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T
Obras Completas
de
Teixeira de Pascoaes
POESIA
Introdução
e aparato crítico
por
Jacinto do Prado Coelho
II VOLUME
LIVRARIA BERTRAND
Desta edição das Obras Completas de
Teixeira de Pascoaes fez-se uma tiragem
especial, numerada, de loo exemplares
PS
y\
I
A VENTURA
[1.* edição, Coimbra, Tip. França Amado, 1901]
Aos MEUS COMPANHEIROS
Ó Saudade tantas vezes invocada,
Musa, que tantos infelizes inspiraste !
Tu, que nos deixas a nossa alma iluminada.
Que tantas Liras, com teus dedos, afinaste !
Ó saudade que és das dores a mais linda.
Que das tristezas és a mais menina e moça,
A mais eleita, a Desejada, a mais bem-vinda !
A que mais nos governa, a mais senhora nossa !
Enche o meu coração da tua claridade,
Desse raio de luz trémulo e moribundo
— Que é o fogo-fátuo de perdida mocidade —
Com que o sol, ao morrer, ensanguenta o mundo !
E quando à tarde, em labaredas, o Poente
Parece, na distância, uma outra Roma a arder !
É uma saudade, é a dor que a natureza sente
Pelo sol que a fecunda e faz reverdecer !
Ó minha musa triste e d'olhos lacrimosos !
Ensina-me a pintar o que é ficarmos sós !
Que eu saiba ler nos corações desfortunosos.
Que eu aprenda a cantar com lágrimas na voz !
TEIXEIRA DE PASCOAES
É sempre ao pôr do sol a hora de partir !
Ê quando chora uos pinhais o vento norte,
Que tão bem sabe em doidos gritos traduzir
A dor dos que andam sempre ao deus-dará da sorte !
Sempre um sinal do céu aos homens revelou
Cada facto que é, na vida, extraordinário !
Quando morreu Jesus o sol se eclipsou
E em convulsões estremeceu todo o Calvário !
É um adeus afinal a minha vida toda...
Sempre do coração sinto partir alguém !
Que deserto areal descubro, se olho em roda.
Nem sei por que milagre ainda me resta alguém !
Adeus ! Adeus ! Eis as palavras que aprenderam,
Logo ao nascer, os meus ouvidos infelizes !
Em chagas a sangrar assim os converteram
Estas palavras que nos deixam cicatrizes !
É ao ouvir, dentro do peito, soluçar
Desapiedada voz que só me diz adeus,
E me causa tristeza, e faz idealizar
Uma cruzada que conquiste novos céus !
É ouvindo essa voz que em lágrimas chegara
Ao mais recôndito lugar do coração.
Onde um dilúvio de repente se formara,
Oue as Bíblias do Amor em verso cantarão !
Que eu vou cantar, meus companheiros d'Aventura,
A facada que contra o peito nos vibrou,
Lá numa esquina deste mundo, em noite escura,
A Sorte que funesta estrela nos ditou !
E que nos fez perder assim os pátrios lares,
E nos deixou sem norte, errantes, vagabundos,
Abandonando-nos à fúria desses mares.
Onde tentamos descobrir uns novos mundos !
IO
OBRAS co:mpi,btas
E, quais Telémacos entregues ao furor
Das tempestades e dos deuses vingativos,
Nós viajamos em procura dum amor
Que vive longe... entre arvoredos primitivos!
Vive encantado, e simplesmente os leais amantes
Têm para ele uma varinha de condão
Que, numa noite, os faz andar terras distantes
E um rochedo converter num coração!
O amor existe. É o eterno sol auroreal
Oue de flores esmalta nosso sentimento.
Quem for capaz de amar possui todo o Ideal,
Quem tem um coração é o Deus dum firmamento!
Mas quantas ilhas desoladas visitamos !
De que tormentos e naufrágios e perigos.
Por milagre de Deus, apenas nos salvamos.
Meus companheiros da Aventura, ó meus amigos !
Mas essa Grécia, aquela praia desejada
Das velhas naus, em pouco tempo, heis-de avistar...
Já no horizonte é como nuvem desmaiada,
E um lenço branco que pra nós está a acenar !
Já se distinguem bem as linhas sinuosas
Daqueles montes onde, um dia, nós nascemos...
Ivá nos esperam outras almas venturosas
Que nos hão-de entregar aquilo que perdemos !
Do nosso lar o fumo perde-se no espaço.
Nossa terra natal já se descobre além...
Dois braços eu avisto abertos num abraço,
K naquele alto, à nossa espera, eu vejo alguém !
Oue lindo mar! Olhai, vede nascer a aurora!
Como brilha no céu a estrela da manhã !
O mundo unicamente é mau para quem chora,
B é feliz quem tiver outra alma sua irmã !
II
TEIXKIRA DE PASÇO A ES
Já o sol apagou a estrela matutina;
Num dilúvio de luz parece tudo arder !
Ela fugiu da imensidade cristalina
Para no nosso coração amanhecer!...
Coimbra, 20 de Março de 1901.
JESUS I PÃ
[1.- edição, Porto, Li\Taria José Figueirinhas
Júnior, 1903]
Brancas nuvens do azul, ó peitos criadores,
Aonde vão mamar os ramos sequiosos
O leite que alimenta os ribeiros e as flores,
B que as pedras envolve em musgos piedosos.
Gotas d'água a cair num húmido prazer
Que lampeja num sonho imenso de ventura,
Sob os beijos da chuva, eu sinto alvorecer,
Dentre os lábios da terra, o riso da Verdura...
A cor verde que nasce é um sonho d'alma infindo,
É um sentimento ideal do coração dos montes,
Que seus roxos perfis longínquos vai florindo,
Como um lírio a mudar-se em vastos horizontes.
Depois irrompe o sol, ébrio de fortaleza,
Nas cousas infiltrando o vinho da energia...
Sensação infinita abraça a Natureza,
B nos rochedos arde o beijo da Harmonia!...
Há penhas que um pudor suave ruboriza.
Há rosas a chorar e árvores que desmaiam...
São sorrisos d'amor os murmúrios da brisa
E têm um lácteo aroma as ondas que se espraiam..,
15
TBIXBIRA DB PASCOAES
B O Sol, o procriador imenso e sempiterno,
Pálido de prazer, descansa sobre o mar...
Os seres arrefece uma impressão d'inverno,
Sente-se cada cor gritante desbotar.
A Paisagem medita extática... e entristece...
Concentra-se num sonho a ardente claridade.
Uma melancolia as cousas enternece
K nas almas o luar derrama a Piedade...
OBRAS COMPLETAS
UM VELHO
Lá no alto duma serra íngreme e penhascosa,
Onde o luar é uma canção misteriosa,
Onde pairam, gritando, os corvos das procelas
E donde o nosso olhar bebe a luz das estrelas.
Que vai alimentar a célula secreta
Onde reside, em sonho, a inspiração do poeta!...
Numa serra onde vêm, em lágrimas, pousar
Negras nuvens do sul, cansadas de voar;
E aonde chega, como sombra indefinida,
Ou como um sonho vago, o cântico da vida...
Numa serra onde um rio é fonte pequenina
E donde a terra, ao longe, é pálida neblina.
Em que a Distância põe uns nimbos azulados,
Como chagas a abrir ou lírios macerados,
Além dos quais palpita o clarão infinito
Da Essência que animou os astros e o granito.
Vivia outrora um Velho, em cujos olhos vagos,
Que assemelhavam dois profundíssimos lagos,
Tremiam, num fulgor, reflexos profundos
De grandes sóis a arder, de iluminados mundos!...
Eram tristes clarões de sonhos insondáveis,
Como as areias do deserto, inumeráveis,
Que nos seus olhos ideais transpareciam.
Tão brilhantes que o próprio sol apagariam...
Numa serra vivia ao sol, à chuva e ao vento...
E eram a chuva e o sol seu único sustento.
J7
TEIXEIRA DE PASCOAES
Fui visitar, um dia, esse velho enigmático,
D'olhos perdidos no Além, sempre cismático...
Sua fronte que o sonhar tanto empalideceu
Era a continuação nevoenta do céu.
Seu triste rosto tão pálido e desmaiado
Assemelhava um sítio ermo, despovoado...
Encontrei-o, de pé, sobre um rochedo altivo
Que par'cia tremer como se fosse vivo,
Como se fosse da alma o místico fluido
Do cérebro do velho à pedra transmitido...
Voltado para o ar que a tarde entristecia,
Ai, tudo o que eu não vejo esse velhinho via...
E palavras de luz tão baixo soletrava...
E o que pra mim era silêncio, ele escutava...
E logo conheci que ele entendia tudo
O que prós outros é escurecido e mudo...
E logo vi que havia alguma intimidade
Entre os olhos do velho e a infinda imensidade,
Que, de longe, o seu corpo estranho e singular
Havia o quer que é dum astro a cintilar...
OBRAS COMPLBTA.S
PRIMEIRA FAIvA
Olhos postos no Além, sobre a altiva montanha,
Num frouxo de delírio e de loucura estranha,
Desta loucura excepcional em que transluz
Do verdadeiro génio a sempiterna luz;
Num grande ataque de delírio iluminado
Que aos homens dá a visão de tudo o que é igno-
[rado,
Que num cérebro acende a esplêndida fogueira,
À luz da qual se mostra a vida verdadeira;
Num ataque auroreal de divina loucura
Que é uma voz do Além que, dentro em nós, mur-
[mura
E para a qual os outros homens têm somente
Desconfiado olhar de medo, inconsciente.
Embora seja a verdadeira Intuição,
A palavra de Deus e da Revelação;
Num delírio que imita o delirar do vento
E a vertigem do fogo a crepitar, sangrento,
O quimérico Velho, à toa, caminhava
E às estrelas do céu, pálido, assim falava:
«Sinto que sou um sol, minhas mãos são luar.
Minha face é de luz, de fogo é o meu olhar,
Ouço meus nervos crepitar, vejo um brasido
No meu cérebro ardente a chamas reduzido!...
E cada célula é uma chama auroreal
Que faz de mim uma fogueira excepcional!
í9
TEIXEIRA DE PASCOAES
Sinto meu coração todo mudado em brasas...
Palpitantes clarões como o bater das asas...
Que luz eu sou ! Luz infinita ! Ó luz imensa,
Donde não sai do fumo a noite escura e densa!
E o que eu consigo ver ! O que eu descubro, ó Deus !
Como se torna transparente o azul dos céus !
Que poder de visão meus grandes olhos têm !
É, através de mim mesmo, o que meus olhos vêem !
Se me aventuro a entrar na noite do Passado,
Que mundo vejo então, ignoto, ilimitado !
Ó estranhas visões ! Inéditas imagens
De Planetas subtis, de espirituais paisagens,
Que assim fazeis vibrar meu cérebro irradiante
Numa nova impressão transcendente e distante!...
Ó alucinação enorme dos sentidos !
Palavras que jamais feristes meus ouvidos
Como eu vos ouço bem ! Aspectos imprevistos
Por outros olhos ansiosos nunca vistos,
O incêndio da Loucura e da Alucinação
Por sobre eles derrama um imenso clarão!...
Quem sabe? Talvez seja o verdadeiro mundo
O que a loucura mostra a um cérebro profundo,
O que a alucinação, etérea como o ar.
Desenha, num fulgor, perante o nosso olhar!...
Que infinito clarão todo o meu ser deslumbra !
Visões que ides morrer num fundo de penumbra,
Além da qual o meu espírito pressente
Dum Universo novo o dia transcendente,
O que vós revelais de grande e extraordinário
Ao meu olhar altivo e só como um calvário !
Sinto brilhar em mim uma estranha memória
Que me faz recordar de toda a minha história!...
Como eu descubro claramente! Como eu vejo
Esse longínquo alvor do sempiterno beijo
Donde nasci... De cada célula eu bem sinto
Sua vida subtil, seu misterioso instinto...
Lembro-me quando fui uma árvore da serra,
Recordo-me do tempo em que fui luz e terra!
20
OBRAS COMPIvETAS
B a árvore que formou outrora este meu ser,
Quase que a sinto em mim dar sombra e flores-
[cer !...
E julgo ver os seus tecidos invisíveis...
Num íntimo acordar, tornarem-se sensíveis...
Bstou a vê-la organizar-se sup'riormente
Num cérebro, que é hoje a imagem do Oriente...
E vejo mais além... Eu vejo o frio mármore
Enternecer-se até ficar um tronco d'árvore...
E mais além ainda, ó vidente Loucura,
O Universo é uma essência etérea que fulgura...
Ó tronco meu avô, de folhagem vestido.
Como me sinto, dentro em ti, adormecido !
Como sinto minha alma estranha e visionária
Viver na tua seiva, ó árvore solitária!...
E como o sangue, que meu cérebro fecunda
E que duma energia enorme todo o inunda,
Se recorda do tempo em que ele florescia
Uma árvore sob a acção espiritual do dia.
Então vivia eu, sonâmbulo, a sonhar.
Como numa pupila um raio de luar,
No oculto interior das formas e das cousas
Que hoje são para mim sensações misteriosas.
Vivia além da luz, na grande escuridão
Que era para o meu ser um enorme clarão
Que me mostrava um outro mundo nunca visto.
Vertiginoso como o espectro do Imprevisto ! . . .
Até que, pouco a pouco, uma impressão suave,
Como o brando roçar das asas duma ave,
Vinda d'além de mim, comecei a senti-la
Na minha pálpebra fechada e tranquila,
Fazendo-a estremecer, tornando-a vaporosa,
Súbito, trespassando-a um mundo cor-de-rosa...
De repente se abriu, num sonho, extasiada,
Por outra nova luz ficando deslumbrada!....
E assim me revelou um mundo diferente
Daquele em que vivi sonâmbulo e dormente...
E a sensação que minhas pálpebras abriu,
21
TEIXEIRA DE PASÇO 'A ES
De sobre elas, num voo quimérico fugiu,
Deixando de ser luz para ser um olhar
Que, hoje, um cérebro vai de imagens povoar...
Que novo mundo ante meus olhos se estendia...
K a minha própria alma em cada coisa eu via !
Se eu tinha olhar, também uma nuvem olhava,
Se eu chorava, também uma árvore chorava!...
Um lírio era uma alma, e no chorar das fontes
Que tanto enternecia os vastos horizontes.
Ébrios d'azul, sob uma chuva de fulgor.
Julgava ouvir a voz da minha própria dor!...
K o gotejar da chuva em terras alagadas
Era pranto a cair em faces descarnadas...
E um negro corvo era pra mim a tempestade...
B era uma alma ruim e cheia de maldade
A brancura da Lua, além, entre o arvoredo,
Que punha uma impressão atávica de medo
No silêncio da noite, aflitivo e profundo,
Que, num frio sudário, amortalhava o mundo!...
É as sombras que na terra as árvor's projectavam,
Que ao sibilar do vento, inquietas, oscilavam,
Eram almas sem corpo, espíritos dos mortos
Que passeavam além, quiméricos, absortos...
E a floresta sombria, ao perpassar do vento,
Exalava um gemido, um sinistro lamento.
Tinha um ar de mistério obscuro e de demência,
Onde acendia o luar branca fosforescência...
Cinza de luz, um fogo-fátuo sem calor.
Sobre o mundo a cair num glacial palor...
E mais além, aonde é mais profunda a treva.
Onde o álgido luar que sobre os ramos neva,
Mal chega à terra, de repente, se derrete.
Eu via vaguear sombras como as do Hamlet,
Naquele gesto de delírio e de loucura,
Ofélia, que ele teve ao ver tua sepultura !
Leves sombras, Senhor, pálidas, cadavéricas.
Num vago murmurar de palavras quiméricas
E num clarão que ainda o meu olhar deslumbra,
22
OBRAS. COMPIvBTAS
Perpassavam além, na pesada penumbra,
Onde o silêncio era de gelo e onde tombavam
As verdes folhas que nos troncos eriçavam
D'álgido medo, e aonde o carvalho titânico.
Sem um gesto e uma voz, petrificou de pânico !
Mas, súbito, o quer que é de estranho e d'anormal
Sobressaltava a erma noite sepulcral,
E então a noite imensa oscilava, tremia...
Era o alvorecer suavíssimo do dia
Que brotava dalém da serra, ainda hesitante,
Até que o sol, um Deus, surgira triunfante!
Era um cisne de luz que este mundo esqueceu,
Orgulhoso, a nadar no lago azul do céu,
Até que vítima da seta, cruelmente,
À tarde foi cair, ferido, no Poente...
Este mundo era outro. A luz do sol reinava.
E via que essa luz meu ser aperfeiçoava...
Principiei a cavar a terra e a semeá-la,
Comecei a chamar-lhe mãe e a adorá-la.
E as florestas doutrora as Ninfas povoaram
E um perfume bendito as flores exalaram.
Na roxa luz da tarde, entre os canaviais.
Passavam corpos deslumbrantes e ideais
Que punham manchas de luar entre o arvoredo
E reflexões de rosa a abrir cheia de medo...
E atrás deles corria, em lágrimas banhado,
Branco perfil dum Deus, inquieto e enevoado.
Que ia ocultar-se, além, no verde da ramagem...
E o aroma da volúpia embriagava a Paisagem
E doce sensação o bosque enternecia,
E por fim, num desmaio, ele empalidecia...
A terra tinha um ar de alegre mocidade.
Apolo semeava o oiro da claridade,
E Diana caçava entre os matos bravios
E tinha uma paixão imensa pelos rios !
Como ela se abraçava, envolta numa bruma,
Ao seu líquido corpo alvíssimo de espuma...
íris, a mensageira, era um voo luminoso,
23
TEIXEIRA DB PASCOABS
B o loiro Pã vivia alegre e venturoso
Pelos campos em flor, onde encontrava Flora,
Com um lírio na mão e nos olhos a aurora.
Nas grutas do Oceano habitavam sereias,
E as verdes ondas, ao luar, nas marés cheias
Pareciam temer o búzio de Tritão
Que lançava no mar a negra cerração.
Velhos Faunos, com pés de cabra, nos outeiros
Tinham sorrisos maliciosos e brejeiros,
Pra alguma Ninfa sempre a dar-se e sempre es-
[quiva.
Sempre junto-de nós e sempre fugitiva ! . . .
B Vulcano fazia escudos deslumbrantes
Que as Deusas vinham dar aos seus mortais aman-
[tes.
B ao lado deles, muitas vezes, guerreavam
B das Parcas cruéis assim os libertavam.
Até caírem sobre a terra, com feridas
Que eram lírios a abrir, rosas estremecidas.
Donde manava um claro sangue incorruptível,
Como um dorido fumo azul, quase invisível...
Bra o tempo em que sobre a Terra alegre e mansa.
Como num verde olhar a imagem da Bsperança,
Com um perfil de flor e mãos de primavera,
Com verdes olhos onde crescem folhas d'hera,
Com claros peitos de neblina fecundante.
Gerados no interior do Oceano soluçante,
Vénus reinava, toda luz e toda amor...
Este mundo era então uma infinita flor!...
Súbito, do Oriente irrompe nova luz:
Bra o lúcido alvor da ideia de Jesus.
Nossos olhos mortais a Terra abandonaram
B, a caminho do céu, as asas agitaram.
O prazer vestiu luto e a Alegria chorou,
O aroma do perdão as almas inundou.
Os pálidos jejuns e a triste castidade,
A vida solitária, a paz da soledade,
O desprezo do mundo, os ásperos cilícios,
24
OBRAS COMPLETAS
Longas meditações e duros sacrifícios,
Ao nosso antigo rosto alegre e descuidado
Deram-lhe a palidez, tornaram-no encovado...
Mas, dentro em pouco tempo, o claro azul do céu
Foi desbotando até que toda a cor perdeu.
E hoje já não é mais que um espaço vazio,
Desolado areal ermo, estéril e frio.
Onde outros mundos remotíssimos gravitam
E onde as brasas dos sóis, entre chamas, crepitam.
Não existe uma fé. Os homens desvairados
Vê-se que foram lá do céu precipitados
Sobre esta terra que ficou gelada e erma...
E a Humanidade sofre, a humanidade é enferma;
Consome-a uma doença enorme e tenebrosa.
Cuja cura parece ainda misteriosa.
Tremem os corações, toda a terra estremece.
Um frio desespero os rostos entristece.
Paira por sobre o mundo um crepúsculo triste.
A Fé morreu. A mocidade não existe...
E uma impressão de solidão e d'abandono
Às almas faz o que nos campos faz o outono.
Tudo ensombra, sem dó, espesso nevoeiro.
Tomba no nosso sangue a geada de janeiro !
Que doença fatal ! Doença sem remédio !
Micróbio da Descrença ! Oh bacilo do Tédio !
Por sobre as almas cai, num constante lamento,
Chuva baça que torna o ar todo cinzento,
Um ar húmido e mole e sempre a gotejar
Água triste que vai sobre as folhas gelar...
TBIXBIRA DB PASCOA.BS
UMA VOZ
Só eu tenho a ciência ideal de transformar
Vagas imagens em sensações...
Sou a eterna loucura, o eterno delirar,
Sou o Pintor estranho das visões !
Sou a Alucinação que traz a uns olhos tristes
Um quimérico mundo excepcional !
É por amor de mim, ó Deus, que tu existes,
Só eu vejo o que há de estranho e d'anormal !
Sou revoltada paz e tempestade amena,
É tudo verdadeiro à minha luz;
Mostrei Maria a Bemardette e à Madalena
Apontei-lhe, sorrindo, o vulto de Jesus !
Acendo a luz do dia e os olhos de quem reza,
Sobre as almas derramo o bálsamo da Dor...
Nas minhas asas voou Santa Teresa
Em procura do seu divino amor ! . . .
A imagem da Atracção num fruto eu desenhei,
De Go3^a sou a alma incompreendida...
Tuas canções, Ofélia, eu fui quem as cantei,
Num desafio à noite enlouquecida !
26
OBRAS COMPI^BTAS
Pelos meus lábios fala a tempestade,
Do que não é sentido eu sou a sensação!...
Dos olhos dum profeta eu sou a claridade,
Sou o murmúrio da Revelação !
Bu sou a tua alma, ó Hamlet sombrio,
B esse espectro terrível que tu viste...
Fui eu que meditei sobre um crânio vazio.
Na trágica visão de tudo quanto é triste !
Bnigmático duque, ó pálido Manfredo,
Bu fui da tua alma os tristes cataclismos !
Pus nos teus olhos uma fada e um arvoredo.
Contigo desejei lançar-me nos abismos !
Sou o luar do Desmaio, o clarão da Vertigem,
Só eu produzo o verdadeiro dia !
Sou a alma do Imprevisto, o segredo da Origem,
Sou um caos. Senhor, todo harmonia!...
Sou o génio da Luz eterno e poderoso.
Ainda ignoto, ainda incompreendido...
Vivo nos corações oculto, misterioso.
Como a sombra da Noite e do Desconhecido!...
TEIXEIRA DE PASCOAES
SEGUNDA FALA
Sinto, às vezes, em mim, aquele incêndio trágico
Da cólera que irrompe em chamas de furor...
B a este meu coração alucinado e mágico
Desvenda-se um aspecto ignoto do Amor.
Sinto dentro de mim a alma da Tempestade
E no meu peito fez seu ninho a Destruição.
Há momentos de dor, de fúnebre saudade
Em que todo o Universo é um mar de escuridão !
Há horas, nesta vida, em que tudo o que existe
É nuvem tormentosa e escura de trovoada...
As árvores têm um ar desiludido e triste
E a própria luz do dia é treva disfarçada...
Há horas em que a Vida é um pântano miasmático,
Onde passeia triste a pálida Doença,
Quando o Poeta fica angustioso e cismático.
Solitário, a chorar sobre uma noite imensa!...
Horas de Negação, momentos de Niilismo,
Quando uma voz de morte e de descrença escuto.
Quando o Nada se vai sentar sobre um abismo.
Quando a própria Esperança anda toda de luto...
Nestes momentos, cada homem é uma fera;
O amor abandonou, em lágrimas, seu peito.
Morreu no seu olhar o clarão da Quimera,
Fez-se na sua alma a noite do Imperfeito !
Cada cérebro humano é floresta sombria.
Onde há ideais que se trucidam, num delírio!
28
OBRAS COMPIvBTAS
Cada célula sofre uma grande agonia,
E vibram cada nervo impressões de martírio !
Dir-se-á que a Natureza inteira arrependida
Hesita em continuar sua marcha triunfante...
Dir-se-á que a luz do sol, esse foco da vida,
É cansado de ser fecundo e deslumbrante!
Penetra a alma humana um nevoeiro espesso,
Os homens são do Bem os tristes fugitivos...
Nos seres há um desejo louco de regresso
Aos instintos brutais dos tempos primitivos !
Dir-se-á que em cada coisa a Essência empalidece.
Que a semente do Bem está p'ra estiolar...
É o perfil da Verdade anémico arrefece,
Diluindo-se no esforço absurdo de chorar!
É nestas horas que meus olhos incendeia
A cólera divina, o desespero insano,
Quando vejo a agonia infinita da Ideia
E o frio empedernir do coração humano !
Eu, que fiquei ovelha entre lobos danados
E uma inocente pomba entre sinistros corvos.
Sinto a cólera ideal dos grandes indignados
E um clarão de furor sobre os meus olhos torvos !
Aos meus ouvidos vêm gritos de desespero,
E a Justiça a gritar, sozinha, por mim passa!
Vejo rostos que têm um ar medonho e fero,
O ódio é um facho a arder na noite da desgraça !
Vejo, ao longe, toldar o roxo da distância
Sinistra multidão donde saem rumores...
Há rostos onde brilha uma infinita ânsia,
Há olhos ideais orvalhados de dores !
Vejo corpos que vão macilentos e nus,
E vultos a pregar num gesto incendiário...
Almas todas perdão que nos lembram Jesus
E peitos a sangrar que lembram o Calvário...
Ó triste multidão de réprobos e heróis.
Negra nuvem humana a anunciar tempestade,
Desprende-se de ti um chuveiro de sóis.
Levantas, caminhando, um pó de claridade!
29
TEIXEIRA DE PASCOAES
Bem conheço que lavra em ti aquela chama
Da cólera de Deus que em meu peito crepita...
Bem sei que tua voz a Verdade proclama,
Bem sei que há no teu ódio a Bondade infinita !
Por isso, eu tenho em mim teu próprio sentimento,
Teu desespero turvo e revoltada dor !
Quando em minh'alma lavra o teu ódio sangrento.
Sinto em mim um aspecto ignoto do Amor!...
OBRAS COMPI^ETAS
UMA VOZ
o ódio é tétrica nuvem que goteja
Por sobre as almas lágrimas d'amor !
É tempestade que fulmina e que troveja,
Para ficar o céu limpo de toda a dor! ...
Eu sou o Ódio que vai transformar corações
Em chamas que libertam...
Os meus rugidos são, às vezes, orações
Que acordam a Justiça e a Verdade despertam !
De mim, às vezes, nasce a cólera sagrada
Que os cérebros exalta e os homens transfigura...
Na minha grande voz que prega e brada,
Há murmúrios de linfa entre a espessura !
Quando vou converter um palácio em ruínas
Perto da margem verde dum caminho,
È pra que nele cresçam flores divinas
E pra que uma ave tenha onde fazer o ninho !
Sou o Ódio tremendo, horrível, o colérico
Esforço incendiário:
E qualquer cousa eu sou de santo e de quimérico,
De triste e solitário...
Quem através de mim, num sonho, caminhar
Encontrará o Amor.
Das almas sou oriundo assim como o luar
E sou filho da Dor !
31
TEIXEIRA PE r A S C O A E S
TERCEIRA FALA
Minha face golpeia um vento de tristeza,
Que é como um ai qne vem da alma da Natureza.
E, qual nevoeiro, o Krmo às cousas vela a face;
Sob esse orvalho a flor da solidão renasce,
Emanando nm perfume onde há a melancolia
Da montanha, v!o :v r e do findar do dia.,.
E uma longínqua voz humana e transcendente
Os meus ouvíj. s - :^ chorar perdidamente...
E o meu es; 'ri: , \ ' ' ; ^ e vagabundo
0.:'7 .s alm..- ........ ^ \ .u de mundo em mundo.
O;:::...- ;.',:r...s. S. .....: . L\-:e Universo tem,
E ^-■.: ;:;:•. s; .■.:-.v..^ c \":\r ^L::; "*::i:uém!
F::; j.-.,;.-. ■,..::.;, . :;; ^.■..■.: "•.:/. v::: j.:.'."» ramo
H--. -.::" v;:-.:c,".; .y.:. .■.■.:•..: .:^^■::; vr::-,r eu amo;
H-: ;:::-. .\'v.-.::., .;.:. vivo. •.:::.; ,:";y..i iluminada
O - ■- . . : . i o nosso c . . . :. '.' c . - . o 1 1 1 mitada ! . . .
Existe numa flor um ò.: - :imento
E há lágrimas de dor nas ^ clr.^.s do vento!
Altas aspirações fizeram altos :es
"B v.-^ amor fez brotar da terra a ..í: aa das fontes !.
A c- '-^^'.nça acendeu estrelas - ' ' - s
F de • ? vestiu planícies r- ; ;<
S ■ ::o .- :: r^as derrama a c : ^ . a da Lua
E .. O.C d> Sol numa n. . a nua,
Pr 5; drc r. . .1 se vêem etcr. s \ durações,
H.-r:i:o:::.i5 s;:l:is, miste^io^-■^ cuicdcs
3^
OBRAS CO^IPLETAS
Que se elevam no ar, fazendo-o enternecer
Até às lágrimas sem fim do anoitecer.
A que distância está meu coração magoado
Do Deus que ainda não foi aos homens revelado,
E desse mundo obscuro onde as almas palpitam,
E onde através do Amor espíritos gravitam,
Xuma grande esperança e infinda ansiedade.
Onde transluz, como um relâmpago, a \'erdade!
A que distância estou desse Planeta etéreo.
Desse mundo de luz, de sonho e de mistério!...
Como tão longe sou das almas das montanhas,
Das suas sensações quiméricas e estranhas !
O espaço tem pra mim um ar de indiferença,
E de mim próprio eu vivo a uma distância imensa...
Eu sou da minha alma a fria solidão.
Da minha própria luz eu sou a escuridão !
Vejo meu ser passar, ao longe, na Distância,
Como sombra onde brilha uma infinita ânsia,
Como nuvem escura onde murmura o luar,
Como treva onde a luz se sente palpitar ! . . .
\'ejo perder-se além dum escalvado monte,
Como um pálido alvor além dum horizonte.
Este meu ser que é uma onda à luz da Lua,
Que é um raio de sol doirando escura rua.
Um tronco d' árvore que uma vez floresceu
Ao sentir a impressão azul que vem do céu...
Uma estranha impressão que o sensibilizou
E que seu claro sangue em flores transformou;
Em flores ideais que depois se mudaram
Em aromas subtis que o espaço enevoaram...
