Skip to main content

Full text of "Noticia de alguns pintores portuguezes e de outros que, sendo estrangeiros, exerceram a sua arte em resentada á Academia das sciencias Lisboa"

See other formats


n  i 

i            csi 

o                W 

sèIS 

u 

S^^— 

3          i- 

00 


IH 


A% 


NOTICIA 


DE 


ALGUNS  PINTOR 


B  W 


Mui 


OUTROS  ODE,  SENDO  ESTRANGEIROS, 


EXERCERAM  A  SUA  ARTE  EM  PORTUGAL 


MEMORIA  APRESENTADA  A  ACADEMIA  REAL  DAS  SCIENC1AS  DE  LISBOA 


i 


SOUSA  VITERBO 

SEU   SÓCIO  CORRESPONDENTE 


-^MNt^ 


LISBOA 
Typographia  da  Academia  Real  das  Sciencias 
1903  • 


\A 


NOTICIA 


DE 


ALGUNS  11B  PfflGIffi 


OUTROS  QUE,  SENDO  ESTRANGEIROS, 


EXERCERAM  A  SUA  ARTE  EM  PORTUGAL 


Extracto  da  Historia  e  Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa, 
nov.  ser.,  Classe  de  Sciencias  Moraes,  etc. 


TOMO  X PARTP.  I 


NOTICIA 


DE 


OUTROS  QDE,  SENDO  ESTRANGEIROS, 


EXERCERAM  A  SUA  ARTE  EM  PORTUGAL 


MEMORIA  APRESENTADA  Á  ACADEMIA  REAL  DAS  SCIENCIAS  OE  LISBOA 


POE 

SOUSA  VITERBO 

SEU   SÓCIO  CORRESPONDENTE 


LISBOA 

Typographia  da  Academia  Real  das  Sciencias 

1903 


tf  01 


IJNTRODUCÇAO 


Assim  como  não  ha  individuo  que  não  revele  mais  ou  menos  a  sua 
predisposição  especial,  assim  não  ha  povo  ou  raça  que  não  lenha  uma  fei- 
ção característica  a  designar-lhe  o  papel  que  lhe  incumbe  desempenhar 
no  drama  da  historia.  Ainda  mais.  Assim  como  ha  intelligencias  privile- 
giadas, talentos  encyclopedicos,  capacidades  para  bem  dizer  universaes, 
que  abrangem  toda  a  esphera  dos  conhecimentos  humanos,  assim  também 
existem  nações  que  concentram,  n'uma  dada  epocha,  toda  a  pujança  ce- 
rebral da  humanidade.  A  Grécia  é  o  mais  brilhante  e  irrefutável  exemplo 
a  comprovar  a  these.  Nenhum  povo  executou  tão  magistralmente,  como 
o  povo  hellenico,  a  marcha  symphonica  da  civilisação.  Nenhum,  como  elle, 
encarnou  tão  harmoniosamente,  n'um  gracioso  conjuncto  physico  e  mo- 
ral, a  soberana  figura  do  Progresso.  No  seu  corpo  viril  de  athleta,  mus- 
culoso como  o  de  Hercules,  esbelto  como  o  de  Apollo,  esbatem-se  os  re- 
flexos de  uma  alma  poética,  aureolada  pelos  esplendores  da  mocidade 
eterna.  E  a  estatua  colossal  de  um  gladiador  coroada  por  uma  cabeça  di- 
vina, modelada  por  Phidias,  e  em  que  respira,  como  na  de  Minerva,  a  sa- 
bedoria. A  columnada  do  Parthenon  dir-se-hia  o  marmóreo  esqueleto  do 
gigante,  que  legou  á  posteridade  os  inexgotaveis  thesouros  da  sua  vasta 
intelligencia  e  do  seu  finíssimo  sentimento  esthetico. 

Janeiro,  1903.  x 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Nenhum  povo,  por  mais  liberalmente  que  seja  dotado  pela  natureza, 
por  mais  vigorosa  que  seja  a  sua  potencia  mental,  por  mais  exuberante 
que  seja  a  fecundidade  do  seu  génio,  poderá  ficar  reduzido  aos  seus  pró- 
prios recursos,  pois  a  breve  trecho  lhe  teria  seccado  a  fonte  da  inspira- 
ção e  paralysado  nas  veias  a  seiva  da  originalidade.  Ai!  d'aquelle  que, 
possuído  do  Deus  intus,  sentindo  estalejar  no  seu  espirito  a  sarça  ardente, 
cheio  de  confiança  na  sua  vis  creadora,  se  recolhe  na  sua  torre  ebúrnea, 
alheado  de  tudo  que  o  rodeia,  imaginando  que  fica  isento  de  qualquer 
influencia  extranha  e  que  assim  pode  tirar  da  sua  mente  geradora  qual- 
quer coisa  de  extraordinário  e  de  descommunall  Innegavelmente,  ha  ta- 
lentos de  tal  ordem  excepcionaes  que  sobreexcedem  e  vão  muito  além 
dos  seus  contemporâneos,  mas  para  que  a  sua  obra  se  pudesse  conside- 
rar fructo  exclusivo  e  único  do  seu  saber  seria  necessário  que  elles  fi- 
zessem tábua  raza  de  todo  o  existente.  Esta  abstracção  tão  absoluta  e 
completa  como  e  quem  a  poderia  realizar?  Benevenuto  Gellini,  o  maravi- 
lhoso cinzelador,  uma  das  mais  bellas  flores  artísticas  da  opulenta  gri- 
nalda do  Renascimento,  se  o  fizessem  regressar,  milhares  de  séculos,  aos 
tempos  prehistoricos,  possuiria  sem  duvida  as  mesmas  faculdades  geniaes, 
mas  em  gérmen,  e  limitar-se-hia  a  entalhar  a  imagem  da  renna  ou  do  ele- 
phante  primigeneo  n'algum  cabo  de  marfim. 

A  civilisação  grega,  que  tanto  nos  maravilha,  não  foi  resultado  de 
uma  geração  espontânea,  mas  sim  o  producto  de  successivas  estratifica- 
ções intellectuaes,  que  se  foram  depositando  e  acumulando,  mais  ou  me- 
nos evolutivamente,  num  longo  periodo  de  séculos.  A  civilisação  helle- 
nica  é  um  grande  e  formosíssimo  estuário,  onde  vieram  desaguar  rios  das 
mais  remotas  paragens,  entre  os  quaes  avulta  o  mysterioso  Nilo,  sobre  cuja 
superfície  sobrenadou  o  berço  redemptor  de  Moysés  e  se  reflectiu  a  obra 
colossal  dos  Pharaós.  Cada  nação  ou  cada  raça  não  é  mais  que  a  depo- 
sitaria do  cofre  que  outras,  extincta  a  sua  actividade  histórica,  lhes  lega- 
ram, e  cujas  preciosidades  ora  se  limitam  a  conservar,  ora  augmentam  e 
depuram  de  qualquer  imperfeição  primitiva.  Succede  com  a  civilisação  o 
que  succede  com  a  sciencia,  em  cujo  grémio  se  contam  os  eruditos  e  os 
sábios.  Os  primeiros  são  os  receptadores  dos  conhecimentos  adquiridos; 
servem  apenas  para  os  manter  e  propagar;  são  uma  espécie  de  biblio- 


INTRODC;OÇAfí  111 

thecas  vivas  ou  de  plionographos.  Os  segundos  são  os  innovadores;  os 
que  impulsionam  a  sciencia  e  a  enriquecem  com  factos  novos,  alargando 
o  seu  horizonte.  A  Grécia  coube  por  excellencia  este  honrosissimo  papel. 

Ninguém  melhor  do  que  á  Itália  podia  a  Grécia  confiar  a  continui- 
dade da  sua  missão  sublime  e  ninguém  mais  apropriada  do  que  a  gentil 
filha  do  Lacio  para  religiosamente  cumprir  esse  mandato.  Athenas  e  Roma 
são  os  marcos  milliarios  que  mais  brilhantes  se  destacam  na  estrada  do 
progresso.  Apesar  de  possuir  na  Etruria  um  poderoso  foco  de  inspiração 
nativa,  a  Itália  foi  retemperar  o  seu  organismo  nas  fontes  da  civilisação 
hellenica,  a  quem  tomou  por  modelo,  reconhecendo,  sem  se  sentir  humi- 
lhada, a  sua  superioridade  artística.  Por  duas  vezes  a  Itália,  em  dois  pe- 
ríodos bem  distantes  e  bem  diversos,  transmittiu  ao  Occidente  as  tradi- 
ções recebidas  da  estirpe  nobilíssima  dos  Homeros  e  dos  Aristóteles.  Em- 
bora os  resplendores  do  Renascimento  já  tenham  obscurecido  de  ha  muito, 
a  Itália  ainda  é  hoje  a  Terra  Santa  da  arte,  onde  os  peregrinos  do  Bello 
vão  todos  os  annos  admirar  as  soberbas  relíquias  da  antiguidade  e  as 
primorosas  obras  dos  grandes  mestres  que  illustraram  as  cortes  dos  Me- 
díeis e  de  Leão  X.  Na  contemplação  de  tantas  maravilhas,  no  deslumbra- 
mento dos  quadros  vivificados  pelos  mágicos  pincéis  de  Raphael  e  de  Ti- 
ciano,  ninguém  diria,  á  primeira  vista,,  que  tamanha  pujança  creadora,  que 
tanta  força  de  originalidade,  fossem  impulsionadas  por  qualquer  motor  es- 
tranho; mas,  passado  o  allucinan;enlo,  o  critico  e  o  historiador  da  arte  não 
podem  deixar  de  confessar  que  entre  as  escolas  germânicas  e  as  escolas  ita- 
lianas houve  uma  transfusão  benéfica,  que  não  fica  mal  a  nenhuma  del- 
ias reconhecer,  posto  que  seja  difficil  extremar  qual  das  duas  partes  exer- 
cesse sobre  a  outra  a  sua  maior  esphera  de  acção. 

Seria  porventura  lisonja  afiançar  que  a  Hespanha,  sob  o  ponto  de 
vista  esthetico,  é  uma  nação  tão  privilegiada  como  a  Itália,  mas  não  se  lhe 
pode  negar  um  profundo  sentimento  artístico.  A  escola  hespanhola  de  pin- 
tura tem  nomes  gloriosos  que  competem  vantajosamente  com  os  mais  afa- 
mados de  Iodas  as  epochas  e  de  todos  os  paizes,  e  Murillo  e  Velazquez 
não  se  apoucam,  enfileirando-se  na  phalange  dos  Dúrer,  dos  Rembrandt, 
dos  Teniers,  dos  Buonarroti  e  dos  Rubens.  A  exuberância  da  escola  hes- 
panhola explica-se  não  só  pela  propensão  dos  seus  naturaes,  mas  por  ou- 


IV  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORKS 

tras  causas,  politicas,  históricas  e  geographicas.  Exercendo  incontestável 
supremacia  na  Europa  durante  o  século  xvi,  vangloriosa  dos  seus  trium- 
phos  militares,  em  contacto  directo  com  as  nações  mais  cultas,  seria  ne- 
cessário que  a  Hespanha  tivesse  a  mais  completa  negação  para  as  coi- 
sas que  fazem  a  alegria  do  espirito,  se  se  mostrasse  insensível  a  todas  as 
producções  estheticas  e  se  se  não  deixasse  aquecer  pelo  fogo  sagrado.  Na 
Itália,  na  Allemanha,  na  Hollanda,  nas  Flandres,  e  ainda  na  França,  ella 
teve  muito  com  quem  aprender  e  muito  que  estudar,  e  effectivamente  ella 
não  despresou  o  ensino  e  as  lições,  antes  tirou  de  tudo  o  mais  efficaz  pro- 
veito. 

Em  Portugal  as  mesmas  circumstancias  se  repetem,  já  não  direi  ab- 
solutamente eguaes  e  com  a  mesma  intensidade,  mas  muito  idênticas,  pelo 
menos.  Não  exercemos  um  papel  histórico  semelhante  ao  da  Hespanha,  não 
estivemos  em  contacto  directo,  por  meio  das  armas  e  pela  acção  politica, 
com  os  grandes  centros  de  civilisação  europeia,  mas  frequentámol-os  com 
assiduidade  por  meio  das  nossas  relações  mercantis  e  diplomáticas.  Por- 
tugal, convertida  Lisboa  no  bazar  do  mundo,  attrahia,  já  pelo  interesse, 
já  pela  curiosidade,  muitos  habitantes  das  diversas  regiões  da  Europa,  e 
por  isso  tanto  abundaram  entre  nós,  sobretudo  no  século  xvi,  os  elemen- 
tos estranhos,  uns  instigados  por  si  próprios,  outros  a  chamamento  dos 
monarchas  portuguezes.  Artistas  e  artifices  de  todos  os  géneros  aqui  vie- 
ram exercer  a  sua  variada  aptidão,  concorrendo  para  affirmar  o  fausto  da 
corte  e  a  grandeza  da  nossa  actividade  histórica.  Instinctivamente,  por  in- 
fluxo do  clima,  no  convívio  intimo  dos  nossos  navegadores,  ouvindo  d'el- 
les  as  narrativas  das  suas  viagens  e  as  descripções  dos  paizes  novos,  res- 
pirando com  elles  a  atmosphera  da  aventura  e  do  maravilhoso,  entraram 
assim  na  corrente  da  nossa  nacionalidade,  imprimindo  nas  suas  obras  um 
cunho  original,  resultante  da  fusão  das  mais  variadas  idéas  e  sentimen- 
tos. Boytac,  João  e  Diogo  de  Castilho,  mestre  Nicolau,  João  de  Ruão,  sou- 
beram amoldar-se  ás  circumstancias  e  traduziram,  nos  monumentos  que 
levantaram,  o  ideal  de  um  povo  convulsionado  pelo  espirito  da  novidade. 
A  celebrada  janella  de  Thomar  é  uma  allucinação  architectonica,  uma 
d'estas  creações  phantasticas  como  as  que  surgem,  do  meio  do  oceano,  aos 
olhos  dos  marinheiros  videntes.  Assim  se  explica  como  se  poude  formar 


INTRODUCÇAO  V 

com  a  collaboração  estranha  o  chamado  estylo  manuelino,  que  pode  susce- 
plibilisar  os  clássicos  e  os  rigoristas  da  arte,  mas  que  surprehende  pelo 
capricho  das  suas  linhas  e  pela  exuberância  da  sua  ornamentação. 

O  phenomeno,  que  se  deu  nos  monumentos  architectonicos,  genera- 
lizou-se  á  pintura.  No  mesmo  cadinho,  aquecidos  á  mesma  labareda,  se 
fundiram  e  caldearam  os  processos  e  as  individualidades  provenientes  do 
estrangeiro,  dando  origem  a  uma  escola  nacional,  onde  se  pretende  vêr, 
ora  a  influencia  flamenga,  ora  a  influencia  italiana.  A  primeira,  sem  du- 
vida, é  a  mais  preponderante,  sobretudo  no  século  xv  até  ao  primeiro 
quartel  do  século  xvi.  As  Flandres,  com  quem  estávamos  em  intima  con- 
vivência mercantil,  exerciam  então  sobre  nós  um  predomínio  egual  ao  que 
exerce  actualmente  a  França.  Sabe-se  de  alguns  pintores  portuguezes  que 
iam  estudar  a  Antuérpia  e  a  Bruges,  como  vão  hoje  estudar  a  Paris.  E  for- 
çoso todavia  reconhecer  que  a  Itália  também  era  muito  frequentada  pelos 
nossos  compatriotas,  em  cujas  universidades  se  iam  aprimorar  no  estudo 
do  direito  e  de  medicina.  Marinheiros  e  cosmographos  italianos  vieram 
tomar  parte  na  nossa  faina  marítima.  Professores,  como  Calaldo  Siculo  e 
outros,  ensinaram  os  nossos  príncipes.  Com  relação  ás  bellas  artes,  o  mo- 
vimento não  foi  menos  escasso.  Na  Bibliotheca  Nacional  do  Rio  de  Janeiro, 
levado  na  bagagem  da  família  real  portugueza,  existe  um  Breviário,  rica- 
mente miniaturado,  muito  provavelmente  em  Roma,  por  Spinello  Spinelli, 
por  encommenda  do  Rev.mo  Padre  Joaquim  de  Sá,  embaixador  de  D.  Fer- 
nando I,  rei  de  Portugal.1  Na  corte  de  D.  João  I  encontrei  noticia  de  um 
pintor,  mestre  António,  florentino.  A  celebrada  Bíblia  de  Belém,  doada 
por  L).  Manuel  ao  convento  de  S.  Jeronymo,  primorosamente  calligra- 
phada  e  miniaturada  em  Florença,  nos  fins  do  século  xv,  foi  obra  man- 
dada executar  pela  corte  portugueza  ou  para  lhe  ser  offerecida.  No  tempo 
de  D.  João  III  apparece  em  Lisboa  um  pintor  saboyano,  grande  restaura- 
dor de  quadros.  De  Nuno  Gonçalves,  que  viveu  no  tempo  de  D.  Affonso  V, 
diz  Francisco  de  Hollanda  que  elle  imitara  nas  suas  obras  os  bons  pro- 
fessores de  Itália,  embora  não  tivesse  lá  ido  estudar.  Esta  circumstancia 
demonstra  que  havia  entre  nós,  n'aquella  epocha,  bons  e  numerosos  mo- 
delos da  escola  italiana. 


1  Catalogo  da  Exposição  Permanente  dos  Cimeliot,  pag.  476  e  seg. 


VI  NOTiriA   DE  ALGUNS  PINTORES 

Taborda,  no  artigo  referente  a  Fernão  Gomes  1.°  (pag.  16G),  informa 
que  tanto  este  como  Gaspar  Dias,  Francisco  Venegas  e  Manuel  Campello, 
aos  quaes  o  douto  Cenáculo,  arcebispo  de  Évora,  accrescenta  Diogo  Rei- 
noso,  haviam  sido  mandados  estudar  a  Itália  por  D.  Manuel.  Não  produz, 
porém,  nenhum  facto  ou  documento  a  tornar  valida  esta  asserção.  Sabe-se 
além  d'isso  que  Venegas  viveu  no  reinado  de  D.  Sebastião,  e  não  no  de 
seu  bisavô,  a  não  ser  que  houvesse  anteriormente  outro  artista  do  mesmo 
nome.  O  mesmo  Taborda,  e  ainda  outros  auctores,  attribuem  com  frequên- 
cia aos  nossos  artistas  a  imitação  do  estylo  de  Raphael  e  sobretudo  de  Mi- 
guel Angelo,  professores  que,  aliás,  foram  bem  dislinclos  entre  si.  Che- 
gou quasi  a  ser  monomania  esta  generalisação  da  influencia  de  Miguel 
Angelo.  Raczynski  estranha  muito  natural  e  judiciosamente  que  Fran- 
cisco de  Hollanda,  tendo  convivido  na  intimidade  de  Miguel  Angelo,  não 
proferisse  uma  só  palavra  acerca  dos  seus  compatriotas  que  com  elle,  ou 
antes  d'elle,  seguiram  as  lições  do  Buonarroti.  O  silencio  de  Hollanda  im- 
pressiona, mas  não  se  deve  tirar  d'ahi  nenhuma  consequência  decisiva, 
porquanto  foi  sempre  escasso  em  noticias  relativas  a  obras  de  arte  por- 
tugueza,  como  se  esta  fosse  planta  exótica  em  Portugal. 

A  par  da  corrente  flamenga  e  italiana  não  se  deve  esquecer  a  cor- 
rente hespanhola,  sendo  não  poucos  os  individuos  d'esta  nacionalidade 
que  aqui  vieram  prestar  o  seu  concurso,  não  só  nas  bellas  artes  como  nas 
artes  industriaes.  Os  biscainhos,  por  exemplo,  figuram  com  frequência 
nas  artes  de  construcção  e  nas  industrias  melallurgicas;  no  fabrico  das 
armas  e  nas  explorações  mineiras.  Em  Braga,  que  foi  um  centro  de  ar- 
maria, ainda  existe  a  rua  denominada  a  dos  Biscainhos. 

Eu  acho  que  a  historia  de  qualquer  arte,  e  com  especialidade  a  da 
pintura,  se  deve  fazer  em  presença  dos  próprios  objectos,  analysando-os 
e  descrevendo-os  minuciosamente,  classificando-os,  segundo  o  tempo  e  se- 
gundo o  seu  valor  intrínseco.  Essa  classificação,  porém,  tem  os  seus  limites 
naturaes,  e  ultrapassal-os  seria  indesculpável  temeridade  que  faria  cahir 
em  graves  erros.  Nada  mais  difficil  do  que  classificar  um  quadro  segundo 
a  sua  epocha  e  a  sua  escola,  mas  essa  difficuldade  augmenta  quando  se 
lhe  quer  ,atlribuir  auctor.  Ora  é  preciso  não  esquecer  que  houve  muitos 
mestres  obscuros,  modestíssimos,  inconscientemente  geniaes,  cujas  obras 


INTRODUCÇÃO  Vil 

fazem  o  pasmo  de  quem  as  contempla  e  o  desespero  de  quem  lhes  quer 
penetrar  o  anonymato.  Indubitavelmente  ha  artistas  que  se  erguem  muito 
acima  dos  seus  contemporâneos,  mas,  conhecidos  os  seus  processos,  não 
faltam  os  imitadores  e  os  discípulos,  que  lhes  desvendam  os  segredos  e 
lhes  seguem  a  maneira,  sobretudo  no  que  ella  tem  de  material  e  pratico, 
e  por  isso  as  obras  de  uma  dada  epocha  apresentam  um  ar  de  família, 
que  fazem  com  que  os  mais  insignes  peritos  se  enganem  muitas  vezes. 
Não  se  está  vendo  como  em  nossos  dias  se  praticam  burlas  e  se  enga- 
nam os  colleccionadores  com  copias  de  quadros  attribuidos  aos  mestres 
mais  em  voga  e  que  deviam  ser  facilmente  reconhecidos? 

A  classificação  de  um  quadro,  além  do  seu  rigoroso  exame  technico, 
não  se  pode  fazer  com  segurança  e  sem  a  menor  sombra  de  duvida,  sem 
o  auxilio  de  documento  elucidativo.  E  ainda  assim  é  preciso  que  esse  do- 
cumento seja  bem  authentico  e  bem  explicito,  pois  de  outro  modo  pode 
dar  logar  a  equívocos.  Imagine-se  que  um  documento  nos  indicou  a  fei- 
tura de  certo  quadro  num  determinado  logar  e  qual  o  seu  assumpto.  Se 
não  designar  a  matéria  em  que  foi  executado  e  quaes  as  suas  dimensões, 
nada  mais  fácil  que  o  original  ter  sido  substituído  por  outro.  E  quantas 
vezes  não  terá  succedido  assim  1 

A  efficacia  do  auxilio  documental  comprovou-a  recentemente  o  sr. 
Maximiano  de  Aragão,  revolvendo  os  archivos  de  Vizeu,  conseguindo  as- 
sim attestar  e  delimitar,  sem  controyersia,  a  actividade  artística  de  Vasco 
Fernandes,  que  já  quasi  pairava  nas  regiões  da  lenda.  Hoje  está  posto 
á  evidencia  que  um  pintor  d'aquelle  nome  residiu  em  Vizeu  entre  1512 
e  1543,  anno  em  que  já  era  fallecido,  e  que  ali  constituirá  família,  dei- 
xando por  sua  morte  viuva  e  filhos.  Muitas  particularidades  da  sua  vida 
nos  são  ainda  desconhecidas,  e  entre  ellas  a  do  local  do  seu  nascimento, 
embora  o  sr.  Aragão  opine  que  elle  não  podia  ser  oriundo  senão  d'aquella 
cidade  ou  seus  arredores.  Os  seus  argumentos,  porém,  parece-me  que  não 
teem  outro  valor  senão  o  de  meras  conjecturas,  mais  ou  menos  razoáveis. 
Ás  terras,  que  teem  sido  até  agora  assignaladas  como  seu  berço  natal,  de- 
ve-se  accrescentar  Besteiros,  conforme  se  lê  no  Diccionario  Geographico, 
manuscripto  da  Torre  do  Tombo,  no  artigo  relativo  a  esta  villa,  onde  se 
lê  o  seguinte  trecho: 


VIII  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTOItES 

«...  mas  o  que  se  descobre  da  Pintura  se  observa  ser  notável  e  se 
prozume  ser  do  nosso  grande  Portuguez  e  famoso  Pintor  o  Gran  Vasque, 
nem  só  por  auer  noticias  que  elle  foi  oriundo  desta  freguezia  de  hum  Po- 
voo, que  chamavam  Cazal  de  Vasco  e  hoje,  corruto  vocábulo,  chamam  Ca- 
zal  Dasco,  mas  também  por  aver  noticia  que  este  famozo  Pintor  nunqua 
Pintou  se  não  em  Pau.»1 

Na  enorme  quantidade  de  quadros  altribuidos  a  Grã-Vasco,fe  de  que 
Raczynski  nos  dá  uma  lista  a  pag.  154  e  seguintes  do  seu  livro  Les  arts 
en  Portugal,  enumera-se  um  quadro  representando  S.  Thomaz  de  Can- 
tuari,  que  existia  n'uma  sala  do  mosteiro  de  Alcobaça  e  cujo  destino  actual 
se  ignora.  Para  authenticar  a  sua  procedência  citam-se  os  manuscriptos 
do  dr.  Ribeiro  dos  Santos.  Não  sei  onde  este  erudito  investigador  fosse  co- 
lher semelhante  informação;  o  que  sei  é  que  ella  se  encontra egualmente na 
interessantíssima  obra  Alcobaça  and  Batalha,  de  William  Beckford,  que 
nos  fins  do  século  iviu  visitou  aquelles  dois  mosteiros,  sendo  hospedado 
principescamente  pelos  monges  de  S.  Bernardo.  Eis  o  que  o  espirituoso 
lord  escreve  sobre  o  ponto  especial  a  que  me  venho  referindo: 

«I  rose  early,  slipped  out  of  my  pompous  apartment.  strayed  about 
endless  corridors — not  a  soul  slirring.  Looked  into  a  gloomy  hall,  much 
encumbered  wilh  gilded  ornaments,  and  grim  with  the  ill-sculptured  effi- 
gies  of  kings;  and  another  immense  chamber,  with  white  walls  covered 
with  pictures  in  black  lacquered  frames,  most  hideously  unharmonious. 

«One  portrait,  lhe  full  size  of  life,  by  a  very  ancient  Portuguese  ar- 
tist  named  Vasquez,  attracted  my  minute  attention.  It  represenled  no  less 
interesting  a  personage  than  St.  Thomas  à  Becket,  and  looked  the  chara- 
cter  in  perfection;  —  lofly  in  stature  and  expression  of  countenance;  pale, 
but  resolute,  like  one  devoted  lo  death  in  his  great  cause;  the  very  being 
Dr.  Lingard  has  portrayed  in  his  admirable  History.»2 


1  Torre  do  Tombo.  Obra  citada,  vol.  vii,  foi.  796. 

2  Obra  citada,  pag.  44  c  seguinte.  O  livro  de  Beckford  sahiu  á  luz  da  publicidade  em 
Londres  em  1835.  O  dr.  Ribeiro  dos  Santos  havia  fallecido  em  1818. 


ÍNTRODUCÇÃO  IX 

Verificada,  sem  sombra  de  contestação,  a  existência  em  Vizeu,  na 
primeira  metade  do  século  xvi,  de  um  pintor  chamado  Vasco  Fernandes, 
pôde  por  acaso  deduzir-se  d'ahi  que  elle  foi  o  auctor  dos  famosos  qua- 
dros que  ornamentam  a  Sé  d'aquella  cidade  e  a  um  dos  quaes  já  se  ap- 
plicou  o  epitheto  de  oitava  maravilha  da  pintura  ?  Certamente  que  não. 
O  mais  que  esse  achado  histórico  pudera  produzir  seria  consolidar  uma 
tradição  que  se  esbatia  quasi  lendária  no  vago  fundo  de  uma  chronolo- 
gia  indecisa.  O  sr.  Maximiano  de  Aragão  encontrou  todavia  outros  ele- 
mentos que  contribuem  poderosamente  para  a  solução  satisfactoria  do  pro- 
blema que  tanto  tem  atormentado  o  espirito  dos  mais  ferrenhos  investi- 
gadores. Um  documento  dos  princípios  do  século  xvu  attribue  a  Vasco 
Fernandes  a  magestosa  figura  de  S.  Pedro  sentado  na  cadeira  pontifical. 
Sem  querer  de  modo  nenhum  diminuir  o  valor  de  semelhante  testemunho, 
que  tem  o  defeito  de  vir  meio  século  depois  da  morte  do  insigne  artista, 
mas  que  offerece  todos  os  signaes  de  sincera  authenticidade,  não  posso 
deixar  de  dizer  que  elle  ainda  não  constitue  o  que  se  chama  uma  prova 
positiva,  infallivel,  rigorosamente  terminante.  Em  vez  d'elle  preferiria  o 
contracto  para  a  feitura  da  obra,  o  recibo  assignado  pelo  mestre  em  que 
declarasse  ter  cobrado  toda  ou  parte  da  quantia  ajustada,  o  auto  de  ava- 
liação feito  por  qualquer  seu  collega,  uma  referencia,  emfim,  bem  clara,  em 
qualquer  carta  da  epocha.  Estou  convencido  que  ainda  se  chegará  a  fazer 
este  descobrimento,  ou  no  cartório  da  Sé  ou  em  qualquer  outro,  onde  ás 
vezes  menos  se  espera.  Não  sei  se  se  desencaminharam  os  cadernos  das 
despezas  das  obras  feitas  na  cathedral  viziense,  mas,  se  ainda  existem,  lá 
se  deve  talvez  encontrar  algum  indicio.  O  mesmo  direi  com  relação  ás  car- 
tas dos  reis  e  dos  bispos  dirigidas  ao  cabido.  Custa  a  crer  que  na  corres- 
pondência de  D.  Miguel  da  Silva,  estante  em  Roma,  não  se  faça  allusão 
a  qualquer  objecto  ou  assumpto  artístico.  Eu  bem  sei  que  o  sr.  Aragão 
desceu  ás  mais  minuciosas  pesquizas,  mas,  em  taes  casos,  ninguém  se  pôde 
gabar  de  ter  exhaurido  todas  as  fontes.  Elle  mesmo  confessa  que  não  ti- 
nha esperança  de  obter  resultado  favorável,  quando,  antes  d'elle,  archeo- 
logos,  como  Oliveira  Berardo,  já  tinham  procedido  á  exploração  da  mina. 
E  todavia  elle  foi  bem  adeante  dos  seus  predecessores,  e  poude  exclamar 
mais  de  uma  vez  jubiloso:  Ecce! 

Janeiro,  1903.  b 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Admiltindo,  por  mera  hypothese,  que  Vasco  Fernandes  nasceu  em 
Vizeu,  ou  no  seu  termo,  como  se  explica  que  n'uma  terra  de  província, 
menos  importante  que  outras  cidades,  como  Évora,  Coimbra,  Porto  e  Lis- 
boa, se  viesse  a  formar  isoladamente  um  portento  artístico?  Ou  Vasco 
Fernandes  sahiu  de  Vizeu  para  se  ir  instruir  em  algum  grande  centro,  ou 
encontrou  na  sua  pátria  algum  mestre  que  ali  estivesse  trabalhando  e  que 
lhe  dirigisse  e  aproveitasse  a  vocação  genial.  Ainda  outra  supposição  se 
pode  formular,  e  vem  a  ser  que,  não  sendo  Vasco  Fernandes  natural  de 
Vizeu,  ao  vir  ali  fixar  a  sua  residência  trouxesse  já  os  conhecimentos 
que  o  caracterisaram  eminente  profissional. 

Como  se  vê,  a  individualidade  de  Vasco  Fernandes  suggere  ques- 
tões de  elevado  alcance,  não  só  com  relação  á  sua  pessoa,  mas  com  rela- 
ção á  escola  que  se  diz  fundada  por  elle.  Se  existe,  como  Robinson  e  ou- 
tros críticos  estrangeiros  pretendem  e  admittem,  uma  antiga  escola  portu- 
gueza  de  pintura,  deve-se  considerar  Vasco  Fernandes  como  seu  chefe,  fa- 
zendo do  S.  Pedro  a  cellula-mater,  de  onde  proliferaram  as  demais  ?  De- 
ve-se considerar  Vizeu  como  o  foco  principal  da  nossa  actividade  pictórica? 
Relativamente  a  esta  ultima  interrogação  a  minha  resposta  não  pôde  dei- 
xar de  ler  o  signal  negativo.  Lisboa,  no  meu  entender,  foi  o  principal  cen- 
tro de  producção  artística,  como  o  attestam  as  relíquias  que  ainda  contem- 
plamos e  que  bem  nos  denunciam  qual  seria  a  opulência  do  thesouro  se 
o  fatal  terremoto  de  1755,  secundado  pelo  vandalismo  dos  homens,  não  o 
tivesse  consumido  na  sua  maior  parte.  Os  quatro  quadros  do  século  xv  no 
immenso  corredor  de  S.  Vicente  de  Fora,  os  do  arcaz  e  do  coro  da  Madre 
de  Deus,  os  de  S.  Rento  e  do  Paraíso,  que  estão  no  museu  de  Bellas  Ar- 
tes, além  de  muitos  outros,  bastariam  a  dar  foros  de  cidade  á  minha  opi- 
nião. D.  Manuel,  desejoso  de  ornamentar  condignamente  o  Tribunal  da  Re- 
lação, mandou  executar  diversos  painéis,  obra  que  devia  ser  de  proporções 
grandiosas,  attendendo  ao  tempo  que  n'ella  se  consumiu  e  ao  numero  dos 
mestres  n'ella  empregados.  Foram  elles  Francisco  Henriques,  que  eu  sup- 
ponho  flamengo,  pelas  razões  que  adduzo  no  artigo  que  adeante  lhe  con- 
sagro, e  que  parece  ter  sido  o  director;  Garcia  Fernandes,  Christovão  de 
Figueiredo  e  Gregório  Lopes,  além  de  outros  que  se  não  nomeiam,  e  di- 
versos serventuários,  que  eram  escravos.  O  primeiro  falleceu,  victima  da 


INTRODUCÇÃO  XI 

poste,  sem  vêr  concluída  a  obra.  Com  elles  trabalhava  André  Gonçalves, 
mas  em  obras  de  outro  género.  As  pinturas  da  Relação  deviam  ter  um 
caracter  especial,  deslacando-se,  sem  duvida,  dos  assumptos  religiosos, 
que  eram  os  predominantes,  e  foi  pena  que  Damião  de  Góes,  na  sua  Des- 
cripção  de  Lisboa,  em  latim,  não  se  referisse  a  ellas,  sendo  esta  omissão 
tanto  mais  para  lastimar  quanto  é  certo  que  o  illustre  chronista  era  exí- 
mio conhecedor  da  arte.  Esta  affluencia  de  pintores  em  Lisboa  no  reinado 
de  D.  Manuel,  e  ainda  no  de  D.  João  III,  moslra-nos  que  era  d'aqui  que 
irradiava  principalmente  o  movimento  artistico  para  os  demais  pontos  do 
paiz. 

Com  estes  factos  "não  pretendo  offuscar  a  tal  ou  qual  primazia  de 
que  tem  gosado  \izeu  e  que  na  pintura  lhe  marca  um  logar  semelhante 
ao  de  Coimbra  na  arte  de  esculpir.  Além  de  Vasco  Fernandes,  indica-nos 
o  sr.  Aragão  a  existência,  n'aquella  primeira  cidade,  de  outro  pintor,  de 
nome  Gaspar  Vaz,  que  eu  supponho  ser  o  que  executou  os  quadros  do 
extincto  convento  de  S.  João  de  Tarouca,  conforme  provo,  documental- 
mente, no  artigo  que  lhe  consagro,  e  que  até  agora  se  attribuiam  a  Grão- 
Vasco.  Aqui  está  como  um  documento  veiu  fazer  uma  revelação  impor- 
tante e  simplificar  uma  questão  intrincada.  A  comparação  dos  quadros  de 
Tarouca  com  os  de  Vizeu  ajudará  a  classificar  estes  últimos,  que  certamente 
não  são  todos  do  mesmo  pincel,  pois  entre  o  S.  Pedro  e  os  restantes  não 
só  não  ha  uma  analogia  profunda,  mas  até  se  notam  differenças  sensíveis. 

Além  da  parle  documental  outros  subsídios  se  devem  buscar  para 
o  estudo  histórico  da  pintura  portugueza.  Os  livros  illuminados  são  gale- 
rias em  ponto  reduzido,  e  algumas  paginas  de  códices  membranaceos  teem 
o  valor  de  verdadeiros  quadros.  Assim  o  retraio  que  ornamenta  a  Chro- 
nica  de  Guiné,  de  Azurara.  O  miniaturista  António  de  Hollanda  não  valia 
menos  do  que  qualquer  pintor  do  seu  tempo.  A  analyse  dos  quadros  deve 
por  conseguinte  fazer-se  comparativamente  com  a  dos  pergaminhos  illu- 
minados da  mesma  epocha. 

Estou  lambem  convencido  que  as  pinturas  sobre  vidraça  não  seriam 
absolutamente  estranhas  ao  movimento  geral,  e  que,  por  conseguinte,  a 
escola  da  Batalha  deve  entrar  em  linha  de  conta,  offerecendo  de  per  si 
só  um  capitulo  bastante  interessante. 


XII  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Ao  Conselho  Superior  dos  Monumentos  incumbe,  sem  perda  de  tempo, 
tomar  uma  parle  activa  e  de  primeira  ordem  na  vigorosa  campanha  que 
se  deve  intentar  em  favor  da  conservação  e  divulgação  histórica  e  artística 
dos  primores  da  pintura  nacional.  Já  existe  uma  lei  que  determina  quaes 
são  os  objectos  monumentaes  que  devem  ficar  sob  a  vigilância  immediata 
do  estado,  mas  essa  lei  será  letra  morta  e  completamente  inútil  se  não  se 
proceder,  mais  ou  menos  melhodicamente,  ainda  que  com  caracter  provi- 
sório, aos  arrolamentos  indispensáveis.  O  inventario  das  pinturas  poder- 
se-hia  formular,  não  só  pelo  exame  directo,  mas  com  a  ajuda  das  descri- 
pções  que  nos  offerecem,  além  dos  raros  especialistas,  os  viajantes  estran- 
geiros que  teem  visitado  o  nosso  paiz.  Hoje  já  é  um  pouco  difficil  saber-se 
a  proveniência  de  muitos  dos  quadros  que  estão  no  Museu  das  Bellas  Ar- 
tes, por  o  catalogo  não  o  indicar,  mas  com  o  auxilio  de  Raczynski,  que 
ainda  teve  ensejo  de  recolher  fresca  a  tradição,  se  poderá  saber  d'onde  el- 
les  vieram.  Taborda  e  Cyrillo  faliam  de  quadros  que  elles  examinaram 
com  os  seus  próprios  olhos;  urge  indagar,  pelas  suas  indicações,  se  exis- 
tem ou  que  destino  levaram.  Uma  obra  interessante  e  que  merece  ser 
consultada  pelos  que  se  dedicam  a  este  ramo  de  estudos,  e  aos  quaes  tem 
passado  desconhecida,  é  um  poema  latino,  impresso  em  Lisboa  em  1739, 
e  de  que  é  auctor  o  dr.  José  de  Mattos  Rocha.  N'elle  se  descreve  o  pa- 
lácio de  Calhariz,  na  Arrábida,  próximo  a  Setúbal,  e  as  pinturas  que 
adornavam  as  suas  salas,  algumas  das  quaes  attribuidas  a  mestres  de 
grande  nomeada.1  Na  Torre  do  Tombo  existe  um  manuscripto  in-4.°, 
que  foi  doado  á  Cartuxa  de  Évora  pelo  arcebispo  da  mesma  cidade,  D. 
Theotonio  de  Bragança.  Não  tem  data,  mas  é  indubitavelmente  da  segunda 
metade  do  século  xvi.  N'elle  se  encontra  uma  lista  dos  quadros,  que  eu 
supponho,  talvez  sem  grande  desacerto,  que  formariam  a  galeria  dos  pa- 
ços reaes  de  Évora.  Apesar  da  sua  extrema  concisão,  apontando  apenas 
e  mui  ligeiramente  os  assumptos,  julgo-a  interessantíssima,  como  o  leitor 
pôde  verificar  por  seus  próprios  olhos,  lendo-a  em  seguida: 


1  Descriptio  Poética  Villa  Calarisince.  Possuo  um  exeniplar  que  pertenceu  á  livraria  do 
marquez  de  Angeja,  cujo  ex-libris  conserva. 


INTRODUÇÃO  XIII 

Retratos 

«hum  retrato  delRey 
«outro  da  rainha  nossa  Senhora 
«outro  delRey  dom  Fernando 
« treze  retratos  de  primçepes 
«hum  dei  rei  dom  Felipe 
«outro  do  emperador  Carlos 
«outro  do  ifamte  dom  Carlos 
«três  da  Rainha  dona  Isabel 
«hum  da  rainha  dona  Joana 
«outro  da  rainha  D.  Maria  regente  de  Frandes 
«outro  da  rainha  de  Dinamarca 
«outro  da  enperatriz  dona  Isabel 

«hum  retrato  de  hua  dama  que  por  egenho  lhe  bolem  as  meninas 
dos  olhos 

«outro  da  primçesa  de  Dinamarca 

«outro  do  princepe  dom  Felipe  de  Castella 

«hua  cruz  comtra  feita  que  são  Tome  fez 

«hua  figura  grande  em  pano  de  linho 

« hum  perguaminho  cõprido  de  peças  de  gelosia  de  Reis  e  primçepes 

«duas  fundas  de  vaca  pêra  dous  retratos.» ' 

Percorrendo  as  salas  dos  paços  reaes,  os  palácios  e  casas  particula- 
res, as  galerias  publicas,  infelizmente  limitadíssimas,  as  egrejas  e  alguns 
estabelecimentos  de  instrucção,  como  a  Ribliotlieca  Nacional  de  Lisboa, 
a  Academia  Real  das  Sciencias,  a  Universidade,  ainda  se  encontrariam 
apreciabilissimos  vestígios  da  antiga  opulência  artística  portugueza.  O  re- 


1  Livro  sem  titulo  que  pertenceu  A  Cartuxa  de  Évora  e  se  guarda  na,  Cota  dos  Trata- 
dos do  Archivo  da  Torre  do  Tombo,  foi.  49  e  49  v.  Tem  o  seguinte  começo:  «Cruzes  =  iij.  a 
saber  hua  cruz  de  pau  com  seus  pees  de  lauores.» 


XIV  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

cheio  actual,  resto  de  maior  quantia,  não  é  para  desprezar.  O  cadastro, 
que  se  viesse  a  organisar,  deveria  compôr-se  de  três  partes  essenciaes  ou 
de  três  columnas.  Na  primeira  d'ellas  registrar-se-hiam  os  quadros  obser- 
vados e  descriplos  pelos  diversos  auctores  ou  mencionados  nos  documen- 
tos. Na  segunda  indicar-se-liia  o  seu  paradouro  actual,  historiando-se  as 
vicissitudes  por  que  teem  passado,  procurando  indagar-se,  quanto  possí- 
vel, qual  o  destino  que  levaram,  os  que  não  apparecem,  extraviados  ou 
destruídos.  Na  terceira,  finalmente,  mencionar-se-hia  o  que  está  inédito,  o 
que  tem  passado  desconhecido  á  superficial  observação  dos  entendidos.  E 
não  se  pense  que,  sob  este  ultimo  ponto  de  vista,  a  colheita  fosse  estéril 
ou  não  compensasse  o  trabalho  dos  que  andassem  na  apanha.  Basta  di- 
zer-se  que  ainda  ha  bem  poucos  annos  é  que  foi  revelada  a  existência 
dos  quatro  notabilissimos  painéis  de  S.  Vicente. 

Este  inventario,  por  mais  minucioso  que  fosse,  por  mais  consciên- 
cia que  houvesse  na  sua  elaboração,  deixaria  muito  a  desejar  se  não  se 
lhe  accrescenlassem  os  complementos  indispensáveis — o  documental  e  o 
graphico.  Este  ultimo,  sobretudo,  impõe-se  como  uma  necessidade  de  pri- 
meira ordem,  e  adial-o  por  mais  tempo  chegaria  a  ser  o  mais  criminoso 
desleixo.  Hoje  em  dia  os  processos  de  reproducção  graphica  teem-se  ba- 
rateado e  facilitado  de  tal  modo  que  não  seriam  precisos  grandes  sacri- 
fícios para  conservar  e  perpetuar  pela  estampa  os  nossos  monumentos. 
Estou  persuadido  até  que  qualquer  photographo  se  abalançaria  á  empreza 
desde  o  momento  que  lhe  dessem  o  privilegio  do  exclusivo  ou  lhe  facul- 
tassem um  subsidio  ou  garantia  qualquer.  Já  que  os  nossos  gravadores 
raras  vezes  se  dedicaram  a  generalisar  as  obras  dos  grandes  mestres,  po- 
pularisando-se  e  glorificando-se  a  si  próprios,  venha  a  photographia  em 
seu  logar  cumprir  esse  piedoso  dever.  Pela  sua  parte  os  archeologos,  os 
investigadores,  explorem  os  archivos  e  tragam  á  luz  da  publicidade  os  se- 
gredos que  desvendaram  nas  suas  explorações. 

Não  pretendo  erigir  uma  columna  triumphal  á  memoria  dos  nossos 
pintores,  incrustando  n'ella,  de  alto  a  baixo,  os  nomes  de  todos  aquelles 
que  cultivaram  em  Portugal  a  arte  divina  de  Apelles.  Não  metlo  hombros 
Ião  pouco  á  tarefa  de  redigir  um  diccionario  completo.  O  meu  propó- 
sito, consoante  as  minhas  forças,  é  muito  mais  restricto:  dou  apenas  um 


INTRODUCÇÃO  XV 

contingente  modesto,  esperançado  i]ue  a  minha  contribuição  seja  seguida 
de  outras  que  completem,  quanto  possível,  as  lacunas  que  se  observam 
n'este  ramo  importantíssimo  da  historia  das  bellas  artes. 

Pondo  remate  a  estas  breves  considerações  preliminares,  seja-me 
pormiltido  manifestar  aqui  o  meu  mais  affectuoso  reconhecimento  aos 
meus  eruditos  amigos  General  Brito  Rebello  e  Pedro  A.  de  Azevedo  pela 
dedicada  gentileza  com  que  tão  generosamente  se  prestaram  a  coadju- 
var-me  nestas  investigações. 

Lisboa,  12  de  novembro  de  1902. 


I.— Abreu  (Simão  de). — Racksynski  não  incluiu  este  nome  no  seu  Diction- 
naire,  omissão  tanto  mais  para  estranhar  quanto  é  certo  que  o  visconde  de 
Juromenha  lhe  ministrou  esclarecimentos  acerca  de  outros  artistas  que  traba- 
lharam em  Thomar.  A  razão  seria  porque  Juromenha  não  percorreu  todos  os 
cadernos  das  despezas  das  obras  feitas  n'aquelle  convento.  Simão  de  Abreu 
deu  todavia  alli  grandes  provas  da  sua  actividade,  não  só  pintando  quadros, 
mas  estofando  ou  encarnando  imagens,  dourando  columnas,  retábulos,  tochei- 
ros,  etc.  Para  a  charola  executou  sete  quadros.  Trabalhou  juntamente  com  Do- 
mingos Vieira  durante  os  annos  de  1592  a  1595.  Pelas  verbas  extrahidas  dos 
cadernos  das  obras,  e  que  dou  em  seguida,  se  vê  quaes  foram  as  quantias  que 
recebeu,  já  de  per  si,  já  com  o  seu  companheiro,  pelos  trabalhos  que  lhe  fo- 
ram encommendados. 

Nem  Taborda,  nem  Cyrillo  tiveram  conhecimento  d'este  pintor. 

«A  Simão  da  Breu'  pintor  se  derão  de  sete  retábulos  que  pintou  para  as 
sete  capellas  da  charola  &  das  Marias  A-  do  crucificio  e  mais  imagês  de  vulto 
que  tudo  pintou  e  dourou  de  novo  com  os  entabolamentos  dourados  em  que 
estão  as  ditas  imagês  —  ouue  sinquenta  mil  —  A-  assim  entrão  as  dez  cruzes  &  __ 
tocheiros  que  pintou  e  dourou.  L 

Simão  dabreu.» 


1  Na  féria  de  20  de  junho  de  1592  veja-se  em  Domingos  Vieira  a  verba  de  dez  mil  réis 
que  competiu  a  Simão  de  Abreu. 

Jaseiro,  1903.  1 


2  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Mais  ao  dito  Simão  d  abreu  se  derão  dez  mil  reis  de  pintar  e  dourar  a 
cappella  de  São  bento  que  tomou  a  sua  conta. 
fl-  106  v.  Simão  d  abreu.» * 

«Lembrança  do  que  tem  recebido  os  pintores  do  padre  frei  Damião': 

*xxb  b'  «Domingos  Vieira  tem  recebido  trinta  e  simqo  mil  e  quinhentos  reis. 

xxij  bc  «Simão  d  abreu  tem  recebidos  vinte  e  dois  mil  e  quinhentos  reis. 

«Mais  a  Domingos  Vieira  quinze  mil  reis  que  se  deuem  ao  padre  dom 
prior. 

«Simão  d  abreu  recebeo  outros  quinze  mil  reis  que  também  se  deuem  ao 
fl.  22  padre  dom  prior.» 

«Lembrança  do  que  tem  recebido  os  pintores  do  padre  frei  Damião: 

xxx.  «Emprestou  o  padre  frei  damião  para  a  charola  trinta  mil  reis. 

xxbij  ix  «Emprestou  mais  o  dito  padre  vinte  e  sete  mil  e  nouecentos  reis. 

«It.  Mais  se  deue  ao  padre  dom  prior  trinta  mil  reis  que  deu  aos  pinto- 
xxx  res  a  conta  dos  altos  da  charola  —  a  saber  —  quinze  mil  reis  a  cada  hO. 

«Fiquace  devendo  a  Domingos  Vieyra  dezaseis  mil  e  quinhentos  reis  a 
conta  dos  altos  da  charola. 

«E  a  Simão  d  abreu  trinta  e  seis  mil  e  seiscentos  reis. 

«It.  A  esta  conta  recebeo  Domingos  Vieyra  dez  mil  reis  véspera  de  na- 
tal <£  Simão  d  abreu  recebeo  outros  dez  mil  reis  que  lhes  deu  o  padre  dom 
fl.  23  prior  o  dito  dia  véspera  de  natal  (de  1593). 3 

«Sabbado  28  de  outubro  de  1595  receberão  Simão  d  abreu  e  Domingos 
Vieira  pintores  vinte  e  dous  mil  reis  —  a  saber  —  onze  mil  reis  cada  hfl —  para 
tintas  dos  altos  dos  oitavos  da  charola  —  que  se  hão  de  lançar  em  liuro.* 

frey  Adrião  dom  prior 
fl  102  v.  Simão  dabreu.  Domingos  Vieira. 

«Sabbado  24  dezembro  de  1594  recebeo  Simão  dabreu  pintor  trinta  mil 


1  Na  féria  de  24  de  julho  de  1892.  Archivo  da  Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de 
Christo.  L.°  115. 

2  Entre  28  de  setembro  e  24  de  dezembro  1593. 

3  Archivo  da  Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de  Christo.  L.°  124. 

4  Idem.  Idem.  Idem. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  ô 

reis  que  se  lhe  montarão  na  parte  das  imagês  da  charola  que  lhe  dourou  <£ 
estofou  <fc  assinou  aqui  com  padre  frei  Adrião  perante  mim  o  Lecenceado  Si- 
mão Ribeiro  scriuão  das  ditas  obras.  xxx 

frey  Adrião.  Simão  d  abreu.  A-  138 

«Sabbado  22  dias  do  mez  de  Julho  de  Mil  e  quinhentos  e  noventa  e  sim- 
quo  annos  receberão  Simão  d  abreu  e  Domingos  Vieira  pintores  oitenta  mil 
reis  á  conta  dos  vãos  de  dentro  da  charola  que  começarão  de  pintar  e  assi- 
narão aqui  com  o  padre  dom  prior  perante  mim  dito  scriuão.  Lxxx 

frey  Adrião  dom  prior 
Simão  dabreu.  Domingos  Vieira.  fl.  139  v. 

Simão  Ribeiro 

«Sabbado  21  dias  do  Mez  de  Outubro  de  1595  receberão  Domingos  Vieyra 
e  Simão  dabreu  —  a  saber  —  Simão  dabreu  dez  mil  reis  a  conta  de  hú  dos 
altos  que  pintou  da  dita  charola  e  recebeo  mais  sinquo  mil  reis  a  conta  da 
obra  de  dentro  da  charola.  xb 

«E  Domingos  Vieira  vinte  e  dois  mil  reis  a  conta  da  sua  parte  dos  ditos 
altos  da  dita  charola  —  &  recebeo  mais  sinquo  mil  reis  a  conta  da  obra  de  cha- 
rola de  dentro  —  &  assinarão  aqui  com  o  padre  dom  prior  e  comigo  dito 

scriuão.  xxbij 

frey  Adrião  dom  prior 

Simão  dabreu.  Domingos  Vieira.  fl.  no  v. 

«Receberão  o  dito  Simão  d  abreu  e  Domingos  Vieyra  noventa  mil  reis  da 
obra  que  pintarão  na  charola  da  banda  e  parte  &  alta  por  dentro  e  assinarão 
aqui  com  o  padre  dom  prior  perante  mim  dito  scriuão.  & 

frey  Adrião  dom  prior 
Simão  dabreu.  Domingos  Vieira. 

«Recebeo  Domingos  Vieyra  do  padre  frei  Damião  em  25  de  nouembro 
quinze  mil  e  quinhentos  reis  para  ouro  e  tintas  dos  oitauos  da  charola.  Rece-  xb  bc 
beo  Simão  dabreu  a  dita  conta  doze  mil  e  quatrocentos  reis  á  assinarão  aqui  xTj  iiij« 
com  o  padre  frei  Adrião  doui  Prior.' 

Simão  d  Abreu.  Domingos  Vieira. 


Esqueceu  assignar  o  dom  prior,  o  que  succedia  muitas  vezes. 


4-  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Sabbado  23  dias  do  mez  de  dezembro  de  1595  receberão  Simão  d  abreu 
«-••'"  ix  e  domingos  Vieyra  cento  &  sesenta  mil  reis  que  se  montarão  na  obra  dos  oi- 

tauos  do  alto  da  cliarola  &  assinarão  aqui  com  o  padre  dom  prior  e  comigo 
dito  scriuão. 

frey  Adrião  dom  prior 
Simão  d  abreu.  Domingos  Vieira. 

fl.  141  frey  Maurício 

«Sabbado  28  de  outubro  de  1595  recebeo  Simão  d  abreu  onze  mil  reis 
á  Domingos  Vieyra  outros  onze  mil  reis  para  tintas  &  ouro  dos  oitauos  dos 
^  altos  da  charola  —  &  assinarão  aqui  com  o  padre  dom  prior  perante  mim  dito 

xx"  scriuão.1 

frey  Adrião  dom  prior 
Domingos  Vieira.  Simão  d  abreu. 

fl  j-g  Simão  Ribeiro 

Vejam-se  em  Domingos  Vieira  Serrão  outras  verbas  que  se  lhe  referem. 


II. —  Affonso  (Fernando). —  Pintor  de  D.  João  II.  Este  mouarcha,  em  10 
de  julho  de  1486,  lhe  passou  carta,  tomando-o  por  seu  e  sob  a  sua  guarda. 
Em  12  de  dezembro  de  1487  lhe  passou  outra  de  privilegio,  a  qual  foi  confir- 
mada por  D.  Manuel  em  25  de  outubro  de  1496.  Fernando  Affonso  exercia  o 
seu  officio  em  Santarém. 

Gonhecem-se  outros  pintores  de  Santarém,  como  se  pode  vêr  nos  artigos 
consagrados  a  Espinosa  (João  de),  Barreto  (Jorge)  e  Fernandes  (Gomes). 

«Dom  Joham,  etc,  a  quamtos  esta  nossa  carta  virem  fazemos  saber  que 
nos  filhamos  ora  nouamête  por  nosso  e  em  nossa  especial  garda  e  9mcomenda 
a  Fernam  da0,  pintor,  morador  em  esta  villa  de  Santarém,  e  porem  rogamos 
a  todolos  que  com  rezom  deuemos  e  êcomêdamos  e  mãdamos  a  lodolos  fidal- 
gos, caualeiros,  escudeiros,  corregedores,  ouuidores,  juizes,  justiças,  olyciaaes 
e  pesoas,  assy  desta  uilla  como  doutras  quaaesquer,  a  que  esta  nosa  carta  for 
mostrada,  e  o  conhecimento  delia  pertencer  que  ajom  daqui  em  diãte  o  dito 
Fernã  da0  per  noso  e  so  nossa  garda  e  emcomenda  e  lhe  nom  façom  nem  con- 
sentom  seer  feito  nenhQu  nojo. . .  Dada  em  Santarém  x  do  mes  de  julho.  P.° 
Luis  a  fez  anno  de  mil  iiij°  lxxxbj.»2 


1 É  a  mesma  verba  que  está  por  lembrança  no  L.°  124  e  que  se  vê  atraz.  Archivo  da 
Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de  Cbristo.  L.°  115. 
1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  João  II.  L.°  4,  fl.  91. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  O 

«Dom  Jobam,  ele.  A  uos  juizes  desta  nossa  villa  de  Sanlarem  e  a  Iodai- 
las  outras  nossas  justiças  e  outros  quaaes  quer  que  esto  ouuerem  de  ver,  saú- 
de, sabede  que  nos  querendo  fazer  graça  e  mercê  a  Fernam  Da0,  nosso  pin- 
tor morador  em  esta  nossa  villa  por  o  seruiço  que  de  seu  oficio  nos  em  ella 
faz,  temos  por  bem  e  queremos  que  daquy  em  diante  seja  priuilegiado. . . 
Dada  em  a  nossa  villa  de  Santarém  a  xij  dias  de  dezembro  J.°  Seram  a  fez 
de  iiije  Ixxxbíj.n  • 

«Dom  Manuel!,  etc.  A  quamtos  esta  nosa  carta  virem  fazemos  saber  que 
por  parte  de  Fernam  dAfomso  noso  pimtor  nos  foi  apresemtada  huua  carta 
delRey  dom  Jobam  meu  Senbor  cuja  alma  Deus  aja  daquall  ho  teor  tall  he : 

«Dom  Joham  per  graça  de  Deus  Rey  de  Purtugall  e  dos  Algarues  daquem 
e  dallem  mar  em  Africa  senhor  de  Guyuee  a  vos  juizes  desta  nosa  villa  de  Sam- 
tarem  e  a  todallas  outras  nosas  justiças  e  a  outros  quasquer  que  esto  ouue- 
rem de  ver  saúde  sabede  que  nos  queremdo  fazer  graça  e  merçè  a  Fernam 
dAfomso  noso  pimtor  morador  em  esta  nosa  villa  por  o  seruiço  que  de  seu 
officio  nos  em  ella  faz.  Temos  por  bem  e  queremos  que  daquy  em  diamte  seja 
priuilligiado  e  escusado  de  bir  seruir  por  mar  nem  por  terra  em  paz  nem  em 
gerra  per  nhíiua  guisa  que  seja  saluo  comnosquo  e  nam  com  outra  nhuua  pe- 
soa  posto  que  haja  noso  poder  pêra  lleuar  bornes  darmas  piaêes  beesteiros  ou 
qualquer  poder  que  hasy  dermos  pêra  hirem  as  ditas  gemles  nos  queremos 
que  senam  emtemda  em  o  dito  Fernam  dAfomso  saluo  havemdo  elle  nosso  es- 
piciall  mamdado  outro  sy  queremos  que  nam  pague  em  pididos  peitas  fymtas 
talhas  nem  em  outros  nhúus  emearreguos  que  per  nos  ou  per  ese  comçelho 
sam  ou  forem  Mancados  daquy  em  diamte  per  qualquer  guysa  que  seja  nem 
vaa  com  pressos  nem  com  dinheiros  nem  seja  titor  nem  curador  de  nhuuas 
pesoas  saluo  se  ha  titoria  for  llidima  nem  sirua  em  outros  alguus  emearreguos 
nem  seruidoêes  do  dito  comçelho  nem  pagara  outauo  de  vinho  nem  doutra 
cousa  que  haja  saluo  jugada  de  pam  que  pagaraa  outro  sy  queremos  que  nam 
pousem  com  elle  em  suas  casas  de  morada  adegas  nem  caualarices  nem  lhe 
tomem  suas  bestas  de  seella  nem  dalbarda  nem  pam  vinho  rroupa  palha  ce- 
uada  llenha  gallinhas  nem  outra  nhuua  cousa  do  sseu  comtra  sua  vontade  ou- 
tro sy  queremos  que  elle  possa  trazer  quaees  e  quamtas  armas  lha  prouuer 
asy  de  noute  como  de  dia  per  todos  dossos  Regnnos  sem  embarguo  de  nossas 
hordenaçoêes  e  defesas  ffetas  em  comtrairo.  E  porem  vos  mamdamos  que  lhe 
cumpraees  e  guardes  e  façaees  ymteiramente  comprir  e  guardar  esta  nossa 
carta  em  todallas  cousas  em  ella  comthiundas  sem  outro  alguum  embarguo 
que  ha  ello  ponhaees  e  nam  o  queremdo  vos  hasy  comprir  per  esta  mamda- 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  João  II.  L.°  18,  fl.  28  v. 


O  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

mos  a  qualquer  taballiam  a  que  for  mostrada  que  vos  empraze  que  ha  quymze 
dias  primeiros  seguymtes  pareçaees  peramte  nos  a  dizer  qual  he  ha  razam 
por  que  nam  compris  e  guardays  e  este  priuilegio  lhe  damos  asy  comtamto 
que  elle  tenha  comthinoadamente  todas  suas  armas  compridas  como  qualquer 
nosso  vasalo  darmas  per  a  nosso  seruiço  e  pareça  com  ellas  nos  halardos  pre- 
semte  ho  nosso  veedor  dos  vassallos  ao  tempo  que  he  ordenado  qne  hos  ditos 
nossos  vassallos  pareçam.  Dada  em  a  nossa  villa  de  Santarém  a  xij  dias  de 
dezembro  —  Joham  Serrãao  a  fez  de  iiijc  lxxx  bij.  Pidimdo  nos  ho  dito  Fernam 
dAfomso  que  lhe  comflrmasemos  a  dita  carta  e  visto  per  nos  seu  rrequeri- 
mento  e  queremdo  lhe  fazer  graça  e  merçee.  Temos  por  bem  e  lha  comfirma- 
mas  asy  e  pella  guysa  e  maneira  que  se  em  ella  comtem  e  asy  mamdamos  que 
se  cumpra  e  guarde  jmteiramente  ssem  outra  duuyda  nem  embarguo  alguum 
por  que  ha  sy  he  nossa  merçee.  Dada  em  Santarém  a  xxb  dias  doutubro  Vi- 
çemte  Pirez  a  fez  anno  do  Naçimento  de  Nosso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mill 
iiijc  1  r  bj  annos.» ' 


III.— Affonso  (João)  1.°  — Pintor  e  vassallo  de  D.  Affonso  V,  o  qual  lhe 
deu  carta  de  aposentamento  em  10  de  janeiro  de  1473,  embora  elle  não  ti- 
vesse a  edade  legal,  isto  é,  70  annos.  Esta  mercê  lhe  fez  el-rei  pelos  seus  ser- 
viços nas  partes  de  Africa  e  outros  logares,  mais  provavelmente  com  as  ar- 
mas na  mão  do  que  com  o  pincel. 

tDom  Affomso,  etc,  a  quamtos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos 
queremdo  fazer  graça  e  merçe  a  Joham  Afomso,  pimtor,  nosso  vassallo,  mora- 
dor em  a  cidade  de  Lixboa  por  os  seruyços  que  nos  tem  fectos  em  as  partes 
dafryca  e  em  outros  lugares,  temos  por  bem  e  apousentamollo  com  toda  sua 
homrra,  posto  que  nom  aja  ydade  de  sateenta  annos  per  que  o  deue  seer.  E 
porem  mandamos  ao  veador  dos  nossos  vassallos  da  dita  çydade,  etc,  carta 
em  forma.  Dada  em  Euora  a  x  dias  de  janeyro  —  elRey  o  mandou  per  dom 
Joham  Galuom  bispo  de  Coimbra  &  Afomso  Garçes  a  fez  —  de  mill  iiijc  lxxiij.*s 


IV.— Affonso  (João)  2.°  — Supponho-o  differente  do  anterior.  Morava  em 
Leiria  e  trabalhava  como  pintor,  no  mosteiro  da  Batalha.  D.  Affonso  V  lhe 
passou  duas  cartas  de  privilegio:  uma  de  12  de  dezembro  de  1449,  conce- 
dendo-lhe  as  regalias  de  que  gozavam  os  demais  artífices  que  trabalhavam  nas 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.°  32,  fl.  16  v. 
1  Idem.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.°  33,  fl.  7. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  / 

obras  d'aquelle  mosteiro;  a  outra  de  24  de  fevereiro  de  1450,  isentando-o 
dos  encargos  da  aposentadoria. 

«Dom  Afomso,  etc.  A  quamtos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos 
querendo  fazer  graça  e  merçee  a  Joham  Afomso  nosso  pintor,  morador  em 
Leirea  por  quamto  he  compridoiro  no  nosso  moesteiro  de  Santa  Maria  da  Vi- 
torea  Temos  por  bem  e  queremos  que  aja  e  lhe  sejam  guardados  os  priuille- 
gios,  homrras,  graças,  liberdades  e  mercees  que  ham  e  sam  dadas  aos  pe- 
dreyros,  carpemteyros  e  cauouqueyros  que  lauram  na  dieta  obra.  E  porem 
mandamos  a  todallas  nossas  justiças  e  a  outros  quaeesquer  que  esto  ouuerem 
de  veer  que  vejam  o  priuillegio  que  elles  de  nos  tem  e  conprem  e  guardem 
ao  dito  Joham  Afomso  em  todo  e  per  todo  como  em  elle  for  conteúdo.  E  nõ  vaa- 
des  nem  consentaees  hir  comtra  ell  per  nehQa  guissa  que  nossa  mercee  e  uon- 
tade  he  de  el  seer  de  todo  jsemtoo  e  escussado  com  tanto  que  el  sirua  conti- 
noadamente  quamdo  lhe  rrequerido  for  sendo  bera  prestees  e  deligente  a  todo 
aquello  que  a  seu  oficio  pertençee  pêra  obra  do  dicto  moesteyro  e  doutra  guissa 
nõ  unde  ai  nõ  façades.  Dada  em  Euora  xij  dias  de  dezembro,  Diego  Borjes  a  fez 
anno  do  Nosso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mjl  iiijc  Rix.» ' 

«Dom  Affonso,  etc.  A  quantos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos 
querendo  fazer  graça  e  mercee  a  Joham  A.°,  pintor,  morador  em  a  nossa 
villa  de  Leirea,  porquanto  pinta  em  o  nosso  moesteiro  da  Uitoria,  teemos  por 
bem  e  queremos  que  posto  que  nos  ou  a  rraynha  minha  sobre  todas  prezada 
e  amada  molhei-,  iffantes  e  duques  meus  irmãaos  e  tios  e  outras  pessoas  se- 
jamos em  a  dita  villa  que  nora  dem  de  poussadia  a  pessoa  algQua  suas  cassas 
de  morada,  adegas  e  cauallariças,  nem  lhe  tomem  rroupa  de  cama,  alfayas  de 
cassa,  pam,  vinho,  rroupa,  palha,  lenha,  galinhas,  gaados  nem  bestas,  nem  ou- 
tra algQua  coussa  do  sseu  contra  ssua  vontade.  Porem  mandamos  aos  nossos 
poussentadores  e  aos  da  dita  Raynha  e  dos  iffantes  e  duque  e  aos  juizes  e 
poussentadores  da  dita  villa  e  a  outros  quaes  quer  a  que  esto  perteencer  e 
esta  carta  for  mostrada  que  lhe  compram  e  guardem  e  façam  bem  conprir  e 
guardar  esta  nossa  carta  per  a  guissa  que  em  ella  he  contheudo,  unde  húus 
e  outros  ai  nom  façades.  Dada  em  Euora  xxiiij  dias  de  feuereiro. — Diego  Bor- 
ges a  fez  —  ano  de  nosso  Senhor  Ihesu  Xpo  de  mil  iiijM.  (1450).»2 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.°  4, 11  l  v. 
'  Idem.  Idem.  L.»  34,  fl.  57  v. 


8  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


V. —  Affonso  (Jorge). — Jorge  Affonso  era  arauto  de  el-rei  e  morava  por 
detraz  de  S.  Domingos,  conforme  elle  próprio  declara  no  depoimento  que  fez 
no  processo  de  Garcia  Fernandes,  seu  sobrinho  por  afinidade,  por  ser  casado 
com  a  filha  de  uma  sua  irmã.  Ora,  sendo  a  mulher  de  Garcia  Fernandes  filha 
do  pintor  Francisco  Henriques,  segue-se  que  Jorge  Affonso  era  cunhado  d'este 
ultimo. 

A  9  de  agosto  de  1508  o  nomeou  D.  Manuel  seu  pintor,  com  o  encargo 
de  examinador  e  veador  de  todas  as  obras  de  pintura,  submettidas  a  seu  exame 
e  avaliação.  Tinha,  com  este  officio,  dez  mil  reaes  por  anno,  pagos  na  Casa 
da  Mina.  D.  João  III  confirmou-lhe  a  nomeação  a  9  de  dezembro  de  1529. 

Em  30  de  novembro  de  1519  foi  celebrado  um  contracto  entre  Affonso 
Monteiro  e  Affonso  Gonçalves,  carpinteiro  de  maçanarria,  para  fazer  os  poiaes 
e  grade  para  o  retábulo  da  Conceição,  que  Jorge  Affonso  havia  de  pintar.  No 
respectivo  contracto  se  declara  que  estava  presente  Jorge  Affonso,  irmão  de 
Affonso  Gonçalves.  Seria  este  Jorge  Affonso  o  próprio  pintor?  Esta  hypothese 
parece  confirmar-se,  vista  a  semelhança  ou  identidade  da  assignatura  dos  dois. 
Em  21  de  julho  de  1521  attestava  Jorge  Affonso  ter  recebido  a  sobredita  obra, 
segundo  a  forma  do  contracto. 

Encontrei  a  avaliação  de  outra  obra  que  fez  Affonso  Gonçalves  — o  forro 
de  madeira  nos  tirantes  do  baluarte.  Junto  aqui  por  curiosidade  o  respectivo 
documento. 

Em  1518  celebrou  Bartholomeu  Fernandes  um  contracto  para  a  pintura 
do  coro  de  Santo  António.  Jorge  Affonso  passou  por  debaixo  d'esse  contracto 
um  altestado,  em  que  certificava  estar  concluída  a  obra.  O  documento  dou-o 
na  integra  no  artigo  relativo  a  Barlholomeu  Fernandes. 

A  Jorge  Affonso  não  faltava  que  fazer  na  sua  qualidade  de  vedor  das 
obras  de  pintura.  Havia  então  grande  actividade  artística  em  diversos  pontos 
do  reino,  principalmente  em  Lisboa,  Évora,  Thomar  e  Coimbra.  Nacionaes  e 
estrangeiros  andavam  empregados  n'essa  faina  de  caracter  tão  variado.  Em 
Thomar  trabalhava,  no  cadeirado  do  coro,  um  entalhador  de  merecimento,  de 
nome  Olivier  de  Gand.  Tendo  fallecido,  suscitaram-se  duvidas  sobre  a  maneira 
de  executar  os  contractos  pendentes  e  de  concluir  a  obra.  Sua  viuva,  com  os 
officiaes  de  seu  marido,  propunha-se  dar-lhe  o  devido  andamento,  mas  a  isto 
se  oppunha  outro  entalhador,  Fernão  Munhoz,  concorrente  de  peso.  Pêro  Vaz, 
vedor  das  obras,  expoz  a  D.  Manuel  as  dificuldades  da  questão,  e  o  rei,  em 
carta  de  2  de  dezembro  de  1512,  lhe  indicou  os  meios  de  resolver  o  pleito, 
dizendo  que  escrevia  ao  mesmo  tempo  a  Jorge  Affonso  para  que  este  esco- 
lhesse dois  officiaes  peritos  a  fim  de  irem  a  Thomar  avaliar  o  estado  das  obras. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  » 

Taborda,  referindo-se  a  esta  carta,  diz  que  Pêro  Vaz,  a  quem  ella  foi  di- 
rigida, era  vedor  das  obras  de  S.  Francisco  de  Évora,  no  que  se  enganou. 

De  1  de  dezembro  de  1552  existe  uma  carta  de  D.  João  III  dando  por 
quite  a  Jorge  Affonso,  na  sua  qualidade  de  recebedor  do  azul  que  se  extrahia 
das  minas  de  Aljustrel,  com  relação  ao  anno  de  1521.  Em  1552  já  certamente 
Jorge  Affonso  era  fallecido;  a  própria  carta  o  dá  a  entender,  dizendo  meu  pin- 
tor que  foy.  A  quitação  foi  por  conseguinte  passada  á  família.  Não  deixa  toda- 
via de  causar  estranheza  que  viesse  a  mediar  tamanho  espaço  entre  uma  e  ou- 
tra d'aquellas  duas  datas. 

No  tocante  ao  azul  das  minas  de  Aljustrel  veja-se  o  artigo  Francisco  das 
Aves. 

Uma  passagem  do  depoimento  de  Inigo  Lopes,  bate  folha  de  el-rei,  no  pro- 
cesso de  Garcia  Fernandes,  comprova  que  Jorge  Affonso  era  cunhado  de  Fran- 
cisco Henriques,  sendo  este  casado  cora  uma  irmã  d'elle.  A  passagem  é  d'este 
theor:  «...  por  ser  compadre  e  gramde  amygo  do  dito  Ffrancisco  Amrriquez 
o  dixera  a  sua  molher  e  a  Jorge  Affonso  seu  irmão. . .» 

Estava  já  composto  typographieamente  o  que  se  acaba  de  ler,  quando  o 
meu  amigo  General  Brito  Rebello,  que  explorara  o  cartório  do  extincto  con- 
vento dos  frades  dominicanos  de  Lisboa,  agora  na  Torre  do  Tombo,  me  deu 
obsequiosamente  noticia  de  existirem  ali  documentos  que  vinham  ampliar  a 
biographia  de  Jorge  Affonso,  assegurando-lhe  um  logar  de  preeminência  no 
nosso  movimento  esthetico  do  século  xvi.  Confirma-se  a  these,  que  sustentei 
na  introducção  d' esta  memoria,  de  que  a  sede  da  escola  portugueza  de  pintura 
não  se  deve  collocar  em  Vizeu,  mas  sim  em  Lisboa,  foco  luminoso,  d'onde  ir- 
radiaram brilhantes  manifestações  para  as  demais  terras  do  reino.  A  residên- 
cia de  Jorge  Affonso,  onde  havia  uma  vasta  sala,  que  serviria  de  certo  para  a 
execução  das  suas  obras,  era  uma  oflicina  ou  escola,  onde  se  formaram  ou 
aperfeiçoaram  numerosos  artistas,  alguns  dos  quaes  adquiriram  nome  que  che- 
gou até  nós.  Cunhado  de  Francisco  Henriques,  tio  de  Garcia  Fernandes,  so- 
gro de  Gregório  Lopes,  estas  e  outras  relações  de  parentesco,  estabelecendo 
a  communidade  familiar,  contribuíam  lambera  para  cimentar  a  comraunidade 
artística  e  vice-versa.  Gaspar  Vaz  era  seu  creado,  segundo  um  documento,  e 
segundo  outro  lavravam  ou  trabalhavam  com  elle  Jorge  Affonso,  o  mesmo  Gas- 
par Vaz,  Pêro  Vaz  e  Garcia  Fernandes. 

Em  3  de  março  de  1515  Jorge  Affonso  encampava  ao  mosteiro  de  S.  Do- 
mingos um  chão  que  estava  junto  de  Santa  Maria  da  Escada,  que  elle  trazia 
de  emprazamento  em  vida  de  três  pessoas,  de  que  elle  era  a  segunda,  por 
não  precisar  d'elle,  encampação  que  fazia  em  seu  nome  e  de  Maria  Lopes,  sua 
mulher,  cuja  outorga  ficava  de  dar.  Este  chão  partia,  de  uma  parte,  da  banda 
do  mosteiro,  com  rua  publica,  da  outra  parte  com  casa  e  chão  d'elle  Jorge 

Fkvbiiewo,  1903.  2 


10 


NOTICIA  DE  ALGtTNS  PINTORES 


Affonso  e  de  outra  parte  com  casas  novas  do  dito  mosteiro,  que  ora  eram  de 
Gregório  de  Lopes,  genro  do  dito  Jorge  Affonso.  O  mosteiro  acceitou  a  encam- 
pação e  aforou  o  chão  ao  doutor  Gonçalo  Vaz,  residente  na  mesma  cidade.  Fo- 
ram testemunhas  da  outorga  de  Maria  Lopes  Vasco  Fernandes,  pintor,  morador 
em  Vizeu,  Gaspar  Vaz,  pintor,  creado  do  dito  Jorge  Affonso.  Tabellião  Pêro  Fer- 
nandes. 

Este  instrumento  de  encampação  é  importante  por  mais  de  um  titulo,  mas 
bastaria  a  valorisal-o  uma  circumstancia,  insignificante  na  apparencia,  mas  de 
elevado  alcance.  Se  já  não  estivesse  comprovada  a  existência  de  Vasco  Fer- 
nandes, quasi  perdido  nas  regiões  da  lenda  sob  o  nome  de  Grão  Vasco,  tel-a- 
iamos  aqui  incontestavelmente  authenticada.  A  actividade  de  Vasco  Fernandes 
não  ficou  circumscripta  á  cidade  da  Beira,  onde  todavia  é  dado  como  residente. 
Eil-o  em  Lisboa  em  1515,  talvez  de  visita  a  Jorge  Affonso,  com  quem,  muito 
provavelmente,  teria  aprendido.  A  hypothese  de  Jorge  Affonso  ser  o  mestre 
do  pintor  viziense  não  repugna,  antes  me  parece  de  todo  o  ponto  plausível. 
Vasco  Fernandes  viria  porventura  consultar  o  seu  mestre,  inspirar-se  na  sua 
escola,  buscar  elementos  ou  coadjutores  para  o  seu  trabalho.  Meras  conjectu- 
ras, que  eu  formulo  timidamente,  mas  que  talvez  não  sejam  de  todo  inaccei- 
taveis.  Como  quer  que  seja,  o  que  me  parece  fora  de  duvida  é  que  a  officina 
de  Jorge  Affonso  exerceu  uma  preponderância  a  que  se  não  pôde  mostrar  alheia 
a  escola  de  Vizeu. 

Em  carta  de  31  de  janeiro  de  1509  o  mosteiro  de  S.  Domingos  empra- 
zou  a  Pêro  Alvares,  homem  preto,  forro,  taipeiro,  um  pardieiro  que  estava  já 
como  chão  maninho,  que  o  mesmo  mosteiro  possuía  em  frente  de  Nossa  Se- 
nhora da  Escada,  que  partia  por  deante  com  rua  e  caminho  publico  que  ia  do 
adro  do  dito  mosteiro  para  o  postigo  de  D.  Henrique  e  de  todas  as  outras  par- 
tes com  casas  e  chãos  do  mosteiro  que  trazia  Jorge  Affonso,  pintor,  e  outros 
foreiros,  por  trezentos  reaes  e  uma  gallinha  por  anno.  * 

Existe  um  auto  da  demarcação  e  medição  das  casas  que  haviam  sido  de 
Jorge  Affonso,  por  detraz  da  capella-mór  de  S.  Domingos,  ao  qual  eram  forei- 
ras.  Procedeu-se  áquelle  exame  no  dia  18  de  dezembro  de  1561,  em  virtude 
do  convento  mandar  intimar  a  Jeronymo  Jorge,  que  estava  em  posse  das  casas, 
em  nome  de  seu  irmão  António  Jorge,  que  andava  na  Índia,  que  apresentasse 
os  títulos  de  aforamento  e  os  recibos  do  pagamento  dos  foros.  Jeronymo  Jorge 
apresentou  não  só  esses  títulos,  mas  uma  verba  do  testamento  de  seu  pae, 
Affonso  Jorge,  testamento  escripto  a  20  de  fevereiro  de  1540,  e  na  qual  elle 
nomeava  seu  filho  mais  velho,  António  Jorge,  para  ser  a  segunda  pessoa  n'aquelle 
prazo. 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  do  Convento  de  S.  Domingos  de  Lisboa.  L.°  20,  doe.  31. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  1 1 

Estas  casas,  segundo  declaração  do  próprio  testador,  eram  de  grande  va- 
lia, e  o  seu  emprazamento  havia  sido  feito  em  vida  de  seis  pessoas,  em  31  de 
janeiro  de  1504,  pagando  de  foro  1:700  reaes  por  anno  e  um  par  de  capões, 
ou  um  tostão  por  elles.  Ficavam  situadas  junto  do  cano  real,  da  outra  banda 
da  rua  que  vay  de  Nossa  Senhora  da  Escada  ao  longo  do  dito  moesteiro  pêra 
os  canos  da  mourarya.  Esta  é  a  phrase  do  testamento,  mas  em  outra  parte  do 
auto  ainda  se  especifica  mais  detidamente  a  situação  da  propriedade. 

Este  auto,  que  reproduzo  textualmente,  é  muito  extenso,  e  não  faltará 
■  quem  o  taxe  de  fastidioso,  mas  o  archeologo  e  até  o  architecto  acharão  n'elle 
coisas  interessantes.  O  primeiro  entrará  no  conhecimento  de  um  pequeno  tre- 
cho da  topographia  de  Lisboa  nas  cercanias  do  convento  de  â.  Domingos.  O 
segundo,  pela  medição  dos  prédios,  ficará  tendo  uma  idéa  approximada  da  cons- 
trucção  civil  n'aquella  epocha,  no  tocante,  pelo  menos,  ás  dimensões  e  divi- 
sões dos  prédios. 

Por  este  documento  se  fica  sabendo  que  Jorge  Affonso  tinha  dois  filhos, 
o  mais  velho  dos  quaes  se  chamava  António  Jorge  e  o  outro  Jeronymo  Jorge, 
além  da  filha  Isabel  Jorge,  casada  com  Gregório  Lopes.  Parece  que  nenhum 
d'elles  seguiu  a  carreira  do  pae,  porquanto  o  António  andava  na  índia  e  do  Je- 
ronymo não  se  designa  o  officio. 

Pelo  documento  acabado  de  citar  vê-se  que  Jorge  Affonso  ainda  vivia  em 
20  de  fevereiro  de  1540,  data  do  seu  testamento.  É  provável  todavia  que  fosse 
já  fallecido  em  23  de  junho  do  mesmo  anno,  pois  n'esse  dia  se  celebrava  no 
convento  de  S.  Domingos  de  Lisboa  uma  escriplura  de  declaração,  ínnovação 
e  emprazamento  a  Ruy  Dias,  pedreiro,  e  sua  mulher,  Isabel  Pires,  de  duas  mo- 
radas de  casas  situadas  acima  do  dito  mosteiro,  quando  vão  pêra  os  chãos  de 
dona  Joana  de  Crasto,  e  ahi  se  diz  que  por  deante  confrontaã  com  casas  q  fo- 
ram de  Jorge  Afonso,  pintor  dei  rey  noso  senhor. 

Não  obstante  faltar  aqui  o  sacramental  que  Deus  haja  ou  que  Deus  perdoe, 
julgo  que  a  phrase  casas  q  foram  de  Jorge  Afonso  se  hade  interpretar  d'esta  ma- 
neira, embora  também  se  pudesse  entender  que  elle  as  houvesse  trespassado. 

Gomo  elucidação  e  complemento  d'este  artigo  vejam-se  os  que  se  referem 
a  Gregório  Lopes  e  a  outros  pintores  aqui  mencionados. 

«Dom  Joham,  etc,  a  quãtos  esta  minha  carta  virem  faço  saber  que  por 
parte  de  Jorge  A.°,  meu  pymtor,  me  foy  apresemtado  hua  carta  dei  Rey  meu 
senhor  e  padre,  que  sãta  gloria  aja,  de  que  o  theor  tall  he:  «Dom  Manuell 
per  graça  de  D8  Rey  de  Portugall  e  dos  Algarues  daquem  e  dallem  maar  em 
Africa,  senhor  de  Guinee  e  da  comquysta  navegaçã  comercio  d  Etiópia  Arábia 
Pérsia  e  da  Imdia,  a  quãtos  esta  nosa  carta  virem  fazlemos  saber  que  sabemdo 
nos  quã  sofyciente  oficiall  he  Jorge  A.°  pymtor  pêra  todas  as  cousas  que  a  noso 


12  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

serviço  cõprirem,  e  que  em  todas  as  cousas  de  que  ho  êcarregarmos  nos  ha 
asy  bem  de  servir  e  como  o  sempre  fez  e  aliem  dello  avêdo  respeito  aos  ser- 
viços que  delle  temos  recebidos  e  ao  diãle  esperamos  receber,  por  lhe  fazer- 
mos graça  e  merçe,  temos  por  bem  e  o  filhamos  ora  novamente  por  noso  pym- 
tor  e  queremos  que  elle  seja  examinador  e  veador  de  todas  as  obras  de  pym- 
tura  que  se  pêra  nos  ou  pêra  obra  que  nos  ouvermos  de  pagar  fizerem  por  al- 
gus  outros  oficiaes  de  seu  oficio  e  asy  nas  que  se  ouuerem  de  avaliar  elle  seja 
por  nosa  parte  avaliador,  com  o  qual  oficio  queremos  e  nos  praz  que  elle  tenha 
e  aja  de  nos  em  cada  hQu  ano,  êquãto  nosa  mercê  for,  dez  mill  reaes  e  todos  ou- 
tros preuilegios  e  liberdades  que  hã  e  sempre  tivera  os  semelhãtes  nosos  ofi- 
ciaes e  todos  os  Reis  pasados,  os  quaes  x  rs  lhe  serã  asemtados  na  nosa  casa 
da  Mina,  omde  em  cada  hQu  ano  avera  pagamento  como  ordinárias  da  casa 
per  esta  nosa  carta  somête  sem  mais  tirar  outra  de  nosa  fazêda  e  mãdamos 
ao  noso  feitor  e  escprivães  da  dita  casa  que  lhos  asemtem  nas  ordinárias  dela 
pêra  deles  aver  pagamento  na  maneira  sobredita,  e  ao  tesoureiro  dela  manda- 
mos yso  mesmo  que  em  cada  huu  ano  lhos  pague  asy  como  paga  as  ditas  hor- 
dinarias  e  per  o  trelado  dela  com  seu  conhecimento  mandamos  aos  nosos  con- 
tadores que  lhos  leuem  em  conta,  e  aliem  deles  quãdo  quer  que  ho  dilo  Jorge 
A.°  for  chamado  per  noso  mãdado  ou  êviado  algQas  partes  e  nyso  perder  al- 
gus  dias,  quando  quer  que  tall  acontecer  nos  lhe  faremos  por  yso  aquella  mercê 
que  justa  for  e  nos  bem  parecer,  e  por  firmeza  de  todo  e  sua  guarda  e  nosa 
lêbrãça  lhe  mãdamos  dar  esta  nosa  carta  per  nos  asynada  e  aselada  do  noso 
selo  pêdêle,  a  qual  mãdamos  aos  veadores  de  nosa  fazêda  que  faça  asentar 
nos  liuros  dela  pêra  se  saber  como  lho  asy  temos  dado  e  asy  mãdamos  a  to- 
dalas  nosas  justiças  e  outros  quaesquer  oficiaes  e  pesoas,  a  que  for  mostrada 
e  o  conhecimento  dela  pertemcer  que  o  ajã  asy  daquy  em  diãte  por  noso  pym- 
tor  e  o  homrrem  e  íauoreçã  naquylo  que  com  direito  deuerem  e  tratem  como 
noso  oficiall  e  lhe  faça  guardar  todas  as  homrras  e  liberdades  que  se  guarda 
aos  nosos  oficiaes,  o  qual  Jorge  À.°  jurou  em  a  nossa  chancelaria  aos  samtos 
avãgelhos  que  bem  e  verdadeiramente  e  como  deue  obre  e  use  do  dito  oficio 
de  examinador  e  veador  e  avaliador,  guardando  a  nos  noso  serviço  e  ao  pouo 
seu  direito.  Dada  em  a  villa  de  Symtra  a  ix  dias  do  mes  d  agosto.  Amdre  Py- 
rez  a  fez  —  ano  do  nacymento  de  noso  Senhor  Ihesu  X.°  de  mill  b°  biij.»  tPidim- 
dome  o  dito  Jorge  A.°  por  mercê  que  lhe  comfirmase  a  dita  carta  e  visto  por 
mim  seu  requerimento,  e  quereodo-lhe  fazer  graça  e  mercê,  tenho  por  bem  e 
lha  comfirmo  e  mãdo  que  se  cupra  e  guarde  asy  e  tã  imteiramenie  como  se 
em  ella  contem.  Bastia  Lamego  a  fez  em  Lixboa  a  ix  de  dezembro  ano  de  noso 
Senhor  Ihesu  X.°  de  mill  bc  xxix,  e  eu  Damyã  Diaz  o  fiz  escreuer.» ' 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  JoSo  III.  Doações.  L.°  39,  fl.  76. 


2 

■S 
.a 


s 
5> 


"<3 


< 

CL, 

s 

CO 


D 
O 

«2 


yNYJ 


60 

O. 


3 
O. 


te 


o 
-o 

CS 


CS 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


13 


«A  xxx  do  mes  de  novembro  de  bc  xix  se  comcertou  Aaffonso  Monteiro 
com  Aaffonso  Gonçalluez  carpinteiro  de  macanarria  estamdo  de  presente  Jorje 
Affonso  seu  jrmom  (sic)  que  elle  se  obrigua  fazer  quatro  piaies  e  a  graude  (sic) 
dorretauolloda  comceisam  desta  cidade  que  Jorge  Affonso  lie  obrigado  a  pintar. 
E  os  ditos  piaies  que  asy  o  dito  carpinteiro  hade  fazer  ham  de  ser  pella  mesma 
maneira  que  os  outros  quatro  velhos  estem  feitos  que  nõ  ham  de  serujr  por 
serem  ja  podres.  E  o  dito  Affonso  Gonçallnez  fará  a  dita  grade  em  que  se 
adasantar  o  dito  rretauollo  doutra  maneira  segundo  se  agora  custuma  e  que  se 
posa  armar  e  desarmar  o  dito  rretauollo  e  seja  obrigado  o  dito  Affonso  Gon- 
çalluez  de  mudar  o  sagrairo  que  no  dito  rretauollo  esta  e  fazer  huas  portas 
pêra  o  dito  sagrairo  e  por  tudo  isto  que  asj  se  obriga  a  fazer  lhe  daram  dez 
mjll  reaes  e  majs  a  madeira  que  pêra  isto  for  necesairro  e  asy  majs  se  obrigou  o 
dito  Affonso  Gonçalluez  de  aquerçentar  neste  mesmo  rretauollo  de  quadajlharga 
dous  palmos  e  meo  em  que  fará  dous  piaies  em  cada  jlharga  hum  pêra  a  car- 
ram  da  pa. . .  e  amtre  os  espilares  fará  três  quaixas  cõ  seus  tabernaquollos  e 
rrepresas  pêra  as  jmaiges  estarem  de  volto  (?)  a  saber:  três  de  cada  cabo  de 
maneira  que  sejam  comfor  (sic)  ao  vam  e  toda  esta  obra  será  muito  bem  feita 
que  rrespomda  cõ  a  outra  que  esta  feita  no  dito  rretauolo  e  se  alguas  peças 
do  dito  rretauolo  esteuerem  quebradas  e  ouuerem  mester  que  se  corregam 
elle  dito  Affonso  Gonçalluez  as  quorregera  e  esta  dita  obra  do  dito  aquerçen- 
çentamento  lhe  daram  oito  mjll  reaes  e  a  madeira  que  pêra  iso  ouuerem  mes- 
ter pêra  elle  e  o  pagamento  que  lhe  fará  o  dito  Affonso  Monteiro  será  segundo 
se  custuma  e  tanto  que  eIRey  noso  senhor  mandar  dar  dinheiro  pêra  esta  obra 
testemunha  o  dito  vigairo  da  Conceisam  e  Jorge  Affonso  seu  jrmão  e  por  asy 
serem  contentes  lhe  foy  feito  este  no  dito  dia  e  mes  era  e  asynaram  aqui  = 
Afomso  Gonçaluez  =  Francisco  Rebelo  =  g.  uycarius= Jorje  Afomso  = Afonso 
Monteiro. 

«Traga  certjdam  de  Jorge  Afonso  se  tem  feita  esta  hobra  como  he  ho- 
brygado  =  Bertolameu  de  Payua  o  hamo. 

iDiguo  eu  Jorje  Afonso  pimtor  delrey  nosso  Senhor  e  seu  arrauto  que  he 
verdade  que  Afomso  Gonçalluez  carpenteyro  me  emlregou  feitos  estes  pilarres 
comtheudos  em  este  comtrrato  e  asy  o  sacrrayrro  que  aquy  dyz  elle  ho  man- 
dou e  corregeo  o  que  sse  achou  sser  danjficado  e  asy  fez  a  grade  em  que  sse 
o  dito  rretauollo  ade  armar  e  todo  me  emtregou  bem  feito  sssegundo  forma 
deste  comtrrato  quamto  monta  aos  dez  mjll  rreaes  e  quamto  monta  as  crre- 
cemças  que  sse  no  dito  rretauolo  aujam  de  fazer  isto  ficou  por  fazer  que  nã 
qujs  elrrey  nosso  Senhor  que  por  agorra  sse  fezesse  e  por  verdade  fiz  este  e 
ho  asiney  oje  xxij  de  julho  de  mjll  bc  xxj=  Jorje  Afonso. 

«Asemtemse  em  liuro  estes  dez  mjll  (sic)  que  ho  dito  Afonso  Gonçal- 
uez  hadaver  desta  hobra  que  tem  feita  ha  quall  Jorge  Afonso  pintor  confesa 


14  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

que  ha  tem  rrecebydo  pêra  aver  seu  paganieuto=Bertolameu  de  Payua  ho 


«Aos  xxbj  dias  do  mes  de  novembro  foram  chamados  he  lhe  deram  ju- 
ramento dos  Samtos  avanjelhos  que  bem  emteyramente  dexese  a  verdade  Afonso 
de  Vyla  Lobos  he  Gonçalo  Dyaz  pêra  aualyarrem  ho  forro  de  madeira  que  fez 
Afonso  Gonçalluez  carpemteyro  de  masauarya  nos  tyramtes  do  buluarte  em 
xEiij0  reaes  he  obryguado  de  adesasemtar  he  a  tornar  asemtar  depois  que  fose 
dourado  he  por  que  asy  he  verdade  asynaram  ambos  no  mesmo  dia  he  mes 
he  era  de  j  bc  xix  annos.— Afonso  de  Vyla  Lobos  =  Gonçalo  Dyaz.»3 

«Pêro  Vaaz  Nos  elRey  vos  emirjamos  mujto  saudar  vymos  a  carta  que  nos 
emvjastes  e  sobre  o  falecimento  do  mestre  Oliuell  e  asy  a  deligençia  que  di- 
zyeis  que  em  sua  fazenda  fezerees  a  que  vos  agardeçemos  e  asy  ouujmos  Fer- 
nam  Monhoz  e  yso  mesmo  o  que  a  molher  do  dito  mestre  Oliuell  nos  scpreveo 
em  que  diz  que  quer  tomar  sobre  sy  com  os  ofiçiaaes  que  tem  a  obra  asy  como 
a  tinha  o  dito  mestre  Olyuel/.  e  yso  mesmo  vymos  a  sentença/,  que  destes  an- 
tre  o  dilo  Fernam  Molhoz  (sic)  e  o  dito  mestre  Oliuell  em  que  julgastes/,  sua 
parçarja  por  bõoa  e  que  se  compryse  o  contrato  que  antre  ambos  era  fejto/. 
a  qual  nos  pareçeo  bem  /com  a  decraraçom  que  o  dito  Fernam  Monhoz  per 
huum  uoso  aluara  que  lhe  açerqua  diso  pasamos  mostrara/e  por  que  nos  nõ 
sabemos  quam  poderoso  o  dito  Fernam  Monhoz  será  pêra  fazer  toda  esta 
obra/nem  yso  mesmo  se  a  djta  molher  do  djto  mestre  Oliuel  poderá  acabar  a 
sua  metade/.  Vos  Remetemos  la  ludo  a  vos/,  pêra  niso  fazerdes  o  que  vjrdes 
que  he  majs  noso  serujço  por  a  comfiança  que  de  vos  temos  e  vos  emcomen- 
damos  que  vos  vejaaes  tudo  muy  bem  e  o  emsemjnees  e  achamdo  vos  que  o 
djto  Fernam  Monhoz  tem  poder  pêra  a  fazer  toda/,  e  a  quer  açeytar/.  vos  lha 
emcarreguay  toda/,  avaliando  primeiro  o  que  esteuer  fejto  per  o  djto  mestre 
Oliuell/.  e  quamdo/vos  parecer  que  o  nõ  poderá  asy  fazer  bem  e  como  a  noso 
serujço  compre/,  e  que  a  djta  molher  do  djto  mestre  Oliuell  poderá  fazer  e 
acabar  a  sua  metade/,  emtam  lha  leixay  fazer/,  apartando  ao  djto  Fernam  Mo- 
nhoz o  que  lhe  da  djta  obra  couber  fazer  da  djta  sua  metade  que  per  bem  de 
nosa  sentença  lhe  he  julguada/.  E  porque  ysto  de  húua  maneira  e  doutra  nom 
pode  ser  fejto  sem  ser  avaljado/.  asy  pêra  se  crereflcar.  o  que  monta  ame- 
tade  do  djto  Fernam  Monhoz  como  pêra  sabermos  se  a  obrea  (sic)  que  ho  djto 
mestre  Oliuell.  tem  fejta  vali  o  dinheiro  que  de  nos  tem  recebido/,  he  segundo 
cremos  by  nõ  avera  ofiçiaaes  que  ho  façom  que  ou  por  bua  parte  ou  outra 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  n,  maço  86,  doe.  23. 
*Idem.  Idem.  Idem,  doe.  12. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES    .  15 

nom  sejam  sospeitos/.  Sprevemos  esa  nosa  carta  que  vos  com  esta  emuyamos 
ha  Jorge  Affonso  pymtor  na  quall  lhe  emcomendamos  que  ele  queira  buscar 
na  cidade  dous  ofiçiaaes  bõos  e  que  ho  bem  emteudam  e  saibam  sem  sos- 
peita  as  partes  que  havaljem  a  djta  obra  per  juramento  que  lhe  vos  daiees/se 
hy  nõ  teuerdes  os  ditos  ofiçiaaes  sem  sospeita  asy  por  sua  parte  das  ditas  par- 
tes como  da  nosa  /vos  envjay  a  djta  carta  ao  djto  Jorge  Affonso  e  elle  volos 
envjara  e  tanto  que  hy  forem  avaljaram  toda  a  djta  obra.  que  asy  for  fejta  asy 
a  do  dito  mestre  Oliuell  como  a  do  dito  Fernam  Monhoz  por  que  diz  que  tem 
fejto  alguua  parte  e  per  a  djta  avaljaçom  se  faia  a  conta  damtre  ambos  a  sa- 
ber o  dito  Monhoz  e  mestre  Oliuell/e  asy  se  saberá  se  tem  merecido  hum  e 
outro  o  dinheiro  que  de  nos  tem  rrecebido.  Os  quaaes  também  avaljaram  a 
cadeira  que  ho  djto  Fernam  Monhoz  fez  pêra  amostra,  a  quall  lhe  será  pagua 
per  voso  mandado  no  recebedor  desa  obra,  o  que  vos  emcomendamos  que 
tudo  façaaes  com  aquelle  rresguardo  de  noso  serujço,  que  de  vos  comfiamos 
asy  na  djta  avaliaçom  e  conta  como  no  dar  da  dita  obra  aquém  vjrdes  que  ha 
mjlhor  e  com  majs  noso  serujço  fezer  e  tanto  que  tudo  for  fejto  uos  spreve- 
rees  o  que  se  njso  fez  decrarando,  a  djta  avaljaçom  e  quaaes  ofiçiaaes  a  feze- 
rom  e  todo  o  majs  que  se  njso  pasar  pêra  o  vermos  e  njso  mandarmos  o  que 
ouuermos  por  bem  se  necesario  for.  E  porque  nos  diserom  que  ha  molher  do 
dito  mestre  Oliuell  tirara  fazenda  sua  pêra  fora  vos  vede  tudo  como  pasa  e  nõ 
lhe  consymtaes  tirar  nenhua  fazenda  e  a  mandaj  poer  em  bõo  recado  e  asy  nõ 
dees  nenhum  dinheiro  sem  noso  mandado,  por  quanto  alem  da  dita  obra,  ele 
teue  outra  em  que  cremos  que  ele  deve  dinheyro  e  compryo  asy  sprila  em 
Euora  a  ij  djas  de  dezembro  André  Pirez  a  fez  de  1512.  E  vos  leixarees  aca- 
bar a  molher  do  djto  mestre  Oliuell  o  que  lhe  falecer  da  sua  metade  por  que 
a  outra  ha  de  fiquar  cõ  ho  djto  Fernam  Monhoz  posto  que  digua  que  vos  ve- 
jaaes  la  tudo  e  porem  a  huu  e  ao  outro  tomarees  aquelas  seguranças  que  vjr- 
des que  compre  pêra  o  todo  comprirem  na  prefeyçom  que  devem  e  per  que  o 
dinheiro  que  lhes  derem,  ou  ja  teuerem  este  seguro  =  Rey  •  •  •  — Pêra  Pêro 
Vaaz  sobre  Fernam  Monhoz  e  molher  do  mestre  Oliuell  e  sua  obra  —  E  o  que 
estes  avaljadores  ouuerem  daver  se  os  mandardes  chamar  a  Lixboa  se  lhes  pa- 
gara a  terços  .s.  huu  a  nosa  custa  e  outro  a  custa  da  molher  do  dito  mestre 
Oliuel  e  outro  de  Fernam  Monhoz  por  prouejto  de  todos  sam  chamados  e  manda- 
mos ao  Recebedor  desa  obra  que  pague  o  que  a  nosa  parte  montar  =  Rey  •  \  •  »' 

«Dom  Johão  etc.  A  quantos  esta  minha  carta  de  quitação  virem  faço  sa- 
ber que  eu  mandey  tomar  conta  a  Jorge  Affonso,  meu  pintor  que  foy  que  teue 
carguo  de  receber  o  azul  que  se  achou  nas  minas  d  Aljustrel  o  ano  de  quinhen- 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  i,  maço  11,  doe.  37. 


16  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

tos  e  vinta  hum,  e  pella  recadação  da  dita  conta  se  mostra  carreguar  sobre 
elle  em  recepta  de  dinheiro  vinta  hum  mil  seiscentos  e  oitenta  rs.  que  rece- 
beo  per  venda  d  azul.  E  de  azul  dous  qz  (quintaes)  vinta  dous  arrates  e  três 
quartas.  E  de  cimzas  duas  arobas  dezasete  arrates  três  quartas.  E  de  jaspes 
de  moer  o  dito  azul  hum.  E  de  balanças  três  com  seus  pesos.  O  qual  dinheiro, 
azul  e  cousas  que  asy  recebeo  despendeo  e  entregou  per  meus  mandados  e  do 
veedor  de  minhas  obras  sem  ficar  deuendo  cousa  algúa  como  se  vio  pella  re- 
cadação da  dita  conta,  que  foy  tomado  pello  contador  Custodio  d  Abreu  com 
Mateus  da  Maya  escriuã  e  visla  per  Duarte  d  Abreu  prouedor  de  minhas  con- 
tas. E  por  tanto  dou  por  quite  e  liure  ao  dito  Jorge  Affonso  e  a  todos  seus 
herdeiros  que  nunqua  em  tempo  algum  por  ello  sejão  requeridos,  citados  nem 
demandados  em  meus  contos  nem  fora  delles.  E  mando  aos  veedores  de  mi- 
nha fazenda,  prouedor  moor  dos  ditos  contos  e  a  todos  meus  officiaes,  correge- 
dores, juizes  e  justiças,  a  que  o  conhecimento  pertencer,  que  asy  lhe  cumprão 
e  guardem  sem  lhe  ser  posta  duuida  nem  embarguo  algum.  E  pêra  firmeza 
dello  lhe  mandey  pasar  esta  minha  carta  de  quitação  per  mym  asyuada  e  asel- 
lada  do  meu  sello  pendente.  Mateus  da  Maya  a  fez  em  Lixboa  ao  primeiro  do 
mes  de  dezembro  do  ano  do  nascimento  de  Nosso  Senhor  IhQ  Xpo  de  mil  b' 
cinquoenta  e  dous.  Entrando  na  dita  contia  acima  quartorze  mil  trezentos  e 
quatorze  rs.,  de  que  lhe  fiz  quyta  e  mercê.» ' 

«Auto  da  midiçã  e  demarcaçã  das  casas  que  foram  de  Jorge  Affonso  em 
que  he  segunda  pessoa  António  Jorge  seu  filho  —  de  Iras  da  capella  mór: 

«Anno  do  naçimenlo  de  Noso  Senhor  Jhesu  Christo  de  myll  e  quinhentos 
saseuta  e  hum  anos  aos  sete  dias  do  mes  de  nouembro  do  dito  ano  nesta  ci- 
dade de  Lixboa  nas  pousadas  do  Licenciado  Brás  Soarez  Pestana  juiz  do  tonbo 
do  moesteiro  de  São  Dominguos  desta  cydade  em  audiência  que  fazia  da  mesma 
causa  pareçeo  Dioguo  Lopez  procurador  jerall  do  dito  moesteiro  e  dise  ao  dito 
juiz  que  por  my  escriuão  era  rrequerido  Jerónimo  Jorge  que  estaa  em  pose  das 
casas  e  chãos  que  foram  aforados  em  vidas  a  Jorge  Affonso  seu  paay  pêra  a 
dita  audiência  pêra  apresentar  os  títulos  que  tem  da  dita  propiedade  e  os  co- 
nhecimentos dos  paguamentos  dos  foros  e  loguo  hy  pareçeo  o  dito  Jerónimo 
Jorge  e  dyse  ao  dito  juiz  que  seu  paay  nomeara  em  segunda  vida  nestas  casas 
e  chãos  a  António  Jorge  seu  jrmão  que  andaua  nas  partes  da  Índia  avia  muy- 
tos  anos  cujo  procurador  abastante  ele  era,  e  como  seu  procurador  apresen- 
taua  o  tylolo  que  fora  feyto  das  dytas  casas  ao  dyto  seu  paay  e  asy  trarya  o 
testamento  que  fez  antes  de  seu  falecimento  pêra  se  treladar  a  verba  dele  em 
que  o  nomeou  nas  ditas  casas  e  chãos,  e  asy  lhe  apresentou  os  conhecimentos 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  João  III.  Privilégios.  L.°  1,  A-  11{  v- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  1  7 

dos  paguamentos  dos  foros  de  muytos  anos  que  lhe  tornou  e  o  titolo  ficou 
pêra  se  ver.  Belchior  Aluarez  o  escreuy. 

«As  quaes  casas  e  asento  eslam  de  trás  da  capella  moor  do  dito  moesteiro 
da  outra  banda  da  rrua  que  vem  do  Rosyo  pêra  o  cano  rreal  contra  o  norte  no 
chão  que  o  dito  moesteiro  pesuy  e  lhe  foy  dado  juntamente  com  o  chão  de  junto 
do  esprital  ate  o  muro  que  yay  da  porta  de  Santo  Antão  ate  os  canos  da  mou- 
rarya  como  tudo  se  declara  nas  escreturas  e  sentenças  que  dele  tem  que  o 
dyto  juiz  vyo  e  mandou  que  fizesse  aquy  esta  declaraçam  per  estes  serem  os 
tytolos  que  ho  dito  moesteiro  tem  dos  ditos  chãos  que  lhe  antiguamente  de- 
ram os  Reys  pasados  de  que  sempre  estyueram  em  pose  e  não  era  necesario 
treladaremse  aquy  e  por  verdade  asjnou  e  asy  mandou  que  se  escreuesem  os 
foros  dos  titolos  do  dito  António  Jorge  somente  que  he  o  seguynte.  Belchior 
Aluarez  que  seruio  de  escriuão  do  djto  tonbo  o  escreuy. 

«E  despois  desto  aos  dezoylo  dias  do  djto  mes  de  nouembro  do  dito  ano 
de  quynhentos  sesenta  e  hum  anos  em  Lixboa  nas  pousadas  do  djto  Jeronymo 
Jorge  eu  escriuão  lhe  fiz  pergunta  se  rreconheçia  ele  ao  moesteiro  de  Sam  Do- 
minguos  desta  cidade  por  direito  senhorio  das  ditas  casas  e  asento  que  ficou 
por  falecimento  de  Jorge  Affonso  seu  paay  como  procurador  que  dezia  ser  do 
dito  António  Jorge  seu  jrmão  que  era  nomeado  no  dito  prazo  e  per  ele  foy  djto 
que  sy  de  que  se  fez  hum  termo  em  hum  Liuro  onde  asynam  os  foreyros  os 
ditos  rreconhecimentos  em  que  ele  asjnou.  Belchior  Aluarez  o  escreuy.» 

«Trelado  das  forças  do  titulo  que  se  apresentou  por  parte  de  António 
Jorge: 

«Primeiramente  he  hum  contrato  daforamento  em  vidas  de  seis  pesoas 
que  o  prioll  e  padres  do  dito  moesteiro  fizeram  a  Jorge  Afonso  pintor  mora- 
dor que  foy  nesta  cidade  em  cabydo  jeral  e  solenemente  e  o  dito  estormento 
daforamento  foy  feyto  e  asinado  por  Joham  Aluarez  que  foy  puurico  tabelliam 
das  notas  nesta  cidade  de  Lixboa  aos  trinta  e  hum  dias  do  mes  de  Janeiro 
do  ano  de  quynhentos  e  quatro  anos  no  qual  era  declarado  que  lhe  aforauam 
nas  ditas  seis  vidas  húas  casas  térreas  todas  derrubadas  e  danefycadas  e  mais 
hús  pardeeyros  nas  costas  das  ditas  casas  que  ho  dito  moesteiro  ha  e  mais  hús 
chãos  junto  com  o  dito  moesteiro  que  todo  estaa  mjstiquo  e  estaa  defronte  de 
Santa  Maria  da  Escada  e  lhos  aforaram  com  condiçam  que  posa  aforar  parte 
dos  djtos  chãos  aquém  quiser  e  pelos  preços  que  quyser  e  os  foros  que  lhe 
por  eles  derem  os  poderá  auer  o  dito  Jorge  Afonso  e  as  pesoas  que  despois 
dele  vierem  e  que  faram  nelas  casas  e  lhe  paguaram  de  foro  e  pensam  a  sa- 
ber: o  dito  Jorge  Afonso  e  as  duas  pesoas  que  logo  depôs  ele  vyerem  ao  dito 
moesteiro  myl  e  setecentos  reaes  e  hum  par  de  capões  cadano  bõos  e  rrece- 
cebondos  ou  çem  reaes  por  eles  paguos  todos  em  hQa  pagua  por  dia  de  Sam 

Fevereiro,  1903.  3 


18  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Jobam  Bautysta  e  que  findas  as  primeiras  três  pesoas  que  as  outras  três  que 
depôs  ele  vierem  dem  e  pagem  do  djto  foro  mais  o  terço  que  serom  mays  quj- 
nhentos  e  setenta  reaes  alem  dos  ditos  myll  setecentos  reaes  e  que  os  não  po- 
sam uender  sem  licença  do  senhorio  e  lhe  paguaram  a  corentena  do  preço 
porque  as  venderem  e  com  outras  mays  clausulas  e  comdições  conteudas  no 
dito  aforamento  que  se  costumam  por  nas  semelhantes  escreturas.  Belchior  Al- 
uarez  o  escreuy.» 

«Trelado  da  verba  do  testamento  de  Jorge  Afonso  em  que  nomeou  em 
segunda  pesoa  Antonyo  Jorge  seu  fylho: 

«E  despois  desto  aos  dezanoue  djas  do  mes  de  nouembro  do  dito  ano  em 
Lixboa  nas  pousadas  do  Licenciado  Brás  Soarez  Pestana  juiz  do  djto  tonbo  em 
audjençya  que  fazia  da  mesma  causa  pareçeo  Jeronymo  Jorge  que  dise  ser  pro- 
curador abastante  de  seu  jrmão  Antonyo  Jorge  que  andava  nas  partes  da  ín- 
dia em  que  seu  pay  Jorge  Afonso  nomeara  o  prazo  das  casas  e  asento  que  tem 
do  djto  moesteiro  junto  do  cano  Real  da  outra  banda  da  Rua  que  vay  de  nosa 
Senhora  da  Escada  ao  longuo  do  djto  moesteiro  pêra  os  canos  da  mourarya  e 
apresentou  ao  dito  juiz  o  testamento  do  dito  seu  pay  pêra  que  se  tyrase  a 
verba  do  djto  testamento  de  nomeaçam  peia  se  ajuntar  ao  auto  da  medicam 
e  demarcação  da  dita  propyedade  e  vista  pelo  djto  juiz  djse  a  my  escriuão  que 
a  treladase  de  que  o  trelado  he  o  seguinte: 

«Item  por  quanto  eu  tenho  hus  asentos  de  casas  e  forno  e  quintaes  tudo 
foreyro  ao  dilo  moesteiro  de  São  Dominguos  em  seis  pesoas  e  eu  são  a  pri- 
meira pesoa  em  mil  e  setecentos  reaes  cada  hum  ano  de  foro  e  dous  capões 
ou  hum  tostão  por  eles  os  quaes  asentos  valem  muyto  dinheiro  por  estarem 
no  luguar  onde  estão  e  e  necesario  nomear  pesoa  antes  de  minha  morte,  diguo 
que  per  esta  cédula  e  nomeação  presente  nomeo  em  todo  ho  foro  destes  asen- 
tos por  segunda  pesoa  a  meu  filho  o  mais  velho  chamado  António  Jorge  pêra  que 
depois  de  minha  morte  ele  djto  António  Jorge  logre  e  pesua  os  djtos  asentos 
asy  como  os  eu  senpre  pesuy  ate  ora  da  minha  morte  e  pague  o  djto  foro  ao 
dito  moesteiro  como  eu  senpre  paguey  a  qual  verba  eu  escriuão  treladey  do 
propyo  testamento  que  era  asjnado  pelo  dito  Jorge  Afonso  e  por  Manuel  de  Le- 
mos que  dizia  fazello  e  era  feyto  a  vinte  e  hum  dias  do  mes  de  feuereyro  do 
ano  de  myl  e  quinhentos  e  corenta  e  nas  costas  dele  esta  hum  estromento  da 
prouação  do  dito  testamento  feyto  por  Antonyo  Luys  pruuyco  tabelliam  nesta 
cidade  de  Lixboa  aos  djtos  vinte  e  hum  djas  do  dito  mes  de  feuereyro  do  dito 
ano  de  quynhentos  e  corenta  com  testemunhas  em  ele  nomeadas  o  qual  lhe 
torney  a  sua  mão  e  a  dita  verba  treladey  bem  e  fyelmente  do  dito  testamento 
e  comcertey  com  o  dito  juiz  e  por  verdade  asinamos  aquy.  Belchior  Aluarez  o 
escreuy. » 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  19 

«E  despois  desto  aos  dezoyto  dias  do  djto  mes  de  dezembro  do  dito  ano 
de  quyDhentos  sesenta  e  hum  anos  em  Lixbna  o  djto  Licenciado  Brás  Soarez 
Pestana  com  o  padre  frey  Sebastiam  de  Quadros  que  he  presente  ao  fazer  deste 
lonbo  por  mandado  do  padre  pryol  por  parte  do  dito  moesteiro  e  conuento  co- 
miguo  escriuã  e  com  António  de  Saa  Carranca  medidor  fomos  as  pousadas  e 
asento  que  foy  do  dito  Jorge  Afonso  defunto  em  que  estaa  de  pose  Jeronymo 
Jorge  seu  filho  por  António  Jorge  seu  jrmão  que  he  nomeado  no  dito  prazo 
pêra  fazermos  medicam  dele  comforme  ao  Regimento  delrrrey  noso  senhor 
sendo  primeiro  apreguoados  António  Lopez  e  sua  molher  e  António  Gonçaluez 
e  sua  molher  e  Marcos  Gil  viuuo  Calafate  e  Grimanesa  Lopez  filha  de  Greguo- 
rio  Lopez  que  não  he  casada  e  Isabel  Lopez  viuua  que  foram  rrequerydos  pêra 
yrem  perante  o  dito  juiz  pêra  lhe  asjnar  termo  e  dia  em  que  auia  de  fazer 
a  dita  medyçam  per  as  ditas  pesoas  confrontarem  com  as  dytas  casas  e  asento 
e  por  nam  parecerem  o  dito  juiz  a  sua  rreuelia  lhe  asynou  o  dito  dia,  dezoyto 
dias  deste  mes  em  que  avia  de  fazer  a  dita  medicam  e  asy  aos  vinte  e  dous 
dias  do  djto  mes  por  não  poder  acabar  de  fazela  em  hum  dia  e  sendo  a  ela 
presente  o  dito  Jeronymo  Jorge  se  fez  a  dita  medicam  pela  maneira  seguynte 
—  Belchior  Aluarez  o  escreuy=As  quaes  pesoas  foram  rrequeridas  per  my  es- 
criuam  somente  António  Lopez  que  foy  pasado  do  juiz  medicam. 

«As  quaes  casas  e  quintaes  estam  çerquados  de  paredes  e  taypas  sobre 
sy  e  partem  da  banda  do  norte  com  casas  e  quyntall  de  Marcos  Gil  Calafate 
com  quintal  d'Antonio  Lopez  e  do  leuante  com  casas  d'Antonio  Guomez  e  de 
Grimanesa  Lopez  e  de  Isabel  Lopez  e  de  Antonyo  Lopez  que  todas  são  foreyras 
ao  moesteiro  de  São  Vicente  de  Fora  e  do  sull  com  rrua  puurica  que  vay  do  Re- 
sio  pêra  o  cano  Real  e  do  poente  com  casas  e  quyntal  do  dito  moesteiro  que 
foram  aforadas  a  Afonso  Valente  e  a  Gonçalo  Carualho  seu  jenrro  que  ora  pe- 
suem  seus  erdeiros  e  com  Felipa  Carneira  Preta  diguo  com  casas  da  dita  Ke- 
lipa  Carneira  que  também  são  do  dito  moesteiro  e  com  rrua  puurica  que  vay 
pêra  o  chão  de  dom  Anrrique  e  rrua  das  Parreyras  e  são  cinquoenta  e  três 
casas  afora  o  pateo  e  chão  que  estaa  ha  entrada  do  djto  pateo  a  face  da  rrua 
que  estaa  defronte  da  capela  moor  do  dito  moesteiro  ho  quall  chão  he  em  qua- 
dro e  tem  de  comprido  oyto  varas  e  três  quartas  e  de  larguo  outra  tanta  me- 
dida e  contando  estas  oyto  varas  e  três  quartas  com  a  medida  do  mais  chão 
que  estaa  feylo  em  casas  a  face  da  rrua  que  vay  pêra  o  dilo  cano  rreal  que 
são  deste  prazo  são  ao  todo  vinte  e  quatro  varas  e  húa  mão  trauesa  e  a  pri- 
meira casa  que  estaa  peguada  com  este  chão  da  banda  de  leuante  he  húa  logea 
com  hum  sobrado  e  a  logea  tem  de  comprido  quatro  varas  e  três  quartas  e  de 
larguo  quatro  varas  e  raea  e  o  sobrado  he  doutro  tanto  comprimento  e  largura 
da  logea  e  tem  pelo  meyo  hum  rrepartimento  de  frontee  e  húa  jenela  pêra  rrua 
contra  o  sul  e  adiante  desta  casa  estaa  outra  casa  com  sobrado  e  são  duas  lo- 


zU  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

geas  a  primeira  tem  de  comprido  cinquo  varas  e  de  larguo  outras  cinquo  va- 
ras e  hum  quadro  e  a  outra  logea  de  dentro  que  se  serue  per  esta  tem  de 
comprido  cinquo  varas  e  de  larguo  quatro  varas  e  o  sobrado  destas  logeas  são 
duas  casas,  a  primeira  tem  de  comprido  cinquo  varas  e  de  larguo  quatro  va- 
ras e  tem  nua  janela  pêra  a  mesma  rrua,  e  o  outro  sobrado  de  dentro  tem 
de  comprido  cinquo  varas  e  de  larguo  quatro  varas  e  alem  destas  casas  pe- 
guado  com  elas  a  mesma  face  da  rrua  estão  outras  em  que  ora  pousa  Diogo 
Orelha  tabelliam  das  notas  nesta  cydade  e  são  três  logeas  e  a  primeira  tem 
hum  portal  de  pedraria  e  tem  de  conprido  com  a  outra  logea  de  dentro  que 
parte  com  o  quintal  do  dito  asento  e  casas  d'Antonio  Jorge  noue  varas  e  hua 
sesma  e  de  larguo  cinquo  varas  e  húa  terça  e  a  outra  logea  que  fica  da  banda 
do  poente  que  se  serue  por  a  primeira  tem  de  conprido  quatro  varas  e  de  lar- 
guo outras  quatro  e  he  em  quadro  e  sobre  estas  logeas  estam  quatro  casas 
sobradadas  e  a  primeira  casa  tem  de  conprido  com  outra  casa  de  dentro  que 
serue  de  cozinha  e  parte  com  o  quintal  do  dito  António  Jorge  e  estaa  sobre  a 
logea  que  se  medjo  com  a  primeira  logea  e  tem  de  conprimento  estes  dous 
sobrados  noue  varas  e  hua  sesma  que  he  outro  tanto  como  as  medidas  das  dj- 
tas  duas  logeas  e  esta  casa  que  serue  de  cozinha  tem  de  larguo  duas  varas  e 
mea  e  outro  tanto  tem  a  logea  que  estaa  debayxo  dela  e  a  casa  primeira  que 
jaa  tem  medido  o  conprimento  tem  de  larguo  cinquo  varas  e  húa  terça  e  tem 
duas  janelas  e  tem  outra  casa  sobradada  no  andar  desta  que  serue  de  camará 
e  tem  de  conprido  quatro  varas  e  de  larguo  outras  quatro  de  maneira  que  fica 
em  quadro  e  em  cima  desta  casa  estaa  outra  do  mesmo  conprimento  e  largura 
e  são  todas  forradas. 

iE  alem  do  chão  que  atras  vay  declarado  pêra  a  banda  do  norte  estaa 
hum  pateo  descuberto  que  he  seruentia  do  asento  principal  deste  prazo  o  qual 
pateo  tem  de  conprido  sete  varas  e  mea  do  dito  chão  ate  as  casas  que  esta 
contra  o  norte  do  dito  asento  e  he  da  banda  do  poente  e  ao  longuo  das  ditas 
casas  contra  o  norte  tem  sete  varas  e  hua  sesma  e  da  banda  do  leuante  seys 
varas  e  mea  e  tem,  cinquo  portas  de  cinquo  logeas  que  sam  pêra  ele  e  a  pri- 
meira porta  da  logea  estaa  quamdo  entrão  pello  dito  pateo  a  mão  ezquerda  da 
banda  do  poente  e  tem  a  dita  logea  de  conprido  dez  varas  e  de  larguo  seis 
varas/e  sobre  esta  logea  estaa  hum  sobrado  em  que  estão  três  casas  e  tem  húa 
janela  sobre  o  chão  que  a  trás  fica  medido  que  estaa  a  face  da  rrua  de  fronte 
da  capela  moor  e  a  primeira  casa  tem  de  conprido  seis  varas  e  de  larguo  três 
varas  e  mea  e  a  outra  casa  que  esta  no  andar  desta  tem  de  conprido  quatro 
varas  e  de  larguo  duas  varas  e  mea  e  a  outra  casa  que  esta  no  andar  destas 
duas  tem  de  comprido  três  varas  e  mea  e  de  larguo  três  varas.  E  a  diante 
desta  logea  esta  outra  da  banda  do  norte  e  tem  de  conprydo  quatro  varas  e 
mea/e  de  larguo  três  varas  e  alem  desta  logea  estaa  outra  que  se  serue  por 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  2i 

ela  e  tem  de  conprido  cinquo  varas  e  de  larguo  quatro  varas  e  mea  e  peguado 
com  estas  logeas  pêra  a  banda  do  leuante  estão  outras  duas  que  se  seruem 
pelo  dito  pateo  e  se  serue  liQa  por  outra  e  a  primeyra  tem  de  conprido  cin- 
quo varas  e  de  larguo  outras  cinquo  e  fica  em  quadro  e  a  outra  logea  que  se 
serue  por  esta  tem  hú  rrepartimento  de  taipa  e  tem  de  conprido  cinquo  varas 
e  de  larguo  três  varas  e  nua  quarta  e  junto  destas  logeas  esta  outra  que  são 
duas  e  tem  no  meo  hum  rrepartimento  dadobes  da  banda  do  leuante  e  estas 
logeas  tem  anbas  de  conprido  sete  varas  e  de  larguo  cinquo  varas  e  a  de  den- 
tro tem  hum  rrepartimento  no  meyo  que  fazem  duas  casas  e  são  ha  de  den- 
tro da  medida  a  cima  e  quando  entrão  pêra  o  dito  pateo  a  mão  direita  ao  pee 
da  escada  que  vay  pêra  o  apousentamento  de  cyma  estaa  noutra  logea  que  tem 
de  conprido  quatro  varas  e  mea  e  de  larguo  duas  varas  e  mea/e  sobre  esta 
logea  estaa  ou  sobrado  da  mesma  medida  da  largura  e  conprimento  da  logea 
e  junto  da  porta  desta  logea  estaa  húa  escada  de  tijolo,  dyguo  [sic)  de  degraos 
de  tijolo  e  de  tauoado  mays  acima  com  húa  varanda  por  onde  se  serue  o  apou- 
sentamento de  cyma  e  antes  que  cheguem  a  porta  da  sala  grande  do  dito  apou- 
sentamento estaa  húa  porta  a  mão  direita  que  vay  pêra  nuas  três  casas  que 
se  seruem  por  ela  e  a  primeira  casa  tem  de  conprido  quatro  varas  e  mea  e 
de  larguo  quatro  varas  e  no  andar  desta  casa  estaa  outra  que  tem  bua  janella 
pêra  os  quintaes  do  dito  asento  e  tem  a  caso  de  conprido  três  varas  e  húa 
sesma  e  de  larguo  três  varas  e  outra  casa  pequena  peguada  com  este  que 
tem  de  comprido  três  varas  e  de  larguo  hua  vara  e  três  quartas  e  tem  húa 
chamyne  e  húa  janela  pêra  o  quyntal  acyma  declarado  e  ha  casa  primeira 
que  serue  de  sala  deste  asentamento  principal  he  húa  casa  grande  e  tem 
húa  porta  pêra  os  quintaes  e  hua  janela  grande  pêra  a  parte  do  leuante  e  tem 
de  conprido  oyto  varas  e  de  larguo  cynquo  varas  e  no  andar  desta  casa  a 
mão  esquerda  contra  o  poente  estaa  outra  casa  sobradada  e  tem  de  conprido 
cinquo  varas  e  de  larguo  quatro  varas  e  húa  quarta  e  aby  loguo  estaa  outra 
casa  que  se  serue  per  esta  e  tem  de  conprido  quatro  varas  e  de  larguo  três 
varas  e  no  andar  desta  estaa  outra  casa  pequena  que  tem  de  conprido  três  va- 
ras e  de  larguo  outras  três  e  fica  em  quadro  e  he  térrea  por  o  chão  estar  aquy 
na  altura  destes  sobrados  e  outra  casa  que  se  serue  por  a  primeira  casa  que 
estaa  a  peguada  com  a  sala  pêra  a  banda  do  poente  e  tanbem  he  térrea  por 
o  chão  dela  estar  no  andar  do  sobrado  da  casa  por  onde  se  serue  e  tem  de 
conprido  oyto  varas  e  mea  e  de  larguo  três  varas  e  tem  húa  janela  pêra  os  di- 
tos quintaes  e  sayndo  pela  porta  da  sala  pêra  o  quintall  a  entrada  dele  a  mão 
esquerda  estaa  bum  poço  com  hum  bocal  de  pedraria  laurada  e  loguo  hy  estaa 
hum  corredor  pêra  o  poente  que  nam  tem  sayda  e  entesta  com  a  rrua  que  vay 
pêra  o  chão  de  dom  Anrrique  e  Rua  das  Parreiras  e  tem  de  conprido  oyto  varas 
e  mea  e  de  larguo  hua  vara  e  adiante  deste  corredor  e  peguado  com  ele  con- 


22  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

tra  o  norte  estaa  outra  casa  térrea  e  tem  de  conprido  quatro  varas  e  de  lar- 
guo  duas  varas  e  mea  e  alem  desta  casa  esta  outra  térrea  com  hum  frontal 
de  tauoado  no  meo  e  tem  de  conprido  oyto  varas  e  de  larguo  quatro  varas  e  os 
quintaes  tem  movias  larangeyras  grandes  e  pequenas  e  parreiras  e  outras 
muylas  amores  e  tanques  daguoa  e  fontes/e  tem  de  conprido  norte  e  sul  ao 
longuo  das  casas  que  são  foreyras  a  Sã  Vicente  de  Fora  da  parte  do  leuante 
do  quintal  de  António  Lopez  ate  as  casas  em  que  ora  vive  Dioguo  Orelha  trinta 
e  oyto  varas  e  mea  e  da  outra  banda  da  porta  da  rrua  que  vay  pêra  o  chão 
de  dom  Anrrique  e  rrua  das  Parreyras  ao  longuo  norte  e  sul  a  face  da  rrua 
tem  trinta  e  sete  varas  e  mea  entrando  nelas  quatro  moradas  de  casas  que  es- 
tam  no  chão  deste  prazo  e  tem  os  ditos  quintaes  de  conprimento  pelo  meyo 
demarcando  do  levante  pêra  o  poente  corenta  e  cinquo  varas  e  tem  os  ditos 
quintaes  bua  porta  na  dita  rrua  que  vay  pêra  o  chão  de  dom  Anrrique  e  rrua 
das  Parreyras  por  onde  se  serue  pêra  elas. 

«E  da  dita  porta  pêra  a  banda  do  sul  estão  as  ditas  quatro  moradas  de 
casas  açyma  declarados  a  face  da  dita  rrua  e  a  primeira  casa  que  esta  loguo 
junto  da  dita  porta  são  duas  logeas  e  a  primeira  tem  de  conprido  quatro  va- 
ras e  hua  terça  e  de  larguo  outra  tanta  medida  e  he  em  quadro  e  a  outra  lo- 
gea  que  se  serue  por  esta  tem  de  conprido  quatro  varas  e  hua  terça  e  de  lar- 
guo outras  quatro  varas  e  terça  e  he  em  quadrado/e  alem  desta  logea  estaa 
outra  contra  o  leuante  e  he  térrea  e  quadrada  e  tem  de  conprido  três  varas  e 
hua  terça  e  de  larguo  outra  tanta  medida  e  o  sobrado  da  primeyra  logea  he 
da  mesma  medida  e  o  sobrado  da  primeyra  logea  he  da  mesma  medida  dela 
de  conprimento  e  largura  e  a  outra  casa  sobradada  que  estaa  sobre  a  segunda 
logea  tem  de  conprido  quatro  varas  e  hum  palmo  e  de  larguo  três  varas  e  mea 
e  peguado  com  esta  casa  pêra  a  dyta  banda  do  sul  e  a  face  da  rrua  estaa  ou- 
tra casa/e  logea  tem  de  conprido  quatro  varas  e  hua  terça  e  de  larguo  quatro 
varas  e  mais  dentro  tem  outra  casa  como  furna  (?)  que  tem  de  conprido  qua- 
tro varas  e  de  larguo  duas  varas  e  mea  e  sobre  esta  furna  estaa  hum  sobrado 
que  he  do  mesmo  conprimento  e  largura  dela  e  sobre  a  primeira  logea  estaa 
hum  sobrado  que  são  três  casas  porque  vão  sobre  o  sobrado  da  furna  as  duas 
que  he  camará  e  cozinha  e  a  primeira  casa  tem  hua  janela  pêra  a  rrua  e  tem 
de  conprido  quatro  varas  e  hua  quarta  e  de  larguo  quatro  varas  e  a  camará 
que  estaa  no  andar  desta  tem  de  conprido  quatro  varas  e  de  larguo  três  va- 
ras e  a  casa  que  serue  de  cozinha  tem  de  conprido  quatro  varas  e  de  larguo 
hua  vara  e  abayxo  destas  casas  estam  outras  que  são  hus  fornos  de  poya  e 
são  térreas  e  esta  casa  primeira  tem  dous  fornos  em  que  cozem  pão  e  tem  de 
conprido  com  hum  rrepartimento  que  estaa  alem  dos  fornos  contra  o  leuante 
noue  varas  e  mea  e  de  larguo  seys  varas  e  cinquo  sesmas  e  a  mão  direita  en- 
trando por  esta  casa  primeira  estaa  outra  térrea  que  serue  de  ter  lenha  pêra 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  23 

o  forno  e  tem  de  conprido  dez  varas  e  hua  quarta  e  de  largo  quatro  varas  e 
duas  terças  e  outra  casa  alem  desta  contra  a  dita  banda  do  leuante  e  he  bua 
logea  e  hum  sobrado  somente/e  a  logea  tem  de  conprido  quatro  varas  e  duas 
terças  e  de  larguo  quatro  varas,  e  o  sobrado  he  da  mesma  medida  da  largura  e 
conprimento  da  logea  e  tem  Ima  janela/Aqual  medida  de  todas  as  dytas  casas 
e  quyntaes  e  chãos  pateo  e  corredores  e  varanda  foy  feyta  toda  pelos  vãos  e 
a  fora  ysto  tem  as  paredes  e  paguão  de  foro  em  cada  hum  ano  myll  e  sete- 
centos reaes  em  dinheiro  e  dous  capões  ou  çem  reaes  por  eles/o  que  tudo  fi- 
qua  medido  segundo  atras  he  declarado  em  que  ao  todo  juntamente  ha  de  lar- 
guo e  conprido  em  todo  o  dyto  asento  como  a  trás  fica  dito  seyscentos  e  quinze 
varas  e  mea  de  cinquo  palmos  a  vara  e  o  dito  juiz  que  a  tudo  esteue  presente 
com  o  dito  padre  frey  Sebastiam  e  o  medidor  asynarão  aquy  com  o  dito  Jeró- 
nimo Jorge  procurador  do  dito  António  Jorge  seu  irmão  por  estar  presente  a 
esta  mediçã  —  Belchior  Aluarez  o  escreuy. —  Testemunhas  que  foram  presen- 
tes Djoguo  Lopez  procurador  do  dito  moesteiro  e  Joham  Gonçaluez  criado  do 
dito  Juiz  e  outros  e  foram  outra  vez  apregoadas  as  pesoas  a  trás  escritas 
pelo  dito  porteiro  e  a  sua  rreuelia  se  fez  esta  medicam.  Uma  Cruz  =  Fr.  Se- 
bastianus  de  Coadros  =  Joham  Lopez  =  Brás  Soares  Pestana.» 

«E  pêra  esta  medicam  foy  pasado  mamdado  do  dito  juiz  pêra  ser  rreque- 
rido  pêra  esta  medicam  António  Lopez  e  sua  molher  moradores  a  Sam  Joham 
da  Talha  termo  desta  cydade  por  ter  huas  casas  que  confrontam  com  as  do 
dito  Antonjo  Jorge  e  foram  rrequeridos  como  consta  da  çertidam  que  esta  nas 
costas  do  dito  mandado  que  tudo  vay  adiante  —  Belchior  Aluarez  ho  escreuy.» 

«O  Licenciado  Brás  Soarez  Pestana  juiz  do  tonbo  do  moesteiro  de  São 
Dominguos  desta  çydade  de  Lixboa  per  mandado  delrrey  noso  Senhor  Faço 
saber  a  qualquer  juiz  escriuão  ou  porteiro  ou  alcayde  do  limyte  e  julguado  do 
luguar  de  São  Joham  da  Talha  termo  desta  cidade  ou  a  qualquer  outro  do  dito 
termo  que  com  este  for  rrequerido  em  como  pêra  se  averem  de  medir  e  de- 
marquar  huas  casas  com  seus  quintaes  dos  erdeiros  de  Jorge  Afonso  pintor  de 
trás  do  dito  moesteiro  he  necesario  serem  rrequeridas  as  partes  que  em  eles 
comfrontão  pêra  o  que  lhes  mando  que  sendo  com  este  rrequerido  que  rre- 
queirão  a  António  Lopez  filho  do  Licenciado  Lopo  Vaaz  e  sua  molher  porque 
da  noteficação  deste  a  primeira  audiência  seguinte  que  faço  as  segundas  e  quar- 
tas e  sestas  de  cada  semana  pareçeo  perante  my  pêra  lhes  asjnar  o  dia  em  que 
ey  de  demarcar  e  confrontar  os  ditos  chãos  sendo  certos  que  não  vindo  nem 
mandado  os  averey  por  rrequeridos  a  sua  rreuelia  e  medicam  e  demarcaçam 
segundo  rregimento  do  dito  senhor  e  da  dita  noteficaçã  me  pasarem  sua  çer- 
tidam nas  costas  deste  por  quanto  são  enformado  que  tem  huas  casas  onde  se 


24  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

chama  a  rrua  da  Palma  que  confrontão  com  o  dito  chão  cunprio  asy  —  Belchior 
Aluares  escriuão  do  tonbo  o  fez  em  Lixboa  a  dez  dias  de  dezembro  de  jbe  lxj 
=  Bras  Soarei  Pestana.» 

«Dyguo  eu  Pêro  da  Syllua  ynyz  do  julgado  de  Sam  Joham  da  Talha  e  dou 
fé  que  he  verdade  que  em  comprymento  do  maridado  atras  espryto  fuy  ha  caza 
de  António  Llopez  e  ho  rrequery  por  todo  o  cõteudo  no  dyto  mandado  e  asy 
rrequery  sua  molhei*  e  ysto  pêra  prymeyra  audyençya  e  elle  me  deu  rreposta 
que  ho  mosteiro  de  Sam  Vicente  erra  Senhoryo  de  dereyto  da  dyta  fazenda  cõ- 
teuda  no  mandado  e  ho  por  autor  e  que  toda  vylla  acudyrya  a  dyta  audyen- 
çya por  sy  ou  por  outra  e  eu  toda  vya  os  ouve  por  rrequerydos  cõforme  ao  dyto 
mandado  e  por  verdade  asyney  aquy  ove  13  dyas  de  dezembro  de  1561  anos 
e  Rogey  a  Llançarote  de  Freytas  que  ho  espreuese  por  o  espryuam  do  dyto 
julgado  estar  empedydo  —Lançarote  de  Freytas  o  espreuy  no  dyto  dya  e  mes 
era  atras  espryto  =  Uma  cruz  de  Pêro  da  Syllua.»1 

«Em  nome  de  deos  Amem  Saibhã  quantos  este  estormento  de  declaraçã 
e  ênovaçã  e  emprazamento  vyrê"  que  no  anno  do  nacymento  de  noso  senor  Jhesu 
Xpo  de  mill  e  quinhentos  e  quorenla  anos  em  vyntee  e  três  dias  do  mes  de 
Junho  na  cidade  de  lixboa  dentro  no  mosteiro  de  sã  dominguos  na  casa  do  ca- 
bydo  estando  hi  presentes  os  muito  homrados  e  virtuosos  padres  do  dito  mos- 
teiro comvê"  a  saber  o  muyto  Reverendo  padre  frey  Jeronymo  de  padilha  vi- 
gayro  gerall  da  ordem  de  sãa  domyuguos  neste  Reyno  de  purtugall  e  frey 
paullo  Cotello  pryor  do  dito  mosteiro  e  frey  Jorge  de  Santiago  apresentado  e 
frey  marquos  de  hojeda  e  frey  fernando  do  cadavall  e  frey  Johã  bautista  e  frey 
lluis  de  santarê  e  frey  valleryano  de  mydyna  e  frey  Johãa  de  sãa  domynguos 
e  frey  xpuão  de  vallbuena  e  frey  Johã  da  cruz  e  frey  Jorge  de  santa  lluzia  e 
frey  Jnaçio  de  lleyrya  e  frey  ayres  barroso  e  frey  dioguo  bermudez  e  frey  dio- 
guo  de  vyseu  e  frey  paullo  de  santa  maria  e  frey  pedro  de  macedo  e  frey 
diogo  de  moraes  e  frey  Inaçio  da  poryíicaçã  e  outros  frades  conventuaes  do 
dito  mosteiro  estando  todos  jutos  ê  cabydo  e  cabydo  fazendo  chamados  a  elle 
per  som  de  cãapãa  tangida  segudo  seu  bom  e  virtuoso  custume  espyciallmête 
pêra  este  auto  ao  deante  decllarado  E  bem  asy  estado  hi  prezente  Ruy  diaz 
pydreyro  e  morador  na  dita  cydade  a  cyma  do  dito  mosteiro  llogo  por  elles 
padres  foy  dito  q  he  verdade  q  o  dito  Ruy  diaz  e  sua  molher  Isabell  pirez  a 
isto  ausentee  tem  na  dita  cydade  acyma  do  dito  mosteiro  quando  vão  pêra  os 
chãos  de  dona  Joana  de  crasto  duas  moradas  de  casas  que  ambas  são  sobra- 
dadas q  buas  sã  grandes  e  outras  pequenas  q  elle  agora  corregeo  e  as  ditas 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  de  S.  Domingos  de  Lisboa.  L.°  31,  fl.  66  a  74. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  25 

moradas  de  casas  grandes  fez  de  novo  no  chãa  q  ouve  de  goncallo  pynto  es- 
cudeyro  do  comde  de  maryalvaa  q  todo  parte  per  hQa  banda  com  quyntall  de 
caterina  fernandez  molher  q  foy  de  nu  cutyleiro  e  doutra  parte  com  o  dito  quin- 
tal da  dita  caterina  fernandez  e  por  deante  comfrontãa  com  casas  q  foram  de 
Jorge  Afonso,  pintor  dei  Rey  noso  Sfíor  e  com  rua  pruuica,  etc.»  * 


VI.—  Affonso  (Pêro).— Em  uma  carta  de  D.  Affonso  V,  de  31  de  julho 
de  1456,  referente  a  diversos  indivíduos,  vem  mencionado  um  Pêro  Afom,  pin- 
tor hospitaleiro  de  Ra  contador  (Rocamador).  Esta  phrase  pôde  entender-se  de 
mais  de  uma  maneira,  mas  parece-me  que  se  deve  interpretar  assim:  que 
Pêro  Affonso,  pintor,  era  hospitaleiro  de  Rocamador,  isto  é,  que  exercia  n'aquelle 
hospital  o  cargo  de  mordomo  ou  qualquer  outro  semelhante. 

Adeante  publico  um  artigo  relativo  a  Pêro  Affonso  Gallego,  pintor  de  es- 
cudos no  Porto,  onde  já  residia  em  tempo  de  D.  João  I,  que  lhe  passou  carta 
de  privilegio,  confirmada  primeiramente  por  D.  Duarte  e  depois  por  D.  Affon- 
so V  em  1441.  Creio  que  entre  um  e  outro  não  ha  relação  de  identidade. 

Na  minha  monographia  O  vidro  e  o  papel,  sob  o  n.°  viu  e  sob  o  nome  de 
Mafamede,  dei  na  integra  a  carta  de  D.  Affonso  V,  em  que  apparece  a  refe- 
rencia relativa  a  Pêro  Affonso. 


VII. —  Affonso  (Simão). —  O  meu  amigo  e  distincto  archivista,  sr.  Pedro 
A.  de  Azevedo',  n'um  dos  seus  interessantes  estudos  publicados  no  Archeologo 
Portuguez,  trata  de  um  chão  que  Diogo  Luiz  trazia  aforado  ao  mosteiro  de  S. 
Vicente.  Uma  filha  d'este  Diogo  Luiz  e  de  sua  mulher,  Violanta  Rodriguez,  de 
nome  Breatis  Luís,  casou  com  o  pintor  Simão  Affonso,  conforme  um  documento 
de  1555,  pertencente  ao  cartório  do  mosteiro  de  Santos  (n.°  1783). 

Veja-se  o  volume  v  do  sobredito  periódico,  pag.  264,  no  artigo  intitulado 
Do  Areeiro  á  Mouraria. 


VIII.— Almeida  (Pêro  de).— Pêro  ou  Pedro  de  Almeida  era  filho  natural, 
legitimado,  de  outro  individuo  de  egual  nome,  cónego  e  mestre-escola  na  Sé 
de  Santiago,  de  Gabo  Verde.  Pêro  de  Almeida,  o  pae,  era  natural  de  Marco 
de  Canavezes,  bispado  do  Porto,  e  houvera  o  filho,  sendo  ainda  moço  e  leigo, 
de  uma  mulher  solteira,  cujo  nome  se  não  declara  na  respectiva  carta  de  le- 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  de  S.  Domingos  de  Lisboa.  L."  55,  fl.  207. 
FíVEnEmo,  1903. 


26  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

gitimação,  dada  a  20  e  passada  em  21  de  abril  de  1558.  Esta  carta  acha-se 
registada  a  fl.  55  v.  do  Livro  36  das  Legitimações  de  D.  Sebastião. 

Pêro  de  Almeida,  o  filho,  era  pintor  e  residia  na  rua  do  Alemo,  em  Lis- 
boa. Sua  mulher  chamava-se  Isabel  Rodeira,  e  tinha  por  certo  alguma  educa- 
ção, pois  assigna  o  seu  nome  com  boa  calligraphia,  prenda  muito  pouco  usual 
entre  o  sexo  feminino  n'aquella  epocha.  Seu  pae  nomeara-o  em  testamento  seu 
herdeiro,  mas  o  convento  de  Christo  de  Thoraar,  de  cuja  ordem  o  fallecido  era 
freire,  oppoz-se  á  herança,  por  elle  não  haver  pago  os  três  quartos  que  devia. 
Levautou-se  por  isso  demanda,  mas  as  partes  chegaram  a  accordo,  e  em  2  de 
outubro  de  1564  se  lavrou  um  instrumento  de  concerto,  em  que  Fero  de  Al- 
meida desistia  dos  seus  direitos,  largando-lhe  o  convento  duas  peças  de  escra- 
vos e  dando-lhe  mais  20:000  reaes  para  satisfação  de  despezas  que  elle  fizera. 
Entre  as  testemunhas  que  assistiram  a  este  auto  de  desistência  e  à  outorga  da 
mulher,  merecem  destacar-se,  pelo  lado  artístico,  Jorge  Penalva,  capellão  e  can- 
tor de  el-rei,  e  António  Boudão  ou  Bodau,  flamengo,  lapidario. 

Eis  agora  o  respectivo  documento: 

«Saibão  quantos  este  pubrico  instrumento  de  concerto  desistência  e  acei- 
tação virem  que  no  Armo  do  naçimento  de  nosso  Snor  Jesu  Xpo  de  mil  e  qui- 
nhentos e  sesenta  e  quatro  annos  a  dous  dias  do  mes  de  outubro  em  a  cidade 
de  lixboa  e  casas  do  apousentamento  do  padre  frey  fernão  lopez  capelão  dei 
Rey  nosso  sõr  e  vigário  da  conceição  da  dila  cidade  sendo  hi  presente  o  muito 
Reuerendo  padre  frey  Vicente  dom  prior  do  conuenlo  de  tomar  da  ordem  de 
nosso  sõr  Jesu  Xpo  e  geral  delia  per  ante  mim  notário  e  testemunhas  aho  diante 
nomeadas  pareçeo  hi  presente  pêro  d  almeida  pintor  morador  na  dila  cidade 
na  rua  do  alemo  filho  de  pêro  d  almeida  defuncto  cónego  que  foi  na  see  de  San- 
tiago do  cabo  verde  e  depois  mestre  scola  na  mesma  e  per  elle  foi  dito  que 
logo  como  Amrrique  esteuez  da  veiga  morador  nesta  cidade  soube  que  o  dito 
mestre  scola  era  fallecido  no  mar,  vimdo  a  este  Reyno  por  vijr  a  elle  ende- 
reçado o  testamento  que  fizera  o  leuara  a  diogo  soarez  thesoureiro  dos  defun- 
ctos  com  outras  cartas  que  disse  que  lhe  o  dito  defuncto  mandara  de  descar- 
regos, que  fez  ajuntar  aho  dito  testamento,  e  asy  as  letras,  escripturas  e  al- 
gum dinheiro  amoedado  e  ouro/dizendo  que  o  remitia  alli  por  se  descarregar 
de  trabalhos  e  per  auisos  que  mandou  a  húa  parle  e  a  outra  foy  posto  em- 
bargo na  dita  fazenda  por  parte  do  dito  convento  de  tomar  dizendo  que  por 
ser  o  dito  defuncto  freire  professo  da  dita  ordem  e  não  ter  pagos  os  três  quar- 
tos das  rendas  de  seus  benefícios  antes  da  sua  morte,  não  podia  testar  e  que 
pertencia  aho  convento  a  dita  fazenda  per  inteiro/e  prouando  depois  elle  pêro 
d  almeida  ser  filho  natural  do  dito  defuncto  legitimado  e  nomeado  por  erdeiro 
no  testamento /o  corregedor  manuel  aluarez  juiz  dos  feitos  e  causas  de  justi- 


NOTICIA  OE  ALGOS  PINTORES  27 

flcações  de  guinee,  mina  e  índias  e  q  visto  o  dito  testamento  e  carias  proua  e 
legitimação  delle  pêro  dalmeida  per  sua  sentença  o  ouue  e  pronunciou  por  er- 
deiro  do  dito  pêro  dalmeida  mestreseola  seu  pay/mandando  q  tirado  o  q  bas- 
tasse pêra  as  diuedas  e  descarregos  do  testamento  fosse  entregue  ao  dito  her- 
deiro o  remaneçente  da  dita  fazenda/segundo  todo  mais  largamente  na  dita 
sentença  se  contem  per  vertude  da  qual  pretendendo  elle  pêro  dalmeida  auer 
em  si  a  dita  fazenda  como  erdeiro  do  dito  seu  pay/e  q  pêra  isso  se  aleuantasse 
o  dito  embargo  o  padre  dom  prior  a  quem  o  sobredito  lhe  requereo  e  pidio 
disse  q  em  nome  do  dito  connento  o  não  podia  nem  deuia  fazer  e  lho  contra- 
riou dizendo  (como  dito  fica)  q  o  dito  defuncto  não  podia  a  ora  da  sua  morte 
testar,  nem  despoer  de  seus  bêes  e  q  pêra  o  poder  fazer  ouuera  de  ter  pagos 
os  três  quartos  assi  da  conesia  q  primeiro  teue  como  da  dignidade  de  mestres- 
cola  de  que  depois  foy  prouido/ou  parte  della/a  ho  que  atte  ora  da  sua  morte 
inclusine  se  não  acha  teer  satisfeito/como  constara  per  certidão  do  scriuão  das 
três  quartas /pelo  que  tendo  per  informação  ser  assi /alem  de  o  dito  padre  (a 
quem  se  deve  dar  credito)  ho  afirmar  (por  se  não  meter  a  demanda  com  o 
dito  connento  sendo  elle  oficial  pintor  que  lhe  conuem  mais  trabalhar  em  ga- 
nhar de  comer  pêra  sua  casa  que  despender  o  tempo  e  o  que  não  tem  em  de- 
mandas) tendo  auido  sobre  isso  conselho  disse  que  consentia  e  lhe  aprazia 
como  de  feito  lhe  aprouue  e  consintio  que  o  dito  connento  in  solidum  fosse  er- 
deiro de  toda  a  fazenda  do  dito  mestrescola  seu  pay  assi  da  que  agora  hee  sa- 
bida que  se  achou  por  papes  conhecimentos  e  obrigações  como  da  que  adiante 
per  informações  auisos  e  outras  diligencias  sahir  e  averiguar  que  era  sua/e 
isto  com  o  dito  conuento  pagar  suas  diuedas  e  encargos  e  fazer  por  sua  alma 
como  religiosos  que  são  e  obrigado  ás  almas  dos  freires  da  sua  ordem.  E  em 
caso  que  elle  pêro  dalmeida  per  vertude  da  sentença  do  dito  corregedor  te- 
nha ou  pretenda  teer  algum  direito  e  aução  á  dita  fazenda  do  seu  pay  elle  de 
sua  liure  e  não  forçada  nem  induzida  vontade  o  alarga  cede  e  trespasa  no  dito 
conuento  dõ  prior  e  freires  delle  por  seruiço  de  deus  e  saluação  dalma  do  dito 
defuncto  sabendo  mui  certo  que  será  mais  alembrada  e  ajudada  com  missas 
e  ofícios  diuinos  per  elles  que  per  outro  algum  amigo  nem  filho/ E  dise  mais 
que  quanto  as  duas  peças  descrauos  moços  que  o  dito  seu  pay  trazia  consigo 
pêra  elle  seu  filho  inda  que  o  dyto  seu  pay  no  testamento  disesse  que  lhas 
mandaua  dar  pelo  seruiço  que  lhe  fizera/erão  realmente  de  certo  fato  que  lhe 
ficou  em  poder  seu  na  ilha  quando  delia  se  tornou  muito  doente  a  este  Reyno 
/o  que  jurara  e  prouara  se  cumprir/e  outros  gastos  que  ora  fez  de  seis  mil  e 
quatro  centos  reis  na  alfandega  e  sisa  que  gastou  do  seu  no  despacho  dos  di- 
tos escrauos  e  em  justificações  e  outras  diligencias  e  dias  que  perdeo  de  seu 
oficio,  e  hum  oficio  de  dez  padres  que  lhe  quiz  fazer  pela  alma,  na  Conceição 
desta  cidade  a  sua  custa  o  que  deixa  no  aluidrio  dos  padres  e  do  dito  padre 


28  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

dom  prior  que  a  tudo  em  nome  do  dito  conuento  disse  que  açeitaua  e  aceitou 
a  erança  do  dito  defuncto  com  os  ditos  encarregos/e  auendo  respeito  ao  dito 
pêro  d  almeida  ser  filho  do  defuncto  e  ao  mais  do  fato  e  despesas  que  acima 
diz  crendo  a  boa  fee  que  será  assi/por  coutempração  da  alma  do  dito  defuncto 
e  por  caridade  e  esmola  auia  e  ouue  porbem  que  o  dito  pêro  d  almeida  seu 
filho  aja  e  lhe  fiquem  da  dita  fazenda  as  ditas  duas  peças  descrauos  que  ja 
tem  em  sua  casa  e  mais  vinte  mil  reaes  o  que  lhe  fazia  e  fez  bom  pela  dita 
fazenda  e  rendas  do  dito  conuento  que  pêra  ello  obrigou  e  outrosi  o  dito  pêro 
dalmeida  que  o  aceitou  em  caridade  disse  que  com  autoridade  e  consentimento 
e  aprazimento  de  ysabel  rodeira  sua  legitima  molher  cuja  outorga  lhe  será  to- 
mada também  obrigaua  e  obrigou  todos  seus  bêes  moues  e  de  raiz  auidos  e 
por  auer  a  teer  e  manter  esta  escriptura  de  concerto  e  ho  nella  conteúdo  e 
que  sendo  necessário  requereria  que  da  maneira  sobredita  fosse  julgado  per 
sentença.  E  por  que  a  ambas  partes  de  todo  o  sobredito  aprouue  e  forão  deito 
contentes  assi  o  outorgarão  e  mandarão  ser  disso  feito  esta  nota  em  que  o  dito 
padre  dom  prior  e  peio  dalmeida  assinarão  e  que  deste  instrumento  e  outorga 
se  tirassem  senhos  pubricos  Instrumentos  dum  teor:  testemunhas  que  forão 
presentes  ho  dito  frey  fernão  lopez  capelão  dei  Rey  nosso  Senhor  e  Vigário  da 
Conceição  e  frey  Jorge  de  penalua  outrosi  capelão  e  cantor  do  dito  suor  e  Joam 
lopez  eslanten  a  dita  cidade.  E  eu  pêro  luis  ortega  notário  apostólico  per  au- 
toridade apostólica  e  por  el  Rey  nosso  sõr  outrosi  notário  e  escriuão  pubrico 
do  dito  conuento  que  resaluando  os  riscados  que  dizião  —  Vigário  e  frey  que 
isto  notei  e  escreui  com  o  riscado  dicto  e  cantor  por  verdade  =  frey  Vicente 
dom  prior  =  Pêro  dalmeyda  =  fernã  lopez  =  Jorge  penalua  =  yoam  lopez = 
Ita  est  per  nota  petrus  ludouicus  apostolicus  notarius. 

«E  logo  no  dito  dia  e  mes  e  ano  em  casa  do  dito  pêro  dalmeida  donde 
eu  notário  fuy  e  sendo  hi  presente  a  dita  ysabel  rodeira  sendo-lhe  per  mim 
notário  lida  e  dito  em  substancia  o  que  se  atras  contem  no  dito  instrumento 
e  perguntada  se  lhe  aprazia  e  era  contente  do  que  ho  dito  seu  marido  tinha 
feito  e  concordado  com  o  dito  padre  dom  prior  em  nome  do  conuento/a  qual 
disse  que  era  muito  contente  e  lhe  aprazia  disso  e  daua  sua  ortorga  a  tudo  e 
pêra  o  ter  e  manter  da  sua  parte  também  obrigaua  seus  bês  como  o  dito  seu 
marido  pêro  dalmeida  os  ja  tinha  obrigados  e  por  certeza  dello  mandou  fazer 
este  termo  em  que  a  sobredita  outorgante  da  sua  mão  asinou  e  as  testemu- 
nhas que  forão  presentes,  Joam  de  Campos  ouriuez  e  anlonio  boudão  frameugo 
lapidario  estantes  na  dita  cidade  que  também  asinarão  e  eu  dito  pêro  luis  or- 
tega notário  que  isto  notei  e  escreuy=Yzabel  Rodeyra  =  Joham  de  Campo  = 
Anlhonij  Bodau  =  Ita  est  per  nota  petrus  ludouicus  apostolicus  notarius.» ' 


i  Torre  do  Tombo.  L.°  lv,  do  Convento  de  Thomar,  fl.  26  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  29 


IX. — Alvares  (João).  l.°  —  Pintor,  residente  em  Lisboa.  D.  Affonso  V  o 
mandou  riscar  do  livro  dos  besteiros  por  carta  de  10  de  junho  de  1451. 

«Dom  Afomso  a  uos  veedores  procurador  desta  nosa  muy  nobre,  muy 
leal  cidade  de  Lixboa,  e  ao  anadel  e  apurador  dos  nossos  beesteiros  do  conto 
dhi  e  a  outros  quaees  quer  que  esto  ouuerem  de  veer  e  esta  carta  for  mos- 
trada, saúde,  mandamosuos  que  tirees  logo  de  uosso  liuro,  em  que  he  posto 
por  beesleiro  J.°  Aluez,  pintor,  morador  em  a  dita  cidade  e  o  nom  ponhaaes 
nem  consemtaees  daqui  en  deamle  mais  poer  por  beesteiro  e  em  seu  logo 
poeemde  outro  que  pêra  ello  seja  bem  perteencemte  e  tall  que  nom  aja  razã 
desse  dello  escusar,  do  qual  emuiaae  o  nome  a  A.°  Furtado  de  Memdonça,  ana- 
dell  moor  dos  ditos  nossos  beesteiros  pêra  o  assemtar  em  seu  liuro  e  riscar 
o  dito  J.°  Aluez,  ao  quall  per  esta  carta  mandamos  que  assy  o  conpra  por 
quanto  nossa  mercee  he  por  o  daluaro  de  Bairros  caualeiro  de  uossa  casa  e 
nosso  hucham  que  nollo  por  elle  pediu  auemos  assy  o  dito  J.°  Aluarez  por  es- 
cuso como  dito  he,  o  que  assy  coupri  sem  outro  alguu  êbargo.  Feito  em  Lix- 
boa x  dias  de  junho. —  D.  Borjes  o  fez  ano  de  nosso  Senhor  de  mil  iiijc  lj  anos.» ' 


X.— Alvares  (João).  2.° — Pintor,  muito  provavelmente  do  mosteiro  da 
Batalha,  em  cuja  villa  residia  sua  viuva,  Calharina  Martins.  Esta,  não  tendo  fi- 
lhos, nem  herdeiros  ascendentes,  dispoz  dos  seus  bens  em  favor  de  João  Pi- 
res, escudeiro,  morador  ua  dita  villa,  e  sua  mulher,  aos  quaes  perfilhou  por 
um  instrumento,  que  1).  Affouso  V  confirmou  em  carta  de  12  de  março  de 
1455. 

«Dom  Afomso  etc.  A  quantos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  perante 
nos  pareçeo  huu  estormento  de  perfilhamento  feto  e  asinaado  per  Iohã  Anes 
Cuteliuho  nosso  tabelliam  morador  em  a  nossa  villa  de  Leirea,  segundo  em 
elle  parecia  em  o  quall  fazia  meemçom  anlre  as  outras  cousas  que  vendo  Ga- 
telina  Marlijz,  morador  em  a  dita  uilla,  molher  que  foy  de  Ioham  Aluarez  pin- 
tor, como  ella  nom  avya  filhos  nem  filhas  nem  herdeiros  ascendentes  que  de 
direito  despois  de  sua  morte  seus  bens  podessem  auer,  e  outrosy  veendo  como 
era  ja  molher  de  tall  hidade  que  os  nom  podia  auer,  e  veendo  e  consirando 
as  muitas  boas  obras  que  ella  recebera  e  recebya  de  Ioham  Pires,  escudeiro, 
morador  em  a  dita  villa  e  de  sua  molher  e  contheuda  ao  deante  receber,  e  que- 


*  Torre  do  Tombo.  Ch»nc.  de  D.  Affonso  V.  L."  13,  fl.  30  v. 


30  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

rendolhe  galardoar  com  boas  obras  que  ella  recebia  por  seus  filhos  adoutiuos 
os  ditos  Ioham  Pirez  e  sua  molher  que  depois  de  sua  morte  podesem  erdar 
os  ditos  seus  bêes  e  lhe  outorgara  sobre  ello  o  dito  estormento  de  perfilha- 
tuento,  pedindonos  por  mercee  que  lhe  confirmasemos  o  dito  perfilhamento  e 
bouuessemos  por  bõo  e  firme  e  valioso,  e  nos  veendo  o  que  nos  asy  dezia,  e 
ante  que  em  ello  déssemos  liuramenlo,  mandamos  saber  per  inquiriçom  se  a 
dita  Catelina  Miz  fezera  o  dito  perfilhamento  os  ditos  Joham  Pirez  e  sua  mo- 
lher de  sua  e  liure  vontade  sem  nenhúu  engano  nem  prema  nem  costrangi- 
mento  que  lhe  sobre  ello  fosse  feto  ou  per  algúu  conluyo  ou  em  outra  alguua 
maneira.  Outro  sy  se  tinha  filhos  alguus.  E  vista  per  nos  a  dita  inquiriçom  e  em 
como  se  per  ella  mostra  que  a  dita  G.°*  Miz  lhe  fez  o  dito  perfilhamento  de  sua 
liure  vontade,  sem  nenhQu  engano  nem  prema,  nem  costrangimento  que  lhe 
sobrello  fosse  feto  e  em  como  ella  nom  tynha  filhos  nenhOus  que  de  direito 
ajam  de  herdar  seus  bens,  e  querendolhe  fazer  graça  e  mercee  ao  dito  Joham 
Pirez  e  sua  molher,  e  visto  per  nos  o  estormento  de  perfilhamento  e  a  inque- 
riçom  que  sobre  ella  foy  tirada,  teemos  por  bem  e  confirmamoslhe  e  retefica- 
moslhe  e  outorgamos  e  aprouuemos  o  dito  perfilhamento  em  todo  polia  guisa 
que  feto  he  e  em  o  dito  estormento  he  contheudo.  E  porem  mandamos  a  to- 
dollos  juizes  e  justiças  dos  nossos  Regnos  e  a  outros  quaees  quer  oficiaaes,  a 
que  desto  o  conhecimento  perteencer,  a  que  esta  carta  for  mostrada,  que  lhe 
conpram  e  guardem  o  dito  perfilhamento  em  todo  e  per  todo  como  em  ello  he 
contheudo,  e  lhe  nom  vaades  nem  consentaaes  hir  contra  elle  em  nenhúua 
guisa  que  seja  nom  enbargando  quaees  quer  lex  e  custumes  que  esto  possa 
èbargar,  ca  nossa  mercee  e  vontade  he  de  lhe  o  dito  perfilhamento  seer  con- 
firmado e  outorgado  pella  guisa  que  em  elle  he  contheudo  com  entendimento 
que  esto  nom  faça  nenhúu  perjuizo  a  alguus  herdeiros  lídimos  se  os  hi  ha  e 
outras  quaees  quer  pesoas  que  algúu  direito  ajom  nos  ditos  bens,  e  em  teste- 
munho desto  lhe  mandamos  dar  esta  nossa  carta  dante  em  a  nosa  mui  nobre 
cidade  de  Lisboa  a  xij  dias  do  mes  de  março  —  elRey  o  mandou  per  o  dou- 
tor Lopo  Vaz  de  Serpa,  seu  vassallo  e  do  seu  desenbarguo  e  das  petiçoêes  e 
per  Gomez  Lourenço,  outrosy  seu  vassallo  e  do  seu  desenbarguo  que  ora  per 
seu  espiciall  mandado  teem  carreguo  da  correiçom  de  sua  corte  —  Fernam 
Lopez  por  A.°  Eanes  a  fez  — anno  de  nosso  Senhor  Ihú  X.°  de  mil  iiijc  lb,  e 
por  quanto  aqui  nom  era  o  nosso  seello  pendente  mandamos  asseellar  esta 
carta  com  o  nosso  seello  de  poridade.»1 


1  Torre  do  Tombo.  Chane.  de  D.  Affonso  V.  Doações.  L.°  15,  fl.  41. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  31 


XI. —  Alvares  de  Andrade  (Luiz).— Os  andores  que  falam  cTelle  cele- 
bram mais  as  suas  virtudes  de  fervoroso  catholico  do  que  os  seus  talentos  de 
pintor.  Vejam-se  os  artigos  que  lhe  consagram  Taborda  e  Volkmar  .Machado. 
Em  29  de  junho  de  1601  foi  nomeado  por  el-rei  seu  pintor  de  tempera,  dou- 
rado e  estofado,  cargo  que  vagara  por  fallecimento  de  António  de  Barros.  An- 
teriormente, a  22  de  setembro  de  1590,  já  lhe  tinha  sido  passada  portaria  do 
mesmo  cargo,  mas  como  se  perdesse  a  respectiva  carta,  foi-lhe  passada  de 
novo  a  de  1601. 

«Dom  Filippe  etc,  faço  saber  aos  que  esta  minha  carta  virem  que  eu  ey  por 
bem  e  me  praz  fazer  mercê  a  Luis  Aluarez  d  Andrade,  pintor  e  morador  nesta 
cidade  de  Lixboa,  do  officio  de  meu  pintor  de  tempara,  dourado  e  estofado,  que 
vagou  por  fallecimêto  de  António  de  Barros,  assy  e  de  maneira  que  o  elle  tinha 
e  seruia  e  como  o  tiuerão  e  seruirão  os  mais  propietarios  do  dito  officio,  com 
o  qual  não  averá  mantimento  algum,  mas  serlhehão  pagas  as  obras  que  fizer, 
e  mando  a  todos  os  meus  officiais  que  ajão  daqui  em  diante  o  dito  Luis  Al- 
uarez por  meu  pintor  e  quando  mandarem  fazer  algOas  obras  para  meu  ser- 
uiço,  em  qual  quer  parte,  assy  de  tempara,  como  dourado  ou  estofado  lhas 
mandem  fazer  a  elle  e  não  a  outro  algúu  e  quero  que  o  dito  Luis  Aluarez 
goze  e  vse  com  o  dito  officio  e  todos  os  priuilegios...  Dada  em  Lixboa  a  xxix 
de  junho — João  Aluarez  a  fez  —  ano  do  nacimento  de  Nosso  Senhor  Ihesu  Xpo 
de  mil  bjc  e  huu  (1601),  e  desta  mercê  se  lhe  passou  portaria  ao  dito  Luis  Al- 
uarez a  xxij  de  setembro  de  nouenta  e  noue,  pela  qual  se  lhe  fez  carta  do 
dito  officio,  que  diz  se  perdeo  e  se  não  acha:  cumprirseha  hú"  delles  somente, 
e  eu  Manuel  Godinho  de  Castello  Branco  a  fiz  escreuer.»* 


XII. —  Andrade  (Lazaro  de). —  Entre  o  pessoal  da  comitiva  que  acompa- 
nhou D.  Rodrigo  de  Lima  na  sua  embaixada  ao  Preste  João,  diz  o  padre  Fran- 
cisco Alvares,  chronista  d'esta  empreza,  que  se  contava  Lazaro  de  Andrade, 
pintor.  Outro  artista  lhe  fez  companhia,  Manuel  de  Mares,  tangedor  de  órgãos. â 

Em  outros  pontos  da  sua  obra  se  refere  o  padre  Francisco  Alvares  a  La- 
zaro de  Andrade,  fazendo  sobresahir  as  suas  qualidades  de  cantor  e  luctador. 
No  primeiro  caso,  diz  que  elle  o  ajudara,  com  a  sua  voz  e  conhecimentos  li- 
thurgicos,  na  celebração  de  umas  matinas  do  Natal.  Como  luctador,  provocado 


i  Torre  do  Tombo.  Clianc.  de  D.  Filippe  II.  L.»  7,  fl.  222. 
J  Verdadeira  Informação,  cap.  iv. 


32  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

a  medir-se  braço  a  braço  com  um  pagem  do  monarcha  da  Abyssinia,  não  foi 
muito  feliz,  pois  logo  de  principio  lhe  partiram  uma  perna,  pelo  que  o  Preste 
lhe  deu,  como  premio  de  consolação,  um  rico  vestido  de  brocado. 

De  regresso  da  Ethiopia,  o  padre  Francisco  Alvares  foi  a  Roma  apresen- 
tar ao  Papa  os  protestos  de  obediência  do  potentado  africano.  Paulo  Jovio,  ce- 
lebrado erudito  e  escriptor  italiano,  travou  relações  com  o  nosso  compatriota 
e  d'elle  obteve  um  retrato  do  rei  David,  que  collocou  na  sua  vasta  galeria  das 
mais  notáveis  personagens  de  todos  os  tempos,  reproduzindo-o  em  gravura  no 
seu  livro  Elogia  virorum,  etc. 

Por  quem  seria  executado  este  retrato,  ao  qual  todavia  Francisco  Alvares 
não  faz  a  menor  referencia?  Na  corte  do  imperador  da  Ethiopia,  ao  tempo  em 
que  chegaram  ali  os  portuguezes,  commandados  por  D.  Rodrigo  de  Lima,  an- 
dava um  pintor  italiano,  de  nome  Nicolau  Rranca  Leone.  Seria  este  ou  o  nosso 
compatriota  o  executor  da  obra?  As  probabilidades  parece  que  devem  militar 
em  favor  d'este  ultimo,  de  quem  Gaspar  Correia  diz  que  era  bom  pintor.  * 


XIII.— André  (Manuel). —  Na  Torre  do  Tombo  existe  um  códice,  que  se 
julga  ter  pertencido  ao  convento  da  Santíssima  Trindade  de  Santarém,  o  qnal 
comprehende  o  Instrumento  ou  processo,  que  intentou  aquella  Ordem,  em  1575, 
para  provar  que  Frei  Miguel  Contreiras  foi  o  instituidor  da  Misericórdia.  Tem  o 
n.°  1:902. 

Entre  as  testemunhas  inquiridas  apparece  o  pintor  Manuel  André,  mora- 
dor ao  Rocio,  que  disse  ter  sido  discípulo  de  Garcia  Fernandes,  que  pintara 
o  quadro  da  Misericórdia.  N'este  quadro,  assim  como  em  outros  allusivos  ao 
assumpto,  vira  frades  vestidos  de  branco.  Declarou  que  no  tempo  da  peste 
(1569)  andava  pintando  o  claustro  da  Sé.  Manuel  André  é  a  9.a  testemunha 
do  Instrumento  ou  Inquérito,  e  como  este  fosse  principiado  em  1574,  segue-se 
que  ainda  vivia  n'esta  epocha.  Raczynski,  que  lhe  inscreveu  o  nome  no  seu 
Dictionnaire,  diz  que  elle  tinha  mais  o  nome  de  Hieronymus,  mas  é  engano, 
como  à  priori  se  verifica,  pois  não  seria  admissível  que  um  individuo  escre- 
vesse só  em  latim  o  seu  ultimo  nome.  Effectivamente  Hieronymus  é  o  escri- 
vão do  processo. 


XIV.— Anes  (Gonçalo).— Foi  pintor  de  D.  João  I,  e  D.  Affonso  V,  em  carta 
de  15  de  junho  de  1450,  lhe  outorgou  a  tença  annual  de  quatro  mil  reaes  e 
meia  peça  de  bristol  (panno).  Em  7  de  março  de  1455  o  mesmo  monarcha 


1  Lenda»  da  índia.  Tomo  n,  pag.  587. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  33 

passava  caria  de  illuminador  a  Vasco,  que  se  diz  alli  creado  de  Luiz  Dantes, 
creado  de  el-rei  —  em  loguo  de  huum  moço  que  tynhamos  hordenado  a  Gonçalo 
Eanes  noso  capellam  outro  si  noso  ilominador. 

Será  o  illuminador  de  D.  Affonso  V,  o  pintor  de  D.  João  I? 

«Dom  A.°  etc  A  quamtos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos  que- 
remdo  fazer  graça  e  mercee  a  Gonçale  Anes  que  foy  pimtor  delRey  dom  Ioham 
meu  auoo,  cuja  alma  Deus  aja,  teemos  por  bem  e  outorgamoslhe  que  tenha  e 
aja  de  nos  de  teemça,  do  primeiro  dia  de  janeiro  que  ora  foy  desta  era  pre- 
sente de  quatroçemtos  cimquoemta  em  diamte,  em  cada  hQu  anno,  em  quamto 
nossa  mercee  for  quatro  mil  Rs  e  bua  m.a  peça  de  pano  de  Bristoll,  os  quaaes 
dinheiros  e  pano  auera  per  cartas  que  lhe  em  cada  huu  anno  dello  ser  amda- 
das  em  a  nossa  fazemda.  E  em  testemunho  dello  lhe  mamdamos  dar  esta  nosa 
carta  ssinaada  per  nos  e  asseelada  do  nosso  seello  pemdemte  pêra  teer  por 
ssua  garda.  Dante  em  Lixboa  xb  dias  de  junho  Ruy  Diaz  a  fez  anno  do  senhor 
IhO  X.°  de  mil  iiijc  V*  (1450).» l 


XV. — Anes  (João). —  D.  Affonso  V  o  tomou  por  seu  pintor,  para  o  servir 
nos  armazéns  da  cidade.  A  respectiva  carta  é  de  17  de  julho  de  1454  e  con- 
cede diversos  privilégios.  Taborda  encarece  os  merecimentos  de  João  Anes, 
exaggerando  os  termos  da  carta,  que  afinal  de  contas  são  communs  a  diplo- 
mas idênticos,  diplomas  aliás  vulgares. 

Vide  o  artigo  relativo  a  Gonçalves  (Nuno). 

«Dom  Afomso  etc.  A  quantos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos 
querendo  fazer  graça  e  mercee  a  Johane  Anes,  pintor,  morador  em  esta  nossa 
cidade  de  Lixbõa,  teemos  por  bem  e  filhamollo  por  nosso  pintor  pêra  quando 
lhe  da  nossa  parte  for  requerido  nos  auer  de  seruir  de  seu  oficio  em  o  nosso 
alraazem  da  dita  cidade  e  queremos  e  mandamos  que  daqui  en  diante  elle  seia 
escusado  de  pagar. . .  G.°  de  Moura  a  fez  —  ano  de  nosso  Senhor  JhesO  Xpo 
de  mil  iiij"  liiij  — Ruy  Galuã  a  fez  escpreuer.» 2 


XVI. —  Armõe  (Reymão).— Saboyano.  Viera  para  Portugal  por  1533,  tra- 
balhando durante  três  annos  em  restaurar  e  dourar  muitos  quadros.  A  camará 
de  Lisboa  exigiu-lhe  carta  de  exame  do  seu  officio,  e,  como  elle  a  não  tivesse, 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.°  34,  fl.  100. 

2  Idem.  Idem.  L."  10,  fl.  75. 

Fevereiro,  1903. 


34  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

recorreu  a  el-rei  pedindo  excusa,  allegando  que  as  suas  tintas  e  processos  eram 
de  segredo,  não  havendo  outro  official  que  o  podesse  examinar.  D.  João  III 
despachou  favoravelmente  a  sua  petição,  mandando-lhe  passar  carta  n'este  sen- 
tido a  20  de  junho  de  1536. 

«Dom  J.°  etc,  faço  saber  a  quantos  esta  minha  carta  vyrem  e  o  conhe- 
cimento delia  pertencer  que  Reymao  darmoye,  saboyano,  me  enviou  dizer  que 
avia  três  anos  que  vyera  a  estes  Regnnos  e  era  oficyall  dalympar  retauollos  e 
renouallos  asy  da  pimtnra  como  do  ouro  e  depois  destar  neles  tynha  lympos 
e  renouados  muytos  e  se  tynha  visto  per  esperyemcia  o  proueyto  que  se  dyso 
seguya  como  mostrou  per  certidões  autenticas,  e  que  ora  os  oficiaes  da  ca- 
mará de  Lixboa  lhe  pedyã  que  mostrase  carta  demgyminaçam  de  seu  oficio, 
a  qual  elle  nã  tynha  por  lhe  nã  ser  necesarya  por  quanto  o  olyo  e  comfeyções 
e  cousas  com  que  alympa  e  faz  sua  obra  he  de  segredos  per  omde  se  nã  pode 
enxeminar  por  hy  nã  aver  oficiall  de  sua  arte;  pedimdome,  poys  ja  estava 
vysto  a  esperyemcia  do  dito  oficio  ouvese  por  bem  que  fiodese  vsar  delle  sem 
ser  enxeminado,  e  eu  lhe  mandey  sobre  yso  fazer  deligencia,  a  qual  elle  fez, 
e  visto  todo  por  mim  ey  por  bem1  que  elle  posa  vsar  do  dito  oficio  e  alynpar 
e  renovar  os  ditos  retabollos  como  ate  ora  fez  sem  ser  enxeminado.  Notefico 
asy  pêra  que  o  nã  costrangam  a  yso  e  pêra  fyrmeza  dello  lhe  mandey  pasar 
esta  carta  per  mim  asynada  e  asellada  do  meu  sello.  J.°  Roiz  a  fez  em  Évora 
a  xx  dias  de  junho  de  myll  be  xxxbj.» ' 

Ao  lado  diz:  «Reymão  darmoê  carta,  etc.í 


XVII. —  Aves  (Francisco  das). — Era  pintor  em  Reja.  D.  Manuel,  em  carta 
de  30  de  abril  de  1521 ,  o  nomeou  afinador  do  azul  das  suas  minas  junto  de 
Aljustrel,  com  o  qual  cargo  tinha  de  tença  annual  vinte  e  quatro  mil  reaes  e 
dois  moios  de  trigo.  Além  dMsso,  para  melhor  incitamento  ao  seu  trabalho, 
foi  interessado  em  um  por  cento  no  producto  da  venda.  Veja-se  o  artigo  acerca 
de  Jorge  Affonso,  a  quem  se  passou  carta  de  quitação  pelo  azul  que  recebera 
das  mesmas  minas. 

«Dom  Manuell  etc,  a  quantos  esta  nosa  carta  virem  fazemos  saber  que 
por  termos  êformação  de  Francisco  das  Aves,  pimtor,  morador  na  nosa  cidade 
de  Beja,  he  auto  e  pertencête  pêra  afynar  o  azull  das  nosas  minas  delle,  que 


1  Falta  no  registo. 

»  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Joio  III.  Doaçõet.  L .«  52,  í.  42  t. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  35 

stam  jumto  d  Alljusireli,  e  de  sy  por  lhe  fazermos  mercê,  avemos  por  bem  e 
nos  praz  de  lhe  dar  o  careguo  dafynador  do  dito  azull,  com  o  quall  queremos 
que  ele  lenha  e  aja  de  mãtimenlo  cada  ano  vinte  e  quatro  mill  rs  e  dous  moios 
de  Iriguo  comprados  e  paguos  na  dita  vila  dAHjuslrel,  com  tall  cõdiçam  que 
elle  seja  obrigado  afynar  o  dito  azull  em  toda  perfeyçã  e  da  maneira  que  com- 
pre pêra  se  aver  de  vêder  e  fazer  delle  proueito,  e  pêra  elle  dito  Francisco 
das  Aves  ter  razã  de  com  mais  vontade  trabalhar  na  dita  obra  e  fazer  todo  o 
possiuell  pello  dito  azull  sair  bem  afynado  e  apurado  pêra  se  melhor  aver 
de  comprar,  queremos  que  elle  aja  o  hum  por  cento  de  todo  o  proueyto  que 
nele  se  fezer  do  preço  por  que  se  vêder  e  se  caso  for  que  ho  dito  hum  por 
cento  nam  chegar  a  elle  avera  Rszam  de  hum  tostão  por  cada  hum  dia  que 
na  dita  afynaçã  trabalhar,  praz  a  nos  que  ele  aja  e  seja  pago  do  dito  toslã 
por  cada  hum  dia  que  asy  trabalhar  de  maneira  que  se  no  dito  hum  por  cento 
menos  render  todavia  aja  a  tostão  por  dia  de  trabalho  e  se  mais  render  será 
pêra  elle  pello  quall  mãdamos  ao  recebedor  da  dita  feitoria...  Dada  em  Lis- 
boa a  xxx  dabrill  —  António  A.°  a  fez  —  ano  de  mill  bc  xxj  e  começara  de 
vencer  este  ordenado  do  dia  que  começar  a  seruir  e  apresentar  esta  carta  a 
Martym  Vaaz  Masquarenhas,  que  temos  prouydo  de  oulhar  e  mandar  oulhar 
por  toda  a  dita  feytoria  e  esto  avemos  por  bem  êquãto  mãdarmos  tirar  a  dita 
tinta  azull.» ' 


XVIII. —  Barco  (Gabriel  dei).— Pintor  azulejista.  Como  o  está  indicando 
o  seu  appellido,  era  hespanhol  ou  italiano.  Talvez  tivesse  residido  em  Portugal, 
existindo  obras  suas  em  Évora  e  nos  arredores  de  Lisboa.  Tenho  noticia  das 
seguintes: 

Na  egreja  de  S.  Thiago,  em  Évora,  quadros  de  azulejo  representando  a 
Historia  do  filho  pródigo,  que  o  sr.  Gabriel  Pereira  qualifica  de  bellos.  Teem 
esta  rubrica:  Gabriel  dei  Barco,  F.  1699. 

N'uma  quinta  pertencente  á  família  Cordes,  próximo  da  egreja  parochial 
de  Barcarena,  ha  uma  linda  capellinha,  cujo  pavimento  e  altar-mór  são  de  mo- 
saico, tendo  pintado  no  tecto  a  Visitação  de  Nossa  Senhora.  Cada  uma  das  pa- 
redes é  forrada  por  um  quadro  de  azulejos,  azues  e  brancos,  com  tarjas  infe- 
riores, representando  meninos  brincando  e  outros  ornatos.  O  desenho  não  me 
pareceu  muito  correcto,  mas  o  effeito  geral  é  agradável.  Representam  o  Bap- 
tismo de  S.  João  e  o  mesmo  santo  no  deserto.  No  painel,  á  esquerda  de  quem 
entra,  lê-se:  D.  Gabriel  dei  Barco  F.  1691.  Este  ultimo  algarismo  não  está 
muito  intelligivel,  podendo  ser  talvez  um  2. 


'  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.°  39,  fl.  57. 


36  NOTICIA  DE  ALGDNS  PINTORES 

Na  egreja  parochial  de  S.  Bartholomeu  da  Charneca  existe,  na  parede  do 
lado  do  Evangelho,  ura  quadro  de  azulejo,  com  moldura  ornamental,  assignado 
á  esquerda,  em  baixo:  G."  B."  F.  1699.  No  lado  fronteiro  ha  outro  quadro  de 
eguaes  dimensões,  mas  sem  assignalura;  comludo  é  do  mesmo  auctor.  O  de- 
senho é  razoável,  mas  os  da  Capclla  da  Eucharistia,  onde  se  não  descobre  nome, 
julga-os  superiores  o  sr.  visconde  de  Castilho,  que  foi  quem  verificou  a  exis- 
tência d'estes  azulejos  e  teve  a  amabilidade  de  m'o  communicar. 

Na  sua  quasi  totalidade,  os  azulejos  apparecem  anonymos,  mas  ha  alguns 
firmados  com  os  nomes  dos  seus  auctores  e  outros  com  datas  e  inscripções 
de  diversa  natureza.  Consultem-se  a  este  propósito  os  nomes  de  Nicoloso,  Oli- 
veira Bernardes  (António  de),  Kloet  (W.  V.  der),  Mattos  (Francisco  de),  Serra 
(Victorino  Manuel  da)  e  Borges  (Manuel).  Não  consegui  averiguar  se  algum 
d'estes  pintores  de  azulejos  seria  ao  mesmo  tempo  ceramista  como  Baphael 
Bordallo,  e  se  teria,  por  conta  própria,  fornos  de  louça. 

O  azulejo,  apesar  do  desdém  a  que  foi  votado  nos  últimos  tempos  e  dos 
destroços  que  tem  soffrido,  é  ainda  abundantíssimo  no  nosso  paiz,  sendo  nu- 
merosos os  espécimens  que  restam  de  diversas  epochas,  estylose  procedências: 
hispano-arabes,  italianos,  flamengos  e  porluguezes.  O  azulejo  foi  o  mais  consi- 
derável elemento  de  ornamentação  que  se  tem  usado  em  Portugal,  podendo 
apenas  compelir  com  elle  a  talha  ou  madeira  esculpida,  com  a  differença,  po- 
rém, de  que  esta  ultima  era  quasi  exclusivamente  applicada  ás  construcções 
religiosas,  ao  passo  que  o  primeiro  tanto  se  empregava  nos  edifícios  sacros 
como  nos  profanos.  Elle  revestia  as  paredes  das  egrejas,  as  quadras  dos  claus- 
tros, as  salas  dos  palácios,  brilhando  egualmente  á  luz  artificial  e  á  luz  do  sol. 
Elle  servia  de  enfeite  na  architectura  dos  jardins,  ornamentando  os  recintos 
consagrados  aos  exercícios  physicos,  como  o  jogo  da  bola.  Factos  históricos, 
como  a  revolução  de  1640,  lendas  milagrosas,  como  a  de  Fuás  Boupinho,  acon- 
tecimentos locaes,  como  o  caso  do  Senhor  Boubado,  próximo  de  Odivellas,  eram 
perpetuados  em  painéis  de  azulejo.  Antigamente  rara  era  a  casa  que  não  ti- 
nha o  seu  quadrinho  azulejado  sobre  a  porta  ou  na  frontaria,  muitos  d'elles  al- 
lumiados  por  uma  lâmpada  devota,  o  que  contribuía  para  a  illuminação  publica, 
que  n'esse  tempo  ainda  não  existia,  ou  era  absolutamente  rudimentar.  Por  to- 
dos estes  motivos,  uns  de  importância  artística,  outros  de  importância  social,  é 
bem  de  vèr  quanto  a  pintura  em  azulejo  forma  uma  especialidade  caracterís- 
tica, que  bem  merece  ser  estudada  com  attenção  e  carinho,  não  só  isolada- 
mente, mas  em  comparação  com  os  outros  ramos  da  pintura. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  37 


XIX.— Barreto  (Jorge). — Era  pintor  da  Camará  de  Santarém.  D.  Filippe  I, 
em  alvará,  com  força  de  carta,  de  7  de  fevereiro  de  1598,  confirmou  o  contra- 
cto que  a  camará  da  dita  villa,  hoje  cidade,  fizera  com  elle,  para  lhe  pintar 
as  suas  obras,  a  Iroco  de  um  moio  de  pão  meado  por  anno.  Parece  que  egual 
coDtraclo  já  tinha  sido  celebrado  com  seu  pae,  cujo  nome  se  não  declara. 

«Eu  ellRej  faço  saber  aos  que  este  aluara  virem  que  auemdo  respeito  ao 
que  na  petição  atras  escrita  dis  Jorge  Barreto  pimtor  morador  na  uilla  de  San- 
tarém e  per  eu  mãodar  ouuir  os  ofíiciaes  da  camará  dela  sobre  o  que  na  dita 
petição  requerer  com  a  jmformação  que  acerca  disto  se  ouue  do  prouedor  da  co- 
marqua  da  dita  villa  per  que  constou  ser  justo  o  que  per  este  aluara  conscedo 
ao  dito  Jorge  Barreto  e  proueito  da  dita  camará  o  contrato  que  com  elle  tem 
feito  e  fazer  seya  assy  cõ  seu  pay  e  que  aa  conta  do  moyo  de  pão  meado  que 
se  lhe  daua  pimtaua  muitas  cousas  que  ficauão  sendo  muito  mais  baratas  do 
que  o  forão  pagandose  em  outra  forma  ey  per  bem  que  o  dito  Jorge  Barreto 
seya  pimtor  da  camará  da  dita  villa  de  Santarém  e  sirua  ao  diamte  o  dito  offi- 
çio  como  tee  ora  o  serue  e  lhe  seya  cadanno  pago  e  leuado  em  conta  das  rem- 
das  do  conselho  delia  não  emtrando  nisso  a  minha  terça  ou  domde  se  custuma 
satisfazer  o  ordenado  de  que  na  dita  petição  faz  menção  assy  do  tempo  que 
ha  que  no  dito  oflicio  se  ocupa  posto  que  para  ysso  não  ouuesse  prouisão  mi- 
nha como  daquy  em  diamte  em  quanto  o  seruir  e  comprir  o  dito  contrato  polia 
maneyra  e  na  dita  petição  declarada  e  mãodo  aos  ofíiciaes  da  camará  e  ao  pro- 
uedor da  comarqua  da  dita  villa  de  Sãotarem  que  ora  são  e  pollo  tempo  forem 
que  polia  dyla  maneira  lhe  facão  fazer  bom  pagamento  do  dito  ordenado  e  com 
seus  dinheiros  se  lhe  leue  em  conta  constamdolhes  que  cumpre  sua  obrigação 
na  forma  deste  Aluará  que  ymteyramente  se  comprirá  em  todo  como  nelle  se 
contem  e  será  tresladado  com  a  dita  petição  no  Liuro  da  dita  Gamara  de  que 
aquy  se  fará  declaração  como  he  costume  pêra  em  todo  tempo  se  uer  e  saber 
que  ouue  assy  per  bem  e  o  propio  se  tornara  ao  dito  Jorge  Barreto  pêra  sua 
goarda  e  este  quero  que  valha  etc.,  em  forma  Belchior  de  Sousa  o  fez  em  Lix- 
boa  sele  de  feuereiro  de  mil  quinhentos  noueuta  e  oyto.  Pêro  de  Seixas  o  fez 
escreuer.» ' 


1  Torre  do  Tombo.  Ghanc.  de  D.  Filippe  I.  L.°  30,  fl.  338  v. 


38  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


XX. —  Barros  (António  de).— D.  Filippe  I,  em  carta  de  29  de  fevereiro 
de  1596,  o  nomeou  seu  pintor  de  tempera,  cargo  que  vagara  por  fallecimenlo 
de  Gaspar  Carvalho,  rei  de  armas  da  índia.  Não  encontrei  a  carta  de  nomea- 
ção d'este  ultimo.  A  António  de  Barros  succedeu,  em  1601,  Luiz  Alvares  de 
Andrade. 

«Dom  Felipe  ele.  Faço  saber  aos  que  esta  minha  carta  uirem  que  ey  per 
bem  e  me  praz  de  fazer  mercê  a  António  de  Bairros  pintor  do  officio  de  meu 
pintor  de  tempera  assy  e  da  maneira  que  o  era  Gaspar  Carualho  que  foy  meu 
rey  darmas  jmdia  per  cujo  falecimento  o  dito  officio  vagou  com  o  qual  officio 
não  auera  casamento  nem  mamtimento  algum  pollo  não  ter  o  dito  Gaspar  Car- 
ualho e  lhe  serão  paguas  as  obras  que  fiser  e  per  firmesa  disso  lhe  mãodey 
dar  esta  carta  per  mym  assynada  e  sellada  do  meu  sello  pemdemte  dada  em 
Lixboa  a  uinle  e  noue  de  feuereiro  —  Francisco  de  Figueiredo  a  fes  —  anno  de 
nosso  Senhor  Jesus  Christo  de  mil  quinhentos  nouenta  e  seys. —  Manoel  Godi- 
nho de  Castelbranco  a  fes  escreuer.»1 


XXI. —  Le  Bault  (Claude). —  Pintor  francez.  Nasceu  em  1665  em  Port  de 
Chauvort,  logar  da  freguezia  de  Allery,  na  margem  direita  do  Saôoe. 

Besidiu  em  Roma  durante  dois  annos.  Voltou  a  Paris,  onde  esteve  egual 
tempo.  Regressando  a  Itália,  passou  d'aqui  a  Hespanha  e  Portugal.  N'este  ul- 
timo paiz  pintou  os  retratos  da  família  real  e  de  pessoas  da  corte.  Entrou  em 
França  em  1703. 

Lêem-se  estas  noticias  no  seguinte  opúsculo:  Claude  Le  Bault,  peintreor- 
dinaire  du  floi,  ses  oeuvres  au  Musée  de  Dijon  et  à  l'église  d' Allery  (Saóne  et 
Loire)  par  Léonce  Lex.  Paris,  1896.  Typographie  de  E.  Plon,  Nourrit  &  C." 


XXII.—  Borges  (Manuel).— Na  egreja  da  Misericórdia  de  Évora  existem 
uns  azulejos  firmados  com  o  seu  nome  e  com  a  data  de  1716.  Num  dos  li- 
vros das  despezas  d'aquella  corporação  lê-se,  com  respeito  ao  anno  de  1715, 
que  se  fizera  contracto  com  o  azulejador  Manuel  Borges.  A  Misericórdia  pa- 
rece ter  ficado  satisfeita,  pois  em  maio  de  1716  lhe  mandava  dar  de  gratifica- 
ção duas  dúzias  de  queijos  no  valor  de  4#800  réis. 


i  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Filippe  1.  Doqçvet.  L.'  30,  fl.  169. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  39 

Manuel  Borges  lalvez  não  fosse  unicamente  o  pinlor  dos  azulejos,  mas 
também  o  seu  fabricante. 

Entre  os  opúsculos  do  sr.  Gabriel  Pereira,  Estudos  Eborenses,  veja-se  o 
que  trata  da  egreja  dos  Lóios,  pag.  14. 


XXIII. — Brandão  (Eduardo  Emilio  Pereira). —  No  Diário  de  Noticias  de 
28  de  maio  de  1897  lê-se  o  seguinte: 

«  Eduardo  Brandão. —  Um  pintor  portuguez  desconhecido. — No  Figaro,  che- 
gado hontem  a  Lisboa,  lemos  a  noticia  da  morte  de  um  pintor  portuguez,  que 
suppomos  inteiramente  desconhecido  na  sua  pátria. 

cChamava-se  Eduardo  Emilio  Pereira  Brandão  e  tinha  66  annos.  Natural 
de  Lisboa,  era  filho  de  pães  israelitas. 

«Foi  discípulo  de  Montfort  e  amigo  de  Corot.  São  d'elle  as  bellas  pintu- 
ras muracs  do  oratório  de  Santa  Brigida,  em  Boma. 

«Depois  de  ter  exposto,  durante  dez  annos,  no  Salão  do  Palácio  da  In- 
dustria, passou  ao  Salão  do  Campo  de  Marte. 

«Haverá  porventura  alguém  que  conheça  este  nosso  compatriota  ou  pes- 
soa de  sua  família? 

«Seriamos  contentes  se  podessemos  transmittir  aos  nossos  leitores  mais 
algum  dado  biographico  d'este  artista  portuguez.» 

O  original  do  Figaro  diz  Edouard.  Será  Eduardo  ou  Duarte? 

Um  amigo  meu  mostrou  esta  noticia  ao  sr.  Gardozo  de  Belhencourt,  que 
actualmente  se  acha  em  Lisboa  fazendo  estudos  sobre  os  judeus  portuguezes, 
e  este  cavalheiro  teve  a  amabilidade  de  escrever  uma  nota  em  francez,  que 
transcrevo  em  seguida,  e  pela  qual  se  mostra  que  Pereira  Brandão  não  era 
nosso  compatriota,  mas  sim  um  descendente  de  judeus  portuguezes. 

aPereira  Brandão,  «peintre  portngais  inconnu». —  Cest  un  trançais  et  il 
figure  comme  tel  sur  les  listes  de  la  Société  des  artistes  français. '  Son  nom 
exact  est  Jacob-Emile-Edouard  Brandon,  né  à  Paris  en  1831,  élève  de  Corot, 
de  Montfort  et  de  Picot.  Médaillé  aux  Salons  de  1865  et  de  1867.  Je  connais 
de  lui:  1.°  A  Borne,  dans  la  Chapelle  ou  Oratoire  S.le  Brigite,  de  grandes  pein- 
tures  murales;  2.°  Le  Sermon  du  Dayan  Cardozo  à  la  Synagogue  d'Amsterdam; 
3.°  La  Prière  pour  Léopold  II  dans  la  Synagogue  de  Bruxelles.  Les  n.01 1  et  2 
ont  été  médaillés. 


1  Voir  le  Livret  du  Salon  de  1879  (et  autres  années). 


40  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«D  était  fils  de  Juifs  Portugais  de  Bayonne,  les  Pereira  Brandon,  dont  une 
branche  était  établie  à  Paris  vers  la  fin  du  xviii6  siècle,  mais  dont  les  premiers 
membres  vinrent  à  Bayonne  à  la  fin  du  xvne  siècle.  Les  armoiries  de  cette  fa- 
mille  furent  enregistrées  en  France  en  1700. 

«Lx.4,  25  jan.  903. 

Cardozo  de  Bethencourt.* 


XXIV.  — Cão  (Gaspar). —  Era  filho  de  Álvaro  Pires,  que  havia  sido  tam- 
bém pintor  de  el-rei  D.  Manuel,  e  por  morte  d'elle  o  ficou  substituindo  n'este 
cargo,  para  o  qual  foi  nomeado  por  D.  João  III,  em  carta  de  19  de  fevereiro  de 
1539.  Foi  casado  com  uma  filha  de  Luiz  Martins,  trombeta  de  el-rei  D.  Manuel. 

Luiz  Martins,  em  carta  de  8  de  agosto  de  1513,  foi  nomeado  inquiridor 
ante  o  corregedor  de  Lisboa,  cargo  que  havia  exercido  Fernão  Vaz,  que  lh'o 
vendera. i 

O  documento,  que  em  seguida  transcrevo,  está  redigido  pouco  explicita- 
mente, de  modo  a  ter-se  alguma  duvida  em  saber  se  foi  Gaspar  Cão  ou  seu 
pae  que  casou  com  a  filha  de  Luiz  Martins. 

«Dom  J.°  etc,  a  quantos  esta  minha  carta  virem  faço  saber  que,  que- 
rendo eu  fazer  graça  e  mercê  a  Gaspar  Cam,  me  praz  de  o  tomar  ora  por  meu 
pimtor  pêra  me  seruir  delle  quando  me  for  necesario,  e  isto  em  lugar  dAluaro 
Pirez,  seu  pay,  que  ate  ora  foy  meu  pintor  per  hú  aluara  delBey  meu  senhor 
e  padre,  que  samta  gloria  aja  cõfirmado  per  mim,  que  ao  asynar  desta  foy  roto, 
o  qual  lhe  pasou  por  casar  com  hua  filha  de  Luiz  Miz,  seu  tronbeta,  e  por- 
tãoto  lhe  naãdey  pasar  esta  pêra  sua  guarda  e  minha  lenbrança  e  porem  elle 
nom  hadaver  moradia  em  casamento  nem  mantimento  alguu  pelo  nom  ter  seu 
pay.  Dada  em  a  cidade  de  Lisboa  a  xix  dias  do  mes  de  feuereiro.  Amtonio 
Godinho  a  fez  ano  do  nacymento  de  noso  Senhor  Ihesu  X.°  de  jbc  xsxix  anos.»* 


XXV.— Carducci  ou  Carducho  (Vicente). — Nasceu  em  Florença  em  1578 
e  falleceu  em  Madrid  por  1638.  Madrazo,  no  seu  Catalogo  de  los  cuadros  dei 
Museo  dei  Prado,  colloca-o  na  Escola  bespanhola.  Na  livraria  do  Archivo  Na- 
cional existe,  sob  o  numero  1:086,  o  manuscriplo  em  hespanhol,  intitulado  Dia- 
logo de  la  pintura.  Tem  o  seguinte  ex-libris  de  lettra  de  mão:  He  de  António 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.°  42,  fl.  89. 
Mdem.  Chanc.  de  D.  JoSo  III.  Doaçõet.  L.°  26,  fl.  51  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  41 

de  Sousa  Pintor.  Este  livro  pertenceu,  em  d  673,  a  um  doutor  João  Gomes,  re- 
sidente no  seminário  de  S.  Patrício,  e  mais  tarde  passou  á  livraria  de  Nossa 
Senhora  da  Eslrella. 


XXVI. —  Carvalho.— No  Museu  dei  Prado  existe  um  quadro  represen- 
tando Santa  Calharina,  em  figura  de  rainha,  com  trajos  do  principio  do  século 
xvi.  Sustenta  na  mão  esquerda  uma  espada  e  com  a  direita  segura  o  manto. 
Na  bainha  da  espada  lê-se  o  nome  Carvalho,  com  certeza  de  algum  artista  nosso 
compatriota,  que  talvez  residisse  na  corte  de  Hespanha.  Não  se  conhece  o  seu 
nome  próprio,  ignoraudo-se  quaesquer  outros  pormenores  biographicos  que 
lhe  digam  respeito.  Ha  quem  imagine  que  na  imagem  da  santa  está  represen- 
tada a  infeliz  rainha  de  Inglaterra,  D.  Calharina  de  Aragão.  O  quadro,  que 
adornou  na  primiliva  o  convento  madrileno  de  los  Angeles,  aeha-se  descripto, 
sob  o  n.°  2:1 50,  no  Catalogo  de  Madrazo,  impresso  em  Madrid  em  1878. 


XXVII. —  Carvalho  (Gaspar).— Era  rei  de  armas  da  índia  no  tempo  de 
D.  Filippe  JI  e  seu  pintor  de  tempera.  Tinha  falleeido  por  1596,  pois  n'este 
anno  era  nomeado  para  o  substituir  no  cargo  de  pintor  António  de  Barros.  Não 
encontrei  a  sua  carta  de  nomeação  e  por  isso  não  posso  precisar  mais  nenhum 
dado  biographico  a  seu  respeito.  Seria  acaso  o  artista  de  quem  tratei  no  ar- 
tigo anterior?  Ignoro  a  data  do  quadro  de  Santa  Catharina  e  por  conseguinte 
não  sei  se  coincidirá  com  a  epocha  em  que  Gaspar  Carvalho  exerceu  a  sua 
actividade. 


XXVIII. —  Castelli  (Bernardo). —  Inscrevo  aqui  este  nome  com  o  único 
fim  de  fixar  uma  noticia  e  dar  conhecimento  de  uma  formosa  miniatura  em 
pergaminho,  que  se  conserva  n'um  dos  armários  do  gabinete  do  director  do 
Archivo  Nacional. 

Esta  miniatura,  que  mede  16  centímetros  de  largo  por  21  de  altura,  re- 
presenta o  Ecce  Homo.  Compõe-se  de  quatro  figuras  sobre  um  fundo  archite- 
ctonico,  vendo-se  no  alto,  atravez  de  uma  abertura  rectangular,  o  azul  da 
atmosphera.  O  desenho  é  correcto  e  suave  o  colorido.  No  fundo,  á  esquerda, 
a  data  1585.  No  verso  a  sigla  B.  C,  correspondente,  sem  duvida  ao  nome 
do  pintor  genovez  Bernardo  Castelli,  que  floresceu  por  aquella  epocha  (1557 
a  1629). 

Desconhece-se  a  procedência  d'esta  linda  obra,  cujo  logar  mais  apropriado 
deveria  ser  no  Museu  de  Bellas  Artes. 

Makço,  1903.  0 


42  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


XXIX.— Cerveira  (Fernão). —  Era  19  de  fevereiro  de  1478  o  mosteiro 
de  S.  Domingos  lhe  emprazou  umas  casas  ao  Poço  do  Borralem,  com  o  foro 
annual  de  400  reaes  brancos  e  um  par  de  frangãos,  com  a  condição  d'elle  ti- 
rar a  Affonso  Pires,  outrosim  pintor,  as  ditas  casas  e  mover-lhe  sobre  isso  de- 
manda á  sua  custa.  Assignaram  n'este  contracto,  como  testemunhas,  Martim 
Gomes,  creado  do  Infante  D.  Henrique,  morador  ao  Poço  da  Povoa,  e  Mencato, 
creado  de  Johane,  florentim. 

Aos  14  de  maio  de  1479  emprazava  o  mesmo  convento  a  Fernão  Pires, 
carpinteiro,  umas  casas  sobradadas,  no  Poço  do  Borratem,  que  partiam  de  uma 
parte  com  casas  que  trazia  Fernão  Cerveira,  pintor,  da  outra  com  casas  de  Al- 
garauya  e  com  casas  de  Luiz  de  Beja. ' 

Fernão  Cerveira  era  já  fallecido  em  1487,  pois  n'este  anno,  a  12  de  ju- 
nho, sua  viuva,  Catharina  da  Gosta,  fazia  encampação  ao  mesmo  convento  das 
casas  que  seu  marido,  que  Deus  haja,  havia  aforado,  como  acima  se  disse,  e 
de  que  ella  era  a  segunda  pessoa.4 

Beproduzo  em  seguida,  textualmente,  o  primeiro  d'estes  documentos. 

