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Full text of "Obras. Conforme a ediçao impressa de 1771 e os códices manuscritos das bibliotecas de Coimbra, Porto e Evora; com pref. e notas de Mendes dos Remedios"

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Sobsídlos  para  o  estndo  da  História  da  Literatora  Portngoêsa 

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Obras  de 
Fr.  Agostinho  da  Cniz 


Conforme  a  edição  Impressa  de  1771 

6  os  Códices  manuscritos  das   Bibliotecas 

de  Coimbra,  Porto  e  Évora 


Com  prefacia  e  nota*  de  Mendes  dos  Remedias 


COIMBRA 

FliANÇA    yíMADO  -  EDITOU^ 
1918 


Obras  de 
Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Composto  e  impresso  na  Tipografia  França  Amado, 
Rua  Ferreira  Borges  io3  —  Coimbra. 


Sobsídíos  para  o  estado  da  História  da  Literatura  Portugalsa 

XXI 


Obras  de 
Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Conforme  a   edição   Impressa   de  1771 

e   os  Códices   manuscritos   das   Bibliotecas 

de  Coimbra,  Porto  e  Évora 


Com  prefácio  e  notas  de  JMendes  dos  Remédios 


COIMBRA 

Fli^ANÇA   Q^MADO-  EDITOIl 
1918 


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FR.    AGOSTINHO   DA   CRUZ 


I 
O    HOMEM 

Dentro  de  bem  poucos  meses  —  precisa- 
mente no  dia  14  de  março  próximo  futuro  -  - 
completar-se  hám  três  séculos  em  que,  quase 
octogenário,  mirrado  pela  doença  e  pelo  rigor 
da  vida  monástica,  que  exercera  durante 
59  anos,  que  tantos  foram  aqueles  em  que  se 
amortalhou  no  seu  hábito  querido  de  Capuchi- 
nho, tendo  ainda  passado  14  destes  na  mais 
estreita  vida  eremítica,  mas  serenamente,  no 
meio  do  maior  fervor  cristão,  os  olhos  postos 
no  crucifixo  que  lhe  haviam  posto  à  cabeceira 
do  seu  pobre  leito  de  enfermo  e  a  alma  ele- 
vada aos  paramos  do  infinito,  no  meio  das 
oraçÕis  que  mais  que  com  os  lábios,  ia  acom- 
panhando com  o  pensamento  —  se  extinguia 
o  Poeta,  que  é  o  autor  desta  obra,  que  hoje 
entra,  honrando-a,  na  série  da  minha  colecção 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


de   Subsídios  para  o  estudo  da  Historia  da 
Literatura  Portuguesa. 

Extinguira-se  num  nimbo  mais  que  de  poe- 
sia, de  santidade.  Em  volta  dos  seus  restos 
mortais  acercaram-se  à  compita  as  multidõis 
na  ânsia  de  o  poderem  vêr,  como  se  essa  visão 
fosse  uma  benção.  E  nobres  senhores,  como 
gente  do  povo,  todos  queriam  o  talisman  duma 
relíquia  desse  velho,  cujos  despojos  olhavam 
compungidos,  mas  que  haviam  tido  a  dita 
de  encerrar  uma  alma,  que  conservara  com 
Deus. 

A  morte  não  o  transfigurara.  O  seu  rosto 
ressequido  tinha  o  mesmo  riso  fagueiro  e 
acolhedor  de  quando  na  Serra  encontrava  o 
visitante.  E  era  para  lá,  para  esse  amado 
retiro,  que  a  sua  lira  tantas  vezes  nobremente 
cantara,  era  para  lá,  que  se  resolveu  transpor- 
tar o  cadáver.  O  Duque  de  Torres  Novas,  o 
Marquês  de  Porto  Seguro,  frades,  gente  do 
povo,  todos  formaram  o  cortejo,  e  dous  dias 
após  o  falecimento,  a  i6  de  Março,  por  entre 
o  cântico  solene  e  majestoso  dos  ofícios  fúne- 
bres, o  cadáver  de  Fr.  Agostinho  ficava  inu- 
mado junto  à  Igreja  da  Arrábida,  fora  das 
grades,  do  lado   da   Sacristia. 

Durante  anos  e  anos  foi  esse  um  logar  pie- 
doso. Não  consta  que  se  lhe  lavrasse  epitáfio, 
que  encimasse  o  humilde  coval,  mas  bem  o 
conheciam  todos,  porque  a  fama  das  virtudes 
supria  essa  vanglória  fácil  e  tantas  vezes  men- 
tirosa. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Mas. . .  rodaram  os  anos,  e  desde  o  dia  em 
que  a  vicissitude  dos  tempos  atirou  para  a 
miséria  tantas  criaturas,  que  nenhum  outro 
mal  faziam  senão  o  de  concentrarem  a  vida 
numa  santificação  contínua  —  desde  esse  dia 
não  mais  se  soube  onde  dormia  o  último  sono  o 
pobre  monge.  Mostrava-se  apenas  ao  curioso 
ludo  quanto  dele  restava  —  a  caveira  (i),  essa 
mesma  destinada  a  desaparecer. 

A  ignorância  e  a  maldade  deram-se  as 
mãos  para  fazerem  sumir-se  os  vestígios  desses 
pregoeiros  da  penitência  e  tudo,  quase  tudo, 
desde  as  obras  dos  homens  às  da  natureza, 
desde  as  capelinhas  dos  monges  às  estalactites 
e  estalagmites  das  grutas  e  lapas,  —  tudo  foi 
sendo  destruidp  e  arrazado  metodicamente, 
friamente,  estupidamente.  Pode  o  viajante 
preguntar,  ao  menos,  onde  era  a  cela,  pouco 
menos  que  sepultura,  do  venerável  Fr.  Agos- 
tinho. 

Lá  existiu  durante  mais  dum  século,  conver- 
tida em  Ermida  (2),  mas  de  nada  valeu  isso 
para  a  proteger.  Pouco  a  pouco  tudo  foi  sendo 
derruído  embora  com  os  protestos  dos  raros 


(i)  Arrábida,  publicação  comemorativa...  [  cit.  na 
nossa  Bibliog.],  pg.  53. 

(2)  Desde  1720.  A  Ermida  fora  dedicada  a  Santo 
António  no  tempo  da  Guardiania  do  Convento  nas 
mãos  de  Fr.  José  da  Esperança.  Cfr.  Chr.  da  Arrábida, 
n.°  g3,  pg.  66. 


8  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

cultores  do  sentimento  tradicional,  até  mesmo 
estranjeiros  (i). 

Mas  nem  tudo  se  sumio  no  pó  dos  séculos. 
Restam  do  velho  Capuchinho  as  suas  poesias, 
chama  imarcessivel,  que  não  se  extinguirá 
nunca,  e  que,  enquanto  durar  a  lingoa  em  que 
ele  traduzio  as  emoçõis  do  seu  espirito  de 
eleito,  serão  amoravelmente  lidas  e  recor- 
dadas. 

Quem  era  este  Poeta  que  conciliou  sempre 
em  volta  do  seu  nome  a  enternecida  admiração 
de  raros  ?  Vejamos  primeiro  os  traços  princi- 
pais da  sua  vida,  depois  estudaremos  o  seu 
valor  como  escritor  e  conheceremos  o  logar 
que  de  direito  lhe  cabe  na  série  dos  homens 
que,  pelo  talento  de  escrever,  ajudaram  a  tor- 
nar imortal  a  nossa  pátria.  Fr.  Agostinho  da 
Cruz  não  merece  o  quase  esquecimento  em 
que  jaz  aos  olhos  da  nossa  geração ;  como 
homem  é  um  nobre  exemplo  de  virtudes,  como 
escritor  merece  um  logar  de  destaque  entre  os 
que  como  seu  irmão  Bernardes,  como  Gami- 


Y  (O  O  Príncipe  de  Lichnowíky  escrevia  nas  Erinne- 

\  rungen   aus   dem    lahre   1842   (  Mainz,    1843):    «  Das 

\         Kloster  von  Arrábida  enthalt  keine  Kunslwerke ;  wenig- 

stens  ist  ieijt  nichts  davon  ju  sehen ;  seine  Poesie  ist  in 

seiner  Geschichte,  in  seiner  Lage  und  in  der  Trauer 

eines  verwaisten  Gotteshauses  ».    Cfr.  pg.  266. 

E  um  pouco  antes  :  «  Nur  der  bõseste  Wille  oder 
krasse  Ignoran:^  konnten  dertei  Vermuthungen  aufstellen, 
die  an  Ort  und  Stelle  durch  nichts  gerechtfertig  rver- 
den  ».    Cfr,  pg.  264. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


nha,  Miranda,  Ferreira  e  tantos  mais,  soube- 
ram cimentar  a  grandeza  literária  de  Portugal. 


Tratando  dele  concisamente  o  seu  primeiro 
biógrafo  começa  :  «  Jacta-se  o  lugar  da  Ponte 
da  Barca  no  arcebispado  de  Braga  de  aver  dado 
ao  mundo  o  P.  Fr.  Agostinho  da  Cruz. . .  »  (i), 
e  o  Cronista  da  Arrábida :  «  nasceu  na  villa  da 
Ponte  da  Barca,  limitada  povoação  de  poucos 
visinhos...  »  (2)  e  condizendo  cora  ambos  de 
dois  José  Caetano  de  Mesquita :  e  A  villa  da 
Ponte  da  Barca. . .  foi  ella  onde  nasceu  o  vene- 
rável servo  de  Deus. . .  »  (3). 

Como  foi  perfilhada  a  opinião  por  parte 
dalguns  escritores  de  ser  o  logar  do  seu  nasci- 
mento Ponte  do  Lima  ?  (4).  Certamente  por 
causa  do  irmão  Diogo  Bernardes  que  sem 
maior  exame,  foi  reputado  oriundo  dessa  vila. 
Seria  o  próprio  Diogo  Bernardes  quem  assim 


(i)  Jeronymo  Cardoso,  Agiologio  Lusitano,  11,  i5i 
( 12  de  março  )  e  146. 

(2)  Fr.  António  da  Piedade,  Chronica  da  Arrábida, 
%  >'70. 

(3)  Cfr.  a  Vida  anteposta  à  ed.  feita  pelo  mesmo 
Mesquita     Esta  Vida  saiu  em  ed.  separada. 

{4)  Afirma-o  o  Sr.  Theophilo  Braga  :  «  Nasceu  Diogo 
Bernardes  em  Ponte  do  Lima,  como  elle  o  declara  no 
titulo  das  Varias  Rimas  ao  Bom  Jesus,  impressas  em 
sua  vida  em  Lisboa  ».  Historia  dos  Quinhentistas, 
pg.  244. 


IO  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

terminantemente  o  afirmara  no  título  das 
Varias  Rimas  ao  Bom  Jesus.  Sucede,  porém, 
que  uma  simples  investigação  conscienciosa 
demonstrou  que  em  nenhuma  das  ediçôis  —  e 
duas  foram  elas  —  impressas  em  vida  do  Poeta 
há  qualquer  referência  à  naturalidade  do  seu 
autor. 