Virgínias nuvens transcendentes de fulgor
Que parecem a essência onde germina o Amor
Ou nebulosa sideral e indefinida.
Que é um beijo que Deus dá para criar a Vida.
Mas, ai, a que distância eu de mim próprio vivo !
Prós meus olhos meu ser é um raio fugitivo.
Um efémero clarão ou nuvem passageira
Que, no seu voo, sobre esta terra que é estrangeira,
33
TEIXEIRA DE PASCOAES
Deixa cair somente uma lágrima triste,
Um resumo piedoso e terno do que existe;
O símbolo do sol, a imagem dum planeta
Ou do orvalho a tremer nuns olhos de violeta...
Às vezes interrogo os vastos arvoredos.
Mas não me dizem, não, um só dos seus segredos...
B fazem-me lembrar — oh trágico desgosto! —
Uma donzela que nos volta o frio rosto
Se, por acaso, para ela caminhamos
E já de perto, com amor, nós lhe falamos...
Ou uma estátua que me causa esta tristeza
De a palpar e sentir apenas a frieza !
A lágrima d'amor que meus olhos constela
Vejo-a, como quem vê uma longínqua estrela.
Como quem vê um grande sol iluminado
Nas frias névoas da Distância asfixiado!...
Quantas vezes não chega a luz aos meus ouvidos
Em murmúrios que são — oh dor! — indefinidos...
Últimos sons talvez de palavras perfeitas
Que apenas ouvem, sobre a terra, almas eleitas...
As nuvens do azul variáveis, femininas.
Não olham para mim das regiões cristalinas.
E dentro delas vive em ânsias e palpita
Do gérmen criador a Vontade infinita!...
Passo horas a aspirar o aroma duma flor,
A ver se compreendo aquele etéreo amor;
Mas essa sensação que dentro em mim eu sinto
É um pálido luar moribundo e indistinto.
Como uns lábios que vão falar verdade à gente
No momento em que a morte os fecha, de repente I
Quantas vezes me sento à beira dum abismo
E, sobre o seu mistério escuro, eu cismo... cismo...
E apenas sinto em mim os flocos glaciais
Da negra neve do silêncio... e nada mais!
E se observo o luar que nesta serra neva
E o fumo que ao sol-pôr, quimérico, se eleva
Acima do arvoredo e das mais altas casas,
Como se acaso nele palpitassem asas,
34
OBRAS COMPLETAS
Vejo o fumo e o luar morrerem num abraço,
Tão pálido que faz entristecer o espaço ! . . .
K dessa grande dor, dessa infinda saudade
Que sobre nós derrama a luz da eternidade,
Apenas vemos uma nuvem a voar
Sem descanso, assim como uns olhos a chorar.
Com que amor eu estudo os ramos florescidos
Que no mármore do azul parecem esculpidos,
E o seu gesto de luz, a verde desenhado,
B o seu perfil em flor do sol todo corado,
B os seus lábios que têm palavras transcendentes
Para as nuvens do céu, sonâmbulas, dormentes.
Para a fonte que sonha além, num canto escuro,
Para um fruto a chorar, pálido, já maduro,
Para a aflição da inércia em que vive um rochedo
B para a dor que faz gritar um arvoredo!
Com que amor eu estudo o Sol que tudo cria.
Com que ternura eu beijo, orando, a luz do dia...
B a sensação subtil que no ar ela produz
Bsconde-a, no seu seio imaterial, a luz
Que somente nos dá uma ilusória imagem
Dum rosto, duma flor, dos tons duma paisagem.
Numa bênção d'amor, no frio rosto meu.
Nunca pousou, sorrindo, o doce olhar do céu...
B essa imagem azul que em meus olhos acende
Ê uma sombra ideal, mas que ninguém entende
Como ela, lá do céu, p'ra uns olhos transmigrou
B como, num fulgor, meu cérebro doirou,
Fazendo-o estremecer na doce vibração
Que acende, dentro em nós, a luz da Inspiração...
Qual o laço que prende a harmonia dum verso,
A tudo o que há de azul e etéreo no Universo !
Oh mistério infinito ! Bscura noite densa.
Onde agoniza o luar numa nuvem imensa !
Onde há vozes que vão, tristes, desfalecer
Num murmúrio de dor que faz entristecer...
São palavras de luz, vagas, indefinidas.
Que nuns ouvidos vão morrer incompreendidas...
35
TEIXEIRA DE PA SCO A ES
Ó noite imensa onde há soluços e estertores
Que o vento leva, como pétalas de flores !
Onde vagueiam, como sombras. Ansiedades;
Onde há Delírios, Esperanças e Vontades
Que se elevam no azul, que agitam grandes asas,
Fazendo voar a cinza onde agonizam brasas
Que são espectros de Desejos que arrefecem,
Ou símbolos de sóis vermelhos que anoitecem...
A noite do mistério, onde sonha e murmura
Tanta alma. Senhor, e tanta criatura,
Ksse mundo de sombra e névoa e de segredo,
Onde uma nuvem vive e onde habita um rochedo,
Produz-me uma impressão longínqua e inatingível,
Uma estranha impressão oculta, intraduzível !
Perto de tanta alma e tanto coração
Só sinto, ao pé de mim, a fria solidão !
Eu sou um solitário, oh triste isolamento !
Das cousas vivo só no seu distanciamento!
E todavia este meu ser misterioso.
Assim como uma flor dum tronco musculoso,
Da terra inteira, num abril, desabrochou...
E nunca mais donde saiu se recordou !
Ficou um ser à parte, abandonado e triste.
Não sabendo o que foi, ignorando o que existe,
Embora noutro tempo ele andasse disperso
Por todo esse infinito e por todo o Universo.
Eu que vivi na consciência da Natura,
Que fui a sensação de cada cousa escura.
Eu que fui o ideal dos seres existentes.
Porque olham para mim, frios, inconscientes
Do que eu sou — eu que fui o que eles são ainda,
Eu que fui um clarão da sua luz infinda?...
E porque os vejo eu também nessa impotência
De os compreender, eu que já fui a sua essência?
Porque é que deles eu fiquei tão afastado?
Porque fiquei eu duma flor tão isolado?
Tão distante da luz, das nuvens e das fontes.
Que, sempre que eu estendo o olhar p'los horizontes,
36
OBRAS co:mplkta,s
Ao ver as aves e os pinheiros da montanha,
Olham-me, como se olha uma pessoa estranha !
A distância a que estou das outras criaturas
É a origem do meu mal, das minhas amarguras.
Sinto que é falsa e mentirosa a minha vida,
Longe de ti, ó Natureza estremecida !
Eu preciso sentir o amor e o sofrimento
Que acende a luz do sol e faz voar o vento !
Por isso, eu luto sempre e sempre pra alcançar
A energia do fogo e o perdão do luar,
A doçura dum lírio e a clara suavidade
Que prende um verde ramo a toda a imensidade;
A justiça do sol e a verdade dos montes
E a harmonia que sai do murmúrio das fontes...
Nasci para sofrer a grande dor das cousas,
Pra ser a escuridão das noites silenciosas,
Pra sentir na minh'alma o vago e o indefinido
Que há num raio de sol nas ondas reflectido!...
Para viver a vida oculta e imperceptível
De cada célula consciente e inextinguível...
/Para brilhar em cada luz e crepitar
^ Em cada chama, e ir, em fumo, pelo ar !
Pra ser seiva e tecer os caules verdejantes,
Pra ser numa flor murcha orvalhos cintilantes !
Eu nasci para ser a força da Atracção,
A chuva, o movimento, a neve e a solidão.
Uma asa, em pleno azul, a palpitar d'amor
E o perfume subtil que gera cada flor...
Nasci para viver a vida das montanhas,
Para tremer nas suas convulsões estranhas,
Para sentir do vento o infinito delírio
E a ternura que o luar tem sempre para um lírio!
Nasci para abranger os vastos horizontes,
Pra ter nos olhos meus as lágrimas das fontes,
E nos meus braços esse gesto de brandura.
De infinita bondade e infinita doçura,
Que tem um ramo em flor que, enternecido, ampara
O ninho que sobre ele uma ave edificara...
37 •
TEIXEIRA DE PASCOAES
O velho assim falou. B sem olhar p'ra mim,
Extático e absorvido em quimeras sem fim,
Com os seus olhos dilatados, como a querer
Num só olhar todo o infinito compreender,
À sua gruta penhascosa regressou,
Deixando um rasto luminoso onde passou...
B, quando para além dum cerro se escondeu,
Dir-se-ia que foi um sol que anoiteceu...
Assim doirava a serra um pálido clarão,
B eu senti na minha alma aquela solidão...
OBRAS COMPIvBTA.S
UMA VOZ
Eu sou a solidão, alma do Ermo,
Do Silêncio descendo...
Palpita em mim um coração enfermo
Que vai arrefecendo...
Que infinita tristeza inominada
E que infinita dor !
Viver assim distante da alvorada,
Tão longe duma flor !
Sou a Distância, sou o Afastamento,
Vivo longe de mim.
Passa, no azul, chorando, o doido vento
A solidão sem fim !
Inspirei muito génio incompreendido
E dei asas a muito coração.
E as estrelas semeei, pranto dorido,
Na suprema e infinita solidão !
E toda a alma sente o peso imenso
Da minha negra cruz.
Meu peito é um nevoeiro escuro e denso
Onde agoniza a Luz.
39
TEIXEIRA DE PASCOAES
Eu SOU filha da Neve e irmã da Treva;
Sou a dor do Universo,
Que o faz voar, que no infinito o eleva,
Como fumo disperso!...
Afasto cada sol na imensidade
E as almas na Natureza.
Sob a forma d'outono ou de saudade,
Sou a imensa tristeza!...
OBRAS COMPLEXAS
QUARTA FALA
Quando a Terra estremece em convulsões de dor
E os relâmpagos põem no ar laivos sangrentos
E as árvores têm prò céu negros gestos d'horror,
Perante esse delírio eléctrico dos ventos...
Quando as ondas do mar, tomadas de loucura,
Se despedaçam contra os íngremes rochedos,
Onde fica a tremer a vaporosa alvura
Da espuma que nos conta insondáveis segredos;
Quando a lua a chorar o azul empalidece,
Num desmaio de dor, enorme e nunca visto;
Quando o gelo da morte os astros arrefece
E os lírios onde existe a palidez de Cristo,
Eu vejo claramente, estranha Natureza,
O desespero que te invade o coração...
E vejo bem que tens momentos de crueza
De que S. Pedro foi um pálido clarão!
Falai vós, falai vós, ruínas de Pompeia,
Dize da tua dor, ossada de Herculano !
Descrevei-me o dilúvio, ó montes da Judeia,
Falai da tempestade, ó ondas do oceano!...
Há tristezas que nunca, nunca desfalecem,
Há sombras que jamais a luz há-de apagar...
Há agonias que ainda os ares escurecem.
Há lágrimas que o sol não pode evaporar!
Hecatombes de dor, terríveis cataclismos.
Sois manchas sempre a arder sobre a face da terra..
41
TEIX:^IRA DB PASCOAES
Feridas que imitais as bocas dos abismos,
Sangrentas como nm vale onde passou a guerra!...
E tu, ó coração humano, és um resumo
Da loucura do mar chamada tempestade...
Do fogo que se esconde em negro e denso fumo
Pra brilhar, de repente, em toda a claridade !
És filho dos vulcões, nasceste das crateras.
Teu palpitar parece o estremecer do mundo.
Tens relances no olhar, duros como os das feras,
E negros temporais como os do mar profundo ! . . .
Mas, súbito, na tua enorme escuridão,
Misteriosamente, acende-se uma luz...
Sentimos um bater d'asas no coração.
Há voos pelo ar, apareceu Jesus...
Traz perfumes de flor um vento de piedade,
Têm um ar de quem sonha os roxos horizontes...
O cardo mais agreste é todo suavidade.
Há brandas orações no murmúrio das fontes...
Ouve-se em cada peito a pálida tristeza
Andar a rir, a rir, ao lado da Alegria...
Há uma ternura imensa em toda a Natureza,
Enche todo o infinito uma estranha harmonia...
Mas, eis que o matam... E de novo a terra inteira
Vai ser, ainda a chorar, na noite sepultada!
Ó terra, pra onde foi a tua luz primeira?
Em que ficou tua esperança transformada?
Tu que rias outrora ao ver passar Virgílio,
Tu que ontem ajoelhaste ao ver passar Jesus,
Já não tens no teu lábio o beijo dum Idílio,
Nem rouxinol que vá cantar sobre uma cruz!
O que era outrora uma verdade conhecida.
Voltou a ser pra ti um profundo mistério.
É hoje outra vez noite a clara luz da Vida,
Um berço é para nós qual triste cemitério!...
As Ninfas nunca mais os bosques povoaram.
E nunca mais tangeste a tua lira, Orfeu!
Os teus deuses, Homero, o Olimpo abandonaram,
Tua Vénus, Lucrécio, há muito que morreu!...
42
OBRAS COMPIvBT. AS
Como um lúcido alvor ou riso d 'esperança,
Nunca mais uma deusa atravessou o ar,
Desprendendo por sobre a terra a sua trança,
Num gesto que fazia os rios desmaiar !
Já ninguém sabe ler nos astros do infinito...
Quem faz invocações, Pitonisa d'Endor?
Quem sabe adivinhar, feiticeiros do Egipto,
Em silêncio, a chorar, voltados prô sol-pôr?
Ó Milo, nunca mais uma Vénus divina
Nasceu, feita mulher, da brancura do mármore...
Nunca mais ninguém viu donzela cristalina,
Por desprezar um deus, ser transformada em ár-
[vore !
Neptuno nunca mais mandou a esquadra sua,
Ninguém tornou a ouvir o búzio de Tritão.
Ninguém tornou a ver Diana sobre a lua.
Fatídica, emanando um pálido clarão...
Não há homem que conte um deus entre os avós,
Aquiles vingativo, Eneias piedoso!
Magras bruxas da Etrúria, o que é feito de vós,
Ó bruxas a fiar um fio misterioso?
Sibilas que, ao luar, noutros tempos, vivestes.
Falando às nuvens, aos relâmpagos e aos lagos,
Distante da cidade, em penhascos agrestes.
Com vosso ar de mistério e vossos olhos vagos!...
O que é feito de vós, ó pálidas histéricas.
Que enchestes de terror as cidades guerreiras ?
Fantasmas de luar, vagas sombras quiméricas,
Sonâmbulas, falando às lívidas caveiras;
Interrogando a noite e as sombras que passavam
Tristes, a conversar sobre grandes mistérios.
Enquanto, pelo azul, as nuvens murmuravam
E um álgido terror enchia os cemitérios !
O que é feito de vós, mulheres excepcionais.
Que nas exalações bebíeis o Delírio
Que vos deixava ver os deuses imortais.
Num letárgico sono aflito de martírio?!
Profetas da Judeia, ermos anunciadores,
43
TBIXBIRA DB PASÇO ABS
Que assombrastes, pregando, as vastas povoações,
Vós caístes, gritando, ó trágicos horrores.
Sobre as cidades más, assim como trovões!...
O que é feito da vossa voz de trovoada.
Dos vossos olhos onde um grande sonho ardia?...
Que treva será hoje a luz imaculada
Que através deste mundo as almas dirigia?
Ó entrada na triste e má Jerusalém !
Verdes palmas ! Hossana ! Ó doce jumentinho !
Ó sagrado perfil voltado para além,
Ó luminosos pés poeirentos do caminho !
Lira d'oiro que outrora as pedras comoveu !
Ó barca de S. Pedro onde Jesus pregou.
Com sua mão direita erguida para o céu,
Ao povo que, na praia, extático ficou!...
Ninguém tornou a ouvir aquela voz estranha
Que a um lírio do vai' falava com amor?
Ninguém tornou a ouvir o sermão da montanha,
Feito para uma alma e dito por uma Flor !
O que é feito, Merlim, dos teus encantamentos.
Da floresta que ouviu tua voz sobre-humana?
Negras trevas são hoje os teus deslumbramentos !
Que é da tua varinha d'oiro, ó Viviana?...
Brancas fadas que sois um claro aroma etéreo
Que um lírio, sob a luz da branca lua, exala !
O mundo do perfume é um mundo de mistério
Onde há almas, Senhor, que amam e que têm fala !...
O que é feito de vós, ó fadas deslumbrantes,
Que povoastes, outrora, os verdes arvoredos?
Espíritos de luz longínquos, sempre errantes,
Que éreis, vistos de perto, a inércia dos rochedos!...
Em que se transformou a divina coragem
Com que os mártires, na arena, as feras encaravam,
Com que os Santos d'então, em trágica viagem,
A pregar a Verdade, o mundo atravessavam?
Que cinza será hoje a branca aparição
Que o roxo olhar de Madalena deslumbrou?
Que riso será hoje o pranto d' aflição
44
OBRAS COMPIvBTAS
Que nos pés duma cruz a Virgem derramou?
H que silêncio é hoje a voz misteriosa
Que tu, Santa Cecília, em pleno Circo, ouviste?
Que sentimento ideal levou fera raivosa
A lamber tuas mãos, ao ver-te suave e triste?
Transformou-se essa voz no silêncio gelado
Que amplia, como um sonho, os limites do céu !
No silêncio em que fica um corpo amortalhado
Quando a alma que o animou aos astros ascendeu !
Mudou-se no silêncio enorme das estrelas
Que nos permite ouvir a harmonia da Luz
E o murmúrio de dor das árvores por entre elas
Ter existido, outrora, uma árvore que foi cruz !
Transformou-se essa voz no silêncio d'amor
Que vive em cada ai, que existe em cada grito...
No silêncio que aumenta o cântico da Dor
Para que ele se torne um cântico infinito ! . . .
Toda essa luz fugiu do coração humano;
Concentrou-se talvez no claro azul do ar,
No aroma duma flor, nas ondas do oceano,
Tal como numa alma um raio de luar.
Tudo o que houve de bom, de puro e de divino
Refugiou-se, a tremer, nas almas dos rochedos...
Virgem, teu pranto é hoje o orvalho cristalino,
Cecília, a tua fé ampara os arvoredos !
Hoje teu puro sangue, ó Cristo visionário.
Da clara lâmpada dum astro é o alimento;
Pelo azul teu perdão vagueia solitário.
Teu último suspiro é hoje a voz do vento!...
O sol evaporou teu suor de agonia;
Num lácteo nevoeiro os campos reverdece...
E o linho que formou tua túnica alvadia
Depois da tua morte, em cada Abril, floresce!
A ser árvor' voltou teu trágico madeiro
E a seiva novamente, em suas veias, gira:
E o grande sol, que enche de luz o mundo inteiro,
Receia atravessar seus ramos, onde expira!
Almas que desejais um raio de Verdade,
45
TEIXEIRA DE PASCOAES
Procurai-o num lírio ou numa rocha dura.
Vivem num ramo em flor a Justiça e a Bondade
E na água duma fonte a Beleza murmura !
Ó criações da Alma ! Ó símbolos de luz
Da Verdade absoluta! Estrela dos Reis Magos!
Ó fadas do arvoredo ! Ascensão de Jesus !
Ó Ninfas a nascer dentre as ondas dos lagos !
Chuva d'oiro que outrora um ventre fecundou!
Visão de Madalena ! Ó Cristo no Tabor,
Quando o fulgor de Deus teu corpo aureolou!
Ó Moisés no Sinai, em face do Senhor !
Trágica sexta-feira ! Ó sepulcros abertos !
Sinistra escuridão onde choravam mágoas !
Ó coluna de fogo através dos desertos !
Espírito a boiar sobre as profundas águas ! . . .
Nunca mais criarão os homens sobre o mundo
Estas lendas que são de sempiterno encanto?
Nunca mais sonharás, ó Planeta infecundo,
Embalado por outro inatingível canto?
Nunca mais se hão-de ouvir palavras de perdão?
Emudeceu, pra sempre, a voz da Piedade?
A Justiça é mentira, é apenas ilusão?
Prometeu não terá um dia a liberdade?
O amor por meus irmãos será sempre mentira?
Será o único alívio a esperança de morrer?
Nunca mais se há-de ouvir a verdadeira Eira?
Donde virá a alegria imensa de viver?
Qual a fonte sagrada, a transcendente origem
Donde deve manar a água misteriosa
Que tornará nossa alma imaculada e virgem,
Simples, como o orvalhar do céu sobre uma rosa?...
Quem será, sobre a Terra, o novo Redentor?
Quando heis-de anunciá-lo, ó pálidos profetas?
Porventura, a Verdade existe só no amor
Que fez de Jesus Cristo o primeiro entre os Poetas ?. . .
Tem de seguir por força a estrada do Calvário
Quem quiser alcançar o Reino da Verdade?
46
OBRAS COMPIvET;A.S
Um homem deve ser um santo solitário,
Ou deverá lutar, ébrio de mocidade?
Que devemos fazer? Lutar e trabalhar
À luz dum grande sonho onde germina a Vida?
Ou viver para Deus, absortos, a sonhar,
D'olhos fixos no céu, à entrada duma ermida?
Esta vida é o Prazer ou é o Renunciamento?
Nos lábios uma prece ou o florescer dum beijo?
No mundo existe o Mal e o Bem no firmamento?
Será uma blasfémia o grito do Desejo?
Nossa vida termina, acaso, sobre a terra?
E o mais é uma falsa e inútil esperança?
O corpo e mais a alma hão-de estar sempre em
[guerra?...
E a vitória da alma é a Bem-aventurança?...
Dentre as ondas do mar, outra vez, nascerás,
Ó Vénus, mãe do Amor e irmã da Primavera!
Jesus há-de voltar todo perdão e paz,
Uma só voz dirá ao homem : — vive e espera !
Hão-de subir ao mesmo altar Jesus e Pã...
As Ninfas beijarão os anjos do Senhor.
Maria há-de chamar a Vénus sua irmã
E o tronco duma cruz ainda hei-de vê-lo em flor !
É preciso ligar, fundir na mesma luz
A vida deste mundo e uma existência ideal;
A alegria de Flora e a paixão de Jesus,
O beijo criador e a prece virginal !
É preciso reunir na mesma comunhão
A aspereza do mundo à doçura do céu,
A leveza do lírio ao peso do alvião,
E ao canto do trabalho a tua lira, Orfeu !
A alma humana há-de saber compreender
Todas as almas, tudo quanto sofre e chora...
No mesmo grande amor há-de tudo abranger.
Desde o pranto da noite aos sorrisos da aurora !
Há-de ligar no mesmo abraço extraordinário
A luz dum doce olhar e o clarão duma estrela;
Uma sombria cruz erguida num calvário
47
^
TEIXEIRA DE PASCOAES
E o corpo virginal de raística donzela...
Há-de fundir no mesmo beijo cristalino
Os lábios da mulher e a chaga dolorida;
Tudo o que é deste mundo e tudo o que é divino,
Tudo o que encerra em si o hálito da Vida !
É preciso que saiba o homem conhecer,
No seu íntimo ideal, as cousas que murmuram...
Ê preciso subir aos astros e descer
Ao fundo duma flor, onde outros sóis fulguram !
Preciso é ouvir a voz de todo o lábio mudo
E ver o que há de luz em cada sombra triste.
É preciso amar tudo e compreender tudo.
Só neste sábio amor a Perfeição existe !
Devemos estudar, cheios de comoção,
A rosa que murchou ao fogo duma mágoa...
Que vá precipitar-se o nosso coração
Nesse abismo sem fim que há numa gota d'água!
É preciso sentir, sofrer todo o martírio.
De cada cousa obscura o espírito alcançar...
Conversar com a luz, conviver com um lírio,
Nossos lábios unir aos lábios do Luar!...
É preciso viver, Senhor, todas as vidas,
Das árvor's entender a sua língua estranha...
Ser o sangue auroreal de todas as feridas,
Ser estrela, ser luz, ser nuvem, ser montanha !
Cada alma há-de sentir em si todas as almas,
Cada ser viverá a vida universal...
A vida duma estrela em doces noites calmas
E, num magoado Outono, a vida d'ermo vai'!...
A alma viverá na oculta consciência
Que brilha numa flor e nas nuvens da serra...
Nossa alma há-de viver na criadora essência
Que na árvore do Azul pôs este fruto — a Terra!...
E a nossa alma será um infinito lar,
Donde todo o Universo, em chamas de fulgor,
O próprio coração de Deus há-de alcançar.
Irradiando a Justiça, a Verdade e o Amor!...
Só então, meus irmãos, tereis a Felicidade
48
OBRAS CO]MPLBTAS
Na clara compreensão de toda a Natureza...
Felizes vivereis a vida da Verdade,
Porque só na Mentira é que existe a tristeza!...
E assim como uma bruta pedra regelada,
De tanto desejar, de tanto estremecer
Fica num coração, às vezes, transformada,
Num perfume subtil ou numa estrela a arder,
Assim o vosso humano e frágil coração.
De tanto viajar por esse azul dos céus,
Há-de alcançar, um dia, a eterna Perfeição
E sentar-se no trono etéreo de Deus !
Sou o País a que a vida inteira se destina;
Sou a voz do Universo, o clarão da Verdade.
Pregai o que vos diz a minha voz divina.
Olhai sempre através da minha claridade.
Homens, que a vossa vida seja feita
Do fecundante amor, do perdão de Jesus...
Que a alma humana seja a alma mais perfeita
Entre as almas que fez a volúpia da Luz !
Que o vosso grande amor ligue no mesmo abraço
O rosto dum jasmim e um perfil de mulher;
As árvores da serra, as estrelas do espaço.
Tudo quanto se vê existir e viver...
Sou a mão que por sobre a terra espalha as rosas,
Num gesto que perturba os astros encantados !
E o frio que condensa as vagas nebulosas
Numa chuva glacial de mundos ignorados.
Tremo na comoção que transfigura um verso.
Que faz brilhar o aroma e as árvores sorrir !
Sou a ânsia que anima a alma do Universo,
Sou o peso que faz as lágrimas cair!...
49
TEIXEIRA DE PASCOAES
Eu sou a eterna voz do Belo e da Verdade
Que vai ecoar, ao longe, em murmúrios d'amor,
Derramando-se assim por toda a imensidade,
Desde o peito dum tigre ao cálix duma flor !
Sou o trabalho, o esforço, a suavidade e a paz,
O prazer natural e o duro sofrimento...
Vivo no coração que sob a terra jaz,
Na harmonia do azul, no delírio do vento!...
Eu sou um mundo imenso ainda por criar...
Que ainda existe na névoa eterial da Origem...
Como um astro, eu espero a hora de raiar,
A hora da concepção, como esperou a Virgem !
Sou tudo o que há-de ser, tudo o que há-de existir,
Sou tudo o que uma alma, em êxtase, pressente...
Sou a voz do Futuro, essa voz que há-de ouvir
Tudo o que sonha e vive, o que estremece e sente ! . . .
Sou um gérmen ainda, à luz do grande dia
Que brilha em cada puro e sábio coração...
Sou a aurora ideal duma estranha harmonia,
Sou, ainda num beijo, a nova Criação !
Sou ainda o Incriado, o Inominado ainda,
Por isso eu tenho um ar não sei de que tristeza...
Sou, numa escura noite, aquela luz infinda
Que há-de transfigurar, num sonho, a Natureza!...
Sou, ainda em silêncio, a voz misteriosa
Que ao mundo há-de ensinar uma nova Piedade
Na língua universal que entenderá uma rosa.
Como uma árvore em flor entende a claridade!...
Realidade hei-de ser, já que sou o Ideal.
Em mim germina um mundo; a voz de Deus escuto.
Hei-de criar porque meu ventre é virginal.
Sonho, hei-de ser acção; e, flor, hei-de ser fruto.
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OBRAS COMPI/BTAS
Mas, um dia, a doença o Velho definhou.
E mais ninguém, sobre os rochedos, o encontrou...
Não tornaram a vê-lo os montes, seus avós.
O bom Velho morreu; mas sua estranha voz
Ficou sempre a ecoar nas quebradas da serra,
Fazendo enternecer as raízes, sob a terra.
E o cadáver por sobre as urzes projectava
Uma sombra mortuária, onde um sol gravitava...
Uma sombra infinita onde transparecia
O quer que é dum novo e imaculado dia !
Quem hoje ainda subir essa íngreme montanha,
De pé, vai encontrar aquela sombra estranha,
Com uns olhos que vão além do céu profundo,
Com os braços ainda abertos para o mundo!...
PARA A LUZ
[1.^ edição, Porto, Livraria José Figueirinhas
Júnior, 1904]
k ALMA DE MEU IRMÃO ANTÓNIO
Bu gosto de sentir minh'alma derramar-se,
Como a chuva do céu, sobre todo o Universo...
De ver suavemente o mundo humanizar-se
E senti-lo vibrar dentro de cada verso.
É belo ver num ramo a ânsia dum abraço
B um beijo cintilar nos lábios dum rochedo...
Ver grande sentimento iluminar o espaço,
Ver lágrimas cair dos olhos do arvoredo.
Que a sensação do sol ao produzir o dia,
Chegue ao meu coração, fazendo-o estremecer.
B as estrelas alcance a mística harmonia
Que a dor, qual ermo vento, acorda no meu ser..,
Sê um dilúvio, ó Alma, inunda este Planeta.
Que te penetrem as raízes com amor;
Que se transforme em seiva o sonho do poeta,
B cristalize o Ideal numa infinita flor
De Justiça e de Luz, d'Amor e Piedade
Que abrigue à sua sombra a imensa Criação,
As árvores, o mar, a vasta Humanidade,
O que é lágrima e treva, angústia e solidão!...
TEIXEIRA DE PASCOAES
A MIXHA MUSA
A minha Musa agora é sombria mulher
Que, faminta e descalça, eu vejo em qualquer parte.
Quero encontrar na noite a luz do alvorecer
E nuns farrapos de mendiga uma obra d'arte.
Há nos teus lábios, Musa, o murmúrio das fontes
E no teu corpo verde há ramos doloridos.
Por sobrancelhas tens os vastos horizontes
E os nevoeiros são teus húmidos vestidos...
Simbólica mulher, descubro no teu rosto
Os traços da Miséria... a tua mãe decerto...
Nos teus olhos crepita o incêndio do sol-posto,
Há neles a amplidão magoada do deserto !
Um vento de injustiça açoita o teu cabelo,
Enruga a tua fronte a cólera de Deus !
Mas nos teus lábios ouço a voz do sete-estrelo,
A prece do luar e o cântico dos céus...
O pranto que floresce à luz do teu olhar,
Como os mundos do espaço à luz dos claros dias,
Xa minha alma entrou, como um sinistro mar
Que salta, espadanando, as broncas penedias !
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OBRAS CO^IPIyKTA.S
Dentro em mim se mudou num ideal perfeito,
Tudo o que ao meu ouvido, ó Musa, tu segredas,
E o ódio que incendeia o teu sensível peito.
Meu coração cobriu de estranhas labaredas !
Grande mendiga, vais, ó terra solitária,
Pedindo à luz do sol a esmola duma flor.
Somente existe em ti, mulher extraordinária,
O ventre auroreal que concebeu a Dor!...
