Skip to main content

Full text of "Obras completas [por] Teixeira de Pascoaes"

See other formats


?-MÍ-::^ 


:ííí;. 


ifâ. 


1»; 


%; 


PQ 

9261 

V276 

196- 

V.2 

T 


Obras  Completas 

de 

Teixeira  de  Pascoaes 


POESIA 


Introdução 

e  aparato  crítico 

por 

Jacinto  do  Prado  Coelho 


II  VOLUME 


LIVRARIA    BERTRAND 


Desta  edição  das  Obras  Completas  de 
Teixeira  de  Pascoaes  fez-se  uma  tiragem 
especial,  numerada,  de  loo  exemplares 


PS 


y\ 


I 


A  VENTURA 

[1.*  edição,  Coimbra,  Tip.  França  Amado,  1901] 


Aos  MEUS   COMPANHEIROS 


Ó  Saudade  tantas  vezes  invocada, 
Musa,  que  tantos  infelizes  inspiraste ! 
Tu,  que  nos  deixas  a  nossa  alma  iluminada. 
Que  tantas  Liras,  com  teus  dedos,  afinaste ! 

Ó  saudade  que  és  das  dores  a  mais  linda. 
Que  das  tristezas  és  a  mais  menina  e  moça, 
A  mais  eleita,  a  Desejada,  a  mais  bem-vinda ! 
A  que  mais  nos  governa,  a  mais  senhora  nossa ! 

Enche  o  meu  coração  da  tua  claridade, 

Desse  raio  de  luz  trémulo  e  moribundo 

—  Que  é  o  fogo-fátuo  de  perdida  mocidade  — 

Com  que  o  sol,  ao  morrer,  ensanguenta  o  mundo ! 

E  quando  à  tarde,  em  labaredas,  o  Poente 
Parece,  na  distância,  uma  outra  Roma  a  arder ! 
É  uma  saudade,  é  a  dor  que  a  natureza  sente 
Pelo  sol  que  a  fecunda  e  faz  reverdecer ! 

Ó  minha  musa  triste  e  d'olhos  lacrimosos ! 
Ensina-me  a  pintar  o  que  é  ficarmos  sós ! 
Que  eu  saiba  ler  nos  corações  desfortunosos. 
Que  eu  aprenda  a  cantar  com  lágrimas  na  voz ! 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

É  sempre  ao  pôr  do  sol  a  hora  de  partir ! 

Ê  quando  chora  uos  pinhais  o  vento  norte, 

Que  tão  bem  sabe  em  doidos  gritos  traduzir 

A  dor  dos  que  andam  sempre  ao  deus-dará  da  sorte ! 

Sempre  um  sinal  do  céu  aos  homens  revelou 
Cada  facto  que  é,  na  vida,  extraordinário ! 
Quando  morreu  Jesus  o  sol  se  eclipsou 
E  em  convulsões  estremeceu  todo  o  Calvário ! 

É  um  adeus  afinal  a  minha  vida  toda... 

Sempre  do  coração  sinto  partir  alguém ! 

Que  deserto  areal  descubro,  se  olho  em  roda. 

Nem  sei  por  que  milagre  ainda  me  resta  alguém ! 

Adeus !  Adeus !  Eis  as  palavras  que  aprenderam, 
Logo  ao  nascer,  os  meus  ouvidos  infelizes ! 
Em  chagas  a  sangrar  assim  os  converteram 
Estas  palavras  que  nos  deixam  cicatrizes ! 

É  ao  ouvir,  dentro  do  peito,  soluçar 
Desapiedada  voz  que  só  me  diz  adeus, 
E  me  causa  tristeza,  e  faz  idealizar 
Uma  cruzada  que  conquiste  novos  céus ! 

É  ouvindo  essa  voz  que  em  lágrimas  chegara 
Ao  mais  recôndito  lugar  do  coração. 
Onde  um  dilúvio  de  repente  se  formara, 
Oue  as  Bíblias  do  Amor  em  verso  cantarão ! 

Que  eu  vou  cantar,  meus  companheiros  d'Aventura, 
A  facada  que  contra  o  peito  nos  vibrou, 
Lá  numa  esquina  deste  mundo,  em  noite  escura, 
A  Sorte  que  funesta  estrela  nos  ditou ! 

E  que  nos  fez  perder  assim  os  pátrios  lares, 
E  nos  deixou  sem  norte,  errantes,  vagabundos, 
Abandonando-nos  à  fúria  desses  mares. 
Onde  tentamos  descobrir  uns  novos  mundos ! 


IO 


OBRAS         co:mpi,btas 

E,  quais  Telémacos  entregues  ao  furor 
Das  tempestades  e  dos  deuses  vingativos, 
Nós  viajamos  em  procura  dum  amor 
Que  vive  longe...  entre  arvoredos  primitivos! 

Vive  encantado,  e  simplesmente  os  leais  amantes 
Têm  para  ele  uma  varinha  de  condão 
Que,  numa  noite,  os  faz  andar  terras  distantes 
E  um  rochedo  converter  num  coração! 

O  amor  existe.  É  o  eterno  sol  auroreal 
Oue  de  flores  esmalta  nosso  sentimento. 
Quem  for  capaz  de  amar  possui  todo  o  Ideal, 
Quem  tem  um  coração  é  o  Deus  dum  firmamento! 

Mas  quantas  ilhas  desoladas  visitamos ! 

De  que  tormentos  e  naufrágios  e  perigos. 

Por  milagre  de  Deus,  apenas  nos  salvamos. 

Meus  companheiros  da  Aventura,  ó  meus  amigos ! 

Mas  essa  Grécia,  aquela  praia  desejada 

Das  velhas  naus,  em  pouco  tempo,  heis-de  avistar... 

Já  no  horizonte  é  como  nuvem  desmaiada, 

E  um  lenço  branco  que  pra  nós  está  a  acenar ! 

Já  se  distinguem  bem  as  linhas  sinuosas 
Daqueles  montes  onde,  um  dia,  nós  nascemos... 
Ivá  nos  esperam  outras  almas  venturosas 
Que  nos  hão-de  entregar  aquilo  que  perdemos ! 

Do  nosso  lar  o  fumo  perde-se  no  espaço. 
Nossa  terra  natal  já  se  descobre  além... 
Dois  braços  eu  avisto  abertos  num  abraço, 
K  naquele  alto,  à  nossa  espera,  eu  vejo  alguém ! 

Oue  lindo  mar!  Olhai,  vede  nascer  a  aurora! 
Como  brilha  no  céu  a  estrela  da  manhã ! 
O  mundo  unicamente  é  mau  para  quem  chora, 
B  é  feliz  quem  tiver  outra  alma  sua  irmã ! 


II 


TEIXKIRA        DE        PASÇO    A    ES 

Já  o  sol  apagou  a  estrela  matutina; 
Num  dilúvio  de  luz  parece  tudo  arder ! 
Ela  fugiu  da  imensidade  cristalina 
Para  no  nosso  coração  amanhecer!... 

Coimbra,  20  de  Março  de  1901. 


JESUS  I  PÃ 

[1.-  edição,  Porto,  Li\Taria  José  Figueirinhas 

Júnior,  1903] 


Brancas  nuvens  do  azul,  ó  peitos  criadores, 
Aonde  vão  mamar  os  ramos  sequiosos 
O  leite  que  alimenta  os  ribeiros  e  as  flores, 
B  que  as  pedras  envolve  em  musgos  piedosos. 

Gotas  d'água  a  cair  num  húmido  prazer 
Que  lampeja  num  sonho  imenso  de  ventura, 
Sob  os  beijos  da  chuva,  eu  sinto  alvorecer, 
Dentre  os  lábios  da  terra,  o  riso  da  Verdura... 

A  cor  verde  que  nasce  é  um  sonho  d'alma  infindo, 
É  um  sentimento  ideal  do  coração  dos  montes, 
Que  seus  roxos  perfis  longínquos  vai  florindo, 
Como  um  lírio  a  mudar-se  em  vastos  horizontes. 

Depois  irrompe  o  sol,  ébrio  de  fortaleza, 
Nas  cousas  infiltrando  o  vinho  da  energia... 
Sensação  infinita  abraça  a  Natureza, 
B  nos  rochedos  arde  o  beijo  da  Harmonia!... 

Há  penhas  que  um  pudor  suave  ruboriza. 

Há  rosas  a  chorar  e  árvores  que  desmaiam... 

São  sorrisos  d'amor  os  murmúrios  da  brisa 

E  têm  um  lácteo  aroma  as  ondas  que  se  espraiam.., 

15 


TBIXBIRA        DB        PASCOAES 

B  O  Sol,  o  procriador  imenso  e  sempiterno, 
Pálido  de  prazer,  descansa  sobre  o  mar... 
Os  seres  arrefece  uma  impressão  d'inverno, 
Sente-se  cada  cor  gritante  desbotar. 

A  Paisagem  medita  extática...  e  entristece... 
Concentra-se  num  sonho  a  ardente  claridade. 
Uma  melancolia  as  cousas  enternece 
K  nas  almas  o  luar  derrama  a  Piedade... 


OBRAS  COMPLETAS 


UM  VELHO 


Lá  no  alto  duma  serra  íngreme  e  penhascosa, 

Onde  o  luar  é  uma  canção  misteriosa, 

Onde  pairam,  gritando,  os  corvos  das  procelas 

E  donde  o  nosso  olhar  bebe  a  luz  das  estrelas. 

Que  vai  alimentar  a  célula  secreta 

Onde  reside,  em  sonho,  a  inspiração  do  poeta!... 

Numa  serra  onde  vêm,  em  lágrimas,  pousar 

Negras  nuvens  do  sul,  cansadas  de  voar; 

E  aonde  chega,  como  sombra  indefinida, 

Ou  como  um  sonho  vago,  o  cântico  da  vida... 

Numa  serra  onde  um  rio  é  fonte  pequenina 

E  donde  a  terra,  ao  longe,  é  pálida  neblina. 

Em  que  a  Distância  põe  uns  nimbos  azulados, 

Como  chagas  a  abrir  ou  lírios  macerados, 

Além  dos  quais  palpita  o  clarão  infinito 

Da  Essência  que  animou  os  astros  e  o  granito. 

Vivia  outrora  um  Velho,  em  cujos  olhos  vagos, 

Que  assemelhavam  dois  profundíssimos  lagos, 

Tremiam,  num  fulgor,  reflexos  profundos 

De  grandes  sóis  a  arder,  de  iluminados  mundos!... 

Eram  tristes  clarões  de  sonhos  insondáveis, 

Como  as  areias  do  deserto,  inumeráveis, 

Que  nos  seus  olhos  ideais  transpareciam. 

Tão  brilhantes  que  o  próprio  sol  apagariam... 

Numa  serra  vivia  ao  sol,  à  chuva  e  ao  vento... 

E  eram  a  chuva  e  o  sol  seu  único  sustento. 


J7 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Fui  visitar,  um  dia,  esse  velho  enigmático, 
D'olhos  perdidos  no  Além,  sempre  cismático... 
Sua  fronte  que  o  sonhar  tanto  empalideceu 
Era  a  continuação  nevoenta  do  céu. 
Seu  triste  rosto  tão  pálido  e  desmaiado 
Assemelhava  um   sítio   ermo,   despovoado... 
Encontrei-o,   de  pé,   sobre  um  rochedo  altivo 
Que  par'cia  tremer  como  se  fosse  vivo, 
Como  se  fosse  da  alma  o  místico  fluido 
Do  cérebro  do  velho  à  pedra  transmitido... 
Voltado  para  o  ar  que  a  tarde  entristecia, 
Ai,  tudo  o  que  eu  não  vejo  esse  velhinho  via... 
E  palavras  de  luz  tão  baixo  soletrava... 
E  o  que  pra  mim  era  silêncio,  ele  escutava... 
E  logo  conheci  que  ele  entendia  tudo 
O  que  prós  outros  é  escurecido  e  mudo... 
E  logo  vi  que  havia  alguma  intimidade 
Entre  os  olhos  do  velho  e  a  infinda  imensidade, 
Que,  de  longe,  o  seu  corpo  estranho  e  singular 
Havia  o  quer  que  é  dum  astro  a  cintilar... 


OBRAS  COMPLBTA.S 


PRIMEIRA  FAIvA 


Olhos  postos  no  Além,  sobre  a  altiva  montanha, 

Num  frouxo  de  delírio  e  de  loucura  estranha, 

Desta  loucura  excepcional  em  que  transluz 

Do  verdadeiro  génio  a  sempiterna  luz; 

Num  grande  ataque  de  delírio  iluminado 

Que  aos  homens  dá  a  visão  de  tudo  o  que  é  igno- 

[rado, 
Que  num  cérebro  acende  a  esplêndida  fogueira, 
À  luz  da  qual  se  mostra  a  vida  verdadeira; 
Num  ataque  auroreal  de  divina  loucura 
Que  é  uma  voz  do  Além  que,  dentro  em  nós,  mur- 

[mura 
E  para  a  qual  os  outros  homens  têm  somente 
Desconfiado  olhar  de  medo,  inconsciente. 
Embora  seja  a  verdadeira  Intuição, 
A  palavra  de  Deus  e  da  Revelação; 
Num  delírio  que  imita  o  delirar  do  vento 
E  a  vertigem  do  fogo  a  crepitar,  sangrento, 
O  quimérico  Velho,   à  toa,  caminhava 
E  às  estrelas  do  céu,  pálido,  assim  falava: 
«Sinto  que  sou  um  sol,  minhas  mãos  são  luar. 
Minha  face  é  de  luz,  de  fogo  é  o  meu  olhar, 
Ouço  meus  nervos  crepitar,  vejo  um  brasido 
No  meu  cérebro  ardente  a  chamas  reduzido!... 
E  cada  célula  é  uma  chama  auroreal 
Que  faz  de  mim  uma  fogueira  excepcional! 

í9 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Sinto  meu  coração  todo  mudado  em  brasas... 
Palpitantes  clarões  como  o  bater  das  asas... 
Que  luz  eu  sou !  Luz  infinita !  Ó  luz  imensa, 
Donde  não  sai  do  fumo  a  noite  escura  e  densa! 
E  o  que  eu  consigo  ver !  O  que  eu  descubro,  ó  Deus  ! 
Como  se  torna  transparente  o  azul  dos  céus ! 
Que  poder  de  visão  meus  grandes  olhos  têm ! 
É,  através  de  mim  mesmo,  o  que  meus  olhos  vêem ! 
Se  me  aventuro  a  entrar  na  noite  do  Passado, 
Que  mundo  vejo  então,  ignoto,  ilimitado ! 
Ó  estranhas  visões !   Inéditas  imagens 
De  Planetas  subtis,  de  espirituais  paisagens, 
Que  assim  fazeis  vibrar  meu  cérebro  irradiante 
Numa  nova  impressão  transcendente  e  distante!... 
Ó  alucinação  enorme  dos  sentidos ! 
Palavras  que  jamais  feristes  meus  ouvidos 
Como  eu  vos  ouço  bem !  Aspectos  imprevistos 
Por  outros  olhos  ansiosos  nunca  vistos, 
O  incêndio  da  Loucura  e  da  Alucinação 
Por  sobre  eles  derrama  um  imenso  clarão!... 
Quem  sabe?  Talvez  seja  o  verdadeiro  mundo 
O  que  a  loucura  mostra  a  um  cérebro  profundo, 
O  que  a  alucinação,  etérea  como  o  ar. 
Desenha,  num  fulgor,  perante  o  nosso  olhar!... 
Que  infinito  clarão  todo  o  meu  ser  deslumbra ! 
Visões  que  ides  morrer  num  fundo  de  penumbra, 
Além  da  qual  o  meu  espírito  pressente 
Dum  Universo  novo  o  dia  transcendente, 
O  que  vós  revelais  de  grande  e  extraordinário 
Ao  meu  olhar  altivo  e  só  como  um  calvário ! 
Sinto  brilhar  em  mim  uma  estranha  memória 
Que  me  faz  recordar  de  toda  a  minha  história!... 
Como  eu  descubro  claramente!  Como  eu  vejo 
Esse  longínquo  alvor  do  sempiterno  beijo 
Donde  nasci...  De  cada  célula  eu  bem  sinto 
Sua  vida  subtil,   seu  misterioso  instinto... 
Lembro-me  quando  fui  uma  árvore  da  serra, 
Recordo-me  do  tempo  em  que  fui  luz  e  terra! 


20 


OBRAS  COMPIvETAS 

B  a  árvore  que  formou  outrora  este  meu  ser, 
Quase  que  a  sinto  em  mim  dar  sombra  e  flores- 

[cer !... 
E  julgo  ver  os  seus  tecidos  invisíveis... 
Num  íntimo  acordar,  tornarem-se  sensíveis... 
Bstou  a  vê-la  organizar-se  sup'riormente 
Num  cérebro,  que  é  hoje  a  imagem  do  Oriente... 
E  vejo  mais  além...  Eu  vejo  o  frio  mármore 
Enternecer-se  até  ficar  um  tronco  d'árvore... 
E  mais  além  ainda,  ó  vidente  Loucura, 
O  Universo  é  uma  essência  etérea  que  fulgura... 
Ó  tronco  meu  avô,  de  folhagem  vestido. 
Como  me  sinto,  dentro  em  ti,  adormecido ! 
Como  sinto  minha  alma  estranha  e  visionária 
Viver  na  tua  seiva,  ó  árvore  solitária!... 
E  como  o  sangue,  que  meu  cérebro  fecunda 
E  que  duma  energia  enorme  todo  o  inunda, 
Se  recorda  do  tempo  em  que  ele  florescia 
Uma  árvore  sob  a  acção  espiritual  do  dia. 
Então  vivia  eu,  sonâmbulo,  a  sonhar. 
Como  numa  pupila  um  raio  de  luar, 
No  oculto  interior  das  formas  e  das  cousas 
Que  hoje  são  para  mim  sensações  misteriosas. 
Vivia  além  da  luz,  na  grande  escuridão 
Que  era  para  o  meu  ser  um  enorme  clarão 
Que  me  mostrava  um  outro  mundo  nunca  visto. 
Vertiginoso  como  o  espectro  do  Imprevisto ! . . . 
Até  que,  pouco  a  pouco,  uma  impressão  suave, 
Como  o  brando  roçar  das  asas  duma  ave, 
Vinda  d'além  de  mim,  comecei  a  senti-la 
Na  minha  pálpebra  fechada  e  tranquila, 
Fazendo-a  estremecer,  tornando-a  vaporosa, 
Súbito,  trespassando-a  um  mundo  cor-de-rosa... 
De  repente  se  abriu,  num  sonho,  extasiada, 
Por  outra  nova  luz  ficando  deslumbrada!.... 
E  assim  me  revelou  um  mundo  diferente 
Daquele  em  que  vivi  sonâmbulo  e  dormente... 
E  a  sensação  que  minhas  pálpebras  abriu, 


21 


TEIXEIRA        DE        PASÇO  'A    ES 

De  sobre  elas,  num  voo  quimérico  fugiu, 
Deixando  de  ser  luz  para  ser  um  olhar 
Que,  hoje,  um  cérebro  vai  de  imagens  povoar... 
Que  novo  mundo  ante  meus  olhos  se  estendia... 
K  a  minha  própria  alma  em  cada  coisa  eu  via ! 
Se  eu  tinha  olhar,  também  uma  nuvem  olhava, 
Se  eu  chorava,  também  uma  árvore  chorava!... 
Um  lírio  era  uma  alma,  e  no  chorar  das  fontes 
Que  tanto  enternecia  os  vastos  horizontes. 
Ébrios  d'azul,  sob  uma  chuva  de  fulgor. 
Julgava  ouvir  a  voz  da  minha  própria  dor!... 
K  o  gotejar  da  chuva  em  terras  alagadas 
Era  pranto  a  cair  em  faces  descarnadas... 
E  um  negro  corvo  era  pra  mim  a  tempestade... 
B  era  uma  alma  ruim  e  cheia  de  maldade 
A  brancura  da  Lua,  além,  entre  o  arvoredo, 
Que  punha  uma  impressão  atávica  de  medo 
No  silêncio  da  noite,  aflitivo  e  profundo, 
Que,   num  frio  sudário,   amortalhava  o  mundo!... 
É  as  sombras  que  na  terra  as  árvor's  projectavam, 
Que  ao  sibilar  do  vento,  inquietas,  oscilavam, 
Eram  almas  sem  corpo,  espíritos  dos  mortos 
Que  passeavam  além,  quiméricos,  absortos... 
E  a  floresta  sombria,  ao  perpassar  do  vento, 
Exalava  um  gemido,  um  sinistro  lamento. 
Tinha  um  ar  de  mistério  obscuro  e  de  demência, 
Onde  acendia  o  luar  branca  fosforescência... 
Cinza  de  luz,  um  fogo-fátuo  sem  calor. 
Sobre  o  mundo  a  cair  num  glacial  palor... 
E  mais  além,  aonde  é  mais  profunda  a  treva. 
Onde  o  álgido  luar  que  sobre  os  ramos  neva, 
Mal  chega  à  terra,  de  repente,  se  derrete. 
Eu  via  vaguear  sombras  como  as  do  Hamlet, 
Naquele  gesto  de  delírio  e  de  loucura, 
Ofélia,  que  ele  teve  ao  ver  tua  sepultura ! 
Leves  sombras,  Senhor,  pálidas,  cadavéricas. 
Num  vago  murmurar  de  palavras  quiméricas 
E  num  clarão  que  ainda  o  meu  olhar  deslumbra, 


22 


OBRAS.        COMPIvBTAS 

Perpassavam  além,  na  pesada  penumbra, 

Onde  o  silêncio  era  de  gelo  e  onde  tombavam 

As  verdes  folhas  que  nos  troncos  eriçavam 

D'álgido  medo,  e  aonde  o  carvalho  titânico. 

Sem  um  gesto  e  uma  voz,  petrificou  de  pânico ! 

Mas,  súbito,  o  quer  que  é  de  estranho  e  d'anormal 

Sobressaltava  a  erma  noite  sepulcral, 

E  então  a  noite  imensa  oscilava,  tremia... 

Era  o  alvorecer  suavíssimo  do  dia 

Que  brotava  dalém  da  serra,  ainda  hesitante, 

Até  que  o  sol,  um  Deus,  surgira  triunfante! 

Era  um  cisne  de  luz  que  este  mundo  esqueceu, 

Orgulhoso,  a  nadar  no  lago  azul  do  céu, 

Até  que  vítima  da  seta,  cruelmente, 

À  tarde  foi  cair,  ferido,  no  Poente... 

Este  mundo  era  outro.  A  luz  do  sol  reinava. 

E  via  que  essa  luz  meu  ser  aperfeiçoava... 

Principiei  a  cavar  a  terra  e  a  semeá-la, 

Comecei  a  chamar-lhe  mãe  e  a  adorá-la. 

E  as  florestas  doutrora  as  Ninfas  povoaram 

E  um  perfume  bendito  as  flores  exalaram. 

Na  roxa  luz  da  tarde,  entre  os  canaviais. 

Passavam   corpos   deslumbrantes   e  ideais 

Que  punham  manchas  de  luar  entre  o  arvoredo 

E  reflexões  de  rosa  a  abrir  cheia  de  medo... 

E  atrás  deles  corria,  em  lágrimas  banhado, 

Branco  perfil  dum  Deus,  inquieto  e  enevoado. 

Que  ia  ocultar-se,   além,  no  verde  da  ramagem... 

E  o  aroma  da  volúpia  embriagava  a  Paisagem 

E  doce  sensação  o  bosque  enternecia, 

E  por  fim,  num  desmaio,  ele  empalidecia... 

A  terra  tinha  um  ar  de  alegre  mocidade. 

Apolo  semeava  o  oiro  da  claridade, 

E  Diana  caçava  entre  os  matos  bravios 

E  tinha  uma  paixão  imensa  pelos  rios ! 

Como  ela  se  abraçava,  envolta  numa  bruma, 

Ao  seu  líquido  corpo  alvíssimo  de  espuma... 

íris,  a  mensageira,  era  um  voo  luminoso, 

23 


TEIXEIRA       DB        PASCOABS 

B  o  loiro  Pã  vivia  alegre  e  venturoso 
Pelos  campos  em  flor,  onde  encontrava  Flora, 
Com  um  lírio  na  mão  e  nos  olhos  a  aurora. 
Nas  grutas  do  Oceano  habitavam  sereias, 
E  as  verdes  ondas,  ao  luar,  nas  marés  cheias 
Pareciam  temer  o  búzio  de  Tritão 
Que  lançava  no  mar  a  negra  cerração. 
Velhos  Faunos,  com  pés  de  cabra,  nos  outeiros 
Tinham  sorrisos  maliciosos  e  brejeiros, 
Pra  alguma  Ninfa  sempre  a  dar-se  e  sempre  es- 

[quiva. 
Sempre  junto-de  nós  e  sempre  fugitiva ! . . . 
B  Vulcano  fazia  escudos  deslumbrantes 
Que  as  Deusas  vinham  dar  aos  seus  mortais  aman- 

[tes. 
B  ao  lado  deles,  muitas  vezes,  guerreavam 
B  das  Parcas  cruéis  assim  os  libertavam. 
Até  caírem  sobre  a  terra,  com  feridas 
Que  eram  lírios  a  abrir,  rosas  estremecidas. 
Donde  manava  um  claro  sangue  incorruptível, 
Como  um  dorido  fumo  azul,  quase  invisível... 
Bra  o  tempo  em  que  sobre  a  Terra  alegre  e  mansa. 
Como  num  verde  olhar  a  imagem  da  Bsperança, 
Com  um  perfil  de  flor  e  mãos  de  primavera, 
Com  verdes  olhos  onde  crescem  folhas  d'hera, 
Com  claros  peitos  de  neblina  fecundante. 
Gerados  no  interior  do  Oceano  soluçante, 
Vénus  reinava,  toda  luz  e  toda  amor... 
Este  mundo  era  então  uma  infinita  flor!... 
Súbito,  do  Oriente  irrompe  nova  luz: 
Bra  o  lúcido  alvor  da  ideia  de  Jesus. 
Nossos  olhos  mortais  a  Terra  abandonaram 
B,  a  caminho  do  céu,  as  asas  agitaram. 
O  prazer  vestiu  luto  e  a  Alegria  chorou, 
O  aroma  do  perdão  as  almas  inundou. 
Os  pálidos  jejuns  e  a  triste  castidade, 
A  vida  solitária,  a  paz  da  soledade, 
O  desprezo  do  mundo,  os  ásperos  cilícios, 

24 


OBRAS  COMPLETAS 

Longas  meditações  e  duros  sacrifícios, 

Ao  nosso  antigo  rosto  alegre  e  descuidado 

Deram-lhe  a  palidez,  tornaram-no  encovado... 

Mas,  dentro  em  pouco  tempo,  o  claro  azul  do  céu 

Foi  desbotando  até  que  toda  a  cor  perdeu. 

E  hoje  já  não  é  mais  que  um  espaço  vazio, 

Desolado  areal  ermo,  estéril  e  frio. 

Onde  outros  mundos  remotíssimos  gravitam 

E  onde  as  brasas  dos  sóis,  entre  chamas,  crepitam. 

Não  existe  uma  fé.  Os  homens  desvairados 

Vê-se  que  foram  lá  do  céu  precipitados 

Sobre  esta  terra  que  ficou  gelada  e  erma... 

E  a  Humanidade  sofre,  a  humanidade  é  enferma; 

Consome-a  uma  doença  enorme  e  tenebrosa. 

Cuja  cura  parece  ainda  misteriosa. 

Tremem  os  corações,  toda  a  terra  estremece. 

Um  frio  desespero  os  rostos  entristece. 

Paira  por  sobre  o  mundo  um  crepúsculo  triste. 

A  Fé  morreu.  A  mocidade  não  existe... 

E  uma  impressão  de  solidão  e  d'abandono 

Às  almas  faz  o  que  nos  campos  faz  o  outono. 

Tudo  ensombra,  sem  dó,  espesso  nevoeiro. 

Tomba  no  nosso  sangue  a  geada  de  janeiro ! 

Que  doença  fatal !  Doença  sem  remédio ! 

Micróbio  da  Descrença !  Oh  bacilo  do  Tédio ! 

Por  sobre  as  almas  cai,  num  constante  lamento, 

Chuva  baça  que  torna  o  ar  todo  cinzento, 

Um  ar  húmido  e  mole  e  sempre  a  gotejar 

Água  triste  que  vai  sobre  as  folhas  gelar... 


TBIXBIRA        DB        PASCOA.BS 


UMA  VOZ 


Só  eu  tenho  a  ciência  ideal  de  transformar 

Vagas  imagens  em  sensações... 
Sou  a  eterna  loucura,  o  eterno  delirar, 

Sou  o  Pintor  estranho  das  visões ! 

Sou  a  Alucinação  que  traz  a  uns  olhos  tristes 
Um  quimérico  mundo  excepcional ! 

É  por  amor  de  mim,  ó  Deus,  que  tu  existes, 

Só  eu  vejo  o  que  há  de  estranho  e  d'anormal ! 

Sou  revoltada  paz  e  tempestade  amena, 

É  tudo  verdadeiro  à  minha  luz; 
Mostrei  Maria  a  Bemardette  e  à  Madalena 

Apontei-lhe,  sorrindo,  o  vulto  de  Jesus ! 

Acendo  a  luz  do  dia  e  os  olhos  de  quem  reza, 

Sobre  as  almas  derramo  o  bálsamo  da  Dor... 

Nas  minhas  asas  voou  Santa  Teresa 
Em  procura  do  seu  divino  amor ! . . . 

A  imagem  da  Atracção  num  fruto  eu  desenhei, 
De  Go3^a  sou  a  alma  incompreendida... 

Tuas  canções,  Ofélia,  eu  fui  quem  as  cantei, 
Num  desafio  à  noite  enlouquecida ! 

26 


OBRAS  COMPI^BTAS 

Pelos  meus  lábios  fala  a  tempestade, 

Do  que  não  é  sentido  eu  sou  a  sensação!... 

Dos  olhos  dum  profeta  eu  sou  a  claridade, 
Sou  o  murmúrio  da  Revelação ! 

Bu  sou  a  tua  alma,  ó  Hamlet  sombrio, 

B  esse  espectro  terrível  que  tu  viste... 

Fui  eu  que  meditei  sobre  um  crânio  vazio. 
Na  trágica  visão  de  tudo  quanto  é  triste ! 

Bnigmático  duque,  ó  pálido  Manfredo, 

Bu  fui  da  tua  alma  os  tristes  cataclismos ! 

Pus  nos  teus  olhos  uma  fada  e  um  arvoredo. 
Contigo  desejei  lançar-me  nos  abismos ! 

Sou  o  luar  do  Desmaio,  o  clarão  da  Vertigem, 

Só  eu  produzo  o  verdadeiro  dia ! 
Sou  a  alma  do  Imprevisto,  o  segredo  da  Origem, 

Sou  um  caos.  Senhor,  todo  harmonia!... 

Sou  o  génio  da  Luz  eterno  e  poderoso. 

Ainda  ignoto,  ainda  incompreendido... 

Vivo  nos  corações  oculto,  misterioso. 

Como  a  sombra  da  Noite  e  do  Desconhecido!... 


TEIXEIRA       DE       PASCOAES 


SEGUNDA  FALA 


Sinto,  às  vezes,  em  mim,  aquele  incêndio  trágico 
Da  cólera  que  irrompe  em  chamas  de  furor... 
B  a  este  meu  coração  alucinado  e  mágico 
Desvenda-se  um  aspecto  ignoto  do  Amor. 
Sinto  dentro  de  mim  a  alma  da  Tempestade 
E  no  meu  peito  fez  seu  ninho  a  Destruição. 
Há  momentos  de  dor,  de  fúnebre  saudade 
Em  que  todo  o  Universo  é  um  mar  de  escuridão ! 
Há  horas,  nesta  vida,  em  que  tudo  o  que  existe 
É  nuvem  tormentosa  e  escura  de  trovoada... 
As  árvores  têm  um  ar  desiludido  e  triste 
E  a  própria  luz  do  dia  é  treva  disfarçada... 
Há  horas  em  que  a  Vida  é  um  pântano  miasmático, 
Onde  passeia  triste  a  pálida  Doença, 
Quando  o  Poeta  fica  angustioso  e  cismático. 
Solitário,  a  chorar  sobre  uma  noite  imensa!... 
Horas  de  Negação,  momentos  de  Niilismo, 
Quando  uma  voz  de  morte  e  de  descrença  escuto. 
Quando  o  Nada  se  vai  sentar  sobre  um  abismo. 
Quando  a  própria  Esperança  anda  toda  de  luto... 
Nestes  momentos,  cada  homem  é  uma  fera; 
O  amor  abandonou,  em  lágrimas,  seu  peito. 
Morreu  no  seu  olhar  o  clarão  da  Quimera, 
Fez-se  na  sua  alma  a  noite  do  Imperfeito ! 
Cada  cérebro  humano  é  floresta  sombria. 
Onde  há  ideais  que  se  trucidam,  num  delírio! 

28 


OBRAS  COMPIvBTAS 

Cada  célula  sofre  uma  grande  agonia, 

E  vibram  cada  nervo  impressões  de  martírio ! 

Dir-se-á  que  a  Natureza  inteira  arrependida 

Hesita  em  continuar  sua  marcha  triunfante... 

Dir-se-á  que  a  luz  do  sol,  esse  foco  da  vida, 

É  cansado  de  ser  fecundo  e  deslumbrante! 

Penetra  a  alma  humana  um  nevoeiro  espesso, 

Os  homens  são  do  Bem  os  tristes  fugitivos... 

Nos  seres  há  um  desejo  louco  de  regresso 

Aos  instintos  brutais  dos  tempos  primitivos ! 

Dir-se-á  que  em  cada  coisa  a  Essência  empalidece. 

Que  a  semente  do  Bem  está  p'ra  estiolar... 

É  o  perfil  da  Verdade  anémico  arrefece, 

Diluindo-se  no  esforço  absurdo  de  chorar! 

É  nestas  horas  que  meus  olhos  incendeia 

A  cólera  divina,  o  desespero  insano, 

Quando  vejo  a  agonia  infinita  da  Ideia 

E  o  frio  empedernir  do  coração  humano ! 

Eu,  que  fiquei  ovelha  entre  lobos  danados 

E  uma  inocente  pomba  entre  sinistros  corvos. 

Sinto  a  cólera  ideal  dos  grandes  indignados 

E  um  clarão  de  furor  sobre  os  meus  olhos  torvos ! 

Aos  meus  ouvidos  vêm  gritos  de  desespero, 

E  a  Justiça  a  gritar,  sozinha,  por  mim  passa! 

Vejo  rostos  que  têm  um  ar  medonho  e  fero, 

O  ódio  é  um  facho  a  arder  na  noite  da  desgraça ! 

Vejo,  ao  longe,  toldar  o  roxo  da  distância 

Sinistra  multidão  donde  saem  rumores... 

Há  rostos  onde  brilha  uma  infinita  ânsia, 

Há  olhos  ideais  orvalhados  de  dores ! 

Vejo  corpos  que  vão  macilentos  e  nus, 

E  vultos  a  pregar  num  gesto  incendiário... 

Almas  todas  perdão  que  nos  lembram  Jesus 

E  peitos  a  sangrar  que  lembram  o  Calvário... 

Ó  triste  multidão  de  réprobos  e  heróis. 

Negra  nuvem  humana  a  anunciar  tempestade, 

Desprende-se  de  ti  um  chuveiro  de  sóis. 

Levantas,  caminhando,  um  pó  de  claridade! 

29 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Bem  conheço  que  lavra  em  ti  aquela  chama 
Da  cólera  de  Deus  que  em  meu  peito  crepita... 
Bem  sei  que  tua  voz  a  Verdade  proclama, 
Bem  sei  que  há  no  teu  ódio  a  Bondade  infinita ! 
Por  isso,  eu  tenho  em  mim  teu  próprio  sentimento, 
Teu  desespero  turvo  e  revoltada  dor ! 
Quando  em  minh'alma  lavra  o  teu  ódio  sangrento. 
Sinto  em  mim  um  aspecto  ignoto  do  Amor!... 


OBRAS  COMPI^ETAS 


UMA  VOZ 


o  ódio  é  tétrica  nuvem  que  goteja 
Por  sobre  as  almas  lágrimas  d'amor ! 
É  tempestade  que  fulmina  e  que  troveja, 
Para  ficar  o  céu  limpo  de  toda  a  dor!  ... 

Eu  sou  o  Ódio  que  vai  transformar  corações 

Em  chamas  que  libertam... 
Os  meus  rugidos  são,  às  vezes,  orações 
Que  acordam  a  Justiça  e  a  Verdade  despertam ! 

De  mim,  às  vezes,  nasce  a  cólera  sagrada 

Que  os  cérebros  exalta  e  os  homens  transfigura... 

Na  minha  grande  voz  que  prega  e  brada, 

Há  murmúrios  de  linfa  entre  a  espessura ! 

Quando  vou  converter  um  palácio  em  ruínas 
Perto  da  margem  verde  dum  caminho, 
È  pra  que  nele  cresçam  flores  divinas 

E  pra  que  uma  ave  tenha  onde  fazer  o  ninho ! 

Sou  o  Ódio  tremendo,  horrível,  o  colérico 

Esforço  incendiário: 
E  qualquer  cousa  eu  sou  de  santo  e  de  quimérico, 

De  triste  e  solitário... 

Quem  através  de  mim,  num  sonho,  caminhar 

Encontrará  o  Amor. 
Das  almas  sou  oriundo  assim  como  o  luar 

E  sou  filho  da  Dor ! 


31 


TEIXEIRA        PE        r    A    S    C    O    A    E    S 


TERCEIRA   FALA 


Minha  face  golpeia  um  vento  de  tristeza, 
Que  é  como  um  ai  qne  vem  da  alma  da  Natureza. 
E,  qual  nevoeiro,  o  Krmo  às  cousas  vela  a  face; 
Sob  esse  orvalho  a  flor  da  solidão  renasce, 
Emanando  nm  perfume  onde  há  a  melancolia 
Da  montanha,  v!o  :v   r  e  do  findar  do  dia.,. 
E  uma  longínqua  voz  humana  e  transcendente 
Os  meus  ouvíj.  s   -  :^  chorar  perdidamente... 
E  o  meu  es;  'ri:     ,  \  '   ' ;  ^  e  vagabundo 
0.:'7  .s  alm..-     ........  ^  \  .u  de  mundo  em  mundo. 

O;:::...-  ;.',:r...s.   S. .....: .   L\-:e  Universo  tem, 

E  ^-■.:  ;:;:•.  s;  .■.:-.v..^  c  \":\r  ^L::;  "*::i:uém! 

F::;   j.-.,;.-.    ■,..::.;,    . :;;   ^.■..■.:   "•.:/.  v:::  j.:.'."»  ramo 

H--.   -.::"    v;:-.:c,".;    .y.:.    .■.■.:•..:   .:^^■::;   vr::-,r  eu  amo; 

H-:   ;:::-.    .\'v.-.::.,    .;.:.    vivo.    •.:::.;   ,:";y..i   iluminada 

O  -  ■- .      . : .  i  o  nosso  c . . . :. '.'  c  .  -   .  o  1 1 1  mitada ! . . . 

Existe  numa  flor  um  ò.:     -     :imento 

E  há  lágrimas  de  dor  nas  ^       clr.^.s  do  vento! 

Altas  aspirações  fizeram  altos  :es 

"B  v.-^  amor  fez  brotar  da  terra  a  ..í:  aa  das  fontes !. 

A  c-     '-^^'.nça  acendeu  estrelas  -  '    '  -  s 

F  de       •   ?  vestiu  planícies  r-  ;      ;< 

S  ■  ::o    .-   ::  r^as  derrama  a  c  :     ^  .  a  da  Lua 

E  ..  O.C      d>  Sol  numa  n.     .       a  nua, 

Pr  5;  drc  r.  .     .1  se  vêem  etcr.   s  \  durações, 

H.-r:i:o:::.i5   s;:l:is,  miste^io^-■^  cuicdcs 


3^ 


OBRAS  CO^IPLETAS 

Que  se  elevam  no  ar,  fazendo-o  enternecer 

Até  às  lágrimas  sem  fim  do  anoitecer. 

A  que  distância  está  meu  coração  magoado 

Do  Deus  que  ainda  não  foi  aos  homens  revelado, 

E  desse  mundo  obscuro  onde  as  almas  palpitam, 

E  onde  através  do  Amor  espíritos  gravitam, 

Xuma  grande  esperança  e  infinda  ansiedade. 

Onde  transluz,  como  um  relâmpago,  a  \'erdade! 

A  que  distância  estou  desse  Planeta  etéreo. 

Desse  mundo  de  luz,  de  sonho  e  de  mistério!... 

Como  tão  longe  sou  das  almas  das  montanhas, 

Das    suas    sensações    quiméricas   e   estranhas ! 

O  espaço  tem  pra  mim  um  ar  de  indiferença, 

E  de  mim  próprio  eu  vivo  a  uma  distância  imensa... 

Eu  sou  da  minha  alma  a  fria  solidão. 

Da  minha  própria  luz  eu  sou  a  escuridão ! 

Vejo  meu  ser  passar,  ao  longe,  na  Distância, 

Como  sombra   onde  brilha  uma  infinita   ânsia, 

Como  nuvem  escura  onde  murmura  o  luar, 

Como  treva  onde  a  luz  se  sente  palpitar ! . . . 

\'ejo  perder-se  além  dum  escalvado  monte, 

Como  um  pálido  alvor  além  dum  horizonte. 

Este  meu  ser  que  é  uma  onda  à  luz  da  Lua, 

Que  é  um  raio  de  sol  doirando  escura  rua. 

Um  tronco  d' árvore  que  uma  vez  floresceu 

Ao  sentir  a  impressão  azul  que  vem  do  céu... 