É  em  ediçõis  posteriores  à  sua  morte  que 
tal  indicação  aparece,  circunstância  que  lhe 
tira  todo  o  valor.  Quem  primeiro  exarou  essa 
afirmação  deixou-se  levar  pelas  muitas  passa- 
gens em  que  o  Poeta  canta  o  seu  doce  Lima, 
não  atendendo  sequer  a  outros  dados  auto- 
biográficos, que  das  suas  poesias  poderia  colher 
com  maior  e  melhor  individuação.  Neste  caso 
está  aquela  passagem  da  Egloga  2.*,  denomi- 
nada Flora,  que  começa : 

Num  solitário  valle,  fresco  e  verde 

Onde  com  veia  doce  e  vagarosa 

O  Vez  no  Lima  entrando  o  nome  perde ; 

Numa  tarde  rosada,  graciosa 
Quando  no  mar  seus  raios  resfriava 
O  sol,  deixando  a  terra  saudosa 

Ouvi  huma  voz  triste  que  soava 
Tam  brandamente  ali,  que  parecia 
Hum  rio  que  com  outro  murmurava 

Nesta  nossa  ribeira  ambos  nascidos  (i)- 


(i)  Gfr.  O  Lyma,  ed.  1761,  pg.  10. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Se  ambos  os  irmãos  nasceram  na  fo\  do  Ve{, 
o  mesmo  é  dizer,  que  nasceram  em  Ponte  da 
Barca  (i).  De  resto  um  só  é  o  fácies  da  região, 
é  a  mesma  a  sua  linha  estrutural  de  beleza 
campestre,  igualmente  capaz  de  inspirar  o 
bucolismo  dos  dois  amoraveis  cantores.  Pelos 
mesmos  sítios  passaram  o  seu  período  de 
meninice  e  primeiros  anos  de  infância,  de  lá 
saíram  para  onde  os  acasos  da  vida  os  leva- 
ram, bem  diferentemente  a  um  e  a  outro,  pois 
a  vida  de  Bernardes  desenrolou-se  noutro  sce- 
nário,  sendo  mais  agitada  que  a  do  pobre 
Monge,  mas  um  e  outro  cantaram  nas  suas 
pastorais  aquela  paisagem  doce  e  serena,  que 
afinal  englobaram  na  mesma  designação  de 
€  Lima  ».  Deixemos  Bernardes  entregue  em 
boas  mãos  de  cuidadosos  e  beneméritos  esme- 
riladores  das  suas  acçóis  e  merecimentos  (2)  e 
tratemos  nós  de  quem  no  momento  nos  inte- 
ressa. 

Nascido  em  1540  vamos  encontrá-lo  aos 
quinze  anos  na  casa  dum  dos  maiores  fidalgos 
do  reino  —  D.  Duarte,  neto  delrei  D.  Manoel, 


(i)  a  Basta  consultar  um  simples  mapa  de  Portugal 
para  se  vêr  que  é  justamente  no  termo  da  Ponte  da 
Barca  que  se  dá  essa  junção  ».  Sr.  Hemeterio  Arantes, 
Fr  Agostinho  da  Cru:^,  pg.  2a ;  e  Sr.  J.  Gomes  de  Abreu, 
Diogo  Bernardes,  pg    i3. 

(2}  Sr.  Álvaro  Pimenta  da  Gama,  Diogo  Bernardes, 
apontamentos  genealógicos  e  biographicos  no  Instituto, 
vols.  57  ( 1910  )  e  58  ( 191 1 ). 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


filho  do  Infante  D.  Duarte  e  de  D.  Isabel. 
Um  ano  mais  novo  que  Agostinho  Pimenta, 
que  esse  era  o  nome  de  família  do  futuro  ere- 
mita da  Arrábida,  o  Infante  tinha  a  sua  casa 
independente  desde  o  falecimento  do  Infante 
D.  Luís  em  ib55,  à  qual  andara  adicta  por 
determinação  de  D.  João  III. 

Tornara-se  assim  naturalmente  avisado  e 
cortesão,  como  quem  de  moço  fora  criado  em 
palácio  e  amado  por  suas  muitas  partes  dos 
principais  senhores  deste  reino  (i).  Nesse  meio 
de  eleição  desabrochou  e  se  foi  desenvolvendo 
o  talento  do  moço  poeta. 

Entre  os  fidalgos  que  concorriam  aos  Paços 
de  D.  Duarte  contavam-se,  entre  os  maiores, 
D.  Álvaro,  Duque  de  Aveiro,  sobrinho  do 
i.°  Duque  de  Aveiro  D.  João  de  Lencastre, 
e  D.  Jorge,  Duque  de  Torres  Novas,  que  o 
Poeta  memora  nas  suas  poesias. 

É  à  Duquesa  de  Aveiro  que  ele  dedica  as 
suas  composiçõis  místicas,  porque  as  outras, 
arrependido,  confessa  êle  tê-las  queimado. 

Os  versos  que  cantei  importunado 
Da  mocidade  cega  a  quem  seguia 
Queimei  (  como  vergonha  me  pedia ) 
Chorando  por  haver  tão  mal  cantado  (2). 


(i)  J.  Cardoso,  Agiologio,  já  cit. 
(2)  Cfr.  Son.  1°  desta  nossa  ed. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  i3 

Foi  essa  alta  Princesa,  que  se  tornou  sua 
protectora,  que  impediu  que  ele  fizesse  a  esses 
versos  religiosos  o  mesmo  que  fizera 

...  de  quantos  tinha  feito 

Na  ribeira  do  Lima,  em  tenra  idade, 

Por  dar  algum  remédio  a  meu  defeito  (i). 

Mais  tarde,  no  seu  retiro,  poucas  serão  as 
lágrimas  para  chorar  o  que  êle  chama  •  os  des- 
varios da  sua  desaproveitada  mocidade  »  (2). 
Sendo  os  versos  da  sua  última  feição  os  que 
nos  restam  teríamos  a  lamentar  uma  perda 
total  sem  a  intervenção  da  ilustre  fidalga.  Mas 
a  ela  o  Poeta  obedece  vencido  da  amizade  e  da 
gratidão.  Doente,  cruciado  de  dôies  morais, 
nunca  lhe  faltou  o  amparo  de  tão  generosos 
protectores,  èm  cuja  casa  ou  sob  cuja  prote- 
cção mais  imediata  e  directa  êle  viveo  durante 
o  período  de  doze  anos.  É  à  Duquesa  que  êle 
se  dirige  f  antes  de  se  ir  para  o  Ermo  »  (3) 
desculpando-se  de  não  ter  escrito  por  falta  de 
saúde.  Vê-se  que  êle  toma  parte  em  todas  as 
alegrias,  como  em  todos  os  desgostos  de  tam 
nobre  familia,  mais,  naturalmente  nestes,  que 
naquelas.  Fora  êle  quem  instigara  D.  Mariana, 
filha   da   Duquesa,  a  seguir  a  vida  claustral. 


(i)  Cfr.  o  Son  xyvi,  pg.  i85. 

(2)  Cfr.  o  Sou.  xc,  pg.  2Í7. 

(3)  Cfr.  Carta.  •  •,  pg  3 19. 


14  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

«  Fidalga,  rica,  fermosa  »  êle  sabe  aconselha  la 
com  moderação  a  seguiressa  vida: 

Se  quereis  fazer  extremos, 

Os  que  deveis  de  fdzer 

Só  por  Deos  devem  de  ser 

A  quem  só  servir  devemos. . .  (i) 

Numa  carta  escrita  da  Serra  da  Arrábida 
indica-lhe  esse  caminho  como  o  do  verdadeiro 
bem,  o  da  maior  perfeição.  Se  ela  não  pôde 
c  por  lhe  faltar  a  liberdade  »  concluir  os  seus 
propósitos,  não  é  isso  motivo  para  os  abando- 
nar. Descanse,  «  repouse  na  divina  saudade  », 
e  que 

Não  haja  quem  te  possa  desviar 
Do  caminho  que  levas  acertado 
Que  muitos  não  quiseram  acertar. 

Galcula-se  a  angústia  da  desolada  mãi  quando 
os  votos  da  filha  se  tornaram  uma  realidade. 
E  ela  quem  lhe  escreve,  pela  pena  do  Poeta, 
contando-lhe  as  amarguras  da  ausência,  que 
não  poderá  evitar,  mas  que  não  tem  também 
a  coragem  de  sofrer.    Por  isso  lhe  suplica  que 

Ambas,  adonde  vós  quiserdes  mais 
Havemos  de  viver,  ou  nas  estranhas 
Terras,  ou  nestas  vossas  naturaes. 


(i)  Elegia  a  D.  Mariana,  pg.  304. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  i5 

Mas  adivinhando  o  impossível  destes  dese- 
jos acaba  por  se  confortar  pedindo  somente 
a  Deos 

Que,  ou  me  tire  da  absencia  o  sentimento 
Ou  vos  abrande  vosso  coração  (i). 

Vê-se,  pois,  que  a  amizade  que  o  moço  de 
quinze  anos  soubera  grangear  naquele  meio 
fidalgo  em  que  entrara,  veio  com  o  tempo  a 
acrisolar-se  e  robustecer-se. 

Ao  lado  dos  representantes  da  mais  lídima 
raça  portuguesa  Agostinho  Pimenta  encontra- 
ria vários  intelectuais,  dum  escol  de  talento  e 
de  mocidade :  s^u  irmão,  por  exemplo,  mais 
velho  que  êle  apenas  sete  anos,  a  quem  as 
musas  sorriam  desde  o  berço ;  Pedro  de 
Andrade  Caminha  que  desde  i556  se  encon- 
trava como  mordomo-mór  da  casa  do  Infante 
D.  Duarte;  por  ventura  também  o  Dr.  António 
Ferreira,  ligado  pela  mais  estreita  amizade 
com  Bernardes,  a  quem  lera,  no  meio  de 
enternecido  entusiasmo,  a  sua  famosa  Castro. 
E  outros.  Alguns,  cavaleiros  e  fidalgos  no 
desempenho  de  funçõis  no  Paço  dos  reis, 
como  D.  Diogo  Lopes  de  Lima,  Comendador 
de  Victorino  e  das  Pias,  camareiro  do  Infante 
D.  Luís  e,  depois,  como  Caminha,  do  senhor 


(i)  Carta  que  compôs   á   Duquesa  de  Aveiro,   etc , 

pg.   321. 


i6  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

D.  Duarte  (i),  D.  Francisco  Barreto  de  Lima  (2), 
védor  da  casa  real  e  cavaleiro  exforçado,  a 
quem  o  Poeta  tece  o  mais  entusiástico  elogio, 
a  ambos  os  quais  dedica  poesias,  cousa  rara 
no  nosso  Poeta,  onde  vagamente  perpassam 
outras  personagens  —  um  amigo  que  não  no- 
meia (3),  uma  pessoa  amiga  que  também  não 
nomeia  (4),  uma  tal  D.  Branca  (5),  e  ninguém 
mais. 

Propositadamente  o  poeta  esquece  o  mundo, 
os  seus  prazeres,  as  suas  relaçÕis.  Vê-lo  hemos 
na  concentração,  íamos  dizer,  na  absorpçao  do 
sentimento  divino  que  o  norteia.  Fora  disso 
êle  só  aspira  a  morrer  bem,  lavando  nesse  ins- 
tante supremo  a  sua  alma  da  ganga,  que  a 
passagem  pelo  mundo  nela  por  ventura  ainda 
deixasse  aderente,  repetindo  com  Petrarca  : 

Ghe  un  bel  morrir  tutta  la  vita  onera  (6). 


(i)  A  este  dedica  a  Ode  II,  pg.  119. 

(2)  Dedica-lhe  a  Ode  III,  pg.  121  e  a  Carta  III,  pg.  134. 

(3)  Vid.  pg.  34. 

(4)  Vid.  pg.  95. 

(5)  Vid.  pg   i3í. 

(6)  Gfr.  pg.  320.  O  lindo  verso  do  Florentino  entrou 
como  um  ditado  em  quase  todas  as  lingoas.  Encontra-se 
na  Canção  xxv.  Gfr.  Rime  de  Mess.  F.  Petrarca. . ., 
Roma,  1893,  pg.  i63.  Outro  verso  italiano  se  nos  depara 
na  obra  de  Fr.  Agostinho,  a  pg.  124,  1.  2.»  Foi  bem  mais 
sóbrio  que  o  irmão,  que  gostou  de  entremear  nos  seus, 
numerosos  versos  italianos. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  i  7 


Mas  que  determinou  o  Poeta  a  abandonar 
este  meio  de  tam  galharda  distinção,  trocando-o 
pelo  isolamento  duma  congregação  afamada 
pela  sua  pobreza  e  rigores  ? 

