua,  um  prodígio,  que  humedece  livre- 
mente terras,  casas  e  ruas,  até  se  metter  no  rio,  que 
borda  a  povoação,  por  um  dos  lados. 

Uma  extraordinária  fertilidade,  um  solo  privilegiado 
e. . .  um  pasmoso  desleixo. 

Nem  orbori sacão,  que  valha,  nem  cultura,  que  prestei 

Decididamente  não  ha  povo  mais  indolente  do  que  o 
nosso.  A  quem  conhece,  como  nós,  a  incúria  do  índio 
e  a  molleza  do  tapuio  repugna  confessar,  e  custa  immen- 
so  desgosto  o  fazel-o,  que  o  nosso  aldeão  lhes  leva  a 
palma. 

— Mas...— dir-se-hajtalvez,  ao  avistar-se  no  melhor 
local,  uma  bonita  casa  de  construcção  moderna,  perten- 
cente a  um  proprietário  de  Guimarães,  um  homem  de 
bom  gosto,  que  alli  recuperara  a  sua  saúde  arruinada— 
porque  è  que  a  terra  não  tem  melhorado,  com  a  visita 
de  tanta  gente,  que  ha  largos  annos  afflue  áquelles  sitios? 

Porque  o  natural,  aferrado  aos  seus  usos,  apertado 
n'um* circulo  de  inveja  mesquinha,  peculiar  a  toda  a  gen- 
te rude,  não  cria,  não  inventa,  não  melhora,  e  não  con- 
sente que  os  outros  o  façam. 

Porque  se  nega  á  venda  de  uma  nesga  de  terreno, 
com  medo  de  que  outrem  lhe  faça  sombra,  costumado 
como  está  a  encarar  o  visitante  como  meio  único  de 
exploração  inevitável  e  annual. 

Porque  aquelle,  que,  grato  á  localidade,  em  virtude 
das  suas  aguas,  desejando  crear  uma  regalia,  toda  ten- 
dente a  engrandecel-a,  pretende  construir  um  prédio, 
vô-se  na  impossibilidade  de  o  fazer,  como  ainda  dão  ha 
muito  aconteceu  ao  sr.  dr.  Gramacbo,  do  Porto. 

Porque  a  própria  camará  das  terras  do  Bouro,  cujo 
presidente,  um  bacharel,  ardente  defensor  da  santa  in- 
quisição, lastima  que  se  fundem  escolas,  d'onde,  na  sua 


CALDAS  DO  GERBZ  117 


opinião,  só  saem  petroleiros,  em  vez  de  templos,  que 
julga  ainda  poucos— se  tem  esquivado,  segundo  nos  af- 
firmaram,  a  que  as  suas  informações  sejam  proveitosas 
a  quem  deseja  tornar  as  aguas  conhecidas  e  generalisadas. 

Porque  os  nossos  governos,  a  quem  ellas  pertencem 
ha  cento  e  cincoenta  annos,  ainda  ibes  não  prestaram  a 
menor  attenção. 

Porque  finalmente  essas  aguas,  custa  a  dizel-o,  ape- 
zar  de  tantas  curas,  que  teem  produzido,  ainda  não  fo- 
ram official  e  seriamente  analysadas. 

Diz-se  que  já  eram  òonbecidas  no  tempo  dos  roma- 
nos; que  os  frades  Bernardos  se  serviram  cTellas  e  as 
preconisaram;  e  que  frei  ChristovSo  dos  Reis  foi  o  pri- 
meiro a  escrever  acerca  das  suas  propriedades  therapeu- 
ticas. 

Modernamente,  além  do  que  o  sr.  visconde  de  Villa 
Maior  disse  delias,  nada  ha  de  importante. 

Affirmaram-nos  que  do  tempo  dos  frades  existe  ainda 
um  manuscrípto,  em  mão  do  sr.  Gregório  Florêncio 
Gannas,  morador  em  Belém. 

Ao  fim  da  rua  principal,  encostadas  á  montanha,  vêem- 
se  umas  esquisitas  construcções,  que  formam  seis  cones, 
caiados  de  branco,  sendo  cinco  com  paredes  e  tecto  de 
granito,  um  com  paredes  da  mesma  pedra  e  cobertura 
de  telha  e,  por  fim,  um  telheiro  raso,  ao  todo  sete  di- 
visões, com  nove  nascentes  e  onze  poços,  que  datam  de 
1735,  como  já  mal  se  pode  lér  em  uma  pedra,  que  diz 
assim  : 


E9TAS  OBRAS  MANDOU  FAZER  EL-REY 

NOSSO  SENHOR,  D.  JOÃO  V,  Á  CUSTA  DOS 

POVOS,  SENDO  SUPERINTENDENTE  DALLAS 

O  DR.  GASPAR  PIMENTA  DE  AVELLAR, 

PROYEDOR  DA  COMARCA  DE  GUIMARÃES, 

B  PARA  SE  FAZER  CONCORREU  COM  MUITO 

ZELO  O  DR.  FRANCISCO  PEREIRA  DA  CRUZ, 

DEPUTADO  DO  SANTO  OFFICIO 

E  DESEMBARGADOR  DA  SUPPLICAQÂM 

DE  LISBOA.  ABRIL  li  DE 

MDCCXXXV 


218 


NOTAS  A  LAH8 


Para  que  se  possa  fazer  ama  idèa  da  temperatura  das 
aguas,  pelas  denominações  das  esburacadas  portas,  que 
indicam  os  poços»  copiamos  o  que  as  imperfeitas  ana- 
lyses  teem  produzido,  em  graus  Reaumur  e  centígrados: 


Almas 

Santo  António 

Bica 

Fígado 

Duas  Bicas... 

Taboa  

Borges 

Figueira 

Aguas  Novas. 
Contraforte.. 
Forte 


HAumm 

GINTIOtADOS 

27 

33  y, 

29 

36.1/4 

32 

40 

28 

38 

24 

30 

35 

43  »/4 

27 

33  V* 

31 

38  3/4 

30 

37  »/, 

35 

43»/* 

38 

47  Ví 

i.*  nascente 

2* 
3.* 
4.» 


6- 
7.« 
8.» 
9.- 


A  temperatura  d'esta  ultima  nascente,  como  se  vê, 
custaria  a  supportar  por  alguns  segundos:  escalda-nos. 

São  sulphurosas  estas  aguas? 

Não. 

Apresentam  alguns  saes? 

Insignificantíssimos. 

Teem  cheiro  ou  sabor? 

Não.  Depois  de  frias  fazem  óptimo  cbá. 

O  que  conteem  ellas  então  ? 

Sabemos  apenas,  que  a  analyse  da  exposição  de  Pa- 
ris, em  1867,  achou,  em  cada  kilogramma  de  agua,  0,2 
gr.  675  de  princípios  fixos-silicatos  e  chloruretos  alca- 
linos e  uma  pequena  dose  de  saes  calcareos  e  de  ma- 
gnesia. 

Ora  esta  analyse  foi  exercida  no  estado  frio  e  demorado. 

Que  propriedade  conteem  as  aguas,  ao  sair  da  nas- 
cente, quando  ha  opiniões,  que  nos  parecem  muito  jus- 
ti  ficáveis,  de  que  a  acção  principal  è  produzida  por  um 


CALDAS  DO  GlftBZ  119 


certo  fluido  magnético,  que  desapparece  pelo  resfria- 
mento? 
Não  o  sabemos,  e,  que  nos  conte,  ninguém  o  sabe. 

# 
*      # 

Pode  calcular-se  em  perto  de  mil  pessoas  o  numero 
de  doentes,  que  annualmente,  de  junbo  a  setembro,  pro- 
curam estas  aguas,  especialmente  para  moléstias  de  es- 
tômago e  fígado,  apezar  de  todas  as  dificuldades,  en- 
commodos  e  dispêndios  a  que  é  preciso  sujeitarem-se. 

Para  não  se  estranhar  o  estado  de  rotina  e  atrazo,  em 
que  tudo  aquillo  se  encontra,  basta  saber-se,  que  o  mi- 
lagroso manancial  é  propriedade  do  governo,  que  o  en- 
tregou até  nova  deliberação,  ba  tantissimos  annos,  á  ge- 
rência e  cuidados  da  camará  municipal  das  Terras  de 
Bouro,  que  o  traspassa  por  arrematação. 

O  actual  arrematante,  um  bomem  emprehendedor,  o 
sr.  Salgado,  negociante  na  rua  Augusta,  em  Lisboa,  de 
ha  muito  que  requereu  ao  governo  uma  concessão  para 
a  encorporação  de  uma  empreza,  destinada  a  elevar  ao 
grau  de  prosperidade  necessária,  a  bem  da  humanidade 
e  do  credito  do  paiz,  abundante  de  aguas  medicinaes, 
como  poucos,  as  Caldas  do  Gerez,  mandando  analysar 
as  aguas,  creando  estabelecimentos  balneares,  montando 
um  vasto  hotel,  e  realisando  todos  os  melhoramentos 
indispensáveis,  para  o  que  está  prompto  a  offerecer  as 
necessárias  garantias. 

Os  papeis,  desencaminhados  já  de  uma  vez,  lá  dor- 
mem na  repartição  competente  o  somno  dos  predestina- 
dos, aquelle  somno  despiedado,  verdadeira  praga  tradi- 
cional, que,  salvas  as  honrosas  excepções,  amollenta  a 
actividade  e  a  consciência  do  funccionalismo  publico. 

O  edital,  que  pretende  ser  o  regulamento,  diz  no  seu 
art.°  i.°  e  §  único,  entre  muitas  letras  maiúsculas,  que 
supprimimos  por  brevidade: 

«Ninguém  poderá  usar,  interna  ou  externamente,  das 


220  NOTAS  A  LAP18 


aguas  das  Caldas  do  Gerez,  sem  que  primeiro  faça  uma 
inscripção  em  casa  do  director  ou  facultativo  do  estabe- 
lecimento, em  que  declare  o  nome,  edade,  estado,  pro- 
fissão, naturalidade  e  moléstia  que  padece. 

•  Por  esta  inscripção  receberá  do  director  a  pessoa 
inseri p ta  um  bilhete,  que  lhe  dará  direito  ao  uso  inter- 
no das  aguas  e  a  pedir  hora  e  banho  ao  administrador 
ou  arrematante,  mediante  a  retribuição  ao  tempo  em 
vigor.» 

Pois,  senhores,  nem  uma  só  d'estas  letras  se  cumpre; 
impera  a  lei  do  arbítrio,  da  rotina  e  de  alguma  expe- 
riência, que  faz  de  cada  morador  da  localidade  um  medi- 
co ad  hoc. 

A  bica  da  agua  despeja-se  na  rua,  de  noite  e  dia; 
ninguém  se  inscreve;  ninguém  recebe  bilhete;  cada  qual 
faz  o  que  lhe  parece,  por  seu  voto  próprio,  ou  por  con- 
selho de  algum  experiente;  não  ha  director;  não  ha  me- 
dico. 

Perdão !  Ha  um  velhinho  com  esse  titulo,  um  facul- 
tativo á  imagem  e  semelhança  da  camará  das  Terras  de 
Bouro,  a  quem  se  perdoa  a  ironia,  em  desconto  dos 
nossos  peccados  e  dos  d'ella  também. 

Ao  diante  trataremos  desse  respeitável  personagem, 
a  quem  votámos  a  mais  extraordinária  admiração. 


CALDAS  DO  CttBKZ  SM 


II 


Commodidades.  —  Vingança  de  montanheses.  —  O  hotel  Uni- 
versal —  O  que  seria  o  Geres.  —  Vidago  e  as  aguas.  — 
Garls-badenu  —  Agua  a  jorros.  —  A  festividade.  —  Cantigas 
populares.  —  Peditório  em  verso.  —  Recursos  medico-phar- 
maceuticos. 


Justo  é  que  faltemos  agora  das  commodidades,  que 
esperam  um  doente,  que  ás  vezes  para  alli  precisa  ser 
conduzido  em  braços. 

Até  ao  Sm  do  anno  passado,  não  havia  lá  uma  hos- 
pedaria, por  mesquinha  que  fosse;  todas  as  casas  arvo- 
ravam este  titulo,  precisando  o  desgraçado  forasteiro  de 
levar  comsigo  desde  o  colchão  para  dormir  até  ao  pra- 
to para  comer. 

Apezar  d'isso,  quem  não  tivesse  recursos,  ou  lutasse 
com  a  affluencia,  havia  de  alojar-se  nos  curraes  do  gado, 
porque  a  hospedagem  fazia-se  pagar  por  preços  exor- 
bitantes, havendo  por  lá  casarão  frio  e  desabrigado,  que 
custava  de  iO  a  20  libras  ao  mez. 

O  instincto  da  ganância  não  falta  por  certo  ás  outras 
virtudes  da  nossa  gente  rude. 

A  lavagem  da  nossa  roupa,  feita  no  rio  e  ao  pé  da* 
porta,  custou-nos  preço  superior  ao  de  Lisboa. 

Quando  se  precisava  de  um  pão  ou  de  uma  gallinha, 
ia-se  em  certos  dias  ao  caminho  assaltar  o  vendedor,  em 
risco  ainda  de  voltar  sem  o  objecto,  de  que  se  necessitava. 

A  falta  de  recursos  servia  até  para  as  vinganças  mes- 
quinhas, de  que  a  gente  aldeã  sabe  tirar  tão  vil  partido. 

O  distincto  medico  do  Porto,  o  sr.  dr.  Gramacho,  a 
quem,  por  meio  de  subscripção  entre  os  doentes,  em 


L^ 


212  NOTAS  A  LÁPIS 


cojo  numero  entrava,  se  deve  o  embelezamento  da  úni- 
ca nesga  de  passeio,  que  lá  existe,  ao  pé  de  uns  bons 
castanheiros,  teve  grave  desgosto  por  causa  de  uma  des- 
sas vinganças,  exercida  n'um  amigo  seu. 

Fora  o  caso : 

Tendo  de  celebrar-se,  a  15  de  julho,  a  festividade  de 
S.  Eufemia,  orago  da  capella  das  Caldas,  correu,  como 
é  costume,  uma  subscripção,  em  que  os  forasteiros  avul- 
tam de  preferencia. 

O  amigo  do  nosso  doctor  por  qualquer  circumstancia, 
de  que  não  tinha  obrigação  de  dar  satisfações  a  quem 
quer  que  fosse,  recusou-se  a  assignal-a. 

Ao  outro  dia,  quando  a  sua  criada  saiu  a  comprar  o 
leite  costumado  para  o  almoço,  foi-lhe  negada  a  venda. 

O  sr.  dr.  Gramacho,  a  quem  a  população  devia  bons 
serviços  clínicos,  muito  respeito  e  consideração,  man- 
dou na  manhã  seguinte  com  a  sua  a  vasilha  do  sen 
amigo. 

Baldado  empenho.  A  venda  do  leite  continuou  a  ser 
negada. 

Justamente  offendido  pela  contumácia  de  tão  pequeni- 
no desforço,  desde  essa  época,  nunca  mais  o  distincto 
medico  voltou  ao  Gerez,  onde  os  seus  bons  serviços  tão 
necessários  eram. 

Pela  villeza,  que  resumbra  (Teste  facto,  se  pôde  cal- 
cular o  grau  de  recursos  e  amabilidades,  que  por  lá  se 
encontravam  ainda  ha  pouco. 

N'este  anno,  porém,  graças  á  iniciativa  do  sr.  Martins 
Ribeiro,  único  homem  que  alli  podia  emprehender  tal 
•  melhoramento,  pelo  conhecimento,  que  tem,  de  outras 
terras,  e  por  suas  maneiras,  que  denunciam  o  trato  com 
boa  gente— levantou-se  sobre  a  modesta  casa  dos  frades 
bernardos  o  Hotel  Universal,  um  estabelecimento,  que 
se  pôde  reputar  por  bom  para  a  localidade,  e  óptimo 
se  poderá  chamar  quando  o  seu  proprietário  lhe  forne- 
cer, quanto  a  certos  viveres  e  arranjos  dos  quartos,  os 
melhoramentos,  de  que  ainda  muito  precisa. 

Ao  rez-do-chão  fica  a  espaçosa  sala  de  jantar,  com 


CALBA8  DO  GBRSZ  113 


bufete  e  casa  de  bilhar»  innovações  que  fizeram  embas- 
bacar a  população  inteira. 

Ao  sr.  Martins  Ribeiro  não  faltam  predicados  recom- 
mendaveis,  entre  os  quaes  sobresaem  ama  extrema  de- 
licadeza e  cavalheirismo  no  trato,  coisa  rara  e  preciosa 
em  semelhante  género  de  industria,  brilhante  de  grande 
valia  no  meio  da  aspereza  d'aquellas  serranias. 

Mais  tarde  terá  o  Gerez  de  agradecer  de  mãos  pos- 
tas ao  sr.  Martins  Ribeiro  a  creação  do  seu  estabeleci- 
mento, verdade  verdade,  ainda  mal  olhado  e  compre- 
hendido  pelos  naturaes ;  o  que  era  de  esperar. 

Os  benefícios  começam  desde  já  a  manifestar-se. 

Os  doentes,  cansados  das  torturas  passadas,  afflui- 
ram  em  massa  ao  hotel,  que  só  não  alojou  aquelles, 
que  ignoravam  a  sua  existência. 

As  casas  particulares  baixaram  as  suas  exigências, 
pintaram  as  suas  paredes,  e  promettem  toroar-se  habi- 
táveis, limpas  e  decenies. 

E  tudo  isto  porque  ? 

Porque  o  Hotel  Universal  lhes  accendeu  em  face  um 
pequenino  facho  civilisador. 

A  vista  d'isto,  um  ponto  quasi  imperceptível  no  cen- 
tro de  uma  esphera  de  óptimos  emprehendimentos  a 
realisar,  imagine-se  o  que  poderia  ser  o  Gerez  se  o  go- 
verno se  lembrasse  não  de  gastar  dinheiro  que  ninguém 
lhe  pede,  mas  de  crear  para  si  próprio  uma  fonte  de 
receita,  offerecendo  aquillo  a  uma  empreza,  que  era  fá- 
cil encontrar,  não  uma  empreza  monopolisadora,  que 
fizesse  vender  no  paiz  as  aguas  mineraes  mais  caras  do 
que  as  que  nos  vêem  do  estrangeiro,  apezar  de  sobre- 
carregadas com  diversas  despezas,  como  acontece  com 
as  aguas  do  decantado  Vidago,  bem  dignas  de  melhor 
sorte ;  mas  uma  empreza  seriamente  empenhada,  a  par 
do  sed  lucro  indispensável,  em  bem  servir  a  humani- 
dade soffredora. 

Em  quanto  que  as  aguas  de  Vidago  só  serviriam  para 
os  ricos  pelo  excessivo  preço,  que  teem,  dois  terços 
mais  do  que  deveriam  custar ;  as  aguas  do  Gerez,  as 


294  NOTAS  A  LAWS 


das  Felgueiras  e  as  de  tantas  localidades  por  abi  fóra, 
bem  administradas,  circulariam  por  toda  a  parte,  dando 
lucros,  grandes  créditos  e  bonra  ao  paiz. 

Nem  era  muito  que  sonhássemos  um  Carls-baden,  no 
nosso  Portugal,  e  outros  estabelecimentos  estrangeiros 
de  aguas  mineraes,  que  são  a  admiração  e  o  encanto 
de  quem  os  visita. 

Bazares,  jardins,  passeios,  fornecidos  de  tudo  quanto 
é  necessário  á  vida,  commodidades  de  todo  o  género, 
accessiveis  a  todas  as  bolsas,  e  proporcionadas  ao  re- 
gimen de  pessoas  doentes,  um  deslumbramento  de  tudo 
quanto  a  civilisação  moderna  pôde  inventar,  e  crear,  alli 
se  encontra  á  farta. 

E  o  que  tem  realisado  todas  essas  maravilhas  em 
Carls-baden,  para  não  fallar  de  outras  localidades? 

Um  simples  tributo,  lançado  sobre  os  forasteiros,  que 
lá  vão  annualmente,  um  tributo,  pago  á  entrada,  con- 
forme a  profissão  de  cada  um. 

Àquelle  dinheiro,  administrado  religiosamente,  só  é 
empregado  em  melhoramentos  locaes,  e  de  modo  ne- 
nhum tem  um  fim  diverso. 

Não  ba  nada  mais  fácil,  nem  mais  profícuo. 

Mas. . .  o  que  devemos  nós  esperar  de  quem  nega, 
ou  descura,  ha  século  e  meio,  uma  simples  analyse  ás 
aguas  do  Gerez? 

# 
#      # 

Às  maiores  curiosidades  da  terra  são  a  capella  de  Santa 
Eufemia,  a  cuja  festividade  assistimos  a  15  de  julho,  os 
cones  das  nascentes,  o  acanhado  socalco,  gradeado  de 
ferro,  que  serve  de  passeio  publico,  e  um  carreiro  de 
cabras,  chamado  passeio  dos  Castanheiros. 

Ao  contemplar  os  mananciaes  de  finíssima  agua,  que  se 
despenha  por  alli  abaixo,  desperdiçada  e  inútil,  galgando 
sobre  uma  terra  preta,  immensamente  creadora  mas  in- 
culta, dá-nos  vontade  de  ter  uma  força  sobrenatural  para 
apeiar  as  montanhas,  e  arrasar  tudo  aquillo. 


CALDAS  DO  GSRIZ  215 


Costumes  populares  não  os  ba,  que  mereçam  nota. 

No  dia  de  S.  Joio,  festejado  pelos  hospedes  do  Hotel 
Universal  com  foguetes  e  musica,  vinda  de  uma  distan- 
cia considerável,  gruparam-se  as  raparigas  da  terra,  mal 
trajadas  e  pouco  do  na  irosas,  garganteando  lá  de  vez  em 
quando  uma  toada  monótona  e  invariável,  com  este  des- 
lavado e  correcto  estribilho: 

Chora,  Dulovina, 
Dulovina,  Chora  f 
Cbora,  Dulovina, 
Que  te  vaes  embora  ( 

E  d'aqui  não  passavam. 

No  dia  da  festividade  da  santa,  nem  dansas,  nem  des- 
cantes, nem  cousa  alguma  característica ;  notaremos  só 
na  procissão  um  andor,  revestido  de  três  andares  em 
repartimentos,  de  cerca  de  quatro  metros  de  altura, 
muito  cheio  de  enfeites  e  galões,  postos  em  chapa,  como 
adornos  e  ligaduras  de  múmia,  e  um  christo  trazido 
para  o  meio  da  rua  e  collocado  sobre  uma  mesa,  á  volta 
da  qual  passou  a  procissão. 

Não  podemos  saber  a  significação  d'isto. 

Na  véspera  da  nossa  saída,  que  era  domingo,  vieram 
alguns  populares,  acompanhados  de  dois  violões,  re- 
beca, cavaquinho  e  clarinete,  n'uma  cadencia,  que  não 
podemos  classificar,  tocar  e  cantar  sob  as  janellas  do 
hotel,  em  peditório  de  vinho  e  dinheiro. 

Eram  dois  os  cantadores,  um  homem  dos  seus  50 
annos,  alegre,  vivo,  enthusiasta,  de  palhoça  ás  costas  e 
a  tocar,  como  se  fora  uma  viola,  n'uma  roça  doura,  e 
um  rapaz  farçola,  que  improvisava  bem. 

O  melhor  typo  do  rancho  porém  era  um  dos  dois 
violões — olhos  postos  em  alvo,  sem  pastenejar,  cabeça 
hirta,  chapéu  inclinado  para  traz,  ares  de  verdadeira 
inspiração. 

A  uma  das  portas  do  bilhar,  fazíamos  grupo  o  Dr. 
António  Francisco  Tavares,  ajudante  do  procurador  ré- 
gio, o  negociante  brasileiro  da  praça  de  Lisboa,  João, 

15 


226  NOTAS  A  LÁPIS 


Martins  de  Barros,  dois  cavalheiros,  de  quem  conser- 
vámos saudosas  e  mui  gratas  recordações,  e  nós. 

Os  improvisos  para  o  peditório  corriam  todos  os  cir- 
cumstantes. 

Chegada  a  nossa  vez,  o  cantador  fitou-nos  sorrindo, 
e  garganteoo : 

Ó  meu  senhor  do  bonné 
E  mailo  senhor  Antoninho, 
Não  se  esqueçam  de  nos  dare 
Uma  pinguita  de  binko. 

O  do  bonné  era  Joio  de  Barros,  e  o  Antoninho  o  dono 
do  hotel,  o  Ribeiro,  que  estava  a  poucos  passos  de  nós. 
E  continuou: 

Ó  senhor  Juiz  Tavares 
E  mailr-o  senhor  doutore, 
Para  a  esmola  recebere 
Aqui  estou  ao  seu  dispôre. 

O  titulo  de  magistrado  era  dado  ao  verdadeiro  ba- 
charel, emquanto  que  o  de  doctor  se  referia  á  nossa 
humilde  pessoa. 

Era  esta  uma  das  occasiões,  em  que  mais  vale  pa- 
recel-o  do  que  sel-o. 

De  resto...  um  rilhmo  monótono,  desgracioso  e  in- 
variável,       i 

A  gafeira,  que  váe  apodrecendo  o  espirito  do  nosso 
povo,  manifesta-se  já  nas  opulentas  tradições  da  sua 
poesia,  cuja  veia  era  julgada  inexgotavel. 

* 
#  # 

Não  fecharemos  estas  ligeiras  notas,  sem  dar  uma 
idéa  dos  recursos  médicos  e  pharmaceuticos,  com  que 
podem  contar  as  centenas  de  doentes,  que  vão  procu- 
rar melhoras  ás  Caldas  do  Gerez,  na  considerável  dis- 
tancia de  dez  léguas  de  Braga. 


CALDAS  DO  GKBEZ  217 


É  natural  que  se  pergunte,  para  um  caso  repentino, 
entre  uma  colónia  de  pessoas  achacadas  e  ás  vezes  gra- 
vemente, quaes  os  meios,  de  que  se  pôde  dispor. 

Botica  só  ha  uma,  no  lugar,  a  que  já  nos  referimos 
em  caminho,  Villar  da  Veiga,  cabeça  da  freguezia,  na 
distancia  de  alguns  kilometros,  uma  relíquia,  cuja  hy- 
giene  e  adiantamento  se  podem  aferir  pelos  enterramen- 
tos na  egreja,  caso,  *que  nós  tivemos  a  innocencia  de 
acreditar  que  já  não  podesse  dar-se  em  Portugal. 

O  dono  da  pharmacia,  o  sr.  Luiz  Moreira,  curandeiro 
d'aquellas  redondezas,  só  é  encontrado  no  estabeleci- 
mento até  ás  10  horas  da  manhã,  gastando  o  resto  do 
tempo  em  visitar  os  seus  numerosos  clientes. 

Para  se  conseguir  um  purgante  de  magnesia,  pela 
bagatella  de  800  réis,  gastaram-se  uns  2  dias,  se  bem 
nos  lembrámos. 

O  enfermo  era  o  dr.  Custodio  Freire,  secretario  ge- 
ral do  governo  civil  de  Braga,  um  excellente  compa- 
nheiro, possuidor  de  uma  loquella  humorística  das  mais 
graciosas,  que  temos  encontrado. 

À  torcer-se  em  um  violento  ataque  de  figado,  que  lhe 
produziu  uma  grave  inflamação  intestinal,  com  inchação 
nas  pernas  e  nos  pés,  dizia-nos  elle,  a  olhar  para  uns 
reverendos  padres,  que  lá  estavam  em  uso  das  aguas : 

—  Diacho f  Que  eu  venha  aqui. . .  explica-se;  mas. .  . 
aquellas  anafadas  creaturas  de  que  padecimento  se 
queixarão?  por  que  estarão  ellas  aqui?  Ah!  já  sei. 
Vêem  procurar  melhoras  para  alguma  fome  devastado- 
ra . . .  d'aquellas,  de  que  os  padres  são  muilo  achaca- 
dos. 


NOTAS  A  LÁPIS 


III 


O  sábio  José  Luiz,  medico  enviado  pela  sabia  camará  das 
Terras  de  Bouro. —  Apresentação.— Receitas  clinicas. — A 
copia  viva  do  Rosalino, — Ezcerptos  de  nm  livro,  escripto 
durante  quarenta  annos  successivos,  com  muita  somma 
de  azeite  e  de  estudos. 


Fa liemos  dos  recursos  médicos,  que,  apezar  dos  sof- 
frimentos  que  o  prostraram  na  cama,  deram  largas  do- 
ses de  bom  bumor  ao  espirituoso  do  nosso  dr.  Freire. 

É  tempo  de  lbes  apresentar  o  sr.  José  Luiz,  o  medico, 
que  a  camará  das  Terras  de  Bouro,  em  sua  alta  muni- 
ficência, ba  por  bem  dispensar,  como  grande  e  desve- 
lada mercê,  aos  enfermos  do  Gerez. 

Estatura  mediana,  rosto  redondo,  cabellos  quasi  total- 
mente brancos,  olbos  pequenos  e  vivos,  orlados  de  ru- 
gas symetricas,  bocca  franzida,  cujos  lábios  de  uma  vo- 
lubilidade mecbanica  se  alongam,  e  contraem  á  mercê 
da  phrase,  que  modulam ;  ares  sentenciosos  com  laivos 
de  mysteriosa  proficiência,  empbase  desmedida  no  apru- 
mado da  figura  no  maior  ardor  da  peroração,  cbapeu 
que  denuncia  a  passagem  de  duas  gerações,  e  uns  se- 
tenta e  oito  annos  bçm  conservados  —  eis  o  pallido  re- 
trato do  nosso  bomem. 

Nunca  bebeu  agua,  nem  vinbo,  e  alimenta-se,  na 
maior  parte,  de  vegelaes. 

Só  uma  única  vez  em  sua  vida  se  atreveu  a  ir  ao 
Porto;  não  nos  diz  onde  adquiriu  os  vastos  conheci- 
mentos, que  possue;  desconhece  os  eccos  do  mundo 
moderno,  que  ainda  não  tiveram  tempo  de  chegar  ao 


CALDAS  DO  GKBBZ  2S9 


seu  ouvido ;  tem  sempre  engatilhada  uma  citação  latina, 
nem  sempre  escorreita  de  macula ;  e  dorme  tranquilla- 
meole,  á  sombra  de  uma  consciência  limpa. 

—  Os  meus  remédios  nunca  mataram  ninguém— diz 
elle,  alevantando  o  rosto  á  altura  das  circumstancias,  e 
batendo  no  peito  com  força. 

E  não.  Honra  lhe  seja !  Alguns  casos  da  sua  clinica 
bem  nol-o  mostram. 

Um  doente,  ao  expor-lhe  os  differentes  motivos  do 
seu  padecimento,  interrogou-o  sobre  a  conveniência  e 
inconveniência  do  uso  das  aguas. 

—O  que  não  faz  bem...  faz  mal— disse-lhe  elle— 
Vá  tomando. . .  Se  sentir  melhoras,  continue. .  •  No  ca- 
so contrario. . .  faça  pausa  ! 

Uma  pobre  mulher  queixou -se- lhe  de  uma  demorada 
desin teria,  pediu-lhe,  naturalmente,  conselho. 

—Olhe— obteve  em  resposta— quando  sentir  o  ven- 
tre assim...  assim...  vocemecê  bem  me  entende... 
vá. . .  vá. . .  por  esses  beccos. . .  alliviar,  que  a  coisa 
ha-de  passar. 

Um  terceiro  individuo,  torturado  por  uns  teimosos  so- 
luços, que  haviam  resistido  a  todas  as  mesinhas  casei- 
ras, resolveu-se  a  consultar  o  doutor. 

— Meu  amigo— aconselhou  este— arranje  um  palito, 
e  metta-o  de  vez  em  quando  pelo  nariz  acima.  Isso. . . 
isso  ha-de  ser  falta  de  espirrar. 

Encontrando  um  dia  nas  mãos  de  um  seu  cliente  um 
mysteriosojvidrinbo,  apossou-se  d*elle,  revolveu-o  entre 
os  dedos,  e  perguntou: 

—Como  se  chama  a  droga  ? 

—Grânulos  de  arseniato. 

—  E  para  que  diabo  serve  isto? 

— Eu  não  sei  bem. . .  receitaram  m'o. . . 

— Francezismos! — concluiu  elle,  abespinhado— france- 
zismos,  modernices,  que  dão  cabo  do  interior  de  uma 
pessoa. ..  e  nada  mais. 

Um  sábio  pois...  um  verdadeiro  sábio...  o  nosso 
medico. 


230  NOTAS  A  LAPI8 


# 
4t  * 


Foi  do  quarto  do  dr.  Freire  que  tivemos  a  honra  de 
lhe  ser  apresentado. 

O  enfermo,  revestido  de  uma  seriedade  cómica,  diante 
da  qual  não  podemos  conter-nos,  despedia  em  cada  phra- 
se  uma  aguda  frecha,  que  felizmente  se  perdia  ao  tocar  no 
alvo;  tratava  de  vér  se  podia  conseguir  um  diagnostico 
qualquer;  o  que  não  conseguiu  nunca  desentranhar  das 
nebulosidades  scientificas  do  respeitável  Esculápio,  que 
o  reprehendia  por  ter  bebido  um  copo  de  boa  agua. 

— A  medicina — observou  elle,  passeiando  a  vista  pelos 
circumstantes — è  ou  opiniativa  ou  scienlifica!  O  doente 
de  ordinário  pecca  em  três  faculdades...  vital,  natural  e 
nervosa.  Vital...  o  estômago;  natural...  os  humores; 
nervosa. . .  os  nervos.  A  agua  é  estimulante;  o  doctor 
não  devia  bebel-a,  pois  bem  vé  que  um  cavallo,  se  anda 
muito,  precisa  que  se  lhe  dê  para  traz;  e  assim  a  moléstia. 

—Muito  obrigado  ! . . .  mais  lhe  devo— disse  o  Frei- 
re, quasi  engasgado,  e  fazendo-nos  desconcertar,  a  pon- 
to de  precisarmos  sair  do  quarto. 

Quando  Joaquim  de  Almeida,  um  dos  nossos  melho- 
res actores,  o  mais  correcto  (Telles,  se  não  descamba 
para  a  farça,  nos  apresentou  o  typo  do  Rosalino,  crea- 
ção  especial,  a  que  somente  a  sua  aptidão  podia  dar 
relevo,  nós  fomos  dos  que  mais  o  applaudiram,  não  sem 
protestar  um  pouco  contra  certas  linhas  características, 
onde  nos  parecia  não  haver  rigorosa  verdade. 

Agora  unimos  as  mãos,  em  ruidosa  e  entbusiastica 
ovação  ao  distincto  actor,  e  só  nos  resta  perguntar-lhe 
se  alguma  vez  passeiou  pelas  Caldas  do  Gerez,  na  épo- 
ca das  aguas. 

O  ar  de  imposição  aos  encomicos  dos  circumstantes, 
a  gesticulação  pausada  e  grave,  a  accentuação  da  phra- 
se,  meliflua  e  surda  por  vezes,  altisona  e  trovejante  dou- 
tras, as  citações  substanciosas,  os  conceitos,  as  máxi- 
mas, o  incessante  trabalhar  a  bem  da  humanidade  — 


CALDAS  DO  GRIZ  231 


tudo. . .  todo  fielmente  possue  o  grande  e  afamado  me- 
dico José  Luiz. 

— Eu  não  escrevo  motes— dizia  elle,  a  fallar  de  um 
livro  de  versos,  onde  havia  completa  falta  d'elles— lido, 
estudo  e  trabalho  em  coisas  úteis  e  humanitárias. 

Um  grande  bemfeilor  da  humanidade,  não  ha  duvida! 

E  como  tal,  pretendemos  nós,  quanto  couber  em  nos- 
sas acanhadas  forças,  expol-o  á  admiração  dos  seus  com- 
patriotas, já  que  nos  não  cabe  aspirar  á  divulgação  uni- 
versal d'este  ligeiro  escripto. 

# 

*  # 

Ha  quarenta  e  tantos  annos,  que  o  illustre  sábio  des- 
pende azeite  e  estudos,  para  a  elaboração  de  taes  obras, 
já  encadernadas  apezar  de  manuscríptas,  obras,  que  a 
posteridade,  em  geral,  e  os  doenles  do  Gerez,  em  par- 
ticular, hão-de  reverenciar,  e  bemdizer  de  joelhos. 

Trataremos  da  primeira  e  mais  volumosa  das  três,  a 
obra  capital,  onde  o  philologo,  o  medico,  o  analysta,  o 
philosopbo  e  o  naturalista  lêem  muito  a  observar  e 
aprender. 

As  citações,  que  publicámos,  com  a  devida  autorí- 
sação,  escusado  é  dizel-o,  são  téxtuaes,  copiadas  com 
o  maior  escrúpulo. 

Intitula-se  o  livro : 

Luz  da  Medicina 

Pratica,  Racional  E  Methodka 

Do  Medico  de  si  mesmo. 

Trata  Da  Natureza,  Saúde, 

e  Morte  Do  Homem. 

Útil  e  Necessária  Para  Meu 

Directório. 

Complido 

Por 

José  Luiz  da  SUva  Boavista 

Caldas  do  Gerez  Anno  1880. 


232  NOTAS  A  LÁPIS 


Na  pagina  seguinte,  repete-se  o  titulo,  de  mistura  com 
outros  dizeres. 

À  pag.  7  e  do  cap.  4.°  encontra-se  logo  esta  primei- 
ra lição: 

•Para  conservar  a  saúde,  convém  saber  o  tempera- 
mento dos  sólidos,  e  dos  humores,  e  fluidos  ou  líqui- 
dos, aliás  dos  espíritos,  e  tudo  se  conserva  com  o  co- 
mer e  beber;  e  para  conservar  a  saúde,  è  necessário  o 
uso  d'elles  bem  regulado.» 

Nada  mais  claro  e  unctuoso. 

Apezar  do  seu  génio  conservador,  percebe-se  que  o 
nosso  douto  escriptor  é  um  tanto  amigo  de  in novações, 
pois  que,  rompendo  pela  velharia  que  dá  nos  livros  o 
começo  onde  é  o  começo,  apresenta-nos  a  pag.  9  o 

PROLOGO-1NTRODUÇÀO 

Se  não  andou  aqui  a  elevada  idéa  da  innovação,  o 
bello  de  tudo  isso  deve-se  ao  immenso  jorro  de  inspi- 
ração, que  passou  de  enfiada  por  aquellas  Tolhas  até  pa- 
rar na  citada  pagina. 

Foi  redem piora  essa  pausa,  que  bem  nos  mostra  que 
todo  o  tempo  è  tempo. 

Vejamos  o  melhor  tfesse—prologo-introdução: 

•Dilatado  e  espaçoso  campo  se  offerece  boje  ao  dis- 
curso «Diz  a  Águia  e  Africa.» 

«Temerário  seremos  expor-nos  a  uma  sciencia  de  tão 
alta  consideração  como  a  de  que  vamos  tratar;  mas  que 
a  curiosidade  me  chama  e  a  vontade  me  excita,  ainda 
que  bem  sei,  que  ha  muitos  que  me  podem  ensinar; 
mas  não  fallo  com  estes;  mas  sim  com  quem  o  não  sabe. 

«E  n'esta  sciencia  muito  folgo  de  saber  muitas  miu- 
dezas; porque  algumas  vezes  parecem  nada,  e  se  não 
fosse  estudalas,  as  ignorava. 

«Se  algum  leitor  lhe  não  der  appreço  não  me  afelige; 


CALDAS  DO  GtRRZ  233 


porque  a  Aranha,  occupando-se  em  fiar,  urdir  e  tecer, 
forma  curiosas  e  repetidas  teias,  e  como  não  agradam, 
atiram-lhe  de  relance,  escapa-se  fugindo:  e  nem  por  isso 
deixa  de  continuar  na  sua  lide.» 


E  conclue  o  prologo : 


«Todo  o  corpo  è  pbelenmatico  e  bumural  em  qualquer 
estado,  seja  de  doença  ou  de  saúde. 

cA  saúde  dos  corpos  consiste  na  egualdade  dos  hu- 
mores.» 

Sempre  doutrinário...  até  nos  prologos-introducções  t 
À  pag.  14,  fisgado  ás  crinas  do  Pégaso  inspirador, 
eleva-se  o  seu  espirito  philosophico,  rasgando  ares  e 
montanhas,  á  altura,  que  denuncia  o  titulo : 

PHISIOLOG1A  HISTÓRICA.    HOMEM 

Attenção ! 

«Se  está  de  Deus  que  principiemos  sonhando  vá  em- 
bora de  phantesia:  prendam-se  os  sentidos,  e  durmam 
os  desacordados  da  rasão,  solte-se  o  discurso,  e  acor- 
dem os  lethargos  da  ignorância. 

«É  o  homem  aquella  alta  milagrosa  Idéa,  preclara, 
magestosa  Obra,  a  quem  o  Architipo  Divino  compoz 
por  milagre,  alentou  por  prodigio,  e  expendeu  por  ma- 
ravilha I  decretando-o  por  príncipe  absoluto  da  sublunar 
Monarcbia. 

«Não  permitia  minha  develidade  a  expor-me  a  esta 
obra ;  mas  não  pude  resistir  ao  desejo  de  insistir  a  es- 
tas idéas  de  que  sou  apaixonado;  mas  o  recreio  do  meu 
espirito,  assim  o  demanda. 

«Zombai  vós,  e  ride  muito  embora  das  minhas  frases, 


234  NOTAS  A  LÁPIS 


e  se  inda  encontrares  algumas  coisas  dignas  de  louvor, 
entre  outras  merecedoras  de  sençura,  não  pelijemos  por 
isso,  roi  umas  e  come  outras  muito  ao  teu  paladar,  que 
eu  também  poderei  fazer  o  mesmo,  quando  no  fértil  cam- 
po da  tua  sciencia  sairem  á  luz  as  tuas  eruditas  obras. 

cPara  a  fundação  d'esta  obra  por  largos  dias  do  meu 
retiro,  estudei,  notei,  li  e  escrevi,  se  te  parece  que  fiz 
pouco,  eu  affirmo-te  que  trabalhei  muito,  se  te  enfada- 
res com  somente  o  ler,  eu  ainda  não  me  enfadei  com 
ler,  escrever,  notar  e  esludar, 

cAffirmando  que  em  toda  a  minha  vida,  tenho  gasto 
mais  em  azeite  para  estudar,  do  que  em  vinho  para  be- 
ber: Assim  o  juro. 

•As  obrigações  de  beneficência  me  obrigam  a  tradusír 
esta  obra  a  alguns  dos  meus  collegas  •  médicos  de  si  mes- 
mo» se  ella  lhe  servir  de  regra  para  conservação  de  sua 
saúde  por  modo  possível,  é  o  objecto  da  minha  pretenção. 

cEm  que  finalmente:  o  Homem  para  respirar  abre  a 
bocca,  e  lança  fora  o  ar  quente,  com  que  o  coração  abafa, 
e  recebe  o  frio  com  que  o  refrigera.» 

Muito  bem.  Ora  que  todos  os  grandes  homens  se 
bão-de  arreceiar  um  pouco,  agora  ou  logo,  da  morde- 
dura dos  zoilos  t 

Pois  quem  vive  no  reinado  da  Sublunar  Monarchia, 
detesta  o  vinho,  e  bebe  azeite...  não  é  isto...  quem 
gasta  tanto  azeite  no  retiro  a  trabalhar,  traduzindo  a 
obra  aos  collegas,  e  abrindo  a  bocca  para  respirar,  pelo 
grande  esforço  mental  e  physico,  já  se  vê — pode  lá  te- 
mer sençurasf 

Nada,  não  pode  ser.  Mais  firmeza  e...  menos  modés- 


tia, amigo  doctor. 


# 
*      # 


Ghegando-se  a  pag.  15,  o  que  pensam  que  vamos  en- 
contrar? A  continuação  de  tão  vasta  matéria,  apimentada 
com  boas  regras,  refundida,  ampliada  ? 


CALDAS  DO  G1BEZ 


Upa !  upa ! 

Os  rasgos  de  attenção  benévola  e  paternal,  consagra- 
dos pelo  autor  á  grande  humanidade,  não  teem  limi- 
tes. 

Fiel  ás  melhores  crenças  da  religião,  o  doctor  consi- 
dera-se  mano  em  Ghrísto  de  todos  os  homens  natos. 

E  n'esta  situação,  esquecendo  no  arrasoado  preambu- 
lar de  pag.  9  algumas  observações  pedagogico-especiaes, 
soccorreu-se  da  luminosa  e  sempre  moderníssima  idéa 
de  consagrar  mais  um 

PROLOGO  AO  IRMÃO  LEITOR 

onde  não  se  cansa  de  formular  para  a  direita  e  para  a 
esquerda,  começando  na  botica,  e  acabando  na  cosi- 
nha. 

E  tudo  isto. . .  sabem  porque?. . .  por  causa  dos  w- 
chimentos. 

•A  arte  de  cosinha  —  diz  elle  — bem  a  ser,  e  não  á 
arte  melhor  para  conservar  a  saúde,  que  bem  a  ser, 
cansasso  para  lhe  saber  bem  o  jentar,  e  temperança  no 
Jentar  para  lhe  saber  bem  aceia,  (e  nada  de  Enchimen- 
tos.)» 

Gondemna  depois  a  arte  de  cosinhar  com  grandes 
temperos,  citando  Alexandre  Magno,  que  mandara  des- 
terrar do  seu  exercito  famosos  cosinheiros. 

•Quanto  ao  apetite  vicioso — continua— se  vé  naquel- 
les,  que  apetecem  comeres  desusados,  como  torra,  bar- 
ro, ou  carbões,  etc. 

cAs  cruesas,  que  residem  na  bocca  do  estômago, 
mordicando-o  causam  semelhantes  appetencias.  Neste 
caso  é  a  cruesa  mais  de  appetites.  Todas  as  vezes,  que 
a  cruesa  debilitou  a  faculdade,  offende-se  com  contrá- 
rios, e  padece  vários  desejos:  abraça  o  máo,  e  repudea 
o  bom.» 


236  NOTAS  A  LÁPIS 


«Destas  e  outras  implicâncias,  que  não  permite  refe- 
rir a  brevidade  da  reflexão,  haja  comiudo  Frugalidade, 
conforme  lhe  for  indicado  n'este  livrinho. 

c  Ainda  não  gastei  todo;  mas  fico-me  para  não  fatigar 
o  curioso  leitor.» 

Ora  implicâncias  de  repetida  modéstia  usa  sempre 
comnosco  o  autor. 

Fatigar  o  leitor,  quando  vemos  á  larga,  aqui  e  acolá, 
por  um  lado  e  outro,  de  cima  e  de  baixo. . .  sim. . . 
como  o  outro  que  diz. . .  quando  nós  vemos. .  • 

Mas...  adiante,  que  temos  matéria  transcendente  e 


erudição  a  jorros ! 


IV 


Ainda  o  nosso  homem.— Continuação  dos  excerptos.— O  qne 
▼em  a  ser  a  cabeça  humana.— Exame  das  aguas.— Outro 
livro.— Títulos  e  capítulos.— Surjam  os  editores.— Bemdita 
sapiência. 


Passemos  com  a  mais  acrisolada  reverencia  por  cima 
do  que  encontrámos  até  pag.  21,  e  detenhamos-nos 
ahi. ..  abi  onde  está  a  gemma  da  monumental  produc- 
çío. 

Acbamos-nos  possuído  de  tal  sofreguidão,  que  não 
sabemos  por  onde  principiar. 

Principiemos  pelo  principio,  pedindo  desculpa  ao  mes- 
tre, que  nos  dá  o  salutar  e  metaphysico  exemplo  de  co- 
meçar pelo  meio. 

Entremos  pelo  titulo  dentro: 


CAÍDAS  DO  OBBEZ  387 


Região  Animal.  —  Cabeça. — Principio 
de  Tudo. — Prodígios. 

Prosigâmos : 

tO  Limpo  do  Homem,  é  a  Cabeça,  Tribunal  da  Ra- 
zão, e  Corte  dos  sentidos. 

t  Por  ella  tem  explicado  prodígios  o  Tempo*  Emflm 
ella  é  a  parte  mais  excelsa  do  composto  Phisico  e  Po- 
litico do  homem. 

t Da  Terra  é  Cabeça  o  Ceo,  das  Cidades  Roma,  e  o 
mais,  assim  em  proporção. 

cE  ultimamente  tudo  o  que  é  singular  entre  muitos, 
é  Cabeça  na  estimação  de  todos. 

cEla  é  o  principio  de  qualquer  coisa;  por  ser  também 

a  cabeça,  verdadeiro  principio  do  bomem 

fingirão  os  Antigos  jeste  provérbio:  nec  caput,  nec  pedes: 
Nem  pés,  nem  cabeça.  Insinuando  nestas  palavras  que 
assim  como  o  bomem  se  estriba  nos  pés,  como  prin- 
cipio de  segurança  e  se  termina  na  cabeça  como  fim  do 
corpo,  assim  um  negocio  deve  ser  vigoroso.  • 

Diante  disto,  mordam-se  os  raivosos  e 

t  Aprendam  cTaqui  os  homens,  que  desejam  acertar,  a 
não  se  applicarem  mais  que  a  uma  só  coisa,  para  satu- 
rem felismente  com  o  fim  a  que  aspirão. 

cEotregue-se  cada  um,  não  a  tudo,  mas  todo  a  parte, 
e  segundo  Aristóteles,  que  foi  o  bomem,  que  tudo  teve 
pé  para  dizer  (I)  e  cabeça  para  acertar.  A  razão  dá  Oví- 
dio.» 

Pois  quem  tiver  pés  e  cabeça  siga-nos,  rastejando 
embora  até  ás  altas  regiões,  onde  sobe  o  sr.  José  Luiz, 
cujos  pés  não  tivemos  tempo  de  observar,  porque  nos 
deslumbrou  a  cabeça,  que  é. . .  jurámos. . .  o  que  elle 
descreve  assim : 

t Na  verdade  se  pode  chamar  a  cabeça  do  bomem  chi- 
mine,  ou  fornalha  do  corpo,  pela  qual  se  transigirão 
todos  os  vapores,  e  flugens,  que  se  elevam  das  offici- 


228  NOTAS  A  LÁPIS 


nas ;  mas  se  estas  por  algna  cousa  se  impedem,  e  de- 
tém n'aquella  parte,  porturbam  e  amotinam  todo  o  na- 
tural governo  do  composto  pbisico;  porque  gravão  e 
opprimem  a  cabeça,  que  faz  o  primeiro  papel  na  dispo- 
sição económica. 

t  A  Cabeça  é  hierogliphico  da  Divindade,  a  fonte  do 
génio,  *s  olhos  do  amor;  as  faces  da  vergonha,  as  so- 
brancelhas do  fausto ;  os  ouvidos  da  memoria,  os  ca- 
bellos  do  luto,  o  nariz  da  zombaria,  o  peito  do  conse- 
lho, os  joelhos  da  misericórdia,  a  mão  direita  da  Mages- 
tade,  a  esquerda  da  ladroisse,  e  a  barba  é  simbolo  da 
gravidade,  da  arrogância,  da  bonra,  e  da  sabedoria! !! » 

E  o  que  nos  dizem  a  isto?  Ha  alguma  coisa  por  ahi 
mais  eloquente,  profunda  e  persuasiva? 

Abençoado  José  Luizt  Abençoados  sejam  a  nossa  pêra 
e  o  nosso  bigode,  que  nos  tornam  grave,  honrado  e  sá- 
bio! 

«Para  todas  as  partes  do  homem  manda  Deos  pelo 
Correio  da  terra  especiaes  cartas  de  favor»  —  conclue 
este  raríssimo  trecho. 

Bem  sabemos.  Todos  nós  temos  recebido  algumas. 

Depois  de  comparar  a  cabeça  a  uma  noz,  diz : 

«Nenhum  discreto  deve  ignorar  o  acrisolado  das  três 
Regiões,  Animal,  Vital,  e  Natural,  que  compõem  a  ex- 
celsa fabrica  do  homem. 

«Na  primeira  se  descobre  systemas,  Moralidades,  Pro- 
dígios, Ritos,  Sacrifícios  e  outras  mais  observações  da 
Cabeça  Humana,  ou  Região  Animal;  outro  sim  desco- 
brirá, e  comprebenderá  simpathias,  em  que  doutrinal- 
mente se  ensinuam  Anatomias,  achaques  com  suas  Es- 
sências, causas,  signaes,  prognósticos,  e  curas,  tudo 
pertencente  á  mesma  Região;  e  a  mesma  ordem  guar- 
dará na  segunda  e  terceira. 

Deuses  pantagruelicos,  vinde  em  nosso  auxilio !  Tão 
assombrosa  erudição  espanta-nos,  acrisola-nos,  fazendo- 


CALDAS  DO  GKRBZ  239 


dos  barafustar,  como  cego  sem  Uno,  n*este  estrondoso 
labyriniho  de  phenomenos  raros  e  nunca  percebidos. 

Continuemos : 

«Na  cabeça  residem  as  potencias  da  alma,  Entendi* 
mento,  Memoria,  e  vontade,  com  a  providencia  da  qual, 
se  governa  o  corpo,  e  partes  inferiores. 

•No  bomem  se  situa  a  preclarissima  Região  vital, 
qual  é  o  peito  do  mesmo  bomem,  praça  dos  espíritos, 
arca  da  vida,  Etbana  do  amor,  Mogibelo  do  ódio,  Ve- 
súvio da  vontade,  Erário  do  Segredo,  e  Morgado  do 
coração.» 

Oh  I  maravilhas  da  creação  t . .  Etbanas,  Mogibelos, 
Vesuvios  e  cordiaes  Morgadios,  até  onde  nos  eleva  o 
espirito  observador  da  medicina  das  terras  do  Bouro  t 

Mas. . .  não  nos  aturdamos. . .  avancemos. . . 

•No  homem  ultimamente  se  funda  a  nobilíssima  re- 
gião natural,  qual  é  o  seu  próprio  ventre,  dispenseiro 
commum  da  nutrição,  armazém  dos  viveres,  crisol  útil, 
coloaca  do  inútil,  e  refetorio  universal  de  todo  o  corpo, 
e  tanto  que  faltando  o  provimento  n'esta  officina,  já  no 
todo  se  perturbou  a  consonância.  Jejunus  venter  non 
audit  verba  libenter.* 

Beatus  venter  qui  te  portavit  Josephum  Ludovicum 
Maxirnum  t  —  bradámos  por  nossa  vez,  para  dizer  al- 
guma coisa,  pois  lodo  somos  uma  couvulsão  febrici- 
tante, que  ameaça  despenhar-nos  das  cumiadas  do  su- 
blime, onde  o  teu  grandioso  engenho  nos  fez  subir,  com 
grave  risco  das  nossas  faculdades. 

Paz  I  paz  ao  simples  mortal,  que  não  possue  o  espi- 
rito dos  videntes  para  se  librar  comtigo  ás  regiões  do 
infinito,  onde  em  monumentaes  reviravoltas  de  uma  sa- 
rabanda mystica  se  debatem  os  teus  Ritos,  Sacrifícios, 
Moralidades  e  Prodígios  t 

Que  os  naturalistas  nos  digam  que  as  pedreiras  inex- 
ploradas do  Gerez,  nos  quartzos  que  lhes  afogam  os 


240  NOTAS  A  LATO 


leitos*  só  possuem  bellos  carbúnculos  e  formosas  ame- 
thistas,  que  nol-o  affirmem,  que  nós  lhes  lançaremos 
ás  faces  as  pérolas  de  sapiência,  que  a  nossa  mão  in- 
competente ba  tido  a  fortuna  de  desfiar  sobre  este  li- 
vro» aos  olhos  da  posteridade. 

# 
#      # 

Mas. . .  saiamos  cTeste  deslumbramento,  que  nos  em- 
briaga, e,  mal  refeitos  ainda  da  prodigiosa  fascinação, 
continuemos. 

A  pag.  33  trata  o  preclarissimo  varão  das  recom- 
pensas moraes,  ganhas  pelos  sacerdotes  da  medicina ; 
o  que  facilmente  se  deprehende  das  palavras  e  titulo 
seguintes : 

Do  medico  louriado 
Medico  cercado  de  louros. 

•Em fim  chegou  ao  medico  a  sua  ora. . .  etc 

E  lá  vae  indo  em  elogio,  que  remata  a  fallar  da  lín- 
gua, «nascida  entre  paredes,  que  são  as  nossas  quei- 
xadas.» 

Com  magico  fervor,  exclama  que  não  ba  nada  na 
terra  como  o  medico,  a  quem,  entre  muitos  nomes, 
chama : 

cSóberano  e  adeosodo  ministro  do  excelsa  Monarchia 
de  Apollo.i 

No  meio  das  suas  graves  locubrações,  não  lhe  teem 
passado  desapercebidos  os  processos  das  differentes  es- 
colas, como  era  de  esperar. 

Dando  a  entender  que  a  nova  medicina  é  filha  da  an- 
tiga, diz: 

cFraca  è  a  Ave  que  não  dá  um  boo  mais  longe,  do 
que  sua  mãe  o  ensinou.  • 


CUDA8  DO  GKE1Z  114 


Saltando  a  pag.  47  temos  um  capitulo  consagrado  a 
Flores,  Esperanças,  Provérbios 

Basta-nos  um  para  amostra: 

cMuitas  promesças  faz  o  tempo,  que  au  diente  não 
cumpre,  largas  esperanças,  fins  nunca  alcançados,  gran- 
des promessas,  escassos  comprimentos. 

E  termina: 

«D'estas  e  doutras  doutrinas,  pôde  o  esperto  leitor 
eitrabir  comprincipios  para  os  maiores  acertos,  e  deri- 
var para  a  sua  pessoa  a  mais  crescida  gloria.» 

Muito  obrigado  pelo  nosso  quinhão! 

Profano,  como  somos,  cá  nos  vamos  refocilando  nes- 
tas macias  alfombras  doutrinarias,  e  aconchegando  dos 
hombros  uma  ponta  do  vasto  manto  de  gloria. 

Fallandonos  pela  voz  do  Oráculo,  a  pag.  51,  mos- 
tra-nos  o 

Reino  Animal.  Provinda  da  Terra.  Paronimia  Moral. 

Vejamos  meia  dúzia  de  linhas  apenas: 

•Tem  as  queixas  seos  prohibentes,  e  indicantes  na 
precisa  determinação  das  Medecinas;  os  affeitos  frios  in- 
dicio remédios  cálidos;  as  intemperanças  seccas  pedem 
remédios  húmidos  e  prohibem  tudo  o  que  não  for  hú- 
mido e  cálido:  St  enim  calidum  est.  (dis  o  Oráculo  de 
Cóos.) 

A  cautella  è  um  dos  predicados  mais  salientes,  que 
revelam  a  grave  e  veneranda  pessoa  do  sábio  escri- 
ptor. 

Não  bastando  ás  suas  previsões  sobre  o  futuro  os 
dois  títulos  do  livro,  acrescenta-lhe  a  pag.  59  mais  um, 

16 


Jftl  fcOTAS  A  LArtS 


onde  prescreve  «algo ris  meios  eGientcos»  com  uma  nova 
introducção  ainda,  onde  nem  mais  nem  menos  nos  en- 
sina a 

«Applicar  meios  conducentes  a  praticar  Theologias.» 

caso  estupendo  para  a  moderna  sciencia,  e  elevadíssimo 
descobrimento,  que  vem  revestir  o  cura  de  almas  do 
predicado  de  cura-corpos. 

*        * 

Ao  terminar  a  sua  terceira  introducção,  dá-nos  o  ma- 
ravilhoso philosopbo  a  medida  exacta  dos  seus  unrver- 
saes  conhecimentos  geographoscientificos  n'estas  pala- 
vras : 

«Em  todo  o  mundo  á  doenças  e  enfermos,  e  em  pou- 
cas partes  cTelle  se  achão  os  Médicos. 

«Na  Europa,  onde  florecem  as  Artes,  são  esses  mais 
vulgares ;  porém,  nas  mais  partes  são  raríssimos,  ou 
totalmente  desconhecidos.» 

^Deixemos  aos  entendidos  uma  Arte  de  Formular,  onde 
nada  se  formula,  para  maior  commodidade  e  acerto  do 
leitor,  no  fim  do  livro,  e  terminemos  a  pag.  33  por  um 
assumpto,  que  a  todos  nos  interessa,  pequenos  e  gran- 
des, sábios  e  ignorantes. 

E'  o  óptimo  resultado  do  exame  e  observações  do 
medico  sobre  as  qualidades  therapeuticas  das  milagro- 
sas aguas,  descobertas  pelos  frades  Bernardos,  ta  tan- 
tissimos  annos. 

Camará  e  governos  dormem  tranquillos  á  sombra 
d 'este  magnifico  juizo;  e  d'ahi  se  deriva  a  falta  absoluta 
de  outros  exames,  que  todos  julgarão  desnecessários, 
visto  que  o  mestre  disse  a  sua  ultima  palavra. 

Fique,  pois,  conhecendo  o  mundo  inteiro  que: 

«As  Caldas  do  Gerez,  tem  a  virtude  confòrtativa  no 
que  convém,  e  tem  de  mais  a  virtude  absorvente  dos 


caldas  oo  eum  JM8 


ácidos  errantes;  participam  do  minaral  por  onde  pas- 
sam depois  do  enxofre  que  lhe  dá  calor,  e  este  tal  mi- 
naral absorve  as  qualidades  surphureas  e  communica 
as  soas  próprias;  e  por  conseguinte  são  boas  para  aquel- 
les  achaques  para  que  servem  as  pílulas  absorventes  e 
outros  para  as  bodropasias. 

tEUas  absorvem  confortando.  Convém  para  corrigir, 
a  temprarem,  e  delgaçar  qoaesquer  umores  crassos, 
viscosos,  glutinosos,  e  accidos,  e  por  conseguinte,  coi- 
venientes  para  desvanecer  qualquer  espécie  de  abstrac- 
ções das  glândulas,  por  ter  a  propriedade  de  evacuar 
os  umores  damnosos  e  perdomfnantes,  ou  por  camará 
ou  por  ourína,  sem  causar  alguma  diminuição  de  força. 

•  Por  tanto  convenientes  a  todos  que  cultivam  a  vida 
sedentária,  e  aos  que  comettem  excessos,  com  vevidas 
torpes.» 

# 


Grandes  desejos  tínhamos  nós  de  faltar  detidamente 
das  outras  duas  obras  do  eminente  personagem. 

Intitula-se  uma  —  Observação  sobre  as  aguas  do  Ge* 
rez  —  quer  dizer  ampliação  minuciosa  do  juizo,  acima 
exarado,  e  começa  por  esta  cooceituosa  citação  latina 
—  Prima  milia  passarorum 

A  outra  e  ultima  entra,  com  denodo,  pela  seara  den- 
tro das  letras  amenas,  prova  exacta  dos  talentos  ency- 
clopedicos  do  autor ;  chama-se  —  Ramalhete  das  senho- 
ras  —  e  trata  de  algumas  amabilidades  dirigidas  ao  bello 
sexo,  receitas  e  explicações  das  moléstias  secretas,  que 
lhe  são  peculiares.  . 

Para  se  formar  um  juizo  aproximado  da  sua  grande 
valia,  è  bastante  conhecermos  os  títulos  seguintes  de  al- 
guns capítulos : 

Dos  mezes  demasiados,  que  não  guardam  ordem. 

Da  relação  do  útero  quando  abocca  e  sae  fora. 

Da  mola  que  gera  o  útero. 

Felôres...  esperanças. 


•244  NOTAS  A  LÁPIS 


* 
#         * 


Felorida  sapiência  t  Do  alto  da  nossa  incompetência 
nós  te  bemdizemos,  chamando  em  altos  gritos  por  to- 
dos os  editores  portuguezes,  para  que  se  não  deixe  de 
dar  á  estampa,  na  integra,  para  completo  luzeiro  das 
Caldas  do  Gerez,  bonra  e  fama  da  camará  das  terras  de 
Bouro,  esse  inexgotavel  repositório  de  verdades  e  lições 
académicas,  que  se  chamam  as  obras,  que  para  seu  di- 
rectório compliu  o  douto  medico  José  Luiz  da  Silva 
Boavista,  homem  pyramidal  e  maciço,  a  quem  Deus 
guarde  por  muitos  annos  e  bons. 


MADRID  B  O  CINTRNAilO  Dl  GALDBBON  245 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  OE  CALDERON 


Um  estrangeirophobo. 

Do  entroncamento  a  Badajoz.  —  D.  José  Santamaria. 

Do  Guadiana  ao  Manianares. 


Em  começos  de  1881,  um  (Testes  indivíduos  muito 
enthusiastas  pelas  cousas  estranhas,  bom  comedor  e 
portanto  extrenuo  admirador  das  galinhas  dos  seus  vi- 
sinhos,  que  achava  sempre  mais  gordas  que  as  suas, 
dizia-nos,  depois  de  ter.falladb  das  producções  agrícolas 
de  alguns  paizes : 

—O  amigo,  já  atravessou  a  nossa  fronteira  para  ter- 
ras de  Hespanha  ? 

—  Apenas  uma  vez  para  além  do  Minho,  onde  a  cul- 
tura e  a  belleza  dos  nossos  campos  não  teem  nada,  ab- 
solutamente nada  a  invejar  aos  dos  nossos  visinhos  — 
respondemos. 

—Qual  historia  t  £  incurável  o  nosso  desleixo.  Tem 
lá  comparação  comnosco  o  que  se  encontra  d'aqui  para 
fora?  À  ultima  viagem  que  fiz,  por  via  de  Badajoz,  aca- 
bou de  convencer-me,  de. . . 

E  o  nosso  homem,  em  frases  laudatorias  muito  de 
notar,  alargou  a  conversação,  fazendo-nos  descer  um 
pouco  do  juízo,  que  formávamos  da  estremadura  hes- 


H&  BOTAS  A  LARg 


panhola,  que  apenas  conhecíamos  por  algumas  noções 
de  geographia  fisica. 

Às  suas  palavras,  forçoso  é  confessal-o,  produziram- 
nos  certo  abalo,  e  vieram-nos  á  lembrança,  na  noite  de 
20  de  maio  d'esse  anno,  quando  á  1  hora  e  meia  lar- 
gávamos do  entroncamento,  com  destino  a  Madrid,  em 
companhia  de  um  amigo,  de  alguns  dos  nossos  jorna- 
listas, curiosos  uns  e  outros  commissionados  para  assis- 
tirem, como  nós,  ás  Testas,  que  haviam  de  celebrar- se, 
no  centenário  de  Calderon. 

Mariano  Pina,  cuja  palidez  habitual  nos  não  denun- 
ciava fortes  disposições  de  bom  estômago,  desde  Lis- 
boa, que  se  queixava  de  grande  fome,\]ue  só  terminou 
á  meza  do  restauram,  d'onde  não  houve  forças  que  o 
arrancassem  senão  depois  de  uma  hora  e  meia,  que  ta- 
manha foi  a  demora  do  comboio,  á  espera  da  gente, 
que  tinha  de  vir  do  Porto. 

Ao  conchegar  da  cabeça  o  extravagante  barrete  cóni- 
co, cujas  proporções  fizeram  a  admiração  de  Bordallo 
Pinheiro,  e  foram  mais  tarde  reproduzidas  pelo  seu  lá- 
pis— arrancou-nos  elle  á  lembrança  essas  expressões  en- 
comiásticas, quando  nos  chamou  a  attenção  para  a  for- 
mosíssima marinha,  que  se  estendia  desde  a  Barquinha 
até  á  estação  da  Praia,  uma  paisagem  fatídica,  tendo 
por  centro  a  figura  melancólica  do  castello  de  Almourol, 
cujas  ameias  derrocadas  vinham  reflecHr-se,  em  crispa- 
ções fantásticas  sobre  as  aguas  do  nosso  Tejo,  onde  a 
arborísação  marginal  se  retratava  também,  estabelecen- 
do as  sombras  do  quadro,  illuminado  pelos  toques  diá- 
fanos de  um  bello  luar. 

De  Tramagal  em  diante,  os  nossos  campos,  que  ai  li 
são  extensos  e  planos,  pareceram-nos  mal  cultivados. 

Terá  razão  o  nosso  homem?— pensávamos  nós,  ás  7 
horas  da  manhã,  quando  éramos  convidado  pelo  nosso 
companheiro,  atacado  pela  fúria  gastronómica  do  Pina, 
para  fazermos  uma  visita  ao  farnel,  no  momento  em 
que  chegávamos  a  Elvas. 

O  farnel  i  Nunca  elle  veia  mais  a  propósito. 


MADRID  B  O  CglfTONABJO  QE  CALDKRQN  $tf 

Os  desgraçados,  que  o  não  levaram,  e  resistiram  por 
cerimonia  ao  convite  dos  previdentes,  esbarraram  con- 
tra as  paredes  noas  e  sujas  de  uma  tasca,  que  tinha  de . 
restaurante  apenas  o  letreiro.  Afora  um  café  simples, 
aguardente  e  uma  toalha  para  duas  dúzias  de  pessoas, 
que  lá  foram  lavar  a  cara,  nada  havia. 

Ás  8  horas»  chegávamos  ás  margens  do  Guadiana,  e 
avistávamos  os  primeiros  carabineros,  na  estação  de 
Badajoz. 

A  revisão  da  bagagem  foi  demorada  e  minuciosa. 
Eduardo  Coelho,  no  meio  de  um  borborinbo  estontea- 
dor,  agitava  no  ar  a  coroa,  que  a  associação  dos  Jorna- 
listas,  de  Lisboa,  mandava  a  Madrid,  para  que  lb'a  não 
esmagassem. 

Um  sujeito,  já  idoso,  mas  ainda  forte  e  ágil,  rosto 
aberto  e  extremamente  animado,  com  modos  sobrema- 
neira açodados  e  obsequiadores,  ia  de  um  lado  a  outro, 
erguendo  os  braços,  e  gritava  entusiasticamente  a  um 
revisor : 

—Dejalos,  hombre.  Son periodistas  portugueses.  Lle- 
vam  algunos  regalitos  para  las  fiestas  y  no  mas. 

Vivam  nuestros  amigos  1  Viva  la  prensa  de  ambos 
paizesl 

Vivam  nuestros  huespedes  t  viva  la  fraternidad  I  viva 
Portugal! 

O  guarda,  pouco  commovido  com  esta  demonstração 
de  apreço  ás  nossas  pessoas,  continuava  a  tarefa,  ser 
cundada  pelos  collegas. 

No  entanto  o  bom  humor  do  nosso  homem,  que  alli 
viera  tomar  o  comboio,  e  foi  sempre  um  companheiro 
excel lente,  por  incansável,  previdente  e  obsequiador, 
continuava  nas  suas  acclamações,  abraçando  as  pessoas 
que  conhecia,  fazendo-se  apresentar  ás  outras,  correndo 
(Taqui  para  alli,  barafustando  da  direita  para  a  esquerda. 

Era  o  proprietário  e  director  do  Ecco  de  Estremadura, 
periódico  de  Badajoz,  D.  José  Santamaria,  que  então 
víamos  pela  primeira  vez,  apezar  de  ser  conhecido  em 
Usboa,  onde  tem  estado  por  vezes. 


248  NOTAS  A  LÁPIS 


— Viajeros  ai  tren  /—gritaram  os  condactores  do  ca- 
minho de  ferro,  terminada  a  minuciosa  e  impertinente 
revista  das  bagagens*  ao  dar  das  9  horas,  e  ao  fechar 
da  bolsa  dos  que  entraram  no  botequim  da  estação,  on- 
de pagaram  sete  vinténs  por  cada  chicara  de  chocolate. 

Dizendo  um  adeus  á  fronteira  pòrtugueza,  começámos 
a  recreiar  a  vista  pelas  grandes  planícies,  em  tudo  eguads 
ás  nossas,  várzeas,  onde  lourejavam  largas  sementeiras 
de  trigo,  desde  as  margens  do  Guadiana  até  aos  sobrei- 
raes  de  Talavera. 

Vistosas  manadas  de  porcos  serpenteavam  á  borda 
dos  caminhos. 

Até  Montijo,  o  comboio  desenvolveu  a  máxima  ve- 
locidade, durante  uma  hora,  cortando  planuras  mais 
agrestes,  semeadas  apenas  de  oliveiras  e  sobreiros,  ar- 
•  borisação  que  descresceu  ainda  á  vista  de  Garrovetla, 
povoado  superior  em  fealdade  aos  que  atè  alli  Unhamos 
encontrado,  aldeolas  compostas  de  casas  térreas,  d'on- 
de  se  destaca  apenas  a  torre  ponteaguda  das  egrejas. 

Esta  povoação  forma  contraste  notável  e  entristecedor, 
no  centro  de  um  quadro  campesino:  é  completamente 
despida  de  arvoredo;  não  se  lhe  avista  um  pomar;  não 
tem  um  quintal. 

Mais  adiante,  encontrámos-nos  de  novo  com  o  Guadia- 
na, envergonhado  da  moldura,  que  o  aperta,  umas  ri- 
bas sem  vegetação,  nem  belleza. 

Aqui  veio- nos  á  idéa,  ancioso  como  iamos  por  esta- 
belecer confrontos,  a  opinião  do  encarniçado  apologista 
dos  campos  para  alem  de  Badajoz,  e  sorrimos-nos  de 
verdadeiro  desdém,  interrompido  apenas  á  vista  dos 
formosos  restos  de  uma  arcaria  romana,  exposta  á  acção 
do  tempo,  perto  de  Mérida,  e  parallelos  a  um  aquedu- 
cto  moderno. 

A  Emérita  Augusta  dos  romanos,  a  cidade  de  Mèri- 


MADRID  B  O  CBNTBNÀRIO  DB  CALDRHON  tt9 

da,  cercada  de  pomares  insignificantes,  só  tem  a  recom- 
mendal-a  essa  antigualba  e  poucas  mais  de  egual  valor, 
restos  preciosos,  ainda  assim,  dos  tempos  do  impera- 
dor Augusto,  seu  fundador. 

Ao  meio  dia  chegávamos  a  Guarena,  nona  estação, 
d'onde  se  avistam  extensos  e  bellos  vinhedos,  grande 
numero  de  arvores,  em  bons  alinhamentos  e  óptima  dis- 
posição. 

D'ahi  por  diante,  montanhas  áridas  a  bordarem  o  ho- 
risonte,  á  direita,  e  algumas  paisagens  de  aspecto  mais 
agradável,  á  esquerda. 

Na  povoação  de  Villanueva,  as  mesmas  casas  térreas 
de  pequeníssimas  janellas,  entre  as  quaes,  á  guisa  das 
localidades  anteriores,  se  distingue  o  templo,  com  a  tor- 
re quadrada  e  guarnecida  de  oito  ventanas. 

Abafava-se  de  calor  e  poeira,  de  que  nos  aliviámos 
um  pouco  no  botequim  de  Almorcbon. 

A  aldéa  Gabeza  dei  Buey,  agachada  no  fundo  de  um 
monte,  taes  são  as  proporções  mesquinhas  dos  seus 
edifícios  enegrecidos  e  faltos  de  cal,  só  se  descobre  pe- 
lo campanário,  digno  em  tudo  dos  accessorios,  que  o 
fazem  sobresair. 

— Verdadeiras  cidades  são  as  nossas  aldéas,  á  vista 
das  que  temos  encontrado  até  aqui — dizia  o  nosso  com- 
panheiro. 

— Má  lingua  t  —responderia  o  palrador,  de  que  falía- 
mos, no  começo  (festas  linhas. 

Para  nos  suavisar  um  pouco  a  aridez  do  caminho, 
aberto  d'ahi  em  diante  entre  as  penedias  de  umas  pou- 
cas de  montanhas,  deparámos,  perto  de  Belalcázar  com 
o  estreito  rio  Sugar,  marginado  aqui  e  acolá  por  peque- 
nas searas  e  sobreiros  esguios. 

Seguiram-se  alguns  retalhos  mais  amenos,  e  depois 
charnecas  de  uma  notável  braveza,  onde  se  debatiam 
famosos  exércitos  de  gafanhotos. 

Declinava  a  tarde,  quando  passámos  em  frente  de 
Almadenejos,  povoação  circumdada  de  muralhas,  bas- 
tante accessiveis ;  tem  três  portas  e  foi  tbeatro  de  va- 


XXt  NOTAS  A  Li*» 


rias  façanhas  praticadas  por  occasiio  da  primeira  guerra 
cartista. 

Por  noite  fechada,  entrámos  em  Ciudad-ReaJ,  o  en- 
troncamento, com  bastante  magua  nossa,  por  ser  a  ter- 
ra mais  importante  do  nosso  ileoerario,  já  conhecido, 
e,  ao  que  nos  disseram,  muito  bem  provida  de  fabricas 
e  bons  edifícios  públicos. 

Foi  alli  que  as  armas  francezas,  em  1809,  alcançaram 
lima  das  suas  maiores  victorias,  em  território  hespanhol. 

Com  a  mudança  de  comboio,  áquella  hora,  houve  a 
costumada  confusão  e  borborinho,  seguidos  de  algumas 
imprecações  pouco  beatificas,  por  não  venderem  pão  e 
agua  no  botequim,  não  podemos  averiguar  porque,  con- 
seguindo-se  apenas  uma  ou  outra  garrafa  de  vinho  or- 
dinarissimo  por  dois  tostões. 

A  noite  vinha  contrariar-nos  extraordinariamente,  eão 
só  por  se  oppôr  ao  nosso  exame,  como  por  nos  não 
proporcionar  o  necessário  descanço,  tão  refractário  so- 
mos a  um  bom  somno  em  caminho  de  ferro. 

Depois  de  estafada  a  conversa,  que  caiu  naturalmente 
sobre  as  impressões  do  dia,  os  nossos  companheiros, 
forcejando  ainda  a  intervallos  por  cortar  a  monotonia, 
que  não  tardou  a  estabelecer-se  com  o  seu  cortejo  de 
somnolencias  e  bocejos,  servindo-se  de  um  dito  picante 
ou  de  uma  observação  ligeira,  cabecearam  de  vez,  acom- 
modando-se  como  poderam,  não  tanto  á  ingleza  que  não 
respeitassem  o  melhor  possível  as  pernas  e  os  quadris 
dos  seus  visinhos. 

Muito  depois  da  meia  noite,  a  fadiga  de  um  intenso 
mau-estar  atordoou-nos;  fechámos  os  olhos,  e  dormimos 
também  até  ás  4  horas  da  madrugada. 

# 

*      * 

Raiava  então  uma  manhã  deliciosa,  que  vinha  offerecer- 
nos  uma  larga  compensação  para  o  mau  commodo  da 
noite.  Era  domingo.  Chegávamos  á  estação  de  Algodor. 


MADRID  B  O  OfifTONARIO  DE  CALDERON  JBt 

Correndo  á  jaoella  da  carruagem,  não  podemos  dei* 
xar  de  acordar  o  ultimo  dormente. 

Tínhamos  diante  de  nós  orna  vastíssima  e  verdejante 
planície,  encastoada  n'um  bello  horisonte  de  montanhas, 
e  cortada  a  meio  pelo  rio,  ujue  dá  o  nome  á  estação,  rio 
qm  d'ahi  a  pouco  atravessávamos  sobre  uma  ponte, 
graciosa  e  poeticamente  lançada  junto  de  um  açude,  a 
85  kilometros  de  Madrid. 

O  ruído  das  engrenagens  do  comboio  sobre  a  ponte, 
o  valente  murmúrio  das  aguas  a  saltarem  do  açude,  a 
frescura  da  madrugada  e  a  vista  alegre  da  paisagem  — 
sacudiram-nos  o  ultimo  torpor  de  um  somno  mal  refeito. 

N'um  precurso  de  7  kilometros,  os  mesmos  campos, 
onde  só  havia  cereaes,  ás  leiras  semeadas  de  papoulas, 
sem  uma  arvore  de  fructo,  sem  um  arbusto  de  notar. 

Bello  em  começo,  monótono  por  fim. 

Umas  pequenas  oliveiras,  encontradas  d'ahi  até  á  es- 
tação de  Geles  y  Esquivias,  foram  saudadas  com  enthu- 
siasmo. 

A  começar  (Testa  localidade,  o  horisonte  era  mais  es- 
treito, mais  accidentado  e  por  isso  de  muito  melhor  as- 
pecto, especialmente  do  lado  direito,  onde  verdejavam 
boas  plantaçOes,  vinhas  e  olivedos. 

Em  Torrejon  de  Velasco,  escasseou  de  novo  o  arvo- 
redo; as  searas  voltaram  a  ter  uma  apparencia  enfezada 
e  doentia. 

Haviamos  encontrado  poucos  povoados,  e  quasi  todos 
a  considerável  distancia  das  estações. 

Na  ultima,  em  Getafe,  ficava- nos  a  povoação  á  direita, 
pouco  recommendavel  pelas  habitações  e  menos  ainda 
peta  cultura  do  terreno. 

Em  resumo :  de  Badajoz  a  Ciudad-Beal,  muita  pene- 
dia alpestre,  muitas  aldéas  miseráveis,  muitos  campos 
agrestes,  muito  calor,  muita  aridez  e  carência  absoluta 
de  boa  agua.  De  Algodor  até  ás  portas  da  capital  bes- 
panbola,  largos  horisontes,  cultura  pouco  notável,  o  mes- 
mo campanário  a  sair  das  aldèas  baixas  e  desprovidas 
das  casinhas  alvejantes  a  debruçarem-se  pelas  encostas 


252  NOTAS  A  LAH8 


d'entre  os  tufos  de  uma  vegetação  espessa  e  ridente, 
sem  as  estradas  e  os  ribeiros  a  serpearem  por  meio  de 
campos  ubérrimos,  a  pulularem  de  seiva  e  verdura— de 
uma  grande  parte  do  nosso  pequeno  torrão,  seja  dito 
francamente,  patriotismo  á  parte. 

Isto  não  é  decerto  uma  novidade  para  quem  sabe  que 
as  regiões,  que  acabávamos  de  atravessar,  são  das  me* 
nos  bellas  e  productivas  do  paiz  visinho,  mas  não  deixa 
de  ser,  mau  grado  nosso,  um  desmentido  ás  baforadas 
encomiásticas  do  nosso  comedor,  que  só  tem  bons  olhos 
e  arrancos  de  appetite  selvagem  para  as  galinhas,  que 
lhe  não  pertencem. 

Á  vista  da  cidade  coronada,  já  nos  esquecêramos 
d'elle,  perdoe-nos  a  sua  intolerância. 


II 


O  aspecto  da  cidade.— Ornamentos  do  Prado. 

Jardim  botânico.— Estatua  de  Murillo.— Museu  de  pintura. 

Jeronymos.— Fonte  de  Neptuno  —Praça  Dois  de  maio. 


Madrid  não  tem  bellezas  de  perspectiva. 

Posto  que  não  desconhecêssemos  inteiramente  a  sua 
posição  topograpbica,  não  foi  boa  a  impressão,  que  rece- 
bemos ao  avistal-a  do  postigo  do  comboio.  Plana,  des- 
provida de  jardins,  pomares  e  arborisação,  que  a  cir- 
cundem, espreguiça-se  humildemente  á  borda  do  esguio 
Manzanares,  a  que  nos  deu  vontade  de  lançar  o  copo 
de  agua  de  Alexandre  Dumas,  Filho,  agua  providencial, 
que  iria  orvalhar  os  estendae*  de  roupa,  que  davam  ás 
suas  margens  um  aspecto  extravagante,  pouco  de  appe- 
tecer  e  louvar. 


MADBID  B  O  CWTINÀHIO  DE  CALDIB0N  283 

A  estacio  das  Delicias,  onde  chegámos  ás  8  f/s  da  bel- 
lissima  manhã,  a  que  já  dos  referimos,  ao  flm  de  36  */s 
horas  de  viagem,  gastas  em  780  kilometros  de  caminho, 
ou  sejam  142  léguas  de  20  ao  grau— 6  excellente. 

A  concorrência  de  forasteiros  era  extraordinária,  e 
extraordinários  portanto  o  movimento  e  animação. 

Não  havia  na  gare  nem  uma  só  carruagem  de  praça. 

Uns  carros,  chamados  de  serviço  publico,  uns  peque- 
nos omnibus,  puxados  por  maus  animaes,  a  preço  ra- 
zoável, valha  a  verdade,  eram  a  conducçáo,  de  que  ti- 
vemos de  servir-nos.  Pertencem  a  diversas  emprezas, 
cujo  numero  se  vê  no  bonné  dos  conductores,  aos  quaes 
podemos  entregar,  com  toda  a  confiança,  as  nossas  pes- 
soas e  as  nossas  bagagens. 

O  trajecto  até  ao  Prado  é  escabroso  e  feio.  Estava 
em  obras.  As  longas  avenidas  d'este  celebrado  passeio 
captivam-nos,  logo  á  entrada. 

Deixando  á  direita  o  caminho  da  Atocha,  deparámos 
com  o  jardim  botânico,  gradeado  de  ferro,  pequeno, 
mas  bem  provido  de  plantas,  escassamente  classifica- 
das, ao  que  nos  pareceu.  Não  tem  floricultura  amena, 
nem  viveiros,  e  deve-se  a  Carlos  III. 

Defronte  da  sua  porta  principal,  figura  a  estatua  de 
Murillo,  do  lado  de  fora,  n'um  quadrado,  que  entesta 
egoalmente  com  a  fachada  sul  do  Museo  dei  Prado. 

A  estatua,  montada  em  pedestal,  onde  estão  em  singelo 
relevo  uma  paleia,  um  pincel  e  duas  coroas  de  louro, 
è  de  bronze,  modelado  pelo  esculptor  Medina,  e  foi 
inaugurada  em  3  de  abril  de  1871. 

* 
*      * 

Continuando  assim,  em  razio  do  itinerário,  que  se- 
guimos, a  antecipar-nos  um  pouco  na  indicação  do  que 
vimos  em  visitas  posteriores,  fatiaremos  já  do  museu 
de  pintura. 


m  MOTAS  A  LATO 

Do  lado  do  passeio  avulta  a  saa  fachada  principal, 
composta  de  uma  dupla  galeria  entre  dois  corpos  avan- 
çados, tendo  ao  centro  um  peristilo  dorico,  cujas  co- 
lumnas,  em  numero  de  seis,  teem  figuras  aos  lados, 
e  abrangem  a  altura  de  ambas  as  galerias. 

Compõe-se  a  mais  alta  de  28  columnas  jónicas  e  a 
inferior  de  14  arcos.  No  centro  da  cornija  ba  um  corpo, 
onde  as  Artes  recebem  coroas  das  mios  de  Minerva. 
Nos  intercolumnios  da  galeria  baixa, -figuram  estatuetas, 
vasos  de  mármore  e  bustos  de  artistas. 

Este  magestoso  edifício,  construído  por  Carlos  III 
para  museu  de  sciencias  naturaes,  e  damnificado  peta 
artilberia,  durante  a  invasão  franceza,  foi  restaurado 
por  Fernando  VII,  recebendo  os  primeiros  quadros  e 
escnlpturas  em  13  de  novembro  de  1819. 

Considerado  por  muitas  opiniões  aotorisadas  como 
o  primeiro  de  museus  de  pintura  europeus,  tem  este 
estabelecimento  tamanho  numero  de  quadros  que  a 
descripção  exacta  e  minuciosa  de  todos  elles  seria 
tarefa  de  annos  para  o  maior  e  melhor  dos  entendedo- 
res. 

Quando  parávamos  embasbacado,  pela  terceira  vez, 
em  visita  de  muitas  horas,  n'uma  (Taquellas  preciosas 
galerias,  e  soltávamos  um  qualificativo  qualquer,  em 
meio  de  um  desnorteamento,  de  que  não  podemos  dar 
idéa — ouvimos  alguém,  que  nos  respondia: 

—Ainda  vocô  acha  um  termo  para  classificar  o  que 
vê;  eu. . .  eu. . .  não  posso  fallar. 

Era  Mariano  Pina,  que  se  declarava  inteiramente  es 
tonteado.  A  sua  mudez  porém  era  bem  superior  á  nossa 
exclamação. 