Uma  estranha  impressão  que  o  sensibilizou 

E  que  seu  claro  sangue  em  flores  transformou; 

Em  flores  ideais  que  depois  se  mudaram 

Em  aromas  subtis  que  o  espaço  enevoaram... 

Virgínias  nuvens  transcendentes  de  fulgor 

Que  parecem  a  essência  onde  germina  o  Amor 

Ou  nebulosa  sideral  e  indefinida. 

Que  é  um  beijo  que  Deus  dá  para  criar  a  Vida. 

Mas,  ai,  a  que  distância  eu  de  mim  próprio  vivo  ! 

Prós  meus  olhos  meu  ser  é  um  raio  fugitivo. 

Um  efémero  clarão  ou  nuvem  passageira 

Que,  no  seu  voo,  sobre  esta  terra  que  é  estrangeira, 

33 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Deixa  cair  somente  uma  lágrima  triste, 

Um  resumo  piedoso  e  terno  do  que  existe; 

O  símbolo  do  sol,  a  imagem  dum  planeta 

Ou  do  orvalho  a  tremer  nuns  olhos  de  violeta... 

Às  vezes  interrogo  os  vastos  arvoredos. 

Mas  não  me  dizem,  não,  um  só  dos  seus  segredos... 

B  fazem-me  lembrar  —  oh  trágico  desgosto!  — 

Uma  donzela  que  nos  volta  o  frio  rosto 

Se,  por  acaso,  para  ela  caminhamos 

E  já  de  perto,  com  amor,  nós  lhe  falamos... 

Ou  uma  estátua  que  me  causa  esta  tristeza 

De  a  palpar  e  sentir  apenas  a  frieza ! 

A  lágrima  d'amor  que  meus  olhos  constela 

Vejo-a,  como  quem  vê  uma  longínqua  estrela. 

Como  quem  vê  um  grande  sol  iluminado 

Nas  frias  névoas  da  Distância  asfixiado!... 

Quantas  vezes  não  chega  a  luz  aos  meus  ouvidos 

Em  murmúrios  que  são  —  oh  dor! — indefinidos... 

Últimos   sons  talvez  de  palavras   perfeitas 

Que  apenas  ouvem,  sobre  a  terra,  almas  eleitas... 

As  nuvens  do  azul  variáveis,  femininas. 

Não  olham  para  mim  das  regiões  cristalinas. 

E  dentro  delas  vive  em  ânsias  e  palpita 

Do  gérmen  criador  a  Vontade  infinita!... 

Passo  horas  a  aspirar  o  aroma  duma  flor, 

A  ver  se  compreendo  aquele  etéreo  amor; 

Mas  essa  sensação  que  dentro  em  mim  eu  sinto 

É  um  pálido  luar  moribundo  e  indistinto. 

Como  uns  lábios  que  vão  falar  verdade  à  gente 

No  momento  em  que  a  morte  os  fecha,  de  repente  I 

Quantas  vezes  me  sento  à  beira  dum  abismo 

E,  sobre  o  seu  mistério  escuro,  eu  cismo...  cismo... 

E  apenas  sinto  em  mim  os  flocos  glaciais 

Da  negra  neve  do  silêncio...  e  nada  mais! 

E  se  observo  o  luar  que  nesta  serra  neva 

E  o  fumo  que  ao  sol-pôr,  quimérico,  se  eleva 

Acima  do  arvoredo  e  das  mais  altas  casas, 

Como  se  acaso  nele  palpitassem  asas, 

34 


OBRAS  COMPLETAS 

Vejo  o  fumo  e  o  luar  morrerem  num  abraço, 
Tão  pálido  que  faz  entristecer  o  espaço ! . . . 
K  dessa  grande  dor,  dessa  infinda  saudade 
Que  sobre  nós  derrama  a  luz  da  eternidade, 
Apenas  vemos  uma  nuvem  a  voar 
Sem  descanso,  assim  como  uns  olhos  a  chorar. 
Com  que  amor  eu  estudo  os  ramos  florescidos 
Que  no  mármore  do  azul  parecem  esculpidos, 
E  o  seu  gesto  de  luz,  a  verde  desenhado, 
B  o  seu  perfil  em  flor  do  sol  todo  corado, 
B  os  seus  lábios  que  têm  palavras  transcendentes 
Para  as  nuvens  do  céu,  sonâmbulas,  dormentes. 
Para  a  fonte  que  sonha  além,  num  canto  escuro, 
Para  um  fruto  a  chorar,  pálido,  já  maduro, 
Para  a  aflição  da  inércia  em  que  vive  um  rochedo 
B  para  a  dor  que  faz  gritar  um  arvoredo! 
Com  que  amor  eu  estudo  o  Sol  que  tudo  cria. 
Com  que  ternura  eu  beijo,  orando,  a  luz  do  dia... 
B  a  sensação  subtil  que  no  ar  ela  produz 
Bsconde-a,  no  seu  seio  imaterial,  a  luz 
Que  somente  nos  dá  uma  ilusória  imagem 
Dum  rosto,  duma  flor,  dos  tons  duma  paisagem. 
Numa  bênção  d'amor,  no  frio  rosto  meu. 
Nunca  pousou,  sorrindo,  o  doce  olhar  do  céu... 
B  essa  imagem  azul  que  em  meus  olhos  acende 
Ê  uma  sombra  ideal,  mas  que  ninguém  entende 
Como  ela,  lá  do  céu,  p'ra  uns  olhos  transmigrou 
B  como,  num  fulgor,  meu  cérebro  doirou, 
Fazendo-o  estremecer  na  doce  vibração 
Que  acende,  dentro  em  nós,  a  luz  da  Inspiração... 
Qual  o  laço  que  prende  a  harmonia  dum  verso, 
A  tudo  o  que  há  de  azul  e  etéreo  no  Universo ! 
Oh  mistério  infinito !  Bscura  noite  densa. 
Onde  agoniza  o  luar  numa  nuvem  imensa ! 
Onde  há  vozes  que  vão,  tristes,  desfalecer 
Num  murmúrio  de  dor  que  faz  entristecer... 
São  palavras  de  luz,  vagas,  indefinidas. 
Que  nuns  ouvidos  vão  morrer  incompreendidas... 

35 


TEIXEIRA        DE        PA    SCO    A    ES 

Ó  noite  imensa  onde  há  soluços  e  estertores 

Que  o  vento  leva,  como  pétalas  de  flores ! 

Onde  vagueiam,  como  sombras.  Ansiedades; 

Onde  há  Delírios,  Esperanças  e  Vontades 

Que  se  elevam  no  azul,  que  agitam  grandes  asas, 

Fazendo  voar  a  cinza  onde  agonizam  brasas 

Que  são  espectros  de  Desejos  que  arrefecem, 

Ou  símbolos  de  sóis  vermelhos  que  anoitecem... 

A  noite  do  mistério,  onde  sonha  e  murmura 

Tanta  alma.  Senhor,  e  tanta  criatura, 

Ksse  mundo  de  sombra  e  névoa  e  de  segredo, 

Onde  uma  nuvem  vive  e  onde  habita  um  rochedo, 

Produz-me  uma  impressão  longínqua  e  inatingível, 

Uma  estranha  impressão  oculta,  intraduzível ! 

Perto  de  tanta  alma  e  tanto  coração 

Só  sinto,  ao  pé  de  mim,  a  fria  solidão ! 

Eu  sou  um  solitário,  oh  triste  isolamento ! 

Das  cousas  vivo  só  no  seu  distanciamento! 

E  todavia  este  meu  ser  misterioso. 

Assim  como  uma  flor  dum  tronco  musculoso, 

Da  terra  inteira,  num  abril,  desabrochou... 

E  nunca  mais  donde  saiu  se  recordou ! 

Ficou  um  ser  à  parte,  abandonado  e  triste. 

Não  sabendo  o  que  foi,  ignorando  o  que  existe, 

Embora  noutro  tempo  ele  andasse  disperso 

Por  todo  esse  infinito  e  por  todo  o  Universo. 

Eu  que  vivi  na  consciência  da  Natura, 

Que  fui  a  sensação  de  cada  cousa  escura. 

Eu  que  fui  o  ideal  dos  seres  existentes. 

Porque  olham  para  mim,  frios,  inconscientes 

Do  que  eu  sou  —  eu  que  fui  o  que  eles  são  ainda, 

Eu  que  fui  um  clarão  da  sua  luz  infinda?... 

E  porque  os  vejo  eu  também  nessa  impotência 

De  os  compreender,  eu  que  já  fui  a  sua  essência? 

Porque  é  que  deles  eu  fiquei  tão  afastado? 

Porque  fiquei  eu  duma  flor  tão  isolado? 

Tão  distante  da  luz,  das  nuvens  e  das  fontes. 

Que,  sempre  que  eu  estendo  o  olhar  p'los  horizontes, 

36 


OBRAS        co:mplkta,s 

Ao  ver  as  aves  e  os  pinheiros  da  montanha, 
Olham-me,  como  se  olha  uma  pessoa  estranha ! 
A  distância  a  que  estou  das  outras  criaturas 
É  a  origem  do  meu  mal,  das  minhas  amarguras. 
Sinto  que  é  falsa  e  mentirosa  a  minha  vida, 
Longe  de  ti,  ó  Natureza  estremecida ! 
Eu  preciso  sentir  o  amor  e  o  sofrimento 
Que  acende  a  luz  do  sol  e  faz  voar  o  vento ! 
Por  isso,  eu  luto  sempre  e  sempre  pra  alcançar 
A  energia  do  fogo  e  o  perdão  do  luar, 
A  doçura  dum  lírio  e  a  clara  suavidade 
Que  prende  um  verde  ramo  a  toda  a  imensidade; 
A  justiça  do  sol  e  a  verdade  dos  montes 
E  a  harmonia  que  sai  do  murmúrio  das  fontes... 
Nasci  para  sofrer  a  grande  dor  das  cousas, 
Pra  ser  a  escuridão  das  noites  silenciosas, 
Pra  sentir  na  minh'alma  o  vago  e  o  indefinido 
Que  há  num  raio  de  sol  nas  ondas  reflectido!... 
Para  viver  a  vida  oculta  e  imperceptível 
De  cada  célula  consciente  e  inextinguível... 
/Para  brilhar  em  cada  luz  e  crepitar 
^  Em  cada  chama,  e  ir,  em  fumo,  pelo  ar ! 
Pra  ser  seiva  e  tecer  os  caules  verdejantes, 
Pra  ser  numa  flor  murcha  orvalhos  cintilantes ! 
Eu  nasci  para  ser  a  força  da  Atracção, 
A  chuva,  o  movimento,  a  neve  e  a  solidão. 
Uma  asa,  em  pleno  azul,  a  palpitar  d'amor 
E  o  perfume  subtil  que  gera  cada  flor... 
Nasci  para  viver  a  vida  das  montanhas, 
Para  tremer  nas  suas  convulsões  estranhas, 
Para  sentir  do  vento  o  infinito  delírio 
E  a  ternura  que  o  luar  tem  sempre  para  um  lírio! 
Nasci  para  abranger  os  vastos  horizontes, 
Pra  ter  nos  olhos  meus  as  lágrimas  das  fontes, 
E  nos  meus  braços  esse  gesto  de  brandura. 
De  infinita  bondade  e  infinita  doçura, 
Que  tem  um  ramo  em  flor  que,  enternecido,  ampara 
O  ninho  que  sobre  ele  uma  ave  edificara... 

37  • 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

O  velho  assim  falou.  B  sem  olhar  p'ra  mim, 
Extático  e  absorvido  em  quimeras  sem  fim, 
Com  os  seus  olhos  dilatados,  como  a  querer 
Num  só  olhar  todo  o  infinito  compreender, 
À  sua  gruta  penhascosa  regressou, 
Deixando  um  rasto  luminoso  onde  passou... 
B,  quando  para  além  dum  cerro  se  escondeu, 
Dir-se-ia  que  foi  um  sol  que  anoiteceu... 
Assim  doirava  a  serra  um  pálido  clarão, 
B  eu  senti  na  minha  alma  aquela  solidão... 


OBRAS  COMPIvBTA.S 


UMA  VOZ 


Eu  sou  a  solidão,  alma  do  Ermo, 

Do  Silêncio  descendo... 
Palpita  em  mim  um  coração  enfermo 

Que  vai  arrefecendo... 

Que  infinita  tristeza  inominada 

E  que  infinita  dor ! 
Viver  assim  distante  da  alvorada, 

Tão  longe  duma  flor ! 

Sou  a  Distância,  sou  o  Afastamento, 

Vivo  longe  de  mim. 
Passa,  no  azul,  chorando,  o  doido  vento 

A  solidão  sem  fim ! 

Inspirei  muito  génio  incompreendido 
E  dei  asas  a  muito  coração. 
E  as  estrelas  semeei,  pranto  dorido, 
Na  suprema  e  infinita  solidão ! 

E  toda  a  alma  sente  o  peso  imenso 

Da  minha  negra  cruz. 
Meu  peito  é  um  nevoeiro  escuro  e  denso 

Onde  agoniza  a  Luz. 


39 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Eu  SOU  filha  da  Neve  e  irmã  da  Treva; 

Sou  a  dor  do  Universo, 
Que  o  faz  voar,  que  no  infinito  o  eleva, 

Como  fumo  disperso!... 

Afasto  cada  sol  na  imensidade 

E  as  almas  na  Natureza. 
Sob  a  forma  d'outono  ou  de  saudade, 

Sou  a  imensa  tristeza!... 


OBRAS  COMPLEXAS 


QUARTA  FALA 


Quando  a  Terra  estremece  em  convulsões  de  dor 

E  os  relâmpagos  põem  no  ar  laivos  sangrentos 

E  as  árvores  têm  prò  céu  negros  gestos  d'horror, 

Perante  esse  delírio  eléctrico  dos  ventos... 

Quando  as  ondas  do  mar,  tomadas  de  loucura, 

Se  despedaçam  contra  os  íngremes  rochedos, 

Onde  fica  a  tremer  a  vaporosa  alvura 

Da  espuma  que  nos  conta  insondáveis  segredos; 

Quando  a  lua  a  chorar  o  azul  empalidece, 

Num  desmaio  de  dor,  enorme  e  nunca  visto; 

Quando  o  gelo  da  morte  os  astros  arrefece 

E  os  lírios  onde  existe  a  palidez  de  Cristo, 

Eu  vejo  claramente,  estranha  Natureza, 

O  desespero  que  te  invade  o  coração... 

E  vejo  bem  que  tens  momentos  de  crueza 

De  que  S.  Pedro  foi  um  pálido  clarão! 

Falai  vós,  falai  vós,  ruínas  de  Pompeia, 

Dize  da  tua  dor,  ossada  de  Herculano ! 

Descrevei-me  o  dilúvio,  ó  montes  da  Judeia, 

Falai  da  tempestade,  ó  ondas  do  oceano!... 

Há  tristezas  que  nunca,  nunca  desfalecem, 

Há  sombras  que  jamais  a  luz  há-de  apagar... 

Há  agonias  que  ainda  os  ares  escurecem. 

Há  lágrimas  que  o  sol  não  pode  evaporar! 

Hecatombes  de  dor,  terríveis  cataclismos. 

Sois  manchas  sempre  a  arder  sobre  a  face  da  terra.. 

41 


TEIX:^IRA        DB        PASCOAES 

Feridas  que  imitais  as  bocas  dos  abismos, 

Sangrentas  como  nm  vale  onde  passou  a  guerra!... 

E  tu,  ó  coração  humano,  és  um  resumo 

Da  loucura  do  mar  chamada  tempestade... 

Do  fogo  que  se  esconde  em  negro  e  denso  fumo 

Pra  brilhar,  de  repente,  em  toda  a  claridade ! 

És  filho  dos  vulcões,  nasceste  das  crateras. 

Teu  palpitar  parece  o  estremecer  do  mundo. 

Tens  relances  no  olhar,  duros  como  os  das  feras, 

E  negros  temporais  como  os  do  mar  profundo ! . . . 

Mas,  súbito,  na  tua  enorme  escuridão, 

Misteriosamente,  acende-se  uma  luz... 

Sentimos  um  bater  d'asas  no  coração. 

Há  voos  pelo  ar,  apareceu  Jesus... 

Traz  perfumes  de  flor  um  vento  de  piedade, 

Têm  um  ar  de  quem  sonha  os  roxos  horizontes... 

O  cardo  mais  agreste  é  todo  suavidade. 

Há  brandas  orações  no  murmúrio  das  fontes... 

Ouve-se  em  cada  peito  a  pálida  tristeza 

Andar  a  rir,  a  rir,  ao  lado  da  Alegria... 

Há  uma  ternura  imensa  em  toda  a  Natureza, 

Enche  todo  o  infinito  uma  estranha  harmonia... 

Mas,  eis  que  o  matam...  E  de  novo  a  terra  inteira 

Vai  ser,  ainda  a  chorar,  na  noite  sepultada! 

Ó  terra,  pra  onde  foi  a  tua  luz  primeira? 

Em  que  ficou  tua  esperança  transformada? 

Tu  que  rias  outrora  ao  ver  passar  Virgílio, 

Tu  que  ontem  ajoelhaste  ao  ver  passar  Jesus, 

Já  não  tens  no  teu  lábio  o  beijo  dum  Idílio, 

Nem  rouxinol  que  vá  cantar  sobre  uma  cruz! 

O  que  era  outrora  uma  verdade  conhecida. 

Voltou  a  ser  pra  ti  um  profundo  mistério. 

É  hoje  outra  vez  noite  a  clara  luz  da  Vida, 

Um  berço  é  para  nós  qual  triste  cemitério!... 

As  Ninfas  nunca  mais  os  bosques  povoaram. 

E  nunca  mais  tangeste  a  tua  lira,  Orfeu! 

Os  teus  deuses,  Homero,  o  Olimpo  abandonaram, 

Tua  Vénus,  Lucrécio,  há  muito  que  morreu!... 

42 


OBRAS  COMPIvBT.     AS 

Como  um  lúcido  alvor  ou  riso  d 'esperança, 
Nunca  mais  uma  deusa  atravessou  o  ar, 
Desprendendo  por  sobre  a  terra  a  sua  trança, 
Num  gesto  que  fazia  os  rios  desmaiar ! 
Já  ninguém  sabe  ler  nos  astros  do  infinito... 
Quem  faz  invocações,  Pitonisa  d'Endor? 
Quem  sabe  adivinhar,  feiticeiros  do  Egipto, 
Em  silêncio,  a  chorar,  voltados  prô  sol-pôr? 
Ó  Milo,  nunca  mais  uma  Vénus  divina 
Nasceu,  feita  mulher,  da  brancura  do  mármore... 
Nunca  mais  ninguém  viu  donzela  cristalina, 
Por  desprezar  um  deus,  ser  transformada  em  ár- 

[vore ! 
Neptuno  nunca  mais  mandou  a  esquadra  sua, 
Ninguém  tornou  a  ouvir  o  búzio  de  Tritão. 
Ninguém  tornou  a  ver  Diana  sobre  a  lua. 
Fatídica,  emanando  um  pálido  clarão... 
Não  há  homem  que  conte  um  deus  entre  os  avós, 
Aquiles  vingativo,  Eneias  piedoso! 
Magras  bruxas  da  Etrúria,  o  que  é  feito  de  vós, 
Ó  bruxas  a  fiar  um  fio  misterioso? 
Sibilas  que,  ao  luar,  noutros  tempos,  vivestes. 
Falando  às  nuvens,  aos  relâmpagos  e  aos  lagos, 
Distante  da  cidade,  em  penhascos  agrestes. 
Com  vosso  ar  de  mistério  e  vossos  olhos  vagos!... 
O  que  é  feito  de  vós,  ó  pálidas  histéricas. 
Que  enchestes  de  terror  as  cidades  guerreiras  ? 
Fantasmas  de  luar,  vagas  sombras  quiméricas, 
Sonâmbulas,  falando  às  lívidas  caveiras; 
Interrogando  a  noite  e  as  sombras  que  passavam 
Tristes,  a  conversar  sobre  grandes  mistérios. 
Enquanto,  pelo  azul,  as  nuvens  murmuravam 
E  um  álgido  terror  enchia  os  cemitérios ! 
O  que  é  feito  de  vós,  mulheres  excepcionais. 
Que  nas  exalações  bebíeis  o  Delírio 
Que  vos  deixava  ver  os  deuses  imortais. 
Num  letárgico  sono  aflito  de  martírio?! 
Profetas  da  Judeia,  ermos  anunciadores, 

43 


TBIXBIRA        DB        PASÇO    ABS 

Que  assombrastes,  pregando,  as  vastas  povoações, 

Vós  caístes,  gritando,  ó  trágicos  horrores. 

Sobre  as  cidades  más,  assim  como  trovões!... 

O  que  é  feito  da  vossa  voz  de  trovoada. 

Dos  vossos  olhos  onde  um  grande  sonho  ardia?... 

Que  treva  será  hoje  a  luz  imaculada 

Que  através  deste  mundo  as  almas  dirigia? 

Ó  entrada  na  triste  e  má  Jerusalém ! 

Verdes  palmas  !  Hossana  !  Ó  doce  jumentinho ! 

Ó  sagrado  perfil  voltado  para  além, 

Ó  luminosos  pés  poeirentos  do  caminho ! 

Lira  d'oiro  que  outrora  as  pedras  comoveu ! 

Ó  barca  de  S.  Pedro  onde  Jesus  pregou. 

Com  sua  mão  direita  erguida  para  o  céu, 

Ao  povo  que,  na  praia,  extático  ficou!... 

Ninguém  tornou  a  ouvir  aquela  voz  estranha 

Que  a  um  lírio  do  vai'  falava  com  amor? 

Ninguém  tornou  a  ouvir  o  sermão  da  montanha, 

Feito  para  uma  alma  e  dito  por  uma  Flor ! 

O  que  é  feito,  Merlim,  dos  teus  encantamentos. 

Da  floresta  que  ouviu  tua  voz  sobre-humana? 

Negras  trevas  são  hoje  os  teus  deslumbramentos ! 

Que  é  da  tua  varinha  d'oiro,  ó  Viviana?... 

Brancas  fadas  que  sois  um  claro  aroma  etéreo 

Que  um  lírio,  sob  a  luz  da  branca  lua,  exala ! 

O  mundo  do  perfume  é  um  mundo  de  mistério 

Onde  há  almas,  Senhor,  que  amam  e  que  têm  fala !... 

O  que  é  feito  de  vós,  ó  fadas  deslumbrantes, 

Que  povoastes,  outrora,  os  verdes  arvoredos? 

Espíritos  de  luz  longínquos,  sempre  errantes, 

Que  éreis,  vistos  de  perto,  a  inércia  dos  rochedos!... 

Em  que  se  transformou  a  divina  coragem 

Com  que  os  mártires,  na  arena,  as  feras  encaravam, 

Com  que  os  Santos  d'então,  em  trágica  viagem, 

A  pregar  a  Verdade,  o  mundo  atravessavam? 

Que  cinza  será  hoje  a  branca  aparição 

Que  o  roxo  olhar  de  Madalena  deslumbrou? 

Que  riso  será  hoje  o  pranto  d' aflição 

44 


OBRAS  COMPIvBTAS 

Que  nos  pés  duma  cruz  a  Virgem  derramou? 

H  que  silêncio  é  hoje  a  voz  misteriosa 

Que  tu,  Santa  Cecília,  em  pleno  Circo,  ouviste? 

Que  sentimento  ideal  levou  fera  raivosa 

A  lamber  tuas  mãos,  ao  ver-te  suave  e  triste? 

Transformou-se  essa  voz  no  silêncio  gelado 

Que  amplia,  como  um  sonho,  os  limites  do  céu ! 

No  silêncio  em  que  fica  um  corpo  amortalhado 

Quando  a  alma  que  o  animou  aos  astros  ascendeu ! 

Mudou-se  no  silêncio  enorme  das  estrelas 

Que  nos  permite  ouvir  a  harmonia  da  Luz 

E  o  murmúrio  de  dor  das  árvores  por  entre  elas 

Ter  existido,  outrora,  uma  árvore  que  foi  cruz ! 

Transformou-se  essa  voz  no  silêncio  d'amor 

Que  vive  em  cada  ai,  que  existe  em  cada  grito... 

No  silêncio  que  aumenta  o  cântico  da  Dor 

Para  que  ele  se  torne  um  cântico  infinito ! . . . 

Toda  essa  luz  fugiu  do  coração  humano; 

Concentrou-se  talvez  no  claro  azul  do  ar, 

No  aroma  duma  flor,  nas  ondas  do  oceano, 

Tal  como  numa  alma  um  raio  de  luar. 

Tudo  o  que  houve  de  bom,  de  puro  e  de  divino 

Refugiou-se,  a  tremer,  nas  almas  dos  rochedos... 

Virgem,  teu  pranto  é  hoje  o  orvalho  cristalino, 

Cecília,  a  tua  fé  ampara  os  arvoredos ! 

Hoje  teu  puro  sangue,  ó  Cristo  visionário. 

Da  clara  lâmpada  dum  astro  é  o  alimento; 

Pelo  azul  teu  perdão  vagueia  solitário. 

Teu  último  suspiro  é  hoje  a  voz  do  vento!... 

O  sol  evaporou  teu  suor  de  agonia; 

Num  lácteo  nevoeiro  os  campos  reverdece... 

E  o  linho  que  formou  tua  túnica  alvadia 

Depois  da  tua  morte,  em  cada  Abril,  floresce! 

A  ser  árvor'  voltou  teu  trágico  madeiro 

E  a  seiva  novamente,  em  suas  veias,  gira: 

E  o  grande  sol,  que  enche  de  luz  o  mundo  inteiro, 

Receia  atravessar  seus  ramos,  onde  expira! 

Almas  que  desejais  um  raio  de  Verdade, 

45 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Procurai-o  num  lírio  ou  numa  rocha  dura. 
Vivem  num  ramo  em  flor  a  Justiça  e  a  Bondade 
E  na  água  duma  fonte  a  Beleza  murmura ! 

Ó  criações  da  Alma !  Ó  símbolos  de  luz 

Da  Verdade  absoluta!  Estrela  dos  Reis  Magos! 

Ó  fadas  do  arvoredo !  Ascensão  de  Jesus ! 

Ó  Ninfas  a  nascer  dentre  as  ondas  dos  lagos ! 

Chuva  d'oiro  que  outrora  um  ventre  fecundou! 

Visão  de  Madalena !  Ó  Cristo  no  Tabor, 

Quando  o  fulgor  de  Deus  teu  corpo  aureolou! 

Ó  Moisés  no  Sinai,  em  face  do  Senhor ! 

Trágica  sexta-feira !  Ó  sepulcros  abertos ! 

Sinistra  escuridão  onde  choravam  mágoas ! 

Ó  coluna  de  fogo  através  dos  desertos ! 

Espírito  a  boiar  sobre  as  profundas  águas ! . . . 

Nunca  mais  criarão  os  homens  sobre  o  mundo 

Estas  lendas  que  são  de  sempiterno  encanto? 

Nunca  mais  sonharás,  ó  Planeta  infecundo, 

Embalado  por  outro  inatingível  canto? 

Nunca  mais  se  hão-de  ouvir  palavras  de  perdão? 

Emudeceu,  pra  sempre,  a  voz  da  Piedade? 

A  Justiça  é  mentira,  é  apenas  ilusão? 

Prometeu  não  terá  um  dia  a  liberdade? 

O  amor  por  meus  irmãos  será  sempre  mentira? 

Será  o  único  alívio  a  esperança  de  morrer? 

Nunca  mais  se  há-de  ouvir  a  verdadeira  Eira? 

Donde  virá  a  alegria  imensa  de  viver? 

Qual  a  fonte  sagrada,  a  transcendente  origem 

Donde  deve  manar  a  água  misteriosa 

Que  tornará  nossa  alma  imaculada  e  virgem, 

Simples,  como  o  orvalhar  do  céu  sobre  uma  rosa?... 

Quem  será,  sobre  a  Terra,  o  novo  Redentor? 

Quando  heis-de  anunciá-lo,  ó  pálidos  profetas? 

Porventura,  a  Verdade  existe  só  no  amor 

Que  fez  de  Jesus  Cristo  o  primeiro  entre  os  Poetas  ?. . . 

Tem  de  seguir  por  força  a  estrada  do  Calvário 

Quem  quiser  alcançar  o  Reino  da  Verdade? 

46 


OBRAS  COMPIvET;A.S 

Um  homem  deve  ser  um  santo  solitário, 

Ou  deverá  lutar,  ébrio  de  mocidade? 

Que  devemos  fazer?  Lutar  e  trabalhar 

À  luz  dum  grande  sonho  onde  germina  a  Vida? 

Ou  viver  para  Deus,  absortos,  a  sonhar, 

D'olhos  fixos  no  céu,  à  entrada  duma  ermida? 

Esta  vida  é  o  Prazer  ou  é  o  Renunciamento? 

Nos  lábios  uma  prece  ou  o  florescer  dum  beijo? 

No  mundo  existe  o  Mal  e  o  Bem  no  firmamento? 

Será  uma  blasfémia  o  grito  do  Desejo? 

Nossa  vida  termina,  acaso,  sobre  a  terra? 

E  o  mais  é  uma  falsa  e  inútil  esperança? 

O  corpo  e  mais  a  alma  hão-de  estar  sempre  em 

[guerra?... 
E  a  vitória  da  alma  é  a  Bem-aventurança?... 
Dentre  as  ondas  do  mar,  outra  vez,  nascerás, 
Ó  Vénus,  mãe  do  Amor  e  irmã  da  Primavera! 
Jesus  há-de  voltar  todo  perdão  e  paz, 
Uma  só  voz  dirá  ao  homem :  —  vive  e  espera ! 
Hão-de  subir  ao  mesmo  altar  Jesus  e  Pã... 
As  Ninfas  beijarão  os  anjos  do  Senhor. 
Maria  há-de  chamar  a  Vénus  sua  irmã 
E  o  tronco  duma  cruz  ainda  hei-de  vê-lo  em  flor ! 
É  preciso  ligar,  fundir  na  mesma  luz 
A  vida  deste  mundo  e  uma  existência  ideal; 
A  alegria  de  Flora  e  a  paixão  de  Jesus, 
O  beijo  criador  e  a  prece  virginal ! 
É  preciso  reunir  na  mesma  comunhão 
A  aspereza  do  mundo  à  doçura  do  céu, 
A  leveza  do  lírio  ao  peso  do  alvião, 
E  ao  canto  do  trabalho  a  tua  lira,  Orfeu ! 
A  alma  humana  há-de  saber  compreender 
Todas  as  almas,  tudo  quanto  sofre  e  chora... 
No  mesmo  grande  amor  há-de  tudo  abranger. 
Desde  o  pranto  da  noite  aos  sorrisos  da  aurora ! 
Há-de  ligar  no  mesmo  abraço  extraordinário 
A  luz  dum  doce  olhar  e  o  clarão  duma  estrela; 
Uma  sombria  cruz  erguida  num  calvário 

47 


^ 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

E  o  corpo  virginal  de  raística  donzela... 

Há-de  fundir  no  mesmo  beijo  cristalino 

Os  lábios  da  mulher  e  a  chaga  dolorida; 

Tudo  o  que  é  deste  mundo  e  tudo  o  que  é  divino, 

Tudo  o  que  encerra  em  si  o  hálito  da  Vida ! 

É  preciso  que  saiba  o  homem  conhecer, 

No  seu  íntimo  ideal,  as  cousas  que  murmuram... 

Ê  preciso  subir  aos  astros  e  descer 

Ao  fundo  duma  flor,  onde  outros  sóis  fulguram ! 

Preciso  é  ouvir  a  voz  de  todo  o  lábio  mudo 

E  ver  o  que  há  de  luz  em  cada  sombra  triste. 

É  preciso  amar  tudo  e  compreender  tudo. 

Só  neste  sábio  amor  a  Perfeição  existe ! 

Devemos  estudar,  cheios  de  comoção, 

A  rosa  que  murchou  ao  fogo  duma  mágoa... 

Que  vá  precipitar-se  o  nosso  coração 

Nesse  abismo  sem  fim  que  há  numa  gota  d'água! 

É  preciso  sentir,  sofrer  todo  o  martírio. 

De  cada  cousa  obscura  o  espírito  alcançar... 

Conversar  com  a  luz,  conviver  com  um  lírio, 

Nossos  lábios  unir  aos  lábios  do  Luar!... 

É  preciso  viver,  Senhor,  todas  as  vidas, 

Das  árvor's  entender  a  sua  língua  estranha... 

Ser  o  sangue  auroreal  de  todas  as  feridas, 

Ser  estrela,  ser  luz,  ser  nuvem,  ser  montanha ! 

Cada  alma  há-de  sentir  em  si  todas  as  almas, 

Cada  ser  viverá  a  vida  universal... 

A  vida  duma  estrela  em  doces  noites  calmas 

E,  num  magoado  Outono,  a  vida  d'ermo  vai'!... 

A  alma  viverá  na  oculta  consciência 

Que  brilha  numa  flor  e  nas  nuvens  da  serra... 

Nossa  alma  há-de  viver  na  criadora  essência 

Que  na  árvore  do  Azul  pôs  este  fruto  —  a  Terra!... 

E  a  nossa  alma  será  um  infinito  lar, 

Donde  todo  o  Universo,  em  chamas  de  fulgor, 

O  próprio  coração  de  Deus  há-de  alcançar. 

Irradiando  a  Justiça,  a  Verdade  e  o  Amor!... 

Só  então,  meus  irmãos,  tereis  a  Felicidade 

48 


OBRAS  CO]MPLBTAS 

Na  clara  compreensão  de  toda  a  Natureza... 
Felizes  vivereis  a  vida  da  Verdade, 
Porque  só  na  Mentira  é  que  existe  a  tristeza!... 
E  assim  como  uma  bruta  pedra  regelada, 
De  tanto  desejar,  de  tanto  estremecer 
Fica  num  coração,  às  vezes,  transformada, 
Num  perfume  subtil  ou  numa  estrela  a  arder, 
Assim  o  vosso  humano  e  frágil  coração. 
De  tanto  viajar  por  esse  azul  dos  céus, 
Há-de  alcançar,  um  dia,  a  eterna  Perfeição 
E  sentar-se  no  trono  etéreo  de  Deus ! 


Sou  o  País  a  que  a  vida  inteira  se  destina; 
Sou  a  voz  do  Universo,  o  clarão  da  Verdade. 
Pregai  o  que  vos  diz  a  minha  voz  divina. 
Olhai  sempre  através  da  minha  claridade. 

Homens,  que  a  vossa  vida  seja  feita 
Do  fecundante  amor,  do  perdão  de  Jesus... 
Que  a  alma  humana  seja  a  alma  mais  perfeita 
Entre  as  almas  que  fez  a  volúpia  da  Luz ! 

Que  o  vosso  grande  amor  ligue  no  mesmo  abraço 
O  rosto  dum  jasmim  e  um  perfil  de  mulher; 
As  árvores  da  serra,  as  estrelas  do  espaço. 
Tudo  quanto  se  vê  existir  e  viver... 

Sou  a  mão  que  por  sobre  a  terra  espalha  as  rosas, 
Num  gesto  que  perturba  os  astros  encantados ! 
E  o  frio  que  condensa  as  vagas  nebulosas 
Numa  chuva  glacial  de  mundos  ignorados. 

Tremo  na  comoção  que  transfigura  um  verso. 
Que  faz  brilhar  o  aroma  e  as  árvores  sorrir ! 
Sou  a  ânsia  que  anima  a  alma  do  Universo, 
Sou  o  peso  que  faz  as  lágrimas  cair!... 


49 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Eu  sou  a  eterna  voz  do  Belo  e  da  Verdade 
Que  vai  ecoar,  ao  longe,  em  murmúrios  d'amor, 
Derramando-se  assim  por  toda  a  imensidade, 
Desde  o  peito  dum  tigre  ao  cálix  duma  flor ! 

Sou  o  trabalho,  o  esforço,  a  suavidade  e  a  paz, 
O  prazer  natural  e  o  duro  sofrimento... 
Vivo  no  coração  que  sob  a  terra  jaz, 
Na  harmonia  do  azul,  no  delírio  do  vento!... 

Eu  sou  um  mundo  imenso  ainda  por  criar... 
Que  ainda  existe  na  névoa  eterial  da  Origem... 
Como  um  astro,  eu  espero  a  hora  de  raiar, 
A  hora  da  concepção,  como  esperou  a  Virgem ! 

Sou  tudo  o  que  há-de  ser,  tudo  o  que  há-de  existir, 
Sou  tudo  o  que  uma  alma,  em  êxtase,  pressente... 
Sou  a  voz  do  Futuro,  essa  voz  que  há-de  ouvir 
Tudo  o  que  sonha  e  vive,  o  que  estremece  e  sente ! . . . 

Sou  um  gérmen  ainda,  à  luz  do  grande  dia 
Que  brilha  em  cada  puro  e  sábio  coração... 
Sou  a  aurora  ideal  duma  estranha  harmonia, 
Sou,  ainda  num  beijo,  a  nova  Criação ! 

Sou  ainda  o  Incriado,  o  Inominado  ainda, 

Por  isso  eu  tenho  um  ar  não  sei  de  que  tristeza... 

Sou,  numa  escura  noite,  aquela  luz  infinda 

Que  há-de  transfigurar,  num  sonho,  a  Natureza!... 

Sou,  ainda  em  silêncio,  a  voz  misteriosa 
Que  ao  mundo  há-de  ensinar  uma  nova  Piedade 
Na  língua  universal  que  entenderá  uma  rosa. 
Como  uma  árvore  em  flor  entende  a  claridade!... 

Realidade  hei-de  ser,  já  que  sou  o  Ideal. 
Em  mim  germina  um  mundo;  a  voz  de  Deus  escuto. 
Hei-de  criar  porque  meu  ventre  é  virginal. 
Sonho,  hei-de  ser  acção;  e,  flor,  hei-de  ser  fruto. 

50 


OBRAS  COMPI/BTAS 


Mas,  um  dia,  a  doença  o  Velho  definhou. 

E  mais  ninguém,  sobre  os  rochedos,  o  encontrou... 

Não  tornaram  a  vê-lo  os  montes,  seus  avós. 

O  bom  Velho  morreu;  mas  sua  estranha  voz 

Ficou  sempre  a  ecoar  nas  quebradas  da  serra, 

Fazendo  enternecer  as  raízes,  sob  a  terra. 

E  o  cadáver  por  sobre  as  urzes  projectava 

Uma  sombra  mortuária,  onde  um  sol  gravitava... 

Uma  sombra  infinita  onde  transparecia 

O  quer  que  é  dum  novo  e  imaculado  dia ! 

Quem  hoje  ainda  subir  essa  íngreme  montanha, 

De  pé,  vai  encontrar  aquela  sombra  estranha, 

Com  uns  olhos  que  vão  além  do  céu  profundo, 

Com  os  braços  ainda  abertos  para  o  mundo!... 


PARA  A  LUZ 

[1.^  edição,  Porto,  Livraria  José  Figueirinhas 

Júnior,   1904] 


k   ALMA  DE  MEU  IRMÃO  ANTÓNIO 


Bu  gosto  de  sentir  minh'alma  derramar-se, 
Como  a  chuva  do  céu,  sobre  todo  o  Universo... 
De  ver  suavemente  o  mundo  humanizar-se 
E  senti-lo  vibrar  dentro  de  cada  verso. 
É  belo  ver  num  ramo  a  ânsia  dum  abraço 
B  um  beijo  cintilar  nos  lábios  dum  rochedo... 
Ver  grande  sentimento  iluminar  o  espaço, 
Ver  lágrimas  cair  dos  olhos  do  arvoredo. 
Que  a  sensação  do  sol  ao  produzir  o  dia, 
Chegue  ao  meu  coração,  fazendo-o  estremecer. 
B  as  estrelas  alcance  a  mística  harmonia 
Que  a  dor,  qual  ermo  vento,  acorda  no  meu  ser.., 

Sê  um  dilúvio,  ó  Alma,  inunda  este  Planeta. 

Que  te  penetrem  as  raízes  com  amor; 

Que  se  transforme  em  seiva  o  sonho  do  poeta, 

B  cristalize  o  Ideal  numa  infinita  flor 

De  Justiça  e  de  Luz,  d'Amor  e  Piedade 

Que  abrigue  à  sua  sombra  a  imensa  Criação, 

As  árvores,  o  mar,  a  vasta  Humanidade, 

O  que  é  lágrima  e  treva,  angústia  e  solidão!... 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


A  MIXHA  MUSA 


A  minha  Musa  agora  é  sombria  mulher 

Que,  faminta  e  descalça,  eu  vejo  em  qualquer  parte. 

Quero  encontrar  na  noite  a  luz  do  alvorecer 

E  nuns  farrapos  de  mendiga  uma  obra  d'arte. 

Há  nos  teus  lábios,  Musa,  o  murmúrio  das  fontes 
E  no  teu  corpo  verde  há  ramos  doloridos. 
Por  sobrancelhas  tens  os  vastos  horizontes 
E  os  nevoeiros  são  teus  húmidos  vestidos... 

Simbólica  mulher,  descubro  no  teu  rosto 
Os  traços  da  Miséria...  a  tua  mãe  decerto... 
Nos  teus  olhos  crepita  o  incêndio  do  sol-posto, 
Há  neles  a  amplidão  magoada  do  deserto ! 

Um  vento  de  injustiça  açoita  o  teu  cabelo, 
Enruga  a  tua  fronte  a  cólera  de  Deus  ! 
Mas  nos  teus  lábios  ouço  a  voz  do  sete-estrelo, 
A  prece  do  luar  e  o  cântico  dos  céus... 

O  pranto  que  floresce  à  luz  do  teu  olhar, 
Como  os  mundos  do  espaço  à  luz  dos  claros  dias, 
Xa  minha  alma  entrou,  como  um  sinistro  mar 
Que  salta,  espadanando,  as  broncas  penedias ! 