«Em  nome  de  Deos  amem  ssaibham  os  que  este  estormento  denpraza- 
mento  ujrem  que  no  ano  do  naçimento  de  Nosso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mill 
e  iiij'  satenta  e  oyto  anos/rfez  e  noue  dias  do  mees  de  ffeujreiro  na  cidade  de  Lix- 
boa  no  moesteiro  de  Ssam  Domjngos  da  dita  cidade  no  cabydo  do  dito  moes- 
teiro  e  estando  hy  os  honrrados  e  rrelegiossos  frades  e  conuento  do  dito  moes- 
teiro a  saber:  mestre  ffrey  Aluaro  da  Torre  prior  do  dito  moesteiro  e  o  mes- 
tre ffrey  Lujs  Botafogo  e  o  leçenciado  ffrey  Fernando  e  o  bacharell  ffrey  Jo- 
ham  e  o  bacharell  frey  Affomso  de  Palmella  e  o  bacharell  ffrey  Diogo  Neto  e 
o  doutor  frey  Joham  de  Sam  Njcolao  e  o  doutor  frey  Joham  Fernandez  e  frey 
Gill  de  Santa  Maria  da  Escada  e  frey  Affomso  de  Santa  Justa  e  frey  Vasquo 
dEuora  e  frey  Lujs  de  Lixboa  e  frey  Diogo  Sam  Crisptãao  e  frey  Pêro  de 
Palma  e  frey  Lopo  da  Maya  todos  jubilados  e  outros  padres  e  frades  e  con- 
uento do  dito  moesteiro  todos  juntos  chamados  a  cabydo  per  canpa  tangida 
ssegundo  sseu  bom  cuslume  e  disseram  os  sobre  ditos  que  consyrando  elles 
por  seruyço  de  Deos  e  proll  e  honrra  do  dito  sseu  moesteiro  disseram  que  el- 
les emprazauam  e  dauam  denprazamento  em  ujda  de  três  pessoas  a  Ffernam 
Cerueira  pintor  morador  na  dita  cidade  que  pressente  estaua  a  saber  que  elle 
Ffernam  Cerueira  seja  a  primeira  pessoa  e  possa  nomear  a  segunda  e  a  se- 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  do  Convento  d*  S.  Domingos.  L.°  U,  fl.  119. 
z  Idem.  Idem,  fl.  99. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


43 


gunda  a  terceira  emprazaramlhe  nuas  cassas  todas  de  (fundo  acima  que  o  dito 
sseu  moesteiro  tem  na  dita  cidade  junto  ao  Poço  de  Borratem  ffregujsia  de 
Santa  Justa  que  partem  com  cassas  do  dito  moesteiro  e  com  cassas  de  Lujs 
de  Beja  e  com  rrua  pubrica  e  com  outras  confrontações  cõ  que  de  direito  de- 
uem  de  partir  com  tall  condiçam  que  o  dito  Ffernam  Cerueira  e  pessoas  cor- 
regam  as  ditas  cassas  a  saber  de  paredes  de  pedra  e  call  e  telha  e  madeira 
grossa  e  delgada  e  pregadura  e  de  todollos  outros  adobyos  que  lhe  compri- 
rem  e  fezerem  mester  posto  que  as  ditas  cassas  cayaom  ou  pereçam  per  agua 
ou  fogo  ou  terrasmotos  ou  per  outro  quallquer  casso  fortujto  e  nõ  fortujto  que 
o  dito  Ffernam  Cerueira  e  pessoas  sejam  theudos  e  obrigados  de  as  fazerem 
e  rrefazerem  e  manterem  em  as  ditas  três  ujdas  em  casas  feitas  melhoradas 
e  nõ  pejoradas  todo  a  custa  delle  Ffernam  Cerueira  e  pessoas  e  que  o  dito 
Ffernam  Cerueira  e  pessoas  dem  e  paguem  de  rrenda  e  foro  e  pessam  em 
cada  hõu  ano  ao  dito  moesteiro  por  as  ditas  cassas  em  paz  em  saluo  na  dita 
cidade  quatro  centos  reaes  brancos  ora  corentes  e  mais  húu  par  de  frangãos 
bõos  e  rrecebondos  paguo  todo  em  cada  huu  ano  em  duas  paguas  a  saber 
hõa  por  Sam  Joham  Bautista  e  outra  por  Natall  e  começara  de  fazer  a  primeira 
pagua  por  Sam  Joham  primeiro  que  uê  da  sobre  dita  era  e  outra  per  Natall 
logo  segujnte  e  daly  em  diante  em  cada  huu  ano  per  os  ditos  dias  como  dito 
he  e  que  o  dito  Ffernam  Cerueira  e  pessoas  nõ  possam  uender  dar  doar  tro- 
car escanbar  emlhear  as  ditas  cassas  cõ  nebQa  pessoa  e  querendoas  uender 
que  o  façam  primeiro  saber  ao  dito  moesteiro  se  as  quer  tanto  por  tanto  quanto 
outrem  por  ellas  der  e  sse  as  quisserem  que  as  ajam  por  menos  a  ametade 
do  que  outrem  der  e  nõ  as  querendo  que  emtam  as  uendam  cõ  sseus  emcar- 
reguos  a  tall  pessoa  que  nõ  seja  das  defesas  em  direito  mais  que  seja  a  tall 
que  pague  o  dito  foro  e  cumpra  todo  o  ssuso  contheudo  e  daquello  por  qne 
forem  uendidas  aja  o  dito  moesteiro  ametade  daquello  por  que  forem  uendidas 
e  findas  as  ditas  três  pessoas  fiquem  as  ditas  cassas  ao  dito  moesteiro  em  cas- 
sas feitas  melhoradas  e  nõ  pejoradas  e  os  ditos  frades  e  conuento  obrigaram 
os  bêes  e  rrendas  do  dito  moesteiro  de  lhe  liurarem  e  deffenderem  e  fazerem 
boas  as  ditas  cassas  nas  ditas  três  ujdas  de  quem  quer/que  lhe  sobre  ello  em- 
bargo posser  sopena  de  perdas  e  dapnos  e  custas  e  despesas  que  o  dito  Ffer- 
nam Cerueira  e  pessoas  por  ello  fezerem  e  cõ  ujnte  rreaes  brancos  em  cada 
húu  dja  de  pena  e  o  dito  Ffernam  Cerueira  tomou  e  rrecebeo  em  sy  as  di- 
tas casas  em  as  ditas  três  ujdas  com  todallas  crasullas  e  condições  e  penas 
susso  ditas  as  quaees  sse  obrigou  de  comprir  e  manter  e  pagar  em  todo  como 
dito  he  so  a  dita  pena  per  sseus  bêes  auudos  e  por  auer  e  das  pessoas  que 
pêra  elle  obrigou  com  tall  condiçam  lhe  emprazaram  as  ditas  cassas  que  elle 
Ffernam  Cerueira  tire  as  ditas  casas  Affomso  Pirez  pintor  que  as  tem  do  dito 
moesteiro  e  faça  a  demanda  a  ssua  custa  e  nõ  as  tirando  que  o  dito  moesteiro 


44 


.NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


e  conuento  nõ  seja  obrigado  de  lhe  fazer  boas  as  ditas  cassas  em  testemunho 
desto  outorgaram  asy  este  estormento  e  pediram  ssenhos  eslormentos:  teste- 
munhas Martim  Gomez  criado  do  jffante  dom  Anrrique  que  Deos  aja  morador 
ao  Poço  da  Pouoa  na  dita  cidade  e  mencato  de  Johane  Frolentim  morador  na 
dita  çidade/eu  Joham  Gonçaluez  uassallo  delRey  nosso  e  sseu  pubrico  tabelliam 
na  dita  cidade  que  este  estormento  espreuj  e  meu  synall  flz  que  tall  he.  (Lo- 
gar  do  signal  publico  do  tabelliam.)» ' 


XXX. —  Coelho  da  Silveira  (Bento). —  Bento  Coelho  da  Silveira,  ou  sim- 
plesmente Bento  Coelho,  como  é  designado  n'um  documento  official,  occupou 
no  século  xvii,  pela  fecundidade  do  seu  pincel,  o  mesmo  logar  que  coube,  no 
século  immediato,  a  Pedro  Alexandrino.  Foram  numerosissimas  as  suas  obras, 
principalmente  no  género  sacro,  com  as  quaes  ornamentou  a  maioria  das  egre- 
jas  de  Lisboa  e  outras  do  reino  e  conquistas.  Em  Taborda  e  Cyrillo  Volkmar 
Machado  se  encontra  a  enumeração  de  muitos  dos  seus  quadros,  que  logra- 
ram escapar  á  voragem  do  terremoto  de  1755.  O  primeiro  d'estes  autores, 
baseado  numa  tradição  que  me  parece  absolutamente  infundada,  diz  que  elle 
aprendera  com  Rubens,  quando  o  grande  pintor  flamengo  esteve  em  Hespa- 
nha.  Ora  fallecendo  Rubens  em  1640,  de  que  edade  teria  Bento  Coelho  ido 
para  o  reino  vizinho  ?  Quando,  porém,  não  tomasse  as  lições  do  eminente  pro- 
fessor, procurou  seguir-lhe  o  estylo,  que  imitou  com  grande  felicidade,  segundo 
assevera  ainda  o  mesmo  Taborda.  A  rapidez  com  que  executava  as  suas  obras 
fez  com  que  pozesse  de  parte,  em  grande  numero  de  casos,  a  correcção  do  de- 
senho e  outras  qualidades  inherentes  e  indispensáveis  a  um  artista  que  se 
preza.  Volkmar  Machado  diz  que  elle  tivera  três  phases  ou  edades:  a  de  oiro, 
a  de  prata  e  a  de  ferro,  á  primeira  das  quaes  apenas  attribue  um  numero. 

Bento  Coelho  foi  muito  applaudido  dos  seus  contemporâneos,  e  um  poeta 
francez  ao  serviço  de  Portugal,  Collot  de  Jantillet,  lhe  dedicou  um  epigramma 
latino,  em  que,  fazendo  jogo  de  vocábulo  com  o  seu  titulo  de  pintor  do  rei, 
lhe  chamava  rei  dos  pintores.  No  meu  livro  Artes  e  artistas  em  Portugal  já 
reproduzi  esta  poesia,  assim  como  outras,  de  egual  exaggero  encomiástico,  de 
André  Nunes  da  Silva.  Ampliarei  agora  esta  ladainha  poética  com  as  seguintes 
producções  que  se  encontram  no  volume  de  versos  de  José  de  Faria  Manuel, 
intitulado  Terpsychore,  Musa  Académica,  impresso  em  Lisboa  em  1666: 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  do  Convento  de  S.  Domingos.  L.°  11,  fl.  100. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  45 


A  hum  quadro  de  S.  Thomé, 
que  está  na  Capella  Real,  obra  do  excellente  Bento  Coelho,  Pintor  de  S.  Magestade 

SONETO 

Este  que  durará  sempre  ás  idades 
Original  de  hum  caso  portentoso, 
Sendo  quadro  de  artífice  famoso 
Um  jardim  pôde  ser  de  nouidades  : 

Esta  veneração  de  eternidades, 
Este  bello  retrato  luminoso, 
Acuzando  a  Thomé  de  duuidoso, 
Bem  pudera  matarlhe  a»  saudades. 

Competirãose  a  arte,  e  a  natureza, 
Credito  do  pincel  mais  soberano 
Com  engenho,  com  alma,  e  cõ  destreza 

Toque  o  lado  Thomé  por  desengano, 
Que  eu  vendo  das  figuras  a  viueza, 
Para  desenganarme  toco  o  pano. 


A  Bento  Coelho  insigne  Pintor  de  Sua  Magestade, 
por  huma  Lamina  de  Innocentes  que  pintaua 

DECIMAS 

Estas,  do  martyrio  flores 
Sendo  mal  abertas  rosas, 
Hoje  renascem  fermosas 
Do  vosso  pincel  nas  cores : 
Da  morte-cor  os  rigores 
Com  tal  primor  auiuaes, 
Que  quando  assim  os  pintais 
A  natureza  pasmou 
De  ver,  que  o  que  lhes  tirou 
Herodes,  vós  lhes  tornais. 

Viose  na  vossa  pintura 
Com  engenho,  com  destreza 
Assustada  a  natureza, 
Afeada  a  fermosura : 
Viose  a  afilicçáo  mais  dura 
Em  que  o  ódio  consentio, 
Viose  que  o  bronze  sentio, 
Mas  o  differente  estado, 
Que  vai  do  viuo  ao  pintado 
Só  esta  vez  se  nSo  vio. 


46  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Ao  mesmo  sujeito  pintando  numas  flores 

DECIMA 

Neste  tão  florido  empenho 
(Da  arte  os  primeiros  primores) 
Se  vejo  d'essa  mSo  flores, 
Colho  fructos  d'esse  engenho: 
São  do  pincel  desempenho 
Se  as  noto  por  eleuadas, 
Da  natureza  enuejadas, 
E  assim  as  flores  pintais, 
Que  parece  flor,  &  mais 
Dizermos  que  são  pimtadas. 


A  numa  Lamina  do  Nascimento  de  Baptista  que  pintou  o  mesmo 

DECIMA 

Entre  os  nascidos  sois  vós, 
Meu  Santo  o  mais  venturoso, 
Mas  agora  o  mais  fermoso 
Dizei-o  vós,  que  sois  voz: 
Já  meu  discurso  velos 
Aifirma,  conforme  entendo, 
Que  estais  pello  que  estou  vendo 
Neste  pincel  mais  luzido, 
Em  caza  só  vós  nascido, 
Mas  aqui  tudo  nascendo.1 


XXXI. —  Coimbra  (Pêro  de). —  Pintor  em  Mirandella,  cuja  Camará  o  no- 
meou seu  caminheiro,  officio  que  lhe  foi  confirmado  por  D.  João  III  em  carta 
de  19  de  dezembro  de  1524. 

É  provável  que  este  Fero  de  Coimbra  fosse,  não  pintor  de  imagens,  mas 
pintor  brochante. 

«Dom  Ioam  etc.  A  quamtos  esta  carta  virem  faço  saber  que  P.°  de  Coim- 
bra, pimtor,  morador  em  Mirãdella,  me  êviou  dizer  que  a  camará  da  dita  villa 
e  o  concelho  ho  elejeram  por  caminheiro  delia  por  ser  pêra  iso  auto  e  per- 


1  Obra  citada,  pag.  86,  135  e  seguintes. 


NOTICIA  DE  ALGCNS  PINTORES  47 

temcête,  e  asy  por  allguas  obrigações  que  lhe  ele  fezera  que  eram  era  pro- 
ueito  do  dito  comcelho,  como  mais  largamemte  se  veria  per  húu  estromemto 
pubrico  que  me  foy  apresemtado,  polo  qual  me  pedia  que  ouuese  por  bem  de 
lhe  cõfirmar  o  dito  oficio  em  perpetu,  por  que  a  dita  camará  e  comcelho  eram 
diso  comtemtes,  e  visto  per  mim  seu  requeriraemto  e  asy  o  dito  estromêto  de 
como  o  juiz  e  uereadores  e  procurador  e  pouo  da  dita  villa  ho  emlegerã  e  lhe 
deram  o  dito  oficio,  me  praz  diso.  Noteficoo  asy  aos  oficiaes  que  ora  sam  da 
dita  villa  e  ao  diamte  forem  e  quaes  quer  outras  justiças  e  pesoas  a  que  o  co- 
nhecimento desto  pertemcer,  e  lhes  mamdo  que  daquy  em  diamte  leixem  ser- 
uir  o  dito  oficio  ao  dito  P.°  de  Coimbra,  asy  e  na  maneira  e  com  aquelas  obri- 
gações e  avera  mamtimento,  proes  e  percallços  como  a  dita  villa  o  êlegeo  sem 
a  iso  lhe  ser  posto  duuida  nem  êbarguo  allgúu  por  quamto  o  ey  asy  por  bem, 
o  quall  P.°  de  Coimbra  jurou  em  a  minha  chamcelaria  aos  samtos  avamgelhos 
que  bem  e  direitamête  obre  e  vse  do  dito  oficio,  guardamdo  em  todo  meu  ser- 
uiço  e  o  direito  das  partes.  Dada  em  a  minha  cidade  d  Évora  a  xix  dias  de  de- 
zembro—  Aratonio  Godinho  a  fez  ano  de  mill  bc  xxiiij,  a  qual  pasou  per  m.d0 
delRey  noso  senhor,  sem  embargo  de  ser  pasado  o  tempo  dos  iiij0  meses.» ' 


XXXII. — Contreiras  (Diogo  de).— Pintor,  residente  em  Lisboa.  Tinha 
umas  casas  em  Santarém  (Marvilla),  e  el-rei  D.  João  III  as  isentou  de  aposen- 
tadoria emquanto  n'ellas  vivessem  gratuitamente  homens  pobres.  Alvará,  com 
força  de  carta,  de  12  de  agosto  de  155 i. 

•Eu  EIRey  faço  saber  a  vos  Lourenço  de  Sousa,  meu  apousemtador  moor 
e  superior  das  apousemtadoryas  que  avemdo  respeito  ao  que  D.°  de  Comtrey- 
ras,  pymtor,  morador  nesta  cidade  de  Lixboa,  na  pytyçã  atras  esprita  diz,  ey 
por  bem  e  me  praz  que  as  casas,  de  que  na  dita  pytyçaõ  faz  memçaõ,  que  diz 
que  tem  na  villa  de  Samtarem  em  Maruilla,  lhe  não  sejão  tomadas  dapousem- 
tadoria  pêra  pesoa  allgua,  e  esto  vyuemdo  nas  ditas  casas  homes  pobres  de 
graça  sem  paguarem  aluguer  allguu.  Noteficouolo  asy  e  aos  apousemtadores  de 
minha  corte  e  da  dita  villa,  e  mãdo  que  em  todo  se  cumpra  este  meu  alluara 
como  se  nelle  comtem  e  que  valha  como  carta  sem  embarguo  da  ordenaçam 
que  diz  que  as  cousas,  cujo  efeito  ouuer  de  durar  mais  de  huu  ano  pasem  per 
cartas  e  não  per  alluaras.  O  bacharel  Luis  Lopez  o  fez  em  Lixboa  aos  xij  da- 
gosto  de  jbc  liiij.  E  esto  seraa  em  quamto  o  eu  ouuer  por  bem  e  naõ  mãdar 
o  contrario.» s 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  JoSo  III.  Doações.  L.»  36,  fl.  5. 
*  Idem.  Idem.  Privilégios.  L.»  5,  fl.  30  v. 


48  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


XXXIII.—  Costa  (António  da). — Juntamente  com  Gaspar  Dias  se  contra- 
ctou  em  1590  com  a  meza  da  confraria  de  Santa  Catharina  do  Monte  Sinay, 
da  corporação  dos  livreiros  de  Lisboa,  para  pintar  o  retábulo  da  capella-mór 
da  egreja,  mas,  como  aquelle  seu  companheiro  tivesse  desavenças  com  a  dita 
confraria,  originando-se  d'ahi  uma  demanda,  foi  elle  quem  acabou  de  executar 
a  obra. 

Veja-se  o  artigo  relativo  a  Gaspar  Dias. 


Costa  de  Rezende  (Thomé  da).—  Vide  Rezende  (Thomé  da  Costa  de). 


XXXIV. — Delerive  (Nicolas). —  A  ajuizar  pelo  nome,  parece  que  devia  ser 
de  naturalidade  franceza.  Só  encontrei  a  seu  respeito  uma  breve  nota  na  Rela- 
ção dos  ordenados  que  eram  pagos  pela  repartição  do  particular,  janeiro  de  1808. 
É  do  teor  seguinte:  «Para  fazer  as  obras  de  pintura  que  se  lhe  mandarem 
4800000  réis».1 

A  minha  supposição  acerca  da  naturalidade  d'este  artista  vejo-a  confir- 
mada n'um  recibo,  em  lingua  franceza,  passado  a  24  de  janeiro  de  1808,  em 
que  elle  declara  ter  recebido  de  Domenico  Pellegrini  a  quantia  de  vinte  moe- 
das de  prata  por  quatro  quadros  que  lhe  vendera.  Publico  adeante  este  do- 
cumento sob  o  nome  do  artista  italiano. 

Cyrillo  dá  uma  nota  biographica  d'este  artista  sob  o  nome  de  Nicolau 
Luiz  Alberto  de  La  Riva.  Diz  que,  sendo  filho  de  pães  hespanhoes,  nascera 
em  Lille,  e  que  viera  pela  primeira  vez  a  Portugal  em  1792.  Deixando  aqui  a 
mulher,  partiu  para  Hespanha,  onde  se  demorou  cerca  de  três  annos.  De  re- 
gresso a  Lisboa,  em  1800,  falieceu  n'esta  cidade  em  junho  de  1818.  Vejam-se 
as  Memorias  de  Cyrillo,  pag.  224  e  225. 

Raczynski,  aproveitando  esta  noticia,  inscreveu-o  no  seu  Diclionnaire  sob 
o  nome  de  Riva  (Nicolas  Louis  Albert  de  la). 


XXXV.— Dias  (Gaspar).  — Os  auctores,  que  se  teem  occupado  da  histo- 
ria da  pintura  portugueza  (Taborda,  Cyrillo  e  Cardeal  Saraiva),  dizem  que 
Gaspar  Dias  vivera  nos  reinados  de  D.  Manuel  e  de  D.  João  III,  tendo  sido 
mandado  pelo  primeiro  d'aquelles  monarchas  a  Itália,  onde  estudou  com  Ra- 


Torre  do  Tombo.  Papeis  do  Ministério  do  Reino,  maço  279. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  49 

phael  e  Miguel  Angelo,  cujos  estylos  imitou,  o  que  me  parece  irreconciliável, 
sendo  tão  differente  a  maneira  de  pintar  d'aquelles  dois  grandes  mestres.  N3o 
fundamentam  comtudo  a  sua  asserção  em  nenhum  documento.  Outros  ainda  o 
comparam  a  Rubens  e  a  Perugino,  o  que  denota  uma  grande  falta  de  critério 
histórico  e  artístico.  Guarienti  diz  que  restaurara  um  quadro  d'elle,  a  Vinda  do 
Espirito  Santo,  que  existia  na  tribuna  da  Misericórdia  de  Lisboa,  o  qual  tinha 
o  seu  nome  e  a  data  de  1534. 

Ou  Gaspar  Dias,  de  que  falam  os  auctores  citados,  não  viveu  no  tempo 
que  lhe  designam,  ou  então  existiu  outro,  talvez  seu  filho,  cuja  actividade,  muito 
posterior,  se  encontra  authenticada  nos  livros  do  cartório  da  confraria  de  Santa 
Catharina  do  Monte  Sinay,  cuja  egreja,  hoje  destruída,  foi  da  corporação  dos 
livreiros.  N'um  livro  da  receita  e  despeza  que  começa  no  anno  de  1574,  a  fl. 
178  e  com  referencia  ao  anuo  de  1590,  lô-se  o  seguinte: 

tEtu  27  de  maio  despendeo  o  tesoureiro  Simão  Lopez  corenta  mil  réis 
que  deu  a  Gaspar  Dias  pintor  e  a  António  da  Costa  pintor  á  conta  do  que  lhe 
hão  de  dar  da  pintura  que  fazem  no  altar  mor  desta  egreja  de  Santa  Catha- 
rina pela  obrigação  da  esptura  (escriptura)  que  ambos  tem  feito  a  esta  meza  de 
Santa  Catharina  e  de  como  receberão  os  ditos  corenta  mil  réis  asinarão  aqui 
—  Amt."  da  Costa  — Guaspar  Dias.» 

Gaspar  Dias,  não  sei  por  que  motivo,  não  cumpriu  com  as  condições  do 
contracto,  dando  assim  logar  a  um  processo  que  contra  elle  instaurou  a  con- 
fraria. Os  pormenores  d'esta  demanda,  que  deviam  ser  curiosos,  e  que  lança- 
riam por  certo  mais  alguma  luz  para  a  biographia  do  pintor,  não  os  posso  aqui 
fornecer,  porque  não  encontrei  os  papeis  d'esse  pleito. 

Na  Torre  do  Tombo  archiva-se  um  documento,  infelizmente  sem  data,  mas 
que  é  sem  duvida  pertencente  á  epocha  dos  primeiros  Filippes.  É  uma  peti- 
ção de  Catharina  de  Évora,  dona  viuva,  mulher  que  fora  de  Gaspar  Dias,  pin- 
tor dos  armazéns  da  índia  e  Mina,  na  qual  roga  que  se  dê  o  mesmo  logar  a 
um  seu  neto  por  nome  Bastião  Dias.  N'essa  mesma  petição  declara  ella  que  fi- 
cara com  quatro  filhos  e  dá  a  entender  que  o  marido  fallecera  em  tempo  de 
D.  Sebastião.  Já  se  vê,  portanto,  que  não  é  o  mesmo  que  em  1590  pintava  no 
retábulo  da  egreja  de  Santa  Catharina. 

Bastião  Dias,  neto  de  Catharina  de  Évora,  aspirante  ao  logar  de  pintor  da 
casa  da  índia  e  Mina,  é  mais  um  nome  a  inscrever  no  catalogo  dos  respecti- 
vos artistas,  embora  se  não  saiba  mais  algum  rastro  da  sua  existência.  Eis  agora 
a  petição  da  viuva  de  Gaspar  Dias: 

«Diz  Calherina  dEuora  dona  viuua  moradora  nesta  cidade  de  Lixboa  mo- 

Março,  1903.  7 


50  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

lher  de  Gaspar  Dias  moço  da  camará  de  Vosa  Magestade  e  pintor  de  uossos 
almazens  e  caza  da  índia  e  Mina  que  elle  andando  requerendo  o  mesmo  ofi- 
cio com  ordenado  pêra  por  sua  morte  dejxalo  a  hú  seu  neto  nesse  tempo  o 
supplicante  falecer  e  dejxar  a  sua  molher  muj  pobre  com  quatro  filhos  órfãos. 
Pede  a  Vosa  Magestade  auendo  respejto  aos  mujtos  annos  que  sempre  seruio 
como  bem  certificou  Vasco  Fernandez  prouedor  mor  dos  uossos  almazens  que 
conforme  ao  aluará  que  apresenta  em  que  EIRej  dom  Sebastião  que  este  en 
gloria  lhe  fez  merçe  aja  por  bem  de  lhe  fazer  merçe  do  dito  oficio  pêra  o  mesmo 
seu  neto  Bastião  Dias  uisto  ser  soficiente  pêra  o  dito  carguo.  E.  R.  M.» l 

Gommunica-me  o  meu  amigo  e  benemérito  investigador  alemquerense, 
Guilherme  J.  C.  Henriques,  que  no  testamento  de  Manuel  Correia  de  Menezes 
Baharem  se  encontram  as  seguintes  verbas: 

«Item.  Mando  que  pintem  o  retabolo  do  altar  da  minha  ermida  que  fiz 
na  quintaa  da  Marynha  ao  qual  estou  obrigado  pela  commutação  de  ura  voto. 
Pintar-se-ha  dos  Passos  da  Paixão  de  Christo  Jesu,  saber  no  pr.0  painel  o  passo 
do  orto  e  suor  na  agonia  e  húu  longe  dos  que  vê  a  prêder  o  S.r  O  segundo 
painel  tenha  Christo  atado  á  colua.  O  terceyro  Christo  Jesu  cõ  a  cruz  ás  cos- 
tas. O  quarto  o  descendymento  da  Cruz.  E  seja  bem  dourado,  o  qual  retauolo 
está  em  poder  de  gaspar  diaz,  pintor,  e  o  preço  feyto  por  trymta  mil  rã  em 
duas  pagas.» 


XXXVI. — Dias  (João).— Era  pintor  no  Porto,  e  D.  João  II,  em  26  de  fe- 
vereiro de  1486,  lhe  passou  carta  de  privilegio,  isentando-o  do  pagamento  de 
certos  impostos  e  de  outros  ónus.  Esta  carta  foi  feita  a  pedido  de  António 
Affonso  de  Figueiredo,  que,  em  tempo  de  D.  Manuel,  era  coudel  de  Unhão. 

«Dom  J.°  etc.  A  quamtos  esta  nosa  carta  uirem  fazemos  saber  que  que- 
remdo  fazer  graça  e  mercee  a  Joham  Diaz,  pymtor,  morador  em  a  nossa  cidade 
do  Porto  pollo  d  António  A.°  de  Figueiroo  que  nollo  por  elle  requereo,  tee- 
mos  por  bem,  queremos  e  nos  praz  que  daqui  era  diãte  nom  pague  em  ne- 
nhuus  pedidos,  fymtas,  talhas,  etc,  em  forma.  E  porem  mãdamos,  etc.  Dada 
em  Santarém  a  xxbj  de  feuereyro.  —  Pêro  Luis  a  fez  —  anno  de  lxxxbj.»* 


1  Torre  do  Tombo.  Fragmento»,  maço  1. 

2  Idem.  Chanc.  de  D.  JoSo  II.  L.°  4.°,  fl.  14. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  51 


XXXVII.— Dias  de  Oliveira  (Manuel).— Natural  do  Brazil.  Pensionado 
pelo  governo  portuguez  em  Roma  no  século  passado. 

Existe  uma  gravura  d'este  artista,  a  Transformação  das  rosas,  que  tem  o 
seguinte  letreiro: 

cFatlo  (sic)  milagroso  de  Santa  Isabel  rainha  de  Portugal.  Dedicado  ao 
111.™10  Sr.  Diogo  Ignacio  de  Pina  Manique,  etc.  Aberto  do  coadro  (sic)  original 
de  hum  seu  alumno  da  Regia  Academia  de  Portugal  em  Roma.  Manuel  Dias 
de  Oliveira,  Braziliençe  (sic)  inventou  e  abriu  em  Roma  no  anno  de  1798.» 

Apesar  do  dístico  da  gravura  não  ser  demasiadamente  claro,  parece  que 
o  auctor  do  quadro  foi  o  próprio  gravador,  de  outro  modo  não  teria  posto  in- 
ventou. 


XXXVIII. — Dioll  (Jacomo).— Italiano,  natural  dos  Estados  Pontifícios. 
Exercitava  a  pintura  em  Lisboa  no  tempo  de  D.  João  V,  e  este  monarcha  lhe 
passou  carta  de  naturalisação  a  14  de  setembro  de  1728.  A  corte  portugueza 
estava  então  desavinda  com  a  corte  de  Roma;  os  súbditos  do  Papa  haviam  sido 
mandados  retirar  de  Portugal  e  Dioll  recorreu  ao  expediente  da  naturalisação 
para  evitar  a  sahida  do  nosso  paiz. 

cDom  João  por  Graça  de  Deus  Rey  de  Portugal  etc.  Faço  saber  que  Ja- 
como  Dioll  me  reprezentou  por  sua  petiçam  que  elle  asestia  nesta  corte  exer- 
citando a  arte  de  pintor  viuendo  e  tratando  como  meu  vassallo,  e  porque  se 
podia  vir  em  duuida  que  por  estrangeiro  e  dos  estados  do  Papa  estar  incurso 
no  meu  Decretto  pello  qual  mandaua  despejar  dos  meus  reinos  naturais  dos 
sobreditos  estados  me  pedia  lhe  fizesse  mercê  conceder  Aluara  de  naturalisa- 
mento  para  ser  meu  vassallo,  e  visto  o  que  allegou  e  jnformação  que  se  ouue 
pello  dr.  Francisco  Nunes  Cardeal  juis  dos  feitos  da  Coroa  e  fazenda  e  resposta 
do  Procurador  da  Coroa  a  que  se  deu  vista  Hey  por  bem  fazer  mercê  ao  sup- 
plicante  de  o  naturalizar  neste  Reino  para  que  possa  gozar  de  todas  as  honras 
previlegios,  Liberdades  e  izenções  que  logrão  os  naturais  delle  sem  embargo 
da  Ley  em  contrario  e  esta  Provisão  se  cumprirá  como  Delia  se  conthem  que 
vallera  posto  que  seu  effeito  haja  de  durar  mais  de  hum  anno  sem  embargo 
da  ordenação  do  L.°  2.°,  titulo  40  em  contrario  e  pagou  de  novos  direitos  sinco 
mil  e  seis  centos  reis  que  se  carregarão  ao  thezoureiro  delles  a  ti.  119  v.  do 
L.°  13  de  sua  receita  e  se  registou  o  conhecimento  em  forma  no  L.°  12  do 


52 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


registo  geral  a  fl.  177  v.  EIRey  uosso  Senhor  o  mandou  por  seu  especial  man- 
dado pellos  D.  D.  Francisco  Mendes  Galvão  e  Anlonio  Teixeira  Aluarez  am- 
bos do  seu  conselho  e  seus  Dezembargadores  do  Paço.  Josephe  da  Maya  e  Fa- 
ria a  fes  em  Lixboa  occidental  a  quatorze  de  Setembro  de  mil  sete  centos  vinte 
e  outto  annos:  do  feitio  desta  200  réis. —  Ant.°  de  Castro  Guimarães  a  fez  es- 
crever «Francisco  Mendes  Galvão—  Ant.°  Teixeira  Aluarez.»  Por  rezolução  de 
Sua  Magestade  de  9  de  Setembro  de  1728  em  consulta  do  Dezembargo  do 
Paço  e  em  observância  da  Ley  de  24  de  Julho  de  1713.  Joseph  Vas  de  Car- 
valho—  Pagou  5$600  reis  e  aos  officiaes  314  reis.  Lisboa  occidental  23  de  se- 
tembro de  1728.— Dom.  Miguel  Maldonado.»1 


XXXIX. —  Espinhosa  (António  de). —  Seguramente,  o  local  situado  na 
parte  posterior  do  convento  dos  frades  dominicos  de  Lisboa  era  o  bairro  dos 
pintores  na  primeira  metade  do  século  xvi.  Ahi  tinham  propriedades,  onde  re- 
sidiam, Jorge  Afibnso  e  Gregório  Lopes,  seu  genro.  Ahi  residia  também  Antó- 
nio de  Espinhosa,  pintor  e  morador  na  cidade  delraz  do  mosteiro  de  S.  Domin- 
gos. É  assim  que  elle  apparece  designado,  como  testemunha,  n'uma  carta  de  in- 
novação  de  emprazamento  de  uma  terra  de  vinha,  no  termo  da  villa  de  Arruda, 
que  partia  de  uma  parte  com  vinhas  de  Santa  Maria  e  da  outra  com  herdeiros 
de  mestre  Fernando,  e  estava  junto  com  a  forca  da  dita  villa,  a  Isabel  Alvares, 
viuva  de  António  Ribeiro,  que  morreu  na  índia,  em  que  ella  era  terceira  vida 
por  nomeação  de  Anna  Fernandes  que  n'ella  foi  segunda,  ficando  a  dita  Isa- 
bel Alvares  primeira  vida. 

Este  contracto  foi  celebrado  na  casa  do  capitulo  do  mosteiro  de  S.  Do- 
mingos de  Lisboa,  estaudo  presentes  os  frades  e  Isabel  Alvares,  a  17  de  ou- 
tubro de  1533,  sendo  prior  o  doutor  frey  Amador  Henriques.  Foram  testemu- 
nhas, além  do  citado  Espinhosa,  João  Lopes,  cavalieiro,  morador  na  sua  quinta, 
perto  de  Alemquer,  e  Luiz  Alvares  de  Sequeira,  creado  de  el-rei  nosso  Senhor. 
Tabellião  António  Luiz.1 


XL.— Espinosa  (João  de). — Morador  em  a  villa  de  Santarém.  D.  Manuel 
o  tomou  por  seu  pintor,  e,  em  10  de  novembro  de  1497,  lhe  deu  carta  de 
privilegio,  isentando-o  dos  impostos  e  encargos  do  concelho. 

Em  19  de  abril  de  1519  ainda  existia,  pois  n'esta  data  se  passou  em  seu 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  João  V.  L  °  76,  fl.  24. 

1  Idem.  Cartório  do  Convento  de  S.  Domingos  de  Lisboa.  L.'  55,  fl.  158  v. 


.1 

A, 


s 


e 


< 
O, 

a 
t 

32 


g 

32 


5 

a 
» 
GB 

s 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  53 

favor  um  mandado  de  pagamento  de  ura  moio  de  trigo  de  tença,  e  no  qual  é 
designado  por  mestre  das  obras  de  pintar. 

«Dom  Manuell  ele.  A  quamtos  esla  nosa  carta  virem  fazemos  saber  que 
nos  filhamos  ora  nouamente  por  noso  Joham  d  Espinosa  pimtor  morador  em 
ha  villa  de  Samtarem  e  queremos  que  daquy  em  diamte  seja  escuso  de  todol- 
los  emearguos  e  seruidoêes  do  comçelho.  E  porem  maradamos  a  todollos  nos- 
sos coregedores  juizes  justiças  de  nossos  Regnnos  a  que  esta  nosa  carta  for 
mostrada  e  o  conhicimenlo  dela  pertemçer  que  hajam  daquy  em  diamte  o  dito 
Joham  d  Espinosa  por  noso  e  pelo  asy  ser  o  homrrem  e  trautem  e  fauoreçam 
nas  cousas  que  justas  forem  como  a  homem  de  que  temos  careguo  e  o  nam 
costramgam  pêra  seruiço  de  nhuu  dos  ditos  careguos  e  lhe  guoardem  jmtei- 
ramente  as  cousas  que  nos  taes  prinilegios  estam  decraradas  e  nam  comsem- 
tam  ser  lhe  ffeita  nhuúa  sem  rrazam  e  em  caso  que  lhe  ffeita  seja  lha  façam 
lloguo  coreger  eemmemdar  como  for  direito  cremdo  que  haquelles  que  ho  hasy 
bem  fezerem  lho  agardeçeremos  e  do  comtrairo  que  nam  esperamos  ho  estra- 
nharemos como  nos  bem  parecer.  Da«ia  em  Évora  a  x  dias  de  nouembro.  Jo- 
ham Paaez  a  fez  anno  de  mill  iiijc  Ir  bij.» f 

tDom  Manuell  per  graça  de  D.8  Rey  de  Purtugall  e  dos  Allgarues  daquem 
e  dallem  maar  em  Africa  senhor  de  Guinee,  etc,  mamdamos  a  vos  allmoxa- 
rife  ou  Recebedor  das  nosas  jugadas  de  Samtarem  que  do  remdimêto  delias 
deste  anno  prcsemte  de  bc  xix  dees  a  João  Despinossa,  mestre  das  obras  de 
pimtar,  húu  moyo  de  triguo  que  mamdamos  daar  e  de  nos  hadaveer  o  dito  anno 
de  mantimento  e  vos  fazelhe  delle  bõo  pagamemto  e  per  esta  nosa  carta  e  seu 
conhecimento  mandamos  que  vos  sejam  leuados  em  comta.  Dada  em  Allmey- 
rim  a  xix  dias  dabrill  —  EIRey  ho  mandou  pelo  barão  daluyto  do  seu  conselho 
eveedor  de  sua  fazenda,  Aluaro  Neto  a  fez  —  de  mil  bcxix.=Ho  barã  daluyto 
=j  moio  de  trigo  de  mantimento  a  joam  despynosa  deste  anno  no  almoxari- 
fado das  jugadas  de  santarem.  =  Sejam  certos  hos  que  este  conhecimento  vy- 
rem  como  Joham  despynosa  pymtor  conheçeo  e  comffessou  Receber  daluaro 
mõteiro  almoxarife  das  jugadas  de  ssantarem  hu  moyo  de  trigo  de  sseu  man- 
timento comteudo  neste  aluara  e  por  verdade  lhe  mandou  ser  ffeyto  este  co- 
nhecimento por  elle  assynado  e  per  mym  martym  gomez  espriuã  do  dito  al- 
moxariffado  aos  x  dias  de  Julho  de  }  bc  xix  anos.=J.°  despynosa = martym 
gomez.» s 


>  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.°  31,  fl.  33  v. 
2  Idem.  Corpo  Chronologico.  Parte  2.',  maço  81,  doe.  73. 


54  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


XLI. — Fernandes  (Álvaro). — É  designado  simplesmente  como  pintor,  sem 
mais  outra  circumstancia  que  particularise  a  sua  vida,  n'um  instrumento  de 
condemnação,  de  10  de  maio  de  1420,  pelo  qual  foi  obrigado  a  pagar  a  Affonso 
Domingues,  oleiro,  a  quantia  de  trinta  e  cinco  soldos,  por  que  ficara  por  fia- 
dor. A  respectiva  sentença,  que  contém  alguns  dados  curiosos,  é  do  teor  se- 
guinte : 

«Sabham  todos  que  na  era  de  mjl  iiijc  e  vjnte  anos  dez  dias  de  majo  na 
cidade  de  Lyxboa  apar  da  porta  de  Ssamtandré  em  audjençia  perante  Stevam 
Lejtom  Aluazil  presente  mj  Diago  Gonçalluez  tabeliom  delRey  em  essameesma 
e  as  testemunhas  que  adeante  ssom  escritas  Afonsso  Dominguez  oleiro  mo- 
rador na  dita  cidade  ffazia  demanda  Aluaro  Ffernandez  pyntor  que  presente 
estaua  dizendo  contra  ell  que  ell  emprestara  a  Gonçalle  Anes  trjnta  e  cjnque 
ssoldos  e  que  ell  dilo  Aluaro  Ffernandez  lhj  fficara  por  elles  e  que  orra  nõ  po- 
dia achar  o  dito  Gonçalle  Anes  E  se  ausentara  e  pedia  contra  ell  que  lhos  desse 
por  que  lhj  assj  fficara  por  elles  E  o  dito  juiz  ffez  pergunta  ao  dilo  Aluaro  Ffer- 
nandez que  era  o  que  dizia  per  juramento  dos  auangelhos  e  ell  disse  que 
nunca  lhe  fficara  por  elles  e  logo  o  dito  Afomso  Dominguez  disse  que  o  que- 
ria prouar  e  logo  apresentou  Gonçalle  Anes  porteiro  e  o  dito  juiz  lhj  ffez  per- 
gunta per  juramento  dos  auangelhos  sse  lhj  fficara  o  dito  Aluaro  Ffernandez 
por  os  dictos  trjnta  e  cjnque  ssoldos  ao  dito  Afomso  Dominguez  peita  gissa 
que  o  ell  alegaua  e  elle  pello  dito  juramento  disse  que  assy  era  uerdade  que 
o  dito  Aluaro  Ffernandez  fficara  ao  dito  Afomso  Dominguez  por  os  ditos  trjnta 
e  çinque  ssoldos  e  o  dilo  juiz  vista  a  conthia  pequena  e  a  proua  julgou  per 
sentença  diffinatjua  que  o  dilo  Aluaro  Ffernandez  de  e  page  ao  dito  Affomso 
Dominguez  os  ditos  trjnta  e  cjnque  ssoldos  e  mandou  a  quallquer  porteiro  do 
termo  da  dita  cidade  que  a  compra  pella  gissa  que  em  ella  he  contheudo  em 
gissa  que  nõ  erredes  em  uosso  offiçio  das  quaes  coussas  o  dito  Affomso  Do- 
minguez protestou  das  custas  e  pedio  huu  estormento  testemunhas  o  dito  Al- 
uazil e  Ffernam  Pirez  e  Joham  Vjcente  tabeliãaes  e  outros  e  eu  sobre  dito  ta- 
beliom que  este  estormento  escreuj  e  aquy  meu  ssynal  ffiz  que  tall  he.  pagou 
iiij  ssoldos.» ' 


1  Torre  do  Tombo.  Mosteiro  de  Chellas.  Perg.»  n.°  944. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  55 


XLII. —  Fernandes  (Bartholomeu).—  Em  2  de  agosto  de  1518  celebrou 
Bartholomeu  Fernandes  com  Bartholomeu  de  Paiva,  amo  do  príncipe,  repre- 
sentante d'el-rei,  um  contracto  para  pintar  e  dourar  o  coro  de  Santo  António, 
obra  que  se  responsabilisava  a  dar  prompta  em  quatro  mezes  e  pela  qual  re- 
ceberia 19:000  reaes,  pagos  em  duas  prestações,  sendo  a  primeira  no  começo 
dos  trabalhos  e  a  segunda  depois  de  findos.  O  contracto  é  muito  curioso  por 
indicar  com  bastante  minudência  a  especialidade  da  pintura. 

Jorge  Affonso,  pintor  d'el-rei,  de  quem  se  fez  menção  no  logar  competente, 
passou,  por  debaixo  do  mesmo  contracto,  a  certidão  de  estar  concluída  a  obra, 
segundo  as  condições  do  ajuste. 

«A  ij  dias  de  agosto  da  era  de  mjll  e  quinhentos  e  dezoito  anos  na  ci- 
dade de  Lisboa  sse  comçertou  o  amoo  do  primcipe  por  mandado  delrrey  noso 
Senhor  cõ  Bertolameu  Fernandez  pimtor  morador  nesta  cidade  ssobre  a  pem- 
tura  do  coro  de  Samto  Amtonjo  a  saber:  o  dito  Bertolameu  Fernandez  sse 
obrigua  de  pimtar  e  dourrar  o  dito  corro  todo  per  debaixo  quamto  he  a  ma- 
deyra  e  asy  pimtarra  e  dourra  (sic)  o  peitorrill  a  saber:  adiamteira  e  asy  pim- 
tarra  o  arco  de  pedrraria  a  saber  toda  a  vista  que  sse  debaixo  ve  a  saber  elle 
dourrara  todos  os  cordoes  trroçidos  que  correm  derredor  do  dito  corro  pello 
emtauolamento  e  asy  os  trroçidos  que  correm  per  forra  na  diamteira  do  dito 
corro  e  asy  dourrara  todas  as  rrosas  que  debaixo  do  dito  corro  estam  laura- 
das  de  madeirra  as  quaes  estam  omde  cruzam  as  fazqujas  e  majs  dourrara  to- 
dos os  verduguos  que  correm  derredor  dos  quadrros  e  os  ditos  quadrros  sser- 
ram  pimtados  de  artesões  bem  feitos  e  bem  aleuamtados  e  os  uãos  sserram 
de  azull  fino  e  demtrro  húa  rrosa  de  pemtura  e  asy  pimtarra  o  emtauolamento 
todo  arredor  de  húa  crraraboia  e  os  campos  azues  de  azull  fino  e  adiamteirra 
do  corro  que  he  feito  de  laço  sserra  pimtada  como  rrequerre  o  laço  de  timtas 
finas  e  ho  emtauollamento  da  dita  diamteirra  do  corro  sserra  de  hum  rromano 
ou  craraboia  o  que  rojlhor  parreçer  o  qual  sserra  mujto  bem  feito  e  o  arco  de 
pedrraria  ssera  húa  craraboia  feita  a  olleo  que  diga  com  a  do  tecto  da  capella 
e  os  vaõs  desta  craraboia  sseram  de  vermelhom  e  escorreçido  a  rroxo  terra 
aquall  obra  elle  farra  em  toda  perfeiçam  e  ssera  emuernjzada  e  bem  acabada 
e  elle  auerra  por  asy  fazer  esta  obra  toda  a  sua  custa  asy  de  ourro  como  tim- 
tas dezanoue  mjll  rreaes  pagos  em  duas  pagas  a  saber  agorra  logo  em  começo 
da  dita  obra  ametade  do  dito  dinheiro  que  sam  íl  be  rreaes  e  a  outrra  metade 
acabada  a  dita  obra  e  vista  per  quem  ho  dito  amoo  a  qujsser  mandar  ver  e  ho 
amoo  lhe  mandarra  emprestar  a  madeira  per  os  amdaimes  a  quall  obra  o  dito 
Bertolam(eu)  Fernandez  darra  feita  da  feiturra  deste  a  quatrro  meses  e  por 


56  i  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTOIIES 

que  desto  forram  comtemtes  mandou  o  amoo  amy  Jorge  Afonso  que  fezesse 
este  testemunhas  Afomso  Gonçaluez  e  Francisco  Martinz  ambos  carpemteirros 
de  maçenaria  e  eu  Jorge  Afonso  que  fiz  o  dito  comtr;ito  =  Bertolameu  de  Payua 
ho  amo=Jorje  Afomso=Bertolameu  Fernandez=AfomsoGonçaluez=de  Fran- 
cisco Martinz  uma  cruz.—  Diguo  eu  Jorje  Afomso  pimtor  delrrey  Nosso  Se- 
nhor que  eu  vy  esta  obra  que  Bertolameu  Fernandez  fez  e  acabou  comtheuda 
em  este  comtrrato  e  digo  que  elle  a  tem  feita  e  comprida  ssegundo  forma  do 
dito  comtrrato  e  per  verdade  fiz  aquy  este  e  ho  asiney  oje  primeiro  dia  de  ju- 
nho de  mjll  e  bc  xix=Jorje  Afomso. i  * 


XLIII. — Fernandes  (Diogo). —  Era  escrivão  de  livros  (calligrapho)  e  illu- 
minador.  D.  João  III  o  tomou  por  seu  escudeiro,  sob  sua  guarda  e  encom- 
menda,  de  que  lhe  passou  carta  a  8  de  outubro  de  1522.  Em  1537  Diogo 
Fernandes  trabalhava  com  Jorge  Vieira  na  escripturação  e  illuminura  dos  li- 
vros novos  do  convento  de  Thomar. 

«Dom  Joam  etc,  a  quamtos  esta  nosa  carta  virem  fazemos  saber  que  que- 
remdo  nos  fazer  graça  e  mercê  a  Dioguo  Fernamdez,  escprivam  de  liuros  e 
iluminador,  morador  nesta  nosa  cidade  de  Lixboa,  temos  por  bem  e  o  toma- 
mos ora  novamemte  por  noso  escudeiro  em  nosa  garda  e  emcomemda...  Dada 
em  a  nosa  cidade  de  Lixboa  aos  biij  dontubro  —  Aluaro  Neto  a  fez  —ano  de 
noso  Senhor  Ihesu  Xpo  de  mill  bc  xxij  anos.>2 


XLIV. —  Fernandes  (Garcia). —  São  pouco  conhecidas  as  particularidades 
da  sua  vida,  ignorando-se  a  sua  naturalidade  e  qual  a  epocha  do  seu  falleci- 
mento.  Sabe-se  comtudo  que  elle  viveu  nos  reinados  de  D.  Manuel  e  D.  João  III, 
sendo  numerosas  as  obras  que  realisou,  não  só  em  Lisboa,  mas  em  Coimbra, 
em  S.  Francisco  de  Évora,  em  Montemor  e  Leiria.  Executou  também  outras  com 
destino  á  índia.  Pela  sua  epocha  existia  em  Lisboa  um  pintor  muito  afamado, 
por  certo  mais  velho  do  que  elle,  e  a  quem  D.  Manuel  tinha  encommendado 
diversos  painéis  para  a  Relação.  Chamava-se  Francisco  Henriques.  Estava  elle 
também  incumbido  de  pintar  as  bandeiras  que  deviam  servir  na  entrada  da 
rainha  D.  Leonor,  terceira  esposa  d'aquelle  monarcha.  Era  isto  pelos  annos 
de  1518-1519.  Vieram  rebates  de  peste  e  Francisco  Henriques  quiz  retirar-se 
de  Lisboa,  mas  el-rei  lhe  ordenou  que  se  não  ausentasse,  promeltendo-lhe  to- 


1  Torre  ilo  Touibo.  Corpo  Chronologico.  Parte  n,  maço  82,  doe.  49. 

2  Idem.  Chanc.  de  D.  João  III.  Doaçõet.  L.°  i,  11.  87  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  57 

mar  sob  a  sua  protecção  a  mulher  e  os  filhos  no  caso  d'elle  ser  atacado  de  con- 
tagio. Francisco  Henriques  permaneceu  no  seu  posto,  pagando  bem  cara  a  sua 
obediência  a  el-rei  e  a  sua  dedicação  pela  arte.  A  sua  officina  foi  um  açou- 
gue, fallecendo  com  elle  sete  ou  oito  officiaes,  que  mandara  vir  de  Flandres 
para  o  ajudarem,  e  outros  tantos  escravos. 

Por  fallecimento  de  Francisco  Henriques,  a  obra  de  que  fora  encarregado 
estava  longe  do  seu  termo,  e,  como  já  houvesse  recebido  quasi  toda  a  somma 
do  ajuste,  não  havia  quem  a  quizesse  concluir  pela  quantia  que  restava  satis- 
fazer. Tomou  conta  da  empresa  Garcia  Fernandes,  a  quem  se  prometteu  o  offi- 
cio  de  passavante,  que  era  propriedade  do  fallecido,  com  a  clausula  d'elle  se 
casar  com  uma  sua  filha.  A  palavra  real,  exarada  em  carta  de  lembrança,  não 
se  cumpriu,  talvez  por  esta  se  haver  perdido,  ou  porque  empenhos  de  mais 
valioso  pretendente  a  fizeram  esquecer.  Effectivamente  António  de  Hollanda, 
o  eminente  illuminador,  é  que  foi  agraciado  com  aquelle  offjcio.  Passados  bas- 
tantes annos,  tendo  já  Garcia  Fernandes  nove  filhos  e  boa  somma  de  serviços, 
fez  nova  petição  a  el-rei,  em  que  lhe  requeria  o  logar  de  sellador,  fiel  e  pesa- 
dor  da  alfandega  de  Lisboa,  que  estava  vago  por  fallecimento  de  João  Alvares. 
Instaurou-se  processo  sobre  o  caso,  sendo  ouvidas  as  seguintes  testemunhas: 
Belchior  Vicente,  filho  do  grande  poeta  Gil  Vicente;  Inigo  Lopes,  escudeiro  da 
casa  d'el-rei  e  seu  bate-folha;  Christovão  de  Figueiredo,  pintor  do  cardeal  D. 
Affonso,  e  Jorge  Affonso,  arauto,  tio  da  mulher  de  Garcia  Fernandes. 

Não  se  sabe  qual  o  despacho  que  obteve  este  processo,  que  se  reproduz 
na  intrega  no  remate  d'este  artigo.  Na  Chancellaria  de  D.  João  Hl  só  encon- 
trei uma  carta,  de  1  de  outubro  de  1527,  coucedendo-lhe  licença  para  poder 
andar  em  mula. 

Garcia  Fernandes  parece  ter  sido  discípulo,  ou  pelo  menos  companheiro, 
de  Jorge  Affonso.  N'uma  escriptura  de  7  de  julho  de  1514,  de  que  trato  no 
artigo  relativo  a  Gregório  Lopes,  assigna  elle  como  testemunha,  declarando 
que  trabalhava  com  Jorge  Affonso. 

Manuel  André,  que  vivia  por  1574,  foi  seu  discípulo  e  diz  que  elle  pin- 
tara o  quadro  da  Misericórdia,  infelizmente  perdido  como  tantos  outros,  de  di- 
versos mestres  e  de  grande  valor  artístico,  que  existiam  n'esta  egreja  e  que 
foram  destruídos  pelo  terremoto  e  incêndio  consecutivo. 

O  sr.  Victor  Ribeiro,  na  sua  obra  A  Santa  Casa  da  Misericórdia  de  Lis- 
boa, diz  ler  encontrado  na  Torre  do  Tombo  (Corpo  Chronologico.  Parte  i, 
maço  86,  doe.  79),  uma  carta,  com  data  de  3  de  julho  de  1551,  do  Provedor 
e  Irmãos  da  dita  Casa,  participando  a  el-rei  a  eleição  da  meza,  tendo  sahido 
Garcia  Fernandes  eleitor  pela  classe  dos  officiaes. 

«Dom  Joam  etc,  a  quamtos  esta  minha  carta  virem  faço  saber  que  a  mj 

Março,  1903.  8 


58  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

me  praz  dar  lugar  e  licemça  a  Garcia  Fernandez  pimtor  morador  na  mioha  ci- 
dade de  lysboa  que  ele  posa  andar  em  estes  meus  Reynos  e  em  quall  quer 
parte  delles  em  mulla  e  faca  selada  e  emfreada  posto  que  nam  seja  da  marca 
e  posto  que  nam  tenha  cauallo  sem  embargo  da  ordenaçãa  feyta  em  contrayro 
notyfico  o  asy  a  todos  hos  corregedores  juizes  e  Justiças  e  oficiais  e  pesoas  a 
que  esta  for  mostrada  e  o  conhecimento  delia  pertemcer  e  lhes  mando  que 
leyxem  amdar  o  dito  Garcia  Fernamdez  na  dita  mulla  ou  faca  como  dito  he 
sem  por  ello  emcorer  em  pena  allgúa  nem  lhe  ser  posta  duuida  allgúa  nem 
embargo  algúu  ho  que  asy  húus  e  houtros  compri  por  que  asy  ho  ey  por  bem. 
Dada  na  cidade  de  Coimbra  o  primeiro  dia  doutubro  Pêro  Àmrriquez  o  fez 
de  mill  e  quynhentos  e  xxbij.»  * 

«Diz  Garcia  Fernandez  que  elRey  voso  padre  que  Santa  gloria  aja  ordenou 
pêra  a  casa  da  Rolação  huma  grande  obra  de  pintura  a  qual  por  ser  de  muyto 
seu  contentamento  e  a  querer  em  toda  perfeição  encarregou  delia  Francisco  An- 
rriquez  por  ser  o  milhor  official  de  pintura  que  naquelle  tempo  avia  que  foy  no 
ãno  de  xbiijc  ou  xix  quãdo  a  peste  deu  nesta  cidade  de  Lixboa  e  o  dito  senhor 
lhe  mandou  que  senão  sayse  e  ficase  nella  fazendo  na  dita  obra  e  asy  nas  ban- 
deiras que  então  mandou  fazer  pêra  a  entrada  da  rainha  dona  Lianor  dizendo- 
lhe  que  quando  noso  Senhor  delle  fizesse  alguma  cousa  S.  A.  teria  sempre  lem- 
brança de  sua  molher  e  filhos  pêra  lhe  fazer  merçe  como  era  rezão  pelo  qual  o 
dito  Francisco  Anrriquez  cumprio  seu  mandado  e  ficou  nesta  cidade  honde  lhe 
então  falecerão  bij  ou  biij9  oficiaaes  quo  elle  mandou  vir  de  Frandes  pêra  a  dita 
obra  e  asy  sete  escrauos  e  elle  mesmo  por  deradeiro  tendo  jaa  recebido  tanto 
dinheiro  em  parte  do  que  avia  daver  da  obra  que  senão  achaua  quem  a  quisesse 
acabar  pelo  que  se  delia  deuia  por  que  o  que  mais  tinha  reçebydo  o  dito  Fran- 
cisco Anrriquez  do  que  se  merecia  pelo  que  fizera  erão  duzentos  setenta  e  tan- 
tos mill  reaes.  E  sendo  o  dito  senhor  ynformado  que  elle  dito  Garcia  Fernandez 
a  acabaria  em  sua  perfeição  cõ  desejos  damparar  os  filhos  do  dito  Francisco  An- 
riquez  pela  obrigação  em  que  lhe  era  lhe  escreueu  que  quisese  casar  cõ  huma 
filha  sua  e  tomar  sobre  sy  a  dita  obra  e  acaballa  pelo  que  se  delia  deuia  so- 
mente e  que  S.  A.  lhe  farya  por  yso  merçe  do  officio  de  passauante  que  ua- 
gou  per  falecimento  do  dito  Francisco  Anriquez  e  de  ajuda  de  casamento  pelo 
qual  elle  aceitou  o  dito  casamento  e  a  obriguação  da  obra  e  a  acabou  em  sua 
perfeição  senão  três  painéis  que  lhe  o  amo  não  mandou  dar  por  dizer  que  V. 
A.  não  avia  por  seu  seruiço  que  se  acabase  a  dita  obra  fez  de  tudo  pitição  e 
falou  a  V.  A.  o  ãno  de  xxbiij0  cõ  o  amo  remeteo  a  Fernão  d  Alvarez  a  quem 
deu  a  petição  cõ  a  dita  carta  aalem  da  enformação  que  elle  tomou  e  lhe  foi 


» Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  João  III.  Doações.  L.°  2,  íl.  92  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


59 


dada  como  dito  he  per  Guarcia  de  Resende  e  pelo  amo  que  deste  caso  muito 
sabião  de  que  Manuel  de  Moura  poderaa  ynda  ter  alguma  lembrança  e  por  V. 
A.  lhe  maudar  fazer  nas  obras  de  Coimbra  e  de  são  Francisco  d  Évora  e  nas 
de  Leiria  de  Montemoor  e  outras  pêra  a  índia  e  no  retauollo  de  Santo  Eloy 
desta  cidade  em  que  somente  lhe  foy  jullgado  cem  mill  reaes  mais  do  que  lhe 
por  elle  foy  paguo  não  pode  seguir  per  sy  o  requerimento  ynda  que  per  ou- 
trem sempre  foy  requerido  ao  dito  Fernão  d  Alvarez  agora  diz  lhe  que  a  dita 
carta  se  perdeo  com  a  pitição,  fez  esta  por  que  tem  cumpridas  todas  as  obri- 
gações que  lhe  forão  postas  e  ávidos  noue  filhos  de  sua  molher  cõ  a  qual  lhe 
não  derão  mais  em  casamento  que  a  dita  carta  e  esperança  do  dito  officio.  Pede 
a  V.  A.  que  em  satisfação  do  que  acima  diz  e  do  que  o  dito  oficio  lhe  poderá 
render  de  vinte  e  dous  anos  a  esta  parte  que  ha  que  he  casado  e  da  ajuda  de 
casamento  que  se  continha  na  dita  carta  o  que  tudo  prova  pelo  estromento  que 
apresenta  lhe  faça  merçe  do  officio  daselador  e  de  fiel  e  pesador  da  allfandega 
desta  cidade  de  que  ora  per  falecimento  de  Yoão  Alvarez  vagou  a  servintia, 
pois  que  o  officio  darmas  que  elle  ouuera  daver  foy  dado  a  António  dOlanda 
e  somente  pelo  aluara  que  foy  pasado  aos  officiaaes  que  geerallmente  ficassem 
em  Lixboa  aaquelle  tempo  pêra  ficarem  seus  officios  a  seus  filhos  se  falecesem 
de  peste  lho  não  podia  negar  pois  o  dito  Francisco  Anrriquez  per  espiciall 
mandado  de  S.  A.  ficou  e  faleçeo  de  peste  e  tantos  officiaaes  e  escrauos  seus 
como  dito  he  e  nisto  desencaregaraa  a  conçiençia  dei  Rey  seu  padre  e  a  sua  e 
faraa  seruiço  a  Deus  e  a  elle  esmolla  e  merçe  pêra  sustentamento  de  sua  vida 
e  remédio  de  seus  fylhos.» 

«Dom  Joaom  per  graça  de  Deus  Rej  de  Purtuguall  e  dos  AUguarves  daa- 
quem  e  daalem  mar  em  Hafryca  (sic)  de  Guine  e  da  comquista  navegaçam  comer- 
çyo  dEtyopya  Arabya  Persya  e  da  Ymdia  etc.  Atodollos  coregedores  ouuydo- 
res  joyzes  e  jostiças  offycyays  e  pesoas  de  meus  reynos  e  senhoryos  a  que  esta 
mynha  carta  testemunhavell  ffor  mostrada  e  o  conhecimento  delia  com  direito 
pertemçer  ffaço  saber  que  amte  mym  em  o  joyzo  e  coreiçam  da  mynha  muym 
nobre  e  sempre  lleall  cydade  de  Llysboa  peramte  os  coregedores  delia  pareçeo 
Garcia  Ffernandez  pymtor  e  me  apresentou  huma  pytycam  que  tall  se  sege 
seu  teor:  «Senhor,  Garcia  Ffernandez  pymtor  morador  nesta  cydade,  ffaço  sa- 
ber a  vosa  merçe  que  ell  Rey  dom  Manoell  que  samta  grorya  aja  mamdou  ffa- 
zer  huma  hobra  de  pymtura  de  muito  seu  contentamento  pêra  o  curycheo  do 
llymoeyro  a  Ffrancisco  Amrriquez  que  entam  emcarregou  delia  ho  quall  pêra 
hacabar  com  aquella  brevydade  que  sua  allteza  querya  semdo  muito  gramde 
mamdou  trazer  de  Fframdes  offycyays  pêra  o  ajudarem;  e  ao  tempo  que  aquy 
chegaram  nom  hera  aynda  tomado  assento  no  debuxo  da  ymvençam  de  que  a 
hobra  auya  de  ser  o  prymeyro  que  se  tomase  pasou  muito  tempo  que  elle  pa- 


60  NOTICIA  DE  ALGTXS  PINTOKIÍS 

gou  de  vazyo  aos  ditos  offycyays  como  se  trabalharam,  e  depois  de  ffazerem 
na  dita  obra  deu  peste  nesta  ç.ydade  omde  elle  ffyeou  per  mamdado  de  sua  all- 
teza  pêra  haver  de  acabar  e  lhe  morreram  os  ditos  offycyays  e  muitos  escra- 
uos  e  escrauas;  e  elle  também  de  peste  e  pella  grarade  despesa  que  tynha  lhe 
ffaziam  os  pagamentos  adiamtados  de  maneyra  que  per  seu  íalleçymento  se 
achou  ter  muyto  mays  dynheyro  reçebydo  do  que  heraahobra  que  tynha  ffeyta; 
e  pella  emformaçam  que  sua  allteza  delle  Garcya  Ffernandez  per  Jorge  ASonso 
e  outras  pesoas  como  per  cartas  da  molher  que  ffoy  do  dito  Ffrancisco  Amrri- 
quez  lhe  escreveo  huma  carta  que  querendo  elle  tomaar  sobre  sy  ho  carrego 
de  acabar  a  dita  hobra  pelo  que  se  deuya  delia  somemte  que  hera  menos  do 
que  se  merecya  e  casamdo  com  huma  fylha  do  dito  Ffrancisco  Amrriquez  lhe 
farya  merçe  do  offyçyo  de  pasavante  que  per  seu  ffallecymento  vagou  per  ver- 
tude  da  quall  carta  elle  açeytou  o  dito  casamento  e  a  hobra  e  hacabou;  por  omde 
lhe  ell  Rey  noso  senhor  fficava  em  obrygaçam  de  lhe  ffazer  merçe  do  dito  offy- 
cio,  e  elle  Garcia  Ffernandez  lho  requereo  e  ffez  diso  pytyçam  que  com  a  dita 
carta  deu  ha  Ffernã  dAllvarez  pêra  seu  despacho;  e  por  quamto  ela  ora  nom 
aparece  e  lhe  he  neçeçaryo  provar  o  que  asi  pasou  pede  a  vosa  merçe  que  lhe 
mamde  pergumtar  as  testemunhas  que  apresemlar  pelo  comteudo  nesta  pyti- 
çam  e  com  seus  ditos  lhe  mande  pasar  hum  estromemto  pêra  por  elle  poder  re- 
querer sua  jostyça;  em  a  quall  pytyçam  per  mjm  vysta  pernuncyey  hum  meu 
despacho  cujo  teor  tall  he.»  «Pergumtemse  pello  comteudo  nesta  pytyçam  as 
testemunhas  que  o  sopricante  apresentar  e  com  seus  ditos  sejalhe  dado  seu 
estromento  ou  carta  testemunha vell  como  pede.»  «Por  vertude  do  quall  des- 
pacho pelo  comteudo  na  pytyçam  se  perguntarom  certas  testemunhas  que  aju- 
ramentadas fforom  sobre  os  samtos  avamgelhos  por  hum  emqueredor  de  mj- 
uha  correyçam  dos  quayes  se  segem  seus  nomes  e  testemunhos: 

«Item  Bellchyor  Vyçemte  ffylho  de  Gill  Vyçemte  que  Deus  perdoe,  moço 
da  capella  dei  Rey  noso  senhor  e  morador  nall  caçeva  testemunha  jurado  aos 
samtos  avangelhos  e  perguntado  pello  costume,  dise  que  he  amygo  do  sopri- 
conte  e  dirá  a  verdade. 

«Item  pergumtado  elle  testemunha  pelo  comteudo  na  pytyçam  do  sopry- 
cante  Garçya  Ffernandez  que  lhe  ffoy  llyda  etc,  dixe  elle  testemunha  que  he 
verdade  que  semdo  elle  testemunha  moço  pequeno  elle  ouvyo  dyzer  a  seu  pay 
que  Deus  aja  que  ell  Rey  don  Manoell  que  samta  grorya  aja  emcarregara  a  ho- 
bra da  pymtura  que  se  mandava  ffazer  pêra  o  curucheo  do  Llimoeyro  a  Ffran- 
cisco Amrriquez  comteudo  na  pytyçam  e  que  elle  testemunha  vyo  em  casa  de 
Ffernam  dAllvarez  huma  pytyçam  que  o  sopricamte  ffizera  a  ell  Rey  noso  se- 
nhor ha  qual  amdava  pregada  huma  carta  per  que  ho  dito  senhor  tynha  ffeito 
merçee  ao  soprycamte  do  offycio  de  pasauamte  que  fficara  por  falleçimemto  do 
dito  Ffrancisco  Amrriquez;  e  que  a  dita  carta  dezya  que  casamdo  elle  sopri- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  6i 

camte  com  huma  ffylha  do  dito  Ffrancisco  Amrriquez  sua  alteza  dezya  que  lhe 
darya  ajuda  pêra  seu  casamemto;  e  que  avemdo  de  ffazer  allguma  cousa  do  dito 
offiçio  de  pasavamte  o  darya  ao  sopricamte;  e  sabe  elle  testemunha  que  o  dito 
sopricante  casou  logo  com  a  ffylha  do  dito  Ffrancisco  Amrriquez  e  com  ella  esta 
casado  e  tem  ffylhos  e  fíylhas  e  asi  sabe  que  o  sopricamte  por  bem  da  que 
dito  he  aceitou  ha  hobra  do  dito  corucheo,  e  ele  testemunha  o  vyo  amdar  tra- 
balhando nella;  e  ali  nom  dixe  somemte  tornou  a  dizer  ele  testemunha  que  a 
dita  pytyçam  e  carta  elle  a  vyo  amdar  em  maço  em  casa  de  Ffernã  dAllvarez; 
e  emtam  ouvyo  dizer  a  Pêro  Amrriquez  que  o  sopricamte  hera  agrauado  em 
o  nom  despacharem  poys  hera  justiça  e  ali  nom  dixe  Gonçalo  Tarouca  o  es- 
prevy. 

tltem  Inhygo  Llopez  escudeiro  da  casa  deli  Rey  nosso  Senhor  e  seu  baty 
ffolha  cortesão  testemunha  jurado  aos  samtos  avamgelhos  e  pergumtado  pello 
costume  dixe  que  o  sopricamte  he  seu  amygo  e  compadre  de  hum  ffilho  delle 
testemunha  e  dyra  a  verdade  e  ali  nom  dixe  do  costume.  Item  pergumtado  elle 
testemunha  pello  comteudo  na  pytyçam  do  soprycamte  Garcia  Ffernandez  que 
lhe  llyda  ffoy  etc,  dixe  elle  testemunha  que  he  verdade  que  elle  sabe  Ffran- 
cisco Amrriquez  comteudo  na  pytyçam  ffazya  a  hobra  da  pymtura  da  Rellaçam 
de  que  a  pytyçam  ffaz  memçam  por  mamdado  deli  Rey  dom  Manoell  que  samta 
grorya  aja  e  que  no  ãno  de  dezoyto  quamdo  a  peste  de  que  nos  Deus  guarde 
veo  a  esta  cydade  de  Lysboa  o  dito  sopricamte  ffycou  nesta  çydade  ffazendo  a 
dita  hobra  e  nella  morreo  emtam  de  peste  o  dito  Francisco  Amrriquez  e  asy 
morreo  muita  gente  e  escrauos  e  escrauas;  e  elle  testemunha  braadou  em- 
tam com  elle  por  que  se  deyxava  aquy  fficar  em  tam  fforte  tempo  e  que  elle 
lhe  respomdeo  que  ell  Rex  dom  Manoell  lhe  mamdava  acabar  aquella  hobra 
e  que  fficase  e  que  lhe  ffarya  por  hyso  gramdes  merçes  e  que  por  hyso  fficava 
e  ymda  que  soubese  morrer  nom  avya  de  deyxar  de  ffycar  por  servyr  sua  all- 
teza  e  que  sabe  que  ho  dito  Ffrancisco  Amrriquez  por  sua  morte  ffycou  de- 
vemdo  ha  dita  hobra  muito  dynheyro  que  mais  tynha  recebydo  do  que  vallya 
a  hobra  que  tinha  ffeyta  e  dixe  elle  testemunha  que  ffycamdo  asy  a  casa  do 
dito  Francisco  Amrriquez  este  sopricamte  trabalhava  emtam  com  elle  e  hera 
seu  offyçiall  na  dita  obra  e  elle  testemunha  dixera  emtam  a  ell  Rey  dom  Ma- 
noell que  samta  grorya  aja  como  ffycava  o  dito  sopricamte  em  casa  do  dito 
Ffrancisco  Amrriquez  e  que  hera  muito  bom  offyçiall  e  que  sua  allteza  o  devya 
casar  com  hQua  ffilha  do  dito  Ffrancisco  Amrriquez  e  nelle  cobrarya  ho  que  per- 
dera, e  que  ell  Rey  lhe  respomdera  que  lhe  fallase  nyso  o  amo;  e  elle  teste- 
munha despoys  por  ser  compadre  e  gramde  amygo  do  dito  Ffrancisco  Amrri- 
quez o  dixera  a  sua  molher  e  a  Jorge  Affonso  seu  irmão  e  que  emtam  elles 
com  elle  testemunha  ordenaram  huma  carta  pêra  o  dito  senhor  a  quall  elle 
testemunha  ffez  a  menuta  delia  de  sua  letra  e  ffoy  dada  ao  dito  senhor;  e  a 


62  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

reposta  delia  elle  testemunha  e  Jorge  Affomso  vymdo  d  Évora  a  trouxeram  per 
carta  do  dito  senhor;  e  o  que  lhe  llembra  que  nella  vynha  amtre  outras  cou- 
sas hera  que  o  dito  senhor  lhe  rogava  ao  sopricamte  que  casasse  com  a  ffilha 
do  dito  Ffrancisco  Amrriquez  e  se  emcarregase  da  dita  hobra  como  a  tinha 
Ffrancisco  Amrriquez  e  por  o  preço  que  delle  tynha  e  que  elle  lhe  darya  ajuda 
de  casamemto  e  quamto  ao  offyçyo  darmas  que  pedia  que  ffycara  vago  por 
morte  do  dito  Ffrancisco  Amrriquez  que  ao  presemte  nom  ffazya  nada  delle  que 
se  ouvesse  de  ffazer  allguma  cousa  delle  que  emtam  lho  darya  e  que  o  dito 
sopricamte  por  bem  da  djta  carta  açeytou  ho  dito  casamemto  e  asy  ha  hobra 
como  na  dita  carta  vynha  e  oje  em  dia  esta  casado  com  a  ffylha  do  djto  Ffran- 
cisco Amrriquez  e  tem  ffylhos  e  ffylhas  e  asy  o  sabe  trabalhar  na  djta  hobra; 
e  que  depoys  diso  ouvyra  dizer  ao  sopricamte  Garcia  Ffernandez  queyxamdose 
que  elle  dera  a  dila  carta  e  huma  pytyçam  a  Ffernã  dAUvarez  em  que  pedja 
a  ell  Rey  doso  senhor  satisffaçam  da  dita  carta,  e  que  llaa  em  sua  casa  se  lhe 
perdera  e  ali  nom  dixe  Gonçalo  Tarouca  ho  esprevy. 

«Item  Chrislovam  de  Ffygeyredo  pymtor  do  senhor  cardeall  e  nesta  çy- 
dade  morador  na  ffregesya  de  samta  Justa  testemunha  jurado  aos  samtos  avam- 
gelhos  e  pergumtado  pelo  costume  dixe  que  a  molher  do  sopricamte  e  a  delle 
testemunha  sam  primas  ffylhas  de  dous  jrmãos  e  elle  testemunha  e  ho  sopry- 
camte  sam  compadres  e  amjgos  e  companbeyros  em  as  hobras  que  ffazem  e 
comem  e  bebem  ambos  e  ali  uom  dyxe  do  costume.  It.  pergumtado  elle  tes- 
temunha pello  comteudo  na  pytyçam  do  sopricamte  Garcia  Ffernamdez  que  lhe 
llyda  foy  etc,  dixe  elle  testemunha  que  he  verdade  que  ell  Rey  dom  Manuell 
que  samta  grorya  aja  emcarregou  na  hobra  da  pymtura  da  Rellaçam  desta  casa 
do  cyvell  e  sabe  que  tynha  muytos  offycyays  que  de  Fframdes  vyeram;  e  que 
he  verdade  que  amdamdo  asj,  o  djto  Fframcisco  Amrriquez  na  dita  hobra  elle 
testemunha  hera  companheyro  nella  por  mamdado  do  djto  senhor  e  que  nesse 
meio  tempo  a  esta  cidade  veo  peste  de  que  nos  Deus  guarde  no  ano  de  dez- 
ojto  e  o  djto  Ffrancisco  Amrriquez  e  elle  testemunha  fycaram  na  çydade  por 
mamdado  do  djto  senhor  ffazendo  a  djta  hobra  e  que  o  djto  Ffrancisco  Amrri- 
quez foy  ho  primeiro  que  logo  ffalleçeo  em  sua  casa  e  asy  lhe  morreram  cer- 
tos fframengos  offycyays  e  escravos  e  escravas  de  peste;  e  que  por  seu  ffalle- 
çymemlo  se  achou  elle  ffycar  devemdo  muito  dynheyro  ha  hobra  que  em  sy  ty- 
nha reçebydo  mays  do  que  mereçya  a  hobra  que  ffejta  tynha  e  depoys  por  o 
djto  senhor  ter  emfformaçam  do  soprycamte  que  hera  bom  offycyall  e  ffycara 
Da  propya  casa  do  dito  deffumto  e  emcarregado  de  suas  cousas  por  bom  ho- 
mem e  bom  offycyall  lhe  escreveo  huma  carta  em  que  dezya  que  casamdo  elle 
soprycamte  com  huma  ffylha  do  djto  Ffraucisco  Amrriquez  que  elle  lhe  darya 
ajuda  de  casamemto  e  nom  farya  nada  do  offyçyo  de  pasavamte  que  por  ffalle- 
cymeoto  do  djto  deffumto  ffycara  vago  por  o  presemte  damdolhe  a  emtemder 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


63 


que  hera  pêra  ho  soprycamte  segumdo  ho  emtemdimento  deite  testemunha,  e 
esto  aceytamdo  o  sopricamte  a  dita  hobra  asy  como  a  lynha  o  dito  Ffrancisco 
Amrriquez;  e  que  depoys  de  todo  esto  asy  ser  pasado  elle  testemunha  (Talou 
ao  sopricamte  por  rogo  da  molher  de  Ffrancisco  Amrriquez  que  açeytase  ho 
dito  casamento  e  elle  testemunha  o  açeylou  e  amdou  njso  ate  que  se  recebe- 
ram e  sam  casados  e  damtre  ambos  ha  ffylhos  e  ffylhas  e  o  soprycamte  tomou 
a  hobra  e  nella  trabalhou  ate  ser  cayse  acabada  emçeyto  três  payneys  que  lhe 
uom  deram  porque  também  os  acabara  se  lhos  deram  e  sabe  elle  testemunha 
que  o  sopricamte  ffez  uma  pytyçam  a  ell  Rey  noso  senhor  ha  quall  acostou  a 
carta  de  que  atras  faz  memçam  e  a  deu  a  Ffernã  dAllvarez  em  que  lhe  pe- 
dja  satisffaçam,  e  houve  (sic)  queyxar-se  ho  sopricamte  que  lhe  dizem  que  he 
perdyda  ha  dita  carta  e  pytyçam  e  ali  nom  dixe  Gonçalo  Tarouca  o  esprevy. 
«Item  Jorge  Affomso  arauto  deli  Rey  nosso  senhor  e  morador  de  trás  de 
Sam  Domymgos,  testemunha  jurado  aos  samtos  avamgelhos  e  pergumtado  pello 
costume  dixe  que  a  molher  do  soprycamte  he  sua  sobrjnha  delle  testemunha 
ffylha  de  huma  sua  jrmãa  e  sam  amigos  e  dyra  a  verdade  e  ali  nom  dixe  do 
costume.  It.  pergumtado  elle  testemunha  pello  comteudo  na  pytyçam  de  Gar- 
çya  Ffernandez  que  lhe  llyda  ffoy  etc,  dixe  ele  testemunha  que  he  verdade 
que  ell  Rey  dom  Manoell  que  sarnta  grorya  aja  emcarregou  a  Ffrancisco  Am- 
rriquez que  Deus  perdoe  comteudo  na  pytyçam  que  lhe  fizesse  a  hobra  da  Rel- 
laçam  de  suas  pymturas  e  que  pêra  ella  vyeram  certos  offyçyays  de  Fframdes 
e  que  ffazendose  a  dita  hobra  sobreveo  peste  a  esta  çydade  e  ho  djto  Ffran- 
cisco Amrriquez  ffycou  com  os  ditos  hoffyçyays  ffazemdo  a  dita  hobra  e  veo  a 
falleçer  de  peste,  asy  elle  como  allguns  dos  ditos  hoffyçyays,  que  o  ajudavam 
e  asy  lhe  morreram  certos  escravos  e  escravas  e  que  por  sua  morte  fficou  de- 
vemdo  muito  dynheiro  ao  dito  senhor  que  reçebydo  damte  mão  hera ;  mais  do 
que  se  momtava  na  hobra  que  ffeyta  tynha  e  que  semdo  asj  falleçjdo  o  djto 
Ffrancisco  Amrriquez  elle  testemunha  deu  emfformaçam  a  sua  alteza  do  djto 
sopricamte  que  hera  muito  bom  offyçyall  e  ffycara  em  casa  do  djto  Fframcisco 
Amrriquez  e  que  nelle  poderya  cobrar  sua  allteza  outro  Fframcisco  Amrriquez, 
e  que  ao  dito  senhor  aprouve  que  se  o  djto  sopricamte  quisese  casar  com  huma 
ffylha  do  djto  Fframcisco  Amrryquez  e  açejtar  ha  hobra  asy  como  a  tynha  o 
deffumto,  e  que  ffazemdo  allguma  cousa  do  offyçyo  de  pasavamte  que  avagara 
por  morte  do  djto  Ffrancisco  Amrryquez  que  lho  darya  ao  djto  soprycamte, 
que  desto  pasou  o  djto  senhor  huua  carta  pêra  o  djto  soprycamte,  e  o  djto 
soprycamte  por  bem  da  djta  carta  aceytou  ho  djto  casamento  e  tem  ffylhos  e 
ffylhas  e  asy  açeytou  a  djta  hobra  e  ffez  a  djta  hobra  e  nella  trabalhou  até  que 
ell  Rey  noso  senhor  mamdou  que  sobrestyvese  asy  nella,  e  logo  emtam  ele 
testemunha  houvyo  djzer  ao  sopricamte  que  ffyzera  huma  pytyçam  a  sua  al- 
teza, sobreell  e  ali  nom  dixe  Gonçalo  Tarouca  ho  esprevy. 


64  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«E  semdo  asy  as  ditas  testemunhas  pergumtadas  como  dito  he  o  sopri- 
camte  me  pedio  que  com  o  teor  delias  lhe  mandase  pasar  huma  carta  teste- 
munhavell  e  eu  llie  mamdey  pasar  a  presemte  pella  quall  vos  mamdo  que  lhe 
dejs  e  ffaçajs  dar  aquelle  credito  ffee  que  se  daa  e  deve  de  dar  has  tajs  carias 
testemunhavejs  e  aos  próprios  orgynajs  com  o  quall  vay  comcertado  bem  e  ver- 
dadeiramemte,  ho  que  asy  huns  e  outros  comprj,  e  ali  nom  ffaçades  dada  em 
ha  çydade  de  Llysboa  aos  dezaseis  dias  do  mes  dabryll,  ell  Rey  ho  mamdou 
pello  Licenciado  Jorge  de  penhoramda  do  seu  desembargo  e  desembarguador 
dos  agravos  em  sua  corte  e  casa  do  cyvell,  e  que  ora  por  seu  espeçyall  mam- 
dado  tem  carrego  de  corregedor  dos  ffeytos  e  causas  cyvejs  com  allçada  em 
ha  dita  çjdade  e  sua  correyçam,  etc.  Gonçalo  Tarouca  esprivão  a  ffez  ano  do 
nacjmento  de  noso  senhor  Ihesu  x.°  de  mjll  e  qujnhemtos  e  coremta  hanos. — 
Georgius  llicenciatus  —  pagou  cxx  reis. 

«Ffoy  comcertado  este  trellado  com  ho  propio  por  mjm  esprivã  cõ  ho 
abayxo  asynado,  com  o  rjscado  que  dezya  «cydade»  em  que  nom  avya  duvjda, 
Gouçalo  Tarouca  o  esprevy. —  J ço. —  Gonçalo  Tarouca.» ' 


XLV.— Fernandes  (Gomes).— Residia  em  Santarém.  D.  Manuel,  em  carta 
de  22  de  fevereiro  de  1496,  o  tomou  por  seu,  sob  sua  guarda  e  encommenda. 

«Dom  Manuell  etc,  a  quamtos  esta  nossa  carta  virem  fazemos  saber  que 
nos  queremdo  fazer  graça  e  mercee  a  Gomez  Feroamdez,  pimtor,  morador  em 
Samtarem  temos  por  bem  e  o  tomamos  ora  nouamente  por  noso  e  em  nosa 
guarda  e  emcommemda.  E  porem  rogamos  A  em  forma.  Dada  em  a  villa  de 
Monte  moor  o  nouo  aos  xxij  dias  do  mes  de  feuereiro.  Lopo  Mixia  a  fez  de 
mill  iiijc  lrbj  (1496).s 


XLVL— Fernandes  (Luis).— Pintor  da  cidade  de  Lisboa.  Vide  Luis  (An- 
tónio), seu  filho. 


XLVII. —  Fernandes  (Vasco).  -  Mais  conhecido  pelo  epitheto  de  Grão 
Vasco,  epitheto  que  bem  está  demonstrando  a  sua  procedência  erudita.  É  o 
eximio  artista  que  executou  o  famigerado  quadro  de  S.  Pedro,  na  Sé  de  Vizeu. 
No  artigo  referente  a  Jorge  Affonso  já  tive  occasião  de  tratar,  incidentalmente, 


'Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  m,  maço  15,  doe.  13. 
*  Idem.  Chane.  de  D.  Manuel.  L.«  26,  A.  44  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  65 

de  Vasco  Fernandes,  cuja  preseDça  em  Lisboa  no  anno  de  1515  ficou  attestada 
n'uma  escriptura  do  convento  de  S.  Domingos,  em  que  elle  subscreve  como 
testemunha.  Este  importante  documento  publicou-o  na  integra,  acoropanhan- 
do-o  de  judiciosas  considerações,  no  n.°  3  do  Archivo  Histórico  Portuguez,  o 
meu  amigo  e  benemérito  investigador  General  Brito  Rebello.  Transcrevo-o 
agora  aqui,  pois  é  nm  subsidio  de  primeira  ordem,  não  só  para  a  biographia 
de  Vasco  Fernandes,  mas  para  a  historia  da  pintura  em  Portugal  na  primeira 
metade  do  século  xvi.  Cumpre-me  pôr  em  relevo  outra  particularidade  inte- 
ressantíssima, e  vem  a  ser  que,  a  par  de  Vasco  Fernandes,  apparece  também 
como  testemunha  Gaspar  Vaz,  creado  de  Jorge  Affonso,  que  é  sem  duvida  o 
pintor  dos  quadros  de  Tarouca,  de  quem  falo  adeante.  Estes  quadros  eram 
até  agora  attribuidos  a  Grão  Vasco  ou  á  sua  escola,  o  que  não  admira,  visto 
os  dois  artistas  estarem  para  assim  dizer  na  mesma  academia,  designação  que, 
com  bastante  propriedade,  se  pôde  applicar  á  ufficina  de  Jorge  Affonso. 

«Em  nome  de  Deus  ame  Saibão  quantos  este  estormêto  dencampaçã  e 
êprazamento  uyrê  q  no  ano  do  naçimento  de  nofso)  senhor  JhQ  xpo  de  mjl  e 
qujnhemtos  e  qujnze  anos  três  dias  do  mes  de  março  na  cidade  de  lixboa  den- 
tro no  moesteiro  de  são  domjngos  dentro  no  cabido  dele  estando  hy  ho  padre 
priol  frey  Jorge  uogado  e  ho  padre  sob  priol  frey  balthasar  e  ho  leçençeado 
frey  luis  e  ho  bacharel  frey  tomas  e  frey  João  de  são  domingos  e  frey  nico- 
laao  pinto  e  frey  Vasco  e  frey  João  do  barreiro  e  frey  nicolao  daueyro  c  frey 
pedro  de  santa  maria  e  frey  fernando  e  frey  João  de  santarê  e  frey  aluoro  do 
pedrogãao  e  frey  rrodrigo  godinho  e  frey  antonjo  de  tolosa  todos  padres  e  fra- 
des do  dito  moesteiro  e  conuêto  estando  todos  ê  cabido  e  cabido  fazêdo  cha- 
mados ha  ele  per  sõo  de  campa  tangida  segundo  seu  bõo  e  ujrluoso  custume 
logo  hij  parcçeo  Jorye  afonso  pintor  dei  Rey  noso  Senhor  morador  na  dita  ci- 
dade junto  cõ  ho  dito  moesteiro  e  dise  q  era  uerdade  q  ele  traz  per  titolo  dem- 
prazamèto  do  dito  mneseiro  ê  ujda  de  três  pesoas  hú  chaão  q  eslaa  na  dita  ci- 
dade defronte,  de  santa  maria  descada  q  parte  de  hua  parte  da  banda  do  moes- 
teiro cõ  rrua  pruuica  e  da  outra  parte  cõ  casas  e  chaão  do  dito  Jorge  afonso 
e  da  outra  parte  cõ  casas  nonas  do  dito  moesteiro  q  ora  sã  de  gregário  lopez 
jenrro  do  dito  Jorge  afonso  e  cõ  casas  do  dito  moesteiro  q  ora  traz  caterina 
anes  e  cõ  outras  confrontações  cõ  q  de  dereito  deue  de  partir  como  se  conte 
no  contrato  pruuico  do  dito  chaão  do  qual  chaão  paga  ê"  cada  hu  ano  seis  co- 
tos reaes  ao  qual  chaão  he  seguda  pesoa  e  lie  obrigado  ha  conprir  outros  êcar- 
gos  segúdo  todo  mjlhor  e  mays  cõpridamête  se  conte  no  contrato  de  seu  êpra- 
zamêto  e  q  ora  ele  dito  Jorge  afonso  por  não  auer  mister  ho  dito  chaão  ne  ter 
tie(ce)cidade  dele  ele  ê  seu  nome  e  de  maria  lopez  sua  molher  cuja  outorga  ficou 
de  dar  a  este  contracto  ele  de  seu  prazer  e  boa  uonlade  êcampaua  como  logo 

Março,  1903.  9 


ft6  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

de  feito  encanpou  ho  dito  chaão  e  prazo  dele  hao  dito  priol  e  padres  e  moes- 
teiro  e  per  eles  foy  dito  q  eles  açeitauã  e  rrecebiã  ê  sy  ho  dito  chaão  e  aujã 
deste  dia  pêra  sempre  por  desobrigado  ho  dito  Jorge  afonso  do  dito  chaão 
foro  e  obrigações  e  êcargos  dele  e  acceitada  asy  a  dita  êcampaçã  como  dito  he 
per  ho  dito  priol  e  padres  foy  dito  q  cõsirando  eles  ser  seruiço  de  deos  onrra 
e  proueito  do  dito  seu  moesteiro  eles  baforauã,  como  logo  de  feito  haforarã 
hao  doutor  gonçalo  uaaz  morador  na  dita  cidade  que  presente  estaua  ho  dito 
chaão  pelas  confrontações  cõ  todas  suas  eiradas  e  saídas  dereitos  e  pertenças 

serujntias  e  logradoiros,  etc,  etc testemunhas  que  presentes  foram 

gonçalo  correa  aio  de  luis  da  silueira  fidalgo  da  casa  dei  Rey  noso  senhor  e 
nicolaao  teixeira  criado  do  dito  doutor  e  francisco  rroiz  outrosj  creado  do  dito 
doutor.  E  depois  desto  logo  no  dito  dia  mes  e  ano  sobredito  na  dita  cidade  den- 
tro nas  casas  do  dito  Jorge  afonso  estando  hi  a  dita  waria  lopez  sua  molher 
logo  per  my  tabalião  e  perante  as  testemunhas  lhe  foi  lida  e  prouicada  esta 
scretura  e  êcampação  que  ho  dito  seu  marido  fez  ao  dito  moesteiro  do  dito 
chaão  e  per  ela  foy  dito  que  ela  outorgaua  è  a  dita  êcampação  que  ho  dito  seu 
marido  asy  fizera  do  dito  chãao  e  escritura  cõ  todalas  clausulas  e  condições  ê 
ela  conteudas  asy  e  pela  maneira  que  pelo  dito  seu  marido  era  feita  e  outor- 
gada e  prometia  de  todo  asy  comprir  per  sy  e  per  seus  bês  q  pêra  elo  obri- 
gou prometendo  a  my  tabellião  como  pesoa  pubrica  istipulase  e  aceitase  ê  nome 
de  dito  moesteiro  priol  e  padres  a  esto  ausêtes  de  lhe  todo  e  mater  como  na 
dita  scritura  he  conteúdo  —  testemunhas  que  presentes  fora  ho  dito  gonçalo 
correa  e  vasco  fernandez  pintor  morador  em  u/seu  e  gaspar  vaaz  pintor  creado 
do  dito  Jorge  afonso  e  eu  pêro  fernandez  pruuico  tabaliã  por  el  Rey  noso  se- 
nhor ê  a  dita  cidade  e  seu  termo  q  este  estormento  spruiy  cõ  ho  rriscado  q 
dizia  doutor  e  entrelinha  q  diz  chaão  e  ê  ele  meu  pruuico  sinal  fiz  q  tal  he. 
Sinal  publico  do  tabellião.* ' 


XLVILT.— Figueiredo  (Christovão  de). —  Figura  como  uma  das  testemu- 
nhas no  processo  instaurado  sobre  a  petição  de  Garcia  Fernandes.  No  seu  de- 
poimento diz  elle  que  era  pintor  do  senhor  cardeal  (D.  Affonso)  e  que  resi- 
dia na  freguezia  de  Santa  Justa;  que  era  compadre  e  amigo  de  Garcia  Fernan- 
des, cuja  mulher  era  prima  da  sua,  sendo  filhas  de  dois  irmãos.  Ora  sendo  a 
mulher  de  Garcia  Fernandes  filha  de  Francisco  Henriques,  vè-se  que  este  ti- 
nha um  irmão  cujo  nome  se  desconhece  e  de  quem  se  não  tem  falado  até 
agora.  Convém  todavia  observar  que  aquella  phrase  dois  irmãos  não  se  deve 
tomar  á  risca,  em  absoluto,  como  sendo  do  mesmo  sexo.  Accresce  ainda  que 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  d«  S.  Domingo»  de  Litboa.  L.°  55,  fl.  3. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


67 


o  mesmo  parentesco  podia  proceder  da  linha  materna.  Ainda  mais  outro  por- 
menor: Christovão  de  Figueiredo  fôra  também  companheiro  de  Francisco  Hen- 
riques nas  obras  da  Relação. 

Nas  Chancellarias  não  encontrei  documento  algum  que  lhe  diga  directa- 
mente respeito.  Uma  carta  de  D.  João  III  concede  licença  a  um  Christovão  de 
Figueiredo,  escudeiro  da  rainha  D.  Leonor,  minha  tia,  para  poder  andar  em 
mula,  mas  creio  que  se  não  pôde  identificar  com  o  pintor. 

Existe  na  Torre  do  Tombo,  Collecção  de  Fragmentos,  uma  petição  interes- 
santíssima de  Christovão  de  Figueiredo,  em  que  elle,  depois  de  nomear  alguns 
serviços,  requer  a  el-rei  que  tome  para  moço  da  capella  do  cardeal  seu  irmão, 
um  seu  filho  d'elle  supplicante,  muito  bom  grammatico  e  latino.  Este  documento 
não  tem  data,  mas  deve  ser  anterior  a  1540,  epocha  em  que  falleceu  o  car- 
deal D.  Affonso,  e  nelle  se  encontram  preciosos  elementos  para  a  historia  da 
pintura  portugueza. 

Ahi  diz  Christovão  de  Figueiredo  que  fôra  a  S.  João  de  Tarouca  exami- 
nar e  receber  as  pinturas  que  fizera  Gaspar  Vaz,  indo  também  a  Vizeu  em 
missão  idêntica,  e  que  n'estas  viagens  não  recebera  paga  dos  seus  trabalhos. 
Isto  além  de  outras  obras  que  debuxara  para  el-rei.  O  respectivo  documento 
ler-se-ha  adeante  no  artigo  relativo  a  Vaz  (Gaspar). 


XLIX. —  Florentim  (António).  — O  seu  appellido  indica  perfeitamente  a 
terra  da  sua  naturalidade,  Florença,  d'onde  veiu,  a  requerimento  de  D.  João  I, 
na  qualidade  de  seu  pintor.  Estes  pormenores  colbem-se  na  carta  de  privile- 
gio que  D.  Duarte  lhe  passou  em  Almeirim  a  5  de  janeiro  de  1434,  sendo 
confirmada  por  D.  Affonso  V  a  2  de  julho  de  1439. 

A  existência  de  mestre  António  Florentim  tinha  passado  até  agora  igno- 
rada na  nossa  historia  artística.  Este  facto  é  importante,  não  só  por  nos  reve- 
lar o  gosto  de  D.  João  I  pela  pintura,  mas  também  por  nos  indicar  a  influen- 
cia da  escola  italiana  em  Portugal  n'aquella  epocha. 

tDom  Afomso  etc.  A  quamtos  esta  carta  (falta  virem)  fazemos  saber  que 
nos  foy  mostrada  huua  carta  do  muy  alto  etc,  Dom  Eduarte  etç.  A  uos  corre- 
gedores e  juizes  da  nossa  muy  nobre  e  leal  cidade  de  Lixboa  e  aos  sacadores 
e  Recebedores  que  ora  sam  ou  forem  daquy  em  diante  dos  nossos  pididos  e 
a  outros  quaees  quer  oficiaaes  e  pessoas  que  esto  ouuerem  de  veer  per  qual 
quer  guisa,  a  que  esta  carta  for  mostrada,  saúde,  sabede  que  nos,  que  nos 
(tic),  querendo  fazer  graça  e  mercee  a  meestre  Amtonyo  Felloremtim,  mora- 
dor em  essa  cidade,  por  quanto  veeo  a  esta  nossa  terra  a  requerimento  del-Rey 
meu  senhor  e  padre  e  era  seu  pimtor,  teemos  por  bem  e  priuillegiamollo . . . 


68  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Dante  em  os  paços  d  Almeirim  b  dias  de  janeiro — El  Revo  mandou—  R.°  Afonso 
a  fez  —  era  de  mil  e  iiijc  e  xxxiiij.  E  pidionos  por  mercee  o  dito  meeslre  An- 
toyo  (sic)  que  lha  mandássemos  confirmar  a  dita  carta  e  visto  seu  requerimento 
a  nos  praz  deito.  E  porem  mandamos  a  uos  sobre  dito  corregedor  e  juizes  e 
a  outros  quaees  quer  que  esta  carta  for  mostrada  que  lha  compraaes  e  guar- 
des e  façaaes  comprir  e  guardar  asy  e  pella  guisa  que  em  ella  he  contheudo 
sem  outro  nenhQu  enbargo  que  huus  e  outros  a  ello  ponhaees,  unde  ali  nom 
façades.  Dante  em  a  dita  cidade  dous  dias  de  julho  —  EIRej  o  mandou  com  au- 
toridade da  senhora  R.a  sua  madre  e  per  Ifante  dom  P.°  seu  lyo  e  defensor 
por  ell  de  seus  Regnos  e  senhorio.  Lopo  Fernandez  a  fez.  Era  de  mil  e  iiijc  e 


L.  —  Fonseca  (António  Manuel  da).  —  Raczynski  teve  ensejo  de  tratar  de 
perto  com  António  Manuel  da  Fonseca  e  de  observar  e  criticar  as  suas  obras, 
consagrando-lhe  um  artigo  bastante  desenvolvido  no  seu  Dictionnaire  e  diver- 
sas passagens  nas  suas  Lettres.  Fonseca  foi  professor  de  pintura  histórica  de 
bastante  merecimento,  embora  a  obra  que  nos  legou  não  corresponda  em  nu- 
mero ao  longo  período  da  sua  actividade,  em  concepção  artística  ás  excellen- 
cias  de  um  talento  de  primeira  ordem.  Um  dos  seus  mais  notáveis  quadros, 
Emas  salvando  seu  pae  Anchisis,  deu  logar  a  uma  viva  polemica,  sendo  seu 
vigoroso  contendor  Joaquim  António  Marques.  Fonseca  publicou  em  sua  defesa 
(1855)  um  opúsculo  em  folio,  de  15  paginas,  em  que  dá  alguns  curiosos  por- 
menores biographicos  da  sua  pessoa.  Ahi  confessa  modestamente  que  um  emi- 
nente escriptor  (dizem  que  fora  Latino  Coelho)  lhe  corrigira  o  escripto,  dan- 
do-lhe  os  realces  do  estylo.  Veja-se  a  este  propósito  o  Diccionario  Btbliogra- 
phico,  de  Innocencio  da  Silva,  nos  artigos  relativos  a  Fonseca  e  Joaquim  Antó- 
nio Marques.  António  Manuel  da  Fonseca  fez  parte  de  uma  geração  de  artis- 
tas. Seu  pae,  João  Thomaz  da  Fonseca,  era  também  pintor.  Deixou  um  filho, 
António  Thomaz  da  Fonseca,  que,  tendo-se  dedicado  primeiro  á  pintura,  seguiu 
depois  a  carreira  de  architecto.  Foi  director  da  Escola  e  do  Museu  de  Bellas 
Artes,  succedendo-lhe  n'estes  cargos  o  meu  particular  amigo  António  José  Nu- 
nes Júnior. 

António  Manuel  da  Fonseca  falleceu  em  4  de  outubro  de  1890,  com  94 
annos  de  edade,  pois  nascera  na  freguezia  de  Santa  Isabel  a  27  de  setembro 
de  1796. 

Fonseca  fora  nomeado  professor  de  pintura  histórica  em  carta  de  29  de 
agosto  de  1837.  Recebera  as  seguintes  mercês  honorificas,  de  que  tenho  nota: 


i  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.»  19,  fl.  60. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


69 


Cavalleiro  da  Ordem  de  Christo,  era  13  de  janeiro  de  1837;  Commendador  da 
mesma  ordem,  em  11  de  dezembro  de  1884;  Cavalleiro  da  Ordem  de  Carlos  III 
de  Hespanha,  em  7  de  novembro  de  1871;  Cavalleiro  da  Ordem  da  Rosa  do 
Brazil,  em  18  de  janeiro  de  1873.  Em  1846-1847  serviu  no  batalhão  dos  Vo- 
luntários da  Carta,  tendo-se  alistado  aos  50  annos.  Sahiu  alferes  em  dezem- 
bro de  1846  e  tenente  a  21  de  julho  de  1847. 

António  Manuel  da  Fonseca  ornamentou  diversas  dependências  do  palácio 
Quintella,  em  frente  ao  largo  do  mesmo  nome.  É  por  certo  o  seu  trabalho  mais 
valioso  e  de  mais  amplas  dimensões.  Executou-o  em  1822,  tendo  a  satisfação 
de  o  restaurar  em  1878.  Assim  a  obra  que  lhe  despontara  na  manhã  da  sua 
mocidade  rejuvenesceu-a  elle  ao  calor  do  sol  poente  da  sua  velhice. 

O  meu  esclarecido  amigo  e  consócio  Dr.  A.  A.  de  Carvalho  Monteiro, 
actual  proprietário  d'aquelle  palácio,  teve  a  amabilidade  de  me  fornecer  uma 
circumstanciada  descripção  daquellas  pinturas,  que,  apesar  de  minuciosa,  nada 
perde  na  clareza  e  realce  com  que  está  redigida.  Com  a  devida  vénia  a  repro- 
duzo n'esle  artigo,  certo  de  que  será  lida  com  todo  o  interesse  e  agrado. 

Tendo  se-me  offerecido  occasião  de  examinar  alguns  dos  seus  papeis  de 
família  pude  tirar  copia  de  cinco  documentos,  que  vão  insertos  logo  depois  da 
descripção  alraz  mencionada.  São  elles: 

a)  Certidão  de  baptismo,  em  seguida  a  um  seu  requerimento; 

b)  Requerimento,  pedindo  certidão  da  portaria  que  o  mandava  concluir 
em  Roma  a  copia  do  quadro  da  Transfiguração  de  Christo,  de  Raphael; 

c)  Officio,  communicando-lhe  a  sua  eleição,  em  2  de  janeiro  de  1840, 
para  sócio  Dê  Virtuosi  ai  Pantheon; 

d)  Idem,  com  relação  ao  Instituto  de  França,  em  20  de  dezembro  de  1862; 

e)  Idem,  com  relação  á  real  Academia  de  S.  Fernando  de  Madrid,  em  3 
de  janeiro  de  1872. 

«Os  trabalhos  mais  importantes  feitos  por  António  Manuel  da  Fonseca, 
na  casa  da  rua  do  Alecrim,  n.°  70,  em  frente  ao  Largo  do  Barão  de  Quintella, 
que  pertenceu  ao  Conde  de  Farrobo,  adquirida  mais  tarde  por  Francisco  Au- 
gusto Mendes  Monteiro,  que  foi  quem  mandou  fazer  todas  as  restaurações,  e 
que  hoje  é  propriedade  de  seu  filho,  António  Augusto  de  Carvalho  Monteiro, 
encontram-se  em  seis  compartimentos  do  mesmo  prédio,  e  são:  as  pinturas 
da  escada  principal,  as  de  dois  medalhões  na  capella,  as  da  sala  do  canto-sul 
sobre  a  mesma  rua  e  o  pateo  das  cavallariças,  as  da  grande  sala  de  jantar  e 
as  de  um  gabinete  que  olha  para  o  grande  terraço  do  mesmo  prédio.  As  pin- 
turas dos  painéis  grandes  da  escada  e  as  da  sala  do  centro  são  a  fresco,  as 
demais  a  óleo.  Eis  a  sua  descripção: 


70  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Escada 

0  assumpto  principal  consta  de  quatro  dos  Trabalhos  de  Hercules,  dispostos 
do  seguinte  modo:  na  parede  que  se  eleva  do  primeiro  patamar  da  escada,  toda 
de  mármore,  e  de  cada  lado  de  uma  grande  janella  de  arco  perfeito,  fechada 
por  vidros  de  Veneza  corados,  vê-se,  do  lado  direito  de  quem  sobe,  Hercules 
subjugando  o  Touro  de  Creia,  e  da  esquerda  o  Leão  da  Nemea;  e  na  parede 
do  ultimo  patamar,  do  lado  direito  da  porta  da  entrada  para  a  grande  sala  octo- 
gona,  Hercules  esmagando  em  seus  braços  a  Anteii,  filho  da  Terra,  e  do  lado 
esquerdo  dando  a  morte  ao  gigante  Caco.  Por  cima  d'estes  quadros,  e  entre 
as  janellas  lateraes  e  grandes  espelhos  reproduzindo  essas  janellas,  eslam  di- 
versas allegorias  pintadas  a  claro-escuro,  assim  dispostas:  por  sobre  o  Leão 
da  Nemea,  a  Terra  em  um  carro  puchado  por  duas  serpentes,  por  sobre  o 
Touro  de  Creta,  Vénus  no  seu  carro  tirado  por  pombas;  sobre  a  l.a  porta  late- 
ral, á  esquerda,  o  Carro  de  Apollo  puchado  por  dois  cavallos  brancos;  entre  essa 
porta  e  a  principal  O  de  Mercúrio  tirado  por  dois  gallos;  entre  esta  porta  e  a 
2.*  lateral  O  Carro  de  Juno  com  os  pavões;  e  em  seguida  O  de  Diana  a  quatro 
cavallos  brancos.  Entre  as  humbreiras  d'aquellas  janellas  quatro  figuras  de  Deu- 
ses mythologicos  representam  os  quatro  elementos  da  velha  theoria  philosophica, 
o  fogo,  a  agua,  a  terra  e  o  ar  (Júpiter  ou  Zeus,  Neptuno,  etc.)  No  centro  do 
tecto  eslá  pintada  a  Apotheose  de  Mercúrio,  que  tem  na  mão  esquerda  um  pomo 
de  oiro  (laranja),  sobraçando  com  a  direita  o  caduceu  e  um  Cupido.  A  facha, 
que  passa  por  baixo  das  janellas,  é  de  diversos  arabescos,  sendo  os  centros 
formados  de  meninos  nús  com  a  maça  de  Hercules  e  cornucopias. 


Capella 

No  lado  direito  do  altar  e  esquerdo  do  espectador  está  pintado  a  óleo  um 
grande  medalhão  com  a  Cabeça  de  Christo,  e  do  lado  esquerdo  um  outro  me- 
dalhão de  molduras  e  dimensões  eguaes  ao  anterior,  representando  a  Cabeça 
da  Virgem. 


NOTICIA  DK  ALGUNS  PINTORES  71 


Sala.  do  centro,  ou  chamada  Romana 

Pinturas  Das  paredes  principaes  figurando  dois  grandes  pannos  de  Raz, 
onde  se  acham  representadas  as  seguintes  scenas  da  historia  da  primitiva  Roma: 
do  lado  direito  de  quem  entra  e  na  parede  lateral,  entre  a  porta-uorte  e  o 
canto  da  sala,  grandes  jogos  romanos,  a  que  foram  attrahidos  os  Sabinos,  e 
em  seguida,  na  parede  do  fundo,  o  Rapto  das  Sabinas;  do  lado  esquerdo,  e  ainda 
na  parede  do  fundo,  a  Guerra  entre  os  Sabinos  e  os  Romanos,  consequência 
d'aquelle  rapto,  e  em  continuação,  na  parede  lateral,  entre  o  canto  e  a  porta- 
sul,  a  Paz  de  Lacio,  firmada  por  accordo  entre  Tacio  e  Rómulo.  As  sobre-por- 
tas  são  assumptos,  a  claro  escuro,  da  historia  Romana,  principalmente  dos  cos- 
tumes dos  cônsules,  lictores,  etc.  No  tecto,  ao  centro,  encontra-se,  em  um 
grande  medalhão,  a  Apolheose  de  Rómulo,  tendo  aos  lados,  na  parte  concava  do 
tecto,  logo  por  cima  da  sanca,  dois  medalhões  mais  pequenos,  também  a  fresco 
e  a  claro  escuro,  representando:  o  que  fica  sobre  a  janella  principal  a  Allego- 
tia  da  lenda  da  Loba  amamentando  Rómulo  e  Remo,  e  o  que  se  vè  por  cima  da 
porta  de  entrada  da  sala  octogona  Acca  Laurentia,  mulher  do  pastor  Faus- 
lulo,  também  conhecida  por  Loba,  tendo  aos  peitos  os  dois  gémeos  citados  e  ao 
lado  o  pastor  seu  marido.  Entre  a  janella  e  a  porta  do  lado-norte  vê-se,  por 
cima  do  roda-cadeiras,  o  retrato  de  António  Manuel  da  Fonseca,  muito  joven 
e  em  corpo  inteiro,  vestido  à  romana,  tendo  na  mão  direita  uma  folha  de  pa- 
pel desenrolada  com  um  projecto  de  pinturas,  provavelmente  o  das  pinturas 
a  executar  na  sala,  e  com  a  mão  esquerda  como  que  mostrando  esse  mesmo 
plano.  Por  baixo  da  indicada  folha  de  papel  vè-se  uma  espécie  de  lapide  com 
a  seguinte  inscripção  em  caracteres  romanos:  Antonius  Em-jmanuel  a  Fonce- 
/ca,  Pictor  Lusi-ftanus.  Anno  1822./;  e  em  seguida,  em  letra  aldina  manuscri- 
pta,  e  feita  muito  posteriormente  àquella,  este  distico:  Forão  restauradas  es- 
tas/pinturas em  1878,  pelo  mes/mo  autor;  tendo  d'idade/81  ânuos./;  por  baixo 
da  lapide  vè-se  a  paleta  com  os  pincéis  e  o  torso  de  uma  estatua  partida.  En- 
tre a  janella  e  a  porta-sul  do  lado  esquerdo  está  o  retrato  do  architecto  da  casa, 
também  com  vestuário  romano,  achando-se  sobre  o  fuste  de  uma  columna  trun- 
cada a  seguinte  inscripção:  Joannes /Baptista /Hdbrath, /Archite-/ctus  Ro-/ma- 
nus./  A  facha  do  roda-cadeiras  é  toda  pintada  também  a  fresco,  representando 
armas,  armaduras  e  petrechos  bellicos  antigos. 


72  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Gabinete  cio   lado-sul 

No  tecto  vè-se  a  figura  de  Minerva  em  corpo  inteiro,  vestida  de  Palias, 
e  sentada  sobre  uma  uuvem,  tendo  na  mão  esquerda  duas  coroas  de  loiro,  e 
do  lado  direito  um  pequeno  Cupido  que  lhe  apresenta  o  mocho  da  sciencia 
pousado  sobre  a  sua  mão  direita. 


Sala  de  jantar 

Assumptos  de  paizagens  dos  arredores  de  Roma  e  o  aspecto  da  Basílica 
de  S.  Pedro  e  do  Palácio  do  Vaticano.  Do  lado  direito  de  quem  entra  a  porta 
principal  vê  se  uma  scena  de  trabalho  de  vindima,  levando  os  homens  cachos  de 
uvas  que  deitam  para  dentro  de  uma  dorna;  e  do  lado  esquerdo  da  mesma  porta 
uma  dança  popular  junto  a  umas  ruinas  de  aqueducto.  Ainda  d'este  lado,  so- 
bre a  parede  lateral,  entre  o  canto  e  a  porta-norte,  uma  camponeza  ao  pé  de 
uma  fonte  enchendo  de  agua  um  cântaro,  e,  por  baixo  da  bica,  junto  ao  pe- 
queno frontão  da  mesma  fonte,  a  seguinte  inscripção  em  letra  aldina:  Ant.° 
M.tl  da/Fon."  Pinct./,  e  a  seguir  pela  parte  de  baixo  e  em  letra  manuscripta 
commum:  Reformada/pelo  mesmo  au-fior  cm  1877./  Entre  a  citada  porta  e  a  pri- 
meira janella  está  representada  a  basílica  de  S.  Pedro  com  a  sua  grande  praça 
e  no  ultimo  plano  á  direita  o  Vaticano,  como  que  vistos  por  sobre  o  gradil  de 
um  jardim,  onde  estam  tocando  uns  músicos  ambulantes  com  um  macaco,  a  que 
uma  creancinha  offerece  um  cacho  de  uvas.  Entre  a  terceira  janella  e  a  porta- 
sul  vè-se  uma  mulher  do  campo  sentada,  tendo  ao  lado  esquerdo  um  cabaz  com 
uvas,  de  onde  tirou  um  cacho  que  dá  a  uma  creança  que  está  encostada  sobre  o 
regaço.  Entre  esta  porta  e  o  canto  ha  uma  scena  de  idylio  entre  uma  camponeza 
e  um  guarda  compestre  encostado  á  espingarda.  As  sobre-portas,  em  numero 
de  quatro,  pois  uma  das  janellas,  a  fronteira  á  porta  principal,  é  de  sacada 
para  uma  escada  que  dá  para  o  jardim,  representam  Leda  deitada  em  diremos 
posições  ojferecendo  néctar  a  Júpiter  transformado  em  cysne  branco  de  azas  le~ 
vantadas,  que  se  reproduz  dois  a  dois  em  cada  vão,  formando  como  que  os  or- 
natos superiores  das  humbreiras  das  portas.  No  tecto,  em  um  grande  meda- 
lhão, vè-se  Hebe  sentada  sobre  o  dorso  de  uma  grande  águia  (Júpiter  transfor- 
mado), de  cujo  bico  pende  o  lustre  da  sala.  Hebe  tem  na  mão  direita  uma  taça 
offerecendo  ambrósia,  e  ao  seu  encontro  vem  um  pequeno  Cupido  com  um 
açafate  de  flores  e  fructas  á  cabeça. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  73 


Saleta  sobre  o  terraço 

Representa  um  boudoir,  em  cujas  paredes  se  mostram  seis  raparigas, 
serviçaes  talvez,  por  entre  umas  columnatas  encimadas  de  caryatides  apresen- 
tando vários  adornos  de  toilelte:  uma  caixa  com  escovas  para  cabello,  filas, 
plumas,  leques,  coitares,  jóias,  etc.  As  sobre-portas  teem  pintadas  sobre  bam- 
binellas  a  azul  e  branco,  no  estylo  império,  grinaldas  de  rosas  e  emblemas 
amorosos,  e  uma  pyra  em  frente  da  janella. 


Além  destas  pinturas  do  Fonseca,  existem  na  mesma  casa  e  na  sala  prin- 
cipal, chamada  Sala  Camoniana,  as  feitas  a  óleo  por  Cyrillo  Wolkmar  Machado, 
representando:  a  do  tecto  o  Concilio  dos  Deuses,  segundo  o  lexto  dos  Lusíadas, 
vendo-se  ao  fundo  do  quadro  e  a  perder-se  no  horizonte  As  naus  portuguezas 
sob  o  mando  de,  Vasco  da  Gama  para  o  descobrimento  do  caminho  marítimo  das 
índias;  e  em  volta,  no  roda-cadeiras,  vêem-se  a  claro-escuro  três  medalhões 
figurando  assumptos  camonianos:  Audiência  do  Rei  de  Melinde,  Desembarque 
em  Calecut  e  a  Ilha  dos  Amores.» 


«Ill.m0  Senr 

«Diz  António  Manoel  da  Fonseca  Pintor  figurista  Filho  filho  (sic)  legitimo 
de  João  Thomas  da  Fonçeca  e  de  Maria  Ignaçia  Xavier  q  ele  sup.te  persiza  q 
o  reverendo  pároco  de  S.  IzabeUhe  pase  hnma  certidão  do  seu  Balismo  e  como 
sem  ordem  de  V.  S.  o  não  pode  fazer  portanto 


P.  q  seja  V.  S.a  servido  mandala  pa- 
sar  na  forma  do  costume.» 


«No  L.°  13  dos  Baptismos  desta  Freguezia  a  fl.  130  v.  está  lançado  o  As- 
sento seguinte: 

«Em  o  primeiro  dia  do  mez  de  Novembro  de  mil  sete  centos  noventa  e 
seis  annos  nesta  Parochial  de  Santa  Izabel,  Rainha  de  Portugal,  baptisou  so- 
Iemneniente  e  poz  os  Santos  Óleos  o  Padre  Coadjutor  José  Gonçalves  Ferreira 
á  António  que  nasceo  aos  vinte  e  sele  de  setembro  próximo  passado,  filho  le- 
gitimo de  João  Thomaz  da  Fonseca,  e  de  Maria  Ignacia  Xavier  moradores  na 

Março,  1903.  10 


74  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Rua  de  Santa  Quitéria  desta  Freguesia,  e  na  mesma  recebidos.  Padrinho  An- 
tónio Manoel  de  Mello  e  Castro,  e  Madrinha  Josefa  Maria  Gertrudes,  tocou  em 
seu  nome  Joaquim  José  Lopes  Pereira— o  Prior  Francisco  José  Marques  de 
Paiva. 

«E  nada  mais  se  contem  no  dito  Assento,  que  fielmente  copiei,  e  a  que 
me  reporto.  Igreja  de  Santa  Isabel  de  Lisboa  24  de  Dezembro  de  1822. 

O  Prior  D.  António  da  Annunciação  Avellino.» 


dll.mo  e  Ex.m0  Sr. 

«Diz  António  Manoel  da  Fonseca  Professor  proprietário  da  Aula  de  pin- 
tura histórica  da  Rial  Academia  das  Bellas  Artes  de  Lx.*,  que  elle  supp.'  pre- 
cisa que  V.  Ex.a  ordene  que  o  Secretario  da  referida  Academia,  lhe  passe  por 
certidão  a  integra  do  Decreto  com  o  qual  obteve  licensa  para  hir  a  Roma  aca- 
bar a  sua  copia  da  Transfiguração  de  Christo,  do  quadro  original  de  Rafael 
Sanzio  de  Urbino,  pelo  que 

P.  a  V.  Ex.a  assim  lhe  defira. 
Lisboa,  22  de  Julho  de  1863. 

António  Manoel  da  Fonseca. 

E.  R.  M.0"» 

Tem  ao  lado  o  seguinte  despacho:  «Passe  não  havendo  inconvenientes. 
Academia  11  de  Agosto  de  1863.  Marquez  de  Sousa.» 


«Em  consequência  do  despacho  retro  do  Ex.mo  Marquez  Vice-Iospector  da 
Academia  Real  de  Bellas  Artes:  Certifico  que  em  um  dos  livros  de  registros 
das  Portarias  do  Ministério  do  Reino  achei  a  copia  do  theor  seguinte:  «N.°  43 
—  Ministério  do  Reino  — 4. a  Repartição  —  N.°  2:369  — Livro  4.°  —  Sua  Mag.e 
A  Rainha,  vendo  o  que  o  Vice  Inspector  da  Academia  das  Bellas  Artes  de  Lx.a 
expoz  na  sua  conta  de  28  de  Agosto  ultimo  acerca  da  necessidade  de  se  facultar 
licença  ao  Professor  da  Aula  de  Pintura  Histórica  da  mesma  Academia  António 
Manuel  da  Fonseca,  para  ir  a  Roma  acabar  a  copia  do  quadro  da  Transfigura- 
ção do  celebre  Rafael  de  Urbino,  fazendo  ao  mesmo  tempo  a  compra  dos  prin- 
cipaes  modelos  em  gesso  das  estatuas  antigas,  e  consideradas  as  razões  que  ha 
de  conveniência  publica  a  respeito  d'esta  matéria:  Ha  por  bem  conceder  licença 
ao  dito  Professor  para,  por  termo  de  oito  mezes  estar  ausente  do  exercício  da 
sua  cadeira,  occupando-se  em  Roma  dos  mencionados  trabalhos  artísticos;  e 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  75 

bera  assim  na  compra  dos  ditos  modelos,  sob  as  inslrucções  dadas  a  esse  fim 
pela  Academia  de  Bellas  Artes,  e  mediante  a  inspecção  e  fisealisação  do  nosso 
agente  diplomático  naijuella  corte.  E  assim  o  Manda  Sua  Magestade  participar 
á  mesma  Academia  para  sua  inteligência  e  devida  execução.  Paço  de  Cintra  em 
3  de  setembro  de  1839  —  Assignado —  João  Cardoso  da  Cunha  Araújo. —  Está 
conforme.  Academia  Real  de  Bellas  Artes  de  Lisboa  1.°  de  setembro  de  1863. 
José  da  Costa  Sequeira.  Professor  servindo  de  Secretario. » 

«Insigne  Artística  Congregazione  dè  Virtuosi  ai  Pantheon.  A  di  3  Gen- 
naio  1840.  Num.  2:004. 

«Cbiarissimo  Signore 

«Ho  1'onore  di  partecipare  alia  Signoria  Vra.  Chiarissima  che  la  Insigne 
Artística  Congregazione  dè  Virtuosi  ai  Pantheon  sulla  proposizione  dei  Segre- 
tario  di  Consiglio  Sig.°  Cav.°  Silvagni,  e  dei  sottoscritto  Segretario  perpetuo 
nell'  adunanza  dei  giorno  22  dello  scorso  Decembre  nominò  ad  unanimità  di 
suffragi  la  Sig.u  Vra.  a  Virtuoso  di  mérito  corrispondente  e  la  annoverô  nella 
classe  delia  Pittura. 

«Nel  portarle  a  notizia  una  tal  noraina,  lieto,  perche  con  tale  atto  la  Insi- 
gne Corporazione  segnò  una  delle  piú  belle  epoche  essendo  alia  Signoria  Vra. 
chiarissima  tutte  quelle  prerogative  che  costituiscono  el  uomo  e  1'artista,  invi- 
landola  ad  intervenire  Domenica  mattina  alie  ore  17  i  ai  Pantheon  onde  pren- 
dere  il  formale  possesso,  gradisca  che  un  sentimenti  de  stima  io  passi  ali'  onore 
de  signarmi  delia  sign.r  Vra.  Chiarissima. 

aChiarissimo  Sig.°  Cav.°  António  Fonzeca  Pittore. 

«Direttore  delia  R.  Accademia  di  Lisbona,  etc. 

(Assignado) 

Gaspare  C.°  Servi,  seg.ri°  perpetuo.» 

«Instituí  Imperial  de  France.  Académie  des  Beaux  Arts. 

«Le  Secrélaire  perpetuei  de  1'Académie  certifie  que  ce  qui  suit  est  extrait 
du  Procés-verbal  de  la  séance  du  Samedi  20  Decembre  1862. 

«IVAcadémie  procede  conformément  à  son  règlement  à  1'élection  d'un  cor- 
respondant  pour  remplir  la  place  vacante  par  le  décès  de  M.  Schadow. 


76  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTOIIES 

«Le  résultat  du  scrutin  ayant  donné  la  majorité  absolue  à  M.  Fonseca,  le 
Président  declare  qu'il  est  élu  Correspondant  de  1'Académie. 

Pour  extrait  conforme 

Le  secrétaire  perpetuei 

Beulé.» 

«Institut  Imperial  de  France.  Académie  des  Beaux  Arts. 

«Paris  le  30  mai  1863. 
«Le  Secrétaire  perpetuei  de  l'Académie. 

«Paris  le  20  Décembre  1862. 
«Monsieur. 

«Je  m'empresse  de  vous  adresser  1'exlrait  du  procès  verbal  de  la  séance 
dans  laquelle  l'Académie  des  Beaux  Arts  de  Tlastitut  imperial  de  France  vient 
de  vous  nommer  l'un  de  ses  Correspondants. 

«En  vous  offrant  ce  titre  comme  un  témoignage  de  son  estime,  1'Acadé- 
mie  vous  invite  à  lui  faire  part  des  connaissances  et  de  1'expérience  que  vous 
avez  acquises  dans  les  Beaux  Arts,  afin  de  concourir  avec  elle  à  leurs  progrès. 

«Je  me  felicite,  Monsieur,  d'être  1'interprète  des  sentiments  de  1'Acadé- 
mie  et  je  vous  prie  d'agréer  1'assurance  de  la  considèration  três  distinguèe 
avec  laquelle  j'ai  1'honneur  de  vous  saluer. 

Beulé.  i 

«A  Monsieur  António  Manoel  da  Fonseca,  peintre  du  Boi,  Correspondant 
de  l'Académie  des  Beaux  Arts  de  1'Institut  imperial  de  France,  à  Lisbonne. 

«Beal  Academia  de  Las  Três  Nobles  Artes  de  S.°  Fernando. 

«Teniendo  en  cuenta  esta  Bea!  Academia  los  altos  merecimientos  y  cir- 
cunstancias que  concurren  en  V.  S.  ha  acordado  en  sesion  celebrada  el  dia  18 
de  Diciembre  último,  y  prévias  todas  las  formalidades  que  previenen  sus  Esta- 
tutos y  Beglamenlo,  nombrar  à  V.  S.  Académico  corresponsal  de  la  misma. 


NOTICIA  PE  ALGUNS  PINTORES 


77 


«Tengo  la  satisfaccion  de  comunicarlo  à  V.  S.  para  su  debido  conocimiento, 
no  remetiéndole  el  diploma,  hasta  que  este  concluída  la  nueva  tirada. 
«Dios  gue.  à  V.  S.  muchos  anos.  Madrid  3  de  Enero  de  1872. 

El  secretario  general 

Eug.°  de  la  Câmara.» 


LI. —  Furtado  (Manuel). —  O  sr.  Conde  de  Sabugosa  possue  um  mappa 
de  grandes  dimensões  com  os  seguintes  dizeres: 

«Mappa  da  ilha  de  Gôa  e  das  adjacentes  e  das  ilhas  de  Salsete  e  Bardez 
que  o  ex.ra0  sr.  Viso  Rey  Vasco  Fernandes  César  de  Meneses  mandou  tirar  pelo 
mestre  pintor  Manuel  Furtado  no  anno  de  1716.» 


LIL—  Gallego  (Pêro  Affonso). —  O  seu  segundo  appellido  talvez  seja  pa- 
tronymico,  derivado  da  terra  da  sua  naturalidade,  Galliza.  Era  pintor,  mestre 
dos  escudos  e  residia  na  cidade  do  Porto,  onde  viera  estabelecer-se  já  no  tempo 
de  D.  João  I,  que  lhe  deu  carta  de  privilegio.  D.  Duarte  lh'a  passou  nova- 
mente em  29  de  dezembro  de  143i,  sendo  confirmada  por  D.  Affonso  V  em 
4  de  fevereiro  de  1441. 

«Dom  Afomso  etc.  A  quamtos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  Pêro 
Afomso  Gallego,  pymtor,  nieestre  dos  scudos,  morador  em  nossa  cidade  do  (falta 
a  palavra  Porto)  mostrou  perante  nos  hQua  carta  de  priuillegio  que  tynha  dei 
Rei  meu  senhor  e  padre,  cuja  alma  Ds  aja,  da  qual  ho  theor  tal  he:  «Dom  Eduarte 
etc.  A  quantos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos  querendo  fazer  graça  e 
mercee  a  P.°  Afomso  gallego,  pymtor,  morador  em  a  cidade  do  Porto,  por  quanto 
se  veo  morar  aa  dita  cidade,  teemos  por  bem  e  mãdamos  que  enquanto  na  dita 
cidade  esteuer  e  morar  e  husar  do  dito  mester  s^ra  priuilligiado,  e  liberdado 
e  scusado  de  pagar  em  todollas  peytas,  fintas  e  talhas,  seruiços,  emprestidos 
que  per  nos  ou  per  os  concelhos  sejam  ou  forem  llançados  per  qual  quer  guisa 
que  seia  e  de  seruir  em  nenhuus  encarregos  do  concelho  nem  auer  nenbúus 
ofícios  delle  comlra  seu  tallemte,  e  que  nom  pouse  nenhQu  com  el  em  suas 
casas  de  morada,  adegas  e  cauallariças,  nem  lhe  tomem  pam,  uinho,  roupa, 
lenha,  palha  e  galinhas,  nem  outra  nenhúua  cousa  do  seu  contra  seu  tallemte 
e  se  outrosy  nom  he  posto  na  vymtena  do  mar  nem  beesteiro  de  conto  que 
nom  seia  em  ello  posto.  E  porem  mandamos  aos  corregedores,  juizes,  justiças, 


78 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


anadees  e  apuradores  e  sacadores  dos  nosos  pididos  e  a  outros  quaes  quer 
que  esto  ouuerem  de  ueer,  a  que  esta  carta  for  mostrada,  que  lhe  comprem  e 
guardem  façom  comprir  e  guardar  esla  nosa  carta  em  lodo  e  per  todo,  segundo 
em  ella  he  contheudo.  E  nom  uãao  nem  consentam  hyr  contra  ella  era  parte  nem 
em  todo  em  nenhua  guisa  que  seja  por  quanto  nosa  mercee  e  uonlade  he  de  lhe 
ser  bem  compridamente  e  guardada  emquanto  na  dita  cidade  morar  e  husar  do 
dito  mester  como  dito  he,  o  qual  preuillegio  lhe  asy  damos  como  dito  he,  por 
quanto  tynha  outro  tal  do  muy  virtuoso  e  de  grandes  virtudes  eIRey  meu  senhor 
e  padre,  cuia  alma  Ds  aja,  unde  ai  nom  façades.  Dada  em  Almeyrim  xxix  dias 
de  dezembro  —  EIRey  o  mãdou  —  Martim  Gil  a  fez  —  Anno  de  iiijc  e  xxxiiij 
anos.  E  pediouos  o  dito  P.°  A.°  que  lhe  confirmasemos  a  dita  carta  etc.  Dada 
a  conflrmaçõ  em  forma  em  Coynbra  iiij  dias  de  feuereiro  per  autoridade  do 
senhor  Ifante  don  P.°  Martim  Gil  a  fez  anno  de  iiijc  Rj.» ' 


LIII. —  Gomes  (Affonso).  —  Era  escudeiro  da  casa  real  e  pintor  de  D. 
João  II,  o  qual,  em  carta  de  8  de  agosto  de  1485,  lhe  fez  mercê  da  tença  an- 
nual  de  5:000  reaes.  Esta  carta  foi  confirmada  por  outra  de  D.  Manuel,  a  28 
de  fevereiro  de  1497. 

Affonso  Gomes  tinha  umas  casas  ao  Poço  do  Chão,  que  entestavam  com 
outras  que  foram  emprazadas  a  Álvaro  Annes,  tanoeiro,  segundo  se  vê  da 
respectiva  escriptura,  approvada  por  D.  Manuel  em  carta  de  11  de  abril  de 
1499.  É  documento  curioso  para  a  topographia  de  Lisboa  e  para  a  historia  do 
hospital  dos  tanoeiros,  sito  n'aquelle  local. 

Em  10  de  abril  de  1508  assignava  D.  Manuel  em  Santarém  uma  carta, 
pela  qual  quitava  a  Affonso  Gomes  a  responsabilidade  da  fiança,  a  que  era 
obrigado,  por  um  João  Leitão,  de  Setúbal. 

«Dom  Manuell  etc.  A  quamtos  esla  nossa  carta  vyrem  fazemos  saber  que 
por  parte  dAffomsso  Gomez  nos  foy  apresemtada  hua  carta  delRey  meu  Se- 
nhor quesamta  groria  aja  o  lehor  daquall  he  o  seguymte:  dom  Joham  per  graça 
de  Deus  Rey  de  Purtugall  e  dos  Algarues  d  aquém  e  dalém  mar  em  Afryca 
Senhor  de  Guyne  aquamtos  esta  carta  vyrem  fazemos  saber  que  nos  queremdo 
fazer  graça  e  mercê  a  Afomsso  Gomez  noso  pimtor  e  escudeiro  de  nossa 
cassa  Temos  por  bem  e  nos  praz  que  elle  tenha  e  aja  de  nos  de  temça  des  ja- 
neyro  pasado  do  anno  presemte  de  iiijc  lxxxb  annos  em  diamte  em  cada  huu 
anno  em  camto  nossa  merçe  for  cymquo  rajll  reaes  dos  quaes  auera  pagamento 
per  carta  nossa  que  em  cada  huu  anno  tirara  de  nosa  fazemda  segundo  nossa 


i  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.°  2,  fl.  85. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  79 

hordenamça  e  por  certydam  dello  e  guarda  sua  lhe  mandamos  dar  esta  nossa 
carta  asynada  per  nos  e  aselada  do  nosso  sello.  Dada  em  Symtra  a  biij0  dias 
daguosto  anno  de  mjll  iiijc  lxxxb  annos  pedyrndonos  o  dito  Afomsso  Guomez 
por  merçe  que  lhe  comBrmasemos  a  dita  carta  e  vysto  per  nos  seu  rrequery- 
mento  queremdolhe  fazer  graça  e  merçe  temos  por  bem  e  lha  comfirmamos  e 
avemos  por  comfyrmada  asy  e  na  maneyra  que  se  em  ella  comlem  e  mamda- 
mos  que  asy  se  cumpra  e  guarde  como  se  nella  comthem  sem  outra  duuyda. 
Dada  em  a  nossa  cidade  d  Évora  a  vymte  oyto  dias  do  mes  de  feuereyro  An- 
dré Diaz  a  fez  anno  do  nacymento  de  Nosso  Senhor  Jhesu  Cristo  de  mjll  e  iiijc 
Irbij  annos.» ' 

«Dom  Manuell  etc.  Aquamtos  esta  nosa  carta  virem  fazemos  saber  que 
por  parte  de  Aluare  Annes  tonoeiro  morador  em  esta  nosa  cidade  de  Lixboa 
nos  foy  apresemtado  uQu  estormemto  ãaforamemto  do  quall  o  theor  tall  he. 
Em  nome  de  Deus  amem  saibham  quamtos  este  estormemto  demprazamemto 
virem  que  no  anno  do  nascimento  de  noso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mill  iiif 
lrbij  annos  aos  xx  dias  do  mes  de  julho  da  sobre  dita  era  nesta  muy  nobre 
e  sempre  leall  cidade  de  Lixboa  demtro  no  espritall  de  Samta  Ana  dos  ta- 
noeiros da  dita  cidade  setuado  edeficado  as  famgas  da  farinha  estamdo  hy  o 
homrrado  Esteuam  Marliz  mestre  escolla  e  coneguo  na  ssee  da  dita  cidade  e 
proueador  moor  e  juiz  dos  esprilaaes  albregarjas  e  comfrarjas  e  capellas  em 
ella  mesmo  e  seus  termos  per  espiciall  mamdado  e  comisam  delRey  noso  se- 
nhor e  outro  sy  estamdo  hy  Afomsso  Gomez  mordomo  do  dito  espritall  este 
presemte  anno  e  Joham  Vicente  e  Joham  Martinz  e  Pêro  Martinz  e  Gonçalo 
Annes  e  Joham  de  Gojmbra  e  Joham  diaz  e  Aluare  Annes  e  Pedre  Annes  e 
Afomso  Esteuez  e  Vicemte  Eannes  comfrades  do  dito  espritall  e  outros  muytos 
comfrades  chamados  per  mamdado  do  dito  proueador  moor  segumdo  custume 
em  presemça  de  mym  scprivam  publico  dos  ditos  esprilaaes  a  juso  nomeado  e 
das  testemunhas  ao  diamle  espritas  pareçeo  hy  Lourenço  d  Évora  porteiro  dos 
ditos  espritaes  o  quall  deu  fee  que  elle  trouxera  em  pregam  polias  praças  e  lu- 
gares acustumados  da  dita  cidade  vymte  dias  como  elRey  nosso  Senhor  mamda 
em  seu  rregimemto  e  muyto  mais  huas  casas  ssobradadas  do  dito  espritall  que 
sam  na  dita  cidade  ao  poço  do  chãao  que  partem  de  húa  parte  com  casas  de 
Catharina  Gonçalluez  a  Monleira  molher  veuua  e  molher  que  foy  de  Gonçalo 
Momteiro  que  fazem  foro  ao  dito  espritall  e  da  outra  partem  com  outro  espri- 
tall que  os  ditos  tanoeiros  tem  edeficado  ao  dito  poço  do  chãao  e  emtestam  com 
casas  d  Afomso  Gomez  \>imlor  delRey  noso  Senhor  e  per  diamle  com  a  dita  nua 
publica  do  poço  do  chãao  e  com  outras  comfromtações  com  que  de  direito  de- 


i  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.°  37,  fl.  75  v. 


80  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

uem  partir  as  quaes  casas  foram  medidas  per  mym  scprivam  per  mandado  do 
dito  proueador  moor  e  tem  de  lomguo  trimta  e  duas  varas  e  de  larguo  dez 

varas  e  mea Dada  em  a  nosa  cidade  de  Lixboa  a  xj  dias  de  abrill  Am- 

dre  Pirez  a  ffez  anno  do  nascimento  de  noso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mjll  e 
iiijc  e  nouemta  e  nove  annos  nom  seja  duujda  no  rresp;imçado  honide  começa 
que  partem  de  hQa  parle  e  acaba  e  da  outra  partem  por  que  eu  scprivam  o 
fiz  por  verdade.»  * 

«Dom  Manuell  etc.  A  vos  juizes  de  Setuuell  e  a  todollos  juizes  e  justiças 
dos  nosos  Reguos  a  que  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  mandando  nos  pro- 
uer  as  fianças  que  em  nosos  Regnos  sam  dadas  per  aquellas  que  nõ  fosem  com- 
pridas per  o  forem  (sicj  execuqutadas  foy  achada  huua  fiança  em  que  Joham 
Leitam  morador  em  a  villa  de  Setuuell  se  nos  obrjgou  aprouar  certos  capitólios 
e  cousas  de  noso  seruiço  ou  pagar  por  sua  fazenda  e  dAfomso  Gomez  noso  pin- 
tor morador  em  Lixboa  quatrocemtos  cruzados  doiro  e  por  a  dita  fiança  estar 
em  aberto  e  se  mostrar  nõ  ser  comprida  mandamos  pasar  nosa  carta  em  forma 
pêra  vos  em  os  bêes  do  dito  Joham  Leitam  eixuquetardes  os  ditos  iiijc  cruza- 
dos a  qual  carta  foy  perante  vos  apresentada  e  em  comprimento  delia  por  vos 
a  molher  e  erdeiros  do  dito  Joham  Leitam  alegar  (sicj  que.  tinha  embarguos  a 
nõ  se  qujtar  em  sua  fazemda  os  ditos  iiijc  cruzados  lhe  asynastes  termo  de  xxx 
dias  a  que  perante  nos  hos  viese  alegar  e  auer  sua  proujsam  e  dentro  no  dito 
termo  a  mulher  e  erdeiros  do  dito  Joham  Leitam  nos  emviara  apresemtar  por 
embargos  hQa  sentença  pasada  pella  nosa  chancelaria  e  asynada  per  Lopc  de 
Afomseca  do  noso  desembarguo  ouujdor  em  nosa  corte  em  aqual  sse  comty- 
nha  que  o  dito  Joham  Leitam  nos  oferecera  contra  o  dito  Pêro  Faleiro  juiz  de 
fora  que  ao  tall  tempo  era  em  essa  villa  certos  capitólios  ssobre  os  quaaes 
mandamos  que  ho  dito  doutor  fose  ouujdo  cõ  ele  e  foy  tanto  alegado  por  parte 
do  dito  Joham  Leitam  como  do  dito  doutor  que  ele  Joham  Leitam  nõ  prouar 
os  ditos  capitólios  foy  condanado  per  a  dita  seutença  que  pagase  xxx  reaes 
demjura  emmenda  e  corregimento  ao  dito  doutor  e  lhouuerã  em  rrelaçam  a 
dita  fiança  por  aleuantada  aos  ditos  fiadores  ssegundo  em  a  dita  sentença  e 
seus  embarguos  mais  compridamente  era  contheudo  os  quaes  vistos  por  nos 
com  a  dita  sentença  e  fiança  e  como  se  mostra  a  dita  fiança  ser  comprida  e  os 
ditos  fiadores  desobrjgados  delia  per  a  dita  sentença  da  nosa  rrelaçam  vos  man- 
damos que  por  a  dita  carta  de  execuçam  nõ  façaes  obra  alguua  contra  o  dito 
Joham  Leitam  nem  contra  ssua  molher  e  herdeiros  nem  sua  fazenda  nem  daquy 
por  djante  nõ  sejam  por  a  dita  fiança  mais  demandados  nem  o  dito  Afomso 
Gomez  sseu  fiador  por  que  deste  dia  pêra  todo  ssenpre  os  avermos  a  eles  e  a 


i  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.°  16,  fl.  58. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  8J 

todos  sseus  herdeiros  por  liures  e  desobrjgados  da  dita  fiança  e  mandamos 
que  por  elle  nõ  sejam  coslrangidos  per  nenhua  maneira  que  seja.  Dada  em  a 
nosa  villa  de  Santarém  a  dez  dias  do  mes  dabijll  elRei  o  mandou  per  Aires 
da  Syllua  do  seu  conselho  e  Regedor  da  justiça  em  sua  corte  e  casa  da  sob- 
uricaçam  —  Goniez  Anues  a  fez  anno  de  mjll  quinhentos  e  oyto  armos.» 


i 


LTV. —  Gomes  (Diogo). —  Pintor,  residente  em  Cintra.  Em  caria  de  ^  de 
junho  de  1513  D.  Manuel  lhe  fez  mercê  da  tença  annual  de  4:000  reaes,  em- 
quanto  vivesse  e  estivesse  de  assento  n'aquella  villa,  sendo  obrigado  a  fazer 
qualquer  reparo  em  obra  do  seu  ofllcio  nos  paços  reaes.  Se,  porém,  a  obra  ex- 
cedesse mais  de  um  dia,  ser-lhe-hia  pago  o  seu  jornal. 

«Dom  Manuell  etc.  Aquamtos  esta  nosa  carta  virem  fazemos  saber  que 
queremdo  nos  fazer  graça  e  merçe  a  Dioguo  Guomez  pimtor  morador  em  Sym- 
tra  temos  por  bem  e  nos  praz  que  des  primeiro  dia  de  janeiro  que  pasou  da 
era  presemte  de  quinhemtos  e  treze  em  diamte  elle  tenha  e  aja  de  nos  de 
temça  em  cada  huu  auno  quatro  mjll  reaes  em  quamto  viuer  e  estever  dasemto 
na  dita  vila  o  quall  será  obrigado  a  fazer  e  correger  nos  paços  dela  quallquer 
cousa  que  for  necesaria  de  seu  oficio  que  nõ  seya  de  calidade  que  gaste  hum 
dia  jmteiro  por  que  serndo  pagarlheam  seu  jornall  e  nom  o  semdo  nom  lhe 
pagaram  nada  o  qual  lhe  será  paguo  pello  almoxarife  do  dinheiro  que  for  or- 
denado pêra  as  obras  dos  ditos  paços  e  nos  conhecimentos  que  der  desta  temça 
dará  fé  o  scprivam  do  almoxarifado  e  obras  como  elle  serue  de  comtino  na 
dita  vila  e  que  cumpre  a  obrygaçam  deste  comtracto  e  porem  mamdamos  ao 
dito  almoxarife  que  pela  dita  guisa  lhe  dee  e  pague  cada  anuo  os  ditos  dinhei- 
ros do  dito  janeiro  em  diarnte  per  esta  soo  carta  sem  mais  tirar  outra  de  nosa 
fazenda  e  per  o  trelado  dela  que  se  asemtara  no  liuro  do  dito  almoxarifado 
com  seu  conheçimemto  mamdamos  aos  nosos  comtadores  que  lhos  levem  em 
conta  e  asy  mamdamos  aos  veadores  de  nosa  fazenda  que  lhe  façam  asemtar 
os  ditos  dinheiros  em  os  nosos  livros  dela  e  pêra  se  saber  como  sam  despe^ 
sos  no  dito  almoxarifado  e  por  firmeza  dello  lhe  mamdamos  dar  esta  carta  asy- 
nada  per  nos  e  aselada  do  noso  selo  pemdemte.  Dada  em  Lixboa  ao  primeiro 
dia  de  junho  —  Jorge  Fernandez  o  fez  de  j  bc  xiij.»s 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.°  5,  fl.  8  v. 

2  Idem.  Idem.  Is  «,  fl.  45. 

Março,  1903.  11 


82  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


LV.  —  Gomes  (Fernão).— Taborda  trata  de  dois  pintores  com  este  mesmo 
nome,  sendo  o  mais  antigo  do  tempo  de  D.  Manuel,  que  o  mandara  estudar  a 
Itália  juntamente  com  outros  seus  compatriotas.  Alli  foi  discípulo  de  Miguel 
Angelo.  Taborda  não  authentiea  a  sua  noticia  com  nenhuma  auctoridade  ou  do- 
cumento, e  é  muito  provável  que  se  equivocasse,  duplicando  o  mesmo  individuo. 

Do  artista  contemporâneo  de  D.  Manuel  não  encontrei  diploma  ou  infor- 
mação, e  por  isso  me  limitarei  a  tratar  do  segundo,  cuja  existência  é  positiva 
no  ultimo  quartel  do  século  xvi  e  no  primeiro  do  século  xvii. 

Em  carta  de  13  de  maio  de  1594  o  nomeou  el  rei  D.  Filippe  I  seu  pin- 
tor, em  logar  de  Cbristovão  Lopes,  por  cujo  fallecimento  o  cargo  vagara. 

Em  16  de  agosto  de  1601  a  Meza  da  Consciência  consultou  favoravel- 
mente uma  petição  de  Fernão  Gomes,  em  que  requeria  para  ser  pintor  dos 
Mestrados,  para  o  qual  officio  (modéstia  á  parte)  se  considerava  elle  próprio 
o  mais  idóneo. 

Cyrillo  Volkmar  Machado  trata  d'elle  também  nas  suas  Memorias  (pag. 
68  e  69),  e  diz  que  elle  em  1602  fazia  parte  da  Meza  da  confraria  de  S.  Lu- 
cas. Baseado  por  certo  em  Félix  da  Costa,  dáo  como  discípulo  de  Blockland, 
flamengo,  e  enumera  diversos  quadros  por  elle  pintados. 

Se  Fernão  Gomes  foi  discípulo  de  Blockland,  assim  chamado,  pois  o  seu 
nome  era  Pieter  Montfort,  devia  ter  ido  estudar  a  qualquer  centro  artístico  da 
Hollanda,  pois  não  consta  que  o  pintor  hollandez  viesse  a  Portugal. 

«Dom  Felipe  etc.  Aos  que  esta  minha  carta  virem  faço  saber  que  eu  ey 
por  bem  e  me  praz  de  fazer  merçe  a  Fernão  Gomez  do  officio  de  meu  pintor, 
assi  e  da  maneira  que  o  tinha  Xpouão  Lopez,  per  cujo  falecimento  vagou,  avemdo 
respeito  a  informaçam  que  delle  se  ouue,  e  que  tenha  e  aja  de  mym  em  cada 
hum  anno  com  o  dito  officio  cinq0  mil  rs  em  dinheiro  e  hum  moio  de  triguo, 
que  he  outro  tanto  como  com  elle  tinha  o  dito  Xpouão  Lopez  e  Gregório  Lo- 
pez, seu  pai,  que  o  também  seruio  como  se  uio  pello  treslado  da  carta  que  o 
dito  Xpouão  Lopez  tinha  tirado  da  Torre  do  Tombo,  E  mando  a  Gonçalo  Pi- 
rez  Carualho,  fidalgo  de  minha  casa,  prouedor  de  minhas  obras  e  paços,  que 
lhe  dee  a  posse  do  dito  officio  e  daqui  em  diante  lho  deixe  seruir  e  aver  o  dito 
triguo  e  dinheiro,  e  dom  Duarte  de  Castel  Branco,  cõde  meirinho  mor  destes 
Beinos  e  hum  dos  gouernadores  nelles,  do  meu  cõselho  de  estado  e  vedor  de 
minha  fazemda,  que  lhe  faça  asêtar  no  Liuro  delia  os  ditos  cinq0  mil  rs  em 
dinheiro  e  o  dito  moio  de  triguo,  e  do  dia  que  lhe  for  dada  a  dita  posse  em 
diante  leuar  cada  anno  nas  folhas  do  asêtamento,  em  parte  omde  lhe  seja  tudo 
bem  paguo,  e  com  certidão  do  dito  Gonçalo  Pirez  Carualho  de  como  o  dito 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  83 

Fernão  Goraez  serue  e  cumpre  o  dilo  officio  e  cumpre  com  as  obrigações  delle, 
e  por  firmeza  de  todo  llie  mandei  dar  esla  per  mym  asinada  e  asellada  com  o 
meu  sello  pêdente.  Dada  em  Lixboa  a  xiij  de  maio  —  Francisco  Moutinho  a  fez 
—  anno  do  nasimento  de  nosso  Senhor  Iliesu  Xf>o  de  mil  quinhêtos  nouêta  e  qua- 
tro, o  qual  officio  o  dito  Fernão  Gomez  seruirá  e  quanto  eu  ouuer  por  bem  e 
não  mandar  o  contraíra  e  com  declaraçam  que  tirandulho  ou  extimguindosse 
per  qual  quer  causa  que  seja  minha  fazenda  lhe  não  fique  por  isso  obrigada 
a  satisfação  algua.  Sebastião  Perestrello  a  fiz  escreuer.» l 

«Fernão  Gomes,  pintor  de  óleo,  fes  petição  nesta  Mesa,  disendo  que  V. 
Magestade  lhe  fisera  mercê  do  officio  de  seu  pintor,  auendo  respeito  a  infor- 
mação que  delle  ouue,  com  o  qual  uense  ordenado  como  uenserão  seus  ante- 
sesores,  e  porque  nas  igrejas  e  conuentos  dos  mestrados  ha  muitas  obras  or- 
dinariamente pêra  se  faser  de  pintura.  Pede  a  V.  Magestade  que  auendo  res- 
peito ao  que  alega  e  a  ser  mais  idonio  e  suficiente  do  reino  nn  officio  de  pin- 
tor lhe  faça  mercê  do  dito  cargo  de  pintor  das  obras  dos  ditos  mestrados  por 
asy  ser  proueito  das  ditas  obras  e  da  fazenda  de  V.  Mag.de 

«Pareceo  uista  a  informação  que  se  ouue  do  supplicante  V.  Mag.de  deue  ser 
seruido  de  lhe  fazer  mercê  do  officio  de  pintor  das  obras  dos  mestrados,  em 
Lixboa  a  16  dagosto  de  IG01.»2 


LVI. —  Gomes  (Francisco).— Sogro  de  Silva  Rabello  (Manuel  de).  Veja-se 
este  nome. 


LV1I.  —  Gonçalves  (Affonso). —  Foi  um  dos  companheiros  do  Infante  D. 
Pedro  na  desastrada  batalha  de  Alfarrobeira.  Por  este  motivo  cahiu  no  des- 
agrado e  desgraça  d'el-rei,  que  o  privou,  assim  como  aos  demais  que  lhe  segui- 
ram o  exemplo,  de  todos  os  seus  bens  e  direitos.  D.  Affonso  V  lhe  perdoou, 
porém,  a  pedido  do  Dr.  Lopo  Gonçalves,  do  desembargo  do  paço,  e  lhe  pas- 
sou carta  de  restituição  a  13  de  agosto  de  1451.  N'esta  carta  é  designado 
como  pintor,  com  residência  em  Montemór-o-Velho. 

«Dom  Afomso  etc.  A  quamtos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  Afomso 
Gllz,  pimtor,  morador  em  Momlcmoor  o  Velho,  nos  enuyou  dizer  que  elle  fora 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Filippe  I.  Doações.  L.°  32,  fl.  127  v. 

2  Idem.  Registo  de  Consultas  da  Alesa  da  Consciência  e  Ordens.  1598-1603.  Consulta  120, 
fl.  120. 


84  NOTÍCIA  DE  ALGUNS  PINTOnER 

na  batalha  da  Alforroubeira  comtra  nossa  perssoa  e  reall  estado,  por  a  quall 
razom  aalem  da  pena  corporal!,  a  que  era  theudo  e  os  que  deli  decemdessem, 
fiquauom  êfames  e  inabelles  a  auerem  os  ofícios  assy  pubricos  como  priuados 
e  ssoçederem  ex  testamento  eabintestado  a  sseus  paremtes  e  aos  estranhos  que 
lho  leixar  quissessem  e  aimda  emcorriam  em  certas  penas  que  erom  comlheu- 
das  em  huuas  nossas  cartas  patemtes  que  devulgamos  per  todos  nossos  Re- 
gnos,  em  que  todos  aquelles  que  forom  em  a  dita  batalha  nom  ouuessem  em 
nossos  Regnos  e  senhorios  nenhQus  ofícios,  homrras,  perrogatiuas,  isemçõoes, 
priuilegios,  liberdades  e  framquezas,  e  fossem  ifamados  e  priuados  de  toda 
ssocessom  e  devassados  aos  emcarregos  do  comcelho  e  lhes  façom  pagar 
peita,  flmta,  talha,  pidido,  enprestido,  jugada,  quarto,  quinto  ou  auo  (deve  ser 
oitavo)  eiradega,  alugueiro,  portagees,  passagees,  e  dizemas  assy  velhas  como 
nouas  e  outras  quaaes  quer  trabutos  de  que  erã  releuados,  segundo  que  todo 
esto  e  outras  cousas  mais  compridamente  em  as  ditas  cartas  he  coulheudo. 
Pidimdonos  por  merçee  que  lhe  perdoássemos  a  pena  corporall,  a  que  nos  era 
theudo  e  o  tornássemos  a  toda  ssua  booa  fama  e  ouuessemos  com  elle  com- 
paixom  que  pois  era  nosso  naturall,  tynha  vomtade  de  nos  seruir  bem,  fiell  e 
lealmente  como  boo  vassallo,  e  nos  veendo  o  que  nos  assy  dizia  e  pidia,  hus- 
sando  com  ell  de  clememçia  mais  que  de  justiça,  queremdolhe  fazer  graça  e 
merçee  pollo  do  doutor  Lopo  Gllz  do  nosso  dessembargo  e  juiz  de  nossos  fe- 
tos, que  nollo  por  ell  pidio,  lhe  perdoamos  a  pena  corporall,  a  que  era  theudo 
por  o  crime  que  assy  grauemente  comtra  nos  cometeo,  e  auemos  ell  e  todos 
os  que  delle  deçemderem  por  releuados  de  toda  a  ifamea  assy  de  feito  como 
de  direito  em  que  emcorressem  e  os  tornamos  a  toda  ssua  boa  lama  e  a  toda 
ssua  homrra  priuilegios  e  liberdades  que  elle  e  os  que  delle  deçemderem  e 
aviaa  e  aviaam  per  direito  como  sse  elle  em  a  dita  batalha  nom  fora.  E  po- 
rem nos  praz  que  ell  e  os  que  delle  desçemderem  ajam  e  possam  auer  em  nos- 
sos Regnos  e  senhorio  todollos  oGçios  assy  pubricos  como  priuados  e  possam 
seer  recebidos  em  juizo  e  fora  delle  per  sy  e  per  outrem  em  sseu  nome  e  em 
nome  doutrem,  e  que  outrosy  daquy  em  diamte  elle  e  os  que  delle  deçemde- 
rem possam  soceder  eix  testamento  e  condicilho  ou  per  outro  quall  quer  moodo 
de  hullima  vomtade  a  quem  quer  que  lho  leixar  e  que  também  posa  soceder 
abimtestados  aaquelas  pessoas  que  per  direito  como  per  hordenaçõoes  de  nos- 
sos Regnos  sobceder  devuyam  se  em  a  dita  batalha  contra  nos  nom  fora  e  o 
abilitamos  que  ell  e  os  que  dei  deçemderem  ssejam  capazes  de  todalas  hou- 
rras,  priuilegios  e  liberdades  que  per  nos  ou  per  nossos  soçessores  lhe  forem 
daqui  em  diante  feitas  e  dadas.  E  porem  mamdamos  a  todollos  nosos  corege- 
dores,  juizes,  justiças  de  nossos  Regnos  e  a  quaaes  quer  outras  pessoas  del- 
les  de  quallquer  estado  e  condiçom  que  ssejam,  a  que  esta  nossa  carta  for 
mostrada,  que  a  compram  e  guardem  e  façom  bem  conprir  e  guardar  como 


NOTICIA  DIÍ  ALOUNS  MNTOftES 


85 


em  ella  he  comthudo  nom  enbargante  qnaees  querlex,  custumes,  hordenaçooes, 
direitos  canónicos  e  ciuees  que  em  contrairo  desto  ssejam,  por  quanto  assy  lie 
nossa  mercee,  sem  outro  enbarguo  alguu  que  lhe  sobrelo  sseja  posto.  Dada 
em  Lixboa  xiij  dias  dagosto  —  Pêro  Gllz  a  fez  — anno  de  nosso  Senhor  de  mil 


iiijc 


LVHI. —  Gonçalves  (André). —  Viveu  nos  reinados  de  D.  Manuel  e  de  D. 
João  III.  Não  conheço  registo  de  nenhum  documento  official  que  lhe  diga  res- 
peito, mas  existe  uma  carta  de  Bartholomeu  de  Paiva,  amo  de  D.  João  III,  di^ 
rigida  a  Affonso  Monteiro,  almoxarife  das  obras  da  casa  da  índia,  em  que  se 
lhe  faz  uma  curiosa  referencia.  Trabalhou  elle  nas  mesmas  tercenas,  com  Gar- 
cia Fernandes,  Chrislovão  de  Figueiredo  e  Gregório  Lopes,  que  estavam  en- 
carregados das  obras  para  a  Relação,  e  com  os  quaes  tivera  certas  differenças. 
André  Gunçalves  estava  pintando  o  retábulo  da  egreja  de  S.  Gião  ou  Julião. 
Bartholomeu  de  Paiva,  a  fim  de  evitar  questões,  deu  ordem  para  que  elle  fosse 
trabalhar  para  outras  tercenas.  A  carta  de  Bartholomeu  de  Paiva  não  tem  data, 
mas  a  circumstancia  de  se  não  mencionar,  entre  os  pintores  da  Relação,  a 
Francisco  Henriques,  mostra  que  o  caso  se  passou  depois  da  morte  d'este. 

Taborda,  transcrevendo  em  parte  este  documento,  faz  as  seguintes  consi- 
derações, a  pag.  157: 

«Aindaque  n'este  documento  não  se  especifique  a  data,  comtudo  sabe- 
mos que  todos  estes  pintores  florecerão  nos  reinados  dos  Senhores  reis  D.  Ma- 
nuel e  D.  João  III,  pois  que  sendo  assignado  por  Bartholomeu  de  Paiva,  Vedor 
das  obras  na  índia,  este  mesmo  figura  a  18  de  agosto  de  1512,  e  30  do  mesmo 
mez  de  1535,  em  cujas  epochas  recahe  o  governo  d'aquelles  dous  soberanos: 
vindo  também  a  aclarar-se  o  terem  passado  áquelles  Estados,  onde  havião  de 
pintar  segundo  as  instrucções,  que  se  lhe  dessem.  Consta  do  Corpo  Chronolo- 
gico.  Parte  n,  maço  3."  (aliás  33).  Documento  203,  e  maço  203,  Documento 
65,  no  Real  Archivo.» 

Ha  aqui  mais  de  um  lapso,  que  convém  não  deixar  passar  em  julgado  sem 
o  indispensável  conectivo.  Nem  Bartholomeu  de  Paiva  era  vedor  das  obras  da 
índia,  nem  tampouco  se  deduz  dos  documentos  que  os  referidos  pintores  ha- 
viam ido  ao  Oriente.  Além  da  carta  de  Bartholomeu  de  Paiva  dou  os  dois  do- 
cumentos do  Corpo  Chroiiologico,  a  que  se  refere  Taborda,  e  pelos  quaes  se 
verá  que  as  suas  asserções  são  menos  exactas. 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Aflonso  V.  L.°  11,  fl.  líl. 


86  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Houve  outro  André  Gonçalves,  que  floresceu  no  século  xvm,  e  que  foi  ura 
dos  mais  fecundos  do  seu  tempo. 

«Senhor  amigo/hoje  que  sãao  xiij  dias  de  novembro  me  deu  voso  sobry- 
nho  hQua  carta/e  quanta  ao  que  me  escrevees  acerqua  do  djspejar  desas  ca- 
sas ja  vos  Ha  tenho  mandado  huua  carta  pêra  o  feitor  que  as  mande  despe- 
jar ho  mais  prestes  que  poder  ser  pêra  terdes  tempo  de  as  mandar  aljmpar  e 
concertar/e  quanto  as  outras  cousas  que  pertencem  a  hesas  honras  eu  lhe  tenho 
esprito  largamente  rreposta  de  tudo  ho  que  he  necesario/It.  hesses  pintores  que 
hãao  de  pintar  ha  hobra  darrolaçam  tem  lia  hQua  pouca  de  deferença  sobre  a 
dita  pintura  a  saber  Handre  Gonsaluez  cõ  Gregório  Lopez  e  Fjguejredo  e  Gra- 
cja  Fernam  e  porque  sua  allteza  tem  ja  detremjnado  ho  que  sobre  yso  hãao  de 
fazer  ha  quall  he  que  lio  Handre  Gonsaluez  pjnte  na  hobra  de  Sãao  Gjhãao  e 
os  outros  três  na  hobra  darrolaçam/e  por  quem  diserão  a  sua  allteza  que  as 
ditas  hobras  estavam  todas  juntas  em  huua  das  terrcenas  manda  sua  allteza 
que  façaes  mudar  ho  dito  Handre  Gonsaluez  cõ  Retauollo  de  Sãao  Gihãao  a  ou- 
tra terrcena  honde  laura  o  carpenteiro  os  paynes  e  darres  ao  dito  Handre  Gon- 
saluez ha  mjlhor  parte  e  honde  elle  mais  follgar  e  os  três  darrolaçam  fjcaram 
cõ  seus  paynes  honde  agora  estãao/e  ysto  farres  muito  mansamente  e  sem  es- 
tar dello  djzendo  que  sua  allteza  ho  manda  asy  pêra  que  nam  façam  lorvaçara 
huus  aos  outros  encomendome  muitas  vezes  em  vosa  mercê  e  dAluaro  Vjejra 
a  xiij  de  novembro  Bertolameu  de  Payua  ho  amo. 

«Ao  Senhor  Affonso  Monteiro  allmoxarjfe  das  hobras  da  casa  da  Hyndea.»  * 

«Dom  Manuell  per  Graça  de  Deus  Rey  de  Purtugall  e  dos  Algaruues  da- 
quera  e  dalém  mar  em  Africa  Senhor  cie  Guine  etc.  Mandamos  a  vos  Diogo 
Fernandez  Cabrall  que  des  a  Bertolameu  de  Paiua  amo  do  prjmçepe  meu  sso- 
bre  todos  muyto  amado  e  prezado  filho  e  seu  garda  rroupa  trimta  mill  reaes 
que  lhe  mamdamos  dar  e  o  anno  pasado  de  bc  xj  de  nos  hadaver  de  sua  temça 
com  o  avito  e  vos  fazelhe  delles  bom  pagamento  e  por  esta  com  seu  conheci- 
mento mandamos  que  vos  sejam  leuados  em  corata.  Dada  em  Lixboa  a  xbiij0 
dagosto  elRey  o  mandou  per  Dom  Pêro  de  Castro  do  seu  comselho  e  Recebe- 
dor de  sua  fazemda  de  bc  xij  anos  -  Dom  Pêro  de  Castro. 

«xxx  reaes  a  Bertolameu  de  Paiua  amoo  do  prjmçepee  de  sua  temça  deste 
anno  pasado  de  bc  xj  com  o  avito  em  Diogo  Fernandez. 

«Conheçeo  Receber  e  recebeo  o  amo  do  prinçepe  noso  Senhor  de  Diogo 
Fernandez  Cabrall  os  trimta  mill  reaes  neste  mandado  conteúdos  e  por  ver- 


i  Torre  do  Tombo.  Gaveta  20,  maço  13,  n.»  73. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


87 


dade  fiz  eu  Affonso  Mexia  este  no  qual  elle  asynou  feito  em  Lixboa  a  bj  dou- 
tubro  de  1512  —  Bertolameu  de  payua  o  amo  — Affonso  Mexia.» ' 

«Dom  Joham  per  graça  de  Deus  Rey  de  Portuguall  e  dos  Ailguarues  da- 
quem  e  dalém  maar  em  a  Affrica  Senhor  de  Guine  etc.  Mamdo  a  vos  Manuell  Ve- 
lho lhesoureiro  do  tesouro  de  minha  casa  que  deis  a  Bertolameu  de  Paiva  meu 
guarda  rroupa  três  mill  reaes  que  lhe  mando  daar  e  este  ano  piesemte  de  bc 
xxxb  de  mim  hadaver  de  sua  vistiaria  hordenada  e  per  este  com  seu  conheci- 
mento vos  serão  leuados  em  comta  elIRey  o  mandou  per  dom  Rodrigo  Lobo 
do  seu  conselho  e  veador  de  sua  ffazemda  —  Dioguo  doliueira  o  ffez  em  Euora 
a  xxx  dias  dagoslo  de  mill  bc  xxxb  =  Dom  Rodrigo  Lobo. 

«iij  reaes  no  tesouro  a  Bertolameu  de  Paiua  guarda  rroupa  de  sua  vistia- 
ria hordenada  deste  ano  de  xxxb  per  Joam  de  Castilho. 

«Recebeo  Bertolameu  de  Paiua  amo  e  camareiro  dei  Rey  Noso  Senhor  do 
thesoureiro  Manoell  Velho  estes  três  mill  reaes  conteúdos  neste  mandado  e  asy 
nou  comigo  em  Euora  a  ij  de  setembro  de  1533  —  Damiam  Diaz  =  ho  amo.»2 


LIX.  —  Gonçalves  (João).  l.°  — Leonor  Fernandes,  rica  proprietária  em 
Lisboa,  filha  de  Fernão  Rodrigues,  que  foi  do  desembargo  d'el-rei  e  viuva  de 
Lourenço  Annes,  cidadão  da  mesma  cidade,  moradora  na  rua  nova,  fez  testa- 
mento, que  foi  celebrado  em  sua  casa  pelo  tabellião  Fernão  Martins,  vassallo 
d'el  rei,  a  17  de  dezembro  de  1465,  no  qual  foram  testemunhas  Pêro  Gonçal- 
ves, João  Gonçalves,  Fernão  Rodrigues,  André  Affonso,  Pêro  Vasques  do  Ave- 
lar e  Pêro  Vasques  tabaliães  do  paço,  Martim  da  Maia  procurador  d'el-rei  e 
João  GonçalveSj  pintor,  todos  moradores  em  Lisboa. 3 

Eis  a  única  noticia  que  pude  obter  de  João  Gonçalves. 


LX. —  Gonçalves  (João).  2.°  —  Por  uma  carta  de  privilegio,  passada  por 
D.  João  II,  em  23  de  setembro  de  1492,  sabe-se  apenas  que  elle  era  pintor 
e  residente  em  Lisboa,  não  tendo  chegado  ao  meu  conhecimento  mais  nenhum 
outro  documento  ou  noticia  que  lhe  diga  respeito.  Entre  a  data  d'esta  carta  e 
o  testamento  de  Leonor  Fernandes  vae  a  distancia  de  27  annos,  e,  embora 
esta  differença  não  seja  extraordinária,  não  me  atrevo  a  identificar  o  privile- 
giado de  D.  João  II  com  o  seu  homonymo,  citado  no  artigo  anterior. 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  u,  maço  33,  doe.  203. 

2  Idem.  Idem.  Parte  n,  maço  203,  doe.  63. 

3  Idem.  Cartório  de  S.  Domingos  de  Lisboa.  L.°  24,  fl.  1. 


88  NOTICIA  Dg  AlGUNS  PINTOUES 

«Dom  Joham  etc.  A  quamtos  esta  nosa  carta  virem  fazemos  saber  que  que- 
remdo  nos  fazer  graça  e  merçee  a  Joham  Gllz,  pimtor,  morador  nesta  cidade, 
lemos  por  bem,  queremos  e  nos  praz  que  elle  seja  priuylegiado. . .  Dada  em  a 
nosa  cidade  de  Lixboa  a  xxiij  dias  do  mes  de  setêbro  —  Antam  Luis  a  fez  — 
anno  do  nasçimêlo  de  nosso  Senhor  Ihesu  X-°  de  mill  e  iiijc  IRij  ânuos.  E  ave- 
mos  por  bem  que  o  dito  Joham  Gllz  P.t0  (Preto  ?)  pimtor  seja  escusso  ê  lodol- 
los  pididos  que  por  nos  forem  llamçados. » l 


LXL—  Gonçalves  (Nuno). —  Nuno  Gonçalves  é  dos  raros  artistas  portu- 
guezes  que  cita  Francisco  de  Hollanda  e  cujo  merocimento  encarece,  elogiando 
muito  a  pintura  do  altar  de  S.  Vicente  na  Sé  de  Lisboa  e  um  quadro  na  egreja 
da  Trindade.  Diz  que  florescera  no  reinado  de  D.  Aflonso.  Taborda,  mui  judi- 
ciosamente, é  de  parecer  que  este  Aflbnso  não  podia  ser  outro  senão  o  quinto  do 
seu  nome.  O  visconde  de  Juromenha,  n'um  appendice  á  carta  decima  da  obra  de 
Rackzynski,  Lcs  arts  en  Portugal,  combate  esta  opinião,  julgando  que  a  phrase 
rudeza  dos  tempos  se  deveria  mais  propriamente  attribuir  a  D.  Aflbnso  IV.  Os 
argumentos  da  sua  bypolbese  nada  teem  de  convincentes  e  caem  por  terra 
deante  da  evidencia  dos  factos.  Os  documentos,  que  em  seguida  produzo,  e  que 
não  foram  conhecidos  de  Taborda,  não  fazem  senão  confirmar  a  sua  opinião. 

O  primeiro,  de  20  de  julho  de  1450,  é  uma  carta  de  D.  Aflbnso  V,  fi- 
Ihando-o  por  seu  pintor,  com  o  ordenado  de  12:000  reaes  brancos. 

O  segundo  é  outra  carta  do  mesmo  monarcha,  de  6  de  abri  Ide  1452, 
accrescentando  mais  3:432  reaes  brancos  no  seu  mantimento  ou  ordenado, 
mandando-lhe  dar  além  d'isso,  lodos  os  annos,  uma  peça  de  panno  (bristol) 
para  sua  vestimenta. 

No  Livro  vermelho,  collecção  de  leis  de  D.  Aflbnso  V,  acha-se  o  regimento 
real  que  regula  as  despezas  da  camará  de  Lisboa,  e  n'elle  uma  passagem  que 
claramente  demonstra  que  Nuno  Gonçalves  era  contemporâneo  de  João  Annes, 
de  cuja  existência,  no  reinado  d'aquelle  monarcha,  ha  a  comprovada  certeza. 
Demais  a  mais  o  documento  tem  a  data  de  12  de  abril  de  1471.  Eis  a  passa- 
gem que  nos  interessa: 

«Item.  Queremos  e  mandamos  iso  mesmo  que  Joane  Anes  Pintor  nom  aja 
mais  daquy  em  diante  mantimento  allguum,  salvo  Nuno  Gonçalves  averá  o  que 
lhe  he  ordenado,  e  pimte  por  ele  as  obras  da  Cidade.»2 


» Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  João  U.  L.°  7,  fl.  107. 

2  Collecção  de  livros  inéditos  da  historia  portugueia,  publicada  pela  Academia  fteal  das 
Sciencias,  tomo  m,  pag.  424. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PLNTORES  89 

«Dom  Afomso  etc.  A  quantos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  dos  que- 
rendo fazer  graça  e  mercee  a  Nuno  Gllz,  teemos  por  bem  e  filhamollo  ora  no- 
uamente  por  nosso  pintor  e  queremos  que  aja  de  nos  de  mantymento  eo  cada 
hQu  aDoo  des  primeiro  dia  de  janeiro  que  ora  foy  desta  presente  era  en  diante 
doze  mil  reaes  brancos  em  quanto  nossa  mercee  for  a  rrazom  de  mill  reaes 
cada  mes,  os  quaaes  dinheiros  lhe  serom  pagos  eD  cada  huu  ano  em  lugar 
honde  delles  aja  bõo  pagamento  aos  quartees  do  ano  per  nossa  carta  que  lhe 
eu  cada  huu  ano  será  dada  em  a  nossa  fazenda.  E  por  ssua  guarda  e  rrenen- 
brança  dei  lo  lhe  mãdamos  dar  esta  carta  synada  per  nos  e  asseellada  do  nosso 
seello  pendente.  Dada  em  Lixbõa  xx  dias  de  julho  — G.°  Eanes  a  fez  — ano  de 
nosso  Senhor  Ihesu  Xpo  de  mill  iiiic  1.» * 

«Dom  Afomso  etc.  A  quantos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos  que- 
reodo  fazer  graça  e  mercê  a  Nuno  Goncaluez,  nosso  piutor,  teemos  por  bem  e 
queremos  que  aja  de  dos,  en  cada  huu  ano,  pêra  ajuda  de  seu  mantimeDto 
des  primeiro  dia  de  janeiro  que  ora  foy  desta  presente  era  de  iiijc  lij  en  diante, 
emquaDto  uossa  mercee  for,  três  mil  quatro  ceDtos  trinta  e  dous  reaes  brau- 
cos,  aalem  dos  doze  mill  rs  que  lhe  ja  lynhamos  assentados  pêra  o  dito  seu 
mantymenlo,  os  quaees  lhe  serom  todos  pagos  en  cada  huu  ano  do  nosso  al- 
mazem  da  cidade  de  Lixbõa,  aos  quartees  per  carta  que  lhe  en  cada  hQu  ano 
será  dada  en  a  nossa  fazenda.  Outro  si  nos  praz  que  aja  en  cada  huu  ano  na 
nossa  alfandega  da  dita  cidade  des  o  dito  primeiro  dia  de  jaoeiro  que  ora  foy 
en  diante  húua  peça  de  pano  de  Bristoll  pêra  sseu  vestir,  per  carta  que  lhe 
isso  meesmo  será  dada  eu  a  dita  fazenda  en  cada  huu  ano  per  a  dita  guissa. 
E  por  sua  guarda  e  rreneubrança  dello  lhe  mandamos  dar  esta  carta  asynada 
per  nos  e  asseellada  do  nosso  seello  pendente.  Dada  en  Euora  bj  dias  dabrill 
G.°  de  Lixbõa  a  fez  ano  de  nosso  Snr  Ihesõ  Xpo  de  mill  iiijc  lij.» 2 


LXIL—  Guarienti  (Pietro).— Pintor  italiano.  Veiu  a  Lisboa  pelos  anãos  de 
173o.  Aqui  se  empregou  na  limpeza  e  restauração  de  quadros,  estudando  e 
analysando  as  galerias  então  existentes,  que  eram  numerosas  e  algumas  del- 
ias de  grande  valia.  Estou,  porém,  persuadido  de  que  elle  procuraria  lisonjear 
a  vaidade  dos  seus  possuidores,  revelando-lhes  a  existência  de  obras-primas 
de  grandes  mestres,  que,  porveDtura,  só  existiriam  na  sua  imagioação.  Gua- 
rienti  publicou  uma  nova  edição  do  Abecedario  Pittorico,  á  qual  ajuntou  as  im- 
pressões pessoaes,  colhidas  nas  suas  viagens  pela  Europa.  As  noticias  que  ahi 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.°  34,  11.  115  v. 
*  Idem.  Idem.  L.°  12,  fl.  49  v. 

MAByo,  1903.  12 


90  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

nos  dá  a  respeito  do  nosso  paiz,  qualquer  que  seja  o  coeficiente  de  correcção 
que  se  lhes  applique,  são  muito  interessantes  e  mostram  a  riqueza  de  Portu- 
gal, ou  antes  da  nossa  corte,  n'este  género  de  arte.  Cyrillo  dedica-lhe  um  ar- 
tigo nas  suas  Memorias,  e  Rackzynski  também  se  occupa  d'elle  extensamente 
nas  suas  Lettres  sur  les  arts.  Nenhum  delles,  porém,  viu  uma  noticia  contem- 
porânea, que  sahiu  na  Gazela  de  Lisboa  de  17  de  fevereiro  de  1735,  em  que 
se  especificam  alguns  quadros,  que  elle  já  tinha  restaurado,  e  se  faz  menção 
de  outros  não  conhecidos.  Passo  a  transcrever  o  alludido  trecho  da  Gazeta: 

«Pedro  Guarienti,  de  naçam  Veneziano,  Pintor  e  Antiquário  do  Príncipe 
de  Darmstai  Governador  de  Mantua,  que  actualmente  se  acha  nesta  Corte,  e 
tem  trabalhado  nas  de  Londres,  Yienna,  Parma,  Modena  e  Milan,  e  adquirido 
bom  nome,  não  só  pintando,  mas  lavando  e  retocando,  sem  que  se  perceba 
outra  mão,  as  pinturas  principaes  dos  Príncipes  e  pessoas  curiosas  das  dilas 
Cortes,  especialmente  dos  Sereníssimos  Duques  de  Parma  e  Mantua  e  do  Prin- 
cepe  Eugénio  de  Saboya,  tem  também  lavado,  conservado  e  dado  a  conhecer 
muitos  e  excellentes  quadros  dos  principaes  Senhores  de  Portugal  e  ultima- 
mente restaurou  os  da  Santa  Casa  da  Misericórdia  especialmente  o  famoso  Re- 
tabolo  da  capella  da  insigne  Bemfeitora  daquella  Casa  Dona  Simoa  Godinho,  e 
ali  tem  achado  admiráveis  originaes  de  Pintores  Portuguezes  do  glorioso  sé- 
culo dei  Rei  D.  Manuel  e  de  elRei  D.  João  III,  nos  quaes  floreceram  na  arte 
da  pintura  Gaspar  Dias,  Christovam  Lopes,  Braz  de  Prado  e  também  Fernando 
Gallegos,  insigne  pintor  hespanhol,  de  que  na  Misericórdia  ha  talvez  tantos  ori- 
ginaes como  no  Escurial.» ' 

O  meu  amigo  Francisco  Ribeiro  da  Cunha  possue  um  inventario,  redigido 
por  Guarienti,  da  galeria  do  conde  da  Atalaya.  Não  é  o  manuscripto  original, 
mas  sim  uma  copia,  executada  com  certo  primor  calligraphico  nos  princípios 
do  século  passado.  Apesar  de  não  ser  autographo,  não  me  parece  que  seja 
uma  pia  fraude.  Com  a  devida  auctorisação  d'aquelle  meu  amigo,  tirei  uma 
copia,  que  se  reproduz  em  seguida: 

«Inuentario  das  pinturas  do  ill.  e  ex.  S.  D.  Ioaõ  Manoel  de  Noronha,  conde 
da  Atalaia,  do  cone.  de  guera  do  s.  Rei  D.  Ioaõ  V,  q  D.s  Gd.%  general  das  ar- 
mas da  prouc.  do  Alintejo. 

«Feito  e  asignado  por  mim. 

«Pedro  Guarente,  pintor  ueneziano  e  antioquario  do  Ex.  s.  Príncipe  Dar- 
mestat. 


1  Gazeta  de  Lisboa,  de  17  de  fevereiro  de  1735.  N.°  7,  pag.  84. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  91 

«As  pinturas  nesta  atestação  declaradas  foram  medidas  com  a  comua  me- 
dida de  pé  francês. 

«Oito  painéis  grandes,  orginais  de  pintor  castelhano  e  me  parecem  de  Alonço 
Cano,  pintados  en  pano,  q  representão  os  doze  Apostollos  e  os  quatro  Euangel- 
listas,  dous  por  cada  painel,  e  tem  de  altura  oito  pés  e  de  largura  sinco,  e  três 
onças  cada  bum. 

«Nove  painéis  grandes,  originais  de  João  de  Lacorte,  pintor  de  El  Rey  Fe- 
lipe 3.°  de  Castella,  pintados  em  pano,  e  representão  nove  empresas  de  Car- 
los 5.°  de  suas  vitorias,  e  acções,  e  tem  de  altura  quatro  pés,  e  nove  onças, 
e  de  largura  oito  e  meyo,  cada  hum. 

«Oito  painéis  grandes,  originais  de  António  Tempesta,  pintor  florentino, 
pintados  em  pano,  e  representão  diversas  caçadas  e  montarias  com  seus  paí- 
ses, e  tem  de  altura  quatro  pés  e  nove  onças,  e  de  largura  oito  e  meyo,  cada 
hum,  dos  quais  hum  tem  menos  largura. 

«Hum  painel  grande,  original  M.r  Lebrun  (sic),  Pintor  mor  do  ditto  Rey, 
pintado  em  pano,  e  representa  o  Retrato  do  Rey  D.  Luis  quatorze  e  a  cavallo, 
vestido  de  armas  brancas,  e  tem  de  altura  oito  pés  e  meyo,  e  de  largura  seis 
e  nove  onças. 

«Hum  painel,  original  de  Barthollouieo  Morilho,  pintor  insigne  castelhano, 
q  representa  a  figura  inteyra  de  S.  Francisco  adorando  de  joelhos  a  Jesus  Cru- 
cificado, e  tem  de  altura  quatro  pés,  e  de  largura  três. 

«Outro  companheyro  e  da  mesma  medida,  q  representa  Santa  Maria  Ma- 
gdalena,  adorando  de  joelhos  a  Crus  de  Cristo,  pintado  em  pano,  original  de 
Paris  Bordon,  celebre  pintor  veneziano. 

«Hum  painel,  original  de  Angelo  Nardi  Escollar  da  escolla  de  Paullo. 

«Dous  grandes,  pintados  em  pano,  hú  original  de  Palma,  o  moço,  pintor 
venesiano  e  representa  São  Lourenço  em  grelhas.  E  outro  representa  Nossa 
Senhora  do  Filiar  de  Espanha  e  he  coppia  de  Caravoyo  (sic)  e  tem  de  altura 
seis  pés  e  de  largo  quatro  e  nove  onças,  cada  hum. 

«Huma  prespectiva,  original  de  Escorcelino  de  Ferrara,  pintada  em  pano 
com  hum  convite  de  figuras  em  hua  mesa;  tem  de  altura  pé  e  meio  e  de  lar- 
gura dous. 


92  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Hum  painel,  coppia  de  Rafael  Dorbino  pintado  em  pano;  Júpiter  com  os 
seus  Deuses  falços;  tem  de  altura  onze  onças,  e  de  largura  dous  pes  e  meyo. 

«Todo  o  referido  nesta  certidão  passo  na  verdade,  o  que  juro  aos  Santos 
Evangelhos  em  fé  do  que  mandey  passar  a  presente,  que  asigney  em  Lisboa 
Occidental  a  quatro  de  Agosto  de  mil  e  sete  centos  quarenta  annos. 

«Verones,  pintado  em  pano,  e  representa  o  Christo  preso  á  colluna  com 
dous  fariseos;  de  altura  tem  sinco  pés,  e  de  largura  três  e  oito  onças. 

«Oito  painéis,  pintados  em  pano  todos  de  huma  medida,  e  representão  oito 
historias  da  Sagrada  Escriplura  de  génesis,  originais  do  celebre  pintor  Jacob 
da  Ponte  ditto  Bassam,  obras  das  mais  perfeitas  dos  seus  pincéis,  que  tem  de 
altura  três  pés  e  meyo,  e  sinco  de  largura,  cada  nu,  os  quais  tem  em  sy  mui- 
tas tiguras  de  animais  de  varias  castas,  e  paises;  e  da  parte  do  Sereníssimo 
Príncipe  Eugénio  de  Saboyo  (de)  oflereci  eu  Pedro  Guarente  vinte  mil  cruza- 
dos ao  dito  Ill.m0  e  Ex.m0  Sfior  Conde  da  Atallaya,  que  recuzou  vendellos,  aiuda 
por  mayor  quantia. 

«Hum  painel,  original  de  João  Fayt,  insigne  pintor  flamengo,  e  representa 
diversas  cassadas  de  pássaros  mortos  com  bua  lebre,  e  dous  cais  vivos;  tem 
de  altura  três  pes  e  meio  e  de  largura  quatro,  e  quatro  onças. 

«Hum  painel,  original  de  Bernardino  Lecyno,  pintor  millanes,  pintado  em 
pano,  e  representa  Nossa  S.ra  com  Jesus  e  Sam  João  meninos,  e  tem  de  altura 
três  pés  e  meio,  e  de  largura  três  pés  e  nua  onça. 

«Outro  seu  companheyro,  pintado  em  pano,  e  representa  Nossa  S.ra  com 
o  Menino  Jesus  esperando  S.  Cann.a  e  Sam  Joam  Baptista,  copiado  de  hum  ori- 
ginal de  António  Alegre,  ditto  Goreggo,  feito  de  perito  Autor. 


Gabinete 

«Tem  seis  painéis  pintados  em  cobre,  iguais,  originais  de  Paullo  Bril,  esti- 
mado Pintor  flamengo,  e  representão  paizes  com  quantidade  de  figuras;  tem  de 
largura  hu  pé  e  duas  onças,  digo  tem  de  comprido  ou  altura  hú  pé  e  duas 
onças  e  de  largura  hum  pé  e  quatro  onças  cada  hum. 

«Dous  da  mesma  altura  e  largura,  em  cobre,  originais  de  Pedro  Brugola, 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  93 

pintor  flamengo  e  representam  dous  paizes  com  figuras.  Dous  mais,  em  cobre, 
desta  dita  medida,  originais  de  autor  clacico  flamengo,  e  representão  hQ  Izá 
dando  a  bençoa  a  Jacob;  outro  o  Banquete  de  Balthesar. 

«Dous,  das  referidas  medidas,  em  cobre,  originais  de  Abram  Bleomart, 
pintor  flamengo,  em  hum  se  representa  Adam  trabalhando  na  terra  com  sua 
mulher  e  filhos,  e  no  segundo  o  mesmo  Adam  comendo  o  pomo.  Os  seis  pri- 
meiros the  estes  dous  últimos,  que  fazem  doze,  sam  pimturas  de  toda  a  esti- 
mação e  dignas  do  mesmo  gabinete  em  que  se  achão. 

«Dous  em  pano,  de  meias  figuras,  hum  delles  representa  a  Costatino  Ma- 
gno; outro  a  Saneia  Eleuna  sua  Mãy,  originais  de  Guido  Cagnacio,  pintor  bo- 
lones;  tem  de  altura  hQ  pé  e  meyo  e  de  largura  hú  pé  e  quatro  onças,  cada 
hum  delles. 

«Dous  paizes  irmãos,  hum  delles  pintado  em  pao,  original  de  Paullo  Bril, 
outro  pintado  em  pano,  original  de  João  Baptista  Simarolli,  pintor  valenciano; 
tem  de  altura  hum  pé,  e  de  largura  oito  onças  cada  hú. 

«Dous  painéis,  originais  de  Autor  Castelhano,  pintados  em  pao,  de  figura 
ovada,  e  representão  dous  paizes  com  figuras;  teram  de  largura  oito  onças  e 
de  altura  seis  onças,  cada  hú. 

«Dous  paizes,  hum  pintado  em  pano,  original  de  João  Baptista  Simaroli, 
e  outro  pintado  em  pao  original  de  Paullo  Bril;  tem  de  largura  hum  pé,  e  de 
altura  nove  onças  cada  hum  delles. 

«Dous  painéis,  originais  de  Francisco  Salviati,  pintor  Florentino,  pintados 
em  cobre,  dos  quais  hum  representa  a  Cristo  no  sepulcro;  outro  o  mesmo 
Cristo  no  horto;  tem  de. altura  treze  onças  e  de  largura  oito  cada  hum. 

«Hum  painel,  original  de  Miguel  Angello  Bonarota,  pintado  em  pao,  e  re- 
presenta meya  íigura  de  Cristo  com  a  crus  nas  costas;  tem  de  altura  dous  pés 
e  de  largura  hum  pé  e  nove  onças. 

«Hum  painel,  original  do  insigne  pintor  monsu  Derigo,  pintado  em  pano, 
e  representa  em  meia  figura  o  retrato  do  Ill.mo  e  Ex.mo  Snor  Conde  da  Atal- 
laya,  que  foy  vice  Rey  de  Cecillia;  tem  de  altura  dous  pés  e  des  onças  e  de 
largura  hum  e  oito  ODças. 


94  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Hum  painel,  original  de  Lionardo  de  Vinci,  primário  pintor  florentino, 
obra  excelente,  pintado  em  cobre,  representa  húa  cabeça;  tem  de  altura  onse 
onças  e  de  largura  nove. 

«Hum  painel,  original  de  David  Taniers,  imitando  o  estillo  dei  Baçam,  pin- 
tado em  pano,  e  representa  a  Natividade  de  Nosso  Senhor  Jesus  Cristo;  tem 
de  altura  quatro  pés  e  meyo,  e  de  largura  três  e  meyo. 

«Quatro  painéis,  em  cobre,  em  hum  representa  Sam  João  Baptista  e  Sam 
Miguel:  outro  Sam  Francisco  e  Sancto  António:  outro  sam  Pedro  e  sam  Paullo: 
outro  Sam  Carlos  e  Sam  Benedito,  lodos  iguais,  e  tem  de  altura  quatro  onças 
e  de  largura  oito,  cada  hum,  de  Francisco  Salviati,  florentino. 

«Dous  painéis,  originais  de  Monsu  Guilhar,  pintor  francez,  ovados  e  pin- 
tados em  cobre,  em  hum  animais,  figuras  e  paiz,  em  outro  animais  e  paiz. 

«Hum  paiz,  original  da  Escolia  de  Ticiano,  pintado  em  pano,  e  representa 
húa  festa  de  Baco;  tem  de  altura  hum  pé  e  nove  onças  e  de  largura  hum  pé 
e  dez  onças. 

«Dous  painéis,  originais  de  André  Gonsalves,  pintor  Português,  pintados 
em  pano  e  representam  duas  cabeças  de  velhos. 

«Hum  painel,  original  do  insigne  António  do  Correggio,  pintado  em  pano 
e  representa  Nossa  Senhora  com  o  Menino  Jesus,  e  Sam  José;  tem  de  altura 
três  pés  e  duas  onças  e  de  largura  dous  e  nove  onças.» 


LXIII. —  Henriques  (Francisco). — A  ajuizar  pelo  nome,  ninguém  deixaria 
de  o  considerar  portuguez,  e,  quando  muito,  podel-o-hiam  tomar  por  hespanhol, 
como  fez  o  sr.  D.  José  Pessanha. d  Eu  estou,  porém,  convencido  de  que  elle 
era  flamengo,  segundo  me  parece  dever  deduzir-se  da  interpretação  dos  do- 
cumentos. Quando  e  em  que  circumstancias  viesse  para  Portugal  ignora-se,  mas 
é  certo  que  elle  já  estava  no  nosso  paiz  em  1509,  pois  n'este  anno,  a  5  de  janeiro, 
escrevia  D.  Manuel  a  Álvaro  Velho,  encommendando-lhe  que  apromptasse  duas 
camas  de  roupa  para  Francisco  Henriques,  que  ia  executar  algumas  pinturas 
em  S.  Francisco  de  Évora.  Posteriormente,  a  26  de  julho  de  1510,  escrevia 
ainda  D.  Manuel  ao  dito  individuo  sobre  o  mesmo  assumpto,  e  especialmente 


1  Ârtt  Portugtteza,  revista  de  areheologia  e  arte  moderna,  pag.  84-85. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  95 

sobre  a  imagem  de  S.  Francisco,  que  elle  havia  de  pinlar  ao  modo  da  sua 
terra.  Esta  breve  phrase  é  preciosa,  porque  nos  revela  simultaneamente  dois 
factos  importantes:  o  primeiro,  que  Francisco  Henriques  não  era  portuguez; 
o  segundo,  que  o  estylo  do  quadro  seria  o  usado  na  sua  pátria.  No  processo 
motivado  pela  petição  de  Garcia  Fernandes  dizem  as  testemunhas  que  Fran- 
cisco Henriques  mandara  vir  de  Flandres  alguns  officiaes  para  o  ajudarem.  Ora 
se  elle  fosse  hespanhol,  o  mais  plausível  é  que  mandasse  vir  para  companhei- 
ros alguns  dos  seus  conterrâneos.  É  esta  a  razão  que  me  leva  a  crer  que  Fran- 
cisco Henriques  era  flamengo. 

A  série  de  quadros  destinados  a  ornamentar  o  edifício  da  Relação  devia 
ser  importantíssima,  não  só  pelas  quantias  dispendidas,  como  pelo  tempo  que 
levou  a  executar,  e  pelo  numero  de  officiaes  n'ella  occupados.  Além  dos  offi- 
ciaes vindos  de  Flandres,  que  morreram  de  peste,  collaboraram  na  obra:  Gar- 
cia Fernandes,  que  foi  o  successor  de  Francisco  Henriques,  André  Gonçalves, 
Christovão  de  Figueiredo  e  Gregório  Lopes. 

Francisco  Henriques  era  casado  ao  tempo  do  seu  fallecimento,  e  pae  de 
alguns  filhos,  que  se  não  especificam.  Uma  de  suas  filhas  casou  com  Garcia 
Fernandes,  sob  cujo  nome  se  encontrarão  documentos  que  elucidam  a  vida  de 
seu  sogro  e  de  outros  pintores  contemporâneos. 

Pela  mesma  epocha  apparece  outro  Francisco  Henriques,  pintor  de  vidra- 
ças, que  o  sr.  Pessanha  considera  differente.  Os  documentos  relativos  a  este 
propósito  não  os  julgo  todavia  em  extremo  claros  e  decisivos.  Gonsultem-se 
no  já  citado  artigo  da  Arte  Porlugueza. 


LXIV. — Kloet  (Willelm  van  der). —  Pintor  azulejista.  O  seu  nome  indica 
procedência  germânica.  Não  me  consta  que  residisse  em  Portugal,  nem  que 
tivesse  cá  vindo,  não  obstante  existirem  entre  nós  productos  do  seu  pincel  ou 
das  suas  officinas. 

O  sr.  Visconde  de  Castilho,  no  i.°  volume  da  sua  Lisboa  antiga,  o  Bairro 
Alto,  ao  enumerar  os  palácios  que  ennobrecem  o  sitio,  fala  no  dos  srs.  Galvões 
Mexias,  na  rua  dos  Mouros,  mas  não  lhe  consagra  descripção  especial.  Effecti- 
vamente,  pelo  lado  externo,  o  palácio  nada  tem  que  o  recomraende,  a  não  ser 
a  sua  vastidão,  mas  internamente  a  sua  ornamentação  não  deixa  de  offerecer 
alguma  coisa  de  bastante  curioso  a  um  exame  artístico.  Tanto  a  escada  como 
algumas  das  salas  estão  revestidas  de  bellos  azulejos,  azues  e  brancos,  de  in- 
teressante e  correcto  desenho.  Os  das  escadas  enfeitam-os  graciosos  grupos 
de  meninos.  Os  das  salas  representam  danças,  concertos,  scenas  e  costumes  do- 
mésticos, da  epocha  e  do  estylo  de  Luiz  XV,  ou  talvez  ainda  anterior.  Mas,  de 
todos,  os  melhores,  são  os  de  uma  capella,  hoje  profanada,  em  quadros  allusi- 


96  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

vos  á  vida  de  Chrislo.  Parecem  todos  da  mesma  procedência  industrial  e  ar- 
tística, mas  só  os  da  capella  estão  assignados,  tendo  esta  rubrica:  Willelm  Van 
der  Kloet  fecil. 

No  palácio,  ou  antes  casarão,  dos  Galvões  Mexias,  estiveram  os  escripto- 
rios  e  officinas  da  Folha  do  Povo  e  mais  tarde  a  Academia  Recreativa  Portu- 
gueza.  Ultimamente  foi  reconstruído  por  completo  e  applicado  a  domicílios  fa- 
miliares. Por  motivo  d'esta  reconslrucção  foram  arrancados  e  postos  em  hasta 
publica  os  azulejos,  segundo  um  annuncio  publicado  no  Diário  de  Noticias  de 
10  de  julho  de  1899.  Parece  que  não  houve  licitante,  ou  que  não  chegaram  ao 
preço,  e  hoje  esses  azulejos,  segundo  me  informam,  existem  encaixotados  em 
poder  do  sr.  Adriano  Coelho,  morador  ás  Chagas. 

No  cruzeiro  da  egreja  de  Nossa  Senhora  da  Nazareth  vi  uns  grandes  pai- 
néis de  azulejo,  azues  e  brancos,  como  os  que  refiro  acima,  tendo  esta  inscri- 
pção:  W.  V.  D.  Kloet.  f. 


LXV.— Landrofe  (António  de).— Em  1692  foi  recolhido  aos  cárceres  do 
Santo  Oíficio  João  de  Sousa,  dourador,  por  crimes  contra  a  moralidade,  o  pec- 
cado  nefando,  segundo  a  technologia  inquisitória!.  Era  solteiro,  de  37  annos  de 
edade,  e  morava  em  Lisboa,  na  rua  que  ia  de  Nossa  Senhora  do  Soccorro  para 
S.  Lazaro.  Seus  pães  chamavam-se  António  de  Landrofe,  pintor,  e  Maria  de 
Sousa.  O  avô  paterno  era  Francisco  de  Landrofe,  allemão.  Declarou  ter  ido  por 
vezes  a  Castella,  Sevilha,  Toledo  e  Madrid.  No  seu  espolio,  de  pouca  monta, 
vêem  mencionados  três  painéis.  O  respectivo  processo  acha-se  na  Torre  do 
Tombo,  com  a  seguinte  designação  —  Lisboa  v.  10.110. 


LXVI.— Lassere  (Prospero).— Em  10  de  janeiro  de  1900  falleceu  em  Pa- 
ris este  distincto  artista,  que  residiu  muitos  annos  em  Portugal,  que  elle  con- 
siderava como  sua  segunda  pátria.  Aqui  casou  com  uma  senhora  portugueza 
de  quem  enviuvara.  Era  um  espirito  illustrado  e  um  cavalheiro  sympathico.  To- 
dos os  annos  ia  fazer  a  sua  viagem  ao  estrangeiro. 

Transcrevo  do  Diário  de  Noticias,  de  13  de  janeiro  de  1900,  a  sua  abre- 
viada necrologia,  e,  em  seguida,  a  participação  fúnebre  dos  parentes  de  sua 
mulher: 

«Falleceu  quarta  feira  em  Paris,  onde  tinha  ido  fazer  uma  operação,  o 
distincto  pintor  francez  Prospero  Lassere,  que  ha  muitos  annos  residia  em  Lis- 
boa. Amigo  intimo  de  Ferreira  Chaves,  não  lhe  sobreviveu  muito  tempo. 

«Prospero  Lassere  era  de  grande  merecimento  na  sua  especialidade  — 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  97 

pintura  de  flores.  Trabalhou  na  ornamentação  do  edifício  dos  paços  do  conce- 
lho. Era  membro  da  nossa  Academia  de  Bellas-Artes. 

«Prospero  Lassere  era  tão  distincto  e  apreciável  pelos  seus  quadros  como 
pelas  suas  qualidades  pessoaes. 

«Dizem-nos  que  deixou  bens  de  fortuna  e  que  fizera  testamento. 

«A  sua  partida  para  Paris  realisou-se  nos  últimos  dias  do  mez  passado, 
por  conselho  do  seu  medico  assistente.  Acompanhou-o  sempre  o  seu  dedicado 
amigo  sr.  Roux. 

«A  operação  correu  o  melhor  possível,  mas,  sobrevindo  uma  febre  intensa, 
a  morte  foi  inevitável. 

«O  fallecido  não  deixa  família.» 

«Maria  Thereza  Bastos  Pinho  da  Cunha  Pereira  e  seu  marido  Bento  José 
Pereira  Júnior,  Eugenia  Amélia  Bastos  Pinho  de  Almeida  e  seu  marido  Manuel 
Pinho  de  Almeida,  Anna  de  Almeida  Correia  Leal  e  seu  marido  o  conselheiro 
Joaquim  de  Almeida  Correia  Leal,  Henrique  Pinho  da  Cunha  e  Eduardo  Pinho 
de  Almeida  participam  aos  seus  parentes  e  ás  pessoas  das  suas  relações  e  ás 
das  de  seu  prezado  padrasto,  cunhado  e  padrinho,  que  elle  falleceu  em  Paris 
no  dia  10  do  corrente.» 


LXVIL—  Leal  (Jorge). —  Designado  como  pintor,  sem  mais  nenhum  ou- 
tro pormenor  elucidativo,  apparece  como  testemunha  no  contracto  de  venda 
de  umas  casas  a  Gregório  Lopes.  A  escriptura  é  de  28  de  maio  de  1513  e 
dou-a  integralmente  no  artigo  que  se  refere  a  Gregório  Lopes. 


LXVIII. —  Leitão  (Antão).  — Pintor,  residente  em  Lisboa.  Tinha  aforadas 
a  el-rei  umas  casas  na  Correaria  de  que  elle  era  a  segunda  pessoa,  sendo  a  pri- 
meira uma  Constança  Annes,  de  quem  as  houvera  Desejando  fazer  obras  n'el- 
las,  pediu  renovação  do  emprazamento,  com  augmento  de  foro  em  três  vidas, 
ficando  elle  a  primeira.  Em  23  de  outubro  de  1497  celebrou-se  o  novo  instru- 
mento, que  foi  confirmado  por  D.  Manuel  em  carta  de  20  de  março  de  1498. 

«Dom  Manuell  ele.  A  quamtos  esta  nosa  carta  virem  fazemos  saber  que 
da  parte  dAmtam  Leitam  pymtor  morador  em  a  nosa  cidade  de  Lixboa  nos 
foy  apresemtado  huum  eslromento  daforamento  de  que  o  theor  he  este  que  se 
segue:  Saibam  quamtos  este  estromento  de  emnouaçam  e  emprazamento  virem 
que  no  anno  do  nacimento  de  Noso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mill  e  iiije  Ir 
bij  xxiij  dias  do  mes  doutubro  da  dita  era  em  a  cidade  de  Lixboa  na  casa  do 

Março,  1903.  13 


98  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

almazem  do  Regnuo  estamdo  hy  Diogo  Delgado  Caualeiro  da  casa  do  dito  Se- 
nhor e  comendador  da  Fomte  Arcada  e  dagramja  d  Ulmeiro  almoxarife  delRey 
Noso  Senhor  do  dito  almazem  e  tareçenas  presemte  o  dilo  almuxarife  e  my 
esprivam  e  testemunhas  ao  diamte  nomeadas  pareçeo  Anlam  Leilam  pimtor  e 
dise  ao  dito  almuxarife  que  hera  verdade  que  hele  trazia  húuas  casas  de  foro 
do  dito  Senhor  que  sam  na  Rua  da  Correaria  de  pagar  em  cada  huum  hanno 
de  foro  delas  ao  dito  Senhor  satemta  e  quatro  reaes  e  quatro  pretos  ao  qual 
aforamento  ele  era  a  segumda  pesoa  per  nomeaçam  que  ha  elas  nomeou  húua 
Costamça  Annes  cujas  as  ditas  casas  eram  E  por  quamto  ele  queria  correger 
aas  ditas  casas  e  fazeer  em  elas  algúuas  bemfeitorias  e  o  leixaiu  de  fazeerpor 
asy  seer  a  segumda  pesoa  ao  dito  emprazamento  que  lhe  pedia  que  lhe  quisese 
em  nouar  as  ditas  casas  em  três  pesoas  e  visto  polo  dito  almoxarife  seu  dizeer 
e  pedir  e  a  carta  do  aforamemto  das  ditas  casas  e  como  pagaua  em  cada  hQu  anno 
delas  de  foro  os  ditos  satemta  e  sete  (sic)  reaes  e  quatro  pretos  e  como  era 
a  segunda  pesoa  ao  dito  emprazamemto  semtimdoo  asy  por  seruiço  do  dito  se- 
nhor dise  que  ele  em  nome  do  dito  Senhor  emnouaua  e  aforaua  as  ditas  casas 
ao  dito  Amtam  Leitam  em  vida  de  três  pesoas  com  mais  vimte  e  noue  reaes 
e  três  pretos  de  crecimento  de  foro  em  cada  huu  aQno  pêra  o  dilo  senhor  que 
hera  a  quarta  parte  mais  do  dito  foro  que  hasy  pagam  em  cada  huu  anno  que 
era  asy  por  todos  com  o  dito  crecimento  o  que  avia  de  pagar  em  cada  huu 
anno  cemto  e  seis  reaes  e  sete  preetos  as  quaees  casas  lhe  asy  ouue  por  era- 
prazadas  em  vidas  de  três  pesoas  pello  dito  foro  e  com  as  condiçoêes  acustu- 
madas  e  per  estas  comfromtaçoêes  que  se  seguem  partem  de  húua  parte  com 
casas  de  Afomso  Aluerez  tanoeiro  e  por  de  trás  com  casas  do  dito  Afomso 
Aluarez  que  sam  foreiras  ao  moesteiro  da  Cheias  e  da  outra  parte  som  rua  pu- 
blica que  vem  sobre  a  capela  de  Samta  Maria  da  Palma  e  com  outras  com- 
fromtaçoêes com  que  de  direito  cleuem  partir  e  com  comdiçam  que  ele  dilo  Am- 
tam Leitam  seja  ao  emprazamemto  das  ditas  casas  a  primeira  pesoa  e  amte  de 
seu  falecimento  posa  nomear  a  segumda  e  a  segumda  nomee  a  terçara  em  guisa 
que  sejam  três  pesoas  e  mais  nam  e  com  comdiçam  que  se  as  ditas  casas  em 
algõu  tempo  vierem  a  perecer  per  augua  ou  foguo  ou  terremoto  ou  per  outro 
qualquer  caso  furtuito  cuidado  ou  nom  cuidado  que  ha  vyr  posa  o  que  Deus 
defemda  que  ele  dito  Amtam  Leitam  e  pesoa  que  ha  pos  ele  vyerem  as  ale- 
uantem  façam  e  rrefaçam  adubem  e  aproueitem  de  todo  o  que  lhes  comprir  e 
mesteer  fazer  as  suas  propeas  custas  e  despesas  em  tall  guisa  que  sempre  se- 
jam casas  aleuantadas  como  ora  sam  e  milhoradas  e  nom  pejoradas  e  com  com- 
diçam que  hele  nem  as  pesoas  que  após  hele  vierem  nom  posam  vemder  as  di- 
tas casas  dar  nem  doar  trocar  nem  escambar  nem  outras  nenhuuas  pesoas  em 
alhear  nem  fazeer  sob  se  elas  (sic)  outro  nenhuum  foro  a  Igreja  nem  moesteiro 
nem  pêra  outra  nenhúua  pesoa  sem  licemça  e  autoridade  do  dito  Senhor  e 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  99 

quamdo  vier  caso  que  as  ajam  de  vemder  que  ho  façam  primeiramemte  saber 
ao  dilo  Senhor  ou  ao  seu  almuxarife  que  emtam  for  do  dito  seu  almazem  se  as 
quer  tomar  pêra  ele  tamto  por  tamto  quamto  outrem  por  elas  deer  e  quamdo 
as  tomar  nom  quiser  pello  dilo  preço  que  hemtam  as  posam  vemder  a  quem  lhas 
comprar  quiseer  com  tamto  que  ha  pesoa  que  lhe  as  comprar  nom  seja  daque- 
las que  o  dito  Senhor  e  o  direito  em  este  caso  defemde  mais  que  seja  pesoa 
abonada  e  leiga  e  rrealmente  da  sua  jnrdiçam  e  tall  que  bem  e  sem  nenhQua 
rrefeerta  page  o  dito  foro  ao  dito  senhor  em  cada  hQu  anno  asy  como  o  pa- 
gam os  outros  foreiros  do  dito  Senhor  e  que  cumpra  e  guarde  todallas  com- 
diçoêes deste  aforamemto  e  todallas  outras  com  que  ho  dito  senhor  afora  suas 
eramças  e  mais  que  page  ao  dito  senhor  a  coremtena  do  preço  por  que  nas 
ditas  casas  forem  vendidas  e  com  condiçã  que  ele  leua  ou  mande  este  empra- 
zamento aa  fazemda  do  dito  Senhor  pêra  lhe  laa  seer  comfirmado  segumdo 
sua  ordenaraça  e  o  dito  Amtam  Leitam  a  todo  presemte  dise  que  de  todo  que 
o  dito  almoxarife  dezia  e  mamdaua  que  de  todo  lhe  aprazia  que  de  todalas  di- 
tas comdiçoêes  tomaua  rrecebia  em  sy  as  ditas  casas  e  emprazamemto  delas 
e  que  pêra  elo  obrigaua  todos  seus  bões  mouees  e  de  rraiz  ávidos  e  por  aveer 
a  todo  que  dito  he  comprir  e  mamter  e  bem  asy  os  bêes  das  pesoas  que  ha 
pos  ele  amde  vyr  e  o  dito  almuxarife  lho  ouue  por  outorgada  com  as  sobredi- 
tas comdiçoêes  e  com  todalas  outras  com  que  o  dito  senhor  afora  suas  eramças 
posto  que  haqui  nom  sejam  expresas  nem  declaradas  e  o  dito  Amtam  Leitam 
pedio  asy  de  todo  hQu  estromento  e  o  djto  almoxarife  lho  mamdou  dar  testemu- 
nhas que  presemtes  furam  Fernam  dAluarez  e  Fernam  Lopeez  homêes  do  dito 
almazem  e  Fernam  da  Afomso  dos  Pedrogos  e  outros  e  eu  Luis  Godinho  es- 
cprivam  do  dilo  almazem  e  larecenas  por  mamdado  delRey  Noso  Seuhor  que 
ha  todo  presemte  cõ  as  ditas  testemunhas  fuy  e  aquy  asyney.  Pedimdonos  o 
dito  Amtam  Leitam  por  mercee  que  lhe  comfirmasemos  e  ouuesemos  por  com- 
firmado o  dito  aforamemto  asy  e  pela  maneira  que  se  nele  comthem  e  visto 
per  nos  seu  pedido  e  queremdolhe  fazer  graça  e  merçee  temos  por  bem  e  lho 
comfirmamos  e  avemos  por  comfirmado  como  nele  he  comtheudo  com  tamto 
que  ho  dito  foro  nos  dee  e  pague  em  cada  hQu  anno  per  cimco  reaes  e  hQu  terço 
de  prata  de  Cxbij  reaes  em  marco  e  de  lei  domze  dinheiros  e  quatro  ceitis.  E 
porem  mamdamos  ao  noso  almoxarife  do  dito  almazem  e  a  quaeesqueer  outros 
nosos  oficiaes  a  que  o  conhecimento  dela  pertemçeer  que  lhe  cumpram  e  guar- 
dem sem  duuida  nem  embargo  (pie  a  elo  ponham  por  que  hasy  he  nosa  mer- 
çee. Dada  em  a  nosa  muy  nobre  e  sempre  leal  cidade  de  Lixboa  aos  xx  dias  de 
março  el  Rey  e  princepe  etc,  ho  mamdou  per  dom  Pêro  de  Castro  do  seu  com- 
selho  e  vedor  da  sua  fazenda  —  Vicente  Carneiro  a  fez  de  mill  e  iiijc  I.  r.  biij.»  ' 


'  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.»  32,  fl.  37. 