Para  se  formar  uma  ligeira  idéa  das  numerosas  ri- 
quezas, que  alli  se  observam,  basta  dizer  que  todas  as 
escolas  de  pintura  lá  teem  representantes,  em  larga  es- 
cala, em  especial  a  italiana,  a  hespanhola,  a  allemã*  e  a 
franceza. 

Pelo  que  respeita  á  Itália,  citaremos— Ligli  ó  Lírios, 
Salvator  Rosa  e  Vaccaro,  da  escola  napolitana  —  Bene- 


MADRID  B  O  CKTONÀRIO  DB  CALDBRON 


detto  Crespi  e  Corregio,  da  lombarda— Manfredi  e  Ra- 
fael, da  romana  —  Guido  «  Domrâicbmo,  da  bolonheza 
— Vinci  e  Miguel  Angelo,  da  florentina— Ticiano,  Pátrio 
Verooese,  Tintoretto,  Francesco  Bassano  e  Cario  Vero- 
nese,  da  veneziana. 

Hespanha  —  Zurbarao,  Murillo,  e  Iríarte,  da  escola 
sevilhana  —  Maro,  Velasquez,  Escalante,  Leonardo  e 
Árias,  da  madrilena;  e,  alem  (Testes,  Morales,  Joannes, 
Toledo,  Goya  e  Ri  bera. 

Escolas  germânicas  —  Jordan,  Rubens,  Van-Dyck, 
David  e  Temers,  da  flammenga  —  Rembrant,  Dúrer, 
Wouvermans,  Moro,  e  Botb,  da  hollandeza—Mengs,  da 
allemã. 

França—  Poussin  e  Vernet. 

Nio  se  imagine  porem  qae  a  citação  (Testes  nomes 
revela  apenas  a  existência  de  um  quadro  de  cada  autor. 

Rubens  está  representado  por  66  quadros,  sendo  33 
origioaes,  17  copias  e  16  modelos  da  sua  escota!  Ti- 
ciano par  33  originaes  e  9  copias  I  Paulo  Veronese  por 
21  telas,  Rihera  por  59!  Tintoretto  por  25  originaes  e 
8  segundo  a  escola  I  Rafael  por  10  quadros  e  10  co- 
pias! Guido  por  15  quadros  e  muitas  copias  e  telas  do 
seu  estyloi  Poussin  por  20  quadros!  Vernet  por  6, 
Mengs  por  21!  Van-Dyck  por  21,  3  copias  e  9  segando 
a  sua  escola  e  estylo!  Temers  por  53!  Wouvermans 
por  10,  Moro  por  13  e  Both  por  12 ! 

Uma  ninharia !  Mais  de  424  quadros  só  em  15  pin- 
tores de  primeira  plana ! 

Desde  a  pintura  desmesurada,  que  occupa  a  parte 
inteira  de  uma  sala  ou  de  um  corredor  até  á  miniatura 
de  proporções  ínfimas,  vé-se  por  essa  ligeira  amostra 
de  que  modo  estão  representadas  as  principaes  escolas. 
O  catalogo  de  1878,  que  não  menciona  as  novas  acqui- 
sições  e  os  quadros  modernos,  em  especial  de  Rosales 
e  Pradilla,  apresenta-nos  400  autores  e  2525  quadros, 
onde  entram  as  pinturas  anonymas  e  as  das  escotas 
incertas. 

D'estes  dois  autores  hespanhoes,  não  podemos  deitar 


IK  NOTA*  A  LAW8 


de  mencionar  o  notabilissimo  quadro,  Testamento  de 
Izabel,  a  Catholica,  de  Rosales,  Joanna,  a  Louca,  e  o 
Entetro  de  FeUppe,  o  Formoso,  de  Pradilla. 

Este  ultimo  tem  as  dimensões  de  uns  poucos  de  me- 
tros. 

Alem  d'isso,  existem  nas  salas  do  pavimento  inferior 
uma  boa  collecçSo  de  esculpturas,  sendo  realmente  no- 
tável o  busto  em  mármore  de  Isabel  II,  cujas  feições  se 
descobrem  atra  vez  do  veu,  admiravelmente  rendilhado, 
mesas  com  soberbos  embutidos  de  mármores  de  cores, 
um  movei  envidraçado  com  muitos  objectos  de  cristal, 
alabastro  e  pedraria  e,  em  outra  parte,  a  sala  Goya, 
com  46  tapeçarias  cTeste  autor. 

Entre  os  artistas  modernos,  de  que  não  resa  o  cata- 
logo, figuram  Ferrant,  Domingues,  Jover,  Fierros,  Hes- 
panboleto,  Gontreras  e  Hernandes,  Sala,  Gusman  e  Mer- 
cada. 

A  maior  tela,  verdadeiramente  colossal,  é  a  morte 
de  Lucrécia,  de  Plasencia. 

O  quadro  que  tem  o  n.°  775,  é  de  assumpto  portu- 
guez:  mede  3^07  de  altura  e  4m,61  de  largura,  e  inti- 
tulasse a  Morte  de  Viriato.  Representa  em  figuras  de 
tamanho  natural  o  momento,  em  que  os  soldados  lusi- 
tanos vio  encontrar  morto  na  cama  o  seu  famoso  cau- 
dilho. No  fundo,  veem-se  a  tenda  do  general  e  uma  parte 
do  acampamento.  Foi  executado  em  Roma  pelo  celebre 
Madrazo,  pintor  de  camará  de  Carlos  IV. 

Afora  os  visitantes,  encontra va-se  pelas  galerias»  gran- 
de numero  de  pintores,  homens  e  senhoras,  a  tirarem 
copias  dos  bons  modelos:  o  que  não  era  somenos  diyer- 
sio  para  os  forasteiros,  e  constituía  uma  prova  incon- 
cussa de  que  a  nobilíssima  arte  de  pintar  é  innata  nos 


Agora  que  demos  profanamente  uma  leve  idéa  das 
verdadeiras  preciosidades  do  museu  de  pintura,  é  tempo 
de  sairmos  d'este  encantamento,  que  nos  assoberbou 
durante  três  dias  consecutivos,  e  de  continuarmos  o 
nosso  despretencioso  passeio  atravez  de  Madrid. 


MADRID  B  O  <OífTKNÀ  WO  DB  GALDKBON  187 


* 
*         * 

Por  detraz  do  museu,  vô-se  o  convento  de  S.  Jero- 
nymo,  fundação  de  Isabel,  a  calbo)ica;  deteriorado  pelos 
francezes,  acha-se  ainda  boje  em  mau  estado»  apezar  de 
servir  de  parque  para  artilberia! 

Seguindo  um  pouco  para  a  esquerda,  encontrámos  a 
formosa  Fonte  de  Neptuno.  No  meio  de  um  tanque  cir- 
cular, ergue-se  um  carro  de  mármore  branco,  em  forma 
de  concha,  tirado  por  dois  ca  vai  los,  sobre  o  qual  sobre- 
sae  a  figura  do  deus  mitbologico,  de  pé,  tendo  uma  co- 
bra enroscada  na  mão  direita  e  o  tridente  na  esquerda. 

Deve-se  a  Pascual  de  Mena. 

Um  pouco  mais,  e  estamos  na  Plaza  Dos  de  May  o, 
que  é  para  os  madrilenos  um  lugar  sagrado,  onde  ás 
recordações  sangrentas  de  uma  batalha  memorável  se 
vão  juntar  as  saudades  pelos  que  alli  deram  a  vida  em 
defeza  da  pátria  e  as  manifestações  ardentes  do  patrio- 
tismo, cruelmente  ferido  durante  a  invasão  franceza  de 
1808. 

Não  foi  uma  batalha;  foi  uma  carnificina  o  que  aquella 
data  regista,  e  que  o  monumento,  que  se  levanta  a  meio 
da  praça  commemora,  como  necrotério  illustre,  a  exo- 
rar orações  e  piedade,  a  relembrar  feitos  heróicos  e  mi- 
lagres de  bravura. 

Entre  maciços  de  verdura,  entremeiados  de  cypres- 
tes  e  cercados  por  uma  verga  de  ferro,  elevam-se  sobre 
um  polygono  de  oito  lados  quatro  degraus  de  granito 
berroquenho,  onde  assenta,  ladeado  de  urnas  funerárias, 
um  sarcófago  quadrado,  e  sobre  este  uma  pedra  bran- 
ca de  Colmenar,  tendo  em  cima  o  corpo  principal,  que 
è  de  granito  roxo. 

Na  frente  está  a  urna,  que  encerra  as  cinzas  dos  he- 
roes,  ou  antes  dos  martyres,  e  no  lado  opposto  um 
leão  em  relevo,  defendendo  as  armas  de  Hespanba;  na 
parte  superior  uma  medalha  em  baixo  relevo  com  os 

17 


256  NOTA*  A  LÁPIS 


retratos  de  Daoiz  e  Velarde,  os  dois  principaes  beroes 
da  restauração;  na  face  contraria  as  armas  de  Madrid, 
aos  lados  coroas  de  louro. 

Sobre  a  coberta  do  sarcófago,  ergue-se  outro  corpo 
octogono,  onde  assenta  um  pedestal  quadrado  de  ordem 
dórica,  entre  as  estatuas  da  Constância,  Valor,  Virtude 
e  Patriotismo;  sobre  e$se  pedestal  levanta-se  o  obelisco, 
remate  final  do  monumento,  que  mede  cerca  de  32  me- 
tros de  altura,  e  contem  as  seguintes  inscripções : 

LAS  CENIZAS 

DE  LAS  VICTIMAS  DHL  DOS  DE  MAYO  DE  1808 

DESCANSAM   EN   ESTE   CAMPO  DE  LA  LBALTAD 

REGADO  GON  SU  SANGRE. 

HONOR  BTIRNO  AL  PATRIOTISMO  ! 

A  LOS  MÁRTIRES 

DE  LA  INDEPENDÊNCIA  ESPANOLA 

LA  NAC10N  AGRADECIDA. 

CONCLUÍDO  POR  LA  M.  H.  VILLA  DE  MADRID. 

EN  EL  ANO  DE  1848 

É  em  frente  d'esta  preciosa  recordação  de  tristezas 
passadas,  de  uma  época  de  cruas  atrocidades  que  annual- 
mente,  a  dois  de  maio,  considerado  de  festa  nacional, 
vêem  desfilar  as  tropas  e  uma  procissão  cívica,  que, 
atravessando  as  principaes  ruas  da  cidade,  desde  a  egre* 
ja  de  S.  Isidro,  onde  se  executam  sumptuosos  funeraes, 
acaba  alli  de  prestar  todas  as  homenagens  do  seu  res- 
peito, commiseração  e  saudade  ás  victimas  do  mais  ar- 
dente patriotismo. 

Dêmos,  como  é  justo,  o  nosso  quinhão  de  sentimen- 
tos a  essa  tristissima  commemoração,  e  prosigâmos. 


MAMUD  B  O  (WTBNA1IIO  DE  CALDKBON  JMM) 


III 


0  primeiro  dia  de  festas.  —  Uma  feira  no  Prado.  —  Batalha 
de  Tetuan.  —  Museus  de  artilheria  e  engenharia.  —  O  Buen 
Retiro.  —  Praça  de  touros.  —  Via  castelhana  e  outras.— Por- 
ta de  Alcalá.  —  Fonte  de  Cibele.  —Monte  flelicon. 


A  nossa  chegada  coincidia  com  o  primeiro  dia  de  fes- 
tas do  centenário  de  Calderon. 

Madrid  regorgitava  de  forasteiros;  toda  a  gente  mais 
ou  menos  desoccupada  redemoinhava  pelos  lugares,  on- 
de houvesse  cousa,  que  podesse  despertar-lbe  a  atten- 
ção;  as  ruas,  as  praças  e  os  largos  apresentavam  um 
borborinbo,  uma  confusão  de  trajes,  um  mistiforio  de 
cores,  uma  animação  geral,  muito  para  ver  e  apreciar. 

Ao  longo  do  Prado,  n'uma  extensão  talvez  superior 
a  kilometro  e  meio,  estendia-se,  com  surpreza  nossa, 
uma  feira  que  se  ramificava  pelas  ruas  e  saidas  late- 
raes,  uma  feira  das  Amoreiras,  em  ponto  vinte  vezes 
maior,  com  as  suas  barracas  de  quinquilharias,  os  seus 
grupos  de  bonecos,  cosmoramas,  bodegas,  theatros,  ex- 
posições de  raridades  sérias  e  burlescas,  arlequins,  mo- 
mos e  saltimbancos  de  procedência  cosmopolita,  que, 
de  voz  em  grita,  agitando  os  chapéus  ponteagudos  e 
truanescos,  gesticulando,  fazendo  esgares,  tocando  bu- 
zinas e  campainhas,  suados,  esbaforidos,  cobertos  de 
alvaiade  colorido,  treslacando  a  bafio,  exhalado  do  pan- 
ninho  de  cores  garridas  e  do  veludilho  dos  trajes  des- 
botados—  disputavam  primores  de  dicção  bombástica, 
palavriado  dirigido  aos  passeiaotes,  que  eram  convida- 
dos a  assistir,  por  preço  commodo,  ás  exhibições  mais 
gigantescas  e  estapafúrdias,  executadas  por  homens  e 


SGO  BOTAS  A  LÁPIS 


mulheres  de  todos  os  recantos  do  mundo,  sábios,  físi- 
cos, funambulos,  gymnastas,  músicos,  pbenomenos  de 
toda  a  espécie,  raridades  de  todo  o  género  conhecido  e 
ignorado. 

Seguindo  á  direita  da  praça  Dois  de  Maio,  encontra- 
va-se  uma  vasta  construcção  de  lona,  onde  se  mostrava 
a  melhor  e  principal  curiosidade  da  feira— a  grande  vista 
cosmoramica  da  batalha  de  Tetuan,  a  pezeta  por  bilhete. 

O  espectador,  cot  locado  ao  centro,  em  posição  ele- 
vada, que  fingia  uma  montanha,  auxiliado  por  um  bom 
binóculo,  disfructava  os  principaes  episódios  da  tre- 
menda campanha,  parecendo-Ibe  que  ouvia  o  choque 
das  armas,  o  tinir  das  espadas,  o  troar  da  artilheria,  os 
gemidos  dos  agonisantes,  o  rodar  das  carretas,  as  im- 
precações dos  vencidos,  o  rinchar  dos  cavallos;  ao 
mesmo  tempo  que  via  o  desfilar  das  tropas,  as  em- 
buscadas,  os  postos  avançados,  as  columnas  de  reserva» 
as  principaes  refregas,  n'uma  das  quaes  o  malogrado 
general  Prim  avultava  á  frente  de  um  troço  do  exercito, 
que  perseguia  valorosamente  uma  leva  numerosa  das 
tropas  marroquinas,  taes  eram  os  effeitos  ópticos  da  ma- 
gnifica pintura  circular  e  os  objectos  reaes,  espadas,  es- 
pingardas, canhões  e  apetrechos  bellicos,  que  se  con- 
fundiam com  a  tela,  e  se  apresentavam  em  volta  do  es- 
pectador. 

Caminhando  pela  rua  de  la  Leatiad,  subamos  á  di- 
reita a  um  ponto  mais  elevado,  e  entremos  no  museu 
de  Artilheria,  que  se  acha  estabelecido  nos  restos  do 
antigo  palácio  do  Ruen  Retiro. 

Ào  rez-do-cbão,  vé-se  uma  collecção  de  objectos  al- 
guns dos  quaes  datam  do  século  XII,  em  que  começou 
a  utilisar-se  a  artilheria ;  no  andar  superior,  ha  apenas 
três  salas;  na  primeira,  encontram-se  modelos  de  armas, 
plantas  em  madeira,  o  leito  e  o  pavilhão  de  guerra  de 
Carlos  V,  espadas  e  bandeiras  históricas ;  na  segunda, 
modelos  de  peças  e  cartucbame ;  na  terceira,  deposito 
de  espingardas,  muito  inferior  ao  das  nossas  bellissimas 
salas  de  armas. 


MADRID  B  O  CENTENÀMO  DB  GALDBRON      861 

* 
*    * 

Deixando  á  esquerda  o  museu  de  Engenharia  que  se 
compõe  de  modelos,  materiaes  de  construcção,  pontes 
militares,  objectos  para  trincheiras  e  fossos  e  mais  effei- 
tos  de  acampamento,  demos  entrada  nos  jardins  do  Buen 
Retiro  e  actualmente  Parque  de  Madrid,  sitio  predilecto 
do  duque  de  Olivares.  Jardins  è  um  modo  de  dizer, 
porque  no  vastíssimo  parque  não  ha  flores,  como  não 
existem  em  nenhum  dos  lugares  públicos,  onde  abun- 
dam em  geral  os  maciços  de  relva. 

Subida  a  escadaria  de  pedra,  achámos -nos  no  Passeio 
das  Estatuas,  más  estatuas  de  alguns  reis,  e  vamos  dar 
a  um  grande  lago,  que  mede  143  metros  de  compri- 
mento e  60  de  largura !  As  coostrucções,  que  se  lhe 
avisinbam,  o  vaporsinbo  e  o  bole,  que  lá  navegam,  não 
teem  bellezas,  nem  importância. 

Entre  as  numerosas  fontes,  lagos,  viveiros,  edificações 
e  avenidas,  só  estas  são  dignas  de  lisongeira  menção. 

A  grande  Via  de  carruajes,  que  figura  para  o  madri- 
leno o  passeio  principal  do  bosque  de  Bolonha,  è  real- 
mente notável,  quando  a  riqueza  heráldica  e  argentaria, 
as  celebridades  e  o  mundo  elegante  vão  em  procissão 
picaresca  assoalhar  ao  longo  do  arvoredo  as  suas  equipa- 
gens, os  seus  sorrisos,  o  seu  fastio  ou  os  seus  galanteios. 

Da  curva  principal,  onde  ha  uma  estufa,  muito  des- 
guarnecida de  boas  plantas,  gosa-se  um  soffrivel  ponto 
de  vista  para  os  lados  da  Atocha  e  estação  do  caminho 
de  ferro  do  sul. 

De  volta,  encontra-se  a  Casa  de  las  fieras,  cuja  parte 
zoológica  é  por  demais  insignificante. 

•  # 

*      # 

Saindo  pela  porta  da  esquerda,  já  meio  fatigados,  po- 
demos dirigir-nos  â  Carretera  de  Aragon,  e  chegar  á 
Plaza  de  Toros,  construcção  monumental,  como  devia 


56 1  NOTAS  A  LÁPIS 


ser  o  recinto  espectaculoso  do  bárbaro  divertimento,  fa- 
vorito dos  hespaohoes. 

No  exterior,  tijolo  que  Ibe  dá  ama  apparencia  espe- 
cial, do  interior  granito  e  ferro,  que  supportam  e  enla- 
çam arcos  e  arabescos ;  espaçosas  entradas  e  galerias, 
duzentas  e  trinta  portas  e  janellas  e  uma  pista  de  90 
metros. 

Foi  estreiado  em  1874. 

Nenhum  forasteiro,  por  medianamente  observador  e 
curioso,  deve  deixar,  em  dia  de  espectáculo,  de  tomar 
parte  no  cortejo,  que  symbolisa  la  ida  para  los  toros. 

A  Puerta  dei  Sol  é  o  ponto  de  partida. 

Todos  os  espectáculos,  por  occasião  do  centenário 
calderoniano,  se  podiam  considerar  festas  de  gala. 

Imagine-se  pois,  na  tarde  do  dia  da  nossa  chegada, 
que  era  domingo,  o  panorama  que  se  disfructava  de 
uma  janella  da  rua  de  Alcaiá,  ao  ver  distilar  qoasi  to- 
das as  carruagens  madrilenas,  publicas  e  particulares, 
conduzindo  uma  multidão  sorridente,  na  apparencia  feliz, 
alegre  e  entbusiasta,  ostentando  todos  os  re quesitos  da 
fidalguia,  riqueza,  luxo,  mocidade  e  elegância ! 

Em  quanto  todos  os  apaixonados  e  curiosos  deliciam 
os  olhos  e  as  narinas  no  fumegar  do  sangue,  que  se 
espalha  a  jorros  na  praça,  e  das  tripas  de  16  cavados, 
que  lá  morreram,  aos  gritos  delirantes  das  acclamações 
enthusiaslicas  dos  cavalheiros  e  das  mais  nobres  damas, 
que  lançam  coroas  e  flores,  sorrisos  provocadores  e 
olhares  concupiscentes  sobre  os  beroes  da  brutal  carni- 
ficina —  retrocedamos  nós  pelo  Paseo  de  la  Castellana, 
calle  Serrano  até  ao  de  Ricoletos,  por  avenidas  e  ruas 
modernas,  que  se  podem  ainda  chamar  dependências  do 
Buen  Retiro,  estando  algumas  em  terreno,  que  lhe  per- 
tenceu. 

A  via  Castellana  é  preferível  ao  Prado;  á 'direita, 
tem  o  duque  de  Anglada  um  soberbo  palácio;  á  es- 
querda, está  o  Indo,  edificio,  onde  se  ba-de  inaugurar 
a  exposição  geral  de  Bellas  Artes. 

Não  ha  manifestação  de  progresso  nacional,  que  se 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON      163 

d3o  lenha  aproveitado  para  realce  das  festas  do  afamado 
poeta. 

Voltemos  em  direcção  ao  Buen  Retiro,  e  paremos  em 
(rente  da  porta  de  Alcalá,  ao  centro  da  Plaza  de  la  In- 
dependência. 

E'  um  corpo  de  granito  e  pedra  Colmenar,  com  cinco 
entradas ;  três  em  arco  occupam  o  meio,  e  duas  rectan- 
gulares os  lados;  tem  bons  ornatos  de  esculptura,  e  foi 
construído  para  solemnisar  a  chegada  de  Carlos  III,  em 
1778. 

Antes  de  chegarmos  novamente  ao  Prado,  vamos 
observar  uma  obra  formosa  e  monumental,  a  Fuente  de 
Cibeles,  feita  de  mármore  de  Montes  Claros  por  Michel 
e  Gutierrez.  No  centro  de  um  lago  circular  e  sobre  ro- 
chedos, está  a  deusa,  sentada  em  elegantíssima  carrua- 
gem, tirada  por  dois  bellos  leões;  da  bocca  de  uma  ca- 
raça fabulosa,  a  de  um  tritão  naturalmente,  jorra  a  agua 
sobre  os  dois  leões,  em  espadanas  sussurrantes. 

Um  pouco  mais  adiante,  á  entrada  da  rua  de  Alcalá, 
vamos  encontrar  uma  edificação  festiva,  uma  grande 
montanha,  escabrosa  e  de  difficil  accesso,  em  cujo  cimo 
figura  o  busto  de  Calderon,  uma  bella  alegoria  aos  seus 
trabalhos  e  á  conquista,  que  fez  do  império  das  musas, 
a  cujo  lado  se  assentou ;  o  monte  Helicon  finalmente, 
em  cujo  dorso  se  lê  o  seguiuie: 

Madrid  al  mas  illustre  de  sus  hijos,  D.  Pedro 

Calderon  de  la  Barca.  Honro  su  pátria 

gomo  perfeito  caballero,  soldado  vale  roso  e  venbrablb 

sacerdote.  gomo  dramático 

inundou  de  luz  al  mundo  con  los  resplendores  de  su  génio 

# 
#  ♦ 

Estamos  realmente  fatigado.  Para  um  dia  é  de  mais 
o  que  temos  visto,  sem  entrar  no  coração  da  cidade, 
pois  é  preciso  saber-se  que  o  Prado,  Buen  Retiro,  rua 
Affonso  XII,  Recoletos,  via  Castellana,  rua  Serrano  e 


SM  NOTAS  A  LÁPIS 


bairro  Salamanca  sSo  coisas  seguidas  ou  parallelas;  que 
se  encontram  a  um  lado  da  cidade  e  extra-muros,  n'um 
prolongamento  superior  talvez  a  três  kilometros. 

E  é  pena  que  assim  aconteça,  e  que  uma  parte  laquei- 
las  avenidas  se  não  espalhe  por  outros  pontos  e  pela  ci* 
dade,  tão  pobre  de  boas  praças  e  lugares  arborisado*. 

Gbega  a  gente  a  enfastiar-se  e  a  maldizer-se,  querendo 
ver  a  pé,  como  requerem  minuciosidades,  todos  aqael- 
les  passeios,  largos  e  desvios. 

Voltando  ao  Prado,  tomemos  pela  Carrera  S.  Gero- 
nimo,  que  coto  a  rua  de  Alça  lá  forma  as  duas  melhores 
saídas  para  aquelles  lugares,  e  vamos  alojarmos  no 
n.°  32,  segundo  piso,  casa  de  huespedes  particular,  a 
40  reales  por  cabeça,  segundo  telegramma  prévio,  no 
que  ba  a  levantar  as  mãos  para  o  ceu,  n'esta  época,  em 
que  as  próprias  trapeiras  dos  hotéis  custam  um  dobrão 
ou  cem  reales. 


IV 


Os  reaccionários.— A  exposição  dos  Grandes  de  Hespanha. — 
As  edificações  madrilenas.— Gamara  dos  deputados.— Lem- 
branças das  velharias  lisboetas.— Os  narizes  das  damas.— 
As  estatuas  de  Cervantes  e  Calderon. 


O  brilhantismo  excepcional  das  festas  madrilenas  de- 
veu-se  em  grande  parte  ao  concurso  publico  e  particular 
do  rei  e  do  governo,  que  forneceram  elementos  valiosos 
facilitando  meios,  a  que  só  podia  cbegar-se  pela  via  of- 
ficial,  offerecèndo  tropas  e  dinheiro,  e  fazendo  coincidir 
a  inauguração  de  exposições  e  melhoramentos  com  os 
dias  festivos. 


MADRID  B  O  -CKNTEXABIO  DE  CÀLDERON 


A  antiga  fidalguia  e  o  clero  porem,  esses  núcleos  de 
idéas  reaccionárias,  no  retrogradar  constante  das  soas 
aspirações  conservadoras,  não  viram  com  boas  olhos  a 
eeíebração  do  centenário  calderoniano,  e  encerraram-se 
n'uma  abstenção  aliás  inoffensiva,  que  passaria  sem 
ninguém  a  perceber,  se  não  fora  o  artigo  de  fundo  do 
Liberal,  que  d'ahi  a  oito  dias  a  denunciava,  sob  uma 
forma  clara  e  incisiva. 

A  imprensa  conservadora  retorquiu  que  a  fidalguia 
discutira  largamente  se  devia  fazer-se  representar  no 
préstito  civico,  mas  que  se  abstivera,  porque  nada  a 
aotorisava  a  mostrar-se  n'estas  exhibições  publicas. 

Ouçamos  algumas  linhas  da  resposta  do  Liberal : 

«Os  nobres,  agoazis  do  Santo  Officio  em  outro  tempo, 
exhibiam-se  publicamente  nos  autos  de  fé,  celebrados 
para  queimar  berejes.  Aquillo  fazia  parte  do  seu  ideal, 
e  o  enthusiasmo  religioso  obrigavaos  a  fazer  gaia  pu- 
blica dos  seus  sentimentos. 

«Em  nossos  dias,  a  nobreza  sae  em  procissão  pu- 
blica, formando  o  cortejo  dos  reis,  aos  quaes  acompa- 
nha em  peregrinações  de  egreja  em  egreja,  e  figura  a 
seu  lado,  diante  de  todo  o  mondo,  em  certas  solemni- 
dades  officiaes. 

c  Porque  é  pois  que  o  clero,  a  nobreza  e  as  ordens 
militares  brilharam  por  sua  ausência,  na  manifestação 
mais  solemne  e  entbusiasta  em  honra  do  génio?  Porque, 
em  virtude  da  sua  essência,  lembranças  e  tradições,  vi- 
vem mais  no  passado  que  no  presente,  porque  os  seus 
idéaes  não  são  os  que  agitam  os  povos,  que  caminham 
a  passos  largos  na  via  do  progresso.» 

Continuando  por  este  sentido  e  verdadeiro  theor,  o 
Liberal  verberava-os  convenientemente,  salvando  só  as 
excepções  dignas  de  o  serem. 

A  fidalguia  porém  não  foi  de  uma  abstenção  absoluta. 
Contando  com  a  admiração  dos  trinta  mil  forasteiros, 
que  correram  a  Madrid,  deu  pasto  á  sua  vaidade,  ou  ao 
sentimento  caritativo,  pôde  bem  ser,  atirando  com  al- 
gumas das  suas  antigualbas  para  a  Plateria  de  Marti- 


M6  NOTAS  A  LAWS 


nez,  onde  costuma  haver  exposição  permanente  de  pin- 
toras, a  10  reales  a  entrada,  a  favor  não  sabemos  de 
que  bospicio. 

Consultemos  o  programma  das  festas.  É  boje  a  inau- 
guração. 

Jantemos,  e,  voltando  ao  Prado,  que  nos  fica  perto, 
vamos  comprar  bilhete,  que  diz  isto : 

Centenário  de  Calderon 
Deputadon  permanente  de  la  Grandeza  de  Espana. 

Em  quatro  salas,  dispostos  nas  paredes,  aos  lados, 
no  centro,  em  profusão  sensata  e  superiormente  coor- 
denada, como  memorias  grandiosas  de  épocas  brilhan- 
tes, veem-se  objectos  de  uns  poucos  de  séculos,  rique- 
zas fascinadoras,  que  nos  assoberbam  o  espirito,  ao 
peso  do  valor  artístico  ou  material,  recordação  histórica 
ou  lendária,  que  encerram. 

Sobra-nos  a  boa  vontade,  mas  falta-nos  o  tempo,  que 
seria  preciso  para  uma  breve  descripção  de  tudo  o  que 
vemos  —  moveis  da  renascença  e  do  primeiro  império, 
jarras  esmaltadas  do  Japão,  leques,  objectos  de  nácar, 
jaspe,  prata  e  ouro,  espadas  históricas,  armaduras  li- 
sas e  buriladas,  tapeçarias  de  Bruxellas,  hespanbolas  e 
flammengas,  porcellanas  da  Saxonia  e  Sevres,  cadeiri- 
nhas de  varias  épocas,  cofres,  armários,  medalhões  e 
pinturas  de  todo  o  género. 

Demos  relação  do  que  mais  nos  captivou  o  gosto  e 
a  attenção.     • 

Quanto  a  livros,  um  Lapidado  do  século  xnr,  a  Histo- 
ria natural  de  Plinio,  século  xv,  o  Doctrinario  dos  caval- 
leiros  e  um  Diccionario  de  Izabel,  a  catholica,  da  mesma 
época,  outro  de  Felippe  III,  um  Saltério  do  século  xvi, 
um  Diccionario  de  Carlos  V,  e  outro  de  Felippe  II  — 
pertencentes  á  bibliotheca  do  Escoriai;  o  Livro  de  mon- 
taria de  Affonso  II,  um  Diccionario  com  riquíssima  ca- 
pa de  ouro  esmaltado  e  o  Saady,  obra  persa  do  século 
xvi  —  vindos  da  bibliotheca  do  rei. 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DR  GALDRRON  367 

Quanto  a  objectos  sacros  —  um  jarro  de  prata  e  ou- 
ro, um  diptico  de  marfim,  dois  quadros  de  porcelana 
em  baixo  relevo>  um  retábulo  de  prata,  do  século  xvi, 
ws\  velador  de  porcelana  de  Sevres  com  bronzes  de  Tho- 
mire,  do  século  passado,  o  relicário  de  prata  dourada, 
cristal  e  pedras,  dado  peio  duque  de  Mantua  a  Felippe 
II,  outro  de  ferro  marchetado  de  ouro  e  prata,  trabalho 
milanez  do  século  xvi  e  uma  imagem  de  marfim,  en- 
volta em  rede  de  malba  de  uma  finura  e  correcção  es- 
meradíssimas—  pertencentes  ao  Escoriai;  uma  casula 
bordada  a  ouro  e  pérolas,  no  século  passado,  uma  mol- 
dura de  ouro  e  esmaltes,  encerrando  uma  carta  auto- 
grapha  de  S.  Caetano  —  trazidas  da  capei  la  do  palácio 
real,  a  que  pertencem  muitos  artigos  de  prata,  ouro  e 
pedras  finas  dos  séculos  xiv,  xvi  e  xviii. 

Como  verdadeiras  e  ricas  curiosidades  —  os  leques 
da  rainha,  uma  grande  caixa  de  coral  e  prata,  obra  do 
século  xvu,  os  arreios  do  cavai  lo  de  Mahomet,  no  anno 
de  1331 ;  uma  escrivaninha  de  marfim,  trabalho  ita- 
liano, representando  nos  embutidos  cartas  geographicas 
e  plantas  de  varias  cidades,  com  pasmosa  e  correctís- 
sima minuciosidade ;  uma  mesa  folheada  de  tartaruga  e 
marfim,  com  17  quadros  esmaltados;  uma  mesa  do  sé- 
culo xvin,  com  o  taboleiro  de  seda  bordada,  um  qua- 
dro com  esmaltes  de  Limoges,  século  xvu,  retratos  em 
cera  de  século  xvu  e  muitas  pinturas  em  cobre,  seda  e 
pergaminho;  finalmente  um  Eldorado,  cheio  de  obras 
de  um  mérito  e  valor  inapreciáveis,  de  que  só  podem 
dar  idéa,  em  maior  se  não  mais  rica  escala,  os  objectos, 
que  mais  tarde  formaram  a  nossa  exposição  de  arte 
ornamental. 

# 
#      * 

Grande  parte  das  edificações  madrilenas  conserva  uns 
resaibos  pronunciados  do  estylo  árabe,  predominando 
na  ornamentação  interna  e  externa  o  estuque,  sem  os 
bellos  mármores,  que  dão  is  nossas  construcções  aris- 


388  lfOTAS  A  LÁPIS 


tocraticas  ou  monomentaes  orna  distincção  0  solidez, 
que  alli  não  encontram  rivaes.  Em  face  de  Madrid,  de- 
ve Lisboa  ser  considerada  orna  cidade  de  pedra. 

De  quanto  podem  a  cal,  a  areia  e  o  gesso  é  vaKosa 
prova  o  palácio  dos  duques  de  Medinaceli,  que  termina 
a  rua  Jovellanos,  por  onde  vamos  retrocedendo  para  a 
Garrera  S.  Geronimo  até  pararmos  em  frente  do  Con- 
gresso de  los  DtputadoSy  bello  ediâcio  moderno,  con- 
cluído em  1850. 

A  fachada  principal  é  de  granito,  excepção  feita  das 
guarnições  das  portas,  janellas  e  frisos,  que  são  de  cal- 
careo  de  Ruiduena.  O  pórtico  é  saliente  e  sustentado 
por  seis  columnas  corintbias  e  estriadas ;  dá-lhe  accesso 
uma  espaçosa  escadaria,  ladeada  por  dois  leões  de  bron- 
ze, assentados  sobre  as  patas  trazeiras,  e  fundidos  em 
Sevilha  com  a  artilheria,  tomada  na  guerra  de  Africa. 

Na  parte  respectiva,  ha  um  bello  frontão,  represen- 
tando a  Hespanha,  entre^  figuras  alegóricas,  no  momen- 
to de  abraçar  a  constituição  do  Estado. 

O  pórtico  só  é  franqueado  na  abertura  das  cortes; 
a  entrada  ordinária  faz-se  pela  rua  Floridablanca. 

O  corpo  da  guarda  está  na  parte  inferior,  onde  ba 
deposito  dos  vários  objectos  de  uso  do  edifício.  Na  par- 
te nobre,  encontram-se  os  gabinetes  dos  ministros,  os 
de  leitura  e  archivo  e  um  bello  salão  de  conferencias, 
decorado  com  pitastras  jónicas  e  vinte  e  oito  medalhões 
com  os  bustos  de  oradores  e  publicistas  notáveis.  No 
tecto  representa  m-se  as  quatro  antigas  partes  do  mun- 
do, entre  a  Religião,  a  Lei,  a  Abundância  e  a  Justiça ; 
nos  quatro  ângulos  figuram  os  bustos  de  Martinez  de 
la  Rosa,  Toreno,  Arguilles  e  Olózaga. 

O  lugar  mais  notável,  como  é  de  ver,  foi  reservado 
para  a  sala  das  sessões,  disposta  em  forma  de  amfi- 
teatro  e  luxuosamente  ornamentado.  O  tecto  è  uma  so- 
berba pintura  de  Rivera,  tendo  no  centro  os  homens  ce- 
lebres nacionaes  e  á  roda  os  oradores  mais  eminentes. 
A  meio  das  columnas  de  ferro,  que  formam  as  galerias» 
veem-se  os  escudos  brazonados  das  49  províncias  do 


MADRID  B  O  CWTHIABIO  DE  CÀLDKBON  fti 

paii  e  sobre  as  portas  da  sala  ume  lapides  de  mármo- 
re branco,  oodo  se*  lêem,  em  caracteres  dourados,  os 
nomes  de  muitos  homens  illustres»  Os  assentos  dos  mi- 
wstros  são  estofados  de  azul,  e  os  dos  deputados  teem 
cor  escarlate;  a  cadeira  presidencial  é  ladeada  de  duas 
estatuas  de  reis  catbolicos  e  dois  excellentes  quadros— 
O  juramento  das  cortes  de  Cadiz  e  Dona  Ataria  de  Mo- 
Una,  por  Gisbert. 

Á  saída  do  Congresso  dos  deputados  hespanhoes,  ví- 
nhamos pensando,  como  tantas  vezes  o  temos  feito,  que 
a  apropriação  dos  edifícios  para  fins  contrários  á  sua 
origem,  como  acontece  pela  maior  parte  entre  nós,  ha-de 
ser  sempre  risível  ou  defeituosa,  e  que  só  são  dignos  de 
consideração  e  cabalmente  úteis  os  estabelecimentos 
construídos  expressamente  para  as  funcções,  a  que  fo- 
ram destinados. 

O  casarão  de  S.  Bento,  afora  a  sala  dos  pares,  o  fú- 
nebre e  remendado  hospital  de  S.  José,  o  immundo  e 
lastimável  pardieiro  da  Boa  Hora,  o  acanhado  e  vergo- 
nhoso Rilhafolles  e  outros  edifícios  nacionaes,  que  seria 
doloroso  mencionar,  constituem  umas  pobres  mantas  de 
sórdidos  retalhos,  em  que  miseravelmente  se  embiúca 
a  donairosa  Lisboa,  tão  bella  e  tão  digna  de  melhores 
destinos. 

Coitada !  Tão  aferrada  ás  suas  velharias,  tão  roncei- 
ra no  seu  caminhar,  tão  embrulhada  gosta  de  andar 
sempre  no  seu  capote  e  lenço  tradicionaes,  que  ainda 
não  reformou  um  certo  pbraseado  local,  ôcco,  tolo  e  va- 
sio  de  senso  commum  para  os  tempos  hodiernos. 

Haja  vista  para  os  letreiros  palavrosos  de  grande  par- 
te das  suas  ruas,  para  os  fanqueiros,  como  vendedores 
de  tecidos,  para  as  capettas,  como  lojas  de  quinquilharias, 
para  os  bancos  dos  bospitaes  e  para  os  pelouros  da  ca- 
mará municipal,  coisas  que  ninguém  sabe  o  que  são  no 
presente,  e  os  estrangeiros,  ainda  os  que  melhor  conhe- 
cem a  nossa  língua,  se  dão  a  perros  para  adivinhar. 

E  se  ella  é  assim  formosa  e  suja,  garrida  e  conserva- 
dora, se  pisca  um  olho  ao  progresso  e  os  dois  ao  seu 


t70  KOTAS  A  LáPIS 

passado,  como  havemos  de  qoerer  que  ella  reforme  o 
seu  rio,  destinado  a  ser  o  melhop  porto  europeu;  que 
illumine  as  ruas,  á  noite;  que  tenha  edifícios  públicos, 
dignos  da  civilisação  moderna;  que  vele  incessantemen- 
te sobre  a  qualidade  dos  géneros  da  sua  alimentação; 
que  não  prenda  os  gatunos  boje  para  os  mandar  furtar 
ao  outro  dia;  que  não  aprebenda  as  navalhas,  deixando 
os  faquistas  impunes;  que  na  organisação  dos  agentes 
da  segurança  publica,  não  admitta  o  policia  a  exercer 
vinganças  mesquinhas,  a  tirar  desforras  condemnaveis, 
porque  é  ao  mesmo  tempo  testemunha  e  parte,  o  que 
repugna  ao  simples  bom  senso  do  mais  obscuro  munícipe? 

# 

*      * 

Mas. . .  deixemos-nos  de  rabugices  intempestivas, 
inúteis  e  deslocadas,  e  continuemos  a  recreiar-nos  atra- 
vessando por  esta  multidão  de  gente,  onde  abundam  as 
grandes  tournures,  os  grandes  olhos  e  os  grandes  nari- 
zes, que  são,  perdoem-nos  ellas,  o  principal  caracterís- 
tico das  madrilenas,  ainda  as  de  melhor  cara. 

Á  testa  do  congresso,  encontrámos  a  Plaza  de  las 
Cortes,  um  jardim  sem  flores,  em  cujo  centro  avulta  a 
estatua  de  Cervantes,  projecto  hespanbol  e  fundição  de 
dois  artistas  prussianos.  O  pedestal  tem  um  baixo  rele- 
vo, com  dois  leões,  e  outro,  que  representa  D.  Qui- 
chote  e  o  seu  companheiro  Sancho  Pança,  ao  partirem 
para  as  suas  aventuras,  levando  a  Loucura  por  guia. 

A  inscripção  diz:—  A  Miguel  de  Cervantes  Saavedra, 
príncipe  de  los  ingenios  espafíoles,  afio  de  1836. 

Gomo  fica  perto,  e  nos  interessa  bastante,  vamos  á 
Plaza  de  Santa  Anna  contemplar  outra  estatua,  melhor 
que  a  precedente,  a  do  heroe  das  festas  madrilenas. 

É  de  mármore  de  Garrara,  e  está  collocada  também 
a  meio  de  um  jardim  e  cercada  por  bom  arvoredo,  que 
lhe  dá  uns  formosos  toques  de  meias  sombras. 

A  base  compõe-se  de  três  corpos  salientes,  entremeia- 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  971 

dos  de  degraus  corvos  e  recolhidos:  oa  segunda  parle 
quadrada  e  de  ângulos  quebrados»  represeutam-se  algu- 
mas scenas  das  obras  de  Calderon,  que  assenta  no  ulti- 
mo corpo,  vestido  de  babitos  talares,  tendo  na  mio  di- 
reita uma  penna  e  na  esquerda  um  livro  aberto,  que  se 
lhe  apoia  nos  joelhos. 

A  apparencia  meditativa  do  poeta  e  a  sua  postura  são 
correctas.  O  conjuncto  do  monumento  é  agradável,  sem 
imponência. 


La  Puerta  dei  SoL— Viva  la  gracia.— Contra  os  gatunos.— On- 
das de  gente.— Os  cafòs  e  a  moeda  nacional.— 0  theatro 
Apolo.— Os  nomes  dos  lagares  nas  casas  de  espectáculo. 


Entremos  de  novo  na  Carrera  S.  Geronimo,  e  sigamos 
até  á  tão  faltada  Puerta  dei  Sol,  visto  que  esta  rua,  cor- 
rendo parallela  á  de  Alcalá,  è  um  dos  melhores  cami- 
nhos a  seguir. 

Ardemos  de  impaciência  por  entrar  no  coração  de 
Madrid,  e  conhecer  o  centro  principal  do  seu  movi- 
mento. 

Eis-nos.  Viva  la  gracia !  Salud  a  los  toreros,  que  nos 
offuscam  com  os  seus  trajes  fantasiosos  e  os  seus  bri- 
lhantes muito  bem  postos  nos  collarinhos  desgravatados, 
encostando«se  elegantemente,  conversando  em  grupo, 
ás  portas  do  café  Imperial,  e  distribuindo  sorrisos  en- 
tendidos ou  provocadores  ás  ninas  guapas,  que  se  cru- 
zam ligeiras  e  saltitantes  em  todas  as  direcções,  aonde 
teem  de  levar  as  suas  pessoas  e  as  suas  mantilhas. 

Salero!  que  me  dá  la  gana  de  seguirias!  Vivai  que 


272  NOTAS  A  LÁPIS 


mona  que  ést  Que  esbeltezl  Uit  Se  la  encuentro  otra 
vez,  por  dios  que  voy  a  perderme  l 

Pareceu-nos  ouvir  distinctamente  estas  e  outras  pala- 
vras, saídas  do  grupo. 

Pois  viva  la  grada,  d  salero,  las  morenas,  las  rubias 
e  tudo  o  mais  que  quizerem,  mas...  abotoar  casacos, 
que  os  rateros  já  hoje  tomaram  o  peso,  e  avaliaram 
uma  boa  dúzia  de  relógios,  sendo  o  primeiro  a  ficar  sem 
elle  o  ministro  fraocez,  que  nem  por  isso  fez  do  caso 
uma  questão  diplomática,  liraitando-se,  segundo  cremos, 
a  ser  de  outra  feita  mais  acautelado,  abotoando-se  até 
ao  pescoço,  como  manda  o  uso  da  terra. 

Vae  por  aqui  uma  gritaria  infernal  de  vendedores  de 
programmas,  jornaes,  medalhas  e  publicações,  que  an- 
nunciam,  e  descrevem  as  solemnidades  do  dia. 

Esses  e  os  demais  vendedores  ambulantes,  também 
como  nós,  teem  em  muita  conta  os  merecimentos  dos 
larápios,  porque  as  bolsas  de  couro,  destinadas  ao  di? 
nheiro.  apresentam  boas  fechaduras,  e  descem-lhes  do 
pescoço,  seguras  a  bons  tirantes  de  ferro. 

O  transito  é  difficil.  A  descer  das  tranvias,  que  fazem 
d'aquelle  centro  o  primeiro  ponto  de  saída,  nas  embo- 
caduras das  melhores  ruas,  que  lá  vêem  convergir,  ás 
portas  dos  estabelecimentos  commerciaes,  acotovella-se 
o  povo,  que  se  agita  em  ondas  compactas. 

Examinemos  a  praça.  Nada  tem  de  notável  para  o 
renome,  que  possue,  pois  a  mesma  porta,  que  lhe  deu 
o  titulo*  nio  existe  já.  É  bastante  irregular,  formando 
uma  recta  de  um  lado,  onde  está  o  Ministério  de  la  Go- 
bernacion,  e  uma  curva  dos  outros,  onde  ha  bons  pré- 
dios e  óptimas  casas  commerciaes.  Ao  centro  um  for- 
tíssimo repuxo,  que  eleva  as  aguas  acima  dos  telhados, 
recolhendo-as  n'um  tanque  de  pedra,  ladeado  por  dois 
mais  pequenos  e  despido  dos  ornatos,  que  deveria  ter. 

A  celebridade  da  Puerta  dei  Sol  está  pois  em  ser  o 
coração  da  capital,  o  centro  dos  principaes  cafés  e  es- 
tabelecimentos de  luxo,  o  local  privilegiado,  aonde  ne- 
nhum cidadão  deixa  de  ir  posar  um  rato. 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  273 


# 
#         # 

Os  cafés  podem  considerar-se  verdadeiras  instituições 
nacionaes.  O  Imperial,  defrontando  com  a  praça,  atra- 
vessa um  quarteirão  inteiro,  vae  da  Carrera  S.  Gerony- 
mo  á  rua  de  Alcalá:  alem  (Teste  contam-se  alli,  pela  or- 
dem da  sua  importância,  o  Universal,  Oriental,  Coitem- 
nas,  Levante  e  Lisboa;  e  perto  da  rua  Alcalá,  o  For- 
nos, Biarritz,  El  Brilhante,  Madrid,  Suizo  e  Cervantes. 
•  Os  espelhos,  os  mármores,  os  lagos  guarnecidos  de 
plantas  exóticas,  as  pinturas  muraes  e  os  tectos,  os  es- 
tuques e  as  orchestras,  que  guarnecem  e  alindam  o  in- 
terior de  grande  parle  d'elles— elevara-nos  á  cathegoria 
de  estabelecimentos  dignos  de  uma  demorada  visita,  em 
especial  o  Fornos,  o  principal  de  todos  elles,  onde,  á 
bora  a  que  nos  referimos,  não  encontrámos  banco  vasio, 
apezar  de  uma  boa  centena  de  mezas  de  bello  mármo- 
re, que  lá  vemos;  onde  não  poderemos  obter  um  sim- 
ples succarillo,  o  nosso  caramelo,  por  mais  que  algu- 
mas dezenas  de  criados  circundem  por  toda  a  parte. 

O  diplomata,  o  politico,  o  jornalista,  o  toureiro,  o  es- 
tudante, o  militar  de  baixa  e  alta  graduação,  a  dama 
aristocrata,  a  simples  mulber  do  povo,  o  artista  distin- 
cto,  o  modesto  operário,  o  banqueiro,  o  burguez  paci- 
fico, sentados,  a  sós,  separados,  aos  grupos  —  fumam, 
bebem,  mastigam,  conversam,  gritam,  gesticulam,  aper- 
tam-se,  nivelam-se,  num  convívio  atroador,  que  receia- 
mos  ver  descambar  em  pandemonium  infernal. 

Nada  d'isso  acontece  porém ;  a  ida  ao  café  está  nos 
hábitos  de  todos.  Uns  dão  lugar  a  outros ;  esta  camada 
succede  áquella,  todos  os  dias,  a  qualquer  hora,  e  em 
especial  á  noite,  quando  se  discutem  os  acontecimentos 
do  dia,  onde  entram  a  politica,  as  artes,  os  costumes, 
as  aventuras  dos  grandes,  os  escândalos  dos  pequenos, 
as  mulheres  da  moda,  os  escriptos  mais  em  voga ;  onde 
se  tiram,  e  fazem  reputações,  se  realisam  entrevistas, 

18 


274  NOTAS  A  LAPIB 


se  estabelecem  planos»  se  fazem  projectos,  se  armam  e 
desmancham  pendências,  onde  se  trata  de  tudo,  e  se 
falia  de  todos. 

Verdadeiras  instituições  nacionaes  os  cafés  de  Ma- 
drid ! 

Uma  das  primeiras  difficuldades  para  o  forasteiro  è 
conhecer  o  valor  e  o  padrão  do  monetário  hespanhol,  e 
fazer  a  distincção  entre  o  novo  e  o  antigo.  Tão  mistu- 
rado anda  elle  que  até  os  ochavos  mouros,  juntos  a  ou- 
tra moeda  estrambótica,  os  cuartos,  são  dados  em  tro- 
cos miúdos. 

Os  criados  dos  cafés  enganam-se  frequentemente  no, 
cambio,  que  nos  fazem,  e  o  dinheiro  falso  circula  em 
abundância. 

Ao  darmos  uma  moeda  para  troco,  o  individuo,  que 
a  recebe,  bate-a  com  toda  a  sem-cerimonia  a  toda  a  al- 
tura do  nosso  nariz,  mira-a,  mau  grado  o  cunho  nacio- 
nal, que  outro  não  admitte  elle ;  mas  não  é  caso  de  es- 
tranhar se  nos  achámos  mais  tarde  com  algumas  pesetas 
de  chumbo  no  bolso,  que,  valham  a  verdade  e  a  expe- 
riência própria,  não  é  difficil  passar  da  mesma  forma, 
por  que  as  recebemos. 

Fez-nos  impressão  ver,  a  todas  as  horas  e  com  espe- 
cialidade á  noite,  as  differentes  classes  da  sociedade, 
sem  exclusão  de  uma  só,  representadas  nos  cafés,  onde 
toda  a  gente  é  obrigada  a  fazer  despeza,  desde  que  alli 
vae  tomar  um  lugar. 

—  Meu  amigo  —  respondeu-nos  um  natural,  que  nos 
acompanhava,  e  conhecia  alguns  dos  costumes  portugue- 
zes  —  entre  os  senhores,  furta-se  ao  estômago,  muitas 
vezes,  para  dar  ao  vestuário :  um  bom  casaco,  um  bel- 
lo  vestido  custam  a  certa  gente  privações  e  misérias ; 
tenhamos  chá  ao  almoço  e  uma  açorda  ao  jantar,  com 
tanto  que  possamos  ir  ao  alfaiate  ou  á  modista.  Pois 
essas  privações  e  essas  misérias  existem,  e  pralicam-se 
entre  nós,  com  tanto  que  não  faltemos. . .  ao  café,  seja 
qual  for  a  nossa  condição.  Muitos  d'esses  sujeitos,  que 
por  ahi  vê,  são  uns  desgraçados,  que  gastarão  esta  noi- 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  GALDERON  275 

te  o  ultimo  real,  embora  nada  tenham  para  o  almoço  de 
amanhã. 

O  café  portanto,  podemos  repetir,  é  uma  instituição 
característica  do  povo  madrileno. 

# 
#      # 

Abandonemos  ás  commissões  a  velada liricoliteraria, 
que  se  ha-de  realisar  esta  noite,  como  ultima  parte  da 
programma  do  dia,  e  sigamos  rua  Alcalá  a  baixo  alé  ao 
theatro  Apolo. 

É  uma  construcção  moderna,  devida  ao  plano  de  um 
arcbitecto  francez.  À  fachada -de  pedra  branca  tem  três 
arcadas,  destinadas  ao  vestíbulo  coberto,  onde  penetram 
as  carruagens. 

Aos  lados  ficam  as  entradas  para  os  peões. 

A  este  segue-se  outro  vestíbulo,  com  escadarias  de 
mármore,  coisa  rara  nos  theatros  de  Madrid,  escadarias 
que 'levam  ao  andar  superior. 

O  recinto  não  é  grande,  apezar  dos  dois  mil  espec- 
tadores, que  pode  conter ;  o  tecto  e  a  cúpula  são  muito 
bem  pintados;  a  plateia  luxuosamente  estofada,  como 
em  todos  os  theatros  principaes,  só  apresenta  uma  or- 
dem completa  de  camarotes,  a  segunda ;  a  primeira  e  a 
terceira  teem  alguns  próximos  da  scena ;  o  resto  dos 
lados  e  o  fundo  são  galerias. 

Para  conhecer  a  nomenclatura  dos  diversos  lugares 
nos  theatros  hespanhoes,  é  preciso  um  estudo  longo  e 
aturado,  nada  inferior  ao  requerido  para  a  moeda. 

Ainda  que  se  saiba  que  palcos  são  camarotes  e  buta- 
cos  as  cadeiras,  ao  comprar  bilhete,  querendo  certo  e 
determinado  local,  é  preciso  conhecer  os  palcos-plateas, 
entresuelos,  principales  e  segundos,  as  butacas  das  mes- 
mas espécies,  os  sillones  de  platea,  os  de  balconcillo, 
as  galerias  dê  platea  e  delanteras  de  anfiteatro  principal, 
as  delanteras  de  paraíso,  os  asientos  de  anfiteatro  prin- 
cipal e  segundo ;  e,  se  querem  ir  aos  touros,  terão  além 


276  NOTAS  A  LÁPIS 


do  que  ahi  fica  —  as  bameras,  as  contrabarreras,  os  ta- 
bloncillos,  os  centros,  um  mistiforio  de  nomes,  que  nem 
o  indígena  distingue  bem,  uma  arenga  que  nos  intriga 
diabolicamente,  quando  caímos  nas  mãos  dos  contracta- 
dores,  se  logo  de  manhã  nos  não  prevenimos  com  bi- 
lhete. 

A  representação  constou  de  umas  comedias  soltas, 
que  nos  agradaram  mediocremente,  e  de  uns  interval- 
los  de  gymnastica,  executada  por  uma  familia  ingleza, 
cuja  mulher  descia  lentamente  de  toda  a  altura  da  sala, 
perto  das  galerias,  até  ao  palco,  suspensa  pelos  dentes, 
onde  depois  segurava  um  trapesio,  dependurada  de  ou- 
tro, com  a  cabeça  para  baixo,  emquanto  o  marido  e  os 
filhos  lá  faziam  numerosos  exercícios. 

Uma  valente  queixada  aquella  t 

E  agora  tornemos  pela  rua  dei  Turco,  celebre  pelo 
assassinato  do  general  Prim,  e  vamos  deitar-nos,  porque 
nos  sentimos  extremamente  fatigado. 


VI 


Segundo  dia. — A  cathedral  da  Atocha. 

0  museu  anthropologico.  —  O  de  historia  natural. 

O  Naval.  —  Considerações. 


Bem.  O  somno  restabeleceu-nos  as  forças.  O  novo  dia 
amanheceu  formoso. 

O  programma  das  solemnidades  pouco  nos  interessa; 
aproveitemos  o  tempo,  continuando  a  precorrer  a  cidade. 

É-nos  preciso  retroceder,  e  voltar  a  lugares  que  já 
vimos. 

Desde  que  nos  entendemos  que  nos  anda  a  espicaçar 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  GALDERON       277 

a  curiosidade  uma  das  celebridades  de  Madrid,  oo  pelo 
menos  considerada  como  tal,  pelos  actos  religiosos  de 
maior  valia,  casamentos  reaes  e  principescos,  ceremo- 
nias  lithurgicas  da  alta  clerezia  madrilena;  ardemos  de 
impaciência  por  entrar  na  tão  conhecida,  ou  pelo  menos 
tão  faltada  cathedral  de  Atocha,  uma  hyperbole  façanhu- 
da,  um  nome  bombástico,  que  sempre  ouvimos  pronun- 
ciar á  bocca  cheia. 

Tomemos  a  tranvia,  o  americano,  á  falta  de  nome  me- 
lhor, não  reparemos  no  cocheiro  mal  vestido  de  ganga 
azul,  a  fazer-nos  lembrar  o  nosso  aguadeiro,  e  sigamos 
Pradp  abaixo  até  ao  Paseo  de  Atocha,  em  cujo  topo, 
tendo  á  vista  a  estação  do  caminho  de  ferro,  encontra- 
remos o  objecto  de  tamanha  anciedade. 

— Hace  usted  el  favor  de  me  decir  onde  es  la.. .  la 
cathedral  de  Atocha?— perguntámos  a  um  homem,  ao 
saltar  do  carro,  na  extremidade  da  linha. 

—La  gran  basílica,  quiere  decir  usted,  onde  los  reyes 
asistem  á  la  salve,  todos  los  sábados  ? — emendou  o  in- 
terrogado, impertigando-se. 

—  St,  seftor. 

— Está  en  su  frente,  hombre! 

E  estava  com  effeito,  e  não  dávamos  por  isso.  Es- 
fregámos os  olhos,  julgando-nos  com  a  vista  embaciada, 
ao  ver  um  amontoado  de  casarões  sem  arte  nem  archi- 
tectura,  semeados  de  muitas  cruzes,  irregulares  no  ta- 
manho e  na  altura,  umas  construcções  de  varias  épocas, 
entre  as  quaes  avultava  mediocremente  a  parte  princi- 
pal do  templo,  que  iamos  visitar. 

—Rocha  bruta  a  servir  de  envoltório  a  um  formoso 
brilhante— pensámos  nós. 

Penetrando  n'aquella  casaria,  atravessámos  um  átrio, 
digno  delia,  e  soffretnos  a  mesma  impressão,  ao  enca- 
rar com  uma  pobre  frontaria  de  egreja. 

A  porta  estava  aberta  aos  devotos.  Entrámos  reveren- 
temente, e  com  mais  reverencia  ainda,  começámos  a  ler 
um  grande  papel  encaixilhado,  muito  bem  impresso  e 
pregado  no  exterior  do  guarda-vento. 


278  NOTAS  A  LAPrs 


Continha  esta  succuienta  e  proveitosa  advertência : 

Todos  los  fieles  de  ambos  sexos  que  confesados  y  co- 
mulgados,  6  verdaderamente  arrepentidos  con  propósito 
de  confesion,  visitaren  esta  real  basílica  de  Nuestra  Se- 
hora  de  Atocha,  rogando  a  Dios  por  la  exaltacion  de  la 
Santa  Madre  Iglesia,  extirpacion  de  las  heregias  y  la 
paz  y  concórdia  entre  los  príncipes  christianos,  ganan 
todas  las  gradas  esperituales,  indulgências  parciales  y 
plenárias  con  remision  de  todos  sus  pecados,  como  si 
personalmente  visitaren  las  iglesias,  altares,  capillas, 
cofradias  y  lugares  piadosos  de  la  Sacrosanta  Iglesia 
Catedral  Papal  Luteranense  de  Roma.  Estas  indulgên- 
cias y  gracias  esperituales  pueden  aplicar-se  por  las 
bemditas  almas  dei  Purgatório.  Dado  en  Roma,  a  13  de 
junio  de  1863.  Ato  17  dei  Pontificado  de  N.  S.  P.  P. 
Pio  IX. 

Se  não  fora  esta  piedosa  leitura,  bem  mal  disposto 
dos  acharíamos,  ao  penetrar  no  templo,  que  não  passa 
de  um  largo  e  triste  corredor,  escuro  e  despido  de  ata- 
vios de  arte  e  belleza,  destoando  apenas  de  semelhante 
situação  algumas  bandeiras  históricas,  suspensas  do  tecto. 

Despenhado  da  máxima  altura  da  nossa  boa  fé,  dêmos 
ainda  assim  o  tempo  da  visita  por  bem  empregue,  por- 
que ha  alli  três  objectos  de  valor— os  túmulos  de  már- 
more do  marquez  dei  Duero  e  do  duque  de  Bailen,  que 
estão  á  direita,  e  o  do  general  Prim,  que  se  admira  a 
meio  de  uma  capella  lateral. 

É  este  um  leito  mortuário,  onde  descança  a  estatua 
jacente  do  valente  militar,  cercada  por  uma  bellissinaa 
grade  relevada,  tudo  de  ferro  e  bronze»  um  exemplar  ar- 
tístico de  elevado  merecimento,  devido  a  Zuloaga. 


Acreditámos  de  bom  grado  na  lei  natural  das  com- 
pensações. 
E  ainda  bem  para  o  nosso  despeito. 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  179 

De  regresso,  a. meio  do  Paseo  de  Atocha,  encontra* 
mos  o  Museu  Antropológico,  construído  a  expensas  e  sob 
a  direcção  de  um  devotado  sacerdote  da  s ciência,  o  Dr. 
Gonzales  de  Velasco,  um  edifício,  que  data  apenas  de 
1875. 

Atravessando  um  pequeno  jardim,  cercado  por  verga 
de  ferro,  sobe-se  uma  longa  escadaria  de  pedra  até  um 
peristilo,  a  que  sobresae  um  frontão  triangular,  susten- 
tado por  quatro  columnas  jónicas.  Os  relevos  centraes 
representam  a  cabeça  de  Minerva,  circundada  de  plan- 
tas medecinaes  em  partes  entrelaçadas,  que  teem  por 
baixo  a  inscripção :  Nosce  te  ipsum. 

Á  esquerda  do  peristilo,  vô-se  a  estatua  de  Miguel 
Servet,  sábio  aragonez,  que  descobriu  a  circulação  do 
sangue,  e  foi  queimado  em  Genebra,  por  ordem  de  Cal- 
vin o,  em  1553;  á  direita  a  de  Vallés  de  Govarrubias, 
medico  privado  de  Felippe  II. 

A  cirurgia  e  a  medecina  estão  representadas  nas  pin- 
turas muraes,  que  aformoseiam  o  topo  da  escadaria. 

O  interior  com  põe -se  de  duas  salas,  guarnecidas  de 
galerias,  e  contem  numerosos  exemplares  da  sciencia 
especialista,  coordenados  e  dispostos,  segundo  o  que  os 
nossos  olhos  de  profano  poderam  observar,  com  o  bom 
gosto  e  óptima  classificação  de  perfeito  entendedor. 

A  parte  experimental  da  anthropologia,  que  se  prende 
á  medicina,  pareceu-nos  a  mais  completa  e  interessante 
da  collecção. 

Da  secção  pbenomenal  não  nos  podemos  esquecer  ain- 
da de  um  exemplar  moderno  e  curiosíssimo :  a  pelle  e 
o  esqueleto  de  um  rapaz  provinciano,  que  morreu  aos 
26  aonos,  tendo  de  altura  dois  metros  e  trinta  e  cinco 
centímetros.  Um  gigante. 

Quando,  em  frente  das  riquezas  scientiBcas  que  se  a- 
montoam  n'aquelle  recinto,  pensámos  que  tudo  aquillo 
é  devido  ao  labutar  incessante,  ás  investigações,  estudos 
e  dispêndio  de  um  homem  só,  sentimos  uma  imperiosa 
necessidade  de  lhe  tributarmos  toda  a  nossa  admiração, 
todos  os  nossos  maiores  respeitos,  e  de  imprimirmos 


280  NOTAS  A  LÁPIS 


sobre  as  oossas  desconfianças  pessimistas  o  cunho  da 
verdadeira  fé.  v 

Tomemos  pela  moderna  rua  Affonso  XII,  que  corre 
paratlela  aos  jardins  do  Buen  Retiro,  que  nos  fica  á  di- 
reita, passemos  sob  a  porta  de  Alcalá,  já  descri p ta,  e 
sigamos  pela  calle  do  mesmo  nome,  sem  nos  emportar- 
mos  com  alguns  edifícios  públicos,  que  ba  por  alli;  en- 
tremos no  que  mais  nos  interessa  —  o  Museo  de  Historia 
Natural,  no  edifício  da  academia  das  Bellas  Artes,  fun- 
dado em  4771. 

Incontestavelmente  a  Hespanba  é  a  terra  das  pinturas 
e  o  mais  opulento  repositório  das  obras  dos  verdadei- 
ros mestres  nacionaes  e  estrangeiros. 

Pelas  escadarias  e  salas  da  entrada,  bem  mal  dispos- 
tos e  faltos  de  boa  luz,  valha  a  verdade,  encontrámos 
mais  de  tresentos  quadros,  em  grande  parte  de  incon- 
testável valia,  como  por  exemplo  a  Annunciação,  Santo 
Izabel  de  Portugal,  curando  os  pobres,  a  Ressurreição  t 
outros  de  Murillo,  a  Sacra  Família  de  VanDyck,  os 
dois  S.  Joões  de  Rubens,  a  Ceia  de  Tintoretto  e  algi- 
mas  telas  de  Corregio,  Velasquez,  Zurbaran,  Goya  e  ou- 
tros. 

A  amabilidade,  com  que  fôramos  recebido  até  alli,  em 
todos  os  estabelecimentos,  que  visitáramos,  esbarrou 
d'esta  vez  diante  de  uns  guardas  casmurros  e  poaco 
attenciosos :  o  que  nos  fez  lembrar  dos  Cerberos,  aos 
quaes  está  incumbida  a  vigilância  da  maior  parte  dos 
nossos  estabelecimentos,  e  em  especial  os  palácios  riaes, 
uma  recua  de  malcriados,  presumidos  e  ignorantes;  que 
só  por  favor  podem  ser  comparados  a  verdadeiros  cães 
de  quinta. 

—  Cá  e  lá . . .  más  fadas  ha  —  pensámos,  ainda  assim 
com  immensa  desvantagem  nossa. 

Foi  talvez  por  essa  circumstancia  que  não  achámos 
bem  cuidada  a  disposição  do  que  vimos  nas  onze  salas, 
de  que  se  compõe  o  museu. 

As  duas  primeiras  conteem  a  mineralogia,  muito  bem 
representada,  havendo  a  notar  uma  mesa,  toda  feita  de 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  181 

lava :  dos  armários  da  terceira,  algumas  aves,  ao  centro 
ruminantes  e  pachidermes ;  oas  três  seguintes,  mamífe- 
ros, reptis  e  peixes ;  na  sétima,  rochas  e  fosseis,  ao  cen- 
uma  espécie  de  rhinoceronte  fóssil,  o  celebre  Megathe- 
rio,  achado  a  16  kilometros  de  Buenos  Ayres,  género 
em  que  os  sábios  dizem  ser  férteis  os  terrenos  de  alia- 
vião  de  uma  parte  da  America  do  Sul ;  na  oitava  e  nona, 
moluscos,  crustáceos  e  zoopbitos ;  na  decima,  anatomia 
comparada,  no  meio  três  grandes  dentes  de  elephante, 
um  incisivo  e  dois  molares,  encontrados  junto  á  ponte 
de  Toledo ;  na  ultima,  a  secção  entomologica  ou  dos  in- 
sectos. 

# 
#      # 

Alguns  passos  mais,  e  desembocaremos  na  Puerta  dei 
Sol ;  sigamos  na  mesma  direcção,  e  entremos  ao  fundo 
da  praça  na  rua  Arenal,  que  nos  levará  a  oulra,  a  de 
Izabel  II,  onde  nada  temos  a  notar. 

Caminhando  á  direita,  chegaremos  a  um  largo  irre- 
gular, como  todos,  onde  está  o  Ministério  de  Marinha. 
Demos  uma  vista  de  olhos  á  bibliolheca  nacional,  onde 
nos  farão  andar  piedosamente  de  chapéu  na  mão  diante 
das  estantes,  bem  providas  de  livros,  e,  já  que  Madrid 
é  a  terra  dos  museus,  entremos  em  mais  um,  o  Museo 
Naval. 

Aqui  aprenderemos  a  ordenar  um  vasto  estabeleci- 
mento, onde  são  poucos  os  originaes  e  immensos  os  mo- 
delos, as  copias  e  as  recordações  de  homens  distinctos, 
tudo  espalhado  em  dez  salas,  que  nos  despertam  o  má- 
ximo interesse,  secções,  onde  notámos  os  differentes  ty- 
pos  das  peças  fundidas  nos  arsenaes  e  dos  navios  do 
estado,  bandeiras  históricas,  os  galões  de  um  general, 
o  retrato  de  um  almirante,  os  pedaços  da  farda  d'este, 
as  dragooas,  o  bonnè  e  a  espada  de  outro,  planos  de 
fortalezas  e  construcções  de  todo  o  género,  effigies  de 
descobridores,  bustos  de  marinheiros,  amostras  de  ma- 
deira, modelos  de  instrumentos  náuticos,  uns  de  pau, 


282  NOTAS  A  LÁPIS 


outros  de  ferro  e  bronze,  uma  agglomeração  paciente  e 
barata  de  milhares  de  objectos,  para  incentivo,  recorda- 
ção e  estado,  uma  exbibição  patriótica  do  mais  elevado 
alcance  moral  e  pratico. 

As  salas  cbinezas  e  a  da  pesca  são  dignas  de  espe- 
cial menção,  aquellas  pelos  specimens  da  industria  de 
um  povo  tão  original,  e  esta  pelos  differentes  typos  de 
redes  e  mais  instrumentos  da  vida  piscatória,  aves  aquá- 
ticas e  peixes. 

Á  saída  do  museu  naval,  cuja  visita  tanto  nos  agra- 
dou e  satisfez,  vínhamos  pensando  nas  bênçãos  devidas 
aos  governos  intelligentes,  aos  homens  de  boa  vontade  e 
iniciativa  correspondente,  que  attestam,  na  sua  passa- 
gem pelos  altos  poderes  do  estado,  o  quanto  vale  o  pa- 
triotismo, estribado  no  pundonor  de  cada  individuo. 

Aquelle  estabelecimento,  sem  valor  intrínseco,  é  uma 
riqueza  nacional,  porque  se  baseia  no  estimulo,  dado 
aos  estudiosos,  na  consideração  tributada  a  homens  be- 
neméritos, no  incentivo  para  os  operários,  que  vêem 
alli  representadas  as  provas  do  seu  mérito,  na  venera- 
ção posthuma  de  actos  valorosos,  no  propósito  de  tor- 
nar bem  patente,  aos  olhos  de  nacionaes  e  estrangeiros, 
que  se  resolvem  difficuldades,  que  se  vencem  escolhos, 
que  se  lida,  que  se  trabalha,  que  se  vive  emOm. 


MADRID  E  O  GBNTENARIO  DE  GALDERON  283 


VII 


ás  estrebarias  reaes.  —  As  carruagens  de  gala. 
O  theatro  da  Zarsuela.—  Uma  aventura. 


Temos  diante  de  nós  ama  construcção  moderna,  bai- 
xa e  povoada  de  postigos,  um  parailelogrammo,  que  se 
prolonga  com  a  roa  Bailen,  n'uma  grande  extensão. 

Interessa-nos  isto.  O  que  será  ? 

São  as  cavalhartças  reaes,  que  se  acham  á  esquerda 
do  palácio.  Facultam-nos  a  entrada;  não  desperdiçaremos 
a  occasião  de  admirar  uma  das  feições  mais  importan- 
tes da  sumptuosa  corte  hespanbola. 

As  dependências  interiores  são  vastíssimas;  o  asseio 
e  a  boa  ordem  excedentes;  já  vimos  226  cavallos  de  to- 
das as  raças,  com  o  respectivo  nome  baptismal,  escrip- 
to  na  porta  divisória  dos  differentes  alojamentos.  Entre 
as  extravagâncias  da  nomenclatura,  citaremos  a  de  cin- 
co cavallos,  que  se  chamam—  Viriato,  Cómico,  Escriptor, 
Unionista  e  Aumale,  com  manifesta  desvantagem  para 
os  homens,  a  quem  competem  semelhantes  títulos. 

Ironia  ou  menospreço?  Em  todo  o  caso,  lembrança 
muito  da  moda,  mas  ôcca,  reles  e  de  muito  mau  gosto. 

Das  36  mulas,  que  povoam  a  estrebaria,  duas  obede- 
cem aos  nomes  de  Priora  e  Generala. 

Quando  dissemos  que  as  cavalhariças  reaes  eram  uma 
prova  da  espaventosa  prosápia  do  monarcha  hespanhol, 
não  nos  enganámos,  pois,  passando  aos  compartimen- 
tos, onde  se  guardam  os  trens,  deram-nos  relação  de  10 
carruagens  antigas  e  127  modernas  I 

As  mais  notáveis  são — a  de  ébano,  chamada  de  Joan- 
na,  a  louca,  mulher  de  Felippe  I,  a  de  maior  valia  e  a 
primeira,  que  possuiu  a  corte,  no  século  XVI;  a  de 


284  NOTAS  A  LAPtS 


guarnições  vermelhas  e  douradas,  de  Carlos  IV;  a  de 
tartaruga,  dadiva  de  Napoleão  1  a  este  monarcha;  o  co- 
che de  respeito  de  âmbar  e  dourados  a  fogo,  mandado 
fazer  em  1827  por  Fernando  VII,  e  outro  mais  simples 
do  mesmo  reinado;  a  de  Carlos  111;  o  coche  de  Maria 
Luiza,  mulher  de  Carlos  IV;  o  de  nácar  e  dourados,  of- 
ferta  de  Napoleão  III;  dois  mandados  fazer  em  Paris  por 
Izabel  II;  o  landau,  dado  a  Christina  por  Fernando  VII, 
e  mais  uns  três  de  meia  gala;  quatorze  ao  todo. 

Apezar  de  todo  o  valor,  arte  e  belleza  d'estas  carrua- 
gens, nada  vimos  que  podesse  egualar-se  aos  apparato- 
sos  e  riquíssimos  coches  de  gala  dos  reis  portnguezes. 

Na  praça  do  Oriente,  que  nos  fica  perto,  trabalham 
com  actividade  nos  preparativos  para  as  futuras  illumi- 
nações  e  para  a  decoração  geral. 

Voltaremos  amanhã,  que  o  dia  não  chega  para  mais. 

♦ 
*      # 

Depois  de  jantar,  pensaremos  em  ir  a  novo  theatro, 
que  será  o  de  la  Zarzuela,  na  rua  Jovellanos. 

Eis-nos.  É  um  edifício  espaçoso,  elegante  e  moderno» 
tendo  três  ordens  de  camarotes,  aos  lados,  e  o  fundo 
convertido  em  bancadas,  dispostas  em  ampbitheatro  ao 
uso  da  maioria  dos  theatros  madrilenos. 

Como  o  titulo  indica,  o  género  das  exbibições  sceni- 
cas  é  a  musica  nacional,  a  opera  característica,  que  tem 
a  especialidade  de  se  não  confundir  com  outra,  qualquer 
que  seja. 

O  conjuncto  do  que  se  representava  no  primeiro  acto 
não  nos  deixara  grande  impressão,  ao  cair  do  panno. 

Sentiamos-nos  fatigado  de  corpo  e  de  espirito,  e  não 
quizemos  sair  no  intervallo,  que  foi  demasiado  longo 
para  os  nossos  nervos  amortecidos.  Os  olhos  fecharam- 
se-nos  naturalmente,  e  quando  demos  por  nós  foi  a  uma 
cabeçada  do  nosso  companheiro,  que  dormia  egualmente, 
como  era  provável,  por  effeito  reflexivo. 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE*  CALDERON 


Olhámos-nos  espantado,  e  podemos  abranger  a  fraca  fi- 
gura da  nossa  posição.  Haveria  por  alli  sorriso  zombe- 
teiro á  volta  de  nós  ?  a  pacata  placidez  do  nosso  somno 
seria  para  muitos  a  diversão  do  intervallo? 

—  Ninguém  deu  pelo  nosso  somno,  julgo  eu.  Parece 
que. . .  que  não  resonámos — disse  o  collega. 

—  Penso  que  não ;  ao  contrario,  pelo  que  lhe  diz  res- 
peito, ter-nos-iam  posto  lá  fora,  em  plena  rua. 

O  nosso  companheiro  parece  que  não  fez  muito  caso 
da  ligeira  apostropbe,  que  se  referia  a  uns  grunhidos, 
com  que  elle  ameaçava  dar-nos  cabo  do  socego,  todas 
as  noites,  e,  o  que  mais  seria,  revolucionar  a  casa  de 
huespedes ;  e  dispoz-se  para  dormir  de  novo. 

Apezar  da  plateia  estar  pouco  povoada,  a  reincidên- 
cia escandalisou-nos.  O  homem  porém  era  insensível  ás 
cotoveladas,  que  lhe  imprimíamos  no  lado  esquerdo.  Se 
estrugisse  um  ronco  possante,  podíamos  attrair  os  olha- 
res de  toda  a  gente;  era  o  nosso  receio. 

Duas  filas  de  butacas  adiante  de  nós,  um  pouco  para 
a  direita,  uma  mulher,  que  se  sentava  entre  algumas 
pessoas,  virara-se  por  vezes,  encarando-nos  com  uma 
insistência  de  notar.  Ora,  de  todos»  os  ridículos,  espa- 
lhados por  esse  mundo,  o  que  mais  desconcerta  e  hu- 
milha o  sexo  forte  è  o  que  lhe  é  inflingido  por  uma 
mulher  elegante,  nova  e  bonita. 

Presenciara  o  nosso  somno,  sem  duvida,  ria-se  de  nós, 
e  tinha  bem  boa  razão  para  isso. 

Nova  cotovelada  no  companheiro,  e  ainda  sem  resultado! 

No  rosto  da  deidade,  que  continuava  a  observar-nos 
com  impertinência,  havia  uma  expressão  singular,  muito 
differente  do  ar  zombador. 

N'um  momento,  em  que  ella  trocava  algumas  pala- 
vras com  o  homem,  que  tinha  á  esquerda,  applicámos 
ao  nosso  dormente  um  rigoroso  beliscão,  com  óptima 
efficacia. 

—  Parece-me  que  sonhava  —  disse,  acordando  de  cho- 
fre, visivelmente  contrariado.  —  Para  que  é  que  você. . . 

—  Para  que  o  acordei?  Para  o  furtar  ás  zombarias 


286  MOTAS  A  LÁPIS 


do  olbar  de  uma  mulher,  que  mofa  de  nós,  haverá  um 
bom  quarto  de  hora. .. 

— Uma  mulher,  que... 

Indiquei-lh'a  exactamente  na  occasiâo,  jem  que  ella 
se  voltava  de  novo,  em  quanto  o  homem,  com  quem 
conversava,  fazia  o  mesmo. 

Era  um  reconhecimento,  não  havia  duvida. 

O  nosso  companheiro,  mau  grado  seu,  deu  um  pulo 
na  cadeira,  e  tregeitou  com  visível  embaraço,  ao  procu- 
rar fazer  uma  careta,  que  se  assimilhava  a  um  cumpri- 
mento, a  que  os  dois  corresponderam,  elle  com  rasga- 
da cortezia,  ella  com  extrema  dificuldade. 

E  voltaram  á  primeira  posição. 

— Oh  t  desgraça  imprevista  1  oh  t  ventura  inesperada 
—exclamou  baixinho  o  nosso  companheiro. 

— Duas  cousas  tão  diversas,  ao  mesmo  tempo ! 

— É  certo  comtudo.  Quem  tal  adivinhara!  Desgraça. . . 
porque  não  poderei  furtar-me  ás  suas  justas  recrimina- 
ções; ventura. . .  porque  ainda  gosto  d'ella,  e. . . 

—Mas...  não  entendo. 

— Ó  homem,  aquella  creatura  è  a  Juanita,  a  minha 
companheira  do  alte-mar,  a. . . 

Recordámos-nos  então  de  uma  historia,  passada  abor- 
do de  um  vapor  transatlântico,  em  viagem  para  Lisboa, 
haveria  uns  dois  mezes,  segundo  a  narrativa  intima,  que 
nos  fora  feita. 

Um  toureiro  hespanhol  aportara  á  capital  de  uma  das 
republicas  de  Prata,  onde  fora  a  negócios  do  seu  officio. 
Parecendo-lhe  mais  commodo  voltar  á  pátria  em  com- 
panhia de  alguém  do  seu  intimo  agrado,  raptou  uma 
bella  rapariga,  que  se  deixara  seduzir  talvez  pelos  en- 
cantos de  uma  viagem  ao  velho  mundo. 

O  raptor  porem  era  mais  ciumento  que  o  Bardo  de 
Castilho,  e  mais  furioso  que  um  Otbelo.  A  rapariga  en- 
fastiava-se,  e  arrependia-se  a  todos  os  momentos. 

Foi  n'estas  bçllas  disposições  que  o  nosso  amigo  os 
encontrara,  quando  o  vapor  chegou  a  Pernambuco,  onde 
elle  o  esperava. 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  287 

Travaram  relações,  e,  n'um  momento  dado,  a  Juanita 
expoz  a  sua  situação,  que  o  novo  viajante  escutou  com- 
pungido, acabando  por  offerecer  coração  e  serviços,  que 
foram  acceites  com  alvoroço. 

Tanto  a  bordo  do  navio,  como  no  lazareto,  alcançou 
favores  especiaes  de  incontestável  reconhecimento,  com 
a  promessa  de  que  em  Lisboa  se  effectuaria  novo  rapto, 
ficando  elle  inteiro  possuidor  do  objecto  amado. 

As  ásperas  lufadas  de  um  violento  nordeste  porem 
arrefeceram  consideravelmente  as  escandecencias  amo- 
rosas do  nosso  amigo,  e  elle. . .  o  desalmado. . .  traiu 
a  fé  jurada. . .  olvidou  os  calorosos  promettimentos  de 
um  momento  de  extrema  ventura,  e  deixou-se  ficar  no 
seu  quarto,  desconhecido  da  bella,  emquanto  a  desdicha- 
da  lá  ia  para  Madrid,  maldizendo  a  sua  sorte,  e  não 
pensando  certamente  no  acaso,  que  a  1  li  lhe  havia  de  pôr 
á  vista  indignada  o  cruel,  o  fementido,  a  quem  dera 
tamanhos  agrados. 

Cremos,  com  bom  fundamento,  que  a  Juanita  não  co- 
nhecia o  vigor  excepcional  dos  versos  do  nosso  grande 
poeta  dos  Ciúmes;  ao  contrario,  tel-os-ia  parodiado,  ex- 
clamando in  mente : 

Raça  cruel  de  cascavéis  dolosos . . . 
podesse  outro  vapor  contel-os  todos 
e  o  piloto  fosse  eu. . .  vingança  eterna ! 
livre  era  o  mundo  e  as  fêmeas  satisfeitas  I 

Não  sabemos  se  a  idéa  lhe  ruminava  palavras:  o  cer- 
to era  que  os  olhos  despediam  queixumes  acerbos. 

Subiu  novamente  o  panno.  O  nosso  amigo  não  via 
muito  a  claro  o  que  se  passava  em  scena. 

—  E  agora  ?  —  monologava  elle. 

—  Desapparecer. ..   mais  uma  vez  —  respondemos. 

—  Isso  é  que  eu  não  faço.  Parece  que  li  algures 
que  a  zanga  das  mulheres  ainda  é  um  signal  do  seu 
amor. 

t Talvez  podesse  ainda  conseguir. . . » 


NOTAS  A  LAPH 


—  0'  homem,  mas  isso  é  requintada  maldade.  Desa- 
socegar  de  novo  aquelle  espirito. . . 

—  Desasocegado  está  elle,  ha  muito  tempo. 

—  Fatuidade  e  agua  benta. . . 

—  Eu  tomo  a  dose,  que  entendo  dever  tomar.  Vou 
comprimental-os,  no  intervallo  que  segue.  Mas. . .  como 
lhe  bei-de  fazer  saber  a  minba  morada,  a  ella  só. . . 

—  Para  que  vá  ter  comsigo? 

—  Para  me  dar  noticias  suas,  ao  menos. 

—  E  se  ella  pretender  tirar  uma  desforra !  Não  é  um 
laço,  que  vae  armar  a  si  próprio? 

—  Oh  I  diabo  I  não  me  lembrava. 

A  aventura  dava-nos  boas  doses  de  bom  humor,  com 
que  o  nosso  companheiro  não  estava  de  pleno  acordo, 
ao  arcbitectar  na  imaginação  o  que  lhe  iamos  referindo, 
em  simples  probabilidades:  um  punhal  luzente,  a  sair 
de  uma  liga  de  seda,  um  grito  de  furor,  uma  scena  de 
sangue,  um  escândalo  monumental,  e  não  sabemos  quan- 
tas cousas  mais. 

Tempo  perdido  1  palavras  malbaratadas! 

Puxando  da  carteira,  rasgou-Ihe  uma  folha,  escreveu 
algumas  palavras  no  pedaço,  que  reduziu  ao  menor  vo- 
lume possível,  e,  ao  cair  do  panno,  levantou-se,  e  foi 
cumprimentar  os  dois  indivíduos,  com  quem  se  demo- 
rou a  conversar,  durante  o  intervallo  inteiro. 

—  E  então?  — perguntámos  por  fim. 

—  Um  tremendo  arrufo.  As  palavras  tremiam-lhe  nos 
lábios.  Lá  ficou  o  bilhete.  Esperemos. 

—  Espere  o  meu  amigo,  que  não  eu.  Detesto  as  sce- 
nas  violentas. 

—  Pois  seja,  como  quizer. 

E  entrou  radiante  no  nosso  quarto  de  dormir. 


MADRID  E  O  GBNT1NÀWO  DE  CALDERON 


VIII 


Terceiro  dia.  — 0  commercio.  —  Um  sapateiro  poeta.— Praça 
do  Oriente.  —  Estatua  de  Felippe  IV.  —  O  palácio  real  e  a 
sua  capella.  —  Egreja  de  S.  Isidro.  —  Armoria  Real.—  Porta 
de  S.  Vicente.  —  A  Segóvia,  antiga  Mouraria,  —  O  Pardo.— 
O  theatro  hespanhol.  —  Lá  como  cá. 


O  programma  do  novo  dia  resumia-se  na  collocação 
da  pedra  fundamental  de  uma  escola,  em  virtude  do 
testamento  de  um  ricaço  qualquer,  na  inauguração  do 
monumento  alegórico  da  rua  de  Alcalá,  o  Helicon,  a 
que  já  nos  referimos,  El  Monte  Helicona,  no  dizer  dos 
cartazes,  onde  era  manifesta  a  nacionalisação  de  todos 
os  termos,  quaesquer  que  fossem ;  e  em  nova  velada- 
lyrico-litteraria  do  Ateneo. 

A  nossa  curiosidade  cbamava-nos  para  outros  assump- 
tos de  maior  interesse  individual. 

Depois  do  serviço  quotidiano  de  entregar  a  cara  a  um 
barbeiro,  que,  ao  uso  da  terra,  nol-a  empastava  em  sa- 
bão, que  adberia  á  pelle,  como  mascara  pegajosa  e  suf- 
focante,  onde  só  nos  luziam  os  olhos,  esmurrando-nos 
as  ventas  com  prodigiosa  agilidade,  e  rapando-nos  com 
egual  amabilidade — saímos  para  o  ponto  de  partida,  a 
Puerta  dei  Sol,  e  começámos  por  entreter-nos,  entrando 
em  algumas  casas  de  commercio,  que  nos  pareceu  mui- 
to importante,  á  parte  o  campanudo  das  taboletas,  em 
que  tudo  é  grande  —  grandes  zapaterias,  gran  sastreria, 
grandes  almacenes,  granlampisteria,  gran  bazar,  e  gran 
estabelecimiento  de  vinos,  onde  uma  arroba  de  liquido 
comporta  22  garrafas. 