56 


OBRAS  CO^IPIyKTA.S 

Dentro  em  mim  se  mudou  num  ideal  perfeito, 
Tudo  o  que  ao  meu  ouvido,  ó  Musa,  tu  segredas, 
E  o  ódio  que  incendeia  o  teu  sensível  peito. 
Meu  coração  cobriu  de  estranhas  labaredas ! 

Grande  mendiga,  vais,  ó  terra  solitária, 
Pedindo  à  luz  do  sol  a  esmola  duma  flor. 
Somente  existe  em  ti,  mulher  extraordinária, 
O  ventre  auroreal  que  concebeu  a  Dor!... 

Vejo-te  percorrer  o  abismo  do  infinito. 
Num  sonho  enorme,  num  constante  delirar 
Que  inunda  de  clarões  teu  perfil  de  granito, 
Onde  gelou  de  dor  a  lágrima  do  mar ! 

Depois  que  te  encontrei  naquele  dia  baço. 
Escuro  como  a  sombra  humana  duma  cruz, 
Todo  o  meu  corpo  foge,  em  fumo,  pelo  espaço. 
Toda  a  minh'alma  eu  vejo  a  desfazer-se  em  luz!... 


TEIXEIRA        DE        PÁSCOA    ES 


À  VENTURA 


Ka  hora  em  que  se  vê  crescer  a  fria  treva, 
Como  um  sombrio  mar  sinistro  das  procelas, 
Sobre  um  leito  de  luz  que  das  ondas  se  eleva, 
Aqui  e  ali,  formando  as  ilhas  das  estrelas... 

É  que  eu,  sozinho  ao  pé  desse  infinito  mar. 
Sobre  a  rocha  do  mundo  onde  ele  vem  morrer, 
E  onde,  às  vezes,  se  vê  a  espuma  do  luar. 
Num  soluço  que  deixa  as  almas  a  tremer, 

Sonho  esta  extraordinária  e  trágica  aventura 
De  partir  através  o  mar  da  escuridão, 
Para  desembarcar  na  terra  onde  fulgura 
A  seiva  que  alimenta  a  árvore  do  Clarão ! 

No  navio  do  Sonho,  eu  vou,  qual  marinheiro. 
Sobre  as  ondas  da  noite.  Ó  longínquo  farol. 
Verde  luz  a  espreitar  por  entre  o  nevoeiro 
De  que  é  apenas  um  raio  o  sempiterno  sol ! . . . 

Quando  é  que  tu,  ó  meu  olhar  que  tudo  sondas, 
Hás-de  ver  esse  mundo  ideal  que  me  seduz... 
Quando  hei-de  atravessar  as  tuas  negras  ondas, 
Ó  mar  da  Noite,  onde  há  tempestades  de  luz!.. 


OBRAS  COMPLETAS 


INVERNO 


Um  pálido  fulgor  a  noite  sobressalta... 

Dos  telhados  se  eleva,  esguia,  uma  torre  alta, 

Como  um  cipreste  ao  pé  de  vagas  sepulturas. 

Na  indecisão  da  luz,  ó  chuva,  tu  murmuras... 

As  mas  vão  morrer,  além,  num  negro  abismo, 

Onde  a  luz  dos  lampiões,  num  triste  paroxismo, 

Agoniza,  chorando  a  noite  em  que  brilhou... 

Principia  a  nevar.  O  vento  serenou. 

Um  horroroso  frio  os  membros  entorpece... 

B  no  álgido  levante,  a  medo,  resplandece 

O  sol  a  tiritar,  transido,  arroxeado. 

Por  uma  névoa  espessa  e  húmida  velado... 

Foi  à  luz  deste  sol  que,  ao  limiar  duma  porta, 
Sobre  a  neve,  encontrei  uma  criança  morta. 
No  peito  as  mãos  em  cruz,  os  olhos  ainda  abertos. 
Contemplando  talvez  quiméricos  desertos. 
Como  esses  que  ela  tinha  atravessado  há  pouco... 
E  eu  visionei  então  um  mundo  ignóbil,  louco. 
Um  mundo  criminoso,  injusto,  pervertido. 
Onde  há  bocas  sem  pão  e  corpos  sem  vestido. 
Onde  há  lares  sem  fogo,  onde  há  almas  sem  luz, 
Onde  Caifás  é  juiz  e  onde  é  réu  Jesus; 
Onde  os  bandidos  são  felizes  e  opulentos. 


59 


TKIXKIRA        DE        PASCOABS 

Onde  a  Bondade  sofre  os  mais  duros  tormentos ! 
Um  mundo  que  ao  Azul  dá  a  impressão  dum  grito, 
Onde  o  espírito  humano  é  um  réprobo  maldito, 
Um  Alessias  que  sobe  um  infindo  calvário, 
Sob  um  céu  sempre  mudo  e  sempre  solitário, 
Através  dum  caminho  estéril,  sempre  agreste... 
Onde  Buda  caiu  e  onde  tu  bebeste 
O  copo  de  cicuta,  ó  Sócrates  divino; 
Onde  tu  foste,  Horácio,  um  vate  libertino. 
Onde  tu,  Vítor  Hugo,  encontraste  um  presídio 
E  onde  por  amor  foi  desterrado  Ovídio ! 
Eu  visionei  o  mundo  assim  como  ele  existe, 
Alegre  para  o  mal,  para  a  bondade  triste; 
Para  o  crime  um  altar  e  cruz  para  a  Verdade... 
Um  mundo  ensanguentado  e  todo  falsidade. 
Que  o  calor  do  teu  fogo,  ó  Satã,  vem  florir, 
E  onde  ouço  a  Luz  chorar  e  vejo  a  Treva  a  rir ! . . . 
Eis  o  mundo  que  eu  vi,  ao  deparar  na  rua 
Com  essa  criança  morta,  arrefecida  e  nua-. 
De  fome  ela  morreu;  morreu  de  frio  agreste... 

De  fome  de  justiça,  António,  tu  morreste ! 
E  deste  mundo  ingrato  e  vil,  meu  grande  irmão, 
Dessa  criança  levaste  a  alma  pela  mão. 
Tu  partiste  com  ela,  e  aqui  ficámos  sós, 
Sombrios  como  o  mar  revoltado  e  feroz. 
Numa  infinita  dor  onde  há  surdos  bramidos 
De  rochedos  que  torna  a  lava  encandecidos, 
Junto  da  boca  negra  e  hiante  dos  vulcões... 
Tormento  que  nos  faz  tremer  nas  convulsões 
Dum  ódio  represado,  imenso  e  poderoso 
Que  faz  do  nosso  peito  um  mar  tempestuoso, 
Um  trovejante  céu  sem  astros  de  esplendor, 
Um  abismo  sem  fundo  onde  soluça  a  Dor... 
Dum  ódio  enorme,  ódio  sem  fim,  ódio  infinito. 
Que  será  da  revolta  o  sempiterno  grito  ! . . . 


OBRAS  CO^IPLETAS 


NA  RUA 


Meia-noite.  A  cidade  é  um  fantasma  sombrio 
No  mistério  da  treva  aflito  e  angustioso... 
Nos  ângulos  sem  luz,  um  vulto  mudo  e  frio 
Tem  um  perfil  sinistro  e  um  vago  olhar  brumoso... 

A  cidade  é  um  fantasma  imóbil...  Nos  espaços, 
Onde  os  astros  de  Deus  as  pálpebras  cerraram. 
As  suas  torres  ergue,  altivas  como  braços 
Que  num  gesto  infernal  de  dor  petrificaram. 

Por  sobre  as  cousas  paira  um  mistério  profundo 
Que  as  almas  arrepia  e  as  sombras  faz  tremer. 
Palpita  desnorteado  o  coração  do  mundo, 
Sente-se  um  temporal  de  escuridão  crescer! 

Há  reflexos  de  luz  nos  vidros  das  janelas. 
Que  voam  através  da  treva,  a  cintilar. 
Inconfundíveis  como  a  brancura  das  velas 
Sobre  as  ondas  que  anima  o  sangue  do  luar... 

A  noite  é  negro  abismo.  E  o  poeta  desvairado 
Inclina-se  sobre  ele  a  olhar,  branco  de  dor, 
O  mistério  onde  existe  em  trevas  sepultado, 
O  coração  da  luz  a  palpitar  d'amor ! 

6i 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Pesa  sobre  a  cidade  uma  inquieta  paz, 
Como  a  do  mar  que  cerca  as  ilhas  d'alva  espuma. 
E  às  negras  ruas,  onde  morre  a  luz  do  gás, 
Desce,  como  uma  asa,  a  misteriosa  bruma... 

Goteja  dos  beirais  o  pranto  do  nevoeiro 
Onde  minh'alma  sente  a  dor  dos  oprimidos... 
Pranto  que  faz  gelar  o  frio  de  Janeiro 
No  lívido  perfil  dos  troncos  ressequidos. 

Lá  baixo,  junto  ao  cais,  embarcações  dormentes 
Lembram  a  emigração  e  os  ásperos  degredos, 
Terríveis  temporais,  os  ígneos  continentes, 
Cavernas  de  leões,  estranhos  arvoredos ! 

É  venenoso  e  amargo  o  ar  que  se  respira... 
É  feito  d'ais  de  desespero  e  de  tormento. 
Por  isso,  um  peito  humano  em  febre,  que  delira, 
Na  dor  alheia  encontra  um  místico  alimento. 

E  dolorida  brisa  agita  sombras  d'árvores 
Que  por  dentro  são  luz  donzela  e  virginal. 
No  rosto  de  quem  passa  há  a  brancura  dos  már- 

[  mores, 
Tão  nítida  que  exala  um  frio  glacial. 

Ó  altas  catedrais  no  espaço  recortadas, 
Ó  espectros  da  noite  a  meditar  absortos ! 
Ó  altas  casas !  Ó  paredes  branqueadas. 
Aonde  tem  a  cal  a  palidez  dos  mortos ! 

Ó  plantas  dos  jardins  fantásticas,  sombrias. 
Num  murmúrio  de  dor  que  um  ermo  vento  leva... 
Aromas  que  matais,  fúnebres  harmonias. 
Lagos  feitos  de  lama  onde  é  mais  densa  a  treva ! 

Triste  cidade  onde  o  silêncio  é  um  grito  enorme ! 
Ó  aflição  da  noite !  Alma  que  desespera ! 
Ruínas  que  a  sombra  faz.  Grande  caos  que  dorme, 
Abismo  onde  vagueia  a  pálida  Quimera! 

Ò2 


OBRAS  COMPIvBTAS 

É  um  quadro  trágico,  onde  um  vulto  amortalhado 
Num  nevoeiro  d'alma  onde  há  cintilações, 
Vai  seguindo  uma  negra  rua,  esfarrapado, 
No  seu  olhar  levando  o  esplendor  das  visões ! 

Vai  seguindo  através  das  ruas  e  das  praças, 
Num  sonho  imenso  de  revolta  e  de  verdade, 
Ouvindo  esse  clamor  sinistro  das  desgraças 
Que  anda  no  ar  perdido  ao  pé  da  claridade... 

Um  clamor  que  assemelha  a  voz  deste  Planeta, 
Onde  o  Delírio  acende  as  notas  mais  agudas. 
É  um  clamor  que  inspira  a  fronte  do  poeta 
E  que  na  corda  do  remorso  enforcou  Judas ! 


t:^ixbira      db      pascoaes 


KUMA  VIELx\ 


As  lajes  duma  viela  imunda  e  lamacenta 
Exalam  um  gemido  obscuro  e  imperceptível, 
Enquanto  a  chuva  cai  e  o  temporal  aumenta 
E  o  vento  grita,  qual  remorso  intraduzível ! 
Sobre  a  lama  se  espelha  a  tiritar  com  frio, 
Como  mancha  de  sangue,  a  luz  dum  candeeiro... 
E  a  infinita  expansão  dum  tenebroso  rio 
Toda  a  cidade  afoga  em  triste  nevoeiro ! 
E  numa  casa  humilde,  ao  pé  desta  viela, 
Agoniza  de  fome  uma  infeliz  mulher. 

Sinistro,  a  meditar,  repousa  junto  dela 

Um  homem  qut  visiona  um  velho  mundo  a  arder... 

Um  mundo  em  chamas,  como  um  bosque  tenebroso. 

Povoado  de  leões,  de  tigres  e  panteras; 

Um  planeta  incendiado,  enquanto  o  vento  iroso 

Leva  uma  onda  de  luz  a  todas  as  esferas!... 

Junto  do  leito,  há  criancinhas  a  chorar 

Que  nos  lembram,  ó  dor,  emurchecidos  lírios. 

Tremem  com  frio  oomo  sombras  ao  luar 

E  nos  seus  olhos  há  vertigens  e  delírios. 

Há  muito  se  apagou  o  fogo  da  lareira... 

Ouve-se  o  murmurar  confuso  das  desgraças... 

E  uma  rajada  impiedosa  e  traiçoeira, 

Num  sorriso  cruel,  vai  d'encontro  às  vidraças. 

Enquanto  a  chuva  da  Injustiça  inexorável 

Invade  aquele  lar  desfortunoso  e  triste... 

E  enquanto  a  noite  imensa,  augusta,  imperturbável, 

É  como  a  alma,  ó  dor,  de  tudo  quanto  existe!... 

64 


OBRAS  COMPIvBTAS 


UMA  TRAGÉDIA 


Que  grande  multidão,  além,  naquela  praça! 
As  carruagens  não  conseguem  transitar... 
E,  num  pressentimento  enorme  de  desgraça, 
Trémulo  aproximei-me  então  desse  lugar. 

Nas  pedras  dum  passeio,  eu  encontrei  deitado, 
Os  olhos  já  sem  luz,  com  o  crânio  partido, 
O  peito  todo  em  sangue,  um  homem  desgraçado 
Que  dum  terceiro  andar  havia  ali  caído... 

B  uns  murmúrios  banais  de  tristeza  e  piedade 
Pairavam  sobre  mim,  como  uma  sombra  fútil. 
E  eu  vi  toda  a  irrisão  e  toda  a  crueldade, 
Inconsciente  talvez,  daquela  dor  inútil ! 

A  escura  multidão  chorava  aquela  morte, 
Nesse  triste  prazer  que  produzem  os  dramas. 
Onde  há  lagos  de  sangue  e  maldições  da  sorte 
E  mártires  a  arder  entre  vermelhas  chamas ! 

Porque  é  que  vós  chorais  o  magro  proletário 
Que  num  perigo  enorme  a  trabalhar  andava. 
Um  Cristo  que  subira,  enfim,  o  seu  calvário 
E  que  entre  os  Fariseus,  colérico,  expirava. 

Se  fostes  vós,  irmãos,  os  únicos  autores 
Desse  drama  que  tanto  assim  vos  comoveu?... 
Uma  injúria  saiu  daqueles  estertores 
E,  ao  ouvi-la,  vossa  alma  inquieta  estremeceu ! 

65 


TEIXEIRA        DB        PASCOAES 

Era  uma  injúria  de  revolta  e  indignação 
Contra  a  injustiça  humana  e  contra  a  crueldade 
Que  obrigam  a  perder  a  vida  por  um  pão 
Um  justo  que  merece  o  amor  e  a  piedade... 

E  o  povo  dispersou  num  remorso  sombrio... 
E  na  sua  sombra  negra  a  noite  amortalhou 
Esse  cadáver  hirto,  ensanguentado  e  frio 
Que  aos  homens  sem  amor  a  Paz  arrebatou!... 


OBRAS  COMPIvKTAS 


* 


Sinto  na  minha  alma  a  dor  dos  oprimidos. 
E  trituram  meu  ser,  Miséria,  a  tua  fome, 
As  tuas  sedes,  os  teus  trágicos  gemidos 
E  essa  treva  feroz  que  toda  a  luz  consome! 
O  luto  que  entristece  os  órfãos  e  a  viúva 
Em  negros  crepes  envolveu  meu  coração. 
Pendem  do  meu  perfil  as  lágrimas  da  chuva 
Onde  a  Quimera  acende  o  riso  dum  clarão. 
Há  horas  em  que  eu  sinto  o  sofrimento  humano, 
A  grande  dor  que  chora  em  cada  humilde  ser, 
A  loucura  que  toca  as  ondas  do  oceano 
E  a  saudade  que  faz  um  sol  anoitecer ! 
É  a  hora  em  que  no  nosso  olhar  incendiado 
Fervem  as  lágrimas  de  toda  a  natureza.  ^ 
É  a  hora  em  que  num  peito  agreste  e  congelado 
Cai,  em  flocos  de  neve,  a  água  da  tristeza. 
É  quando  o  poeta  sonha  o  eterno  e  indefinido 
IvOuco  sonho  febril  em  que  o  mundo  delira. 
É  a  hora  em  que  o  mais  leve  e  pálido  gemido 
Nossa  alma  faz  vibrar  assim  como  uma  Eira ! 
Momentos  d'êxtase  profundo  e  visionário. 
Quando  a  Revelação  as  trevas  ilumina... 
Quando  num  frouxo  olhar,  mortal  e  solitário. 
Parece  resplender  estranha  luz  divina. 
Instante  que  recorda  a  hora  imaculada. 
Quando  a  primeira  vez  bateu  a  Piedade 
À  porta  duma  alma,  extática,  admirada, 
Que,  súbito,  se  abriu  a  tanta  claridade... 
Hora  em  que  o  nosso  ser  parece  condensar-se. 
Como  nuvem  subtil,  numa  lágrima  pura 
Que  dos  olhos  ideais  de  Deus  vai  derramar-se 
Por  sobre  toda  a  dor  e  toda  a  desventura... 


^  Emenda  manuscrita  num  exemplar  do  A. :  «Arde  o  pranto 
de  toda  a  natureza». 

67 


TEIXEIRA       DE        PASCOAES 


TEMPESTADE 


.Minh'alma  fez  seu  ninlio  ao  pé  dum  grande  abismo, 
Onde  chega,  a  tremer,  o  álgido  paroxismo 

Dum  imenso  estertor. 
Um  orvalho  de  sangue  as  minhas  faces  molha, 
E  o  lírio  do  Azul  por  sobre  mim  desfolha 

O  vendaval  da  dor ! 

Sinto  no  coração  esse  terrível  frio 

Que  enche  os  montes  de  neve  e  faz  gelar  um  rio 

E  tiritar  o  mundo. 
Meu  cérebro  delira  em  sonhos  de  tristeza... 
E  aos  meus  ouvidos  chega  a  voz  da  Natureza, 

Num  soluço  profundo! 

E  uma  trágica  voz  feita  de  fel  e  pranto. 
Onde  a  Alegria  chora  em  pálido  quebranto 

E  onde  é  um  gemido  o  vento. 
Ê  uma  voz  aflitiva  e  triste,  onde  murmura 
A  dor  universal,  a  humana  desventura, 

O  eterno  sofrimento! 

6S 


OBRAS  COMPLETAS 

Uma  voz  onde  existe  o  timbre  excepcional 

Da  voz  dum  lírio  que  emurchece  em  ermo  vai*, 

Da  voz  do  que  sofri, 
Da  voz  da  luz  que  o  vento  vai  assassinar... 
Foi  essa  voz  que  faz  as  árvores  chorar 

Que  me  falou  de  ti, 

Quando,  um  dia,  passei,  à  hora  do  poente. 
Perto  da  campa  onde  tu  sonhas  suavemente, 

Numa  visão  de  luz 
Que  te  revela  agora  o  Ideal  que  desejaste, 
Esse  ideal  que  sobre  a  terra  não  achaste, 

Assim  como  Jesus ! 

Dorme  em  paz,  meu  irmão.  Ó  vítima  sublime 
Da  negra  estupidez,  da  injustiça  e  do  crime 

Que  ainda  insultam  Deus ! 
Dorme  em  paz;  que  o  teu  sonho  imenso  de  Verdade 
Há-de  ser  para  o  mundo  a  nova  claridade 

E  o  novo  azul  dos  céus. 

Teu  sonho  não  morreu  contigo.  É  sempiterno. 
E  uma  bendita  flor  sem  abril,  sem  inverno. 

Que  tu  semeaste,  irmão. 
E  será  sempre  um  sol  quimérico  a  fulgir 
Sobre  as  almas  que,  um  dia,  o  Bem  hão-de  sentir, 

Aquele  teu  perdão! 

Grande  acontecimento  e  cousa  extraordinária ! 
Quando  a  tua  alma  triste,  agreste  e  solitária 

Como  Jesus,  perdoou. 
Ó  sublime  perdão !  Imaculado  dia 
Que  nos  permite  ver  as  asas  d'harmonia, 

Onde  a  tua  alma  voou... 

Perdão  que  fez  tremer  de  pânico  um  bandido 
E  que  vestiu  de  luz  o  espaço  indefinido... 
Ó  palavra  d'amor 

69 


TEIXEIRA       DB        PASCOAES 

Que  as  estrelas  de  Deus,  cantando,  repetiram, 
Palavra  que  também  os  lírios  proferiram, 
Sorrindo  à  tua  dor. 

Ó  divino  Perdão !  Ó  sacrossanto  exemplo, 
Que  merece  um  altar,  Verdade,  no  teu  templo. 

Palavra  sobre-humana ! 
Como  a  essência  que  anima  as  árvores  e  o  granito, 
Que  o  teu  perdão  de  luz,  esse  sol  infinito. 

Anime  a  alma  humana!... 


OBRAS  COMPI^BTAS 


Quem  pode  ser  feliz,  enquanto  houver  o  mal? 
Quem  pode  ser  alegre  enquanto  houver  tristeza? 
Sorrir,  enquanto  chora  a  dor  universal? 
Cantar,  enquanto  é  um  ai  profundo  a  Natureza? 
Quem  pode  ser  sereno,  enquanto  os  vendavais 
Causam  naufrágios,  perdições  e  mortandades, 
E  enquanto  os  homens  são  injustos,  desiguais, 
E  enquanto  sobre  a  terra  há  só  calamidades?... 
Por  isso,  tu,  minh'alma,  ó  triste  visionária, 
Desce  da  tua  luz  às  trevas  horrorosas 
E  guarda,  dentro  em  ti,  ó  grande  solitária, 
As  lágrimas  sem  fim  dos  seres  e  das  cousas... 
Desce  do  etéreo  azul,  alma  bondosa  e  forte ! 
És  precisa  no  mundo  e  não  nos  altos  céus. 
Que  tu  conheças  bem  a  noite,  o  mal  e  a  morte, 
Antros  onde  não  chega  o  resplendor  de  Deus!... 
Deixa  os  astros.  Amor,  e  desce  aos  lodaçais. 
Despe  a  túnica  d'oiro,  e  que  teu  rosto  belo 
Fique  branco  de  dor,  fique  orvalhado  d'ais. 
Uma  lágrima  é  maior  que  o  sete-estrelo ! . . . 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


MENDIGA 


Triste  dia  de  inverno.  Os  vagos  céus  brumosos 
Têm  um  gelado  ar  de  amarga  desventura... 
Como  tudo  nos  abre  uns  olhos  lacrimosos, 
Como  tudo  é  cinzento  e  a  própria  luz  escura... 

As  verdes  folhas  estiolam  resignadas; 
Gelam  as  lágrimas  e  o  mar,  gelam  as  fontes. 
E  as  árvores  vão  ser,  ó  dor,  carbonizadas 
Pelo  incêndio  do  frio,  a  crepitar  nos  montes!... 

Nas  vidraças  que  o  sol  trespassa  frouxamente, 
Há  lúcidos  cristais,  doidas  cintilações. 
Como  num  morto  olhar  se  avista,  de  repente, 
Entre  as  cinzas  da  treva,  o  brilho  das  visões... 

A  chuva  desbotou  o  meigo  azul  do  céu. 
Sopra  um  vento  que  fere  os  roxos  corpos  nus... 
A  Fome  anda  a  gritar  na  rua;  enlouqueceu... 
E  a  noite  vai,  ó  crime,  estrangular  a  luz! 

E  além,  uma  mulher,  pálida  e  quase  nua. 
Oferece  a  uma  criança  os  peitos 'magoados, 
Álgida,  a  tiritar  sobre  as  lamas  da  rua. 
Nessa  altivez  que  aureola  a  fronte  aos  desgraçados ! 

72 


OBRAS  COMPLEXAS 

Uma  profunda  dor  põe  nódoas  de  tristeza 

Na  inquieta  limpidez  do  seu  olhar  aflito, 

Onde  arde  um  sonho  estranho  e  cheio  de  grandeza, 

Fecundo  como  o  ventre  eterno  do  Infinito! 

A  Miséria  rasgou,  sem  pena,  os  seus  vestidos; 
O  seu  corpo  anda  exposto  às  geadas  e  aos  ventos... 
E  descubro  através  seus  olhos  doloridos 
A  alegria  da  luz  que  tem  deslumbramentos ! 

Os  seus  andrajos  de  mendiga  resplandecem, 

Um  clarão  d'alma  sai  do  seu  perfil  esguio... 

B  a  sede  e  a  fome  atroz  seus  membros  emurchecem, 

Como  um  lírio  que  sente  uma  impressão  de  frio! 

Pelo  seu  rosto  corre,  em  fio,  um  pranto  amargo, 
Onde  um  sorriso  etéreo  eu  vejo  cintilar... 
E  lá  no  vácuo  do  seu  peito  fundo  e  largo 
Há  prenúncios  d'Azul,  grandes  sintomas  d' Ar ! 

És  uma  noite  onde  há  o  quer  que  é  d'aurora, 
Silêncio  que  me  causa  a  impressão  duma  voz. 
E  vejo-te  seguir  por  esta  vida  fora, 
Como  a  sombra  que  Deus  projecta  sobre  nós... 

Misterioso  ser,  criatura  misteriosa. 
Conjunto  excepcional  da  aurora  e  do  poente. 
Se  teu  corpo  tortura  a  fome  impiedosa, 
O  sonho  vem  doirar  teu  cérebro  vidente. 

Ela  vai  através  das  ruas,  como  o  vento 
Vai  através  do  espaço,  em  lágrimas  desfeito. 
E  a  palidez  da  fome  é  qual  deslumbramento 
Que  lhe  ilumina  o  magro  rosto  e  o  magro  peito ! 

E  aquela  carne  ressequida  pela  fome 
Dá-nos  mais  a  impressão  d'alma  que  de  matéria... 
E  aquela  alma  que  a  dor,  sem  um  perdão,  consome 
Cai  sobre  o  filho,  a  rir,  como  lágrima  etérea ! . . . 

73 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Ventre  do  sofrimento  onde  germina  o  Amor... 
Ó  lágrima  que  o  sol  do  Bem  acaricia ! 
Sangrentos  lábios  a  beijar  dorida  flor, 
Noite  que  traz  ao  colo  a  luz  dum  novo  dia... 

Ó  dolorosa  Mãe,  trazes  teu  filho  ao  peito, 
Como  as  nuvens  do  mar  os  ventos  iracundos... 
O  teu  filho  é  Jesus.  É  ele  o  novo  Eleito, 
B  ao  sol  do  teu  olhar  as  lágrimas  são  mundos!... 

Ó  Mãe,  ó  Criação  descalça  e  visionária ! 
Nebulosa  a  sangrar.  Génesis  todo  em  pranto! 
Ó  divina  Mulher,  ó  Alma  solitária. 
Os  astros  sei  ouvir;  ouço  também  teu  canto!... 

Vais  como  sol,  vais  como  a  sombra  da  Amargura, 
Através  duma  rua  imunda  e  glacial. 
Tendo  na  tua  frente  a  triste  noite  escura. 
Deixando  atrás  de  ti  a  aurora  do  Ideal ! . . . 

Passou  como  um  gemido...  E,  quando  além  da  es- 

[quina 
Seu  vulto  se  escondeu,  senti  no  ar  tristonho 
O  místico  acordar  duma  visão  divina. 
Um  hálito  de  Deus,  um  resplendor  de  sonho... 

Nos  meus  olhos  senti  um  grande  alvorecer... 
Era  uma  lágrima  bendita  de  Piedade, 
Era  um  astro  infinito,  humano,  a  resplender. 
Na  grande  irradiação  do  dia  da  Verdade!.., 


OBRAS  CO]MP]vBTA.S 


A  FÁBRICA 


As  negras  chaminés,  quais  bocas  tenebrosas, 
Cospem  no  azul  negros  escarros  pestilentos 
Dum  fumo  que  envenena  as  paisagens  nervosas 
E  que  os  lúcidos  céus  nos  torna  nevoentos... 

A  fábrica  trabalha,  e  silvos  estridentes 
Cortam,  como  uma  espada,  a  trágica  atmosfera. 
Há  rodas  a  girar,  grandes  fornos  ardentes, 
Terríveis  como  o  olhar  sangrento  da  Quimera ! 

Lívidos  rostos,  como  lágrimas,  orvalham 
Os  vapores  que  vão  mover  as  engrenagens. 
Há  negros  vultos  revoltados  que  trabalham. 
Enquanto  o  sol  fecunda  o  ventre  das  paisagens ! 

Vem  visitar,  ó  Dante,  este  medonho  inferno, 
Os  negros  antros  do  Trabalho  e  da  Miséria... 
Cavernas  onde  geme  o  sofrimento  eterno 
Que  tem  no  rosto  magro  a  palidez  funérea! 

Anda  ver,  ó  Poeta,  os  antros  do  Martírio, 
Os  modernos  Titãs  que  hão-de  escalar  os  céus... 
E  nas  forjas,  a  arder,  as  chamas  em  delírio, 
Que,  porventura,  anima  a  cólera  de  Deus!.., 

75 


TEIXEIRA        DE        PASÇO    A    ES 

E  a  bigorna  onde  forja  a  Dor  o  raio  ardente 
Que  há-de  o  mundo  imperfeito  e  injusto  fulminar ! 
Mas  nesta  escuridão  eu  vejo  claramente 
O  brando  alvorecer  dum  místico  luar... 

E  da  Fábrica  cruel,  cheia  de  fumo  e  treva, 
De  grandes  corações  amargos,  sofredores. 
Um  grande  sonho,  ó  Deus,  fantástico  se  eleva, 
E  envolvem  a  oficina  estranhos  esplendores  ! . . . 


OBRAS  COMPIvBTAS 


UMA  SOMBRA 


Fúnebre  palidez  desce  do  Firmamento... 
Dum  cadáver  parece  exalações  estranhas... 
Fugitivo,  no  azul,  vê-se  o  perfil  do  vento. 
Olha  o  pálido  mar  e  as  lívidas  montanhas ! 
Um  soturno  clamor  enche  de  sons  magoados 
A  cidade  que  acorda,  e  observa  espavorida 
Uma  Sombra  que  tem  dois  olhos  incendiados 
Que  a  tudo  vão  lançar  teu  fogo  eterno,  ó  Vida ! 
Vês  a  Miséria,  Amor?  Vamos  passar  por  ela... 
É  um  esqueleto  ressequido  pela  fome. 
Anoitam  seu  olhar  nevoeiros  de  procela. 
Sai  um  clarão  de  dor  do  fogo  que  a  consome ! 
E  um  desespero  mudo  e  frio,  como  a  neve 
Que  inexorável  queima  as  últimas  folhagens, 
Quando  a  neblina  beija  as  cousas,  ao  de  leve, 
E  com  seus  dedos  fecha  os  olhos  das  paisagens, 
Sobressalta  e  contrai  seu  desolado  rosto, 
Terrível  como  um  grito  e  inquieto  como  a  treva 
Que  ao  respirar  do  vento,  à  hora  do  sol-posto, 
Lívida,  por  detrás  das  árvores  se  eleva!... 
Lutou  pela  justiça  e  foi  vencida.  Amou, 
Foi  odiada.  Endoideceu...  Grande  martírio! 
O  riso  nunca  mais  seus  lábios  deslumbrou. 
Nos  seus  olhos  sussurra  o  vento  do  delírio ! 
Nos  seus  cabelos  há  crepitações  de  chama, 
Prenúncios  dum  incêndio  universal  e  santo... 


11 


TKIXEIRA        DE        PASÇO    A    ES 

B  no  seu  peito  agreste  e  rude,  que  não  ama, 
A  cólera  desperta  um  tenebroso  canto ! 
Está  louca  a  cantar.  Nem  olha  para  nós. 
Toda  ela  é  um  soluço,  um  revoltado  grito 
Aonde  vai  morrer  a  nossa  frágil  voz. 
Como  um  raio  de  luz  no  vago  do  infinito ! 
Ofélia  d'hoje  que  a  Injustiça  enlouqueceu. 
Debruçada,  a  tremer,  sobre  um  abismo  imenso ! 
Lágrima  universal  na  pupila  do  céu, 
Pranto  da  Criação  dum  ermo  olhar  suspenso!... 
Aquela  lágrima  evapora,  ó  sol  do  amor... 
Converte-a  em  criadora  e  etérea  nebulosa. 
Cristaliza  num  mundo  ideal  aquela  dor, 
Condensa  numa  alma  a  carne  tenebrosa ! . . . 


OBRAS  COMPI,BTA.S 


TODOS   OS  DIAS 


Não  há  um  dia,  António,  em  que  não  pense  em  ti. 

Como  queimam  meu  sangue  as  dores  que  sofri 

Naquele  horrível  dia  escuro  de  tormento 

Em  que  tua  alma  subiu,  liberta,  ao  Firmamento, 

Quando  teu  corpo  ao  cair,  inânime,  no  chão, 

Fez  a  terra  tremer  em  grande  convulsão 

De  desespero  insano  e  cólera  sagrada ! 

Minha  alma  ficou  inerte  e  fulminada 

Ao  saber  desse  crime  hediondo  e  tenebroso, 

Que  meu  suave  viver  tornou  tempestuoso. 

Que  sombria  revolta  o  meu  ser  estremece ! 

Que  frio  glacial  meu  peito  empalidece. 

Quando  em  meus  olhos  tenho  essa  visão  sangrenta, 

Que  de  dia  e  de  noite,  ó  Ódio,  me  atormenta, 

Do  assassino  feroz  e  vil  que  te  matou 

E  a  quem  teu  coração  divino  perdoou!... 

Do  bandido  que  adora  a  injustiça  e  a  maldade. 

Do  assassino  da  Luz,  do  Amor  e  da  Verdade ! 

Do  canalha  sem  nome  e  pútrido  sicário 

Que  nova  cruz  ergueu  sobre  um  novo  calvário, 

E  que  é  a  vergonha  eterna,  ó  Deus,  da  Natureza ! 

Uma  nódoa  do  Azul,  a  mancha  da  Pureza, 

A  grande  indignação  da  justiça  bendita. 

Duma  nuvem,  dum  vaP  a  vergonha  infinita, 

O  remorso  do  sol,  a  agonia  do  luar 

E  a  nódoa  que  sujou  o  revoltado  mar 

79 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

E  a  face  ideal  da  Vida  e  o  coração  de  Deus 

B  os  astros  virginais  que  tremem,  lá  nos  céus!... 

A  injustiça  é  o  maior  dos  crimes.  Ser  injusto 

É  ser  a  incarnação  do  remorso  e  do  susto, 

É  ser  a  estupidez,  é  ser  a  noite  e  o  mal, 

É  não  ter  uma  alma,  é  ser  irracional, 

É  ser  lodo,  é  ser  pó  ou  cinza  apodrecida, 

É  morrer,  é  não  ter  nenhum  direito  à  Vida!... 


OBRA.S  COMPI^ETAS 


II 


Nessa  noite  sem  fim  da  minha  dor  enorme, 
Onde  eu  velo  sozinho  e  aonde  tudo  dorme, 
Às  vezes,  me  aparece  a  tua  imagem  querida. 
Num  fundo  de  tristeza,  em  lágrimas  diluída... 
Vejo-a  formar-se,  dentro  em  mim,  saudosamente, 
Como  o  espectro  dum  sol,  num  lívido  poente. 
Tua  imagem  de  luz,  extática,  deslumbra 
Todo  o  meu  ser  que  é  sombra,  escuridão,  penumbra. 
Abismo,  confusão,  caos  tempestuoso... 
E  sinto  encher  meu  vácuo  enorme  e  tenebroso, 
Como  um  golpe  de  mar,  a  tua  claridade 
Que  vem  de  florescer  a  terra  da  Verdade, 
Que  vem  de  agasalhar  mundos  desconhecidos, 
De  dar  vigor  e  alento  às  almas  dos  vencidos... 
E  então  todo  eu  me  sinto  enlevado  e  suspenso, 
Como  nuvem  de  dor,  do  teu  Azul  imenso ! . . . 

E  o  teu  sonho  d'amor  todo  o  meu  ser  domina,. 
Nos  meus  olhos  deixando  uma  visão  divina. 
Em  que  tu,  grande  irmão,  apareces  nimbado 
Dum  estranho  fulgor  sempiterno  e  sagrado... 
E,  olhos  todos  perdão,  serenos  e  benditos, 
Postos  nos  olhos  meus,  desvairados  e  aflitos, 
Tu  me  dizes,  num  gesto  infindo  de  ternura: 
«Não  descanses,  irmão,  percorre  a  noite  escura. 
Continua  a  pregar  a  Verdade  e  o  Amor. 

8i 


TEIXBIRA        DB        PASCOAKS 

Acende  a  luz  do  Bem  na  escuridão  da  Dor. 

Continua  a  sonhar  o  sonho  que  eu  sonhei... 

Toma  as  armas  com  que  eu,  na  terra,  pelejei, 

E  nunca  faça  a  paz  teu  triste  coração 

Na  luta  da  Justiça  e  da  Libertação. 

Dá  teu  corpo  à  fogueira  e  os  teus  braços  à  cruz. 

Trabalha,  canta,  sofre  e  ri;  sê  vida  e  luz». 


OBRAS  COMPI/ETAS 


VIDA  DO   CAMPO 


Elevam-se  da  terra  os  húmidos  vapores 
Numa  estranha  ascensão;  e  gritos  de  pastores 
Trespassam,  como  a  luz,  a  misteriosa  bruma... 
Nas  encostas  da  serra  há  flocos  d'alva  espuma, 
B  no  orvalho  que  pende,  a  rir,  dos  troncos  velhos, 
Há  reflexos  azuis,  doirados  e  vermelhos... 
A  geada  levanta  a  terra  dos  caminhos... 
Nos  arvoredos  nus,  choram  ruínas  de  ninhos. 
Fumegam  campos,  sob  os  golpes  das  enxadas... 
Há  frontes  ideais,  rugosas,  consteladas. 
E  loiros  bois  abrem  a  boca  a  fumegar. 
Num  mugido  saudoso  e  triste  como  o  mar... 
Mugido  d'égloga  que  fala  de  Virgílio, 
Como  querida  voz,  num  silêncio  de  exílio. 
Nascido  dum  desejo  obscuro  doutra  vida. 
Duma  ansiedade,  para  nós,  incompreendida. 
Vaga,  crepuscular,  como  a  melancolia 
Da  lua  onde  vagueia  o  teu  fantasma,  ó  Dia!... 
Alma  dos  animais,  que  poeta  te  sondou? 
Tuas  palpitações  ninguém  as  auscultou... 
Quem  pode  conhecer  teus  íntimos  segredos, 
Ó  alma  quase  igual  à  alma  dos  arvoredos? 
Alma  obscura  a  sonhar  no  longínquo,  no  vago, 
Ébria  de  névoa,  como  o  olhar  azul  dum  lago... 
Um  mundo  interior,  estranho  e  misterioso 
Tu  contemplas  talvez,  alma  d'olhar  brumoso... 

S3 


TEIXEIRA        DE        PA    SCO    A    ES 

Não  conheces,  decerto,  a  imagem  ilusória 

Da  existência  banal,  frágil  e  transitória... 

Estudas  simplesmente  o  mundo  do  Invisível, 

A  luz  que  para  nós  é  a  noite  do  Insensível... 

Tu  profundas  o  céu,  os  outeiros  e  a  flor. 

Da  essência  do  Universo  alcanças  o  esplendor! 

Por  isso,  ó  alma  ignota,  em  ti  murmura  a  luz 

Que  deslumbra  um  rochedo  e  que  banhou  Jesus!... 

A  neblina  que  o  sol  tão  sôfrego  absorveu, 

Deixa-nos  quase  ver,  em  alma,  o  azul  do  céu... 

E  os  montes  têm,  além,  altos  perfis  estranhos, 

E  longe  dos  currais  pastam  meigos  rebanhos... 

Dentre  eles  se  destaca,  às  vezes,  um  cordeiro 

Que  pára  e  fica  a  ouvir  cantar  o  pegureiro, 

Enternecido  como  as  pedras  que  escutaram 

Os  teus  cantos,  Orfeu,  que  as  cousas  encantaram..'. 

E,  com  um  ar  antigo,  as  lindas  raparigas, 

Hoje  rainhas  e  amanhã  talvez  mendigas. 

Para  o  almoço  dos  pais  improvisam  a  mesa 

Sobre  um  tronco  arruinado  e  cheio  de  tristeza, 

Que  se  desfaz  em  luz  eterna  e  virginal. 

Que  se  vai  integrar  na  alma  universal... 

Que  vai  ser  Deus,  Amor,  Génesis,  Criação, 

E  que  nos  dá  somente  a  pálida  impressão 

Dum  punhado  de  pó,  de  terra,  cinza  e  nada 

Que  os  ventos,  a  correr,  levantam  duma  estrada... 