Vejo-te percorrer o abismo do infinito.
Num sonho enorme, num constante delirar
Que inunda de clarões teu perfil de granito,
Onde gelou de dor a lágrima do mar !
Depois que te encontrei naquele dia baço.
Escuro como a sombra humana duma cruz,
Todo o meu corpo foge, em fumo, pelo espaço.
Toda a minh'alma eu vejo a desfazer-se em luz!...
TEIXEIRA DE PÁSCOA ES
À VENTURA
Ka hora em que se vê crescer a fria treva,
Como um sombrio mar sinistro das procelas,
Sobre um leito de luz que das ondas se eleva,
Aqui e ali, formando as ilhas das estrelas...
É que eu, sozinho ao pé desse infinito mar.
Sobre a rocha do mundo onde ele vem morrer,
E onde, às vezes, se vê a espuma do luar.
Num soluço que deixa as almas a tremer,
Sonho esta extraordinária e trágica aventura
De partir através o mar da escuridão,
Para desembarcar na terra onde fulgura
A seiva que alimenta a árvore do Clarão !
No navio do Sonho, eu vou, qual marinheiro.
Sobre as ondas da noite. Ó longínquo farol.
Verde luz a espreitar por entre o nevoeiro
De que é apenas um raio o sempiterno sol ! . . .
Quando é que tu, ó meu olhar que tudo sondas,
Hás-de ver esse mundo ideal que me seduz...
Quando hei-de atravessar as tuas negras ondas,
Ó mar da Noite, onde há tempestades de luz!..
OBRAS COMPLETAS
INVERNO
Um pálido fulgor a noite sobressalta...
Dos telhados se eleva, esguia, uma torre alta,
Como um cipreste ao pé de vagas sepulturas.
Na indecisão da luz, ó chuva, tu murmuras...
As mas vão morrer, além, num negro abismo,
Onde a luz dos lampiões, num triste paroxismo,
Agoniza, chorando a noite em que brilhou...
Principia a nevar. O vento serenou.
Um horroroso frio os membros entorpece...
B no álgido levante, a medo, resplandece
O sol a tiritar, transido, arroxeado.
Por uma névoa espessa e húmida velado...
Foi à luz deste sol que, ao limiar duma porta,
Sobre a neve, encontrei uma criança morta.
No peito as mãos em cruz, os olhos ainda abertos.
Contemplando talvez quiméricos desertos.
Como esses que ela tinha atravessado há pouco...
E eu visionei então um mundo ignóbil, louco.
Um mundo criminoso, injusto, pervertido.
Onde há bocas sem pão e corpos sem vestido.
Onde há lares sem fogo, onde há almas sem luz,
Onde Caifás é juiz e onde é réu Jesus;
Onde os bandidos são felizes e opulentos.
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TKIXKIRA DE PASCOABS
Onde a Bondade sofre os mais duros tormentos !
Um mundo que ao Azul dá a impressão dum grito,
Onde o espírito humano é um réprobo maldito,
Um Alessias que sobe um infindo calvário,
Sob um céu sempre mudo e sempre solitário,
Através dum caminho estéril, sempre agreste...
Onde Buda caiu e onde tu bebeste
O copo de cicuta, ó Sócrates divino;
Onde tu foste, Horácio, um vate libertino.
Onde tu, Vítor Hugo, encontraste um presídio
E onde por amor foi desterrado Ovídio !
Eu visionei o mundo assim como ele existe,
Alegre para o mal, para a bondade triste;
Para o crime um altar e cruz para a Verdade...
Um mundo ensanguentado e todo falsidade.
Que o calor do teu fogo, ó Satã, vem florir,
E onde ouço a Luz chorar e vejo a Treva a rir ! . . .
Eis o mundo que eu vi, ao deparar na rua
Com essa criança morta, arrefecida e nua-.
De fome ela morreu; morreu de frio agreste...
De fome de justiça, António, tu morreste !
E deste mundo ingrato e vil, meu grande irmão,
Dessa criança levaste a alma pela mão.
Tu partiste com ela, e aqui ficámos sós,
Sombrios como o mar revoltado e feroz.
Numa infinita dor onde há surdos bramidos
De rochedos que torna a lava encandecidos,
Junto da boca negra e hiante dos vulcões...
Tormento que nos faz tremer nas convulsões
Dum ódio represado, imenso e poderoso
Que faz do nosso peito um mar tempestuoso,
Um trovejante céu sem astros de esplendor,
Um abismo sem fundo onde soluça a Dor...
Dum ódio enorme, ódio sem fim, ódio infinito.
Que será da revolta o sempiterno grito ! . . .
OBRAS CO^IPLETAS
NA RUA
Meia-noite. A cidade é um fantasma sombrio
No mistério da treva aflito e angustioso...
Nos ângulos sem luz, um vulto mudo e frio
Tem um perfil sinistro e um vago olhar brumoso...
A cidade é um fantasma imóbil... Nos espaços,
Onde os astros de Deus as pálpebras cerraram.
As suas torres ergue, altivas como braços
Que num gesto infernal de dor petrificaram.
Por sobre as cousas paira um mistério profundo
Que as almas arrepia e as sombras faz tremer.
Palpita desnorteado o coração do mundo,
Sente-se um temporal de escuridão crescer!
Há reflexos de luz nos vidros das janelas.
Que voam através da treva, a cintilar.
Inconfundíveis como a brancura das velas
Sobre as ondas que anima o sangue do luar...
A noite é negro abismo. E o poeta desvairado
Inclina-se sobre ele a olhar, branco de dor,
O mistério onde existe em trevas sepultado,
O coração da luz a palpitar d'amor !
6i
TEIXEIRA DE PASCOAES
Pesa sobre a cidade uma inquieta paz,
Como a do mar que cerca as ilhas d'alva espuma.
E às negras ruas, onde morre a luz do gás,
Desce, como uma asa, a misteriosa bruma...
Goteja dos beirais o pranto do nevoeiro
Onde minh'alma sente a dor dos oprimidos...
Pranto que faz gelar o frio de Janeiro
No lívido perfil dos troncos ressequidos.
Lá baixo, junto ao cais, embarcações dormentes
Lembram a emigração e os ásperos degredos,
Terríveis temporais, os ígneos continentes,
Cavernas de leões, estranhos arvoredos !
É venenoso e amargo o ar que se respira...
É feito d'ais de desespero e de tormento.
Por isso, um peito humano em febre, que delira,
Na dor alheia encontra um místico alimento.
E dolorida brisa agita sombras d'árvores
Que por dentro são luz donzela e virginal.
No rosto de quem passa há a brancura dos már-
[ mores,
Tão nítida que exala um frio glacial.
Ó altas catedrais no espaço recortadas,
Ó espectros da noite a meditar absortos !
Ó altas casas ! Ó paredes branqueadas.
Aonde tem a cal a palidez dos mortos !
Ó plantas dos jardins fantásticas, sombrias.
Num murmúrio de dor que um ermo vento leva...
Aromas que matais, fúnebres harmonias.
Lagos feitos de lama onde é mais densa a treva !
Triste cidade onde o silêncio é um grito enorme !
Ó aflição da noite ! Alma que desespera !
Ruínas que a sombra faz. Grande caos que dorme,
Abismo onde vagueia a pálida Quimera!
Ò2
OBRAS COMPIvBTAS
É um quadro trágico, onde um vulto amortalhado
Num nevoeiro d'alma onde há cintilações,
Vai seguindo uma negra rua, esfarrapado,
No seu olhar levando o esplendor das visões !
Vai seguindo através das ruas e das praças,
Num sonho imenso de revolta e de verdade,
Ouvindo esse clamor sinistro das desgraças
Que anda no ar perdido ao pé da claridade...
Um clamor que assemelha a voz deste Planeta,
Onde o Delírio acende as notas mais agudas.
É um clamor que inspira a fronte do poeta
E que na corda do remorso enforcou Judas !
t:^ixbira db pascoaes
KUMA VIELx\
As lajes duma viela imunda e lamacenta
Exalam um gemido obscuro e imperceptível,
Enquanto a chuva cai e o temporal aumenta
E o vento grita, qual remorso intraduzível !
Sobre a lama se espelha a tiritar com frio,
Como mancha de sangue, a luz dum candeeiro...
E a infinita expansão dum tenebroso rio
Toda a cidade afoga em triste nevoeiro !
E numa casa humilde, ao pé desta viela,
Agoniza de fome uma infeliz mulher.
Sinistro, a meditar, repousa junto dela
Um homem qut visiona um velho mundo a arder...
Um mundo em chamas, como um bosque tenebroso.
Povoado de leões, de tigres e panteras;
Um planeta incendiado, enquanto o vento iroso
Leva uma onda de luz a todas as esferas!...
Junto do leito, há criancinhas a chorar
Que nos lembram, ó dor, emurchecidos lírios.
Tremem com frio oomo sombras ao luar
E nos seus olhos há vertigens e delírios.
Há muito se apagou o fogo da lareira...
Ouve-se o murmurar confuso das desgraças...
E uma rajada impiedosa e traiçoeira,
Num sorriso cruel, vai d'encontro às vidraças.
Enquanto a chuva da Injustiça inexorável
Invade aquele lar desfortunoso e triste...
E enquanto a noite imensa, augusta, imperturbável,
É como a alma, ó dor, de tudo quanto existe!...
64
OBRAS COMPIvBTAS
UMA TRAGÉDIA
Que grande multidão, além, naquela praça!
As carruagens não conseguem transitar...
E, num pressentimento enorme de desgraça,
Trémulo aproximei-me então desse lugar.
Nas pedras dum passeio, eu encontrei deitado,
Os olhos já sem luz, com o crânio partido,
O peito todo em sangue, um homem desgraçado
Que dum terceiro andar havia ali caído...
B uns murmúrios banais de tristeza e piedade
Pairavam sobre mim, como uma sombra fútil.
E eu vi toda a irrisão e toda a crueldade,
Inconsciente talvez, daquela dor inútil !
A escura multidão chorava aquela morte,
Nesse triste prazer que produzem os dramas.
Onde há lagos de sangue e maldições da sorte
E mártires a arder entre vermelhas chamas !
Porque é que vós chorais o magro proletário
Que num perigo enorme a trabalhar andava.
Um Cristo que subira, enfim, o seu calvário
E que entre os Fariseus, colérico, expirava.
Se fostes vós, irmãos, os únicos autores
Desse drama que tanto assim vos comoveu?...
Uma injúria saiu daqueles estertores
E, ao ouvi-la, vossa alma inquieta estremeceu !
65
TEIXEIRA DB PASCOAES
Era uma injúria de revolta e indignação
Contra a injustiça humana e contra a crueldade
Que obrigam a perder a vida por um pão
Um justo que merece o amor e a piedade...
E o povo dispersou num remorso sombrio...
E na sua sombra negra a noite amortalhou
Esse cadáver hirto, ensanguentado e frio
Que aos homens sem amor a Paz arrebatou!...
OBRAS COMPIvKTAS
*
Sinto na minha alma a dor dos oprimidos.
E trituram meu ser, Miséria, a tua fome,
As tuas sedes, os teus trágicos gemidos
E essa treva feroz que toda a luz consome!
O luto que entristece os órfãos e a viúva
Em negros crepes envolveu meu coração.
Pendem do meu perfil as lágrimas da chuva
Onde a Quimera acende o riso dum clarão.
Há horas em que eu sinto o sofrimento humano,
A grande dor que chora em cada humilde ser,
A loucura que toca as ondas do oceano
E a saudade que faz um sol anoitecer !
É a hora em que no nosso olhar incendiado
Fervem as lágrimas de toda a natureza. ^
É a hora em que num peito agreste e congelado
Cai, em flocos de neve, a água da tristeza.
É quando o poeta sonha o eterno e indefinido
IvOuco sonho febril em que o mundo delira.
É a hora em que o mais leve e pálido gemido
Nossa alma faz vibrar assim como uma Eira !
Momentos d'êxtase profundo e visionário.
Quando a Revelação as trevas ilumina...
Quando num frouxo olhar, mortal e solitário.
Parece resplender estranha luz divina.
Instante que recorda a hora imaculada.
Quando a primeira vez bateu a Piedade
À porta duma alma, extática, admirada,
Que, súbito, se abriu a tanta claridade...
Hora em que o nosso ser parece condensar-se.
Como nuvem subtil, numa lágrima pura
Que dos olhos ideais de Deus vai derramar-se
Por sobre toda a dor e toda a desventura...
^ Emenda manuscrita num exemplar do A. : «Arde o pranto
de toda a natureza».
67
TEIXEIRA DE PASCOAES
TEMPESTADE
.Minh'alma fez seu ninlio ao pé dum grande abismo,
Onde chega, a tremer, o álgido paroxismo
Dum imenso estertor.
Um orvalho de sangue as minhas faces molha,
E o lírio do Azul por sobre mim desfolha
O vendaval da dor !
Sinto no coração esse terrível frio
Que enche os montes de neve e faz gelar um rio
E tiritar o mundo.
Meu cérebro delira em sonhos de tristeza...
E aos meus ouvidos chega a voz da Natureza,
Num soluço profundo!
E uma trágica voz feita de fel e pranto.
Onde a Alegria chora em pálido quebranto
E onde é um gemido o vento.
Ê uma voz aflitiva e triste, onde murmura
A dor universal, a humana desventura,
O eterno sofrimento!
6S
OBRAS COMPLETAS
Uma voz onde existe o timbre excepcional
Da voz dum lírio que emurchece em ermo vai*,
Da voz do que sofri,
Da voz da luz que o vento vai assassinar...
Foi essa voz que faz as árvores chorar
Que me falou de ti,
Quando, um dia, passei, à hora do poente.
Perto da campa onde tu sonhas suavemente,
Numa visão de luz
Que te revela agora o Ideal que desejaste,
Esse ideal que sobre a terra não achaste,
Assim como Jesus !
Dorme em paz, meu irmão. Ó vítima sublime
Da negra estupidez, da injustiça e do crime
Que ainda insultam Deus !
Dorme em paz; que o teu sonho imenso de Verdade
Há-de ser para o mundo a nova claridade
E o novo azul dos céus.
Teu sonho não morreu contigo. É sempiterno.
E uma bendita flor sem abril, sem inverno.
Que tu semeaste, irmão.
E será sempre um sol quimérico a fulgir
Sobre as almas que, um dia, o Bem hão-de sentir,
Aquele teu perdão!
Grande acontecimento e cousa extraordinária !
Quando a tua alma triste, agreste e solitária
Como Jesus, perdoou.
Ó sublime perdão ! Imaculado dia
Que nos permite ver as asas d'harmonia,
Onde a tua alma voou...
Perdão que fez tremer de pânico um bandido
E que vestiu de luz o espaço indefinido...
Ó palavra d'amor
69
TEIXEIRA DB PASCOAES
Que as estrelas de Deus, cantando, repetiram,
Palavra que também os lírios proferiram,
Sorrindo à tua dor.
Ó divino Perdão ! Ó sacrossanto exemplo,
Que merece um altar, Verdade, no teu templo.
Palavra sobre-humana !
Como a essência que anima as árvores e o granito,
Que o teu perdão de luz, esse sol infinito.
Anime a alma humana!...
OBRAS COMPI^BTAS
Quem pode ser feliz, enquanto houver o mal?
Quem pode ser alegre enquanto houver tristeza?
Sorrir, enquanto chora a dor universal?
Cantar, enquanto é um ai profundo a Natureza?
Quem pode ser sereno, enquanto os vendavais
Causam naufrágios, perdições e mortandades,
E enquanto os homens são injustos, desiguais,
E enquanto sobre a terra há só calamidades?...
Por isso, tu, minh'alma, ó triste visionária,
Desce da tua luz às trevas horrorosas
E guarda, dentro em ti, ó grande solitária,
As lágrimas sem fim dos seres e das cousas...
Desce do etéreo azul, alma bondosa e forte !
És precisa no mundo e não nos altos céus.
Que tu conheças bem a noite, o mal e a morte,
Antros onde não chega o resplendor de Deus!...
Deixa os astros. Amor, e desce aos lodaçais.
Despe a túnica d'oiro, e que teu rosto belo
Fique branco de dor, fique orvalhado d'ais.
Uma lágrima é maior que o sete-estrelo ! . . .
TEIXEIRA DE PASCOAES
MENDIGA
Triste dia de inverno. Os vagos céus brumosos
Têm um gelado ar de amarga desventura...
Como tudo nos abre uns olhos lacrimosos,
Como tudo é cinzento e a própria luz escura...
As verdes folhas estiolam resignadas;
Gelam as lágrimas e o mar, gelam as fontes.
E as árvores vão ser, ó dor, carbonizadas
Pelo incêndio do frio, a crepitar nos montes!...
Nas vidraças que o sol trespassa frouxamente,
Há lúcidos cristais, doidas cintilações.
Como num morto olhar se avista, de repente,
Entre as cinzas da treva, o brilho das visões...
A chuva desbotou o meigo azul do céu.
Sopra um vento que fere os roxos corpos nus...
A Fome anda a gritar na rua; enlouqueceu...
E a noite vai, ó crime, estrangular a luz!
E além, uma mulher, pálida e quase nua.
Oferece a uma criança os peitos 'magoados,
Álgida, a tiritar sobre as lamas da rua.
Nessa altivez que aureola a fronte aos desgraçados !
72
OBRAS COMPLEXAS
Uma profunda dor põe nódoas de tristeza
Na inquieta limpidez do seu olhar aflito,
Onde arde um sonho estranho e cheio de grandeza,
Fecundo como o ventre eterno do Infinito!
A Miséria rasgou, sem pena, os seus vestidos;
O seu corpo anda exposto às geadas e aos ventos...
E descubro através seus olhos doloridos
A alegria da luz que tem deslumbramentos !
Os seus andrajos de mendiga resplandecem,
Um clarão d'alma sai do seu perfil esguio...
B a sede e a fome atroz seus membros emurchecem,
Como um lírio que sente uma impressão de frio!
Pelo seu rosto corre, em fio, um pranto amargo,
Onde um sorriso etéreo eu vejo cintilar...
E lá no vácuo do seu peito fundo e largo
Há prenúncios d'Azul, grandes sintomas d' Ar !
És uma noite onde há o quer que é d'aurora,
Silêncio que me causa a impressão duma voz.
E vejo-te seguir por esta vida fora,
Como a sombra que Deus projecta sobre nós...
Misterioso ser, criatura misteriosa.
Conjunto excepcional da aurora e do poente.
Se teu corpo tortura a fome impiedosa,
O sonho vem doirar teu cérebro vidente.
Ela vai através das ruas, como o vento
Vai através do espaço, em lágrimas desfeito.
E a palidez da fome é qual deslumbramento
Que lhe ilumina o magro rosto e o magro peito !
E aquela carne ressequida pela fome
Dá-nos mais a impressão d'alma que de matéria...
E aquela alma que a dor, sem um perdão, consome
Cai sobre o filho, a rir, como lágrima etérea ! . . .
73
TEIXEIRA DE PASCOAES
Ventre do sofrimento onde germina o Amor...
Ó lágrima que o sol do Bem acaricia !
Sangrentos lábios a beijar dorida flor,
Noite que traz ao colo a luz dum novo dia...
Ó dolorosa Mãe, trazes teu filho ao peito,
Como as nuvens do mar os ventos iracundos...
O teu filho é Jesus. É ele o novo Eleito,
B ao sol do teu olhar as lágrimas são mundos!...
Ó Mãe, ó Criação descalça e visionária !
Nebulosa a sangrar. Génesis todo em pranto!
Ó divina Mulher, ó Alma solitária.
Os astros sei ouvir; ouço também teu canto!...
Vais como sol, vais como a sombra da Amargura,
Através duma rua imunda e glacial.
Tendo na tua frente a triste noite escura.
Deixando atrás de ti a aurora do Ideal ! . . .
Passou como um gemido... E, quando além da es-
[quina
Seu vulto se escondeu, senti no ar tristonho
O místico acordar duma visão divina.
Um hálito de Deus, um resplendor de sonho...
Nos meus olhos senti um grande alvorecer...
Era uma lágrima bendita de Piedade,
Era um astro infinito, humano, a resplender.
Na grande irradiação do dia da Verdade!..,
OBRAS CO]MP]vBTA.S
A FÁBRICA
As negras chaminés, quais bocas tenebrosas,
Cospem no azul negros escarros pestilentos
Dum fumo que envenena as paisagens nervosas
E que os lúcidos céus nos torna nevoentos...
A fábrica trabalha, e silvos estridentes
Cortam, como uma espada, a trágica atmosfera.
Há rodas a girar, grandes fornos ardentes,
Terríveis como o olhar sangrento da Quimera !
Lívidos rostos, como lágrimas, orvalham
Os vapores que vão mover as engrenagens.
Há negros vultos revoltados que trabalham.
Enquanto o sol fecunda o ventre das paisagens !
Vem visitar, ó Dante, este medonho inferno,
Os negros antros do Trabalho e da Miséria...
Cavernas onde geme o sofrimento eterno
Que tem no rosto magro a palidez funérea!
Anda ver, ó Poeta, os antros do Martírio,
Os modernos Titãs que hão-de escalar os céus...
E nas forjas, a arder, as chamas em delírio,
Que, porventura, anima a cólera de Deus!..,
75
TEIXEIRA DE PASÇO A ES
E a bigorna onde forja a Dor o raio ardente
Que há-de o mundo imperfeito e injusto fulminar !
Mas nesta escuridão eu vejo claramente
O brando alvorecer dum místico luar...
E da Fábrica cruel, cheia de fumo e treva,
De grandes corações amargos, sofredores.
Um grande sonho, ó Deus, fantástico se eleva,
E envolvem a oficina estranhos esplendores ! . . .
OBRAS COMPIvBTAS
UMA SOMBRA
Fúnebre palidez desce do Firmamento...
Dum cadáver parece exalações estranhas...
Fugitivo, no azul, vê-se o perfil do vento.
Olha o pálido mar e as lívidas montanhas !
Um soturno clamor enche de sons magoados
A cidade que acorda, e observa espavorida
Uma Sombra que tem dois olhos incendiados
Que a tudo vão lançar teu fogo eterno, ó Vida !
Vês a Miséria, Amor? Vamos passar por ela...
É um esqueleto ressequido pela fome.
Anoitam seu olhar nevoeiros de procela.
Sai um clarão de dor do fogo que a consome !
E um desespero mudo e frio, como a neve
Que inexorável queima as últimas folhagens,
Quando a neblina beija as cousas, ao de leve,
E com seus dedos fecha os olhos das paisagens,
Sobressalta e contrai seu desolado rosto,
Terrível como um grito e inquieto como a treva
Que ao respirar do vento, à hora do sol-posto,
Lívida, por detrás das árvores se eleva!...
Lutou pela justiça e foi vencida. Amou,
Foi odiada. Endoideceu... Grande martírio!
O riso nunca mais seus lábios deslumbrou.
Nos seus olhos sussurra o vento do delírio !
Nos seus cabelos há crepitações de chama,
Prenúncios dum incêndio universal e santo...
11
TKIXEIRA DE PASÇO A ES
B no seu peito agreste e rude, que não ama,
A cólera desperta um tenebroso canto !
Está louca a cantar. Nem olha para nós.
Toda ela é um soluço, um revoltado grito
Aonde vai morrer a nossa frágil voz.
Como um raio de luz no vago do infinito !
Ofélia d'hoje que a Injustiça enlouqueceu.
Debruçada, a tremer, sobre um abismo imenso !
Lágrima universal na pupila do céu,
Pranto da Criação dum ermo olhar suspenso!...
Aquela lágrima evapora, ó sol do amor...
Converte-a em criadora e etérea nebulosa.
Cristaliza num mundo ideal aquela dor,
Condensa numa alma a carne tenebrosa ! . . .
OBRAS COMPI,BTA.S
TODOS OS DIAS
Não há um dia, António, em que não pense em ti.
Como queimam meu sangue as dores que sofri
Naquele horrível dia escuro de tormento
Em que tua alma subiu, liberta, ao Firmamento,
Quando teu corpo ao cair, inânime, no chão,
Fez a terra tremer em grande convulsão
De desespero insano e cólera sagrada !
Minha alma ficou inerte e fulminada
Ao saber desse crime hediondo e tenebroso,
Que meu suave viver tornou tempestuoso.
Que sombria revolta o meu ser estremece !
Que frio glacial meu peito empalidece.
Quando em meus olhos tenho essa visão sangrenta,
Que de dia e de noite, ó Ódio, me atormenta,
Do assassino feroz e vil que te matou
E a quem teu coração divino perdoou!...
Do bandido que adora a injustiça e a maldade.
Do assassino da Luz, do Amor e da Verdade !
Do canalha sem nome e pútrido sicário
Que nova cruz ergueu sobre um novo calvário,
E que é a vergonha eterna, ó Deus, da Natureza !
Uma nódoa do Azul, a mancha da Pureza,
A grande indignação da justiça bendita.
Duma nuvem, dum vaP a vergonha infinita,
O remorso do sol, a agonia do luar
E a nódoa que sujou o revoltado mar
79
TEIXEIRA DE PASCOAES
E a face ideal da Vida e o coração de Deus
B os astros virginais que tremem, lá nos céus!...
A injustiça é o maior dos crimes. Ser injusto
É ser a incarnação do remorso e do susto,
É ser a estupidez, é ser a noite e o mal,
É não ter uma alma, é ser irracional,
É ser lodo, é ser pó ou cinza apodrecida,
É morrer, é não ter nenhum direito à Vida!...
OBRA.S COMPI^ETAS
II
Nessa noite sem fim da minha dor enorme,
Onde eu velo sozinho e aonde tudo dorme,
Às vezes, me aparece a tua imagem querida.
Num fundo de tristeza, em lágrimas diluída...
Vejo-a formar-se, dentro em mim, saudosamente,
Como o espectro dum sol, num lívido poente.
Tua imagem de luz, extática, deslumbra
Todo o meu ser que é sombra, escuridão, penumbra.
Abismo, confusão, caos tempestuoso...
E sinto encher meu vácuo enorme e tenebroso,
Como um golpe de mar, a tua claridade
Que vem de florescer a terra da Verdade,
Que vem de agasalhar mundos desconhecidos,
De dar vigor e alento às almas dos vencidos...
E então todo eu me sinto enlevado e suspenso,
Como nuvem de dor, do teu Azul imenso ! . . .
E o teu sonho d'amor todo o meu ser domina,.
Nos meus olhos deixando uma visão divina.
Em que tu, grande irmão, apareces nimbado
Dum estranho fulgor sempiterno e sagrado...
E, olhos todos perdão, serenos e benditos,
Postos nos olhos meus, desvairados e aflitos,
Tu me dizes, num gesto infindo de ternura:
«Não descanses, irmão, percorre a noite escura.
Continua a pregar a Verdade e o Amor.
8i
TEIXBIRA DB PASCOAKS
Acende a luz do Bem na escuridão da Dor.
Continua a sonhar o sonho que eu sonhei...
Toma as armas com que eu, na terra, pelejei,
E nunca faça a paz teu triste coração
Na luta da Justiça e da Libertação.
Dá teu corpo à fogueira e os teus braços à cruz.
Trabalha, canta, sofre e ri; sê vida e luz».
OBRAS COMPI/ETAS
VIDA DO CAMPO
Elevam-se da terra os húmidos vapores
Numa estranha ascensão; e gritos de pastores
Trespassam, como a luz, a misteriosa bruma...
Nas encostas da serra há flocos d'alva espuma,
B no orvalho que pende, a rir, dos troncos velhos,
Há reflexos azuis, doirados e vermelhos...
A geada levanta a terra dos caminhos...
Nos arvoredos nus, choram ruínas de ninhos.
Fumegam campos, sob os golpes das enxadas...
Há frontes ideais, rugosas, consteladas.
E loiros bois abrem a boca a fumegar.
Num mugido saudoso e triste como o mar...
Mugido d'égloga que fala de Virgílio,
Como querida voz, num silêncio de exílio.
Nascido dum desejo obscuro doutra vida.
Duma ansiedade, para nós, incompreendida.
Vaga, crepuscular, como a melancolia
Da lua onde vagueia o teu fantasma, ó Dia!...
Alma dos animais, que poeta te sondou?
Tuas palpitações ninguém as auscultou...
Quem pode conhecer teus íntimos segredos,
Ó alma quase igual à alma dos arvoredos?
Alma obscura a sonhar no longínquo, no vago,
Ébria de névoa, como o olhar azul dum lago...
Um mundo interior, estranho e misterioso
Tu contemplas talvez, alma d'olhar brumoso...
S3
TEIXEIRA DE PA SCO A ES
Não conheces, decerto, a imagem ilusória
Da existência banal, frágil e transitória...
Estudas simplesmente o mundo do Invisível,
A luz que para nós é a noite do Insensível...
Tu profundas o céu, os outeiros e a flor.
Da essência do Universo alcanças o esplendor!
Por isso, ó alma ignota, em ti murmura a luz
Que deslumbra um rochedo e que banhou Jesus!...
A neblina que o sol tão sôfrego absorveu,
Deixa-nos quase ver, em alma, o azul do céu...
E os montes têm, além, altos perfis estranhos,
E longe dos currais pastam meigos rebanhos...
Dentre eles se destaca, às vezes, um cordeiro
Que pára e fica a ouvir cantar o pegureiro,
Enternecido como as pedras que escutaram
Os teus cantos, Orfeu, que as cousas encantaram..'.
E, com um ar antigo, as lindas raparigas,
Hoje rainhas e amanhã talvez mendigas.
Para o almoço dos pais improvisam a mesa
Sobre um tronco arruinado e cheio de tristeza,
Que se desfaz em luz eterna e virginal.
Que se vai integrar na alma universal...
Que vai ser Deus, Amor, Génesis, Criação,
E que nos dá somente a pálida impressão
Dum punhado de pó, de terra, cinza e nada
Que os ventos, a correr, levantam duma estrada...
OBRAS COiSIPI/ETAS
II
É meio-dia. O sol é todo claridade.
As coisas têm um ar cru de realidade...
De nítido o azul é quase material.
E os ramos nus, pelas encostas d'ermo vai',
Projectam uma sombra esguia de esqueleto,
Uma viúva do mês d'abril, toda de preto.
Fulge nos tanques, que trasbordam, um tesoiro;
Como o Tejo doutrora, os rios levam oiro...
No céu lavado andam murmúrios e rumores,
E grita, num delírio, a nitidez das cores !
Nimbam as formas vãs fulgurações estranhas.
E que relevo têm, nos longes, as montanhas!...
E como tudo é claro e lúcido e visível,
Como se sente um ramo, à luz do sol, sensível!...
Surpreende-se, por pouco, esse instante d'amor
Em que a água vai ser um místico vapor.
Um voo, uma ascensão ignota, indefinida.
Do Olivete da morte aos paramos da Vida !
Um penedo sorri, à beira duma linfa...
Pressente-se, num bosque, uma invisível Ninfa.