100  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


LXIX. — Leitão  (António). — Era  moço  da  camará  da  infanta  D.  Maria, 
filha  de  D.  Manuel,  e  foi  para  Roma  para  se  aperfeiçoar  na  arte  de  pintura.  A 
nossa  eôrte  o  recommendou  ao  seu  embaixador,  Lourenço  Pires  de  Távora, 
segundo  se  vê  de  uma  minuta,  sem  data,  que  existe  na  Collecção  de  S.  Vicente, 
e  que  já  foi  publicada  a  pag.  149  do  vol.  ix  do  Corpo  Diplomático,  onde  è  at- 
tribuida  ao  anno  de  1560. 

Deve,  todavia,  haver  aqui  algum  equivoco  n'esta  collocação,  pois  em  1560 
já  reinava  D.  Sebastião,  o  qual  não  podia  dizer-se  irmão  da  infanta  D.  Maria, 
sendo  esta  aliás  sua  segunda  tia.  O  neto  de  D.  João  III  foi  filho  único. 

«Lourenço  Pires  de  Távora  etc.  António  Leytam,  que  vos  esta  dará,  he 
moço  da  camará  da  infanta  dona  Maria,  mynha  muito  amada  e  prezada  irmãa, 
vay  a  esa  corte  para  nella  se  exercylar  na  arte  da  pymtura,  e  porque  eu  per 
alguns  respectos  receberey  contentamento  em  o  averdes  per  emcomemdado 
para  o  favorecerdes  no  que  for  razam  e  vos  requerer,  vos  emcomemdo  muito 
que  o  façaes  asy  e  muito  volo  agradecerey.» 


LXX.— Lisboa  (Fernão).— Pintor,  creado  de  D.  AffonsoV,  o  qual,  em  carta 
de  5  de  março  de  1471,  o  nomeou  contador  e  procurador  dos  resíduos  nas 
villas  de  Setúbal,  Palmella,  Cezimbra,  Almada  e  todos  os  outros  logares  do 
Ribatejo  até  ao  rio  das  Anguias  e  de  Alcácer,  Torrão  e  S.  Thiago  do  Cacem. 
Este  officio  foi-lhe  dado  por  fallecimento  de  Fernão  Lourenço. 

«Dom  Afomso  etc.  A  quantos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos  que- 
rêdo  fazer  graça  e  mercê  a  Fernã  de  Lixboa  pimtor,  nosso  criado,  fiamdo  da  sua 
bõdade  e  descryçã  que  o  fará  bem  e  como  deue,  temos  por  bem  e  damollo  da- 
quy  em  dyamte  por  contador  e  procurador  dos  residos  nas  villas  de  Setuual  e 
Palmella  e  Cez)bra  de  Almada  e  de  todollos  outros  lugares  de  Ribatejo  ataa  o 
ryo  das  anguyas  e  das  villas  d  Alcácer  Terrom  e  Santiaguo  do  Cacem,  asy  e 
pella  guisa  que  o  taa  ora  foy  Fernã  L.t0,  que  os  ditos  ofícios  tinha  per  carta 
do  espriuã  de  nosa  puridade  e  se  ora  finou.  E  porem  mãdamos  a  todollos  ou- 
uidores  juizes  e  justiças  da  dita  comarca  e  villas  e  a  quaees  quer  outros  ofi- 
ciaes  e  pessoas  a  que  esto  ou  o  conhecimento  deslo  pertencer  e  esta  carta  for 
mostrada  que  ajom  d'aquy  em  diãte  o  dito  Fernã  de  Lixboa  por  contador  e  pro- 
curador dos  residos  das  ditas  villas  e  comarqua  e  outro  algum  nã,  e  o  meta 
em  posse  dos  ditos  oficios  e  lhe  deyxem  seruir  e  vssar  delles  e  aver  o  man- 
tymêto  proes  e  precalços  que  a  elle  per  tecer  ou  pertencer  deuem  de  direito 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  101 

segundo  he  cõteudo  em  nosso  Regimêto  dos  ditos  Ressydos  sem  outro  êbar- 
guo  que  lhe  huus  nê  outros  sobre  ello  ponha  por  que  asy  he  nossa  mercê.  O 
quall  Fernã  de  Lixboa  jurou  etc.  Dada  em  Sãtarem  b  dias  de  março.  Atam 
Gllz  a  fez  anno  de  mill  iiiic  lxxj.» l 


LXXL— Lobo  de  Moura  (Eduardo).— Uma  folha  portuense  (A  Provin- 
da), de  30  de  janeiro  de  1887,  publicava  a  seguinte  noticia: 

iO  sr.  Eduardo  de  Moura,  irmão  do  visconde  de  Moura,  que  foi  nosso 
ministro  em  S.  Petersburgo,  falleceu  ha  pouco  em  Londres.  Este  nosso  com- 
patriota era  um  ininiaturista  dos  mais  notáveis  de  Inglaterra,  considerado 
mesmo  o  primeiro.  Por  occasião  da  sua  morte  a  rainha  de  Inglaterra  fez  di- 
rigir a  seguinte  carta  á  filha  do  illustre  artista.  Traduzimol-a  do  Standart,  de 
Londres  : 

«Osborne,  3  de  janeiro 

«Minha  querida  senhora:  recebi  a  sua  carta  esta  tarde,  e  tenho  ordem  da 
rainha  para  lhe  transmittir  a  expressão  do  grande  sentimento  de  sua  mages- 
tade  pela  morte  tão  inesperada  de  seu  pae,  cujo  talento  sua  magestade  tinha 
na  mais  alta  conta. 

«Sua  magestade  está  muito  satisfeita  com  a  miniatura  e  dá-lhe  um  gran- 
díssimo valor  por  ser  a  ultima  obra  de  seu  pae. 

«Affirmando-lhe  os  meus  próprios  sentimentos  pela  grande  perda  que 
acaba  de  sofírer,  continuo  a  ser  sinceramente  sua 

Emilie  Dittweiler. 

«Este  nosso  compatriota,  desconhecido  no  seu  paiz,  era  um  notável  ta- 
lento que  se  finou  sem  que  a  nossa  imprensa  tivesse  duas  palavras  para  lhe 
honrar  a  memoria.» 

Não  sei  se  a  noticia  da  Provinda  é  original,  ou  se  foi  reproduzida  de  ou- 
tra folha. 

O  visconde  de  la  Figanière,  explicando  a  tal  ou  qual  authenticidade  dos 
retratos  que  apresenta  no  seu  livro  Rainhas  de  Portugal,  diz  que  se  resolvera 
a  dar  o  de  D.  Theresa  por  conselhos  do  nosso  minialurista.  E  a  este  propó- 
sito escreve: 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.°  16,  fl.  90  v. 


102  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

iO  retrato  de  D.  Theresa,  que  apresento,  é  copia  do  que  se  acha  na  ta- 
boa  n.°  6  da  referida  arvore  genealógica.  Se  fiz  excepção  d'esta,  não  foi  por 
suppôr  o  retrato  fiel  quanto  ás  feições,  mas  resolvi-me  a  apresental-o  por  con- 
selho do  meu  amigo  o  sr.  Eduardo  Lobo  de  Moura,  artista  portuguez  residente 
em  Londres,  bem  conhecido  por  suas  obras  primorosas  e  cuja  fama  tem  mere- 
cidamente chegado  aos  principaes  paizes  da  Europa.» 

O  Diário  de  Noticias,  de  2  de  dezembro  de  1902,  publicou  um  artigo  in- 
titulado Na  legação  de  Portugal  em  Londres,  acompanhado  de  uma  gravurinha, 
representando  a  missa  que  se  celebrou  u'aquella  embaixada  por  occasião  da  pas- 
sagem da  rainha  D.  Estephania,  que  vinha  consorciar-se  com  D.  Pedro  V.  Era 
nosso  ministro  n'aquella  corte  o  conde  de  Lavradio,  que  assistiu  ao  acto  com 
o  pessoal  da  legação  e  com  toda  a  comitiva  régia.  A  gravura  do  Diário  de  No- 
ticias era  copia,  segundo  photographia,  de  uma  aguarella  pintada  por  Moura. 

D'este  artista  possue  o  meu  amigo  Anselmo  Braamcamp  Freire  três  agua- 
rellasinhas,  representando  uma  d'ellas  sua  esposa,  d'elle  possuidor,  quando 
creança;  outra  uma  lebre,  e  outra,  finalmente,  Ophelia. 

Satisfazendo  com  toda  a  gentileza  a  um  pedido  que  lhe  fiz,  o  sr.  Jeronymo 
da  Camará  Manuel,  secretario  da  nossa  legação  em  Londres,  que  tão  primoro- 
samente sabe  conciliar  os  deveres  oíEciaes  do  seu  cargo  diplomático  com  o 
amor  á  cultura  dos  estudos  históricos  e  litlerarios,  teve  a  bondade  de  me  en- 
viar algumas  interessantes  notas  acerca  do  artista  nosso  compatriota.  Uma  des- 
sas notas,  que  eu  dou  no  próprio  original,  com  a  respectiva  traducção,  é  pro- 
veniente da  família;  a  outra  é  uma  carta  do  sr.  Camará  Manuel,  que  eu  peço 
também  licença  para  transcrever.  Eis  primeiramente  a  nota  ingleza: 

«Edward  Lobo  de  Moira  was  born  at  Villa  Nova  Foscôa  in  the  Beira  Alta, 
October  1817,  died  January  2,  1887.  He  was  miniature  painter  to  Her  Majesty 
the  Queen  of  England  and  the  principal  Sovereigns  of  Europe.  From  the  year 
1849  to  the  time  of  his  dealh,  his  portrait  miniatures,  on  Ivory,  were  exhi- 
bited  at  the  Exhibition  ot  the  Royal  Academy  of  London,  the  Sahn  in  Paris 
and  other  continental  Exhibitions.  He  received  the  order  of  Christ  from  II is 
Majesty  Dom  Pedro  of  Portugal  and  was  Chevalier  of  the  order  of  Malta.  The 
sympathy  of  lhe  Queen  of  England  and  the  King  of  Portugal  enabled  his  son, 
by  their  generous  pensions,  to  persue  his  studies  at  the  Royal  Academy  where 
he  received  at  ali  examinaliim  many  honours  and  prizes.  He  is  now  a  distin- 
guished  artist  and  been  made  Professor  of  design  and  painting  at  the  Royal 
College  of  Art  London.» 

«Eduardo  Lobo  de  Moura  nasceu  em  Villa  Nova  de  Foscôa,  na  Beira  Alta, 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  103 

em  outubro  de  1817  e  morreu  em  2  de  janeiro  de  1887.  Foi  pintor  miniatu- 
rista  de  sua  magestade  a  rainha  de  Inglaterra  e  dos  prineipaes  soberanos  da 
Europa.  Desde  o  anno  de  I8'i9  até  á  data  da  sua  morte  os  seus  retratos,  mi- 
niaturados em  marfim,  figuraram  na  Exposição  da  Real  Academia  de  Londres, 
no  Saloti  de  Paris  e  em  outras  exposições  conlinentaes.  Foi  agraciado  com  a 
Ordem  de  Christo  por  sua  Magestade  el-rei  D.  Pedro  de  Portugal.  Foi  lambem 
cavalleiro  da  ordem  de  Malta.  A  sympathia  da  rainha  de  Inglaterra  e  do  rei 
de  Portugal  habilitaram  seu  filho,  com  generosas  pensões,  a  proseguir  os  seus 
estudos  na  Royal  Academy,  oude  recebeu,  em  todos  os  exames,  muitas  menções 
honrosas  e  prémios.  Actualmente  é  um  artista  distincto,  tendo  sido  nomeado 
professor  de  desenho  e  pintura  no  Gollegio  Real  das  Artes,  em  Londres.» 

Agora  a  carta  do  sr.  Jeronymo  da  Camará  Manuel,  datada  de  Londres  a 
31  de  janeiro  de  1903: 

«Meu  Ex.m°  Amigo. — Apresso-me  a  enviar-lhe  os  apontamentos  sobre  o 
pintor  miniaturisla  Eduardo  de  Moira,  escriptos  pelo  próprio  punho  da  viuva 
do  illustre  artista  e  que  hoje  aqui  veiu  trazermos.  A  estes  apontamentos  aceres- 
centarei  o  seguinte:  Eduardo  Lobo  de  Moira,  antes  de  se  dedicar  á  pintura,  foi 
empregado  como  escripturario  na  Agencia  Financial  Portugueza  n'esta  cidade, 
onde  trabalhou  durante  muitos  annos. 

«Foi  muito  protegido  pelo  Conde  de  Lavradio  quando  ministro  junto  da 
corte  d,e  S.1  James,  sendo  o  mesmo  Conde  que  o  apresentou  e  recommendou 
á  Rainha  Victoria.  Como  bem  diz  a  viuva  no  apontamento  incluso,  foi  minia- 
turista  da  Corte  Real  ingleza,  e  ainda  não  ha  muito  tempo  vi  no  Castello  de 
Windsor  muitas  miniaturas  de  quasi  toda  a  f;imilia  real  de  Inglaterra,  pintadas 
por  elle.  A  rainha  Victoria  tinha-o  em  grande  estima,  escrevendo  uma  carta  á 
viuva  por  occasião  do  fallecimento  do  marido. 

«Moira  casou-se  aqui  em  Londres  com  D.  Eugenia  Rebello,  filha  de  Fran- 
cisco Rebello,  vice-consul  de  Portugal.  D'este  casamento  existem  ainda  hoje 
duas  filhas  e  um  filho.  O  rapaz  chama-se  Giraldo  Eduardo  Lobo  de  Moira ;  fez 
o  curso  de  pintura  com  o  subsidio  do  Governo  portuguez  (£  4,8,11  por  mez) 
e  com  outro,  dado  pela  rainha  Victoria.  Num  concurso  realisado  no  mez  de  De- 
zembro de  1891  na  Real  Academia  de  Relias  Artes  d'esta  cidade,  obteve  4 
prémios  por  uma  collecção  de  6  desenhos,  e  a  medalha  de  prata  pela  pintura 
de  uma  cabeça  do  natural.  Terminou  o  curso  em  Junho  de  1893  e  hoje  é  pro- 
fessor de  pintura  no  Royal  College  of  Art  (South  Keisington)  recebendo  de  or- 
denado £  500,  devendo  muito  breve  ter  um  augmento  de  £  300.  É  um  ar- 
tista de  mérito  e  muito  considerado.  Em  Portugal,  dos  trabalhos  do  pae,  só  co- 
nheço duas  ou  três  miniaturas,  retratos  de  família,  que  possue  o  Visconde  de 


104  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Soure  e  uma  ua  posse  da  Condessa  de  Rilvas,  pessoas  muito  da  amizade  da 
família  Moira. 

«A  gravura  de  Moira  n'esta  legação,  e  que  o  Diário  de  Noticias  publicou, 
é  copia  muito  reduzida  da  aguarella  pintada  por  Moira  e  por  elle  offerecida  ao 
seu  protector  o  Conde  de  Lavradio.  O  correspondente  do  Noticias  esqueceu-se 
de  mencionar,  na  sua  correspondência,  que  o  Moira  foi  celebrado  pelo  Cardeal 
Wolsoley  e  que  das  pessoas  então  presentes  apenas  existe  hoje  o  Conde  da 
Azambuja,  que  fazia  parte  da  nossa  Legação  como  addido. 

«Desculpe,  meu  caro  amigo,  a  mà  redacção  d'esta  carta  escripla  á  pressa 
por  causa  do  correio,  que  prestes  está  a  partir.» 


LXXII. —  Lopes  (Christovão). —  Era  filho  de  Gregório  Lopes,  pintor  doi- 
rei, em  cujo  cargo,  por  seu  fallecimento,  o  ficou  substituindo,  sendo  nomeado 
em  carta  de  18  de  agosto  de  1551.  Succedeu-lhe,  por  egual  motivo,  Fernão 
Gomes,  em  18  de  maio  de  1594. 

Taborda  fala  d'elle  com  grandes  elogios,  citando  as  suas  pinturas  em 
Belém. 

«Dom  Joam  etc,  a  quamtos  esta  mynha  carta  virem  faço  saber  que  que- 
remdo  eu  fazer  mercê  a  Xpovam  Lopez,  meu  pimtor,  ey  por  bem  e  me  praz 
que  ele  lenha  e  aja  de  mym  de  temça,  em  cada  hQu  ano,  de  janeiro  que  pa- 
sou  deste  ano  presemte  de  quynhemtos  cymquoenta  e  huu  em  diamte  cym- 
quo  mill  rs.  e  hQu  moyo  de  tryguo  com  o  dito  oficio,  que  he  outro  tamto 
como  Grigorio  Lopez  seu  pay  com  ele  tinha,  per  cujo  falecymento  fiz  mercê 
do  dito  oficio  ao  Xpovam  Lopez,  e  portamto  manado  ao  barão  dAluyto,  via- 
dor de  mynha  fazemda  que  lhe  faça  asemtar  a  dita  tença  de  dinheiro  e  tryguo 
no  tesoureiro  dela  e  do  dito  Janeiro  em  diamte  lhe  despache  cadano  tudo 
omde  aja  bom  pagamemto  e  por  firmeza  delo  lhe  mandey  dar  esta  carta  por 
mym  asynada  e  aselada  com  o  meu  selo  pemdemte.  D.°  Lopez  a  fez  em  Almei- 
rym  aos  dezoyto  dias  do  mes  dagosto  ano  do  nacymenlo  de  noso  Senhor  Ihuu 
Xpo  de  Jbc  Ij,  e  eu  Damiam  Diaz  o  fiz  escprever.» ' 


LXXIH. —  Lopes  (Gregório). —  Pae  de  Christovão  Lopes,  de  quem  se  fa- 
lou no  artigo  antecedente.  Era  casado  com  Isabel  Jorge,  filha  do  pintor  Jorge 
Affonso,  com  o  qual  convivia  e  convisinhava. 

Em  7  de  julho  de  1514  o  mosteiro  de  S.  Domingos  dava  licença  a  Pêro 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  JoSo  III.  DoaçOu.  L.«  56,  fl.  98. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  105 

Alvares  e  a  sua  mulher,  Beatriz  Lopez,  pretos  forros,  para  cederem  de  empra- 
zamento a  Gregório  Lopes  umas  casas  situadas  detraz  de  Santa  Maria  da  Es- 
cada, que  partiam  com  Jorge  Affonso,  pintor,  e  d'outra  parte  com  casas  do 
dito  Gregório  Lopes  e  com  azinhaga  que  vem  ter  ás  casas  d'este,  pagando  de 
foro  por  anno  150  reaes  e  uma  gallinha.  A  escriptura  foi  lavrada  nas  casas  de 
Jorge  Affonso,  nas  pousadas  de  Gregório  Lopes,  estando  este  presente  e  sua 
mulher,  Isabel  Jorge,  sendo  testemunhas  Pêro  Vaz,  Garcia  Fernandes  e  Gas- 
par Vaz,  que  lavravam  em  casa  do  dito  Jorge  Affonso.1  As  casas  de  Pêro  Al- 
vares, sendo  então  um  pardieiro  ou  quasi  chão  maninho,  haviam-lhe  sido  afo- 
radas por  escriptura  de  3i  de  janeiro  de  1509,  como  já  disse  no  artigo  rela- 
tivo a  Jorge  Affonso. 

Em  3  de  março  de  1515  o  mesmo  mosteiro  vendia  umas  casas  a  Jorge 
Affonso,  as  quaes  confinavam  com  casas  de  Gregório  Lopes.  Veja-se  o  respe- 
ctivo documento  no  artigo  relativo  a  Fernandes  (Vasco). 

Em  28  de  maio  de  1513  celebrava-se  uma  escriptura,  pela  qual  Diogo 
Gil,  pedreiro,  e  Inez  Gonçalves,  sua  mulher,  vendiam  a  Gregório  Lopes  umas 
casas  de  um  sobrado  que  estavam  situadas  por  detraz  de  Santa  Maria  da  Es- 
cada, que  parliam  com  Pêro  Alvares,  taipeiro,  e  com  rua  que  ia  para  o  chão 
de  D.  Henrique,  filho  do  marquez.  Foram  testemunhas  Miguel  Nunes  e  Jorge 
Leal,  ambos  pintores.  Dou  adeante  o  respectivo  documento. 

D.  Manuel  o  tomara  por  seu  pintor,  mas  não  se  acha  registado  o  compe- 
tente diploma.  D.  João  III  o  nomeou  para  egual  cargo  a  25  de  abril  de  1522,  de- 
clarando na  respectiva  caria  que  elle  já  o  era  por  alvará  de  lembrança  d'el-rei 
seu  pae.  Este  documento  vem  publicado  em  Taborda. 

Em  4  de  novembro  de  1525  lhe  foi  passada  carta,  ordenando  que  elle  ti- 
vesse de  tença  annual,  pelo  dito  officio,  5:000  reaes  e  um  moio  de  trigo.  Esta 
tença,  em  carta  de  19  de  outubro  de  1550,  foi  trespassada  a  sua  viuva,  Isa- 
bel Jorge,  para  sua  mantença  e  de  suas  filhas. 

Em  1536  Gregório  Lopes  andava  trabalhando  no  convento  de  Christo,  em 
Thomar,  segundo  se  vê  de  uma  verba  das  despezas  das  obras  com  relação 
áquelle  anno  e  ao  mez  de  outubro.  Recebeu  elle,  n'essa  occasião,  168:000  reaes, 
pelo  retábulo  para  a  charola,  em  que  pintou  Santo  António,  S.  Sebastião,  S. 
Bernardo  e  a  Magdalena,  assim  como  os  da  capella  de  Nossa  Senhora. 

Gregório  Lopes  pintou  um  retábulo  dos  Martyres  de  S.  Quintino,  para  a 
egreja  de  Nossa  Senhora  do  Monte  Agraço,  segundo  se  vè  de  uma  carta  diri- 
gida a  D.  João  III  por  António  Dias,  provedor  das  capellas  e  hospitaes.  D'este 
quadro  não  existe  outra  memoria,  pois  os  que  se  vêem  ali  actualmente,  se- 
gundo me  informa  o  respectivo  prior,  são  mais  modernos. 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  do  Convento  de  S.  Domingos  de  Lisboa.  L.°  20,  fl.  30. 
Abril,  1903.  14 


106  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

No  Corpo  Chronologko  existe  um  mandado  de  pagamento  de  um  moio  de 
trigo,  de  sua  tença,  a  Gregório  Lopes.  O  mandado  é  de  26  de  junho  de  1329, 
e  o  competente  recibo,  assignado  pelo  piutor,  é  de  4  de  setembro  do  mesmo 
anno. 

tDom  Joam  ele.  A  quamtos  esta  minha  carta  virem  faço  saber  qu?  que- 
remdo  eu  fazer  graça  e  mercê  a  Grigorio  Lopez,  meu  piuitor,  tenho  por  bem 
e  me  praz  que  ele  tenha  e  aja  de  mim  de  temça  com  o  dito  oficio  em  cada 
huu  ano,  de  janeiro  que  vem  de  quinhêtos  e  vimte  bj  em  diête  cimeo  mill  rs. 
e  hum  moio  de  trigo.  Porem  mamdo  aos  vedores. . .  Dada  em  a  minha  villa 
dAllmeirim  a  iiij  dias  de  nouembro.  Gaspar  Mêdez  a  fez  ano  de  noso  Senhor 
JhQ  x.°  de  mill  be  xxb.  E  eu  Damião  Diaz  a  fiz  escreuer.»  * 

«Dom  Joam  etc.  A  quamtos  esta  minha  carta  virem  faço  saber  que  avemdo 
respeito  ao  seruiço  que  me  fez  Gregório  Lopez,  que  foy  meu  pimtor,  e  que- 
remdo  por  ysto  fazer  esmolla  a  Isabell  Jorge  sua  molher,  tenho  por  bem  e  me 
praaz  que  ella  tenha  e  aja  de  mim,  de  janeiro  que  viraa  do  anno  de  bc  lj  em 
diamte,  cimquo  mill  rs.  e  huu  moyo  de  triguo  de  temça  por  esmolla  em  cada 
huu  anno  pêra  ajuda  de  sua  mamtemça  e  criação  de  suas  filhas,  que  he  outro 
tamto  como  o  dito  seu  marido  tinha  de  temça  com  o  dito  oficio;  e  mamdo  ao 
barão  dAlluito,  veedor  de  minha  fazemda,  que  lhe  faça  asy  asemtar  os  ditos 
b  rs  e  huu  moyo  de  trigo  no  liuro  dela  e  do  dito  janeiro  em  diamte  cadanno 
lhe  despache  tudo  omde  aja  bom  pagamento,  e  per  firmeza  dello  lhe  mamdey 
daar  esta  carta  de  padrão  per  mym  asyuada  e  asellada  do  meu  sello  pemdemte. 
Dioguo  Lopez  a  fez  em  Lixboa  a  xis  dias  do  mes  doutubro  anno  do  nascimemto 
de  noso  senhor  JhQu  Xpo  de  mill  bc  l.u,  e  eu  Damiam  Diaz  a  fiz  screver.» s 

Despesa  do  mez  de  setembro  (de  1536): 

«It  pagou  mais  o  dito  Recebedor  per  mandado  do  sobredito  padre  frey 
antonio  gouernador  e  perante  mi  spuão  a  gregorio  lopez  pintor  de  certos  re- 
tauollos  q  pintou  de  nouo  pêra  a  charolla  a  saber  hu  de  santo  antonio  e  outro 
de  sam  sebastião  e  outro  de  sam  bernaldo  e  outro  da  madanella  e  assi  dos 
retauollos  da  capella  de  nosa  Sra  cento  e  sasenta  e  oyto  mil  reaes  e  por  ver- 
dade asinou  aqui. 

Gr  goreo 
lopez3 

1  Torre  do  Tombo.  Chane.  de  D.  JoJo  III.  Doações.  L."  8,  fl.  134 

*Idem.  Idem.  L.«  69,  fl.  124. 

J  Idem.  Cartório  da  Ordem  de  Christo.  L°  23. 


ESTAMPA  IV 

Sousa  Viterbc  .  Noticia  de  alguns  pintores. 

r^\X>*ff  ^èn™**,  ^goO- —  / 

/Ç^v-w)-  •  3  «x  t>^«*.  o**^  «4***  fe^fP*  ^  >^^4^>c«. 

Jjn***  cxy  ff  --     "  fXjpu  ^X—~ 


Fac-simile  de  um  recibo  de  Gregório  Lopes,  publicado  a  pag.  106 

(hist.  e  mem.  da  acad.  E.  DAS  SC.  DE  LISBOA,  nov.  ser.,  CL.  DE  SC.  MOR.,  ETC,  TOMO  X,  PT.  I.) 


-V    T 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


107 


«Item,  na  Confraria  de  Sam  Quintino,  que  está  era  Nossa  Senhora  de 
Monte  Agraço,  termo  desta  cidade,  descobri  setenta  e  tantos  mil  reaes  que  an- 
dava sonegados  á  dita  Confraria  avia  muitos  annos  e  procedi  nisto  de  maneira 
que  os  fiz  trazer  a  juizo  e  mandei  fazer  as  peças  seguintes  pêra  a  dita  con- 
fraria, a  saber:  huu  frontal  de  cetim  avelutado  verde,  laurado  e  garnecido 
de  tella  douro  por  as  custuras,  e  muito  bem  acabado,  foi  avaliado  em  vinte  e 
dous  mil  rs.:  hum  tribulo  de  prata  com  sua  naveta,  que  custou  vinte  e  três 
mil  rs.:  hum  retavollo  dos  martírios  do  dito  santo,  que  em  branco  custou  vinte 
mil  rs.  e  a  pintura  com  seu  ouro  chegara  a  sincoenta  mil  rs.;  estase  acabando 
em  casa  de  Gregório  Lopez  pintor  de  Vossa  Alteza ;  das  outras  peças  esta  ja 
entregues  os  mordomos  da  dita  Confraria  foram  deste  preço  e  sorte  pêra  di- 
zerem com  outros  ornamentos  mui  ricos  que  tem  a  dita  confraria,  que  he  rica, 
e  sam  ledos  os  confrades  de  cousa  tam  bem  feita,  que  eu  seria  bem  aventu- 
rado se  fosse  tam  bõom  como  elles  dizem.»  * 

«Dom  Joham  per  graça  de  Deos  Rey  de  Purtuguall  e  dos  Alguarues  da- 
quem  e  dalém  maar  em  Africa  Senhor  de  Guiuee  etc,  mamdo  a  vos  almoxa- 
rife ou  Recebedor  do  Reguemgo  dAUjeez  que  do  Reradiraento  delle  do  anno 
presemte  de  quinhemtos  virate  e  noue  deis  a  Griguorio  Lopez  meu  pimtor  huum 
moyo  de  triguo  que  lhe  mamdo  dar  e  o  dito  anno  de  mim  ha  daver  de  sua 
temça  cõ  o  dito  oficio  o  qual  tem  asemtado  nas  liziras  de  Vila  Fframca  e  vos 
lhe  fazey  delle  bom  paguamento  e  por  esta  com  seu  conhecimento  vos  seraa 
leuado  em  comta  elRey  o  mandou  pelo  comde  do  Vimioso  veedor  de  sua  fa- 
zemda  —  Pêro  Amriquez  a  fez  em  Lixboa  xxbj  dias  de  junho  de  mill  bc  xxix. 
ho  Conde  =  Aluarus=. 

«i  moyo  de  triguo  no  Reguemguo  dAiljeez  a  Griguorio  Lopez  voso  pim- 
tor de  sua  temça  deste  ano  cõ  o  dito  oficio  o  qual  tem  asemtado  nas  liziras  de 
Villa  Framca. 

-iE  he  verdade  que  rrecebeo  grygoryo  Lopez  de  Gaspar  Dyaz  almoxarife 
do  Regengo  de  Aljez  hu  moyo  de  trygo  comtiudo  neste  dessembargo  e  por 
verdade  asynou  aquy  com  o  esprivam  que  este  fez  feyto  oje  iiij  dyas  de  se- 
tembro de  1529  anos=Grigoreo  Lopez  =  Manuell  Pirez.»1 

tEm  nome  de  Deos  amem.  Saibam  quantos  esta  carta  de  venda  virem  que 
no  ano  do  naçimento  de  nosso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mjl  quinhentos  e  treze 
anos  vynte  e  oylo  dias  do  mes  de  mayo  em  a  cidade  de  Lixboa  e  dentro  na 
cassa  do  moesteiro  de  Sam  Domjngos  desta  cidade  de  Lixboa  estamdo  hy  Die- 


•  Torre  do  Tombo.  Gav.  2,  maço  9,  n.°  37. 

2  Idem.  Corpo  Chronologico.  Farte  ir,  maço  156,  doe.  89. 


108  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

guo  Gill  pedreiro  e  Inês  Gonçaluez  sua  molher  moradores  atras  de  Santa  Ma- 
rja  da  Escada  da  dita  cidade  e  disserom  os  ditos  marjdo  e  molher  que  era 
uerdade  que  elles  tynham  Imas  cassas  de  hQu  sobrado  que  estam  detrás  o  dito 
logo  de  Sanla  Marja  da  Escada  que  partem  com  fero  Aluarez  taypeiro  e  cõ 
rua  que  vay  pêra  o  chaão  de  Dom  Aurrique  fillio  do  Marques  e  com  outras 
confrontaçoêes  cora  que  de  djreito  deuem  de  partyr  as  quaees  cassas  ssom  do 
moesteiro  do  dito  loguo  de  Sam  Domjugos  e  elles  dito  (sicj  Dieguo  Gill  e  Inês 
Gonçaluez  as  trazem  enprazadas  em  vida  de  três  pessoas  e  que  elle  Djego  Gill 
he  a  primeira  pessoa  e  pagua  de  foro  cento  e  çinquoeuta  reaes  ssegumdo  sse 
contem  majs  compridameute  no  contrauto  do  enprazameuto  delias  as  quaees 
queriam  vender  e  o  nõ  podiam  ssem  consentimento  do  moesteiro/e  lloguo  hy 
estauam  juntos  o  padre  írey  Lopo  Soarez  prioll  da  dita  cassa  e  moesteiro  e  o 
padre  frey  Francisquo  de  Vargas  padre  prioll  e  o  rreuerendo  padre  meestre 
Jorge  e  o  leceuçeado  frey  Lujs  e  o  bacharell  frey  Jobam  Lopez  e  ho  bacharell 
ffrey  Pedro  de  Queiroos  e  frey  Dieguo  dEuora  e  frey  Pedro  de  Palma  e  ou- 
tros padres  e  frades  do  conuento  os  quaees  todos  juntos  chamados  a  cabido 
per  campaa  tangida  ssegundo  sseu  bõ  custume  pêra  o  dito  negocio  da  dita 
venda  disserom  que  lhes  aprazia  darem  como  de  feito  derom  sseos  consenti- 
mentos aa  dita  venda  com  as  condiçoèes  que  he  custume  de  sse  lazer  que  he 
elles  auerem  sua  quarentena  e  majs  sserem  vendidas  a  tall  pessoa  que  cun- 
pra  as  condiçoèes  no  dito  contrauto  de  enprazameuto  asy  e  pella  guissa  que 
sse  nelle  coutem  per  bem  do  qual  consentimento  dos  ssobre  ditos  padres/os 
ditos  Dieguo  Gill  e  a  dita  lues  Gonçaluez  ssua  molher  disserom  que  elles  ven- 
diam como  loguo  de  feito  venderom  doje  em  diante  as  ditas  cassas  a  Grigo- 
rio  Lopez  pintor  que  presente  estaua  morador  na  dita  cidade  com  todas  suas 
entradas  e  saydas  djreitos  e  pertenças  e  logradoiros  e  como  pertencem  ao  dito 
senhorio  e  como  a  ele  Djeguo  Gill  perteuçem  per  bem  de  sseu  enprazamento 
e  com  o  dito  encarrego  dos  ditos  cento  e  çinquoenta  rreaes  que  fazem  de  foro 
em  cada  hQu  ano  nas  pesoas  que  as  elles  tem  por  preço  de  vynte  mjl  rreaes 
em  ssaluo  de  sissa  pêra  elle  Djeguo  Gdl/o  quall  dinheiro  loguo  hy  contou  e 
rrecebeo  do  dito  Grigorio  Lopez  conprador  e  porem  deram  os  ditos  vendedo- 
res qujtaçom  pêra  ssenpre  dos  ditos  vynte  mjl  rreaes  e  a  todos  sseos  bêes  e 
herdeiros  e  tirarom  e  demetiram  e  rrenunciarom  loguo  de  sy  todo  djreito  au- 
çom  posse /vtelle  domjno  que  tynham  e  aujam  nas  ditas  cassas  e  a  poserom  e 
trespassarem  em  o  djto  Grigorjo  Lopez  comprador  e  em  sseos  herdeiros  pêra 
fazerem  delias  cassas  o  que  quisserem  como  de  coussa  sua  foreira  e  obriga- 
rem todos  sseos  bêes  asy  moues  como  de  rraiz  a  lhe  manterem  pêra  senpre 
esta  venda  e  lhe  fazerem  as  ditas  cassas  sseguras  liures  e  de  paz  de  quem 
quer  que  lhes  demande  ou  embargue  sob  pena  de  lhes  pagarem  todas  perdas 
e  dapnos  e  custas  que  por  ello  fezerem  e  rreçeberem  e  com  o  dobro  do  dito 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  109 

preço  por  pena  e  jnteresse  per  todos  sseos  bêes  que  pêra  ello  obrigarom  e  os 
ditos  padres  rreçeberom  do  dito  comprador  qujnlienlos  rreaes  de  sua  quaren- 
tena e  em  testemunho  dello  asy  no  outorgarom  e  lhe  maudarom  ser  feila  esta 
carta  e  as  que  lhe  conprirem/testemunhas  que  a  esto  presentes  estauam  Mj- 
guell  Nunez  e  Jorge  Leall  anbos  pintores  e  Duarte  de  Sequeira  taballiom  e 
disse  majs  o  dito  Djoguo  Gill  vendedor  que  trespassaua  de  sy  a  sua  pessoa 
que  era  a  primeira  que  no  dito  contrauto  sse  contynha  e  a  punha  no  dito  Gri- 
gorio  Lopez  e  aos  ditos  padres  todos  aprouue  dello  e  per  firmeza  de  verdade 
asynarom  aquj  todos  e  eu  Gonçalo  do  Hego  escudeiro  delRey  nosso  senhor  e 
espriuam  pubrico  por  sua  autorjdade  por  Duarte  Rodriguez  taballiom  na  dita 
cidade  e  sseos  termos  que  esto  espreuj  e  haquj  meu  pubrico  synall  fiz  que 
tall  he. 

«Pagou  com  camjnho  estada  e  purgamjnho  cxxx  reaes.» ' 


Louredo  (António  de  Oliveira  de). —  Vide  Oliveira  de  Louredo  (António  de). 


LXXIV. —  Luiz  (António). —  Era  filho  de  Luiz  Fernandes,  pintor  da  Ca- 
mará de  Lisboa.  Esta,  attendendo  a  que  o  pae  já  servia  ha  mais  de  vinte  an- 
nos,  deu  o  ofificio  ao  filho,  segundo  um  accordo  celebrado  em  15  de  outubro 
de  1543.  N'este  accordo  se  diz  que  António  Luiz  era  bom  oGQcial  e  que  não 
levantaria  o  preço  nas  obras  das  varas  e  dos  pendões.  O  alvará  da  nomeação 
da  Gamara  foi  confirmado  em  11  de  fevereiro  de  1549. 

«Eu  elRey  faço  saber  a  quamtos  este  meu  aluara  virem  que  por  parte  de 
Luis  Fernandez,  pimtor  da  cidade  de  Lixboa,  me  foy  apresemtado  hum  aluara 
asynado  per  dom  Garcia  d  Eça  e  o  doutor  Fernão  Miz,  que  forão  vereadores 
da  dita  cidade  e  por  Amtão  dAgiar,  que  foy  procurador  da  dita  cidade  e  asy 
per  Bertolameu  Rodriguez,  Francisco  Diaz  e  R.°  Aluárez,  procuradores  dos 
mesteres  dela,  per  que  lhes  aprouue  de  per  falecimento  do  dito  Luis  Fernan- 
dez darem  o  dito  oficio  Amtonio  Luis,  pimtor,  seu  filho,  do  quall  aluara  o  tre- 
lado  he  o  seguinte:  «Praz  aa  cidade  que  per  falecimento  de  Luis  Fernandez, 
pimtor  da  cidade,  o  seu  oficio  fique  e  o  aja  Amtonio  Luis,  seu  filho,  outrosy 
pimtor,  por  ser  muito  bom  oticiall  do  dilo  oficio,  avemdo  respeito  aaver  xx 
anos  que  o  dito  Luis  Fernandez,  pimtor,  serue  com  o  dito  seu  oficio  a  cidade 
por  seu  dinheiro,  e  porem  ele  dito  Amtonio  Luis,  filho  do  dito  Luis  Fernandez 
que  o  dito  oficio  adaver  per  seu  falecimemto  não  leuara  mais  pellas  varas  e 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  do  Convento  de  S.  Domingos  de  Lisboa.  L."  20,  perg.0  n.°  31. 


1  10  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

pemdoês  que  lhe  a  cidade  mãdar  fazer  que  o  preço  que  se  ora  leua  e  não 
aleuãtara  mais  o  preço  das  ditas  obras,  e  por  certeza  asinarão  todos  este 
acordo  e  mãdarão  dar  o  trelado  dele  ao  dito  Luis  Fernãdez  oje  xb  doutubro 
de  Jb°  Riij.  Xpouão  de  Magalhães  o  fez  espreuer.»  E  pedindorae  o  dito  Luis 
Fernãdez  por  mercê  que  lhe  comfirmace  o  dito  aluara,  e  visto  seu  requiri- 
mento,  e  por  lhe  fazer  mercê,  ey  por  bem  e  me  praz  de  o  comfirmar  como 
de  feito  per  este  cõfirmo  e  ey  per  comfirmndo  e  mãdo  que  se  cumpra  e  guarde 
como  se  nele  comtem.  J.°  de  Seyxas  o  fez  em  Almeirim  a  xj  dias  de  feuereiro 
de  jbc  Rix  M.*1  da  Costa  o  fez  espreuer.» ' 


LXXV. —  Martins  (João).  l.°  —  Era  pintor  da  Sé  de  Lisboa,  e,  tendo 
commettido  adultério  com  uma  mulher  casada,  foi  condemnado  a  sele  annos 
de  degredo  para  Ceuta.  O  deão  e  o  cabido,  vendo  a  necessidsde  que  tinham 
d'este  offlcial,  requereram  a  el-rei,  pedindo-lhe  que  transmutasse  a  pena,  a  qual 
foi  effectivamente  commutada,  ficando  João  Martins  obrigado  a  trabalhar  du- 
rante aquelle  tempo  nas  obras  do  sobredito  edifício,  não  sahindo  para  fora 
delle,  passeando  apenas  na  crasla  e  no  cemitério.  A  respectiva  carta  é  de  29 
de  maio  de  1441. 

«Dom  Afomso  etc.  A  uos  G.°  Gllz  Camello,  nosso  chamceller  em  a  casa 
do  ciuel,  que  ora  teendes  carrego  do  Regimento  delia  e  aos  desêbargadores  da 
dita  casa  e  a  todollas  outras  justiças  dos  nosos  regnos  a  que  esta  carta  for  mos- 
trada, saúde,  sabede  que  o  deam  e  cabidoo  da  see  da  nosa  muy  nobre  leal  ci- 
dade de  Lixboa  nos  enuyarom  dizer  que  Joham  Miz,  pyntor,  era  ora  preso  em 
prisom  da  dita  cidade  por  huua  molher  casada  que  asy  por  pubrica  era  auuda 
a  per  razom  da  qual  fora  condepnado  na  terra  que  pagou  quinhentos  brancos 
e  apellado  por  parte  da  justiça  e  que  em  nosa  Rellaçom  fora  degradado  pêra 
Cepta  por  sete  anos,  e  que  por  quanto  elle  era  muyto  necesairo  per  razom  do 
seu  oficio  pêra  pintar  a  dita  See,  que  nos  pidiã  por  mercê  que  aa  honra  da 
morte  e  paixom  de  nosso  SeDhor  Ihesu  x.°  e  do  mártir  sam  Vicente  qne  lhe  al- 
çasemoso  dito  degredo  de  Cepta  e  o  manteuesse  em  a  dita  see  servindoa.  E  nos 
veendo  o  que  nos  asy  dizer  e  pidir  enuyarom,  querendo  fazer  graça  e  mercê  ao 
dito  Joham  Miz  aa  honrra  da  dita  morte  e  paixom  e  do  mártir  sam  Vicente, 
Teemos  por  bem  e  releuamollo  de  estar  em  a  dita  cidade  de  Cepta  os  dUos 
sete  anos  contanto  que  el  sirua  todo  o  dito  tem  pode  sete  anos  conlinoadamente 
per  sua  pessoa  dentro  na  dita  see,  e  possa  andar  per  a  crasta  e  todo  o  cimi- 
terio  delia  sem  pasando  nem  sayndo  fora  destes  llugares,  e  seendo  achado  fora 


•  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  JoSo  III.  L.»  70,  fl.  119. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  11  i 

que  seja  enforcado.  No  qual  tempo  de  sete  anos  elle  sirua  ao  dito  cabydoo  em 
seu  oficio  aa  sua  aueença  e  do  dito  cabydo.  E  uos  o  mandaae  logo  soltar  se 
por  ai  nom  for  preso  e  entregar  em  a  dita  see,  e  fazee  registar  esta  carta  no 
feito  que  contra  o  dito  Joham  Miz  foy  hordenado  o  dia  en  que  o  asy  entregaaes 
e  dhi  em  diante  comece  de  seruir  em  a  dita  see  ata  acabados  os  ditos  sete  anos, 
os  quaes  acabados  dhi  em  diante  posa  uiuer  e  morar  em  quaes  quer  llugares 
de  nosos  Reguos  onde  quiser  e  por  bem  teuer  sem  mais  seer  preso  nem  acusado 
quanto  lie  per  razom  do  dito  adultério  e  de  nom  mãteer  mais  o  dito  degredo 
em  a  dita  cidade  de  Cepta  por  que  nosa  mercê  e  voontade  be  de  seer  de  todo 
perdoado  e  relleuado  pella  guisa  que  dito  he  unde  ai  non  façades.  Dada  em  a 
uilla  de  Torres  Uedras  xxix  de  mayo  per  os  ditos  desembargadores  —  D.°  Al- 
uez  a  fez  anno  de  iiijc  Rj.» ' 


LXXVI. —  Martins  (João).  2.°  —  Pintor,  morador  em  Trancoso.  D.  Ma- 
nuel, em  carta  de  28  de  abril  de  1496,  o  nomeou  escrivão  das  cisas  da  feira 
d'aquella  villa,  assim  como  já  o  era  por  carta  de  D.  João  II. 

«Dom  Manuell  etc.  Aquamtos  esta  nossa  carta  virem  fazemos  saber  que 
queremdo  nos  fazer  graça  e  merçe  a  Joham  Martinz  pymlor  morador  em  Tram- 
coso  e  comliamdo  delle  que  neste  oficio  nos  seruira  bem  e  como  compre  a 
nosso  seruiço  e  queremdolhe  fazer  graça  e  merçe  teemos  por  bem  e  damollo 
daquy  em  diamte  por  sprivam  das  sisas  da  feira  da  dita  vila  de  Trancosso  asy 
e  pella  guisa  que  o  atee  quy  foy  per  carta  delRoy  meu  senhor  que  Deus  aja. 
E  porem  mandamos  ao  nosso  comtador  em  a  dita  comarca  e  a  quaes  quer 
outros  nosos  oficiaes  e  pesoas  a  que  esta  nosa  carta  for  mostrada  e  o  conhe- 
cimento delia  pertemçer  que  o  ajam  daquy  em  diamte  por  sprivam  das  sisas 
da  dita  feira  e  lho  leixem  seruir  e  husar  delle  e  aver  de  mantimento  em  cada 
hQu  anno  trezemtos  reaes  quando  o  dito  almoxarifado  nom  for  arremdado  e 
quamdo  o  for  avera  a  custa  dos  rremdeiros  delle  segundo  ordenamça  sem  a 
ello  poerem  duujda  nem  embargo  que  a  ello  ponham  por  que  asy  he  nosa 
merçe  o  quall  Joham  Martinz  jurou  em  a  nosa  chancellaria  aos  Samtos  avam- 
jelhos  etc,  em  forma.  Dada  em  Setuuell  a  xxbiíj0  dias  dabrill  elRey  o  mandou 
per  dom  Martinho  de  Castelbramco  do  seu  comselho  e  vedor  de  sua  fazenda 
Senhor  de  villa  Noua  de  Portimam.  Lopo  Fernandez  a  ffez  anno  de  noso  Se- 
nhor Jhesu  Ghristo  de  mill  iiijc  Ir.  bj  annos. » * 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.»  2,  fl.  118. 

2  Idem.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.°  40,  fl.  35. 


112  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


LXXVII.  —  Martins  (Lourenço). —  Residente  em  Cintra.  D.  Affonso  Voto- 
mou  por  seu  pintor  e  lhe  deu  carta  de  privilegio  em  16  de  dezembro  de  1449. 
Já  o  havia  sido  de  D.  Duarte. 

O  meu  illustrado  amigo  Anselmo  Braamcamp  Freire  teve  conhecimento 
d'este  artista,  exercendo  a  sua  actividade  em  Cintra,  com  relação  aos  annos 
de  1430,  1431,  1446  e  1449.  N'aquelles  dois  primeiros  annos  figura  simples- 
mente como  piutor.  Lourenço  Martins  fora  irmão  e  depois  juiz  da  confraria 
dos  Fieis  de  Deus.  Em  1437  era  um  dos  homens  bons  da  vereação  da  villa.  Es- 
tes dados  colheu-os  o  sr.  Braamcamp  em  três  documentos  da  confraria  dos 
Fieis  de  Deus  e  n'outro  pertencente  á  Misericórdia  de  Cintra.  Consulte-se  o  1.° 
volume,  pag.  xxxv  e  seguinte,  do  Livro  primeiro  dos  brasões  da  sala  de  Cintra. 

€  Dom  Afomso  etc.  A  quantos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos  to- 
mamos por  nosso  pintor  Lourenço  Martins,  morador  em  Sintra,  pintor  que  foy 
dei  Rei  meu  senhor  e  padre,  cuja  alma  Deus  aja,  e  queremos  e  mandamos  que 
seja  priuiligiado  e  escussado  de  todollos  êcarregos  e  seruidooês  e  peitas  e  fim- 
tas  e  talhas  dos  concelhos  honde  quer  que  morar  e  dos  nossos  pedidos  e  ser- 
uiços  e  empreslidos  que  lançarmos  e  de  nom  parecer  em  alardo  nem  teer 
beesta  nem  armas  nem  cauallo  nem  seer  acontiado,  posto  que  tenha  a  contia 
per  honde  possa  teer  cada  huua  das  ditas  cousas  nem  seer  titor  nem  curador 
de  nenhuns  horfõos  e  também  seja  scussado  de  pousadias  (em)  suas  cassas  de 
morada  e  adegas  e  caualariças  nem  lhe  seja  tomada  roupa  nem  bestas  nem 
outra  cousa  do  sseu  contra  sua  vontade,  posto  que  nos  a  Rainha  minha  molher 
e  ifantes  meus  irmãaos  e  tyos  e  outras  quaees  quer  pesoas  sejamos  honde  el 
for  morador.  E  porem  mãdamos  aas  nossas  justiças  e  apousentadores,  saca- 
dores e  recebedores  dos  ditos  pedidos  e  a  outros  quaees  quer  que  esto  ouue- 
rem  de  veer,  a  que  esta  carta  for  mostrada  que  lha  compram  e  guardem  e 
faça  cõprir  e  guardar  como  em  ella  he  cõtheudo  sem  outro  alguu  êbargo.  Dada 
em  Euora  xbj  dias  de  dezembro  —  Gonçalo  de  Moura  a  fez  —  auno  de  mil  iiii0 
Rix  Ruy  Galuom  a  fez  escpreuer.» l 

LXXVIII. —  Matta  (António  da). — Illuminador,  que  vivia  no  reinado  de 
D.  Sebastião.  Sabe-se  da  sua  existência,  indirectamente,  por  uma  carta  de  per- 
dão, concedida  a  um  Francisco  Mergulhão,  o  qual,  n'uma  noite  de  maio  de 
1565,  espancara  uma  mulher.  António  da  Matta  acudiu,  mas  o  Mergulhão  fe- 
riu-o  n'um  braço  e  na  mão  com  uma  espada.  O  illuminador  querelou  do  seu 


1  Ton-d  do  Tombo.  Ch&ne.  de  D.  Affonso  V.  L.»  34,  fl.  169. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  i  1 3 

aggressor,  e  este  foi  recolhido  á  cadeia.  Curado  das  suas  feridas,  António  da  Matta 
perdoou-lhe,  e  el-rei  fez-Ihe  égua!  mercê  em  carta  de  13  de  dezembro  de  1S66. 

«Dom  Sebastjão  etc.  A  todollos  corregedores  ouujdores  juizes  e  justiças 
de  meus  Reynuos  e  senhoryos  a  que  esta  mynha  carta  de  perdão  for  mostrada 
e  o  conhecimento  delia  com  direito  pertencer  sande  faço  saber  que  Francisco 
Mergulhão  mancebo  sollteiro  morador  nesta  cidade  de  Lixbo.i  me  enujou  dizer 
por  sua  petição  que  elle  eslaua  preso  na  cadea  desta  cidade  por  delle  querel- 
lar  hum  António  da  Mala  yluminador  dizendo  que  hum  dos  dias  do  mes  de 
mayo  do  anno  pasado  de  Ixb  de  noyte  elle  soplicante  dera  húa  espalldejrada  a 
bua  molher  e  que  sobre  jso  vyera  o  dito  António  da  Mata  aver  rrezõis  cõ  elle 
sopricante  contra  elle  quejxoso  arrancara  elle  sopricaute  da  espada  e  sobre  as 
ditas  pallauras  lhe  dera  húa  feryda  ou  estocada  no  braço  e  mão  direita  estando 
eu  nesta  cidade  cõ  mjnha  corte  e  porque  o  dito  queixoso  era  são  e  sem  alei- 
jão e  lhe  tinha  perdoado  como  parecya  do  estromento  junto  e  elle  sopricante 
era  mancebo  pobre  e  se  perdera  na  prysão  me  pidio  ouuese  por  bem  de  lhe 
perdoar  a  cullpa  que  no  dito  caso  tiuera  da  maneira  que  dizya  e  Receberia 
merçe.  Eu  vendo  o  que  me  elle  sopricante  asy  dizer  e  pidir  enujou  e  queren- 
do lhe  fazer  graça  e  merçe  visto  hum  prazme  asjnado  pelo  licenceado  Fran- 
cisco Diaz  do  Amaral  do  meu  conselho  e  meu  desembargador  do  paço  e  piti- 
çõis  a  quem  pêra  ello  tenho  dado  poder  ey  por  bem  e  me  praz  se  asy  he  como 
o  sopricante  diz  e  hy  mais  não  ba  de  lhe  perdoar  a  culpa  do  arrancamento  e 
ferymento  que  diz,  visto  o  perdão  do  ferydo  que  offereçe  e  pagara  quatro  mil 
reaes  pêra  a  piedade  e  por  quanto  elle  sopricante  pagou  os  ditos  quatro  mil 
reaes  pêra  a  piedade  a  Pedre  Alluarez  de  Landym  meu  esmoller  segundo  dello 
fuj  certo  por  hum  seu  asjnado  de  como  os  rrecebera  e  por  hum  conhecimento 
de  Pêro  Gomez  Madeira  thesoureiro  da  mjnha  capella  e  escryuâo  de  seu  car- 
rego de  como  os  sobre  elle  carregara  em  rreceyta  vos  mando  que  ho  sollteis 
não  sendo  por  ali  preso  e  que  daquy  em  dyante  não  procedais  contra  elle  so- 
pricante nem  o  prendais  nem  mandeis  prender  nem  lhe  façais  Dem  consjntais 
fazer  mal  nem  outro  allgum  desagujsado  quanto  he  por  rrezão  do  conteúdo 
em  sua  pityção  e  em  esta  mynha  carta  e  decllarado  porque  mynha  mercê  e  von- 
tade he  de  lhe  perdoar  pello  modo  sobre  dito  o  que  asj  comprj  e  ali  não  fa- 
çais. Dada  em  Lixboa  aos  xj  dias  do  mes  de  dezembro  e  feyta  aos  xiij  elRey 
noso  senhor  o  mandou  pelo  Licenceado  Francisco  Diaz  do  Amaral  e  o  doutor 
Christovão  Mendez  de  Carualho  ambos  do  seu  conselho  e  seus  desembargado- 
res do  paço  e  pitiçõis.  António  Velho  a  fez,  anno  do  nacymeuto  de  Noso  Se- 
nhor Jhesu  Christo  de  jb.c  Ixbj.  Gaspar  Velho  a  fez  escreuer.»  * 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Sebastião  e  D.  Henrique.  Perdões  e  legitimações.  L."  14 
fl.  ÍS2  t. 

Abril,  1903.  15 


114  NOTICIA  DE  ALGCNS  PINTORES 


LXXIX. — Mattos  (Francisco  de).— Eis  aqui  o  nome  de  um  artista  no- 
tabilissimo,  que  não  foi  inscriplo  nos  annaes  da  arte  portugueza,  nem  se  acha 
registado  no  Dictionnaire  de  Raczynski,  que  recopilou  os  escriptores  da  espe- 
cialidade que  o  antecederam.  Francisco  de  Mattos  é  todavia  um  pintor  de  raça, 
de  imaginação  vigorosa  e  delicada  ao  mesmo  tempo.  O  que  parece  incrível, 
dadas  as  snas  poderosas  faculdades,  é  que  o  seu  talento  não  tivesse  sido  apro- 
veitado officialmenle,  pelo  menos  que  se  saiba.  Nos  archivos  reaes  não  se  en- 
contra, ou  não  se  encontrou  ainda,  nenhum  diploma  que  lhe  diga  respeito.  É 
no  palácio  de  Azeitão,  largamente  reconstruído,  no  bello  estylo  do  renascimento 
italiano,  pelo  filho  de  Affonso  de  Albuquerque,  e  que  é  mais  vulgarmente  co- 
nhecido pelo  palácio  da  Hacalhòa,  que  se  encontram  as  principaes  obras  de 
Mattos  que  lhe  assignalam  um  logar  de  primeira  ordem  entre  os  pintores  ce- 
râmicos do  século  xvi.  O  palácio  da  Bacalhôa  é  riquíssimo  em  majolicas,  e  quasi 
se  pôde  considerar  um  museu  n'esta  especialidade.  O  appellido  de  Mattos  sim- 
plesmente subscreve  algumas  das  peças  capitães  d*essa  collecção,  com  a  data 
de  1565,  mas  creio  que  não  haverá  a  menor  duvida  em  identifical-o  com  o 
auctor  dos  bellissimos  azulejos  polychromos  que  revestem  a  parte  inferior  das 
paredes  da  capella  de  S.  Roque,  na  egreja  d'esse  mesmo  titulo,  fundação  dos 
jesuítas,  em  Lisboa,  assignados  Francisco  de  Mattos  e  com  o  anno  de  1584. 
A  distancia  de  19  annos,  que  vae  de  uns  a  outros,  não  pôde  de  per  si  só  au- 
ctorisar  a  que  se  attribuam  a  differentes  artistas. 

Na  mesma  egreja,  á  entrada,  as  paredes  são  forradas,  de  um  e  de  outro 
lado,  de  azulejos,  de  singelo  padrão,  mas  bonitos  e  elegantes,  tendo,  ao  lado 
esquerdo  de  quem  entra,  o  monogramma 


[XX] 


um  MA  entrelaçados  e  a  data  1596.  Do  lado  opposto  egual  millesimo  somente. 
Não  sei  se  Francisco  de  Mattos  exercitaria  o  seu  brilhante  e  fecundo  pin- 
cel em  outra  matéria  que  não  fosse  o  barro.  A  sua  vida  e  a  sua  obra  recla- 
mam um  estudo  serio,  de  onde  resultaria,  por  certo,  não  pequena  gloria  para 
o  nosso  paiz,  generalisando-se  o  conhecimento  de  um  artista  de  illustre  raça, 
que  se  poderia  pôr  a  par  de  Vasco  Fernandes  e  dos  grandes  mestres  das  es- 
colas estranhas.  A  interessante  memoria  de  Joaquim  Rasteiro,  Quinta  e  Palá- 
cio Ja  Bacalhôa,  seguida  do  competente  álbum,  publicados,  ura  e  outro  volume, 
em  1895-1898,  podem  servir  de  valioso  subsidio  para  tal  estudo. 


NOTICIA  Dl!  ALGUNS  PINTORES  115 


LXXX. — Mendes  (Álvaro). —  Era  morador  em  Torres  Novas,  e,  andando 
empregado  como  pintor  nas  obras  que  D.  João  II  mandara  fazer  nos  paços  de 
Évora,  alli  foi  preso  e  condemnado  a  um  anno  de  degredo  para  o  couto  de 
Mertola  polo  crime  de  blasphemia,  tendo  arrenegado  de  Nosso  Senhor.  Sup- 
plicando  a  el-rei  que  lhe  commutasse  a  pena  em  alguma  obra  piedosa,  D.  João  II 
lh'a  commutou,  com  effeito,  ordenando  que  elle  fosse  trabalhar  três  mezes 
de  graça  no  mosteiro  do  Espinheiro  (Évora).  A  respectiva  carta  de  perdão  é 
de  2-  de  outubro  de  1490. 

«Dom  Joham  etc,  saúde,  sabede  que  Aluaro  Mêdez,  pintor,  morador  em 
a  villa  de  Tores  Nouas,  nos  êviou  dizer  que  andando  elle  em  as  obras  que  man- 
damos fazer  em  os  nosos  paços  da  nosa  cydade  dEnora  nos  enuiaraa  presen- 
tar  hua  emformaçam,  em  a  quall  uos  fizera  a  saber  que  elle  era  culpado  em 
hQua  deuasa  que  este  anno  presente  de  iiijc  e  nouenta  annos  se  tirara  em  a 
dita  villa  que  arenegara  de  noso  Senhor,  em  a  quall  êformaçam  per  os  no- 
sos desenbargadores  do  paço  fora  posto  hum  desenbarguo  que  fose  perdoado 
contanto  que  fose  estar  e  seruir  huu  anno  ao  couto  de  Mertolla  segúdo  ho  ver 
podervamos  pello  dito  desenbarguo,  ho  quall  perante  nos  foy  apresentado  pe- 
dindo nos  elle  sopricante  por  mercê  que  lhe  mudasemos  o  dito  anno  de  de- 
gredo em  algQa  obra  piadosa,  etc.  E  visto  per  nos  seu  dizer  e  pedir,  e  que- 
rêdolhe  fazer  graça  e  mercê,  visto  huu  prazme  com  ho  noso  pase,  temos  por 
bem  e  perdoamos  lhe  a  nosa  justiça,  a  que  nos  elle  per  rezom  do  dito  caso 
era  theudo  e  o  relleuamos  da  pena  do  degredo,  que  por  ho  dito  caso  lhe  era 
posto  contanto  que  elle  serua  de  seu  oficio  em  ho  moesteiro  de  Santa  Marya  do 
Espinheiro  três  meses  de  graça,  e  se  o  elle  asy  nom  fizer  esta  carta  lhe  nom 
valha  e  comprindo  ho  asy  mandamos  que  daquy  em  diante  ho  nom  prendaees 
nem  mandes  prender  ele.  em  forma.  Dada  em  a  villa  de  Viana  dapardAluito 
aos  dous  dias  do  mes  doytubro  ElIRey  ho  mandou  pellos  doutores  Ruy  Boto 
e  Fernam  da  Mezquita,  ambos  seus  desenbargadores  do  paço  — Ruy  Fernan- 
dez  a  fez  anno  do  nacymenlo  de  noso  Snhor  Ihesu  Xpo  de  mil  iiijc  e  nouenta 
annos.  E  por  que  ao  asynar  desta  carta  aqui  non  eram  os  ditos  doutores  asy- 
naram  por  elles  o  licenceado  Ayres  d  Almada,  do  desenbargo  do  dito  Senhor 
e  corregedor  da  sua  corte,  e  o  doutor  Pêro  Vaz,  vigairo  de  Tomar.» ' 


i  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  João  II.  L.°  16,  fl.  98  v. 


116  NOTICIA  DE  ALGUNS  PLNTORES 


LXXXI. —  Mendes  (Jorge). — Era  pintor  e  residente  em  Lisboa.  Accusado 
de  ter  puxado  de  um  punhal  contra  seu  primo,  a  justiça  o  condemnou  a  um 
anno  de  prisão  para  Arzila.  D.  Manuel,  porém,  lhe  relevou  a  pena,  passando- 
lhe  carta  de  perdão  a  28  de  janeiro  de  1513. 

«Dom  Manuell  etc,  fazemos  saber  que  Jorge  Mendez  pymlor  morador  em 
a  nosa  cidade  de  Lixboa  nos  enuyou  dizer  per  sua  pitiçam  que  por  se  comtra 
elle  dizer  que  arramcara  em  a  nosa  corte  de  hum  pinhall  (sic)  comtra  bnm 
Jorge  Mendez  seu  primo  se  procedera  tamto  comtra  elle  que  fora  condenado 
per  sentença  em  hum  anno  de  degredo  com  pregão  na  audiência  pêra  nosa 
vyla  d  Arzila  a  qual  acusaçam  e  degredo  e  com  fforo  (sic)  na  audiência  con 
ele  sopricamte  fora  feyta  segumdo  ver  poderíamos  pola  semtença  de  seu  li- 
uramento  que  logo  perante  nos  apresentar  emvyou  esprila  em  purgaminho  e 
asynada  poios  desembargadores  que  andam  em  a  nosa  casa  do  ciuel  e  aselada 
com  o  noso  selo  pendemte  a  que  se  continha  o  dito  sopricamte  foy  feyta  a  em- 
xucaçam  de  degredo  com  pregam  na  audiência  e  fora  dado  sobre  fyamça  pêra 
se  jr  seruir  e  comprir  seu  degredo  emvyamdonos  ele  pidir  por  mercê  que  o 
rreleuasemos  e  ouvesemos  por  rreleuado  da  seruentia  em  que  asy  fora  con- 
denado posto  que  o  nam  teuese  começado  a  seruir  e  nos  vendo  o  que  nos  elle 
asy  dizer  e  pidir  emviou  se  asy  lie  como  ele  diz  e  hy  mais  nom  ha  vista  a  sen- 
tença de  sem  (sic)  liuramento  e  hum  praz  me  per  nos  asynado  querendo  lhe 
fazer  graça  e  merçe  temos  por  bem  e  nos  apraz  de  lhe  rreleuarmos  como  de 
feyto  rreleuamos  da  seruentia  do  dito  ano  de  seu  degredo  posto  que  o  nam  te- 
nha começado  a  seruir  com  tanto  que  ele  pagase  quatro  mill  reaes  pêra  a  pie- 
dade os  (sic)  que  por  quanto  logo  pagou  os  ditos  dinheiros  a  Djogo  Fernandez 
Cabral  segundo  dello  fomos  certo  per  hum  seu  asynado  e  per  outro  de  Jam 
de  Nontaches  outro  sy  noso  capelão  e  esprivão  do  dito  cargo  que  os  sobre  ele 
pos  em  rreceyta  vos  mandamos  etc,  em  forma.  Dada  em  Euora  a  xxbiij  djas 
de  Janeiro  elRey  o  mandou  somente  polo  vigário  de  Tomar  etc.  Feruam  Ro- 
driguez  a  fez  de  bc  xiij.» ' 


LXXXTI. — Moralles  (António  de). — Morava  na  villa  de  Olivença.  D. 
Affonso  V  lhe  deu  carta  de  privilegio,  isentando-o  dos  encargos  Ja  aposenta- 
doria, em  13  de  outubro  de  1475. 

Já  se  vê  que  não  se  pôde  nem  deve  confundir  este  Moralles  com  o  seu 


'  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  Legitimações.  L."  1,  fl.  264. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  117 

homonymo  cognonimado  o  Divino,  e  que  foi  uma  das  glorias  da  pintura  hes- 
panhola  no  século  xvi. 

«Dom  Afomso  Rey  de  Castella  etc  A  quantos  esta  carta  virem  fazemos 
saber  que  nos  queremdo  fazer  graça  e  mercê  a  António  de  Moralles,  pintor, 
morador  em  a  nossa  villa  dOlliuença,  temos  por  bem  e  queremos  que  daquy 
em  diante  nom  pousem  com  elle  em  suas  casas  de  morada,  adeguas  nem  ca- 
ualariças  nem  lhe  tomem  roupa  de  cama  nem  alfaias  de  casa.  E  porem  man- 
damos ao  nosso  apousemlador  e  do  príncipe  etc.  Dada  em  Estremoz  a  treze 
dias  doutubro.  El  Rey  o  mandou  e  o  senhor  príncipe  a  asinou.  Lopo  Fernandez 
a  fez  anno  de  mil  iiif  lxxb.» ' 


LXXXIII. —  Negreiros  (José  da  Costa). —  Pintou  os  quadros  da  ermida 
de  S.  Roque,  no  Tojal. 

Vide  Diccionario  Geographko  da  Torre  do  Tombo,  fl.  415  do  vol.  xxxvi. 


LXXXIV. —  Nicoloso  (Francesco).—  D'esta  forma,  Nicoloso  italian  me  fe- 
di, subscreveu  um  bello  quadro  de  azulejo,  que  pertenceu  a  el-rei  D.  Fernando, 
e  que  este,  segundo  ouvi  dizer,  achara  embutido  na  parede  de  uma  casa  de 
Lisboa,  talvez  casa  religiosa.  Figurou  na  Exposição  de  Arte  Ornamental  de 
1882,  nas  collecções  d'aquelle  monarcba,  sala  F,  n.°  147.  Representa  a  Vm- 
íação. 

Com  toda  a  probabilidade  este  Nicoloso  é  o  mesmo  Nicoloso  Francesco 
que  assigna  os  bellos  azulejos  que  adornam  o  sepulchro  da  egreja  de  Sant'- 
Anna,  em  Sevilha,  e  que  estão  assignados  d'esta  forma:  Nicoloso  Francesco  ita- 
liano me  fecit,  en  el  agno  dei  mil  ccccc  iii. 

Veja-se  Riano,  The  industrial  arts  in  Spain,  pag.  169. 

É  de  crer  que  Nicoloso  estivesse  em  Hespanha  e  que  visitasse  também 
Portugal. 


LXXXV.— Nunes  (Miguel).— Designado  como  pintor,  sem  mais  nenhum 
outro  pormenor  elucidativo,  apparece,  na  qualidade  de  testemunha,  no  con- 
tracto de  venda  de  umas  casas  a  Gregório  Lopes.  A  escriptura  é  de  28  de  maio 
de  1543  e  dou-a  integralmente  no  artigo  que  se  refere  a  Gregório  Lopes. 


'  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.°  30,  fl.  Í9. 


118  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


LXXXVI. — Oliveira  Bernardes  (António  de). — Com  os  appellidos  de  Oli- 
veira Bernardes  existe  uma  numerosa  família  de  pintores,  cuja  biographia  não 
está  suficientemente  desenvolvida  e  elucidada.  Tanto  Taborda  como  Cyrillo  tra- 
tam d'ella  sob  o  titulo  de  Ignacio  de  Oliveira,  filho  de  António  de  Oliveira,  pa- 
recendo dar,  por  esta  preferencia,  a  Ignacio  de  Oliveira  uma  certa  superioridade 
sobre  os  outros  membros  da  família,  o  que  talvez  não  seja  absolutamente  ver- 
dadeiro. Taborda  diz,  muito  incidentalmente,  que  Ignacio  fora  filho  de  António 
de  Oliveira,  celebre  pintor.  Cyrillo  adianta  mais  alguma  coisa.  Diz  que  Antó- 
nio de  Oliveira  Bernardes  era  filho  de  Manuel  Rodrigues,  também  pintor,  e 
que  entrara  para  a  Irmandade  de  S.  Lucas  a  7  de  agosto  de  1684.  Nos  livros 
d'esta  confraria  encontrei-o  figurando,  na  qualidade  de  mordomo,  em  1686  e 
1687.  N'este  ultimo  está  assim  inscripto:  António  de  Oliveira  Bernardes  do 
Alemteio  (Alemtejo).  Casou  com  Francisca  Xavier  de  quem  teve  os  seguintes 
filhos,  que  todos  se  dedicaram  á  profissão  paterna:  Ignacio  de  Oliveira,  Fr. 
José  de  Santa  Maria,  Padre  Thomarista,  e  Policarpo  de  Oliveira. 

Ignacio  teve  uma  filha,  que  seguiu  as  pisadas  artísticas  de  seu  pae,  de 
nome  Michaela  Arcangela  Romaneti.  Este  appellido  provinha-lhe  da  mãe,  que 
se  chamava  Anastácia  Theresa  Romaneti,  segundo  se  vê  da  seguinte  nota  que 
se  encontra  nos  livros  da  Confraria  de  S.  Lucas:  Ignacio  de  Oliveira  Bernar- 
des— 16  janeiro  1718  —  casado  com  Anastácia  Teresa  Romaneti  —  moradora 
Santa  Catharina. 

Nem  Taborda  nem  Cyrillo  mencionam  uma  circumstancia  importante,  e 
vem  a  ser  que  elle  foi  um  dos  nossos  mais  notáveis  pintores  de  azulejos,  a 
ajuizar  pelos  numerosos  quadros  d'este  género  que  existem,  subscriptos  com 
o  seu  nome,  disseminados  por  diversos  pontos  do  paiz:  Évora,  Braga,  Peni- 
che, Bemfica  e  Paço  d'Arcos  (Ermida  de  Porto  Salvo). 

Os  a/.ulejos,  azues  e  brancos,  de  figura,  que  forram  as  paredes  e  tecto 
da  egrejinha  de  Nossa  Senhora  dos  Remédios,  em  Peniche,  teem  a  seguinte  in- 
scripção:  Antonius  de  Olivera  Bernardes  fecit. 

Os  azulejos  da  capella  de  S.  Pedro  de  Rates,  na  Sé  de  Braga,  estão  as- 
signados,  sem  data,  por  António  de  Oliveira  Bernardes.  Os  outros,  das  demais 
capellas,  parecem  do  mesmo  auctor. 

Os  azulejos  que  revestem  as  paredes  da  egreja  do  extincto  convento  de 
S.  Domingos  de  Bemfica  são  de  António  de  Oliveira  Bernardes. 

Em  Évora  os  da  egreja  dos  Lóios,  representando  a  vida  de  S.  Lourenço 
Justiniano,  teem  a  assignatura:  Antonius  ab  Oliva,  fecit  1711.  Os  de  Nossa  Se- 
nhora da  Cabeça  teem  a  seguinte  inscripção:  An."  de  Olu."  B.ia  o  fes  1736. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  119 


LXXXVII. —  Oliveira  de  Louredo  (António  de).— Pintor  de  retratos.  A 
rainha  D.  Maria  (D.  Maria  Sophia  de  Neubourg,  segunda  mulher  de  D.  Pe- 
dro II),  o  tomou  por  offieial  de  pintor  de  sua  casa,  de  que  lhe  passou  carta  a 
28  de  fevereiro  de  1698. 

«Donna  Maria  etc.  Faço  saber  a  vos  D.  Nuno  Aluarez  Pereira  Duque  do 
Cadaual  meu  muito  prezado  sobrinho  Mordomo  Mor  de  minha  caza  que  eu  hey 
por  bem  e  me  praz  fazer  mercê  a  António  de  Oliveira  de  o  acceitar  por  offi- 
eial de  pintor  de  minha  caza  para  me  seruir  como  os  mais  officiaes  delia,  com 
que  gozará  de  todas  as  honras  priuilegios  e  liberdades  que  logrão  os  meus 
creados;  e  por  firmeza  de  tudo  lhe  mandei  dar  esta  carta  por  mim  assinada 
que  passará  pela  minha  chancellaria  sellada  com  o  sello  de  minhas  armas.  Dada 
em  Lisboa  aos  28  de  feuereiro.  Bernardo  de  Araújo  a  fes  —  anno  do  nasci- 
mento de  Nosso  Jesus  Christo  de  1698  —  A  Raynha  —  Por  portaria  do  Duque 
Mordomo  Mor  de  10  de  outubro  697. 

«Pintor  António  de  Oliueira  de  Louredo  por  pintor  de  retratos  de  minha 
(sic)  para  me  seruir  na  dita  arte.»  * 


LXXXVHI. —  Oort  (J.  Van).—  Pintor  azulejista,  exercendo  a  sua  arte 
em  Amsterdam.  No  corpo  da  egreja  do  exlincto  convento  de  freiras  de  Nossa 
Senhora  da  Conceição,  da  Ordem  dos  Carmelitas  descalços,  situado  na  rua  For- 
mosa, com  frente  também  para  a  rua  dos  Cardaes,  hoje  transformado  em  re- 
colhimento de  cegas,  achamse  as  paredes  revestidas  de  bellos  painéis  de  azu- 
lejos, n'um  dos  quaes  se  lê  a  seguinte  legenda: 

/.  Van  Oort 
Amst.  fecit. 


LXXXIX.—  Paiva  (Miguel  de).— D.  João  IV,  por  alvará  de  4  de  março 
de  1641,  o  nomeou  seu  pintor  de  óleo,  declarando-se,  porém,  n'este  documento 
que  elle  já  havia  sido  nomeado  em  19  de  agosto  de  1632,  por  fallecimento  de 
Domingos  Vieira;  sendo-lhe  dada  a  posse  em  outubro  do  anno  seguinte.  Esta 
circumstancia,  que  é  aliás  valiosa  para  a  biographia  de  um  e  de  outro  pintor, 
passou  despercebida  a  Taborda. 


1  Torre  do  Tombo.  Cata  da$  Rainhai.  L.'  1,  fl.  69. 


120  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Convém  fazer  aqui  uma  aclaração  importante.  Na  carta  que  nomeia  Bento 
Coelho  da  Silveira,  passada  em  1678,  se  diz  que  elle  succedera  a  Domingos 
Vieira.  Ora  este  não  pôde  ser  o  mesmo,  a  quem  Miguel  de  Paiva  succedera 
no  anno  de  1641.  Logo  houve  dois  artistas  do  mesmo  nome,  Domingos  Vieira, 
que  até  agora  teem  passado  confundidos.  Adeante,  nos  artigos  relativos  a  Viei- 
ra, se  tratará  mais  largamente  d'este  ponto. 

«Eu  EIRey  faço  saber  aos  que  este  aluará  virem  que  eu  hei  por  bem  fa- 
ser  mercê  a  Miguel  de  Paiua,  pintor,  do  offleio  de  meu  pintor  de  óleo,  que 
uagou  por  falecimento  de  Domingos  Uieira,  auendo  respeito  a  informação  que 
tiue  de  sua  suficiência,  e  auera  de  ordenado  cõ  o  dito  officio  hum  moio  de  trigo 
e  sinco  mil  rs  em  dinheiro,  que  he  outro  tanto  como  com  elle  tinha  o  dito  Do- 
mingos Uieira,  e  por  firmesa  de  tudo  lhe  mandei  dar  este  aluara  que  ualera 
como  carta  sem  embargo  da  ordenação  em  contrario.  Luis  de  Lemos  o  Ees  em 
Lixboa  a  dezanoue  de  agosto  de  mil  seis  centos  trinta  e  dous.  Sebastião  Pe- 
restrello  o  fes  escreuer.  E  da  propriedade  do  officio  de  meu  pintor  de  óleo  se 
tinha  passado  o  aluara  asima  referido  a  Miguel  de  Paiua,  no  dia,  mes  e  anno 
nelle  declarado,  o  qual  passou  peita  chancellaria  a  sete  de  outubro  de  mil  e 
seis  centos  e  trinta  e  dous,  e  nella  se  pagarão  os  direitos  que  nella  se  deuião 
do  dito  officio  a  minha  fasenda,  e  por  uertude  do  dito  aluara,  que  se  rompeo 
ao  assinar  deste,  se  deu  posse  do  mesmo  officio  ao  dito  Miguel  de  Paiua  de 
outubro  do  anno  de  mil  e  seis  centos  e  trinta  e  três,  como  constou  dos  despa- 
chos e  termo  da  dita  posse,  tudo  feito  nas  costas  do  dito  aluara,  que,  como 
dito  he,  se  rompeo,  em  cujos  registos  mando  se  ponhão  uerbas  de  como  do 
dito  officio  de  meu  pintor  de  óleo  mandei  dar  este  por  mi  assinado  ao  dito 
Miguel  de  Paiua,  o  qual  so  quero  que  valha  e  se  cumpra  tão  inteiramente  como 
nelle  se  contem,  posto  que  seu  efeito  aja  de  durar  mais  de  hum  anno  sem  em- 
bargo da  ordenação  em  contrario.  Luis  de  Lemos  o  fes  em  Lisboa  a  quatro  de 
março  de  mil  e  seis  centos  quarenta  e  hum  arinos.  Fernão  Gomes  da  Gama  o 
fes  escreuer.» á 


XC. — Paulino  dos  Reis  (Máximo). —  A  biographia  d'este  pintor,  assaz 
accidenlada,  pôde  lêr-se  a  pag.  154  das  Memorias  de  Cyrillo  Volkmar  Ma- 
chado. 

No  Archivo  da  Intendência  geral  da  policia  encontrei  um  documento  de 
23  de  agosto  de  1814,  com  relação  ao  subsidio  para  pagamento  das  despezas 
da  sua  viagem  de  Roma  a  Portugal.  É  do  teor  seguinte: 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  João  IV.  Doafões.  L.«  10,  fl.  137. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  121 

•Sendo  prezente  ao  Príncipe  Regente  Nosso  Senhor  a  Informação  de  V.  S. 
datada  de  20  do  corrente  sobre  o  Requerimento  de  Máximo  Paulino  dos  Reis, 
Alumno  da  Real  Academia  de  Pintura  em  Roma,  para  onde  foi  mandado  es- 
tudar em  1802  como  Pencionado  da  Corte,  em  que  pede  se  lhe  mande  satis- 
fazer a  quantia  de  trezentos  pezos  duros,  que  dispendera  na  viagem,  que  fi- 
zera para  este  Reino,  na  forma  com  outros  practicada. 

«Sua  Alteza  Real  attendendo  ao  que  V.  S.  judiciozamente  pondera  sobre 
este  negocio  He  servido  que  se  lhe  mande  dar  huma  quantia  igual  a  que  se 
deu  aos  outros  em  iguaes  circumstancias,  e  pelo  mesmo  motivo,  e  que  no  cazo 
de  não  constar  qual  ella  fosse,  V.  S.  lhe  mande  dar  a  quantia  de  sincoenta,  ou 
sessenta  mil  reis  na  forma  do  seu  Parecer.  Deos  guarde  a  V.  S.  Palácio  do 
Governo  em  23  de  agosto  de  1814  —  Alexandre  Jozé  Ferreira  Castello  —  Sr. 
João  de  Mattos  Vasconcellos  Rarboza  e  Magalhaens.» ' 


XOI. — Pellegrini  (Domenico).— Pintor  italiano,  que  veiu  para  Lisboa  em 
1803,  sendo  em  1810  mandado  sahir  d'esta  cidade,  por  ordem  do  governo, 
na  fragata  Amazona.  Foram  com  elle  Urbino  Pirreto  e  muitos  outros  indiví- 
duos que  se  haviam  tornado  suspeitos  á  auctoridade.  É  certamente  devido  a 
esta  circumstancia  que  nos  cadastros  da  policia  d'aquella  epocha  se  encontram 
bastantes  documentos  de  caracter  particular,  e  pelos  quaes  se  fica  tendo  noti- 
cia da  sua  actividade  artística  e  mercantil,  pois  parece  que  não  só  se  empre- 
gava no  desempenho  da  sua  arte,  mas  na  compra  de  quadros,  que  adquiria 
talvez  para  negocio.  Essas  notas  soltas  são  muito  curiosas,  pois  n"ellas  vemos 
figurar  outros  artistas,  como  Nicolas  Delerive  e  José  da  Cunha  Taborda,  cuja 
esposa  se  chamava  Maria  Francisca  Alegre  da  Cunha.  Um  dos  indivíduos  que 
mais  vezes  apparecem  vendendo  quadros  a  Pellegrini  é  José  Joaquim  Fer- 
nandes de  Castro.  Vê-se  também  que  Pellegrini  fizera  o  retrato  de  Lord  Wel- 
lington. Ha  ainda  um  recibo,  em  italiano,  em  que  um  Mário  Vieira  diz  haver 
cobrado  de  Pellegrini  cento  e  trinta  moedas  por  cincoenta  e  oito  desenhos,  fei- 
tos para  Rartolozzi. 

«Ho  ricevutto  io  sotto  scritto  dal  Sig.  Domenico  Pellegrini  cento  e  trenta 
monette  e  questa  in  píeno  pagamento  di  cinquanto  otto  dissegni  fatti  per  il 
signore  Rartolozzi.  Lisbona.  Li  28  Aprille  1806.  Mário  Vieira.» 

«Receby  do  Snr.  Domingos  Pelegrini  a  quantia  de  quarenta  e  outo  mil 


1  Torre  do  Tombo.  Intendência  Geral  da  Policia.  Avisos  e  Portarias.  Maço  26.  Aviso  de 
23  de  agosto  de  1814. 

Abril,  1903.  16 


12â 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


reis  em  dinheiro  melai  importância  dos  seguintes  painéis  que  lhe  vendi  a  sa- 
ber: a  Cena  dos  Apóstolos  con  nosso  Snr,  hum  retrato  vestido  de  preto  eon 
guarnições  no  pescosso,  a  Adoração  dos  Mágicos.  Lisboa  20  de  Agosto  1806= 
Sinal  de  Jozé  Joaquim  Fernandez  de  Castro.» 

«Receby  do  Sr.  Domingos  Pellengrini  a  quantia  de  trezentos  e  oittenta 
e  nove  mil  reis  em  dinheiro  de  metal,  que  me  mauda  emtregar  o  Sr.  António 
Jozé  Vieira  da  cidade  do  Porto  e  para  clareza  de  ambos  passey  o  prezente.  Lis- 
boa 9  de  dezembro  de  1806.  389^000  réis.=0  Beneficiado  João  Jozé  de  Oli- 
veira Silva  Cardoso.» 

iEu  Innocente  Jeremia  declaro  que  stando  gravemente  imfermo  in  esta 
citade  de  Lisboa,  sin  que  mi  fiqui  cousa  alguna  mia  i  me  tenha  valido  o  Si- 
nhor  Domingo  Pellegrini  para  toutas  as  espesas  que  conmigo  ten  feilto  i  che- 
gan  a  quantia  di  docientos  mille  reis  desego  seja  pago  no  modo  possível,  visto 
que  não  tenio  con  que  possa  slisfacer,  i  faço  esta  declaracon  para  testimuo- 
gno  da  verdade  presentes  as  testimonhas  de  mio  conhosimento,  conmigo  assi- 
nhatas  i  na  presença  de  notário  pupplico. — Lisboa  30  di  Jenneiro  1807  — Ino- 
cente Geremia  —  Eu  que  a  fiei  a  roogo  i  com  a  testimounha  Frei  António  de  So- 
rana  Barba tinho  —  Vicenti  Delahanty  —  Juan  Nunez.» 

«Receby  do  Snr.  Domingos  Pelegrini  a  quantia  de  vinte  hum  mil  e  seis 
centos  reis  em  dinheiro  metal  importância  dos  seguintes  painéis  que  lhe  vendi 
a  saber: 

«Huma  Senhora  com  o  Menino  Jezus  e  dois  anjos  tocando;  huma  dita  e 
gloria  dos  Anjos,  pintada  sobre  o  Cobre. —  Reis  21:600  metal— Lisboa  12  Ou- 
tubro 1807  — Sinal  de  Jozé  X  Joaquim  Fernandez  de  Castro.» 

«Jay  recue  de  Monseur  Pelegrini  le  somme  de  20  monois  argens  metali- 
que,  pour  4  tablau  que  je  lui  ai  vandu.  Le  24  de  Janvier  1808  — Nicolas  Dele- 
rive.» 

«Receby  do  Snr.  Domingos  Pelegrini  a  quantia  de  vinte  hum  mil  e  seis- 
centos reis  em  dinheiro  metal,  importância  dos  seguintes  painéis  que  lhe  vendi 
a  saber:  Hum  retrato  vestido  de  encarnado  encostado  a  huma  menza  com  ar- 
mação ao  lado.  Hum  paiz  reprezentado  o  jnverno.  Hum  sam  Gregório  matando 
a  serpente.  Dois  pequenos  painéis  redondos  com  vários  animaes.  Reis  21:600 
reis.— Lisboa  15  de  maio  1808  —  Sinal  de  Jozé  X  Joaquim  Fernandez  de 
Ca&tro.» 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  123 

«Receby  do  Snr.  Domingos  Pelegrini  a  quantia  fie  dezanove  mil  e  duzen- 
tos reis  em  dinheiro  metal  importância  dos  seguintes  painéis  qne  lhe  vendi  a 
saber:  Hum  painel  de  flores  e  no  meio  a  sagrada  famfllia. —  Dois  ditos  pássa- 
ros mortos  —  hum  dito  de  hum  cão  com  huma  guitarra  —  hum  dito  de  hum 
paiz  reprezentando  huma  batalha  —  hum  dito  pequeno  com  a  sagrada  famillia  — 
Reis  19:200  metal  — Lisboa  22  Junho  1808  — signal  de  Jozé  X  Joaquim  Fer- 
nandez  de  Castro.» 

«Ho  ricevuto  dal  sig.r  Giuseppe  Comello  trenta  sei  mile  reis  per  conto  dei 
sig.r  Domenico  Pellegrini  e  questi  per  saldo  de  nostri  conti  col  sudetto  Pelle- 
grini  sino  il  giorno  d'oggi.  Reis  36:000  —  Lisboa  29  Nouembre  1808  — Agos- 
tinho de  Poli.» 

«Recebi  do  Sr.  Domingos  Peligrini  a  quantia  de  sincoenta  mil  reis,  em 
metal,  importância  da,  renda  de  hum  quarto  que  occupa  no  terceiro  andar  das 
minhas  cazas  de  Buenos  Aires,  do  semestre  que  se  hade  vencer  em  Junho  do 
anno  próximo  futuro  de  mil  oitocentos  e  nove.  Reis  50:000  —  Lisboa  10  de  De- 
zembro de  1808—  António  Esteves  Costa.» 

«Tenho  recebido  do  Snr.  Domingos  Pellegriny,  cento  e  dez  moedas  de 
quatro  mil  oito  centos  cada  huma  em  dinheiro  metálico  as  quaes  enlreguerey  a 
o  mesmo  Snr  Pellegriny  o  todas,  o  em  parcellas  conforme  elle  lhe  será  pre- 
cizo.  Lisboa  12  de  Fevreiro  1809  —  Somma  110  moedas  —  Eugenia  Guillimod.» 

«Resebi  do  Snr.  Domingos  Peligrini  pela  quantia  de  quatro  moedas  em 
metal  de  dois  quadros  de  pinturas  que  lhe  vendi  e  por  ser  verdade  lhe  paso 
este.  Lisboa  30  de  Abril  de  1809  — D.  There  (sic)  Amália  Velozo  Veccaro.» 

«Recebi  do  Snr.  Domingos  Pelegrini  a  quantia  de  sincoenta  mil  reis  im- 
portância da  renda  de  hua  loja  e  hum  quarto  no  segundo  andar  das  minhas 
cazas  de  Buenos  Aires  do  semestre  que  se  ha  de  vencer  em  Junho  do  anno  de 
mil  oitocentos  e  dez.  Lishoa  2  de  Dezembro  1809  —  António  Esteves  Costa. 
São  Reis  50:000.» 

«Sr.  Peligrini  em  todo  o  mes  de  Fevereiro  próximo  passado  teve  22  jan- 
tares a  seiscentos  reis  importão  13:200.  Em  o  1.°  de  março  de  1810.» 

«Recebi  do  Snr.  Domingos  Pelegrini  dezanove  mil  e  dozentos  de  hú"  fru- 
teiro que  lhe  vendi.  Recebi  mais  de  sete  quadros  piquenos  trinta  mil  e  coa- 
tro  centos  e  por  ser  uerdade  pacei  o  prezente  que  asigno.  Lisboa,  14  de  majo 
1810— Jozé  da  Cunha  Taborda  — São  reis  49:(i00.» 


124  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Resebi  da  mão  do  Snr.  Domingos  Pelegrini  a  coantia  de  dezaseis  mue- 
das  de  4:800  em  metal  pagamento  de  6  coadros  que  vendo  ao  dito  Senhor 
paso  este  na  auzencia  de  meu  marido  o  Sr.  Jozé  da  Cunha  Taborda  elle  deve 
pasar  novo  resibo  sendo  este  cassado.  Recebi  a  conta  asima.  Lixboa  31  de  Ju- 
lho 1810— Jozé  da  Cunha  Taborda  — Maria  Francisca  Alegre  da  Cunha.» 

«240:000  reis  em  metal  importância  de  hum  retrato  que  fez  do  Marechal 
General  dos  exércitos  Lord  Wellington.» 

«Mr.  Willien  fait  ses  complimens  a  Mr.  Pelegrini  il  vient  de  parler  a  Lord 
Wellington  qui  será  bien  aise  de  le  voir  chez  lui  demain  sur  les  neuf  heures.» 

«Recebi  13  moedas  e  1:120  da  mão  do  Rorno  a  conta  do  coadro  do  ca- 
pitão Escota.  í 

«Nota  dei  quadri  che  il  sig.  D.  Pellegrini  lasciò  alli  fratelli  Schiavonetti  e 
che  potranno  disporre  a  norma  dei  prezzi  qui  marcati.  (Ultimi  prezzi): 

1. — Un  Quadro  con  tre  putti  che  giuocano. 

2. —  Uno  detto  Stagione  dei  Rassan. 

3. —   »       »      Vescovo  che  batesa  un  santo  Rizzi. 

4. —   n       t      La  Donna  adultera;  Tiepolo,  20. 

5. —   »       »      Testa  di  monaca,  1. 

6.— Due    »      Baccanali  dei  Tiepolo,  20. 

7.— Uno     »      Madona  col  bambino  con  cornici  e  vetro,  30. 

8. —   »       »      Natività.  Rattani,  10. 

9. —   »       »      Schizzo  ragazza  col  serpente  di  Pellegrini,  5. 
10. —  Due     »      Veduta  di  Venezia  dei  canaletto,  20. 
11. —   »       »      Vedute  per  lungo,  15. 
12. —  Uno     »      Ritratto  di  un  uomo  con  barba. 
13. —   »       »      Schizzetto  di  una  Eva  intiera  con  un  serpente,  4. 
14. —   D       »      Soffitto  che  rapresenta  un  santo  con  angeli. 
15. —    »       »      Ritratto  di  una  signora  con  un  bambino  Pellegrini,  20. 
16. —  Due     »      Con  mezza  figura  che  dorme  ed  un  pulto  con  il  suo  compa- 

gno  dipinti  da  Pellegrini  con  cornici,  30. 
17. —  Uno    »      Piccolo  con  cornice  Santa  Caterioa  ed  un  angelo  di  Paolo  Ve- 
ronese. 
j       d      Ritratto  Rartolozzi,  20. 
»       »      Morte  di  Murat. 
18.—   »       »      Natività. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


125 


22.- 

—    » 

23. 

—   « 

24.- 

—    i> 

Una 

Due 

19. —  Uno  detto  Ritratto  di  Donna  con  un  cane  Tiziano. 
20. —    »       d      Paese  con  Donna  e  pulto  dei  Pellegrini,  12. 
»       »     Lote  con  le  íiglie  dei  Giorgione. 
»       »      La  Madona  Santa  Ànna,  Saula  Catarina  ed  il  bambino  de  P. 

Veronese. 
D       »      Bersabea  dipinto  sopra  la  tavola. 
•       »      Con  due  figure  ed  un  fratte  che  presenta  una  testa  di  morto 

sopra  la  tavola. 
»       i      Saluator  Mundi. 
21. —   n       »      Grande,  Venere  con  lo  spechio  dei  Pellegrini  dipinto  in  Itá- 
lia, 130. 
Con  Venere  veduta  in  schiena  ed  un  putto  dei  Pellegrini,  23. 
Tratto  dal  Pastor  fido  dei  Pellegrini,  15. 
Amore  che  sofia  sula  rosa  in  mano  di  una  ragazza  con  la  cor- 

nici  dei  Pellegrini,  10. 
Stampa  in  colori  delia  Baccante  con  cornice  e  retro,  4. 
dipinto  sopra  la  lanola  con  la  Vergine  il  Putto  ed  altri  santi 
grandi  di  Giovanni  Pellino. 
Uno    d      rotondo  con  heda  dei  Pellegrini,  15. 
»      »     Grande  amore  che  sofia  sula  rosa.  Pellegrini,  8. 

1796.  Nov.°  7. 

Avere  delli  fratclli  Schiavonetti  contro  il  sig.r  Pellegrini. 

Dinaro  pagato  ai  sud.'°,  5,  5. 

Per  un  Ritlratto  di  Lord  Camden,  8. 

Dinaro  pagato  alli  sig."  Novelletto  e  Bombardini  per  suo  ordine,  2,  2. 

Dinaro  pagato  a  sua  Madre  col  mezzo  dei  sig/  I.  Viero,  4,  8. 

Pagato  ai  sudt.0  in  proprie  mani,  2. 

Per  mettà  deli  incisione  dei  Rame  Happy  Reunion,  210. 

Per  mettà  deli  incisione  delle  Lettere  nel  sudt.0  Rame,  12,  6. 

Per  mettà  deli'  incisione  delia  chiave,  o  sia  Referenza  ai  sudt.0  Rame  unita- 

meute  alie  lettere  in  questo  incise,  1,  8. 
Per  mettà  delia  stampatura  e  Carta  di  800  Chiave  sud.t0  1,  7. 
Per  mettà  delia  stampatura  di  due  Aquaforti  dei  Rame  Happy  Reunion  in  Colori,  9. 
Per  colorire  una  delle  sudt." 
Aquaforti,  mr.  Farrer  impiego  15,  giorni,  li  qualli  computando  le  spese  di 

vilo  ed  alogio  unitamente  ad  una  mezza  Ghinea  alia  settimana  fa  la  somma 

di  3  Ghinee  delle  quali  ci  carica  la  mettà  ai  sig.r  Pellegrini. 
Per  mettà  delia  stampatura  di  468  impressioni  dei  Rame  Happy  Reunion  a  ra- 

gione  di  5  Ghinee  ai  100,  12,  5,  6. 


120 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Per  mettà  delia  carta  francese. 
Grande  eagle  unitamente  aquella  daneggiata,  7,  7. 
Pagato  per  Ia  stamparia  de  25.  Leda  in  colori,  1,  17,  6. 
Per  la  caria  per  le  sudt.0,  6. 

Avere  dei  sigr.  Pellegrini  contro  li  fratelli  Schiavonetti: 

1798.  Marzo  17.  Per  8  Holy  family,  8,  8. 

6  Prove  Pisani,  6,  6. 
Apr.1  14.  10  fuga  in  Egitto  in  colori,  18. 
li  15.  6  Istoria  di  francia  di  Bovi,  3,  12. 
Ag.t0  9.  3  Re  a  Varene,  1,  16. 

1799.  Marzo  21.  4  faraiglia  napolitana  nero,  3,  4. 

3  D.°  D.°  colori,  4,  16. 

Ap."  18.  7  D.°  D.°  nero,  5,  12. 

3  D.°  D.°  colori  4,  16. 

Ag.t0  3.  3  Para  Baccanti,  colori,  3,  12. 
li  29.  7  para  D.°  D.°,  8,  8. 

4  stampe  Baccante  grande  D.°  4,  16. 
ott.  11.  2  para  Baccante  elo.  Colori,  2,  8. 
li  14.  5  D.°  D.°  D.°  6. 

li  23.  1  famiglia  napolitana  nero,  16. 

Si  difalca  la  7.ma  ed  il  10%:  82,  10. 

Resta  per  stampe  nette:  63,  13. 

Per  la  mettà  dei  quadro  Happy  Reunion,  52,  10. 

Per  il  quadro  morte  dei  general  Dubois,  42. 

Per  il  quadro  Nozze  di  cana,  31,  10. 

Per  uno  schizzo  Príncipe  Cario,  2,  2. 

Porzione  di  dinaro  pagato  per  la  nota  de  Mr.  Dixon  stampatore,  15  =  Lb 

206,  15. 
Ora  si  diduce  le  seguenti  stampe  che  li  fratelli  Schiavonetti  tengono  in- 

vendute  in  casa  cioè: 
-  5  fugga  in  Egitto  9.0.0. 
8  Holy  family  8.8.0.=  13,  8,  6. 
Si  difalca  la  7.ma  e  il  10%  3,19,6  come  sopra. 
Resta  per  stampe  da  ritornarci  nette,  13,  8,  6. 
Avere  delli  Schiavonetti,  251,  7. 

Pagato  per  la  stamparia  di  40  Happy  reunion  in  colori,  7,  10. 
A  7,  b  —  1'una  la  mettà,  7,  10. 

Detto  per  la  ritocca  di  28  d.°  4,  18.  44  fogli  carta  per  detto  meltà  8. 
Per  mettà  delia  carta  per  la  chiave,  10. 


/ 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  127 

Per  mettà  delle  spese  incontrate  per  Dichiarazione,  Dogana,  carta  di  setta, 

etc,  264,13. 
Sig.  Pellegriui,  Cr.— 193,  6,  G. 
Per  la  ritoca  di  12  Happy  Reunion,  2,  6,  6. 
Per  stampe  Baccante  e  Leda  grande  e  piccola  avate  dal  febraro  20  — 1800 

si  no  ai  giorno  doggi  15.  Sett.ro  1802  p.»  £  48.0.0. 
Si  defalca  la  7.ma  7. 
10%  4,  2:  41.0.0. 
Resta  netto:  36.18.0. 

Da  difalcare  una  Prova  dei  Pisam  nette  15,6. 
£231,156. 

«Lisbon  8""  9.bw  1809.  Received  of  Mr.  Barnwell  the  sura  of  twenty 
moydor  metallic  which  cap."  Scott  of  45."°  Reg.""  Foot  left  hira  in  order  to  be 
deliver  to  me  for  the  payment  of  a  Portrait.  Domenico  Pellegrini.  Ricevuto  a 
conto  m."  13  T  11.» 

Teniers  caciatori  a  caro  in  legno. 

Bos  di  Itália  un  paese  in  legno. 

Velasco  Schizzo  di  ritratto  con  cavallo. 

Trevisani  sacra  famiglia. 

Rubens  una  testa  sopra  carta. 

Teniers  gioco  dei  Begam.  A  la  cornice. 

Shidone  la  nostra  signora  che  porta  la  croce  con  la  madona. 

Guercino  Testa  di  Baco. 

Rubens  le  Ire  grazie  in  legno. 

Giaun  Fit  ucelli. 

Detto. 

Velasco  Schizo  in  chiaro  Suro. 

Detto. 

Detto  una  testa  di  Pellegrino. 

Autore  spagnolle  una  schizo  di  donne  che  sonano. 

Sacra  famiglia  stile  di  moliglios  a  la  cornice. 

Autore  spagnollo  la  cena  con  li  apostoli  a  la  cornice. 

Zegar  fiori. 

Lechi  un  cane. 

Sacra  famiglia  scola  di  carazzi. 

F.  B.  un  paese. 

Lodivico  Tinzonicar  ritratto. 

Tiziano  ritratto. 


128  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Vandichi  sacra  famiglia. 

Paris  Bordin  Bacanalle. 

Moriglios  San  Jovanine  con  Gesu. 

Sacra  famiglia  scola  di  Coregio  in  legno. 

Antico  la  discesa  de  lia  croce  in  legno. 

Castiglione  animalie  e  figure. 

Detto. 

P.  M.  Batalia  muliner  in  Rama. 

Pussiero  dedutta  dei  colosseo. 

Ganaletto  a  la  cornice. 

Detto  a  la  cornice. 

Scola  tedesca  Sa  Jorgio  a  cavallo. 

Un  paese  Bataglia  in  legno. 

Rubens  copia  la  adurazione  de  magii  a  la  cornice. 

Scola  di  Rubens  la  apparizione  delia  Vergine  in  Rame. 

P.  M.  Bataglia  muliner  in  Rame. 

Genari  Sacra  famiglia. 

Scola  di  Tiziano  ritratto  di  diana. 

Lechi  una  chitara. 

Bassano  rico  opulone. 

Tenier  S.  Pietro  nella  cárcere. 

Vandiche  ritratto  di  dona. 

Garazi  detto  di  uomo. 

Vandiche  detto  di  uomo. 

Petito  detto  di  Luigi  quatordici  in  smalto. 

Ostado  Canbiato. 

Retenamer  sacra  la  madona  con  li  angelli. 

Teniers  ritratto  di  dona. 

Resalla  ritratto  in  miniatura. 

Rubens  ave  e  fangli. 

Paulo  Veronese  Sacra  famiglia  da  se  Pilua. 

Gorado  Madalena. 

Vilmar  detto. 

Tiziano  Madalena. 

Detto  detto. 

Vandiche  ritratto  di  dona. 

Detto  detto. 

Palamedi. 

Frutti  de  maix. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  129 


Pessi. 

Zegar  fiori. 

Zeegar  fiori. 

La  madona  con  le  vergini. 

La  disesa  di  croce. 

Bughel  e  vover  mater  paesse. 

Detto  e  detto. 

Bonifácio  la  casta  Susana. 

Santa  Catarina. 

Scola  flamingha. 

Brughel  framenco. 

Detto. 

Paese. 

Detto. 

Tenier  copia. 

Un  paesse. 

Detto. 

Tiziano  copia. 

Paris  berdon  sia  co  le  crache. 


XCII. —  Pellereau  (Frédéric). —  Natural  de  Boulogne  sur  Mer,  veiu  para 
Portugal  em  1867,  em  companhia  de  José  Duarte  de  Oliveira,  do  Porto,  em 
cuja  casa  esteve  hospedado  por  muitos  annos,  sendo  tratado  como  pessoa  de 
família.  Era  de  estatura  regular,  razoavelmente  nutrido,  loiro,  de  olhos  azues, 
de  maneiras  finas  e  intelligente.  Dedicou-se  com  certo  ardor  aos  trabalhos  da 
sua  arte,  estudando  e  reproduzindo  os  costumes  do  Porto  e  seus  arredores. 
Passado,  porém,  certo  tempo,  o  enthusiasmo  arrefeceu,  e  annos  depois  como 
que  tinha  perdido  o  verniz  social,  e  substiluido  a  sua  energia  por  um  certo 
abatimento  e  quasi  desleixo  de  si  próprio.  Em  1894  voltou  para  a  sua  pátria, 
onde  se  presume  haver  fallecido. 

Nos  primeiros  annos,  depois  da  sua  chegada  ao  Porto,  executou  vários 
quadros  de  género,  que  foram  quasi  todos  adquiridos  por  membros  da  colónia 
ingleza  d'aquella  cidade.  São  duas,  porém,  as  suas  principaes  composições 
d'esta  epocha,  uma  das  quaes  representa  um  carro  puxado  a  bois,  d'onde  se 
estão  descarregando  saccos  de  milho.  Faz  parte  das  collecções  do  sr.  António 
José  da  Silva,  negociante  de  vinhos,  ás  Palhacinhas,  Villa  Nova  de  Gaya.  A 
outra,  de  grandes  dimensões,  representa  outra  scena  da  vida  minhota,  uma 
dança  de  camponezes,  e  pertence  ao  meu  amigo  José  Duarte  de  Oliveira. 
Abril,  1903.  17 


130 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Pellereau  dava  lições  da  sua  especialidade  em  collegios  e  casas  particula- 
res, e  fez,  com  elegante  traço  sobre  madeira,  os  desenhos  para  a  maior  parte 
das  gravuras  que  adornam  as  paginas  do  Jornal  de  Horticultura  Pratica. 


XOILT.— Pereira  de  Miranda  (Braz).—  Debuxador  e  aguarellista.  No  to- 
cante a  esta  ultima  qualidade,  o  seu  merecimento  parece-me  bastante  limitado. 

Da  sua  perícia  artística  nada  se  sabia  até  agora.  Recentemente  encon- 
trou-se  um  códice  na  livraria  dos  srs.  Condes  das  Alcáçovas,  o  qual  vem  tirar 
da  plena  obscuridade,  em  que  jazia,  o  nome  de  Braz  Pereira  de  Miranda.  Este 
mauuscripto  apresenta  o  seguinte  titulo  em  sete  linhas:  Fronteira  de  Portugal 
fortificada  pellos  reys  deste  Reyno.  Tiradas  estas  fortalezas  no  tempo  dei  Rey 
Dom  Manoel.  Copiadas  por  (1642)  Brás  Pereira. 

Este  titulo  está  encerrado  n'uma  portada,  a  que  servem  de  pilastras,  como 
cariatidas,  duas  figuras,  sendo  uma  de  mulher,  outra  de  homem,  com  vários 
adornos.  Entre  a  ultima  linha  do  titulo  e  a  da  data  vê-se,  n'um  medalhão,  o 
retrato  do  auctor,  colorido.  A  portada  é  também  feita  a  sépia. 

É  uma  copia  colorida  do  Livro  das  Fortalezas  de  Duarte  d'Armas,  exis- 
tente na  Torre  do  Tombo,  faltando,  porém,  as  duas  vistas  do  castello  de  Pe- 
naroia,  de  Caminha,  a  de  Barcellos,  as  três  de  Cintra,  havendo  de  todos  os 
outros  castellos  apenas  uma  vista,  salvo  Castro  Marim  e  Castello  Branco,  de 
que  ha  as  duas.  São  ao  todo  cincoeuta  e  cinco  estampas,  salvo  erro,  e  copia 
regularmente  fiel  d'aquelle  livro,  o  que  torna  a  collecção  bastante  valiosa. 

Duarte  d'Armas  inclui-o,  como  debuxante  e  tracista  de  fortalezas,  no  1.° 
volume  do  meu  Diccionario  dos  architectos. 

A  existência  do  códice  de  Braz  Pereira  na  livraria  dos  srs.  Condes  das 
Alcáçovas  explica-se  pela  biographia  do  seu  auctor. 

Foi  elle  3.°  filho  de  João  Alvares  Pereira  de  Berredo  (filho  segundo  de 
Francisco  Pereira  de  Miranda  e  de  D.  Guiomar  Pereira)  e  de  D.  Bernarda  An- 
tónia de  Sousa  (filha  de  Bernardo  Osório  de  Mello  e  de  D.  Leonor  Chainha). 
Tendo  fallecido  seus  irmãos  mais  velhos,  Francisco  e  Bernardo,  sem  geração, 
herdou  a  casa  de  seu  pae.  Casou  com  D.  Juliana  de  Meneses,  filha  de  Fran- 
cisco de  Faria,  alcaide-mór  de  Palmella.  Deve  ter  nascido  pelos  fins  do  século 
xvi,  e,  havendo  fallecido  seu  pae  em  1626,  foi-lhe  passada  apostilla  em  22  de 
agosto  d'esse  anno  para  ler,  desde  o  primeiro  de  janeiro  do  anno  seguinte  em 
deante,  a  tença  de  juro  de  cento  e  sessenta  mil  réis  que  pertencera  áquelle.4 
Em  1633,  a  2  de  agosto,2  se  lhe  passou  apostilla  para  poder  ter  uma  com- 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Filippe  III.  Doações.  L.°  19,  fl.  43. 

2  Idem.  Cartório  da  Ordem  d*  Christo.  L.°  27,  fl.  214  t. 


NOTICIA  DK  ALfiUNS  PINTORES 


131 


menda  na  Ordem  de  Christo,  com  obrigação  de  servir  cm  duas  armadas,  qua- 
tro meses  em  cada  uma,  por  ter  seu  irmão  mais  velho,  Bernardo,  já  defuncto, 
a  quem  havia  sido  promettida,  servido  em  Tanger  com  cavallo  acobertado  e 
quatro  criados  de  armas  e  cavallos  e  dous  de  pé,  durante  três  annos  dos  qua- 
tro a  que  era  obrigado,  segundo  a  caria  que  lhe  fora  passada  em  1621. 

Braz  Pereira  falleceu  provavelmente  no  principio  do  anno  de  1654,  por 
isso  que  a  15  de  março  se  passava  apostilla,  a  sua  filha,  única  herdeira,  D. 
Maria  Luiza  Pereira  de  Meneses,  já  então  casada  com  D.  Henrique,  Senhor 
das  Alcáçovas,  dos  referidos  160$000  réis.1 


XOIV.— Pires  (Affonso).— Jâ  se  viu,  no  artigo  relativo  a  Fernão  Cer- 
veira, que  o  mosteiro  de  S.  Domingos  de  Lisboa  emprazára  a  este,  em  19 
de  fevereiro  de  1478,  umas  casas  sitas  no  Poço  do  Borratem,  com  a  clausula 
d'elle  as  demandar  a  Affonso  Pires,  pintor.  Em  28  de  julho  de  1472approvaram 
a  prioreza  e  convento  de  Chellas  a  nomeação  em  terceira  pessoa,  que  uma 
Maria  Martins,  que  era  a  segunda,  fazia  na  pessoa  de  ura  seu  sobrinho,  Affonso 
Pires,  viroteiro  d'el-rei,  de  uma  casa  com  forno,  que  trazia  de  emprazamento 
ao  dito  mosteiro,  sita  na  Porta  Nova.  Este  prédio  confrontava  com  casas  de 
Luiz  de  Beja,  barbeiro  do  conde  de  Monsanto,  com  as  de  Álvaro  Annes,  tece- 
lão, com  as  de  Affonso  Pires,  pintor,  e  com  as  de  Breatiz  Gomes,  a  alguar- 
uija.  Por  estas  confrontações  se  vê  que  o  prédio  do  pintor  Affonso  Pires  era 
o  mesmo  que  foi  emprazado  seis  annos  depois  a  Fernão  Cerveira.  Os  dois  do- 
cumentos completam-se  portanto. 

«Em  nome  de  Deos  amem.  Saibham  os  que  este  estormento  denpraza- 
menlo  virem  que  no  anno  do  nacimento  de  Nosso  Senhor  Jhesu  Cbristo  de  mjl 
e  iiijc  e  sateenta  e  dous  annos  xxbiij  dias  do  mes  de  julho  dentro  no  moesteiro 
da  Chellas  que  he  em  termo  da  cidade  de  Lixboa  seendo  hi  presentes  as  hon- 
rradas  rrellegiosas  a  saber  dona  Lyanor  de  Castel  Branco  prioressa  do  dicto 
moesteiro  e  Inês  Gonçalluez  sobprioressa  delle  e  Maria  Aluarez  e  Aldonça  Ro- 
driguez  e  Inês  Afonsso  e  Clara  Mena  e  lues  Gonçalluez  de  Castel  Branco  e  Isa- 
bel Diaz  e  Vyollante  Çacota  e  Caterina  Afonsso  e  outras  donas  todas  freiras 
professas  do  dicto  moesteiro  as  sobre  dietas  todas  juntas  chamadas  em  caby- 
doo  per  canpãa  tangida  segundo  seu  custume  diserom  que  verdade  era  que  o 
dicto  seu  moesteiro  auya  como  de  feito  ha  em  a  dieta  cidade  de  Lixboa  aa 
porta  noua  huu  forno  de  cozer  pam  com  sua  casa  em  que  elle  esta  que  parte 
de  húa  parte  com  casas  de  Luis  de  Beja  barbeiro  do  conde  de  Moonssanto  e 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  João  IV.  Doafõm.  L.°  6,  fl.  93  v. 


132  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

da  outra  parte  com  casas  dAluare  Anes  teçelam  e  da  outra  parte  com  casas 
d  Afonsso  Pirez  pyntor  e  com  casas  de  Brealiz  Gomez  a  alguaruija  e  com  quin- 
tal de  dona  Inês  e  com  rruua  pubrica  e  com  outras  confronlaçoões  com  que 
de  dereyto  deue  de  partir.  O  qual  forno  e  casa  ora  trazija  denprazamento  do 
dicto  moesteiro  hQa  Maria  Martijnz  que  em  elle  viue  como  segunda  pessoa  que 
era  ao  dicto  enprazamento  per  bem  dhua  nomeaçom  que  lhe  delia  fez  hQa  Ma- 
ria Pálios  que  foy  sua  aama  a  que  o  dicto  enprazamento  primeiro  foy  feito  ja 
finada  e  que  ora  a  dieta  Maria  Martijnz  seendo  ajnda  viua  nomeara  por  ter- 
ceira pessoa  ao  dicto  enprazamento  Afonsso  Pirez  vyrotoeiro  delRey  Nosso 
Senhor  seu  sobrinho  morador  em  a  dieta  cidade  que  também  no  presente  es- 
taua  per  bem  de  hQa  sepritura  de  nomeaçom  que  logo  hi  apresentou  que  pa- 
recia seer  feita  e  asijnada  per  Pêro  Vaasquez  do  Auellaar  pubrico  taballiam 
delRej  em  a  dieta  cidade  aos  xx  dias  do  mes  de  julho  da  era  de  mjl  e  iiijc  e 
sateenta  e  dous  annos  em  aqual  eram  contheudas  por  testemunhas  Afonsso  Pi- 
rez pyntor  e  Pedrafonsso  teeeelam  e  Antonynho  Afonsso  barbeiro  e  Gonçalle 
Anes  alfayale  todos  moradores  aa  porta  noua.  Per  a  qual  sse  mostraua  a  di- 
eta Maria  Martijnz  nomear  por  terceira  pessoa  ao  dicto  enprazamento  o  dicto 
Afonsso  Pirez  seu  sobrinho  de  guisa  que  despois  de  sua  morte  ouuesse  o  di- 
cto enprazamento  segundo  todo  esto  e  outras  cousas  na  dieta  sepritura  de  no- 
meaçom mais  conpridamente  era  contheudo.  E  ora  disse  o  dicto  Afonsso  Pi- 
rez que  elle  era  concertado  com  o  dicto  Luis  de  Beja  barbeiro  que  foy  do  di- 
cto conde  de  Moonssanlo  de  lhe  vender  como  de  feito  lhe  tijnha  ja  vendido  a 
dieta  sua  terceira  pessoa  por  preço  de  seis  mjl  rreaes  brancos  desta  moeda 

ora  corrente  

testemunhas  que  a  esto  presentes  forom  António  Pirez  sepriuam  dos  contos 
delRej  em  a  dieta  cidade  e  Joham  Leyte  scudeiro  morador  aos  loguares  del- 
Rej e  Dieguo  Afonsso  criado  de  Joham  Lameguo  caeiro  e  o  dicto  Afomsso  Pi- 
rez Virotoeiro  delRej  e  Vaasquo  Anes  morador  em  o  dicto  moesteiro  e  outros 
e  eu  Martim  Aluarez  criado  e  contador  delRej  Nosso  Senhor  e  sseu  pubrico 
notairo  geeral  per  sua  rreal  autoridade  em  sua  corte  e  em  todos  rregnos  e  se- 
nhorio que  a  todo  o  que  dicto  he  cõ  as  dietas  testemunhas  presente  fuy  e  este 
estormento  denprazamento  que  he  pêra  ao  dicto  moesteiro  per  outorgamento 
das  dietas  partes  escpreuy  e  em  elle  fiz  meu  singal  (sicj  pêra  ello  chamado  e 
rroguado.»1 


•  Torre  do  Tombo.  Mosteiro  de  Chellas.  P«rg.»  n.*  746. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


133 


XOV. —  Pires  (Álvaro). —  Pae  de  Gaspar  Cam  ou  Cão.  Era  pintor  d'el-rei 
D.  Mannel.  Succedeu-llie  seu  filho. 

Não  crnheço  nenhum  documento  que  lhe  diga  directamente  respeito. 


Rabello  (Manuel  da  Silva). —  Vide  Silva  Rahello  (Manuel  da). 


XCVI. —  Rezende  (Thomé  da  Costa  de).— Pintor  de  óleo  e  imaginaria,  e 
um  dos  melhores  do  seu  tempo,  segundo  se  affirma  no  alvará  que  o  dispen- 
sou de  servir  na  bandeira  de  S.  Jorge,  o  qual  é  de  2  de  setembro  de  1636. 

As  palavras  do  alvará  com  relação  ao  merecimento  do  artista  são  communs 
a  diplomas  idênticos,  e  por  isso  talvez  se  devam  considerar  apenas  como  de 
chancella.  Vejam-se  os  artigos  Rodrigues  (Simão),  Teixeira  (Diogo)  e  Vieira  (Gas- 
par). 

«Eu  elRei  faso  saber  aos  que  este  aluara  virem  que  avendo  respeito  ao 
que  na  petição  atraz  escrita  diz  Thome  da  Costa  de  Resende,  pintor  de  ollio 
de  imaginaria,  e  visto  o  que  alega  e  imformação  que  se  ouue  pello  doutor 
Diogo  Lobo  Pereira,  desembargador  da  Casa  da  Soplicação  e  corregedor  do 
ciuel  de  minha  corte,  porque  constou  ser  o  supplicante  hum  dos  milhores  pin- 
tores de  imaginário  de  ollio  deste  Reino  e  a  dita  arte  da  pintura  de  ollio  e 
imaginário  ser  hauida  e  reputada  por  nobre  em  todos  os  outros  Reinos,  e  o 
mais  que  da  imformação  do  dito  corregedor  constou,  ei  por  bem  e  me  pras 
que  o  dito  Thome  de  Costa  Resende  não  seja  daqui  em  diante  obrigado  a  ban- 
deira de  São  Jorge  nem  aos  emcargos  delia  nem  a  outros  alguns  emcargos  dos 
que  se  costumão  obrigar  os  oífkiaes  mechanicos. . .  Francisco  Nunes  o  fes 
em  Lixboa  a  duus  de  septembro  de  mil  e  seis  centos  e  trinta  e  seis.  P.°  San- 
ches Farinha  o  fes  escreuer.» ' 


XCVII. —  Rodrigues  (Fernão). — Trabalhou  no  segundo  e  terceiro  quartel 
do  século  xvi,  no  convento  de  Christo,  em  Thomar.  Em  dezembro  de  1533  re- 
cebeu 3:000  reaes  de  pintar  algumas  maguas  e  gretas  dos  retábulos  da  Cha- 
rola.  Em  1535  recebeu  mais  17:000  por  pintar,  dourar  e  reformar  muitas  coi- 
sas dos  retábulos  da  Charola,  da  crasta,  refeitório  e  abobada  de  cima,  e  nos 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc  de  D.  Filippe  III.  Doaçõtt.  L."  J<5,  fl.  331 


134 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


altares  em  muitas  partes  que  ficaram  abertas  do  tremor;  e  de  pintar  as  gra- 
des e  outras  miudezas  que  pintou  e  reformou  em  que  gastou  um  anuo. 

Em  1551  e  1562  apparecem  verbas  relativas  a  Fernão  Rodrigues  que  lhe 
prolongam  a  existência,  pelo  menos  até  áquelle  ultimo  anno.  Não  especificam 
todavia  os  trabalhos  que  executasse.  Aqui  dou  textualmente  o  que  encontrei  a 
seu  respeito  nos  livros  de  Thomar. 

*  Despesa  do  mes  de  dezembro  (1533): 

«It.  pagou  mais  o  dito  Recebedor  pella  dita  maneira  a  fernã  Roiz  pin- 
tor três  mil  reaes  por  pintar  algúas  magoas  e  gretas  dos  retauollos  da  cha- 
rolla.» ' 

i Despesa  do  mes  de  janeiro  de  1535  anos: 

«It.  pagou  mais  o  dito  recebedor  per  mandado  do  dito  padre  governador 
a  Fernão  Roiz  pintor,  por  pintar  e  dourar  e  reformar  muitas  coisas  dos  reta- 
uollos da  charolla  e  da  crasta  e  refeitor(7oJ  e  abobada  de  cima  em  muitas  par- 
tes que  ficou  aberta  do  tremor  e  nos  altares  e  de  pintar  as  grades  e  outras 
miudesas  que  pintou  e  reformou  em  que  pos  hu  ano.  Desasete  mil  reaes  afora 
três  mil  que  loguo  em  principio  lhe  dera  que  ja  fica  atras  perante  mj  sobre- 
dito scripuão. » 2 

•  Titulo  da  despesa  que  faz  nas  ordinárias  este  ano  de  1551: 

«Pagou  ao  pintor  cinquo  mill  reaes  de  hQ  moyo  de  trigo  a  lxx  reaes  e 
quatro  allqueires  dazeite  a  ijc  reaes. 
«Do  trigo  que  foy  a  lxxx  reaes.»3 

«E  fernão  Roiz  pintor  que  tem  hum  moio  de  trigo  e  quatro  alqueires  da- 
zeite Averá  por  elles  cinco  mil  reaes.» 

Alvará  del-rei  de  10  de  setembro  de  1562. 4 


XCVIII. — Rodrigues  (Pêro).— Em  1510  andava  trabalhando  nas  obras 
de  pintura  do  paço  real  de  Cintra.  Veja-se  o  artigo  relativo  a  Gonçalo  Gomes, 
que  publico  adeante  na  Áddenda. 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de  Christo.  L.°  23,  fl.  175. 

*  Idem.  Idem.  L."  23,  fl.  179  v. 

3  Idem.  Cartório  do  Convento  de  Thomar.  L.°  101,  fl.  111. 

*  Idem.  Cartório  da  Ordem  de  Christo.  L.°  103,  fl.  200. 


NOTICIA  DE  ALGCNS  PINTORES  135 


XOIX. — Rodrigues  (Simão).  —  Pintor  de  óleo  e  imaginaria.  Dispensado 
de  servir  na  bandeira  de  S.  Jorge,  por  alvará  de  20  de  maio  de  1589: 

«Eu  elRey  faço  saber  aos  que  este  alluara  virem  que  havendo  respeito 
ao  que  na  petição  atras  scprita  diz  Symão  Rodriguez,  pimtor  doleo  e  ymagy- 
naria,  e  vistas  as  causas  que  allegaa  e  a  êformação  que  o  doutor  Paullo  Coe- 
lho do  meu  desembarguo  corregedor  do  ciuel  da  corte  per  meu  mandado  to- 
mou acerqua  do  comtheudo  na  dita  petição,  e  como  pela  dita  êformação  cons- 
tou ser  o  dito  Symã  Rodriguez  hum  dos  melhores  pimtores  de  ymagynaria  do- 
lio  que  ha  nestes  Reynos  e  a  dita  arte  de  pimtura  de  olio  e  ymagynaria  ser 
havyda  e  reputada  por  nobre  em  todos  os  outros  Reynos  ey  por  bem  e  me  praz 
que  ho  dito  Symão  Rodriguez  não  seja  d'aquy  em  dyamte  hobriguado  ha  ban- 
deyra  de  são  Jorge  nem  aos  encarguos  delia  nem  a  outro  allgúu  emcargo  dos 
ha  que  se  custumão  hobriguar  os  oficiaaees  macaniquos  e  isto  sem  êbarguo  da 
prouisão  per  que  elRey  dom  João,  meu  senhor  he  tyo,  que  samta  gloria  aja, 
anexou  os  pimtores  imdystymtamenle  ha  dita  bandeira  de  são  Jorge,  e  de 
quaesquer  outras  prouisões,  regimentos  he  posturas  da  camará  desta  cidade 
de  Lixboa,  que  em  contrario  desto  aja,  e  mãdo  ao  prisydente  vereadores  e  pro- 
curadores e  aos  procuradores  (pp.dores)  dos  mesteres  delle  a  quaaes  quer  ou- 
tras justyças  oficiaees  he  pesoas  ha  que  ho  conhecimento  desto  pertemcer  que 
ho  não  hobriguem  nem  ho  comstramguão  aos  êcarguos  da  dita  bandeira  de 
são  Jorge  nem  a  outros  allgus  de  oficiaees  macanequos  e  lhe  cumprão  e  guar- 
dem, facão  imteiramente  conprir  he  guardar  este  alluara  como  se  nelle  cõthem, 
o  qual  ey  por  bem  que  valha  etc,  na  forma.  Amtonio  dAguillar  o  fez  em  Lix- 
boa a  xx  de  mayo  de  mill  bc  lxxxix  (1589).  Francisco  Mendez  de  Pauia  o  fez 
escpreuer.» l 


O. — Rodrigues  da  Silva  (José). — Pintor  das  obras  publicas  por  1775. 
N'esta  qualidade  apparece  a  depor,  como  testemunha,  no  processo  de  habili- 
tação para  o  habito  de  Christo  concedido  ao  architecto  Reynaldo  Manuel  dos 
Santos. 


'  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Filippe  I.  Privilegiot.  L."  5,  fl.  239. 


136  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Cl. —  Santa  Cruz  (Francisco  de). —  Era  talvez  castelhano,  e  estava  preso 
na  cadeia  de  Bragança  por  haver  passado  para  Castella,  sem  as  devidas  for- 
malidades, vinte  e  oito  reaes  de  prata.  Sendo  necessário  pintar  a  gaiola  rica 
em  que  se  levava  o  corpo  do  Senhor  na  procissão  de  Corpus  Christi,  e  não 
havendo  na  cidade  outro  official  capaz  de  fazer  a  obra,  foi  dada  a  incumbên- 
cia a  Francisco  de  Santa  Cruz,  que  vinha  todos  os  dias  da  cadeia  á  casa  da  Ca- 
mará, acompanhado  de  um  homem,  para  executar  o  trabalho.  Véspera  da  fes- 
tividade conseguiu  escapar-se,  pelo  que  ficou  culpado  na  fugida  o  vereador 
Garcia  de  Madureira,  que  era  o  responsável,  e  a  quem  D.  João  UI  perdoou  em 
carta  de  10  de  maio  de  1533. 

«Dom  Joham,  etc,  a  todolos  corregedores  ouydores  jujzes  e  justisas  ofi- 
ciaes  e  pesoas  de  meus  Regnnos  e  senhoryos  a  que  esta  mjnha  carta  de  per- 
dam  for  mostrada  e  o  conhecymento  delia  por  qualquer  guisa  que  seya  per- 
tencer saúde  facouos  saber  que  Graeia  de  Madureyra  morador  na  cydade  de 
Bragança  memvyou  dizer  per  sua  piticam  que  sendo  elle  sopricante  o  anno  de 
bc  xxxj  vereador  na  dita  cydade  e  seruyndo  de  jujz  por  o  jujz  ser  ausente  ou- 
vera  neçesydade  de  se  comcertar  hua  gayola  rrica  que  avia  na  cydade  em  que 
leuauã  o  corpo  do  senhor  Dia  de  corpo  cryste  e  por  nã  aver  quem  o  soubese 
fazer  senã  huu  pimtor  per  nome  Francisco  de  Samta  Cruz  que  hera  preso 
por  ser  achado  pasar  pêra  Castella  vymte  e  oyto  rreaes  de  prata  sem  rregis- 
tar  e  fora  rrequerydo  a  elle  sopricamte  em  camará  que  ho  mandase  leuar  per 
huu  home  a  casa  do  concelho  pêra  aver  de  comcertar  a  dita  gayolla  e  elle  so- 
pricante o  fizera  por  na  cadea  nã  aver  lugar  pêra  se  leuar  a  gayolla  e  o  dito 
preso  a  fora  coreger  ymdo  sempre  cõ  huu  home  ate  que  bespora  de  Corpo  de 
Deos  fogira  enviandome  elle  sopricante  pedir  por  mercê  que  lhe  perdoase  mj- 
nha justiça  se  me  a  ello  por  rrezam  da  culpa  que  tynha  em  asy  fogyr  o  preso 
em  algúa  guisa  hera  theudo  e  obrjgado  e  eu  vemdo  o  que  me  elle  sopricamte 
asy  dizer  e  pedir  envyou  se  asy  he  como  elle  diz  e  rreconta  e  ahy  mays  nã 
ha  visto  huu  praz  me  cõ  ho  meu  pase  e  querendolhe  eu  fazer  graça  e  mercê 
tenho  por  bem  e  me  praz  de  lhe  perdoar  a  mjnha  justisa  que  me  elle  por  rre- 
zam da  culpa  no  caso  do  que  em  sua  piticã  faz  mençâ  era  theudo  e  obrjgado 
e  esloo  lyuremente  sem  que  nada  pagase.  E  porem  vos  mando  que  daquy  em 
diamte  o  nã  prendaes  nê  mandes  prender  nê  lhe  façaes  nê  comsymtaes  fazer 
mall  nê  outro  algúu  desaguysado  quamto  he  por  a  rrezam  do  sobre  dito  caso 
por  que  mjnha  mercê  e  vomtade  he  de  lhe  perdoar  a  mjnha  justisa  lyuremente 
pela  guisa  que  dito  he  o  que  asy  conpri  e  ali  nã  façaes.  dada  em  a  mjnha  cy- 
dade d  Évora  aos  x  dias  do  mes  de  mayo  ElRey  o  mandou  pelo  doutor  Luys 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  137 

Eanes  e  pelo  Licenciado  Chrisptouã  Esteuez  da  Espargosa  anbos  do  seu  con- 
selho etc.  Francisco  Pirez  a  fez  por  Pêro  da  Lagea  espriuam  anno  de  Noso 
Senhor  JhesQ  Christo  de  myll  be  xxxiij. —  E  eu  dito  Pêro  da  Lagea  ho  sob  es- 
creuy.» ' 


OII. —  S.  José  (Fr.  Luiz  de). — Não  posso  afiançar  que  elle  fosse  pintor 
na  genuína  e  elevada  accepção  da  palavra,  mas  era  sem  duvida  um  excellente 
debuxante  e  illuminador.  Confiado  na  sua  pericia,  D.  João  V  lhe  encommen- 
dou  o  debuxo  das  principaes  povoações  da  província  do  Minho  e  um  mappa 
de  tudo  que  se  observava  de  mais  notável  no  caminho  de  Lisboa  ás  Caldas  da 
Rainha.  Os  trabalhos  de  frei  Luis  de  S.  José,  tendentes  a  satisfazer  a  curiosi- 
dade do  nionarcha,  podiam  considerar-se  complemento  de  uma  obra  mais  ex- 
tensa, que  existia  na  regia  livraria,  sob  o  titulo  rle  Theatro  do  reino  de  Portu- 
gal e  do  Algarve,  em  cinco  volumes,  executada  em  1686. 

Tanto  o  Theatro  como  os  debuxos  de  frei  Luis  de  S.  José  não  existem 
hoje,  tendo  sido  por  certo  consumidos  no  incêndio  que  devorou  a  magnifica 
bibliotheea  de  D.  João  V.  Se  porventura  poderam  ser  salvos  n'aquella  occa- 
sião,  perderam-se  depois,  ou  por  extravio,  ou  por  nova  cataslrophe,  pois  não 
me  consta  que  tenham  chegado  até  nossos  dias,  ou  que  alguém  haja  d'elles 
conhecimento.  Foi  uma  perda  irreparável  e  que  todos  devemos  lastimar. 

Costuma-se,  com  frequência,  accusar  a  incúria  dos  nossos  antepassados, 
remissos  em  transmitlir  á  posteridade  os  seus  feitos  e  os  seus  monumentos, 
mas  essa  accusação  é  muitas  vezes  destituída  de  base,  porque  elles  não  teem 
culpa  que  desastres  imprevistos  houvessem  inutilisado  os  seus  esforços.  O  re- 
paro, que  com  alguma  justiça  se  pôde  fazer,  é  que  se  não  entregassem  á  es- 
tampa tantas  obras  que  se  conservaram  manuseriptas  e  que  se  damnificaram 
e  perderam,  sujeitas  ás  naturaes  vicissitudes  do  tempo. 

De  muitos  monumentos  da  actividade  intellectual  portugueza  desapparece- 
ram  completamente  os  vestígios,  e  de  outros  apenas  nos  ficou  archivada  uma  ou 
outra  noticia.  É  o  que  succede  com  as  obras  acima  mencionadas,  das  quaes  nos 
dá  uma  breve  descripção,  preciosa  apesar  de  breve,  Francisco  Xavier  da  Silva 
no  seu  Elogio  fúnebre  e  histórico  de  D.  João  V,  impresso  em  Lisboa  em  1750. 
Merece  transcrever-se  a  pagina  que  elle  dedica  a  este  assumpto: 

«E  para  cabalmente  expressar  o  grande,  e  curiosíssimo  génio  de  Sua  Ma- 
gestade,  bastará  dizer,  que  não  podendo  satisfazer  ao  desejo,  e  tenção,  que 
sempre  teve  de  ver,  e  examinar  todas  as  Cidades,  Villas,  Fortalezas,  e  povoa- 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  João  III.  Leyitmwções.  L."  9.  fi.  197  v. 
Maio,  iO<)y.  18 


138  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

ções  de  seus  Reynos,  o  supprio  por  hum  modo  suficiente  á  vista,  ainda  que 
não  ao  seu  gosto;  e  foy  com  o  continuado  exercício,  e  averiguação,  que  fazia 
nos  cinco  volumes,  que  se  conservão  na  sua  Real  livraria,  intitulados:  Thealro 
do  Reynn  de  Portugal  e  do  Algarve,  por  suas  Cidades,  Villas,  Fortes,  e  Fortale- 
zas, como  por  scenas  repartido,  e  forão  feitos  no  anno  de  1686.  Nelles  se  achão 
todas  ellas  debuxadas  em  ponto  grande,  e  com  summa  perfeição,  e  muito  ao 
natural.  E  ainda  que  esta  Obra  poderia  ser  bastante  a  satisfazer  muitos  génios 
curiosos,  não  o  era  ainda  para  a  incansável  diligencia  de  Sua  Magestade;  por- 
que para  examinar  com  mais  miudeza  os  novos  edifícios,  que  se  tinhão  erigido, 
mandou  ao  Padre  Fr.  Luiz  de  S.  Joseph,  Monge  Cisterciense,  por  ser  peritis- 
simo  neste  género  de  estudo,  que  debuxasse  todas  as  povoações,  que  ha  na 
Província  do  Minho,  o  que  elle  fez  com  summa  perfeição  no  anno  de  1726. 
Reduzio  também  a  Mappa  algumas  Cidades,  e  Villas  da  Província  da  Beira, 
dando  a  todas  as  differentes  vistas,  que  tem  de  Norte  a  Sul,  e  de  outras  situa- 
ções, para  satisfação  da  grande  curiosidade  de  Sua  Magestade,  que  se  exten- 
dia  a  tanto,  que  até  mandou  fazer  hum  Mappa  de  todo  o  caminho,  que  vay 
desde  o  Mosteiro  da  Madre  de  Deos  até  á  Villa  das  Caldas,  para  ir  pelo  ca- 
minho, quando  a  ella  passava  a  tomar  os  banhos,  empregando  nesta  forma  a 
sua  curiosidade,  por  se  não  satisfazer  com  a  narração:  e  he  obra  estimável; 
pois  com  summa  exacção  se  debuxão,  e  apontão  os  nomes  das  Quintas,  Ca- 
saes,  Herdades,  e  seus  donos;  Villas,  Lugares,  e  tudo  o  que  ha  memorável 
por  todo  aquelle  caminho.» ' 


CHI. —  Serra  (Victorino  Manuel  da). — Tem  a  sua  nota  biographica  a  pag. 
225  da  obra  de  Taborda,  que  o  classifica  de  pintor  ornamentista,  procurando 
seguir  o  estylo  de  Baccarelli. 

No  hyperbolico  Elogio  fúnebre,  que  lhe  consagrou  Jeronymo  de  Andrade 
(diz  Taborda  que  é  pseudonymo  de  Manuel  Ferreira  Leonardo),  publicado  em 
Lisboa  em  1748,  ha  duas  passagens  que  nos  revelam  que  Victorino  Manuel  da 
Serra  fora  um  dos  mais  notáveis,  ou,  pelo  menos,  um  dos  mais  fecundos  dos 
nossos  pintores  azulejistas.  A  pag.  15  lê-se  o  seguiute: 

tDeste  novo  estilo  pintou  muito  nas  casas  de  Custodio  Vieira,  e  lhe  deu 
os  riscos  para  os  azulejos,  empreza  da  sua  idéa,  e  novo  primor  do  seu  dis- 
curso.» 

Outra  passagem  diz  ainda : 


Francisco  Xavier  da  Silva.  Elogio  fúnebre,  pag.  281  e  282. 


NOTICIA  DK  ALGUNS  PINTORES  139 

«Manifestem  os  pintores  de  azulejos  quantas  vezes  o  attenderam,  e  rece- 
beram da  sua  própria  mão  os  riscos,  sem  que  nisto  interessasse  alguma  con- 
veniência íque  esta  c  a  desgraça  dos  homens  grandes),  as  penalidades  da  mi- 
séria, conservando  sempre  as  grandesas  da  heroicidade.» 

Não  conheço  nenhum  painel  de  azulejo  subscripto  com  o  seu  nome  ou  com 
as  suas  iniciaes. 

Serra  assigna,  como  escrivão,  vários  termos  nos  livros  da  confraria  de 
S.  Lucas.  Ahi  se  diz  que  elle  residia,  em  23  de  janeiro  de  1718,  na  rua  dos 
Vinagres.  Também  lá  se  indica  o  dia  da  sua  morte,  1 1  de  abril  de  1747,  e  o 
local  do  seu  enterramento,  Nossa  Senhora  do  Soccorro.  Taborda  dá-o  falle- 
cido  a  9. 


OIV.— Silva  Paz  (Lourenço  da).— Por  morte  de  Bento  Coelho,  do  qual 
não  ficaram  filhos,  foi-Ihe  dada  a  propriedade  de  pintor  de  óleo  da  Casa  das 
obras  dos  paços  reaes  da  Ribeira.  Carta  de  26  de  novembro  de  1708. 

tDom  João  por  Graça  de  Deus  Rey  de  Portugal  etc.  Faço  saber  aos  que 
esta  minha  carta  virem  que  hauendo  respeito  ao  bem  que  me  tem  seruido  Lou- 
renço da  Silua  Pas  de  Mestre  Pintor  de  olio  da  caza  das  obras  dos  meus  Pa- 
ços da  Ribeira  desta  cidade  Hey  por  bem  e  me  pras  fazer  lhe  mercê  da  pro- 
priedade do  dito  officio  de  mestre  pintor  de  olio  da  mesma  caza  das  obras  que 
vagou  por  falecimento  de  Bento  Coelho  ultimo  proprietário  que  delle  foj  do 
qual  não  ficarão  filhos,  o  qual  oficio  terá  e  seruirá  em  quanto  eu  o  ouuer  por 
bem  e  não  mandar  o  contrario  com  declaração  que  tirandolho  ou  extinguin- 
doo  em  algum  tempo  por  qualquer  cousa  que  seja  lhe  não  ficará  por  isso  mi- 
nha fazenda  obrigada  a  satisfação  algua  e  com  o  dito  oficio  hauerá  de  orde- 
nado cada  anno  sinco  mil  reis  em  dinheiro  pagos  no  almoxarifado  da  impoçis- 
são  dos  vinhos  desta  cidade,  e  hum  mojo  de  trigo  no  das  jugadas  da  villa  de 
Santarém,  asim  como  tinha  e  hauia  seu  antecessor  o  dito  Bento  Coelho,  e  as 
mais  pessoas  que  o  seruirão,  e  asim  hauera  mais  todos  os  proes  e  precalsos 
que  lhe  direitamente  pertencerem,  pello  que  mando  a  vos  Prouedor  de  minhas 
obras  e  Paços  lhe  deis  posse  da  propriedade  do  dito  officio  e  lho  deixeis  ser- 
uir  e  delle  usar  e  hauer  o  ordenado  proes  e  percalsos  como  dito  he  dando  lhe 
primeiro  o  juramento  dos  Santos  evangelhos  que  bem  e  verdadeiramente  sirua 
guardando  em  tudo  meu  seruiço  e  cumprindo  sua  obrigação;  e  o  dito  ordenado 
lhe  hade  ser  pago  com  certidão  do  dito  Prouedor  das  obras  e  Paço  de  como 
satisfes  a  sua  obrigação  e  de  como  o  dito  prouedor  lhe  deu  posse  e  juramento 
se  fará  termo  nas  costas  desta  que  se  comprirara  tão  inteiramente  como  nella 


140 


NOTICTA  DE  ALGUNS  PINTORES 


se  comtbem  e  pagou  de  nonos  direitos  sinco  mil  reis  que  forão  carregados  ao 
thezoureiro  delles  Aleixo  Bottelho  de  Ferreira  a  fls.  21  do  L.°  1.°  de  sua  re- 
ceita e  deu  fiança  a  outra  tanta  quantia  no  L.°  l.°  delias  a  fl.  7  v.  como  tudo 
constou  por  conhecimento  feito  pello  escriuão  de  seu  rargo  e  assinado  por  am- 
bos o  qual  foj  registado  a  fls.  20  do  L.°  1.°  do  Registo  geral  dos  mesmos  di- 
reitos e  rotto  com  a  portaria  de  outo  de  nouembro  corrente  por  vertude  da 
qual  esta  se  obrou  e  a  margem  do  Registo  delia  se  porá  verba  do  contheudo 
nesta  minha  carta  que  por  firmeza  de  tudo  o  que  dito  he  mandey  dar  ao  dito 
Lourenço  da  Silua  por  mim  assinada  e  sellada  com  o  meu  cello  pendente  Luis 
Pinheiro  de  Azeuedo  a  fes  em  Lixboa  a  vinte  e  seis  de  nouembro  de  mil  e  se- 
tecentos e  outo  annos/AIartim  Teixeira  de  Carualho  a  fes  escreuer/ElRey  o 
Conde  da  Castanheira /Manoel  Lopes  de  Oiiueira  chanceller  Mor/Pagou  duzen- 
tos reis  e  de  aualiação  mil  e  setecentos  reis  e  aos  officiaes  quinhentos  e  sin- 
coenta  reis. —  Lixboa  8  de  Janeiro  de  1709/Innoceneio  Corrêa  de  Moura.»  • 


CV.— Silva  Rabello  (Manuel  da). — A  seu  respeito  encontramos  a  se- 
guinte menção  no  Livro  S.°  das  Matriculas: 

«Natural  de  Montemor  o  Velho.  EIRey  noso  Senhor,  tendo  respeito  ao  ta- 
lento que  tem  na  arte  de  pintar,  e  que  seruirá  bem,  lhe  faz  mercê  da  pro- 
priedade do  officio  do  pintor  de  sua  caza,  com  o  qual  hauerà  20#000  reis  de 
ordenado  cada  anno,  que  lhe  serão  pagos  aos  quartéis  no  Thizoureiro  das  mo- 
radias dos  moradores  delia  que  he  o  mesmo  que  tinha  e  hauia  seu  sogro  Fran- 
cisco Gomez,  por  quanto  Sabastiana  de  Souza  sua  filha  esta  cazada  e  recebida 
á  face  da  igreja  com  o  dito  Manuel  da  Silva  ao  qual  se  tinha  feito  mercê  da 
propriedade  do  dito  officio  para  a  pessoa  que  com  ella  cazasse  por  hum  Al- 
uara feito  a  mercê  da  propriedade  digo  (sic)  por  Aluara  de  lembrança  de  que 
o  treslado  he  o  seguinte: 

«Eu  elRey  faço  saber  a  uos  D.  João  da  Silua  Marquezes  (sic)  de  Gouea 
Conde  Portalegre,  e  meo  muito  prezado  sobrinho  do  meu  conselho  destado  e 
meu  Mordomo  Mor  que  hauendo  respeito  a  Francisco  Gomez  que  foi  meu  pin- 
tor hauer  seruido  o  dito  officio  mais  de  sincoenla  annos,  e  por  seu  falecimento 
ficar  Sebastianna  de  Souza  sua  filha  com  pouco  remédio  pêra  poder  tomar  es- 
tado Hey  por  bem  e  me  praz  fazer  mercê  a  dita  Sebastianna  de  Souza  da  pro- 
priedade do  dito  officio  do  meu  pintor  que  vagou  por  falecimento  do  dito  Fran- 
cisco Gomes  seu  pay  com  o  mesmo  ordenado  que  elle  tinha  e  hauia  pêra  a 


1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  João  V.  L."  32,  fl.  214  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


141 


pessoa  que  com  ella  cazasse  que  sendo  apta  e  suficiente  pêra  seruir  o  dito 
oficio  se  lhe  fará  Aluara  em  forma  delle  constando  que  esta  cazada  e  recebida 
a  face  da  igreja  e  para  sua  guarda  e  minha  lembrança  lhe  mandey  passar  estr. 
aluara  que  lhe  farei  inteiramente  comprir  tanto  que  for  cazada  na  forma  so- 
bredita a  qual  quero  que  valha  tenha  força  e  vigor  posto  que  seu  effeito  dure 
mais  de  hum  anno  e  de  não  ser  passado  pela  chancellaria  sem  embargo  das 
ordenações  que  o  contrario  dizpoem,  e  este  Aluara  não  terá  effeito  sem  pri- 
meiro constar  por  certidão  do  escriuão  do  nono  direito  de  como  o  tem  pago 
se  deuer  Manoel  Corrêa  o  fez  em  Lixboa  a  '.í  de  Dezembro  de  16(50  e  he  o 
mesmo  que  tinha  e  hauia  o  dito  seu  sogro  Francisco  Gomez  uisto  ter  pago 
5:000  reis  de  nouo  direito  que  se  carregaram  ao  thezoureiro  delle  Aleixo  Fer- 
reira Botelho  em  seu  Liuro  fl.  190  e  dado  fiança  a  pagar  outra  tanta  quantia 
no  L.°  delias  fl.  53  por  Alvará  de  U  de  julho  de  16U5  —  Rebello.»  • 


OVI. —  Sousa  (António  de). —  Com  o  nome  de  António  de  Sousa,  pintor, 
se  acha  subscripto  um  ex-libris  no  Dialogo  de  la  pintura,  de  Carducci.  Veja-se 
este  nome. 


OVII. —  Sousa  Villar  (Thomaz  de). — Mestre  pintor.  A  rainha  D.  Marianna, 
esposa  de  D.  João  V,  o  tomou  por  oficial  de  sua  casa,  em  carta  de  II  de 
maio  de  1727.  Parece  que  era  pintor  brochanle,  pois  ao  fundo  do  registo  da 
carta  se  lê  que  lhe  fora  passada  outra  de  pintor  das  cavallariças  da  rainha. 

aDonna  Marianna  por  Graça  de  Deus  Raynha  de  Portugal  e  dos  Algarves 
daquem  e  dalém  mar  em  Africa  Senhora  de  Guine  e  da  conquista,  navegação, 
comercio  da  Ethiopia,  Arábia  percia  e  da  índia  faço  saber  a  vos  D.  Fernando 
Mascarenhas  Marquez  de  Fronteira  Mordomo  Mor  de  minha  caza  que  hey  por 
bem  fazer  mercê  a  Thome  de  Souza  Villar  mestre  pintor  de  o  aseitar  por  ofi- 
cial de  minha  caza  para  me  seruir  como  os  mais  officiaes  delia  com  o  que  go- 
zará de  todas  as  honras,  previlegios  liberdades  que  gozão  todos  os  meus  cria- 
dos e  por  firmeza  de  tudo  lhe  mandei  passar  essa  caria  por  mim  asinada  que 
passara  pella  minha  chancellaria  selada  com  o  selo  de  minhas  armas.  Dada 
nesta  cidade  de  Lisboa  occidental  aos  vinte  e  sinco  de  mayo.  Gregório  Lourenço 
de  Magalhães  a  fez  anno  do  Nascimento  de  Nosso  Senhor  Jezus  Christo  de  mil 
setecentos  e  vinte  e  sete  —  António  de  Barros  Pereira  a  fes  escreuer,  Marquez 


•  Torre  do  Tombo.  Matriculai.  L.«  5.",  fl.  856. 


142  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

mordomo  rnor  =  a  Raynlia     Por  portaria  do  Marquez  Mordomo  mor  de  11 

de  mayo  de  1727.»  * 

«Em  o  dito  dia  se  passou  carta  de  pintor  das  obras  da  cavallerice  da  Rai- 
nha Nossa  Senhora  a  Vicente  de  Souza  —  por  portaria  do  Duque  Mordomo  Mor 
de  18  de  agosto  de  718.»  * 


CVIII. — Taveira.— Communicam-me  de  Santa  Valha,  concelho  de  Valle 
Passos,  districlo  de  Villa  Real,  que  existe  na  egreja  parochial  d'aquella  fre- 
guezia  um  quadro  a  óleo,  pintado  sobre  madeira,  representando  Nossa  Senhora 
do  Desterro,  o  qual  tem  a  seguinte  inscripção: 

73  TA/RA 

O  73  deve,  com  toda  a  probabilidade,  referir-se  ao  anno  de  1573.  Di- 
zem-me  ser  quadro  de  merecimento. 


CIX.~  Teixeira  (Diogo).—  Cyrillo  Volkmar  Machado  (Memorias,  pag.  68) 
cita  a  opinião  de  Félix  da  Costa,  o  qual  diz  que  Diogo  Teixeira  fizera  cousas 
excellentes  no  tempo  de  D.  Sebastião.  Accrescenta  que  na  egreja  da  Luz  exis- 
tem pinturas  suas  ao  pé  das  de  Vanegas. 

Era  cavalleiro  fidalgo  da  casa  de  D.  António,  prior  do  Crato.  D.  Sebastião, 
por  alvará  de  6  de  maio  de  1577,  o  dispensou  dos  encargos  da  bandeira  de 
S.  Jorge. 

«Eu  elRey  faço  saber  aos  que  este  alluara  virem  que  avendo  respeito  ao 
que  na  pilição  atras  escrita  diz  Diogo  Teixeira,  canaleiro  fidallgo  da  casa  de 
dom  António,  meu  muito  amado  e  prezado  primo,  e  vistas  as  causas  que  nela  ' 
alega  e  a  informação  que  o  licenciado  Ruy  Fernandez  de  Castanheda,  do  meu 
desembargo  e  corregedor  do  ciuel  desta  cidade  de  Lixboa,  por  meu  mandado 
tomou  acerca  do  conteúdo  na  dita  pitição  e  como  pella  dita  informação  cons- 
tou ser  o  dito  Diogo  Teixeira  hum  dos  melhores  pintores  de  imaginarya  dolio 
que  ha  nestes  Reynos  e  a  dita  arte  de  pintura  dolio  e  imaginarya  ser  ávida  e 
reputada  por  nobre  em  todos  os  outros  Reynos,  ey  por  bem  e  me  praz  que  o 
dito  Diogo  Teixeira  não  seja  daqui  em  diante  obrigado  a  bandeira  de  São  Jorge 


1  Torre  do  Tombo.  Casa  das  Rainhas.  L.°  1,  fl.  116. 
1  Idem.  Idem.  L.°  I,  Q.  99  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  143 

nem  aos  emcargos  delia  nem  a  outros  alguns  emcargos  dos  que  se  custumão 
obrigar  os  officiais  mecânicos  e  isto  sem  êbargo  da  prouisão  per  que  eIRei  meu 
senhor  e  avô  que  Deus  tem  anexou  aos  pintores  indistintamête  a  dita  bandeira 
de  São  Jorge  e  de  quaes  quer  outras  prouisões  regimêtos  e  posturas  da  ca- 
mará desta  cidade  de  Lixboa  que  em  contrario  aja,  e  mando  aos  vereadores  e 
procuradores  da  dita  cidade  e  aos  procuradores  dos  mesteres  delia  e  a  quaes - 
quer  outras  justiças,  officiaes  e  pesoas,  a  que  o  conhecimento  disto  pertencer 
que  o  não  obriguem  nem  constrangão  aos  emcargos  da  dita  bandeira  de  São 
Jorge  nem  a  outros  algus  de  official  macanico  e  lhe  cumpra,  guardem  e  fa- 
cão inteiramente  comprir  e  guardar  este  alluara  como  se  nelle  contem,  o  qual 
ey  por  bem  que  valha  etc.  na  forma.  Gaspar  de  Seixas  o  fez  em  Lixboa  a  seis 
de  mayo  de  mil  bc  lxx  bij.  Jorge  da  Costa  o  fez  escreuer.»' 


CX. — Tomasini  (Luiz  Assencio). —  Falleceu  em  Lisboa  no  dia  29  de  ou- 
tubro de  1902,  e  foi  sepultado  no  dia  seguinte  no  cemitério  occidental  (Pra- 
zeres). Os  jornaes,  na  secção  necrologica,  limitaram-se  a  registar  o  seu  nome, 
sem  indicar  a  menor  particularidade  biographica,  como  se  se  tratasse  de  um 
insignificante  ou  de  um  desconhecido.  Effectivamente  ha  bastante  tempo  que 
elle  jazia  apartado  do  mundo,  que  não  só  o  esquecera,  mas  que  até  talvez  já 
o  considerasse  morto.  Apenas,  que  me  conste,  o  meu  particular  amigo  F.  Ran- 
gel de  Lima,  como  fino  conhecedor  da  arte  e  do  nosso  meio  artístico,  lhe  de- 
dicou, nas  suas  cartas  diárias  para  o  Commercio  do  Porto,  algumas  palavras 
de  saudosa  e  merecida  homenagem.  Aqui  as  transcrevo: 

«Esse  homem  chamou-se  Luiz  Assencio  Tomasini. 

«Intrépido  capitão  de  navios,  Tomasini  realisou  innumeras  viagens  de  ca- 
bos a  dentro,  em  que  por  mais  de  uma  vez,  á  sua  muita  coragem  e  perícia, 
se  deveu  a  salvação  de  importantes  valores  e  preciosas  vidas.  Mas  não  foi  como 
homem  do  mar  que  Tomasini  adquiriu  celebridade,  comquanto  o  seu  nome 
fosse  dos  mais  respeitados  pelos  seus  camaradas  e  negociantes  da  praça;  foi, 
sim,  como  pintor  de  marinhas,  porque,  logo  depois  de  abandonar  a  vida  ma- 
rítima, durante  a  qual  fizera  estudos  importantíssimos  do  natural,  entregou-se 
de  alma  e  coração  á  vida  artística. 

«Estabelecendo  o  seu  atelier  no  atelier  de  Thomaz  José  da  Annunciação, 
de  quem  era  amigo  intimo,  e  nunca  despresando  os  assisados  conselhos  do 
mestre,  chegou  a  ser  o  nosso  primeiro  pintor  de  marinhas,  disputando  prima- 
zias  com  Pedroso,  que  então  gosava  de  boa  fama  como  tal. 


1  Torre  do  Tombo.  Chane.  de  D.  Sebastião  e  D.  Henrique.  Privilégios.  L.*  13,  fl.  69  v. 


144  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«A  differença  entre  estes  dois  artistas  saltava  aos  olhos.  Pedroso  era  a 
convenção,  Tomasini  o  naturalismo. 

«Produzindo  immensos  quadros,  que  expoz,  e  dos  quaes  vendeu  a  maior 
parte,  o  seu  nome  tornou-se  tão  conhecido  que  chegou  a  ser  moda  ter  um 
quadro  de  Tomasini.  Por  fim  a  doença  impossibilitou-o  de  trabalhar  e  o  seu 
nome  cahiu  em  tal  olvido  que,  morrendo  agora,  raros  são  os  que  se  lembram 
de  que  elie  foi  um  grande  pintor. 

«Paz  á  sua  alma.  Pezames  a  sua  família.» 

O  convite  da  família  para  o  enterro  era  concebido  nos  seguintes  termos: 

«Rodolpho  Luiz  Tomasini,  D.  Elvira  Tomasini  de  Noronha,  seu  marido  e 
filhos,  D.  Elvira  Lambertini  Pinto  e  seu  marido,  participam  a  todos  os  paren- 
tes e  pessoas  das  suas  relações  o  fallecimento  de  seu  muito  querido  pae,  so- 
gro, avô  e  cunhado,  cujo  funeral  se  realisa  hoje,  30,  pelas  4  horas  da  tarde, 
sahindo  o  funeral  da  sua  residência  na  rua  Saraiva  de  Carvalho,  2IG,  para  o 
cemitério  dos  Prazeres.» 

Sabendo  eu  que  o  distincto  pintor  de  marinhas  fora  baptisado  na  egreja 
da  Conceição  Nova  em  15  de  agosto  de  1823,  escrevi  ao  prior  d'aquella  fre- 
guezia,  o  reverendo  padre  António  Marques  de  S.  Ramalho,  que  nem  conhe- 
cia sequer  de  nome,  pedindo-lhe  se  dignasse  enviar-me  as  principaes  informa- 
ções contidas  no  assento  do  baptismo,  e  elle,  em  extremo  delicado  e  pontual, 
me  enviou  os  seguintes  apontamentos  em  carta  de  26  de  novembro  de  1902: 

«Foi  baptisado  em  24  de  setembro  de  1823,  e  nasceu  em  15  de  agosto 
do  mesmo  anno.  Foram  seus  pães  Luis  Máximo  Tomasini  e  D.  Maria  Elena  Go- 
mes, natural  de  Pernes.  Nada  mais  consta  do  termo  de  baptismo,  a  fl.  16  v., 
livro  18.» 

Não  me  consta  que  frequentasse  estudos  regulares  de  nenhuma  escola 
especial,  tendo  aprendido  particularmente  a  pintura  com  Thomaz  José  da  An- 
nunciação.  Tinha  as  seguintes  condecorações  e  títulos  honoríficos:  habito  de 
S.  Thiago,  commenda  de  Isabel  a  Calholica  e  habito  de  Carlos  III.  Académico 
de  mérito  da  Academia  Real  de  Relias  Artes  de  Lisboa.  Medalha  de  prata  da 
Sociedade  Promotora  das  Relias  Artes  em  Portugal.  Medalha  de  cobre  na  Ex- 
posição portugueza  do  Rio  de  Janeiro. 

Em  1879  commandou  elle  o  vapor  Maria  Pia,  que  conduziu  ao  Rio  de  Ja- 
neiro os  productos  da  Exposição  portugueza.  A  companhia  organisadora  pro- 
moveu, no  dia  da  partida,  uma  honrosa  manifestação  de  sympathia  ao  illus- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  145 

tre  comniandante,  convocando  para  este  acto  diversas  pessoas.  A  carta  de  con- 
vite era  redigida  nos  seguintes  termos: 

«Companhia  Fomentadora  das  Industrias  e  Agricultura  de  Portugal  e  suas 
Colónias. — Escriptorio:  Largo  do  Corpo  Santo,  28,  1.° 

Ex.m0  Sr. 

«Devendo  o  vapor  Maria  Pia,  fretado  por  esta  companhia  para  conduzir 
ao  Rio  de  Janeiro  os  productos  destinados  á  Exposição  Portugueza,  feita  por 
iniciativa  da  mesma  companhia,  partir  do  Tejo  no  próximo  domingo  8  do  cor- 
rente, ás  5  horas  da  tarde,  os  abaixo  assignados  desejam  dar,  na  occasião  da 
sabida  do  vapor,  uma  demonstração  da  estima  que  a  todos  merece  o  seu  di- 
gno commandante  o  sr.  Tomazini. 

«Se  a  V.  Ex.a  não  fôr  de  muito  incommodo  n'aquelle  dia  fazer  um  pas- 
seio alé  bordo  do  Maria  Pia,  dar-nos-hia  n'isto  muita  honra  e  satisfação. 

«Creia-nos,  etc 

De  V.  Ex.1 

Amigos  e  obrigadissimos  criados 
«Junho,  4,  de  1879. 

Os  gerentes  da  Companhia 

Marcellino  Ribeiro  Barboza 
Caetano  de  Carvalho 
Luciano  Cordeiro. 

Director  etpecial  da  exposição 

«Da  uma  hora  da  tarde  ás  duas  estarão  no  cães  do  Sodré  alguns  botes 
ás  ordens  dos  nossos  amigos.» 

Tomasini  foi  um  dos  artistas  encarregados  de  ornamentar  os  carros  que 
figuraram  no  préstito  civico  do  3.°  centenário  da  morte  de  Luiz  de  Camões, 
celebrado  em  10  de  junho  de  1880.  Como  era  natural,  coube-lhe  um  carro  pró- 
prio da  sua  especialidade:  um  Galeão  do  século  xvi. 

O  semanário  illuslrado  O  Occidente  publicou  no  n.°  63  do  seu  3.°  anno 
(1  de  agosto  de  1880)  uma  pagina  com  quinze  medalhões,  contendo  os  retra- 
tos da  commissão  executiva  da  imprensa  e  dos  artistas  que  delinearam  os  car- 
ros triumphaes  da  procissão  civica. 

Eu  conheci  ha  bastantes  annos  Tomasini  n'um  conciliábulo  arlistico-lilte- 
rario,  que  se  reunia,  quasi  todas  as  noites,  no  estabelecimento  de  modas  de 
José  Gregório  da  Silva  Barbosa,  ao  Chiado,  quasi  á  esquina  da  rua  Nova  do  Al- 

Maio;  1903.  19 


146  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

mada.  Tomasini  era  baixinho,  magro,  mas  vivo,  nervoso.  Ao  vêr  aquella  figura 
franzina  ninguém  diria  que  estava  ali  um  audacioso  homem  do  mar.  E,  toda- 
via, era  não  só  um  dos  mais  illustrados,  mas  também  dos  mais  valentes  capi- 
tães da  nossa  marinha  mercante,  como  o  attestavam  as  suas  numerosas  viagens 
e  a  sua  longa  e  honrosa  carreira  marítima.  A  sua  voz  de  espirra-canivetes,  como 
vulgarmente  se  costuma  dizer,  tomava  a  entonação  imperiosa  do  commando  e 
impunha-se  dominadora  nos  momentos  da  tempestade  e  do  perigo. 

A  loja  do  Barbosa  tinha  e  tem  —  pois  ainda  se  conserva  —  quatro  largas 
portas,  duas  das  quaes  envidraçadas  para  exposição  permanente  de  objectos. 
A  terceira  formava  um  vasto  recanto  propiciamente  apropriado  ás  palestras  do 
cenáculo.  A  quarta  dava  para  o  escriptorio  ou  gabinete,  onde  o  dono  da  casa 
tinha  a  sua  secretaria,  e  onde  as  freguezas  costumavam  ir  provar  os  chapéos, 
as  capas  e  outros  enfeites.  Além  d'isso  havia  uma  sobre-loja,  onde  se  chegara 
a  formar  um  atelier. 

José  Gregório  da  Silva  Barbosa  era  irmão  da  viuva  de  Francisco  Gomes 
de  Amorim,  e  foi  talvez  o  contacto  com  o  cunhado  que  lhe  apegou  a  tendên- 
cia pelas  cousas  de  arte  e  litteratura.  Falleceu  a  22  de  janeiro  de  1896,  na 
sua  casa  da  rua  do  Belver,  que  anteriormente  fora  propriedade  de  José  Sil- 
vestre Ribeiro,  que  ali  exhalou  também  o  ultimo  suspiro.  Era  alto,  de  figura 
e  maneiras  distinctas,  com  certa  illustração  e  gosto.  Aprazia-se  muito  com  a 
amena  cavaqueira  dos  artistas  e  litteratos,  mas,  á  maneira  que  a  loja  se  ia 
enchendo  de  freguezas,  elle  já  não  sabia  para  onde  se  havia  de  voltar,  e  eil-o 
indeciso,  oscillando  como  um  pêndulo,  entre  o  grupo  dos  amigos  e  as  senho- 
ras, para  as  quaes  tinha  sempre  uma  phrase  e  um  sorriso  amável,  decidin- 
do-se  afinal  por  estas,  na  fina  comprehensão  de  quem  sabe  que  eram  ellas,  e 
não  os  litteratos  e  os  artistas,  que  mantinham  a  prosperidade  do  estabeleci- 
mento. Se  a  affluencia  da  freguezia  augmentava,  o  dono  da  loja  convidava  pru- 
dentemente o  grupo  dos  amigos  a  ir  deliberar  para  o  escriptorio. 

Barbosa  ia  invariavelmente,  duas  vezes  por  anno,  ao  estrangeiro,  a  fazer 
o  sortimento  de  modas  para  as  estações  de  verão  e  de  inverno.  O  centro  das 
suas  operações  era  Paris,  mas  muitas  vezes  dava  um  salto  a  Londres  e  fazia 
algumas  entradas  pelo  norte,  Bélgica,  Hollanda,  Allemanha.  Na  capital  da 
França  tinha  um  amigo,  que  nunca  deixava  de  visitar,  aquelle  syrupathico  e 
virente  velhinho,  tão  affeiçoado  aos  portuguezes,  que  se  chamava  Ferdinaud 
Denis.  Concluídas  as  suas  transacções  commerciaes,  Barbosa  divagava  então  pe- 
los museus,  frequentando  os  ferros  velhos  e  alfarrabistas,  onde  encontrava 
quasi  sempre  algum  objecto  que  lhe  picasse  a  curiosidade  e  que  elle  alcançava 
por  um  preço  módico.  Barbosa  linha  o  amor,  mas  não  a  paixão  immoderada 
dos  colleccionadores  a  todo  o  transe.  Primeiro  que  tudo  era  negociante,  e, 
com  o  seu  tino  pratico,  não  se  deixava  afogar  n'uma  gotta  d'agua.  Por  este  sys- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  147 

tema  pôde  alcançar  muitos  objectos  com  referencia  a  Portugal,  sobretudo  moe- 
das e  medalhas,  das  ultimas  das  quaes  fez  uma  collecção  preciosa,  talvez  única 
no  seu  género,  e  que  os  seus  herdeiros  venderam  por  quatro  contos,  segundo 
ouvi,  a  Jeronymo  Ferreira  das  Neves,  o  infatigável  bibliophilo  americanista. 

Já  que  falei  em  coleccionadores,  vem  muito  a  propósito  citar  outro  amigo 
de  Barbosa  e  frequentador  da  casa,  Joaquim  Ventura  Pereira,  que  fora  dono 
de  uma  loja  de  sola  ás  portas  de  Santo  Antão  e  que,  tendo  sido  um  homem 
vigoroso,  chi-gou,  pelos  seus  longos  annos,  a  um  estado  senil,  até  que  fal- 
leceu  em  13  de  dezembro  de  1902.  Typo  original,  gostaudo  de  narrar  a  sua 
anecdola  e  de  dizer  a  sua  chalacinha.  Portuguez  velho,  de  quatro  costados, 
muito  patriota,  amando  tudo  que  fosse  nacional.  Tinha  quasi  uma  adoração 
pelos  três  patriarchas  da  moderna  litteratura  portugueza.  Reunira  uma  apre- 
ciável collecção  de  quadrinhos,  de  relógios,  caixas  esaialladas  e  pintadas,  le- 
ques, miniaturas,  cerâmica,  etc.  Esta  collecção  foi  vendida  em  hasta  publica, 
poucos  mezes  antes  da  sua  morte,  na  sua  residência  na  Avenida  da  Liberdade. 

Do  núcleo  que  concorria  ás  palestras  nocturnas  da  loja  de  modas  do  Chia- 
do, além  de  Tomasini,  que  já  citei,  lembram-me  os  seguintes:  Manuel  Bordallo, 
um  flamengo  ou  hoilandez  da  linhagem  dos  Teniers;  Raphael,  seu  filho,  cujo 
talento  embryonario  já  denunciava  as  fulgurantes  qualidades  que  o  haviam 
de  exalçar;  Gonçalves  Pereira,  auctor  de  um  quadro  Romeu  e  Julieta,  em  que 
os  dois  amantes  de  Verona  são  representados  por  um  gallo  e  uma  gallinha; 
Barradas,  um  engraçado  bohemio;  Lassere,  primoroso  florista  e  ornamentista; 
Ferreira  Chaves,  tão  hábil  no  retrato  como  delicado  nas  flores;  Malhoa,  um 
enthusiasla  de  vigorosa  e  fecunda  palheta;  Simões  d'Almeida,  o  correcto  e  no- 
tável estatuário;  o  general  Cascaes,  o  conceituoso  poeta  que  tanto  trabalhou 
para  engrandecer  o  theatro  portuguez;  Rangel  de  Lima,  que,  por  tantos  an- 
nos, forneceu  a  matéria  prima  ao  saboroso  entretenimento  das  nossas  plateias; 
A.  de  Sousa  e  Vasconcellos,  que  também  cultivou  a  litteratura  dramática  e  re- 
digiu A  Arte;  Zacharias  d'Aça,  de  forte  arcabouço,  manejando  a  espingarda  e 
a  penna,  Nenrod  como  Bulhão  Pato  e  seu  amigo  intimo;  Severini,  distincto 
gravador  hespanhol. 

Deixei  para  o  fim,  seguindo  a  conceituosa  phrase  do  Evangelho,  de  que 
os  últimos  serão  os  primeiros,  a  Thomaz  José  da  Annunciação,  a  quem  todos 
respeitavam  pelo  caracter  e  consideravam  como  mestre.  Barbosa  dedicou-lhe 
especial  affeeto,  a  que  o  artista  correspondia  da  mesma  forma.  Annunciação, 
physionomia  peninsular,  moreno,  de  olhos  vivos,  sempre  correcto  na  sua  so- 
brecasaca preta,  pendente  do  braço  o  sobretudo,  á  maneira  do  pae  Rosa,  era, 
ao  primeiro  aspecto,  um  pouco  severo,  mas,  atravessada  a  linha  divisória  da 
etiqueta,  toda  a  apparente  frieza  se  transformava  na  mais  expansiva  amabili- 
dade. A  sua  morte  deixou  um  profundo  rasto  de  sentimento  no  coração  dos 


i  48  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

seus  amigos  e  admiradores,  que  se  organisaram  desde  logo  em  commissão 
para  se  lhe  erigir  um  tumulo,  singelo  mas  grato  monumento,  destinando-se  o 
que  sobrasse  d'esta  obra  para  constituir  um  premio  com  o  nome  do  grande 
artista.  Embora  não  trate  aqui  de  o  biograpliar,  julgo  todavia  opportuno  re- 
produzir a  circular  que  foi  então  distribuída  para  angariar  subsídios  para 
tal  fim.  Eis  o  seu  contexto: 

«Ill.mo  e  Ex.mo  Sr.— A  grande  commissão  eleita  pela  assembléa  convocada 
para  se  prestar  um  testemunho  de  homenagem  á  memoria  do  fallecido  pintor 
Thomaz  José  da  Annunciação,  tendo  resolvido  por  unanimidade  de  votos,  em 
sessão  de  14  de  abril  ultimo,  que  o  producto  da  subscripção  aberta  por  aquella 
assembléa  seja  applicado  á  construcção  de  um  tumulo  em  que  se  guardem  os 
restos  mortaes  d'aquelle  artista,  e  o  remanescente  convertido  em  títulos  da 
divida  publica  portugueza  para  que  o  seu  rendimento  seja  dado  como  pensão 
ás  irmãs  do  mesmo  professor,  passando  por  morte  d'ellas  a  constituir  um  pre- 
mio pecuniário  denominado  —  Premio  Annunciação  —  que  será  annualmente  con- 
ferido ao  alumno  da  Academia  Real  de  Bellas  Artes  que  mais  se  distinguir  na 
pintura  de  animaes;  vem  por  este  meio  solicitar  de  v.  ex.a  se  digne  associar-se 
a  tão  nobre  e  levantado  empenho,  contribuindo  para  a  referida  subscripção  com 
qualquer  quantia  por  mais  diminuta  que  ella  seja. 

«Encarecer  a  significação  moral  d'esse  empenho  seria,  sobre  inútil  pro- 
lixidade, censurável  desdouro  para  a  veneranda  memoria  do  fallecido  pintor. 

«A  ingratidão,  se  é  no  homem  condemnavel,  é  nas  nações  indicio  certo 
de  um  rebaixamento  moral  que  as  avilta.  Portugal  deve  compenelrar-se  d'esla 
grande  verdade,  e  d'esse  convencimento  resultará  de  certo  o  vermos  pagas  as 
Dossas  mais  sagradas  dividas  para  com  a  memoria  respeitável  dos  graudes  vul- 
tos que  illustram  e  ennobrecem  as  paginas  da  nossa  historia. 

«A  commissão,  portanto,  fazendo  a  devida  justiça  ás  elevadas  qualidades 
e  illustração  de  v.  ex.\  ousa  esperar  que,  entre  os  nomes  dos  subscriptores, 
contará  o  de  v.  ex.a,  e  por  isso  lhe  roga  a  mercê  de  devolver  a  inclusa  lista 
com  a  indicação  da  sua  morada  e  da  quantia  com  que  v.  ex.a  e  os  seus  ami- 
gos se  dignem  subscrever,  dirigida  ao  presidente  da  commissão,  na  Academia 
Real  de  Bellas  Artes. 

«Deus  Guarde  a  v.  ex.a,  sala  da  Commissão  em  Lisboa  aos  26  de  abril 
de  1879. 

tDelphim  D.  Guedes — Presidente,  José  António  Gaspar  —  Secretario,  Za- 
charias  d' Aça  —  Secretario,  Anatole  Celistin  Calmeis,  A.  C.  Ferreira  de  Mes- 
quita, Atdonio  Joaquim  d' Oliveira,  António  Manuel  da  Fonseca,  António  da  Silva 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  i  49 

Tullio,  A.  de  Souza  e  Vasconcellos,  António  Thomaz  da  Forneça,  António  Victor 
Figueiredo  de  Bastos,  Rartholomeu  dos  Martyres  Dias  e  Sousa,  Barão  de  Bous- 
sado,  Carlos  Relvas,  Conde  de  Bio  Maior,  Conde  de  Samodães,  Eduardo  Coe- 
lho, Ferraz  de  Miranda,  Francisco  Lourenço  da  Fonseca,  Francisco  Rangel  de 
Lima,  Joaquim  da  Costa  Cascaes,  Joaquim  Gregório  Nunes  Prieto,  Joaquim  Pos- 
sidónio  Narciso  da  Silva,  João  Anastácio  Bosa,  João  Maria  Alves  Costa,  João 
Pedroso  Gomes  da  Silva,  José  Elias  Garcia,  José  Ferreira  Chaves,  José  Gregó- 
rio da  Bosa  Araújo,  José  Gregório  da  Silva  Barboza,  José  Jgnacio  de  Novaes, 
José  Machado  Carreira  dos  Santos,  José  Maria  Alves  Branco  Júnior,  José  Ma- 
ria Nepomuceno,  José  Palha,  Júlio  a" Andrade,  Leonel  Marques  Pereira,  Luiz 
Ascendo  Tomazini,  Luiz  Tiburcio  Ferreira,  Manuel  Maria  Bordalo  Pinheiro, 
Miguel  Angelo  Lupi,  Miguel  Queriol,  Visconde  de  Alhouguia,  Visconde  de  Casti- 
lho, Visconde  de  Pernes.» 

Zacharias  d' Aça  começou  a  publicar  na  Arte  (1.°  vol.,  1879)  um  largo 
estudo  biographico,  do  eminente  pintor  animalista,  acompanhado  de  um  bello 
retrato  gravado  por  Severini.  Este  gravador,  que  exerceu  por  algum  tempo  a 
sua  profissão  em  Lisboa  e  que  frequentava  também,  cou:o  acima  disse,  a  loja 
de  Barbosa,  era  hespanhol,  embora  o  seu  ultimo  appellido  pareça  indicar  pro- 
cedência italiana.  Retirando-se  para  Hespanha  alli  falleceu  poucos  annos  de- 
pois. Tenho  presente  a  participação  mortuária,  que  reproduzo  textualmente, 
servindo  assim  de  nota  elucidativa  e  documental  para  quem  escrever  um  dia 
a  historia  da  gravura  no  nosso  paiz: 

tEl  Senor  Don  José  Diaz  Lozano  y  Severini,  sócio  de  mérito  de  la  Real 
Academia  de  San  Carlos  de  Lisboa  y  profesor  de  dibujo  de  la  Escuela  de  Ar- 
tes y  Ofícios  de  esta  capital,  ha  fallecido  ayer  19  de  marzo  de  1893,  á  los  63 
anos  de  edade,  después  de  recibir  los  Santos  Sacramentos.  R.  I.  P. 

«El  Sr.  Presidente  de  la  Junta  provincial  de  dicha  Escuela  y  Claustro  de 
Profesores:  su  desconsolada  esposa  D.a  Maria  de  la  Ptirificación  Ovejero,  sus 
hermanos  políticos,  sobrinos  y  demás  parientes,  suplicar!  á  V.  se  sirva  enco- 
mendar su  alma  á  Dios  y  asistir  à  la  conducción  dei  cadáver  ai  Cementerio, 
desde  la  casa  mortuoria  calle  de  la  Juderia  Vieja,  num.  11,  pral.  y  hora  de 
las  cinco  de  la  tarde  de  hoy  20,  y  ai  Funeral  que,  por  su  eterno  descanso  se 
ha  de  celebrar  el  martes  21,  á  las  nueve  de  la  manana  en  la  Iglesia  de  San 
Miguel,  en  cuyos  piadosos  actos  ejercerá  una  obra  de  misericórdia  á  la  que  le 
quedarán  cristianamente  reconocidos. 

«El  duelo  se  despide  en  el  Cementerio  y  en  la  Iglesia  respectivamente. t 

Como  é  triste  ao  recordar  os  nomes  de  tantos  indivíduos,  com  os  quaes 


150  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

cheguei  a  conviver,  verificar  que  a  maior  parle  cTelles  já  dormem  o  ultimo 
somuo,  tendo  por  cabeceira  uma  lapide  funerária ! 


CXI.—  Trosylhos  (Fernão  de).— O  nome  d'este  pintor  apparece  mencio- 
nado aqui  pela  primeira  vez,  creio  eu.  N'um  mandado  de  pagamento,  de  20 
de  dezembro  de  1314,  ordena  D.  Manuel  ao  almoxarife  ou  recebedor  do  al- 
moxarifado de  Vizeu  que  dê  a  Fernão  de  Trosylhos  sessenta  e  dois  mil  tresen- 
tos  e  cinco  reaes,  que  eram  devidos  a  Fernão  Affonso,  cuja  viuva  se  matrimo- 
niara com  o  pintor.  A  circumstancia  do  pagamento  ser  feito  em  Vizeu  leva  a 
suppõr  que  o  artista  trabalharia  alli,  quem  sabe  se  nos  quadros  da  Sé. 

«Dom  Manuell  per  graça  de  Deus  Rey  de  Purtugall  e  dos  Algarves  da- 
quem  e  dalém  mar  em  Africa,  Senhor  de  Guine,  mamdamos  a  vos  almoxarife 
ou  recebedor  do  noso  almoxarifado  de  Viseu,  que  do  remdimêto  delle  do  anno 
que  vem  de  bc  xb  deis  a  Fernã  de  Trosylhos,  pimtor,  que  casou  com  a  rao- 
lher  de  Fernã  dAfomso  carpêteiro  sesemta  e  dous  mill  trezemtos  cimquo  rs. 
que  lhe  mandamos  dar  por  outros  tantos  que  erã  deuidos  ao  dito  F.do  A.°  de 
sua  pimenta  segundo  vimos  per  certidã  do  nosso  recebedor  e  ofiiciaes  da  nossa 
casa  da  Imdia,  que  ao  asynar  deste  foy  rolo,  dos  quaes  lhe  vos  fazey  bom  pa- 
gamento semdo  primeiro  certo  per  outra  certidã  do  nosso  feitor  e  ofiiciaes  da 
dita  casa  que  ouue  pagamento  delles  em  vos.  E  per  este  com  seu  conheci- 
mento vos  serã  leuados  em  conta.  Dada  em  Almeirim  aos  xx  dias  de  dezem- 
bro—  eIRey  o  mãdou  pelo  cõde  de  Villa  nova,  vedor  de  sua  fazemda  —  Diogo 
Vaaz  o  fez  — de  jbc  xiiij.  =  0  Conde  de  Uilanoua.  =  íxij  iijc  b  reaes  a  fernando 
de  trosilhos  deuidos  de  pimenta  em  Viseu  pêra  o  anno  que  vem.»  • 


CXII. —  Utrecht  (Christovão  de).— José  da  Cunha  Taborda,  um  dos  pri- 
meiros, senão  o  primeiro,  a  lançar  as  bases  da  historia  da  pintura  portugue- 
za,  dá-uos  uma  biographia  de  Christovão  de  Utrecht,  sem  todavia  indicar  quaes 
foram  as  fontes  da  sua  informação,  o  que  lhe  tira  até  certo  ponto  todo  o  ca- 
racter de  auctoridade.  Diz  elle  que  Christovão  Utrecht  nascera  em  1498  na 
Hollanda,  provavelmente  na  cidade  de  seu  nome,  e  que  em  Hespanha  fora  dis- 
cípulo de  António  Moro,  tendo  vindo  para  Portugal  na  companhia  de  um  em- 
baixador de  D.  João  III,  o  qual  logo  o  admitliu  a  seu  serviço,  dando-lhe  o  ha- 
bito de  Christo  e  a  pensão  de  1:500  ducados. 

Em  nota,  contradizendo-se  de  algum  modo  com  o  que  acima  dissera, 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologieo.  Parte  n,  maço  53,  doe.  149. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  151 

escreve  que  elle  viera  para  Portugal  em  1552  com  António  Moro,  o  celebre 
pintor  que  retratou  D.  João  III  e  a  sua  esposa  D.  Catharina,  retratos  que  se 
conservavam  na  livraria  do  convento  de  Belém.  Pormenorisa  ainda  mais  que 
Christovão  trabalhara  para  muitas  egrejas  e  palácios  reaes  em  quadros  de  his- 
toria e  retratos,  merecendo  o  epilheto  de  Gran  Vasco  de  Ulrecht.  Esta  cir- 
cumstancia  parece-me  pura  e  inadmissível  phantasia  de  Taborda,  que  termina 
por  dizer  que  as  suas  obras,  merecedoras  até  hoje  de  estimação  considerável, 
eram  acabadas  no  gosto  de  Pedro  Perugini  e  João  Bellini.  Morreu  em  1537, 
com  59  annos  de  edade.  Ora  se  elle  tivesse  vindo  em  1552,  não  teria  tido 
tempo  de  produzir  tantas  obras,  como  a  fama  lhe  atlribuia.  Deve-se  mais  ob- 
servar, e  com  absoluta  extranheza,  que  servindo-se  Taborda  da  phrase  até 
hoje,  o  que  indica  que  n'aquelle  tempo  (1815  approximadamente)  ainda  exis- 
tiam algumas,  não  aponte  quaes  ellas  sejam  e  onde  se  conservavam. 

A  origem  da  noticia  de  Taborda  não  é  todavia  difficil  de  averiguar-se.  O 
nosso  escriptor  não  fez  mais  que  plagiar  Guarienti  no  seu  Abecedario  Pittorico, 
como  se  pôde  vêr  pelas  transcripções  de  Raczynski,  a  pag.  320  do  seu  livro 
Les  Arts  en  Portugal.  O  próprio  epitheto  de  Gran  Vasco  de  Utrecht  nem  é  se- 
quer invenção  de  Taborda.  É  deplorável  que  assim  se  faça  copia  de  copia,  sem 
citação  do  auclor  que  primitivamente  deu  a  noticia.  Ao  menos  Guarienti  de- 
clara que  obteve  os  seus  dados  de  um  manusçripto  authentico  existente  na  li- 
vraria do  Marquez  do  Louriçal. 

Wolkmar  Machado  faz  o  inverso  de  Taborda;  consagra  directamente  um 
artigo  a  António  Moro,  e  no  final,  como  por  incidente,  é  que  se  refere  a  Chris- 
tovão de  Utrecht,  sem  comtudo  accrescentar  circumstancia  nova.  Opina  que  os 
quadros,  que  adornam  os  arcazes  da  sacristia  da  egreja  do  extincto  convento 
da  Madre  de  Deus,  se  poderiam  attribuir  á  sua  escola. 

Raczynsky  não  esclarece  mais  a  sua  vida,  limitando-se  a  compilar  e  con- 
frontar os  trechos  que  lhe  dizem  respeito,  reproduziudo  algumas  das  obser- 
vações dos  seus  predecessores.  Pensa,  mas  sem  o  afBrmar  positivamente,  que 
os  quadros  do  paço  arcebispal  de  Évora,  que  lêem  por  monogramma  X  V,  se 
poderiam  attribuir  com  muita  probabilidade  áquelle  pintor.  Esta  hypothese  só 
poderia  comprovarse  quando  existisse  outro  quadro  authentico  do  mesmo  pin- 
cel e  pelo  exame  comparativo  se  chegasse  a  verificar  a  identidade.  É  de  ad- 
vertir que  antigamente  a  letra  X  com  um  traço  por  cima  era  a  abreviatura 
da  primeira  syllaba  do  nome  de  Christo,  podendo  portanto  significar  Christo- 
vão. E  com  V  inicial  também  se  escreviam  muitas  palavras  que  principiam 
por  U. 

Encontrei  na  Torre  do  Tombo,  entre  os  papeis  que  pertenceram  á  Santa 
Inquisição,  um  documento  que  não  só  fornece  alguns  pormenores  sobre  a  vida 
de  Christovão  de  Utrecht,  mas  que  delimita  a  sua  residência  em  Portugal. 


152  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Esse  documento  é  nem  mais  nem  menos  que  o  testemunho  de  sua  mu- 
lher, que,  para  descargo  de  consciência,  foi  denunciar  ao  Tribunal  do  Santo 
Officio  outra  que  já  lá  estava  presa. 

Chamava-se  ella  Anna  Rodrigues,  molher  de  hum  pintor  Xpovã  Treque, 
morador  na  cidade  de  Lisboa,  à  Mouraria,  freguezya  de  Santa  Justa. 

A  denuncia  foi  feita  aos  18  de  fevereiro  de  1537.  e  disse  ella  que  have- 
ria um  anno  ou  15  mezes,  indo  á  Ribeira  comprar  uma  sacca  de  carvão,  uma 
vendedeira  do  mesmo  combustível  a  convidara  a  assentar-se,  perguntando-llie 
que  novidades  havia. 

—  Nada  sei  —  respondeu  Anna  Rodrigues. 

—  E  da  Inquisição,  que  se  diz? 

—  Dizem  que  não  tarda  a  vir,  e  bem  vinda  seja  ella  que  bem  precisa  se 
torna,  pois  tanto  é  pela  lei  nova  como  pela  lei  velha. 

Ao  ouvir  esta  resposta,  a  vendedeira  de  carvão  teve  um  accesso  de  raiva 
e  com  os  punhos  hirtos,  dedo  pollegar  enclavinado  entre  os  dois,  principiou 
de  gritar,  acompanhando  o  respectivo  gesto  — figas  para  el-rei  e  mais  para 
quem  o  aconselhou!  Figas  para  o  Papa,  que  outorgou  a  Inquisição! 

Que  revolucionaria!  Luthero  não  protestaria,  nem  com  mais  violência, 
nem  de  um  modo  mais  suggestivo. 

Este  depoimento,  na  sua  rude  simplicidade,  é  de  um  alto  valor  histórico 
e  social,  porque  nos  pinta  em  breves  traços  o  modo  de  pensar  d:aquellas  epo- 
chas  e  como  as  questões  religiosas  agitavam  e  perturbavam  todas  as  classes, 
por  mais  baixas  e  ignorantes  que  fossem.  Por  outro  lado  fica-se  sabendo  que 
Chrislovão  de  Utrechl  já  residia  em  Portugal  em  1537,  ou  em  annos  anterio- 
res ainda,  que  era  casado  com  uma  mulher,  naturalmente  portugueza,  e  que 
residia  na  Mouraria,  freguezia  de  Santa  Justa. 

Anna  Rodrigues  parecia  que  devia  ser  mulher  de  baixa  condição,  pois 
não  sabia  ler,  embora  n'aquelle  tempo  a  prenda  fosse  pouco  commum. 

Eis  agora  o  depoimento,  perante  o  Santo  Officio,  da  mulher  de  Christo- 
vão  de  Utrccht,  feito  a  18  de  fevereiro  de  1538: 

«It.  Ana  Royz,  molher  de  hum  pimtor  Xpovã  Treque,  morador  nesta  cidade 
na  Mouraria,  freguesya  de  Santa  Justa,  testemunha  jurada  aos  santos  auãge- 
lhos  e  perguntada  deuasamête  pello  dito  doutor  Joham  de  Mello  inquysidor  que 
se  sabya  alguua  pesoa  ou  pesoas  que  disesem  ou  fezesem  alguua  cousa  com- 
tra  nosa  santa  fee  catolleca  que  ho  disese:  dise  ella  testemunha  que  he  ver- 
dade que  auera  huu  ano  ou  quinnze  meses  pouco  mais  ou  menos  que  ella  tes- 
temunha fora  a  Ribeyra  por  hum  saco  de  caruã  e  ho  foy  cõprar  a  huua  molher 
grosa  preta,  que  ora  esta  presa  e  que  nã  he  lêbrada  do  nome  e  vende  caruã, 
a  quall  disera  a  ella  testemunha  que  se  asentase,  e  ella  testemunha  se  asen- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  153 

tara  e  a  dita  molher  estaua  soo,  e  a  dita  molher  lhe  pergumtara  que  nouas 
auia  por  esta  cydade,  e  ella  testemunha  lhe  disera  que  nam  sabya,  e  ella  lhe 
disera  que  nouas  tynha  da  Iuquisiçã,  e  ella  testemunha  lhe  disera  que  dizia 
que  vynha  e  se  era  asy  que  vynha  que  era  hua  cousa  mui  santa  que  tanto  era 
por  hua  lei  velha  como  pella  noua  segundo  diziam,  e  a  dita  molher  lhe  disera 
nuca  o  ouuires  nem  veres  em  vosos  dias,  e  ella  dera  com  ambas  as  mãaos  fi- 
gas, dizendo  —  tome  pêra  elRey,  tome  pêra  quem  ho  aconselhou,  e  tome  pêra 
o  Papa  que  ha  outorgou,  por  que  per  derradeiro  hamde  fycar  por  quem  sam 
e  força  do  dinheiro  hade  acabar  tudo  e  ali  nom  dise  e  ao  custume  dise  nihil 
e  por  nã  saber  asynar  asynei  aqui  a  seu  roguo  eu  uotairo  e  eu  Jorge  Uelho 
notairo  ho  escreui.  Jorge  Uelho.  J.°  de  Mello.» l 


CXIII. — Vanegas  ou  Venegas  (Francisco). —  Até  aqui  o  seu  appellido  tem 
sido  registado  como  sendo  Vanegas,  mas  no  documento,  que  adeante  cito, 
acha-se  escripto  Venegas.  Taborda,  erradamente,  classifica-o  como  contemporâ- 
neo de  D.  Manuel,  sendo  um  dos.quatr<j  artistas  que  este  rei  enviara  a  estu- 
dar a  Itália.  Cyrillo,  nas  pisadas  de  Félix  da  Costa,  fala  mais  ajuizadamente, 
collocandoo  no  ultimo  quartel  do  século  xvi  e  dando-o  como  auclor  do  painel 
do  retábulo  no  conveDto  de  Nossa  Senhora  da  Luz.  Era  pintor  da  casa  real, 
meu  pintor,  como  lhe  chama  Filippe  I  (II  de  Hespanha),  n'uma  carta  de  14  de 
março  de  1583,  em  que  lhe  faz  mercê  de  dois  moios  de  trigo  de  ordenado 
annual. 

«Dom  Philipe  etc.  Aos  que  esta  minha  carta  virem  faço  saber  que  eu  ei 
por  bem  e  me  praz  por  fazer  mercê  a  Francisco  Venegas,  meu  pimtor,  que 
elle  tenha  e  aja  de  minha  fazemda,  do  primeiro  de  janeiro  deste  anno  pre- 
sente de  bc  lxxx  e  três  em  diante,  dons  moyos  de  trigo  de  ordenado  cada  anno 
com  o  dito  oflicio,  que  lhe  serão  assentados  e  pagos  no  allmoxarifado  das  le- 
ziras  de  Villa  Franca  da  parte  dalcoelha.  E  por  tanto  mando  ao  allmoxarife  do 
dito  allmoxarifado  que  ora  he  e  ao  diante  for,  que  do  dito  primeiro  de  janeiro 
deste  dito  anno  em  diante  de  e  pague  ao  dito  Francisco  Venegas  os  ditos  dous 
moyos  de  trigo  cada  anno  e  pello  treslado  deste,  que  será  registado  no  liuro 
dos  registos  do  dito  allmoxarifado  pello  escrivão  delle  com  seus  conhecimen- 
tos mando  aos  contadores  que  lhe  leuem  em  conta  os  ditos  dous  moyos  de 
trigo  qne  lhe  assi  pagar  cada  anno  e  aos  vedores  de  minha  fazenda  que  lhos 
faça  asêtar  no  liuro  das  ordinárias  delia  e  do  dito  janeiro  em  diante  Ieuar  cada 
anno  na  folha  da  asêtamento  do  dito  allmoxarifado  pêra  lhe  nella  serem  pagos 


1  Torre  do  Tombo.  Livro  das  Denuncia  rões  da  Inquisição,  a  partir  de  1537,  11.  89. 
Maio,  1903.  20 


154  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTOftES 

pella  maneira  que  dito  he,  e  por  firmeza  de  todo  lhe  mandei  dar  este  per  mim 
asinado  e  aselladn  do  meu  sello  em  diante  (sic)  Antão  da  Rocha  o  fez  em  Lix- 
boa  a  xiiij  dias  de  março  anno  de  jbe  lxxxiij.  E  eu  Manuel  dAzeuedo  a  fiz  es- 
creuer. 


! 


OXTV.— Vaz  (Diogo).— De  24  de  novembro  de  1538  existe  um  alvará 
do  cardeal  infante  mandando  pagar  a  Diogo  Vaz,  pintor,  a  quantia  de  26:450 
reaes,  resto  dos  62:650  reaes,  em  que  fora  ajustada  a  obra  da  samcrestia  do 
moesteiro  d' Alcobaça  onde  estam  as  relíquias  do  dito  moesteiro.  Esta  obra,  a  ajui- 
zar pelo  custo,  não  devia  ser  de  pouca  monta.  A  circumstancia  de  Diogo  Vaz 
passar  o  recibo  e  assignal-o  pelo  s?u  próprio  punho  é  prova  de  que  elle  não 
era  um  espirito  inculto,  nem  um  artífice  grosseiro.  Raczynski  citou  em  ex- 
tracto o  documento  alludido,  mas,  certamente  por  incorrecção  typographica, 
traz  errado  o  seu  numero,  8  em  vez  de  80. 

«Thesoureiro  de  nosa  casa  mandamos  uos  que  dees  a  Djogo  Vaaz  Pym- 
tor  que  fez  a  obra  da  samcrestia  do  moesteiro  d'Alcobaça  onde  estam  as  re- 
líquias do  dito  moesteiro  vinte  e  seis  mill  quatro  cemtos  e  cinquoenta  reaes 
que  lhe  mandamos  dar  em  comprimento  do  paguo  dos  íxij  bjc  1  em  que  foy 
avalyada  a  obra  que  fez  na  dita  samcrestia  sobre  que  se  comcertou  cõ  Pêro 
da  Videira  vedor  que  foy  do  dito  moesteiro  a  qual  foy  avaliada  nos  ditos  iííj 
bjc  1  reaes  segundo  delo  fomos  certo  per  o  terlado  da  dita  avaliaçam  em  pu- 
blica forma  que  foy  rota  ao  asynar  desta  e  dos  xxxbj  reaes  que  falecem  pêra 
o  dito  comprimento  foy  paguo  no  dito  Pêro  da  Videira  e  vos  fazelhe  dos  ditos 
xxbj  iiijc  1  reaes  muy  bõo  paguamento  sendo  primeiro  certo  per  certidam  do 
Licenciado  André  Lopez  procurador  do  dito  moesteiro  como  pos  verba  no  dito 
coratrato  e  avaliaçam  da  obra  que  he  paguo  delia  e  per  este  e  a  dita  certidam 
e  seu  conhecimento  vos  serão  leuados  em  conta  —  Jorge  Diaz  o  fez  em  Lix- 
boa  a  xxiiij0  de  nouembro  de  jbc  xxxbiij°.=  0  cardeal  Ifante.» 

«xxbj"  iiijc  1  reaes  a  Diogo  Vaaz  pintor  em  comprimento  de  pago  dos  ixTj 
bje  1  reaes  em  que  foy  avaliada  a  obra  da  samcrestia  d' Alcobaça  por  que  dos 
mais  seja  pago  e  amse  de  pôr  as  verbas  necesarias.» 

«Diguo  eu  Diogo  Vaaz  pintor  que  he  verdade  que  recebj  de  Pêro  Sousell 
vymte  e  seis  mill  e  quatrocentos  e  cimquoenta  reaes  comleudos  neste  desem- 
bargo atras  e  por  verdade  que  os  receby  delle  lhe  dey  este  per  my  asynàdo 
oje  xj  de  Janeiro  de  1539  —  Dyeguo  Vaz.» 

«  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Filippe  I.  Doações.  L.»  4,  fl.  158. 


a. 
2 


-S5 


3 
"5 


O) 
li 


K/1 


72 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  155 

«O  Licenciado  André  Lopez  procurador  deste  mosteiro  d'Alcobaça  que  ora 
per  espycyall  mandado  do  Cardeall  Nosso  Senhor  tenho  cargo  de  olhar  polias 
cousas  delle  como  veedor  do  dito  mosteiro  etc.  Faço  saber  aquantos  esta  mj- 
nha  certydam  vjrem  e  o  conhycymento  delia  em  direito  pertencer  que  eu  fiz  pôr 
a  verba  ao  pee  do  contrato  desta  obra  de  pyntura  da  samcrystia  velha  que  fez 
este  Diogo  Vaaz  pyntor  segundo  este  alluara  de  sua  alteza  atras  esprito  re- 
quere  na  quall  verba  esta  decllarado  como  foy  pago  desses  vynte  e  seys  mjll 
iiije  1  reaes  per  que  lhe  fizerem  coprymento  dos  sesenta  e  dous  mjll  seyscen- 
tos  e  cynquoenta  reaes  em  que  ha  dita  obra  foy  avallyada  per  ofycyaes  a  quall 
avaUyaçam  fez  Jorge  Fernandez  tabelliam  e  por  certeza  dello  pasey  a  presente 
feita  per  Diogo  Vaaz  espriuam  que  fez  o  dito  contrato  e  synou  aquy  comjgo 
oje  xxbij  de  Janeiro  de  ]bc  xxxix  anos  =  Djogo  Vaaz  =  Andreas.t 

«Pêro  Sousell  paguay  a  Diogo  Vaz  estes  vynte  seys  mjll  quatrocentos  e 
cynquoenta  reaes  conteúdos  neste  desembargo  do  que  sojs  hobrygado  pagar 
deste  anno  que  vem  de  jbc  xxxix  e  por  este  desembargo  hos  levares  em  conta 
a  Fernam  de  Campos  feyto  oje  bj  dias  de  dezembro  de  1538  —  André  Rodri- 
guez  de  Beja.» ' 


CXV.— Vaz  (Gaspar).— Pelas  investigações  tão  diligentemeute  realisa- 
das  pelo  sr.  dr.  Maximiano  de  Aragão,  verifica-se  a  existência  em  Vizeu,  no 
século  xvi,  de  um  pintor  por  nome  Gaspar  Vaz.  As  phases  da  sua  vida  não 
estão  perfeitamente  delimitadas,  ignorando-se  a  sua  naturalidade,  a  epocha  do 
nascimento  e  morte,  os  annos  em  que  residiu  n'aquella  cidade  e  quaes  as 
obras  que  executasse,  tanto  alli  como  em  quaesquer  outros  pontos.  O  que  se 
colhe  d'essas  informações  é  o  seguinte: 

«Que  no  anno  de  1540  e  tantos  fora  padrinho  de  um  filho  de  João  Diniz, 
pintor;  que  em  1566-67,  trazia  umas  casas  foreiras  ao  cabido,  dizendo-se,  no 
respectivo  assento,  que  era  genro  de  Francisco;  que,  nos  fins  do  século  xvi, 
Maria  Lopes,  sua  viuva,  trazia  umas  casas  que  haviam  sido  de  Luiz  de  Pinhel.» ' 

Este  Gaspar  Vaz  é  com  toda  a  probabilidade,  senão  com  toda  a  certeza,  o 
mesmo  a  que  se  refere  a  carta  ou  memorial  de  Christovão  de  Figueiredo,  que 
foi,  por  mandado  de  D.  João  III,  a  S.  João  de  Tarouca,  vêr  e  receber  as  obras 
que  fizera  aquelle  pintor,  sendo  também  incumbido,  ao  mesmo  tempo,  de  outras 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  i,  maço  60,  doe.  80. 

*  Maximiano  de  AragSo,  Grão  Vasco  ou  Vasco  Fernandes,  etc,  a  pag.  137-138. 


150  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

missões  idênticas  em  Vizeu.  O  documento  não  tem  data,  mas  não  será  poste- 
rior a  1540,  anno  em  qne  Gaspar  Vaz  se  achava  na  cidade  de  Viriato.  Fica, 
pois,  reconhecida  a  paternidade  dos  quadros  de  Tarouca;  só  nos  resta  alguma 
duvida  sobre  a  verdadeira  individualidade  representada  pelo  nome  de  Gaspar 
Vaz,  pois  se  ainda  era  vivo  em  1560,  e  a  sua  viuva  apparece  nos  fins  do  sé- 
culo, custa  um  tanto  a  admittir  que  a  sua  existência  se  prolongasse  por  tanto 
tempo. 

Deixaria  acaso  algum  filho  do  mesmo  nome,  que  fosse  o  marido  de  Ma- 
ria Lopes? 

Da  existência  de  Gaspar  Vaz  em  Lisboa,  em  1514,  e  trabalhando  então 
com  outros  pintores  na  officina  de  Jorge  Affonso,  tenho  conhecimento  por  uma 
escriptura  de  emprazamento  feita  a  Gregório  Lopes,  e  em  que  elle  assigna 
como  testemunha.  Veja-se  o  artigo  relativo  a  Gregório  Lopes. 

t Diz  Christovam  de  Figueredo  pintor  que  Vosa  Alteza  ho  mandou  a  Sam 
Joam  de  Terouqua  a  ver  e  Receber  as  obras  que  fez  Guaspar  Vaz  pintor  e  assy 
foy  per  voso  mandado  a  Viseu  a  Receber  outros  e  por  elle  hir  e  vyr  estar  a 
sua  propia  custa  lhe  nam  foy  nas  ditas  terras  feito  algQu  pagamento  de  seu 
trabalho  e  assy  tem  feito  a  Vosa  alteza  muitos  debuxos  e  mostras  de  trabalho 
e  guasto  de  tempo  e  estaa  paielhado  e  prestes  pêra  em  todas  as  cousas  que 
Vosa  Alteza  lhe  mandar  que  sirua  pêra  o  fazer  e  nunqua  tee  oge  ouve  paga- 
mento nem  satisfaçam  algQa  e  requereo  e  pedio  a  Vosa  Alteza  que  lhe  fizesse 
merçe  de  lhe  tomar  huu  seu  filho  que  tem  muy  bõo  gramático  e  latino  e  dis- 
posto pêra  moço  da  capela  do  cardeal  voso  jrmão  e  Vosa  Alteza  lhe  disse  que 
lho  lenbrasse.  Pede  a  Vosa  Alteza  lhe  faça  merçe  de  lhe  tomar  o  dito  seu  fi- 
lho per  moço  da  capella  do  cardeal.  No  que  Recebera  merçe.» ' 


CXVL—  Vaz  (Pêro). —  Residia  em  Lisboa  no  reinado  de  D.  Affonso  V,  o 
qual,  por  algumas  justas  razões,  lhe  deu  carta  de  privilegio  em  8  de  julho  de 
1473. 

Em  1514  apparece  um  pintor  do  mesmo  nome,  que  talvez  já  não  seja  o 
mesmo  que  vivia  no  reinado  de  D.  Affonso  V.  Muito  provavelmente  seria  ir- 
mão de  Gaspar  Vaz,  com  o  qual  assigna,  como  testemunha,  na  mesma  escri- 
ptura. Veja-se  o  artigo  anterior  e  o  relativo  a  Gregório  Lopes. 