OBRAS  COiSIPI/ETAS 


II 


É  meio-dia.  O  sol  é  todo  claridade. 
As  coisas  têm  um  ar  cru  de  realidade... 
De  nítido  o  azul  é  quase  material. 
E  os  ramos  nus,  pelas  encostas  d'ermo  vai', 
Projectam  uma  sombra  esguia  de  esqueleto, 
Uma  viúva  do  mês  d'abril,  toda  de  preto. 
Fulge  nos  tanques,  que  trasbordam,  um  tesoiro; 
Como  o  Tejo  doutrora,  os  rios  levam  oiro... 
No  céu  lavado  andam  murmúrios  e  rumores, 
E  grita,  num  delírio,  a  nitidez  das  cores ! 
Nimbam  as  formas  vãs  fulgurações  estranhas. 
E  que  relevo  têm,  nos  longes,  as  montanhas!... 
E  como  tudo  é  claro  e  lúcido  e  visível, 
Como  se  sente  um  ramo,  à  luz  do  sol,  sensível!... 
Surpreende-se,  por  pouco,  esse  instante  d'amor 
Em  que  a  água  vai  ser  um  místico  vapor. 
Um  voo,  uma  ascensão  ignota,  indefinida. 
Do  Olivete  da  morte  aos  paramos  da  Vida ! 
Um  penedo  sorri,  à  beira  duma  linfa... 
Pressente-se,  num  bosque,  uma  invisível  Ninfa. 
E  o  nosso  claro  olhar  distingue,  à  luz  dos  céus, 
Num  fundo  de  floresta  o  resplendor  dum  Deus!... 
Ladram  os  cães.  Gemem  as  noras,  sem  descanso, 
E  um  boi  passa  por  nós  absorto,  ingénuo  e  manso... 
Eis  a  paisagem  real  que  fala  ao  nosso  olhar, 
Enquanto  vemos,  pelos  campos,  trabalhar 
O  pobre  camponês,  sem  lar  e  sem  candeia. 
Que  sente  o  seu  suor  cair  em  terra  alheia ! . . . 


S5 


TBIXBIRA        DB        PA    SCO    A    ES 


III 


Num  pálido  desmaio  a  luz  do  dia  afrouxa. 
Envolve  os  montes  uma  gaze  ténue  e  roxa, 
Que  a  tudo  dá  um  ar  melancólico  e  suave... 
K  o  voo  tão  solitário  e  triste  duma  ave 
Faz  palpitar  d'amor  o  éter  invisível 
Que  esplende  num  clarão  oculto  e  imperceptível... 
E  descem  sobre  a  terra,  em  nuvens  de  quimera, 
Os  perfumes  subtis  da  morta  primavera, 
Que  se  vão  infiltrar  nas  almas,  onde  acendem 
Sonhos,  ânsias,  ideais  que  os  homens  não  entendem. 
Por  sobre  as  cousas  paira  uma  melancolia... 
Em  tudo  há  palidez  de  mística  anemia. 
As  nuvens  passam,  no  poente,  a  escorrer  sangue... 
Cada  árvore  é  uma  enferma  a  definhar,  exangue. 
E,  numa  encosta  solitária  e  desolada, 
Descobre-se  uma  casa  antiga  e  abandonada, 
Onde  vagueiam,  a  sonhar,  ermas  saudades. 
Fantasmas  de  luar,  sombras  de  claridades, 
Brancos  espectros  duma  vida  que  passou. 
Fumo  ainda  a  subir  dum  lar  que  se  apagou... 
Vai  diminuindo  a  luz.  E  mansa  escuridão 
Sobre  as  formas  derrama  inquieta  indecisão... 
Sente-se  o  agonizar  das  cores  que  falecem, 
Sente-se  o  endurecer  dos  ramos  que  arrefecem... 
A  estrela  do  pastor  coroa  um  ermo  outeiro 
E  as  montanhas,  além,  parecem  nevoeiro... 

86 


OBRAS  COMPLETAS 

K  o  triste  camponês,  de  fronte  descoberta, 

Vai  sozinho  através  da  paisagem  deserta. 

Sentindo  no  seu  corpo  o  gelo  do  suor 

E  a  fome  que  lhe  causa  uma  impressão  de  dor. 

Em  direcção  à  sua  rústica  choupana 

Mais  piedosa  e  melhor  do  que  uma  alma  humana... 


TKIXBIRA        DB        PASCOAES 


IV 


Noite  velha.  Por  sobre  a  terra  ingrata  e  nua, 
A  muda  ondulação  da  escuridão  flutua, 
Num  pesado  silêncio  angustioso  e  aflito, 
Que  nos  dá  a  impressão  dum  represado  grito 
Numa  garganta  que  um  soluço  sufocou... 
Negra  nuvem  de  chuva  os  astros  apagou. 
É  um  imóbil  fantasma,  além,  um  arvoredo... 
E  oculta  sensação  atávica  de  medo 
Derrama  em  nosso  corpo  um  arrefecimento... 
E  uma  inquieta  paz,  um  duro  esquecimento 
Envolve  as  almas,  os  rochedos  e  as  montanhas, 
Onde  vemos  tremer  cintilações  estranhas 
Que  vão  ferir  o  nosso  olhar  alucinado 
Que  a  própria  treva  deixa,    às  vezes,   deslumbra- 

[do !... 
Tal  como  se  ela  fosse  uma  revelação, 
Como  se  ela  nos  desse  a  nítida  visão 
Dum  mundo  interior,  ignoto  e  nunca  visto. 
Onde  cai,  sem  descanso,  o  dia  do  Imprevisto, 
Num  niágara  de  luz  que  ofusca  e  que  deslumbra, 
Enquanto  esconde  a  terra  uma  espessa  penumbra... 
A  noite  é  mais  pesada.  O  vento  principia 
A  derramar,  no  espaço,  uma  vaga  harmonia... 
Uma  chuva  miúda  e  triste  nos  beirais 
Põe  murmúrios  de  dor,  misteriosos  ais... 
E  as  ermas  bouças  vão  ficando  humedecidas, 

88 


OBRAS  COMPI/ETAS 

t 

Qual  lenço  que  enxugou  lágrimas  doloridas... 
Enquanto  o  camponês,  num  grande  pesadelo, 
Sente  na  sua  fronte  o  eriçar  do  cabelo 
E  descobre  no  fundo  obscuro  do  seu  sonho 
Um  fantasma  de  luz,  esplêndido  e  risonho, 
Que  nos  seus  braços  o  arrebata,  com  amor, 
Para  um  mundo  ideal  onde  não  chora  a  dor!... 
Entre  as  árvor's  e  o  céu  há  diálogos  profundos... 
Comove  o  espaço  o  ignoto  amor  que  liga  os  mundos. 
De  tudo  a  solidão  parece  dimanar. 
Como  um  fluido,  o  silêncio  as  coisas  faz  sonhar... 
Por  isso,  sem  querer,  mais  baixo,  nós  falamos 
Quando,  à  noite,  por  uma  estrada  caminhamos... 
É  um  respeito  instintivo,  oculto  e  religioso 
Pelo  sono  bendito,  augusto,  misterioso 
Em  que  adormece  a  boa  terra,  o  santo  arbusto, 
A  virgem  fonte,  o  mar  sagrado,  o  lírio  justo!... 


TEIXEIRA        DE        PA    SCO    A    ES 


O  HOMEM  E  OS  OUTROS  SERES 


Quando,  às  vezes,  eu  saio,  à  tarde,  a  passear, 
As  aves  e  os  répteis  e  os  outros  animais, 
Todos  fogem  de  mim,  ao  verem-me  passar 
E  tremores  de  susto  agitam  os  silvais... 

Os  vales  sem  ninguém  meu  ser  enche  de  medo... 
De  pânico  eu  inundo  as  sebes  dos  caminhos. 
E,  sempre  que  me  sento  à  sombra  do  arvoredo, 
Há  calefrios  de  terror  dentro  dos  ninhos... 

E  eu,  que  sonho  a  Piedade  e  que  desejo  o  Amor, 
Que  ao  ver  a  Criação  me  sinto  comovido. 
Tenho  um  grande  desgosto  e  uma  profunda  dor, 
Ao  ver-me,  ó  Natureza,  assim  incompreendido 

Por  tudo  quanto  eu  amo  enternecidamente. 

As  estrelas,  o  azul,  as  nuvens  e  o  luar... 

De  que  serve  a  consciência  ao  pé  do  inconsciente? 

Se  há  só  trevas  não  é  preciso  ter  olhar... 

Tu  vinhas  ter  comigo,  ó  pedra,  se  me  ouvisses, 
E  vós,  ondas  do  mar,  e  vós,  altos  espaços ! 
Se  o  que  eu  sinto  por  ti,  ó  ave,  pressentisses. 
Tu  farias,  decerto,  o  ninho  nos  meus  braços!... 


90 


OBRAS  COMPIvBTAS 

Mas,  na  minha  tristeza,  eu  tenho  esta  visão 
Do  amor  que  há-de  reinar  em  toda  a  criatura. 
Do  laço  que  há-de  unir  o  humano  coração 
Ao  rochedo  que  sonha  e  à  nuvem  que  murmura... 

Julgo  que  vou  subindo  a  encosta  duma  serra 
B  que  nas  árvor's  fulge  o  luar  da  Piedade... 
E  que  as  aves  do  céu  e  os  animais  da  terra 
Projectam  sobre  mim  uns  olhos  de  bondade... 


TEIXEIRA        DE        PASÇO    A    ES 


UM  BURRO 


Eu  encontrei,  um  dia,  a  pastar  sobre  um  prado 
Um  burro  magro,  esguio  e  triste  e  abandonado... 
Ele  tinha  o  quer  que  é  de  anacoreta  ascético 
E  na  sua  fronte  triste  um  doce  olhar  profético... 
Um  inspirado  olhar,  profundo  e  visionário 
Que  vê  tudo  através  da  noite  do  Calvário... 
Que,  além  da  realidade,  avista  o  Ideal ! 
Olhar  inconsciente,  olhar  irracional 
Ou  como  a  luz  do  luar  ou  como  a  luz  do  dia 
Que  avistam  um  perfume  e  vêem  toda  a  harmo- 

[nia... 
Olhar  que  só  descobre  o  que  o  Universo  sente; 
Olhar  feito  pra  ver  o  Espírito  somente... 
Que  numa  lágrima  só  vê  bendita  dor, 
Numa  pedra  uma  alma  e  num  lírio  um  amor. 
Divino  olhar  que  nos  parece  amortecido. 
Como  um  astro  remoto  a  nada  reduzido. 
Porque  brilha  no  Além,  no  azul  distanciamento, 
Onde  tudo  é  paixão,  beleza  e  sentimento!... 
O  seu  corpo  era  alto,  humano  e  muito  ossudo. 
Corpo  de  sábio  definhado  em  longo  estudo. 
E  o  seu  belo  perfil,  no  ar,  se  desenhava 
E  o  S-onho,  como  a  luz,  seu  corpo  aureolava... 
E  ao  vê-lo  eu  meditei,  ó  Deus,  numa  alma  triste 
Que  sofre  a  eterna  dar  de  tudo  quanto  existe... 
Numa  alma  misteriosa,  oculta  e  incompreendida, 


g2 


OBRAS  CO:\IP]vETAS 

Que  conhece  o  princípio  e  o  vago  fim  da  Vida... 
Que  atingiu  o  Absoluto  e  a  pura  consciência 
De  tudo  —  desde  a  Forma  ao  resplendor  da  Essên- 

[cia... 
Que  vive  na  visão  eterna  da  Verdade, 
E  que  vai  toda  amor,  toda  paz  e  humildade, 
Sob  açoites  cruéis  e  duras  chicotadas, 
Pela  horrorosa  mão  da  Estupidez  vibradas, 
Em  busca  do  Martírio,  a  caminho  da  cruz, 
Para  morrer  salvando,  assim  como  Jesus!.,, 


t:eixe:ira      db      pascoabs 


VIDA  DO  MAR 


Quantas  tardes,  eu  vou,  sozinho,  passear 

Ao  longo  do  brumoso  e  soluçante  mar... 

E  vejo,  ao  cair  do  sol  nas  ondas  abrasadas. 

Entre  as  rochas  que  estão  de  espuma  coroadas, 

Tristes  habitações  de  pobres  pescadores... 

Telhados  pra  abrigar  soluços,  ais  e  dores. 

São  choupanas  onde  há  postigos  e  janelas, 

Donde  a  Tristeza  vê,  ao  longe,  as  brancas  velas, 

Navios  onde  vai  ao  leme  a  Saudade... 

Sopra  um  vento  que  traz  a  viuvez  e  a  orfandade... 


OBRAS  COMPLETAS 


II 


Sente-se  palpitar  o  coração  do  Oceano 

Que  pela  lua  tem  um  grande  amor  humano. 

Tremem  as  ondas  num  ataque  de  histerismo. 

E  nas  gaivotas  há  a  tentação  do  abismo, 

Tão  altas  elas  vão,  num  voo  misterioso... 

Assopra,  desgrenhado,  um  vento  lacrimoso... 

E  nas  correntes  d'ar  que  as  ondas  arrefecem 

Vibram  as  sensações  que  uns  nervos  estremecem,., 

Sensações  que  vão  ser  inéditas  imagens 

No  cérebro  do  mar,  feito  para  as  sondagens. 

Como  uma  asa  negra,  a  triste  cerração 

Desce  do  céu,  cheia  de  horror  e  de  aflição ! 

B  um  medo  sobressalta  as  ondas  que  se  atiram 

D'encontro  à  erma  praia,  onde,  chorando,  expiram. 

Os  promontórios  nimba  uma  auréola  d'espuma. 

Relâmpagos  de  dor  incendeiam  a  bruma, 

E,  num  clarão  de  incêndio,  ela  se  transfigura... 

Depois,  a  noite  fica  ainda  mais  escura, 

E  as  águas  vão  pequenos  barcos  devorando. 

Rasgam  o  ar  terríveis  ais  de  quando  em  quando ! 

Beijos  de  despedida  e  últimos  abraços, 

A  caminho  da  Paz,  percorrem  os  espaços. 

Furam  a  espuma  mãos  crispadas  de  terror, 

E  há  corpos  a  boiar,  donde  fugiu  a  Dor... 

E,  qual  fantasma  sobre  as  tenebrosas  ondas. 

Lívido  e  amortalhado  em  trevas  hediondas, 

Vê-se  um  navio  enorme  e  negro  a  naufragar. 

Onde  entra,  num  rugido  amargo,  o  vasto  mar!... 

95 


TEIXEIRA   PE   PASCOAES 


III 


Um  vulto  esguio  de  mulher,  todo  de  preto, 
Abraça,  sobre  a  praia,  um  trágico  esqueleto 
Que  uma  onda,  com  amor,  nos  seus  braços  lançou, 
Num  gesto  d'alva  espuma  onde  o  luar  cintilou... 
E  a  noite  vaga  sobre  as  águas  repousada, 
Sentiu  a  Palidez  torná-la  desmaiada... 
E  um  frémito  de  dor,  no  ar,  resplandeceu. 
E  depois,  todo  o  mar  antigo  escureceu. 
E    a  treva  adquiriu  tão  grande  intensidade. 
Que  me  dava  a  impressão  de  estranha  claridade 
Que,  em  vez  de  deixar  ver,  meus  olhos  deslumbrava. 
E  o  mar  tinha  uma  voz  profundamente  cava... 
E  a  bruma,  num  suor  gélido  d'agonia. 
Aos  cavernosos  céus,  fantástica,  subia... 
Enquanto  o  mar  beijava  os  íngremes  rochedos, 
No  desejo  que  prende  o  vento  aos  arvoredos. 
E  os  negros  temporais,  no  horizonte,  passavam 
E  as  destemidas  naus,  com  cólera,  insultavam! 
E  aquele  vulto  se  escondeu  nas  trevas  densas 
Que  abrigam,  com  amor,  as  aflições  imensas... 
E  a  noite  trespassou  a  crua  luz  dum  grito 
Que  ampliou  até  Deus  a  sombra  do  Infinito!... 


OBRAS  COMPLETAS 


IV 


Velhos  homens  do  mar,  ó  rudes  marinheiros, 
Filhos  dos  temporais,  irmãos  dos  nevoeiros. 
Confidentes  do  amor  que  as  ondas  ilumina. 
Tradutores  da  língua  estranha  da  neblina... 
Ó  leitores  do  livro  azul  do  Firmamento. 
Intérpretes  do  luar,  das  nuvens  e  do  vento!... 
Almas  rudes  que  têm  a  energia  do  mar. 
Cabelos  brancos  numa  chuva  de  luar... 
Ó  frontes  ideais  batidas  do  nordeste! 
Vagos  olhos  a  olhar  toda  a  amplidão  celeste... 
Ó  perfis  onde  morre  o  clarão  do  sol-pôr 
Que  dentre  as  ondas  sai  numa  explosão  de  dor ! 
Marinheiros  da  Grécia  antiga  que  assististes 
Do  alto  das  vossas  naus,  ansiosos  e  tristes, 
Ao  suicídio  de  Safo  e  ao  canto  das  Frinés 
K  às  grandes  comoções  que  agitam  as  marés!... 
K  que  vistes  nascer,  num  dia  excepcional, 
Vénus — esse  sorriso  eterno  e  universal  — 
Duma  onda  que  os  clarões  da  aurora  fecundaram. 
Quando  as  águas  e  a  luz,  famintas,  se  beijaram. 
Num  desejo  d 'amor  que  sempre  se  traduz 
Numa  árvor'  que  dá  flor  bem  antes  de  ser  cruz. 
Num  desejo  ideal,  quimérico,  imprevisto 
Que  foi  o  pai  de  Pã  e  foi  o  avô  de  Cristo!... 
Velhos  homens  do  mar  de  todos  os  países, 
Ó  rudes  corações  cheios  de  cicatrizes, 
Abertas  pela  mão  cruel  da  Nostalgia... 
Almas  feitas  de  treva  e  de  melancolia. 


91 


TEIXEIRA        DK        PA    SCO    A    ES 

Inquietas,  sempre  a  olhar  o  fundo  dum  abismo 
Que  estremece  num  grande  e  eterno  paroxismo,    • 
Por  sobre  o  qual  vagueia  a  sombra  de  Virgínia, 
Leve  como  o  perfume  etéreo  da  glicínia. 
Branca  como,  no  inverno,  a  gélida  camélia, 
Levando  ao  lado  a  sombra  pálida  de  Ofélia; 
Cabelos  soltos,  alma  feita  de  amargura. 
Olhos  fenomenais  onde  canta  a  Loucura!... 
E  as  duas  sombras  vão  a  chorar  e  a  cantar. 
Como  outrora  Jesus,  sobre  as  águas  do  mar... 
Homens  que  adormeceis  no  seio  das  tempestades ! 
(Misteriosas  paixões,  ignotas  ansiedades...) 
Aos  meus  ouvidos  vem  a  voz  da  Natureza 
Cheia  da  vossa  amarga  e  trágica  tristeza... 
L  sinto  na  minh'alma  a  grande  solidão 
Que,  no  meio  do  mar,  vos  toma  o  coração!... 
Eu  vivo,  como  vós,  no  infinito  e  no  vago 
Que  há  num  dorido  olhar  e  num'  nevoento  lago; 
Numa  onda  a  mudar-se  em  névoa  transcendente, 
Nos  ermos  animais  que  sofrem  como  a  gente... 
Eu  vivo,  como  vós,  a  vida  extraordinária 
Duma  vela,  ao  luar,  longínqua  e  solitária... 
A  existência  subtil  da  vaporosa  espuma, 
Em  cujos  olhos  brilha  a  tua  alma,  ó  bruma ! 
E  sinto,  como  vós,  o  desespero  insano 
Que  eleva  até  à  lua  as  ondas  do  Oceano ! 
E  a  revolta  sagrada,  a  cólera  bendita 
Que  sobre  a  terra,  em  água,  as  nuvens  precipita... 
Que  faz  gritar,  no  espaço,  o  vento  desgrenhado. 
Um  réprobo  talvez,  um  doido,  um  condenado... 
E  sou  filho  também  da  grande  tempestade 
Onde  há  relâmpagos  d'amor  e  de  verdade! 


OBRAS  COISIPLETAS 


TREVAS 


Numa  treva  d' abismo,  eu  vejo  naufragar 

Os  seres  que  descubro  à  luz  desse  luar 

Que  sobre  o  mundo  chora  uma  lua  de  morte... 

Um  vento  de  descrença,  um  frio  vento  norte 

A  árvore  do  Ideal  açoita  cruelmente... 

H  seus  lábios  em  flor  estiolam,  numa  ardente 

Sede  de  primavera  e  fome  de  Verdade. 

E  os  seus  ramos  já  nus,  hirtos,  na  imensidade 

Descrevem  gestos  de  loucura  e  de  tristeza, 

Que  fazem  arrepiar  a  alma  da  Natureza... 

Uma  treva  d'abismo  as  almas  asfixia. 
Enquanto  a  luz  do  sol  é  um  riso  d'ironia 
E  é  uma  gargalhada  o  soluçar  das  ondas... 
E  enquanto  o  vento  diz  palavras  hediondas 
E  as  estrelas  do  céu  são  lágrimas  perdidas 
Que,  nalgum  morto  olhar,  ficaram  esquecidas... 

E  eu  vejo  a  alma  humana  agonizante  e  triste, 
Na  descrença  fatal  de  tudo  quanto  existe. 
As  pálpebras  cerrar  à  evidência  da  Luz, 
Como  outrora  Caifás  quando  julgou  Jesus ! 
E  abri-las,  num  assombro,  à  noite  da  Mentira, 
Em  cujo  seio  o  Mal,  numa  embriaguez,  delira! 


99 


TEIXEIRA        DE        PA    SCO    A    ES 

Eu  oiço  a  alma  humana  aflita,  no  estertor 
Duma  agonia  cruel,  dizer  à  sua  dor: 
«Sou  uma  sombra,  uma  mentira,  uma  ilusão! 
Não  sou  fonte  de  luz,  mas  sim  de  escuridão... 
A  vida  não  foi  mais  que  um  pretexto  banal 
Para  que,  um  dia,  ó  dor,  o  fantasma  do  Mal 
Saísse  da  inconsciência  obscura  do  Universo, 
Onde  ele  em  cada  coisa  existiu  já,  disperso ! 

O  Amor,  a  Perfeição,  a  Justiça  e  a  Verdade 
São  como  nuvens  a  fugir  na  imensidade. 
Que  o  vento  norte  numa  lágrima  condensa 
K  que  o  sol  vai  beber  com  uma  sede  imensa ! 
A  vida  não  é  mais  que  este  horrível  momento 
Em  que  se  chora  e  sofre,  enquanto  o  doido  vento, 
Sem  ternura,  arrebata  os  nossos  frios  ais, 
Delirante,  através  os  ermos  pinheirais. 
Onde  eles  deixam,  a  gritar,  sombras  estranhas 
Que  inundam  de  pavor  o  dorso  das  montanhas!... 
O  céu  é  apenas  um  disfarce  azul  do  inferno. 
O  claro  mês  d'abril  é  o  desgrenhado  inverno 
Mascarado  de  flor. 

De  que  serve  nascer. 
Ter  um  sonho,  um  ideal,  para  depois  morrer?... 
E  a  morte  é  a  podridão,  o  nada,  a  cinza  fria... 
E  a  luz  que  em  nós  brilhou  toda  amor  e  harmonia, 
Em  que  treva  e  silêncio  ela  se  converteu... 
A  que  abismo  sem  fim,  chorando,  ela  desceu!... 
E  quando  brilha  nos  meus  lábios  um  sorriso 
E  nos  meus  olhos  a  visão  do  Paraíso, 
Quando  mística  luz  trespassa  o  nosso  ser, 
Talvez,  ó  negra  dor,  nosso  íntimo  prazer 
Torture,  sem  piedade,  ignotos  corações!... 
De  quantas  mortes  serão  feitas  as  visões?... 
De  quantas  dores,  para  nós,  misteriosas, 
Será  feito  o  prazer  que  enche  um  perfil  de  rosas?... 


100 


OBRAS        co:mplbta.s 

Deus  é  filho  da  Dor...  se  acaso  Deus  existe. 
Brotou  do  seu  olhar  este  Planeta  triste, 
Como  uma  lágrima  sombria  e  torturada 
Que  no  lenço  do  Azul  caiu  desamparada ! 

Corações  a  brilhar,  lágrimas  a  sorrir. 
Uma  asa  no  azul,  uma  estrela  a  fulgir, 
A  aurora  dum  ideal,  a  luz  duma  quimera, 
Perfumes  a  nadar  num  céu  de  primavera 
São  formas  desiguais,  são  aspectos  diversos 
Da  dor  de  Deus  que  cristaliza  em  Universos ! 
Eis  a  razão  por  que  somente  descobrimos 
De  verdadeiro,  em  nós,  as  dores  que  sentimos 
E  que  afinal  também  só  vivem  um  instante. 
Em  pranto  diluindo  o  nosso  olhar  distante 
Que  morre  como,  à  tarde,  o  fumo  que  se  eleva 
Da  paisagem  que  sente  o  hálito  da  Treva ! 
Tudo  é  névoa  e  ilusão...» 

E  eu  chorei  friamente 
Ao  ver  aquela  alma  humana  tristemente 
À  evidência  da  luz  as  pálpebras  cerrar, 
À  Alegria  que  doira  as  ondas  ao  luar, 
A  Verdade  que  fala  em  cada  humilde  cousa, 
À  Beleza  que  sonha  obscura,  misteriosa 
Em  cada  flor,  em  cada  estrela,  em  cada  fonte, 
E  à  Bondade  que  vive  e  reza  em  cada  monte!... 

E,  ao  ouvir  a  alma  humana,  eu  tive  essa  visão 
Do  mundo  a  naufragar  num  mar  de  escuridão. 
E  a  Terra  tinha  um  ar  de  convés,  onde  as  águas 
Entram,  a  soluçar  desconhecidas  mágoas, 
Enquanto,  num  terror  enorme,  os  marinheiros 
Gritam  na  sombra  espessa  e  triste  dos  nevoeiros!... 


lOI 


TEIXE)IRA        DB        PASÇO    ABS 


Do  mesmo  beijo  ideal  que  prende  o  céu  à  terra, 
Nasceram  a  alma  humana  e  as  árvores  da  serra... 
A  mesma  luz,  o  mesmo  sonho,  a  mesma  ânsia 
Anima  uma  floresta  e  a  névoa  da  Distância... 
No  íntimo  da  pedra  esplende  a  etérea  chama 
Que  um  frágil  coração  dum  santo  amor  inflama... 
Quantas  rochas  encontro,  à  tarde,  a  meditar ! 
Uma  pedra,  por  pouco,  é  lágrima  ao  luar... 
Buda  aprendeu  convosco,  ó  arvoredos  nus, 
E  houve  um  lírio  que  foi  o  mestre  de  Jesus. 
Nos  meus  olhos  murmura  a  vossa  água,  ó  fontes. 
E  um  grande  sonho  eleva  os  penhascosos  montes ! 
B  um  amor,  afinal,  é  todo  o  Firmamento 
Reduzido  a  um  subtil  e  simples  sentimento... 
Um  beijo  ardente  é  o  sol.  Um  abraço  a  Atracção. 
Ó  sapo,  és  uma  estrela !  Ó  lama,  és  um  clarão ! 
Quem  destrói  uma  flor,  quem  mata  um  ser  humano 
Veste  de  negro  luto  as  ondas  do  oceano, 
A  areia  do  deserto  e  as  estrelas  dos  céus. 
Lágrimas  onde  brilha  a  oculta  dor  de  Deus... 
E  por  isso  a  Justiça,  o  Amor  e  a  Piedade 
Devem  agasalhar  na  sua  claridade 
Qualquer  alma  que  chore,  ou  d'homem  ou  de  flor, 
Por  se  ver  triste  e  só  na  noite  duma  dor!... 


OBRAS  COINIPIvETàS 


DOR 


Uma  saudade  abala,  às  vezes,  todo  o  mundo. 
Uma  chama  de  dor  irrompe  d'alto  monte... 
E  está   constantemente,    além,   meditabundo 
B  d'estrelas  molhado  o  rosto  do  horizonte... 

Dos  arvoredos  tombam  gotas  cristalinas. 
Os  olhos  dos  leões  são  fontes  caudalosas... 
Há  rios  a  chorar  a  angústia  das  neblinas ! 
Há  nos  lábios  do  sol  palavras  dolorosas... 

Há  tristes  expressões  num  áspero  rochedo. 
Vê-se  através  dum  tronco  um  lívido  fulgor... 
Lágrimas  numa  face,   orvalhos  no  arvoredo, 
São  corpos  iguais  sofrendo  a  mesma  dor ! . . . 

A  mesma  nuvem  transcendente  a  condensar-se 
Na  mesma  chuva  de  paixão  e  de  martírio. 
Sempre  que  o  pranto  vai  no  espaço  derramar-se, 
Numa  alma  ou  no  pó,  floresce  o  mesmo  lírio... 

Poetas,   interrogai  as  lágrimas  de  tudo... 
O  vento,  a  pedra,  o  ar,  as  nuvens  e  o  oceano. 
Todo  o  olhar  apagado  e  todo  o  lábio  mudo, 
A  tristeza  divina  e  o  sofrimento  humano... 


103 


TEIXEIRA        DB        PASCOAES 

Que  vosso  corpo  nesse  pranto  se  dilua. 
Vossas  almas  lavai  nessa  água  abençoada, 
Como  no  vasto  mar  se  purifica  a  lua, 
Depois  de  percorrer  a  terra  maculada... 

É  bem  certo  que  a  Dor  é  a  essência  do  Universo. 
A  dor  é  a  alma.  A  dor  é  o  espírito  etéreo. 
A  dor  floresce  um  ramo  e  faz  brotar  um  verso. 
Sofrer,  é  penetrar  no  mundo  do  Mistério... 

Uma  lágrima  explica  a  estranha  Criação. 
Profundai-a,  e  vereis  a  misteriosa  origem 
Dos  mundos  e  dos  sóis.  E  um  grito  de  aflição 
Deixa-nos   surpreender,   ó  luz,   teu  corpo  virgem ! 

E  vemos  num  suspiro,  ó  vento,  as  tuas  asas... 
Esse  dorido  ar  quem  sabe  o  que  ele  leva ! 
Ouve-se,  num  desejo,  o  crepitar  das  brasas 
E  há  na  luz  dum  olhar  a  explicação  da  Treva ! 

A  vida  é  redenção  e  a  noite  é  a  mãe  do  dia... 
Através   do  Universo  avista-se  uma  cruz. 
Quem  sofre  resplandece.  A  lágrima  alumia. 
Ó  dor,  riso  de  Deus  e  pranto  de  Jesus!... 


« 


A  inconsciência  e  o  mal  são  a  origem  da  Vida. 
Seu  fim  é  a  Perfeição  sonhada  e  pressentida 
Pelo  poeta  que  sofre  e  canta  e  reza  e  chora 
Para  mudar  a  sua  noite  numa  aurora... 
A  dor  é  a  estrada  que  vai  dar  ao  Ideal. 
Sofre  para  ser  alma  o  verde  pinheiral, 
E  só  um  sacrifício  ingente  é  que  transforma 
No  clarão  dum  amor  a  noite  duma  forma ! 
E  só  a  dor  converte  em  luz  a  penedia... 


104 


OBRAS  COMPIvBTA.S 

O  perfume  dum  lírio  é  filho  da  agonia 
Que  de  pranto  constela  os  ramos  dolorosos 
Dos  arvoredos  transcendentes,  misteriosos... 
Que  tragédia  a  da  terra  antiga  e  embrutecida 
Para  desabrochar  em  sonho,  em  alma  e  vida. 
Para  ser  um  Platão,  um  Buda  ou  um  Jesus ! 
E  para  ser  olhar  o  que  sofreu  a  luz ! 
O  claro  sol  tocando  um  corpo,  de  repente, 
Volta-se  para  si,  num  êxtase  consciente... 
E  é  reflexo  e  luar,  é  lágrima  e  visão. 
Apolo,  a  tua  sombra,  ao  ver-te,  é  a  comoção ! 
A  tua  sombra  eu  sou,  como  uma  pedra  ou  flor. 
Dar  sombra  é  irradiar  a  noite  duma  dor... 
A  penumbra  é  a  tristeza  ideal  da  claridade. 
Osíris,  eu  bem  sei  que  sou  tua  saudade... 
Um  crepúsculo  d'alma,  aurora  sacrossanta, 
O  vagido  dum  Deus  ao  colo  duma  planta... 


Arde  meu  corpo  em  cada  incêndio  que  se  ateia. 
Minh'alma  está  presente  em  toda  a  dor  alheia. 
Sinto  nos  lábios  a  secura  da  estiagem. 
Em  cada  lágrima  cintila  a  minha  imagem... 
Qualquer  cousa  de  mim  cada  suspiro  leva. 
Chora,  na  minha  sombra,  o  génesis  da  Treva ! 
E  a  luz  do  meu  olhar  é  o  sangue  imaculado 
Que  derrama  no  espaço  o  sol  crucificado... 
Das  lágrimas  do  Som  nasceram  meus  ouvidos, 
Como  tristes  jasmins  ou  lírios  doloridos... 
São  golpes  ideais  que  no  meu  ser  abriu 
A  harmonia  dos  sóis  que  só  Platão  ouviu ! 
Talvez,  dentro  de  mim,  sofra  o  Universo  inteiro. 
Nos  meus  sonhos  branqueja  o  vago  nevoeiro... 
Meu  coração  anima  invisível  eflúvio 
E  existem  no  meu  pranto  as  águas  do  Dilúvio ! 


105 


TBIXBIRA        DE        PASCOAES 

Sou  uma  chaga  tua,  ó  mártir  Criação 
Que  sofres  uma  eterna  e  trágica  paixão, 
No  calvário  sem  fim  dos  mundos  e  dos  céus 
Para  alcançar  talvez  a  redenção  de  Deus!... 


Sede  benditas,  lágrimas  sagradas 

Que  sois  feitas  de  treva 
E  derramais  a  luz  das  alvoradas ! 
Bendita  seja  a  dor  que  tudo  eleva... 

Ó  dor,  ó  mãe  de  Deus,  sê  tu  bendita. 

Via-láctea  sem  par, 
Por  onde  vão  o  mal  e  a  noite  aflita 
Diluir-se  em  Deus,  como  um  rochedo  em  luar! 

Ó  grande  sofrimento, 
Ó  redenção  da  Alma  universal ! 
Ó  dor  que  empalidece  o  Firmamento, 

ís^um  desmaio  de  ideal!... 

Ó  dor,  filha  dos  Génesis  sombrios, 
Ó  fantasma,  num  Caos,  vagabundo! 
Ó  Buda  das  estrelas  e  dos  rios, 
Jesus  do  mar  profundo  ! . . . 

Bendita  sejas  tu,  divina  dor ! 
Fogueira  donde  sai  a  luz  de  Deus. 
Sol  meditando  a  eterna  lei  do  Amor, 
No  deserto  dos  céus  ! . . . 


OBRAvS  C()MPIvBTA.S 


O  HOMEM  E  o  UNIVERSO 


Súbito,  uma  tristeza  o  nosso  peito  invade, 
E  sem  saber  porquê,  magoados,  nós  choramos... 
Nasce  do  pó  ou  duma  pedra  essa  saudade? 
Com  certeza  ela  vem  no  ar  que  respiramos. 

Anda  errante  no  Azul,  como  um  perfume  etéreo, 
A  ignota  dor  que  deixa  o  mundo  em  convulsões  ! 
Há  nas  asas  do  ar  cinzas  de  cemitério... 
Percorrem  nosso  sangue  os  mortos  corações. 

E  sinto,  dentro  em  mim,  uma  tristeza  vaga, 
Sem  causa  conhecida.  E  choro  sem  saber. 
E  o  meu  pranto,  que  o  sol  insaciado  apaga, 
Ê  a  lenha  que  o  conserva  eternamente  a  arder ! 

E  eu  amo  e  penso  e  sonho  e  vivo  e  a  minha  vida 
Não  me  pertence  a  mim,  anda  esparsa  no  ar. 
E  assim  minha  existência  obscura,  indefinida, 
É  a  existência  da  flor,  da  água  e  do  luar. . . 

Por  isso,  eu  não  sou  nada  e  a  morte  não  é  nada. 
Que  importa  à  Criação  que  eu  sinta  o  que  ela  sente? 
Dizei-me  de  que  serve  à  virgem  alvorada 
Reflectir  sobre  um  charco  a  sua  luz  consciente?... 


IO'] 


TEIXEIRA        DE        PASCOABS 

O  homem  é  um  reflexo  estranho  e  excepcional 
Do  universo  que  segue  um  rumo  nunca  visto. 
Sócrates,  a  cicuta  ouviu  o  teu  ideal... 
E  a  árvore  cruz  sentiu  a  aspiração  de  Cristo ! 

Estudai,  com  amor,  um  homem,  e  vereis 

Que  ele  é  a  sombra  de  tudo,  o  fantasma  das  cousas. 

Nele  murmuram  sóis  e  floridos  vergéis. 

Sua  carne  irradia  as  noites  misteriosas... 

Ei-lo  a  sombra  de  Deus  e  a  sombra  do  Amor ! 
E,  como  sombra,  segue  o  corpo  que  a  projecta. 
E  Deus  para  onde  vai?  Só  sei  que  vem  da  dor 
Que  de  lágrimas  vela  a  face  do  poeta... 


OBRAS        co:mplktas 


II 


E  como  tudo  vem  impressionar  minh'alma ! 
Não  lhe  é  indiferente  a  sombra  mais  subtil; 
Nem  o  silêncio  que  amacia  a  noite  calma, 
Nem  o  doce  abrolhar  do  claro  mês  d'abril ! 

Sente-se  presa  a  tudo;  e  em  voos  estremece, 
Quando  um  raio  de  sol,  como  um  beijo,  a  deslumbra  ! 
Ensinou-lhe  a  Tristeza  um  dia  que  anoitece, 
Mostrou-lhe  o  Indefinido  o  vago  da  penumbra... 

K  creio  que  noss'alma,  um  dia,  se  formou 
Das  altas  impressões  que,  dentro  em  nós,  gravaram 
As  imagens  ideais  das  cousas  que  beijaram 
Nosso  olhar  que  um  perfume  etéreo  perturbou... 

Talvez,  quando  Jesus,  em  mística  oração, 
De  pálido  perfil  e  de  inspirado  olhar, 
A  piedade  ensinou  aos  homens  e  o  perdão. 
Falasse,  dentro  dele,  um  raio  de  luar!... 

B,  ó  Sócrates,  assim  a  voz  que  tu  ouviste 
Era  a  voz  do  Universo,  a  falar  alto  e  só ! 
O  deserto  compôs,  outrora,  um  poema  triste 
Que  verteu  para  a  língua  humana  o  velho  Job. 

lOÇ 


TKIXBIRA        DE        PA    SCO    ABS 

E  o  génio  de  teu  lar,  ó  Sócrates  vidente, 
Era  o  pó  que  teus  pés,  andando,  levantavam... 
Era  invisível  sombra  oculta  e  inteligente. 
Que  sobre  a  tua  alma  as  cousas  projectavam ! 

Era  o  espectro  ideal  do  Universo  infinito, 

Que,  por  momentos,  tu  soubeste  surpreender... 

Era  o  luar  que  nimba  as  águas  e  o  granito. 

Era  o  clarão  do  incêndio  em  que  está  tudo  a  arder  ! . . . 

Uma  ideia  sublime  e  um  grande  sentimento 

São  filhos  da  influência  astral  que,  em  nós,  exercem 

Um  astro  que  cintila,  o  murmúrio  do  vento 

E  as  nuvens  que,  no  Azul,  à  tarde,  empalidecem... 


OBRAS  COMPLETAS 


A  VOZ  DAS  COUSAS 

(O   VERME) 


Eu  vivo  no  interior  das  negras  sepulturas. 
Só  eu  sei  conhecer  as  grandes  amarguras 
Dos  que  pedem  à  terra  a  paz  e  o  esquecimento. . . 
Na  sua  antiga  dor  encontro  um  alimento... 
B  nas  suas  lágrimas  sombrias  e  geladas, 
Como  nos  lagos  ou  nas  fontes  prateadas, 
Às  vezes,  mato  a  sede...  B  o  mau  ar  que  respiro 
Tem  o  amargo  sabor  dum  último  suspiro... 
Por  isso,  bem  conheço  a  dor  do  homem... 


(A  LUA) 


B  eu, 


Que  faço  desmaiar,  à  noite,  o  azul  do  céu 

Num  longínquo  Planeta  avisto  um  frágil  ser 

Que,  à  minha  luz  de  sonho,  eu  vejo  entristecer... 

A  minha  luz  é  o  pó  de  mortos  corações. 

Poeira  d 'amores,  fria  cinza  de  ilusões. 

Que  eu  derramo  no  Azul,  num  gesto  extraordinário 

De  quem  semeia  um  campo  enorme  e  solitário... 

B  essa  poeira  germina  e  cresce  e  se  traduz 

Bm  lírios  de  saudade  e  florestas  de  luz!... 


III 


T^IX^IRA        DB        PASÇO    ABS 

E  assim  o  Firmamento  é  uma  floresta  virgem 
D 'almas  que  vão  beber  à  sua  própria  Origem 
Uma  água  espiritual  d'amor  e  claridade 
Que  d'estrelas  orvalha  a  flor  da  Eternidade!  ... 
Por  isso,  na  distância,  ó  homem  deslumbrado, 
Envolto  em  meu  clarão,  tu  cismas  concentrado. 
E  teu  pálido  olhar  a  minha  face  banha... 
E  meu  corpo  percorre  uma  impressão  estranha, 
E  sinto,  dentro  em  mim,  desconhecida  dor 
Que  irmana  o  teu  olhar  ao  meu  glacial  palor. 
Ninguém,  como  eu,  conhece  a  tua  melancolia 
Ó  criatura  humana  ! . . . 


(O   SOI,) 


Eu  sou  o  pai  do  dia. 
Sou  velho  tronco,  a  arder,  no  lar  azul  do  espaço. 
Os  planetas  abrange  a  curva  do  meu  braço. 
Eu  sou  um  grande  lar  onde  os  mundos  se  aquecem. 
Sempre  milhar' s  de  mãos  que  os  gelos  arrefecem 
Se  estendem  sobre  mim...  E  descobri  entre  elas, 
Homem,  as  tuas  mãos,  orvalhadas  d'estrelas, 
De  lágrimas,  talvez...  Meu  lúcido  fulgor 
Sabe  compreender  tuas  lágrimas  de  dor 
Que  nas  asas  ideais  da  Vaporização 
Alcançaram  meu  grande  e  ardente  coração ! 
Vejo-as  dentro  de  mim.  E  minha  luz  bendita, 
Que  numa  bênção  cai  da  abóbada  infinita. 
Quando  seus  lábios  vão  beijar  o  pranto  humano 
Que  lhes  fazem  lembrar  as  ondas  do  oceano, 
Sente-se  triste...  e  vem  trazer-me  essa  tristeza 
Na  nuvem  que  troveja  e  que  suspira  e  reza !... 
Tenho,  dentro  de  mim,  o  humano  sofrimento... 