As  casas  mais  vastas  e  espectaculosas  são— a  de  los 

19 


290  NOTAS  A  LÁPIS 


Diamantes,  na  Carrera  S.  Geronimo,  a  Union  Mercan- 
til, na  calle  Mayor,  onde,  á  maneira  dos  armazéns  do 
Louvre,  qoalquer  de  nós  pode  comprar  tudo  o  que  lhe 
for  preciso  para  seu  uso,  desde  a  gravata  até  á  cama 
para  dormir,  a  preços  marcados,  serviço  especial  e  bem 
feito. 

Como  a  época  era  excepcional,  todos  os  estabeleci- 
mentos primavam  pelas  novidades  e  enfeites  e  annun- 
cios,  a  que  não  faltavam  boas  lembranças,  para  o  ne- 
cessário reclamo. 

Uma  sapataria  da  rua  Mayor,  com  filial  na  praça  do 
mesmo  nome,  dirigia-se  em  verso  ao  publico  e  em  es- 
pecial aos  forasteiros. 

O  melhor  do  papel  dizia  assim : 

Que  en  todas  estas  fiestas 
dei  mes  de  raayo  : 
Sao  Isidro,  la  feria 
y  el  centenário, 
sin  gastar  guasas ! 
quisiera  yo  que  honraseis 
estas  dos  casas. 


El  que  se  calza  en  esta 

za  pater  ia, 

en  seguida  le  toca 

la  loteria; 

porque  la  suerte 

la  meto  entre  la  suela 

y  el  contraforte. 

Cuantas  I  ay  I  de  las  ninas 
que  yo  he  calzado 
se  aburrian  solteras ! 
pues  se  ha  d  casado  t 
con  que...  animar- sei 
que  lo  logra  el  que  á  casa 
viene  á  calzar-ae. 


À  coxa  musa  do  sapateiro,  apezar  de  possuir  mais 
cerol  que  letras,  não  deixa  de  ter  graça  e  um  certo  sa- 
bor ao  reclamo  americano. 


MADRID  £  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  291 


Voltemos  ao  ponto,  onde  findou  o  nosso  passeio  da 
véspera,  indo  pela  rua  Arenal  até  á  moderna  Plaza  dei 
Oriente,  a  melhor  e  mais  vasta,  apezar  de  irregular. 

Compõe-se  de  uma  via  exterior,  por  onde  circulam  os 
vehiculos,  e  de  outra  interna  e  gradeada  de  ferro,  em 
plano  superior,  guarnecida  por  44  estatuas  de  reis,  de 
má  pedra  e  em  parte  mutiladas. 

Ao  centro,  o  mesmo  jardim  sem  flores  das  outras 
praças,  um  arelvado  mais  ou  menos  vistoso,  a  enqua- 
drar a  estatua  equestre  de  Felippe  IV,  que  estivera  no 
Buen  Retiro,  uma  bella  estatua  de  bronze,  notável  pela 
attitude  do  cavallo,  que  se  ergue,  e  sustenta  o  grande 
peso  seu  e  do  cavalleiro  nas  patas  e  na  extremidade  da 
cauda. 

O  pedestal  é  rectangular,  tendo  aos  lados  dois  baixos 
relevos,  que  representam  o  acto  do  rei,  ao  condecorar 
Velasquez  com  a  cruz  de  S.  Thiago,  e  uma  alegoria  da 
protecção  dispensada  por  elle  ás  letras  e  ás  artes. 

Os  quatro  ângulos  teem  outros  tantos  leões;  na  frente 
e  no  lado  posterior  dois  tanques,  em  forma  de  concha, 
recebem  a  agua  das  fontes,  que  jorram  do  pedestal. 

Umas  casinhotas,  pouco  agradáveis  á  vista  e  ao  bom 
gosto,  vendem  bugiarias,  aos  lados  da  via  interior,  que 
foi  transformada  em  lamaçal  pela  pouca  chuva  da  noite. 

Algumas  juntas  de  bois,  meneiando  a  cabeça,  para 
desviarem  dos  olhos  as  franjas  garridas,  que  lb'a  enfei- 
tam, ao  uso  da  terra,  conduzem  objectos  para  a  illumi- 
naçâo  e  para  o  transporte  de  uma  estatua,  ad  kocy  de 
Calderon,  em  cuja  base  já  se  pôde  ler  o  titulo  de  uma  das 
suas  obras  —  La  vida  es  sueflo. 

Os  dois  melhores  edifícios  da  praça  são  o  palácio  real 
e  o  theatro  do  mesmo  nome',  a  Opera. 

O  palácio,  cuja  pedra  principal  se  collocou  em  1738, 
é  apparatoso,  apezar  de  incompleto,  como  o  da  Ajuda; 
tem  quatro  fachadas,  terminadas  por  pavilhões,  e  guar- 


292  MOTAS  A  LÁPIS 


necidas  de  orna  balaustrada  interrompida  a  espaços  por 
pedestaes  com  jarrões. 

O  lado  sul,  fachada  principal,  que  olha  para  a  praça 
e  forma  a  sua  maior  parte  recta,  tem  as  janellas  do  pri- 
meiro andar,  alternadas,  com  fecho  triangular  e  de  meia 
volta,  e  direitas  as  do  segundo.  A  porta  é  um  átrio,  en- 
cimado por  uma  esfera  de  relógio,  que  tem,  aos  lados, 
o  sol  precorrendo  o  zodíaco,  superiormente  um  escudo 
de  armas  e  em  baixo  um  medalhão  de  Hespanha. 

Dizem-nos  que  está  aberta  a  capella.  O  movimento  da 
gente,  que  entra  e  sae,  assim  o  indica. 

Entremos  também. 

O  átrio,  para  onde  deitam  as  galerias  altas  e  baixas 
do  interior,  e  onde  se  revesam  as  guardas  do  palácio,  è 
vasto  e  guarnecido  de  bons  moveis,  pinturas  e  tapeçarias. 

A  escadaria  em  três  lanços,  um  para  a  ida  e  dois  para  a 
volta,  tem  os  degraus  e  todos  os  accessorios  de  mármore. 

A  capella  real  é  sem  duvida  o  melhor  templo  de  to- 
dos os  que  vimos  em  Madrid,  pois  convém  saber  que 
as  egrejas  alli  não  correspondem  ao  passado  religioso 
da  Hespanha,  incluindo  a  de  S.  Isidro,  considerada  a 
melhor  e  mais  espaçosa,  e  tanto  que  n*ella  se  celebram 
as  solemnidades  religiosas  de  caracter  official. 

E  já  que  falíamos  n'ella,  diremos  que  tem  a  frontaria 
de  pedra  silicada  e  parda,  ou  berroquenha,  uma  espécie 
de  granito  do  Porto,  com  quatro  columnas  ao  centro  e 
nos  ângulos  duas  torres  incompletas.  O  interior  é  uma 
cruz  latina  com  pilastras  dorico-corinthias,  feitas  de  uma 
argamassa  qualquer  sobre  pedestaes  da  pedra  já  citada, 
muitos  dourados  e  algumas  capellas  lateraes,  sendo  de 
notar  apenas  as  que  ladeam  o  altar-mor,  consagradas  ao 
Santíssimo  e  a  N.  S.  da  Soledade— edificação  esta  que 
não  pode  comparar-se  sequer  com  uma  das  boas  egre- 
jas secundarias  de  Lisboa. 

Olhando  retrospectivamente  para  a  hespanha  fanática 
de  todos  os  tempos,  causa-nos  grande  admiração  que  a 
sua  capital  não  tenha  um  templo  digno  do  seu  nome  e 
importância,  quando  em  algumas  das  suas  províncias 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CÀLDERON  293 

existem  grandiosos  monumentos  d'esse  género ;  e  isto 
mesmo  embora  saibamos  que  até  Felippe  II  foi  sempre 
considerada  uma  população  secundaria. 

Fora  da  capella  real,  ha  duas  bellas  estatuas  de  ex- 
cellente  mármore  dos  reis  catholicos,  Fernando  e  Izabel; 
á  entrada  os  quatro  evangelistas,  modelados  em  gesso; 
as  próprias  columnas  interiores,  que  nos  pareceram  de 
mármore  preto,  assentam  em  pedestaes  de  pedra  e  cal. 
O  conjunctô  porem  è  sumptuoso,  sendo  realmente  no- 
táveis as  pinturas  do  zimbório  e  os  quadros  dos  dois 
últimos  altares. 

Depois  de  ouvirmos  alguns  trechos  de  uma  excedente 
melodia  religiosa,  executada  pelos  músicos  da  camará 
real,  saiamos  que  o  aperto  de  gente  é  grande,  e  os  nos- 
sos nervos  não  levam  a  bem  os  differentes  empurrões, 
que  somos  obrigado  a  supportar. 

Cá  fora  paremos  um  instante  ao  pé  dos  operários, 
que  trabalham  na  madeira  e  na  lona,  que  vão  completar 
a  estatua  calderoniana,  e  viremos-nos  ainda  uma  vez 
para  a  frontaria  do  palácio.  Lá  está,  preso  exteriormente 
á  balaustrada  de  uma  varanda,  um  objecto  que  temos 
visto  em  grande  parte  dos  balcões  madrilenos,  e  que 
nos  anda  a  picar  a  curiosidade.  Parece-nos  uma  canna 
ramalhuda  e  secca. 

Perguntemos  o  que  quer  dizer  aquelle  ornato  extra- 
vagante. 

Muchas  gradas  t  É  uma  palma  de  domingo  de  ramos, 
posta  alli  para  preservar  o  edifício  dos  eslragos  do  raio. 

Ficámos  sabendo,  e  mais  que,  apezar  d'aquelle  pre- 
servativo, o  invento  de  Franklin  não  é  inteiramente  ba- 
nido da  capital  hespanbola. 

# 
#      # 

Sigamos  até  á  Armeria  Real,  collocada  em  um  edifí- 
cio da  pequena  praça  do  mesmo  nome.  Está  em  obras 
este  bello  e  rico  museu  de  antiguidades  militares. 


294  NOTAS  A  LÁPIS 


Só  por  bondade  especial,  nos  é  concedida  a  en- 
trada. 

O  único  meio  de  corresponder  á  amabilidade,  que 
houve  para  comnosco,  é  o  abreviar  a  visita,  bem  a  pe- 
zar  nosso,  valha  a  verdade. 

Desde  a  espada  de  Boabdil,  ultimo  rei  mouro  de  Gra- 
nada, até  ás  cadeiras  de  campanha  de  Carlos  V;  desde 
o  elmo  de  Jayme,  o  conquistador,  até  aos  estandartes  de 
Lepanto ;  desde  a  vestidura  de  Christovão  Colombo  até 
á  espada  de  Felippe  IV;  em  bandeiras,  armaduras,  ca- 
pacetes, pendões,  escudos,  rodelas,  armas  de  toda  a  es- 
pécie e  recuerdos  históricos  de  todo  o  género— os  obje- 
ctos expostos  contam-se  aos  milhares. 

Descendo  pelo  extremo  da  rua  de  Bailen,  vamos  en- 
contrar-nos  com  a  Puerta  de  S.  Vicente,  ou  antes  duas 
porias,  separadas  por  um  arco,  formado  por  duas  co- 
lumnas  unidas,  sustentando  a  cornija  e  um  frontão  trian- 
gular, coroado  de  tropheus. 

Vê-se  por  aqui  que  a  predilecção  especial  de  Carlos 
III  era  dotar  Madrid  cora  muitas  portas  triumphaes,  por 
onde  podesse  passar  á  vontade  a  fama  do  seu  nome,  que 
não  é  todavia  dos  maiores. 

Á  direita  ficam-nos  um  quartel  moderno  e  a  estação 
do  caminho  de  ferro  do  Norte;  á  esquerda  um  pequeno 
campo  arborisado,  o  passeio  dei  Pardo,  á  borda  do  Man- 
zanares. 

Sigamos  por  este  caminho  e  a  meio  pouco  mais  ou 
menos,  voltemos-nos  para  a  cidade,  em  cujo  extremo 
nos  achámos,  e  subamos  pelas  espaçosas  e  elevadas  es- 
cadarias, que  nos  ficam  em  frente,  na  Cuesta  de  la  Vega 
até  ao  mais  elevado  do  bairro  de  Segóvia. 

Estamos  na  Mouraria,  na  Madrid  antiga,  na  Alfama 
de  lá,  mas  em  vão  procurámos  a  morada  dos  califas; 
apenas  aqui  ou  além  se  nos  deparam  uns  casebres  mi- 
seráveis d'esses  tempos  longínquos;  a  rasoira  da  civili- 
sação  tem  desmoronado  o  que  havia,  abrindo  ruas,  apla- 
nando declives,  levantando  edifícios,  e  cortando  tudo 
isso,  por  sobre  o  enorme  desfiladeiro,  que  separava  o 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  GALDERON       295 

bairro,  com  uma  boa  ponte  de  ferro,  a  23  metros  de 
aítura,  o  viaducto  de  Segóvia. 

De  toda  a  cidade,  tão  pobre  em  pontos  de  vista,  è 
este  o  melhor  de  todos  elles,  porque  dá  sobre  o  rio  e 
sobre  as  quintas  e  pomares,  que  se  avistam  para  alem 
da  sua  margem  esquerda,  disfruclando-se  um  horisonte 
extenso,  pelo  achatado  dos  montes,  que  se  lhes  seguem. 

As  propriedades  pareceram-nos  em  geral  pouco  cui- 
dadas, á  excepção  da  Casa  dei  Campo,  quinta  do  mo- 
narcha,  para  onde  se  passa  em  uma  ponte  sobre  o  Man- 
zanares,  atravessando-se  depois  um  pequeno  túnel.  Diz- 
se  que  entre  o  palácio  real  e  o  passeio  dei  Pardo,  ba 
outro  túnel  secreto  para  fins  especiaes,  valha  a  verdade, 
passando  por  baixo  do  edifício,  desde  o  Campo  dei  Jtfo- 
ro9  sitio  hoje  muito  pouco  frequentado,  ao  contrario  de 
outros  tempos,  em  que  alli  concorria  a  corte,  como  se 
deprehende  da  comedia  deCalderon  —  Mafíanas  de  abril 
y  mayo. 

A  falta  de  frequência  dos  passeianles  estende-se  até 
muito  além  do  Pardo,  apezar  de  correr  á  borda  do  Man- 
zanares,  onde  apenas  as  lavadeiras  estabelecem  um  mo- 
vimento regular,  dando  a  tudo  aquillo  um  aspecto  de 
traparia  bem  pouco  agradável,  como  acontece  para  os 
lados  da  estação  do  meio-dia. 

Muito  esguio  e  pobre  o  tão  conhecido  rio ! 

# 
*      # 

Procuremos  a  rua  Mayor,  aonde  Jeremos  de  voltar 
amanhã,  e  depois  de  jantar  escolhamos  novo  theatro, 
para  a  diversão  instructiva  da  noite. 

Os  annuncios  respectivos  annunciam  a  representação 
da  celebrada  peça  do  grande  poeta,  heroe  dos  festejos, 
La  vida  es  sueflo,  no  theatro  Espanol. 

Prefiramos  este.  O  theatro  Hespanhol,  primitivo  circo 
de  cavallinhos,  ressente-se  da  sua  origem,  e  é  por  isso 
inferior  aos  que  temos  visto. 


996  NOTAS  A  LÁPIS 


Não  tem  os  chamados  proscénios,  camarotes  de  bocca; 
o  arco  apresenta  um  certo  numero  de  medalhões  com 
os  bustos  de  alguns  dramaturgos;  a  primeira  ordem  é 
ininterrupta;  as  outras  são  cortadas  ao  fundo  por  gale- 
rias. O  camarote  do  chefe  do  Estado  distingue-se  ape- 
nas pela  coroa  real  e  um  cortinado  de  veludo  carmezim. 

Esta  casa  de  espectáculos  destina-se  especialmente  ao 
drama,  e  não  tem  orcbestra.  A  innovação,  imputada  ao 
tbeatro  francez  de  declamação,  não  caiu  ainda  no  agrado 
do  publico,  segundo  o  que  podemos  deprehender  das 
opiniões,  que  ouvimos;  o  que  não  admira  em  terra  de 
tão  boa  musica. 

Lá,  como  cá,  as  zarzuelas,  a  comedia  ligeira  e  des- 
nudada e  a  bufoneria  das  operetas— são  a  febre  amarella 
dos  tbeatros  dramáticos,  que  arrastam  uma  existência 
de  enfermos. 

A  boa  litteratura  amollenta  os  espíritos,  a  poesia  clás- 
sica dá  profunda  somnolencia. 

O  festejado  Calderon,  se  assistisse,  como  nós,  á  re- 
presentação da  sua  Vida  es  sueno,  fugiria  espavorido 
para  as  maiores  profundezas  do  seu  tumulo,  amaldi- 
çoando a  indifferença  da  nossa  época  e  os  gostos  do 
nosso  tempo,  que  quer  gastar  se  a  rir. 

Elle  alvoroçara  os  indígenas,  e  chamara  a  Madrid  vinte 
mil  forasteiros,  que  alli  tinham  vindo  em  honra  sua,  e 
todavia  uns  e  outros  mostravam  pelas  suas  obras  a  mais 
significativa  desattenção,  e,  se  lhe  fallavam  no  nome, 
era  porque  isso  estava  em  voga,  como  novidade  de  al- 
guns dias. 

O  tbeatro  Hespanhol  achava-se  pouco  menos  de  vasio, 
emquanto  que  os  espectáculos  de  funambulismo  e  risota 
regorgitavam  de  espectadores. 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  197 


IX 


Quarto  dia.— O  correio  não  Tende  sellos.— Cerimonia  fnnebre. 
—O  desfilar  das  tropas.— A  casa  do  poeta.— A  praça  Mayor 
e  a  estatua  de  Felippe  IIL— Recuerdos— Rua  de  Toledo.— 
Praça  da  CeVada. — O  museu  archeologico.— Exageros.— Três 
egrejas.— Os  ricaços  lisboetas.- Theatro  das  variedades. 


O  novo  dia  amanheceu  orvalhado  e  carrancudo,  sendo 
o  primeiro  consagrado  ás  festas  populares.  Uma  ligeira 
pirraça  que  contrariou  muita  gente. 

Os  tiros  dos  canonazos  acordaram-nos  ao  alvorecer,  e 
umas  quatorze  bandas  de  musica  militar,  precorrendo 
as  ruas  principaes,  ás  7  horas,  pozeram-nos  fora  da 
cama,  uma  péssima  cama  de  19,  que  nos  esbrazeiava  o 
corpo,  augmentandp-nos  a  antypatia,  que  votamos  ao 
género. 

Vamos  levar  ao  correio  a  nossa  modesta  correspon- 
dência. Isto  é  um  modo  de  faltar,  porque  o  correio  não 
vende  sellos  1  as  tabacarias  são  os  seus  delegados,  e  é 
lá  que  temos  de  haver-nos,  mesmo  para  os  nossos  tele- 
grammas,  porque  no  fadado  edifício  é  preciso  pagal-os 
em  estampilhas;  não  se  recebe  dinheiro. 

Para  quem  gostar  de  originalidades,  ahi  fica  mais 
essa,  notando  que  nem  todas  as  tabacarias  teem  á  porta 
as  caixas  receptoras. 

Os  balcões  e  as  janellas  geralmente  guarnecidos  de 
sedas  vistosas,  nas  casas  dos  ricos,  e  de  simples  pan- 
ninho  com  as  cores  nacionaes,  nos  domicílios  dos  me- 
nos abastados,  uma  cousa  barata  e  de  óptimo  effeito, 
davam  ás  ruas  uma  nota  alegre  e  verdadeiramente  fes- 
tiva, sendo  de  notar  os  enfeites  de  três— Serrano,  Al- 


298  NOTAS  A  LÁPIS 


calá  e  Príncipe,  esta  especialmente,  apezar  de  mais  pe- 
quena. 

Ás  H  horas,  celebram-se  na  modesta  egreja  de  S. 
José,  orações  fúnebres  por  alma  de  Calderon,  officiando 
o  cardeal  Moreno,  e  assistindo  elrei.  As  autoridades  e 
os  convidados  dirigir-se-hão  depois  processionalmente 
para  a  singelíssima  capella  de  S.  Pedro,  na  rua  Torre- 
cilla  dei  Leal,  onde  repousam  os  restos  mortaes  do  gran- 
de poeta. 

O*  transito  da  procissão  official  está  ladeado  pelas  tro- 
pas; a  concorrência  do  povo  é  enormissima. 

Só  de  uma  carruagem  podemos  observar  o  desfilar 
dos  soldados,  que  vieram  passar  em  columnas  de  honra 
defronte  da  estatua  de  Calderon,  na  praça  do  Oriente  e 
junto  do  palácio  real,  em  cujos  balcões  se  via  toda  a 
familia  do  rei  e  a  corte;  eram  em  numero  superior  a 
doze  mil  homens,  sob  o  commando  do  capitão  general, 
conde  de  Valmaseda,  e  compunham-se  de  tropa  de  li- 
nha, caçadores,  guarda  civil,  engenheiros,  telegraphis- 
tas,  regimentos  de  montanha,  artilheria  e  lanceiros,  for- 
mando pela  garridice  diversa  dos  uniformes,  pelo  nu- 
mero e  boa  marcha,  um  espectáculo  imponente. 

Nas  figuras  emproadas  e  garridas  dos  commandantes 
dos  corpos  ha  uma  nota  burlesca,  perdoem-nos  elles,  e 
vem  a  ser  uma  bengala  suspensa  do  peito,  como  dis- 
tinctivo  do  mando.  Em  verdade,  não  ha  nada  menos  ele- 
gante, nem  mais  desgracioso  n'uma  farda  de  militar. 

— -  Meu  amigo  — dizia-nos  o  nosso  companheiro,  re- 
ceiando  talvez  as  fúrias  da  Juanita,  com  quem  não  po- 
derá chegar  a  um  acordo— aquillo  é  de  uma  alta  pre- 
vidência. Quando  nos  falharem  outras  armas,  sempre 
será  bom  ter  á  mão  um  cacete  qualquer. 

# 

#      # 

• 

Apezar  do  aspecto  carrancudo  do  dia,  que  resolveu 
associar-se  ás  demonstrações  de  respeito  pelas  cinzas 
de  poeta,  rompamos  de  casaco  abotoado,  como  anda  to- 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CALDKRON       299 

da  a  gente,  pelo  apertão  dos  curiosos,  que  se  agglome- 
raram  para  ver  o  desfilar  das  tropas,  e  voltemos  á  calle 
Mayor,  para  continuar  o  nosso  passeio  atravez  da  cidade. 

Ao  defrontar  com  a  casa  estreita  e  singela  de  três  an- 
dares, que  tem  o  n.°  95,  descubramos-nos  com  reve- 
rencia, porque  —  Aqui  vivió  y  moriô  don  Pedro  Calde- 
ron  de  la  Barca  —  segundo  se  lê  n'uma  simples  lapide 
de  mármore. 

Chegámos  á  Plaza  Mayor,  que  foi  antigamente  lugar 
de  fogueiras  inquisitoriaes  e  theatro  de  varias  peripé- 
cias politicas.  Hoje  é  um  quadrilongo,  cercado  de  edi- 
fícios uniformes,  guarnecidos  de  supportes,  apoiados 
em  columnatas,  ao  rez  do  chão. 

No  centro  do  jardim,  levanta-se  em  alto  e  bom  pe- 
destal, onde  figuram  acanhados  relevos,  a  estatua  eques- 
tre de  Felippe  III,  pouco  recommendavel,  apezar  de  ser 
de  bronze  modelado  por  Juan  de  Bolonia,  pela  exces- 
siva gordura  do  cavallo,  que  é  em  todas  as  suas  linhas 
proporcionaes  uma  soffrivel  monstruosidade. 

Os  intercòlumnios  são  occupados  por  estabelecimen- 
tos de  quinquilharias ;  as  saídas  fazem-se  por  quatro  ar- 
cos de  meio  ponto. 

Com  ser  pequena,  é  esta  a  única  praça  regular  de 
Madrid. 

Saiamos  pela  porta,  que  dá  para  a  rua  de  Toledo. 

Os  vendedores  de  quinquilharias  perseguem-nos,  a 
otferecer  recuerdos.  Pois  façamos-lhes  a  vontade,  com- 
prando uma  navalha  nacional,  uma  enorme  cuchila  de 
dois  palmos  de  comprido,  com  muitos  embutidos  e  en- 
feites no  cabo  j)  alguns  arabescos  na  folha,  um  traste 
verdadeiramente  typico ;  e  um  cachimbo  marroquino,  de 
tubo  dourado,  cabeça  de  barro  cosido  e  algumas  meias 
luas  pendentes  de  uma  cadeiasinha  de  metal  luzente, 
para  podermos  dizer  um  dia,  á  imitação  de  muitos  via- 
jantes, «que  já  tivemos  trato  em  terra  de  infiéis. 

A  rua  de  Toledo  é  uma  das  mais  concorridas  e  com- 
merciaes,  tornandose  digna  de  uma  demorada  visita, 
para  os  que  desejarem  conhecer  diversas  amostras  da  in- 


900  NOTAS  A  LÁPIS 


dustria  hespanhola,  como  os  pannos  de  Bejar  e  de  San- 
ta Maria  de  Nieva,  os  lenços  de  Barcelona  e  os  coberto- 
res de  Palencia,  alpercatas,  pandeiros  e  muitos  objectos 
de  cosinha, 

A  perspectiva  geral  é  picaresca,  porque  os  tecidos  de- 
pendurados nas  paredes  ligam-se  de  uns  estabelecimen- 
tos para  os  outros,  em  vistoso  estendal. 

Ao  dar  uma  volta  pelo  Hospital  de  la  Latina,  encon- 
tra-se  a  Plaza  de  la  Cevada,  o  primeiro  mercado  de  Ma- 
drid, estabelecido  no  antigo  sitio  official  das  execuções, 
de  que  entre  outros  foi  victima  o  distincto  general  Ra- 
fael dei  Biego,  por  cuja  memoria  se  deu  ao  lugar  o  no- 
me de  Mercado  de  Biego.  À  praça  è  pequena,  irregular 
e  de  rampa,  mas  foi  muito  bem  aproveitada,  fazendo- 
se-lbe  um  pavimento  subteraneo,  em  cujo  espaço  aboba- 
dado, penetram  pelo  lado  mais  baixo  os  carros  de  hor- 
taliças e  outros  géneros. 

Tomando  para  a  rua  dos  Embajadores,  no  lugar  mais 
conhecido  por  Huerta  dei  Clérigo  Bayo,  vamos  ter  ao 
Museo  Arqueológico,  inaugurado  em  9  de  Julho  de  1871. 

Não  nos  cansaremos  de  repetir  que  a  capital  da  Hes- 
panba  è,  em  toda  a  península,  a  terra  por  excellencia 
da  boa  pintura  e  dos  bons  museus. 

O  museu  archeologico  é  um  repositório  vastíssimo  de 
riquezas  incalculáveis.  A  sua  divisão  scientifica  reparte- 
se  em  quatro  secções —  Tempos  primitivos,  Edade  me- 
dia,  Numismática  e  Ethnographia. 

Na  primeira  sala  do  pavimento  inferior,  veem-se  as 
collecções  pre-historicas,  instrumentos  de  pedra,  cra- 
neos  de  troglodytas,  povos  antigos  da  Ethiopia,  objectos 
de  madeira,  marfim,  osso,  esparto  e  alguns  de  cerâmica. 
Na  segunda  sala,  antiguidades  egypcias  e  romanas,  ar- 
mas, insígnias  militares,  instrumentos  agrícolas,  cerâ- 
mica mais  abundante  que  a  precedente,  e  um  monolitbo 
egypcio  de  45  centímetros  de  alto.  No  gabinete,  que  se 
segue,  magníficos  vasos  e  lâmpadas  de  bronze.  Na  sala 
immediata,  um  sepulcro  romano,  fragmentos  archile- 
ctonicos,  mosaicos  parietaes  e  esculpturas. 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DE  GALDBBON  30i 

No  segundo  pavimento,  pedras  lavradas,  camapbeas 
e  a  collecçSo  numismática,  a  mais  numerosa  e  opulenta, 
que  temos  visto ;  a  sala  árabe,  muito  bem  abastecida  de 
objectos  da  arte  mahometana,  de  diversas  épocas ;  a  des- 
tinada á  Edade  Media,  onde  ha  numerosas  curiosidades, 
para  cujo  exame  nos  falha  o  tempo ;  e  a  sala  ethnogra- 
phica,  que  possue  boas  collecções  de  objectos,  destina- 
dos ao  estudo  dos  costumes  de  differentes  nações,  em 
que  o  Brazil  está  especialmente  muito  bem  represen- 
tado. 

# 
#      # 

Á  saída  do  museu,  dêmos  com  um  ajuntamento,  a 
poucos  passos  de  distancia,  e  parámos,  como  a  outra  gen- 
te, a  saber  o  que  o  motivara. 

—  El  pequeno  se  moriôt  se  ha  matado!  —  dizia  um 
bomem  em  ademanes  descompostos. 

Que  desgraça !  Quizemòs  conhecer  o  malaventurado, 
e  vimos,  entre  o  circulo  de  gente  pasmada,  um  rapazito, 
com  a  roupa  cheia  de  lama,  a  sacudir-se,  já  de  pé,  por- 
que dera  uma  simples  queda,  em  plena  rua.  O  morto, 
3ue  nem  sequer  fizera  uma  arranhadura,  acbou-se  vivo 
e  mais  para  semelhante  arruaça,  e  deitou  a  correr,  são 
e  salvo. 

—  Meu  amigo  —  exclamou  o  nosso  companheiro,  que 
sempre  tinha  nas  melhores  occasiões  motivo  para  remo- 
ques—Não  me  demovo  da  minha.  Isto  é  a  terra  excepcio- 
nal dos  grandes  olhos,  grandes  narizes  e  grandes  ancas, 
naturaes  ou  postiças,  quanto  ao  femenino,  e  dos  gran- 
des exageros  e  fanfarronadas,  quanto  ao  masculino. 

No  regresso  a  casa,  tivemos  occasiáo  de  entrar  em 
mais  três  egrejas  —  na  de  S.  André,  onde  os  confessio- 
nários e  as  caixas,  a  supplicar  limosna  para  las  almas 
dei  purgatório,  são  em  numero  espantoso ;  na  de  S. 
Francisco,  na  praça  do  mesmo  nome,  uma  espécie  de 
pantheon,  ao  que  podemos  deprehender  da  inscripção  ex- 
terior —  Espana  a  sus  preclaros  hijos.  Depois  de  termi- 


302  NOTAS  A  LÁPIS 


Dadas  as  obras,  a  que  se  procedia,  deve  ser  um  bom 
templo  em  terra,  onde,  como  já  notámos,  são  pouco  di- 
gnas de  nota  as  construcções  d'este  género. 

A  terceira,  a  egreja  de  San  Justo  y  Pastor,  tem  uma 
bella  apparencia,  com  as  suas  duas  torres-zimborios, 
uma  janella  central,  ladeada  das  estatuas  da  Fé  e  Espe- 
rança e  um  baixo-relevo  sobre  a  porta  de  entrada. 

O  interior  nada  tem  que  se  recommende,  a  não  ser 
um  caixilho,  pendente  do  guarda-vento,  onde  o  nosso 
companheiro  e  eu  lemos  com  o  recolhimento,  devido  a 
tão  pia  e  útil  advertência,  o  seguinte: 

Alabado  sea  Dios !  Se  recomienda  a  los  fieles  que  no 
escupan  en  el  suelo,  ni  traigan  perros  á  la  Iglesia  y  guar- 
den  en  ella  el  respeto  debido  á  la  casa  dei  Senor. 

Os  dizeres  intermédios  não  ficaram  sem  uma  nota 
epigrammatica  do  nosso  amigo. 

— Fico  sabendo— dizia  elle— que  um  desgraçado,  que 
soffra  azia,  está  privado  de  vir  a  esta  egreja. 

— Pôde  salivar  no  lenço: 

— Se  a  cerimonia  fôr  curta.  Ao  contrario,  depois  do 
lenço  encharcado,  terá  de  cuspir  nos  fieles,  seus  com- 
panheiros, ou  pelo  menos  em  si  mesmo. 

—Que  traga  bom  fornecimento  de  pannos,  ou.. . 

—Que  recorra  ao  guarda-roupa  da  sacristia,  não  me 
recordava. 


A  subir  a  escada  da  Casa  de  Huespedes,  para  o  jan- 
tar, perguntou-nos  ainda  o  nosso  companheiro : 

— Onde  estará  a  gente  dinheirosa  de  Lisboa,  que  a 
não  vejo  em  parle  nenhuma,  em  época  tão  solemne? 

—Respira  os  olores  do  Aterro,  e  engorda  á  beira- 
Tejo,  após  as  suas  longas  viagens. 

—As  viagens?  Pois  essas  creaturas  viajam? 

—Até  Cacilhas.  Acha  pouco?  Pois  saiba  que  ainda  se 
aventuram  a  mais  longe.  Em  dias  de  festa,  deitam-se 
até  Belém,  a  chupar  rebuçados,  adquiridos  n'uma  con- 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  303 

feitaria  da  baixa,  ou  até  ao  Lumiar,  entro  boas  piladas 
de  poeira  e  rapé. 

— E  os  banhos  e  os  passeios  de  verão  ? 

— Os  banhos...  de  lavagem...  nas  barcas;  os  pas- 
seios hygienicos. . .  no  Rocio. 

— E  engordam.  Essa  é  que  é  a  verdade. 

—Que  o  digam. . .  O  Bussaco,  os  arredores  de  Coim- 
bra, as  paisagens  do  Minho,  as  diversas  Caldas,  que 
nunca  viram  por  iá  senão  os  rheumaticos,  os  doentes  do 
figado  ou  do  estômago,  os  anemicos  e  tantos  desgraça- 
dos, que  regressam  da  Africa  e  do  Brazill 

—  Por  isso  tudo  é  tão  bom,  tão  commodo  e  tão  ba- 
rato í 

—Ermos— que  são  cá  fora  um  attractivo  e  um  encanto 
permanentes— uns;  lugares  sujos,  encommodos  e  caros, 
os  outros. 

— Que  falle  a  minha  bolsa.  Com  o  dinheiro  gasto, 
dentro  de  alguns  mezes,  nas  locandas  mal  servidas,  nas 
conducções  mal  organisadas,  nas  excursões  difflceis  e  dis- 
pendiosas do  nosso  paiz,  podia  transportar-me  á  China, 
demorando-me  alguns  dias  em  cada  um  dos  pontos  in- 
termediários, e  não  sei  se  viajar  meio  globo. 

O  jantar  interrompeu-nos  critica  tão  pungente  e  tãp 
verdadeira. 

De  facto,  os  portuguezes  que  vimos  em  Madrid,  por 
occasião  tão  festiva  e  original,  como  não  virá  outra  nos 
nossos  tempos,  compunham-se  de  jornalistas,  estudantes 
de  Coimbra,  uns  tantos  artistas  e  alguns  devotos  de  me- 
dianos haveres. 

  noite,  fomos  ver  as  luminárias,  em  verdade  pouco 
importantes,  e  entrámos  no-  theatro  das  Variedades,  rua 
da  Magdalena. 

A  sala  é  pequena,  mas  muito  bonita  e  bem  ornamen- 
tada. 

Só  na  ultima  das  ires  ordens  de  camarotes  é  que  ba 
as  costumadas  galerias. 

Entre  algumas  peças  soltas,  figurava  uma  revista  do 
anno,  muito  desalinha vada  e  desgraciosa,  uma  critica  ás 


30*    .  NOTAS  A  LÁPIS 


differentes  nações,  onde  a  figura  de  Portugal  era  repre- 
sentada por  um  pequeno,  impotente  e  muito  declamador 
das  suas  glorias,  uma  espécie  de  fadista  fanfarrão,  em 
que  não  abunda  muito  joizo. 
Doloroso,  mas. . .  verdadeiro. 


Quinto  dia.— Um  sacristão  patriota.— Hospício  municipal.— 
A  procissão  escolar.— Hurrah  pela  mocidade  1— Gommoção. 
— O  poro  e  o  futuro  de  Hespanha.— Theatro  Eslava.— 0  so- 
nho de  Boethoven. 


Para  o  segundo  dia  das  festas  populares,  estava  mar* 
cada  a  procissão  da  mocidade  escolar,  ás  2  horas  da 
tarde. 

Depois  do  almoço,  o  nosso  companheiro  separara-se 
de  nós,  não  nos  occorre  por  que  motivo.  Procurámos 
aligeirar  as  horas,  vendo  algo  de  novo. 

Lembrando-nos  de  que  havia  algures  uma  egreja,  que 
se  chama  de  San  António  de  los  Portuguezes,  pergun- 
támos por  ella.  Indicaram-nos  a  Corredera  Baja,  to- 
mando á  direita  da  Puerta  -dei  Sol. 

Depois  de  muitas  voltas  e  passos  inúteis,  um  policia 
amável,  como  todos  os  que  encontrámos,  guiou-nos  ao 
lugar  indicado.  A  egreja  exteriormente  nada  tinha  de 
notável. 

Quizemos  ver  o  interior,  estava  a  porta  fechada.  Uma 
boa  mulhersinha  indicou-nos  outra  porta  lateral,  onde 
estaria  o  sacristão,  no  dizer  d'ella. 


MADRID  E  O  CKNTÍ NABIO  DE  CALDKRON      905 

Com  effeito,  lá  fomos  dar  com  um  casmurro  qual- 
quer, que  não  se  prestou  ao  que  desejávamos,  acaban- 
do por  dizer  com  enfado:  —La  iglesia  se  llama  de  los 
portuguezes,  pêro  não  hay  lá  ninguno. 

Cremos  que  a  este  varrer  de  testada  estrangeira  não 
escapava  o  próprio  Santo  António. 

Muito  patriota  e  muito  esclarecido  o  nosso  sacristão  f 
Sem  duvida  era  primo  coirmão  dos  guardas  do  museu 
de  historia  natural. 

Continuámos  a  andar  para  a  direita  e  para  a  esquer- 
da, entretendo  mediocremente  a  nossa  curiosidade,  e 
por  fim  vimos-nos  perdido,  até  que  demos  comnosco  na 
rua  de  Fuencarral,  em  frente  do  Tribunal  de  Cuentas. 

Para  o  lado  opposto,  entrava  muita  gente.  Reparámos 
então  no  portal  granítico,  que  essa  gente  transpunha. 
Era  uma  obra  delicadíssima,  que  mais  tarde  soubemos 
ter  sido  executada  pelo  notável  Cburriguera  em  mil  se- 
te centos  e  tantos. 

Fomos  na  onda. 

Estávamos  no  Hospício  Municipal  e  em  dia  de  visita 
publica.  O  edifício  de  planta  baixa  tem  muitas  depen- 
dências, todas  irregulares  e  simplçs.  No  parque  tocava 
a  musica  numerosa  e  bem  organisada  entre  os  rapazes 
asylados.  Fomos  ao  refeitório,  ás  aulas,  aos  dormitó- 
rios. 

Em  tudo  o  asseio  e  a  boa  ordem,  sendo  de  notar  que 
no  topo  e  por  cima  da  cabeça  do  professor,  nas  aulas,  e 
pendentes  das  paredes  lateraes;  nos  outros  compartimen- 
tos, havia  crucifixos  e  imagens  de  N.  Senhora,  em  ex- 
traordinária profusão,  não  obstante  o  edifício  ter  capei- 
la  própria. 

Por  ultimo,  demos  comnosco  no  bairro  de  Chamberi; 
n'este  lugar,  valeu-nos  a  tranvia. 

Para  se  fazer  idéa  da  enorme  caminhada,  basta  lem- 
brar que  pagámos  por  duas  vezes  para  chegarmos  á 
Puerta  dei  Sol,  como  acontece  do  Rocio  a  Relem,  com 
a  differença  de  que  o  transito  não  tem,  pelas  numerosas 
curvas,  uma  recta  egual. 

20 


306  NOTAS  A  LAPrS 


# 
#       # 


O  dia,  envolvido  em  brumas  constantes,  apresentava- 
se  triste  e  ventoso.  No  entanlo  já  mal  se  podia  romper 
pelas  ruas,  por  onde  devia  passar  o  cortejo  das  escolas, 

Sue,  ao  lado  do  nosso  amigo,  fomos  esperar  á  Puerta 
el  Sol. 

Rompiam  a  formosíssima  procissão  300  jovens  guar- 
das civis;  a  estes  seguiam-se  800  creanças  do  sexo  mas- 
culino e  600  meninas,  vestidas  de  branco,  perpetuas  ao 
peito  e  ramalhetes  ou  coroas  nas  mãos,  umas  e  outras 
pertencentes  ás  escolas  municipaes,  acompanhadas  todas 
dos  respectivos  professores,  e  distinguindo-se  pelos  estan- 
dartes, que  marcavam  as  differentes  aggremiações  de 
cada  escola;  os  asylados  de  S.  Bernardo,  com  musica  e 
estandarte;  os  surdos-mudos  e  cegos,  ostentando  os  pré- 
mios do  seu  adiantamento;  hospicianos  da  cidade;  col- 
legios  de  S.  Ildefonso  e  do  Escurial,  levando  este  visto- 
sa bandeira  e  coroas  de  louros;  a  musica  do  regimento 
de  artilheria;  os  doze  professores  e  o  director  do  Fomen- 
to de  las  Artes;  instituto  e  collegio  de  S.  Isidro;  os  alum- 
nos  do  instituto  do  Cardeal  Cisneros  e  annexos;  os  da 
escola  normal,  com  a  sua  musica  de  jovens  carabineiros 
e  os  de  declamação  e  musica;  os  alumnos  dos  differen- 
tes professorados,  com  os  seus  mestres  á  frente;  os  es- 
tudantes de  veterenaria,  artes,  officios,  commercio  e 
agricultura;  musica  de  rapazes,  vestidos  ao  século  XVII; 
os  alumnos  da  faculdade  de  fiíosophia  e.  letras,  trajando 
egualmente  á  época  de  Calderon,  com  pluma  e  laço  azues- 
celestes;  os  da  escola  diplomática,  os  de  pintura  e  gra- 
vados, os  da  faculdade  de  sciencias,  vestidos  também 
ao  século  XVII,  os  de  architectura  e  caminhos,  seguidos 
estes  por  musica  juvenil  de  guardas  civis;  os  de  minas, 
os  do  estado  maior,  os  de  pharmacia,  uniformisados  co- 
mo os  das  faculdades  universitárias;  os  de  medicina,  com 
laços  amarellos,  os  de  direito,  com  distinctivos  escarla- 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DE  GALDBRON  307 

tes;  a  musica  do  Hospício  Municipal;  os  do  instituto  ba- 
lear, com  riquíssimo  estandarte  branco,  bordado  a  ouro, 
e  os  da  universidade  de  Salamanca,  com  trajes  da  época 
calderoniana;  e  por  ultimo  a  nossa  commissão  de  estu- 
dantes de  Coimbra  e  muitas  corporações  de  professores 
e  representantes  do  ensino  superior  nacional  e  estran- 
geiro, fechando  este  formosíssimo  préstito  os  alumnos 
das  escolas  de  carabineiros,  fardados  e  armados. 

Pelo  numero  de  escolas,  que  bem  se  adivinham  entre 
tantos  milhares  de  alumnos,  pelas  faculdades  apontadas 
e  pelos  differentes  ramos  de  estudo,  que  ellas  determi- 
nam, pode-se  fazer  idéa  do  modo  como  a  capital  hespa- 
nhòla  prepara  os  seus  homens  de  amanhã.  Á  vista  do 
asseio,  galhardia  e  boa  ordem,  com  que  se  movia  toda 
aquella  brilhante  e  extensa  multidão  de  mancebos  de 
ambos  os  sexos  e  de  todas  as  edades,  calcula-se  ao  cer- 
to a  disciplina,  de  que  se  faz  timbre  entre  as  differen- 
tes corporações,  a  que  pertencem. 

Viva  Deus !  que  não  «morre  uma  nacionalidade,  que 
assim  faz  estendal  publico  da  sua  mocidade  escolar! 

Hurrah  pela  camará  municipal  e  pelo  professorado ! 
hurrah  por  Madrid ! 

* 

Ào  passarem  junto  de  nós,  que  emmudecemos  dian- 
te de  tão  resplendente  e  significativo  espectáculo,  os 
dois  milhares  de  creanças  das  escolas  municipaes,  sen- 
timos os  olhos  húmidos  de  commoção,  e  quando  o  cor- 
tejo inteiro  de  outros  escolares,  ligados  a  essas  creanças 
ia  por  fim,  na  nossa  alma  havia  o  quer  que  era  do  en- 
thusiasmo,  que  deslumbra,  e  um  turbilhão  de  bênçãos, 
que  a  palavra  não  pode  reproduzir. 

Nós  nada  soffreramos  para  presenciar  aquillo  tudo. 
Pois  valia  bem  a  pena  o  ter  tido  uma  viagem  penosa, 
cheia  de  fadigas  e  de  contratempos,  para  chegar  até  al- 
li. . .  alli,  onde  muitos  milhares  de  corações  juvenis  ar- 
diam n'um  firme  e  sincero  embevecimento  em  honra  da 


308  NOTAS  A  LÁPIS 


soa  pátria,  já  quasi  inteiramente  redemida  do  predomí- 
nio dos  fanáticos  e  das  épocas  sanguinolentas  de  um 
passado  ainda  recente;  alli,  onde  se  expandia  inteira  e 
luxuriante  a  alma  de  toda  a  Hespanha,  que  aspira  á  ple- 
na conquista  da  liberdade,  cujos  clarões  redemptores 
lhe  vão  talando  já  os  campos  e  as  cidades. 

O  verdadeiro  talento  é  a  lanterna  magica  do  progres- 
so. E  as  quinhentas  coroas,  que  a  mocidade  escolar  de 
Madrid,  em  procissão  cívica  e  imponente,  foi  depositar 
em  volta  da  estatua  do  seu  grande  poeta,  significavam 
uma  agglomeração  incalculável  de  afirmações  progres- 
sistas, provavam  um  adiantamento  moderno,  digno  de 
boa  nota,  marcavam  nos  annaes  patrióticos  uma  pagina 
de  effeitos  deslumbrantes. 

E  o  povo  humilde,  o  eterno  lazaro  do  obscurantismo, 
o  cordeiro,  á  mesa  dos  potentados,  o  leão  inconsciente 
e  sanguinário,  ao  alcance  dos  ambiciosos  e  perturbado- 
res—escancarava os  lábios,  em  sorrisos  apaixonados  e 
acariciadores,  agitava  os  braços  em  vivas  ruidosos,  e 
parecia  comprehender,  em  sua  infinita  rudeza,  que  aquei- 
le  cortejo  civilisador  era  uma  prova  evidente  de  que  a 
instrucção  lhe  ia  batendo  ás  portas,  e  que  só  por  ella  se 
redimem,  e  engrandecem  os  povos  de  hoje. 

E  por  isso  applaudia,  e  por  isso  juntava  a  sua  mani- 
festação ás  das  cem  mil  pessoas,  nacionaes  e  estrangei- 
ros, com  os  quaes  se  acotovelava  nas  janellas,  nos  cor- 
redores, nas  praças  e  nas  ruas. 

# 
#      # 

Á  noite,  passámos  novamente  em  revista  os  prin- 
cipaes  cafés,  onde  tumultuava  meia  população,  e  onde 
seria  difficil  encontrar  lugar  vasio. 

Cerca  das  8  horas,  tomámos  pela  rua  Arenal,  a  meio 
da  qual  ou  pouco  mais  Unhamos  de  entrar,  á  esquerda, 
para  o  Pasadiso  de  San  Ginés,  em  busca  do  theatro  Es- 
lava. 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  309 

Acbando-nos  em  frente  do  café  de  Granada,  parámos 
atai  por  não  vermos  edifício,  que  dos  parecesse  um 
tbeatro. 

Ao  lado  da  porta  central,  vendiam-se  bilhetes.  Pro- 
curámos esclarecimentos.  Era  alli  mesmo,  no  piso  su- 
perior. 

Pedimos  entradas. 

—Quiere  usted  una  sola  funcion  f— perguntou  o  bi- 
lheteiro. 

Hesitámos,  mostrando  preferir  que  desejávamos  as- 
sistir ao  espectáculo  inteiro.  Deram-nos  cinco  bilhetes, 
pelo  equivalente  de  cinco  tostões. 

Reparando  nos  compradores,  notámos  que  uns  por 
um  tostão jomavam  lugares  para  a  primeira  funcion,  ou- 
tros para  a  segunda,  e  assim  por  diante. 

Gomprehendemos  então  que  os  actos  se  vendiam  em 
separado,  devendo  as  peças  a  representar  ser  egual- 
mente  destacadas,  como  de  facto  eram,  segundo  mais 
tarde  podemos  ver. 

Nada  mais  justo,  nem  mais  commodo;  nada  mais  eco- 
nómico, nem  mais  popular. 

Quem  não  pôde  passar  além  de  um  tostão  escolhe  o 
acto,  que  melhor  lhe  parece,  e  não  deixa  de  ir  ao  thea- 
tro;  aquelles,  a  quem  por  doença  ou  habito  fizer  mal  o 
deitar  tarde,  terão  a  faculdade  de  ver  espectáculos  com- 
pletos, pelo  tempo  que  lhes  approuver. 

Os  que  só  teem  a  ver  uma  peça  nova  compram  o  bi- 
lhete correspondente,  e  não  são  obrigados  a  assistir  ao 
todo,  quando  só  desejam  ver  uma  parte.  Uma  familia, 
que  passa  casualmente,  sem  destino,  á  procura  de  uma 
hora  de  distracção,  vae  passar  um  rato  ai  teatro,  e  re- 
colhe-se  a  casa,  quando  lhe  appetece. 

É  uma  organisação  original,  commoda  e  barata,  muito 
para  notar  e  seguir.  Parece-nos  que  em  qualquer  dos 
nossos  theatros  populares  este  exemplo,  posto  em  pra- 
tica, devia  dar  óptimos  resultados  a  uma  empreza,  que 
soubesse  formar  espectáculos  attraentes  e  bem  dividi- 
dos. 


310  NOTAS  A  LÁPIS 


O  Eslava  é  um  bello  rbodelo. 

Os  seos  frequentadores  dão  entrada  no  café,  sentam- 
se  ás  suas  mezas,  refrescara-se,  comem,  bebem,  fumam, 
conversam  e.  á  hora  competente,  dirígem-se  a  qualquer 
das  escadas  lateraes,  e  por  ellas  vão  ter  ao  salão  de  es- 
pectáculos, guarnecido  de  uma  vistosa  galeria,  em  parte 
dividida  em  camarotes. 

A  plateia  é  vasta,  e  o  todo  elegante. 

Antes  do  signal  da  chamada,  fomos  tomar  o  nosso  lu- 
gar na  terceira  fila  de  butacas. 

Gomo  as  pinturas  abundam  por  toda  a  Madrid,  o  Es- 
lava não  podia  deixar  de  conter  algumas.  A  mais  im- 
portante, onde  até  ao  fim  do  espectáculo  tivemos  por 
vezes  o  olhar  fixo  e  embevecido,  é  a  que  enche  o  fron- 
tão sobranceiro  ao  panno  de  bocca. 

São  tantas  as  figuras,  que  de  lá  se  destacam,  tão  va- 
riados e  differentes  os  trajes  que  as  vestem,  é  tamanha 
a  multiplicidade  de  cores  que  guarnecem  a  tela,  tão 
complicada  a  mistura  dos  typos,  tão  diversas  as  posi- 
ções e  tamanho  das  figuras,  tão  variados  os  effeitos  da 
perspectiva,  tão  apparentemente  emaranhado  o  assum- 
pto—que, só  depois  de  um  aturado  exame,  è  que  po- 
demos comprohender  toda  a  belleza  e  significação  d'a- 
quelle  formoso  conjuncto. 

No  primeiro  plano,  em  vasto  e  sumptuoso  gabinete 
de  estudo,  vé-se  um  piano  aberto,  com  musicas  na  es- 
tante; sobre  o  teclado  debruça-se  a  figura  adormecida 
do  executante,  que  se  deixara  vencer  pela  fadiga.  O 
rosto  está  voltado  para  o  espectador  e  os  cabellos  flu- 
ctuam-lhe  desalinhados;  na  pbísionomia  espelham-se-lhe 
as  irradiações  de  um  sonho  de  verdadeira  inspiração. 

Aos  lados,  sobre  os  moveis,  no  chão,  livros,  papeis 
e  objectos  de  arte.  Sobre  o  piano,  em  altitude  ascen- 
dente, eleva-se  o  espirito  do  grande  artista,  que  vae  en- 
carnar-se  na  sua  própria  figura,  no  segundo  plano.  Ahi 
vemol-o  de  batuta  em  punho,  irradiante,  magestoso. 
inspirado,  a  reger  uma  orchestra  universal,  onde  á  va- 
riedade dos  instrumentos  se  alliam  os  trajes  dos  diffe- 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  311 

rentes  paizes,  que  poderiam  compor  essa  extraordinária 
agglomeração  de  músicos. 

O  grande  artista  è  Boethoven,  e  o  quadro,  onde  fi- 
gura, uma  allusão  ao  seu  sonho,  uma  formosa  repro- 
ducção,  em  grande,  de  uma  gravura  muito  apreciada  e 
valiosa. 

Ao  darmos  ligeira  idèa  d'essa  ampliação,  sem  apon- 
tamentos tomados  á  vista,  em  traços  devidos  á  nossa 
memoria  tão  fallivel  e  tão  gasta,  sentimos  não  saber  o 
nome  do  reproductor,  que  a  levou  a  effeito,  para  o  ci- 
tarmos com  o  encarecimento  devido  á  sua  obra,  digna 
de  ser  vista  por  todos  os  que,  entendidos  ou  não,  ren- 
dem preito  ás  boas  provas  da  arte,  qualquer  que  seja 
o  seu  género. 

Os  cinco  actos  da  representação  compozeram-se  de 
cinco  peças  differentes,  comedias  e  zarzuelas;  em  todos 
elles,  a  camada  dos  espectadores  se  reformou  quasi  por 
inteiro. 

Ao  colorido  do  bello  quadro,  a  que  nos  referimos, 
preferiu  o  nosso  companheiro  as  cores  scintillantes  de 
uns  olhos  sevilhanos  e  travessos,  que  dardejavam  en- 
cantos sobre  a  sua  imaginação  tão  impressiona vel  como 
leviana. 

Em  questões  de  arte,  não  é  fácil  acertar  com  o  me- 
lhor. 

É  velho,  porém  mais  que  certo  que  as  opiniões  são 
tão  variáveis  como  os  gostos. 

Para  os  farejadores  dos  prazeres  momentâneos  e  pou- 
co reflexivos,  a  arte  animada  apresenta  sobre  a  sua  con- 
traria as  vantagens,  qué  a  vida  tem  sobre  a  natureza 
morta. 


312  HÕTÀS  A  LftPIS 


XI 


Sexto  dia.— Aspecto  das  mas,  destinadas  ao  cortejo.  —  Pro- 
cissão histórica.  —  Idéa  sobre  o  sen  extraordinário  luzi- 
mento. — Juízos  da  imprensa,  egnaes  ao  nosso. 


O  dia  27  era»  o  ultimo  dos  três,  destinados  ás  festas 
populares. 

Logo  após  a  hora  do  almoço,  a  população  começou  a 
precorrer  a  grande  distancia,  que  vae  do  extremo  da 
rua  Major  á  cpUe  Serrano,  atulhando  completamente  os 
lugares  mais  espaçosos,  como  a  Pnerta  dei  Sol  e  a  Pla- 
za  de  la  Independência. 

Calculava-se  que  haviam  chegado  de  manhã  umas  oito 
mil  pessoas,  gente  das  cercanias  e  arrabaldes. 

Da  feira  picaresca  do  Prado  desertaram  pelotiqueiros, 
vendilhões  e  saltimbancos.  Aos  lados  das  ruas,  nos  por- 
taes  mais  largos  e  nos  intercolumnios  das  arcarias,  onde 
as  havia,  dava-se  a  ultima  demão  ás  bancadas  de  ma- 
deira, cujos  lugares  se  disputavam  por  bom  preço ;  as 
janellas  de  aluguel  custavam  sommas  fabulosas ;  chega- 
ram a  vir  para  a  rua  escadas  de  mão,  mochos,  cadei- 
ras e  todos  os  géneros  de  apoio. 

Ninguém  pedia  commodidades,  ninguém  aspirâf*  * 
regalias  especiaes.  Uma  posição  encommoda,  d'onde 
qualquer  podesse  elevar  a  cabeça  por  cima  da  multidão, 
que  se  apinhava  junto  aos  prédios,  ao  longo  das  ruas» 
n'um  precurso  de  sete  kilometros  —  era  uma  conquista 
digna  do  maior  apreço. 

O  commercio  fechara  as  suas  portas ;  os  arrabaldes  e 
os  bairros  longínquos  estavam  desertos. 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  313 

Á  uma  bora  da  tarde,  devia  começar  a  organisar-se, 
na  rua  Serrano,  o  maior  (eito  d'aquella  época  festiva»  o 
préstito  civico,  a  que  se  deu  o  nome  bem  cabido  de 
procissão  histórica. 

Ao  meio  dia,  nas  janellas  e  telhados,  nos  balcões  e 
nos  terraços  da  praça  da  Independência,  Porta  do  Sol, 
ruas  Alcalá,  Mayor,  Bailen,  Ferraz,  Ventura  Rodrigues, 
Prínceza,  praças  do  Oriente  e  S.  Marcial  —  agrupa v a m- 
se  os  espectadores,  que  todos  esses  lugares  podiam  con- 
ter, tendo  nos  rostos  a  anciã,  a  animação  e  o  entbu- 
siasmo,  que  ia  produzir-lhes  o  espectáculo  nunca  visto. 

Nós  estávamos  a  meio  da  caile  Mayor,  n'um  dos  lu- 
gares superiores  e  á  frente  de  um  tablado,  onde,  por 
empenho  especial,  obtivemos  entrada  por  noventa  rea- 
les. 

Ás  2  horas,  houve  signal  de  que  a  grande  procissão 
Começara  a  desfilar.  O  transito  ao  lado  dos  passeios  era 
guarnecido  por  espessa  fileira  de  soldados,  que  se  viam 
obrigados  a  firmar-se  nas  espingardas,  para  oppor  paci- 
fica resistência  ás  multidões  do  povo,  que  tentava  cor* 
tar-lhe  o  vistoso  e  immenso  cordão,  destinado  a  deixar 
livre  o  centro  das  ruas. 

Tudo  aquillo  já  por  si  só  formava  não  somenos  espe- 
ctáculo, onde  sobresafam  os  difTerentes  contrastes  dos 
vestuários,  entre. milhares  de  indivíduos,  cidadãos  e  bur- 
guezes,  homens  e  mulheres. 

Seria  impossível  reunir  em  uma  só  tela  as  cores  de 
quadro  tão  profusamente  organisado. 

# 
#      # 

O  lugar,  onde  estávamos,  dominava  toda  a  rua  até 
mais  de  meio  da  Porta  do  Sol. 

Quando  os  brados  do  enthusiasmo  popular  chegaram 
aos  nossos  ouvidos,  quando  vimos  perto  de  nós  os  arau- 
tos, que  rompiam  o  préstito,  e  lançámos  a  vista  até  á 
praça  sobre  a  cavalgada,  insígnias,  estandartes,  cores  e 


314  NOTAS  A  LÁPIS 


dourados,  que  se  moviam  rutilantes  sob  as  lufadas  de 
um  sol  animador,  que  transformava  em  stalactites  fui- 
gorosas  o  chuveiro  copioso  do  graode  repuxo  central, 
cuja  altura  deitava  acima  dos  tectos  mais  elevados  da 
praça  —  sentimos-nos  tomado  de  uma  magia  indescripti- 
vel,  cuidámos  por  instantes  que  éramos  presa  de  um 
sonho  de  fadas. 

Tentemos  consagrar  umas  linhas  de  succinta  relação 
do  que  diante  da  nossa  vista  atónita  e  da  nossa  alma 
commovida,  se  desenvolveu,  como  em  kaleidoscopo  fan- 
tasmagórico, durante  duas  horas,  que  tanto  foi  o  tempo 
necessário  á  exhibição  de  todas  aquellas  grandezas,  que 
nunca  lográramos  imaginar,  que  nunca  viramos  e  não 
veremos  jamais. 

Um  numeroso  piquete  de  cavallaria  civil  explorava  a 
marcha. 

Abriam  o  cortejo  oito  pagens-arautos,  vestindo  uni- 
forme azul,  dalmaticas  de  côr  amarellada  e  viva,  com 
as  armas  reaes  e  a  coroa  da  Áustria,  segundo  o  século 
xvii,  bordadas  ao  centro,  e  chapéus  emplumados;  leva- 
vam lanças  com  au  rifla  mm  a,  e  cavalgavam  a  dois  e  dois 
soberbos  cavallos,  arreiados  conforme  o  uso  dos  reis 
de  armas  da  mesma  época. 

A  charanga  do  batalhão  de  Arapiles  tocava  uma  mar- 
cha tríumphal. 

Todos  os  artistas  do  theatro  de  la  Comedia,  vestidos 
de  casaca  e  gravata  branca,  agrupavam-se  em  volta  do 
seu  bel  lo  estandarte  com  as  cores  italianas,  onde  se 
lia :  —  La  compaflia  Italiana  á  Calderon ;  seguiam-se- 
lbes  os  artistas  dos  outros  theatros,  com  bandeiras,  em 
grande  numero. 

Marchando  em  filas  de  sete  pessoas,  sessenta  indiví- 
duos ostentavam  outros  tantos  estandartes,  onda  se  viam 
escriptos  os  títulos  de  todas  as  obras  do  poeta. 

No  coice  d'estes,  a  musica  do  regimento  de  Mallorca. 

Em  seguida,  o  primeiro  earro  tríumphal,  o  do  Bair- 
ro de  Chamberí,  cheio  de  vistosas  alegorias,  tirado  por 
oito  cavallos  brancos,  figurando  uma  grande  concha 


1IADUD  B  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  315 

apoiada  sobre  uma  plataforma;  cercavam-no  muitos  indi- 
víduos com  bandeiras  e  estandartes. 

Atráz  destes,  o  carro  dos  Caminhos  de  Ferro  do  Nor- 
te, um  coche  de  primeira  classe,  aberto,  com  o  busto 
de  Galderon  ao  centro,  tirado  por  seis  cavallos  casta- 
nhos, empeoachados  de  azul  e  branco.  Lá  dentro  distri- 
buiam-se  versos. 

Superior  aos  dois  era  sem  duvida  o  carro  pertencente 
ao  Grémio  dos  ferreiros  e  serralheiros,  uma  alegoria  mi- 
tho lógica,  d'onde  se  destacava  a  figura  de  Vulcano,  ro- 
deiado  pelos  seus  operários,  rigorosamente  vestidos  á 
sua  época. 

A  officina  estava  em  movimento.  O  serralheiro  prin- 
cipal e  seis  operários  forjavam  ferro,  ao  compasso  da 
musica,  que  os  precedia. 

Depois  da  banda,  iam  os  operários,  pertencentes  á 
associação  dos  Carpiuteiros  do  patriarcha  S.  José,  levan- 
do atributos  de  trabalho  nas  mãos,  e  bordados  na  ban- 
deira as  insígnias  do  seu  grémio. 

Notava-se  logo,  como  uma  das  mais  significativas  e 
sumptuosas,  a  carroça  do  Fomento  de  las  Artes,  repre- 
sentando a  agricultura,  a  industria,  as  artes  e  a  impren- 
sa. Na  plataforma  anterior,  estava  collocado  um  prelo 
tosco  e  pesado  do  século  XVII  e  outro  do  século  XIX, 
attestando  o  enorme  progresso,  que  se  mettia  entre  am- 
bos. Dois  compositores,  dois  machinistas  e  os  seus  aju- 
dantes, vestidos  á  época  moderna  e  á  calderoniana,  iam 
compondo  e  imprimindo,  durante  o  trajecto,  três  poe- 
sias, que  se  distribuiam,  acto  continuo,  ainda  húmidas 
da  machina,  ao  publico,  que  as  disputava  com  justa  ra- 
zão, pressuroso  e  enthusiasmado ! 

O  estandarte  do  Fomento,  ricamente  bordado  seguia 
o  seu  carro,  digno  de  preduravel  menção. 

Os  numerosos  grémios  dos  fabricantes  de  tapeçarias» 
dos  armazenistas  de  vinhos  e  dos  mercieiros  eram  re- 
presentados por  uma  pyramide,  artisticamente  disposta 
e  ornamentada  com  differentes  objectos  e  productos 
d'essas  industrias,  posta  sobre  uma  elegante  padiola,  le- 


316  MOTAS  A  LAP18 


vada  aos  hombros,  e  acompanhada  por  todos  os  asso* 
dados. 

O  carro,  que  seguia  essa  multidão  de  gente,  era  o 
dos  Mestres  de  obras,  levando  vários  atributos  da  classe. 
Fingia  ser  puxado  por  pombas,  e  era  movido  por  ho- 
mens, que  iam  occultos  debaixo  d'elle. 

Atraz  tremulava  a  bandeira  da  Cruz  Roxa,  abrindo  o 
cortejo  dos  seus  cem  sócios,  que  se  distinguiam  pelo 
laço  branco  com  uma  cruz  roxa,  posto  no  braço  esquer- 
do, e  pelo  gorro  da  mesma  côr  e  com  a  mesma  cruz, 
como  recordação  viva  dos  muitos  serviços,  prestados  em 
outros  tempos  por  esta  sociedade  nos  campos  de  batalha. 

A  academia  dos  professores  de  primeiras  letras  leva- 
va um  bello  estandarte  e  uma  riquíssima  coroa. 

Logo  depois,  o  carro  do  Circulo  de  la  Union  Mercan- 
til, semelhando  uma  galeota  antiga,  em  cuja  popa  se  le- 
vantava um  pavilhão  apoiado  em  seis  columnas  jónico- 
gregas,  apresentando  no  entablamento  superior  os  no- 
mes dos  dramaturgos  clássicos  mais  notáveis,  e  figuran- 
do o  theatro  grego.  Dentro  pyras  em  bellos  vasos;  á 
entrada  o  busto  de  Calderon,  tendo  na  base  os  masca- 
rdes da  Comedia  e  da  Tragedia.  A  meio  da  galeota, 
avançando  para  o  busto  e  em  altitude  de  coroal-o,  as 
figuras  da  Industria  e  do  Commercio;  á  proa,  recostada 
e  de  tridente  em  punho  a  figura  de  Neptuno. 

Puxavam  este  carro  oito  cavados  emplumados,  cober- 
tos de  óptimos  xairéis,  e  levados  á  mão  por  oito  indi- 
víduos com  trajes  de  mercadores  da  época.  Ao  redor 
iam  mais  cinco  cavalleiros,  vestidos  egualmente,  osten- 
tando outros  tantos  estandartes,  em  recordação  dos  cinco 
grémios  principaes  de  Madrid,  no  século  xvn. 

Seguiam  depois  as  associações  dos  architectos,  le- 
vando ao  centro  quatro  creanças,  que  seguravam  uma 
bandeja,  onde  se  via  uma  coroa;  o  grémio  central  dos 
engenheiros  industriaes,  com  duas  bandeiras;  os  repre- 
sentantes da  escola  de  Barcelona  e  a  musica  do  regi- 
mento  das  Canárias. 

O  carro  da  Imprensa  era  dos  que  arrancava  maiores 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  317 

applausos.  N'uma  parte,  sobreposta  a  um  grupo  forma- 
do por  lanças,  bandeiras  e  dois  leões  heráldicos,  viam- 
se  as  armas  de  Hespanha;  na  outra,  a  estatua  de  Gut- 
temberg,  levando  na  mão  direita  a  alegoria  da  impren- 
sa; e  nos  quatro  ângulos  d'este  corpo,  quatro  génios 
alados,  offerecendo-lbe  coroas;  no  centro  quinhentas  co- 
roas de  louro,  offerecidas  pelos  jornaes  da  cidade,  cujos 
títulos  se  liam  em  numerosos  estandartes,  que  ladeavam 
o  carro,  seguido  pelas  commissões  da  imprensa  das 
províncias,  da  associação  dos  Jornalistas  e  Escriptores 
Portuguezes,  da  Sociedade  de  Geographia  de  Lisboa, 
Àtheneu  de  Madrid  e  Sociedade  de  sciencias  e  letras  dos 
Alpes  Marítimos. 

Depois  d'este  luzido  acompanhamento,  vinha  o  carro 
da  Associação  dos  Escriptores  e  Artistas,  representando 
na  parte  dianteira  umas  ruinas  do  theatro  clássico,  os- 
tentando lyras,  mascaras,  instrumentos  gregos  e  os  bus- 
tos de  Aristopbanes  e  Eschylo.  No  centro,  uma  columna 
emblemática  do  génio  de  Galderon,  com  a  sua  lyra  e 
busto.  Na  outra  parte,  um  scenario  moderno,  onde  fi- 
guravam creanças  de  ambos  os  sexos,  vestidas  com  os 
trajes  dos  principaes  personagens  das  obras  dramáticas 
do  poeta  t 

A  isto  seguiam-se  a  musica  escolar,  composta  de  160 
estudantes,  vestidos  ao  século  xvn;  a  respectiva  com- 
missão  de  escriptores  e  artistas;  o  professorado  repre- 
sentado em  todas  as  classes  e  gerarchias  e  os  autores 
dramáticos,  levando  coroas. 

O  ultramar  estava  assignalado  por  Cuba  e  Porto  Rico, 
n'um  carro  triumphal  de  óptima  concepção  artistica.  Na 
parte  dianteira,  as  columnas  de  Hercules,  com  a  inscri- 
pção— iVon  plus  ultra\  sobre  um  pedestal  o  busto  de 
Galderon,  cercado  de  louros  dourados,  em  forma  de 
arco,  como  que  ligando  as  columnas;  em  seguida  Co- 
lombo, segurando  um  pergaminho,  onde  se  liam  as  pa- 
lavras—flw*  ultra,  e  apontando  para  a  America,  cuja 
figura,  empunhando  a  bandeira  nacional,  estava  na  ex- 
tremidade da  carroça,  com  as  mesmas  palavras  aos  pés, 


318  NOTAS  A  LÁPIS 


sob  um  riquíssimo  docel,  entretecido  de  plantas  ameri- 
canas e  coroado  com  as  armas  d*essas  duas  colónias 
bespanholas.  Dos  bambus  do  docel  caía  um  vistoso 
panno,  onde  se  lia,  em  letras  douradas: — A  Calderon 
Cuba  y  Puerlo  Rico.  Entre  os  dois  corpos  descriptos, 
um  pedaço  de  mar,  onde  nadava  um  golphinho,  mon- 
tado por  duas  creanças,  que  offereciam  ao  poeta  mimo- 
sas coroas t 

Os  cavallos,  revestidos  de  custosas  mantas  e  enfeites, 
eram  levados  de  rédea  por  outros  tantos  palafreneiros. 

Seguiase  a  charanga  do  batalhão  de  Manila. 

Depois  o  carro  do  Exercito,  representando  Marte  de 
pé,  a  proteger  a  Poesia,  assentada  em  sua  frente  e  res- 
guardada pelo  escudo,  que  elle  ostentava  no  braço  es- 
querdo. O  pedestal  (Testas  duas  estatuas  era  formado 
por  uma  rodela,  sustentada  por  dez  canhões  de  bronze 
do  século  xvii,  em  feixe,  apoiado  em  montes  de  balas, 
a  que  se  encostavam  quatro  escudos  com  as  cruzes  das 
Ordens  militares;  na  frente,  dois  anjos  segurando  um 
medalhão  com  o  busto  de  Calderon;  atraz,  lanças,  ban- 
deiras, espingardas,  estandartes,  armaduras  e  outros 
objectos  militares  do  mesmo  século. 

Tiravam  esta  carroça  dezeseis  cavallos  das  estreba- 
rias reaes,  arreiados  ao  uso  de  egual  época,  e  levados 
á  mão  por  homens,  vestidos  caracteristicamente. 

Logo,  a  musica  dos  engenheiros  e,  depois  grandes 
troços  de  infanteria,  cava  liaria  e  artilheiros,  com  os  tra- 
jes rigorosíssimos  dos  séculos  xvii  e  xvni,  produzindo 
pelo  seu  ar  marcial,  numero,  trajes  e  equipagens  visto- 
sas e  curiosíssimas,  grandes  acclamações  e  um  effeito 
brilhantíssimo ! 

O  importante  carro  da  Marinha  representava  a  popa 
de  uma  galera  da  época  calderoniana  sobre  rochas  e  o 
mar,  adornada  de  tropheus  e  enfeites  de  ébano  e  ouro. 
Na  frente,  duas  caçoilas  de  perfumes  formadas  por  con- 
chas e  ancoras  douradas;  em  seguida,  a  Inspiração  poé- 
tica, em  altíssimo  tabernáculo,  cencada  pelas  imagens 
em  busto  da  Comedia  e  Tragedia,  livros,  pennas  e  ou- 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  319 

tros  accessorios;  a  meio  um  varandim  com  armas  e  tro- 
pheus;  á  popa,  uma  concha  de  Dacar,  sostida  pela  Fama, 
que  apregoava  as  glorias  do  poeta,  cujo  busto  lhe  fi- 
cava ao  lado.  Os  trajes  dos  marinheiros,  as  bandeiras  e 
adornos  eram  rigorosamente  imitados  da  galera  Capi- 
taria, que  em  fevereiro  de  1668  conduziu  á  Itália  a  fi- 
lha de  Filippe  IV ! 

Esta  carroça  era  puxada  por  oito  fogosos  cavados, 
ricamente  ajaezados  e  conduzidos  por  palafreneiros  e  la- 
caios, vestidos  de  uniformes  roxos  e  cinzentos,  ao  sé- 
culo XVII. 

Marchava  em  seguimento  uma  escolta  de  marinha, 
com  a  sua  musica  á  frente. 

A  Deputação  Provincial  de  Madrid  apresentou  um 
carro,  tirado  por  doze  cavados,  cercado  pela  garrida  e 
original  guarda  amarella,  que  existiu  no  século  xvn,  e 
seguida  pelos  maceiros  e  mais  servidores  da  deputa- 
ção. 

Às  camarás  municipaes  das  províncias,  com  trajes  an- 
tigos e  modernos,  com  os  seus  maceiros,  guarda-cha- 
ves,  aguazis  e  outros  empregados,  e  os  guardas  civis  de 
Barcelona  formavam  um  curioso  ajuntamento,  sendo 
muito  de  notar  a  commissao  da  municipalidade  de  Za- 
mora, que  ostentava  o  seu  precioso  estandarte  históri- 
co, seguro  na  ponta  da  haste  .pelo  braço  de  um  guer- 
reiro. 

O  panno  tem  uma  tira  ou  faxa  superior  verde-esme- 
ralda  e  oito  tiras  inferiores  encarnadas,  representando  as 
oito  batalhas  consulares,  em  que  Viriato  ficou  vencedor 
das  tropas  romanas. 

O  Município  de  Madrid  apresentou  o  seu  carro,  seve- 
ro e  simples,  carregado  de  flores  e  puxado  por  oito  ca- 
vados; e  a  commissao  executiva,  que  iniciou  as  festas  do 
centenário,  outro  intitulado  Carroza  de  Espafta,  tirado 
por  oito  cavados  pretos,  emplumados  de  branco,  com 
xairéis  da  mesma  còr,  bordados  a  ouro.  Constava  de 
um  grupo,  ao  centro,  a  Hespanha  coroando  Calderon, 
sob  um  docel  vasto  e  sumptuoso. 


&0  KOfáfi  A  UMPIS 


A  isto  seguiam-se  as  differentes  commissões  das  uni- 
versidades oacionaes  e  estrangeiras,  os  estudantes  de 
Coimbra,  Barcelona  e  Salamanca. 

O  ultimo  dos  quatorze  carros  Iriumphaes,  pouco  no- 
tável pelo  feitio,  era  o  de  Joanna,  a  louca,  todo  cons- 
truído de  ébano  lavrado^conforme  já  notámos.em  outra 
parte. 

Foi  mandado  por  el-rei,  e  era  puxado  por  oito  formo- 
sos cavallos,  ajaezados  com  o  máximo  luxo,  cercados 
de  escolta  e  guiados  por  palafreneiros  vestindo  librés 
sumptuosas,  ao  uso  da  casa  real,  no  século  XVII. 

A  municipalidade  de  Madrid,  com  o  seu  presidente, 
sr.  Abascal,  á  frente,  os  representantes  da  de  Lisboa, 
diversas  autoridades  e  a  commissão  do  centenário  ter- 
minavam a  imponentíssima  e  deslumbrante  comitiva. 

O  regimento  de  cavallaria  húsare  cobria  a  marcha  fi- 
nal, fechava  o  grandioso  préstito,  que  depois  de  ter  pas- 
sado em  continência  por  diante  da  estatua  de  Calderon, 
na  praça  do  Oriente,  só  poude  dispersar,  decorridas 
cinco  horas,  desde  a  sua  formação  no  bairro  de  Posas, 
ás  seis  da  tarde  i 

Romero  Ortiz,  o  illustre  jornalista,  o  benemérito  ini- 
ciador do  centenário,  assistiu  ao  desfilar  da  procissão 
histórica  das  janellas  de  sua  casa,  na  rua  Serrano. 

A  imprensa  estrangeira  tinha  uma  tribuna  especial,  e 
foi  saudada  calorosamente. 

A  commissão  portugueza  e  os  estudantes  de  Coimbra 
foram  acclamados  em  muitas  partes  do  trajecto. 

As  damas  hespanholas  lançavam  flores  e  bravos  sobre 
as  tropas,  os  estudantes  e  os  quatorze  carros  triumphaes, 
o  povo  respondia  em  brados  de  enthusiasmo. 

As  associações,  ao  depositarem  as  coroas  no  pedes- 
tal da  estatua,  em  frente  do  palácio  de  Affonso  XII,  na 
praça  do  Oriente,  eram  correspondidas  nas  saudações, 
que  despertavam,  por  toda  a  família  real,  que  presen- 
ciava o  deslumbrante  festejo  dos  balcões  e  janellas  do 
grande  edifício,  ao  lado  dos  ministros,  altos  funcciona- 
rios  e  corpo  diplomático. 


MADRID  E  O  CRNT1NARIO  DE  CALDERON  3ftt 


# 

Só  os  dados  oflBciaes,  que  desconhecemos,  poderão 
dar  contai  dos  milhares  de  milhares  de  indivíduos,  entre 
tropas  antigas  e  modernas,  corporações  mechanicas,  in- 
dustriaes,  académicas  e  scientificas,  que  formaram  o 
grandioso  préstito,  para  cujo  encarecimento  e  devido 
apreço  nos  sobram,  mas  nos  faltam  palavras  condignas. 
Á  mingua  do  colorido  necessário  para  quadro  de  tão 
extraordinárias  dimensões,  façamos  nossos  alguns  pe- 
ríodos, traduzidos  do  jornal  madrileno,  La  Pátria,  on- 
de o  amor  próprio  não  debuxou  a  minima  sombra  de 
exagero: 

«Essa  imponente  manifestação  deve  fazer  palpitar  de 
legitimo  orgulho  todos  os  corações  hespanhoes,  esse  es- 
pectáculo cheio  de  magestade,  de  que  se  não  pode  for- 
mar idéa  cabal,  sem  o  haver  presenciado. 

«A  nação  que  honra  os  seus  filhos  illustres,  como  a 
Hespanha  acaba  de  honrar  a  memoria  de  Calderon  de 
la  Barca,  ao  findarem  duzentos  annos  depois  da  sua 
morte,  mostra  toda  a  virilidade,  todo  o  nobre  enthusias- 
mo  que  encerra  em  seu  seio;  attesta  o  seu  adiantamen- 
to em  todos  os  ramos  de  progresso  e  illustração,  porque 
essas  honras  não  as  tributa  ella  a  um  génio  guerreiro, 
que  subjugou  pela  força  das  armas  grande  numero  de 
povos  a  um  monarcha  poderoso,  que  reuniu  sob  o  sce- 
ptro  ferrenho  estranhos  e  dilatados  paizes,  mas  a  um 
escriptor  insigne,  que  pelos  primores  da  sua  penna  con- 
quistou maior  gloria  para  a  sua  pátria  do  que  poderiam 
ter-lbe  proporcionado  as  mais  brilhantes  victorias  da 
guerra. 

«Estrangeiros,  tão  illustrados  como  imparciaes,  que 
ha  pouco  tempo  ainda  tiveram  a  satisfação  de  assistir 
ao  centenário  de  Rubens,  celebrado  em  Bruxellas,  e 
ao  que  se  exhibiu  em  Portugal  para  commemorar  a  glo- 
ria de  Camões,  proclamam  em  voz  alta  que  nenhum 

21 


3S2  NOTAS  A  LAMS 


(Telles,  apezar  da  sua  grandeza,  offereceu  á  vista  tama- 
nho esplendor,  nem  se  via  rodeiado  de  tanto  enthusias- 
mo,  como  a  Testa  organisada  pela  população  de  Madrid, 
com  auxilio  de  todas  as  províncias  hespanbolas,  para 
honrar  a  memoria  de  Galderon. 

cA  procissão  histórica  excede,  pela  sumptuosidade  e 
grandeza,  tudo  o  que  se  possa  imaginar. 

«O  mais  digno  de  fixar  a  attenção  é  que  não  foram 
classes  determinadas  da  sociedade,  nem  determinada 
província,  as  que  uniram  esforços  para  lhe  dar  todo  o 
brilhantismo;  foram  todas  as  classes  e  todas  as  gerar- 
chias  sociaes,  todas  as  províncias  do  continente  e  do  ul- 
tramar; foi  em  fim  a  Hespanha  inteira,  que  empenhou 
toda  a  sua  alma,  toda  a  emulação  do  seu  patriotismo  em 
cercar  de  esplendor  e  da  grandeza  mais  culminante  as 
festas  realisadas  em  honra  do  grande  poeta.» 

E,  ao  terminar  com  a  confirmação  plena  d'essas  pala- 
vras, repetiremos  que  espectáculos  tão  custosos,  tão  si- 
gnificativos e  tão  brilhantes,  como  foram  as  procissões 
escolar  e  histórica,  por  occasião  do  centenário  de  Galde- 
ron—nunca  as  lográramos  imaginar,  nunca  as  vimos,  e 
não  as  veremos  mais  talvez,  ainda  que  se  repitam  em  nos- 
sos* dias  em  memoria  de  qualquer  outro  homem  illustre. 

E,  para  não  enodoar  o  quadro  das  nossas  impressões, 
deixaremos  de  consignar  aqui  o  que  nos  suggere  a  com- 
paração entre  os  dois  centenários  da  península,  já  que 
a  politica  individual  e  truanesca  do  nosso  paiz  se  empe- 
nha todos  os  dias  em  mostrar  que  lavra  nos  nossos  sen- 
timentos uma  degeneração  assustadora,  que  nos  ha-de 
conquistar  as  honras  de  um  povo  fóssil,  a  descambar 
para  os  dominios  da  archeologia. 


MADRID  E  O  CSNTfNABIO  DE  CALDBRON  313 


XII 


Sétimo  dia.  —  Retenha  das  publicações  mais  importantes. 
Ida  ao  Escoriai.  —  Opera  on  Theatro  Real. 


Fatiemos  do  dia  seguinte,  sem  dos  emportarmos  com 
as  representações  dos  lheatros  da  véspera,  apezar  de 
em  todos  elles  se  representarem  obras  de  Calderon,  nem 
tão  pouco  com  a  grande  serenata  militar. 

É  justo  porém  que  mencionemos  algumas  das  muitas 
publicações,  as  principaes,  que  saíram  a  lume,  em  edi- 
ções de  todos  os  géneros  e  formatos,  como  é  uso  nes- 
tas solemnidades. 

As  mais  importantes  foram : 

Revista  Ilustrada,  numero  20,  com  14  paginas  em 
prosa  e  verso.  Da  ultima  poesia,  assignada  por  Rodri- 
gues Penilla,  destacámos  esta  bellissima  estropbe : 

Piadozo,  sagaz,  profundo 

Su  espirito  de  alto  vuelo, 

Era,  por  lo  hermoso— um  mundo; 

Por  lo  brillante  y  fecundo, 

—  De  luz  vivo  manantial. 

Ah  1  Si  Espana,  por  su  mal, 

Otras  glorias  no  tuviera, 

Solo  con  su  gloria  fuera 

Feliz,  famosa,  inmortal  f 

Madrid  Cómico,  caricaturas,  satyras  em  prosa  e  verso 
e  assignaturas  autograpbas  de  vários  escriptores  na  ul- 
tima das  suas  16  paginas.  Em  contraposição  ao  titulo 


324  NOTAS  A  LÁPIS 


da  peça  de  Calderon,  Mariano  Ghaiel  escreveu  uns  ver- 
sos intitulados— El  sueflo  es  vida,  a  ultima  estrophe  dos 
quaes  diz: 


Asi  paso  la  vida  distraída 

sonando  que  la  paso  menos  mal. 

La  vida  es  sumo,  pêro  el  sumo  es  vida, 

y  yo  no  quiero  nunca  despertar. 

La  llustracion  Militar,  luxuosa  edição,  bellos  retra- 
tos, óptimas  gravuras,  referentes  á  procissão  histórica; 
vinte  paginas,  onde  ha  escriptos  e  versos,  como  estes 
de  Garbonell,  ao  fallar  de  Cuba : 

AIH  es  el  verde  suelo  riente  paraíso 

en  donde  tiene  el  árbol  ropage  brillador, 

y  hay  valles  y  horisontes  en  donde  el  cielo  quizo 

verter  á  manos  llenas  aromas  y  esplendor. 

La  llustracion  Espafíola  y  Americana,  dois  números, 
sendo  o  primeiro  o  ordinário  da  sua  publicação  e  o  se- 
gundo especial,  o  mais  notável  pelas  gravuras  de  gran- 
de formato,  representando  scenas  das  obras  de  Calde- 
ron, e  pela  collaboração  de  escriptores  catalães,  gallegos, 
valencianos  e  portuguezes.  O  nosso  illustre  poeta  Si- 
mões Dias  escreveu  estas  duas  quadras : 

La  vida  es  sumo  —  disseste, 
Alçando  os  olhos  ao  cen ; 
Mas,  quando  tal  escreveste, 
Uma  excepção  te  esqueceu. 

Nem  tudo  é  sonho  na  vida, 
Nem  tudo  tem  sorte  egual ; 
Se  ha  nomes  que  o  mundo  olvida, 
O  teu. . .  não,  que  é  immortal. 

El  Loro,  jornal  satyrico  de  Barcelona.  Retrato  de  Cal- 
deron e  uma  bel  la  pagina  colorida.  Referindo-se  ao  poe- 
ta, escreve  Rafael  de  Castillo: 


MADRID  E  O  CENTENABIO  DE  CALDIBON       326 


Y  mieotras  dei  arte  el  sol 
preste  sus  rayos  ai  mando, 
será  ta  génio  fecundo, 
laz  dei  teatro  espaàol. 

El  Parenthesis,  jornal  satyríco-politico  illustrado,  im- 
presso a  Unta  encarnada.  Alludindo  a  um  certamen  lit- 
terario,  de  que  se  queixa,  zombando,  diz  Trichina, 
pseudónimo  que  firma  os  primeiros  versos : 


Si  la  gloria  y  realidad, 
Como  digo  el  gran  poeta, 
(Jn  sueno  tan  solo  soo, 
O  enganadora  quimera 
Eq  que  el  hombre  se  revuelve, 
Sin  dejar  sombra  ni  huella; 
Inútil  es  que  yo  escriba 
Pensando  en  la  recompensa 
Que  pueda  dar-me  el  jurado 
Em  su  falia  ó  su  sentencia. 