Nenhum  dos  seus  biógrafos  desvendou  este 
misterioso  passo  da  sua  vida.  «  Com  todas 
distinçoens,  escreve  um  deles,  e  commum 
applauso  promeitia  o  mundo  a  Agostinho 
Pimenta  os  maiores  adiantamentos,  e  fortu- 
nas ;  mas  Deus  que  o  reservava  para  outro 
destino  mais  alto,  lhe  fazia  entre  ellas  experi- 
mentar dissabores,  e  amarguras,  que  melhor 
excitão  o  animo  para  conhecer  o  caduco,  e 
«nganoso  dos  bens  com  que  o  mesmo  mundo 
lisongea.  Observava  elle,  que  todas  aquellas 
amizades  unicamente  lhe  servião  para  entre- 
ter o  tempo  que  só  aproveitaria  bem,  se  o 
occupasse  comsigo,  e  com  Deos.  Da  parte 
dos  que  lhe  invejavão  a  sua  fortuna  encon- 
trou emulação :  em  algumas  pretepçoens  teve 
o  successo  menos  feliz :  os  amigos  a  quem 
se  prendia  muito  estreitamente  pela  ternura, 
e  bondade  de  seu  coração,  lhe  não  corres- 
pondião  como  elle  lhe  merecia :  tudo  isto 
lhe  trazia  muitas  vezes  à  lembrança,  que 
o  voltasse  de  todo  para  quem  lho  aceitasse 
seguramente,  e  lhe  pagasse  com  muita  van- 
tagem. 

b 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


a  De  todos  os  seus  escritos  se  entende  facil- 
mente quanto  temos  observado  sobre  os  moti- 
vos da  sua  conversão  »  (i). 

Percebe-se  nestas  palavras  o  que  quer  que 
seja  com  pretensõis  a  responder  a  uma  inter- 
rogação, que  todos  os  espíritos  a  si  próprios 
ham  de  fatalmente  dirigir-se  ao  passarem  este 
váo  da  existência  do  famoso  Arrábido. 

Duvido  que  aiguem  se  dê  por  satisfeito.  Sam 
vagas  alusôis,  que  não  explicam  nada.  Essas 
inferências  fazemo-las  nós  ao  lermos  várias 
passagens  das  suas  poesias,  aqui  e  àlêm,  mas 
pouco  podemos  avançar  desajudados  doutras 
luzes,  de  que  o  citado  biógrafo  não  quis  ou 
não  soube  tomar  conta. 

Temeu,  talvez,  deminuir  o  valor  moral  do 
seu  biografado,  expondo  o  vítima  duma  doença 
de  alma,  a  que  nenhum  raro  espírito  pôde 
subtraír-se.  Essa  doença  sofreu-a  êle  decerto, 
e  o  abalo  que  lhe  produzio  deveria  ser  enorme, 
para  que  assim  na  quadra  mais  ridente  da 
existência  abandonasse  o  mundo  num  propó- 
sito, que  não  teve  mais  quebra  na  sua  vida. 

Dificilmente,  é  certo,  se  fundamentará  tal 
hipótese  nas  poesias,  que  nos  restam,  e  em 
que  quase  só  se  divisa  o  lado  místico,  ainda 
naquelas  que  mais  ferem  a  nota  de  coração,  o 
aspecto  sentimental. 


(i)  Gfr.  Mesquita,  obr.  cit.,  pg.  3. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  19 

Como  os  seus  contemporâneos  ele  gosta  de 
definir  o  amor,  descreve-o,  caracteriza-o,  pro- 
curando para  isso  as  expresseis  mais  subtis, 
como  neste  passo 

Amor  acende,  inflama,  amor  tem  tudo 
Seta,  lança,  escudo ;  dá  vida  e  mata 
Cativa,  desbarata,  solta  e  prende. . .  (i) 
Etc. 

Mas  quem  clama  nestes  versos  é  o  homem 
interior,  dominado  por  um  sentimento  do  alto, 
que  só  o  eleva  e  engrandece.  O  seu  pensamento 
vai  direito  a  Jesus,  cammha  direito  ao  Cruci- 
ficado, em  cuja  contemplação  se  absorve  (2). 

Nas  églogas  há  mais  dum  ponto  que  lhe  res- 
peita, mas  pouco  se  encontra  de  concreto  e  de 
positivo,  fora  da  afirmação  da  sinceridade  dum 
convertido,  que  desprezou  o  mundo  e  todos 
os  seus  encantos. 

Foi  com  vinte  anos  contados  que  ele  tomou 
o  hábito  no  Conventinho  de  Santa  Cruz  da 
Serra  de  Sintra  em  dia  da  Vera-Cruz.  É  o 
seu  ano  de  noviciado,  que  encetou  com  o  bene- 
plácito do  Infante,  a  quem  servia,  e  sob  as 
ordens  do  Provmcial  Fr.  Jácome  Peregrino,  o 
Tio.  E  logo  passado  um  ano  fez  a  sua  pro- 
fissão expressa  e  formal,  entrando  na  rigo- 
rosa Ordem   depois   de   ter   dado  provas  da 


(O  Cfr.  pg.  28. 
(2)  Cfr.  pg.  21 3. 


20  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

mais  sincera  e  decidida  vocação.  Era  no  dia 
3  de  maio  de  i56i,  também  dia  da  Vera-Gruz, 
em  que,  pôde  dizer-se,  morria  para  o  mundo, 
deixando  desde  então  o  seu  apelido  de  família, 
para  o  mudar  no  de  religião  por  que  ficou 
sendo  conhecido  —  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz. 
Ele  próprio  é  quem  no-lo  diz 

Nasci  e  renasci  na  casa  em  dia 

De  Santa-Cruz,  da  Cruz  o  nome  tenho  (i). 

Segue-se  um  período  de  mais  de  quarenta 
anos,  em  que  nada  de  notável  se  passou  na 
vida  do  novo  Capuchinho.  Entregue  à  oração 
e  à  meditação  a  sua  lira  só  tem  acentos  para 
chorar  os  erros  da  vida  passada,  para  exaltar 
a  sua  emenda  (2),  a  sua  inalterável  confiança 
em  Deus  (S).» 

Moço  de  vinte  anos  ao  entrar  no  ermo,  bem 
podia  dizer  que  nele  envelhecera,  sem  que 
nunca  a  sua  vontade  sentisse  o  menor  desfale- 
cimento (4). 

Quando  alguma  vez  voltou  ao  mundo,  isto 
é,  à  convivência  que  lhe  destinavam  as  suas 
relaçõis  e  os  seus  conhecimentos  numa  esfera 
social  elevada  foi  para  regressar  ao  isolamento 
mais  decidido  e  mais  convicto.  Ele  próprio  o 
confessa  aludindo  a  uma  terceira  vê^  em  que 


(i)  Gfr.  pg.  335. 

(2)  Cfr,  pg.  228. 

(3)  Cfr.  pg.  229. 

(4)  Cfr.  pg.  289. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


determina  não  mais  abandonar  a  Serra  fazendo 
aí  a  sua  sepultura  (i) 

Contava  63  anos  quando,  a  rogos  do  Pro- 
vincial Frei  António  da  Assunção,  grande  pa- 
triota, amigo  e  partidário  de  D.  António,  pelo 
que  não  era  bem  visto  pelo  intruso  Felipe  (2), 
teve  de  aceitar  a  guardiania  do  Convento  dè 
S.  José  de  Ribamar.  Mas  de  curta  duração 
devia  ser  esta  sombra  de  mando  para  quem 
até  a  essa  havia  renunciado.  Nesse  mesmo 
ano  obteve  licença  do  Provincial  para  ir  viver 
eremiticamente  na  Serra.  Não  foi  sem  resis- 
tência. Eram  grandes  as  provaçÕis,  e  embora 
conhecido  o  animo  do  solicitante,  receiava-se 
uma  quebra  de  energia  da  parte  de  quem  era 
conhecido  na  austeridade  em  que  vivia  por 
uma  bondade  comunicativa,  que  o  fazia  muito 
procurado  e  estimado  de  quantos  desejavam  o 
conforto  dum  conselho,  a  esmola  duma  pala- 
vra amiga,  um  gesto  de  perdão.  Mas  não 
houve  modo  de  prolongar  a  dilação,  talvez 
também  porque  outro  companheiro  o  prece- 
dera nos  rogos  e  na  satisfação  deles.  Fora 
Fr.  Diogo  dos  Inocentes,  que  se  recolhera  ao 
ermo,  indo  viver  na  cela  pertencente  a  S.  Pedro 
de  Alcântara, 

O  alvoroço  com  que  o  pobrezinho  de  Cristo 
recebeu  a  licença  1 


(1)  Cfr.  pg.  i5. 

(2)  Cfr.  Chronica,  %  1 163,  pg.  gsg. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Viviam  por  essa  época  nos  seus  Paços  de 
Azeitão  os  seus  antigos  protectores  e  amigos 
D.  Álvaro,  Duque  de  Aveiro,  e  seu  filho  o 
Duque  de  Torres  Novas.  Fr.  Agostinho  antes 
de  se  retirar  ao  cenóbio  foi  procurá-los  para 
lhes  apresentar  as  suas  despedidas,  ouvindo 
então  da  boca  do  velho  Duque,  entre  gracejos, 
bondosamente : 

-^  Como  se  esqueceu  da  Arrábida,  tanto  que 
se  vio  em  S.  José  de  Ribamar  ? 

Fora  o  seu  cargo  de  Guardião,  que  o  manti- 
vera afastado  da  sua  querida  Arrábida,  bem  o 
sabia  o  ilustre  fidalgo,  porém  o  que  não  espe- 
raria era  a  resposta  que  ouvio : 

—  Mas  se,  rçplicou  Fr.  Agostinho,  nunca 
pensei  tanto  nela,  como  agora,  em  que  de  todo 
vou  a  buscá-la  ! 

E  comunicou  ao  Duque  a  sua  resolução  aco- 
lhida com  a  natural  estranheza,  mas  engrande- 
cida também  com  o  natural  louvor.  E  assim 
se  despedio  o  velho  monge  com  aquela  alegria 
de  santidade,  que  lhe  fazia  escrever  ao  iniciar 
a  ascensão  da  Íngreme  ladeira 

Aqui,  Senhora  minha,  onde  soía 
Cantar  na  minha  leve  mocidade 
O  muito  que  de  vossa  saudade 
Desejei  de  acender  nesta  alma  fria. 

Aqui  torno  outra  vez,  Virgem  Maria  (i). 


(i)  Cfr.  pg.  4.   Gompare-se  com  o  soneto  A  mudança 
da  vida,  pg.  12. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  23 

Vem,  depois,  o  hino  que  chamarei  do  homem 
livre,  que  se  vê  solto  dos  liames  do  mundo, 
na  contemplação  só  do  bem  a  que  aspirava. 
Veja-se  como  êle  canta 

Agora  que  de  todo  despedido 
Nesta  Serra  da  Arrábida  me  vejo 
De  tudo  quanto  mal  tinha  entendido. 

Com  mais  quietação,  livre  desejo, 
Nella  quero  cavar  a  sepultura, 
Que  não  junto  do  Lima,  nem  do  Tejo  . . 
Etc.  (i). 

Enquanto  o  Duque  lhe  não  mandava  cons- 
truir uma  pequena  cela,  que  o  recolhesse,  fez 
êle  uma  choupana  com  ramos  de  árvores,  oní^e 
viveu  durante  seis  meses,  após  os  quais  come- 
çou de  pensar  em  mais  sólido  abrigo  fazendo 
uma  gruta  para  o  que  aproveitava  a  disposição 
natural  dos  terrenos.  Era  o  trabalho  superior 
às  suas  forças  e  valeu-lhe  nesse  aperto  a  visita 
dos  Duques.  Foi  o  próprio  D.  Jorge  quem 
escolheu  o  terreno  e  fez  menção  de  abrir  os 
alicerces,  o  que  provocou  ao  velho  este  dito : 
—  . . .  e  a  paga  de  eu  ter  cantado  nos  meus 
versos  o  seu  nascimento. 