112 


OBRAS  COlMPIvBTAS 


(O   VBNTO) 


Sou  a  alma  do  Ar,  o  espírito  do  Vento... 
Habita  no  meu  peito  a  alma  da  Tempestade. 
Bu  amo  os  vendavais,  a  loucura,  a  crueldade! 
As  árvores  em  flor,  desfolho-as,  num  delírio... 
O  meu  maior  prazer  existe  no  martírio 
Que  faz  gritar  as  naus  a  braços  com  as  ondas... 
Fulgem  no  meu  olhar  as  trevas  hediondas ! 
Gosto  de  ver,  à  noite,  os  perturbados  céus, 
Quando  meus  gritos  quase  empalidecem  Deus ! 
E  quando  os  pinheirais,  num  sussurro  profundo, 
Têm  blasfémias  sem  nome  e  insultos  para  o  mun- 

[do!.., 
Arrasto,  pelo  ar,  em  negros  turbilhões, 
Ermas  nuvens  que  são  sombrias  ilusões... 
Comigo  vão  também  as  folhas  que  secaram... 
Perfumes  que  os  jasmins,  sozinhos,  exalaram... 
Tudo  o  que  anda,  num  voo  quimérico,  perdido. 
Tudo  comigo  vai  para  o  Desconhecido... 
Quando  passo  a  gritar  por  sobre  as  tuas  casas, 
Ó  triste  ser  humano,  alcançam  minhas  asas 
Misteriosos  ais,  ocultas  amarguras 
Que  me  deixam,  ó  treva,  os  olhos  às  escuras!... 
E  as  lágrimas  que  eu  dou  aos  ramos  do  arvoredo 
E  as  que  choro,  ao  luar,  no  seio  dum  rochedo, 
São  talvez  o  teu  pranto,  humana  criatura. 
Nos  meus  suspiros  geme  a  tua  desventura ! 
Sou  uma  lágrima  com  asas  d'esplendor 
Que  projectam  na  terra  a  sombra  da  tua  dor ! . . . 

113 
8 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


(O   MAR) 


Homem,  eu  bem  conheço  o  eterno  sofrimento! 
Em  nuvens,  sobe  ao  céu  meu  constante  lamento... 
E  sabem-no  de  cor  os  côncavos  rochedos, 
Que  tremem,  ao  ouvir  meus  trágicos  segredos!... 
O  meu  soluço  enorme  atinge  a  luz  da  lua 
Que  é  a  tristeza  de  Deus  que  sobre  mim  flutua ! 
Doces  rios  que  vêm  do  interior  das  terras, 
Filhos  dos  lagos  e  das  fontes  que  há  nas  serras, 
Suavizar  um  pouco  esta  minha  amargura 
Que  abrange  toda  a  terra  estéril,  erma,  escura, 
Contam-me  a  soluçar  histórias  sangrentas 
De  martírios  cruéis,  de  guerras  e  tormentas ! 
E  suas  águas,  ó  dor,  doces  e  imaculadas. 
Têm  um  sabor  a  sangue;  estão  ensanguentadas. 
Quem  conhece,  como  eu,  a  tua  grande  dor? 
Lágrimas  de  tristeza  e  lágrimas  d'amor. 
Nas  minhas  ondas  sinto  o  vosso  sal  amargo ! 
E  há  sepulcros  também  neste  meu  peito  largo, 
Insondável...  Eu  tenho  a  ciência  do  Mistério 
Que  há  só  no  livro  sepulcral  dum  cemitério ! 
Conheço  todo  o  pó  e  leio  nas  caveiras... 
Tenho  assistido  a  muitas  horas  derradeiras. 
Muito  último  suspiro  agita  minhas  ondas... 
Vagueiam  muitos  ais  nas  trevas  hediondas 
Que  pousam  no  meu  peito,  aonde  as  ventanias 
Cantam  um  salmo  eterno  e  negro  d'agonias  I... 
Ninguém  como  eu  conhece  o  sofrimento  humano. 
Eu,  o  mártir  sem  nome,  o  ensanguentado  Oceano, 
Um  outro  Prometeu... 


114 


OBRAS  COMPIBTAS 


(O   HOMEM) 


Ó  seres  misteriosos ! 
Ignotos  corações  !  Ó  ventos  lacrimosos  ! 
Ó  átomos !  Essência !  Ondas  espirituais, 
Ó  ignorados  sóis,  almas  dos  temporais. 
Universos  sem  fim  !  Mistérios  !  Aflições  ! 
Espíritos  sem  nome,  ocultas  comoções ! 
Trevas  a  soluçar,  almas  desconhecidas. 
Sombras,  gritos  de  luz !  Misteriosas  vidas ! 
Incêndios,  febres  e  delírios  e  loucuras ! 
Vermes  e  vendavais!  Oceanos,  sepulturas!... 
Vejo  que  tudo  sofre  a  minha  grande  dor, 
Vejo  que  em  tudo  brilha  a  luz  do  meu  amor!... 
Minh'alma  não  é  só  na  vida  e  abandonada... 
Doutras  almas  está,  ó  Deus,  toda  cercada... 
Soluça  a  minha  dor  em  toda  a  Natureza. 
E  numa  névoa  cai  toda  a  minha  tristeza 
Por  sobre  toda  a  alma  e  todo  o  coração ! 
Todo  o  deserto  sente  a  minha  solidão... 
Há  olhos  ideais,  ocultos,  ignorados. 
De  minhas  lágrimas  sangrentas  orvalhados!... 
Também  existe  o  amor,  a  dor,  a  humanidade 
Nesse  infinito  mar,  nessa  profundidade. 
No  longínquo  interior  dos  seres  e  das  cousas. 
Nesse  abismo  sem  fim  das  almas  misteriosas !... 
Da  minha  grande  dor  que  tudo  faz  sofrer, 
Neve  que  faz  o  próprio  Deus  arrefecer, 
Preciso  libertar  a  minha  alma  triste ! 
Oh !  A  libertação  de  tudo  quanto  existe ! 
A  Justiça  a  estender  as  asas  sobre  a  Terra ! 
O  Bem,  como  uma  luz,  doirando  toda  a  serra ! 
O  Amor,  como  uma  estrela  etérea,  a  fecundar 
Os  montes,  os  jardins,  as  florestas,  o  mar! 
A  Verdade  a  sorrir  em  cada  lábio  mudo ! 
A  Natureza  livre !  A  redenção  de  tudo ! . . ; 


115 


TEIXEIRA       DE        PASCOAES 


ASCENSÃO 


Sob  os  golpes  da  chuva,  agoniza  um  rochedo; 
K  corta  a  sua  face  o  chicote  do  vento. 
A  neve  desagrega-o.  E  as  raízes  do  arvoredo 
Trespassam  o  seu  corpo  em  busca  de  alimento. 

O  colosso  estremece  e,  numa  areia  fina, 
Espalha-se  através  os  campos  e  os  outeiros... 
E  ao  contacto  subtil  da  água  cristalina 
Que,  sonhando,  derrama  os  brancos  nevoeiros, 

Vai  transformar-se  em  fértil  terra  criadora. 
E  nesse  húmus  germina  o  trigo  —  astros  dos  céus — , 
Nesse  húmus  comovido,  em  pranto,  quando  a  aurora 
Aparece,  no  azul,  como  o  esplendor  de  Deus ! 

E  no  seio  da  terra,  inflamado  d'amor. 
Sementes  auroreais,  famintas,  vão  mamar 
O  leite  que  entumece  os  peitos  duma  flor 
E  que  tem  o  perfume  estranho  do  luar... 

Na  ânsia  de  crescer,  de  amar  e  de  sentir. 
Sob  os  beijos  do  sol,  germina  uma  semente... 
E  dos  montes  azuis  começam  a  surgir 
Os  bosques  que,  ao  luar,  conversam  vagamente. . . 

ii6 


OBRAS  CO:MPIvETA,S 

Troncos  velhinhos,  ramos  secos  e  despidos, 
Sagrados  bosques,  arvoredos  venerandos, 
Sombras  onde  há  piedade  e  gestos  doloridos. 
Que  ao  respirar  do  vento  oscilam,  murmurando... 

Grandes  bosques  a  orar,  serenos  e  impassíveis. 

Numa  voz  ideal,  divina  como  aquela 

Que  dimana,  a  brilhar,  dos  lábios  invisíveis 

Que  os  lábios  do  horizonte  encontram  numa  estrela ! 

Sois  a  realização  do  sonho  extraordinário, 
Da  ânsia  enorme  duma  pedra  que  estremece, 
Ó  pinheiros  do  monte,  ó  bosque  solitário, 
Confidentes  do  sol  que  vos  deslumbra  e  aquece ! 

Segredo  sempiterno  e  mistério  profundo ! 
A  pedra  a  evaporar-se  em  alma...  a  escuridão 
A  converter-se  em  luz !  Um  insensível  mundo 
A  estremecer  numa  primeira  sensação ! 

Silêncio  obscuro  a  despontar  em  harmonia... 
Árvore,  filha  do  amor,  do  génio  e  do  delírio! 
Alma  que  desabrocha  e  cresce  e  se  faz  dia, 
Seixo  que  se  comove  e  vibra  até  ser  lírio ! . . . 

B  a  árvore  vive  e  canta  e  sonha  uma  outra  luz... 
Aspira  a  um  outro  mundo,  ao  humano  coração. 
Nos  seus  ramos  quer  ter  o  gesto  de  Jesus, 
Sua  seiva  quer  mudar  no  sangue  de  Platão ! 

Ei-la  uma  lágrima,  ei-la  um  homem  misterioso; 
A  bondade,  a  justiça,  um  santo  amor  bendito... 
Ei-la  um  olhar  perdido,  além,  no  céu  brumoso, 
Ei-la  a  sede  de  luz,  a  fome  de  infinito!... 

E,  sob  o  peso  da  Injustiça,  a  Humanidade 
Vai  sofrendo  e  sangrando  à  luz  duma  quimera. 
Vai  transformando  a  sua  noite  em  claridade 
E  o  seu  nevoento  inverno  em  virgem  primavera. 

117 


TEIXEIRA        DB        PA    SCO    A    ES 

Vai  sonhando  outro  mundo  etéreo  e  espiritual... 
Vai  ascendendo  para  a  vida  superior. 
Vai  com  destino  à  Luz,  a  caminho  do  Ideal, 
K  o  seu  corpo  irradia  um  branco  luar  de  dor. . . 

Pela  alma  ela  alcança  os  corações  divinos, 
Pela  carne  ela  toca  os  feros  animais... 
Por  isso  um  homem  liga  os  céus  diamantinos 
À  negra  podridão  e  aos  sujos  lodaçais ! 

Por  isso,  é  ele  a  grande  escada  de  Jacob 
Por  onde  a  terra  bruta  há-de  subir  aos  céus. 
Grande  voo  da  Matéria,  ó  Ascensão  do  pó. 
Pedras  que  vão  mudar-se  em  alma  ao  pé  de  Deus ! 


OBRAS  COMPLKTAS 


OS  CONDENADOS 


Olhos  em  febre,  a  arder,  cabelos  desgrenhados, 
Vão  através  da  Vida  os  grandes  condenados ! 
Estes  levam  no  rosto  a  luz  da  suavidade, 
Aqueles  a  altivez,  uns  a  branda  humildade, 
Outros  o  desespero,  a  santa  indignação! 
Todos  vão  através  da  grande  solidão, 
Do  deserto  infinito  onde  soluça  a  dor 
E  onde  foi,  certa  noite,  assassinado  o  Amor ! 
Eis  os  vencidos,  os  famintos  e  os  malditos, 
Cheios  de  aspirações  e  sonhos  infinitos ! 
Eles  vão  arrastando  a  sua  negra  cruz, 
Vão  abrindo  na  treva  um  caminho  de  luz ! 
Suas  lívidas  mãos,  sangrentas  e  chagadas, 
Lançam  por  sobre  as  terras  más,  despovoadas, 
As  sementes  do  Bem  que  levam  dentro  delas 
A  seara  que  produz  o  trigo  das  estrelas ! 

O  vulto  de  Caim  entre  eles  eu  avisto, 

E,  mais  ao  longe,  a  sombra  lívida  de  Cristo. 

O  Sócrates  sorri  à  taça  do  veneno... 

Que  luz  ele  irradia,  e  como  vai  sereno ! 

Buda  analisa  o  sol  e  os  comovidos  mármores 

Que  sentem  palpitar  os  corações  das  árvores. 

Brilha  no  seu  olhar  a  dor  incompreendida 

De  tudo  o  que  parece  morto  e  que  tem  vida !... 

Tem  palavras  d'amor  para  as  nuvens  do  céu... 

E  vejo,  mais  além,  o  grande  Prometeu 

E  a  águia  a  triturar,  sem  dó,  suas  entranhas ! 

Spartacus  vai  febril  e  cóleras  estranhas 


iig 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Projectam  um  clarão  d'incêndio  no  seu  rosto!... 

Virgílio  é  um  luar  quimérico  de  agosto... 

A  estrela  do  pastor,  qual  lágrima,  cintila 

No  horizonte  da  sua  elegíaca  pupila... 

Sombras  do  anoitecer,  murmúrios  do  arvoredo, 

Balidos  de  ovelhinha  em  cima  dum  rochedo, 

Melancólicos  sons  de  avena  harmoniosa. 

Tudo  isto  forma  a  sua  alma  misteriosa 

Que  sonha  a  Idade  d'Oiro...  E  o  Dante  tem  no  olhar 

As  chamas  infernais,  donde  sai  um  luar 

Que  ascende,  como  um  sonho,  aos  quiméricos  céus, 

Aonde  Beatriz  o  espera  ao  pé  de  Deus... 

Milton  vai  a  chorar  a  perda  do  Paraíso... 

E  Shakespeare,  entre  uma  lágrima  e  um  sorriso, 

Vacila,  num  ataque  auroreal  de  loucura ! 

Julieta  é  luar,  Hamlet  é  noite  escura... 

Vejo  Byron  também.  Eis  a  Aventura  e  o  Amor. 

Soturno  temporal  a  despertar  em  flor ! 

E  dão-lhe  um  ar  ignoto,  infindo  e  inatingível 

O  fantasma  da  vida,  a  sombra  do  Invisível, 

A  distância  que  afasta  as  estrelas  divinas 

E  a  tristeza  que  envolve  as  clássicas  ruínas... 

E  atrás  deles  caminha  imensa  multidão... 
Turbamulta  sem  fim  que  faz  tremer  o  chão ! 
Anónimos  heróis,  mártires  ignorados. 
Os  vencidos,  os  nus  e  os  tristes  deserdados... 
Todos  levam,  na  mão,  um  grande  facho  a  arder, 
Que  lembra  um  grandioso  e  santo  alvorecer ! 
Todos  levam  na  fronte  um  astro  anunciador, 
Todos  vertem,  sorrindo,  o  sangue  redentor! 
Todos  levam  ao  ombro  o  machado  fatal 
Que  vai  deitar  por  terra  a  floresta  do  Mal... 
Todos  levam  também  a  alavanca  sagrada 
Que  vai  erguer  da  terra  essa  Babel  sonhada 
Por  onde  o  mundo  bruto  há-de  subir  ao  céu... 

E  a  grande  multidão,  além,  desapareceu. 

120 


OBRAS  COMPLETAS 


ANTEMANHÃ 


No  silêncio  sem  fim  das  cousas,  quando  mal 
Se  distingue  o  clarão  da  aurora  ainda  distante, 
E  o  poeta  ainda  vela,  um  canto  auroreal 
D'ave  vibra  na  luz  difusa  e  ainda  hesitante... 
E  na  penumbra  ideal,  que  à  alma  nos  revela 
O  Génesis  estranho  e  místico  dum  dia, 
Vê-se  o  desabrochar  de  misteriosa  estrela. 
Crepúsculo  dum  som,  alvor  duma  harmonia... 
E  têm  um  ar  d'assombro  as  paisagens  nocturnas. 
Todas  as  cousas  vela  uma  mudez  sagrada... 
E,  num  recanto  escuro,  uma  árvore  soturna 
Ergue  os  olhos,  ouvindo  a  voz  da  madrugada... 
Percebe-se  que  vai,  em  breve,  acontecer 
O  quer  que  é  d'extraordinário  e  nunca  visto. 
Tudo  sonha  e  medita...  A  luz  do  alvorecer, 
Para  uma  pedra  ou  flor,  é  um  verdadeiro  Cristo! 
O  dia  já  vem  perto.  E  doces  sensações 
Agitam  suavemente  os  ramos  do  arvoredo. 
Vê-se  no  olhar  dum  rio  a  bruma  das  visões 
E  o  Riso  transfigura  a  face  dum  rochedo... 
Que  branda  comoção  as  cousas  enternece... 
A  terra,  ao  ver  o  sol,  traduz-se  numa  flor. 
Tal  como  um  poeta,  ao  ver  o  sonho  que  alvorece, 
Se  converte  no  fluido  etéreo  dum  amor... 
Num  éter  misterioso,  imenso,  indefinido 
Que,  vibrando,  produz  o  dia  da  Verdade 
Que  para  um  fim  divino,  apenas  pressentido. 
Vai  guiando,  através  da  morte,  a  Humanidade... 


121 


TBIXBIRA        DE        PASCOABS 


O  BEM  K  O  MAL 


Quantas  vezes,  Senhor,  este  mundo  parece 

Um  absurdo  tremendo,  aonde  transparece 

Um  lívido  clarão  de  trágica  loucura... 

O  riso  de  Satã  derrama  a  noite  escura. 

Sobre  a  algidez  da  terra  amortecida  e  calma 

Paira,  como  uma  névoa,  um  crepúsculo  d'alma... 

Convulsões  d'agonia  abrem  vales  profundos... 

E  o  nosso  mundo  chora  a  grande  dor  dos  mundos ! 

Vê-se,  por  toda  a  parte,  um  morticínio  horrível 

D'almas  que  sofrem  no  Silêncio  e  no  Invisível!... 

Catástrofes  sem  fim,  horrores,  crueldades... 

O  ar  que  nos  dá  vida  é  o  pai  das  tempestades ! 

A  água  que  mata  a  sede  aos  ermos  viandantes 

Sepulta,  no  seu  seio,  as  ilhas  verdejantes 

E  os  navios  que  vão,  sobre  as  ondas,  ao  vento... 

O  fogo  que  prepara  a  hóstia  do  alimento, 

O  sacro  fogo  a  arder  sobre  um  bendito  lar, 

É  o  fogo  que  queimou  teu  corpo,  Joana  d' Are!... 

E  o  ferro  que  percorre,  ó  dor,  as  nossas  veias 

É  o  ferro  que  segura  as  portas  das  cadeias 

E  o  que  prende,  ainda  hoje,  o  grande  Prometeu 

A  um  monte,  sob  o  riso  irónico  do  céu!... 

O  mundo,  ao  mesmo  tempo,  a  ser  o  bem  e  o  mal ! 

A  Natureza  louca  e  Deus  irracional ! 

O  mal  e  o  bem  estão  numa  contínua  guerra. 

Como  a  atmosfera,  a  dor  envolve  toda  a  terra!... 

Os  feros  animais  devoram  cordeirinhos... 

O  vento,  a  gargalhar,  destrói  milhar's  de  ninhos ! 


122 


OBRAS  COMPIvBTAS 

Um  dilúvio  de  fogo  arrasa  uma  cidade 

B  uma  vil  ambição  provoca  a  mortandade ! 

O  luto  veste  a  terra  e  a  luz  do  sol  exangue 

Tem,  de  beijar  o  mundo,  os  lábios  com  sangue... 

Qual  é  o  teu  destino,  ó  erma  Natureza? 

Riso  louco  a  doirar  o  rosto  da  tristeza... 

Qual  o  teu  fim  e  o  teu  princípio,  ó  Criação ! 

É  o  sofrimento,  a  dor,  a  morte  e  a  escuridão? 

É,  por  acaso,  o  Mal  a  essência  do  Universo? 

Satã,  em  cada  ser,  existirá,  disperso?... 

Mas  como  é  que  se  explica  a  vida  de  Jesus, 

E  este  voo  imortal  das  almas  para  a  Luz? 

Sócrates  porque  viu  na  morte  uma  outra  vida? 

Quem  lhe  falou  do  Além?  Que  voz  desconhecida?... 

Porque  é  que  o  grande  Buda  um  trono  abandonou 

E  um  ceptro  d'oiro,  com  desprezo,  arremessou 

Para  longe,  partindo  humilde,  pobre  e  triste 

A  pregar  a  Verdade  a  tudo  quanto  existe?... 

Inconscientes  serão  ou  loucos  desvairados 

Os  grandes  Cristos,  a  sonhar,  crucificados?... 

Maria,  a  tua  dor  é  filha  dum  delírio? 

Donde  vem  o  prazer  amargo  do  martírio?... 

Donde  nasce  esta  força  oculta,  misteriosa, 

Esta  crença,  esta  fé  profunda  e  religiosa 

Que  nos  leva  prà  morte  a  sorrir  e  a  cantar?... 

Donde  dimana  a  Graça,  assim  como  o  luar 

Que  dá  um  aspecto  d'alma  às  formas  materiais 

E  uma  expressão  de  génio  aos  brutos  animais?... 

Justiça,  és  ilusão?  Amor,  és  falsidade? 

Jesus,  és  a  mentira?  Ó  Nero,  és  a  verdade?... 

Representais  acaso  o  mesmo  sentimento 

Perante  o  azul  e  o  mar,  as  estrelas  e  o  vento? 

A  vida  universal  não  vos  distinguirá? 

Na  mesma  indiferença,  a  terra  guardará 

As  vossas  cinzas?  E  as  famélicas  raízes, 

Num  frouxo  de  luxúria,  esplêndidas,  felizes, 

Esses  dois  corpos  definhados  devoraram 

E  entre  eles  nem  sequer,  um  momento,  hesitaram? 

123 


TBIXKIRA        DB        PASCOAES 

Ó  trágico  mistério !  Ó  grande  noite  escura ! 
Duma  voz  que  blasfema  e  duma  voz  que  é  pura, 
Do  sermão  da  montanha  e  das  canções  de  Nero, 
Das  palavras  d'amor,  dum  ai  de  desespero, 
Do  soluço  de  dor  que  sufocou  Maria, 
Dum  brilhante  sorriso  egoísta  de  alegria. 
De  tenebrosa  voz  que  esmaga  e  que  condena, 
Dessa  voz  de  perdão  que  aureolou  Madalena, 
Do  murmúrio  do  mundo,  imenso  e  assustador 
Chegará  simplesmente  um  pálido  clamor. 
Uma  mesma  harmonia  indistinta  e  apagada 
À  alma  da  Criação,  remota  e  ilimitada. 
Formando  assim,  ao  longe,  um  murmúrio  igual 
A  prece  da  Piedade  e  a  blasfémia  do  Mal?... 

Talvez  para  a  harmonia  ignota  deste  mundo 
Concorram  igualmente  a  noite  e  a  luz  do  dia... 
A  fome  e  o  desespero,  o  Bem  e  o  vício  imundo, 
A  mentira  e  a  verdade,  a  tristeza  e  a  alegria!... 
Lágrimas  de  prazer  e  lágrimas  de  dor. 
Porventura,  sereis  a  mesma  névoa  densa. 
Sob  os  raios  do  mesmo  ardente  e  eterno  amor 
Que  entre  elas  não  encontra  a  menor  diferença?... 
Será  a  parte  imperfeita  e  o  todo  é  a  Perfeição? 
O  Universo  é  um  composto  estranho  de  escarcéus. 
De  trevas  infernais  que,  combinadas,  dão 
O  fulgor  do  infinito  e  o  resplendor  de  Deus?... 

Ou  é  este  Universo  uma  noite  d'horror 
Que  já  segura  ao  colo  a  aurora  dum  amor? 
É  um  inverno  que  vai  mudar-se  em  primavera? 
Há-de  ser  realidade  o  que  hoje  é  uma  quimera? 
O  sonho,  a  aspiração  e  as  lúcidas  visões 
Que  deslumbram  o  olhar  vago  das  multidões. 
Sempre  que  ouvem  pregar,  num  gesto  extraordiná- 

[rio. 
Os  que  vão  pela  estrada  amarga  do  Calvário, 
Serão  o  alvorecer  da  nova  Humanidade, 


124 


OBRAS  COJMPIvBTAS 

A  aurora  excepcional  do  dia  da  Verdade? 
K  a  blasfémia  do  mal  contra  o  amor  e  a  vida, 
É  qual  grito  da  noite,  ao  ver-se  surpreendida 
Pela  eterna  manhã  anunciadora  e  estranha, 
Que,  súbito,  aparece  além  duma  montanha?... 
Estrelas,  revelai-me  o  fim  da  Criação... 
Que  a  vossa  luz  separe  o  real  da  ilusão. 
Entre  as  tristes  canções  de  treva  e  de  mentira, 
Mostrai-me  o  canto  ideal  da  verdadeira  Lira ! 
Que  a  sempiterna  luz  se  faça  dentro  em  mim. 
Que  eu  viva  no  Absoluto  e  no  que  não  tem  fim ! 
Que  o  fantasma  d'amor,  que  anda  sempre  ao  meu 

[lado, 
Se  transforme  num  ser  perfeito  e  imaculado. 
Que  deixe  de  ser  sombra  e  se  converta  em  luz... 
Que  seja  árvore  em  flor  e  não  sombria  cruz!... 
Que  o  nevoeiro  espesso  e  triste  do  mistério. 
Se  dissipe  e  nos  deixe  ver  o  sol  etéreo 
Da  Verdade  e  do  Amor  raiar  por  sobre  o  mundo. 
Doirando  tudo,  desde  o  sapo  mais  imundo 
À  alma  mais  perfeita  e  ao  mais  duro  rochedo. 
De  maneira  que  o  pó,  o  lodo,  o  arvoredo, 
A  criatura  humana  e  as  feras  mais  selvagens, 
O  vasto  mar  antigo  e  as  sensíveis  paisagens, 
Estremeçam  d'amor  e  vibrem  de  alegria 
E  sejam  a  suprema  e  eterna  melodia  ! . . . 


\. 


TEIXEIRA        DE        PASÇO    A    ES 


VISÃO 
I 


Como  cinza  miúda,  a  treva  cai 

No  coração  humano. 

E  um  vento  norte,  frio  e  triste  como  um  ai. 

Em  nossas  almas  põe  sobressaltos  de  oceano ! 

E  grandes  convulsões 

iV  Humanidade  agitam... 

E  o  desespero  insano,  a  cólera  e  as  paixões, 

Como  incêndios,  crepitam ! 

Há  vendavais  de  dor,  ciclones  de  tormento, 

E  maldições  estranhas... 

E  as  florestas  desvaira  um  furioso  vento 

Que  dos  vales  levanta  as  ondas  das  montanhas !... 

Raios  de  desespero  as  nuvens  ensanguentam. 

Ferem  o  azul  do  céu  gritos  incendiários. 

Terríveis  explosões,  de  súbito,  rebentam 

E  sente-se  o  cair  das  cruzes,  nos  Calvários!... 

E  o  cárcere  onde  vive  a  Natureza  escrava 

Vai  ser,  enfim,  aberto; 

Enquanto  um  mar  sagrado  e  trágico  de  lava 

A  floresta  do  ]\Ial  transforma  num  deserto!... 

Os  peitos  sufocados. 

Há  milhões  d'anos,  já  conseguem  respirar. 

E  os  grandes  corações  que  sofrem  algemados. 

Mais  livres  do  que  a  luz  do  sol,  vão  palpitar!... 

Dentre  escombros  sem  fim  desponta  um  novo  dia 

Eterno  e  consciente... 

É  a  luz  que  no  interior  das  cousas  existia 

126 


OBRAS  COMPIvBTAS 

Sonâmbula  e  latente. 

Luz  do  Ideal  que  o  poeta  revelou 

A  si  mesmo;  e,  portanto,  à  Natureza  inteira. 

Luz  que  se  libertou, 

Num  esforço  genial,  da  escuridão  primeira ! 

Ê  a  pura  luz  do  Bem 

Que  doira  o  livro  que  a  Verdade  encerra, 

E  que  só  lê  o  poeta,  o  teólogo  que  tem 

Na  alma  toda  a  luz,  no  corpo  toda  a  terra!... 

B  a  grã  Libertação  estende  as  suas  asas, 

Luminosas  d'amor,  nimbadas  de  piedade, 

Sobre  todos  os  sóis,  sobre  todas  as  casas, 

Num  voo  que  há-de  passar  além  da  Eternidade!  ... 

Benditos  sejais  vós,  ódios  libertadores, 
Cóleras,  vendavais,  indignações  sagradas ! 
Incêndios,  gritos,  ais,  santificadas  dores, 
Benditas   sejais   vós,   feridas   ensanguentadas ! 

Benditos  sejais  vós,  ó  arrebatamentos, 
Grandes  explosões  d 'estrelas  guiadoras ! 
Benditos  sejais  vós,  ó  grandes  sofrimentos, 
Trevas  que  no  seu  ventre  andam  a  criar  auroras ! . . . 

Bendito  sejas  tu,  ó  Caos  tenebroso, 
Ó  fantástico  escom.bro,   ó  trágica  ruína ! 
Ó  mundo  d'amanliã  perfeito  e  harmonioso, 
Tendo  na  sua  fronte  uma  auréola  divina!... 


TBIX^IRA        DE        PASCOAES 


II 


Sinto  em  mim  o  ruir  dos  desmoronamentos. 
Sou  um  caos,  aonde  os  vários  elementos 
Se  chocam  com  fragor,  em  grande  confusão, 
Como  na  antemanhã  o  sol  e  a  escuridão ! 
Metade  do  meu  ser  é  noite;  outra  metade 
É  enérgico  fulgor,  vibrante  claridade ! 
Sou  um  triste  castelo  ao  pé  dum  mar  brumoso... 
Como  uma  onda,  o  velho  tempo  proceloso 
Meus  alicerces  mina,  e,  pedra  a  pedra,  eu  caio, 
À  luz  esverdeada  e  trágica  do  raio ! 

Nas  minhas  ruínas  chora  um  vento  destruidor... 

Mas  sinto  germinar  entre  elas  uma  flor. 

Sou  a  guerra  tremenda  a  desejar  a  paz. 

Sou  a  luta  entre  Deus  e  o  velho  Satanás ! 

Venho  da  treva  inerte  e  o  meu  destino  é  a  Luz. 

Ku  sou  o  mau  ladrão  a  voar  para  Jesus... 

O  madeiro  da  morte  horrendo  e  solitário, 

A  cair,  desfeito  em  pó,  nas  urzes  do  Calvário, 

Para  ressuscitar  numa  árvore  florida 

De  piedade,  d'amor  e  de  justiça  e  vida!... 


OBRAS  COMPLETAS 


NOVA  LUZ 


Emana  um  fumo  d'alma  o  crepitar  do  lume... 

O  incêndio  duma  flor  dá  a  cinza  do  perfume. 

E  o  corpo  duma  onda  é  um  místico  braseiro 

Que  exala,  numa  ânsia,  o  branco  nevoeiro... 

É  o  incêndio  supremo  e  santo  da  Matéria, 

Donde  sai  uma  luz  anímica  e  sidérea... 

Tudo  o  que  é  material,  como  a  rocha  erma  e  calma. 

Querendo  e  desejando,  é  luz,  é  sonho,  é  alma ! 

A  alma  é  o  exterior,  o  corpo  o  interior. 

Onde  termina  um  coração,  começa  o  amor... 

Por  isso,  cada  corpo  inânime  e  pesado 

Duma  auréola  d'infinda  luz  está  banhado. 

E,  assim,  uma  ansiedade  ignota,  uma  quimera. 

Pôs  em  volta  da  terra  a  lúcida  atmosfera!... 

A  luz  envolve  a  chama  e  a  chama  envolve  a  lenha... 

Sensível  musgo  cobre  uma  insensível  penha, 

E  sobre  o  musgo  paira  o  aroma  espiritual... 

Mistério...  Num  aroma  a  pedra  é  imaterial! 

E  todavia  são  a  mesma  vida  pura 

O  claro  aroma,  o  verde  musgo,  a  penha  dura!... 

A  terra  é  a  mãe  da  Alma,  a  terra  deu  à  luz 

O  perfume  da  flor  e  a  alma  de  Jesus!... 

O  lodo  é  a  Piedade,  é  o  Amor  infinito. 

É  apenas  comoção  a  rocha  de  granito... 

No  Poeta  comovido  há  a  loucura  do  vento; 

A  nuvem  é  um  delírio,  a  água  um  sentimento... 

I2g 
9 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

A  fonte  que  através  dum  areal  se  perde, 
As  suas  margens  vai  vestindo  de  cor  verde, 
Lançando  nessa  terra  estéril,  ressequida, 
Num  beijo  sempiterno,   a  semente  da  Vida. 
Uma  gota  d'orvallio  é  sonho,   é  ansiedade, 
Quer  desça  sobre  o  pó,  quer  suba  à  claridade... 
Qualquer  terra  que  a  toque  acorda  deslumbrada, 
B  é  uma  erva,  um  perfume,  uma  alma  enamorada ! 
E  é  gota  d'água,  ó  astro  espiritual,  bendito, 
Ampliada  pela  luz,  abranges  o  infinito... 
És  o  éter  transcendente,  o  grande  transmissor 
Da  voz  dos  mundos  e  do  seu  estranho  amor!... 

Todos  os  robles  dão,  ardendo,  a  mesma  luz... 
Um  tronco  sobre  um  lar  é  um  Cristo  numa  cruz ! 
E  é  calor  que  agasalha  e  facho  que  alumia 
O  que  é  em  Cristo  amor,  piedade,  harmonia... 
E  tudo  o  que  é  no  poeta  emoção  e  delírio 
É  luz  no  sol,  canto  nas  aves,  cor  no  lírio!... 
E  tudo  o  que  é  em  nós  Bondade  é  num  rochedo 
Viçoso  musgo  e  santa  sombra  no  arvoredo!... 
E,  enquanto  dou  a  um  pobre  um  bocado  de  pão, 
O  sol  enche  de  luz  o  saco  da  amplidão ! 
E,  qual  Samaritana,  a  nuvem  religiosa 
Dá  de  beber  a  toda  a  terra  sequiosa... 
Um  murmúrio  de  fonte  é  um  Sermão  da  Montanha 
E  a  neblina  da  tarde  uma  ascensão  estranha!... 
E  enquanto  eu  sou  a  morte,  ó  velho  e  frio  inverno, 
Perante  o  sol  —  Jesus,  és  um  Lázaro  eterno. 
Um  promontório  é  um  Cristo  altivo,  triste  e  só, 
E  o  mar  divino  um  poço  imenso  de  Jacob!... 
E  as  verdes  ervas  são  versículos  sagrados 
Que  os  ribeiros  e  o  sol  escrevem  sobre  os  prados... 
E  uma  pedra  contém  a  história  verdadeira 
Do  Génesis,  da  Luz  e  da  Mulher  primeira!... 
Ainda  hoje,  o  Dilúvio,  o  velho  avô  das  fontes, 
Anda  na  boca  das  florestas  e  dos  montes!... 
E  a  mais  estéril  terra  ainda  recorda  e  chora 


130 


OBRAS  COMPIvETAS 

O  tempo  em  que  beijou  teus  lábios  d'oiro,  aurora, 

Pela  primeira  vez,  ardente  de  paixão ! 

Ainda  hoje  impressiona  a  terra  a  sensação 

Que  seu  corpo  diluiu  em  mística  ternura, 

Ao  conceber  a  primitiva  criatura ! 

E  nos  olhos  da  terra  ainda  fulgura  a  imagem 

De  tudo  o  que  ela  viu,  nessa  grande  viagem 

Através  da  penumbra  infinda  do  Mistério, 

Até  desabrochar  num  coração  etéreo ! 

Há  nos  olhos  da  terra  a  imagem  desse  olhar 

Que  a  saudade  transforma,  às  vezes,  em  luar... 

Deus  disse  à  luz  do  sol  o  segredo  da  Vida. 

Desvendemos  a  Luz  amada  e  preferida!... 

Vejamos  a  razão  suprema  da  existência 

E  o  que  ela  tem  d' amor,  de  espírito  e  de  essência, 

O  que  nela  é  real,  eterno  e  inconfundível... 

Que  o  nosso  olhar  penetre  o  mundo  do  invisível. 

Os  paramos  do  Sonho,  a  amplidão  da  Quimera, 

Onde  já  se  descobre  etérea  Primavera, 

Nebulosa  subtil  composta  dum  perfume. 

Dum  éter,  dum  amor,  duma  luz  que  resume 

A  nova  Criação  que  está  para  surgir 

Do  caos  de  Amanhã,  do  beijo  do  Porvir!... 

O  pó  que  a  gente  vê  sobre  os  campos,  disperso, 

É  um  caos;  nele  sonha  um  místico  Universo! 

Apaga-se  uma  estrela  e  nela  ressuscita 

A  sua  frágil  luz,  numa  luz  infinita... 

Se  um  homem  fecha  os  roxos  olhos,  congelado, 

D 'olhos  eternos  ele  fica  constelado! 

B  duns  ouvidos  transformados  em  poeira, 

Brota  a  audição  completa,  imensa  e  verdadeira... 

B  tudo  o  que  termina  e  a  cinza  se  reduz, 

Vai  acordar  em  alma  e  despertar  em  luz ! 

Um  mundo  auroreal,  quimérico  germina 

Em  cada  areia,  em  cada  gota  cristalina... 

^3^ 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

E  a  nova  Vida,  numa  onda  a  resplender, 

Aflora  à  superfície  ideal  do  novo  ser. 

Um  novo  Apolo  vai  tocar  a  nova  Lira... 

E  na  água  que  se  bebe  e  no  ar  que  se  respira, 

Nas  nuvens  onde  dorme  a  clara  luz  dos  céus, 

Palpita  um  novo  amor,  murmura  um  novo  Deus... 


OBRAS  COMPLETAS 


O  HOMEM 

I 


o  homem  é  o  Universo  consciente. 

Pelos  seus  lábios  fala  a  pedra,  o  nevoeiro... 

Por  isso  o  que  ele  mais  ocultamente  sente, 

O  que  nele  é  mais  vago,  é  o  que  é  mais  verdadeiro... 

O  ser  humano,  como  tudo,  principia 

Em  nocturna  matéria  que  termina 

Num  éter,  numa  luz,  numa  harmonia. 

Numa  nuvem  astral,  numa  emoção  divina... 

Num  sentimento  infindo  e  misterioso. 

Num  sensível  clarão, 

Num  fluido  transcendente  etéreo  e  luminoso, 

Como  a  matéria  ideal  que  forma  uma  visão. 

Sua  carne  termina  em  alma;  e  o  seu  olhar 

Em  luz  d'esperança  e  dor. 

Como  em  nuvem,  o  mar 

E  uma  semente,  em  flor... 

Sou  a  visão,  o  sonho,  o  inatingível... 

E  o  mundo  d'amanhã,  não  revelado  ainda, 

É  o  mundo  do  Invisível, 

Impalpável  Criação,  escura  luz  infinda ! 

As  formas  não  são  mais  que  sombras  projectadas 

Sobre  os  nossos  sentidos... 

São  fragmentos  de  sol  e  restos  d'alvoradas 

Em  florestas,  em  água  e  pedras  convertidos. 

A  forma  é  a  aparência... 

Transitório  clarão  que  ilude  olhos  banais 

Que  não  conseguem  ver  a  sempiterna  essência, 

O  espírito  que  anima  os  astros  imortais ! 

Somente  a  alma  existe. 


133 


TBIXBIRA        DB        PASCOAES 

E  sonha  a  mesma  alma  em  cada  criatura... 
Olhai  como  tão  bem  se  casa  o  luar  triste 
Com  a  noite  emotiva  e  cheia  de  ternura ! 
No  fundo  do  meu  ser,  no  meu  distanciamento, 
Vagueiam,  a  sonhar,  almas  desconhecidas... 
Vozes  confusas  como  a  voz  do  vento... 

Sinto  na  minha  vida  várias  vidas ! 

Sinto  bem  minha  alma  dividir-se 

Em  muitas  almas  íntimas,  secretas. 

Como  quem  vê,  no  espaço,  repartir-se 

Uma  névoa  em  milhões  d'estrelas  e  planetas!... 

Ó  almas  que  formais  uma  alma  só, 

Se  vos  desagregardes,  de  repente. 

Deixais  cair  um  corpo  em  frio  pó. 

Mas  vós  continuais  sonhando  eternamente ! 

Existe  para  vós  a  Eternidade, 

Embora  seja  eu 

A  vã  fragilidade... 

Se  uma  estrela  é  imortal,  é  transitório  o  céu!... 

Voltais  a  reunir-vos  com  amor, 

E  outra  alma  mais  perfeita  ides  formar... 

E  assim  de  morte  em  morte  e  assim  de  dor  em  dor 

A  perfeição  suprema  a  Vida  há-de  alcançar!... 

No  meu  peito  que  um  santo  amor  deslumbra, 
Descubro  um  mundo  cheio  de  segredos ! 
Vejo  através  de  minha  carne  —  essa  penumbra, 
Palpitações  de  luz  e  sombras  d'arvoredos !... 
Da  noite  primitiva 

E  feita  a  sombra  que  nas  cousas  eu  projecto... 
Sinto  que  veste  minha  carne  viva 
Da  velha  Humanidade  o  trágico  esqueleto!... 
Impressiona,  às  vezes,  meus  ouvidos 
Confusa  voz  remota 

Que  atravessa,  vibrando,  os  séculos  perdidos 
Dentro   em   mim   acendendo   uma   impressão  igno- 

[ta!... 