El  Dia,  a  publicação  mais  característica  da  época, 
por  serem  todas  as  suas  numerosas  gravuras  e  escri- 
ptos  do  século  calderoniano;  in-folio  impresso  em  elze- 
vir  e  papel  melado.  Uma  amostra  de  uma  carta,  escri- 
pta  da  Catalunha  ao  grande  poeta  pelo  capitão  Valdina- 
to,  em  abril  de  1641 : 

Gataluna,  lastimada 
Con  mortales  desafueros 
Suplicando  por  sus  fueros 
Está  ya  desaforada. 
Que  suele  talvez,  neftada 
A  los  vasallos  la  audiência 
T  cansada  la  lealtad, 
Perder  á  la  Magestad 
El  respeto  y  la  obediência. 

El  Globo,  dá  o  retrato  de  Galderon,  artigos  especiaes 
e  versos,  onde  ha  uma  poesia  de  Manuel  dei  Palácio, 
que  termina  assim : 


226  NOTAS  A  LÁPIS 


Pasarán  generaciones 

Y  monumentos  y  edades, 
Grandezas  y  vanidade», 

Y  virtudes  e  ambiciones. 
Yolaran  las  ilusiones 

De  la  nada  en  los  desiertos: 
Nuestrog  sepulcros  abiertQs 
Diran,  á  lo  sumo :  —  Fuét 
Calderon  seguirá  en  pié; 
No  nay  tumba  para  esos  muertos  t 


Memorial  de  Artilleria,  um  curiosíssimo  livro  de  223 
paginas,  publicação  militar,  que  conta  já  37  ânuos  de 
existência.  Traz  no  principio  um  esludo  sobre  o  poeta 
e  o  seu  tempo,  e  mostra  com  proficiência  o  estado  da 
arte  dos  artilheiros  no  século  xvn,  reproduzindo  em 
boas  fototypias  os  apetrechos,  fabricados  n'essa  época, 
e  os  utensílios  usados  em  campanha. 

Referindo-se  á  pouca  fortuna  de  Calderon,  no  que 
respeitava  á  arte  da  guerra,  e  á  influencia  da  poesia  nos 
seus  destinos,  transcreve  a  seguinte  oitava  de  D.  Gas- 
par de  Lara,  que  a  escreveu  em  1684. 


Gon  prudente  valor,  en  la  milícia 
De  esfuerzo  invicto  dió  nobles  senales, 
Por  las  cuales  le  diera  la  justicia 
Puestos,  9i  militara  entre  mortales. 
Y  sintiendo  á  Belona  no  propieia, 
En  paz  dejó  los  campos  marciales, 
Conduciendole  Apolo  á  mis  riberas 
Gapitan  General  de  sus  banderas. 


Alem  d'estas  publicações,  que  foram  as  mais  dignas 
de  nota,  formigavam  por  toda  a  parte  os  vendedores  de 
retratos  do  poeta,  photographias  da  sua  estatua  e  dos 
monumentos  da  cidade,  cromos  tauromachicos,  paginas 
soltas,  jornaes  políticos  e  litterarios,  annuncios  e  pro- 
grammas. 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DK  CALDBRON  3t7 


* 
*         * 

O  tempo,  mau  grado  nosso,  apezar  de  o  não  desper- 
diçarmos, não  nos  deixa  ensanchas  para  grandes  expla- 
nações e  minuciosidades.  Estes  fugitivos  apontamentos 
são  tomados  em  carruagem  do  caminho  de  ferro  do 
Norte,  que  nos  vae  levar  ao  Escurial,  de  que  adiante 
nos  occuparemos,  em  secção  especial. 

Regressámos  d'està  curiosa  visita,  á  noite. 

Depois  do  jantar,  reagimos  contra  a  fadiga,  que  amea- 
çava prostrar-nos,  e  fomos  ao  Teatro  Real,  o  principal 
de  todos,  o  theatro  da  opera,  onde  não  havíamos  en- 
trado ainda. 

A  fachada  principal  de  pedra  branca  olha  para  a  praça 
do  Oriente;  afecta  a  forma  de  uma  ferradura,  e  tem  ao 
centro  um  baixo  relevo,  representando  as  musas,  algu- 
mas figuras  alegóricas  e  quatro  estatuas,  que  symboli- 
sam  a  Tragedia,  a  Comedia,  a  Opera  e  o  Baile.  A  re- 
matar a  fachada,  vê-se  a  Fama,  sustentando  o  escudo  de 
Hespanha,  e  nas  extremidades  as  figuras  de  duas  crean- 
ças,  personificando  a  Musica  e  o  Bailado. 

O  lado  posterior  deita  para  a  praça  de  Izabel  II,  on- 
de a  meio  de  um  pequeno  jardim  está  a  estatua  da  Co- 
media. 

N'essa  parte  do  edificio  funccionam  um  salão  de  con- 
certos e  o  conservatório  de  musica  e  declamação. 

Entrando  pelo  vestíbulo,  penetra-se  na  sala  de  des- 
canço,  luxuosa  pelos  espelhos  e  bancos  estofados  de  ve- 
ludo encarnado,  que  ladeam  as  columnas,  e  pelos  da- 
mascos que  forram  as  paredes. 

D'alli  partem  duas  escadarias,  que  levam  aos  cama- 
rotes e  lugares  superiores;  ao  centro,  a  porta  que  dá 
ingresso  á  plateia.  Esta  pode  conter  quinhentos  lugares 
commodos  e  almofadados  com  o  mesmo  estofo  e  còr  da 
sala  de  espera.  Os  lados  compoem-se  de  três  ordens  de 


3tS  NOTAS  A  LÁPIS 


camarotes  e  duas  de  galerias,  sendo  a  ultima  a  da  en- 
trada geral,  a  chamada  Paraíso,  com  lugares  para  sete- 
centas pessoas ! 

A  illuminação  é  distribuída  por  candelabros  lateraes; 
o  tecto  ostenta  magnificas  pinturas. 

O  rei  tem  dois  camarotes,  o  official  e  o  particular, 
collocado  á  bocca  da  scena;  alem  (Testes,  vimos  alguns 
com  as  paredes  sumptuosamente  almofadadas  de  broca- 
do de  seda. 

Penetrando  nos  corredores,  empallidece  a  impressão 
produzida  pelo  apparato,  já  descripto;  as  escadarias,  que 
lhes  dão  accesso,  são  de  madeira  tf  apenas  um  ou  outro 
patamar  é  guarnecido  de  ladrilho. 

A  representação  da  noite  era  dramática,  e  como  tal 
não  tinha  orchestra;  constava  da  Hija  dei  Aire,  onde, 
por  concepção  especial,  entrava  o  decano  dos  artistas, 
o  afamado  actor  Calvo,  cuja  declamação,  atirando  para 
o  melodrama  e  para  a  tragedia,  nos  produziu  mediana 
impressão,  perdoem-nos  os  seus  merecimentos  e  mais 
partes,  que  concorrem  na  sua  pessoa. 


MADRID  B  O  CENTENÁRIO  DE  CALDBRON  319 


XIII 


Oitavo  dia.— Vantagem  de  não  representar  consa  alguma.— 
Na  casa  da  moeda.— Uma  hespanholad a. —Exposição  de  ga- 
do.—Exposição  de  Bellas  Artes.— Dois  dias  mais  e  um  adens 
a  Madrid. 


Estamos  no  domingo,  29,  o  ultimo  dos  oito  dias  de 
ininterruptas  Testas,  saraus,  representações,  luminárias, 
procissões  cívicas  e  religiosas,  banquetes,  bailes  e  ex- 
posições, em  honra  do  heroe  do  centenário. 

A  nossa  curiosidade  de  touriste  amador  não  afrouxou 
uma  hora,  durante  esse  tempo,  estendeu-se  aonde  pou- 
de,  com  uma  insistência  esmagadora,  com  uma  activi- 
dade, que  mal  nos  deixava  tempo  para  comer  e  dormir. 

Todos  os  meios  de  locomoção  nos  serviram,  de  todos 
tomámos  conhecimento  pratico;  desprezámos  etiquetas 
e  ceremoniaes,  que  podiam  encurtar-nos  as  horas,  sem 
interesse  real,  assistimos  ao  que  nos  pareceu  melhor,  e 
andámos,  e  andámos  sempre,  sentindo  não  possuir  o* 
dom  da  ubiquidade,  para  completa  satisfação  do  nosso 
insaciável  desejo  de  ver. 

Encontrámos-nos  por  vezes  com  alguns  dos  nossos 
companheiros  de  viagem. 

— Ó  homem— diziam-nos  uns— que  é  feito  de  você, 
que  não  lográmos  vel-o  ? 

— Ando  pelas  praças,  pelos  bairros,  pelas  egrejas, 
pelos  museus... 

— Ó  diabo!  Nós  pouco  temos  visto.  Umas  ceias,  uns 
convites  particulares..» 

—Que  diz  o  meu  amigo  a  isto?— diziam-nos  outros, 
no  museu  de  pintura. 


330  NOTAS  A  LÁPIS 


Aventáramos  um  adjectivo  qualquer,  dizendo  que  era 
a  terceira  vez  que  lá  iamos. 

—Pois  quanto  a  nós  é  a  primeira  e  ultima.  Não  te- 
mos tempo.  Visitas  aos  collegas  madrilenos^  desempe- 
nho das  nossas  obrigações,  cumprimentos,  uma  mas- 
sada  constante. . .  não  nos  deixam  um  momento  de  so- 
cego.  Venba  aggremiar-se  comnosco  para  tal  e  tal  cousa. 

Escusámos-nos  sempre»  porque  bem  sabíamos  que 
um  caracter  qualquer,  que  não  Tosse  o  particular,  nos 
havia  de  tolher  a  liberdade  das  nossas  acções,  que,  na 
primeira  visita  a  uma  localidade  mais  ou  menos  im- 
portante, não  desejámos  nunca  enfraquecer  ou  contra- 
riar. 

* 
*      * 

N'aquelle  dia,  tínhamos  ainda  muito  que  ver,  a  prin- 
cipiar pela  extracção  da  lo  teria,  que  se  havia  de  realisar 
n'uma  das  dependências  da  Casa  de  la  moneda.  Dese- 
jávamos visitar  este  estabelecimento,  que  funcciona  em 
moderno  e  bom  edifício  próprio,  dispondo  de  três  mo- 
tores a  vapor  e  de  todos  os  utensílios  necessários  á  fun- 
dição, cinzelados,  cortes  e  amoedação  dos  metaes. 

Dirigimos-nos  ao  Paseo  de  R$coletos9  e  depois  á  rua 
Jorge  Juan,  dando  entrada  na  casa  das  loterias. 
-  Mal  podemos  penetrar  no  salão,  onde  se  extraiam  os 
números,  algarismos  por  algarismos,  que,  depois  de 
circularem  no  grande  reservatório,  eram  tirados  por 
creanças  e,  mostrados  ao  publico,  que  tomava  notas, 
com  uma  escrupulosa  e  methodica  attenção. 

Saindo  d'alli,  achámos-nos  no  átrio  da  casa  da  moeda, 
que,  ao  que  nos  disseram  vae  ser  ajardinado,  e  receber 
no  centro  a  estatua  de  Colombo.  Á  esquerda,  havia  por- 
tas abertas,  que  davam  para  a  fabrica  e  estampagem 
dos  sellos;  deparámos  com  um  guarda,  que  nos  mostrou 
essa  repartição  com  tudo  o  que  continha,  desde  a  ma- 
téria prima,  o  papel,  até  ás  machinas  que  o  imprimiam, 
e  notámos  em  tudo  bons  processos  modernos. 


MADRID  B  O  CBNTENARIO  DE  CALDERON     '  331 

Olhando  para  as  janellas  e  portas  do  resto  do  edifí- 
cio, vimos  que  estavam  fechadas,  com  a  única  exce- 
pção de  uma. 

Perguntámos  ao  guarda  se  nos  seria  permittido  o  vi- 
sitar a  parte  da  amoedação  metallica;  respondeu-nos  em 
contrario,  indicando-nos  ainda  assim  a  porta  aberta, 
onde  acharíamos  um  companheiro  seu,  que  podia  es- 
clarecer-nos  melhor. 

Dirigimos-nos  lá,  e  dêmos  com  um  sujeito,  uma  es- 
pécie de  Cerbero,  verdadeiro  guarda  de  thesouros. 

Ás  nossas  perguntas,  respondeu  negativamente,  acres- 
centando que  não  se  mostraria  o  edifício  durante  as  fes- 
tas, porque  havia  em  Madrid  trinta  mil  estrangeiros,  e 
porque  a  natureza  especial  da  casa  da  moeda  exigia  cau- 
telas e  tal  et  caetera. 

Insistimos,  allegando  a  nossa  qualidade  de  forasteiro 
pacifico  e  simplesmente  curioso,  referimos-nos  ás  rega- 
lias concedidas  aos  periodistas,  a  que  entendemos  dever 
associar-nos,  para  ver  se  levávamos  o  convencimento  às 
durezas  do  nosso  guarda. 

Em  nossa  suprema  vaidade,  depois  de  empregarmos 
na  nossa  linguagem  o  melhor  hespanhol,  de  que  podía- 
mos dispor,  quando  julgávamos  o  homem  a  descambar 
para  um  verdadeiro  tfiternecimento,  elle  aprumou-se, 
abriu  muito  os  olhos,  mediu-nos  de  alto  a  baixo,  e  res- 
pondeu categoricamente : 

— Dijo  a  usted  que  la  Casa  de  la  moneda  es  cerrada 
para  usted,  para  mi  propio,  para  Su  Magestad  mismo, 
para  todo  el  mundo,  y  mas. . .  se  lo  huviera. 

Irra !  que  não  havia  que  insistir  I 

— Este  diabo  não  acredita  no  mundo  tbeologico  de 
alem  tumulo— dizia  o  nosso  companheiro,  a  rir  como 
um  perdido— senão  talvez  concedesse  aos  mortos  o  que 
nega  aos  vivos.  Está  decidido.  No  arreganho  da  expres- 
são estes  hespanhoes  são  capazes  de  amalgamar  céus  e 
terra,  antes  do  dia  de  juizo. 

Pela  nossa  parte,  também  ainda  hoje  não  podemos 
lembrar-nos  do  caso,  sem  um  farto  sorriso. 


332  N0TA8  A  LAMS 


* 
♦         * 


D'alli  seguimos  para  o  Retiro,  onde  Da  espaçosa  ex- 
planada, que  deita  para  a  rua  Affonso  XII,  se  inaugu- 
rava a  Esposicion  de  gatiados,  por  iniciativa  da  camará 
municipal. 

Pareceu-nos  insignificante;  a  concorrência  era  pe- 
quena. 

Os  gados  só  apresentavam  bons  exemplares  nos  ca- 
vallos  das  estrebarias  reaes,  em  poucos  dos  particula- 
res, em  alguns  touros,  ovelhas  e  carneiros,  notáveis  pela 
corpulência  e  differenças  de  raça. 

Restava-nos  ainda  uma  visita,  e  essa  seria  a  ultima 
digna  de  nota,  a  Esposicion  General  de  Bellas  Artes,  que 
virá  confirmar  a  opinião  de  que  a  Hespanba  é,  ainda 
mais  no  presente  do  que  no  passado,  a  verdadeira  terra 
da  pintura. 

Esta  exposição,  inaugurada  na  Fuente  Castellana,  di- 
vidia-sa  em  três  secções— pintura,  esculptura  e  arcbi- 
tectura. 

Na  primeira,  figuravam  711  quadros,  quasi  todos  na- 
cionaes  e  modernos,  e  dizemos  qpasi  todos  porque  ape- 
nas lá  vimos,  com  bastante  aprazimento  nosso,  algu- 
mas pequenas  telas  de  autores  portuguezes,  que,  sabe 
Deus,  com  que  sacrificios  pessoaes  conquistaram  a  en- 
trada. Foram  estes  Annunciação,  Malhoa,  Silva  Porto, 
Ferreira  Chaves,  Arthur  Loureiro,  Silva  Oliveira,  Ra- 
malho, Nunes  Júnior,  Ribeiro  e  Pedrosos,  tio  e  sobri- 
nho, com  provas  de  gravura  em  madeira. 

Entre  os  quadros  melhores  e  de  maiores  dimensões, 
citaremos,  pela  originalidade  dos  assumptos  e  valor 
real: 

A  Lenda  do  Rei  Monge,  de  Casado.  Tem  por  assum- 
pto uma  tradição  histórica  do  século  xu.  D.  Ramiro  II, 
de  Aragão,  ferido  pelo  menospreço  dos  soberbos  ma- 
gnates do  reino,  no  que  respeitava  á  sua  autoridade  e 


MADRID  E  O  CENTENÁRIO  DE  CALDERON  333 

aos  foros  do  seu  povo,  pensou  n'uma  vingança  terrível, 
que  trouxesse  á  obediência  os  grandes  e  os  pequenos 
vassallos.  Avisado  de  uma  nova  conspiração,  no  mo- 
mento em  que  os  nobres  se  reuniam  em  Huesca  para 
celebrarem  cortes,  mandou  prender  os  principaes,  e  de- 
capital-os,  dispondo  as  cabeças  em  circulo,  na  sala  do 
conselho,  em  cujo  centro  fluctuava,  dependurada  pelos 
cabellos,  a  do  arcebispo,  que  era  o  mais  poderoso.  Con- 
vidados os  outros  para  a  sala,  deu-lhes  a  presenciar  o 
sanguinolento  espectáculo,  como  amostra  da  sorte,  que 
os  esperava,  se  não  houvesse  emenda.  A  figura  do  rei 
vingativo,  os  semblantes  atónitos  dos  fidalgos,  que  se 
aggromeravam  estarrecidos  de  pavor,  á  entrada  do  con- 
selho, as  cabeças  dos  mortos  e  todo  aquelle  conjuncto, 
admirável  de  verdade,  forma  uma  tela  de  3,56  metros 
de  alto  por  4,74  de  largo.' 

A  Penha  dos  Namorados,  de  Rincon,  propriedade  da 
camará  municipal,  com  3,20  de  alto  por  2,20  de  lar- 
gura. 

Um  joven  escravo  de  Granada  namorou -se  da  filha  do 
seu  senhor,  que  depositava  n'elle  grande  confiança.  Cor- 
respondido, resolveu  fugir  com  a  donzella,  temendo  os 
furores  do  pae.  Ao  chegarem  ao  sopé  de  um  monte  es- 
carpado, a  joven  mjpulmana  sentou-se  a  descançar; 
n'isto  chegava  o  pae,  em  sua  busca,  acompanhado  por 
numerosa  cavalgada.  Os  dois  amantes  começaram  a  su- 
bir em  direcção  ao  cume,  mas,  vendo-se  perdidos  e  não 
sabendo  que  partido  tomar,  abraçaram-se  estreitamente, 
e  despenharam-se  nas  escarpas,  vindo  cair  mutilados 
aos  pês  do  seu  perseguidor. 

Esta  scena,  tragicamente  poética,  está  rigorosamente 
fiel  no  desempenho  e  na  época,  a  que  se  refere. 

Numancia,  de  Vera,  medindo  3,35  de  altura  e  5  de 
largo.  Cercados  os  numanticos  pelas  tropas  de  Scipião 
Emiliano,  acbando-se,  depois  de  rigorosa  e  desesperada 
resistência,  na  impossibilidade  de  realizar  novas  investi- 
das, e  combater  com  bom  resultado,  preferiram  incen- 
diar a  cidade,  e  morrer,  a  entregar-se  á  escravidão  ro- 


334  NOTAS  A  LÁPIS 


mana.  Este  quadro,  verdadeiramente  apparatoso  e  no- 
tável, attraia  sempre  grande  numero  de  visitantes. 

Othelo  e  Desdemona,  de  Mu  noz,  hoje  muito  conhecido 
peias  copias,  que  ha  d'elle,  por  ter  figurado  na  nossa 
exposição  de  Arte  Ornamentai,  e  por  pertencer  ao  nosso 
modesto  museu  de  pintura. 

A  secção  de  esculptura  era  pouco  numerosa.  Figura- 
vam alli  Simões  d'Almeida,  com  uma  estatua  em  már- 
more— SiuUo,  pouco  ou  nada—e  duas  em  gesso — O  ór- 
fão e  a  Juventude,  e  Alberto  Nunes,  com  a  sua  bella 
estatua  em  mármore— O  Mendigo — e  um  busto  de  Sal- 
danha. 

Em  architectura,  vimos  7  quadros  de  José  António 
Gaspar,  de  Lisboa,  representando  o  projecto  de  um  pa- 
lácio da  justiça,  e  outros  de  José  Luiz  Monteiro,  da 
mesma  cidade,  com  o  projecto  da  restauração  do  templo 
de  Antonino  e  Faustina,  em  Roma;  e  de  Soler,  do  Porto, 
o  seu  projecto  do  monumento  ao  duque  da  Terceira. 

Gomo  appendice,  figurava  no  salão  central  uma  va- 
liosa collecção  de  tapeçarias,  pertencentes  á  coroa  e  at- 
tribuidas  na  maior  parte  aos  debuxos  dos  pintores  flam- 
mengos,  que  mais  de  perto  imitaram  Raphael  de  Ur- 
bino. 

São  tecidos  de  lã  e  seda,  e  representam  diversos  qua- 
dros do  Velho  Testamento,  sendo  os  mais  notáveis  os 
do  Apocalypse  e  os  dos  Vicio*  e  Virtudes. 

* 
*      * 

Dois  dias  mais,  para  uma  visita  a  Toledo  e  algum 
descanço  imprescindível,  e  diremos  adeus  á  cidade  co- 
ronada,  de  que  levaremos  óptimas  recordações. 

As  duas  procissões  cívicas  do  centenário  calderonia- 
no,  os  seus  museus,  o  seu  commercio  de  pannos  e  se- 
das, alguns  dos  seus  tbeatros,  monumentos  e  edifícios 
modernos,  os  cafés  e  o  movimento  dos  seus  moradores 
—são  suficiente  titulo  de  recommendação,  para  que  a 


MADRID  B  O  CKNTKNABK)  DB  CALDERON  335 

soa  memoria  predure  do  espirito  dos  que  tiveram  a  for- 
tuna de  lá  ir,  em  occasião  tão  memorável. 

Quanto  ao  mais,  cidade  de  gesso  e  areia,  sem  os  bel- 
los  mármores,  de  que  se  orgulham  outras  capitães  da 
Europa,  pequena  em  relação  aos  seus  habitantes,  des- 
pida de  praças  regulares  e  de  bellos  pontos  de  vista, 
de  notáveis  e  antigos  monumentos  da  arte  religiosa  ou 
profana  e  muito  apertada  pelo  seu  triste  Manzanares, 
mas  muito  ávida  de  alargamento,  de  melhores  praças  e 
ruas,  que  a  tornarão  muito  mais  formosa,  quando  se 
concluírem  as  obras  da  Estação  do  Norte,  de  Segóvia, 
dos  bairros  Chamberí  e  Saladero  até  á  Via  Castelhana. 

A  commemoração  do  segundo  centenário  de  Calde- 
ron,  cuja  idéa  partiu  da  Associação  dos  Escriptores  e 
Artistas,  realisada  de  um  modo  bizarro,  espectaculoso 
e  a  todos  os  respeitos  notável,  com  o  concurso  dos  al- 
tos poderes  do  Estado,  dos  municípios  madrileno  e  pro- 
vincial, do  exercito  e  de  todas  as  sociedades  scientificas, 
artísticas,  mercantis  e  industriaes — deu  a  todos  os  fes- 
tejos um  caracter  verdadeiramente  nacional,  e  provou 
até  á  evidencia  que  todas  as  facções  se  empenharam  pa- 
trioticamente  em  promover  um  espectáculo  grandioso, 
que  já  pertence  aos  fastos  históricos  da  península,  como 
o  feito  melhor  e  mais  glorioso  da  Hespanha  moderna. 

Um  sincero  adeus  e  um  bravo  enthusiastico  a  Madrid ! 


336  NOTAS  A  LÁPIS 


O    ESCURIAL 


Madrid  ás  6  horas.— Caminho  do  Escoriai. 

Parte  histórica.  —  Coustrucção  de  Felippe  n.  —  Obras 

dos  seus  successores. 


A  fadiga  proveniente  dos  nossos  passeios  atravez  de 
Madrid,  durante  o  dia  e  grande  parte  da  noite,  não  nos 
deixava  ser  suficientemente  madrugador  para  podermos 
observar  os  primeiros  movimentos  da  sua  população, 
ao  levantar  da  cama. 

Fizéramos  porem  firme  tenção  de  não  sair  d'alli,  sem 
nos  embrenharmos  uma  vez  ao  menos  por  beccos  e  ruas, 
ás  seis  horas  da  manhã. 

Essa  manhã,  como  deixámos  apontado,  foi  a  destinada 
á  partida  para  o  Escurial,  no  domingo,  29  de  maio,  oi- 
tavo da  nos$a  chegada  e  ultimo  dos  festejos  calderonia- 
nos. 

Tomando  pela  rua  Arenal,  em  voluntários  zig-zagues, 
notámos  com  bastante  repulsão  e  desprazimento  corres- 
pondente que  Madrid  ainda  atirava  para  as  caUes,  du- 
rante a  calada  da  noite,  o  seu  lixo,  á  espera  que  as 
carroças  municipaes  lh'o  transportassem  a  outra  parte. 

Os  gatos  e  os  cães  vadios  ou  madrugadores  atira- 
vam-se  aos  monturos,  e  espalhavam  sofregamente  aquel- 


O  EJCURIÀL  397 

las  immundicies  todas,  em  procura  de  alguns  restos  culi- 
nários do  seu  agrado. 

Entravam  na  cidade  os  primeiros  vendedores  de  leite 
e  hortaliça  dos  arrabaldes,  e  aqui  ou  alem  trabalhavam 
já  os  empregados  do  município. 

Ás  7  horas  e  50  minutos,  partiamos  da  estação  pro- 
visória do  caminho  de  ferro  do  Norte,  e  ás  10  e  43  mi- 
nutos descíamos  na  do  Escurial,  em  frente  da  fabrica 
de  Mathias  Lopes,  estabelecimento  bem  montado,  mas 
sem  a  vastidão  e  apuro  de  machinismos,  que  havia  a 
esperar  da  fama  dos  seus  chocolates. 

O  trajecto  até  alli  nada  tem  de  notável,  a  não  ser  o 
arvoredo  da  Casa  dei  Campo,  que  se  encontra  á  saída 
de  Madrid,  a  aridez  do  terreno  pedregoso  e  inculto,  po- 
voado n'um  ou  n'outro  ponto  de  sobreiros  esguios,  al- 
guns pequenos  pontos  dfe  vista  e  numerosas  pedreiras 
de  granito  escuro,  de  que  è  feito  o  afamado  edifício,  de 
que  vamos  dar  uma  ligeira  idèa. 

Está  elle  situado  a  meio  da  montanha,  conhecida  desde 
tempos  immemoriaes  por  serra  Carpetana,  entre  duas 
povoações,  o  Escurial  de  Riba  e  o  Escurial  de  Abajo 
cercárO  uma  cordilheira,  que,  ao  nascente  e  ao  sul 
deixa  ver  um  largo  horisonie  e,  n'um  dia  claro,  obser 
\ar  Madrid,  d'onde  dista  uns  quarenta  e  quatro  kilome 
tros. 


Algumas  linhas  da  sua  parte  histórica. 

Felippe  II,  chamado  mais  tarde  pelas  suas  acções  e 
caracter  o  demónio  do  Meio  Dia,  um  anno  depois  de  su- 
bir ao  throno,  animando  as  aventuras  do  seu  exercito, 
que  ás  ordens  dos  duques  de  Alba  e  Saboya  cercava 
Roma,  na  Itália,  e  a  praça  de  S.  Quintino,  em  França, 
transportou-se  para  este  ultimo  acampamento,  onde  per- 
maneceu até  que  o  cerco  terminou  pela  rendição  da 
praça,  em  27  de  agosto  de  1557. 

Tão  ambicioso  como  fanático,  voltou  á  Hespanha,  e 

22 


338  notas  4  LÁPIS 


entrou  a  sentir  uns  remorsos  quaesquer,  por  ter  des- 
truído um  mosteiro  de  S.  Lourenço,  para  a  tomada  da 
praça  franceza,  e  pensou  em  reconciliar-se  com  os  deu- 
zes  offendidos,  mandando  construir  um  sumptuoso  con- 
vento de  egual  denominação,  que  ao  mesmo  tempo  lhe 
desaggravasse  a  consciência,  e  commemorasse  os  fei- 
tos de  armas  dos  seus  soldados  n'essa  campanha. 

Nomeou  uma  commissão  de  architectos,  médicos  e 
philosophos,  para  a  escolha  do  local,-  sendo  João  Baptista 
de  Toledo,  que  pertencia  aos  primeiros,  o  encaregado 
do  plano  do  edifício,  cujas  obras  de  simples  terraplana- 
gem duraram  um  anno,  e  começaram  em  abril  de  1562. 

No  mesmo  mez  e  no  anno  seguinte,  o  rei  collocou  a 
primeira  pedra  da  egreja,  depois  das  bênçãos  do  bispo 
de  Cuenca,  fr.  Bernardo  de  la  Fresneda,  e  mandou  cons- 
.  truir  uma  casa  abarracada  para  recolher  os  monges,  de 
que  estava  rodeiado,  servindo  lhe  de  palácio  a  casita  do 
cura,  de  throno  um  tripó  feito  do  tronco  de  uma  arvore, 
em  que  se  sentava  para  dar  audiência,  e  para  aquecer 
os  pés  á  lareira,  no  inverno. 

O  culto  celebrava-se  n'um  pequeno  aposento,  forrado 
com  um  toldo  branco,  para  se  não  verem  as  telhas;  o 
adorno  do  altar  era  um  crucifixo  pintado  a  carvão,  na 
parede,  por  um  frade ;  os  paramentos  de  panno  velho ; 
a  cadeira,  d'onde  o  rei  assistia  á  missa,  carcomida  e 
para  maior  decência  ornamentada  com  um  grande  lenço. 

Tempos  depois,  procedeu-se  a  outra  construcção,  onde 
havia  umas  pequenas  cellas  para  os  doze  monges  da 
communidade,  mas  o  monarcha  dos  dois  mundos  e  o 
seu  bobo  Miguel  de  Antono  sentavam-se  aos  offlcios  di- 
vinos» em  um  banco  tosco,  ao  lado  de  um  homem  do 
povo. 

Grandeza  e  miséria,  soberba  e  humildade,  orações  e 
divertimentos  truanescos  eram  muito  próprios  do  tempo 
e  do  rei. 

Apezar  dos  esforços  de  Felippe  II,  as  obras  marcha- 
vam lentamente,  de  modo  que  só  nove  annos  depois, 
em  1571,  se  concluíram  alguns  claustros  e  a  chamada 


O  ESCOMAL  339 


Iglesia  Vieja  com  o  seu  coro  e  bancadas,  arranjando-se 
debaixo  d'isso  tudo  um  aposento  e  tribuna,  para  o  rei 
assistir  á  missa. 

Era  tal  o  seu  fervor  religioso  que,  trazendo-se-lhe  a 
nova  de  que  seu  irmão,  D.  João  de  Áustria,  vencera  a 
celebre  batalha  de  Lepanto  contra  os  turcos,  na  occasião 
das  vésperas,  celebradas  em  dia  de  Todos  os  Santos, 
não  se  desconcertou,  nem  o  seu  rosto  deu  signaes  de 
alteração,  até  que  porfim  mandou  cantar  um  Te  Deum, 
em  acção  de  graças  por  esse  feito. 

Seis  annos  depois,  na  noite  de  21  de  julho  de  1577, 
a  obra  que  tamanha  satisfação  dava  á  Magestade  Calho* 
Uca  soffreu  um  desastre  gravíssimo.  Os  numerosos  raios, 
que  cairam  durante  uma  horrorosa  tempestade,  destruí- 
ram, alem  de  outras  cousas,  a  torre  do  poente,  cujos 
sinos  ficaram  completamente  derretidos. 

Os  trabalhos  continuaram,  e  em  todas  as  partes  do 
reino  se  preparavam  objectos,  destinados  ao  Escurial. 

A  15  de  maio  do  anno  seguinte,  completou  Felippe 
II  cincoenta  e  um  annos  de  edade,  e  entregou  ao  offer- 
torio  da  missa  outras  tantas  moedas,  chamadas  coroas 
e  mais  uma,  como  era  costume,  que  só  acabou  em  Fer- 
nando VII. 

Foi  rvesta  occasião  que  lhe  deram  a  noticia  da  morte 
do  rei  de  Portugal,  D.  Sebastião,  e  da  perda  do  seu 
exercito  em  Alcacer-Quibir. 

Não  nos  dizem  se  Felippe  II  teve  alguma  previsão  do 
futuro,  que  este  desastroso  acontecimento  lhe  prepara- 
ria, e  se  houve  Te  Deum,  depois  da  missa,  em  virtude 
d'isso. 

Em  1593  terminaram  as  obras  do  mosteiro,  trinta  e 
um  annos  depois  do  seu  começo,  mandando  o  monar- 
cha  levantar  na  villa  do  Escurial  a  egreja,  que  hoje  tem, 
em  recompensa  dos  serviços  prestados  pela  população. 

É  curiosa  a  nota  dos  jornaes  dos  operários,  a  quem 
haviam  sido  marcados  pelo  próprio  rei. 

Apezar  dos  aparelhadores  ganharem  pouco  mais  de 
200  réis  por  dia,  os  immediatos  140,  os  guardas  dos 


340  NOTAS  A  LÁPIS 


materiaes  480,  o  escrivão  240,  os  canteiros  480,  os  pe- 
dreiros 440  .e  os  outros  jornaleiros  445,  custou  o  mos- 
teiro a  cifra,  enormíssima  para  o  tempo,  de  três  mil 
contos. 

Aos  74  annos  de  edade,  Felippe  II  tinha,  segundo  é 
de  crer,  a  alma  purificada  pelas  rezas,  mas  o  corpo  apo- 
drecido por  uma  enfermidade  repugnante,  que  o  redu- 
ziu a  um  lazaro  fétido  e  digno  de  compaixão. 

Conhecendo  o  seu  fim  próximo,  mandou  fazer  o  cai- 
xão dos  restos  da  madeira,  que  sobrara  do  crucifixo  do 
altar-mor,  prevenindo  que  o  seu  corpo,  que  exhalava  já 
um  mau  cheiro  insupportavel,  fosse  envolvido  em  outro 
de  chumbo. 

Ora  essa  madeira,  que  pertencera  a  uma  arvore,  cha- 
mada angeli,  da  india  oriental,  fora  mandada  arrancar 
por  elle  da  quilha  do  galeão  porluguez  Cinco  Chagas, 
que  havia  muitos  annos  se  achava  no  porto  de  Lisboa, 
quando  veio  tomar  posse  da  usurpação,  que  fizera. 

Era  lai  a  lizura  da  sua  consciência  beata,  que  atè  não 
queria  descer  á  sepultura,  sem  ir  amortalhado  em  cou- 
sa, que  lhe  não  pertencesse. 

Bons  tempos  aquelles,  em  que  brilhavam,  ao  lado 
dos  frades  e  dos  bobos,  tão  poderosos  e  santos  varões, 
como  o  foi  tão  devotíssimo  rei ! 

# 
#      # 

A  pez  ar  da  installação  definitiva  dos  frades  e  da  pre- 
tendida conclusão  do  edificio,  todos  os  monarchas,  seus 
successores,  tiveram  obras  a  emprehender,  e  dispensa- 
ram carinhosos  cuidados  ao  mosteiro  de  S.  Lourenço 
do  Escurial. 

No  reinado  de  Felippe  III,  fez-se  aos  monges  a  entre- 
ga das  valiosas  prebendas,  com  que  os  dotara  o  seu 
antecessor;  adquiram-se  alfaias,  entre  as  quaes  figurava 
uma  custodia  de  ouro,  cravejada  de  pérolas,  diamantes 
e  rubis,  que  foi  modernamente  roubada  pelos  franeezes 


O  ESCURIÀL  341 


invasores  da  península;  augmentou-se  a  bibliotheca  com 
preciosos  manuscriptos  árabes,  turcos  e  persas,  trazi- 
dos de  Marrocos  por  Pedro  de  Lara,  capitão  das  gale- 
ras hespanbolas,  e  deu  se  começo  em  4617  ás  obras  do 
pantheon  dos  reis,  sob  a  direcção  de  Crescencio,  irmão 
do  cardeal  do  mesmo  nome  e  de  procedência  romana. 

Nos  tempos  de  Felippe  IV,  as  riquezas  do  mosteiro 
eram  taes  que  desafiaram  a  cobiça  dos  coriezãos,  á  tes- 
ta dos  quaes  figurava  o  conde-duque  de  Olivares,  que 
se  empenhou  fortemente,  com  demandas  e  argucias,  em 
despojal-o  da  maior  parte  das  suas  rendas. 

Não  Ibe  valeu  porem  a  poderosa  influencia,  que  exer- 
cia nas  acções  do  monarcba, 

Conta-se  até  que  este  Ibe  dissera  terminantemente, 
um  dia,  aconchegando  do  corpo  o  seu  luxuoso  ferra gou- 
lo:— Desenganaste,  homem.  Esses  bens  pertencem  aos 
religiosos  tão  inteiramente,  como  este  capote  me  per- 
tence a  mim. 

Em  novembro  de  1645,  continuaram  as  obras  do  pan- 
theon, ás  ordens  de  fr.  Nicolas,  vigário  do  mosteiro,  se- 
gundo os  desenhos  de  Carbonell,  architecto  do  paço  e 
execução  do  toledano  Bartholomeu  Zumbigo,  insigne 
marmorista. 

Nove  annos  depois,  fez-se  o  regulamento  para  os  de- 
pósitos dos  cadáveres,  determinando-se  que  só  lá  pode- 
riam entrar  os  corpos  dos  reis,  proprietários  da  coroa, 
e  as  rainhas,  de  quem  houvesse  successão. 

Inhumaram-se  então  Carlos  V,  primeiro  de  Hespanha, 
ao  qual  o  beaterio  attribuiu  grandes  virtudes,  porque  o 
seu  corpo  sepultado  havia  noventa  annos,  apparecera 
incorrupto  em  todas  as  suas  partes,  á  excepção  do  na- 
riz, os  Felippes  II  e  III,  a  imperatriz  D.  Izabel  e  as  rai- 
nhas D.  Anna,  D.  Margarida  e  D.  Izabel  de  Bourbon, 
primeira  esposa  do  monarcha  reinante. 

A  Carlos  II  estava  reservado  o  desgosto  de  ver  des- 
truir parte  da  obra  monumental  dos  seus  antecesso- 
res. 

Um  pavoroso  incêndio,  que  durou  15  dias,  embrave- 


341  NOTAS  A  LÁPIS 


eido  por  forte  ventania,  zombou  dos  esforços  dos  ope- 
rários e  de  toda  a  população,  que  não  poderam  evitar 
que  toda  a  cobertura  do  lado  do  norte  viesse  a  terra, 
em  menos  de  três  horas. 

O  carrilhão  dos  sinos  ficou  destruído;  queimaram-se 
mais  de  quatro  mil  manuscriptos,  árabes  na  maior  par- 
te, as  estantes  da  bibliotheca,  que  eram  de  nogueira, 
e  o  estandarte  turco  da  batalha  de  Lepanto.  Salvaram- 
se  a  egreja,  alguns  pavimentos  do  mosteiro  e  palácio 
annexo,  duas  torres,  as  alfaias  do  culto,  grande  parte 
das  obras  litterarias  e  artísticas,  os  frescos  das  salas 
capitulares,  a  habitação  prioral  e  a  sacristia. 

Ainda  assim,  o  prejuízo  foi  calculado  em  mais  de  seis- 
centos contos. 

O  rei  era  creança  ainda.  A  rainha  regente  ordenou 
aos  povos  de  oito  léguas  em  redondo  que  acudissem  a 
trabalhar  na  desobstrucção  dos  destroços,  e  começou  a 
restauração,  em  outubro  de  1672,  de  modo  que  dentro 
de  quatro  annos  ficaram  concluídas  todas  as  obras  ex- 
teriores, e  em  mais  seis  o  resto,  que  era  o  mais  impor- 
tante. 

As  despezas  eguaes,  aos  prejuízos,  foram  costeadas 
pelo  convento  em  duas  partes  e  no  terço  pelo  monarcha, 
já  então  de  maior  edade. 

São  d'essa  época  o  altar  da  sacristia,  onde  figura  o 
celebre  quadro  de  Cláudio  Coelho,  a  Santa  Forma,  e 
um  sacrário  de  filigrana  de  prata,  ouro  e  pedrarias,  que 
desappareceu  pela  invasão  franceza. 

Coelho  levou  seis  annos  a  pintar  a  sua  tela. 

O  rei  ao  ver  tamanha  demora  disse»lbe: 

— Este  quadro  e  mais  uma  dúzia  estariam  já  promp- 
tos,  se  a  encommenda  fosse  feita  a  Jordan. 

—Não  duvido,  senhor— respondeu  o  artista,  seguro 
do  seu  mérito,  que  lhe  desculpa  a  pbrase — mas  o  meu 
quadro  valerá  todos  os  de  Jerdan. 

A  opinião  geral  era  que  o  Escurial  renascera  d'entre 
as  chammas  do  incêndio  mais  grandioso  e  mais  enri- 
quecido. 


O  BSGUBIAL  343 


* 
*         * 


Felippe  V  dispensou  egualraente  ama  larga  protecção 
ao  mosteiro,  realizando  mais  algumas  obras  bos  claus- 
tros e  janellas,  em  1726. 

Repetiram-se  as  tempestades,  tão  funestas  ao  edifício. 

Um  raio  occasionou  bastantes  prejuízos,  junto  á  torre 
do  seminário;  completas  essas  obras  e  dezoito  annos 
mais  tarde,  novo  incêndio,  produzido  por  outra  faisca, 
destruiu  o  pateo  e  os  armazéns  annexos,  onde  havia 
sempre  um  numero  considerável  de  operários  e  artífi- 
ces, 

Fernando  VI,  succedendo  o  seu  pae,  reparou  estes 
prejuízos,  e  deu  ao  convento  mais  uma  renda  de  tre- 
zentos mil  reales. 

Terminados  os  despendiosos  reparos,  bouve  grande 
receio  de  que  o  mosteiro,  soffredor  de  tantos  desastres, 
desabasse  por  inteiro.  O  terremoto  de  1  de  novembro 
de  1755,  que  foi  uma  tremenda  calamidade  para  Lis- 
boa, sentiu-se  alli,  produzindo  um  terrível  abalo  em  to- 
da aquella  fabrica  gigantesca,  n'uma  oscillação  de  alguns 
minutos.  O  susto  porem  foi  o  único  prejuízo  de  então. 
Em  memoria,  disso,  toda  a  communidade,  d'alli  em  dian- 
te, celebrava  annualmente  e  n'aquelle  dia  um  apparato- 
so  Te  Deum. 

Carlos  III  também  quiz  contribuir  para  o  aformosea- 
mento  da  localidade,  e  mandou  construir  á  sua  custa  o 
que  hoje  se  chama  Casa  de  Abajo,  ao  fundo  da  cerca, 
dotando-o  com  muitos  objectos  de  valor  real  e  artístico, 
alguns  dos  quaes  mencionaremos  em  outra  parte. 

Durante  o  reinado  de  Carlos  IV  porem  houve  uma 
época  de  verdadeira  decadência. 

Em  1799,  deu  o  convento  para  as  urgências  do  Es- 
tado mais  de  doze  arrobas  de  prata  das  alfaias  de  me- 
nor necessidade  e  importância.  Em  outubro  do  mesmo 
anno,  desappareceu  da  sacristia  o  riquíssimo  peitoral, 


344  NOTAS  A  LAPI8 


que  usava  o  prior  nas  grandes  solemoidades,  sem  que 
até  hoje  se  saiba  onde  pára.  Era  de  ouro  esmaltado  e 
todo  cravejado  de  esmeraldas,  diamantes,  rubis  e  péro- 
las, a  maior  das  quaes  era  do  tamanho  de  um  ovo  de 
pomba. 

Por  denuncia  de  um  francez,  Frederíc  Quillet,  que 
conseguira  insinuar-se  na  confiança  dos  frades,  e  conhe- 
cer o  sitio,  onde  se  guardavam  as  melhores  alfaias,  os 
chefes  das  tropas  de  Napoleão  apoderaram-se  das  me- 
lhores preciosidades  do  convento,  desmontando  alé  al- 
guns altares  e  objectos,  que  não  poderam  levar,  e  trans- 
formando em  quartel  o  afamado  edifício. 

Sal  vou-se  apenas  a  custodia,  onde  hoje  se  guarda  a  santa 
forma,  escondida  n'uma  parede  por  um  dos  poucos  fra- 
des que  permaneceram  alli. 

Fernando  VII,  tentou  reparar  semelhantes  destroços, 
dispendendo  grossas  quantias,  ordenando  ao  prior  que 
procurasse  averiguar  o  paradeiro  de  algumas  alfaias, 
roubadas  por  particulares,  á  sombra  das  tropas  france- 
zas,  e  reclamando  do  governo  de  Paris  as  pinturas  e 
objectos  do  culto. 

Aquellas  voltaram  na  sua  maior  parte,  perdendo-se 
ainda  assim  mais  de  duzentos  originaes,  mas  estes  nunca 
mais  volveram  ao  Escurial. 

Recobraram-se  a  bibliotheca,  com  grandes  perdas,  o 
tabernáculo  e  por  diligencias  do  prior,  algumas  roupas 
e  livros. 

Eis  tudo. 

São  d'este  reinado,  os  dois  púlpitos,  que,  pela  des- 
harmonia  e  acanhado  das  proporções,  estabelecem  uma 
robusta  prova  de  mau  gosto. 

Nos  tempos  de  Izabel  II,  por  causa  da  guerra  civil 
entre  esta  e  D.  Carlos,  traslada ram-se  para  Madrid  os 
quadros  de  maior  valia,  incluindo  os  da  Casa  de  Abajo, 
as  melhores  alfaias  e  os  objectos  do  palácio,  de  modo 
que,  á  saída  dos  frades,  só  ficou  de  pé  o  edificio,  um 
tanto  damnificado  aqui  e  acolá,  e  acompanhado  do  re- 
nome da  sua  grandeza  de  outrora. 


O  B8GUBIAL 


Hoje  o  mosteiro  do  Escuríal  e  suas  dependências  es- 
tio encorporados  aos  bens  da  coroa,  servindo  de  escola 
e  recreio  a  seminaristas  e  militares  e  de  curiosidade  a 
estudiosos  e  viajantes. 


II 


Parte  descriptiva.— O  exterior  do  mosteiro.— O  templo. 

A  stfa  do  lavatório. 

A  sacristia.—  O  coro  e  o  zimbório. 


Continuaremos  a  servir-nos  dos  Apuntes,  que  temos, 
quanto  á  parte  descriptiva,  mencionando  somente  o  que 
nos  parecer  digno  de  maior  nota,  e  formando  uma  ana» 
lyse  ligeira,  como  é nosso  costume,  ao  sabor  das  nossas 
impressões,  que  indvidualisâmos  sempre  com  a  máxima 
independência. 

O  aspecto  geral  do  mosteiro  de  S.  Lourenço,  incluindo 
toda  a  sua  vasta  co&strucção,  convento,  egreja  e  palácio, 
a  despeito  da  sua  grandeza,  é  triste  e  pesado,  em  oppo- 
sição  manifesta  á  lelleza  typica  do  local. 

É  todo  de  grarfto  escuro,  a  que  lá  chamam  pedra 
berroquenba,  obedece  na  maior  parte  á  simplicidade  da 
ordem  dórica,  e  <ccupa  uma  superfície  de  quarenta  e 
cinco  mil  metros  quadrados,  aos  lados  e  em  frente  de 
uma  praça  irregubr,  cercada  por  pilares  e  correntes  de 
ferro. 

À  frontaria,  onde  está  a  porta  principal,  do  lado  do 
occidente,  mede  luzentos  e  trinta  e  cinco  metros,  tem 
duas  torres  nas  extremidades,  terminando  n'uma  es- 
phera  da  metal,  teimada  pela  cruz. 


916  NOTAS  A  LÁPIS 


A  portaria  apresenta  dois  corpos.  O  primeiro  vae  até 
á  cornija,  que  abraça  o  edifício;  o  segundo  de  ordem 
jónica  ostenta  a  figura  de  S.  Lourenço,  em  estatua  do 
mesma  granito,  á  excepção  da  cabeça,  pés  e  mãos,  que 
são  de  mármore  branco;  o  que  dá  ao  santo  um  aspecto 
extravagante.  Entre  os  dois  corpos,  avultam  as  armas 
reaes.  Os  umbraes  de  pedra  inteiriça  foram  conduzidos, , 
ao  que  se  diz,  em  uma  só  carreia  por  48  juntas  de  bois. 

De  cada  lado  ba  duas  portas  eguaes,  que  dão  para  o 
seminário,  para  os  claustros  e  cosinbas,  e  em  toda  a 
frontaria  duzentas  sessenta  e  seis  janellas,  incluindo  as 
das  torres,  unicamente  para  as  três  portas  mencionadas. 

A  fachada  do  sul,  que  medirá  cento  noventa  e  um 
metros,  deita  sobre  a  cerca ;  tem  quatro  ordens,  ou  pa- 
vimentos, com  duzentas  noventa  e  seis  janellas  para 
cinco  portas  muito  pequenas,  três  ao  centro  e  uma  em 
cada  torre. 

A  do  nascente  é  um  triste  amontoado  de  construc- 
ções  irregulares  com  trezentas  ntventa  e  seis  janellas, 
duas  torres,  que  pretendem  barmonisar  com  as  da  fron- 
taria, e  cinco  portas,  que  deitam  para  o  jardim.   . 

A  do  norte,  com  egual  distancia  á  do  sul,  visto  que 
a  planta  é  um  parallelogrammo  rectângulo,  tem  cento  e 
oitenta  janellas  e  quatro  portas,  qie  levam  a  do  meio 
ás  cosinbas  e  depósitos  do  palácio,  a  da  direita  ao  col- 
legio,  a  da  esquerda  ás  habitações  reaes  e  a  quarta  á 
chamada  Torre  das  damas. 

Por  estas  ligeiras  minnciosidades  se  pôde  fazer  idéa 
da  feição  irregular,  triste  e  pesada  c'este  grande  misti- 
forio  architectonico. 

# 
#      # 

Depois  da  porta  principal,  atravessa-se  um  saguão,  e 
entra-se  no  Pateo  dos  Reis,  assim  chanado  por  seis  es- 
tatuas, que  o  guarnecem,  e  represeitam  outros  tantos 
monarcbas  do  Velho  Testamento—  losafat,  Ezequias, 
David,  Salomão,  Josias  e  Manacés. 


O  ESCUMAL  347 


Tem  cada  uma  perto  de  seis  metros  de  ai  tora,  cabe- 
ça, mãos  e  pès  de  mármore,  e  foram  tiradas  com  a  de 
S.  Lourenço  de  uma  só  pedra,  segundo  a  cbronica, 
d'oode  veio  a  dizer-se : 

Seis  Reyes  y  un  Santo 
Salieron  de  este  canto, 
E  quedo  para  otro  tanto. 

Ao  fundo,  duas  torres  e  em  seguida  o  átrio  aboba- 
dado, que  precede  a  egreja.  Forma  esta  um  quadrado 
de  cincoenta  e  cinco  metros,  e  é  da  mesma  ordem  dó- 
rica e  granito  escuro,  que  guarnece  todo  o  edifício;  as 
arcarias  das  duas  naves  formam  uma  perfeita  cruz  gre- 
ga, estylo  bysantino. 

No  extremo  da  nave  principal  a  frontaria  dos  dois  ór- 
gãos, que  já  não  funccionam;  ao  centro  o  lanternim, 
no  ápice  do  zimbório,  que  fornece  a  luz  por  trinta  e 
oito  janellas  vidraçadas. 

O  altar-mór,  a  que  se  sobe  por  doze  degraus  de  mar- 
more  sanguíneo,  é  sumptuoso,  e  contrasta  com  a  seve- 
ridade do  templo.  O  pavimento,  onde  terminam  os  pri- 
meiros degraus  é  de  mármore  de  cores,  que  formam 
beilos  desenhos;  depois  de  mais  cinco,  que  são  os  se- 
gundos, chegámos  ao  altar  de  jaspes  e  pedras  embuti- 
das, sendo  a  que  o  cobre  toda  consagrada  em  ara,  in- 
teiriça e  de  jaspe. 

Àos  lados  do  altar,  duas  portas  com  enfeites  de  jas- 
pe verde,  pelas  quaes  se  chega  ao  sacrário. 

O  retábulo  compõe-se  de  quatro  corpos.  No  primei- 
ro, seis  columnas  de  ordem  dórica  e  mármore  sanguí- 
neo, com  bases  e  capiteis  de  bronze  dourado  a  fogo, 
correspondendo  a  outras  de  menor  importância;  nos  in- 
tercolumnios  lateraesas  estatuas  dos  quatro  doctores  da 
egreja  e  dois  quadros  de  Tibaldi,  que  representam  o 
nascimento  do  Senhor  e  a  adoração  dos  Magos;  ao  fun- 
do um  arco  com  os  mencionados  enfeites  de  jaspe  ver* 
de,  onde  está  o  sacrário,  cheio  de  pinturas  alegóricas, 


348  NOTAS  A  LÁPIS 


a  que  fornece  a  luz  uma  janella,  aberta  no  pateo  da  ha- 
bitação real. 

O  segundo  corpo,  de  ordem  jónica,  tem  as  columnas 
e  a  distribuição  do  anterior,  as  estatuas  dos  evangelis- 
tas, o  quadro  da  flagelação  e  o  da  cruz  ás  costas,  de 
Zucbaro,  e  no  centro  o  martyrio  de  S.  Lourenço,  por 
Tibaldi. 

O  terceiro  é  corinthio,  conta  quatro  columnas,  e  tem 
ao  fundo  a  Annunciação  da  Virgem  e  aos  lados  a  Res- 
surreição e  a  vinda  do  Espirito  Santo,  por  Zucharo.  Nas 
extremidades  e  sob  a  cornija  do  templo  duas  pyrami- 
des  de  jaspe  verde  e  as  estatuas  de  Santo  Àndrè  e  S. 
Tbiago. 

O  ultimo  é  de  ordem  compósita,  com  duas  colum- 
nas, que  sustentam  um  frontão  triangular,  remate  de 
todo  o  retábulo,  encimado  pelas  estatuas  de  S.  Pedro 
e  S.  Paulo,  feitas,  como  as  outras,  por  Leão  Leoni. 

Ao  fundo  (Teste  corpo  um  revestimento  de  mármore 
verde,  ao  centro  o  grande  crucifixo  feito  de  madeira, 
arrancada  da  quilha  do  navio  porluguez  Cinco  Cha- 
gas. 

O  tabernáculo,  que  é  uma  obra  muito  aprimorada  e 
muitíssimo  valiosa,  assenta  n'um  sócco  de  jaspes,  ^on- 
de sobem  oito  columnas  corintbias  de  diaspro  sanguí- 
neo, listado  de  branco,  em  cujo  trabalho,  pela  extrema 
dureza  da  pedra,  foi  necessário  empregar  diamantes. 
As  bases  e  os  capiteis  são  de  bronze  dourado  a  fogo. 
Aos  pontos  cardeaes  correspondem  quatro  portas,  as 
do  nascente  e  poente  abertas  e  defendidas  por  crista  es, 
as  outras  duas  fechadas  por  uma  prancha  de  alabastro. 

Nos  inlercolumnios,  quatro  estatuas  de  apóstolos; 
sobre  a  cornija,  quatro  pedestaes  resaltados,  servindo 
de  peanbas  a  outras  tantas  figuras  dos  mesmos  santos. 

A  cúpula  é  franjada  de  bronze,  guarnecida  de  pedra- 
ria de  diversas  cores  e  encimada  por  um  pequeno  lan- 
ternim,  que  serve  de  base  á  figura  do  Salvador. 

Tem  esta  valiosíssima  construcção  a  altura  de  cinco 
metros  e  metade  no  seu  diâmetro. 


O  E9CUBIAL  319 


Os  quarenta  e  dois  altares  restantes  não  tem  impor- 
tância que  não  seja  a  de  alguns  dos  painéis,  que  os  com- 
põem. 

Os  púlpitos  do  tempo  de  Fernando  VII,  apezar  do 
seu  alabastro  e  mármores  tinos,  bronzes  e  mais  ador- 
nos, sâo  obra  acanhada,  que  destoa  no  meio  do  conjun- 
cto  geral  do  templo,  cujas  abobadas  são  inteiramente 
cobertas  de  pinturas,  a  fresco,  do  antigo  e  novo  Testa- 
mento, com  extraordinária  profusão  e  variedade  de  as- 
sumptos. 

Em  plano  superior  e  em  frente  da  sacristia,  estão  os 
oratórios  reaes,  correspondendo  o  da  epistola  ao  quar- 
to, onde  morreu  Filippe  II;  e  no  topo  das  naves  infe- 
riores os  relicários,  onde  ba  corpos  inteiros,  cabeças  e 
ossos,  em  numero  incalculável. 

# 
#      # 

Caminho  da  sacristia,  encontrasse  a  sala  do  lavatório, 
que  é  uma  vasta  peça  de  mármore  inteiriço.  Todas  as 
pinturas  do  tecto  são  executadas  a  fresco  e  do  género 
grotesco,  á  excepção  do  centro,  um  pedaço  de  ceu 
aberto,  d'onde  baixa  um  anjo,  trazendo  nas  mãos  toa- 
lha e  jarro.  Nas  paredes  figuram  bons  quadros  de  Jor- 
dan,  Ri  vera  e  outros. 

A  sacristia,  alumiada  por  quatorze  janellas,  colloca- 
das  do  lado  do  oriente,  junto  ao  pavimento  e  sob  a  cor- 
nija, é  quadrilonga  e  ampla,  como  uma  das  peças  prin- 
cipaes  do  edificio.  Na  parede,  fronteira  nove  figuras,  que 
correspondem  ás  janellas  superiores,  e  por  baixo  os  ga- 
vetões do  guarda-roupa,  em  dois  corpos,  construídos 
de  buxo,  nogueira,  ébano,  cedro  e  outras  madeiras  cus- 
tosas. 

O  primeiro  corpo  é  dividido  por  pilastras  em  sete 
portas  eguaes,  cheias  de  molduras  e  embutidos,  tendo 
cada  uma  quatro  gavetões,  que  podem  guardar  os  para- 
mentos desdobrados,  ainda  os  de  maiores  dimensões. 


380  NOTAS  A  LAHS 


O  segundo  e  mais  importante,  pelos  bronzes  que 
tem,  é  de  ordem  corinlhia,  cujas  columnas  servem  co- 
mo que  de  molduras  ás  portas  dos  armários,  onde  se 
depositam  os  vasos  e  outras  alfaias  do  culto. 

Ao  centro  um  bello  espelho,  guarnecido  de  cristal  da 
rocha,  presente  da  mãe  de  Carlos  II,  e  aos  lados  seis 
mais  pequenos.  O  ehão  é  de  mármores  escuros  e  bran- 
cos, eguaes  aos  do  templo,  e  a  abobada  pintada  gro- 
tescamente, como  a  da  sala  anterior. 

Nas  paredes  uma  boa  collecção  de  quadros,  para 
cuja  analyse  minuciosa  nos  faltou  o  tempo. 

A  invasão  franceza  fez  desapparecer  a  maior  parte 
dos  paramentos,  em  grande  numero  bordados  sobre  lha- 
ma  de  ouro  e  prata,  segundo  os  desenhos  de  bons  pin- 
tores. Bestam  ainda  três  ternos  completos,  onde  em 
campo  de  prata,  salpicada  de  ouro,  reproduziram  os 
monges  bordadores  muitos  quadros  sacros,  pelos  debu- 
xos de  Peregrino,  o  mudo,  e  um  capitulario,  in  folio 
escripto  por  frei  Martin  de  Palencia,  monge  benedicti- 
no,  e  adornado  de  dezoito  vinhetas,  pintadas  por  três 
co I legas  seus. 

Ê  aqui  que  está  o  altar  da  Santa  Forma,  tio  faltado 
pelo  quadro  movei  de  Cláudio  Coelho. 

Manda  a  verdade  porém  que  se  diga  que  uma  cousa 
è  digna  da  outra. 

No  topo  principal  do  quadrílongo,  levantam-se  seis 
pilastras  de  jaspe,  com  embutidos  de  mármore  e  ador- 
nos de  bronze  dourado;  sobre  o  entablamento,  que  for- 
mam, quatro  columnas,  com  bases  e  capiteis  do  mesmo 
metal;  entre  duas  pilastras,  o  altar  transparente,  atra- 
vessando os  dois  corpos  de  alto  a  baixo. 

Aos  lados,  doas  portas,  lavradas  em  madeiras  finas 
e  enfeitadas  com  bronzes  e  conchas,  castellos  e  leões  do 
mesmo  metal,  tendo  nas  vergas  um  leão,  sustentando 
nas  garras  dianteiras  um  globo  e  um  sceptro. 

Entre  a  verga  e  a  cornija,  um  nicho,  coberto  de  már- 
more branco  relevado,  e  encimado  por  uma  águia  de 
bronze,  com  o  tosão  de  ouro  pendente  do  bioo.  No  prí- 


O  EiCUWAL  351 


meiro  nicho,  representa-se  o  imperador  Rodolfo  II,  no 
acto  de  entregar  a  Santa  Forma  aos  commissionados 
de  Felippe  II;  no  outro,  este  monarcha,  na  occasião  de 
a  receber. 

No  segundo  corpo,  ha  serapbios  de  mármore  branco 
de  Génova,  e  na  voluta,  a  toda  a  altura  do  transparen- 
te, anjos  de  bronze  sentados,  ladeando  outro,  que  está 
coroado  de  louros,  e  ostenta  nas  mãos  uma  inscripção 
allusiva. 

Sobre  as  columnas  extremas,  pousam  novos  anjos  e 
dois  baixos  relevos,  representando  os  berejes,  que  pi- 
saram as  ostias,  e  o  arrependimento  do  chefe,  á  vista 
do  milagre  operado. 

O  sacrário  è  um  templosinbo  de  bronze  dourado  a 
fogo,  executado  com  certa  perfeição  por  um  monge  lei- 
go do  convento. 

Tanto  este  como  o  transparente  ficam  occultos  pelo 
famoso  quadro  de  Cláudio  Coelho,  que  lá  reproduzia  a 
sacristia  e  a  procissão,  que  houve  na  trasladação  da 
Santa  Forma  para  o  altar. 

Em  occasiões  solemnes,  o  quadro  baixa  até  ao  pavi- 
mento, onde  se  occulta,  e  o  altar  fica  inteiramente  a 
descoberto. 


O  coro,  para  onde  se  entra  pelos  arcos,  em  que  ter- 
minam os  antecoros,  podia  só  por  si  abranger  uma 
egreja  regular,  tamanha  é  a  sua  vastidão. 

E  essa  vastidão,  o  pavimento  de  mármores,  as  duas 
ordens  de  bancadas  corinlhias,  feitas  de  madeiras  finas, 
a  estante  central,  a  maior  que  temos  visto,  as  pinturas 
do  tecto — representam  óptima  commodidade  e  corres- 
pondente grandeza. 

Entre  as  duas  ordens  de  assentos  ha  espaço,  que  dá 
volta  ao  coro.  A  primeira  é  simples,  a  segunda  egual 
até  ao  espaldar,  que  serve  de  pedestal  a  uma  ordem  de 
columnas  inteiras,  estriadas  de  alto  a  baixo,  com  bases 


352  NOTAS  A  LÁPIS 


e  capiteis  de  buxo  lavrado,  formando  com  outras  um 
entablamento  de  cedro,  que  serve  de  baldaquino  a  cada 
cadeira. 

Ao  fundo,  no  topo  que  olha  para  o  altar-mór,  o  as- 
sento prioral,  collocado  a  meio  de  um  troço  de  colam- 
nas,  que  formam  arco  ao  centro,  e  emolduram  um  qua- 
dro do  Senhor  com  a  cruz  ás  costas,  acabando  em  fron- 
tão, onde  se  vé  a  estatua  de  S.  Lourenço. 

Por  detraz  desta  cadeira,  ha  varandas  que  dão  para 
o  pateo  dos  Beis,  e  no  o  eco,  feito  no  macisso  da  pare- 
de, um  altar,  onde  se  admira  um  crucifixo  de  mármore 
branco,  uma  obra  prima,  esculpturada  por  Benevuto 
Celini,  em  Florença,  no  anno  de  4562. 

O  chríslo,  cuja  cabeça  nos  impressiona  vivamente  pe- 
lo toque  inimitável  das  suas  feições  e  contornos,  é  de 
tamanho  natura),  e  está  cravado  n'uma  cruz  de  mármore 
preto  de  Garrara,  que,  por  sua  vez,  assenta  n'outra  de 
madeira.  » 

Ao  lado  do  portentoso  crucifixo,  ha  dois  quadros  da 
Virgem  e  S.  João,  devidos  ao  pincel  de  Peregrino,  a 
que  já  nos  referimos,  por  lhe  pertencerem  os  debuxos 
dos  paramentos. 

No  angulo  direito,  tendo  ao  lado  uma  porta,  por  on- 
de Felippe  II  recebia  recados  ou  noticias,  sem  chamar 
a  attenção  da  communidade,  a  cadeira  que  pertenceu  a 
este  monarcha,  movei,  que  só  pela  largura  se  differença 
dos  cento  e  vinte  e  quatro,  pertencentes  aos  frades. 

Desde  a  bancada  superior  até  á  cornija,  que  è  a  mes- 
ma que  dá  volta  ao  templo,  ba  soffriveis  pinturas  e  a 
meio  dos  dois  lados  um  balcão  de  bronze  para  os  can- 
tores, adiante  dos  órgãos,  feitos  de  pinho  de  Cuenca, 
com  frontaria  dourada  e  de  ordem  coriotbia,  a  que  obe- 
dece toda  a  construcção  do  coro. 

Aos  lados  dos  órgãos,  figuram  quatro  bellos  quadros 
de  Gincinnato — S.  Lourenço,  seguindo  o  pontífice  Sixto, 
quando  era  conduzido  ao  martyrio— O  acto  da  apresen- 
tação dos  pobres,  como  symbolo  da  egreja  christã,  ao 
martyrisador—S.  Gregório,  escrevendo  os  commenta- 


J 


O  ESCUBIAL  353 


rios  da  bíblia,  com  um  anjo,  que  lhe  toca  uma  trombe* 
ta,  no  primeiro  plano,  e,  a  distancia,  o  mesmo  santo  a 
fazer  penitencia— e  por  ultimo,  ainda  S.  Gregório,  ex- 
plicando a  bíblia  aos  frades,  e,  nos  longes  do  quadro, 
o  seu  enterro. 

O  facistol  rodante.  ou  a  estante  quadrangular,  que 
se  vê  collocada  a  meio  do  coro,  è  enorme  e  curiosa.  O 
socco  é  de  jaspe  sanguíneo  e  mármore  branco;  d'alli 
partem  quatro  pilastras  de  bronze  dourado  e  uns  varões 
de  ferro,  que  vão  unir-se  à  um  centro  também  de  ferro, 
em  forma  de  annel,  onde  gira  o  espigão  da  estante,  fei- 
ta de  espinheiro,  com  faxas  de  bronze  dourado,  doze 
metros  de  circumferencia,  que  vae  diminuindo  para  apoio 
dos  livros  n'uma  diíTerença  de  três,  e  um  peso  de  qui- 
nhentas arrobas. 

As  esquinas  estão  cortadas,  e  teem  uma  abertura  ou 
viseira,  por  onde  se  pode  observar  o  altar-mór. 

Sobre  a  cornija,  em  que  termina,  ha  quatro  esferas 
•  de  bronze;  sobre  ellas  assenta,  em  forma  de  cruz,  a  ba- 
se de  um  templosinbo,  sustentado  por  doze  columnas; 
nas  quatro  extremidades  outras  tantas  fachadas  triangu- 
lares; no  meio,  que  ellas  formam,  a  cupulasita  de  ex- 
cellentes  madeiras  lavradas. 

Debaixo  do  templete,  uma  estatua  da  Virgem,  sobre 
a  cúpula  um  crucifixo,  como  remate  do  movei,  notabi- 
lissimo  a  todos  os  respeitos. 

A  estante,  nas  quatro  faces,  só  pode  levar  outros 
tantos  livros,  que  são  em  tudo  dignos  d'ella. 

A  collecção,  que  se  guarda  nos  differentes  antecoros, 
compõe-se  de  219,  prefazendo  um  total  de  dezesete 
mil  folhas  de  grosso  pergaminho,  piei  de  macho,  com 
5  palmos  de  alto  por  4  de  largura ! 

Estas  pelles,  perfeitamente  curtidas,  brancas  e  pacien- 
temente manuscriptas,  procedem  na  maior  parte  de  Va- 
lência e  algumas  de  Flandres. 

É  tal  o  tamanho  da  escripta,  que  uma  pagina,  nos 
s&us  cinco  palmos  de  altura,  tem  apenas  quatro  ordens  de 
cantochão,  e  onde  elle  não  è  preciso  dez  Hnhas  de  texto. 

23 


354  MOTAS  A  LÁPIS 


Os  artistas  nacionaes,  encarregados  d'este  trabalho, 
durante  annos,  alem  dos  bons  ordenados,  que  eram 
contados  por  cada  oito  folhas  concluídas,  Unham  casa, 
medico  e  botica,  e  foram  Cristobal  Ramires,  de  Valên- 
cia, frei  Martin  de  Valência,  benedictino  de  Valladolid, 
Francisco  Hernandes,  das  cercanias  de  Segóvia,  Pedro 
Saloverte,  de  Burgos,  e  Pedro  Gomes,  de  Cuenca. 

As  virgulas,  as  letras  iniciaes  e  as  vinhetas,  muito 
bem  illuminadas,  foram  executadas  pelos  leigos  do  mos- 
teiro, frei  Ândrès  de  Leon,  frei  Julião  de  Fuente  e  Am- 
brósio Salazar. 

A  encadernação,  de  asinheira,  tem  o  forro,  cantonei- 
ras e  guarnições  de  bronze,  dois  medalhões  entalhados, 
e  a  meio  d'elles  umas  grelhas  e  uma  tira  de  pergami- 
nho, indicando  a  parte  do  officio  divino,  a  que  corres- 
ponde  o  volume,  que  è  cerrado  por  fechos  de  bronze, 
e  apresenta  na  parte  inferior  três  rodas  para  a  facilida- 
de do  manejo  nas  estantes,  tamanho  é  o  seu  peso. 


Posto  que  o  zimbório  do  templo  nos  desperte  muita 
attenção  pela  sua  forma  e  tamanho,  pouco  nos  detere- 
mos com  elle,  indicando  apenas  que  para  lá  chegar  é 
preciso  subir  quatro  escadas  differentes,  até  á  balaus- 
trada, que  precede  a  cúpula,  aonde  se  sobe  por  outras 
tantas  escadarias  de  caracol,  abertas,  como  era  costume, 
no  macisso  dos  pilares. 

Al  li  chega-se  a  outra  balaustrada,  e  gosa-se  a  vista 
geral  do  edifício  e  um  bellissimo  panorama,  emoldura- 
do pelas  montanhas.  Fica-nos  ainda  por  cima  o  lanter- 
nim,  cuja  abobada  serve  de  apoio  a  uma  pyramide  de 
pedra  estriada,  encimada  por  uma  esfera  e  cruz  enor- 
mes, que  pesam  209  arrobas. 

Um  ponto  brilhante,  que  se  vê  a  meio  da  pyramide, 
é  uma  chapa  de  cobre  dourado  a  fogo,  que  fecha  o  lu- 
gar, onde  o  devotíssimo  fundador  do  mosteiro  teve  o 


O  BSCUBIAL  355 


mau  gosto  de  mandar  encerrar  umas  relíquias  de  S. 
Pedro,  S.  Paulo  e  Santa  Barbara,  que,  talvez  despeita- 
da por  essa  lembrança,  não  empregou  o  seu  prestigio 
na  defeza  do  convento,  tantas  vezes  invadido  e  damni- 
ficado  pelos  raios. 

Voltando  á  egreja,  e  saindo  d'ella  á  esquerda  do  al- 
tar-mór,  desceremos  uns  doze  degraus  até  ao  retrato  de 
frei  Nicolás  de  Madrid,  que  se  destinguiu  na  obra,  que 
vamos  apontar,  e  baixando  ainda  para  a  esquerda  mais 
treze,  chegaremos  á  portaria  do  afamado  pantheon  dos 
Reis. 


III 


O  Panteon  de  los  Reyes.— Ot  pndrideroi .— O  Panteon  de  los 
Infantes. —Claustros  e  bibliotheca.— O  palácio.— Casas  de 
Arriba  e  Abajo.— Prevenção  inesperada,  como  ponto  final. 


A  frontaria,  esta  obra  notável  do  Panteon  de  los 
Reyes,  foi  traçada  pelo  arcbitecto  Bartbolomeu  Zumbigo, 
em  dois  corpos  de  ordem  compósita,  que  occupam  o 
claro  de  um  arco,  sendo  o  primeiro  dois  soccos,  onde 
se  firmam  as  columnas  e  pilares,  em  meias  cannas,  que 
sustentam  a  cornija,  sobre  a  qual  avultam  duas  figuras 
de  execução  italiana,  representando  a  da  direita  a  Na- 
tureza desfallecida,  ao  cair-lbe  a  coroa  e  ao  abandonar 
o  sceptro  para  suster  um  pergaminho,  onde  se  lê—iVa- 
tura  occidit—  e  a  da  esquerda  a  Esperança,  empunhan- 
do n'uma  das  mãos  um  facho  e  na  outra  a  inscripçSo 
—Spes  exaltat.  Pilastras,  columnas  e  revestimentos  são 
de  bello  mármore;  bases,  capiteis  e  figuras  de  bronze 
dourado. 


356  NOTAS  A  LÁPIS 


O  segundo  corpo  forma-o  a  porta  de  grade,  em  dois 
batentes, formada  de  balaustres  (Teste  metal  dourado  a 
fogo  sobre  largos  soccos  de  género  egual.  Por  cima  á 
bordada  cornija,  uma  inscripção  latina  formada  por  le- 
tras douradas  sobre  lapide  de  mármore  preto,  ladeada 
de  dois  dragões  de  bronze  e  vários  adornos  da  mesma 
pedra  branca. 

Abertos  os  dois  batentes,  á  frouxa  claridade  que  se 
gosa,  descobre-se  uma  estreita,  mas  sumptuosa  escada- 
ria, em  três  lanços  e  trinta  e  quatro  degraus  de  jaspe 
de  Tortosa  e  mármore  de  Toledo,  tão  bem  unidos  e  fa- 
ceados, que  se  confundem,  retratando  a  nossa  figura 
como  espelhos  luzentes. 

Do  que  se  encontra  aos  lados  faltaremos  á  volta. 

Chegados  ao  fundo,  achâmos-nos  no  pantheon,  collo- 
cado  sob  o  altar-mór,  n'uma  sumptuosíssima  peça  octo- 
gona,  que  obedece  na  architectura  á  ordem,  bronzes  e 
jaspes  do  portal  e  da  escadaria. 

O  pavimento  tem  ao  centro  um  florão  de  pedras  e  jas- 
pes de  cores,  d'onde  saem  faxas  a  formar  estreita ;  a  abo- 
bada outro  florão  de  bronze,  a  meio  de  um  annel  de  jas- 
pes, d'onde  pende  uma  lâmpada,  ou  aranha,  obra  feita 
em  Génova  por  Virgilio  Faneli.  Contem  24  braços  em 
três  ordens ;  os  primeiros,  que  são  sustentados  por  ca- 
beças de  dragões  antepostos  a  outras  tantas  águias ;  os 
segundos  por  anjos  ajoelhados  sobre  misulas,  que  ser- 
vem de  cadeias,  e  os  terceiros  por  figurinhas  aladas,  sen- 
tadas á  borda  da  bacia.  Debaixo  as  figuras  dos  quatro 
evangelistas  e  em  toda  a  peça  adornos  e  tropheus  mili- 
tares, formando  na  parte  superior  dois  dragões  sobre 
uma  coroa  real  e  na  inferior  quatro  cobras  enroscadas. 

O  altar  fronteiro  á  escadaria  tem  um  crucifixo  de 
bronze  em  cruz  de  mármore  preto  de  Biscaia,  feito  por 
Pedro  Taça,  de  Ca r rara,  e  collocado  alli  por  Velasquez ; 
e  o  retábulo  da  mesa  sagrada  um  baixo  relevo,  repre- 
sentando o  enterro  do  Senhor,  esculpturado  pelos  leigos 
Eugénio  de  la  Cruz  e  Juan  de  la  Concepcion. 

As  urnas  muraes,  destinadas  aos  cadáveres  reaes,  oc- 


O  ESCDRIAL  357 


cupam  todo  o  espaço  de  alto  a  baixo,  e  são  feitas  de 
mármore  escuro,  sustidas  em  quatro  garras  de  leão,  e 
tem  ao  centro  uma  lamina  de  bronze,  com  o  nome  do 
rei  ou  rainha,  cujos  restos  lá  repousam. 

A  impressão,  que  nos  produz  tudo  aquillo,  obedece 
a  sentimentos  de  encontrada  natdreza  —  mesquinhez  e 
grandeza,  sumptuosidade  e  mau  gosto. 

Grandeza  e  sumptuosidade,  pelo  custoso  material  da 
construcção  e  pelas  provas  de  uma  execução  aprimo- 
rada ;  mesquinhez  e  mau  gosto,  porque  a  escadaria  de 
mármores  e  jaspes  não  chega  a  medir  dois  metros  de 
largura,  e  o  recinto  tem  apenas  doze  de  diâmetro;  por- 
que se  procurou  desnecessariamente  um  subterrâneo  hú- 
mido, sem  ar  nem  luz,  e  tão  húmido  que  foi  preciso 
cortar  a  veia  de  uma  fonte,  que  nasce  no  jardim,  de  um 
modo  que  não  evita  pequenas  mas  prejudiciaes  infiltra- 
ções, e  porque  finalmente  o  acanhado  do  espaço  preju- 
dica o  effeito  geral,  que  ninguém  pode  observar  plena- 
mente, por  falta  de  claridade. 

Custa  a  crer  realmente  que  se  emprehendesse,  e  le- 
vasse a  cabo  obra  de  tal  cunho,  em  circumstancias  tão 
condemnaveis  de  acanhamento  e  mau  gosto,  que  se  es- 
tendem ás  dependências,  onde  vamos  entrar— os  Pudri- 
deros  e  o  Panteon  de  los  Infantes,  cujas  portas  se  encon- 
tram no  segundo  lanço  da  escadaria  de  jaspes. 

Os  Pudrideros,  que  na  verdade  representam  deplorá- 
veis podridões  em  semelhante  lugar,  são  quartos  escu- 
ros, onde  os  cadáveres  reaes  ficam  vinte  ou  trinta  annos 
a  escorrer  os  soros  fétidos  até  serem  conduzidos  para  o 
pantheon.  Depois  dos  respectivos  responsos,  pegam  no 
caixão  de  chumbo,  que  encobre  o  morto,  collocamno 
ao  centro  do  quarto  sobre  cunhas  de  madeira,  praticam- 
lhe  uns  furos,  por  onde  possam  sair  humidades  e  mau 
cheiro,  e  fecham  a  porta  com  tabique,  que  deitam  abaixo 
no  fim  dos  annos,  destinados  á  dissecação  do  cadáver. 

O  pantheon  dos  Infaotes,  nome  tão  campanudo  como 
immodesto,  esse  nem  merece  duas  linhas  de  recorda- 
ção; tem  dois  pudrideros  no  primeiro  pavimento,  e  no 


358  NOTAS  A  LAPTS 


segundo  umas  caixas  de  pinho,  com  pinturas  a  fingir 
mármore,  em  três  ordens  pobríssimas. 

Se  com  todos  aquelles  subterrâneos  pretenderam  in- 
dicar humildade,  muito  mal  fizeram  em  dar  ao  lugar, 
destinado  aos  reis,  tanto  fausto  e  tamanha  sumptuosidade. 

Se,  ao  contrario,  quizeram  construir  um  monumento, 
digno  de  ser  duplamente  chamado  pantbeon,  em  peor  e 
mais  deplorável  situação  ficaram,  porque  o  local,  as 
proporções  de  tamanho,  ar,  largueza  e  luz,  e  as  edifica- 
ções annexas  são  de  uma  imprevidência,  mau  gosto  e 
desconcerto,  levados  ao  extremo. 


A  entrada  principal  para  os  lados  do  convento  está  no 
vestíbulo,  situado  entre  o  Pateo  dos  Reis  e  a  porta  do 
templo.  Por  alli  se  vae  aos  claustros  inferiores,  que  se 
estendem  em  vasta  galeria,  cheia  de  nichos,  pinturas 
sacras,  aos  lados,  e  altares  nos  quatro  ângulos,  tendo  a 
meio  um  espaço,  chamado  o  Pátio  de  los  Evangelistas, 
representados  em  estatuas  de  mármore  genovez. 

Daqui  se  passa  ao  jardim,  onde  ha  opulentos  macis- 
sos  e  bellos  desenhos  de  buxo,  lagos  e  flores,  ainda 
boje  cultivados  com  certo  esmero. 

As  salas  do  capitulo  são  três.  A  do  meio,  que  è  a 
mais  pequena,  servia  de  antecâmara ;  a  pintura  da  abo- 
bada representa  o  ceu  aberto,  d'onde  baixam  anjos  com 
grinaldas  nas  mãos,  no  meio  de  outras  pinturas  de  gé- 
nero grotesco ;  em  doze  nichos  Job  e  os  profetas. 

N'uma  das  outras,  a  chamada  Vigarial,  ha  uma  pin- 
tura de  Ticiano  —  S.  Jeronymo  no  deserto  —  e  dois  bai- 
xos relevos  de  porfido  sobre  fundo  de  mármore  branco ; 
alguns  nichos  com  santos  e  altares  com  embutidos  de 
jaspe  e  adornos  de  bronze. 

Na  ultima,  a  Prioral,  a  mesma  decoração,  sendo  o 
assumpto  da  pintura,  devido  também  a  Ticiano —a  Ora- 
cão  no  horto. 


O  ESCURIAL 


Em  ambas,  Bguram  assentos  de  espaldar,  feitos  de 
nogueira  e  pinbo  de  Cuenca,  e  os  tectos  pintados  a  gro- 
tesco. 

A  escadaria  principal,  que  leva  aos  claustros  superio- 
res è  uma  das  peças  mais  notáveis  do  edifício,  e  foi  de- 
lineada pelo  italiano  Castelo,  chamado  o  Bergamasco, 
por  ser  natural  de  Bergamo,  pintor  e  arcbitecto,  dis- 
cípulo de  Miguel  Angelo;  occupa  um  occo  de  desanove 
metros  e  meio,  e  tem  no  primeiro  lanço  vinte  e  seis  de- 
graus de  cinco  metros  e  vinte  oito  centímetros  de  lar- 
gura, em  pedras  inteiriças  de  granito  berroquenbo;  no 
segundo  treze  até  ao  andar,  onde  forma  três  grandes 
nichos,  dividindose  ahi  em  dois  ramaes  parallelos  de 
26  degraus  até  aos  outros  claqstros  mais  elevados. 

No  tecto  de  uma  sala,  chamada  Celda  Priorai,  vè-se 
uma  pintura  a  fresco  de  Urbino,  uma  preciosidade,  a 
única  (Teste  autor  que  ha  no  edifício,  porque  a  morte 
o  surprehendeu  ao  pôr-lbe  termo.  Representa  os  quatro 
evangelistas,  as  Virtudes,  alguns  profetas  e  o  primeiro 
juizo  de  Salomão,  ao  centro. 

Na  Sala  de  Capas,  onde  se  guardavam  as  que  ser- 
viam aos  cantores  do  coro,  ba  um  S.  Miguel  calcando 
o  diabo,  memorável  por  ser  obra  de  mulher,  D.  Luiza 
Roldão,  esculptora  de  camará  de  Carlos  II. 

Num  pequeno  compartimento,  a  que  se  dá  o  nome 
de  Camarin,  existem  alguns  objectos  valiosos,  sendo 
os  principaes— um  livro  de  S.  Agostinho,  manuscripto 
do  século  vn,  os  evangelhos  da  egreja  grega,  no  tempo 
de  S.  João  Ch  ri  sos  to  mo,  quatro  livros  autographos  de 
Santa  Thereza  de  Jesus  e  o  tinteiro,  de  que  ella  se  ser- 
viu para  os  escrever. 

A  bibliotheca,  situada  sobre  o  saguão  da  portaria 
principal,  merecia,  por  sua  vastidão,  pinturas  e  ornamen- 
tos, uma  descripção  demorada,  que  uma  rápida  visita 
nos  não  permitte. 

O  pavimento  é  de  mármores  pardos  e  brancos;  as 
estantes  dóricas,  luxuosas  e  de  óptimas  madeiras,  cedro, 
buxo,  ébano,  nogueira  e  outras,  teem  cinco  mesas  de 


360  NOTA&  À  LÁPIS 


mármore  escoro,  ao  centro,  guarnecidas  de  bronze,  dois 
veladores  de  porfido,  globos  e  esferas  armilares;  nas 
paredes  e  nos  tectos  uma  profusão  admirável  de  bons 
frescos. 

Estas  pinturas  estão  divididas  em  sete  secções,  avul- 
tando como  figuras  principaes— na  primeira,  a  Gram- 
ma  Uca,  sentada  entre  nuvens  e  cercada  de  creanças  a 
ler;  na  segunda,  a  Rethorica  com  caduceo  na  mão  e  um 
leão  ao  lado;  na  terceira,  a  Dialéctica,  em  figura  de  ma- 
trona, coroada  pela  lua  em  quarto  minguante;  na  quar- 
ta, a  Arithmetica,  rodeada  de  rapazes  com  tábuas  alga- 
rismadas;  na  quinta,  a  Musica,  empunhando  a  lyra;  na 
sexta,  a  Geometria,  fazendo  medições  a  compasso;  na 
sétima,  a  Astronomia,  recostada  sobre  o  globo  celeste. 

Para  mitigar  o  profano  d'estas  figuras,  todos  os  acces- 
sorios  representam  santos  varões,  qne  professaram  es- 
sas difie rentes  matérias. 

Esta  sala,  chamada  a  principal,  guarda  os  impressos, 
e  a  segunda,  muito  mais  simples  e  baixa,  collocada  no 
segundo  andar  por  cima  d'aquella,  é  reservada  aos  ma- 
nuscriptos,  uns  e  outros  ainda  bastante  numerosos  e 
importantes,  apezar  das  vicissitudes  por  que  passou  o 
mosteiro  em  diversas  épocas.  Os  quatorze  devocionários, 
pertencentes  a  vários  monarcbas,  a  collecção  dos  códi- 
ces florentinos  do  século  xv,  comprehendendo  os  clássi- 
cos latinos,  e  o  hervario  collado  ás  folhas  de  treze  gros- 
sos volumes— são  objectos  dignos  da  maior  attenção,  não 
esquecendo' os  esboços,  que  lá  se  conservam,  de  vários 
architectos  e  pintores,  incluindo  os  cartões  de  Urbino. 

# 
#      # 

O  palácio,  parte  componente  do  edifício,  occupa  meia 
fachada  do  Norte,  a  que  dá  para  o  largo  irregular,  e 
outra  meia  da  do  Oriente,  a  que  deita  para  os  jar- 
dins. 

A  construcção  interiof  obedece  á  severidade  geral  do 


O  SSGURIAL  361 


mosteiro,  sendo  em  alguns  pontos  ainda  mais  simples, 
a  principiar  pela  escadaria  principal. 