«Dom  Afomso  etc,  a  quamtos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  nos  que- 
remdo  fazer  graça  e  mercee  a  Pêro  Vaaz,  pintor,  morador  em  Lixboa  por  al- 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  1  de  Fragmentos. 


ESTAMPA  VI 

Sousa  Viterbo.  Noticia  de  alguns  pintores- 


V. 


Ufa  fi.- **■  fr  ôcA^j^^^pi/i^ 

Jbo  r,y^r^L^-  foi»***  tÁJ     Jj-  ttiJLrr 


Fac-simile  de  uma  petição  de  Christovão  de  Figueiredo,  publicada  a  pag.  156 

(HI8T.   E   MEM.   DA  ACAD.  R.   DAS   SC.  DE  LISBOA,   NOV.   SER.,  CL.   DE   SC.   MOR.,  ETC,  TOMO  X,  PT.   I.) 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  157 

gúas  justas  rezoêes  que  nos  a  ello  mouerom  teemos  por  bem  e  queremos  que 
daquy  em  diamte  seja  preuilegiaclo  e  escusado  de  pagar  em  todallas  peitas,  fini- 
tas, talhas,  pedidos,  seruiços,  emprestidos  que  agora  ou  daquy  em  diamte  per 
nos  e  per  o  comcelho  som  ou  forem  lançados  per  qualquer  guisa  que  seja  nem 
vaa  com  presos  nem  com  dinheiros  nem  seja  litor  nem  curador  de  nenhuas 
pessoas  que  seja  saluo  se  a  tilorya  for  lidima  nem  sirua  nem  uaa  seruir  em 
outros  alguus  emcairegos  do  dito  comcelho  nem  aja  nenhuns  ofícios  delle  com- 
tra  sua  võotade  nem  seja  posto  por  beesteiro  do  comto  se  ataa  ora  posto  nom 
he.  Oulrosy  queremos  que  nom  poussem  com  elle  em  suas  casas  de  morada, 
adegas  nem  cauallariças  nem  lhe  tomem  delias  roupa  de  cama,  alfaias  de  ca- 
sas, palha,  ceuada,  leenha,  galinhas  nem  outra  algQua  cousa  de  seu  comtra 
sua  võotade.  Outrosy  queremos  que  nom  seja  acomtiado  em  cauallo  nem  em 
armas  beesta  de  garrucha  nem  de  pollee  nem  pareça  em  allardo  com  outra  al- 
guua  comthya,  posto  que  pêra  ello  aja  bees.  E  porem  mamdamos  aos  juizes  e 
coudell  por  nos  na  dita  cidade  e  a  todollos  outros  correjedores,  juizes  e  justi- 
ças officiaes  e  pesoas  a  que  o  conhecimento  desto  pertencer  e  esta  nossa  carta 
for  mostrada  que  ajam  daquy  em  diamte  o  dito  Pêro  Vaaz  por  escusado  e  re- 
leuado  dos  ditos  emcarregos  como  dito  he  e  o  nom  costrãgê  nem  mãdem  cos- 
tramger  pêra  nenhuus  delles  e  lhe  cumpra  e  guardem  e  faça  bem  comprir  e 
guardar  esta  nossa  carta  como  em  ella  he  comlheudo,  por  quamto  assy  he  nossa 
mercee.  Dada  em  Lixbõoa  biij0  de  julho  de  lxxiij.» ' 


OXVII.  — Vieira  (Domingos).— Houve  dois  pintores  d'este  nome,  assim 
como,  no  século  seguinte,  existiram  dois  Franciscos  Vieiras,  que  se  distinguiam 
pelo  epitheto  de  Lusitano  e  Portuense,  este  ultimo  posterior  áquelle. 

Domingos  Vieira  foi  pintor  real,  como  o  seu  homonymo,  e  succedeu-lhe 
no  cargo,  por  sua  morte,  Bento  Coelho  da  Silveira,  que  foi  nomeado  para  este 
fim  em  carta  de  15  de  outubro  de  1678.  Não  encontrei  a  carta  de  nomeação 
de  Domingos  Vieira,  nem  outro  documento  official  que  lhe  diga  respeito. 

Cyrillo,  como  se  vê  no  trecho  incluído  no  artigo  seguinte,  diz  ter  visto, 
na  portaria  de  S.  Bento,  um  painel  assignado  por  elle  e  com  a  data  de  1652, 
representando  a  arvore  genealógica  religiosa  de  S.  Bento  e  S.  Bernardo. 

O  homonymo  d'este  Domingos  Vieira  pôde  distinguir-se  pelo  appellido  de 
Serrão  e  foi-lhe  anterior  bastantes  annos.  Veja-se  o  artigo  que  segue. 


*  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.»  33,  fl.  136  r. 


158  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


CXVIIL— Vieira  Serrão  (Domingos). — Nasceu  em  Thomar,  sendo  filho 
de  João  Henriques  Serrão.  Este  era  de  Torres  Vedras,  mas  creou-se,  viveu  e 
morreu  em  Thomar,  onde  desempenhou  o  cargo  de  executor  dos  três  quaitos 
e  meias  aonatas  da  Ordem  de  Christo.  A  mãe  ehamava-se  Maria  Dias;  era  na- 
tural do  Furadouro,  mas,  á  semelhança  de  seu  marido,  também  se  creou  e 
viveu  em  Thomar,  onde  acabou  seus  dias.  João  Henriques  Serrão  era  caval- 
leiro  fidalgo  da  casa  d'el-rei,  assim  como  também  o  foi  seu  filho. 

Domingos  Vieira  foi  casado  com  Magdalena  de  Frias,  filha  do  architecto 
Nicolau  de  Frias.  Todos  estes  pormenores  biographicos  se  colhem  do  processo 
de  habilitação  para  familiar  do  Santo  Officio,  cargo  para  que  elle  fez  requeri- 
mento em  1625.  Reproduzo  abaixo,  na  integra,  esse  requerimento.  No  meu 
Diccionario  dos  Archileclos,  artigo  Nicolau  de  Frias,  forneço  indicações  relati- 
vas á  mulher  e  ao  sogro.  Domingos  Vieira  foi  nomeado  pintor  d'el-rei  por 
carta  de  1  de  junho  de  1 G 19,  em  substituição  de  Amaro  do  Valle,  que  havia 
fallecido. 

Cyrillo,  nas  suas  Memorias,  diz  que  Domingos  Vieira  devia  ser  fallecido 
em  4641,  pois  n'esse  anno,  a  4  de  março,  fora  passado  alvará,  nomeando, 
para  o  substituir  por  sua  morte,  Miguel  de  Paiva.  Deve,  porém,  advertir-se 
que  no  mesmo  alvará  se  declara  que  Miguel  de  Paiva  já  havia  sido  nomeado, 
com  o  mesmo  fim  e  pelo  mesmo  motivo,  a  19  de  agosto  de  1632. 

Na  egreja  de  Santa  Iria,  de  Thomar,  que  foi  propriedade  de  José  Maria 
Nepomuceno,  encontrou  este  architecto,  por  baixo  dos  degraus  da  capella  de 
Jesus,  a  campa  sepulchral  da  família  de  Domingos  Vieira  Serrão,  mas  n'ella 
não  se  precisa  a  epocha  da  morte  do  pintor.  A  data  de  1648,  que  ahi  se  lê, 
tanto  poderia  indicar  o  seu  fallecimento  como  o  anno  em  que  se  acabou  a  se- 
pultura e  lavrou  o  letreiro.  No  alto  da  lapide,  o  escudo  dos  Vieiras  e  Serrões; 
pela  parte  inferior  a  seguinte  legenda: 

S.*  D  D."  Vr.1  Seram  cavl.'0  fidalgo 
D  casa  de  S.  Mag.  D  S.  Molher  Madaleia  D  Frias  e  erdeiros.  1648 

Cyrillo  Volkmar  Machado,  a  pag.  71-72  das  suas  Memorias,  publica  a  se- 
guinte biographia: 

tFez  cousas  excellentes,  diz  o  nosso  guiador,  com  muita  doçura,  modéstia, 
fidalguia  e  bom  debuxo.  Entendeo  bem  a  perspectiva,  como  se  vê  no  tecto  do  Hos- 
pital Real,  intenção  sua.  Recebeo  muitas  honras  de  Ftlippe  3."  e  4."  por  quem 
foi  chamado  a  Madrid  para  pintar  no  Retiro,  aonde  tem  cousas  admiráveis.  De- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  159 

senhou  o  desembarque  de  Filippe  2.°,  em  Lisboa,  que  foi  gravado  por  João 
Schorcquens.  Em  1608  sérvio  de  Juiz  na  Meza  de  S.  Lucas;  e  cré-se  que  mor- 
rera no  de  1641,  anno  em  que  lhe  suecedeo  Miguel  de  Paiva,  no  lugar  de  Pin- 
tor do  Rei.  Na  Portaria  de  S.  Bento  está  pintada  em  grande  painel  a  Arvore 
Genealógica  Religiosa  de  S.  Bento,  e  S.  Bernardo,  e  tem  em  letras  grandes  o 
nome  de  Domingos  Vieira,  com  a  era  de  1652;  mas  se  a  firma  não  he  sup- 
posta,  podemos  inferir  que  será  de  outro  Pintor  do  mesme  nome.» 

Effectivamente  existiu  um  outro  Domingos  Vieira,  como  se  pôde  verificar 
no  artigo  anterior. 

À  estampa,  gravada  por  João  Schorcquens,  acompanha  a  obra  de  João  Ba- 
ptista Lavanha:  Viagem  da  Calholica  Real  Magestade  d'elrei  D.  Filippe  II,  im- 
pressa em  Madrid,  em  1622. 

Domingos  Vieira  trabalhou  juntamente  com  Simão  de  Abreu  no  convento 
de  Christo  de  Thomar,  como  se  pôde  vêr  no  artigo  referente  a  este  ultimo.  Da- 
rei agora  aqui  as  verbas,  conteúdas  nos  livros  das  despezas  das  referidas 
obras,  que  mais  directamente  dizem  respeito  a  Vieira. 


Charola 

«De  tinta  &  ouro  que  se  mandou  comprar  a  Lx.a  para  as  pinturas  que  se 
mandão  fazer  na  charola  —  desanoue  mil  &  oito  centos  á-  simqo  reis. — Estes  íix.  biij»  xxb 
xíx  biijc  xxbij  vão  carregados  a  domingos  Viera  a  fl.  106.» 

«Seis  mil  reis  que  se  derão  aos  pintores  &  aos  douradores  que  andarão  bj 
estas  duas  semanas  passadas  *  nas  ditas  charola  (sic)  a  conta  do  preço  que 
bade  aver  por  cada  hú  dos  altares  da  dita  charola. 

Domingos  Vieira. »  fl.  103 

«Ao  pintor  seis  mil  reis  a  conta  do  que  hade  auer  por  cada  altar.  Ej 

Domingos  Vieira.*  fl,  103  T. 

«Na  mesma  feria*  se  derão  a  Simão  d  abreu  dez  mil  reis  <£  a  Domingos 
Viera  ambos  pintores  outros  dez  mil  reis  a  conta  das  pinturas  &  ouro  que  tem  xx 
á  sua  conta  dos  altares  da  charola. 

*  Domingos  Vieira.  abreu.* 


1  De  23  e  30  de  maio  de  1592. 

2  De  20  de  junho  de  1592. 


160  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

iRecebeo  mais  domingos  Vieira  pintor,  á  conta  das  obras  que  pinta  na 
xij  charola  doze  mil  reis. 

fl.  105  Domingos  Vieira.» 

«Mais  se  derão  a  domingos  Vieira  vinte  mil  A  seis  mil  reis  —  a  saber  — 
vinte  mil  reis  para  tintas  &  ouro1  da  charola  á-  os  seis  mil  reis  a  conta  de 
suas  mãos  et  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  e  com  o  padre  frei  ber- 
xxbj  nardo  commigo  o  Licenciado  simão  Ribeiro  escriuão  das  ditas  obras. 

frey  Adrião 
fl-  106  «frei  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

x  «A  domingos  Vieira  pintor  dez  mil  reis  a  conta  dos  altares  que  tem  á  sua 

conta. 
fl- 106  v.  Domingos  Vieira.» 

«Sabbado  oito  de  Agosto  de  (592  recebeo  Domingos  Vieira  pintor  quo- 
renta  mil  reis  a  conta  dos  altares  &  capellas  que  estão  a  sua  couta  —  assim  a 
conta  do  que  tem  feito  como  o  que  recebeo  para  mandar  a  Lx.a  para  tintas  e 
ouro  das  ditas  cappellas  á-  altares  á  assinou  com  o  padre  dom  prior  &  com  o 
padre  frei  bernaldo  &  commigo  o  Licenceado  Simão  Ribeiro  escrivão  das  di- 
ft  tas  obras. 

frey  Inocêncio  -J-  d.  prior 
tfrey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

A.  107  Simão  Ribeiro 

ílíj  «A  domingos  Vieira  pintor  —  quatro  mil  reis  a  conta  do  que  se  lhe  deve 

dos  altares  &  capella  da  dita  charola.» 

b  bij*  «Somma  esta  feria  de  14  de  agosto  de  1592  simquo  mil  e  setecentos  reis 

—  os  quaes  logo  receberão  os  ditos  officiaes  que  aqui  asinarão  com  o  padre 
dom  prior  e  com  o  padre  frej  bernardo  &  commigo  o  Licenceado  Simão  Ri- 
beiro escrivão  das  ditas  obras. 

frey  Innocencio  •{•  d.  prior 
tfrey  Bernardo  Symão  gttomez.» 

fl.  108  Domingos  Vieira 

xfj  «Doze  mil  reis  a  Domingos  Vieira  pintor  a  conta  do  que  se  lhe  deve  dos 

altares  e  capellas  que  pinta  na  charola  e  assinou  aqui. 

Domingos  Vieira.» 


1  Vide  a  primeira  verba  a  fl.  103. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  161 

«No  mesmo  dia  se  fez  concerto  com  o  dito  pintor  sobre  o  preço  de  co- 
munas acabadas  na  traça  que  mandou  S.  Mg."  &  tomou  cada  bua  em  seis 
mil  réis. 

frey  Adrião 

«frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.* 

«Sabbado  5  dias  do  Mes  de  Setembro  se  derão  a  Domingos  Vieira  a  conta 
do  seruiço  que  fez  nas  ditas  capellas  e  colunas  da  dita  charola  —  doze  mil  reis  xij 
e  assinou  aqui  com  o  padre  dom  prior  &  cõ  o  padre  frej  bernardo  e  commigo 
o  Licenceado  Simão  Bibeiro,  escriuão  das  ditas  obras. 

frey  Inocêncio  -f-  d.  prior 
a  frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.*  &■  109 

tA  domingos  Vieira  pintor  trinta  mil  reis  a  conta  das  colunas  da  charola  xxx 
que  tomou  para  pintar  e  dourar  e  assinou  aqui. 

Domingos  Vieira.» 

«Ao  mesmo  domingos  viejra,  pintor  doze  mil  reis  a  conta  das  ditas  co-  xiJ 
lumnas  e  assinou  aqui. ' 

Domingos  Vieira.*  A  109  v. 

«Recebeo  domingos  Viejra  pintor  a  conta  dos  altares  e  columnas  que  tem  DÍiJ 
a  sua  conta  —  oito  mil  reis.» 

«Soma  esta  f.  que  se  fez  sabbado  que  forão  três  dias  do  Mes  de  outubro 
de  1592  doze  mil  e  setenta  reis  — que  recebeo  o  dito  domingos  Viejra  e  o  xij.  Lxx 
dito  Simão  gomez  que  aqui  assinarão  cõ  o  padre  dom  prior  e  cõ  o  padre  frei 
António  de  Presença  e  comigo  o  Licenciado  Simão  Ribeiro  escriuão  das  ditas 

obras.» 

fr.  António  de  Presença 

*  Domingos  Vieira.  frey  Inocêncio  -j-  d.  prior.* 

Simão  guomez  fl.  no  v. 

«Recebeo  domingos  Viejra  pintor  nesta  feria2  a  conta  dos  altares  e  co-  R 
lunnas  que  pinta  e  doura  na  charola  seis  mil  reis.»  fl-  112 


1  Pagamento  feito  a  19  de  setembro  de  1592. 

2  Férias  de  10  de  outubro  de  1592. 

Maio,  1903.  21 


162  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

xx  «A  domingos  Viejra  pintor  vinte  mil  reis  a  conta  dos  altares  e  colnmnas 

fl.  H2  v.        que  doura  e  pinta.» ' 

xh  «Domingos  Viejra  pintor  de  suas  mãos  tintas  e  ouro  recebeo  quinze  mil 


reis 


i 


fl.  113  v.  Domingos  Vieira.* 

J  «Domingos  Viejra  pintor  recebeo  nesta  semana  oito  mil  reis.»3 

ti.  114 

ífb  «Domingos  Viejra  recebeo  quorenta  e  simquo  mil  reis  a  conta  dos  ditos 

retabolos  &  columnas  &  cappella  de  Jesu  para  ouro  &  tintas  e  feitio  de  suas 
n.  ih  t.         mãos.»4 

biíj  «Domingos  Vieira  recebeo  oito  mil  reis  a  conta  das  ditas  capellas  e  co- 

fl.  116  umas.»5 

biíj  «Domingos  Viejra  pintor  recebeo  vinte  cruzados  a  conta  dos  altares  e 

fl.  117  v.         colunas  que  doura  e  pinta  na  dita  charola.»6 

«Aos  28  dias  do  Mez  de  dezembro  de  15937  se  fez  lanço  e  se  aualiou  o 
q  podia  montar  as  pinturas  &  ouro  &  feitio  dos  três  portais  —  a  saber  —  o  da 
cappella  de  Jesu  &  da  cappella  de  nossa  S."  &  da  seruentia  com  todo  o  mais 
q  estaua  por  fazer  no  circuito  da  charola,  das  colunas  de  baixo  ate  o  chão  á 
se  deu  tudo  a  domingos  vieira  por  preço  d-  contia  de  sesenla  e  quatro  mil 
reis  por  ser  o  mais  barato  preço  de  todos  a  qual  contia  se  deu  por  parecer 
do  padre  frei  Adrião  e  do  padre  frei  António  de  Presença  á  o  dito  domingos 
Viejra  aceitou  acabar  toda  a  dita  obra  &  se  obrigou  a  (sic)  a  fazer  em  toda  a 
perfeição  &  por  verdade  assinarão  aqui  este  termo  todos  três  commigo  o  Li- 
cenceado  Simão  Ribeiro  escriuão  das  ditas  obras. 

frey  Adrião 
tfrej  António  de  presença.  Domingos  Vieira.* 

Symão  Ribeiro 


» Féria  de  17  de  outubro  de  1592. 
*Idem  de  31  de  outubro  de  1592. 
3  Idem  de    7  de  novembro  de  1592. 
♦  Idem  de  14  de  novembro  de  1592. 

5  Idem  de  28  de  novembro  de  1592. 

6  Idem  de  19  de  dezembro  de  1542. 

1  Aliás  de  1592;  o  Licenciado  Kibeiro,  como  se  vê,  começava  a  datar  o  anno  de  1593 
do  Natal  de  1692. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  163 

«Destes  sesenta  e  quatro  mil  reis  se  deu  o  dito  domingos  Vieira  por  pago 
no  q  se  monta  nas  suas  addições  q  vão  assima  carregadas  sobre  elle,  por  cons- 
tar e  se  achar  que  tem  recebidos  sesenta  á-  oito  mil  reis  mais  do  q  se  mon- 
tava no  preço  de  cada  hú  dos  altares  A-  de  cada  hua  das  ditas  colunas  a  sa- 
ber cada  altar  a  vinte  mil  reis  á-  cada  hua  das  ditas  colunas  a  seis  mill  reis  & 
os  quatro  mil  reis  q  mais  se  montão  alem  dos  ditos  sesenta  c  quatro  mil  reis 
se  derâo  ao  dito  pintor  por  as  faixas  de  ouro  q  felipe  terçio  acreçentou  em 
cada  hua  das  ditas  colunas  —  &  assinou  aqui  o  padre  frei  Adrião  &  o  padre 
frei  António  &  o  dito  domingos  Viejra  — comigo  o  Licenceado  Simão  Ribeiro. 

frey  Adrião 
ífrej  António  de  presença.  Domingos  Vieira.» 

Symão  Ribeiro  tl.118v.eH9 

«Domingos  Viejra  pintor  recebeo  vinte  cruzados  a  conta  dos  retabolos  da 
cappella  de  Jesus  &  assim  somou  ao  todo  esta  feria  q  se  fez  sábado  —  seis 
dias  de  Feuereiro  de  1593  —  oito  mil  e  quatrocentos  reis  dos  quaes  recebeo  o 
dito  pintor  oito  mil  reis  &  os  officiaes  quatro  contos  e  sessenta  reis.  E  assi- 
nou por  elles  o  mestre  Simão  Gomes  &  o  dito  pintor  com  o  padre  supperior 
perante  mi  —  o  Licenciado  Simão  Ribeiro  escriuão  das  ditas  obras  —  diz  a  an- 
tre  linha  sesenta  reis.  biij  iiije  Lx 

frey  lopo  suppor 

« Domingos  Vieira.  Simão  y nomes.»  fl.  122 

«Soma  esta  feria  q  se  fez  sabbado  20  dias  de  feuereiro  de  1393  com  três 
mil  e  setecentos  reis  que  derão  a  domingos  Viejra  de  jaspear  as  ilhargas  dos 
altares  —  dez  mil  e  quatrocentos  e  nouenta  e  simquo  reis  que  logo  receberão  *  iiij*  RL  b 
os  ditos  officiaes  que  aqui  assinarão  com  o  padre  frei  António  perante  mim  o 
Lecenceado  Simão  Ribeiro  escriuão  das  ditas  obras.  Diz  a  antre  linha  e  sete 
centos  reis. 

frei  António  de  presença 

« Domingos  Vieira.  Symão  Guomes.»  fl.  123 

«Na  mesma  feria *  recebeo  domingos  viejra  pintor  oito  mil  reis  a  conta  buj 
dos  retabolos  da  cappella  de  Jesu  A-  assinou  aqui  com  o  padre  frej  António  e 
comigo  dito  escriuão. 

tfrej  António  de  presença.  Domingos  Vieira.» 

Symão  Ribeiro  A.  m  v. 


1  Féria  de  27  de  fevereiro. 


164  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

H  «Sabbado  17  de  Abril  de  1593  recebeo  domingos  Vieira  pintor  vinte  cru- 

zados—  á  conta  dos  retabolos  da  cappella  de  Jesu  &  assinou  aqui  com  o  pa- 
dre frej  Adrião  perante  mim  scriuão  das  ditas  obras. 

11. 125  "frey  Adrião.  Domingos  Vieira.» 

xx  «Vinte  mil  reis  a  domingos  Viejra  pintor  para  ouro  e  tintas  para  os  pees 

dos  profetas  a  saber,  dezaseis  mil  reis  para  ouro  e  tintas  e  quatro  mil  reis 
para  as  mãos. ' 

ifrey  Bernardo.  Symão  Ribeiro.» 

fl-  J25  Domingos  Vieira 

íiíj  «Sabbado  5  dias  de  Junho  Recebeo  domingos  Viejra  pintor  quatro  mil 

reis  a  conta  das  pinturas  que  faz  nas  colunas  abaixo  dos  pees  dos  profetas  & 
assinou  aqui  com  o  padre  frei  berualdo  perante  mim  dito  escriuão  este  termo 
&  os  assina. 

tfrey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

Symão  Ribeiro 

«Sabbado  doze  dias  de  junho  de  1593,  recebeo  domingos  Viejra  pintor  a 
ííij  conta  da  obra  dos  pees  dos  profetas,  quatro  mil  reis  &  assinou  aqui  com  o  pa- 

dre frei  bernaldo  per  ante  mim  Simão  Ribeiro  scriuão  das  ditas  obras. 

fl.  525  v.  tfrey  Bernardo.  Domingos  Vieira,» 

«Sabbado  26  dias  do  Mes  de  Junho  de  1593  recebeo  domingos  Vieira  pin- 
xij  tor  —  doze  mil  reis  a  conta  dos  ditos  pees  dos  prophetas  e  bandas  que  pin- 

tou e  dourou  —  com  os  quaes  doze  mil  se  encherão  os  quorenta  mil  reis  em 
que  se  fez  concerto  com  elle  por  a  dita  obra  —  &  assinou  aqui  com  o  padre 
frei  bernaldo  perante  mim  o  Lecenceado  Simão  Ribeiro  escriuão  das  ditas  obras. 

« Domingos  Vieira.  frey  Bernardo.» 

Symão  Ribeiro 

«Sabbado  17  dias  do  Mes  de  julho  recebeo  domingos  Vieira  pintor  — qua- 


1  Deve  ser  em  24  de  abril. 


.8 

a, 

co 

g 

.5? 
a 


< 

CU 

g 
< 

w 


D 

o 

«2 


1T5 

O 


6B 


V^  5  ! 


Si  J  ^  Ssí 

^  I  l   Í   w   ^    1^ 


•  — •       * 


et 
— 


o 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  165 

tro  mil  reis  a  conta  de  cappella  de  Jesus  A-  assinou  aqui  com  o  padre  frei  i'» 
Adrião  perante  mim  dito  escriuão. 

frey  Adrião 
tfrei  Bernardo.  Domingos  Vieira.*  fl-  12°' 

«Na  mesma  feria  recebeo  o  dito  domingos  viejra  pintor  vinte  mil  reis  >•" 
para  ouro  e  tintas  para  a  obra  que  Sua  Mag.e  manda  fazer  dentro  da  charola 
da  cappella  mor  &  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  &  frei  bernaldo  pe- 
rante mim  dito  escriuão.' 

frey  Adrião 

tDomingos  Vieira.  frei  Bernardo,  d  A-  126  v. 

«Aos  24  de  Julho  (de  1593)  tomou  Domingos  Viejra  as  colunnas  da  cha- 
rola da  igreja  do  pee  delias  ate  a  simalha  do  meo  pintadas  e  douradas  em  toda 
a  perfeição  na  respondencia  das  colunnas  dos  altares  pequenos] — em  duzentos 
e  dez  mil  reis  —  &  assinou  este  termo  com  o  padre  frei  Adrião  e  com  o  pa- 
dre frei  bernaldo  perante  mim  o  Lecenceado  Simão  Ribeiro  escriuão  das  ditas 
obras. 

frey  Adrião 
«frey  Bernardo.  Domitigos  Vieira.» 

Simão  Ribeiro 

«Derão  mais  ao  dito  domingos  Vieira  sesenta  mil  reis  por  a  obra  que 
mais  lhe  acrecentarão  na  dita  charola  e  assinou  aqui.5  fl.  so. 

Domingos  Vieira.» 


«Sabbado  24  de  Julho  recebeo  domingos  Viejra  dez  mil  reis  a  conta  dos 
retabolos  da  cappella  de  Jesus  &  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  e  com 
o  padre  frei  bernaldo  perante  mim  dito  escriuão. 

frey  Adrião 
tfrei  Bernardo.  Domingos  Vieira. » 


X 


'( 


Sabbado  xxxj  de  Julho  recebeo  domingos  Vieira  pintor  três  mil  reis  mais  ííj 


•Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de  Christo.  L.°  115. 
*  Idem.  Idem.  L.«  124. 


i  66  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

para  ouro  e  tintas  da  charola  mor  (?)  &  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião 
perante  mim  escriuão.4 

fl.  126  v.  ífrey  Adrião.  Domingos  Vieira.* 

l7«  «Na  mesma  feria2  recebeo  Domingos  Viejra  pintor  simquoenta  mil  reis 

para  ouro  da  charola  &  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  e  com  o  padre 
frei  bernardo  perante  mim  dito  escriuão. 

frey  Adrião 
tfrey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

xy  «Sabbado  21  de  Agosto  de  1593  recebeo  domingos  Viejra  doze  mil  reis 

a  conta  da  obra  que  faz  na  charola  do  meo  &  assinou  aqui  com  o  padre  frey 
Adrião  e  com  o  padre  frei  Bernaldo  perante  mim  dito  escriuão. 

frey  Adrião 
li.  127  v.  tfrey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

«Sabbado  28  de  Agosto  de  1393  recebeo  domingos  Viejra  simquoemta 

íTu  mil  reis  para  ouro  da  dita  charola  mor  &  assinou  aqui  com  o  padre  frey  Adrião 

e  com  o  padre  frei  Bernaldo  &  commigo  o  Lecenceado  Simão  Ribeiro  scriuão 

das  ditas  obras. 

frey  Adrião 
«I Domingos  Vieira.  frey  Bernardo.» 

«Sabbado  quatro  dias  de  setembro  de  1593  recebeo  domingos  Vieira  a 
ííij  conta  da  charola  do  meo  quatro  mil  reis  &  assinou  aqui  com  os  padres  frei 

Adrião  &  frei  bernaldo  perante  mim  dito  scriuão. 

*  Domingos  Vieira.  frei  Adrião.» 

ti.  128  frey  Bernardo 

«Sabbado  11  de  setembro  de  1593  recebeo  domingos  Vieira  pintor  seis 
Cj  mil  reis  a  conta  da  obra  da  charola  do  meo  &  assinou  aqui  com  os  padres 

frey  Adrião  e  frei  bernaldo  perante  mim  dito  scriuão  Simão  Ribeiro. 

frey  Adrião 
ifrey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de  Ghristo.  L.°  115. 
1  Feri»  de  7  de  agosto  de  1593. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  167 

«Sabbado  desoito  de  setembro  de  1593  recebeo  domingos  Viejra  sim- 
quenta  mil  reis  para  ouro  e  tintas  da  dita  cbarola  e  assinou  aqui  com  os  di-  L." 
tos  padres. 

frey  Adrião 

«frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.»  fl-  128  v. 

«Sabbado  25  de  setembro  recebeo  domingos  Viejra  quatro  mil  reis  a  conta  'i'j 
das  obras  da  dita  cbarola  &  assinou  aqui  com  os  ditos  padres  perante  mim 
dito  scriuão. 

frey  Adrião 

« Domingos  Vieira.  frey  Bernardo. » 

«Sabbado  2  dias  do  Mez  de  Outubro  de  1593  recebeo  domingos  Viejra 
oito  mil  reis  a  conta  da  dita  charola  do  Meo  &  assinou  aqui  com  os  padres  biíj 
frei  Adrião  A-  frei  bernaldo  perante  mim  dito  scriuão  —  &  assinou  Theodosio 
de  Frias,  companheiro  do  dito  Domingos  Viejra  — por  que  elle  os  recebeo. 

«frey  Adrião.  Theodosio  de  frias.» 

frey  Bernardo  fl.  129 

«Sabbado  16  dias  de  outubro  de  1593  recebeo  domingos  Viejra  vinte  mil  *x 
reis  a  conta  da  obra  da  charola  do  Meo  e  assinou  aqui  com  os  padres  frei 
Adrião  e  frei  Bernaldo  perante  mim  o  Lecenceado  Simão  Ribeiro  escriuão  das 
ditas  obras. 

frey  Adrião 

«frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

«Recebeo  mais  o  dito  domingos  Vieira  simquo  mil  reis  a  conta  da  cappela  b 
de  Jesus  e  assinou  aqui  com  os  ditos  padres  perante  mim  dito  escriuão. 

frey  Adrião 
«frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.»  fl-  129  v. 

«Sabbado  6  dias  do  Mes  de  nouêbro  de  1593  recebeo  domingos  Viejra 
dez  mil  reis  d-  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião,  não  faça  duuida  o  ris-  x 
cado  e  assinou  o  padre  frei  bernardo. 

frey  Adrião 
«frey  Bernardo.  Domingos  Vieira. » 

Ribeiro  fl-  130 


168  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Sabbado  treze  dias  do  Mes  de  nouembro  recebeo  domingos  Viejra  oito 
mil  reis  a  conta  da  dita  charola  á-  assinou  aqui  com  os  padres  frei  Adrião  e 
frei  bernaldo  comigo  dito  escriuão. 

frey  Adrião 
tfrey  Bernardo.  Domingos  Vieira. » 

Simão  Ribeiro 

«Sabbado  li  de  nouembro  de  1593  se  fez  conta  com  domingos  Viejra 
pintor  sobre  a  obra  da  charola /digo /sobre  os  arquos  á-  colunnas  da  charola 
do  meo  &  se  achou  que  lhe  forão  dados  quatro  arquos  da  dita  charola  para 
os  dourar  à  estofar  na  maneira  em  que  hora  estão  acabados  —  em  duzentos  e 
setenta  mil  reis  e  por  estar  ja  entrege  dos  ditos  duzentos  e  setenta  mil  reis 
se  mandou  fazer  este  termo  que  o  dito  domingos  Vieira  assinou  no  dito  dia 
em  o  qual  se  acabou  de  pagar  dos  ditos  duzentos  e  setenta  mil  reis  —  e  com 
elle  assinarão  o  padre  frei  Adrião  &  frei  bernaldo  perante  mim  dito  Licenciado 
Simão  Ribeiro  scriuão  das  ditas  obras. 

frey  Adrião 
tfrey  Bernardo.  Domingos  Vieira.* 

fl.  130  t.  Symão  Ribeiro 

«Oje  4  dias  do  mez  de  Julho  de  1594  se  pagarão  a  domingos  Viejra  pin- 
íiij  tor  treze  mil  reis  que  se  lhe  fiquarâo  devendo  da  obra  assima  dita  por  hú  co- 

nhecimento de  fora  que  se  lhe  fez  no  dia  que  se  fez  a  conta  assima  e  posto 
que  o  assinado  diga  que  fiqou  pago  de  todo  o  que  se  lhe  deuia  a  conta  dos 
ditos  arqos  decraro  que  se  lhe  fiquarâo  devendo  os  ditos  treze  mil  reis  pello 
que  se  lhe  deu  o  conhecimento  aqui  junto  &  acostado '  e  oje  se  lhe  pagarão  os 
ditos  treze  mil  reis  &  por  verdade  fiz  este  termo  que  o  dito  domingos  Vieira 
assinou  com  o  dito  padre  frei  Adrião  e  frei  bernaldo  commigo  dito  Licenciado 
Simão  Ribeiro  scriuão  das  ditas  obras. 

frey  Adrião 
«frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.* 

11.  131  Symão  Ribeiro 

xTj  «No  dito  dia  recebeo  mais  o  dito  domingos  Viejra  doze  mil  reis  do  Reta- 


lio está;  naturalmente  extraviou-se. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  169 

bolo  da  cappella  de  santiago  &  assinou  aqui  com  os  ditos  padres  frei  Adrião 
e  frei  bernaldo  comigo  dito  scriuão. 

frey  Adrião 
«frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.* 

Symão  Ribeiro 

«Recebeo  mais  o  dito  domingos  Vieira  no  dito  dia  sesenta  mil  reis  para 
ouro  e  tintas  para  as  outras  quatro  colunas  do  rosto  da  igreja  que  no  dito  dia 
se  começou  de  dourar  &  pintar  &  assinou  aqui  com  os  ditos  padres  frei  Adrião 
e  com  o  padre  frei  bernaldo  perante  mim  dito  scriuão. 

frey  Adrião 
*  frey  Bernardo.  Domingos  Vieira." 

Simão  Bibeiro  fl-  131  v. 

«Sabbado  23  dias  de  Julho  de  1594  se  derão  a  domingos  Viejra  pintor 
sesenta  mil  reis  para  mais  ouro  e  tintas  dos  ditos  quatro  arquos  da  dita  cha-  Lx 
rola  por  se  ver  que  estava  ja  gastado  o  ouro  para  que  se  derão  os  outros  se- 
senta mil  reis  assima  ditos  e  assinou  aqui  com  os  ditos  padres  frey  Adrião 
Thezoureiro  do  dito  dinheiro  e  com  frei  bernaldo  perante  mim  dito  scriuão. 

«Mais  se  derão  ao  dito  pintor  &  a  seus  companheiros  e  dito1  digo  a  conta 
do  dito  pintor  seis  mil  reis  somou  toda  a  dita  feria  sesenta  e  sete  mil  reis.      Bj 

frey  Adrião 
d  frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.v 

Symão  Bibeiro  fl.  133 

«Na  mesma  feria2  se  derão  a  domingos  Viejra  pintor  e  a  seus  companhei- 
ros seis  mil  para  a  dita  pintura  da  charola  &  assinou  aqui  com  os  ditos  pa- 
dres e  assim  somou  toda  a  dita  feria  sete  mil  e  quatro  centos  e  oitenta  reis.  p.«  toda  a  f.â 

«Mais  se  derão  a  Sueiro  seruidor  oitenta  reis.  E  decraro  que  somou  toda 
a  feria  (sete)  3  mil  e  quinhentos  e  sesenta  reis.  bij  b«  li 

frey  Adrião 
«frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

Symão  Bibeiro  A.  133  v. 


'Estão  riscadas  da  palavra  companheiros  as  que  vão  sublinhadas  do  semiço  desuasmãoi 
no  assentar  e  o  dito  ouro  e  tintas  seis  mil. 
*  De  6  de  agosto  de  1594. 
3  Falta  esta  palavra. 

Maio,  1903.  22 


170  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

R  «Quorenla  mil  reis '  a  domingos  Vieyra  á  conta  das  colunas  da  dita  cha- 

rola  á  assinou  aqui  com  o  padre  supperior  &  com  o  padre  frey  bernaldo  em 
absentia  do  padre  frei  Adrião. 

frey  Lopo  supprior 
«frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

Symão  Ribeiro 

"'j  «Sabbado  20  dias  de  Agosto  de  1594  se  derão  a  domingos  Vieyra  quatro 

mil  reis. 

frey  Adrião 
11.  134  *frey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

Ribeiro 

biíj  «Recebeo  domingos  Viejra  pintor'  vinte  cruzados  á  conta  das  colunas  da 

charola  <£  assinou  aqui. 

frey  Adrião 
fl- 134  v-  tfrey  Bernardo.  Domingos  Vieira.» 

Ribeiro 

^  «Sabbado  10  dias  de  setembro  se  derão  a  domingos  Viejra  pintor  sesenta 

Lx  mil  reis  para  ouro  e  tintas  e  assinou  aqui  com  os  ditos  padres. 

fl.  135  "frey  Adrião.  Domingos  Vieira.» 

biij  «Sabbado  24  de  setembro  recebeo  Domingos  Viejra  oito  mil  reis  á  conta 

da  dita  obra  da  charola  &  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  perante  mim 
dito  scriuão. 

fl.  13S  t.  i frey  Adrião.  Domingos  Vieira.» 

«Na  mesma  feria  (l.u  de  outubro)  recebeo  domingos  Viejra  pintor  a  conta 
bj  da  cappella  de  Jesu  seis  mil  reis  &  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  pe- 

rante mim  dito  scriuão. 

tfrey  Adrião.  Domingos  Vieira.» 

fl.  136  Ribeiro 

£iij  «Mais  se  derão  na  mesma  feria  a  Domingos  Viejra  pintor  vinte  cruzados 


1  Em  13  de  agosto. 
1  Em  3  de  setembro. 


NOTICIA  DE  ALGUXS  PINTORES  171 

a  conta  da  charola  e  assinou  com  o  dito  padre  frey  Adrião  perante  mim  dito 
scriuão. 

d  frey  Adrião.  Domingos  Vieira,  * 

«Sabbado  5  dias  de  nouembro  de  1594  se  derão  a  domingos  Viejra  dez  * 
mil  reis  a  conta,  da  obra  da  charola  á  assim  ficou  pago  de  toda  a  obra  das  co- 
lunas da  dita  charola  e  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  perante  mim  o 
Lecenceado  Simão  Ribeiro  scriuão  das  ditas  obras. 

tfrey  Adrião.  Domingos  Vieira.* 

«No  mesmo  dia  recebeo  o  dito  domingos  Viejra  vinte  cruzados  a  conta  biíj 
da  obra  da  cappella  de  Jesu  á-  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  perante 
mim  dito  scriuão. 

tfrey  Adrião.  Domingos  Vieira.*  fl.  13ti  v. 

«Sabbado  12  dias  de  nouembro  de  1594  recebeo  domingos  Viejra  a  conta 
da'  cappella  de  Jesu  quatro  mill  reis  e  assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  ÍÍTj 
perante  mim  o  Lecenceado  Simão  Ribeiro  scrivão  das  ditas  obras. 

tfrey  Adrião.  Domingos  Vieira.* 

«Sabbado  19  de  nouembro  de  1594  recebeo  domingos  Viejra  dous  mil  T] 
reis  a  conta  da  obra  da  cappella  de  Jesu  e  assinou  aqui  com  o  padre  frey 
Adrião  perante  mim  o  Lecenceado  Simão  Ribeiro  scriuão  das  ditas  obras. 

ifrey  Adrião.  Domingos  Vieira.*  fl-  Vil 

«Na  mesma  feria  de  26  de  novembro  de  1594  recebeo  Domingos  Viejra 
quinze  mil  reis  a  conta  de  trinta  mil  em  que  tomou  para  estofar  simquo  das  xb 
figuras  grandes  das  dez  que  estão  dentro  na  charola  &  assinou  aqui  com  o  pa- 
dre frei  Adrião  perante  mim  dito  Lecenceado  scriuão  das  ditas  obras. 

«frey  Adrião.  Domingos  Vieira.» 

«Sabbado  17  dias  de  Dezembro  de  1594  recebeo  domingos  Viejra  quinze 
mil  reis  a  conta  das  imagês  de  dentro  da  charola  á-  fiqou  pago  de  todos  os 
trinta  mil  reis  em  que  lhe  forão  dados  &  assinou  aqui  com  o  padre  frey  Adrião  xb 
perante  mim  Simão  Ribeiro  scriuão  das  ditas  obras.» 


i  72  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES     ^ 

"j  «Recebeo  mais  o  dito  domingos  Viejra  três  mil  reis  a  conta  da  obra  da 

cappella  de  Jesu  <&  assinou  aqui  ambos  estes  termos  assima. 

tfrey  Adrião.  Domingos  Vieira.* 

«De  hQ  bago  (báculo)  que  se  fez  para  são  basilio  &  de  hua  chaue  para  S. 
pedro  e  de  picar  a  mesma  pedra  &  das  letras  que  se  abrirão  que  por  (tudo) 
y  C"  xx         são  dous  mil  e  cento  e  vinte  reis. 

frey  Adrião 

«Resebi  por  diogo  prestes  se\s(cen)lo$  reis  pêra  lhos  dar  por  o  bago 
asima  dito. 

fl-  '37  t.  «Symão  guomez.  Domingos  Vieira.* 

iSabbado  o  derradeiro  dia  do  mez  de  dezembro  de  1594  recebeo  domin- 
iiij  gos  Vieira  quatro  mil  reis  a  conta  da  cappella  de  Jesu  &  assinou  aqui  com  o 

padre  frey  Adrião  perante  o  dito  scriuão. 

fl-  *38  tfrey  Adrião.  Domingos  Vieira.» 

«Na  mesma  feria '  recebeo  domingos  Vieira  quatorze  mil  reis  a  conta  da 
cappella  de  Jesu  e  assinou  aqui  com  o  padre  frey  Adrião  perante  mim  dito 
xiiij  scriuão  —  digo  que  recebeo  na  dita  feria  quatorze  mil  reis. 

fl-  138  v.  tfrey  Adrião.  Domingos  Vieira.* 

«Na  mesma  feria1  recebeo  domingos  Viejra  simqo  mil  reis  de  hu  dos  pro- 
fetas que  pintou  e  he  o  primeiro  dos  doze  que  estão  ao  redor  da  charola  A 
assinou  aqui  com  o  padre  frei  Adrião  per  ante  mim  dito  scriuão. 

tfrey  Adrião.  Domingos  Vieira.* 

«Oje  sabbado  o  primeiro  dia  de  Abril  de  1595 3  recebeo  domingos  Viejra 


1  De  7  de  janeiro  de  1595. 
*  De  14  de  agosto  de  1595. 

>  Naturalmente  tinha  sido  pago  por  lembrança  e  ió  entáo  se  lançou  no  livro,  fora  da  or- 
dem chronologica. 


NOTICIA  DK  ALGUNS  PINTORES  173 

do  padre  frei  damião  per  hua  carta  do  padre  frei  Adrião  trinta  mil  reis  pêra  »« 
ouro  e  tintas,  a  saber,  vinte  e  dons  mil  reis  que  se  lhe  devião  de  dourar  a  ma- 
çenaria  da  cappella  de  Jesu,  &  fiqa  a  dever  oito  mil  reis  que  satisfará  na  mais 
obra  que  tem  para  fazer  na  dita  cappella  A  assinou  aqui  com  o  padre  frei 
Adrião1  perante  mim  dito  scriuão. 

Domingos  Vieira.»  fl-  139 

«Sabbado  14  de  outubro  de  1595  recebeo  domingos  Vieira  a  conta  dos 
altos  fsic)  da  charola  que  agora  se  começarão  a  pintar  dous  mil  reis  —  &  as-  ;j 
sinou  aqui  com  o  padre  dom  prior  perante  mim  dito  scriuão,  diz  (sic)  quatorze 
de  outubro. 

<í[rey  Adrião  dom  prior.  Domingos  Vieira.»  fl.  140  v. 

«Na  mesma  feria2  recebeo  domingos  Vieira  pintor  a  conta  da  charola  do 
meo  quatro  mil  reis  &  assinou  aqui  com  os  padres  frey  Adrião  e  frey  Bernaldo 
perante  mim  dito  scriuão. 

*frey  Adrião.  Domingos  Vieira.» 

frey  Bernardo  fl.  153  t. 

«Sabbado  17  dias  do  mez  de  junho  de  1595  recebeo  Domingos  Vieira  a 
conta  da  capptlla  de  Jesu  vinte  mil  reis  em  os  quaes  fiquão  metidos  os  oito  mil  íí 
reis  que  fiqou  devendo  as  folhas  cento  e  trinta  e  nove  na  volta.» 

«Mais  recebeo  oitocentos  reis  de  dourar  e  emcarnar  o  serafim  do  sacrário 
A  assinou  aqui  estes  termos  com  o  padre  dom  prior  perante  mi  dito  escriuão. 

nfrey  Adrião  dom  prior.  Domingos  Vieira.»  fl.  155 

«Na  mesma  feria3  recebeo  domingos  Vieira  pintor  dous  mil  e  quatrocen-  yiiij» 
tos  reis  de  oito  linhas  de  ferro  que  mandou  pintar  de  vermelho  &  assinou  aqui 
com  o  padre  frei  Adrião  perante  mim  dito  scriuão. 

Domingos  Vieira.» 4         fl.  232 

1  Que  por  signal  náo  assignou. 

2  Também  esta  verba,  paga  em  14  de  agosto  de  1593,  está  entre  a  conta  dos  carpinteiros 
e  serralheiros. 

'  De  14  de  janeiro  de  1595. 

4  Esta  verba,  que  também  frei  Adrião  se  esqueceu  de  aisignar,  acha-se  egHalmente  entre 
as  contas  dos  carpinteiros,  pedreiros,  etc. 


174  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

bj  o  O  primeiro  de  Abril1  recebeo  Domingos  Viejra  seis  mil  reis  a  conta  do 

retabolo  do  dormitório, 
fl- 58  Domingos  Vieira.»* 

«Illustrissimo  Senhor.  — Dis  Domingos  Vieira  natural  e  morador  da  villa 
de  Thomar,  caualeiro  fidalgo  da  casa  de  Sua  Magestade  e  seu  pintor  de  ollio 
que  elle  tem  desejos  de  seruir  o  Santo  Officio  no  cargo  de  famiiliar,  e  porque 
tem  as  partes  que  se  requerera.  Pede  a  Vossa  Senhoria  Illustrissima  que  man- 
dando-se  jnformar  de  como  não  tem  impedimento  algum  para  o  poder  ser  o 
admita  ao  dito  cargo.  E.  R.  M.» 

«O  pay  do  suplicante  Domingos  Vieira  de  que  foi  filho  natural  se  cha- 
maua  João  Anrriques  Serrão  caualeiro  fidalgo  da  casa  dei  rei,  criou-se,  uiueo, 
e  morreo  na  villa  de  Thomar  aonde  seruio  o  cargo  de  executor  dos  três  quar- 
tos e  meãs  anatas  da  ordem  de  Christo  foi  natural  de  Torres  Vedras  seu  pay 
e  mai  se  chamarão  Miguel  Anrriques  e  Isabel  Serram.  A  mãy  do  suplicante 
se  chamou  Maria  Dias  que  tãobem  se  criou,  uiueo  e  morreo  na  villa  de  Tho- 
mar e  foi  natural  do  Furadouro  duas  legoas  de  Tomar,  freguezia  de  Nossa  Se- 
nhora de  Seiça,  termo  da  villa  de  Ourem,  filha  de  João  Dias  Feuereiro  e  de 
Vitoria  Alures  gente  mui  antiga 

«Os  jnquisidores  de  Lixboa  mandem  fazer  esta  diligencia  na  forma  do  es- 
tilo do  Santo  Officio  e  feita  a  inuiem  ao  conselho,  em  Lisboa  4  de  julho  de 
1625.  Bispo  Inquisidor  Geral.»5 

«Dom  Felippe  etc,  faço  saber  aos  que  esta  cartta  virem  que  havendo  res- 
peito a  boa  informação  que  tive  da  suficiência  e  partes  de  Domingos  Vieira, 
pintor  dolios  (sic)  e  comfiando  delle  que  no  de  que  o  encareguar  seruira  bemefiel- 
menle,  como  a  meu  seruiço  cunpre,  ei  por  bem  e  me  praz  de  lhe  fazer  mercê 
do  officio  de  meu  pintor,  que  esta  vago  por  falicimento  de  Amaro  do  Valle,  o 
qual  o  ditto  Domingos  Vieira  terá  e  seruira  em  quanto  o  eu  ouuer  por  bem  e 
não  mandar  o  contrario,  com  declaração  que  tirandolho  ou  extingindolho  (sic) 
por  qualquer  cousa  que  seja  lhe  não  ficará  minha  fazenda  obriguada  a  sasti- 


1  Esta  verba,  lançada  assim  n'um  livro  de  lembranças  depois  de  outra  de  9  de  novembro 
de  1593,  deixar-nos-hia  em  duvida,  quanlo  ao  anno  a  que  pertence,  se  quem  a  lançou  não  es- 
crevesse á  margem  esta  feliz  nota  —  véspera  de  patroa. —  Vê-se  pois  que  foi  paga  n'um  anno 
em  que  a  Paschoa  cahiu  a  2  de  abril,  caso  que  no  século  xvi  só  se  deu  em  1553,  1564, 1589  e 
1600.  Começando  as  lembranças  do  livro  ém  1591,  e  acabando  em  junho  de  1601,  segue-se  que 
o  facto  se  realizou  n'este  período,  sendo  portanto  a  referida  verba  do  1.*  de  abril  de  1600. 

2  Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de  Christo.  L.°  124. 

3  Idem.  Habilitações  do  Santo  Officio.  Maço  2.  Domingos,  n.°  60. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  175 

facão  algua  e  avera  com  elle  de  mantimento  hordenado  em  cada  hum  anno 
cinco  mil  rs.  em  dinheiro  e  hum  moio  de  triguo,  que  he  outro  tanto  como  ti- 
nha e  avia  com  o  dilto  officio  o  ditto  Amaro  do  Vaile  e  as  pessoas  qne  o  ser- 
uirão  amte  delle  que  lhe  será  pago  na  mesma  partte  que  a  elle  se  lhe  paga- 
uão;  pello  que  mando  a  Gonçallo  Pires  de  Carualho,  fidalgo  de  minha  cassa, 
provedor  de  minhas  obras . . .  António  de  Barros  a  fez  en  Lixboa  ao  primeiro 
de  junho  de  seis  centos  e  dezanoue.  Sebastião  Perestrello  o  fez  escreuer.»1 


CXTX. —  Vieira  (Gaspar). — Pintor  de  .óleo  e  de  imaginaria.  Por  alvará 
de  25  de  junho  de  1577  foi  dispensado  dos  Encargos  da  bandeira  de  S.  Jorge. 
No  artigo  Rezende  (Thomé  da  Costa  de)  já  deixei  exarados  os  nomes  de  ou- 
tros pintores  a  quem  foi  concedida  egual  mercê. 

Este  artista  è  dos  que  teem  passado  deconhecidos  até  agora. 

«Eu  elRey  faço  saber  aos  que  este  aluara  virem  que  avêdo  respeito  ao 
que  na  petição  atras  escripta  diz  G.ar  V.ra  e  vistas  as  causas  que  alegua  e  a 
êformaçã  que  o  licenceado  Ruy  Fernandez  da  Castanheda  do  meu  desêbarguo, 
corregedor  do  ciue!  desta  cidade  de  Lixboa  per  meu  mãdado  tomou  acerqua 
do  conteúdo  na  dita  petição,  e  como  pela  dita  êformaçã  cõstou  ser  o  dito  Gas- 
par Vieira  hum  dos  milhores  pintores  de  imaginaria  dolio  que  ha  nestes  Rei- 
nos e  a  dita  arte  de  pintura  dolio  e  imaginaria  ser  ávida  e  reputada  por  no- 
bre em  todos  os  outros  Reinos  ey  por  bem  e  me  praz  que  o  dito  Gaspar  Vieira 
não  seja  daqui  em  diãte  obrigado  aa  bandeira  de  Sam  Jorge  nem  aos  êcarguos 
delia  nem  a  outros  algús  êcarguos  dos  a  que  se  custumão  obrigar  os  olBciaes 
macanicos,  e  isto  sem  embarguo  da  prouisão  per  que  el  Rei  meu  senhor  e  avo, 
que  Deus  tem,  anexou  os  pintores  indistintamente  aa  dita  bandeira  de  Sam 
Jorge  e  de  quaes  quer  outras  prouisões,  regimentos  e  posturas  da  camará 
desta  cidade  de  Lixboa  que  em  contrario  aja  e  mando  aos  vereadores  e  pro- 
curadores da  dita  cidade  e  aos  procuradores  dos  mesteres  delia,  e  a  quaes  quer 
outras  justiças,  officiaes  e  pesoas  a  que  o  conhecimento  disto  pertêcer  que  não 
obriguem  nem  costrangão  aos  êcaregos  da  dita  bandeira  de  Sam  Jorge  nem  a 
outros  algús  de  ofEcial  macanico  e  lhe  cumpra  e  guardem  e  faça  inteiramente 
cumprir  e  guardar  este  aluara  como  se  nelle  contem,  o  qual  ey  por  bem  que 
valha  como  se  fose  carta  etc,  em  forma.  Pêro  de  Seixas  o  fez  em  Lixboa  a 
xxb  de  junho  de  jbc  lxxbij  J.°  de  Seixas  o  fez  escreuer.»  * 


'Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Filippe  II.  Doações.  L.°  43,  fl.  216. 
2  Idem.  Chanc.  de  D.  Sebastião  e  D.  Henrique.  Privilégios.  L."  12,  fl.  45. 


176  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


OXX. —  Visete  (Vicitor  ou  Victor?).— Pintor  flamengo  residente  em  Lis- 
boa, no  reinado  de  D.  Affonso  V,  o  qual  lhe  passou  carta  de  privilegio  em  25 
de  abril  de  1452. 

«Dom  Afomso  etc.  A  quamtos  esta  carta  uirem  fazemos  saber  que  nos  pri- 
uiligiamos  todollos  framcezes,  bretomes,  alemaees,  framemguos  que  ueerem 
morar  a  nossos  regnos,  e  por  que  Vicitor  Visete,  framemguo,  pimtor,  morador 
em  a  nossa  mui  nobre  e  leal  cidade  de  Lixboa,  he  huu  das  ditas  uaçomees, 
que  assy  priuiligiados  teemos,  nos  pedio  por  mercee  que  lbe  mamdasemos  dar 
noso  priuilegio,  e  visto  seu  requerimemto,  e  queremdolhe  fazer  graça  e  mercee 
teemos  por  bem  e  priuiligiamolo  e  queremos  que  daqui  em  diamte  nom  seja 
costramgido  pêra  auer  de  paguar  em  nenhúus  nossos  pididos,  peitas,  fimtas, 
talhas  emprestidos  nem  em  seruiços  nem  em  outros  nenhúus  emcarreguos  que 
per  Nos  nem  per  os  comcelhos  som  ou  forem  lamçados  per  quall  quer  guissa  que 
o  sejom  nem  vaa  com  pressos  nem  com  dinheiros,  nem  seja  titor  nem  curador 
de  nenhuuas  pesoas  que  sejom  nem  vaa  seruir  per  mar  nem  per  terra  a  ne- 
nhúas  partes  que  seja  nem  seja  costramgido  pêra  outros  nenhúus  emcarreguos 
nem  seruidoees  nossos  nem  do  concelho  nem  aja  outro  nenhuu  oficio  nosso  nem 
do  dito  comcelho  comtra  sua  vomtade.  Outrossy  queremos  que  nom  tenha  ca- 
uallo  nem  armas  nem  beesta  pêra  nosso  seruiço  posto  que  pêra  ello  aja  con- 
thia.  Mamdamos  e  defemdemos  que  nom  seja  nenhuu  tam  ousado  de  qual  quer 
estado  e  comdiçam  que  seja  que  lhe  pouse  em  suas  casas  de  morada,  adegua 
nem  cavalariças  nem  lhe  tomem  seu  pom,  vinho  nem  roupa  de  cama  nem  al- 
gúa  outra  cousa  do  seu  comtra  sua  vomtade  e  mamdamos  ao  noso  pousemta- 
dor  e  ao  da  Rainha  minha  molher,  que  sobre  todas  prezamos  e  amamos,  e  dos 
ifamtes  e  comdees  e  ao  da  dita  cidade  que  em  casso  que  nos  todos  ou  cada 
huu  de  nos  hi  sejamos  que  lhe  nom  dem  as  ditas  suas  cassas  dapousemtada- 
ria  em  nenhuua  maneira  que  seja  sob  pena  dos  nossos  em  coutos  de  seis  mil 
soldos  que  mamdamos  que  pague  pêra  nos  quall  quer  que  lhe  comtra  esto  for, 
os  quaes  mãdamos  aos  nossos  almoxarifes  que  os  arecadem  e  recebam  pêra 
nos  e  aos  espriuaêes  de  seus  ofícios  que  os  ponhom  em  receepta  sobre  eles 
em  seus  liuros  pêra  deles  auermos  boa  recadaçom  sob  pena  de  os  paguarem 
em  dobro  de  suas  cassas.  E  porem  mandamos  a  todolos  nossos  corregedores, 
juizes  e  justiças  e  aos  sacadores  e  recebedores  dos  nossos  pididos  e  a  outros 
quaes  quer  oficiaees  e  pesoas  que  esto  ouuerem  de  uer  que  ajoham  (sk)  o  dito 
Victor  Visete,  framemguo  pimtor  por  releuado  e  escusado  das  sobreditas  cos- 
sas  e  nom  costranjam  pêra  nenhúa  delias  e  lhe  compram  e  guardem  e  façom 
comprir  e  guardar  esta  nosa  carta  por  a  guisa  que  em  ela  he  comtheudo 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  177 

honde  búus  e  outros  ai  nom  façades.  Dada  em  a  nossa  cidade  deuora  xxb  da- 
bril  —  Lopo  Fernandez  a  fez  ano  do  nacimemto  de  nosso  Senhor  Iliesu  Xpo  de 
mill  e  iiijc  cimquoenita  e  douos  annos.» ' 


CXXI.  —  Ximenez  (Fernão). —  D.  Affonso  V  o  tomou  por  seu  pintor  do 
mourisco  com  a  tença  animal  de  seis  mil  reaes  brancos,  passando-lbe  a  res- 
pectiva carta  em  Évora,  a  20  de  julho  de  1464. 

iDom  A.°  etc.  A  quantos  esta  nossa  carta  virem  fazemos  saber  que  nos 
queremdo  fazer  graça  e  mercee  a  Fernam  Xemenez  pintor,  teemos  por  bem  e 
tomamollo  ora  nouamête  por  nosso  pintor  do  mourisco  e  queremos  que  elle 
tenha  e  aja  de  nos  des  primeiro  dia  de  janeiro  que  ora  vynra  da  era  de  iiij"  lxb 
em  diante  êquanto  nossa  mercê  for  seis  mill  rs.  brancos  de  teça  em  cada  hum 
ano,  os  quaaes  lhe  mãdaremos  assêtar  em  lugar  honde  delles  lhe  seera  feito 
muy  bõo  pagamento  aos  quartees  per  nossa  carta  que  lhe  deles  será  dada  em 
a  nossa  fazenda.  E  porem  mandamos  aos  nossos  veadores  e  esprivãaes  dela  e 
a  outros  quaaes  quer  que  esto  perlêcer  que  lhe  dê  e  faça  dar  carta  em  cada 
huu  ano  dos  ditos  dinheiros  peia  tall  luguar  honde  delles  possa  auer  paga- 
mento aos  quartees  segundo  nossa  hordenãça.  E  por  sua  guarda  e  renêbrãça 
lhe  mãdamos  dar  esta  carta  asinada  per  nos  e  asselada  do  nosso  sello  peudête 
pêra  a  teer  pêra  sua  guarda.  Dante  em  Euora  xx  dias  de  julho  P.°  A.°  a  fez 
ano  de  nosso  S.or  Ihesu  X.°  de  mill  iiijc  lxiiij0.»2 


i  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.'  12,  fl.  94  t. 
2  Idem.  Chanc.  de  D.  Affonso  V.  L.«  8,  fl.  105. 

-\Lvio,  1903.  23 


ADDENDA  ET  CORRIGENDA 


Affonso  (Jorge). —  A  pag.  8,  linha  17,  onde  se  lê  21  de  julho,  deve  lèr-se  22. 


♦  Barros  Ferreira  (Jeronymo  de). — Tanto  Cyrillo  como  Taborda  tratam  d'elle 
de  modo  a  podermol-o  considerar  como  artista  de  merecimento,  de  variadas 
aptidões,  cheio  de  zelo  e  de  amor  pela  sua  arte.  Raczynski,  no  seu  Diction- 
naire,  recapitula  o  que  a  tal  propósito  escreveram  os  dois  beneméritos  trata- 
distas. 

No  2.°  Supplemento  á  Gazeta  de  Lisboa,  de  25  de  julho  de  1^01,  encon- 
trei um  annuncio  que  dá  um  pormenor  interessante  para  a  biographia  de  Bar- 
ros Ferreira.  É  do  teor  seguinte: 

«Nas  segundas  e  quartas  feiras  de  cada  semana,  em  casa  de  Jeronymo  de 
Barros  Ferreira,  professor  de  Desenho  e  Pintura,  junto  ao  Poço  dos  Negros, 
se  ha  de  fazer  venda  publica  de  uma  boa  collecção  de  407  Desenhos  dos  me- 
lhores e  mais  antigos  Mestres,  em  que  entrão  muitos  de  Raphael  d'Urbino,  de 
Miguel  Angelos  Buenarota,  de  Júlio  Bomano,  de  Corregio,  de  Ticiano  e  de  mui- 
tos outros  Autores  de  grande  nome,  os  quaes  se  farão  ver  a  todos  os  amado- 
res da  Arte  que  nelles  quizerem  lançar.  Também  ha  alli  para  o  mesmo  fim 
huma  collecção  de  358  Estampas  de  vários  Authores.»' 


1  Os  nomes  que  levam  #  nSo  foram  incluídos  no  texto  d'esta  memoria. 


180  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


*  Fernandes  (Pêro).— Em  1508  trabalhava  nas  pinturas  do  paço  real  de 
Cintra  com  Gonçalo  Gomes,  de  quem  era  ajudante.  Veja-se  o  artigo  relativo  a 
este  ultimo. 


Gomes  (Affonso). —  Temos  mais  um  documento  que  ajuda  a  pormenorisar  a 
biographia  de  Affonso  Gomes.  Em  1513  era  já  fallecido,  pois  n'este  anno,  a  9 
de  abril,  renunciava  sua  viuva,  Isabel  Gomes,  o  emprazamento  de  uma  vinha, 
no  sitio  da  Lagoa,  termo  de  Almada,  com  a  condição  do  novo  aforamento  ser 
feito  a  Ruy  de  Castanheda,  cavalleiro  da  casa  d'el-rei.  O  respectivo  instru- 
mento foi  celebrado  no  mosteiro  de  Chellas,  que  era  o  directo  senhorio,  e  é 
concebido  nos  seguintes  termos: 

«Em  nome  de  Deos  amem  saibam  quamtos  este  estromentodemprazamenlo 
em  vidas  de  três  pessoas  virem  que  no  anno  do  nacimento  de  Nosso  Senhor 
Jhesu  Christo  de  mill  e  quinhentos  e  treze  anos  noue  dias  do  mes  dabrill  em  o 
moesteiro  da  Chellas  termo  da  cidade  de  Lixboa  estamdo  hi  presemtes  as  munlo 
devotas  e  Religiosas  donas  do  dito  moesteiro  a  saber  a  senhora  dona  Briatiz  de 
Castellbranco  prioresa  e  Tareja  Fernandez  Vigaira  e  Violamte  Aabull  e  Maria 
Afonso  e  Maria  Diaz  e  Maria  Vaaz  e  Calharina  Maosinho  e  Janeuora  (Genebra) 
Çacota  e  dona  Mecia  Pereira  e  dona  Maria  Valemle  e  Isabel  Galuoa  e  Isabel 
do  Campo  e  Briatiz  de  Macedo  e  Bramca  Leytoa  e  outras  donas  do  convemto 
do  dito  moesteiro  todas  chamadas  a  cabido  e  cabido  fazendo  per  sõo  de  cam- 
pãa  tamgida  segundo  seu  bõo  custume  e  diserõ  as  ditas  donas  que  he  verdade 
que  o  dito  seu  moesteiro  tem  huua  vinha  em  termo  d  Almadaa  homde  chamam 
aa  Lagoa  aquall  trazia  de  prazo  em  três  vidas  Ysabel  Gomez  molher  que  foy 
d  Afonso  Gomez  pimtor  que  Deos  aja  de  que  lhes  pagaua  de  foro  em  quada 
hQu  anno  quinhemtos  rreaes  e  que  aguora  a  dita  Isabel  Gomez  por  ser  mo- 
lher viuua  e  nõ  poder  suprir  os  emcarregos  da  dita  vinha  nem  paguar  o  dito 
ff  oro  e  por  a  vinha  estar  dapnyflcada  Renunciou  a  dita  vinha  ao  dito  moesteiro 
cõ  tall  condiçõ  que  a  desem  de  prazo  a  Ruy  de  Castanheda  caualeiro  da  casa 
delBey  Noso  Senhor  e  seguindo  se  comtem  em  puurico  estromento  de  Renun- 
cyaçõ  ffeyto  e  asyuado  per  Bertolameu  Vaaz  tabaliam  em  a  dita  cidade  em  oito 
dias  do  dito  mes  e  anno  e  que  porem  elas  ditas  donas  per  bem  da  dita  Re- 
nunciaçõ  vemdo  e  consyramdo  ser  seruiço  de  Deos  e  proveyto  do  dito  moes- 
teiro derõ  loguo  de  prazo  a  dita  vinha  ao  dito  Ruy  de  Castanheda  que  pre- 
semte  estaua  que  ele  Ruy  de  Castanheda  seja  a  primeira  pessoa  aa  dita  vinha 
e  posa  nomear  por  segunda  pessoa  ante  de  sua  morte  huua  ffilha  sua  e  de  sua 


NOTICIA  PE  ALGUNS  PINTORES  181 

molher  que  ora  tem  qual  ele  quiser  e  nam  avemdo  ffilho  ao  tempo  de  seu  fi- 
namenfo  posa  nomear  quem  ele  quiser  por  segumda  pessoa  e  a  segumda  pes- 
soa posa  yso  mesmo  nomear  amte  de  sua  morte  a  terceira  pessoa  de  guisa  que 
sejam  três  pessoas  e  mais  hõ  e  lha  emprazam  cõ  todas  suas  emtradas  e  say- 
das  direitos  e  pertenças  e  logradoyros  na  maneira  que  pertemçe  ao  dito  moes- 
teiro  e  cõ  as  comfromtações  cõ  que  de  dereito  deue  de  partyr  e  como  a  po- 
suya  a  dita  Isabel  Gomez  cõ  tall  condiçõ  que  o  dito  Ruy  de  Castanheda  e  pe- 
soas  depôs  ele  adubem  a  dita  vinha  descauar  podar  cauar  empar  amergulhar 
e  arremdar  e  tapar  em  quada  huu  anno  rle  maneira  que  amde  sempre  bem  cor- 
regida  e  aproveitada  melhorada  e  nõ  pejorada  e  que  dem  e  pagem  de  foro  e 
pemsam  da  dita  vinha  em  cada  huu  anno  os  ditos  quinhentos  rreaes  ora  cor- 
rentes em  paz  e  em  saluo  no  dito  moesteiro  juntamente  per  natal  e  começara 
de  fazer  a  primeira  paga  per  Natall  primeiro  que  vem  em  que  se  começara  ho 
anno  de  quinhentos  e  quatorze  e  asy  de  hy  em  diamle  em  cada  hõu  anno  nas 
ditas  três  vidas  e  com  tall  condiçõ  que  as  ditas  pessoas  nam  posam  trocar  ê 
alhear  nem  espedaçar  a  dita  vinha  com  nem  húua  pessoa  e  quamdo  ha  vem- 
der  quiserem  que  ho  façam  primeiro  saber  aas  ditas  donas  se  a  querem  tamlo 
por  tamto  que  a  ajam  e  nam  ha  queremdo  que  emtam  a  posam  as  ditas  pe- 
soas  vemder  com  seu  emcarreguo  a  pesoa  que  nam  seja  das  que  o  direito  de- 
femde  mas  seja  tall  que  cumpra  e  goarde  todas  as  ditas  condiçoeês  e  lhe  pa- 
guem delo  a  quorentena  segundo  o  direito  quer  e  finadas  as  ditas  pesoas  da- 
vida  deste  mundo  que  emtam  fique  esta  vinha  liuremente  ao  dito  moesteiro 
cõ  todas  suas  bemffeylorias  e  com  tall  cõdiçam  que  nam  pagado  os  foreyros  o 
dito  floro  per  espaço  de  dous  annos  que  percam  ho  prazo  posto  que  loguo  ve- 
nham cõ  trigosa  paga  obrigamdo  as  ditas  donas  todolos  bêes  e  Remdas  do  dito 
moesteiro  a  mamterem  este  prazo  ao  dito  Buy  de  Castanheda  nas  ditas  três  vi- 
das e  lhe  fazerem  a  dita  viuha  segura  liure  e  de  paz  de  quem  quer  que  lha 
demamde  ou  embargue  sobpena  de  lhe  pagarem  todas  perdas  dapnos  e  custa 
que  por  elo  fizerem  e  rreçeberem  e  cõ  cynquoenta  rreaes  de  pena  em  quada 
huu  dia  e  o  dito  Ruy  de  Castanheda  tomou  e  rreçebeo  em  sy  a  dita  vinha  de 
prazo  nas  ditas  três  vidas  cõ  todas  as  ditas  condiçoeês  as  quaees  se  obrigou 
cõprir  e  manter  e  pagar  os  ditos  quinhentos  rreaes  de  foro  em  cada  hõu  anno 
segundo  em  cyma  vay  decrarado  sob  a  dita  pena  e  custas  e  despesas  perdas 
e  dapnos  que  o  dito  moesteiro  por  elo  fizer  e  rreçeber  per  todos  seos  bêes 
ávidos  e  por  aver  que  pêra  elo  obrigou  e  pede  por  merçee  ao  senhor  arce- 
bispo e  a  seos  vigairos  que  asy  ho  queyram  afirmar  e  autorizar  e  em  teste- 
munho de  verdade  asy  ho  outorgarõ  e  mamdarõ  ffazer  senhos  estromemtos 
testemunhas  Aluaro  Fernandez  spriuam  dos  comlos  delRey  e  Fernam  Lopez 
morador  na  Torre  da  Bazoeyra  freguezia  de  Samto  Amtonio  e  Pêro  Carrasco 
morador  em  Valejas  e  eu  Fernam  Vaaz  tabelliam  d  el  Rey  iNosso  Senhor  em  a 


1  82  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTOIIES 

dita  cidade  que  este  estormento  em  meu  liuro  notey  e  da  nola  ho  fize  tirara 
meu  spriuom  e  ho  conçertey  sobspreuj  e  asiney  do  meu  puurico  sinal  que 
tall  he. 

«Pagou  por  este  estormento  e  por  outro  do  Moesteiro  e  yda  e  peles  clxxx 
rreaes.»1 


*  Gomes  (Gonçalo). —  D.  Manuel,  sendo  ainda  duque  de  Beja,  o  nomeou  seu 
pintor,  tomando-o  sob  sua  guarda  e  encommenda,  e  mandando  o  honrar  como 
tal.  Na  respectiva  carta,  passada  em  Évora  a  6  de  dezembro  de  1489,  se  de- 
clara que  elle  residia  em  Lisboa.  Subindo  ao  throno,  aquelle  principe  lh'a  con- 
firmou por  outra,  passada  em  Montemór-o-Novo  a  13  de  fevereiro  de  1496. 

Taborda  teve  conhecimento  d'esta  carta,  e,  em  presença  d'ella  e  dos  ter- 
mos elogiosos  em  que  está  redigida,  é  de  parecer  que  Gonçalo  Gomes  devia 
ser  artista  de  merecimento,  postoque  não  saiba  da  existência  de  nenhum  qua- 
dro seu  ou  de  obra  em  que  elle  fosse  empregado. 

D'esta  insciencia  nos  libertou  o  sr.  A.  Braamcamp  Freire,  que  num  per- 
gaminho da  Misericórdia  de  Cintra  e  n'um  livro,  infelizmente  truncado,  da  re- 
ceita e  despeza  de  André  Gonçalves,  almoxarife  da  mesma  villa,  encontrou  in- 
teressantes dados  para  a  biographia  de  Gonçalo  Gomes,  que  já  era  1504  resi- 
dia n'aquella  pittoresca  estancia  e  não  em  Lisboa.  A  sua  actividade  parece  pois 
ter-se  exercido  particularmente  nos  reaes  paços  cintrenses. 

Juntamente  com  elle,  durante  os  annos  de  1507  e  1508,  trabalharam  como 
seus  ajudantes:  Johane,  que  parece  ser  estrangeiro,  talvez  flamengo;  Diogo 
Gomes  e  Pêro  Fernandes. 

De  Diogo  Gomes  tratei  no  texto  d'esta  Memoria,  inserindo  a  carta  de  D. 
Manuel,  de  1  de  junho  de  1513,  em  que  lhe  manda  dar  4:000  reaes  de  tença. 

Á  lista  d'estes  pintores,  que  trabalharam  em  Cintra,  deve-se  accrescentar 
Pêro  Rodrigues,  que  apparece  por  1510,  e  Lourenço  Martins,  que  floresceu  an- 
teriormente a  qualquer  d'elles,  nos  reinados  de  D.  Duarte  e  D.  Affonso  V.  De 
ambos  me  occupei  nos  respectivos  logares. 

Transcreverei  agora  aqui  o  que  acerca  de  Gonçalo  Gomes  se  lê  a  pag.  xxxvi 
e  seguintes  da  obra  do  sr.  Braamcamp,  Livro  primeiro  dos  brazões  da  sala  de 
Cintra. 

«Do  já  por  outros  nomeado  pintor  Gonçalo  Gomes  sei  que  vivia  e  pros- 
perava no  anno  de  1504,  em  que  a  27  de  maio,  em  Cintra,  nas  casas  do  ta- 
bellião  João  de  Guimarães,  comparecendo  os  juizes  e  vereadores  em  camará, 


Torre  do  Tombo.  Mosteiro  de  Chellas.  Peig.°  1:391. 


NOTICIA  UE  ALGUNS  HNTOJIES  183 

comprou  elle  Gonçalo  Gomes,  que  presente  se  achou,  pintor,  e  morador  que 
então  era  em  Cintra,  por  mil  reaes  brancos,  moeda  ora  corrente,  a  Duarte 
Fernandes  Ferreira,  morador  em  Óbidos,  e  a  sua  mulher,  um  pardieiro  a  par 
do  hospital,  que  partia  do  aguião  (norte)  com  Inez  Martins,  do  suão  (nascente) 
com  casa  do  cosayro  e  da  travessa  (poente)  e  abreguo  (sul)  com  rua  publica. 

tDepois  encontro-o  trabalhando  em  obras  no  paço  nos  annos  de  1507  e 
1508,  ganhando  sessenta  reaes  por  dia.  No  primeiro  d'aquelles  annos  traba- 
lhou vinte  dias,  desde  22  de  fevereiro  até  27  de  março.  Occupou-se  em  doi- 
rar e  renovar  pinturas  das  camarás  e  casas  cque  se  dana  cõ  a  homidade».  Foi 
n'estes  misteres  ajudado  pelo  seu  creado  Johane,  cujo  jornal  era  de  quarenta 
reaes. 

cNo  anno  seguinte  de  1508  andou  Gonçalo  Gomes  cincoenta  e  três  dias 
nos  trabalhos  do  paço  de  Cintra,  desde  6  de  março  até  21  de  agosto.  Teve 
por  ajudantes,  além  do  seu  referido  criado  Johane,  a  Diogo  Gomes  e  a  Pêro 
Fernandes,  que  ganhavam  a  cincoenta  reaes,  e  que  começaram  a  trabalhar,  um 
a  17  e  o  outro  a  24  de  julho.  Também  se  não  especificam  as  obras,  porém 
de  uma  verba  consta  que  em  grande  parte  foram  na  capella. 

«O  almoxarife  pagou  a  29  de  novembro  de  1508  a  Affonso  Alvares,  bate- 
folha,  de  oiro  batido  «pêra  se  dourar  a  capella  e  asy  pêra  renovar  as  pinturas 
dos  paços»,  quarenta  e  cinco  mil  duzentos  e  cincoenta  reaes  por  mil  e  qui- 
nhentos pães  de  três  reaes  e  meio  cada  um,  e  d'elles  fez  logo  entrega  a  Gon- 
çalo Gomes,  pintor. 

«Além  d'este  oiro  recebeu  o  mesmo  pintor  para  as  referidas  obras:  nove 
arráteis  de  vermelhão  a  sessenta  reaes  o  arrátel,  quatro  arráteis  de  alvaiade  a 
trinta  reaes,  dezasete  arraieis  de  óleo  a  trinta  reaes,  meio  arrátel  de  azul  que 
importou  em  cem  reaes,  dez  arráteis  de  roxo  terra  a  quarenta  reaes,  três  ar- 
ráteis e  meio  de  zarcão  a  trinta  e  cinco  reaes,  seis  arráteis  de  ocre  a  trinta 
reaes,  e  mais  oitenta  reaes  de  grude  e  gesso. 

«Importaram  os  materiaes  em  quarenta  e  sete  mil  tresentos  e  dois  reaes 
e  meio,  a  mão  d'obra  em  seis  mil  setecentos  setenta  e  cinco  reaes;  gastou-se 
portanto  em  1508  em  pinturas  no  paço  de  Cintra  a  boa  conta  para  o  tempo  de 
cincoenta  e  quatro  mil  e  setenta  e  sete  reaes  e  meio. 

«Consta  tudo  do  citado  Livro  de  André  Gonsalves. 

«Faltam  em  seguida  muitas  folhas  no  livro  a  que  me  vou  soccorrendo,  e 
só  lá  encontrei  contas  do  anno  de  1510,  porém  n'essas  já  não  vejo  nomeado 
a  Gonçalo  Gomes,  apesar  de  terem  continuado  as  pinturas  na  capella,  para  as 
quaes  se  comprou  oiro  batido  ao  mesmo  preço  mencionado  na  importância  de 
vinte  e  quatro  mil  e  quinhentos  reaes,  e  mais  seiscentos  pães  de  prata  ao 
preço  de  real  e  meio  cada  um. 

«Apparece  comtudo  nomeado  como  pintor  Pêro  Rodrigues,  cuja  soldada 


184 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


era  inferior  em  dez  reaes  á  do  outro.  Trabalhou  Pêro  nove  dias,  rapando  a 
borda  do  guarda  roupa  da  rainha,  obra  que  começou  a  1  de  abril,  e  para  a 
qual  lhe  forneceram  um  pouco  de  roxo  terra,  verde  montanha,  e  grude.» 

«Dom  Mauuell  per  graça  de  Deos  Rey  de  Purtugall  e  dos  Alguarues  da- 
quem  e  dalém  maar  em  Africa  e  Senhor  de  Guine.  A  quamtos  esta  nossa  carta 
vyrem  fazemos  saber  que  por  parte  de  Gonçalo  Gomez  nosso  pyntor  (sic)  húa 
nosa  carta  que  íall  lie: 

«Eu  o  duque  etc,  faço  saber  a  quamtos  esta  mynha  carta  vyrem  que  eu 
tomey  ora  nouamente  por  meu  pyntor  e  em  mynha  especyall  guarda  e  enco- 
menda a  Gonçallo  Gomez  morador  em  a  cydade  de  Lixbõa  o  quall  mandey 
asentar  em  meus  liuros  pêra  me  delle  seruir  quando  me  necesario  for  e  porem 
rroguo  e  emcomêdo  a  todollos  juizes,  justiças  oficyaaes  e  pesoas  a  que  esta 
mynha  carta  for  mostrada  e  o  conhecymento  pertencer  que  daquy  em  dyaute 
por  ho  meu  ho  honrrem  e  tratem  bem  e  lhe  façam  todo  fauor  e  gasalhado  que 
bem  poderem  em  todas  aquellas  cousas  que  justas  e  rrazoadas  forê  asy  como 
he  rrazam  por  vyuer  comyguo  e  teer  delle  grande  carreguo  nam  lhe  fazendo 
nem  consentyndo  fazer  nêhQu  nojo  agrauo  nem  sem  rrazam  mais  antes  como 
dito  tenho  ho  enparem  e  defendam  asy  como  cousa  mynha  sendo  certos  que  to- 
dos aquelles  que  asy  fezerem  lho  guardarey  e  terey  muito  em  seruyço  e  do 
contrayro  o  que  de  nêhuus  nam  espero  me  desprazeria.  Dada  em  Eujra  a  bj 
dias  de  dezembro  Joham  Codouyll  a  fez  ano  de  mjll  iiije  Ixxxix. 

«Pedindonos  o  sobre  dito  Gonçallo  Gomez  que  lhe  quysesemos  confirmar 
a  dita  carta  e  nos  vysto  seu  rrequerymento  e  querêdolhe  fazer  graça  e  mer- 
çee,  Teemos  por  bem  e  cõfirmamoslha  asy  e  pella  maneira  que  nella  he  con- 
theudo  e  asy  mandamos  que  se  guarde  e  cunpra  jnteyramente  por  que  asy  he 
nossa  merçe.  Dada  em  Monte  Moor  ho  Nouo  a  xiij  dias  de  feuereyro  — Lujs 
Gonçallvez  a  fez  de  mjll  iiijc  1  r  bj  anos  —  El  Rey  •  \  ■  — » ' 


#  Johane. —  Era  creado  de  Gonçalo  Gomes,  a  quem  ajudava  na  pintura  dos 
paços  reaes  de  Cintra.  Veja-se  o  artigo  relativo  a  este  ultimo. 


Oliveira  Bernardes  (António  de).— No  artigo  acerca  d'este  pintor  attribui- 
lhe  os  azulejos  da  ermida  de  Porto  Salvo,  em  Pago  d'Arcos.  São,  porém,  de 
outro,  do  mesmo  appellido  Bernardes.  A  inscripção  reproduzida  por  Luciano 

1  Torre  do  Tombo.  Chanc.  de  D.  Manuel.  L.°  26,  fl.  59  v.  e  não  39  v.  Gav.  lo.  maço  9, 
li.»  6. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  185 

Cordeiro,  na  noticia  descriptiva  que  publicou  acerca  d'aquelia  ermida,  diz  o  se- 
guinte: 

nEsla  obra  mandarão  fazer  os  devotos  de  Lisboa  no  armo  de  1740  por  P. 
D.  Bernardes.* 

Entende  o  referido  escriplor  que  as  iniciaes  P.  D.  se  devem  traduzir  por 
Pedro  Domingos,  nome  que  considera  desconhecido,  e  eu  egualmente. 


M>io.  1003.  24 


LISTA    ALPHABETIGA, 


POR  NOMES  DE  BAPTISMO, 


DOS 


ARTISTAS  RELACIONADOS  FESTA  MEMORIA 


Atlbnso  Gomes. 

Aflbnso  Gonçalves. 

Atlbnso  Pires. 

Álvaro  Fernandes. 

Álvaro  Mendes. 

Álvaro  Pires. 

André  Gonçalves. 

Antão  Leitão. 

António  de  Barros. 

António  da  Costa. 

António  de  Espinhosa. 

António  Florenlim. 

António  de  Landrofe. 

António  Leitão. 

António  Luiz. 

António  Manuel  da  Fonseca. 

António  da  Malta. 

António  de  Moralles. 

António  de  Oliveira  Bernardes. 

António  de  Oliveira  de  Louredo. 

António  de  Sousa. 

Bartholomeu  Fernandes. 

Bento  Coelho  da  Silveira. 

Bernardo  Castelli. 

Braz  Pereira  de  Miranda. 

Carvalho 

Christovão  de  Figueiredo. 

Christovão  Lopes. 

Cluistovão  de  Utreeht. 

(alaúde  Le  Baiãt. 

Diogo  de  Cotilreiras. 

Diogo  Fernandes. 

Diogo  Gomes. 

Diogo  Teixeira. 


Diogo  Vaz. 

Domenico  Pellegrini. 

Domingos  Vieira. 

Domingos  Vieira  Serrão. 

Eduardo  Emilio  Pereira  Brandão. 

Eduardo  Lobo  de  Moura. 

Fernando  A/forno. 

Fernão  Cerveira. 

Fernão  Gomes. 

Fernão  de  Lisboa. 

Fernão  Rodrigues. 

Fernão  Trosylhos. 

Fernão  Ximenez. 

Francisco  das  Aves. 

Francisco  Gomes. 

Francisco  Henriques. 

Francisco  de  Mattos. 

Francisco  Nicotoso. 

Francisco  de  Santa  Cruz. 

Francisco  Vanegas  ou  Venegas. 

Frédéric  Pellereau. 

Gabriel  dei  Barro. 

Garcia  Fernandes. 

Gaspar  Cão. 

Gaspar  Carvalho. 

Gaspar  Dias. 

Gaspar  Vaz. 

Gaspar  Vieira. 

Gomes  Fernandes. 

Gonçalo  Anes. 

Gonçalo  Gomes. 

Gregório  Lopes. 

Jacomo  Dioll. 

Joronymo  de  Barros  Ferreira. 


188 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


J.  Van  Oort. 

Johane. 

João  Affonso,  {.' 

João  AlJonso,  2." 

João  Alvares,  1.° 

João  Alvares,  2.° 

João  Ancs. 

João  Dias. 

João  de  Espinosa. 

João  Gonçalves,  i.° 

João  Gonçalves,  2.° 

João  Martins,  í.° 

João  Martins,  2.° 

Jorge  Affonso. 

Jorge  Barreto. 

Jorge  Leoi. 

Jorge  Mendes. 

José  da  Costa  Negreiros. 

José  Rodrigues  da  Silva. 

Lazaro  de  Andrade. 

Luiz  atoara  de  Andrade. 

Luiz  Assencio  Tomasini. 

Luiz  Fernandes. 

Luiz  (Fr.)  de  S.  José. 

Lourenço  Martins. 

Lourenço  da  Sííeo  Pai. 

Manuel  André. 

Manuel  Borges. 

Manuel  Z)í'as  de  Oliveira 


Manuel  Furtado. 

Manuel  da  Silva  Rabello. 

Máximo  Paulino  dos  Beis. 

Miyuel  Nunes. 

Miguel  de  Paiva. 

Nicolas  Delerwe. 

Nuno  Gonçalves. 

Pêro  Affonso. 

Pêro  Aífonso  Gallego. 

Pêro  de  Almeida. 

Pêro  de  Coimbra. 

Pêro  Fernandes. 

Pêro  Rodrigues. 

Pêro  Foz. 

Pietro  Guarienti. 

Prospero  Lassere. 

Reymão  Armõe. 

Simão  de  Abreu. 

Simão  Affonso. 

Simão  Rodrigues. 

Taveira. 

Thomaz  de  Sousa  Villar. 

Thomé  da  Costa  de  Rezende. 

Vasco  Fernandes. 

Vicente  Carducci  ou  Carducho. 

Vietorino  Manuel  da  Serra. 

Vicitor  ou  Victor  Visete. 

Willelm  van  der  Kloet. 


CONCLUSÃO 


O  titulo  d'esta  Memoria  designa  perfeitamente  os  seus  modestos  intuitos. 
Não  é  um  trabalho  definitivo,  é  um  trabalho  preparatório;  um  subsidio  para 
quem  ura  dia  se  abalançar  a  redigir  o  Catalogo  dos  pintores  portuguezes  ou 
a  escrever  a  historia  da  pintura  nacional.  Ha  lacunas  e  sobejidões.  Trazem-se 
á  luz  bastantes  nomes  inéditos  e  accrescentam-se  novos  pormenores  biographi- 
cos  aos  já  conhecidos.  Confesso  ingenuamente  que  hesitei  por  vezes  em  ins- 
crever aqui  alguns  indivíduos,  que  talvez  não  mereçam  o  qualificativo  de  ar- 
tistas na  verdadeira  e  alta  accepção  da  palavra,  antes  não  passem  de  simples 
artífices,  mas  tive  ao  mesmo  tempo  receio  de  commetter  qualquer  omissão 
menos  justa,  e  por  isso  deixo  ao  arbítrio  prudencial  do  leitor  o  decidir  a  ques- 
tão. É  possível  que  mais  extensas  e  profundas  pesquizas  produzam  novos  do- 
cumentos, que  venham  confirmar  ou  destruir  a  classificação,  que  por  ora  se 
pôde  considerar  conjectural  e  transitória.  O  futuro,  por  conseguinte,  se  encar- 
regará de  fazer  o  apuramento  ou  selecção,  e,  quando  o  não  consiga,  creio  que 
não  poderei  ser  accusado  de  temerário,  desde  o  momento  em  que  exponho  com 
a  máxima  franqueza  estas  reservas.  Em  todo  o  caso,  succeda  o  que  succeder, 
julgo  também  que  nada  se  perde  em  estampar  certos  documentos,  que  podem 
servir  para  illustrar  muitos  pontos  da  vida  social  e  económica. 

Por  esta  Memoria  se  confirma  a  toda  a  evidencia  que  não  é  possível  tra- 
tar a  serio  e  proficuamente  de  qualquer  assumpto  sem  se  explorar  os  archi- 
vos  nacionaes  e  os  de  diversas  corporações,  sobretudo  as  religiosas,  umas  já 
extractas,  outras  existentes  ainda.  Os  cartórios  dos  conventos,  alguns  dos  quaes 


100  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

já  foram  recolhidos  á  Torre  do  Tombo  e  outros  se  conservam  ainda  nas  repar- 
tições de  fazenda,  os  dos  cabidos,  misericórdias,  irmandades,  confrarias,  ele, 
são  de  uma  riqueza  inexhaurivel,  o  que  não  admira,  visto  ter  sido  a  egreja 
quem  recolheu  e  armazenou,  durante  séculos,  a  maioria  dos  fruetos  da  acti- 
vidade nacional.  O  guerreiro,  o  estadista,  o  lettrado,  o  homem  de  negocio,  o 
proprietário,  tudo  emfim,  desde  o  monarcha  até  ao  mais  rude  e  singelo  tra- 
balhador, tudo  passava,  reverente,  pela  porta  da  egreja,  nos  seus  dias  festi- 
vos, nos  seus  dias  de  lueto,  em  todas  as  commemorações  e  phases  da  família. 
Eram  numerosíssimos  os  elos  que  vinculavam  o  homem  á  religião,  e  é  por  isso 
que  ainda  hoje  se  encontram  tantos  vestígios  d'essa  intimidade  profunda. 

O  que  aqui  assevero  é  uma  verdade  incontestável,  um  axioma  para  bem 
dizer,  mas,  quando  precisasse  de  demonstração,  bastaria  adduzir  como  prova 
o  cartório  do  antigo  convento  dos  frades  de  S.  Domingos  de  Lisboa,  que  só 
de  per  si  forneceu  elementos  para  evidenciar  a  existência  de  uma  espécie  de 
academia  ou  escola  de  pintura  na  primeira  metade  do  século  xvi. 

Assim  como  urge  e  convém  salvar  pela  photographia  os  objectos  artísti- 
cos, assim  importa  salvar  pela  imprensa  os  documentos  que  os  elucidem,  ora 
revelando-nos  os  nomes  dos  seus  auetores,  determinando  a  epocha  em  que  fo- 
ram elaborados  ou  declarando  simplesmente  quem  os  mandou  executar.  Não 
podem  estas  monographias  históricas  apresentar  desde  logo  um  quadro  com- 
pleto e  attingir  o  máximo  grau  de  perfectibilidade,  porque  só  a  collaboração  de 
muitos,  n'uma  porfia  de  longos  annos,  é  que  chegará  a  traduzir-se  n'uma  re- 
sultante satisfactoria.  Seria  loucura  censurar  aquelles  que  se  preoceupam  com 
a  perfeição  absoluta,  porque  esse  deve  ser  o  ideal  de  todo  o  homem  que  presa 
e  ama  a  sciencia,  mas  essa  preoceupação  não  se  deve  converter  em  preconceito, 
fazendo  com  que  se  adiem  indefinidamente  o  resultado  das  nossas  pesquizas, 
na  illusoria  expectativa  de  proferir  a  ultima  palavra  sobre  o  assumpto.  Isto  equi- 
valeria equiparar-se  ao  homem  que  andava  de  continuo  com  a  peça  de  fazenda 
debaixo  do  braço  á  espera  do  derradeiro  decreto  da  moda.  Censurável  unica- 
mente é  a  falta  de  escrúpulo  com  que  se  procede  na  revelação  e  analyse  dos 
factos,  deturpando-os  ou  apresenlando-os  sob  uma  physionomia  menos  conforme 
com  a  verdade.  Succede  muitas  vezes  que  um  pequeno  trecho  ou  um  documen- 
to, que  se  nos  afigura  insignificante,  serve,  na  mão  de  outro,  de  alavanca  ou 
de  ponto  de  referencia  para  descobrimentos  de  imprevisto  alcance.  Se  chega 
a  ser  pueril  encarecer  e  valorisar  demasiadamente  qualquer  minúcia,  nem  por 
isso  se  hade  deitar  ao  desprezo,  sem  prévio  exame  reflectido,  o  que,  no  pri- 
meiro relance,  se  nos  afigurou  ninharia  ou  supérfluo.  As  pequeninas  pedras 
servem  para  calcetamento  das  grandes,  e  assim  se  firmam  e  consolidam  muitos 
colossos  que  nos  parecem  inabaláveis,  mas  que  mal  se  susteriam  de  pé  sem 
aquelle  auxilio.  Com  isto  não  pretendo  de  modo  nenhum  fazer  sobresahir  os 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  191 

elementos  de  consulta  que  revelo,  dando-lhes  uma  cotação  superior  á  que  el- 
les  realmente  merecem.  Não  é,  soprando  a  rã,  que  ella  se  converte  n'um  ani- 
mal corpulento.  O  que  eu  sinto  é  que  os  materiaes  que  offereço  ao  exame  dos 
estudiosos  não  sejam  mais  abundantes  e  não  inspirem  maior  interesse.  Com 
isto  não  lucraria  o  meu  amor  próprio,  quem  lucraria  seria  a  historia  da  arte 
nacional,  e  d'este  beneficio,  profuudamente  patriótico,  se  daria  por  bem  paga 
a  minha  consciência. 


-<^ 


NOTICIA 


DE 


Ml  PIB 11IE 


E  DK 


OUTROS  QUE,  SENDO  ESTRANGEIROS, 

EXERCERAM  A  SUA  ARTE  EM  PORTUGAL 


SEGUNDA    SERIE 


MEMORIA  APRESENTADA  Á  ACACEMIA  REAL  OAS  SCIENCIAS  DE  LISBOA 


SOUSA  VITERBO 


SEU  SÓCIO  COUJlUSrOSDENTE 


— ♦M^- 


LISBOA 

Typographia  da  Academia  Real  das  Sciencias 

1906 


NOTICIA 


DE 


ii  puis  nuns 


OUTROS  QUE,  SENDO  ESTRANGEIROS, 


EXEECEEAM  A  SUA  AETE  EM  PORTUGAL 


NOTICIA 


DE 


MS  PH 


I 


e: 


OUTROS  ODE,  SENDO  ESTRANGEIROS, 

EXERCERAM  A  SUA  ARTE  EM  PORTUGAL 


SEGUNDA    SERIE 


MEMORIA  APRESENTADA  Á  ACADEMIA  REAL  DAS  SCIENCIAS  DE  LISBOA 


SOUSA  VITERBO 

SEU  SÓCIO  COnnESPONDENTE 


■■ep«® 


LISBOA 

Typographia  da  Academia  Real  das  Sciencias 

1906 


Extbacto  da  Historia  e  Memorias  da  Academia  Real  das  Sciencias  de  Lisboa, 
nov.  ser.,  Classe  de  Sciencias  Moraes,  etc. 


TOMO  XI  —  TAP, TE  I 


INTRODUCÇAO 


Proseguindo  na  tareia  de  accumular  subsidios  para  a  historia  da 
pintura  portugueza,  venho  hoje  offerecer  mais  um  pecúlio  aos  estudiosos 
que  se  dedicam  a  esta  especialidade. 

Duas  são  as  vias  essenciaes,  por  onde  se  pôde  penetrar  no  movi- 
mento artístico,  mais  ou  menos  evolutivo,  do  nosso  paiz.  listes  dois  pro- 
cessos podem  ser  usados  cada  um  de  per  si,  mas  convém  que  sejam  si- 
multâneos, porque  se  esclarecem,  auxiliam  e  completam  mutuamente.  O 
primeiro  consiste  em  pesquizar  os  objectos,  descrevel-os  e  catalogal-os 
methodicamente,  segundo  as  suas  épocas,  as  suas  phases,  as  suas  esco- 
las e  as  individualidades  que  os  produziram.  Depois  d'este  trabalho  de 
analjse,  a  critica  fará  o  seu  dever,  synthetisando-o.  O  segundo  consiste 
em  explorar  os  archivos  e  tirar  d'elles  toda  a  somma  de  noticias  que 
possam  servir  de  guia  aos  classificadores  eméritos. 

Eu  bem  sei  que  uma  obra  de  arte  tem  um  valor  intrínseco,  para 
assim  dizer  absoluto,  impondo-se  pelos  seus  predicados  naluraes  á  admi- 
ração de  quem  a  contemplar.  A  Virgem  da  Cadeira,  de  Raphael,  ou  o 
São  Pedro,  da  Sé  de  Vizeu,  de  Vasco  Fernandes,  não  carecem  de  certi- 
dão de  baptismo  que  legitime  a  sua  perfectibilidade  eslhetica.  Anonymas, 
teriam  a  marca  do  génio  a  illuminal-as  com  o  seu  resplendor  divino. 
A  regra  tem  excepções  e  muitos  artistas  superiores  passaram  obscuros 

Agosto,  1906  1 


2  NOTICIA  I'E  ALGUNS  PINTORES 

deante  dos  seus  contemporâneos,  sendo  necessário  que  a  posteridade  os 
viesse  resgatar  d'esta  injustiça,  concedendo-lhes  tardiamente  as  palmas 
do  triumpho.  Obras  de  grandes  mestres  encontram  resistências  quasi  in- 
vencíveis, tendo  de  entrar  em  lucla  para  conquistarem  o  logar  que  lhes 
é  devido.  Assim  succedeu,  por  exemplo,  com  as  partituras  de  Wagner, 
que  só  a  muito  cuslo  peneiraram  em  França,  depois  de  terem,  no  seu  pró- 
prio paiz,  disputado  o  terreno  palmo  a  palmo. 

Succede,  pelo  contrario,  que  muitas  obras  de  merecimento  medío- 
cre adquirem  desde  logo  uma  popularidade  extraordinária  para  mais 
tarde  cahirem  n'um  profundo  lethargo.  Foi  questão  de  moda,  capricho 
de  momento,  phenomeno  frequentíssimo,  mas  ainda  assim  pouco  explicá- 
vel. A  critica  imparcial  fica  surprehendida  com  estas  alternativas  da  opi- 
nião publica,  que  ora  demonstram  falta  de  gosto,  ora  ausência  dos  mais 
elementares  princípios  de  educação  artística. 

Admittindo,  porém,  que  a  verdadeira  obra  de  arte  se  impõe  natu- 
ralmente, é  certo  que  o  espirito  não  se  contenta  com  o  goso  exclusivo  do 
bello  e  que  procura  por  todos  os  meios  ao  seu  alcance  descobrir  as  ori- 
gens d'aquella  producção  sublime,  o  nome  do  seu  auctor,  e  quaes  as  cau- 
sas que  prepararam  o  seu  talento  e  influíram  na  sua  vocação.  Este  ins- 
tincto  prescrutador,  esta  anciã  de  diagnose,  se  nos  conduzem  a  resulta- 
dos felizes,  a  conclusões  admiráveis,  também  por  outro  lado  nos  levam 
a  erros  fataes,  fazendo-nos  tomar  a  sombra  pela  realidade. 

Infelizmente,  o  convencionalismo  exerce  uma  grande  e  perniciosa 
influencia,  de  que  não  estão  livres  os  homens  de  mais  elevada  cultura 
intellectual.  Se  o  vosso  Baedeker  vos  manda  parar  deante  de  uma  tela  de 
Rubens  ou  de  Ticiano,  vós  ficaes  extáticos,  na  adoração  de  uma  divin- 
dade hypothetica.  E  todavia  não  repugna  admittir  que  bastantes  quadros 
que  figuram  nas  principaes  galerias  do  mundo,  como  rubricados  pelos 
mais  illustres  pincéis,  só  podem  considerar-se  authenticos  na  fé  dos  nos- 
sos compadres.  As  fraudes  artísticas  succedem-se  com  frequência  e  a 
industria  das  preciosidades  artificiaes  de  toda  a  espécie  attingiu  um  ex- 
traordinário grau  de  perfectibilidade.  Os  mais  hábeis  directores  de  mu- 
seus teem  sido  victimas  d'essa  corporação  de  embusteiros,  que  sabem 
todos  os  segredos  de  enganar  os  sábios  e  os  peritos. 


INTRODUCÇAO  d 

E  para  desfazer  estas  mistificações  que  o  documento  é  um  recurso 
valiosíssimo,  quando  tem  todos  os  caracteres  de  sinceridade  e  não  padece 
dos  mesmos  vicios  de  falcatrua.  Quantas  conjecturas  scintillantes,  basea- 
das nos  mais  bem  formulados  raciocínios  e  na  mais  peregrina  erudição, 
não  se  desfazem  instantaneamente  em  face  de  uma  prova  documental  em 
contrario?  Um  curioso  caso  succedido  entre  nós  recentemente  vem  em 
pleno  abono  do  que  aliirmo.  E  preciso  todavia  não  exaggerar  a  impor- 
tância do  documento  e  não  tirar  d'elle  outras  conclusões  além  d'aquillo 
que  nos  é  permittido  derivar  da  sua  mais  racional  e  positiva  interpreta- 
ção. Os  documentos,  qualquer  que  seja  a  sua  natureza,  muitas  vezes  se 
enganam  e  nos  podem  enganar  também.  Nos  epitaphios  e  em  outras  le- 
gendas monumentaes  não  é  raro  encontrar-se  lapsos  históricos  de  bas- 
tante gravidade.  Toda  a  cautela,  por  conseguinte,  será  pouca. 

Para  a  historia  da  pintura  o  documento  tem  uma  vantagem  assas 
considerável,  o  de  nos  indicar  nomes  de  mestres  que  nos  eram  totalmente 
desconhecidos.  É  certo  que  não  apparecendo  a  obra  correspondente,  fi- 
camos ignorando  o  merecimento  do  artista  e  só  assim  avaliamos  a  sua 
actividade  material  e  a  da  época  em  que  floresceu.  Augmenla-se  a  esta- 
tística, iuscrevem-se  mais  alguns  números  no  rol  dos  productores,  fica- 
mos inteirados  do  seu  quantitativo,  á  espera  que  um  descobrimento  qual- 
quer, bem  casual  por  vezes,  nos  venha  designar  o  seu  qualificativo. 

Se  a  falta  de  aulhenticidade  é  um  motivo  de  inquietação  para  os 
que  estudam  as  obras  primas  dos  professores  eminentes  e  das  grandes 
escolas,  outra  circumstancia,  não  menos  importante,  impressiona  no  mo- 
mento actual  o  espirito  dos  críticos.  A  these  que  se  debate  consiste  em 
saber  se  o  principio  da  selecção  deve  ser  applicado  ás  galerias  pu- 
blicas, onde  não  faltam  quadros,  que  hoje  se  nos  afiguram  medíocres  e 
até  talvez  mais  que  medíocres.  Os  mamarrachos  e  as  codeas  abundam  e 
longe  de  servirem  de  modelo  só  podem  servir  de  mau  exemplo.  Assim 
pensa  um  certo  numero  de  críticos  de  arte,  que  talvez  sejam  verdadeiros 
e  sinceros  reformadores,  mas  que  talvez  não  passem  também  de  iconoclas- 
tas. Telas,  que  produziram  o  maior  enthusiasmo  em  certas  gerações,  são 
hoje  olhadas  com  indiferença,  com  desprezo  até,  admirados  os  olhos  da 
feitiçaria  idolatrica  dos  seus  antigos  devotos. 


4  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Até  certo  ponto  eu  estou  de  accordo  com  estes  princípios,  mas  não 
desconheço  quanto  são  perigosos  se  os  quizerem  pôr  rigorosamente  em 
pratica.  Poderia  muito  bem  dar-se  o  caso  que  nos  tivéssemos  de  arre- 
pender e  reconsiderar,  pois  que  muita  coisa  que  tem  sido  condemnada 
num  dia  vem  mais  tarde  a  ser  rehabililada.  Assim  succedeu,  por  exem- 
plo, com  a  arcliilectura  e  com  a  arte  gothica,  que  os  clássicos  votaram 
ao  desprezo,  laxando-a  de  barbara. 

Dcve-se  ainda  advertir  que  a  selecção  nos  museus  não  ha  de  locar 
o  extremo  nem  ullrapassar  certos  limites,  pois  um  tal  rigorismo  chega- 
ria a  produzir  lacunas  imperdoáveis.  Certamente  que  de  uma  escola  ou 
de  um  artista  não  sé  deve  acceitar  tudo  indislinctamente,  antes  se  ha  de 
proceder  a  minuciosa  escolha.  Na  historia  da  arte  ha  paginas  tristes  e 
ridículas,  que  todavia  não  convém  inulilisar,  rasgando-as  impiedosamente, 
por  completo.  As  phases  da  evolução  artística  não  se  suecedem  gradual- 
mente, em  marcha  progressiva.  As  épocas  de  resplendor  allernam-se  com 
as  épocas  de  decadência  e  d'estas  alternativas  e  d'estes  contrastes  se  tira 
proveitoso  ensinamento.  Os  directores  das  galerias  publicas  carecem  de 
ser  dotados  de  um  certo  espirito  de  tolerância,  de  um  certo  ecleticismo, 
para  que  as  suas  collecções  não  obedeçam  a  um  pensamento  reservado, 
a  um  principio  exclusivista,  que  pôde  ser  prejudicial  para  o  estudo  de 
uma  dada  serie,  de  uma  dada  época  ou  de  uma  dada  escola. 

Postas  estas  breves  reflexões  preliminares,  apresentarei  o  novo  elenco 
de  pintores,  alguns  dos  quaes  haviam  passado  até  agora  completamente 
desconhecidos.  Averiguada  a  sua  existência  individual,  resta  comproval-a 
com  a  sua  actividade  artística,  o  que  talvez,  em  grande  numero  de  casos, 
seja  impossível.  Não  se  deve  comtudo  desanimar,  porque  ninguém  sabe 
quantos  elementos  elucidativos  poderão  vir,  casual  e  inesperadamente, 
aggregar-se  áquelles  de  que  estamos  de  posse. 


I. — Abreu  (Simão  de). — Fiz  expressa  menção  (Teste  pintor  na  primeira 
serie  d'esta  Noticia.  Cumpre-me  agora  accrescentar  que  elle  foi  investido  ofi- 
cialmente no  cargo  de  pintor  do  convento  de  Christo  de  Thomar  em  carta  de 
13  de  setembro  de  1584.  Succedeu  a  Fernão  Rodrigues,  pela  morte  do  qual 
vagara  aquelle  ofJQcio. 

«Dom  Phellipe  etc.  como  gouernador  etc,  faço  saber  aos  que  esta  minha 
carta  uirem  que  por  ora  estar  vaguo  o  officio  de  pintor  do  comuento  da  uilla 
de  Thomar  da  dita  ordem  per  falecimento  de  Fernão  Roiz  ultimo  pintor  que 
foj  do  dito  conuento  e  por  confiar  de  Simão  d  Abreu  pintor  e  morador  na  dita 
villa  que  sernira  o  dito  officio  bem  e  uerdadeirameute  visto  ser  auido  por 
auto  e  soficieiite  pello  exame  que  se  niso  fez  ey  por  bem  e  me  praz  de  lhe 
fazer  mercê  do  dito  officio  e  o  dou  ora  daquy  em  diante  por  pintor  da  egreia 
do  dito  comuento  com  o  qual  officio  terá  e  aueraa  o  mantimento  a  elle  orde- 
nado asy  e  da  manejra  que  o  elle  fernão  Roiz  seu  antecessor  tinha  noteficoo 
asj  ao  Reuerendo  dom  prior  e  frejres  do  dito  comuento  e  mando  que  o  ajam 
daquj  em  diante  por  pintor  da  egreia  do  dito  conuento  e  lhe  acudão  com  seu 
mantimento  a  elle  ordenado  e  por  firmeza  de  todo  lhe  mandey  dar  esta  carta 
per  mj  asjnada  e  pasada  pella  chancellaria  da  dita  ordem  a  qual  se  comprira 
sendo  pasada  pella  dita  chancelaria  e  em  outra  manejra  não.  Dada  na  cidade 
de  Lixboa  a  xiij  de  setembro. — Luis  Serrão  a  fez  anuo  do  nacimento  de  Nosso 
Senhor  Jhesu  Christo  de  jbclxxxiiij — e  eu  Amrrique  Gamello  o  fiz  escreuer.»1 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de  Christo.  L.°  o,  (1.  259  v. 


6 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


II. — Affonso  (Jorge). — Delle  falei  largamente  na  primeira  serie  d'esta 
Noticia.  Tenho  agora  a  accrescentar  um  seu  conhecimento  ou  recibo  da  tença 
de  dez  mil  reaes,  relativa  ao  armo  de  1516,  a  qual  vencia  como  pintor  d'el-rei 
e  lhe  estava  consignada  na  Casa  da  Mina. 

«Recebeo  Jorge  Afomso  pimtor  dei  Rey  noso  Senhor  de  Bastiam  de  Var- 
gas, thesoureiro  da  casa  da  myna  dez  mjll  reaes  de  sua  teença  deste  anno 
que  na  dita  casa  tem  asentada  per  carta  Jeeral  e  por  verdade  lhe  deu  este 
conhecimento.  Feito  em  Lixboa  a  bij  dagosto  de  mill  bc  dezasejs. =Jorje 
Afomso= Pedro  de  Ferreira.»1 


III. — Alvares  de  Andrade.  (Luiz) — D'este  pintor  d'el-rei  já  ficou  feita 
menção  na  primeira  parte  d'esla  Memoria.  Agora  reproduzirei  diversas  ordens 
de  pagamento,  assignadas  pelo  provedor  D.  Fernando  Alvia  de  Castro,  pelas 
obras  que  elle  executou  em  1617  para  a  capitania  e  outros  navios  da  armada 
do  Mar  Oceano,  de  que  era  commandanle  D.  Fadrique  de  Toledo.*  Essas 
obras  consistiram  na  pintura  de  estandartes,  bandeiras,  pbaroes,  imagens  de 
proa,  etc. 

Alvia  de  Castro,  provedor  da  real  armada  e  exercito  do  Mar  Oceano  e 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  m,  maço  6,  doe.  27. 

2  No  documento  original  parece  lôr-se  Salcedo,  o  que  julguei  desde  logo  inadmissível. 
Para  tirar  todas  as  duvidas,  consultei  pessoa  competentíssima,  o  meu  amigo  e  illuslre  consócio 
na  Real  Academia  de  Historia  de  Madrid,  o  sr.  D.  Cesáreo  Fernandez  Duro,  o  qual  teve  a  ama- 
bilidade de  me  responder  na  seguinte  carta: 

«22  de  julio  1906. —  Mi  distinguido  Seíior  y  amigo.  Creo  que  la  persona  a  queserefiere 
la  consulta  de  V.  es  la  de  D.  Fadnque  de  Toledo,  ilustre  capitan  general  de  la  Armada  dei 
Mar  Oceano,  nombrado  en  21  de  mayo  de  1617  hasta  1 634  que  muno.  Fué  el  que  recupero  la 
plaza  de  San  Salvador  dei  Brasil  en  1625  y  aunque  obtuvo  el  titulo  de  Marquês  de  Villanueva 
de  Valdueza,  no  solia  usarlo. 

«No  cabe  equivocacion  de  apellido  pues  solo  hubo  un  D.  Diego  de  Salcedo,  Capitan  ge- 
neral de  las  islãs  Filipinas  en  1664. 

«Cora  motivo  de  una  batalla  naval  ganada  á  los  hollandeses  el  10  de  agosto  de  1621, 
consta  que  la  capitana  de  D.  Fadrique  de  Toledo  era  una  hermosa  nave  de  60  caiiones,  que 
no  tenia  par  entre  las  enemigas. 

«Presumo  que  las  pinturas  pagadas  para  esta  capitana  serian  banderas  ó  estandartes. 

«Deseo  que  pase  V.  un  verano  agradable,  descansando  de  sus  asiduos  trabajos,  siempre 
afectiscimo  §uyo — Cesáreo  Fernandez  Duro.» 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


7 


da  gente  de  guerra  e  galeras  do  reino  de  Portugal,  não  só  exercia  officios  mi- 
litares, mas  também  cultivava  as  letras.  De  obras  suas,  publicadas  em  Lis- 
boa, tenho  noticia  das  seguintes: 

Verdadera  razon  de  Estado.  Discvrso  politico...  Por  Pedro  Craesbeeck, 
1616; 

Aphorismos,  y  exemplos  políticos,  y  militares.  Sacados  de  la  primcra  Dé- 
cada de  Juan  de  Barros.  Por  Pedro  Craesbeeck,  1621; 

Pedaços  primeros  de  vn  disccrso  largo  en  las  cosas  de  Alemania . . .  Por 
Lourenço  Craesbeeck,  1636; 

Penegirico  genealógico  y  moral  dd  excelente  dvque  de  Barcelos...  Por 
Pedro  Craesbeeck,  1628; 

Tradvcion  dei  Compendio  italiano  de  la  vida  dei  santo  Francisco  Xavier. 
Por  Pedro  Craesbeeck,  1630; 

Memorial  y  discurso  politico  por  la  muy  noble  y  muy  leal  ciudad  de  Lo- 
grono,  1633. 

«Por  librança  dei  prouedor  Don  Fernando  Aluía  de  Castro  de  17  de 
agosto  de  1617  se  le  libraron  en  el  pagador  general  Geronimo  de  Vittoria 
dos  mill  y  quiníentos  reales  a  quenta  de  lo  que  ade  hauer  por  pintar  ai  olio 
por  ambas  partes  con  las  armas  reales  y  las  de  Dom  Fadrique  de  Toledo 
officio  cappitan  general  de  larmada  un  estandarte  de  damasco  carmesim  pêra 
seruicio  de  la  popa  de  la  capitana  Real  delia  y  assi  mismo  por  fechadura  y  de 
mas  cossas  nescesarias  que  a  de  poner  en  el. 

«Por  otra  librança  fecha  en  el  dicho  dia  se  le  libraron  nueuecientos  reales 
a  quenta  de  lo  que  hovier  de  auer  per  ocho  banderas  de  tope  de  lienço  Ruan 
de  a  quarenta  baras  medida  de  Portugal  que  a  de  hazer  pêra  seruicio  de  la 
cappitana  y  almiranta  Real. 

«Por  otra  librança  dei  dicho  dia  se  le  libraron  seiscientos  reales  a  buena 
quenta  de  lo  que  huuieçe  de  hauer  per  dorar  dos  fanales  grandes  y  un  pe- 
queno de  gauia  pêra  seruicio  de  la  cappitana  y  almiranta  Real  un  quadro  y 
olras  pinturas  quo  esta  haziendo  en  las  faluas  dei  seruicio  delia. 

«Por  otra  de  18  de  julio  de  1617  se  le  libraron  en  el  dicho  pagador  ge- 
neral Geronimo  de  Vittoria  mill  y  ochocienlos  reales  a  quenta  de  lo  que  hu- 
bier  de  hauer  por  hacer  pintar  ai  temple  por  anbas  bandas  con  las  armas  rea- 
les onze  bandeiras  de  tope  y  dez  pequenas  de  Ruan  para  seruicio  de  la  cap- 
pitana y  almiranta  y  una  ymagen  de  popa  de  Nuestra  Senhora  dei  pilar  y  San 
António. 

«Del  dinero  que  se  libra  a  quenta  de  lo  que  huuier  de  hauer  por  pintar 
ai  olio  un  estandarte  de  damazco  carmesi  por  ocho  bandeiras  de  tope  y  dorar 
dos  desfanales  grandes  e  un  pequeno  de  gauia  para  la  armada  dei  mar  oceano. 


8  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Por  libranza  de  3  d3  Septienbro  617  se  le  libraron  en  el  pagador  ge- 
neral Geronirao  de  Vittoria  1$478  reales  a  cunplimiento  de  6)51681  que  hubo 
de  hauer  por  el  balor  de  un  estandarte  real  de  damasco  carmesi  que  se  le 
conpro  pêra  la  cappitana  real  de  la  armada  con  que  satisfize  el  cargo  de  los 
2#500  reales  de  en  frente 

«Por  librança  dei  prouedor  Don  Fernando  de  Albia  fecha  em  3  Septien- 
bro 617  se  le  libraron  en  el  pagador  general  Geronimo  de  Bittoria  setecientos 
y  cinquenta  y  dos  reales  y  l/i  a  cunplimiento  de  4052  reales  que  inporta  el 
balor  de  11  bandeiras  y  dos  estandartes  y  la  hechura  de  una  ymagen  de  popa 
de  Nuestra  Senhora  dei  Pilar  y  San  António  y  otras  cosas  de  su  olDcio  para 
los  galeones  y  nabios  de  la  armada  con  que  queda  enteramenle  pagado. 

nUma  rubrica — Iden  en  todo.»1 


IV. — Anes  de  Leiria  (Francisco). — N'um  documento  do  cartório  con- 
ventual da  Carnota,  a  que  se  refere  o  sr.  Guilherme  J.  C.  Henriques  no  seu 
opúsculo  O  ex-convento  da  Carnota-Alemquer  e  o  seu  concelho,  fala-se  de  di- 
versos artistas  do  século  xv,  que  executaram  obras  n\iquelle  mosteiro,  entre 
os  quaes  o  pintor  Francisco  Anes  de  Leiria,  cujo  appellido  final  era  sem  du- 
vida patronymico. 

Era  filho  de  João  Affonso,  o  mesmo  sem  duvida  que  trabalhou  na  Bata- 
lha e  de  quem  trato  na  l.a  parte  d'esta  Noticia,  sob  o  n.°  IV,  a  pag.  6. 

O  trecho  do  opúsculo  do  sr.  Henriques  que  se  baseou  na  Chronica  da 
respectiva  Ordem,  escripta  por  Fr.  Martinho  do  Amor  de  Deus  sob  o  titulo 
de  Escola  da  Penitencia,  Caminho  da  Perfeição,  etc,  é  do  teor  seguinte  e 
vem  a  pag.  9: 

«Sendo  Vigário  Frey  Henrique  dé  Leiria,  no  anno  de  1450,  se  pintou  o 
retabolo  do  altar  mór,  o  qual  pintou  Francisco  Annes  de  Leiria,  filho  de  João 
Affonso.  Levou  de  o  pintar,  doze  mil  reis  brancos.  O  dito  pintor  pintou  na 
parede  o  Crucifixo  da  igreja,  e  a  Custodia  de  Corpo  de  Deos,  e  S.  Gregório, 
e  o  Senhor  com  os  seus  Martyrios,  e  o  Crucifixo  de  Refeitório.  E  o  carpinteiro 
que  fez  o  retabolo  chamava-se  Mestre  Simão,  o  qual  mandou  fazer  Frey  Lou- 
renço d'Azambuja,  sendo  Vigário;  o  dito  Mestre  fez  o  Coro  do  dito  oratório 
e  a  Custodia  do  Sacramento.  Derão-lhe  um  moyo  de  trigo  e  dous  mil  reis,  e 
de  comer  a  elle  e  a  Cornelio,  seu  mancebo  freixeiro.» 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  n,  maço  334,  doe.  43. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  9 


V. —  Anes  ou  Eanes  (Gonçalo). — Era  clérigo,  capellão  e  illuminador  dos 
livros  de  D.  Affonso  V.  Em  carta  de  3  de  julho  de  1452  fez-lhe  el-rei  mercê 
de  cinco  mil  novecentos  e  dezaseis  reaes  brancos,  de  tença  annual,  sendo 
qoatro  mil  cento  e  dezaseis  de  moradia  e  mil  e  oitocentos  reaes  para  vestia- 
ria,  isto  é,  para  nove  covados  de  bristol  e  nove  de  rolles.  Publiquei  esta  carta 
na  integra  na  minha  Memoria  sobre  A  livraria  real. 

Três  annos  depois,  na  carta  que  nomeia  a  Vasco  illuminador,  faz-se  re- 
ferencia a  Gonçalo  Anes. 

O  reinado  de  D.  Affonso  V  foi  um  dos  mais  longos  (1438-1481)  e  du- 
rante os  seus  43  annos  não  deixaram  de  florescer  as  letras,  as  artes,  as  in- 
dustrias, embora  a  tranquillidade  geral  do  paiz,  compromettida  por  vezes  de 
ura  modo  bastante  grave,  não  permittisse  o  seu  pleno  desenvolvimento. 

Fallecido  D.  Duarte,  surgiu  logo  a  mais  deplorável  discórdia  por  causa 
da  regência  e  tutoria  do  seu  successor,  tão  menino  ainda.  A  rainha  mãe  sahiu 
violentada  do  reino,  abandonando  ao  infante  D.  Pedro  a  tutella  e  educação  de 
seu  filho.  O  regente  exerceu  com  firmeza  e  tino  o  poder  que  lhe  fora  confiado, 
mas  não  soube  debellar  os  ódios  e  intrigas  dos  seus  emulos,  que  não  tarda- 
ram em  acirrar  o  animo  do  joven  rei  contra  o  pae  de  sua  esposa,  que  tão 
correctamente  havia  deposto  nas  suas  mãos  o  governo.  A  batalha  de  Alfarro- 
beira, uma  das  paginas  mais  lutuosas  da  nossa  historia,  foi  o  miserável  desfe- 
cho d'esse  drama  cortezão  e  familiar,  em  que  a  perfídia  campeou  de  principal 
agente. 

Era  1457  partiu  el-rei  para  a  conquista  de  Alcácer  em  Africa,  renovando 
em  1471  a  sua  empreza  com  destino  a  Arzilla  e  Tanger.  Os  triumphos  alcan- 
çados na  Mauritânia  incitaram-n'o  talvez  nos  seus  Ímpetos  bellicosos  contra  a 
Hespanha,  mas  a  invasão  nos  reinos  de  Castella  foi  coroada  de  um  successo 
bem  differente.  A  derrota  de  Touro  fez  murchar  os  louros  do  vencedor  de  Arzilla. 

Nos  intervallos  das  luclas  intestinas  e  das  guerras  extranhas,  os  desco- 
brimentos marítimos  proseguiram  na  sua  marcha  pertinaz,  ainda  que  morosa, 
effectuando-se  algumas  expedições  ás  Canárias  e  não  cessando  o  percurso  da 
costa  africana.  A  pirataria,  que  infestava  então  os  mares,  obrigava  por  vezes 
as  nossas  armadas  a  fazer  preparativos  mais  sérios  a  fim  de  reprimir  a  au- 
dácia dos  corsários  francezes,  inglezes  e  de  outras  nações.  No  interior,  as  ri- 
xas entre  bandos  e  parcialidades  de  diversos  fidalgos  eram  frequentes,  assim 
como  eram  frequentes  também  os  distúrbios  populares,  como  os  assaltos  ás 
judiarias,  mas  estes  casos  quasi  se  podem  considerar  como  violentas  occor- 
rencias  policiaes  dos  nossos  dias. 

Apesar  de  tudo  isto,  a  nossa  corte  n'aquelle  tempo  foi  uma  das  mais  po- 

Agosto,  1906.  2 


10  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

lidas  da  Europa,  como  bastaria  a  demonstral-o  o  vertiginoso  conjuncto  de  fes- 
tas, tão  numerosas  como  variadas,  que  se  realisaram  em  Lisboa  para  celebrar 
os  esponsaes  da  infanta  D.  Leonor,  imperatriz  da  Allemanha.  Infelizmente  não 
chegou  até  nós  nenhum  quadro  ou  miniatura  representativos  do  espectáculo, 
ou  antes  serie  de  espectáculos,  que  deslumbraram  os  olhos  dos  naturaes  e  fo- 
rasteiros. Tantas  justas  e  torneios,  tantas  cavalgadas,  tantos  festins,  tantas  re- 
presentações, tanta  riqueza  de  vestuário  e  de  adereços,  haviam  de  occupar  ne- 
cessariamente um  grande  numero  de  arlistas  e  artífices  de  diversa  espécie,  no 
recortar  dos  trajos,  no  pintar  dos  emblemas,  no  cinzelar  das  taças,  no  brunir 
das  armaduras,  no  reger  das  danças,  no  instrumentar  das  musicas  e  dos 
cantos. 

Alguns  monumentos  da  época  revelam-nos  quanto  a  pintura  foi  cultivada  e 
tida  em  estima.  Entre  os  manuscriptos  illuminados  merece  apontar-se  a  Chro- 
nica  de  Guiné,  ornada  com  o  bello  retrato  do  infante  D.  Henrique.  Este  mesmo 
retrato  apparece  n'um  dos  quatro  magníficos  painéis  de  tábua,  que  estão  hoje 
n'um  dos  vastíssimos  corredores  do  palácio  da  Patriarchal,  antigo  mosteiro 
de  S.  Vicente  de  Fora.  O  assumpto  d'estes  quadros  ainda  não  está  decifrado, 
mas  parecem  representar  actos  ou  solemnidades  de  qualquer  confraria  ou  cor- 
poração religiosa,  não  clerical  ou  monástica.  O  estudo  da  sua  procedência  aju- 
dará por  certo  a  determinar  a  sua  significação  histórica.  Como  quer  que  seja, 
elles  são  de  inapreciável  valor,  cheios  de  figuras  expressivas,  copiadas  do  na- 
tural, verdadeiros  retratos.  Se  fosse  possível  sobre  cada  uma  d'aquellas  cabe- 
ças pôr  o  nome  das  personalidades  que  aviventaram,  ter-se-ia  a  mais  brilhante 
galeria  ethnographica  do  século  xv. 

Os  documentos  contemporâneos  indicam-nos  bastantes  illumiuadores  e 
pintores,  sendo  hoje  difficilimo  fixar  a  importância  de  qualquer  d'elles,  por 
isso  que  não  nos  é  dado  saber  quaes  foram  e  onde  existem  as  obras  que 
executaram.  No  convento  da  Cartuxa,  em  Évora,  trabalhou,  por  exemplo,  um 
Affonso  Gomes,  mas  logo  por  infelicidade  desappareceram  os  trabalhos  d'este 
pintor.  É  possível,  porém,  que  em  ulteriores  pesquizas  nos  cartórios,  princi- 
palmente das  corporações  religiosas,  se  venham  a  encontrar  elementos  que 
ajudem  a  resolver  alguns  problemas,  que  nos  parecem  hoje  insolúveis. 

Como  remate  a  estas  breves  considerações,  darei  agora  uma  lista,  exclu- 
sivamente nominal,  dos  pintores  do  reinado  de  D.  Affonso  V,  de  que  tenho 
conhecimento. 

Affonso  Gonçalves — 1431. 
Affonso  Pires  — 1478. 
Álvaro  Gonçalves — 1460. 
Álvaro  Pedro— 1450. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  11 

Antoninho  (Mestre) — 1430.  É  de  crer  que  a  sua  existência  se  prolon- 
gasse até  ao  reinado  de  D.  Affonso  V. 
António  Florentina—  1439. 
António  de  Moralles — 1475. 
Fernão  Cerveira  — 1478. 
Fernão  de  Lisboa — 1471. 
Francisco  Anes  de  Leiria  — 1450. 
Gonçalo  Anes  ou  Eanes  — 1450. 

João  Affonso — 1473.  Parece  ter  havido  outro  do  mesmo  nome. 
João  Alvares — 1451.  Idem. 
João  Anes — 1454. 
João  Gonçalves — 1465. 
João  Martins— 1441. 
Lourenço  Martins  — 1449. 
Luiz  Dantes— 1454-1466. 
Nuno  Gonçalves — 1450. 
Pêro  Affonso  — 1456. 
Pêro  Affonso  Gallego  — 1441. 
Pêro  Vaz  — 1473. 
Rodrigo  Anes — 1481. 
Vasco — 1455. 

Vasco  Anes  ou  Eanes  — 1450. 
Vicitor  ou  Victor  Visete — 1452. 

Todos  estes  indivíduos  vêem  mencionados,  como  o  leitor  poderá  verificar, 
tanto  na  l.a  como  na  2.a  parte  d'esta  Noticia. 


VI. —  Anes  (Rodrigo). —  Pintor  de  D.  João  de  Almeida,  do  conselho  de 
D.  Affonso  V  e  seu  veador  da  fazenda.  Era  morador  em  Punhete,  hoje  Cons- 
tança, e  tinha  por  servidor  ou  creada  uma  Leonor  Alvares.  Querendo  o  alcaide 
pequeno  da  terra  prendel-o,  elle  offereceu  vigorosa  resistência  tanto  á  espa- 
deirada como  á  pedrada,  sendo  n'isto  coadjuvado  pela  sobredita  Leonor  Alva- 
res, que  parece  ter-se  mostrado  não  menos  varonil.  Por  este  motivo  a  justiça 
querellou  dos  criminosos,  que  tiveram  de  se  homiziar.  Obtendo,  porém,  per- 
dão das  auetoridades,  el-rei  lh'o  confirmou  em  carta  de  20  de  maio  de  1481, 
devendo  pagar  para  a  Piedade  oitocentos  reaes,  sendo  seiscentos  por  elle  e 
duzentos  pela  serva. 

«Dom  Afomso  etc.  Saúde  sabede  que  Rodrige  Anes  pintor  de  dom  Joham 


12  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

d  Almeida  do  nosso  conselho  e  veedor  da  nossa  fazenda  e  Lianor  Aluarez  sua 
serujdor  moradores  em  Punhete  nos  ennjaram  dizer  que  hum  Pêro  Diaz  alcaide 
pequeno  do  dito  logo  querelara  delles  as  nossas  justiças  dizendo  que  em  que- 
rendo elle  alcaide  prender  a  elle  Rodrige  Anes  que  elle  Rodrige  Anes  regis- 
tira  com  nua  espada  contra  elle  e  com  pedras  e  bem  asy  rregistira  contra  elle 
a  dita  Lianor  Aluarez  com  pedras  e  o  tomara  pellos  cabellos  e  todo  esto  lhe 
fezerã  em  pesoa  de  Joham  Aluarez  juiz  em  o  dito  loguo  por  rrezam  da  quall 
querella  sse  elles  amoraram  com  temor  das  nosas  justiças  e  que  ora  os  ditos 
alcaide  e  juiz  lhe  perdoaram  e  o  nom  querjã  acusar  nem  demandar  por  rre- 
zam da  dita  querella  e  resistência  que  asy  fizeram  segundo  veer  poderjamos 
per  hum  pubrico  estromento  de  perdam  que  perante  nos  emviaram  apresen- 
tar que  parecia  sseer  feito  e  asynado  per  Esteue  Aoes  tabelliam  em  o  dito  logo 
de  punhete  aos  iij  dias  do  mes  de  mayo  presente  do  ano  desta  carta  e  porem 
nos  pediam  os  ditos  sopricantes  por  merçee  que  lhes  perdoasemos  a  nossa 
justiça  sse  nos  a  ella  por  rrezam  da  dita  querella  e  resistência  em  algúa  guissa 
eram  theudos  e  nos  vendo  o  que  nos  elles  asy  dizer  e  pedir  enujaram  se  asy 
he  como  diz  e  hi  majs  nom  ha  e  querendolhes  fazer  graça  e  merçee  visto  o 
perdam  das  partes  teemos  por  bem  e  perdoamos  lhe  a  nossa  justiça  os  que  nos 
elles  por  rrezam  da  dita  querella  e  resistência  eram  leudos  com  tanto  que  elles 
pagassem  oyto  cemtos  rreaes  pêra  a  piedade  »s«  elle  sejs  cemtos  e  ella  du- 
zentos e  por  quanto  eles  ja  pagaram  os  ditos  dinheiros  e  os  entregaram  a  frey 
Joham  de  Santarém  nosso  esmoller  que  tem  carreguo  de  os  rreceber  segundo 
dello  fomos  certo  par  hum  seu  asynado  e  per  outro  de  Francisquo  dEuora 
nosso  espriuam  das  malfeiturias  que  os  sobre  elle  pos  em  rreçepta  vos  man- 
damos que  daquj  em  djante  os  não  prendaes  etc.  dada  em  Torres  Nouas  xx 
djas  de  mayo  EIRey  o  mandou  pello  doutor  Joham  Teixeira  do  seu  conselho  e 
etc.  e  por  o  doutor  Fernam  Rodriguez  anbos  do  seu  desembargo  e  pitiçoõees 
—  Pedraluarez  a  fez  de  mjll  iiijc  Ixxxj.»1 


VII. —  Anes  ou  Eanes  (Vasco).— Em  carta  de  7  de  agosto  de  1450  confir- 
mou D.  Affonso  V  um  instrumento,  pelo  qual  Leonor  Vasquez,  viuva  do  ouri- 
ves João  Affonso,  residente  em  Lisboa,  perfilhou  seus  sobrinhos  Vasqne  Anes, 
pintor,  e  Branca  Vieira,  sua  mulher,  filha  de  uma  sua  irmã,  moradores  na  mesma 
cidade  a  Caiaque  farás. 

Raczynski  conjectura  que  este  Vasco  Eanes  pôde  ser  o  Vasco  illuminador 
que  apparece  n'um  documento  de  1450  e  de  quem  trato  adeante. 


1  Torre  do  Tombo.  Ghancellaria  de  D.  Affonso  V.  L.«  26,  fl.  86. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  13 

fDom  Afonso  etc.  A  quantos  esta  carta  de  comfirmaçom  uirem  fazemos  sa- 
ber que  perante  nos  foi  presentado  huum  estorraento  de  perfilhamento  que  pa- 
recia seer  fedo  e  assignado  per  Fernamdafonso  tabaliam  era  essa  mesma  em  o 
qual  era  contheudo  antre  as  outras  cousas  que  Lianor  Uaasquez  molher  que  foy 
de  Joham  Afonso  ouriuez  em  essa  mesma  morador  dissera  que  ela  de  sua  liure 
pura  uontade  sem  outro  Rogo  nem  agalhamento  que  em  ello  fosse  fecto  nem 
dicto  por  algQua  pessoa  ella  perfilhara  e  Recebera  por  filhos  e  herdeiros  e  her- 
deiras em  todos  seus  bêes  mouees  e  Raiz  bonde  quer  que  fossem  achados  Uaas- 
que  Annes  pintor  e  Rranca  Uieira  sua  molher  sobrinhos  delia  dieta  Lianor  Uaaz 
filha  de  sua  hirmãa  moradores  em  a  cidade  de  Lixboa  a  Cata  que  farás  e  que 
por  sua  morte  eles  possam  herdar  assi  como  se  fossem  seus  filhos  lídimos  e 
os  dictos  Uaasque  Annes  e  a  dieta  sua  molher  lhe  disserom  que  eles  Recebiam 
por  sua  madre  em  todos  seus  bêes  a  dieta  Lianor  Uaasquez  e  per  o  dito  es- 
tormento  Renunciaua  todolos  outros  perfilharaentos  doaçoões  e  testamentos  e 
cédulas  e  codicillos  e  outras  quaaesquer  escripluras  que  ella  atee  qui  tiinha 
fectas  de  seus  bêes  aalgQuas  pessoas  ou  da  qui  em  diante  fezesse  e  mandara 
que  nom  ualessem  nem  teuessem  em  jujzo  nem  fora  dele  saluo  o  dicto  es- 
tamento de  perfilhamento  segundo  todo  esto  e  outras  cousas  em  o  dicto  es- 
tormento  de  perfilhamento  milhor  mais  compridamente  eram  comtheudas  e  que 
nos  pedia  por  mercee  que  lhe  confirmássemos  o  dito  perfilhamento  e  nos  ueendo 
o  que  nos  assi  dizia  e  pedia  com  o  dicto  estormento  e  huua  emquiriçom  que 
ante  sobre  ello  mandamos  filhar  per  que  se  mostra  que  a  dieta  Lianor  Uaas- 
quez outorgou  o  dicto  perfilhamento  de  sua  liure  uontade  sem  alguum  emgano 
e  prema  e  que  nom  auia  filhos  nem  herdeiros  e  querendo  lhe  fazer  graça  e 
mercê,  Teemos  por  bem  e  comfirmamoslhe  e  outorgamos  lhe  e  aprouamos  e 
Ratificamos  o  dicto  perfilhamento  pela  guisa  que  fecto  he  e  ho  auemos  por 
bõo  e  porem  mandamos  a  todollos  jujzes  e  justiças  dos  nossos  Regnos  que  assi 
lho  cumpram  e  guardem  e  façam  comprir  e  guardar  bem  e  compridamente 
pela  guisa  que  fecto  he  e  lhe  nom  uaaom  nem  comsentam  hir  comtra  ele  em 
nenhúa  maneira  que  seia  ca  nossa  mercee  e  uontade  he  de  lhe  seer  bem  com- 
prido e  guardado  per  a  guisa  que  fecto  he  e  no  dicto  estormento  he  comtheudo 
nom  embargando  quaaes  quer  dereitos  custumes  e  lex  que  esto  possam  em- 
bargar com  emtendimento  que  esto  nom  faça  nenhuum  prejujzo  a  alguuas  pes- 
soas que  algúu  dereito  aiam  nas  dietas  cousas  e  em  testemunho  desta  lhe  man- 
damos dar  esta  nossa  carta,  dada  em  a  cidade  de  Lixboa  aos  bij  dias  d  agosto 
EIRey  o  mandou  per  os  doutores  Ruy  Gomez  d  Aluarenga  e  Lopo  Uaasquez  de 
Serpa  seus  uassallos  e  do  seu  desembargo  e  petiçõoes.  Philipe  Afonso  o  moço 
a  ffez  anno  do  Senor  iiijc  1.  annos.»1 


i  Torre  do  Tombo.  Extremadura.  L.9  8,  fl.  297  v. 


1  4  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


VIIL— Antoninho  (Mestre).— Era  pintor  e  residia  em  Lisboa,  no  Arra- 
balde, na  primeira  metade  do  século  xv.  Sua  mulher  chamava-se  Catharina 
Affonso  e  d'ella  houve,  por  casamento  e  herança,  certos  bens  de  raiz  em  Azei- 
tão e  Coina,  que  pertenceram  a  sua  sogra  Maria  Vicente.  Os  de  Azeitão  fica- 
vam situados  a  par  da  egreja  de  S.  Lourenço,  sendo  a  quarta  parte  de  uma 
quinta,  que  já  fora  de  Marcos  Vicente,  avô  de  Catharina  Affonso.  Parecia  ser 
propriedade  importante.  Os  outros  quinhões  estavam  na  posse  dos  filhos  de 
Vasco  Fernandes,  de  Coina,  netos  de  Marcos  Vicente.  Mestre  Antoninho  e 
sua  mulher  resolveram  vender  aquelles  bens,  passando  procuração  para  este 
fim  a  Álvaro  Affonso  Brincão,  morador  na  aldeia  de  Nogueira,  de  Azeitão. 

A  venda  devia  efíectuar-se  em  hasta  publica,  a  quem  mais  desse,  perante 
as  auctoridades  competentes,  ás  quaes  o  dito  procurador  mostrou  os  papeis 
de  que  estava  munido  e  que  o  habilitavam  a  exercer  legalmente  aquelle  encargo. 
Um  d'elles  era  um  instrumento  escripto  em  pergaminho  em  Lisboa  pelo  tabel- 
lião  de  el-rei,  Lourenço  Anes,  aos  29  dias  do  mez  de  março  da  era  de  César 
de  1452,  e  n'elle  se  provava  que  os  ditos  bens  direitamente  pertenciam,  por 
herança  e  casamento,  a  mestre  Antoninho  e  sua  mulher.  O  outro  era  a  res- 
pectiva procuração,  passada  em  Lisboa  pelo  tabellião  Gonçalo  Pires  a  18  de  fe- 
vereiro do  anno  do  nascimento  de  Nosso  Senhor  Jesus  Christo  de  1430. 

Seis  dias  depois,  a  24  de  fevereiro,  realisava-se  o  leilão,  sendo  licitantes 
e  compradores  Estevam  Esteves,  escudeiro  e  morador  em  Cezimbra,  e  sua  mu- 
lher Maria  Lourença,  que  deram  de  preço  e  pagaram  cinco  mil  reaes  brancos 
em  dinheiros  e  oiro  amoedado  de  coroas  de  França.  N'esta  quantia  entrava 
também  o  valor  da  pequena  casa  de  Coina. 

A  escriptura  d'este  contracto,  onde  tudo  vem  extensamente  relatado, 
acha-se  registada  n'um  dos  livros  do  Tombo  do  extincto  convento  dominicano 
de  Santa  Maria  da  Piedade  de  Azeitão,  d'onde  tirei  o  treslado  que  adeante 
se  lê. 

Estevam  Esteves  foi  fundador  do  mosteiro  de  S.  Domingos  de  Azeitão,  ce- 
dendo para  este  effeito  a  parte  da  quinta  que  comprara  a  mestre  Antoninho. 

«Em  nome  de  Deos  amem  saibham  quantos  esta  carta  de  pura  uenda  vi- 
rem que  na  era  do  naçimento  de  Nosso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mjll  e  quatro 
centos  e  trinta  anos  vinte  e  quatro  dias  do  mes  de  feuereiro  è"  Azeitam  apar 
da  egreja  da  Sam  Lourenço  do  djto  logo  termo  de  Sezibra  sseendo  hi  Affonso 
Anes  Romeu  juiz  hordenairo  da  djta  villa  en  pressença  de  mjm  diego  Affomso 
tabelliam  pello  jfante  dom  Joham  no  djto  logo  e  das  testemunhas  que  adiante 
sam  escritas  parçeo  hi  Aluaro  Affomso  Brjncam  morador  em  o  djto  logo  d  Azei- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  15 

tam  na  aldeã  da  Nogeira  termo  da  djta  villa  e  disse  que  meestre  Antonjnho 
pintor  e  Catharina  Affomso  ssua  molher  moradores  na  cidade  de  Lixboa  no 
arraualde  lhe  disseram  e  deram  poder  per  ssua  procuraçam  abastante  que  logo 
hy  mostrou  que  elle  dyto  Aluaro  Affomso  em  nome  delles  uêdesse  e  podesse 
uêder  todollos  bêes  de  Rajz  que  elles  aujam  em  o  djto  logo  d  Azeitam  e  em 
Couna  que  elles  ouueram  e  cobrara  per  erança  e  casamento  de  Maria  Vicente 
ssogra  do  djto  meestre  Antonjnho  e  madre  da  djta  Catharinaffomso  ssua  mo- 
lher os  quaaes  bêes  jazem  apar  da  egreja  do  djto  Sam  Lourenço  comuem  a 
saber  a  quarta  parte  de  toda  a  quintãa  que  foy  de  Marcos  Vicente  auoo  da  djta 
Catharina  Affomso  e  majs  hua  cassa  em  Couna  e  por  quanto  elle  djto  Aluaro 
Affonso  dizia  que  achaua  quem  lhe  conprara  todollos  djtos  bêes  e  os  queria 
uêder  pressente  elle  djto  juiz  a  quê  lhe  delles  mays  desse  o  djto  Aluaro  Af- 
fomso amostrou  e  per  mjm  ssobre  djto  tabelliam  leer  ffez  hQu  estromento  pru- 
bico  escprito  em  purgamjnho  e  que  fora  ffecto  na  cidade  de  Lixboa  nas  cassas 
do  djto  meestre  Antonjnho  aos  víjte  e  noue  dias  do  mes  de  mayo  da  era  de  Ce- 
zer  de  mjll  e  quatro  centos  e  çinquoenta  e  dous  anos  ffecto  e  asijnaado  per  Lou- 
renço Afies  tabelliam  delRej  em  a  djta  cidade  ssegúdo  em  elle  parecia  pello 
quall  estromenlo  sse  amostraua  antre  as  outras  coussas  que  os  bêes  ssuso  dj- 
tos eram  todos  do  djto  meestre  Antonjnho  e  da  djta  ssua  molher  per  erãça  e 
casamento  como  djto  he  e  asy  amostrado  o  djto  estromento  logo  o  djto  Aluaro 
Affomso  mostrou  a  djta  procuraçam  que  lhe  os  ssobre  djtos  ffizeram  abastante 
em  todo  pêra  elle  poder  uender  os  djtos  bêes  ffecta  e  asynaada  na  djta  cidade 
no  arraualde  nas  cassas  do  djto  meestre  Antonjnho  per  Gouçallo  Pirez  tabel- 
liam delRey  em  a  djta  cidade  aos  dez  oyto  dias  do  mes  de  feujreiro  da  era 
ssobre  djta  do  naçimento  de  Nosso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mjll  e  quatro  cen- 
tos e  trinta  anos  em  a  quall  procuraçam  sse  mostraua  antre  as  outras  coussas 
que  o  djto  meestre  Antonjnho  e  a  djta  ssua  molher  deram  anbos  sseu  com- 
prido poder  ao  djto  Aluaro  Affomso  Brjncam  que  elle  em  sseus  nomes  uêdesse 
e  podesse  uêder  todollos  sseus  bêes  de  Rajz  que  elles  aujam  em  o  djto  logo 
d  Azeitam  e  em  Couna  ssegudo  djto  he  a  quê  elle  quisesse  e  pellos  preços  que 
lhe  aprouguesse  e  que  lhe  podesse  mãdar  fazer  e  ffizesse  todallas  escritu- 
ras de  fermjdõoe  que  aa  djta  venda  e  auto  delia  pertêeçesse  ffectas  per  quall 
quer  tabelliam  que  a  djta  procuraçam  vise  e  que  Reçebese  os  preços  por  que 
os  djtos  bêes  uêdesse  e  desse  dello  quitaçõoes  aas  partes  de  que  os  Recebesse 
e  que  aujã  por  firme  e  estaujll  pêra  todo  ssempre  todo  aquello  que  pello  djto 
sseu  procurador  ffosse  ffecto  e  afirmado  em  todo  o  que  djto  he  ssobrjgamento 
de  todollos  sseus  bêes  que  pêra  esto  obrigara  e  amostrada  a  djta  procuraçam 
e  estromento  perante  o  djto  juiz  logo  o  djto  Aluaro  Affomso  per  poder  da  djta 
procuraçam  e  do  mãdado  e  autoridade  do  djto  juiz  e  pressente  ell  uêdeo  e  ou- 
torgou por  pura  uêda  deste  dia  pêra  todo  ssenpre  a  Esteuã  Esteuez  escudeiro 


16  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

morador  em  Sezíbra  que  pressente  estaua  e  a  Maria  Lourenço  ssua  molher  to- 
dollos  bêes  ssusso  djtos  de  Rajz  com  todas  ssuas  noujdades  e  pertêeças  que 
o  djto  meestre  Antonjnho  e  a  djta  Catharinaffomso  ssua  molher  tjinham  e  au- 
jam  em  o  djto  logo  d  Azeitam  termo  da  djta  villa  de  Sezíbra  cõuê  a  ssaber  a 
quarta  parte  da  quintãa  ssusso  djta  que  ffoy  do  djto  Marcos  Vicente  asy  como 
jaz  deuissada  e  demarquada  cõuê  a  ssaber  de  casas  e  vinhas  e  herdades  de 
pam  e  oljuall  e  pumar  e  figeiras  e  outras  aruores  e  logradoiros  delias  e  aguas 
e  Ressios  e  montes  e  fontes  e  matos  e  canpos  asy  arroios  como  a  por  aRonper 
e  a  parte  e  djreito  quinham  do  lagar  do  azeite  que  hi  esta  na  djta  quintãa  os 
quaaes  bêes  e  quarta  parte  da  djta  quintãa  jazem  deujsados  e  demarquados  e 
partem  de  todas  partes  com  os  bêes  e  quintão  da  djta  erãça  que  ora  ssam  dos 
filhos  de  Vaasquo  Fernandez  de  Couna  netos  do  djto  Marcos  Vicente  cuja  a  djta 
quintãa  foy  e  partem  majs  com  bêes  da  quintãa  da  capeella  de  Lourenço  De- 
njs  que  ora  tem  Fernandaluarez  que  antijgamente  foram  todos  de  húa  erança 
e  com  outros  com  que  de  djreito  deuem  de  partjr  e  outrossy  lhe  uêdeo  majs 
com  os  djtos  bêes  húa  cassa  pequena  que  os  ssobre  djtos  uêdedores  tijnhã  e 
aujam  em  Couna  aquall  parte  ao  aleuãte  com  cassa  que  foy  de  Johã  Vicente 
Escollar  e  ao  poete  parte  com  cassa  de  Maria  Vicente  ssogra  do  djto  meestre 
Antonjnho  e  aagiam  e  abrego  parte  com  Ruas  prubicas  os  quaees  bêes  ssusso 
djtos  assy  como  ssam  deujsados  que  o  djto  meestre  Antonjnho  e  a  djta  ssua 
molher  tynham  e  aujã  em  o  djto  logo  d  Azeita  e  de  Couna  e  de  djreito  majs 
compridamente  deujam  dauer  o  djto  Aluaro  Afíomso  uêdeo  ao  djto  Esteuã  Es- 
teuez  e  a  djta  ssua  molher  como  dito  he  foros  e  jssêetos  dizimo  a  Deos  com 
todas  ssuas  entradas  e  ssaidas  e  djreitos  e  pertêeças  asy  como  os  elles  djtos 
uêdedores  aujã  por  preço  certo  nomeado  cõuê  a  ssaber  por  çinquo  mjll  reaes 
brancos  em  dinheiros  e  ouro  amoedado  de  coroas  de  Frãça  que  logo  o  djto  Al- 
uaro Affomso  procurador  dos  djtos  uêdedores  em  nome  deites  cotou  e  Reçe- 
beo  do  djto  Esteuã  Esteuez  pressente  mjm  ssobre  djto  tabelliam  e  testemu- 
nhas adjante  escritas  per  conpra  dos  djtos  bêes  do  quall  preço  sse  elle  deu  por 
bem  pagado  e  entregue  e  disse  que  daua  o  djto  Esteuã  Esteuez  e  ssua  mo- 
lher e  bêes  e  herdeiros  por  quitees  e  ljures  pêra  ssenpre  de  todollos  ditos  di- 
nheiros e  preço  ssuso  djto  que  pellos  djtos  bêes  dera  e  mãdou  e  outorgou  que 
o  djto  Esteuã  Esteuez  e  ssua  molher  e  todos  sseus  herdeiros  e  ssoçessores  que 
despos  elles  ueerem  que  daqui  em  diante  pêra  todo  sseupre  ajam  elles  e  po- 
sam auer  e  lograr  por  sseus  e  como  seus  todollos  djtos  bêes  e  pertêeças 
delles  assy  como  ssobre  djto  e  decrarado  he  e  que  ffaçam  delles  e  em  elles 
todo  aquello  que  lhes  aprouguer  assy  como  de  sseu  auer  propio  que  he  e  ar- 
reunçiou  em  nome  dos  ditos  uêdedores  todo  djreito  e  pose  e  ssenhorio  e  erãça 
e  propiadade  que  os  djtos  uêdedores  tijnham  e  aujam  nos  djtos  bêes  e  o  pos 
todo  cõpridamente  nos  djtos  compradores  e  em  todos  sseus  herdeiros  e  soçe- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  17 

sores  como  dito  he  e  logo  o  djto  Aluaro  Affomso  per  poder  da  djta  procuraçã 
e  per  autoridade  do  djto  juiz  ffez  e  outorgou  a  djta  uêda  como  djto  he  e  com. 
o  djto  juiz  e  comjgo  ssobre  djto  tabelliam  e  testemunhas  sse  foy  coin  o  djto 
Esteuã  Esteuez  ueer  e  apeegar  todollos  djtos  bêes  e  lhos  entregou  e  o  me- 
teo  em  posse  delles  asy  e  per  aquelles  moodos  que  o  djreito  mãda  e  sse  deue 
de  fazer  e  o  djto  Esteuã  Esteuez  sse  ouue  por  entregue  dos  djtos  bêes  e  de 
todas  ssuas  pertêeças  e  tomou  em  ssy  a  posse  e  têeça  e  senhorio  delles  e  logo  o 
djto  Aluaro  Affomso  obrjgou  todollos  bêes  dos  djtos  uendedores  mouijs  e  Raizs 
anudos  e  por  auer  a  lhe  defender  e  enparar  todollos  djtos  bêes  e  suas  per- 
têeças delles  a  todos  tempos  de  quallquer  pessoa  ou  pessoas  que  lhos  embar- 
garem ou  demãdar  quisserem  ssopena  do  dobro  e  de  quanto  em  os  djtos  bêes 
ffor  ffecto  e  melhorado  e  majs  lhe  pagarem  os  djtos  uêdedores  todas  custas  e 
despesas  e  perdas  e  danos  que  os  djtos  compradores  ou  sseus  herdeiros  e 
ssoçessores  por  esta  Razam  ffezerem  e  Receberem  e  com  quinhentos  reaes 
brancos  em  cada  húu  dia  de  pena  ssobrjgamento  de  todollos  bêes  dos  djtos 
uêdedores  que  pêra  esto  obrjgou  o  djto  sseu  procurador  e  os  deu  aa  penhora 
e  fiodaria  de  todo  o  que  djto  he  e  em  testemunho  da  uerdade  e  firmeza  lhe 
mãdaram  assy  sseer  ffecta  esta  carta  de  uêda  ffecta  e  outorgada  no  djto  logo 
dAzzeitam  dia  e  mes  e  era  ssusso  djta  testemunhas  que  a  esto  pressentes 
fforam  o  djto  juiz  e  Fernãdaluarez  escudeiro  e  Joane  Afies  creligo  moradores 
no  djto  logo  d  Azeitam  e  Apariçaffomso  e  Martjm  Vaasquez  fllho  de  Vaasquo 
Fernandez  moradores  em  Couna  e  outros  e  eu  ssobre  djto  tabelliam  que  per 
mãdado  a  outorgamento  do  djto  Aluaro  Affomso  procurador  dos  sobre  djtos 
uêdedores  esta  carta  escpreuj  e  aqui  meu  ssinall  fiz  e  eu  Fernãdaluarez  sso- 
bre djto  taballiam  que  a  djta  carta  em  este  pressente  ljuro  de  tõbo  treladey  e 
aqui  meu  ssinall  ffiz  que  tall  he:  -f .»' 


IX. — Azevedo  (João  de).— Sabe-se  apenas  que  era  pintor  e  que  residia  no 
Rio  de  Janeiro  em  166Í).  Em  sua  casa  assistia  um  estudante,  Silvestre  Fran- 
cisco, que  vem  apontado  com  outras  testemunhas  na  denunciação  enviada  ao 
Santo  Officio  de  Lisboa  por  Frei  Luiz  Lamberto,  que  parece  extraqgeiro,  con- 
tra Luiz  de  Crasto,  morador  na  mesma  cidade. 

O  accusado  era  christão  novo  e  tinha  parentes  presos  na  Inquisição.  D'esta 
dizia  que  era  uma  trampa  —  por  certo  no  sentido  que  a  palavra  ainda  hoje  con- 
serva no  hespanhol  —  e  que  só  servia  para  tomar  as  fazendas  dos  delinquentes. 

A  denuncia  de  Frei  Luiz  Lamberto  não  apparece,  vindo  indicada  no  se- 
guinte requerimento  do  promotor  do  Santo  Officio: 


1  Torre  do  Tombo.  Tombo  n.°  29  do  Convento  de  Santa  Maria  da  Piedade  de  Azeitão,  fl.  59. 
Agosto,  1906.  3 


18  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Muito  Illustres  Senhores=Da  denunciação  junta  que  offereço  de  Fr.  Luiz 
Lamberto  de  22  do  mez  de  Mayo  de  669  consta  que  Luiz  de  Craslo  morador 
na  cidade  de  São  Sebastião  do  Rio  de  Janeiro  christão  nouo  falandose  diante 
delle  nos  procedimentos  do  Santo  officio  dissera  que  o  Santo  Officio  hera  nua 
trampa,  e  que  não  seruia  mais  que  de  tomadas  fazendas,  o  que  tudo  ouuirão 
—  João  Duarte  Barbeiro  —  Rodrigo  Coelho  filho  de  António  Coelho,  e  Sylues- 
tre  Francisco  estudante  assistente  em  casa  de  João  de  Azeuedo  Pintor  todos 
moradores  na  dita  cidade  do  Rio  de  Janeiro  e  porque  estas  palauras  são  dignas 
de  castigo  e  sendo  o  delato  christão  nouo  e  sendo  seus  parentes  prezos  pelo 
Santo  Officio  aggraua  mais  sua  culpa,  pois  he  sentir  mal  do  recto  procedi- 
mento delle,  e  conuê  constar  judicialmente  do  referido. 

«Requeiro  a  Vossas  Mercês  mandem  passar  comissão  para  serem  pregun- 
tadas  as  ditas  testemunhas  e  as  mais  que  do  caso  souberem  e  que  venhão  ra- 
tificados seus  ditos  e  que  do  que  resultar  se  me  dé  vista  para  requerer  o  que 
for  a  bem  da  justiça. 

*E  presentado  em  Meza  o  requerimento  assima  do  Promotor  para  os  Se- 
nhores Inquisidores  lhe  hauerem  de  deferir  de  mandado  dos  dittos  Senhores 
lho  fis  concluso.  Manoel  Martins  Cerqueira  o  escreui. 

«Passe  commissão  para  serem  perguntadas  as  testemunhas  que  requere 
o  promotor  das  mais  que  tiuerem  noticia  da  matéria  da  denunciação  e  serão 
ratificadas  as  que  depozerem  a  fauor  da  justiça  e  em  o  que  resultar  de  seus 
testemunhos  se  dará  vista  ao  promotor  para  requerer  o  que  lhe  parecer.  Lis- 
boa Em  meza  14  de  Junho  de  669  =  Pedro  Borges  Tanares  —  João  de  Cas- 
tilho =.» 

Á  margem:  «Feita  comissão  ao  Rio  de  Janeiro  ao  P."  Manuel  Ribeiro, 
Reytor  aos  18  de  Junho  de  669». ' 


X. — Baccarelli  (Vicente). — D'este  artista  italiano  dá  Cyrillo  Volkmar  Ma- 
chado, a  pag.  181  da  sua  Collecção  de  memorias,  uma  elogiosa  noticia,  fazendo 
sobresahir  entre  as  suas  obras  o  tecto  da  portaria  do  mosteiro  de  S.  Vicente, 
pintado  a  óleo  em  1710. 

No  Cartório  do  alludido  mosteiro,  hoje  na  Torre  do  Tombo,  conserva-se 
uma  provisão  de  D.  João  V,  de  1719,  em  que  attende  favoralmente  os  fra- 
des d'aquelle  mosteiro,  que  andavam  em  litigio  com  Baccarelli  por  causa  da 
pintura  do  tecto  da  capella-mór  da  egreja,  pintura  que  se  não  levou  a  effeito, 
pois  d'ella  não  existem  hoje  os  menores  vestígios. 


'  Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Inquisição  de  Lisboa.  Caderno  57  do  Promotor,  fl.  I. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTCRES 


19 


«Dom  João  por  graça  de  Deos  Rey  de  Portugal  e  dos  Algarves  daqnem  e 
dalém  mar  em  Africa  Senhor  de  Guiné  etc.  Faço  saber  que  o  prior  e  cónegos 
do  Mosteiro  de  S.  Vicente  de  Fora,  me  reprezentarão  por  sua  petição  que  elles 
trazião  bua  cauza  com  Vicente  Bacareli  que  pendia  por  agrauo  ordinário  na 
caza  da  supplicação  sobre  a  pintura  do  tecto  da  cappella  mor  e  coro  e  tiuerão 
elles  supp.tes  sentença  a  seu  fauor  tanto  na  correição  do  eivei  da  corte  como 
na  instancia  do  agrauo  que  o  supp.do  embargara  na  cbancellaria  e  estando  nes- 
tes termos,  como  os  supp.le3  tinhão  mandado  fazer  a  dita  pintura  vendo  que 
por  sentenças  estaua  o  contrato  nullo  e  a  cappella  mor  impedida  para  nella  se 
celebrar  os  officios  Diuinos,  e  também  os  ires  dias  da  festa  de  Santa  Engra- 
cia,  mandarão  deitar  abaixo  os  ditos  andaymes  ao  que  o  supp.do  viera  cõ  arti 
gos  de  attentado  que  se  lhe  julgarão  e  porque  o  mosteiro  delles  supp.'"  era 
da  minha  protecção  e  sua  a  cappella  mor  do  dito  mosteiro  e  as  obras  que  na 
dita  Igreja  se  fazião  erão  por  conta  da  minha  fazenda  real  por  cujo  respeito 
deuia  o  procurador  da  coroa  assistir  lhes  na  dita  demanda  e  allegar  pella  sua 
parte  o  que  conveniente  fosse  como  em  outras  cauzas  lhes  assistia.  Pedindo  me 
lhes  fizesse  mercê  conceder  prouizão  para  o  dito  effeito.  E  visto  o  que  allegou 
e  resposta  do  procurador  de  minha  coroa  a  que  se  deu  vista  e  não  teue  du- 
uida  Hey  por  bem  que  o  dito  meu  procurador  da  coroa  assista  aos  supp.'M  na 
cauza  de  que  fazem  menção  e  requeira  tudo  o  que  fizer  a  bem  delia,  como 
pedem.  E  esta  prouisão  se  comprira  como  nella  se  conthem  e  valerá  posto  que 
seu  effeito  haja  de  durar  mais  de  hu  anno  sem  embargo  da  ordenação  L.°  2.° 
titulo  40  em  contrario.  E  pagou  de  nouos  direitos  quinhentos  e  quarenta  reis 
que  se  carregarão  ao  tezoureiro  delles  a  fl.  211  do  L.°  2.°  de  sua  receita  e  se 
registou  o  conhecimento  em  forma  no  L.°  2.°  do  registo  geral  a  fl.  119.  EIRey 
Nosso  Senhor  o  mandou  por  seu  expecial  mandado  pellos  doutores  Gregório 
Pereira  Fidalgo  da  Sylueira  e  António  de  Beja  de  Noronha  ambos  do  seu  Con- 
celho e  seus  Dezembargadores  do  paço  —  Joseph  da  Maya  e  Faria  a  fez  em 
Lixboa  Ocidental  a  13  de  março  de  1719.  de  feitio  desta  duzentos  reis  —  dis 
o  emmendado  =  e  pagarão — Manoel  de  Castro  Guimarães  a  fez  escreuer,  asi- 
gnou  o  Dr.  António  dos  Santos  de  Oliueira  —  António  dos  Santos  d  Oliveira 
Gregório  Pereira  Fidalgo  da  Sylueira.. 

«Por  rezolução  de  S.  Magestade  de  27  de  Feuereiro  de  1719  em  consulta 
do  Dezembargo  do  Paço  e  em  obseruancia  da  lex  de  24  de  Julho  de  1713. 
Joseph  Galuão  de  Lacerda  Pagou  Quinhentos  e  quarenta  reis  e  aos  officiaes 
trezentos  e  quatorze  reis.  Lixboa  ocidental  18  de  março  de  1719  — Dom  I.  Mi- 
guel Maldonado.»* 


1  Torre  do  Tombo.  Cartório  de  S.  Vicente,  Maço  46. 


20  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


XI. —  Browne  (D.  Izabel). —  Creio  que  foi  no  Theatro  Heroino  (fl.  534)  que 
appareceu  pela  primeira  vez  o  nome  d'esta  senhora  como  o  de  uma  artista  de 
bastante  merecimento  na  pintura.  A  noticia  tem  sido  depois  reproduzida  ipsis 
verbis  por  outros  auctores,  sem  accrescento  de  particularidade  nova.  Transcre- 
verei a  informação  original,  que  é  do  teor  seguinte: 

«Izabel  Bruno  (sicj  de  Nação  Ingleza,  e  filha  de  Duarte  Pequerim,  e  de 
Elsa  Pequerim,  e  mulher  do  Doutor  Pedro  Bruno  Medico,  peritissima  em  pin- 
tar a  óleo,  e  singular  em  fazer  retratos. 

«Viveo  na  Cidade  do  Porto  neste  século  onde  se  admirão  as  suas  pintu- 
ras, e  se  adquirem  por  empenhos,  respeitos,  ou  liberalidade.» 

Artista  como  ella,  ha  outra  senhora,  sua  parenta,  Izabel  Maria  Rite,  de 
quem  adeante  faço  menção. 

Os  Browne  uniram-se  á  família  de  Manuel  de  Clamouse,  cônsul  francez 
no  Porto,  resultando  uma  geração  que  adoptou  os  dois  appellidos  Clamouse 
Browne. 

D'esta  família  é  hoje  representante  o  sr.  visconde  de  Villarinho  de  S.  Ro- 
mão, como  se  pôde  vèr  na  seguinte  obra  publicada  no  Porto  em  1904:  Nutas 
bibliographicas  dos  Villarinhos  de  S.  Romão  e  dos  Clamuse  Browne  colligidas 
por  Júlio  Ferreira  Girão. 

O  livro  acabado  de  citar  não  menciona  outra  ligação  importante  da  famí- 
lia Browne,  ramo  perpetuado  hoje  na  família  Daupias.  A  pag.  13  das  Recor- 
dações de  Jacome  Raiton,  impressas  em  Londres  em  1813,  lê-se  o  seguinte: 

«Em  o  primeiro  de  janeiro  de  1758,  casei  na  Cidade  do  Porto,  com  D.  Anna 
Isabel  Clamouse,  filha  mais  nova  de  Bernardo  Clamouse,  já  viuvo  de  D.  Geno- 
veva Hartsoeker,  Negociante  Francez,  e  Cônsul  honorário  da  Nação  Franceza 
na  dita  Cidade.» 

O  primogénito  d'este  consorcio,  de  nome  Bernardo,  falleceu  aos  10  an- 
nos.  Diogo,  que  ficou  sendo  o  mais  velho,  casou-se  em  segundas  núpcias  com 
sua  sobrinha  D.  Júlia  Francisca  Daupias,  de  quem  descendem  os  actuaes  Daupias. 

Na  Torre  do  Tombo  existem  processos  de  babilitação  para  a  Ordem  de 
Christo  por  parte  de  alguns  dos  membros  da  família  Clamouse  Browne,  os 
quaes  lançam  grande  luz,  não  só  sobre  as  suas  origens  e  laços  de  parentesco, 
mas  também  sobre  a  colónia  estrangeira  no  Porto,  na  segunda  metade  do  sé- 
culo xviii.  Esta,  em  grande  numero,  residia  ou  tiDha  os  seus  escriptorios  na 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  21 

freguezia  de  S.  Nicolau,  em  cujo  cartório  parochial  devem  existir  elementos 
preciosos,  que  ampliem  e  completem  os  documentos  da  Torre  do  Tombo.  Seria 
para  estimar  que  uns  e  outros  fossem  convenientemente  explorados,  no  que 
muito  lucraria  a  historia  d'aquella  cidade,  principalmente  nos  domínios  da  sua 
vida  intima  e  da  actividade  commercial  e  económica. 

O  meu  particular  amigo  Pedro  A.  de  Azevedo  fez  favor  de  extractar  dos 
processos  de  habilitação  alguns  apontamentos,  que,  embora  breves,  são  muito 
interessantes,  dando  a  conhecer  muitos  indivíduos  e  algumas  particularidades 
da  sua  vida. 

Aqui  transcrevo  essas  notas  soltas  á  espera  de  que  alguém  as  venha  fun- 
dir um  dia  n'uma  solida  cadeia  biographica. 

Pedro  Broune  é  morador  no  Porto  ha  18  annos,  1745. 

Luiz  Manuel  Bronne,  filho  de  Dr.  Pedro  Broune  e  de  D.  Isabel  Peche- 
riog,  n.al  de  Inglaterra  de  S.  Nicolau  do  Porto  ordenou-se  em  1746.  Era  neto 
materno  de  Duarte  Piquerim  e  de  Elicia  Piquerira,  ingleses. 

Testemunhas  da  habilitação: 

Christovão  Fitz  Gerald,  inglês,  cath.  m.or  R.r\ 

Pedro  dos  Santos,  boticário,  m.or  na  Beboleira. 

Luis  dos  Santos,  boticário,  m.or  na  Reboleira. 

Arnaldo  Hopman,  cônsul  de  Hollanda,  c.ro  de  Ghristo,  m.or  na  Rua  Nova. 

Diogo  Archer,  holandez,  R.r\ 

Dr.  Luis  Nogueira,  adv.  da  Relação,  m.or  na  Rua  Nova. 

Pedro  Henquel,  cavalleiro  de  Ghristo,  m.or  Rua  Nova. 

Ignacio  Ant.°  Henquel,  m.or  Rua  Nova. 

Henrique  Verne,  irlandez,  Rua  Nova. 

Mathew  Talbot,  irlandez,  Rua  Nova. 

Pedro  Pedrosen,  cavalleiro  de  Ghristo,  m.or  na  Reboleira,  31  annos. 

Diogo  Archbold,  irlandez,  rua  de  S.  D.°s. 

Guilherme  Gooche,  inglês,  rua  de  S.  D.03. 

D.  Carlos  de  los  Rios,  cor."  de  infanteria,  gov.dor  de  Tui,  rua  das  Flores, 
n.al  de  Flanderes. 

P.  Gabriel  Talbot,  cruz.  do  Oratório,  S.  Ildefonso. 

P.  José  Talbot,  cruz.  do  Oratório,  S.  Ildefonso. 

P.  José  Butler,  cruz.  do  Oratório,  S.  Ildefonso. 

M.da  Aylward,  viuva  de  Ricardo  Aylward,  rua  da  viella  do  correio-mor, 
S.t0  Ildefonso. 

Ricardo  Arcediago,  Rua  Nova. 

Fr.  Bernardo  de  S.ta  Rosa,  religioso  do  Corpo  Santo,  irlandês,  conheceu 
Pedro  Brone  em  Louvain,  onde  estudou  Medicina. 


22  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Fr.  Carlos  0'  Kelly,  conheceu  o  pae  quando  veiu  assistir  aos  actos  do  fi- 
lho na  Universidade  de  Louvain. 

Padre  Mestre  Fr.  Domingos  de  S.ta  Catharina,  conheceu  Domingos  Broun, 
lio  ou  irmão  do  habilitado,  que  era  senhor  de  um  morgado. 

Margaret  e  Mary  Buckmaster. 

Diogo  Caetano  Keating. 

Pedro  Pedrossen  da  Silva,  65  annos.  Pedro  Broune  veiu  para  medico  da 
feitoria,  onde  esteve  até  falecer.  Domingos  é  casado  ha  dois  annos. 

Manuel  Boiz  Leitão.  Domingos  esteve  em  Inglaterra  a  aprender  inglês  e 
negocio.  Tem  liteira.  Bernardo  Clamouse,  cônsul  de  França. 

F.e°  do  Couto  de  Azevedo,  ensaiador  de  prata,  m.or  na  Reboleira. 

M.el  Pinto  Soares,  barbeiro,  Reboleira. 

José  Pereira  Mendes. 

José  Ferreira  Dias. 

André  Morogh.,  irlandez. 

Henrique  Marcos  Gool,  boticário. 

Dr.  Ricardo  Raimundo  Nogueira. 

Diogo  Archbold. 

Manuel  José  Pereira. 

Dr.  Gualter  Wade,  medico,  irlandês. 

D.09  Roche  Macragh,  guarda-livros,  irlandez. 

José  Jewson,  inglês,  guarda-livros  de  José  da  Silva  Leque. 

Nicolau  Mahon,  inglez.1 

Bernardo  Clamouse  é  natural  de  S.  Nicolau  do  Porto,  onde  vive  na  com- 
panhia dos  pães.  Terá  40  annos  (em  1765).  Seu  Pae  do  mesmo  nome  era  n.al 
da  cidade  de  Daumazão,  bispado  de  Rieux,  teve  negocio  de  grosso  trato,  sendo 
cônsul  de  França.  Sua  mãe  chamava-se  Genoveva  Clamouse  Artesuquer,  a  qual 
é  natural  de  S.  Nicolau  do  Porto.  Seus  avós  maternos  eram  Christiano  Arte- 
suquer, n.al  da  Hollanda,  e  Simoa  de  Oliveira  Fernandes,  n.al  de  Barcellos. 

Os  avós  paternos  eram  Boaventura  Clamouse  e  Francisca  Daupias  Cla- 
mouse. 

Nicolau  Clamouse,  irmão  de  B.d0  é  abbade  de  Paredes  e  José  Clamouse  é 
da  ordem  de  S.  Jeronymo. 

A  requisitória  em  francez  foi  traduzida  pelo  P.e  Manuel  Ferreira  da  Costa 
e  Saboya,  perito  naquella  lingoa. 

Boaventura  Clamouse  era  filho  de  João  Clamouse  e  de  sua  mulher  Ca- 
tharina Descens. 

Francisca  Daupias  era  filha  de  Pedro  Daupias  e  de  Maria  Aresce  ou  Areici. 


1  Torre  do  Tombo.  Habilitações  da  Ordem  de  Christo.  Maço  6,  Domingos,  n.°  6. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  23 

Dispensa  de  habilitações  a  Bernardo  Clamousse  Broune  em  1802. ' 
Dr.  Pedro  Bronne,  n.al  de  Bruges,  filho  de  André  Bronne,  n.al  deWater- 
fordia,  Irlandia  e  Philippina  Smites,  n.al  de  Bruges.  Neto  paterno  de  Duarte 
Brone  e  de  Catharina  Iloore,  n.aC8  de  Waterponde  e  materno  de  Pedro  Smides, 
n.al  de  Anvers,  de  Susana  Robinsen.* 

D.os  Broune,  n.al  do  Porto,  filho  do  Dr.  Pedro  Broune,  e  D.  F.°*  Xavier 
Clamouse  Broune,  n.al  do  Porto,  neto  paterno  de  André  Broune,  e  de  Filippa 
Smidts,  neto  materno  de  Bernardo  Clamusse,  n.al  de  Daumasan,  Lamguedoc 
e  de  D.  Genoveva  Clamuse,  do  Porto.3 


XII. —  Campos  (Lucas  de). —  Os  diminutos  elementos  biographicos  de  Lu- 
cas de  Campos  são-nos  transmittidos  pelo  auto  de  uma  denuncia  que  sua  fi- 
lha, Calhariua  de  Campos,  apresentou  de  viva  voz  ao  Tribunal  do  Santo  Officio, 
perante  o  dr.  Diogo  de  Sousa,  inquisidor,  a  10  de  janeiro  de  1579. 

N'este  anno  era  já  fallecido  Lucas  de  Campos,  designado  apenas  por  pin- 
tor, sem  mais  indicação  pessoal,  além  da  sua  naturalidade.  Tanto  elle,  como 
sua  mulher,  Magdalena  da  Rocha,  eram  flamengos,  apesar  dos  seus  nomes 
serem  absolutamente  portuguezes.  Esta  nacionalisação  era,  porém,  frequentís- 
sima. 

Catharina  de  Campos  tinha  trinta  annos,  era  já  viuva  e  morava  em  S.  Ro- 
que, junto  aos  moinhos  de  vento  (hoje  rua  de  D.  Pedro  V),  em  casa  de  Maria 
Fernaudes,  de  26  annos,  egualmente  viuva. 

A  denuncia  recahia  sobre  uma  tudesca,  mulher  que  fora  de  um  dos  tudes- 
cos que  acompanharam  D.  Sebastião  na  jornada  de  Africa.  Tudo  pousava  no 
mesmo  domicilio,  desabafando  com  Catharina  de  Campos,  que  era  a  única  pes- 
soa que  entendia  a  lingua.  Disse  a  tudesca  á  sua  confidente,  que  se  fora  con- 
fessar a  um  frade  de  S.  Domingos,  que  falava  o  seu  idioma,  e  que  ficara  es- 
pantada por  este  lhe  pedir  a  individuação  dos  peccados,  quando  na  sua  terra 
os  padres  se  contentavam  com  a  confissão  geral,  o  que  lhe  parecia  mais  justo 
e  sensato,  pois  quem  pedia  a  Deus  perdão  de  todo  o  mal  que  fizera  por  pen- 
samentos, palavras  e  obras,  não  precisava  de  especificar  mais  nada.  Novo  mo- 
tivo de  queixa  se  juntava  a  este  e  era  que  a  tudesca  não  dava  graças  ao  Se- 
nhor depois  de  levantar-se  da  mesa,  onde  comera. 

Outras  pessoas  foram  envolvidas  na  denuncia,  avultando  entre  ellas  um 
negociante  flamengo,  Henrique  Fernandes,  morador  á  Calcetaria.  Pelo  depoi- 


1  Torre  do  Tombo.  Habilitações  da  Ordem  de  Chriito.  Maço  10,  Bernardo,  n.*  32. 

2  Idem.  Idem.  Maço  1,  Pedro,  n.°  16. 

3  Idem.  Idem.  Maço  6,  Domingos,  n.°  6. 


24 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTOHES 


mento  de  outra  testemunha,  Izabel  Gomes,  que  fora  serviçal  na  casa  d'aquelle, 
se  verifica  que  tudo  isto  não  passava  de  intrigas  e  mexericos  amorosos,  em  re- 
sultado da  mulher  de  Henrique  Fernandes  suspeitar  que  seu  marido  mantinha 
relações  illicitas  com  Catharina  de  Campos,  que  já  estivera  em  casa  d'aquelles 
esposos,  de  onde  fora  expulsa  por  ciúmes.  A  própria  Inquisição  reconheceu 
que  se  tratava  apenas  de  uma  intriga  familiar  e  teve  o  bom  siso  de  não  inten- 
tar processo,  sobreestando  em  qualquer  procedimento  até  que  apparecessem 
novas  e  mais  convincentes  provas. 

Uma  serie  de  enredos  femininos,  em  que  transparecem  algumas  figuras 
e  costumes  curiosos,  como  o  leitor  poderá  certificar-se,  lendo  os  documentos 
que  seguem: 

•Treslado  da  denunciaçam  de  Catherina  de  Campos  contra  hua  framenga. 

f  Aos  dez  dias  do  mes  de  janeiro  de  mil  quinhentos  setentta  he  noue  an- 
nos  em  Lisboa  nos  estauos  na  casa  do  despacho  da  Santa  Inquisiçam  estando 
ahi  o  Senhor  doctor  Dioguo  de  Sousa  Inquisidor  parceo  Catherina  de  Campos 
molher  viuua  filha  de  Lucas  de  Campos  pintor  e  de  Magdalena  da  Rocha  an- 
bos  framengos  já  defuntos  e  pousa  a  S.  Roque  junto  dos  moinhos  do  vento  en 
casa  de  Maria  Feruandez  viuua  de  jdade  de  vinte  seis  annos  pouco  mais  ou 
menos  a  qual  foi  dado  juramento  dos  Santos  Evangelhos  en  que  pos  sua  mão 
e  prometteo  dizer  verdade  e  disse  que  auera  quiuze  dias  pouco  mais  ou  me- 
nos que  en  sua  casa  pousou  hua  molher  framengua  pobre  que  lhe  disse  que 
era  viuua  molher  de  hum  trudesqo  dos  que  foram  a  gerra  d  Afriqua  e  não  lhe 
sabe  o  nome  próprio  da  sua  terra  mas  ella  disse  que  aquj  lhe  chamauão  Lu- 
zia e  he  molher  moça  e  trás  hua  saia  vermelha  e  hum  gibão  preto  com  man- 
gas vermelhas  e  hum  pano  atado  na  cabeça  e  hum  avantal  diante  cingido  de 
panno  de  linho  e  esteue  en  sua  casa  sete  ou  oito  dias  e  que  oje  faz  oito  dias 
que  ella  denunciante  esteue  praticando  cõ  a  dita  framenga  na  sua  lingoa  por 
que  ella  denunciante  a  entende  e  lhe  ueo  a  contar  que  se  fora  comfessar  ao 
mosteiro  de  Sam  Domingos  desta  cidade  a  hum  frade  que  entende  a  linguoa 
e  que  a  confessara  de  que  não  era  como  a  que  se  usaua  na  sua  terra  pois  la 
não  faziam  mais  que  asentarse  aos  pees  do  confessor  e  dizer  a  confissam  ge- 
ral que  se  custuma  sem  declarar  os  peccados  particulares  e  que  feito  isso  se 
aleuantauão  dos  pees  do  comfessor  e  que  ella  assim  o  fazia  na  sua  terra  e 
preguntandolhe  ella  testemunha  por  que  não  comfessauam  os  pecados  en  par- 
ticular a  seu  comfessor  declarando  lhe  cada  hum  per  si  a  dita  framenga  lhe 
respondeo  que  asaz  declaraua  os  peccados  quando  dizia  na  confissão  geral  que 
offendera  a  Nosso  Senhor  en  palauras  pensamentos  e  obras  e  pella  pratica  que 
teue  entendeo  ella  testemunha  da  dita  framenga  que  jnda  agora  lhe  parecia 
bem  o  modo  da  dita  comfissão  da  sua  terra  e  que  lhe  não  quadraua  o  modo 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  25 

dos  cristãos  catholicos  como  se  fazia  nesta  cidade  e  ella  denunciante  a  repren- 
deo  de  lhe  ouuir  dizer  o  sobre  dito  e  a  dita  framêgua  se  não  disdise  mais  an- 
tes deu  a  cabeça  como  pêra  que  não  consintia  no  que  lhe  ella  denunciante  di- 
zia antes  ficaua  em  seu  parecer  e  que  isto  da  confissam  lhe  ouujo  hua  soo  vez 
e  que  a  esta  pratica  esteue  presente  hua  moça  que  se  chama  Barbora  netta 
da  dita  Catherina  Fernandez  que  esta  na  mesma  casa  mas  que  não  deuia  de 
entender  a  pratica  por  que  ella  testemunha  e  a  dita  framengua  falauão  ambas 
a  dita  liugoa  framengua  a  qual  não  entende  a  dita  Barbora  e  disse  mais  que 
no  dito  tempo  ella  denunciante  disse  a  dita  framengua  que  aleuantasse  as  mãos 
e  resase  e  desse  graças  a  deos  quando  começaua  e  acabaua  de  comer  como 
ella  denunciante  e  as  mais  pessoas  faziam  da  casa  e  ella  uia  fazer  e  a  dita  fra- 
mengua nuqua  quis  dar  graças  a  deos  como  lhe  diziam  nê  daua  rezão  por  que 
o  deixase  de  fazer  o  que  ella  denunciante  também  lhe  dizia  em  lingoa  framenga 
aqual  não  emtendem  as  pesoas  da  casa  nê  a  dita  framêga  entende  português 
somente  entende  algúas  cousas  por  acenos  e  declarou  sendo  preguntada  que 
a  dita  framenga  lhe  disse  dõde  hera  natural  mas  que  lhe  não  lembra  donde 
nê  sabe  donde  pousa  nesta  cidade  mas  que  lhe  disse  que  pousara  ja  a  cruz 
de  cata  que  farás  en  casa  de  bus  framengos  e  elles  lhe  ajuntam  esmolla  de 
que  se  ella  mantém  e  o  que  ella  denunciante  lhe  ouujo  da  confissam  o  disse 
também  a  dita  Maria  Fernandez  a  qual  disse  a  framenga  que  se  fosse  embora 
de  sua  casa  que  a  não  queria  agasalhar  mais  e  que  vem  denunciar  disto  por 
lhe  dizer  hum  padre  de  Sam  Boque  seu  confessor  aquém  deu  conta  disto  que 
o  viesse  dizer  a  esta  mesa  e  mais  não  disse  e  do  custume  disse  nada  mas  que 
he  verdade  que  a  dita  framenga  estado  alj  en  casa  vio  ahi  estar  hum  home 
castelhano  que  se  chama  Jeam  de  Lasala  criado  do  Marques  de  Villa  Beal  e 
casado  com  húa  netta  da  dita  Catherina  Fernandez  digo  Maria  Fernandez  que 
esta  en  Ceita  e  por  essa  rezão  se  agasalhava  ahi  e  o  foj  dizer  a  hum  framengo 
mercador  que  se  chama  Anrrique  Fernandez  que  mora  ha  Calcetaria  dizemdo 
que  hera  hum  castelhano  que  trazia  muitos  vestidos  o  qual  Anrrique  Fernan- 
dez o  disse  a  Issabel  Gomez  padeira  molher  de  Manoel  Martinz  trabalhador  que 
mora  junto  delia  denunciante  na  rua  onde  pousaua  ho  Snr.  de  Murça  e  a  dita 
Issabel  Gomez  o  veo  dizer  a  dita  Maria  Fernandez  que  he  conhecente  do  dito 
Amrrique  Fernandez  e  a  manda  chamar  pêra  sua  casa  quando  tem  emfermos 
e  que  ella  testemunha  ouujo  dizer  a  dita  Maria  Fernandez  que  não  hera  con- 
tente de  ter  en  sua  casa  quem  fosse  dizer  o  que  passaua  em  sua  casa  e  que 
ella  denunciante  se  agastou  também  disso  mas  que  agora  lhe  não  quer  mal 
preguntada  se  foy  a  dita  framengua  dizer  a  casa  do  dito  Anrrique  Fernandez 
ou  a  outra  parte  algfla  cousa  delia  denunciante  ao  dito  Castelhano  ou  com  ou- 
tra pessoa  que  lhe  tocase  en  sua  honrra  respõdeo  que  não  sabe  que  a  dita 
framengua  apontase  nella  denunciante  em  nenhúa  cousa  de  sua  honrra  nem 
Agosto,  1906.  4 


26  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

lhe  disseram  que  o  fizera  mas  que  somente  dissera  en  geral  que  estaua  o  dito 
castelhano  en  sua  casa  e  assignej  a  rogo  delia  denunciante  por  não  saber  es- 
creuer  juntamente  com  elle  Snr.  Inquisidor  e  declarou  que  o  padre  da  com- 
panhia que  mãdou  a  ella  denunciante  que  viesse  a  esta  mesa  dizer  isto  e  mais 
a  dita  Maria  Fernandez  que  se  chama  Diegaluerez  a  quem  ella  se  custua  (sic)  a 
confessar  e  declarou  que  o  dito  castelhano  esta  jnda  eu  casa  e  lhe  foi  mãdado 
ter  segredo  sob  cargo  do  juramento  que  lhe  foi  dado  e  ella  promeleo  assim 
comprir.  António  Pirez  ho  escreuj. 

«Foi  tirada  esta  denunciaçam  da  própria  que  anda  no  liuro  das  ditas  de- 
nunciações  a  folhas  quarenta  e  quatro  e  concordam  ambas  de  uerbo  ad  uer- 
bum  e  por  verdade  a  concertej  com  o  notário  abaixo  assignado  oje  vinte  três 
de  janeiro  de  setentta  e  noue  annos  =  concertada  comiguo  António  Pirez  = 
Joam  Capello: 

cAos  seis  dias  do  mes  de  feujreiro  de  mil  e  qujnhentos  setentta  he  noue 
annos  en  Lisboa  nos  estaos  na  casa  do  despacho  da  Santa  Inquisiçam  estando  ahi 
o  Shr.  doctor  Diogo  de  Sousa  Inquisidor  peraute  elle  pareceo  sendo  chamada 
Issabell  Gomez  testemunha  referida  etc.  de  jdade  que  disse  ser  de  trinta  an- 
nos aqual  foi  dado  juramento  dos  Santos  Evangelhos  en  que  pos  sua  mão  e 
prometteo  dizer  verdade  e  preguntada  disse  que  ella  testemunha  he  filha  de 
bua  comadre  de  Anrrique  Fernandez  flamengo  mercador  morador  na  Calceta- 
ria e  elle  a  casou  por  este  respeito  com  seu  marido  Manoel  RQiz  por  este  res- 
peito e  por  essa  mesma  rezam  ella  testemunha  tem  conhecimento  e  amjzade 
em  casa  do  dito  Anrrique  Fernandez  e  assim  disse  que  conhecia  a  Catherina 
de  Campos  framenga  de  naçam  a  qual  pousa  en  casa  de  Maria  Fernandez  viuua 
sua  visinha  que  vejo  de  Africa  preguntada  se  sabia  que  algúa  pesoa  fosse  di- 
zer algua  cousa  o  dito  Anrrique  Fernandez  do  que  passaua  en  casa  da  dita 
Catherina  de  Campos  e  Maria  Fernandez  disse  que  auera  hum  mes  pouco  mais 
ou  menos  que  en  casa  da  dita  Maria  Fernandez  pousou  hua  tudesqua  molher 
de  hum  tudesco  dos  que  foram  Africa  a  qual  ella  testemunha  não  sabe  o  nome 
nê  onde  pousa  e  a  dita  Maria  Fernandes  agasalhou  por  amor  de  Deos  e  que 
a  dita  framenga  estaria  alj  oito  dias  no  qual  tempo  estaua  na  mesma  casa  hum 
orne  castelhano  que  a  dita  Maria  Fernandez  diz  que  he  seu  genrro  e  que  mora 
en  Ceita  e  a  dita  framenga  foi  dizer  ao  dito  Anrrique  Fernandez  digo  a  sua  mo- 
lher que  o  castelhano  pousaua  en  casa  da  dita  Catherina  de  Campos  e  que  co- 
miam e  bebiam  todos  e  que  elle  que  trazia  três  ou  quatro  vistidos  muito 
finos  e  ella  o  disse  ao  mesmo  Anrrique  Fernandez  seu  marido  o  qual  o  coutou 
a  ella  testemunha  como  zonbando  disso  e  auendo  ciúmes  na  dita  Catherina 
de  Campos  e  ella  testemunha  o  foi  dizer  as  ditas  Maria  Fernandez  e  Catherina 
de  Campos  dizendo  lhes  que  olhasem  quem  tinham  en  sua  casa  e  lhes  contou  o 
que  a  dita  framenga  fora  dizer  a  dita  molher  de  Anrrique  Fernandez  e  que 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  27 

isto  lhe  contou  a  mesma  molher  de  Anrrique  Fernandez  estado  alj  seu  marido 
e  disse  mais  que  no  mesmo  tempo  contou  a  ella  testemunha  a  dita  molher  de 
Anrrique  Fernandez  que  se  chama  Tanque  que  a  dita  tudesqua  lhe  fora  dizer 
que  seu  marido  Anrrique  Fernandez  leuaua  e  mãdaua  muitas  cousas  a  dita  Ca- 
therina  de  Campos  e  amantinha  a  sua  custa  e  ella  testemunha  o  foj  contar  a 
dita  Maria  Fernandez  e  a  Catherina  de  Campos  pellas  quais  causas  a  dita  Ma- 
ria Fernandes  a  dejtou  de  sua  casa  a  dita  tudesqua  e  diz  que  ella  que  mente 
por  que  o  dito  Anrrique  Fernandez  não  mãten  a  dita  Catherina  de  Campos  que 
o  castelhano  he  seu  genrro  e  que  nam  ha  que  suspeitar  delle  com  a  dita  Ca- 
therina de  Campos  como  o  dito  Anrrique  Fernandez  cujda  e  que  ella  testemu- 
nha entende  que  as  sobreditas  estam  mal  cõ  a  dita  tudesqua  pellas  ditas  re- 
zois  e  declarou  que  a  dita  Catherina  de  Campos  antes  de  casar  foy  criada  do 
dito  Anrrique  Fernandez  e  despojs  de  viuua  tornou  pêra  sua  casa  e  por  sua 
molher  suspeitar  que  o  dito  Anrrique  Fernandez  andaua  com  a  dita  Catherina 
de  Campos  dejtou  fora  de  casa  e  lhe  demãda  ciúmes  e  pelejam  e  tem  desgosto 
por  isso  algúas  vezes  e  que  destes  mexericos  que  a  dita  tudesqua  foi  dizer  a 
molher  de  Anrrique  Fernandez  lhe  parece  que  sabe  hua  sobrinha  do  mesmo 
Anrrique  Fernandez  casada  com  um  flamêgo  que  mora  a  Cruz  de  Pao  aos 
quais  nã  sabe  os  nomes  preguntada  se  sabe  que  a  dita  tudesqua  dissese  al- 
gúa  cousa  contra  nossa  Santa  fee  catholica  no  tempo  em  que  esteue  em  casa 
da  dita  Maria  Fernandez  ou  se  ella  ou  a  dita  Catherina  de  Cãpos  lhe  contaram 
que  a  dita  tudesqua  ouuese  dito  disse  que  não  sabia  mais  que  contar  lhe  Ma- 
ria Fernandez  que  a  dita  tudesqua  não  qujria  dar  graças  a  deos  quãdo  aca- 
baua  de  comer  preguntada  disse  que  ella  tem  a  dita  Catherina  de  Campos  por 
molher  recolhida  e  de  boma  vida  e  que  viue  por  seu  trabalho  e  se  vaj  com- 
fessar  a  Sam  Roque  as  vezes  em  companhia  da  dita  Maria  Fernandez  e  do  cus- 
tume  disse  que  sam  amigas  e  lhe  foi  mãdado  ter  segredo  sob  carreguo  do 
juramento  que  recebeo  e  ella  assim  o  prometeo  comprir  e  asignou  com  elle 
Sr.  Inquisidor.  Joam  Campello  notário  apostólico  o  escreuj  e  assignej  por  ella 
com  elle  Sr.  Inquisidor.=  Diogo  de  Sousa=Joham  Campello. 

«Vista  esta  denunciaçam  è"  a  enformaçã  que  resulta  do  testemunho  de 
Isabel  Gomez  acerca  do  credito  que  se  deve  dar  a  Caterina  de  Campos  denun- 
ciante pareçenos  que  por  seu  testemunho  se  não  deue  proceder  contra  a  tu- 
desca de  que  faz  mençam  não  acrecendo  mais  proua.  È  Lisboa  6  de  fevereiro 
de  1579= Jorge  Gonçalves  Rybeiro  =  Diogo  de  Sousa.*1 


Torre  do  Tombo.  Livro  das  Denuucia;õe-<  da  Inquisição  de  Lisboa,  fL  325,  vol.  xit. 


28  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


XIII. —  Castro  (Affonso). —  Um  dos  artistas  portuguezes  que  no  século  rvi 
residiram  em  Flandres,  talvez  de  passagem  para  se  exercitarem  na  pintura. 
A  este  propósito  escreve  o  sr.  Ad.  de  Ceuleneer  a  pag.  84  do  seu  opúsculo 
impresso  em  Auvers,  em  1882,  sob  o  titulo  de  Le  Portugal — Notes  d'art  et 
d'archéologie: 

«Nous  connaissons  les  noms  de  quelques  artistes  portugais  qui  travaillè- 
rent  à  Anvers.  Edouard  le  Portugais  (Edewart  Portugalois),  élève  de  Quentiu 
Metsys  en  1504,  fut  reçu  franc-maitre  dans  la  Ghilde  de  Saint  Luc  en  1506; ' 
Simon  le  Portugais  (Symou  Portugaloys)  travaille  chez  Goosen  van  der  Weyen 
en  1504,*  et  Alphonse  Castro  en  1522; 3  Hannoken  (Jean)  Velasco  chez  Jacques 
Spueribol  en  15404  et  Pierre  de  Castro  chez  Jean  Soezewint  en  1559.» 5 


XIV. —  Castro  (Pedro  de). — Vide  artigo  anterior. 


XV. —  Correia  de  Araújo  (Manuel).— Em  alvará,  com  força  de  carta,  de 
6  de  outubro  de  1622,  foi-lhe  concedido  o  titulo  e  privilégios  de  mestre  de 
pintura  e  doirados  da  ilha  de  S.  Miguel,  mercê  que  lhe  foi  feita  em  attenção 
ao  seu  requerimento  e  á  informação  da  camará  de  Ponta  Delgada  que  o  jul- 
gara perito  na  sua  arte.  Aquella  corporação,  porém,  não  se  considerava  obri- 
gada a  pagar-lhe  qualquer  salário,  reservando-se  também  a  liberdade  de  en- 
commendar  as  obras  a  quem  melhor  entendesse. 

«Eu  elRej  faso  saber  aos  que  este  aluará  uirem  que  auendo  respeito  ao 
que  na  pitição  aqui  junta  asinada  per  Manoel  Fagundes  meu  escriuão  da  ca- 
mará diz  Manoel  Corea  de  Araújo  pintor  morador  na  Ilha  de  Sam  Miguel  e 
vistas  as  causas  que  alega  e  informações  que  se  ouuerão  pello  juiz  de  fora  da 
cidade  da  Ponte  Delgada  da  mesma  Ilha  ouuindo  os  ofiçiaes  da  camera  da  dita 
cidade  que  responderão  que  neuhum  enconuiniente  auia  em  se  conceder  ao 
supplicante  a  mersse  do  prouilegio  que  pede  do  oflicio  de  pintor  por  elle  ser 


1  De  Liggeren  der  antwerpscke  Sinl  Lucas  gilde  afgeschreven  en  bewerkt  door.  Ph.  Rom- 
bouts  en  Th.  Van  Serius  i,  bl.  60,  69. 

2  Ib.  60,  sans  doute  un  parent  de  Roger  van  der  Weyden. 
'  Ib.  100. 

« Ib.  139. 
sib.  216. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  29 

perito  na  arte  mas  com  declaração  que  não  leuaria  nem  pederia  coussa  algúa 
aqu°lla  camará  nem  ella  ficaria  obrigada  a  lhe  dar  coussa  algúa  nem  lemitada 
sua  liberdade  sobre  as  obras  que  tiuese  e  o  mais  que  das  imformações  do  dito 
juiz  de  fora  constou  e  seu  parecer  e  como  nella  se  declara  fasa  o  sopp."  termo 
em  camará  de  como  não  queria  selario  nem  outra  algua  cousa  das  rendas  dela 
ej  por  bem  de  faser  mersse  ao  suppt,te  que  elle  seja  mestre  da  pintura  e  dou- 
rados da  dita  ilha  com  os  prouilegios  de  que  gosão  os  mestres  pintores  do  dito 
offiçio  como  pede  e  isto  com  as  declarações  e  limitações  da  reposta  dos  offi- 
ciaes  da  camará  acima  referidas  pello  que  mando  as  justiças  officiaes  e  pesoas 
a  que  o  conhecimento  disto  pertencer  cunpram  este  Aluara  jnteiramente  como 
nelle  se  contem  o  qual  me  praz  que  ualha  como  carta  sem  enbargo  da  orde- 
nação do  2.°  L.°  titulo  40  em  contrario  —  Pedraluarez  o  fez  em  Lixboa  a  seis  de 
outubro  de  mil  e  seiscentos  e  uinte  e  dous— Manoel  Fagundes  o  fez  escreuer.»' 


XVI.  —  Côrte-Real  (Jeronymo).  —  Pertenceu  a  uma  família  de  fidalgos 
illustres,  entre  os  quaes  avultam  seus  tios,  Miguel  e  Gaspar,  cujos  nomes 
se  acham  inscriptos  honrosamente  nos  annaes  marítimos  e  coloniaes,  como 
tendo  tomado  parte  no  descobrimento  da  America  do  Norte. 

Dois  especialistas  notáveis,  os  srs.  Henry  Harrise  e  Ernesto  do  Canto, 
este  ultimo  ceifado  pela  morte  no  ardor  das  suas  investigações  históricas  e 
geographicas,  dedicaram-lhes  importantes  memorias,  que  muito  esclareceram 
a  sua  vida  e  as  suas  viagens.  Tive,  porém,  occasião  de  ampliar  mais  este  qua- 
dro, publicando  nos  meus  Trabalhos  Náuticos,  a  respeito  de  alguns  membros 
de  tão  nobre  família,  mais  alguns  documentos  inéditos,  concernentes  sobretudo 
a  Jeronymo  Côrte-Real,  um  dos  mais  fecundos  poetas  e  um  dos  mais  apreciá- 
veis cavalleiros  do  seu  tempo. 

A  dar  credito  aos  encómios  com  que  tanto  o  endeusaram  os  seus  con- 
temporâneos, entre  os  quaes  se  extremaram  Diogo  Bernardes  e  António  Fer- 
reira, foi  Côrte-Real  o  verdadeiro  modelo  do  palaciano,  dotado  de  todas  as  pren- 
das que  sublimam  o  homem  de  corte,  sem  quebra  do  espirito  varonil.  Cantor, 
no  duplo  sentido  da  palavra,  já  musico,  já  poeta,  manejava  com  egual  destreza 
as  armas  e  os  pincéis,  de  modo  a  victorial-o  com  os  epithetos  de  Marte  e  de 
Apollo,  de  Orpheu  e  de  Apelles. 

Não  menos  de  três  longos  poemas  históricos  nos  legou  o  seu  estro  proli- 
fero e  por  elles  se  poderá  avaliar  o  grau  da  sua  invenção  e  capacidade  poé- 
tica. Emquanto  ao  seu  talento  de  pintor  é  que  era  mais  diflQcil  saber-se  o 
apreço  que  d'elle  houvéramos  de  fazer,  visto  não  existirem  as  provas  mais  ou 


1  Torre  do  Tombo.  Chaneellaria  de  D.  Filippe  III.  Doações.  L.»  11,  fl.  41. 


30  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

menos  authenticas.  Hoje  essa  demonstração  pôde  considerar-se  realizada  em 
presença  de  dois  dos  seus  manuscriptos,  calligraphados  por  elle  e  adornados 
de  estampas  illuminadas. 

Esses  manuscriptos  são:  a  Felicíssima  Victoria  etc.  e  Segundo  Succesto 
do  cerco  de  Diu. 

O  primeiro  guarda-se  na  Bibliotheca  Nacional  de  Madrid,  tendo-lhe  sido 
barbaramente  cortadas  as  estampas.  O  segundo,  em  bello  estado  de  conserva- 
ção, existe  na  livraria  da  casa  dos  srs.  duques  de  Cadaval,  e  delle,  por  ama- 
bilidade extrema  dos  seus  donos,  fiz  reproduzir  uma  das  estampas,  que  o  lei- 
tor poderá  examinar  nos  alludidos  Trabalhos  Náuticos.  Muito  seria  para  esti- 
mar que  este  precioso  manuscripto  tivesse  a  mesma  sorte  do  Missal  de  Este- 
vão Gonçalves. 

Nos  Trabalhos  Náuticos,  a  que  já  tenho  feito  referencia,  além  de  vários 
dados  biographicos  que  sahiram  a  publico  pela  primeira  vez,  fixei  documen- 
talmente a  morte  do  poeta,  succedida  a  15  de  novembro  de  1588. 


XVII. —  Cunha  (Domingos  da). — Pintor  de  loiça.  Por  esta  simples  designa- 
ção mal  se  pôde  apreciar  o  seu  merecimento  artístico,  pois  talvez  não  passasse 
de  artífice,  simples  official  de  oleiro.  Tinha  partido  para  a  índia,  deixando  em 
Lisboa  sua  mulher,  Maria  dos  Santos,  moradora  na  rua  dos  Cegos,  de  30  an- 
nos  de  edade  pouco  mais  ou  menos,  occupando-se  em  coser  esparto. 

A  trinta  dias  de  agosto  de  1658  apresentou-se  ella  a  fazer  uma  denuncia 
na  terceira  casa  das  audiências  do  Santo  Officio,  estando  ahi,  na  sessão  da 
tarde,  o  inquisidor  Rodrigo  de  Miranda  Henriques.  A  denuncia  versava  sobre 
um  interessante  caso  de  bruxaria,  em  que  estava  implicada  uma  Catharina  de 
Sousa,  que  outr'ora  dera  também  pelo  nome  de  Francisca  de  Sousa,  viuva  de  um 
volanteiro  e  moradora  a  S.  Thomé,  onde  tinha  uma  tenda  de  loiça  e  mercearia. 

Nos  fins  de  março  d'aquelle  anno,  estando  doente  de  cama  a  denunciante, 
foi  esta  procurada  por  Catharina  de  Sousa,  que  lhe  pediu  consentimento  para 
em  sua  casa  falar  e  fazer  uma  coisa  com  um  homem.  Maria  dos  Santos  ficou 
melindrada  julgando  que  se  tratava  de  coisa  deshonesta  e  contraria  á  sua  honra, 
mas  a  proponente  tranquilisou-a,  affirmando-lhe  que  não  se  tratava  de  peccado 
mortal.  Maria  dos  Santos  annuiu  ao  pedido  da  amiga  e  n'essa  mesma  tarde 
veiu  esta  com  um  individuo  de  estatura  ordinária,  de  óculos,  vestido  de  vel- 
ludo  curto.  Chamava-se,  segundo  dizia  Catharina  de  Sousa,  João  de  Vilhana  e 
morava  no  bairro  do  Chão  de  Loureiro. 

Entrados  no  domicilio  de  Maria  dos  Santos,  metteram-se  os  dois  n'um 
quarto  e  mandaram  buscar  por  uma  filha  da  dona  da  casa,  de  nome  Antónia, 
um  fogareiro  novo,  uma  tigela,  uma  porção  de  vinagre,  mostarda  e  um  frango, 


NOTÍCIA  de  alguns  pintores  3 1 

recommendando-lhe  que  pedisse  tudo  em  nome  de  Manuel  da  Costa.  Fechando-se 
por  dentro,  fizeram  fogo,  não  sabendo  Maria  dos  Santos  o  que  mais  se  passara. 
Depois  que  elles  se  foram  embora  é  que  verificou  que  haviam  deixado  o  frango 
morto,  ainda  com  pennas,  aberto  pelas  costas  e  com  o  coração  de  menos. 

Maria  dos  Santos  desconfiou  que  tudo  isto  era  feitiçaria  a  fim  de  conse- 
guir que  Manuel  da  Costa,  creado  do  dr.  Luiz  Delgado,  casasse  com  Catbarina 
de  Sousa,  com  quem  chegara  a  ter  relações  illicitas.  As  suspeitas  confirmou-as 
a  própria  Catharina,  dizendo  á  sua  amiga  que  só  conseguira  com  o  seu  feitiço 
que  Manuel  da  Costa  adoecesse  de  morte,  sendo  necessário  pedir  ao  João  de 
Vilhana  que  desfizesse  tudo  para  que  o  homem  não  fallecesse. 

No  mez  de  julho  do  mesmo  anno  voltou  Catharina  de  Sousa  a  casa  de  Ma- 
ria dos  Santos  a  pedir-lhe  que  deixasse  effectuar  scena  idêntica,  no  propósito 
de  fazer  com  que  Manuel  da  Costa  regressasse  de  Thomar  para  casar  com  ella. 
A  supplicada,  porém,  negou-se,  por  a  terem  prevenido  uma  creada  e  uma  sua 
amiga  que  os  diabos  por  este  motivo  viriam  falar  com  ella.  Soube,  porém,  pela 
dita  sua  creada  que  Catharina  de  Sousa  mandara  comprar  diversos  objectos 
para  fazer  três  jantares,  com  os  quaes  regalasse  os  diabos  e  obrigasse  Manuel 
da  Costa  a  regressar  de  Thomar,  como  com  effeito  regressou. 