E o nosso claro olhar distingue, à luz dos céus,
Num fundo de floresta o resplendor dum Deus!...
Ladram os cães. Gemem as noras, sem descanso,
E um boi passa por nós absorto, ingénuo e manso...
Eis a paisagem real que fala ao nosso olhar,
Enquanto vemos, pelos campos, trabalhar
O pobre camponês, sem lar e sem candeia.
Que sente o seu suor cair em terra alheia ! . . .
S5
TBIXBIRA DB PA SCO A ES
III
Num pálido desmaio a luz do dia afrouxa.
Envolve os montes uma gaze ténue e roxa,
Que a tudo dá um ar melancólico e suave...
K o voo tão solitário e triste duma ave
Faz palpitar d'amor o éter invisível
Que esplende num clarão oculto e imperceptível...
E descem sobre a terra, em nuvens de quimera,
Os perfumes subtis da morta primavera,
Que se vão infiltrar nas almas, onde acendem
Sonhos, ânsias, ideais que os homens não entendem.
Por sobre as cousas paira uma melancolia...
Em tudo há palidez de mística anemia.
As nuvens passam, no poente, a escorrer sangue...
Cada árvore é uma enferma a definhar, exangue.
E, numa encosta solitária e desolada,
Descobre-se uma casa antiga e abandonada,
Onde vagueiam, a sonhar, ermas saudades.
Fantasmas de luar, sombras de claridades,
Brancos espectros duma vida que passou.
Fumo ainda a subir dum lar que se apagou...
Vai diminuindo a luz. E mansa escuridão
Sobre as formas derrama inquieta indecisão...
Sente-se o agonizar das cores que falecem,
Sente-se o endurecer dos ramos que arrefecem...
A estrela do pastor coroa um ermo outeiro
E as montanhas, além, parecem nevoeiro...
86
OBRAS COMPLETAS
K o triste camponês, de fronte descoberta,
Vai sozinho através da paisagem deserta.
Sentindo no seu corpo o gelo do suor
E a fome que lhe causa uma impressão de dor.
Em direcção à sua rústica choupana
Mais piedosa e melhor do que uma alma humana...
TKIXBIRA DB PASCOAES
IV
Noite velha. Por sobre a terra ingrata e nua,
A muda ondulação da escuridão flutua,
Num pesado silêncio angustioso e aflito,
Que nos dá a impressão dum represado grito
Numa garganta que um soluço sufocou...
Negra nuvem de chuva os astros apagou.
É um imóbil fantasma, além, um arvoredo...
E oculta sensação atávica de medo
Derrama em nosso corpo um arrefecimento...
E uma inquieta paz, um duro esquecimento
Envolve as almas, os rochedos e as montanhas,
Onde vemos tremer cintilações estranhas
Que vão ferir o nosso olhar alucinado
Que a própria treva deixa, às vezes, deslumbra-
[do !...
Tal como se ela fosse uma revelação,
Como se ela nos desse a nítida visão
Dum mundo interior, ignoto e nunca visto.
Onde cai, sem descanso, o dia do Imprevisto,
Num niágara de luz que ofusca e que deslumbra,
Enquanto esconde a terra uma espessa penumbra...
A noite é mais pesada. O vento principia
A derramar, no espaço, uma vaga harmonia...
Uma chuva miúda e triste nos beirais
Põe murmúrios de dor, misteriosos ais...
E as ermas bouças vão ficando humedecidas,
88
OBRAS COMPI/ETAS
t
Qual lenço que enxugou lágrimas doloridas...
Enquanto o camponês, num grande pesadelo,
Sente na sua fronte o eriçar do cabelo
E descobre no fundo obscuro do seu sonho
Um fantasma de luz, esplêndido e risonho,
Que nos seus braços o arrebata, com amor,
Para um mundo ideal onde não chora a dor!...
Entre as árvor's e o céu há diálogos profundos...
Comove o espaço o ignoto amor que liga os mundos.
De tudo a solidão parece dimanar.
Como um fluido, o silêncio as coisas faz sonhar...
Por isso, sem querer, mais baixo, nós falamos
Quando, à noite, por uma estrada caminhamos...
É um respeito instintivo, oculto e religioso
Pelo sono bendito, augusto, misterioso
Em que adormece a boa terra, o santo arbusto,
A virgem fonte, o mar sagrado, o lírio justo!...
TEIXEIRA DE PA SCO A ES
O HOMEM E OS OUTROS SERES
Quando, às vezes, eu saio, à tarde, a passear,
As aves e os répteis e os outros animais,
Todos fogem de mim, ao verem-me passar
E tremores de susto agitam os silvais...
Os vales sem ninguém meu ser enche de medo...
De pânico eu inundo as sebes dos caminhos.
E, sempre que me sento à sombra do arvoredo,
Há calefrios de terror dentro dos ninhos...
E eu, que sonho a Piedade e que desejo o Amor,
Que ao ver a Criação me sinto comovido.
Tenho um grande desgosto e uma profunda dor,
Ao ver-me, ó Natureza, assim incompreendido
Por tudo quanto eu amo enternecidamente.
As estrelas, o azul, as nuvens e o luar...
De que serve a consciência ao pé do inconsciente?
Se há só trevas não é preciso ter olhar...
Tu vinhas ter comigo, ó pedra, se me ouvisses,
E vós, ondas do mar, e vós, altos espaços !
Se o que eu sinto por ti, ó ave, pressentisses.
Tu farias, decerto, o ninho nos meus braços!...
90
OBRAS COMPIvBTAS
Mas, na minha tristeza, eu tenho esta visão
Do amor que há-de reinar em toda a criatura.
Do laço que há-de unir o humano coração
Ao rochedo que sonha e à nuvem que murmura...
Julgo que vou subindo a encosta duma serra
B que nas árvor's fulge o luar da Piedade...
E que as aves do céu e os animais da terra
Projectam sobre mim uns olhos de bondade...
TEIXEIRA DE PASÇO A ES
UM BURRO
Eu encontrei, um dia, a pastar sobre um prado
Um burro magro, esguio e triste e abandonado...
Ele tinha o quer que é de anacoreta ascético
E na sua fronte triste um doce olhar profético...
Um inspirado olhar, profundo e visionário
Que vê tudo através da noite do Calvário...
Que, além da realidade, avista o Ideal !
Olhar inconsciente, olhar irracional
Ou como a luz do luar ou como a luz do dia
Que avistam um perfume e vêem toda a harmo-
[nia...
Olhar que só descobre o que o Universo sente;
Olhar feito pra ver o Espírito somente...
Que numa lágrima só vê bendita dor,
Numa pedra uma alma e num lírio um amor.
Divino olhar que nos parece amortecido.
Como um astro remoto a nada reduzido.
Porque brilha no Além, no azul distanciamento,
Onde tudo é paixão, beleza e sentimento!...
O seu corpo era alto, humano e muito ossudo.
Corpo de sábio definhado em longo estudo.
E o seu belo perfil, no ar, se desenhava
E o S-onho, como a luz, seu corpo aureolava...
E ao vê-lo eu meditei, ó Deus, numa alma triste
Que sofre a eterna dar de tudo quanto existe...
Numa alma misteriosa, oculta e incompreendida,
g2
OBRAS CO:\IP]vETAS
Que conhece o princípio e o vago fim da Vida...
Que atingiu o Absoluto e a pura consciência
De tudo — desde a Forma ao resplendor da Essên-
[cia...
Que vive na visão eterna da Verdade,
E que vai toda amor, toda paz e humildade,
Sob açoites cruéis e duras chicotadas,
Pela horrorosa mão da Estupidez vibradas,
Em busca do Martírio, a caminho da cruz,
Para morrer salvando, assim como Jesus!.,,
t:eixe:ira db pascoabs
VIDA DO MAR
Quantas tardes, eu vou, sozinho, passear
Ao longo do brumoso e soluçante mar...
E vejo, ao cair do sol nas ondas abrasadas.
Entre as rochas que estão de espuma coroadas,
Tristes habitações de pobres pescadores...
Telhados pra abrigar soluços, ais e dores.
São choupanas onde há postigos e janelas,
Donde a Tristeza vê, ao longe, as brancas velas,
Navios onde vai ao leme a Saudade...
Sopra um vento que traz a viuvez e a orfandade...
OBRAS COMPLETAS
II
Sente-se palpitar o coração do Oceano
Que pela lua tem um grande amor humano.
Tremem as ondas num ataque de histerismo.
E nas gaivotas há a tentação do abismo,
Tão altas elas vão, num voo misterioso...
Assopra, desgrenhado, um vento lacrimoso...
E nas correntes d'ar que as ondas arrefecem
Vibram as sensações que uns nervos estremecem,.,
Sensações que vão ser inéditas imagens
No cérebro do mar, feito para as sondagens.
Como uma asa negra, a triste cerração
Desce do céu, cheia de horror e de aflição !
B um medo sobressalta as ondas que se atiram
D'encontro à erma praia, onde, chorando, expiram.
Os promontórios nimba uma auréola d'espuma.
Relâmpagos de dor incendeiam a bruma,
E, num clarão de incêndio, ela se transfigura...
Depois, a noite fica ainda mais escura,
E as águas vão pequenos barcos devorando.
Rasgam o ar terríveis ais de quando em quando !
Beijos de despedida e últimos abraços,
A caminho da Paz, percorrem os espaços.
Furam a espuma mãos crispadas de terror,
E há corpos a boiar, donde fugiu a Dor...
E, qual fantasma sobre as tenebrosas ondas.
Lívido e amortalhado em trevas hediondas,
Vê-se um navio enorme e negro a naufragar.
Onde entra, num rugido amargo, o vasto mar!...
95
TEIXEIRA PE PASCOAES
III
Um vulto esguio de mulher, todo de preto,
Abraça, sobre a praia, um trágico esqueleto
Que uma onda, com amor, nos seus braços lançou,
Num gesto d'alva espuma onde o luar cintilou...
E a noite vaga sobre as águas repousada,
Sentiu a Palidez torná-la desmaiada...
E um frémito de dor, no ar, resplandeceu.
E depois, todo o mar antigo escureceu.
E a treva adquiriu tão grande intensidade.
Que me dava a impressão de estranha claridade
Que, em vez de deixar ver, meus olhos deslumbrava.
E o mar tinha uma voz profundamente cava...
E a bruma, num suor gélido d'agonia.
Aos cavernosos céus, fantástica, subia...
Enquanto o mar beijava os íngremes rochedos,
No desejo que prende o vento aos arvoredos.
E os negros temporais, no horizonte, passavam
E as destemidas naus, com cólera, insultavam!
E aquele vulto se escondeu nas trevas densas
Que abrigam, com amor, as aflições imensas...
E a noite trespassou a crua luz dum grito
Que ampliou até Deus a sombra do Infinito!...
OBRAS COMPLETAS
IV
Velhos homens do mar, ó rudes marinheiros,
Filhos dos temporais, irmãos dos nevoeiros.
Confidentes do amor que as ondas ilumina.
Tradutores da língua estranha da neblina...
Ó leitores do livro azul do Firmamento.
Intérpretes do luar, das nuvens e do vento!...
Almas rudes que têm a energia do mar.
Cabelos brancos numa chuva de luar...
Ó frontes ideais batidas do nordeste!
Vagos olhos a olhar toda a amplidão celeste...
Ó perfis onde morre o clarão do sol-pôr
Que dentre as ondas sai numa explosão de dor !
Marinheiros da Grécia antiga que assististes
Do alto das vossas naus, ansiosos e tristes,
Ao suicídio de Safo e ao canto das Frinés
K às grandes comoções que agitam as marés!...
K que vistes nascer, num dia excepcional,
Vénus — esse sorriso eterno e universal —
Duma onda que os clarões da aurora fecundaram.
Quando as águas e a luz, famintas, se beijaram.
Num desejo d 'amor que sempre se traduz
Numa árvor' que dá flor bem antes de ser cruz.
Num desejo ideal, quimérico, imprevisto
Que foi o pai de Pã e foi o avô de Cristo!...
Velhos homens do mar de todos os países,
Ó rudes corações cheios de cicatrizes,
Abertas pela mão cruel da Nostalgia...
Almas feitas de treva e de melancolia.
91
TEIXEIRA DK PA SCO A ES
Inquietas, sempre a olhar o fundo dum abismo
Que estremece num grande e eterno paroxismo, •
Por sobre o qual vagueia a sombra de Virgínia,
Leve como o perfume etéreo da glicínia.
Branca como, no inverno, a gélida camélia,
Levando ao lado a sombra pálida de Ofélia;
Cabelos soltos, alma feita de amargura.
Olhos fenomenais onde canta a Loucura!...
E as duas sombras vão a chorar e a cantar.
Como outrora Jesus, sobre as águas do mar...
Homens que adormeceis no seio das tempestades !
(Misteriosas paixões, ignotas ansiedades...)
Aos meus ouvidos vem a voz da Natureza
Cheia da vossa amarga e trágica tristeza...
L sinto na minh'alma a grande solidão
Que, no meio do mar, vos toma o coração!...
Eu vivo, como vós, no infinito e no vago
Que há num dorido olhar e num' nevoento lago;
Numa onda a mudar-se em névoa transcendente,
Nos ermos animais que sofrem como a gente...
Eu vivo, como vós, a vida extraordinária
Duma vela, ao luar, longínqua e solitária...
A existência subtil da vaporosa espuma,
Em cujos olhos brilha a tua alma, ó bruma !
E sinto, como vós, o desespero insano
Que eleva até à lua as ondas do Oceano !
E a revolta sagrada, a cólera bendita
Que sobre a terra, em água, as nuvens precipita...
Que faz gritar, no espaço, o vento desgrenhado.
Um réprobo talvez, um doido, um condenado...
E sou filho também da grande tempestade
Onde há relâmpagos d'amor e de verdade!
OBRAS COISIPLETAS
TREVAS
Numa treva d' abismo, eu vejo naufragar
Os seres que descubro à luz desse luar
Que sobre o mundo chora uma lua de morte...
Um vento de descrença, um frio vento norte
A árvore do Ideal açoita cruelmente...
H seus lábios em flor estiolam, numa ardente
Sede de primavera e fome de Verdade.
E os seus ramos já nus, hirtos, na imensidade
Descrevem gestos de loucura e de tristeza,
Que fazem arrepiar a alma da Natureza...
Uma treva d'abismo as almas asfixia.
Enquanto a luz do sol é um riso d'ironia
E é uma gargalhada o soluçar das ondas...
E enquanto o vento diz palavras hediondas
E as estrelas do céu são lágrimas perdidas
Que, nalgum morto olhar, ficaram esquecidas...
E eu vejo a alma humana agonizante e triste,
Na descrença fatal de tudo quanto existe.
As pálpebras cerrar à evidência da Luz,
Como outrora Caifás quando julgou Jesus !
E abri-las, num assombro, à noite da Mentira,
Em cujo seio o Mal, numa embriaguez, delira!
99
TEIXEIRA DE PA SCO A ES
Eu oiço a alma humana aflita, no estertor
Duma agonia cruel, dizer à sua dor:
«Sou uma sombra, uma mentira, uma ilusão!
Não sou fonte de luz, mas sim de escuridão...
A vida não foi mais que um pretexto banal
Para que, um dia, ó dor, o fantasma do Mal
Saísse da inconsciência obscura do Universo,
Onde ele em cada coisa existiu já, disperso !
O Amor, a Perfeição, a Justiça e a Verdade
São como nuvens a fugir na imensidade.
Que o vento norte numa lágrima condensa
K que o sol vai beber com uma sede imensa !
A vida não é mais que este horrível momento
Em que se chora e sofre, enquanto o doido vento,
Sem ternura, arrebata os nossos frios ais,
Delirante, através os ermos pinheirais.
Onde eles deixam, a gritar, sombras estranhas
Que inundam de pavor o dorso das montanhas!...
O céu é apenas um disfarce azul do inferno.
O claro mês d'abril é o desgrenhado inverno
Mascarado de flor.
De que serve nascer.
Ter um sonho, um ideal, para depois morrer?...
E a morte é a podridão, o nada, a cinza fria...
E a luz que em nós brilhou toda amor e harmonia,
Em que treva e silêncio ela se converteu...
A que abismo sem fim, chorando, ela desceu!...
E quando brilha nos meus lábios um sorriso
E nos meus olhos a visão do Paraíso,
Quando mística luz trespassa o nosso ser,
Talvez, ó negra dor, nosso íntimo prazer
Torture, sem piedade, ignotos corações!...
De quantas mortes serão feitas as visões?...
De quantas dores, para nós, misteriosas,
Será feito o prazer que enche um perfil de rosas?...
100
OBRAS co:mplbta.s
Deus é filho da Dor... se acaso Deus existe.
Brotou do seu olhar este Planeta triste,
Como uma lágrima sombria e torturada
Que no lenço do Azul caiu desamparada !
Corações a brilhar, lágrimas a sorrir.
Uma asa no azul, uma estrela a fulgir,
A aurora dum ideal, a luz duma quimera,
Perfumes a nadar num céu de primavera
São formas desiguais, são aspectos diversos
Da dor de Deus que cristaliza em Universos !
Eis a razão por que somente descobrimos
De verdadeiro, em nós, as dores que sentimos
E que afinal também só vivem um instante.
Em pranto diluindo o nosso olhar distante
Que morre como, à tarde, o fumo que se eleva
Da paisagem que sente o hálito da Treva !
Tudo é névoa e ilusão...»
E eu chorei friamente
Ao ver aquela alma humana tristemente
À evidência da luz as pálpebras cerrar,
À Alegria que doira as ondas ao luar,
A Verdade que fala em cada humilde cousa,
À Beleza que sonha obscura, misteriosa
Em cada flor, em cada estrela, em cada fonte,
E à Bondade que vive e reza em cada monte!...
E, ao ouvir a alma humana, eu tive essa visão
Do mundo a naufragar num mar de escuridão.
E a Terra tinha um ar de convés, onde as águas
Entram, a soluçar desconhecidas mágoas,
Enquanto, num terror enorme, os marinheiros
Gritam na sombra espessa e triste dos nevoeiros!...
lOI
TEIXE)IRA DB PASÇO ABS
Do mesmo beijo ideal que prende o céu à terra,
Nasceram a alma humana e as árvores da serra...
A mesma luz, o mesmo sonho, a mesma ânsia
Anima uma floresta e a névoa da Distância...
No íntimo da pedra esplende a etérea chama
Que um frágil coração dum santo amor inflama...
Quantas rochas encontro, à tarde, a meditar !
Uma pedra, por pouco, é lágrima ao luar...
Buda aprendeu convosco, ó arvoredos nus,
E houve um lírio que foi o mestre de Jesus.
Nos meus olhos murmura a vossa água, ó fontes.
E um grande sonho eleva os penhascosos montes !
B um amor, afinal, é todo o Firmamento
Reduzido a um subtil e simples sentimento...
Um beijo ardente é o sol. Um abraço a Atracção.
Ó sapo, és uma estrela ! Ó lama, és um clarão !
Quem destrói uma flor, quem mata um ser humano
Veste de negro luto as ondas do oceano,
A areia do deserto e as estrelas dos céus.
Lágrimas onde brilha a oculta dor de Deus...
E por isso a Justiça, o Amor e a Piedade
Devem agasalhar na sua claridade
Qualquer alma que chore, ou d'homem ou de flor,
Por se ver triste e só na noite duma dor!...
OBRAS COINIPIvETàS
DOR
Uma saudade abala, às vezes, todo o mundo.
Uma chama de dor irrompe d'alto monte...
E está constantemente, além, meditabundo
B d'estrelas molhado o rosto do horizonte...
Dos arvoredos tombam gotas cristalinas.
Os olhos dos leões são fontes caudalosas...
Há rios a chorar a angústia das neblinas !
Há nos lábios do sol palavras dolorosas...
Há tristes expressões num áspero rochedo.
Vê-se através dum tronco um lívido fulgor...
Lágrimas numa face, orvalhos no arvoredo,
São corpos iguais sofrendo a mesma dor ! . . .
A mesma nuvem transcendente a condensar-se
Na mesma chuva de paixão e de martírio.
Sempre que o pranto vai no espaço derramar-se,
Numa alma ou no pó, floresce o mesmo lírio...
Poetas, interrogai as lágrimas de tudo...
O vento, a pedra, o ar, as nuvens e o oceano.
Todo o olhar apagado e todo o lábio mudo,
A tristeza divina e o sofrimento humano...
103
TEIXEIRA DB PASCOAES
Que vosso corpo nesse pranto se dilua.
Vossas almas lavai nessa água abençoada,
Como no vasto mar se purifica a lua,
Depois de percorrer a terra maculada...
É bem certo que a Dor é a essência do Universo.
A dor é a alma. A dor é o espírito etéreo.
A dor floresce um ramo e faz brotar um verso.
Sofrer, é penetrar no mundo do Mistério...
Uma lágrima explica a estranha Criação.
Profundai-a, e vereis a misteriosa origem
Dos mundos e dos sóis. E um grito de aflição
Deixa-nos surpreender, ó luz, teu corpo virgem !
E vemos num suspiro, ó vento, as tuas asas...
Esse dorido ar quem sabe o que ele leva !
Ouve-se, num desejo, o crepitar das brasas
E há na luz dum olhar a explicação da Treva !
A vida é redenção e a noite é a mãe do dia...
Através do Universo avista-se uma cruz.
Quem sofre resplandece. A lágrima alumia.
Ó dor, riso de Deus e pranto de Jesus!...
«
A inconsciência e o mal são a origem da Vida.
Seu fim é a Perfeição sonhada e pressentida
Pelo poeta que sofre e canta e reza e chora
Para mudar a sua noite numa aurora...
A dor é a estrada que vai dar ao Ideal.
Sofre para ser alma o verde pinheiral,
E só um sacrifício ingente é que transforma
No clarão dum amor a noite duma forma !
E só a dor converte em luz a penedia...
104
OBRAS COMPIvBTA.S
O perfume dum lírio é filho da agonia
Que de pranto constela os ramos dolorosos
Dos arvoredos transcendentes, misteriosos...
Que tragédia a da terra antiga e embrutecida
Para desabrochar em sonho, em alma e vida.
Para ser um Platão, um Buda ou um Jesus !
E para ser olhar o que sofreu a luz !
O claro sol tocando um corpo, de repente,
Volta-se para si, num êxtase consciente...
E é reflexo e luar, é lágrima e visão.
Apolo, a tua sombra, ao ver-te, é a comoção !
A tua sombra eu sou, como uma pedra ou flor.
Dar sombra é irradiar a noite duma dor...
A penumbra é a tristeza ideal da claridade.
Osíris, eu bem sei que sou tua saudade...
Um crepúsculo d'alma, aurora sacrossanta,
O vagido dum Deus ao colo duma planta...
Arde meu corpo em cada incêndio que se ateia.
Minh'alma está presente em toda a dor alheia.
Sinto nos lábios a secura da estiagem.
Em cada lágrima cintila a minha imagem...
Qualquer cousa de mim cada suspiro leva.
Chora, na minha sombra, o génesis da Treva !
E a luz do meu olhar é o sangue imaculado
Que derrama no espaço o sol crucificado...
Das lágrimas do Som nasceram meus ouvidos,
Como tristes jasmins ou lírios doloridos...
São golpes ideais que no meu ser abriu
A harmonia dos sóis que só Platão ouviu !
Talvez, dentro de mim, sofra o Universo inteiro.
Nos meus sonhos branqueja o vago nevoeiro...
Meu coração anima invisível eflúvio
E existem no meu pranto as águas do Dilúvio !
105
TBIXBIRA DE PASCOAES
Sou uma chaga tua, ó mártir Criação
Que sofres uma eterna e trágica paixão,
No calvário sem fim dos mundos e dos céus
Para alcançar talvez a redenção de Deus!...
Sede benditas, lágrimas sagradas
Que sois feitas de treva
E derramais a luz das alvoradas !
Bendita seja a dor que tudo eleva...
Ó dor, ó mãe de Deus, sê tu bendita.
Via-láctea sem par,
Por onde vão o mal e a noite aflita
Diluir-se em Deus, como um rochedo em luar!
Ó grande sofrimento,
Ó redenção da Alma universal !
Ó dor que empalidece o Firmamento,
ís^um desmaio de ideal!...
Ó dor, filha dos Génesis sombrios,
Ó fantasma, num Caos, vagabundo!
Ó Buda das estrelas e dos rios,
Jesus do mar profundo ! . . .
Bendita sejas tu, divina dor !
Fogueira donde sai a luz de Deus.
Sol meditando a eterna lei do Amor,
No deserto dos céus ! . . .
OBRAvS C()MPIvBTA.S
O HOMEM E o UNIVERSO
Súbito, uma tristeza o nosso peito invade,
E sem saber porquê, magoados, nós choramos...
Nasce do pó ou duma pedra essa saudade?
Com certeza ela vem no ar que respiramos.
Anda errante no Azul, como um perfume etéreo,
A ignota dor que deixa o mundo em convulsões !
Há nas asas do ar cinzas de cemitério...
Percorrem nosso sangue os mortos corações.
E sinto, dentro em mim, uma tristeza vaga,
Sem causa conhecida. E choro sem saber.
E o meu pranto, que o sol insaciado apaga,
Ê a lenha que o conserva eternamente a arder !
E eu amo e penso e sonho e vivo e a minha vida
Não me pertence a mim, anda esparsa no ar.
E assim minha existência obscura, indefinida,
É a existência da flor, da água e do luar. . .
Por isso, eu não sou nada e a morte não é nada.
Que importa à Criação que eu sinta o que ela sente?
Dizei-me de que serve à virgem alvorada
Reflectir sobre um charco a sua luz consciente?...
IO']
TEIXEIRA DE PASCOABS
O homem é um reflexo estranho e excepcional
Do universo que segue um rumo nunca visto.
Sócrates, a cicuta ouviu o teu ideal...
E a árvore cruz sentiu a aspiração de Cristo !
Estudai, com amor, um homem, e vereis
Que ele é a sombra de tudo, o fantasma das cousas.
Nele murmuram sóis e floridos vergéis.
Sua carne irradia as noites misteriosas...
Ei-lo a sombra de Deus e a sombra do Amor !
E, como sombra, segue o corpo que a projecta.
E Deus para onde vai? Só sei que vem da dor
Que de lágrimas vela a face do poeta...
OBRAS co:mplktas
II
E como tudo vem impressionar minh'alma !
Não lhe é indiferente a sombra mais subtil;
Nem o silêncio que amacia a noite calma,
Nem o doce abrolhar do claro mês d'abril !
Sente-se presa a tudo; e em voos estremece,
Quando um raio de sol, como um beijo, a deslumbra !
Ensinou-lhe a Tristeza um dia que anoitece,
Mostrou-lhe o Indefinido o vago da penumbra...
K creio que noss'alma, um dia, se formou
Das altas impressões que, dentro em nós, gravaram
As imagens ideais das cousas que beijaram
Nosso olhar que um perfume etéreo perturbou...
Talvez, quando Jesus, em mística oração,
De pálido perfil e de inspirado olhar,
A piedade ensinou aos homens e o perdão.
Falasse, dentro dele, um raio de luar!...
B, ó Sócrates, assim a voz que tu ouviste
Era a voz do Universo, a falar alto e só !
O deserto compôs, outrora, um poema triste
Que verteu para a língua humana o velho Job.
lOÇ
TKIXBIRA DE PA SCO ABS
E o génio de teu lar, ó Sócrates vidente,
Era o pó que teus pés, andando, levantavam...
Era invisível sombra oculta e inteligente.
Que sobre a tua alma as cousas projectavam !
Era o espectro ideal do Universo infinito,
Que, por momentos, tu soubeste surpreender...
Era o luar que nimba as águas e o granito.
Era o clarão do incêndio em que está tudo a arder ! . . .
Uma ideia sublime e um grande sentimento
São filhos da influência astral que, em nós, exercem
Um astro que cintila, o murmúrio do vento
E as nuvens que, no Azul, à tarde, empalidecem...
OBRAS COMPLETAS
A VOZ DAS COUSAS
(O VERME)
Eu vivo no interior das negras sepulturas.
Só eu sei conhecer as grandes amarguras
Dos que pedem à terra a paz e o esquecimento. . .
Na sua antiga dor encontro um alimento...
B nas suas lágrimas sombrias e geladas,
Como nos lagos ou nas fontes prateadas,
Às vezes, mato a sede... B o mau ar que respiro
Tem o amargo sabor dum último suspiro...
Por isso, bem conheço a dor do homem...
(A LUA)
B eu,
Que faço desmaiar, à noite, o azul do céu
Num longínquo Planeta avisto um frágil ser
Que, à minha luz de sonho, eu vejo entristecer...
A minha luz é o pó de mortos corações.
Poeira d 'amores, fria cinza de ilusões.
Que eu derramo no Azul, num gesto extraordinário
De quem semeia um campo enorme e solitário...
B essa poeira germina e cresce e se traduz
Bm lírios de saudade e florestas de luz!...
III
T^IX^IRA DB PASÇO ABS
E assim o Firmamento é uma floresta virgem
D 'almas que vão beber à sua própria Origem
Uma água espiritual d'amor e claridade
Que d'estrelas orvalha a flor da Eternidade! ...
Por isso, na distância, ó homem deslumbrado,
Envolto em meu clarão, tu cismas concentrado.
E teu pálido olhar a minha face banha...
E meu corpo percorre uma impressão estranha,
E sinto, dentro em mim, desconhecida dor
Que irmana o teu olhar ao meu glacial palor.
Ninguém, como eu, conhece a tua melancolia
Ó criatura humana ! . . .
(O SOI,)
Eu sou o pai do dia.
Sou velho tronco, a arder, no lar azul do espaço.
Os planetas abrange a curva do meu braço.
Eu sou um grande lar onde os mundos se aquecem.
Sempre milhar' s de mãos que os gelos arrefecem
Se estendem sobre mim... E descobri entre elas,
Homem, as tuas mãos, orvalhadas d'estrelas,
De lágrimas, talvez... Meu lúcido fulgor
Sabe compreender tuas lágrimas de dor
Que nas asas ideais da Vaporização
Alcançaram meu grande e ardente coração !
Vejo-as dentro de mim. E minha luz bendita,
Que numa bênção cai da abóbada infinita.
Quando seus lábios vão beijar o pranto humano
Que lhes fazem lembrar as ondas do oceano,
Sente-se triste... e vem trazer-me essa tristeza
Na nuvem que troveja e que suspira e reza !...
Tenho, dentro de mim, o humano sofrimento...
112
OBRAS COlMPIvBTAS
(O VBNTO)
Sou a alma do Ar, o espírito do Vento...
Habita no meu peito a alma da Tempestade.
Bu amo os vendavais, a loucura, a crueldade!
As árvores em flor, desfolho-as, num delírio...
O meu maior prazer existe no martírio
Que faz gritar as naus a braços com as ondas...
Fulgem no meu olhar as trevas hediondas !
Gosto de ver, à noite, os perturbados céus,
Quando meus gritos quase empalidecem Deus !