134 


OBRAS  COMPIyBTA.S 

E  através  de  minli'alma,  onde  latejam 

Originárias  almas  precursoras, 

Claridades  d'espíritos  alvejam, 

Novas  almas  acordam,  como  auroras!... 

Sei  que  todo  o  meu  ser  secretamente 

Comunica  com  mundos  radiosos; 

B  que  todo  ele  vibra  e  canta  heroicamente. 

Sob  influências  astrais  e  beijos  misteriosos!... 

Cada  ser,  cada  cousa  é  uma  Lira  bendita. 

Suas  cordas  faz  vibrar  o  vento  do  Mistério... 

A  vida  é  uma  harmonia,  absoluta,  infinita. 

São  o  homem  e  a  pedra  o  mesmo  canto  etéreo ! 

Homem,   ouve  esse  canto... 

Ouve  tua  própria  voz  e  a  do  Universo  inteiro... 

E  aprenderás  então  a  ser  piedoso  e  santo 

E  justo  e  verdadeiro ! . . . 

Pelos  meus  olhos  uma  estrela  consciente 

Vê  seu  próprio  fulgor  ... 

E  no  meu  coração  a  Essência  transcendente 

Viu  que  era  a  luz  do  Amor!... 

Nos  meus  claros  ouvidos, 

A  si  mesma  se  ouviu  a  voz  universal... 

E,  através  do  clarão  sem  fim  dos  meus  sentidos, 

Contemplou-se  a  si  próprio  o  mundo  material. 

Do  Universo  sem  fim  que  à  Perfeição  aspira 

Eu  sou  a  negra  cruz... 

Ô  Sírius,  Orion,  Vénus,  Trapézio  e  Eira, 

Eu  sou  a  vossa  luz!... 

Sou  tua  miséria.  Deus. 

Sou  o  que  há  d'anjo  em  vós,  ó  tigres  e  leões! 

E  é  um  resumo  dos  céus 

Minha  pupila  a  arder  no  incêndio  das  visões!,.. 

Ó  ferro  em  brasa,  sob  os  golpes  do  martelo, 

Eu  sou  o  teu  martírio ! 

Sou  a  vossa  dureza,  ó  pedras  dum  castelo, 

E  o  teu  perfume,  ó  lírio!... 


135 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


II 


Homem,  tu  és  a  luz  da  Esperança  e  da  Dor... 
És  a  lira  de  Deus  que  o  sonho  faz  vibrar ! 
Os  teus  olhos  trespassa  um  clarão  interior 
Que  dimana  dum  foco  imenso  de  luar ! 

Vê-se  através  da  carne  o  espírito  imortal. 
Um  fulgor  d 'alma  sai  dos  rochedos  obscuros... 
Numa  nuvem  germina  a  seara  do  Ideal, 
Bate  as  asas  para  Deus  o  lodo  dos  monturos!... 

Homem,  tu  és  o  sonho  enorme  da  Matéria, 

A  falar  pela  boca  augusta  de  Jesus ! 

És  estátua  de  pó  onde  uma  luz  etérea 

Se  transformou,  morrendo,  em  sempiterna  luz... 

A  matéria  que  forma  o  teu  corpo  grosseiro 
Já  foi  incandescente;  o  espaço  iluminou. 
Noutros   mundos  floriu  talvez  um  ermo  outeiro... 
Quantas  lágrimas  já  tua  carne  evaporou!... 

Foste  doce  luar  boiando  sobre  um  lago  ... 
Os  vales  sem  ninguém  cobriste  de  saudade, 
E,  entrando  pelo  olhar  dum  ser  confuso  e  vago, 
Numa  alma  acendeste  o  luar  da  Piedade!... 

1^6 


OBRAS  COiSIPI/ETAS 

Já  foste  uma  fogueira,  a  errar,  no  Firmamento. 
Teu  calor  aquecia  os  nus  e  os  pobrezinhos  ... 
E  o  que  hoje  em  ti  é  alma,  amor  e  pensamento 
Já  compôs  para  um  bosque  a  música  dos  ninhos... 

Tu  que  já  foste  bom,  quando  tua  boa  alma 
Era  uma  parte  ideal  do  Espírito  infinito. 
No  tempo  em  que  viveste  a  vida  etérea  e  calma 
Do  luar  que  enternece  as  rochas  de  granito, 

Agora  deves  ser  a  Bondade  consciente, 
A  Justiça  e  o  Amor,  com  olhos  e  razão, 
Para  que  o  mundo  alcance  a  Paz  eternamente 
E  seja  um  Paraíso  eterno  a  Criação!... 


TBIXEIRA        DB        PASCOAES 


MULHER 

I 


Mulher,  corpo  da  Luz, 

Mãe  alegre  de  Pã,  triste  mãe  de  Jesus ! 

Mulher,  divina  encarnação  do  Amor... 

Oh  consciência  de  tudo  o  que  é  perfume  ou  flor ! 

A  tristeza  da  lua  ensombra  teu  perfil ! 

E  nos  teus  lábios  ri  o  claro  mês  d'abril ! 

A  harmonia  da  Cor  teu  belo  rosto  exala. 

Pelos  teus  lábios  a  cor  verde  fala, 

Disfarçada  em  esperança,  em  alegria... 

Nos  teus  olhos  azuis.  Virgem  Maria, 

Que  voz  de  piedade  é  a  cor  azul  do  céu ! 

Da  cor  roxa  dum  lírio  que  sofreu 

Brotam  palavras  tristes,  doloridas. 

Como  as  dos  roxos  lábios  das  feridas 

Do  corpo  de  Jesus  que  a  Noite  apunhalou! 

Foi  essa  voz  que  os  montes  abalou. 

Que  os  sepulcros  abriu,  que  fez  fugir  o  sol!... 

Ouvindo-a,  sobre  a  cruz,  cantou  um  rouxinol... 

Rouxinol  da  Paixão  e  do  Martírio 

Que  julgava,  cantando,  adormecer  um  lírio, 

E  que  ao  pousar  na  cruz,  todo  carinho. 

Procurava  um  lugar  para  fazer  o  ninho!... 

Pã  disfarçado  em  ave,  a  converter 

No  verbo  amar  o  verbo  padecer!... 

Raio  de  sol  bebendo  o  sangue  da  Paixão 

Para  o  infiltrar  na  tua  carne,  ó  Criação, 

A  insuflar-te  vigor ! 

Nos  seus  braços  assim  sustenta  a  Dor  o  Amor ! 

Mulher  divina,  corpo  lirial ! 

Único  lírio  deste  triste  vale 


13S 


OBRAS  COMPIyETAS 

De  lágrimas  que  a  luz  absorve,  a  rir, 

Por  ver  tudo  florir  ! . . . 

Teu  cabelo  crepita  em  chamas  misteriosas; 

Há  no  teu  sangue  a  seiva  que  alimenta  as  rosas ! 

Tua  carne  ainda  se  lembra,  às  vezes,  vagamente 

Do  tempo  em  que  foi  lírio  e  névoa  e  luar  dormente... 

Recorda-se  ainda  bem  teu  verde  negro  olhar 

Do  tempo  em  que  foi  mar... 

Por  isso,  quando  evoca,  às  tardes,  o  Passado, 

Súbito,  fica  em  onda  ou  lágrima  mudado ! 

Verde  olhar  de  mulher  que  electriza 

Os  corpos  brutos  e  que  as  rochas  suaviza... 

Vaga  saudade  a  condensar-se  em  gota  d'água, 

Indefinida  mágoa 

A  traduzir-se  em  mar... 

Ó  genésica  luz  no  caos  dum  olhar ! 

Verde  olhar  de  donzela. 

Sol  amoroso,  comovida  estrela 

A  fecundar  etéreos  mundos  virginais... 

Chuva  d'amor  caindo  em  raios  matinais!... 

Penumbra  do  Incriado  onde  sonha  e  medita 

A  vida  transcendente,   a  existência  infinita ! 

Teu  leite  é,  ainda  em  nebulosa,  um  coração. 

No  teu  ventre  murmura  a  grande  Criação ! 

Ó  ventre  que  o  Espírito  tocou. 

Que  o  sol  dos  sóis  eternos  penetrou !  ^ 

Ventre  que  lembra  um  vasto  campo  arado, 

Onde  se  vê  cair  do  sol  apaixonado. 

Essa  seiva  ideal  que  se  traduz  em  árvore. 

Como  um  éter  subtil  cristalizando  em  mármore... 

Que  tu  vás  fecundar  o  ser  perfeito ! 

Que  cada  esposa  traga  um  santo  ao  peito ! 

Que  o  leite  da  Mulher  seja  bendito  e  puro... 

Ó  Mães,  amamentai  os  Cristos  do  Futuro!... 


^  Correcção  feita  pelo  autor,  a  lápis,  num  exemplar  seu. 
A  variante  impressa  era  «Que  o  sol  dos  sóis,  que  Maadeva, 
penetrou!» 


1S9 


TEIXEIRA        DB        PASCOABS 


II 


O  Ideal  que  faz  florir  os  braços  duma  cruz, 
Que  dá  asas  à  pedra,  amor  ao  lodo  impuro, 
Que  volve  em  linha  recta  e  firme  para  a  luz 
O  arbusto  que  nasceu  nalgum  recanto  escuro!.. 
O  sol  do  novo  Ideal  que  dantes  existia. 
Concentrado  na  terra  e  na  água  adormecido, 
Vai  projectar  no  mundo  a  luz  do  novo  Dia, 
Feita  da  dor  sem  fim  de  tudo  o  que  há  vivido!.. 


OBRAS  COMPI^ETAS 


tTLTIMO   CANTO 

A  MEUS  gUERIDOS  PAIS 


Uma  nova  esperança  as  coisas  alumia... 
O  mundo  inteiro  exala  uma  nova  harmonia 
Que  infunde  a  mansidão  aos  animais  selvagens, 
Que  faz  enternecer  as  rústicas  paisagens... 
Sai  dos  lábios  dum  rio  o  canto  das  neblinas, 
Nos  olhos  duma  pedra  há  lágrimas  divinas... 
E,  como  bons  irmãos,  vejo  o  lobo  e  o  cordeiro; 
Vem  lamber  minhas  mãos  o  tigre  carniceiro, 
E  nos  seus  olhos  fulge  o  luar  da  piedade... 
O  Zéfiro  esqueceu  a  antiga  tempestade; 

E  o  orvalho  que  sorri,  sob  os  beijos  da  aurora, 
Nem  se  recorda  já  que  foi  dilúvio  outrora ! 
O  precipício  ri;  o  oceano  canta  e  reza... 
O  azul,  olhar  d'amor,  afaga  a  Natureza... 
Intima  comoção  as  ondas  enternece; 
De  tão  impressionada,  a  noite  resplandece! 
E  d'almas  se  povoa  a  triste  solidão 
E  o  sol  cai  sobre  o  mundo,   assim  como  um  per- 

[dão... 
E  o  homem  sonha,  livre  e  bom,  sem  um  martírio, 
Sob  o  azul  que  projecta  uma  sombra  de  lírio... 

141 


VIDA  ETÉREA 

[1.^  edição,  Coimbra,  F.  França  Amado,  Editor, 

1906;    2.^    edição,    Lisboa,    «Seara    Nova)),    1924; 

3.^  edição,   «Obras  Completas)),  Lisboa,  s/d] 


Siglas  do  aparato  crítico: 

A:  1.^  edição;  B:  2. a  edição;  M:  versão  manuscrita  apenas  ao 
exemplar  da  2.^  edição  pertencente  ao  Autor. 


OBRAS  COMPIylíTAS 


ENLEVO 


Na  espiritualidade  da  alvorada 

Dum  novo  amor, 

E  como  branca  névoa  deslumbrada 

Meu  cxDração  em  flor. 

Ele  vive  da  límpida  frescura, 

Que  o  céu  respira. 

Quando  a  terra  floresce  de  ternura 

E  quando  a  luz,  Apolo,  é  o  som  da  tua  lira. 

Luz,  divina  canção. 

Que  um  deus,  todo  abrasado,  entoa  no  Infinito ! 

Ouvindo-te,  estremece  a  rocha  de  granito, 

Vestem-se  de  oiro  os  cerros  do  Marão; 

Têm  um  áureo  fulgor  os  ermos  horizontes; 

E  risos  de  alegria  ardem  na  voz  das  fontes ! 

É  um  teu  estado  de  alma,  ó  terra,  cada  ser. 

Um  lírio  é  a  tua  graça... 

E  aquele  passarinho,  que  esvoaça. 

Na  tristeza  sem  fim  do  anoitecer. 

A  criatura  humana  é  um  sentimento 
Em  que  a  terra  desvaira,  enlouquecida! 
Nela,  grita  não  sei  que  ignoto  sofrimeHto, 
A  consciência  trágica  da  vida. 


145 
10 


TBIXBIRA        DE        PASCOAES 

Fantástico  mistério! 

És  noite  e  claridade; 

Fogo  consumidor  que,  ao  mesmo  tempo,  aquece... 

És  negra  sepultura  e  berço  etéreo. 

Tens  ímpetos  de  doida  tempestade; 

Teu  silêncio,  ao  luar,  é  a  sombra  duma  prece. 

Das  gotas  do  teu  choro  salta  o  riso; 

E  o  riso  cai  em  choro  desolado. 

Porque  deu  flor  e  fruto  a  árvore  do  Pecado, 

Na  inocência  infantil  do  Paraíso? 

Ó  terra,  pesadelo  arrefecido. 

Petrificada  e  viva  confusão. 

Além  de  ti,  meu  ser  é  um  canto  comovido, 

Pairando  na  amplidão. 

Paira  sobre  os  conflitos  sanguinários. 

Sobre  os  montes  de  bronze,  onde  troveja  e  neva... 

Paira  sobre  a  tragédia  dos  calvários; 

Suas  asas  de  luz  agitam-se,  na  treva. 

Paira  num  sonho  místico  de  encanto, 

Inefável,  divino... 

No  delírio  do  poeta  e  no  enlevo  do  santo. 

Na  embriaguez  da  sibila,  em  face  do  Destino... 

Paira  num  voo  sagrado  de  harmonia, 

Num  êxtase  profundo: 

Assim  a  luz  do  dia 

Paira  sobre  a  miséria  e  a  escuridão  do  mundo. 


OBRAS  COMPI,BTA.S 


PÃ 


Ó  Pã,  deus  da  alegria, 
Olha  as  ninfas,  nos  lagos,  a  cantar! 
Olha  Apolo  semeando  a  luz  do  dia, 
Áureo  trigo  que  as  almas  vão  ceifar. 

Ó  Pã,  deus  verdadeiro ! 
Tua  presença  os  bosques  ilumina, 
Acendendo  no  triste  pegureiro 
Uma  emoção  divina. 

Ó  Pã,  deus  do  arvoredo,  alma  da  luz. 
Teu  corpo  abrange  a  terra  e  o  céu  doirado. 
Satã  que  floresceste  a  negra  cruz 
E  estás,  em  sua  flor,  crucificado. 

Cerca  de  verdes  louros  minha  fronte. 
Tua  rústica  frauta  vou  tanger. 
Sob  um  salgueiro,  junto  duma  fonte, 
À  luz  do  amanhecer. 

E  que  subam  meus  cantos  religiosos, 

Como  aromas  de  flor. 

Dos  vales  deleitosos. 

Onde,  em  chamas  de  lírios,  arde  o  amor. 

E,  dispersos  no  azul  do  Firmamento, 
Inunde-os  de  oiro  o  riso  da  manhã; 
E  sejam,  modelados  pelo  vento, 
A  imagem  do  deus  Pã... 


147 


TEIXEIRA       DE        PASCOAES 


APOLO 


Dos  fumos  da  distância, 

Etéreos  e  azulados, 

Surge,  vertiginoso. 

Um  resplendor  de  chama.  5 

Há  fogueiras  queimando 

Os  longes  ensombrados; 

Dir-se-á  que  o  nosso  olhar  tudo  o  que  toca  inflama. 

Abrasa  todo  o  espaço 

Um  fogo  de  delírio;  10 

Ao  apagar-se,  é  pedra, 

É  homem  e  arvoredo. 

Vejo  um  clarão,  no  Azul, 

Que,  em  ermo  outeiro,  é  lírio. 

Vejo  um  raio  tomar  as  formas  dum  penedo.  15 

Vejo  o  incêndio  de  tudo; 

E  sinto  o  grande  sol 

Crepitar,  no  meu  sangue. 

Fulgir,  dentro  de  mim, 

Num  velho  tronco  em  flor,  20 

Na  voz  do  rouxinol, 

Derramar-se,  na  terra,  em  lágrimas  sem  fim. 


6-7.  A:  fogueiras  a  arder,  /  Nos  longes  magoados... — 
9-11.  A  :  Vejo  o  Planeta  a  arder  /  No  fogo  de  Delírio  /  Que, 
ao  apagar-se,  — 14.  A:  ermo  vale,  — 15.  AB:  dum  rochedo 
— 17.  A:  Sol  — 19-21.  AB :  Fulgir  num  tronco  em  flor.  /  Na 
voz  do  rouxinol, 


148 


OBRAS  COMPI^BTAS 

Concentro-me  na  luz; 

Subo  na  claridade 

Que  a  imagem  deste  mundo  25 

Aos  outros  mundos  leva; 

B  vejo  bem  que  desço 

A  uma  profundidade, 

Quando  meu  ser  alaga  a  inundação  da  treva. 

A  noite  é  a  tua  lira,  30 

Apolo,  que  emudece. 

O  dia  é  o  som  divino 

E  puro  que  ela  exala. 

Ouvindo-o,  na  planície, 

O  trigo  amadurece;  35 

O  lírio  ri,  na  aurora;  à  tarde,  a  água  fala. 

Tenho  um  sentido  astral. 

Que  sabe  distinguir 

Tua  alegre  canção 

De  mística  harmonia.  40 

Meu  sonho  era  poder, 

Em  versos,  traduzir 

Teu  cântico  de  luz  que  os  mundos  extasia. 


29.  A:  Quando,  lívido,  sinto  o  despenhar  da  Treva!  //Só 
quando  nasce  o  sol  /  Minha'alma  sobe  à  Vida,  /  Meu  ser 
adquire  forma  /  K  fica  harmonioso.  /  Tudo  apaga  €  des- 
trói /  A  noite  indefinida...  /  A  noite  é  o  teu  silêncio,  Apolo 
esplendoroso!  —  31.  A:  Kterna  que  emudece.  —  32.  A:  A 
luz  é  —  34.  A:  na  campina  —  36.  A  :  O  lírio  ri,  a  pedra  canta, 
a  água  fala. — 37-42.  A:  um  ouvido  estranho,  /  Ideal  que 
sabe  ouvir  /  Tua  eterna  canção  /  De  esperança  e  alegria. 
/  Meu  sonho  de  poeta,  /  Apolo,  é  traduzir  —  43.  A:  exta- 
sia!... 


149 


TEIXEIRA       DE        PASCOAES 


VÉNUS 


Lá  vai  a  aurora  sorrindo, 

Pelos  céus, 

Ao  mar,  na  praia,  dormindo 

E  às  nuvenzinhas  de  Deus.  5 

Na  água  fria, 

Divina  imagem  pousou ! 

Que  alegria, 

Por  dentro,  as  ondas  doirou ! 

Que  frescura !  Que  fragância  !  lo 

Vê-se  quase 

Seu  vulto  de  etérea  gaze. 

Na  distância. 

Todo  o  líquido  horizonte 

Sonha  e  dorme.  15 

Mar  enorme. 

Tens  a  alma  duma  fonte. 

Mas,  de  repente,  exaltada. 

Rola  uma  onda,  e  desfaz-se 

Em  branca  espuma;  e,  animada,  20 

Vénus  nasce. 


1.  ]\I :  Nascimento  de  Vénus  —  6.  M:  Nos  olhos  da  espuma 
fria  —  7.  M:  pousou.  — 10-11.  M:  Vão  as  velas,  com  a  ara- 
gem, /  A  voar.  /  É  tão  branca  a  sua  imagem  /  Que,  à  luz  do 
sol,  dá  luar.  //  Que  fragância!  /  Que  frescura!  Vê-se  quase 
—  19t   M :    Onda  divina  desfaz-se 


150 


OBRAS  COMPIyBTAS 

Seu  corpo,  virgem  e  eterno, 

Sai  da  água  que  murmura, 

Como  do  ventre  materno 

A  criatura.  25 

E,  em  derredor 
Do  seu  corpo  amanhecente. 
Esvoaça,  doidamente, 
O  doido  amor. 


22.  M:  Seu  corpo  virgem,  eterno,  —  26.  M:  Vem  da  vida;  / 
/  Vem  da  astral  intimidade  /  Dessa  Onda  indefinida  /  Que 
enche  o  espaço  e  a  eternidade;  //  K  em  seu  fluido  dorso  eté- 
reo /  Vogam  astros,  nubelosas,  /  Claridades  tenebrosas,  /  Re- 
velação e  mistério.  //  Vénus  nasce.  E,  em  derredor  —  27.  M: 
Do  seu  vulto  amanhecente. 


151 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


CIBELE 


Inunda  de  harmonia  a  vibração  da  luz 
O  vale  em  flor  de  Pã  e  o  horto  de  Jesus. 
Um  hálito  de  abril  o  espaço  aromatiza. 
Um  calor  voluptuoso  acorda  etérea  brisa, 
Dilata  suavemente  o  ar,  que  se  enternece. 
Vénus  sorri,  no  Olimpo,  e  o  mundo  reverdece. 
No  Azul,  tontos  de  luz,  beijam-se  os  passarinhos 
E  há  sombras  a  beijar  a  poeira  dos  caminhos. 
O  luar  beija  o  mar  capaz  de  enlouquecer ! 
A  noite  beija  o  céu,  que  fica  todo  a  arder ! 
E  que  alegria  nimba  as  cousas  inocentes ! 
Nas  leiras,  a  sonhar,  germinam  as  sementes. 
A  semente  é  uma  vida,  obscura  e  concentrada. 
Que,  à  voz  do  sol,  se  expande  em  árvore  sagrada; 
Um  cofre  onde  se  oculta  a  essência  misteriosa. 
Que,  em  êxtase,  abre  a  luz,  a  Psique  radiosa. 
E  sorri,  para  Deus,  a  face  da  paisagem; 
Alteram-se,  de  manso,  as  ondas  da  ramagem. 
Ondas  vivas,  que  o  vento  agita,  com  brandura. 
Para  as  flores  de  maio  o  vento  é  só  ternura. 
Marulham,  tão  baixinho,  os  rios,  a  fulgir. 
Que,  ao  pé  deles,  decerto,  há  ninfas  a  dormir. 
As  árvores  sensuais,  ébrias  de  amor,  ciciam. 
Seus  ramos,  verdes  mãos,  os  céus  acariciam, 
E,  listrados  de  fogo,  aos  zéfiros  lampejam, 


152 


OBRAS  COMPI/BTAS 

K,  à  branca  luz  do  luar,  saudosos,  rumorejam. 
Esplende,  em  cada  fonte,  um  íntimo  tesouro. 
Como  o  Tejo  de  outrora,  os  rios  levam  ouro. 
Nimbam  as  formas  vãs  fulgurações  estranhas, 
E  que  relevo  têm,  nos  longes,  as  montanhas ! 
Ouço  alegres  canções,  murmúrios  e  rumores 
E  grita,  num  delírio,  a  nitidez  das  cores. 


TBIXKIRA        DE        PÁSCOA    BS 


NOVA  LUZ 
I 


Emana  um  fumo  de  alma  o  crepitar  do  lume; 
O  incêndio  duma  flor  dá  a  cinza  do  perfume. 

O  corpo  duma  onda  é  o  líquido  braseiro, 
Que  exala,  no  infinito,  o  branco  nevoeiro. 

A  rama  dos  pinhais,  onde  o  luar  se  perde. 
Sobre  os  montes,  espalha  uma  fogueira  verde. 

Nas  formas  dum  penedo,  há  chamas  escondidas, 
Brilham,  na  noite  escura,  as  rosas  acendidas. 

E  cada  lírio  triste  é  roxa  labareda. 

A  aurora  leva  a  arder  o  hábito  de  seda. 

Há,  no  seio  do  orvalho,  um  riso  incandescente. 
A  criatura  humana  é  fogo  intimamente. 

E  deste  incêndio,  eterno  e  universal,  se  eleva, 
Em  orações  de  luz,  o  espírito  da  treva. 


154 


OBRAS  COIMPLBTA.S 


II 


Ê  tudo  sonho  e  vida  e  comoção ! 

O  sol  é  uma  oração 

Pelos  velhos  mendigos  que  têm  frio ! 

K  a  piedade  das  sombras,  pelo  estio ! 

A  nuvem  religiosa 

Mata  a  sede  à  paisagem  sequiosa... 

O  luar  perdoa  à  noite;  e  cada  flor 

É  dádiva  de  amor. 


TEIXEIRA       DE        PASCOAES 


III 


Uma  nova  esperança  as  cousas  alumia. 
Surge,  em  cada  perfil,  a  imagem  da  alegria. 

Sobe,  do  mar  salgado,  o  canto  das  neblinas. 
Nos  olhos  duma  pedra,  há  lágrimas  divinas; 

Nas  árvores,  ao  vento,  há  gestos  de  piedade. 
O  zéfiro  esqueceu  a  antiga  tempestade 

E  o  orvalho  que  sorri,  contente,  à  luz  da  aurora, 
Nem  se  recorda  já  que  foi  dilúvio,  outrora ! 

Doirada  comoção  as  águas  enternece... 
De  tão  impressionada,  a  noite  resplandece. 

O  ar  é  transparência  azul  que  se  respira. 
Um  novo  Maio  faz  a  terra  florescer. 
Onda  de  vida  nova  aflora,  em  cada  ser, 
B  um  novo  Apolo  vai  tanger  a  nova  lira. 

150 


OBRAS  COMPLETAS 


O    RISO 


Ó  riso,  olhar  de  Apolo,  pai  do  dia! 
IvUz  ardente  vestindo  corpos  virgens... 
Ó  riso,  etérea  fonte  de  harmonia ! 

Ó  riso  misterioso  das  origens, 
Ó  riso  sempiterno  do  deus  Pã, 
Ó  riso  delirante  das  vertigens ! 

Ó  riso,  a  luz  sagrada  é  tua  irmã. 
Sempre  que  uns  lábios  puros  vão  sorrir, 
Neles,  fulgura  a  estrela  da  manhã. 

Ser  alegre  é  ser  luz.  Rir  é  florir. 
Cravos  na  infância,  rosas  pequeninas. 
São  sorrisos  de  amor  que  estão  a  abrir. 

Áureas  chuvas  de  riso  cristalinas. 
Desenhando,  nos  bosques  rumorosos, 
Anjos  de  luz,  aparições  divinas ! 

Risos  de  oiro  nos  vagos  céus  brumosos, 
Risos  da  aurora,  orvalhos  matinais. 
Risos  de  flor  nos  troncos  voluptuosos. 

Riso  das  ondas,  riso  dos  cristais. 

Flocos  de  espuma,  a  rir,  em  tosca  frágua, 

Ó  riso  intenso  e  frio  dos  metais ! 


^51 


TBIX:^IRA        DK        PASCOABS 

Riso  do  sol  que  doira  a  nossa  mágoa; 
Lábios  da  noite  acesos  numa  estrela, 
Lábios  de  nuvem  num  sorriso  de  água... 

Riso  da  morte,  ao  luar,  que  se  congela; 
Riso  gravado  a  fogo,  em  névoa  escura, 
Beijo,  a  sorrir,  nuns  olhos  de  donzela. 

Riso  da  branca  neve,  que  fulgura... 

Ó  místico  sorriso  da  Piedade ! 

Riso  de  sombra  em  trágica  figura... 

Risos  da  primavera !  Nova  idade ! 
Lírios  que  sois,  nos  vales,  os  primeiros 
Enviados  da  divina  claridade. 

Riso  aquecendo  os  torvos  nevoeiros... 

Ó  riso  madrugante  e  solitário. 

Riso  anterior  aos  mundos  passageiros. 

Ou  nas  flores  agrestes  do  Calvário, 
Ou  nas  flores  do  campo,  em  tudo  vejo 
O  riso  primitivo  e  originário, 

O  precursor  da  aurora  e  do  desejo, 
Da  esperança  e  da  lágrima  dorida... 
Nebulosa,  no  Azul,  nuns  lábios,  beijo!... 
Riso  eterno  de  Deus  criando  a  Vida ! 


OBRAS  COMPLETAS 


idílio 


A  luz  do  teu  olhar 

Funde  meu  corpo  em  sonho,  em  lágrima  e  luar! 

Teu  divino  sorriso 

Ê  voz  de  anjo  a  mandar-me  entrar  no  Paraíso... 

Teu  sorriso,  que  lembra  a  doce  aurora, 

Minhas  lágrimas  tristes  evapora 

E,  nos  meus  olhos,  fica  a  tua  imagem  bela... 

Assim  o  fresco  orvalho  matutino, 

Onde  encantado  vive  o  sol  menino, 

Deixa,  nas  brancas  rosas,  uma  estrela... 

Ao  descobrir-te,  flor. 

Todo  me  exalto  e  elevo,  em  cânticos  de  amor, 

Perco-me,  na  amplidão... 

Sou  asa  entontecida,  aroma,  comoção. 

Se  me  tocam,  de  leve, 

Os  teus  olhos  de  chama  e  as  tuas  mãos  de  neve ! 

Alegre,  choro;  e  rio,  sempre  aflito! 

Canto,  soluço  e  grito  ! 

Sou  oração,  queixume. 

Relâmpago,  nevoeiro,  onda  do  mar,  perfume. 

Quando,  da  tua  face. 

Límpida  rosa  nasce 


159 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

E  de  ti  se  desprende  o  encanto  da  manhã, 
Que  é  tua  sombra  mística  e  pagã; 
Quando,  ao  doirado  zéfiro,  estremeces 
E,  aureolada  de  beijos,  resplandeces, 
Como  florido  arbusto... 
E  és  o  sol  esculpido  em  feminino  busto. 

Estrela,  bem-me-quer ! 

Imagem  de  mulher! 

Deslumbra  a  noite,  os  montes  incendeia 

E  a  morta  lua  cheia ! 

Quebra  as  marmóreas  tampas  sepulcrais ! 

Que  regressem  à  vida  os  corpos  espectrais ! 

Liberta  os  arvoredos 

E  as  ondas  abraçadas  aos  penedos ! 

As  almas  embriaga; 

Sensibiliza  a  fraga 

E  as  nuvens,  a  voar... 

Embebe-te  na  luz  e  muda-a  em  doce  olhar. 

Seja,  no  Azul  profundo. 

Lágrima  a  tremular  e  a  cintilar  o  mundo; 

Enternecida  esfera. 

Toda  ela  a  palpitar  de  amor  e  primavera. 

Estrela,  flor,  mulher ! 

Mulher,  ave  a  cantar,  na  luz  do  amanhecer! 

Mulher,  rio  sonhando,  ao  longo  das  campinas. 

Mulher,  névoa  tentando  as  asas  matutinas. 

Mulher,  árvore  piedosa. 

Mulher,  triste  martírio,  enamorada  rosa ! 

Mulher,  onda  do  mar  bailando  com  o  vento. 

Mulher,  brisa  outonal,  crepúsculo  cinzento. 

Imagem  toda  luz  da  noite  escura... 

Mulher,  esperança,  dor,  amor,  graça  e  candura. 

Mulher,  fonte  que  chora  e  que  deseja. 

Mulher,  mulher,  mulher,  é  a  terra  que  o  sol  beija. 


lòo 


OBRAS  COMPIvBTAS 


CANÇÃO  DE  MAIO 


Os  rios  são  de  luz, 
B  de  oiro  são  as  fontes. 
Ê  de  oiro  o  mar  azul, 
Que  banha  os  horizontes. 

O  arbusto  que  rebenta, 
É  um  Lázaro  a  quebrar 
A  tampa  do  sepulcro, 
Ouvindo  o  sol  chamar ! 

O  aroma  é  tão  intenso, 
Em  Maio,  nos  outeiros. 
Que  tolda  os  claros  céus 
De  vagos  nevoeiros. 

A  luz  do  sol  caindo. 
Alegre,  sobre  a  aldeia, 
As  pedrinhas  do  chão 
E  as  águas  incendeia ! 

Doira  a  face  espelhada 
E  lívida  dos  mármores; 
E  chuveiros  de  tinta 
Esparge  sobre  as  árvores. 

Crescendo,  a  cor  alaga 
O  vale,  o  campo,  a  serra. 
E  já  mal  se  distingue 
O  céu  azul  da  terra. 

lôi 


TBIXKIRA        DE        PASCOABS 


ALEGRIA 


A  alegria  do  sol  doira  as  campinas, 
Brilha  nas  fontes  cristalinas; 
Transluz  no  olhar  dos  meigos  cordeirinhos, 
Canta  na  voz  dos  passarinhos ! 

Vede  a  alegria  imensa  de  florir, 
Dentro  de  nós,  a  rir... 
Nas  árvores,  nos  verdes  matagais, 
Lucilantes  de  choros  matinais. 

Em  clara  seiva,  pelos  troncos,  gira 
O  riso  eterno  da  apolínea  lira ! 
É  a  música  das  flores, 
Em  sons  primaveris  de  vivas  cores. 

Luz,  irmã  da  alegria 

E  da  harmonia... 

Doirada  comoção  indefinida. 

Em  que  palpita  o  espírito  da  vida. 

A  alegria  é  donzela; 

A  alegria  é  luz  de  alma  e  luz  de  estrela; 

Relâmpago  infinito, 

Que  deslumbra  meu  ser,  quando  medito! 

A  alegria  do  sol  doira  as  campinas. 
Brilha  nas  fontes  cristalinas. 
Transluz  no  olhar  dos  meigos  cordeirinhos. 
Canta  na  voz  dos  passarinhos... 

162 


OBRAS  CO     M^P     L     B     T     A     S 


ÊXTASE 


Estrelas,  como  vós,  eu  ardo  e  me  consumo. 

Sou  labareda  e  fumo, 

Em  sonhos,  me  disperso 

E  fujo  com  o  vento. 

Sou  êxtase,  luar,  deslumbramento. 

A  sagrada  manhã  doirou  meu  berço; 

E  a  Primavera,  a  rir  as  suas  cores, 

Cingiu-me  num  abraço  iluminado  a  flores. 

Beija-me  etérea  graça. 

Canta,  pousada  em  mim,  a  cotovia. 

Eterna  borboleta  de  alegria, 

No  encanto  dos  meus  olhos,  esvoaça. 

E  tudo  me  embriaga  e  me  seduz ! 

Evolo-me  num  cântico  de  luz, 

Numa  oração  a  Deus 

E  ao  claro  sol  que  anima  a  Natureza 

E  descreve,  num  gesto  de  beleza, 

A  curva  musical  que  abrange  o  azul  dos  céus. 

Vivo  naquela  altura  esplendorosa, 

Lá,  onde  tudo  é  graça,  enlevo,  amor  infindo, 

Comoção  matinal  de  lágrima  caindo 

Sobre  um  botão  de  rosa... 

Quando  um  fulgor  de  aparição  divina, 

Que  os  negros  cerros  banha. 

Dissipa  as  frias  névoas  e  ilumina. 

Com  lírios  de  oiro,  o  busto  da  montanha. 

Através  do  meu  ser, 

Passam  anjos  voando,  astros  a  resplender, 

163 


TBIXBIRA        DB        PA    SCO    ABS 

A  lua,  a  noite  escura, 

Dilúvios  de  ternura. 

Sombras  de  almas  que  surgem  retratadas 

Na  inquieta  palidez  das  madrugadas... 

Perfumes,  ansiedades, 

Visões  de  amor,  longínquas  claridades... 

E,  por  milagre,  alcanço  intimamente 

Indefinidos  mundos  radiosos; 

E  todo  eu  vibro  e  canto  heroicamente. 

Sob  influências  astrais  e  beijos  misteriosos... 


OBRAS        co:mpletas 


PAISAGENS 


Num  pálido  desmaio  a  luz  do  dia  afrouxa 
E  põe,  na  face  triste,  um  véu  de  seda  roxa... 
Nuvens,  a  escorrer  sangue,  esvoaçam,  no  poente. 
E  num  ermo,  que  o  outono  adora  eternamente, 
Vê-se  velhinha  casa,  em  ruínas  de  tristeza. 
Onde  o  espectro  do  vento,  às  horas  mortas,  reza 
E  o  luar  se  condensa  em  vultos  de  segredo... 
Almas  da  solidão,  sombras  que  fazem  medo, 
Vidas  que  o  sol  antigo,  um  outro  sol,  doirou, 
Fumo  ainda  a  subir  dum  lar  que  se  apagou. 


TBIXBIRA       DB        PASÇO    ABS 


II 


Como  chuva  espectral,  a  noite  cai  dos  céus; 
Surge  o  negro  Satã,  desaparece  Deus. 
Apaga-se  a  harmonia,  a  voz  cantando  e  a  chama. 
A  cinza  do  silêncio  o  zéfiro  derrama. 
Na  paisagem  delida  em  vaga  claridade. 
O  fantasma  do  sol  paira  na  imensidade. 
Quando  nasce  o  luar,  as  fontes  emudecem; 
Vegetações  de  sonho  os  campos  enverdecem; 
Intima  comoção  sensibiliza  os  mármores. 
Espíritos  astrais  alvejam,  entre  as  árvores... 
Uma  vida  ideal,  quimérica,  deslumbra 
As  distâncias  de  névoa  e  os  fundos  de  penumbra. 
Chovem  almas  da  bruma  anímica  da  luz, 
Divaga,  pela  terra,  a  sombra  de  Jesus... 


OBRAS  COMPLETAS 


III 


Sobre  a  paisagem  erma,  arrefecida  e  nua, 

A  muda  ondulação  da  escuridão  flutua. 

Onde  a  treva  é  mais  densa,  há  gestos  doloridos 

B  vultos,  a  chorar,  que  perdem  os  sentidos. 

Uma  chuva,  miúda  e  triste,  nos  beirais. 

Põe  murmúrios  de  dor,  misteriosos  ais... 

De  tudo  a  solidão  extática  dimana, 

B  parece  que  tem  uma  aparência  humana 

B  uns  olhos  de  terror,  abertos,  espantados... 

As  cousas  são  perfis  apenas  esboçados. 

Bntre  elas  e  o  Infinito  há  diálogos  profundos, 

Bnche  a  noite  sem  fim  a  ignota  voz  dos  mundos. 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


CANÇÃO  ERRANTE 


Dum  cantinho  deste  mundo, 
Ermo  e  triste,  à  beira-mar. 
Meu  coração  vagabundo 
Vai,  pelo  mundo,  a  chorar. 

Vai,  percorre  a  noite  escura, 
Coração,  luz  do  luar... 
Lírio  aceso  de  amargura 
Que  nunca  se  há-de  apagar. 

Beija  a  chaga  dolorida. 
Teu  amor  a  faz  sarar. 
Beija  os  lábios  já  sem  vida 
E  voltarão  a  falar. 

Adora,  abriga,  consola; 
Sê  berço,  caverna  e  lar. 
Sê  beijo,  lágrima,  esmola 
E  um  pobrezinho  a  rezar. 

Dum  cantinho  deste  mundo, 
Ermo  e  triste,  à  beira-mar. 
Meu  coração  vagabundo 
Vai,  pelo  mundo,  a  chorar. 

i68 


OBRAS  COMPI^KTAS 


UM  DIÁLOGO 

o  AMOR 

Quem  bate  à  minha  porta? 

A  AL^IA 

Uma  velha  mendiga,  quase  morta. 

Venho  da  escuridão  da  Natureza. 

No  meu  saco  de  pobre,  eu  trago  só  tristeza. 

Há  séculos  e  séculos,  errante, 
Trémula  sombra,  ao  vento  murmurante, 
Ando  de  corpo  em  corpo... 

O  mármore  beijei; 
O  mármore  glacial  e  lívido  animei... 
E,  em  mística  ternura, 
Fundiu-se  como,  ao  sol,  a  neve  pura; 
E  ei-lo  sagrada  flor, 
Turíbulo  que  exala  aroma,  vida  e  cor. 

Percorri  a  distância. 

Entre  nocturna  estrela  e  a  minha  infância 

E  uma  gota  de  orvalho  que  reluz: 

Lágrima  refulgindo  o  espírito  da  luz. 

E  enlevei-me  no  sonho  etéreo  de  amplidão 

Que  cinge,  numa  curva  indefinida. 

Indefinidamente  distendida. 

Os  relevos  sem  fim  da  Criação... 

lôg 


TEIXEIRA        DE        PASÇO    A    ES 

Fui  nuvem,  fui  mulher; 

Fantasma  divagando,  à  luz  do  entardecer. 

Cismei,  no  outono,  à  sombra  dum  cipreste. 

Certa  noite,  parti,  nas  asas  do  nordeste... 

Nas  solidões  da  lua,  errei,  molhada  em  pranto; 

B  ao  mundo  regressei,  quebrado  o  meu  encanto. 

Passeei  toda  a  estrada  de  luar, 

Por  onde  vão  os  mortos,  a  cantar. 

Reverdeci  nas  árvores  maternais, 

Brilhei  na  essência  pura  dos  cristais; 

Líquida  intimidade  acesa  de  esplendores, 

Onde  se  banham,  rindo,  as  sete  cores. 

Vi  o  céu  pelos  olhos  das  campinas, 

Cobertas  de  boninas; 

Pelos  olhos  das  cérulas  espumas. 

Pelos  olhos  sonâmbulos  das  brumas. 

Fui  luarenta  embriaguez,  num  rouxinol, 

Perfume  devorado  pelo  sol. 

Astro  que  a  negra  noite  sufocou 

B,  no  seio  das  trevas,  expirou... 

Sou  agora  uma  voz,  lamúria  de  alma, 

Um  ímpeto  de  dor  na  imensidade  calma... 