Os  compartimentos,  onde  ha  verdadeiros  primores  de 
esculptura,  são  quatro  pequenas  habitações,  situadas 
sob  a  torre,  e  ornamentadas  por  Carlos  IV.  Os  pavi- 
mentos, as  janellas,  os  frisos  e  as  portas  conteem  minu- 
ciosidades  de  um  valor  artístico  admirável  e  digno  dos 
tempos  d'aquelle  monarcha,  que  se  vangloriava  de  ser 
óptimo  torneiro. 

Depois  das  tapeçarias,  que  cobrem  as  paredes  dos 
aposentos  reaes,  verdadeiras  riquezas,  na  maior  parte 
devidas  á  fabrica  de  Madrid,  segundo  os  desenhos  de 
Goya  e  algumas  á  arte  flamenga  e  aos  debuxos  de  Da- 
vid Teniers,  mostra-se-nos  como  mais  notável  a  Sala 
de  Batallas,  pintadas  grotescamente  por  Fabrieio  e  Gra- 
nelio,  filhos  do  pintor  Bergamasco,  a  que  já  nos  referimos. 

As  pinturas  muraes  d'esta  vasta  galeria,  que  entesta 
com  a  egreja,  tiveram  por  origem  uns  desenhos  encon- 
trados n'uns  cofres  velhos  do  alcácer  de  Segóvia,  repre- 
sentando a  batalha,  dada  aos  mouros  de  Granada  por 
D.  João  II  de  Castella,  em  1431,  batalha  chamada  de 
Higueruela,  nome  dado  ao  campo,  onde  ella  começou. 

Apresentados  a  Felippe  II,  ordenou  este  aos  dois  ar- 
tistas que  os  reproduzissem  na  parede,  corrigindo  os 
debuxos,  mas  sem  alterar  a  forma  das  armas,  nem  a 
distribuição  das  figuras. 

Fingiram  estes  três  pannos,  pendentes  de  escapulas; 
pintaram  no  primeiro  o  acampamento  do  rei  de  Castel- 
la, com  as  suas  tendas  e  meios  de  defeza;  no  segundo, 
os  exércitos  combatentes  em  ordem  de  batalha:  n'uma 
parte  o  rei,  armado  de  todas  as  armas,  ao  centro  das 
tropas,  e,  mais  adiante,  em  meio  de  refrega,  combaten- 
do ao  lado  do  general,  o  condestavel  D.  Álvaro  de  Lu- 
na;  no  terceiro,  a  derrota  dos  mouros  e  o  exercito  cas- 
telhano ás  portas  de  Granada. 

Nos  topos,  figuram  as  expedições  da  armada  de  Fe- 
lippe II  á  ilha  Terceira ;  nos  interstícios  das  nove  janel- 
las, que  dão  luz  á  galeria  — o  cerco  da  praça  de  S. 


362  NOTAS  A  LATO 


Quintino,  a  batalha  de  10  de  agosto  de  1557,  em  que 
Montmorency  ficou  prisioneiro,  o  assalto  e  tomada  da 
praça,  a  rendição  do  forte  de  Ghatelete,  em  6  de  setem- 
bro do  mesmo  anno;  o  movimento  das  tropas,  á  saida 
de  S.  Quintino;  o  incêndio  da  população  de  Han  e  a  to- 
mada do  castello,  em  11  d'este  mez,  vendo-se  a  ermida, 
onde  o  rei  se  abrigou  durante  o  combate ;  a  tomada  de 
Noyon;  a  batalha  do  duque  de  Alba  contra  o  Prior  do 
Crato,  junto  a  Lisboa;  e  finalmente  a  revista  do  rei  ás 
tropas,  em  julho  de  1580,  na  defeza  de  Cantillana,  de 
que  era  capitão  general  o  mesmo  duque  de  Alba. 

Gomo  se  vê,  representam  estas  nove  pinturas  todos 
os  fastos  guerreiros  do  rei  Filippe  II,  fundador  do  mos- 
teiro. 

O  género  da  pintura  grotesca,  boje  com  razão  muito 
pouco  seguido,  é  dos  menos  recommendados,  e,  se  não 
nos  agrada  á  vista,  muito  menos  serve  para  nos  agitar 
os  sentimentos. 

A  primorosa  execução  cTesse  género  de  frescos  a  traço 
simples,  em  todas  as  suas  partes  e  nos  conjunctos  diffe- 
rentes,  subordinados  todos  a  assumptos  militares,  è  que 
deu  áquella  galeria  do  palácio  a  celebridade,  que  tem. 

O  visitante  por  ultimo,  com  a  imaginação  invadida  a 
todo  o  instante  pelo  nome  do  fundador  d'aquella  fabrica 
collossal,  sente  uma  curiosidade  vivíssima  e  uns  desejos 
invencíveis  de  ver  os  aposentos,  onde  viveu,  e  morreu 
Filippe  II. 

Ficam  co I locados  a  espaldar  do  altar-mór  da  egreja, 
como  convinha  á  extrema  devoção  do  poderoso  e  faná- 
tico rei,  tão  fanático  como  cruel,  e  são,  pode-se  dizer, 
os  mais  simples  do  palácio,  uns  compartimentos  de  re- 
lativa pequenez,-  sem  pinturas  nem  outros  revestimen- 
tos artísticos. 

O  gabinete  do  despacho  tinha  apenas  uma  estante  e 
mesa  de  nogueira,  que  ainda  lá  se  conservam,  e  o  quarto 
de  dormir  a  cama,  a  cadeira,  em  que  o  monarcba  se 
sentava,  descaqçando  a  perna  gotosa  em  dois  banqui- 
nhos, forrados  de  estofo  bordado. 


O  ESCURIAL  363 


Estes  aposentos  communicavam  coro  os  oratórios 
reaes,  e,  abertas  as  portas»  punham  o  altar-mór  intei- 
ramente a  descoberto. 

Ao  sair  d'aqui,  poremos  nós  o  ponto  final  á  ligeira 
serie  dos  nossos  apontamentos»  dedicados  com  toda  a 
sua  simplicidade  aos  curiosos,  que  procuram  encontrar 
nos  monumentos  de  uma  determinada  época  elementos 
de  estudo  comparativo  e  ethnograpbico. 

E  esse  estudo,  conscienciosamente  exercido  ainda  pe- 
los mais  profanos  sobre  as  velharias  grandiosas  de  outros 
tempos,  verdadeiras  inutilidades  modernas,  a  que  só  a 
lenda,  a  tradição  e  a  historia  dão  boas  cores  e  óptimos 
relevos  —  facultados  a  medida  exacta  da  superioridade 
da  nossa  época ;  o  que  não  è  somenos  compensação  a 
trabalhos  de  espirito  e  a  fadigas  de  imaginação. 


Parece  que  a  austeridade  de  S.  Lourenço  do  Escurial 
servia  de  pouco  enlevo  aos  ímpetos  juvenis  do  moç<5 
príncipe  das  Astúrias,  que  mais  tarde  se  chamou  Car- 
los IV. 

E  isto  pode-se  facilmente  suppor,  ao  perguntar  a  ra- 
zão, que  o  levaria  a  mandar  edificar  as  duas  casas  de 
Arriba  e  de  Abajo,  conhecidas  ambas  por  Casinos  dei 
Príncipe,  onde  não  deixaremos  de  entrar,  por  serem 
cousas  recommendadas  ao  visitante. 

A  Casa  de  Arriba,  situada  n*um  alto,  ao  poente  do 
mosteiro,  entre  um  pequeno  bosque  e  alguns  pedaços 
de  terreno  ajardinado,  è  um  quadrado  de  pedra  berro- 
quenha,  e  só  tem  uma  sala  central  digna  de  boa  nota. 

A  Casa  de  Abajo,  começada  em  1772,  collocada  a 
oriente  do  convento,  quasi  ao  fundo  do  valle,  por  onde 
se  estendia  a  cerca,  è  uma  formosa  miniatura,  que  nos 
faz  pensar  n'uns  galanteios  mysteriosos,  n'uns  banque- 
tes íntimos,  numas  noites  de  prazer  incomparável,  n'uns 
dias  de  ócio  regalado,  n'utnas  aventuras  clandestinas, 


364  NOTAS  A   LÁPIS 


rfuma  fogosa  e  dourada  mocidade,  n'umas  tendências 
indomáveis  para  o  apuro  das  artes  e  para  o  exercido 
de  um  accehtuado  bom  gosto. 

Uns  ligeiros  loques  a  mais. . .  e  aquella  deliciosa  mo- 
rada seria  a  fantástica  habitação  de  uma  fada,  inteira- 
mente presa  ás  fascinações  irresistíveis  de  um  príncipe 
encantado. 

Este  notabilissimo  e  poético  rez-do-cbão,  que  bem  se 
lhe  pode  chamar  assim,  está  cercado  de  jardins,  assom- 
breados  de  bellas  arvores,  matta  extensa  e  frondosa,  va- 
rias e  formosas  alamedas,  que  se  estendem,  bifurcam, 
e  serpenteam  pelo  declive  da  curiosa  montanha. 

Do  centro,  formado  por  uma  olegante  torrecilla,  par- 
tem três  braços  eguaes  para  os  lados  do  nascente,  poente 
e  sul,  (içando  ao  norte,  em  33  metros  de  extensão,  a  fa- 
chada, que  tem  a  meio  um  corpo,  sustentado  por  qua- 
tro columnas  dóricas  estriadas  de  alto  a  baixo,  emoldu- 
rando uma  grade  de  ferro,  com  adornos  dourados,  que 
serve  de  portada. 

Sobre  este,  outro  corpo  com  uma  porta  e  duas  ja- 
nlllas  aos  lados;  entre  a  parede  e  as  columnas,  um  pe- 
queno espaço  ou  saguão,  e  em  seguida  a  entrada,  que 
dá  para  uma  salinha  de  espera,  com  o  tecto  pintado  por 
Gomez,  as  paredes,  sanefas  e  cadeiras  com  estofos  flo- 
ridos de  tela  e  desenho  eguaes.  Ao  centro  um  velador 
com  taboleiro,  trabalhado  em  relevo  pelo  chinez  Tho 
Mir;  aos  lados  jarras  e  fructeiros  pintados  a  óleo,  dois 
quadros  de  Jordan  e  um  de  Annibal  Caracci. 

A  sala  seguinte,  que  devia  ser  a  de  recepção,  tem  o 
tecto  egualmente  ornamentado  por.  Gomez,  as  paredes, 
cortinados  e  tamboretes  cobertos  de  estofo  carmesi,  en- 
tremeiado  de  flores  brancas,  e  nove  vistas  de  Arangúez, 
pintadas  as  figuras  por  Mirandi  e  os  accessorios  por 
Brambilla. 

O  gabinete  da  rainha  apresenta  o  tecto  do  autor  das 
salas  precedentes,  as  paredes,  assentos  e  guarnições  de 
estofo  branco,  sanefas  côr  de  roza  e  vinte  e  cinco  qua- 
dros, entre  os  quaes  uma  pintura  em  cobre  de  Rubens, 


O  BSGURIAL  365 


representando  a  Virgem,  S.  João  e  o  menino  entre  anjos, 
que  coíbem  flores,  e  um  anão  de  Velasquez. 

Por  estes  três  compartimentos,  se  pode  ajuizar  dos 
outros  quinze  que  seguem,  todos  pequenos,  mas  por 
egual  luxuosos  e  cheios  de  ricas  mobilias,  tapeçarias, 
objectos  de  esculptura,  telas  de  Dominiquo,  Jordan,  Du- 
que, Brambilla,  Perez,  Durero  e  outros,  o  Sacrifício  de 
Isaac,  de  Rubens,  e  Duas  fabricas,  de  Goya,  formando 
um  total  de  mais  de  duzentos  quadros. 

Distinguem-se  das  outras,  pela  especialidade  da  sua 
construcção,  três  salinhas,  chamadas  as  Piezas  de  ma- 
deras  finas,  por  serem  d'esta  qualidade  as  portas,  ja- 
nellas  e  soalhos,  onde  os  embutidos  formam  um  sem 
numero  de  gregas,  folhagens,  adornos  e  flores  de  uma 
execução  primorosa. 

Fechaduras,  guarnições  e  puxadores  são  de  ferro  poli- 
do e  esmaltado  de  ouro,  em  certos  e  determinados  pontos. 

Duas  d'ellas  teem  os  tectos  estucados  e  guarnecidos 
de  enfeites  dourados,  devidos  a  Ferroni,  cadeiras  e  pa- 
redes forradas  de  seda  verde,  matizada  de  flores  e  23 
retratos  da  familia  Bourbon,  desde  Carlos  IV  até  ao  ul- 
timo dos  filhos  varões  do  infante  D.  Francisco,  na  maior 
parte  pintados  por  Coma. 

O  tecto  da  terceira  tem  a  meio  do  estuque  um  cir- 
culo, onde  se  representa  Ganimedes,  pintado  a  óleo  por 
Maella;  a  mobilia  e  paredes  são  forradas  de  seda  azul 
listada  e  os  37  quadros,  que  a  guarnecem,  de  marfim, 
moldurado  de  ébano. 

Os  quatro  maiores  e  mais  delicados  foram  executados 
em  pasta,  e  figuram  os  sonhos  de  Faraó,  a  filha  d 'este 
ao  tirar  Moysés  das  aguas  do  Nilo,  Susana  a  sair  do  ba- 
nho e  o  sa  cri  fiei  o  de  Isaac. 

Sobre  uma  bel  la  mesa,  uma  manga  de  vidro,  cobrindo 
outro  trabalho  de  marfim— o  primeiro  juizo  de  Salomão 
e  duas  estatuetas  de  elevado  merecimento  artistico  e  do 
mesmo  material— a  figura  de  um  homem  nú,  meio  en- 
volto n'uma  rede,  tendo  um  génio  alaao  ao  pé  de  si— 
e  uma  mulher  também  nua,  engrinaldada  de  flores  e 


366  M0TA8  Â  LÁPIS 


coberta  com  véus  transparentes,  que  lhe  deixam  perce- 
ber as  formas. 

À  escada,  que  leva  ao  pequeno  andar  intermédio,  en- 

,  cimado  pelo  torreão,  é  de  jaspes;  o  corrimão  de  ferro 

e  bronze  dourado.  As  pinturas  da  cúpula  recordam  a 

Fama  e  a  Hespanba,  segurando  nas  mãos  o  pendão  rea], 

e  as  das  paredes  diversas  batalhas. 

Seria  longa  a  descripção  dos  quadros,  estatuetas,  bus- 
tos, jarrões,  espelhos,  objectos  de  jaspe,  madeira  e 
bronze  dourado  a  fogo,  que  deixámos  de  apontar,  e  que 
formam  d'aquella  pequena  casa  um  grande  repositório 
de  bellas  artes,  um  selecto  e  custoso  museu,  que  só  por 
si  è  bastante  para  attrair  uma  extraordinária  concorrên- 
cia de  visitantes,  entretendo  de  sobejo  a  imaginação  dos 
curiosos  e  a  investigação  dos  entendedores. 

# 
*      * 

Quando,  ao  cair  da  tarde,  compendiávamos  em  resu- 
mo as  impressões  da  nossa  rápida  visita,  em  direcção 
ao  caminho  de  ferro,  lançando  um  substancioso  olhar 
de  despedida  para  o  enorme  arcaboiço  do  mosteiro  do 
Escurial,  que  lobrigávamos  por  entre  a  ramaria  da  sua 
matta  e  jardins— pergunta va-nos  um  compatriota  nosso, 
em  peroração  a  algumas  palavras,  que  soltáramos : 

—Já  viu  a  nossa  Mafra  ? 

—Ainda  não. 

— Pois  procure  vel-a,  e  até  lá  peço-lhe  que  suspenda 
qualquer  juízo  definitivo,  que  tenha  a  formular  sobre  a 
visita  de  hoje. 

Replicámos  com  um  sorriso  incrédulo,  mas  resolve- 
mos tacitamente  aguardar  a  occasião  recommendada  pa- 
ra o  complemento  d'esse  juízo;  o  que  dependia  sim- 
plesmente de  uma  digressão  até  ao  lugar,  onde  se  le- 
vanta o  maior  padrão  das  liberalidades  ruinosas  de  D. 
João  V,  menos  desculpável,  attenta  a  differença  das  épo- 
cas, que  o  seu  collega,  fundador  do  Escoriai- 


O  ESCURIÁL  367 


O  resultado  cTessa  visita,  que  não  pretende  estabele- 
cer confrontos  inúteis,  nem  rivalidades  bairristas,  mais 
escusadas  ainda,  encontrar-se-ha  .em  paginas,  que  vão 
adiante,  e  são,  como  estas,  uns  longes  de  analyse  im- 
perfeita, impressões  de  momento,  chamadas  a  preen- 
cher uns  ócios,  subordinados  a  uma  tendência  natural. 

Nada  mais. 


368  NOTAS  A  LÁPIS 


UM  DIA  EM  TOLEDO 


Noções  corographico-historicas.  —  Uma  Alfama  em  ponto 
grande.— A  capella  de  Santa  Catalina.— 0  Taller  dei  Moro. 
—  Santa  Maria  La  Blanca.  —  0  estylo  plateresco  —  A  er- 
mida £1  Transito.  —  San  Juan  de  los  Reyes. 


0  viajante,  flue,  para  suavisar  intervallos  de  uma  vida 
positiva,  trabalhosa  e  árida,  se  entregar  por  vezes  ao 
romantismo  platónico  das  eras,  que  foram,  fantasiando 
sociedades  extinctas,  fados  occultos  na  obscuridade  dos 
tempos,  interrogando  as  paredes  musgosas  das  edifica- 
ções seculares,  arcbitectando  e  cirzindo  na  idéa  solera- 
nidades  lendárias,  religiões  e  feitos  -das  gerações  remo- 
tas, salvas  apenas  do  esquecimento  pelas  investigações 
da  historia,  pelas  notas  fantásticas  da  tradição  e  pelas 
trovas  apaixonadas  do  cancioneiro  popular  —  n5o  deve 
deixar,  ao  ver-se  em  Madrid,  de  fazer  uma  excursão  de 
romaria  devota  á  antiga  capital  da  província  Carpetana, 
ao  poderoso  Toletum,  de  que  nos  falia  Tito  Livio,  á  cu- 
bicada Toleitola  dos  árabes. 

A  três  boras  de  Madrid,  em  caminho  de  ferro,  que 
tem  o  seu  entroncamento  na  estação  de  Algodor,  mos- 
tra-se-nos  essa  reliquia  de  umas  poucas  de  gerações  dif- 
ferentes,  como  coroa  de  sete  pequenos  montes,  reuni- 
dos em  grupo  e  quasi  inteiramente  cercados  pelo  Tejo, 


UM  DIA  SM  TOLEDO 


o  famoso  e  formoso  Tejo,  que  alli  passa  envergonhado, 
anonymo,  deixem-nos  dizer  assim,  occultando  o  seu  po- 
der e  nome  n'um  leito,  só  digno  de  uma  ribeira. 

As  campinas  estéreis,  que  descem  até  ao  rio,  e  as 
numerosas  penedias,  que  as  bordam,  não  conseguem 
entristecer  o  aspecto  risonho  da  pequena  cidade,  grim- 
pada ao  ápice  da  montanha. 
*  Uma  via  accidentada  e  moderna  leva-nos,  por  entre 
arvores,  desde  a  estação  á  ponte  mourisca  e  cTaqui  la* 
deira  acima,  até  á  entrada,  onde,  lendo  passado  pelas 
ruinas  do  castello  de  S.  Cervantes,  fortaleza  do  rei  cas- 
telhano Àlonso  VI,  deparámos  com  a  Puerta  dei  Sol, 
arco  triumpbal  de  procedência  e  typo  árabes,  construido 
em  fins  do  século  xu,  quando  florescia  o  terceiro  pe- 
ríodo das  suas  artes. 

Antes  da  ponte  —  que  só  por  habito  vulgar  se  diz 
mourisca,  pois  é  chamada  de  Alcântara,  e  foi  construída, 
em  substituição  da  primitiva,  em  meado  do  século  xni 
—  a  meio  da  via  arborisada,  temos  em  pedra  mutilada 
um  documento,  que  nos  falia  da  dominação  goda  —  uma 
estatua,  em  cujo  sócco  lemos  isto: 

Wamba  rei  de  los  godos  ensancho  i  muro  a  Toledo, 
vendo  ai  tirano  Paulo,  que  se  rebelo  contra  el  en  la  Gá- 
lia Gótica  i  le  troxe  en  triumfo  con  sus  generales  a  To- 
ledo, donde  despues  renuncio  ai  mundo  para  servir  a 
Dios  en  el  monasterio  de  Pampliega. 

# 
#        # 

D'onde  procede  a  fundação  da  antiquíssima  cidade? 

Não  o  sabe  a  historia,  não  o  indicam  os  monumentos, 
porque  se  referem  todos  á  existência  de  romanos,  que 
alli  tiveram  as  suas  vias  latina  e  sacra,  dos  árabes  e 
mesmo  dos  judeus,  que  por  alli  deixaram  também  as 
suas  synagogas. 

O  que  se  conta,  e  sabe  é  que  os  romanos,  sendo  pre- 
tor Marco  Fulvio,  duzentos  annos  antes  da  era  chrístã, 

24 


MO  NOTAS  A  LÁPIS 


se  assenhorearam  de  Toledo ;  que  nos  princípios  do  sé- 
culo v  foram  subjugados  e  substituídos  pelos  godos,  tor- 
nando-se  então  esta  cidade  a  primeira  povoação  de  Hes- 
•  panha,  como  capital  de  vastíssimos  estados. 

Edificaram-se  a  antiga  catbedral,  algumas  egrejas  e 
mosteiros,  no  decorrer  dos  tempos. 

Vencido  o  ultimo  rei  godo,  D.  Rodrigo,  em  começos 
do  século  viu,  nas  margens  do  rio  Guadalete,  pelos  ára- 
bes, vindos  da  Africa,  caiu  a  cidade  em  poder  (Testes, 
que  lhe  conheceram  e  conservaram  toda  a  importância 
estratégica,  convertendo-a  em  califado,  que  mais  tarde 
degenerou  em  monarchia  mais  ou  menos  independente, 
pela  annexação  de  algumas  províncias  visinbas. 

Mau  grado  a  intolerância  dos  costumes  mouriscos,  foi 
consentida  a  existência  do  culto  cbristão,  d'onde  nasce- 
ram o  nome  e  o  ryto  mozarabes. 

D.  Alonso  VI,  rei  de  Castella,  tomou  a  peito  a  con- 
quista de  Toledo,  e  conseguiu-a,  depois  de  um  cerco 
de  uns  poucos  de  annos,  em  25  de  maio  de  1085. 

Desde  então  cresceu  de  importância  a  cubicada  cidade, 
tornando-se  a  corte  dos  monarcbas  castelhanos,  até  ao 
meiado  do  século  xvi,  época,  em  que  Filippe  II  trans- 
feriu a  sua  residência  para  Madrid. 

E  ao  pensar  n'isto,  não  admira  tanto  que  a  corte  mo- 
derna da  devotíssima  Hespanba  não  apresente  bons  do- 
cumentos de  edificações  religiosas,  ao  contrario  de  ou- 
tras cidades  provincianas,  por  ser  tida  até  áquelle  tempo 
como  população  mediana  e  secundaria,  sendo  de  crer 
que  Felippe  II,  ao  começar  a  grandiosa  fabrica  do  Egcu- 
rial,  não  pensava  ainda  na  transferencia  da  sua  c  rte 
das  margens  do  Tejo  para  as  tristes  ribas  do  Manzana^es. 

Toledo,  que  em  verdade  não  correspondia,  por  sua  es- 
treiteza de  proporções,  ás  exigências  da  corte  hespanh  ola, 
desceu  do  seu  fastígio,  e  é  hoje  uma  cidade  de  terceira 
classe,  capital  de  uma  província  de  segunda  ordem,  com 
uma  população  de  18,000  almas,  que  habitam  3,000 
cazas,  entre  as  quaes  se  devem  contar  trinta  egrejas  e 
capellas'  e  nada  menos  de  doze  conventos  de  freiras  1 


CM  DIA  EM  TOLEDO  371 


Não  é  muito  difficil  dar  uma  idéa  das  ruas  e  edifica- 
ções da  cidade  a  quem  conheça  uma  parte  da  nossa  Lis- 
boa antiga.  Toledo,  semeada  a  espaços  de  ruínas,  mu- 
ralhas, castellos,  egrejas,  mesquitas,  miranetes  e  syna- 
gogas,  è  uma  Alfama  em  ponto  grande,  com  ruas  ainda 
mais  estreitas  e  tortuosas,  segundo  o  systema  de  defeza 
árabe,  declives,  escabrosidades  e  ladeiras,  que  a  tor- 
nam verdadeiramente  característica,  e  como  tal  digna 
de  attenção. 

Á  nossa  chegada,  o  dia,  que  desde  manhã  se  mos- 
trara carregado  e  brusco,  começou  a  desfazer-se  em 
aguaceiros  intervallados  e  impertinentes.  Pois  vimos-nos 
obrigado  a  supportal-os  de  guarda-chuva  fechado,  ao 
atravessar  certas  ruas,  porque  o  espaço  não  nos  per- 
mettia  que  o  abríssemos,  parecendo-nos  a  distancia  que 
os  telhados  das  casas  se  uniam  uns  aos  outros. 

O  que  é  fácil,  em  vários  pontos,  è  darem-se  os  visi- 
nhos  as  mãos,  e  conversarem  a  meia  voz,  como  se  es- 
tivessem senhores  do  mesmo  compartimento. 

Curioso,  extremamente  curioso  aquillo! 

Deixando  de  mencionar  no  nosso  itinerário  os  edifí- 
cios modernos  e  outros  de  mediana  importância,  come- 
çaremos por  entrar  na  egreja  de  S.  Salvador,  levantada 
sobre  as  ruinas  de  uma  mesquita,  para  ver  a  capella 
de  Santa  Catalina,  edificada  em  fins  do  século  xv,  por 
D.  Fernando  Alvares  de  Toledo,  secretario  dos  reis  ca- 
tholicos,  em  puro  gotbico,  que  a  guarnece  interior  e 
exteriormente. 

Separa-a  da  egreja  uma  bella  grade  de  ferro;  o  altar 
tem  três  esculpluras  apreciáveis,  segundo  a  época;  os 
lados  doze  pinturas  em  madeira  e  boa  obra  de  talha, 
sobresaindo  a  todas  as  suas  partes  o  oratório,  que  ser- 
viu de  sarcopbago  á  familia  do  fundador,  pelo  seu  tecto, 
onde  se  admiram  arabescos  do  mais  fino  e  precioso  lavor. 


372  NOTAS  A  LÁPIS 


O  Taller  dei  Moro,  na  roa  (Teste  nome,  representa 
os  restos  mutilados  de  um  palácio  musulmano,  n'ura 
corpo,  onde  se  podem  admirar  os  lavores  de  puro  ára- 
be, que  dão  renome  aos  alcáceres  de  Sevilha  e  Granada. 

Passando  pela  bella  portada  gothica  do  conde  de  Fuen- 
salida,  perguntaremos  pela  egreja  de  Santa  Maria  la 
Blanca. 

É  uma  construcção  hebraica  do  século  vn,  realisada 
em  eslylo  de  transição  árabe  pelos  habitantes  do  bairro, 
que  se  chamava  a  Juderia,  sem  exterioridades  dignas 
da  mais  pequena  nota.  O  interior  porem,  formado  por 
um  quadrilongo,  è  excellente  exemplar  d'aquelle  género 
de  edificações;  tem  cinco  naves  sustentadas  por  28  ar- 
cos de  ferradura,  que  se  apoiam  em  pilastras  octogonas, 
com  capitães  de  estuque  lavrado,  semelhando  a  ordem 
corínthia.  Sobre  os  arcos,  rematados  por  rosetões  de 
estuque  relevados,  elevam-se  os  muros,  que  separam 
as  naves,  todos  cheios  de  arabescos,  e  encimados  por 
pequenas  arcarias,  columnadas  com  peças  de  óptimo 
lavor  mourisco. 

O  tecto  é  um  curioso  composto  de  bellos  arte  zoes  do 
pinus  larix9  pinheiro  roxo  dos  Alpes,  sustentados  por 
grossos  tirantes. 

A  esta  parte,  que  foi  a  verdadeira  synagoga,  acres- 
centou a  architectura  christã  outras  de  importância  mui- 
to inferior,  onde  só  nos  merece  attenção  um  retábulo  do 
século  xvi,  muito  cheio  de  entalhes,  medalhões,  escudos 
e  estatuetas,  apresentando  no  todo  o  eslylo  plateresco. 

A  principio  julgámos  que  este  modo  de  ornamentar, 
muito  usado  em  Hespanha,  caracterisava  uma  feição  na- 
cional. 

O  estylo  plateresco  porem  è  arbitrário,  na  sua  mul- 
tiplicidade de  enfeites,  e  qualquer  artista  o  pode  variar 
a  seu  talante,  fantástica  e  caprichosamente,  contra  to- 
das as  regras  de  arte  moderna  ou  antiga. 

Resultam  d'aqui,  muitas  vezes,  a  monotonia  e  um 
amalgama  desgracioso,  quando  o  executor  de  uma  obra 
não  tem  a  delicadeza  e  o  bom  gosto  da  inventiva;  pri- 


UM  DIA  EM  TOLEDO  373 


mores  e  bellezas  filhas  de  uma  execução  superior,  quan- 
do o  artista  obedece  aos  impulsos  creadores  e  talento- 
sos de  um  génio  inspirado. 

Perto  (Testa  egreja,  ha  uma  ermida,  chamada  El  Tran- 
sito, que  foi  outra  synagoga,  erigida  pelo  opulento  is- 
raelita Samuel  Levi,  thesoureiro  de  D.  Pedro,  o  cruel, 
em  1366. 

Pertence,  segundo  os  entendedores,  ao  terceiro  emais 
florescente  período  da  arte  serracena,  á  architectura  ára- 
be andaluza. 

É  no  exterior  revestida  de  ladrilho,  interiormente  de 
estuque  alvíssimo,  e  de  uma  só  nave. 

A  ornamentação  é  tão  elegante  como  rica. 

Occulto  pelo  retábulo  do  altar  cbristão,  está  um  gran- 
de nicho,  onde  assentava  a  cathedra  do  gran  rabbino, 
explicador  da  lei,  ao  centro  do  muro  oriental,  cheio  de 
tão  delicados  arabescos,  que  parecem  fina  tapeçaria, 
taes  são  os  mimos  e  a  variedade  da  execução.  Em  am- 
bos os  lados  do  altar  e  a  distancia  egual,  leem-se  ins- 
cripções  hebraicas,  que  exaltam,  e  louvam  o  reinante 
D.  Pedro,  o  mandatário  da  obra  Samuel  Levi  e  o  seu 
executor  Rabi  Meir,  ao  mesmo  tempo  que  outros,  es- 
criptos  no  friso  geral  do  templo,  recordam  salmos  e 
pontos  lithurgicos,  por  entre  escudos  das  armas  de  Gas- 
tei la  e  Leão  e  alguns  mais  guarnecidos  de  lyrios,  que 
se  cré  pertencerem  a  D.  Branca,  mulher  do  monarcha. 

Na  testeira  opposta  ao  altar,  abrem-se  três  arcos, 
cheios  de  novos  caprichos  de  ornamentação,  servindo 
de  janellas,  e  por  cima  do  friso  lavrado,  que  circula  o 
recinto,  ergue-se  a  pequena  arcaria,  característica  d'a~ 
quelle  género  de  architectura,  muito  bem  dividida,  sus- 
tentada por  columnas  de  capiteis  variados  e  caprichosos. 

Por  cima  d'este  corpo,  corre  o  tecto  de  madeira  egual 
á  da  synagoga  visinha,  augmentado  nas  figuras  geomé- 
tricas, que  se  emaranham,  e  ligam,  n'uma  profusão  ad- 
mirável a  todos  os  respeitos. 

Os  cinco  altares  cbristãos,  apezar  da  structura  gothi- 
ca  do  principal,  obra  atribuída  ao  fim  do  século  xv  e 


374  NOTAS  A  LÁPIS 


aos  cavalleiros  religiosos  da  ordem  de  Calatrava,  que 
tanto  figurou  nas  batalhas  contra  os  mouros— parecem 
deslocados  alli,  onde  todo  é  de  género  differente  e  es- 
sencialmente característico. 

#      # 

Seguindo  pela  rua  dei  Angel,  o  guia  conscencioso  fal- 
lar-nos-ha  em  San  Juan  de  los  Reyes,  edifício  monásti- 
co, destinado  no  seu  começo  para  uma  collegiata,  e  da- 
do por  fim  aos  frades  franciscanos. 

Tendo  morrido  Henrique  IV,  de  Castella,  depois  de 
reconhecer  em  testamenlo  a  sua  filha  D.  Joanna,  neta 
de  el-rei  D.  Duarte,  de  Portugal,  e  de  contractar  o  seu 
casamento  com  Affonso  V,  successor  d'este  e  viuvo  de 
D.  Izabel,  surgiram  enormes  difficuldades,  tecidas  pelos 
reis  catholicos  Fernando  V  e  sua  mulher,  que  ambicio- 
navam a  coroa  de  Castella. 

Este  consorcio,  apezar  da  falta  de  dispensa  de  paren- 
tesco e  da  opposição  dos  partidários  hespanhoes,  que 
chamavam  a  D.  Joanna  a  Beltraneja,  por  a  dizerem  fi- 
lha adulterina  de  Beltran  de  la  Cueva  e  não  legitima  de 
D.  Henrique,  celebrou-se  em  1475. 

Animado  por  influencias  locaes,  pelas  promessas  dos 
grandes  de  differentes  cidades  e  pelos  seus  direitos  á 
coroa  castelhana,  Affonso  V  entrou  em  Hespanha  com 
vinte  e  cinco  mil  homens,  mesmo  antes  cTesse  acto, 
mas  foi  desastradamente  vencido  na  batalha  de  Toro, 
cidade  a  noroeste  de  Salamanca,  nos  estados  de  Leão. 

Para  celebrar  o  triumpho,  obtido  n'essa  guerra,  fun- 
daram Fernando  V  e  sua  mulher  D.  Izabel  o  edificio  de 
S.  Juan  de  los  Reyes,  em  Toledo,  segundo  a  direcção  e 
plano  de  Juan  Guas,  que  seguiu  na  construcçâo  o  esty- 
lo  gothico  florido. 

O  templo  é  um  quadrilongo  desigual  de  pedra  escu- 
ra, ou  granito  berroquenho,  no  exterior,  que  tem  uma 
apparencia  graciosa  e  correcta,  apezar  das  pequenas 
ogivas,  parapeitos  calados,  pyramides,  estatuas  de  reis 


UM  DIA  EM  TOLEDO  375 


de  armas,  collocadas  em  misulas  e  cobertas  por  balda- 
qoinos  correspondentes,  e  outros  adornos,  que  o  guar- 
necem. 

O  que  desde  logo  chama  a  attenção  do  visitante,  pe- 
lo effeito  extravagante  e  único  em  muros  de  egreja,  são 
umas  cadeias,  já  bastante  damniOcadas  pela  acção  do 
tendão,  pendentes  de  vários  sitios  e  em  numero  considerá- 
vel. 

Commemoram  a  conquista  de  Granada,  e  pertence- 
ram a  outros  tantos  captivos,  resgatados  alli. 

A  porta  principal,  que  não  é  a  primitiva  aberta  em 
outro  lugar,  é  lateral  e  de  data  mais  moderna;  foi  come- 
çada pelo  famigerado  Àlonso  de  Cpvarrubias,  em  1530, 
e  concluída  no  século  xvu,  não  correspondendo  por  is- 
so á  elegância  e  correcção  dos  adornos  interiores. 

Consta  de  um  arco  entre  quatro  columnas,  remata^ 
por  pyramides  cristadas  e  guarnecido  de  estatuas,  a  que 
sobresae  a  do  orago,  do  escudo  e  iniciaes  dos  reis  fun- 
dadores e  de  mais  duas  esculpturas  lateraes  de  dois 
guerreiros  romanos,  ao  que  parecem. 

Porta  e  accessorios  são  da  mesma  pedra  berroque- 
nha,  e  obedecem  á  forma  mixta  do  gothico  e  renascen- 
ça, ou  meio  circulo  perfeito. 

O  interior  de  uma  só  nave  e  pedra  branca  é  muito 
valioso,  especialmente  no  cruzeiro,  alumiado  por  sober- 
bo zimbório,  e  ladeado  por  duas  tribunas  de  riquíssi- 
mo lavor,  correspondente  á  ornamentação  da  capella 
gotbica  simi-circular  e  a  todos  os  magestosos  ornatos, 
que  enchem  as  paredes,  guarnições  e  janellas,  duas  das 
quaes  conservam  ainda  os  primitivos  vidros  de  cores. 

Os  das  outras  janellas,  as  bancadas  do  coro,  altares, 
retábulos  e  a  bibliotheca  foram  destruídos  no  incêndio 
de  1809,  devido  á  malvadez  dos  soldados  francezes. 

Do  templo  passa-se  ao  claustro  principal,  que  lhe  cor- 
responde inteiramente.  É  um  quadrado  de  26  metros 
de  comprimento,  ajardinado  ao  centro,  sustentado  por 
bellos  pilares  gothicos  e  coberto  por  abobadas,  cruzadas 
por  arestas  de  pedra,  segundo  esse  estylo. 


376  •  NOTAS  A  LÁPIS 


As  pilastras  são  guarnecidas  até  meio  de  estatuas  de 
tamanho  quasi  natural  e  enriquecidas  de  custosos  rele- 
vos, onde  figuram  folhagens  de  óptimo  lavor,  tendo  nos 
frizos  em  caracteres  gothicos  a  repetição  dos  nomes  dos 
reis  e  fundadores  e  o  seu  elogio. 

N'um  dos  ângulos  está  a  sacristia,  gothica  lambem 
como  a  sua  bellissima  portada,  e  á  esquerda  d'ella*co- 
meça  a  grande  escadaria,  que  leva  ao  claustro  alto,  e 
foi  executada  pelo  já  dito  Covarrubias. 

É  de  estylo  plateresco  e  coberta  por  bella  cúpula  de 
pedra  branca,  baseada  em  corpos  com  a  forma  de  con- 
cha. 

Os  entalhes  apresentam,  sustidos  por  anjos,  escudos 
de  armas  dos  reis  catholicos  e  de  seu  filho  D.  Carlos, 
em  cujo  reinado  se  fez  aquella  obra,  e  alguns  floreies 
4e  bom  effeito. 

O  claustro  alto,  erguido  sobre  o  principal,  é  formado 
por  arcarias  gothicas,  com  balaustres  da  mesma  pedra, 
e  não  nos  produz  a  impressão  do  primeiro,  por  ser  mais 
baixo  e  menos  opulento. 

N'uma  das  habitações,  mostra-se-nos  a  celta  do  car- 
deal Cisneros,  primeiro  noviço,  que  tomou  o  habito  da 
ordem. 

O  resto  do  edificio,  escadaria,  claustros  e  sacristia 
estão  convertidos  em  museu  provincial  de  pintura  e  es- 
culptura,  collecção  de  pouco  vulto,  principalmente  no 
que  respeita  á  ultima  parte,  mas  de  summa  utilidade. 

Representa  elle  cuidados  de  louvar,  muito  sympati- 
cos  e  úteis  para  a  conservação  das  obras  dos  estabele- 
cimentos devolutos,  ao  contrario  do  que  se  pratica  entre 
nós,  que  não  temos  bons  museus,  havendo  por  todo  opaiz 
tanta  cousa  abandonada,  perdida,  e  em  risco  de  se  perder. 

Ainda  assim,  sendo  a  collecção  de  esculpturas  insi- 
gnificante, encontram-se  por  lá  fragmentos  lavrados,  mo- 
saicos, arabescos,  inscripções  romanas,  lapides  sepul- 
craes,  antiguidades  encontradas  em  ex cavações  e  obje- 
ctos dos  conventos  supprimidos,  que  formam  boas  curio- 
sidades archeologicas. 


UM  DIA  EM  TOLEDO  377 


II 


Egrejas  de  S.  Jaan  de  la  Penitencia,  Andrés  e  Miguel.  —  El 
Alcazar.  —  Ermita  dei  Cristo  de  la  Los.  —  Egreja  de  S. 
Thiago.  —Hospital  de  Afnera.  —  Roinai  romanas.— A  fa- 
brica de  armas. 


Começando  o  nosso  segundo  itenerarío  pelo  mais  im- 
portante, por  não  termos  tempo  nem  cabeça  para  visi- 
tar um  grande  numero  de  templos  e  conventos,  entra- 
remos, indo  pela  Plaztiela  de  D.  Fernando,  na  egreja  de 
San  Juan  de  la  Penitencia,  para  admirarmos  os  diffe- 
rentes  estylos  da  sua  architectura  e  adornos. 

Fundou-a  o  cardeal  Cisneros,  em  1514,  e  ampliou-a 
pouco  depois  o  seu  companheiro  de  habito  e  familiar 
D.  Francisco  Ruiz,  bispo  de  A  vila. 

O  convento  comprehende  algumas  obras,  salas  e  cor- 
redores mouriscos,  acommodados  ao  todo  do  edifício ; 
e  a  egreja  tem  a  portaria  e  as  janellas  da  capella-mor 
gothicas ;  os  ornatos  da  nave  e  os  do  cruzeiro  árabes ; 
a  cúpula  d'este,  a  grade  da  capella  e  a  tribuna  da  en- 
trada, da  renascença  e  platerescas;  alguns  altares  e  ou- 
tros accessorios  greco-romanos. 

O  mais  singular  é  que  todo  este  mixto  de  formas  e 
ornatos  está  bem  combiaado,  e  não  offende  o  conjuncto. 

Os  retábulos  obedecem  á  amalgama  geral,  e  são  no- 
táveis pelos  painéis  e  esculpturas,  que  seria  longo  des- 
crever. 

A  cousa  mais  custosa,  que  lá  se  encontra,  é  o  tumu- 
lo do  refundidor,  D.  Francisco  Ruiz,  fallecido  em  1528, 
segundo  oepitaphio;  é  de  mármore  branco,  e  tem  ao 
fundo  um  altar  com  grande  retábulo,  que  occupa  o  lado 


378  NOTAS  A  LÁPIS 


do  Evangelho.  Sobre  a  urna  funerária,  avulta  a  estatua 
jacente  do  bispo,  cercado  por  um  grande  numero  de 
outras  estatuas,  bustos,  medalhões  relevados,  anjos  e 
demais  ornatos  análogos,  formando  um  todo  opulento 
e  verdadeiramente  curioso. 

As  egrejas  de  San  Andrés  e  de  San  Miguel  conser- 
vam pronunciados  resaibos  da  edificação  mourisca  ;  a 
primeira  nas  abobadas  e  muros  das  duas  capetlas,  que 
estão  nos  extremos  das  pequenas  naves,  e  a  segunda 
nos  tectos,  naves,  torre  e  claustro. 

Saindo  d'esta  ultima  egreja,  veremos  na  sua  frente, 
no  numero  10  da  rua  do  mesmo  nome,  alguns  fragmen- 
tos árabes  e  gothicos,  e  indo  á  Plazuela  dei  Seco  e  to- 
mando á  direita  pela  calle  de  la  Soledad.  no  numero  13, 
podemos  admirar  o  portal  e  o  pateo  d'essa  edificação,  que 
foi  hospedaria  de  templários,  e  que  apresenta  nas  vigas  e 
nos  tectos  um  grande  numero  de  inscripções  mouriscas. 

El  Alcazar,  que  nos  fica  perto,  num  dos  pontos  mais 
elevados  da  cidade,  é  um  lugar  de  vastíssimas  recorda- 
ções históricas,  e  um  dos  edifícios  que  mais  soffreram 
as  vicissitudes  de  conquistas  e  reconquistas,  invasões  e 
assédios,  durante  um  largo  período  de  séculos. 

Os  romanos  tiveram  alli  uma  fortaleza,  que  os  godos 
e  os  árabes  conservaram  egualmente.  Àlonso,  ou  Affon- 
so  VI,  o  rei  de  Castella  e  reconquistador  de  Toledo, 
reconheceu  logo  á  entrada,  em  1085,  que  a  ampliação 
d'aquelle  baluarte  faria  conter  em  respeito  a  população, 
composta  ainda  em  grande  parte  dos  mouros,  que  ha- 
viam capitulado ;  constituiu  o  em  cidadella  fortificada, 
dando-lhe  maior  extensão  e  segurança,  e  entregou  o  seu 
commando  ao  vencedor  de  tantos  reis  mouros,  ao  gran- 
'  de  heroe  da  época,  Ruy  Diaz  de  Vivar,  o  Cid  Campea- 
dor, que  só  com  os  seus  vassalos  e  amigos  fez  nume- 
rosas conquistas,  e  praticou  desmedidas  façanhas,  onde 
entrava  a  rendição  da  própria  Toledo. 

De  augmento  em  augmento,  de  mudança  em  mudan- 
ça, El  Alcazar  tornou-se  moradia  principesca,  no  tempo 
dos  reis  catholicos,  e  foi  completamente  reformado  por 


UM  DIA.  EM  TOLEDO  379 


seu  filho  Carlos  V,  e  acrescentado  ainda,  mais  tarde, 
por  Felippe  II,  o  monarcha  de  ambos  mundos. 

Na  celebre  guerra  da  successão,*  movida  ao  chefe  da 
casa  bourbonica,  Felippe  V,  pelo  archiduque  de.  Áus- 
tria, D.  Carlos,  as  tropas  adiadas,  compostas  de  aus- 
tríacos, inglezes,  allemães,  hollr.ndezes  e  portuguezes, 
ao  occuparem  a  cidade,  em  1710,  incendiaram  o  Alca- 
zar,  destruindo  quasi  por  inteiro  aquelle  riquíssimo 
acervo  de  artes  diversas  e  custosas. 

Restaurado  pelo  cardeal  de  Lorenza,  a  quem  o  cede- 
ra Carlos  III  para  hospício  de  caridade,  foi  novamente 
incendiado,  em  1810,  pelos  soldados  francezes,  esca- 
pando d'este  novo  desastre  apenas  as  muralhas  e  pare- 
des, arcarias  do  pateo,  alguns  salões  do  primeiro  pavi- 
mento, abobadas  e  cavalhariças,  ruínas  venerandas,  que 
ainda  hoje  alli  se  admiram. 

O  edifício  è  quadrado ;  cada  fachada  é  de  differente 
época,  acabando  em  torreões.  A  do  norte,  é  plateresca: 
o  portal  da  direcção  de  Covarrubias  é  um  grande  arco 
entre  columnas  jónicas,  que  sustentam  o  cornijamento, 
onde  se  lê  o  nome  do  imperador  Carlos  V  e  a  data  de 
1551,  e  onde  se  apoia  o  segundo  corpo,  composto  de 
bellas  esculpturas,  representando  um  volumoso  escudo 
das  armas  reaes,  as  columnas  de  Hercules  e  dois  arau- 
tos; aos  lados  da  portada,  erguem-se  sobre  grandes 
pedestaes  as  estatuas  gigantescas  dos  reis  godos  Ren- 
cesvinto  e  Chindasvinto. 

A  fachada  opposta,  ou  do  sul,  é  de  Juan  Herrera,  e 
data  de  1571 ;  mostra  quatro  pavimentos;  é  de  pedm 
berroquenha,  de  ordem  dórica  e  a  menos  interessante. 

A  do  occidente  suppõe-se  do  século  xv,  época  de  João 
II  e  de  Fernando  e  Izabel,  pois  deve-se  também  a  Co- 
varrubias. O  estylo  é  renascença,  e  o  portal,  cheio  de 
abundantes  e  óptimos  relevos,  plateresco. 

A  do  oriente  é  de  Carlos  V;  apresenta  o  aspecto  de  um 
castello  com  duas  fortes  muralhas  e  torreões  centraes  re- 
dondos, que  fazem  jogo  com  as  torres  quadradas  dos 
extremos. 


380  NOTAS  A  LÁPIS 


No  interior,  apezar  dos  destroços  produzidos  pelo 
vandaiico  incêndio  dos  francezes,  ha  ainda  arcarias,  es- 
cadas, salas,  abobadas,  pilastras,  tribunas  e  objectos, 
que  nos  fazem  remontar,  em  imaginação,  a  épocas  di- 
versas, alinhando  diante  de  nós  muitas  sociedades  dis- 
tinctas,  com  os  seus  dias  de  luta,  riquezas,  esplendo- 
res, gozos  e  alegrias,  de  que  nos  faliam  todas  aquellas 
ruinas,  que  estão  a  cargo  do  Colégio  de  Cadetes,  e  po- 
diam ainda  ser  arrancadas  ao  simples  domínio  da  ar- 
cbeologia,  pelo  aproveitamento  e  restauração,  de  que 
são  dignas. 

.  * 
*      * 

Continuando,  pela  estreiteza  do  tempo  e  pelas  diffi- 
culdades  de  introducção,  inberentes  ao  visitante  apres- 
sado, entregue  por  necessidade  inadiável  ao  primeiro 
guia  officioso,  que  lhe  offereceu  os  seus  serviços,  a  com- 
memorar  em  traços  rápidos  o  que  de  mais  importante 
nos  feriu  a  attenção,  principiaremos  o  nosso  terceiro 
itinerário  descendo  á  Ermita  dei  Cristo  de  la  Luz,  uma 
das  boas  antiguidades,  que  Toledo  nos  offerece  em  lar- 
ga copia. 

Divergem  as  opiniões  acerca  da  época  da  sua  edifi- 
cação, inclinando- se  a  maior  parte  d'ellas  a  remontal-a 
ao  tempo  dos  godos,  dizendo  que  continuou  a  ser  egreja 
christã,  durapte  a  dominação  dos  árabes,  até  que  mais 
tarde  foi  reconstruída  e  ampliada. 
*  O  caso  é  que  Affonso  VI,  ao  fazer  em  25  de  maio  de 
1085  a  sua  entrada  triumphal  em  Toledo  pela  antiga 
porta  de  Visagra,  como  fosse  este  pequeno  templo  o 
primeiro,  que  encontrou,  mandou  alli  celebrar  missa, 
acto  continuo,  pelo  abbade  de  Sahagun,  D.  Bernardo, 
e,  em  memoria  d'este  facto,  depositou  no  altar  o  seu 
escudo,  que  se  vê  suspenso  do  arco,  que  divide  o  corpo 
da  ermida  da  capella-mór,  acompanhado  da  respectiva 
inscripção.  É  uma  peça  de  madeira  com  uma  simpies 
cruz  branca,  em  campo  vermelho. 


UM  DIA  BM  TOLEDO  381 


0  pequeno  edifício  pode  dividir-se  em  duas  partes. 
A  primeira,  mais  antiga  e  importante,  é  o  corpo  da  er- 
mida, quadrado,  contendo  seis  pequenas  naves,  que  se 
cruzam  a  três  e  três  em  direcção  opposta,  formando 
nove  abobadas  differentes,  de  um  bello  effeito,  susten- 
tadas por  arcos  toscos  de  ferradura,  que  se  apoiam  em 
quatro  columnas  ainda  mais  toscas,  cujos  capiteis,  no 
dizer  dos  entendidos,  são  restos  innegaveis  da  edifica- 
ção primitiva  e  goda. 

Sobre  este  corpo  levanta-se  outro  de  pequeninas  ar- 
carias duplas  sobre  columnatas  semelhantes  ás  debaixo. 

O  eslylo  geral  è  arabe-bysantino,  ou  do  período  an- 
tecedente ao  da  transição  da  arte  mourisca,  quando  esta 
descurou  a  sua  verdadeira  originalidade. 

A  segunda  parte  tfu  acrescentamento  é  árabe  também, 
incluindo  o  ábside,  onde  está  o  altar  do  Gbristo  da  Cruz 
e  da  Virgem  da  Luz,  verdadeiro  nome  da  ermida. 

As  imagens  e  o  retábulo  não  correspondem  ao  typo 
notável  (Taquella  interessantíssima  e  curiosa  antigalha. 

Continuando  a  descer  para  o  arrebalde  mais  extenso, 
logo  em  começo  poderemos  ver  a  egreja  de  S.  Thiago, 
reconstruída  em  1247,  segundo  uns  pelos  cavalleiros 
d'este  titulo,  ajudados  por  D.  Sancho  II,  de  Portugal; 
segundo  outros,  por  este  próprio  monarcha,  durante  o 
período  dos  dois  annos,  que  passou  em  Toledo,  em 
exercícios  religiosos,  para  esquecer  os  muitos  desgos- 
tos da  sua  vida. 

A  construcção  é  puramente  árabe,  interna  e  externa- 
mente, inclusive  a  torre  e  uma  peça  de  abundantissimp 
merecimento  artístico,  o  púlpito,  onde  pregou  S.  Vicente 
Ferrer,  cuja  estatua,  em  hábitos  de  dominico,  lá  se  en- 
contra com  um  crucifixo  na  mão  direita.  O  interior,  onde 
deparámos  com  lapides  sepnlchraes  antiquíssimas,  está 
bastante  desfigurado  pelas  reparações  bastardas  de  mau 
gosto  e  época  moderna. 

Deitando  uma  vista  de  olhos  para  a  moderna  e  para 
a  antiga  porta  de  Visagra,  que  data  dos  fins  do  século 
ix,  quando  florescia  o  primeiro  período  de  architectura 


NOTAS  A  LÁPIS 


árabe,  chegaremos  ao  hospital  de  Afuera,  ou  de  San 
Juan  Bautisía,  grandioso  edifício  incompleto,  fundado 
em  1540  pelo  cardeal  arcebispo,  D.  João  Tavera,  rei- 
nando o  imperador  Carlos  V,  ou  I  de  Hespanha. 

A  planta  è  quadrada,  e  forma  quatro  paleos  com  uma 
egreja  ao  centro.  A  entrada  a  meio  da  fachada  meridio- 
nal, è  insignificante;  a  abobada  recta  do  vestíbulo  tem 
merecimento.  D'aqui  passa-se  ás  extremas  galerias,  que 
dividem  os  dois  pateos  principaes,  á  direita  e  á  esquer- 
da, em  duas  ordens,  alta  e  baixa,  sendo  a  primeira  dó- 
rica e  a  segunda  jónica,  e  produzindo  um  sumptuoso 
golpe  de  vista. 

  roda  (festas  galerias,  estendem-se  as  enfermarias 
e  todos  os  mais  compartimentos  existentes. 

A  egreja  é  sem  duvida  a  parte  mais  notável  e  uma 
das  melhores,  que  possue  a  cidade.  A  sua  architectura 
é  dórica,  mas  a  portada  principal  è  um  primor  da  arte, 
executada  em  bello  mármore  de  carrara  pelo  insigne 
Alonso  de  Berruguete,  pois  parece  na  sua  simplicidade 
e  pureza  um  trabalho  moldado  em  cera;  e  o  interior, 
uma  cruz  latina,  é  amplo,  formoso  e  harmónico,  com  a 
sua  grande  nave,  o  seu  pavimento  de  mármores  branco 
e  preto,  o  seu  altíssimo  lauternim  e  os  seus  altares  jó- 
nicos e  corinthios,  guarnecido  de  estatuas. 

Ao  centro  do  cruzeiro,  avulta  o  objecto  mais  interes- 
sante do  edifício,  o  tumulo  do  fundador,  a  ultima  obra 
de  Berruguete,  feito  em  mármore  de  Itália,  com  tal  pro- 
fusão de  ornatos,  desde  a  estatua  jacente  até  á  mais  pe- 
guena  parte  do  monumento  funerário,  que  a  sua  descri- 
pção  completa,  mesmo  tomada  pela  rama,  seria  difficili- 
ma  para  quem,  como  nós,  dispõe  de  um  tempo  tão  curto. 

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#  # 

Descendo,  por  detraz  do  quartel  de  S.  Lazaro,  á  ex- 
planada de  la  Vega,  a  via  sacra  dos  romanos,  se  bem 
nos  lembrámos,  onde  se  admiram  ainda  as  ruinas  do 


UM  DIA   EM  TOLEDO  383 


Circo  Máximo,  da  Naumáchia,  ou  circo  de  jogos  na- 
vaes,  e  do  templo  de  Hercules — iremos  á  celebrada  Fa- 
brica de  Espadas,  onde  poderemos  adquirir  como  re- 
cuerdo  um  alfinete,  um  punhal,  um  canivete  esmaltado, 
polido  ou  burilado,  entre  os  muitos  e  delicadíssimos 
productos  d'aquelle  importantíssimo  estabelecimento  na- 
cional, appenso  á  direcção  do  corpo  de  artilberia. 

O  edifício,  que  data  de  Carlos  111,  não  tem  bellezas 
artísticas,  e  está  collocado  na  margem  direita  do  Tejo, 
cujas  aguas  lhe  formam  os  elementos  principaes  da  sua 
força  motriz. 

È  um  vastíssimo  conjuncto  de  construcções  irregula- 
res e  officinas,  onde  trabalham  artistas  de  uma  capaci- 
dade superior  e  característica,  verdadeiros  sustentáculos 
da  fama  universal,  tributada  á  especialidade  das  armas 
brancas,  fabricadas  n'aquelle  lugar,  que  tem  adquirido 
uma  incontestável  celebridade. 

Aqui  temos  nós  os  recuerdos,  que  alcançámos — uma 
pequena  navalha  burilada,  um  pequeno  florete  esmal- 
tado e  um  alfinete  para  gravata,  em  forma  de  alfange, 
que  não  cessámos  de  admirar  pelos  arabescos,  que  con- 
teem  e  pela  perfeição,  que  os  torna  em  jóias  de  fino 
ouro,  quanto  ao  custo,  e  em  preciosidades,  quanto  ao 
valor  estimativo. 

Quando  Toledo  não  fosse  por  si  um  attraente  valio- 
síssimo, como  antiguidade  opulenta  e  pittoresca,  bastar- 
lhe-ia,  para  ser  procurada,  o  possuir  aquelle  patriótico 
exemplar  de  uma  industria  tão  bem  caracterisada  e  tão 
perfeita. 


384  NOTAS  A  LÁPIS 


III 


A  CathedraL— O  que  diz  a  tradição  histórica. 

O  exterior.  — O  interior  onde  se  abrigam  Tinte  e  seis 

capeUai !  —  Ponto  final. 


Muito  de  propósito,  deixámos  para  o  Gnal  das  nossas 
indicações,  a  referencia  ao  primeiro  e  principal  dos  mo- 
numentos toledanos,  ao  mais  volumoso  de  todos  elles, 
pela  sua  forma,  pelos  seus  ornamentos,  historia  varia  e 
differenças  de  época;  uma  creação  gigantesca,  difficil  de 
conceber  de  um  só  jacto,  como  o  altestam  as  obras  de 
tantos  e  tão  diversos  executores;  uma  monstruosidade, 
no  mixto  de  estylos  e  objectos,  divisões  e  acrescenta? 
mentos,  que  precisariam  de  um  grosso  volume  para  uma 
descripção  completa,  do  que  Deus  se  sirva  livrar-nos  ao 
leitor  e  a  nós. 

O  que  dissermos,  ainda  assim,  com  ser  relativamente 
pouco,  pela  sequidão  do  assumpto,  só  è  dedicado  aos 
devotos  do  género. 

Referimos-nos  á  Cathedral,  uma  das  mais  notáveis 
em  todo  o  mundo  catbolico,  collocada  no  coração  da  ci- 
dade, em  espaço,  que  occupará  uns  nove  mil  metrcRfqoa- 
arados,  pelo  que  respeita  ao  corpo  central,  sem  contar 
a  superfície  das  suas  vinte  e  seis  capellas,  sacristia,  sala 
do  capitulo,  tbesouraria,  claustros  e  restantes  divisões, 
que  a  circundam,  alargam  e  completaml 

Diz  a  tradição  que,  já  no  tempo  dos  godos,  havia 
n'aquelle  lugar  uma  pequena  egreja,  convertida  mais 
tarde  pelos  árabes  em  mesquita-mór,  feitos  os  alarga- 
mentos necessários,  segundo  uma  inscripção,  encontrada 
no  parapeito  de  um  poço  de  aguas  fluviaes,  existente 


UM  DIA  EM  TOLEDO  385 


no  ex-convento  dos  dominicos  de  S.  Pedro,  martyr,  com 
a  data  de  1045. 

Quarenta  annos  mais  tarde,  Àlonso  VI  conquistava  To- 
ledo, e  os  mouros  nos  ajustes  da  capitulação  reserva- 
ram para  as  suas  praticas  religiosas  a  mesquita-mór, 
que  alguns  mezes  depois,  na  ausência  do  monarcha,  foi 
tomada  de  assalto  pelos  christãos,  e  acommodada  ao 
seu  culto,  por  acordo  entre  a  rainha  e  o  arcebispo 
D.  Bernardo. 

Mais  tarde,  o  conquistador  de  Sevilha,  rei  de  Cas- 
tella  e  Leão,  D.  Fernando  III,  o  santo,  ainda  por  con- 
selho de  outro  arcebispo,  D.  Rodrigo  Jimenez  de  Rada, 
pensou  em  deitar  abaixo  a  construcção  godo-arabe,  e 
edificar  um  templo  sumptuoso,  que  desse  ao  mundo 
catholico  perfeita  demonstração  da  sua  fé  e  magnificên- 
cia; o  que  se  executou,  assentando-se  a  primeira  pe- 
dra da  cathedral,  com  as  maiores  pompas  e  ceremonial 
da  época,  em  14  de  agosto  de  1227,  sendo  o  archite- 
cto  Pedro  Peres. 

Tamanha  foi  a  grandeza  da  obra  encetada,  que  se  gas- 
taram 266  annos  nos  seus  trabalhos,  até  ao  fecho  das 
ultimas  abobadas,  não  contando  ainda  algumas  capellas, 
portadas  e  muitos  compartimentos,  que  se  fizeram  pos- 
teriormente. 

Foi  isto  em  janeiro  de  1493,  governando  Fernando 
a  Isabel,  os  catholicos  introductores  da  inquisição  e  os 
engratos  conspurcadores  das  glorias  de  Colombo,  a  quem 
deram  auxilio  no  começo  dos  seus  era prehendi mentos, 
e  aviltaram  por  fim,  como  tão  próprio  era  dos  costumes 
de  então. 

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#      # 

À  architectura  d'este  soberbo  edificio,  cujo  aspecto  é 
prejudicado  pelo  terreno  baixo,  cercado  de  ruas  estrei- 
tas e  agglomeração  de  casas  visinhas,  pertence  ao  gé- 
nero gotbico;  a  planta  é  quadrilonga,  arredondada  na 
trazeira,  parallela  á  frente ;  o  exterior  de  granito  berro- 

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386  NOTAS  A  LÁPIS 


quenho,  e  o  interior  de  cantaria  branca,  arrancada  das 
pedreiras  Olihuelas,  a  duas  léguas  da  cidade. 

A  frontaria  principal,  chamada  La  fachada  delPerdon, 
está  voltada  para  o  occidente  e  para  um  pequeno  largo ; 
tem  nos  extremos,  de  um  lado  a  torre  e  do  outro  a  cú- 
pula da  capella  mozarabe,  correndo  entre  estes  dois  cor- 
pos salientes  uma  gradaria-  de  ferro,  sustentada  por  pi- 
lastras  com  jarrões,  a  fechar  o  átrio,  para  onde  abrem 
três  portas — a  central  ou  dei  Perdon  e  as  lateraes  de 
los  Escribanos,  á  direita,  e  de  la  torre,  á  esquerda,  com- 
postas de  três  arcos  de  pedra  branca,  cheios  de  laça- 
rias, folhagens,  estatuetas  e  grande  collecção  de  anjos, 
cabeças  de  santos  e  reis  nas  arcbivoltas,  distinguindo-se 
sobre  a  do  centro  um  baixo  relevo  da  Virgem  no  acto 
de  pór  a  casula  a  S.  Ildefonso,  na  da  direita  o  Juizo 
Final  e  na  outra  estrellões  com  rostos  e  cabeças. 

O  segundo  corpo  da  frontaria  compõe-se  de  peque- 
nas arcarias  a  emoldurar  estatuas  de  santos,  tendo  ao 
centro  um  troço  de  architectura  com  a  representação  da 
Ceia  em  figuras  superiores  ao  tamanho  natural ;  o  ter- 
ceiro tem  a  meio  um  grande  arco,  partido  por  um  pi- 
lar, que  leva  a  luz  a  um  rosetão  envidraçado  e  interior 
ou  clarabóia,  que  entesta  com  a  nave  central,  coroan- 
do-o  um  varandim  de  pedra,  onde  se  ostenta  a  estatua 
collossal  da  Religião. 

Obedecendo  ao  género  gothico  todas  as  partes,  que 
deixámos  apontadas,  as  galerias  greco-romanas  de  or- 
dem jónica,  que  completam  o  ultimo  corpo,  aos  lados 
d'essa  estatua,  são  de  um  mau  gosto  transcendente,  por 
absurdas  e  inharmonicas. 

A  fachada  meridional  apresenta  a  porta  hiena  de  pouca 
importância  relativa,  com  o  seu  feitio  do  género  das 
mencionadas  galerias,  cornijamento  triangular,  apoiado 
em  duas  grandes  columnas,  e  La  puerta  de  los  lionês, 
que  forma  assumpto  curioso  e  pouco  vulgar. 

Como  corpo  saliente,  seis  columnas  de  mármore  in- 
teiriço sustentam  uma  vergaria  de  ferro  e  outros  tantos 
leões,*  segurando  escudos  de  armas ;  segue-se  um  grande 


UM  DIA  EM  TOLEDO  387 


arco  de  género  gothico,  tendo  aos  lados,  por  cima  e  Da 
archivolta  adornos,  relevos  numerosos  e  estatuas  cober- 
tas por  baldaquinos ;  no  fundo,  que  forma  abobada  ares- 
tada,  um  grupo  de  esculpturas,  commemorando  a  As- 
sumpção de  N.  Senhora;  e  no  alto,  como  remate,  me- 
dalhões com  bustos  em  alto  relevo  e  novas  figuras,  a 
que  succede  um  frontão  encimado  pela  estatua  gigan- 
tesca de  S.  Agostinho. 

O  todo  é  tão  complicado  como  imponente. 

Torneando  as  doas  fachadas  restantes,  encontraremos 
La  puerta  dei  Réloj,  mais  antiga  que  as  precedentes, 
arcada  gotbica,  com  acrescentamentos  bastardos  de  me- 
diana importância,  e  La  portada  de  santa  Catalina,  ogi- 
va ainda  de  data  anterior,  século  xiv,  dividida  em  duas 
entradas  por  uma  columna,  cujo  capitel  representa  em 
baixo  relevo  o  acto  dos  anjos  ao  sepultar  o  corpo  da 
santa,  que  figura  em  effigie  no  alto  da  columna.  Sobre 
a  verga  da  porta,  admira-se  uma  bella  pintura  de  Luiz 
Velasco,  representando  a  Annunciação  de  N.  Senhora. 
*  Segue-se  depois  La  portada  de  la  Presentacion,  que, 
sem  apparatos  de  grandeza,  se  pode  considerar  a  mais 
formosa. 

É  de  pedra  branca  e  gosto  plateresco,  extraordinaria- 
mente florido,  e  data  de  1565.' 

Consta  de  um  arco  encravado  n'um  composto  de  pi- 
lastras,  frisos,  cornijamento  e  remate  triangular,  semea- 
do inteiramente  de  minuciosos  relevos,  desde  a  base 
alé  á  cúspide,  e  decorado  com  estatuas,  medalhões  e 
escudos,  apresentando  no  fecho  do  arco  um  oval,  onde 
em  meio  relevo  se  vê  o  Mysterio  da  apresentação  da 
Virgem. 

E  já  que  estamos  aqui,  antes  de  entrar  no  templo, 
poderemos  dar  uma  volta  de  olhos  aos  claustros,  fechan- 
do assim  o  nosso  passeio  quadrangular,  á  volta  do  gran- 
de corpo  central. 

O  Claustro  bajo  occupa  o  lugar,  que  os  judeus  cha- 
mavam Alcana,  utilisando-o  para  o  seu  mercado;  tem 
quatro  galerias  de  granito  escuro,  ou  berroquenho,  for- 


388  NOTAS  A  LÁPIS 


madas  por  arcarias  gotbicas,  e  nas  paredes  grande  va- 
riedade de  frescos  damnificados  pela  humidade. 

A  cousa  mais  valiosa,  que  lá  se  encontra,  é  para  o 
antiquário  um  padrão  histórico,  achado  n'uma  escava- 
ção de  1591,  mandado  collocar  num  pedestal,  a  meio 
dà  galeria  oriental.  Consta  de  uma  pedra  cylindrica  de 
mármore  branco,  com  uma  inscripção  em  caracteres  la- 
tinos do  século  vi,  que  se  refere  á  consagração  da  egre- 
ja  á  Virgem  Maria  em  12  de  abril  do  anno  587,  primei- 
ro do  reinado  de  Recaredo,  que  foi  cognominado  o  ca- 
íholico  pelos  wisigodos. 

Deixando  de  referir-nos  ao  Claustro  alto,  por  mes- 
quinho, á  sala  capitular,  para  onde  se  entra  por  uma 
portada  gothica,  que  está  na  frente  do  padrão  histórico,- 
á  bibliotheca,  e  á  sala  dos  gigantones,  umas  figuras  gro- 
tescas de  dez  metros  de  altura,  vestidas  de  seda  antiga, 
que  em  épocas  passadas  abrilhantaram  a  procissão  de 
Corpus  Christi — penetraremos  na  capiUa  de  S.  Bios, 
que  fica  n'um  angulo  do  claustro  baixo. 

A  sua  bella  porta  gothica  tem  todos  os  resaltos  das 
archivoltas  do  arco,  capiteis  e  mais  adornos  dourados, 
e  por  cima  ainda  a  Assumpção  de  N.  Senhora  em  es- 
culpturas  de  tamanho  pouco  inferior  ao  natural. 

O  interior  obedece  ao  mesmo  estylo,  mostra-nos  três 
altares  com  retábulos  pintados,  havendo  no  principal 
uma  estatua  da  Virgem  coroada,  feita  de  pedra  inteiriça 
e  pintada,  e  guarda  em  urnas  de  mármore,  sustidas  por 
leões,  as  cinzas  do  bispo  fundador  D.  Pedro  Tenório, 
fallecido  em  1399  e  as  do  seu  capellão,  cujas  estatuas 
jacentes,  vestidas  de  pontifical,  descançam  sobre  as  urnas. 

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Passemos  ao  interior  do  magestoso  e  vastíssimo  templo. 

São  cinco  as  naves;  a  maior  e  central  mede  38  me- 
tros de  altura;  as  lateraes  descem  gradualmente,  servin- 
do de  apoio  umas  ás  outras,  e  sustentando  o  todo  con- 


UM  DIA  EM  TOLEDO 


sideravel  de  72  abobadas  de  tamanhos  differentes,  sobre 
88  grupos  de  pilares,  ou  molhos  de  columnatas,  que  va- 
riam de  oito  a  dezeseis,  com  bases  e  capiteis  adornados. 

Dos  pilares  arrancam  os  arcos  ogivaes,  d'onde  par- 
tem as  numerosíssimas  arestas,  que  fortalecem  as  abo- 
badas, e  se  cruzam  em  todas  as  direcções. 

Um  xadrez  de  mármores  brancos  e  azulados  forma  o 
pavimento;  a  luz  é  destribuida  por  750  janellas  de  diffe- 
rente  estylo  gothico,  onde  entram  três  enormes  e  exqui- 
sitos  rosetões,  collocados  um  no  topo  da  nave  central, 
á  entrada  e  os  dois  nos  extremos  do  cruzeiro.  Todos  os 
vidros  são  pintados  a  fogo,  e  representam  em  quadros 
sacros  o  trabalho  de  umas  poucas  de  gerações  de  artistas. 

Nos  quarenta  intercolumnios  das  ultimas  naves  late- 
raes  e  no  topo  da  egreja,  ha  vinte  e  três  capellas,  gra- 
deadas de  ferro  lavrado,  varias  portas  e  a  communica- 
ção  para  a  escadaria  do  palácio  arcebispal,  construído 
á  esquerda  do  edifício,  junto  aos  claustros. 

No  centro  figura  a  capella-mór,  ou  presbitério,  como 
lá  se  chama,  e  o  coro  dos  prebendados,  defrontando-se 
ambos,  completamente  despegados  das  outras  partes, 
segundo  o  commum  das  catbedraes  gothicas,  e  separa- 
dos pelo  espaçoso  cruzeiro,  que  vae  de  norte  a  sul. 

Tal  é  o  aspecto  geral. 

Começando  por  partes,  notaremos  que  as  portadas  ex- 
teriores são  objectos  novos,  observados  pelo  lado  interior. 

A  central  daí  frontaria,  a  dei  Perdon  já  dita,  é  dividi- 
da em  duas  metades,  fechando  com  madeira  chapeada 
de  metal,  e  tem  nos  ângulos  estatuas  de  profetas;  no 
segundo  corpo,  uns  arcos  duplos  com  a  vidraria  pinta- 
da a  fogo;  no  remate,  o  grande  rosetão  ou  transparente 
de  cristal  do  mesmo  género;  e  aos  lados,  sobre  peanhas 
de  mármore  preto  e  branco,  um  quadro  de  S.  José  e 
outro  da  Puríssima  Conceição. 

As  duas  portas  lateraes  são  simples,  e  mostram-nos 
pinturas  e  inscripções  commemorativas. 

Caminhando  á  direita  temos : 

A  Capilla  Muzárabe,  chamada  assim,  porque  alli  se 


390  KOTAS  A  LÁPIS 


celebraram,  e  celebram  ainda  hoje  diariamente  os  offi- 
eios  divinos  e  a  missa,  segundo  o  rito  dos  godos,  con- 
servado pelos  christãos,  que  viveram  sob  a  dominação 
dos  mouros,  e  que  se  denominam  por  isso  mozarabes. 

Esta  capella  foi  ampliada,  em  1519,  por  compra  e  or- 
dem do  cardeal  Cisneros,  e  a  cúpula  terminada,  em  1626, 
por  um  filho  do  pintor  Dominico  Greco.  O  arco  da  en- 
trada, fechado  por  grade,  é  plateresco,  e  gothico  o  nicho 
que  se  lbe  sobrepõe  com  a  esculptura  de  N.  Senhora  da 
Piedade.  Tem  um  só  altar,  magnifico  pelo  mosaico,  que 
occupa  o  intercojumnio  do  retábulo,  e  representa  a  Vir- 
gem com  o  menino,  em  attilude  de  ferir  o  dragão  infer- 
nal, que  lbe  estrebuxa  aos  pés. 

Esta  riquíssima  obra,  que  nos  fez  recordar  dos  pre- 
ciosos mosaicos  da  nossa  capella  de  S.  João  Baptista,  e 
parece  delicadíssima  pintura  a  óleo,  foi,  como  estes, 
comprado  em  Roma,  em  1794,  pelo  cardeal  Lorenzana, 
por  mais  de  dezoito  contos  de  réis,  ou  400,000  reates. 

Sobre  o  retábulo,  avulta  um  crucifixo,  feito  de  uma 
só  raiz  de  funcho  arbóreo,  trazida  da  America  pelo  do- 
minico frei  Gabriel  de  Villafane,  em  1590. 

O  fresco,  que  enche  o  occo  do  arco  fronteiro  ao  da 
entrada,  commemora  alguns  epysodios  da  conquista  de 
Oran,  na  Argélia,  ordenada  em  1509  por  Cisneros;  fal- 
ta-Ibe  perspectiva,  mas  sobra-lbe  a  verdade  dos  trajes, 
armas  e  maneira  de  batalhar  da  época. 

# 
#      # 

Observadas  as  cousas  principaes  (festa  capella,  abri- 
mos um  parenthesis  para  os  curiosos,  que  desejem  sa- 
ber as  differenças,  que  existem  entre  a  celebração  das 
missas  romana  e  mozarabe,  respigadas  de  envolta  com 
outros  apontamentos  do  Toledo  á  la  mano,  obra  moder- 
na, folhuda,  milagreira  e  massuda  do  mui  conspícuo  e 
devoto  senhor  D.  Sixto  Parro. 

Move-nos  a  isso  o  praticarem  se  ainda  em  Toledo, 


UM  DIA.  Hl  TOLEDO  391 

como  já  dissemos,  os  exercícios  do  rito  godo;  o  que  é 
especial  e  característico. 

Vejamos  as  differenças. 

O  celebrante,  depois  da  confissão  e  preces  prelimi- 
nares, logo  que  sobe  ao  altar,  desprega  os  corporaes, 
examina  a  hóstia,  deita  agua  e  vinho  no  cálix,  e  cobre- o. 

Antes  da  epistola,  ha  uma  profecia;  entre  ambas  can- 
ta-se  um  responsorio;  a  aleluia  segue-se  ao  evangelho, 
o  credo  á  consagração,  tendo  o  sacerdote  a  hóstia  elevada 
sobre  o  cálix,  e  collocando-a  sempre  sobre  a  patena  e 
nunca  sobre  os  corporaes,  antes  e  depois  de  consagrada. 

Antecedendo  o  prefacio  e  depois  do  offertorio,  cantam- 
se  varias  orações,  e  dá-se  a  paz.  Os  prefácios  são  sem* 
pre  largos,  ao  passo  que  o  cânone  é  sempre  curto. 

O  cálix,  ao  elevar-se,  está  coberto;  a  fracção  da  hós- 
tia faz-se  em  nove  partículas,  que  se  collocam  em  cruz 
sobre  a  patena,  representando  cada  uma  um  mysterio 
do  Senhor. 

O  Pater  Noster  é  cantado  ou  resado,  dividido  nas 
suas  sete  petições,  á  maior  parte  das  quaes  o  coro  res- 
ponde—4roen,  assim  como  ás  três  da  benção,  que  é 
recebida  de  joelhos  pelo  povo,  para  quem  o  celebrante 
se  não  volta,  e  se  segue  logo  depois  da  immersão  da 
nova  partícula  da  hóstia  dentro  do  cálix,  que  se  faz  ter- 
minado o  Pater  Noster. 

O  memento  pelos  defuntos  faz-se,  tendo  o  padre  a  oi- 
tava partícula  da  hóstia  sobre  o  cálix,  depois  da  benção, 
e  o  dos  vivos,  antes  do  Pater. 

A  missa  não  tem  o  evangelho  ultimo,  termina  com 
uma  frase  equivalente  ao  ite  missa  est;  o  sacerdote  ajoe- 
lha depois,  resa  a  salve,  levanta-se,  volta-se  para  o  po- 
vo, e  dá-lhe  a  benção. 

♦ 
♦      #■ 

Continuando  o  nosso  passeio  ao  longo  da  nave  late- 
ral, veremos: 
A  Capilla  de  la  Epifania,  ou  adoração  dos  Magos. 


392  MOTAS  A  LAFfS 


Século  xv,  altar  de  gothico  puro,  pintoras  em  madei- 
ra, estatuas  de  mármore  pintado. 

Capilla  de  la  Concepcion.  Século,  género  e  semelhan- 
ça eguaes,  melhores  pinturas,  sepulcro  e  estatua  jacente 
de  bello  alabastro. 

Capilla  de  San  Martin.  Século  e  arcbitectura  eguaes, 
lavores  e  filetes  dourados,  retábulo  plateresco,  compos- 
to de.  quadros  em  madeira,  nichos  do  mesmo  estylo, 
sarcopbagos  e  bustos  excellentes  dos  fundadores. 

Capilla  de  San  Eugénio.  Século  xiii,  restaurada  mais 
tarde,  segundo  se  lé  n'um  tumulo  plateresco,  adornado 
de  estatua  em  pontifical,  e  trabalhado  em  custoso  ala- 
bastro» 

Em  seguimento  d'esta  capella,  temos  a  architectura 
interior  da  Puerta  de  Leonês,  menos  a  p  par  a  tosa,  mas 
sem  duvida  mais  delicada  e  bella,  vista  (Teste  lado. 

Um  arco  magestoso  é  dividido  a  meio  por  um  pilar 
gothico,  que  estabelece  dois  batentes  com  almofadas  e 
talha  admiráveis.  Sobre  a  verga  um  medalhão  semicir- 
cular, mostrando  em  meio  relevo  a  arvore  geneologica  da 
Virgem,  rematada  pela  sua  imagem  com  o  menino  nos 
braços,  e  na  ramagem  os  patriarchas,  seus  progenitores. 

Mais  acima,  no  centro  de  quatro  columnas  balaus- 
tradas onde  sobresaem  duas  estatuas  de  profetas,  um 
novo  medalhão  com  a  coroação  da  Senhora;  depois  um 
friso  geral  de  estylo  plateresco,  com  varanda,  que  ser- 
ve de  peitoril  a  um  excel lente  órgão,  alumiado  no  alto 
por  um  grande  rosetão  de  vidros  coloridos. 

Á  direita  d'esta  porta,  está  uma  urna  funerária,  no 
meio  de  esculpturas  e  ornamentação  gothicas,  sem  ins- 
cripção  nem  distinctivo;  pelo  que  se  suppõe  estar  va- 
sia;  e  ao  lado  esquerdo  a  sepultura  do  cónego  D.  Àlon- 
so  de  Rojas,  com  muitos  relevos,  um  resguardo  de  ferro 
e  a  sua  estatua  ajoelhada. 

Rodeando  ao  fundo  do  cruzeiro,  passámos  por  uma 
caixa,  chapeada  de  bronze  e  cheia  de  baixos  relevos  go- 
thicos,  destinada  n'outros  tempos  ás  esmolas,  vemos 
pinturas  diversas»  bustos  e  medalhões,  e  entrámos  na : 


UM  WA  EM  TOLEDO  993 


Capilla  de  S.  Lúcia,  gothica,  pequena  e  muito  anti- 
ga; epitapbios  do  século  xm,  altar  de  mármore,  retábu- 
lo pintado  entre  molduras  da  mesma  pedra. 

Capilla  de  Reyes  Viejos,  vasta,  clara  e  ogival.  Funda- 
da em  1290  pelo  arcebispo  Palomeque,  para  si  e  seus 
parentes,  serviu  até  1498  para  este  effeito.  Adquirida 
então  por  D.  Sancho,  o  bravo,  os  sepulcros  foram  mu- 
dados para  a  anterior,  ou  de  S.  Lúcia,  e  os  escudos  de 
familia  substituídos  pelas  armas  reaes.  Tem  altares  pia- 
terescos,  coro  e  sacristia,  que  fica  por  detraz  do  altar- 
mor. 

Capilla  de  S.  Anna.  Pequena  e  escura,  com  retábu- 
los relevados  e  a  estatua  ajoelhada  do  cónego,  seu  res- 
taurador. 

Capilla  de  S.  Juan  Bautista.  Século  xm.  No  muro 
fronteiro,  ha  um  nicho  com  uma  cruz  de  ébano  e  ima- 
gem de  marfim  sobre  peanha  de  bronze,  onde  sobre- 
saem  as  imagens  da  Virgem  e  S.  João  evangelista,  ao 
pé  de  três  anjos,  que  recolhem  em  vasos  o  sangue  que 
escorre  das  chagas  do  Salvador.  É  uma  obra  de  arte  de 
bom  cunho  e  mérito  e  o  objecto  mais  valioso,  que  lá  se 
encontra. 

Capilla  de  San  Gil.  Greco-romana,  pequena  e  rica, 
restaurada  em  1573.  Altar  e  retábulo  de  calcareos  de 
cores,  abobada  pintada  a  fresco,  estatuas  e  medalhões 
apreciáveis. 

Capilla  de  la  Trinidad.  Encontra-se,  passada  a  cabe- 
ceira semicircular  da  egreja;  foi  reformada  em  1522,  e 
tem  o  sepulcro  do  restaurador. 

Capilla  de  San  Ildefonso.  Muito  interessante  na  sua 
decoração,  verdadeiro  pantheon  de  vários  personagens. 
No  exterior,  pilares  funerários  com  medalhões,  a  formar 
um  portÍ60  com  abobada  pintada  a  fresco;  no  interior, 
estylo  gothico  e  planta  octogona,  altar  moderno  de  már- 
mores, jaspes,  bronze  e  ordem  corinthia.  As  duas  co- 
lumnas,  que  o  guarnecem  teem  caneluras,  capiteis  e  pe- 
destaes  de  bronze,  e  o  retábulo,  em  meio  relevo,  re- 
presenta a  Virgem  no  acto  de  pôr  a  cazula  ao  santo. 


394  NOTAS  A  LAfIS 


Ao  centro  e  aos  lados,  túmulos  e  estatuas  dos  séculos 
xiv  e  xv. 

Gapilla  de  San  Tiago.  Fundada  em  1435  no  lugar  on- 
de já  existira  outra  pelo  afamado  D.  Álvaro  de  Lona, 
gran-mestre  da  Ordem,  e  destinada  para  seu  enterra- 
mento, tem  a  forma  octogona,  primorosos  entalhes,  la- 
vores gothicos  e  três  altares.  No  principal,  figuram  a 
esculptura  do  santo  e  pinturas,  onde  se  vêem  os  retra- 
tos do  fundador  e  de  sua  mulher;  por  cima  do  retábu- 
lo um  grande  meio  relevo  do  apostolo,  patrono  da  Hes- 
panba,  no  devoto  entretenimento  de  matar  mouros !  Os 
seis  túmulos  cTeste  recinto  são  luxuosos,  especialmente 
os  dois  do  centro,  pertencentes  aos  fundadores,  cujo 
chefe  veste  armadura  completa  e  manto  da  ordem  de 
S.  Tbiago. 

Capilla  de  Reyes  Nuevos,  nome  que  a  distingue  da 
dos  reis  velhos,  já  dita.  Foi  erigida  em  outro  lugar  por 
Henrique  II,  em  1374,  mudada  para  alli  e  ampliada  no 
tempo  de  Carlos  V,  sendo  Covarrubias  encarregado  da 
obra.  Ê  do  mais  elegante  e  florido  género  plateresco, 
tendo  a  entrada  em  arco,  ladeado  por  dois  reis  de  ar- 
mas com  maças,  átrio,  uma  nave  dividida  em  três  abo- 
badas por  arcos,  coalhados  de  molduras  douradas  e  re- 
levos, e  órgão  que  mostra  por  cima  um  estandarte  en- 
rolado e  uma  armadura  completa.  Confundindo-se  entre 
si  muitas  insígnias  christãs  e  mouriscas,  ha  duvidas  so- 
bre a  procedência  «Testes  objectos  históricos.  Dizem  uns 
que  o  estandarte  foi  tomado  aos  portuguezes  na  batalha 
de  Toro,  em  1476,  e  que  a  armadura  pertenceu  ao  por* 
ta-bandeira  D.  Duarte  de  Almeida;  outros  que  datam  de 
1340,  e  foram  tomados  na  refrega  de  Benamarin,  ou  do 
Salado,  ao  príncipe  sarraceno  Abuc-Melic. 

O  altar-mor  é  de  mármore  branco;  os  túmulos  de  reis 
e  rainhas  são  os  primitivos,  e  apresentam  estatuas  ajoe- 
lhadas e  jacentes;  as  alfaias  são  numerosas,  e  servem 
para  outras  capellas. 

Capilla  de  S.  Leocadia.  É  uma  das  contemporâneas 
do  templo,  e  foi  restaurada  pelo  cónego  D.  Juan  de  Ri- 


UM  DIA  EM  TOLEDO 


vera,  que  lá  jaz  desde  1539,  em  companhia  de  outro. 
A  sua  particularidade  essencial  está  na  pintura  do  altar» 
que,  representando  a  santa  em  corpo  inteiro  e  tamanho 
natural,  e  sendo  boa,  foi  executada  em  1786  por  Ra- 
mon  Seiro,  homem  aleijado  de  ambas  as  mãos. 

Capilla  dei  Cristo  de  la  columna.  Simples  e  insigni- 
ficante, com  as  suas  estatuas,  altar  e  retábulo  de  pedra 
pintada. 


A  este  espaço  segue-se  a  porta  da  sacristia,  onde  não 
entraremos  agora,  apezar  da  monotonia  que  nos  cerca, 
pela  visita  continuada  de  capella  em  capella,  propósito 
um  tanto  fastidioso,  mas  necessário  á  ordem  dos  nossos 
apontamentos,  que  nos  não  enfadam. 