Aludia  à  Piscatória,  que  começa : 

Queres  ouvir  cantar  um  pescador 

Pobre,  que  de  marisco  se  sustenta, 

E  segundo  o  que  dizem  foi  pastor  ?. .  .(2) 

(i)  Cfr.  Elegia  VI,  pg.  101. 
(2)  Cfr.  pg.  70. 


34  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Duas  palavras  sobre  o  logar  escolhido  pela 
grande,  penitente-poeta,  para  se  compreender 
o  que  seria  a  sua  vida  de  cenobita 

O  convento  da  Arrábida  pertencia  à  ordem 
de  S.  Francisco.  A.  Província  daquelle  nome 
fora  criada  a  instâncias  do  Cardeal  D.  Hen- 
rique (i)  peio  Geral  Fr.  Francisco  de  Samora 
no  Capítulo  que  celebrou  em  o  Convento  de 
S.  José,  cabeça  da  Província.  Ficou  tendo 
como  armas,  como  «  selo  maior  »,  a  imagem 
de  Nossa  Senhora  no  alto  da  Serra,  e  a  seus 
pés  à  mão  direita  S.  Francisco  e  à  esquerda 
Santo  António  com  a  Cruz.  Ao  pé  do  monte 
três  frades  de  joelhos. . .  (2). 

Chamavam-se  Capuchos  do  capelo  ou  capuz 
com  que  cobriam  a  cabeça.  Traziam  hábito 
de  burel  pardo,  capa,  capuz  bicudo,  usavam  a 
barba   comprida,  donde  lhes  vinha  também  o 


(i)  O  Cronista  da  Arrábida  afirma  que  foi  D.  João 
de  Lencastre  i.°  Duque  de  Aveiro  e  portanto  um  dos 
primeiros  fidalgos  do  reino  como  primeiro  neto  del-rei 
D.  João  II,  quem  ofereceu  a  Serra  da  Arrábida  a  Frei 
Martinho  de  Santa  Maria,  que  assim  teve  o  ensejo  de 
se  tornar  o  fundador  do  Convento  sito  na  afamada 
Serra.  Cfr.  a  Chronica  no  capitulo  iv.  A  esse  fidalgo 
deu  D.  Manoel  o  título  de  Marquês  de  Torres  Novas  e 
D.  João  III  o  de  Duque  de  Aveiro. 

(2)  Fr.  Cristóvão  de  Lisboa,  Jardim  da  Sagrada 
Escriptura,  Lisboa,  i653,  pg.  7. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  25 

nome  de  Barbadinhos,  faziam  voto  de  pobreza 
e  viviam  de  esmolas. 

A  Província  da  Arrábida  tinha  vinte  e  um  con- 
ventos e  dous  hospícios.  A  igreja  e  mosteiro  da 
Arrábida  foram  mandados  construir  a  expen- 
sas do  seu  padroeiro  D.  João  de  Lencastre, 
i.°  Duque  de  Aveiro,  edificaçõis  que  ficaram 
constituindo  o  Convento  novo,  para  as  destin- 
guir  das  primeiras  casas  destinadas  a  recolher 
os  poucos  frades,  que  lá  se  foram  estabelecer. 
As  obras  continuaram  com  o  andar  dos  tempos, 
mas  sem  mudar  a  feição  do  que  estava,  nem  na 
sua  extensão,  nem  na  sua  modéstia.  O  aper- 
tado da  ordem  não  convidava  senão  almas  de 
escol,  e  essas  mesmo  muito  depuradas  na  fé. 
O  primeiro  cenobita,  Fr.  Martinho  de  Santa 
Mana,  vivia  na  maior  austeridade,  que  pouco 
se  atenuou  com  a  chegada  de  S.  Pedro  de 
Alcântara  e  outros  frades  vindos  de  Espanha. 

Os  religiosos  andavam  descalços,  sem  admi- 
tir nenhum  género  de  calçado  e  dispôs-se  que 
os  hábitos  fossem  do  mais  vil  e  grosseiro  pano, 
<  os  quais  no  comprimento  não  passariam  dos 
tornozelos  dos  pés,  e  na  largura  não  excederião 
a  de  dez  palmos  em  roda,  como  também  os 
mantos  não  passarião  da  ultima  juntura  das 
mãos,  estando  os  braços  estendidos  ».  Viviam 
de  esmolas,  sendo  proibido  para  os  frades  sãos 
pedir  «  carne,  nem  peixe,  e  muito  menos  vinho 
ou  ovos  ». 

As  celas  estavam  sem  o  mínimo  ornato, 
dormindo    os    Frades   sobre    uma   cortiça   ou 


26  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

esteira,  podendo  usar  duma  manta  ou  saial 
quatro  meses  do  ano  —  março,  abril,  setem- 
bro e  outubro,  de  duas  em  novembro,  dezem- 
bro, janeiro  e  fevereiro,  e  de  nenhuma  nos 
outros. 

No  coro  tinham  diariamente  três  horas  de 
oração  mental  e  faziam  também  a  disci- 
plina, exceptuando  aos  domingos  e  festas  de 
guarda  (i). 

No  lado  sul  da  Serra  existem  várias  caver- 
nas ou  grutas  naturais  como  a  Lapa  do  Medico, 
no  meio  da  encosta  do  Monte  Abraão,  à  es- 
querda do  caminho  que  vai  da  Fonte  do  Soli- 
tário para  o  mosteiro,  pelo  vale  de  S.  Paulo. 
É  afamada  a  Lapa  de  Santa  Margarida  junto 
ao  mar  e  outras  (2). 

Desta  última  temos  a  descrição  dum  poeta 
do  século  XVII,  que  achámos  interessante  repro- 
duzir, não  obstante  o  sabor  gongórico,  que  por 
completo  a  desfeia : 


114 
Metido  por  aquella  oculta  brenha 
Logo  outro  religioso  me  convida 
Para  dentro  de  hi3ma  grande  penha 
Ver  a  Lapa  de  Santa  Margarida. 
Pelos  montes  que  aos  mares  se  despenha 
Nos  afirmaram  ser  fácil  decida 


(1)  Chronica,  pg.  i36. 

(2)  Rasteiro,  Arch.  Port.,  já  cit. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  27 

E  andando  meia  legoa  nesta  frágoa 
Nos  viemos  achar  na  borda  d'agua. 

ii5 

Em  húa  rocha  adonde  o  mar  batia 
Com  tão  grande  clamor,  que  o  mar  abala 
Húa  pequena  boca  a  pedra  abria 
Por  onde  entrava  o  mar  a  visitá-la; 
Os  penhascos  famosos  combatia 
Mas  de  sorte  na  Lapa  se  regala, 
Que  se  com  todos  inconstante  quebra 
Só  com  esta  visita  se  requebra. 

116 

Entrei  por  esta  gruta  e  na  verdade 
Tal  pavor  m'infundio  e  tal  respeito, 
Que  então  não  soube  com  facilidade 
Qual  das  cousas  em  mim  fez  este  efeito, 
Pois  com  tal  intenção,  tal  igualdade 
Se  introduziram  juntos  em  meu  peito, 
Que  quando  quis  entrar  neste  penedo 
Vi  confuso  o  respeito  com  o  medo. 

Referindo-se  à  celebre  Capela,  que  primiti- 
vamente fôra  a  cela  de  S.  Pedro  de  Alcântara 
diz  o  mesmo  autor : 


41 
Na  parte  do  Evangelho  esta  Capela 
Húa  pequena  porta  nos  mostrava, 
Por  onde  entramos  na  apertada  cela, 
Onde  Pedro  de  Alcântara  habitava. 
Húa  fresta  de  hú  palmo  havia  nela 
Por  esta  a  luz  do  sol  escassa  entrava. 
Porque  tanto  do  mundo  se  escondia, 
Que  apenas  soube  o  sol  donde  via. 


28  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

42 

Tem  a  cela  dez  palmos  de  comprido 

Para  hfl  corpo  pequena  sepultura 

Eu  lhe  medi  com  peso  e  advertido 

Quatro  palmos  e  meio  de  largura, 

E  se  hú  homem  qualquer  cousa  é  mais  comprido 

Não  pode  entrar  q^^e  é  pouca  sua  altura, 

Mas  esta  facilmente  se  acomoda 

Levar  em  húa  mão  a  cela  toda. 

Toda  a  Serra  era  revestida  de  mata  formo- 
síssima merecedora  dos  elogios  de  quantos 
tiveram  a  dita  de  a  visitar,  pelo  menos,  uma 
vêz  na  sua  vida  (i).  Dela  podia  escrever  A. 
Herculano  que  era 

. .  .pátria  da  paz,  deserto  santo, 

Onde  não  ruge  a  grande  voz  das  turbas  I 

Foi  a  este  logar  que  se  acolheu  Fr.  Agosti- 
nho e  imagine-se  como  lhe  decorreriam  os  dias 
durante  o  período  de  catorze  anos,  em  que 
perseverou  na  vida  contemplativa,  que  livre- 
mente escolhera. 

Ficava-lhe  longe  e  sobranceiro  o  modesto 
Convento,  onde  vivia  a  comunidade.  Pois  só 
lá  ia  de  oito  em  oito  dias  para  buscar  o  pouco 
de  pão  com  que  se  alimentava.    Isso  e  alguns 


(i)  Ainda  em  i836  o  autor  do  Portugal  and  Galicia, 
(  London,  2.»,  pg.  38 )  escrevia  que  lá  «  are  found  the 
quercus  Australis,  the  maple,  lhe  slrawberry-tree  and 
the  carob,  or  St.  Jonh's  bread-tree. . .  ». 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  29 

frutos  lhe  bastavam.  Aludindo  a  uns  figos  que 
tinha  a  secar  e  una  corvo  lhe  roubou  escreveu 
os  interessantes  versos,  repletos  de  alegre  resi- 
gnação, que  começam  com  o  mote  : 

Se  Agostinho  fora  Paulo 

O  corvo  quando  viera 

Não  levara,  mas  trouxera. . .  (i) 

Leia-se  a  égloga  II  «  Mincio  e  Flávio  »,  em 
que  este  último,  que  não  parece  sêr  outro 
senão  seu  irmão  Diogo  Bernardes,  conta  àquele 
o  modo  de  viver  de  Limabeu,  disfarce  sob  que 
se  designa  Fr.  Agostinho : 

Nunca  se  imaginou  tal  asperesa 

Não  digo  dos  penedos  do  deserto 

Mas  da  fome,  do  frio  e  da  pobresa. . .  (2). 

Aí  O  representa  marchando  de  pés  nús,  com 
a  boca  atravessada  por  um  páo  para  não  falar, 
apenas  coberto  o  corpo  por  andrajos  mal  cer- 
zidos. . .  e  todavia  resignado  e  contente.  •  Era, 
não  obstante  tais  rigores,  muito  afável,  alegre 
e  benévolo  a  todos  »,  escreve  um  velho  bió- 
grafo. 

Entretinha-se  fora  das  horas  de  meditação 
nos  prazeres  mais  inocentes,  um  dos  quais  o 


(i)  Cfr.  pg.  343. 

(2)  Cfr.  o  Vilancete  de  pgs.  337. 


3o 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


de  pescar  e  o  de  fazer  bordõis,  de  que  todavia 
se  desculpa  contra  os  maldizentes : 

Em  que  parte,  em  que  terra 
Se  pode  vituperar, 
Quem  pesca  peixes  no  mar 
Ou  coria  lenha  na  Serra  ? 

Não  admira  que  êle  conheça  e  nomeie  nos 
seus  versos  variadas  espécies  da  fauna  e  da 
flora  da  região,  onde  vivia.  Ele  cita  o  lapari- 
nho,  o  tordo,  o  pombo,  a  perdiz  (i),  o  coelho, 
a  lebre,  o  açor,  o  porco,  o  galgo  (2),  àlêm  da 
áspide  (3)  e  os  sardos,  robalos,  douradas  (4), 
ruivos,  salmonetes,  vesugos,  choupas,  tainhas, 
linguados  (5),  as  ostras,  amêijoas  (6),  birbigõis, 
mexilhõis,  as  santolas  (7),  os  perseves  (8). 