A  terra,  em  mim,  suspira 

B  tange  etérea  lira. 

Bm  mim,  a  branca  névoa  é  fria  mágoa... 

Em  mim,  se  converteu  em  lágrimas  a  água; 

B  a  luz  naquele  olhar,  sinistro  e  mudo. 

Que  viu  a  morte  —  ai  dele !  —  e  a  sombra  vã  de  tudo ! 


O  AMOR 

Vens  do  infinito  Além...  Os  teus  vestidos 
Trazem  poeiras  de  astros  acendidos 
B  escorrem  gotas  de  ouro: 
Bstrelas  que  te  queimam,  ígneo  choro... 
És  o  encanto  perfeito,  a  formosura, 


1'JO 


OBRAS  COMPI^ETAS 

O  espanto  da  Natura ! 

O  teu  perfil,  quimérico  e  nevoento, 

Parece  aquele  deus  que  se  entrevê  no  vento; 

A  divindade  oculta  que  deslumbra 

Sacro  bosque,  onde  cai  a  chuva  da  penumbra; 

Génio  velado  em  névoa  transcendente 

Que  se  avista,  num  rio,  ao  sol  nascente; 

O  Cristo  macerado  e  ensanguentado. 

Na  glória  da  ascensão  transfigurado ! 

Alma,  sombra  de  Deus,  longe  de  Deus, 

Sozinha,  a  percorrer  mundos,  estrelas,  céus, 

Errando,  à  triste  sorte, 

De  corpo  em  corpo,  isto  é,  de  morte  em  morte, 

Ó  alma  vagabunda  e  dolorida. 

Vem  a  mim.  Sou  o  amor  que  te  dá  vida. 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


ELEGIA  DO  AMOR 


Lembras-te,  meu  amor, 

Das  tardes  outonais, 

Em  que  íamos  os  dois, 

Sozinhos,  passear,  5 

Para  fora  do  povo 

Alegre  e  dos  casais. 

Onde  só  Deus  pudesse 

Ouvir-nos  conversar?  , 

Tu  levavas,  na  mão,  10 

Um  lírio  enamorado, 

E  davas-me  o  teu  braço; 

E  eu,  triste,  meditava 

Na  vida,  em  Deus,  em  ti... 

E,  além,  o  sol  doirado  15 

Morria,  conhecendo 

A  noite  que  deixava. 

Harmonias  astrais 

Beijavam  teus  ouvidos; 

Um  crepúsculo  temo  20 

E  doce  diluía. 

Na  sombra,  o  teu  perfil 

E  os  montes  doloridos... 


6.  AB :  Para  longe  do  povo  —  9.  A:  conversar?...  — 12.  A: 
braço  — 13.  AB :  E  eu,  pálido,  sonhava  — 15.  ^  :  E,  ao  longe, 
o  sol  doirado 


1^2 


OBRAS  COMPLETAS 

Erravam,  pelo  Azul, 

Canções  do  fim  do  dia.  25 

Canções  que,  de  tão  longe, 

O  vento  vagabundo 

Trazia,  na  memória... 

Assim  o  que  partiu 

Em  frágil  caravela,  30 

E  andou  por  todo  o  mundo, 

Traz,  no  seu  coração, 

A  imagem  do  que  viu. 

Olhavas  para  mim. 

Às  vezes,  distraída,  35 

Como  quem  olha  o  mar, 

À  tarde,  dos  rochedos... 

E  eu  ficava  a  sonhar. 

Qual  névoa  adormecida. 

Quando  o  vento  também  40 

Dorme  nos  arvoredos. 

Olhavas  para  mim... 

Meu  corpo  rude  e  bruto 

Vibrava,  como  a  onda 

A  alar-se  em  nevoeiro.  45 

Olhavas,  descuidada 

E  triste. . .  Ainda  hoje  escuto 

A  música  ideal 

Do  teu  olhar  primeiro  ! 

Ouço  bem  tua  voz,  50 

Vejo  melhor  teu  rosto 

No  silêncio  sem  fim. 

Na  escuridão  completa ! 

Ouço-te  em  minha  dor. 


24.  A:  azul,  —  26.  AB :  que,  de  bem  longe,  —  30-31.  AB : 
Sobre  as  águas  do  mar  /  B  vem  de  ver  o  mundo  —  36.  A: 
quem  vê  o  mar  —  39.  AB:  Qual  onda  adormecida — 41.  A:  ar- 
voredos...—  45.  A:  A  erguer-se  em  nevoeiro! — 46-47.  AB: 
descuidada...  /  ó  dor,  ainda  hoje  escuto  —  51.  AB :  E  vejo 
bem  teu  rosto 


173 


TEIXKIRA        DB        PASCOABS 

Onço-te  em  meu  desgosto  55 

E  na  minha  esperança 

Eterna  de  poeta ! 

O  sol  morria,  ao  longe; 

E  a  sombra  da  tristeza 

Velava,  com  amor,  60 

Nossas  doridas  frontes. 

Hora  em  que  a  flor  medita 

E  a  pedra  chora  e  reza, 

E  desmaiam  de  mágoa 

As  cristalinas  fontes.  65 

Hora  santa  e  perfeita. 

Em  que  íamos,  sozinhos, 

Felizes,  através 

Da  aldeia  muda  e  calma. 

Mãos  dadas,  a  sonhar,  70 

Ao  longo  dos  caminhos... 

Tudo,  em  volta  de  nós. 

Tinha  um  aspecto  de  alma. 

Tudo  era  sentimento. 

Amor  e  piedade.  75 

A  folha  que  tombava 

Era  alma  que  subia... 

E,  sob  os  nossos  pés, 

A  terra  era  saudade, 

A  pedra  comoção  80 

E  o  pó  melancolia. 

Falavas  duma  estrela 

E  deste  bosque  em  flor; 

Dos  ceguinhos  sem  pão. 

Dos  pobres  sem  um  manto.  85 

Em  cada  tua  palavra, 


55-57.  AB  \  desgosto;  /  Vejo-te  no  meu  sonho  /  Eterno  de 
poeta!  —  58.  A:  O  sol  morria  ao  longe... — 64-68.  AB:  E 
erguem  as  mãos  de  bruma  /  Ao  céu,  as  tristes  fontes.  /  Hora 
santa  «m  que  nós,  /  Felizes  e  sozinhos,  /  íamos  através  — 
82-83.  AB :  Falavas  do  luar,  /  Dos  bosques,  mais  do  amor ; 


174 


OBRAS  COISIPI/ETAS 

Havia  etérea  dor; 

Por  isso,  a  tua  voz 

Me  impressionava  tanto! 

E  punha-me  a  cismar  90 

Que  eras  tão  boa  e  pura, 

Que,  muito  em  breve  —  sim! — , 

Te  chamaria  o  céu ! 

E  soluçava,  ao  ver-te 

Alguma  sombra  escura,  95 

Na  fronte,  que  o  luar 

Cobria,  como  um  véu. 

A  tua  palidez 

Que  medo  me  causava  ! 

Teu  corpo  era  tão  fino  100 

E  leve  (oh  meu  desgosto!) 

Que  eu  tremia,  ao  sentir 

O  vento  que  passava ! 

Caíâ-me,  na  alma, 

A  neve  do  teu  rosto.  105 

Como  eu  ficava  mudo 

E  triste,  sobre  a  terra ! 

E  uma  vez,  quando  a  noite 

Amortalhava  a  aldeia, 

Tu  gritaste,  de  susto,  iio 

Olhando  para  a  serra: 

—  Que  incêndio !  — E  eu,  a  rir, 

Disse-te:  —  É  a  lua  cheia!... 

E  sorriste  também 

Do  teu  engano.  A  lua  115 

Ergueu  a  branca  fronte, 

Acima  dos  pinhais, 

Tão  ébria  de  esplendor, 

Tão  casta  e  irmã  da  tua. 


90.  AB:  B  ficava  a  cismar  —  92.  AB:  Que,  em  breve,  ó  dor 
fatal,  —  94.  A:  ao  ver  —  96.  A:  No  teu  rosto  que  o  luar  — 
100-101.  A  :  Teu  corpo  era  tão  fino  e  leve,  /  (Oh  meu  des- 
gosta!)— 105.   A:  rosto!...  — 115.   A:   engano...   K  a  lua 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Que  eu  beijei,  sem  querer,  I20 

Seus  raios  virginais. 

E  a  lua,  para  nós. 

Os  braços  estendeu. 

Uniu-nos  num  abraço. 

Espiritual,  profundo;  125 

E  levou-nos  assim, 

Com  ela,  até  ao  céu... 

Mas,  ai,  tu  não  voltaste 

E  eu  regressei  ao  mundo. 


121.   A:   virginais!...  — 125.   A:   Esplêndido  e  profundo,- 
126.  AB:  E  levou-nos  os  dois  — 128.  A  :  Somente,  tu  ficaste 


OBRAS        compi^e;ta.s 


II 


Um  raio  de  luar,  130 

Entrando,  de  improviso, 

No  meu  quarto  sombrio, 

Onde  medito,  a  sós. 

Deixa,  a  tremer,  no  ar, 

Um  pálido  sorriso,  135 

Um  murmúrio  de  luz 

Que  lembra  a  tua  voz... 

O  outono,  que  derrama 

Ideal  melancolia 

Nas  almas  sem  amor,  140 

Nos  troncos  sem  folhagem, 

Deixa  a  vibrar,  em  mim, 

Saudosa  melodia. 

Dolorida  canção. 

Que  lembra  a  tua  imagem.  145 

A  noite,  que  escurece 

Os  vales  e  os  outeiros, 

E  que  acende,  num  bosque, 

A  voz  do  rouxinol 

E  a  estrela  que  protege  150 

E  guia  os  pegureiros; 

A  lágrima  do  céu 

Ao  ver  morrer  o  sol. 

Acorda,  no  meu  peito. 

Infinda  e  etérea  dor,  155 

Que  à  memória  me  traz 


145.  A:  imagem...  — 147-148.  A:  As  almas  €  os  outeiros  / 
/  Mas  que  — 155.  A:  Etérea  e  infinda 

177 
12 


t:bixbira      db      pascoaes 

A  luz  do  teu  olhar... 

Tudo  de  ti  me  fala, 

Ó  meu  longínquo  amor: 

As  árvores,  a  névoa,  i6o 

Os  rouxinóis  e  o  mar. 

Se  passo  por  um  lírio, 

Às  vezes,  distraído, 

Chama  por  mim,  dizendo: 

«Oh  !  não  te  esqueças  dela  !»  165 

Diz-mo  também,  chorando 

O  vento  dolorido. 

Diz-mo  a  fonte,  a  cantar, 

Diz-mo,  a  brilhar,  a  estrela. 

E  vejo,  em  toda  a  luz,  170 

Teus  olhos  a  fulgir. 

Como  adivinho,  em  tudo, 

A  alma  que  perdi ! 

Não  encontro  uma  flor, 

Sem  o  teu  nome  ouvir.  175 

Não  posso  olhar  o  céu, 

Sem  me  lembrar  de  ti ! 

Por  isso,  eu  amo  o  pobre, 

O  triste  e  a  Natureza, 

A  mãe  da  humana  dor,  180 

Da  dor  de  Deus  a  filha. 

Meu  coração,  ao  pé 

Dum  pobrezinho,  reza; 

Canta,  ao  lado  dum  ninho, 

Ao  pé  da  estrela,  brilha.  185 

O  meu  amor  por  ti. 

Meu  bem,  minha  saudade, 

Ampliou-se  até  Deus, 

Os  astros  alcançou. 


159.  A:  amor!  — 160.  AB :  As  árvores,  a  terra  —  161.  A: 
mar!  —  166.  AB  :  Diz-mo  mesmo,  chorando  —  169.  A:  estre- 
la!—172.  AB:  Como  descubro— 181.  A:  filha!  — 189.  A:  Os 
astros  abraçou...  B:  Os  astros  abraçou. 

f 
178  1 


OBRAS  COMPIvBTA.S 

Beijo  o  rochedo  e  a  flor,  190 

A  noite  e  a  claridade. 

São  estes,  sobre  o  mundo. 

Os  beijos  que  te  dou. 

Hás-de  senti-los,  sim, 

Doce  mulher  de  outrora.  195 

Ó  roxo  lírio  de  hoje, 

Ó  nuvem  actual !    - 

Como  dantes  teu  rosto, 

A  rosa  ainda  hoje  cora; 

Beijo-te,  sim,  beijando  200 

A  rosa  virginal. 

Teu  espectro  divaga. 

Ao  longo  dos  espaços. 

Teu  amor,  feito  luz. 

Desce  do  Firmamento.  205 

Se  abraço  um  verde  tronco. 

Eu  sinto,  entre  os  meus  braços. 

Teu  corpo  estremecer. 

Como  uma  flor,  ao  vento. 

Soluça  a  tua  dor  210 

Nas  infinitas  mágoas. 

Que,  no  fumo  da  tarde. 

Eu  vejo,  além,  subir... 

E  paira  a  tua  voz 

No  marulhar  das  águas,  215 

No  murmúrio  que  sai 

Das  pétalas  a  abrir. 

Se  os  lábios  vou  molhar 

Nas  ondas  duma  fonte. 

Queimam  meu  coração  220 

Tuas  lágrimas  salgadas. 


192.  AB:  São  estes,  meu  amor,  —  193.  A:  dou!  — 
202-203.  AB  :  Vêm  doirar  meu  perfil  /  Teus  olhos  dos  espa- 
ços.—212.  A:  Que  no  fundo  da  tarde, —  213-214.  AB:  Ao 
céu  vejo  subir.  /  Ouço  bem  tua  voz  —  219.  A:  Nas  águas 
duma  fonte, 


17c 


T:eiXEIRA        DB        PASCOAES 

E,  quando  acaricia 

O  vento  a  minha  fronte, 

Eu  bem  sinto,  sobre  ela, 

As  tuas  mãos  sagradas.  225 

Quando  a  lua,  no  outono, 

Envolta  em  luz  funérea, 

Morta,  vai  a  boiar 

Nas  águas  do  Infinito, 

Doira  meu  frio  rosto  230 

A  palidez  etérea. 

Que  dantes  emanava 

O  teu  perfil  bendito. 

Quando,  em  manhãs  d'Abril, 

Acordo,  de  repente,  235 

E  vejo,  no  meu  quarto, 

O  sol  entrar,  sorrindo. 

Julgo  ver,  ante  mim. 

Teu  corpo  resplendente. 

Tua  trança  de  luz,  240 

Teu  gesto  suave  e  lindo. 

Descubro-te,  mulher. 

Da  Natureza  inteira, 

Porque  entendo  a  floresta, 

A  névoa,  o  céu  doirado,  245 

A  estrela  a  arder,  no  Azul, 

A  lenha,  na  lareira 

E  o  lírio  que,  na  cruz 

Do  outono,  está  pregado. 

Falas  comigo,  sim,  250 

Da  dor,  do  bem,  de  Deus... 

Repartes  o  meu  pão, 

Amor,  pelos  ceguinhos... 

E  pelas  solidões 

Os  pobres  versos  meus,  255 


225.  A:  sagradas!... — 226.  AB :  Quando,  à  noite,  no  ou- 
tono—  227.  A:  A  lua,  a  branca  Ofélia,  B :  A  lua,  branca  Ofé- 
lia,—  230.  AB:  Sinto  doirar  meu  rosto — 241.  A:  lindo... — 
249.  A:  Do  outono,  está  pregado! 

iSo 


OBRAS  COMPIvETAS 

Como  os  pobres  que  vão, 

A  orar,  pelos  caminhos. 

Ês  a  minha  ternura, 

A  minha  piedade, 

Pois  tudo  me  comove !  260 

O  zéfiro  mais  leve 

Acende,  no  meu  peito. 

Infinda  claridade; 

E  a  brancura  do  lírio 

Enche  meu  ser  de  neve.  265 

Todo  eu  fico  a  cismar 

Na  louca  voz  do  vento. 

Na  atitude  serena 

E  estranha  duma  serra; 

No  delírio  do  mar,  270 

Na  paz  do  Firmamento 

E  na  nuvem,  que  estende 

As  asas,  sobre  a  terra. 

Todo  eu  fico  a  cismar. 

Assim  como  que  esquecido,  275 

Ante  a  flor  virginal 

E  o  sol  enamorado... 

Ante  o  luar  que  nasce, 

Ao  longe,  dolorido. 

Dando  às  cousas  um  ar  280 

Tão  triste  e  macerado. 

Todo  eu  medito  e  cismo... 

Um  vago  e  etéreo  laço 

Prende-me  ao  teu  imenso 

E  livre  coração,  285 

Que  abrange  o  mundo  inteiro 

E  ocupa  todo  o  espaço, 

E  que  vai  povoar 


257.  A:  caminhos! — 263.  A:  claridade...  —  265.  A:  neve... 
—  267.  AB:  Na  triste  voz  do  vento, — 273.  A:  Terra!  — 
275.  AB:  Assim  como  esquecido,  —  281.  A:  macerado... — 
282.  AB :  Todo  eu  fico  a  cismar... — 286.  A:  toda  a  terra 
B :  a  terra  inteira 


j8i 


TEIXEIRA        DE        PASC.OAES 

A  minlia  solidão. 

Por  isso,  eu  vivo  sempre,  290 

Em  doce  companhia, 

Com  o  pobre  que  pede 

E  a  estrela  que  fulgura; 

B,  assim,  a  minha  alma, 

Igual  à  luz  do  dia  295 

Derrama-se,  no  céu. 

Em  ondas  de  ternura. 

Sou  como  a  chuva  e  o  vento 

E  a  sombra  duma  cruz ! 

Lira,  que  a  mais  suave  300 

Aragem  faz  vibrar... 

Água  que,  ao  luar  brando, 

Em  nuvens  se  traduz; 

Fruto  que  amadurece, 

À  luz  dum  claro  olhar...  305 

Pedra  que  um  beijo  funde 

E  místico  vapor. 

Que  um  hálito  condensa 

Em  pura  gota  de  água... 

Sou  aroma  que  um  ai  310 

Encarna  em  triste  flor; 

Riso  que  muda  em  choro 

A  mais  pequena  mágoa. 

Vivo  a  vida  infinita. 

Eterna,  esplendorosa.  315 

Sou  neblina,  sou  ave, 

Estrela,  Azul  sem  fim, 

Só  porque,  um  dia,  tu, 

Mulher  misteriosa, 

Por  acaso,  talvez,  320 

Olhaste  para  mim. 


289.  A  :  solidão!  — 294.  AB:  E  assim  meu  coração  —  299.  A: 
E  como  a  bruma  e  a  luz...  B:  E  como  a  bruma  e  a  luz!  — 
305.  A:  k  luz  dum  só  olhar! — 309.  A:  Em  clara  gota  — 
310.  AB:  Aroma  que  um  só  ai  —  313.  A:  mágoa...  —  317.  A: 
Estrela  e  céu  sem  fim,  B  :  Estrela,  céu  sem  fim, — 321.  A  :  mim... 

1S2 


OBRAS  COMPIvBTAS 


DESLUMBRAMENTO 


A  vida  é  sonHo,  amor,  exaltação. 
Flama  a  irromper  de  eterna  escuridão. 
É  lume  a  flor  e  a  sombra  amanheceu  te. 
A  terra  é  carne,  a  luz  é  sangue  ardente. 
Gira  líquida  chama  em  cada  veia 
E  que  alegria  as  nuvens  incendeia ! 
Contemplai,  sob  os  raios  matinais, 
O  delírio  e  a  vertigem  dos  cristais. 
Entre  cintilações,  gritando  e  rindo. 
Abrasados  de  luz,  tremeluzindo ! 
No  alvor  da  aurora,  as  aves  resplandecem, 
No  coração  do  orvalho,  sóis  florescem, 
No  coração  dos  homens  solitários. 
Há  Cristos  a  subir  ermos  calvários. 
Cantam  as  fontes,  doidas  de  ternura; 
Seu  canto  veste  os  montes  de  verdura ! 
E  esse  infinito  Vácuo  tenebroso. 
Quando  o  sensibiliza  o  sol  radioso. 
Sente  grande  prazer,  grande  alegria 
E  assim  nos  comunica  a  luz  do  dia ! 
E  que  loucura  as  ondas  alevanta. 
Quando  o  luar  misterioso  canta ! 
Ó  mar,  à  luz  do  luar !  Ó  mar  profundo. 
Em  choros  que  se  espalham  sobre  o  mundo ! 
Ó  anjo  imenso,  que,  na  mão,  sustentas 
O  cálix  da  amarsfura  e  das  tormentas ! 


1S3 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Tudo  é  sonho  e  desejo;  céu  e  inferno. 
Abrasa  tudo  o  mesmo  fogo  eterno. 
Vive  uma  estrela  oculta  no  rochedo, 
Crepita  a  seiva  ardente  do  arvoredo. 
Têm  pétalas  de  chama  a  rosa,  o  lírio. 
A  substância  das  cousas  é  o  delírio. 
A  vida  não  é  mais  que  sentimento; 
Grande  incêndio  ateado  pelo  vento 
Do  mistério  sem  fim  que  esconde  Deus 
E  enluta  de  negrume  o  azul  dos  céus ! 
A  vida  é  uma  rajada  esplendorosa. 
Perpassando  e  animando  cada  cousa... 
É  doido  torvelinho,  que  se  eleva 
E  rasga,  de  alto  a  baixo,  a  fria  treva, 
Desvendando  figuras  repentinas. 
Formas  do  amor,  aparições  divinas ! 
Poetas,  cantai,  banhados  no  clarão, 
Que  alvorece  da  infinda  comoção. 
Que  de  estrelas  orvalha  a  Imensidade 
E  em  meus  olhos  é  lágrima  e  saudade... 
Poetas,  cantai  a  vida,  o  bem  e  o  mal ! 
Consumi-vos  no  incêndio  universal, 
Que  enche  de  labaredas  o  Infinito ! 
E  é  Deus,  talvez,  num  desespero!  Um  grito 
De  Deus  !  Grito  de  dor  incandescente. 
Na  eterna  escuridão,  eternamente! 


OBRAS  COMPIvKTAS 


DIVINA  TRAGÉDIA 


O  Universo  é  infinita  solidão, 
Onde  a  sombra  fantástica  do  ser 
Divaga,  numa  eterna  exaltação. 
A  vida  é  dor.  Sofrer  é  conhecer. 
Só  os  olhos  que  choram,  sabem  ver. 
A  lágrima  é  que  vê;  os  olhos,  não. 
Os  olhos  são  Calvário,  negra  cruz, 
E  a  lágrima  é  presença  de  Jesus. 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


A  FONTE 


Por  entre  as  pedras,  onde  o  musgo  cresce, 

Uma  fonte  suspira  e  quase  desfalece. 

Vai  tão  magrinha !  Por  assim  dizer, 

Ê  fio  de  água,  pálido,  a  correr, 

Abrindo  uns  olhos  vagos  de  tristeza. 

Como  os  olhos  que  pôs  no  céu  Santa  Teresa.., 

E,  moribunda,  sobre  a  areia  inclina 

A  face  em  que  transluz  uma  expressão  divina. 


OBRAS  COMPLETAS 


CÂNTICO 


Ó  criações  da  alma !  Ó  símbolos  de  luz 
Da  Verdade  absoluta !  Estrela  dos  Reis  Magos  ! 
Ascensão  de  Jesus ! 
Ó  sereias  do  mar,  ninfas  dos  lagos ! 
Ô  sibilas,  à  entrada  da  caverna, 
Num  misterioso  ataque  repentino, 
Interrogando  aquela  Sombra  eterna 
Que  as  estrelas  dirige  e  o  mundo  pequenino. 
Doidas  sacerdotisas  espectrais, 
Num  trágico  delírio. 
Ouvindo  a  voz  dos  deuses  imortais. 
Como  através  dum  sono  aflito  de  martírio ! 
Profetas  da  Judeia,  ermos  anunciadores, 
ímpetos  de  alma,  a  arder,  sobre  o  futuro  incerto ! 
Ó  lívidos  perfis  sulcados  pelas  dores ! 
Leões  de  Jeová  bramindo  no  deserto ! 
Amante  de  Teseu  perdida,  em  erma  praia, 
Mais  a  deusa  que  faz  o  luar,  quando  desmaia... 
E  a  mística  mulher. 

Que  a  Jesus  Cristo  deu,  sorrindo,  de  beber... 
Viviana  e  Merlim.  Ó  fadas  madrugantes. 
Estátuas  de  animado  e  esplendoroso  mármore... 
Espíritos  de  luz,  longínquos,  sempre  errantes. 
Que  éreis,  de  perto,  oh.  dor,  velhinhos  troncos  de 

[árvore. 
Chuva  de  oiro  que  outrora  um  ventre  fecundou... 

1S7. 


TKIXEIRA       DB        PASCOAES 

Ó  Cristo  no  Tabor, 

Quando  estranho  clarão  teu  corpo  aureolou! 
Ó  Moisés,  no  Sinai,  em  frente  do  Senhor  \ 
Eneias  sobre  o  mar  que  o  vento  encapelava... 
Brutas  rochas  ouvindo  a  tua  lira,  Orfeu ! 
Ó  barca  de  S.  Pedro,  onde  Jesus  pregava, 
Com  sua  mão  direita  erguida  para  o  céu ! 
Ó  entrada  na  triste  e  má  Jerusalém ! 
Verdes  palmas  !  Hossana  !  Ó  doce  jumentinho ! 
Ó  sagrado  perfil  voltado  para  além... 
Ó  luminosos  pés  poeirentos  do  caminho ! 
Trágica  sexta-feira  !  Ó  túmulos  abertos  ! 
Escuridão  sinistra  e  clamorosas  mágoas ! 
Ó  coluna  de  fogo  e  névoa,  nos  desertos. 
Espírito  a  boiar  sobre  as  profundas  águas ! 

Não  mais  conceberás,  humana  criatura. 

Estas  lendas  que  são  de  sempiterno  encanto? 

Nunca  mais  sonharás,  ó  pobre  terra  escura, 

Embalada  por  outro  inatingível  canto? 

O  teu  rosto,  já  velho  e  encarquilhado. 

Não  há-de  florescer,  de  novo?  Nunca  mais 

Primavera,  alegria  e  sol  anunciado. 

Nem  voz  de  oiro  rasgando  as  trevas  infernais  ? 

Nunca  mais  se  há-de  ouvir  a  música  dos  ninhos, 

Em  nosso  coração,  aberto  à  luz  dos  céus  ? 

Nunca  mais,  nunca  mais,  na  poeira  dos  caminhos 

Há-de  flutuar,  ao  vento,  a  túnica  dum  Deus? 

Ó  símbolos  perfeitos  da  Verdade, 

O  que  resta  da  vossa  claridade? 

Que  cinza  será  hoje  a  branca  aparição, 

Que  Madalena  outrora  deslumbrou? 

Que  riso  será  hoje  o  pranto  de  aflição 

Que,  no  Calvário,  a  Virgem  derramou? 

E  que  será  de  ti.  Palavra  misteriosa, 

Que  tu.  Santa  Cecília,  em  pleno  circo,  ouviste, 

Quando  terrível  fera  monstruosa 

i88 


OBRAS  COMPIvBTAS 

Lambeu  as  tuas  mãos,  ao  ver-te  suave  e  triste? 
Essa  palavra  é  hoje  um  murmurar  de  estrelas, 
A  música  divina  em  que  se  espalha  a  luz, 
B  o  queixume  das  árvores,  por,  entre  elas, 
Ter  existido  uma  árvore  que  foi  cruz ! 
Ê  o  silêncio  de  amor 
Que  vive  em  cada  grito; 
O  silêncio  que  aumenta  o  cântico  da  Dor, 
Para  que  ele  se  tome  um  cântico  infinito ! 

Tudo  o  que  teve  o  mundo,  outrora,  de  divino 
Refugi ou-se,  a  tremer,  nas  almas  dos  rochedos. 
Virgem,  teu  pranto  é  hoje  o  orvalho  cristalino, 
A  tua  fé,  Cecília,  ampara  os  arvoredos. 
O  teu  sangue,  Jesus,  vertido  no  Calvário, 
Da  lâmpada  dum  astro  é  o  místico  alimento. 
Pelo  Azul,  teu  perdão  vagueia,  solitário. 
Teu  último  suspiro  é  hoje  a  voz  do  vento. 

Almas,  que  desejais  um  pouco  de  Verdade, 
Procurai-a  num  lírio  ou  numa  rocha  dura. 
Vivem,  num  ramo  em  flor,  os  gestos  da  ternura 
E  dele  cai,  na  terra,  a  sombra  da  piedade. 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


O    CÉU 


Ó  céu  profundo  e  virgem ! 

Vai'  de  estrelas  em  flor,  onde  murmura  a  origem 

Das  almas  e  das  cousas... 

Refúgio  azul  das  lágrimas  saudosas, 

Que  alumiam  a  face  do  Senhor, 

Infinita  e  invisível,  como  a  dor ! 

Tudo  o  que  vai  da  terra  encontra-se  no  céu: 

O  riso  que  se  apaga,  a  cor  que  anoiteceu 

E  o  canto  que  fechara  os  olhos,  moribundo... 

È  o  ar  que  Deus  respira  a  dor  que  exala  o  mundo. 


OBRAS  COINIPIvETAS 


A  NÉVOA 


Alvas  brumas  do  norte, 
Ó  brumas  encantadas, 
Criai  lendas  de  sonho, 
Aparições  de  fadas; 
Castelos  de  luar 
E  torres  de  marfim. 
Onde  ouve  Viviana 
A  frauta  de  Merlim. 

Brumas  que  amorteceis 

O  cântico  do  dia, 

E  em  meus  olhos  deixais 

Nódoas  de  cinza  fria; 

E  desenhais,  no  Azul, 

Perfis  de  etérea  mágoa, 

E  paisagens  de  neve. 

Em  negros  fundos  de  água. 

Ó  brumas  que  pairais, 
Nas  serras  fragarosas... 
Ó  alvas  mãos  de  espuma, 
Acariciando  as  cousas... 
Ó  fantasmas  de  mães. 
Vestidos  de  esplendores. 
Que,  nas  manhãs  de  estio. 
Amamentais  as  flores ! 

içi 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Brancas  névoas  que  sois 
Tão  intenso  luar, 
Que  afinal  escurece 
Bm  vez  de  alumiar. 
E  perdeis,  na  montanha, 
Os  ermos  viandantes. 
Quando  os  lobos,  com  fome, 
Andam  a  uivar,  errantes. 

Ó  brumas  dilatando 
O  som,  vaga  matéria, 
Em  onda  que  se  espraia 
Até  à  luz  sidérea; 
E,  na  mudez  da  noite, 
Inunda  o  céu  profundo 
De  preces,  de  canções 
E  gritos  deste  mundo. 

Alvas  brumas  do  Norte, 
ó  brumas  encantadas. 
Criai  lendas  de  sonho, 
Aparições  de  fadas. 
Castelos  de  luar 
E  torres  de  marfim, 
Onde  ouve  Viviana 
A  frauta  de  Merlim. 


OBRAS  COINIPIvBTAS 


OS  ROCHEDOS 


Há  rochedos  que  são  estátuas  misteriosas. 
Nós  vemo-los,  além,  nas  serras  arenosas, 
Desenhados  na  tela  em  brasa  do  sol-pôr... 
Ó  frontes  que  enrugou  e  empederniu  a  dor ! 
Há  rochedos  que  são  perfis  extraordinários. 
Alguns,  ao  vir  da  lua,  evocam  os  calvários. 
Este,  lembra  dum  Deus  o  mutilado  torso; 
Aquele,  abre,  de  noite,  uns  olhos  de  remorso. 
Outros,  têm  a  atitude  ideal  de  quem  medita. 
O  rosto  duns  contrai  uma  expressão  aflita 
E  neles  transparece  um  gesto  de  loucura. 
A  sombra  duns,  à  tarde,  é  sombra  de  ternura. 
Outros,  rezam,  ao  vento,  as  mágoas  do  luar... 
Outros,  dum  alto  cerro,  olham  o  céu  e  o  mar. 


13 


TKIXBIRA        DB        PASCOAES 


AS  ÁRVORES 


Árvores  maternais, 

À  luz  do  sol,  em  dias  estivais, 

O  rústico  mendigo, 

Junto  de  vós,  encontra  abençoado  abrigo... 

Deita-se,  a  descansar 

Do  seu  pesado  e  eterno  caminhar. 

Sob  os  ramos  em  flor, 

Que  dão  à  sua  mágoa  alívio,  aroma  e  cor. 

Porque  a  humana  tristeza. 

Perante  a  Natureza, 

Embebe-se  de  azul,  de  cantos  de  ave 

E  se  afasta  de  nós  mais  pálida  e  suave. 

Ó  árvores  piedosas. 

Pelas  manhãs  formosas. 

Quando  etéreo  fulgor,  que  se  anuncia. 

Vossas  lágrimas  muda  em  risos  de  alegria ! 

Bendito  o  vosso  corpo  imaculado, 

A  arder,  num  lar  sagrado. 

Bendito  o  vosso  fruto  e  flor,  que  vem  dos  céus. 

Minhas  irmãs  em  Deus. 


IÇ4 


OBRAS  COMPIvE)TA,S 

Que  simpatia  imensa 

Me  prende  à  sua  angélica  presença, 

Onde,  em  cristais,  retine  a  voz  do  rouxinol 

E,  em  tinta  verde,  coalha  a  luz  do  sol ! 

B  que  infinita  mágoa 

Eu  sinto,  quando  o  tempo,  a  escorrer  água, 

Como  um  fantasma  esvoaça 

E  lhes  despe  a  verdura,  o  mimo,  a  graça. 

E  têm  vozes  de  choro, 

Nas  ramagens,  que  agita  um  zéfiro  de  agouro; 
São  suspiros  de  dor,  ais  tristes  de  abandono, 
A  elegia  do  outono. 

E  esse  canto  ideal 
Satura-me  de  bruma  espiritual; 
Dilui-me  num  crepúsculo  sem  fim, 
E  vivo  para  tudo  e  morro  para  mim... 


TBIXBIRA        DB        PASCOAES 


AS    AVES 


Aves,  sonhos  alados, 

Saem  dos  bosques  inspirados. 

Ninhos,  casas  de  amor. 

Sinfonias  da  luz,  orquestras  do  Senhor. 

Que  louca  inspiração 
Sustenta  as  vossas  asas,  na  amplidão. 
Distendidas  num  voo  vertiginoso? 
Voais,  porque  vos  chama  o  céu  misterioso. 

As  aves  voam,  num  encanto, 
Semelhante  ao  do  santo. 
Que,  no  seu  ermo,  ao  pôr  do  sol,  medita... 
Tudo  sobe  na  luz  quimérica  e  infinita. 

E  como  os  santos  padeceis 

As  dores  mais  cruéis. 

Quem  diz  corpos  alados 

Diz  corpos  a  sofrer,  na  cruz,  martirizados. 

A  humana  criatura. 

Que  tem  da  pedra  dura 

A  falta  de  carinhos, 

Persegue-vos,  no  ar,  nos  bosques  e  nos  ninhos ! 

Crime  terrível  matar 

Ave  que  voa,  a  cantar! 

Que  negro  horror,  meu  Deus, 

Ver  uma  asa  cair,  como  Satã,  dos  céus!... 

igô 


OBRAS  COMPLETAS 


A  UMA  OVELHA 


Entre  as  meigas  ovelhas  pobrezinhas, 
Que  eu  guardo,  pelos  montes,  uma  existe 
Que  anda,  longe,  balindo,  sempre  triste 
E  vive  só  das  ervas  mais  sequinhas. 

Que  pressentes  na  alma?  Que  adivinhas? 
Etérea  voz  de  dor  acaso  ouviste? 
Que  foi  que  tu  nas  nuvens  descobriste? 
Não  és  irmã  das  outras  ovelhinhas ! 

Sobes  às  altas  fragas  escarpadas, 
E  contemplas  o  sol  que  desfalece 
E  as  primeiras  estrelas  acordadas... 

E  assim  paras,  a  olhar  o  céu  profundo. 
Faminta  dessa  relva  que  enverdece 
Os  outeiros  e  os  vales  do  Outro  Mundo. 


TBIXBIRA        DB        PASCOAES 


A  SOMBRA  HUMANA 


Quando  passeio,  ao  longo  dos  caminhos, 
Batem  asas  de  medo  os  passarinhos; 
Escondem-se  os  répteis,  no  tojo  em  flor. 

Meu  ser  espalha  um  trágico  pavor  5 

Nas  pobres  criaturas. 

Que,  neste  mundo,  vivem,  às  escuras ! 

Avezinha  fugindo  ao  ruído  dos  meus  passos, 

Se  o  que  eu  sinto  por  ti,  acaso,  pressentisses, 

Tu  virias  fazer  o  ninho  nos  meus  braços...  10 

Virias  ter  comigo,  ó  pedra,  se  me  ouvisses ! 


4-5.  B :  [entrelinhado]  —  5.  B :  Minha  presença  espalha 
7.  B :  Que  vivem,  neste  mundo,  assim  como  às  escuras ! 
10.  B  :  ninho  nos  —  10-11.  B  :  [entrelinhado] 

JÇS 


OBRAS  COMPIvETAS 


O  MEU  SEMELHANTE 


Grito  de  dor  e  amor !  Primeiro  grito, 

Vibrando  no  silêncio  do  Infinito 

E  acordando,  na  sombra  arrefecida, 

Esse  ímpeto  de  sol  e  fortaleza 

Que  se  condensa  em  corpos  de  beleza, 

Donde,  torva  de  fumo,  irrompe  a  luz  da  vida. 

Relâmpago  de  amor  que  atravessaste 

O  Vácuo  imenso,  e  as  trevas  dissipaste ! 

Eu,  que  te  sinto,  em  mim,  relâmpago  de  Deus,. 

Bendigo  a  luz  que  deste  aos  olhos  meus ! 

Eu  te  bendigo,  em  nome  da  criatura, 

Da  esperança,  da  graça  e  da  ternura ! 

Homem,  tu  foste  a  fraga  calcinada! 

E  as  lágrimas  a  rir  da  madrugada 

Que  sobre  ti  choveram 

Tua  inerte  dureza  comoveram ! 

E  uma  brandura  de  alma,  flor  ao  vento, 

Surgira  no  teu  rosto. 

És  a  marmórea  estátua,  que  um  sol-posto 

Inunda  de  tristeza  e  sentimento. 

És  o  instinto,  feroz  e  destruidor, 

Feito  divino  amor ! 

És  o  leão  raivoso,  por  encanto. 

Feito  poeta  e  santo ! 

S.  Paulo,  de  repente,  deslumbrado 

Por  um  raio  do  céu!  I^eão  santificado! 


igg 


TEIXEIRA        DB        PASÇO    A    ES 

Ó  fera  que  entendeste  o  espírito  dos  mundos 

B  a  palavra  radiosa 

E  misteriosa, 

Que  Deus  diz,  em  segredo,  aos  santos  vagabundos. 

Homem,  tu  és  a  sombra  embriagada 

De  luz  sagrada! 

O  luar  da  ternura,  o  incêndio  das  paixões; 

O  esposo  amante  e  lívido  da  morte, 

O  poeta  da  miséria,  aos  vendavais  da  sorte, 

O  pintor  de  fantásticas  visões ! 

És  mármore  que  um  beijo  a  arder  volatiliza, 

Frio  metal  que  um  sopro  anímico  eteriza... 

És  o  êxtase,  o  sonho  da  Matéria, 

Exalação  de  dor,  emanação  etérea. 

És  a  névoa  infinita,  a  pura  essência. 

Que  se  evola  do  mar  sensível  da  existência... 

Névoa  que  sobe  aos  céus. 

Quando  a  toca,  ao  de  leve,  um  hálito  de  Deus. 


OBRAS  COMPLETAS 


OS  CAVADORES 


O  outono,  esse  desgosto  das  paisagens, 

O  claro  céu  defuma. 

Surgem  mortas  e  lívidas  imagens 

Boiando,  à  flor  da  bruma. 

Os  ermos  pinheirais. 

Nas  encostas  do  monte,  escurecidas, 

São  espectros  nocturnos,  a  dar  ais ! 

Choram  de  pejo,  as  árvores,  despidas 

Por  desvairadas  mãos  de  tempestade ! 

Gela  de  dor  a  fonte  dos  amores. 

Ao  ver  a  mortandade 

Que  o  vento  faz  nas  flores ! 

Nos  campos,  enlutados  de  viuvez. 
Mudo,  trabalha  o  pobre  camponês. 
Chove  da  sua  fronte  dolorosa. 
Como  da  negra  nuvem  tormentosa. 
Olhai:  é  a  mesma  água 
Que  mata  a  sede  à  planta  e  à  dura  frágua, 
E  ao  triste  caminheiro  do  deserto,     - 
Sob  o  lume  a  cair  do  céu  aberto... 

Trabalhai,  meus  irmãos!  Sofrei,  rezai,  cantai! 
Entregai-vos,  em  vida,  à  terra.  Trabalhai ! 
Semeai  campos  e  montes  solitários, 


201 


TEIXEIRA        DEPASCOAES 

Charnecas  e  calvários. 

Que  a  seara  floresça,  em  ondas  de  alegria, 

Onde  chorou  Maria... 

Nas  solidões  sem  fim, 

Ainda  negras  da  sombra  enorme  de  Caim ! 

Trabalhai  com  ternura. 

Melhor  que  a  enxada,  o  amor  abranda  a  terra  dura. 
Melhor  que  o  sol  de  Junho,  a  luz  do  vosso  olhar 
Amadurece  o  trigo,  aos  ventos,  a  ondular... 

O  poeta  e  o  cavador !  A  pena  é  irmã  da  enxada. 
A  página  dum  livro  é  terra  semeada. 

Trabalhai,  com  perfeita  devoção. 

Como  quem  reza  a  Deus  uma  oração; 

Como  o  poeta  sozinho,  em  noite  morta,  escreve 

Versos  de  fogo,  em  páginas  de  neve ! 