Outro  tanto  não  dirá  o  leitor,  cuja  paciência  invocá- 
mos para  o  seguimento  que  vae  em  resumo,  talvez  sec- 
co  em  demasia  como  até  aqui,  porque  nos  limitámos  a 
apontar  o  que  melhor  nos  pareceu,  e  não  a  descrever ; 
do  que  Deus  se  sirva  livrar-nos. 

Deixando  a  porta,  que  tem  as  umbreiras  e  a  verga 
de  mármore  preto  e,  como  remate,  um  áttico  com  le- 
treiros de  alabastro,  entraremos  na : 

Capilla  de  la  Virgen  dei  Sacrário,  precedida  de  dois 
pilares  despegados  com  pinturas  e  medalhões.  Chama-se 
na  obra  já  citada  o  principaltsimo  departamento  de  la 
catedral,  porque  em  verdade  occupa  o  espaço  de  uma 
egreja  com  suas  dependências,  divididas  assim  — as  ca- 
pellas  da  Virgem  e  de  S.  Marina,  o  sacrário  ou  Ochavo, 
a  sacristia,  a  sua  ante  camará,  vestuário  e  guarda-cus- 
todia,  pateo,  pequeno  claustro  e  casa  do  thespureiro. 

Data  de  1595  o  começo  da  obra  e  de  1606  a  conclu- 
são, devida  ao  cardeal  D.  Bernardo  Sandoval  y  Rojas; 
o  todo  forma  um  parallelogrammo  greco-romano. 

A  primeira  capella,  a  de  S.  Marina,  é  o  vestíbulo  da 
segunda,  e  tem  no  pavimento  uma  grande  lamina  de 
cobre,  onde  se  lê  —  Aqui  yace  polvo,  ceniza  y  nada 


HOTAS  A  LÁPIS 


—  epitaphio  da  sepultara  do  arcebispo  Porlocarrero, 
morto  em  4709.  A  portada  é  de  mármores  em  grupos 
de  colomnas  e  pilastras  compósitas,  que  sustentam  o 
comijamento,  base  do  áttico  onde  estão  o  escudo  de 
Saudoval  e  três  estatuas,  que  são  a  Virgem  adorada  por 
S.  Bernardo  e  S.  Ildefonso.  A  abobada  è  pintada  a  fresco 
e  os  altares  guarnecidos  de  jaspes  e  painéis. 

A  segunda,  a  Virgen  dei  Sacrário,  é  outro  quadrado 
de  maiores  dimensões,  corinthio  e  luxuoso,  inteiramenie 
revestido  de  mármores,  pinturas  e  bronzes,  matéria  que 
forma  as  duas  estatuas  de  S.  Pedro  e  S.  Paulo,  aos  la- 
dos do  arco  da  entrada,  as  bases  e  os  capiteis  das  pi- 
lastras. As  faces  lateraes  teem  balcões,  janellas,  qua- 
dros e  os  túmulos  do  cardeal  e  de  sua  família ;  no  fundo 
está  o  altar  tão  elegante  como  valioso,  pela  sua  grada- 
ria, chapeada  de  prata,  e  pelo  throoo  composto  por  in- 
teiro (Tesse  metal  dourado,  n'uma  quantidade  de  mui- 
tas arrobas. 

A  imagem  da  Senhora  è  muito  venerada  pelos  devo- 
tos e  pelos  archeologos,  que  lhe  attribuem  uma  extraor- 
dinária antiguidade,  a  época  goda.  Diz  a  tradição  que 
os  christãos,  á  vinda  dos  árabes,  a  esconderam  em  um 
poço,  onde  esteve  durante  os  370  annos  do  seu  domí- 
nio e  mais  alguns,  até  que  foi  casualmente  encontrada, 
e  trazida  para  a  egreja,  a  que  succedeu  a  catbedral.  É 
de  madeira  escura  muito  rija,  forrada  de  uma  cbapa 
de  prata,  á  excepção  do  rosto  e  mãos,  e  está  sobre 
a  peanha  sentada  em  cadeira  do  mesmo  metal,  tudo 
coberto  hoje  pelos  vestidos  de  seda  e  Goa  pedraria,  que 
egualmente  lhe  aformoseia  a  garganta  e  a  cabeça,  onde 
brilha  uma  coroa  imperial. 

Aos  lados  do  altar,  ha  duas  passagens  gradeadas  que 
dão  para  o  vestíbulo  do  Relicário,  vulgarmente  chama- 
do Ochavo,  por  ser  de  planta  octogona.  Em  nichos  de 
formas  e  dimensões  differenies,  existem  357  relíquias 
em  caixas  de  prata,  nácar  e  ouro,  em  custodias,  cruzes, 
estatuas,  bustos,  vasos  e  Gguras,  que  representam  gran- 
de riqueza  e  respectiva  inutilidade. 


UM  DIA  EM  TOLEDO  397 


Precorrendo  a  sacristia  e  casa  do  thesoureiro,  temos 
novas  portadas,  pintaras  de  diversas  escolas  nas  aboba- 
das e  nos  muros,  dois  mil  manuscriptos  árabes  e  opu- 
lentíssimas alfaias. 

Daremos  nota  de  algumas : 

La  Custodia,  collocada  em  rico  armário,  tem  mais  de 
três  metros  de  altura !  a  forma  de  pyramide  e  o  estylo 
ogival  florido,  com  grandes  adornos  e  260  estatuetas  de 
vários  tamanhos;  é  de  prata  branca  e  dourada,  pesa 
muitas  arrobas,  e  serve  de  templete  á  verdadeira  custo- 
dia, toda  de  pedras  preciosas  e  ouro,  o  primeiro  que 
Christovão  Colombo  trouxe  da  America  para  a  rainha 
Izabel,  a  catholica,  que  a  mandou  fazer  para  seu  uso. 

El  vestido  y  manto  de  la  Virgen  estão  em  dois  arma* 
rios  immediatos;  formam  duas  peças  de  enormíssimo  va- 
lor bordadas  em  lhama  de  prata  a  ouro  e  froco,  com 
numerosíssimos  recamos  de  aljôfar,  pérolas,  rubis,  bri- 
lhantes, esmeraldas  e  mais  pedras  preciosas,  dadivas 
successivas  de  pessoas  reaes  e  dinheirosas. 

La  cruz  de  la  manga  é  processional,  gothica  e  de 
prata  dourada.  A  imagem,  que  tem  por  baixo  uma  ca- 
veira e  ossos  de  ouro  esmaltado,  é  bem  cinzelada.  Da- 
ta do  século  xvi,  e  é  obra  de  Gregório  de  Varona,  ou- 
rives toledano. 

Las  cuatro  partes  dei  mundo  distinguem-se  entre  as 
numerosas  alfaias,  que  não  mencionámos,  por  serem 
globos  de  prata,  onde  estão  gravados  os  mappas  da  Eu- 
ropa, Ásia,  Africa  e  America;  tem  no  alio  figuras  enfei- 
tadas de  pedraria,  como  emblemas  humanos  d'essas  re- 
giões, e  por  baixo  alguns  exemplares  da  fauna  respe- 
ctiva. 

Las  manillas  6  pulseras  da  Senhora  são  tão  ricas  como 
a  coroa  imperial,  e  teem  esmaltes  e  pedras  de  altíssi- 
mo valor. 

La  biblia  de  oro  compoe-se  de  três  volumes  em  per- 
gaminho; tem  nas  capas  em  laminas  de  ouro  três  minia- 
turas, representando  cada  uma  a  passagem  do  antigo  tes- 
tamento, correspondente  ao  versículo,  que  se  vê  ao  la- 


398  NOTAS  A  LAMS 


do.  Data  do  século  xn,  e  foi  presente  de  S.  Luiz,  bis- 
po de  Toloza. 

E  ficaremos  por  aqui,  porque  nos  seria  impossível 
fallar  de  cálices  relevados,  bapdejas  cinzeladas,  quadros, 
esmaltes,  pedraria  e  ouro,  que  compõem  o  numeroso 
grupo  das  alfaias  da  catbedral. 

* 
#      # 

Voltando  sobre  os  nossos  passos,  e  continuando  a  de- 
morada peregrinação  atravez  da  ultima  nave  lateral,  ao 
redor  do  templo,  pararemos  em  frente  da  puerta  dei 
Reloj,  notando  as  estatuas  da  Virgem  e  de  S.  Gabriel 
— annunciando-lhe  a  encarnação  do  Verbo,  e  o  meio  re- 
levo circular,  onde  se  representa  o  milagre  da  appari- 
ção  de  S.  Leocadia  a  S.  Ildefonso,  quando  ^lle  se  levan- 
tou do  tumulo,  em  presença  do  rei  godo  Rencesvinto, 
da  sua  corte  e  povo.  Segue-se  a : 

Capilla  de  San  Pedro.  Século  xv.  Portada  gothica  com 
relevos  e  estatuas,  no  meio  das  quaes  figura  o  patrono, 
uma  só  nave  com  três  abobadas,  arestas  e  resaltos  do 
mesmo  estylo,  cinco  altares  de  mármores,  bancadas  de 
nogueira,  pinturas  e  tumulo  do  fundador. 

Caminhando  passaremos  pela  porta  de  Santa  Catati- 
na,  ornada  de  estatuas,  pyramides  e  enfeites  ogivaes 
floridos,  e  entramos  na: 

Capilla  de  la  Virgen  de  la  Piedad.  Século  xv,  restau- 
rada modernamente  ao  gosto  greco-romano. 

Capilla  de  la  pila  bautismal,  com  arco  gothico,  coroa- 
do de  adorno  pyramidal  a  tocar  no  teclo  da  nave,  qua- 
tro columnas  de  mármore  com  estatuas  de  evangelistase 
profetas,  concha  baptismal  de  bronze,  cheia  de  Énolduras 
e  folhagens  de  alto  relevo,  e  pinturas  de  mediano  valor. 

Nuestra  Sefiora  la  antigua,  altar  immediato  ao  baptis- 
tério, com  retábulo  gothico  de  pedra  branca  e  três  ni- 
chos, onde  ha  grupos  de  esculpturas.  O  do  centro  é 
occupado  pela  Virgem  sentada  com  o  menino  nos  joe- 


UM  DIA  BM  TOLEDO  399 


lhos,  já  venerada,  segundo  a  tradição,  na  cathedral  go- 
thica,  e  por  isso  chamada  la  antigua,  tendo  sido  a  tes- 
temunha benéfica  do  baptismo  das  bandeiras  dos  reis 
castelhanos  nas  refregas  contra  os  mouros.  O  nicho  da 
direita  representa  o  commendador-mór  da  ordem  de 
S.  Thiago,  em  Leão,  D.  Gulierre  de  Cardenas,  offere- 
cendo  o  filho  á  senhora ;  o  da  esquerda  sua  mulher, 
Teresa  Henriquez,  fazendo  o  mesmo  á  filha,  como  fun- 
dadores, que  foram,  cTeste  altar,  no  século  xvi. 

Capilla  de  D.  Tereza  de  Haron  sua  fundadora  no  sé- 
culo anterior.  É  gothica  e  chamada  também  de  las  ca- 
charas, insígnias  que  figuram  no  escudo  desta  senhora, 
mulher  do  marechal  Padilla. 

Capilla  de  la  descencion,  em  frente  d'esta.  É  da  for- 
ma pyramidal  da  torre  do  templo,  de  mármore  branco 
e  pequena;  altar  e  retábulo  de  alabastro  com  bel  los  ador- 
nos de  bronze  dourado  a  fogo.  Conjuncto  de  columnas, 
estatuas  e  abobada  muito  notável  e  sumptuoso. 

Capilla  de  San  Juan,  a  vigésima  sexta  e  ultima,  tam- 
bém chamada  da  torre  e  dos  cónegos,  por  ser  reserva- 
da á  missa  do  cabido,  forma  symetria  com  a  mozarabe, 
e  consta  de  um  arco  redondo,  tendo  ao  centro  um  cor- 
po de  architectura  balaustrada  com  lavores  platerescos, 
em  cima  o  busto  de  S.  João  e  aos  lados  seis  estatuas 
com  ornamentação  gothica;  e  no  segundo  corpo  o  gru- 
po de  Jesus  e  S.  Pedro,  infagens  da  capella  primitiva, 
que  data  de  1523,  e  vários  escudos  de  armas.. O  inte- 
rior é  quadrado,  com  pinturas  numerosas,  pavimento 
de  mármore,  tecto  de  pedra  fileteada  de  preto  e  ouro, 
formando  vistosos  artezões  estalactiticos,  três  altares  de 
obra  de  talha  dourada  e  género  plateresco. 

Ao  findar  tão  curioso  e  fatigante  precurso,  onde  se 
encontram  milhares  de  objectos  de  arte  religiosa  de 
umas  poucas  de  gerações,  não  tentámos  sequer  bulir 
nas  minuciosidades  de  pinturas  e  ornamentos,  porque 
estava  isso  fora  do  nosso  propósito  e  habilitações,  e 
porque  o  espirito  se  abale,  emaranha,  e  confrange  pe- 
rante a  multiplicidade  de  assumptos  e  objectos,  que 


400"  MOTAS  A  LÁPIS 


enchem  aquella  sacra  e  extraordinária  Babel,  onde  ha 
pilastras  despegadas,  quadros,  portas  inferiores,  escul- 
pturas  soltas,  relevos,  janellas  e  sítios  memoráveis,  em 
que  não  tocámos  sequer  para  diminuir  a  extensão  e 
monotonia  d 'estes  apontamentos,  que  são  pela  brevida- 
de seccos  e  áridos. 

# 
#      # 

Para  que  possam  interromper  a  leitura,  e  revestir-se 
de  coragem  para  a  continuação  delia,  avisámos  os  me- 
nos interessados  n'estes  assumptos  de  velharias  artísti- 
cas, que  se  admiram  como  em  parte  alguma  nos  mo- 
numentos religiosos  da  península  ibérica,  avisamol-os 
de  que  teem  de  nos  acompanhar  ainda  aos  lugares  in- 
termediários da  grande  cathedraf. 

Já  dissemos  que  o  Presbyterio,  ou  capella-mór,  fica 
ao  lado  do  coro,  a  meio  da  egreja,  em  planta  corres- 
pondente a  esta,  semi-circular  no  topo  e  rectangular  nos 
lados.  É  um  templo  dentro  de  outro. 

No  pavimento,  bello  mosaico  de  mármores  brancos  e 
encarnados ;  nas  abobadas  arestadas  e  nos  arcos  pintu- 
ras a  azul  e  ouro  na  junctura  das  pedras  e  em  metade 
dos  pilares,  que,  assim  como  as  paredes,  são  cobertos 
d'ahi  para  baixo  de  resaltos  e  adornos  enfeitados,  esta- 
tuas de  anjos,  santos,  reis^  arcebispos. 

Para  se  subir  á  capella,  ha  uma  escadaria  dos  már- 
mores do  pavimento;  em  cima  de  arcos  lateraes  correm 
galerias  de  arquitos  árabes,  servindo  de  base  ás  gran- 
des janellas  e  clarabóias,  coalhadas  de  vidraria  pintada; 
sobre  as  columnas  divisórias  da  arcaria  árabe  estatuas 
collossaes. 

Occupa  a  entrada  uma  soberba  grade  de  ferro  e  bron- 
ze, em  dois  corpos  de  lavores  platerescos,  assente  em 
mármore  e  guarnecida  de  pyras,  candelabros,  escudos 
de  armas  e  caprichos  de  vario  género.  É  obra  de  Vil- 
lalpando,  data  de  4548,  reinando  o  imperador  Carlos  V  e 
o  pontífice  Paulo  III,  segundo  resam  as  suas  inscripções. 


UM  DIA  EM  TOLEDO  401 


O  retábulo  é  gothico-florido,  na  sua  talha  e  composi- 
ção delicadíssimas  e  complicadas,  de  que  só  á  vista  se 
poderá  formar  idèa  segura,  tantos  s5o  os  contornos,  ni- 
chos, figuras,  ogivas,  folhagens  e  relevos,  que  enchem 
o  topo,  desde  o  pavimento  ao  tecto,  em  conjuncto  ver- 
dadeiramente collossal. 

O  sacrário  occupa  o  centro  em  templete  ou  custodia 
pyramidal,  ladeada  de  estatuas,  cobertas  de  rendilhados 
baldaquinos. 

Separada  a  meio  do  presbyterio  está  sobre  degraus 
de  mármore  e  jaspe  entalhados  a  meza  do  altar,  guar- 
necida de  óptima  banqueta  de  bronze,  dourado  a  fogo. 

Nos  extremos  da  gradaria  da  entrada,  elevam-se  os 
púlpitos,  duas  magnificas  peças  de  bronze,  cheias  de 
delicadissimos  adornos  platerescos. 

As  paredes  são  quasi  por  inteiro  guarnecidas  de  ni- 
chos e  misulas  caprichosas,  onde  figuram  innumeraveis 
esculpturas  de  vários  géneros  e  tamanhos,  no  meio  de 
lavores  e  enfeites  notáveis  a  todos  os  respeitos,  com- 
memorando  factos  históricos,  sacros  e  profanos  de  uma 
edade,  em  que  uns  e  outros  andavam  unidos. 

Todo  o  espaço,  ao  lado  do  evangelho,  é  occupado 
pelo  sumptuoso  mausuleu  do  arcebispo  D.  Pedro  Gon- 
zalez  de  Mendoza,  fallecido  em  1495,  um  soberbo  mo- 
numento de  finíssimos  mármores  e  duas  fachadas.  A 
primeira  olha  para  o  exterior,  e  consta  de  um  altar  com 
relevo,  onde  adoram  a  cruz  S.  Helena,  S.  Pedro  e  o 
arcebispo  ajoelhado;  a  segunda  deita  para  o  interior,  e 
tem  o  sarcopbago  com  a  estatua  jacente,  cercado  tudo 
por  doze  estatuas,  pyras,  escudos,  resaltos  dourados  e 
bronzes  caprichosos,  ao  gosto  plateresco,  attribuidos  a 
Covarrubias. 

Restam-nos  como  cousas  principaes,  que  das  secun- 
darias nos  nâo  emporlámos  nós  aqui,  os  sepulcros  reaes, 
onde  estão  depositados  os  corpos,  que  jazeram  por 
muito  tempo  na  capella  de  los  reyes  viejos.  São  duas 
construcções  condignas  d'aquelle  grandioso  recinto,  col- 
locadas  no  alto  do  presbyterio,  a  um  e  outro  lado  do 

26 


401  NOTAS  A  LAPI8 


retábulo  sobre  arcos  abertos  e  vedados  por  grades  dou- 
radas e  em  cima  das  abobadas,  que  esses  arcos  formam. 
Os  remates  elevam-se  até  á  nave  da  egreja  n'um  míxto 
pyramidal  de  architectura  gotbica,  cheia  de  florões,  es- 
tatuas e  formas  douradas. 

Os  sarcophagos  sio  os  primitivos,  e  descançam  em  ni- 
chos próprios.  Todos  teem  epitaphios  e  estatua,  á  ex- 
cepção da  urna,  onde  jaz  o  nosso  D.  Sancho  II,  e  das  dos 
infantes— arcebispos  do  mesmo  nome.  Sabendo-se  onde 
estão  e  quem  foram  esses  indivíduos,  conhecida  a  iden- 
tidade de  pessoa  e  lugar,  não  atinámos  com  a  differença 
humilbadora. 

Rosando  os  letreiros  funerários  de  outros  Sanchos, 
não  se  pode  suppor  uma  proscripção  votada  áquelles 
nomes. 

Coitado  dó  monarcha  portuguez!  Tendo  espalhado  á 
larga  as  suas  orações  e  o  seu  dinheiro  por  toda  a  To- 
ledo, não  achou  atravez  de  tantos  séculos  freiraticos, 
alma  secular  ou  fradesca,  onde  o  seu  nome  tivesse  di- 
reito a  umas  letras,  que  lhe  recordassem  a  pessoa, 
morta  indubitavelmente  com  verdadeiro  cheiro  de  san- 
tidade I 

Muito  justos  e  patriotas  os  poderosos  mantenedores 
da  cathedral  toledana  t 

#      # 

Correspondendo  ao  centro  da  abobada,  com  que  re- 
mata a  grande  nave  principal,  e  portanto  nas  costas  do 
retábulo  da  capella-mór,  ergue-se  a  mole  enorme  e 
monstruosa  do  chamado  Transparente,  que  é  um  altar 
do  principio  do  século  passado,  ordenado  pelo  cabido 
para  deposito  da  sagrada  partícula,  e  pago  na  maior 
parte  pelo  cardeal  arcebispo  D.  Diogo  de  Âstorga  y  Cés- 
pedes, que  lá  jaz  em  sepultura  coberta  por  lamina  de 
bronze,  aos  pés  do  altar. 

Não  podemos  dar  idéa  d'essa  custosissima  obra,  por- 
que não  é  fácil  seguir  as  minudencias  do  estylo  churri- 


UM  DIA  EM  TOLEDO  403 


gueresco,  tão  censurado  pelos  puristas,  as  ramificações 
(fesse  plano  extravagante  de  mármores  e  bronzes,  que 
estabelecem  um  labyrintho  apparatoso,  mas  pouco  de- 
licado. 

O  propósito  dos  edificadores  foi  dar  enfeite  collossal 
ás  espaldas  da  capella-mór,  de  modo  que,  praticando 
na  abobada  fronteira  uma  espaçosa  clarabóia,  que  lá  se 
vé,  a  luz  jorrasse  atravez  do  oval  collocado  ao  centro  do 
retábulo. 

Dahi  o  nome  de  transparente,  que  deixa  de  sel-o 
praticamente,  porque  o  grande  resplendor  de  um  sol  de 
bronze,  collocado  em  frente  do  oval,  lhe  obstrue  a  cla- 
ridade, com.  manifesto  detrimento  do  bom  senso  que 
devia  presidir  á  execução. 

Nos  muros  lateraes  da  capella-mór,  ao  rez  do  chão, 
notam-se  umas  grades  de  ferro;  levam  aô  subterrâneo, 
chamado  Copilla  dei  santo  sepulcro,  por  duas  escadarias 
eguaes,  lugar  inútil,  como  muitos,  reservado  a  três  al- 
tares, collocados  sob  outras  tantas  abobadas  baixas  e 
escuras.  O  principal  tem  boa  esculptura  em  pedra,  que 
assignala  a  deposição  do  corpo  do  glorioso  martyr  no 
sepulcro,  em  presença  de  sua  mãe,  S.  João,  Nicodemus, 
José  e  as  Marias. 

# 
#      # 

Resta-nos  visitar  uma  das  obras  melhores  do  templo, 
o  coro,  levantado  debaixo  da  quarta  e  quinta  abobadas 
da  nave  central,  em  largura  egual  á  da  capella-mór, 
com  que  defronta,  fazendo  intermédio  o  espaçoso  cru- 
zeiro, para  onde  abre  a  sua  face  principal,  vedada  por 
grade  plateresca  de  ferro  e  bronze  lavrados,  ornada 
de  pyras,  escudos  e  ornatos,  em  harmonia-  com  os  da 
capei  ia,  sua  contemporânea.  As  outras  três  partes  são 
fechadas  por  muro,  que  sobe  até  menos  de  meio  dos 
pilares  da  nave,  seguindo-se  d'ahi  para  cima  uma  tri- 
buna corrida  com  parapeitos  de  ferro  dourado,  e  sobre 
ella  dois  grandes  órgãos,  um  em  frente  do  outro. 


401  NOTAS  A  LÁPIS 


Estes  muros  estão  cercados  de  ogivas  entre  cincoenta 
e  duas  columnas  de  mármore  e  jaspes,  com  bellos  or- 
natos do  género,  em  contraste  inexplicável  e  defeituosís- 
simo com  uns  medalhões  relevados,  representando  as- 
sumptos do  velbo  testamento,  collocados  sobre  esse 
excedente  corpo. 

Aos  dois  lados  dos  muros  ainda  temos  quatro  altares 
exteriores,  guarnecidos  de  columnas  jónicas,  mármores, 
bronzes  e  algumas  estatuas;  e  no  fundo  outro,  onde  se 
venera  a  Virgen  de  la  Estreito  com  o  menino  nos  bra- 
ços, esculptura  de  tamanho  natural,  e  onde  está,  aos 
pés  do  altar,  a  sepultura  do  arcebispo  Losa,  morto  em 
1720.     * 

O  interior  tem  o  pavimento  revestido  de  lousas  de 
mármore  branco  entre  marcos  pardos  com  embutidos 
do  mesmo  calcareo.  No  primeiro  plano,  um  altar  sepa- 
rado, chamado  de  Prima,  por  lá  se  dizerem  as  missas, 
ao  terminar  essa  hora  canónica,  e  cercado  por  verga  de 
ferro  e  bronze,  onde  se  ostentam  muitos  enfeites.  A  ef- 
figie  venerada  é  a  de  la  Virgen  de  la  Manca,  apezar  da 
sua  esculptura  ser  trabalhada  em  pedra  escura,  disfar- 
çada por  vestidos  de  brocado  e  luxuosa  coroa. 

Em  frente  d'este  altar,  a  meio  do  coro,  avulta  o  fa- 
cistol  principal,  a  estante  rotatória,  formando  uma  águia 
enorme,  que  recebe  os  livros  nas  azas  abertas  de  fino 
bronze.  Ê  obra  de  Vicente  Salinas,  data  de  1646,  e  des- 
cança  sobre  peanba  gothica,  magnifico  trabalho  allemão, 
destinado  a  outro  effeito  e  de  época  anterior,  ou  1425. 
Representa  um  castello  araeiado  de  planta  exagona,  em 
dois  andares,  cercado  de  pilares  rematados  por  estatue- 
tas de  santos,  padres  e  doutores  e  pelos  doze  apóstolos 
—  tudo  de  bronze  dourado. 

A  esta  seguem-se  mais  duas  estantes  fixas  do  mesmo 
metal,  ferro  e  aço  burnido,  correspondendo  á  bancada 
inferior  e  a  um  mérito  regular,  e  outras  portáteis  de 
boas  madeiras  embutidas. 

As  bancadas  de  nogueira  são  indubitavelmente  os  ob- 
jectos mais  valiosos  do  coro.  A  inferior,  ou  primeira,  é 


UM  DIA  EM  TOLEDO  405 


um  secalo  mais  antiga,  foi  encomraendada  pelo  cardeal 
Mendoza,  e  concluída  em  4495  pelo  entalhador  Rodrigo, 
que  seguiu  o  género  gothico  florido,  ornamentando-a 
profusa  e  admiravelmente  com  figuras  grotescas,  ao  uso 
da  época,  animaes,  folhagens,  relevos  e,  nos  espalda- 
res, com  medalhões,  onde  se  representam  differentes 
epysodios  da  conquista  de  Granada  e  outras  partes  do 
reino,  levada  a  cabo  pelos  reis  catholicos.  Cada  relevo, 
que  se  resente  da  dureza  e  incorrecções  do  tempo,  tem 
o  nome  da  fortaleza,  povoação  ou  cidade,  correspon- 
dente ao  assumpto,  e  fornece  aos  estudiosos  meio  fácil 
de  observar  os  trajes  e  armaduras  dos  fins  do  século  xv. 

A  bancada  alta,  lavrada  em  meiados  do  século  xvi, 
ou  em  plena  renascença,  por  Berrugaete  e  Vigarni,  ou 
Felippe  de  Borgonha,  é  mais  perfeita  e  muito  mais  va- 
liosa, material  e  artisticamente  fallando.  Dos  70  luga- 
res, onde  figura  o  escudo  do  cardeal  Ta  vera,  pertence 
a  metade  da  direita  á  execução  do  primeiro,  e  a  outra 
metade  da  esquerda  á  do  segundo,  todos  mettidos  em 
nichos  cobertos,  divididos  por  lindíssimas  columnas  de 
jaspe,  com  bases  e  capiteis  de  alabastro,  cuja  matéria 
reveste  as  abobadas  das  coberturas. 

A  nogueira  è  de  alto  a  baixo  coalhada  de  debuxos 
primorosos,  segundo  o  estylo  plateresco,  a  que  obedece 
o  conjuncto,  em  embutidos  de  outras  madeiras ;  sobre 
os  espaldares  ha  peanhas,  onde  pousam  figuras  inteiras 
de  patriarchas,  santos  e  profetas,  e,  sobre  o  lugar  mais 
elevado  da  cúpula  dos  nichos,  medalhões  de  alabastro 
entre  columnitas  balaustradas  e  muitos  lavores  com  re- 
levos, representando  por  sua  ordem  todos  os  ascendei 
tes  de  Jesus  Christo. 

A  cadeira  arcebispal,  destinada  á  execução  de  Vi- 
garni, foi  pela  morte  d'este  construída  pelo  seu  compa- 
nheiro e  competidor  Berruguete;  occupa  o  centro  do 
fundo  do  coro,  e  distingue-se  das  demais  pela  sua  po- 
sição, architectura  e  escudo  do  cardeal  Silicéo,  em  cujo 
tempo  foi  concluída.  As  columnas,  que  lhe  sustentam  a 
abobada,  são  de  bronze  resaltado  com  preciosos  lavo- 


406  NOTAS  A  LÁPIS 


res ;  o  medalhão  do  espaldar  representa  em  alabastro  o 
repetido  assumpto  da  Senhora,  no  acto  de  pôr  a  casula 
a  S.  Ildefonso;  e  o  remate  é  formado  por  esculptura 
colossal,  figurando  o  monte  Tabor,  com  seis  estatuas 
de  tamanho  natural  —  Jesus  em  sua  transfiguração,  os 
profetas  Moysés  e  Elias  e  um  pouco  mais  abaixo  os  três 
discípulos  assombrados,  nuvens,  anjos  e  mais  accesso 
rios,  lendo  isso  tudo  a  estranha  particularidade  de  ser 
feito  de  uma  só  peça  de  alabastro  t 


Salvas  as  numerosas  lacunas,  que  não  podemos,  nem 
foi  nosso  propósito  supprir,  temos  dado  aos  curiosos 
uma  nota  ligeira  d'esse  opulento  repositório  de  artes 
antigas  e  modernas,  d'essa  gigantesca  creação  de  pedra, 
madeira  e  bronzes,  bastarda  por  vezes,  pura  e  gran- 
diosa em  tantas  outras,  segundo  os  gostos,  adiantamento 
e  tendências  das  differentes  épocas,  d'essa  necropole  se- 
cular, mole  enormissima,  pantbeon  de  summidades  cie- 
ricaes,  a  que  se  chama  cathedral  de  Toledo. 

O  descolorido  monótono  da  descripção,  se  as  honras 
d'esse  nome  se  lhe  podem  dar,  foi  aconselhado  pela 
brevidade  precisa  em  matéria  de  tão  largas  e  variadas 
ensanchas,  portentoso  mealheiro,  exemplar  curioso  de 
tantas  inutilidades  maravilhosas ,  que  formavam  a  gran- 
deza do  tempo  dos  nossos  maiores. 

Á  nossa  despedida  de  Toledo,  esse  venerando  refle- 
ctor da  vida  e  usos  de  umas  quatro  raças  distinctas, 
appellavamos  ainda  para  uma  visita  mais  demorada ;  le- 
vávamos saudades  do  convívio  imaginário  de  algumas 
horas  com  os  personagens  lendários,  que  viveram  nas 
faixas  de  uma  civilisação  barbarisada;  com  os  feudalis- 
tas  intransigentes  de  um  absolutismo  ferrenho;  com  as 
soberbias  ostentosas  de  um  clericalismo  poderoso;  com 
as  imagens  suavíssimas  de  umas  damas  beatas  e  roma- 
nescas, com  tudo  emfim  que  se  abraça,  e  prende  aos 


UM  DIA  EM  TOLEDO  407 


objectos  sacros  e  profanos,  que  transformaram  a  antiga 
corte  dos  reis  castelhanos  n'om  erário  inexgotavel  de 
memorias  passadas,  n'uma  cidade-moseu. 

Toledo,  em  verdade,  perante  as  transformações  dos 
nossos  dias  e  no  decorrer  dos  séculos  por  vir,  se  o 
camartelo  dos  maus  innovadores  modernos  a  não  detur- 
par—  continuará  sempre  a  ostentar  o  nome  pomposo  e 
justo  de  verdadeira  cidade-museu. 


108  NOTAS  A  LÁPIS 


CINTRA 


Os  burros.— A  povoação.— Tão  pobre  como  rica.— O  palácio 
real— Um  bom  exemplar  das  nossas  cadeias.— Os  barriquei - 
ros.— Quintas  do  Saldanha,  marqueses  de  V aliada  e  Vian- 
na.— A  Pena. 


Para  que  ao  descolorido  dos  nossos  esboços  não  falte 
um  toque  romântico,  começaremos  por  dizer,  que  era 
por  uma  bella  manhã  de  primavera,  que  parliamos  de 
Cintra,  com  destino  a  Mafra,  em  pittoresca  cavalgada 
de  burros,  nobilitados  pelos  nomes  do  baptismo,  que 
lhes  applicam  os  burriqueiros  d'aquetla  terra,  uma  raça 
de  vadios  de  uma  espécie  antiga,  mas  ainda  hoje  mal 
classificada,  semi-ruminantes  que  levam  no  inverno  a 
digerir  o  que  comem  no  verão,  porque  só  n'esta  época 
usam  e  abusam  do  seu  mister. 

O  numero  de  romeiros  e  visitantes  é  que  estabelece 
o  preço  das  alimárias,  no  geral  muito  mansas,  indife- 
rentes aos  signaes  e  aos  berros  dos  ca  vai  lei  ros,  mas 
sempre  dispostas  para  um  galope  desenfreado  a  um  sim- 
ples mover  de  lábios  dos  donos  ou  conductores. 

O  largo  principal  da  villa  è  o  centro  dos  agentes,  a 
praça  do  commercio  alquilador,  onde  baixa  ou  sobe  o 
cambio,  conforme  as  variantes  da  concorrência. 

Ào  faltarmos  de  Cintra,  è  natural  que  nos  peçam  meia 


CINTRA  409 

dúzia  de  linhas  sobre  a  opulência  das  mattas  e  quintas, 
serranias  e  penhascos  coroados  de  eterna  verdura,  os 
seus  decantados  jardins  e  aguas  puríssimas,  casas  rús- 
ticas, monumentos  e  alamedas. 

Quem  não  conhece  os  esplendores  d'esse  retalho  pri- 
vilegiado, tão  encarecido,  estudado  e  revisto  por  nacio- 
naes  e  estrangeiros?  Quem  ignora  hoje  as  minuciosida- 
des  descriptivas  cTaquella  localidade,  doirada  pelos  ar- 
gentados, invadida  pelos  artistas,  frequentada  pelos  fe- 
lizes, e  visitada  anonymamente  pelos  poetas  e  pelos  so- 
nhadoras, que  são  os  que  menos  entram  n'essa  cohorte 
brilhante  dos  mundanos  felizes  ? 

Admittindo  que  haja  alguém,  que  não  tenha  feito  ain- 
da ablução  sanitária  na  fonte  da  Sabuga,  passámos  a 
dar  umas  fugitivas  indicações  do  melhor  que  por  lá 
existe. 

# 
#      # 

Cinthia,  denominada  também  pelos  romanos  Promon- 
tório da  Lua,  em  virtude  do  templo  consagrado  a  Dia- 
na, porque  em  linguagem  fabulosa  todos  esses  três  no- 
mes indicam  a  mesma  divindade — é,  por  corrupção  dos 
tempos  antigos,  a  Cintra  dos  porluguezes. 

Contam  uns  que  ella  fora  conquistada  pelo  conde  D. 
Henrique,  e  outros  que  seu  filho,  o  fundador  da  monar- 
chia,  a  tomara  aos  mouros,  que  por  lá  deixaram  curio- 
sos vestigios  da  sua  passagem,  sendo  os  principaes  o 
castello  e  o  palácio,  que,  depois  de  precorrermos  a  bel- 
lissima  estrada  desde  a  casa  da  Sapa  pelo  Ramalhão 
até  ao  novo  bairro  Estepbania,  nos  apparece  já  de  longe, 
á  entrada  da  villa,  com  as  suas  duas  chaminés,  dois 
cones  monstruosos,  que  talvez  em  sonho  se  tenham 
apresentado  a  muita  gente  como  pequenos  modelos  das 
pyramides  do  Egypto. 

A  povoação  em  si  é  pobre  e  desmembrada,  estreita 
e  pouco  limpa;  não  poderia  viver  dos  seus  recursos,  se 


410  NOTAS  A  LÁPIS 


lbe  não  acudissem  as  terras  visinhas,  que  a  fornecem 
de  muitos  artigos  necessários  ao  sen  sustento. 

Árvores  ornamentaes,  flores,  casas  e  quintas  de  re- 
creio improductivas  e  estéreis  para  o  amanho  da  vida, 
muitos  burros,  muita  poesia,  largas  recordações  histó- 
ricas e  romanescas— eis  tudo. 

Nem  pomares,  nem  hortas,  nem  commercio,  que  não 
seja  o  dos  hotéis,  nem  gados,  nem  plantas  fructiferas. 

Um  paraíso  sem  figueiras  a  aproveitar,  nem  fructos 
a  prohibir;  uma  terra  opulenta  e  pobre,  estéril  eproduc- 
tiva,  mansão  de  ricos  e  ninho  de  absoluta  pobreza. 

O  palácio  real  è  uma  cònstrucção  irregular,  accusan- 
do  varias  épocas,  a  primitiva  das  quaes  é  a  mourisca, 
pelas  janellas  em  arabescos  e  grinaldas  de  bom  typo, 
pelos  azulejos  e  certas  divisões  interiores— tudo  masca- 
rado, confundido  e  desorganisado  nos  concertos  e  ree- 
dificações,  que  começaram  em  D.  João  I. 

Guiado  pelosôr  António,  um' fâmulo  da  casa  real,  uma 
hydra  de  uma  só  cabeça,  um  malcreado,  que  se  não 
tem  rei  na  barriga,  como  costuma  dizer-se,  aninha  por 
lá  grande  somma  de  importância  balofa  e  brutalidade, 
que  são  uma  vergonha  em  semelhante  lugar,  vamos  en- 
trar no  primeiro  dos  três  pavimentos,  porque  os  outros 
são  indignos  de  tal  nome. 

Notaremos  a  casa  do  café,  pelo  seu  ponto  de  vista 
sobre  a  serra,  e  a  sala  dos  cysnes,  pelas  pinturas  des- 
tes animaes,  applicadas  ao  tecto  e  pelos  azulejos  late- 
raes. 

As  lendas,  filhas  legitimas  das  tradições  oraes,  andam 
ligadas,  aqui  e  em  toda  a  parte,  á  historia  das  edifica- 
ções antigas»  e  raro  è  não  encontrarmos  a  resposta  a 
umas  interrogações  naturaes,  como  a  que  fazemos  ao 
ver  a  que  lie  tecto  monotonamente  coberto  de  aves  do 
mesmo  género,  ornadas  de  gorjaes  e  campainhas,  em 
27  painéis  octogonos. 

Foi  o  caso.  Uma  embaixada  de  gentis  homens  veio 
de  Flandres  a  Cintra,  em  1429,  pedir  a  D.  João  I  a  mão 
da  infanta  D.  Jzabel  para  o  duque  de  Borgonha,  Felippe, 


CINTRA  4ii 


o  bom,  6  entre  os  presentes,  ao  uso  da  época,  trouxe 
um  par  de  bellos  cysnes  domésticos,  bellos  e  brancos 
como  o  mais  formoso  arminho.  A  princeza  ficou  encan- 
tada com  as  aves,  e  tanto  que  por  suas  mãos  lhes  fez 
logo  uns  gorjaes  de  veludo  amarello,  guarnecidos  de 
sonoras  campainhas,  pedindo  ao  pae  que  mandasse  con- 
struir um  tanque  especial  para  o  banho  dos  seus  queri- 
dos animaes.  Ao  retirar-se  a  infanta  para  ir  ser  con- 
dessa dos  Estados  de  Flandres,  D.  João  I  desafogou  a 
sua  profunda  saudade,  ordenando  ao  seu  pintor  Álvaro 
de  Pedro  que  lhe  retratasse  fielmente  no  tecto  d'aquelle 
compartimento  as  aves  predilectas  de  sua  filha. 

Passaremos  á  sala  do  conselho,  um  gabinete  guarne- 
cido de  pesados  assentos,  ornamentado  de  azulejos,  re- 
presentando folhas  de  vide.  Foi  aqui  que  D.  Sebastião 
surprehendeu  os  seus  conselheiros  com  os  planos  e  re- 
solução, que  tomara,  sobre  a  desastrosa  viagem  da 
Africa. 

Depois  temos  a  sala  das  pegas,  pintadas  em  profusão 
nos  tectos  e  nos  frisos,  com  laços  pendentes  dos  bicos, 
onde  se  lê  —  por  bem  —  e  uma  rosa  segura  na  garra. 

Vamos  ao  que  se  diz,  em  resposta  á  interrogação  que 
também  fazemos  pela  originalidade  de  semelhante  pin- 
tura. O  caso  é  mais  galante  que  o  dos  cysnes,  e  faz-nos 
recordar  dos  motivos,  que  se  deram  para  a  creação  da 
ordem  da  Jarreteira. 

D.  João  I#foi  surprehendido  por  sua  mulher  D.  Fe- 
lippa  a  beijar  uma  das  suas  damas,  ao  offerecer-lhe  uma 
rosa.  A  rainha  naturalmente  agastou-se,  interrogando-o, 
e  elle  justificou-se  attribuindo  o  acto  a  amizade  sincera, 
e  terminando  por  dizer  que  tudo  aquillo  fora  por  bem. 

A  rainha,  convencida  ou  não,  respondeu  sorrindo  — 
//  me  plait  —  e  ambos  ajuntaram  esses  motes  por  divisa 
ás  suas  armas,  como  se  pode  ver  nos  túmulos,  que 
existem  na  capella  particular  do  mosteiro  da  Batalha, 
onde  jazem. 

Immediatamente,  por  um  sentimento  de  extrema  gen- 
tileza, mandou  o  rei  pintar  aquella  allegoria  no  lugar, 


412  NOTAS  A  LÁPIS 


onde  fora  sarprehendido,  para  que  as  pegas,  como  fal- 
ladoras,  podassem  apregoar  a  innocencia  da  dama  ca- 
lumniada. 

Próxima  está  outra  sala,  onde  se  vê,  apezar  de  es- 
murrado, um  bello  e  valioso  fogão  de  mármore,  que  já 
ouvimos  attríbuir  a  Miguel  Angelo,  mandado  para  alli 
dos  paços  de  Almeirim,  dos  tempos  do  marquez  de 
Pombal. 

A  casa  do  banho,  considerada  mourisca  pelo  similar, 
que  existe  no  Alcácer  de  Sevilha,  é  uma  sala  tijolada, 
com  as  faces  lateraes  crivadas  de  orifícios,  quasi  imper- 
ceptíveis, estabelecendo  um  cruzamento  de  aguas,'  que 
alagam  rapidamente,  em  suaves  mas  successivas  insti- 
gações, quem  estiver  collocado  a  meio. 

A  capella  é  escura  e  pobríssima;  a  cosinha  só  no- 
tável pelas  chaminés. 

No  segundo  pavimento,  mencionaremos  a  sala  do  la- 
go, casa  de  jantar,  attríbuida  egualmente  aos  mouros 
pelos  seus  bellos  azulejos  relevados  de  verde-azul  e  pe- 
las quatro  portas  de  mármore  entrelaçado,  á  semelhança 
de  troncos  de  arvores,  que  formam  os  humbraes,  orna- 
dos de  bellos  arabescos.  Ao  centro  uma  concha  de  már- 
more polido,  formando  vistosas  quedas  de  agua. 

Próxima  a  esta,  outra  sala,  onde  existem  ainda  em 
soffrivel  estado  de  conservação  três  bons  objectos  de 
arte  chineza— o  palácio  de  Pekim  e  as  suas  duas  torres 
de  treze  andares,  feitos  de  marfim  vasado,  'algumas  lou- 
ças e  chicaras  de  pedra  Ventorína. 

No  terceiro  pavimento,  temos  a  sala  de  D.  Manuel, 
chamada  dos  Cervos,  por  ser  ornamentada  com  as  pin- 
turas d'estes  animaes,  d'onde  pendem  os  escudos  da 
principal  nobreza  de  então.  No  centro  da  abobada,  as 
armas  reaes;  em  volta,  os  brazões  dos  infantes;  nos  es- 
paços, os  74  escudos  das  famílias  nobres,  onde  era  in- 
cluída o  dos  Tavoras,  que  se  vê  aspado.  As  paredes  são 
guarnecidas,  em  parte,  de  bellos  azulejos,  desenhando 
cavalleíros  com  antigas  armaduras,  e  teem  á  roda,  dis- 
tribuídos em  letras  douradas,  estes  pobres  versos: 


CINTRA  413 

Pois  com  esforços  leaes 
Serviços  foram  ganhados, 
Com  estes  e  outros  taes 
Devem  de  ser  conservados. 

Formando  contraste  doloroso  com  esta  sala,  espaçosa 
e  nobre,  cujo  portal  é  bello,  e  se  attribue  a  Francisco 
Lagarto  pelo  F  gravado  sobre  o  lombo  do  reptil,  que 
a  adorna— depara-se  com  um  mesquinho  aposento,  cujo 
ladrilho  foi  gasto  pelos  pés  de  Affonso  VI,  que  alli  curtiu 
a  prisão  ignominiosa,  durante  15  annos,  sendo  alumiado 
por  uma  só  janella  de  grade,  e  recebendo  a  comida  por 
uma  fresta,  collocada  na  parte  inferior  de  uma  das  portas. 

Quem  tiver  uns  certos  dotes  de  coração  não  poderá 
alli  entrar,  sem  que  a  mais  nobre  partícula  de  piedade 
se  lhe  desprenda  da  alma,  e  caia  sobre  a  algidez  d'a- 
quellas  pedras,  testemunhas  imprestáveis  de  um  nefan- 
do martyrio,  que  importou  um  fratricídio  lento  e  dupla- 
mente repugnante. 

No  ultimo  pavimento,  ha  um  deposito  de  aguas,  que 
não  podemos  ver. 

Corredores,  escadarias  e  mais  dependências  são  um 
amontoado  de  irregularidades  e  sobejas  provas  de  mau 
gosto,  incluindo  os  alojamentos  reaes,  mandados  prepa- 
rar, no  reinado  de  D.  Pedro  V. 

Pode-se  pois  dizer  que,  afora  as  salas  apontadas,  os 
vestígios  mouriscos,  que  são  importantes,  os  ladrilhos, 
as  chaminés,  que  formam  a  abobada  da  cosinha,  por 
maneira  notável,  e  pouco  mais — o  palácio  só  se  recom- 
menda  pelas  tradições  históricas,  ligadas  ao  passado  da 
casa  real,  figurando  n'ellas  o  nosso  Gamões,  que  alli  foi 
por  vezes,  em  romaria  poética,  para  ver,  e  decantar  a  sua 
Gatharina  de  Athaide. 

# 
#      # 

A  nossa  morada,  onde  os  percevejos  nos  attestam  a 
respeitável  vetustez  dos  moveis  coxos  e*  a  pouca  amabi- 
lidade, com  que  se  atiram  aos  forasteiros,  fica  muito 


414  NOTAS  A  LAPI8 


perto  da  cadeia,  que  è  mais  um  documento  recommen- 
davel  da  nefasta  organisação  das  nossas  prisões  civis. 

Os  encarcerados,  como  os  demais,  comem  á  custa  do 
Estado,  que  lhes  não  impõe  trabalho  algum,  dormem, 
fazem  algazarra,  e  passam  vida  regalada. 

Uma  palavrada  a  quem  passa,  uns  assobios  atroado- 
res, umas  risadas  de  troça,  um  descaramento  nascido 
no  ócio,  autorisado  por  lei  —  são  o  colorido  predomi- 
nante dos  presos  das  nossas  cadeias. 

Contra  esta  miséria  repugnante  de  costumes,  apenas 
se  levanta  de  vez  em  quando  a  voz  lamuriante  de  algum 
sonhador,  que  pede  livros  para  os  criminosos,  e  não  sa- 
bemos se  alguns  diplomas  de  bacharéis. 

Em  trabalho  é  que  ninguém  falia,  esquecendo-se  to- 
dos de  que  a  ociosidade,  no  conceituoso  dizer  dos  nos- 
sos velhos,  é  a  mãe  de  todos  os  vicios,  e  de  que  só 
pela  absorpção  de  idéas,  empregues  em  coisa  útil,  se 
pôde  regenerar  um  ente,  que  a  sociedade  expulsou  do 
seu  grémio,  onde  na  maior  parte  dos  casos  a  falta  do 
sentimento  brioso,  a  que  o  trabalho  incita,  è  o  movei 
único  de  repetidos  crimes. 

As  nossas  cadeias,  taes  como  são,  não  punem  delin- 
quentes —  alimentam  vadios,  e  ordenam  aos  criminosos 
que,  n'uma  repugnante  promiscuidade,  estudem  novos 
crimes. 

Apezar  do  zelo,  contrario  ás  arruaças  dos  presos,  em- 
pregue pelo  delegado  do  ministério  publico  de  Cintra, 
ao  tempo  em  que  lá  estivemos,  a  cadeia  da  terra  era 
um  triste  exemplar  do  género. 

Faltando  d'isto  e  dos  criminosos,  que  andam  a  monte 
em  todo  o  districto,  contou-nos  esta  autoridade,  entre 
outras  gentilezas,  o  seguinte  caso,  fruclo  genuíno  de 
uma  condemnavel  ociosidade. 

Uma  mulhersita  levara  ao  mercado,  que  fica  perto  e 
se  estende  até  ás  grades  da  prisão,  algumas  aves  do- 
mesticas. Um  bello  gallo  pavoneaya-se  a  pequena  dis- 
tancia, quando  foi  cubicado  pelos  presos,  que,  reunidos 
em  conciliábulo,  resolveram  furtal-o,  e  banquetear-se 


CINTRA  415 

com  elle.  Enfiaram  pacientemente  alguns  grãos  de  mi- 
lho n'um  cordel,  e  lançaram-nos  atravez  de  orna  grade, 
ao  rez-dochão,  aproveitando  um  descuido  da  mulher, 
que  estava  de  costas  viradas. 

O  animal  correu  á  negaça,  e,  quando  cuidava  ter  en- 
gulido  a  são  e  salvo  o  appetitoso  manjar,  sentiu-se  ra- 
pidamente içado  pelo  cordel,  como  se  fora  peixe  fisgado, 
e  deu  rápida  entrada  na  cadeia,  onde  foi  logo  depenado 
e  posto  a  cozer. 

D*ahi  a  pouco  a  vendedora  de  gallinhas  deu  pela  falta, 
e  arrepellava-se  por  não  comprehender  o  modo  como 
lhe  desapparecera  o  gallo.  Afflicta  chegou-se  ás  grades, 
e  fez  perguntas. 

—Olhe— responderam-lhe— nós  vimol-o  ha  pouco,  a 
correr,  a  correr  por  ahi  fora;  pelo  andar,  que  levava, 
já  a  estas  horas  deve  estar  na  Fervença. 

Fervença  não  significava  por  certo  na  bocca  do  preso 
a  freguezia  minhota  d'este  nome;  era  uma  rajada  do  seu 
espirito,  uma  ironia,  que  acobertava  o  destino  do  gallo. 

Levantaram-se  suspeitas  contra  os  malandros  encar- 
cerados, e  a  mulher  fez  a  sua  queixa,  mas  a  revista  pas- 
sada á  cadeia,  não  deu  resultado,  porque  ninguém  se 
lembrou  do  pote  da  agua,  onde  o  animal  foi  mettido  por 
elles.  O  gabarem-se  do  succedido  foi  mais  tarde  o.  único 
certificado  da  verdade,  que  é  um  caso  gracioso  d'essas 
escolas  de  verdadeira  immoralidade,  a  cujas  grades  se 
pede  esmola  ou  se  espumam  obscenidades,  em  cujo  seio 
se  joga  o  murro,  a  navalhada,  ou  a  bisca. 

A  emparelhar  com  os  presos,  só  os  conductores  de 
burros,  que  não  conhecem,  nem  praticam  outro  ser- 
viço. 

No  inverno,  o  burriqueiro  pôde  tiritar  de  frio  e  fome, 
mas  não  deita  a  mão  a  trabalho  algum.  O  seu  ordenado, 
no  verão,  orça  pelo  dos  burros  que  aluga. 

Um  burro  vale  um  homem,  ou,  se  querem  vale  dois 
burros,  incluindo  o  dono,  que  ganha  o  mesmo. 

A  nós  e  á  nossa  família  esperam-nos  quatro,  todos 
crismados  com  nomes  pomposos,  aliás  cinco,  entrando 


416  NOTAS  A  LÁPIS 


o  conductor,  qae,  á  semelhança  dos  collegas,  pretende 
que  os  visitantes  vejam  Cintra  á  destilada  para  mats 
cedo  procurar  novos  freguezes. 

Ponhamos-lbe  cobro  á  ganância  incommoda,  prohibin- 
d  o- lhe  expressamente  o  fustigar  os  animaes,  e,  a  mon- 
tante da  villa,  bifurcado  no  jerico,  que  dá  pelo  nome 
de  Rotschild,  tomemos  pela  estrada,  que  vae  á  Sabuga. 

* 
*      * 

A  encosta  até  ás  ruínas  do  castello  mourisco  é  um 
formoso  estendal  de  ramarías  luxuriantes,  entremeadas 
de  penedos  altíssimos,  de  que  o  mais  formoso  exemplar 
está  na  quinta  Saldanha,  que  nos  fica  á  direita,  uma  pe- 
dra enormíssima,  suspensa,  ao  que  nos  parece,  por  um 
milagre  de  equilíbrio,  no  mais  alto  da  vertente,  onde  se 
chega  em  zig-zags  d'uma  encantandora  amenidade  rus* 
Uca. 

Sendo  as  propriedades  de  Cintra  lugares  de  simples 
regalo,  as  circumstancias  dos  proprietários  medem-se 
logo  pelo  esmero  do  cultivo. 

À  quinta  Saldanha,  que  nio  nosemporta  saber  a  quem 
pertence,  está  pouco  menos  de  abandonada. 

Seguindo  até  S.  Pedro,  por  boa  estrada  a  espaços 
ladeada  de  arvoredo,  temos  a  vér  a  pequena  quinta  do 
sr.  marquez  de  Va liada,  digna  d'uma  visita  demorada 
pela  sua  posição,  bellezas  naturaes  e  de  arte  rústica. 

A  grande  cascata  não  funcciona ;  ruas  e  arvores  estão 
mal  cuidadas. 

O  seu  jardim  das  estatuas,  a  sala  das  folhas,  o  jar- 
dim dos  lagos,  que  são  bellos,  os  seus  desvios  e  pontes 
e  a  sua  fonte  lacrimejante  —  são  lugares  onde  rumore- 
jam melancolias  suavíssimas  e  delicias  de  um  bem-es- 
tar  inspirador. 

Assim  o  indicam  os  pensamentos  e  nomes,  gravados 
a  canivete  nas  largas  folhas  das  suas  opulentas  pitei- 
ras. 


CINTRA.  M? 

A  propriedade  do  marquez  de  Vianna,  mais  vasta  do 
que  esta,  entristece-nos  vivamente,  porque  os  arrenda- 
tários, no  empenho  do  lucro,  teem  devastado  o  que  por 
alli  havia  de  melhores  tempos. 

O  vento,  que  se  esforça  por  encrespar  as  aguas  lodo- 
sas do  seu  grande  lago,  assobia-nos  as  trovas  de  uma  de- 
cadência esmagadora. 

Subindo  -ao  ponto  mais  elevado,  iremos  ter  á  Pena, 
a  sumptuosa  moradia  campezina  do  sr.  D.  Fernando, 
um  co  nj  une  to  de  bellezas  naturaes,  desbravadas  e  en- 
grandecidas pelo  apuro  mais  aturado  da  arte  architecto- 
níca,  florestal,  sylvicola  e  floricultora,  de  que  ha  exem- 
plo em  Portugal. 

O  apparato  insolente  do  homem  dinheiroso,  o  em- 
prego de  estatuas  custosas  mal  espalhadas  por  montes 
e  valles,  o  espalhafato  de  uns  arrebiques  pesados,  que 
só  denunciam  o  valor  da  moeda,  as  concepções  amanei- 
radas,  que  revelam  uma  fidalguia  balofa  e  tacanha,  as 
demonstrações  de  uma  grandeza  òca  e  pedante,  as  su- 
perfluidades do  mau  gosto  —  não  existem  alli. 

À  organisaçâo  de  um  delicadíssimo  poeta,  a  alma  in- 
teira de  um  artista  superior  —  circulam  voejantes,  dia- 
pbanas,  alvíssimas,  por  cima  d'aquelles  penhascos  his- 
tóricos, pelas  vertentes  da  serrania,  pelo  fundo  dos  val- 
les, pelo  emmaranbado  dos  bosques,  á  beira  das  estra- 
das, junto  dos  lagos,  á  borda  das  fontes,  em  convívio 
permanente  com  o  acre  perfume  dos  pinheiros  e  das 
giestas,  com  o  fino  aroma  das  plantas  ornamentaes  e 
das  flores  dos  jardins. 

Cintra !  Pôde  ser  uma  preciosa  mansão  de  encantos ; 
verdadeiro  paraíso,  que  nos  faz  perder  a  inveja  á  deli- 
ciosa morada  dos  nossos  primeiros  pães — é-o  só  a  Pena, 
que  vale  todas  as  mattas,  todos  os  palácios,  todas  as 
quintas,  que  por  lá  se  encontram ;  a  Pena,  que  repre- 
senta a  gloria  de  um  nome  immorredouro  nos  annaes  do 
bom  gosto ;  a  Pena,  que  não  tem  similar  no  paiz,  e  que 
lá  fora  não  poderá  temer  rivalidades,  por  mais  faustosas 
e  afamadas  que  sejam. 

*7 


418  NOTAS  A  LÁPIS 


Dos  poucos  dias,  essencialmente  ditosos,  que  n'esta 
vida  nos  teem  cabido  em  sorte,  passámos  um  d'elles  a 
caminhar,  a  correr,  a  embevecer-nos  pelos  desvios  e  re- 
cantos da  Pena. 

Seguia-nos  um  ente  querido,  que  boje  só  podemos 
entrever  pelos  olhos  de  uma  saudade  infinda,  chilreando 
amenidades,  communicando  impressões,  poetando  mo- 
dilbos  soltos,  enlaçando-se  angelicamente  ao  rendilhado 
de  uns  pensamentos,  que  a  palavra  não  pôde  retratar. 

Sorri  lá  do  alto,  santa  companheira,  porque  a  mim 
apraz-me  acreditar  que  me  sorris  atravez  das  nuvens, 
onde  tantas  vezes  ponho  a  vista  á  procura  do  teu  rosto 
suavíssimo  e  bello;  sorri,  desditosa,  que  este  parentbe- 
sis  é  só  teu;  sorri,  Maria,  que  as  lembranças  da  Pena 
são  reflexo  indelével  d'aqueílas,  que  te  envolveram,  e 
me  hão-de  amortalhar  a  mim. 

Dizias-me  tu,  com  a  candura  da  tua  bondade: 

—Abençoado  dinheiro,  que  taes  bellezas  sustenta,  e 
que  se  converte  em  pão  remunerador  para  tanta  gente, 
empregue  aqui  I 

—Abençoado  capricho — acrescentei  eu  — que  satusa 
de  goso  um  bomem,  que  pôde  e  sabe  gosar,  revelando 
nas  obras,  que  dirige,  os  sentimentos  delicados  de  uma 
natureza  privilegiada  I 


Transpondo  o  portão  da  graciosa  herdade,  fica-nos  á 
esquerda  o  pittoresco  accidentado  de  um  pinheiral,  e  á 
direita  a  linha  caprichosa  dos  muros  do  castello  mouris- 
co, para  além  de  um  valle,  inteiramente  arborisado. 

D'abi  para  cima,  torneámos  uns  poucos  de  socalcos 
ajardinados,  e  á  entrada  da  matta  podemos  descançar 


CINTRA  419 

n'uma  planura  circular,  completamente  rodeada  de  ar- 
vores, destinada  a  picadeiro  e  a  outras  diversões. 

Subindo  á  direita,  em  tortuosidades,  que  regorgitam 
de  frescuras  e  sombras  opulentas,  chegaremos  á  estra- 
da, aberta  nos  rochedos,  atravessando  um  arco  de  gra- 
nito, uma  ponte  levadiça  e  as  curvas  de  um  corredor 
abobadado  e  cheio  de  vasos  com  plantas  de  ornamenta- 
ção em  duas  ordens  lateraes. 

Estamos  em  frente  da  curiosa  e  artística  morada  do 
sr.  D.  Fernando,  construída  no  mais  alto  pico  da  mon- 
tanha basáltica  e  sobre  os  restos  do  convento  de  dezoi- 
to frades  Jeronymos,  pertencentes  ao  mosteiro  de  Belém, 
edificado  por  D.  Manuel  no  sitio  cTonde  avistara  a  frota 
de  Vasco  da  Gama,  ao  voltar  do  glorioso  descobrimen- 
to das  Índias,  segundo  o  risco  do  florentino  André  Con- 
tucci  de  Sansovino. 

O  estylo  da  architectura,  dizem-n'o  os  entendidos,  é 
o  gothico  normando,  refundimento  do  velho  gothico,  ad- 
mittindo  a  forma  ogival,  a  angulosa  e  a  variedade  de 
ornamentação,  tão  subdividida  pelos  gostos  dos  differen- 
tes  povos,  que  d'ella  teem  feito  uso,  desde  o  puro  go- 
thico da  edade  media. 

Dois  arcos  de  calcareo  branco  adornam  as  entradas, 
sendo  o  principal  um  valiosíssimo  trabalho  de  ogiva.  A 
volumosa  cabeça  de  um  tritão,  onde  as  raízes  de  uma 
arvore,  feita  da  mesma  pedra,  fingem  a  cabelleira,  coroa 
o  fecho,  que  vae  apoiar-se  em  troncos  entrelaçados  de 
um  lavor  e  belleza  eguaes. 

Aos  lados,  duas  torres,  guarnecidas  de  muralhas,  se- 
teiras e  ameias;  passado  o  arco,  um  pateo  e  o  resto  da 
edificação  em  pittoresca  promiscuidade,  a  moradia  real, 
um  torreão,  a  egreja,  torres  ameiadas,  muralhas  com 
seteiras,  o  átrio,  formado  por  columnas  de  granito,  or- 
namentadas com  arabescos,  cruzes  de  Christo  e  florões, 
como  as  portas  e  as  janellas,  e  por  fim  os  restos  do 
mosteiro,  fielmente  restaurado. 

Sentimos  não  poder  faltar  mais  do  que  da  egreja,  por 
não  termos  entrado  no  edifício  principal  e  suas  depen- 


420  MOTAS  Â  LÁPIS 


dencias,  onde  se  accumulam  em  disposição  surpreheo- 
dente,  ao  que  dos  dizem,  verdadeiros  thesouros  de  arte 
ornamental  e  domestica. 

A  parte  mais  notável  do  pequeno  templo,  que  não 
chega  a  medir  vinte  metros,  e  apresenta  os  lados  cober- 
tos de  azulejos  verde-azues  e  o  tecto  revestido  de  már- 
more enflorado  e  da  cruz  de  Cbristo,  é  a  capella-mór. 

O  altar,  que  dizem  começado  em  D.  Manuel  e  termi- 
nado em  D.  João  III,  é  de  alabastro,  tendo  em  nichos, 
ornados  de  columnellos  e  folhagens,  figuras  representan- 
do algumas  passagens  de  Cbristo  e  tia  Virgem— tudo 
feito  do  mesmo  material,  como  o  próprio  sacrário,  bel- 
lissima  peça  em  dois  corpos,  um  cylindrico,  exterior  e 
rotatório,  e  outro  de  cinco  ângulos  ou  pentagonal,  in- 
terno e  relevado,  com  a  inscripção  na  porta— Pernis  qui 
de  coelo  descendit—e  a  data  de  1531. 

As  suas  paredes  teem  a  transparência  do  mais  formo- 
so cristal. 

O  crucifixo  é  de  marfim,  e  os  vidros  de  cores,  que 
illuminam  o  coro,  ainda  guarnecido  das  antigas  banca- 
das, são  de  origem  allemã,  valha  a  verdade,  e  represen- 
tam nas  suas  pinturas,  D.  Manuel,  Vasco  da  Gama  ao 
partir  do  Restello,  e  outros  assumptos  diversos. 

A  pequena  sacristia  tem  varias  copias  de  bons  qua- 
dros, uma  valiosa  columna  de  marfim  e  uma  estatua  in- 
teiriça de  S.  Sebastião,  uma  riquissima  peça  de  arte. 


Quem  se  costuma  deixar  prender  pelos  bons  quadros 
da  natureza,  ao  debruçar-se  de  uma  parte  das  ameias 
do  castello  da  Pena,  não  poderá  definir  todas  as  cores 
de  uns  sentimentos  oppostos,  que  o  hão-de  cercar  e  eu* 
volver. 

A  surpreza  do  imprevisto,  ao  lançar  os  olhos  sobre  o 
immenso  valle,  que  desce  á  povoação,  sobre  os  poma- 
res e  vinhedos  de  Coitares  até  ao  Cabo  da  Roca  e  sobre 


CINTRA  4)1 

o  oceano  com  a  sua  caprichosa  immensidade;  o  susto, 
ao  ver-se  guindado,  como  águia  altaneira,  ao  cimo  de 
escarpas  talhadas  a  pique  e  transformadas  no  ápice, 
como  por  vara  magica,  em  deliciosa  mansão  de  fadas  e 
a  meio  e  ao  fundo  em  verdura  e  flores,  que  se  desen- 
tranham do  seio  das  próprias  pedras ;  a  admiração  pe- 
los despenhadeiros,  sinuosidades,  jardins  e  lagos  da 
preciosa  matta ;  o  desejo  de  abraçar  todas  essas  mons- 
truosidades de  belleza  rústica  e  de  arte  aprimorada, 
que  sobem,  descem,  e  caminham  por  dilatados  e  pito- 
rescos desvios ;  um  prurido  de  bem  entendida  inveja ; 
um  embevecimento  profundo,  um  devaneiar  de  loucura» 
uma  alegria  pasmo  dica,  um  roçar  de  azas  de  anjos  e 
uma  aspiração  para  o  vago,  povoado  de  mysteriosas  de- 
licias, para  o  infinito  rendilhado  de  arabescos  fantasiosos 
—  tudo,  tudo  nos  sacode  o  espirito,  nos  pullula  na  alma, 
nos  invade,  enthusiasma,  tortura,  commove  e  alegra. 

Sacudámos  o  torpor  magico,  que  nos  assoberba,  e 
desçamos,  despedindo  o  conductor,  que  nos  diz,  como 
todos,  enganando-nos  em  virtude  de  uma  torpe  ganância, 
que  pouco  mais  ha  que  vér,  e  que  devemos  sair  pela 
chamada  porta  dos  lagos. 

Ordenemos-lhe  que  espere  ahi  por  nós,  se  quizer, 
mas  deixemos-nos  errar  ao  acaso,  perdendo-nos  uma  e 
muitas  vezes  no  labyrinto  das  estradas,  no  frondoso  do 
bosque ;  e  caminhemos,  caminhemos,  dessedentando-nos 
na  fonte  principal ;  transpúnhamos  o  caniçado  dos  jar- 
dins, parando  diante  dos  numerosos  grupos  das  camé- 
lias, dos  massiços  de  relva,  das  plantas  de  uma  flora  uni- 
versal; sentemos-nos  entre  os  pinheiros,  que  cobrem 
vários  exemplares  de  floricultura  menos  delicada ;  suba- 
mos aos  combros  arrelvados,  e  colleemos  tortuosidades 
até  chegarmos  ao  chalet  da  rnadama,  situado  entre  jar- 
dins, entremeado  de  regatos,  grupos  de  pedras  a  en- 
quadrar arbustos,  dóceis  de  ramaria  virente,  assentos 
rústicos,  arcarias  de  granito  ponteagudo,  arvores,  cor- 
tiços de  abelhas,  e  tantos  e  tantos  adornos  naturaes  e 
artísticos. 


422  NOTAS  A  LÁPIS 


Admiremos  aquelle  capricho  de  edificação  interior, 
porque  o  exterior  é  simples  ferro  pintado,  a  fingir  bello 
taboado  de  pinho ;  aqaelles  compartimentos,  onde  as  mia 
mosas  pinturas  das  paredes  são  emolduradas  por  milha- 
res de  pequeninos  e  delgados  tios  de  cortiça,  talhada  a 
canivete,  n'uma  profusão  fascinadora  de  elegantes  ara- 
bescos ;  aquellas  mobílias,  emfim,  que,  n'uma  dulcíssima 
e  discreta  meia  luz,  convidam  aos  prazeres  da  intimidade 
e  aos  mais  ardentes  devaneios  do  amor. 

Se  houvesse  entrado  um  grupo  de  fadas  no  aformo- 
seamento  da  Pena,  esse  asylo  encantador  deveria  ter 
sido  o  mysterioso  olympo  da  soberana,  que  lhes  presi- 
disse aos  poéticos  destinos. 


E  agora  andemos  mais  e  muito  até  avistarmos,  atra- 
vez  da  folhagem  altaneira  do  arvoredo  copado,  o  sym- 
bolo  augusto  do  martyr  gloriosíssimo  da  fraternidade 
universal. 

A  ardência  estimulante  de  um  sol  vivíssimo  lança-nos 
na  passagem  umas  arestas  de  oiro,  que  nos  não  offus- 
cam ;  temos  sombras,  zumbido  de  insectos,  gorgeios  de 
aves,  arruamentos  esmerados,  alamedas  rumorejantes, 
amenidade,  frescura  e  todas  as  harmonias  de  uma  natu- 
reza formosa  e  possante. 

Cá  estamos  na  Cruz  Alta!  no  lado  opposto  ao  cas- 
tello,  em  sitio  mais  elevado  talvez  do  que  elle,  tendo 
diante  de  nós  horisontes  vastíssimos,  onde  distinguimos 
a  serra  de  Monsanto  e  o  monte  da  Penha. 

Abracemos-nos  áquelle  vetusto  emblema  do  christia- 
nismo,  posto  alli  sobre  massas  enormes  de  altíssimos 
rochedos,  no  píncaro  mais  erguido,  como  sentinella  vi- 
gilante, a  dominar  o  espaço,  e  digamos-lhe,  os  que 
formos  crentes : 

f—  O'  cruz,  tu,  como  nós  que  te  venerámos,  guar- 
dada a  proporção  devida,  também  no  teu  livro  da  exis- 


CINTRA  423 

tencia  tens  paginas  de  triumpho  e  períodos  de  desgosto, 
dias  de  alegria  e  épocas  de  tristeza. 

«Floresceste  ridente  nos  corações  amantíssimos,  nas 
aspirações  nobres,  nos  actos  singelos  e  puros  dos  teus 
sinceros  evangelisadores ;  foste  mãe  complacente,  mise- 
ricordiosa e  boa;  assististe  magoada  aos  conciliábulos 
do  mundanismo  fanático,  respiraste  o  fumegar  das  car- 
nificinas, que  se  fizeram  em  teu  nome,  dominaste  pelo 
terror,  pelo  ferro  e  pelo  fogo  dos  ambiciosos  e  dos  hy- 
pocritas ;  foste  madrasta  insensível,  crua  e  má. 

«Tua  não  era  a  culpa. 

«Ao  tempo  das  glorias,  como  aos  embates  da  adver- 
sidade, resististe  sempre;  ao  fraquejar  dos  indifferentes, 
aos  inimigos  da  tua  ultima  época  de  decadência,  ao  es- 
calpello  da  sciencia,  que  pretende  derribar-te  do  teu  pe- 
destal de  séculos  —  vaes  resistindo  hoje ! 

«Mais  forte  do  que  esta  natureza  luxuriante,  que  nos 
cerca,  és  tu  ainda;  nós  temos  os  pulmões  arquejantes 
de  bom  ar,  o  peito  cheio  de  aspirações  e  sonhos,  mas. . . 
a  nossa  fraqueza  é  grande,  mas  sofifremos  na  luta,  mas 
precisámos  de  amparo  e  de  coragem. 

«Abraça-nos  pois,  ó  cruz,  porque  tu  és  o  emblema 
da  força,  como  o  teu  Christo  foi  o  symbolo  do  bem! 


**> 


414  90TA8  A  LATO 


II 


O  castello  dos  mouros.— O  conventinho  da  Serra.— Um  pinhei- 
ro notável— Mais  quintas  e  tapadas.— Escuro-mania  do  sr. 
de  Monserrate. — Setiaes.— Passeio  á  Várzea  de  Collares.— 
A  pedra  de  Alvidrar.— Um  professor  classificado  pelos  dis- 
cípulos.—Quinta  do  Ramalhão.— Trovas  e  recordações. 


O  castello  mourisco,  egualmente  propriedade  do  sr. 
D.  Fernando,  é  ama  pagina  rasgada  do  que  foi  nos  seus 
bons  tempos. 

Situado  em  plano  inferior  ao  da  habitação  da  Pena, 
como  que  no  mesmo  prolongamento,  deve  os  restos  do 
seu  bárbaro  estylo  arcbitectonico  ao  bom  gosto  do  seu 
novo  proprietário,  que  vê  n'aquellas  ruínas  uma  relíquia, 
muito  cheia  de  recordações  históricas,  porque  godos  e 
romanos,  mouros  e  christãos,  castelhanos  e  portugue- 
zes  alli  viveram,  e  batalharam,  em  épocas  e  situações; 
diversas. 

Torreões,  portados,  mesquita,  differentes  caminhos 
subterrâneos  e  as  divisões  interiores  adivinham-se  ape- 
nas, uns  pelos  destroços  existentes  e  outros  pelos  sim- 
ples vestígios  quasi  apagados  pelo  abandono  de  séculos. 
A  única  parte  miraculosamente  subtraída  aos  destroços 
do  tempo  é  a  cisterna  abobadada,  que  se  encontra  par- 
to da  mesquita,  um  excellente  deposito  das  aguas  plo- 
viaes,  a  que  o  abbade  de  Castro,  no  seu  fanático  zelo 
de  investigador  benemérito,  attribue  erradamente  um  ma- 
nancial maravilhoso. 

A  estrada  que  conduz  ao  castello,  os  reparos  para 
conservação  e  os  melhoramentos  realisados  são  digios 
de  boa  nota.  Não  se  fez  porem  ainda  tudo  o  que  podia 


enfTRÁ  425 

e  devia  fazer-se  na  reediflcação  das  muralhas  ameiadas, 
que  ainda  se  conservam  unidas  sobre  os  rochedos,  sitio 
cTonde  se  gosa  uma  vista  das  mais  importantes  da  loca- 
lidade, por  dominar  a  villa  inteira.  Essa  restauração 
nos  pontos  arruinados  era  fácil  e  pouco  dispendiosa. 

E,  chegado  aqui,  devemos  estabelecer  uma  prevenção 
a  favor  dos  visitantes  menos  entendidos  encontra  o  far- 
çante  do  guarda,  que  offerece  descaradamente  umas  coi- 
sas de  mármore,  na  maior  parte  sem  as  proporções 
nem  o  acabamento  devidos,  por  objectos  de  boa  arte, 
feitos  pelos  restauradores  do  altar  da  egreja  da  Pena. 

É  um  logro,  que  os  devotos  imperitos  de  recordações 
teem  pago  por  bom  dinheiro. 

*      * 

Precorrendo  uma  longa  estrada,  que  passa  em  frente 
de  varias  propriedades,  um  pouco  adiante  do  limite  das 
terras  do  sr.  D.  Fernando,  depara-se-nos  uma  das  maio- 
res curiosidades  de  Cintra,  uma  verdadeira  preciosida- 
de, que  raros  visitantes  logram  ver,  pela  pouca  impor- 
tância ligada  pela  maior  parte  a  assumptos  d'aquella  na- 
tureza. 

Referimos-nos  ao  Convenlinho  da  Serra,  habitado  ou- 
trora sob  a  invocação  de  Santa  Cruz,  por  capuchos  ou 
franciscanos,  por  aquelles  que  faziam  voto  da  mais  ex- 
trema humildade,  e  pelos  que  delinquiam,  e  eram  des- 
terrados para  alli  em  expiação  disciplinar  voluntária  ou 
imposta  pelos  superiores. 

Esta  notável  antigalba  monástica  pertenceu  aos  des- 
cendentes de  D.  João  de  Castro  e  portanto  á  casa  Pe- 
namacor, que  a  vendeu  ao  visconde  de  Monserrate,  seu 
dono  actual. 

A  entrada,  coberta  por  dois  penedos,  é  formada  por 
troncos  de  sobreiro,  e  dá  para  um  átrio  quadrangu- 
lar, que  tem  á  esquerda  uma  bica  de  agua  e  no  topo 
um  como  altar  de  conchas,  búzios  e  larga  copia  de  pe- 


416  MOTAS  A  LÁPIS 


drinhas  de  côr,  mostrando  do  meio  oval  uma  grosseira 
imagem  de  N.  Senhora. 

Á  direita  (festa,  uma  capellioba  do  Senhor  dos  Pas- 
sos; do  lado  contrario  a  porta  da  egreja,  cuja  capella- 
mór  foi  cavada  de  baixo  de  um  enorme  penedo  com  a 
superfície  inferior  espalmada,  que  lhe  serve  de  cober- 
tura, curiosamente  aproveitada  até  ao  cruzeiro.  O  reves- 
timento do  altar  é  de  bello  mosaico  com  embutidos  de 
mármore  de  quatro  cores;  da  mesma  pedra  de  uma  só 
còr  é  o  pequeno  sacrário,  que  para  inteiro  contraste 
tem  a  porta  de  cortiça.  De  cada  lado,  três  nichos  de 
mármore  preto,  cujas  imagens  foram  d  alli  tiradas  pelo 
vendedor  cTaquellas  relíquias,  que,  formando  no  todo 
uma  interessante  miniatura  de  egreja»  nos  despertam  a 
curiosidade  de  um  modo  attraente.  Na  parede  da  es- 
querda estão  as  armas  de  D.  João  de  Castro,  sobrepos- 
tas a  uma  lapide,  onde  se  lê  que  aquella  fundação  foi 
realisada  por  D.  Álvaro  de  Castro,  seu  filho,  no  anno 
de  1560,  segundo  as  suas  ordens  e  mandado;  e  que  se 
concedem  muitas  indulgências  a  quem  alli  assistir  ao 
santo  sacrifício  da  missa. 

As  divisões  interiores  do  conventinho,  se  tal  nome 
apezar  de  diminutivo  se  pôde  dar  áquella  construcção, 
toscamente  elaborada  entre  penedias,  revestidas  de  más 
paredes  e  entremeiadas  de  cortiça  aqui  e  além— são  em 
geral  pequenas,  acanhadas,  irregulares  e  pobríssimas, 
verdadeiros  covis  de  almas  penadas,  ou  sepulcros,  onde 
só  podiam  enterrar-se  em  vida  creaturas  de  um  ascetis- 
mo levado  ao  cumulo  mais  extraordinário  das  privações 
d'este  mundo  e  da  fé  inquebrantável,  a  que  dessem 
apoio  constante  as  idealidades  de  um  mundo  melhor. 

Para  se  ajuizar  ao  certo  da  rudeza  e  pequenez  d'aquel- 
las  habitações,  basta  lembrar  que  as  portas  da$  celtas 
estreitíssimas  e  húmidas  tinham  cinco  palmos  de  altura; 
que  o  refeitório  se  realisava  em  cima  de  uma  pedra 
tosca;  que  para  a  sala  do  capitulo  do  tamanho  de  um 
quarto  regular,  ninguém  podia  dar  entrada  sem  se  cur- 
var; que  nas  prisões,  superiores  ao  que  ha  de  mais  pe- 


CINTRA  427 

doso  no  systema  cellular,  não  havia  luz,  e  que  a  comi- 
da aos  presos  era  fornecida  por  um  simples  buraco. 

Durante  o  dominio  da  casa  Penamacor,  tudo  aquillo 
foi  barbaramente  invadido  e  devastado.  O  visconde  de 
Monserrate  mandou  reconstruir,  sob  a  antiga  feição  ca- 
racterística, alguma  cousa  do  que  existe,  para  evitar 
uma  ruina  completa,  mas  apezar  da  sua  opulência  e  al- 
gumas provas  de  bom  gosto,  não  fez  metade  do  que 
devia. 

A  situação  do  conventinbo  é  magnifica,  como  quasi 
todas  as  que  foram  destinadas  ao  viver  dos  frades  de 
todas  as  ordens  e  épocas;  as  terras  dependentes  esten- 
dem-se  desde  o  alto  do  monte,  em  pittoresco  declive; 
e  alindadas  ao  sabor  rústico  da  sua  natureza  poderiam 
Ser  uma  graciosa  miniatura  da  Pena. 

A  certa  distancia  do  edifício,  encontra-se,  debaixo  de 
dois  penedos,  uma  cova  para  onde  se  desce  por  quatro 
degraus,  gruta  bumilima  e  tosca,  bumida  e  desconfor- 
tável, onde  se  diz  que  viveu  14  annos  de  rigorosa  pe- 
nitencia, e  morreu  ao  fim  d'elles  S.  Honório,  que  pre- 
cisaria conservar-se  constantemente  sentado,  porque  a 
altura  é  muito  inferior  á  de  um  homem  e  a  largura  aca- 
nhada, para  que  qualquer  pessoa  possa  deitar-se  á  von- 
tade. Sobre  o  tecto  levanta-se  uma  cruz  sobreposta  a 
lapide,  que  diz :—  Hic  Honorius  vitam  finivit  et  deo  cum 
deo  vitam  revivit.  Obiit  in  armo  Dei  1596, 

No  mais  alto  do  monte,  ha  uma  larga  e  formosa  gru- 
ta, formada  naturalmente  por  volumosos  penedos  e  as 
ruinas  de  um  altar  um  pouco  mais  abaixo,  onde  se  dis- 
tinguem ainda  uns  restos  de  pintura  mural.  O  ponto  de 
vista  é  muito  bonito,  e  o  local  presta-se  a  grandes  afor- 
moseamentos. 

Descendo  por  caminho  mais  ou  menos  ledeado  de  ar- 
vores mal  cuidadas,  encontra-se  um  pinheiro  manso  de 
uma  edade  tão  respeitável  que  bem  nos  podia  descrever 
por  miúdo  tantos  dos  quadros  antigos,  que  alli  nos  oc- 
correm  á  imaginação,  se  elle  nos  podesse  dizer  tudo 
aquillo,  de  que  foi  testemunha  silenciosa.  O  seu  feitio 


418  NOTAS  Â  LAPTS 


è  ainda  mais  reoommendado  do  que  a  edade.  Partindo 
do  pé  de  um  enorme  calhau,  que  lhe  abriga  a  maior 
parte  das  raízes,  dobra-se-lbe  por  cima,  vem  tocar  no 
chão  do  lado  opposto,  continua  em  curvas  a  abaixar-se 
e  a  erguer-se,  e  levanta  por  fim  os  ramos  galhardamente, 
medindo  do  entroncamento  d*elles  até  á  base  o  impor- 
tante comprimento  de  30  metros. 

Deu-lbe  aquelle  feitio  a  mão  do  homem?  É  obra  sim- 
ples da  natureza?  Em  qualquer  dos  casos,  constituo 
uma  incontestável  raridade  aquella  arvore  superior  no 
género  a  tudo  o  que  temos  visto. 

  mais  de  meio  da  ladeira,  depara-se  com  uma  cons- 
trucção  simples,  a  maior  e  melhor  da  localidade,  cha- 
mada celleiro  dos  frades;  ao  fundo  umas  hortas  do  guarda 
e  nada  mais. 

O  que  vimos  porem  è  o  bastante  para  tornar  aquelle 
lugar  cubicado,  tal  como  está;  e  muito,  muito  mais  o 
seria,  se  o  seu  proprietário  se  dignasse  espalhar  por  alli 
umas  migalhas  da  sua  abastança,  em  restaurações  fáceis 
e  obras  de  boa  nota,  não  menos  realisaveis. 

* 
♦      * 

Se  a  quinta  do  Vianna  nos  escapou  á  ida,  podemos 
entrar  n'ella  á  volta,  e  pouco  nos  demoraremos  porque» 
apezar  da  sua  extensão,  grandes  arruamentos  de  ale- 
crim e  arborisações,  nada  tem  de  recommendavel,  mes- 
mo nas  próprias  edificações,  que  são  vulgares. 

Para  regressar,  tomaremos  por  meio  da  tapada  do 
Monte  ChrisfQ,  hoje  Fonceca,  tão  notável  como  a  quinta 
do  mesmo  nome;  aquella  por  sua  posição,  espaço  de 
que  dispõe,  e  bellissima  estrada,  quasi  toda  aberta  entre 
vistosos  renques  de  pinheiros  australianos ;  e  esta  pela 
parte  ajardinada  e  pelo  lago,  onde  se  reflectem  as  ondu- 
lações de  poéticas  ramarias,  que  o  cercam. 

A  tapada  do  Roma  é  continuação  da  do  Monte  Ghristo. 

Ao  passar  por  ella,  avistámos  o  solar  da  família  Pe- 


ONTRA  419 

namacôr,  muito  desmantelado  e  egualmente  cheio  das 
armas  de  D.  João  de  Castro,  cujas  barbas,  valha  a  ver- 
dade, estão  hoje  em  poder  do  visconde  de  Monser- 
rate,  que  é  o  foreiro  d'aqoillo  tudo,  e  sel-o-ha  por  no- 
venta annos,  ao  que  nos  disseram.  O  solar  está  pintado 
de  ocre  amarello-escuro,  porque  o  sr.  de  Monserrate  é 
inimigo  capital  das  cores  claras,  especialmente  da  branca, 
tão  inimigo  cTellas  como  das  arvores  fructiferas. 

—  É  mat  feito  —  vae-nos  a  dizer  o  burriqueiro.  —  O 
diabo  do  inglez  mandou  arrancar  tudo  o  que  dava  fru- 
cto ;  só  quer  arvores  de  regalo.  Olhe  que  o  povo  não 
gosta  nada  cTisso.  Quanto  ás  cores  é  mais  bonito  ainda. 
Se  por  acaso  estiver  á  janella,  e  vir  ao  longe  um  muro 
branco,  ou  cousa  que  tenha  a  mesma  côr,  vae  logo  dar 
por  lá  um  passeio,  espeta  uma  bandeira  nos  sitios,  que 
quer,  e  um  creado  lá  vae  pintar  de  escuro  o  que  elle 
marcou.  Os  próprios  penedos  claros  são  mascarados  de 
cal  misturada  com  poses  de  sapato*.  Forte  embirração 
a  do  homem  t 

Chegámos  finalmente  á  bellissima  estrada,  que  é  a 
artéria  principal  entre  Cintra  e  Collares,  e  acbâmos-nos 
em  frente  do  campo  dos  Sete  ais,  o  moderno  Setiaes, 
espécie  de  passeio  publico,  n'um  quadrado  magnifico 
por  sua  capacidade  e  posição,  mas  pobre  e  desmante- 
lado, em  egualdade  de  circumstancias  com  o  elegante 
edifício,  que  se  levanta  na  sua  extremidade,  outr'ora 
pertencente  á  casa  do  Louriçal  e  hoje  á  de  Loulé. 

Os  dois  corpos  d'aquelle  bonito  palacete,  histórico 
pela  convenção  de  Junot,  em  1808,  para  a  evacuação 
completa  das  suas  tropas  em  terras  portuguezas,  são 
ligados  por  um  arco  rematado  por  tropheus  e  uma  ins- 
cripção  latina  de  1802,  dedicada  a  D.  João  VI;  possuem 
numerosas  salas,  e  comporão  em  breve  um  lastimável 
acervo  de  ruinas. 