A  lista  d'esses  objectos  é  deveras  interessante,  dando-nos  uma  idéa  dos 
processos  e  receitas  das  feitiçarias  d'aquella  época.  Eram  elles:  nove  cabeças 
de  carneiro,  três  pintainhos,  alfinetes  sem  cabeça  e  agulhas,  queijo  comprado 
por  uma  Maria  Esgalhada,  que  o  havia  de  partir  com  a  bocca,  e  uma  pada  ou 
pão  que  tivesse  sido  amassado  por  uma  marranada  (carcunda).  Os  banquetes 
realisaram-se  em  casa  de  uma  mulher  residente  ao  Castello  Picão. 

Esta  culinária  é  bem  extravagante  e  mostra  que  os  diabos  tinham  bom 
estômago,  engolindo  ao  mesmo  tempo  agulhas  e  alfinetes. 

Perguntada  pelos  costumes  dos  denunciados,  disse  Maria  dos  Santos  que 
■João  de  Vilhaua  era  homem  de  enredos  e  alcaiote  das  próprias  filhas  e  que 
Catharina  de  Sousa  não  gosava  de  boa  fama. 

Eis  aqui  como  o  obscuro  nome  de  um  pintor  de  loiça  faz  surgir  um  qua- 
dro pitloresco  do  viver  social  do  século  xvii! 

«Aos  trinta  dias  do  mez  de  Agosto  de  mil  e  seiscentos  e  sincoenta  e  oito 
annos  em  Lisboa  nos  estaos  e  caza  terseira  das  audiências  da  Sancta  Inquisição 
estando  ahi  em  audiência  da  tarde  o  Senhor  Inquisidor  Rodrigo  de  Miranda 
Henriquez  em  audiência  da  tarde  digo  mandou  uir  perante  sy  da  salla  desta 
Inquisição  a  húa  molher  que  pedira  delia  meza  e  sendo  prezente  por  dizer 
que  tinha  que  denunciar  nella  para  descargo  de  sua  consciência  lhe  foi  dado 
juramento  dos  Santos  euangelhos  em  que  pos  sua  mão  sob  cargo  do  qual  lhe 
foi  mandado  dizer  uerdade  e  ter  segredo  o  que  ella  prometteo  comprir. 


32 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


«E  disse  chamarsse  Maria  dos  Santos,  cazada  com  Domingos  da  Cunha 
pintor  de  louça  auzente  nas  partes  da  índia  moradora  nesta  cidade  na  rua  dos 
Cegos  e  disse  ser  de  idade  de  trinta  annos  pouco  mais  ou  menos  e  uiue  de 
coser  esparto. 

«E  denunciando  disse  que  no  fim  de  mayo  próximo  paçado  não  se  lem- 
bra do  dia  certo  estando  ella  denunciante  doente  em  sua  caza  veio  fallar  com 
ella  nua  molher  por  nome  Catherina  de  Souza  que  em  outro  tempo  se  chamaua 
também  Francisca  de  Souza,  viuva  de  hum  volanleiro  de  cuio  nome  não  he 
lembrada  e  moradora  nesta  cidade  iunto  a  São  Thome  aonde  tem  tenda  de 
louça  e  mercearia  e  entre  outras  cousas  que  lhe  disse  lhe  pedio  quisese  con- 
sentir que  em  sua  caza  fallasse  e  flsesse  nua  cousa  com  hum  homem  e  enten- 
dendo ella  denunciante  que  seria  com  máo  titolo  ella  e  por  ter  ouuido  dizer 
que  ella  procuraua  e  fazia  feitissos  ficou  embaraçada  e  com  sohresalto  e  por 
estar  também  doente  como  ditto  tem  lhe  deu  hum  accidente  de  que  logo  tor- 
nou por  os  remédios  que  lhe  fez  a  ditta  Catherina  de  Souza  e  tornando  lhe 
a  repetir  o  que  lhe  tinha  pedido  dizendo  que  não  era  nenhum  peccado  mortal 
respondeu  ella  denunciante  que  uiesse  embora  com  o  ditto  homem  e  fisesse 
o  que  perttendia  e  logo  na  tarde  do  ditto  dia  veio  a  ditta  Catherina  de  Souza 
com  hum  homem  de  estatura  ordinária  uestido  de  uelludo  curto  fsic)  e  uza  sem- 
pre de  occullos  que  disse  a  ditta  Catherina  de  Souza  chamarsse  João  de  Vilhana 
e  morador  nesta  cidade  ao  bairro  do  Chão  de  Loureiro,  e  entrando  ambos  pela 
porta  delia  denunciante  se  recolherão  em  hua  caza  e  se  fecharão  por  dentro 
donde  mandarão  buscar  por  hua  filha  delia  denunciante  por  nome  Antónia  hum 
fugareiro  nouo  com  hua  tigella  e  hum  pouco  de  uinagre  e  mostarda  e  hum 
frangão  e  disserão  a  ditta  Antónia  que  quando  comprasse  as  ditlas  couzas  dis- 
sesse eu  compro  isto  em  nome  de  Manoel  da  Costa  e  depois  que  uierão  as  dit- 
tas  cousas  ferirão  fogo  e  não  sabe  o  que  mais  paçarão  com  ellas  por  estarem 
fechados  como  ditto  tem  e  so  uio  que  depois  que  se  forão  deixarão  o  frango 
morto  cõ  a  pena  aberto  pelas  costas  e  com  o  coração  menos  de  que  ella  de- 
nunciante ficou  presumindo  mal  e  entendendo  que  tudo  o  sobre  ditto  era  couza 
de  feitisos  para  obrigar  a  querer  bem  á  dita  Catherina  de  Souza  o  ditto  Manoel 
da  Costa  que  he  criado  do  Doutor  Luis  Delgado  por  hauer  andado  com  elle 
amãsebado  e  perttender  seu  cazamento  o  que  depois  confirmou  por  dizer  a 
ditta  Catherina  de  Souza  a  ella  denunciante  que  aquellas  cousas  erão  para  ef- 
feito  do  ditto  cazamento  e  que  não  era  peccado  mortal  e  depois  de  paçar  o 
sobre  ditto  adoeceo  o  ditto  Manoel  da  Costa,  e  disse  a  ella  denunciante  a  ditta 
Catherina  de  Souza  que  a  doença  era  porque  não  determinaua  cazar  com  ella, 
e  que  fora  pedir  ao  ditto  João  de  Vilhana  que  desmanchasse  o  que  linha  feito  por- 
que estaua  morrendo  o  ditto  Manoel  da  Costa  e  que  logo  lhe  desmanchou  e  teue 
saúde  e  se  leuantou  no  mesmo  dia  mas  que  melhor  fora  deixallo  leuardo  Diabo . 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  33 

«Disse  mais  que  no  mez  de  julho  próximo  paçado  não  se  lembra  o  dia 
certo  tornou  a  ditta  Catherina  de  Sousa  a  pedir  a  ella  denunciante  quisese  em- 
prestar lhe  húa  das  suas  casas  para  em  húa  noite  fazer  com  o  ditto  João  de 
Vilhana  huas  cousas  com  que  obrigasse  ao  ditto  Manoel  da  Costa  a  uir  de  To- 
mar para  onde  se  tinha  auzentado  por  pertender  ainda  cazar  com  elle,  ella  de- 
nunciante o  não  quiz  consentir  per  temer  que  fisesse  feitisserias  com  que  uies- 
sem  os  diabos  fallar  com  ella,  como  lhe  hauião  ditto  hua  sua  criada  por  nome 
Francisca  e  outra  sua  amiga  por  nome  Barbara  da  Silua,  as  quais  outro  si 
disserão  a  ella  denunciante  que  a  ditta  Catherina  de  Souza  mandou  buscar  noue 
cabeças  de  carneiro  e  trez  pintainhos  hús  alfinetes  sem  cabeça  e  agulhas  e 
queio  comprado  por  hua  Maria  esgadelhada  que  também  hauia  de  partir  com  a 
boca  e  hua  pada  de  pão  que  tiuesse  a  massado  hua  manaerrada  para  contudo 
isto  dar  trez  banquetes  aos  Diabos  e  fazer  feilissos  para  lhe  querer  bem  o  ditto 
Manoel  da  Costa  e  o  fazer  uir  de  Thomar  como  com  effeito  ueio  e  esta  nesta 
terra  e  que  as  cousas  que  tem  declarado  por  os  três  jantares  leuou  a  ditta 
Francisca  sua  criada  a  caza  de  húa  molher  que  mora  a  Castello  Picão  nesta 
cidade  cuio  nome  lhe  não  declarou. 

«Perguntada  se  o  ditto  João  de  Vilhana  ou  a  ditta  Catherina  de  Souza  são 
de  bons  procedimentos  ou  pelo  contrario  de  ruis  costumes  emfamados  de  fa- 
zer feitiços. 

«Disse  que  não  sabe  couza  algúa  da  opinião  e  fama  da  dittas  duas  pes- 
soas mais  que  o  que  tem  declarado,  e  que  o  ditto  João  de  Vilhana  era  homem 
que  uiuia  de  enredos  e  infamado  de  alcouitar  suas  filhas  e  a  ditta  Catherina 
de  Souza  era  também  infamada  de  molher  da  ma  (sic)  e  que  uiuia  mal. 

«Perguntada  se  teue  ella  denunciante  algúas  brigas  e  inimizades  ódio 
ou  ma  uontade  a  algúa  das  dittas  pessoas  e  que  rezão  a  obrigou  a  uir  denun- 
ciar delias. 

«Disse  que  não  tem  rezão  algúa  de  inimizade  com  as  ditas  pessoas  nem 
conhecia  o  ditto  João  de  Vilhana  mais  que  pela  occazião  que  tem  declarado  e 
que  trata  amigauelmente  a  ditta  Catherina  de  Souza  e  se  fallão  com  grande 
confiança  e  pela  obrigar  seu  confessor  faz  esta  denunciação  e  mais  não  disse 
e  ao  costume  o  que  tem  declarado  e  sendo  lhe  lida  esta  sua  denunciação  e 
sendo  por  ella  ouuida  e  entendida  disse  estar  escritta  na  uerdade  assim  e  da 
maneira  que  ella  a  dissera  e  nella  não  tinha  cousa  algúa  que  tirar  mudar  ou 
acresentar  nem  de  nouo  dizer  ao  costume  e  nisso  se  afirmaua  e  ratificaua  e 
de  nouo  tornaua  a  dizer  sendo  necessário,  e  tornaua  a  iurar  aos  Santos  euan- 
gelhos  ao  que  tudo  estiuerão  prezentes  por  honestas  pessoas  os  Licenciados 
José  Cardozo  e  João  Teixeira  Clérigos  do  habito  de  São  Pedro  Secretários 
desta  inquisição  que  tudo  ouuirão  e  prometterão  dizer  uerdade  sobre  cargo  de 
iuramento  dos  Santos  euangelhos  que  receberão  e  assinarão  aqui  com  o  ditto 

Setembro,  1906.  5 


34  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

jnquisidor  e  eu  pela  denunciante  de  seu  consentimento  por  ella  não  saber  es- 
creuer  e  eu  Luis  Barreto  notário  do  Santo  Officio  que  o  escreui  =  Rodrigo  Mi- 
randa Henriques  =  Luis  Barretto  =  Joseph  Cardoso  da  Silva  =  João  Teixeira. 
»E  ida  para  fora  a  ditta  denunciante  logo  forão  perguntados  os  dittos  Re- 
uerendos  Padres  se  lhes  parecia  que  ella  fallaua  verdade  e  a  sua  denunciação 
se  deuia  dar  credito  e  por  elles  foi  ditto  que  sim  entendião  que  ella  fallaua 
uerdade  e  a  sua  denunciação  se  deuia  dar  credito  e  tornarão  assinar  com  o 
ditto  Senhor  Inquisidor  e  eu  Luis  Barretto  notário  que  o  escreui  =  Rodrigo 
Miranda  Henriques=Joseph  Cardoso  da  Silva=João  Teixeira. «' 


XVIII.— Dantes  (Luis). —  Pintor  de  el-rei  D.  Duarte,  como  se  vê  por  uma 
carta  de  D.  Affonso  V,  passada  em  Cintra  a  9  de  agosto  de  1454,  pela  qual 
nomeia  Tristão  Affonso  escrivão  das  sisas  de  Tentúgal,  officio  que  vagara  pela 
renuncia  que  d'elle  fizera  Luiz  Dantes,  pintor  criado  delRej  meu  Senhor  e  pa- 
dre cuja  alma  Deus  aja. 

Na  minha  Memoria  sobre  A  livraria  real  especialmente  no  reinado  de  D.  Ma- 
nuel publiquei  uma  carta  de  7  de  março  de  1466,  pela  qual  D.  Affonso  V  to- 
mava por  seu  illuminador  a  Vasco,  creado  de  Luiz  Dantes,  nosso  creado.  Pôde 
deduzir-se  d'aqui  que  Luiz  Dantes  ensinava  a  pintar  e  illuminar  e  que  Vasco 
aprenderia  com  elle. 

Não  encontrei  até  agora  nenhum  documento  que  diga  directamente  res- 
peito a  este  pintor. 

«Dom  Afomso  etc.  Item  carta  de  Tristam  Afomso  morador  em  Tentúgal 
criado  da  jfante  dona  Isabel  dAragam  madre  da  rainha  mjnha  molher  etc. 
per  que  o  damos  por  scpriuam  das  nossas  sisas  da  dita  vila  de  Tentúgal  e  sseu 
termo  asi  e  pela  guisa  que  o  era  Lujs  d  Antes  pintor  criado  delRej  meu  Senhor 
e  padre  cuja  alma  Deos  aja  por  quanto  ho  arrenunçiou  em  nossas  maãos  que 
o  desemos  a  quem  nossa  merçee  fosse  etc.  em  forma  —  dada  em  Sintra  ix 
dias  d  agosto  elBey  o  mandou  per  Lopo  d  Almada  do  sseu  conselho  e  vedor 
da  sua  fazenda  Ruj  Diaz  a  fez  ano  do  Nosso  Senhor  Jhesu  Christo  de  mjl  iiijc 
liiij0.»» 


XIX. — Dias  (Gaspar). —  Está  confirmada  a  existência  de  Gaspar  Dias  em 
tempo  de  D.  Sebastião,  embora  na  chancellaria  d'este  monarcha  não  se  encon- 
tre registo  de  qualquer  mercê  que  lhe  fosse  feita.  Existe,  porém,  um  alvará, 


1  Torre  do  Tombo.  Livro  das  Denunciações  da  Inquisição  de  Lisboa.  Caderno  37,  fl.  404. 

2  Idem.  Chancellaria  de  D.  Affonso  V.  L.°  10,  fl.  64  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


35 


com  força  de  carta,  de  17  de  fevereiro  de  1574,  pelo  qual  foi  nomeado  pintor 
de  óleo  e  tempera  das  Casas  da  Mina  e  índia.  É  este  o  alvará  ou  provisão  a 
que  se  refere  sua  viuva  Catharina  de  Évora,  de  quem  trato  na  primeira  serie 
d'esta  Memoria,  sob  o  titulo  de  Gaspar  Dias. 

«Eu  ellrey  faço  saber  aos  que  este  allvara  virem  que  confiando  eu  de 
Guaspar  Diaz  meu  moço  da  camará,  pintor  morador  nesta  cydade  de  Lixboa 
que  nisto  me  seruiraa  bem  e  como  deue  hei  por  bem  e  me  praaz  de  o  encar- 
reguar  de  pintor  de  todallas  cousas  de  seu  officyo  que  se  ouuerem  de  fazer 
nos  almazens  da  dita  cydade  e  nas  casas  da  índia  e  Mina  e  que  elle  as  faça 
todas  per  sy  e  pellos  olliciais  que  nisso  puser  e  não  outra  pessoa  allgua  em 
quãonto  o  elle  bem  fizer  a  saber:  aquellas  cousas  das  ditas  casas  que  forem 
de  seu  officio  que  ja  ouuer  preços  taxados  e  elle  as  fará  pellos  ditos  preços 
e  as  em  que  não  ouuer  os  tais  preços  as  fará  pello  em  que  se  concertar  com 
os  prouedores  e  ofliciais  das  ditas  casas,  ou  por  avaliação  de  pessoas  que  o 
bem  entendão:  qual  os  ditos  provedores  mais  quiserem  e  serlhehão  paguas 
as  obras  nas  casas  pêra  que  se  fizerem,  noteflicoo  assy  aos  prouedores  e  offi- 
cyais  dos  ditos  allmazens  e  casas  da  índia  e  Mina  e  lbes  mando  que  ajão  daqui 
em  diante  o  dito  Guaspar  Diaz  por  pintor  delias,  e  quando  se  allguas  obras 
ouuerem  de  fazer  assy  a  ollio  como  a  tempera  e  mandem  chamar  ao  dito  Guas- 
par Diaz  e  a  elle  as  mandem  fazer  na  sobre  dita  maneira  e  não  a  outra 
pessoa  allgua  por  que  o  hey  assy  por  bem  e  meu  seruiço  e  mando  que  este 
alluara  se  cumpra  ynteiramente  sem  duuida  nem  embarguo  algu  o  qual  quero 
que  valha  e  tenha  força  e  vigor  como  se  fosse  carta  feita  em  meu  nome  per 
mym  assynada  e  passada  pella  chancellaria  posto  que  por  ella  nam  passe  sem 
embarguo  das  ordenaçõis  do  2.°  Liuro  em  contrario  —  Domingos  de  Seixas  o 
fez  em  Lixboa  a  xbij  de  feuereiro  de  bc.lxx  e  quatro  — Guaspar  Rebelo  o  fez 
escreuer=Rey  •;  =Aluara  per  que  V.  A  encarregua  a  Guaspar  Diaz  voso 
moço. . .  casas  da  índia  e  mina  em  quãonto  o  elle  bem  fizer  e  assi. . .  pêra 
que  faça  as  obras  que  a  seu  officio  tocarem  e  outro...  pela  maneira  acima 
decrarada  e  que  valha  como » ' 


XX. —  Eduardo  ou  Duarte. —  Discípulo  de  Quentin  Metsys  em  1504, 
e  recebido  franc-maiire  na  Ghilde  de  Saint-Luc  em  1508. 
Vide  o  artigo  referente  a  Affonso  Castro. 


'  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  ii,  maço  248,  doe.  100 


36  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


XXI. —  Fernandes  (Lourenço). —  Raczynski  inclue  no  seu  Diccionuaire  um 
individuo  d'esle  nome,  dando-lhe  à  qualidade  de  architecto,  exercendo  a  pro- 
fissão em  1511  no  mosleiro  de  S.  Jeronymo  de  Belém. 

No  arligo  relativo  a  Boytac,  inserto  no  vol.  i  do  meu  Dkcionario  dos  ar- 
chitectos,  publiquei  o  documento  em  que  Raczynski  se  baseava  para  tal  asser- 
ção, e  por  elle  se  poderá  vèr  que  Lourenço  Fernandes  era  com  toda  a  proba- 
bilidade um  funccionario  administrativo  e  não  um  artista.  Ainda  no  mesmo  vo- 
lume da  minha  citada  obra,  no  artigo  Luiz  Fernandes,  fiz  referencia  a  Lou- 
renço, trocando-lbe,  porém,  equivocadamente,  o  nome.  Fica  exarada  aqui  a  ne- 
cessária rectificação. 

Existiu,  com  effeito,  um  artista  de  nome  Lourenço  Fernandes,  o  qual  per- 
tencia á  classe  de  que  venho  tratando  e  que  no  auno  de  1517  estava  em  Aza- 
mor,  onde  pintou  quarenta  bandeiras,  sendo  oito  grandes  com  as  armas  e  trinta 
e  duas  com  as  cruzes  de  Ghristo,  para  o  Castello.  Por  cada  uma  das  primeiras 
recebeu  duzentos  e  cincoenta  reaes  e  das  segundas  trinta,  prefazendo  ao  todo 
a  somma  de  dois  mil  novecentos  e  sessenta  reaes. 

Pelo  respectivo  mandado  de  pagamento,  de  28  de  agosto  de  1517,  se  re- 
conheceu que  Lourenço  Fernandes  havia  também  pintado  as  bandeiras  para  a 
cidade. 

«Simão  correa  fidalgo  da  casa  delRey  noso  senhor  capitam  e  gouernador 
da  cidade  dazamor  mando  a  vos  aluaro  de  Gadavall  almoxarife  em  a  dita  ci- 
dade que  ora  tendes  carego  de  feitor  que  des  e  pages  ao  pimlor  Lourenço 
Fernandez  de  quarenta  bamdeiras  que  pintou  pêra  este  castello  .s.  oito  gram- 
des  das  armas  e  trimta  e  duas  de  cruzes  de  christaos  a  rrezam  as  oito  de  du- 
zentos e  cinquoenla  reaes  por  bandeira  e  as  trinta  e  duas  a  rrezam  de  trinta 
rreaes  por  peça  em  que  monta  ao  todo  dous  mill  e  novecentos  e  sesenta  rreaes 
dos  quaes  lhe  fazej  bom  pagamento  por  que  he  ornem  proue  e  seruio  bem  e 
lhe  mando  dar  por  estas  menos  do  que  leuou  polias  outras  que  pintou  pêra  a 
cidade  e  per  este  meu  mandado  vos  serã  leuados  em  conta.  Feito  em  Azamor 
aos  xxbiij0  dias  do  mes  dagosto  de  mjll  e  bcxbij.  =  Symã  Correa. 

No  verso:  «he  verdade  que  recebeo  o  sobredito  loureuço  fernandez  de  Ál- 
varo de  cadavall  almoxarife  os  dous  myll  e  novecentos  e  sesemta  reaes  com- 
teudos  neste  mandado  do  capitam  e  per  verdade  asynou  comigo  Duarte  Ro- 
driguez  escrivam  do  dito  carreguo  oje  xbij  de  setembro  de  bcxbij.  =  Duarte 
Rodriguez.*1 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Ghronologico.  Parte  u,  maço  66,  doe.  28. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  37 


XXII. —  Figueiredo  Seixas  (José  de). — Era  pintor  e  natural  da  cidade  do 
Porto,  conforme  vem  declarado  Da  traducção  que  fez  da  segunda  parle  do  li- 
vro intitulado  Perspectiva  de  pintores  e  architectos,  composto  em  latim  por  An- 
dré Pozo,  da  Companhia  de  Jesus. 

A  primeira  parte  da  obra  foi  traduzida  pelo  padre  João  Saraiva,  da  ci- 
dade do  Porto.  Tanto  uma  como  outra  estão  inéditas,  conservando-sé  o  res- 
pectivo manuscripto  oa  Bibliotheca  da  Universidade  de  Coimbra.  A  sua  des- 
cripção  pôde  vêr-se  sob  o  n.°  222,  a  pag.  154-155  do  vol.  m  do  Archivo  bi- 
bliographico  da  mesma  Bibliotheca. 

A  segunda  parte  contém  um  appendice  com  instrucção  para  pintar  a  fresco 
e  a  secco,  Mudo  de  fazer  uma  graticulação  e  uma  abobada,  por  José  de  Figuei- 
redo Seixas. 


XXIII. — Francesco  (Nicoloso). —  Tratei  d'este  pintor  de  azulejos  sob  o 
nome  de  Nicoloso,  como  geralmente  mais  conhecido.  Era  oriundo  de  Pisa, 
tendo  talvez  aprendido  em  Faeuza  ou  Caffagiolo,  e  veiu  estabelecer-se  em  Se- 
vilha, onde  implantou  o  gosto  da  faiança  italiana.  Ad.  de  Ceuleneer,  a  pag.  58 
do  seu  opúsculo  Le  Portugal — Notes  d'art  et  d'archêologie,  impresso  em  An- 
vers  em  1882,  faz  d'elle  o  mais  levantado  elogio,  dizendo  que  a  sua  obra  prima 
é  o  retábulo  da  egreja  do  Alcazar,  onde  trabalhava  em  1504. 

O  quadro  principal  representa  a  Annunciação.  Ceuleneer  transcreve  a  este 
propósito  a  opinião  de  M.  Uavilier: 

«Não  receiamos  accrescentar  que  não  existe  em  oeDhum  paiz,  incluiDdo 
a  própria  Itália,  um  monumento  d'este  género  que  o  eguale  em  belleza  e  em 
importância.! 


XXIV. —  Franco  (Manuel). —  Era  casado  com  Rufina  de  Paiva,  irmã  do  pin- 
tor de  el-rei  António  de  Paiva,  em  cujo  officio  lhe  succedeu,  por  seu  falleci- 
mento,  sendo  o  alvará  de  nomeação,  com  força  de  carta,  de  23  de  fevereiro  de 
1650. 

António  de  Paiva  era  filho  de  Miguel  de  Paiva,  egualmente  pintor.  De  am- 
bos se  faz  adeante  menção. 

«Eu  EIRey  faço  saber  aos  que  este  aluara  virem  que  hauendo  Respeito,  a 
Manuel  Franco  pintor  meu  criado  estar  cazado  com  Rotina  de  Paiua  irmã  de 


38  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

António  de  Paiua  e  estar  uago  por  seu  falecimento  o  oficio  de  pintor  do  oufi- 
cio  digo  (sic)  de  óleo  de  que  foi  proprietário,  Hey  por  bem  fazer  mercê  delle 
ao  dito  Manoel  Franco  o  qual  terá  e  seruira  em  quanto  eu  ouuer  por  bem  e 
não  mandar  o  contrario  com  declaração  que  tirando  Ibo  ou  extingindoo  em  al- 
gum tempo  por  qual  quer  uia  que  seja  lhe  não  ficara  por  isso  minha  fazenda 
oubrigada  a  satisfação  algua  e  hauera  o  mantimento  delle  a  elle  ordenado  e 
os  proes  e  percalços  que  lhe  direitamente  pertencerem  pello  que  mando  ao 
prouedor  das  obras  dos  meus  paços  lhe  dem  a  posse  do  dito  oficio  e  lhe  dei- 
chê  seruir  e  delle  uzar  e  hauer  o  mantimento  proes  percalços  como  dito  he 
e  iuramento  dos  santos  euangelhos  que  bem  e  uerdadeiramente  sirua  e  guar- 
dando em  tudo  meu  seruiço  e  as  partes  seu  direito  de  que  se  fará  asento  nas 
costas  deste  que  hej  por  bem  que  ualha  como  carta  sem  embargo  da  ordena- 
ção em  contrario  constando  ter  pago  o  Nouo  direito  que  deuer  comforme  ao 
Regimento  e  se  cumprira  tão  inteiramente  como  nelle  se  conthem  —  João  da 
Silua  o  fes  em  Lisboa  a  uinte  e  três  de  feuereiro  de  mil  e  seiscentos  e  sin- 
coenta  annos — Fernão  Gomes  da  Gama  o  fes  escreuer.=  Rey=* 


XXV. —  Gentileschi  (Francesco). —  Fez  parte  de  uma  notável  família  de 
artistas  de  Piza.  Era  filho  de  Orazio  Pisano,  insigne  pintor.  Por  morte  do  pae 
partiu  para  Génova,  onde  se  exercitou  no  colorido  com  Sarezana. 

Orlandi,  no  seu  Abecedario  pittorico,  a  pag.  165  da  edição  de  Nápoles  de 
1733,  dá-nos  d'elle  os  lacónicos  apontamentos  que  acima  transcrevo  e  remata 
a  sua  curta  biographia  com  esta  phrase,  que  me  parece  bastante  original:  par- 
tilo  che  fu  da  Génova,  passo  aWaltra  vita. 

Francesco  teve  dois  irmãos,  ambos  pintores  de  merecimento;  um  delles 
uterino,  Aurélio  Lomi,  e  Orazio  Gentileschi  Pisano. 

Este  ultimo  foi  talvez  o  que  obteve  maior  e  mais  justo  renome.  Depois  de 
ter  estado  em  Roma  e  Génova,  passou  a  França  e  daqui  a  Inglaterra,  em  cuja 
corte  recebeu  grandes  honras  e  mercês.  Falleceu  n'este  paiz  aos  48  annos  de 
edade,  sendo  sepultado  na  capella  da  rainha,  debaixo  do  altar-mór.  Deixou 
uma  filha,  de  nome  Artemísia,  famosa  retratista. 

Existe  um  documento  que  amplia  alguns  traços  da  biographia  de  Fran- 
cesco e  pelo  qual  se  mostra  que  elle  não  era  là  muito  boa  pessoa,  antes  pa- 
recia mais  um  aventureiro  que  um  artista  cavalheiroso,  que  presa  o  seu  nome 
e  a  sua  arte.  Esse  documento  é  uma  denuncia  feita  por  elle  verbalmente  ao 
Tribunal  do  Santo  Officio,  na  audiência  da  tarde  de  8  de  junho  de  1648,  con- 
tra um  seu  compatriota,  D.  João  de  Tovar,  napolitano.  Com  elle  se  encontrara 


i  Torre  do  Tombo.  Chancellaria  de  D.  João  IV.  Doações.  L.°  23,  fl.  30  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  39 

duas  vezes:  uma  na  prisão  do  Limoeiro,  haveria  um  anno;  outra,  recente- 
mente, na  hospedaria  de  Feliciana  da  Costa,  ao  Pelourinho  Velho.  De  todas 
as  vezes  que  praticara  com  D.  João  de  Tovar,  este  mostrou-se  sempre  um 
homem  desesperado,  descrente,  blasphenio,  proferindo  acerca  de  Deus  e  da 
Virgem  as  palavras  mais  insultantes.  No  Limoeiro  soubera  que  o  napolitano 
estava  ali  preso  por  haver  deitado  ao  mar  uns  papeis  de  estado,  que  trazia 
de  Itália  depois  de  certa  missão  de  que  el-rei  o  havia  encarregado. 

N'esta  denuncia  declara  Francesco  que  era  natural  de  Roma,  residente 
em  Lisboa  e  pintor  do  rei  de  Inglaterra. 

Como  era  de  esperar,  D.  João  foi  chamado  ao  Tribunal  do  Santo  Officio, 
e  a  sua  contestação,  dando-nos  o  reverso  da  medalha,  mostra-nos  bem  o  cara- 
cter do  denunciante.  O  denunciado  affirmou  com  toda  a  segurança  que  era  bom 
christão,  sendo  falsíssimas  as  accusações  que  lhe  faziam  pessoas  malévolas, 
suas  inimigas,  entre  as  quaes  avultava  Francisco  Gentil  fsic)  milanez.  D.  João 
desforra-se  valentemente  do  seu  rival,  desenrolando  um  sudário  tão  sombrio 
e  carregado  que  nos  faz  de  Francesco  Gentileschi  um  miserável  repugnante. 

Gentileschi  parece  que  viera  a  Lisboa,  não  propriamente  por  motivo  da 
sua  arte,  mas  para  tratar  de  coisas  de  artilharia,  no  que  talvez  não  cumpria 
como  devera,  sendo  por  isso  preso  como  traidor.  As  suas  gentilezas  não  pa- 
raram aqui.  Furtou  uma  lamina  de  prata  a  D.  João,  pelo  que  este  o  quiz  ma- 
tar no  Limoeiro,  e  fez  o  mesmo  com  relação  a  uns  quadros  de  Nossa  Senhora 
do  Loreto.  Em  resultado  de  um  seu  falso  juramento  foram  enforcados  dois 
homens  que  estavam  presos  no  Castello.  Em  summa:  era  um  homem  infame, 
e  como  tal  tinha  sentença  de  degredo  para  Angola. 

Denunciante  e  denunciado  vê-se  bem  que  eram  dignos  um  do  outro,  e  por 
muito  que  se  desconte  no  depoimento  de  qualquer  d'elles,  ainda  fica  bastante 
para  se  poder  aquilatar  devidamente  a  baixeza  da  sua  estructura  moral. 

O  pintor  italiano  não  nos  retratou  o  seu  amigo  e  compatriota  com  o  pin- 
cel, mas  sim  com  a  palavra,  deixando-nos  d'elle  a  seguinte  imagem:  baixo, 
de  barba  loura,  de  trinta  e  dois  annos  approximadamente.  Veste  de  baieta  ne- 
gra; não  usa  espada  e  em  vez  d'ella  traz  muleta  na  mão. 

Tenho  presente  um  documento  que  nos  mostra  sob  luz  mais  lisonjeira  a 
Francesco  Gentileschi  e  a  um  seu  irmão,  de  nome  Júlio,  os  quaes  já  se  acha- 
vam em  Lisboa  muito  tempo  antes  da  occorrencia  inquisitorial  a  que  me  te- 
nho referido. 

Vieram  elles  para  o  nosso  paiz  logo  no  começo  da  acclamação  de  D.  João  IV, 
pois  a  sua  permanência  aqui  em  setembro  de  1642  datava  já  de  17  mezes.  Ha- 
viam elles  sido  contractados  em  Inglaterra  pelo  nosso  embaixador  n'aquella  corte 
D.  Antão  de  Almada  para  virem  fabricar  peças  de  artilharia  ligeira,  invento  seu, 
cujos  resultados  pareciam  de  grande  alcance.  Os  dois  fundidores  queixavam-se, 


40  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

porém,  de  qne  não  haviam  feito  tanta  obra  quanta  podiam  e  deviam  fazer,  por- 
que o  tenente-general  de  artilharia  não  os  favorecia,  antes  os  desajudava.  Por 
este  motivo  dirigiram  um  requerimento  a  el-rei,  pedindo-lhe  as  providencias 
que  o  caso  requeria.  N'elle  expunham  os  benefícios  que  provinham  das  suas 
peças,  muito  superiores  ás  de  Mansfelt,  fabricadas  na  Hollanda,  e  ás  de  qual- 
quer outro  systema,  como  se  provou  na  experiência  feita  no  Terreiro  do  Paço, 
a  que  se  dignou  assistir  sua  magestade,  acompanhado  da  sua  corte  e  de  pes- 
soas entendidas. 

O  conselho  de  guerra  lavrou  sobre  este  requerimento  um  despacho  favo- 
rável aos  dois  fundidores,  cuja  perícia  n'este  ramo  parece  ser  fundamentada. 

Entre  1642  e  1648  medeia  um  espaço  bastante  longo,  no  qual  é  bem  de 
suppôr  que  a  aptidão  dos  dois  artistas  não  tivesse  ficado  sedentária.  Não  en- 
contrei, porém,  mais  nenhum  documento  elucidativo,  sendo  todavia  de  esperar 
que  ainda  venha  a  apparecer. 

«Aos  oito  dias  do  mes  de  junho  do  anno  de  mil  e  seiscentos  quareuta  e 
oito  em  Lisboa  nesta  caza  do  despacho  da  Santa  Inquisição  estando  ahy  em 
audiência  da  tarde  os  Senhores  Inquisidores,  mandarão  entrar  na  meza  a  Dom 
Francisco  Gentilesque  natural  de  Roma  e  morador  nesta  cidade  por  dizer  que 
tinha  que  declarar  nesta  meza  por  descargo  de  sua  consciência  lhe  foy  dado 
juramento  dos  Santos  Evangelhos  em  que  poz  a  mão  sob  cargo  da  qual  lhe 
foy  mandado  dizer  uerdade  e  guardar  segredo  o  que  prometteo  cumprir  e  disse 
ser  de  edade  de  quarenta  e  oito  annos  e  ser  pintor  delRey  da  Grão  Bretanha 
e  denunciando  disse  que  hauera  hum  anno  pouco  mais  ou  menos  estando  elle 
denunciante  prezo  na  cadea  do  Limoeyro  o  leuarão  a  dilta  prizão  a  hum  home 
napollitano  que  diz  ser  natural  da  cidade  de  Nápoles  e  chamarse  Dom  João, 
do  qual  elle  denunciante  tinha  ia  de  antes  conhecimento  em  rezão  de  se  ha- 
verem visto  algúas  uezes  nesta  cidade  e  se  fallarem  como  homens  da  mesma 
nação  e  por  ter  elle  denunciante  entendido  que  o  ditto  Dom  João  passara  a 
Itália  com  passaporte  de  sua  magestade  estranhou  muito  o  uello  na  ditta  pri- 
zão, e  perguntando  lhe  a  cauza  lhe  disse  o  ditto  Dom  João  que  com  effeito 
passara  a  Itália  e  que  uoltando  para  este  Reyno  em  companhia  de  certos  Re- 
ligiozos  e  outros  passageiros  que  uinhão  para  estes  Reynos  o  acriminaram  de 
que  lançara  ao  mar  certos  papeis  e  referindo  a  elle  denunciante  os  trabalhos 
que  teuera  na  uiagê  e  o  que  sentia  a  esse  prezo  consulandoo  elle  denunciante 
e  dizendo  lhe  que  teuesse  sufrimento  e  que  Deos  lhe  acudiria,  o  ditto  Dom  João 
lhe  respondeo  que  não  esperaua  que  Deos  lhe  fizesse  mercê  porque  Deus  que 
era  hum  cão,  e  replicando  elle  denunciante  que  não  dissesse  tal  o  ditto  Dom 
João  instou  tornando  a  dizer  que  elle  denunciante  por  se  uer  com  saúde  e  sem 
moléstias  lhe  daua  aquelle  conselho  e  por  então  não  passarão  mais,  mas  ha- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  4i 

uera  quatro  dias  que  elle  denunciante  foy  a  pouzar  a  estalagem  de  Feliciana 
da  Costa,  veuua  que  uiue  ao  Pelourinho  Velho  e  achando  em  ella  também  pou- 
zado  ao  ditlo  Dom  João  emfermo  em  cama  o  foy  a  uizitar,  e  consolando  o  do 
achaque  e  persuadindo  o  que  com  hua  purga  que  tomara  se  hauia  de  achar 
bem  o  ditto  Dom  João,  tendo  algúas  anciãs  com  a  purga  e  dizendo  lhe  elle  de- 
nunciante que  esta  era  o  effeito  do  ditto  remédio,  e  que  se  encomendasse  a 
Deus  para  que  elle  fosse  de  bom  effeito,  respondeo  o  ditto  Dom  João  que  elle 
não  conhecia  a  Deus  nem  se  hauia  de  encomendar  a  elle  porque  nunca  lhe  fi- 
zera bem,  e  que  Christo  Nosso  Senhor  era e  que  elle  Dom  João  de- 

sejaua  muito  acharse  entre  mouros  para  renegar  e  que  com  effeito  renegara 
se  se  uira  entre  elles  e  então  elle  denunciante  para  não  querer  ouuir  o  que 
o  ditto  Dom  João  dizia  se  sahio  do  appozento  em  que  ambos  estauão  soos  e 
lhe  não  f;illou  mais.  Porem  fatiando  com  a  hospeda  da  mesma  estalagê  estra- 
nhando lhe  agasalhar  em  sua  caza  ao  ditto  Dom  João  sendo  home  que  dizia 
taes  couzas  a  ditta  hospeda,  disse  que  assy  era  uerdade  que  o  ditto  Dom  João 
era  home  dezesperado  de  Deus  porque  lambem  ella  ditta  hospeda  lhe  ouuira 
que  Deus  não  fizera  bem  a  ninguém,  e  que  senão  queria  confessar  porque 
não  cria  em  Deus,  nem  esperaua  que  lhe  fizesse  bem,  nem  a  Virgem  Nossa 

Senhora  porque  nem  a  hum  nem  a  outro  havia e  ouuindo  elle 

denunciante  o  sobre  ditto,  disse  a  dita  hospeda  que  era  rezão  que  uiesse  a 
esta  meza  a  dar  conta  de  todo  o  sobre  ditto,  e  comunicando  o  a  certos  cléri- 
gos que  estauão  na  ditta  pouzada  estes  lhe  disserão  que  erão  obrigados  a  ui- 
rem  a  esta  meza  e  com  esta  resolução  ueyo  elle  denunciante  esta  meuhan  em 
companhh  da  ditta  hospeda  a  denunciar  o  sobreditto  tudo  por  descargo  de  sua 
consciência  e  mães  não  disse  e  ao  costume,  nada  e  perguntado  se  estaua  o 
ditto  Dom  João  quando  disse  as  couzas  contheudas  nesta  denunciação  em  seu 
perfeito  iuizo  ou  uencido  de  algua  pachão  que  o  pudesse  perturbar  e  se  desse 
as  diltas  cauzas  por  tal  modo  que  elle  denunciante  não  recebesse  escandallo 
de  o  ouuir,  ou  se  pello  contrairo  se  escandalizou  e  ficou  tendo  ao  ditlo  Dom 
João  por  home  mao  christão  e  que  sentia  mal  de  Deus  Nosso  Senhor  e  de  seu 
poder  e  amor  pêra  com  os  homês. 

«Disse  que  o  ditto  Dom  João  quando  disse  as  couzas  que  se  contem  nesta 
denunciação  estaua  em  seu  iuizo  e  ainda  que  estaua  inquieto  com  a  ditta  purga 
não  era  em  forma  que  lhe  perturbasse  o  entendimento  e  que  elle  denunciante 
se  escandalizou  muito  de  o  ouuir  e  Geou  persuadido  que  o  ditto  dom  João  era 
muito  mao  christão  e  pior  que  o  demónio  e  por  home  dezesperado  da  mercê 
de  Deus  Nosso  Senhor  e  perguntado  se  he  o  ditto  Dom  João  costumado  a  di- 
zer as  sobre  diltas  cousas  ou  outras  semelhantes  e  se  he  de  tal  natureza  que 
com  qualquer  leue  occazião  saya  fora  de  sy. 

«Disse  que  o  ditto  dom  João  costuma  dizer  as  sobre  diltas  couzas  e  outras 

Setembro  1906.  6 


42  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

semelhantes  muitas  uezes  e  sem  occazião  algúa  de  sentimento  ou  pachão  por- 
que elle  denunciante  quando  lhe  ouuio  o  que  fica  escrito  estando  ambos  em 
o  Limoeyro  estaua  o  ditto  dom  João  então  em  todo  o  socego  e  sem  occazião 
algua  que  alterasse  nem  ainda  tão  leue  como  a  da  purga  e  que  tudo  o  sobre 
ditto  diz  por  ser  home  dezesperado.  E  perguntado  que  feições  tem  o  ditto 
dom  João. 

«Disse  que  he  home  baixo  de  barba  loura  que  representa  trinta  e  dous 
annos  pouco  mais  ou  menos  e  anda  uestido  de  bayeta  negra  sem  espada  e 
com  bua  muleta  na  mão  e  mães  não  disse  nem  lhe  forão  feitas  mães  pergun- 
tas e  ao  costume  disse  nada  e  sendo  lhe  lido  esta  sua  denunciação  por  elle  ou- 
uida  e  entendida  disse  que  estaua  escrita  na  uerdade  e  que  nella  não  tinha 
que  tirar  acrescentar  nem  dizer  de  nouo  ao  costume  e  que  assy  afirmaua  ra- 
teficaua  e  dizia  de  nouo  sendo  necessário  debaixo  do  iuramento  dos  Santos 
Euangelhos  em  que  pos  a  mão  a  que  tudo  estiuerão  prezentes  pessoas  hones- 
tas e  Religiozas  para  o  que  tudo  uirão  e  ouuirão  e  prometterão  dizer  uerdade 
e  guardar  segredo  em  tudo  o  que  fossem  perguntado  e  debacho  do  iuramento 
dos  Santos  Euangelhos  em  que  puzerão  suas  mãos  os  Reuerendos  Padres  João 
Carneiro  e  Jozeph  Cardoso  sacerdotes  assistentes  nesta  cidade  que  com  os  dit- 
tos  Senhores  assinarão  e  com  o  denunciante  Domingos  Esteuez  nottario  do 
Santo  Offlcio  que  o  escreui= Pedro  de  Castilho  =  Belchior  Dias  Preto  — Dr. 
Francisco  Gentileschi  =  João  Carneiro=Joseph  Cardoso.*1 

«Da  confissão  de  D.  João  Tovar: 

«Disse  que  elle  era  bom  firme  e  fiel  catholico  e  que  não  tinha  que  con- 
fessar nesta  meza  nem  dissera  as  palauras  per  que  nella  foy  perguntado,  e 
que  todas  são  falsas  e  dittas  por  pessoas  infames  e  suas  inimigas  como  são 
Francisco  Gentil  Milanez  pintor  ladrão  que  tem  enganado  a  Sua  Magestade  em 
artelharia  e  esteue  prezo  por  traydor  no  Limoeyro  e  furtou  a  elle  declarante 
húa  lamina  de  pratta  sobre  que  na  prizão  o  quizera  elle  declarante  mattar  e 
com  iuramento  falso  que  deu  fez  enforcar  a  dous  homês  que  estauão  prezos 
no  castello  e  taruhem  furtou  huns  quadros  em  Nossa  Senhora  do  Lorelto  e  he 
pessoa  infame  e  tem  sentença  de  degredo  para  Angola.»2 

«Snor  — Por  parte  de  Francisco,  e  Júlio  Gentileschi  mestres  e  inuentores 
da  noua  traça  de  Artelharia  ligeira  para  campanha,  se  presentou  neste  conselho 
a  petição  inclusa,  na  qual  referem  que  estando  em  Londres  contraltarão  com 


1  Torre  do  Tombo.  Livro  das  Denunciações  da  Inquisição  de  Lisboa.  Caderno  3i  do  pro- 
motor, fl.  318. 

*  Idem.  Idem.  Fl.  338  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  43 

Dom  Antão  de  Almada  Embaixador  de  V.  Mag.de  para  virem  a  este  Reyno  a 
fabricarem  a  quantidade  de  Artelharia  que  fosse  necessária  para  a  presente 
necessidade  de  guerra  e  com  ella  ser  senhores  da  campanha  abrasando  a  ca- 
uallaria  do  inimigo,  sendo  so  a  tal  artelharia  bastante  para  com  facilidade  se 
alcançarem  grandes  vitorias  como  em  diversas  partes  tem  succedido,  e  para 
cujo  effeito  foi  inuentada,  e  que  ha  dezasete  meses  estão  nesta  cidade,  tempo 
em  que  poderão  ter  feito  duas  dúzias  dos  ditos  canhões  se  lhes  derão  o  neces- 
sário e  não  tem  obrado  mais  que  sete,  e  estes  ainda  com  trabalho  por  o  The- 
nente  general  da  Artelharia  mostrar  pouca  vontade  que  elles  obrem,  sendo  de 
tanto  effeito  e  bondade  como  se  mostrou  na  proua  que  se  fez  no  terreiro  do 
Faço  a  vista  de  V.  Mag.d0  e  de  muitos  fidalgos  e  pouo  de  que  foi  bem  aceito, 
e  que  o  dito  Tenente  general  mandou  leuar  os  ditos  canhões  para  o  cães  do 
Caruão  onde  tornou  aproualos  com  maior  carga,  e  lançarão  o  peluuro  dobrado 
espaço  e  com  três  tiros  de  que  ouue  mayor  admiração  dos  fuudidores,  e  com- 
tudo  se  achão  tão  mal  aceitos  do  dito  Thenente  general  desejando  sempre  com 
fidellidade  acertar  no  seruiço  de  V.  Mag.de  que  pedem  lhes  faça  V.  Mag.de  mercê 
conceder  licença  para  se  irem  a  suas  terras  onde  deixarão  suas  casas  e  famí- 
lias fiados  nas  grandes  prumeças  do  Embaixador  de  V.  Mag.de  sem  até  gora 
terem  recebido  mais  que  moléstias  e  miséria  com  que  tem  passado.  Ao  conselho 
parece  que  de  nenhQa  maneira  conuem  dar  se  lhes  licença  para  se  hirem,  an- 
tes mandar  V.  Mg.de  ordenar  que  se  lhes  faça  todo  o  bom  agasalho  para  os 
obrigar  a  que  continuem  o  seruiço  de  V.  Mg.de  ordenando  que  se  faça  noua 
proua  das  pessas  da  Artelharia  que  laurarão,  no  terreiro  do  Paço  e  que  as- 
sista a  ella  o  Thenente  general  da  Artelharia  e  este  conselho  todo  para  se  aue- 
riguar  milhor  a  importância  delia,  e  a  conta  que  tem.  Lixboa  17  de  Setembro 
de  642  —  Dom  Gastão  =Vasconcellos=^&  uma  rubrica. 

«Como  parece  e  execute-se  logo.  Em  Lixboa  a  20  de  Setembro  de  642  — 
Rubrica  de  D.  João  IV. 

«Snr  —  Dizem  Francisco  e  Júlio  Gertileschi,  (sic)  mestres,  e  Inuentores 
da  noua  traça  de  artelheria  ligeira  para  campanha,  que  estando  elles  dittos 
supp.tes  em  Londres  comtratarão  com  o  embaixador  Dom  Antam  de  Almada 
para  uirem  a  este  Reino  a  fabricarem  a  quantidade  da  artilheria  que  fosse 
necessária  para  a  presente  necessidade  de  gerra,  para  com  ella  ser  senhores 
da  campanha,  abrasando  a  caualleria  do  enemigo,  sendo  so  a  tal  bastante  para 
com  facilidade  se  alcansarem  grandes  uittorias,  como  em  diuersas  partes  tem 
succedido,  para  o  qual  effeito  foi  inuentada;  e  tendo  estado  nesta  Cidade  ha 
desasete  meses,  tempo  em  que  poderão  ser  feitas  duas  dúzias  dos  dittos  ca- 
nhõis  se  lhes  derão  o  necessário  para  a  dilta  fabrica,  não  tem  ate  oie  obrado 
mais  de  sete  canbõis  e  estes  com  muita  pena  e  trabalho,  pois  o  Tenente  Ge- 


44  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

neral  da  artilheria,  os  fauorecia  tam  pouco,  qne  bem  mostra  a  pouca  uontade 
que  tem  de  que  se  obre  a  tal  artilheria,  so  para  contentar  os  fondidores,  os 
quais  sempre  forão  inimigos  de  tam  proueitosa  inuensão,  cuio  effeito  e  bondade 
bem  se  mostrou  na  proua  que  se  fes  publicamente  diante  de  V.  M.d6  fidalgos 
e  mais  pouo,  por  cuio  aplauso  foi  bem  asseita  e  louuada,  alem  do  Tenente 
para  o  suditto  respeito,  ainda  que  do  mandado  do  embaixador  de  Vossa  M.d" 
tem  deixado  suas  casas  e  familhas;  tendo  seruido  com  tanta  fidelidade,  como 
todo  o  mundo  sabe,  dexando  de  seruir  a  outros  Reies,  como  ia  se  se  offres- 
seo,  e  per  maior  rigor  o  Tenente,  sempre  tudo  a  costa  dos  dittos  proues 
supp.les  mandou  leuar  as  dittas  pessas  ao  Cais  do  Caruão  donde  a  mandou 
carregar  conforme  lhe  pareceo,  prouandolas  outra  uez  com  três  tiros  hu  des- 
pois  outro,  pois  com  maior  uiolença  lançarão  o  pilouro  dobrado  espaço  do  que 
quando  se  dispararão  diante  de  Vossa  M.de  com  maior  admiração  do  Pouo  con- 
fusam  dos  fundidores,  e  honra  dos  supp.les;  os  quais  se  achão  tam  perseguidos 
e  mal  asseitos  do  ditto  Tenente,  pois  com  tanta  diligença,  e  trabalho  se  tem 
mostrado  de  assertarem  no  seruiço  de  Vossa  M.de  Pello  que  P.  a  V.  M.de  lhes 
faça  mercê  de  conceder  lhe  licença  para  se  irem  a  suas  terras  e  casas  pois  as 
dexauão  sem  remédio  fiados  nas  grandes  promessas  que  o  embaixador  lhe  fez 
de  parte  de  V.  M.de  com  contrato  firmado  de  sua  mão  e  chegados  a  este  Reino, 
ale  oie  não  tem  recebido  mais  que  muitas  molesetias  (sic),  o  que  mais  seDtem 
do  que  a  muita  miséria  com  que  tem  passado,  todo  o  tempo  referido  que  tem 
estado  neste  Reino,  e  R.  M. 

tO  muito  proueito  e  utilidade  que  nasce  da  artilheria  ligeira,  a  bondade 
e  a  prefeiçam  delia  e  quanto  seia  impossiuel  poder  se  fazer  artilheria,  de  bronze, 
de  menos  peso  da  regra  ordinária.  Primieramente  se  ha  de  saber,  que  despois 
de  se  hauer  feito  grandíssima  experiência,  e  se  se  podia  achar  modo  de  fun- 
dir artilberia  de  bronze,  de  Campanha  de  menos  da  regra  ordinária,  nascida 
de  muita  experiência,  em  diuersas  occasiois  de  guerra,  com  hauer  feito  pes- 
sas de  des,  oito  e  seis  quintais  finalmente  se  ha  visto  em  todas  as  partes  do 
mundo,  ser  impossiuel  poder  se  fabricar  artilheria  de  Campanha  de  quatro  li- 
bras de  baila  de  menos  peso  de  14  quintais  e  fazendo  se  fica  falsa  e  inútil  e 
de  nenhum  proueito,  e  se  algum  fundidor,  ou  sobre  intendência  de  tal  officio 
disier  differentemente  ou  dirá  por  puro  interesse  ou  não  intendera  soo  que 
diz,  conforme  constará  da  proua  dos  dittos  pezos  falsos,  se  tiuerem  fabricado 
algu  fora  da  regra  ordinária  da  fundição,  que  se  esto  poderá  ser  se  fiziera 
tambê  em  muitas  outras  fundisioins  do  mundo,  aonde  todos  dias  se  fundem, 
infinitas  pessas  de  artilharia,  pello  que  se  estima  tam  pouco,  a  inuensam  das 
pesas  piquenas  de  artilheria  de  Mansfelt,  cheas  de  chumbo  encameradas,  que 
se  fazem  em  Olanda,  tendo  se  uisto  por  experiência  que  sendo  qeotes  logo  re- 
bentão, alem  de  pulsar  mui  poço  a  baila  a  qual  inuensam,  sendo  conhecida, 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  45 

por  de  pouca  dura  e  pouco  effeito  não  foi  adraittida  em  parte  algnã  do  mundo, 
e  dentro  em  olanda  mesmo,  se  não  fas  estima  delias.  E  visto  que  a  artilheria, 
da  campanha  de  hum  instrumento  tam  necessário,  e  essencial  para  destruir  o 
exercito  euemigo,  e  alcançar  sinhaladas  uitlorias,  os  dous  irmãos  Francisco  e 
Júlio  Gentileschi,  vindo  de  Inglaterra  a  ordem  de  Dom  Antam  de  Almada,  em- 
baixador de  sua  mag.de  tem  inuentado  nua  sorte  de  artilheria  ligeira  a  mais 
perfeita,  e  a  milhor  para  correr  a  campanha  e  a  mais  ligeira  e  segura  que  se 
ha  inuentado  ale  agora,  pulsando  o  piloiro  de  qualquiere  de  bronze  fondida, 
o  dobrado,  a  qual  V.  M.de  fidalgos,  e  nobreza  desta  cidade  ha  uislo  com  seus 
olhos,  não  passando  mais  hQa  pessa  destas  o  peso  de  três  quintais  ou  treze 
arobas  leuandola  hu  home  as  costas  conforme  V.  Mag.de  tem  uisto  per  aqual 
ligeireza  se  uem  os  proueitos  seguentes. 

«Primieramente  serue  esta  artilheria  para  correr  a  campanha  e  fazerense 
senhores  delia  ainda  que  o  inimigo  tinha  dobrado  exercito. 

«Serue  para  destruir,  e  desbaratar  a  caualaria  e  certo  he  de  inexplica- 
uel  ualor  porque  repartida  em  diuersos  esquadrais,  dentro  de  quinhentos  o 
mil  cauallos  pode  de  fazer  e  abrazar  o  numero  de  outo  ou  des  mil  caualos, 
con  muita  facilidade  carregada  de  munisam  de  mosquete.  E  he  lambem  de 
grande  proueito  para  fazer  emboscadas,  e  sahir  de  improuiso  com  hu"  exercito 
em  campo  aberto  e  he  de  tal  effeito  que  com  pouca  gente  faz  alcançar  gran- 
des vitorias.  Serue  lambem  para  colher  e  aquirer  a  bagagem  do  enemigo  e 
os  canhois  de  bronze  que  marchão  muito  de  uagar.  E  he  utilíssima  para  se 
senhorear  hu  posto  alto  e  guardalo  e  defendelo  de  toda  a  força  do  enemigo 
infim  em  todas  as  occasiõis  e  em  qualquer  batalha  com  50  pessas  desta  arti- 
lharia repartida  em  muitos  esquadrais  se  alcançara  infaliuilmente  a  uitoria, 
com  grade  perda  do  enemigo,  e  em  qualquer  ocasiam  que  seia  necessária 
obrar  com  a  tal  artilheria  não  somente  de  repente  se  alcançara  dobrado  pro- 
ueito, do  guasto  feito,  mas  sem  comparaçam  algúa  muitas  vezes  em  dobro 
se  ganhara  o  guasto  que  nella  se  fizer  de  mais  da  honra  da  victoria,  que  não 
ha  dinheiro  que  a  pague;  e  se  se  duuidar  da  sua  dura  os  mestres  delia  asse- 
guram, com  a  mais  prouada  de  bronze,  como  se  uiu  na  primeira  peça  que  fi- 
zerão  para  proua  que  em  poucos  dias  tirou  mais  de  40  tiros  e  sempre  ficou 
fixa  e  segura  e  he  milhor  que  nunca,  tirando  sempre  tiros  dobrados,  carre- 
gando a  porem  com  a  sua  ordinária  carga  e  medida. 

«Esta  artilheria  se  esquenta  pouco  e  he  de  pouco  guasto  ou  custo  porque 
hum  so  cauallo,  pode  tirar  e  rastrar  hõa  peza  caualgada  com  grande  facilidade  e 
basta  hu  homen  a  gouernarla  de  manera  que  por  muitos  respeitos  he  de  respei- 
tos he  de  grandíssima  uantagem  a  de  bronze  que  faz  grandíssimo  gasto  a  con- 
dusila  e  gouernala.  E  quando  V.  Mag.de  se  queira  seruir  da  ditta  artilheria  a  qual 
não  pode  ser  feita  nem  fabricada  seoam  da  mão  destes  dous  irmãos  Gentiles- 


46  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

chi  pedem  a  V.  Mag.de  se  lhes  de  a  fabrica  de  toda  a  quantidade  necessária,  toda 
iunta  a  bQ  tempo  não  temdo  comodidade  como  forasteiros  para  a  fabricarem 
pouco  a  pouco  pois  no  mesmo  tempo  que  fazem  seis  pesas  podem  fazer  24 
que  mais  de  ficar  V.  Mag.de  seruida  prestamente  poderão  elles  supp.les  resis- 
tir aos  gastos  com  que  ategora  se  tem  emprobecido.  R.  M.»1 

iFrancesco  Genlileschi  flglio  d'Orazio  Pisano  insigne  Pittore,  dopo  la  morte 
dei  Padre  ando  a  Génova,  imparò  dal  Sarezana,  e  per  qualche  tempo  s'eser- 
cilò  col  Maestro  nel  colorire,  partito  che  fu  da  Génova,  passo  alfaltra  vita.  So- 
prani foi.  252.»* 

*Orazio  Gentileschi  Pisano  imparò  da  Aurélio  Lomi,  suo  maggiore  fratello 
uterino:  pratico  nel  colorire  ando  a  Roma;  piacque  ai  Pontefici,  ed  alli  Prin- 
cipi  il  suo  dolcissimo  stiíe:  1'anno  1621.  dagli  Ambasciadori  Genovesi  fu  a 
quella  Città  condotto,  e  lavorò  per  Savoja,  e  per  la  Francia,  dove  invilato  fer  - 
mossi  due  anni:  di  là  spedito  in  Iughilterra,  da  quel  Re  fu  provvisionato  di 
500.  lire  sterline  annue,  oltre  i  pagamenti  dei  lavori :  in  quella  Regia  si  fermò 
fino  alia  morte,  che  lo  sorprese  in  età  d'anni  48.  Gon  onorate  esequie  fu  se- 
polto:  ed  ebbe  riposo  nella  Cappella  delia  Regina,  sotto  1'Allare  Maggiore.  Las- 
ció  Artemísia  la  figlia  famosa  ritrattista.  Sandrart.  Soprani  foi.  319.  Baglioni 
foi.  359.  »3 

«Aurélio  Lomi  fratello  uterino  d'Orazio  Gentileschi,  Pittore  Pisano;  imparò 
da  suo  Padre  Gio:  Ratista.  Fu  molto  gradilo  in  Génova.  D'anni  58.  mori  nel 
1622.  Soprani  foi.  318.** 


XXVI. —  Gil  (Vicente).— O  seu  nome  é  exactamente  o  inverso  do  do 
grande  poeta,  que  alegrou  com  as  suas  farças  e  comedias  a  corte  manuelina. 
Era  pintor  de  D.  João  II  e  para  estar  sempre  prompto  em  todas  as  coisas  do 
seu  officio  lhe  passou  el-rei  uma  carta  de  privilegio,  em  que  o  tomava  por 
seu  e  lhe  permiltia  trazer  armas.  Esta  carta  foi  passada  em  Lisboa  a  16  de 
novembro  de  1491  e  é  do  teor  seguinte: 

«Dom  Joham  etc.  A  quamtos  esta  nosa  carta  virem  fazemos  saber  que 
querendo  nos  fazer  graça  e  merçe  a  Viçemte  Gill  pintor  morador  nesta  nosa 


1  Torre  do  Tombo.  Conselho  de  guerra.  Maço  2,  consulta  307. 
*L'Abecedario  pittorico.  In  Napoli  AIDCCXXX1II.  Pag.  165. 
1  Idem.  Pag.  345. 
*  Idem.  Pag.  78. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTOBES  47 

cydade  de  Lixboa  por  seruiços  que  delle  rrecebemos  e  por  que  a  d  estar  sem- 
pre prestes  pêra  nas  cousas  de  seu  oficio  nos  seruir  quamdo  e  omde  mandar- 
mos Temos  por  bem  e  filhamollo  por  noso  e  em  nosa  espeçiall  guarda  e  era- 
comenda  pello  quall  rogamos  e  emcomendamos  e  mandamos  a  todos  em  ge- 
rall  e  a  6ada  hum  em  espeçiall  que  pello  nosso  daquy  em  diamte  bo  homrem 
trautem  bem  e  fauoreçam  como  cousa  nosa  de  que  temos  carguo  e  asy  que- 
remos que  nom  seja  comstrangido  pêra  de  seu  oficio  nem  doutro  carguo  nem 
officio  allgum  seruir  comtra  sua  uontade  saluo  per  noso  espeçiall  mandado  e 
asy  nos  praz  que  per  todos  nosos  Regnos  e  Senhorios  e  asy  demtro  nesta  ci- 
dade de  Lixboa  posa  de  noite  e  de  dia  trazer  armas  sem  lhe  serem  tomadas 
nem  por  ello  emcorrer  em  pena  allgúa  sem  embarguo  de  nosas  leis  e  horde- 
naçõees  e  defesa  em  comtrairo  e  porem  mandamos  a  todollos  nosos  correge- 
dores allcaides  meirinhos  juizes  justiças  ofiçiaes  e  pesoas  a  que  estas  cousas 
e  cada  nua  delas  per  quallquer  maneira  pertemçer  que  lhe  guardem  e  cum- 
pram e  façam  ymteyramente  guardar  e  comprir  esta  nosa  carta  e  todalas  cou- 
sas em  ella  comtheudas  sem  duujda  nem  embarguo  allgum  por  que  assy  he 
nosa  merçee.  Dada  em  a  nosa  cidade  de  Lixboa  a  xvj  dias  de  nouembro  — 
Ruj  de  Pina  a  fez  ano  de  mjll  iiijc  nouemta  hum  etc.  nom  seja  duujda  no  rres- 
pamçado  homde  diz  alcajdes  meyrjnhos  porque  eu  espriuam  o  corego  por  ver- 
dade ao  comçertar.»1 


XXVII. —  Góes  (Manuel  António  de). —  Entre  os  discípulos  e  ajudantes 
de  Cyrillo  Voíkmar  Machado,  de  que  elle  trata  a  pags.  218  da  sua  Collecção 
de  Memorias,  vem  mencionado  um  Manuel  António  de  Góes,  pae  de  Bernardo 
António  d'01iveira  Góes.  A  este  propósito  escreve  o  seguinte: 

«Concedido  por  Sua  Magestade,  tive  por  meu  Ajudante  nas  Obras  Reaes, 
de  Mafra,  e  Ajuda,  Bernardo  António  d'01iveira  Góes,  filho  de  Manuel  António 
de  Góes,  natural  do  lugar  da  Lobageira  Freguezia  de  S.  Domingos  da  Fanga 
da  Fé,  termo  da  Villa  de  Torres  Vedras:  seu  pae  também  foi  pintor  de  figura 
empregado  pelo  Marquez  de  Pombal  na  fabrica  de  azulejos,  da  qual  se  reti- 
rou para  as  províncias  por  desgosto  de  intrigas:  pintou,  em  Torres  Vedras  na 
Casa  do  Despacho  da  Irmandade  dos  Clérigos  Pobres  na  Igreja  de  S.  Pedro, 
etc.» 

Na  Chancellaria  de  D.  José  acha-se  registada  uma  carta  de  22  de  setem- 
bro de  1775,  concedendo  licença  a  Pedro  Correia  de  Almeida  e  Menezes  para 


1  Torre  do  Tombo.  Chancellaria  de  D.  Jo5o  II.  L.*  2,  fl.  123  v. 


48 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


que  pudesse  aforar,  pelo  preço  de  trinta  alqueires  de  trigo,  trinta  de  cevada  e 
quatro  gallinhas,  a  Manuel  António  de  Góes,  o  casalinho  da  Serra,  ao  pé  do 
logar  da  Lobageira,  termo  da  villa  de  Torres  Vedras,  o  qual  fazia  parte  do 
seu  morgado. 

A  pags.  25  do  interessante  opúsculo  do  sr.  Gabriel  Pereira,  Torres  Vedras 
—  Notas  de  arte  e  archeologia,  citam-se  uns  quadros  de  azulejo  existentes  na 
Casa  da  irmandade  dos  Clérigos  pobres,  que  talvez  sejam  devidos  ao  pincel 
de  Manuel  António  de  Góes  ou  de  seu  filho.  O  modesto  e  consciencioso  artista, 
em  vez  de  os  rubricar  com  o  seu  nome,  levou  a  sua  ingenuidade  e  escrúpulo 
ao  ponto  de  transcrever  as  assignaturas  dos  auctores  das  gravuras,  que  lhe 
serviram  de  modelo  —  Author  Claud.  Coell.  delin.  Franc.  Houat  sculp. 

Esta  particularidade  torna-se  digna  de  reparo  por  dois  motivos. 

Em  primeiro  logar  dá-nos  conhecimento  de  uma  obra  executada  em  ce- 
râmica devida  ao  desenho  de  um  pintor  eminente  do  século  xvu,  que  alguns 
teem  considerado  nosso  compatriota,  mas  que  apenas  é  filho  de  pae  portuguez, 
como  succede  com  Velasquez,  o  insigne  chefe  da  escola  naturalista  de  Hes- 
panha. 

Em  segundo  logar  tem-se  aqui  uma  prova  de  que  a  maior  parte  dos  qua- 
dros de  azulejo  não  passam  de  copias  de  gravuras  ou  desenhos  dos  quadros 
de  maior  nomeada.  Se  um  dia  se  proceder  ao  inventario  dos  azulejos  orna- 
mentaes  e  de  figura  existentes  no  nosso  paiz,  ter-se-ha  de  effectuar  este  con- 
fronto. 

«Dom  Joze  etc.  Faço  saber  que  Pedro  Corrêa  de  Almeyda  e  Menezes  Me 
reprezentou  por  sua  petição  que  entre  as  propriedades  que  possuía  e  era  ad- 
ministrador do  seu  Morgado  tinha  um  cazalinho  chamado  da  Serra  ao  pe  do 
Lugar  da  Lobageira  termo  da  villa  de  Torres  Vedras,  o  qual  lhe  rendia  trinta 
alqueires  de  trigo,  e  trinta  de  sevada  e  se  achava  em  total  dannificação  e  por- 
que lhe  queria  aforar  o  dito  cazal  Manuel  António  de  Góes  morador  no  dito 
Lugar  e  lhe  dava  de  foro  os  ditos  trinta  alqueires  de  trigo  e  trinta  de  sevada 
e  de  mais  quatro  gallinhas  e  pagar  a  decima  a  sua  custa  o  que  será  de  grande 
utilidade  ao  suplicante  e  para  seus  subcessores  e  porque  so  não  podia  fazer  o 
dito  aforamento  sem  licença  minha  me  pedia  lhe  fizece  mercê  conceder  lhe  Pro- 
vizão  para  o  referido  aforamento  na  forma  costumada.  E  visto  o  que  alegou  e 
informação  que  se  houve  pello  Corregedor  da  comarca  de  Torres  Vedras  ou- 
vindo a  Immediata  subcessora  que  não  tem  duvida,  e  constar  que  andando  o 
dito  Cazal  a  pregão  na  praça  os  dias  do  Estillo  não  houvera  mayor  lanço  do 
que  os  ditos  trinta  alqueires  de  trigo  e  trinta  de  sevada  e  quatro  gallinhas  li- 
vres para  o  suplicante  que  lhe  oferecia  o  dito  Manoel  António  de  Góes  em  cada 
hum  anno  o  qual  cazal  vallia  de  principal  duzentos  oitenta  mil  reis:  Hey  por 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  49 

bem  fazer  mercê  ao  supplicante  de  que  para  aforar  o  casal  de  que  se  trata  sem 
embargo  de  ser  de  Morgado  e  das  Clauzullas  de  sua  instituição  pello  referido 
foro  de  trinta  alqueires  de  trigo  e  trinta  de  sevada  e  quatro  galinhas  livres 
que  lhe  offerece  em  cada  hum  anno  o  dito  Manoel  António  de  Góes.  E  esta 
Provizão  se  cumprira  como  nella  se  contem  e  vallerá  posto  que  seo  effeito  haja 
de  durar  mais  de  hum  anno  sem  embargo  da  ordenanção  L.°  2.°,  tititulo  40  em 
contrario,  e  se  tresladara  na  Escriptura  que  se  fizer  deste  aforamento  no  Tombo 
e  instituição  delle  mesmo  Morgado  para  a  todo  o  tempo  constar  que  eu  assim 
o  houve  por  bem.  De  que  se  pagou  de  novos  direitos  dois  mil  seiscentos  e  vinte 
reis  que  se  carregarão  ao  Thesoureiro  delles  a  fi.  138  v.  do  Livro  41  de  sua 
receita  e  se  registou  a  carta  em  forma  no  Livro  30  do  registo  geral  a  fl.  12. 
EIRey  Nosso  Senhor  o  Mandou  pellos  Menistros  abaixo  asinados  do  seu  Con- 
selho e  seus  Desembargadores  do  Paço.  Thomé  Lourenço  de  Carvalho  a  fes 
em  Lisboa  a  22  de  setembro  de  1775.  Desta  outocentos  reis  e  de  asinar  960 
reis.  António  Pedro  Virgollino  a  fes  escrever.  Pedro  Viegas  de  Novaes  —  Joze 
Ricalde  Pereira  de  Castro.  Por  despacho  do  Dezembargo  do  Paço  de  23  de 
Agosto  de  1775.  E  em  observância  da  Ley  de  24  de  Julho  de  1713.  António 
Joze  de  Affonceca  Lemos.  Pagou  quatro  centos  reis  e  os  officiaes  mil  e  des 
reis.  Lisboa  23  de  setembro  de  1775.  Don  Sebastião  Moldonado.»1 


XXVIII.— Gomes  (Affonso).— Já  tratei  d'elle  na  primeira  serie  d'estas 
Memorias.  As  duas  circumstancias,  que  tenho  agora  a  accrescentar,  não  valo- 
risam  a  sua  biographia  e  apenas  determinam  mais  datas. 

No  dia  9  de  agosto  de  1498,  estando  Affonso  Gomes  nas  casas  de  Fer- 
não d'Alvares  Rebello,  ahi  serviu  de  testemunha  a  um  contracto  de  encam- 
pamento  e  renunciação  de  três  courellas,  que  o  mesmo  bacharel  e  sua  mulher 
traziam  emprazadas,  no  sitio  de  Campolide,  a  Nuno  Pereira,  fidalgo  da  casa 
d'el-rei,  do  seu  conselho  e  administrador  da  capella  de  Luiz  Eanes,  seu  avô. 
As  courellas  foram  de  novo  emprazadas  a  Álvaro  Affonso,  homem  da  alfan- 
dega. 

O  respectivo  contracto  conserva-se  hoje  na  Torre  do  Tombo,  no  cartório 
que  pertenceu  ao  convento  dos  Paulistas,  e  não  obstante  ser  assaz  extenso 
reproduzo-o  aqui  na  integra,  não  só  por  illustrar  a  historia  da  capella  de  Luis 
Eanes,  mas  também  por  ministrar  curiosas  informações  para  a  topographia 
do  sitio  de  Campolide. 

Com  antecedência  de  dois  annos  apparece  também  outro  contracto  de  na- 
tureza idêntica,  em  que  Affonso  Gomes  figura  como  testemunha.  Insiro  aqui 


1  Torre  do  Tombo.  Chancellaria  de  D.  José.  L.«  35,  fl.  337  v. 
Setembro,  1906. 


50  NOTICIA  DE  ALGUMS  PINTORES 

um  extracto  d'esse  documento,  que  é  muito  interessante  para  a  historia  dos 
hospitaes  velhos  de  Lisboa,  e  do  novo,  em  que  todos  aquelles  se  vieram  a 
fundir. 

«Aos  8  de  julho  de  1496,  amte  a  porta  principall  da  see  delia  mesma 
honde  sse  faz  a  audiência  dos  spritaes,  perante  o  mestre  escola  Estevão  Mar- 
tins, provedor  mór  e  juiz  dos  hospitaes,  albergarias,  confrarias  e  capellas  pa- 
receram Thomé  Fernandes,  carpinteiro,  morador  en  Lisboa,  citado  por  L.co 
de  Évora,  porteiro  dos  ditos  hospitaes,  por  causa  de  umas  casas  que  fora  hos- 
pital de  João  de  Braga,  sitas  na  rua  dos  Arcos  que  lhe  foram  aforadas  pelo 
provedor  João  Alves  Portocarreiro  pela  conta  que  apresentou  de  13  de  jan. 
de  1492,  feitas  na  horta  de  S.  Domingos  onde  se  está  construindo  o  hospital 
real,  da  qual  foram  testemunhas  Afonso  Gomez  pintor  delRey  nosso  senhor 
e  Fernão  Gomes  escudeiro  de  El  Rei  e  Recebedor  da  obra  do  Hospital  e  Lopo 
Roiz  carpinteiro,  e  tendo-o  verificado  que  ellas  andaram  em  pregão  o  tempo 
da  lei  e  se  tinham  observado  as  solemnidades  legaes  foram  confirmadas  ao  re- 
ferido Thomé  Fernandes  e  sua  mulher.  De  10  de  fevereiro  de  1500  é  a  carta 
da  confirmação  de  D.  Manuel  do  emprasamento  de  6  de  julho  de  1496.»1 

«Em  nome  de  deus  amem.  Saibam  os  que  este  estromento  denpma- 
mento  virem  que  no  ano  do  naçimento  de  noso  senhor  Jhesu  cristo  de  mjll  e 
quatro  centos  e  noueenta  e  oyto  anos  noue  dias  do  mes  d  agosto  na  cidade  de 
lixboa  dentro  nas  casas  em  que  ora  pousa  nuno  pereira  ffidalguo  da  casa  dei 
Rey  noso  senhor  e  do  seu  conselho  estando  hi  o  dito  nuno  pereira  em  sua 
presença  e  de  mym  tabelliam  e  testemunhas  pareceo  hi  o  bacharell  ffernand 
aluarez  rrabelo  cidadãao  da  dita  cidade  e  em  ela  morador  e  loguo  per  ele  ffoy 
dito  ao  dito  nuno  pereira  que  ele  tem  e  anaffomso  sua  molher  e  trazem  três 
courelas  de  vinhas  com  suas  oliueiras  e  aruores  que  pertencem  a  ele  nuno 
pereira  como  menjstrador  que  he  da  capela  de  lujs  eanes  seu  avoo  que  deus 
aja  as  quaes  sam  em  Campolide  termo  da  dita  cidade  asi  como  partem  a  sa- 
ber hua  delias  parte  com  vinha  que  ffoy  de  bento  fíernandez  e  com  outra 
vinha  que  foy  mato  de  sam  bras  e  emtesta  em  vinha  que  foy  de  gonçallò  pa- 
checo.  E  a  outra  parte  com  vinhas  que  foram  erdade  de  sam  bras  de  duas 
partes  e  com  camjnho  de  ereeos.  E  a  outra  parte  com  gonçallò  pacheco  e  com 
vinha  que  foy  de  fernam  Louremço  e  com  o  dito  caminho  de  ereeos  e  com 
outras  confrontaçõees  com  que  de  dereilo  deuem  de  partir.  As  quaes  três  cou- 
rellas  asi  trazem  ele  e  a  dita  sua  molher  per  titolo  d  emprazamento  em  ujdas 
de  três  pesoas  das  quaes  a  dita  sua  molher  he  a  terceira  e  paguam  delias  em 


•  Torre  do  Tombo.  Chancellaria  de  D.  Manuel.  L.°  17,  fl.  51. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  51 

cada  hum  anno  de  foro  e  pensam  trezentos  reaes  destes  ora  correntes  de 
trinta  e  cinco  liuras  o  rreall  e  hum  par  de  framgos  segundo  todo  esto  melhor 
e  mais  compridamente  se  contem  em  contrauto  dello  feito  a  hum  Aluaro 
Afomso  homem  d  allfíimdega  da  dita  cidade.  E  que  ora  ele  dito  bacharell  per 
si  e  em  nome  da  dita  sua  molher  de  que  fica  de  dar  sua  outorga  por  algu- 
mas rrezões  que  ho  a  elo  mouem  rrenuncia  como  loguo  de  feito  renunciou  as 
ditas  três  courellas  de  vinhas  com  suas  oliueiras  e  amores  e  emprazamento 
delias  e  direito  que  era  elas  tem  em  mãao  e  poder  do  dito  mino  pereira  que 
asi  presente  estaua  a  que  pertencem  como  menjstrador  que  delias  he  e  pêra 
delas  fazer  o  que  quiser  e  por  bem  teuer  como  de  sua  cousa  que  sam.  E 
vista  a  dita  rrenunciaçam  per  o  dito  nuno  pereira  dise  ele  nuoo  pereira  que 
as  rrecebia  e  aceptaua  em  si  e  que  daua  como  de  feito  deu  o  dito  bacharell 
e  asi  a  dita  sua  molher  por  qujtes  e  por  liures  delas  e  de  qualquer  foro  e 
pensam  em  que  lhe  obriguados  eram  atee  ora  e  os  da  como  de  feito  deu  por 
desatados  das  condições  obrigações  conteudas  no  dito  contrauio.  E  rrecebida 
a  dita  emcãpaçam  e  rrenunciaçam  como  dito  he  dise  o  dito  nuno  pereira  que 
ele  por  o  semtir  por  seu  proueito  e  proueito  e  honra  da  dita  capela  empra- 
zaua  como  loguo  de  feito  emprazou  ora  nouamente  a  Joam  diaz  escudeiro  e 
tabellião  do  çiujll  na  dita  cidade  e  em  ella  morador  na  rua  das  esteiras  que 
no  presente  estaua  e  a  briatiz  martinz  sua  molher  as  ditas  três  courellas  de 
vinhas  com  todas  suas  oliueiras  e  aruores  em  cima  conteudas  no  modo  e  ma- 
neira que  as  o  dito  bacharell  e  sua  molher  trazem  asi  como  partem  com  as 
ditas  confrontações  e  com  todas  suas  entradas  e  saidas  e  logradoiros  dereitos 
e  pertenças  asi  como  todo  tem  e  como  todo  pertence  a  dita  capela  esto  em 
ujdas  de  três  pesoas  a  saber  que  ele  dito  Joam  diaz  e  a  dita  briatiz  martinz 
sua  molher  sejam  ambos  juntamente  a  primeira  pesoa  e  o  derradeiro  delles 
que  vyuo  ficar  posa  nomear  a  segumda  pessoa  e  a  segunda  per  o  derradeiro 
delies  nomeada  posa  nomear  a  terceira  em  tal  guisa  que  per  o  modo  sobre- 
dito sejam  três  pesoas  ao  dito  prazo  e  mais  nom.  E  dise  mais  o  dito  nuno 
pereira  que  por  quanto  as  ditas  courelas  estam  a  mayor  parte  delas  ja  pos- 
tas em  estacall  doliueiras  que  se  ele  dito  Joam  diaz  e  a  dita  sua  molher  sen- 
tirem por  seu  proueito  de  as  teerem  e  fazerem  em  oliuaaes  que  as  ponham 
todas  destacas  doliueiras  e  as  dem  presas  e  aproueitadas  de  boas  estacas  todas 
pouoradas  em  maneira  que  dem  azeite  e  as  corregam  a  saber  eles  como  as 
pesoas  que  depois  deles  vierem  per  nomeaçam  em  oliuaaes  e  as  corregam  a 
saber  de  cauar  ou  laurar  amotar  alinpar.  E  se  o  nom  sentirem  por  seu  pro- 
ueito de  as  teerem  em  oliuall  que  as  façam  refaçam  em  vinhas  de  boas  pram- 
tas  e  as  corregam  descauar  podar  amergulhar  cauar  empaar  tapar  arrendar 
e  asj  de  todos  e  quaaesquer  outros  adobios  corregjmentos  que  lhe  a  todo  mes- 
ter fezer  todo  em  cada  hum  anuo  a  seus  tempos  e  sazões  em  tall  gujsa  que 


52  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

senpre  era  as  ditas  três  vidas  andem  em  oliuaaes  ou  em  vinhas  ande  todo  muj 
bem  corregjdo  e  aproueitado  melhorado  e  nom  peyorado  posto  que  todo  ou 
parte  pereça  per  agua  ou  per  foguo  ou  terremotos  ou  per  quall  quer  ou- 
tro fortuyto  ou  nom  furtuylo  que  avijr  posa  que  todo  eles  façam  e  rrefaçam 
a  suas  custas  e  próprias  despesas  e  que  dem  e  pagem  em  cada  huum  anno 
aas  ditas  três  ujdas  de  foro  e  pensam  por  natall  a  ale  nuno  pereira  e  asy  a 
quaaes  quer  outros  que  depois  dele  vierem  por  mjnjstradores  da  dita  capela 
trezentos  reaes  ora  correntes  de  trinta  e  ciuquo  liuras  o  rreal  e  dous  fran- 
goos  viuos  espertos  bõos  e  de  rreceber  ou  trinta  reaes  por  eles  começando 
de  fazer  a  primeira  paga  por  natall  este  primeiro  que  vem  em  que  se  come- 
çara o  anno  de  quatrocentos  nouenta  e  ooue  annos  e  asi  di  em  diante  em 
cada  hum  anno  nas  ditas  três  vidas  as  quaes  três  courellas  de  vinhas  ou 
oliuall  em  que  estiuerem  nem  praso  delias  nom  poderão  dar  nem  doar  trocar 
nem  escaybar  partir  nem  espedaçar  nem  em  outra  nenhuma  maneira  de  si 
trespassar  a  nenhuma  pessoa  das  em  direito  defesas  e  se  as  vender  quiserem 
que  ho  façam  primeiro  saber  ao  senhoryo  que  a  tall  tempo  for  se  as  quer 
tamto  por  larato  quanto  por  elas  derem  per  a  dita  capela  que  as  aja  e  se  as 
nom  quiser  que  em  tall  caso  as  posam  vender  a  tall  pesoa  que  nõ  seja  das 
sobreditas  mas  seja  tall  que  guarde  mantenha  as  condições  deste  e  que  lhe 
de  seu  foro  e  pensam  e  sua  corentena.  E  que  findas  as  ditas  três  pesoas  que 
as  ditas  três  courellas  de  vinhas  ou  oliuaaes  fiquem  loguo  ao  dito  senhorio  todo 
niuy  bem  corregido  aproueitado  melhorado  e  nom  peyorado  com  todas  suas 
bemfeitorias.  E  ele  nuno  pereira  promete  e  se  obrjga  de  lhe  senpre  ter  com- 
prir  e  manteer  este  estromenlo  de  contra[uto]  e  de  lho  nunca  reuogar  nem 
contradizer  e  de  lhe  todo  fazer  boom  e  liure  de  quallquer  pesoa  ou  pesoas 
que  lhe  sobre  elo  algua  briga  ou  embarguo  poseram  e  de  se  a  elo  dar  por 
autor  defensor  so  pena  de  lhe  pagar  quaaesquer  custas  despesas  perdas  da- 
pnos  que  por  elo  fizerem  e  rreceberem  e  com  vinte  reaes  em  cada  hum  dia 
de  pena  per  todolos  bêes  seus  asy  mouees  como  Raiz  e  os  da  dita  capela 
que  pêra  elo  obrigou.  E  ele  Joam  diaz  em  seu  nome  e  da  dita  sua  molher  e 
pesoas  tomou  e  rrecebeo  aceptou  em  sy  e  pêra  sy  as  ditas  três  courelas  de 
vinhas  demprazamento  nas  ditas  três  ujdas  com  as  ditas  condições  obrigações 
adobios  susu  ditos  os  quaes  se  obriga  de  ele  e  a  dita  sua  molher  e  pesoas  sen- 
pre teerem  conprirem  manterem  e  de  lhe  darem  e  pagarem  em  cada  hum  ano 
o  dito  foro  e  pensam  de  trezentos  reaes  dous  framgos  como  em  cima  faz  men- 
çam  so  pena  de  lhe  todo  comprirem  pagarem  com  quaes  quer  custas  despesas 
perdas  dapnos  que  por  elo  fezerem  e  rreceberem  e  com  os  ditos  vinte  reaes 
em  cada  hum  dia  de  pena  per  todos  seus  beens  asy  moues  como  de  Raiz  e  os 
da  dita  sua  molher  e  das  ditas  pesoas  asy  mouees  como  de  Raiz  que  pêra  ello 
obrigou.  E  em  testemunho  delo  as  ditas  partes  presentes  asi  bo  outorgaram 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  53 

e  mandaram  ser  feitos  seDhos  estromentos  testemunhas  que  no  presente  fo- 
ram lujs  d  almeida  fidalguo  da  casa  do  dito  senhor  e  Joam  rrodriguez  es- 
cudeiro do  dito  nuno  pereira.  E  depões  desto  no  dito  dia  na  dita  cidade  den- 
tro nas  casas  da  morada  do  dito  bacharell  estando  hi  a  dita  anafonso  sua  mo- 
lher  e  loguo  per  ela  foy  dito  que  outorgaua  como  de  feito  outorgou  a  dita 
encanpaçam  e  rrenunciaçam  que  o  dito  seu  marido  fez  das  ditas  três  courellas 
de  vinhas  e  se  obriga  de  a  nunca  rreuogar  nem  contradizer  per  si  nem  per 
outrem  em  seu  nome  so  a  pena  conteuda  no  dito  contrauto  per  todos  seus 
bêes  asy  moues  como  de  Raiz  que  pêra  ello  obrjgou  testemunhas  afomso  guo- 
mez  pintor  dei  Rei  noso  senhor  e  aluaro  fernandez  creliguo  de  missa  que 
canta  em  sam  niculaao.  E  eu  fernam  rrodriguez  pubrico  tabelliam  per  autori- 
dade d  El  Rei  noso  senhor  na  dita  cidade  e  em  seu  termo  que  este  estormento 
per  mandado  e  otuorgamenlo  das  ditas  partes  per  o  dito  Joam  diaz  espreuj 
e  aqui  meu  signal  fiz  que  tall  he. — Logar  do  signal  publico.— lxxx  rs.»1 


XXIX.— Gomes  (Manuel).— A  respeito  d'este  pintor  forneceu-me  gentil- 
mente o  sr.  dr.  Luiz  de  Figueiredo  da  Guerra  os  seguintes  apontamentos: 

Livro  das  Obras  da  egreja  da  Misericórdia  de  Vianna  no  anno  de  1720, 
a  fl.  69: 

Ao  pinlor  Manuel  Gomes  pela  pintura  do  tecto, 
debaixo  do  coro,  capella  mór,  clarabóia  e 
painel  da  bocca  do  throno 685)5783  rs. 

Azulejos  de  Relem,  que  vieram  em  48  caixões  no 
patacho  N.a  Sr.a  da  Victoria,  e  transporte 
desde  Lisboa 649$108  rs. 

Mais  120  azulejos  para  o  coro 4)5320  rs. 

(NB.  Estes  perderam-se  e  fizeram  nova  encommenda  para  o  coro.) 

No  Livro  de  Receita  e  Despeza  de  1722,  a  fl.  246: 

Ao  mestre  azulejador  Manuel  Borges,  da  cidade 
de  Lisboa,  por  948  azulejos  de  brutesco  fino 
para  o  coro,  á  razão  de  30  mil  reis  por  mi- 
lheiro        28)5440  rs. 


i  Torre  do  Tombo.  Convento  dos  Paulistas.  Maço  1,  n.»  9. 


54  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


XXX. — Gonçalves  (Álvaro). — Vivia  no  reinado  de  D.  Affonso  V  e  devia 
ser  artista  de  bastante  merecimento  a  ajuizar  por  um  contracto  celebrado  em 
13  de  outubro  de  i'»60,  no  paço  episcopal  de  Évora,  entre  elle  e  o  bispo  da 
mesma  cidade,  D.  Vasco,  fundador  do  convento  do  Espinheiro,  de  frades  da 
Ordem  de  S.  Jeronymo,  e  do  de  Santa  Clara. 

Por  este  contracto  ou  avença  se  compromettia  o  mencionado  artista  a  exe- 
cutar dois  grandes  retábulos  em  madeira  de  bordos,  medindo  cada  um  seis  co- 
vados  e  meio  de  largo  e  nove  e  meio  de  alto,  sendo  um  d'elles  para  o  altar-mór 
de  Santa  Maria  do  Espinheiro  e  o  outro  para  idêntico  logar  em  Santa  Clara. 

Exigia  o  bispo  que  estes  quadros  fossem  dos  melhores,  senão  os  melho- 
res, que  se  vissem  em  Portugal,  em  harmonia  com  os  últimos  esbocetos  ou 
mostras  apresentadas. 

Além  dos  retábulos,  Álvaro  Gonçalves  obrigava-se  mais  a  pintar  quatro 
capellas;  três  no  Espinheiro— a  capella-mór  e  as  duas  do  cruzeiro— e  a  quarta, 
finalmente,  a  capella-mór  de  Santa  Clara. 

Devendo  todo  este  trabalho  ficar  concluído  no  prazo  de  um  anno,  tudo  leva 
a  crer  que  Álvaro  Gonçalves  não  o  executasse  sósinho,  mas  que  houvesse  deuti- 
lisar-se  do  auxilio  de  outros  ofliciaes.  No  contracto  uão  se  estipula  o  preço  da 
obra  e  só  se  declara  a  pena,  ou  multa,  a  que  ficava  sujeito  o  artista  se  não  se  des- 
empenhasse cabalmente  do  seu  encargo  na  época  determinada.  Por  esta  quantia, 
cem  mil  reaes  brancos,  se  pôde  calcular  approxiinadamente  o  valor  da  pintura. 

O  pergaminho,  em  que  foi  lavrado  este  contracto,  conserva-se  hoje  na 
Bibliotheca  Publica  de  Évora,  e  d'elle  deu  copia  o  sr.  A.  F.  Barata  no  seu 
opúsculo  Breve  memoria  histórica  do  mosteiro  de  Nossa  Senhora  do  Espinheiro, 
publicado  em  Évora  em  1900. 


XXXI.— Leonardo.— Era  pintor  flamengo,  ignorando-se  o  seu  appellido 
ou  qualquer  outra  circumstaucia  biographica.  Em  1619  existia  ainda  a  sua 
viuva,  Catharina  de  Baste,  moradora  em  Lisboa,  na  rua  que  vae  por  cima  do 
Corpo  Santo.  Em  casa  delia  residia  Matinas  Mathia,  natural  de  Anvers,  filho 
de  Godifredo  Mathia  e  Inês  de  Tilde.  Era  tocador  de  alaúde,  não  sei  se  de 
profissão,  se  por  mera  curiosidade. 

Em  5  de  dezembro  d'aquelle  anno  fora  elle  passar  o  dia  a  casa  de  Chris- 
tiano  Lamguel,  allemão,  mercador  de  trigo,  morador  por  detraz  de  S.  Gião 
ou  Julião,  que  n'aquelle  dia  dava  banquete  a  alguns  estrangeiros,  sendo  o 
Mathias  convidado  para  alegrar  a  festa  com  o  seu  instrumento.  Depois  de  jan- 
tar, estando  todos  juntos  em  folgazão  convívio,  como  è  fácil  suppôr,  passou 


NOTICIA  DR  ALGUNS  PINTORES  55 

pela  ma,  eram  4  da  tarde,  um  cego  cantando  e  vendendo  papeis  avulsos.  Cui- 
dando Matbias  que  as  canções  impressas  eram  as  mesmas  que  entoava,  man- 
dou comprar  uma  e  trouxeram-lhe  um  quarto  de  papel,  tendo  no  alto  da  pa- 
gina a  imagem  de  Nossa  Senhora,  ao  que  julgava.  Foi  dobrando  o  papel,  do- 
brando, até  que  por  ultimo,  por  distracção,  atirou  com  elle  á  rua,  sem  ter  exa- 
cta consciência  do  que  fazia,  o  que  não  era  para  admirar,  attendendo  ao  en- 
thusiasmo  em  que  todos  se  achavam  depois  do  lauto  festim. 

Ao  cahir  da  noite,  uns  visinhos  defronte,  maliciosamente  talvez,  por  ha- 
verem observado  o  facto,  perguntaram  da  janella  se  Ibes  queriam  dar  a  ima- 
gem que  compraram. 

Foi  então  que  Mathias  cahiu  em  si,  retirando-se  envergonhado  e  confun- 
dido pelo  mal  involuntário  que  fizera.  No  dia  seguinte  foi  logo  ao  convento  de 
S.  Domingos  procurar  um  frade,  que  sabia  a  sua  lingua,  e  consultou-o  sobre 
o  procedimento  que  lhe  cumpria  adoptar.  Certamente  o  frade  o  aconselhou  a 
comparecer  sem  tardança  perante  os  juizes  inquisitoriaes.  Com  elle,  como  seu 
interprete,  se  apresentou,  pois,  perante  o  Santo  Officio  a  confessar  a  sua  im- 
pensada culpa  e  a  pedir  d'ella  perdão  e  o  castigo  que  merecesse.  O  terrível 
Tribunal  limitou-se  a  perguntar-lhe  se  elle  não  cria  nas  imagens  sagradas,  ao 
que  respondeu  que  era  catholico,  filho  de  pães  catholicos,  e  que,  n'esta  quali- 
dade, lhes  prestava  o  culto  preceituado  pela  Egreja.  O  inquisidor  recommen- 
dou-lhe  que  não  sahisse  de  Lisboa  sem  prevenir  o  Santo  Officio  e  que  no  seu 
Tribunal  se  apresentasse  todas  as  quintas-feiras. 

O  dominicano  que  o  acompanhou  e  serviu  de  interprete  chamava-se  Frei 
Jeronymo  Valuano. 

«Aos  noue  dias  do  mez  de  Dezembro  do  anno  de  seiscentos  e  desanoue 
em  esta  cidade  de  lisboa  nos  estaos  e  caza  do  despacho  do  santo  officio  Em 
audiência  de  pola  manhã  estando  nella  o  senhor  frej  António  de  Souza  depu- 
tado do  santo  officio  de  comissão  dos  senhores  Jnquisidores  perante  elle  pa- 
receo  Matias  matia  framenguo  natural  de  Emuers  filho  de  Godifredo  mathia  e 
Jnes  de  tilde  morador  de  presemte  nesta  cidade  na  Rua  que  uaj  per  cima  do 
Corpo  Santo  ê  caza  de  caterina  de  Baste  viuva  de  hQ  pintor  framêguo  cha- 
mado Leonardo.  E  disse  ser  de  vimte  e  quoatro  annos;  dizendo  que  ujnha  con- 
fessar hú  descujdo  que  lhe  acõtesera  do  quoal  se  podia  seguir  algum  escân- 
dalo a  pêra  en  tudo  dizer  uerdade  e  ter  segredo  lhe  foj  dado  juramento  dos 
santos  Euangelhos  em  que  elle  pos  sua  raão  e  sob  carguo  delle  prometeo  de 
assy  o  fazer  e  por  não  saber  falar  bem  portuguez  foj  tãobem  dado  juramento 
ao  padre  presentado  frej  Jerónimo  Valuano  Relligioso  e  morador  em  são  do- 
minguos  desta  cidade  pêra  que  bem  e  fielmente  fizesse  o  officio  de  jnterprete 
E  en  tudo  dissesse  uerdade  e  tiuesse  segredo  sob  carguo  do  qual  prometeo 


56  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

de  assi  o  fazer  E  o  dito  mathias  mathia  per  seu  jnterprete  disse  que  quinta 
feira  próxima  passada,  cinco  deste  presente  mez  de  dezembro,  ajuntandose 
elle  detrás  de  são  Jião  em  caza  de  Christiano  lamguel  Alemão  mercador  de 
triguo  por  ser  ahi  chamado  pêra  tanger  hu  alaúde  em  nu  banquete  que  o  dito 
Christouão  (sic)  languel  daua  a  hús  extranjeiros  a  que  elle  não  sabe  o  nome  es- 
tando assi  todos  juntos  despois  de  jantar  polias  quoatro  horas.  E  estando  assi  to- 
dos juntos  ca  dita  casa,  passou  polia  rua  quautando  hu  ceguo  e  cujdando  elle 
confidente,  que  o  ceguo  uemdia  as  cantiguas  que  cantaua  mandou  comprar 
bua  delias  e  lhe  trouxerão  hu  quarto  de  papel  com  hua  jmmagem  de  nossa 
senhora  segundo  lhe  parece;  a  quoal  elle  tomou  e  a  foi  dobrando  em  algúa 
dobras  e  auendo  cousa  de  mea  hora  que  assi  dobrada  a  tinha  na  mão  che- 
gandosse  á  janella  a  lançou  na  Rua  sem  aduirlir  o  que  fazia  por  andarê  co- 
mêdo  e  bebendo  e  folgando  todos.  E  despois  a  nojte  diguo  junto  a  nojte  os 
uesinhos  de  defronte  chamarão  da  janella  dizemdo  que  se  lhes  querião  dar  a 
jmmagem  que  comprarão  e  a  estas  palauras  lhe  perguntarão  os  mais  compa- 
nheiros que  fizera  da  dita  immagem  E  elle  confitente  Respondeo  que  a  lan- 
çara fora,  e  Reprehendendoo  os  ditos  companhejros  do  que  auja  feito  elle  to- 
mou a  capa  e  se  foi  com  medo  do  que  hauia  feito  temendo  que  lhe  podessem 
fazer  algum  mal.  E  dahi  se  foi  pêra  a  casa  aonde  uiue  e  a  dita  catherina  de 
baste  em  cuja  companhia  esta  contando  lhe  elle  o  caso  lhe  disse  que  uiesse  a 
são  dominsuos  e  desse  conta  ao  dito  padre  frej  Jerónimo  Valuano  e  que  ella 
lhe  aconselharia  o  que  auia  de  fazer  e  jndo  elle  ontem  em  busca  do  dito  pa- 
dre, lhe  não  pode  fallar  e  o  tornou  a  busquar  esta  manhã,  e  com  elle  se  ueo 
apresentar  nesta  meza  na  quoal  pede  perdão  e  misericórdia  de  toda  a  culpa 
e  descujdo  que  cometeo.  foi  lhe  dito  que  tomou  mujto  bom  conselho  em  uir 
confessar  sua  culpa  e  pedir  perdão  delia;  E  que  o  admoestão  da  parte  de 
nosso  senhor  Jhesu  christo  digua  toda  uerdade,  E  declare  a  tenção  que  teue 
em  dobrar  a  dita  immagem  e  a  lançar  polia  janella  fora  e  se  fez  isto  como 
pessoa  que  sente  mal  da  adoração  das  immagens — Respondeo  que  elle  era 
catholico  Romano  e  filho  de  pães  catholicos  que  bem  entendia  e  cria  que  se 
auião  de  adorar  as  immagens  e  assi  o  faz  E  as  tem  em  sua  casa  E  que  o  que 
fez  foi  por.  descuido  como  tem  confessado  e  por  andarem  alegres  cõ  o  uinbo 
e  sem  ma  tenção.— foi  lhe  dito  que  cuide  bem  na  uerdade  de  suas  culpas  e 
não  encubra  nenhua  parte  delias  nem  se  absente  desta  cidade  sem  licença 
desta  meza  E  uira  a  ella  todas  as  quintas  feiras  e  prometeo  de  assy  o  fazer  E 
sendo  lhe  lida  esta  sessão  disse  que  estaua  escrita  na  uerdade  e  mais  não  disse 
e  assinou  com  o  dito  senhor  francisco  de  sousa  o  escreui=/m  António  de 
Sousa=matho  Thysen.»1 


i  Torra  do  Tombo.  6.'  Caderno  do  Promotor,  fl.  498. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  57 


XXXII.— Lobo  de  Moura  (Eduardo).— No  artigo  concernente  a  Lobo  de 
Moura,  a  pag.  104  da  primeira  serie  d'estas  Memorias  escaparam  algumas 
inadvertências  typographicas,  que  convém  rectificar.  Na  linha  l.a,  onde  se  lê 
Visconde  de  Soure,  leia-se  Visconde  de  Soveral;  na  6.a  linha,  onde  se  lè  que 
o  moira  foi  celebrado,  leia-se  que  a  missa  foi  celebrada;  na  7.a  linha,  onde 
se  lê  Wolsoley,  leia-se  Wolseley. 


XXXIII.— Manuel  (Diniz). — Pintor  da  princeza  D.  Joanna.  Apparece  um 
individuo  d'este  nome  em  tempo  de  D.  João  III,  como  escrivão  da  camará  real. ' 


XXXIV. — Nogera  (André). — No  Liuro  da  Receta  e  despesa  da  cadea,  exis- 
tente no  Archivo  da  Camará  de  Beja,  a  fl.  92  lê-se: 

«Add.  160.  Despendeo  mais  o  ditto  thesoureiro  manoel  carvalho  seis  cen- 
tos rs.  que  deu  e  pagou  a  André  Nogera  pintor  de  pintar  e  reno- 
var o  Retabolo  de  taipa  em  que  se  acha  a  imagem  de  Nossa  Senhora 
que  estava  nas  taipas  velhas,  das  paredes  e  de  por  no  altar  dos  pre- 
sos da  enxovia  e  o  3.°  pintor  recebeu  ditos  seiscento  reis  da  mão  do 
d.°  thesoureiro  e  asina  aqui.  Beja  doze  dias  de  setembro  de  seis  cento 
vinte  nove.  E  eu  Fraucisco  Fialho  Guedes  escrevi 

amdre  nug." 

Este  livro  está  na  sala  B,  est.  C,  comp.  3.9,  pratel.  I',  maço  n.°  1. 
Citado  no  Catalogo  da  Sala  Gomes  Palma,  4.°  fascículo — Azulejos  ix. 
N.°  do  Catalogo.  Beja  — 1895,  a  pag.  44. 


XXXV. —  Oliveira  Bernardes  (Polycarpo  de). — Como  seu  pae,  António 
de  Oliveira  Bernardes,  de  quem  tratei  na  primeira  serie  d'estas  Memorias, 
foi  também  pintor  de  azulejos.  A  prova  da  sua  actividade  n'este  género  en- 
contra-se  em  Vianna  do  Castello,  segundo  revelação  que  me  fez  o  sr.  dr.  Luiz 
de  Figueiredo  da  Guerra,  em  carta  que  passo  a  transcrever. 

«Ill.m0  e  Ex.mo  Sr.  e  caro  collega. — Não  me  esqueci  da  promessa,  mas  ne- 


1  Torre  do  Tombo.  Chaneellaria  de  D.  JoSo  III.  L.«  33,  fl.  41  v. 
Setembro,  1906. 


58  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

gocios  urgentes  me  teem  relido  fora  de  Vianna.  Incluso  remelto  duas  photo- 
graphias  dos  azulejos  de  Belém,  os  sacros  estão  assignados  Poticarp.  ab  Oliva 
fccit,  na  capella-mór  da  egreja  da  Misericórdia  de  Vianna,  e  vieram  em  1714 
de  Belém,  como  consta  dos  livros  de  despeza  da  mesma  Santa  Casa,  e  os  pro- 
fanos que  guarnecem  em  roda-pé  as  salas  da  casa  de  minha  prima  D.  Maria 
Barbosa  Teixeira  Maciel,  na  casa  do  Largo  de  S.  Domingos,  e  oratório  adjunto, 
feitos  em  1721,  apparecem  só  com  a  legenda  Polycarp.  de  Olivr*  Ber.";  mas 
tanto  n'um  sitio  como  n'outro  não  pude  obter  prova  photographica  em  termos, 
porque  no  oratório  faltava  a  distancia  focal  para  dar  imagem  no  chassis,  e  na 
Misericórdia  não  havia  luz  sufficiente.  As  duas  provas  são  insufficientes,  ser- 
vindo apenas  para  mostrar  a  boa  vontade  em  ser  agradável  ao  douto  Mestre, 
sentindo  não  poder  obter  coisa  melhor. 

Os  azulejos  da  Misericórdia  representam  as  obras  da  Misericórdia  em  cima, 
e  nos  dois  vãos  inferiores  a  passagem  do  mar  Vermelho  e  Jesus  entre  os  Dou- 
tores, e  sobre  o  arco  cruzeiro  Nossa  Senhora,  tendo  sob  o  manto  clero,  no- 
breza e  povo.  No  painel  do  nascimento  de  Christo  está  a  Virgem  n'um  leito 
de  bilros,  estylo  da  época. 

As  três  salas  de  minha  prima  teem  na  1  .a  caçadas  e  pescas,  na  2.a  as 
quatro  partes  do  mundo  em  triumpho,  ena  3.1  recepções,  passeios,  etc.  Na 
capella  uns  pequenos  painéis  da  vida  de  Nossa  Senhora. 

Desculpe-me  a  demora  e  creia-me  sempre  disposto  ao  serviço  de  V.  Ex.\ 
e  sou  com  estima  e  particular  consideração— Discípulo  muito  grato  e  dedi- 
cad0._Vianna,  19  de  outubro  de  1903.— Luiz  de  Figueiredo  da  Guerra.» 

Veja-se  o  artigo — Manuel  Gomes. 


XXXVI. — Paiva  (António  de).— Era  filho  de  Miguel  de  Paiva,  pintor  doi- 
rei, em  cujo  cargo,  por  sua  morte,  o  substituiu  por  alvará,  com  força  de  carta, 
de  24  de  julho  de  1645.  A  este  tempo  estava  servindo  no  exercito  nas  fron- 
teiras do  Alemtejo,  assim  como  já  o  fizera  no  anno  anterior,  entrando  na  to- 
mada e  saque  dos  lugares  do  reino  de  Castella.  Por  sua  morte  foi  nomeado 
para  lhe  succeder,  por  alvará,  com  força  de  carta,  de  23  de  fevereiro  de  1650, 
Manuel  Franco,  seu  cunhado.  Vide  este  nome. 

«Eu  EIRey  faço  saber  aos  que  este  meu  aluara  uirem  que  eu  hey  por 
bem  de  fazer  mercê  a  António  de  Paiua  filho  de  Miguel  de  Paiua  do  officio 
de  meu  pintor  de  óleo  que  vagou  por  fallecimento  do  dito  seu  pay  por  folgar 
de  lhe  fazer  mercê  e  estar  seruindo  na  fronteira  de  Alemtejo  como  tãobem  o 
fes  o  anno  passado  achando  sse  na  Tomada  e  Saque  dos  lugares  do  reino  de 


NOTICIA  W.  ALGUNS  PINTORES  59 

Castella  com  o  qual  officio  hauera  o  dito  António  de  Paim  hum  mojo  de  trigo 
e  sinco  mil  reis  em  dinheiro  de  ordenado  cada  anuo  a  custa  de  minha  fazenda 
e  começara  ha  uençer  o  dito  ordenado  de  uinte  de  julho  deste  anno  de  mil 
sseiscentos  e  quarenta  e  quatro  em  diante  em  que  lhe  fis  mercê  do  dito  offi- 
cio que  he  outro  tanto  como  C'">m  elle  tinha  o  dito  seu  pay  pello  que  mando 
aos  vedores  de  minha  fazenda  e  cooselheiros  delia  lhe  facão  assentar  o  dito 
ordenado  de  trigo  e  dinheiro  na  parte  a  onde  se  pagaua  ao  dito  seu  paj  pêra 
tudo  lhe  ser  paguo  do  tempo  asima  declarado  e  este  aluara  quero  que  valha 
como  carta  sem  embargo  da  ordenação  em  contrario  comtudo  não  hauera  ef- 
feito  sem  primeiro  constar  por  certidão  nas  costas  delle  do  escriuão  do  nouo 
direito  como  o  dito  António  de  Paiua  tem  paguo  em  minha  chancellaria  do  que 
deuer  da  comcessão  do  dito  officio  de  meu  pintor  de  óleo  Esteuão  de  Faria  o 
fes  em  Lisboa  a  xxiiij  de  julho  de  seiscentos  quarenta  e  sinco  annos — Fernão 
Gomes  da  Gama  o  fis  escreuer — Rey.*1 


XXXVII.  — Paiva  (Miguel  de).  — Dou  n*este  logar  publicidade  ao  alvará, 
com  força  de  carta,  de  19  de  agosto  de  163:2,  em  que  Filippe  111  o  nomeia  na 
vaga  deixada  por  fallecimento  de  Domingos  Vieira.  A  este  documento  se  faz 
referencia  em  outro  inserto  a  pag.  119  da  primeira  serie  d'estas  Memorias. 

A  24  de  julho  de  164o  devia  já  ser  fallecido,  pois  n'esta  época  foi  no- 
meado para  o  substituir  António  de  Paiva,  seu  filho,  de  quem  se  fala  no  ar- 
tigo anterior. 

«Eu  EIRej  faço  saber  aos  que  este  aluara  uirem  que  eu  ej  por  bem  fa- 
zer merçe  a  Migel  de  Pajua  pintor,  do  officio  de  meu  pintor  de  óleo,  que  ua- 
gou  per  falecimento  de  Domingos  Vieira  auendo  respeito  a  imformação  que 
tiue  de  sua  suficiência  e  auera  com  o  ditto  officio  o  mesmo  ordenado  que  com 
elle  tinha  o  dito  Domingos  Vieira  e  por  firmeza  de  tudo  lhe  mandej  dar  este 
aluara  que  valera  como  carta  sem  embargo  da  ordenaçam  em  contrario  por- 
quanto pagou  seis  mil  e  quatrocentos  e  sessenta  reis  da  mea  anatta  desta 
merçe  que  forão  carregados  em  receipta  ao  thesoureiro  das  meãs  anattas  como 
se  uio  por  certidão  do  escriuão  de  seu  cargo  que  foi  rotta  ao  asinar  deste 
Luis  de  Lemos  o  fez  em  Lixboa  a  dezanoue  de  agosto  de  mil  seiscentos  trinta 
e  dous  annos — Sebastião  Perestrelo  o  fez  escreuer.»2 


1  Torre  do  Tombo.  Chancellaria  de  D.  JoSo  IV.  Doações.  L.°  18,  fl.  7. 

2  Torre  do  Tombo.  Chancellaria  de  D.  Filippe  Dl.  Doações.  L.°  23,  fl.  398  v. 


60  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


XXXVIII. — Pedro  (Álvaro  de). — Não  haveria  conhecimento  cTeste  pintor 
se  não  viesse  mencionado  por  Vasari,  na  sua  Vile  di  piú  eccellenti  pittori,  no 
final  da  biographia  de  Taddeo  Bartoli.  Escreve  elle  a  propósito  do  nosso  com- 
patriota, que  floresceu  em  Itália  por  1450:  «Fú  né  medesimi  tempi,  e  quasi 
delia  medesima  nianiera,  ma  lece  piú  chiaro  il  colorito,  e  le  figure  piú  basse, 
Álvaro  di  Pielro  di  Poi  togallo,  che  ne  Volterra  fece  piú  tavole,  e  in  S.  Antó- 
nio di  Pisa,  n'é  una,  e  in  alire  luoghi  altre,  che  per  non  essere  di  moita  ec- 
cellenza,  non  occorre  farne  altra  memoria.» 

Este  appellido  de  Pedro  é  insólito  e  denuncia  viciação  extrangeira.  Con- 
jecturo que  o  nosso  compatriota  assignaria  as  suas  obras  d'esta  forma:  Alva- 
rus  Petri  que  Vasari  traduziu  á  letra,  correspondendo  em  nossa  lingua  a  Ál- 
varo Pires. 

Houve  um  Álvaro  Pires,  pintor  de  el-rei  D.  Manuel,  a  quem,  por  sua 
morte,  succedeu  no  cargo  seu  filho  Gaspar  Cão.  Não  se  encontra,  porém,  ne- 
nhum documento  que  lhe  diga  directamente  respeito.  Não  me  atrevo  a  idenli- 
fical-o  com  o  artista  que  trabalhou  em  Itália  pela  distancia  dos  annos,  porque 
só  em  mui  provecta  edade  é  que  poderia  alcançar  o  reinado  de  D.  Manuel. 

Fr.  Francisco  de  S.  Luiz  traduz  Álvaro  de  Pedro  por  Álvaro  Peres  e  as- 
sim o  inclue  na  sua  lista,  tendo  tirado  a  respectiva  noticia,  não  de  Vasari,  mas 
do  Diccionano  de  C.  F.  Roland  le  Virloys. 


XXXIX.— Pegado  (Bernardo  Pereira).— Por  provisão  de  12  de  junho 
de  1749  o  nomeou  D.  João  V  pintor  do  Conselho  da  fazenda  e  das  egrejas  das 
ordens  mestraes. 

«Dom  João  etc.  Como  gouernador  etc.  Faço,  saber  aos  que  esta  minha 
Prouizão  uirem  que  tendo  Respeito  a  me  Reprezentarem  Bernardo  Pereira  Pe- 
gado hauer  feito  por  ordem  do  conselho  de  minha  fazenda  varias  obras  de 
Pintura  asim  no  mesmo  Tribunal  como  em  outras  parles,  e  nas  Igrejas  das 
ditas  ordens  e  uiezas  mestrais  com  boa  satisfação  e  desejaua  ser  prouido  na 
ocupação  de  pintor  do  mesmo  conselho  e  mezas  mestrais  na  mesma  forma 
que  costumaua  bauer  no  conselho  ultramarino,  e  na  Meza  da  consjensja,  com 
que  se  tinha  nomeado  por  veslimeuteiro  Francisco  de  Souza  e  a  constar  o  Re- 
ferido por  informação  do  Sargento  mor  Architeto  do  mesmo  conselho,  e  or- 
dens Carllos  Manoel  (sicj  e  ser  pessoa  de  muita  uerdade  e  bom  porcedimento 
Hey  por  bem  fazer  lhe  mercê  de  o  nomear  para  pintor  das  obras  do  mesmo 
conselho  e  mezas  mestraes  que  exzerçitará  em  quanto  eu  o  houver  por  bem  e 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  61 

Dão  maodar  o  contrario,  e  fará  iodas  as  obras  de  seu  officio  que  se  manda- 
rem fazer  pello  dito  Tribunal  e  para  as  igrejas  das  ditas  Mezas  Mestraes  fa- 
zendo as  bem  e  fielmente  e  pellos  preços  ordinários  sem  alteração  alguma  e 
nenhum  outro  oficial  se  entremeterá  a  fazellas  sobperma  de  perder  feytio  del- 
ias metade  para  quem  o  acuzar  e  a  outra  ametade  para  as  despezas  do  mesmo 
conselho,  e  gozara  o  dito  Bernardo  Pereira  de  todos  os  peruillegios  e  jzensões 
de  que  gozão  os  mais  officiaes  dos  mesmos  Tribunaes  pello  que  mando  a  to- 
dos os  menistros  officiaes  e  pessoas  a  quem  o  conhecimento  desta  pertenser 
que  hajão  ao  dito  Bernardo  Pereira  Pegado  por  pintor  das  obras  do  dito  con- 
selho e  Mezas  Mestraes  e  lhe  comprão  e  guardem  esta  prouizão  como  nella  se 
conthem  sendo  passado  pella  chancellaria  das  ordens  aonde  jurara  de  bem  e 
uerdadeiramente  fazer  as  ditas  obras  a  qual  ualera  posto  que  sem  effeito  haja 
de  durar  mais  de  hum  auno  sem  embargo  da  ordenação  em  contrario  e  pagou 
de  nouos  direitos  desta  mercê  quinhentos  e  quarenta  reaes  que  se  carrega- 
rão ao  Thesoureiro  delles  Manuel  de  Faria  e  Souza  no  L.°  5.°  de  sua  Receita 
f  50  v-  como  se  uio  de  hum  conhesimento  Registado  no  L.°  4.°  delias  f  208-v- 
que  se  rompeo  ao  asinar  desta.  EIRey  Nosso  Senhor  o  mandou  pelos  do  seu 
conselho  e  da  de  sua  Rial  fazenda  em  falta  dos  vedores  delia.  Francisco  do 
Rego  e  Matos  a  fes  em  Lixboa  a  12  de  junho  de  1749  annos.  Francisco  Paes  de 
Vasconcellos  o  fes  escreuer.  Diogo  de  Souza  Mexia.  António  de  Andrade  Rego.»1 


XL.— Pereira  (António).  —  Era  pintor  de  óleo  e  de  imaginaria. 

Em  alvará,  com  força  de  carta,  de  10  de  julho  de  1626,  foi  dispensado 
dos  encargos  da  bandeira  de  S.  Jorge. 

Em  9  de  janeiro  de  1628  foi  nomeado  por  el-rei  para  o  logar  de  pintor 
de  óleo  e  tempera  das  Ires  ordens  militares. 

Não  sei  se  seria  este  mesmo  António  Pereira  o  que,  em  1657,  na  quali- 
dade de  familiar  do  Santo  Officio,  com  o  notário  do  mesmo  Tribunal,  João 
Teixeira,  foi  á  egreja  de  Santa  Justa  cobrir  a  tinta  preta  uns  letreiros  e  figu- 
ras que  estavam  na  capella  de  Jesus. 

Este  caso  não  era  novo.  Certos  quadros  religiosos,  sobretudo  pelos  seus 
letreiros,  causavam  inquietações  nos  espíritos  orthodoxos  da  época.  Para  sa- 
tisfazer a  meticulosidade  dos  casuistas,  a  Inquisição  teve  de  intervir  mais  de 
uma  vez,  como  se  prova  com  o  facto  que  se  deu  na  egreja  do  Monte  de  Ca- 
parica, de  que  faço  adeante  menção  no  artigo  referente  a  Domingos  Vieira. 

tEu  EIRey  faço  saber  aos  que  este  aluara  virem  que  avendo  Respeyto 


» Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de  Christo.  L°  2òi,  fl.  73  v. 


6*2  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

ao  que  na  pilição  atraz  escrita  diz  António  Pereyra  pintor  de  olio  de  Ymagraa- 
ria  e  vistas  as  causas  que  alega  he  Yinformação  que  se  ouve  pello  doutor  Yna- 
cio  Colaço  de  Brito  desembargador  da  casa  da  suplicação  e  coregedor  do  ci- 
uel  de  rainha  corte  porque  constou  ser  o  supp.e  hum  dos  milhores  pintores 
de  Ymaginaria  dolio  deste  Reyno  e  a  dita  da  (sic)  pintura  dolio  e  Ymaginaria 
ser  ávida  e  Reputada  por  nobre  em  todos  os  outros  Reynos  e  o  mais  que  da 
Ymformação  do  dito  coregedor  constou  hey  por  bera  e  me  praz  que  o  dito  An- 
tónio Pereyra  não  seya  daqui  em  diante  obrigado  a  bandeyra  de  São  Jorge 
nem  aos  emcargos  delia  nem  a  outros  alguns  emcargos  dos  a  que  se  custu- 
mão  obrigar  os  ofiçiaes  mecânicos.  E  yslo  sem  embargo  da  provisão  porque  o 
Senhor  Rey  dom  João  que  Santa  gloria  aya  aneyxou  os  pintores  Jndistintamente 
a  dita  bandeyra  de  São  Jorge  e  de  quaisquer  outras  prouisõcs  Regimentos  e 
posturas  da  Camará  desta  Cidade  de  Lixboa  que  em  comtrario  aya  e  mando 
ao  prezidente  vereadores  e  aos  procuradores  dos  mesteres  delia  e  a  quaisquer 
outras  Justiças  ofiçiaes  e  pesoas  a  que  o  conhecimento  disto  pertencer  que  não 
obrigem  nem  constranyão  ao  supp.e  aos  emcargos  da  dita  bandeyra  de  São 
Jorge  nem  a  outros  alguns  de  otíçi.d  mecânico  e  lhe  comprão  e  guardem  e 
facão  Jnteyramenle  comprir  e  guardar  este  aluara  como  se  nelle  corathem  sem 
duvida  nem  embargo  algum  o  qual  me  praz  que  valha  como  se  fora  carta, 
começada  em  meu  nome  sem  embargo  da  ordenação  do  2.°  L.°  titulo  40  que 
o  comtrario  despoem  — Pedralvres  o  fez  em  Lixboa  a  dez  de  Julho  de  mil  e 
seis  centos  e  vinte  e  seis  —  Manoel  Fagundes  o  fez  escrever.»1 

«Dom  Phillippe  etc.  Como  gouernador  etc.  Faço  saber  que  auendo  res- 
peito ao  que  na  pitiçam  atraz  escripta  diz  António  Pereira  pintor  e  a  necesci- 
dade  que  ha  de  official  de  pintor  para  as  igrejas  das  dittas  ordens  ey  por  bem 
e  me  praz  que  o  ditto  António  Pereira  sirua  o  dilto  oficio  de  pintor  de  olio  e 
tempara  das  ditas  igrejas  dos  ditos  mestrados  pagando  se  lhe  pellas  obras  que 
fizer  o  que  se  lhes  aluidrar  por  três  Architettos  dos  quaes  doas  seram  os  das 
ordens  que  aluidrarão  as  ditas  obras  conforme  aos  preços  porque  as  ouuerem 
fazer  outros  ofíiciaes  e  debaixo  do  juramento  que  para  isso  lhes  será  dado 
pello  que  mando  as  pessoas  a  que  pertencer  façam  as  dittas  obras  de  pintura 
de  olio  com  o  ditto  António  Pereira  quando  forem  necessárias  nas  dittas  igre- 
jas pagando  lhas  na  forma  que  ditto  he  e  elle  António  Pereira  jurara  na  chancel- 
laria  aos  Santos  Euangelhos  de  bem  e  verdadeiramente  seruir  o  ditto  officio, 
guardando  em  tudo  meu  seruiço  bem  das  dittas  igrejas  e  este  se  cumprira 
como  nelle  se  contem  sem  duuida  alguma  e  ualera  como  carta  sem  embargo 
de  qualquer  prouizam  on  Regimento  em  contrairo.  El  Rey  Nosso  Senhor  o 


Torre  do  Tombo.  Chancellaria  dfl  D.  Filippe  Iíl.  Privilégios.  L.°  1,  fl.  18G. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  63 

mandou  pellos  deputados  do  despacho  e  da  meza  de  consciências  e  ordens. 
Dom  António  Mascarenhas  e  Dom  Carlos  de  Noronha.  Domingos  Carualho  a 
fez  em  Lixboa  a  9  de  Janeiro  de  J bjex  x biij.  Jorge  Coelho  d' Andrade  a  fez 
escreuer.»1 

«João  Teixeira  notário  do  Santo  ofíicio  da  jnquisição  de  Lisboa  certifico 
e  faço  fee  que  de  mandado  dos  Senhores  jnquisidores  cõ  o  familiar  António 
Pereyra  Pintor  e  acompanhado  por  Francisco  de  Resende  homem  da  vara  fuj 
a  jgreja  de  Sancta  Justa  desta  cidade,  e  depois  de  dar  a  entender  ao  Prior  da 
mesma  jgreja  a  diligencia  que  hia  fazer  o  ditto  Prior  mandou  abrir  a  grade  da 
capella  de  Jhesus  da  dilta  jgreja,  e  uir  escadas,  e  logo  o  ditto  pintor  António 
Pereyra  cõ  tinta  preta  a  olio,  cobrio  os  letreiros  e  figuras  das  portas  e  vãos 
dos  nichos  que  estão  nas  jlhasgas  (sic)  da  ditta  capella  sem  dos  letreiros  ficar 
algu  mais  que  o  que  diz  ecce  homo,  nem  das  figuras  de  pilalos  e  fariseos  ficar 
algua,  a  qual  obra  forão  presentes  por  se  chegarem  auer  alguns  dos  beneficia-  ■ 
dos  e  o  audador  da  ditta  capella,  e  outras  pessoas,  que  entrarão  na  jgreja  sem 
entre  ellas  auer  quem  a  conlradicesse  ou  parecesse  que  notaua  antes  o  dito 
Prior  e  o  beneficiado  André  de  Figueiredo  dizião  palauras  de  aprouação,  de 
que  tudo  passey  a  prezente  de  mandado  dos  dittos  Senhores  Inquisidores  a 
qual  diligencia  se  fez  na  tarde  de  hontem  e  na  manhã  de  hoje  bem  sedo  se 
acabarão  de  tingir  dous  nichos  a  que  naquella  tarde  por  falta  de  tempo  senão 
pode  chegar.  Lixboa  sette  de  Setembro  de  mil  seiscentos  cinquoenta  e  sette 
annos =João  Teixeira.  »2 


XLI. — Pires  (João). — Era  5  de  agosto  da  era  de  1441  (anno  de  Christo 
de  1403)  o  prior  e  mosteiro  de  S.  Vicente  de  Fora  fizeram-lhe  emprazamento, 
a  elle  e  á  mulher,  em  três  vidas,  de  uma  viuha,  situada  no  logar  da  Picôa, 
termo  da  cidade.  Esta  vinha  entestava  com  propriedades  de  Domingos  Anes 
ou  Eanes,  moedeiro,  e  de  outros.  Entre  as  testemunhas  figura  outro  moe- 
deiro,  André  Anes,  morador  a  Santa  Marinha.  Reproduzo  em  seguida  o  respe- 
ctivo contracto: 

«Em  nome  de  Deos  Amem  Sabham  quantos  este  estormento  de  Enpraza- 
mento  virem  que  na  era  de  mjl  e  quatro  centos  e  quarenta  e  hum  anos  çin- 
quo  dias  do  mes  d  agosto  na  cidade  de  Lixboa  dentro  no  moesteiro  de  Sam 
Vicente  de  Fora  ante  a  crasta  do  dito  moesteiro  sendo  presentes  Steuam  Al- 


1  Torre  do  Tombo.  Chancellaria  da  Ordem  de  S.  Thiago.  L.«  12,  fl.  54. 

'Torre  do  Tombo.  Livro  das  DenunciaçOes  da  Inquisição  de  Lisboa.  Caderno  36, fl. 567 . 


64  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

uarez  prior  crasteiro  e  regedor  do  dito  moesteiro  por  dom  Joham  Esteuez 
prior  dese  meesmo  moesteiro  e  conuento  todos  juntamente  em  cabidoo  e  ca- 
bidoo  fazendo  per  campaa  tangida  como  he  de  costume  em  prezença  de  mjra 
Esteuam  Lourenço  labaliom  delRey  na  dita  cidade  e  testemunhas  adeante  es- 
critas os  sobreditos  prior  e  conuento  diseram  que  o  espital  do  dito  moesteiro 
ha  nua  ujnha  cõ  suas  aruores  em  logo  que  chama  a  Picoa  termo  da  dita  ci- 
dade que  parte  com  Domjngue  Anes  moedeiro  e  com  Roy  Gonçaluez  e  com 
André  Afomso  jenrro  de  Lopo  Simoêz  e  com  outros  com  que  de  dereito  deue 
partir  E  diseram  que  eles  ueendo  e  consirando  seruiço  de  Deos  e  prol  e  onrra 
do  dito  moesteiro  e  espital  que  Enprazauam  a  dita  ujuha  com  suas  arruores 

a  Joham  Pirez  pintor  que  presente  estaua esta  que  ora  ha  moradores 

na  dita  cidade  e  a  húa  pesoa  qual  o  prestumeiro  deles  nomear  ante  de  sua 
morte  per  gujsa  que  seiam  três  pesoas  tanto  e  nom  mais  com  todas  suas  en- 
tradas e  saidas  dereitos  e  pertenças  a  tal  preito  e  so  tal  condiçom  que  os  sobre- 
ditos e  pesoa  que  depôs  eles  ueer  adubem  bem  e  fielmente  e  sem  maljçia 
nem  húa  a  dita  ujnha  descauar  e  amergulhar  e  podar  e  cauar  e  arrendar  (sic) 
em  cada  hum  ano  a  seus  tenpos  e  sazões  per  gujsa  que  senpre  nas  ditas  suas 
ujdas  a  dita  ujnha  senpre  seia  melhorada  e  nom  peiorada  E  dem  e  paguem  em 
cada  hum  ano  de  renda  e  penssom  da  dita  ujnha  em  paz  e  em  saluo  no  dito 
moesteiro  ao  espitaleiro  que  pelos  tenpos  for  quatro  libras  da  moeda  antjga 
ou  seu  verdadeiro  ualor  pagadas  por  dia  de  Sam  Martjnho  e  começar  de  fa- 
zer a  primeira  paga  por  este  dia  de  Sam  Martjnho  primeiro  segujnte  que  uem 
desta  presente  Era  deste  estormento  fedo  E  asy  daly  em  deante  em  cada  hum 
ano  por  o  dito  dia  e  nom  adubando  eles  sobre  ditos  e  pesoa  a  dita  ujnha  nem 
pagando  a  dita  renda  e  pensom  em  cada  hum  anno  como  dito  he  que  o  dito 
prior  e  conuento  do  dito  moesteiro  lhe  posam  tomar  e  tomem  a  dita  ujnha 
com  todas  suas  benfeitorias  e  melhoramentos  nom  se  chamando  eles  porem 
forçados  nem  a  força  noua  e  em  caso  que  se  a  elo  chamem  que  lhes  nom  ua- 
lha  e  fazendo  eles  sobreditos  e  pesoa  que  depôs  eles  hade  ujr  as  ditas  cou- 
sas e  cada  hua  delas  como  dito  he;  acabado  o  tenpo  dos  sobreditos  e  pesoa 
que  a  dita  ujnha  fique  ao  dito  moesteiro  e  espital  sem  contenda  nem  hua  e 
obrigarom  os  bêes  do  dito  moesteiro  e  espital  a  lhe  Ijurar  e  defender  a  dita 
ujnha  em  o  dito  tenpo  de  quem  quer  que  lhe  sobre  ela  poser  embargo  so- 
pena  de  lhe  correger  todas  perdas  e  dapnos  que  eles  por  a  dita  razom  reçe- 
besem  e  com  dez  soldos  em  cada  hum  dia  de  pena  de  moeda  antjga  e  o  dito 
Joham  Pirez  a  todo  esto  presente  reçebeo  em  sy  a  dita  ujnha  no  dito  enpra- 
zamento  por  sy  e  por  a  dita  sua  molher  e  pesoa  e  obrigou  todos  seus  bêes 
moujs  e  rajz  auidos  e  por  auer  amanleer  e  aguardar  as  ditas  cousas  todas  e 
cada  hua  delas  e  a  pagar  a  dita  renda  e  pensom  em  cada  hum  afio  por  o  dito 
dia  como  dito  he  sopena  de  lhe  correger  ao  dito  moesteiro  todas  perdas  e 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  65 

dapnos  que  o  dito  moesteiro  por  a  dita  razom  receber  e  com  dez  soldos  da 
moeda  antiga  em  cada  hum  dia  de  pena  as  quaes  cousas  as  ditas  partes  lou- 
uaram  e  outorgaram  e  pediram  senhos  estormentos  fectos  no  dito  logo  dia 
mes  e  era  sobre  dita  testemunhas  Diego  Aluarez  tabaljom  e  criado  do  prior 
de  Sam  Njcolaau  da  dita  cidade  e  André  Afies  moedeiro  que  mora  a  Santa 
Marinha  e  Joham  Vicente  procurador  do  moesteiro  da  Cheias  e  outros  e  eu 
sobre  dito  Steuam  Lourenço  tabaliom  que  este  estormento  e  outro  tal  anbos 
de  hum  theor  e  este  pêra  o  dito  Johan  Perez  escreuj  em  ele  meu  signal  fiz 
que  tal  he:  pag.  com  a  busca  de  três  anos  e  de  outro  tal.»' 


XLII. —  Reinoso  (André  de).— Taborda  trata  de  um  artista  de  nome  Diogo 
Reinoso,  que  suppõe  ter  existido  nos  reinados  de  D.  Manuel  e  de  D.  João  III. 
As  suas  affirmações,  porém,  são  muito  vagas,  não  se  estribando  em  solido 
fundamento  histórico.  Cyrillo  contesta  a  existência  de  um  Diogo  e  regista  em 
seu  logar  André  Reinoso,  que  em  1641  fora  nomeado  juiz  da  irmandade  de 
S.  Lucas,  encargo  que  todavia  não  acceitou.  Posso  corroborar  e  authenticar  a 
opinião  d'este  ultimo  auctor  com  um  documento  ofíicial.  É  um  alvará,  com 
força  de  carta,  de  30  de  junho  de  1623,  isentando-o  das  obrigações  da  bandeira 
de  S.  Jorge.  Por  este  diploma  se  fica  sabendo  que  era  filho  do  dr.  António  Rei- 
noso e  que  era  considerado  perito  na  sua  arte,  como  bem  o  mostravam  as  obras 
que  tinha  feito:  hum  dos  mais  aventejados  e  milhares  pintores  de  sua  profição 
de  óleo  e  immaginaria  que  avia  en  todo  este  Regno. 

«Eu  EIRej  faço  saber  aos  que  este  Aluara  virem  que  avendo  respeito  ao 
que  na  petiçam  atras  escrita  diz  André  de  Reinoso,  pintor  de  óleo,  e  jmma- 
ginaria  morador  nesta  cidade  de  Lixboa,  e  vistas  as  causas  que  alega,  e  ezem- 
plos  que  offereceo  a  informação  que  acerca  do  conteúdo  na  dita  petiçam  se 
ouue  pelo  Licenciado  Luis  Martinz  de  Siqueira  corregedor  do  ciuel  desta  dita 
cidade  de  Lixboa,  porque  constou  que  o  supp.'  foj  filho  do  doutor  António 
Reinoso  pessoa  nobre  e  conhecida  por  tal  e  que  hera  hum  dos  mais  aventeja- 
dos e  milhores  pintores  de  sua  profição  de  óleo  e  immaginaria  que  avia  en 
todo  este  Regno,  e  assj  o  mostrauão  bem  as  obras  que  tinha  feito  e  que  a 
arte  de  pintura  de  óleo  e  jmaginaria  hera  ávida  per  nobre  en  todos  os  outros 
Regnos  e  o  mais  que  da  dita  enformação  constou,  ej  por  bem  que  o  dito  An- 
dré de  Reinoso  não  seia  daqui  en  diante  obrigado  a  bandeira  de  Sam  Jorge 
nem  aos  encargos  delia,  nem  a  outros  alguns  encargos  dos  a  que  se  costuma 
obrigar  aos  officiaes  mecânicos,  e  isto  sem  embargo  da  prouisam  porque  EIRej 


1  Torre  do  Tombo.  ColleíçSo  especial.  Caixa  116,  doe.  n.°  2. 
Odtcbro,  1906. 


66  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Dom  João  meu  Senhor  e  tio  que  Santa  gloria  aya  anexou  os  pintores  indis- 
tintamente a  dita  bandeira  de  Sam  Jogre  e  de  quaesquer  outras  prouisões, 
regimentos  acordos  e  posturas  da  Camará  desta  cidade  de  Lixboa  que  en  con- 
trario aya  na  forma  dos  exemplos  que  o  supp.'  apresentou  e  mando  ao  presi- 
dente, vereadores,  procuradores  dos  mesteres  delia  e  quaesquer  outras  justi- 
ças offiçiaes  e  pessoas  a  que  o  conhecimento  disto  pertencer  que  não  obriguem 
nem  constranjam  ao  dito  André  de  Rejnoso  aos  encargos  da  dita  bandeira  de 
Sam  Jorge  nem  outros  alguns  de  official  mecânico  e  lhe  cumprão  e  guardem 
e  façam  jnteiramente  comprir  e  guardar  este  Aluará  como  nelle  se  contem  o 
qual  me  praz  que  valha  tenha  força  e  vigor  como  se  fose  carta  feita  em  meu 
nome  por  mjm  asinada  sem  embargo  da  ordenação  do  2.°  L.°  titulo  40  en  con- 
trario. Manoel  do  Reguo  o  fez  em  Lixboa  a  xxx  de  Junho  de  jbjcxxiij.  Ma- 
noel Fagundez  o  fez  escreuer.»1 


XLIIL— Rite  (D.  Izabel  Maria).— A  pag.  534  do  Theatro  Heroino  lê-se  a 
seguinte  noticia: 

tlsabel  Maria  Rite,  mulher  de  Raymundo  Rite,  e  filha  de  Francisco  Pe- 
querim  Inglez  de  Nação,  e  de  Joanna  Pequerim  natural  do  Porto  nasceo  nesta 
cidade,  e  foy  baptizada  na  freguesia  de  São  Nicoláo.  Passou  a  Espanha  neste 
século.  Na  arte  da  pintura,  risco,  e  debuxo,  se  deferença  entre  os  mais  peri- 
tos pintores,  e  he  singular  na  que  chamão  de  Miniatura,  tudo  por  curiosidade, 
e  engenho  sem  dever  aos  mestres  os  preceitos  desta  arte  liberal,  que  usa  por 
gosto,  e  não  por  oficio.» 

Por  parte  de  seu  pae  era  parenta  de  D.  Izabel  Browne,  para  cujo  artigo 
remetto  o  leitor. 


XLIV. — Rodrigues  (António). —  Era  natural  de  Albufeira,  reino  do  Al- 
garve, e  pelos  annos  de  1659  morava  em  Lisboa,  em  S.  Miguel  da  Alfama, 
onde  exercia  o  officio  de  pintor.  Era  casado  e  sua  mulher  chamava-se  Luzia 
Correia. 

Por  meiados  d'aquelle  anno,  pouco  mais  ou  menos,  foi  procurado  por 
uma  mulher,  cujo  nome  ignorava,  mas  que  era  viuva,  saqueira,  moradora  á 
Portagem,  junto  de  um  livreiro.  Vivia  com  ella  uma  filha  solteira,  baixa,  ma- 
gra, de  rosto  amarello,  picado  de  bexigas. 


1  Torre  do  Tombo.  Chancellaria  de  D.  Filippe  III.  Privilegio/.  L.°  2,  fl.  35. 


NOTICIA  DE  ALGU.VS  PINTORES  67 

O  molivo  porque  essa  mulher  o  procurara  era  para  lhe  pintar  um  quadro- 
sioho  com  a  imagem  de  Santo  Erasmo.  Effectivamente  elle  accceitou  a  encom- 
menda  e  executou  a  obra  n'ura  panno  de  três  palmos  approsimadamente.  Eis 
como  elle  representou  o  cruciante  episodio  agiologico.  O  santo  estava  deitado, 
e  dois  diabos,  um  de  cada  lado,  lhe  tiravam  pelas  costas  as  tripas,  que  Hero- 
des  e  sua  filha  iam  dobando  num  sarilho.  Ao  pé  de  Herodes  uma  caldeirinha 
com  agua  benta. 

Rodrigues  retirou-se  para  o  Algarve  com  sua  família  e  casa,  mas  no  co- 
meço de  1660  veiu  a  Lisboa,  hospedando-se  na  estalagem  nova  do  Rocio.  Indo 
á  Portagem  buscar  uns  saccos  a  casa  de  um  saqueiro,  ouviu  a  conversa  de  uns 
homens,  que  estavam  dizendo,  apontando  para  a  casa  da  mulher  que  lhe  fizera 
a  encommenda: — Olha  que  bichinha  aquella!  Que  grande  feiticeira  alli  está! 

Estas  palavras  deram-lhe  que  pensar  e  desconfiou  então  que  a  lelasinha 
de  Santo  Erasmo  que  elle  pintara  serviria,  nas  mãos  da  saqueira,  para  algum 
acto  de  bruxaria.  Com  estes  rebates  de  escrúpulo,  foi  no  dia  24  de  janeiro, 
na  sessão  da  manhã,  á  Mesa  da  Santa  Inquisição,  onde  fez  a  declaração  e  de- 
nuncia atraz  substanciadas.  O  inquisidor  louvou-o  por  ter  procedido  correcta- 
mente, recommendando-lhe  todavia  que  não  sahisse  de  Lisboa  sem  prevenir 
aquelle  Tribunal. 

Lembra-me  ter  visto,  ha  bastantes  annos,  em  casa  do  fallecido  architecto 
José  Maria  Nepomuceno,  um  quadro  a  óleo,  sobre  tábuas  de  grandes  dimen- 
sões, representando  o  mesmo  episodio.  O  possuidor  desejava  vendel-o,  mas 
não  achava  quem  o  quizesse  adquirir,  porque  á  maior  parte  da  gente  repu- 
gnava o  assumpto.  A  minha  reminiscência  já  bastante  longínqua  dá-me  a  pin- 
tura sobre  madeira,  mas  ha  por  certo  illusão  da  minha  parte,  em  presença 
da  seguinte  informação,  que  teve  a  amabilidade  de  me  communicar  o  sr.  An- 
tónio José  Colaço  Mimoso  Ruiz,  intelligente  inspector  de  obras  publicas,  genro 
do  architecto: 

«O  quadro  a  óleo  pintado  em  tela  foi  vendido  ao  marquez  cfè  Jerez  de 
los  Caballeros  por  450j$000  réis.  Representava  o  supplicio  de  um  bispo,  se- 
gundo parece  pelas  vestes  que  tinha  ao  lado.  Estava  nú,  deitado  de  costas  so- 
bre um  estrado,  mãos  postas,  ventre  aberto,  de  onde  sabiam  as  tripas,  que  se 
enrolavam  num  sarilho,  que  era  movido  por  um  personagem  vestido  de  cal- 
ção, jaqueta  sem  mangas  e  turbante.  Em  plano  superior,  encostado  a  uma 
balaustrada,  achava-se  um  rei  cora  sceptro  e  turbante,  longas  barbas  negras, 
que  dava  ordens  a  um  personagem  que  estava  junto  do  paciente.  Pela  esca- 
daria diversos  personagens  com  mantos  bordados.  Esperando  sua  vez  para  o 
supplicio  outro  condemnado  cora  túnica  branca.  Guardas  diversos  armados  de 
espadins. 


68  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Ao  alto  do  painel  o  Padre  Eterno  recebia  a  alma  do  condemnado,  repre- 
sentado por  um  anjo.» 

«Aos  vinte  e  quatro  dias  do  mez  de  janeiro  de  mil  e  seiscentos  e  ses- 
senta annos  em  Lisboa  nos  Estaos  e  primeira  casa  das  audiências  da  Santa 
Inquisição  estando  ahi  na  de  manhãa  o  Senhor  Inquisidor  Francisco  Barreto 
mandou  vir  perante  si  da  sala  a  hQ  home  que  pedio  audiência.  E  sendo  pre- 
sente disse  que  se  vinha  apresentar  de  culpas  que  lhe  parece  pertencem  a 
esta  mesa,  e  juntamente  denunciar.  E  para  tudo  fazer  cõ  verdade  e  guardar 
segredo  lhe  foi  dado  o  juramento  dos  Santos  Euanjelhos  em  que  pos  a  mão  e 
sob  cargo  delle  lhe  foi  mandado  que  assi  o  fizesse  e  elle  o  prometeo  cum- 
prir. E  disse  chamar  se  António  Rodriguez  e  ser  Ghristão  velho  pintor,  casado 
cõ  Luzia  Corrêa,  natural  da  villa  de  Albufeira  Reyno  do  Algarve  e  residente 
nesta  cidade  na  estalagem  noua  do  Rocio. 

«E  logo  foi  admosestado  que  pois  tomaua  tão  bom  conselho  como  o  de 
se  vir  apresentar  voluntariamente  lhe  conuem  dizer  toda  a  uerdade  nesta 
mesa  por  isso  o  que  lhe  conuem  para  saluação  de  sua  alma  o  seu  bom  des- 
pacho, não  impondo  asi  nê  a  outrem  falso  testemunho  E  assi  prometeo  de 
o  fazer. 

«E  logo  disse  que  hauera  seis  ou  sete  mezes  pouco  mais  ou  menos  es- 
tando morador  nesta  cidade  em  São  Miguel  de  Alfama  executando  o  officio  de 
pintor,  mandou  chamar  a  elle  declarante  hua  molher  a  que  não  sabe  o  nome, 
e  he  saqueira,  viuua  e  tem  hua  filha  solteira  que  viue  cõ  ella,  baixa  de  corpo 
e  secca,  amarella  do  rosto  e  nelle  algus  sinaes  de  bexigas  e  viue  nesta  cidade 
a  portagem  junto  a  nu  liureiro  a  quem  não  sabe  o  nome,  e  lhe  parece  que 
não  ha  naquelle  sitio  outra  saqueira  viuua  e  esta  mandou  a  elle  declarante 
que  lhe  fizesse  hua  pintura  de  Santo  Erasmo  deitado,  e  dous  diabos  hQ  de 
hua  parte  e  outro  de  outra  tirando  lhe  pelas  costas  as  tripas  e  Herodes  e  sua 
filha  cõ  hú  sarilho  dobando  as  tripas  do  Santo  e  ao  pe  de  Herodes  hõa  caldei- 
rinha  cõ  agua  benta  o  qual  painel  elle  declarante  fez  em  hu  panno  de  três  pal- 
mos pouco  mais  ou  menos,  e  o  entregou  a  culta  molher  e  ella  lhe  deu  dez  tos- 
tões. E  por  então  não  fez  escrúpulo  algu  deste  particular,  e  se  recolheo  a  sua 
terra  cõ  casas  mudadas,  donde  vindo  hauera  dez  dias,  e  indo  buscar  nus  sac- 
cos  a  casa  de  hu  saqueiro  que  viue  na  mesma  portagem  a  que  não  sabe  o 
nome,  e  foi  tauerneiro,  ouuio  a  hús  homês  a  que  não  conhece,  que  estauão 
conuersando,  dizer  Boa  bichina  alli  esta  que  he  feiticeira,  apontando  para  a 
casa  da  ditta  molher  Saqueira.  E  então  ficou  sendo  sospeiía  que  lhe  mandaria 
fazer  a  ditta  pintura  em  ordem  a  algum  fim  roim  de  feitiçaria,  e  por  isso  se 
resolueo  em  vir  dar  conta  nesta  mesa,  e  da  culpa  que  commetteo  em  fazer  a 
ditta  pintura  esta  muito  arrependido,  e  pede  que  se  use  cõ  elle  da  misericor- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


69 


dia  porque  fazer  a  pintura  foi  por  ganhar  com  seu  officio,  e  não  por  entender 
que  commetia  nisso  culpa  algua  e  ai  não  disse  e  do  costume  nada. 

«Foi  lhe  ditto  que  elle  tomou  muito  bom  conselho  em  vir  voluntariamente 
dar  conta  nesta  mesa  de  sua  culpa,  que  lhe  conuem  mnito  trazer  todas  á  me- 
moria, e  achando  sua  consciência  encarregada  em  algua  conta  mais  o  venha 
declarar  nesta  mesa,  e  que  por  hora  lhe  mandão  que  desta  cidade  senão  saia 
sê  o  vir  fazer  a  saber  a  ella,  onde  acudira  todas  as  vezes  que  for  chamado. 
E  por  dizer  que  assi  o  faria,  e  que  por  hora  não  era  de  mais  lembrado,  foi 
outra  vez  admoestado  em  forma  e  mandado  sendo  lhe  primeiro  lida  esta  sua 
apresentação  que  por  elle  ouuida  disse  que  estaua  escrita  na  verdade  e  nella 
se  afflrmaua  notificaua  e  de  nouo  tornaua  a  dizer  sendo  necessário,  e  não  ti- 
nha que  acrecentar,  deminuir,  mudar,  nê  emendar,  nem  de  nouo  dizer  ao  cos- 
tume sob  cargo  do  juramento  dos  Santos  Euangelhos  que  outra  vez  lhe  foi 
dado.  Ao  que  estiuerão  presentes  por  honestas  e  religiosas  pessoas  que  tudo 
virão  e  ouuirão  e  promelterão  dizer  verdade  e  ter  segredo,  e  assi  o  jurarão 
aos  Santos  Euangelhos  Reuerendos  Padres  frey  Gabriel  da  Sjlua  e  frey  Chris- 
touão  do  Rosário  Religiosos  de  São  Domingos  que  ambos  assinarão  cõ  o  ditto 
declarante  e  com  o  Senhor  Inquisidor — Manuel  da  costa  de  Brito,  notário  o 
escreui.= Francisco  Barreílo=Fr.  Gabriel  da  Sylua— António  Rodriguez=Fr. 
Chrislouão  do  Rosário. 

«E  ido  para  fora  o  dito  declarante  forão  perguntados  os  ditos  Reueren- 
dos Padres  sacerdotes  se  lhes  parecia  que  fallaua  verdade.  E  por  elles  foi 
dito  que  sim  lhes  parecia  que  fallaua  verdade. 

«E  tornarão  a  assinar  com  o  Senhor  Inquisidor  —  Manuel  da  costa  de 
Brito  o  escreui.= Francisco  Barretto=Fr.  Gabriel  da  Sylua=Fr.  Christouão 
do  Rosário. d1 


XLV.— Rodrigues  (Fernão). —  D'elle  falei  na  primeira  serie  d'esta  Noti- 
cia, designando  algumas  obras,  que  executara  no  convento  de  Christo  de  Tho- 
mar.  Tinha  o  cargo  official  de  pintor  d'esta  casa,  o  qual  parece  ter  exercido 
até  annos  avançados,  pois  em  1584  era  nomeado  para  o  substituir  Simão  de 
Abreu.  Não  encontrei  a  carta  da  sua  nomeação. 


XLVI. —  Sanches  (Affonso).—  A  nacionalidade  de  Affonso  Sanches  tem 
sido  muito  controvertida  entre  os  próprios  escriptores  hespanhoes,  alguns  dos 
quaes  o  pretendem  considerar  seu  patrício.  E  certo,  porém,  que  um  seu  con- 


;  Torre  do  Tombo.  Inquisição  de  Lisboa.  Caderno  37,  fl.  769. 


70  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

temporaneo,  pessoa  de  alto  valimento,  lhe  dá  o  Ululo  de  portuguez.  Essa  pes- 
soa é  nem  mais  nem  menos  que  Lourenço  Pires  de  Távora,  nosso  embaixador 
junto  da  corte  hespanhola,  e  custa  a  crer  que  uma  tal  personagem  se  equivo- 
casse tão  gravemente,  ignorando  a  pátria  de  um  individuo  de  cujo  préstimo 
se  utilisava.  Em  carta  de  15  de  fevereiro  de  1557,  dirigida  á  rainha  D.  Catha- 
rina,  mulher  de  D.  João  III,  participava-lhe  a  chegada  de  Affonso  Sanches, 
pintor  portuguez,  o  qual  era  portador  do  retrato  de  D.  Sebastião,  para  a  in- 
fanta D.  Joanna,  sua  mãe.  A  propósito  do  retrato  deste  príncipe  veja-se  o  que 
escrevo  no  artigo  adeante  publicado  sobre  a  rubrica  Slralen. 

A  carta  de  Lourenço  Pires  de  Távora,  se  não  resolve  definitivamente  o 
problema,  não  pôde  deixar  de  ser  considerada  um  documento  importante  no 
processo  de  naturalisação  de  Affonso  Sanches.  Aqui  a  reproduzo: 

i 

«Senhora  —  Espos  tã  largua  carta  como  a  que  escreuo  a  elRey  Nosso  Se- 
nhor e  que  v.  A.  ouuyra  ler  nõ  sey  com  que  posa  alyuyar  parte  do  emfadamento 
que  tã  pesada  materya  pode  dar  se  nam  com  djzer  que  a  prjnçesa  fyqua  de 
saúde  e  muito  contente  com  hum  Retrato  do  prjneype  seu  fylho  que  lhe  trouxe 
Afonso  Sanches  pyntor  porluges  o  qual  tem  na  camera  do  seu  Recolhimento 
e  muito  partycularmente  pergunta  e  com  synays  de  ser  muito  may  tudo  o  que 
toca  aquelas  feyçoyns  e  pareçeme  que  se  despoem  poys  S.  A.  estaa  ja  en  tempo 
pêra  entender  os  seus  recados  e  ter  mays  conta  com  elle,  as  Rainhas  e  ella  fj- 
cam  nel  Abroio  pêra  se  uyrem  oje  por  a  esperesa  do  tempo  as  nõ  deixar  la 
folgar  o  emperador  entrou  no  mosteyro  a  três  do  presente  e  o  pryncype  fjca 
de  saúde  com  suas  tjas  no  Abroio  e  de  todas  estas  cousas  ha  muitas  party- 
cularjdades  mays  pêra  contar  que  pêra  escreuer  e  por  esa  rezão  as  deyxo 
pêra  por  mym  o  poder  fazer  pryncypalmente  no  modo  da  vyda  que  a  Senhora 
jfante  tanto  procura  e  de  todo  outro  contentamento  que  ella  cuyda  que  lhe 
qua  estaa  guardado  afora  ter  perdydo  por  tays  deseios  e  tal  determynação 
toda  a  reputação  e  credyto  que  nestes  Reynos  soya  ter  e  afyrmo  a  v.  a.  que 
nom  ha  nenhQa  pesoa  de  toda  sorte  que  nõ  entenda  e  dygua  claro  o  erro  que 
ella  faz  en  querer  sobre  o  pasado  aparecer  onde  a  veia  e  porque  pela  carta 
delRey  noso  senhor  vera  v.  a.  o  estado  do  negocyo  nõ  tenho  que  mays  dyzer 
se  nã  tornar  nesta  afjrmar  que  nõ  auera  nenhu  meo  para  as  Rainhas  e  em- 
perador desystjrem  do  que  pedem  e  que  he  muito  de  olhar  se  ymporta  mays 
dylatar  esta  vynda  ou  sofrer  as  jmportunydades  e  pesadumbres  que  tal  reque- 
rymento  dará  ynda  que  seia  com  roguos  prjncypalmente  tendo  os  de  qua  obry- 
gação  com  que  se  escusão  pela  jnstancya  que  a  Senhora  jfante  lhes  faz  e  jus- 
tiça no  que  requerem  pelo  capitulado,  e  posto  que  eu  synta  muito  nõ  se  po- 
der efectuar  o  a  que  vym  deuo  de  recompemsar  ysto  com  ter  chegado  o  De- 
gocyo  ao  derradeyro  do  que  parece  que  nele  auya  que  fazer  e  entendydo  tudo 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  71 

pêra  com  verdadeyro  conhecymeuto  s.  a.  se  poder  determynar  no  que  mays 
for  seu  serujço.  Nosso  Senhor  o  escolha  e  vyda  e  Real  estado  de  v.  a.  guarde 
e  acrecente  de  Valhedolyd  xv.  de  feuereyro  1557  =  Lourenço  Pires  de  Ta- 


XLVII. —  Silva  de  Figueiredo  (Thomaz  da). —  O  nome  d'este  individuo  é 
completamente  inédito,  creio  eu,  nos  annaes  da  bibliographia  litteraria  ou  ar- 
tística. Não  teria  exercido  a  pintura,  mas,  se  não  foi  pelo  menos  aguarellista, 
foi  sem  duvida  o  desenhador  de  uma  obra,  ao  que  parece  importante,  deno- 
minada Livro  das  missões  do  reyno  da  Cochinchina,  que  se  affirma  ter  sido  im- 
pressa ou  mandada  imprimir.  D'ella,  porém,  não  apparecem,  sob  qualquer 
forma,  os  menores  vestígios,  nem  tampouco  outra  qualquer  noticia  além  d'aquella 
que  vem  exarada  no  requerimento  de  Thomaz  da  Silva  de  Figueiredo,  que  pede 
para  ser  admittido  gratuitamente  como  official  da  Torre  do  Tombo.  Origina- 
líssimo sujeito  este  que  em  paga  dos  seus  serviços  ainda  pede  mais  trabalho! 

Emquanto  ao  padre  José  Candone  a  bibliographia  jesuítica  não  lhe  attri- 
bue  também  a  obra  indicada,  de  modo  que  chega  a  gente  a  duvidar  se  está 
deante  de  uma  sophisticação.  Custa,  porém,  a  crer  que  Silva  de  Figueiredo  fal- 
tasse tão  descaradamente  á  verdade,  inculcando  a  el-rei  imaginários  serviços. 
A  sua  petição  envolve,  portanto,  não  um  problema,  mas  um  verdadeiro  enygma 
histórico,  litterario  e  artístico,  sobre  o  qual  deve  recahir  a  attenção  de  todos 
os  que  se  interessam  por  estudos  d'esta  natureza. 

A  petição  de  Silva  de  Figueiredo,  datada  de  1712,  foi  dirigida  a  D.  João  V, 
allegando  n  ella  o  supplicante  os  serviços  que  fizera  por  ordem  do  pae  d'aquelle 
monarcha. 

«Senhor — Diz  Thomas  da  Sylua  de  Figueredo  que  elle  supp.*  seruio  ao  Se- 
nhor Rey  D.  Pedro,  Pay  de  V.  Magestade  que  santa  gloria  haja,  escreuendo, 
e  estampando  por  debuxo  de  pena  o  Liuro  das  Missões  do  Reyno  da  Cochin- 
china que  por  ordem  do  ditto  senhor  lhe  mandou  fazer  o  Padre  Jozeph  Can- 
done da  Companhia  de  Jesu,  com  o  qual  por  ser  grande  volume  gastou  o  supp.6 
três  annos  de  continuaçam  pellas  grandes  estampas  que  lhe  fez,  retratando 
todos  os  Martyrios,  e  tormentos  que  padeciam  aquelles  que  se  redusiam  a  fé 
de  Christo,  e  assim  mays  declarando  todo  o  estado  e  gouerno  daquelle  vastís- 
simo Império,  o  qual  Liuro  foy  de  particular  gosto,  e  agrado  do  dito  Senhor, 
e  o  mandou  impremir,  o  que  tudo  informaram  os  religiosos  da  Companhia  de 
Jesu  e  porque  o  supp.e  de  todo  este  trabalho  nam  teue  nenhúa  recompença, 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  i.*,  maço  100,  doe.  104. 


72  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

e  deseja  o  supp.*  ocuparse  no  real  seruiço  de  V.  Magestade,  e  ser  pessoa  de 
bom  procedimento. —  P.  a  V.  Magestade  que  attendendo  ao  trabalho  que  teue 
na  obra  do  ditto  Liuro,  e  ao  préstimo  do  supp.6  lhe  faça  mercê  mandalo  ad- 
mitir por  official  da  Torre  do  Tombo  sem  ordenado  algum,  por  ser  grande  o 
dezejo  que  tem  de  seruir  a  V.  Magestade  com  toda  a  aceytaçam  e  procedi- 
mento. E.  R.  M.» 

«S.  Magestade  que  Deos  Guarde  me  manda  remeter  a  V.  M.  a  petição 
induza  de  Thomas  da  Silua  de  Figueiredo,  para  que  V.  M.  lhe  defira  como 
lhe  parecer.  Deos  Guarde  a  V.  M.  muitos  annos.  Passo  27  de  Mayo  de  1712  — 
Bartholomeu  de  Souza  Mexia  —  Sr.  Luis  do  Couto  Félix.» 

tPor  esse  escrito  do  Senhor  Bartholomeu  de  Sousa  Mexia  uera  V.  M.  como 
S.  Magestade  que  Deos  Guarde  he  seruido  que  eu  defira  a  Thomas  da  Silua 
de  Figueiredo  no  requerimento  que  fez  ao  ditto  Senhor  e  como  não  considero 
inconueniente  em  ele  se  oferecer  a  seruir  no  Tombo  como  oficial  supernume- 
rario  sem  ordenado  algum  V.  M.  lhe  faça  assento  do  dia  que  começa  executar 
esta  ocupação  do  que  entender  o  pode  fazer.  Guarde  Deos  a  V.  M.  muitos 
annos  etc.  De  caza  em  3  de  Junho  de  712  —  Senhor  Pêro  Semedo  Estaço  = 
Luiz  do  Couto.* 

«Despois  que  V.  Magestade  que  Deos  Guarde  íoy  seruido  ordenar  pelo 
seu  seruiço  que  defirisse  a  Thomas  da  Silua  que  se  oferece  a  seruir  sem  or- 
denado nesa  Torre  do  Tombo  toda  a  dilação  ou  duuida  que  se  lhe  fizer  será 
para  que  ele  se  queixe  ao  mesmo  Senhor.  Neste  sentido  não  ha  mães  que  fa- 
zer que  em  execuçam  da  dita  ordem,  o  assento,  que  quando  seja  necessário 
assinalo  eu  o  farey  sem  embargo  que  nenhum  outro  de  oficial  que  ahi  entrou 
assiney.  E  este  oficial  não  tem  mães  diferença  que  não  leuar  ordenado,  mas 
o  exercício  he  como  dos  mães  que  V.  M.  lhe  asentará  ou  em  tirar  Ites  para  os 
alfabetos  ou  no  que  for  necessário  por  que  ele  da  sua  parte  satisfaz  com  hir 
lá  as  tardes  custumadas  para  faser  o  que  se  lhe  ordenar  e  não  he  a  mães  obri- 
gado, faço  este  segundo  auiso  a  V.  M.  aquém  Nosso  Senhor  Guarde  etc.  De 
caza  4.*  feira  — Pêro  Semedo  Estaço  =  Lwf'z  do  Couto.*1 


XLVJ.IL—  Silveira  (Manuel  da).— Por  provisão  de  22  de  agosto  de  1670 
o  nomeou  D.  Pedro  II  pintor  das  Ordens  militares,  cargo  que  havia  annos  es- 
tava vago. 


1  Torre  do  Tombo.  Avisoi  e  ordens.  Maço  1,  n.°  19. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


73 


«Dom  Pedro  como  Regente  etc.  Faço  saber  aos  que  esta  prouizão  virem 
que  avemdo  Respeito  ao  que  pella  sua  petição  atraz  escrita  me  Reprezentou 
Manuel  da  Silveira  em  Rezão  de  estar  sem  sernir  a  annos  o  offlcio  de  pintor 
das  ditas  ordens  e  ser  conueniente  que  se  proueia  em  pessoa  de  toda  a  satis- 
fação pella  que  tenho  e  boa  informação  que  me  foi  dada  de  o  dito  Manuel  da 
Sylveira  ser  bom  official  Hej  por  bem  e  me  pras  de  lhe  fazer  mercê  do  dito 
officio  de  pintor  das  ditas  ordens  militares  e  que  o  sirua  em  quanto  o  eu  ouer 
por  bem  e  não  mandar  o  contrairo  e  que  fassa  todas  as  obras  de  seu  offlçio 
pertencentes  as  ditas  ordens  as  quoais  será  obrigado  a  fazer  bem  e  fielmente 
pellos  pressos  conuenientes  que  correrem  na  terra  sem  alteração  algua  e  sem 
que  nenhu  outro  official  do  mesmo  offiçio  se  intrometa  a  fazer  as  ditas  obras 
que  por  ordem  da  meza  da  conçiençia  se  mandarem  fazer  e  noutro  si  Hey 
por  bem  que  goze  de  todos  os  priuilegios  e  liberdades  que  gozão  os  mais  of- 
ficiaes  das  ditas  ordens  militares  pello  que  mando  a  todos  os  menistros  offi- 
çiaes  e  pessoas  das  ditas  ordens  a  que  toquar  cumprão  e  goardem  mui  pon- 
tualmente o  que  nesta  prouizão  se  comtem,  sem  duuida  algua  a  quoal  quero 
que  valha  como  carta  posto  que  seu  efeito  dure  mais  de  hu  anuo  sem  embargo 
da  ordenação  em  contrairo.  O  príncipe  Nosso  Senhor  mandou  pellos  Doutores 
Martim  Affonso  de  Mello  e  Christouão  Pinto  de  Payui  deputados  do  despacho 
do  Tribunal  da  meza  da  conciencia  e  ordens  —  Francisco  Mendes  o  fez  em  Lix- 
boa  a  22  de  agosto  de  1670  —  o  secretario  Marcos  Roíz  Tinoco  o  fes  escre- 
uer  ||  Martim  Affonso  de  Mello  ||  Christouão  Pinto  de  Pajua.»1 


XLIX. —  Simão.— DenomiDado  o  portugalois,  isto  é,  o  portwjuez.  Tra- 
balhava na  officina  de  Goosen  van  der  Weyen  em  1304. 
Veja-se  o  artigo  Castro  (Affonso). 


L. — Sousa  Maldonado  (Theodoro  de). 

«Secular.  N.  a  J2  de  agosto  de  mil  settecentos  e  cincoenta  e  nove.  He 
graduado  em  mathematica  pela  Universidade  de  Coimbra,  insigne  em  Dezenho, 
e  Miniatura:  elle  foi  o  que  dezenhou  as  Estampas  da  Cidade  do  Porto,  e  da 
sua  Rarra,  incluídas  neste  volume.  Na  Poesia  Pastoril  não  tem  superior,  e  com 
facilidade  admirável  produz  os  melhores,  e  o  mais  armouiosos  versos  neste 
género.» 


1  Torre  do  Tombo.  Ordem  de  S.  Thiago.  L°  i8,  fl.  79. 

Outubro,  1906.  10 


74  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Transcrevo  textualmeule  esla  noticia  da  Descripção  histórica  do  Porto,  de 
Agostinho  Rebello  da  Costa. 

Innoceacio  da  Silva  inclue  no  seu  Diccionario  bibliographico  a  Sousa  Mal- 
donado, como  poeta,  descrevendo  algumas  das  suas  producções. 


LI. —  Straten  (Joozis  Vander). — Pintor  flamengo,  cujo  nome  foi  aportu- 
guezado  em  Jorge  Destrata  ou  de  Estrata.  Vem  já  mencionado  em  Raczynski, 
por  indicação  do  visconde  de  Juromenha,  citando  dois  documeutos,  que  abaixo 
transcrevo  na  integra.  O  primeiro,  porém,  foi  mal  traduzido  e  interpretado, 
dando  logar  a  um  erro  bastante  sensível. 

Em  4  de  julho  de  1 556  mandou  a  rainha  D.  Catharina,  ao  thesoureiro  Álvaro 
Lopes,  que  pagasse  a  Jorge  Destrata,  pintor  flamengo,  sete  mil  e  seiscentos  reaes, 
além  dos  quinze  mil  e  duzentos,  que  já  recebera,  por  outra  provisão  regia,  de  Af- 
fonso  de  Zuniga,  isto  por  tirar  pelo  natural  a  Dona  Antónia  e  a  mestre  Manuel. 

Raczytiski  equivocou-se  radicalmente,  dizendo  que  fora  por  tirar  o  re- 
trato a  D.  António,  filho  de  D.  João  III. 

Quem  seja  esta  Dona  Antónia  e  este  mestre  Manuel  não  o  pude  ainda 
averiguar  e  julgo  menos  prudente  perder-me  em  conjecturas. 

Ha  outro  mandado  de  pagamento,  de  li  de  dezembro  do  mesmo  anno, 
ordenando  que  se  lbe  dêem  oitenta  cruzados  por  tirar  do  natural  a  D.  Sebas- 
tião, o  príncipe  meu  veto,  conforme  declara  o  respectivo  documento. 

Em  carta  datada  de  Valhadolid  a  15  de  fevereiro  de  1557  e  dirigida  á 
rainha  D.  Catharina  pelo  nosso  embaixador  na  corte  de  Hespanha,  Lourenço 
Pires  de  Távora,  lê-se  que  a  princeza  (D.  Joanna,  viuva  do  infante  D.  João, 
filho  de  D.  João  III)  ficara  muito  contente  com  o  retrato  de  seu  filho  (D.  Se- 
bastião) que  lhe  levara  o  pintor  porluguez  Affonso  Sanches.  Veja-se  o  artigo 
Sanches  Coelho  (Affonso). 

Teria  acaso  D.  Sebastião  sido  retratado  duas  vezes,  na  mesma  época, 
uma  por  Estrata  onlra  por  Sanches  Coelho? 

«Aluaro  Lopez  mando  uos  que  deys  a  Jorge  destrata  framenguo  pimtor 
sete  mil  e  seisçemtos  reaes  que  lhe  mamdo  dar  alem  dos  quimze  mil  e  dozem- 
tos  reaes  que  Afonso  de  çunhiga  lhe  deu  ja  per  meu  mandado  per  outra  mi- 
nha prouysão,  o  que  tudo  lhe  mando  dar  por  tirar  pollo  natural  a  dona  Am- 
tonia  e  a  mestre  Manoel.  E  per  este  cõ  seu  conhecimento  feito  pello  escriuão 
de  voso  carguo  vos  serão  leuados  ê  comta  os  ditos  sete  mil  e  seys  centos  reaes. 
Bastião  de  fonsequa  o  fez  em  lixboa  a  iiij0  de  julho  de  mil  bc  çimcoenta  e  seis. 
— Amtonio  de  Sampayo  o  fez  espreuer 

Raynha.t 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTiiMiS 


75 


«Pêra  Aluaro  lopez  dar  a  Jorge  destrata  framenguo  pirator  blj  bjc  rs.  que 
lhe  V.  A.  manda  dar  alem  de  xb  ije  rs.  que  afonso  de  Çunhigua  lhe  ja  deu  per 
outra  prouysão,  o  que  tudo  V.  A.  lhe  mandou  dar  por  tirar  pollo  natural  a  dona 
Antónia  e  a  mestre  Manoel.» 

«Recebeo  Jorge  destrata  framenguo  pintor  do  thesoureiro  Aluaro  Lopez 
os  sete  mil  e  seiscentos  rs.  conteúdos  neste  aluara  em  lixboa  a  iiijc  de  Julho 
de  1556. « 

ajoozis  Van  der  Slraten.  dioguo  viartinz.* 

«Aluaro  Lopez  mando uos  que  deys  a  Jorge  dEstrata  pimtor  oytemla  cru- 
zados de  que  lhe  faço  merçe  por  tirar  pollo  natural  o  prymcipe  meu  neto  e 
per  este  com  seu  conhecimento  feito  pello  escryuão  de  voso  carguo  vos  seram 
leuados  em  comta  Bastião  da  Fonsequa  o  fez  em  Lixboa  a  xiiij0  de  dezembro 
de  mil  bc  lbj — António  de  Sampayo  o  fez  espreuer— Ra ynha.* 

«Lxxx  cruzados  em  Aluaro  Lopez  de  que  V.  A.  faz  mercê  a  Jorge  dEs- 
trata pimtor  por  tirar  pollo  natural  ao  prymcipe. 

«Recebeo  Jorge  dEstrata  pintor  do  thezoureiro  Aluaro  Lopez  os  oytemta 
cruzados  ccntiudos  neste  aluará  em  Lixboa  a  xiij  de  dezembro  1556.=/oo2i's 
Van  der  Straten  =  Dioguo  Martinz.» 

«Registado— António  de  Sampayo.  Pag.  seyscentos  e  quarenta  reaes. — 
Pamtalyam  Rebello  —  Pêro  dAlcacoua  Carneiro. 

«Recebi  seiscentos  quarenta  reaes  em  Lixboa  a  xiiij  dias  de  dezembro  de 
1556 — Luys  Gonçaluez. 

«Pag.  xxx  reaes.»2 


LU. — Vanegas  (Francisco). — O  meu  particular  amigo  e  illustre  escri- 
ptor  visconde  de  Castilho,  ua  sua  miniatura  á  penna  da  monumental  egreja 
de  S.  Vicente,  inserta  no  volume  iv  dos  Bairros  Orientaes  da  sua  Lisboa  an- 
tiga, diz  com  referencia  á  capella-mòr:  «O  altar-mór,  resguardado  sob  um  ele- 
gante baldaquino,  desenho  do  notável  Francisco  Vanegas,  castelhano,  e  exe- 
cução feita  sob  os  olhos  do  grande  Machado  de  Castro,  separa  esta  capella- 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chrouologico.  Parte  i,  maeo  98,  n.°  ii3. 
1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  i,  maço  100,  doe.  27. 


76  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

mór  do  vasto  coro  dos  cónegos  regrantes,  que  lhe  Gca  por  traz,  e  que  forma 
a  cabeceira  da  cruz».1 

No  alludido  trecho  o  sr.  Castilho  põe  uma  citação  a  authenticar  a  sua  affir- 
mativa  e  manda-nos  consultar  a  Collecção  de  Memorias  de  Cyrillo  Volekmar 
Machado.  Este,  porém,  só  se  refere  a  Machado  de  Castro  e  não  sei  por  conse- 
guinte explicar  como  o  desenho  fosse  de  Vanegas,  quando  é  certo  que  este 
pintor  foi  contemporâneo  de  D.  Filippe  I. 

O  sr.  Gabriel  Pereira,  no  seu  interessante  opúsculo  De  Bemfica  d  Quinta 
do  Correiu-mór ,  pag.  15,  relaciona  os  oito  quadros  que  estão  ornando  a  alia 
parede  da  frente  da  capelia-mór  da  egreja  da  Luz,  fundação  da  infanta  D.  Ma- 
ria, filha  de  D.  Manuel.  Em  três  d'elles  descobriu  a  assignatura  com  o  auxi- 
lio de  um  binóculo—  Francisco  Venegas,  frgius  pictnr  faciebat,  mas  crê  que  os 
restantes  sejam  todos  do  mesmo  pincel,  embora  haja  entre  elles  divergência, 
mais  apparente  que  real,  podendo-se  esta  explicar  pelo  processo,  então  em 
voga,  de  seguir  e  adaptar  as  obras  dos  grandes  artistas.  Assim  os  seus  qua- 
dros, onde  mais  se  revelam  faculdades  assimiladoras  que  inventivas,  fazem 
pensar  em  diversos  mestres  da  escola  italiana.  Vanegas  era  sem  duvida  um 
bello  executante  e  um  bom  colorista.  As  suas  pinturas  são  sobre  madeira. 


LITJ. — Vasco.  — Vivia  no  reinado  de  D.  Affonso  V,  que  o  tomou  por  seu 
illuminador  em  caria  de  7  de  março  de  1455,  a  qual  publiquei  na  integra  na 
minha  memoria  d  livraria  real  especialmente  no  ninado  de  U.  Manuel.* 

Ahi  se  diz  que  elle  era  creado  de  Luiz  Dantes,  que,  segundo  se  viu  no 
logar  competente,  era  pintor  del-rei.  Ainda  mais  se  especifica  que  o  tomara 
em  logar  de  huu  moço  que  tynhamos  hordenado  a  G.°  Eants,  nosso  capela,  ou- 
tro si  nosso  ilominador. 

Taborda  confundiu  este  Vasco  com  o  Grão-Vasco,  auctor  dos  quadros  da 
Sé  de  Vizeu.  Hoje,  porém,  está  provado  á  saciedade  que  o  illuminador  de  D. 
Affonso  V  é  muito  differenle  de  Vasco  Fernandes,  um  viveudo  no  século  xv, 
outro  no  século  xvi. 


'Obra  citada,  pag.  231-232. 

2  Aproveito  a  oecasião  para  rectificar  alguns  erros  que  sahirara  nVíta  Memoria.  Assim 
se  deve  emendar  a  data  que  se  lé  no  titulo  que  encima  a  carta  de  Vasco.  A  cana,  aposentando 
Vicente  Domingues,  tein  no  titulo  1496,  quando  deve  ser  ii4ti.  A  carta, isentando  de  besteiro 
a  quem  casasse  com  Joanna  Rodrigues,  tem  1457,  quando  deve  ser  1401. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  77 


LIV.— Vieira  (Domingos).— Na  primeira  metade  do  século  xvii  existiram 
dois  pintores  do  mesmo  nome  e  appellido,  cuja  personalidade  andou  confun- 
dida, chegando  apenas  Cyrillo  Volkmar  Machado  a  suspeitar  que  seriam  dois 
indivíduos  e  não  um,  como  efectivamente  assim  é  e  jà  demonstrei  na  primeira 
serie  d'estas  Memorias.  Distinguem-se  um  do  outro,  não  só  pela  distancia  dos 
annos,  mas  também  pelo  appellido  Serrão,  usado  pelo  mais  antigo,  que  já  de- 
via ser  fallecido  por  1641,  emquanto  que  o  segundo  ainda  subscrevia  com  a 
data  de  1652  um  grande  painel  para  a  portaria  do  mosteiro  de  S.  Uento. 

Na  Chancellaria  de  D.  Filippe  II  acha-se  registado  um  alvará  de  30  de 
dezembro  de  1606,  isentando  Domingos  Vieira  dos  encargos  da  bandeira  de 
S.  Jorge.  É  possível  que  este  privilegio  fosse  concedido  ao  primeiro. 

Um  documento  do  archivo  do  Santo  Officio  revela-nos  a  existência  de  um 
quadro  executado  em  1627  por  um  Domingos  Vieira,  que  sele  annos  depois 
(1634)  assistia  em  casa  do  conde  de  Monsanto.  O  quadro  fora  feito  por  en- 
commenda  de  António  Rodrigues  das  Neves,  cura  da  frequezia  de  Nossa  Se- 
nhora do  Monte  de  Caparica,  para  a  capella  de  Nossa  Senhora  do  Rosário. 
Este  retábulo  dividia-se  em  vários  compartimentos,  n'um  dos  quaes  estava 
debuxada  Nossa  Senhora  da  Conceição,  tendo  de  um  lado  S.  Thomaz,  que  pa- 
recia em  posição  humilde,  e  do  outro,  com  ar  tiiumphante,  o  dr.  Scolto.  Da 
bocca  de  um  e  de  outro  sahiam  letreiros  que  offendiam  a  meticulosidade  de  cer- 
tos orthodoxos,  que  fizeram  as  suas  queixas  á  Inquisição,  a  qual  resolveu  man- 
dar estudar  o  assumpto  e  anal}  sar  o  quadro.  Desta  empreza  foi  incumbido  o 
dr.  Jorge  Cabral,  da  Companhia  de  Jesus,  que  deu  parecer  em  19  de  setem- 
bro de  163  i  e  n'elle  condemna  algumas  palavras  dos  disticos,  fazendo  recahir 
as  culpas  sobre  o  cura  e  o  pintor,  que  julga  dignos  de  serem  admoestados. 
N'esta  mesma  informação  dá  alguns  toques  biographicos  do  executante  da  obra, 
que  tinha  por  alcunha  o  Escuro  e  era  cunhado  de  um  corrieiro  que  faz  coisas 
de  anta  no  fim  da  rua  dos  Douradores  e  Gadamicineiros. 

Um  attestado  subscripto  a  24  de  setembro  de  1634  pelo  padre  António 
Luiz,  natural  e  morador  em  Caparica,  certifica  de  visu  que  não  só  os  letrei- 
ros, mas  as  imagens  alludidas,  estavam  já  completamente  raspadas. 

Seria  o  artista  do  quadro  de  Caparica  o  mesmo  que  pintou  o  painel  de 
S.  Bento? 

«Ev  elRej  faço  saber  aos  que  este  aluara  uirem  que  auêdo  respeito  ao 
que  na  petiçã  atras  escrita  diz  Domingos  Vieira  pintor  de  óleo  e  imaginaria  e 
uistas  as  causas  que  alega  e  a  informação  que  o  Licenciado  Inaçio  Colaço  de 
Brito  corregedor  do  ciuel  nesta  cidade  per  meu  mandado  tomou  acerca  do  con- 


78  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

teudo  na  dita  petiçã  e  como  pela  dita  informação  constou  ser  o  dito  Domingos 
Vieyra  hu  dos  milhores  pintores  de  jmagiuaria  doleo  que  ha  nestes  Rejnos,  e 
a  dita  arte  de  pintura  doleo  e  jmaginaria  ser  auida  e  reputada  per  nobre  em 
todos  os  outros  Rejnos  ey  por  bê  e  me  praz  que  o  dito  Domingos  Vieira  não 
seja  daqui  ê  diante  obrigado  ha  Bandeira  de  São  Jorge,  nem  aos  encargos 
delia  nem  a  outros  algus  encargos  dos  a  que  se  costumão  obrigar  os  officiaes 
mecaniquos,  e  isto  sê  êbargo  da  proujsão  per  que  EIRej  dom  Joã  meu  thio 
que  santa  gloria  aja  anexou  os  pintores  jndistintamente  a  dita  bandeira  de 
São  Jorge  e  de  quaesquer  outras  prouisões  regimentos  e  posturas  da  Camará 
desta  cidade  que  ê  contrairo  aja  e  mando  ao  presidente  uereadores  e  procu- 
dadores  dos  mesteres  delia  e  a  quaesquer  outras  justiças  officiaes  e  pesoas  a 
que  o  conhecimento  disto  pertencer  que  o  não  obriguem  nem  constranjão  aos 
encargos  da  dita  Bandeira  de  São  Jorge  nem  a  outros  alguns  de  oficial  mecâ- 
nico e  lhe  cúprã  e  guardem,  e  faça  jnteiramente  cuprir  e  guardar  este  aluará 
como  se  nelle  cõthê  o  qual  me  praz  que  valha  e  tenha  força  e  uigor  posto 
que  o  effeito  delle  aja  de  durar  mais  de  hú  afio  sem  êbargo  da  ordenação  ê 
contrairo.  António  de  Moraes  o  fez  em  Lixboa  a  xxx  de  dezembro  de  Jbjc  e 
seis — João  da  Costa  o  fiz  escreuer.»1 

tCertefico  eu  o  Padre  António  Luis  sacerdote  de  missa  natural  e  mora- 
dor em  esta  fregezia  de  Caparica  que  he  uerdade  que  na  capella  de  Nossa 
Senhora  do  Rozario  que  esta  na  matrix  da  dita  fregezia  esta  hum  relabolo  no 
meio  do  qual  esta  hum  nicho  em  que  esta  Nossa  Senhora  do  Rozario  de  vultu, 
e  o  mais  retabolo  se  parte  em  quatro  painéis  em  hum  dos  quais  estaua  e  esta 
Nossa  Senhora  da  Conceição,  e  ao  pee  delia  da  parte  direita  estaua  Santo  Tho- 
maz  cõ  hum  litreiro  qne  sahia  do  boca  do  dito  santo  pêra  a  virgem  Nossa  Se- 
nhora que  disia  —  Dignareme  laudarete,  virgo  sacrata  —  E  da  outra  parte 
estaua  hua  figura  que  dezião  ser  Sisto,  de  cuja  boca  sahia  hum  litreiro  que 
dezia  —  Da  mihi  uirtutem  contra  hostes  tuas  —  as  quais  figuras  ui  pintadas 
de  óleo,  e  hoie  as  ui  rapadas  todas,  de  modo  que  neuhua  delias  se  mostraua, 
nem  parte  delias,  nem  mais  que  a  taboa  de  bordo  rossada  onde  auião  estado, 
e  o  letreiro  estaua  apagado  sem  figura  de  letra  nenhQa  o  que  tudo  passa  na 
uerdade,  como  consta  do  mesmo  retabolo,  a  qual  certidão  passej  pelo  Padre 
cura  António  Lopes  das  Neues  me  requerer  fosse  uer  o  dito  retabolo,  e  do 
que  achasse  lhe  passasse  certidão,  e  pêra  este  effeito  fui  uer  o  dito  retabolo, 
e  o  achei  como  atras  digo,  e  por  assim  ser  passei  a  presente  hoie  24  de  se- 
tembro de  634  annos.  =  0  padre  António  Luis.» 


i  Torre  do  Tombo.  Chancellaria  de  D.  Filippc  II.  Privilégios.  L.°  3,  fl.  148. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  79 

«De  ordem  da  mesa  mãodou  fazer  diligencia  pello  padre  Iorge  Cabral  da 
cõpanhia  de  Iesus  reuedor  deste  Santo  officio  em  resão  da  Pintura  de  nossa  se- 
nhora da  Conceição  cõ  Santo  thomas  a  mao  direita  e  Escoto  a  mao  esquerda, 
a  qual  pintura  esta  na  egreia  de  nossa  Senhora  do  monte  em  Caparica;  e  o 
que  resultou  he  o  siguinte  que  S.t0  Thomas  esta  pintado  muito  humilde;  e  Es- 
coto muito  alegre  e  a  letra  se  le  as  auessas  do  Escoto  pêra  S.t0  Thomas ;  a 
qual  he  dignaeme  etc;  esta  pintura  se  fes  ha  sete  annos;  de  ordem  de  An- 
tónio RoTz  das  neues  cura  da  dita  igreia  que  era  official  da  dita  confraria  ao 
tal  tempo  cõ  Rui  Dias  espinosa,  e  martim  gonçalluez;  mas  ainda  correo  cõ 
toda  a  obra  e  pagamento  delia,  a  qual  fez  hu  Domingos  Vieira  que  hoie  as- 
siste em  casa  do  Conde  de  Monsanto  esta  he  a  enformação  que  temos  da  ma- 
téria 5  de  setembro  634. =Dr  Osório  de  castro  — Pedro  da  Silua.* 

«Aos  Inquisidores  que  mandem  ao  Padre  jorge  Cabral  dê  Rellação  da  ma- 
téria comtheuda  clara  e  distyntamente,  e  com  ella  seu  Parecer,  E  com  o  dos 
jnquisidores  torne  a  este  Conselho.  Lisboa  5  de  setembro  de  1634.=G.  pe- 
reira =francisco  Barreto. =  Manoel  daCunha=fr.  João  de  vascõcellos.* 

«Por  ordem  da  mesa  da  jnquisiçam,  fui  a  Almada  fazer  diligencia  sobre 
um  rotolo  indicête  que  se  pos  em  hua  capella  dedicada  a  nossa  Senhora  da 
Conceiçam;  E  por  testemunhas  fidedignas,  (emtre  as  quaes  foi  o  uigario  da 
vara)  achei  a  enformaçam  que  dei  na  dita  mesa  aos  senhores  Inquisidores  que 
he  a  seguinte:  Na  jgreja  de  nossa  senhora  do  monte  sita  no  termo  de  Capa- 
rica, de  que  he  cura  ha  muitos  annos  o  padre  António  roíz  das  neues,  esta 
húa  capella  dedicada  a  nossa  senhora  da  conceiçam,  e  nella  hua  confraria  da 
mesma  innocaçam,  de  nossa  senhora  da  conceiçam,  sendo  o  dito  padre  official 
auera  7  annos  pouco  mais  ou  menos  da  dita  confraria  cõ  Rui  dias  de  espinhosa 
casado  cõ  hua  sobrinha  do  dito  cura,  e  outros  homens,  deu  ordem  o  dito  cura 
que  na  dita  capela  se  pintasse  nossa  Senhora  da  conceiçam  com  S.  Thomas  a 
mão  direita  e  Escoto  a  esquerda  (em  forma  que  o  doutor  Angélico  esta  muito 
humilhado,  e  Escoto  muito  alegre)  com  esta  letra  posta  as  auessas  dignareme 
laudarete,  uirgo  sacrata,  da  mihi  uirtutem  cõtra  hostes  tuos  digo  as  auessas 
por  se  começa  a  ler  dereito  pêra  S.  Thomas,  acabando  as  ultimas  palauras  cõ- 
tra hostes  tuos  em  S.  Thomas  dando  a  entender  que  S.  Thomas  é  imigo  da 
senhora.  O  pintor  que  pintou  per  ordê  do  dito  cura  estas  imagens  chamase  do- 
mingos uieira  o  Escuro  dalcunha;  reside  nesta  cidade  de  lisboa,  e  comumente 
assiste  em  casa  do  Conde  de  Monsanto  tê  boa  noticia  delle  hu  corrieiro  seu 
cunhado  que  mora  être  os  officiaes  que  fazê  couzas  danta  no  fim  da  rua  dos 
douradoures  e  gadamicineiros. 

«As  palauras  ultimas  do  dito  rotolo  considerado  o  sitio  delias,  e  mais  cir- 


80  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

cunstancias,  ad.  minimum  sapiunt  blasphemiam;  por  que  dam  a  entender  que 
o  doutor  Angélico  he  imigo  da  maj  de  deus,  pelo  que  me  parece  que  aos  ditos 
cura  e  pintor  se  deue  estranhar  na  mesa  da  inquisiçam  este  atreuimenlo;  por- 
que ainda  que  com  capa  de  zelo  da  immacuhda  conceiçam  da  virgem  nossa 
senhora  queira  o  cura  escusar  sua  culpa,  uã  tê  ia  lugar  esta  desculpa  porque 
(como  me  testificou  o  uigairo  da  vara)  na  uisitaçam  do  ordinairo  se  lhe  man- 
dou ia  o  anno  passado  riscase  o  dito  rotolo,  ao  que  não  tê  obedecido,  e  ao 
dito  vigário  da  vara  esta  mandado  faça  executar  a  dita  uisitaçam.  porê  nã  se 
deue  mandar  riscar  todo  rotolo  pois  he  da  Igreja  santa  e  louuor  da  Senhora 
senã  as  ultimas  palauras  (contra  hostes  tuos)  suspeitas  as  circunstancias  do 

lugar  etc.  porque  cõforme  a  direito  utile  non por  inutile.  isto  me  pa- 

receo  nesta  casa  de  S.  Roque  da  cõpanhia  de  Jhesu  3.a  feira  19  de  setenbro 
de  634  =  Doutor  Jorge  Cabral.»1 


LV. — Vieira  de  Mattos  (Francisco). —  Denominado  o  Lusitano,  distinguin- 
do-se  por  esta  forma  de  um  seu  homonymo  Francisco  Vieira,  o  Portuense. 

O  sr.  visconde  de  Castilho  publicou  um  notável  estudo2  sobre  aquelle  ar- 
tista, baseado  em  grande  parte,  sobretudo  no  tocante  á  vida  intima,  n'uma 
auto-biographia  dada  á  luz  da  publicidade  em  1780  sob  o  titulo  de  O  insigne 
pintor  e  leal  esposo  Vieira  Lusitano. . . 

É  uma  extensa  historia  em  cantos  lyricos,  isto  é,  em  quadras,  de  redon- 
dilha  maior,  de  rimas  toantes,  escripta  n'uma  linguagem  pretenciosa,  de  pré- 
cieuses  ridicuks,  impregnada  ao  mesmo  tempo  de  candura  e  ingenuidade  quasi 
infantis.  O  artista,  dando-se  o  epitueto  de  insigne,  bem  mostrava  o  apreço  em 
que  tinha  a  sua  pessoa,  não  deixando  correr  a  sua  reputação  por  mãos  alheias. 

O  livro  do  sr.  Castilho  está  a  reclamar  uma  segunda  edição,  amplamente 
illustrada  com  as  principaes  obras  do  mestre,  finalisando  com  uma  lista  des- 
envolvida e  quanto  possível  completa  dos  trabalhos  que  elle  legou  á  posteri- 
dade, em  pintura,  em  desenho  e  em  gravura.  A  quem  se  dedique  um  dia  a 
esta  laboriosa  tarefa  offereço  agora  aqui  uns  brevíssimos  apontamentos  que 
lhe  possam  servir  de  auxilio  a  mais  amplas  pesquizas. 

No  catalogo  da  Livraria  romana,  correspondente  ao  mez  de  junho  de  1904, 
comprehendendo  obras,  estampas  e  medalhas  relativas  a  Portugal,  vem  des- 
cripta,  sob  o  n.°  31,  a  obra  impressa  em  Roma  em  1727  com  o  titulo  de  Com- 


1  Torre  do  Tombo.  14."  eaderno  do  Promotor  de  Lisboa,  fl.  330. 

2Intitu!a-se:  Amores  de  Vieira  Lusitano,  apontamentos  biographicos.  Lisboa.  Parceria  An- 
tónio Maria  Pereira,  livraria  editora,  1901.  É  adornado  de  22  estampas  fora  a  capa  e  4  fac-ai- 
miles. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  TINTCRES  81 

pendia  delle  Vite  dê  Santi  Orefici  ed  Argentieri,  raccolta  da  diversi  autori,  por 
Libório  Caglieri.  É  adornada  de  estampas,  algumas  das  quaes  são  dcl  bravo 
artista  Portoghese,  Francesco  Vieira. 

O  meu  amigo  sr.  Annibal  Fernandes  Thomaz  alcançou  um  exemplar  d'esta 
obra,  da  qual  teve  a  bondade  de  me  enviar  mais  delidas  informações. 

O  volume  contém  S6  gravuras  em  metal,  e  em  folhas  avulsas,  que  não 
entram  na  paginação,  sendo  9  feitas  sobre  desenhos  de  Francisco  Vieira  Lu- 
sitano e  referindo-se  estas  aos  seguintes  assumptos: 

Em  frente  do  rosto:  Grupo  de  5  figuras,  tendo  na  parte  inferior,  em  es- 
cudetes:  S.  Andronico  prima  Argentiê  poi  Mon.co  —  S.  Tillone  prima  Orefice 
poi  Abate  — S.  Eligio  prima  Orefice  poi  Vescovo  —  S.  Anastasio  prima  Argen- 
tiê poi  Mon.  e  Mar.— Beato  Facio  Argentiere. 

Em  frente  da  pag.  1 :  S.  Eligio  impara  la  professione  d'Orefice. 

Idem  da  pag.  32:  S.  Eligio  libera  con  un  miracolo  tre  sentenziati  a  morte. 

Idem  da  pag.  66:  S.  Anastasio  ancora  Gentile  lavora  in  bottega  d'un  Ar- 
gentiere Cristiano. 

Item  da  pag.  74:  S.  Anastasio  martirizato  in  compagnia  di  molti  altri 
Cristiani. 

Idem  da  pag.  78:  S.  Andronico  Maestro  Argentiere. 

Idem  da  pag.  80:  S.  Alanasia  Moglie  di  S.  Andronico  á  rivelazzione  es- 
sere  i  Figli  andati  in  Cielo. 

Idem  da  pag.  88:  It  B.  Faceio  esercita  la  professione  d'Argentiere. 

Idem  da  pag.  90:  It  B.  Faceio  per  calunnie  stá  prigione  ove  fá  diversi 
miracoli. 

Todas  estas  gravuras  teem  nos  ângulos  inferiores,  á  direita  e  á  esquerda, 
os  dizeres:  Franc.  Vieira  Lusitano  inv. — Cario  Gregori  scol.  Boma. 

As  sete  composições  restantes  são  de  Agostino  Masucci,  Andrea  Oratij  e 
Plácido  Costanzi. 

Entre  os  livros  litúrgicos  para  uso  da  capella  de  S.  João  Baptista  na 
egreja  de  S.  Boque  ha  um  Canon  Missw  Pontificalis,  impresso  em  Boma  em 
1743,  adornado  de  estampas  gravadas,  segundo  os  desenhos  de  diversos  ar- 
tistas, entre  os  quaes  se  conta  o  nosso  Vieira  Lusitano. 

O  meu  illustre  amigo  e  incançavel  escriptor  Prospero  Peragallo,  aceusan- 
do-me,  em  carta  de  23  de  junho  de  1903,  a  recepção  da  primeira  serie  d'esta 
Noticia,  teve  a  amabilidade  de  me  enviar  a  seguinte  nota: 

«A  respeito  do  celebre  Francisco  Vieira  encontrei  na  Vita  dei  Cav.  Giam- 
battista  Bodoni,  vol.  1.°,  p  47,  48,  Parma,  Stamperia  Ducale  MDGCCXVII, 
uma  noticia,  que  não  sei  se  já  foi  aproveitada  na  biographia  do  grande  pin- 
tor, e  por  isso  lh'a  communico. 

Outubro,  1906.  11 


82 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


«Fervia  em  1694  em  Parma  uma  questão  entre  os  artistas,  se  as  pintu- 
ras da  Camera  dita  dei  Correqgio  erão  cTelle,  ou  do  pintor  Tinti.  Então  o  Duque 
Ferdinando  nomeou  uma  commissão  para  julgar  em  ultima  instancia;  e  d'esta 
commissão  quiz  que  fizesse  parte  =  il  Portoghese  giovinetto  Francesco  Vieira, 
che  da  qualche  tempo  stavasi  meditando  e  ricopiaudo  le  opere  Correggesche  = 
Emquanto  os  commissarios,  cheios  de  admiração,  estavam  observando  as  porten- 
tosas pinturas,  quem  rompeu  o  silencio  foi  o  Vieira,  o  qual  disse  =  a  che  ci 
stiamo  noi  ammiratori  inoperosi  di  tante  bellezze,  e  non  cerchiam  piuttosto, 
prevalendoci. . .  delia  luce,  di  trarne  copia  fedele  colla  matita  (note  o  amigo 
que  a  tal  Camera  era  no  Mosteiro  de  Freiras  de  S.  Paolo),  affinchè  un  qualche 
vestígio  alraeno  ci  rimanga  sensibile  di  cosi  peregrina  pittura?  =  E  poiché  ve- 
locíssimo era  nel  diseguare,  che  detto  avreste  ch'egli  scrivesse,  nel  breve  giro 
di  sette  ore,  ventisei  pezzi  ne  ebbe  formati=» 

A  data  apontada  de  1694  é  visivelmente  errónea,  sendo  possível  que  ti- 
vesse havido  engano  ao  copial-a.  Assim  o  demonstram  algumas  ephemerides 
da  vida  do  nosso  artista,  que  nasceu  a  4  de  outubro  de  1699  e  falleceu  a  13 
de  agosto  de  1783.  A  sua  primeira  viagem  a  Roma  effectuou-se  em  1712,  e 
a  segunda  em  1722,  regressando  a  Portugal,  respectivamente  de  cada  uma 
d'ellas,  em  1719  e  1728. 

Além  do  trabalho  do  sr.  visconde  de  Castilho,  a  que  me  referi  no  prin- 
cipio d'esta  Noticia,  cumpre  mencionar  um  interessante  opúsculo  do  meu  bom 
amigo  o  sr.  António  César  Mêna  Júnior,  primitivamente  publicado  no  Archivo 
histórico  portuguez,  e  mais  tarde  no  Boletim  da  Real  Associação  dos  Architectos 
civis  e  Archeologos  Portuguezes,  sob  o  titulo  de  Um  esboceto  de  Vieira  Lusitano. 
D'este  estudo  se  fizeram  duas  tiragens,  em  separado,  extrahidas  d'aquellas  re- 
vistas, sendo  uma  de  21  e  a  outra  de  50  exemplares.  Ambas  são  acompanha- 
das: a  primeira  da  reproducção  do  esboceto  em  tamanho  natural;  a  segunda 
do  mesmo,  reduzido  a  metade.  Este  esboceto  era  para  o  retrato  do  primeiro 
cardeal  patriarcha  de  Lisboa,  D.  Thomaz  de  Almeida. 


LVI. — Vieira  Serrão  (Domingos). —  Em  carta  de  1  de  julho  de  1624  foi 
nomeado  pintor  do  convento  de  Christo  de  Thomar,  talvez  na  successão  e  por 
fallecimento  de  Simão  d'Abreu. 

«Dom  Phelippe  etc.  Como  gouernador  etc.  faço  saber  que  auendo  res- 
peito ao  que  na  petição  atraz  escripta  diz  o  Dom  Prior  do  conuento  de  Tho- 
mar da  ditta  ordem  e  visto  o  que  allega  Hey  por  bem  e  me  praz  que  Domin- 
gos Vieira  pintor  o  seja  do  ditto  conuento  e  peuturas  que  n'elle  se  fiserem 


NOTICIA  I)E  ALGUNS  PINTORES  83 

etc.  Hey  por  bem  que  valha  como  carta  supposto  que  o  effeito  delia  aja  de  du- 
rar mais  de  hõ  anno  sem  enbargo  de  qualquer  prouisão  ou  regimento  em  con- 
trairo  e  se  cumprira  sendo  passada  pella  chancellaria  da  ditta  ordem  EIRey 
Nosso  Senhor  o  mandou  pellos  deputados  do  despacho  da  mesa  da  consciên- 
cia e  ordens  os  doutores  dom  António  Mascarenhas  e  Diogo  de  Britto.  Ma- 
nuel Pereira  de  Castro  o  fez  em  Lixboa  ao  primeiro  de  Julho  de  624. »' 


i  Torre  do  Tombo.  Cartório  da  Ordem  de  Christo.  L.°  12,  fl.  367  v. 


LISTA    ALPHABETIGA, 


POR  APPELLIDOS, 


DOS 


ARTISTAS  CONTIDOS  NA  l.a  E  V  SERIE  D'ESTAS  MEMORIAS 


Abreu  (Simão  de). 

Affonso  (Fernando). 

Affonso  (João  1.°  e  2.°). 

Ajfonso  (Jorge). 

Affonso  (Pêro). 

Affonso  (Simão). 

Almeida  (Pêro  de). 

Alvares  (João  1."  e  2.°). 

Alvares  de  Andrade  (Luiz). 

Andrade  (Lazaro  de). 

André  (Manuel). 

Anes  (Gonçalo). 

Anes  (João). 

Anes  de  Leiria  (Francisco). 

Alies  (Rodrigo). 

Anes  ou  Eanes  (Vasco). 

Antoninho  (Mestre). 

Armõe  (Reymão). 

Aves  (Francisco  das). 

Azevedo  (João  de). 

Baccarelli  (Vicente). 

Barco  (Gabriel  dei). 

Barreto  (Jorge). 

Barros  (António  de). 

Barros  Ferreira  (Jeronymo  de). 

Le  Bault  (Claude). 

Borges  (Manuel). 

Brandão  (Eduardo  Emilio  Pereira). 

Browne  (D.  Izabel). 

Campos  (Lucas  de). 

Cão  (Gaspar). 

Carducci  ou  Carducho  (Vicente). 

Carvalho. 

Carvalho  (Gaspar). 


Castelli  (Bernardo). 
Castro  (Affonso). 
Castro  (Pedro  de). 
Cerveira  (Fernão). 
Coelho  da  Silveira  (Bento). 
Coimbra  (Pêro  de). 
Contreiras  (Diogo  de). 
Correia  de  Araújo  (Manuel). 
Côrte-Rcal  (Jeronymo). 
Costa  (António  da). 
Costa  de  Rezende  (Thomé). 
Cunha  (Domingos  da). 
Dantes  (Luiz). 
Delerive  (Nicolas). 
Dias  (Gaspar). 
Dias  (João). 

Dias  de  Oliveira  (Manuel). 
Dioll  (Jacomo). 
Eduardo  ou  Duarte. 
Espinhosa  (António). 
Espinosa  (João  de). 
Fernandes  (Álvaro). 
Fernandes  (Bartholomeu). 
Fernandes  (Diogo). 
Fernandes  (Garcia). 
Fernandes  (Gomes). 
Fernandes  (Lourenço). 
Fernandes  (Luiz). 
Fernandes  (Pêro). 
Fernandes  (Vasco). 
Figueiredo  (Christovão  de). 
Figueiredo  Seixas  (José  de). 
Florentim  (António). 
Fonseca  (António  Manuel  da). 


85 


NOTICIA  I'E  ALGUNS  riNTORKS 


Francesco  (Nicoloso). 

Franco  (Manuel). 

Furtado  (Manuel). 

Gallego  (Pêro  Affonso). 

Gentileschi  (Francesco). 

Gil  (Vicente). 

Góes  (Manuel  António  de). 

Gomes  (Affonso). 

Gomes  (Diogo). 

Gomes  (Fernão). 

Gomes  (Francisco). 

Gomes  (Gonçalo). 

Gomes  (Manuel). 

Gonçalves  (Affonso). 

Gonçalves  (Álvaro). 

Gonçalves  (André). 

Gonçalves  (João  1.°  e  2.°). 

Gonçalves  (Nuno). 

Guarienti  (Pietro). 

Henriques  (Francisco). 

Joliane. 

Kloet  (Willelm  van  der). 

Landrofe  (António  de). 

Lassere  (Prospero). 

Leal  (Jorge). 

Leitão  (Antão). 

Leitão  (António). 

Leonardo 

Lisboa  (Fernão). 

Lobo  de  Moura  (Eduardo). 

Lopes  (Christovão). 

Lopes  (Gregório). 

Luiz  (António). 

Manuel  (Diniz) 

Martins  (João  i.°  e  2.°). 

Martins  (Lourenço). 

Malta  (António  da). 

Mattos  (Francisco  de). 

Mendes  (Álvaro). 

Mendes  (Jorge). 

Moralles  (António  de). 

Negreiros  (José  da  Costa). 

Nicoloso  (Francisco).  Já   mencionado  sob 

nome  de  Francesco  (Nicoloso). 
Nogera  (André). 
Nunes  (Miguel). 

Oliveira  Bernardes  (António  de). 
Oliveira  Bernardes  (Polycarpo  de). 
Oliveira  de  Louredo  (António  de). 
Oort  (J.  Van.) 
Paiva  (António  de). 


Paiva  (Miguel  de). 

Paulino  dos  Reis  (Máximo). 

Pedro  (Álvaro  de). 

Pegado  i  Bernardo  Pereira). 

Pellegrini  (Domenico). 

Pellereau  (Frédéric). 

Pereira  (António). 

Pereira  de  Miranda  (Braz). 

Pires  (Affonso). 

Pires  (Álvaro). 

Pires  (João). 

Rabellu.  Vide  Silva  Rabello  (Manuel). 

Rezende  (Thomé  da  Costa  de). 

Reinoso  (André  de). 

Rite  (D.  Izabel  Maria). 

Rodrigues  (António). 

Rodrigues  (Fernão). 

Rodrigues  (Pêro). 

Rodrigues  (Simão). 

Rodrigues  da  Silva  (José). 

Sanches  (Affonso). 

Santa  Cruz  (Francisco  de). 

S.  José  (Frei  Luiz  de). 

Serra  (Victorino  Manuel  da). 

Silva  de  Figueiredo  (Thomaz  da). 

Silva  Paz  (Lourenço  da). 

Silva  Rabello  (Manuel  da). 

Silveira  (Manuel). 

Simão. 

Sousa  (António  de). 

Soiwa  Maldonado  (Theodoro  de). 

Sousa  Vdlar  (Thomaz  de). 

Straten  (Joozis  Vander). 

Taveira. 

Teixeira  (Diogo). 

Tomasini  (Luiz  Assencio). 

Trosylhos  (Fernão  de). 

Utrecht  (Christovão  de). 

Vanegas  (Francisco). 

Vasco 

Vaz  (Diogo). 

Vaz  (Gaspar). 

Vaz  (Pêro). 

Vieira  (Domingos). 

Vieira  (Gaspar). 

Vieira  de  Mattos  (Francisco).  Mais  conhecido 

por  Vieira  Lusitano. 
Vieira  Serrão  (Domingos). 
Visete  (Vicitor  ou  Victor). 
Ximenez  (Fernão). 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


87 


LISTA     AIJPHABETIGA, 


POR  NOMES  DE  BAPTISMO 


Affonso  Castro. 

Affonso  Gomes. 

Affonso  Gonçalves. 

Affonso  Pires. 

Affonso  Sanches. 

Álvaro  Fernandes. 

Álvaro  Gonçalves. 

Álvaro  Mendes. 

Álvaro  de  Pedro. 

Álvaro  Pires. 

André  Gonçalves. 

André  Nogera. 

André  de  Reinoso. 

Antão  Leitão. 

Antoninho. 

António  de  Barros. 

António  da  Costa. 

António  de  Espinhosa, 

António  Florcntim. 

António  de  Landrofe. 

António  Leitão. 

António  Luiz. 

António  Manuel  da  Fonseca. 

António  da  Matta. 

António  de  Moralles. 

António  de  Oliveira  Bernardes. 

António  de  Oliveira  de  Louredo. 

António  de  Paiva. 

António  Pereira. 

António  Rodrigues. 

António  de  Sousa. 

Bartholomeu  Fernandes. 

Bento  Coelho  da  Silveira. 

Bernardo  Castelli. 

Bernardo  Pereira  Pegado. 

Braz  Pereira  de  Miranda. 

Carvalho. 

ChristovSo  de  Figueiredo. 

Christovão  Lopes. 

ChristovSo  de  Utrecht. 

Claude  Le  Bault. 

Diniz  Manuel. 


Diogo  de  Contreiras. 

Diogo  Fernandes. 

Diogo  Gomes. 

Diogo  Teixeira. 

Diogo  Vaz. 

Domenico  Pellegrini. 

Domingos  da  Cunha. 

Domingos  Vieira 

Domingos  Vieira  Serrão. 

Eduardo  ou  Duarte. 

Eduardo  Emilio  Pereira  Brandão. 

Eduardo  Lobo  de  Moura. 

Fernando  Affonso. 

Fernão  Cerveira. 

Fernão  Gomes. 

Fernão  de  Lisboa. 

Fernão  Rodrigues. 

Fernão  Trosi/lhos. 

Fernão  Ximenez. 

Franeesco  Gentileschi. 