E quando os pinheirais, num sussurro profundo,
Têm blasfémias sem nome e insultos para o mun-
[do!..,
Arrasto, pelo ar, em negros turbilhões,
Ermas nuvens que são sombrias ilusões...
Comigo vão também as folhas que secaram...
Perfumes que os jasmins, sozinhos, exalaram...
Tudo o que anda, num voo quimérico, perdido.
Tudo comigo vai para o Desconhecido...
Quando passo a gritar por sobre as tuas casas,
Ó triste ser humano, alcançam minhas asas
Misteriosos ais, ocultas amarguras
Que me deixam, ó treva, os olhos às escuras!...
E as lágrimas que eu dou aos ramos do arvoredo
E as que choro, ao luar, no seio dum rochedo,
São talvez o teu pranto, humana criatura.
Nos meus suspiros geme a tua desventura !
Sou uma lágrima com asas d'esplendor
Que projectam na terra a sombra da tua dor ! . . .
113
8
TEIXEIRA DE PASCOAES
(O MAR)
Homem, eu bem conheço o eterno sofrimento!
Em nuvens, sobe ao céu meu constante lamento...
E sabem-no de cor os côncavos rochedos,
Que tremem, ao ouvir meus trágicos segredos!...
O meu soluço enorme atinge a luz da lua
Que é a tristeza de Deus que sobre mim flutua !
Doces rios que vêm do interior das terras,
Filhos dos lagos e das fontes que há nas serras,
Suavizar um pouco esta minha amargura
Que abrange toda a terra estéril, erma, escura,
Contam-me a soluçar histórias sangrentas
De martírios cruéis, de guerras e tormentas !
E suas águas, ó dor, doces e imaculadas.
Têm um sabor a sangue; estão ensanguentadas.
Quem conhece, como eu, a tua grande dor?
Lágrimas de tristeza e lágrimas d'amor.
Nas minhas ondas sinto o vosso sal amargo !
E há sepulcros também neste meu peito largo,
Insondável... Eu tenho a ciência do Mistério
Que há só no livro sepulcral dum cemitério !
Conheço todo o pó e leio nas caveiras...
Tenho assistido a muitas horas derradeiras.
Muito último suspiro agita minhas ondas...
Vagueiam muitos ais nas trevas hediondas
Que pousam no meu peito, aonde as ventanias
Cantam um salmo eterno e negro d'agonias I...
Ninguém como eu conhece o sofrimento humano.
Eu, o mártir sem nome, o ensanguentado Oceano,
Um outro Prometeu...
114
OBRAS COMPIBTAS
(O HOMEM)
Ó seres misteriosos !
Ignotos corações ! Ó ventos lacrimosos !
Ó átomos ! Essência ! Ondas espirituais,
Ó ignorados sóis, almas dos temporais.
Universos sem fim ! Mistérios ! Aflições !
Espíritos sem nome, ocultas comoções !
Trevas a soluçar, almas desconhecidas.
Sombras, gritos de luz ! Misteriosas vidas !
Incêndios, febres e delírios e loucuras !
Vermes e vendavais! Oceanos, sepulturas!...
Vejo que tudo sofre a minha grande dor,
Vejo que em tudo brilha a luz do meu amor!...
Minh'alma não é só na vida e abandonada...
Doutras almas está, ó Deus, toda cercada...
Soluça a minha dor em toda a Natureza.
E numa névoa cai toda a minha tristeza
Por sobre toda a alma e todo o coração !
Todo o deserto sente a minha solidão...
Há olhos ideais, ocultos, ignorados.
De minhas lágrimas sangrentas orvalhados!...
Também existe o amor, a dor, a humanidade
Nesse infinito mar, nessa profundidade.
No longínquo interior dos seres e das cousas.
Nesse abismo sem fim das almas misteriosas !...
Da minha grande dor que tudo faz sofrer,
Neve que faz o próprio Deus arrefecer,
Preciso libertar a minha alma triste !
Oh ! A libertação de tudo quanto existe !
A Justiça a estender as asas sobre a Terra !
O Bem, como uma luz, doirando toda a serra !
O Amor, como uma estrela etérea, a fecundar
Os montes, os jardins, as florestas, o mar!
A Verdade a sorrir em cada lábio mudo !
A Natureza livre ! A redenção de tudo ! . . ;
115
TEIXEIRA DE PASCOAES
ASCENSÃO
Sob os golpes da chuva, agoniza um rochedo;
K corta a sua face o chicote do vento.
A neve desagrega-o. E as raízes do arvoredo
Trespassam o seu corpo em busca de alimento.
O colosso estremece e, numa areia fina,
Espalha-se através os campos e os outeiros...
E ao contacto subtil da água cristalina
Que, sonhando, derrama os brancos nevoeiros,
Vai transformar-se em fértil terra criadora.
E nesse húmus germina o trigo — astros dos céus — ,
Nesse húmus comovido, em pranto, quando a aurora
Aparece, no azul, como o esplendor de Deus !
E no seio da terra, inflamado d'amor.
Sementes auroreais, famintas, vão mamar
O leite que entumece os peitos duma flor
E que tem o perfume estranho do luar...
Na ânsia de crescer, de amar e de sentir.
Sob os beijos do sol, germina uma semente...
E dos montes azuis começam a surgir
Os bosques que, ao luar, conversam vagamente. . .
ii6
OBRAS CO:MPIvETA,S
Troncos velhinhos, ramos secos e despidos,
Sagrados bosques, arvoredos venerandos,
Sombras onde há piedade e gestos doloridos.
Que ao respirar do vento oscilam, murmurando...
Grandes bosques a orar, serenos e impassíveis.
Numa voz ideal, divina como aquela
Que dimana, a brilhar, dos lábios invisíveis
Que os lábios do horizonte encontram numa estrela !
Sois a realização do sonho extraordinário,
Da ânsia enorme duma pedra que estremece,
Ó pinheiros do monte, ó bosque solitário,
Confidentes do sol que vos deslumbra e aquece !
Segredo sempiterno e mistério profundo !
A pedra a evaporar-se em alma... a escuridão
A converter-se em luz ! Um insensível mundo
A estremecer numa primeira sensação !
Silêncio obscuro a despontar em harmonia...
Árvore, filha do amor, do génio e do delírio!
Alma que desabrocha e cresce e se faz dia,
Seixo que se comove e vibra até ser lírio ! . . .
B a árvore vive e canta e sonha uma outra luz...
Aspira a um outro mundo, ao humano coração.
Nos seus ramos quer ter o gesto de Jesus,
Sua seiva quer mudar no sangue de Platão !
Ei-la uma lágrima, ei-la um homem misterioso;
A bondade, a justiça, um santo amor bendito...
Ei-la um olhar perdido, além, no céu brumoso,
Ei-la a sede de luz, a fome de infinito!...
E, sob o peso da Injustiça, a Humanidade
Vai sofrendo e sangrando à luz duma quimera.
Vai transformando a sua noite em claridade
E o seu nevoento inverno em virgem primavera.
117
TEIXEIRA DB PA SCO A ES
Vai sonhando outro mundo etéreo e espiritual...
Vai ascendendo para a vida superior.
Vai com destino à Luz, a caminho do Ideal,
K o seu corpo irradia um branco luar de dor. . .
Pela alma ela alcança os corações divinos,
Pela carne ela toca os feros animais...
Por isso um homem liga os céus diamantinos
À negra podridão e aos sujos lodaçais !
Por isso, é ele a grande escada de Jacob
Por onde a terra bruta há-de subir aos céus.
Grande voo da Matéria, ó Ascensão do pó.
Pedras que vão mudar-se em alma ao pé de Deus !
OBRAS COMPLKTAS
OS CONDENADOS
Olhos em febre, a arder, cabelos desgrenhados,
Vão através da Vida os grandes condenados !
Estes levam no rosto a luz da suavidade,
Aqueles a altivez, uns a branda humildade,
Outros o desespero, a santa indignação!
Todos vão através da grande solidão,
Do deserto infinito onde soluça a dor
E onde foi, certa noite, assassinado o Amor !
Eis os vencidos, os famintos e os malditos,
Cheios de aspirações e sonhos infinitos !
Eles vão arrastando a sua negra cruz,
Vão abrindo na treva um caminho de luz !
Suas lívidas mãos, sangrentas e chagadas,
Lançam por sobre as terras más, despovoadas,
As sementes do Bem que levam dentro delas
A seara que produz o trigo das estrelas !
O vulto de Caim entre eles eu avisto,
E, mais ao longe, a sombra lívida de Cristo.
O Sócrates sorri à taça do veneno...
Que luz ele irradia, e como vai sereno !
Buda analisa o sol e os comovidos mármores
Que sentem palpitar os corações das árvores.
Brilha no seu olhar a dor incompreendida
De tudo o que parece morto e que tem vida !...
Tem palavras d'amor para as nuvens do céu...
E vejo, mais além, o grande Prometeu
E a águia a triturar, sem dó, suas entranhas !
Spartacus vai febril e cóleras estranhas
iig
TEIXEIRA DE PASCOAES
Projectam um clarão d'incêndio no seu rosto!...
Virgílio é um luar quimérico de agosto...
A estrela do pastor, qual lágrima, cintila
No horizonte da sua elegíaca pupila...
Sombras do anoitecer, murmúrios do arvoredo,
Balidos de ovelhinha em cima dum rochedo,
Melancólicos sons de avena harmoniosa.
Tudo isto forma a sua alma misteriosa
Que sonha a Idade d'Oiro... E o Dante tem no olhar
As chamas infernais, donde sai um luar
Que ascende, como um sonho, aos quiméricos céus,
Aonde Beatriz o espera ao pé de Deus...
Milton vai a chorar a perda do Paraíso...
E Shakespeare, entre uma lágrima e um sorriso,
Vacila, num ataque auroreal de loucura !
Julieta é luar, Hamlet é noite escura...
Vejo Byron também. Eis a Aventura e o Amor.
Soturno temporal a despertar em flor !
E dão-lhe um ar ignoto, infindo e inatingível
O fantasma da vida, a sombra do Invisível,
A distância que afasta as estrelas divinas
E a tristeza que envolve as clássicas ruínas...
E atrás deles caminha imensa multidão...
Turbamulta sem fim que faz tremer o chão !
Anónimos heróis, mártires ignorados.
Os vencidos, os nus e os tristes deserdados...
Todos levam, na mão, um grande facho a arder,
Que lembra um grandioso e santo alvorecer !
Todos levam na fronte um astro anunciador,
Todos vertem, sorrindo, o sangue redentor!
Todos levam ao ombro o machado fatal
Que vai deitar por terra a floresta do Mal...
Todos levam também a alavanca sagrada
Que vai erguer da terra essa Babel sonhada
Por onde o mundo bruto há-de subir ao céu...
E a grande multidão, além, desapareceu.
120
OBRAS COMPLETAS
ANTEMANHÃ
No silêncio sem fim das cousas, quando mal
Se distingue o clarão da aurora ainda distante,
E o poeta ainda vela, um canto auroreal
D'ave vibra na luz difusa e ainda hesitante...
E na penumbra ideal, que à alma nos revela
O Génesis estranho e místico dum dia,
Vê-se o desabrochar de misteriosa estrela.
Crepúsculo dum som, alvor duma harmonia...
E têm um ar d'assombro as paisagens nocturnas.
Todas as cousas vela uma mudez sagrada...
E, num recanto escuro, uma árvore soturna
Ergue os olhos, ouvindo a voz da madrugada...
Percebe-se que vai, em breve, acontecer
O quer que é d'extraordinário e nunca visto.
Tudo sonha e medita... A luz do alvorecer,
Para uma pedra ou flor, é um verdadeiro Cristo!
O dia já vem perto. E doces sensações
Agitam suavemente os ramos do arvoredo.
Vê-se no olhar dum rio a bruma das visões
E o Riso transfigura a face dum rochedo...
Que branda comoção as cousas enternece...
A terra, ao ver o sol, traduz-se numa flor.
Tal como um poeta, ao ver o sonho que alvorece,
Se converte no fluido etéreo dum amor...
Num éter misterioso, imenso, indefinido
Que, vibrando, produz o dia da Verdade
Que para um fim divino, apenas pressentido.
Vai guiando, através da morte, a Humanidade...
121
TBIXBIRA DE PASCOABS
O BEM K O MAL
Quantas vezes, Senhor, este mundo parece
Um absurdo tremendo, aonde transparece
Um lívido clarão de trágica loucura...
O riso de Satã derrama a noite escura.
Sobre a algidez da terra amortecida e calma
Paira, como uma névoa, um crepúsculo d'alma...
Convulsões d'agonia abrem vales profundos...
E o nosso mundo chora a grande dor dos mundos !
Vê-se, por toda a parte, um morticínio horrível
D'almas que sofrem no Silêncio e no Invisível!...
Catástrofes sem fim, horrores, crueldades...
O ar que nos dá vida é o pai das tempestades !
A água que mata a sede aos ermos viandantes
Sepulta, no seu seio, as ilhas verdejantes
E os navios que vão, sobre as ondas, ao vento...
O fogo que prepara a hóstia do alimento,
O sacro fogo a arder sobre um bendito lar,
É o fogo que queimou teu corpo, Joana d' Are!...
E o ferro que percorre, ó dor, as nossas veias
É o ferro que segura as portas das cadeias
E o que prende, ainda hoje, o grande Prometeu
A um monte, sob o riso irónico do céu!...
O mundo, ao mesmo tempo, a ser o bem e o mal !
A Natureza louca e Deus irracional !
O mal e o bem estão numa contínua guerra.
Como a atmosfera, a dor envolve toda a terra!...
Os feros animais devoram cordeirinhos...
O vento, a gargalhar, destrói milhar's de ninhos !
122
OBRAS COMPIvBTAS
Um dilúvio de fogo arrasa uma cidade
B uma vil ambição provoca a mortandade !
O luto veste a terra e a luz do sol exangue
Tem, de beijar o mundo, os lábios com sangue...
Qual é o teu destino, ó erma Natureza?
Riso louco a doirar o rosto da tristeza...
Qual o teu fim e o teu princípio, ó Criação !
É o sofrimento, a dor, a morte e a escuridão?
É, por acaso, o Mal a essência do Universo?
Satã, em cada ser, existirá, disperso?...
Mas como é que se explica a vida de Jesus,
E este voo imortal das almas para a Luz?
Sócrates porque viu na morte uma outra vida?
Quem lhe falou do Além? Que voz desconhecida?...
Porque é que o grande Buda um trono abandonou
E um ceptro d'oiro, com desprezo, arremessou
Para longe, partindo humilde, pobre e triste
A pregar a Verdade a tudo quanto existe?...
Inconscientes serão ou loucos desvairados
Os grandes Cristos, a sonhar, crucificados?...
Maria, a tua dor é filha dum delírio?
Donde vem o prazer amargo do martírio?...
Donde nasce esta força oculta, misteriosa,
Esta crença, esta fé profunda e religiosa
Que nos leva prà morte a sorrir e a cantar?...
Donde dimana a Graça, assim como o luar
Que dá um aspecto d'alma às formas materiais
E uma expressão de génio aos brutos animais?...
Justiça, és ilusão? Amor, és falsidade?
Jesus, és a mentira? Ó Nero, és a verdade?...
Representais acaso o mesmo sentimento
Perante o azul e o mar, as estrelas e o vento?
A vida universal não vos distinguirá?
Na mesma indiferença, a terra guardará
As vossas cinzas? E as famélicas raízes,
Num frouxo de luxúria, esplêndidas, felizes,
Esses dois corpos definhados devoraram
E entre eles nem sequer, um momento, hesitaram?
123
TBIXKIRA DB PASCOAES
Ó trágico mistério ! Ó grande noite escura !
Duma voz que blasfema e duma voz que é pura,
Do sermão da montanha e das canções de Nero,
Das palavras d'amor, dum ai de desespero,
Do soluço de dor que sufocou Maria,
Dum brilhante sorriso egoísta de alegria.
De tenebrosa voz que esmaga e que condena,
Dessa voz de perdão que aureolou Madalena,
Do murmúrio do mundo, imenso e assustador
Chegará simplesmente um pálido clamor.
Uma mesma harmonia indistinta e apagada
À alma da Criação, remota e ilimitada.
Formando assim, ao longe, um murmúrio igual
A prece da Piedade e a blasfémia do Mal?...
Talvez para a harmonia ignota deste mundo
Concorram igualmente a noite e a luz do dia...
A fome e o desespero, o Bem e o vício imundo,
A mentira e a verdade, a tristeza e a alegria!...
Lágrimas de prazer e lágrimas de dor.
Porventura, sereis a mesma névoa densa.
Sob os raios do mesmo ardente e eterno amor
Que entre elas não encontra a menor diferença?...
Será a parte imperfeita e o todo é a Perfeição?
O Universo é um composto estranho de escarcéus.
De trevas infernais que, combinadas, dão
O fulgor do infinito e o resplendor de Deus?...
Ou é este Universo uma noite d'horror
Que já segura ao colo a aurora dum amor?
É um inverno que vai mudar-se em primavera?
Há-de ser realidade o que hoje é uma quimera?
O sonho, a aspiração e as lúcidas visões
Que deslumbram o olhar vago das multidões.
Sempre que ouvem pregar, num gesto extraordiná-
[rio.
Os que vão pela estrada amarga do Calvário,
Serão o alvorecer da nova Humanidade,
124
OBRAS COJMPIvBTAS
A aurora excepcional do dia da Verdade?
K a blasfémia do mal contra o amor e a vida,
É qual grito da noite, ao ver-se surpreendida
Pela eterna manhã anunciadora e estranha,
Que, súbito, aparece além duma montanha?...
Estrelas, revelai-me o fim da Criação...
Que a vossa luz separe o real da ilusão.
Entre as tristes canções de treva e de mentira,
Mostrai-me o canto ideal da verdadeira Lira !
Que a sempiterna luz se faça dentro em mim.
Que eu viva no Absoluto e no que não tem fim !
Que o fantasma d'amor, que anda sempre ao meu
[lado,
Se transforme num ser perfeito e imaculado.
Que deixe de ser sombra e se converta em luz...
Que seja árvore em flor e não sombria cruz!...
Que o nevoeiro espesso e triste do mistério.
Se dissipe e nos deixe ver o sol etéreo
Da Verdade e do Amor raiar por sobre o mundo.
Doirando tudo, desde o sapo mais imundo
À alma mais perfeita e ao mais duro rochedo.
De maneira que o pó, o lodo, o arvoredo,
A criatura humana e as feras mais selvagens,
O vasto mar antigo e as sensíveis paisagens,
Estremeçam d'amor e vibrem de alegria
E sejam a suprema e eterna melodia ! . . .
\.
TEIXEIRA DE PASÇO A ES
VISÃO
I
Como cinza miúda, a treva cai
No coração humano.
E um vento norte, frio e triste como um ai.
Em nossas almas põe sobressaltos de oceano !
E grandes convulsões
iV Humanidade agitam...
E o desespero insano, a cólera e as paixões,
Como incêndios, crepitam !
Há vendavais de dor, ciclones de tormento,
E maldições estranhas...
E as florestas desvaira um furioso vento
Que dos vales levanta as ondas das montanhas !...
Raios de desespero as nuvens ensanguentam.
Ferem o azul do céu gritos incendiários.
Terríveis explosões, de súbito, rebentam
E sente-se o cair das cruzes, nos Calvários!...
E o cárcere onde vive a Natureza escrava
Vai ser, enfim, aberto;
Enquanto um mar sagrado e trágico de lava
A floresta do ]\Ial transforma num deserto!...
Os peitos sufocados.
Há milhões d'anos, já conseguem respirar.
E os grandes corações que sofrem algemados.
Mais livres do que a luz do sol, vão palpitar!...
Dentre escombros sem fim desponta um novo dia
Eterno e consciente...
É a luz que no interior das cousas existia
126
OBRAS COMPIvBTAS
Sonâmbula e latente.
Luz do Ideal que o poeta revelou
A si mesmo; e, portanto, à Natureza inteira.
Luz que se libertou,
Num esforço genial, da escuridão primeira !
Ê a pura luz do Bem
Que doira o livro que a Verdade encerra,
E que só lê o poeta, o teólogo que tem
Na alma toda a luz, no corpo toda a terra!...
B a grã Libertação estende as suas asas,
Luminosas d'amor, nimbadas de piedade,
Sobre todos os sóis, sobre todas as casas,
Num voo que há-de passar além da Eternidade! ...
Benditos sejais vós, ódios libertadores,
Cóleras, vendavais, indignações sagradas !
Incêndios, gritos, ais, santificadas dores,
Benditas sejais vós, feridas ensanguentadas !
Benditos sejais vós, ó arrebatamentos,
Grandes explosões d 'estrelas guiadoras !
Benditos sejais vós, ó grandes sofrimentos,
Trevas que no seu ventre andam a criar auroras ! . . .
Bendito sejas tu, ó Caos tenebroso,
Ó fantástico escom.bro, ó trágica ruína !
Ó mundo d'amanliã perfeito e harmonioso,
Tendo na sua fronte uma auréola divina!...
TBIX^IRA DE PASCOAES
II
Sinto em mim o ruir dos desmoronamentos.
Sou um caos, aonde os vários elementos
Se chocam com fragor, em grande confusão,
Como na antemanhã o sol e a escuridão !
Metade do meu ser é noite; outra metade
É enérgico fulgor, vibrante claridade !
Sou um triste castelo ao pé dum mar brumoso...
Como uma onda, o velho tempo proceloso
Meus alicerces mina, e, pedra a pedra, eu caio,
À luz esverdeada e trágica do raio !
Nas minhas ruínas chora um vento destruidor...
Mas sinto germinar entre elas uma flor.
Sou a guerra tremenda a desejar a paz.
Sou a luta entre Deus e o velho Satanás !
Venho da treva inerte e o meu destino é a Luz.
Ku sou o mau ladrão a voar para Jesus...
O madeiro da morte horrendo e solitário,
A cair, desfeito em pó, nas urzes do Calvário,
Para ressuscitar numa árvore florida
De piedade, d'amor e de justiça e vida!...
OBRAS COMPLETAS
NOVA LUZ
Emana um fumo d'alma o crepitar do lume...
O incêndio duma flor dá a cinza do perfume.
E o corpo duma onda é um místico braseiro
Que exala, numa ânsia, o branco nevoeiro...
É o incêndio supremo e santo da Matéria,
Donde sai uma luz anímica e sidérea...
Tudo o que é material, como a rocha erma e calma.
Querendo e desejando, é luz, é sonho, é alma !
A alma é o exterior, o corpo o interior.
Onde termina um coração, começa o amor...
Por isso, cada corpo inânime e pesado
Duma auréola d'infinda luz está banhado.
E, assim, uma ansiedade ignota, uma quimera.
Pôs em volta da terra a lúcida atmosfera!...
A luz envolve a chama e a chama envolve a lenha...
Sensível musgo cobre uma insensível penha,
E sobre o musgo paira o aroma espiritual...
Mistério... Num aroma a pedra é imaterial!
E todavia são a mesma vida pura
O claro aroma, o verde musgo, a penha dura!...
A terra é a mãe da Alma, a terra deu à luz
O perfume da flor e a alma de Jesus!...
O lodo é a Piedade, é o Amor infinito.
É apenas comoção a rocha de granito...
No Poeta comovido há a loucura do vento;
A nuvem é um delírio, a água um sentimento...
I2g
9
TEIXEIRA DE PASCOAES
A fonte que através dum areal se perde,
As suas margens vai vestindo de cor verde,
Lançando nessa terra estéril, ressequida,
Num beijo sempiterno, a semente da Vida.
Uma gota d'orvallio é sonho, é ansiedade,
Quer desça sobre o pó, quer suba à claridade...
Qualquer terra que a toque acorda deslumbrada,
B é uma erva, um perfume, uma alma enamorada !
E é gota d'água, ó astro espiritual, bendito,
Ampliada pela luz, abranges o infinito...
És o éter transcendente, o grande transmissor
Da voz dos mundos e do seu estranho amor!...
Todos os robles dão, ardendo, a mesma luz...
Um tronco sobre um lar é um Cristo numa cruz !
E é calor que agasalha e facho que alumia
O que é em Cristo amor, piedade, harmonia...
E tudo o que é no poeta emoção e delírio
É luz no sol, canto nas aves, cor no lírio!...
E tudo o que é em nós Bondade é num rochedo
Viçoso musgo e santa sombra no arvoredo!...
E, enquanto dou a um pobre um bocado de pão,
O sol enche de luz o saco da amplidão !
E, qual Samaritana, a nuvem religiosa
Dá de beber a toda a terra sequiosa...
Um murmúrio de fonte é um Sermão da Montanha
E a neblina da tarde uma ascensão estranha!...
E enquanto eu sou a morte, ó velho e frio inverno,
Perante o sol — Jesus, és um Lázaro eterno.
Um promontório é um Cristo altivo, triste e só,
E o mar divino um poço imenso de Jacob!...
E as verdes ervas são versículos sagrados
Que os ribeiros e o sol escrevem sobre os prados...
E uma pedra contém a história verdadeira
Do Génesis, da Luz e da Mulher primeira!...
Ainda hoje, o Dilúvio, o velho avô das fontes,
Anda na boca das florestas e dos montes!...
E a mais estéril terra ainda recorda e chora
130
OBRAS COMPIvETAS
O tempo em que beijou teus lábios d'oiro, aurora,
Pela primeira vez, ardente de paixão !
Ainda hoje impressiona a terra a sensação
Que seu corpo diluiu em mística ternura,
Ao conceber a primitiva criatura !
E nos olhos da terra ainda fulgura a imagem
De tudo o que ela viu, nessa grande viagem
Através da penumbra infinda do Mistério,
Até desabrochar num coração etéreo !
Há nos olhos da terra a imagem desse olhar
Que a saudade transforma, às vezes, em luar...
Deus disse à luz do sol o segredo da Vida.
Desvendemos a Luz amada e preferida!...
Vejamos a razão suprema da existência
E o que ela tem d' amor, de espírito e de essência,
O que nela é real, eterno e inconfundível...
Que o nosso olhar penetre o mundo do invisível.
Os paramos do Sonho, a amplidão da Quimera,
Onde já se descobre etérea Primavera,
Nebulosa subtil composta dum perfume.
Dum éter, dum amor, duma luz que resume
A nova Criação que está para surgir
Do caos de Amanhã, do beijo do Porvir!...
O pó que a gente vê sobre os campos, disperso,
É um caos; nele sonha um místico Universo!
Apaga-se uma estrela e nela ressuscita
A sua frágil luz, numa luz infinita...
Se um homem fecha os roxos olhos, congelado,
D 'olhos eternos ele fica constelado!
B duns ouvidos transformados em poeira,
Brota a audição completa, imensa e verdadeira...
B tudo o que termina e a cinza se reduz,
Vai acordar em alma e despertar em luz !
Um mundo auroreal, quimérico germina
Em cada areia, em cada gota cristalina...
^3^
TEIXEIRA DE PASCOAES
E a nova Vida, numa onda a resplender,
Aflora à superfície ideal do novo ser.
Um novo Apolo vai tocar a nova Lira...
E na água que se bebe e no ar que se respira,
Nas nuvens onde dorme a clara luz dos céus,
Palpita um novo amor, murmura um novo Deus...
OBRAS COMPLETAS
O HOMEM
I
o homem é o Universo consciente.
Pelos seus lábios fala a pedra, o nevoeiro...
Por isso o que ele mais ocultamente sente,
O que nele é mais vago, é o que é mais verdadeiro...
O ser humano, como tudo, principia
Em nocturna matéria que termina
Num éter, numa luz, numa harmonia.
Numa nuvem astral, numa emoção divina...
Num sentimento infindo e misterioso.
Num sensível clarão,
Num fluido transcendente etéreo e luminoso,
Como a matéria ideal que forma uma visão.
Sua carne termina em alma; e o seu olhar
Em luz d'esperança e dor.
Como em nuvem, o mar
E uma semente, em flor...
Sou a visão, o sonho, o inatingível...
E o mundo d'amanhã, não revelado ainda,
É o mundo do Invisível,
Impalpável Criação, escura luz infinda !
As formas não são mais que sombras projectadas
Sobre os nossos sentidos...
São fragmentos de sol e restos d'alvoradas
Em florestas, em água e pedras convertidos.
A forma é a aparência...
Transitório clarão que ilude olhos banais
Que não conseguem ver a sempiterna essência,
O espírito que anima os astros imortais !
Somente a alma existe.
133
TBIXBIRA DB PASCOAES
E sonha a mesma alma em cada criatura...
Olhai como tão bem se casa o luar triste
Com a noite emotiva e cheia de ternura !
No fundo do meu ser, no meu distanciamento,
Vagueiam, a sonhar, almas desconhecidas...
Vozes confusas como a voz do vento...
Sinto na minha vida várias vidas !
Sinto bem minha alma dividir-se
Em muitas almas íntimas, secretas.
Como quem vê, no espaço, repartir-se
Uma névoa em milhões d'estrelas e planetas!...
Ó almas que formais uma alma só,
Se vos desagregardes, de repente.
Deixais cair um corpo em frio pó.
Mas vós continuais sonhando eternamente !
Existe para vós a Eternidade,
Embora seja eu
A vã fragilidade...
Se uma estrela é imortal, é transitório o céu!...
Voltais a reunir-vos com amor,
E outra alma mais perfeita ides formar...
E assim de morte em morte e assim de dor em dor
A perfeição suprema a Vida há-de alcançar!...
No meu peito que um santo amor deslumbra,
Descubro um mundo cheio de segredos !
Vejo através de minha carne — essa penumbra,
Palpitações de luz e sombras d'arvoredos !...
Da noite primitiva
E feita a sombra que nas cousas eu projecto...
Sinto que veste minha carne viva
Da velha Humanidade o trágico esqueleto!...
Impressiona, às vezes, meus ouvidos
Confusa voz remota
Que atravessa, vibrando, os séculos perdidos
Dentro em mim acendendo uma impressão igno-
[ta!...
134
OBRAS COMPIyBTA.S
E através de minli'alma, onde latejam
Originárias almas precursoras,
Claridades d'espíritos alvejam,
Novas almas acordam, como auroras!...
Sei que todo o meu ser secretamente
Comunica com mundos radiosos;
B que todo ele vibra e canta heroicamente.
Sob influências astrais e beijos misteriosos!...
Cada ser, cada cousa é uma Lira bendita.
Suas cordas faz vibrar o vento do Mistério...
A vida é uma harmonia, absoluta, infinita.
São o homem e a pedra o mesmo canto etéreo !
Homem, ouve esse canto...
Ouve tua própria voz e a do Universo inteiro...
E aprenderás então a ser piedoso e santo
E justo e verdadeiro ! . . .
Pelos meus olhos uma estrela consciente
Vê seu próprio fulgor ...
E no meu coração a Essência transcendente
Viu que era a luz do Amor!...
Nos meus claros ouvidos,
A si mesma se ouviu a voz universal...