Elegante  edificio  aquelle  para  os  paços  da  camará  mu- 
nicipal da  localidade !  Formoso  passeio  publico  o  campo 
de  Seteaes,  se  a  camará  e  o  districto  se  emporlassem 
com  elle  t 


430  NOTÀ8  Â  LAPI8 


Desgraçadamente  Dão  é  de  esperar  semelhante  melho- 
ramento, porque  nem  a  uma  nem  a  outro  se  devem 
quaesquer  innovações  locaes.  As  estradas  modernas,  os 
alindamentas  públicos  são  unicamente  devidos  á  influen- 
cia dos  ricos,  que  por  alli  teem  os  seus  regalos  e  as 
suas  quintas. 

Arte  e  natureza  notáveis  nas  encostas,  onde  os  ar- 
bustos rebentam  prodigiosamente  dos  moroiços  e  das 
fendas  dos  penedos,  com  exhuberancia  excepcional ;  es- 
terilidade não  menos  sensivel  nas  planuras,  para  alem 
da  povoação,  onde  não  braceja  uma  arvore;  moradias  lu- 
xuosas e  pobreza  extrema— eis  Cintra,  incapaz  absolu- 
tamente de  viver  só  por  si,  sem  o  soccorro  das  terras 
visinhas  e  a  concorrência  dos  forasteiros. 


O  passeio  a  Coitares,  a  pátria  do  bom  vinho  d'este 
nome,  é  dos  mais  recommendados  e  certamente  um 
dos  mais  apreciáveis,  em  especial  pelo  formoso  pre- 
curso  de  uns  cinco  kilometros,  feito  na  estrada,  a  que 
já  nos  referimos,  guarnecida  por  ambos  os  lados  de 
frondosas  ramadas,  que  se  debruçam  amorosamente 
sobre  a  nossa  cabeça,  na  extremidade  das  mattas,  ao 
longo  dos  muros  de  um  grande  numero  de  quintas  de 
recreio,  em  sítios  onde  a  amenidade  e  a  frescura  nos 
enleiam  e  prendem,  nas  escassas  planuras  e  nos  nume- 
rosos declives,  com  uma  profusão  extraordinária,  com 
uma  força  de  vegetação  espantosa  e  única. 

Entre  as  luxuosas  habitações  campezinas,  a  que  mais 
se  impõe  pelas  bellezas  exteriores  do  seu  mármore  ren- 
dilhado é  a  casa  de  Monserrate,  onde  não  conseguimos 
entrar,  sendo-nos  apenas  consentido  observar  a  distan- 
cia, por  uma  porta  entreaberta,  o  corredor  principal 
do  pavimento  inferior,  uma  deslumbrante  galeria,  em 
cujos  espelhos  parietaes  se  reflectem  as  aguas  do  seu 


CINTRA  431 

repuxo  central  e  as  do  exterior»  que  aformoseam  o  pe- 
queno jardim  da  entrada. 

Da  soa  espaçosa  quinta  nada  nos  convém  dizer,  como 
não  faltaremos  das  outras,  que  encontrarmos,  porque 
tudo  o  que  nos  suggerisse  esse  assumpto  ficaria  muito 
abaixo  das  impressões,  que  nos  deixou  a  Pena,  a  que 
nada  se  pode  comparar. 

A  pequena  villa  de  Collares,  encravada  no  meio  de 
umas  terras,  onde  os  vinhedos,  as  plantações  producti- 
vas,  herdades  e  pomares  formam  notável  contraste  com 
os  de  Cintra,  onde  só  ha  relvados,  bosques,  penedias 
sobrepostas  entre  moitas  de  arbustos,  vegetação  alte- 
rosa, formando  verdadeiras  grandezas  de  ornamentação 
—não  tem  edifícios  famigerados,  alem  de  umas  ruinas 
e  do  convento  de  Santa  Anna. 

O  seu  vinho  tão  apreciado,  a  largueza  e  amenidade 
da  sua  Vargea  e  o  riacho,  a  que  formam  docel  copadas 
laçarias  de  vimes  e  salgueiros,  e  em  cujas  aguas  nos 
deixámos  embalar  poeticamente  em  bote,  que  deslisa 
por  ellas,  muitas  vezes  seguido  pelas  saudações  chil- 
reantes  e  alegres  dos  pássaros  ribeirinhos—são  os  me- 
lhores attributos  do  seu  nome. 

Caminhando  d'ahi  para  o  extremo  da  serrania  de 
Cintra,  que  finda  no  cabo  da  Roca,  os  terrenos  mudam  de 
aspecto,  as  penedias  escalvadas  e  os  serros  agrestes  dão- 
nos  a  perfeita  imagem  de  uma  natureza  desolada  e  estéril. 

Mas  nós  precisámos  chegar  á  borda  do  Oceano  por 
carreiros  alcantilados,  onde  a  burricada  tropeça  por  ve- 
zes, até  á  serra,  a  que  se  encosta  a  Pedra  de  Alvidrar, 
tão  recommendada,  com  sobeja  razão,  á  curiosidade  dos 
visitantes.  Desmontemos  pois,  ao  fundo  do  valle,  por 
commiseração  votada  ás  alimárias,  e  mais  ainda  por 
amor  ás  nossas  costellas,  e  façamos  a  ascensão  a  pé. 

Logo  que  chegarmos  ao  cume,  temos  a  certeza  de 
que  nos  vêem  ao  encontro  uns  sujeitos,  muito  cortezes 
em  altenção  á  nossa  bolsa,  a  offerecerem-se  como  artis- 
tas consumados  nos  exercícios  de  subir  e  descer  o  me- 
donho alcantil. 


43*  NOTA*  A  LÀW5 


—Senhores— dizia  um— cá  está  o  António,  queéca- 
paz  de  ir  buscar  um  calhau  ao  fundo  do  mar. 

— Eu  também  vou— dizia  outro.— Hão-de  gostar;  te- 
rão. A  fama  d'esta  pedra  é  fatiada  em  todo  o  reino  da 
Europa. 

E  lá  nos  levaram  até  ao  ponto  indicado,  d'onde  deve- 
ríamos observar  os  exercícios. 

O  penhasco  de  Alvidrar  é  sem  duvida  uma  cousa 
muito  digna  de  ver-se.  Cortado  quasi  a  prumo,  sem  de- 
pressões favoráveis,  nem  pontos  de  apoio,  nú,  escalva- 
do, estende-se  até  ao  mar,  numa  altura  de  uns  seis  an- 
dares, ou  115  metros,  segundo  a  medição  de  um  curioso, 
e  è  vencido  por  aquelles  homens,  que  descalços,  ârman- 
do-se  apenas  nas  pomas  dos  pés  e  das  mãos,  sobem,  o 
descem,  todas  as  vezes  <jue  se  lhe  encommenda  esse 
serviço,  executando  verdadeiros  milagres  de  equilíbrio. 

As  ondas  irrequietas,  debatendo-se  entre  si  em  ia** 
petos  mais  ou  menos  violentos,  erguem-se  ao  ar,  for- 
mando vistosas  quedas  de  agua  espumante,  que  n'uma 
parte  de  terreno,  para  cá  do  penhasco,  penetra  com 
ruido  atroador  n'uma  furna  funicular,  que  se  abre  em 
toda  aquella  grande  altura  á  flor  da  terra,  em  cujo  bor- 
do as  pessoas  nervosas  se  deitam  para  poderem  alongar 
a  cabeça,  e  ouvir  as  ondas,  que  rugem  noseiodaquel- 
las  medonhas  cavidades. 

Não  nos  esquecerá  que,  á  volta,  n'uma  povoação  cha- 
mada Almocegeme,  bebíamos,  no  meio  de  uma  passagei- 
ra merenda,  devida  á  obsequiosidade  de  um  conhecimento 
de  um  amigo  nosso,  o  melhor  vinho  que  provámos  em 
todo  o  districto,  quando  nos  invadiram  umas  poucas  de 
creanças,  a  pedir  os  cinco  réis  do  mau  costume  sertanejo. 

Lembrámos-nos  de  lhes  perguntar  se  sabiam  ler* 

—Eu  ando  na  escola,  ha  annos — respondeu  uma — 
mas  ainda  não  sei  ler  bem. 

—Eu  também  sei  pouco— acrescentou  outra,— O  nos- 
so mestre  é. . .  é  um  burro. 

— Egual  aos  nossos  ? 

—Nada,  não  senhor.  É  um  homem. 


CWTOA  4W 


è  borro— eoaoluiram  todas  em  coro. 

Maravilbámos-nos  da  tlassificação  original,  dada  t8o 
desassombradamente  pela  mocidade  escalar  de  Almoce* 
gene  ao  seu  professor,  mas  a&o  tivemos  tempo  de  ave- 
riguar se  era  plenamente  verdadeira. 

Fique  registrada,  em  virtude  da  nossa  fidelidade  de 
cbronista,  por  conta  de  quem  pertencer. 

Não  aos  lembra  por  que  motivo  deixemos  de  visitar 
a  pequena  propriedade  da  Penha  Verde,  deixada  por 
D.  João  de  Castro  aos  seus  herdeiros,  com  a  recom- 
mendaçio  de  a  cultivarem  para  seu  recreio. 

Devia  ter  sido  uma  habitação  tio  humilde  como  o  seu 
Coo  ven  linho  da  Serra;  e,  apesar  das  antiguidades  india- 
nas, entre  as  quaes  figura  uma  lapide  com  tnaeripção 
sanscrita,  trazidas  alli  pelo  seu  amor  pátrio,  essa  casa 
devia  orçar  pela  pobreza,  de  que  elle  fallava  ao  seu 
awgo  S.  Francisco  Xavier,  n'estes  termos  tão  conheci- 
dos: —  «O  vice-rei  da  índia  morre  tão  pobre  que  nem 
tem  dinheiro  para  comprar  uma  galinha.» 


# 
#      # 


Vamos  concluir  por  onde  devêramos  ter  principiado 
talvez,  ao  passar  pela  quinta  do  Ramalhão,  em  cujas 
immediações  se  bifurcam  a  estrada  antiga,  que  leva  a 
S.  Pedro,  e  a  moderna  que  vae  ao  novo  bairro  Este* 
phãmia,  uma  parte  de  Cintra  muito  alegre,  muito  cheia 
de  boas  edificações  modernas,  algumas  das  quaes  só 
teem  de  caricato  o  nome  de  villas,  que  a  mania  estran- 
geirophobiea  dos  nossos  argentarios  não  consiguirá  im- 
plantar no  paiz,  onde  esse  nome  significa  cousa  bem 
diversa. 

Como  todos  sabem,  o  Ramalhão,  antigo  infantado  e 
propriedade  da  rainha  Carlota  Joaquina,  é  boje  domi- 
na) de  um  particular,  o  visconde  de  Valmor,  e  uma 
sombra  do  que  foi  no  passado. 

O  palaek)  é  vasto  e  a  soa  posição  óptima,  dando  so- 

28 


m*  hotjj  ktàm 

bre  os  lagos»  onde  «b  agna  existe  já,  e  pare  o  melhor 
Mo  da  qainta,  soa  principal  fachada  longitudinal.  A 
srcbitectora  é  simples.  As  soas  salas  interiores,  apenas 
saparadas  por  arcarias,  deviam  proporcionar  brilhantes 
reuniões  nos  seus  meibores  tempos»  A  mais  notável  è 
a  de  jantar,  ornada  de  boas  e  antigas  pintores  ftores- 
taes,  oito  cascatas  nas  quatro  faces  e  um  repuxo  ao  cen- 
tro da  grande  mesa,  rusticameote  guarnecida  de  oerâ$a 
o  ladeada  de  candelabros  sob  mangas  de  vidro,  onde 
se  vêem  as  armas  nacionaes. 

Guarnecida  a  mesa  de  bons  manjares,  entremeiadoe 
de  bellos  jarrOes  de  flores,  cheio  o  ambiante  de  mur- 
múrios de  agua  sussurrante  e  flascida,  e  jorrando  dos 
candelabros  uma  lns  intensa  e  clara— aqoeUa  sala. de- 
veria produzir  um  brilhantíssimo  effeitn. 

A  eapella  é  boa;  o  tbrooo  em  espiral  do  sen  altar  bas- 
tante apreciável.  Uma  mobília  completa  de  casa  de  ja* 
Ur,  com  cadeiras  de  espaldar  almofadadas  de  bom 
carvalho  lavrado,  foi  em  moveis  o  qae  vimos  de  me- 
lhor. 

Os  terrenos  da  quinta,  que  nos  pareceram  fertilissimos, 
differem  dos  de  Cintra  em  serem  completamente  des- 
pidos de  penedias,  e  sio  muito  próprios  para  a  lavoera, 
nos  sMos  onde  ha  manos  arborisaçio,  que  ainda  é  maito 
valiosa. 

Os  lagos  estio  na  maior  parte  desguarnecidos  o  nem 
agua ;  as  extensas  avenidas  de  baio,  que  forma  abo- 
bada  compacta,  com  arvores  de  grande  altura*  e  oa  lar- 
gos pomares— mal  tratados. 

No  meio  de  tudo  aquillo,  que  denuncia  um  pronun- 
ciado desamor  e  talvez  a  ausência  do  proprietário,  bra- 
cejam vigorosas,  ataviadas  e  frescas,  por  nío  precisa- 
rem de  auxilio  agrícola,  excellentes  e  corpulentas  «ira* 
carias. 

Passase  ainda  por  alli  uma  baila  tarde,  manda  aaen- 
dade  que  ae  diga:  basta  para  isso  uma  nesga  de  ventu- 
ra, que  é  a  própria  tranquilidade. 

Do  convMo  <e  tradições  4es  seus  nnmeronon  *#sttan- 


«mu*  m 

tes  conserva  o  Ramalfelo  Mmerosos  «listados,  inseri- 
dos a  lápis  nas  paredes  de  ama  fonte,  mie  está  na  rua 
principal  e  mais  sombreada. 

Entre  uma  infinidade  de  nomes,  dat*s,  trivialidades 
e  baboseiras,  notámos  aqui  e  alli  ornas  linhas  românti- 
cas e  uns  tersos  mais  ou  menos  correctos. ' 

Um  anonymo,  ao  lembrar-se  da  soa  amada,  entendeu 
dedicanlbe  um  pensamento,  e  rimou  a  cousa  assim  3 

Se  os  poetas  nVratros  tempos 
Fizeram  versos  a  Thália, 
Que  fariam  hoje  em  dia 
Se  vissem  a  linda  Amália? 

Linda  aqui  será  um  modo  de  dteer,  porque  qoem  o 
feio  ama... 

Outro,  moralista  por  convicto  eu  por  experiência, 
BMstroo  a  sua  aversio  i  bisca  ou  á  roleta  dtette  mode: 

O  jogo  do  oe»  ó  filho, 
Casa  depois  co'a  avareza; 
Pródigo  ser  é  seu  fructo, 
Seu  cabedal  a  pobreza. 

Só  a  boa  pratica  das  virtudes  sociaes  poderá  absolver 
semelhante  aspereza  métrica,  dura  como  as  paredes  da 
fonte. 

Uma  creatura  qualquer,  jungida  involuntariamente  á 
companhia  pouco  amável  de  uns  entes  femininos,  aos 
quaes  nío  cantava  16a s,  manifestou  os  seus  suspiros 
n'esta  terníssima  despedida: 

6  quinta  do  Ramalhâo, 
Lugar  de  tantas  delicias, 
Eu  te  deixo  com  saudade 
P'ra  acompanhar  as  Patrícias. 

Elias  qw  lb'o  agradeçam. 

Nos  seguintes  versos  de  Esproneeda  pareoethnes,  pe- 
los traços  calygraphicos,  descobrir  a  delicada  mio  de 


ftè  NOTAS  A  1APIS 


HsJasdslarMeaUss 
Jugotftes  dei  víento,  mu 
Las  ilasiones  perdidas ! 
Ay  t  son  hojas  desprendidas 
De)  arbol  dei  corazon. 
i 

Abaixo  do  nome  do  poeta,  bavia  a  dita— 1 9—7—6© 
e  as  inidaes  L.  C. 

Uma  lístta  posterior,  com  a  data  de  2—8—69  e  at 
iniciaes  E.  S.  escreveu  por  baixo: 

Estes  versos  trouxeram-me  á  memoria 
recordações  passadas.  E  que  recordações  t 

E  já  que  esse  mal  aflfecta  tantissima  gente,  já  que  de 
illusões  perdidas  e  recordações  diversas  se  nos  povoa 
a  existência,  no  correr  dos  sonos,  também  «és  'voltare- 
mos o  coração  desolado  e  saudoso  para  o  tempo,  em 
que  alli  tomámos  os  ligeiros  apontamentos,  que  fazem 
parte  d'estas  notas. 


»JIH  '1   rll: 


MAFRA 


O  ESGURIAL  POBTUGUEZ 


k Graaía.^A  gynmastica  ntma  ertela  naoicimel 
0  voto  de  D.  Joio  V.— Parte  histórica. 


Dizíamos  nós,  ao  traçar  as  primeiras  linhas,  consa- 
gradas a  Cintra,  de  que  não  ba  roteiro  nem  ornas  sim- 
ples photograpbias,  sega  mencionado  de  passagem,  que 
partíramos  d'aqui,  em  pittoresca  cavalgada  de  burros, 
com  destino  á  Granja,  onde  nos  devi»  esperar  t  carrua- 
gem, que  nos  conduzia  a  Mafra. 

E  assim  foi.  E  por  faltar  n'istor  devemos  declarar  que 
a  quinta  regional  do  Estado,  que  é  um  centro  de  estu- 
do agrícola  e  das  suas  industrias  correlativas,  não  nos 
satisfez  inteiramente* 

Os  utensílios  nio  nos  pareceram  dos  mais  aperfeiçoa- 
dos; a  charrua  mechanica  fazia  resistentes  esforças  havia 
muito,  segundo  nos  dissseram,  para  abrir  uns  sulcos, 
com  perfeita  dificuldade.  Á  nossa  vista  partiu  ella  o  ti- 
rante por  duas  vezes.  As  queijadeiras  não  faziam  queijos, 
as  chocadeiras  nio  tiravam  pintos;  o  fabrico  da  mantei- 
ga era  peqoeno  e  deficiente;  arribaaa*  e  estrebarias  es- 
tavam em  geral  muito  desprovidas  de  bom  gfdow  Qaval- 
los*  beis  e  aves— tudo  em  mesquinha  copia. 


mê  nojÉÊ  m  um 

Podem  «feer-uos  que  aquelte  estabelecimento  é  ape- 
nas a  base  dos  estudos  práticos  e  n8o  uma  industria 
productiva;  que  portanto  o  gado,  os  aparelhos  agrícolas 
e  domésticos  são  ama  simples  demonstração  appHcada 
á  pratica. 

Esto  bem.  Mas,  se  a  quinta  regional  nlo  pertence, 
como  nos  apraz  de  crer,  ao  numero  de  umas  institui- 
ções que  se  sustentam  pro  formnla,  e  mo  dio  resulta- 
dos de  boa  nota,  por  falta  de  estudos  prévios  e  pessoas 
technicas  —  porque  nfo  ha-de  ser  um  manancial  de  in- 
dustria agrícola  e  por  conseguinte  de  largo  tirocínio 
pratico,  condição  que  lhe  diminuiria  os  encargos,  e 
augmentaria  as  forças,  qoe  tão  débeis  nos  parece- 
ram? 

Digam-no  os  que  se  interessam  pela  especialidade, 
que  Ho  BeeesMria  noa  é,  mmo  pata  essoortaimento 
agrícola. 

Nio  ha  muito  tempo  ainda,  visitámos  nós,  em  compa- 
nhia de  um  professor  primário  de  Coimbra,  que  dese- 
java conhecer  as  fonovagões  introduzidas  me  eaeblas 
aranidpaes  de  Lisboa,  um  d'estes  estabelecimentos,  m 
dos  mais  modernos  e  bem  providos. 

Quando  pfeiçunttmes  pelos  objectos,  que  de*faatf  eer- 
Mt  w  deaenvotviflietíto  das  forças,  á  elasticidade  «'toa 
acção  dos  movimentos,  que  slo  a  base  da  gynmastfea 
jdvettíl  — »briram-nòs  um  armário,  ofcde  ettos  jaaiam 
cobertos  de  vistoso  pó,  de  atrtfgw  e  abmdaatos  teias 
de  aranha,  mostraudo^oos  por  isso  e  pornãoiwdícaram 
uso  algum  que  estavam  virgens,  ou  pouco  menos  disse! 

Bram  objectos  pr&  fmrnOa  qoe  a  Granja  alo  deve, 
nem  pode*  ter  nunca. 


Ertreteufeamos**e  agora*con  o  fawoeo^editefcvde 
D.  *Mão  V,  porquê  a  tilla  de  Mafra  em  si  nlo  contem 
outros  monumentos,  com  que  vattoa  cl  pena  demorarmos- 


nem  betteesa  Ai  termo  41*  noa  possa»  atoair  ou 
deter  em  extasia  bucólicos,  apezar  da  soa  appareo- 
m  Dia  deixar  inteiramente  de  ser  agradável  e  ptito- 

Estes  grandes  colossas  de  architectura  monástica,  no 
nosso  paia  e  fora  d'eHe,  nasceram  qoasi  sempre  de  uns 
votos*  feito*  por  monsrchas  e  fidalgos»  E  Mafra»  copio 
o  Escartat,  mau  grada  a  larga  difierença  da  época,  è 
detida  ao  «esmo  motivo. 
<  Disem-nos  que  D.  Joio  V,  magnado  por  falta  da  soe- 
oassofes  legítimos  ao  tbrono»  fiaera  voto  para  haver  fi- 
lhos de  erigir  um  grandioso  mosteiro,  destinado  aos 
frades  awabidos,  qoe  alli  viviam  em  pobríssimo  hospí- 
cio. 

Contrariasse  este  voto,  dizendo-se  que  os  filbofesw» 
ramaotoe  da  começada  construção*  wm  *Upg**ae  tam- 
bém, que,  dois  aonos  depois  de  ter  casado,  o  rei  pedira 
fariarosameate  a  um  padre  de  apregoadas  virtude»,  frei 
Àatooto  de  S.  José,  que  rogasse  a  Deos  pela  successio, 
e  f»o  ríassa  época  fizera  a  promessa,  a  que  sempre  fi- 
cara ligado. 

Além  d'isso  prova*se  o  voto  pelas  inscripções  gra- 
vadsa  nas  pedras  dos  alicerces»  especialmente  pela  que 
fitou  no  local,  onde  assenta  a  capaUa-mór*  inscripçoes 
de  qee  existem  copias .  autbenticas. 

£  nio  admira  que  o  voto,  feito  em  1710,  só  viesse  a 
ter  execução  sete  annos  depois,  se  nos  lembrarmos  de 
que  em  toda  essa  época  o  monareba  devia  ter  voltados 
ee  cuidado*  e  attençfio  para  as  lutas  e  divergências  com 
a  tleqpanba  o  a  França,  e  por  ultimo  para.  os  preparati- 
vos e  expedição  da  esquadra,  mandada  em  soccorgo  do 
papa  Clemente,  que  via  a  Itália  a  ponto  de  ser  comple- 
tamente invadida  pelos  turcos. 

Os  perigos  que  lhe  ameaçavam  o  tbrono,  a  paz  e  a 
integridade  dos  seus  estados,  onde  eoirava  o  Brasil 
priacipatmeote»  apezar  das  escaramuças  ao  pelejarem 
umpeooo  loage,  por  compwnissos  o  alliançasenlte 
oatt*<ias~?*aram  de  sobra  pasa  obstar  a>  qualquer  ma- 


#0  XOlftftAJLiHg 


■Maiteçtn  amii  irtsiiniim  *i 
rie. 

A  nés  ponto  10»  emporte  saber  a  carito,  po*qm<*ó 
em  1747  se  começaram  as  obras  d'aquella  iiwhuíIimiu 
inutilidade,  a  que  se  chama  convento  de<  Mafra» 

O  facto  é  que  ellaa  eoaaeçaram  o'esae  awHH-neaéiio 
escolhido  pelo  rei  e  denominado  a  Vdat  dopeis  d*«er 
preferido  dentre  os  que  se  apresentaram  o  deaeofa» de 
Ludovico,  esculptor  e  modelador  atonia,  que,  investido 
de  boas  teofas  e  largas  tomarias,  fiai  mais  tarde  no- 
meado per  D.  José  awfaitecfcHBór  do  nsmo»  com  asèio 
e  patente  de  brigadeiro. 

Os  trabalhos  de  Ludovico  ttteram  por  emitiam  os 
mestres  canteiros  Carlos  e  António  Garvo,  irmãos  i 


A  terraplanagem  foi  demorada,  deapeodioae/+nMb, 
e  o  plano  primitivo,  já  quando  a  construção  da  egreja 
attingiu  a  um  elevado  grau  de  adiantamento;  foi  «lar- 
gado, procedeodo*se  a  novas  expropriações,,  de*qnt  a 
seu  tempo  se  lavraram  33  eecriptures,  oampMbenáondo 
os  terrenos  de  edificação,  tapada  e  cerca.  -  » 

D'abi  por  diante,  começaram  a  ezpedir-ee  ordene  ter- 
minantes is  autoridades  de  todo  o  pafe  para  manear 
opeasrios,  sendo  oa  particulares  da  locattdadeioMga- 
doe  a  concorrer  por  semana  oem  dois  dias  de  trabalhe, 
que  sempre  lbe  foi  pago,  come  a  iodos  os  empregados 
permanentes. 

Mafra  eonstiUHi*»se  um  notável  e  vaafcsime  acampa- 
mento, muito  bem  provido  de  oficinas,  banana»  afee- 
goarias,  eeeriptorioa,  alojamentos»  eotemarias,  medioes, 
cirurgiões,  cosiofaeiíos»  boticários,  serventes,  artistas* 
operários,  cuja  media  por  dia  se  calculou  em  3ã*úâ0 
pessoas,  entre  as  quaes  foi  chamada  a  manter»  ras- 
peito  e  a  ordem  uma  Corça  mUMar  de  7,000  boi 
intotee  e  eavaUeirosi 

Laoçaram-se  pontes  por  toda  a  parte,  desd*<l 
até  lá,  sobre  oe  barrancas  e  desÉtadetos*  <pare  lamlitar 
a  eondnçie  dos  maieriaes,  em  que  só  *  cas*  ttai  eaa- 


pN§M*fla»  jmtfea  de  heíe;  oe  fomos  d»  caU  «feto 
desde  Caacaes  até  Mafra,  de  que  ainda  se 


itram  signas  vestígios,  orçavam  por  eealenares; 
a  empregar-se  diariamente  450  homens  no 
simples-  aêftvito  de  pau  o  cerda ;  encentra*a»iee*  nas 
«strôdas  «ais  de  mil  carros,  e  foram  precisos  por  ve- 
»»  40  juntas  de  bóie  para  o  transporte  de  «ma  pe- 
dm;  - 

A  que  forma  a  varanda  de  uma  janella  grande,,  aberta 
fia  tasa,  ekaaada  d»  bêmdiaè*ne,  gastou  seis  dias  a 
cbegar  da»  pedreira*  de  Pêro  Ptnbeino,  e  foi  posada 
por  cem  juntas  de  bois. 

Á  abertura  dos  alicerces,  onde  se  lançaram  inscri- 
pções,  moedas  de  ouro,  prata  e  cobre  e  os*  objectos  da 
cerimonia  inaugural,  presidiram  festas  estrondosas,*  e  a 
«frafi»  do  templo*  a  que  ainda  faltava  o  zimbório, 
fez*e  17  annos  depois  eam  assistência  da  famtiia  real, 
patriarcba,  cardeaes,  bispos  e  trezentos  frades  franeia- 
ícanas,  que  ficaram  daada  logo  no  convento. 

Et»  1736,  ires  annos  depois  d"eete  acto  e  daaoito  do 
começo  des  trabalhos,  estavam  coneluidas  iodas  «sobras 
eaterieres,  e  em  poucos  aras»  dando-se  empreitadas  e 
prosegiHDdo-ae  nos  trabalbos  inioterroptaasente  #  tem 
iaioaaiima  actividade,  deu-se  por  terminado  aquettecol- 
tosse  de  edificação,  oode  a  cantaria  e  mármores  varie- 
gados sáo  naciooaaa  e  oa  madeiramentos  da»  preciosas 
maltas  do  BraziL 

Afoette  capricha  de  ^steotaçlo,  concebido  tal  ver  en- 
toe aa^deç«ras  de  alguns  amores  freiralieos,  muito  bem 
entretecidos  de  meles  e  cantata»  dos  poetas  da  época— 
quanto  custaria  ao  rei,  aos  cofres  do  Estado  e  ao»  paiz 
fetssro? 

Ninguém  o» sabe,. ao  certo.  Para  que  a  ninguém  fosse 
esmerilhar  o<  computo  de  lio  largo  desperdício, 
truncaram-se  ao  contas  no  mínimo,  e  dest#ok>a»*ae.ao 


0.  alqueire  de  trigo  custava  então  300  réis,  o  da  ce- 
tmàitAÔtíi  um  arraiei  devaeaa  as,  de  poro*^  um  ai- 


ROT*»»  «AM8 


mvde  **  vinho  710,  a  eaaad*  d*  •a**iWtimmm 
d*  pedreiro  e  carpinteiro  entra  800  e  800  réis. 

Conhecidos  este*  pratos,  e  «ibe»de««ft«ja«i6««M> 
ctos*>  do  zimbório  d»  «gmja  foi  d*d*<«m  —  mrliiln 
(«ia  somm*  de  1W:000#00»,  mae  «a  «awMWoa  carta- 
ram 800:0000000,  os  paramentos  «  atiam»  «ante  «oa» 
o  edifício  e  que  o  tbesouro  ícoo  eigotado—imagioe-se 
quantos  milhares  de  contos  de  réis  não  foram  precisos 
para  levar  a  effeito  a  obra  de  D.  Joio  V. 

Se  isso  ainda  não  for  bastante,  pense-se  em  que  a 
90»  neta,  D*  Maria  I,  despendes  6300  coaâoa  «om  a 
basílica  da  Estreita,  obra  muito  maia  poqnoaa  o  tee- 
se-ha  Mio  uma  idéa  da  enormíssima  despesa- do  «es- 
tante de  Mafra. 

Foi  este  habitado  até  D.  Joio  I  pelos  imentea  frades 
franciscanos,  já  ditos,  que  então  se  viram  sobatitaédee 
petos  cónegos  regrantes  de  S.  Agostinho,  senhora*  de 
largos  haveres,  a  qoe  se  devem  vários  melhoramento*, 
a  conclusão  da  bibliotneca  e  a  reedifloaçio  do  lanteroJm 
do  zimbório,  destruide  em  18  de  fevereiro  de  1705  «or 
om  raio,  qoe  deitou  peio  aunei  <da  abobada  abundantes 
lascas  de  pedra,  para  a  remonto  da»  qaaes  ferem-*** 
OMsarios  ans  poucos  de  carros. 

Mais  tarde,  considerando  a  devotíssima  D.  Maria  I 
qoe  o  convento  fora  por  om  voto  dedicado  a  fradattae- 
aores,  fez  reintegração  de*  r*ttgi*s«s  arraMdes,     ^ 

Os  cónegos  regrantes  volveram  a  S.  Vicente  de  Roca, 
d'aqoi  voltaram  ainda  ama  vez  para  Mafra,  *»<4034, 
por  ordem  de  D.  Pedro  IV,  e  m  pwmaaoatMBK  até 
qoe  foram  eitinetas  as  ordens  religiosas, 

O  edificio  devoluto  está  boje  »  cargo  das  obra*  sa- 
blicas  e  da  casa  real.  AqueJIa»  toem  aUi  um  «oesrra- 
gado  dos  relógios  e  earrímOes,  om  ajadautov  4**s  sor- 
vastes e  «m  exeeotanto  das  arnicas,  <m  carreto**** ; 
**j*  o»  almoxarife,  om  ajaadaiii»,  eiiearnpm**,  .«lo 
sabemos  com  que  direito  e  porque  razão,  da  btòtiatbate, 
ptramentOB  e  alfaias,  e  três  empregados  menores.. 
A  egreja  está  a  cargo  do  p*wdio4a  tocalM*i*w  AM 


fWtê  do  edMdto  ffaftecfcnaa»  o  tribunal  jiHiteisrki  e  orna 
escola  elemeéfar,  subsidiada  por  etnrei. 
-  Bata  dWtefo  e  subdivida,  que  nto  obedece»  a  um 
fptaw  de  aproveitamento  e  conservaçlo,  condigno*  At 
fefcftl,  acompanham  Mtacttferamente  ama  pronunciada 
ffictiria,  que  se  nota  ena  ioda  a  parte. 


Deixemos  isso,  com  que  adiante  nos  havemos  de  oe- 
par,  e  remontemos-nos  ainda  i  época  da  faustosa  e  no- 
tável edificação. 

O  sr.  Joaquim  da  Conceição  Gomes,  um  cavalheiro 
lie  muito  boas  intenções,  revelando  nos  seus  modos  e 
dizer  ttlustrada  educação  e  correspondente  delicadeza, 
contemporâneo  dos  últimos  frades,  de  quem  ainda 
chegou  a  receber  lições,  e  modernamente  simples  aju- 
dante do  encarregado  doe  carrilhões  t  apezar  de  perten- 
cer á  associação  dos  Jornalistas  e  Escriptores  Porto- 
guezes  e  á  dos  arcMteotos,  e  de  leccionar  latim  e  fran- 
*e*i'  gratuitamente  na  escola,  a  que  nos  referimes— è 
o  autor  da  única  descripçlo,  que  lá  se  vende  ao  viai- 
'tattl*. 

<  Dtonos  eMe,  como  devoto  benemérito  da  obra  de  D. 
João  V,  a  que  dedica  a  maior  veneração  eenthusiasmo, 
que  o  toxooso  monarcha,  cheio  de  gloria  e  orgulho,  ao 
despeifcse  dos  operários,  teavia  de  exclamar: 

— Ceando*  vetardes  a  vossas  casas,  bastará-  dizerdes 
—Eu  trabalhei  no  edifício  de  Mafra— para  que  se  res- 
ponda:—Eis  aqtóiMft  grande  artista. 

Deveria  ser  assim.  Mas  nès,  e  comoosco  todos  os  que 
-se  orgulham,  e  gloriam  de  pertencer  a  esta  época  de 
crenças  definidas,  Hberaes  e  utilitárias,  ao  lembrarmoe- 
nos  d*s  sarau»  de  OdiveMas,  das  ediflcaçíe»  da»  Neces- 
ttdides,  Betem,  Pegões,  Vendas  Novas,  capeila  dè  S. 
Joio  Baptista  e  Mafra,  não  esquecendo  as  custeis  «t- 
pedif&es  á  «oma— exumámos  com  verdadefettitagua: 


IH  M0T****àM8 

—Inconsequente  e  rmoom  beaterto  eqoetlei  -Mak<e» 
pregadas  riquezas  do  Braâl  a  dai  tediai  J  .     . 

D.  Joio  V,  que  aliás  revelou  qualidades  de  tomam 
empiebendedor  a  active,  ne  seu  titulo  4a-#Vdrttiai«% 
per  onde  se  espalhara»  es  numcroses  recam*ido<ec*- 
rio  portogoez,  entre  oa  engastes  da  mediana  vafer  aé 
tem  uma  pedra  rutilante  —  os  arcos  das  Aguas  Uvre*. 


II 


Parte  descriptiva.  — A  ffontaria.— As  taces  lah&áes. 
A  quarta  fechada.— 0  templo,  capellas  e  zimbório. 


O  edificio,  que  pretendeu  rivaliear,  e  rmlieaem  Wk- 
tissimos  pontos  com  o  Escoriai,  comprebeode,  oomnee- 
te,  convento,  egreja,  e  palácio;  é  rectangular,  e  oeajpa 
o  espaço  de  40,000  metros  quadrados,  segunde  eeedn 
o  ar.  Gomes,  a  que  ha  pouco  nos  referimos.  Affirmsadp 
porém,  que  a  frootaria  ae  estende  numa  4i*ianaar4e 
220  e  as  Unhas  lateraes  em  205,  temea  um  quaduoe 
de  45,000,  desprezando  as  fracções,  aguai  ae  do  mos- 
teiro bespanhol. 

Os  confrontos  far-se  tóo  mais  adiante» 

Oecupando  o  mesmo  piano  da  povoação,  fea-ee  o<coa- 
vento  em  mau  lugar,  que  vem  a  aer  o  eiteeaae  de  ver- 
tente, o  sitio  mais  baixo  da  tapada» ondenie  pede-ee- 
bresairo  seu  todo,  já  de  ai  muito  sombrio  e  menetene. 

Precisámos  de  chegar  perto  d'eUe,  para  o  observe* 
mos  na  sua  apparencia  deselegante  mas  correcta.     :  i 

A  (achada  do  templo,  terminada  por  duaa  tonaugeatá 


entravada  110  meio  da  frontaría ;  am  perwtik>  de  seis 
colamnas  jonicts  de  mármore,  dividiado  ires  grandes 
#eo$,  fechados  por  bellas  grades  de  ferro— fofma-lbe  a 
entrada  do  vestíbulo,  pêra  onde  se  soke  por  três  lanços 
de  escadas  também  de  mármore» 
*  Sobre  as  ooiumnas  do  arco  central,  a  varanda  da  casa 
de  beniiReêione,  balaustrada  de  mármore»  tendo  3  janeU 
las,  divididas  por  6  colomnas  compósitas,  ornados  os 
capiteis  de  anjos  e  flores,  e  na  janella  do  meio  as  esta* 
tuas  de  S.  Domingos  e  S.  Francisco,  trabalhadas  em 
calcareo  de  Garrara. 

Um  frontão  triangular,  bordado  de  mármore  brinco, 
tendo  no  tímpano  nm  meio  relevo  de  jaspe,  representan- 
do a  Virgem,  o  Menino  e  S.  António— termina  a  fachada 
do  templo,  rematado  por  grande  crnz  de  ferro. 

Às  torres,  de  bella  forma  pyraraidal  e  de  68  metros 
de  altura,  confundem-se  com  o  edifício  até  aos  terraços, 
tendo  no  entanto  três  corpos  distinctos  —  o  pórtico  da 
base,  que  dá  para  os  lados  exteriores  do  templo,  um 
arco  egual  ao  do  vestíbulo,  com  que  emparelha,  ladea- 
do de  estatuas  em  nichos,  coroados  por  um  frontão,  e 
ama  janettà  de  saceada,  no  mesmo  piano  do  palácio, 
aberta  entre  pflastras  e  colamnas  compósitas. 

lyahi  para  cima,  isto  é,  desde  o  terraço,  contam-se 
egualmente  três  corpos:  no  primeiro,  domina  a  ordem 
dórica,  e  appareee  o  mostrador  dos  relógios  muito  bem 
ornamentado  de  festàes  de  mármore,  com  ponteiros  de 
mais  de  dote  metros  de  comprido  e  letras  de  65  cerni 
metros,  marcando  o  do  norte  as  horas  em  romano  e  o  do 
sul  em  portuguez;  no  segundo,  guarnecido  de  columuas 
corinlhias,  estSo  «es  machinismos  dos  carrilhões;  no  ter- 
ceiro, formada  de  arcos  segurados  por  coiomnas  com- 
pósitas, os  stoos  para  o  serviço  do  coito. 

Na  cinfttba' dJeste  trtthno  corpo,  assenta  4  cúpula 
de  gracioso  effeito  rematada  por  uma  espbera,  aci- 
mtr'  de  quatro  grandes  pyramides,  que  partem  dos  ân- 
gulos. 
:  'Vohando  *  Achada  da  egnfa,  encaixilhada  pelas  tor- 


NOTA»* 


ree,  vemos  duas  Unhas  ego**,  que  mmptoêm* 
laria  do  edtficio,  e  termíoam  por  dois  torreões  quadre^ 
dos  de  oioeoenta  metros  de  altera,  cempashendendone 
todo  a  parte  do  palácio,  composto  de  troa  pavimentos» 
o  térreo  ou  de  estrada,  o  destinado  a  dependência*,  do 
pago  e  da  egreja,  e  o  terceiro  e  ultimo,  que  compre^ 
hendende  o  domínio  real  propriamente  dito»  de  cu*  fa- 
zem parte  integrante»  em  todos  oa  pavimentes,  os  dois 
torreões,  que  possuem  a  mais  subterrâneos  bem  inomi- 
nados, onde  íuocciooavam  as  casinhas. 

Os  torreões  de  fignra  enorme  teem  oa  altura  doa  ter- 
raçotf,  que  servem  de  telhados  a  toda  a  edificaçào,  e 
sio  accessiveis  por  vários  sítios,  orna  varanda  com  ba- 
laustres de  pedra,  donde  parte  a  copnb,  que  cobre  oa 
aposentos  e  camarás  regias,  situados  no  terceiro  pavi- 
mento,  de  ordem  compósita*  O  segundo  continha  cont- 
partímeotos  diversos  e  o  térreo  as  ucharias. 

Toda  a  frootaria  eomprehende  220  metros.. 

Em  linha  com  os  torreões,  proiongam-se  as  laces  la* 
teraes,  revestidas  dos  mesmos  três  pavimentos,  que- 
brados a  meio  por  ângulos  reentrantes,  que  continuam 
rectos  e  findam  em  dois  bons  corpos  de  mármore,  cujo 
fim  principal  è  o  de  illuminar  as  escadarias,  que  vão  aos 
terraços,  guarnecidos  de  piatibandas  de  metro  de  altura. 

N'esses  aagulos  começa  a  parte  do  convento,  que  dá 
volta  ao  resto  do  edifício,  do  mesmo  modo  que  o  pala* 
cio  dalli  para  traz,  ficando  por  isso  a  egreja  a  meio 
cercada  por  ambos,  mediando  a  conveniente  separaçta, 
que  a  toma  parte  distiocta. 

Ao  centro  das  linhas  interruptoras  ha  grandes  pórti- 
cos columnados  com  vestíbulos  de  mármore,  que  eaam 
aa  portarias  do  mosteiro,  ootaodo-se  na  lioba  4o  norte, 
por  differeoças  do  terreno,  ornas  jenetlas  «o  rea  do  chio* 
que  davam  para  os  subterrâneos,  destinadas  ás  ensi» 
nhãs,  muito  bem  providas  de  agua  em  todos  oa  pintos. 

O  total  de  cada  uma  d'essas  fachadas  prolongada 
n'um  comprimento  de  205  metros. 

A  quarta  fretada,  parallela.á  da  frente  e  íechodo 


m 


rectângulo,  em  cMkwm\Ga&o&m  a  cerca,  pocqaeojart 
dfan  fica  interiormente  toiro  ella  e  a  egreja,  trai  a  mais 
um  corpo  satteote,  sustentado  por  arearia  de  mármore» 
onde  se  compreheode  o  grandioso  espaço  da  bibliotheea, 
e  coma  iOS  melros  lougttudkiaes,  ou  menos  dezesete 
do  que  a  frente»  pelo  estreitamento,  que  parte  dos  angu» 
loa  reentrantes  das  fachadas  tateraes. 

Cortando  deste  lado  230  portas  e  jaaellas  exteriores, 
podemos  dar  a  todo  o  edéficio  numero  muito  superior 
a  mil»  que  são  oa  máxima  parte  dignas  d'elle* 

Vistas  assim  de  relance  e  a  traços  excessivamente 
ligeiros  as  suas  formas  externas»  um  tanto  sombrias, 
em  especial  pelos  talhados»  bem  entendida  e  commoda* 
mente  transformados  em  terraços  convexos»  por.  oade 
sempre  se  passeiou  e  transitou  livremente,  e  as  aguas 
da  chuva  se  embebem  boje  em  infiltrações  damnificado- 
ras  —  passemos  a  dar  do  interior»  com  a  mesma  conci- 
sio,  uma  któa  do  principal  que  por  lá  vimos,  n'uma  só 
visita  de  algumas  horas» 


O  vestíbulo  do  templo,  guarnecido  de  revestimentos 
colossaes  em  harmonia  com  o  seu  plano  geral,  apresen* 
t*»nos  o  chio  «*n  vistoso  xadrez  e  a  abobada  apaine- 
lada  de  marmeres  de  cores ;  quatorze  nichos  de  fundo 
aznl  e  frontões  regularas,  com  outras  tantas  estatuas  de 
procedência  italiana  e  material  de  fino  Garrara,  já  mi 
parte  esmurradas  peias  pedradas  de  garotos,  despedi- 
das atravez  das  grades  do  peristilo  com  o  pronunciado 
vandalismo  portuguez,  que  não  encontra  rival  com  íaoi- 
lidade  entre  gente  que  se  prese,  e  mesmo  talvez  entre 
o  gentio  de  qualquer  regiio  insulta. 

Algumas  aio  correctas»  em  especial  as  que  teem  aast 
«natura. 

A  porta  principal  das  Ires»  que  a  meio  do  vesliboJe 
d8o  entrada  para  o  templo»  sustenta  sobre  bailas  cotam- 


NOTA»  A,  ftàM» 


dm  caasbdao  *  compósitas  ma  fíreatto,  em  eojoeaaftro 
delicadamente  ornamentado  encrava  uma  lamina  cinca* 
lar  de  ja»pe,  representando  em  baixo  relevo  a  Virgem* 
o  Menino  e  S.  António,  tutelares  do  edifício. 

Transpostos  três  degrau»,  danos  ingresso  na  egreja* 
que  pela  correcçio  da  soa  architeckira  romana.  peU 
abundância  de  luz,  que  recebe»  como  corpo  distmeto  que 
é,-pela  soa  forma  de  cruz  latina,  de  qoe  a  nave  do  céu* 
tro  representa  a  haste  principal—  no»  impressiona,  desde 
logo,  mo»traodo«se-noa  elegante,  clara,  valiosa  e  mesmo 
magnifica* 

O  'entablameato  geral  é  de  ordem  compósita ;  as  Ao» 
btdas  e  os  pavimentos  de  mármores  nactenaes  branco»» 
azoes,  pardos,  amarello»  liso»  e  listados,  côr  de  roca 
mesclada  e  pretos,  formando  o»  do  centro  do  crusek» 
um  mosaico,  que,  visto  de  perto  e  especialmente  de 
longe  e  do  alto,  forma  um  tapete  de  primoroso  matiz* 

Sobre  a  porta  principal,  por  onde  entrámos,  assenta 
um  baixo  relevo  de  uma  execução  muito  corre&ayitom 
um  crucifixo  esculpido  em  meio  do»  paramentos  e  mais 
objectos,  necessários  á  celebração  de  uma  missa  de  pon- 
tifical, como  que  dispostos  ao  acaso;  aos  lados  duas  es- 
tatuas de  jaspe  — a  Religião  e  a  Fé;  por  cima  as  tribu- 
na» reaes,  a  eommanicar  com  o  palácio;  e,  como  re- 
mate, uma  espaçosa  janella  ornada  de  festões. 

A  nave  central,  sustentada  por  coUmna»  de  calcara» 
compósitas  e  caneladas,  sobre  soco»  de  mármore  côr 
de  rosa  com  vivo»  brancos,  è  alumiada  por  oito  jaftek 
las;  e  a»  lateraes,  chegando  ao  cruzeiro,  quebram  ali- 
nha recta,  e  torneamno  e  á  capella-mór*  abrindo  aos  lar 
dos  d'esta  duas  capei  las  collaieraes  com  portas  e  arca* 
ria»,  symetricamente  disposta». 

Do  cruzeiro  para  baixo  teem  estas  nave»  mais  três 
capella»  cada  uma,  lugares  separados,  ma»  que  eemtto- 
ftfoam  entre  si  por  soberbo»  pórticos  de  mármore  poli- 
do preto,  com  orpatos  de  cores  em  festões,  rematado» 
por  semi-circulo»  de  Garrara,  onde  em  baixos  relevos 
•se  recordam  passagens  da  eacrjptura. 


Apear  das  opiniões  diferentes  que  temos  ouvido,  os 
retábulos  dos  altares  d'essas  capellas,  a  cujos  angolas 
se  encostam  quatro  estatuas,  saindo  da  forma  usual  dia 
pintura  e  da  madeira  entalhada,  pois  são  de  fino  már- 
more branco  emolduradas  em  columnas  da.  mesma  espé- 
cie, côr  de  rosa— constituem  objectos  excepcionalmente 
distinctos  e  valiosos,  alguns  por  bepa  feitos  e  todos  por 
pouco  vulgares. 

A  primeira  capella  da  nave  direita  cbama-se  das  Vir* 
gens,  e  tem  no  retábulo  um  numeroso  grupo  de  figuras 
femininas,  entre  as  quaes  se  distinguem  a  rainha  Santa 
Izabel  de  Portugal,  a  da  Hungria  e  Santa  Clara,  acober- 
tadas pelo  manto  de  Nossa  Senhora,  que  se  destaca  do 
plano  superior  coroada  por  dois  anjos,  como  que  saí- 
dos d'entre  outros  envolvidos  em  nuvens. 

A  segunda,  denominada  dos  Confessores,  contem  a 
Virgem  com  o  menino  nos  braços,  cercada  de  anjos, 
um  dos  quaes  lhe  offerece  um  açafate  de  flores,  S.  Luiz 
rei  de  França,  S.  JoSo^S.  Bernardino  e  outros,  sendo 
este  ultimo  de  uma  correcção  admirável,  tanto  na  figura 
cwno  nas  roupagens. 

A  terceira  chama-se  dos  Martyres,  representados  em 
grupo,,  dominado  pela  Virgem  com  o  menino  entre  se- 
raphins,  portadores  de  coroas,  palmas  e  açafates  de  flo- 
res. 

Passando  á  nave  do  lado  esquerdo,  temos: 

A  primeira  capella,  a  do  Santo  Chri&to,  com  o  Se- 
nhor crucificado  entre  a  Virgem,  S.  João  e  as  ires  Ma* 
rias,  uma  das  quaes  se  abraça  á  cruz.  A  expressão  da 
dôr,  manifestada  em  lagrimas,  fornece  a  iodas  essas  fi- 
guras uns  toques  de  irreprehensivel  correcção,  que  se 
espalha  por  egual  em  todo  o  retábulo,  o  melhor  da  col- 
lecçâo. 

A  segunda  capella,  a  dos  Bispos f  apresenta-nos  o 
grupo  de  alguns  mais  notáveis,  a  Virgem,  o  Menino  e 
muitos  anjos,  sustentando  as  insígnias  d'aquelles  prín- 
cipes da  egreja.  São  muito  de  notar  as  roupagens  e  to- 
das as  rendas  que  as  guarnecem. 

29 


480  NOTAS  A  LÁPIS 


Na  terceira,  chamada  do  Rosário,  objecto  que  a  Vir- 
gem entrega  a  S.  Domingos,  vê-se,  alem  d'essas  figu- 
ras, S.  Francisco  a  orar  e  alguns  anjos,  d'entre  os  quaes 
se  destaca  o  principal  a  offerecer  um  cabaz  de  flores. 

Como  se  vê,  á  esculptura  d'esses  retábulos  presidiu 
ama  extrema  devoção  consagrada  á  Virgem,  cuja  ima- 
gem predomina  em  todos  elles. 

A  regularidade  proporcional  das  figuras,  as  suas  at- 
titudes,  os  vários  sentimentos  religiosos,  que  lhes  illu- 
minam  as  feições,  a  verdade  da  expressão  e  o  cinzela- 
mento  das  flores  e  demais  accessorios— tomam-nos  seis 
pecas  de  arte  de  subido  valor,  onde  entra  o  mérito  de 
serem  todos  feitos  em  Mafra,  sob  a  direcção  do  estatuá- 
rio Alexandre  Giosti,  que  creou  alli  uma  verdadeira  es- 
cola, d'onde  sairam  bons  discípulos,  no  numero  dos 
quaes  se  conta  o  tão  conhecido  e  babilissimo  Joaquim 
Machado  de  Castro. 

* 
*      • 

O  magestoso  cruzeiro,  formado  por  quatro  arcos  com 
as  voltas  guarnecidas  de  flores  em  alto  relevo,  tem  ao 
lado  direito,  fechada  por  grades  de  ferro  ornamentado 
de  bronze,  feitas,  como  as  demais  obras  d'este  género, 
em  Antuérpia  e  Liege— a  capella  da  Coroação  com  al- 
tar erguido  entre  duas  columnas  compósitas  de  már- 
more vermelho,  apresentando  no  retábulo  de  jaspe  a 
coroação  da  Virgem,  e,  no  candelabro,  suspenso  da  abo- 
bada, sete  lâmpadas  pendentes  da  bocca  de  outras  tan- 
tas serpentes,  entrelaçadas  em  ramagens. 

As  duas  portas,  que  communicam  com  o  prolonga- 
mento lateral,  sustentam  umas  tribunas  reaes,  cercadas 
e  cobertas  de  baldaquinos. 

Ao  lado  esquerdo,  a  capella  da  Sacra  Família,  re- 
presentada egualmente  em  retábulo  de  jaspe,  entre  doas 
columnas  de  mármore  côr  de  rosa ;  as  mesmas  portas 
coroadas  de  tribunas  e  um  candelabro  de  três  tampa- 
das. 


MAFRA  461 

À  enquadrar  as  doas  capellas,  apparecem  quatro  gran- 
des órgãos,  apoiados  em  coretos  sustidos  por  columoas 
jónicas  de  mármore,  quatro  grandes  objectos  de  excel- 
lente  madeira  do  Brazil  talbada,  polida  e  ornamentada 
de  bronze. 

Alem  das  tribunas  mencionadas,  contam-se  mais  qua- 
tro nos  ângulos  interiores  do  cruzeiro. 

A  capella-mór,  collocada  no  extremo  da  cruz  latina 
que  forma  o  templo,  era  fechada  por  grades  de  ferro, 
que  foram  modernamente  substituídas  por  balaustres  de 
calcareo  variegado,  e  occupa  192  metros  quadrados; 
tem  dois  órgãos  superiores  no  trabalho  de  ornamentação 
emblemática,  nos  bronzes  dourados  a  fogo  e  em  todos 
os  accessorios  aos  quatro  do  cruzeiro;  mais  duas  capel- 
las collateraes  com  bellos  painéis,  columnas  e  ornatos 
de  mármores  de  cores,  duas  valiosas  bancadas  de  ma- 
deira do  Brazil  e  quatro  tribunas  da  mesma  pedra,  que 
se  communicam  entre  si,  curiosamente,  por  corredor, 
cavado  nas  paredes,  dando  volta  ao  templo,  e  termi- 
nando na  galeria  do  palácio. 

Entre  os  retábulos  de  mármore  das  capellas  lateraes 
ba  um,  cujo  desenho  é  copia  da  Annunciação  de  Cor- 
regio. 

O  aliar,  coroado  por  frontão  que  lhe  serve  de  bal- 
daquino,  tem  sobre  elle,  entre  dois  anjos  postos  em 
adoração,  um  magnifico  crucifixo  de  jaspe,  que  mede 
quatro  metros  e  dois  decimetros  de  comprido,  mos- 
trando no  entretranto,  pela  altura  a  que  está,  o  vulto  da 
imagem  em  tamanho  natural. 

O  quadro  do  altar  è  uma  pintura  da  Virgem,  o  Afe- 
mino e  Santo  António,  encaixilhada  em  rica  moldura 
de  mármore  preto  guarnecido  de  metal,  feito  por  Tre- 
visani,  autor  de  um  quadro  que  está  no  Louvre,  e  da 
Crucificação,  sua  obra  prima,  existente  em  For  li,  na 
Balia. 

Sendo  a  feição  predominante  das  capellas  principaes  os 
retábulos  de  bello  mármore,  aquelle  quadro,  por  muito 
merecimento  que  tenha,  destoa-nos  alli  onde  quizera- 


452  NOTAS  A  LÁPIS 


mos  contemplar  a  melhor  e  mais  colossal  das  esculpta- 
ras  sacras. 

E  não  dos  fallem  na  monotonia,  que  moitas  vezes  re- 
sulta da  uniformidade,  porque  ella  deixa  de  existir  na 
arte,  desde  que  nos  moldes  se  encontra  a  variedade  dos 
assumptos. 

Que  o  digam  as  galerias  de  todo  o  mundo  I 

Voltando  ao  cruzeiro»  paremos  a  olbar  ainda  uma  vez 
para  o  precioso  mosaico  do  pavimento,  e  ergamos  a  ca- 
beça para  o  magestoso  zimbório,  que  o  illumina. 

Os  florões  dos  arcos  e  umas  poucas  de  misulas  sus- 
tentam a  cimalba  circular,  gradeada  de  ferro,  que  for- 
ma uma  bella  e  espaçosa  galeria,  aonde  vamos  su- 
bir. 

Ahi  assentam  os  socos  de  mármore  vermelho,  base 
do  zimbório  e  sustentáculo  de  um  segundo  corpo  octo- 
gono,  revestido  de  16  columnas  corinthias,  caneladas, 
de  mármore  egual  ao  das  pilastras  intermédias,  que  se- 
guram o  enlablamento  da  cúpula,  considerada  o  terceiro 
corpo  e  o  mais  valioso. 

As  janellas,  abertas  em  todos  os  lados  do  octogono, 
tem  de  altura  mais  de  4  metros,  na  parte  inferior  algu- 
mas cornucopias,  na  superior,  como  fecho/uma  cabeça 
de  anjo,  cercada  de  arabescos. 

Do  entablamento  acima  dito,  partem  8  festões  de 
mármores  de  cores,  que  vão  terminar  no  annel  aberto 
da  abobada,  onde  se  apoia  o  lanternim  final,  quarto  e 
ultimo  corpo.  Estas  faxas  da  mais  bella  folhagem,  en- 
tretecida de  bagas  pretas,  apresentam  nos  intervallos 
painéis  guarnecidos  de  novos  florões,  e  completam  uma 
combinação  de  mármores  e  cores  de  effeito  surpreben- 
dente  e  execução  primorosa. 

Sobre  o  annel  da  abobada  fórma-se  nova  galeria»  para 
onde  se  sobe  por  10  degraus,  e  ergue-se  o  lanternim, 
guarnecido  interior  e  exteriormente  de  columnas  jóni- 
cas e  alumiado  por  8  janellas,  correspondentes  ao  seu 
formato :  ao  centro  da  sua  cúpula,  uma  pomba,  symbo- 
lisando  o  Espirito  Santo,  abre  as  azas  em  formosa  atti- 


■Anu  483- 

tilde,  e  termina  esta  construcção  tio  elegante  como  gran- 
diosa. 

Os  dois  effeitos  mais  notáveis  de  perspectiva  são — 
o  que  se  gosa  da  primeira  g* leria,  olhando  para  o  pa- 
vimento do  cruzeiro,  onde  nos  parece  brilhar  o  mais 
faustoso  dos  tapetes  orientaes ;  e  d'aqui  para  cima,  es- 
pecialmente quando  observámos  a  poiqba,  que  nos  appa- 
rece  no  seu  tamanho  natural,  perfeito  è  correcto,  quando 
mede  1  metro  e  5  decimetros  de  uma  á  outra  extremi- 
dade das  azas. 

Nota-se,  como  já  dissemos,  o  mesmo  effeíto  no  Chrlsto, 
que  se  eleva  sobre  a  capella-mór,  em  todas  as  guarni- 
ções e  nas  próprias  banquetas,  cujos  castiçaes  são  enor- 
mes. 

Às  velas  de  alguns  tocbeiros,  que  serviam  em  certas 
solemnidades,  teem  a  grossura  de  uma  perna,  e  o  apa- 
gador  é  maior  do  que  a  copa  de  um  chapéu. 

—  Para  alumiar  um  Chrísto  e  um  Espírito  Santo  — 
d'aquelle  tamanho,  n'uma  egreja  de  semelhantes  dimen- 
sões, só  uns  tocbeiros  d'aquelle  feitio  —  dizia  graciosa 
e  maravilhadamente  um  dos  nossos  companheiros. 

—  Alguns  dos  modelos  d'estas  figuras  gigantescas— 
respondeu  o  sacristão— vão  vel-os  na  sacristia.  Pois  aqui 
ha  tempos  um  visitante  inglez  não  acreditou  nos  mode- 
los, e  deu-nos  bastante  trabalho,  porque  só  se  conven- 
ceu depois  de  ir  medir,  por  suas  próprias  mãos  e  no 
próprio  lugar,  as  obras,  que  tamanha  admiração  lhe 
causaram. 


4H  NOTAS  A  UM8 


m 


DiTiiões  annexas.— Alfaias  e  paramentos.— Corredor  das  au- 
las.— Sala  dos  actos.— Casa  do  capitulo— 0  campo  santo.— 
Refeitório  e  cosinha.— Lavatório  e  enfermaria.— Portaria- 
mor.— Escadarias,  cellas,  eipulgatorioi  e  jardim. 


Seria  ama  looga  e  enfadonha  tarefa  procurar  descre- 
ver oe  subterrâneos,  que  cercam  as  capeUas  lateraas, 
os  corredores,  asas  de  lavatório  e  arrecadação,  escadas, 
oratórios,  saguões  e  desvios,  que  se  encontram,  agglo- 
meram,  e  ramificam,  aos  lados  da  egreja  e  junto  do 
cruzeiro,  como  partes  campooentes  e  harmónicas  do 
grande  templo,  no  espaço  que  d'alli  segue  para  o  coo* 
vento. 

Occupando-Dos  apenas  do  mais  importante,  se  ò  que 
na  edificação  de  Mafra  existem  cousas  inteiramente  des- 
pidas de  importância,  sairemos  pelo  pórtico  de  mármo- 
re preto,  junto  á  capplla  da  Conceição,  uma  das  colla- 
teraes,  a  que  nos  referimos  de  passagem,  e,  penetran- 
do n'um  corredor  xadrezado  e  claro  com  as  paredes 
apaioeladas  de  calcareo  de  cores,  chegaremos  á  sacristia. 

Gontiguamente  passámos  á  casa  do  lavatório,  que 
tem  mesa  de  mármore  côr  de  rosa  ao  centro,  para  on- 
de pende  um  candieiro  de  metal  com  quatro  lumes,  e 
aos  lados  quatro  urnas  com  differentes  e  minuciosos 
lavores  e  seis  torneiras  de  bronze  cada  uma;  em  segui- 
da á  capella  das  Graças,  onde  se  guardam  os  modelos 
dos  retábulos  e  estatuas  da  egreja;  depois  á  casa  da 
Ar  cação,  onde  ha  a  notar  uma  arrojada  escadaria,  que 
vae  findar  junto  á  abobada,  dando  accesso  a  varias  ar- 
recadações; e  por  ultimo  ao  deposito,  chamado  caga  da 


*****  m 

fazenda,  dividido  em  compartimentos  cheios  de  arma-, 
rios  e  gavetões,  que  guardam  alfaias,  paramentos  e 
utensílios  do  culto,  n'uma  profusão  admirável. 

Vendo  de  passagem  os  ca&tiçaes,  cornucopias  e  vasos 
de  bronze  modelado  e  esculpido  da  primeira  secção» 
iremos  a  segunda,  onde  se  nos  deparam  o  círio  paschal, 
o  candieiro  das  trevas  e  as  serpentinas,  cousas  enormes 
e  massiças  do  mesmo  tnetal,  banquetas,  lanternas,  apa- 
gadores, relicários,  tburibulos  e  navetas,  estas  ires  ul- 
timas espécies  com  ornamentações  abertas  ou  releva- 
das, representando  medalhões,  grinaldas,  festões  de  fo- 
lhagens e  flores  de  um  subido  valor  artístico,  onde  en- 
tra inquestionavelmente  a  chamada  banqueta  grande, 
ornada  de  folhas  de  videira  e  espigas  de  trigo  levanta- 
das,  cujos  castiçaes  teem  o  comprimento  de  3  metros 
e  5  centímetros,  assentam  no  altar  sobre  duas  cariaii- 
des,  e  foram  feitos,  ao  que  se  sabe»  no  nosso  arsenal 
da  exerâlo  por  João  José  de  Aguiar. 

Os  maiores  apagadores  de  latão  lavrado  em  relevo» 
apalpados  pelo  nosso  grande  poeta  Castilho,  que  não 
podia  vel-os,  fizeram-lhe  exclamar  ha  annos,  segundo 
lá  se  conta:— Oh!  são  estes  certamente  os  apagadores 
do  sol  1 

Passapdo  a  outras  casas,  veremos  sob  a  impressão  de 
um  espanto  indizível,  votado  ás  riquezas  materiaes  e  ar- 
tísticas que  nos  apresentam  —  dóceis»  porteiras,  pavi- 
lhões, sanefas,  pálios,  almofadas  de  gorgorão  è  damasco 
bordados  a  Go  de  seda  de  Itália,  e  roupas  brancas  da 
linho  com  rendas  do  22  centímetros  em  peças  diversas, 
que  se  contam  aos  centenares. 

Para  todas  as  solemnidades  se  encontram  paramentos, 
próprios  nas  cores  e  nos  ornamentos,  O  destinado  á 
festa  de  Corpus  Christi  compoe-se  de  146  peças  de  gor- 
gorão e  damasco  brancos,  na  maior  parte  minuciosa- 
mente bordados  a  torçal  amarello.  Ha  mais  dois  da 
mesma  eòr,  um  de  gorgorão  e  outro  de  selim,  egual- 
meule  bordados;  um  roxo  de  selim  meio  bordado  e  ou- 
tro liso  da  mesma  cor;  dois  em  condição  egual  de  selim 


ttt  NOTA  à' LÁPIS 


verde;  dote  pretos  do  mesmo  estofo;  e  dois* 

ambos  bordados,  sendo  um  d'eiles  tom  flores  de  Hz 

soltas. 

A  todo  isto  juntam-se  os  objectos  espeeiaes  roxos  e 
pretos»  destinados  á  semana  santa,  nm  graudisftimo  na- 
moro de  casulas,  estolas,  bolsas,  manipules,  frontaes  e 
mats  pertences. 

Os  dóceis,  as  porteiras,  os  espaldares,  os  pálios  e  os 
pavilhões  dos  sacrários,  bordados  e  lisos,  sio  em  pra- 
fbsSo  correspondente  a  esse  gigantesco  desperdício  de 
dinheiro,  que  è  ao  mesmo  tempo  nm  acervo  notável  de 
btiHezas  de  arte. 

O  paramento  ornado  de  flores  de  liz,  ires  dóceis  so- 
berbamente bordados  e  franjados  de  retroz,  xm  jpaffD 
de  seda  branca  e  nm  pavilhão  de  gorgorlo  bordado  da 
mesma  côr— sSo  de  origem  franceza;  qoast  tudo  omfais 
pertence  a  bordadores  de  Génova  e  ttitio. 

Dizemos  qnasi  todo,  porque  algoma  cousa  existo'  de 
Industria  portugueza,  distingoindo-se  um  frontal  do  le- 
fim  encarnado,  bordado  por  um  frade  que  segtiv  oe 
modelos  italianos. 

Esta  peça  mereceu  as  honras  da  estampa  tio  cátalbgo 
da  exposição  de  Arte  Ornamental— essa  feito  glorioso 
do  Portugal  moderno,  tio  glorioso  quanto  ignorado  peta 
desorganisaçâo  preliminar— e  fez  parte  de  outros  dtyfe» 
ctos  que  lá  figuraram,  e  deixámos  apontados. ; 

Descrever  minuciosamente,  catalogar  por  sua*  ordem, 
valor  real  e  estimativo  todos  os  objectos  de  bronze, 
latão,  damasco*  linho  e  seda,  alfaias,  modelos  e  pari- 
mentos,  que  atulham  as  estantes,  armários  e  gavetas 
das  casai  dê  fazenda  do  convento  de  Maírt— serittiMrèfa 
impraticável  para  um  simples  visitante  e  mesmo  ftt* 
um  homem  só. 

Se  rfeste  paiz,  os  sentimentos  artísticos  e  de  bom 
gosto  nio  fossem  coisas  meramente  nominaes  em  grande 
parte  dos  indivíduos  oficialmente  nomeados  para  catytt, 
que  representam  a  arte  e  o  bom  gosto,  desde  mofo 
que  isso  estaria  feito;  haveria  muito  que  tu*r  aquflto— 


lArtu  -  km 

parameotos,  rouparias,  modelos,  utensílios  e  todos  os 
objeelos  moveis  comporiam  aos  milhares,  que  sSo,  uma 
riquíssima  e  nío  menos  curiosa  collecção,  exposta  nos 
salões  vastos  e  ermos  do  convento  de  Mafra,  porque  só 
fesoé  bastante  para  dou  verter  aquèlle  édifickrn'uiá  mu- 
seu Importante  e  valioso,  paga  a  entrada  pelo»  vfeitaa- 
tes,  que  concorreriam  gostosamente,  como  se  fez  lá 
fora,  para  as  despesas  de  guarda,  vigilância  e  cmser- 
vaç5o,  tio  necessárias  alli,  onde  o  desmazelo  espalha 
por  tftda  a  ftarte  a  sua  acção  condemnavel  e  destruidora. 

Se  a  magestosa  torre  de  Belém,  hoje  em  que  nada 
vale  para  a  defeza  de  Lisboa,  deveria  estar  convertida 
n'um  museu  de  antiguidades' militares,  com  mais  mio 
ainda  as  salas  principaes  do  mosteiro  de  Mafra  deviam 
abrigar  lodos  os  objectos,  que  lá  estão  a  monte,  em  ex- 
posição permanente,  bem  regulada  e  bem  distribuída. 

E  diremos  com  mais  razão  ainda,  porque  a  torre  de 
Belém  nada  encerra,  e  Mafra  tudo  tem  —  egreja,  alfaias, 
modelos  e  paramentos,  que  podem,  repetimos,  consti- 
tuir um  valioso  museu. 

Uma  analyse  rápida  de  todos  aquelles  adereços»  que 
a  tradição  diz  terem  custado  a  D.  João  Y  uma  somma 
egual  á  da  sua  edificação  monumental,  onde  tudo  é  gran- 
de, produzia-nos  um  estonteamento  muito  próximo  da 
embriaguez. 

Ê  preciso  saberão  que,  alem  dos  cálices  e  custodias, 
a  ordem  franciscana  n5o  podia  usar  metaes  preciosos. 

— Pois  bem— protestou  o  rei  fundador— eu  vos  darei 
bronzes,  gorgorões  e  sodas,  que  valham  tanto  como 
ouro  do  melhor  e  mais  custoso. 

E  cumpriu.  Os  bordados  lisos,  cheios  ou  relevados, 
quando  olhámos  mesmo  a  considerável  distancia  para 
os  paramentos,  parecem-nos  lhama  de  finíssimo  ouro; 
e  os  bronzes  dos  castíçaes  e  outros  objectos,  pelos  seus 
lavores,  valor  material  e  artístico,  deveriam  custar  com 
os  paramentos  quantidades  do  metal  precioso  quasi 
eguaes  ao  seu  peso. 

Nem  mais  nem  menos. 


NOTA*  4  Mi» 


* 
*         * 


VeUando  i  sacristia»  *  subindo  pela  ampla  eaoa daria, 
feiia  como  as  demais  da  formidáveis  peças  inteiriças  de 
calcarão  branco,  chegámos  ao  soberbo  corredor  im  ou» 
la$,  cqja  extensão  de  487  metros,  por  uma  largara  de 
5»  se  acha  boje  interceptada  por  tapumes.  Aa  sul  está, 
a  seta  4*  acto$,  occupaodo  tomo  orna  das  melborea  o 
eapago  de  235  metros  quadrados:  tem  aos  lados  duas 
baixadas»  erguidas  por  três  degraus,  e  guarnecidas  da 
balaustre*  de  mármore;  ao  topo  a  cadeira,  magisUaà* 
abeiKO  de  uma  legenda  latina,  encimada  per  foltegeae 
de  mármore  de  cores;  e  em  frente  um  bem  quadro  de 
seis  metros  de  altura  com  moldura  de  mármore  preto». 
representando  a  Virgem,  que  tem  nos  braços  o  aaeniuo 
e  aos  pés  uma  serpente»  em  euja  bocca  a  divina  oreeflG»* 
mette  e  extremidade  da  crua»  segura  nou»  das  sua» 
mios.  i 

£  piuture  romaua  do  cavalleiro  Sebastiio  Conca.  • 

A  cosa  do  capitulo,  alumiada  por  28  janellas,  iotei* 
rameoie  despida  de  lavores,  é  notável  pelo  seu  espaço, 
peta  altura  da  sua  abobada  e  sobretudo  por  sua  fórma 
ellipUca»  que  mede  no  seu  eiio  maior  26  metros,  e  r** 
pretas,  es  vozes  em  ecco  distfoeiissimo.  Tem  sobre  a 
porta  da  entrada  uma  tribuna»  e  no  ebio  um  beUew* 
dnsa»  como  o  precedente* 

Ao  norte  do  corredor  temos  o  Cawpo  Senão»  ou  de*: 
posito  dos  cadáveres  dos  frades,  com  286  metros,  que» 
drado*.  Na  capella»  duas  entupias  com  fmtfa4aj»P*- 
more  preto,  bases  e  capiteis  amaretloa,  harapems**  m» 
cores  como  xadrez  dopavimeofco,  e  enquadrem  eaHac, 
onde  figura  a  Ceèa.  teia  de  assumpto  e&travagpnt»  per», 
semelhante  local,  pintada  alli  mesm<H>eMíWçez  *•***■ 
Quillard,  discípulo  de  Wateau*  Esta  <5oric#a.  extern 
as  campas  sepulcraes  fora  da  capella,,o  peftiopps  dttfri 
grandes  tribunas  de  mármore  bfaopQ.  .      *»  .  •   .' 


Do  mesmo  lado  norte  encontrámos  o  Refeitório,  des- 
guarnecido de  ornatos,  mas  formado  de  um  rectângulo» 
que  se  estende  no  considerável  espaço  de  463  metros 
quadrados. 

E  insistimos  em  algumas  d'estas  medições  para  que 
se  ajuíze  das  nossas  palavras,  quando  afirmámos  que 
no  mosteiro  de  Mafra  tudo  é  espaçoso  e  grande. 

Este  salão  é  alumiado  por  20  janellas,  tem  ao  centro 
e  »aoa  lados  36  mesas  quadriloogas  de  4m,5  de  compri- 
mento, todas  de  madeira  do  Brazil,  com  lugares  para 
300  talheres;  no  topo,  uma  mesa  atravessada,  sobre 
elia.  um  painel,  representando  a  C0ta,,e*  meio  das  li* 
nbas  lateraea  dois  pulpitos9  para  a  leitura  do  evangelho 
e -predicas,  durante  a  refeição.    . 

A  luz,  á  noite,  era  fornecida  por  9  candieiros  de  la- 
tio  de  4  lumes  cada  um,  suspensos  da  abobada. 

A  coeinha  toda  azulejada,  communicando  e  prolongan- 
do*«e  com  o  refeitório,  mede  220  metros  quadrados. 
Tem  nas  extremidades  duas .  grandes  chaminés,  fo- 
gões, engenhos  para  o  levantamento  dos  caldeirões  e 
pias  de  granito;  ao  centro  quatro  mesas  de  wttoareo 
branco. 

A  este  ligam-se  muitos  e  variados  compartimentos 
para  depósitos  geraes  das  ucharias,  divididos  por  exten- 
sas corredores  de  fácil  communicação,  saguões*  escada- 
rias; que  levam  ás  cellas  e  aos  terraços,  numa  rede  ad- 
miravelmente alumiada  e  bem  distribuída. 

No  topo  do  refeitório  fica-nos  a  casa  De  profundis* 
com  242  metros  quadrados,  e  em  seguida  a  do  Jmwío- 
rio,  de  forma  octogona,  guarnecida  de  lavatórios  de  már- 
more e  torneiras  de  bronze, 

É  ainda  ao  norte  do  corredor  das  Aulas  que  Dcam  a 
Enfermaria  e  as  casas  dos  convalescentes,  para  onde 
se  soba  por  escadaria  egual  ã  que  communica  com  o 
mesmo  corredor,  ao  vír-se  da  sacristia.  A  enfermaria, 
que  é  a  mais  vasta,  occupa  um  quadrilongo  de  28á  me- 
lros quadrados,  está  cercada  de  beliches,  e  tem  no  topo 
principal  um  altar,  ornamentado  com  duas  columnas  de 


MOTAS  AfAFtt 


mármore  vermelho,  um  quadro  da  Virgem,  3.  José  e 
anjos,  festões  de  bom  acabamento  e  ura  frontio,  como 


* 
*       # 

Passaremos  agora  ao  que  se  ebama  a  yortaria-mór 
do  convento,  situada  na  face  lateral  do  sul,  por  ser  uma 
das  soas  portas  que  mais  nos  chamam  a  atteoçáo,  e 
d9abi  aos  dormitórios. 

Um  bom  pórtico  de  mármore,  erguido  exteriormente 
sobre  quatro  degraus,  e  fechado  por  cancellas  de  ferro, 
dá  para  o  vestíbulo  vasto,  de  ornamentaçio  simples, 
pavimento  xadrezado  e  lados  gaaruectdes  de  bancos 
também  de  mármore. 

Pela  porta  do  íondo,  entrámos  n'ura  pequeno  corre» 
dor,  e  passaodo  por  outra  meHo  bem  festonada,  che- 
gámos a  om  salio  de  474  metros  quadrados,  pouco  en- 
feitado, com  abobada  em  arcos,  que  vio  apoiar-se  em 
dmatba  ornada  de  filetes,  chamada  a  com  4$  entrada 
da  portarianuór,  e  ladeada,  como  tal,  de  bancos  de  ma- 
deira das  terras  de  Santa  Cruz. 

O  pavimento  obedece  ao  gosto  do  anterior,  e  as  ca- 
beceiras apresentam  dois  bellos  qaadros  da  escola  ro- 
mana, em  moldaras  de  mármore  azai  —  A  Virgem, 
Menino  e  Santo  António,  assumpto  já  tio  repetido,  obra 
do  portagaez  Ignncio  Bernardes  —  o  Cbriato  irado»  a 
Virgem  sopplicante,  ao  pé  de  S.  Domingos  e  8.  Fran- 
cisco ajoelhados  em  oração,  valiosa  pintura  do  italiano 
Pedro  Manehi. 

Sio  muitas  as  escadarias,  que  dSo  accesso  aos  dife- 
rentes lugares  e  pavimentos  do  convento;  a  principal 
porem,  a  mais  notável,  om  soberbo  exemplar  do  gene* 
re,  é  a  que  vamos  encontrar,  saindo  da  casa  de  entra- 
da. Gompoem-na  varies  lanças  de  9  degraus  de  mar* 
more,  inteiramente  ladeado  de  balaustres  da  mesma  pe- 
dra, partindo  em  sentidos  oppostos,  eocontrando-se  nee 
patamares,  alumiados  per  grandes  janelias. 


HAF1U  kêi 


Duas  lanternas,  colloeadas  nos  terraços,  d'oade  par- 
tem cadeias  de  ferro,  que  segaram  dois  volumosos  can- 
dieiros  de  metal,  acabam  de  dar  uma  luz  abundante  a 
todo  este  magnifico  corpo,  com  o  qual  communicam  o 
pavimento  térreo— onde,  alem  de  outras  divisões,  exis- 
tem os  cárceres  —  e  os  três  que  se  lhe  seguem  oceu- 
pados  pelos  dormitórios. 

Estendem-se  estes  em  corredores  de  170  metros  de 
comprido,  ladeados  de  celtas,  as  melhores  e  mais  espa- 
çosas que  temos  visto,  pois  medem  6  metros  de  longo, 
e  sSo  todas~aclaradas  por  uma  boa  janella.  A  disposi- 
ção d 'estes  corredores,  as  suas  communicaçfós  fáceis  e 
correctas,  em  todos  os  andares,  o  local  das  escadas,  a 
distribuição  das  sentinas  e  os  próprios  espulgatorios — 
obedecem  a  uma  combinação  perfeita,  irreprebensi- 
vel.  : 

Teem  originalidade  os  taes  espulgatorios;  sSo  um  cu- 
rioso appendice  a  tudo  quanto  a  imaginação  fradesca 
inventava  para  sua  coaamodidade  e  regalo;  e  todos  os 
podem  ver  em  ead#  um  dos  corredores,  ao  parar  diante 
de  umas  casttas,  que  em  lugar  de  soalho  mostra»  umas 
grades  de  pau,  aonde  os  religiosos  sabiam  para  sacudir 
a  roupa,  ou  mais  ctaramento  as  pulgas,  como  indica  o 
Dome. 

Os  que  tanto  se  emportevam  com  a  safraçf  o  das  al- 
mas, em  geral,  e  com  o  bem-estar  do  seu  corpo,  em 
particular,  não  se  podiam  esquecer  de  um  condimento 
delicadíssimo  para  a  vista  e  para  o  ol fato— um  jardim 
ioterior,  que  se  disfructa  das  ptatibandas  dos  terraços 
e  das  346  janellas  e  portas,  applicadas  ás  jceHas  e  á  bi- 
bliotbeca. 

Compõe-se  o  jardim,  estabelecido  a  meio  do  conven- 
to, de  um  quadrado  de<  00  metros*  por  baoda;  8  ruas 
convergentes  ao  centro,  onde  brttba  um  lago;  cascatas 
j&m  forma  de  concha,  vasos  e  assentos  lateraes. 

Concluiremos  n'este  ponto  as  rápidas  notas,  dedica- 
das á  parte  monacal  d'esta  grandiosa  fabrica,  habitada 
até.  Dh  José  por  300  <faaneif  casts,  e  em  seguida  pelos 


MS  MOftfSl  LÁPIS 

cónegos  regrantes  de  S.  Agostinho,  como  afras  fica  di- 
to; om  mundo  de  edtflcaçlo,  qoe  só  o  tradicional  des- 
leixo, ignaro  e  vil,  dos  nossos  governantes  pode  deixar 
sem  aproveitamento  condigno. 


IV 


O  palacie.- tareias.— Capalla  raaL— DihUetfceaa 

Carrilhões  a  terraços.  —  Aproveite-se  o  **e  é  MtavsL 

Copfroitos  entre  Mafra  e  o  EscariaL 


A  entrada  principal,  destinada  á  parte  oocopada  pelo 
palácio,  faz-se  por  dois  pórticos  dóricos,  qoe  dSo  para 
os  vestíbulos,  cobertos  de  abobada,  sustentada  em  ar- 
cos, e  inteiramente  egoaes  nas  soas  proporções  e  feitio. 

Na  face  lateral  de  cada  om  começa  a  sumptuosa  es- 
cadaria, repartida  em  quatro  lanços  de  24  degraus  de 
mármore,  muito  bem  Hloroinados  por  janellas  de  largas 
dimensões. 

Três  lanços  dio  para  o  átrio,  quartos  de  emprega- 
dos, enfermaria  e  capei  la,  conforme  os  aodarer,  e  o  ul- 
timo abre  de  um  lado  para  umas  escadas,  que  sobem 
aos  mtziamnos,  no  ultimo  pavimento,  pequenas  casas 
e  corredores  sem  importância,  collocados  discreta  e  ar- 
tisticamente, ao  que  parece,  para  apoio  das  abobadas 
dos  terraços;  e  do  outro  lado  por  três  portas  egoaes 
para  o  palácio  propriamente  dito,  que  está  em  commu- 
nicação  directa  com  a  egreja,  pelas  tribunas  e  corredores. 

Chegando  abi,  e  caminhando  até  ao  ponto  extremo, 
hmça-se  a  vista  sorpreza  para  uma  importantíssima  Hnha 
de  salas,  que  se  prolongam  por  toda  a  frente  do  edifi- 


cio,  na  extensão  de  120  metros,  e  obtena-se  «  *oo§r- 
mação  plena  da  soa  extraordinária  grandeza. 

Ao  centro  desta  enorme  galeria,  está  a  cada efetette- 
dictione,  a  melhor  do  palácio,  de  174  metros  quadrados, 
abobada  apainetada  de  mármores  de  cores  em  belBssi- 
mo  mosaico  e  apoiada  em  pilastras  lateraes,  pavimento 
a  rivalisar  com  a  abobada,  janellas  rasgadas,  tendo  a 
do  meio  6  metros  de  altura  e  a  famosa  varanda  assente 
na  pedra,  que  em  4  de  largura  e  8  de  comprimento 
preenche  o  espaço  de  32  metros  quadrados,  e  gastou 
6  dias  a  vir  do  Pêro  Pinheiro,  puxada  por  tOO  juntas 
de  bois. 

No  lado  da  egreja,  tem  a  sala  e  as  tribunas,  que  de- 
frontam com  a  capella-mór;  nos  ângulos  internos  duas 
escadas  dando  para  os  corredores  cavados  na  parede, 
que  levam  aos  órgãos,  ás  tribunas  do  corpo  do  templo 
e  ás  capellas  do  cruzeiro,  n'um  abraço  de  architectura 
muito  para  ver  e  admirar. 

Gomo  vestíbulos  desta  balia  sala,  ficam^be  aos  lados 
dois  compartimentos  octogonos,  egualmente  xadrezaéefc, 
o  junto  d'estes  duas  escadas  concêntricas  ás  do  átrio, 
por  fón&a  tal  e  tão  curiosa  que  dois  indivíduos,  subin- 
do ou  descendo  para  as  naves  lateraes  do  templo,  aon- 
de vfto  ter,  podem  conversar,  sem  se  verem. 

As  outras  salas  vastas  e  nuas,  como  se  encoatram, 
nada  teem  digno  de  menção,  nem  mesmo  as  pintoras 
mithologieas  dos  tectos,  insignificantes  em  geral*.  Os 
quadro*,  que  as  guarneceram,  importantes  pelonunero 
e  assumptos,  que  se  referiam  aos  homens  principies 
das  nossas  gloriosas  descobertas,  e  pelos  autores,  que 
foram  Taborda,  Foscbini,  Callisto,  Sequeira  e  Cyrilto, 
arrebatou-os  D.  João  VI,  na  sua  precipitada  fofa  para 
o  Bio  de  Janeiro,  d'onde  nunca  voltaram. 

Os  torreões,  situados  nas  extremidades  da  frontaria, 
comprefaendem  os  aposentos  reaes.  O  do  sul  tem  a  nova 
sala  de  recepção,  casa  de  jantar  e  outras  de  menor  im- 
portância, bem  como  uma  capei  la;  o  do  norte- a  Mia 
de  audiência,  pintada  a  fresco,  representando  n»  tecto  o 


NOlAfcAtLATO 


4tyf*f*  e,  cemo  contristo  •  eaee  composto  mitholopso, 
nas  paredes,  figuras  alegóricas  de  differentes  Virtude*; 
a  sala  ia  Tocha,  egualmento  pintada  a  fresco,  recordan- 
do orna  caçada  de  Diana,  o  banho  das  Nymphas,  saiy- 
ros  e  outros  personagens  fabulosos,  e  por  ultimo  segun- 
da capeila  e  a  sala  da  guardo.. 

O  prolongamento  dos  ângulos  comprehende  uma  lon- 
ga série  de  compartimento*,  que  s2o,  incluindo  alguns 
doa  torreões,  a  pacte  menos  importante  do  edifício;  o 
qoe  nío  estranhámos,  divergindo  da  opinião  de  muitos 
visitantes,  porque  os  reis,  dispondo  de  um  pessoal  me- 
nos numeroso  que  o  dos  frades,  não  tinham  como  estes 
uma.  residência  permanente  alli,  onde  se  lhes  offerecia 
alojamento  condigno  na  galeria  da  frente,  vasta,  e  beHa 
ainda  boje,  e  sumptuosa,  quando  estivesse  guarnecida 
de  bons  moveis. 

No  lado  norte,  eneontra-se  a  capeila  rêah  recommen- 
davel  pela  pintura  da  abobada,  altar  fechado  por  balaus- 
tres dê  calcamos  de  cores,  bellissimos  arabescos  e  fes- 
tões» colomnas  de  mármore  côr  de  rosa  com  capiteis 
caprichosos,  sustentando  um  frontio  de  mosaico  sobre- 
posto ao  quadro  da  Virgem,  qoe  tem  na  parte  inferior 
uma  cornucopia  de  calcarão  branco,  erguida  em  fundo 
de  pórfiro  feldspathico,  ou  duríssimo,  d'ondo  &aem  flo- 
res e  froctos.  A  banqueta  é  também  de  rocha  feldspa- 
thiea,  ou  eurite,  o  frontal  de  precioso  mosaico.  Os  qua- 
dros lateraes,  entre  que  se  contam  a  Coroação  da  Vir- 
gem de  Giaquinto  Corrado,  o  Lava-pé$  de  Quillard»  a 
Conceição  de  Sebastião  Conca,  N.  Senhora  e  o$  marty- 
re*  de  Agostinho  Massuci  e  a  Sacra  família  de  Vieira 
Lusitano,  como  mais  correctos — pertenceram  aos  altares 
do  templo,  antes  de  serem  substituídos  pelos  retábulos 
de  mármore. 