Francisco  Anes  de  Leiria. 

Francisco  das  Aves. 

Francisco  Gomes. 

Francisco  Henriques. 

Francisco  de  Mattos. 

Francisco  Nicoloso. 

Francisco  de  Santa  Cruz. 

Francisco  Vanegas  ou  Venegas. 

Francisco  Vieira  de  Mattos. 

Frédéric  Pellereau. 

Gabriel  dei  Barco. 

Garcia  Fernandes. 

Gaspar  Cão. 

Gaspar  Carvalho. 

Gaspar  Dias. 

Gaspar  Vaz. 

Gaspar  Vieira. 

Gomes  Fernandes. 

Gonçalo  Anes. 

Gonçalo  Gomes. 

Gregório  Lopes. 

Izabel  Browne. 


88 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Izabel  Maria  Rite. 

Jacomo  Dioll. 

Jeronymo  de  Barros  Ferreira. 

Jeronvmo  Cdrte-Real. 

João  Affonso,  i.° 

João  Affonso,  2.° 

João  Alvares,  1.° 

João  Alvares,  2." 

João  Anes. 

João  de  Azevedo. 

João  Dias. 

João  de  Espinosa. 

João  Gonçalves,  1  ° 

João  Gonçalves,  2." 

João  Martins,  1." 

João  Martins,  2." 

J.  Van  Oorí. 

João  Pires. 

Johane. 

Joozis  Vander  Straten. 

Jorge  Affonso. 

Jorge  Barreto. 

Jorge  ira/. 

Jorge  Mendes. 

José  da  Costa  Negreiros. 

José  de  Figueiredo  Seixas. 

José  Rodrigues  da  Silva. 

Lazaro  de  Andrade. 

Leonardo. 

Lucas  de  Campos. 

Luiz  A/rares  rf>  .4)!ífi'í7ííp. 

Luiz  Assencio  Tomasini. 

Luiz  Dantes. 

Luiz  Fernandes. 

Luiz  (Fr.)  de  S.  José. 

Lourenço  Fernandes. 

Lourenço  Martins. 

Lourenço  da  Sf/ea  Paz. 

Manuel  Arcrfré. 

Manuel  António  de  Góes. 

Manuel  Borges. 

Manuel  Correia  de  Araújo. 


Manuel  Dias  de  Oliveira. 

Manuel  Franco. 

Manuel  Furtado. 

Manuel  Gomes. 

Manuel  da  Silva  Rabello. 

Manuel  Silveira. 

Máximo  Paulino  dos  Reis. 

Miguel  Nunes. 

Miguel  de  Paira. 

Nicolas  Delerive. 

Nuno  Gonçalves. 

Pedro  de  Castro. 

Pêro  Affonso. 

Pêro  Affonso  Gallego. 

Pêro  de  Almeida. 

Pêro  de  Coimbra. 

Pêro  Fernandes. 

Pêro  Rodrigues. 

Pêro  Vaz. 

Pietro  Guarienti. 

Polvcarpo  de  Oliveira  Bernardes. 

Prospero  Lassere. 

Reymão  Armõe. 

Rodrigo  Anes. 

Simão. 

Simão  de  Abreu. 

Simão  Affonso. 

Simão  Rodrigues. 

Taveira. 

Theodoro  de  Sousa  Maldonado. 

Thomaz  da  Silva  de  Figueiredo. 

Thomaz  de  Sousa  Villar. 

Thomé  da  Costa  de  Rezende. 

Vasco. 

Vasco  Anes.  ou  Eanes. 

Vasco  Fernandes. 

Vicente  Baccarelli. 

Vicente  Carducci  ou  Carducho. 

Vicente  Gil. 

Victorino  Manuel  da  Serra. 

Vicitor  ou  Victor  Visete. 

Willelm  van  der  Kloet. 


HISTORIA  E  MEMORIAS  DA  ACADEMIA  DAS  SCIEHCIAS  DE  LISBOA 
Nova  serie.  2. '  Classe.  Sciencias  moraes  e  politicas,  e  bellas  letras 

Tomo  XXII.  Parto  I 


NOTICIA 

DE 

ALGUNS  PINTORES  PDRTUGUEZES 


E  DE 


OUTROS  QUE,  SENDO  ESTRANGEIROS, 

EXERCERAM  A  SUA  ARTE  EM  PORTUGAL 


MEMORIA  APRESENTADA  Á  ACADEMIA  DAS  SCIENCIAS  DE  LISBOA 


SOUSA  VITERBO 

SEU  SÓCIO  CORRESPONDENTE 


TERCEIRA     SERIE 

(PUBLICAÇÃO   POSTHUMA) 


COIMBRA 

Imprensa  da  Universidade 

1911 


NOTICIA 


DE 


m  mm  fobtdgdezes 


OUTROS  QUE,  SENDO  ESTRANGEIROS, 


EXERCERAM  A  SUA  ARTE  EM  PORTUGAL 


NOTICIA 


DE 


ALGUNS  PINTORES  PQRTUGUEZES 


E   1>K 


OUTROS  QUE,  SENDO  ESTRANGEIROS, 

EXERCERAM  A  SUA  ARTE  EM  PORTUGAL 


MEMORIA  APRESENTADA  Á  ACADEMIA  DAS  SCIENCIAS  DE  LISBOA 


POU 

SOUSA  VITERBO 

SEU  SÓCIO  CORRESPONDENTE 


TERCEIRA     SERIE 

(PUBLICAÇÃO    POSTHUMA) 


COIMBRA 

Imprensa  da  Universidade 

1911 


R.   6666 


IINTTRODTTCÇAO 


A  bem  temerária  empresa  se  abalançaria  quem  pretendesse  escrever  a 
historia  da  nossa  pintura,  desde  os  primórdios  da  monarchia  até  t>s  annos 
que  vão  decorrendo.  O  talento,  por  mais  robusto,  a  vontade,  por  mais  enér- 
gica, sossobrariam  com  frequência  deante  de  obstáculos  insuperáveis,  pela 
falta  de  elementos  necessários  para  levar  a  bom  cabo  a  árdua  e  espinhosa 
tarefa.  Uma  obra  d'esta  natureza  não  se  realisa  de  um  jacto,  pois  exige  con- 
tínuos e  prolongadissimos  esforços,  á  similhança  aproximadamente  do  que 
succede  com  os  terrenos  sedimentares,  que  se  vão  formando,  camada  por  ca- 
mada, na  lentidão  dos  séculos.  O  espirito  humano  não  attinge  desde  logo,  em 
qualquer  das  suas  multimodas  manifestações,  a  meta  da  perfectibilidade,  antes 
se  desenvolve  gradualmente  em  esboços  rudimentares.  Desde  Volta  e  Galvani 
até  Edison,  desde  a  pilha  voltaica  até  ao  phonographo  e  ao  animatographo,  a 
distancia  é  enorme,  sendo  immensos  os  estádios  percorridos,  incessantes  as 
locubrações  dos  sábios  e  dos  inventores.  A  espectativa  indefinida,  na  esperança 
de  encontrar  os  elementos  definitivos,  além  de  estéril  seria  ridícula,  e  por 
isso  nos  devemos  contentar,  acolhendo-a  com  benevolência,  qualquer  tenta- 
tiva, por  mais  modesta,  por  mais  insignificante,  que  pareça  á  primeira  vista. 
Lançados  os  alicerces,  erguidas  as  primeiras  construcções,  o  edifício,  primi- 
tivamente acanhado  e  rachitico,  ir-se-ha  ampliando  suecessivamente,  formando 
depois  um  vasto  conjunto,  ainda  que  irregular  e  de  estylos  differentes.  de 
aspecto  verdadeiramente  pittoresco.  E  se  o  monumento  se  julgar  disforme, 
incompatível  com  as  necessidades  modernas,  poder-se-ha  derruir,  aprovei- 
tando os  seus  materiaes  para  mais  gigantesca  e  adequada  mole.  O  caso  é 
haver  um  ponto  de  partida  ou  um  ponto  de  referencia,  que  nos  sirva  de  guia, 
que  norteie  o  caminho,  que  mais  amplamente  devemos  traçar.  Alexandre  Her- 
culano, por  exemplo,  encontrou  já  rasoavelmente  aplanado  o  terreno  em  que 


O  NOTICIA   DE  ALGUNS  PINTORES 

devia  manobrar,  mas  se,  por  um  excessivo  escrúpulo  de  consciência,  conti- 
nuasse a  percorrer  os  archivos,  a  juntar  os  documentos  como  provas  das  suas 
asserções,  teria  baixado  ao  sepulcro,  vendo  ao  longe,  sem  a  ter  attingido,  a 
Jerusalém  da  sua  peregrinação  histórica,  e  apenas  teria  augmentado  os  the- 
souros  da  erudição  e  da  critica  diplomática,  legados  á  posteridade  pelo  génio 
profundamente  investigador  e  analytieo  de  João  Pedro  Ribeiro.  A  sua  Historia 
de  Portugal,  quando  veio  a  lume,  foi  como  que  uma  revelação  inesperada, 
um  revolucionário  grito  de  alarme  no  campo  litterario.  onde  ainda  estavam 
armadas  as  tendas  de  alguns  miraculosos  chronislas.  O  novo  emancipador  da 
historia  ergueu  o  braço  de  ferro  e  a  golpes  de  gigante,  penetrando  na  floresta 
druidica  das  superstições,  derrubou  os  carcomidos  troncos  das  crenças  erró- 
neas. Hoje  a  sua  Historia  já  não  causa  sobresaltos,  parece  até  anodina,  está 
um  pouco  atrasada,  e  persuado-me  que  o  eminente  escriptor  se  podesse  voltar 
a  proseguir  na  sua  obra,  teria  de  refundi-la  em  grande  parte.  No  entanto, 
nas  suas  linhas  geraes,  ella  conserva-se  ainda  de  pé,  não  só  pela  boa  quali- 
dade dos  materiaes,  como  pela  sua  boa  disposição,  assentes  num  inatacável 
fundo  de  probidade.  Quaesquer  que  sejam  os  defeitos  que  se  lhe  notem,  e 
que  infalivelmente  teem  de  corrigir-se,  seria  imperdoável  desacerto  pô-la  de 
lado,  quando  é  justo  que  se  tome  por  modelo. 

Não  obstante  estas  considerações,  muitas  das  quaes  se  me  afiguram  axio- 
máticas, quer-me  parecer  todavia  que  ainda  é  cedo  para  estabelecer  a  larga 
synthese  artística  do  nosso  pais,  e  que  seria  mais  proveitoso  e  conveniente  pro- 
ceder ao  estudo  por  épocas  e  por  indivíduos,  redigindo  monographias  especiaes, 
como  fez  ultimamente,  com  tanto  brilho,  o  sr.  Dr.  José  de  Figueiredo,  que, 
tomando  por  base  os  quadros  de  Nuno  Gonçalves,  não  duvidou  fazer  consi- 
derações geraes  sobre  a  primitiva  escola  portugueza  de  pintura.  O  sr.  vis- 
conde de  Castilho  (Júlio)  também  iniciou  uma  serie  de  biographias  de  pintores 
e  oxalá  que  a  sua  louvável  tarefa  não  se  limite  a  José  Rodrigues  e  a  Yieira 
Lusitano.  O  que  importa  fazer-se,  o  que  é  de  urgente  e  inadiável  necessidade, 
é  entrar  com  desassombro  na  elaboração  do  inventario  dos  objectos  artísticos, 
disseminados  por  todo  o  pais  e  ainda  fora  do  continente.  Foi  grande  o  nosso 
desleixo  e  é  necessário  recuperar  o  tempo  perdido.  Actualmente  está-se  mani- 
festando uma  corrente  de  enthusiasmo  pela  esthetica  portugueza  e  cumpre  não 
a  deixar  afrouxar,  fazendo,  pelo  contrario,  que  os  esforços  isolados  se  con- 
centrem poderosamente,  convergindo  para  o  mesmo  fim.  A  área  do  estudo 
alargou-se  consideravelmente,  graças  á  facilidade  dos  transportes  e  de  com- 
municações,  que  permittem  que  os  santuários  da  arte  sejam  visitados  com 
mais  frequência.  Desde  Raczynski  e  Robinson  até  hoje,  os  focos  artísticos 
teem  augmentado,  mas  são  ainda  bastantes  aquelles  que  restam  desconhecidos 
ou  inexplorados.  Convém,  por  conseguinte,  se  nos  é  permittida  a  phrase,  bater 


INTRODUtÇAO  7 

mato  em  todas  as  direcções,  percorrer  todas  as  províncias,  penetrar  nos  loga- 
res  mais  recônditos  e  inaccessiveis  e  trazer  á  luz  do  dia  tudo  o  que  mereça  a 
admiração  ou  reparo.  Missões  de  estudo,  methodicamente  organisadas,  sem 
prejudicar  a  independência  da  analyse  individuai, .devem  quanto  antes  redigir 
Índices  ou  catálogos  das  preciosidades  dispersas,  fazendo-as  pliotographar  ou 
reproduzir  por  qualquer  processo  graphico,  que  é  a  meilior  maneira  de  as 
salvar  do  abandono,  do  esquecimento,  da  immiuente  mina.  Nem  todos  os  que 
se  dedicam  a  estas  especialidades  podem  dispor  do  tempo  ou  possuem  os  in- 
dispensáveis recursos  para  fazer  estas  viagens,  e  por  isso  é  de  toda  a  justiça 
e  de  toda  a  utilidade  que  se  ponham  ao  seu  alcance,  nas  escolas  e  nos  mu- 
seus, quando  não  seja  nos  seus  modestos  gabinetes,  os  elementos  de  estudo 
comparado.  0  descobrimento  de  uni  S.  Pedro  similhante  ao  da  Sé  de  Vizeu, 
é  um  d'es!es  factos  que  impressionam  profundamente  e  produzem  considera- 
ções de  não  pequeno  alcance.  Este  caso  não  será  único,  e  é  possível  que  sur- 
jam outros  análogos,  dando  logar  a  curiosas  deducções. 

As  missões  de  estudo,  não  só  no  nosso  pais.  mas  até  no  estrangeiro,  onde 
a  arte  portugueza  se  foi  aperfeiçoar  e  até  lançar  raízes,  o  inventario  dos 
objectos  artísticos  e  a  sua  descripção  mais  ou  menos  desenvolvida  não  são  to- 
davia os  únicos  recursos,  de  que  podemos  e  devemos  lançar  mão,  antes  ou- 
tros existem,  que  são  indispensáveis  complementares  d'aquelles.  Refiro-me 
principalmente  á  investigação  dos  archivos  e  cartórios  de  diversas  corpora- 
ções, especialmente  as  religiosas,  onde  se  depositam  silenciosamente,  como 
num  museu  secreto,  occultos  aos  olhos  dos  profanos,  materiaes  do  mais 
subido  alcance.  São  os  documentos  que  discretamente  revelam,  a  quem  os 
sabe  explorar  e  investigar,  os  segredos  dos  séculos  e  a  vida  intima  das  ge- 
rações extinetas.  Foi  pelos  documentos  que  se  fixou  a  existência  histórica  e  a 
actividade  artística  de  Nuno  Gonçalves,  de  Vasco  Fernandes  e  de  outros,  que 
estavam  até  agora  sujeitos  aos  vae-vens  das  pbantasias  lendárias.  Isto  é  axio- 
mático, mas  se  fosse  preciso  uma  demonstração  cabal,  te-la-hiamos  na  impor- 
tante iconographia  da  Capella  da  Universidade  de  Coimbra,  publicada  em  1908 
pelo  douto  professor  António  Garcia  Ribeiro  de  Vasconcellos.  O  exame  dos 
documentos  deu-lhe  sobretudo  a  explicação  de  um  problema  relativo  á  pintura 
em  Coimbra  no  primeiro  quartel  do  século  xvu,  onde  exerceram  a  sua  acti- 
vidade Simão  Rodrigues  e  Domingos  Vieira  Serrão.  Muitos  quadros  que  pas- 
savam até  agora  por  anonymos.  teem  a  sua  paternidade  reconhecida.  Outros 
nomes  de  artistas  tirou  do  limbo  do  esquecimento  o  mesmo  illustre  eseriptor. 
Sabe-se  hoje  quem  é  o  ourives  que  lavrou  a  bellissima  lâmpada  da  Capella 
da  Universidade,  cujo  estylo,  do  mais  puro  renascimento,  estava  demonstrando 
uma  época  de  fabrico  mais  antiga.  É  possível  que  Simão  Ferreira,  o  habilis- 
simo  artífice,  não  fizesse  mais  do  que  reproduzir  algum  modelo  anterior. 


O  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

É  ainda  pela  inspecção  dos  archivos  que  nós  vemos  patenteada  a  flores- 
cência artística  de  certas  épocas,  entre  as  quaes  avulta  o  século  xv  e  parti- 
cularmente o  reinado  de  D.  Affonso  V,  que  se  pôde  orgulhar  de  ter  produzido 
em  Nuno  Gonçalves  um  mestre  comparável  aos  mestres  estrangeiros  de  re- 
putação universal.  Por  um  documento  de  1431  se  liça  sabendo  quaes  eram 
as  pinturas,  de  carater  histórico  e  religioso,  que  o  infante  D.  Henrique  or- 
denou que  se  executassem,  talvez  a  fresco,  nas  aulas  das  Escolas  Geraes 
ou  Universidade  de  Lisboa.  Assim  na  aula  das  sete  artes  liberaes,  gram- 
matica,  lógica,  rethorica,  arithmetica,  musica,  geometria  e  astrologia,  se  pin- 
tariam as  mesmas,  talvez  allegoricamente;  na  de  medicina  Gualliano,  isto  é, 
Galleno;  na  de  theologia  a  Trindade;  na  de  decretaes  um  papa;  na  de  philo- 
sophia  natural  e  moral  Aristóteles  e  na  de  leis  um  imperador.  Devia  ser  uma 
galeria  curiosa,  permittindo  ao  artista  ou  artistas  o  desenvolverem  as  suas 
aptidões  e  conhecimentos. 

Mestre  Fernando,  phisico  de  D.  Affonso  V,  residia  em  Óbidos,  onde  era 
prior  da  Collegiada  de  S.  Pedro.  A  27  de  maio  de  1468  fez  testamento,  pelo 
qual  mandava  que  fosse  sepultado  em  um  muimento  grande,  que  estava  na 
capella  que  fizera  construir  na  mesma  igreja.  Ao  mesmo  tempo  ordenava  que 
se  colloeasse  nella  um  painel,  cujo  assumpto elle próprio  delineava  na  seguinte 
curiosa  verba: 

«It.  mando  que  sse  ponha  na  dieta  capella  huu  Retavollo  da  ffegura  de 
nosso  Senhor  Jhesuu  Ghristo  cozifficado  (sic)  posto  no  meo  d'ella  e  de  hfla 
parte  ssanta  Ana  com  sseu  marido  abraçados.  E  o  anjo  em  eyma  e  da  outra 
parte  nossa  ssenhora  ssanta  Maria.» 

Desta  cédula  testamentária,  pela  qual  se  ficam  sabendo  muitas  particula- 
ridades curiosas,  inclusive  o  recheio  artístico  da  casa  do  testador,  existe  uma 
certidão  de  1470  entre  os  pergaminhos  da  Collegiada  de  Óbidos,  que  vieram 
para  o  Museu  Etimológico,  onde  tem  o  numero  139.  Tinha  uma  filha  única, 
Maria  Fernandes,  casada  com  Pedro  d:Alcaçova,  que  não  sei  se  será  o  mesmo 
que  figura  entre  as  testemunhas,  como  exercendo  o  officio  de  porteiro  da  ca- 
mará d'el-rei.  A  outra  testemunha  é  João  de  Flandres,  clérigo. 

Estes  factos  não  deixam  a  menor  duvida  de  que  existia  no  pais  uma 
atmosphera  favorável  ao  desenvolvimento  da  arte  portugueza,  o  que  não  im- 
pedia que  ella  fosse  fortemente  influenciada  por  mais  de  uma  corrente  ex- 
tranha,  algumas  das  quaes,  como  a  italiana,  exerceram  uma  incontestável 
hegemonia.  Não  só  vieram  estabelecer-se  entre  nós  muitos  artistas  estran- 
geiros, como  também  muitos  dos  nossos  foram  e  continuam  a  ir  estudar  e 
apurar-se  lá  fora,  variando,  segundo  as  épocas,  os  pontos  escolhidos  para 
essa  romagem  artística.  Além  d'isso  encommendavam-se  obras  que  vinham 
enriquecer  as  igrejas  e  mosteiros,  os  paços  dos  reis,  as  residências  dos  fidal- 


ÍNTIIODUCÇÃO  9 

gos  e  das  pessoas  endinheiradas.  Livros  de  horas,  arvores  genealógicas  illu- 
minadas,  manuscriptos  preciosos,  tapeçarias  e  outros  objectos  mais  ou  menos 
análogos  eram  importados  com  frequência. 

Num  livro  de  visitações  da  Urdem  de  S.  Thiago,  existente  na  Torre  do 
Tombo,  vem  mencionada  a  que  se  efiectuou  em  1312,  sendo  mestre  D.  Jorge, 
filho  de  D.  João  II.  na  igreja  do  Espirito  Santo  da  villa  de  Aldeia  Gallega. 
Ahi  se  lê  a  seguinte  verba: 

«Visitamos  a  dita  Igreja  a  quall  tem  na  capella  moor  huu  alltar  de  huua 
pedra  grande  e  estaa  detrás  d'elle  huu  Retavollo  pymtado  de  pymtura  de 
fraudes  e  nelle  lio  esprito  samto  quando  descendeo  sobre  os  apóstolos...» 

O  respectivo  documento  foi  commuuicado  pelo  sr.  Pedro  À.  de  Azevedo 
no  sr.  José  de  Sousa  Rama,  que  o  tornou  publico  nas  suas  Breves  noticias  da 
villa  de  Aldeia  Gallega  do  liiba  Tejo. 

O  retábulo  actual  já  não  é  o  mesmo,  sendo  muito  para  sentir  que  se  per- 
desse o  antigo,  o  qual  muito  ajudaria,  pelo  seu  confronto,  ao  estudo  dos  qua- 
dros contemporâneos,  contribuindo  para  determinar  as  suas  procedências. 

A  igreja  conventual  dos  dominicanos  de  Lisboa,  assim  como  as  suas 
dependências,  a  ajuizar  pelas  descrípções  que  nos  ficaram,  ainda  assim 
muito  perfunctorias,  podia  considerar-se  um  museu,  tão  bem  ornamentadas 
estavam  as  suas  capellas.  Na  dos  Reis  Magos  havia  um  retábulo  mandado 
fazer  por  D.  Diniz  em  que  na  imagem  de  Nossa  Senhora  estava  figurada  sua 
esposa,  a  rainha  D.  Isabel,  depois  canonisada,  e  na  do  menino  seu  filho  o 
infante  D.  Affonso,  que  depois  foi  quarto  rei  do  mesmo  nome.  Eis  o  que  a 
este  propósito  se  lè  na  chronica  da  Ordem  ou  Historia  de  S.  Domingos,  parte 
primeira,  capitulo  xxvn: 

«Merecião  primeiro  logar  por  qualidade  as  confrarias,  de  que  tratamos 
nos  capitulos  precedentes.  Dos  que  restão,  iremos  agora  fazendo  relação  se- 
gundo suas  antiguidades.  A  que  mais  annos  conta  entre  todas  as  que  ha  nesta 
igreja  é  a  dos  Santos  Reis  Magos,  que  tem  seu  altar  pegado  com  o  de  N.  S. 
do  Rosário  contra  a  porta  da  igreja.  A  capella  e  retábulo  foi  mandado  fazer 
e  pintar  por  el-rei  D.  Diniz,  quando  depois  de  Rei  mandou  fazer  de  novo 
algumas  oflicinas  neste  convento  e  reparar  outras.  E  assim  tem  a  pintura 
mais  de  320  annos  de  antiguidade,  visto  como  D.  Diniz  começou  a  reinar 
no  de  1279  em  que  D.  Affonso  III,  seu  pae  falleceu;  e  os  mesmos  tem  a 
confraria.  Ha  neste  altar  unia  curiosidade  muito  digna  de  ser  sabida.  E  é  que 
a  Imagem  de  N.  Senhora,  que  está  no  meio  do  retábulo  cercada  dos  Reis 
temos  tirada  ao  natural  a  Raiuha  Santa  Dona  Isabel,  mulher  de  el-rei  D.  Di- 
niz; e  na  do  menino  Jesu,  que  tem  nos  braços,  o  Principe  seu  filho,  que  então 
se  criava  e  depois  suecedeu  no  Reino  com  o  nome  de  D.  Affonso  Quarto. 
Quem  fosse  autor  de  tal  memoria  não  consta,  mas  bem  é  de  crer  que  seria 
2 


10  NOTICIA  de  alguns  pintohks 

El-Rei,  pois  o  foi  da  obra  do  retábulo  e  sem  a  sua  ordem  não  se  atreveria  o 
pintor.» 

Seria  com  effeito  esta  pintura  contemporânea  de  D.  Diniz?  Faltam-me  os 
elementos  tecbnicos  para  o  poder  assegurar.  Fr.  Luis  de  Sousa  foi  um  pri- 
moroso musico  da  palavra,  mas  não  foi  similhantemente  um  critico  de  arte,  e 
portanto  não  sei  o  credito  que  mereçam  as  suas  palavras  ou  a  confiança  que 
nos  devam  inspirar.  Além  d'isso  o  seu  mavioso  estylo  não  é  senão  o  finíssimo 
esmalte,  recobrindo  a  prosa  metallica — sabe  Deus  de  que  metal!— de  Fr.  Luis 
de  Cacegas,  de  modo  que  é  difíicil  apurar  a  quem  pertence  a  ideia  primitiva. 

Fernando  Correia  de  Lacerda  publicou  em  Lisboa  em  1680  a  Historia  da 
Vida,  Morte,  milagres,  canonisação  e  trasladação  de  Santa  Isabel...  e  refe- 
riu-se  também  ao  assumpto  mencionado  nos  paragrapbos  antecedentes.  Pa- 
rece todavia  que  não  faz  mais  do  que  parapbrasear  Fr.  Luis  de  Sousa,  como 
se  pôde  inferir  do  seguinte  trecho: 

«Deste  Infante  ha  hua  memoria  digna  de  grande  respeito,  na  Capella  dos 
Reys  sita  no  Convêto  de  S.  Domingos  da  Cidade  de  Lisboa,  aonde  El-Rey  seu 
Pay  celebrava  todos  os  annos  a  festa  de  S.  Diniz,  antes  de  edificar  o  Real 
Convento  de  Odivellas:  costumava-se  naquelles  tempos  copiarem-se  os  rostos 
das  Imagês  Santas,  pelos  de  alguas  pessoas  formosas,  e  sendo  o  Infante 
D.  Affonso  menino,  a  Santa  Rainha  de  pouca  idade,  fazeudo-se,  para  se  co- 
locar naquella  Capella  a  Imagem  de  Nossa  Senhora  com  o  menino  Jesus  nos 
braços,  o  rosto  do  menino  foy  tirado  pelo  do  Infante,  o  da  Senhora,  pelo  da 
Rainha,  e  não  teria  a  da  Gloria  por  indignidade,  tendo  a  Santa  tanta  virtude, 
equivocarem-lhe  com  ella  a  fermosura.» 

Não  obstante  todas  essas  influencias  extranhas,  cuja  parte  de  leão  será 
um  pouco  difficil  discernir,  eu  estou  todavia  convencido  de  que  se  não  pôde 
negar  a  existência  de  uma  escola  nacional  de  pintura,  cujas  tradições  se  man- 
tiveram, mais  ou  menos  gloriosas,  mais  ou  menos  viciadas,  até  aos  nossos 
dias.  O  que  me  parece,  porém,  é  que  essa  escola  ficou  restricta  aos  limites 
regionaes  e  que,  se  ultrapassou  as  fronteiras,  foi  apenas  para  deixar,  aqui  e 
além,  como  em  alguns  pontos  de  Hespanha,  vestígios  meramente  individuaes. 
Não  chegou  a  haver,  creio  eu,  permuta  de  influencias,  a  endosmose  artística. 
e  só  agora  é  que  os  críticos  estrangeiros  começam  a  dedicar  mais  attenção 
aos  productos  dos  nossos  primitivos  pintores,  cujo  talento  disperta  justificada 
admiração.  Por  maior  que  seja  a  nossa  tendência  para  o  cosmopolitismo,  as 
qualidades  estheticas  do  povo  portuguez  não  são  de  modo  nenhum  negativas 
e  a  nossa  individualidade  irrompe  através  da  camada  de  verniz  exlranho. 
A  nossa  alma  sentimental,  o  nosso  temperamento  de  raça,  o  nosso  clima  e  a 
nossa  natureza,  transparecem  através  das  obras,  onde  se  afigura  haver  menos 
originalidade. 


INTIlODUCr.ÂO  1 1 

Esquadrinhemos  pois  os  factos,  acumulemol-os,  ainda  i]ue  desordenada- 
mente, numa  desordem  pittoresca,  para  sobre  elles  assentar  as  mais  racionaes 
theorias  e  deduzir  os  mais  naturaes  corollarios.  Mais  tarde  se  fará  a  selecção, 
joeirando  cada  um  segundo  o  ponto  de  vista  da  sua  especialidade. 

Convém  outrosim  não  desprezar  as  noticias  acerca  das  galerias  ou  collec- 
ções  já  reaes,  já  publicas  e  particulares,  que  teem  existido  e  existem  no  nosso 
pais.  Esta  será  a  craveira  por  onde  se  avalie  o  amor  pelas  bellas  artes,  o 
gosto  geral  e  as  flutuações  d'esse  mesmo  gosto. 

Guarienti  visitou  Portugal  nos  annos  de  1733  a  1736  e  teve  occasião  de 
examinar  as  riquezas  artísticas  de  Lisboa  naquelia  época,  de  que  chegou  a 
dar  um  esboço  em  a  nova  edição  do  Abecedario  pittorico  de  Orlandi,  publicada 
em  1753.  Por  aqui  se  pode  fazer  uma  ideia  aproximada  das  galerias  exis- 
tentes em  Lisboa  e  das  principaes  obras  de  arte  contidas  não  só  nas  igrejas, 
como  nas  diversas  casas  de  fidalgos. 

Num  oflicio  do  sr.  De  Montagnac  dirigido  de  Lisboa  á  corte  de  França, 
no  1."  de  dezembro  de  1722,  referindo-se  á  inclinação  de  D.  João  V  pelas 
letras  e  artes,  diz  que  elle,  acompanbado  de  artistas  e  pessoas  entendidas, 
fora  visitar  a  casa  de  campo  do  cônsul  francez  Duverger,  que  havia  fallecido, 
e  era  grande  amador  de  cousas  de  arte,  e  ali  adquiriu  quarenta  e  um  qua- 
dros, além  de  um  retrato  de  Luis  XIV  que  o  embaixador  abbade  de  Mornay 
havia  deixado  em  poder  do  cônsul,  dando  por  elle  6.000  cruzados  l. 

Em  1739  publicou-se  em  Lisboa,  numa  elegante  edição,  um  poema  latino 
em  dois  livros  ou  cantos,  devido  ao  estro  de  José  de  Mattos  Rocha,  medico 
em  Azeitão.  Intitula-se:  Descriptio  poética  villw  Calarisianw,  isto  é,  Descrição 
poética  da  quinta  do  Galhariz,  propriedade  hoje  do  sr.  duque  de  Palmella. 
A  quinta  e  casa  ornavam-se  com  estatuas  de  mármore,  representando  impe- 
radores e  outras  personagens  da  historia  romana,  e  com  varias  pinturas. 
Eram  seis  as  salas  em  que  se  ostentavam  numerosos  quadros  e  talvez  algu- 
mas pinturas  a  fresco.  A  primeira  denominava-se  de  D.  Quixote  e  continha 
cinco  quadros.  A  segunda,  sala  de  Hercules,  tinha  vinte  e  quatro  quadros. 
A  terceira,  dos  Turcos,  com  vinte  e  um  quadros,  atribuindo-se  um  delles  a 
Ticiano.  A  quarta,  denominada  a  casa  do  Papa,  era  enriquecida  de  trinta 
quadros,  em  alguns  dos  quaes  se  fixou  o  pincel  de  Miguel  Angelo  e  Rubens. 
A  quinta  intitulava-se  a  casa  das  Ratalhas  e  tinha  vinte  e  quatro  quadros. 
A  sexta,  finalmente,  a  casa  das  Naus,  com  vinte  e  três  quadros. 

É  curioso  que  a  denominação  d'estas  salas  não  corresponde  exactamente 
ao  seu  conteúdo.  Assim  na  primeira  não  se  descreve  nenhum  episodio  do 
immortal  romance  de  Cervantes,  e  na  ultima,  a  das  Naus,  são  muito  diffe- 


1  Visconde  de  Santarém,  Quadro  elementar,  tomo  v,  pag.  ccxlii. 


12  NOTICIA   DK  ALGUNS   PINTORES 

rentes  os  objectos  representados.  Apesar  (Testa  incoherencia  de  títulos  é  ininj- 
gavel  que  era  brilhante  e  numerosa  a  collecção,  sendo  os  seus  assumptos  de 
grande  variedade,  entre  os  quaes  predominavam  todavia  os  mithologicos.  Os 
olhos  poderiam  deleitar-se  na  contemplação  de  paisagens,  costumes  populares, 
scenas  rústicas  e  domesticas,  caçadas,  vistas  de  edifícios,  natureza  morta,  etc. 
Salientam-se  dois,  um  dos  quaes.  de  1).  Luis  de  Sousa,  que  foi  primeiramente 
bispo  de  Lamego  e  depois  arcebispo  de  Braga.  Foi  enviado  a  Roma  como 
legado  extraordinário  ao  papa  Innocencio  XI  e  naquella  cidade  se  encontrou 
com  Fr.  Francisco  de  Santo  Agostinho  de  Macedo,  que  lhe  dedicou  diversas 
composições  panegíricas,  em  prosa  e  verso,  no  livro  intitulado  Trifams,  im- 
presso em  Pádua  em  1677.  A  este  encontro  e  a  esta  obra  se  refere  o  Dr. 
Mattos  Rocha,  quando  falia  do  retrato  do  arcebispo,  reproduzindo  o  ultimo 
verso  do  canto  de  Macedo. 

Mattos  Rocha  descreve  com  bastante  minudência  a  maior  parte  dos  qua- 
dros, cujos  auctores,  infelizmente,  deixa  de  mencionar,  exceptuando  apenas 
uns  quatro  casos,  em  que  se  refere  a  Filipe  de  Rezi,  Ticiano,  Miguel  Angelo 
e  Rubens.  É  um  catalogo  em  verso,  que  talvez  seja  único  no  seu  género.  Se 
não  tem  um  caracter  technieo  e  artístico,  recommenda-se  comtudo  pela  sua  ori- 
ginalidade e  elegância. 

Na  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa  existe  um  manuserinto  (cod.  325),  em 
que  se  relaciona  a  mesma  galeria,  o  qual  não  é  mais  que  uma  traducção  quasi 
passo  a  passo  da  obra  do  medico-poeta.  Nem  sempre  nos  dá  o  decalco  exacto, 
mas  é  muito  aproximado.  O  seu  auctor,  quem  quer  que  fosse,  muito  provavel- 
mente D.  Thomas  Caetano  de  Bem,  ou  examinou  os  quadros,  ou  teve  quem  lhe 
fornecesse  mais  alguns  pormenores,  pois  nos  declara  as  suas  dimensões. 

É  muito  plausível  a  hipothese  que  fosse  D.  Luis  de  Sousa  o  principal  ini- 
ciador da  galeria  e  que  trouxesse  da  Balia  os  quadros  que  a  adornavam.  Não 
é  hoje  possível  affirmar-se  o  valor  real  d"essas  obras,  algumas  das  quaes, 
porventura,  não  passariam  de  copias,  pois  se  todas  fossem  originaes  a  bem 
alta  somma  se  elevaria  o  seu  custo.  Como  quer  que  seja,  a  galeria  do  palácio 
Calhariz  devia  ser  importante  sob  mais  de  um  ponto  de  vista,  ainda  que  nem 
todas  as  suas  producções  fossem  de  primeira  ordem  e  de  indiscutível  mereci- 
mento. Em  um  dos  quadros  estava  representado  o  luxuoso  apparato  e  a  magni- 
ficente comitiva  com  que  o  arcebispo  percorria  as  ruas  da  Cidade  Eterna, 
quando  era  recebido  em  audiência  pelo  papa. 

Reproduso  no  final  d'esta  lntroducção  a  descripção  em  portuguez,  por  ser 
mais  accessivel  ao  comnium  dos  leitores,  sem  deixar  de  recommendar  a  lei- 
tura do  longo  trecho  poético  de  Mattos  Rocha  que  bem  merece  ser  apreciado 
pelos  entendidos  na  lingua  latina.  Reproduso.  igualmente,  como  subsidio  va- 
lioso para  a  historia  da  pintura  em  Portugal,  o  Regimento  da  respectiva  classe, 


INTRODUCÇÃO  13 

que  estava  abandeirada,  como  tantos  outros  ofíicios  mecânicos.  Este  Regimento 
acha-se  incorporado  na  collecção,  que  se  conserva  no  archivo  da  Camará  Mu- 
nicipal de  Lisboa  e  de  que  obtive  copia,  devido  á  extrema  amabilidade  do  sr. 
Eduardo  Freire  d'01iveira,  o  benemérito  archivista,  que  tão  proficientemente 
tem  dado  á  estampa  os  Elementos  para  a  historia  d<>  Município  de  Lisboa. 
Este  Regimento,  assim  como  os  seus  congéneres,  não  é  o  primitivo,  tendo 
sido  reformado  em  1372,  em  virtude  de  uma  ordem  do  Senado  por  Duarte 
Nunes  de  Leão.  Acha-se  a  folhas  122  do  Li ur o  dos  Regimentos  tios  o/fiçiaes  me- 
cânicos da  mui  excelente  e  sempre  leal  Cidade  de  lix."  refromados  per  ordenãça 
do  Illustrissimo  Senado  delia  pello  L.d"  Dr.'e  nane:  do  liam.  Afio  MDLXXII. 

Estes  regimentos  teem  uma  parte  disciplinar,  que  é  commum  a  todos 
e  outra,  essencial  e  que  mais  nos  interessa,  a  technica,  a  qual  nos  indica  o 
processo  dos  examinandos  em  qualquer  arte  ou  officio  e  quaes  as  obras  que 
deviam  executar,  para  serem  admittidos  na  respectiva  classe  e  exercitarem 
o  seu  officio.  É  pena  que  no  archivo  da  Camará  não  existam  os  livros  em  que 
lavravam  os  termos  d'esses  exames,  pois.  em  face  d'elles,  feriamos  pelo  menos 
a  lista  dos  artistas  e  artífices.  Ouvi  dizer,  postoque  vagamente  e  sem  que  a 
afirmação  me  inspirasse  completa  confiança,  que  numa  dependência  da  antiga 
parochial  de  S.  José  existe  o  cartório,  não  sei  desde  que  época,  da  Casa  dos 
Vinte  e  quatro.  Seria  bom  que  se  procedesse  a  alguma  investigação  n'este 
sentido. 

A  par  da  historia  da  arte,  na  sua  luminosa  synthese,  como  complemento 
indispensável,  como  índice  ou  guia,  deve  egualmente  elaborar-se  o  Diccio- 
nario  dos  pintores,  que  muito  auxiliará  os  que  se  dedicam  ao  estudo  d'esta 
especialidade.  As  noticias  documentadas  que  vou  colligintlo  podem  conside- 
rar-se,  sem  assomos  de  pueril  vaidade,  as  bases  fundamentaes  dessa  obra, 
para  o  adeantamento  e  perfeição  da  qual  é  de  esperar  que  venham  a  concorrer 
outros  mais  habilitados  ou  mais  enthusiastas.  Não  me  restringi  exclusivamente 
a  enumerar  os  cultores  da  arte  de  Raphaer,  e  não  escrupulisei  em  incluir,  além 
dos  miniaturistas,  os  nomes  de  alguns  debuxadores,  que  talvez  se  tenham 
também  exercitado  no  pincel.  Quando  se  julguem  deslocados,  poderão  apro- 
veitar-se  para  um  Diccionano  artístico.  Excluídos  de  uma  parte,  acharão  o 
logar  competente  em  outra.  Se  alguém  me  taxar  de  superflo  ou  prolixo,  ou- 
trem porventura  folgará  de  respigar  aqui  o  que  se  lhe  não  deparou  em  outra 
parte. 


Lista  dos  Quadros  que  estão  nas  casas  da  Quinta  de  Calhariz 

que  deu  D.  Thomas  Caetano  de  Bem  The  atino 

ao  Dr.  António  Ribeiro  dos  Santos 

Casa  de  D.  Quixote  com  cinco  quadros 

Sendo  esta  casa  a  primeira  contando  pelo  pateo  he  a  guarda  roupa  mais 
interior  do  quarto  dos  homens,  rasão  porque  não  está  ainda  tão  ornada  de 
pinturas  como  as  outras. 

Três  quadros  de  notáveis  pinturas  que  fazem  diffe rentes  representações. 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  d'alto  com  o  roubo  de 
Helena. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  com  o  roubo  das  Sabinas. 

Casa  de  Hercules  «com  vinte  e  quatro  quadros 

Dose  quadros  em  que  se  pintam  os  dose  meses  do  anno  com  os  trabalhos 
e  exercícios  rústicos  que  se  fazem  em  cada  hum  d'elles.  Os  12  signos  são  os 
12  trabalhos  de  Hercules. 

Hum  quadro  que  representa  o  Monte  Parnaso  em  que  estão  as  nove  musas 
com  Apollo,  com  o  cavallo  Pégaso  no  cume  do  Monte,  correndo  nas  faldas 
d'elle  a  fonte  Hipocrene. 

Outro  quadro  em  que  se  exprime  a  Deos  Pão,  offerecendo  um  vello  de 
Lam  (sic)  á  Lua,  e  para  eolhel-o  vem  baixando  da  esfera. 

Dous  quadros  que  constam  de  varias  flores  e  frutos. 

Hum  quadro  de  tella  de  imperador,  em  que  brigam  um  rapaz  e  uma  ra- 
pariga sobre  quem  ha  de  levar  um  cacho  d'uvas. 

Dous  quadros  de  tella  de  imperador  de  Felipe  Resa  l  com  vacas  e  outros 
animaes. 


1  Provavelmente  Filipe  Peter  Rosa,  chamado  também  Rosa  de  Tivoli.  O  texto  latino  dii 
somente— egrégio  Filipe. 


16  NOTICIA  I)E  ALGUNS  PINTORES 

Outro  quadro  de  tella  de  imperador  cora  a  Deusa  Tetis,  sobre  uma  concha 
passeando  o  mar. 

Outro  com  Neptuno. 

Um  quadro  de  nove  palmos  dal  to  e  seis  de  largo  em  que  está  pintado  um 
turco  que  tem  preso  por  uma  cadeia  a  Melampo  que  é  um  cão  de  que  faz 
estimação  o  sr.  Arcebispo;  está  nu  o  turco  da  cintura  para  cima  e  o  mais 
do  quadro  é  um  paiz  em  forma  proporcionada. 

Outro  quadro  egual  que  contem  outro  turco  com  outro  cão  a  que  está  ao 
mesmo  tempo  assolando  e  reprimindo,  em  um  paiz  semelhante  ao  primeiro, 
e  mn  arco  e  frecha  que  são  armas  do  mesmo  turco. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  [de  largo  e  quatro  d 'alto  em  que  Perseo 
está  degolando  a  Medusa  a  quem  Minerva  por  ella  haver  com  Neptuno  pro- 
fanado o  seu  templo  converteo  os  cabellos  em  serpentes,  infundindo-lhe  tal 
efficacia  que  quem  chegasse  a  velos  se  transformasse  em  pedra,  cujo  encanto 
se  eommunicou  egualmente  a  Estioni  e  Euriali,  irmãos  de  Medusa.  Está  Per- 
seo tendo  os  talares  de  Mercúrio,  que  também  assiste  aquelle  castigo,  cortan- 
do-lhe  a  cabeça  com  a  espada  que  o  mesmo  Mercúrio  lhe  havia  dado.  Perseo 
por  não  errar  o  golpe  nem  olhar  para  Medusa,  a  está  vendo  no  escudo  de 
Palias.  Foi  o  successo  em  occasião  que  Euriali  e  Estioni  estavam  dormindo  e 
assim  se  representam  no  mesmo  quadro. 

Casa  dos  turcos  com  vinte  e  um  quadros 

Quatro  quadros  de  nove  palmos  d'alto  e  seis  de  largo,  em  que  se  repre- 
sentam os  quatro  celebres  antigos  cavallos  do  principe  da  Palestrina.  Tem  um 
dos  quadros  um  cavallo  murzello  e  outro  um  russo  com  remendos  negros  de 
raça  Polaco,  que  o  mesmo  Principe  ainda  conserva.  A  cada  um  dos  três  ca- 
vallos primeiros  guia  um  turco  com  habito  entre  si  diverso,  mas  todos  ao  seu 
uso;  e  ao  quarto  um  etiope  com  vestido  estravagante  como  entre  a  sua  nação 
costuma  usar-se. 

Dous  quadros  que  constam  de  varias  flores  e  frutos. 

Um  quadro  de  tela  de  imperador  que  contem  um  paiz;  foi  do  cardeal 
Raspone. 

Quatro  quadros  de  cinco  palmos  de  largo  e  quatro  d'alto  com  as  quatro 
estações  do  anno  expressas  em  quatro  figuras,  cada  uma  formada  das  horta- 
liças que  costuma  haver  na  estação  que  se  quer  exprimir  e  assim  se  vê  pro- 
porcionalmente: tem  por  mãos  e  unidos  em  forma  de  dedos,  o  verão  uns  pe- 
pinos; a  primavera  umas  favas,  o  inverno  uns  rábãos;  o  outomno  uns  bagos 
duvas  compridos  e  egualmente  todas  as  feições  do  rosto  corpo  e  ornato  do 
vestido  de  cada  figura  se  forma  do  que  produz  a  terra  no  tempo  que  cada 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PI.NTORES  17 

quadro  retrata.  A  cada  uma  destas  tlguras  está  organisando  uma  Dama  que 
com  curiosidade  e  galanteria  procura  compol-a  e  assemelhal-a  á  estação  que 
representa. 

Outro  quadro  com  a  fabula  de  Leandro  e  Ero.  Vè-se  o  mar  Hellespouto 
teudo  duma  parte  a  torre  de  Sesto  em  que  vivia  Ero,  e  da  outra  Habido  pá- 
tria de  Leandro;  representa-se  a  noite  e  a  tempestade  que  foram  cúmplices 
d'aquelle  successo.  Vae  nadando  Leandro  guiado  por  Cupido.  No  alto  da  torre 
está  Ero  tendo  na  mão  a  luz  que  servia  de  norte  ao  seu  amante.  Estão  so- 
prando alguns  ventos  procurando  apagar  a  luz  e  alterar  o  mar  e  forceja 
Leandro  pello  vencer. 

Quatro  quadros  de  quatro  palmos  d' alto  e  três  de  largo,  cada  um  com 
um  vaso  de  flores  todas  entre  si  diversas  e  das  que  o  trabalho  dos  agricul- 
tores ou  a  curiosidade  dos  Príncipes  ha  feito  mais  estimáveis. 

Dous  quadros  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d' alto  que  eonstão  de  guarda 
roupas  e  nellas  muitos  moveis  vários  e  custosos,  dos  que.  costumam  usar  os 
principaes  cavalleiros,  como  são  peitos  de  armas,  capacetes,  espadas,  talis. 
vaso  douro  e  prata,  roupas  bordadas,  e  muitas  outras  alfaias  semelhantes  a 
estas. 

Dous  quadros  de  varias  finitas  e  quasi  todas  diversas  das  que  vão  pintadas 
em  outros  fructeiros  que  adiante  vão  referidos. 

Outro  quadro  da  fabula  de  Narciso.  Pinta-se  uma  fonte  a  que  chegou  Nar- 
ciso andando  á  caça  e  namorando-se  da  sua  figura  que  vio  nas  aguas  se  vae 
precipitando  nellas;  visinhos  ás  fontes  se  vêem  os  cães  com  que  Narciso  ca- 
çava e  pouco  distante  uma  montanha  de  que  se  deriva  um  pequeno  regato, 
cuja  corrente  também  cooperou  para  o  engano  e  morte  de  Narciso. 

Casa  do  Papa  com  trinta  quadros 

Um  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d'alto  em  que  se  pinta  Troya 
abrasada  e  junto  das  muralhas  da  cidade  já  destruída  se  vê  Helena  (causa 
daquella  ruina)  repugnando  voltar  á  Grécia  com  temor  de  que  Menelau  cas- 
tigue a  sua  injuria  e  como  de  novo  roubada  a  condusem  os  vencedores  vio- 
lentamente para  a  armada  da  Grécia. 

Outro  quadro  de  seis  palmos  dalto  e  nove  de  largo  em  que  se  representa 
a  praça  Navona  com  o  Palácio  Pamíilio,  as  igrejas  de  Santa  Ignes,  de  S.  Ja- 
come  dos  Hespanhoes  e  todos  os  mais  edifícios  e  fabricas  que  a  cercam;  a 
mesma  praça  Navona  e  no  meio  d'ella  estão  as  fontes  de  Bernini  e  Michael 
Angelo  e  outra  mais  antiga.  Vè-se  nella  carroças,  passageiros  e  multidão  de 
gente  diversa  como  ordinariamente  succede  n'aquella  praça. 

Um  quadro  de  sete  palmos  d'alto  e  cinco  de  largo  em  que  se  retrata  a 
3 


18  NOTICIA   Dli  ALGUNS  PINTORES 

tragedia  de  Policena,  filha  d'El-rey  Priamo  e  de  Ecuba  que  havendo  sido 
causa  de  que  Achilles  fosse  morto  por  Paris  foi  depois  sacrificada  junto  ao 
sepulchro  de  Achilles,  cuja  sombra  fez  que  seu  filho  Pirro  vingasse  a  antiga 
injuria  com  a  morte  de  Policena.  Representa-a  o  quadro  próximo  ao  monu- 
mento de  Achilles,  rodeado  de  ciprestes  sentada  em  uma  almofada  como  em 
desmaio,  esperando  o  golpe,  com  os  cabellos  soltos  e  peito  descoberto.  Está 
Pirro  assistindo  á  execução  d"aquelle  insulto  com  os  sacerdotes  que  hão  de 
receber  o  sangue  e  lançal-o  no  fogo  do  sacrifício  e  Ecuba,  que  depois  das 
calamidades  que  padeceo  em  Troya,  está  vendo  a  morte  de  sua  filha,  exagera 
com  acções  e  lagrimas  a  sua  impaciência. 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  d'alto  em  que  se  vê  a 
Princesa  Andromeda,  a  quem  as  Nereidas  ataram  a  um  escolho  para  ser  de- 
vorada de  uma  baleia,  castigando  n'ella  a  culpa  de  sua  mãe  Casiopèa  que  se 
havia  jactado  de  que  excedia  as  Nereidas  na  formosura.  Está  o  monstro  ma- 
rinho próximo  a  tragal-a;  exprime  ella  a  sua  angustia.  Na  praia  opposta  se 
vêem  os  reis  Sefeo  e  Casiopèa  pães  de  Andromeda.  lamentando  aquella  temida 
tragedia.  Apparece  Perseo  no  ar,  voando  sobre  o  cavallo  Pégaso  para  chegar 
a  evital-a,  mata-lhe  a  baleia,  mostrando-lhe  a  cabeça  de  Medusa  e  livra  a 
Andromeda  que  depois  se  deu  em  casamento  a  Perseo  por  agradecimento  e 
premio  de  a  haver  livrado. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  com  a  fabula  de  Calisto,  filha  de  Licaonio, 
a  quem  achou  Júpiter  em  um  logar  retirado  e  querendo  que  ella  não  fugisse 
ao  seu  galanteo  tomou  a  forma  de  Diana  de  quem  Calisto  era  ninfa;  logrou 
Júpiter  o  seu  engano  e  achando-se  depois  a  ninfa  em  um  banho  com  Diana 
mostrou  indicios  de  que  havia  concebido,  com  que  Diana  a  excluiu  logo  da 
sua  companhia  por  haver  offendido  as  leis  do  decoro  que  professava.  Repre- 
senta-se  o  logar  do  banho,  a  expulsão  de  Calisto,  o  sentimento  que  ella  mes- 
tra e  a  indignação  de  Diana. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  quatro  d'alto  em  que  se  vê  um 
navio  que  anda  fluetuando  e  parte  d"outro  já  naufrago.  Cercam  de  uma  parte 
do  mar  umas  montanhas  com  algumas  choupanas  humildes  que  parecem  de 
pastores. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  dalto  que  representa  a  fa- 
bula da  Lua  e  Endimião  a  quem  a  Lua  em  Lanciomonte  de  Casia  fez  ador- 
mecer para  livremente  o  abraçar  sem  elle  lhe  resistir.  Exprime  o  quadro  o 
monte  e  o  acto  em  que  a  Lua  abraça  a  Endimião  que  ao  mesmo  tempo  está 
dormindo,  e  Cupido  com  o  dedo  na  boca,  guardando-lhe  o  somno. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  representa  a  fabula  de  ícaro; 
pinta-se  a  torre  de  Creta  em  que  estavam  presos  ícaro  e  seu  pae  Dedallo: 
vae  voando  Dedallo  já  visinho  ás  praias  da  Sicília  para  onde  fugiu  de  Creta, 


NOTICIA   Dfi  ALGUNS  PINTORES  19 

mas  como  sobresaltado  do  perigo  em  que  ao  mesmo  tempo  via  seu  filho; 
ícaro  se  vem  despenhando  de  muito  mais  alto  vôo  com  as  asas  parte  desplu- 
madas  e  parte  derretidas,  caindo-llie  já  d'ellas  cera  e  pennas.  Estão  na  praia 
da  Sicília  um  pescador  velho  e  alguns  lavradores  d'aquelle  campo,  todos  em 
acto  atónito,  observando  o  atrevimento  de  ícaro  e  de  Dedallo,  e  a  desgraça 
de  ícaro. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  exprime  a  caida  de  Faetonte. 
Está  pintado  o  Iridano  com  as  armas  e  gado  que  costuma  haver  nas  ribeiras 
d' aquelle  rio;  pelo  ar  se  vê  Faetonte  no  carro  do  sol  com  os  cavallos  já  des- 
enfreados e  precipitando-se  no  Iridano  cujos  pastores  estão  admirando  aquelle 
successo  e  no  Géo  se  vè  Júpiter  fulminando  a  Faetonte  por  castigo  da  sua  te- 
meridade. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  que  contem  o  rapto  que  fez  a  Aurora  a 
Sefallo.  Está  pintado  o  carro  da  Aurora  guiado  por  cavallos  quasi  brancos 
mas  mellados.  Procura  Aurora  conduzir  a  Sefallo  no  carro,  resiste  elle  ao 
roubo  e  por  outra  parte  se  vè  a  lança  inevitável  e  o  cão  Lelape  que  Diana 
havia  dado  a  Procres  mulher  de  Sefallo  que  elle  trazia  sempre  comsigo. 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  d'alto  e  três  de  largo  em  que  se  vè  no  ar 
Júpiter  sobre  um  trono  de  nuvens,  fulminando  ao  mundo.  Está  Eollo  aos  pés 
de  Júpiter  desatando  os  ventos,  e  íris  visinha  a  Eollo  procurando  aplacal-os. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  vê  o  como  havendo  Júpiter 
namorado  de  Yo  e  suspeitando  Juno  de  que  elle  lhe  fazia  aquella  offensa,  bai- 
xou do  Céo  a  averigual-a,  e  Júpiter,  por  encobril-a  converteu  a  Yo  em  vacca. 
Pinta-se  Júpiter  já  com  Yo  transformada,  desculpando-se  com  Juno  e  ella  acom- 
panhada dos  seus  pavões,  descendo  sobre  nuvens,  impaciente  d'aquelle  deli- 
cio. Estão  junto  a  Júpiter  dois  Cupidos,  um  o  avisa  de  que  Juno  o  busca  e 
outro  está  brincando  com  a  águia,  trepado  n'ella. 

Outro  quadro  em  que  está  o  Papa  (Innocencio  XI)  -  dando  ao  sr.  Arce- 
bispo o  Breve  do  Santo  Officio. 

Outro*  quadro  de  quatro  palmos  (falto  e  três  de  largo  em  que  se  repre- 
senta a  dolência  que  Neptuno,  andando  sobre  as  ondas,  quiz  fazer  a  Gorones, 
que  se  divertia  junto  a  ellas.  Appareceu  no  mar  o  carro  de  Neptuno,  que  elle 
havia  deixado  para  fazer  aquelle  roubo;  Corones,  por  fugir  áquella  injuria, 
implora  o  favor  de  Diana,  que  a  converteu  em  gralha,  e,  já  principiando-se 
de  transformar-se,  vae  fugindo  e  voando  com  as  pennas  que  lhe  iam  cres- 
cendo. Infurece-se  Neptuno  de  que  ella  lhe  fuja  e  egualmente  com  os  glaucos 
Palemos  e  Gopidilhos  maritimos  se  admira  de  ver  que  vôa. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  a  Águia  de  Júpiter  leva  arreba- 


1  No  texto  primitivo  esta  descripção  é  muito  mais  desenvolvida. 


20  NOTICIA   DE  ALGUNS  PINTORES 

tado  a  Ganimedes.  a  quem  Júpiter,  havendo  excluído  a  Hebe  de  seu  copeiro 
mandou  levar  ao  céo  para  lhe  succeder  n"aquelle  ofíicio.  Pelo  ar  se  vê  o  roubo 
e  na  terra  o  monte  Ida  em  que  foi  executado  e  porque  snccedeu  andando  Ga- 
nimedes caçando,  se  vêem  no  monte  retratados  Espileto  e  Baguinha,  que  são 
dois  galguinhos  do  sr.  Arcebispo,  mui  pequenos  e  galantes  e  se  fingem  os 
com  que  caçava  Ganimedes. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  d'alto  com  a  historia  ou  fabula  da  Rainha 
Dido  sobre  a  pira  em  que  já  começa  a  atear-se  o  fogo  e  tem  junto  a  si  as  armas 
de  Eneas,  sobre  cuja  espada  se  está  lançando,  e  Baven  sua  ama  a  acompanha 
n'aquella  agonia.  Egualmente  os  Aulicos  e  Damas  de  Dido  se  estão  lastimando 
d'aquelle  espectáculo,  e  no  alto  do  quadro  apparece  a  Deusa  Juno  que  manda 
a  íris  cortar  o  fio  vital  a  Dido  para  que  lhe  dure  menos  aquelle  tormento. 

Outro  quadro  de  seis  palmos  dalto  e  nove  de  largo  em  que  está  pintada 
a  praça  de  S.  Pedro  e  nella  o  frontespicio  d'aquel!a  igreja  na  forma  em  que 
ultimamente  a  aperfeiçoou  Paulo  V;  o  Palácio  Vaticano,  a  columnata  de  Ale- 
xandre VII,  as  fontes  de  Clemente  VIII  e  Clemente  X  e  o  obelisco  de  Sixto  V. 
Em  todo  o  mais  campo  da  Praça  se  representa  o  cortejo  que  o  sr.  Arcebispo 
embaixador  levava  quando  ia  ás  audiências  do  Papa  com  os  seus  lacaios,  e 
cocheiros  vestidos  da  sua  libré,  com  as  suas  carroças,  fielmente  retratadas  e 
parte  das  allieas  que  costumavam  a  aeompanhal-o  n'aqnelles  dias. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d'alto  com  a  fabula  de  Pi- 
ramo  e  Tisbe.  Pinta-se  a  fonte  e  valle  da  Babilónia  em  que  succedeo  aquella 
tragedia.  Está  Piramo  morto  e  dessangrado  e  Tisbe  esmorecida  aplicando-se 
ao  peito  a  espada  de  Piramo.  Vè-se  a  toalha  de  Tisbe  ensanguentada  da  bocca 
do  leão  de  .que  Tisbe  se  amedrontou,  e  para  outra  parte  se  vae  retirando  o 
mesmo  leão.  Está  o  cadáver  de  Piramo  junto  d'uma  amoreira,  cujas  raízes  se 
banham  n'aquelle  sangue  com  o  que  a  còr  das  amoras  começa  a  transfor- 
mar-se,  aparecendo  umas  ainda  brancas,  outras  já  vermelhas,  outras  não  de 
todo  transformadas,  parte  vermelhas,  e  parte  brancas. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  quatro  d'alto  em  que  se  vê  um  mar 
tempestuoso  e  se  vê  um  baixel  e  outro  naufragando  entre  umas  penhas. 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  dalto  que  mostra  que 
achando  um  sátiro  a  Vénus  dormindo,  atraído  da  sua  formosura,  procura 
descobril-a  sem  despertal-a.  Cercam-na  alguns  Cupidinhos  e  um  pouco  dis- 
tante se  vêem  como  bailando  um  sátiro  e  uma  serrana  entre  um  arvoredo. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  com  um  bosque  em  que  está  Vénus  com 
alguns  faunos  e  um  d'elles  se  chega  a  Vénus  detraz  de  um  trono;  e  lhe  offe- 
recem  um  cacho  d'uvas  para  Cupido. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d'alto  que  contem  peitos 
d'armas,  capacetes,  espadas,  talis  e  vasos  d'ouro. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  21 

Outro  quadro  em  que  se  vê  Hercules  substituindo  a  Atlante  e  sustentando 
nos  Iiombros  o  globo  celeste.  Está  Hercules  coberto  com  a  pelle  do  leão  Ne- 
meo,  ajoelhando,  e  encurvado  com  a  gravesa  d'aquelle  peso  e  nos  dois  cantos 
inferiores  do  quadro  estão  Arcliimedes  com  a  esfera  e  Euclides  com  o  com- 
passo fazendo  estudos  e  observações  no  globo. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  que  representa  o  jardim  com  as  ruas, 
estatuas,  paredes  vestidas  e  todas  as  flores  e  plantas  de  que  um  jardim  bem 
asseado  costuma  compor-se.  No  meio  d'elle  está  uma  fonte  e  junto  a  ella  se 
vêem  merendando  uns  passageiros  que  se  supõem  foram  a  buscar  entreteni- 
mento na  amenidade  d'aquelle  sitio. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  com  a  fabula  de  Prometeo,  a  quem,  por 
se  atrever  a  ir  ao  céo  a  buscar  o  fogo  que  antes  não  havia  no  mundo,  atou 
Mercúrio,  por  ordem  de  Júpiter,  ao  Monte  Cáucaso,  com  uma  águia  que  lhe 
roesse  o  peito,  e  para  o  poder  fazer  perpetuamente,  tudo  o  que  a  águia  de- 
vorava de  dia,  crescia  de  noite;  bem  que  depois  matou  Hercules  a  águia  com 
uma  seta,  e  rompeo  as  cadeias  com  que  Prometeo  estava  preso  e  o  livrou 
daquelle  castigo.  Representa-se  no  quadro  o  Monte,  Prometeo  baixando  do 
Céo,  trazendo  nas  mãos  uma  facha  de  fogo  que  roubou. 

Outra  guarda  roupa  que  contem  o  mesmo  que  a  já  dita. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo,  e  quatro  d"alto  em  que  se  vê  Jú- 
piter transformado  em  touro,  levando  pelo  mar  a  Europa,  e  conduzindo-a  de 
Sidon  a  Creta.  Vae  Europa  chorosa  olhando  para  as  praias  de  Sidon  em  que 
fora  roubada  e  n'ella  se  vêem  as  damas  de  Europa  impacientes,  da  sua  perda 
e  d'aquella  injuria.  Sulca  o  mar  o  mentido  touro,  coroado  de  flores,  cingido 
de  festões  cercado  de  Cupidinhos  triunfaes  dos  quaes  um  dispara  uma  seta 
d'ouro  a  Europa,  para  que  ella  não  passe  saudosa,  mas  namorada. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  pinta  Sirce  no  seu  palácio 
sentada  sobre  um  trono;  tem  na  mão  direita  a  vara  magica,  com  a  mão  es- 
querda está  dando  a  Ulisses  o  poculo  suave,  que  lhe  havia  persuadido  que 
bebesse,  e  conhecendo  Mercúrio  que  elle  era  contagioso,  tocando-o  com  umas 
ervas  o  purifica  do  veneno.  Por  outra  parte  se  vè  um  homem  com  a  cabeça 
de  javali;  em  que  começava  de  transformar-se,  que  é  um  dos  companheiros 
de  Ulisses,  reduzidos  aquella  infelicidade  pelos  encantos  de  Sirce. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  vêem  as  três  sereias,  Parte- 
nope,  Lisia  e  Lencosia  sobre  um  logar  marítimo  da  costa  siciliana  que  Ulisses 
navegava,  esperando  que  Ulisses  e  seus  companheiros  chegassem  para  com 
a  suavidade  do  canto  os  atraírem  e  vencerem.  Vae  Ulisses  em  uma  gallé, 
atado  ao  mastro  d'ella,  para  não  poder  seguir  aquella  harmonia;  levam  os 
seus  soldados  os  ouvidos  tapados  por  se  livrarem  de  escutal-as;  patrocina 
Palias  esta  cautela  e  com  seu  conselho  vence  Ulisses  o  encanto  das  sereias. 


22  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  aparece  Galatea,  acompanhada 
de  algumas  Nayadas,  passeando  as  aguas  em  uma  carroça  de  conchas.  Em  uma 
penha  imminente  ás  ondas  vè-se  o  Cyclope  Polifemo,  com  aspecto  disforme 
e  bárbaro,  com  um  surrão  pendente  a  um  lado.  tendo  por  bordão  o  pinheiro, 
e  vendo  a  Galatea,  desejando  lisongeal-a  toca  o  seu  horrisono  alvogue  de  que 
ella  se  não  atrae,  antes  se  estremece. 

Casa  das  Batalhas  com  vinte  e  quatro  quadros 

Um  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d'alto  que  contem  o  porto  de 
Palio;  tem  pintado  a  ribeira  e  castello  do  dito  porto,  em  que  está  uma  galé 
junto  da  fortalesa  e  d'ella  saindo  e  embarcando  gente  armada.  No  mesmo 
quadro  e  a  tão  grande  distancia  que  apenas  a  comprehende  a  vista,  está  re- 
presentado o  porto  de  Civita  Vechia. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  com  a  fabula  de  Arião  a  quem  quizeram 
matar  os  vassalos  de  Piranto  e  por  conselho  de  Apollo  se  salvou  sobre  um 
golfinho.  Pinta-se  o  mar  a  que  Arião  se  arrojou  e  a  barca  que  o  conduzio. 
Na  proa  d' ella  se  vê  a  inveja,  ameaçando-o  e  seguindo-o.  Yae  o  golfinho  van- 
glorioso de  conduzil-o  e  forcejando  por  livra-lo  e  Arião  tangendo  a  Citara, 
cuja  melodia  seguem  as  ondas  e  os  peixes  ambiciosos  dos  concertos  d'aquellas 
vozes. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  representa  o  porto  de  Liorne 
e  está  no  meio  d"elle  a  estatua  do  grão  duque,  com  quatro  turcos  a  seus  pés. 
tudo  de  bronze;  vè-se  uma  fonte  para  outra  parte,  pintada  na  mesma  forma 
da  que  está  iraquella  ribeira.  O  mais  do  campo  está  oecupado  com  barcos, 
galés  e  gente  de  varias  nações,  que  forma  o  concurso  ordinário  que  costuma 
haver  n"aquelle  porto. 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  d'alto  em  que  se  repre- 
senta uma  batalha. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  representa  uma  gruta  em  que 
se  vende  vinho  e  estão  vários  apetitosos,  uns  comprando  outros  bebendo. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  vè  uma  venda  humilde  e 
rústica,  a  cuja  porta  se  encontram  alguns  passageiros  a  pé  e  a  cavallo  e  dos 
primeiros  uns  estão  bailando;  outros  tangendo  e  fazendo  outras  acções  pró- 
prias de  quem  vae  de  caminho. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  representa  uma  batalha. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  d' alto  e  sete  de  largo,  que  contem  um  fes- 
tejo que  se  fazia  ao  Deos  Baco.  Pinta-se  um  bosque  e  no  meio  d"elle  uma  es- 
tatua de  Baco  em  que  andam  festejando  homens,  mulheres  e  sátiros,  uns  be- 
bendo, outros  bailando.  Por  cima  de  uma  ponte  que  se  encaminha  por  onde 


NOTICIA   DE  ALGUNS  PINTORES  23 

está  a  estatua,  vem  correndo  mais  gente  e  toda  com  ramos  nas  mãos  em  acto 
alegre  para  fazerem  mais  aprasivel  aquella  solemnidade. 

Outro  da  mesma  medida  que  contem  a  fabula  de  Diana,  quando  Ateon  a 
achou  no  valle  Gargaglia,  banliando-se  com  as  suas  ninfas  na  fonte  Parthenia, 
e  ella  o  transformou  em  veado  para  não  poder  revelar  os  segredos  que  havia 
visto.  Representa-se  o  logar  do  banho  cheio  de  arvores  e  sombras,  e  Diana, 
e  as  ninfas  despidas;  Ateon  vendo-as,  ellas  sobresaltadas  escondendo-se  umas 
com  as  roupas,  outras  nas  aguas  e  começa  Ateon  a  tomar  a  forma  de  veado 
em  que  Diana  quiz  convertel-o. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  que  exprime  a  sentença  que  Paris  por 
ordem  de  Júpiter,  deu  no  pleito  do  pomo  d'ouro,  que  Eride,  no  dia  das  bodas 
de  Tetis,  lançou  entre  os  deuses,  sobre  que  disputaram  a  formosura  Palias, 
Vénus  e  Juno.  Pintam-se  as  três  deusas  quasi  despidas;  Mercúrio  junto  a 
Paris  a  quem  trouxe  a  commissão  de  Júpiter;  Paris  dando  o  pomo  a  Vénus; 
Palias  e  Juno  encolerisadas  de  não  serem  preferidas  e  no  terreno  do  quadro 
se  vê  um  bosque  solitário  e  frondoso  que  figura  o  valle  de  Ida  em  que  foi 
aquella  contenda. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  d'alto  e  cinco  de  largo  com  o  roubo  que 
fizeram  os  Romanos  das  donzellas  Sabinenses  na  occasião  dos  festejos  e  jogos 
equestres.  Estão  os  soldados  romanos  arrebatando-as  furiosamente,  e  ellas 
defendendo-se,  e  Rómulo,  em  um  trono,  dispondo  a  ordem  com  que  devia  con- 
tinuar-se  aquejle  rapto. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo  e  quatro  d'alto  que  representa  a 
Erminia,  quando,  depois  de  Tancredo  e  Argante  sairem  a  desafio,  passou 
occultamente  do  exercito  Pagão  ao  Catholico,  a  curar  as  feridas  de  Tancredo, 
e,  sendo  depois  assaltada,  se  desbocou  o  seu  cavallo,  e  a  levou  a  um  valle 
solitário  e  pacifico,  em  que  vivia  um  pastor  velho  e  sábio.  Está  Erminia  ves- 
tida das  armas  de  Clarinda,  em  que  se  disfarçara,  como  fazendo  reverencia 
ao  velho,  que  cortezmente  a  recebia,  mostrando  admiração  de  ver  armas  na 
sua  cabana.  Occupa-se  o  serrano  em  tecer  vimes  e  tem  junto  a  si  três  filhos 
também  pastores.  Vê-se  o  valle  povoado  de  plantas  e  ovelhas.  Estão  todos  á 
porta  duma  humilde  alqueria  e  pouco  distante  de  Erminia  corre  o  rio  Jordão 
que  lava  aquella  campanha. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  pinta  voar  pelo  ar  uma  carroça 
em  que  a  grande  magica  Armida,  depois  de  Renaldo  lhe  haver  fugido  do  seu 
palácio,  e  vencido  o  seu  encanto,  intenta  roubal-o,  achandô-o  dormindo;  vão 
os  ministros  de  Armida  levando-o  para  o  carro,  ficando  no  logar  em  que  foi 
achado  a  sua  espada,  o  seu  elmo  e  o  seu  escudo,  e  Armida  com  cuidado  e 
império  procura  encontrar  apressadamente  o  roubo  antes  que  espertasse  Re- 
naldo. 


2Í  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  (Falto  que  é  uma  guarda 
roupa. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  finge  um  convite  que  Tritã» 
fez  a  Vénus,  levando-a  a  passear  ao  mar.  Vae  Tritão  abraçado  a  Vénus,  de- 
traz  d'ella  vão  as  três  graças  todas  a  cavallo  sobre  golfinhos  e  focas.  Pelas 
ondas  e  ar  visinho  vão  nadando  e  voando  os  domésticos  cupidinhos  de  que 
se  acompanha  e  serve  Vénus.  Diante  de  todos  vae  sobre  uma  orca  um  trom- 
beta simifero,  soando  um  busio  com  que  acrescenta  o  ruido  e  triunfa  d'aquelle 
acto. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  que  contem  uma  guarda  roupa. 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  dalto  em  que  se  repre- 
senta a  Meleagro,  filho  de  Eneo  e  de  Altèa,  ao  qual  nascendo  profetisou 
A  tropos  que  elle  viveria  tudo  o  que  durasse,  sem  se  queimar,  uma  acha 
que  naquella  occasião  se  lançara  no  fogo,  em  que  estava  já  ardendo.  Tirou 
Altêa  apressadamente  a  acha  e  guardou-a  para  assim  conservar  a  vida  de 
seu  filho.  Namorou-se  depois  Meleagro  de  Atalanta,  a  quem  offereceu  a 
pelle  do  javali  que  Calidonio  matara,  e  querendo  roubar-lha  Ideo  Plexippo  e 
Lincio,  tios  de  Meleagro  e  irmãos  de  Altèa,  se  queixou  Atalanta  a  Meleagro 
que  matou  a  seus  tios,  antepondo  o  amor  ao  parentesco.  Irritou-se  tanto  Altèa 
d'esíe  insulto,  que,  ainda  que  a  suspendeu  um  pouco  o  amor  de  Meleagro, 
quis  finalmente  vingar  a  morte  dos  irmãos,  ainda  com  perda  do  filho,  para  o 
que  tirou  a  acha,  do  logar  em  que  a  tinha,  e  a  consumio  em.  um  braseiro  e 
n'ella  a  vida  de  Meleagro.  O  que  se  vê  no  quadro  he  estar  Meleagro  com 
mostras  de  cólera  e  impaciência,  ao  mesmo  tempo  que  a  acha  ardia..  Sua  mãe 
Altèa  a  está  queimando,  desviando  os  olhos  de  seu  filho,  para  que  assim 
possa  castigal-o,  e  se  não  internecer  com  vel-o.  Em  uma  campanha  visinha 
aparecem  os  cadáveres  dos  irmãos  de  Altêa,  a  quem  Meleagro  matara  por 
lisongear  a  Atalanta. 

Outro  quadro  da  mesma  medida,  que  contem  a  Ticio ,  filho  da  terra,  a 
quem  Juno  mandou  que  violentasse  a  Latona,  queixosa  de  que  Júpiter  a  offen- 
desse  com  ella,  e,  intentando- o  Ticio,  o  fulminou  Júpiter  com  um  raio,  e  no 
inferno  o  mandou  atar  a  um  monte,  onde  perpetuamente  lhe  estivesse  roendo 
as  entranhas  um  abutre.  Vê-se  na  pintura  Ticio  impaciente  e  desesperado,  e 
o  abutre  executando  n'elle  aquelle  castigo. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d'alto  em  que  se  mostra 
um  paiz  largo,  em  cuja  campanha  estavam  caçadores  e  libreos  perseguindo 
a  um  urso,  que  está  procurando  livrar-se  d'aquelle  aperto,  e  quebrando  com 
as  mãos  e  dentes  algumas  das  lanças,  com  que  se  lhe  tem  atirado. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo  e  quatro  dalto  de  Apollo  e  Daphne, 
que,  não  tendo  outro  meio  de  livrar-se  da  violência  de  Apollo,  implorando  o 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  25 

auxilio  da  terra  e  de  seu  pae  o  rio  Peneo,  se  está  já  convertendo  em  loureiro; 
tem  já  os  pés  transformados  em  raizes,  em  folhas  os  cabellos,  as  mãos  em 
ramos  e  dos  mais  crescidos  forma  Cupido  a  grinalda  com  que  Apollo  se  coroa, 
Yê-se  n'outra  parte  Peneo  entre  espadanas,  derramando  agua  d'uma  urna  e 
vendo  como  atónito  a  transformação  de  sua  filha. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  vê  Vénus,  galanteando  a 
Marte  e  convidando-o  ser  seu  hospede.  Estão  com  ella  diversos  cupidinhos, 
um  a  tem  abraçada,  outro  1  lie  corre  uma  cortina  e  os  mais  se  estão  entre- 
tendo graciosamente,  brincando  e  aplicando-se  ás  armas  de  Marte. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d'alto,  com  outro  semi- 
lhante  paiz  em  que  caçadores  a  pé  e  a  cavallo  seguem  um  veado  que  lhes 
vhe  fugindo,  outros  por  diante  procuram  embaraçal-o  para  todos  o  colherem. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo  e  três  dalto,  em  que  se  pintam  as 
Sabinas  passando  o  rio  Tibre,  quando  vieram  a  Boma  a  vêr  as  festas,  em  que 
furam  roubadas,  e  se  vê.  no  principio  de  um  bosque,  o  Tibre  coroado  de  louro, 
tendo  uma  loba  consigo,  que  eStá  fazendo  afagos  a  Rómulo  e  a  Remo. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo  e  quatro  dalto,  em  que  Perseo 
está  degolando  a  Medusa  a  quem  Minerva,  por  ella  haver  com  Neptuno  pro- 
fanado o  seu  templo,  converíeo  os  cabellos  em  serpentes,  infundindo-lhes  tal 
eflicacia,  que  quem  chegasse  a  vel-os  se  transformasse  em  pedra,  encanto 
que  se  communicou  egualmenle  a  Estioni  e  Eurialo,  irmãos  de  Medusa.  Está 
Perseo  tendo  os  talares  de  Mercúrio,  que  também  assiste  aquelle  castigo,  cor- 
tando-lhe  a  cabeça  com  a  espada  Argem,  que  o  mesmo  Mercúrio  lhe  havia 
dado.  Perseo,  por  não  errar  o  golpe,  nem  olhar  para  Medusa,  a  está  vendo, 
como  em  espelho,  no  escudo  de  Palias.  Foi  o  successo  em  occasião  que  Eu- 
rialo e  Estioni  estavam  dormindo  e  assim  se  representam  no  mesmo  quadro. 

Casa  das  Naus  com  vinte  e  três  quadros 

Um  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d'alto  em  que  se  pinta  um 
paiz  deserto,  e  nelle  uma  pendência  entre  uns  cães  e  um  urso,  que  recipro- 
camente se  estão  ferindo  e  ensanguentando 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  d'alto  no  qual  se  vê  um 
gallo,  uma  gallinha,  três  pombos  e  dois  coelhos  e  um  gato  que  está  esperando 
furtar  alguns  dos  pombos. 

Outro  quadro  de  nove  palmos  dalto  e  cinco  de  largo  que  é  o  retrato  do 
sr.  Arcebispo. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo  e  quatro  d"alto  que  é  uma  perspe- 
ctiva d'um  edifício  antigo  e  quasi  arruinado,  dos  que  fabricaram  em  Roma  os 
imperadores  gentios.  Vèem-se  alguns  arcos  sumptuosos,  parte  conservados, 
4 


26  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

parte  caidos;  umas  columnas  caidas  e  outras  levantadas  e  parte  dumas  e 
outras  cobertas  de  era  e  musgo  e  d'outros  effeitos  que  produz  o  tempo.  O 
mais  do  quadro  consta  d'uma  galante  variedade  com  que  aquelle  terreno  se 
occupa  competentemente. 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  d'alto,  em  que  se  vêem 
diversos  peixes  como  são  raias,  pescadas,  trutas  e  de  outras  castas;  junto 
d'elles  estão  umas  laranjas  partidas,  umas  limas,  uns  cardos  e  outros  seme- 
lhantes engredientes  dos  que  ordinariamente  se  costumam  ver  naquelle  logar. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  mostra  uma  estalagem  com 
os  trastes  que  costuma  liaver  n'ellas,  em  que  se  acham  diversos  passageiros 
conversando  e  comendo. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo  e  quatro  d'alto  que  é  a  fabula  de 
Orfèo.  Está  elle  pintado  ao  pé  dum  frondoso  plátano,  tangendo  a  lyra  que 
lhe  deu  seu  pae  Apollo,  e  convocando  com  a  suavidade  d'ella  a  todos  os  brutos 
d'aquella  montanha,  que  estão  juntos  a  elle,  arrebatados  da  sua  melodia. 
N'aquella  arvore,  e  no  ar  que  lhe  está  eminente,  estão  as  aves  suspensas  para 
ouvil-o,  e  se  vêem  vir  baixando  algumas  serranas  d'um  monte  visinho,  atraí- 
das da  harmonia  d'aquelle  instrumonto. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d'alto  que  contem  um  paiz 
occupado  com  um  espesso  arvoredo;  no  fim  d'elle  se  vè  uma  fabrica  quasi 
arruinada  e  junto  d'ella  uma  venda,  a  cuja  porta  haviam  parado  e  estão  con- 
versando uns  passageiros  a  cavallo.  Outro  se  havia  apeado  e  está  tratando 
d'uns  cães  de  caça  que  levava  consigo.  Em  outra  parte  mais  distante  se  vê 
um  rio  que  banha  parte  d 'um  bosque  por  entre  cujas  ramas  aparecem  as 
cúpulas  e  capiteis  d'um  palácio  que  está  ao  meio  d'elle. 

Outro  quadro  da  jríesma  medida  que  é  um  fruteiro,  com  melões,  figos, 
ameixas  cerejas,  e  outras  fructas  diversas. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  que  é  um  paiz  em  que  uns  caçadores  com 
lanças,  e  uma  Dama  com  Venabulo,  vão  correndo  a  cavallo  atrás  d'uns  javalis, 
que,  perseguidos,  se  lançam  em  um  lago,  que  está  ao  pé  d'uma  montanha,  e, 
ainda  dentro  delle,  vão  os  Lebreos  e  caçadores,  continuando  aquella  fadiga. 

Outro  quatro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  d'alto  que  contem  uma  batalha. 

Outro  quadro  da  mesma  maneira. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo  e  quatro  d'alto  que  é  outra  perspe- 
ctiva d'um  edifício  antigo,  quasi  arruinado,- dos  que  fabricaram  em  Roma  os 
imperadores  gentios.  Vèem-se  alguns  arcos  sumptuosos,  parte  conservados 
parte  caídos,  umas  columnas  caidas  e  outras  levantadas  e  parte  de  todas 
cobertas  de  era  e  musgo  e  de  outros  effeitos  que  produz  a  diuturnidade  do 
tempo.  O  mais  do  quadro  é  uma  galante  variedade  com  que  se  occupa  aquelle 
terreno. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  27 

Outro  quadro  de  nove  palmos  d'alto  e  cinco  de  largo  que  ê  o  retrato  do 
sr.  D.  João  de  Sousa,  grão  Prior  do  Crato. 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  d'alto  em  que  se  vê  um 
sabujo,  uma  lebre  pendente  duma  arvore,  alguns  tordos  e  lavancos  e  outros 
pássaros  que  costumam  achar-se  na  terra  e  nos  rios. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  se  vêem  differentes  peixes  e  al- 
guns mariscos  d"entre  os  quaes  se  vê  sair  com  fúria  um  gato  com  um  salmo- 
nete  na  bocca. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo  e  quatro  d'alto  em  que  se  mostra 
que  andando  Prosérpina  nos  Campos  Eneos,  colhendo  flores  com  Vénus,  Mi- 
nerva e  Diana,  vem  Plutão  a  roubar  a  Prosérpina  e  a  leval-a  para  o  inferno 
pela  bocca  do  monte  Etna.  Resistem  ella  e  as  três  deusas  ao  roubo,  e  vêem 
Plutão  arrebatando-a  para  o  seu  carro  que  conduzem  cavallos  liorriveis,  que 
respiram  fumo  e  fogo.  Procura  a  ninfa  Cyane  dissuadir  a  Plutão.  d'aquella 
violência,  que  elle  continua,  mandando  guiar  o  carro  para  o  Etna,  e  pouco 
distante  aparece  aquelle  monte  tendo  flores  nas  fraldas,  na  subida  neve  e 
chammas  no  cume. 

Outro  quadro  de  quatro  palmos  de  largo  e  três  d'alto  em  que  se  vê  uma 
estrada  em  que,  d'entre  umas  montanhas,  vem  baixando  caçadores,  e,  dos 
que  tem  chegado  ao  plano,  uns  estão  comprando  cogumelos,  que  ali  se  ven- 
diam, outros  dando  de  beber  em  um  regato  aos  cães,  que  levam. 

Outro  quadro  de  sete  palmos  de  largo  e  cinco  d' alto  em  que  se  vê  junto 
d'uma  lagoa  um  leão,  luctando  furiosamente  com  muitos  lebreos;  uns  lhe  estão 
pegando  e  outros  tem  elle  já  despedaçado.  Em  outra  parte  vae  um  caçador  a 
cavallo,  correndo  atraz  d'um  veado  e  em  outra  vae  fugindo  um  javali  que  se 
levantou  com  o  ruido.  No  alto  do  quadro  se  divisa  ao  longe  uma  povoação, 
de  que  se  suppõe  sairem  os  caçadores,  e,  em  correspondência  d'ella,  se  vê 
um  monte  coroado  de  cabanas  de  pastores  e  arvores  silvestres. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  que  é  uma  guarda  roupa. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  que  é  um  fructeiro  com  melões,  melancias, 
figos,  ameixas,  marmelos,  cerejas  e  outras  fructas. 

Outro  quadro  da  mesma  medida  em  que  está  um  tapete  a  uma  parte  e  a 
outra  varias  fructas. 

Outro  quadro  de  cinco  palmos  de  largo  e  quatro  d'alto,  em  que  Hypomenes 
vae  correndo  atraz  de  Atai  anta,  procurando  detel-a  com  as  maçãs  d'ouro  que 
Yenus  lhe  dera.  Corre  Atalanta,  tendo  já  nas  mãos  uma  e  olhando  para  as 
duas  que  Hypomenes  ainda  levava.  Está  El-rey  Seneo,  pae  de  Atalanta,  vendo 
aquella  contenda,  sentado  em  um  trono,  tendo  consigo  a  Vénus  e  a  Cupido, 
e,  em  uma  distancia,  se  vêem  os  cadáveres  de  dois  mancebos,  que  haviam 
sido  degolados,  porque  entrando  em  egual  exame  foram  vencidos. 


28  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Cap.  XXXIII.  Do  Regimento  dos  Pitores 

No  mes  de  Janeiro  de  cada  hu  anno  os  offiçiaes  do  ofliçio  dos  pitores 
assi  de  óleo  como  de  tempera  se  ajuntarão  em  hua  casa  q  elles  para  isso 
ordenarem  E  os  juizes  que  então  acabão  cõ  seu  escriuão  darão  Juramento 
dos  Sanctos  Evangelhos  a  todos  os  que  presentes  forem  que  bem  e  verda- 
dèiramête  sem  ódio  nem  afTeição  dee  cada  híl  sua  voz  a  dous  offiçiaes  -s  s-a 
hu  pintor  de  óleo  e  outro  de  tempera  que  seião  Idóneos  e.. pertencentes  para 
esse  anno  seruirem  de  Juizes  e  Examinadores  do  dito  offiçio,  E  sendo  assi 
dado  Juramento  aos  ditos  offiçiaes,  os  ditos  Juizes. cõ  o  escriuão  se  apartarão 
para  hu  cabo  da  dita  casa  onde  terão  posta  hua  mesa  E  aly  perguntarão  a 
cada  hu  dos  ditos  offiçiaes  per  sy  sob  cargo  do  dito  Juramento  que  receberão 
a  quaes  dão  sua  voz  para  aquelle  anno  vindouro  seruirem  de  Juizes  e  exami- 
nadores do  dito  offiçio,  e  o  que  cada  hu  disser  em  segredo  .o  escriuão  o 
escreueraa  E  acabado  assi  de  perguntar  os  ditos  offiçiaes  elles  Juizes  alim- 
parão a  pauta  cõ  o  dito  escriuão  E  em  outro  papel  poerão  per,  letra  aquelles 
dous  offiçiaes  que  mais  votos  teuerem  para  aquelle  anno  seruirem  de  Juizes 
e  examinadores  do  dito  offiçio. 

1.  E  pela  mesma  maneira  e  no  dito  dia  que  elegerem  os  ditos  Juizes  e 
examinadores  elegerão  outro  offiçial  do  dito  offiçio  por  escrivão  para  seruir 
aquelle  anno  cõ  os  Juizes.  E  despois  de  os  ditos  Juizes  E  escriuão  assi  serem 
eleitos  irão  aa  Gamara  para  lhes  ser  dado  Juramento  dos  Sanctos  Evangelhos 
que  bem  E  verdadeiramente  Simão  seus  cargos,  e  para  os  assentarem  no 
Livro  da  camará  como  he  costume.  E  aquelles  Juizes  examinadores  E  escri- 
uão q  cõ  esta  solenidade  não  forem  eleitos  não  vsarão  dos  ditos  cargos,  sob 
pena  de  qualquer  que  o  contr.0  fezer  pagar  mil  rs  ametade  para  as  obras  da 
cidade  E  a  outra  para  quê  o  aecusar. 

2.  E  o  offiçial  que  sair  por  examinador  hu  anno  nãoseruira  o  mesmo 
cargo  dahy  a  três  annos  cotados  do  dia  em  q  acabar  seu  anno  E  pela  mesma 
o  que  sair  por  escriuão.  .  .    ,    . 

:i.  E  nenhua  pessoa  assi  natural  como  estrangeiro  que  do  dito  offiçio  dos 
pintores  assi  de  óleo  como  tempera  quiser  vsar  e  poer  tenda  p  pqderaa  fazer 
sem  primeiro  ser  examinado  pelos  examinadores  que  para  isso  são  eleitos. 
O  qual  exame  se  faraa  em  casa  do  examinador  que  for  do  offiçio  de  que  se 
faz  o  exame  a  que  elles  serão  presentes  para  que  vejão  se  o  tal  offiçial  faz, 
obra  conueniente  por  que  mereça  ser  approuado. 


NOTICIA   DE  ALGUNS  PINTORES 


29 


4.  E  o  que  se  ouuer  de  examinar  de  pintura  de  óleo  traraa  bua  tauoa  de 
quatro  ou  cinco  palmos  em  quadra  e  em  casa  do  Juiz  pintara  a  Imagem  que 
lhe  elle  disser  em  modo  que  na  dita  tauoa  aja  maçenaria,  paisagem  e  alguãs 
menudençias  para  que  entudo  se  veia  sua  suffiçiençia.  E  o  que  assi  for  exa- 
minado pela  sobredita  maneira  ficara  examinado  de  todas  as  outras  cousas 
aa  pintura  necessárias  E  ao  ornamento  delia. 

5.  E  o  que  de  tempera  ou  fresco  quiser  vsar  faraa  em  parede  a  fresco  È 
em  panno  ou  tauoa  a  tempera  figura  ou  lauor  romano  ou  grotesco  querendo 
vsar  de  tudo  E  fazendo  o  sobredito  ficara  examinado  de  todas  as  cousas  aa 
dita  pintura  de  tempera  ou  fresco  imferiores. 

6.  E  o  que  de  dourado  ou  estofado  somente  quizer  vsar  por  mais  não 
poder  alcançar  faraa  bua  peça  de  ouro  bornido  êmate  em  a  qual  baueraa 
algu  plano  ou  tauoa  per  si  de  dous  palmos  em  que  faça  alem  do  dito  dou- 
rado dois  palmos  de  rapado  e  faraa  mais  híi  pao  de  branco  bornido  E  encar- 
naraa  nu  rosto  de  vulto  de  bua  virgem  de  encarnação  polida. 

7.  E  ao  que  assi  for  examinado  na  maneira  sobredita  E  for  hauido  por 
babíl  E  pertencente  para  poer  tenda  lhe  passarão  sua  carta  de  examinação 
assinada  pelos  examinadores  E  feita  pelo  escrivão  de  seu  cargo.  A  qual 
leuarão  aa  Camará  para  la  ser  vista  E  confirmada  E  se  registrar  no  Liufo 
em  q  as  taes  cartas  se  registrão. 

S.  Da  qual  examinação  o  ofíiçial  que  se  assi  examinar  quiser  pagaraa 
trezentos  rs  E  sendo  estrangeiro  seiçentos  rs  de  q  serão  as  duas  partes  para 
as  despesas  do  dito  offiçio  E  a  terça  parte  para  os  examinadores. 

.  9.  E  qualquer  pintor  que  daquy  endiante  tenda  poser  sem  primeiro  ser 
examinado  da  maneira  sobredita  seraa  preso  E  da  cadea  onde  jaraa  quinze 
dias  pagaraa  dous  mil  rs  ametade  para  as  obras  da  Cidade  E  a  nutra  para 
quem  o  accusar.  E  sendo. os  Juizes  os  aecusadores  seraa  para  as  despesas  do 
offiçio.  E  a  mesma  pena  haueraa  qualquer  ofíiçial  a  que  se  prouar  q  fez 
algiias  obras  ou  peças  de  que  não  for  examinado,  ou  não  sendo  examinado 
tomar  obra  do.  dito  offiçio  para  fazer  da  tenda  do  ofíiçial  examinado. 

10.  E  quando  algu  ofíiçial  do  dito  offiçio  se  poser  a  examinar  se  não 
souber  fazer  o  que  se  contem  em  seu  exame,  os  áditos  examinadores  o  não 
examinarão  E  lhe  mandarão  que  vaa. aprender,  e  do  dia  que  se  poser  aa  tal 
examinação  a  seis  meses  o  não  tornarão  a  examinar  E  passados  os  ditos 


30  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

seis  meses  emtão  se  poderaa  poer  outrauez  a  examinação.  E  sendo  apto  lhe 
passarão  sua  carta,  e  não  o  sendo  o  tornarão  outrauez  a  mandar  aprender 
outros  seis  meses,  e  assi  o  farão  tantas  vezes  quantas  acharem  q  não  sabe 
fazer  como  o  cõteudo  ém  seu  exame. 

11.  E  os  examinadores  que  o  assi  não  fizerem  E  antes  do  dito  tempo  o 
tornarem  a  examinar  pagarão  dous  mil  rs  ametade  para  as  obras  da  Cidade 
E  a  outra  para  quem  os  accusar. 

12.  E  sendo  caso  q  os  ditos  examinadores  fauorauelmête  ou  por  peita  o 
por  qualquer  respeito  ou  maliçia  derem  por  suffiçieníes  aquelles  que  o  não 
forem,  E  lhes  derem  lugar  q  ponhão  tenda  da  cadea  onde  estarão  trinta  dias 
pagaraa  cada  hu  quatro  mil  rs  ametade  para  as  obras  da  cidade  E  a  outra 
para  quem  os  accusar. 

13.  E  os  examinadores  do  dito  offiçio,  não  examinarão  seus  filhos,  paren- 
tes, cunhados,  ou  criados.  E  quando  qualq''  dos  sobreditos  se  quiser  exami- 
nar faraa  petição  aa  Gamara  para  lhe  ser  dado  hu  dos  Juizes  do  anno  pas- 
sado qual  aa  Cidade  bem  parecer  para  o  examinar  em  lugar  do  examinador 
suspeito.  E  qualquer  dos  examinadores  que  o  cõtr0  fezer  pagaraa  dous  mil  rs, 
ametade  para  as  obras  da  cidade  E  a  outra  para  quem  o  accusar  E  a  tal 
examinação  não  seraa  valiosa. 

14.  E  serão  avisados  os  ditos  examinadores  que  nenhu  per  si  soo  examine 
offiçial  algru  senão  sendo  ambos  juntos  sob  a  mesma  pena. 

15.  E  os  Juizes  do  dito  offiçio  terão  cargo  de  trinta  en  trinta  dias  visitar 
as  tendas  dos  offiçiaes  E  fazer  correição  cõ  o  escriuão  E  assi  todas  as  mais 
vezes  que  necessário  lhes  parecer.  E  as  obras  que  acharem  que  não  são  feitas 
como  deuem  tomarão  e  leuarão  aa  Camará  para  se  fazer  nisso  o  q  for  Jus- 
tiça e  se  dar  o  castigo  ao  offiçial  cõforme  aa  culpa  que  lhe  for  achada.  E 
esta  diligêçia  farão  sem  ódio  nem  affeição  nem  outro  algu  modo  ou  espécie 
de  maliçia.  E  os  Juizes  que  nas  ditas  obras  emganoe  falsidade  acharem  E  a 
dissimularem  per  qualqr  via  que  seia  e  não  fizerem  diligencia  para  se  fazer 
a  dita  execução  contra  os  culpados  pagarão  dez  cruzados  ametade  para  as 
obras  da  cidade  E  a  outra  para  quem  os  accusar. 

16.  E  mandão  aos  offiçiaes  do  dito  offiçio  q  quando  qr  q  os  ditos  Juizes 
chegarem  a  suas  tendas  para  lhas  visitarem  lhes  obedeção  E  mostrem  as 
obras  de  seu  offiçio  íj  quiserem  para  verem  se  ha  alguas  mal  feitas  e  como 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


31 


não  deuem  para  se  fazer  nellas  execução  sob  pena  de  qualqr  q  desobediente 
for  a  cidade  lhe  dar  por  isso  o  castigo  que  lhe  bem  parecer.  E  da  desobe- 
diência que  o  tal  ofíiçial  cometter  contra  os  ditos  Juizes  ou  qualquer  delles 
o  dito  escriuão  faraa  auto  E  o  leuaraa  aa  Gamara  para  se  nella  ver  E  man- 
dar o  que  for  Justiça. 

17.  E  qualqr  ofíiçial  que  for  chamado  pelos  ditos  Juizes  E  examinadores 
para  aigu  ajuntamêto  que  toque  ao  dito  offlç.io  ou  para  ver  algíías  obras 
sobre  q  aja  differença  E  for  reuel  E  não  vier  pagaraa  mil  rs  ametade  para 
as  obras  da  cidade  E  a  outra  para  as  desp.as  do  ditto  offiçio  E  a  mesma  pena 
hauerão  os  Juizes  ou  cada  hil  delles  que  sendo  chamados  para  algú  ajunta- 
mêto não  vierem. 

18.  E  nenhu  ofíiçial  do  dito  offiçio  seraa  tão  ousado  q  tome  nê  recolha 
em  sua  casa  aprendiz  nem  obreiro  q  estiuer  cõ  outro  oííiçial  emquãto  durar 
o  tempo  q  o  tal  obreiro  ou  aprendiz  for  obrigado  a  estar  cõ  seu  amo,  nê  lhe 
fallaraa  nê  lhe  mandara  fallar  per  outrê,  sob  pena  de  qualqr  q  o  cõtr.°  fezer 
pagar  vinte  cruzados  ametade  para  as  obras  da  Cidade  E  a  outra  para  as 
despesas  do  offiçio,  E  o  tal  obreiro  ou  aprendiz  tornara  para  casa  de  seu  amo. 

19.  E  per  este  mandão  aos  Almotaçees  das  execuções  m.ro  da  Cidade  e 
alcaides  delia  q  hora  são  E  ao  diãte  forem  q  sendo  requeridos  pelos  ditos 
Juizes  para  algua  cousa  q  seia  necessária  para  cõprimêto  E  execução  do  q 
toque  a  este  regimêto  lhes  acudão  cõ  diligencia  E  facão  nisso  justiça. 

20.  E  mandão  outrosi  a  qualqr  portr.0  do  concelho  E  homês  dos  alcaides 
desta  cidade  q  sendo  requeridos  pelos  ditos  examinadores  para  fazerem 
algua  execução  de  sençã  ou  mandado  da  camará  ou  dos  almotaçees  ou 
qualqr  outra  cousa  q  outrosi  toque  a  comprimêto  e  execução  deste  regimêto 
o  cumprão  E  lhes  serão  obedientes,  e  não  o  fazendo  assi  a  cidade  lhes  dará 
por  ysso  o  castigo  que  merecerem. 


I.  — Aguiar  (Agostinho  de)  —  No  Caderno  3.°  dos  Promotores  do  Santo 
Offiçio  apparece  este  pintor  em  uns  termos  de  4  de  abril  e  6  de  maio  de 
1609  lavrados  a  propósito  de  um  escripto  que  foi  encontrado  por  elle  e 
outros  artífices,  que  andavam  armando  o  sepulchro  para  as  Endoenças,  na 
igreja  de  Nossa  Senhora  da  Conceição,  o  qual  julgaram  conter  uma  heresia. 

Ahi  se  diz  que  elle  era  christão  velho,  casado,  e  morava  na  Jubetaria 
Velha. 


32  NOTICIA  DE   ALGUiNS  PINTORES 

Eis  os  respectivos  documentos : 

«Aos  vinte  e  quatro  dias  do  mes  de  Abril  de  mil  seiscentos  e  noue  anos. 
em  Lisboa  nos  Estaos  na  casa  do  despacho  da  Santa  Inquisição  estando  hi 
em  audiência  da  tarde  o  senhor  licenciado  Manoel  Alvares  Tavares  inquisi? 
dor  perante  elle  apareceo  por  ser  mandado  uir  o  padre  Geronimo  Luis  cura 
da  igreia  da  Conceição  desta  cidade,  e  sendo  presente  pêra  em  tudo  dizer 
verdade  er  ter  segredo  lhe  foi  dado  juramento  dos  Santos  Evangelhos  em  que 
elle  pôs  sua  mão  e  sob  carrego  delle  prometeo  de  assi  o  fazer.  Perguntado 
se  sabe  a  causa  por  que  hé  chamado.  Disse  que  lhe  parecia  que  devia  ser 
sobre  hum  escrito  que  se  achou  na  dita  igreja  da  Conceição  donde  elle  hé 
cura.  Perguntado  que  hé  o  que  sabe  do  dito  escrito?  Disse  que  segunda  feira 
da  semana  santa  que  forão  treze  dias  deste  mes  de  xYbril  ás  noves  horas  da 
manhã  estando  elle  declarante  confessando  em  hum  confessionário  da  ditta 
igreja  ueo  ter  com  elle  Agostinho  dAguiar  pintor  casado  com  hua  molher  a 
que  não  sabe  o  nome  christão  uelho  morador  nesta  cidade  na  Jubetaria  Velha 
freguesia  da  ditta  Igreja  da  Conceição  e  trazia  na  mão  hum  escritinho  que 
tem  quatro  dedos  de  comprido  e  dous  de  largo  no  qual  estauão  escritas  as 
palavras  seguintes,  s.  Virgem  madre  de  deos  da  Conceição  uão,  as  quaes 
palavras  estão  escritas  em  duas  Regras  e  sendo-lhe  mostrado  o  dito  escrito 
nesta  mesa,  dise  que  aquelle  era  o  próprio  escrito  que  o  dito  Agostinho 
d'Aguiar  lhe  dera  e  o  dito  Agostinho  d'Aguiar  deu  a  elle  declarante  o  ditto 
escrito  e  lhe  disse  que  lho  dera  Lourenço  Pires  masaneiro  morador  nesta 
cidade  a  São  Roque  e  que  lhe  disera  que  aquelle  escrito  achara  o  ditto 
Lourenço  Pires  no  altar  principal  de  Nossa  Senhora  da  dita  Igreia  da  Con- 
ceição andando  concertando  o  dito  Altar  para  as  endoenças  e  elle  decla- 
rante não  falou  com  o  dito  Lourenço  Pires  sobre  o  ditto  escrito  o  qual 
Lourenço  Pires  e  o  dito  Agostinho  dAguiar  e  Manoel  Lobato  carpinteiro 
morador  a  São  Roque,  os  quaes  não  sabe  se  são  christãos  velhos  se 
christãos  novos  e  todos  três  andauão  na  dita  Igreja  fazendo  o  sepulchro 
pêra  as  endoenças  o  qual  fazião  no  altar  mor  e  andauão  ali  também 
ajudando  dous  mordomos  da  confraria  do  Santíssimo  Sacramento  da  dita 
Igreia  a  que  não  sabe  o.  nome  mas  erão  os  que  servião  neste  mes  e 
logo  elle  declarante  tomou  o  ditto  escrito  e  o  leo  e  não  conheceo  a  letra 
somente  lhe  pareceo  que  era  letra  de  molher,  e  logo  o  leuou  ao  licenciado 
Diogo  Soares  que  seruia  de  vigário  geral  nesta  cidade  no  dito  tempo  e  lhe 
deu  conta  do  sobredito  e  lhe  mostrou  o  ditto  escrito  o  qual  disse  a  elle  decla- 
rante que  procurasse  saber  cuja  era  a  letra  do  dito  escrito  e  quem  o  lançara 
ali,  e  elle  testemunha  tem  feito  diligencia  e  uão  conhece  a  dita  letra  do  ditto 
escrito,  nem  sabe  quem  o  deitou  no  ditto  altar  e  isto  hé  o  que  sabe  do  ditto 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  33 

escrito  e  disto  dirão  as  dittas  pessoas  as  quaes  conhece  o  dito  Agostinho 
d'Aguiar  e  sabe  onde  morão  porque  elle  os  troixe  ali  e  que  isto  hé  o  que 
sabe  do  dito  escrito  e  não  sabe  mais  nada  e  lhe  foi  mandado  que  com  o 
resguardo  faça  diligencia  pêra  saber  quem  pos  o  ditto  escrito  no  dito 
altar  e  cuja  hé  a  letra  delle  e  elle  prometeo  de  assi  o  fazer  e  declarou  que 
elle  deu  oje  o  dito  escrito  ao  padre  Rodrigo  Fernandez  tesoureiro  da  ditta 
Igreia  que  o  troixe  a  esta  mesa  e  sendo  lhe  lido  este  testemunho  disse  estar 
escrito  na  uerdade  e  assinou  aqui  com  o  senhor  Inquisidor.  Simão  Lopez  o 
escreui  e  do  costume  disse  nada.  —  Manuel  Alvares  Tavares  —  Jerónimo 
Luís». 

«Aos  seis  dias  do  mes  de  maio  de  mil  seis  centos  e  nove  annos  em 
Lisboa  nos  Estáos  na  casa  do  despacho  da  Santa  Inquisição  estando  ahi  em 
audiência  o  senhor  Licenciado  Manuel  Alvares  Tavares  Inquisidor  perante 
elle  pareceo  sendo  chamado  Agostinho  d'Aguiar  pintor  testemunha  referida 
que  disse  ser  christão  uelho  da  idade  de  trinta  e  três  annos  morador  nesta 
cidade  e  sendo  presente  lhe  foi  dado  juramento  dos  Santos  Evangelhos 
em  que  elle  pos  a  mão  e  sob  carrego  delle  prometeo  de  dizer  uerdade 
e  ter  segredo.  Perguntado  se  sabe  ou  sospeita  o  para  que  hé  chamado  e  se 
lhe  faltou  alguém  para  que  uindo  a  esta  mesa  dissesse  ou  deixasse  de  dizer 
algua  cousa  do  porque  fosse  perguntado.  Disse  que  nam,  mas  que  lhe  parece 
poderá  ser  chamado  para  acerca  de  hum  escrito  que  foi  achado  na  Igreja 
da  Conceyção  desta  cidade.  E  perguntado  que  hé  o  que  sabe  do  dito  escrito 
que  o  diga  e  declare  na  uerdade.  Disse  que  elle  foi  a  dita  Igreja  segunda 
feira  da  somana  Santa  pela  manhâa  para  dar  ordem  pêra  se  assentar  o 
sepulchro  na  dita  igreja  e  estando  nella  para  o  fazer  no  altar  mor  na  dita 
igreja  com  Lourenço  Pires  carpinteiro  morador  nesta  cidade  na  Rua  de  São 
Roauentura  a  São  Roque  christão  uelho  e  com  Manuel  Lobato  carpinteyro, 
christão  uelho  morador  na  Rua  da  fiarroca  a  São  Roque,  arrimados  ao  altar 
por  quanto  lhe  estaua  dizendo  a  paixão  e  nam  querião  que  batessem  e  ja  o 
altar  estaua  sem  toalhas  nem  frontal  para  effeito  de  nelle  fazerem  o  sepul- 
chro estando  assi  o  dito  Lourenço  Pires  espirrou  e  com  isto  olhou  com  o 
rosto  baxo  para  o  altar  e  tirou  hum  papelinho  dobrado  que  elle.  declarante 
lhe  uio  tirar  de  antre  duas  taboas  do  dito  altar  que  estauão  por  cima  delle 
e  estaua  o  dito  escrito  dobrado  de  modo  que  parecia  escrito  de  confissão,  e 
o  abrio  e  o  deu  a  elle  declarante  que  o  lesse  e  elle  declarante  leo  o  escrito, 
o  qual  tinha  duas  regras  não  mais  e  pequenas  e  dizia  assi :  Virgem  madre 
de  Deos,  e  era  nua  regra  e  dizia  logo  da  Conceição  e  adiante  dizia  nam  e 
elle  declarante  disse  logo  pêra  o  dito  Lourenço  Pirez  que  aquillo  era  heresia 
e  o  dito  Lourenço  Pirez  uendo  o  disse  o  mesmo  e  estando  nisto  lhes  pareceo 
S 


34  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

bem  a  ambos  de  dous  e  ao  dito  Manuel  Lobato  que  o  leuassem  ao  Cura  da 
dita  igreja  a  quem  nam  sabe  o  nome,  e  foi  elle  declarante  com  o  dito  escrito 
ao  dito  cura  e  segundo  sua  lembrança  estaua  assentado  em  bua  mesa  e  lho 
deu  dizendo  lhe  que  uisse  aquelle  papel  no  qual  estaua  hila  heresia  o  qual 
naquelle  tempo  se  achara  no  altar  de  nossa  senhora;  e  o  dito  cura  tomou  o 
dito  escrito  e  o  mostrou  ao  uigario  da  dita  casa  a  quem  também  nam  sabe 
o  nome  e  praticando  no  dito  papel  aly  todos  concluirão  que  o  leuasse  o  dito  ■ 
cura  ao  uigario  geral  desta  cidade,  e  que  isto  hé  o  que  sabe  e  o  que  passa 
acerca  do  dito  escrito.  Perguntado  se  conheceo  a  letra  do  dito  escrito  e  se 
sabe  quem  o  escreueo.  Disse  que  nam.  Perguntado  se  o  dito  escrito  estaua 
antre  as  ditas  taboas  de  modo  que  parecesse  que  estaua  aly  de  pouco  tempo 
ou  de  muito  ?  Respondeo  que  nam  sabe  disso  mas  que  o  dito  Lourenço  Pirez 
que  tirou  o  dito  escrito  dará  razão  disso.  Perguntado  se  uio  elle  algua  pessoa 
ou  pessoas  que  esteuesse  junto  do  dito  altar  de  que  se  podesse  collegir  quem 
posesse  o  dito  escrito.  Disse  que  gente  andaua  de  hua  parte  a  outra ;  mas 
que  nam  uio  pessoa  de  que  se  podesse  collegir  que  posesse  o  dito  escrito. 
Perguntado  se  lhe  parece  que  o  dito  escrito  estaua  aly  posto  de  muitos 
dias  ou  de  poucos.  Respondeo  que  nam  sabe  disso  mas  que  lhe  parece  que 
deuia  de  se  por  aly  depois  de  tirado  o  frontal  e  toalhas  do  dito  altar.  Per- 
guntado se  ouuio  dizer  a  algua  pessoa  que  se  dizia  ou  presumia  que  posera 
aly  o  dito  escrito  algua  pessoa  e  que  pessoa  hé  esta?  Disse  que  não.  Per- 
guntado se  lhe  mostrarem  o  dito  escrito  se  o  conhecera  e  se  conhecera  a 
letra  dellè.  Disse  que  se  o  uir  que  o  conhecera  e  sendo  lhe  mostrado  e  por 
elle  uisto.  Disse  que  aquelle  era  o  ditto  escrito  que  elle  uio  e  que  nam 
conhece  a  letra  delle  e  nam  se  afQrma  se  he  de  homem  se  de  molher.  Per- 
guntado se  sabe  que  pessoa  ou  pessoas  podem  conhecer  a  dita  letra  e  saber 
cuja  hé,  e  que  pessoas  podem  saber  do  dito  caso.  Disse  que  nam  sabe  nada 
do  contheudo  na  pergunta  e  mais  nam  disse  de  tudo  o  que  lhe  foi  pergun- 
tado e  do  costume  disse  nada  e  assinou  aqui  com  o  senhor  Inquisidor.  Fran- 
cisco de  burges  o  escrevi.  —  Manuel  Alvarez  Tavares  —  Àguostinho  d' Aguiar. 

«E  logo  appareceo  Lourenço  Pires  testemunha  referida  e  sendo  presente 
disse  ser  de  idade  de  trinta  e  seis  annos  christão  uelho  morador  a  São  Roque 
na  Rua  de  S.  Boaventura  e  lhe  foi  dado  juramento  dos  Santos  Evangelhos 
em  que  elle  pos  a  mão  sob  carrego  delle  prometeo  de  dizer  uerdade  e  ter 
segredo.  Perguntado  se  sabe  ou  sospeita  o  para  que  hé  chamado  e  se  lhe 
fallou  alguém  para  que  uindo  a  esta  mesa  deixe  de  dizer  cousa  algua  do 
porque  fosse  perguntado.  Disse  que  nam,  mas  que  lhe  parecia  que  era  chamado 
acerca  de  hum  escrito,  que  se  achou  na  igreja  de  nossa  Senhora  da  Con- 
ceyção.  Perguntado  que  hé  o  que  sabe  do  dito  escrito  que  diga  a  verdade. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  35 

Disse  que  segunda  feira  da  somaria  santa  pela  manhãa  estando  elle  decla- 
rante na  dita  igreia  com  Agostinho  d'aguiar  pintor  e  com  Manuel  Lobato 
carpinteiro  que  mora  na  Rua  da  Barroca,  junto  ao  altar  mor  da  dita  igreja 
que  estaua  já  sem  frontal  nem  toalhas  para  armar  em  o  sepulchro  somente 
estava  forrado  por  cima  de  canhamaço  ou  bocaxim,  e  estando  assi  por  que 
mandarão  que  nam  batessem  por  que  estavão  a  paixão,  uindo  lhe  um  espirro 
se  abaixou  para  o  dar,  e  uio  que  da  banda  da  epistola  junto  a  pedra  dará 
a  qual  não  estaua  no  altar  estaua  hum  escritinho  deitado  en  cima  do  altar, 
o  qual  escrito  era  pequeno  e  estaua  dobrado  e  se  tinha  descuberto,  porque 
poserão  huns  paos  em  cima  do  altar  para  descansar  nelles  o  sepulchro  e 
puxando  hum  pouco  por  elles  uio  escrito  que  ficaua  descuberto  por  se  puxar 
o  canhamaço  para  a  parte  dos  paos  e  uindo  o  dito  escrito  o  tomou  e  o  abrio 
e  o  deu  ao  dito  Augustinho  d'aguiar  que  o  lesse,  e  leo  o  dito  escrito  no 
qual  tinha  duas  regras  en  nua  dizia  virgem  madre  de  deos  da  conceyção 
não  e  tanto  que  o  ouuio  ler  disse  ao  dito  Augustinho  daguiar  que  o  leuasse 
ao  cura  e  elle  o  leuou  ao  dito  cura  e  disse  a  elle  declarante  que  tinha  dado 
o  escrito  ao  dito  cura  e  nam  sabe  o  que  mais  passou.  Perguntado  se  conheceo 
elle  a  letra  do  dito  escrito  ou  sabe  cuja  bé.  Disse  que  nam  nem  sabe  se  hé  de 
homem  nem  de  molher  a  dita  letra,  nem  sabe  quem  a  pode  conhecer.  Pergun- 
tado se  quando  uio  o  dito  escrito  e  o  achou  entendeo  que  estaua  aly  de  muito 
tempo  ou  de  pouco  respondeo  que  nam  entendeo  que  o  dito  escrito  estaua  aly 
posto  de  pouco  nem  de  muito,  mas  lhe  pareceo  que  estaua  posto  de  dias  porque 
a  letra  estaua  ia  parda.  Perguntado  quando  achou  o  dito  escrito  se  estaua 
algua  pessoa  ou  pessoas  junto  ao  altar  de  que  presumisse  que  podião  aly 
pôr  o  dito  escrito.  Respondeo  que  nam  nem  podiam  polo  então  porquanto 
Unhão  posto  muita  madeira  ja  no  altar  e  nam  podião  aly  chegar  no  dito 
tempo.  Perguntado  se  sabe  ou  ouuio  dizer  que  pessoa  pos  aly  o  dito  escrito. 
Disse  que  não.  Perguntado  se  lhe  mostrarem  o  dito  escrito  se  o  conhecerá 
disse  que  sim.  E  logo  lhe  foi  mostrado  e  sendo  por  elle  uisto  disse  que 
aquelle  era  o  dito  escrito  que  elle  uio  e  achou  no  dito  altar  como  tem  dito. 
Perguntado  que  pessoas  podem  saber  disto  disse  que  as  pessoas  acima 
declaradas  e  mais  nam  disse  e  do  costume  disse  nada  e  assinou  aqui  com 
o  senhor  Inquisidor.  Francisco  de  Burges  o  escrevi. — Manuel  Alvares 
Tavares  —  Lourenço  Pires». 

« Aos  sete  dias  do  mes  de  Maio  de  mil  seis  centos  e  nove  anos  em  Lisboa 
nos  Estaos  na  casa  do  despacho  da  Santa  Inquisição  estando  ahi  en  audiên- 
cia da  tarde  os  senhores  Inquisidores  perante  elles  apareceo  sendo  chamado 
Manoel  Lobato  e  sendo  presente  pêra  em  tudo  dizer  uerdade  e  ter  segredo 
lhe  foi  dado  juramento  dos  santos  evangelhos  em  que  elle  pos  a  mão  e  sob  car- 


3G  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

rego  delle  prometeo  de  assi  o  fazer  e  disse  ser  christão  velho  marceneiro  mora- 
dor nesta  cidade  na  Rua  da  barroca  do  bairro  de  São  Roque,  de  idade  de  trinta 
e  sete  anos  casado  com  Maria  Ribeira  christan  uelha.  Perguntado  se  sabe  o 
para  que  hé  chamado  ou  se  alguém  lhe  fallou  para  que  disesse  ou  deixasse 
de  dizer  algíia  cousa  do  por  que  fosse  perguntado  ?  Disse  que  nam  nem 
lhe  falou  nem  sabe  o  pêra  que  vem  chamado  nem  no  sospeita.  Perguntado 
se  sabe  ou  ouuio  dizer  que  na  igreja  da  Conceição  desta  cidade  na  semana 
santa  se  achasse  hum  escrito  no  altar  mor  e  quem  o  achou  e  que  escrito 
era?  Disse  que  hé  uerdade  que  em  hum  dia  da  semana  santa  não  se  lembra 
qual  era  mas  era  polia  manhãa  as  noue  horas  do  dia  andando  elle  testemu- 
nha na  dita  igreja  da  Conceição  ajudando  o  sepulcliro  em  conpanhia  de  Agos- 
tinho daguiar  pintor,  que  mora  nesta  cidade  á  Conceição  e  de  Lourenço 
Pires  marceneiro  o  dito  Lourenço  Pires  achou  sobre  o  altar  mór  junto  á  pedra 
d'ara  da  banda  da  epistola  hum  escrito  piqueno  de  duas  regras  o  qual  elle 
testemunha  uio  e  ouuio  ler  ao  dito  Lourenço  Pires  e  dizia  segundo  sua  lem- 
brança o  seguinte:  Virgem  madre  de  Deos  da  Conceição  não,  e  elle  teste- 
munha não  leo  o  dito  escrito  porque  não  sabe  ler.  o  qual  escrito  se  deu  ao 
cura  da  ditta  igreja  da  Conceição  e  não  sabe  o  que  mais  se  fez  do  dito 
escritto,  nem  sabe  quem  ali  o  pôs  nem  quem  o  escreueo,  nem  vio  ali  pessoa 
de  que  se  podesse  sospeitar  que  o  posesse  ali,  nem  conheceo  a  letra  delle 
nem  sabe  quem  o  conhecesse,  e  mais  não  disse  de  tudo  o  por  que  foi  per- 
guntado e  do  costume  disse  nada  e  sendo  lhe  lido  este  testemunho  disse 
estar  escrito  na  uerdade  e  assinou  aqui  com  os  Senhores  Inquisidores.  Simão 
Lopes  o  escreui.. —  Manuel  fernandes  lobato  —  Manuel  Alvarez  Tavares  — 
António  Dias  Cardoso»  K 


II. —  Almeida  (Brás  de)  irmão  de  Félix  da  Costa,  de  quem  se  trata  no 
logar  competente,  e  para  cujo  artigo  remetto  o  leitor. 

Foi  uma  das  testemunhas  de  defesa,  no  processo  inquisitorial  de  Pedro 
Serrão,  sendo  o  seu  depoimento  do  teor  seguinte: 

«E  logo  no  mesmo  dia  (24  de  março  de  1677)  e  audiência  atras  escritta 
mandou  o  ditto  senhor  Inquisidor  vir  perante  sy  a  Braz  d'Almeida,  pintor, 
natural  e  morador  desta  cidade  de  Lisboa,  na  rua  dos  Calafates,  e  sendo 
presente  lhe  foi  dado  juramento  dos  Santos  Evangelhos  em  que  pos  a  mão 
sob  cargo  do  qual  lhe  foi  mandado  dizer  verdade  e  ter  segredo  o  que  elle 


Torre  do  Tombo.  Caderno  3.°  do  Promotor  da  Inquisição  de  Lisboa,  fl.  598. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  37 

prometteo  cumprir  e  disse  ser  Christão  velho  e  de  vinte  e  oito  annos  de 
idade.  Perguntado  pelos  geraes?  Disse  nada.  Perguntado  se  conhece  algumas 
pessoas  prezas  pelo  Santo  OÍIicio,  quem  são,  quanto  tempo  ha  e  porque  via 
e  rezão?  Disse  que  conhecia  o  Reo  Pedro  Serrão  desde  minino  por  ter  com 
elle  amizade  e  andarem  ambos  no  estudo.  Perguntado  em  que  conta  tem  ao 
ditto  Pedro  Serrão  no  particular  de  sua  Ghristandade,  vida,  costumes  e  reli- 
gião? Disse  que  sempre  teve  ao  ditto  Pedro  Serrão  por  mui  bom  Christão 
pela  frequência  que  lhe  via  ter  na  congregação  do  Padre  Quental  e  fazer  os 
exercidos  que  nella  se  costumão  e  ainda  estando  elle  testemunha  em  Gastella, 
lhe  escrever  lá  o  ditto  Pedro  Serrão,  encommendando-lhe  o  viver  limpa  e 
castamente  e  por  mais  não  dizer  lhe  forão  lidos  os  artigos  i."  e  2.°  da  defeza 
do  Reo,  a  que  foi  nomeado  testemunha,  que  sendo  por  elle  ouvidos  e  enten- 
didos. 

Ao  1."  artigo 

«Disse  que  o  que  se  conthem  no  ditto  artigo  passa  na  verdade,  excepto  > 
não  saber  elle  testemunha  se  se  confessava  e  commungava  nas  quintas  feiras 
de  toda  a  semana. 

Ao  2.° 

«Disse  que  segundo  ouvio  principalmente  ao  mesmo  reo  passa  na  verdade 
o  deduzido  no  ditto  artigo,  porque  elle  testemunha  não  vio  nada  do  que 
nelle  se  conthem  e  ai  não  disse  e  do  costume  disse  nada  e  assinou  com  o 
ditto  senhor  Inquisidor  sendo-lhe  primeiro  lido  este  seu  testemunho.  Fillippe 
Barbosa  o  escrevi.  —  Estevão  de  Britto  Foios — Brás  de  Almeyda»  l. 


III.  —  Alvares  de  Andrade  (Luis).  —  Volvo  a  falar  pela  terceira  vez  d'este 
artista,  apresentando  mais  documentos  relativos  a  trabalhos  de  pintura  e 
douradura  executados  por  elle  para  a  Armada  Real. 

«28  de  agosto  de  1616  recebio  Del  pagador  general  geronimo  de  Vittoria 
a  buena  parte  de  mayor  suma  que  se  le  deue  y  a  de  hauer  por  las  pinturas 
flocaduras,  brolas  e  cordones  de  seda  Carmesi  que  hizo  en  vn  estandarte 
grande  de  damazco  para  la  capitana  Real  y. . . 

«Por  librança  dei  prouedor  don  fernando  Aluia  de  Castro  fecha  en  8  de 
outubre  1616  se  le  libraron  mill  y  trecientos  y  setenta  e  nuebe  Reales  a 


1  Processo  de  Pedro  Serrão,  n.°  9797,  da  Inquisição  de  Lisboa,  fl.  24. 


38  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

cumplirnento  de  3^í>70  que  inportaron  las  pinturas  y  gastos  que  hizo  en  el 
dicho  estandarte  de  damazeo  eon  los  quales  queda  enteramente  Pagado  e 
satisffecho  las  cargas  de  las  três  partidas  ultimas  de  arriba  que  inportan  dos 
mill  y  seiscentos  Reales  que  recevia  a  buena  quenta. 

«Por  libranza  dei  prouedor  de  la  Armada  D.  fernando  Aluia  fecha  en  10 
de  Junio  de  1619  se  la  libraron  en  el  dicho  pagador  general  Geronimo  de 
Vittoria  seis  mil  Reales  a  buena  quenta  de  lo  que  hubiere  de  hauer  por  la 
pintura  de  canlidade  de  vanderas  flâmulas  e  galerdetes  que  a  de  hacer  para 
serviço  de  los  galiones  de  la  Armada  y  este  quenta  se  le  haçe  aqui  en  el 
ynterin  que  se  le  acauã  de  pagar  y  entrega  las  dichas  banderas. 

«Qui  el  dicho  luis  alvarez  de  andrade  quedo  libre  dei  cargo  de  los  6000 
reales  de  en  frente  por  hauer  se  le  hecho  librança  de  577  reales  y  un  quar- 
tillo  fecho  en  25  de  agosto  dei  dicho  anuo  6190  cunplimiento  de  66577  e  4- 
que  ynporta  la  manifatura  de  seis  banderas  y  30  flâmulas  que  Inço  para  la 
capitana  y  almirante  y  demas  galiones  de  la  dicha  Armada  Real  las  quales 
entrego  ai  tenêdor  de  vastimentos  como  arriba  se  dice  quedo  satisfecho  el 
dicho  cargo»  '. 

«Luys  Alvarez  Pintor.  De  lo  que  se  le  libera  a  buena  quenta  de  lo  que  ade 
hauer  por  coser  y  pintar  treze  banderas  vna  família  y  3  estandartes  que  esta 
haciendo  para  capitana  almiranta  y  falua  de  la  armada. 

«Por  librança  dei  prouedor  Don  fernando  aluia  de  castro  de  primero  de 
Junio  de  1618  se  le  libraron  en  el  pagador  general  geronimo  de  Vitoria  mil 
y  doseientos  Reales  a  quenta  de  lo  que  ha  de  hacer  por  coser  y  pintar  treze 
banderas  una  famula  y  3  estandartes  que  esta  haziendo  para  capitana  almi- 
ranta y  falua  de  la  armada  —  Una  rubrica. 

«Por  librança  dei  dicho  prouedor  fecha  en  17  de  agosto  de  1616  se  le 
libraron  nuevecientos  y  cinquenta  y  siete  reales  y  4-  a  cumplimiento  de  2152 
reales  4-  que  importaron  as  pinturas  que  hijo  en  13  banderas  y  una  famula 
para  la  capitana  y  Almiranta  con  que  da  enteramiente  pagado.  —  Una  rubrica. 

«Por  otra  libranza  de  lo  dicho  prouedor  fecha  em  12  de  julio  1616  se  le 
libraron  mill  Reales  a  quenta  de  lo  que  a  de  hauer  por  las  pinturas  que 
esta  hazendo  en  un  estandarte  grande  de  damasco  para  la  capitana  Real  de 
la  dicha  armada.  - 

«Por  otra  dei  dicho  prouedor  fecha  en  6  de  agosto  1616  se  le  libraron 
otros  mil  Reales  a  quenta  de  lo  que  ade  hauer  por  el  dicho  estandarte. 

«Cargo  se  le  mas  seiscientos  Reales  que  por  libranza  dei  dicho  proueedor 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  ChroDologico.  Parte  II,  Maço  331  n  °  37. 


NOTICA  DE  ALGUNS  PINTORES 


39 


de  Luis  albarez  de  andrada  Pintor,  veziho  de  Lisboa.  Cargo.  De  los  maraue- 
dis  que  se  le  libro  a  quenta  de  lo  que  Hubiere  de  hauer  por  banderas  que 
baçe  Para  la  armada  y  otras  cosas  de  su  officio. 

«Hace  se  le  cargo  ai  dicho  Luis  Albarez  de  andrada  pintor  de  mill  sete- 
cientos  reales  que  valen  57$800  marauedis  Portanto  que  Por  librança 
dei  proveedor  don  fernando  de  albia  fecha  en  26  de  março  de  1618  se  le 
libraron  en  el  pagador  general  Geronimo  de  bitoria  a  buena  quenta  de  lo 
que  Hubiere  de  hauer  Por  ocho  banderas  que  hade  açer  y  Pintar  las  quatro 
delias  de  a  36  Baras  y  las  otras  quatro  de  a  30  medida  de  porlugal  Para 
serviçio  de  ocho  nabios  que  esta  primabera  ande  salir  a  navegar.  —  Una 
rubrica.  —  Reales  1$700. 

«Notta.  Por  libranza  de  el  proveedor  D.  fernando  aluia  de  castro  de  20  de 
mayo  618  de  suma  de  30  reales  10  marauedis  que  le  libraron  en  el  pagador 
general  geronimo  de  Vittoria  a  cunplimiento  de  2^303  reales  10  marauedis 
que  inportaron  el  balor  de  1 1  banderas  de  ruan  que  hizo  junto  (sic)  Para 
los  galeones. ..  de  la  armada  con  que  se  satisfizo  el  quenta  de  emporte  e 
quedo  inteiramente. 

«Por  otra  librança  dei  dicho  Proveedor  fecha  en  19  de  abril  de  1618  se 
le  libren  ai  dicho  luis  Alvarez  de  andrada  en  el  dicho  Pagador  general  seis- 
cientos  reales  a  buena  parte  de  lo  que  hubiere  de  hauer  por  três  banderas 
de  rruan  que  ade  haçer  Para  seruiçio  delos  capitanes  de  la  dicha  armada  — 
Una  rubrica.  —  600  reales. 

«Nota.  Satisfecho  hestes  600  Realles  en  virtude  de  la  libranza  que  dise  en 
la  partida  de  rriba. 

«Por  otra  de  19  de  Júlio  1618  se  le  libraron  en  el  dicho  Pagador  general 
dos  mill  y  quinientos  Reales  a  quenta  de  lo  que...  para  21  banderas  de 
Ruan  que  ade  hazer  para  la  armada  2$500  Reales. 

«Nota.  Satisfecho  para  por  la  nota  que  esta  en  la  vuelta  deste  oja. 

«Por  otra  libranza  de  42  de  agosto  1618  se  le  libraron  Al  dicho  Luis 
alvarez  en  el  dicho  pagador  general  Hieronimo  de  Vittoria  cinco  mill  Reales 
a  buena  quenta  de  lo  que  Vbiere  de  hacer  por  la  pintura  que  ha  hecho  y 
ba  haciendo  a  la  popa  y  Corredores  de  la  capitana  Real  de  la  dicha  armada. 
Mas  se  le  hace, cargo  de  dos  mill  y  quinientos  Reales  que  por  esta  librança 
dei  dicho  proueedor  de  26  dei  dicho  Agosto  se  le  libraron  en  el  dicho  paga- 
dor general  ai  quenta  de  lo  que  huuiere  de  hauer  por  las  pinturas  que  ba 
haciendo  en  la  popa  de  la  dicha  capitana  y  en  la  Almiranta  Reales  y  dorar 
los  fanales  delias. 

«Por  libranza  dei  Proveedor  D.  Fernando  Aluia  de  castro  de  9  de  Septem- 


40  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

bro  se  le  libraron  en  el  pagador  general  geronimo  de  Vittoria  3$477  Reales 
29  marauedis  j  que  inportaron  las  pinturas  que  luzo  en  las  cameras  corre- 
dores y  popa  de  la  capitana  Real  y  por  viente  y  dos  banderas  y  14  famulas 
que  liizo  para  ella  y  por  hauer  dorado  de  oro  mate  el  fanal  grande  de  la 
almiranta  Real  con  que  quedo  enteramente  Pagado  y  satisfecho  los  10&000 
Reales  de  cargo  de  las  dos  Partidas  desta  plana  y  otra  de  2#500  ultima 
desta»  J. 


IV.— Amatucci  (João  Carlos)— Nem  Taborda  nem  Cyrillo  falam  d'este  artista 
como  pintor.  Em  1821  era  discipulo  de  Taborda.  Em  conferencia  dos  profes- 
sores da  Ajuda  a  5  de  julho  de  1823  foi  apresentado  como  prova  da  sua 
aplicação  escolar  a  copia  de  uma  cabeça  de  Torccachini,  designada  com  o 
n.°  1,  o  que  lhe  valeu  ser  considerado  digno  de  passar  a  praticante  de  pin- 
tura de  l.a  classe  com  o  vencimento  de  500  reis;  tinha  nessa  época  17  annos 
de  idade  e  quatro  incompletos  de  estudo.  Vencia  então  300  reis  diários. 

Não  sei  que  relação  de  parentesco  teria  com  o  esculptor  Carlos  Amatucci, 
de  quem  Volkmar  Machado  deu  a  seguinte  declaração  bibliographica : 

«Carlos  Amatucci,  italiano,  também  fez  em  1818  para  o  mesmo  paço 
(o  da  Ajuda)  a  estatua  da  Liberalidade.  Veio  para  Lisboa  pelos  annos  de 
1804,  retratava  em  cera;  em  1807  estando  já  admittido  no  real  serviço,  com 
400&000  reis  annuaes,  fez  a  medalha  do  Principe  para  os  órgãos  de  Mafra. 
Era  muito  moço  e  bem  disposto,  quando  no  anno  de  1809  morreu  repentina- 
mente de  uma  aneurisma,  que  o  suffocou». 

Esta  noticia  precisa  de  ser  lida  com  todo  o  cuidado,  applicando-se-lhe  o 
indispensável  correctivo  a  algumas  datas,  que  foram  certamente  viciadas  pela 
impressão.  Se  o  artista  falleceu  em  1809  não  poderia  ter  feito  a  estatua  da 
Liberalidade  em  1818. 

Existe  um  documento  que  prova  que  elle  residia  em  Lisboa,  no  largo  do 
Rato,  em  1811.  Na  Gazeta  de  Lisboa,  de  6  de  setembro  d'aquelle  anno,  vem 
um  interessante  annuncio  seu  com  relação  a  um  retrato  do  marquez  de  la 
Romana  que  elle  desenhara  e  estava  sendo  gravado  por  Rartolozzi.  Reproduzo 
este  annuncio,  porque  offerece  particularidades  dignas  de  nota.  É  do  teor 
seguinte : 

« Carlos  Amatucci,  Escultor  da  Camará  de  Sua  Alteza  Real,  annuncia  que 
Francisco  Bartolozzi,  Abridor  da  Camará  de  Sua  Alteza  Real,  e  de  Sua  Majes- 


Tone  do  Tombo.  Corpo  Chronologico.  Parte  II,  Maço  335,  n.°  141. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  41 

tade  Britânica,  está  abrindo  por  conta  delle  Amatucci  a  estampa  do  Retrato 
do  Excellentissimo  Senhor  Marquez  de  la  Romana,  segundo  o  modelo  feito 
da  Mascara,  que  elle  tirou  na  Casa  do  Excellentissimo  Senhor  Marquez,  a 
qual  estampa  hé  para  fazer  parallelo  com  a  do  Excelleutissimo  Senhor  Lord 
Wellington  de  corpo  inteiro,  também  aberto  pelo  dito  Professor  Bartolozzi. 
Quem  quiser  subscrever  para  a  dita  estampa,  pôde  dirigir-se  a  sua  Casa,  no 
largo  do  Rato,  N.°  22;  para  cujo  fim  já  concorreo  o  Excellentissimo  Senhor 
D.  João  dei  Castillo,  Enviado  de  Hespanha  neste  Reino,  com  muitas  assigna- 
turas  da  sua  parte,  e  outras  da  mesma  Nação.  O  preço  de  cada  estampa  hé 
de  6í>i30  reis,  e  os  provas  sem  letras  a  126800  reis  cada  huma  em  dinheiro 
de  metal». 

Conheço  um  requerimento  de  Carlos  Amatucci,  no  qual  pede  que  se  lhe 
paguem  os  seus  ordenados  em  atrazo.  Infelizmente  não  tem  data,  mas  vé-se 
que  é  posterior  ao  intruso  governo  francês,  do  qual,  diz  elle,  não  quiz  rece- 
ber emprego  ou  exercício  algum,  preferindo  soffrer,  com  sua  mulher  e  filhos, 
urgências  gravíssimas,  a  ter  de  desmentir  os  seus  sentimentos  de  lealdade. 

Este  documento  vem  também  rectificar  algumas  das  asserções  de  Volkmar 
Machado,  reconhecendo-se  que  já  em  1803  trabalhava  na  obra  do  Real  Paço 
d" Ajuda  para  a  qual  fora  admittido  por  um  Real  Aviso  de  23  de  fevereiro 
daquelle  anuo.  É  possível  que  João  Carlos  Amatucci  fosse  seu  filho. 

Eis  aqui  o  requerimento: 

«Senhor.  —  Diz  Carlos  Amatucci,  Escultor  e  Retratista  de  V.  A.  R.  que 
pelo  Real  Aviso  de  23  de  Fevereiro  de  1803,  foi  V.  A.  R.  servido  Mandar 
arbitrar  ao  supplicante  o  competente  Ordenado  para  ficar  no  Real  Serviço, 
em  consequência  do  que  se  lhe  arbitrou  o  Ordenado  de  36oí>000  reis  por 
anuo,  pagos  pela  Folha  da  Real  Obra  do  Palácio  d' Ajuda,  á  qual  foi  o  suppli- 
cante applicado  logo  desde  o  dito  anno  dezempenhando  ao  mesmo  tempo 
outras  Obras  Reaes,  como  foi  a  dos  Órgãos  de  Mafra,  e  outras,  sendo-Ihe 
concedido  aquelle  ordenado  não  só  como  criado  de  V.  A.  R.  para  o  emprego 
da  sua  Arte,  mas  até  com  alimentos,  visto  ser  hum  Professor  Estrangeiro 
demorado  neste  Paiz  para  o  Real  Serviço,  e  impossibilitado  por  isso  de  pro- 
curar outro  qualquer  interesse  ou  destino  apreciando  tão  justamente  a  fede- 
lidade  e  honra  de  ser  criado  de  V.  A.  R.  que  antes  quiz  soffrer  com  sua 
mulher  e  filhos  urgências  gravíssimas  do  que  acceitar  emprego  ou  exercício 
algum  em  o  intruzo  Governo  Francez.  Deve-se  pois  ao  supplicante  o  Ordenado 
de  dezoito  mezes  e  quando  se  trata  de  pagar  a  todos  os  filhos  da  Folha  da 
dita  obra  d' Ajuda,  se  vê  o  supplicante  excluído  do  pagamento  cuja  exclusão 
porem  deve  considerar-se  contra  a  razão  porque  este  Ordenado  lhe  foi  não 
6 


42  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

só  dado  por  V.  A.  R.  mas  confirmado  inteiramente  quando  em  Salvaterra 
pertenderão  desfavoráveis  intenções  privar  ao  supplicante  do  dito  seu  orde- 
nado foi  V.  A.  R.  servido  Determinar  ao  Inspector  da  dita  Real  Obra  José 
Diogo  de  Rarros  se  pagasse  ao  supplicante.  e  se  lhe  continuasse  efectiva- 
mente a  pagar  na  forma  determinada  e  porque  se  hua  Ordem  Regia  pode 
derogar  outra  da  mesma  natureza  e  não  consta  que  V.  A.  R.  tenha  determi- 
nado o  contrario  fica  sendo  portanto  a  privação  do  ordenado  ou  alimentos 
do  supplicante  hua  violência  ou  injustiça  repugnante  essencialmente  á  sobe- 
rania e  Innata  Piedade  de  V.  A.  R.  aos  Pés  de  cujo  Real  throno  o  supplicante 
humilde  e  submisamente  P.  a  V.  A.  R.  seja  servido  Ordenar  que  o  sobredito 
Inspector  João  Diogo  de  Rarros  informe  sobre  o  conteúdo,  para  que  conhe- 
cida a  verdade  e  justiça  do  supplicante  se  lhe  facão  seus  respectivos  paga- 
mentos: ou  concedendo  V.  A.  R.  ao  supplicante  dous  annos  de  licença  para 
ir  fora  do  Reino  se  lhe  pague  tudo  quanto  se  lhe  deue  e  faz  igualmente  a 
mesma  rogativa  no  cazo  de  estar  considerado  fora  do  Real  Serviço;  pois  que 
o  supplicante  se  vê  sem  meyos  alguns  de  poder  subsistir  com  sua  família 
por  cauza  da  falta  dos  ditos  pagamentos.  E.  R.  M.ce»  '. 


V.  —  Anes  (Gonçalo) — Já  tratei  do  artista  aqui  designado,  na  l.a  e  2.a  serie 
desta  Noticia.  A  sua  actividade  exerceu-se  por  longo  espaço,  pois  o  vemos 
figurar  nos  reinados  de  D.  João  I  e  D.  Affonso  V.  Accrescentarei  agora  uma 
particularidade  curiosa,  a  qual  se  refere  aos  seus  primeiros  tempos. 

Tinha  D.  João  I  duas  casas,  pequenas,  na  freguesia  da  Sé,  no  sitio  cha- 
mado Bancos  da  Sé,  uma  das  quaes  andava  emprazada  a  Gomes  Eanes  escri- 
Yão  da  Camará  da  cidade,  e  a  outra  a  Gonçalo  Anes,  pintor.  O  primeiro 
residia  ao  lado,  num  prédio  seu,  que  desejava  alargar  á  custa  das  duas  casas 
pequenas,  e  por  isso  propoz  a  el-rei  a  troca  destas,  por  outra  propriedade 
sua,  que  possuia  na  freguesia  de  S.  João  da  Praça,  contigua  ao  chafariz 
d'el-rei.  Apesar  de  ser  de  maior  rendimento,  o  dono  promptificou-se  a  melho- 
rá-la, mandando  construir  uma  sacada  sobra  a  rua  contra  o  chafariz.  El-rei 
acceitou  a  proposta,  e,  depois  de  ouvidos  os  louvados,  Ruy  Gomes  e  Gomes 
Lourenço,  pedreiros,  e  Gonçalo  Domingues  e  Estevão  Gonçalves,  carpinteiros, 
foi  assignada  a  carta  approvando  o  escambo  a  20  de  julho  da  era  de  1452, 
isto  é,  anno  de  Christo  de  1424. 

A  carta  é  do  teor  seguinte: 

«Dom  João  etc.   A  quantos  esta  carta  virem  fazemos  saber  que  Gomez 


Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  EE  ALGUNS  PINTORES  43 

Eanes  scrivuam  da  camará  da  cidade  de  Lixboa  nos  dise  que  el  tem  huas 
casas  suas  em  que  mora  na  freguesia  da  see  da  dita  cidade  onde  chamam  os 
bancos  da  see  E  que  junto  com  ellas  stam  duas  .casas  nossas  pequenas  que 
parlem  de  duas  partes  com  as  ditas  suas  casas  e  com  Ruas  pubricas  das 
quaaes  duas  casas  nossas  el  Gomez  eannes  traz  bua  delias  de  nos  emprazada 
por  quatro  libras  e  vj  soldos  e  viij  dinheiros  da  moeda  antijga.  E  que  pagava 
em  cada  huu  ano  duzentas  e  dez  e  seis  libras  e  xiij  soldos  e  quatro  dinheiros 
desta  moeda  corrente  de  Real  de  três  libras  e  mea  contada  cada  hua  libra 
da  moeda  antijga  a  l.la  por  bua  segundo  per  nos  hé  mandado.  E  a  outra  traz 
Gonçalo  Ànes  pintor  emprazada  de  nos  por  xviij  libras  da  moeda  que  pagaua 
em  cada  huu  ano  quatro  libras  por  hua  desta  de  três  libras  e  mea  peça  que 
som  lxxij  libras  desta  moeda  segundo  he  contheúdo  na  nossa  hordenaçam  E 
que  elle  Gomes  Eanes  auja  huas  suas  casas  junto  com  o  chafariz  nosso  da 
dita  cidade  na  freguesia  de  sam  Joham  da  praça  que  partem  com  uutras  suas 
casas  e  com  casas  da  dita  igreja  de  sanhoanne  que  traz  francisco  cortidor  e 
com  chouso  de  maria  afonso  mulher  que  foe  de  Joham  afonso  contador  que 
foe  delrrey  dom  fernando  as  quaaes  rendiam  em  cada  huu  anno  nove  libras 
da  moeda  antijga  que  som  desta  L.la  por  hua  iiíjcl  libras  e  que  as  nossas 
ambas  nom  rendiam  mais  de  ijc  lxxxviij  libras  xiij  soldos  e  quatro  dinheiros 
assy  que  as  suas  rendem  mais  que  as  nossas  clxj  libras.  E  dizia  que  auendo 
el  as  ditas  nossas  casas  pêra  ssy  que  com  as  suas  entendia  a  fazer  buas  boas 
casas  E  que  nos  pedia  por  mercee  que  lhas  desemos  em  scambo  polias  ditas 
suas  casas,  E  nos  veendo  o  que  nos  assy  dizia  e  pedia  nos  mandamos 
a  Joham  Àfomso  veedor  da  nossa  fazenda  que  visse  se  o  dito  scambo  era 
jgual  que  lhe  mandasemos  fazer  carta  do  dito  scambo  o  qual  Joham  Afomso 
em  comprimento  do  dito  nosso  mandado  foe  veer  as  ditas  nossas  casas  e  as 
do  dito  Gomez  Anes  com  Ruy  Gomez  e  Gomez  Lourenço  pídreiros  e  com 
gonçalo  dominguez  e  steuam  gonçalvez  carpinteiros  os  quaaes  pedreiros  e 
carpinteiros  diserom  per  juramento  dos  auangelhos  que  fazendo  o  dito  Gomez 
eanes  nas  ditas  suas  casas  que  nos  da  em  scambo  hua  sacada  de  sobrado 
sobre  a  Rua  contra  o  chafariz  que  entendiam  que  a  dita  casa  do  dito  Gomez 
Eanes  era  tão  boa  e  milhor  que  as  nosas.  E  nos  visto  o  dizer  dos  ditos 
pedreiros  e  carpinteiros  entendendo  o  por  nosso  proveito  e  serviço  scamba- 
mos  e  damos  por  scambo  as  ditas  duas  nossas  casas  que  assy  stam  junto 
com  as  dei  dito  Gomez  Eanes  por  a  dita  sua  casa  e  sotam  e  sobrado  que  elle 
ha  na  dita  cidade  freguesia  de  sam  Joham  da  praça  apar  do  dito  chafariz 
como  dito  he  sob  tal  preito  e  condiçom  quê  o  dito  Gomes  Eanes  faça  nas 
ditas  casas  que  nos  assy  da  em  scambo  a  dita  sacada  contra  a  Rua  e  as 
solhe  e  Repaire  assy  as  ditas  casas  como  a  dita  sacada  de  to'do  aquello  que 
lhe  Gzer  mester  e  que  nos  de  e  pague  a  nos  e  a  todos  nossos  sucesores  que 


44  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

depôs  nos  vierem  pêra  sempre  das  ditas  casas  de  renda  e  pensom  em  cada 
huu  ano  nove  libras  da  moeda  antijga  per  esta  guisa  em  quanto  esta  moeda 
correr  1.  por  Ima  segundo  per  nos  hé  ordenado  ou  segundo  nos  mandarmos 
ou  hordenarmos  que  se  paguem  daquj  en  diante  a  qual  conthia  o  dito  Gomez 
anez  se  obrigou  a  pagar  a  nos  em  cada  liuu  ano  sob  obrigamento  de  todos 
seus  bêes  e  de  todos  seus  herdeiros  que  depôs  elle  uierem  que  para  esto 
obrigou  e  as  pagar  em  cada  huu  ano  per  dia  de  sam  joliam  bautista  e  come- 
çar de  fazer  a  dita  paga  por  esle  sam  joham  que  viinra  e  dhi  en  diante  em 
cada  hum  ano  por  o  dito  dia.  E  se  as  ditas  casas  perecerem  per  fogo  ou 
agoa  ou  per  terremoto  ou  per  outro  qualquer  caso  fortuito  posto  que  aqui 
nom  seia  expresso  que  o  dito  Gomes  eanes  e  herdeiros  que  depões  el  vierem 
as  façam  e  refaçam  e  adubem  e  aproveitem  aas  suas  próprias  despesas  em  tal 
guisa  que  sempre  seiam  melhoradas  e  nom  peioradas  o  qual  Gomez  Eanes  a 
esto  presente  outorgou  as  sobre  ditas  cousas  e  recebeo  em  ssy  o  dito  afora- 
mento e  se  obrigou  a  o  eomprir  e  manteer  e  guardar  e  dar  e  pagar  a  dita 
conthia  per  o  dito  dia  como  dito  lie.  E  porem  mandamos  que  o  dito  Gomez 
Eanes  e  herdeiros  que  depôs  elles  vierem  aiam  a  dita  casa  de  aforamento 
pella  guisa  suso  dita.  E  que  outrosy  aia  as  duas  casas  nossas  que  lhe  assy 
damos  em  scambo  polia  dita  sua  pêra  sempre  pêra  ssy  e  seus  sucessores  e 
herdeiros  descendentes  que  depôs  elle  vierem  e  façom  delias  e  em  ellas  o  que 
lhe  prouuer  como  de  sua  cousa  própria  e  corporal  posisom  E  mandamos  ao 
nosso  almoxarife  ou  recebedor  do  nosso  almoxarife  ou  recebedor  do  nosso 
almazem  da  dita  cidade  que  faça  registrar  esta  carta  ao  scripuam  de  seu 
officio  pêra  per  ella  em  cada  hum  ano  recadar  pêra  nos  a  sobredita  conthia 
e  o  dito  Gomez  Eanes  a  tenha  pêra  sua  guarda  unde  ai  nom  façades.  Dada 
em  a  dita  cidade  de  Lixboa  xx  dias  de  julho  elrrey  o  mandou  per  Joham 
Afomso  dalamquer  seu  uassalo  e  ueedor  da  sua  fazenda.  Afomso  Annes  a  fez 
era  de  mjl  iiijc  lij  annos»  l. 

VI.  —  Assis  Rodrigues  (Francisco)  —  Foi  lente  da  Academia,  tendo  res- 
taurado cinco  quadros  da  egreja  da  Misericórdia  de  Lisboa,  o  que  em  acta 
de  29  de  fevereiro  de  1844,  a  Misericórdia  agradeceu. 

Archivo  da  Misericórdia,  Actas  de  1844. 


VII. — Avellar  Rebello  (José  de)  —  Foi  na  primeira  metade  do  século  xvu, 
quando  o  prestigio  das  armas  e  da  politica  hespanhola  declinara  sensivel- 


1  Tone  do  Tombo.  Chancellaria  de  D.  João  I,  L.°  3,  fl.  171  v. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  45 

mente,  que  o  génio  artístico  e  litterario  da  nação  vizinha  se  expandiu  com 
mais  entliusiasmo  e  brilhantismo.  Na  comedia  e  no  romance  satyrico  e  pica- 
resco possue  a  litferatura  hespanhola  os  mais  invejáveis  modelos.  A  Hespanha 
dramática  de  Lope  de  Vega  não  receia  o  confronto  com  a  França  dramática 
de  Molière  nem  com  a  Inglaterra  dramática  de  Shakspeare. 

Com  a  pintura  deu-se  phenomeno  idêntico,  bastando  citar  os  nomes  de 
Murillo  e  de  Velasquez  para  se  ter  o  convencimento  do  estado  florentissimo 
a  que  chegou  esta  arte  na  península  ibérica.  Sevilha  era  o  centro  principal 
d'esta  irradiação  e  foi  d' ali  que  partiu  para  Madrid,  a  fundar  a  brilhante 
escola  naturalista,  o  insigne  Velasquez,  filho  de  pae  portuguez. 

Não  obstante  a  emulação  e  a  inveja  de  alguns  rivaes  e  detractores,  elle 
soube  conquistar  não  só  a  estima  e  admiração  da  corte,  como  o  enthusiasmo 
dos  seus  contemporâneos.  A  posteridade,  longe  de  contestar  esse  juízo,  con- 
firmou-o,  e  a  supremacia  do  mestre  é  talvez  ainda  hoje  mais  omnipotente 
do  que  era  na  sua  vida. 

Portugal,  a  esse  tempo,  formava  parte  da  monarchia  hespanhola,  com- 
pletava-a,  como  um  dos  mais  notáveis  elos  da  cadeia  da  união  ibérica,  e  por 
isso  não  admira  que  o  espirito  de  nacionalidade,  embora  longe  de  se  extin- 
guir, tivesse  afrouxado  alguma  cousa,  não  apresentando,  por  conseguinte, 
as  producções  do  nosso  engenho  uma  accentuada  e  inconfundível  caracte- 
rística. 

A  producção  litteraria  foi  bastante  intensa,  mas  diversas  causas  contri- 
buíram para  a  desvalorisar  em  grande  numero  de  casos.  A  influencia  do 
culteranismo  e  a  imitação  exagerada  de  Gongora  contaminaram  quasi  todos 
os  espíritos,  ainda  os  mais  superiores,  sendo  raros  aquelles  que  escaparam 
ao  funesto  contagio.  Além  d'isso  deu-se  a  circumstancia  de  grande  numero 
dos  nossos  escriptores  preferirem  a  língua  de  Cervantes  ;i  lingua  de 
Camões, 

Na  arte  é  muito  de  suppôr  que  succedesse  a  mesma  cousa.  Não  faço  esta 
afirmativa  em  absoluto,  porque  julgo  a  matéria  pouco  estudada  ainda  e  digna 
de  mais  minucioso  exame.  Torna-se,  por  conseguinte,  necessário  proceder 
a  um  estudo  reflectido,  passando  em  revista  os  quadros  que  nos  ficaram  da 
época,  comparando-os  não  só  entre  si,  mas  com  as  escolas  estrangeiras, 
sobre  tudo  a  hespanhola.  Os  cultores  da  arte  de  Raphael.  não  escassearam  e 
até  alguns  delles  exercitariam  os  seus  pincéis  em  Hespanha.  Estou  comtudo 
persuadido  que  não  nos  é  dado  apresentar  nenhum  que  emparelhe  honrosa- 
mente com  o  genial  Velasquez,  que  na  fecundidade  se  pôde  comparar  a  Lope 
de  Vega  e  na  originalidade  das  suas  concepções  a  Cervantes.  Oxalá  que  o 
meu  juizo  seja  erróneo  e  infundado  e  que  o  nosso  patriotismo  consiga 
demonstrar  que  o  movimento  artístico  em  Portugal  não  soffreu  deplorável 


46  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

solução  de  continuidade,  antes  se  robusteceram  as  tradicções  herdadas  de 
Nuno  Gonçalves  e  de  Vasco  Fernandes,  os  dois  mestres  supremos  da  pintura 
portugueza  nos  séculos  xv  e  xvi. 

No  século  xvu  apontam-se  alguns  artistas,  cuja  actividade,  além  de 
intensa,  seria  também  de  incontestável  valor  se  déssemos  crédito  aos  elogios, 
que  nos  parecem  retumbantes  e  hyperbolicos,  dos  seus  thuriferários.  No  rei- 
nado de  D.  João  IV  registram-se,  entre  outros,  os  nomes  de  José  de  Avellar 
Rebello  e  Bento  Coelho  da  Silveira,  o  primeiro  dos  quaes  foi  equiparado  por 
um  poeta  a  Miguel  Angelo,  Raphael  e  Ticiano,  e  o  segundo,  num  trocadilho 
bombástico,  denominado  pintor  do  rei  e  rei  dos  pintores.  Isto  era  então 
moeda  corrente,  e  raros  eram  os  poetas  que  não  fossem  Apollos  e  raros  os 
pintores  que  não  fossem  Apelles. 

Occupar-me-hei  hoje  de  José  de  Avellar  Rebello,  de  quem  já  se  encontram 
noticias  em  Félix  da  Costa,  José  da  Cunha  Taborda  e  Cyrillo  Volkmar  Ma- 
chado. Todos  estes  três  indivíduos  manejaram  o  pincel  e  a  penna,  deixando-nos 
algumas  commemorações  históricas  dos  que  professaram  com  elles  a  mesma 
arte.  Félix  da  Costa,  que  tinha  também  o  appellido  de  Meesen,  entrou  para 
a  Irmandade  de  S.  Lucas  em  1674  e  falleceu  em  1712. 

A  sua  obra,  em  que  se  mencionam  apenas  19  artistas,  é  portanto  a  pri- 
meira da  sua  especialidade,  sendo  o  seu  auctor  o  nosso  Vasari  em  miniatura. 
Ficou  manuscripta  e  a  sua  perda  seria  bastante  sensível,  se  Volkmar  Machado 
a  não  tivesse  explorado,  embora  nem  sempre  se  aproveitasse  d'ella  com 
escrupulosa  minudência.  Volkmar  confessa  o  serviço  que  lhe  deve  por  estas 
palavras:  «Devemos  a  este  Artista  e  Escriptor  uma  série  de  memorias  de  19 
pintores,  sem  as  quaes  teríamos  de  começar  o  espectáculo  d'este  Theatro 
Pintoresco  no  2.°  ou  3.°  acto». 

Raczynski,  quando  andava  na  elaboração  dos  seus  trabalhos  sobre  a 
historia  artística  de  Portugal,  fez  diligencias  para  encontrar  o  manuscripto, 
mas  não  foi  bem  succedido  nas  suas  buscas,  suppondo-o  extraviado. 

Felizmente  não  succede  assim  e  ha  uns  poucos  de  annos  tive  occasião  de 
folhear  um  manuscripto,  que  não  me  recordo  bem  se  seria  copia  ou  auto- 
grapho,  e  do  qual  tirei  algumas  breves  notas,  na  espectativa  de  o  poder  um 
dia  mais  circumstanciadamente  analysar.  Hoje  estou  arrependido  de  o  não 
ter  feito  porque  o  seu  possuidor,  o  sr.  Jeronymo  Ferreira  das  Neves,  acha-se 
ha  muito  ausente  do  nosso  pais,  ignorando  eu  a  paragem  e  destino  da  sua 
magnifica  livraria;  preciosa  por  mais  de  um  titulo,  não  só  pela  raridade  e 
valia  das  obras,  como  também  pelo  seu  excellente  estado  de  conservação, 
achando-se  a  maior  parte  cFellas  ricamente  encadernadas. 

A  obra  de  Félix  da  Costa  não  se  denomina  Memorias,  como  diz  Volkmar 
Machado,  mas  sim  —  Antiguidade  da  Arte  da  Pintura,  sua  nobresa,  Divino  e 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  47 

Humano  que  a  exercitou  e  honras  que  os  Monarchas  fizerão  a  seus  Artífices. 
Uma  segunda  parte  tem  o  seguinte  titulo: 

aRezume.  Difinição  da  Pintura  e  <}  lie  Arte  liberal  e  nobre.  Partes  que 
deite  ter  o  perfeito  Pintor.  Diferença  dos  Pintores  e  igualdade  da  Escultura 
com  a  Pintura*. 

A  terceira,  finalmente,  é  sobrescripta  por  esta  maneira :  Index  tios  Liuros 
que  tratão  da  Pintura  e  do  Debuxo,  como  de  outros  das  ridas  dos  Pintores  e 
suas  obras. 

Félix  da  Costa  era  pouco  versado  no  conhecimento  da  língua  portugueza, 
a  ajuizar  não  sú  pela  redacção  dos  títulos  transcriptos,  mas  por  outras  pas- 
sagens da  sua  obra,  na  qual  dedica  dois  artigos  ao  pintor  José  de  Àvellar, 
duplicando  á  primeira  vista  a  sua  personalidade.  Parece-me  interessante 
reproduzir  os  dois  artigos,  no  primeiro  dos  quaes  escreve  sob  a  epigraphe 
de  Joseph  de  Avellar  Rebello:  «A  Joseph  de  Avelar,  Pintor,  fez  mercê  o  pru- 
dente Rey  Dom  João  o  4.°  do  habito  de  Aviz  de  Sam  Bento,  declarando  em 
seu  Aluará,  a  causa  porq  o  honraua,  que  dizia  assim: 

«Faço  mercê  do  habito  de  Sam  Bento  de  Aviz  a  Joseph  de  Avelar,  pof 
Pintor  o  melhor  do  seu  tempo,  para  que  outros  á  sua  imitação  o  sigão: 
folgaua  m.'0  conuersar  com  elle,  em  a  ocazião  que  pintou  em  Palácio  a  casa 
dos  instrumentos  de  musica,  a  fresco,  passando  el-Bei  parte  do  tempo  em  o 
uer  pintar,  morreo  antes  antes  (sic)  de  pôr  o  habito  no  peito,  não  por  negli- 
gencia sua,  mas  por  lhe  faltar  este  Monarcha  por  a  Parca  lhe  cortar  o  fio,  e 
serem  os  bens  que  possuhia  de  Pintor  Portuguez  e  assim  ficou  desamparado 
da  boa  fortuna  qne  o  esperaua». 

Adeante  consagra-lhe  as  seguintes  linhas:  «Joseph  de  Auellar  Pintor, 
bomem  de  gr.de  talento,  discrição  e  génio;  o  seu  pintar  foi  mera  curio- 
sidade, com  graça  particular  adjunta  ao  exercício.  Faltou-lhe  os  meios  para 
os  fundamentos  sólidos  da  Arte,  comtudo  pintou  muito  bem  seu  painel  na 
Igreja  de  Sam  Roque,  do  menino  entre  os  Doutores;  que  foi  honrado  com 
o  habito  de  Auiz  pello  seu  saber>-. 

Procurei  em  tempos  nas  chancellarias  da  Ordem  de  Aviz  e  de  D.  João  IV, 
alguma  coisa  a  respeito  de  José  de  Avellar,  mas  as  minhas  diligencias  foram 
infructiferas,  o  que  não  é  para  estranhar,  sabendo-se  que  as  honras  conce- 
didas por  aquelle  monarcha  não  chegaram,  por  sua  morte,  a  eumprir-se. 
Félix  da  Costa  todavia  não  phantasiou  e  duas  portarias  assignadas  em  Almei- 
rim a  14  de  novembro  de  1654  authenticam  a  veracidade  das  suas  informações. 

N'uma  d'ellas  manda  D.  João  IV  lançar-lhe  o  habito  d'Aviz,   e  na  outra 


48  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

ordena  que  se  lhe  dêem  trinta  mil  réis  de  renda  nos  bens  dos  confiscados 
ou  ausentes  em  Gastella.  Nesta  ultima  lêem-se  palavras  que  bem  mostram  o 
alto  apreço  em  que  o  tinha  o  rei,  e  que  raras  vezes  se  encontram  em  docu- 
mentos de  tal  ordem.  Aqui  transcrevo  o  paragrapho  inicial,  que  resa  assim  : 
«El-Rey  nosso  senhor  tendo  consideração  a  José  de  Avellar  Rebello,  sendo 
homem  nobre  e  de  bons  parentes,  exercitar  a  arte  de  pintura  e  n'ella  se 
ter  adeantado  tanto  aos  mais,  que  n'este  reino  a  professam,  que  para  exemplo 
de  outros  o  imitarem,  seria  razão  recebesse  de  Sua  Magestade  honra  e 
accrescentamento,  etc». 

O  alto  conceito  que  d'elle  fazia  o  rei,  seu  protector  e  amigo,  era  compar- 
tilhado pelos  seus  comtemporaneos. 

N'um  folheto  impresso  em  Lisboa,  em  164o,  por  Lourenço  d'Anvers,  e 
intitulado:  Poesias  compostas  na  Universidade  de  Coimbra  na  ovcasião  da 
felicíssima  e  milagrosa  avela  mação  de  D.  João  IV,  etc.  vem  o  seguinte 
poemeto  que  transcrevo  com  a  competente  epigraphe: 

Ao  pintor  José  de  Avellar  Rebello,  auvtor  do  quadro  dos  Reis  Magos  que 
d- rei  lhe  mandou  fazer: 

Soberano  piuzel,  (sic)  tu  te  condenas 
A  não  pintar  jamais,  pois  que  chegaste 
Rei  dos  pinzeis,  nos  Reis,  que  nos  mostraste 
Onde  chega  o  juizo  humano  apenas. 

Das  linhas  de  Protogenes  ordenas 
Grossos  cordéis,  nas  linhas  que  lançaste 
E  em  garrote  d'invejas  lhe  trocaste, 
O  sutil,  em  borrões,  a  gloria,  em  penas. 

Tudo  contemplo  Trino  em  teus  primores; 
Painel  de  três,  Pintor,  Rei,  verdadeiro 
Monarcha,  em  te  oceupar,  comtigo  humano, 

Elle  imita  três  Reis,  tu  três  pintores, 
Elle  Aflbnso,  Manuel,  4  João  Primeiro, 
Tu  Miguel,  Raphael,  &  Ticiano. 

As  «Poesias»  sairam  anonymas,  mas  são  attribuidas  a  Fr.  Thomaz  Aranha, 
dominicano,  como  se  pôde  vèr  a  pag.  336  do  volume  7.°  do  Diccionario 
Bibliographico. 

José  da  Cunha  Taborda  na  Memoria  dos  mais  famosos  pintores  por- 
tuguezee    e    dos   seus   quadros,    appensa    ás    Regras   da  Arte  da  pintura, 


S.  JERONYMO 
Quadro  de  José  de  Avellar  Rebello 


Cliché  .ie  Raphael  .l/ivj.» 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  49 

mpressas  em.  Lisboa  em  1815,  consagra  a  pag.  201  um  artigo,  onde  diz  que 
ielle  fora  um  dos  pintores  do  seu  tempo  de  maior  séquito,  e  que  por  suas 
obras  não  só  conseguiu  grande  reputação,  vindo-lhe  de  todo  o  reino  encom- 
menda  delias,  mas  até  tantas  riquezas  que  cnegou  a  comprar  muitas  casas, 
e  a  fabricar  outras,  de  sorte  que  uma  rua  inteira  era  sua,  e  tomou  d'elle  o 
nome. 

Creio  que  Taborda  estava  sonhando,  ou  então  deixou-se  illudir  pelas  chi- 
meras  de  algum  fabulador,  o  que  é  tanto  mais  para  estranhar,  quanto  é 
certo  que  elle  era  um  espirito  criterioso  e  amigo  de  apurar  a  verdade.  Logo 
direi  os  motivos  do  meu  septicismo,  aliás  comprovado  pelos  documentos. 

Taborda  não  sonhava,  deixou-se  enganar  de  boamente,  limitando-se  a 
traduzir  um  trecho  do  Abecedario  pittorico  dei  pelegrino  António  Orlandi  acres- 
cinto  de  Pietro  Guarienti,  sem  lhe  oppôr  o  indispensável  correctivo,  nem 
sequer  fazer  a  devida  citação.  Este  trecho  reproduziu-o  Raçzynski,  a  pag.  324 
das  suas  Lettres  sur  les  Arts  en  Portugal. 

Em  seguida  Taborda  aponta  os  quadros  de  Rebello,  de  que  houve  noticia, 
ou  que  ainda  chegou  a  examinar. 

Entre  estes  últimos  avulta  o  de  S.  Jeronymo  no  convento  de  Santa  Maria 
de  Belém,  o  qual  estava  na  livraria,  e  hoje  se  encontra  no  refeitório,  pas- 
sando de  assistir  á  mesa  do  pão  de  espirito,  para  presidir  á  mesa  do  pão 
corporal. 


Fac-simile  da  assignatura  de  José  de  Avellar  Rebello  no  quadro  de  S.  Jeronymo 

Taborda  fala  com  grandes  elogios  d'este  quadro,  já  não  assim  dos  da 
vida  de  S.  Caetano,  existentes  na  igreja  do  convento  dos  Theatinos,  mos- 
trando que  Rebello  tinha  duas  maneiras  bem  differentes  de  pintar,  uma  das 
quaes  pouco  louvável,  apreciação  que  supponho  justa.  Um  d'estes  quadros 
que  ainda  se  observa  hoje  na  casa  do  despacho,  tem  a  seguinte  rubrica: 
«Avellar  fecit  1655». 
7 


50  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

A  debilidade  d'estas  pinturas  explica-se  talvez  pelo  estado  enfermiço  do 
auctor  que  d'ali  a  um  anno  soltava  o  derradeiro  suspiro. 

Taborda,  guiado  pelo  testemunho  de  Guarienti  e  de  fr.  Apolinário  da 
Conceição,  dá  conta  de  duas  obras  importantes  de  Rebello  que  haviam  des- 
apparecido  1  os  quadros  da  Livraria  da  Patriarchal,  ou  antes  paços  do  arce- 
bispo, pintados  com  muito  louvor  e  applauso,  segundo  o  artista  italiano,  e 
os  quadros  ornamentaes  do  tecto  da  egreja  dos  Martyres.  Felizmente  que 
d'estes  últimos  nos  ficou  um  elenco,  ainda  que  breve,  curioso,  na  Demonstra- 
rão Histórica,  do  sobredito  fr.  Apolinário,  trecho  que  passo  a  transcrever : 

«Elegerão  para  esta  obra  o  melhor  Pintor  que  havia  então  em  Lisboa, 
José  de  Avelar  Rebello,  que  em  sua  manufactura  levou  quasi  nove  annos, 
pondo-se  os  últimos  painéis  no  tecto  da  Igreja  no  de  1648.  Erão  por 
todos  setenta  e  dois,  e  cada  um  de  onze  palmos  de  comprido,  e  oito  de  largo, 
distribuídos  em  oito  fileiras  cada  uma  com  nove,  que  firmavão  sobre  as 
cimalhas  das  paredes,  e  contestavão  com  os  frontespicios  interiores  do  corpo 
da  Igreja.  Estavão  com  largas  molduras,  e  nos  repartimentos  com  pinhas,  ou 
florões  tudo  sobredourado  que,  junto  com  o  singular  da  pintura,  represen- 
tava-se  aos  olhos  um  devoto  Ceo,  no  qual  estava  historiado  toda  a  vida  de 
Christo  nosso  Redemptor  desde  a  Annunciação  até  à  vinda  do  Espirito  Santo. 
De  cada  um  destes  quadros  levou  o  Pintor  onze  mil  e  duzentos  réis». 

Estes  quadros  não  foram  destruidos  pelo  terremoto,  mas  sim  apeados 
anteriormente  em  1746,  para  se  proceder  ao  levantamento  do  tecto  da  egreja, 
que  foi  construído  em  gesso  pelo  notável  artista  italiano  João  Grossi.  Não  se 
sabe  o  que  fizeram  dos  quadros  de  Rebello,  pois,  se  estivessem  em  bom 
estado  de  conservação,  muito  bem  se  poderiam  aproveitar,  collocando-os  em 
outro  sitio.  No  novo  tecto  executou  Vieira  Lusitano  um  grande  painel,  re- 
presentando a  tomada  de  Lisboa  por  D.  Affonso  Henriques,  obra  que  pouco 
tempo  durou,  sendo  destruída  pelo  terremoto.  Felizmente  no  cartório  da 
actual  egreja  dos  Martyres  conserva-se  um  desenho  a  sanguínea,  em  que 
ficou  perpetuada  a  ideia  do  vigoroso  trabalho  de  Vieira.  O  sr.  visconde 
de  Castilho  reproduziu-o  no  volume  V  dos  Bairros  Orientaes  da  sua  Lis- 
boa Antiga,  onde  o  leitor  encontrará  curiosas  informações  sobre  este  as- 
sumpto. 

Taborda  termina  declarando  que  ignorava  o  tempo  da  sua  morte,  quem 
fosse  o  seu  mestre  e  os  discípulos  que  estudaram  com  elle. 

Cyrillo  Volkmar  Machado,  na  sua  Collecção  de  Memorias  (Lisboa  1823) 
quasi  que  nada  mais  adeanta  no  breve  artigo  que  lhe  dedica  a  pag.  76,  e  no 
qual  fundiu  os  dois  de  Félix  da  Costa,  utilisando-se  egualmente  do  de  Ta- 


NOTICIA   DE  ALGr.NS  PINTORES  51 

borda.  Apenas  accrescenta  um  pormenor,  quando  diz  que  na  portaria  do 
convento  de  S.  Bento  ha  um  grandíssimo  painel  do  Triumpho  de  N.  Senhora, 
pintado  em  1636  e  em  cujo  friso,  segundo  ouvira  a  Pedru  Alexandrino, 
estava  o  nome  de  Avellar. 

Se  esta  informação  é  verdadeira  e  a  data  incontestável,  deixa  de  ter  fun- 
damento o  reparo  que  fiz  acerca  dos  quadros  da  vida  de  S.  Caetano,  sendo 
uns  e  outros  do  mesmo  anão. 

Cyrillo  parece  ter  visto  ainda  na  portaria  de  S.  Bento  a  tela  do  Triumpho 
ile  N.  Senhora  a  qual  de  certo,  pela  extineção  das  ordens  religiosas,  pas- 
sou para  a  Academia  de  Bellas  Artes,  onde  deve  existir,  se  não  se  extra- 
viou ou  destruiu.  Quanto  seria  para  estimar  que  no  catalogo  da  galeria  do 
palácio  das  Janellas  Verdes  se  procurasse  indicar  com  o  máximo  escrúpulo 
a  procedência  dos  quadros,  para  assim  se  ficar  melhor  sabendo  a  sua 
historia  ! 

O  conde  de  Baczynski,  no  seu  livro  Les  Arts  en  Portugal,  faz  concisa- 
mente varias  referencias  a  José  de  Avellar.  A  paginas  289  fala  muito  lisonjei- 
ramente do  quadro  da  egreja  de  S.  Roque,  O  menino  entre  os  doutores,  dizendo 
que  é  um  dos  melhores,  que  se  observam  naquelle  templo.  Accrescenta  que 
elle  lhe  deu  uma  boa  ideia  do  seu  auctor.  pareeendo-lhe  estar  em  frente  de  um 
Brusasorei  ou  Farinati  de  Verona.  O  artigo  que  lhe  consagra  no  Dictionnaire 
é  uma  compilação  do  que  se  lè  em  outros  auctores. 

Na  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa  existe  uma  tela,  representando  D.  João 
IV,  a  qual  está  subscripta  (Testa  forma:  Avellar.  fecit.  1643. 

O  rosto  do  livro  Applausos  da  Universidade  a  el-rei  Nosso  Senhor  D.  João  IV, 
impresso  em  Coimbra  em  156!,  é  do  buril  do  gravador  Floriano,  sendo  o 
desenho  de  Avellar. 

Expuz  as  noticias  que  me  deram  alguns  escriptores  acerca  de  José  de 
Avellar:  deduzirei  agora  dos  documentos  algumas  informações,  parte  das 
quaes  ampliam  o  eme  já  se  sabia,  e  outra  parte  o  rectificam.  O  documento, 
sem  duvida,  de  maior  importância  é  o  seu  testamento,  que  se  acha  registado, 
entre  milhares  de  outros,  no  Archivo  da  Relação  de  Lisboa,  d'onde  gentil- 
mente me  foi  communicado  o  seu  conteúdo,  pelo  sr.  Augusto  de  Castro,  ze* 
loso  funecionario  d'aquelle  tribunal,  a  quem  patenteio  aqui  o  meu  reconhe- 
cimento. 

Por  elle  se  verifica  que  José  de  Avellar  residia  numa  casa,  á  Cruz  da 
Pedra,  estrada  de  Bemfica,  freguezia  de  Nossa  Senhora  do  Amparo.  Ali,  a 
13  de  outubro  de  1657,  determinou  exarar  a  sua  ultima  vontade,  no  que  foi 
coadjuvado  pelo  padre  Armão  Goosens,  com  toda  a  probabilidade  allemão,  que 
escreveu  e  assignou  a  cédula  testamentária,  por  o  testador  não  o  poder  fazer, 
embora  se  achasse  em  pleno  uso  das  suas  faculdades.  Effectivamente,  o  estado 


52  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

do  enfermo  era  tão  melindroso,  que  pouco  mais  tempo  duraria,  vindo  a  fal- 
lecer  no  dia  14,  conforme  se  mostra  pelo  termo  de  abertura,  effectuado  pelo 
cura  da  freguezia,  o  padre  Domingos  João. 

Segundo  o  formulário  dos  instrumentos  d'esta  natureza,  José  de  Avellar 
principia  por  tratar  do  que  mais  convém  á  sua  alma,  ordenando  que  o  seu 
cadáver,  envolto  no  habito  dominicano,  seja  sepulto  no  visiono  convento  de 
S.  Domingos  de  Bemíica,  a  cujo  prior  e  confrades  manda  dar  a  esmola  que 
se  ajuste,  por  elle  testador  ser  muito  pobre. 

Á  primeira  vista  .esta  clausula  produz  extraordinária  surpresa,  repugnando 
admittir  que  um  individuo,  falho  completamente  de  recursos,  queira  fazer 
disposições  testamentárias,  quando  tem  legitima  herdeira  sua  mulher,  a  quem 
bastaria  deixar  alguns  apontamentos  particulares,  que  lhe  servissem  de  orien- 
tação nos  seus  nogocios  pendentes.  A  phrase  todavia  explica-se,  ou  por 
excessiva,  ou  porque  José  de  Avellar  desejasse  tornar  bem  publicas  certas 
cousas.  Além  disso,  o  caso  não  é  insólito,  e  até  talvez  fosse  vulgar.  Tenho 
aqui  á  mão  o  testamento  de  Francisco  Velho,  mestre  das  ferrarias  de  Barca- 
rena, feito  a  16  de  janeiro  de  1633,  o  qual,  apesar  de  bastante  extenso,  só 
encerra  verbas  insignificantes,  declarando  por  ultimo  o  testador:  não  trato 
de  erdeiro,  por  que  não  tenho  que  se  possa  erdar,  mais  que  o  que  aqui  tenho 
dito. 

Avellar  refere-se  ao  habito  de  Aviz  com  a  respectiva  tença  de  trinta  mil 
reis,  mercê  que  se  não  effectuára,  não  só  pela  prolongada  doença  do  agra- 
ciado, como  também  por  occorrer  o  fallecimento  d'el-rei.  Pede,  portanto,  ao 
novo  monarcha  que,  em  attenção  aos  seus  serviços,  transfira  a  tença  para 
sua  mulher  «D.  Joanna  de  Andrade,  por  quanto  é  uma  mulher  de  muita  quali- 
dade, e  não  fica  em  estado  de  casar  se  não  muito  pobre,  etc.»  Esta  supplica, 
feita  á  hora  da  morte,  parece  não  ter  obtido  [despacho  favorável,  pois  não 
se  encontra  nas  chancellarias  registo  de  resolução  a  tal  respeito.  A  mercê, 
porém,  muitos  annos  depois  foi  concedida  a  um  descendente  do  supplicante, 
como  abaixo  direi. 

Avellar  nomeou  por  testamenteiro  ao  seu  amigo  o  licenceado  Jorge  Car- 
doso, o  conceituado  auctor  do  Agiologio  Lusitano,  obra  ainda  hoje  digna  de 
merecido  apreço.  A  elle,  em  recompensa  do  seu  trabalho,  lhe  deixou  o  painel 
de  S.  Thomé,  que  el-rei  lhe  encommendára  para  a  cape  lia  real,  tendo-lhe 
dado  vinte  mil  réis,  para  ajuda  de  custo. 

Jorge  Cardoso  tinha  um  irmão,  Francisco  Cardoso,  que  figura  também  no 
testamento.. 

Um  dos  trechos  mais  curiosos  do  testamento  é  aquelle  em  que  Avellar 
enumera  os  seus  credores  e  as  peças  que  lhes  deu  para  garantia  das  dividas 
—  algumas  jóias  e  objectos  de  prata  entre  os  quaes  um  cálix  com  sua  patena. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  53 

Este  inventariosiiiho  parece  demonstrar  que  o  nosso  artista  não  era  tão 
pobre  como  se  dizia  ou  fazia  e  que,  se  porventura  cairá  na  penúria,  já 
possuirá  alguma  coisa,  pelo  menos  a  dourada  mediania  decantada  em 
Horácio. 

O  testamento  foi  approvado  pelo  tahellião  Luis  do  Soveral  perante  algumas 
pessoas,  cujos  nomes  merecem  ficar  aqui  apontados,  mostrando  as  boas  re- 
lações do  testador.  São  ellas:  o  capitão  Manuel  de  Vasconcellos  de  Amaral, 
morador  em  Palma  de  Baixo;  o  dr.  Manuel  da  Silveira  Correia,  morador  na 
Cruz  da  Pedra,  na  quinta  de  Francisco  Fernandes  Furna;  Manuel  Serrão, 
barbeiro,  morador  no  logar  de  Carnide ;  Filipe  e  Manuel  Serrão  Pimentel, 
moradores  na  quinta  das  Laranjeiras  de  seu  pae  Jeronymo  Serrão  Pimentel ; 
António  Correia  dWzevedo,  arcediago  de  Penella. 

A  quinta  das  Laranjeiras,  dos  herdeiros  do  conde  de  Burnay,  e  onde  se 
acha  estabelecido  o  Jardim  Zoológico,  pertenceu,  como  se  vê,  á  família  de 
Luiz  Serrão  Pimentel,  cosmographo-mór  do  reino.  Seria  curioso  estabelecer 
a  serie  dos  seus  possuidores,  até  o  conde  de  Farrobo,  que  tanto  a  embellezou, 
tornando-a  celebre  pelo  esplendor  das  festas  que  ali  deu. 

Já  acima  me  referi  ás  duas  portarias  de  D.  João  IV,  concedendo  o  habito 
de  Aviz  a  José  de  Avellar.  N'uma  d'ellas  lè-se  uma  apostilla  importante,  onde 
se  declara  que  D.  Pedro  II,  por  portaria  de  9  de  maio  de  1692,  concedera 
aquella  mercê  a  Manuel  de  Avellar  de  Sousa,  filho  natural  de  José  de  Avellar 
Hebello,  cujos  serviços  levaram  trinta  e  cinco  annos  a  ser  compensados. 

Em  28  de  abril  de  1702  o  mesmo  monarcha  permittiu  que  os  trinta  mil 
réis  de  tença  fossem  repartidos  por  Maria  da  Conceição  e  Maria  Josefa,  ca- 
bendo dezesete  mil  á  primeira  e  treze  mil  á  segunda,  isto  a  pedido  de  Ma- 
nuel de  Avellar  de  Sousa,  sem  todavia  se  declarar  quem  ellas  fossem,  e  por 
que  motivo  se  fez  a  partilha. 

Infelizmente  não  existem  as  provanças,  a  que  decerto  procederia  Manuel 
de  Avellar  para  receber  o  habito  de  Aviz,  ficando  nós  assim  inhibidos  de 
alcançar  qualquer  particularidade  da  sua  vida. 

No  termo  da  abertura  do  testamento,  depois  da  assignatura  do  cura  Do- 
mingos João,  lê-se  a  assignatura  de  Manuel  de  Avellar  de  Sousa,  que  talvez 
fosse  quem  apresentasse  aquelle  instrumento.  Esta  circumstancia  indica,  em 
meu  fraco  intender,  que  o  filho  de  Avellar  Rebello,  ou  vivia  na  companhia 
do  pae  ao  tempo  do  seu  fallecimento,  ou  era  ali  recebido  com  intimidade, 
desempenhando-se  d'aquella  incumbência. 

Graças  á  gentilesa  do  meu  velho  amigo  e  condiscípulo  o  rev.  prior  de 
Bemfica,  que  franqueou  o  seu  cartório  a  pessoa  intendida,  posso  dar  uns 
retoques  mais,  e  accrescentar  mais  alguns  apontamentos  na  biographia  do 
nosso  artista. 


54  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

O  exame  recaiu  sobre  o  «Livro  terceiro  dos  baptismos,  matrimónios  e 
óbitos  da  freguezia  de  Nossa  Senhora  do  Amparo  de  Bemfica».  É  um  volume 
in-folio  pequeno,  com  capa  de  pergaminho  cortada  de  algum  livro  de  coro, 
cuja  notação  musical  conserva.  Cada  uma  das  partes  tem  numeração  espe- 
cial, principiando  todas  em  1633,  e  acabando  a  primeira  em  1673,  a  segunda 
em  1671  e  a  terceira  em  1678. 

Na  ultima,  na  fl.  7,  é  que  vem  o  assento  do  óbito  de  José  de  Avellar, 
substituído  o  appelido  «Rebello»  pelo  de  «Carvalho»,  substituição  que  não 
sei  explicar,  a  não  ser  por  equivoco  do  padre  cura  Domingos  João,  que 
foi  quem  lavrou  este  termo,  assim  como  lavrara  o  da  abertura  do  testa- 
mento. 

Outro  equivoco  commetteu  ainda,  exarando  que  elle  fallecera  a  quinze  de 
outubro,  quando  a  cédula  testamentária  foi  aberta  a  quatorze.  Grande  falta 
de  memoria,  ou  grande  falta  de  attenção  !  Diz  mais  que  elle  morrera  com 
todos  os  sacramentos,  que  «está  enterrado»  no  convento  de  S.  Domingos  de 
Bemfica  e  que  fizera  testamento  a  sua  mulher  D.  Joanna. 

José  de  Avellar,  bem  poucos  dias  antes  de  expirar,  soffreu  um  golpe 
cruel  com  a  morte  de  sua  mãe  Sebastiana  de  Avellar,  que  falleceu  a  cinco 
do  mesmo  mez  e  anno,  segundo  se  lè  no  respectivo  assento  exarado  na  pagina 
anterior  do  referido  livro,  sem  declarar  o  seu  estado,  ou  outra  qualquer  par- 
ticularidade. 

O  padre  Armão  Goosens,  que  foi  quem  escreveu  o  testamento  de  José  de 
Avellar,  deixou  de  existir  a  seis  de  dezembro  de  1671,  como  se  deprehende 
do  respectivo  assento  inscripto  a  fl.  12  v.  do  mesmo  livro.  Foi  enterrado  no 
convento  de  S.  Domingos  de  Lisboa  e  fez  testamento  a  favor  de  seu  irmão 
António  Goosens. 

Fecharei  esta  lista  funerária  com  o  padre  Domingos  João,  que  não  havia 
de  ficar  perpetuamente  a  dar  baixa  no  livro  da  vida  aos  seus  freguezes. 
Coube-lhe  também  o  sorte  a  dois  de  novembro  de  1677. 

Foi  enterrado  no  meio  da  egreja  defronte  da  porta  travessa. 

Fez  testamento  nomeando  para  seu  testamenteiro  a  Manuel  Soares  de 
Brito.  O  seu  termo  de  óbito  foi  lavrado  a  fl.  41  pelo  padre  Francisco  Jorge 
da  Costa. 

Registo  do  testam.10  de  Joseph  de  Avelar 

«Em  nome  da  S.ma  Trindade  P.e  F.°  e  Espirito  S.t0  em  que  eu  bem  e  ver- 
dadram.te  creio  faso  saber  eu  Joseph  de  Avelar  m.or  na  freg.a  de  Nosa  Snãr  do 
Emparo  de  Bemfica  como  estando  eu  doente  em  cama  mas  com  todo  meu  pre- 
feito juizo  q  Ds  noso  Snõr  medeu  não  sabendo  quando  Ds  noso  Snõr  será  ser- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


55 


vii In  levar  me  p.a  si  temendo  a  hora  de  minha  morte  p.a  descargo  de  minha 
consiencia  quero  e  ordeno  este  meu  testam.10  na  forma  seg.te  primeiram.10  emco- 
mendo  minha  alma  a  I)s  noso  Snõr  q  a  criou  e  remío  com  seu  presioso  sange  e 
tomo  per  avogada  a  virgem  nosa  Snãr  e  a  todos  os  S.tos  da  corte  do  ceu,  digo, 
do  paraizo  p.a  q  Ds  noso  Snõr  me  perdoie  meus  pecados  e  leve  minha  alma  a 
sua  S.,a  gloria  p.a  q  foi  criada  Amen.  Sendo  Noso  Snõr  servido  levar  me 
p.a  si  desta  doensa  prezente  quero  q  meu  corpo  seja  sepultado  no  Conv.10  de 
São  domingos  de  hemfiqua  e  me  acompanhem  os  religiosos  dele  e  peso  ao 
R.do  prior  e  mais  religiosos  me  dem  o  abito  do'  glorioso  São  domingos  a 
esmola  será  o  çj  meus  testamenteiros  ordenarem  per  eu  fiquar  m.t0  pobre  o 
mais  toquante  a  sepultura  e  sufrágios  pela  minha  alma  fará  dona  ioana 
declaro  q  entre  meus  bens  me  tinha  sua  Mg.dc  feito  merse  de  trinta  mil  rés 
efeitiuos  p.a  aver  de  os  ter  com  híí  abito  de  São  bento  e  me  tinha  mandado 
lansar  e  por  q  a  merse  não  teve  ifeito  per  causa  de  minha  doensa  ser  tão 
prelongada  e  sobrevir  a  morte  delrei  noso  Snõr  q  Ds  tem  em  gloria  peso  a 
sua  mg.dl'  q  Ds  g.de  visto  os  servisos  q  fiz  a  seu  pai  elrei  q  Ds  tem  em  gloria 
será  servido  fazer  esta  tensa  a  minha  molher  dona  Joana  de  Andrade  e  o 
mais  q  se  me  dever  de  meus  servisos  por  q.10  he  nua  molher  de  m.,a  eali- 
dade  e  não  fica  em  estado  de  casar  senão  m.t0  pobre  e  v.las  as  grandes  con- 
siderasois  com  q  Sua  Mg.de  me  fes  merse  conforme  o  seu  decreto  q  deixo  a 
minha  molher  declaro  q  não  tenho  pai  nê  mai  nê  erdr.0  algfl  forsado  e  por- 
tanto pelas  m.las  obrigasois  q  devo  a  minha  molher  dona  ioana  de  andrade 
ordeno  e  quero  q  seia  minha  erdr.a  universal  de  tudo  o  q  se  achar  meu  e 
de  todos  os  meus  bens  ávidos  e  per  aver  e  testamentr.a  de  todos  eles  e 
iuntam.'6  ordeno  por  meu  testamentr.0  ao  l.d0  iorge  Cardoso  a  quem  peso 
m.t0  a  acompanhe  em  tudo  e  fasa  o  mesmo  ofisio  per  me  fazer  esmola  e 
merse  conforme  nosa  m.ta  amisade  deixo  hu  painel  do  apostolo  São  Thomé 
q  sua  mg.de  q  Ds  tem  me  tinha  mandado  fazer  p.a  a  sua  Capela  real  a  conta 
dele  me  tinha  mandado  dar  vinte  mil  rês  p.a  o  pano  e  ainda  de  custo  declaro 
q  em  casa  do  capitão  Ant.°  pinto  do  rego  ia  defunto  tenho  empenhado  hu 
prato  de  agoa  as  maõs  com  seo  jaro  em  vinte  mil  rês  as  quais  pesas  são  de 
prata  mais  em  casa  de  rui  de  ceita  ferão  tenho  empenhada  huã  cadea  de 
ouro  de  huã  volta  soldada  em  quinze  mil  rês  tinha  dado  alexandre  de  re- 
zende  huã  palangana  de  prata  de  pontas  e  outra  mais  piquena  e  quatro 
tijelas  taõ  bem  de  prata  sobre  o  q  me  tinha  dado  dezouto  mil  rês  na  comfor- 
midade  de  hu  escrito  meu  q  ele  tem  seu  poder  tenho  mais  nas  desimas  outra 
palangana  de  prata  em  poder  de  iose  vãs  procurador  das  desimas  a  qual 
esta  empenhada,  até  pagar  nove  mil  rês  seis  sentos  e  noventa  rês  ou  com- 
forme  se  achar  pelo  escrito  do  feitor  de  fr.co  de  melo  mais  outra  palangana 
de  prata  em  casa  de  m.a  coresma  por  seis  mil  rês  mais  em  casa  de  iorge 


56  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

lopes  da  gama  o  qual  lie  de  prata  hu  saleiro  de  prata  en  seis  mil  rês  mais 
em  casa  de  iorge  dias  brandão  hu  calis  de  prata  com  sua  patena  em  seis 
mil  rês  em  casa  do  mesmo  iorge  dias  brandão  hu  anel  de  sinco  esmeraldas 
em  crus  e  huã  sortiga  de  três  diamantes  no  q  toqua  a  Imã  quarta  de  prata 
e  hu  ioa  de  pérolas  grande  q  dei  a  fr.c0  cardoso  irmão  do  p.e  iorge  cardoso 
p.a  dar  satisfasão  per  mi  a  dona  anna  leitoa  q  Ds  lhe  perdoie  deixo  na  ver- 
dade de  nosas  contas  asi  mais  alguas  contas  q  com  o  p.e  iorge  cardoso  tiver 
deixo  na  sua  verdade  devo  a  m.el  da  silvr.a  na  rua  nova  dous  pares  de  meãs 
de  seda  tive  com  tomas  lopes  ia  defunto  hu  xesso  de  contas  em  q  ouve  ero 
e  como  dando  se  com  minha  molher  deixo  se  lhe  page  tudo  o  mais  q  se 
achar  dever  deixo  a  minha  molher  me  tire  a  pas  e  a  salvo  e  desemcarege 
minha  consiensia  por  q  ela  tudo  sabe  a  quem  he  e  constava  por  meus  escritos 
e  por  aqui  hei  per  acabado  este  meu  testam.10  o  qual  quero  q  tenha  vigor  em 
iuiso  e  fora  dele  por  ser  minha  ultima  vontade  e  por  este  revogo  qualquer 
outro  q  em  algu  tenpo  tenha  feito  por  q  so  este  quero  q  tenha  forsa  e  vigor 
e  por  não  poder  escrever  toguei  ao  p.e  Armão  Goosens  q  este  por  mi  fisesse 
e  como  test.a  asinase  oje  trese  de  outubro  do  1657  annos  o  qual  fls  e  asinei 
a  rogo  do  testador  iose  de  avelar  rabelo  Armão  Goosens  diz  a  entrelinha 
asima  na  seg.da  regra  em  casa  de  iorge  lopes  da  gama  hu  saleiro  o  qual  he 
de  prata». 

Approvação 

«Saibaõ  q.,os  este  istrum.10  de  aprovasão  ultima  vontade  virem  q  no  aimo 
do  nasim.10  de  noso  Snõr  Jhesu  xpõ  de  1657  anos  aos  trese  dias  do  mes  de 
outubro  do  ano  em  a  estrada  de  bemfiqua  aonde  chamão  a  Cruz  da  pedra 
em  as  casas  da  morada  de  iose  de  avelar  rabelo  sendo  ele  presente  em 
sua  pesoa  lansado  em  cama  doente  de  doensa  q  ds  noso  Snõr  lhe  quiz 
dar  mas  em  todo  seu  siso  e  iuiso  e  emtendim.'0  segundo  pareser  de  mi  t.am 
e  das  tes.las  q  presentes  estavão  ao  diante  nomeadas  e  logo  das  suas  mãos 
digo  e  logo  das  mãos  do  d.  iose  de  avelar  rabelo  as  de  mi  t.am  me  foi 
dado  o  testam.10  atras  escrito  em  duas  laudas  e  quase  meia  de  papel  atras 
escritas  e  respondendo  me  o  d.  iose  de  avelar  rabelo  ao  q  eu  t.am  lhe  pre- 
guntei  dise  era  seu  e  q  lho  fizera  a  seu  rogo  o  p.e  Armão  Goosens  clérigo 
de  misa  e  dipois  de  feito  lho  lera  a  sua  vontade  e  per  estar  tudo  nele  escrito 
q.10  ele  testador  mandara  e  quiria  o  asinase  com  ele  e  portanto  o  aprova  e 
ratefica  e  ha  tudo  nele  declarado  por  sua  boa  e  firme  vontade  pelo  qual  dise 
revoga  e  anula  e  ha  per  de  nenhu  efeito  forsa  nê  vigor  outro  qualquer  tes- 
tam.10 sedula  aprovasão  codesilho  q  antes  deste  tenha  feito  e  so  este  quer  tj 
valha  e  se  cumpra  e  guarde  tanto  inteiram. le  q.*°  nele  se  contem  e  pede  as 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


57 


justisas  de  sua  mg.116  q  ds  g.Je  lho  fasão  cunprir  e  guardar  por  esta  ser  sua 
ultima  e  deradr."  vontade  test.Us  q  presentes  estavão  chamadas  e  rogadas 
por  p.le  dele  testador  q  todos  o  conhesemos  o  capitão  m.el  de  Vasconcelos  de 
amarai  m.or  em  o  lugar  de  palma  de  baixo  o  doutor  m.el  da  silvr.a  Coreia 
ora  m.or  a  Cruz  da  pedra  na  quinta  de  fr.co  Fernandes  Furna  e  m.el  serão 
barbr.0  m.or  no  lugar  de  Carnide  e  filipe  serão  pimentel  m.or  as  larangeiras 
na  quinta  de  seu  pai  ierolimo  serão  pimentel  e  m.el  serão  pimentel  f.°  do  d. 
ierolimo  serão  pimentel  e  ant.°  corea  dasevedo  arsidiago  q  dise  ser  da  vila 
de  penela  da  see  de  Coimbra  q  todos  aqui  asinarão  com  o  testador  e  eu 
Luis  do  Soveral  escrivão  e  t.am  em  o  iulgado  de  Carnide  e  bemfiqua  pela 
Camará  m.t0  senpre  nobre  leal  c.de  iaques  alves  o  asinei  de  meu  p.co  sinal 
e  raso  e  custumado  dia  mes  e  anno.  Comtiudo  no  prensipio  daprovasão  iose 
de  avelar  rebelo  m.el  da  silvr.a  corea  m.el  róis  filipe  serão  pimentel  ant.° 
corea  de  asevedo  m.el  de  vasconselos  e  amarai  m.el  serão  pimentel.  Em  test.0 
de  verdade  Luis  do  Soveral». 

Abertura 


«CerteGco  eu  o  p.e  d.0'  ioão  cura  da  igr.a  de  nosa  Snãr  do  emparo  do 
lugar  de  bemfica  q  eu  abri  o  testam.10  presente  o  qual  estava  cosido  com 
linha  branqua  e  lacrado  escrito  em  duas  laudas  e  meia  sem  emtrelinha  nê 
boradura  nê  cousa  q  duvida  fasa  aprovado  pelo  t.am  Luis  do  Soveral  em  fe 
do  qual  pasei  a  presente  oje  quatorse  de  outubro  de  1657  annos.  O  cura 
domingos  ioão.  M.el  do  Avellar  de  Souza». 


«El  Rey  Nosso  Senhor  tendo  consideração  a  Joseph  de  Avelar  Rebello 
sendo  homem  nobre  e  de  bons  parentes  exercitar  a  arte  de  pintura  e  nella 
se  ter  adiantado  tanto  aos  mays  que  neste  Reino  a  profeção  que  para  exemplo 
de  outros  a  imitarem  seria  rezão  recebesse  de  S.  Mg.de  honra  e  acrescenta- 
mento Ha  por  bem  fazer-lhe  mercê  de  30;)000  reis  de  renda  em  alguns  bens 
de  confiscados  ou  absentes  em  Castella  que  elle  apontar  para  os  ter  com  o 
habito  de  S.  Rento  de  Avis  que  lhe  tem  mandado  lançar.  Almeirim  14  de 
Novembro  de  1654. 

«El  Rey  Nosso  Senhor  Ha  por  bem  de  mandar  lançar  o  habito  de  São 

Rento  de  Avis  a  Joseph  do  Avelar  Rabello  para  o  ter  com  30#000  reis  de 

renda  em  bens  de  confiscados  ou  abzentes  que  elle  apontar  dos  quais  lhe  tem 

feito  mercê  de  promeça  e  manda  que  para  haver  de  receber  o  habito  se  lhe 

8 


58  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

facão  as  provenças  e  habilitações  de  sua  pessoa  na  forma  dos  estatutos  e 
definições  da  Ordem.  Almeirim  a  14  de  Novembro  de  1654. 

«Á  margem:  Em  satisfação  da  mercê  que  conthem  esta  Portaria  a  fes  S. 
Mg.de  a  Manuel  do  Avelar  de  Sousa,  filho  natural  do  dito  Joseph  do  Avelar 
do  habito  de  Avis  e  dos  305000  reis  os  quaes  se  lhe  mandarão  assentar  nos 
almoxarifados  do  Reino  tudo  por  Portaria  de  9  de  Mayo  de  692b*. 

«Ouve  S.  Mag.de  por  bem  tendo  respeito  a  pertencer  por  sentença  do 
juizo  das  justificações  a  Manuel  de  Avelar  de  Souza,  filho  natural  de  Joseph 
de  Avellar  de  Rebello  a  aução  de  poder  requerer  a  mercê  do  habito  de  Aviz 
e  30)5000  reis  de  renda  em  alguns  bens  de  confiscados  ou  auzentes  em  Castella 
com  que  o  dito  seu  Pay  foi  respondido  por  portaria  de  14  de  Novembro  de 
654  que  não  chegou  a  lograr;  houve  S.  Mag.de  por  bem  fazer-lhe  mercê  que 
nelle  tivesse  effeito  a  dita  mercê  do  habito  de  Aviz  que  lhe  tinha  mandado 
lançar  e  os  30#000  os  quais  se  lhe  asentassem  em  hum  dos  Almoxarifados 
do  Reino  em  que  coubessem  sem  prejuizo  de  terceiro  e  não  houvesse  prohi- 
bição  cujo  vencimento  seria  na  forma  da  sua  ordem  e  delles  lograsse  12  a 
titulo  do  mesmo  habito ;  e  tendo  respeito  S.  Mag.de  outrosim  ao  que  se  lhe 
reprezentou  por  parte  de  Manuel  do  Avellar  de  Sousa  em  razão  de  ser  deffe- 
rido  pela  portaria  asima  escrita  com  305000  de  tença  effectiva  doze  delies 
com  o  habito  de  Aviz  e  sendo-Ihe  feita  esta  mercê  no  anno  de  692  não  ter 
effeito  athe  o  prezente  pela  sua  muita  pobreza  e  idade  e  dezejar  renunciar 
hiia  e  outra  couza  em  quem  lhe  parecesse  e  que  tendo  S.  Mag.de  conside- 
ração e  ao  mais  que  por  sua  parte  se  reprezentou:  Hei  por  bem  fazer  lhe 
mercê  que  os  30-5000  reis  refferidos  seja  delles  17  para  Maria  da  Conceição 
para  que  os  pedio  por  quanto  dos  13  que  faltão  a  cumprimento  dos  30  se 
ha  de  passar  padrão  delles  a  Maria  Josepha  para  quem  também  os  pedio,  os 
quaes  175000  reis  de  tença  lhe  hão  de  ser  assentados  em  hum  dos  almoxa- 
rifados do  Reino  em  que  couberem  sem  prejuizo  de  terceiro  e  não  houver 
prohibição  e  o  vencimento  delles  de  23  de  Novembro  do  anno  passado  de 
1701,  dia  em  que  S.  Mag.de  lhe  fes  esta  mercê  the  o  do  asento  será  na  forma 
que  o  dito  Senhor  for  servido  rezolver  na  consulta  que  se  lhe  fes  pelo  Con- 
selho da  Fazenda  e  esta  mercê  lhe  fazem  (sic.)  a  clauzula  geral  na  forma  do 
decreto  de  17  de  Janeiro  de  689.  De  que  lhe  foi  passado  Padrãoo  qual  foi 
feito  a  28  de  Abril  de  1702. 

«■Ouve  S.  Mag.de  por  bem  pelos  mesmos  respeitos  declarados  no  assento 


1  Livro  II  das  Portarias  do  Reino,  pag.  511. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  59 

asima  fazer  mercê  ao  mesmo  Manuel  do  Avellar  de  Sousa  que  os  trinta  mil 
reis  refferidos  sejão  delles  treze  para  Maria  Josepha  para  quem  os  pedio  por 
quanto  dos  17  que  faltão  a  cumprimento  dos  30  se  passou  padrão  delles  a 
Maria  da  Conceição  para  quem  também  os  pedio  os  quaes  13&000  de  tença 
lhe  hão  de  ser  asentados  em  hum  dos  almoxarifados  do  Reino  em  que  cou- 
berem sem  prejuízo  de  3.°  e  não  houver  prohibição  e  o  vencimento  delles 
de  23  de  Novembro  do  anno  passado  de  701  dia  em  que  S.  Mag.de  lhe  fes 
esta  mercê  thé  o  do  asento  será  ua  forma  que  o  dito  Senhor  for  servido  re- 
zolver  na  consulta  que  se  lhe  fes  pelo  Conselho  da  Fazenda  e  esta  mercê  lhe 
fez  com  a  clauzula  geral  na  forma  do  decreto  de  17  de  Janeiro  de  689.  De 
que  lhe  foi  passado  Padrão,  o  qual  foi  feito  a  29  de  abril  de  1702» '. 

«Aos  quinze  doutubro  de  seis  centos  e  cincoenta  e  sete,  falleceu  Joseph 
de  Avellar  de  Carvalho,  o  Pintor,  com  todos  os  Sacramentos  da  Igreja,  está 
enterrado  no  Convento  de  S.  Domingos  de  Bemlica,  fez  testamento  á  sua 
mulher  D.  Joanna.  O  cura  D.os  João». 

«Aos  sinco  de  oitubro  de  seis  centos  e  sincoenta  e  sete  faleceo  Sebastiana 
do  Auellar  may  de  Joseph  de  Auelar,  morador  a  Crus  de  pedra,  está  enter- 
rada no  conuento  de  S.  Domingos  de  Bemfica  não  fez  testamento.  O  cura 
Domingos  João»  *. 

«Aos  seis  de  Dezembro  de  mil  e  seis  centos  e  satenta  e  hu  faleceo  o 
padre  Armão  Gonces  (Gooscns)  está  enterrado  no  convento  de  São  Domingos 
de  Lisboa,  fez  testamento  a  seu  irmão  António  Gonces.  O  Cura  Domingos 


«Aos  dois  dias  do  mes  de  nouembro  de  seis  centos  e  setenta  e  sete  fale- 
ceo o  Padre  Domingos  João,  está  enterrado  no  meio  da  igreja  defronte  da 
porta  travessa,  fes  Testamento,  foi  Testamenteiro  Manoel  Soares  de  Brito. 
—  O  padre  Francisco  Jorge  da  Costa» 4. 


VIU. —  Ayres  de  Andrade  (Caetano). —  Trabalhou  nas  obras  do  Real  Paço 
d' Ajuda,  primeiramente  como  ajudante  de  Domingos  António  de  Sequeira  e, 


1  Registo  de  mercês  de  D.  Pedro  II,  liv.  li,  fl.  418  v. 

2  Livro  dos  óbitos  da  freguesia  de  Bemiiea  de  1657  a  1678  ti.  6  v.° 

3  Id...  id.,  fl.  32  v." 
» Id.,  id.,  fl.  41. 


60 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


mais  tarde,  quando  este  artista  saiu  do  reino,  sob  a  sua  própria  inspiração. 
Conheço  d'elle  dois  requerimentos,  um  de  22  de  setembro  de  1825,  outro  de 
29  de  julho  de  1830,  nos  quaes,  expondo  os  trabalhos  que  executou  na  re- 
ferida obra,  pede  melhoria  de  situação. 

Raczynski  inscreve-o  no  seu  Dictionnaire,  como  sendo  professor  na 
Escola  de  Bellas  Artes  em  1843,  e  de  56  annos  de  idade  approximada- 
mente. 