O  vosso  esforço,  irmãos,  será  fecundo. 

Construí  vosso  lar,  como  Deus  fez  o  mundo... 

Que  ele  assente  no  amor  e  na  piedade, 

E  existirá  por  toda  a  Eternidade. 

Tu  que  tens  o  poder  de  converter,  amor. 

Uma  gota  de  seiva  numa  flor, 

E  em  musgo  a  rocha  agreste, 

E  num  suspiro  de  alma  a  brisa  do  nordeste... 

E  mudas,  num  deserto,  à  luz  do  dia. 

Um  Deus,  verbo  divino,  em  carne  de  agonia... 

Sê  tu,  amor,  a  essência  da  obra  humana, 

O  alicerce  da  rústica  choupana 

E  o  fumo  que,  sobre  ela. 

Ao  pôr  do  sol,  flutua... 

Abre  a  minha  janela 

À  branca  luz  da  lua, 

E  aos  ventos  espectrais 

E  às  vozes  dos  nocturnos  pinheirais... 

Vem  acender  o  fogo  do  meu  lar. 

202 


OBRAS  COMPI^ETAS 

Vem  cozer  o  meu  pão  e  urdir  a  minha  teia. 
Nas  tuas  mãos,  segura  a  pálida  candeia, 
E  vem-me  alumiar. 

Trabalho  sem  amor  é  improdutivo. 
Somente  é  verdadeiro,  eterno  e  vivo 
O  que  produz  o  amor. 
O  mais  é  fumo  e  sombra  e  vão  rumor... 


TEIXKIRA        DB        PA    SCO    ABS 


MARINHAS 


Navios  de  luar  e  sonho,  que  eu  avisto 

Em  horizontes  de  água,  enevoados. 

Ó  velas  a  tremer  aos  zéfiros  doirados, 

Com  a  imagem  do  sol,  beijando  a  cruz  de  Cristo! 


II 

Extensos  litorais, 

Cheirando  a  maresia,  aroma  que  é  frescura. 
Retratos  da  manhã,  por  entre  a  névoa  pura. 
Que  se  esgarça  e  desfaz  na  rama  dos  pinhais. 


III 

Ó  luz,  ó  cor  ardente  da  Harmonia ! 
Ó  luz  beijando  as  árvores. 
Desenhando,  nas  fontes  e  nos  jmármores, 
Instantâneos  acesos  de  alegria ! 


IV 


Vejo,  através  da  bruma. 

Velha  nau,  que  se  esboça  em  formas  grandiosas, 


204 


OBRAS  COjMPIvBTAS 

No  dorso,  a  palpitar,  das  ondas  monstruosas, 
Entre  bafos  de  cinza  e  flocos  de  alva  espuma. 


V 


Ó  farolim  da  barra,  que  primeiro 
Mostras  o  porto  amigo  aos  navegantes ! 
Ó  luminosa  voz,  em  ecos  tão  distantes, 
Verde  luz  a  espreitar,  por  entre  o  nevoeiro. 


VI 


Velhos  nautas !  Ó  deuses  do  Oceano ! 
Heróis  da  tempestade!  Almas  do  nosso  Canto! 
Ó  versos  de  Camões,  tomando  corpo  humano ! 
Figuras  de  romance  e  misterioso  encanto ! 

Eu  vivo,  como  vós,  na  imensidão  do  mar, 

A  vida  extraordinária 

Duma  vela,  perdida  e  solitária... 

Eu  vivo,  como  vós,  no  vago  e  no  infinito ! 

Eu  ergo,  como  vós,  as  mãos  para  rezar ! 

Como  vós,  sobre  o  abismo,  empalideço  e  grito ! 


VII 

Negras  ondas  em  fúria, 

Umas  de  encontro  às  outras  atiradas. 

Como  num  doido  ataque  de  luxúria ! 

Mastros  a  desabar,  com  trágico  ruído ! 

Velas  esfarrapadas ! 

E  o  mar  galgando  a  ponte,  enfurecido ! 

Perfis,  que  o  medo  horrível  desfigura ! 

Gritos  de  angústia  as  nuvens  trespassando ! 


20S 


TEIXEIRA        DB        PASCOABS 

Gestos  do  desespero,  abraços  da  loucura ! 

Adeuses  de  fundir  as  brutas  rochas  ! . . . 

Depois,  um  drama  horrendo  que  se  esfuma... 

Destroços  flutuando, 

Rebentações  sinistras  de  alva  espuma. 

Soltas  tranças  molhadas,  faces  roxas. 

Lívidas  mãos  crispadas  de  terror 

B  corpos,  a  boiar,  donde  fugiu  a  dor... 


OBRAS  COMPI/BTAS 


AS  ALMAS 


Vejo  passar,  na  infinda  solidão, 

Vultos  de  almas,  figuras  de  emoção; 

Os  poetas  do  silêncio  que  não  cantam. 

Os  doidos  que,  de  súbito,  se  espantam, 

Os  que  gelam,  ao  ver  o  luar  nascente. 

Os  que  fitam  a  mesma  estrela,  eternamente; 

Os  perdidos  da  sorte. 

Os  que  chamam,  gritando,  pela  morte ! 

Os  que  andam,  sem  saber,  pelos  caminhos, 

Os  que  de  noite  vão,  sempre  a  falar,  sozinhos; 

Os  que  vivem  casados  com  a  dor 

E  a  escondem,  ciumentos; 

Os  trágicos  do  Amor, 

Os  que  sentem  astrais  deslumbramentos. 

Os  que  matam  e  cantam,  por  destino; 

O  salteador  nocturno,  o  poeta  que  é  divino. 

Os  tristes  vagabundos. 

Em  perpétua  e  fantástica  viagem... 

Os  que  amam  a  paisagem 

E  têm  nos  olhos  a  amplidão  dos  mundos... 

Vultos  de  almas,  figuras  de  emoção, 

Errantes,  na  infinita  solidão. 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


PRECE 


Almas  gémeas  da  minha,  humildes,  ajoelhai 
E  as  lágrimas  alheias  comungai. 

Almas  gémeas  da  minha,  abri  a  vossa  porta 
À  mendiga  faminta  e  quase  morta. 

Almas  gémeas  da  minha,  olhai  os  passarinhos 
E  as  ruínas,  à  chuva,  dos  seus  ninhos. 

Almas  gémeas  da  minha,  erguei  as  mãos,  rezando 
Ante  o  luar  que  nasce,  abençoando... 

Almas  gémeas  da  minha,  amai  os  arvoredos 
E  a  extática  tragédia  dos  penedos. 

Almas  gémeas  da  minha,  amai  o  sol  doirado, 
E  o  seu  sangue  nas  nuvens  derramado. 

Almas  gémeas  da  minha,  ouvi  as  tristes  fontes 
E  os  sapos  tristes  a  chorar,  nos  montes. 

Almas  gémeas  da  minha,  amai  o  sofrimento 
Da  noite  escura,  em  que  perpassa  o  vento. 

Almas  gémeas  da  minha,  amai  o  lírio,  a  rosa, 
E  a  sombra  da  tardinha  lacrimosa. 

208 


OBRAS  COMPI,KTA.S 

Almas  gémeas  da  minha,  amai  as  criancinhas, 
Nas  ruas,  a  esmolar,  enfezadinhas. 

Almas  gémeas  da  minha,  olhai  a  criatura 
Na  solidão  terrível  da  Natura ! 

Almas  gémeas  da  minha,  entrai  com  todo  o  amor 
Nos  negros  antros  trágicos  da  dor. 


14 


TEIX:eiRA        DE        PASCOABS 


A  CANÇÃO 


Ouço  cantar  o  rouxinol, 

Quando,  no  Azul,  se  estende  o  teu  sudário,  ó  sol. 

E  ouço  cantar  a  cotovia, 

Quando,  em  longínqua  névoa,  a  aurora  se  anuncia. 

Canta  a  donzela  ao  seu  amor, 

Quando  surge,  na  sombra,  a  estrela  do  pastor, 

E  eu  ergo  a  voz,  para  cantar 

Lágrimas  que  não  sei,  triste  de  mim,  chorar! 

Quando  a  paisagem  nos  encanta, 

E  a  Saudade  aparece  e  o  seu  perfil  de  santa. 


OBRAS  COMPLETAS 


PENSAMENTOS 


Nas  lágrimas  de  dor,  cintila  a  minha  imagem. 
Num  pobrezinho  lar,  sou  fumo  que  se  eleva. 
Meu  espírito  humano  é  o  corpo  da  paisagem, 
Chora,  na  minha  sombra,  o  génesis  da  treva. 


II 

A  luz  do  meu  olhar  acorda  uma  semente 

E  a  faz  crescer,  florir... 

E,  dos  montes  azuis,  começam  a  surgir 

Os  bosques  que,  ao  luar,  conversam  vagamente. 


III 

Desperto,  dentro  em  mim,  como  de  manhã  cedo. 
Não  sei  que  torva  aurora  me  deslumbra. 
Vejo,  através  da  minha  carne,  essa  penumbra, 
Palpitações  de  luz,  folhagens  de  arvoredo. 


IV 

A  árvore  que,  primeiro,  em  solitária  serra, 
Viu,  tomada  de  espanto,  o  sol  nascer. 
Quase  que  a  sinto,  em  mim,  dar  sombra  e  florescer, 
E  lembro-me  do  tempo  em  que  fui  névoa  e  terra. 


211 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


V 

vivo,  diante  das  coisas,  em  delírio, 

À  luz  do  sol,  tão  crua. 

Como,  aos  ventos,  a  sombra  histérica  dum  lírio, 

Projectada  de  encontro  a  uma  parede  nua ! 


VI 

Sou  o  fantasma  de  tudo  quanto  existe, 

A  falar  alto  e  só... 

O  deserto  compôs  outrora  um'  poema  triste 

Que  verteu  para  a  língua  humana  o  velho  Job. 


VII 

A  lira  de  Virgílio  é  o  esboço  duma  cruz. 
Houve  um  lírio  que  foi  o  mestre  de  Jesus. 


VIII 

Uma  sombra,  no  mês  de  Julho,  é  caridade. 
O  luar  é  luz  do  sol  vestida  de  humildade. 


IX 

De  que  serve  nascer? 

Sentir  divino  amor,   para  depois  morrer? 

E  a  luz  que,  em  nós,  brilhou,  que  será  feito  dela? 

Acaso  se  converte  numa  estrela? 

Ou  numa  pobre  imagem  decaída, 

Perpetuamente,  a  errar,  longe  da  vida? 


212 


OBRAS  COMPLETAS 


X 

o  mal  é,  porventura,  a  essência  do  Universo? 
Satã,  em  cada  ser,  existirá,  disperso? 
Mas  como  interpretar  a  vinda  de  Jesus 
E  este  voo  imortal  das  almas  para  a  luz? 
Cecília,  o  teu  amor  é  filho  do  delírio? 
Donde  vem  o  prazer  terrível  do  martírio? 
Inconscientes  serão  ou  loucos  desvairados 
Os  grandes  Cristos,  a  sonhar,  crucificados? 
Quem  sabe  distinguir  o  bem  do  mal? 
O  grito  do  ódio  e  a  prece  virginal 
Chegarão,  como  um  pálido  clamor. 
Idêntico  e  apagado,  ao  trono  do  Senhor? 


XI 

O  homem  é  o  Universo  consciente. 

Pelos  seus  lábios,  fala  a  pedra  e  o  nevoeiro. 

Por  isso,  o  que  ele  sente 

De  mais  longínquo  e  vago  é  que  é  mais  verdadeiro. 

Seu  vulto  principia 

Km  nocturna  matéria,  que  termina 

Num  sonho  de  harmonia, 

Numa  nuvem  astral,  numa  emoção  divina.  ^ 


XII 

A  alma,  eis  a  verdade;  a  vida  espiritual, 
Não  revelada  ainda... 
Doirada  sugestão,  silêncio  matinal, 
Escura  luz  infinda. 


^  Este  trecho  é  uma  versão  melhorada  dos  primeiros  ver- 
sos da  composição  «O  Homem»  de  Para  a  Luz,  contida  neste 
volume. 


213 


TBIXBIRA        DE        PASCOAES 


XIII 

A  forma,  eis  a  aparência: 
A  imagem  desenhada  em  tintas  mentirosas; 
Superfície  inconstante  da  existência, 
Relevos  da  ilusão  fingindo  dar  as  cousas. 


XIV 

Ouço,  no  frio  outono,  as  flores  expirar. 
A  pedrinha  do  chão  é  lágrima,  ao  luar. 


XV 

O  verbo  de  Platão  é  o  canto  das  esferas. 
Sorri  no  velho  Horácio  a  luz  das  Primaveras. 


XVI 

Poetas,  interrogai  as  almas  da  Natura, 
O  vento,  a  pedra,  a  névoa,  as  ondas  do  Oceano; 
A  alegria  da  aurora,  a  fonte  que  murmura, 
A  tristeza  divina  e  o  sofrimento  humano. 


XVII 

Uma  lágrima  explica  a  estranha  Criação. 
Profundai-a,  e  vereis  a  misteriosa  origem 
Dos  mundos  e  dos  sóis.  B  um  grito  de  aflição 
Deixa-nos  surpreender,  ó  luz,  teu  corpo  virgem ! 

214. 


OBRAS  COMPLETAS 


XVIII 

A  vida  é  redenção.  A  noite  é  mãe  do  dia. 
Através  do  Universo,   avista-se  uma  cniz. 
Quem  sofre,  resplandece.  A  lágrima  alumia. 
Ô  dor,  riso  de  Deus  e  pranto  de  Jesus ! 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


SILÊNCIO  E  SOLIDÃO 


Silêncio  e  solidão,  estados  de  alma 

Dos  saudosos  outeiros, 

Sobre  os  quais,  como  um  lago,  ondula  a  noite  calma 

E  a  distância  a  chorar,  envolta  em  nevoeiros... 

Concentração  dos  montes  enigmáticos, 
Êxtase  em  que  mergulha  a  Natureza, 
Os  verdes  pinheirais,  sonâmbulos,  cismáticos, 
Que  mamam  na  neblina  o  leite  da  tristeza. 

Ignotos  sentimentos. 

Transfigurando  os  píncaros  da  serra... 

E  de  sombras  povoam  toda  a  terra 

E  dão  humana  voz  aos  lacrimosos  ventos... 

A  solidão  é  mágico  licor 

Que  embriaga  o  poeta  e  o  faz  sonhar,  cantar. 
O  espectro  do  Universo,  o  fantasma  da  dor, 
Só,  num  ermo  sem  fim,  connosco  vem  falar. 

Ó  silêncio  divino,  em  horas  de  ternura! 
Luz  que  dissipa  a  névoa  azul  dos  céus, 
Mostrando-nos  a  imensa  e  indefinida  altura, 
Onde  arquitectam  sóis  as  mãos  de  Deus ! 

2IÔ 


OBRAS  COMPLETAS 

Silêncio  e  solidão,  perfume  etéreo 
Que  as  almas  extasia... 
Sois  a  sombra  envolvente  do  Mistério, 
Sois  o  fiimo  que  o  sol  exala,  na  agonia. 

Silêncio  e  solidão,  poços  profundos 

Donde  tirou  Jesus 

A  água  lustral  que  purifica  os  mundos 

E  mana  duma  fonte  aberta  aos  pés  da  cruz... 

Água  que  Deus  bebeu. 
Nos  áridos  desertos  que  ele  amava, 
De  joelhos  na  terra,  olhos  no  céu. 
Tendo  no  coração  a  Humanidade  escrava. 

Desertos  criadores. 

Erma  e  fecunda  areia... 

Cinza  morta  que  dá  divinos  esplendores. 

Planícies  onde,  ao  vento,  a  seara  eterna  ondeia... 

Ó  branca  imensidade  ressequida ! 
Sagrados  areais. 

Onde  as  almas  são  vultos  materiais, 
Onde  encarnou  no  ser  o  espírito  da  Vida ! 

Silêncios  transcendentes. 

Infindas  solidões. 

Onde  andam,  ao  luar,  vagas  aparições, 

Os  loucos  e  os  videntes... 

Ó  silêncio  da  dor ! 

Ó  solidão  do  amor ! 

Silêncio  matinal  que  os  frios  campos  banha... 

Ó  solidão  do  mar  e  da  montanha ! 

Solidão  do  crepúsculo  infinito! 

Ó  silêncio  que  foste  um  doloroso  grito, 

Quando  a  aurora  raiou 

É  a  vez  primeira  o  espaço  deslumbrou ! 

21'] 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Ó  solidão  da  lágrima  divina 

Que  as  trevas  ilumina, 

K  desabrocha  as  flores, 

B  nasce  dos  teus  olhos,  Mãe  das  Dores... 

Ó  silêncio  do  outono !  Ó  folhas  amarelas 

Que  o  vento,  ao  pôr  do  sol,  rouba  do  meu  jardim ! 

Quando  se  ouve  cair  o  orvalho  das  estrelas, 

Na  escuridão  que  paira,  à  noite,  sobre  mim. 

Ó  solidão  dos  ermos  horizontes ! 

Ó  silêncio  das  fontes, 

Quando  a  lua  aparece  e  encanta  os  arvoredos, 

As  ondas  e  os  penedos... 

Ó  solidão  das  ruínas  misteriosas ! 

Ó  silêncio  das  eras  fabulosas ! 

Ó  solidão  do  inverno ! 

Ó  silêncio  da  morte  sempiterno! 

Silêncio  e  solidão. 

Pessoas  da  Saudade, 

Velai,  velai,  meu  triste  coração, 

Por  toda  a  Eternidade. 


OBRAS  COMPLETAS 


PIEDADE 


Piedade  para  o  triste  que  moureja, 

Ao  sol  ardente, 

Quando  nem  ave  canta  ou  folha  rumoreja 

E  a  terra  se  ergue  em  poeira  incandescente. 

Piedade  para  a  trágica  mendiga 

Que  bate  à  nossa  porta. 

Cheia  de  angústia  e  de  fadiga, 

E  pálida  de  ver  —  horror! — a  noite  morta. 

Piedade  para  as  ermas  criancinhas 

Que  esmolam,  pelas  ruas ! 

E  descalças,  famintas,  quase  nuas. 

Que  mãos  elas  estendem,  tão  magrinhas ! 

E  sopra  o  frio  vento,  a  clamorar, 

E  cai  a  fria  chuva. 

Como  lágrimas  de  órfã  e  de  viúva... 

Na  imensidade  negra,  ouve-se  Deus  chorar... 


TBIXBIRA       DK       PASCOAES 


HUAIILDADE 


Homens,  sede  a  humildade. 

E  porquê?  Porque  sois  a  vã  fragilidade; 

Nuvem  que  se  dissolve,  de  repente; 

A  forma  transitória  que  nos  mente. 

Vosso  corpo  é  formado 

De  terra  e  sol  doirado. 

E  tudo  o  que  pensais 

Vem  da  terra,  das  pedras,  dos  metais, 

Do  fogo,  a  crepitar. 

Da  névoa,  etérea  mágoa; 

Do  orvalho  que  cintila,  extático,  ao  luar: 

O  espectro  dum  sorriso  aberto  em  flamas  de  água... 

Homens,  se  não  sois  mais  que  miserável  planta, 
Que  rasteja  na  sombra  e,  comovida,  canta; 
Do  que  o  pó  ressequido  dos  caminhos... 
Se  não  sois  mais  que  a  flor  e  os  montes  pobrezi- 

[nhos. 
Sede  humildes;  baixai  à  vida,  ingénua  e  pura. 
Da  fonte  que  murmura... 

Que,  em  vosso  pensamento. 
Haja  brumas  levadas  pelo  vento, 
Rosas  corando,  ao  sol. 
Canções  de  rouxinol ! 
Em  vossa  dor  cristã, 


220 


OBRAS  COMPLETAS 

Desponte  a  clara  estrela  da  manhã ! 

Que,  na  vossa  ternura  madrugante, 

A  cotovia  cante! 

E,  em  vosso  coração  enamorado, 

Se  desvende  Jesus  crucificado... 

Que,   na  vossa  tristeza, 

Viva,  como  num  sonho,  a  Natureza. 

Cada  perfil  agreste 

Apareça  banhado  em  luz  celeste. 

Que,  em  vossos  olhos  loucos  de  ansiedade. 

Onde  há  nuvens  de  negra  tempestade. 

Se  desenhe  o  teu  arco,  a  sete  cores, 

Ó  íris,  que,  ao  voar,  enches  o  céu  de  flores ! 

Sede  o  luar  das  almas  piedosas, 

O  silêncio  das  noites  misteriosas. 

Sede  a  lenha  do  lar,  o  azeite  da  candeia, 

O  caldo  e  o  pão  da  ceia, 

O  orvalho  matinal  que  bebe  um  passarinho 

K  pequenina  flor,  à  beira  dum  caminho... 

E  o  sorriso  de  abril,  na  face  das  paisagens, 

E  a  verde  luz  que  sai  das  trémulas  folhagens. 

Sede  um  anjo,  nas  nuvens,  entrevisto... 

Sede,  em  pleno  deserto,  a  túnica  de  Cristo... 

A  terra  que  suspira  e  cisma,  condoída, 

E,  sob  os  nossos  pés,  parece  que  tem  vida. 

Sede  o  trigo  da  eira,  os  astros  do  Infinito 

E,  às  horas  da  tardinha,  as  rezas  do  Bendito, 

E  aquela  Sombra  etérea  que  se  esconde, 

Dentro  de  nós,  remota,  não  sei  onde... 

E  aquele  facho  aceso  que  divaga 

Na  escuridão,  e,  ao  vento,  não  se  apaga, 

E  transfigura  e  exalta  quem  o  leva, 

E  dele  faz  um  Deus  dominador  da  treva ! 

Sede,  irmãos,  como  as  fontes  a  cantar, 
Nas  fragas  duma  serra; 


221 


TBIXBIRA        DB        PASCOAES 

Como  os  rios,  que  abraçam  toda  a  terra, 
E  como  a  luz  do  sol  que  beija  todo  o  mar! 

Sede,  em  beleza,  amor  e  perfeição, 
A  eterna  Criação... 

Não  te  esqueças,  Humana  criatura. 

De  que  a  tua  mais  leve  desventura 

Enluta,  de  alto  a  baixo,  o  céu  profundo ! 

E  há  lágrimas  que  são  dilúvios  para  o  mundo... 

E  há  cantigas  de  rústica  harmonia 

Que  se  espalham  na  noite,  e  logo  nasce  o  dia ! 

Sou  poeta  quando  entendo  a  voz  do  vento, 

E  me  vejo  fantasma  e  sentimento. 

E  vivo  e  não  existo. 

Como  outrora,  entre  os  homens,  Jesus  Cristo... 

E  ouço  a  elegia  branca  do  luar, 

E  os  suspiros  da  luz  crepuscular, 

E  a  voz  das  ondas  embalando  as  velas, 

E  esse  canto  de  estrelas, 

Na  infinda  escuridão ! 

E  sou,  eu  mesmo,  aquela  solidão, 

Este  íntimo  abandono. 

Em  que  medito  e  cismo... 

E  sou  a  primavera  e  o  desolado  outono ! 

Espaço  azul  e  negro  abismo. 

Chama  que  me  consome. 

Doida  piedade,  angústia,  sede  e  fome. 

Terra  estéril  e  miséria. 

Sombra  infernal 

Divina  luz  etérea. 

Rosa  que  é  só  brancura  matinal... 

Sou  poeta  quando  as  coisas  me  enternecem; 
E  diante  dos  meus  olhos  aparecem 
Tão  vivas  duma  nova  realidade, 


222 


OBRAS  COMPIvBTAS 

Como  se  Deus,  mostrando  a  sua  face, 

Encantado,  sobre  elas  projectasse, 

Além  da  luz  do  sol,  uma  outra  claridade... 

Há  horas  em  que  o  mundo,  de  repente, 
Fantástico  se  torna  e  surpreendente ! 
E  é  tudo  uma  oração  indefinida, 
É  tudo  amor  e  vida... 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


■ÚLTIMA  COMUNHÃO 


Olhos  ceguinhos  de  aflição, 

Perdidos  na  infinita  escuridão... 

Olhos,  queimados  pela  dor, 

As  pálpebras  abri  à  luz  do  amor.  5 

Ouvidos,  surdos  e  apagados. 
Desertos  de  silêncio  ilimitados; 
Escuros  sóis,  mortos  de  dor. 
Extáticos,  ouvi  a  voz  do  amor. 

Lívidas  mãos,  já  cadavéricas,  10 

De  fria  neve,  ó  pétalas  quiméricas... 
Mãos  de  agonia,  mãos  de  dor, 
Abençoai  o  amor. 

Bocas  famintas,  denegridas. 

Nos  incêndios  da  febre  consumidas;  15 

Lábios  com  fel,  bocas  de  dor, 

Abri-vos,  recebei  o  pão  do  amor... 


2-3.  A :  Olhos  errantes  e  ceguinhos,  /  Que  tropeçais  nas 
pedras  dos  caminhos,  —  5.  A:  amor! — 7.  A:  silêncio  ma- 
goados—  9.  A:  amor!  //  Fossas  nasais  agonizantes,  /  Fundos 
poços  de  treva,  soluçantes,  /  Vinde  aspirar,  fossas  de  dor,  / 
/  O  perfume  ideal  que  exala  o  amor!  — 11.  A:  De  fria  neve, 
ó  pétalas  quiméricas,  — 13.  A:  Num  gesto  etéreo,  abençoai  o 
amor!  —  14.  A:   famintas,  doloridas,  — 17.  A:  amor! 


224 


OBRAS  COMPIvBTAS 


A  MORTE 


i.*»  versão  (edição  iço6) : 


O  mundo  era  uma  estrela, 
Um  dia,  se  apagou, 
Arrefeceu  e  a  treva 
Imensa  o  sufocou! 
E  nessa  hora  de  luto. 
Horrenda  e  dolorida. 
Dentre  as  cinzas  da  Terra, 
Ergueu-se  a  luz  da  vida! 
Quando  se  apaga  um  sol. 
Mil  corações  se  inflamam.. 
As  estrelas  dão  luz. 
Mas  os  planetas  amam! 
E  assim  a  luz  do  sol 
Falece,  num  desmaio. 
Para  ser  um  olhar 
Ou  linda  flor  de  maio... 
Nosso  corpo  é  também 
Um  astro  que  se  apaga; 
Um  sol  que  a  inundação 
Da  escuridão  alaga. 
Para  que  nek  surja 
A  vida  consciente, 
A  existência  absoluta, 
A  vida  omnipotente ! 
Nasce  da  noite  morta 
A  viva  claridade... 
Do  que  é  frágil  e  vão 
Procede  a  Eternidade. 

Ê  preciso  que  tombe 
O  nosso  corpo  em  poeira, 
Para  ser  alma  e  vida 
Eterna  e  verdadeira! 
Ê  preciso  baixar 
À  sepultura  horrenda 
Para  que  a  vida  nossa. 
Em  voos  de  luz,  ascenda 

22S 


it; 


TEIXEIRA        DE        PÁSCOA    ES 

Às  regiões  sem  fim 
Do  sempiterno  amor! 
Homens,  é  necessário 
O  último  estertor : 
Homens,  é  necessária 
A  tragédia  sublime 
Que  o  corpo  criminoso 
E  tétrico  redime ! 
Homens,    é   necessário 
O  drama  da  agonia! 
ó  morte  esplendorosa, 
Aurora,  Glória,  Dia!... 


2.'»  versão  (edição  1924): 

O  nosso  corpo  é  estrela  que  envelhece 

E,  súbito,  escurece ! 

E,  aos  ventos,  se  desfaz  em  cinza  arrefecida, 

Para  que  dele  surja  a  verdadeira  vida! 

É  preciso  baixar  à  sepultura  horrenda. 

Para  que  a  nossa  alma,  em  voos  de  luz,  ascenda 

Ao  sempiterno  amor! 

Homens,  é  necessário  o  último  estertor! 

É  preciso  chorar  a  lágrima  final, 

Já  sobrenatural ! 

Homens,  é  necessário  o  drama  da  agonia. 

ó  morte,  redenção,  aurora,  glória,  dia! 


Versão  definitiva  (edição  dObras  Completasv,  s/d): 

O  nosso  corpo  é  estrela, 

Que  vai  arrefecendo 

E  escurecendo, 

Para  que  nele  surja  uma  outra  luz  mais  bela, 

A  luz  espiritual. 

É  preciso  baixar  à  negra  sepultura, 
Para  que  a  humana  e  pobre  criatura 
Alcance  o  eterno  amor. 

Ê  preciso  sofrer  o  último  estertor. 
Chorar  a  lágrima  final... 

226 


OBRAS  COMPI.ETAS 


ETERNIDADE 


Eu  que  sou  frágil,  transitório  e  vão, 
Que  projecto,  no  mundo,  a  sombra  duma  cruz. 
Que  sou  a  desventura,  a  morte,  a  escuridão, 
Sinto  brilhar,  em  mim,  a  eterna  luz. 

Eu  que  sou  a  miséria, 

A  lágrima  que  tomba  desolada. 

Conheço  bem  que  existe  uma  ansiedade  etérea 

Que  arde  na  minha  noite  e  a  deixa  iluminada  ! 

Eu  que  sou  frio  medo  e  trágico  pavor, 
Barro  amassado  em  água  de  tristeza. 
Alma,  que  é  a  mãe  da  dor. 
Ouço,  nos  lábios  meus,  a  voz  que  canta  e  reza. 

Meu  frágil  ser,  que  se  traduz  em  gritos. 
Meu  corpo  que  se  apaga,  num  momento. 
Pressente,  para  além  de  espaços  infinitos. 
Ideal  deslumbramento ! 

Eu  que  sou  a  aridez,  a  lívida  secura, 
O  inverno,  que,  a  chorar,  se  desespera, 
Vejo  alvorar,  crescer,  em  longes  de  ternura, 
Divina  primavera! 


227 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Eu  que  sou  a  poeira  miserável 
Que  ergue  o  vento  da  Via  Dolorosa, 
A  doida  angústia  a  nada  assemelhável, 
Vejo  nascer  de  mim  a  esperança  radiosa ! 

Eu  que  sou  o  derradeiro  e  pálido  gemido, 
O  sangrento  suor  gelado  da  agonia, 
Sinto  meu  coração,  liberto  e  redimido, 
À  luz  dum  novo  dia... 


OBRAS  COMPIvETAS 


O  POETA 

I 


Ninguém  contempla  as  cousas,  admirado. 
Dir-se-á  que  tudo  é  simples  e  vulgar... 
E  se  olho  a  flor,  a  estrela,  o  céu  doirado,  5 

Que  infinda  comoção  me  faz  sonhar ! 

É  tudo  para  mim  extraordinário ! 

Uma  pedra  é  fantástica !  Alto  monte 

Terra  viva,  a  sangrar,  como  um  Calvário 

E  branco  espectro,  ao  luar,  a  minha  fonte !  10 

É  tudo  luz  e  voz !  Tudo  me  fala ! 
Ouço  lamúrias  de  almas,  no  arvoredo. 
Quando  a  tarde,  tão  lívida,  se  cala, 
Porque  adivinha  a  noite  e  lhe  tem  medo. 

Não  posso  abrir  os  olhos  sem  abrir  15 

Meu  coração  à  dor  e  à  alegria. 
Cada  cousa  nos  sabe  transmitir 
Uma  estranha  e  quimérica  harmonia ! 


5.  AB :  a  terra,  a  flor,  o  céu  doirado  —  9.  A:  calvário  — 
10.  AB:  a  triste  fonte  — 11.  A:  voz;  tudo  — 12.  AB:  Cismo 
ante  o  fumo  etéreo  que  se  eleva  — 13-14  A  :  'E  o  perfume  de 
amor  que  a  flor  exala  /  Como  o  abismo  do  mal  exala  treva ! 
B :  Quando  a  tardinha  pálida  se  cala,  /  Ch€Ía  de  medo,  pres- 
sentindo a  treva...  — 16.  A:  à  dor  ou  à 


22Ç 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

É  bem  certo  que  tu,  meu  coração, 

Participas  de  toda  a  Natureza.  20 

Tens  montanhas,  na  tua  solidão, 

K  crepúsculos  negros  de  tristeza ! 

As  cousas  que  me  cercam,  silenciosas, 
São  almas,  a  chorar,  que  me  procuram. 
Quantas  vagas  palavras  misteriosas,  25 

Neste  ar  que  aspiro,  trémulas,  murmuram ! 

Vozes  de  encanto  vêm  aos  meus  ouvidos, 

Beijam  meus  olhos  sombras  de  mistério. 

Sinto  que  perco,  às  vezes,  os  sentidos 

E  que  vou  a  flutuar  num  rio  aéreo...  30 

Sinto-me  sonho,  aspiração,  saudade, 
E  lágrima  voando  e  alada  cruz... 
E  rasteirinha  sombra  de  humildade. 
Que  é,  para  Deus,  a  verdadeira  luz. 


21-22.  A  :  Ignoras  o  silêncio,  a  solidão  /  E  a  negra  noite, 
plena  de  tristeza! — 24.  A:  D 'almas  sem  fim  todo  o  meu  ser 
saturam.  —  26.  A  :  No  ar  —  32.  A  :  lágrimas  a  voar  —  33-34.  A  : 
Vejo  meu  corpo,  em  chamas  d'ansiedad€,  /  Abrir-se  em  asa, 
erguer-se  em  voo  de  luz !  B :  í;  tudo  espaço  azul,  eternida- 
de, /  Indefinida  luz... 


230 


OBRAS  COMPLETAS 


11  35 


Eu  sou  bendita  esmola,  ó  pobrezinhos ! 
Meu  coração  é  fonte  que  se  alegra... 
Vinde  beber,  ceguinhos; 
Matai  a  sede  negra  ! 

Sou  velho  tronco,  a  arder,  homens  gelados !  40 

Ó  trevas,  vinde  a  mim:  sou  claro  dia. 
Sou  perdão:  vinde  a  mim,  ó  condenados! 
Ó  tristes,  vinde  a  mim:  sou  a  alegria! 


36-39.  A  :  Meu  coração  é  pão  d'amor,  ó  pobrezinhos.  /  Meu 
coração  é  fonte  d 'alegria.  /  Vinde  beber,  vinde  beber,  cegui- 
nhos, /'  Mais  pura  e  clara  luz  que  a  luz  do  dia!  //  Meu  corpo 
é  terra:  ó  trágicas  raízes,  /  Devorai,  devorai!  /  Minh'alma  é 
claro  sol,  ramos  felizes,  /  Bebei  a  sua  luz,  frutificai!  //  As 
minhas  penas  leva,  ave  inspirada ;  /  Teu  casto  ninho  vai 
fazer  com  elas,   /  Na  árvore  abençoada  /  Que  tem  por  fruto 

—  estrelas.  //  Sobre  o  meu  coração  vinde  pousar,  /  Sem  ne- 
nhum medo,  ó  aves  que  voais !  /  Bebei  meu  sangue,  estrelas 
a  brilhar,  /  Comei  meu  pão,  famintos  animais !  —  39.  B :  Ma- 
tai a  sede  negra!  //  Meu  corpo  a  terra  e  cinza  se  reduz,  / 
/  Comei,  comei,  famélicas  raízes!  /  Minh'alma  é  luz  do  sol. 
Ramos  felizes,  /  Bebei  a  sua  luz!  //  Sobre  o  meu  peito  afli- 
to, /  Pousai,  cantando,  ó  aves  que  voais !  /  Bebei  meu  san- 
gue, estrelas  do  Infinito,  /  Comei  meu  pão,  famintos  animais ! 

—  40.  A  :  Meu  corpo  é  tronco  a  arder  /  Num  santo  lar 
d'amor.  /  Vossos  corpos,  ó  nus,  vinde  aquecer,  /  Enxugai 
vossas  lágrimas  de  dor!  //  Sou  túnica  d'amor,  homens  gela- 
dos. 


231 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 

Meu  pranto  é  doce  orvalho,  murchas  flores. 

Sou  a  luz  do  luar,  ó  noite  escura !  45 

Sou  bálsamo  suave,  ó  negras  dores ! 

Ó  pedras,  vinde  a  mim !  Sou  a  ternura ! 

Árvores,  vinde  a  mim:  sou  primavera! 

E  sou  ninho  de  amor,  aves  do  ar ! 

E  sou  antro  de  amor,  ó  bruta  fera !  50 

E  sou  praia  de  amor,  ondas  do  mar ! 


44.  A:  orvalho,  ó  murchas  flores!— 45.  A:  Minh'alma  é 
luar  saudoso,  ó  —  48.  A:  ó  árvor's  vinde  a  mim,  sou  prima- 
vera. —  49.  A:  do  ar...  —  50.  ^  :  E  sou  antro  d'amor,  ó  negra 
fera, 


232 


OBRAS  COMPLETAS 


III 


O  fogo  que  me  abrasa 

Ê  fogo  de  paixão. 

Meu  corpo  tomba  em  cinza  55 

E  pó,  que  o  vento  leva... 

E  alcança  a  vida  eterna, 

Em  mística  ascensão, 

Tudo  o  que,  em  mim,  é  dor,  fragilidade  e  treva. 

Vejo,  sob  os  meus  pés,  60 

Estrelas,  a  fulgir... 

Vejo  mudar-se  em  luz 

A  gélida  penumbra. 

Esta  carne,  que  é  terra, 

Há-de  outra  vez  florir.  65 

Uma  visão  de  Deus  todo  o  meu  ser  deslumbra. 

Lá  vai  meu  coração. 

Quimérico,  a  sonhar. 

Qual  infindo  murmúrio 

Ou  hálito  de  dor  70 

Ou  perfume  de  lírio 

Ou  asa  de  luar. 

Para  uma  vida  nova  e  para  um  novo  amor. 


52.  A  :  III  //  Uma  febre  d'amor  /  Consome  minha  vida...  / 
/  Sou  incêndio  que  exala  /  Um  fumo  de  ternura.  /  Meu  corpo 
exala  sonho  /  E  alma  comovida,  /  Como  um  lírio  perfume  e 
um  lago  névoa  pura.  —  60.  A  :  sob  meus  pés,  —  63.  A  :  D 'amor 
minha  penumbra. — 64.  AB  :  que  é  pó  —  65.  A:  Vai  outra  — 
73.  A  :  amor ! 


233 


TEIXEIRA        DE        PASCOAES 


ÚLTIMO   CANTO 


Outeiros  miseráveis, 

Que  sofreis  na  prisão  das  formas  mentirosas; 

Negros  montes  eternos,  imutáveis, 

Abafados  em  nuvens  tempestuosas,  5 

Das  regiões  do  amor, 

Desce  o  Monte  divino,  o  monte  Salvador ! 

Rios  que  caminhais,  de  cruz  às  costas, 

Para  o  Calvário  trágico  do  mar ! 

Fontes  que  soluçais,  orando,  de  mãos  postas,  10 

Ante  essa  aparição  estranha  do  luar. 

Desce  das  regiões  do  Além, 

O  rio  Buda,  a  fonte  Virgem-Mãe ! 

Bosques  mortos  do  inverno,  quando  neva 

E,  em  seus  ramos,  o  vento  é  gélido  queixume...     15 

Lírios,  rosas,  jasmins,  dos  quais,  no  Azul,  se  eleva 

A  mágoa  do  perfume. 

Descem  da  luz  sagrada, 

O  Lírio  eleito  e  a  Árvore  enviada ! 


1-2.  A:  Vitimo  Canto  //  Árvores  tristes,  aonde  o  luar 
neva,  /  Ivábios  dos  vegetais,  abertos  num  queixume,  /  Olhos 
de  rosas  e  jasmins,  donde  se  eleva  /  A  dor  do  perfume,  // 
//  Descem  da  luz  sagrada  /  O  lírio  Eleito,  a  árvore  Envia- 
da... //  Outeiros  miseráveis,  —  7.  AB:  Desce  o  monte  Jesus, 
o  monte  Salvador!  — 12.  A:  regiões  quiméricas  do  Além, — 
13-20.  A:  Virgem-Mãe!  //  ó  animais  ferozes,  sanguinários, 
— 16.  B:  jasmins  donde  se  eleva 

234 


OBRAS        co:mplbtas 

Ó  animais  ferozes,  sanguinários,  20 

Pombas  brancas,  humildes  cordeirinhos; 

Bois  pastando,  a  cismar,  nos  vales  solitários, 

Bramidos  de  leões,  cantar  de  passarinhos, 

Desce  do  lar  bendito,  em  que  arde  o  sol, 

O  Leão  profeta,  o  santo  Rouxinol.  25 

Homem  triste,  crepúsculo  da  vida. 

Espectro  miserando... 

Almas,  onde  a  esperança  está  perdida, 

Bocas  negras  de  fome  e  corações  sangrando. 

Das  alturas  sem  fim  da  eterna  Luz,  30 

Desce  um  novo  Jesus. 


21.  A:  Ó  pombas,  rouxinóis,  ó  cordeirinhos,  —  23.  A:  leões 
e  cânticos  dos  ninhos  —  24.  A :  Desce  do  lar  sagrado  onde 
crepita  o  sol, — 25.  A:  o  leão  Profeta,  o  Santo  rouxinol!  — 
26.  A:  triste,  onde  chora  a  luz  da  Vida,  B :  da  Vida  — 
30-31.  A  :  Desce  do  Azul  fecundo  onde  germina  a  luz,  /  Um 
novo  Jesus. 


índice 

À  Ventura     7 

Jesus  e  Pã     13 

Para  a  Luz   53 

Vida  Etérea 143 


/^^ 


BINDING  SECT.  NOV  8  ^  1367 


PQ  Vasconcelos,  Joaquin  Pereira 

9261  Teixeira  de 
V276       Obras  completas  de 

196-  Teixeira  de  Pascoaes 


V.2 


PLEASE  DO  NOT  REMOVE 
CARDS  OR  SLIPS  FROM  THIS  POCKET 

UNIVERSITY  OF  TORONTO  LIBRARY