E, através do clarão sem fim dos meus sentidos,
Contemplou-se a si próprio o mundo material.
Do Universo sem fim que à Perfeição aspira
Eu sou a negra cruz...
Ô Sírius, Orion, Vénus, Trapézio e Eira,
Eu sou a vossa luz!...
Sou tua miséria. Deus.
Sou o que há d'anjo em vós, ó tigres e leões!
E é um resumo dos céus
Minha pupila a arder no incêndio das visões!,..
Ó ferro em brasa, sob os golpes do martelo,
Eu sou o teu martírio !
Sou a vossa dureza, ó pedras dum castelo,
E o teu perfume, ó lírio!...
135
TEIXEIRA DE PASCOAES
II
Homem, tu és a luz da Esperança e da Dor...
És a lira de Deus que o sonho faz vibrar !
Os teus olhos trespassa um clarão interior
Que dimana dum foco imenso de luar !
Vê-se através da carne o espírito imortal.
Um fulgor d 'alma sai dos rochedos obscuros...
Numa nuvem germina a seara do Ideal,
Bate as asas para Deus o lodo dos monturos!...
Homem, tu és o sonho enorme da Matéria,
A falar pela boca augusta de Jesus !
És estátua de pó onde uma luz etérea
Se transformou, morrendo, em sempiterna luz...
A matéria que forma o teu corpo grosseiro
Já foi incandescente; o espaço iluminou.
Noutros mundos floriu talvez um ermo outeiro...
Quantas lágrimas já tua carne evaporou!...
Foste doce luar boiando sobre um lago ...
Os vales sem ninguém cobriste de saudade,
E, entrando pelo olhar dum ser confuso e vago,
Numa alma acendeste o luar da Piedade!...
1^6
OBRAS COiSIPI/ETAS
Já foste uma fogueira, a errar, no Firmamento.
Teu calor aquecia os nus e os pobrezinhos ...
E o que hoje em ti é alma, amor e pensamento
Já compôs para um bosque a música dos ninhos...
Tu que já foste bom, quando tua boa alma
Era uma parte ideal do Espírito infinito.
No tempo em que viveste a vida etérea e calma
Do luar que enternece as rochas de granito,
Agora deves ser a Bondade consciente,
A Justiça e o Amor, com olhos e razão,
Para que o mundo alcance a Paz eternamente
E seja um Paraíso eterno a Criação!...
TBIXEIRA DB PASCOAES
MULHER
I
Mulher, corpo da Luz,
Mãe alegre de Pã, triste mãe de Jesus !
Mulher, divina encarnação do Amor...
Oh consciência de tudo o que é perfume ou flor !
A tristeza da lua ensombra teu perfil !
E nos teus lábios ri o claro mês d'abril !
A harmonia da Cor teu belo rosto exala.
Pelos teus lábios a cor verde fala,
Disfarçada em esperança, em alegria...
Nos teus olhos azuis. Virgem Maria,
Que voz de piedade é a cor azul do céu !
Da cor roxa dum lírio que sofreu
Brotam palavras tristes, doloridas.
Como as dos roxos lábios das feridas
Do corpo de Jesus que a Noite apunhalou!
Foi essa voz que os montes abalou.
Que os sepulcros abriu, que fez fugir o sol!...
Ouvindo-a, sobre a cruz, cantou um rouxinol...
Rouxinol da Paixão e do Martírio
Que julgava, cantando, adormecer um lírio,
E que ao pousar na cruz, todo carinho.
Procurava um lugar para fazer o ninho!...
Pã disfarçado em ave, a converter
No verbo amar o verbo padecer!...
Raio de sol bebendo o sangue da Paixão
Para o infiltrar na tua carne, ó Criação,
A insuflar-te vigor !
Nos seus braços assim sustenta a Dor o Amor !
Mulher divina, corpo lirial !
Único lírio deste triste vale
13S
OBRAS COMPIyETAS
De lágrimas que a luz absorve, a rir,
Por ver tudo florir ! . . .
Teu cabelo crepita em chamas misteriosas;
Há no teu sangue a seiva que alimenta as rosas !
Tua carne ainda se lembra, às vezes, vagamente
Do tempo em que foi lírio e névoa e luar dormente...
Recorda-se ainda bem teu verde negro olhar
Do tempo em que foi mar...
Por isso, quando evoca, às tardes, o Passado,
Súbito, fica em onda ou lágrima mudado !
Verde olhar de mulher que electriza
Os corpos brutos e que as rochas suaviza...
Vaga saudade a condensar-se em gota d'água,
Indefinida mágoa
A traduzir-se em mar...
Ó genésica luz no caos dum olhar !
Verde olhar de donzela.
Sol amoroso, comovida estrela
A fecundar etéreos mundos virginais...
Chuva d'amor caindo em raios matinais!...
Penumbra do Incriado onde sonha e medita
A vida transcendente, a existência infinita !
Teu leite é, ainda em nebulosa, um coração.
No teu ventre murmura a grande Criação !
Ó ventre que o Espírito tocou.
Que o sol dos sóis eternos penetrou ! ^
Ventre que lembra um vasto campo arado,
Onde se vê cair do sol apaixonado.
Essa seiva ideal que se traduz em árvore.
Como um éter subtil cristalizando em mármore...
Que tu vás fecundar o ser perfeito !
Que cada esposa traga um santo ao peito !
Que o leite da Mulher seja bendito e puro...
Ó Mães, amamentai os Cristos do Futuro!...
^ Correcção feita pelo autor, a lápis, num exemplar seu.
A variante impressa era «Que o sol dos sóis, que Maadeva,
penetrou!»
1S9
TEIXEIRA DB PASCOABS
II
O Ideal que faz florir os braços duma cruz,
Que dá asas à pedra, amor ao lodo impuro,
Que volve em linha recta e firme para a luz
O arbusto que nasceu nalgum recanto escuro!..
O sol do novo Ideal que dantes existia.
Concentrado na terra e na água adormecido,
Vai projectar no mundo a luz do novo Dia,
Feita da dor sem fim de tudo o que há vivido!..
OBRAS COMPI^ETAS
tTLTIMO CANTO
A MEUS gUERIDOS PAIS
Uma nova esperança as coisas alumia...
O mundo inteiro exala uma nova harmonia
Que infunde a mansidão aos animais selvagens,
Que faz enternecer as rústicas paisagens...
Sai dos lábios dum rio o canto das neblinas,
Nos olhos duma pedra há lágrimas divinas...
E, como bons irmãos, vejo o lobo e o cordeiro;
Vem lamber minhas mãos o tigre carniceiro,
E nos seus olhos fulge o luar da piedade...
O Zéfiro esqueceu a antiga tempestade;
E o orvalho que sorri, sob os beijos da aurora,
Nem se recorda já que foi dilúvio outrora !
O precipício ri; o oceano canta e reza...
O azul, olhar d'amor, afaga a Natureza...
Intima comoção as ondas enternece;
De tão impressionada, a noite resplandece!
E d'almas se povoa a triste solidão
E o sol cai sobre o mundo, assim como um per-
[dão...
E o homem sonha, livre e bom, sem um martírio,
Sob o azul que projecta uma sombra de lírio...
141
VIDA ETÉREA
[1.^ edição, Coimbra, F. França Amado, Editor,
1906; 2.^ edição, Lisboa, «Seara Nova)), 1924;
3.^ edição, «Obras Completas)), Lisboa, s/d]
Siglas do aparato crítico:
A: 1.^ edição; B: 2. a edição; M: versão manuscrita apenas ao
exemplar da 2.^ edição pertencente ao Autor.
OBRAS COMPIylíTAS
ENLEVO
Na espiritualidade da alvorada
Dum novo amor,
E como branca névoa deslumbrada
Meu cxDração em flor.
Ele vive da límpida frescura,
Que o céu respira.
Quando a terra floresce de ternura
E quando a luz, Apolo, é o som da tua lira.
Luz, divina canção.
Que um deus, todo abrasado, entoa no Infinito !
Ouvindo-te, estremece a rocha de granito,
Vestem-se de oiro os cerros do Marão;
Têm um áureo fulgor os ermos horizontes;
E risos de alegria ardem na voz das fontes !
É um teu estado de alma, ó terra, cada ser.
Um lírio é a tua graça...
E aquele passarinho, que esvoaça.
Na tristeza sem fim do anoitecer.
A criatura humana é um sentimento
Em que a terra desvaira, enlouquecida!
Nela, grita não sei que ignoto sofrimeHto,
A consciência trágica da vida.
145
10
TBIXBIRA DE PASCOAES
Fantástico mistério!
És noite e claridade;
Fogo consumidor que, ao mesmo tempo, aquece...
És negra sepultura e berço etéreo.
Tens ímpetos de doida tempestade;
Teu silêncio, ao luar, é a sombra duma prece.
Das gotas do teu choro salta o riso;
E o riso cai em choro desolado.
Porque deu flor e fruto a árvore do Pecado,
Na inocência infantil do Paraíso?
Ó terra, pesadelo arrefecido.
Petrificada e viva confusão.
Além de ti, meu ser é um canto comovido,
Pairando na amplidão.
Paira sobre os conflitos sanguinários.
Sobre os montes de bronze, onde troveja e neva...
Paira sobre a tragédia dos calvários;
Suas asas de luz agitam-se, na treva.
Paira num sonho místico de encanto,
Inefável, divino...
No delírio do poeta e no enlevo do santo.
Na embriaguez da sibila, em face do Destino...
Paira num voo sagrado de harmonia,
Num êxtase profundo:
Assim a luz do dia
Paira sobre a miséria e a escuridão do mundo.
OBRAS COMPI,BTA.S
PÃ
Ó Pã, deus da alegria,
Olha as ninfas, nos lagos, a cantar!
Olha Apolo semeando a luz do dia,
Áureo trigo que as almas vão ceifar.
Ó Pã, deus verdadeiro !
Tua presença os bosques ilumina,
Acendendo no triste pegureiro
Uma emoção divina.
Ó Pã, deus do arvoredo, alma da luz.
Teu corpo abrange a terra e o céu doirado.
Satã que floresceste a negra cruz
E estás, em sua flor, crucificado.
Cerca de verdes louros minha fronte.
Tua rústica frauta vou tanger.
Sob um salgueiro, junto duma fonte,
À luz do amanhecer.
E que subam meus cantos religiosos,
Como aromas de flor.
Dos vales deleitosos.
Onde, em chamas de lírios, arde o amor.
E, dispersos no azul do Firmamento,
Inunde-os de oiro o riso da manhã;
E sejam, modelados pelo vento,
A imagem do deus Pã...
147
TEIXEIRA DE PASCOAES
APOLO
Dos fumos da distância,
Etéreos e azulados,
Surge, vertiginoso.
Um resplendor de chama. 5
Há fogueiras queimando
Os longes ensombrados;
Dir-se-á que o nosso olhar tudo o que toca inflama.
Abrasa todo o espaço
Um fogo de delírio; 10
Ao apagar-se, é pedra,
É homem e arvoredo.
Vejo um clarão, no Azul,
Que, em ermo outeiro, é lírio.
Vejo um raio tomar as formas dum penedo. 15
Vejo o incêndio de tudo;
E sinto o grande sol
Crepitar, no meu sangue.
Fulgir, dentro de mim,
Num velho tronco em flor, 20
Na voz do rouxinol,
Derramar-se, na terra, em lágrimas sem fim.
6-7. A: fogueiras a arder, / Nos longes magoados... —
9-11. A : Vejo o Planeta a arder / No fogo de Delírio / Que,
ao apagar-se, — 14. A: ermo vale, — 15. AB: dum rochedo
— 17. A: Sol — 19-21. AB : Fulgir num tronco em flor. / Na
voz do rouxinol,
148
OBRAS COMPI^BTAS
Concentro-me na luz;
Subo na claridade
Que a imagem deste mundo 25
Aos outros mundos leva;
B vejo bem que desço
A uma profundidade,
Quando meu ser alaga a inundação da treva.
A noite é a tua lira, 30
Apolo, que emudece.
O dia é o som divino
E puro que ela exala.
Ouvindo-o, na planície,
O trigo amadurece; 35
O lírio ri, na aurora; à tarde, a água fala.
Tenho um sentido astral.
Que sabe distinguir
Tua alegre canção
De mística harmonia. 40
Meu sonho era poder,
Em versos, traduzir
Teu cântico de luz que os mundos extasia.
29. A: Quando, lívido, sinto o despenhar da Treva! //Só
quando nasce o sol / Minha'alma sobe à Vida, / Meu ser
adquire forma / K fica harmonioso. / Tudo apaga € des-
trói / A noite indefinida... / A noite é o teu silêncio, Apolo
esplendoroso! — 31. A: Kterna que emudece. — 32. A: A
luz é — 34. A: na campina — 36. A : O lírio ri, a pedra canta,
a água fala. — 37-42. A: um ouvido estranho, / Ideal que
sabe ouvir / Tua eterna canção / De esperança e alegria.
/ Meu sonho de poeta, / Apolo, é traduzir — 43. A: exta-
sia!...
149
TEIXEIRA DE PASCOAES
VÉNUS
Lá vai a aurora sorrindo,
Pelos céus,
Ao mar, na praia, dormindo
E às nuvenzinhas de Deus. 5
Na água fria,
Divina imagem pousou !
Que alegria,
Por dentro, as ondas doirou !
Que frescura ! Que fragância ! lo
Vê-se quase
Seu vulto de etérea gaze.
Na distância.
Todo o líquido horizonte
Sonha e dorme. 15
Mar enorme.
Tens a alma duma fonte.
Mas, de repente, exaltada.
Rola uma onda, e desfaz-se
Em branca espuma; e, animada, 20
Vénus nasce.
1. ]\I : Nascimento de Vénus — 6. M: Nos olhos da espuma
fria — 7. M: pousou. — 10-11. M: Vão as velas, com a ara-
gem, / A voar. / É tão branca a sua imagem / Que, à luz do
sol, dá luar. // Que fragância! / Que frescura! Vê-se quase
— 19t M : Onda divina desfaz-se
150
OBRAS COMPIyBTAS
Seu corpo, virgem e eterno,
Sai da água que murmura,
Como do ventre materno
A criatura. 25
E, em derredor
Do seu corpo amanhecente.
Esvoaça, doidamente,
O doido amor.
22. M: Seu corpo virgem, eterno, — 26. M: Vem da vida; /
/ Vem da astral intimidade / Dessa Onda indefinida / Que
enche o espaço e a eternidade; // K em seu fluido dorso eté-
reo / Vogam astros, nubelosas, / Claridades tenebrosas, / Re-
velação e mistério. // Vénus nasce. E, em derredor — 27. M:
Do seu vulto amanhecente.
151
TEIXEIRA DE PASCOAES
CIBELE
Inunda de harmonia a vibração da luz
O vale em flor de Pã e o horto de Jesus.
Um hálito de abril o espaço aromatiza.
Um calor voluptuoso acorda etérea brisa,
Dilata suavemente o ar, que se enternece.
Vénus sorri, no Olimpo, e o mundo reverdece.
No Azul, tontos de luz, beijam-se os passarinhos
E há sombras a beijar a poeira dos caminhos.
O luar beija o mar capaz de enlouquecer !
A noite beija o céu, que fica todo a arder !
E que alegria nimba as cousas inocentes !
Nas leiras, a sonhar, germinam as sementes.
A semente é uma vida, obscura e concentrada.
Que, à voz do sol, se expande em árvore sagrada;
Um cofre onde se oculta a essência misteriosa.
Que, em êxtase, abre a luz, a Psique radiosa.
E sorri, para Deus, a face da paisagem;
Alteram-se, de manso, as ondas da ramagem.
Ondas vivas, que o vento agita, com brandura.
Para as flores de maio o vento é só ternura.
Marulham, tão baixinho, os rios, a fulgir.
Que, ao pé deles, decerto, há ninfas a dormir.
As árvores sensuais, ébrias de amor, ciciam.
Seus ramos, verdes mãos, os céus acariciam,
E, listrados de fogo, aos zéfiros lampejam,
152
OBRAS COMPI/BTAS
K, à branca luz do luar, saudosos, rumorejam.
Esplende, em cada fonte, um íntimo tesouro.
Como o Tejo de outrora, os rios levam ouro.
Nimbam as formas vãs fulgurações estranhas,
E que relevo têm, nos longes, as montanhas !
Ouço alegres canções, murmúrios e rumores
E grita, num delírio, a nitidez das cores.
TBIXKIRA DE PÁSCOA BS
NOVA LUZ
I
Emana um fumo de alma o crepitar do lume;
O incêndio duma flor dá a cinza do perfume.
O corpo duma onda é o líquido braseiro,
Que exala, no infinito, o branco nevoeiro.
A rama dos pinhais, onde o luar se perde.
Sobre os montes, espalha uma fogueira verde.
Nas formas dum penedo, há chamas escondidas,
Brilham, na noite escura, as rosas acendidas.
E cada lírio triste é roxa labareda.
A aurora leva a arder o hábito de seda.
Há, no seio do orvalho, um riso incandescente.
A criatura humana é fogo intimamente.
E deste incêndio, eterno e universal, se eleva,
Em orações de luz, o espírito da treva.
154
OBRAS COIMPLBTA.S
II
Ê tudo sonho e vida e comoção !
O sol é uma oração
Pelos velhos mendigos que têm frio !
K a piedade das sombras, pelo estio !
A nuvem religiosa
Mata a sede à paisagem sequiosa...
O luar perdoa à noite; e cada flor
É dádiva de amor.
TEIXEIRA DE PASCOAES
III
Uma nova esperança as cousas alumia.
Surge, em cada perfil, a imagem da alegria.
Sobe, do mar salgado, o canto das neblinas.
Nos olhos duma pedra, há lágrimas divinas;
Nas árvores, ao vento, há gestos de piedade.
O zéfiro esqueceu a antiga tempestade
E o orvalho que sorri, contente, à luz da aurora,
Nem se recorda já que foi dilúvio, outrora !
Doirada comoção as águas enternece...
De tão impressionada, a noite resplandece.
O ar é transparência azul que se respira.
Um novo Maio faz a terra florescer.
Onda de vida nova aflora, em cada ser,
B um novo Apolo vai tanger a nova lira.
150
OBRAS COMPLETAS
O RISO
Ó riso, olhar de Apolo, pai do dia!
IvUz ardente vestindo corpos virgens...
Ó riso, etérea fonte de harmonia !
Ó riso misterioso das origens,
Ó riso sempiterno do deus Pã,
Ó riso delirante das vertigens !
Ó riso, a luz sagrada é tua irmã.
Sempre que uns lábios puros vão sorrir,
Neles, fulgura a estrela da manhã.
Ser alegre é ser luz. Rir é florir.
Cravos na infância, rosas pequeninas.
São sorrisos de amor que estão a abrir.
Áureas chuvas de riso cristalinas.
Desenhando, nos bosques rumorosos,
Anjos de luz, aparições divinas !
Risos de oiro nos vagos céus brumosos,
Risos da aurora, orvalhos matinais.
Risos de flor nos troncos voluptuosos.
Riso das ondas, riso dos cristais.
Flocos de espuma, a rir, em tosca frágua,
Ó riso intenso e frio dos metais !
^51
TBIX:^IRA DK PASCOABS
Riso do sol que doira a nossa mágoa;
Lábios da noite acesos numa estrela,
Lábios de nuvem num sorriso de água...
Riso da morte, ao luar, que se congela;
Riso gravado a fogo, em névoa escura,
Beijo, a sorrir, nuns olhos de donzela.
Riso da branca neve, que fulgura...
Ó místico sorriso da Piedade !
Riso de sombra em trágica figura...
Risos da primavera ! Nova idade !
Lírios que sois, nos vales, os primeiros
Enviados da divina claridade.
Riso aquecendo os torvos nevoeiros...
Ó riso madrugante e solitário.
Riso anterior aos mundos passageiros.
Ou nas flores agrestes do Calvário,
Ou nas flores do campo, em tudo vejo
O riso primitivo e originário,
O precursor da aurora e do desejo,
Da esperança e da lágrima dorida...
Nebulosa, no Azul, nuns lábios, beijo!...
Riso eterno de Deus criando a Vida !
OBRAS COMPLETAS
idílio
A luz do teu olhar
Funde meu corpo em sonho, em lágrima e luar!
Teu divino sorriso
Ê voz de anjo a mandar-me entrar no Paraíso...
Teu sorriso, que lembra a doce aurora,
Minhas lágrimas tristes evapora
E, nos meus olhos, fica a tua imagem bela...
Assim o fresco orvalho matutino,
Onde encantado vive o sol menino,
Deixa, nas brancas rosas, uma estrela...
Ao descobrir-te, flor.
Todo me exalto e elevo, em cânticos de amor,
Perco-me, na amplidão...
Sou asa entontecida, aroma, comoção.
Se me tocam, de leve,
Os teus olhos de chama e as tuas mãos de neve !
Alegre, choro; e rio, sempre aflito!
Canto, soluço e grito !
Sou oração, queixume.
Relâmpago, nevoeiro, onda do mar, perfume.
Quando, da tua face.
Límpida rosa nasce
159
TEIXEIRA DE PASCOAES
E de ti se desprende o encanto da manhã,
Que é tua sombra mística e pagã;
Quando, ao doirado zéfiro, estremeces
E, aureolada de beijos, resplandeces,
Como florido arbusto...
E és o sol esculpido em feminino busto.
Estrela, bem-me-quer !
Imagem de mulher!
Deslumbra a noite, os montes incendeia
E a morta lua cheia !
Quebra as marmóreas tampas sepulcrais !
Que regressem à vida os corpos espectrais !
Liberta os arvoredos
E as ondas abraçadas aos penedos !
As almas embriaga;
Sensibiliza a fraga
E as nuvens, a voar...
Embebe-te na luz e muda-a em doce olhar.
Seja, no Azul profundo.
Lágrima a tremular e a cintilar o mundo;
Enternecida esfera.
Toda ela a palpitar de amor e primavera.
Estrela, flor, mulher !
Mulher, ave a cantar, na luz do amanhecer!
Mulher, rio sonhando, ao longo das campinas.
Mulher, névoa tentando as asas matutinas.
Mulher, árvore piedosa.
Mulher, triste martírio, enamorada rosa !
Mulher, onda do mar bailando com o vento.
Mulher, brisa outonal, crepúsculo cinzento.
Imagem toda luz da noite escura...
Mulher, esperança, dor, amor, graça e candura.
Mulher, fonte que chora e que deseja.
Mulher, mulher, mulher, é a terra que o sol beija.
lòo
OBRAS COMPIvBTAS
CANÇÃO DE MAIO
Os rios são de luz,
B de oiro são as fontes.
Ê de oiro o mar azul,
Que banha os horizontes.
O arbusto que rebenta,
É um Lázaro a quebrar
A tampa do sepulcro,
Ouvindo o sol chamar !
O aroma é tão intenso,
Em Maio, nos outeiros.
Que tolda os claros céus
De vagos nevoeiros.
A luz do sol caindo.
Alegre, sobre a aldeia,
As pedrinhas do chão
E as águas incendeia !
Doira a face espelhada
E lívida dos mármores;
E chuveiros de tinta
Esparge sobre as árvores.
Crescendo, a cor alaga
O vale, o campo, a serra.
E já mal se distingue
O céu azul da terra.
lôi
TBIXKIRA DE PASCOABS
ALEGRIA
A alegria do sol doira as campinas,
Brilha nas fontes cristalinas;
Transluz no olhar dos meigos cordeirinhos,
Canta na voz dos passarinhos !
Vede a alegria imensa de florir,
Dentro de nós, a rir...
Nas árvores, nos verdes matagais,
Lucilantes de choros matinais.
Em clara seiva, pelos troncos, gira
O riso eterno da apolínea lira !
É a música das flores,
Em sons primaveris de vivas cores.
Luz, irmã da alegria
E da harmonia...
Doirada comoção indefinida.
Em que palpita o espírito da vida.
A alegria é donzela;
A alegria é luz de alma e luz de estrela;
Relâmpago infinito,
Que deslumbra meu ser, quando medito!
A alegria do sol doira as campinas.
Brilha nas fontes cristalinas.
Transluz no olhar dos meigos cordeirinhos.
Canta na voz dos passarinhos...
162
OBRAS CO M^P L B T A S
ÊXTASE
Estrelas, como vós, eu ardo e me consumo.
Sou labareda e fumo,
Em sonhos, me disperso
E fujo com o vento.
Sou êxtase, luar, deslumbramento.
A sagrada manhã doirou meu berço;
E a Primavera, a rir as suas cores,
Cingiu-me num abraço iluminado a flores.
Beija-me etérea graça.
Canta, pousada em mim, a cotovia.
Eterna borboleta de alegria,
No encanto dos meus olhos, esvoaça.
E tudo me embriaga e me seduz !
Evolo-me num cântico de luz,
Numa oração a Deus
E ao claro sol que anima a Natureza
E descreve, num gesto de beleza,
A curva musical que abrange o azul dos céus.
Vivo naquela altura esplendorosa,
Lá, onde tudo é graça, enlevo, amor infindo,
Comoção matinal de lágrima caindo
Sobre um botão de rosa...
Quando um fulgor de aparição divina,
Que os negros cerros banha.
Dissipa as frias névoas e ilumina.
Com lírios de oiro, o busto da montanha.
Através do meu ser,
Passam anjos voando, astros a resplender,
163
TBIXBIRA DB PA SCO ABS
A lua, a noite escura,
Dilúvios de ternura.
Sombras de almas que surgem retratadas
Na inquieta palidez das madrugadas...
Perfumes, ansiedades,
Visões de amor, longínquas claridades...
E, por milagre, alcanço intimamente
Indefinidos mundos radiosos;
E todo eu vibro e canto heroicamente.
Sob influências astrais e beijos misteriosos...
OBRAS co:mpletas
PAISAGENS
Num pálido desmaio a luz do dia afrouxa
E põe, na face triste, um véu de seda roxa...
Nuvens, a escorrer sangue, esvoaçam, no poente.
E num ermo, que o outono adora eternamente,
Vê-se velhinha casa, em ruínas de tristeza.
Onde o espectro do vento, às horas mortas, reza
E o luar se condensa em vultos de segredo...
Almas da solidão, sombras que fazem medo,
Vidas que o sol antigo, um outro sol, doirou,
Fumo ainda a subir dum lar que se apagou.
TBIXBIRA DB PASÇO ABS
II
Como chuva espectral, a noite cai dos céus;
Surge o negro Satã, desaparece Deus.
Apaga-se a harmonia, a voz cantando e a chama.
A cinza do silêncio o zéfiro derrama.
Na paisagem delida em vaga claridade.
O fantasma do sol paira na imensidade.
Quando nasce o luar, as fontes emudecem;
Vegetações de sonho os campos enverdecem;
Intima comoção sensibiliza os mármores.
Espíritos astrais alvejam, entre as árvores...
Uma vida ideal, quimérica, deslumbra
As distâncias de névoa e os fundos de penumbra.
Chovem almas da bruma anímica da luz,
Divaga, pela terra, a sombra de Jesus...
OBRAS COMPLETAS
III
Sobre a paisagem erma, arrefecida e nua,
A muda ondulação da escuridão flutua.
Onde a treva é mais densa, há gestos doloridos
B vultos, a chorar, que perdem os sentidos.
Uma chuva, miúda e triste, nos beirais.
Põe murmúrios de dor, misteriosos ais...
De tudo a solidão extática dimana,
B parece que tem uma aparência humana
B uns olhos de terror, abertos, espantados...
As cousas são perfis apenas esboçados.
Bntre elas e o Infinito há diálogos profundos,
Bnche a noite sem fim a ignota voz dos mundos.
TEIXEIRA DE PASCOAES
CANÇÃO ERRANTE
Dum cantinho deste mundo,
Ermo e triste, à beira-mar.
Meu coração vagabundo
Vai, pelo mundo, a chorar.
Vai, percorre a noite escura,
Coração, luz do luar...
Lírio aceso de amargura
Que nunca se há-de apagar.
Beija a chaga dolorida.
Teu amor a faz sarar.
Beija os lábios já sem vida
E voltarão a falar.
Adora, abriga, consola;
Sê berço, caverna e lar.
Sê beijo, lágrima, esmola
E um pobrezinho a rezar.
Dum cantinho deste mundo,
Ermo e triste, à beira-mar.
Meu coração vagabundo
Vai, pelo mundo, a chorar.
i68
OBRAS COMPI^KTAS
UM DIÁLOGO
o AMOR
Quem bate à minha porta?
A AL^IA
Uma velha mendiga, quase morta.
Venho da escuridão da Natureza.
No meu saco de pobre, eu trago só tristeza.
Há séculos e séculos, errante,
Trémula sombra, ao vento murmurante,
Ando de corpo em corpo...
O mármore beijei;
O mármore glacial e lívido animei...
E, em mística ternura,
Fundiu-se como, ao sol, a neve pura;
E ei-lo sagrada flor,
Turíbulo que exala aroma, vida e cor.
Percorri a distância.
Entre nocturna estrela e a minha infância
E uma gota de orvalho que reluz:
Lágrima refulgindo o espírito da luz.
E enlevei-me no sonho etéreo de amplidão
Que cinge, numa curva indefinida.
Indefinidamente distendida.
Os relevos sem fim da Criação...
lôg
TEIXEIRA DE PASÇO A ES
Fui nuvem, fui mulher;
Fantasma divagando, à luz do entardecer.
Cismei, no outono, à sombra dum cipreste.
Certa noite, parti, nas asas do nordeste...
Nas solidões da lua, errei, molhada em pranto;
B ao mundo regressei, quebrado o meu encanto.
Passeei toda a estrada de luar,
Por onde vão os mortos, a cantar.
Reverdeci nas árvores maternais,
Brilhei na essência pura dos cristais;
Líquida intimidade acesa de esplendores,
Onde se banham, rindo, as sete cores.
Vi o céu pelos olhos das campinas,
Cobertas de boninas;
Pelos olhos das cérulas espumas.
Pelos olhos sonâmbulos das brumas.
Fui luarenta embriaguez, num rouxinol,
Perfume devorado pelo sol.
Astro que a negra noite sufocou
B, no seio das trevas, expirou...
Sou agora uma voz, lamúria de alma,
Um ímpeto de dor na imensidade calma...
A terra, em mim, suspira
B tange etérea lira.
Bm mim, a branca névoa é fria mágoa...
Em mim, se converteu em lágrimas a água;
B a luz naquele olhar, sinistro e mudo.
Que viu a morte — ai dele ! — e a sombra vã de tudo !
O AMOR
Vens do infinito Além... Os teus vestidos
Trazem poeiras de astros acendidos
B escorrem gotas de ouro:
Bstrelas que te queimam, ígneo choro...
És o encanto perfeito, a formosura,
1'JO
OBRAS COMPI^ETAS
O espanto da Natura !