«Senhor,  diz  Caetano  Ayres  de  Andrade,  Pintor  de  Figura  classificado  em 
Ajudante  na  Obra  do  Real  Palácio  da  Ajuda,  para  onde  foi  a  ter  exercicio 
por  Ordem  de  Vossa  Magestade,  em  Agosto  de  1823,  que  obteve  em  1817, 
em  virtude  do  seu  préstimo,  o  vencimento  de  800  reis  diários,  por  Portaria 
da  Regência  do  Reino  datada  de  26  de  Agosto  do  dito  anno,  como  discípulo 
do  Artista  Sequeira  primeiro  Pintor  da  Real  Camará  de  Vossa  Mag.de,  e  que 
sempre  desempenhou  com  actividade  e  perícia  os  trabalhos  de  que  tem  sido 
encumbido  no  referido  exercicio  de  Ajudante,  sendo  os  mais  notáveis  os  que 
tem  praticado  na  referida  Real  obra  entre  os  quaes  tem  executado  alguns  de 
que  tem  sido  directamente  encarregado  por  determinação  do  Illustre  Inspector 
da  mesma,  cujos  trabalhos  o  suplicante  tem  dezenvolvido  de  si  sem  direcção 
de  nenhum  dos  Professores  ali  empregados,  pelo  que  os  considera  como  pro- 
ducções  suas ;  e  tanto  pelas  expostas  razões  como  por  não  ter  sido  emportuno 
a  Vossa  Mag.de  no  decurso  de  oito  annos  já  completos,  em  cujo  prazo  só  tem 
ambicionado  destinguir-se  afim  de  milhor  poder  servir  a  Vossa  Mag.de  Vai 
reverente  aos  Pez  de  V.  Mag.de,  a  exemplo  daquelles  seus  colegas  a  quem 
em  idênticas  sirconstancias  se  tem  dignado  atender,  a  rogar  a  V.  Mag.de  a 
graça  do  assçço  no  seu  ordenado,  como  for  compatível  com  as  sirconstancias 
do  Estado,  e  com  a  justiça  de  que  o  Suplicante  se  fez  credor,  pede  a  V. 
Mag.de  se  digne  atender  as  justas  razoens  e  mérito  do  suplicante,  conferindo-lhe 
a  graça  que  mui  respeitozamente  emplora.  — E.  R.  M.ce  .  —  Em  22  de  Se- 
tembro de  1825. —  Caetano  Aires  de  Andrade». l 

«Senhor  —  Diz  Caetano  Aires  de  Andrade  Pintor  de  Figura  Histórica  ao 
Real  serviço  por  Portaria  da  Regência  do  Reino  datada  de  26.de  Agosto  de 
1817,  na  conformidade  do  Decreto  de  29  de  Julho  de  1802,  que  regula  a 
admissão  dos  Pintores  da  referida  classe  para  a  obra  do  Real  Palácio  da 
Ajuda  que  sendo  desde  1803  Descipulo  do  Primeiro  Pintor  da  Real  Camará 
e  Corte  Domingos  António  de  Sequeira  mereceo  pela  sua  aplicação  e  perícia 


Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


6i 


o  dito  despacho  e  bem  assim  que  tendo  sido  empregado  como  Ajudante  do 
referido  Artista  em  varias  obras  do  Estado  foi  pela  sabida  do  dito  para  fora 
do  Reino  e  por  Ordem  do  Augusto  Pai  de  V.  Mag.de  de  saudoza  Memoria,  a 
ter  o  exercício  de  sua  arte  na  mencionada  Obra,  aonde  tem  dezempenhado 
com  disvello  os  trabalhos  que  existem  nas  sallas  da  mesma,  sendo  os  mais 
recentes  os  que  executou  nos  Quartos  do  andar  nobre  entre  os  quaes  ha  hum 
gabinete  de  seu  dezenho  do  qual  dirigio  a  exicução. 

«O  supplicante  a  exemplo  do  quanto  na  dita  Real  Obra  tem  sido  aumentado 
por  vezes  successivas,  Praticantes  de  bem  pouco  estudo  e  idade  e  Ajudantes, 
estando  nuns  igualados  ao  vencimento  deste  e  outros  com  pouco  menos,  bem 
como  em  confronto  com  o  que  percebem  os  Pintores  Ornatistas  para  quem  o 
suplicante  tem  riscado,  e  encaminhado  vários  trabalhos,  se  reconhece  muito 
atrazado  em  entereces  sendo  portanto  dos  do  seu  Ramo  quem  tem  menos,  o 
que  lhe  promove  precizão,  podendo  fazer  serto  a  V.  Mag.de  que  nem  a  falta 
de  préstimo  manifestado,  nem  a  de  assiduidade,  tenhão  sido  cauza  contri- 
buinte, mas  sim  o  respeito  a  V.  Mag.de  não  lhe  querendo  ser  emportuno  e 
debaixo  de  tão  verdadeiros  e  sinceros  princípios  o  suplicante  se  perçoade 
que  sendo  as  retas  intençoens  de  V.  Mag.dc,  o  evitar-se  o  abuso  nas  repar- 
tições, são  igualmente  as  de  que  se  não  falte  ao  premio  a  quem  tem  mere- 
cimento, razão  pela  qual  P.  a  V.  Mag.de  se  digne  conferir-lhe  hum  aumento  que 
sendo  compatível  com  as  sircunstancias  da  mencionada  obra,  o  possa  ser 
com  a  justiça  de  que  se  julga  credor.  Em  29  de  Julho  de  1830.  Caetano 
Aires  de  Andrade.  E.  R.  M.ce  »  *. 


IX.  —  Azevedo  (José  Joaquim  de). —Em  1772  pintou,  por  7jJ200  réis,  a 
bandeira  que  se  fez  para  uma  das  tumbas  da  Santa  Casa  da  Misericórdia  de 
Lisboa.  Passou  o  respectivo  recibo  em  7  de  outubro  do  mesmo  anno.  Archivo 
da  Misericórdia,  Papeis  antigos,  maço  1.°  Tmnbas. 


X. —  Baptista  Ribeiro  (João).  —  Vide  Ribeiro  (João  Baptista). 


XI. — Barreto  (António).  —  Era  pintor  e  morava  em  Lisboa  na  rua  dos  Pi- 
cheleiros.  Sua  mulher,  Genebra  Mendes,  grandíssima  coscovilheira,  apresentou-se 
em  4  de  outubro  de  1553,  perante  o  tribunal  do  Santo  Ofticio  a  denunciar, 
como  judaizante,  uma  christã-nova,  sua  vizinha,  Catharina  Lopes,  com  quem 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


62  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

dias  antes  tivera  umas  desavenças,  ficando  depois  amigas,  —  que  amizade  f 
—  e  além  de  Catharina  Lopes  outras  pessoas  da  vizinhança. 

As  culpas  attribuidas  áquelles  suppostos  delinquentes  parecem-nos  hoje 
mesquinhas  e  ridículas,  fazem-nos  sorrir  desdenhosamente,  mas  n'aqnelle 
tempo  levavam  aos  cárceres  e  aos  potros  inquisitoriaes,  quando  não  levavam 
á  fogueira. 

Do  depoimento  de  Genebra  Mendes,  apesar  de  bastante  extenso,  não  se 
colhe  nenhum  pormenor  que  nos  revele  que  qualidade  de  pintor  seria 
António  Barreto. 

Eis  o  documento : 

«Aos  quatro  dias  do  mes  de  outubro  de  mil  bc  liij  anos  em  Lixboa  na 
casa  do  despacho  da  Santa  Inquisyção  estando  hy  o  Senhor  Licenciado  Pedro 
Alvarez  de  Paredes  Inquysidor  perante  elle  pareceo  Gineuora  Mendez  molher 
de  António  Barreto  pintor  morador  nesta  cidade  na  Bua  dos  Pechaleiros  pollo 
Juramento  dos  Santos  Avamgelhos  em  que  pos  sua  mão  denunciou  e  disse 
que  defronte  delia  denunciante  viu  hiia  Caterina  Lopez  christaa  nova  casada 
cuyjo  nome  do  marido  nam  sabe  soomente  ouvir  dizer  que  hé  batifolha  e  que 
averá  quatro  ou  cinquo  meses  pouco  mais  ou  menos  veyo  a  ter  a  dita  Bua 
lulu  gemro  da  dita  Caterina  Lopez  que  se  chama  Amryque  Fernandez  solici- 
tador de  demandas,  o  qual  mora  ao  chafariz  dos  cavallos  e  he  casado  com 
lula  filha  da  dita  Caterina  Lopez  e  estando  na  Bua  a  porta  da  dita  sua  sogra 
ouue  Bezões  com  a  dita  Caterina  Lopez  que  estaua  a  sua  porta  entendendo 
em  sua  fruyta  que  he  vendedeyra  e  o  dito  Amryque  Fernandez  dise  a  dita 
sua  sogra  que  qual  era  o  deus  que  tal  Judarismo  sofrya  que  ella  faria  serto 
que  não  sabia  o  pater  noster  nem  ave  marta  nem  credo  nem  salve  Regina  nem 
filha  sua,  e  disse  mais  pêra  saberdes  como  hê  Judia  e  cadella  attentay  a  sesta 
feyra  e  veres  aquy  vir  que  lhe  traz  híiu  negro  pão  pêra  dar  graças  ao  sá- 
bado, o  qual  hé  christão  nouo  e  dise  ahi  a  bozes  que  auia  de  hir  a  Santa 
Inquisição  acusalla  e  ella  declarante  chamou  o  dito  Amrique  Fernandez  e  lhe 
dise  que  elles  mesmos  erão  os  que  se  accusavam  e  que  nynguem  os  conde- 
nava senam  elles  mesmos  se  comdenavão  e  que  nam  podia  ai  fazer  ella  se 
nam  villos  acusar  e  então  o  dito  Amrique  Fernandez  lhe  disse  e  lhe  afirmou 
que  era  ella  hiia  grande  Judia  e  que  oulhase  ella  denunciante  e  viria  a  sesta 
feyra  vir  hua  negra  *  e  trazer  lhe  pão  pêra  o  sábado  dar  graças  a  deus  e 


1  Á  margem:  do  qual  dise  despois  a  dita  testemunha  que  a  dita  negra  era  da  filha  de 
mestre  Thomás  que  hé  casada  com  hum  letrado  e  viuem  a  Sam  Joam  da  Praça  e  o  moço 
que  iras  lambem  pão  as  ditas  sestas  feiras  a  tarde  se  Recolhe  em  húas  casas  junto  da 
Conseyção  e  assy  leva  o  dito  moço  também  pão  a  húas  molheres  que  vivem  a  calçada  de 
Pay  de  Nabaes. 


NOTICIA   DK  ALGUNS  PINTORES 


63 


que  ella  declarante  se  pos  as  sestas  feiras  de  emtão  a'  esta  parte  e  os  outros 
dias  pella  somana  pêra  ver  quando  lhe  vinha  o  pão  de  fora  como  ouvira  ao 
dito  Amryque  fernandez  e  via  que  todas  sestas  feyras  aly  junto  da  boca  da  noyte 
vinha  nua  negra  ora  huu  moço  pequeno  e  lhe  trazia  emvolto  em  huu  pano  e  fazia 
soma  como  que  era  pão  e  ella  denunciante  asy  lhe  parecia  que  era  pão  e  que 
o  dito  Amryque  Fernandez  lhe  dysse  a  ella  declarante  que  lhe  mandavão  buas 
enristas  novas  dizendo :  aquellas  Judias  da  Conseyção  lhe  mandam  aquelle 
pão  nam  lhe  nomeando  quem  eram  as  ditas  christãs  novas  nem  como  se  cha- 
mavão  e  que  a  dita  Catarina  Lopez  sua  vizinha  defromte  nunqua  a  vee  aos 
domyngos  e  festas  hyr  a  myssa  a  Sam  Nycolao  nem  a  outra  Igreja  de  mais 
de  huu  ano  a  esta  parte  que  atenta  por  isso  soomente  que  hua  vez  foy  la 
que  a  o  cura  fez  hyr  por  força  por  o  dito  seu  gemro  hir  dizer  ao  cura  que  a 
fizesse  hir  a  Igreja  e  quando  ella  denunciante  vay  a  Igreja  diz  a  hua  sua 
filha  que  tem  em  casa  que  será  de  vimte  anos  que  oulhe  se  a  dita  Catarina 
lopez  vay  a  Igreja  e  a  dita  sua  filha  lhe  diz  que  nam  e  vendo  ella  declarante 
que  a  dita  christãa  nova  nam  hia  a  Igreja  lhe  disse  por  que  nam  hia  a 
Igreja  e  ella  lhe  Respondeo  que  nam  hia  porque  nam  tinha  manto  e  avera 
quatro  ou  cinquo  meses  pouco  mais  ou  menos  que  tem  manto  e  que  despois 
que  o  tem  nunqua  a  vio  entrar  na  Igreja  se  nam  que  agora  avera  três  so- 
manas  pouco  mais  ou  menos  que  lhe  ella  denunciante  Rogou  que  lhe  fosse 
fazer  christão  do  (sic)  negros  pequenos  que  lhe  vieram  então  foy  ser  sua  ma- 
drinha dos  ditos  negrinhos,  e  a  dita  Catarina  Lopez  antes  de  ter  manto  e 
asy  despois  de  o  ter  sempre  vay  a  Ribeira  em  corpo  com  huu  balaio  na  mão 
buscar  as  cousas  pêra  sua  venda  e  que  quando  por  hi  passa  o  Santíssimo 
Sacramento  se  esta  á  porta  se  põem  de  Joelhos  com  as  mãos  alevantadas, 
mas  se  esta  la  em  cima  no  sobrado  nam  na  vee  chegar  a  Janella  por  que 
ella  declarante  tem  muito  temto  nysso  e  lhe  parece  mal  o  que  faz  em  nam 
acudir  a  ver  ao  menos  da  Janella  e  acerqua  de  ella  nam  hir  a  myssa  poderá 
saber  Ana  Borges  molher  de  Thome  Fernandez  pychaleyro  e  Eva  Luis  sua 
vizinha  molher  de  Jerónimo  Fernandez  piehaleyro  e  Marya  de  Bragança,  e 
que  hé  lembrada  que  quando  o  dito  Amryque  Fernandez  dizia  a  dita  sua 
sogra  que  lhe  trazião  pão  de  casa  das  Judias,  a  dita  Caterina  Lopez  respon- 
deo que  lho  mandava  sua  ama  por  esmola  e  que  isto  hé  verdade  pollo  Jura- 
mento que  tem  Recebydo  e  que  o  diz  por  descarego  de  sua  consiencia  e  ai 
nam  dise  e  do  costume  dise  nada  soomente  que  ha  dias  que  teve  com  ella 
deferenças  de  palauras  e  despois  forão  amygas  e  o  sam  e  lhe  foy  mandado 
ter  segredo  sobre  carrego  do  juramento  e  ella  asy  o  prometeu.  Manuel 
Cordeyro  o  escrevi  e  asiney  por  ella  a  seu  Rogo.  —  Manuel  Cordeyro. 

«E  dise  mais  a  dita  Ginevora  Mendez  que  na  dita  sua  Rua  na  casa  onde 
pousa  a  dita  Catarina  Lopez  christãa  nova  pousa  huu  christão  novo  alfayate 


64  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

que  se  chama  Gaspar  Nunez  o  qual  auerá  dez  annos  que  pousa  na  dita  casa 
pouco  mais  ou  menos  e  que  aueraa  ciuquo  que  ella  denunciante  pousa  de* 
fronte  delle  os  quaes  fará  pêra  Sam  Joam,  ver  que  sempre  aos  sábados  co- 
mumente  elle  e  sua  molher  comem  ao  sol  posto  e  os  outros  dias  da  somana 
comem  como  comem  os  outros  cliristãos  e  vee  que  aos  sábados  trabalham 
asy  elle  como  a  dita  sua  molher  e  que  aos  domyngos  e  festas  nam  na  vee 
hir  a  myssa  se  nã  algua  ora  por  maravilha  e  porem  que  ella  hé  molher  que 
crya  e  porem  tampouco  quando  nam  crya  nam  vay  a  myssa  senam  de  grande 
maravilha  como  dito  tem  e  que  vay  a  casa  de  sua  may  com  seus  filhos  que 
vive  a  boa  vontade  e  que  na  Rua  ouue  com  o  dito  Gaspar  Nunez  Rezões 
Ana  Rorges  e  lhe  chamou  Judeu  Judeu  que  se  eu  a  Santa  Inquisyção  vou 
dizendo  eu  direy  como  vos  vejo  fazer  adefinas  (sic)  e  fazer  comeres  de  di- 
versas maneiras  de  Judeus  e  que  vio  e  ouvio  que  a  molher  do  dito  Gaspar 
Nunez  cuyjo  nome  nam  sabe  estando  pêra  parir  nunqua  nomeaua  o  nome  de 
nosso  Senhor  nem  de  nossa  Senhora  e  dizendo  lhe  a  parteyra  e  ella  denun- 
ciante que  chamasse  por  o  nome  de  nossa  senhora  e  que  ella  alumyarya  e  a 
dita  molher  de  Gaspar  Nunez  dizia  que  fará  ora  o  Senhor  meu  tio,  senhora 
tia,  e  a  dita  tia  a  Reprendia  que  deyxasse  seu  tio  e  que  chamasse  por  nossa 
Senhora  a  dyta  molher  tornara  a  dizer  que  farya  ora  o  senhor  seu  tio  e  nun- 
qua nomeou  o  nome  de  nosso  senhor  nem  de  nossa  senhora,  e  sendo  per- 
guntada quanto  tempo  averya  que  fora  o  do  parto  que  nam  querya  chamar 
por  nossa  senhora,  disse  que  averya  nove  anos  e  o  Senhor  Inquisidor  lhe 
disse  que  soomente  lhe  perguntão  a  ella  por  o  que  sabe  de  cinquo  anos  a 
esta  parte  acerqua  do  que  vio  fazer  e  dizer  a  christãos  novos  por  que  o  de 
mais  tempo  lhe  estava  perdoado  por  Sua  Santidade  e  ai  nam  disse  e  do  cos- 
tume disse  que  já  muitas  vezes  bradarão  sobre  filhos  e  porem  que  agora  que 
sam  amygas  e  se  falão.  Manuel  Cordeyro  o  escrevy  e  asiney  por  ella  a  seu 
Rogo. —   O  licenciado  Pedroallvarcz  —  Por  ella  Manuel  Cordeyro».  ' 


XII. — Barreto  (Carlos  José).  —  Delineou  de  1730  a  1734,  o  Antipho- 
nario,  em  4  volumes,  da  Sé  do  Porto.  Veja-se  o  artigo  Rocha  de  Magalhães 
(PantaleãoJ. 


XIII.  —Bernardes  de  Carvalho  (Francisco).  —  Em  19  de  setembro  de  1814 
foi  admittido  como  ajudante  de  pintura  na  obra  do  Real  Paço  d' Ajuda,  tendo  sido 


1  Torre  do  Tombo.  Livro  3.°  de  Denuncias  da  Inquisição  de  Lisboa,  fl.  151.  (N.*  104).. 


NOTICIA  OK  ALGUNS  PINTOKES 


65 


discípulo  de  Archangelo  Foschini  e  ajudante  de  Bartholomeu  António  Calixto. 
O  governo  de  1821  expulsou-o,  tendo  sido  mais  tarde  readmittido  com  di- 
minuição de  vencimento.  Em  o  de  abril  de  1830  requereu  para  que  fosse 
melhorada  a  sua  situação,  sendo  o  seu  requerimento  abonado  com  os  attes- 
tados  dos  dois  artistas  acima  referidos,  que  louvam  a  sua  intelligencia,  appli- 
cação  e  bons  costumes.  Estas  certidões  são  datadas  do  paço  d'Ajuda,  a  de 
Foschini  a  20  de  setembro  de  1819,  e  a'de  Calixto  a  20  de  dezembro  do 
mesmo  anno. 

«Senhor  —  Diz  Francisco  Bernardes  de  Carvalho,  Pintor  de  Figura  His- 
tórica, que  sendo,  nomeado  em  19  de  setembro  de  1814,  Ajudante  de  hum 
dos  Professores  da  mesma  Arte  Empregado  na  Decoração  das  sallas  do  Real 
Paço  d'Ajuda  com  o  vencimento  de  800  reis  aonde  o  supplicante  trabalha 
effectivamente  á  15  para  16  annos  tendo  sido  expulso  pello  governo  de  1821, 
e  depois  admetido  com  diminuição  de  vencimento,  como  de  tudo  se  pode 
mandar  enformar;  sempre  de  então  athé  ao  presente  executou  segundo  seus 
talentos  os  objectos  de  que  tem  sido  encarregado  com  aquella  assiduidade 
própria  de  hum  empregado  zeloso,  o  que  fás  vêr  pellos  Decomentos  juntos 
não  tendo  no  decurso  de  tantos  annos  que  serve  com  actividade  e  préstimo 
como  mostra  pellos  dittos  Decumentos  augmento  algum  para  mais  de  tal  no- 
meação havendo  outros  que  teem  sido  augmentados  por  differentes  vezes 
athé  ao  vencimento  de  1000  reis  e  alguns  destes  mais  modernos  que  o  Sup- 
plicante e  prestando  menos  serviço  em  utelidade  da  dita  Real  Obra :  O  sup- 
plicante conhecendo  de  perto  as  rectas  intenções  de  Vossa  Magestade  em 
dezejar  remunerar  os  vassallos  fieis  que  de  tão  boa  vontade  se  prestão  no 
Real  Serviço  (o  que  fás  ver  pello  1.°  Decumento  induzo)  e  que  nas  Artes  se 
mostrão  assíduos,  motivo  porque  o  Supplicante  se  prostra  aos  Reaes  Pés  de 
V.  Mag.de,  supplicando  a  Graça  de  mandar  por  Real  Decreto  ou  Aviso  con- 
firmar-lhe  como  ordenado  o  dito  vencimento  de  800  reis  que  pella  ditta  no- 
meação de  tão  decoroso  emprego  lhe  foi  conferido  pella  Nobre  Arte  que  exerce 
(como  ja  se  tem  praticado,  o  que  Sub-Inspector  da  Real  Obra  poderá  Infor- 
mar: Portanto  P.  a  V.  Mag.de  que  attendendo  ao  que  o  Supplicante  tão  hu- 
mildemente expõe  e  Supplica  se  digne  mandar  (em  attenção  a  seu  prés- 
timo e  antiguidade)  como  requer,  ou  como  for  de  boa  intenção  de  V.  Mag.de 
Em  5  de  Abril  de  1830.  Francisco  Bernardes  de  Carvalho.  E.  R.  M.ce  ». 

«Archangelo  Fosquini  Cavalleiro  na  Ordem  de  Christo  Mestre  de  Pintura 
do  Sereníssimo  Senhor  Infante  D.  Pedro  Carlos  que  Deos  haja  em  Gloria  e 
Pintor  da  Camera  de  V.  Mag.de  Fid.ma  que  Deos  Guarde.  Attesto  que  Fran- 
cisco Bernardes  de  Carvalho  prencipiou  a  ser  meu  Descipulo  em  1 1  de  Ja- 
neiro de  1813  cujo  sendo  dotado  de  muito  talento  e  applieação  para  esta 
9 


66  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Bella  Arte  tem  feito  progressos  consideráveis  no  Dezenho  e  Pintura  a  óleo  a 
proporção  do  tempo  que  tem  de  Estudo  e  das  obrigações  que  tem  como  Aju- 
dante do  meu  Collega  Bartholomeu  António  Calixto  cuja  obrigação  dezempenha 
com  cuidado  e  attenção  e  no  pouco  tempo  restante  que  tem  para  se  dedicar 
ao  Estudo  desta  tão  nobre  Arte  procura  de  aproveitar  fazendo  Desenhos  e 
tirando  diversas  copias  de  Painéis  Antigos  debaixo  das  minhas  vistas  e  dire- 
cção imitando  tanto  o  Desenho  como  o  dorido  dos  dittos  e  segundo  o  tempo 
que  o  ditto  meu  Descipulo  tem  de  Estudo  acho  que  tem  aproveitado  e  adian- 
tado muito  e  portanto  se  faz  digno  da  Benigna  Contemplação  de  V.  Mag.de 
porque  tem  qualidades  necessárias  para  esta  Bella  Arte  e  huma  Conducta 
irreprehensivel  e  morigerados  costumes  submissão  e  respeito  ao  que  lhe 
tenho  determinado:  E  por  ser  verdade  e  esta  me  ser  pedida  e  o  mesmo  meu 
Descipulo  a  merecer  lhe  passei  o  presente  o  que  certifico  de  baixo  de  minha 
palavra  de  honra.  Beal  Obra  do  Novo  Paço  da  Ajuda  20  de  setembro  de  1819. 
—  Archangelo  Fosquinh. 

«Bartholomeu  António  Calixto,  Pintor  de  Historia  ao  serviço  de  V.  Mag.de 
Fid.  que  Deos  Guarde  e  hum  dos  seus  Pintores  da  Camera  etc.  Attesto  que 
Francisco  Bernardes  de  Carvalho  Estudante  da  Arte  de  Dezenho  e  Pintura 
(a  qual  tem  frequentado  com  assiduidade  fazendo  progressos  consideráveis) 
se  acha  empregado  na  Beal  Obra  de  Palácio  Novo  da  Ajuda  no  lugar  de  meu 
Ajudante  por  huma  Portaria  do  111."10  e  Ex.mi>  Sr.  Visconde  de  Santarém  de 
data  de  19  de  setembro  de  1814,  prehenchendo  sempre  com  o  Maior  cuidado 
e  attenção  possivel  as  obrigações  do  dito  lugar  que  vem  a  ser  dispor  em 
grande  os  cartões  dos  modelos  por  mim  dados  seja  nas  Paredes  seja  nos 
Panos  apparelhados  e  diversos  outros  preparativos  necessários  para  a  exe- 
cução das  obras  ou  trabalhos  de  que  sou  incumbido  para  a  ditta  real  Obra 
pertencentes  no  exercício  da  mesma  Arte  fazendo  pois  o  dito  meu  Ajudante 
caprixo  em  dezempenhar  com  muita  deligencia  e  grande  satisfação  minha 
tudo  o  que  acabo  de  expor  comportando-se  com  bom  procedimento,  costumes 
e  qualidades.  E  no  pouco  tempo  restante  da  sua  obrigação  se  dedica  a  Es- 
tudar procurando  aproveitar  fazendo  Desenhos  e  tirando  diversas  Copias  de 
Painéis  Antigos  imitando  escrupulosamente  tanto  o  dezenho  como  o  Clorido 
dos  dittos ;  E  portanto  em  attenção  ao  seu  modo  de  proceder,  estudo  e  obri- 
gação que  dezempenha  se  faz  merecedor  da  Benigna  Contemplação  de  V; 
Mag.de:  Por  ser  verdade  e  esta  me  ser  pedida  lhe  passei  o  que  certifico. 
Beal  Obra  do  Novo  Paço  d' Ajuda  20  de  Dezembro  de  1819.  Bartholomeu 
António  Calisto».  ■ 


'  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  DÉ  ALGUNS  PINTORES  67 

XIV.  —  Bruneti  (Caetano).  —  Em  carta  de  D.  Luis  da  Cunha,  dirigida  de 
Madrid  á  corte  portugueza  em  8  de  dezembro  de  1719,  lè-se  o  seguinte 
paragrapho:  «e  pelo  que  toca  aos  setins  pintados  de  Caetano  Bruneti  farei 
o  mesmo». 


XV.  —  Capisani.  —  Pintor  italiano  auctor  de  um  bello  retrato  de  Carlos 
Alberto,  offereeido  por  seu  filho  Victor  Manuel,  rei  da  Sardenha,  á  Camará 
Municipal  do  Porto. 


XVI. —  Carneiro  da  Costa  (José).  — 'Apesar  de  ser  um  simples  artífice,  pare- 
ce-me  curioso  inserir  aqui  o  seu  nome,  que  resalta  de  um  documento,  em  que 
vem  um  attestado  de  Manuel  Piolti,  attestado  que  se  torna  recommendavel  não 
só  por  ser  assignado  por  aquelle  artista,  como  também  por  se  n'elle  fazer 
referencia  ao  benemérito  pintor  António  Ignacio  Vieira,  de  quem  não  acho 
noticia  em  outra  parte,  trabalhando  elle  nas  obras  do  palácio  d' Ajuda. 

José  Carneiro  da  Costa  era  empregado  na  casa  das  Untas  daquelle  pa- 
lácio, exereitando-se  em  as  moer.  havia  já  cerca  de  dez  aunos.  Em  outubro 
de  1826  requereu  elle  ao  director  da  obra,  o  architecto  Rosa,  que  lhe  fosse 
passado  um  attestado  do  seu  bom  comportamento  e  serviço.  Piolti  foi  quem 
o  passou,  como  atrás  digo. 

«Ulustrissimo  Senhor.  —  Diz  José  Carneiro  da  Costa  que  elle  suplicante 
se  acha  ha  nove  annos  a  dez  empregado  na  Casa  das  Tintas  da  Real  Obra 
do  Pallacio,  de  que  Vossa  Senhoria  hé  dignissimo  Inspector;  no  exercício  de 
as  moer,  o  qual  por  certas  circumstancias  que  o  acompanhão  se  lhe  fãs  pre- 
cizo  que  Vossa  Senhoria  haja  por  bem  mandar  ao  Senhor  Manoel  Piolti  como 
mestre  e  Arquitecto  que  hé  da  Pintura  passe  ao  Supplicante  huma  attestação 
do  bom  ou  mao  serviço  que  tenha  feito  na  referida  Obra.  Nestes  termos  Pede 
a  Vossa  Senhoria  seja  servido  de  assim  o  mandar.  E  R.ra Mercê». 

^Despacho.  Passe  querendo  Real  obra  27  de  outubro  de  1826.  —  Roza*. 

«Attestado.  Ulustrissimo  Senhor.  —  Em  observância  do  seu  Despacho 
Attesto  que  conformando-me  com  o  parecer  e  esperiencia  do  Benemérito 
Pintor  António  Ignacio  Vieira,  que  comigo  está  adjunto  nesta  Real  obra  do 
Novo  Palácio  d'Ajuda  acho  que  o  Suplicante  Jozé  Carneiro  tem  procedido 
sempre  com  bom  comportamento  em  seus  costumes  e  com  o  bom  préstimo 


68  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

que  hé  bem  notório.  Real  obra  do  Novo  Palácio  d' Ajuda,  em  31  de  outubro 
de  18-26.  —  Manuel  Piolti*.  l 


XVII. — Carvalho  (Domingos).—  Pintor,  que  residia  em  Lisboa,  próximo  da 
Sé.  Pelos  annos  de  1337.  estando  em  sua  casa  Pêro  Rodrigues,  carpinteiro  de 
marcenaria  tiveram  uma  pratica  sobre  comida,  na  qual  pratica  enterrem 
Christovam  de  Utrecht.  Consta  isto  de  um  depoimento  feito  por  Pêro  Rodri- 
gues no  tribunal  da  Inquisição,  a  8  de  janeiro  de  1541.  Censulte-se  o  artigo 
concernente  a  Christovam  de  Utrecht. 


XVIII. —Conceição  (Manuel  da). —  Tendo  falleeido  Manuel  António  Silva, 
desenhador  de  productos  uaturaes  no  Museu  e  Jardim  Rotanico  dAjuda,  um  dos 
pretendentes  ao  logar  foi  Manuel  da  Conceição,  a  quem  António  Pedro  Lara 
de  Carvalho,  em  officio  de  25  de  junho  de  1833,  dirigido  ao  Conde  de  Rasto, 
considerava  como  um  dos  mais  habilitados,  já  pelas  suas  aptidões  artísticas, 
já  como  pelo  seu  comportamento  e  leaes  sentimentos  de  fidelidade  ao  sr. 
D.  Miguel  Primeiro. 

A  comprovar  estas  asserções  encontram-se  três  certificados  adjuntos  ao 
officio  de  Lara  de  Carvalho,  sendo  dois  de  Archangelo  Fosehini  e  outro  de 
João  José  Mascarenhas  de  Azevedo  e  Silva.  O  pintor  da  real  camará  attesta, 
a  6  de  março  de  1820,  que  elle  era  seu  discípulo  desde  outubro  de  1819, 
e  que  mostrava  grande  propensão  para  a  nobre  arte  de  pintura,  em  cujo 
exercido  se  applicava  com  egual  zelo  e  gosto.  Fosehini  morava  então  na 
rua  do  Giestal.  O  segundo  attestado  tem  a  data  de  23  de  junho  de  1833, 
foi  passado  em  Relem  e  n'elle  confirma  Fosehini  o  bom  juizo  que  formara 
do  seu  discipulo,  asseverando  que  elle  aproveitara  sempre  muito  no  estudo, 
desde  que  entrara  como  praticante  para  a  obra  do  Real  Paço  d'Ajuda.  O 
terceiro  attestado,  finalmente,  de  João  José  Mascarenhas  de  Azevedo  e  Silva, 
refere-se  aos  bons  costumes  de  Manuel  da  Conceição  e  á  sua  fidelidade  á 
causa  de  D.  Miguel. 

Em  conferencia  dos  professores  que  trabalhavam  e  ensinavam  na  obra 
do  Real  Paço  d'Ajuda.  celebrada  em  5  de  julho  de  1823,  vem  a  seguinte 
apreciação  a  seu  respeito: 

«Manuel  da  Conceição,  idade  19  annos,  e  de  estudo  19  meses;- fez  um 
desenho  tirado  da  cabeça  de  Antino  em  gesso :  foi  julgado  pelos  Artistas 


Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  PE  ALGUNS  PINTORES  69 

digno  de  passar  a  praticante  de  Desenho  de  l.a  classe  com  o  vencimento  de 
300  reis:  actualmente  não  tem  vencimento». 

Yeja-se  o  artigo  referente  a  Silva  (Manuel  António  da). 

«Ill.ra0  e  Ex.m0  Sr.  —  Tendo  proximamente  fallecido  Manuel  António  da 
Silva  o  único  Artista  Desenhador  destes  Reaes  Estabelecimentos,  e  tornando 
este  lugar  assas  necessário,  hé  do  meu  dever  levar  ao  Alto  Conhecimento  de 
V.  Ex.a,  que  entre  os  Pertendentes,  que  se  me  tem  appresentado,  eu  me 
persuado,  que  deve  preferir  Manuel  da  Conceição,  que  pelo  seu  bom  com- 
portamento, fieis  sentimentos,  e  boa  applicação  merece  a  primazia  pelos 
motivos  que  passo  a  expor. 

«Pelos  documentos  que  me  entregou;  e  que  incluzos  levo  â  Presença  de 
V.  Ex.a  consta  que  em  outubro  de  1819  principiou  a  praticar  a  arte  de  Pin- 
tor de  Figura  no  Real  Palácio  d' Ajuda,  sendo  Discipulo  do  hábil  Fuschini, 
Pintor  da  Real  Camará,  com  cujo  Professor  tem  athe  hoje  continuado,  con- 
tando de  exercício,  e  pratica  14,  tendo  neste  longo  período  approveitado  como 
consta  das  duas  primeiras  attestações,  mostrando  a  terceira  a  sua  adzão  á 
Real  Pessoa  de  S.  Mag.de :  por  todos  estes  princípios,  eu  o  julgo  nas  circun- 
stancias de  occupar  o  lugar  proximamente  vago,  para  o  exercer,  e  disfrutar 
da  mesma  maneira  que  o  antecessor  fallecido  e  por  isso  o  faço  presente  a 
V.  Ex.a  para  deliberar  como  for  servido. 

«Deos  Guarde  a  V.  Ex.a  Real  Muzeo  e  Jardim  Rotanico  25  de  Junho  de 
1833.  — IU.m0  e  Ex.m0  Sr.  Conde  de  Rasto.  —  António  Pedro  Lara  de  Car- 
valho». 

«Arcangelo  Foschini  Mestre  de  Dezenho  e  Pintura  do  Ser.m0  Senhor  In- 
fante D.  Pedro  Carlos  que  Deos  ha  em  Gloria,  cavalleiro  professo  na  Ordem 
de  Christo,  Pintor  da  Camará  e  Corte  de  S.  Mag.de  Fidellissima.  Attesto  que 
Manuel  da  Conceição  hé  meu  Discipulo  desde  principio  do  mez  de  outubro 
do  anno  de  1819  próximo  passado  mostrando  grande  e  natural  propensão  para 
a  Nobre  e  Bella  Arte  de  Pintura ;  por  cujo  motivo  lhe  comecei  a  dar  os  pri- 
meiros Elementos  de  Dezenho,  que  tem  trasladado  com  exacção  e  fidelidade, 
sendo  muito  assíduo  na  applicação  e  atento  ás  Regras  que  lhe  tenho  dado: 
o  que  tudo  dá  indicio  de  ser  nascido  com  o  dom  e  génio  próprio  para  esta 
Bella  Arte;  e  adiantamento  e  progresso  que  tem  feito  hé  superior  ao  tempo 
que  tem  de  estudo;  e  une  a  isto  numa  boa  conducta  submissão  e  respeito, 
fazendo-se  digno  de  toda  a  Protecção  para  poder  continuar  a  dezenvolver  as 
innatas  disposiçõis  de  que  a  natureza  o  dotou ;  visto  ser  de  Pais  pobres  e 
faltos  de  meios  próprios  para  este  desenvolvimento,  e  por  ser  verdade  pas- 


70  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

sei  a  prezente  que  certefico  debaixo  da  minha  palavra  de  honra.  Rua  do 
Giestal.  Hoje  6  de  Março  de  1820.  —  Arcangelo  Foschini». 

«Reconheço  o  signal  supra  de  Arcangelo  Foschini.  Lisboa  17  de  Mayo 
de  1821.  —  Em  testemunho  da  verdade  Martiniano  José  Vicente». 

Logar  do  sello  da  Causa  Publica.  «Arcangelo  Fosquini  Cavalleiro  Professo 
na  Ordem  de  Ghristo  e  condecorado  com  as  Medalhas  de  Fidelidade  e  Pintor 
da  Camará  de  S.  Mag.de  etc. 

«Attesto  que  Manoel  da  Conceição  Praticante  de  Pintura  no  Real  Paço 
novo  d' Ajuda  tem  sido  meu  Discípulo  desde  o  principio  que  para  lá  entrou, 
tendo  aproveitado  as  minhas  lições  tanto  no  Dezenho  como  na  Pintura  com 
grande  adiantamento,  e  continua  applicação  unindo  a  isto  huma  boa  conducta 
e  óptimos  costumes,  e  por  me  ser  pedida  passei  a  prezente,  o  juro  se  ne- 
cessário for.  Relem  aos  23  de  Junho  de  1833.  —  Arcangelo  Fosquini. 

«Reconheço  o  signal  supra.  Alcântara  na  Calçada  da  Tapada,  23  de  Junho 
de  1333.  Logar  do  signal  publico  em  testemunho  de  verdade.  — Luiz  António 
de  Lemos». 

Logar  do  sello  do  Censo  Publico.  «João  Jozé  Mascarenhas  de  Azevedo  e 
Silva  do  Conselho  de  S.  Mag.de  Fidelíssima  e  do  da  Real  Fazenda  e  Estado 
da  Casa  das  Senhoras  Raynhas,  Vereador  do  Senado  da  Camera,  Juiz  do 
Tombo  da  Fazenda  da  Cidade  e  Prezidente  do  Deposito  Publico,  tudo  pelo 
Mesmo  Augusto  Senhor  o  Senhor  D.  Miguel  Primeiro,  que  Deos  Guarde. 
Attesto  e  juro  sendo  necessário,  porque  sempre  juro  o  que  attesto  que  co- 
nheço com  muita  particularidade  e  frequência  o  Senhor  Manuel  da  Conceição 
e  toda  a  sua  família  que  elle  ampara,  vivendo  com  muita  regularidade,  e  sendo 
tão  fiel  a  S.  Mag.de  o  senhor  D.  Miguel  Primeiro,  e  tão  firme  em  seus  puros 
sentimentos  de  Realeza,  que  seria  muito  para  dezejar  que  nenhum  Portugnez 
tivesse  menos  adhesão  ao  Mesmo  Augusto  Senhor,  por  que  então  nenhum 
Portuguez  seguiria  parte  do  contrario,  nenhum  Portuguez  se  deixaria  allu- 
cinar  para  seguir  rebeldes.  E  por  esta  me  ser  pedida,  a  passei  em  abono 
da  verdade.  Lisboa,  24  de  Junho  de  1833. — João  Jozé  Mascarenhas  de  Aze- 
vedo e  Silva».  l 


XIX.  —  Costa  Meesen  (Félix  da).  —  Já  tratei  d'este  artista  no  artigo  con- 
cernente a  José  de  Avelar  Rebello.  O  apellido  Meesen  não  o  encontro  nos 
documentos  de  que  tenho  noticia,  e  só  o  vejo  mencionado  em  Cyrilo  Volkmar 


Torre  do  Tombo.  Maço  444  dos  papeis  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  71 

Machado  (Collecção  de  Memorias,  etc.  pag.  82).  Accrescentarei  agora  mais 
alguns  interessantes  pormenores  biographicos. 

Pedro  Serrão,  estudante  de  theologia  na  Universidade  de  Coimbra,  filho 
de  António  Serrão  de  Castro,  auctor  dos  Ratos  da  Inquisição,  poema  publicado 
por  Camillo  Castello  Branco,  padeceu  como  aquelle  os  rigores  do  terrível  tri- 
bunal, sendo  para  notar  que  as  declarações  do  pae  e  outros  membros  da  familia 
contribuíssem  não  pouco  para  a  sua  eondemnação.  Os  laços  da  mais  intima 
consanguinidade  não  obstavam  a  estas  miseráveis  delações  mutuas,  já  pro- 
vocadas pelo  medo,  já  pelo  rancor,  pervertidos  pelo  fanatismo  ou  pelas  mais 
desvairadas  sugestões,  os  mais  puros  affectos,  os  mais  nobres  sentimentos, 
os  mais  piedosos  deveres. 

Os  processos  do  pae  e  do  filho  merecem  ser  lidos  e  cotejados  não  só 
porque  se  completam,  como  também  porque  offerecem  um  quadro  vivo  da 
sociedade  da  época,  quadro  em  que  se  destacam  algumas  personalidades  que 
é  justo  não  fiquem  em  obscuro  esquecimento. 

Pedro  Serrão  que  estava  preso  em  1673  apresentou  um  rol,  bastante  ex- 
tenso, de  testemunhas  de  defesa,  algumas  das  quaes  todavia  não  foram  inqui- 
ridas. Eis  a  sua  enumeração: 

O  padre  Bartholomeu  do  Quental,  da  congregação  do  Oratório,  de  49 
annos. 

O  padre  João  Lobo,  da  mesma  Congregação,  de  45  annos. 

O  padre  Domingos  Martins  Vianna,  de  35  annos,  morador  na  rua  dos 
Escudeiros. 

António  Botelho,  ourives  de  ouro,  de  42  annos. 

Domingos,  latoeiro. 

Francisco  de  Coimbra,  de  45  annos,  imaginário,  morador  na  rua  dos  Ga- 
legos. 

Manoel  de  Oliveira,  livreiro  ao  Colégio. 

Luis  Félix,  moço  da  Capella. 

António  de  Moraes. 

Maria  Boiz. 

Jerónimo  Gomes,  de  30  annos,  violeiro,  morador  na  rua  dos  Escudeiros. 

Félix  da  Costa  e  Brás  de  Almeida,  seu  irmão,  pintores. 

Francisco  Nunes,  de  29  annos,  latoeiro,  morador  aos  Caldeireiros. 

Manoel  Carvalho,  de  25  annos,  idem,  idem. 

Pedro  da  Bocha,  de  30  annos,  espadeiro,  morador  na  rua  dos  Douradores. 

Todos  estes  indivíduos,  os  que  directamente  se  filiam  com  o  assumpto  de 
que  venho  tratando,  são  os  dois  pintores  Félix  da  Costa  e  Brás  de  Almeida, 


72  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

seu  irmão,  o  ultimo  dos  quaes  era  completamente  desconhecido,  ignorando-se 
por  conseguinte  esta  fraternal  correlatividade.  Ambos  moravam,  ao  que  pa- 
rece, na  mesma  casa  na  rua  dos  Calafates,  hoje  transformada  em  rua  do 
Diário  de  Noticias.  Abaixo  dou  o  depoimento  de  Félix  da  Costa  e  no  logar 
competente  o  de  seu  irmão  Brás  de  Almeida. 

Ha  tempos  uma  pessoa  das  relações  do  meu  particular  amigo  general 
Brito  Bebello,  foi-o  consultar  sobre  o  valor  de  alguns  manuscriptos  que  dese- 
java vender  e  a  quem  o  general  lhe  indicou  a  conveniência  de  os  apresentar 
á  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa.  Esta,  certamente  por  motivos  muito  pon- 
derosos, não  os  adquiriu,  offereeendo  uma  quantia  inferior  ao  preço  que  se 
julgava  valerem.  Entre  elles  havia  um  autographo  e  original  de  Félix  da 
Costa,  do  qual  aquelle  illustre  escriptor  teve  a  feliz  ideia  de  fazer,  para  seu 
uso,  uma  descripção  minuciosa,  que  amavelmente  me  facultou  agora,  para  a 
poder  reproduzir  aqui.  Vè-se  que  Félix  da  Costa,  como  tantos  outros  seus 
contemporâneos,  aliás  pessoas  de  merecimento,  era  um  sonhador  messiânico 
do  rei  Encuberto  e  da  fundação  da  monarchia  universal,  ou  quintu  império, 
sob  o  sceptro  da  Lusitânia.  Eis  aqui  a  alludida  descripção : 

«Exposição  do  xi,  xn 

e  xm  Capitules  do 

iv  livro  do  Propheta 

Esdras. 

Sobre  os  acçidentes  passados,  presentes  e  futuros 

da  resulção  do  grande,  e  tremendo  Império  Othomano 

significado  em  visão  a  Esdras,  em  hua 

Águia,  que  viu  sobia  do 

Mar.— 

Igualada  a  visão  e  suas  particularidades  com 

os  suecessos  que  tem  havido  em  o 

mesmo  Império, 

E  mostrando  o  fim  delle,  em  o  presente  Ma- 
hometh  quarto  que  hoje  Regna 

Por 
Félix  da  Costa,  Pintor  Theorieo,  e  Pra- 
tico. Didicado  ao  Augusto  varão 
Rey  Encuberto,  que  hade  des- 
truir esta  Águia,  Otho- 
mana,  Como  Leão. 
Em  Lix.»  an"  1687 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  73 

4.u  de  235  foi.  numeradas  até  a  72  e  sem  numeração  dahi  em  diante.  Com 
uma  arvore  genealógica  dos  reis  e  imperadores  turcos  desde  Sulyman  que 
deu  principio  á  conquista  em  1230,  até  Mahomet  4."  a  pag.  39  e  40. 

Encerra  seis  figuras  da  águia  da  visão  de  Esdras,  com  diversas  modifica- 
ções das  phases  do  império  otliomano.  até  apparecer  com  uma  só  cabeça,  e 
a  distancia  o  Encuberto  em  forma  de  leão,  desenhadas  a  sépia,  e  nas  folhas 
113,  132,  139,  141,  143,  143  e  14(5.  E  mais  uma  a  fl.  117  da  quarta  besta 
da  visão  de  Daniel;  e  a  11.  129  uma  grosseira  carta  geographica  desde  o 
meridiano  39°  a  91°,  isto  é  da  Itália  á  Pérsia. 

A  dedicatória  è  como  segue: 

AugUStO  é   J£pa;'.avuu 

Supremo  Mouarcha,  Magnânimo,  Invicto,  Reservado,  transplantador  da  fee 
catholiea  e  Rey  Encuberto.  Leão  sem  temor,  vento  velox,  homem  prudente, 
varão  singular  e  filho  amado.  Como  Rey,  logrando  o  titulo  de  único  Empe- 
rador ;  como  Leão,  despedaçando  inobedientes ;  como  vento,  sumergindo  no 
abysmo  incrédulos;  como  homem,  convertendo  pertinazes;  como  varão,  lo- 
grando aplauzos  de  soberania  ;  e  como  filho  amado,  e  querido  de  seu  creador. 
A  vos  Augusto  dedico  este  cansaço  de  tantos  dias,  e  a  narração  de  vossa 
conquista;  destruindo  o  Otliomano  Império;  restaurando  a  Santa  cidade,  e 
unindo  tudo  em  híia  geral  paz:  para  q  vendo  o  Mundo  vossa  presença  vos 
obedeça  todo ;  e  manifestadas  aos  incrédulos  vossas  maravilhas,  fiquem  cren- 
tes, no  que  duvidavão:  porque  destruídos  tantos  soberbos,  fiquem  postrados 
a  vossos  pés;  e  convertidos  tantos  pagãos,  fiquem  livres  da  pena  eterna. 
Logrando  vós  Soberano  Mouarcha  os  aplausos  de  todo  o  oniuerso  e  senhorio 
de  toda  a  terra:  Conçervando  em  socego  (adjunto  com  o  Pastor  da  Igreja) 
o  rebanho  de  Jesus  Christo ;  e  por  fim  pesuindo  o  Trono  que  vos  está  apa- 
relhado na  gloria  admetindo  a  oferta,  e  afecto  deste  vosso  esperante  e  desejoso 

de  vos  ver 

E  bejar  vossas  plantas 

ainda  q  indigno 
Félix  da  Costa. 

No  verso  da  fl.  18  começa  a  Historia  geral  dos  Turcos  Rey  nos  que  houve 
delles  Império  Otliomano  e  Reys  delle,  acabando  a  fl.  113;  começa  então  a 
paraphrase  da  visão  d'Esdras  e  sua  concordância  com  os  successos  do  Império 
Otliomano,  até  fl.  206 ;  onde  principiam  varias  prophecias.  Termina  a  obra 
com  estas  palavras : 

«Em  muito  grande  falta  tenho  cahido  para  com  o  leitor;  por  que  prome- 
to 


74  NOTICIA   DE  ALGUNS  PINTORES 

tendo  em  o  principio  desta 'obra  ser  breve  por  não  ser  molesto  fui  tão  per- 
longado,  que  considero  causaria  enfado,  porem  tenho  a  desculpa  em  meu 
fauor  que  me  liure  desta  censura.  Aquilo  que  se  ama  com  afecto  causa  aliuio 
ainda  que  penoso,  principiei  com  tanto  amor  este  volume  que  todo  o  trabalho 
delle  me  pareceo  descanço,  e  sendo  a  matéria  a  que  muito  amo  me  fuy  em- 
golfando  em  sua  narraçnm,  que  mais  dissera  se  mo  não  atalhara  o  tempo 
considerando  ser  tão  breue  o  que  falta  para  o  comprimento  desta  uizão  que 
poderia  narrar  o  perterito,  e  não  o  futuro  desta  marauilha  da  omnipotência 
Diuina;  a  quem 

Soli  Deo  honor  et  gloria 
Matrique  sute.» 

É  autographo.  de  boa  letra  e  os  desenhos  são  bem  feitos. 

O  depoimento  inquisitória]  de  Félix  da  Costa  é  do  teor  seguinte: 

«Aos  vinte  e  quatro  dias  do  mez  de  Março  de  mil  seiscentos  settenta  e 
sette  annos,  em  Lisboa,  nos  estaos,  e  caza  primeira  das  audiências  da  Santa 
Inquisição,  estando  ahi  na  de  tarde  o  senhor  Inquisidor  Estevão  de  Britto 
Foios  mandou  vir  perante  sy  a  Felis  da  Costa,  pintor,  natural  e  morador 
desta  cidade,  na  rua  dos  Calafates  e  sendo  prezente  lhe  foi  dado  juramento 
dos  Santos  Evangelhos  em  que  pos  a  mão,  sob  cargo  do  qual  lhe  foi  mandado 
dizer  verdade  e  ter  segredo,  o  que  lhe  prometteo  cumprir  e  disse  ser  Christão 
velho  e  de  trinta  e  seis  annos  de  idade.  Perguntado  pelas  geraes?  Disse  nada. 
Perguntado  se  conhece  algumas  pessoas  prezas  pelo  santo  officio,  quem  são, 
quanto  tempo  há,  que  rezão  tem  de  conhecimento  e  de  que  tempo  a  esta 
parte?  Disse  que  alguns  conhecia,  e  entre  ellas  nomeou  o  Reo  Pedro  Serrão, 
ao  qual  diz  conhece  desde  minino  por  se  crearem  ambos  e  se  tratarem  sem- 
pre com  amizade.  Perguntado  em  que  conta  tem  ao  dito  Pedro  Serrão  no 
particular  da  sua  Christandade  vida,  costumes  e  religião? 

«Disse  que  tinha  ao  ditto  Pedro  Serrão  em  conta  de  bom  Christão  pelo 
ver  muitas  vezes  na  Congregação  do  Padre  Quental,  com  muita  devação  e 
ainda  em  caza  delle  testemunha  onde  assistia  ordinariamente  se  dava  sempre 
á  lição  da  Vida  de  Christo,  em  hum  livro  que  trataua  delia,  e  de  outros 
livros  espirituais,  que  também  tem  e  por  mais  não  dizer  lhe  foram  lidos  os 
1.°  e  2.°  artigos  da  Defeza  do  Reo,  a  que  foi  nomeado  testemunha,  que  sendo 
por  elle  ouvidos  e  entendidos. 


JV0TIC1A  DE  ALGUNS  PINTORES  75 

Ao  1.°  e  2.n  artigos 

«Disse  que  da  matéria  delles  não  sabia  mais  que  o  que  tem  deposto  ás 
geraes,  e  ai  não  disse  e  do  costume  disse  nada  e  assinou  com  o  ditto  senhor 
Inquisidor,  sendo  lhe  primeiro  lido  este  seu  testemunho.  Filippe  Barbosa  o 
escreui  —  Esteuão  de  Britto  Foios  —  Félix  da  Costa  *. » 


XX. —  Cunha  Assucar  (José  da).  —  Na  lista  de  10  de  novembro  de  1821 
dos  empregados  da  obra  do  Paço  da  Ajuda  figura  este  como  discípulo  de 
Piolti,  com  o  ordenado  de  200  reis.  Tinha  sido  nomeado  a  30  de  maio  do 
mesmo  anno. 


XXI. —  Cunha  Taborda  (José  da).— Vide  Taborda  (José  da  Cunha). 


XXII.  —  Espirito  Santo  (Xuis  de).  —  Executou  a  seguinte  obra: 
«Compromisso  da  Confraria  e  irmandade  da  Beãventurada  S.  Anna,  sita 
na  egreja  de  S.  Giam,  desta  cidade,  de  que  são  administradores  os  tanoeiros. 
1610".  No  fim:  «Foi  feito  por  Luis  do  Spiritu  Sancto;  cónego  religioso  vi- 
vente em  commum  da  ordem  de  São  João  Evangelista.  Anno  de  MDCXVIu. 
Folio  pequeno,  em  papel,  de  calligraphia  apreciável,  com  letras  illumina- 
das  e  uma  estampa.  Vi  este  exemplar  (outubro  de  93)  em  mãos  do  fallecido 
alfarrabista  Rodrigues,  com  loja  ao  Pote  das  Almas.  Estava  em  mau  estado, 
por  causa  da  ruindade  da  tinta,  que  tinha  çorroido  em  parte  o  papel.  Não 
sei  a  quem  foi  vendido,  nem  que  destino  levou. 


XXIII.  —Fernandes  (Balthasar).  —  Em  carta  de  11  de  junho  de  1515 
D.  Manuel  I  nomeou  Balthasar  Fernandes,  pintor,  recebedor  das  sisas  de 
Trevões  e  Várzeas.  Esta  carta,  estropiada  talvez  por  quem  a  registou,  está 
escripta  em  termos  pouco  explícitos,  não  se  podendo  avaliar  por  ella,  que 
qualidade  de  pintor  seria  Balthasar  Fernandes. 

«Dom  Manuell  etc.  a  quamtos  esta  nossa  carta  virem  fazemos  saber  que 
comfiando  nos  da  bondade  e  descriçam  de  belthesar  fernandez  pymtor  mora- 


Torre  do  Tombo.  Processo  de  Pedro  Serrão,  n.°  9797,  da  Inquisição  de  Lisboa,  fl.  2)S. 


76  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

dor  em  tomes  que  em  esto  nos  servira  bem  e  como  a  nosso  seruiço  conpre 
temos  por  bem  e  o  damos  ora  daquy  en  diamte  por  Recebedor  das  nossas 
sisas  da  dita  villa  de  trouoes  e  Varzias  ambos  de  bua  fregesia  com  o  quall 
oficio  avera  o  mantymento  proes  preealços  a  ele  direitamente  ordenados  per 
noso  Regimento  e  porem  mandamos  ao  noso  comtador  em  a  dita  comarca  ou 
a  quaes  quer  outros  nosos  oficiaes  e  pessoas  a  que  o  conhecimento  pertemcer 
e  esta  nosa  carta  for  mostrada  que  lio  metam  em  pose  dele  e  lho  leixem 
seruir  e  vsar  e  aver  o  mantymento  proes  e  preealços  asy  e  pela  maneira  que 
lhe  pertencer  aver  per  noso  Regimento  como  dito  he  por  quanto  nos  lhe  fa- 
zemos delle  mercê  novamente  ao  quall  dará  fiamça  abastante  ao  noso  almo- 
xarife da  dita  comtadoria  pêra  o  poder  Receber  e  ele  Jurou  em  a  nosa 
chamcelaria  aos  samtos  avanjelhos  que  bem  e  verdadeiramente  o  sirua  guar- 
dando a  nos  noso  serviço  e  as  partes  seu  direito  e  pagou  duzentos  reaes 
dordenado  delle  segundo  per  eertydam  de  pedro  gomez  esprivam  dante  o 
noso  Recebedor  delle  que  lhos  carregou  em  Receita  e  por  sua  guarda  lhe 
mandamos  dar  esta  carta.  Dada  em  Lisboa  a  xi  dias  de  Junho  el  Rey  o  man- 
dou per  o  baram  dalvito  etc.  do  seu  comselho  e  vedor  de  sua  fazenda  ano  do 
nacymento  de  noso  senhor  Jhesu  Christo  de  [  bc  xb  e  semdo  a  Renda  emfjada 
pelos  Rendeiros  e  Receberem  fsic)  nom  avera  nenhum  mantimento  nem  a 
nossa  custa  nem  a  dos  ditos  Rendeyros  o  qual  mamtymento  sam  mil  bc  reaes 
por  ano  e  Rendemdo  a  Renda  dezoito  mil  reaes  para  cyma  porque  ate  dezoito 
reaes  adaver  a  Rezam  doutemta  e  três  por  milheiro.  E  posto  que  a  mais 
Remda  nom  avera  cada  anno  mais  dos  mil  bc  reaes  posto  que  mais  Renda 
nom  avera  mais  que  os  ditos  J  bc  reaes»  (. 


XXIV. — Fernandes  (Domingos). — Era  pintor  e  morava  na  freguesia  de 
S.  Nicolau.  Em  20  de  maio  de  1562  apparece  a  confirmar  um  depoimento 
da  Santa  Inquisição.  Veja-se  o  artigo  que  publiquei  nas  Curiosidades  mit- 
sicaes  sob  o  titulo  de  Um  fabricante  de  cordas  de  viola  no  século  XVI. 


XXV. — Fernandes  (Martim). — Pintor,  pae  de  Domingos  Ferreira,  clérigo 
de  missa.  Residia  em  Cintra,  e  em  casa  d'elle  assistiu  Peio  Rodrigues,  carpin- 
teiro de  marcenaria,  a  diversas  praticas  religiosas,  em  que  entravam  também 
outras  pessoas  de  família,  as  quaes  praticas  lhe  pareciam  contrarias  á  nossa 
fé.  Isto  consta  do  seu  depoimento  feito  perante  o  tribunal  da  Inquisição,  a  8 


Torre  do  Tombo.  Chaueellaria  de  D.  Manuel,  iiv.  2i,  d.  8i. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  77 

janeiro  de  1541  e  que  o  leitor  poderá  apreciar  no  artigo  referente  a  Chris- 
tovão  de  Utrecht. 


XXVI.  —  Fernine  (D.  Júlio  César  de).  —  Italiano,  domiciliado  em  Lisboa, 
professor  de  André  Gonçalves  e  talvez  também  de  Vieira.  Vide  Castilho 
Amores  de  Vieira,  pag.  143. 


XXVII. — -Firmo  Duro  (Manuel). — Eis  a  nota  que  a  seu  respeito  exararam 
os  professores  da  obra  do  Real  Paço  d' Ajuda,  em  conferencia  de  5  de  julho 
de  1823  : 

«Manuel  Firmo  Duro,  idade  24  aimos  e  de  estudo  1  anno  completo;  fez 
um  desenho  tirado  da  cabeça  de  Leonardo  da  Vinci;  foi  julgado  pelos  artis- 
tas digno  de  passar  a  praticante  de  Desenho  de  I."  classe,  com  o  vencimento 
de  300  reis;  também  não  tem  vencimento.» 


XXVIII.  —  Fonseca  (António  Manuel  da).  —  D'este  pintor,  de  quem  já 
tratei,  existe  mais  um  opusculosinho,  que  escapou  ás  deligencias  bibliogra- 
phicas  de  Innocencio  Francisco  da  Silva.  É  em  8.°  pequeno,  de  15  paginas, 
e  intitula-se: 

Explicação  eollectiva  de  quadros  d' invenção  e  copias  executados  por  António 
Manuel  da  Fonseca,  Lisbonense,  durante  o  progressivo  curso  dos  seus  estudos 
nas  academias  de  Roma.  Lisboa,  1835.  Na  typ.  de  M.  de  Jesus  Coelho  &  Comp.a 
Rua  da  Rosa  n.°  163. 

Na  folha  immediata  lêem-se  as  três  seguintes  quadras  que  não  attestam, 
em  grau  elevado,  o  talento  poético  do  seu  auctor: 

Rainha  Augusta,  Imperatriz  Excelsa 
Que  dais  Valor,  e  Amparo  às  Artes  Bellas; 
A  que  auge  irão  com  Vosso  Amparo,  tendo 
Protectoras,  quaes  sois,  Amantes  delias. 

Annual  Exposição  de  óptimos  quadros 
Ostenta  o  P.mtheon,  sagrado  Templo; 
Assim  da  Igreja  o  Chefe  honra  a  Pintura, 
Qual  Roma,  Portugal  adopta  o  exemplo. 

Dos  moveis  Batalhões  aos  mutilados 

Da  Exposição  reverte  o  donativo; 

Que  mais,  porque  exabunde.  e  avulte  a  somma, 

Aos  Lusos  corações,  que  este  incentivo. 


78  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

D'estes  versos  se  collige  que  a  exposição  tinha  um  caracter  philantropico, 
revertendo  o  seu  producto  a  favor  dos  mutilados  dos  batalhões  moveis. 

A  pag.  5  começa  a  Explicação  collectiva  ou  a  lista  dos  quadros  executados 
por  Fonseca  a  qual  passo  a  transcrever  por  a  julgar  curiosa  para  a  vida 
artística  do  auctor: 

'l.°  Retrado  de  S.  M.  I.  O  Senhor  D.  Pedro,  apresentado  no  seu  perfeito 
estado  de  saúde,  como  appareceu  em  Paris,  antes  dos  encommodos,  e  tra- 
halhos  que  soffreu  em  promover  a  Restauração  da  Pátria. — Pertence  a  S.  M.  I. 

2.°  Retrato  de  S.  A.  R.  a  Duquesa  de  Leuchtemberg.  —  Idem. 

3.°  Retrato  do  Papa  Pio  vm.  —  Pertence  ao  Excellentissimo  Conde  do 
Farrobo. 

4.°  Copia  degual  tamanho  do  seu  original,  o  qual  representa  a  Commu- 
nhão  de  S.  Jeronymo:  d'este  chefe  dobra  foi  seu  autor  Domingos  ZampierL 
deito  il  Dominichino  Bolognesi;  elle  o  fez  em  Roma  expressamente  para  a 
Igreja  de  S.  Jeronymo  da  Caridade:  o  papa  Pio  vii  o  transferiu  para  a  sua 
galeria  do  palácio  Vaticano,  onde  actualmente  existe:  recommendamos  pois 
aos  Amadores  da  Relia  Arte  da  Pintura  queiram  maduramente  observar  a 
copia,  que  tenho  a  honra  de  lhes  apresentar  para  gloria  do  seu  autor,  e 
illustração  de  meus  compatriotas:  1.°  Observarão  como  seu  autor  expressi- 
vamente demonstra  na  figura  principal  de  seu  quadro,  a  qual  é  S.  Jeronymo ; 
a  caduca  velhice,  sujeita  ao  abandono  das  forças  fysicas,  mas  ainda  que  seu 
corpo  parece  quasi  innanimado,  em  sua  fisionomia  se  observa  vivamente  seu 
espirito  virtuoso,  que  ao  Filho  de  Deus  Sacramentado  se  entrega;  2.°  A  ex- 
pressão com  que  o  Sacerdote  lhe  offerece  a  Hóstia,  e  a  ternura  com  que  o 
exhorta,  demonstrando-lhe  a  boa  fé,  de  que  elle  mesmo  é  penetrado;  3.°  A 
attenção  do  Diácono,  que,  tendo  o  cálix  na  mão,  espera  respeitosamente  a 
accasião  dõ  offerecer-lhe  a  agua  sancta;  4."  A  devoção  com  que  o  Acolitho 
observa  o  mysterioso  Grupo ;  5.°  O  respeito  e  devoção  d'aquelle  que  sustem 
o  Sancto,  que  communga ;  e  a  magnifica  cabeça  do  velho,  que  o  admira ;  a 
compunção  do  Turco ;  a  piedade,  veneração  e  amor  da  mulher  que  a  mão 
lhe  beija ;  e  o  lião  feroz,  que  prodigiosamente  repousa  como  manso  cor- 
deiro: passando  pois  ao  alegre  do  quadro  se  observa  a  graciosa  Gloria 
de  Anjos  de  tal  maneira  grupados  e  pintados,  que  na  verdade  excede  a  hu- 
mana representação  dos  objectos  materiaes;  mas  eleva  perfeitamente  o  nosso 
intellecto  á  poética  ideia  dos  Espiritos  angélicos. 

5.°  Quadro  dinvenção.  e  composição  do  mencionado  Fonseca  Lisbonense, 
o  qual  representa  allegoricamente  a  Sacra  Família;  seu  autor  para  dar  a 
cada  uma  das  figuras  variedade  de  sentimentos,  serviu-se  symbolicamente 
da  flor  do  martyrio;  pois  que  em  todas  as  línguas  tem  a  mesma  significação; 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  79 

elle  figura  no  seu  quadro,  que  S.  João  oíTereceu  ao  Menino  Jesus,  um  cestinho 
de  diversas  flores,  offerta  própria  de  uma  criança  predestinada  a  profetisar  a 
vinda  d'aquelle  a  quem  as  ofíereria:  o  .Menino  Jesus  com  aquella  penetração 
divina  transmittida  por  seu  Eterno  Pae,  escolheu  dentre  ellas  a  flor  de  mar- 
tyrio;  e  olhando  para  a  dita  com  a  penetração  própria  de  sua  virtude,  fas 
vêr  em  seu  semblante  o  presentimento  de  tudo  quanto  deveria  soffrer.  Sua 
Santíssima  Mãe  o  abraça  com  aquella  delicadesa,  e  modéstia  própria  de  uma 
Virgem,  offerecendo-o  á  contemplação  d'aquelles  que  o  observam.  0  S.  José, 
Pae  adoptivo,  se  apoia  tranquillo  á  cadeira,  onde  a  sua  predestinada  Esposa 
está  sentada,  olhando  para  o  Menino  Jesus,  como  seu  Redemptor.  Sancta 
Isabel,  como  devota  mulher,  submissa  se  humilha  respeitosamente  á  mys- 
teriosa  acção  do  Filho  de  Deus.  —  Pertence  ao  Excellentissimo  Conde  do 
Farrobo. 

G.°  Meia  figura,  retrato  de  um  peregrino  porluguez,  que  appareceu  em 
Roma,  chamado  Manuel  Docinho,  natural  d'Aveiro;  o  qual  no  momento  em 
que  eu  o  retratava,  começou  a  chorar  a  enormidade  dos  seus  peccados;  tal 
foi  a  sua  resposta,  quando  lhe  perguntei  a  rasão  por  que  chorava. —  Pertence 
a  Mr.  Anth. 

7.°  Outra  dita.  retrato  de  uma  Sonineza,  perigrinando,  em  oração  offerece 
sua  perigrinagem.  — Idem. 

8."  Um  São  João  no  estado  de  sua  juventude,  annunciando  aos  povos  a 
vinda  ao  mundo  do  Filho  de  Deus:  por  acabar.  —  Pertence  ao  Cavalheiro  João 
Bernardo  da  Costa  Seromenho. 

9."  O  retrato  de  um  Cavalheiro  Portuguez  bem  conhecido.  —  Pertence  ao 
Cavalheiro  José  Street  d'Arriaga  e  Cunha. 

10.°  Esbocêto  de  um  quadro,  que  deverei  fazer  para  Mr.  Anth,  represen- 
tando a  morte  de  Virgínia,  facto  da  Historia  Romana. 

H.°  Esbocêto  de  um  quadro,  representando  a  luz  de  noite,  um  Turco  que 
lamenta  a  morte  da  sua  Sultana. 

12.°  Outro  dito  representando  uma  família  Turca  em  perfeita  tranquili- 
dade. 

13.°  O  retrato  em  pequeno  do  filho  do  mesmo  autor. 

14."  Quadro  d'invenção,  meia  figura,  representando  a  Musa  da  Pintura: 
não  acabado. 

15.°  Um  paiz,  representando  a  caida  do  Rio  Aniene,  que  atravessa  a  an- 
tiga Cidade  de  Tivoli;  o  Templo  da  Sibila,  o  qual  se  observa  á  esquerda  do 
quadro. 

16.°  Outro  paiz  d'egual  tamanho,  representando  as  montanhas  da  Sibila 
cobertas  de  neve. 

17.°  Um  quadro  que  representa  a  Sibila  Oltomana,  obra  de  Dominichino 


80  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Zampieri,  Bolognesi;  seu  original  existe  na  galeria  do  Príncipe  Burguês  em 
Roma. —  Pertence  ao  Excellentissimo  Conde  do  Farrobo. 

18.°  Outra  dita,  réplica  do  mesmo  original.  —  Pertence  ao  Cavalheiro 
José  Street  d'Arriaga  e  Cunha. 

19."  Copia  em  meia  figura,  representando  o  retrato  da  Forneirinha,  pin- 
tado pelo  grande  Rafael  Sansio  d'Urbino;  seu  original  existe  na  galeria  do 
Gram-Duque  de  Toscana,  em  Florença.  —  Pertence  ao  Cavalheiro  José  Street 
d'Arriaga  e  Cunha. 

20.°  Copia  de  um  quadro  existente  na  galeria  do  Príncipe  Borguès  em 
Roma,  representando  Christo  na  Agonia  ;  obra  de  Van  Dyck.  —  Pertence  a  Mr. 
Anth. 

21.°  Copia  de  um  quadro  que  existe  na  galeria  do  Gram-Duque  de  Tos- 
cana, em  Florença,  que  representa  a  Virgem  da  Soledade;  obra  de  Sasso- 
Ferrati.  —  Pertence  ao  Excellentissimo  Conde  do  Farrobo. 

22.°  Copia  de  um  quadro  pintado  por  Carlo-Dolci,  que  representa  Sancta 
Luzia,  matrona  Romana ;  existe  em  uma  galeria  particular  em  Nápoles.  — 
Pertence  a  Mr.  Anth. 

23.°  Copia  em  meia  figura,  representando  a  Virgem;  obra  do  mesmo 
autor;  seu  original  existe  em  Londres  na  galeria  de  Mr.  Pultnei.  —  Pertence 
ao  Excellentissimo  conde  do  Farrobo. 

24.°  Copia  de  um  quadro  do  mesmo  autor,  representando  a  Musa  da 
Poesia,  retrato  da  filha  do  mesmo  autor;  existe  na  galeria  Pitt  em  Florença. 
Idem. 

25.°  Um  pequeno  quadro  que  representa  o  cardeal  Zurla,  protector  das 
Bellas  Artes  em  Roma;  Camoncini,  Turvalson,  e  muitos  outros  distinctos  ar- 
tistas, e  antiquários,  que  compõem  a  Academia  de  S.  Lucas,  presidindo  ao 
descobrimento  do  esqueleto  do  grande  Pintor  da  era  de  1500,  Rafael  Sanzio 
dTJrbino ;  o  qual  por  sua  ultima  vontade  se  fez  depositar  debaixo  do  Altar  de 
Nossa  Senhora,  Capella  que  existe  na  Freguezia  de  Nossa  Senhora  dos  Mar- 
tyres,  do  antigo  edifício  chamado  o  Pantheon,  em  Roma ;  este  solemne  desco- 
brimento foi  praticado  no  anno  de  1831,  em  virtude  da  incerteza  em  que 
estava  a  sobredita  Academia  de  Bellas  Artes  por  falta  de  documento,  que 
indicasse  a  precisa  localidade  em  que  havia  sido  depositado  aquelle  memo- 
rável artista  supra  referido. 

N.  B.  —  Que  os  primeiros  quadros  que  fiz  em  Boma  existem  na  galeria 
do  Excellentissimo  conde  do  Farrobo,  e  são  os  que  se  seguem: 

1.°  Copia  da  parte  superior  d'um  quadro,  que  existe  na  galeria  Pontifícia 
em  Roma,  representando  Christo,  coroando  Nossa  Senhora,  chamado  vul- 
garmente: La  Madona  do  monte  lúcido. 

2.°  Copia  de  um  Almirante  hespanhol;  obra  de  Van-Dick. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  81 

3.°  Copia,  réplica  de  Sancta  Luzia:  obra  de  Carlo-Dolci. 

4.°  Copia  de  um  quadro,  que  existe  na  galeria  da  Academia  de  S.  Lucas, 
em  Roma;  obra  de  Sasso-Ferrati. 

5.°  Um  alto  relevo  pintado,  e  copiado  do  natural  em  mármore  antigo 
grego;  representa  amor  em  triunfo,  condusido  pelos  amores. 

6.°  Retrato  do  sobredito  Fonseca,  Lisbonense,  executado  por  elle  mesmo.» 

Segue-se  uma  pagina  com  a  descripção  de  dois  quadros,  copiados  por 
Domingos  Pereira  de  Carvalho.  Vide  Pereira  de  Carvalho. 


XXIX.  —  Foschini  ( Archangelo).  —  Os  pintores  não  eseaeeiaram  nunca  em 
Portugal  e  até  se  notam  épocas  de  superabundância.  Assim  succedeu  no  período 
decorrido  desde  a  segunda  metade  do  século  xvm  até  ao  primeiro  quartel  do 
século  xix,  embora  as  circunstancias  não  fossem  das  mais  propicias  para 
as  artes.  As  duas  invasões  francesas,  de  tão  funestos  resultados,  os  abalos 
políticos  que  deram  causa  â  guerra  civil,  que  nem  sequer  na  convenção  de 
Evora-Monte  teve  o  seu  ponto  final,  tudo  isto  devia  concorrer  desfavoravel- 
mente para  a  educação  esthetica  e  para  o  desenvolvimento  artístico  de  um 
povo.  A  realidade  dos  factos  contradisse,  porém,  mais  uma  vez  a  verosimi- 
lhança, o  que  ao  nosso  espirito  se  afigurava  mais  plausível. 

As  obras  do  palácio  da  Ajuda  congregaram  ali,  durante  largos  annos,  as 
aptidões  de  diversos  artistas  tanto  nacionaes  como  estrangeiros,  convertendo-se 
numa  escola  pratica,  cujos  resultados  não  foram  todavia  dos  mais  profícuos, 
devido  por  certo  ao  mau  gosto  predominante.  Atravessava-se  uma  época  de 
decadência,  cujo  dominio  fatal  difficilmente  poderiam  evitar  os  mais  robustos 
talentos.  A  par  da  escola  pratica  estabeleceu-se  também  uma  escola  theorica, 
uma  espécie  de  academia,  onde  se  professavam  diversas  disciplinas. 

De  uma  relação  dos  empregados  da  obra  do  paço  da  Ajuda  do  mês  de 
novembro  de  1821,  extraio  a  seguinte  lista  dos  pintores  e  seus  ajudantes, 
com  os  respectivos  ordenados: 


Arcangelo  Fosquini,  Pintor  d' Historia:  1:000^000  —  9  de  abril  de  1803. 

Januário  António  Lopes  da  Silva. 
Domingos  Clementino,  Ajudante  do  dito:  800  —  4  de  abril  de  1814. — 

Visconde  de  Santarém. 
José  da  Cunlia  Taborda,  Pintor  d'Historia':  800^000  —  9  de  abril  de  1803. 

—  Januário  António  Lopes  da  Silva. 

li 


82  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Norberto  José  Ribeiro,  Ajudante  do  dito:  lj>000 —  9  de  agosto  de  1814. 

—  Visconde  de  Santarém. 

Francisco  Bernardo,  dito:  600—  19  de  Septembro  1814.  —  Visconde  de 

Santarém. 
José  Carlos  Amatuci,  Discípulo  do  dito:  260  —  9  de  Maio  de  1819.  — 

Joaquim  da  Costa  e  Silva. 
Máximo  Paulino  dos  Reys,  Pintor  de  Historia:  576^000 —  10  de  março 

de  1815  —  Visconde  de  Santarém. 
Alexandre  Simplício,  Ajudante  do  dito:  600  —  21   de  Julho  de  1814. — 

Visconde  de  Santarém. 
Cyrillo  Wolkmar,  Pintor  de  Historia  —  Percebe  pelo  Erário. 
Bernardo  de  Oliveira  Góes,  Ajudante  do  dito :  600  —  9  de  agosto  de  181 4. 

—  Visconde  de  Santarém. 

Joaquim  Gregório  Rato,  Pintor  de  Historia  —  Percebe  pelo  Erário. 
Gregório  Luis  Maria,  Ajudante  do  dito:  400 — 10  de  Março  de  1818. — 

Joaquim  da  Costa  e  Silva. 
Manuel  Piolti.  Encarregado  das  Decorações:   15600  —  18  de  Março  de 

1816.  —  Visconde  de  Santarém. 
José  Joaquim,  Ajudante  do  dito:  400  —  2  de  Março  de  1805.  —  Joaquim 

da  Costa  e  Silva. 
Francisco  de  Paula  Rocha,  dito:  400  —  4  de  Fevereiro  de  1817.  —  Joa- 
quim da  Bosta  e  Silva. 
José  da  Cunha  Assucar,  Discípulo:  200  —  30  de  Maio  de  1821.  — Fran- 
cisco Duarte  Coelho. 
Real  Obra,  10  de  Novembro  de   1821.  —  Filippe  Nery  Rodrigues   Sotto 
—  António  Francisco  Rosa  l. 

Em  5  de  julho  de  1823  reuniram-se  os  professores,  e  ampliando  a  con- 
ferencia de  24  de  maio,  assentaram  na  classificação  a  dar  aos  seguintes  alu- 
mnos,  dos  quaes  me  limitarei  a  dar  os  nomes,  reservando-me  para  tratar  de 
cada  um  d'elles  em  seus  respectivos  logares: 
João  Carlos  Amatucci. 
Gregório  Maria  Rato. 
Manuel  da  Conceição. 
Manuel  Firmo  Duro. 
Joaquim  Luis  Maria  Rato. 

A  allegoria  que  foi  para  as  Bellas  Artes  o  mesmo  que  o  gongorismo  para 
a  litteratura,  continuava  a  exercer  a   sua  nefasta  influencia,    não  se  esqui- 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  83 

vando  ao  seu  jugo  tyrannico  homens  de  incontestável  valor  como  Domingos 
António  de  Sequeira  e  Francisco  Vieira,  o  portuense.  Este  não  possuía,  como 
aquelle,  a  centelha  do  génio,  ou  pelo  menos  em  grau  tão  vivo,  mas  em  com- 
pensação era  dotado  de  grande  delicadeza  e  sentimento  poético,  o  que  talvez 
contribuísse  para  tornar  menos  sensíveis  os  seus  defeitos.  O  mal,  porém, 
já  vinha  de  trás  e  Vieira  Lusitano  não  foi  dos  que  menos  abusaram  do  estylo 
allegorico. 

Do  núcleo  de  pintores  da  Ajuda  Archangelo  Foschini  foi  um  dos  que 
mais  praticaram  o  género,  podendo  talvez  considerar-se  o'  coripheu  ou  o  cha- 
radista  mór  da  especialidade.  Raczynski,  avaliando  as  suas  producções  no 
palácio  da  Ajuda,  julga-as  porventura  com  excessiva  severidade. 

Referindo-se  á  pintura  que  representa  a  volta  de  D.  João  VI  do  Brazil  a 
Portugal,  escreve  estas  palavras  condemnatorias : 

«Le  roi  se  tient  debout  sur  une  conque,  et  il  est  accompagné  de  sa  nom- 
breuse  famille.  On  ne  peut  rien  voir  de  plus  ridicule.  Cest  Foschini  qui 
s'est  rendu  coupable  de  ce  crime  de  lèse-majesté»  '. 

Existe  a  descripção  d'este  pensamento,  feita  pelo  próprio  pintor,  a  qual 
acompanha  uma  sua  petição  em  que  requer  que  seja  encarregado  de  o  exe- 
cutar. O  leitor  avaliará  do  talento  inventivo  de  Foschini,  lendo  o  primeiro 
dos  documentos  que  vão  em  seguida  a  este  artigo. 

Ha  ainda  outra  descripção  da  mesma  penna  de  um  quadro  allegorico  aos 
inauferíveis  direitos,  isto  é,  aos  suecessos  do  dia  5  de  junho  de  1823.  Vae 
transcripto  em  seguida  ao  que  se  acabou  de  mencionar. 

Anteriormente  já  a  actividade  de  Foschini  se  tinha  manifestado  em  outras 
obras,  de  algumas  das  quaes  remettera  os  projectos  para  a  corte  do  Rio  de 
Janeiro  onde  foram  discutidos,  modificados  e  ampliados,  segundo  se  vê  da 
lista  que  elle  apresentou,  ao  que  parece,  na  conferencia  de  10  de  janeiro  de 
1822.  Esta  conferencia,  em  que  tomaram  parte,  além  do  inspector  Duarte 
José  Fava,  e  do  architecto  António  Francisco  Rosa,  os  pintores  Archangelo 
Foschini,  José  da  Cunha  Taborda,  Máximo  Paulino  dos  Reis  e  Joaquim  Gre- 
gório da  Silva  Rato,  foi  muito  interessante,  já  por  se  tratar  do  processo  a 
seguir  na  ornamentação  das  três  grandes  salas  da  fachada  leste  do  paço 
da  Ajuda,  já  pelas  lisonjeiras  explicações  a  respeito  de  Manuel  Piolti,  pintor 
e  architecto,  que  parecia  susceptibilisado  com  a  divisão  dos  trabalhos,  ade- 
gando os  seus  collegas  que  não  desejavam  privar-se  da  sua  companhia  e 
prestimosa  coadjuvação. 

Em  21  de  desembro  do  mesmo  anno  assignava  um  ofGcio,  em  que  de- 


Raczynski,  Letíres,  pag.  268. 


84  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTOnES 

clarava  estar  satisfeito  o  pedido  das  drogas  vindas  de  França  para  a  execu- 
ção das  obras  de  que  estava  incumbido  e  que  para  o  mesmo  effeito  requeria 
a  remessa,  pelo  menos  de  um  manequim  de  mulher,  o  que,  para  o  estudo 
das  roupagens,  era  tão  necessário  e  vantajoso,  como  o  estudo  do  natural 
para  as  figuras. 

Tendo  sido  pela  invasão  francesa  destruído  o  painel  da  boca  da  tribuna 
da  capella-mór  da  egreja  de  Marvilla  em  Santarém,  Foschini  fez  o  modelo  de 
um  quadro  para  substituir  aquelle.  O  prior  de  Marvilla,  padre  Anlonio  Joa- 
quim Martins,  mestre  de  cerimonias  da  Sé  patriarchal,  requereu  a  S.  M.  que 
o  referido  artista  fosse  encarregado  de  executar  definitivamente  a  obra.  O 
requerimento  foi  á  consulta  do  architecto  do  paço  da  Ajuda,  que  deu  parecer 
favorável  em  22  de  maio  de  1828. 

A  petição  foi  despachada  consoante  os  desejos  do  requerente,  como  se 
verifica  pelo  painel  que  ali  existe  agora,  representando  a  Assumpção  de 
Nossa  Senhora.  O  actual  prior,  illustrado  sacerdote  Rev.  António  Augusto 
de  Sousa  Refoios,  cujo  nome  recorda  saudosamente  o  de  um  medico  dis- 
tincto,  teve  a  amabilidade  de  me  esclarecer  sobre  este  facto  enviando-me  a 
seguinte  descripção  do  painel. 

«O  painel  representa  a  Assumpção  de  Nossa  Senhora,  estando  o  tumulo 
aberto,  com  os  Apóstolos  em  volta.  No  fundo,  junto  ao  tumulo,  vê-se  um 
anjo  com  um  joelho  em  terra,  segurando  com  a  mão  direita  sobre  o  joelho 
direito  um  escudo  com  as  armas  reaes  circumdado  da  seguinte  legenda:  — 

MUNIFICENTIA   D.   MICIIAELIS  I.   PORT.    ET  ALG.    REG.  #   1829  *  .  IstO    é,  Munificeil- 

cia  de  D.  Miguel  I  Rei  de  Portugal  e  Algarves  =  1829=». 

O  quadro  não  é  subscripto  por  Archangelo  Foschini,  mas  tudo  leva  a 
crer  que  seja  obra  do  seu  pincel. 

A  petição  do  padre  António  Joaquim  Martins  é  redigida  por  esta  forma: 

«Sereníssimo  Senhor.  —  Com  o  maior  respeito  e  reverencia  vai  por  este 
modo  aos  Pez  de  V.  A.  R.  o  P.e  António  Joaquim  Martins,  Mestre  de  Cere- 
monias  da  Santa  Igreja  Patriarchal  fazer  lembrado  hum  Memorial  que  teve 
a  honra  de  entregar  a  V.  A.  R.  na  Tribuna  da  mesma  Santa  Igreja,  em  o 
qual  declarando  estar  despachado  prior  da  Igreja  de  Marvilla  de  Santarém, 
relatava  em  suma  a  destruição  que  a  mesma  Igreja  padeceo  pela  Invasão  dos 
Francezes,  em  consequência  de  que  se  acha  a  Capella  Mor  coberta  na  boca 
da  Tribuna  por  hum  Panno  bem  indecente,  por  hauer  sido  destruído  hum 
Painel  de  Nossa  Senhora,  orago  da  caza,  que  ornava  aquelle  principal  lugar, 
donde  resulta  insuffrivel  indignidade  ao  culto  Devino.  Não  podendo  pois  re- 
mediar tantos  damnos,  alias  com  bem  magoa,  pela  penúria  a  que  se  acha 
reduzido  o  rendimento  da  mesma  Igreja,   recorreo  assaz  confiado' na  extra- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


85 


ordinária  Piedade  de  V.  A.  R.  ao  seu  Magnânimo  Coração,  afim  de  que,  em 
attenção  ás  refferidas  razões,  se  dignasse  mandar  ordem  ao  Inspector  da 
Real  Obra  d'Ajuda,  para  que  este  intimasse  ao  Pintor  da  Real  Camará,  Ar- 
changelo  Fusquiui,  a  execução  do  dito  Painel,  porque  este  já  fez  o  modelo. 
Sendo  portanto  o  mencionado  Painel  sem  moldura  somente  pregado  em  bua 
grade  de  madeira,  feito  por  hum  Professor  de  Partido  como  hé  o  hábil  Fus- 
quini  torna-se  mui  deminuta  a  despeza  e  faz  desta  sorte  S.  A.  R.  uma  acção 
heróica,  que  bem  dirá  aquelle  Povo,  promoue  o  culto  da  Virgem  Santíssima, 
e  perpetua  sua  Memoria,  collocando  um  Padrão  de  sua  Piedade  em  hum 
Templo  assaz  memorável  pela  sua  antiguidade,  e  milagres  que  Nossa  Senhora 
ali  invocada  com  o  titulo  das  maravilhas  obrou  com  o  Senhor  Rey  D.  Affonso 
Henriques,  de  quem  V.  A.  R.  hé  o  mais  digno  herdeiro.  Tendo,  pois  V.  A.  R. 
annuido  benignamente  á  pretenção  do  supplicante,  este  submissamente  im- 
plora de  V.  A.  R.  a  brevidade  da  ordem  ao  referido  Inspector  da  R.  Obra 
d' Ajuda  a  fim  de  ser  em  tempo  oportuno,  concluído  o  supradito  Painel  na 
forma  que  implora,  e  por  cuja  graça  de  novo  tem  a  honra  de  beijar  a 
Mam  de  V.  A.  R.  o  P.s  António  Joaquim  Martins.  E.  R.  M.  em  23  de  Abril». 

«Senhor.  —  Manda-me  V.  R.  M.  que  eu  informe  sobre  o  incluso  Reque- 
rimento do  P.  António  Joaquim  Martins,  Prior  da  Igreja  de  Marvilla  de  San- 
tarém, em  que  pede  para  que  o  Pintor  desta  Real  Obra  Archangelo  Fosquini 
lhe  pinte  hum  Painel  para  a  boca  da  Tribuna  da  mencionada  Igreja.  Cum- 
pre-me  informar  a  V.  R.  M.  que  atendendo  ao  exposto  na  representação  do 
supplicante  parece-me  muito  de  Justiça  que  o  Artista  mencionado  Archangelo 
Fosquini,  seja  encarregado  da  pintura  do  dito  Painel.  Hé  (manto  posso  R. 
Senhor  informar  a  V.  R.  M.  em  cumprimento  do  mencionado  requerimento; 
E  V.  R.  M.  Mandará  o  que  for  do  seu  Real  Agrado.  Secretaria  da  Sub  Ins- 
pecção da  Real  Obra  do  Paço  d'Ajuda  22  de  Maio  de  1828:  —  António  Fran- 
cisco Rosa»  !. 

Foschini  tinha  um  filho,  de  quem  se  não  tem  feito  até  agora  menção, 
postoque  seguisse  também  a  carreira  artística.  Chamava-se  Pedro  Maria 
Foschini  e  dedicou-se  á  esculptura.  Admittido  nas  obras  da  Ajuda,  estudou 
sob  a  direcção  de  João  José  de  Aguiar  dando  durante  trinta  meses  sufficien 
tes  provas  de  applicação  e  habilidade.  Em  conferencia  de  28  de  setembro 
de  1822,  apresentou  o  modelo  em  barro  de  uma  estatua  de  Ceres,  de  dois 


Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


86  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

palmos  de  alto,  sendo  os  respectivos  professores  de  opinião  que  o  seu  auctor 
merecia  por  este  trabalho  receber  algum  salário.  Neste  sentido  representou 
elle  a  S.  M.  a  fim  de  lhe  dar  alguma  remuneração,  como  se  praticara  com 
outros  em  egualdade  de  circumstancias,  o  que  seria  um  estimulo  a  seus  es- 
tudos e  um  alivio  a  seu  pae,  sobrecarregado  de  numerosa  família.  O  ministro 
Ferreira  de  Araújo  em  11  de  outubro  do  mesmo  anno  mandou  informar  o 
requerimento  ao  brigadeiro  intendente  das  Obras  publicas. 

Foschini  padecia  moléstia  herpetica,  como  attestou  José  de  Mattos,  cirur- 
gião da  casa  do  Cardeal  patriarcha  em  certidão  de  10  de  agosto  de  1830, 
que  o  artista  juntou  a  um  seu  requerimento,  em  que  pedia  um  mês  de  licença 
para  se  ir  tratar  aos  banhos  do  Estoril. 

Cyrillo  Wolkmar  Machado  (Collecção  de  Memorias,  pag.  145)  diz  que  Ar- 
changelo  Foschini  nascera  em  Lisboa  em  1771,  sendo  filho  de  Francisco 
Foschini,  bolonhês,  pintor  de  historia.  Não  concordam  com  estes  dados  bio- 
graphicos  os  que  se  lêem  no  artigo  do  Diccionario  Popular,  de  Pinheiro 
Chagas,  no  qual  se  diz  que  o  pae  de  Foschini  era  natural  de  Faensa,  e  fora 
chamado  ao  nosso  país,  pelo  marquês  de  Pombal,  para  exercer  a  pintura  na 
fabrica  de  louça.  Accrescenta  que  o  filho  morrera  em  Lisboa  a  4  de  abril  de 
1834.  Não  declara,  porém,  onde  colheu  estas  noticias,  que  foram  reproduzi- 
das no  Diccionario.  intitulado  Portugal. 

Em  presença  de  dois  attestados  passados  por  Archangelo  Foschini,  em 
favor  de  um  seu  discípulo,  Manuel  da  Conceição,  vê-se  que  elle  residia  a  6 
de  março  de  1820,  na  rua  do  Giestal,  e  em  23  de  junho  de  1833,  em 
Belém. 

Eis  agora  os  documentos  acima  referidos: 


«Senhor.  —  Diz  Archangelo  Fuschini,  Pintor  da  Camará  de  V.  Mag.d% 
que  tendo  tido  a  honra  de  ser  incumbido  por  V.  Mag.de  em  Aviso  de  1  de 
Maio  do  corrente  anno  de  1821,  para  a  execução  do  Projecto,  que  tem  por 
titulo  =  O  Dia  26  de  Fevereiro  do  presente  anno  =  em  hum  grande  painel 
que  deve  servir  de  decoração  para  huma  das  Sallás  do  Real  Paço  Novo  de 
Ajuda,  cujo  modello  em  Pintura  ja  mereceo  a  benigna  approvacão  de  V. 
MagA  e  dezejando  o  Suplicante  aproveitar  os  intervallos  que  medeião  na 
execução  de  lula  obra  tão  complicada,  tem  a  honra  de  levar  á  Augusta  Pre- 
zença  de  V.  Mag.de  o  Projecto  aqui  junto,  que  tem  por  titulo  =  A  Feliz  che- 
gada de  V.  Mag.de  a  estes  Reinos  no  dia  4  de  Julho  do  corrente  anno  de 
1821  =  e  merecendo  a  sua  Real  aprovação,  dezeja  ter  a  honra  de  ser  encar- 
regado delle,  a  fim  de  apresentar  em  Dezenho,  ou  Pintura  o  modello  pequeno, 
como  praticou  no  antecedente,  e  portanto  Pede  a  V.  Mag.dc  seja  servido  de- 


/ 


NOTICA  DE  ALGUNS  PINTORES  87 

ferir  ao  Suplicante  a  Graça  que  pede  segundo  for  do  Beneplácito  e  vontade 
de  V.  Mag.de  e  a  bem  do  serviço  Real  e  Nacional.  —  Arcangelo  Foschini.  — 
E.  R.  M. 

«P.  P.  ao  mesmo  em  20  de  Novembro  de  1821». 

«Projecto  Alegórico  relativo  ao  Dia  4  de  Julho  de  1821  faustissimo  pella 
chegada  de  Sua  Magestade  a  estes  Reynos,  com  a  Familia  Real.  Dia  em  que 
os  corações  de  todos  os  Portuguezes  tresbordarão  d'alegria  e  prazer. 

«Ver-se-á  o  nosso  Augusto  Monarca  sentado  sobre  heróica  concha  Marinha, 
mui  ricamente  lavrada,  acompanhado  por  Neptuno,  e  pello  Pae  Ocianno, 
vendo-se  os  Tritões  de  hum,  e  os  Filhos  d'oulro  em  regozijo  extraordinário 
acompanharem  a  Nossa  Augusta  Soberana,  e  os  nossos  Amados  Príncipes  e 
Princezas  da  Nossa  Augusta  Familia  Reinantes. 

«O  Pátrio  Tejo  apparecerá  sobre  a  Praia  com  hum  feixe  de  Palmas  em 
seos  braços  em  acção  d'as  querer  repartir  pello  innumeravel  concurso  de 
Pessoas  de  todas  as  classes  que  ambiciosamente  disputão  o  lugar  para  serem 
as  primeiras  em  cortejar,  e  saudar  o  seo  Monarca,  sendo  precedida  esta  in- 
numeravel multidão  por  Lizia  que  sobresaindo  a  todas  as  figuras  aqui  repre- 
zentadas  já  oferece  hum  ramo  ao  seo  Monarca,  a  fim  de  mostrar  a  saptis- 
fação  de  que  se  acha  possuída  pela  dita  não  esperada,  de  ver  restituídos  a 
seus  Lares  os  Augustos  propugnadores  da  nossa  felecidade  prezente  e 
fectura. 

«No  alto  do  Painel  se  verá  o  Conselho  dos  Deozes  prezidido  pello  altiço- 
nante  Jupter,  que  ordena  a  Astréa  venha  prezedir  aos  sábios  e  elevados 
projectos  do  Augusto  Congresso  da  Nação  Portugueza,  para  consolidar  e  fazer 
duradoura  a  felecidade  da  Pátria,  pois  já  se  achão  unidas  ao  seu  Monarca 
que  de  tão  bom  grado  concordou  com  o  que  a  Nação  fizeçe. 

«Ver-se-á  hum  Trono  formado  de  hum  grupo  das  trez  virtudes  que  vem  a 
ser :  o  Vallor  formará  o  assento,  e  os  lados  serão  formados  pella  Constância 
e  Lealdade,  todas  com  os  seus  emblemas  competentes  ellas  poderão  ser  re- 
prezentadas  em  vulto  de  metal  dourado. 

«No  Espaldar  do  Trono  ver-se-á  esculpido  a  America,  que  saudoza  entrega 
o  Monarca  á  Luzítania,  distinguindo-se  que  ambas  ellas  segurão  os  Emblemas 
do  nosso  Regimen  Politico. 

«Entre  Lizia  e  o  Monarcha,  ver-se-á  Minerva  suspença  nos  ares,  aprezen- 
tando  as  Bazes  da  Constituição  a  S.  Mag.de  (alusivo  á  Deputação  enviada 
pello  Augusto  Congresso,  a  Bordo  da  Náo  D.  João  o  Sexto)  tendo  antecipa- 
damente ordenado  ás  Tágides  que  com  seos  braços  entrelaçados  conduzão 
o  nosso  bom  Rey  á  Praia  da  Casa  Pátria,  que  á  tantos  annos  por  elle  sus- 
pira. 


88  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

a  O  Pintor  da  Camará  de  S.  Mag.ie  Arcangelo  Foschini  o  fez  em  6  de  No- 
vembro de  1821»  l. 


«Projecto  Alegórico  de  hum  Quadro  que  Reprezenta  o  Sempre  Memorável 
dia  5  de  Junho  do  Corrente  anno  de  1823  em  que  recuperarão  seus  inau- 
feríveis direitos  e  explendor  o  Trono  e  o  Altar. 

«No  meio  do  Quadro  se  reprezenta  em  hum  rico  Carro  Triumfal  a  Au- 
gusta Peçoa  do  nosso  adorado  Rey  O  Senhor  D.  João  Sexto  acompanhado 
de  Suas  Augustas  Filhas;  vendo-se  Conduzido  em  Triunfo  pellas  oito  Virtudes 
Características  da  incomparável  e  nunca  assaz  louvada  Nação  Portugueza 
que  vem  a  ser:  a  Lealdade  e  o  Valor,  a  Firmeza  e  o  Amor  aos  seos  Mo- 
narcas, a  Obediência  e  o  zelo  da  Religião,  a  Constância  e  o  Respeito  ao 
Trono. 

«Hé  capitaneado  este  respeitável  Grupo  pello  Anjo  Costodio  e  Tetular  do 
nosso  Reyno  que  sustentando  com  a  mão  esquerda  huma  fiandeira  com  o 
dístico :  Quis  ut  Deus?  repelle  com  a  direita  armada  de  huma  Espada  de 
fogo  os  Vicios  e  Fúrias  que  com  seu  pestífero  hálito  assombrarão  o  nosso 
preciozo  e  feliz  terreno  ficando  envolvidas  em  huma  densa  e  espessa  névoa  de 
fumo,  se  distingue  entre  ellas  com  mais  Clareza  e  Impiedade,  o  Atheismo,  e'a 
Fraude.  Ao  lado  de  S.  Mag.de  sobresahe  a  Augusta  Peçoa  do  Sereníssimo 
Senhor  Infante  D.  Miguel  montado  em  hum  Cavalio  branco,  mostrando  apezar 
de  sua  Juvenil  Idade  ser  o  Heróe  desta  tão  brilhante  Senna,  e  em  attitude 
de  Ordenar  hum  tão  novo  triunfo  e  vendo-se  ao  lado  da  Augusta  Família 
Real  a  Religião  Catholica  Apostólica  Romana  debaixo  do  aspeto  de  huma 
veneranda  Matronna  que  com  a  sua  Égide  a  escuda  sustentando  na  dextra  o 
Símbolo  da  nossa  Redempção. 

«No  lado  oposto  ao  dos  Vicios,  se  vê  o  encanecido  Tempo  arrancar  com 
suas  nodosas  mãos  do  Livro  da  Historia  as  folhas  que  pertencem  á  mal  fa- 
dada Época  do  extincto  Sisthema  dezorganizador.     • 

«Os  Vãos  do  Painel  se  vêem  oceupados  por  inumerável  concurso  de  Povo 
de  todas  as  Classes,  esparzindo  flores,  e  dando  graças  ao  Altíssimo  com  as 
mais  enérgicas  e  expressivas  attitudes  de  alegria  e  enthuziasmo  por  tão  rá- 
pidos e  portentozos  acontecimentos. 

«Na  parte  mais  Elevada  e  Central  do  Quadro  se  descobre  em  huma  aber- 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  281  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  89 

tura  de  nuvens  a  Virgem  Padroeira  do  Reyno  agradecendo  a  seu  unigénito 
Filho  a  graça  do  maravilhoso  feito  aqui  expreçado. 

«Heste  hé  o  bosquejo  do  dia  mais  assignalado  nos  Fastos  da  Historia 
Portugueza  vendo-se  exaltada  a  Virtude  sobre  o  Completo  abatimento  do 
orgulhozo  crime.     ■ 

«Arcangelo  Foscliini  Pintor  da  Camará  de  S.  Mag.de  Fid.raa  o  fez  aos  6 
de  Julho  de  1823»  ». 


«Copia.  — Aos  dez  dias  do  mez  de  Janeiro  de  1822,  na  Obra  do  Palácio 
d' Ajuda  em  conferencia  a  que  presidio  o  Brigadeiro  Duarte  José  Fava,  In- 
tendente das  Obras  Publicas,  sendo  prezente  o  Architecto  da  mesma  Obra 
António  Francisco  Roza,  e  os  Pintores  abaixo  assignados;  e  no  mesmo  acto 
aprezentou  o  Pintor  Arcangelo  Fosquini  a  Portaria  de  20  de  Novembro  do 
anno  passado,  em  que  S.  M.  o  Encarrega  da  execução  do  Projecto,  em  que 
se  reprezenta  allegoricamente  a  sua  feliz  chegada  a  este  Reino  no  dia  4  de 
Julho  do  mesmo  anno,  cuja  Portaria  se  transcreve  neste  Termo  de  Conferencia, 
assim  como  a  reprezentação  que  igualmente  aprezentou  o  Pintor  Joaquim 
Gregório  Ratto.  Tratou-se  na  mesma  Conferencia  do  Projecto  das  figuras 
que  devem  embelezar  os  dois  tectos  das  Escadas  do  Vestibulo  principal  que 
dão  serventia  para  o  Plano  nobre,  e  forão  de  accordo  os  Pintores  assistentes 
á  Conferencia,  que  o  Pintor  Arcangelo  Fosquini  se  encarregue  da  figura  de 
liuma  das  Escadas,  e  o  Pintor  José  da  Cunha  Taborda  da  figura  da  outra 
escada,  sendo  para  este  fim  necessário  que  o  Pintor  Manuel  Piolti  lhes  en- 
tregue os  desenhos  que  fez  para  ornato  das  ditas  Escadas.  Decidiu-se  por 
unanimidade  de  votos  que  o  Pintor  Arcangelo  Fosquini  por  já  estar  encar- 
regado do  Quadro  relativo  ao  acontecimento  do  dia  2o  de  Fevereiro  do  anno 
passado,  servindo-lhe  este  de  Thema,  conforme  o  Projecto  para  a  pintura 
da  segunda  salla,  em  que  elle  deve  ser  collocado,  cujo  projecto  depois  de 
ser  discuttido  pelos  seus  Collegas  será  o  resultado  prezente  a  S.  M.  para 
ter  a  sua  Real  Approvação.  Pelo  que  respeita  á  primeira  Salla,  escolheo-se 
para  Thema  que  se  projectasse  hum  Quadro  allegorico  d'Acclamação  do  Se- 
nhor Dom  João  Quarto,  e  as  pinturas  do  tecto  relativas  ao  mesmo  assumpto, 
confiando-se  este  Projecto,  e  sua  execução  ao  Pintor  José  da  Cunha  Taborda  com 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Arehivo  do  Ministério  do  Reino. 
12 


90  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

a  cooperação  de  seus  Collegas,  pela  forma  que  se  julgar  mais  conveniente. 
E  quanto  á  terceira  Salla  forão  igualmente  de  commum  accordo  se  escolhesse 
para  Thema  um  Quadro  ■ —  O  Conselho  dos  Ueoses  —  formando-se  no  tecto 
a  allegoria  correspondente,  e  encarregando-se  este  projecto  e  sua  execução 
ao  Pintor  Arquitecto  Manuel  Piolti,  sendo  coadjuvado  por  todos  os  seos  Col- 
legas, para  que  o  seu  contheudo  suha  á  presença  de  S.  M.  para  deliberar 
como  for  da  sua  Real  Vontade.  E  de  todo  o  expendido  mandou  o  sobredito 
Brigadeiro  Intendente  lavrar  este  Termo,  que  assignou  com  o  referido  Ar- 
quitecto António  Francisco  Roza  e  Pintores  e  comigo  Escrivão  que  o  escrevi 
e  assignei.  Bernardino  de  Sena  Lemos  da  Rocha  —  Fava  —  António  Fran- 
cisco Rosa  —  Arcangelo  Fosquini  —  José  da  Cunha  Taborda  —  Máximo  Pau- 
lino dos  Reis  —  Joaquim  Gregório  da  Silva  Batto  —  Manuel  Piolti». 

«Manda  El  Rey,  pela  Secretaria  d'Estado  dos  Negócios  do  Reyno  partici- 
par a  Arcangelo  Fosquini,  que  sendo-lhe  prezente  o  seu  Projecto  para  re- 
prezentar  em  obra  da  sua  arte  —  A  sua  feliz  chegada  a  este  Reino  no  dia 
4  de  julho  do  corrente  anno  — .  O  mesmo  Senhor  Ha  por  bem  aprova-lo  e 
Encarrega-lo  da  sua  execução.  Palácio  de  Queluz  em  20  de  Novembro  de 
1821.  —  Filippe  Ferreira  d'Araujo  e  Castro.  —  Está  conforme  o  original. 
Bernardino  de  Sena  Lemos  da  Rocha». 

«Os  abaixo  assignados  Pintores  de  Historia  ao  Serviço  Nacional  e  Real, 
com  exercido  na  Real  Obra  da  Ajuda  protestam  a  Vossa  Senhoria  os  seus 
respeitos  e  reprezentão  que  na  Conferencia  do  dia  3  de  janeiro  de  1822,  a 
que  Vossa  Senhoria  se  serviu  de  nos  chamar,  a  fim  de  nos  ordenar  o  que 
se  devia  fazer  para  conseguir  a  pintura  das  três  grandes  Sallas  nobres  da 
Frontaria  do  Real  Palácio  que  olha  para  Leste,  depois  de  ter  a  bondade  de 
ouvir-nos  deliberou  que  ficasse  cada  hum  encarregado  de  fazer  os  desenhos 
de  numa  ou  mais  das  Sallas  mencionadas,  para  depois  entrarem  todos  pri- 
meiro em  numa  discussão  artística,  fazendo-se  para  isto  uma  nova  confe- 
rencia e  depois  de  discutidos  serem  levados  á  Real  Prezença  de  S.  M.,  de 
quem  depende  a  escolha,  e  approvação  e  de  tudo  isto  se  formou  Termo  que  todos 
assignamos.  Os  Pintores  de  Historia  ficando  como  na  certeza  de  que  o  bene- 
mérito Artista  Manoel  Piolti  que  foi  igualmente  chamado,  e  assistiu  á  supra- 
dita Conferencia  ficasse  também  encarregado  como  elles,  da  factura  dos 
sobreditos  dezenhos  e  mesmo  porque  Vossa  Senhoria  lhe  ordenou  que  os 
fizesse  coloridos:  não  duvidarão  que  esta  tarefa  era  de  todos  (digo  em  pre- 
zença) digo  athe  que  o  supradito  Manuel  Piolti  disse  em  prezença  de  todos, 
digo  em  Prezença  dei les  Pintores  que  se  enganavão;  pois  que  elle  não  en- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  9  1 

tendera  ser  comprehendido  nesta  Ordem,  e  asseverando  isto  mesmo  com 
aquella  probidade  que  forma  o  seu  caracter,  nos  deixou  summamente  duvi- 
dosos e  magoados  e  por  isso  representamos,  esperando  conseguir  de  Vossa 
Senhoria  (cazo  que  o  engano  esteja  em  nós)  de  nos  restituir  este  digno  Ar- 
tista á  nossa  artística  sociedade ;  por  quanto  da  sua  separação  se  segue  de- 
trimento á  nossa  honra,  dando  motivo  a  que  se  julgasse  que  huma  desmedida 
ambição  de  gloria  nos  conduzia  a  perpetuar  este  acto  de  egoísmo  a  nosso 
interesse  pessoal :  pois  sendo  nos  tam  poucos,  e  o  trabalho  tanto,  dividido 
por  todos,  ficando  a  cada  hum  menos,  lhe  ficão  mais  meios  para  bem  o  de- 
zempenhar,  muito  principalmente  achando-se  dois  Pintores,  que  são  Arcan- 
gelo  Fosquini,  e  Máximo  Paulino  dos  Reys,  encarregados,  o  primeiro  dos  seus 
grandes  Quadros,  o  segundo  de  hum  grande  tecto  do  Real  Palácio  de  Belém, 
de  cujas  obras  não  foram  eximidos;  e  por  consequência  devem  entrar  em 
concorrência  á  Real  Obra,  pois  que  a  todos  hé  patente  a  falta  que  devia  fazer 
hum  Artista  que  aqui  mesmo  tem  dado  tantas  provas  do  seu  talento.  Temos 
em  segundo  a  requerer,  e  esperar  que  em  quanto  ao  methodo  que  se  deve 
seguir  para  conseguir  não  só  a  decoração  das  três  mencionadas  sallas,  mas 
os  desenhos  feitos  de  hum  certo  modo  que  possa  quem  os  viu  fazer  huma 
justa  ideia  do  seu  verdadeiro  effeito  na  grande  execução,  quer  seja  feito  pelo 
methodo  já  approvado  por  S.  M.  o  hé;  que  a  cada  hum  dos  Artistas  ao  ser- 
viço se  destine  huma  Salla  para  que  este  faça  hum,  dois  ou  mais  dezenhos 
para  a  decoração  da  dita,  e  em  conferencia  artística  se  escolha  o  que  se  jul- 
gar melhor,  fazendo-se  huma  nota  por  onde  conste  que  foi  approvado  dos 
Artistas  passem  todos  á  Real  Prezença  de  S.  M.  para  que  este  como  Senhor 
elleja  o  que  Lhe  parecer,  e  melhor  gostar,  mesmo  apezar  da  sobredita  es- 
colha dos  Artistas,  para  isso  se  necessita  que  se  dê  a  cada  salla  hum  Assum- 
pto, seja  o  que  sé  acha  dado,  ou  aquelle  que  melhor  agradar  a  quem  governa, 
porisso  nós  ajuntamos  a  esta  reprezentação  bua  noção  do  que  foi  a  este  res- 
peito estabelecido  na  Corte  do  Rio  de  Janeiro,  tirando  deste  modo  o  odiozo 
methodo  de  parallelos,  que  sempre  vêm  a  terminar  em  perjuizo  da  obra,  por- 
que fazendo  todos  os  mesmos  dezenhos  será  isto  uma  operação  tão  moroza 
que,  antes,  de  se  pôr  em  execução  cansaria  a  paciência  de  quem  espera  e 
faltaria  o  tempo  para  o  principal,  que  vem  a  ser  a  execução  de  hum.  Já  hé 
sabido  que  cada  um  dos  Artistas  que  projectarem,  e  de  quem  o  Projecto  for 
acceíte  o  não  pode  executar  sem  o  concurso  de  hum  ou  mais  de  seus  Colle- 
gas,  e  tanto  que  se  houvesse  de  entre  nos  quem  se  quizesse  incumbir  de 
huma  ou  mais  sallas  com  o  destino  de  o  fazerem  só,  se  deveria  desde  logo 
reprimir  este  Projecto,  pois  que  a  sua  execução,  quando  se  conseguisse, 
seria  infenitamente  morosa  ou  indecente  por  mal  dezempenhada.  Eis  o  que 
levamos  ao  conhecimento  de  V.  Senhoria,  esperando  nos  defira  como  sup- 


92  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

plicamos.  Real  Obra  d' Ajuda   10  de  Janeiro  de  1822.  —  Arcangelo  Fosquini 

—  José  da  Cunha  Taborda  —  Máximo  Paulino  dos  Reis  —  Joaquim  Gregório 
da  Silva  Ratto.  Está  conforme.  Bernardino  de  Sena  Lemos  da  Rocha». 

«Assumptos  para  os  Pintores  da  Obra  do  Real  Palácio  d'Ajuda  que  forão 
remettidos  por  S.  M.  da  Corte  do  Rio  de  Janeiro  e  que  reprezentou  em  con- 
ferencia o  Pintor  Arcangelo  Fosquini  —  A  Clemência  de  Tito  excedida  — 
Hum  Quadro  das  circunstancias  dolorozas  e  criticas  em  que  El  Rey  N-  S. 
se  vio  no  anno  de  1807  assaltado  da  perfídia  e  da  injustiça,  sustentando  po- 
rem a  Dignidade  de  Sua  Caza  e  Estado,  e  a  heróica  firmeza  de  manter  a 
integridade  dos  Tratados  apezar  de  tudo  sem  consentir  no  sequestro  e  re- 
tenção dos  vassallos  e  bens  do  seu  bom  amigo  e  Alliado  S.  M.  Britânica  — 
O  Conselho  ou  Reunião  dos  Deozes,  com  os  episódios  que  parecerem  con- 
venientes para  guiarem  e  perseverarem  os  Soberanos  da  Dynastia  da  Sere- 
nissima  Caza  de  Bragança  —  A  prudência  e  Politica  do  Senhor  Dom  João 
quarto  para  fazer  fáceis  tantas  coizas  que  paredão  impossíveis  para  deitar 
mão,  e  conservar  a  septro  que  por  tantos  Titulos  lhe  tocava  —  A  acclamação 
do  mesmo  Soberano  extrahida  do  grande  Quadro  e  coevo  que  comprou  o 
actual  Inspector  e  existe  no  mesmo  Real  Palácio.  —  Dez  Quadros  de  Embai- 
xadas recebidas  das  Cortes  Estrangeiras,  e  de  outras  que  Portugal  a  ellas 
dirigio,  para  decorarem  as  tabeliãs  da  rica  e  ellegante  Salla  de  Embaixa- 
dores. Lisboa  15  de  Novembro  de  181!)  —  Arcangelo  Fosquini  —  Está  con- 
forme. Rernardino  de  Sena  Lemos  da  Rocha. 

«Está  conforme.  Intendência  das  Obras  Publicas  14  de  Janeiro  de  1822. 

—  Ricardo  José  Manitli»  l. 


«Conferencia  de  o  de  Julho  de  1823. 

«Aprezentárão  os  Mestres  das  diffe rentes  olTicinas  as  relaçoens  de  cos- 
tume, nas  quaes  nada  pedem  para  o  regular  andamento  da  Obra. 

.  •  Bellas  Artes 

«Propoz  o  Architecto  da  Obra  que,  estando  próximo  a  aeabar-se  a  Salla 
da  Galleria  nobre,  confiada  ao  Pintor  José  da  Cunha  Taborda,  seria  conve* 


,  '.Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reiuo. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  93 

niente  antes  de  desmanchar  o  Andaime,  se  posessem  os  Caxilhos  das  Sobre- 
porias com  vidros  de  aço;  e  determinou  o  Brigadeiro  Intendente,  que  o 
Mestre  Carpinteiro  satisfizesse  com  a  possível  brevidade  á  supradita  reque- 
zição  do  Architecto.  Em  ampliação  ao  objecto,  que  se  tratou  em  conferencia 
de  24  de  Maio  do  presente  anno,  relativo  á  applicação  e  adiantamento  dos 
Praticantes  de  Bellas  Artes,  foi  declarado  nesta  Conferencia  o  seguinte: 

«Primeiro:  João  Carlos  Amatueci,  idade  de  17  annos,  tempo  de  estudo 
4  annos  não  completos;  obra  que  executou:  Copia  de  bua  cabeça  de  Porcca- 
ehini.  designada  n.°  1 :  foi  julgado  pelos  artistas  digno  de  passar  a  Prati- 
cante de  Pintura  de  4.a  classe,  com  o  vencimento  de  SOO  réis;  vence, 
actualmente  300  reis. 

«Segundo:  Gregório  Maria  Ratio,  idade  18  annos,  e  de  estudo  5  com- 
pletos: obra  que  executou:  Copia  de  bua  Cabeça  de  Vandicbi,  foi  julgado 
pelos  Artistas  digno  de  passar  a  Praticante  de  Pintura  de  l.a  Classe  com  o 
vencimento  de  500  reis:  vence  actualmente  400  reis. 

«N.°  3  —  Manoel  da  Conceição,  idade,  19  annos  e  de  estudo  19  meses, 
fez  hum  Dezenho  tirado  da  cabeça  do  Antino  em  gesso:» foi  julgado  pelos 
Artistas  digno  de  Passar  a  Praticante  de  Desenho  de  l.a  classe  com  venci- 
mento de  300  reis:  actualmente  não  tem  vencimento. 

«N.°  4  —  Manuel  Firmo  Duro,  idade  24  annos,  e  de  estudo  1  anno  com- 
pleto, fez  um  Dezenho  tirado  da  cabeça  de  Leouardi  dAvincci:  foi  julgado 
pelos  Artistas  digno  de  passar  a  Praticante  de  Desenho  de  1."  classe  com  o 
vencimento  de  300  reis:  também  não  tem  vencimento. 

«N.°  5.  Joaquim  Luis  Maria  Ratto,  idade  16  annos.  e  de  estudo  3,  fez 
hum  Desenho  tirado  de  bua  Cabeça  de  Leonardi  dWvincci:  foi  julgado  pelos 
Artistas  digno  de  passar  a  Praticante  de  Desenho  de  2."  classe  com  venci- 
mento de  200  reis:  também  não  tem  vencimento. 

«N.°  6.  Pedro  Ribeiro,  idade  17  annos  e  de  estudo  4,  fez  hum  Desenho 
tirado  da  Cabeça  em  gesso  da  Minerva  de  Justiniani :  foi  julgado  pelos  Artistas 
digno  de  passar  a  Praticante  de  Desenho  da  2.a  classe  com  o  vencimento 
de  200  reis:  também  não  tem  vencimento. 

«Apresentou  o  Architecto  Pintor  Manoel  Piolti  o  Projecto  para  a  pintura 
do  Tecto  da  Salla  quadrada  do  Torreão  que  mereceo  a  unanime  approvação 
de  todos  os  Artistas.  E  não  se  offerecendo  mais  nada  a  tratar  na  prezente 
Conferencia,  a  houve  o  sobredito  Brigadeiro  Intendente  por  acabada,  e  delia 
mandou  lavrar  este  Termo,  que  assignou  com  o  Architecto  da  Obra,  Artis- 
tas, e  Mestres,  e  comigo  Escripturario  que  sirvo  de  Escrivão  na  Obra  d 'Ajuda 
que  o  escrevi  e  assignei.  —  Bernardino  de  Sena  Lemos  da  Rocha  —  Fava  — 
António  Francisco  Rosa  —  Arcangelo  Fasquini  —  Máximo  Paulino  dos  Reis. 
John  Johnston  —  Sebastião  José  Alves  —  António  Joaquim  de  Faria  —  Manoel 


94  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Piolti  —  José  Joaquim  de  Soma  —  João  Pereira  —  José  Pedro  de  Carvalho  — 
Norberto  José  Ribeiro  —  João  José  d' Aguiar  —  Joaquim  Gregório  da  Silva 
Ratto — José  da  Cunha  Taborda-»  i. 


«111."10  Senhor.  —  Tendo  sido  preenchido  o  Pedido  feito  ao  Governo  rela- 
tivo ás  Drogas  de  França  que  requisitei  para  os  dous  Painéis  grandes  allu- 
sivos  aos  Dias  26  de  Fevereiro  de  1821  e  4  de  Julho  do  mesmo  anno  de 
que  estou  encarregado  e  tendo  ficado  em  aberta,  o  artigo  Manequim  para 
vir  depois,  havendo-se  as  circunstancias  dos  trabalhos  de  Pintura  augmen- 
tado  consideravelmente,  se  me  faz  necessário  lembrar  a  V.  S.ria  queira  so- 
licitar a  vinda  pelo  menos  de  hum  dito  de  Mulher  para  o  Estudo  das  Roupas, 
o  que  vem  a  ser  de  muita  necessidade  e  economia  para  a  Fazenda  Nacional 
e  Real,  e  melhor  dezempenho  do  dito  Estudo  tão  necessário  como  o  Estudo 
do  Natural  para  as  Figuras,  fazendosse  ambas  indispensáveis  para  a  execução 
fácil  e  correcta  das  grandes  Obras  de  Pintura  de  que  estou  encarregado. 
Obra  do  Paço  Novo  d'Ajuda  em  21  de  Dezembro  de  1822.  —  O  Pintor  da 
Gamara  de  S.  M.  F.  Arcangelo  Fosquini»  "2. 


«Senhor. — Diz  Arcangelo  Fosquini,  Pintor  da  Gamara  de  V.  M.dc  em- 
pregado na  decoração  do  Real  Paço  novo  d' Ajuda,  que  elle  Supplicante  pa- 
dece moléstia,  pela  qual  deve  fazer  uso  dos  Ranhos  do  Estoril,  como  consta 
pela  attestação  junta  do  Facultativo  que  trata  delle  e  como  o  Supplicante  não 
pode  fazer  uzo  deste  remédio  sem  licença  de  V.  Mag.de  esse  o  motivo  por- 
que recorre  a  V.  Mag.de  afim  de  que  haja  por  bem  conceder-lhe  a  mencio- 
nada licença  por  hum  mez  com  os  seus  vencimentos  visto  que  o  Supplicante 
não  está  em  circunstancias  de  os  perder,  e  fiado  na  Justiça  e  Rondade  de 
V.  Mag.de  P.  a  V.  Mag.de  se  digne  differir  ao  Supplicante  como  umildemente 
implora.  R.  M.ce». 

«José  de  Mattos  cirurgião  approvado  e  da  Caza  do  Ex.m0  Senhor  Cardial 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  fieino. 

2  Idem,  idem.  » 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  95 

Patriarcha,  ete.  Attesto  que  o  Senhor  Àrcangelo  Fosquini  Pintor  da  Camará 
de  S.  M.  soffre  de  moléstia  herpetica,  para  a  qual  lhe  são  percizos  os  banhos 
do  Estoril,  como  especifico  remédio,  por  ser  verdade  paço  a  prezente  que 
juro  debaixo  do  juramento  da  minha  Arte.  Belém  10  de  agosto  de  1830  — 


«Senhor.  —  Diz  Pedro  Maria  Fosquini,  filho  de  Àrcangelo  Fosquini,  Pintor 
da  ("amara  de  V.  Mag;de  que  tendo  tido  a  ventura  de  ser  mandado  admittir 
na  Real  Ohra  do  Palácio  novo  d' Ajuda  pelo  ex-Inspector,  o  Conselheiro  Joa- 
quim da  Costa  e  Silva,  para  debaixo  da  sabia  direcção  do  Professor  de  Es- 
culplura  João  Joze  de  Aguiar,  desenvolver  as  innatas  dispoziçôes  do  suppli- 
caute  para  a  ditta  Bella  Arte,  e  tendo  no  espaço  de  30Mezes  feito  progressos 
consideráveis,  mereceo  ultimamente,  que  tendo  aprezenlado  um  Modello  em 
barro  de  numa  Ceres  de  dois  Palmos  de  altura,  fosse  visto  na  ultima  conferencia 
de  28  de  setembro  próximo  passado  por  todos  os  dignos  Professores  de  Bellas 
Artes  que  ali  costumão  assistir  prezedidas  pelo  Brigadeiro  Intendente  da  re- 
ferida Obra,  os  quaes  depois  de  o  examinarem,  concordarão  unanimemente  (que 
o  Supplicanle  vista  a  dispozição,  e  execução  do  referido  Modello,  merecia  ser 
contemplado  com  o  vencimento  de  algum  salário  afim  de  estimular  a  natural 
propensão  do  dilto)  declaração  esta  que  foi  mandada  lançar  na  Acta  da  refe- 
rida conferencia),  para  ser  prezente  a  V.  Mag.dc.  Este  o  motivo  porque  o  Sup- 
plicante  se  atreve  a  implorar  o  Real  Patrocínio  de  V.  Mag.Je  afim  de  querei' 
dignar-se  mandar  deferir  o  Supplicanle  com  algum  vencimento  para  o  animar 
e  de  algum  modo  não  servir  de  tanto  pezo  a  seu  Pay  que  se  acha  sobrecar- 
regado de  numerosa  família;  e  portanto  P.  a  V.  Mag.lle  como  Pay  da  Pátria  e 
Protector  de  Talentos  que  se  dedicão  á  cultura  das  Bellas  Artes,  seja  servido 
deferir  o  supplicante  da  forma  que  pede,  vistas  as  circunstancias  que  allega, 
e  exemplos  que  existem  ua  referida  Obra.  Pedro  Maria  Fosquini.  E.  R.  M.ce 
Informe  o  Brigadeiro  Intendente  das  Obras  Publicas.  Lisboa  1 1  de  outubro  de 
1822.  Ferreira  de  Araújo»  -. 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Arcliivo  do  Ministério  do  Reino. 
*  Idem,  idem. 


96 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Rellação  em  rezumo   dos  Empregados  da  Real  Obra  do  Paço  d'Ajuda  com  os 
seus  ordenados  e  seus  vencimentos  que  levão  a  folha  semanária 


Pintores  de  Historia: 


Arcangelo  Fosquini 

1:000,5(000 

José  da  Cunha  Taborda 

SOOáOOO 

Máximo  Paulino  dos  Rej 

'S 

576^000 

Ajudantes  dos  ditos: 

i 

1#000 

» 

i 

800 

» 

3 

600 

Discipulos  dos  dittos: 

1 

400 

1 

300 

l 

260 

l 

240 

1 

200 

Real  Obra  do  Palácio  d'Ajuda  10  de  outubro  de  1821. 
Rosa  l. 


António  Francisco 


XXX. —  Godinho.  —  Na  Viagem  de  Francisco  Pyrard,  que  visitou  a  nossa 
índia  nos  primeiros  annos  do  século  xvii,  lè-se  a  seguinte  descripção  a  res- 
peito de  uma  das  salas  do  palácio  dos  governadores,  onde  estavam  pintadas 
as  armadas  que  tinham  partido  de  Portugal: 

«No  primeiro  pateo  á  mão  esquerda  ha  uma  grande  escadaria  de  pjedra 
mui  larga  e  que  conduz  a  uma  sala  muy  espaçosa,  na  qual  estão  pintadas 
todas  as  armadas  e  navios  que  teem  passado  á  índia,  com  seu  numero,  data, 
nome  do  capitão  e  até  os  navios  que  teem  padecido  naufrágio,  alli  teem  sido 


1  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino.  Esculptores  mencionados  são:  João 
José  d'Aguiar,  Manuel  Joaquim  de  Barros,  Gaspar  Joaquim  da  Fonseca,  João  Gregório  e 
João  Teixeira  Pinto. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  97 

retratados.  É  cousa  espantosa  vèr  tantos  navios  perdidos.  Em  summa  não  ha 
navio  vindo  de  Portugal,  por  mais  pequeno  que  seja,  que  alli  não  esteja  re- 
tratado e  não  tenha  o  seu  nome  eseripto  '.» 

Numa  carta  escripta  de  Gôa  a  6  de  janeiro  de  1616  por  Diogo  do  Couto, 
diz  este  chronista: 

«Os  painéis  das  armadas  que  estavam  n"esta  casa  da  fortalesa  apodrece- 
ram todos,  e  tiraram-se ;  não  ficou  d'isto  memoria ;  ha  três  annos  que.  labuto 
com  o  Viso-Rey  sobre  se  renovarem,  até  que  depois  d'estas  naus  vindas  o 
acabei  com  elle,  encommendou-me  isto,  e  tenho  já  feito  de  um  mez  para  cá 
mais  de  cem  painéis  de  tintas  muito  boas,  que  faz  o  pintor  Godinho,  e  por- 
que o  painel  da  primeira  armada,  em  que  o  senhor  Conde  Almirante  veiu 
descobrir  a' índia  era  muito  pequeno  e  acanhado,  como  se  aquelle  capitão  não 
fisera  um  dos  mores  feitos  do  mundo,  mandei-lhe  faser  um  painel  tamanho 
como  os  dous  dos  outros  em  que  lhe  puz  letreiros  que  merece». 

Esta  carta  foi  publicada  em  Lisboa  em  1808  por  António  Lourenço  Ca- 
minha no  opúsculo  intitulado  Obras  inéditas  de  Diogo  do  Couto. 

Quem  seria  este  Godinho?  Acaso  o  Godinho  de  Heredia,  descobridor  e 
cosmographo  ? 


XXXI.  —  Goterres  (Mestre).  —  Poeta,  calligrapho  e  porventura  debuxa- 
dor  e  miniaturista  dos  fins  do  século  xvi.  A  sua  individualidade  parece-me 
comparável  á  de  Pinheiro  Arnaud,  de  quem  trato  adeante.  A  sua  biographia 
acha-se  compendiada  num  soneto  de  André  Falcão  de  Resende  que  transcre- 
verei aqui: 

Quem  busca  obras  subtis  d'engenho  raro, 
D"artificiosa  mão,  felice  veia, 
Da  limpa  ortographia  a  casta  idáa, 
Goterrez  veja,  em  fama  e  esp'rito  claro. 

Fácil  canta  e  compõe,  qual  Naso  ou  Maro, 
E  de  ricos  characteres  o  arreia; 
Dá  vida  e  lustro  á  letra,  e  d'isto  cheia 
Vestil-a  de  mil  cores  não  é  avaro. 


1  A   Viagem  de  Pyrard  foi  traduzida  por  J.  H.  da  Cunha  Rivara  e  publicada  em  Gôa 
em  1858.  Trechos  relativos  áuuella  cidade  acham-se  transcriptos  no  3."  vol.  da  obra  do 
Dr.  Teixeira  de  Aragão,  Descripção  Geral  e  histórica  das  moedas. 
13 


98  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

D'engenho  tão  sublime  e  peregrino 
Eseriptor  Lusitano  e  tal  poeta, 
Pedir  o  manda  ao  Tejo  o  Tiberino. 

Diz,  pois  não  ha  na  pátria  bom  proplieta. 
Que  de  Orem  passa  ao  Alpe  e  Apennino. 
A  Roma  honrar  quçm  cà  a  pobreza  inquieta. 

Vê-se  portanto  que  mestre  Gotterres  era  poeta,  calligrapho  e  illunrinador 
e  não -só  compunha  como  Ovídio  ou  Yirgilio,  mas  debuxava  em  excellente 
calligraphia  as  suas  composições  poéticas,  enfeitando-as  de  arabescos  e  illu- 
minuras.  Eseriptor  lusitano  lhe  chama  Falcão,  mas  não  sei  que  exista  qual- 
quer trabalho  seu  na  nossa  lingua,  ou  pelo  menos  memoria  d'elle.  Que  mais 
nos  diz  o  soneto?  Que  era  natural  de  Ourem,  e  que  ia  passar  a  Roma,  já 
que  na  sua  pátria  não  lograva  honrados  meios  de  subsistência.  E  se  inter- 
pretarmos á  lettra  o  ultimo  verso  do  primeiro  tercetto,  parece,  que  era  da 
cidade  eterna  que  lhe  vinha  o  convite  para  lá  exercer  a  sua  profissão  artís- 
tica. 

Áquelle  tempo  existiam  em  Roma  notabilissimos  illumiiiadores,  e  se  Go- 
terres  se  animava  a  procurar  a  capital  das  artes  para  alli  desenvolver  o  seu 
talento,  é  porque  se  reconhecia  com  forças  para  luctar  com  os  émulos,  que 
necessariamente  havia  de  encontrar.  Que  papel  exerceu  alli?  Qual  foi  a  sua 
carreira?  Eis  o  que  não  sei.  É  possível  que  na  historia  da  arte  italiana  elle 
deixasse  algum  vestígio,  mas  por  ora  ainda  o  não  pnde  encontrar  '. 

Da  sua  capacidade  poética  tenho  aqui  dois  documentos  que  encontrei  ca- 
sualmente, como  tantas  vezes  me  tem  suecedido  nos  meus  trabalhos  de  inves- 
tigação. Vou  ás  vezes  no  encalço  de  uma  cousa  e  depara-se-me  outra  inteira- 
mente imprevista.  Em  mina  extranha  é  que  se  encontra  inesperadamente  o 
grãosinho  de  ouro  apetecido. 

Em  ir>94  publicava  em  Coimbra  o  doutor  Gonçalo  de  Cabedo,  na  offieina 
de  António  Rarreira,  um  tractado  de  direito  ecclesiastico  intitulado  Diversorvm 
jvris  argvmentvm  libar  primvs.  A  este  livro  andam  appensas,  como  deleite  de 
matéria  fastidiosa,  as  poesias  latinas  do  pae  do  auetor,  o  celebrado  juriscon- 
sulto e  humanista  Miguel  de  Cabedo.  No  rosto  do  livro  menciona-se  que  se 
juntaram  alguns  opúsculos:  Accesserunt  &  alia  queedam  opusctda  in  gratiam 


1  Se  Goterres  terminou  os  seus  dias  em  Roma  e  alli  foi  exhumado,  não  se  nos  depara 
commemoração  sepulchral  na  collecção  que  o  abade  Caetano  Frascarelli  publicou  em  1868 
n'aquella  cidade  sob  o  titulo  de :  —  Iscrizioni  Portoghesi  che  esistono  in  diversi  luoghi  di 
Roma. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  99 

stitdiosorum,  mas  não  se  especificam.  Na  approvação,  o  revedor  Fr.  Bartho- 
lomeu  Ferreira,  o  que  censurou  os  Lusíadas,  diz  que  vira  com  toda  a  diligencia 
o  livro,  mm  cceteris  adiunctis,  mas  guarda  egualmente  silencio  sobre  a  natu- 
reza d'elles  e  sobre  a  sua  paternidade.  Barbosa  não  reparou  para  estas  decla- 
rações e,  se  folheou  o  volume,  não  notou  o  appendice  poético.  Não  é  todavia 
para  causar  reparo  esta  omissão,  porque  em  alguns  exemplares,  como  no  da 
Bibliotlieea  Nacional  de  Lisboa,  não  o  encontrei.  Entre  as  diversas  composi- 
ções do  appendice  vem  uma  poesia  latina  dirigida  por  um  Goterres  a  Miguel 
de  Cabedo.  Parece-me  que  não  poderá  haver  a  menor  duvida  em  o  identificar 
com  o  poeta  elogiado  por  Falcão  de  Resende.  A  poesia  é  uma  saudação  e 
uma  supplica,  mas  não  esclarece  a  biographia  do  auctor. 

Eis  o  titulo: 

Ad  clarissimum  virum  Michaelem  Cabedium  iuris  vtriusq;  consultissimum, 
Regii  Vtyssceiqúe  senatus  senatorem  grauissimum,  Guterrii,  carmen. 

O  segundo  documento  é  ainda  outra  poesia,  escripta  também  em  latim,  e 
que  se  encontra  nos  preliminares  da  obra  do  celebrado  jurisconsulto  e  ma- 
gistrado António  da  Gama,  Decisiones  Svpremi  Senatvs,  impressa  em  Lisboa, 
n'um  grosso  volume  in  folio,  pelo  typographo  Manuel  João,  em  1578.  A  poesia 
vem  a  par  de  duas  egualmente  encomiásticas,  de  Diogo  de  Castro  (Jacobus 
de  Castro).  O  seu  titulo  é: 

Ad  gravissimi  Antonii  Á  Gamma  prwclarissimum  opus  Guterrij  Cármen. 

Duas  eircumstancias  se  offerecem  aqui  a  notar:  a  primeira  é  o  modo  idên- 
tico com  que  as  duas  poesias  principiam.  A  segunda  é  serem  ambas  dedica- 
das a  dois  desembargadores  do  paço.  Accresce  que  Falcão  de  Resende  foi 
também  juiz.  Isto  me  leva  á  indução  de  que  Goterres,  estando  tão  relacionado 
com  gente  de  foro,  fosse  talvez  empregado  em  algum  tribunal.  Mera  supo- 
sição todavia. 


XXXII.  — Leoni  (Carlos  António).  —  Pintor  florentino  que  exerceu  a  sua 
actividade  em  Lisboa,  no  século  xvm,  no  reinado  de  D.  José  I,  e  já  porventura 
no  de  D.  íoão  V.  Parece  ter-se  dedicado  especialmente  ao  retrato,  como  o 
provam  diversas  composições  suas  n'este  género. 

Na  galeria  de  retratos  da  Bibliotheca  Nacional  de  Lisboa,  existem  alguns, 
executados  por  elle  entre  os  annos  de  1760  e  1774.  São  em  tela,  sendo  um 
de  tamanho  natural,  o  de  Fr.  Miguel  Contreiras,  (1766)  e  os  outros  em  meio 
corpo  a  saber:  Fr.  Domingos  Pereira;  Fr.  António  dos  Beis  (1760),  P.  Esta- 
do d'Almeida,  (1774),  Pedro  Troyano,  P.  João  Col,  D.  Júlio  Francisco  d'Oli- 
veira  (1766). 

Na  importante   Collecção  Iconographica,  organisada  por  Diogo  Barbosa 


100  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Machado,  o  eminente  bibliographo  a  quem  devemos  a  Bibliotheca  Lusitana, 
e  da  qual  está  hoje  de  posse  a  Bibliotheca  Nacional  do  Rio  de  Janeiro,  que 
a  descreveu  numa  serie  de  volumes,  vêem  apontados  os  seguintes  retratos: 

N.°  583  — D.  João  V—  Carolus  Ant.  Leoni  fecit. 

N.°  605  —  D.  Maria  Anna  d'Austria,  —  Peint  à  Lisbonne  par  Ch.  Ant. 
Leoni,  gravado  pelo  mesmo  artista. 

N.°'612 —  D.  José  I,  pintura  a  aguada  de  nanquim — Carolus  Antonius 
Leoni  Floren.s  inve:  et  delin. 

N.°  615  —  Inverso  do  antecedente  com  a  mesma  inscripção  e  mais  R.  Gail- 
lard  sculp. 

N.°  1044  a  1048  —  Retratos  dos  primeiros  cinco  duques  de  Bragança, 
delineados  por  Leoni  e  gravados  por  Miguel  M.  Aubert,  Petit  filho,  e  Boberto 
Gaillard. 

Ha  um  Octávio  Leoni,  pintor  romano  e  também  gravador,  que  vivia  no 
primeiro  quartel  do  século  xvu,  1623-1625,  e  que  era  cavalleiro  de  Christo, 
ou  de  Malta,  segundo  Barbosa.  Vide  n.os  1969,  1970  e  1973  do  catalogo.  Este 
ultimo  é  o  retrato  de  João  Lourenço  Bernini,  que  também  era  cavalleiro  de 
Christo. 

Até  agora  não  obtive  nos  nossos  archivos  nenhum  documento  que  diga 
respeito  a  Carlos  António  Leoni,  pelo  que  nada  mais  posso  accrescentar. 


XXXIII.  —  Leoni  (Francisco  Eloy  de  Paula).  —  D'este  artista  que  não  sei 
se  terá  alguma  relação  de  parentesco  com  o  antecedente,  encontrei  um  reque- 
rimento em  que  se  declara  pintor  de  ornato  e  pedia  para  ser  admittido  como 
official  da  sua  arte  nas  obras  do  Paço  da  Ajuda.  Seria  filho  ou  descendente 
de  Carlos  António? 

O  requerimento,  que  passo  a  transcrever,  não  tem  data,  mas  é  reforço  a 
outro  de  4  de  novembro  de  1828,  e  n'elle  declara  que  tem  numerosa  familia 
a  sustentar. 

«Senhor  —  Diz  Francisco  Elloy  de  Paula  Leoni  Pintor  de  ornato  que  tendo 
pedido  a  V.  R.  Mag.de  para  ser  admetido  a  official  da  sua  arte  de  Pintura  no 
Real  Palácio  de  N.  Sn."  da  Ajuda,  V.  R.  Mag.de  se  dignou  apor  por  despacho 
—  Esperado  —  no  requerimento  de  4  de  Novembro  de  1828,  cujo  requerimento 
se  acha  na  Secretaria  de  Pedro  Vaz,  o  supplicante  tem  hido  varias  vezes  á 
presença  de  V.  R.  Mag.de  e  lhe  tem  mostrado  com  justiça  e  com  documento 
o  direito  que  tem  ao  que  implora  em  que  o  haja  de  admitir  nas  obras  que 
efectivamente  se  continuão  em  o  Real  Paço  de  Nossa  Senhora  da  Ajuda  para 
meios  de  sua  subsistência,  e  de  sua  numeroza  familia,  e  no  entanto  Pede  a 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  101 

V.  R.  M.de  que  por  efeitos  da  sua  Regia,  e  Augusta  Piedade  se  digue  mandar 
que  o  supplicante  seja  admetido  com  efectividade  nas  obras  da  classe  de  Pin- 
tura èm  o  Real  Paço  de  N.  Sr.  dajuda  como  requer.  E.  R.  M."»1 


XXXIV.  —  Loo  (Luis  Miguel  Van).  —  A  expulsão  dos  jesuítas  foi  um  dos 
actos  mais  audaciosos  e  de  maior  alcance  politico  do  reinado  de  D.  José  I, 
e  tanto  que  ainda  hoje,  volvido  século  e  meio,  desperta  brados  de  indignação 
e  de  protesto  nos  lábios  frementes  dos  sectários  de  Loyola. 

O  marquez  de  Pombal  parece  ter  querido  assumir  única  e  exclusivamente 
a  gloria  e  a  responsabilidade  d*este  feito,  que  revela  simultaneamente  a  ener- 
gia do  seu  caracter  e  a  ardileza  do  seu  espirito  diplomático.  Isto  não  passa 
de  mera  supposiçfio,  mas  supposição  que  julgo  ter  um  fundamento  plausível. 
Se  o  poderoso  ministro  pensasse  no  seu  intimo  d'outra  maneira,  não  teria 
acceitado  sem  reparos  a  apotheose  que  lhe  consagraram  duis  estrangeiros, 
residentes  em  Lisboa,  e  que  estavam  no  goso  da  sua  intimidade. 

Essa  apotheose  consiste  num  quadro,  onde,  no  primeira  plano,  avulta  a 
magestatica  figura  do  marquez,  sentado  numa  cadeira,  como  que  pensando 
na  reconstrucção  de  Lisboa,  cujos  traçados  se  vêem  sobre  uma  mesa,  e  ao 
fundo  o  embarque  dos  jesuítas.  O  sol  da  realeza  parece  ter-se  eclipsado  para 
brilhar  somente  o  astro  do  cortezão.  Este  quadro  é  para  o  prepotente  valido 
o  mesmo  que  para  o  monarcha  a  estatua  equestre  do  Terreiro  do  Paço.  É 
certo  que  não  foi  o  marquez  que  ordenou  a  pintura,  nem  foi  sob  as  suas 
ordens  directas  que  ella  se  executou,  mas  com  certeza  que  não  deixaria  de 
vêr  e  de  applaudir  o  plano  primitivo,  ficando  satisfeito  o  seu  orgulho,  com 
esta  honrosa  e  excepcional  consagração. 

A  ideia  partiu  de  dois  negociantes  estrangeiros,  cuja  sede  commercial  era 
na  rua  Formosa,  num  prédio  do  marquez,  pelo  qual  pagavam  uma  renda  assas 
avultada.  Esta  circumstancia  dava  pretexto  aos  remoques  dos  seus  collegas, 
que  viam  com  ciúmes  os  favores  dispensados  pelo  marquez  aos  seus  inquili- 
nos. Nas  memorias  de  Jacome  Ratton  lia  reflexos  significativos  d'essa  mordente 
rivalidade.  Os  dois  negociantes  chamavam-se  David  Purry  e  Gerardo  Devisme, 
e  tinham  o  privilegio  do  pau-brazil,  sem  duvida  uma  das  fontes  principaes  da 
sua  rendosa  mercancia. 

Dos  dois  sócios,  o  que  entre  nós  disfruetou  maior  e  mais  merecida  fama 
foi  Gerardo  Devisme,  cujos  hábitos  faustosos  e  cuja  inclinação  para  a  sciencia, 


1  Tone  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


102  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

para  as  artes  e  paca  a  litteratura,  o  distinguiram  sobremaneira  na  sociedade 
elegante  do  seu  tempo.  O  seu  nome  ainda  hoje  permanece  nos  annaes  da 
botânica  a  qualificar  um  género  de  plantas,  e  as  recordações  das  suas  es- 
plendidas vivendas  de  S.  Domingos  de  Bemfica  e  de  Monserrate  não  se  apa- 
garam de  todo.  Nem  sempre  a  vida  lhe  decorreria  grata  no  nosso  pais,  pois 
parece  que  alguns  desgostos  o  obrigaram  por  ultimo  a  abandonal-o.  Desco- 
nhece-se,  porém,  a  verdadeira  causa  que  motivou  a  sua  ausência. 

David  Purry,  se  não  deixou  em  Portugal  viva  lembrança  do  seu  nome  e 
dos  seus  actos,  se  não  mereceu  por  isso  que  lhe  consagrássemos  a  homena- 
gem da  nossa  gratidão,  já  não  succede  o  mesmo  na  sua  terra  natal,  que  en- 
cheu de  benefícios,  legando-lhe  sommas  importantes  para  estabelecimentos 
de  ensino,  caridade  e  para  outras  obras  de  aformoseamento.  Natural  de 
Neuchatel  (Suissa)  nasceu  em  1709  e  falleceu  em  Lisboa  em  1788.  Os  seus 
concidadãos  erigiram-lhe  um  monumento,  sobre  o  qual  a  sua  estatua  campeia 
numa  praça  publica,  que  tem  o  seu  nome.  O  artista  que  executou  este  traba- 
lho foi  o  distincto  esculptor  francez  David  d'Angers. 

Na  face  principal  do  plinto  lè-se  a  seguinte  inscripção: 

MDCCCXLHI 

David  de  Purry 

né  Á  Neuchatel,  en  1709,  mort  á  Lisbonne  en  1788 

II  légua  á  sa  ville  natale 

Sa  FORTUNE  ACQUISE  DANS  LE   COMMERCE 

pour  que  les  revenus  en  fussent  appliqués 

á  des  oeuvres  de  charité, 

á  l'lnstruction  publique, 

á  l'embellissement  de  la  ville. 

Ses  concitoyens  ont  eleve  ce  monument  á  sa  mémoire. 

A  biographia  do  generoso  philantropo  pôde  lèr-se  no  tomo  xm,  do 
Diccionario  de  Larousse,  onde  todavia  não  se  faz  ainda  referencia  á  sua 
estatua. 

O  quadro  alludido  não  foi  producto  nacional,  antes  se  enviou  para  Paris 
a  encommenda,  encarregando-se  da  sua  execução  dois  artistas  de  incontestá- 
vel merecimento  e  então  muito  em  voga,  cada  qual  no  seu  género,  Luis 
Van  Loo  e  Vernet.  Çyrillo  Volkmar  Machado,  na  sua  Collecção  de  Memorias, 
dá-nos  curiosas,  ainda  que  breves,  informações  acerca  dos  esboços  que  foram 
remettidos  de  Lisboa  e  que  deviam  servir  de  guia  e  de  modelo  aos  pintores 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  103 

francezes.  No  começo  do  artigo  a  respeito  de  Padrão  (paginas  114)  diz  o  se- 
guinte : 

"Fez  os  esbocelos,  que  forão  para  França  para  por  elles  se  executar 'o 
grande  retrato  do  Marquez  de  Pombal  expulsando  os  Jesuítas*. 

E  mais  abaixo  accresoenta,  tratando  de  Carpinetti: 

«Desenhou  toda  a  Marinha  de  Belém,  e  o  embarque  dos  Jesuítas  para 
servirem  de  modelo  á  que  se  gravou  em  França,  por  ordem  de  Gerardo 
de  Visme  na  famosa  estampa  do  Marquez  de  Pombal,  bem  conhecida  dos 
curiosos». 

O  quadro,  que  ainda  hoje  se  conserva  no  palácio  pombalino  de  Oeiras, 
foi  divulgado  pela  gravura,  devido  ao  buril  de  Beauvarlet,  e  nella  se  lêem, 
além  da  dedicatória  em  latim,  as  indicações  relativas  a  todos  os  artistas,  que 
collaboraram  na  obra.  Quanto  não  seria  para  desejar  que  o  Estado  empre- 
gasse as  diligencias  necessárias  para  obter  este  quadro,  collocando-o  na  ga- 
leria nacional  de  pintura,  onde  ficaria  perfeitamecte  bem,  pois  o  Museu  das 
Janellas  Verdes  acha-se  estabelecido  num  palácio,  que  também  foi  propriedade 
do  eminente  estadista  1 

Não  devo  omittir,  competindo-me,  pelo  contrario,  pôr  em  relevo,  uma 
circumst anciã,  que  muito  contribue  para  tornar  mais  interessante  a  historia 
do  quadro.  Refiro-me  ás  observações  do  nosso  representente  em  Paris,  D.  Vi- 
cente de  Sousa  Coutinho,  em  officios  dirigidos  ao  próprio  marquez,  em  6  de 
outubro  e  8  de  dezembro  de  1766.  Escreve  elle  no  primeiro: 

«Um  destes  dias  veio  a  minha  casa  um  banqueiro  de  Paris,  o  qual  me 
disse  que  um  dos  seus  correspondentes  de  Lisboa  o  encarregara  de  mandar 
fazer  aqui  por  um  dos  mais  celebres  pintores  o  retrato  de  v.  ex.a,  e  que  elle 
havendo  escolhido  monsieur  Vanloo,  me  pedia  fosse  ver  se  estava  similhante 
e  que  desse  o  meu  parecer  sobre  os  attributos  de  que  se  havia  ornar  o  painel 
para  melhor  caracterisar  o  Heroe.  Ainda  o  não  vi,  por  causa  de  um  fluxo, 
com  que  passei  estes  dias,  mas  para  o  correio  saberei  dar  a  v.  ex.a  uma 
completa  informação  desta  matéria.  Supposto  que  as  acções  de  v.  ex.a,  gra- 
vadas nos  corações  dos  homens,  sejam  monumentos  mais  gloriosos,  sempre 
se  deve  muito  a  este  bom  portuguez,  de  que  elle  me  não  disse  o  nome,  de 
dar  o  testemunho  do  seu  reconhecimento  e  multiplicar  aos  seus  compatriotas 
as  imagens  de  um  ministro,  cuja  memoria  passará  por  tantos  outros  modos 
á  posteridade». 


104  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

No  segundo  lè-se: 


Jov 


«O  retrato  de  v.  ex.a  é  muito  similhante  e  eu  tive  o  gosto  de  ver  uma 
copia  sua,  que  faz  uma  doce  illusão  á  saudade.  Determinou  pintar  na  parte 
inferior  do  quadro  o  porto  de  Lisboa  e  nelle  a  nau  que  conduziu  os  jesuítas. 
Ainda  que  a  extincção  desta  Sociedade  perigosa  seja  uma  das  melhores  épo- 
cas para  Portugal,  parece-me  que  se  podia  juntar  a  esta  ideia  outro  qualquer 
ornamento,  de  que  è  capaz  a  excellente  mão  do  pintor». 

Dois  pontos  essenciaes  resaltam  uesta  correspondência  do  nosso  ministro 
na  corte  de  França  e  que  nos  obrigam  a  reflectir.  Em  primeiro  logar  não 
deixa  de  causar  estranhesa  o  mysterio  que  se  guardou,  emquanlo  ao  nome 
do  individuo,  que  desejou  manifestar  o  seu  reconhecimento  ao  benemérito 
estadista.  Em  segundo  logar,  parece  que  o  diplomata  portuguez  não  applaudiu 
incondicionalmente  o  episodio  do  embarque  dos  jesuítas,  preferindo  que  se 
lhe  juntasse  qualquer  outro  ornamento,  querendo  talvez  dizer  que  fora  me- 
lhor substituil-o  por  coisa  mais  apropriada.  O  marquez  sorriu,  porventura 
contrafeito,  ao  lèr  este  reparo,  comprehendendo  a  maliciosa  ingenuidade  de 
quem  o  fazia. 

Direi  agora  algumas  palavras  acerca  dos  auctores  que  executaram  o  qua- 
dro. Luis  Miguel  Van  Loo  fez  parte  de  uma  geração  de  artistas  de  reputação 
não  vulgar.  Filho  e  discípulo  de  João  Baptista  Van  Loo,  nasceu  em  Toulon 
em  1707  e  falleceu  em  Paris  em  1771.  Por  morte  de  Ranc,  Filipe  V,  rei  de 
Hespanha,  o  nomeou  seu  pintor.  Vindo  para  Madrid,  foi  muito  apreciado  na 
corte,  onde  executou  muitos  retratos,  género  em  que  primava,  alguns  dos 
quaes  figuram  no  Museu  do  Prado.  Por  morte  do  soberano  hespanhol,  re- 
gressou á  sua  pátria,  onde  exerceu  o  professorado,  substituindo  seu  tio  Carlos 
Van  Loo  na  direcção  da  Escola  Real  dos  aiumnos  protegidos.  Não  me  consta 
que  Luis  Van  Loo  viesse  a  Portugal,  emquanto  residiu  em  Madrid,  e  não  sei 
se  entre  nós  existirá  mais  alguma  obra  do  seu  pincel,  além  do  quadro  em 
que  resalta  a  effigie  do  marquez  de  Pombal. 

Cláudio  José  Vernet  nasceu  em  Âvinhão  em  1714  e  falleceu  em  Paris  em 
1789.  Foi  nas  marinhas  e  nas  paisagens  que  mais  sobresaiu  o  seu  talento. 

Expuz  concisamente,  com  tanta  concisão  como  imparcialidade,  baseado 
em  factos  e  documentos  incontestáveis,  a  historia  do  quadro,  em  que  os  dois 
negociantes  quizeram  perpetuar  o  seu  reconhecimento  ao  marquez  de  Pom- 
bal, ao  mesmo  tempo  que  lhe  inalteciam  os  feitos.  O  leitor,  em  presença 
d'esta  singela  narrativa,  formará  o  juizo  que  julgar  mais  adequado  acerca 
de  uma  obra  que  tanto  se  recommenda  pelo  seu  valor  artístico,  como  pelas 
suas  intenções  politicas  e  até  mesmo  de  caracter  pessoal. 


NOTICIA  DF.  ALGUNS   PINTORES  105 

XXXV.  —  Marcelino  Joaquim).  —  Era  pintor  omamentista  na  obra  do 
Kcal  Palácio  da  Ajuda.  Tendo  sido  requisitado  pelo  conde  de  Redondo,  para 
executar  certo  trabalho  por  ordem  de  Sua  Magestade,  o  vice-inspector  das 
obras  do  palácio  da  Ajuda,  officiou  em  24  de  abril  de  1830  ao  duque  de  Ca- 
daval a  perguntar-lhe  se  elle  continuaria  a  receber  pela  repartição  das  obras 
do  mesmo  palácio. 

«Ill.ra0  e  Ex.m0  Sr.  — Tendo  recebido  bum  Offieio  do  E\.m"  Conde  de  Re- 
dondo  com  data  de  23  do  corrente  me/.,  em  que  exige  lhe  mande  aprezentar 
na  segunda  feira  próxima  futura  o  Pintor-ornatista  Joaquim  Marcelino  em- 
pregado nesta  Real  Obra,  para  o  encarregar  de  certa  obra,  para  a  qual  o 
mesmo  Ex.m)  Sr.  diz  se  acha  authorizado  por  Sua  Mag.de.  Rogo  a  V.  Ex.a 
queira  ordenar-me  se  durante  aquelle  emprego  deverá  o  mencionado  Artista 
ser  abonado  por  esta  Repartição,  visto  que  ignoro  o  objecto  em  que  he  em- 
pregado, tendo  em  tudo  cumprido  em  numa  tal  requisição.  Deus  Guarde  a 
V.  Ex.a  Real  Obra  d' Ajuda  24  de  Abril  de  1830.  Francisco  António  Raposo, 
Rrigadeiro-Sub-Inspeetor.  — 111. mo  e  Ex."'°  Sr.  Duque  do  Cadaval»  '. 


XXXVI.  —  Mattos  (Marçal  de).  — Era  pintor  e  morava  a  S.  Christovão. 
Em  1575,  a  8  de  abril,  compareceu  no  tribunal  do  Santo  Offieio  a  depor 
contra  Filipe  de  Góes,  estrangeiro,  por  elle  dizer,  entre  outras  coisas,  que  <> 
que  entrava  pella  bocca  não  fazia  mal  nem  era  peccado.  Eis  o  respectivo  do- 
cumento : 

«Aos  oito  dias  do  mes  de  Abril  de  mil  quinhentos  setenta  e  cinquo  ânuos 
cm  Lixboa  nos  Eslaos  na  casa  do  despacho  da  Samta  Inquisição  estando  ali 
o  senhor  Inquisidor  Jorge  Gonçalvez  Ribeiro  e  o  doutor  Rodrigo  Aires  depu- 
tado deste  Santo  Offieio  perante  elles  pareçeo  Marçal  de  Matos  pintor  de  idade 
que  disse  ter  de  vinte  e  bum  annos  pouco  mais  ou  menos  morador  a  Sam 
Cluistovam  natural  que  disse  ser  desta  cidade,  ebristão  velho  ao  qual  foi 
dado  juramento  dos  Santos  Evangelhos  em  que  pos  sua  mão  e  prometeo  dizer 
verdade  e  denunciando  disse  que  besta  coresma  passada  estando  elle  denun- 
ciante na  praia  da  Roa  Vista  omde  estão  as  casas  caidas  no  forno  omde  se 
coze  a  lousa  vidrada  omde  mora  hum  estrangeiro  que  se  chama  felipe  de 
Guois  foi  ali  ter  hum  mancebo  que  se  chamava  Guaspar  Carualho  que  diziam 
que  hera  natural  do  Porto  e  esta  agora  frade  em  hum  mosteiro  de  Sam  Fran- 
cisco de  Serpa  e  estamdo  assi  todos  três  o  dito  Gaspar  Carualho  perguntou 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Arcliivo  do  Ministério  do  Reino. 
14 


106  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

ao  dito  Felipe  de  Guois  em  que  tempo  estevera  elle  em  sua  terra  por  lhe  ter 
dito  dantes  que  fora  jaa  Ia  ter  e  o  dito  Guaspar  Carualho  lhe  disse  que  es- 
tevera nella  no  tempo  em  que  o  duque  dallua  fora  la  matar  aquella  gente 
dizendo  o  dito  Felipe  de  guoes  que  os  matauão  porque  la  na  sua  terra  nam 
quiriam  senão  que  dissessem  missa  em  linguajem  que  a  entendessem  todos 
e  que  os  clérigos  que  fossem  casados  pêra  lhe  não  andarem  com  suas  mu- 
lheres e  -que  o  dito  Guaspar  Carualho  respondeo  que  hera  muito  bem  feito 
matarem  nos  porque  aquillo  hera  lutheranismo  e  o  dito  Felipe  de  gois  res- 
pondeo então  agastado  que  os  não  matassem  mas  que  os  prendessem  porque 
elles  não  queriam  ser  sujeitos  a  elrei  Felipe  e  nam  passaram  mais  nada  e 
ficou  fallando  soo  o  dito  Felipe  de  Gois  agastado  mas  que  elle  testemunha  o 
não  entendia  por  fallar  em  sua  linguoa  e  que  isto  foi  depois  de  gentar  e  não 
sabe  se  tinha  ja  comido  e  bebido  o  dito  Felipe  de  gois  e  depois  disto  disse  o 
dito  Felipe  de  gois  a  elle  confessante  hum  dia  em  sua  casa  estando  sua  mo- 
lher  presente  e  outro  flamengo  que  se  achou  ali  então  a  que  nom  sabe  o  nome 
que  pêra  que.  jejuava  elle  denunciante  tanto  por  ser  na  coresma  e  dando  lhe 
um  queijo  pêra  comer  elle  denunciante  lhe  respondeo  que  não  comia  aquillo 
na  coresma  e  o  dito  Felipe  de  gois  lhe  disse  que  comesse  que  o  que  entrava 
pella  boca  não  fazia  mal  nem  era  pecado  e  elle  denunciante  lhe  respondeo 
que  o  não  queria  comer  e  nom  sabe  se  o  dito  flamengo  e  sua  molher  ouvirão 
também  isto  mas  que  pode  ser  que  o  ouvirão  porque  falou  allto  e  declarou 
que  se  uir  o  dito  flamengo  que  o  conhecerá  mas  que  lhe  não  sabe  o  nome  e 
que  o  dito  Felipe  de  goes  será  de  trinta  e  cinquo  annos  pouco  mais  ou  menos 
ornem  de  boa  estatura  barba  loura  e  hé  mestre  de  lousa  vidrada  e  elle  de- 
nunciante estaua  em  sua  casa  quando  lhe  ouvio  o  sobredito  pintando  hum 
Arco  pêra  a  capella  de  Nossa  Senhora  da  Conceição  e  ai  não  disse  e  do  cos- 
tume disse  nada  e  lhe  foi  mandado  ter  segredo  sol»  cargo  do  Juramento  que 
recebeo  e  elle  assi  o  prometeo,  dando  elle  denunciante  conta  do  sobredito  a 
hum  frade  de  Nossa  Senhora  da  Graça  seu  confessor  o  mandou  que  o  viesse 
dizer  nesta  mesa  e  por  isso  o  vem  denunciar  e  assignou  juntamente  com  elles 
senhores.  Joam  Campello  notário  aposlollico  o  escreui.  —  Jorge  Gonçalves  Ri- 
beiro—  Marçall  de  matos —  O  Doutor  Rodrigo  Aires*  '. 


XXXVII.  —  Mendes  (Ruy).  —  Carla  regia  de  5  de  julho  de  1309  para 
que  a  camará  inste  com  Ruy  Mendes  para  concluir  o  «retavolo  de  santanto- 
nio»,  de  que  fora  incumbido. 


1  Torre  do  Tombo.  Livro  de  Denuuciações  de  1560,  d.u  106,  fl.  320  v. 


NOTICIA  l>li  ALGUNS  PINTORES  107 

O  retábulo,  a  que  se  refere  esta  caria,  foi  depois  de  prompto  collocado 
sobre  a  porta  principal  da  egreja  de  Santo  António  *. 


XXXVIII.  — Monte  Alvão  ou  MonfAuban. —  A  affluencia  de  estrangeiros 
em  Lisboa  nos  fins  do  século  xv  e  durante  o  século  xvi,  é  deveras  considerá- 
vel, prehenchendo  ou  tornando  menos  sensível  a  lacuna  deixada  pela  expulsão 
dos  mouros  e  judeus,  vielimas  ao  mesmo  tempo  dos  preconceitos  sociaes,  da 
intolerância  religiosa,  e  da  avidez  do  fisco. 

Os  nossos  descobrimentos  marítimos  dando  um  fulminante  derivativo  ao 
transito  das  especiarias,  transformando  Lisboa  num  immenso  bazar  de  produ- 
ctos  orientaes,  foram  a  principal  causa  d 'essa  corrente  migratória,  que  im- 
primiu tão  singular  cunho  de  cosmopolitismo  á  civilisação  portugueza. 

A  navegação  e  o  commercio,  os  sonhados  proventos  das  empresas  mer- 
cantis não  foram  os  únicos  attractivos.  Com  os  negociantes  vieram  também  os 
artistas,  os  industriaes,  e  até  os  sábios,  estes  últimos  chamados  para  mestres 
dos  nossos  reis  e  para  professores  nas  escolas  e  Universidade.  De  envolta 
com  tudo  isto,  já  se  vê  que  não  faltaria  a  chusma  dos  aventureiros  de  toda  a 
casta. 

As  principaes  colónias  eram  formadas  pelos  flamengos  e  outros  povos  de 
raça  congénere,  e  pelos  italianos,  que  tinham  monopolisado  em  grande  parte 
as  operações  commerciaes  e  bancarias.  O  florentino  Bartolomeu  Marchioni 
chegara  a  ser  o  topa-a-tudo  do  primeiro  quartel  do  século  xvi.  Outras  nações, 
como  a  hespanhola,  sobresaindo  os  castelhanos  e  biscainhos,  também  estavam 
largamente  representadas. 

Os  artifices  francezes  abundavam  egualmente  exercendo  variados  officios: 
relojoeiros,  ourives,  serralheiros,  lapida  rios,  marceneiros,  oculistas,  impri- 
midores,  etc.  D'este  numeroso  grupo  destacarei  agora  um  debuxador  de  que 
só  se  conhece  o  appelido,  Monte  Alvão,  evidentemente  aportuguezado,  devendo 
talvez  ser  MonfAuban  reduzido  á  sua  língua  natal. 

Antes  de  proseguir  11'esta  brevíssima  noticia,  direi  que  ella  me  foi  forne- 
cida pelo  depoimento  que  se  encontra  num  dos  livros  das  denuneiações  do 
Santo  Offlcio,  preciosa  mina  para  o  estudo  dos  costumes  e  do  estado  dos  es- 
píritos cfaquellas  épocas,  tão  cheias  de  effervescencia  religiosa  e  de  sobresaltos 
contínuos.  O  que  admira  é  como  os  estrangeiros,  tão  expostos  aos  vexames 
inquisitoriaes,  não  abandonassem  o  pais,  e  aqui  permanecessem,  não  obstante 
as  ameaças  do  perigo.  É  verdade  que  lá  fora  a  situação  não  inspirava  mais 


1  Elementos  para  a  historia  do  município  de  Lisboa,  vol.  I,  pag.  408. 


108  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

confiança,  graças  ás  lactas  sangrentas  e  odiosas  entre  catholicos  e  protes- 
tantes. 

João  de  Paris,  fabricante  de  relógios  de  marfim,  apparece  frequentes  vezes 
no  tribunal  da  Inquisição,  já  denunciando  por  conta  própria,  já  servindo  de 
interprete  em  denunciações  e  processos  de  alguns  seus  compatriotas. 

Monte  Alvão  foi  denunciado  por  um  João  Luis,  official  de  broslador  (ou 
bordador),  casado,  o  qual  trabalhava  em  casa  de  seu  mestre  Estevão  Lopes, 
residente  na  Rua  Nova  ao  Pocinho.  A  denuncia  effecluou-se  a  8  de  julho  de 
Lr>G0,  em  presença  do  doutor  Ambrósio  Campello,  inquisidor.  Dias  antes  acer- 
tara de  passar  por  alli  o  Monte  Alvão,  levando  um  prato  de  peixe  e  uma 
rosca.  Entrou  e  subindo  a  convite  de  Estevão  Lopes,  offereceu  almoço  aos 
dois  bordadures,  o  que  elles  não  acceitaram,  alegando  que  era  dia  de  jejum, 
que  não  queriam  quebrar  para  ganharem  o  jubileu.  A  isto  seguiu-se  uma 
curiosa  pratica,  em  que  o  francez  chegou  a  citar  um  texto  latino  e  passos  do 
Velho  Testamento,  em  que  era  lido,  e  de  que  possuirá  outr'ora  um  exemplar. 
As  ideias  do  francez,  sem  serem  demasiado  livres,  tinham  todavia  resaíbos 
heterodoxos,  que  não  podiam  agradar  a  um  fervoroso  catholico  e  papista. 
Apesar  de  amigo  de  Monte  Alvão,  João  Luis  sentiu  rebater  na  sua  consciência, 
e  para  alivial-a  do  peso  de  taes  escrúpulos,  foi  lançar-se  aos  pés  do  confessor, 
narrando-lhe  a  scena  em  que  fora  um  dos  protagonistas.  O  bom  do  padre 
aconselhou-o  a  que  fosse  sem  demora  desabafar  com  a  Inquisição,  o  que  assim 
fez,  como  fica  dito.  A  denuncia  parece  que  não  teve  seguimento,  pois  não 
apparece  o  respectivo  processo  sob  o  nome  de  Monte  Alvão. 

Este  era  homem  de  mais  de  cincoenta  annos,  de  barba  encanecida,  e 
casado  com  mulher,  que  o  denunciante  não  sabia  se  era  portugueza  ou  da 
naturalidade  do  marido.  Murava  na  rua  do  Crucifixo,  ao  Santo  Espirito  da 
Pedreira,  onde  tinha  tenda  do  seu  officio. 

Pelas  suas  relações  com  os  dois  bordadores,  sou  levado  a  crer  que  a  sua 
especialidade  consistiria  em  fazer  desenhos  para  bordados. 

Simples  artífice,  ou  mais  alguma  cousa  do  que  isso — um  artista  do  lápis? 

Talvez  algum  dia,  em  face  de  novos  dados  e  documentos,  tenhamos  satis- 
fatória resposta  a  esta  pergunta. 

«Aos  oyto  dias  do  mes  de  julho  de  j  bclx  annos  em  Lixboa  na  casa  do 
despacho  da  Santa  Imquisyção  estamdo  hy  o  Senhor  doutor  Ambrosyo  Can- 
pelo  Imquisydor  perante  elle  pareceu  Joam  Luis  Borlador,  casado  e  trabalha 
em  casa  dEsteuão  Lopez,  broslador  que  vive  na  rua  Noua  ao  Pocinho  e  lhe 
deu  juramento  dos  Santos  avangelhos  em  que  pos  sua  mão  e  prometeo  dyzer 
verdade  e  dise  que  quarta  feira  esta  pasada  estamdo  elle  na  temda  com  o 
dito  Esteuão  Lopez  pasou  hy  pela  porta  hum  francês  per  nome  Monte  Aluão 


NOTICIA  DK  ALGUNS  PINTORES  109 

debuxador  morador  ao  Crosefixo  de  Santo  Esprito  da  pedreira  na  qaela  rua 
e  aliy  casado  num  sabe  se  com  portuguesa  se  com  franceza  o  qual  leuaua 
debayxo  da  capa  peyxe  fryto  em  hum  bacyo  com  hum  pedaço- de  rosca  e  o 
chamou  o  mestre  pêra  ovina  e  foy  e  estamdo  em  pratica  lhes  dise  o  dito 
francês  se  queryão  almoçar  e  que  elles  lhe  diserão  que  era  dia  de  jejum  e 
jsto  lhe  diseram  por  jejuarem  emtão  pêra  ganharem  o  jubileu  e  elle  Monte 
Aluão  lhes  dise  então  se  elles  se  furtauão  e  elle  denuncyaute  lhe  dise  pojs 
nom  ha  de  jejuar  senão  quem  furta,  e  o  dito  francês  dise  então  em  latim  que 
Deos  nom  querya  a  morte  do  pecador  senão  que  se  comuertese  e  viuese  e 
elle  denuncyaute  lhe  dise  pojs  por  huua  pessoa  jejuar  hum  dia  logo  ha  de 
morer  dizemdo  elle  denuncyante  majs  que  huua  cousa  como  esta  tão  sancta 
que  o  Santo  padre  manda  he  Rezão  que  a  tomamos  e  recebamos  dizendo  jsto 
pelo  jubileu,  e  elle  Monte  Aluão  lhe  respomdeo  damdo  com  o  dedo  e  mar- 
chando: ha  tem  mamcebas,  dizendo  majs  rimdose  por  que  prendeo  elRey  Faraó 
O  profeta  Danyel  e  lhe  dise  elle  denuncyante  que  diuya  elle  de  ter  o  testa- 
mento velho  em  casa  e  elle  lhe  dise  que  sy  tiuera  e  que  avya  muitos  annos 
que  lera  por  elle  e  que  agora  o  nom  tinha  e  pergumtandolhe  elle  denuncyante 
que  era  aquelle  dito  Daniel  e  elle  lhe  dise  por  que  disera  a  ElRey  Faraó  de 
huus  falsos  profetas  que  tinha  os  quaes  lhe  queryão  fazer  cremtes  que  nom 
comyão  e  se  mantinham  das  frutas  que  cayão  per  huus  buracos  abayxo  e  pa- 
reseu  a  elle  denuncyante  que  querya  dizer  o  dito  Monte  Aluão  que  ajnda  agora 
avya  falsos  profetas  posto  que  nom  declarou  jsto  majs  e  que  dizemdolhe  elle 
deelaramte  em  certa  parte  da  dita  pratica  ao  proposyto  delia  que  Nosso  Senhor 
disera  a  São  fero  que  o  que  elle  íizese  na  terra  seria  feito  nos  ceõs  e  que  o 
dito  Monte  Aluão  respondeo  a  jsto  dizendo  jso,  dise  a  São  Pêro  e  que  elle 
lhe  dise  Monte  Aluão  deyxamos  jso  e  creamos  aquilo  que  tem  a  Santa  Madre 
jgreja  de  Roma  e  elle  Monte  Aluão  dise  sy,  e  elle  denuncyante  se  deceo  para 
baixo  e  o  dito  Monte  Aluão  ficou  em  cyma  com  o  mestre  o  comfessandose  elle 
hontem  em  São  Francisco  e  damdo  conta  disso  a  seu  confesor  lhe  dise  que 
vyese  dizer  a  este  Santo  officyo  e  por  jso  o  vem  dizer  e  do  costume  dise  que 
he  seu  amigo  e  que  o  dito  Monte  Aluão  tem  a  barba  branca  homem  jaa  de 
cinquenta  annos  pêra  cyma  e  tem  temda  de  seu  officyo  em  sua  casa  e  jsto 
pasou  pela  mynham  e  nom  sabe  com  que  tenção  dise  as  ditas  cousas  somente 
lhe  parecerem  mal  e  nom  estaua  ahy  majs  que  o  dito  mestre  e  ai  nom  dise  e 
lhe  foy  mandado  ter  segredo  no  caso  sob  carego  de  juramento  e  elle  asy  o 
prometeo  e  asynou  aquy  jumtamente  com  elle  Senhor  Imquisydor  António 
Rodriguez  o  spreuy  =  João  Luis  =  Ambrosius  Doctor»  '. 


1  Torre  do  Tombo.  Livro  de  Denunciações  do  anno  de  1560,  u.°  106,  fl.  16  v. 


110  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

XXXIX.  —  Moraes  (Balthasar  de).  —  Era  pintor  e  morava  em  Setúbal. 
A  22  de  junho  de  1552  compareceu  no  tribunal  da  Inquisição  a  denunciar 
Francisco  Mendes,  boticário  e  a  10  de  agosto  do  mesmo  anno  era  elle  denun- 
ciado por  um  Sebastião  Yaz,  mercador. 

«Aos  xxij  dyas  do  mes  de  Junho  de  mill  bc  lij  Annos  em  Lixboa  na  casa 
do  despacho  da  samta  Inquisyçam  estando  hy  o  Reverendo  senhor  padre 
mestre  frey  Jorge  de  Samtiago  Inquisidor  e  os  Senhores  doutor  Ambrósio 
Campello  e  licenciado  Jorge  Gonçalvez  Ribeiro  deputados  do  Santo  officio 
peramte  elles  pareçeo  semdo  chamado*Raltezar  de  Morais  pymtor  morador 
na  villa  de  Setuvall  a  que  deram  Juramento  dos  Santos  Evangelhos  e  fizeram 
pergunta  pello  refferimento  atrás  e  dise  que  era  verdade  que  este  dia  do 
esprito  samto  agora  pasado  elle  comtara  a  porta  de  Francisco  Mendez  boti- 
quairo  dyamte  de  Rastiam  Vaz  o  da  louca  e  do  dyto  franeisco  Mendez  e  dou- 
tros cristãos  novos  a  quem  nam  sabe  os  nomes  como  em  Alcacere  ouuira 
a  hum  pregador  de  sam  Francisco  dizer  que  na  sagrada  espritura  se  não 
achaua  que  ouuesse  ahy  purgatoryo  e  que  nyso  se  fundaram  os  luteranos  e 
porem  que  despois  dera  certas  Rezões  em  que  mostrara  que  avya  ahy  pur- 
gatório, ao  que  respondeo  o  dito  franeisco  Mendez  que  sy  que  dera  muy  boa 
Rezam  e  porem  que  aquillo  se  nam  aya  de  dizer  senão  antre  leterados  e  des- 
pois descorrendo  pella  pratica  vyera  a  falar  naquelle  artigo  do  credo  que  falia 
de  condição  inferos  no  qual  dise  que  desejava  de  praticar  com  hum  leterado 
e  que  inferos  queria  dizer  as  partes  mais  baixas  que  ho  tromento  que  tinham 
as  almas  no  inferno  era  carecerem  da  visam  diurna  e  que  disto  era  lembrado 
e  que  na  dita  pratica  nam  ouuera  cousa  de  que  fycase  escamdalizado  por  que 
se  ho  ficara  não  agardara  que  ho  chamasem.  E  dise  mais  que  por  vezes  oimyo 
dizer  a  Micia  de  Rarquo  niolher  do  dito  Francisco  Mendez  que  seu  marydo  la 
no  Campo  dourique  com  outro  fazia  suas  cousas  damdo  a  entender  claramente 
que  delia  se  queriam  hir  pêra  fora  do  Reyno  fazendo  lhe  dyso  queixume  e 
que  Remédio  tyria  pêra  o  fazer  a  saber  a  esta  mesa  como  de  feyto  o  dito 
franeisco  Mendez  queria  vemder  tudo  naquelle  tempo,  mas  que  agora  o  vae 
deytar  em  Rendas  e  estar  asosegado  e  ali  nam  dise.  Paulo  da  Costa  que  ho 
esprevi  e  do  costume  dise  nada  —  Fr.  Georgitts  Sancti  Jacobi  —  Baltesar  de 
Moraes  —  Ambrosius — Jorge  Gonçalvez  Ribeiro»  '. 

«Aos  dez  dias  do  mes  de  Agosto  de  mil  bc  lij  Annos  em  Lixboa  na  casa 
do  despacho  da  Samta  Inquysiçam  estamdo  hy  os  senhores  doutor  Ambrósio 
Campelo  e  Licenciado  Jorge  Gonçalluez  Ribeiro  deputados  do  Santo  officio 


Torre  do  Tombo.  Livro  das  Dt?nuodações  de  1550  por  deante,  n°  104,  fl.  77  v. 


NOTICIA   DE  ALGUNS  PINTORES  111 

peramte  elles  pareçeo  Bastião  Vaz  mercador  morador  em  Setuval  na  praça  do 
pescado  o  qual  per  o  Juramento  dos  Samtos  Avangelhos  denunciou  e  dise  que 
dia  do  Espirito  Samto  este  (jue  ora  pasou  imdo  elle  denunciante  pela  porta 
de  liííu  Francisco  Mendez  boticayro  morador  na  dita  villa  ouuyo  estar  prati- 
camdo  o  dito  francjsco  Mendez  ahy  a  sua  porta  no  seu  tauoleiro  com  liuu 
pintor  que  se  chama  Moraes  dalcunlia  morador  na  dita  villa  e  com  liflu 
cunhado  de  Grauyel  Fcrnandez  sprivam  da  emmenta  da  Ribeira  e  que  elle 
denunciante  se  chegou  a  pratica  e  se  pos  no  lugar  onde  estaua  hum  Francisco 
Fernandez  sirgueiro  que  se  foy  dahy  pêra  sua  casa  e  que  nom  sabe  em  que 
pratica  estauão  os  sobreditos  somente  ouuyo  elle  denunciante  dizer  ao  dito 
Moraes  pintor  que  nom  sabe  se  hé  christão  novo  se  velho  que  ouuira  dizer 
em  huua  pregaçam  a  hum  pregador  em  Alcácer  do  Sal  dya  das  vyrgens, 
que  nom  auya  ahy  purgatório,  e  que  elle  denunciante  lhe  respondera,  que 
sempre  ouuira  pregar  que  auuya  ahy  purgatoreo  e  que  asy  o  tinha  por  ffee. 
E  que  o  dito  Francisco  Mendez  botecairo  acudio  a  isto  dizendo  sy  que  também 
eu  ouuy  dizer  a  huus  caualeiros  em  presença  do  mestre  de  Santiago  que  nom 
auuyn  ahy  imferno,  e  que  elle  denunciante  lhe  Respondeo  então  que  nenhuu 
caualeiro  avya  de  dizer  tal  cousa  que  elle  era  demonyo  que  tal  dezya  e  se 
benzeo,  e  que  o  dito  franciseo  Mendez  lhe  respondera  que  quando  deos  lan- 
çara os  anjos  do  parayso  huus  ficarão  no  liar  e  outros  descemderão  a  hum 
lugar  que  se  chama  Abiso,  e  que  os  que  faziam  bem  hiam  ao  parayso  e  os 
que  faziam  mal  hiam  a  lulu  lugar  omde  nom  tinham  mais  penna  que  carecer 
da  visam  devyna  e  que  nom  avya  lugar  onde  cozesem  nem  asasem  nem  desem 
penna  aas  Almas  que  la  hyâo.  E  que  elle  denuneyante  lhe  dise  emtão  e  os 
meninos  que  morem  sem  bautismo,  e  que  o  dito  franciseo  mendez  lhe  Res- 
pondera que  por  a  falta  que  tinham  de  bautismo  nom  participavão  da  gloria 
que  tinham  os  que  bem  faziam  neste  mundo,  e  que  estarem  no  lymbo  que 
era  huua  certa  escuridade,  e  que  em  esta  pratica  os  deyxou  e  se  foy  ben- 
zendo delles  e  achou  António  Rodriguez  Rombo  esprivam  e  Estenam  Lopez 
de  Lagos  e  lhes  deu  conta  do  que  se  ally  estaua  dizendo,  e  o  dito  Esteuam 
Lopez  lhe  Respondeo:  lie  ese  franciseo  Mendez,  e  elle  denunciante  lhe  dise: 
he  huum  deses  homens  que  hy  estaua,  e  deu  diso  conta  a  huum  pregador  que 
se  chama  Caruajales  o  qual  o  mandou  ao  vigário  da  vara,  o  qual  vigário  da 
vara  lhe  dise  que  nom  podia  tomar  isto  que  se  vyese  a  Lixboa  e  que  lhe  pa- 
rece que  o  cunhado  do  dito  Grauiel  Fernandez  esteue  atemto  a  dita  pratica 
e  porem  que  nom  falou  nada,  e  ai  nom  dise  e  do  costume  dise  nada,  e  foylhe 
mandado  ter  secreto  em  todo  o  que  tem  testemunhado.  Amtonio  Rodriguez  o 
esprevy. : — Jorge  Gonçalvez  Rybeiro  —  Bastião  Vaz  —  Ambrósias»  l. 


Torre  do  Tombo  Livro  das  Denuneiações  de  1550  por  deante,  n  °  10'i,  (1.  76  v. 


112  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

XL. —  Moraes  (Christovão  dei.  —  Tanto  José  da  Cunha  Taborda  come  Cy- 
rillo  Volkmar  Machado  desconheceram  a  existência  d'este  pintor,  que  floresceu 
em  meados  do  século  xvi.  Raczynski  menciona-o  brevemente  no  seu  Dktion- 
naire  e  com  mais  extensão  a  pag.  214  do  seu  livro  Les  nrts  en  Portugal,  dizendo 
que  elle  era  pintor  de  ornato  e  dourador  e  que  vivia  no  reinado  de  D.  João  III 
pelos  annos  de  1554.  Estes  apontamentos,  tirados  do  Corpo  CKronologico, 
fôram-lhe  sem  duvida  offerecidos  pelo  visconde  de  Jorumenha.  O  extracto, 
porém,  não  é  bastante  desenvolvido,  nem  absolutamente  exacto.  Christovão 
de  Moraes  ainda  existia  no  reinado  de  D.  Sebastião,  cujo  retrato  executou 
por  ordem  de  sua  avó  a  rainha  D.  Catharina. 

Dois  mandados  de  pagamento  fornecem-nos  importantes  subsidios  para  a 
historia  do  mobiliário  real  n'aquella  época.  Trata-se  de  um  leito  e  de  umas 
andas  ou  liteira.  Esta,  que  devia  ser  elegante  e  luxuosa,  apparece-nos  em  todos 
os  pormenores  da  sua  construcção,  sem  esquecer  os  nomes  dos  artistas  e  ar- 
tífices, que  contribuíram  para  o  bello  conjuncto  d'este  primoroso  artefacto. 

Em  3  de  agosto  de  1554  recebeu  o  pintor  Christovão  de  Moraes  a  quantia 
de  26)51272  reaes  pela  restauração  de  um  leito  da  recamera  da  rainha.  Aquella 
somma  repartia-se  pelas  seguintes  verbas:  95600  reaes  que  custaram  3:200 
pães  de  ouro  a  razão  de  35000  reaes  o  pão;  95600  reaes  por  estofar  e  assentar 
o  dito  ouro;  800  reaes  de  lavar,  grudar  e  concertar  o  leito;  65000  reaes  da 
pintura  e  lavor  d'elle. 

N'este  recibo  deixaram  de  mencionar-se  duas  pequenas  parcellas,  que  se 
accrescentaram  immediatamente,  a  saber:  dois  tostões  a  um  carpinteiro  de 
marcenaria  por  armar  o  leito  e  dois  reaes  de  prata  que  se  deram  aos  moços 
que  o  trouxeram  para  o  paço. 

Emquanto  á  liteira,  essa  tem  mais  que  se  lhe  diga.  pois  o  respectivo  man- 
dado comprebende  não  menos  de  dezoito  adições. 

As  andas  ou  liteira  foram  construídas  em  Almeirim  e  restauradas  em 
Lisboa  no  anuo  de  1551,  quando  Suas  Altezas  vieram  a  Lisboa  assistir  a  um 
sahimento. 

As  andas  eompunham-se:  de  um  esqueleto  em  madeira,  que  nós  hoje  de- 
nominamos á  franceza,  carrosserie,  o  qual  era  lavrado,  pintado,  envidraçado 
e  coberto  de  numerosa  ferragem  dourada.  D'esta  não  se  designa  o  serralheiro 
que  a  forjou,  mas  enumeram-se  muitas  e  variadas  peças,  onde  apparecem  ter- 
mos technicos  dignos  de  serem  registados  nos  vocabulários,  como,  por  exem- 
plo, golphãos;  foram  seus  douradores  Simão  Dias  e  Gaspar  Jorge. 

Diogo  de  Çarça  foi  o  marceneiro  que  fez  o  corpo  da  obra  pelo  que  recebeu 
415330  reaes,  de  madeira  e  feitio. 

António  Ataca  (certamente  o  vidraceiro  da  Batalha  António  Taça)  poz  os 
vidros,  recebendo  por  isso  216000  reaes. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  113 

Christovão  de  Moraes  recebeu  63M40  reaes,  não  só  por  dourar  e  pintar 
as  andas,  como  também  pelo  ouro  e  tintas  que  empregou. 

Moraes  não  foi  o  único  pintor  a  collaborar  na  obra.  Um  toldo  de  canha- 
maço,  forrado  de  tafetá  verde,  pintou  e  dourou  Simão  Seco,  que  recebeu 
INiiOO  reaes  de  ouro,  tintas  e  feitio. 

Quando  as  andas  foram  restauradas  em  Lisboa  em  1551  trabalhou  n'ellas 
durante  oito  dias  com  vinte  officiaes  o  pintor  Ruy  Soares,  a  quem  se  deram 
2#000  reaes,  incluindo  a  importância  das  tintas  e  outras  coisas  necessárias. 

Assistiram  lambem  n'este  concerto  dois  officiaes  de  Diogo  de  Çarça. 

Em  4  de  abril  de  1571  recebeu  Christovão  de  Moraes  iá#000  reaes  ;i 
conta  do  que  mais  devia  receber  pela  feitura  de  um  retraio  de  I>.  Sebastião, 
que  a  rainha  D.  Catharina  mandara  executar.  Parece  que  este  monarcha  fora 
retratado  frequentes  vezes,  e  por  diversos  artistas. 

Os  pormenores  biographicos  de  Christovão  de  Moraes  são  tirados  de  al- 
guns documentos  da  vastíssima  collecção  do  Corpo  Chronologico,  sendo  pos- 
sível que  ainda  alii  se  encontrem  outros  que  lhe  digam  egualmente  respeito. 

«Contadores  de"minha  casa  mandouos  que  leueys  em  conta  Aluaro  Lopez 
meu  tisoureiro  vinte  e  seys  mil  e  dozentos  e  setenta  e  dous  reaes  que  >]t^- 
pendeo  em  o  ouro  com  que  Christovão  de  moraes  pintor  dourou  um  leyto 
que  estaua  em  minha  Recamara  e  o  feitio  que  lhe  foy  paguò  e  em  outras 
despesas  que  fez  no  dito  leito,  segundo  tudo  parece  por  o  conhecimento  atras 
escrito  do  dito  pintor  feito  e  asinado  per  aleixo  de  moraes  que  então  era 
meu  eseriuão  da  fazenda;  os  quaes  vinte  e  seys  mil  e  dozentos  e  setenta  e 
dous  reaes  lhe  leuareys  em  conta  com  certidão  em  forma  de  Dioguo  Martinz 
escriuão  da  Recamara  e  asinada  por  dona  Meçia  dandrade  minha  camareira 
como  flqua  posta  verba  na  Receita  do  dito  Leito  que  he  aguora  dourado  e 
que  foi  paguo  o  dito  Christovão  de  moraes  pintor  de  seu  feitio  e  este  não 
passara  pela  chancelaria.  Bastião  da  fonsequa  o  fez  em  Lixboa  a  \x  de  no- 
vembro de  mil  b'liiij.  António  de  Sampaio  o  fez  espreuer.  —  Rainha.  Que 
leuem  em  conta  a  aluaro  lopez  xxbj  mil  ij'lxxij  reaes  que  dispendeo  em  dourar 
christovão  de  moraes  pintor  hum  leyto  que  estaua  na  camará  segundo  parece 
per  o  conhecimento  do  dito  pintor  feyto  per  aleixo  de  Moraes  atras  esprito 
pomdo  se  verba  na  Receyta  do  dito  leyto  como  he  agora  dourado  e  que  foy 
pago  o  pintor  de  seu  feytio  e  que  nam  pase  pela  chancellaria. 

«Fica  posta  a  berua  como  o  aluara  Requer  per  mym  Dioguo  Martinz  es- 
privão  da  camará  de  S.  M.  em  lisboa  a  b  de  novembro  1554  —  dona  nitriu 
dandrade  —  Dioguo  Martinz. 

«Recebeo  Christovão  de  moraes  daluaro  lopez  thesoureiro  da  Rainha  nosa 
senhora  vynte  seis  mil  reaes  que  se  montão  no  corregimenlo  do  leyto  que 
13 


i  1  4  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

ora  concertou,  s.  ix  mil  bjc  reaes  que  custaram  iij  mil  ijc  pães  douro  a  iij 
reaes  o  pão  que  se  nelle  poserom  e  ix  mil  bjc  reaes  de  estofar  e  asentar  o 
dito  ouro  no  leyto  e  biije  reaes  que  leuarom  de  o  lauar  e  grudar  e  concertar 
e  seis  mil  reaes  da  pymtura  e  lauor  delia  que  o  dito  leyto  leuou  que  seraa 
per  tudo  os  ditos  vinte  seis  mil  reaes  que  o  dito  Christovão  de  Moraes  jurou 
que  se  nisso  despenderem  em  Lisboa  a  iij  dias  dagosto.  Aleixo  de  moraes  o 
fez  de  1554.  Aleixo  de  Moraes. —  Christovão  de  Moraes. 

«It.  mais  dous  tostões  que  se  derem  a  bum  carpynteiro  de  macenaria  por 
armarem  lio  leito  e  mais  dous  Reales  de  prata  que  se  derão  a  bomêes  que 
lio  levarão  ao  paço  e  isto  se  esqueceo  de  se  por  em  cima  com  bo  mais. — 
Christovão  de  montes»  l. 

«Despendeo  o  lliesoureiro  Álvaro  lopez  etc.  191447  reaes  que  fizerão  de 
custo  as  andas  de  vidro  que  se  fizerão  em  almeyrim  e  do  fferrage  de  ferro 
pêra  lio  corpo  delas  que  foy  dourada  e  de  outras  cousas  que  pêra  elas  se 
fizerão  e  de  corregimentos  que  se  fizerão  nelas  nesta  cidade  de  Lixboa  coãodo 
suas  altezas  vierão  ao  snymento  segundo  se  contem  nas  dezoyto  adições  es- 
critas nesta  fotfia  que  a  derradeira  diz  920  reaes  que  deu  a  João  Fernandez 
Reposteiro  de  S.  Alteza  pêra  pagar  bo  aluger  de  biia  cama  a  coal  despesa 
se  fez  por  bo  senhor  Dom  Nuno  Alvarez  veedor  da  fazenda  de  S.  Alteza  e 
pelo  dito  lliesoureiro  e  a  ffeyção  das  ditas  andas  são  todas  feytas  de  moldu- 
ras e  os  vaãos  delias  cbeos  de  vidraças  e  todas  pyntadas  de  ouro  e  tintas 
de  cores. 

«It.  41330  reaes  que  ouue  Diogo  de  Carça  carpinteyro  de  maceneria  por 
o  corpo  das  ditas  andas  somente  da  madeira  e  mãos  as  coais  forão  os  vãos 
delas  todos  cbeos  de  vidros  —  Rj  iijc  xxx. 

«E  21000  reaes  que  ouue  António  Ataca  vidreyro  por  os  vidros  que  pos 
nas  ditas  andas  —  xxj. 

«E  63140  reaes  que  ouue  Cliristovão  de  Moraes  pintor  por  pintar  e  dourar 
as  ditas  andas  por  lugar  onde  não  vão  os  vidros  delas  e  polo  ouro  e  tintas 
que  nelas  pos  —  Ixiij  cc  R  reaes. 

«Ferraje  pêra  o  corpo  destas  andas.  s.  5800  reaes  que  fizerão  de  custo  4 
asas  grandes  com  seus  golfãos  e  Rosetas  e  caneladas  douradas  pela  maneira 
seguinte  coatro  centos  reaes  por  as  ditas  asas:  coatro  mil  e  oytocentos  reaes 
por  dez  cruzados  de  ouro  em  folha  com  que  se  dourarão  as  ditas  peças  a 
coatrocentos  e  oytenta  reaes  cruzado:  seiscentos  reaes  que  ouue  Simão  Diaz 
dourador  por  as  dourar  a  cento  e  cinqoenta  reaes  por  cada  peça  inteyra  — 
h  biijc  reaes. 


Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologico,  Parte  I,  maço  9i,  doe.  23. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  115 

«E  doze  mil  reaes  por  vinte  e  coatro  mache  fêmeas  que  se  puserão  no 
corpo^das  ditas  andas  com  suas  chaves  todas  douradas,  s.  setecentos  e  vinte 
reaes  por  lio  dito  ferrage  a  trinta  reaes  peça:  nove  mil  trezentos  e  sesenta 
reaes  por  dezanoue  cruzados  e  meo  douro  em  folha  com  que  se  dourou  ho 
dito  feraje:  mil  e  novecentos  e  vinte  reaes  que  oime  lio  dorador  por  as  dourar 
a  oytenta  reaes  peça  com  chave  — xij  reaes. 

«E  dons  mil  setecentos  e  setenta  reaes  por  dezasete  aldravas  com  seus 
golfãos  e  fêmeas  que  seruem  nas  portynhdlas  e  corpo  das  ditas  andas.  s.  tre- 
zentos e  corenta  reaes  por  ho  ferraje  a  vinte  reaes  por  peça  com  seu  golfão; 
mil  e  novecentos  e  vinte  reaes  por  coatro  cruzados  de  ouro  com  que  se  dou- 
rou: quinhentos  e  dez  reaes  que  ouue  ho  dito  simão  Diaz  de  feylio  — 
ij  bijc  lxx  reaes. 

«E  três  mil  e  duzentos  reaes  que  fizeram  de  custo  oyto  perafusos  com  seus 
escudetes  e  pregos,  s.  seiscentos  e  corenta  reaes  por  o  ferraje  a  oytenta  reaes 
peça  com  seus  escudetes;  dous  mil  e  corenta  reaes  por  quatro  cruzados  e  hum 
coarto  de  cruzado  de  ouro  com  que  se  dourarão  as  ditas  peças;  quinhentos 
e  vinte  reaes  que  ouue  o  dito  Simão  diaz  por  as  dourar  —  iij •  ijc  reaes. 

«E  coatro  mil  coatrocentos  e  oytenta  reaes  por  coatro  cantos  dobrados  pêra 
os  cantos  das  ditas  andas  volteados,  s.  trezentos  e  vinte  reaes  por  o  ferraje  a 
oytenta  reaes  peça;  três  mil  e  seyscentos  reaes  por  sete  cruzados  e  meo  de 
ouro  em  folha  com  que  se  dourarão;  quinhentos  e  sesenta  reaes  que  ouue  ho 
dourador  por  os  dourar  —  iiij  iiijc  lxxx  reaes. 

«E  três  mil  setecentos  e  vinte  reaes  por  coatro  pernos  com  suas  argolas- 
s.  trezentos  e  vinte  reaes  por  os  pernos;  dous  mil  e  coatrocentos  reaes  por 
cinqo  cruzados  de  ouro  em  folha  com  que  se  dourarão;  mil  reaes  que  ouue 
ho  dito  dourador  por  os  dourar  —  iij  bijc  xx  reaes. 

«E  seiscentos  e  vinte  reaes  que  fez  de  custo  lula  argola  com  seu  golfão  e 
Roseta  que  serve  no  topo  das  andas  onde  se  prende  o  macho  traseyro.  s.  co- 
renta reaes  por  a  argola:  coatrocentos  e  oytenta  reaes  por  hum  cruzado  dé 
ouro  com  que  se  dourarão;  cem  reaes  que  ouue  ho  dourador  de  o  dourar  — 
hjc  xx  reaes. 

«E  mil  e  quinhentos  e  vinte  reaes  por  duas  chaues  que  servem  pêra  os 
perafusos.  s.  cento  e  vinte  reaes  por  as  chaues  a  sesenta  reaes  peça;  mil  e 
coatrocentos  reaes  por  dous  cruzados  de  ouro  com  que  se  dourarão  e  ho 
feytio  ffoypago  a  Gaspar  Jorge  dourador  e  a  seus  eompanheyros  por  via  de 
mercê  —  j  bc  xx  reaes. 

«E  novecentos  e  oytenta  reaes  por  duzentos  pregos  dourados  pêra  se  pregar 
ho  ferraje  nas  ditas  andas.  s.  cem  reaes  por  os  pregos;  coatrocentos  e  oytenta 
reaes  por  hum  cruzado  de  ouro  em  folha  com  que  se  dourarão;  coatrocentos 
reaes  que  ouue  ho  dito  Simão  Diaz  por  os  dourar  —  ixc  lxxx  reaes. 


1  16  NOTICIA  Dli  ALGUNS  PINTORES 

«E  dezanoue  mil  e  seyscentos  reaes  que  fez  de  custo  hum  toldo  de  canha- 
niaço  encerado  pintado  de  ouro  e  de  tintas  de  cores.  s.  dezoyto  mil  e  coatro- 
céntos  reaes  (|ue  ouue  Symão  seqo  pintor  de  mãos  ouro  e  tintas;  mil  e  du- 
zentos reaes  por  dez  varas  de  canliamaço  encerado  de  que  se  fez  o  dito  toldo 
a  cento  e  vinte  reaes  vara  ho  coal  toldo  foy  forrado  de  tafetaa  verde  que  se 
pagou  no  tesouro  dei  Rey  noso  senhor  lio  dito  tafetaa  e  lio  feitio  do  dito 
ti  ildo. 

«E  três  mil  e  quinhentos  setenta  e  dons  reaes  por  hua  funda  de  pano  azul 
de  Castella  pêra  as  ditas  andas.  s.  três  mil  tresentos  sesenta  reaes  por  doze 
cnvados  de  pano  e  duzentos  e  oytenta  reaes  covado  de  que  se  fez  a  dita 
funda;  duzentos  reaes  de  feytio  dela  porque  he  aberta  por  as  ylhargas  cheas 
de  ilhos;  doze  reaes  por  duas  varas  de  fita  com  suas  agulhetas  pêra  se  abo- 
toarem—  iij  bc  lxxij  reaes. 

«E  dous  mil  e  quinhentos  corenta  e  cinqo  reaes  que  fez  de  custo  hua  funda 
pêra  os  paos  das  ditas  andas.  s.  dous  mil  e  trezentos  corenta  e  cinqo  reaes 
por  oyto  covados  e  hua  terça  do  dito  pano  com  que  se  fez  a  dita  funda;  du- 
zentos reaes  de.  feityo;  doze  reaes  por  duas  varas  de  fyta  com  suas  agulhetas 
—  ij  bc  Rb  reaes. 

Coregimentos  que  se  fizerão  nestas  andas  coando  suas  altezas 
vierão  a  esta  cidade  de  lixboa  coando  se  fez  o  saymento  anno  1551 

«E  dous  mil  duzentos  e  cinquenta  reaes  por  seys  vidros  grandes  e  vinte  e 
eoatro  piquenos  pegados  com  chumbo  os  vinte  e  coatro  e  mays  outros  coatro 
piquenos  que  forão  pegados  com  meo  covado  ligeyro  que  custou  duzentos 
cinquenta  reaes  —  ij  ijc  I  reaes. 

«E  dous  mil  reaes  que  pagou  a  Ruy  Soarez  pintor  por  oyto  dias  que  ele 
com  outros  oficiaes  trabalharão  em  corregimento  das  ditas  andas  que  por 
todos  forão  vinte  ofíiciaes  ho  coal  pos  tintas  e  ho  mais  necessário. 

«E  novecentos  e  vinte  reaes  que  deu  a  Johão  Fernandez  Reposteyro  de  Sua 
Alteza  pêra  pagar  hua  cama  em  que  dormirão  dous  ofíiciaes  de  Diogo  de 
Çnrça  que  trabalharão  em  estas  andas  e  nas  dei  Rey  noso  senhor  em  tãolo 
que  estiueram  no  saymento  suas  altezas — jxc  xx  reaes. 

«Dioguo  Martinz  a  fez  esprever  em  Almeirim  a  xx  dagosto  1551 — Dioguu 
Martinz. 

«Contadores  de  minha  casa  mandouos  que  leueys  em  comta  a  Aluaro  Lopez 
meu  tisoureiro  cemto  e  noventa  e  hum  mil  e  quatrocentos  coremta  e  sete 
reaes  que  despemdeo  nas  andas  de  vidro  que  se  fizerão  em  Almeyrym  e  to- 
dalas  outras" cousas  comteudas  nas  dezoito  adições  desta  certidão  de  Dioguo 


NOTICIA  DE  ALGUNS  Pl.NTOHES 


117 


Martinz,  mostramdo  conhecimento  em  forma  de  dona  Meçia  dandrade  minlia 
camareira  de  como  lhe  fiquão  carreguadas  em  Receita  as  ditas  andas  e  o 
toldo  que  se  pêra  ellas  fez  forado  de  tafetaa  verde  que  se  deu  no  tesoureiro 
dei  Rey  noso  senhor  e  asy  as  fundas  de  pano  azul  contendas  na  dita  certidão, 
nos  quaes  cento  e  noventa  e  hum  mil  quatrocentos  corenta  e  »ete  reaes  em- 
tram  novecentos  e  vinte  Reaes  que  deu  a  Johão  fernandez  meu  Reposteiro 
pêra  hua  cama  para  dormirem  os  ofíieiaes  de  Dioguo  de  Sarça,  pondo  se  pri- 
meiro verba  na  Receita  das  ditas  andas  como  foram  paguos  os  otliciaes  do  que 
aviam  daver  no  dito  tesoureiro  e  este  nam  pasara  pella  chancellaria.  Bastião 
da  Fonseqtia  o  fez  em  Lixboa  a  xxiiij0  dias  de  dezembro  de  mil  e  quinliemtos 
Lte  e  cinco.  António  de  Sampayo  o  fez  espreuer  —  Raynha  —  Pêra  leuarem 
em  conta  a  aluaro  lopez  Cento  lRj  mil  iiijc  Rbij  reaes  que  despendeo  nas  andas 
de  vidro  que  se  fizerão  em  Almeyrim  comteudas  na  certidam  atras  de  Dioguo 
Martinz;  mostrando  conhecimento  em  forma  de  dona  Meçia  e  que  nam  pase 
pella  chancellaria  pella  maneira  acima  declarada. 

«Registado  Amtonio  de  Sampayo.  —  Recebeo  dona  Mecia  dandrade  cama- 
reira da  Rainha  nosa  senhora  do  thesoureiro  Álvaro  Lopez  todas  as  cousas 
conteudas  no  alvará  e  certidão  atras  esprita  nas  duas  meyas  folhas  as  quaes 
forão  carregadas  em  Receita  sobre  a  dita  camareira  por  mym  Dioguo  Martinz 
esprivão  do  seu  carreguo  as  folhas  289  do  Livro  da  sua  Receita  e  por  verdade 
lhe  pasey  o  presente  conhecimento  em  forma  em  que  asinamos  em  Lisboa  a 
xxxj  de  janeiro  1556  —  Dona  Meçia  dandrade  —  Dioguo  Marli/t:»  *. 

«Guomez  Ribeiro  Mamdouos  que  deis  a  Christouã  de  moraes  pintor  doze 
mill  reaes  que  lhe  mando  dar  a  conta  do  que  hadaver  por  hum  Retrato  que 
lhe  ora  Mamdo  fazer  do  senhor  Rey  meu  neto.  E  per  este  com  seu  conheci- 
mento feyto  pello  escriuão  de  vosso  carguo  vos  serão  lavados  em  conta  os 
ditos  doze  mill  reaes  francisco  lopez  o  fez  em  Lisboa  a  quatro  dabrill  de  mill 
e  quinliemtos  e  setenta  e  hum  annos.  E  eu  Sebastião  dafonsequa  o  ffiz  es- 
creuer.  —  Raynha. 

«xij  reaes  Gomez  Ribeiro  a  Christovam  de  moraes  pimtor  que  V.  A.  lhe 
manda  dar  a  conta  do  que  ha  daver  por  hum  Retrato  que  V.  A.  Manda  fazer 
dei  Rey  nosso  senhor. 

«Recebeo  Christovão  de  moraes  pintor  do  thesoureiro  Guomez  Ribeiro  os 
doze  mill  reaes  contiudos  neste  alvará  em  Lisboa  a  xiij  de  mayo  1571  — 
Christouão  de  moraes  —  Dioguo  Martinz»-. 


1  Torre  do  Tombo.  Corpo  Chronologieo,  Farte  I,  Maço  97,  doe.  70. 

2  Idem,  Parte  II,  Maço  2i8,  doe.  20. 


H8  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

XLI.  —  Moura  (António  de).  —  Era  pintor,  christão  novo  e  residia  em 
Coimbra,  para  onde  partiu  havia  sete  annos.  Consta  isto  de  um  depoimento 
feito  perante  o  tribunal  da  Inquisição,  a  13  de  outubro  de  1018.  por  Filipa 
Varella,  enrista  vellia.  que  foi  denunciar  a  mulher  de  António  de  Moura, 
Margarida  de  Lemos,  filha  de  João  Albernás,  que  fazia  cartas  de  marear. 