De  plantas  memora  a  Jiera,  o  louro  (9),  o 
lirio  (10),  as  boninas  (i  1),  o  medronho,  a  esteva, 
a  aroeira  (12),  o  sovereiro  (i3),  os  murtais  (14), 


(i)  Pgs.  5i. 

(2)  Pgs.  i36. 

(3)  Pgs.  314. 

(4)  Pgs  61. 

(5)  Pgs.  74. 

(6)  Pgs.  80. 

(7)  Pgs.  106. 

(8)  Pgs.  60. 

(9)  Pgs.  2. 

(10)  Pgs.  19  e  28. 

(11)  Pgs.  40. 

(12)  Pg.  74. 
(i3)  Pg.  i36. 
(14)  Pg.  314. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  3i 

OS  zimbros  (i).  Não  esquece  o  perrexil  (2),  como 
se  lembra  das  rosas  (3),  e  menciona  as  casta- 
nhas e  as  maçãs  (4)  e  os  figos  (5). 

Imerso  na  natureza,  na  vida  simples  que 
levava,  dia  a  dia,  hora  a  hora,  mais  e  mais  se 
absorvia  na  contemplação  dos  grandes  mis- 
térios da  vida,  que  o  esperava  àlêm  túmulo, 
numa  radiosa  esperança,  ou  melhor  certeza. 
Gomo  já  sucedera  com  outros  grandes  homens 
piedosos,  nimbados  pela  auréola  da  santidade, 
a  sua  solidão  é  animada  pela  visita  «  de  alguns 
animais  silvestres  que  andavam  naquela  Serra 
notavelmente  esquivos,  como  veados  e  genetas 
e  lhe  vinham  comer  à  mão  deixando-se  tratar 
dele,  como  mui  domésticos,  obedecendo  lhe  tal 
vez  de  modo  que  não  se  iam  sem  os  despedir, 
e  assim  mesmo  todo  o  género  se  volateria  »  (6). 
Vinham  as  aves  pousar-jhe  nos  ombros  ou  no 
colo,  diz  também  o  Cronista,  que  regista  a  tris- 
teza do  bom  Capuchinho  no  dia  em  que  soube 
que  a  geneta  fora  procurá-lo  ao  seu  aposento 
«  e  não  o  achando,  seguio-lhe  as  pisadas  pelo 
faro,  até  entrar  dentro  da  clausura.  Foi  sentida 
dos  gatos,  os  quaes  armando-se  contra  ella,  a 


(1)  Pg.  338. 

(2)  Pg.  òi. 

(3)  Pgs.  28  e  40. 

(4)  Pg-  ^9- 

(5)  Pg.  343. 

(6)  Cfr.  Agiologio  Lusitano,  11,  146. 


32  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

mataram...  »   (i).     Era   um   dos   seus   bichi- 
nhos, (2)  que  desaparecia  (3). 

Maior  tristeza  devia  sentir  com  a  retirada 
de  Fr.  Diogo  dos  Inocentes,  a  quem  a  doença 
prostrara  obrigando-o  a  acolher-se  a  Alcobaça : 

Foi-se-me  o  companheiro,  que  aqui  tinha, 
Enfermo,  sem  poder  mais  aturar. . . 
Etc.  (4). 

Ele,  agora,  mais  vivia  para  o  isolamento  e 
para  a  meditação.  Algumas  vezes  foi  encon- 
trado em  extasis,  «  suspenso  e  absorto. .  •  cousa 
que  lhe  devia  suceder  cada  dia,  pois  acaso  o 


( 1 )  Chr.  da  Arrábida,  §  1 1 79,  pg.  929. 

(2)  Cfr.  pg  3o8. 

(3)  Gineta  ou  geneta  (\at.  f a  gineta,  deminutivo  de 
Jugina,  segundo   Faria,   doninha   grande,  fuinha,  e   é» 

segundo  Bluteau  o  que  alguns  denominam  o  Catus 
Hispanice  e  outros  Panthera  minor.  E  cita  Gennero 
que  a  descreve  assim  :  bestia  paulo  maior  vulpecula, 
colore  inter  croceum  et  nigrum,  maculis  interdum 
nigris,  ordine  in  pelle  dispositis,  mansueta  satis,  nisi 
lacessatur.  Árdua  non  ascendit  sed  in  humidibus  locis 
et  juxta  rivos  degit,  et  ibi  victum  quaerit.  Ginettas 
Hispânia  mittit  forma,  et  moribus  domesticis  musteliis 
quas  nos  foinos  vocamus ...» 

Como  pôde  a  tímida  e  modesta  doninha,  cuja  pele 
lanuginosa  é  salpicada  de  negro  ou  de  pardo,  como  diz 
Fr.  Domingos  Vieira,  ser  transformada  numa  «  cavalga- 
dura que  levava  Fr.  Agostinho  do  seu  convento  para  a 
Capellmha  da  Serra  ?  »  Pois  cfr.  Sr.  Dr.  Th.  Braga,  Hist . 
dos  Qitinh.,  pg.  320.  Veja-se  a  escapeiização  do  dislate 
no  Sr.  H.  Arantes,  ob.  cit.,  pg.  44  e  segs. 

(4)  Cfr.  pg.  220. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  33 


acharam  daquela  maneira  sendo  ele  grande 
secretario  de  suas  virtudes  »  (i).  Semelhan- 
tes fenómenos  nada  tinham  de  extraordinário, 
sendo  consequência  das  longas  oraçõis  mentais, 
e  tais  como  se  observam  noutros  místicos,  em 
formas  mais  ou  menos  acentuadas,  mas,  no 
fundo,  idênticas  (2). 

Enfim,  chegou  também  a  sua  hora.  Os  pre- 
núncios da  morte  teve-os  em  princípios  de 
março  do  ano  de  1619.  E  de  tal  modo  se 
anunciou  a  doença,  que  logo  foi  conduzido 
para  Setúbal,  onde  a  Ordem  tinha  o  seu  hos- 
pital. Foi  fácil  o  diagnóstico,  rápida  a  sua 
confirmação.  Em  volta  do  seu  leito  junta- 
ram-se  os  amigos,  não  lhe  faltando  os  maiores 
—  o  Duque  D.  Jorge  de  Aveiro,  que  então 
com  seu  Pai  e  molher  residia  nos  Paços  da 
vila.    Em  14  de  março  expirou. 

Contava  79  anos  de  idade,  69  de  hábito,  e 
14  destes  de  eremita  na  Serra  da  Arrábida. 


(i)  Cfr.  Mesquita,  ob.  cit.,  pg.  xvi. 

(2)  Vid.  H.  Delacroix,  Études  <fhistoire  et  de  psycho- 
logie  du  mysúcisme.  Les  grands  mystiques  chrétiens. 
Paris,  1908,  pg.  176  segs. 


34  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


II 
O    POETA 

Todos  que  em  Portugal  teem  o  amor  das 
suas  glórias  literárias  conhecem  Fr.  Agostinho 
da  Cruz,  pelo  menos,  através  a  edição  que  das 
suas  Poesias  nos  deixou  o  Prof.  do  Colégio  Real 
de  Nobres  —  José  Caetano  de  Mesquita  (i). 

Foram  os  próprios  Frades  da  Arrábida  que 
forneceram  a  Mesquita  o  exemplar  das  poe- 
sias que,  copiadas  «  com  o  maior  cuidado  », 
serviram  para  a  impressão  (2). 

O  que  até  à  data  dessa  edição  —  177 1  —  se 
conhecia  de  Fr.  Agostinho  era  somente  o  pou- 
quíssimo que  fora  publicado  na  Chronica  da 
Arrábida  em  1728  (3),  embora  a  fama  do  seu 
talento,  como  das  suas  virtudes,  fosse  já  apre- 
goada pelos  contemporâneos  (4).    Aqui  está  a 


(i)  Varias  poeifias  do  venerável  Padre  Fr.  Agostinho 
da  Cruj,  religioso  da  Provinda  da  Arrábida,  dedicada 
ao  Excel,  e  Reverend.  Senhor  D.  Fr.  Manoel  do  Cená- 
culo. . .,  Lisboa,  MDCCLxxi,  i  vol.  de  xxxm  -j-  i63  pgs. 

(2)  Cfr.  a  Vida. .  ■  anteposta  à  ed.,  a  pg.  29. 

(3)  Parte  i,  livro  v,  caps.  18-20,  §  1170. 

(4)  Cfr.  Fr.  Pedro  Calvo  na  Defensam  das  lagrimas 
dos  Justos  perseguidos  e  das  sagradas  religiões,  fructo 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  35 

prova  em  Fr.  Rodrigo  de  Deos  f  -f*  1622  ),  que 
foi  Guardião  do  Convento  de  Nossa  Senhora 
da  Arrábida  e  que  nas  duas  obras  que  deixou 
inserio  poesi^ís  de  Fr.  Agostinho.  No  Tratado 
dos  Passos  que  se  andam  na  Quaresma  ( i  *  ed. 
1618)  (I)  apareceu  impresso  como  Proemio  o 
soneto : 

Os  passos  que  de  dores  trespassados 
Etc.  (2). 

e  o  Epigrama : 

A  quem  desceo  do  Ceo  por  nos  dar  vida 
Etc  (3). 

Nos  Motivos  Espirituais  I4)  aparecem  publi- 
cados   os    seguintes    dois   Sonetos,    que    sam 


das  lagrimas  de  Christo,  Lisboa,  por  P.  Craesbeck,  1618, 
que  já  [sendo  ainda  vivo]  se  lembra  dele. 

(i )  Tratado  dos  Passos. . .  saido  das  oficinas  de  Pedro 
Craesbeck,  1618.  Era,  portanto,  vivo  Fr  Agostinho,  que 
só  faleceu  em  março  de  1619.  O  Tratado...  saiu  em 
1618  e  deste  ano  sam  as  licenças  para  a  impressão. 
Insere  em  primeiro  logar  um  Soneto  á  Paixão,  anónimo. 

(2)  Publicado  nesta  nossa  ed.  a  pg.  193. 

(3)  Vid.  esta  nossa  ed.  a  pg  335. 

(4)  Impressos  por  P.  Craesbeck  em  1620,  mas  as 
licenças  sam  de  outubro  de  1618  e  1619.  Posteriormente 
à  redacção  da  Nota  46  deste  vol ,  pude  consultar  na 
Bibl.  Nac.  de  Lisboa  exemplares  tanto  desta  como  da 
ed.  de  i633. 


36  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

exclusivos  deste  livro  bastante  raro  e  que  vale 
a  pena  reproduzir : 

Soneio  de  Frey  Agostinho  da  Cruj  a  esta  obra. 

Âquelle  que  na  vinha  do  Senhor 
Trabalha  por  cavar  proveito  alheo, 
Tanto  do  próprio  seu  fica  mais  cheo, 
Quanto  mais  do  commum  foi  cavador. 

Costuma  a  pagar  divino  amor, 
A  quem  buscar  o  quer  por  este  meio. 
Primeiro  :  como  a  quem  mais  tarde  veio, 
E  tanto  como  o  mais  madrugador. 

Aqui  nesta  doutrina  claramente 

Se  ensina  porque  via,  como  &  quando 

OfFerta  faz  a  Daos  mais  excellente 

Todo  o  que  dignamente  comungando 
OfFerece  a  Deos  Padre  omnipotente, 
Seu  filho,  sua  gloria  acrescentando. 

Outro. 

O'  vós  que  andais  de  achar  cá  desejosos 
Modos  de  honrar  sem  fim  mais  a  Trindade, 
O  melhor  se  vos  dá  aqui  com  brevidade 
Nestes  motivos  santos  amorosos. 

Nelles  tendes  louvores  copiosos 
De  summo  grau  &  grande  dignidade, 
De  quem  trata  &  recebe  a  magestade, 
Que  temem  olhar  no  Ceo  os  gloriosos. 