O teu perfil, quimérico e nevoento,
Parece aquele deus que se entrevê no vento;
A divindade oculta que deslumbra
Sacro bosque, onde cai a chuva da penumbra;
Génio velado em névoa transcendente
Que se avista, num rio, ao sol nascente;
O Cristo macerado e ensanguentado.
Na glória da ascensão transfigurado !
Alma, sombra de Deus, longe de Deus,
Sozinha, a percorrer mundos, estrelas, céus,
Errando, à triste sorte,
De corpo em corpo, isto é, de morte em morte,
Ó alma vagabunda e dolorida.
Vem a mim. Sou o amor que te dá vida.
TEIXEIRA DE PASCOAES
ELEGIA DO AMOR
Lembras-te, meu amor,
Das tardes outonais,
Em que íamos os dois,
Sozinhos, passear, 5
Para fora do povo
Alegre e dos casais.
Onde só Deus pudesse
Ouvir-nos conversar? ,
Tu levavas, na mão, 10
Um lírio enamorado,
E davas-me o teu braço;
E eu, triste, meditava
Na vida, em Deus, em ti...
E, além, o sol doirado 15
Morria, conhecendo
A noite que deixava.
Harmonias astrais
Beijavam teus ouvidos;
Um crepúsculo temo 20
E doce diluía.
Na sombra, o teu perfil
E os montes doloridos...
6. AB : Para longe do povo — 9. A: conversar?... — 12. A:
braço — 13. AB : E eu, pálido, sonhava — 15. ^ : E, ao longe,
o sol doirado
1^2
OBRAS COMPLETAS
Erravam, pelo Azul,
Canções do fim do dia. 25
Canções que, de tão longe,
O vento vagabundo
Trazia, na memória...
Assim o que partiu
Em frágil caravela, 30
E andou por todo o mundo,
Traz, no seu coração,
A imagem do que viu.
Olhavas para mim.
Às vezes, distraída, 35
Como quem olha o mar,
À tarde, dos rochedos...
E eu ficava a sonhar.
Qual névoa adormecida.
Quando o vento também 40
Dorme nos arvoredos.
Olhavas para mim...
Meu corpo rude e bruto
Vibrava, como a onda
A alar-se em nevoeiro. 45
Olhavas, descuidada
E triste. . . Ainda hoje escuto
A música ideal
Do teu olhar primeiro !
Ouço bem tua voz, 50
Vejo melhor teu rosto
No silêncio sem fim.
Na escuridão completa !
Ouço-te em minha dor.
24. A: azul, — 26. AB : que, de bem longe, — 30-31. AB :
Sobre as águas do mar / B vem de ver o mundo — 36. A:
quem vê o mar — 39. AB: Qual onda adormecida — 41. A: ar-
voredos...— 45. A: A erguer-se em nevoeiro! — 46-47. AB:
descuidada... / ó dor, ainda hoje escuto — 51. AB : E vejo
bem teu rosto
173
TEIXKIRA DB PASCOABS
Onço-te em meu desgosto 55
E na minha esperança
Eterna de poeta !
O sol morria, ao longe;
E a sombra da tristeza
Velava, com amor, 60
Nossas doridas frontes.
Hora em que a flor medita
E a pedra chora e reza,
E desmaiam de mágoa
As cristalinas fontes. 65
Hora santa e perfeita.
Em que íamos, sozinhos,
Felizes, através
Da aldeia muda e calma.
Mãos dadas, a sonhar, 70
Ao longo dos caminhos...
Tudo, em volta de nós.
Tinha um aspecto de alma.
Tudo era sentimento.
Amor e piedade. 75
A folha que tombava
Era alma que subia...
E, sob os nossos pés,
A terra era saudade,
A pedra comoção 80
E o pó melancolia.
Falavas duma estrela
E deste bosque em flor;
Dos ceguinhos sem pão.
Dos pobres sem um manto. 85
Em cada tua palavra,
55-57. AB \ desgosto; / Vejo-te no meu sonho / Eterno de
poeta! — 58. A: O sol morria ao longe... — 64-68. AB: E
erguem as mãos de bruma / Ao céu, as tristes fontes. / Hora
santa «m que nós, / Felizes e sozinhos, / íamos através —
82-83. AB : Falavas do luar, / Dos bosques, mais do amor ;
174
OBRAS COISIPI/ETAS
Havia etérea dor;
Por isso, a tua voz
Me impressionava tanto!
E punha-me a cismar 90
Que eras tão boa e pura,
Que, muito em breve — sim! — ,
Te chamaria o céu !
E soluçava, ao ver-te
Alguma sombra escura, 95
Na fronte, que o luar
Cobria, como um véu.
A tua palidez
Que medo me causava !
Teu corpo era tão fino 100
E leve (oh meu desgosto!)
Que eu tremia, ao sentir
O vento que passava !
Caíâ-me, na alma,
A neve do teu rosto. 105
Como eu ficava mudo
E triste, sobre a terra !
E uma vez, quando a noite
Amortalhava a aldeia,
Tu gritaste, de susto, iio
Olhando para a serra:
— Que incêndio ! — E eu, a rir,
Disse-te: — É a lua cheia!...
E sorriste também
Do teu engano. A lua 115
Ergueu a branca fronte,
Acima dos pinhais,
Tão ébria de esplendor,
Tão casta e irmã da tua.
90. AB: B ficava a cismar — 92. AB: Que, em breve, ó dor
fatal, — 94. A: ao ver — 96. A: No teu rosto que o luar —
100-101. A : Teu corpo era tão fino e leve, / (Oh meu des-
gosta!)— 105. A: rosto!... — 115. A: engano... K a lua
TEIXEIRA DE PASCOAES
Que eu beijei, sem querer, I20
Seus raios virginais.
E a lua, para nós.
Os braços estendeu.
Uniu-nos num abraço.
Espiritual, profundo; 125
E levou-nos assim,
Com ela, até ao céu...
Mas, ai, tu não voltaste
E eu regressei ao mundo.
121. A: virginais!... — 125. A: Esplêndido e profundo,-
126. AB: E levou-nos os dois — 128. A : Somente, tu ficaste
OBRAS compi^e;ta.s
II
Um raio de luar, 130
Entrando, de improviso,
No meu quarto sombrio,
Onde medito, a sós.
Deixa, a tremer, no ar,
Um pálido sorriso, 135
Um murmúrio de luz
Que lembra a tua voz...
O outono, que derrama
Ideal melancolia
Nas almas sem amor, 140
Nos troncos sem folhagem,
Deixa a vibrar, em mim,
Saudosa melodia.
Dolorida canção.
Que lembra a tua imagem. 145
A noite, que escurece
Os vales e os outeiros,
E que acende, num bosque,
A voz do rouxinol
E a estrela que protege 150
E guia os pegureiros;
A lágrima do céu
Ao ver morrer o sol.
Acorda, no meu peito.
Infinda e etérea dor, 155
Que à memória me traz
145. A: imagem... — 147-148. A: As almas € os outeiros /
/ Mas que — 155. A: Etérea e infinda
177
12
t:bixbira db pascoaes
A luz do teu olhar...
Tudo de ti me fala,
Ó meu longínquo amor:
As árvores, a névoa, i6o
Os rouxinóis e o mar.
Se passo por um lírio,
Às vezes, distraído,
Chama por mim, dizendo:
«Oh ! não te esqueças dela !» 165
Diz-mo também, chorando
O vento dolorido.
Diz-mo a fonte, a cantar,
Diz-mo, a brilhar, a estrela.
E vejo, em toda a luz, 170
Teus olhos a fulgir.
Como adivinho, em tudo,
A alma que perdi !
Não encontro uma flor,
Sem o teu nome ouvir. 175
Não posso olhar o céu,
Sem me lembrar de ti !
Por isso, eu amo o pobre,
O triste e a Natureza,
A mãe da humana dor, 180
Da dor de Deus a filha.
Meu coração, ao pé
Dum pobrezinho, reza;
Canta, ao lado dum ninho,
Ao pé da estrela, brilha. 185
O meu amor por ti.
Meu bem, minha saudade,
Ampliou-se até Deus,
Os astros alcançou.
159. A: amor! — 160. AB : As árvores, a terra — 161. A:
mar! — 166. AB : Diz-mo mesmo, chorando — 169. A: estre-
la!—172. AB: Como descubro— 181. A: filha! — 189. A: Os
astros abraçou... B: Os astros abraçou.
f
178 1
OBRAS COMPIvBTA.S
Beijo o rochedo e a flor, 190
A noite e a claridade.
São estes, sobre o mundo.
Os beijos que te dou.
Hás-de senti-los, sim,
Doce mulher de outrora. 195
Ó roxo lírio de hoje,
Ó nuvem actual ! -
Como dantes teu rosto,
A rosa ainda hoje cora;
Beijo-te, sim, beijando 200
A rosa virginal.
Teu espectro divaga.
Ao longo dos espaços.
Teu amor, feito luz.
Desce do Firmamento. 205
Se abraço um verde tronco.
Eu sinto, entre os meus braços.
Teu corpo estremecer.
Como uma flor, ao vento.
Soluça a tua dor 210
Nas infinitas mágoas.
Que, no fumo da tarde.
Eu vejo, além, subir...
E paira a tua voz
No marulhar das águas, 215
No murmúrio que sai
Das pétalas a abrir.
Se os lábios vou molhar
Nas ondas duma fonte.
Queimam meu coração 220
Tuas lágrimas salgadas.
192. AB: São estes, meu amor, — 193. A: dou! —
202-203. AB : Vêm doirar meu perfil / Teus olhos dos espa-
ços.—212. A: Que no fundo da tarde, — 213-214. AB: Ao
céu vejo subir. / Ouço bem tua voz — 219. A: Nas águas
duma fonte,
17c
T:eiXEIRA DB PASCOAES
E, quando acaricia
O vento a minha fronte,
Eu bem sinto, sobre ela,
As tuas mãos sagradas. 225
Quando a lua, no outono,
Envolta em luz funérea,
Morta, vai a boiar
Nas águas do Infinito,
Doira meu frio rosto 230
A palidez etérea.
Que dantes emanava
O teu perfil bendito.
Quando, em manhãs d'Abril,
Acordo, de repente, 235
E vejo, no meu quarto,
O sol entrar, sorrindo.
Julgo ver, ante mim.
Teu corpo resplendente.
Tua trança de luz, 240
Teu gesto suave e lindo.
Descubro-te, mulher.
Da Natureza inteira,
Porque entendo a floresta,
A névoa, o céu doirado, 245
A estrela a arder, no Azul,
A lenha, na lareira
E o lírio que, na cruz
Do outono, está pregado.
Falas comigo, sim, 250
Da dor, do bem, de Deus...
Repartes o meu pão,
Amor, pelos ceguinhos...
E pelas solidões
Os pobres versos meus, 255
225. A: sagradas!... — 226. AB : Quando, à noite, no ou-
tono— 227. A: A lua, a branca Ofélia, B : A lua, branca Ofé-
lia,— 230. AB: Sinto doirar meu rosto — 241. A: lindo... —
249. A: Do outono, está pregado!
iSo
OBRAS COMPIvETAS
Como os pobres que vão,
A orar, pelos caminhos.
Ês a minha ternura,
A minha piedade,
Pois tudo me comove ! 260
O zéfiro mais leve
Acende, no meu peito.
Infinda claridade;
E a brancura do lírio
Enche meu ser de neve. 265
Todo eu fico a cismar
Na louca voz do vento.
Na atitude serena
E estranha duma serra;
No delírio do mar, 270
Na paz do Firmamento
E na nuvem, que estende
As asas, sobre a terra.
Todo eu fico a cismar.
Assim como que esquecido, 275
Ante a flor virginal
E o sol enamorado...
Ante o luar que nasce,
Ao longe, dolorido.
Dando às cousas um ar 280
Tão triste e macerado.
Todo eu medito e cismo...
Um vago e etéreo laço
Prende-me ao teu imenso
E livre coração, 285
Que abrange o mundo inteiro
E ocupa todo o espaço,
E que vai povoar
257. A: caminhos! — 263. A: claridade... — 265. A: neve...
— 267. AB: Na triste voz do vento, — 273. A: Terra! —
275. AB: Assim como esquecido, — 281. A: macerado... —
282. AB : Todo eu fico a cismar... — 286. A: toda a terra
B : a terra inteira
j8i
TEIXEIRA DE PASC.OAES
A minlia solidão.
Por isso, eu vivo sempre, 290
Em doce companhia,
Com o pobre que pede
E a estrela que fulgura;
B, assim, a minha alma,
Igual à luz do dia 295
Derrama-se, no céu.
Em ondas de ternura.
Sou como a chuva e o vento
E a sombra duma cruz !
Lira, que a mais suave 300
Aragem faz vibrar...
Água que, ao luar brando,
Em nuvens se traduz;
Fruto que amadurece,
À luz dum claro olhar... 305
Pedra que um beijo funde
E místico vapor.
Que um hálito condensa
Em pura gota de água...
Sou aroma que um ai 310
Encarna em triste flor;
Riso que muda em choro
A mais pequena mágoa.
Vivo a vida infinita.
Eterna, esplendorosa. 315
Sou neblina, sou ave,
Estrela, Azul sem fim,
Só porque, um dia, tu,
Mulher misteriosa,
Por acaso, talvez, 320
Olhaste para mim.
289. A : solidão! — 294. AB: E assim meu coração — 299. A:
E como a bruma e a luz... B: E como a bruma e a luz! —
305. A: k luz dum só olhar! — 309. A: Em clara gota —
310. AB: Aroma que um só ai — 313. A: mágoa... — 317. A:
Estrela e céu sem fim, B : Estrela, céu sem fim, — 321. A : mim...
1S2
OBRAS COMPIvBTAS
DESLUMBRAMENTO
A vida é sonHo, amor, exaltação.
Flama a irromper de eterna escuridão.
É lume a flor e a sombra amanheceu te.
A terra é carne, a luz é sangue ardente.
Gira líquida chama em cada veia
E que alegria as nuvens incendeia !
Contemplai, sob os raios matinais,
O delírio e a vertigem dos cristais.
Entre cintilações, gritando e rindo.
Abrasados de luz, tremeluzindo !
No alvor da aurora, as aves resplandecem,
No coração do orvalho, sóis florescem,
No coração dos homens solitários.
Há Cristos a subir ermos calvários.
Cantam as fontes, doidas de ternura;
Seu canto veste os montes de verdura !
E esse infinito Vácuo tenebroso.
Quando o sensibiliza o sol radioso.
Sente grande prazer, grande alegria
E assim nos comunica a luz do dia !
E que loucura as ondas alevanta.
Quando o luar misterioso canta !
Ó mar, à luz do luar ! Ó mar profundo.
Em choros que se espalham sobre o mundo !
Ó anjo imenso, que, na mão, sustentas
O cálix da amarsfura e das tormentas !
1S3
TEIXEIRA DE PASCOAES
Tudo é sonho e desejo; céu e inferno.
Abrasa tudo o mesmo fogo eterno.
Vive uma estrela oculta no rochedo,
Crepita a seiva ardente do arvoredo.
Têm pétalas de chama a rosa, o lírio.
A substância das cousas é o delírio.
A vida não é mais que sentimento;
Grande incêndio ateado pelo vento
Do mistério sem fim que esconde Deus
E enluta de negrume o azul dos céus !
A vida é uma rajada esplendorosa.
Perpassando e animando cada cousa...
É doido torvelinho, que se eleva
E rasga, de alto a baixo, a fria treva,
Desvendando figuras repentinas.
Formas do amor, aparições divinas !
Poetas, cantai, banhados no clarão,
Que alvorece da infinda comoção.
Que de estrelas orvalha a Imensidade
E em meus olhos é lágrima e saudade...
Poetas, cantai a vida, o bem e o mal !
Consumi-vos no incêndio universal,
Que enche de labaredas o Infinito !
E é Deus, talvez, num desespero! Um grito
De Deus ! Grito de dor incandescente.
Na eterna escuridão, eternamente!
OBRAS COMPIvKTAS
DIVINA TRAGÉDIA
O Universo é infinita solidão,
Onde a sombra fantástica do ser
Divaga, numa eterna exaltação.
A vida é dor. Sofrer é conhecer.
Só os olhos que choram, sabem ver.
A lágrima é que vê; os olhos, não.
Os olhos são Calvário, negra cruz,
E a lágrima é presença de Jesus.
TEIXEIRA DE PASCOAES
A FONTE
Por entre as pedras, onde o musgo cresce,
Uma fonte suspira e quase desfalece.
Vai tão magrinha ! Por assim dizer,
Ê fio de água, pálido, a correr,
Abrindo uns olhos vagos de tristeza.
Como os olhos que pôs no céu Santa Teresa..,
E, moribunda, sobre a areia inclina
A face em que transluz uma expressão divina.
OBRAS COMPLETAS
CÂNTICO
Ó criações da alma ! Ó símbolos de luz
Da Verdade absoluta ! Estrela dos Reis Magos !
Ascensão de Jesus !
Ó sereias do mar, ninfas dos lagos !
Ô sibilas, à entrada da caverna,
Num misterioso ataque repentino,
Interrogando aquela Sombra eterna
Que as estrelas dirige e o mundo pequenino.
Doidas sacerdotisas espectrais,
Num trágico delírio.
Ouvindo a voz dos deuses imortais.
Como através dum sono aflito de martírio !
Profetas da Judeia, ermos anunciadores,
ímpetos de alma, a arder, sobre o futuro incerto !
Ó lívidos perfis sulcados pelas dores !
Leões de Jeová bramindo no deserto !
Amante de Teseu perdida, em erma praia,
Mais a deusa que faz o luar, quando desmaia...
E a mística mulher.
Que a Jesus Cristo deu, sorrindo, de beber...
Viviana e Merlim. Ó fadas madrugantes.
Estátuas de animado e esplendoroso mármore...
Espíritos de luz, longínquos, sempre errantes.
Que éreis, de perto, oh. dor, velhinhos troncos de
[árvore.
Chuva de oiro que outrora um ventre fecundou...
1S7.
TKIXEIRA DB PASCOAES
Ó Cristo no Tabor,
Quando estranho clarão teu corpo aureolou!
Ó Moisés, no Sinai, em frente do Senhor \
Eneias sobre o mar que o vento encapelava...
Brutas rochas ouvindo a tua lira, Orfeu !
Ó barca de S. Pedro, onde Jesus pregava,
Com sua mão direita erguida para o céu !
Ó entrada na triste e má Jerusalém !
Verdes palmas ! Hossana ! Ó doce jumentinho !
Ó sagrado perfil voltado para além...
Ó luminosos pés poeirentos do caminho !
Trágica sexta-feira ! Ó túmulos abertos !
Escuridão sinistra e clamorosas mágoas !
Ó coluna de fogo e névoa, nos desertos.
Espírito a boiar sobre as profundas águas !
Não mais conceberás, humana criatura.
Estas lendas que são de sempiterno encanto?
Nunca mais sonharás, ó pobre terra escura,
Embalada por outro inatingível canto?
O teu rosto, já velho e encarquilhado.
Não há-de florescer, de novo? Nunca mais
Primavera, alegria e sol anunciado.
Nem voz de oiro rasgando as trevas infernais ?
Nunca mais se há-de ouvir a música dos ninhos,
Em nosso coração, aberto à luz dos céus ?
Nunca mais, nunca mais, na poeira dos caminhos
Há-de flutuar, ao vento, a túnica dum Deus?
Ó símbolos perfeitos da Verdade,
O que resta da vossa claridade?
Que cinza será hoje a branca aparição,
Que Madalena outrora deslumbrou?
Que riso será hoje o pranto de aflição
Que, no Calvário, a Virgem derramou?
E que será de ti. Palavra misteriosa,
Que tu. Santa Cecília, em pleno circo, ouviste,
Quando terrível fera monstruosa
i88
OBRAS COMPIvBTAS
Lambeu as tuas mãos, ao ver-te suave e triste?
Essa palavra é hoje um murmurar de estrelas,
A música divina em que se espalha a luz,
B o queixume das árvores, por, entre elas,
Ter existido uma árvore que foi cruz !
Ê o silêncio de amor
Que vive em cada grito;
O silêncio que aumenta o cântico da Dor,
Para que ele se tome um cântico infinito !
Tudo o que teve o mundo, outrora, de divino
Refugi ou-se, a tremer, nas almas dos rochedos.
Virgem, teu pranto é hoje o orvalho cristalino,
A tua fé, Cecília, ampara os arvoredos.
O teu sangue, Jesus, vertido no Calvário,
Da lâmpada dum astro é o místico alimento.
Pelo Azul, teu perdão vagueia, solitário.
Teu último suspiro é hoje a voz do vento.
Almas, que desejais um pouco de Verdade,
Procurai-a num lírio ou numa rocha dura.
Vivem, num ramo em flor, os gestos da ternura
E dele cai, na terra, a sombra da piedade.
TEIXEIRA DE PASCOAES
O CÉU
Ó céu profundo e virgem !
Vai' de estrelas em flor, onde murmura a origem
Das almas e das cousas...
Refúgio azul das lágrimas saudosas,
Que alumiam a face do Senhor,
Infinita e invisível, como a dor !
Tudo o que vai da terra encontra-se no céu:
O riso que se apaga, a cor que anoiteceu
E o canto que fechara os olhos, moribundo...
È o ar que Deus respira a dor que exala o mundo.
OBRAS COINIPIvETAS
A NÉVOA
Alvas brumas do norte,
Ó brumas encantadas,
Criai lendas de sonho,
Aparições de fadas;
Castelos de luar
E torres de marfim.
Onde ouve Viviana
A frauta de Merlim.
Brumas que amorteceis
O cântico do dia,
E em meus olhos deixais
Nódoas de cinza fria;
E desenhais, no Azul,
Perfis de etérea mágoa,
E paisagens de neve.
Em negros fundos de água.
Ó brumas que pairais,
Nas serras fragarosas...
Ó alvas mãos de espuma,
Acariciando as cousas...
Ó fantasmas de mães.
Vestidos de esplendores.
Que, nas manhãs de estio.
Amamentais as flores !
içi
TEIXEIRA DE PASCOAES
Brancas névoas que sois
Tão intenso luar,
Que afinal escurece
Bm vez de alumiar.
E perdeis, na montanha,
Os ermos viandantes.
Quando os lobos, com fome,
Andam a uivar, errantes.
Ó brumas dilatando
O som, vaga matéria,
Em onda que se espraia
Até à luz sidérea;
E, na mudez da noite,
Inunda o céu profundo
De preces, de canções
E gritos deste mundo.
Alvas brumas do Norte,
ó brumas encantadas.
Criai lendas de sonho,
Aparições de fadas.
Castelos de luar
E torres de marfim,
Onde ouve Viviana
A frauta de Merlim.
OBRAS COINIPIvBTAS
OS ROCHEDOS
Há rochedos que são estátuas misteriosas.
Nós vemo-los, além, nas serras arenosas,
Desenhados na tela em brasa do sol-pôr...
Ó frontes que enrugou e empederniu a dor !
Há rochedos que são perfis extraordinários.
Alguns, ao vir da lua, evocam os calvários.
Este, lembra dum Deus o mutilado torso;
Aquele, abre, de noite, uns olhos de remorso.
Outros, têm a atitude ideal de quem medita.
O rosto duns contrai uma expressão aflita
E neles transparece um gesto de loucura.
A sombra duns, à tarde, é sombra de ternura.
Outros, rezam, ao vento, as mágoas do luar...
Outros, dum alto cerro, olham o céu e o mar.
13
TKIXBIRA DB PASCOAES
AS ÁRVORES
Árvores maternais,
À luz do sol, em dias estivais,
O rústico mendigo,
Junto de vós, encontra abençoado abrigo...
Deita-se, a descansar
Do seu pesado e eterno caminhar.
Sob os ramos em flor,
Que dão à sua mágoa alívio, aroma e cor.
Porque a humana tristeza.
Perante a Natureza,
Embebe-se de azul, de cantos de ave
E se afasta de nós mais pálida e suave.
Ó árvores piedosas.
Pelas manhãs formosas.
Quando etéreo fulgor, que se anuncia.
Vossas lágrimas muda em risos de alegria !
Bendito o vosso corpo imaculado,
A arder, num lar sagrado.
Bendito o vosso fruto e flor, que vem dos céus.
Minhas irmãs em Deus.
IÇ4
OBRAS COMPIvE)TA,S
Que simpatia imensa
Me prende à sua angélica presença,
Onde, em cristais, retine a voz do rouxinol
E, em tinta verde, coalha a luz do sol !
B que infinita mágoa
Eu sinto, quando o tempo, a escorrer água,
Como um fantasma esvoaça
E lhes despe a verdura, o mimo, a graça.
E têm vozes de choro,
Nas ramagens, que agita um zéfiro de agouro;
São suspiros de dor, ais tristes de abandono,
A elegia do outono.
E esse canto ideal
Satura-me de bruma espiritual;
Dilui-me num crepúsculo sem fim,
E vivo para tudo e morro para mim...
TBIXBIRA DB PASCOAES
AS AVES
Aves, sonhos alados,
Saem dos bosques inspirados.
Ninhos, casas de amor.
Sinfonias da luz, orquestras do Senhor.
Que louca inspiração
Sustenta as vossas asas, na amplidão.
Distendidas num voo vertiginoso?
Voais, porque vos chama o céu misterioso.
As aves voam, num encanto,
Semelhante ao do santo.
Que, no seu ermo, ao pôr do sol, medita...
Tudo sobe na luz quimérica e infinita.
E como os santos padeceis
As dores mais cruéis.
Quem diz corpos alados
Diz corpos a sofrer, na cruz, martirizados.
A humana criatura.
Que tem da pedra dura
A falta de carinhos,
Persegue-vos, no ar, nos bosques e nos ninhos !
Crime terrível matar
Ave que voa, a cantar!
Que negro horror, meu Deus,
Ver uma asa cair, como Satã, dos céus!...
igô
OBRAS COMPLETAS
A UMA OVELHA
Entre as meigas ovelhas pobrezinhas,
Que eu guardo, pelos montes, uma existe
Que anda, longe, balindo, sempre triste
E vive só das ervas mais sequinhas.
Que pressentes na alma? Que adivinhas?
Etérea voz de dor acaso ouviste?
Que foi que tu nas nuvens descobriste?
Não és irmã das outras ovelhinhas !
Sobes às altas fragas escarpadas,
E contemplas o sol que desfalece
E as primeiras estrelas acordadas...
E assim paras, a olhar o céu profundo.
Faminta dessa relva que enverdece
Os outeiros e os vales do Outro Mundo.
TBIXBIRA DB PASCOAES
A SOMBRA HUMANA
Quando passeio, ao longo dos caminhos,
Batem asas de medo os passarinhos;
Escondem-se os répteis, no tojo em flor.
Meu ser espalha um trágico pavor 5
Nas pobres criaturas.
Que, neste mundo, vivem, às escuras !
Avezinha fugindo ao ruído dos meus passos,
Se o que eu sinto por ti, acaso, pressentisses,
Tu virias fazer o ninho nos meus braços... 10
Virias ter comigo, ó pedra, se me ouvisses !
4-5. B : [entrelinhado] — 5. B : Minha presença espalha
7. B : Que vivem, neste mundo, assim como às escuras !
10. B : ninho nos — 10-11. B : [entrelinhado]
JÇS
OBRAS COMPIvETAS
O MEU SEMELHANTE
Grito de dor e amor ! Primeiro grito,
Vibrando no silêncio do Infinito
E acordando, na sombra arrefecida,
Esse ímpeto de sol e fortaleza
Que se condensa em corpos de beleza,
Donde, torva de fumo, irrompe a luz da vida.
Relâmpago de amor que atravessaste
O Vácuo imenso, e as trevas dissipaste !
Eu, que te sinto, em mim, relâmpago de Deus,.
Bendigo a luz que deste aos olhos meus !
Eu te bendigo, em nome da criatura,
Da esperança, da graça e da ternura !
Homem, tu foste a fraga calcinada!
E as lágrimas a rir da madrugada
Que sobre ti choveram
Tua inerte dureza comoveram !
E uma brandura de alma, flor ao vento,
Surgira no teu rosto.
És a marmórea estátua, que um sol-posto
Inunda de tristeza e sentimento.
És o instinto, feroz e destruidor,
Feito divino amor !
És o leão raivoso, por encanto.
Feito poeta e santo !
S. Paulo, de repente, deslumbrado
Por um raio do céu! I^eão santificado!
igg
TEIXEIRA DB PASÇO A ES
Ó fera que entendeste o espírito dos mundos
B a palavra radiosa
E misteriosa,
Que Deus diz, em segredo, aos santos vagabundos.
Homem, tu és a sombra embriagada
De luz sagrada!
O luar da ternura, o incêndio das paixões;
O esposo amante e lívido da morte,
O poeta da miséria, aos vendavais da sorte,
O pintor de fantásticas visões !
És mármore que um beijo a arder volatiliza,
Frio metal que um sopro anímico eteriza...
És o êxtase, o sonho da Matéria,
Exalação de dor, emanação etérea.
És a névoa infinita, a pura essência.
Que se evola do mar sensível da existência...
Névoa que sobe aos céus.
Quando a toca, ao de leve, um hálito de Deus.
OBRAS COMPLETAS
OS CAVADORES
O outono, esse desgosto das paisagens,
O claro céu defuma.
Surgem mortas e lívidas imagens
Boiando, à flor da bruma.
Os ermos pinheirais.
Nas encostas do monte, escurecidas,
São espectros nocturnos, a dar ais !
Choram de pejo, as árvores, despidas
Por desvairadas mãos de tempestade !
Gela de dor a fonte dos amores.
Ao ver a mortandade
Que o vento faz nas flores !
Nos campos, enlutados de viuvez.
Mudo, trabalha o pobre camponês.
Chove da sua fronte dolorosa.
Como da negra nuvem tormentosa.
Olhai: é a mesma água
Que mata a sede à planta e à dura frágua,
E ao triste caminheiro do deserto, -
Sob o lume a cair do céu aberto...
Trabalhai, meus irmãos! Sofrei, rezai, cantai!
Entregai-vos, em vida, à terra. Trabalhai !
Semeai campos e montes solitários,
201
TEIXEIRA DEPASCOAES
Charnecas e calvários.
Que a seara floresça, em ondas de alegria,
Onde chorou Maria...
Nas solidões sem fim,
Ainda negras da sombra enorme de Caim !
Trabalhai com ternura.
Melhor que a enxada, o amor abranda a terra dura.
Melhor que o sol de Junho, a luz do vosso olhar
Amadurece o trigo, aos ventos, a ondular...
O poeta e o cavador ! A pena é irmã da enxada.
A página dum livro é terra semeada.
Trabalhai, com perfeita devoção.
Como quem reza a Deus uma oração;
Como o poeta sozinho, em noite morta, escreve
Versos de fogo, em páginas de neve !
O vosso esforço, irmãos, será fecundo.
Construí vosso lar, como Deus fez o mundo...
Que ele assente no amor e na piedade,
E existirá por toda a Eternidade.
Tu que tens o poder de converter, amor.