«Margarida  de  Lemos  Abernás  filha  de  hum  João  Albernás  que  fás  carias 
de  marear  junto  as  casas  do  Monteiro.  Esta  Margarida  de  Lemos  foi  cazada 
e  viueo  juntamente  com  seu  marido  sete  annos ;  despois  dos  quais  o  marido 
se  auzentou,  e  he  vivo  e  vive  em  Coimbra,  o  qual  hé  Pintor 

«Aos  treze  dias  do  mes  de  oumbro  do  anno  de  seiscentos  e  dezoito  em 
esta  cidade  de  Lixboa  nos  Estaos  e  caza  do  despacho  do  Santo  Officio  em  a 
audiência  de  pola  manhã  estando  nella  o  Senhor  Inquisidor  Ruy  Fernandes 
de  Saldanha  perante  elle  pareçeo  Felipa  Varella  solteira  chrislan  velha  de 
trinta  annos  pouco  mais  ou  menos,  moradora  aos  moinhos  do  Vento  em  caza 
de  dona  Joanna  de  Vasconcellos  sogra  de  dona  Juliana  da  Costa  e  por  dizer 
que  tinha  que  denunciar  nesta  meza  lhe  foy  dado  juramento  dos  Santos  Evan- 
gelhos sob  carguo  do  quoal  prometeo  dizer  verdade  e  ter  segredo  o  denun-^ 
ciando  dixe:  Que  estando  a  dita  dona  Joanna  de  Vasconcellos  em  hua  quinta 
sua  a  Nossa  Senhora  dos  Oliuaes  auerá  dous  meses  pouco  mais  ou  menos 
forão  ter  a  dita  quinta  dous  padres  da  Companhia  a  saber  o  padre  João  de 
Souza  e  outro  seu  companheiro  tornou  a  dizer  que  não  forão  a  dita  quinta, 
mas  a  casa  de  dona  Juliana  da  Costa  aos  Moinhos  do  Vento  e  alli  pedirão  a 
dita  dona  Joanna  que  ao  tal  tempo  estaua  em  casa  de  seu  jenrro  quysesse  ter 
na  sua  caza  hua  molher  honrrada  sem  lhe  dizer  que  molher  era,  nem  o  cazo 
porque  pediam  arpecolhesse  a  dita  dona  Joanna  consentio  no  que  lhe  pedirão 
os  padres  e  o  dia  seguinte  leuarão  a  dita  quinta  de  nossa  senhora  dos  Olivaes 
hua  molher  que  parecia  de  trinta  annos  pouco  mais  ou  menos  natural  desta 
cidade  e  christã  velha  segundo  dizia  e  se  chama  Margarida  de  Lemos  Aluernás 
cazada  com  hum  mancebo  pintor  que  se  chama  António  de  Moura  Christão 
novo  o  qual  foi  para  Coimbra  segundo  diz  a  dita  sua  molher  auerá  sete  annos 
e  despois  de  estar  na  dita  quinta  a  dita  Margarida  de  Lemos  por  tempo  de 
hum  mez  haverá  dous  pouco  mais  ou  menos  que  isto  passou  estando  hum  dia 
não  se  lembra  se  era  Santo  se  de  fazer,  as  duas  horas  da  tarde  jugando  com 
a  dita  dona  Joanna  e  com  ella  denunciante  e  Domingas  de  Sousa  escraua  da 
dita  Joana  e  por  ocazião  da  dita  dona  Joana  dizer  a  dita  Margarida  de  Lemos 
que  estaua  espantada  do  que  lhe  diserão  delia,  porque  lhe  auião  dito  que  an- 
daua  em  trajos  de  homem  e  que  timia  que  Dom  Gastão  a  fosse  tirar  de  sua 
casa  e  a  dita  Margarida  de  Lemos  com  este  propósito  dixe  com  muitos  jura- 


NOTICIA  DE  ALUUNS  PINTORES  \  19 

mentos  que  não  conhecia  ao  dito  Dom  Gastão  dizendo  mais  em  sua  abonação 
que  quando  saia  de  caza  de  seu  pay  era  tão  virgem,  como  a  virgem  Maria  e 
dizendo  llie  a  dita  dona  Joana  que  o  que  dizia  era  lierezia  que  se  fosse  loguo 
confessar  a  dita  Margarida  de  Lemos  se  calou,  não  se  desdisse  nem  sabe  que 
se  confessasse  loguo  no  dito  tempo,  posto  que  depois  se  confessou  por  hum 
Jubileo;  e  ella  denunciante  lhe  pareceo  muito  mal  o  que  dixe  á  dita  Marga- 
rida de  Lemos. . .  E  porque  tudo  o  sobredito  lhe  pareceo  mal  o  ueo  denun- 
ciar a  esta  mesa  persuadida  da  dita  dona  Joanna  que  foi  dar  conta  do  cazo 
aos  padres  da  Companhia  e  lhe  diserão  que  tinha  obrigação  de  o  fazer  a 
ssaber  a  esta  meza  e  a  dita  dona  Joanna  mandou  a  ella  declarante  viesse  dar 
conta  do  cazo  a  esta  meza  como  faz  por  descarguo  de  sua  consiencia  sem 
otlio,  nem  ma  vontade  que  tenha  a  dita  Margarida  de  Lemos  com  quanto  no 
tempo  que  esteue  em  caza  da  dita  dona  Joanna  tiuerão  algíías  desauenças. 

«Perguntada  onde  está  aguora  moradora  a  dita  Margarida  de  Lemos.  Dixe 
que  ouvira  dizer  que  aos  Anjos  em  caza  de  nua  prima  do  marido  da  dita 
Margarida  de  Lemos  a  quoal  não  sabe  o  nome,  nem  de  seu  marido,  nem  que 
ofíicio  tem.  Perguntada  se  disse  a  dita  Margarida  de  Lemos  as  ditas  palavras 
mais  que  nua  só  vez  e  se  as  repetia  em  algua  outra  parte  e  se  quando  foi 
reprehendida  da  dita  dona  Joanna  se  desdisse  das  ditas  palavras.  Respondeo 
que  na  occasião  que  ella  dita  denunciante  as  ouuio  as  dixe  por  bua  soo  vez 
e  quando  foi  reprehendida  da  dita  dona  Joanna  não  se  desdisse.  E  depois  lhe 
disse  a  dita  dona  Joanna  que  bua  Ama  de  seu  neto  dom  Rodrigo  por  nome 
Maria  Botelha  lhe  dissera  a  dita  Margarida  de  Lemos  em  sua  caza  jurando 
que  era  tão  virgem  como  a  Virgem  Maria. 

«Perguntada  que  tempo  ha  que  hé  cazada  a  dita  Margarida  de  Lemos  com 
o  dito  pintor  António  de  Moura.  Dixe  que  auerá  quatorze  annos  porque  sete 
estiverão  juntos  e  sete  auera  que  está  absente.  E  dixe  mais  que  Guiomar 
Monis  molher  de  Manoel  Anrriquez  veador  da  dita  dona  Joana  em  cuja  caza 
mora  ouiiira  dizer  que  alumiara  que  a  dita  Margarida  de  Lemos  lhe  dissera 
em  outra  occazião  que  era  tão  virgem  como  a  Virgem  Maria.  E  mais  não 
dixe  nem  lhe  forão  feitas  mais  perguntas  e  ao  costume  dixe  nada  e  sendo  lhe 
lida  esta  sua  denunciação  perante  as  Religiosas  pessoas  francisco  de  burges 
e  Manoel  da  Silva  sacretarios  deste  Santo  Ofíicio  que  tomarão  juramento  de 
dizer  verdade  e  ter  segredo.  Dixe  que  nella  não  tinha  que  tirar  nem  a  cres- 
sentar.  E  que  en  tudo  se  aflirmaua  e  ratificaua  e  tornaua  a  dizer  de  nouo 
sendo  necessário  e  assynou  com  o  senhor  Inquisidor  e  eu  Francisco  de  Souza 
o  escreui  —  Ruy  Fernandez  de  Saldanha  —  Felipa  Varela. 

«E  ida  para  fora  ella  testemunha  forão  perguntadas  as  ditas  Relygiosas 
pessoas  sob  carguo  do  dito  juramento  se  lhes  parecia  que  a  dita  denunciante 


120  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

falaúa  verdade  e  se  lhe  auia  de  dar  credito  dicerão  que  sy  lhes  parecia  que 
falaua  verdade  e  se  lhe  auia  de  dar  credito.  E  assinarão  como  senhor  Inqui- 
sidor. E  eu  Francisco  de  Souza  o  escreui.  —  fíny  Fernandes  de  Saldanha»  l. 


XLII.  —  Muien  (Monsieur).  —  Creio  que  o  nome  de  Mr.  Muien  é  comple- 
tamente inédito  nos  Annaes  da  Arte  portugueza  e,  pela  primeira  vez  que 
apparece  a  publico,  vem  ainda  envolto  em  bastante  obscuridade.  Sabe-se 
apenas  que  era  francez,  pintor  de  retratos  e  musico,  e  que  residia  na  corte 
de  Lisboa  em  1747,  anno  em  que  o  foi  denunciar  á  Inquisição,  António  Telles 
Gil,  clérigo  de  ordens  menores,  natural  de  Benavilla,  arcebispado  de  Évora, 
morador  em  Lisboa  na  rua  do  Caldeira, 

Se  a  denuncia,  aliás  extensa  e  confusa,  do  besbelhoteiro  clérigo,  tivesse 
fundamento  serio,  Mr.  Muien  seria  um  ratão  de  bom  gosto,  no  que  respeita 
ao  matrimonio  e  á  família.  Dir-se-ia  que  era  um  ardente  propagandista  das 
theorias  e  da  pratica  do  livre  amor,  um  sectário  fervoroso  das  doutrinas  de 
Mafoma,  lendo  com  enthusiasmo  pela  cartilha  do  Alcorão,  e  pondo  de  parte, 
com  despreso,  o  Catecismo  Romano.  Para  elle,  a  bigamia  não  é  um  crime,  e 
o  matrimonio,  carecendo  de  origem  divina,  não  podia  ser  considerado  insti- 
tuição sacramental. 

Fora  d'este  assumpto,  Mr.  Muien  não  professava  ideias  menos  originaes  e 
audaciosas.  No  seu  modo  de  intender,  o  Evangelho  não  chegara  desde  logo  a 
todas  as  partes  do  mundo,  porque,  sendo  estas  quatro,  apenas  três  se  fizeram 
representar  na  embaixada  dos  reis  magos,  faltando  a  America,  que  só  nos 
tempos  modernos  é  que  recebeu  a  lei  de  Christo.  Podiam  abonar  o  testemunho 
de  António  Telles  Gil,  alguns  creados  do  conde  dos  Arcos,  entre  os  quaes 
dois  francezes. 

Que  pena  que  em  vez  de  estarmos  ao  fado  das  prendas  heréticas  de  Mr. 
Muien,  não  tivéssemos  antes  conhecimento  das  suas  aptidões  artísticas ! 

Reproduzo  em  seguida  a  denuncia,  substituindo  por  pontinhos  algumas 
palavras  mais  soltas,  que  poderiam  offender  os  ouvidos  castos: 

«António  Telles  Gil  clérigo  de  ordens  menores  denuncia  em  o  Tribunal 
do  Santo  Officio  a  Monsehum  Muien  francês  digo  a  Monsehum  Muien  de  nação 
francesa,  e  ofecial  de  fazer  rrelratos  e  muzico  assistente  nesta  corte  de  Lisboa 
por  dizer  o  seguinte: 

«Sendo  em  o  dia  treze  de  janeiro  de  1747  falandoce  em  prezença  do  de- 
nunciado Munsehum  Muien  que  sertã  pessoa  deste  tempo  prezente  tinha  filhos 


1  Turre  do  Tombo.  Caderno  3°  do  Promotor  da  Inquisição  de  Lisboa,  fl.  381. 


NOTICtA   DE  ALGUNS  IM.NTORES  I  '2  1 

nuns  Legítimos  e  outros  bastardos  ou  naturaes  dice  o  dito  Monsehum  Muien 
denunciado  que  a  lai  pessoa  fizera  bera  na  fatura  tanto  dos  filhos  Legítimos 
como  dos  Naturais  porque  Deus  disera— Crescite  et  multiplicamini  p  asim  que 
na  fatura  dos  filhos  tanto  naturaes  como  Legítimos  se  não  fazia  couza  pori- 
hida  por  Deos  porquanto  Deus  disera  Crescite  et  multiplicamini. 

<E  sendo  disto  o  denunciado  Monsehum  Muien  impugnado  com  o  que  dizem 
os  autores  catholicos  romanos,  diçe  mais  o  dito  denunciado  Monsehum  Muien 
que  Deos  lhe  não  hera  necesario  ter  dado  Ires  Leiis  e  que  a  Lei  escripta 
Moizes  poderia  enganar  as  gentes  escondendo  se  alguns  dias  que  como  erão 
gentes  menos  sabias  as  poderia  enganar. 

«Dice  mais  o  dito  denunciado  Monsehum  Muien  que  elle  lera  os  Evangelhos 
todos  e  que  não  achaca  que  Christo  senhor  nosso  instituhira  o  sacramento 
do  Matrimonio,  e  o  matrimonio  era  hum  contrato  e  que  esíe  não  lhe  constava 
que  ouveçe  de  ser  só  com  hua  molher.  mas  que  podia  .ser  com  muitas  vi- 
vendo todas. 

«E  sendo  dito  ao  dito  denunciado  Monsehum  Muien  que  o  Santo  Officio 
penitenciava  aos  que  contrahião  segundo  Matrimónio  durante  o  primeiro  e  le- 
gitimo dice  o  dito  denunciado  Munsehum  Muien  que  o  Santo  Ollieio  herão 
homens. 

«Diçe  mais  o  dito  denunciado  Monsehum  Muien  que  Deos  se  lhe  não  dava 
que  o  homem  tivese  relação  com  Ima  molher  ou  com  muitas  molheres  que 
tanto  e  como  o  homem  as  governasse  e  sustentase  a  todas  elas  com  quem 
tiveçe  relação. 

«Dice  mais  o  dito  denunciado  Monsehum  Muien  que  coando  Christo  bem 
nosso  naseeo  vierão  adorado  três  reiis  e  cada  hum  delles  hera  de  hua  das 
partes  do  mundo  e  que  o  mundo  leni  quatro  partes  e  assim  o  Nascimento  de 
Nosso  Senhor  Jesus  Christo  não  chegara  a  indicia  de  todos,  e  que  para  Ame- 
rica não  fora  apostollo  algum  e  asim  que  não  ouve  la  noticia  da  lei  Evangélica 
senão  agora  modernamente. 

«Negou  o  denunciado  Monsehum  Muien  que  o  Matrimonio  como  sacramento 
tivesse  três  fins  propagare  naturam,  sedare  concupiscentiam  e  causare  gratiam 
vnitiuam  dizendo  que  a  Mulher  só  fora  feita  para  a  propagaçam  da  geraçam 
humana. 

«Dice  o  dito  denunciado  Monsehum  Muien  que  quando  Deos  foi  servido 
que  o  sol  paraçe  fora  para  que  Jozohé  vencese  hua  batalha  e  que  Deos  era 
autor  das  mortes  que  a! li  ouve  naquela  batalha. 

«Dice  o  dito  denunciado  Monsehum  Muien  que  estas  couzas  assima  ditas 
que  as  não  dizia  para  as  huzar  e  sendo  lhe  dito  que  tãobem  o  crellas  hera 
muito  mao  e  não  hera  bom  diçe  o  dito  denunciado  Monsehum  Muien  que  as 
16 


122  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

não  crehia  e  que  só  as  dezia  por  instar,  porem  o  conceito  que  fez  tio  dito  de- 
nunciado Monsehum  Muien  hé  que  elle  dicera  que  não  crehia  e  não  acreditava 
o  que  tinha  dito  fora  por  medo  de  que  foce  denunciado. 

«Alguas  destas  cotizas  que  dice  o  denunciado  Monsehum  Muien  as  ouvirão 
as  pesoas  seguintes:  Monsehum  Buruné  de  nação  franceza  e  Domingos  Gon- 
çalves Espinhaço  e  Francisco  Antunes  todas  estas  testemunhas  ao  presente  são 
criados  do  Ex."'"  Conde  dos  Arcos. 

«O  nome  do  denunciado  Monsehum  Muien  denunciado  só  o  sabe  o  denun- 
ciante pello  ouvir  dizer  a  Monsehum  Mestre  de  nação  franceza  e  criado  do 
sobredito  Conde  dos  Arcos  como  também  a  este  Monsehum  Mestre  ouvio  dizer 
que  o  denunciado  Monsehum  Muien  hera  pintor  de  retratos  e  muzico  e  que 
asistia  nesta'  corte  e  lambem  lhe  ouvio  dizer  que  o  dito  Monsehum  Muien  de- 
nunciado hera  herege  pello  que  dizia  em  outras  occaziões  e  declara  que  o 
que  dice  nesta  ocazião  presente  o  denunciado  Monsehum  Muien  o  não  ouvio 
Monsehum  Mestre,  adeverteçe  que  as  duas  testemunhas  Domingos  Gonçalves 
Espinhaço  e  Francisco  Antunes  supõe  não  sabem  o  nome  do  denunciado  Mon- 
sehum Muien. 

«Adevertese  mais  que  todas  estas  testemunhas  estão  para  hirem  de  morada 
para  a  Cidade  do  Porto  com  o  dito  Conde  seu  amo. 

«Hoje  dezasete  de  janeiro  de  1747  fis  esta  denunciação  —  António  Telles 
Gil. 

«18  janeiro  747. — António  Telles  Gil  filho  de  João  Lourenço  e  Maria  Telles 
natural  da  Villa  de  Benavilla  Arcebispado  de  Évora,  morador  nesta  cidade  na 
rua  da  caldeira. 

«Faz  a  denuncia  que  da  no  papel  incluso,  e  dis  que  não  sabe  se  o  Francês 
de  quem  denuncia  lie  Catholico  Romano  ou  se  he  herege,  e  que  depois  de 
ter  dito  o  que  se  contem  no  papel  se  desdissera,  dizendo  que  elle  não  cria 
nada  daquillo  que  o  papel  dis,  e  que  so  o  dizia  referindo  o  que  hera  opinião 
de  muitos»  '. 


XL.III.  —  Neves  (Fr.  João  das). — Era  frade  da  Ordem  de  Santo  Agostinho 
e  vivia  pelo  meiado  do  século  xvn.  Revelou  a  sua  aptidão  artística  em  traba- 
lhos de  miniatura  e  de  transcripção  musical  em  livros  de  coro. 

No  copioso  thesouro  de  reliquias  da  egreja  de  S.  Roque  de  Lisboa,  existe 
um  relicário,  adornado  com  uma  miniatura  sobre  pergaminho,  representando 
uma  lição  de  musica  divina.  Ao  centro  vè-se  Nossa  Senhora  sentada,  tendo 


1  Torre  do  Tombo.  Caderno  110  do  Promotor  da  Inquisição  de  Lisboa,  fl.  130. 


|S  QUceJitlOífttVum  DefJwteus  Olimpo    rd~ti< Siaptijfãínlii,  Jt\'£  iu lompilxitio^tslhcirwiMifcirvmTiianii-cintntt 
\Qwnuj  kuinanum  munira  luta tanunt  ■        ÇMativ Cbriffíjcdes, ,3ii/ia fitrd  dcttns  :         SLIijtrieoehtsJiH-iaq,  lorju/ult- 


MINIATURA  DE  FR.  JOÃO  DAS  NEVES 


NOTÍCIA  DE  ALGUNS  1'INTOBEá  iíli 

de  um  lado-o  Menino  Jesus,  e  do  outro  o  Baptista,  também  criança,  Ao  Uniu  •• 
por  detrás  S.  José.  No  alto  e  ao  fundo  um  coro  de  anjos  a  cantar  e  um 
d'elles  tocando.  Os  Meninos  e  a  Senhora  sustentam  livros  em  que  se  vêem 
notas  musicaes. 

Esta  estampasinha,  postoque  não  seja  de  um  desenho  irreprehensivel,  é  de 
aspecto  agradável  e  está  subscripla  da  seguinte  forma:  P.  Fr.  Joannes  de  Ni- 
rib.  Ord.  S."  Aitg.  Pin.iit. 

Do  extincto  convento  de  Santa  Joanna  de  Lisboa,  ao  fallecer  a  sua  ultima 
freira,  foram  recolhidos  á  Bíbliotheca  Nacional  numerosos  livros  de  coro, 
eollecção  notabilissima,  sob  mais  de  um  aspecto,  já  pelos  ornatos  de  couro 
e  de  metal  das  suas  encadernações,  já  pelo  trabalho  de  calligraphia  e  mi- 
niatura. Isto  não  falando  na  essência  dos  mesmos  livros,  na  sua  parte  mu- 
sical. 

No  numero  10,  volume  II,  da  quarta  serie  do  Boletim  da  Rral  Associação 
dos  Engenheiras  Cieis  e  Archeologos  Portuguezes  publicou  o  sr.  Gabriel  Pereira 
uma  interessante  noticia  ácêrea  d'aquelle  convento,  rematando-a  com  a  enu- 
meração dos  seus  vinte  e  seis  livros  coraes.  Entre  estes  distinguem-se  alguns, 
os  mais.  antigos,  que  haviam  feito  parte  de  outros  conventos  annexos,  o  da 
Annumiada  e  o  da  Rosa. 

O  numero  26,  todo  de  pergaminho,  encadernado  em  velludo  verde  com 
adornos  de  metal,  tem  78  folhas  numeradas,  e,  segundo  o  titulo  que  se  lè  na 
primeira,  é  uma  eollecção  de  Ilymnos,  que  se  cantavam  nas  solemnidades  do 
anno  no  coro  do  convento  consagrado  a  Nossa  Senhora  do  Rosário.  No  verso 
do  folio  78,  dentro  de  um  ornato  feito  á  penna,  lè-se  a  subscripção  final,  em 
latim,  declarando  que  Fr.  João  das  Neves,  frade  da  Ordem  de  Santo  Agostinho, 
fizera  todo  o  livro  no  anno  de  l(5'ii.  No  principio  ha  urna  grande  illuminura, 
representando  S.  Domingos  de  joelhos  ante  Nossa  Senhora  a  qual,  de  manto 
aberto,  abriga,  do  lado  esquerdo,  freiras  e  do  direito  frades  de  S.  Domingos. 
Por  detrás  a  vista  da  cidade.  Só  por  esta  ultima  circumst anciã  bem  merecia 
que  fosse  reproduzida  como  importante  subsidio  para  o  estudo  iconographico 
de  Lisboa. 


XLIV.  — Oduue  (Monsieur). — Numa  carta  escripla  em  Compiègne  a  18  de 
julho  de  I7C:{  por  D.  Vicente  de  Sousa  Coutinho,  nosso  ministro  em  França 
e  dirigida  a  D.  Luis  da  Cunha,  lè-se  o  seguinte  trecho: 

«M.  Odune,  que  he  hum  Homem  de  probidade,  e  de  talento,  no  tempo 
que  rezidio  em  Lisboa,  fez  a  pintura  do  nosso  gabinete,  sem  alterar  em  couza 
alguma  a  verdade.  Elle  se  lamenta  da  conjunctura,  em  que  chegou  a  Portu- 


124  NOTICIA   DK  ALGUNS   PINTORES 

gal,  supposto  que  seguro,  que  elle  lhe  dera  occasião  de  admirar  mais  a 
grande  alma  de  Sua  Mageslade,  e  as  luses  de  seus  Ministros»  '. 


XLV.  —  Oliveira  Bernardes  ( António  de).  —  D.  José  Barbosa,  na  sua  His- 
toria da  fundação  do  Convento  de  J.  Christo,  das  religiosas  capuchinhos  fran- 
cesas (vulgo  Francesinhas),  tratando  dos  derradeiros  momentos  da  venerável 
madre  Maria  de  Santo  Aleixo,  diz  a  paginas  273: 

«Foi  geral  o  sentimento  pela  sua  morte,  porque  era  venerada  de  toda  a 
nobresa  de  Lisboa.  Aires  de  Sousa  de  Castro,  que  era  casado  com  D.  Maria 
de  Lencastre,  que  era  seu  cordealissimo  devoto,  a  mandou  retratar  pelo  in- 
signe pintor  António  de  Oliveira,  que  lhe  abriu  os  ollios,  para  lhe  tirar  melhor 
as  feições,  e  estavam  tão  claros  e  limpos,  como  se  estiverão  ainda  vivos.  Já 
em  vida  a  havia  retratado  em  um  painel  grande,  em  que  está  um  anjo  com 
um  letreiro,  que  declara  o  dia  em  que  professou  e  em  que  morreu  e  este  se 
conserva  no  Refeitório.  Diz  assim  o  letreiro :  Zelus  domus  tua?  comedit  me. 
A  reverenda  Madre  Maria  de  S.  Aleixo.  Fundadora  e  primeira  abadessa  d'este 
Mosteiro.  Morreu  a  4  de  novembro  de  1089.  Professou  no  convento  de  Paris 
na  era  de  1035.» 


XLVI.  —  Oliveira  Góes  (Bernardo  António  de).  —  Filho  de  Manuel  António 
de  Góes,  de  quem  tratei  na  segunda  serie  d'estas  Memorias. 

Foi  durante  qualorze  annos  até  á  invasão  franceza  ajudante  de  Cyrillo 
Volkmar  Machado,  nas  obras  do  Real  Paço  de  Mafra.  Em  1814  passou,  na 
mesma  qualidade,  para  as  obras  do  Real  Paço  da  Ajuda.  Como  Cyrillo,  por 
doença,  se  impossibilitasse  de  trabalhar,  não  podendo  fazer  uso  das  mãos, 
foi  o  mesmo  Góes  dispensado  do  trabalho  na  Ajuda,  indo  auxiliar  o  mestre 
no  seu  laboratório,  em  sua  casa.  Em  21  de  junho  de  1822  requereu  para  ser 
admittido  na  Casa  do  Risco  das  Obras  Publicas,  caso  não  lhe  fosse  permittido 
continuar  no  serviço  do  seu  mestre. 

«IU.m"  Sr.  —  Satisfazendo  ao  Aviso  que  recebo  de  ordem  de  V.  S.ria  pelo 
Escrivão  da  Obra  d' Ajuda  para  aprezentar  a  V.  S.ria  o  título  pelo  qual  estou 
ilispençailo  de  residir  nos  trabalhos  de  Pintura  naquella  Real  Obra  por  onde 


1  Oficio  de  L).  Vicente  de  Sousa  Coutinho  a  D.  Luis  da  Cunha.  Torre  do  Tombo,  cor- 
respondência de  D.  Vicente  de  Sousa  Coutinho,  de  1763,  tomo  I,  pag.  18. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


125 


na 


recebo  jornal.  Sendo  este  Aviso,  hum  effeito  do  zello  que  carecleriza  a  V.  S 
nas  Commições  de  que  tão  dignamente  lié  Encarregado,  unindo  o  mesmo  zello 
á  virtude  de  permear  os  bons  serviços  dos  que  lhes  são  súbditos.  Com  satis- 
fação levo  á  presença  de  V.  S.ria  os  Documentos,  que  provão,  que  o  meu 
exercício  effeetivo  com  que  entrei  em  Folha  era  de  Ajudante  do  insigne  Ar- 
tista, Cyrillo  Volkmar  Machado  nas  obras  do  Real  Palácio  de  Mafra,  onde  11 
asnos  contínuos  e  sem  interrupção  alguma  residi  juntamente  com  elle,  ven- 
cendo 800  reis  diariamente  athé  a  envasão  dos  Francezes,  em  que  pararão 
aquelles  trabalhos,  como  informão  os  Attestados  n.°  l.°e2.°  Em  1814  sendo 
encarregado,  o  dito  Porfessor  Cyrilo,  pelo  Visconde  de  Santarém,  então  Inspe- 
ctor da  Real  Obra  d'Ajuda,  para  no  mesmo  Real  Palácio  fazer  alguns  de  Ar- 
chitectura,  e  pintar  Painéis  de  Figura;  e  para  o  ajudar,  fui  removido,  pelo 
dito  Visconde  de  Santarém,  da  Folha  de  Mafra  para  esta  segunda  da  Obra 
d' Ajuda:  fui  assiduo  e  effeetivo  naquelles  Trabalhos,  indo  sempre  á  obra 
quando  o  dito  Cyrillo  lua  e  quando  me  mandava;  mas  porque  Cyrilo  se  im- 
possibilitara de  hir  e  rezedir  na  Obra  d'Ajuda,  o  mesmo  Inspector  Visconde 
de  Santarém,  o  encarregou  de  fazer  oito  painéis  para  a  sala  do  Dueel,  na 
sua  própria  Caza  do  Laboratório:  eis  a  razão  porque  como  Ajudante  fui  des- 
pencado de  rezedir  na  Obra;  mas  não  de  me  apartar  do  lado  e  Laboratório 
de  Cyrilo,  para  então  o  ajudar  nos  oito  painéis,  e  no  maior  que  fouce  encum- 
bido,  o  dito  Professor,  da  assiduidade,  da  honra,  do  zelo,  do  préstimo,  e 
prezente  aplicação  na  caza  do  Laboratório  de  Cyrilo,  attestão  em  verdade  os 
Documentos  n.°  3.°  e  4." 

«De  todas  as  Altestações  que  ponho  na  Prezença  de  V.  S.ria  conhece  que 
por  espasso  de  tantos  annos  sempre  tenho  servido  na  qualidade  de  Ajudante 
do  Insigne  Cyrilo:  que  aprezentando  estes  Documentos  ao  Ex.  Ministro  da 
Fazenda,  o  Dr.  Francisco  Duarte  Coelho,  quando  fui  chamado  á  obra  d'Ajuda, 
lhe  devi  o  mandar  me  continuar  a  rezidir  na  Caza  e  laboratório  de  Cyrilo, 
com  600  reis  nos  dias  de  trabalho,  ou  fouce  em  attenção  aos  meus  annos  de 
serviço  como  ajudante  de  Cyrilo,  ou  ao  mesmo  Cyrilo,  que  faz  honrra  à  Na- 
ção, e  seu  nome  será  gravado  nos  céculos  feturos;  e  que  ainda  convulso  sem 
acção  em  suas  mãos,  se  tem  prestado  nas  conferencias,  que  na  sua  própria 
caza  se  tem  feito  sobre  projectos  de  Pintura,  e  Architectura  para  o  Novo  Pa- 
lácio d' Ajuda. 

«Já  mais  me  poderei  negar  ao  serviço  da  Nação  de  quem  sou  Funcionário, 
quando  paressa  a  V.  S.ría  não  dever  continuar  no  laboratório  de  Cyrilo,  e  que 
eu  serei  útil  a  Nação  desemparaudo  aquelle  Porfessor  no  exercicio  de  seu 
ajudante;  então  rogo  a  V.  S.r*  nestas  circuntancias,  a  graça  de  ser  removido 
para  a  Caza  do  Risco  de  Obras  Publicas  com  800  reis  por  dia;  pois  só  com 
este  salário  poderei  ser  o  amparo  de  minha  mulher,  filhos  e  mais  família. 


1:26  NOTICIA   DE  ALGUNS  PINTORES 

V.  S.ri3  mandará  o  que  for  servido.  Lisboa  21  de  Junho  de  1822 — O  ajudante 
do  Porfessor  Cyrilo  Bernardo  António  d' Oliveira  Góes»  l. 


XLVII. — Oliveira  de  Louredo  (António  de).  —  Fiz  menção  d'este  pintor 
na  primeira  serie  d'esta  Noticia.  Acerescentarei  agora  que,  na  Bibliotheca 
Nacional  de  Lisboa,  existe  um  retrato  de  D.  Pedro  II.  pintado  por  Louredo 
em  1704.  Este  retrato  é  em  tela  e  está  em  mau  estado. 


XLVIII.  —Paula  Rocha  (Francisco  de).  —  Lm  11  de  novembro  de  1821 
era  ajudante  de  Piolti,  eom  o  ordenado  de  400  reis,  lendo  sido  nomeado  em 
4  de  fevereiro  de  1817. 


XLIX. — Paulino  dos  Reis  (Máximo).  —  Ao  que  d'elle  já  disse  na  primeira 
serie  d'estas  Memorias,  acerescentarei  o  seguinte. 

Existe  d'elle  um  requerimento  sem  data.  em  que  se  qualifica  criado  repos- 
teiro e  pintor  de  historia,  ao  serviço  de  sua  magestade  Imperial  e  Real,  di- 
zendo que  estivera  quatorze  annos  estudando  em  Roma  e  que  no  regresso  á 
pátria,  fora  empregado  no  palácio  da  Ajuda  com  o  ordenado  mensal  de  48á000 
reis.  Trabalhando  alli  ha  dez  annos,  julgava  exiguo  o  seu  vencimento  para 
poder  exercer  com  desafogo  a  sua  arte.  E  por  isso  pedia  que  lhe  fosse  au- 
gmentado. 

Em  14  de  março  de  1823,  o  inspector  da  obra  da  Ajuda,  Duarte  José 
Fava,  enviava  a  Filipe  Ferreira  d'Araujo  e  Castro  um  desenho  colorido  de 
Máximo  Paulino  dos  Reis  e  um  esboceto  de  Norberto  José  Ribeiro  para  o 
quadro  que  se  devia  pintar  a  óleo  no  tecto  da  escada  de  pedra  da  parte  norte 
do  Palácio.  Informa  que  na  conferencia  dos  artistas  de  8  de  janeiro  fora  pre- 
ferido o  esboceto  do  segundo,  sob  cujo  nome  publico  o  referido  officio. 

«Senhor  — Diz  Máximo  Paulino  dos  Reis  Criado  Reposteiro  e  Pintor  de 
Historia  ao  serviço  de  V.  Mag.de  Imperial  e  Real  no  Real  Palácio  dAjuda  que 
elle  suplicante  tendo  sido  mandado  a  Roma.  pençionado  por  V.  Magf*  para 
elle  se  aperfeiçoar  na  Arte  de  Pintura,  esteve  naquella  Capital  por  espaço  de 
14  annos  fazendo  todas  as  diligencias  de  estudar  para  ser  útil  á  sua  Pátria. 
Regressando  finalmente  depois  de  tantos  trabalhos  á  Pátria  foi  admittido  o 


Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  DK  ALGUNS  PINTORES  127 

supplicaote  pelo  Visconde  de  Santarém  no  Real  Palácio  d'Àjuda  para  fazer 
as  pinturas  de  que  logo  foi  encarregado;  e  depois  V.  Mag.de  houve  por  bem 
despaehalo  para  o  seu  Real  Serviço  com  o  ordenado  de  quarenta  e  oito  mil 
reis  por  mez,  e  nestas  circunstancias  tem  o  supplicante  procurado  sempre 
servir  a  V.  Mag.de  com  muito  zello  e  actividade  fazendo  no  Real  Palácio  al- 
gumas Pinturas  que  tem  tido  a  fortuna  de  merecer  o  seu  Real  Agrado.  Porem 
como  o  supplicante  tenha  já  dez  ânuos  de  serviço;  e  a  experiência  lhe  tenha 
feito  conhecer  que  o  ordenado  que  tem  lhe  não  chega  para  sustentar  a  sua 
família  sendo  o  supplicante  o  único  dos  que  foram  a  Roma  estudar  que  se 
ache  nestas  circunstancias  e  por  consequência  falta  o  supplicante  áquella  tran- 
quilidade de  espirito  que  tanto  preciza  para  exercer  a  sua  Arte  e  bem  servir 
a  V.  Mag.de  he  pela  mesma  razão  que  o  supplicante  P.  a  V.  Mag.de  Imperial 
e  Real  seja  servido  pela  sua  Innata  Piedade  Mandar  que  o  Ordenado  do  sup- 
plicante seja  augmentado  a  [tonto  de  que  elle  possa  ser  em  Estado  de  bem 
servir  a  V.  Mag.de  pela  qual  graça  o  supplicante  será  eternamente  grato  a 
V.  Mag.de  E.  R.  M.ce  —  Máximo  Paulino  dos  Reis»  '. 


L.  —  Pereira  (Vasco).  —  Se  uma  viagem  de  exploração  artística  no  nosso 
pais,  analysando  e  inventariando  os  objectos  mais  dignos  de  apreço,  muitos 
dos  quaes  ainda  se  acham  inéditos,  seria  de  incontestável  utilidade,  não  menos 
proveitoso  seria  que  os  artistas  portuguezes  e  críticos  de  arte  percorressem  a 
llespanha  com  o  duplo  fim  de  estudar  os  seus  monumentos  em  comparação 
com  os  nossos  e  saber  até  que  ponto  alguns  dos  nossos  conterrâneos  exerce- 
ram alli  qualquer  influencia.  Isto  sobretudo  no  tocante  á  pintura. 

Indubitavelmente  a  Hespanha  occupa,  sob  diversos  aspectos,  um  logar 
honrosissimo,  uma  invejável  superioridade,  mas  isso  não  deve  ser  motivo 
para  que  nos  subjugue  o  desalento,  ou  que  nos  amesquinhe  a  energia.  É  pre- 
ciso ter  na  devida  conta  os  nossos  recursos,  a  exiguidade  do  nosso  território, 
e  em  presença  d'estes  factores,  a  nossa  posição  não  é  humilhante  e  até,  pelo 
contrario,  em  muitos  casos  sobejarão  motivos  para  não  recear  o  confronto. 
Diversas  correntes  estrangeiras  teem  percorrido  o  nosso  solo,  infiltrando-se 
n'elle,  sem  destruir  comtudo  as  raizes  da  nossa  individualidade,  antes  contri- 
buindo para  reforçar  e  realçar  o  nosso  caracter.  O  espirito  nacional  não  des- 
mereceu por  isso,  embora  se  modilicasse,  tornando-se  um  pouco  mais  cos- 
mopolita e  maleável,  accessivel  a  todas  as  formas  do  progresso,  qualquer  que 
seja  a  sua  procedência. 


1  Tone  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Keino. 


128  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Avaliando  com  justa  imparcialidade  o  contingente  fornecido  pelo  nosso 
pais  para  o  movimento  geral  da  civilisação,  creio  que  a  resultante  não  nos 
será  grandemente  desfavorável  e  que  não  nos  teremos  a  envergonhar  da  pe- 
quenez da  nossa  quota.  Convém,  pois,  fazer-se  sem  receio  esse  balanço,  sem 
nos  importar-nos  com  as  consequências  que  d'ahi  possam  provir,  porque, 
ainda  que  sejam  más,  poderão  servir  de  estimulo  a  uma  salutar  reacção,  pro- 
curando reparar  afanosamente  as  faltas  e  descuidos  da  nossa  indolência. 

O  numero  dos  artistas  portuguezes,  que  exerceram  a  sua  actividade  em 
Hespanha,  mais  ou  menos  temporariamente,  não  é  grande,  devido  sem  duvida 
a  não  se  terem  feito  minuciosas  pesquizas  n'este  sentido,  sendo  minha  con- 
vicção, que  os  vestígios  não  se  apagaram  de  todo  e  que  hão  de  ir  apparecendo, 
dia  a  dia,  ao  passo  que  se  forem  explorando  os  archivos  e  vistoriando  com 
mais  minudência  os  monumentos.  Quando  se  generalisar  o  exemplo  do  sr. 
D.  José  Gestoso  y  Perez,  auetor  do  Ensayo  de  un  diccionario  de  los  artistas 
y  artífices  que  florecieron  en  Sevilla  desde  el  sigla  xm  a  xvui,  então,  com  cer- 
teza, teremos  ensejo  de  vèr  até  que  ponto  subiu  a  contribuição  artística  dos 
nossos  compatriotas  nas  diversas  provindas  de  Hespanha.  N'aquella  obra 
apontam  se  alguns  artistas  e  artífices  portuguezes,  entre  os  quaes  avulta  o 
pintor  Vasco  Pereira,  que,  todavia,  tem  de  ser  desdobrado,  por  isso  que, 
sob  o  seu  nome,  vem  incluído  outro. 

Eu  não  conheço  a  obra  do  sr.  Gestoso  y  Perez,  servindo-me  de  guia  os 
extractos,  que  d'ella  foram  reproduzidos  no  primeiro  fascículo  do  volume  3." 
do  Boletim  da  Academia  das  Sciencias  de  Lisboa.  Aqui  principiarei  por  transcre- 
ver os  primeiros  períodos,  para  depois  lhes  fazer  os  devidos  commentarios: 

«Pereyra  (Vasco).  Pintor.  Altista  portuguez,  natural  de  Lisboa.  Pintou  va- 
rias obras  decorativas  na  calhedral  de  Sevilha  e  em  vários  edifícios  da  cidade. 
No  aimo  de  1579  trabalhava  na  portada  e  campanário  da  porta  do  Perdão  da 
Calhedral,  na  capella  de  S.  Christovam  da  dita  egreja,  e  na  pintura  e  douração 
de  onze  figuras  para  o  monumento. 

«Entre  as  poucas  obras  que  d'elle  restam  está  o  quadro  em  madeira  ao 
lado  esquerdo  do  coro  da  egreja  parochial  de  S.  João  Baplista  de  Marchena, 
representando  a  Annunciação  e  assignado:  Vascus  Pereira,  Elborensis  Lusilanus 
faciebal.  MDLXXVI;  e  na  egreja  Mayor  de  Sanlucar  de  Rarrameda  outro  quadro 
representando  o  martyrio  de  S.  Sebastião,  que  mede  2,34  de  altura  por  1,85 
de  largura,  assignado:  Time  discebam  Vascus  Peres,  Lusitanus  de  Urbe  Lixbo- 
nensis.  Anna  1562o. 

Custa  me  a  comprehender  como  se  confundissem  numa  única  individuali- 
dade dois  pintores,  não  só  de  nome  differente,  mas  até  de  naturalidade  di- 


NOTICIA   DK   ALGUNS  PINTOKES  129 

versa.  O  auclor  do  quadro  da  egreja  de  Marchena  chamava-se  Vasco  Pereira 
e  era  unlural  de  Évora,  ao  passo  que  o  do  quadro  da  egreja  Mayor  de  Sanlucar 
se  chamava  Vasco  Teres  e  era  lisbonense. 

Depois  dos  períodos  acima  transcriplos  o  sr.  Geslaso  y  Perez  traz  mais  e 
até  copiosas  noticias  acerca  de  outros  trabalhos  executados  pelo  artista,  cujo 
nome  serve  de  inicial  ao  respectivo  artigo,  mas  fico  perplexo  se  ellas  se  re- 
ferirão exclusivamente  a  Vasco  Pereira,  por  isso  que  os  documentos  cita- 
dos vêem  em  extracto  e  não  na  integra,  ou  se  abrangem  lambem  a  Vasco 
Peres. 

O  nome  de  Vasco  Pereira  não  é  uma  revelação  feita  pelo  sr.  Gestoso  y 
Perez.  De  ha  muito  que  era  já  conhecido  nos  annaes  da  arte  peninsular.  Cean 
Bermudez  incluiu-o  a  pag.  lil  do  o.°  volume  do  seu  Uiccionario  histórico  de 
los  mas  illuslres  profesores  de  las  Bellas-Artes  en  Espana,  impresso  em  Madrid 
em  1800. 

Cean  Bermudez  principia  por  dizer  que  Vasco  Pereira  era  pintor  portuguez 
estabelecido  com  grande  credito  em  Sevilha  nos  fins  do  século  xvi,  e  termina 
por  estas  palavras: 

«Foi  grande  debuxanle,  porém  de  seceo  e  duro  colorido,  como  se  nota  nos 
quatro  doutores  que  existem  de  sua  mão  na  livraria  da  cartuxa  de  Santa  Maria 
de  las  Cuevas  e  numa  Annunciação  de  Nossa  Senhora  collocada  na  sacristia 
do  que  foi  outr'ora  collegio  de  S.  Hermenegildo  e  hoje  casa  dos  Toribios». 

Cean  Bermudez  cita  com  louvor  diversos  trabalhos  de  Pereira,  alguns  dos 
quaes  em  honrosa  competência  com  pintores  hespanhoes.  Não  se  refere,  porém, 
aos  dois  quadros  de  que  fala  o  sr.  Gestoso  y  Perez. 

O  conde  de  Baczynski,  em  carta  datada  de  Sevilha,  a  22  de  julho  de  1843, 
diz  que  buscara  examinar  as  obras  de  Vasco  Pereira,  que  encontrara  mencio- 
nadas em  Cean  Bermudez,  mas  que  já  não  existiam,  tendo  visto  apenas  um 
pequeno  quadro  com  a  data  de  1575  na  collecção  Bravo,  quadro  que  todavia 
não  tinha  importância. 

Seria  muito  para  estimar  que  a  nossa  Academia  de  Bellas  Artes  enviasse 
a  Sevilha  um  delegado  seu  a  estudar  de  visa  o  assumpto,  fazendo  reproduzir  ao 
mesmo  tempo  por  um  pintor  os  quadros  de  Pereira.  É  possível  que  esta  ta- 
refa seja  superior  aos  seus  recursos  pecuniários  e  por  isso  já  nos  podíamos 
dar  por  satisfeitos  com  uma  copia  pbotographica. 

O  inventario  da  pintura  portugueza  está-se  impondo  cada  vez  mais,  não 
devendo  limitar-se  exclusivamente  ao  nosso  pais,  mas  estender-se  egualmente 
a  toda  a  península. 

Parece-me  desnecessário  accentuar  que  o  Vasco  Pereira,  que  trabalhava  em 

17 


130  XOTiCIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Sevilha  no  ultimo  quartel  do  século  xvi  Dão  é  o  mesmo,  que  se  perpetuou 
nos -quadros  da  Sé  de  Viseu,  com  o  qual  todavia  já  o  pretenderam  con- 
fundir. 

Reproduzo  em  seguida,  na  integra,  os  artigos  do  sr.  Gestoso  y  Perez  e 
Cean  Bermudez: 

tPereyra  (Vasco).  Pintor.  Artista  portuguez,  natural  de  Lisboa.  Pintou  va- 
lias obras  decorativas  na  catbedral  de  Sevilha  e  em  vários  edifícios  da  cidade. 
No  auno  de  1579  trabalhava  na  portada  e  campanário  da  porta  do  Perdão  da 
Calhedral,  na  capella  de  S.  Chrislovam  da  dita  egreja,  e  na  pintura  e  douração 
de  onze  figuras  para  o  monumento. 

«Entre  as  poucas  obras  que  d'elle  restam  está  o  quadro  em  madeira  ao 
lado  esquerdo  do  coro  da  egreja  parochial  de  S.  João  Baptista  de  Marchena, 
representando  a  Annunciação  e  assignado:  Vascus  Peràra,  Elborensis  Lusitanus 
faáebat.  MDLXXVI;  e  na  egreja  BJayor  de  Sanlucar  de  Barrameda  outro  quadro 
representando  n  martyrio  de  S.  Sebastião,  que  mede  2,34  de  altura  por  1,85 
de  largura,  assignado:  Tinte  discebam  Vascus  Peres,  Lusitanus  de  Urbe  Li.rbo- 
nensis.  Auno  1562. 

«Em  1575,  na  requisição  de  armas  feita  em  S.  João  de  la  Palma,  consta 
que  vivia  tabaxo  dei  Pozo  Santo  a  par  dei  Bano  de  S.  Juan»;  os  deputados 
pela  cidade  ordenaram  que  tivesse  espada  e  arcabuz. 

(Foram-lhe  entregues  69:190  mrs.  em  19  de  abril  de  1582  por  metade  de 
36o  ducados  em  que  foi  arrematada  a  pintura  do  tumulo  que  se  fez  para  as 
honras  da  rainha  D.  Anna  de  Áustria.  Na  mesma  data  lhe  foram  entregues 
34:495  por  egual  motivo. 

a  Em  12  de  maio  depoz  como  testemunha,  da  parte  dos  monjes  da  Carlucha 
de  Sevilha,  no  pleito  que  estes  traziam  com  o  duque  de  Alcalá,  que  se  oppunha 
a  que  fossem  sepultados  n'aquelle  mosteiro  os  restos  morlaes  do  arcebispo 
D.  Gonçalo  de  .Mena.  Ao  lado  do  seu  depoimento,  em  que  o  chamam  pintor 
de  imaginaria  veeiuo  à  la  coUacion  de  San  Juan  de  la  Palma,  está  a  sua  assi- 
gnatura  aulographa.  Nesse  depoimento  diz  ter  proximamente  50  aunos  e  co- 
nhecer bem  as  egrejas  e  capellas  do  referido  mosteiro  «por  ler  feito  obras  da 
sua  arte  em  algumas».  Deve  ter,  portanto,  nascido  pelo  anno  de  1535.  Tam- 
bém alli  consta  que,  entre  outras  coisas,  pintou  dois  quadros  representando 
S.  Thomaz  de  Aquino  e  S.  Pedro  Mártir,  e  vários  escudos  do  arcebispo 
Mena. 

«Em  16  de  outubro  de  1585  foram-lhe  pagos  70  ducados,  metade  de  140 
em  que  lhe  foi  arrematado  o  retábulo  e  pintura  de  Nossa  Senhora  na  porta 
do  Cárcere  Real  de  Sevilha.  No  mesmo  anno  entregaram-lhe  16:250  mrs.  por 
conta  de  11:102  que  Diogo  Nuiiez  Perez,  um  dos  24  de  Sevilha,  commissio- 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  131 

nado  pela  cidade,  averiguou  que  valia  a  pintura,  douradura  e  mais  trabalho 
que  fizera  na  poria  de  Carmona  ale  áquella  data,  tendo-lhe  sido  entregues 
anteriormente  os  outros  5í:85L2  mis.,  complemento  da  quantia  ajustada»  *. 

«Pintor  português,  eslablecido  eu  Sevilla  con  gran  crédito  à  fines  dei 
siglo  xvi.  El  eabildo  de  aquella  catedral  le  encargo  el  ano  de  1594  reparar  la 
famosa  calle  de  la  Amargura,  que  Luis  de  Vargas  liabia  pintado  ai  fresco 
treinla  anos  antes  en  las  gradas  dei  lado  dei  norte,  porque  comenzaba  à  pa- 
decer por  el  temporal:  pintura  de  grau  aprecio,  que  enlónces  era  la  devocion 
dei  pueblo,  ante  la  qual  permitia  la  juslicia  se  paresen  à  rezar  los  que  salian 
à  la  vergiienza,  por  lo  que  desde  aquel  liempo  conserva  el  nombre  dei  Cristo 
de  los  azotados.  Pinto  Pereyra  con  oiros  profesores  en  598  el  túmulo  que  le- 
vanto la  ciudad  de  Sevilla  en  su  igiesia  mayor  para  las  honras  de  Felipe  II, 
en  el  que  luciéron  con  emulacion  las  mejores  habilidades,  siendo  la  de  Pereyra 
una  de  las  mas  aventajadas.  Por  entónces  pinto  ai  fresco  la  degollacion  dei 
Apóstol  de  las  Gentes  en  el  claustro  dei  convento  de  S.  Pablo,  en  el  que  tra- 
bajáron  à  porfia  Mohedaoo  y  Vàzquez,  de  cuyas  obras  no  ha  quedado  mas  que 
el  adorno  de  la  puerta  que  va  á  la  igiesia. 

«Doró  y  estofo  el  retablo  mayor  anliguo  dei  monasterio  de  S.  Leandro  en 
aquella  ciudad,  que  seria  mucho  mejor  que  el  actual;  yen  un  baxo  relieve  de 
Cristo  à  la  columna,  que  aun  se  conserva  en  el  moderno,  unió  con  mucha  in- 
teligência la  columna  à  un  trozo  de  arquitectura,  que  pinto  em  perspectiva  en 
el  fondo.  Fué  gran  dibuxante,  peio  de  seco  y  duro  colorido,  como  se  nota  en 
los  quatro  doclores  que  hay  de  su  mano  en  la  libreria  de  la  cartuxa  de  santa 
Maria  de  las  Cuevas,  y  en  una  anunciacion  de  nueslra  Senora  colocada  en  la 
sacristia  dei  que  fué  antes  colégio  de  S.  Hermenegildo,  y  hoy  casa  de  los  To- 
ribios.  Falleció  en  Sevilla  à  princípios  dei  siglo  xvn» 2. 


LI. — Pereira  de  Carvalho  (Domingos).  —  Era  natural  do  Porto  e  estudou 
em  Roma  juntamente  com  António  Manuel  da  Fonseca.  Em  1835  fez-se  em 
Lisboa  uma  exposição  de  quadros  d'aquelles  dois  artistas,  exposição  que  teve 
um  fim  caritativo,  pois  o  producto  das  entradas  revertia  em  favor  dos  muti- 
lados dos  batalhões  moveis.  Altesta  este  facto  um  opusculosinho  de  quinze  pa- 
ginas, na  ultima  das  quaes  se  lè  a  seguinte  epigraphe: 

«■Copias  feitas  pelo  pensionado  do  Estado,  Domingos  Pereira  de  Carvalho, 


1  Tom.  II,  pag.  75. 

2  Arch.  de  la  cat.  de  Sev.  Pach.  Espinos. 


132  NOTICIA   DE  ALGUNS  PINTORES 

meu  contemporâneo  nos  estudos  das  Bclkts  Artes  em  Roma,  o  qual  partiu  para 
o  Porto,  sua  pátria  natalícia.» 

As  copias  são  apenas  duas:  uma,  representando  S.  Francisco,  orando  no 
deserto,  de  Lodovico  Caraci;  outra,  As  três  graças,  de  Ticiano.  Os  originaes 
existiam  na  galeria  Borghése,  em  Roma. 

Raczynski  iuclue  o  nome  de  Pereira  de  Carvalho  no  seu  Dictionnaire.  Em 
1845  era  professor  substituto  de  pintura  na  Escola  de  Bellas  Artes  do  Porto 
e  restaurou  o  soberbo  quadro  Fons  vikr,  pertencente  á  Misericórdia  da  mesma 
cidade. 


LII.  —  Peres  (Francisco  Maria).  —  O  correspondente  do  Diário  de  Noticias 
€in  Torres  Vedras,  em  carta  publicada  nesta  folha  de  17  de  agosto  de  1910, 
participou  o  fallecinienlo,  ífaquella  villa,  de  Francisco  Maria  Peres,  natural  da 
mesma,  o  qual  exercia  a  arte  de  pintor,  tendo  executado  alguns  trabalhos, 
<|iie  o  mesmo  correspondente  considera  de  merecimento.  Pintou  o  tecto  da 
egreja  do  Varalojo  e  reparou,  ha  annos,  uns  quadros  na  egreja  de  S.  Thiago, 
de  Torres  Vedras.  Trabalhara  também  ultimamente  em  S.  Bernardino,  casa 
da  Ordem  de  S.  Francisco.  Foi  discípulo  de  Prieto. 


LIII.  —  Perez  ou  Pires  (Vasco).  —  Pintor  portuguez  que  trabalhava  em 
Sevilha  no  ultimo  quartel  do  século  xvi.  Vide  Pereira  (Vasco). 


LIV.  —  Pillement  (João).  —  Cyrillo  Vúlkmar  Machado  dá  nos  alguns  por- 
menores biographicos  d'este  pintor  francez,  que  no  século  xviu  esteve  por  três 
vezes  em  Portugal,  sendo  a  primeira  antes  do  terremoto  de  1755. 

Não  nos  diz,  porém,  a  causa  da  sua  vinda,  não  se  sabendo  por  conseguinte 
se  esta  fora  espontânea  ou  se  provocada  por  algum  convite  do  nosso  governo, 
para  exercer  qualquer  encargo  official.  Esta  ultima  hypothese  é  que  talvez 
tenha  a  maior  probabilidade  a  seu  favor. 

Pillement  pintava  a  óleo  e  a  pastel,  sendo  n'esta  ultima  especialidade  que 
mais  se  distinguia  o  seu  talento  ou  aptidão.  Dedicava-se  á  pintura  de  interio- 
res, e  do  seu  pincel  era  a  ornamentação  de  dois  gabinetes  na  casa  de  Gerardo 
Devisme,  na  sua  quinta  em  S.  Domingos  de  Bemfica.  . 

Volkmar  Machado  exalta  lhe  os  merecimentos,  aos  quaes  Raczynski  faz  al- 
gum desconto,  dizendo  que  as  suas  paisagens  eram  muito  amaneiradas,  posto- 
que  revelassem  grande  perícia  («savoir-faire»). 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  133 

Raczynski,  em  mais  de  uma  das  suas  Letlres  sur  les  arts  cn  Portugal,  refe- 
re-se,  ainda  que  de  passagem,  a  Pillement,  cujo  nome  orfcographa  de  Ires 
modos,  e  no  Dictionnaire  reproduz  abreviadamente  o  arligo  biographico 
de  Cyrillo  Volkmar  Machado,  que  vem  a  pag.  211  da  sua  Collecção  de  Me- 
moriai. 

Accrescenlarei  agora  um  pormenor  biographico,  que  me  parece  bastante 
interessante,  colhido  na  denuncia,  que  em  18  de  janeiro  de  1755  foi  fazer  á 
Inquisição  um  seu  companheiro.  Chamava-se  este  Lourenço  Boullier,  filho  de 
Paulo  Boullier,  commercianle  ou  tratante,  como  então  se  dizia,  e  de  Francisca 
Landrin.  Nascera  na  cidade  de  Taraseon,  tão  celebrada  no  romance  de  Daudet, 
Tarlarin  de  Taraseon,  e  havia  dois  dias  que  chegara  de  Inglaterra  a  Portugal, 
onde  morava  na  rua  da  Rosa,  em  casa  de  um  alfaiate  francez,  de  nome  Pedro. 
Era  doutor  num  e  noutro  direito,  in  utroque  jure,  e  exercia  a  profissão  de 
mestre  da  língua  franceza  em  casa  do  conde  de  Caslello  Melhor.  Não  se  com- 
prehende  bem  qual  a  intensidade  de  escrúpulos  que  o  levou,  com  tanta  pressa, 
quasi  sem  descançar  da  viagem,  a  ir  ao  tribunal  do  Santo  Officio  a  apresentar 
queixas  contra  o  seu  compatriota,  a  quem  havia  seis  meses  que  deixara  em 
Londres. 

As  principaes  aceusações  de  Boullier  consistiam  em  dizer  que  elle  era  um 
perfeito  deisla,  embora  durante  uma  viagem  para  Inglaterra,  por  occasião  de 
uma  tempestade  que  a  lodos  apavorara,  o  visse  fazer  actos  de  bom  catholico, 
actos  de  que  se  esqueceu  logo  que  saltou  em  terra,  continuando  a  seguir  por- 
fiadamente  as  doutrinas  do  deísmo.  Ainda  mais:  Pillement  era  pedreiro  livre, 
cujos  sectários  acompanhava  e  tinha  tendências  para  maus  costumes,  pois  pro- 
vocara o  delator  a  cousas  deshonestas. 

A  denuncia  é  portanto  uma  folha  corrida  de  Pillement  e  pouco  interesse 
uos  despertariam  estes  pormenores  da  sua  vida  intima,  talvez  desfigurados 
pelo  despeito  ou  ódio,  se  não  encontrássemos  envolvida  uma  particularidade 
inédita  para  a  biographia  do  artista.  Diz-nos  Boullier  que  elle  era  ou  fora  de- 
buxador  e  pintor  da  fabrica  de  sedas  e  que  era  natural  da  cidade  de  Leão, 
onde  parece  que  o  pae  exercia  a  mesma  profissão. 

É  certo,  que  na  fabrica  das  sedas  se  distinguiram  hábeis  debuxadores  e 
que  nella  até  se  instituiu  uma  aula  de  desenho  para  esta  especialidade,  sendo 
eonlractado  em  França  para  a  dirigir  João  Polycarpo  May,  que  principiou  a 
vencer  ordenado  desde  1  de  junho  de  1763,  dia  em  que  saiu  de  Leão. 

Ex.erceu  o  cargo  até  4  de  janeiro  de  1794,  em  que  veio  a  fallecer. 

Esta  aula  manteve-se  até  18  de  junho  de  1800,  em  que  foi  abolida,  por 
se  julgar  desnecessária,  visto  terem  perdiio  de  moda  as  sedas  ricamente  or- 
nadas. 

Antes  de  Polycarpo  May,  já  existiam  debuxadores  e  José  Accurcio  das  Neves, 


134  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

achou  memoria  de  um  Alezon,  francez,  que  formou  um  habilissimo  discípulo 
em  Diogo  Martinho  Villera. 

É  curioso  e  bem  merece  ser  lido  o  capitulo  que  o  citado  auctor  dedica  nas 
Noções  Históricas  á  creação  e  desenvolvimento  do  curso  de  debuxadores  de 
sedas.  E  um  trecho  importante  para  a  historia  do  ensino  artístico  industrial 
do  nosso  pais. 

Outras  escolas  ou  aulas  idênticas  se  estabeleceram  por  aquella  época,  como 
foi  a  Casa  do  Risco,  no  Museu  de  Historia  Natural,  annexo  ao  Jardim  Botânico 
da  Ajuda  e  cujos  alumnos  se  dedicavam  ao  desenho  de  animaes,  plantas  e 
outros  objectos. 

Estou  persuadido  que  Pillement  viria  para  Portugal  contractado  para  tra- 
balhar na  real  fabrica  das  sedas,  mas  causa  surpreza  que  José  Accurcio  das 
Neves  não  o  mencione,  omissão  que  não  sei  explicar,  dando-se  de  mais  a 
mais  a  circumstancia  de  não  ter  encontrado  até  agora  o  seu  nome  em  ou- 
tros documentos  officiaes,  o  que  não  quer  dizer  que  não  appareça  ainda 
em  resultado  de  novas  pesquisas.  O  testemunho  do  professor  de  lingua  íran- 
ceza  também  não  creio  que  possa  ser  posto  em  duvida,  e  seguindo-se-lhe 
a  pista,  é  muito  possível  que  venha  a  conseguir-se  alguma  cousa  de  mais 
positivo. 

Resta-me  inserir  uma  particularidade  acerca  do  Dr.  Lourenço  Boullier. 
Confessou  elle  perante  a  mesa  do  Santo  OfOcio  que  lera,  fora  do  reino,  livros 
prohibidos,  para  o  que  tinha  licença,  e  que  d'elles  não  trouxera  nenhum  para 
Portugal,  exceptuando  Erasmo,  cujas  obras  nem  titulos  declarou,  accrescenlando 
que  já  o  havia  entregado  ao  sr.  Simão  José  Silveira  Lobo. 

«Lourenço  Boullier,  mestre  de  lingua  franceza  em  caza  do  Conde  de  Cas- 
tello  Melhor,  solteiro,  filho  de  Paulo  Boullier,  tratante,  e  de  Francisca  Landrin, 
natural  da  Cidade  de  Tarascon,  condado  de  Foix,  Beino  de  Fiança,  Bispado 
de  Pamiers,  e  morador  nesta  cidade  aonde  chegou  ha  dous  dias  de  Ingla- 
terra, assistente  no  bayro  alto  na  rua  da  Bosa  em  caza  de  hu  allayate  francês 
chamado  Pedro;  de  34  annos,  veyo  a  esta  mesa  em  18  de  Janeiro  de  1755, 
e  denunciou  de  tarde,  e  he  Doutor  in  utroque  jure  pela  Universidade  de 
Tolosa: 

«Que  Pillement,  cujo  nome  do  Baptismo  ignora,  debuxador  que  foi  da  fa- 
brica da  seda,  e  pintor  da  mesma  nesta  corte,  solteiro,  filho  de  Pillement,  pin- 
tor de  sedas,  natural  da  Cidade  de  Leão  de  França,  e  morador  que  foi  nesta 
cidade,  junto  a  fabrica  da  seda,  e  assistente  em  Londres  haverá  seis  mezes, 
porque  tanto  ha  o  deixou  lá,  sendo  Catholico  Bomano,  segue,  e  tem  por  boas 
doutrinas  heréticas  que  seguem,  os  Deistas;  por  quanto  lhe  ouvio  proferir 
muitas  proposições,  que  confirmaão  os  seus  erros,  mormurando  dos  miste- 


NOTICIA  OK  ALGUNS  PINTORES  135 

rios,  e  sentenças  da  Igreja,  e  finalmente  não  crendo  era  cousa  algua  mais,  do 
que  em  hu  Deos,  e  em  nada  mais  posto  que  socedendo  hir  elle  denunciante 
embarcado  cõ  o  delato  para  Inglaterra,  e  levantando-se  nua  grande  tempestade 
que  lhe  cauzou  horror  e  os  poz  em  evidente  perigo  lhe  vio  elle  denunciante 
fazer  acções  de  catholico,  em  que  perseverou  ainda  depois  de  saltar  em  terra 
por  tempo  de  pouco  mais  de  quinze  dias,  depois  do  que  tornou  á  sua  errada 
crença,  desprezando  a  Igreja. 

«E  tem  elle  denunciante  para  si  que  o  delato  segue  a  sociedade  dos  pedrei- 
ros livres,  porquanto  acompanhava  cõ  outros  estrangeiros  que  entendia  serem 
da  mesma  seita,  e  porque  lhe  percebeo  acções  deshonestas,  tratando  a  elle 
denunciante  com  demasiado  carinho  e  tentando-o  para  actos  sodomidicos  es- 
tando durmindo,  e  ambos  na  mesma  cama. 

aE  declara  mais  que  elle  denunciante  tem  lido  fora  deste  Reino  livros  pro- 
hibidos,  por  ter  licença  para  isso,  e  cá  só  leo  Erasmo  que  entregou  ao  Senhor 
Simão  José  Silveira  Lobo»  '. 


LV.  —  Pinheiro  Arnaud  (Manuel).  —  Diz  Barbosa  Machado  que  elle  nas- 
cera em  Lisboa,  que  se  formara  em  jurisprudência  na  Universidade  de  Coimbra 
e  que,  voltando  á  pátria,  exercera  o  cargo  de  advogado  da  Casa  da  Supplicação. 
Falleceu  a  17  de  maio  de  1683,  sendo  enterrado  na  egreja  de  S.  Nicolau.  Eu 
posso  accrescenlar  que  elle  era  filho  único  do  Dr.  Manuel  Lopes  Pinheiro,  que 
durante  quatorze  annos  exercera  o  cargo  de  medico  de  camará  e  da  rainha 
D.  Luisa  de  Gusmão,  mulher  de  D.  João  IV.  Á  sua  viuva,  cujo  nome  se  não 
declara,  no  documento  que  pude  examinar,  assim  como  a  seu  filho,  foi  conce- 
dida a  tença  animal  de  quarenta  mil  reis,  a  qual,  no  caso  de  qualquer  dos 
dois  fallecer,  passaria  para  o  sobrevivente.  A  mãe  deveria  ter  morrido  antes 
de  14  de  abril  de  1684,  como  parece  deprehender-se  da  carta  de  18  do  mesmo 
mes  e  anno  que  foi  passada  em  favor  do  filho. 

Barbosa  Machado  fala  com  grande  elogio  do  talento  poético  de  Arnaud, 
no  que  me  parece  haver  exagero,  devendo-se-lhe  applicar  o  necessário  corre- 
ctivo. Já  não  direi  o  mesmo  a  respeito  da  sua  aptidão  artística  de  debuxador 
e  calligrapho,  como  bem  o  demonstrou  nas  duas  seguintes  obras,  registadas 
pelo  eminente  bibliographo,  a  saber: 

«■Templo  da  fama  consagrado  ao  valor  de  Portugal,  e  construído  das  ruínas 
de  Castella  em  Montes  Claros,  na  sempre  memorável  Victoria  de  10  de  Julho  de 


Torre  do  Tombo.  Caderno  113  do  promotor  da  Inquisição  de  Lisboa  (n.°  130),  fls.  386. 


136  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

1665.  Dedicado  ao  Ex.mo  Sr.  Conde  de  Castello  Melhor.  Consta  de  25  decimas 
collocadas  debaixo  de  outros  tantos  emblemas,  primorosamente  debuxados  pela 
mão  do  auctor.  Conserva-se  na  livraria  do  Ex.mo  Sr.  Conde  de  Castello  Me- 
lhor.» 

zPyramide  natalícia  ao  nascimento  da  sereníssima  princesa  D.  Isabel,  filha 
(PEl-rey  D.  Pedro  II.  Conserva-se  na  livraria  do  Ex.mo  Marquez  de  Fronteira». 

Não  sei  se  a  segunda  d'estas  obras  ainda  existe.  A  primeira  chegou  até 
aos  nossos  dias  e  foi  vendida  no  leilão  da  livraria  do  Marquez  de  Castello  Me- 
lhor, em  cujo  catalogo  de  manuscriptos  vem  suficientemente  descripta  sob  o 
n.°  304.  Arrematou-a  José  Maria  Nepomuceno,  que  mais  tarde  a  cedeu  a  Je- 
ronymo  Ferreira  das  Neves.  Tive  occasião  de  a  examinar  em  29  de  agosto  de 
1888,  verificando  que  não  eram  immerecidos  os  gabos  que  Barbosa  Machado 
concedera  ao  artista  da  penna.  Os  seus  desenhos,  de  uma  grande  delicadesa 
e  finura  de  traço,  são  pequeninos  quadros,  que  fazem  lembrar  as  gravurinhas 
de  Callot. 


LVI.  —  Piolti  (Manuel).  —  O  palácio  real  da  Ajuda  está  para  o  convento 
e  palácio  real  de  Mafra,  assim  como  a  basílica  da  Estreita  está  para  a  egreja 
d'aquelle  mesmo  convento.  O  primeiro  não  tem  a  grandeza  esmagadora  do 
segundo,  mas,  em  compensação,  offerece  um  aspecto  mais  elegante  e 
está  situado  num  alto,  donde  domina  e  disfructa  um  vasto  e  magnifico  pano- 
rama. 

Não  obstante  as  suas  colossaes  proporções,  graças  ás  quantiosas  sommas 
dispendidas,  ao  numero  elevadíssimo  de  operários,  e  á  diligencia  incessante 
com  que  se  activou  a  obra,  o  soberbo  edifício  de  Mafra  ficou  construído,  para 
assim  dizer,  de  um  jacto,  sem  que  as  gerações  vindouras  tivessem  de  intervir, 
sobrepondo  qualquer  trabalho,  enxertando  qualquer  trecho  anómalo,  que  des- 
figurasse o  estylo  dominante.  Assim  a  homogeneidade  architectonica  perma- 
neceu intacta,  e  o  pensamento  inicial  consèrvou-se  harmónico  no  conjunto  das 
suas  linhas. 

Já  não  succedeu  o  mesmo  com  o  palácio  da  Ajuda,  que  ainda  está  mui 
longe  do  seu  remate,  e  cujo  plano  primitivo,  delineado  pelo  archi tecto  italiano 
Francisco  Xavier  Fabri,  soffreu  desde  logo  alterações.  Estas  não  pararam  por 
aqui,  antes  se  iam  effectuando,  á  medida  que  se  apresentavam  certos  reparos, 
sugeridos  pelos  inspectores  e  architectos  que  dirigiram  a  obra.  Até  Cyrillo 
Volkmar  Machado,  cuja  especialidade  era  a  pintura,  introduziu  as  suas  modifi- 
cações, como  elle  próprio  confessa  a  pag.  316  da  sua  Collecção  de  Memorias, 


NOTICIA   PE  ALGUNS  PINTORES  137 

onde  nos  diz  que  fora  dada  a  preferencia  ao  seu  projecto  do  acabamento  da 
fachada  do  lado  do  levante. 

Eu  não  sei  se  ainda  se  guardam  em  alguma  parte  as  plantas  e  desenhos 
por  onde  se  guiaram  os  primeiros  artistas  que  trabalharam  na  obra.  e  que 
confrontando-os  com  o  que  está  feito,  seriam  preciosos  elementos  a  quem  se 
dedicasse  ao  estudo  technico  do  edifício.  O  palácio  real  da  Ajuda  era  bem 
digno  de  uma  desenvolvida  monographia,  em  que  se  tratasse  por  egual  da  sua 
evolução  histórica  e  da  sua  evolução  artística,  empresa,  a  que  era  justo  se 
abalançasse  qualquer  dos  nossos  mais  reputados  architectos.  Lá  fora  são  vul- 
gares trabalhos  d'esta  ordem,  o  que  não  admira,  por  isso  que,  além  da  pro- 
tecção do  governo  e  das  respectivas  corporações,  encontram  o  favor  do  publico. 
Entre  nós  são  raríssimos  ou  quasi  nullos,  e  só  me  recordo  n'estes  últimos 
annos  do  trabalho  do  sr.  Korrodi  sobre  o  castello  de  Leiria.  No  entanto,  se  a 
arte  é  uma  religião,  os  sacerdotes  que  a  professam,  deveriam  impor-se  algum 
sacrifício,  sem  necessidade  de  se  exporem  á  coroa  do  martyrio. 

O  palácio  da  Ajuda  foi  durante  longos  annos  uma  officina  e  uma  escola  — 
escola  pratica  e  theorica  —  onde  se  exercitaram  artistas  de  diversos  géneros 
já  feitos,  e  se  educaram  e  aprenderam  outros.  Entre  elles  conla-se  Manuel 
Piolti,  a  quem  dei  logar  no  meu  Diccionario  dos  Architectos,  porisso  que  o  con- 
selheiro Costa  e  Silva,  o  classificara  de  —  architecto-pintor —  e  Volkmar  Ma- 
chado de  —  architecto  decorador. 

Este  uitimo,  a  pag.  238  da  sua  Collecção  de  Memorias,  dá  alguns  porme- 
nores, ainda  que  vagos,  acerca  de  Manuel  Piolti,  cuja  biographia  enlaça  com 
a  de  José  Carlos  Biuheti,  como  se  fossem  Castor  e  Polux,  ou  irmãos  gémeos 
da  arte.  Ambos  eram  filhos  de  pães  italianos,  e  nascidos  em  Lisboa:  um  e 
outro  aprenderam  com  o  mesmo  mestre  Jacome  Azzolini.  Revelando  egual  ta- 
lento e  fazendo  eguaes  progressos,  com  o  intuito  de  saber  qual  d  elles  poderia 
sobrelevar  o  outro,  encommendou-se-lhes  a  execução  de  duas  scenas  para  a 
opera  Assar,  ás  quaes  deram  o  epilheto  de  scenas  da  competência.  O  julga- 
mento ficou  indeciso,,  até  que,  por  ultimo,  a  balança  pendeu  a  favor  de  Piolti, 
que  foi  admillido  ao  serviço  real.  A  este  propósito  faz  Cyrillo  algumas  consi- 
derações philosophicas,  que  seria  para  estimar  fossem  substituídas  por  dados 
mais  positivos  acerca  de  Piolti,  que  n'aquelle  tempo,  como  se  vê,  era  um  sce- 
nographo  emérito,  digno  discípulo  do  mestre. 

Com  mais  algum  desenvolvimento  se  refere  Cyrillo  a  Piolti  em  uma  nota 
ipag.  126  e  127)  da  sua  traducção  do  livro  de  Bellori,  As  honras  da  pintura ..., 
a  qual  é  do  teor  seguinte: 

«Manuel  Piolti,  Architecto  decorador,  empregado  no  Theatro  Régio,  não 
tendo  alli  que  fazer,  teve  o  louvável  desejo  de  servir  S.  A.  R.,  combinando 
18 


138  NOTICIA  DE  ALGUNS  PlNTOIiES 

os  seus  talentos  com  os  de  Sequeira  para  de  commum  accordo  inventarem  e 
dirigirem  as  composições  dos  tectos  no  Palácio  d  Ajuda;  cousa  que  por  então 
não  teve  eííeilo;  mas  como  o  zeloso  e  iiluslrado  Inspector  desejasse  também 
que  o  Eslado  utilisasse  o  seu  préstimo,  e  o  meu  empenho  se  acordasse  per- 
feitamente com  os  seus  desígnios,  conviemos  facilmente  em  que  dirigiríamos 
ambos  a  pintura  da  casa  do  docel,  encarregando-se  elle  de  desenhar  a  perspe- 
ctiva e  os  ornamentos  e  eu  o  painel  e  as  mais  figuras.  Os  seus  desenhos  foram 
executados  por  José  António  Narciso,  e  por  seu  filho  Anacleto  José  Narciso. 
por  Vicente  Paulo,  Eusébio  de  Oliveira,  Eugénio  Joaquim  Alvade,  José  Tho- 
maz,  João  de  Deus,  ele». 

De  diversos  papeis  ofQciaes  relativos  ás  obras  do  palácio  da  Ajuda  se 
colhem  alguns  pormenores  acerca  da  actividade  artística  desenvolvida  por 
Manuel  Piolti. 

Numa  relação  dos  indivíduos  que  ai  Li  trabalhavam  no  anno  de  1821,  assi- 
gnada  por  Filipe  Nery  Rodrigues  Souto  e  António  Francisco  Rosa,  apparece 
Piolti  como  encarregado  das  decorações  com  I-M500  reis  diários. 

Em  conferencia  de  10  de  janeiro  de  1822  se  tratou  do  projecto  das  figuras 
que  deviam  ornamentar  os  dois  tectos  das  escadas  do  vestíbulo  principal  que 
dão  serventia  para  o  plano  nobre,  trabalho  que  foi  distribuído  a  Foscbini  e 
Taborda,  dizendo-se  nessa  occasião  ser  necessário  que  o  pintor  Manuel  Piolti 
lhes  entregasse  os  desenhos  que  fizera  para  a  referida  ornamentação. 

Anteriormente,  em  conferencia  do  dia  3,  se  havia  tratado  da  pintura  das 
três  grandes  salas  da  fronlaria  de  leste,  fazendo-se  a  distribuição  do  trabalho, 
do  qual  caberia  uma  parte  a  Piolti.  Parece,  porém,  que  se  procedeu  de  modo 
a  contrariar  e  desgostar  Piolti,  e  tanto  que  os  seus  eollegas  Foscbini,  Taborda, 
Máximo  Paulino  dos  Reis  e  Gregório  da  Silva  Rato,  depois  da  conferencia  de 
10  de  janeiro,  e  em  seguida  a  ella,  protestaram  contra  isto,  allegando,  nos 
termos  mais  honrosos  para  Piolti,  que  não  podiam  prescindir  da  sua  collabo- 
ração. 

Em  conferencia  de  o  de  julho  de  1823  apresentou  o  architeclo-pintor  Ma- 
nuel Piolti  o  projecto  para  a  pintura  do  tecto  da  sala  quadrada  do  torreão,  o 
qual  mereceu  a  approvação  de  todos  os  artistas. 

Numa  das  aulas  do  palácio  da  Ajuda  ensinava  Piolti  desenho  aos  apren- 
dizes. 

Eis  os  apontamentos  biographicos,  que  logrei  até  agora  ajuntar,  acerca  de 
Manuel  Piolti,  e  dos  quaes  supponho  poder  deduzir-se  que  elle  era  artista  de 
não  vulgar  merecimento  na  sua  especialidade. 

Quando  concluía  este  artigo,  deparou-se-me  no  Diário  de  Noticias,  de  27 
de  setembro  de  1010,  pag.  3,  sob  o  titulo  de  —  Equitativa  de  Portugal  e  Co- 


NOTICIA   DE  ALGUNS  PINTORES  139 

lotrias — uma  quitação  passada  em  Estremoz,  e  assignada  pelo  sr.  Luis  Alfonso 
de  Salles  Piolly  a  rogo  da  sr.a  Maria  da  Conceição  Senna.  É  bem  possível  que 
o  signatário  seja  descendente  do  pintor. 

Muito  agradeceria  a  fineza  de  me  communicarem  qualquer  cousa  a  este 
propósito. 


LVII.  —  Raphael  (Joaquim).  —  Tendo  sido  nomeado  primeiro  pintor  da 
Real  Gamara  com  o  ordenado  de  um  conto  de  reis,  o  intendente  das  obras 
publicas,  Duarte  José  Fava,  officiava  a  perguntar,  em  18  de  julho  de  1825,  se 
elle  devia  ser  empregado  nas  obras  da  Ajuda  e  ser  pago  pelo  cofre  das  obras 
publicas. 

Certamente  pouco  tempo  depois  da  sua  nomeação  e  de  estar  já  empregado, 
ao  que  parece,  na  obra  da  Ajuda,  pediu  licença  de  trinta  dias,  para  ir  ao  Porto 
buscar  sua  família.  O  requerimento  não  tem  data. 

Autonio  Raphael  Rodrigues  foi  seu  ajudante. 

Vide  os  dois  artigos  que  lhe  são  consagrados  no  Diccionario  Bibliographico, 
assim  como  o  que  Raczynski  escreveu  a  seu  respeito. 

«Ill.m0  e  Ex.mo  Sr.  —Pelo  Avizo  que  V.  Ex.a  me  dirigio  em  15  do  corrente 
com  a  copia  do  decreto  pelo  qual  Houve  S.  Mag.'le  por  bem  nomear  a  Joaquim 
Rafael  no  Lugar  de  Primeiro  Pintor  da  Camará  e  Corte,  com  o  vencimento 
annual  de  hum  conto  de  reis  fico  na  intelligencia  da  Mercê  que  o  mesmo  Se- 
nhor se  dignou  fazer  ao  dito  Artista;  mas  estou  em  duvida  se  o  devo  ou  não 
empregar  na  Obra  do  Real  Palácio  d'Ajuda,  ou  em  qualquer  outra  Obra  Real 
em  que  possa  exercer  a  sua  Arte  com  utelidade  do  serviço  de  S.  Mag.de  assim 
como  se  ha  de  ser  pago  pelo  cofre  das  Obras  Publicas,  como  com  outras  ou 
idênticas  circunstancias  se  está  praticando;  e  sobre  o  que  reprezento  pesso  a 
V.  Ex.a  os  necessários  esclarecimentos.  Deos  guarde  a  V-  Ex.a  Intendência  das 
Obras  Publicas,  18  de  Julho  de  1825  —  Duarte  José  Fava—m."10  e  Ex.m0  Sr. 
Jozé  Joaquim  d'Almeida  e  Araújo  Corrêa  de  Lacerda»  '. 

«Senhor  — Dis  Joaquim  Raphael  a  quem  V.  Magestade  acaba  de  conferir 
a  Graça  de  primeiro  Pintor  da  Real  Gamara,  empregado  prezentemente  no 
serviço  da  Real  obra,  que  sendo-lhe  necessário  transportar  da  Cidade  do  Porto 
a  sua  família  para  mais  livre  de  cuidados  e  incómodos  poder  dedicar-se  ao 
exacto  cumprimento  dos  seus  deveres;  pertende  por  isso  que  V.  Magestade 


Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


140  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

lhe  conceda  trinla  dias  de  licença,  visto  que  os  trabalhos  de  pintura  de  que 
se  acha  encarregado  lhe  dão  espaço  para  o  poder  fazer  sem  o  menor  atrazo 
na  sua  prompteficação  P.  a  Vossa  Mageslade  lhe  faça  a  Graça,  que  pede  em 
attenção  aos  justos  motivos  que  expõe  E.  R.  M.0B  —  Joaquim  Rafael»  ', 


LVIII.  — Ranc  (João). — Pintor.  CeanBermudez  no  seu  Diccioiunio  dos  pro- 
fessores de  Bellas  Artes  em  Hespanha  diz  que  João  Ranc  nasceu  em  Monlpellier 
em  1074  e  foi  o  discípulo  mais  distincto  de  Jacintho  Rigaud  a  quem  egnalou  na 
perfeição  de  retratar,  pelo  que  mereceu  a  graça  de  casar  com  a  sua  sobrinha. 
A  Academia  Real  de  Paris  o  recebeu  no  seu  grémio  em  1703  em  virtude  dos 
dois  retratos  que  fez  e  lhe  apresentou  dos  professores  Verdier  e  Plalle-Mon- 
lagne.  Filipe  V  chamou-o  a  Madrid  e  o  nomeou  pintor  da  sua  camará  em  1724. 
Acompanhou  o  rei  na  viagem  que  fez  á  raia  de  Portugal  em  1729,  tendo  es- 
tado já  antes  d'isso  na  nossa  corte  onde,  por  ordem  d'aquelle  monarca,  fez 
os  retratos  da  família  real.  Falleceu  em  Madrid  em  1735. 

Nada  sabemos  acerca  dos  referidos  retratos  feitos  em  Portugal. 


LIX.  — Rato  (Gregório  Maria).  —  Eis  a  nota  que  a  seu  respeito  exararam 
os  professores  da  Obra  do  Real  Paço  da  Ajuda,  em  conferencia  de  5  de  julho 
de  1823: 

«Gregório  Maria  Ratto,  idade  18  annos  e  de  estudo  5  completos;  obra  que 
executou:  copia  duma  cabeça  de  Vandichi;  foi  julgado  pelos  Artistas  digno 
de  passar  a  praticante  de  pintura  de  l.a  classe  com  o  vencimento  de  500  reis: 
vence  actualmente  400  reis». 


LX. — Rato  (Joaquim  Gregório  da  Silva).  —  Por  decreto  de  28  de  julho 
de  1802  foi  nomeado  Pintor  de  Historia  ao  Serviço  Nacional  e  Real  em  exercício 
na  Real  Obra  do  Palácio  da  Ajuda,  com  a  pensão  de  400/5000  reis,  pagos  pelo 
thesouro  publico.  Existe  um  requerimento  seu,  sem  data,  pedindo  para  que 
lhe  seja  pago  em  mesadas,  como  se  fazia  aos  seus  collegas,  um  anno  de  or- 
denado que  estava  em  atraso. 

«Senhor  —  Diz  Joaquim  Gregório  da  Silva  Ralo  Pintor  de  Historia  ao  Ser- 
viço Nacional  e  Real  com  exercício  na  Real  Obra  do  Palácio  d' Ajuda  por  De- 


Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Arehivo  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  i  Í  i 

creto  de  28  de  Julho  de  1802,  vencendo  a  penção  annual  de  400^000  reis 
paga  pello  Thesouro  Publico  Nacional,  cuja  não  tem  de  penção  mais  que  o 
nome,  pois  que  em  rigor  lie  remuneração  de  trabalho:  tendo  sido  o  suppli- 
cante  empregado  não  só  em  o  Real  Palácio,  mas  em  diversas  partes  aonde  o 
governo  se  tem  servido  de  o  empregar,  e  que  o  Supplicante  nunca  se  exemio, 
que  estando  desde  que  começarão  os  trabalhos  da  Real  Obra  diária  e  assidua- 
mente empregado  ali  em  concorrência  dos  pintores  seos  colegas,  sem  outra 
differença  mais  que  estarem  elles  pintores  pagos  em  dia,  e  o  Supplicante  com 
hum  anno  de  atrazo  o  que  lhe  hé  summamente  penoso  por  não  ter  outra  couza 
de  que  viver,  e  se  achar  onerado  de  huma  familia  bem  pouco  propocionado 
aos  seos  teres,  motivo  porque  recorre  a  V.  Mag.Je  para  que  haja  de  mandar 
que  ao  menos  emquanlo  durarem  os  trabalhos  da  Real  Obra  seja  o  Suppli- 
cante junto  aos  pintores  seos  colegas  para  ser  como  elle  ali  pago  a  mezadas; 
e  outro  sim  que  a  Real  Obra  a  titulo  de  prestação  ponha  o  Supplicante  a  par 
dos  ditos  seos  colegas,  visto  que  o  pode  fazer,  Qcando-lhe  (se  assim  se  julgar) 
o  direito  de  receber  em  tempo  competente  no  Thezouro  Publico  Nacional  os 
atrazados  de  supraditos  que  abonar  ao  supplicante.  O  supplicante  espera  con- 
seguir o  que  pretende  fundado  no  justíssimo  principio  de  que,  quem  está  igual 
em  trabalho  o  deve  estar  em  recompença  e  por  isso  P.  a  V.  Mag.dc  que  em 
atlenção  ao  ponderado  haja  de  defferir  ao  supplicante  na  forma  que  requer  — 
Joaquim  Gregório  da  Silva  Ratio.  E  R.  M.»  L 


LXI. — Rato  (Joaquim  Luis  Maria).  —  Eis  a  nota  que  a  seu  respeito  exa- 
raram os  professores  da  obra  do  Real  Paço  da  Ajuda,  em  conferencia  de  5  de 
julho  de  1823: 

«Joaquim  Luis  Maria  Ratio,  idade  1G  annos  e  de  estudo  3,  fes  um  desenho 
tirado  de  uma  cabeça  de  Leonardo  da  Vinci;  foi  julgado  pelos  Artistas  digno 
de  passar  a  praticante  de  Desenho  de'2.a  classe  com  o  vencimento  de  200  reis: 
também  não  tem  vencimento». 


LXII. — Reis  (Ignacio  António  dos). —  Foi  copista  do  seguinte  poema,  de 
que  possue  um  exemplar,  em  boa  calligraphia,  o  sr.  Jeronymo  Ferreira  das 
Neves: 

Barba  cernida,  poema  heróico,  por  Luis  António  Pereira  da  Costa,  sar- 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Arehivo  do  Ministério  do  Reino. 


142  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

genlo  maior  do  Regimento  da  Cavallaria  Auxiliar  da  Villa  Nova  da  Rainha,  da 
Capitania  das  Minas  Geraes  do  oiro  (Vinheta  —  armas,  penna  e  lyra  entrela- 
çados). Anno  de  1790.  Ao  fundo:  «Ignaeio  António  dos  Reis  fez». 

O  seguinte  folio  é  uma  estampa  allegorica  subscripta  pelo  mesmo  calli- 
grapho  ou  desenhador,  tendo  a  mais  a  data  —  anno  de  1790.  O  titulo  é  ante- 
cedido por  um  soneto:  »Ao  senhor  Francisco  de  Sousa  Guerra  de  Araújo 
Godinho,  ouvidor  e  corregedor  geral  da  comarca  do  Sabará». 

O  poema  é  oitava  rima,  em  cinco  cantos  e  a  metrificação  é  bastante  har- 
moniosa. Transcrevo  a  primeira  estrophe: 

«Para  cantar  o  heroe  claro  e  sublime 
Das  áureas  terras  no  imortal  comando, 
Que  da  Ignorância  vil  o  Império  afíirme, 
Nova  gloria  á  Minerva  acrescentando; 
Cheas  do  nobre  ardor  que  o  gosto  exprime 
E  d'alto  louro  as  fontes  enramando, 
Delphicas  Musas,  pois  que  o  voto  impera, 
De  cordas  d'oiro  preparei  a  Lyra». 


LXIII. — Ribeiro  (João  Baptista). — Á  amabilidade  do  sr.  Joaquim  Viclo- 
rino  Ribeiro,  distincto  pintor  portuense,  devo  a  coordenação  dos  apontamentos 
biograpbicos  de  João  Baptista  Ribeiro,  os  quaes  passo  a  transcrever: 

João  Baptista  Ribeiro,  filho  de  António  José  Ribeiro  e  Isabel  Maria,  nasceu 
a  5  de  abril  de  1790  na  freguesia  de  S.  João  rTArroyos,  Villa  Real,  oude  foi 
baplisado. 

Desde  novo  mostrou  propensão  para  o  desenho,  tanto  que  o  arcebispo  de 
Braga,  D.  Frei  Caetano  Brandão  por  occasião  da  sua  visita  ao  arcebispado,  es- 
tando hospedado  no  convento  dos  franciscanos  de  Villa  Real,  onde  havia  uma 
escola  publica,  e  vendo  as  figuras  que  elle  fazia,  quiz  leval-o  comsigo,  ao  que 
o  pae  não  atmuiu. 

O  mesmo  succedeu  com  o  morgado  de  Malheus,  D.  José  Maria  de  Sousa, 
que  o  queria  levar  para  França. 

'  Por  fim  em  1802,  o  pae  resolveu  deixal-o  ir  para  o  Porto.  Vindo  recom- 
mendado  por  Frei  João  de  Deus  ao  Dr.  José  Jacintho  de  Sousa,  este  o  levou 
a  casa  de  Domingos  Francisco  Vieira  pae  do  insigne  Francisco  Vieira  Por- 
tuense. Matriculado  na  aula  de  desenho  curson-a  durante  sete  annos,  rece- 
bendo lições  de  Francisco  Vieira  Portuense,  de  Domingos  Francisco  Vieira,  de 
José  Teixeira  Barreio  e  de  Raymundo  Joaquim  da  Costa,  tendo  grangeado 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  143 

vários  prémios.  Alguns  dos  seus  trabalhos  foram  mandados  pela  Junta  da 
Companhia  de  Agricultura  das  Vinhas  do  Alto  Douro,  inspectora  da  Academia 
de  .Marinha  e  Commercio,  para  o  Rio  de  Janeiro,  para  serem  apresentados  ao 
príncipe  regente,  a  fim  de  esta  conhecer  as  vantagens  resultantes  da  creação 
da  Academia  em  1803.  Por  morte  de  Vieira  Portuense  em  180o,  foi  nomeado 
director  da  aula  de  desenho  no  anuo  seguinte  Domingos  António  de  Sequeira, 
que  reorganisou  o  ensino,  chegando  a  ensinar  pintura  a  cinco  dos  estudantes 
mais  adeanlados  da  aula,  os  quaes  receberam  lições  sempre  que  Sequeira 
vinha  ao  Porto,  sendo  João  Baptista  o  que  dos  cinco  mais  aproveitou.  O  de- 
senho de  Sequeira,  existente  no  Museu  Portuense,  que  representa  um  ancião 
abraçando  cinco  jovens  que  estão  tocando  lyra,  allude  aos  discípulos  e  mestre 
sendo  o  assumpto  dado  por  João  Baptista.  Para  a  festa  de  acção  de  graças 
realisada  na  igreja  da  Graça,  pela  restauração  de  1808,  pintou  quatro  painéis 
a  colla  e  que  foram  descriptos  num  folheto  pelo  morgado  do  Pinheiro  João 
António  de  Sousa  Azevedo. 

Por  morte  de  José  Teixeira  Barreio  em  1810  foi  proposto  para  lente  pro- 
prietário o  substituto  Raymuudo  Joaquim  da  Costa  e  para  substituto  João 
Baptista  Ribeiro,  que  foi  reger  a  cadeira  no  anuo  lectivo  de  1811-1812  por 
doença  do  lente  effeclivo.  Depois  de  1820  retratou  o  arcebispo  da  Bahia  D. 
Frei  Vicente  da  Soledade  Castro,  assim  como,  em  grupo,  dois  sobrinhos  do 
fallecido.  Em  1823  miniaturou,  em  grupo,  duas  filhas  do  visconde  de  Beire, 
para  D.  Balbina  de  Sousa  Holstein;  indo  n'esse  anuo  a  Lisboa  fez  dois  retratos 
de  D.  Carlota  Joaquina,  um  em  miniatura,  outro  em  corpo  inteiro. 

Retratou  por  vezes  as  infantas  D.  Anua  de  Jesus  Maria,  D.  Isabel  Maria  e 
D.  Maria  da  Assumpção,  e  d'estas  ultimas  foi  encarregado  de  fazer  os  retratos 
para  satisfazer  o  pedido  do  rei  de  França  pelo  seu  embaixador  em  Lisboa  o 
barão  de  Ilide  Neuville.  Por  mandado  de  D.  Isabel  Maria,  retratou  de  furto 
D.  João  VI,  que  achou  tão  bom  o  seu  retrato,  quando  por  surpresa  lhe  foi 
apresentado  pelo  artista,  que  o  mandou  gravar  em  Paris.  Para  a  infanta 
D.  Auna  de  Jesus  Maria,  miniaturou  o  retrato  da  duqueza  da  Terceira.  Em 
1824  foi  nomeado  mestre  de  desenho  e  pinturas  das  infantas,  e  cavalleiro  de 
Nossa  Senhora  da  Conceição.  N'este  mesmo  anno  era-lhe  concedida  também  a 
medalha  da  Restauração  dos  Direitos  da  Realesa.  Durante  o  cerco  do  Porto 
fez  dois  retratos,  a  lápis,  do  Duque  de  Bragança,  um  como  coronel  de  caça- 
dores 5,  outro  como  commandante  em  chefe  do  exercito  libertador;  lithogra- 
phou  lambem  o  retrato  da  infanta  D.  Maria  Amália,  tendo  previamente  en- 
saiado o  novo  processo  graphico  com  o  seu  retrato  que  sahiu  bom. 

Em  junho  de  1833  foi  nomeado  lente  proprietário  da  aula  de  desenho,  de 
que  já  era  substituto.  D.  Pedro  honrou  o  artista  indo  amiudadas  vezes  a  sua 
casa,  dispensando-o  do  serviço  e  dando-lhe  a  baixa  de  soldado  do  batalhão  de 


144  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

empregados  públicos,  dizendo-Ihe  então  —  «eu  não  quero  a  sua  vida  para  a 
guerra,  ella  é  precisa  para  outras  cousas»,  baixa  que  foi  publicada  em  frente 
de  todos  os  corpos  que  defendiam  o  Porto. 

D.  Pedro  presenteou  o  artista  com  um  prelo  lilhographico  completo.  Em 
1834  fez  a  lápis  de  cores  o  retrato  de  D.  Maria  II. 

Em  1833  foi  encarregado  de  organisar  um  museu  de  pinturas  e  estampas 
com  o  que  existisse  de  valioso  quer  nos  conventos,  quer  nas  casas  sequestra- 
das. Acerca  da  creação  d'este  museu  publicou  João  Baptista,  em  1836,  uma 
exposição  histórica.  Foi  para  o  Museu  Portuense,  por  si  organisado,  que  de- 
pois conseguiu  o  chapéu  e  o  óculo  que  D.  Pedro  usou  durante  o  cerco. 

Em  1835  fundou  uma  associação  de  artistas,  pintores,  esculptores  e  archi- 
tectos  denominada  dos  Amigos  das  Artes,  que  realisava  as  suas  sessões  no 
edifício  do  Atheneu  D.  Pedro.  Em  183G  foi  nomeado  director  da  Academia  de 
Marinha  e  Commercio,  e  n'esse  mesmo  anno  director  e  professor  da  nova  Aca- 
demia Portuense  de  Bellas  Artes;  porém,  quando  a  Academia  de  Marinha  e 
Commercio  foi  reformada  com  o  nome  de  Academia  Polytechnica  optou  por 
este  estabelecimento,  abandonando  a  Academia  de  Bellas  Artes.  Em  1837  foi 
nomeado  commendador  da  Ordem  de  Christo  por  serviços  prestados.  Em  1853 
foi-lhe  conferida  a  mercê  de  titulo  do  conselho,  por  occasião  da  viagem  da 
família  real  ao  norte.  N'este  mesmo  anno  era  jubilado  com  o  ordenado  por  in- 
teiro, contando  quarenta  e  dois  annos  de  effeclivo  serviço;  apesar  disso  foi-lhe 
concedido  continuar  na  regência  da  aula  com  mais  um  terço  do  ordenado. 

Principaes  obras  suas: 

Na  egreja  dos  Congregados  —  tecto  da  capella  mór,  Assumpção  de  Nossa 
Senhora,  S.  Francisco  de  Sales; 

Na  egreja  da  Graça  —  a  Annunciação; 

Na  capella  das  Almas  de  Santa  Catharina  —  a  Senhora  da  Soledade; 

Na  egreja  de  Massarellos  —  S.  José  e  o  Menino  Jesus; 

Na  capella  dos  justiçados  — o  Senhor  dos  Afflitos; 

Na  capella  dos  convertidos  —  Nossa  Senhora  do  Livramento-, 

Na  capella  de  Bernardo  de  Mello  —  a  Apresentação  de  Nossa  Senhora,  a 
Annunciação,  o  Bepouso  no  Egypto  e  oito  pequenas  figuras  no  teclo; 

Em  casa  de  João  Luis  de  Souto  e  Freitas  —  Nossa  Senhora  do  Carmo,  meio 
corpo-, 

Na  Camará  Municipal — dois  tectos,  o  retrato  de  D.  João  VI  e  o  do  duque 
do  Porto; 

Na  sala  das  sessões  da  companhia  —  D.  João  VI,  meio  corpo; 

Na  Academia  Polytechnica — retratos,  de  José  Carneiro  da  Silva  e  de  José 
António  de  Aguiar; 


NOTICIA  DF.  ALGUNS  PINTORES  1  1  5 

Na  secretaria  do  Hospital  do  Carmo  —  retrato  de  Luis  António  Machado; 

Na  Bibtiotheca  Publica  —  retrato  do  duque  de  Bragança; 

No  Museu  Allen  —  quatro  paisagens  representando  as  estações; 

No  palácio  do  conde  do  Bolhão — quatro  painéis  de  meninos  no  salão  de  baile; 

Na  sua  casa  —  variadas  pintaras; 

Na  matriz  de  Vallongo  —  a  Ascensão  de  Jesus  Chrislo,  Senhora  do  Livra- 
mento, S.  João,  Senhora  do  Rosário,  Santo  António; 

No  hospital  de  Villa  Real  —  S.  Jeronymo,  retrato  de  Francisco  Rodrigues 
de  Freitas,  barão  de  S.  Jeronymo; 

Na  egreja  das  freiras  do  Louriçal —  um  S.  Miguel  em  tamanho  natural; 

Na  sala  dos  capellos  da  Universidade  —  os  retratos,  de  D.  João  VI,  de 
D.  Pedro  IV,  de  D.  Maria  II  e  D.  Pedro  V; 

No  palácio  de  Canellas  —  o  retrato  do  primeiro  conde  de  Amarante. 

João  Baptista  Ribeiro  falleceu  no  Porto  a  24  de  julho  de  1868.  Jaz  no  ce- 
mitério do  Prado  do  Repouso,  onde  lhe  foi  erigido  um  mausoieu. 


LXIV.  —  Ribeiro  (Norberto  José).  —  Durante  dez  annos  estudou  pintura 
histórica  sob  a  direcção  do  professor  José  da  Cunha  Taborda,  sendo  depois 
empregado  nas  obras  do  Real  Paço  da  Ajuda,  onde  executou  diversos  traba- 
lhos. 

Em  concorrência  com  Máximo  Paulino  dos  Reis  para  a  pintura  do  tecto  da 
escada  de  pedra  do  lado  norte  d'aquelle  palácio,  foi  preferido  o  seu  esboceto, 
segundo  se  vê  de  um  officio  de  14  de  março  de  1823,  que  vae  adiante. 

Em  requerimento  sem  data,  pediu  que  lhe  fosse  augmentado  o  ordenado. 

«Ill.m°  e  Ex.mo  Sr.  —  Ponho  na  Prezença  de  V.  Ex.a  o  Desenho  colorido 
aprezentado  na  Conferencia  de  8  de  Janeiro  próximo  passado  pelo  Pintor  Má- 
ximo Paulino  dos  Reis  para  o  Quadro  que  se  deve  pintar  a  óleo  no  cimo  do 
teclo  da  Escada  de  pedra  da  parte  do  Norte  do  Palácio  dAjuda. 

«Igualmente  derijo  a  V.  Ex.a  o  Esboceto  feito  pelo  Pintor  Norberto  Joze 
Ribeiro  que  foi  também  encarregado  do  projecto  sobre  o  mesmo  assumpto, 
indo  ambos  os  dois  projectos  acompanhados  da  explicação  das  Allegorias  que 
lhes  são  relativas  Em  conferencia  mereceo  geral  approvação  e  preferencia  o 
Quadro  do  pintor  Norberto  Jozé  Ribeiro.  Deos  guarde  a  V.  Ex.a  Intendência 
das  Obras  Publicas  li  de  Março  de  1823.  Duarte  José  Fava  —  Ill.m0  e  Ex.m0 
Sr.  Filipe  Ferreira  de  Araújo  e  Castro»  '. 


1  Torre  do  Tombo  Maço  282  do  Arcbivo  do  Ministério  do  Reino. 
19 


14G  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

«Senhor  —  Diz  Norberto  Jozé  Ribeiro  piutor  d'Historia  no  actual  e  Real 
Serviço  de  Vossa  Magestade,  empregado  na  Real  Obra  de  pintura  do  Novo 
Palácio  d' Ajuda:  que  elle  supplicante  lendo  sido  applicado  em  seus  estudos 
de  dezenho,  e  de  pintura  por  espaço  de  10  annos  na  Caza  Pia  do  Castello  de 
S.  Jorge,  debaixo  da  direcção  do  professor  pintor  d'IIistoria  Jozé  da  Cunha 
Taborda,  dali  passou  a  ser  ajudante  do  mesmo  professor  na  Real  Obra  da 
Pintura  deste  Novo  Palácio  d'Ajuda,  onde  existio  8  annos  seguidos. 

«Consequentemente  a  isto  foi  o  supplicante  proposto,  e  logo  incumbido  de 
fazer  hum  quadro  que  reprezenlasse  a  reconciliação  do  filho  pródigo  para  com 
seu  Pai.  Vossa  Magestade  houve  por  bem  Despachar  então  ao  supplicante  com 
o  ordenado  de  400^000  reis,  havendo  para  isto  a  total  approvação,  e  sendo  o 
supplicante  encarregado  dos  trabalhos  de  pintura  que  lhe  fossem  ordenados 
pelo  Conselheiro  Intendente  Duarte  José  Fava,  em  cujas  circunstancias  teve  logo 
o  supplicante  ordem  de  que  fizesse  a  composição  da  quadratura  e  pintura,  e 
a  dirigisse  pintando  o  painel  central  do  mesmo  teclo  da  escada  nova  de  pedra 
da  parte  do  sul  que  dá  ingresso  do  Plano  Térreo  para  o  Plano  Nobre  deste 
Real  Palácio,  ao  que  tudo  satisfez  o  supplicante  cabalmente;  assim  como  tam- 
bém já  linha  salisfeito  antecedentemente  aos  trabalhos  de  outro  painel  central 
da  outra  escada  de  pedra  que  fica  da  parle  do  Norte,  e  do  Nascente  que  dá 
lambem  ingresso  para  o  dito  Plano  Nobre  e  que  ao  mesmo  tempo  não  cessa 
de  estar  sempre  prompto,  sem  se  poupar  para  quaesquer  trabalhos,  tanto  de 
suas  compoziçoens,  como  de  coadjuvar  a  todos  os  seus  collegas  professores 
Pede  pois  a  V.  Mag.dt'  o  supplicante  que  por  sua  Real  Munificência  em  attenção 
aos  incançaveis  estudos  do  supplicante  e  ao  bom,  e  bem  applaudido  êxito  dos 
seus  trabalhos  Queira  V.  Mag.de  ser  servido  de  conceder-lhe  angmento  no  seu 
ordenado,  aquelle  augmento  que  for  do  Agrado  de  V.  Mag.dc  O  supplicante 
alem  do  que  expressa  elle  está  gemendo  com  o  grave  pezo  de  numeroza  famí- 
lia de  mulher  e  filhos  que  tem  a  sustentar.  E  R.  Mercê»  l. 


LXV.  —  Ribeiro  (Pedro).  —  Eis  a  nota  que  a  seu  respeito  exararam  os 
professores  da  Obra  do  Real  Paço  da  Ajuda,  em  conferencia  de  5  de  julho  de 
1823 : 

«Pedro  Ribeiro,  idade  17  annos  e  de  estudo  4;  fez  um  desenho  tirado  da 
cabeça  em  gesso  da  Minerva  de  Justiniani;  fui  julgado  pelos  artistas  digno 


1  Torre  do  Tombo  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino.  Em  1823. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  147 

de  passar  a  praticante  de  Desenho  de  2.a  classe  com  o  vencimento  de  20O 
reis;  lambem  não  tem  vencimento». 


LXVI. —  Rocha  (Francisco  de  Paula).— Vide  Paula  Rocha  (Francisco  de). 


LXVII.  —  Rocha  de  Magalhães  (Pantaleão  da).  —  A  Sé  do  Porto  possuía 
uma  excelleiite  collecção  de  livros  coraes,  com  que  a  dotou  a  magnificência 
de  D.  Fr.  Ballhazar  Limpo,  que,  em  1338,  parece  que  já  estava  confirmado 
na  prelazia  d'aquella  diocese.  Historiando  o  seu  governo,  diz  D.  Rodrigo  da 
Cunha  o  seguinte  no  capitulo  35,  da  II  parte  da  sua  já  citada  obra: 

«No  anno  de  1339  fez  o  choro  desta  See,  e  todos  os  liuros  de  canto  chão 
delia,  chapeados  com  laminas  de  bronze,  em  que  mãdou  esculpir  suas 
armas,  que  lambem  mandou  entalhar  no  choro,  onde  hoje  se  vem  com  o 
letreiro  do  Psalmista.  Laudent  nomen  eins  in  choro,  in  tympano,  et  psalterio 
psalant  ei  D.  Balthezar  Limpo  fecit,  Rege  Joanne  3.  Portug.  anno.  Dofii 
M.DXXXIX.» 

D'esta  collecção,  que  promeltia  ser  preciosa,  já  não  existem  vestígios, 
pois  só  pude  examinar,  ha  annos.  as  duas  obras,  muito  posteriores,  de  que 
me  passo  a  occupar. 

Uma  d'ellas,  pertencente  ao  século  xvn,  é  um  grosso  códice  in-folio  má- 
ximo, excellentemente  conservado  e  valioso  pelo  lado  artístico.  Se  me  não  en- 
gano na  nomenclatura,  é  um  «santalo,  ou  livro  das  festas  dos  santos.  Não 
tem  frontespicio  e  o  primeiro  folio  é  occupado,  de  uma  e  de  outra  face,  pelo 
summario.  No  verso,  no  final  do  Índice,  deparei  gostosamente  com  a  seguinte 
rubrica : 

«Este  livro  fez  Pantaleão  da  Rocha  de  Magalhães,  sendo  mestre  da  capella 
e  beneficiado  nesta  see  do  Porto,  era  de  1637». 

Pantaleão  da  Rocha  era  homem  de  merecimento  como  o  attesta  este  livro, 
em  que  ba  grandes  e  numerosas  iniciaes  lindamente  coloridas  e  algumas 
d'ellas  sobre  fundos  bellamente  miniaturados. 

Pantaleão  da  Rocha  não  figura,  na  sua  qualidade  de  musico,  no  Diccio- 
nario  do  sr.  Ernesto  Vieira. 

A  outra  obra,  um  «Antiphonario»  do  século  xvm,  não  é  felizmente  ano- 
nyma,  embora  seja  inferior  em  merecimento  á  antecedentemente  descripta. 
Compõe-se  de  quatro  grandes  volumes,  correspondentes  ás  estações  do  anno. 
O  trabalho  durou  um  ilustro»,  ou  cinco  annos.  A  «pars  verna»  foi  feita  em 
1730,  a  «hiemalis»  em  1732,  a  «aestiva»  em  1733,  e.a  «autumnalis»  em 
1734.  Em  cada  um  dos  respectivos  fronlespicios  lè-se  o  nome  do  auctor,  ora 


148  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

em  latim,  ora  em  porluguez :  na  «aulumnalis»,  por  exemplo:  aCarolus  Jose- 
ph  Barreto  faciebal»;  na  «hiemalis».  «Carlos  José  Barreio  o  fez».  Não  é  colo- 
rido, tendo  grandes  iuiciaes  a  preto.  O  nome  d'este  debuxador  não  se  acha 
incluído  em  nenliuma  lista  ou  resenha  artística. 

Raczynski,  {Letlres,  pag.  38C),  diz  que  vira  no  Muzeu  do  Porto  um  quadro 
de  Barreto,  natural  da  mesma  cidade,  representando  a  a  Morte  de  Cleópatra» 
no  género  de  Camunciui  e  de  David.  Num  fulhelo  impresso  no  Porto,  sem 
data,  por  António  Alvares  Ribeiro  e  intitulado:  Explicação  da  pintura  que  se 
vê  no  quadro,  que  a  Ulustrissima  Junta  da  Companhia  geral  da  Agricultura 
das  rinhas  do  Alto  Douro  consagra  ao  nosso  amabilissimo  soberano  o  Príncipe 
Regente,  na  occasiao  de  render  com  a  maior,  e  mais  plausível  magnificência 
na  igreja  dos  meninos  órfãos  desta  cidade  as  devidas  graças  ao  Excelso,  pela 
feliz  restauração  de  Portugal,  vem  o  seguinte  trecho: 

«A  bella  imaginação,  e  assombrosa  pintura  deste  inestimável  Quadro  he 
de  José  Teixeira  Barreto,  Lente  de  Pintura,  e  Dezenho  na  Academia  Beal 
desta  Cidade,  da  qual  he  zelozo,  e  vigilante  Inspectora  a  mesma  Ill.ma  Junta». 
Houve  um  gravador  portuense,  de  nome  José  Teixeira  Barreto,  nascido  em 
1767  que  naturalmente  é  o  mesmo  pintor  a  quem  acabo  de  me  referir.  Não 
sei  a  relação  que  haverá  entre  estes  indivíduos  do  mesmo  appellido. 

Veja-se  o  artigo  que  publiquei  no  n.°  286  (Xll  atino)  da  Arte  Musical, 
sob  o  titulo  de  Os  livros  de  coro  da  Sé  do  Porto. 


LXVIII.  —  Rodrigues  (António  Raphaell.  —  Era  ajudante  de  Joaquim  Ba- 
phael,  primeiro  pintor  da  Real  Camará  e  Corte,  logar  para  que  fora  nomeado 
a  12  de  fevereiro  de  1828.  Em  documento  sem  data,  de  que  dou  copia, 
pediu  para  ser  confirmado  no  mesmo  cargo  e  com  o  vencimento  de  oitocentos 
reis  diários. 

«Senhor.  —  Com  toda  a  submissão  se  lança  aos  Reaes  Pes  de  V.  Mag.de 
António  Rafael  Rodrigues,  Ajudante  do  primeiro  Pintor  da  Real  Camará  e 
Corte  Joaquim  Rafael,  a  depozitar  nas  Reaes  mãos  da  Augusta  Pessoa  de  V. 
Mag.de  simples  documentos  que  prova  do  supplicante  a  verdadeira  Fidelidade 
e  Amor  a  V.  Mag.de  como  seu  legitimo  Soberano,  o  que  mostrou  pelos  docu- 
mentos N.  1  e  2  assim  como  do  préstimo  que  o  Supplicante  tem  lugar  em 
que  hé  empregado,  documento  N.  3  e  4  unido  com  toda  a  humildade  e  res- 
peito a  estes  documentos  a  suplica  ao  Magnânimo  Coração  de  V.  Mag.de  a 
confirmação  do  lugar  e  o  vencimento  de  oitocentos  reis  diários,  com  que  foi 
Despachado  em  data  de  doze  de  Fevereiro  de  1828;  allendendo  a  que  V. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  149 

Mag.de  tem  concedido  a  mesma  graça  de  hum  ajudante  aos  Primeiros  Pintores 
da  Real  Camará  e  Corte  como  mostrarão  os  documentos  N.  5  e  6  e  visto 
que  o  Supplicanle  se  delengenceia  o  melhor  serviço  para  V.  Mag.de  no  lugar 
em  que  hé  empregado  Digue-se  V.  Mag.de  por  Especial  graça  attender  á  sup- 
plica  de  hum  vassallo  Portuguez  que  aos  ceos  roga  prospere  a  Percioza  vida 
de  V.  Mag.de  para  vida  dos  verdadeiros  Portugueses.  E.  R.  M.ce  '». 


LXIX. —Rodrigues  (Simão).  —  Um  precioso  documento  publicado  pelo 
sr.  dr.  António  de  Vasconcellos  na  sua  importante  monograpliia  intitulada  Real 
Capella  da  Universidade,  e  impressa  em  Coimbra  em  1908..  veio  lançar 
grande  luz  sobre  a  biographia  deste  pintor  e  de  seu  companheiro  Do- 
mingos Vieira,  assim  como  sobre  a  pintura  em  Coimbra  no  primeiro  quartel 
do  século  XVII.  De  muitos  quadros  existentes  n'aquella  cidade  se  ignorava 
até  agora  quaes  fossem  seus  auctores.  Mas  por  aquelle  documento  se  prova 
que  Simão  Rodrigues  e  Domingos  Vieira  exerceram  alli  a  sua  actividade  e  que 
portanto  se  lhe  devem  attribuir  os  quadros  do  mesmo  estylo  e  que  denotam 
o  mesmo  pincel. 

O  documento  a  que  nos  vimos  referindo  é  o  contracto  celebrado  a  4  de 
agosto  de  1612  e  pelo  qual  elles  se  compromeltem  a  executar  com  toda  a 
perfeição  os  quadros  do  retábulo  da  capella-mór  da  Capella  da  Universidade, 
cujos  assumptos  se  declaram,  accrescentando  que  o  farão  ainda  de  um  modo 
superior  ao  retábulo  de  Sanlar  Cruz,  que  tinham  acabado  de  executar. 

O  sr.  dr.  António  de  Vasconcellos  é  de  parecer  que  Simão  Rodrigues 
exerceria  o  logar  de  director  da  obra,  serviudo-lhe  de  ajudante  Domingos 
Vieira,  o  que  todavia  não  julgo  se  possa  acceitar  em  absoluto,  por  não  ser 
prova  irrefutável  a  circumstancia  de  apparecer  o  nome  de  um  em  primeiro 
logar,  o  que  fatalmente  linha  de  acontecer. 


LXX.  —  Rodrigues  Braga  (Joaquim).  —  Era  natural  do  Porto,  ou  pelo 
menos  achava-se  estabelecido  alli,  quando  resolveu,  ausenlando-se  da  pátria  e  da 
família  (mulher  e  filhos),  ir  aperfeiçoar-se  em  Roma  na  arte  da  pintura.  N'esla 
cidade,  estudando  á  sua  custa,  foi  premiado  em  dois  concursos,  sem  ler  obtido 
despacho  favorável  ao  pedido  que  dirigiu  á  corte  do  Rio  de  Janeiro,  para  lhe 
ser  concedida  uma  pensão.  O  requerimento  ia  abonado  com  dois  quadros, 
um  original,  outro  copia,  mas  nada  d'isso  lhe  valeu.  Em  1824,  achava-se  em 


'  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


150  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Lisboa,  tendo  executado  diversas  obras  para  sua  magestade  e  para  sua  alteza, 
de  cuja  importância  (480^000  reis)  supplicava  a  satisfação  em  9  de  julho 
daquelle  anno,  conforme  se  vê  dos  documentos  abaixo  publicados. 

«Ill.m0  e  Ex.mo  Sr.  Marquez  de  Palmella.  —  Dignando-se  S.  R.  M.  autori- 
zar a  V.  Ex.a  (como  V.  Ex.a  teve  a  bondade  de  dizer  ao  supplicante)  para 
mandar  pagar  ao  Pintor  Joaquim  Rodrigues  Rraga,  todas  as  obras,  que  o 
mesmo  tem  feito  para  S.  R.  M.  e  para  S.  A.  e  tendo  V.  Ex.a  determiuado  ao 
Supplicante,  que  aprezenta-se  a  V.  Ex.a  uma  relação  de  tudo  quanto  o  Sup- 
plicante  fez  para  S.  R.  M.  e  para  S.  A.  (pela  ultima  determinação  de  V.  Ex.a) 
por  cuja  razão,  o  Supplicante  põem  na  prezença  de  Y.  Ex.a  o  seguinte : 

«O  Supplicante  levado  do  dezejo  de  estudar,  deixou  molber  e  filhos,  e  o 
seu  Estabelecimento,  que  linha  em  sua  arte,  no  Porto,  e  foi  estudar  a  sua 
Arte  (á  sua  custa)  a  Roma :  ali  foi  premiado  em  dous  concursos :  dahi  im- 
plorou a  S.  R.  M.  para  o  Rio  de  Janeiro,  huma  penção,  para  poder  melhor 
animar  os  seus  dezejos;  — nada  obteve  o  supplicante  do  que  pediu  —  acom- 
panharão estas  supplicas,  a  S.  R.  M.,  em  1820  para  o  Rio  de  Janeiro. 

«Dous  Quadros  pintados  pelo  supplicante;  hum  (invenção  do  dito)  a  dego- 
lação  de  S.  João  Raplista :  outro,  huma  copia  de  S.  Sebastian  de  Guido  Reni ; 
com  suas  mulduras  entalhadas,  e  douradas  a  Rornido. 

«Em  Lisboa,  em  1824,  por  ordem  de  S.  A.  e  chamado  para  este  fim: 

«Dous  Quadros,  igualmente  a  olio,  reprezenlando  duas  Cameras,  vistas  do 
Natural,  com  vários  objectos,  e  diversos  retratos:  mandados  fazer  ao  suppli- 
cante por  S.  A.  incluzivé,  o  do  Mesmo  Augusto  Seirhor. 

«Hum  Retrato  de  miniatura;  para  S.  R.  Mag.de  nhum  circulo,  de  3  polega- 
das de  diâmetro,  com  a  sua  muldurazinha  de  oaro,  nhum  Quadro  de  mogno ; 
e  huma  Caixazinha  do  mesmo  páo  para  o  guardar,  que  por  ordem  que  o  sup- 
plicante teve  de  S.  Mag.df>  mandou  fazer.  Mais  por  ordem.de  S.  R.  Mag.df 
colorir  de  novo. 

«Hum  quadro  de  S.  João  Menino  da  S.  Real  Capella. 

«Hum  quadro  do  mesmo  tamanho,  e  assumpto  (invenção  do  supplicante)  e 
que  S.  R.  Mag.de  se  dignou  aseitar. 

«Hum  Retrato  de  S.-R.  Mag.de  meio  corpo,  em  tamanho  de  hum  palmo, 
pintado  a  olio,  com  a  sua  moldura  dourada,  o  qual  S.  R.  Mag.de  se  dignou 
aseitar. 

«São  estas,  Ex.m0  Senhor,  todas  as  obras,  que  fiz  para  S.  R.  Mag.de  e  para 
S.  A.  R.  não  falando  no  pençameuto  que  inventei  para  o  monomento  a  S. 
Mag.de,  e  que  tive  a  honra  de  offerecer  a  V.  Ex.a,  nem  em  quatro  quadros 
mais,  que  ficarão  em  esboço  por  ordem  de  S.  A.  R.  e  que  não  acabei;  em 
vários  trabalhos  para  S.  A.  R. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  151 

«O  Supplicante  implora  a  V.  Ex.a,  mui  respeitosamente,  a  possível  brevi- 
dade desta  sua  ultima  pertenção ;  para  não  soffrer  aqui  mais  despezas,  com 
que  não  pode.  —  Lisboa  9  de  julho  de  1824.  —  Joaquim  Rodrigues  Braga.  — 
E.  R.  M.ce». 

«P.  D.  em  14  dirigido  ao  Real  Erário. 

«IlImo.  e  Ex.rao  Sr.  Marquez  de  Palmella.  —  Determinando-me  V.  Ex.a  que 
lhe  aprezentace  uma  Relação,  ou  emporle  das  diferentes  pinturas  que  tenho 
feito  para  S.  R.  Mag.d0  e  igualmente  para  S.  A.  e  por  ordem  do  Mesmo  Au- 
gusto Senhor;  por  estar  V.  Ex.a  authorisado,  por  S.  R.  Mag.de  (como  V.  Ex.a 
teve  a  bondade  de  me  dizer)  para  mandar  pagar  tudo;  ponho  na  prezença  de 
V.  Ex.a  os  diferentes  objectos,  e  os  preços  communs  porque  os  faria  para 
qualquer  particular:  esperando  de  V.  Ex.a  que  se  digne  attender  á  diferença, 
que  ha  nesta  matéria;  e  a  muitos  encomodos  e  despezas,  que  aqui  não  podem 
ser  contados  por  muitas  razões  —  a  saber : 

«Dous  Quadros  a  olio,  que  mandei  de  Roma  para  o  Rio  de  Janeiro  a  S. 
Mag.de:  hum  a  Degolação  de  S.  João;  outro  híia  copia  de  S.  Sebastião  de 
Guido  Reni,  estimados  ambos  em:  960000;  Duas  molduras  douradas  para  os 
ditos:  21,3000. 

«Hum  retrato  de  Miniatura  no  seu  caixilho;  e  numa  Caixinha  para  o  guar- 
dar: objecto  para  S.  R.  Mag.de:  380450. 

«Hum  quadro  a  olio,  colorido  de  novo  por  ordem  deS.  R.  Mag.de:  240000. 

«Hum  dilto,  o  mesmo  assumpto;  mas  invenção  do  suplicante  a  olio: 
380400. 

«Hum  retrato  de  S.  R.  Mag.de,  meio  corpo,  pintura  d'olio,  e  caixilho : 
48^000. 

«Dons  Quadros,  para  S.  A.  com  vários  objectos,  e  diversos  retratos  man- 
dados fazer  por  S.  A.  R.  incluzivé  o  do  Mesmo  Augusto  Senhor:  a  vinte 
moedas  cada  hum:  1920000.  Emporte  de  huma  moldura  pronta  e  dourada 
para  hum:  190200. 

«Estimado  tudo  em  Reis  4800000»  '. 


LXXI.  —  Roudray.  —  Por  uma  carta  de  D.  Luis  da  Cuuha  para  a  corte  de 
Portugal,  escriplade  Paris  a  28  de  agosto  de  1724,  vè-se  que  elle  executara  para  o 
monarcha  portuguez  uma  serie  de  desenhos  de  decorações  de  diversas  operas, 


Torre  do  Tombo.  Maço  281  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


152 


NOTICIA  DE  ALGlTNS  PINTORES 


assim  como  de  toucados  e  mascaras  de  balhetes.  Esta  carta  foi  communicada 
pelo  sr.  Pedro  A.  d'Azevedo  ao  sr.  visconde  de  Faria  que  a  inseriu  a  pag.  77 
do  seu  trabalho,  impresso  em  Lausanne  em  1910  e  dado  á  publicidade  em 
Paris,  sob  o  titulo  de  Le  precurseur  des  navigateurs  aerirns  Barihulomeu  Lou- 
renço de  Gusmão,  ulhomme  volant»  porlugais,  né  au  Brésil. 


LXXII.  —  Roux  (Alexandre  Theodore).  —  No  Diarin  d,  Noticias,  de  29  de 
setembro  de  1909,  lê-se  a  seguinte  informação: 


«Devido  a  um  padecimento  na  espinha,  falleceu  hontem 
rua  da  Quintinha,  mr.  Alexandre  Theodore  Roux,  dislinclo 
e  proprietário. 

Mr.  Roux  era  natural  de  Paris  e  contava  55  annos. 

Ha  24  annos  que  viera  para  aqui,  onde  conquistara  a 
ração  de  todos  que  tiveram  a  ventura  de  o  conhecer 
intelligencia  e  ao  seu  respeitável  caracter. 

Como  artista  pintor-decorador,  os  seus  trabalhos  fôran 
entre  os  do  pintor-decorador  portuguez,  José  Ferreira  Ch  • 
patriota  Lasserre. 

Deixa  viuva  madame  Mary  Anne  Roux  e  era  sogro  do 
linho,  hábil  artista  de  obra  de  talha. 

O  funeral  realiza-se  hoje,  conforme  o  convite  que  adea 


ii  sua  casa,  na 
i  "itnr-decorador 


i.i  e  a  conside- 
ido  á  sua  vasta 

lito  apreciados 
b  do  seu  com- 

Fj  ancisco  Cou- 

nblicamos». 


LXXIII.  —  Seco  (Simão).  —  Collaborou  na  ornameni  las  andas  man- 

dadas executar  por  D.  João  111,  como  se  pôde  vèr  nu  concernente  a 

Christovão  de  Moraes. 


LXXIV.  —  Schiopeta  (Domingos  António).  —  Entre  os  fesl  jos  e  illumina- 
ções  que  se  fizeram  em  Lisboa  nos  dias  31  de  julho,  e  meiros  dias  de 
agosto  por  occasião  do  juramento  prestado  á  Carta  Constitui  i  mal,  sobresahiu 
a  ornamentação  do  palácio  do  sr.  José  António  Pereira,  ci  nsul  geral  do  Rra- 
zil,  ás  Janellas  Verdes. 

Diz  o  auctor  da  descripção  d'estes  festejos: 

«Esta  peça,  em  todo  o  seu  desempenho  é  devida  ao  celebre  e  muito  co- 
nhecido artista  e  pintor  do  Real  Theatro  de  S.  Carlos,  o  sur.  Domingos  An- 
tónio Schiopeta». 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  153 

O  titulo  da  obra  é: 

Relação  dos  festejos  que  tiverão  lugar  em  Lisboa  nos  memorareis  dias  31 
de  julho,  1,  2,  etc.  de  agosto  de  1826  por  occasião  do  juramento  prestado  á 
Carta  Constitucional. . .  por  hum  cidadão  constitucional,  Lisboa,  nu  Typ.  de 
J.  F.  M.  de  Campos,  anno  de  1826,  8.°,  146  pag. 

Veja-se  o  que  escrevi  àcèrca  d'este  artista  no  meu  livro  Artes  e  artistas 
em  Portugal  e  nas  Curiosidades  musicaes. 


LXXV.  —  Sendim  (Maurício  José  do  Carmo).  —  A  amabilidade  do  meu 
esclarecido  amigo  e  consócio  o  sr.  António  César  Mêna  Júnior,  devo  as  seguintes 
notas,  que  passo  a  transcrever,  algumas  das  quaes  vêem  a  pag.  66  do  3." 
volume  das  Excacações  Poéticas,  edição  de  1905: 

«Nasceu  em  1786  em  Belém;  tendo  fallecido  em  Lisboa  em  20  de  outu- 
bro de  1870,  ás  8  horas  da  manhã,  na  sua  residência,  rua  da  Achada,  n.°  13, 
freguesia  cLe  S.  Christovão  e  foi  sepultado  no  cemitério  do  Alto  de  S.  João, 
no  dia  21  do  alludido  mez  na  cova  2:113,  sem  caixão.  Raczynski  omiltiu  o 
nome  d'este  pintor  portuguez  seu  contemporâneo,  não  se  percebendo  por  que 
razão  assim  procedeu,  quando  no  seu  Diccionnaire  a  cada  passo,  se  deteve 
com  certos  desenhadores,  gravadores  e  pintores,  pouco  menos  que  obscuros. 
Innocencio  da  Silva  trata  de  Sendim  no  seu  Diccionario,  a  propósito  de  um 
opúsculo  de  elementos  de  desenho. 

Sendim  foi  professor  particular  de  desenho  e  pintura  dos  mais  considera- 
dos na  Lisboa  de  1820  a  1850  e  tantos,  e  gastou  o  seu  talento  (que  o  tinha 
a  valer)  em  tarefas  de  pouco  alcance :  retratando  muita  gente,  e  desenhando 
lilhographias  para  innumeras  publicações. 

Foi  também  professor  de  desenho  na  Casa  Pia  nos  annos  de  1834  a  1838 
e  1841  a  1865. 

O  seu  desenho  não  foi  sempre  correcto,  porque  trabalhava  para  viver  com 
os  seus  editores  à  espera  de  pedras,  mas  nos  retratos  a  óleo  é  admirável. 

0  seu  colorido  limpo  e  verdadeiro  tem  cunho  especial,  e  tons  de  verdade 
irrecusável. 

Sendim  foi  auetor  de  magnificos  retratos  da  família  real,  que  estão  na 
Casa  Pia;  de  António  Feliciano  de  Castilho  e  de  varias  pessoas  da  família  do 
poeta;  de  Alexandre  Herculano  e  muitos  outros  que  não  nos  recorda.  Lem- 
bra-nos  também  de  um  quadro,  a  descida  da  Cruz,  delineado  e  pintado  por 
Sendim,  que  está  na  sacristia  da  egreja  dos  Caetanos. 

Sendim  morreu  pobríssimo  e   para  fazer  o  seu  enterro,  de  corpo  á  cova, 
requereu  a  sua  viuva,  D.  Maria  Thereza  Sendim,  á  administração  da  Casa 
Pia  a  quantia  precisa,  sendo  deferido  o  seu  pedido.» 
20 


154  NOTICIA  OE  ALGUNS  PINTORES 

LXXVL  —  Silva  (Henrique  José   da). — Bocage,    a    quem   este   artista 
tirou  o  retrato,  dedicou-lhe  o  seguinte  soneto: 

Ao  Senhor  Henrique  José  da   Silva,  em   agradecimento  ao  primoroso  desempenho  com 
que  o  retratou : 

Altos  filhos  do  génio,  irmans  formosas, 
Oh  Poesia  !  Oh  Pintura  !  Oh  par  sagrado, 
Que  nos  jardins  de  Amor  colheis  mil  rosas, 
Arcanos  mil  nos  penetrais  do  Fado  ! 

Em  vós  absorto,  em  vós  extasiado 

Da  sorte  não  me  acurvo  ás  leis  penosas  ! 

Jove,  por  ambas  ao  mortal  é  dado 

Que  logre  em  homem  o  que  em  numen  gosas! 

Forçando  ao  pasmo  as  almas  supxiores, 
Transluz  um  ar,  um  estro,  um  ser  divino 
Do  plectro,  e  do  pincel  nos  sons,  nas  cores : 

Honra  Elmano  o  pincel,  e  o  plectro  Henrino. 
Compete  aos  vales  dous,  aos  dous  pintores, 
Correr  na  eternidade  egual  destino. 

Vide  os  versos  publicados  pelo  botequineiro  Silva. 
São  de  sua  invenção  as  figuras  do  drama  de  Pato  Moniz  —  A  Gloria  do 
Oceano. 


LXXVII.— Silva  (Manuel  António).  —  Era  desenhador  de  produclos  natu- 
raes,  botânicos  e  zoológicos,  do  Real  Museu  e  Jardim  Botânico  do  Paço  da  Ajuda. 
Em  1821  requereu  que  lhe  fosse  augmentado  o  salário  de  500  reis,  o  qual 
era  diminutíssimo,  attendendo  não  só  ao  zelo  e  proficiência  com  que  desem- 
penhava as  suas  funcções,  como  lambem  a  receber  aquella  quantia  só  em 
dias  úteis,  com  a  qual  não  podia  sustentar,  ainda  que  parcimoniosamente,  a 
sua  família,  composta  de  mulher  e  filhos  menores.  O  director  daquelle  esta- 
belecimento, o  dr.  Félix  de  Avellar  Brotero,  em  officio  de  20  de  novembro 
de  1821,  dirigido  ao  ministro  Filipe  Ferreira  d"Araujo  e  Castro,  abonava  a 
petição  nos  lermos  mais  lisonjeiros  para  o  requerente,  cuja  assiduidade  e 
perícia  põe  em  relevo. 

Silva  era  fallecido  em  1833,  pois  neste  anno,  a  25  de  junho,  se  recom- 
mendava  como  um  dos  mais  habilitados,  para  o  substituir  no  cargo,  o  candi- 
dato Manuel  da  Conceição.  Vide  este  nome. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  155 

«Senhor. — Diz  Manoel  António  Silva  qne  elle  Suplicante  se  acha  empre- 
gado em  Desenhador  dos  Productos  naturaes  do  Real  Museo  e  Jardim  Bo- 
tânico, em  cujo  custoso  e  dilicado  exercício,  qual  o  de  imitar  o  natural  pos- 
sível dos  mesmos  productos  se  emprega  diariamente  de  manhã,  e  tarde 
merecendo  atê  ao  prezente  pelo  seu  zelo,  préstimo,  e  summo  disvelo,  que 
sempre  empregou  no  desempenho  dos  seus  deveres  toda  a  approvação  do 
director  dos  mesmos  Reaes  Estabelecimentos  o  Doutor  Félix  de  Avellar  Bro- 
tero,  como  elle  mesmo  pode  melhor  informar ;  e  porque  o  suplicante  com  o 
pequeno  vencimento  de  500  reis  só  meramente  em  dias  úteis  não  pode  sub- 
sistir e  juntamente  sustentar  sua  familia  e  mulher  e  filhos  menores,  e  ao 
mesmo  tempo  conhece  o  quanto  V.  Mag.de  sempre  se  dignou  proteger  as 
Bellas  Artes  e  favorecer  todos  os  que  nellas  se  empregão  com  zelo  e  préstimo 
por  isso  confiado  na  Regia  Clemência  de  V.  Mag.de  recorre  e  P.  a  V.  Mag.de 
seja  servido  mandar  accrescentar  o  dito  vencimento  do  suplicante  com  o  que 
bem  for  do  Begio  Agrado,  e  digno  da  Beal  e  Magnânima  Piedade  de  V. 
Mag.de.  E.  R.  M.ce». 

«Ill.rao  e  Ex.m0  Sr.  Filippe  Ferreira  de  Araújo  e  Castro.  —  Em  cumprimento 
do  Régio  Avizo  que  me  foi  expedido  por  V.  Ex.a  para  que  houvesse  de  in- 
formar sobre  o  Requerimento  incluso  de  Manoel  António  Silva  empregado 
na  Casa  do  Desenho  dos  productos  de  Historia  Natural  deste  Real  Museo  e 
Jardim  botânico,  e  que  pertende  augmentar  no  seu  vencimento,  certifico  serem 
verídicas  as  allegações,  em  que  o  Supplicante  fundamenta  o  seu  requerimento; 
segundo  tenho  observado,  elle  hé  muito  hábil  em  desenhar  perfeita  e  expe- 
ditamente ao  natural  todos  os  productos  vegetaes  e  animaes,  de  que  o  tenho 
incumbido;  he  cuidadoso  e  assíduo  no  desempenho  das  obrigações  do  seu 
serviço,  e  os  500  reis  diários,  que  vence  de  salário,  me  parecem  não  ser 
proporcionados  ao  seu  destincto  merecimento.  Hé  certo  que  as  forças  pecu- 
niárias da  Nação  actualmente  são  débeis;  mas  a  Nação  e  o  seu  amável  Rei 
dezejão  proteger  as  Relias  Artes,  e  seria  ignominioso  ao  Nome  Português 
desfavorecelas  e  desprezalas,  quando  todas  as  Nações  da  Europa  as  estimão 
e  promovem ;  em  todos  os  grandes  Museos  e  Jardins  botânicos  das  Nações 
da  Europa,  que  tenho  visto,  ha  desenhadores  addidos  a  elles:  nestes  do  Real 
Paço  da  Ajuda  tãobem,  á  semelhança  d'aquelles,  se  estabeleceo  huma  Casa 
de  desenho  com  dois  ou  três  Desenhadores,  que  penso  se  devem  conservar, 
como  próprios  de  semelhantes  Estabelecimentos.  A  sua  conservação  é  pouco 
despendiosa,  e  huma  pequena  remuneração,  que  se  haja  de  dar  a  algum  delles 
pelo  seu  abalizado  merecimento  para  animar  os  seus  talentos  e  para  que  não 
dezerte  por  descontentamento  e  pobreza,  não  hé  huma  despeza  verdadeira- 
mente onerosa,  nem  incompatível  com  as  forças  pecuniárias  acluaes  do  Es- 


156  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

lado;  portanto  parece-me  que  o  vencimento  diário  do  supplicante  merece  de 
ser  augmentado  com  hum  tostão  mais;  S.  Magestade  com  tudo  mandará  o 
que  houver  por  bem  e  for  mais  justo. 

«Deus  Guarde  a  V.  Ex.a  muitos  annos. —  Félix  de  Avellar  Brotero. —  Real 
Museo  e  Jardim  Botânico  a  20  de  Novembro  de  1821. 

«P.  S.  ao  Director  do  Museo  em  29  de  Novembro  de  1821 »  l. 


LXXVIII. —  Simão  (Frei). —  D.  Diogo  de  Sousa,  autes  de  ser  arcebispo  de 
Braga,  occupou  a  prelazia  do  Porto,  e  nesta  cidade  mandou  escrever  por  um 
frade  da  Ordem  de  Santo  Agostinho,  chamado  Fr.  Simão,  um  missal  de  reza 
romana,  o  qual  se  conservava  depois  no  thesouro  da  Sé  bracarense,  encader- 
nado ricamente  em  prata.  Assim  o  refere  D.  Rodrigo  da  Cunha,  no  seu 
Catalogo  e  historia  dos  bispos  do  Porto,  a  pag.  283,  da  u  parte. 

Num  códice  da  Real  Bibliotheca  da  Ajuda  existe  um  documento,  intitulado 
Summario  da  vida  e  acções  do  arcebispo  D.  Diogo  de  Sousa,  e  nelle  se  lè  a 
seguinte  verba: 

«A  5  de  dezembro  de  1529,  dia  de  S.  Geraldo,  deu  e  offereceu  a  esta 
sé  um  missal  de  pergaminho  romano,  muito  rico,  o  qual  os  annos  passados 
lhe  dera  encadernado  em  taboas  cobertas  de  couro,  e  agora  o  mandava  guar- 
necer de  prata  de  ambas  as  partes:  a  primeira  com  a  historia  da  cruz,  com 
os  evangelistas  e  certos  apóstolos  e  prophetas,  e  da  segunda  o  descimento  da 
cruz  com  os  arcebispos  d'esta  santa  egreja  e  com  alguns  prophetas;  a  tra- 
zeira  da  obra  romana,  tudo  lavrado  e  dourado.  É  das  melhores  peças  que  deu 
a  esta  sé;  tem  quatro  brochas  de  prata,  a  cabeça  dos  registos  tem  de  prata 
14  marcos,  6  onças  e  4  reis;  tem  de  ouro  31  cruzados.  Custou  em  prata, 
ouro  e  feitio:  setenta  e  sete  mil  quatrocentos  e  sessenta  reis». 

No  mesmo  manuscripto  vem  o  titulo  dos  demais  livros  que  offereceu  á 
Sé:  psalterios,  feriaes,  santaes,  capituleiros  e  processionaes,  etc- 

O  Summario  foi  publicado  pelo  fallecido  Rodrigo  Vicente  de  Almeida  nos 
Documentos  inéditos  (Historia  da  Arte  em  Portugal). 

Veja-se  o  artigo  que  publiquei  no  n."  286  (XII  anno)  da  Arte  Musical, 
sob  o  titulo  Os  livros  de  coro  da  Sé  do  Porto. 


LXXIX.  —  Simplício  (Alexandre i.  —  Em  21  de  julho  de  1814  traba- 
lhava nas  obras  do  Paço  da  Ajuda,  como  ajudante  do  pintor  Máximo  Paulino 
dos  Reis.  Veja-se  o  artigo  relativo  a  Foschini  (Archaugelo). 


Torre  do  Tombo.  Maço  444  dos  papeis  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  157 

LXXX.  —  Soares  (Ruy).  —  Restaurou,  em  1551,  as  andas  mandadas 
construir  por  D.  João  III,  como  se  pôde  verificar  no  artigo  concernente  a 
Christovão  de  Moraes. 


LXXXI. — Sousa  (José  Iguacio  de).  —  Filho  de  João  Victorino  de  Sousa. 
Tendo  frequentado  a  Aula  Publica  de  Desenho  de  Historia  ou  de  Figura  e  Archi- 
teclura  Civil,  assim  como  oulras  disciplinas,  pediu  para  ser  admittido  na  Sala 
do  Risco  do  Palácio  da  Ajuda.  O  requerimento  não  tem  data,  mas  o  attestado, 
que  junta,  de  Germano  Xavier  de  Magalhães,  cavalleiro  professo  da  Ordem  de 
Christo  e  lente  da  cadeira  de  Architectura  da  Aula  Publica  de  Desenho,  é  de 
6  de  agosto  de  1825. 

«Sereníssimo  Senhor. —Diz  Jozé  Ignacio  de  Souza,  que  frequentando  a 
Aula  Publica  de  Desenho  de  Historia  ou  de  Figura  e  Architectura  Civil  fre- 
quentou a  Aula  de  Francez  e  de  Arithmetica  e  Geometria  com  applicação  e 
estudo  aproveitando  as  liçoens  que  em  todas  as  ditas  Aulas  sabiamente  se 
ensinão.  O  Supplicante  persuade-se  estar  nos  termos  da  Ley  para  poder  entrar 
na  Caza  do  Risco,  do  Palácio  de  Ajuda,  de  que  hé  Inspector  António  Fran- 
cisco Roza.  Tanto  em  altenção  ao  triste  dezamparo  em  que  se  acha,  como  aos 
progressos  e  adiantamento  que  tem  lido  nas  ditas  Aulas,  segundo  faz  certo 
pelos  documentos  juntos.  E  que  obrigando  a  empregar  no  estudo  a  milhor 
parte  da  sua  mocidade  não  lhe  permitle  hoje  dedicar-se  a  outra  qualquer 
Arte,  ou  seja  Scientifica  ou  seja  Mecânica.  Tão  justificados  motivos  animão  o 
Supplicante  a  implorar  de  V.  A.  se  digne  attender  pelo  exposto  pelo  que 
pede  a  V.  A.  seja  servido  mandar  admetir  o  Supplicante  na  dilta  Caza  do 
Risco  do  Palácio  de  Ajuda.  José  Ignacio  de  Souza.  E.  R.  M.Cf>». 

«Lugar  das  Armas  Reaes.  —  Sciencias,  Governo  das  Armas  da  Corte  e 
Província  da  Estremadura. 

«Eu  Germano  António  Xavier  de  Magalhães,  Cavalleiro  Professo  na  Ordem 
de  Christo,  Lente  da  Cadeira  de  Architectura  da  Aula  Publica  de  Desenho  de 
Historia  ou  de  Figura,  e  Architectura  Civil  por  Sua  Mag.de  que  Deos  Guarde. 
Attesto  que  José  Ignacio  de  Souza  filho  de  João  Victorino  de  Sousa  se  acha 
matriculado  na  Aula  de  Desenho  acima  dita  em  14  de  Novembro  do  anno  de 
1818  por  Aviso  do  Illustrissimo  e  Ex.m0  Senhor  Marquez  de  Borba,  hum  dos 
Governadores  deste  Reino  e  que  frequenta  com  aproveitamento  as  secçõens 
delia.  E  para  constar  onde  convier  na  forma  das  Reaes  Ordens  expressas 
por  Portaria  de  28  de  setembro  de  1813  lhe  passei  o  presente  que  assi- 
gnei  a  6  de  Agosto  do  anno  de  1825.  Germano  Autonío  Xavier  de  Magalhães. 


158  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Estatura  Natural,  Cor  dos  olhos  pretos,  cor  do  cabello  escuro.  —  Reconheço  o 
signal  supra  ser  de  Germano  António  Xavier  de  Magalhães.  Lisboa  13  de 
Agosto  de  1825. — Logar  do  signai  publico.  Em  testemunho  da  verdade.  O 
Tabelião  Thomas  Isidoro  da  Silva  Freire»  *. 


LXXXIL  —  Taborda  (José  da  Cunha).— Foi  uni  dos  artistas  mais  distiu- 
ctos  que  trabalharam  no  Real  Paço  da  Ajuda,  em  cujas  pinturas  dominou  quasi 
exclusivamente  o  gosto  allegorico.  De  uma  d'essas  allegorias,  allusivas  ao  anni- 
versario natalício  do  rei  D.  João  VI,  ficou-nos  a  descripção  devida  á  penna  de 
Taborda,  que  foi  o  delineador  e  executante. 

«Senhor.  —  0  Projecto  que  levo  aos  Pés  de  Vossa  Magestade,  tem  por 
assumpto  o  Cortejo  do  Grande  Dia  treze  de  Mayo  2,  Anniversario  Naltalicio 
de  Vossa  Real  Magestade  que  Deos  Guarde. 

«São  as  paredes  ornadas  com  columnas  e  Pilastras  da  Ordem  Corinthia. 
que  sustentão  o  largo  frizo  no  qual  se  reprezentão  em  baixos  relleuos,  as 
Victorias  mais  principaes  da  fundação  da  Monarchia  :  nos  quatro  vãos  maiores 
das  paredes  vão  reprezentados  entre  coluronios  prospecticos,  deichando  se  ver 
no  fundo  destes,  Nixos  com  Estatuas  alagoricas  ao  mesmo  assumpto. 

«O  Teto  hé  igualmente  de  Archilectura  prospectica,  regulado  debaixo  da 
ligação  da  mesma  Ordem,  cujo  corpo  termina  na  simalha:  na  abertura  que 
deixa  ver  a  reprezentação  dos  ares,  se  vê  centralmente  o  Carro  do  Sol  tirado 
por  cavallos,  e  rodeado  de  Figuras  das  Oras,  que  gostozamente  festejão  a 
Memoria  de  tão  Faustissimo  Anniversario,  e  Febo  sentado  no  referido  Carro 
em  acção  de  guiar  os  Cavallos,  mostra,  indicando  com  o  dedo  index  da  mão 
destra  o  signo  do  Mez  que  contem  em  si  o  Dia  do  mais  alto  e  explendido  re- 
gozijo: as  Figuras  que  circulão  este  grupo  central  representão  as  quatro  Es- 
laçoens  do  Anno,  acompanhadas  daa  Figuras  dos  Mezes,  e  de  outras  alagori- 
cas que  lhe  precedem. 

«Hé  este  senhor  o  Plano  que  me  parece  mais  próprio  de  hum  logar  tão 
respeitável :  Digne-se  Vossa  Magestade  Receber  este  piqueno  serviço  do  mais 
humilde  Vassallo,  o  qual  beijando  a  Augusta  Mão  De  Vossa  Magestade  dezeja 
continuar  a  merecer  a  sua  Real  Aprovação.  —  Jozé  da  Cunha  Taborda»  3. 


1  Torre  do  Tombo  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 

*  De  1824. 

3  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  159 

«III.™10  e  Ex.m0  Sr.  —  O  Projecto  do  Tecto,  que  do  próximo  acabei  de  pintar; 
cujo  pensamento  foi  approvado  por  S.  Mag.de  que  Santa  Gloria  aja.  A  allego- 
ria  representa  o  cortejo  ao  Dia  anniversario  Natalício  do  Augusto  Monarca, 
Personalisado  nas  quatro  Estações  do  anno  e  vários  Elementos  que  á  porfia 
correm  a  offertar  aos  pés  do  Throno  os  seus  puros  votos  e  homenagens  para 
mostrar  a  Festividade  de  hum  tão  plausível  Dia.  No  centro  vae  Apolo  sentado 
no  seu  Carro  tirado  por  quatro  Cavallos  locando  a  Lyra.  As  horas  vão  dan- 
çando em  torno.  Hum  génio. vae  adiante  com  o  facho  da  luz,  que  representa 
a  Aurora.  Outro  génio  tendo  huma  Coroa  na  mão  esquerda,  com  a  Dextra 
aponta  para  o  Zodíaco,  onde  se  mostra  o  mez  de  Maio  significado  por  dois 
Meninos  com  huma  Tabeliã:  o  primeiro  levanta  o  Véo,  e  aponta  o  Dia  13: 
O  outro  na  acção  de  chorar  publica  o  nosso  sentimento.  Outro  génio  tem  hum 
Pergaminho  nas  Maons,  onde  se  lê  escrito  —  Na  Historia  não  tem  Par  —  re- 
duzindo a  poucas  palavras  o  Elogio  do  Augusto  Monarca.  Os  fortes  ventos 
estão  agrilhoados,  e  só  respirão  brandos  zéfiros.  No  Estio  colloquei  a  figura 
do  Tejo  junto  á  Ceres,  por  abundar  mais  dos  fructos  desta  Estação,  assim 
como  no  fim  do  Outono  o  Douro,  principaes  Rios  desta  Monarquia.  Os  dons 
Grupos  que  enchem  as  Cabeceiras,  o  primeiro  significa  Zéfiro  e  Flora,  donde 
procede  a  Fertelidade  do  anno;  e  o  segundo  o  Tempo  e  a  Verdade,  por  ser 
quando  o  Agricultor  vê  realizados  os  prognósticos  do  anno.  — Jozè  da  Cunha 
Taborda»  '. 


LXXXIII.  —  Teixeira  Barreto  (José).  — Veja  se  o  artigo  Rocha  de  Maga- 
lhães (Pantaleão  da). 


LXXXIV.  —  Utrecht  (Christovão  de).  —  Baseado  num  documento  inqui- 
sitorial,  pude  fixar  algumas  das  particularidades  da  vidad'este  artista,  que,  em 
1537,  residia  em  Lisboa,  na  Memoria,  freguesia  de  Santa  Justa,  sendo  casado 
com  Anna  Rodrigues.  Vou  tornar  agora  publico  mais  outro  documento,  da 
mesma  época  e  da  mesma  procedência,  o  qual,  infelizmente,  pouco  mais 
adeanta,  dando  apenas  a  conhecer  alguns  indivíduos,  com  quem  elle  estava 
relacionado. 

Em  8  de  janeiro  de  1541,  Pêro  Rodrigues,  carpinteiro  de  marcenaria, 
morador  em  Lisboa,  no  adro  de  S.  Christovão,  foi  intimado  pelo  Santo-Officio 
a  denunciar  as  pessoas  de  quem  soubesse  haverem  praticado  ou  dito  alguma 
cousa  contraria  á  nossa  santa  fé.  A  sua  primeira  delação  recaiu  sobre  Do- 


1  Torre  do  Tombo.  Maço  282  do  Archivo  do  Ministério  do  Reino. 


160  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

mingos  Ferreira,  clérigo  de  missa,  filho  de  Marlim  Fernandes,  pintor,  resi- 
dente em  Cintra.  Neste  caso  envolvem-se  diversas  pessoas,  cujas  praticas 
versam  sobre  assumptos  de  alguma  importância,  demonstrando  que  os  inter- 
locutores eram  indivíduos  de  certa  instrucção,  possuindo  um  d'elles  uma 
Bíblia  e  outros  livros  hebraicos. 

Outra  parte  da  sua  denuncia  recaiu  sobre  um  Domingos  Carvalho,  pintor, 
que  morava  á  Sé.  Carvalho  convidou  o  denunciante  a  comer,  convite  que  não 
acceitou,  dizendo  que  jejuava.  A  isto  accudiu  Chrislovão  de  Utrecht,  pintor, 
dizendo  que  Deus  nunca  tolhera  que,  comessem,  nem  mandava  que  jejuassem. 

Este  episodio,  conforme  o  depoente,  passava-se  havia  quatro'annos,  vindo 
portanto  a  recair  em  1537,  anno  em  que  o  pintor  hollandès  já  nos  era  co- 
nhecido. O  que  se  ficou  sabendo  agora  foi  um  pouco  da  sua  hortodoxia, 
ou  antes  heterodoxia,  àcêrca  dos  jejuns,  o  que  não  é  para  estranhar,  sendo 
elle  hollandès. 

A  labareda  da  Reforma  não  alastrou  com  intensidade  entre  nós;  não  che- 
gámos a  produzir  nenhum  rival  ou  discípulo  amado  de  Lutero  ou  de  Calvino, 
mas,  em  compensação,  lavrava  em  todas  as  classes,  até  nas  mais  humildes, 
o  espirito  das  discórdias  religiosas,  soprando  com  frequência  os  ventos  da 
heresia.  Duas  causas  essenciaes  concorriam  para  este  resultado:  a  irreducti- 
bilidade  dos  christãos  novos,  que  não  sabiam  abafar  no  intimo  do  peito  as 
crenças  da  sua  raça,  e  o  contacto  com  os  estrangeiros.  A  barreira  do  fana- 
tismo, por  mais  elevada  que  fosse,  não  podia  obstar  á  corrente  das  ideias 
novas.  Apesar  dos  vexames  e  perseguições  inquisitoriaes,  as  blasphemias  mais 
incandescentes  explodiam  na  bocca  da  plebe. 

Diz-se  que  D.  João  III  era  um  fanático,  e  todavia  numerosos  factos  da  sua 
vida  e  do  seu  reinado  estão  em  verdadeira  contradicção  com  o  caracter  que 
geralmente  lhe  attribuem.  A  sua  corte  assistia  prazenteira  á  representação 
dos  autos  de  Gil  Vicente,  em  que  se  chacoteava  a  cleresia  e  a  Roma  venal 
dos  Ponlifices,  a  grande  feira  das  mercadorias  espirituaes.  Reformando  a 
Universidade,  chamou  de  diversos  países  alguns  notáveis  professores  que  não 
vinham  de  certo  imbuídos  das  mais  sans  doutrinas.  Por  intermédio  de  André 
de  Resende  chegou  a  convidar  Erasmo,  que  tão  adversário  se  mostrou  das 
Ordens  monásticas.  Se  o  lutheranismo  não  se  enraizou  em  Portugal,  o  eras- 
mismo  teve  aqui  valiosos  prosélitos.  Como  explicar  esta  dualidade  de  senti- 
mentos e  de  ideias  a  não  ser  pela  incerteza  e  confusão  de  todas  as  consciên- 
cias, que  mal  sabiam  prever  o  dia  de  amanhã  ? ! 

Os  livros  das  Denunciações  e  os  Processos  inquisitoriaes  são  outras  tantas 
fitas  animatographicas,  onde  se  vem  reflectir  a  vida  da  sociedade  portugueza 
no  século  XVI,  tão  devota  e  tão  convulsa,  tão  intrigante  e  tão  temente  a  Deus, 
tão  cheia  de  fé  e  de  descrença. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  161 

Voltemos  a  falar  de  Christovão  de  Utrecht,  que  só  nos  torna  a  apparecer 
de  modo  indisculivel  uns  trinta  aunos  depois  das  datas  acima  referidas. 

Tinham  as  cortes  porluguezas  olferecido  a  el-rei  D.  Sebastião  um  serviço 
de  quarenta  mil  cruzados,  para  o  qual  Lisboa  contribuiu  com  a  sua  quota 
parle.  Para  este  effeito  lançou-se  uma  finta  sobre  os  seus  moradores  não 
privilegiados,  pagando  cada  um,  segundo  os  seus  haveres.  Esta  contribuição 
Dão  podia  ser  lançada  ao  accaso,  sem  base  segura,  e  por  isso  se  procedeu 
a  um  arrolamento  em  que  se  designavam  os  indivíduos,  moradas  e  teres, 
para  depois  se  deduzir  d'ahi  o  que  proporcionalmente  lhes  coubesse.  Existe 
ainda  no  Archivo  da  Camará  Municipal  de  Lisboa  o  respectivo  documento, 
cujo  titulo  é  o  seguinte: 

«Livro  do  Lançamento  e  serviço  que  a  cidade  fez  a  El-rei  nosso  senhor». 
A  fl.  409  lé-se  esta  verba : 
«Titulo  da  fregesia  (sic)  de  Sam.  Xpu.5fl». 
«Rua  do  Chan  do  Loureyro  cu  suas  traueças». 

«It.  Xpu.50  Dutreque  ê  casas  do    mosteiro  De   nossa  Snora    da   Graça 
avd0  (avaliado)  ê  quorenta  mil  rs  paguará ijlxxx  rs». 

O  rol  d"este  lançamento  foi  entregue  pelos  saccadores  (os  que  foram  de 
porta  em  porta  cobrar  as  fintas)  em  7  de  agosto  de  1566;  o  trabalho  come- 
çara um  anuo  antes  approximadamente. 

Estas  informações  foram  publicadas  pelo  sr.  Gomes  de  Brito  no  n.°  4.042 
das  Novidades,  de  9  de  junho  de  1897.  Proseguindo  em  novas  pesquizas,  o 
mesmo  sr.  verificou  que  o  prediosinho,  de  acanhadas  dimensões,  em  que  re- 
sidia Christovão  de  Utrecht,  ainda  existia  em  1756,  achando-se  descripto  no 
Tombo  da  cidade,  mandado  fazer  pelo  marquez  de  Pombal,  após  o  terre- 
niOlo. 

Está,  pois,  comprovada  a  existência  em  Lisboa  de  Christovão  de  Utrecht 
nos  annos  de  1534  a  1566.  Aqui  residiria  habitualmente,  saindo  para  qualquer 
ponto  do  pais  todas  as  vezes  que  a  isso  o  obrigasse  qualquer  incumbência  ou 
necessidade  de  serviço. 

Da  sua  actividade  artística  é  que  se  não  conhecem  provas  irrefutáveis, 
nem  trabalho  nenhum  que  lhe  possa  ser  incondicionalmente  attribuido. 

O  conde  de  Raczynski  imaginou  vèr  o  seu  monograma  nuns  quadros 
de  Évora,  mas  não  sei  se  esta  descoberta  foi  sanccionada  por  outros  pe- 
ritos. 

Pretendem  que  seja  do  pincel  de  Christovão  de  Utrecht  um  quadrosinho 
existente  no  Museu  das  Janellas  Verdes,  e  que  supponho  ter  vindo  da  Galeria 

2i 


162  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Farrobo,  no  qual  se  acha  a  efíigie  de  D.  Vasco  da  Gama.  Ora  este  parliu 
para  a  índia,  pela  ultima  vez,  em  9  de  abril  de  1524,  onde  falleceu  a  25  de 
dezembro  do  mesmo  anno;  se  Christovão  fosse  o  auclor  do  quadro  seria  ne- 
cessário recuar  dez  annos,  pelo  menos,  a  sua  estada  em  Lisboa.  A  iconogra- 
phia  de  Vasco  da  Gama  fimda-se  hoje  sobre  aquelle  retrato;  eu  não  teria  a 
audácia  de  a  lançar  por  terra  ou  de  a  pôr  sequer  em  duvida.  Que  imporia 
que  seja  mais  convencional  que  verdadeira?  Acceilemo-la,  pois,  sem  escrúpulo, 
embora  um  dia  appareça  outro  retrato  mais  aulhentico,  o  que  julgo,  se  não 
impossível,  pelo  menos  de  grande  difficuldade. 

O  retrato  que  existe  no  palácio  do  governo  em  Gòa  podia  servir  de  con- 
fronto e  de  contraprova,  —  mas  que  confiança  merece  um  retrato  feito  de 
reminiscência  e  por  um  curioso  como  Gaspar  Correia  ? 

Paulo  Jovio  mandou  executar  em  Roma  uma  galeria,  em  que  estavam  re- 
presentadas as  personagens  mais  celebres  de  todas  as  épocas  e  de  todos  os 
países.  Os  portuguezes,  exceptuando  Tristão  da  Cunha,  faziam-se  notar  pela 
sua  ausência.  Custa  a  crer  que  assim  succedesse,  quando  os  nossos  desco- 
brimentos  e  conquistas  faziam  o  assombro  do  mundo,  e  quando  os  próprios 
Pontífices  não  se  fartavam  de  elogiar,  pelas  suas  proezas  e  victorias,  os  nossos 
monarcas. 


«Item  '.  Pêro  Rodriguez  carpimtciro  de  macenaria  morador  em  esta  Ci- 
dade no  adro  de  Sam  Christovão,  testemunha  perguntada  por  o  Juramento 
dos  avamgelhos  se  sabya  alguua  pesoa  ou  pesoas  que  fizesem  ou  disesem 
algíiua  cousa  comtra  nosa  santa  ffee  dise  que  nõ  sabya  outra  cousa  somente 
que  Agora  antes  de  dia  de  todolos  santos  que  ora  pasou  estando  elle  teste- 
munha ua  villa  de  symtra  em  casa  de  Martim  Fernandez  pimtor  pay  de  Do- 
mingos Ferreira  clérigo  de  missa  e  estamdo  Asy  falando  com  o  dito  Domingos 
Ferreira,  elle  Domingos  Ferreira  viera  A  dizer  na  pratica  que  o  papa  nom 
tinha  poder  nas  almas  do  purgatório  se  não  sobre  a  lera  e  que  huua  ave  maria 
e  hiui  pater  noster  que  era  pouco  pêra  huua  alma  do  purgaloreo  e  que  jsto  o 
viera  a  dizer  sobre  A  comta  que  se  deu  dos  perdões.  E  que  jsto  dise  o  dito 
Domingos  Ferreira  estando  presemte  huua  sua  jrmãa  molher  que  se  chama 
Antónia  Ferreira  e  que  bem  asy  estaua  huu  seu  jrmãao  que  se  chama  Luís 
Ferreira  e  porem  lhe  parece  A  elle  testemunha  que  este  seu  irmão  nom  ouvyo 
esta  pratica.  E  que  este  domingos  ferreira  foy  frade  de  sam  francisco.  E  que 
estando  elle  asy  nesta  pratica  o  dito  Domingos  ferreira  lhe  disera  que  isto  ouvio 


1  Era  8  de  janeiro  de  loit. 


NOTICIA  DE   ALGUNS  PINTORES  163 

dizer  asy  a  huu  Doutor  Francês  que  os  emsynaua  no  Colégio  dos  frades.  E  que 
bem  asy  disera  o  dito  Domingos  Ferreira  na  dita  pratica  que  deos  nom  dera 
a  ley  A  Moyses  que  lha  dera  huu  Anjo.  E  que  bem  asy  estando  elle  teste- 
munha este  verão  em  Symtra  estava  falamdo  este  Domingos  Ferreira  com 
hum  bacharel  solorgião  gemro  de  Joan  gomez  ferreira  christão  novo  e  lhe 
dezia  o  dito  bacharel  que  tinha  híiua  hriuia  em  latim  e  que  elle  bacharel 
disera  alguuas  cousas  delia  as  quaes  cousas  elle  testemunha  nom  hé  lembrado 
porem  que  se  lembra  que  erão  cousas  contra  nosa  santa  ffee  que  elle  bacharel 
afirmaua  que  Achaua  na  briuia  e  que  elle  testemunha  quando  lhe  Aquilo  ou- 
uira  que  ho  nom  quisera  ouuir  e  que  A  este  estaua  presente  o  dito  Domingos 
Ferreira  o  seu  pay*  Martins  Eernandez  e  sua  jrmãa  Antónia  Ferreira  e  que 
estas  cousas  que  dizia  erão  erronias.  E  que  bem  asy  era  publica  voz  e  fama 
na  dita  villa  de  Symtra  (pie  Joam  Gomez  ferreira  morador  na  dita  villa  e 
gemro  do  dito  bacharel  tem  liuros  em  ebrayco  e  que  hé  christão  nono  como 
ha  de  ser.  E  que  estando  elle  testemunha  na  dita  villa  o  dito  tempo  o  dito 
Yoam  Gomez  viera  a  dizer  dous  versos  do  salleiro  que  dizem  tamquam  surdas 
non  audiebam  et  tamquam  mutas  non  Aperies  os  snum  e  que  elle  testemunha 
lhe  disera  que  se  emlendia  por  Chrislo  na  paciemciá  da  pay.xão  sua  Ihesus 
Aulem  lacebat  e  que  elle  Yoam  Gomez  se  virara  pêra  sua  molher  ffazemdo 
escarneo.  E  que  bem  asy  no  dito  lempu  viera  elle  testemunha  na  dita  villa  de 
Symtra  fallar  com  Ruy  Gago  cavaleiro  da  Ordem  de  Chrislo,  morador  na 
dita  villa  e  estamdo  asy  falando  Ambos  viera  pêra  elle  hum  Duarte  Gonçalvez 
çapateirocastilhano  christão  nouo,  e  estando  uendo  huu  papamundo  (sic)  viera  elle 
Ruy  Gago  a  dizer  per  onde  pasarão  os  filhos  de  Israel  a  lera  de  promisam  e 
então  elle  testemunha  lho  mostrara,  E  que  A  isto  Acudira  o  dito  Duarte  Gon- 
çalvez e  disera  que  não  e  daquy  viera  a  dizer  o  dito  christão  nouo  per  nome 
Duarte  Gonçalvez  alguuas  cousas  contra  nosa  ffee  e  eroneas  de  que  elle  tes- 
temunha nõ  hé  lembrado  e  que  lhe  lembra  que  fallaua  no  maná  que  deos 
dera  Aos  filhos  de  Israel  e  que  a  jslo  eslava  presente  Ruy  Gago  e  Mar  Um 
Fernandes  pimtor  e  Gaspar  Gonçalves  cirieiro  moradores  na  dita  villa  e  que 
este  Duarle  Gonçalves  tem  fama  de  muito  nouo  christão.  E  que  bem  asy 
averaa  quatro  Annos  pouco  mais  ou  menos  estando  elle  testemunha  em  casa 
de  domingos  carvalho  pímlor  morador  em  esta  cidade  junto  com  a  see  o  dito 
Domingos  Carvalho  o  convidava  e  que  elle  testemunha  lhe  disera  que  Jejuava 
e  emtão  Acudira  Christovam  Dotrec  pintor  que  com  elle  estaua  e  disera  que 
deos  nunca  tolhera  que  comesem  num  mandara  que  jejuasem  e  ai  não  dise. 
Item  perguntado  por  o  coslume  dise  nichil.  Anlonio  Rodriguez  o  sprevy.  E 
disse  mais  elle  testemunha  que  huu  seu  rilho  por  nome  Manoel  lhe  disera  que 
asy  outros  criados  e  escravos  de  casa  de  Dom  Duarte  dalmeida  que  Manuel 
Cunha  criado  do  dito  Dom  Duarle  arrenegava  e  descria  de  deos  e  de  nossa 


164  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

Senhora  e  de  sua  vergindade  e  de  todolos  santos,  e  ai  nom  dise  —  Pedro  Ro- 
driguez  —  Georghts  bicetmatus* .  i 


LXXXV. —  Valle  (Bruno  José  do).  —  Nos  Elementos  para  a  historia  do 
Município  de  Lisboa  (vol.  xvu,  pag.  436-437)  diz-se  que  Bruno  José  do  Valle 
pintou  por  965000 "  réis  um  painel  de  N.  S.  da  Conceição  para  a  casa  dos 
cofres  do  senado  e  que  além  deste  pintou  outro  assumpto  egual  para  a  sala 
do  deposito  publico  por  2005000  réis.  Afora  estas  duas  telas,  que  Raczynski 
e  Cyrillo  Volkmar  não  mencionam,  também  pintou  o  quadro  da  Sagrada  Fa- 
mília que  ornamenta  o  altar  da  sacristia  da  egreja  de  Santo  António  da 
Cidade. 

Este  artista  vem  citado  por  Raczynski  a  pag.  292  do  seu  Dictionnaire. 
Cyrillo  cita.-o  egualmente.  Taborda  não  o  menciona. 


LXXXVI.  — Vaz  (Diogo).—  Já  tratei  d'este  artista  na  primeira  serie  desta 
Noticia.  Accrescentarei  agora  mais  um  mandado  de  pagamento  na  quantia  de 
625650  reaes  em  que  foram  avaliadas  as  obras  e  pinturas  da  sacristia  velha 
do  mosteiro  de  Alcobaça,  avaliação  feita  pelos  pintores  Henrique  Dias  e  Simão 
Dias. 

«O  Licenciado  André  Lopez  procurador  deste  mosteiro  dallcobaça  etc. 
tíaço  saber  aos  que  esta  cerlidam  virem  diguo  que  he  verdade  que  eu  man- 
dey  a  Jorge  fernandez  Corrêa  tabelam  e  escrivam  que  ffoy  davalliaçam  das 
obras  e  pinturas  da  sancristia  velha  em  que  estão  as  Relíquias  que  posese 
verba  no  auto  da  dita  avalliaçam  de  como  Diogo  Vaz  pintor  era  paguo  dos 
sesemta  e  dous  mill  e  seiscentos  e  cinquoenla  reaes  em  que  ha  dita  obra 
toda  foi  avaliada  por  Amrrique  Diaz  e  Simão  Diaz  pimtores  e  porquanto  fica 
posta  verba  no  dito  auto  davaliaçam  mandey  pasar  a  presente  cerlidam  ao 
dito  Diogo  Vaz  pintor.  Feita  em  Allcobaca  aos  xxix  dias  do  mez  de  Janeiro. 
Jorge  Fernandez  Corea  tabeliam  a  fez  de  mil  brxxxix  anos  que  asinou  aqui 
também.  —  Andreâs  —  Jorge  Fernandez  Corea. 

«Recebeo  Diogo  Vaaz  daradre  Rodriguez  de  Beja  thesoureiro  o  conteúdo 
neste  mandado  e  asynamos  aquy  ambos  em  Lyxboa  aos  xj  dias  de  fevereiro 
de  mil  b.xsxix.  — Dyoguo  Vas  —  Campos»  i. 


1  Torre  do  Tombo.  Livro  I.°  das  Denuncias  da  Inquisição  de  Lisboa  ux0    103),  ti.  76. 
-  Torre  do  Tombo.  Cvrpo  Cluonoluyico,  Parle  II.  maço  Í87,  duc.  5o. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  105 

LXXXVII.  —  Vernet  (Cláudio  José).  —  Pintor  francez  do  século  XVIII. 
Collaborou  com  o  seu  compatriota  Luis  Miguel  Van  Loo  no  quadro,  em  que  se 
faz  a  apotheose  do  marquez  de  Pombal.  Vide  Loo  (Luis  Miguel  Van). 


LXXX  VIII.— Vieira  (António).— Pintor,  natural  de  Villa  Franca.  Em  1749 
era  já  fallecido,  deixando  viuva  Josepha  Baptista,  a  quem,  a  18  de  outubro 
d'aquelle  anno,  Marcelina  Theresa,  viuva  de  Manuel  Coelho,  sapateiro,  fora 
pela  segunda  vez  denunciar  á  Mesa  do  Santo  Officio,  accrescentando  agora 
que  ella  ha  annos  lhe  dissera  que  as  cartas  de  tocar  haviam  de  ser  levadas 
de  noite  a  sete  adros  de  egrejas,  de  machos,  para  que  aproveitassem. 

A  respeito  de  carias  de  tocar  leia-se  o  que  publicou  sobre  este  assumpto 
o  meu  excellente  amigo  Pedro  A.  d'Azevedo,  no  vol.  XIII,  pag.  66  da  Revista 
Lusitana. 

«Em  18  de  8.bro  de  1749  veyo  a  esta  Meza  Marcelina  Thereza,  viuva  de 
Manuel  Coelho,  çapateiro,  natural  da  freguesia  da  Pena  e  moradora  na  do 
Socorro  na  rua  das  Parreiras  e  disse  que  ja  viera  denunciar  a  Josefa  Ba- 
ptista viuva  de  António  Vieyra,  Pintor,  natural  de  Villa  Franca  e  moradora 
no  beco  de  Gaspar  Trigo,  e  agora  obrigada  do  seu  confessor  vem  dar  parte 
que  a  mesma  mulher  lhe  dissera  ha  annos  que  as  cartas  de  tocar  havião  de 
ser  de  noite  levadas  a  sete  adros  de  Igrejas  de  macho  pêra  que  aprovei- 
tassem» *. 


LXXXIX.—  Vieira  (António  Ignacio).  —  Num  attestado  de  Manuel  Piolti, 
de  13  de  outubro  de  1826,  passado  a  favor  de  José  Carneiro  da  Costa,  que  moia  as 
tintas  na  obra  do  Real  Palácio  da  Ajuda,  faz-se  uma  referencia  ao  benemérito 
pintor  António  Ignacio  Vieira,  que  trabalhava  lambem  no  mesmo  palácio,  e  de 
quem  até  agora  não  tenho  encontrado  outra  noticia, 

Vide  Carneiro  da  Costa  (José). 


XC.  —  Vieira  de  Mattos  (Francisco).  —  Deste  notável  artista,  geral- 
mente conhecido  por  Vieira  Lusitano,  já  eu  tratei  na  segunda  série  d'esta 
Noticia,  referindo-me  ahi  ao  livro  do  sr.  Visconde  de  Castilho,  Amores  de  Vieira 
Lusitano,   que  é  uma  espécie  de  auto-biographia,  abrangendo  sobretudo  o 


1  Torre  do  Tombo.  Caderno  IOK  do  Promotor  da  Inquisição  de  Lisboa,  II.  11 


166  NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 

período  decorrido  desde  os  primeiros  annos  do  insigne  pintor  até  ao  seu 
casamento,  o  acto  em  que  realisou  a  sua  aspiração  suprema. 

A  vida  de  Vieira  Lusitano  pôde  considerar-se  uma  das  paginas  mais  inte- 
ressantes da  sentimentalidade  portugueza,  encadeando-se  naturalmente  com 
a  paixão  amorosa  de  Crisfal  e  de  Soror  Marianna.  Os  seus  amores  na  in- 
fância e  na  adolescência  parecem  episódios  de  Paulo  e  Virgínia,  ao  passo  que 
mais  tarde  revestem  o  caracter  dramático  de  Romeu  e  Julieta.  A  constância  dos 
dois  amantes  apresenta  aos  nossos  olhos,  no  mais  enternecido  amplexo,  as 
imagens  de  Heloísa  e  de  Abeillard. 

A  vida  de  Vieira,  depois  do  seu  consorcio  e  do  tiro  que  recebeu  por  este 
motivo,  está  ainda  pouco  esclarecida,  visto  o  principal  e  mais  interessado  in- 
formador ter  posto  neste  episodio  o  natural  remate.  Correm  algumas  lendas 
sobre  as  relações  de  Vieira  com  a  família  de  sua  esposa,  chegando-se  a  dizer 
que  ao  seu  valimento  se  acolhera  um  dos  seus  cunhados.  Estou,  porém,  per- 
suadido que  a  lenda  está  longe  de  corresponder  á  verdade  histórica.  Por 
morte  dos  sogros  houve  dessidencias  na  família,  por  causa  das  partilhas, 
pleiteando  entre  si  os  dois  irmãos  José  Falcão  de  Gamboa  Fragoso  e  Joaquim 
de  Mello  e  Lima,  prejudicaudo-se  por  este  motivo  e  por  outras  causas  bem 
sabidas,  a  parte  que  tocava  na  herança  a  D.  Ignez  Helena  de  Lima.  Uma 
ordem  regia  dirigida  ao  Desembargo  do  Paço,  tomando  em  consideração  o 
que  sobre  isto  representara  Francisco  Vieira  Lusitano,  mandou  adoptar  pro- 
videncias para  salvaguardar  os  direitos  de  sua  esposa,  no  tocante  á  sua  legi- 
tima. Tem  a  data  de  25  de  setembro  de  i/54.  Antes  de  transcrever  na  integra 
esta  ordem,  lembrarei  que  no  Desembargo  do  Paço,  se  encontram  os  processos 
da  contenda  entre  os  dois  irmãos. 

«Tendo  concideração  ao  que  me  reprezenta  Francisco  Vieira  Luzilano, 
sobre  a  dezordem  com  que  em  prejuízo  de  sua  molher  Donna  Ignes  Elenna 
de  Lima,  sem  a  ouvirem  nem  ad.met.irem,  pellos  meyos  competentes,  se  con- 
tinuava, na  Execução  de  alimentos  e  sentença  que  tinha  alcançado  Joaquim 
de  Mello  e  Lima,  contra  seu  irmão  Jozé  Falcão  de  Gamboa  Fragozo,  des- 
Iruindo-se  e  vendendo-se  os  bens  da  mesma  herança,  em  que  a  mesma  sua 
mulher  linha  enleresse  e  sendo  me  também  prezente  por  parle  de  Joaquim 
de  Mello  e  Lima,  a  demora  que  tinha  havido,  na  satisfação  dos  alimentos  jul- 
gados e  vencidos,  a  qual  deu  cauza  a  referida  execução  que  se  não  poderia 
suspender,  sem  grave  prejuízo  seu.  Mandando  considerar  esta  matéria,  sou 
sorvido  ordenar,  que  se  não  continue  daqui  em  diante  na  venda  e  rematação 
das  propriedades  penhoradas,  por  não  ter  lugar  em  execução  de  alimentos, 
exceto  em  alguns  casos  que  se  não  verificão  prezentemente,  e  que  os  rema- 
tanles  das  propriedades  já  rematadas  para  se  conservarem   na    posse  dos 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES  167 

mesmos  bens  rematados  prestem  caução  de  emdemenizar  a  dita  Donnalgues 
quando  conste  por  cauza  da  rematação  mencionada,  não  possa  haver  a  sua 
legitima  e  para  se  evitar  a  prejudicial  demora  que  tem  havido  na  satisfação 
deste  alimento  julgadas  e  vencidas  Hei  por  bem  que  o  dezembargador  Fran- 
cisco Xavier  Morrote  Broa  mande  proceder  na  execução  dos  alimentos  que 
estiverem  vencidos,  pellos  rendimentos  dos  bens  vinculados  e  pello  rendimento 
da  terça  parte  dos  bens  vinculados,  aliás  hereditários  o  mesmo  Menistro  faça  dar 
numa  consinação  pronta  e  dezembaraçada,  para  satisfação  dos  alimentos  fetu- 
ros,  deferindo  breve  e  summariamente  a  todas  as  dividas  que  houver  sobre 
esta  matéria,  e  dependências  delle  entre  os  coherdeiros  ou  os  eredeiros  do 
executado,  em  numa  só  instancia  na  Rellação  com  os  adjuntos  que  o  regedor 
nomear  o  mesmo  Regedor  o  tenha  assim  entendido  e  o  mande  executar.  Rel- 
lem  vinte  sinco  de  setembro  de  1754.  —  Com  a  rubrica  de  S.  Mag.'io»  '. 


XCI.  —  Vieira  Serrão  (Domingos).  —  Juntamente  com  Simão  Rodrigues 
exerceu  a  sua  actividade  em  Coimbra,  no  primeiro  quartel  do  século  XVII, 
trabalhando  para  a  egreja  de  Santa  Cruz  e  para  a  Capella  da  Universi- 
dade. Attribuem-se  a  estes  dois  pintores  outros  quadros  do  mesmo  estylo 
existentes  n'aquella  cidade  e  que  passaram  até  agora  por  serem  de  mestre 
ou  escola  desconhecida.  Veja-se  o  artigo  referente  a  Rodrigues  (Simão). 


1  Desembargo  do  Paço.  Hegisto  de  Decretos  de  1756  a  1776,  fl.  34. 


ADDENDA  ET  CORRIGENDA 


Os  nomes  dos  pintores  Baptista  Ribeiro  (João),  Cunha  Taborda  (José  da) 
e  Rocha  (Francisco  de  Paula)  sahiram  numerados,  o  que  prejudicou  a  restante 
numeração,  devendo,  portanto,  contar-se  88  nomes  e  não  91. 


Baptista  (João).  —  Era  porteiro  da  capella  real,  sendo-lhe  concedida 
licença  para  ir  a  Roma  aperfeiçoar-se  na  arte  da  pintura.  Regressando  a  Rar- 
celona  ahi  lhe  encommendaram  certas  obras,  como  se  infere  do  documento 
que  passo  a  trauscrever  e  que  me  foi  amavelmente  cedido  pelo  sr.  Pedro  A. 
de  Azevedo. 

«A  Rainha 

«Vossa  Alteza  deu  licença  Por  quatro  Annos  A  hum  João  Rautista  porteiro 
de  sua  capella  para  yr  a  Roma  eonsumarse  em  pintor,  vindo  delia  cheguando. 
A  Rarcelona,  o  duque  Francavylla  sogro  de  Ruy  Gomez  que  aly  he  vissorey 
lhencomendou  certa  obra,  elle  lhe  disse  que  a  non  podia  fazer  sem  licença 
de  vossa  Alteza,  escreveo  hua  carta  a  Ruy  Guomez  pedindo-lhe  com  muita 
instancia  suplicase  A  vossa  Alteza  lhe  fizesse  mercê  de  comceder  licença  por 
hum  ano  para  estar  com  seu  sogro  elle  e  a  princesa  dEboly  sua  molher  me 
pedirão  escreuesse  A  vossa  Alteza  lhe  fizesse  a  dita  mercê  e  não  lhe  escre- 
verão sobre  isso  porque  nom  esteue  mays  de  bua  so  noite  Aquy  vindo  com  o 
princepe  e  Passou  loguo  Aramxues,  se  vossa  Alteza  nom  tem  muita  necessi- 
dade deste  homem  deue  lhe  de  fazer  esta  mercê  porque  a  istimarà  muito 
Ruy  Gomez  e  sua  molher.  Nosso  Senhor,  etc.  De.Madril  a  xvj  de  octubro 
de  1565»  '. 


1    Cartas  de  D.  Francisco    Pereira.  Manuscripto  1340  do  Conselho  Geral  do  Santo 
Oflicio,  fl.  238  v. 
22 


170 


NOTICIA   UE  ALGUNS  PINTORES 


«A  Rainha 

A  Princesa  dEboly  e  Ruy  Guomez  seu  Marido  me  fallarão  na  licença  Para 
João  Batista  fazer  a  obra  do  duque  de  Francavilla  seu  pay,  eu  lhe  darei  o 
Recado  de  vossa   Alteza  Porque   como  vierão  a  noue  do  presente  não  tiue 


lugar  de  o  fazer 


De  Madril  A  xj  de  janeiro  de  566» 


Costa  (Joaquim  da).  —  Pintor-architecto  do  antigo   theatro   da    rua    dos 
Condes.  Seria  irmão  de  Manuel  da  Costa? 
Vide  A  Gloria  do  Oceano,  por  Pato  Moniz 


Costa  (Manuel  da).  —  Citado  com  elogio  por  Reckford  nas  suas  Recollections 
of  an  excitrsion  to  the  Monasteries  of  Alcobaça  and  Batalha.  London,  1835, 
pag.  203. 


'  Idem  fl  257. 


LIST^l  ALPHABETICA, 

POR  APPELLIDOS, 


DOS 


ARTISTAS  CONTIDOS  N'£STA  3.A  SERIE 


Aguiar  (Agostinho  de). 

Almeida  (Brás  de). 

Alvares  de  Andrade  (Luis). 

Amatucei  (João  Carlos). 

Anes  (Gonçalo). 

Assis  Rodrigues  (Francisco). 

Avellar  Re^ello  (José  de). 

Ayres  de  Andrade  (Caetano). 

Azeredo  (José  Joaquim  de). 

Baptista  (João). 

Barreto  (António). 

Barreto  (Carlos  José). 

Bernardes  de  Carvalho  (Francisco). 

BrunHti  (Caetano). 

Capisani. 

Carneiro  da  Costa  (José). 

Carvalho  (Domingos). 

Conceição  (Manuel  da). 

Costa  Meesen  (Félix  da). 

Cunha  Assucar  (José  da). 

Espirito  Santo  (Luis  do). 

Fernandes  (Ballhasar). 

Fernandes  (Domingos) 

Fernandes  (Martim). 

Fernine  (D.  Júlio  César  de). 

Firmo  Duro  (Manuel). 

Fonsica  (António  Manuel  da). 

Foschini  (Arehangelo). 

Godinho. 

Goterres  (Mestre). 

Leoni  (Carlos  António). 

Leoni  (Francisco 'Eloy  de  Paula). 

Loo  (Luis  Miguel  Van). 

Marcelino  (Joaquim). 

Mattos  (Marçal  de). 

Mendes  (Ruy). 

Monte  Alvão  ou  MonfAuban. 

Moraes  (Balthasar). 

Moraes  (Cliristovão  de). 

Moura  (António  de). 

Muien  (Mr.  de). 

Neves  (Frei  João  das). 

Odune  (Mr.). 

Oliveira  Bernardes  (António  de). 

Oliveira  Góes  (Bernardo  António  de). 


Oliveira  de  Louredo  (António  de). 

Paula  Rocha  (Francisco  de;. 

Paulino  dos  Reis  (Máximo). 

Pereira  (Vasco). 

Pereira  de  Carvalho  (Domingos). 

Peres  (Francisco  Maria). 

Perez  ou  Pires  (Vasco). 

Pillement  (João). 

Pinheiro  Arnaud  (Manuel). 

Piolti  (Manuel). 

Ranc  (João). 

Raphael  (Joaquim). 

Rato  (Gregório  Maria). 

Rato  (Joaquim  Gregório  da  Silva). 

Rato  (Joaquim  Luis  Maria). 

Reis  (Fgnacio  António  dos). 

Ribeiro  (João  Baptista). 

Ribeiro  (Norberto  José). 

Ribeiro  (Pedro). 

Rocha  de  Magalhães  (Pantaleão  da). 

Rodrigues  (António  Raphael). 

Rodrigues  (Simão). 

Rodrigues  Braga  (Joaquim). 

Roudray. 

Roux  (Alexandre  Theodore). 

Sehiopeta  (Domingos  António). 

Seco  (Simão).  ■ 

Sendim  (Maurício  Jcsé  do  Carmo). 

Silva  (Henrique  José  da). 

Silva  (Manuel  António). 

Simão  (Frei). 

Simplício  (Alexandre). 

Soares  (Ruy). 

Sousa  (José  Ignacio'de). 

Taborda  (José  da  Cunha). 

Teixeira  Barreto  (José). 

Utrecht  (Christovão  de). 

Valle  (Bruno  José  do). 

Vaz  (Diogo). 

Vernet  i  Cláudio  José). 

Vieira  (António). 

Vieira  (António  Ignacio). 

Vieira  de  Mattos  (Francisco). 

Vieira  Serrão  (Domingos). 


LIST^  ALPHABETICA. 


POR  NOMES  DE  BAPTISMO 


Agostinho  de  Aguiar. 

Alexandre  Simplício. 

Alexandre  Theodore  Roua\ 

António  Barreto. 

António  Ignaeio  Vieira. 

António  Manuel  da  Fonseca. 

António  de  Moura. 

António  de  Oliveira  Bernardes. 

António  de  Oliveira  de  Louredo. 

António  Haphael  Rodrigues. 

António  Vieira. 

Archangelo  Foschini. 

Balthasar  Fernandes. 

Balthasar  de  Moraes. 

Bernardo  António  de  Oliveira  Góes. 

Brás  de  Almeida. 

Bruno  José  do  Valle. 

Caetano  Ayres  de  Andrade. 

Caetano  Brunelti. 

Capisani. 

Carlos  António  Leoni. 

Carlos  José  Barreto. 

Christovão  de  Moraes. 

Christovão  de  Utrecht. 

Cláudio  José  Vernet. 

Diogo  Vaz. 

Domingos  António  Schiopeta. 

Domingos  Carvalho. 

Domingos  Fernandes. 

Domingos  Pereira  de  Cangalho. 

Domingos  Vieira  Serrão. 

Félix  da  Costa  Meesen. 

Francisco  Assis  Rodrigues. 

Francisco  Bernardes  de  Carvalho. 

Francisco  Eloy  de  Paula  Leoni. 

Francisco  Maria  Peres. 

Francisco  de  Paula  Rocha. 

Francisco  Vieira  de  Mattos. 

Godinho. 

Gonçalo  Anes. 

Gregório  Maria  Rato. 

Henrique  José  da  Silva. 

Ign.icio  António  dos  Reis. 

João  Baptista. 

João  Baptista  Bibeiro. 


João  Carlos  Amatucci. 

João  das  Neves  (Frei). 

João  Pillement. 

João  Ranc. 

Joaquim  Gregório  da  Silva  Rato. 

Joaquim  Luis  Maria  Rato. 

Joaquim  Marcelino. 

Joaquim  Raphael. 

Joaquim  Rodrigues  Braga. 

José  de  Avellar  Rebello. 

José  Carneiro  da  Costa. 

José  da  Cunha  Assucar. 

José  da  Cunha  Taborda. 

José  Ignacio  de  Sousa. 

José  Joaquim  de  Azevedo. 

José  Teixeira  Barreto. 

D.  Júlio  César  de  Fernine. 

Luis  Alvares  de  Andrade. 

Luis  do  Espirito  Santo. 

Luis  Miguel  Van  Loo. 

Manuel  António  Silva. 

Manuel  da  Conceição. 

Manuel  Firmo  Duro. 

Manuel  Pinheiro  Arnaud. 

Manuel  Piolti. 

Marçal  de  Mattos. 

Martim  Fernandes. 

Maurício  José  do  Carmo  Sendim. 

Máximo  Paulino  dos  Reis. 

Mestre  Goterres. 

Monte  Alvão  ou  Mont' Auban. 

Muien. 

Norherto  José  Ribeiro. 

Odune. 

Panialeão  da  Rocha  de  Magalhães. 

Pedro  Ribeiro. 

Roudray. 

Ruy  Mendes. 

Kuy  Soares. 

Simão  (Frei). 

Simão  Rodrigues. 

Simão  Seco. 

Vasco  Pereira. 

Vasco  Periz  ou  Pirei. 


índice  geral     * 

POH  APPELLIDOS 


Abreu  (Simão  de),  i,  1;  n,  5. 

Affonso  (Fernando),  i,  4. 

Affonso  (João),  1.°,  i,  6. 

Affonso  (João),  2.°,  i,  6. 

Affonso  (Jorge),  i,  8;  n  6. 

Affonso  (Pêro),  i,  2o. 

Affonso  (Simão),  i,  25. 

Aguiar  (Agostinho  de),  III,  31. 

Almeida  (Brás  de),  III,  :iti. 

Almeida  (Pêro  de),  i,  25. 

Alçares  (João)  1.°,  1,  29. 

Alvares  (João),  2.°,  i,  29. 

Alvares   de  Andrade  (Luis),  i,  31;  li,   6; 

ih,  37. 
Amatucci  (João  Carlos),  m,  40. 
Andrade  (Lazaro  de),  i,  31. 
André  (Manuel),  i,  32. 
Anes  (Gonçalo),  i,  32;  ii,  9;  m,  42. 
Anes  (João),  1,  33. 
Anes  (Kodrigo),  li,  H. 
Anes  ou  Eanes  (Vasco),  ii,  12. 
Anes  de  Leiria  (Francisco),  u,  8. 
Anloninho  (Mestre),  li,  14. 
Armõe  (Reymão),  i,  33 
Assis  Rodrigues  (Francisco),  ih,  44. 
Acellar  Rebello  (José  de),  m,  44. 
Aves  (Francisco  das),  i,  34. 
Ayres  de  Andrade  (Caetano),  ih,  59. 
Azeredo  (João  de),  li,  17. 
Azevedo  (José  Joaquim  de),  ni,  61. 
Baccarelli  (Vicente),  n,  18. 
Baptista  (João),  m,  169. 
Barco  (Gabriel  dei),  i.  35. 
Barreto  (António),  Hl,  61. 
Barreto  (Carlos  José),  m,  64.  Incluído  no 

artigo    Rocha   de  Magalhães  (Pantaleão 

da). 
Barreto  (Jorge),  i,  37. 
Barros  (António  de),  i,  38. 
Barros  Ferreira  (Jeronymo  de),  i,  179. 
Bault  (Claude  le),  1,  38. 
Bernardes  de  Carvalho  (Francisco),  m,  64. 
Borges  (Manuel),  i,  38. 
Brandão  (Eduardo  Emílio  Pereira),  i,  39. 


Broune  (D.  Izabel),  u,  20. 

Brunetti  (Caetano),  m,  67. 

Campos  (Lucas  de),  n,  23. 

Cão  (Gaspar),  i,  40. 

Capisani,  m,  67. 

Carducci  ou  Cardiicho  (Vicente),  i,  40. 

Carneiro  da  Costa  (José),  m,  67. 

Carvalho,  i.  41. 

Carvalho  (Domingos),  III,  68. 

Carvalho  (Gaspar),  I,  41. 

Castelli  (Bernardo),  i,  41. 

Castro  (AÍTonso),  u,  28. 

Castro   i  Pedro    de).    Incluído    no    arligo 

Castro  (Allonso). 
Cerveira  (Fernão),  i.  42. 
Coelho  da  Silveira  (Bento),  i,  44. 
Coimbra  (Pêro  de),  i,  46. 
Conceição  (Manuel  da),  III,  68. 
Contreiras  (Diogo  de),  i,  47. 
Correia  de  Araújo  (Manuel),  li,  28. 
Corte-Beal  (Jeronymo),  n,  29. 
Costa  (António  da),  i,  48. 
Costa  (Joaquim  da),  iii,  170. 
Costa  (Manuel  da),  m,  170. 
Costa  Meesen  (Félix  da),  m,  70. 
Costa    de  Rezende  (Thomé  da).  Vide  Be- 

zende  (Thomé  da  Costa  de). 
Cunha  (Domingos  da),  n,  30. 
Cunha  Assucar  (José  da),  ih,  75. 
Dante  (Luis),  u,  34. 
Delerive  (Nieolas),  i,  48. 
Dias  (Gaspar),  i,  48;  u,  34. 
Dias  (João),  i,  50. 
Dias  de  Oliveira  (Manuel),  i,  51 
Dioll  (Jacomo),  i,  51. 
Eduardo  ou  Duarte,  ii,  35. 
Espinhosa  (António  de),  i,  52. 
Espinosa  (João  de),  i,  52. 
Espirito  Santo  (Luis  do),  m,  75. 
Fernandes  (Álvaro),  1,  54. 
Fernandes  (Balthasar),  m,  75. 
Fernandes  (Bartholomeu),  i,  55. 
Fernandes  (Diogo),  i,  56. 
Fernandes  (Domingos),  III,  76. 


176 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


Fernandes  (Garcia), *,  56. 

Fernandes  (Gomes),  i,  64. 

Fernandes  (Lourenço),  n,  36 

Fernandes  (Luis),  i,  64. 

Fernandes  iMartim),  m,  76 

Fernandes  (Peroj.  i,  180. 

Fernandes  (Vasco),  i,  64. 

Fernine  (I).  Júlio  César  de),  111,  77. 

Fiqueiredo  (Christovão  de),  i,  66 

Figueiredo  Seixas  (José  de),  u,  37. 

Fumo  Dato  (Manuel),  III,  77. 

Fltirenlim  (Autonio),  i.  67. 

Fonseca  (António  Manuel  dal,  i,  68;  m,  77. 

Foschini  (Archangelo),  in.  81. 

Francesco  (Nicoloso),  II,  37. 

Franco  (Manuel  i,  ii,  37. 

Fartado  (Manuel),  i,  77. 

Gallego  (Pêro  AlTonso).  i,  77. 

Centíleschi  (Francesco),  II,  38. 

Gil  (Viceote),  n,  46. 

Godinho,  ih,  96. 

Góes  (Manuel  António  de),  h,  47. 

Gomes  (Affonso),  i,  78,  180;  n,  49. 

Gomes  (Diogo),  i,  81. 

Gomes  (Fernão  ,  i,  82. 

Gomes  (Francisco).  Incluído  no  artigo  Silva 

Rabello  i Manuel  da). 
Gomes  (Gonçalo),  i,  182. 
Gomes  (Manuel),  n,  53 
Gonçalves  (AlTonso),  i,  83. 
Gonçalves  (Álvaro),  n.  54. 
Gonçalves  (André),  i,  85. 
Gonçalves  (João)  1.",  i,  87. 
Gonçalves  (João)  2.°,  i,  87. 
Gonçalves  (Nuno),  i,  88. 
Goterres  (Mestre),  m,  97. 
Guarienti  (Pietro),  i,  89. 
Henriques  (Francisco),  i,  94. 
Johane.  i,  184. 

A7oí'<  (Willelm  vau  der),  i,  95. 
Landrofe  (António  de),  i,  96. 
Lasserre  (Prospero;,  i,  96. 
Leal  (Jorge),  i.  97. 
Le  Bault  (Claúde).  i,  38. 
Leilão  (Antão),  i,  97. 
Leilão  (António),  i,  100. 
Leonardo,  n.  54. 
Leoni  (Carlos  António),  ui.  99. 
Leoni  (Francisco  Eloy  de  Paula),  m,  100. 
Lisboa  (Fernão),  i.  1()0. 
Lobo  de  Moura  (Eduardo),  i,  101  ;   u,  57. 
l.oo  (Luis  Miguel  vam.  m,  101. 
Lopes  (Christovão),  i.  104. 
Lopes  (Gregório),  í,  104. 
Lais  (António),  í,  109. 
Manuel  (Dinis);  u.  57. 
Marcelino  (Joaquim),  rir.  105. 
Martins  (João)  1'.  i,  110. 
Martins  (João)  2.",  i,  111. 


Martins  (Lourençoi,  i.  112. 

Matla  (António  da),  1.  112. 

Mattos  (Francisco  dei,  i.  114. 

Mattos  (Marçal  de),  ui,  105. 

Mendes  (Álvaro),  i,  115. 

Mendes  (Jorge),  i,  116. 

Mendes  (Ruy),  III.  106. 

Monte  Alvão  mi  MonfAuban,  iii,  107. 

Moraes  iBalthasar),  iii,  110. 

Moraes  (Christovão  de),  m,  (li. 

Moralles  ( António  dei,  1,  116. 

Moina  (António  dei,  III,  118. 

Muien  (Mr.  de),  iii,  120. 

Negreiros  (José  da  Costa),  i.  117. 

Neves  (Fr.  João  das),  m,  122. 

Nicoloso  (Francesco).  Já  mencionado  sob 

o  nome  de  Francesco  (Nicoloso),  i,  117. 
Nogere  (André),  li,  57. 
Nunes  (Miguel),  i.  117. 
Oilaue  (Mr.),  iii,  123. 
Oliveira   Bernardes  (António    de),    1,  118, 

184:  mi.  124. 
Oliveira  Bernardes  (Polycarpo  de),  n,  57. 
Oliveira     Góes    (Bernardo     António    de). 

ni.  124. 
Oliveira  de  Louredo  (António  de),  i 

Hl.  126. 
Oort  (J.  Van),  i.  119. 
Paiva  (António  de),  li,  58. 
Paiva  (Miguel  dei,  I,  119:  li,  59. 
Paula  Rocha  (Francisco  de),  IH,  126. 
Paulino   dos    Reis  (Máximo),    i,   120; 

126. 
Pedro  (Álvaro  de),  it,  60. 
Pegado  (Bernardo  Pereira),  a,  60. 
Pellegrint  (Domenico),  i,  121. 
Pellereau  (Frédéric),  i,  129. 
Pereira  (António;,  n,  61. 
Pereira  (Vasco),  m,  127. 
Pereira  de  Carvalho  (Domingos),  m,  131. 
Pereira  de  Miranda  (Brás),  I,  130. 
Peres  (Francisco  Maria),  m,  132. 
Perez  ou  Pires  (Vasco),  m,  132.   Incluído 

no  artieo  Pereira  i  Vasco). 
Pillemenl '"(João),  m.  132. 
Pinheiro  Arnatid  (Manuel),  ih,  135. 
Piotti  <  Manuel  l.  Ill,  136. 
Pires  (Alfonso),  i.  131. 
Pires  (Álvaro),  i,  133. 
Pires  (João),  n,  63. 

Rabello.  Vide  Silva  Rabello  (Manuel  da). 
Ranc  (João),  IH,  140    Saliiu  errado  depois 

de  Raphael  (Joaquim l. 
Raphael  Joaquim),  iii,  139. 
Rato  (Gregório  Maria),  m.  140. 
Bato  (Joaquim  Gregório  da  Silva),  iii.  lio. 
Rato  (Joaquim  I.uis  Maria),  ih,  141. 
Reinoso  (André  de),  n,  65. 
Reis  (Ignacio  António  dos),  iii,  141. 


119: 


iii. 


NOTICIA  DE  ALGUNS  PINTORES 


177 


fíezende  (Thomé  da  Costa  de),  i,  133. 

Ribeiro  (João  Baptista),  111,  142. 

Ribeiro  (Norberto  José),  in,  lio. 

Ribeiro  (Pedro),  III,  146. 

Rita  (D.  Izabel  Maria),  li,  66. 

Rocha  de  Magalhães  (Panla\eão<ia),uu  147. 

Rodrigues  (António),  n,  66. 

Rodrigues  (António  Baphael),  III,  148. 

Rodrigues  (Fernão),  i,  133;  n,  69. 

Rodrigues  (Pêro),  i,  134. 

Rodrigues  (Simão),  l.°,  i,  L35. 

Rodrigues  (Simão).  2.",  m,  140. 

Rodrigues  Rraga  (Joaquim),  M,  149. 

Rodrigues  da  Silva  (José),  i,  13o. 

Roudray,  m,  151. 

Roux  (Alexandre  Theodore),  ih,  152. 

Sanches  (AfTonso),  u,  69. 

Santa  Cruz  (Francisco  de),  I,  136. 

S.  José  (Fr.  Luis  de),  i,  137. 

Schiopeta    (Domingos    António),    III,    152. 

Saliiu  errado  depois  de  Seco  (Simão). 
Seco  (Simão),  iu,  152. 
Seminu  (Maurício  José  do  Carmo),  ui,  153. 
Serra  (Victorino  Manuel  da),  i,  138. 
Silva  (Henrique  José  da),  ui,  154. 
Silva  (Manuel  António),  m,  154. 
Silva  de  Figueiredo  (Thomaz  da),  II,  71, 
Silva  Paz  (Lourenço  da),  i,  139. 
Silva  Rabello  i Manuel  da),  i,  140. 
Silveira  (Manuel  da),  n,  72. 
Simão,  n,  73. 
Simão  (Frei),  ih,  156. 
Simplício  (Alexandre),  ui,  156. 


Soares  (Ruy),  m,  157. 

Sousa  (António  de),  i,    141.   Incluído  no 
artigo  Carducci. 

Sousa  (José  Ignacio  de),  m,  157. 

Sousa  Maldonado  (Theodoro  de),  n,  73. 

Sousa  Villar  (Thomaz  de),  i,  141. 

Slraten  (Joozis  Vander),  n,  74. 

Taborda  (José  da  Cunha),  m,  158. 

Taveira,  i,  142. 

Teixeira  (Diogo),  i,  142. 

Teixeira  Barreto  (José).    Incluído  no  ar- 
tigo Rocha  de  Magalhães  (Pantaleão  da). 

Tomasini  (Luis  Assencio),  i,  143. 

Trosylhos  (Fernão  de),  i,  150. 

Utrecht  (Christovão  de),  i,  150;  m,  159. 

Valle  (Bruno  José  do),  ih,  164. 

Variegas   ou    Venegas   (Francisco),  i,   153; 
ii,  75. 

Vasco,  ii,  76. 

Vaz  (Diogo),  i,  154;  ui,  164. 

Vaz  (Gaspar),  i,  153. 

Vaz  (Pêro),  i,  156. 

Vernet  (Cláudio  José),  m,  163. 

Vieira  (António),  m,  165. 

Vieira  (António  Ignacio),  m,  165.' 

Vieira  (Domingos),  i,  157;  n,  77. 

Vieira  (Gaspar),  i,    173.  Saliiu  errado   de- 
pois de  Vieira  Serrão  (Domingos). 

Vieira  de  Mattos  ( Francisco),  ii,  80;  ih,  165. 

Vieira  Serrão  (Domingos),  i,   158;  ii,  82 
iii,  167. 

Visete  (Vicitor  ou  Victor),  i,  176. 

Ximenez  (Fernão),  i,  177. 


23 


1 


fcr 


Obras  do  autor  publicadas  nas  Memorias  da  Academia 


Trabalhos  náuticos  dos  portuguezes  nos  séculos  xvi  e  xvii:  Parlei.  Marinharia.  — 1898, 
gr.  in-4.°,  311. pag.,  esgotado  (Historia  e  Memorias  da  Academia,  nova  serie,  2.'  classe 
tomo  vil,  parte  u). 

Parte  n.  Conslruâtores  naraes.  — 1900,  gr.  in-i.°,  299  pag.,  4  estampas  (Historia  e  Me- 
morias da  Academia,  nova  serie,  2.a  classe,  tomo  viu,  parte  i). 

A  livraria  de  musica  de  D.  João  IV  e  o  seu  index.  — 1900,  gr.  in  4.°,  19  pag.,  2  estampas 
(Historia  e  Memorias  da  Academia,  nova  serie,  2.*  classe,  tomo  ix,  parte  i). 

A  livraria  real,  especialmente  no  reinado  de  D.  Manuel.  — 190).  gr.  in-4.°,  73  pag.  (His- 
toria e  Memorias  da  Academia,  nova  serie,  2.»  classe,  tomo  ix,  parle  í). 

Algumas  achegas  para  a  historia  da  tinturaria  em  Portugal. —  1902,  gr.  in-4.°,  24  pag. 
(Historia  e  Memorias  da  Academia,  nova  serie,  2.*  classe,  tomo  x,  parte  i). 

Manuel  de  Sousa  Coutinho  (Fr.  Luis  de  Sousa)  e  a  família  de  sua  mulher  D.  Magdalena 
Tavares  de  Vilhena.  —  1902,  gr.  in-4.°,  39  pag.,  2  estampas  (Historia  e  Memorias 
da  Academia,  nova  serie,  2.a  classe,  tomo  ix,  parte  i). 

Noticia  de  alguns  pintores  portuguezes  e  de  outros  que,  sendo  estrangeiros,  exerceram 
a  sua  arte  em  Portugal:  Primeira  serie.  — 1903,  gr.  in-4.°,  xv-191  pag.,  7  estampas 
(Historia  e  Memorias  da  Academia,  nova  serie,  2.a  classe,  lomo  x,  parte  i). 

—  Segunda  serie.— 1906,  gr.  in-4.°,  88  pag.  (Historia  e  Memorias  da  Academia,  nova  serie, 
2.*  classe,  tomo  xi,  parte  i). 

Terceira  serie.  —  1911,  gr.  in-4.°,  177  pag.,  2  estampas  (Historia  e  Memorias  da  Aca- 
demia, nova  serie,  2.»  classe,  tomo  xm,  parte  i). 

0  thesouro  do  rei  de  Ceylão.—  1904,  gr.  in-4.°.  67  pag.  (Historia  e  Memorias  da  Academia, 
nova  serie,  2."  classe,  tomo  x,  parte  n). 

Duarte  Galvão  ea  sua  família,  elementos  para  um  estudo  biographico.  — 1905,  gr.  in-i.v 
95  pag.  (Historia  e  Memorias  da  Academia,  nova  serie,  2.*  classe,  tomo  xi,  parte  i). 

A  armaria  em  Portugal,  noticia  documentada  dos  fabricantes  de  armas  brancas,  que 
exerceram  a  sua  profissão  em  Portugal.  —  1907,  gr.  in-4.°,  176  pag.  (Historia  e 
Memorias  da  Academia,  nova  serie,  2."  classe,  tomo  xi,  parte  n). 

Segunda  serie. — Noticia  documentada  dos  fabricantes  de  armas  brancas  e  de  fogo: 

besteiros,  viroteiros,  arcabuzeiros,  espingardeiros,  etc.  que  exerceram  a  sua  in- 
dustria no  nosso  paiz.  —  1908,  gr-  in-4.°,  187  pag.  (Historia  e  Memorias  da  Acade- 
mia, nova  serie,  2.a  classe,  tomo  xi,  parte  ii). 

Noticia  acerca  da  vida  e  obras  de  João  Pinto  Delgado.  — 1910,  gr.  in-4.°,  35  pag.,  1  es- 
tampa (Historia  e  Memorias  da  Academia,  nova  serie,  2."  classe,  tnmo  xn,  parte  n). 


^mmrnm^mmmmmmimmmfâMm' 


PLEASE  DO  NOT  REMOVE 
CARDS  OR  SLIPS  FROM  THIS  POCKET 


UNIVERSITY  OF  TORONTO  LIBRARY 


ND 

832 

S6 
1903 


Sousa  Viterbo        .n+nres 
Noticia  de  alguns  pintores