O  alto  sacrificio  de  honrar  digno 
A  vós  tam  proveitoso,  a  Deos  aceito. 
Com  que  he  toda  a  Trindade  engrandecida. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  Sy 


Sagrada  Hóstia,  viatico  divino, 
Que  offerecida  ao  Padre  com  efíeito 
Lhe  deu  gloria  infinita  &  sem  medida. 


Trinta  e  oito  anos  após  a  morte  do  Poeta, 
em  1657,  o  sábio  autor  do  Agiologio  Lusitano 
chamando  ao  irmão  Diogo  Bernardes  «  insigne 
poeta  »  acrescenta  :  «  e  ele  o  não  foi  menos 
porque  na  Arrábida  fez  alguns  poemas  ao 
divino,  que  sam  muito  estimados  pelo  engenho 
&  spiritu  grande  que  nelles  mostrou  »  (1). 

Por  cópias  manuscritas,  derivadas  do  autó- 
grafo, que  hoje  se  pôde  reputai  perdido,  se  foi 
alargando  a  fama  da  inspiração  do  Poeta  da 
Arrábida.  Que  nos  dizem  esses  Manuscritos 
de  novo  ou  de  inédito  ? 


os   MANUSCRITOS 

Conhecem-se  três  manuscritos  mais  ou  me- 
nos numerosos,  mas  todos  três  importantes, 
das  poesias  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz.  Além 
destes  há  referências  a  um  Códice  do  convento 
de  Verberena  da  Província  da  Arrábida,  que 
Barbosa  Machado  afirma  sêr  c  da  sua  própria 
mão  ».  Vê-lo  hia  o  douto  abade  de  Sever? 
Ele  ou  quem  o  teve  sob  os  olhos  descreve-o 
assim :   «  esta  colecção  poética  fez  á  petição 


(i)  Cfr.  II,  i5i  ( 12  de  março)  e  Anotações,  ao  §/. 


38  Fr.  Agostinho  da  Crur 

da  Duquesa  de  Aveiro  e  a  dedicou  á  mesma 
Senhora,  da  qual  existia  um  traslado  na  Biblio- 
teca do  Cardeal  de  Sousa.  Constava  de  vinte 
e  uma  Eglogas  assim  pastoris  como  piscatórias, 
cartas,  odes,  endechas,  redondilhas  e  vilhan- 
cicos.  Entre  os  Poemas  que  compôs  he  cele- 
bre o  de  Santa  Catharina,  Virgem  e  Martyr, 
em  oitava  rima  ».  O  título  era  —  Diversas 
Poesias  ao  Divino  (i). 

Teríamos,  pois,  aqui  um  autógrafo  por  todos 
os  títulos  valiosíssimo  mas  de  que  não  há,  à 
hora  atual,  vestígios  do  seu  paradeiro.  Estará 
irremediavelmente  perdido  ? 

Inocêncio  da  Silva  no  seu  precioso  Dicioná- 
rio Bibliográfico  fâla-nos  dum  outro  Códice» 
que  talvez  prestasse  elementos  importantes  se 
se  tornasse  conhecido.  Não  seria  autógrafo, 
mas  parecia  c  ter  sido  escripto  logo  depois  da 
morte  do  Venerável  Padre.  Consta  de  164  fls., 
4.",  letra  do  sec.  xvii  •.  Inocêncio,  que  vio 
este  manuscrito,  diz  nos  que  êle  compreendia: 
dois  epigramas,  oitenta  e  um  sonetos,  uma 
égloga  à  ingratidão,  quinze  elegias,  três  eglo- 
gas, cinco  odes,  vários  motes  e  glosas,  quatro 
cartas  ou  epístolas  inéditas,  um  epigrama,  um 
epitáfio,  oitavas  sobre  o  c  Flevit  amare  », 
cincoenta  e  sete  oitavas  sobre  a  Vida  de  Santo 
Eustáquio,  e  a  Vida  de  Santa  Catarina  (2). 


(i)  Btbl.  Lus  ,  vb.  Verberena. 

(2)  Op.  cií.y  vb.  Agostinho  da  Cruz,  i,  pg.  16. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  89 

Qual  a  sorte  deste  Códice  ?     Perdido  tam- 
bém para  sempre  ? 

Estes  os  desaparecidos,  a  que  outros  natu- 
ralmente se  poderão,  em  hipótese,  juntar,  por- 
que várias  cópias  deveriam  sêr  tiradas  para 
enviar  ou  para  os  Conventos  da  mesma  ordem, 
ou  pelo  menos  para  aqueles  que  mostrassem 
desejos  de  possuí-los,  e  também  para  pessoas 
piedosas,  que  não  deixariam  de  tér  em  alto 
apreço  leitura  para  elas  tam  sugestiva  e  impre- 
gnada de  misticismo. 

Demos  agora  logar  aos  Mss.  existentes,  que 
chegaram  ao  nosso  conhecimento  e  de  que  nos 
servimos  para  a  elaboração  deste  trabalho. 

A  —  Mss.  Conimbricense  n  °  400.  Pertence 
à  Biblioteca  da  Universidade  de  Coimbra. 
Grosso  vol.  de  448  pgs.,  numeração  moderna, 
já  descrito  e  catalogado  pela  pena  autorizada 
do  nosso  amigo  Sr.  Dr.  Augusto  Mendes  Simões 
de  Castro.  As  poesias  do  nosso  auiôr  abrem 
o  vol.  e  vão  até  pgs.  68.  Rpigrafe  ao  alto  da 
pg  :  €  Varias  Poesias  do  Padre  Fr.  Agostinho 
Bernardes,  Religioso  Capucho  arrabido  irmão 
do  grande  Diogo  Bernardes  »  e  termina : 
€  Aqui  Jinalisa  esta  obra  do  irmão  de  Diogo 
Bernardes  ■. 

Infelizmente  todas  as  poesias  neste  Mss. 
contidas  se  encontram  publicadas  (excepto  os 
dous  sonetos  de  fl.  6,  v. )  no  vol.  impresso 
em  1771.  Os  dous  sonetos  que  fazem  exce- 
pção encontram-se  neste  nosso  vol.,  a  pgs.  169 


40  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

e  2o3.  Procedem  entretanto  de  fonte  diversa 
da  que  sérvio  a  Mesquita  para  aquela  sua  ed. 
de  1771  e  sam,  por  isso,  um  subsídio  para 
fixar  o  sentido  dalguns  logares  obscuros  ou 
deturpados,  como  o  verifiquei  cotejando  para- 
lelamente os  logares  e  aproveitando  a  parte 
essencial  nas  notas  e  esclarecimentos,  que  vam 
no  fim  desta  nossa  edição. 

B  —  Mss.  Portuense  (1).  Pertence  à  Bibl. 
Municipal  do  Porto,  onde  tem  o  registo  antigo 
i.ioo  e  o  mod.  63 1.  Ambas  essas  numeraçóis 
se  lêem  em  dous  rótulos  colados  nas  lombadas 
do  vol.  No  verso  interior  da  capa  há  também 
num  Ex-libris  da  Bibl.  o  A^.°  geral  i  100. 

Colocação  F  —  2.  Voluminho  in-8."  Pesa 
i65  grs.  Tamanho  10X15*".  Papel  de  linho, 
amarelado.  Encadernado  toscamente  em  per- 
gaminho. O  canto  superior  externo  da  capa 
está  roido.  No  princípio  há  duas  folhas  custo- 
des  em  branco.  Frontespício  verdadeiro  não 
existe.  Na  última  v.  há.  todavia,  o  título 
da  primeira  composição :  Tercetos  em  louvor 
da   Immaculada   Concepção  da  Virgem  nossa 


(i)  Devemos  a  descrição  deste  Códice  à  Senhora 
D.  Carohna  Michaelis  de  Vasconcelos.  Foi  também  a 
ilustre  Senhora  quem  nos  forneceu  cópia  das  poesias, 
que  vam  insertas  neste  nosso  volume  (acompanhadas  de 
rápidos  comentários  elucidativos )  e  que  sam  exclusivas 
deste  Mss.  Aqui  consignamos  a  S.  Ex.»  o  nosso  vivís- 
simo reconhecimento. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  41 


Senhora  e  Sonetos  vários  de  Santos,  o  que 
está  escrito  com  a  mesma  letra  do  texto. 

Com  letra  muito  mais  moderna  (primeira 
metade  do  sec.  xix)  lese  na  mesma  pág. : 
Frei  Agostinho  da  Crui  —  Irmão  de  Diogo 
Bernardes,  mas  estes  dizeres  foram  depois 
apagados  propositadamente.  Em  letra  mais 
antiga,  mas  posterior  á  do  escrevente  principal, 
está  lançada  ao  alto  da  primeira  pág.  do  texto 
a  nota  Da  Livraria  de  Grijó.  O  texto  abrange 
i5o  fols.,  pág.  no  recto.  Está  muito  bem  cali- 
grafado.  Letra  do  séc.  xvii  —  apógrafo  por- 
tanto —  parecida  com  a  de  Bernardes,  Ferreira, 
Resende,  etc.  No  fim  falta  uma  fl.  de  texto 
(pelo  menos)  com  as  últimas  quatro  oitavas 
da  Visão  de  Santa  Erigida  e  provavelmente 
outra,  branca,  custode.  As  composiçÕis  não 
numeradas,  mas  sempre  marcadas  por  uma 
bandeirinha,  sam  282  :  portug.  190,  castelha- 
nas 42,  de  mistura. 

O  nome  de  Fr.  Agostinho  encontra-se  várias 
vezes  em  epígrafes  ou  junto  às  epígrafes  de 
certas  poesias.  A  designação  Do  mesmo  ou 
Do  Autor  refere-se  também  a  Fr.  Agostinho. 

Eis  a  lista  dessas  indicaçõis: 

1  —  f.  a8  V.,  Himno  á  Cruz :  de  Fr.  Agostinho. 

2  —  f.  3i  V.,  Elegia  a  Jesu  na  Cruz :  de  Fr  Agostinho. 

3  —  f.  32  V,,  Elegia  ao  divino  amor  :  do  mesmo. 

4  —  f.  34,  Elegia  Spiritual :  do  mesmo. 

5  —  f.  35,  Lagrimas  de  São  João  Euangelista  ao  pee 

da  Cruz  :  de  Fr.  Agostinho. 

6  —  f.  55  V.,  Outra  Elegia  a  Serra  da  Arrábida  :  de  Fr. 

Agostinho. 


42  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

7  —  f  58  V.,  Endexas  :  de  Fr.  Agostinho. 

8  —  f.  59  V.,  Outras  endexas  :  do  mesmo. 

9  —  f.  60,  Vilancete  :  do  mesmo. 

10  —  f.  81,  Elegia  de  Fr.  Agostinho  da  Cru;;  a  dona 

Mariana  filha  do  Duque  d'Aveiro,  etc. 

11  —  f.  82  v„  Egioga  de  Fr.  Agostinho  da  Cruj,  etc. 

12  —  f.  g%  Elegia  á  morte  de  diogo  Bernardes  Irmão 

do  Autor. 
i3  —  f.  loi,  Eitígia  á  morte  :  do  mesmo. 
14  —  f.  III  V.,  Reposta  a  Soror  Mariana  filha  do  Duque 

de  Aveiro  :  do  Autor  Fr.  Agostinho  da  Cruj. 
i5  —  f.  112,  Carta  que  escreveu  a  Duqueza  de  Aveiro 

antes  de  se  ir  pêra  o  Ermo. 
16  —  f.  ii3,  Carta  que  o  Autor  compôs  a  Duqueza  de 

Aveiro  á  absencia  da  madre  Soror  Mariana, 

sua  filha. 

Temos,  portanto,  oito   vezes   a  designação 
clara  e  nominal  do  Autor. 