Uma gota de seiva numa flor,
E em musgo a rocha agreste,
E num suspiro de alma a brisa do nordeste...
E mudas, num deserto, à luz do dia.
Um Deus, verbo divino, em carne de agonia...
Sê tu, amor, a essência da obra humana,
O alicerce da rústica choupana
E o fumo que, sobre ela.
Ao pôr do sol, flutua...
Abre a minha janela
À branca luz da lua,
E aos ventos espectrais
E às vozes dos nocturnos pinheirais...
Vem acender o fogo do meu lar.
202
OBRAS COMPI^ETAS
Vem cozer o meu pão e urdir a minha teia.
Nas tuas mãos, segura a pálida candeia,
E vem-me alumiar.
Trabalho sem amor é improdutivo.
Somente é verdadeiro, eterno e vivo
O que produz o amor.
O mais é fumo e sombra e vão rumor...
TEIXKIRA DB PA SCO ABS
MARINHAS
Navios de luar e sonho, que eu avisto
Em horizontes de água, enevoados.
Ó velas a tremer aos zéfiros doirados,
Com a imagem do sol, beijando a cruz de Cristo!
II
Extensos litorais,
Cheirando a maresia, aroma que é frescura.
Retratos da manhã, por entre a névoa pura.
Que se esgarça e desfaz na rama dos pinhais.
III
Ó luz, ó cor ardente da Harmonia !
Ó luz beijando as árvores.
Desenhando, nas fontes e nos jmármores,
Instantâneos acesos de alegria !
IV
Vejo, através da bruma.
Velha nau, que se esboça em formas grandiosas,
204
OBRAS COjMPIvBTAS
No dorso, a palpitar, das ondas monstruosas,
Entre bafos de cinza e flocos de alva espuma.
V
Ó farolim da barra, que primeiro
Mostras o porto amigo aos navegantes !
Ó luminosa voz, em ecos tão distantes,
Verde luz a espreitar, por entre o nevoeiro.
VI
Velhos nautas ! Ó deuses do Oceano !
Heróis da tempestade! Almas do nosso Canto!
Ó versos de Camões, tomando corpo humano !
Figuras de romance e misterioso encanto !
Eu vivo, como vós, na imensidão do mar,
A vida extraordinária
Duma vela, perdida e solitária...
Eu vivo, como vós, no vago e no infinito !
Eu ergo, como vós, as mãos para rezar !
Como vós, sobre o abismo, empalideço e grito !
VII
Negras ondas em fúria,
Umas de encontro às outras atiradas.
Como num doido ataque de luxúria !
Mastros a desabar, com trágico ruído !
Velas esfarrapadas !
E o mar galgando a ponte, enfurecido !
Perfis, que o medo horrível desfigura !
Gritos de angústia as nuvens trespassando !
20S
TEIXEIRA DB PASCOABS
Gestos do desespero, abraços da loucura !
Adeuses de fundir as brutas rochas ! . . .
Depois, um drama horrendo que se esfuma...
Destroços flutuando,
Rebentações sinistras de alva espuma.
Soltas tranças molhadas, faces roxas.
Lívidas mãos crispadas de terror
B corpos, a boiar, donde fugiu a dor...
OBRAS COMPI/BTAS
AS ALMAS
Vejo passar, na infinda solidão,
Vultos de almas, figuras de emoção;
Os poetas do silêncio que não cantam.
Os doidos que, de súbito, se espantam,
Os que gelam, ao ver o luar nascente.
Os que fitam a mesma estrela, eternamente;
Os perdidos da sorte.
Os que chamam, gritando, pela morte !
Os que andam, sem saber, pelos caminhos,
Os que de noite vão, sempre a falar, sozinhos;
Os que vivem casados com a dor
E a escondem, ciumentos;
Os trágicos do Amor,
Os que sentem astrais deslumbramentos.
Os que matam e cantam, por destino;
O salteador nocturno, o poeta que é divino.
Os tristes vagabundos.
Em perpétua e fantástica viagem...
Os que amam a paisagem
E têm nos olhos a amplidão dos mundos...
Vultos de almas, figuras de emoção,
Errantes, na infinita solidão.
TEIXEIRA DE PASCOAES
PRECE
Almas gémeas da minha, humildes, ajoelhai
E as lágrimas alheias comungai.
Almas gémeas da minha, abri a vossa porta
À mendiga faminta e quase morta.
Almas gémeas da minha, olhai os passarinhos
E as ruínas, à chuva, dos seus ninhos.
Almas gémeas da minha, erguei as mãos, rezando
Ante o luar que nasce, abençoando...
Almas gémeas da minha, amai os arvoredos
E a extática tragédia dos penedos.
Almas gémeas da minha, amai o sol doirado,
E o seu sangue nas nuvens derramado.
Almas gémeas da minha, ouvi as tristes fontes
E os sapos tristes a chorar, nos montes.
Almas gémeas da minha, amai o sofrimento
Da noite escura, em que perpassa o vento.
Almas gémeas da minha, amai o lírio, a rosa,
E a sombra da tardinha lacrimosa.
208
OBRAS COMPI,KTA.S
Almas gémeas da minha, amai as criancinhas,
Nas ruas, a esmolar, enfezadinhas.
Almas gémeas da minha, olhai a criatura
Na solidão terrível da Natura !
Almas gémeas da minha, entrai com todo o amor
Nos negros antros trágicos da dor.
14
TEIX:eiRA DE PASCOABS
A CANÇÃO
Ouço cantar o rouxinol,
Quando, no Azul, se estende o teu sudário, ó sol.
E ouço cantar a cotovia,
Quando, em longínqua névoa, a aurora se anuncia.
Canta a donzela ao seu amor,
Quando surge, na sombra, a estrela do pastor,
E eu ergo a voz, para cantar
Lágrimas que não sei, triste de mim, chorar!
Quando a paisagem nos encanta,
E a Saudade aparece e o seu perfil de santa.
OBRAS COMPLETAS
PENSAMENTOS
Nas lágrimas de dor, cintila a minha imagem.
Num pobrezinho lar, sou fumo que se eleva.
Meu espírito humano é o corpo da paisagem,
Chora, na minha sombra, o génesis da treva.
II
A luz do meu olhar acorda uma semente
E a faz crescer, florir...
E, dos montes azuis, começam a surgir
Os bosques que, ao luar, conversam vagamente.
III
Desperto, dentro em mim, como de manhã cedo.
Não sei que torva aurora me deslumbra.
Vejo, através da minha carne, essa penumbra,
Palpitações de luz, folhagens de arvoredo.
IV
A árvore que, primeiro, em solitária serra,
Viu, tomada de espanto, o sol nascer.
Quase que a sinto, em mim, dar sombra e florescer,
E lembro-me do tempo em que fui névoa e terra.
211
TEIXEIRA DE PASCOAES
V
vivo, diante das coisas, em delírio,
À luz do sol, tão crua.
Como, aos ventos, a sombra histérica dum lírio,
Projectada de encontro a uma parede nua !
VI
Sou o fantasma de tudo quanto existe,
A falar alto e só...
O deserto compôs outrora um' poema triste
Que verteu para a língua humana o velho Job.
VII
A lira de Virgílio é o esboço duma cruz.
Houve um lírio que foi o mestre de Jesus.
VIII
Uma sombra, no mês de Julho, é caridade.
O luar é luz do sol vestida de humildade.
IX
De que serve nascer?
Sentir divino amor, para depois morrer?
E a luz que, em nós, brilhou, que será feito dela?
Acaso se converte numa estrela?
Ou numa pobre imagem decaída,
Perpetuamente, a errar, longe da vida?
212
OBRAS COMPLETAS
X
o mal é, porventura, a essência do Universo?
Satã, em cada ser, existirá, disperso?
Mas como interpretar a vinda de Jesus
E este voo imortal das almas para a luz?
Cecília, o teu amor é filho do delírio?
Donde vem o prazer terrível do martírio?
Inconscientes serão ou loucos desvairados
Os grandes Cristos, a sonhar, crucificados?
Quem sabe distinguir o bem do mal?
O grito do ódio e a prece virginal
Chegarão, como um pálido clamor.
Idêntico e apagado, ao trono do Senhor?
XI
O homem é o Universo consciente.
Pelos seus lábios, fala a pedra e o nevoeiro.
Por isso, o que ele sente
De mais longínquo e vago é que é mais verdadeiro.
Seu vulto principia
Km nocturna matéria, que termina
Num sonho de harmonia,
Numa nuvem astral, numa emoção divina. ^
XII
A alma, eis a verdade; a vida espiritual,
Não revelada ainda...
Doirada sugestão, silêncio matinal,
Escura luz infinda.
^ Este trecho é uma versão melhorada dos primeiros ver-
sos da composição «O Homem» de Para a Luz, contida neste
volume.
213
TBIXBIRA DE PASCOAES
XIII
A forma, eis a aparência:
A imagem desenhada em tintas mentirosas;
Superfície inconstante da existência,
Relevos da ilusão fingindo dar as cousas.
XIV
Ouço, no frio outono, as flores expirar.
A pedrinha do chão é lágrima, ao luar.
XV
O verbo de Platão é o canto das esferas.
Sorri no velho Horácio a luz das Primaveras.
XVI
Poetas, interrogai as almas da Natura,
O vento, a pedra, a névoa, as ondas do Oceano;
A alegria da aurora, a fonte que murmura,
A tristeza divina e o sofrimento humano.
XVII
Uma lágrima explica a estranha Criação.
Profundai-a, e vereis a misteriosa origem
Dos mundos e dos sóis. B um grito de aflição
Deixa-nos surpreender, ó luz, teu corpo virgem !
214.
OBRAS COMPLETAS
XVIII
A vida é redenção. A noite é mãe do dia.
Através do Universo, avista-se uma cniz.
Quem sofre, resplandece. A lágrima alumia.
Ô dor, riso de Deus e pranto de Jesus !
TEIXEIRA DE PASCOAES
SILÊNCIO E SOLIDÃO
Silêncio e solidão, estados de alma
Dos saudosos outeiros,
Sobre os quais, como um lago, ondula a noite calma
E a distância a chorar, envolta em nevoeiros...
Concentração dos montes enigmáticos,
Êxtase em que mergulha a Natureza,
Os verdes pinheirais, sonâmbulos, cismáticos,
Que mamam na neblina o leite da tristeza.
Ignotos sentimentos.
Transfigurando os píncaros da serra...
E de sombras povoam toda a terra
E dão humana voz aos lacrimosos ventos...
A solidão é mágico licor
Que embriaga o poeta e o faz sonhar, cantar.
O espectro do Universo, o fantasma da dor,
Só, num ermo sem fim, connosco vem falar.
Ó silêncio divino, em horas de ternura!
Luz que dissipa a névoa azul dos céus,
Mostrando-nos a imensa e indefinida altura,
Onde arquitectam sóis as mãos de Deus !
2IÔ
OBRAS COMPLETAS
Silêncio e solidão, perfume etéreo
Que as almas extasia...
Sois a sombra envolvente do Mistério,
Sois o fiimo que o sol exala, na agonia.
Silêncio e solidão, poços profundos
Donde tirou Jesus
A água lustral que purifica os mundos
E mana duma fonte aberta aos pés da cruz...
Água que Deus bebeu.
Nos áridos desertos que ele amava,
De joelhos na terra, olhos no céu.
Tendo no coração a Humanidade escrava.
Desertos criadores.
Erma e fecunda areia...
Cinza morta que dá divinos esplendores.
Planícies onde, ao vento, a seara eterna ondeia...
Ó branca imensidade ressequida !
Sagrados areais.
Onde as almas são vultos materiais,
Onde encarnou no ser o espírito da Vida !
Silêncios transcendentes.
Infindas solidões.
Onde andam, ao luar, vagas aparições,
Os loucos e os videntes...
Ó silêncio da dor !
Ó solidão do amor !
Silêncio matinal que os frios campos banha...
Ó solidão do mar e da montanha !
Solidão do crepúsculo infinito!
Ó silêncio que foste um doloroso grito,
Quando a aurora raiou
É a vez primeira o espaço deslumbrou !
21']
TEIXEIRA DE PASCOAES
Ó solidão da lágrima divina
Que as trevas ilumina,
K desabrocha as flores,
B nasce dos teus olhos, Mãe das Dores...
Ó silêncio do outono ! Ó folhas amarelas
Que o vento, ao pôr do sol, rouba do meu jardim !
Quando se ouve cair o orvalho das estrelas,
Na escuridão que paira, à noite, sobre mim.
Ó solidão dos ermos horizontes !
Ó silêncio das fontes,
Quando a lua aparece e encanta os arvoredos,
As ondas e os penedos...
Ó solidão das ruínas misteriosas !
Ó silêncio das eras fabulosas !
Ó solidão do inverno !
Ó silêncio da morte sempiterno!
Silêncio e solidão.
Pessoas da Saudade,
Velai, velai, meu triste coração,
Por toda a Eternidade.
OBRAS COMPLETAS
PIEDADE
Piedade para o triste que moureja,
Ao sol ardente,
Quando nem ave canta ou folha rumoreja
E a terra se ergue em poeira incandescente.
Piedade para a trágica mendiga
Que bate à nossa porta.
Cheia de angústia e de fadiga,
E pálida de ver — horror! — a noite morta.
Piedade para as ermas criancinhas
Que esmolam, pelas ruas !
E descalças, famintas, quase nuas.
Que mãos elas estendem, tão magrinhas !
E sopra o frio vento, a clamorar,
E cai a fria chuva.
Como lágrimas de órfã e de viúva...
Na imensidade negra, ouve-se Deus chorar...
TBIXBIRA DK PASCOAES
HUAIILDADE
Homens, sede a humildade.
E porquê? Porque sois a vã fragilidade;
Nuvem que se dissolve, de repente;
A forma transitória que nos mente.
Vosso corpo é formado
De terra e sol doirado.
E tudo o que pensais
Vem da terra, das pedras, dos metais,
Do fogo, a crepitar.
Da névoa, etérea mágoa;
Do orvalho que cintila, extático, ao luar:
O espectro dum sorriso aberto em flamas de água...
Homens, se não sois mais que miserável planta,
Que rasteja na sombra e, comovida, canta;
Do que o pó ressequido dos caminhos...
Se não sois mais que a flor e os montes pobrezi-
[nhos.
Sede humildes; baixai à vida, ingénua e pura.
Da fonte que murmura...
Que, em vosso pensamento.
Haja brumas levadas pelo vento,
Rosas corando, ao sol.
Canções de rouxinol !
Em vossa dor cristã,
220
OBRAS COMPLETAS
Desponte a clara estrela da manhã !
Que, na vossa ternura madrugante,
A cotovia cante!
E, em vosso coração enamorado,
Se desvende Jesus crucificado...
Que, na vossa tristeza,
Viva, como num sonho, a Natureza.
Cada perfil agreste
Apareça banhado em luz celeste.
Que, em vossos olhos loucos de ansiedade.
Onde há nuvens de negra tempestade.
Se desenhe o teu arco, a sete cores,
Ó íris, que, ao voar, enches o céu de flores !
Sede o luar das almas piedosas,
O silêncio das noites misteriosas.
Sede a lenha do lar, o azeite da candeia,
O caldo e o pão da ceia,
O orvalho matinal que bebe um passarinho
K pequenina flor, à beira dum caminho...
E o sorriso de abril, na face das paisagens,
E a verde luz que sai das trémulas folhagens.
Sede um anjo, nas nuvens, entrevisto...
Sede, em pleno deserto, a túnica de Cristo...
A terra que suspira e cisma, condoída,
E, sob os nossos pés, parece que tem vida.
Sede o trigo da eira, os astros do Infinito
E, às horas da tardinha, as rezas do Bendito,
E aquela Sombra etérea que se esconde,
Dentro de nós, remota, não sei onde...
E aquele facho aceso que divaga
Na escuridão, e, ao vento, não se apaga,
E transfigura e exalta quem o leva,
E dele faz um Deus dominador da treva !
Sede, irmãos, como as fontes a cantar,
Nas fragas duma serra;
221
TBIXBIRA DB PASCOAES
Como os rios, que abraçam toda a terra,
E como a luz do sol que beija todo o mar!
Sede, em beleza, amor e perfeição,
A eterna Criação...
Não te esqueças, Humana criatura.
De que a tua mais leve desventura
Enluta, de alto a baixo, o céu profundo !
E há lágrimas que são dilúvios para o mundo...
E há cantigas de rústica harmonia
Que se espalham na noite, e logo nasce o dia !
Sou poeta quando entendo a voz do vento,
E me vejo fantasma e sentimento.
E vivo e não existo.
Como outrora, entre os homens, Jesus Cristo...
E ouço a elegia branca do luar,
E os suspiros da luz crepuscular,
E a voz das ondas embalando as velas,
E esse canto de estrelas,
Na infinda escuridão !
E sou, eu mesmo, aquela solidão,
Este íntimo abandono.
Em que medito e cismo...
E sou a primavera e o desolado outono !
Espaço azul e negro abismo.
Chama que me consome.
Doida piedade, angústia, sede e fome.
Terra estéril e miséria.
Sombra infernal
Divina luz etérea.
Rosa que é só brancura matinal...
Sou poeta quando as coisas me enternecem;
E diante dos meus olhos aparecem
Tão vivas duma nova realidade,
222
OBRAS COMPIvBTAS
Como se Deus, mostrando a sua face,
Encantado, sobre elas projectasse,
Além da luz do sol, uma outra claridade...
Há horas em que o mundo, de repente,
Fantástico se torna e surpreendente !
E é tudo uma oração indefinida,
É tudo amor e vida...
TEIXEIRA DE PASCOAES
■ÚLTIMA COMUNHÃO
Olhos ceguinhos de aflição,
Perdidos na infinita escuridão...
Olhos, queimados pela dor,
As pálpebras abri à luz do amor. 5
Ouvidos, surdos e apagados.
Desertos de silêncio ilimitados;
Escuros sóis, mortos de dor.
Extáticos, ouvi a voz do amor.
Lívidas mãos, já cadavéricas, 10
De fria neve, ó pétalas quiméricas...
Mãos de agonia, mãos de dor,
Abençoai o amor.
Bocas famintas, denegridas.
Nos incêndios da febre consumidas; 15
Lábios com fel, bocas de dor,
Abri-vos, recebei o pão do amor...
2-3. A : Olhos errantes e ceguinhos, / Que tropeçais nas
pedras dos caminhos, — 5. A: amor! — 7. A: silêncio ma-
goados— 9. A: amor! // Fossas nasais agonizantes, / Fundos
poços de treva, soluçantes, / Vinde aspirar, fossas de dor, /
/ O perfume ideal que exala o amor! — 11. A: De fria neve,
ó pétalas quiméricas, — 13. A: Num gesto etéreo, abençoai o
amor! — 14. A: famintas, doloridas, — 17. A: amor!
224
OBRAS COMPIvBTAS
A MORTE
i.*» versão (edição iço6) :
O mundo era uma estrela,
Um dia, se apagou,
Arrefeceu e a treva
Imensa o sufocou!
E nessa hora de luto.
Horrenda e dolorida.
Dentre as cinzas da Terra,
Ergueu-se a luz da vida!
Quando se apaga um sol.
Mil corações se inflamam..
As estrelas dão luz.
Mas os planetas amam!
E assim a luz do sol
Falece, num desmaio.
Para ser um olhar
Ou linda flor de maio...
Nosso corpo é também
Um astro que se apaga;
Um sol que a inundação
Da escuridão alaga.
Para que nek surja
A vida consciente,
A existência absoluta,
A vida omnipotente !
Nasce da noite morta
A viva claridade...
Do que é frágil e vão
Procede a Eternidade.
Ê preciso que tombe
O nosso corpo em poeira,
Para ser alma e vida
Eterna e verdadeira!
Ê preciso baixar
À sepultura horrenda
Para que a vida nossa.
Em voos de luz, ascenda
22S
it;
TEIXEIRA DE PÁSCOA ES
Às regiões sem fim
Do sempiterno amor!
Homens, é necessário
O último estertor :
Homens, é necessária
A tragédia sublime
Que o corpo criminoso
E tétrico redime !
Homens, é necessário
O drama da agonia!
ó morte esplendorosa,
Aurora, Glória, Dia!...
2.'» versão (edição 1924):
O nosso corpo é estrela que envelhece
E, súbito, escurece !
E, aos ventos, se desfaz em cinza arrefecida,
Para que dele surja a verdadeira vida!
É preciso baixar à sepultura horrenda.
Para que a nossa alma, em voos de luz, ascenda
Ao sempiterno amor!
Homens, é necessário o último estertor!
É preciso chorar a lágrima final,
Já sobrenatural !
Homens, é necessário o drama da agonia.
ó morte, redenção, aurora, glória, dia!
Versão definitiva (edição dObras Completasv, s/d):
O nosso corpo é estrela,
Que vai arrefecendo
E escurecendo,
Para que nele surja uma outra luz mais bela,
A luz espiritual.
É preciso baixar à negra sepultura,
Para que a humana e pobre criatura
Alcance o eterno amor.
Ê preciso sofrer o último estertor.
Chorar a lágrima final...
226
OBRAS COMPI.ETAS
ETERNIDADE
Eu que sou frágil, transitório e vão,
Que projecto, no mundo, a sombra duma cruz.
Que sou a desventura, a morte, a escuridão,
Sinto brilhar, em mim, a eterna luz.
Eu que sou a miséria,
A lágrima que tomba desolada.
Conheço bem que existe uma ansiedade etérea
Que arde na minha noite e a deixa iluminada !
Eu que sou frio medo e trágico pavor,
Barro amassado em água de tristeza.
Alma, que é a mãe da dor.
Ouço, nos lábios meus, a voz que canta e reza.
Meu frágil ser, que se traduz em gritos.
Meu corpo que se apaga, num momento.
Pressente, para além de espaços infinitos.
Ideal deslumbramento !
Eu que sou a aridez, a lívida secura,
O inverno, que, a chorar, se desespera,
Vejo alvorar, crescer, em longes de ternura,
Divina primavera!
227
TEIXEIRA DE PASCOAES
Eu que sou a poeira miserável
Que ergue o vento da Via Dolorosa,
A doida angústia a nada assemelhável,
Vejo nascer de mim a esperança radiosa !
Eu que sou o derradeiro e pálido gemido,
O sangrento suor gelado da agonia,
Sinto meu coração, liberto e redimido,
À luz dum novo dia...
OBRAS COMPIvETAS
O POETA
I
Ninguém contempla as cousas, admirado.
Dir-se-á que tudo é simples e vulgar...
E se olho a flor, a estrela, o céu doirado, 5
Que infinda comoção me faz sonhar !
É tudo para mim extraordinário !
Uma pedra é fantástica ! Alto monte
Terra viva, a sangrar, como um Calvário
E branco espectro, ao luar, a minha fonte ! 10
É tudo luz e voz ! Tudo me fala !
Ouço lamúrias de almas, no arvoredo.
Quando a tarde, tão lívida, se cala,
Porque adivinha a noite e lhe tem medo.
Não posso abrir os olhos sem abrir 15
Meu coração à dor e à alegria.
Cada cousa nos sabe transmitir
Uma estranha e quimérica harmonia !
5. AB : a terra, a flor, o céu doirado — 9. A: calvário —
10. AB: a triste fonte — 11. A: voz; tudo — 12. AB: Cismo
ante o fumo etéreo que se eleva — 13-14 A : 'E o perfume de
amor que a flor exala / Como o abismo do mal exala treva !
B : Quando a tardinha pálida se cala, / Ch€Ía de medo, pres-
sentindo a treva... — 16. A: à dor ou à
22Ç
TEIXEIRA DE PASCOAES
É bem certo que tu, meu coração,
Participas de toda a Natureza. 20
Tens montanhas, na tua solidão,
K crepúsculos negros de tristeza !
As cousas que me cercam, silenciosas,
São almas, a chorar, que me procuram.
Quantas vagas palavras misteriosas, 25
Neste ar que aspiro, trémulas, murmuram !
Vozes de encanto vêm aos meus ouvidos,
Beijam meus olhos sombras de mistério.
Sinto que perco, às vezes, os sentidos
E que vou a flutuar num rio aéreo... 30
Sinto-me sonho, aspiração, saudade,
E lágrima voando e alada cruz...
E rasteirinha sombra de humildade.
Que é, para Deus, a verdadeira luz.
21-22. A : Ignoras o silêncio, a solidão / E a negra noite,
plena de tristeza! — 24. A: D 'almas sem fim todo o meu ser
saturam. — 26. A : No ar — 32. A : lágrimas a voar — 33-34. A :
Vejo meu corpo, em chamas d'ansiedad€, / Abrir-se em asa,
erguer-se em voo de luz ! B : í; tudo espaço azul, eternida-
de, / Indefinida luz...
230
OBRAS COMPLETAS
11 35
Eu sou bendita esmola, ó pobrezinhos !
Meu coração é fonte que se alegra...
Vinde beber, ceguinhos;
Matai a sede negra !
Sou velho tronco, a arder, homens gelados ! 40
Ó trevas, vinde a mim: sou claro dia.
Sou perdão: vinde a mim, ó condenados!
Ó tristes, vinde a mim: sou a alegria!
36-39. A : Meu coração é pão d'amor, ó pobrezinhos. / Meu
coração é fonte d 'alegria. / Vinde beber, vinde beber, cegui-
nhos, /' Mais pura e clara luz que a luz do dia! // Meu corpo
é terra: ó trágicas raízes, / Devorai, devorai! / Minh'alma é
claro sol, ramos felizes, / Bebei a sua luz, frutificai! // As
minhas penas leva, ave inspirada ; / Teu casto ninho vai
fazer com elas, / Na árvore abençoada / Que tem por fruto
— estrelas. // Sobre o meu coração vinde pousar, / Sem ne-
nhum medo, ó aves que voais ! / Bebei meu sangue, estrelas
a brilhar, / Comei meu pão, famintos animais ! — 39. B : Ma-
tai a sede negra! // Meu corpo a terra e cinza se reduz, /
/ Comei, comei, famélicas raízes! / Minh'alma é luz do sol.
Ramos felizes, / Bebei a sua luz! // Sobre o meu peito afli-
to, / Pousai, cantando, ó aves que voais ! / Bebei meu san-
gue, estrelas do Infinito, / Comei meu pão, famintos animais !
— 40. A : Meu corpo é tronco a arder / Num santo lar
d'amor. / Vossos corpos, ó nus, vinde aquecer, / Enxugai
vossas lágrimas de dor! // Sou túnica d'amor, homens gela-
dos.
231
TEIXEIRA DE PASCOAES
Meu pranto é doce orvalho, murchas flores.
Sou a luz do luar, ó noite escura ! 45
Sou bálsamo suave, ó negras dores !
Ó pedras, vinde a mim ! Sou a ternura !
Árvores, vinde a mim: sou primavera!
E sou ninho de amor, aves do ar !
E sou antro de amor, ó bruta fera ! 50
E sou praia de amor, ondas do mar !
44. A: orvalho, ó murchas flores!— 45. A: Minh'alma é
luar saudoso, ó — 48. A: ó árvor's vinde a mim, sou prima-
vera. — 49. A: do ar... — 50. ^ : E sou antro d'amor, ó negra
fera,
232
OBRAS COMPLETAS
III
O fogo que me abrasa
Ê fogo de paixão.
Meu corpo tomba em cinza 55
E pó, que o vento leva...
E alcança a vida eterna,
Em mística ascensão,
Tudo o que, em mim, é dor, fragilidade e treva.
Vejo, sob os meus pés, 60
Estrelas, a fulgir...
Vejo mudar-se em luz
A gélida penumbra.
Esta carne, que é terra,
Há-de outra vez florir. 65
Uma visão de Deus todo o meu ser deslumbra.
Lá vai meu coração.
Quimérico, a sonhar.
Qual infindo murmúrio
Ou hálito de dor 70
Ou perfume de lírio
Ou asa de luar.
Para uma vida nova e para um novo amor.
52. A : III // Uma febre d'amor / Consome minha vida... /
/ Sou incêndio que exala / Um fumo de ternura. / Meu corpo
exala sonho / E alma comovida, / Como um lírio perfume e
um lago névoa pura. — 60. A : sob meus pés, — 63. A : D 'amor
minha penumbra. — 64. AB : que é pó — 65. A: Vai outra —
73. A : amor !
233
TEIXEIRA DE PASCOAES
ÚLTIMO CANTO
Outeiros miseráveis,
Que sofreis na prisão das formas mentirosas;
Negros montes eternos, imutáveis,
Abafados em nuvens tempestuosas, 5
Das regiões do amor,
Desce o Monte divino, o monte Salvador !
Rios que caminhais, de cruz às costas,
Para o Calvário trágico do mar !
Fontes que soluçais, orando, de mãos postas, 10
Ante essa aparição estranha do luar.
Desce das regiões do Além,
O rio Buda, a fonte Virgem-Mãe !
Bosques mortos do inverno, quando neva
E, em seus ramos, o vento é gélido queixume... 15
Lírios, rosas, jasmins, dos quais, no Azul, se eleva
A mágoa do perfume.
Descem da luz sagrada,
O Lírio eleito e a Árvore enviada !
1-2. A: Vitimo Canto // Árvores tristes, aonde o luar
neva, / Ivábios dos vegetais, abertos num queixume, / Olhos
de rosas e jasmins, donde se eleva / A dor do perfume, //
// Descem da luz sagrada / O lírio Eleito, a árvore Envia-
da... // Outeiros miseráveis, — 7. AB: Desce o monte Jesus,
o monte Salvador! — 12. A: regiões quiméricas do Além, —
13-20. A: Virgem-Mãe! // ó animais ferozes, sanguinários,
— 16. B: jasmins donde se eleva
234
OBRAS co:mplbtas
Ó animais ferozes, sanguinários, 20
Pombas brancas, humildes cordeirinhos;
Bois pastando, a cismar, nos vales solitários,
Bramidos de leões, cantar de passarinhos,
Desce do lar bendito, em que arde o sol,
O Leão profeta, o santo Rouxinol. 25
Homem triste, crepúsculo da vida.
Espectro miserando...
Almas, onde a esperança está perdida,
Bocas negras de fome e corações sangrando.
Das alturas sem fim da eterna Luz, 30
Desce um novo Jesus.
21. A: Ó pombas, rouxinóis, ó cordeirinhos, — 23. A: leões
e cânticos dos ninhos — 24. A : Desce do lar sagrado onde
crepita o sol, — 25. A: o leão Profeta, o Santo rouxinol! —
26. A: triste, onde chora a luz da Vida, B : da Vida —
30-31. A : Desce do Azul fecundo onde germina a luz, / Um
novo Jesus.
índice
À Ventura 7
Jesus e Pã 13
Para a Luz 53
Vida Etérea 143
/^^
BINDING SECT. NOV 8 ^ 1367
PQ Vasconcelos, Joaquin Pereira
9261 Teixeira de
V276 Obras completas de
196- Teixeira de Pascoaes
V.2
PLEASE DO NOT REMOVE
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