Esta  capeila  é  uma  das  melhores  peças  e  a  mais  va- 
liosa, pala  decoração,  entre,  todas  as  do  palácio,  qoe  es- 
tá qoast  por  ioteiro  despido  de  mobílias,  e  que  se  nio 
Mcommenda  peias  pinturas. 

Aquelles  aposentos  desertos  ressumbram  pexadume, 


MÀHU 


bafio,  humidade  e  tristeza,  apesar  da  uns  pobre*  ador- 
nes, que  em  alguns  d'elles  parecem  indicar  am  aerviço 
temporário,  durante  es  pasaeioe  e  caçadas  das  peama 
reaea,  por  Mafra. 

* 


O  extremos  lateraes  do  prolongamento  do  palácio  ter- 
minam  em  duas  salas  eguaes,  que  servem  como  que  de 
antecâmaras  á  bibliothêca,  situada  6obre  a  habitação  dos 
frades  em  parte  do  corpo  saliente,  que  figura  na  quar- 
ta linha  do  edifício,  parallela  á  da  frente.   « 

Esta  peça  oruciforme,  aclarada  por  50  janellas  ordi- 
nárias e  de  saccada  com  balaustres  marmóreos,  eaten- 
dendo-ae  num  comprimento  de 88  metros,  afastando-se 
da  linha  rectangular  ao  centro,  onde  quatro  arcos  sus- 
tentam a  abobada,  aformoseada  a  meio  e  a  13  metros  de 
altura  por  largo  circulo  de  mármore  festonado,  a  emol- 
durar o  sol  dardejaute — forma  o  salão  de  biblietheca 
mais  vasto,  mais  bem  illuminado  e  magestaso  que  le- 
mos visto;  o  que  é  fácil  deprehender  da  sua  capacidade 
tão  simples  como  grandiosa,  espalhada  na  enorme  su- 
perfície de  836  metros  quadrados  1 

O  chão,  obedecendo  ao  revestimento  das  partes  mais 
notáveis  do  edifício,  é  de  bello  mosaico  de  mármores 
de  cores,  variado  ao  centro,  de  modo  a  produzir  o  ef- 
feito  de  uma  alcatifa  caprichosamente  bordada.  Cento  e 
cincoenta  estantes  guarnecem  as  paredes,  em  duas  or- 
dens, uma  que  sobe  a  4  metros  de  altura  até  uma  es- 
paçosa e  elegante  varanda  balaustrada  de  formosa  obra 
de  talha,  e  outra  que  se  eleva  d'ahi  para  cima,  circulan- 
do ambas  as  faces  lateraes  e  os  desvios  symetrieos  4o 
centro. 

As  estantes  teem  uma  simples  pintura  de  branco»  co- 
mo base  dos  dourados  e  alindamento,  que  se  não  che- 
garam a  fazer,  e  conteem  a  importante  colleccão  de  30*000 
volumes  pacientemente  distribuídos  por  matérias,  em 
aiwumação  aipbabetica» 


466  MOIA0  A  LÁPIS 

Fm  pena  o  desaproveitamento  de  ião  grande  numero 
de  livros,  entre  os  quaes,  não  faltando  dos  assumptos 
meramente  tbeologioos,  ha  velames  de  scieocíis,  letras, 
industrias,  artes  e  officios,  em  muitas  línguas  e  em  lar- 
ga copia,  luxuosas  edições  latinas  de  4470,  incluindo  as 
de  Virgílio  e  Ovídio,  illuminuras,  chronicas,  pinturas 
numismáticas  e  um  dos  mais  nitidos  exemplares  dos 
Lusíadas  do  morgado  Matheus. 

Em  assumptos  religiosos,  notam-se  grande  variedade 
de  bíblias  il lustradas  e  outras  de  muito  mérito,  entran- 
do como  principal  a  polyglota,  a  que  a  bibliograpbia  dá 
um  grande  valor;  a  phisíca  sagrada  com  bellissimas  es- 
tampas e  alguns  manuscriptos  ricamente  illuminados  so- 
bre pergaminho. 

Gomo  livros  de  consulta  sobre  assumptos  de  letras  e 
e  artes,  seriam  elles  mais  um  opulento  subsidio  para  o 
museu,  a  que  alludimos,  depois  de  bem  descriptos  no 
catalogo  geral  dos  objectos  expostos. 

Cremos  bem  que  nio  se  fará  isso  nunca,  nem  se  da- 
rão ao  edifício  de  Mafra  a  importância  e  o  aproveitamen- 
to, que  merece;  em  primeiro  lugar  pela  feição  dos  nos- 
sos hábitos  de  gente  amollecida,  e  depois  pelo  vermos 
esquecido  no  traçado  do  caminho  de  ferro  de  Torres, 
quando  para  o  maior  numero  de  visitantes  è  tio  moro- 
sa e  cara  uma  viajata  de  Lisboa  alli. 


Besta-nos  subir  aos  terraços,  que  formam  a  cobertu- 
ra geral  do  edifício,  por  qualquer  das  suas  dtfferentes 
escadas,  para  gosarmos  um  variado  e  attraente  panora- 
ma, que  se  abre  desafogado  e  vasto  em  torno  de  dós, 
e  para  lastimarmos  as  deteriorações  infiltradoras  das 
aguas  pluviaes,  destinadas  a  conspurcar  as  paredes  dV 
quetta  fabrica  gigantesca,  e  a  preparar-lhe  uma  ruioa 
lastimável  em  praso  mais  ou  menos  remoto»  pelo  inoor- 


MAFRA  467 

rigivel  desamor,  com  que  se  costuma  olhar  para  a  con- 
servação dos  nossos  monumentos. 

De  caminho,  entraremos  nas  doas  torres,  onde  negre- 
jam 114  sinos  de  differente  capacidade,  divididos  por 
egual.  O  maior  em  cada  uma  d'ellas  pesa  42,000  kito- 
gra romãs,  é  tocado  por  um  badalo  de  280,  e  tem  dois 
metros  e  tanto  de  diâmetro  e  uma  altura  ainda  maior. 

Nas  festividades  dobram  todos  ao  mesmo  tempo,  for- 
mando um  conjuncto  de  sons  atroadores,  que  se  ouvem 
u'uma  distancia  de  45  kilometros. 

O  sino  immediato  em  volume  pesa  ainda  assim  40,000 
kilogrammas;  é  o  chefe  dos  48  que  formam  o  celebre 
carrilhão,  e  vão  diminuindo  em  escala  chromatica,  cor- 
recta e  afinada,  até  ao  Ínfimo  peso  de  30  kilogrammas. 

Todo  o  machinismo  é  sustido  em  vigas  de  ferro,  que 
se  apoiam  em  pilastras  e  columnas  do  mesmo  género, 
com  capiteis  compósitos  de  bronze,  e  divide-se  em  duas 
partes— a  que  pertence  ao  relógio,  que  pode  dar  os 
quartos  e  as  horas,  por  meio  de  desarmes  próprios,  e 
fazer  tocar  todos  os  sinos,  o  que  acontece  em  occasião 
solemne— e  a  que  diz  respeito  ao  cylindros  do  carrilhão, 
dois  corpos  enormes  de  4m,8  de  diâmetro  e  2*,4  de 
comprido,  á  maneira  dos  das  caixas  de  musica. 

Partem  (Telles  uns  arames,  correspondendo  aos  seus 
dentes  e  presos  superiormente  a  martellos  exteriores  e 
badalos  interiores,  em  numero  de  96;  os  quaes  arran- 
cam as  notas  de  quatro  peças  de  musica,  executadas 
automaticamente  e  escriptas  em  50  compassos  quater- 
nários cada  uma.  Os  registros  são  dois  em  cada  cylin- 
dro  e  eguaes  portanto  ao  numero  de  peças,  tocadas  pe- 
los 48  sinos. 

Alem  da  forma  automática,  que  não  pode  passar  das 
quatro  musicas  diffe rentes,  funcciona  o  carrilhão  por 
meio  de  um  teclado  de  4  oitavas,  prolongado  no  inte- 
rior de  uma  caixa  de  ferro,  apoiada  em  cariatides  da 
mesma  matéria. 

As  teclas  apresentam  duas  ordens  distinctas;  da  ex- 
tremidade de  cada  uma  parte  um  arame,  que,  passan- 


NOTAS  A  LÁPIS 


6o  por  diversos  jogos  de  alavancas,  vae  prender  aos 
martellos  dos  sinos. 

O  eiecutanto,  que  pode  desempenhar  qualquer  mu- 
sica, sem  variações,  attenta  a  natureza  do  instrumento, 
escripta  nas  duas  claves  sol  e  fá,  nSo  excedendo  a  4 
oitavas  —  assenta-se  como  se  fora  diante  de  um  piano,  em 
banco  elevado,  mette  os  dois  dedos  das  mios  immedia- 
tos  90  polegar  em  luva  de  couro,  e  com  elles  bate  pesa- 
damente nas  teclas  da  primeira  ordem,  que  correspondem 
á  mio  direita  do  piano,  e  com  os  pés  fere  as  da  segun- 
da, correspondente  á  esqoerda,  produzindo  assim  as 
notas  graves,  medias  e  agudas,  como  e  quando  precisa. 

Os  cylfndros  e  as  rodas  de  bronze,  adaptadas  a  eixos 
de  ferro  polido,  os  teclados  de  aço,  a  complicada  rede 
dos  arames  e  correntes  diversas,  as  alavancas,  as  figu- 
ras e  ornatos,  o  relógio  com  o  seu  grande  pêndulo,  os 
enormes  pesos  de  chumbo  suspensos  de  grossas  cadeias, 
os  cordames  e  manivelas  e  as  outras  peças  de  dififerente 
applicação,  peso  e  metal,  que  se  calcula  em  217,000 
kilogrammas — compõem  no  todo  5  jogos  distinctos  de 
movimento,  quartos,  horas,  e  desempenho  das  musicas, 
e  completam  um  mecbanismo  collossal,  admirável  e 
complicadíssimo,  que  se  mostra  egual  em  ambas  as  tor- 
res, divergindo  apenas,  quanto  ao  relógio,  no  dar  as 
horas,  na  torre  do  sul,  ao  uso  commum;  e  qa  do  norte, 
segundo  o  systema  romano,  isto  é,  por  metade,  seis  ao 
meio  dia  e  outras  tantas  á  meia  noite. 

Qual  foi  a  cifra  real  d'estas  enormidades  mechanicas, 
mandada  a  Nicolau  Levache  e  Guilherme  Withloch,  fa- 
bricantes de  Antuérpia? 

Diz-se  que,  remettido  o  plano  para  a  cidade  belga,  se 
fizera  a  encommenda  de  um  só  carrilhão,  e  que,  com- 
pulsadas as  difficuldades  e  a  importância  da  execução, 
os  artistas  desconfiaram  de  que  o  monarcba  portuguez 
n5o  tivesse  dinheiro  para  tanto,  ou  que  n§o  soubesse  o 
que  encommenda va,  ao  fixarem  o  preço  nmimo  de  um 
milbfio  de  cruzados.  Declararam  pois  a  quantia,  e  pedi- 
ram resposta  para  seu  governo. 


majtcá  469 

O  rei,  offendido  no  seu  caracter  faustoso  e  no  sem 
provado  amor  próprio,  mandou  responder:  — Não  cui- 
dei que  era  tilo  barato  o  custo  de  um  só  carrilhão;  man- 
dem-me  dois. 

E'  isto  o  que  a  tradição  nos  conta,  e  a  ser  exacta 
quanto  á  cifra  despendida,  resulta-nos  a  elevadíssima 
verba  de  800:0000000  réis,  para  dois  únicos  objectos 
dos  muitos  que  adornaram  e  adornam  ainda  o  convento 
de  Mafra. 

Juntando  a  isso  os  paramentos  e  mais  adereços  do 
culto,  os  quadros  e  pinturas  fixas,  as  mobílias  e  a  con- 
strucçâo  geral  do  grandioso  edifício,  podemos  com  fa- 
cilidade imaginar  uma  somma  extraordinariamente  avul- 
tada, excessivamente  fabulosa. 

Bem  andou  o  seu  fundador  em  destruir  as  parcellas 
d'essa  conta  monstruosa,  para  que  nas  excavações  bis- 
toricas  do  futuro  <se  não  lançasse  a  corvdemnação  exacta 
de  tamanhos  desperdícios ! 


A  edificação  de  Mafra  foi,  incluindo  outras,  o  resul* 
tado  das  tendências  fanáticas  de  D.  João  V?  foi  uma  ne- 
cessidade do  seu  temperamento  perdulário  e  gastador  ? 
o  característico  do  seu  tempo?  um  escrúpulo  de  con- 
sciência, ligada  a  um  voto  solemne?  um  capricho  de  or- 
gulho? uma  demonstração  de  fausto  mal  entendido? 
uma  superfluidade  ruinosa  e  desnecessária?  uma  crea- 
ção  monstruosa,  que  nos  levou  o  oiro  das  nossas  coló- 
nias mais  ricas  e  toda  a  somma  depositada  no  nosso 
erário  ? 

*  Foi  tudo  isso;  e  é  hoje  para  o  fim,  a  que  se  destina- 
va, uma  grande  inutilidade. 

Pois  conserve-se  essa  inutilidade,  e  dê-se-lbe  uma  ap- 
pHeaçio  conveniente,  que  a  pôde  e  deve  ter,  pois  nfo 
abundam  no  paiz  edifícios  d'aqueUa  vastidão  e  solidez  I 

Tiremos  alguma  coisa  boa  do  facto  consummado,  a 


470  MOTAS  A  LAMS 


que  as  nossas  declamações  hodiernas  nfo  valem»  nem 
aproveitam,  e  envergoohemos-nos  de  que  os  remediáveis 
destroços  do  tempo  se  mantenham  alli,  como  em  coisa 
abandonada,  e  que  as  chovas,  como  acontece  já  no  beUe 
recinto  da  egreja,  tenham  o  encargo  de  lavar  e  destruir 
os  mosaicos  variegados  dos  marmorbs  nactooaes,  os  ca- 
piteis festonados,  os  retábulos  preciosos,  as  arcarias 
msgestosas,  por  onde  se  espalhou  á  larga  orna  enorme 
porção  do  nosso  dinheiro. 

Quando  nós,  i  imitaçio  da  nossa  visfeba  Hespanha, 
para  não  ir  mais  longe,  creassemos  um  curso  completo 
de  artes  e  officios,  nenhum  alojamento  melhor  poderia* 
mos  encontrar,  porque  alli  ba  muito  espaço,  havendo 
muito  que  ver  e  admirar  em  todos  os  ramos,  que  se 
ligam  ao  estudo  d'essas  variadas  matarias» 

Quando  mais  nio  seja,  repetimos  o  que  dissemos 
n'outro  lugar,  o  edifício  de  Mafra,  com  todo  o  que  tem 
dentro  e  o  mais  que  andará  por  fóra — pode  rapidamen- 
te constituir-se  n'um  dos  mais  curiosos  e  ricos  museus 
do  nosso  paiz,  oude  elles  nio  primam,  nem  abundam. 

Que  nos  vale  o  saber  o  custo  da  sua  construcçio,  o 
fim  a  que  o  destinaram,  e  a  prosápia  ou  sentimento, 
que  lhe  deu  origem? 

O  certo  é  que  elle  existe;  que  é  notável  como  edifí- 
cio e  como  atestado  da  opulência  dos  nossos  calcarees 
'  e  da  intelligencia  e  aptidões  de  muitos  dos  nossos  ar- 
tistas; que  está  ainda  de  pé,  e  que  é  necessário  conser- 
vado assim,  utiHsando-o  ou  nio,  para  que  nos  não  cha- 
mem os  bárbaros  inconscientes,  os  iconoclastas  estere» 
e  burlescos  do  meio  dia  da  Europa»  em  pleno  século 
dezenove. 


A  verdade  é  que,  ao  sair  d'alli  um  tanto  estonteado, 
após  uma  visita  de  meio  dia  completo,  vínhamos  con- 
vencido de  que  também  possuíamos  um  Escuruú. 

Pouco  nos  emportava  saber  o  tamanho  da  honraria, 


MiFEA  471 

qo*  «os  provem  d'ahi,  mus  folgámos  em  reconhecer  a 
razão,  que  assistia  ao  nosso  compatriota,  quando  noa 
dizia  em  Hespanha:  —Suspenda  o  seu  juízo  até  que  pos- 
sa visitar  a  nossa  Mafra. 

E,  posto  isto,  passaremos  a  fazer  rápida  e  succinta 
exposição  dos  pontos  de  contacto  entre  as  duas  notar 
veis  edificações,  e  das  vantagens,  em  que  se  pode  fir- 
mar a  sua  rivalidade,  como  simples  objecto  de  curiosi- 
dade e  nada  mais. 

Occupam  ambos  os  edificios  a  superfície  de  45,000 
metros  quadrados,  com  mil  e  tantas  portas  e  jaaelías  e 
as  torres  da  mesma  altura.  O  Escurial,  medindo  235 
metros  de  frente  e  191  por  banda,  è  mais  largo  e  me- 
nos comprido;  Mafra,  tendo  220  por  205,  é  mais  com- 
prido  e  menos  largo. 

A  favor  do  Escurial,  contaremos— o  numero  e  qua- 
lidade das  suas  pinturas»  o  coro,  a  sacristia,  a  magni- 
ficência do  pantbeon  dos  reis,  a  collecção  de  impressos 
e  manuscriptos,  os  pannos  de  Arraz,  a  quantidade  de 
objectos  espalhados  por  toda  a  parte,  o  seu  estado  de 
limpeza  e  asseio  e  por  ultimo  a  sua  pittaresca  e  bellis- 
siaa  posição. 

Contra  — o  seu  aspecto,  a  feia  e  mi  qualidade  de  sua 
pedra  berroqueoba,  o  tamanho  das  suas  portas  e  janel- 
las,  a  má  qualidade  das  estatuas»  a  collooação  do  pan- 
tbeon  e  a  inferioridade  do  palácio. 

A  favor  de  Mafra — o  regular  do  edifício  e  a  sua  di- 
visão interior,  as  torres  e  carrilhões,  a  profusão  e  a  bel- 
leza  dos  mármores,  a  vastidão  das  salas  e  dormitórios, 
os  vestíbulos,  as  janellas,  portadas  e  cantarias,  o  local 
e  a  qualidade  do  palácio,  os  subterrâneos,  os  paramen- 
tos, alfaias  e  a  distribuição  de  luz,  que  forma  assumpto 
de  verdadeira  admiração» 

Contra  —o  vasio  das  suas  salas,  uma  parte  da  edi- 
ficação a  menos,  bem  occupada  pelo  jardim  interior,  a 
chuva  que  lhe  vae  destruindo  algumas  das  suas  partes, 
a  começar  pelo  templo,  e  a  sua  má  posição,  que  o  não 
deixa  brilhar  a  distancia. 


4fS  MOTA»  A  UttTS 


A  egreja  bespanbola,  formando  cruz  grega,  6  maia 
larga  e  escora;  a  portagneza,  pela  soa  craz  latina,  é 
mais  elegante  e  tem  melhor  luz. 

O  Escoriai»  pela  época  atrazada  da  soa  constroeçio, 
que  Ibe  attenoa  om  pooco  as  irregularidades,  e  peio  seo 
estado  actual,  pode  arrogar  superioridade. 

Mafra,  em  atteoçio  ao  seo  material  e  divisões  e  i  hu- 
mildade da  ordem,  a  que  era  dedicada,  pode  conside- 
rasse muito  mais  faustosa. 

Aos  edifícios,  como  obra  dos  homens,  acontece-lhes 
o  que  se  dá  com  os  indivíduos,  que  se  hão  de  distin- 
guir sempre,  por  mais  que  tentem  nivelar-se.  Une  pri- 
mam pela  intelligencia,  outros  pelos  dotes  moraes;  es- 
tes pelo  bom  gosto,  aqoelles  peto  bom  senso;  taes  pela 
bondade  de  caracter,  economia  e  trabalho,  muitos  pela 
proéfeaMade  e  pelos  mãos  fastinetos. 

Os  homens  e  os  ediBdos,  retratam  e  immortalisam 
oma  época,  com  as  soas  belletas  e  os  sem  defeitos. 

Em  presença  pois  de  dois  vultos,  que  podem  arro- 
gar circumstancias  completas  de  rivalidade,  quando  se 
procura  dar~lhes  <palificaç8o  dtstinota,  não  é  faeil  a  ex- 
htbição  de  um  juízo  seguro,  vasado  muito  embora  nos 
moldes  de  oma  perfeita  imparcialidade. 

for  se  fazer  muitas  vezes,  nio  deiía  de  ser  tarefa  ár- 
dua e  diffieilima,  de  que  podemos  prescindir  no  caso 
presente,  pelo  caracter  singelo,  superficial  e  despreten- 
cioso,  dos  nossos  apontamentos. 


PA8SHtlM»  A  OàGBRES  493 


PASSEIO  RÉGIO  A  CÁCERES 


Prologo.— Ne  caminho. 

Sm  Valenoia  do  Aleaatara,— EflUuMiatme  pgpalar. 

Aposta  entre  camponesa*. 

Bafe  e  povo*— Ctara,  éesorfeniaayio  e  Une. 


O  prologo  desta  narrativa  paasou-se  no  eseriplerio 
do  Oerrmo  da  Noite*  na  antevéspera  da  partida  do  com- 
boio real  para  Valência  de  Alcântara,  onde  oe  das  «o- 
narobas  da  península  deviam  encontrar-«e,  para  inau- 
gorarem  a  linba  Corrêa  de  Cáceres,  a  convite  de  Segis- 
muado  Moret,  engenheiro  chefe  da  respectiva-  compa- 
nhia, 

O  desejo  de  assistir  a  mais  uma  festa  em  terras  de 
Hespanha,  onde  eltas  de  ordinário  costumam  ser  calo- 
rosas e  cheias  de  tons  irradiantes,  que  estabelecem  en- 
tre nós  e  os  nossos  visinhos  uma  differença  de  caracter 
expansivo,  muito  de  notar  em  povos,  cuja  ascendência 
e  tradições  se  confundem,  e  entram  desassombrada* 
mente  por  um  período  de  muitos  séculos — levoa-oos 
a  traçar  o  plane  d,easa  pequena  viagem  a  uma  parte 
da  Extremadura. 

Em  conversa  com  Eduardo  Guimarães,  que  tenciona- 
va faaer  parte  da  unprenea,  representando  o  Pr*grma> 


411.  ROffàt  A  LâftS 

jornal  muito  bem  cabido»  pelo  aeo  nome,  n'umá  verda- 
deira íudcçío  de  adeantameuto  social,  commanieáaio*  a 
nossa  tenção,  e  falíamos  na  compra  antecipada  de  um 
bilhete. 

— Nio  ba  veoda  de  bilhetes— respondeo-oos  elle — 
nem  outros  passageiros  que  nio  sejam  el-rei,  a  saa  co- 
mitiva e  alguns  convidados,  em  que  entram  os  adega- 
dos da  imprensa. 

— Nio  sabia  d'isso.  Confesso-me  nm  tanto  contrariado. 

— Ê  fácil  remover  aquillo,  que  te  parece  um  obstacolo. 

—De  que  modo  ? 

—Indo  como  delegado  do  Correio  da  NoiU,  de  qoe 
nio  ba  representante. 

—Delegado  de  um  jornal  politico,  eu  ? 

— É  meio  tão  simples  como  o  fim,  que  se  qaer  con- 
seguir. Nada  de  escrúpulos.  Bem  sabemos  que  te  é  ín- 
differente  a  politica. 

—Nem  4anto.  A  minha  falta  de  aggremieçãa*  qual» 
quer  dos  partidos  militantes  nio  quer  dizer  uma  abs- 
tenção completa. 

—Então  és  intransigente,  ou  meramente  utopisia. 

—O  utopista  é  sempre  intransigente.  Se  .o  acreditar 
n'oaa  pronunciada  degeneração  do  nosso  meio  social,  % 
o  não  adherir  a  elle  senão  por  um  protesto  simplesmen- 
te tácito  e  individual  podem  significar  tudo  isso,  serei 
ambas  as  cousas. 

—Uma  representação  nominal  de  jornalismo,  durante 
algumas  horas,  não  irá  deslustrar  aa  tuas  convicções. 
E  o  caso  urge.  É  preciso  resolver. 

A  «cellente  companhia  do  noseo  amigo  èra,  acima 
de  tudo,  o  melhor  incentivo  para  uma  deliberação  que 
se  nio  demorou. 

Acoeitámos;  e  meia  bora  depois  da  meia  noite  de  7 
de  outubro  de  1881,  lá  seguíamos  no  comboio  real,  que 
se  componha  de  um  carro  de  bagagens,  precedendo  a 
machina,  dois  salões  para  a  direcção  do  caminho  de  ferro 
e  chefes  do  serviço,  duas  carruagens  de  primeira  classe 
para  coaridados,  fiscats  do  governo  e  officiaes  de  el*rei, 


PA88UO  IMO  A  GACKRES  475 

o  salie  de  Soa  Magestade,  três  salões  para  ministros, 
camaristas  e  conselho  administrativo  da  companhia,  um 
carro  de  primeira  ciasse  para  a  imprensa  e  outro  de 
segunda  para  os  correios  e  empregados  do  movimento; 
om  comboio  ftustoso  a  regorgitar  de  fardas  e  plumas, 
gatões  dourados  e  casacas  pretas. 

A  imprensa,  entre  a  qual  se  nos  depararam  bons 
companheiros  da  viagem  calderoniana,  representava 
uma  colónia  folgasã  e  pacifica,  onde  todas  as  idéas  se 
haviam  dado  tréguas,  estabelecendo  substanciosa  alliança. 

A  regeneração  dava  mãos  á  imparáalidade,  a  utopia 
gargalhava  oom  o  progressismo,  este  com  a  republica, 
que  não  era  a  menos  risonha,  embora  passeiada  em 
trem  régio,  uma  anomalia  devida  necessariamente  á  for- 
ça das  circunstancias. 

Apezar  de  tantos  elementos  contrários,  nunca  se  fez 
viagem  mais  segura,  porque  alem  da  macbina  de  explo- 
ração, qae,  preeedeiido-nos,  assegurava  o  bom  estado 
da  via  férrea,  havia  de  distancia  em  distancia  vigias  ex- 
traordinários com  archotes  accesos,  tropas  nas  estações, 
musicas  e  iHominações  festivas. 

Ás  7  horas  da  manbi,  parávamos  na  estação  de  Cas- 
tetlo  de  Vide,  a  aoMquissima  viita  alemtojana,  pátria  de 
Goaçato  Ames,  om  dos  beroes  de  Aljubarrota,  em  1385, 
e  de  grande  estadista  moderno  Mousinho  da  Silveira, 
cujo  solar  vae  buscar  a  sua  origem  a  uma  época  ante- 
rior i  constituição  da  mooarchia. 

O  espectáculo  era  gracioso.  O  4  povo,  com  os  seus 
melhores  trajes  de  gata,  apinha va-se  na  estação,  que 
fica  a  considerável  distancia  da  villa;  parte  formava  oor- 
tojo  ás  autoridades  locaes,  parte  dominava  as  saliências 
da  encosta;  mulheres  e  rapazes,  trepados  aos  muros  e 
aos  carros,  que  estavam  parados  na  liaha,  acoenavam 
com  os  lenços  e  os  barretes,  e  juntavam  ruidosos  vivas 
aos  da  muKidão,  que  se  apertara  mi  torno;  laneeiros  e 
cavaUaria  4  faziam  continência;  duas  philarmonicas  to- 
cavam o  bymoo  real. 

Saodaftdo  o  vetusto  caeteHo,  aitóado  n*  Gumieda  de 


47*  mau  a  iim 

om  cerro,  que  domina  a  povoaçio,  de  si  mesma  eslreí- 
tada  por  montanhas,  posemos-oes  dentro  de  posto  ta»» 
po  em  vigoroso  andamento,  parando  is  .8  bocas,  a  uns 
12  kitometros  da  raia,  em  Marvio,  ultima  estaçío  por- 
tugueza,  collocada  também  om  tanto  longe  da  vetea  lo- 
calidade, qoe  demora  na  vertente  da  serra  do  mesmo 
nome. 

Era  oeeasiio  de  madar  de  trajes,  para  quem  tivesse 
de  fazel-o,  oa  de  endireitar  collarinhos,  e  escovar  a  rock 
pa,  para  os  qoe  não  necessitassem  da  mudança. 

Havíamos  parado  para  isso;  e  bom  seria  apmeoter- 
mo8HM>s  aos  nossos  amphitriões  coaa  a  maior  galhardia, 
da  qoe  fossemos  capazes. 

* 
*      * 

Os  vestuários  da  gente  que  corria  a  presenciar  a  pas- 
sagem do  comboio  denuuciava-nes  a  aproximação  da 
fronteira.  Exactamente  a  meio  da  ponta,  lançada  sobra 
o  Tejo,  desde  a  época  de  Trajano,  «alba  a  verdade,  tinha 
divisória  dos  dois  paizes  peninsulares,  a  municipalidade 
de  Valência  de  Alcântara  tinha  maodado  levantar  um 
arco  de  folhagens  e  flores,  com  dois  tacos  escriptos,  em 
honra  de  D.  Luiz,  do  lado  do  território  português,  e  de 
Affbnso  XU,  da  parle  de  Hespaaha. 

Um  pouco  mais,  e  estávamos  na  estaçi»  d»  Valendo» 
onde  formava  um  numeroso  destacamento  de  guardas 
civis,  e  onde  soava  o  bymno  portuguez. 

N'um  oampo  próximo,  estabelecera-se  om  vasto  abar- 
racamento,  cheio  de  legendas,  arcos  trtampbaes  e  tendas 
adornadas  da  colchas  e  paanos  custosos,  que  cobriam 
os  diversos  alojamentos  para  refeições  o  desoaoço,  tremu- 
lando sobre  eiles  as  baodeiras  das  daas  nacionalidades. 

As  tropas  de  misnteria  e  guardas  civis,  o  povo,  oa 
trajes  garridos  de  uns  e  outros,  as  musicas  e  os  vivas» 
erguidos  ao  encontro  dos  monarobas,  acabavam  de  com- 
pietar  o  quadro  realmente  ptttoreaee  e  formoso. 


PAsm»  amo  a  gacebbs  €77 


O  séquito  do  rei  bsspanbol  era  luzido  e  grande.  A 
apresentação  dos  cortea&s  fez*se  ao  ar  livre,  simples- 
mente, sen  fornia  exaeta  de  etiqueta. 

A  imprensa  e  maia  convidados,  que  em  rigor  só  por 
accidente  faziam  parte  das  comitivas  regias,  na  oecaaiio 
do  almoço,  tiveram  de  aecomodar*se  como  poderam, 
porque  os  preparativos  e  boa  vontade  dos  promotores 
da  festa  não  conseguiram  evitar  uma  certa  desordem 
no  serviço; 

Dado  o  signal  de  partida,  os  reis  e  todos  os  seus  com- 
panheiros tomaram  lugar  no  comboio  hespaohol,  por 
entre  as  acclamações  ruidosas  dos  que  ficavam,  caloro- 
sas demonstrações  de  enthusiasmo,  que  se  repetiram 
durante  todo  o  trajecto,  especialmente  na  estação  de 
Herrernela,  onde  éramos  esperados  por  extraordinária 
multidão  de  gente,  camponezes  de  uma  apparencia  ty- 
pica,  quanto  aos  trajes,  mulheres  adornadas  com  ves- 
tuários de  todas  as  cores  e  matizes  garridos. 

Incluindo  as  magestades,  todos  os  passageiros  iam  ás 
portinholas  das  carruagens,  a  cuja  plataforma,  ao  parar 
do  trem,  correu  muito  povo,  soltando  exclamações  de 
alegria. 

—  Ai!  Gomo  são  bonitos  os  reis  —  diziam  uns. 
—Onde  estão  eltes  ?  —  clamavam  outros,  confundidos 

com  tamanha  quantidade  de  fardas  e  chapéus  armados. 

—O'  senhor  —  pedia-eos  uma  mulher,  cercada  por 
toda  a  família  —  nós  somos  de  muito  longe;  viemos 
aqui  só  para  conhecer  os  reis ;  diga-nos  onde  estie.  Sio 
aquelles  ? 

E  apontava  para  dois  officiaes  emplumados,  na  ver- 
dade mais  epparatosos  que  os  próprios  monaroba*. 

Desfeito  o  engano,  foi  o  caso  de  novo  pasmo,  que  valia 
um  preito  de  verdadeira  adoração. 

—  Es  verdad.  Alatmdo  sea  Diosí  Como  $on  bonitos  t 
ff  guapos  los  reges  t  —  clamou  a  mulbershiha,  de  mios* 
postas,  sem  fazer  caso  dos  empurrões  que  levava. 

A  este  tempo  faltava  D.  Affonso,  debruçado  da  por- 
tinhola, a  opa  grupo  de  camponeses»  que  haviam  trepado 


UB  HOTAi  A  fcál» 

á  plataforma,  e  tregeitavam,  gritando,  aeotovetado*e, 
6  estendeodo  as  mãos  calpsas  para  o  monareba,  qae 
lh'as  apertava  com  effusio,  do  qoe  1*9  secundado  por 
el-rei  D.  Luiz,  a  quem  os  bomena  se  dirigiam  egoal- 
mente. 

—Foi  ea  —  gritava  um» 

—Foi  eu;  fui  eu,  senhor— berrava  ootro,  estendeodo 
as  mios  possantes,  para  que  lta'as  apertassem  lambem. 

—  Viva  nuestro  padre  I  —  exclamava  outro,  atirando 
o  chapéu  ao  ar. 

—  Vwon  lo$  reyes— acciamaram  todos,  num  òettrío 
cbio,  sincero,  expansivo,  commovedor. 

E  pediam  para  os  abraçar,  e  quiseram  saodal-os  de 
perto,  e  empurravam-se,  e  teimavam,  e  soltavam  pala- 
vras de  amizade  entbusiastica,  como  se  as  dissessem 
aos  seus  eguaes. 

Bello  e  enternecedor  tudo  aquillo ! 

Fora  o  caso. 

Ao  passar  para  Valência  de  Alcântara,  o  monarcha 
bespanhol  soubera  de  uma  aposta  feita  entre  alguns  po- 
pulares, que  nunca  o  haviam  visto  nem  em  retrato, 
aposta  que  passaria  ás  mios  do  primeiro,  que  o  distin- 
guisse entre  os  numerosos  persooagoos  do  seu  séquito. 
Na  volta  para  Cáceres  e  ao  chegar,  vendo  o  açodamento 
daquelle  grupo,  que  pretendia  tel-o  reconhecido  á  pri- 
meira vista,  acercou* se  da  portinhola,  e  perguntou  com 
o  seu  sorriso  sympatico  e  franco  pelo  resultado  da 
aposta. 

Os  camponezes  agradavelmente  surprehendidos  péla 
amável  interferência  do  rei  n'uma  particularidade,  que 
só  eltes  julgavam  saber,  possuiram*se  de  extraordinário 
jubilo,  e  d  ahi  o  fermento  principal  das  suas  acctama- 
ções  sinceras,  dos  seus  regoséjos  pacificamente  tumul- 
tuosos, das  suas  expansões  verdadeiramente  ruidosas  e 
boas,  uma  disputa  calorosa  e  os  gritos  apressados  de— 
Fui  eu,  senhor;  fui  eu;  e  eu  também;  e  nós  que  o  co- 
nhecemos logo;  e  mais  aquelle,  e  mais  aqueloutro. 

Se  os  reis  nem  sempre  podem  romper  pela  etiqueta 


PAS8M0  IBfilO  A  CÁCERES  419 

de  tradição»  por  causa  dos  dasasisados  e  importunos, 
que  vêem  o'elles  a  fonte  inexgotavel  de  todas  as  mercês, 
venturas  e  proventos— bem  fácil  se  lbes  torna  a  popu- 
laridade, desde  qúe  desçam  a  intervallos,  sensatamente, 
em  accidentes  imprevistos,  até  ao  coração  do  povo,  a 
eterna  e  rude  creança,  capaz  de  todos  os  desvarios  e 
estroinices,  quando  a  maltratam  ou  a  não  sabem  guiar, 
propensa  a  todas  as  exaltações  generosas  e  a  todas  as 
demonstrações  de  affecto,  quando  o  respeito  calculado 
e  o  carinho  sincero  lbes  sabem  impor  bondosa  e  doce- 
mente a  força  dos  seus  attractivos  conciliadores. 

O  quadro,  com  que,  n'uns  desvarios  de  sonhador  hu- 
manitário, nos  enternecêramos  também,  dava-nos  a  me- 
dida exacta  de  umas  verdades  que,  por  muito  assentes 
já  nos  moldes  da  regeneração  social,  não  podem  ser  con- 
tradictadas. 


O  dia  até  alli  um  tanto  carrancudo,  mas  sereno,  tol- 
dara-se  a  pouco  e  pouco,  de  modo  que  ao  aproximar- 
nos  do  termo  da  viagem,  começou  a  fustigar-nos  uma 
chuva  miúda  e  constante,  que  ainda  engrossou  levemente 
ao  chegarmos  a  Cáceres,  onde  ella  se  fazia  sentir  desde 
a  véspera. 

Foi  uma  contrariedade,  que  rapidamente  se  apoderou 
do  animo  de  todos. 

Ao  primeiro  silvo  do  comboio,  algumas  peças  de  cam- 
panha deram  a  salva  da  etiqueta;  as  autoridades  civis 
e  militares  e  o  bispo  de  Placencia,  á  frente  dos  solda- 
dados  de  linha  e  guardas  civis,  que  faziam  as  honras 
devidas,  esperavam  os  régios  personagens. 

Feitos  apressadamente  os  cumprimentos,  por  cansa 
da  chuva,  que  teimava  em  lançar  uma  triste  nota  em 
tão  festiva  solemnidade,  procedeu-se  á  benção  das  loco- 
motivas. 

A  estação  bellamente  adornada  apresentava  no  extre- 
mo da  linha  uma  larga  tribuna  descoberta»  onde  havia 


410  NOTAS  A  UW* 

somente  doas  cadeiras  de  espaldar,  para  os  monarcbas 
que  se  não  sentaram.  Á  nota  lamacenta  da  chuva  jun- 
tou-se  o  burlesco  dos  chapéus  abertas  e  calças  arrega- 
çadas. Tudo  se  passou  de  pé  e  rapidamente.  Às  loco- 
motivas embandeiradas  avançaram  arquejando;  o  bispo 
já  de  antemão  paramentado  laoçou-lbes  a  benção;  as 
macbinas  apitaram  e  as  musicas  romperam  o  bymno  na- 
cional, seguido  de  vivas  e  felicitações. 

O  estrado,  onde  chovia  incessantemente,  ficou  logo 
deserto,  e  ninguém  mais  se  entendeu  d'ahi  por  diante* 

Depois  da  partida  dos  reis,  a  confusão  e  o  desnortea- 
mento, devidos,  é  força  confessal-o,  á  má  organisação 
dos  commissionados  subalternos,  encarregados  da  hos- 
pedagem aos  convidados,  foram  completos. 

A  cidade  ficava  a  pouco  menos  de  um  kik>mfttr*4e 
distancia;  a  estrada  mal  macadamisada  de  frasco  forma- 
va rigueiras  de  agua  barrenta,  que  descreviam  estrava- 
gantes  figuras  geométricas,  invariavelmente  bordadas  de 
lama  espessa  e  pegajosa  com  altura  de  uns  dez  centí- 
metros. 

Daqui  a  melhor  pincelada  cómica  do  caso. 

Tinham-nos  dito  em  Valência  que  nos  seriam  foaw- 
cidos  bilhetes  para  hospedagem,  direcção»  entrada  nos 
divertimentos  e  reuniões  solemoes. 

Não  appareceram  bilhetes;  ninguém  nos  sabia  dizer 
cousa  alguma  a  tal  respeito;  nos  poucos  carros  que  ti- 
nham chegado  á  estação,  porque  a  cidade  não  possuia 
mais,  haviam  partido  autoridades  superiores  e  chefes  de 
estação. 

Uma  desordem  absoluta. 

Alguns  dos  nossos  companheiros,  que  olhavam  uns 
para  os  outros,  sem  saberem  muito  bem  o  que  seria  da 
sua  vida,  deitaramse  comnosco  á  estrada,  a  exemplo  de 
outros  que  nos  haviam  precedido. 

Um  bom  dito  humorístico  de  Eduardo  Guimarães 
desanuviou-nos  a  fronte,  húmida  da  chuva,  e  li  segui- 
mos, de  casaca  e  gravata  branca,  calças  levantadas  aci- 
ma do  tornozelo,  botas  a  entrarem  e  a  saírem  descom- 


1 


PAsmo  «KR*  A  CACKBES  «81 

passadamente  dentre  a  massa  da  lama,  como  verdadeiros 
siphões  de  esgoto. 

A  um  cento  de  metros  da  estação  lobrigámos  um 
char-á-bancs,  que  corria  para  dós  á  desfilada,  entre  nu- 
vens liquidas  de  agua  e  terra,  erguidas  a  grande  altura 
pelas  rodas  do  vebiculo  e  pelas  patas  das  alimárias,  um 
vigoroso  reboque  que  ia  empastando  com  regularidade 
o  cocheiro  e  a  traquitana. 

Soltámos  uma  exclamação  estonteada,  e  dm  cttftnnna 
cerrada  mandámos  fazer  alto. 

—Senhores— exdamtrti  o  cocheiro— Mo  devo  demo- 
rar-me;  vou  buscar  Fulano  e  Beltrano.  Mo  pò&Sô  con- 
duzidos agora.  Eu  voltarei. 

—Nada,  não  pode  ser.  Somos  nós  as  pessoas  que 
você  vae  procarar-HMsfttiQo»,  e  iMbàioe»  o  trert. 

—Pêro,  settores . . .. 

—Hombre— gritou  o  Eduardo,  encarapitado  no  estri- 
bò— >llame  usted  um  sacerdote,  y  dénos  rápido  la  étuer- 
te.  Es  mas  suave  que  dejarnos  aqui  en  este  diluvio  de 
lama. 

O  cocheiro  sorriu  bondosamente»  e  retrocedeu  srtn 
mais  palavras. 


dl 


482  MOTAA  A.  LAI» 


Em  Cáceres.— Peregrinação  forçada.— Calote  involuntário.— 
Uma,  tourada  heipanhola.— Imperícia  de  Frascnelo.— Chuva 
e  carnificina.- Um  encontro  providencial.— Sagásta  com- 
notço.— 0  jantar.— Enthuiiaimos  de  Santamaria.— Um  voto 
á  Divindade. 


Pelo  caminho  fomos  eocontraodo  moita  dos  paren- 
tes, que  soUicitavam  um  lugar,  que  náo  havia»  invejosos 
da  nossa  grande  fortuna. 

A  velha  cidade  de  Cáceres,  a  aoliguissima  Castra 
CacUia  dos  romanos,  de  que  não  sabemos  se  nos  lem- 
brámos então,  regorgitava  de  povo  e  signaes  de  festa  um 
tanto  demasiada,  porque  nio  havia  um  só  estabelecimento 
aberto,  onde  podessemos  escapar  da  chuva.  Colcbaa  ás 
janellas,  bandeiras  hespanbolas  e  portoguezas,  arcos  e 
galhardetes— tudo  nos  passou  desapercebido;  mal  tínha- 
mos tempo  de  olhar  para  o  estado  lastimável  das  nos- 
sas pessoas. 

Quando  sob  o  alpendre  do  bel  lo  edificio  moderno  da 
camará  municipal,  deitámos  a  vista  em  volta  de  nós, 
só  vimos  o  Eduardo,  o  nosso  infatigável  companheiro. 
Os  mais  tinham  desapparecido  no  turbilhão. 

Defronte  ficava  a  catbedral,  onde  a  essa  hora  se  ce- 
lebrava o  Te  Deum.  Entrar  era  impossível,  tal  era  a 
agglomeraçio  de  povo,  que  formava  cauda  até  ás  esca- 
das da  municipalidade. 

— E  agora  ?— perguntei  ao  meu  collega. 

— E  agora.  •  •  é  andar  por  ahi,  a  ver  se  deparámos 
com  alguém,  conhecido  ou  desconhecido,  que  possa 
orientar-nos  n'este  dédalo  infernal. 


PASSEIO  ttttHtr  A  CÁCERES  483 

E  deitámos  a  andar  pelas  ruas  e  vielas  próximas,  onde 
todos  os  estabelecimentos  estavam  litteralmente  fechados. 

Quando  voltámos,  descoroçoados,  ao  primeiro  ponto, 
havia  terminado  a  cerimonia  religiosa,  e  os  reis  e  suas 
comitivas  tinham  regressado  aos  paços  municipaes,  on- 
de deviam  jantar. 

Subimos  as  escadas,  e,  ao  encolher  de  hombros  de 
guardas  e  empregados,  que  iam  e  vinham,  de  um  lado 
para  o  outro,  atarantados,  esbaforidos,  desandámos  no- 
vamente para  a  rua,  onde  por  entre  a  multidão  de  curio- 
sos não  deparámos  com  uma  cara  conhecida. 

Um  café,  uma  tasca  qualquer  seria  para  nós  uma  nes- 
ga das  delicias  do  paraíso,  a  própria  salvação.  Princi- 
piávamos a  arrefecer,  pela  humidade  da  roupa;  e  uma 
constipação  por  cima  de  todo  seria  um  fecho  de  orna- 
mentação pouco  vistoso  e  nada  de  appetecer. 

Procedemos  a  perguntas  e  indagações. 

Sorríu-nos  o  sol  da  ventura.  Indicaram-nos  um  lugar, 
onde  entrámos,  uma  reles  e  lobrega  bodega,  a  cuja 
balcão  envernizado  pelas  sorosidades  das  mãos  de  não 
sabemos  quantas  gerações,  se  encontrava  uma  mulher 
tio  madura  como  feia. 

— Tiene  usted  algo  que  comer? 

— P/o  seftor. 

—No  hay  licor?  Café? 

— Tan  poço. 

— Entonces  ? 

— De  bebidas  tengo  vino  y  aguardiente. 

— Vengan  dos  copas  de  esta. 

Tomámos  dois  cálices  de  uma  soffrivel  aguardente 
temperada  com  herva  doce,  e  servida  com  o  melhor 
agrado  d'este  mundo. 

Quando  fomos  a  pagar  uma  quantia  insignificantíssi- 
ma, a  boa  da  mulher  disse-nos  que  não  recebia  moeda 
portugueza,  cinco  tostões  em  prata;  que  satisfaríamos  a 
divida,  quando  cambiássemos  o  dinheiro ;  o  que  nunca 
chegou  a  acontecer,  porque  não  tivemos  necessidade, 
nem  maneira  de  o  fazer. 


484  wota*  a  lo» 

Perdoe-nos  a  nossa  amarei  bospedrfra  o  calote  Vo- 
luntário, que  nio  sabemos  como  resgatar,  visto  que  nio 
tomámos  nota  da  seu  nome  e  morada. 

Que  a  boa  fonema  dob  leve  um  dia  a  Cáceres»  para 
completa  rebabilitaçio  do  nosso  credito»  que  deve  an- 
dar ao  desbarato,  pela  primeira  e  única  vez  em  nossa 
vida! 

# 
*      # 

Como  nos  faltasse  bilhete  ou  indicação  para  assistir 
ao  quer  que  fosse,  tencionámos  continuar  a  andar  até  á 
noite,  resolvidos  a  nio  comer  e  descançar,  por  nio  ter- 
mos aonde 

N'esta  situaçio,  servia-nos  de  refrigério  a  extrema 
delicadeza  dos  naturaes,  que  nos  indicavam  as  melho- 
res mas  da  velha  e  tortuosa  cidade,  e  abriam  alas,  á 
nossa  passagem»  dizendo  obsequiosamente  aqui  e  aoolá: 
—  Dejen  posar,  que  son  portugueses.  Vtean!  Vioa  P&r~ 
íugal ! 

Pela  tarde,  lembrámos-nos  de  que  nas  diversões  fes- 
tivas, destinadas  a  obsequiar  os  visitantes,  entrava  uma 
luzida  tourada,  e  de  que  a  imprensa  linha  camarotes 
especiaes. 

N'aquelta  caminhada  ashaemca,  sem  norte,  debaixo 
de  um  chuvisco  continuado,  surgia-nos  implacável  a  ab- 
soluta necessidade  de  expedientes  rápidos ;  e  nós,  (pie 
conseguíramos  escapar  aos  espectáculos  taureroacbicos, 
na  nossa  estada  anterior  de  muitos  dias  na  capital  bes- 
panhola,  viamosnos  fatalmente  ímpellido  para  uma  cou- 
sa, de  que  nos  bastavam  as  descripções,  pela  repugnân- 
cia que  nos  inspirava. 

k  necessidade  nio  é  só  inimiga  da  virtude ;  obriga 
os  sequiosos  a  nio  exclamarem:  —  Desta  agua  nio  be- 
beremos. 

Agua  em  semelhante  occasiio,  era  um  modo  de  faltar, 
porque  d'ella  Unhamos  nós  abundância  em  demasia  nos 
pés  e  no  vestuário  desordenado  e  húmido. 


PASSEIO  R*GK>  A  CMSRES 


-Has  09  bilhete*?  Cem©  seriamos  adroittMos  á  entra- 
da? Onde  era  o  circo? 

Foi  fácil  sabel-o,  como  facílima  foi  a  entrada  para  o 
espectáculo,  qne  á  nossa  chegada  já  tinba  começado ; 
demonstração  tacita,  que.  logo  ao  atravessar  o  primeiro 
corredor  para  subirmos  aos  camarotes»  nos  fez  o  esta- 
do de  um  pobre  toureiro,  que  ia  conduzido  em  braços, 
por  ter  sido  ferido  na  arena. 

Para  começo  já  não  era  mau.  A  obra  predilecta  dos 
nossos  visinbos  apresentava  um  prologo  divertidíssimo 
e  completo. 

Uma  estrondosa  vozeria,  entrecortada  de  exclama- 
ções e  brados,  soava-nos  aos  ouvidos  como  bachanal 
desenfreada,  ás  lufadas,  em  caudal  possante  jorrado 
de  milhares  de  boecas,  que  provavelmente  se  escanca- 
ravam em  saudações,  consagradas  á  valentia  do  touro, 
que  prostrara  o  desventurado  artista. 

Ao  entrar  no  camarote,  onde  só  encontrámos  gente 
desconhecida,  a  vozeria  descrescia;  os  exaltados,  que  se 
tinham  posto  de  pé,  retomavam  os  seus  lugares ;  duas 
mulas  enfeitadas  arrastavam  da  arena  dois  cavallos  es- 
tripados; dois  criados  cobriam  de  areia  e  serradura  as 
poças  de  sangue  espadanado  para  a  direita  e  para  a  es* 
querda ;  o  touro,  entretido  pelos  capinhas,  escarvava  o 
cMo  á  espera  de  novas  vtelimas;  ia  coatiauar  o  gracio- 
so e  substancial  espectáculo,  onde  deviam  entrar  os  pri* 
meiros  espadas  nacionaes  Frascuelo  e  Lagar tijo,  vindos 
expressamente  para  maior  lustre  da  tourada  real. 

Quem  não  conhece  este  género  bárbaro  de  espectá- 
culos, tradição  sanguinária,  imitada  dos  lendários  circos 
romanos,  fique  sabendo  que  a  manha  e  destreza*  que 
alli  chamam  arte,  só  pertencem  ao  espada,  o  matador 
do  touro;  e  que  todos  os  artistas  se  podem  chamar  me- 
ros comparsas,  comparados  coca  etle. 

D'ahi  vem  a  fama,  que  lbes  dá  grande  importância  e 
renome  e  abastança  de  verdadeiros  príncipes  e  senho- 
res. 
•    NSo  somos  por  tourada*  de  nenhuma  espécie,  mas, 


496  wms  k  hàm 

a  admittílas,  convém  dfaer  que  na  bmiorétltar  dosais» 
sos  artistas,  peões  e  cavalleiros,  do  seu  brmcar  cora  as 
feras,  ba  muita  elegância,  distiacçáo  e  arte,  desde  o 
começo  até  ao  fim  das  nossas  foncções  tauromach*» 
cas. 

Em  Hespanba  não.  O  empresário  manda  comprar  os 
touros  para  a  corrida,  agaça-lhes  as  pontas,  faz  adqui- 
siçSo  de  vinte  ou  trinta  cavaHos,  cançados  de  trabalhar, 
inotHisados,  magros  oo  doentes.  Começa  o  espectáculo. 
Dois  oo  três  d'esses  desgraçados  animaes  vêem  para  o 
circo,  montados  por  cavalleiros,  armados  de  varas;  sol* 
ta-se  o  touro ;  não  faz  caso  dos  cavallos.  *  .  levam-se- 
Ibe  ao  encontro ;  ba  scenas  de  larga  e  repugnante  car- 
nificina; os  montadores  á  queda  docavalk)  estripado  de 
muitas  maneiras  saltam  ligeiros,  para  se  oio  cootoadi- 
rem  ou  evitarem  qualquer  marrada  do  touro,  que  a  es* 
se  tempo  é  logo  entretido  pelos  bomens  da  capa;  tiram- 
Ibe  o  aparelho  que  vae  servir  de  novo ;  vêem  as  sit- 
ias e  arrastam  pelo  cabresto  os  cavallos  mortos ;  se- 
guem-se  os  outros  e  nova  matança. 

Depois  de  seis  ou  mais  cavallos  espbaoeiaâos,  o  toar© 
está  caoçado,  ébrio  de  sangue;  apparece  o  espada,  a 
estrella  flammejante  d'aquelle  olympo  sanguinário,  o  de- 
pois de  algumas  sortes,  destinadas  a  enfraquecer  a  fera, 
enterra-Ihe  o  ferro  no  cachaço  até  aos  copos,  obliqua* 
mente  para  que  a  ponta  Ibe  possa  chegar  ao  coração  oo 
perto  d'elle. 

Quando  o  golpe  é  bem  dado,  o  touro  cambaleia*  e^àe 
logo ;  applicam-lbe  uma  pancada  entre  chifres,  para  a 
morte  rápida  e  completa ;  e  vêem  as  mulas  arrastal-o 
para  fora  da  arena,  como  fizeram  aos  cavallos,  no  meio 
dos  applausos  estrepitosos  e  delirantes  dos  espectado- 
res. 

As  outras  partes  da  foncção  compõe-se  do  mesmo  a»» 
sumpto. 

Por  esta  perfuoctoria  idéa,  pode-se  ajuizar  dos  recur- 
sos artísticos,  que  são  postos  em  pratica. 

As  praças  de  touros  entram  em  Hespanba  na  ordem 


passkio  mm  k  CAOBIS  487 


dot  ediftoios  mais  ponpoaos.  A  de  Cáceres  é  um  antigo 
e  visto  amfitbeatro  de  cantaria  e  tijolo,  de  que  são  guar- 
necidas as  próprias  bancadas  descobertas. 

Conforme  indicámos,  á  nossa  entrada,  saiam  os  últi- 
mos cavallos  mortos,  e  seguiam-se  mais  dois,  convenien- 
temente montados.  0  touro  estava  ao  fundo.  0  primeiro 
cavallo  vendado  reeusava»se  a  andar;  o  cavalleiro  es- 
poreava-o  para  sitio,  onde  a  negaça  produzisse  melhor 
effeito ;  o  touro  investiu  pela  trazeira,  e  enterrou-lbe  o 
chifre  direito  no  grosso  de  uma  perna,  d'onde  espadanou 
um  jorro  de  sangue,  que  lhe  borrifou  as  ventas.  O  ca- 
valk)  contraindo-se  á  violência  da  dôr,  quiz  fugir;  o  ca- 
vaUairo  reteve**),  atravessando-o  na  frente  do  touro; 
este  bufou,  e  em  nova  investida,  ferindo-o  no  coração, 
deitou-o  por  terra  sobre  um  lago  de  sangue.  O  caval- 
leiro levantara  a  perna  direita,  para  a  livrar  do  choque, 
saltou  para  o  lado,  e  o  capinha  desviou  a  atteoção  da. 
fera  para  o  outro  animal. 

O  que  se  seguiu  é  monstruoso  e  fantástico. 

Dando  pelo  novo  cavallo,  o  boi  soltou  dois  urros  me» 
donbos,  encarou-o  medonhamente»  e  foi  apanhal-o  de 
travez,  entre  o  ventre  e  a  espádua,  d'onde  golfaram  logo 
espadanas  de  um  vermelho  fumegante ;  recuou  depois 
disso,  e  em  novo  bote,  mais  furioso  ainda, espetou-lhe 
um  chifre  em  plena  barriga,  ficando-se  por  largo  espaço  a 
ferir,  a  rasgar,  meneando  a  cabeça,  como  que  a  saborear 
o  liquido  quente,  que  escorria  dos  intestinos,  parte  dos 
qnaes  caíram  na  areia  ensopada  peto  sangue  e  pela 
chuva. 

O.  cavallo  foi  a  terra,  e  o  cavalleiro  desmontou,  des- 
apparelbando-o.  Por  um  esforço  supremo,  por  ultimo 
instiacto  de  conservação,  o  pobre  animal,  com  quasi 
todas  as  tripas  de  rastos,  tentou  e  conseguiu  põr-se. 
ainda  de  pé ;  então  o  boi,  que  recuara  alguns  passos, 
investiu  ainda  de  cabeça  baixa,  e  levantou  no  ar  aquelle 
arcaboiço  dilacerado,  atirando-o  de  encontro  á  trincheira, 
onde  foi  produzir  um  som  cavo  e  um  arranco  medonho 
de  extrema  agonia.  .    . 


Os  apptaosos  soavank  estridentes;  os  tenreiros  }é  tra- 
balhavam decalco»,  para  lio  escorregarem  no  terreno 
molhado  e  crivado  de  manches  rubras  de  sangue  e  doe 
fragmentos  do  intestinos;  parte  dos  espectadoras»  sea- 
tados  nas  bancadas  de  pedra,  qne  por  soa  antiguidade 
já  ealavam  puídas  e  gastas,  formando  covas  de  agw* 
nfie  sentia,  a  bnmidade  peoetrar-lfae  nas  carões,  nem  ti* 
gava  importância  aos  demais  effaitos  4a  obnva,  iôe  sô- 
fregos de  eommoçio  estavam  todos,  tão  radiante»  4o 
preser,  tio  alegremente  aferrados  is  peripécias  do-es» 
peetaculo, 

Pentastteo  todo  aquillo  I  horrivelmente  fantástico  i 

O  tooro  estava  em  sazão  para  o  espada;  gtitowe  por 
elte;  o  nome  de  Frasooeio  retumbo*  por  todos  os  doo» 
vios  do  amfitbeatro;  houve  murmúrios  de  mparionflia. 

Da  rapento  estrondeen  orna  ovação;  o  torneiro  eelra- 
va  de  passo  eadenciado,  lançava  a  toda  a  paste  a  vista 
magestatica,  bombeando  a  figura  elegante  para  tedesos 
lados;  agradecia  trinmpbanteraenie,  e  incbnava-ee  com 
respeito  diante  da  tribuna  real;  dahi  a  pouco,  escondia 
o  ferro  lusente  na  capa,  que  em  varias  sorte*  apresa» 
mava  do  focinho  do  touro;  este  manifestava  já  «ma^erta 
merbides  de  movimentos,  estava  estonteado,  mas,  como 
ora  possante,  prestasse  á  lide. 

A  um  momento  dado,  a  espada,  aos  grilos  frenéticos 
da  moltidio,  ia  direita  ao  cachaço  do  animal,  onde  ficou 
enterrada  até  aos  copos. 

Porem...  ehi  fracasso  1  oh!  rabia t  Segoto*se  orna 
berraria  infernal  de  applausos  e  reprovações;  o  golpe 
nio  fora  bem  dado;  o  tooro  extoreendo^e  não  caía; 
cammbava  ainda,  eníurecta^e,  escarvava;  os  bomats 
punham-se  de  pé;  as  senhoras  debruçavam-se  i  tente 
dos  camarotes,  gesticulando,  fritando  também  :< 

—M#al  matai 

— Tmnro. . .  Que  es  «ao? 

—Se  km  qmeooaáo  ustedi 

—Caramba!  meda  tumHI 

—Matai  mala  4  ioroí  .   .  >  „/.*  , 


PÀSSKKKWMO  À  «KlRES  4& 

"» ' 

— P&r  fltó§  /  mata,  hombret 

E  rugiam  furiosos,  lançavam  ditas  picantes,  e  foliam 
baralho;  as  mulheres  batiam  com  os  leques  no  corrimão 
dos  camarotes,  os  homens  com  as  bengalas  e  os  pés  no 
caio,  nio  porque  o  animal,  passeiado  na  arena  com  ima 
espada  embebida  no  corpo  até  ás  guardas,  lhes  inspi- 
rasse qualquer  vislumbre  de  compaixio,  e  toes  desper- 
tasse um  bocadinho  de  sensibilidade,  mas  sim  porque 
elles  representavam  as  tradicç&es  sangrentas  e  odtoeas 
da  Ramfrdiswitota;  estavam  embriagados  m  cater  da  car- 
nificina, e  bradavam  impropérios,  porque  o  getpe  Mv» 
mal  applieado,  porque  o  átbteta  desmerecera  da  ma  Ah 
ma,  porqbe  o  saagoe  se  nio  derramara  logo,  porque 
bania  atada  mais  mortes  a  fazer,  e  a  chuva  caia  e  o 
tampe  nio  era  largo. 

'  Em  quanto  se  esperava  debalde  que  o  boi  eateae,  á 
força  de  se  rebitar  interiormente  a  si  próprio,  e  sere» 
qutetieu  novo  torro,  gastaram-se  uns  dez  minutos,  ao 
fim  dos  quaes  o  animal  ajoelhava,  tombando  para  o  te» 
do,  sob  -o  eflfeite  de  nova  estocada»  d%st*  vex  certeira 
e*  contento  de  todos; 

Quando  irromperem  de  toda  a  parte  as  demonstra- 
ções, que  reconquistavam  plenamente  os  créditos  do 
afamado  toureiro,  por  um  instante  abalados,  relanceá- 
mos um  olbar  para  o  camarote  real,  e  vimos  a  majes- 
tade beepanboia,  com  os  olbos  fitos  no  heroe  do  cireo, 
a  apptaudir  freneticamente,  em  quanto  que  «toei  D; 
Lvte,  e  ainda  bem  para  os  seus  hábitos  e  sentimentos, 
se  limitava  a  bater  com  as  pontas  dos  dedos  da  mio 
direita  nas  costas  da  esquerda,  passeiandoo  olbar  petos 
armeretes,  em  soppoeta  preoocupaçâo  e  bem  longeva 
arena  ensanguentada. 

A  nós  prod*&ire*íM)g  aquilto  uma  espécie  de  «atonte* 
mento,  visinbo  do  delíquio,  tamanha  repognafteie  *e  as- 
senhoreou das  nossas  faculdades. 

Dêmos  o  espectáculo  por  todo,  eimpellitoe*  o  nosso 
companheiro  para  o  meio  da  ma,  onde  a  chu*a  oenti*  > 
nume  a  tombar,  lenta  e  JmpertmoDteminte. 


# 
#       # 


Pira  onde  iríamos?  o  que  seria  de  dós,  até  i  hm 
do  regresso  a  Lisboa  ? 

Conaoltavamos-oos,  maldiaeodo  a  nossa  serie,  quan- 
do um  braço  entbosiasta  e  possante  nos  cáagiu  pelas 
costas,  ao  som  destas  palavras : 

—  Amigee  méo$,  á  mi  tawpoco  me  guskm  la$  ira% 
Eêtímo  encontrarias.  Vivan  nuesiros  campafierot!  Vim 
van  hm  reyeet  Viva  Portugal/ 

A  estas  palavras,  mais  correctas  e  aogmentadas,  osfor 
do  sobre  dós,  como  o  chuveiro  qns  dos  molhava,  to» 
zio-nos  uma  estrella  redemptora.  D.  José  Saotamãria» 
o  aympatfeo  jornalista  de  Badajoz,  o  nosso  conhecido 
amigo,  o  nosso  amabilissimo  companheiro  da  época  de 
Catderoo,  apparecia-nos  como  enviado  extraordinarioda 
Bondade  Suprema,  para  dos  consolar. 

— Venga  um  abraso.  Vwa  la  prema  J  Vivan. .. 

—Viva  todo  o  que  qoizer,  meu  amigo,  mes*. *  dós 
nío  sabemos  das  nossas  pessoas ;  temes  fome  e  frio ; 
acnda-nos  por  quem  è;  indique-nos. . . 

Que  oáo  faltava  nada,  que  a  companhia  do  caminho 
de  ferro  Unha  jantar  lauto  para  toda  a  comitiva;  que 
viéssemos  com  elle  a  casa  do  director,  o  sr.  Morai;  que. 
lá  podíamos  descalçar  avé  á  hora  mareada— diua*es  o 
bondoso  homem,  caminhando  Da  frente,  a  bracejar  con- 
stantemente, e  a  dizer-nos  amabilidades. 

S  assim  aconteceu.  No  meio  da  balbúrdia,  que  se 
observava  na  sede  da  companhia,  lá  podemos  entoadas* 
dos,  e  encontrar-nos  com  dois  ou  três  dos  nossos  com* 
panbetros,  descontentes  e  mais  esfomeados  do  que  nós, 
porque  náo  respeitaram  um  pão  desgarrado  e  umoo» 
que  se  atreveu  a  espreitar  a  nossa  passagem,  através 
dos  vidros  de  um  armário,  encontrado  n'um  gabinete 
escuse*  onde  elles  foram  á  descoberta. 

Depois  de  «ma  amabilissima  e  larga  conversa  wm  o , 


PASSEIO  HfltO  A  GAOUBS  494 


sr.  Sagasta,  presidente  do  conselho,  durante  a  qual  esse 
homem  importante  da  nação  visinba  mostrou  conhecer 
a  fundo  o  nosso  caracter  de  povo  económico,  prudente 
e  amigo  do  progresso,  tecendo  encómios  ao  nosso  viver 
social,  onde  descobriu  apenas,  como  elemento  pernicio- 
so» a  linguagem  libérrima  de  uma  parte  da  nossa  imprensa 
— seguimos  para  o  Instituto  Provincial,  extineto  coe  ven- 
to, onde  no  claustro  principal  estava  disposto  o  jantar; 
servido  peio  café  Fornos  de  Madrid,  e  destinado  pela 
companhia  dos  caminhos  de  ferro  á  comitiva  de  suas 
magestades,  os  jornalistas,  militares,  diplomatas  e  bo- 
mens  de  letras,  um  jantar  para  mais  de  duzentos  talhe- 
res, uma  reunião  brilhantíssima,  em  que  tomaram  par- 
te algumas  das  prihcipaes  notabilidade  da  corte  de 
Heapwha. 

Ao  tomarmos  assento  entre  o  nosso  companheiro  e  o 
bom  do  Saotamaria,  procurámos  descobrir  os  collegas, 
no  correr  das  duas  longas  filas  de  convivas,  os  últimos 
dos  quaes  não  podiam  distinguir  as  feições  dos  da  par- 
te extrema,  tão  comprida  era  a  mesa,  occupada  por 
cesto  e  tantos  indivíduos,  em  cada  lado.  Com  desgosto 
nosso,  rimos  que  não  chegavam  a  meia  dúzia  os  por* 
tuguezes  presentes;  os  outros,  enlameados,  perdidos, 
desnorteados  no  meio  d'aquella  notável  desorganisaçlo 
de  festejos*  vagueavam  talvez  pélas  ruas  da  cidade,  já 
de  ha  muito  escurecidas  pela  noite,  ou  haviam  tomado 
o  caminho  da  estação,  para  porem  um  termo  rasoavel 
aos  seos  matos. 

Pelo  que  nos  tocava,  embora  em  situação  differeote, 
a  nossa  sorte  não  era  menos  digna  de  lastima:  repugna- 
vam-oos  as  comidas  frias,  a  que  sempre  tivemos  tédio, 
sentíamos  os  artelhos  e  os  pés  húmidos,  invadia-nos  um 
aceentuado  mau  humor,  estávamos  irritado,  nervoso* 
enfastiado;  os  homens  de  fardas  agaloadas  transforma- 
vam-se  em  toureiros,  as  tripas  fumegantes  dos  cavai  los 
estripados  no  circo  bailavam-nos  na  cabeça,  reprodu» 
ziam-se  nos  pratos,  á  volta  de  nós,  em  dansa  infernal, 
a  que  puubam  os  necessários  toques  rubros  de  sangue 


49Í  iwtis  a  txns 

espadanado  os  vinhos,  que  espumavam  noa  copos*  da- 
rante  a  animação  das  saodes. 

Santamaria  incitava*nos  a  peleja,  com  a  palavra  e  com 
o  exemplo,  bracejava  sempre,  brandia  o  talher  para  a 
direita  e  para  a  esquerda,  acotovelava-nos,  e  nós  mal 
dávamos  por  todo  isso,  que  noutra  occasiio  nos  pro- 
duziria um  effeito  bem  diverso. 

Quando  Moret  acabava  de  usar  da  soa  palavra  rio* 
quente,  congratolando-se  com  Hespanha  e  Portugal  pe- 
la uniio  dos  sens  interesses  communs,  representados 
pelo  novo  caminho  de  ferro,  e  expondo  em  termos  ca* 
lorosos  e  em  extremo  sympaticos  todos  os  graus  de 
con fraternidade,  que  promettia  á  pepinsula  um  grandio- 
so futuro  —  sentimos  um  soco  violento  n'nm  quadril  e 
a  voz  caliente  do  nosso  collega  de  Badajoz  convidar-nos 
a  uma  resposta  immediata. 

Que  vivessem  Portugal,  a  boa  amizade  dos  dois  pai* 
zes,  o  presente  e  o  futuro;  que  pedíssemos  a  palavra; 
que  queria  ouvir  discursar  em  portagoez;  qae  era  pre- 
ciso faltar;  qôe  nos  tornávamos  desmancba-prazeres,  um 
teimoso  impenitente;  que  esquecêssemos  o  nosso  encom- 
modo;  qne  vivêssemos  todos,  pátria,  parentes  «amigos; 
que  emponhassemos  o  copo;  qne  nos  ergoessemoecom 
mH  diabos. 

Nós  resistíamos,  delegando  o  encargo,  se  o  era,  no 
Eduardo  Guimarães,  o  nosso  amigo  e  companheiro  coos* 
tante;  este  oemia  desassombrada  e  tranqoiUaffleiít*  ju- 
rando aos  seus  deuses  que  nio  abriria  a  boeca,  senio 
para  as  fonoçSes  da  mastigação. 

O  homem  pedia  entbusiasmo,  e  contíonava  a  insistir. 

Felizmente  por  entle,  Mariano  Pina,  sentado  alista* 
da,  fazía-nos  sem  o  saber  o  grandíssimo  obsequio  de 
tomar  sobre  os  hombros  a  cruz  oratória,  que  nos  im- 
punha o  nosso  collega,  e  respondia  a  Moret. 

Resfolegámos  por  um  pouco.  Aqoelte  dia  porem  cons- 
tituira-se  numa  serie  continuada  de  infortúnios  inespe- 
rados. 

Sentado  o  Pina»  aos  applaaaos  merecidos  e  unania»s- 


passeio  mo  a  cacbsis  493 

da  assembleia,  lembrou-se  o  director  do  jornal,  a  Chro- 
tdca  da  Extremadura,  de  levantar  á  imprensa  portugueza 
um  brinde  especial,  ruidosamente  correspondido. 

Findo  que  foi,  as  luzes  deixaram  de  brilhar  para  nós, 
e  o  claustro  cobriu-se  de  sombras,  a  um  sciu  prolonga- 
do, que  pedia  silencio:  achámos-nos  erguido  nos  braços 
do  amável  Santa  mana,  secundado  pelo  companheiro  da 
direita,  e  fatalmente  obrigado  ao  sacrifirio  de  uma  li- 
geira peroração,  tio  escorregadia  e  fastidiosa,  como  a 
arena  ensanguentada,  que  o  divertimento  tauromacbico 
dos  assentara  no  espirito. 


Quando  ás  11  horas  da  noite,  caminhávamos  a  pé, 
por  falta  de  conducçio,  entre  filas  de  tropas  e  homens 
do  povo  munidos  de  archotes,  que  illuminavam  a  estra- 
da, por  onde  o  cortejo  real  se  dirigia  á  estação,  calcando 
um  profundo  lodaçal,  e  maldizendo  a  nossa  vida,  abría- 
mos toda  a  nossa  alma  á  Divindade  Summa,  rogando- 
Ihe  com  a  máxima  devoçáo  e  a  mais  sincera  reverencia 
que  nos  deixasse  pôr  pé,  sem  noves  contratempos,  no 
estribo  do  comboio,  onde— oh  i  caso  tão  louvável  como 
imprevisto  i — fomos  encontrar  alguns  dos  nossos  com- 
panheiros, a  comer  traaquillameote  um  farnel  preventi- 
vo, e  a  rir*e  de  nds,  et»  bem  mesquinha  piedade. 

Por  fim,  com  a  alma  atanceada  de  torturas,  pedimos 
á  mesma  Providencia  que  de  futuro  nos  poupasse  a  fes- 
tejos régios,  onde  as  chuvas  e  as  touradas  bespanholas 
se  deesem  alttaoça  para  obsequiar  os  hospedes. 


ÍNDICE 


Pag. 

De  MsfcM  ao  Mondego 

I— 0  motivo  da  jornada— Coisas  do  coração— Pelo  ca- 
minho         9 

II— 0  Carregado— Recordações— Uma  atentara  de  ra- 
par       14 

III— Os  campos— A  emigração— Chegada i9 

Em  Coimbra 

I— Utilidade  de  dizer  cousas  )á  ditas— Impressões  e 
poetas— Os  estudantes— Raioas  humanas 24 

II— Passeios— O  jardim  botaaico— Uoa  estuotetee  dos 
dezoito  annos 29 

IH— 0  aqueducio— 0  Penedo  da  Saudade— Santo  An- 
tónio dos  Olivaes— Penedo  da  Meditação— Quinta  de 
Santa  Crui 35 

IV— A  uwversidâde— Coimbra  mta  4a  tom— O  mu- 
seu      41 

V— As  fogueiras— A  estrada  da  Beira— 0  caminho  da 
Louzã— A  quinta  da  Portella 45 

VI— No  Choupal— O  Mondego— A  feira  de  S.  Bartholo- 
meu— A  economia  coimbrã. 51 

VII— A  egreja  de  Santa  Cruz— A  sé  velha 55 

VIII— Santa  Clara  e  os  seus  pasteis— Quinta  das  La- 
grimas       61 

XIX— A  Lapa  dos  Esteio*  ou  Lapa  doa  poetas........     68 


nrotoc  W5 

Pag. 

No  Missaco 

I— De  Coimbra  a  Luso— Na  matta— Embevecimentoa.     78 

D— 0  mosteiro— A  Cruz  alta— 0  escândalo  de  um 
hymno— A  perda  de  uma  jóia— Cantanhede— As  Fe- 
bres       87 

Ponafeelro 

I— Ainda  o  coração— Erros  de  corographia  e  historia 
—Tradições 98 

II— Versões  antigas— Os  Furados— Nobiliarc||to  0  so- 
lar dos  Cunhas 106 

III— O  Pombeiro  moderno— Decadência— Fructos  da  ro- 
tina     116 

IV — A  instrucção  concelhia— A  egreja  e  as  suas  alfaias 

—Ponto  finai— Nota. 123 

No  Porto 

I— A  pente  Maria  Pia— O  monumento  dos  artistas— Os 
mercados— A  cordoaria  e  a  torre  dos  Clérigos— Pra- 
ças de  D.  Pedro  e  da  Batalha— O  palácio  de  Cris- 
tal     137 

D— O  Atheneu  portuense— A  bibliotheca— Um  suicídio 
frustrado— O  cemitério  do 'Repouso—Os  cocheiros 
—O  paço  episcopal  e  a  Sé 148 

III— As  almas  da  ponte  pênsil— A  alfandega  e  a  Bolsa 
— Hospital  da  Misericórdia— Duvidas  de  amante  e 
sentimentos  de  pae 158 

IV— Egreias  e  cemitérios— O  conde  de  Ferreira  e  o 
hospital  dos  doidos— O  museu  Allen— Da  Foz  a  Mat- 

tosinhos  e  Leça 167 

Em  Bra^a 

I— O  Minho — Pedintes  e  vadios— A  praça  de  Sant'An- 
na— A  egreja  do  Carmo  e  o  fradinho  de  Braga— Bo- 
fetadas devotas— A  Sé  e  os  cicerones .' 175 

II— Memorias  religiosas— Os  hotéis  e  as  frigideiras— 
O  Bom  Jesus  do  Monte— Devoto  á  força— O  Sameiro 

—A  ponte  do  Pico 184 

Be  Vftauna  a  Valença 

I— Bisonhíce  portctgueia— O  Lethes  da  fabula— Pas- 
seios—As  raparigas  de  Vianna— Fr.  Bartholomeu 
dos  Martyres— O  castello— Apologia  do  Lima— Com- 
parações      193 

II— Ponte  de  Lima— Tbeatro  e  hotel— Caso  horripilante 
—Cantatas  ao  luar— Até  Valença— A  terceira  praça 

de  guerra— Tuy 202 

Caldas  do  «érea 

I— Necessidade  de  uma  excursão  scientifica  ao  Gèrez 
—A  caminho— A»  aguas,  soa  antiguidade  e  tampe* 


496  mmei 

País. 

ratura— Carência  de  analyse— A  camará  4b  Beoro 
—Atraio  e  roiioa 2i2 

II— Commodidades—  Vingança  de  montanhezes— O  ho- 
tel Universal— O  que  seria  o  Gere*— Vidago  e  as 
aguas—  Caris-Baden— Agua  a  jorros— A  festividade 
— Cantigas  populares— Peditório  em  verso— Recor- 
toa  medico- pèarmaeeutieos 221 

III— O  sábio  José  Luiz,  medico  enviado  pela  sabia  ca- 
mara^jdas  Terras  de  Bouro— Receitas  clinicas— A 
copia  viva  do  Rosalino— Excerptos  de  um  livro  es- 
erfpto  durante  40  annos  com  muito  azeite  e  esta- 
dos     228 

TV— Ainda  o  nosso  homem— Continuação  dos  excer- 
ptos—O  que  vem  a  ser  a  cabeça  humana— Exame 
das  aguas— Outro  livro— Titulos  e  capitulo»— Sur- 
jam oe  editores— Bemdita  sapiência 236 

e  o  Mateaarfto  de  CaMerem 

I— Um  estrangeiropbobo—  Do  entroncamento  a  Bada- 
joz—D. José  Santamaria— Do  Guadiana  ao  Manza- 
aares 245 

II— O  aspecto  da  cidade— Ornamentos  do  Prado— Jar- 
dim botânico— Estatua  de  Murillo— Museu  de  pin- 
tura—Jerooymos— Fonte  de  Neptuno— Praça  Dois 
de  maio 252 

III— O  primeiro  dia  de  festas— Uma  feira  no  Prado — 
Batalha  de  Tetuan— Museus  de  artilhena  e  eneenae- 
ria— O  Buen  Retiro— Praça  de  touros— Via  Gastei- 
lana  e  outras— Porta  de  Alcalà— Fonte  de  Cibele— 
Monte  Helicon 259 

IV— Os  reaccionários— A  exposição  dos  Grandes  de 
Hespanha— As  edificações  madrilenas— Camará  dos 
deputados— Lembranças  das  velharias  lisboetas— 
Os  narizes  das  damas— As  estatuas  de  Cervantes  e 
Calderon 264 

V— La  Puerta  dei  Sol— Viva  la  graeia— Contra  os  ga- 
tunos—Ondas de  gente— Os  cafés  e  a  moeda  nacio- 
nal—O theatro  Apollo— Os  nomes  dos  lugares  nas 
casas  de  espectáculo 271 

VI— Segundo  dia— A  catnedral  da  Atocha— O  museu 
anthropologico— O  de  historia  natural— O  Naval— 
Considerações 276 

VII— As  estrebarias  reaes— As  carruagens  de  gala— 
O  theatro  da  Zarzuela— Uma  aventura. 263 

VIII— Terceiro  dia— O  commercio— Um  sapateiro  poe- 
ta—Praça  do  Oriente— Estatua  de  Felippe  IV— O  pa- 
lácio real  e  a  sua  capella— Egreja  de  &  Isidro— Ar- 


-^ 


197 


Pag. 

meria  Real— Porta  de  S.  Vicente—A  Segóvia,  antiga 
Mouraria— O  Pardo — O  tbeatro  Hespanbol— Lá  co- 
mo cá 289 

IX—  Quarto  dia— O  correio  não  vende  sellos— Ceri- 
monia fúnebre— O  destilar- das  tropas- A  casa  do 
poeta— A  praça  Mayor  e  a  estatua  de  Felippe  III— 
Recuerdos— Rua  de  Toledo— Praça  da  Cevada— O 
museu  areheologieo— Exageros— Três  egrejas— Os 
ricaços  lisboetas— Tbeatro  das  Variedades»,. .....    297 

X— Quinto  dia— Um  sacristão  patriota — Hospício  mu- 
nicipal— A  procissão  escolar— Hurra h  pela  mocida- 
de!—Com  moção— O  povo  e  o  futuro  de  Hespanha 
—Tbeatro  Eslava— O  sonho  de  Boethoven. ........    304 

XI— Sexto  dia— Aspecto  das  ruas,  destinadas  ao  cor- 
tejo— Procissão  historicH— Idéa  sobre  o  seu  extraor- 
dinário luzimento— Juízos  da  imprensa,  egnaes  ao 
nosso 312 

XII— Sétimo  dia— Resenha  das  publicações  mais  im- 
portantes—Ida  ao  Escurial—  Opera  ou  theatro  Real.    323 

XIII — Oitavo  dia— Vantagem  de  não  representar  cou- 
sa alguma— Na  casa  da  moeda— Uma  hespanholada 
—Exposição  de  gado— Outra  de  Bellas  Artes— Dois 

dias  mais  e  um  adeus  a  Madrid 329 

O  Escoriai 

I— Madrid  ás  6  horas— Caminho  do  Escurial— Parte 
histórica— Consirueçâo  de  Felippe  II— Obras  dos 
seus  suecessores 336 

II— Parte  descriptiva — O  exterior  do  mosteiro — O  tem- 
plo—A  sala  do  lavatório — A  sacristia — O  coro  e  o 
zimbório 345 

III — Paoteon  de  los  Reyes— Os  pudrideros — Opanteon 
de  los  Infantes— Claustros  e  bibliotbeca— O  palácio 
— Casas  de  Ariba  e  Abajo— Prevenção  inesperada, 

como  pooto  fioal 355 

Uni  dia  em  Toledo 

I— Noções  corographico-historicas— Uma  Alfama  em 
ponto  grande— A  capella  de  Santa  Catalina— O  Tal- 
ler  dei  Moro— Santa  Maria  La  Blanca— O  estylo  pla- 
teresco— El  Transito— S.  Juan  de  los  Reys 368 

II— Egrejas  de  S.  Juan  de  la  Penitencia,  Andrés  e  Mi- 
guel—El Aleazar— Ermita  dei  Cristo  de  la  Luz— 
Egreja  de  S.  Thiagò— Hospital  de  Afuera— Ruinas 
romanas— A  fabrica  de  armas 377 

Hl— A  Calhedral— O  que  diz  a  tradieção  histórica— O 
exterior — O  interior,  onde  se  abrigam  vinte  e  seis 
capellas—  Ponto  final 384 

32 


7 


ÍNDICE 


Pag.. 

Clatra 

I — Os  borro»— A  povoação-^Tâo  pobre  como  rica— -0 
palácio  real— Um  bom  exemplar  das  nossas  cadeias 
—Os  borriqoeiros— Quintas  do  Saldanha,  marqoe- 

zes  de  Vallada  e  Vianna— A  Pena 408 

-  II— O  castello  dos  mouros— O  conventinho  da  Serra— 
Um  pinheiro  notável— Mais  quintas  e  tapadas— Es- 
coro-mania  do  sr.  de  Monserrate— Seliaes— Passeio 
á  Vaiva  de  Collares— A  pedra  de  Alvidrar— Um 

Srofessor  classificado  pelos  discípulos— Quinta  do 
iamalhão— Trovas  e  recordações 424 

■afra— O  Escoriai  português 

I— A  Granja— A  gymnastica  n'uma  escola  municipal 

\    _o  voto  de  D.  João  V— Parte  histórica 437 

D— Parte  descriptiva— A  frontaria— As  faces  lateraes 
— A  quarta  fachada— O  templo,  capellas  e  zimbório    444 

Hl— Divisões  annexas— Alfaias  e  paramentos— Corre- 
dor das  anlas— Sala  dos  actos- Casa  do  capitulo— 
O  campo  santo— Refeitório  e  cosinha— Lavatório  e 
enfermaria— Portaria-mór— Escadarias,  cellas,  es- 
pnlgatorios  e  jardim 454 

IV— O  palácio — Torreões— Capella  real— Bibliotheca 
—Carrilhões  e  terraços— Aproveite- se  o  qne  é  notá- 
vel—Confrontos entre  Mafra  e  o  Escoriai 462 

Passeio  reglo  a  Cáceres 

I— Prologo— No  caminho— Em  Valência  de  Alcântara 
— Enthosiasmo  popular— Aposta  entre  camponeses 
—Reis  e  povo— Chuva,  desorçanisaçâo  e  lama —    473 

II— Em  Cáceres— Peregrinação  forçada— Calote  invo- 
luntário—Uma  tourada  h  espanhol  a— Imperícia  de 
Frascoelo— Chova  e  carnificina— Um  encontro  pro- 
videncial— Sagasta  comnòsco— O  jantar— Enthusias- 
mos  de  Santamaria— Um  voto  à  Divindade 482 


Aos  cuidados  da  revisão  escaparam  algumas  erratas,  como 
adornava  por  adornara,  a  pag.  9,  linha  ii  —  melancola  por  me- 
lancolia, pag.  68,  linha  4 — ponte  de  pênsil  por  ponte  pênsil, 
pag.  158,  linha  i — uma  letra  de  mais  ou  de  menos  aqui  ou 
acolá,  diabruras  typographicas,  ainda  assim  de  pequena  monta, 
que  o  leitor  facilmente  desculpará,  ao  corrigil-as. 


OBKAS 


DE 


D.  C.  SAJTCHES  DE  FEIAS 

A.  Mulher,  soa  infância,  educação  e 
influencia  na  sociedade  —  estudo  critico- 
doctrinario i  volume 

O  Sello  da  Roda,  drama  extrahido 

do  notável  romance  de  Pedro  Ivo I  volume 

Jor^e  de  A^uilar,  drama  extra- 
hido do  Remorso  Vivo i  volume 

Guia   de   Contabilidade,  para 

uso  do  commercio  e  das  escolas Opúsculo 

Horas  perdida»,  collecção  de  poe- 
sias com  o  retrato  do  autor I  volume 

Uma  Yiagem  ao  Amazonas, 
noções  verdadeiras  da  fauna,  flora,  costu- 
mes e  lendas  gentílicas  do  grande-rio  — 
obra  luxuosa  e  illustrada  com  gravuras 
de  pagina  por  Bordallo  Pinheiro,  Casano- 
va, M.  de  Macedo  e  Armando  Pedroso.. .  i  volume 

Maria  de  Frias,  memorias  bio- 
graphicas  e  paginas  intimas  —  edição 
commemorativa  e  particular i  volume 

Notas  a  Lápis,  passeios  e  digres- 
sões peninsulares — revista  amena  de  pe- 
quenas viagens  e  visitas  a  lugares,  cida- 
des, paisagens  e  monumentos  de  Portu- 
gal e  Hespanha i  volume 


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