Outras  provas  da  autenticidade  da  atribui- 
ção de  muitas  das  232  composiçõis  do  Cod, 
Port.  sam  as  seguintes : 

a)  5o  delas  sam  idênticas  com  outras  tantas 
impressas  em  1771  por  Mesquita.  Essas  mes- 
mas encontram  se  também  no  Cod.  Conimbr, 
que  é  privativo  de  Fr.  Agostinho. 

b)  148  dessas  poesias  sam  comuns  ao  Cod, 
Port.  e  ao  Conimbr. 


Das  obras  impressas  em  1771  faltam  no  Cod, 
Port.:   I  — As   Eglogas   1-12,   a   última   das 


Fr  Agostinho  da  Cruz 


quais  termina  com  um  soneto  ( o  de  Limiana), 
e    com    o   Epitáfio   de   Limiana   e    Limabeu. 

2  —  O  soneto  A  seu  irmão  Diogo  Bernardes. 

3  —  O  Vilancete  que  constitue  o  desfecho  da 
Elegia  da  Ausência  conjugal.  4  —  A  Carta 
em  resposta  à  de  seu  irmão  Diogo  Bernardes. 
5  —  O  Mote  Ao  Nascimento  de  Nosso  Senhor. 


Privativos  do  Cod.  Conimbr.  sam  apenas  os 
dous  sonetos :  Aquele  que  na  vinha  do  Senhor 
(  pg   23o),  e  Oh  vós  que  andais  (  pg.  23 1 ). 

Privativos  do  Cod.  Port.  sam  as  quarenta  e 
duas  composiçõis  castelhanas,  que  vam  publi- 
cadas nesta  nossa  ed.  [pgs.  369  a  416]. 

C  —  Mss.  Conimbricense.  Pertencente  à 
Bibl.  da  Universidade,  onde,  quando  Bibliote- 
cário deste  notável  Estabelecimento,  o  encon- 
trei, aproveitando-o  imediatamente  para  a 
publicação  que  empreendi  no  Archivo  Biblio- 
graphico  da  Bibliotheca  da  Universidade  de 
Coimbra,  que  havia  fundado  um  ano  antes, 
deixando  desde  então  exarada  a  promessa  da 
edição  autónoma,  que  só  agora  consigo  levar 
a  cabo  (i). 


(i)  E  não  foi  mais  cedo  pelas  razõis  que  deixei  adi- 
vinhar em  outro  logar  e  que  aqui  não  explano  para  não 
avivar  um  fogo-morto.    A  promessa  então  feita  foi-me 


44  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

O  Códice  compreende  vinte  e  três  cadernos 
e  é  todo  da  letra  de  Joaquim  Inácio  de  Freitas, 
professor  do  Colégio  das  Artes,  bem  conhe- 
cido de  todos  os  bibliófilos  (i). 

Não  tem  capa  de  resguardo,  nem  título,  nem 
outra  indicação  mais  que  uma  fl.  envolvente  já 
despedaçada  onde,  em  letra  moderna,  decerto 
cópia  doutra  antiga,  se  lê:  t  Poesias  de  Fr. 
Agostinho  da  Ci'u^  ».  Numeração  moderna 
de  I  a  64  por  laudas,  abrangendo  oito  cader- 
nos somente.  A  numeração  do  punho  de  Inácio 
de  Freitas  começa  no  caderno  sétimo  até  ao 
último,  somente  por  página,  somando  sessenta 
e  quatro,  esta  última  em  branco.  Na  63  v. 
tem,  porém,  em  seguida  ao  título  Outras 
[Endechas],  que  começam : 

Já  nSo  digo  um  dia 
Nem  menos  uma  hora 
Etc.  (i). 

Fls.  em  branco  18  v.,  20  v.,  5o,  5i,  62. 

Tamanho  da  mancha  manuscrita  i66"""X95°'"' 
Peso  220  grs. 

A  caligrafia  das  poesias  é  toda  igual,  perfei- 
tamente legivel  e  correcta.  Raramente  inter- 
vém  a   correcção   de  Inácio  de  Freitas,  cuja 


recordada  penhorantemente  há  pouco  pelo  nosso  dis- 
tintíssimo maestro  Sr.  Viana  da  Mota. 

(i)  Cfr,  Inoc,  Dic.  Bibl,  iv,  pg.  85. 

(2)  Vid.  pg.  367  deste  nosso  volume. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz 


letra  pequenina,  tímida,  cheia  de  discrição,  se 
encontra,  apenas,  na  numeração  das  estrofes  e 
na  paginação  do  caderno  sétimo  em  deante, 
como  dizemos  acima.  Rebuscamos  todos  os 
papeis  daquelle  infatigável  trabalhador,  infe- 
lizmente muito  poucos  e  dispersos.  Freitas 
aproveitava  tudo  para  lançar  as  suas  notas  — 
qualquer  pedaço  de  papel,  um  velho  sobre- 
scrito, tudo  lhe  servia.  Isso  concorreria  para  se 
dispersar  muito  do  seu  labor.  O  cuidado  e 
asseio  do  apógrafo  augustiniano  dá,  porém, 
a  entender  que  êle  cuidaria  na  sua  impres- 
são, como  procedera  com  André  Falcão  de 
Resende,  cujas  obras  êle  salvou  de  perecerem 
totalmente  e  que  só  mais  tarde  publicadas 
ainda  aguardam  a  caridade  de  serem  concluí- 
das (i).  Nada  se  nos  deparou  que  nos  eluci- 
dasse sobre  qualquer  ponto.  Do  que  nos  não 
restava  dúvida  é  que  estávamos  em  presença 
dum  rico  espólio,  contendo,  sem  dúvida,  o 
melhor,  e  por  ventura,  a  quase  totalidade  das 
poesias  do  ilustre  Capuchinho,  devendo  ser 
esses  cadernos  cópia  dalgum  exemplar  oriundo 
do  convento  da  Serra  da  Arrábida.  Ele  vinha 
lançar  nova  luz  sobre  a  personalidade  do 
Poeta,  representado  apenas  na  edição  de  1771, 
que,  se  é  mesquinha  literariamente  e  merece- 
dora das  censuras  do  bibliógrafo,  muito  mais 
o  é  editorialmente  considerada,  impressa  como 


(1)  Cfr.  laoc,  Dic.  Bibl.,  viu,  pg.  62. 


46  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

está  no  papel  que  o  tempo  ameaça  tornar  ih- 
givel,  manchado  caprichosamente  e  numa  com- 
posição cerrada  que  é,  em  absoluto,  antipática 
e  irritante  a  quem  lê  (2). 

Era  uma  obra  de  justiça  reparar  tanto  des- 
mazelo.   Tê  la  hei  eu  realizado? 


Assim  como  estes  Manuscritos  não  encerram 
talvez,  tudo  o  que  saiu  da  veia  inspirada  do 
seu  auiôr,  também  nem  tudo  o  que  contêem  é 
absolutamente  dele.  Os  Quinhentistas  costu- 
mavam trasladar  para  seu  próprio  gozo  espiri- 
tual as  poesias,  que  mais  os  impressionavam, 
sem  cuidar  de  indicar  o  verdadeiro  autor.  Daí 
a  confusão  da  atribuição  rigorosa,  que  tam 
facilmente  conduzio  alguns  escritores  a  falar 
em    plágios,    sem    se    lembrarem    que    nessa 


(2)  Claro  que  nisso  não  teve  culpa  alguma  o  modesto 
Prof.  Teve-a  sim,  em  não  dedicar  maior  cuidado  ao 
Poeta,  que  queria  tornar  conhecido,  como  procedeu 
com  os  Opúsculos  latinos  de  Diogo  de  Teive,  a  Vida  de 
D  Fr.  Bartolomeu  dos  Mártires  de  Fr.  Luís  de  Sousa, 
a  Vida  do  Beato  Henrique  Suso  atribuida  ao  mesmo,  as 
Poesias  de  Diogo  Bernardes,  e  o  Compendio  da  doutrina 
Cristã  de  Fr.  Luís  de  Granada.  Cfr.  Inoc,  Dic.  Bibl , 
IV,  pg  283.  Mesquita  foi  um  operoso  trabalhador,  mas 
desajudado  de  auxílios  que  compensassem  o  seu  zelo. 
Soma  tudo  —  é  para  agradecer-lhe  o  suor  no  arrotear  de 
leiras,  onde  tantos,  melhor  afortunados,  então  e  hoje  e 
sempre,  só  deixam  criar  cardos  e  ortigas. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  47 


acusação  envolviam  os  que,  como  Camões, 
pairavam  muito  acima  dessas  pequenas  misé- 
rias inúteis  à  sua  glória.  Não  era  para  que  se 
quisessem  atribuir  o  que  era  de  outros,  mas 
porque  muito  lhes  agradava  lê  las  sempre 
deante  dos  olhos  e  retê  las  ou  comenta  las, 
que  uns  poetas  inseriam  nos  seus  cadernos 
manuscritos  poesias,  que  eram  da  lavra  de 
outros,  sem  pensarem  que  esses  textos  lhes 
sobreviviam  gerando  a  confusão,  que  era  natu- 
ral que  se  desse.  Os  leitores  téem  as  provas 
especialmente  nas  poesias  espanholas  deste 
nosso  volume,  seguidas,  no  seu  logar  compe- 
tente, das  notas  eruditas  da  Sr.*  D.  Carolina 
Michaêlis. 

Não  quisemos  inserir  outras,  como  as  Lagri- 
mas de  S.  João  Evangelista  integradas,  como 
obras  de  Bernardes,  nas  Vargas  Rimas  ao  Bom 
Jesus  desde  a  edição  de  1594,  não  obstante  no 
Cod.  Port.  virem  incluidas  entre  as  de  Fr. 
Agostinho. 

Descontando  as  que  possam  com  segurança 
ou  mesmo  dubitativamente  atribuir-se  a  outros 
poetas  —  e  que  como  tais  vam  indicadas  nas 
Notas  lançadas  no  fim  deste  volume  —  a  parte 
autêntica  é  mais  que  suficiente  para  firmar 
no  bronze  da  história  da  literatura  o  nome  de 
Fr.  Agostinho. 

Se  possuissemos  a  parte  da  sua  obra,  que 
êle  implacavelmenie  fez  desaparecer  para  sem- 
pre, não  pôde  restar  dúvida  de  que  o  seu  nome 
se  aureolaria  de  mais  radiante  fama. 


48  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Há  nas  suas  poesias  um  acento  dolorido,  o 
selo  da  tristeza  que  punha  em  tudo  que  o 
rodeava,  a  nota  do  mistério  do  àlêm^  que  lhe 
domina  e  sobjuga  a  existência,  que  faz  dessas 
poesias  verdadeiros  trenos  impregnados  de 
religiosa  piedade. 

Da  vida  passada  só  se  divisam  sombras  de 
sombras  inatingíveis. 

Canta  o  «  doce  Lima  »  como  aquele  que  o 
vio  nascer,  o  «  Mondego  e  o  Tejo  »,  que 
o  viram  crescer  e  prosperar  (i),  especialmente 
este  último  (2),  a  que  parece  ligar  recordaçõis 
de  ternura  e  de  saudade. 

Só  no  deserto  vê  remédio  para  a  sua  tris- 
teza, que  não  tem  par: 

He  mui  diferente 
A  minha  tristeza 
De  quanta  se  sente 
Noutra  natureza. 
Vamos  ver  da  Serra 
Do  monte  deserto 
O  ceo  de  mais  perto, 
De  mais  longe  a  terra  (3). 

As  alusõis  vagas  e  imprecisas  ao  seu  pas- 
sado encontram-se  principalmente  nas  Eglogas, 

(i)  Cfr,  o  princípio  da  Elegia,  pg  289. 

(2)  O  Tejo  vem  com  frequência  à  sua  pena.  Cfr. 
pgs.  22,  3o,  35,  38,  82,  associando-o  ao  pátrio  Lima  — 
pgs.  100,  loi,  104,  289.  Outras  vezes  só  fala  deste  — 
pgs.  120,  121,  i35. 

i3)  Vid.  as  Endechas  de  pg.  i63  e  comparem-se  com 
as  de  pgs.  365  e  367. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  49 

onde  pôde  vêr-se  êle  próprio  sob  o  nome  de 
Limabeu,  e  seu  irmão  Diogo  Bernardes  no  de 
Mincio. 

A  égloga  primeira  é  dedicada  à  sua  conver- 
são. O  poeta  escreve-a  )unto  a  ura  claro  rio, 
que  lhe  sugere  o  da  terra  natal.  No  solilóquio 
em  que  explica  a  mudança  psíquica  e  moral, 
que  nele  se  operou,  faz  a  apologia  da  Serra, 
como  o  único  logar  onde  pode  achar  repouso 
a  sua  alma : 

Não  falta  nos  desertos  agoa  clara ; 
A  lapa,  que  da  calma  me  defende, 
Se  ventar  ou  chover  também  me  ampara  . 

Aqui  não  temerei  a  cruel  guerra. 
Daqui  verei  no  Ceo  formosas  cores, 
Assi  me  esquecerão  cousas  da  terra. 

Na  quarta  égloga  figuram  Limabeu  e  Mincio. 
E'  este,  decerto,  o  irmão  querido,  que  começa 
como  que  repreendendo-o  pela  sua  mudança, 
tendo-o  deixado  num  isolamento,  que  não  me- 
recia : 

Companheiro  te  fui  no  sentimento, 
Nunca  me  viste  rir,  quando  choravas ; 
Menos  chorar  no  teu  contentamento. 

Com  igual  amor  tu  o  meu  pagavas. 
Isso  me  fez  sentir  não  te  lembrar, 
Que  te  partias  donde  me  deixavas. 

O  que  o  pastor  Mincio  quere  saber  é  o 
motivo  daquela   retirada  para  a  aspereza  do 

d 


5o  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

deserto,  aquele  abandono  de  tudo  —  <  cabras, 
pasto,  pastor,  cabana  e  fato  >. 

Limabeu  então  queixa-se  de  sêr  acusado  e 
perseguido  injustamente.  Um  amigo  o  atrai- 
çoou, um  amigo  que  muito  diversamente  o 
devera  tratar,  mas  que  o  difamou  com  os 
outros  pastores. 

Quem  fosse  cego  e  mudo,  que  não  visse, 
Muito  menos  sentisse  quanto  entende. 

Na  Egloga  VII  encontramos  de  novo  os 
dois  irmãos.  Fr.  Agostinho  devia  estar  ainda 
há  pouco  na  Arrábida,  como  da  leitura  desta 
poesia  se  infere,  e  parece  que  se  propu- 
nha abandoná-la  pelo  menos  temporariamente. 
Mincio  pede-lhe  que  lhe  diga  os  motivos  desse 
procedimento  aludindo  a  um  outro  pastor 
Lauro,  que  depois  vemos  figurar  na  égloga 
imediata. 

A  Egloga  XII  reveste  um  caracter  de  con- 
fidencia indecifrável.  Limabeu  dirigindo-se  ao 
irmão  diz-lhe : 

Bem  sabes  quanto  ri,  quanto  folguei 
De  cantar  e  tanger,  que  graça  tinha, 
Quantas  apostas  fiz,  quantas  ganhei 

e  alude  a  uma  personagem,  natural  do  Lima, 
de  quem  se  apartou  para  sempre,  mas  àcêrca 
de  quem  dirige  ao  irmão  a  seguinte  pregunta : 

Dize-me  que  se  fez  de  Limiana, 
Que  chorando  ficou  ó  pé  de  faia  ? . . . 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  5i 

Essa  misteriosa  Limiana  morreu,  para  ela 
voa  o  pensamento  do  monge  numa  evocação 
sublime.  Vê-se,  adivinha-se,  que  foi  ela  a 
criatura  dos  seus  sonhos,  a  mística  esposa  que 
lhe  orientou  a  vida  e  o  pensamento.  Essa  é  a 
t  santa  t,  que  uma  mesma  sepultura  de  sonho 
uniria  junta  a  ele,  sob  o  mesmo  Epitáfio  que 
lavrou  e  diz : 

Eu  vi  do  Ceo  na  terra  a  fermosura 
No  vestido  dum  pobre  peregrino 

Da  terra  para  o  Ceo  voar  segura 
Fosse  ventura  minha,  ou  seu  destino  : 
Por  minha  mão  lhe  dei  a  sepultura, 
Pela  sua  a  levou  amor  divino  : 
De  Lima  naturaes  em  Lapa  Oceana 
Se  enterrou  Limabeu  com  Limiana, 

Finalmente  Bernardes  figura  ainda  noutra 
égloga  versando  ambos  os  irmãos  o  mesmo 
tema  indecifrável. 

Diogo  Bernardes  foi  sempre  o  amigo  querido 
do  grande  solitário.  Por  sua  vêz  este  dedicava 
ao  irmão  uma  enternecida  estima.  O  Soneto 
que  lhe  consagrou  a  propósito  da  composição 
do  Lima  (i)  revela  um  sentimento  de  conten- 
tamento bem  evidente.   A  Carta  que  lhe  ende- 


(i)  Cfr.  pg.   18.    Este   Soneto  foi  publicado  como 
Introdução  do  Lima,  Lisboa,  1 596. 


52  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

reça  (i)  em  resposta  à  que  dele  recebera  (2)  é 
um  hino  de  afectos,  em  que  confessa  a  sua 
gratidão  por  tantos  conselhos  recebidos  e 
que  lhe  faz  exclamar  enternecidamente  «  meu 
Mestre !  »,  enfim  sentem-se  as  lágrimas  em 
cada  um  dos  tercetos  das  Elegias,  que  consa- 
grou à  sua  morte  (3). 

Quem  sam  as  personagens  das  demais 
Eglogas  ? 

De  positivo  nada  se  pode  afirmar.  Por 
toda  a  parte  existe  aquele  tom  de  vago  e  de 
impreciso,  que  tanto  se  presta  a  divagaçÕis  ten- 
tadoras. Inútil  é  o  trabalho  de  procurar  sempre 
sob  os  criptónimos  dos  pastores  personagens 
históricas  e  autênticas  para  servirem  as  hipó- 
teses que  formulamos.  É  bastante  lembrar 
que  os  nomes  dalguns  foram  sugeridos  ao 
Poeta  por  designaçõis  dos  locais  ou  sítios, 
que  êle  conhecia  da  vida  da  Serra,  tais  os  de 
Galapo  e  Alportuxo. 

c  A  comenda  de  Arrábida,  diz  um  escritor 
nosso  contemporâneo,  tinha  pelo  sul  o  mar, 
pelo  nascente  a  comenda  e  concelho  de  Pal- 
mela, numa  linha  de  Galapo  ao  monte  de 
S.  Francisco...»  (4).     E  «  tinham  transposto 


(i)  Cfr.  pg.  128. 

(2)  A  Carta  de  Diogo  Bernardes  é  a  vin  do  Lyma  e 
anda  publicada  a  pg.  147  da  ed.  de  176:. 

(3)  Cfr.  Elegias  IX  e  X,  pgs.  in  e  ii3.    A  primeira 
foi  inserida  nas  Rimas  Varias,  pg.  219  da  ed.  1770. 

(4)  Arrábida.. .,  cit.  1896,  pg  4. 


Fr.  Agostinho  da 'Cruz  53 

a  poria  de  Alportuche,  aonde  o  alcantilado 
da  serra  se  quebra. . . »  (2). 

E  os  dois  irmãos  figurarão  unicamente  sob 
os  nomes  de  Limabcu  e  Mincio  ?  Não  é  natu- 
ral. Tem-se  suspeitado  que  na  Egloga  V  figu- 
ram como  interlocutores  o  Poeta  (Gualbano) 
e  Fernão  Lopo  Soropita  (Laurino),  aquele 
que,  como  diz  o  título,  t  foi  reduzido  a  Reli- 
gião »,  isto  é,  convertido.  Infelizmente  nem 
nas  obras  publicadas,  nem  nas  inéditas  do 
famoso  satírico,  há  vislumbre  de  informação 
aclaradora  das  reiaçõis  mútuas  dos  dous  poe- 
tas, diferentes  em  idade,  segundo  a  suspeita 
de  Camilo  Castelo  Branco,  cerca  de  vinte  anos, 
e  muito  mais  diferentes  em  génio,  em  fantasia, 
e  em  motivos  emocionais  inspiradores. 

Nos  Manuscritos  de  Soropita  apareceram 
intercaladas  algumas  poesias  de  Fr,  Agostinho, 
como  esta  Egloga  V,  nos  do  Poeta  da  Arrá- 
bida algumas  atribuídas  a  Soropita.  Portanto 
daqui  nenhum  esclarecimento  proveio,  nem 
provirá.  E  nessa  ignorância  continuaremos, 
pois  que  os  Mss.  do  Convento  da  Arrábida 
ou  não  diziam  cousa  de  maior  monta  além  do 
que  foi  explorado  por  Mesquita  em  tempo  em 
que  tam  fácil  lhe  fora  colher  quaisquer  indica- 
çôis,  ou  realmente  continham  elementos  pre- 
ciosos para  o  estudo  do  Poeta  e  podem  consi- 
derar-se  como  irremediavelmente  perdidos. 


(2)  /*.,  pg.  7. 


54  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Nos  Códices  manuscritos  por  nós  explorados 
nada  se  nos  deparou  de  elucidativo. 

Em  parte  alguma  uma  nótula  marginal,  a 
mais  simples  cota  de  indiscrição.  Contéem 
a  transcrição  das  obras  do  Poeta  e  é  tudo 
para  a  sua  glória  e  pouco,  quase  nada,  para  a 
nossa  curiosidade. 

Todas  as  poesias  dos  Manuscritos  de  Coim- 
bra e  do  Porto  sam  de  caracter  profundamente 
religioso,  revelador  do  estado  d'alma  de  quem 
as  redigio.  Elas  acompanham  passo  a  passo  a 
vida  do  monge  penitente,  sam  um  diário  duma 
alma  de  eleição,  que  se  eleva  até  Deus  desde 
o  levantar  da  cama  (i)  até  o  recolher  à  noute 
para  dormir  (2),  entretendo  constantemente  o 
pensamento  nos  mistérios  divinos  mais  augus- 
tos, como  a  Imaculada  Conceição  (3),  a  Encar- 
nação (4),  Paixão  e  morte  de  Jesus  Cristo,  e 
mais  passos  que  lhe  dizem  respeito  (5),  e  tam- 
bém na  contemplação  das  virtudes  dos  santos, 
como  S.  João  Baptista  (6j,  S.  Francisco  (7), 
Santa  Clara  (8),  Santo  António  (9),  etc. 


(i)  Gfr.  pg.  174. 

(2)  Gfr.  pg.  184. 

(3)  Gfr.  pg.  186. 

(4)  Cfr.  pg.  187. 

(5)  Gfr.  pgs.  189,  191,  193-197,  etc. 

(6)  Gfr.  pgs.  4,  201. 

(7)  Gfr.  pgs.  16,  204. 

(8)  Gfr.  pg.  8. 

(9)  Gfr.  pgs.  14,  200. 


Fr.  Agostinho  da  Cruz  55 

A  lira  de  Fr.  Agostinho  é  impregnada  duna 
sentimento  tam  sincero  de  verdade  e  de 
naturalidade,  que  impressiona  profundamente. 
É  a  alma  dum  verdadeiro  crente,  resignado, 
compassivo,  amoravel,  que  se  nos  desvenda 
em  cada  página.  Entretanto  a  sua  obra  per- 
maneceu até  hoje  quase  esquecida  e  ignorada 
ainda  mesmo  dos  que  tinham  nos  seus  planos 
vantagem  especialíssima  em  o  conhecer.  Em 
duas  Colectâneas  modernas  consagradas  a  reu- 
nir ou  fazer  menção  de  tudo  quanto  em  Por- 
tugal e  em  todas  as  épocas  se  imprimio  em 
louvor  da  Virgem  Maria  (i)  debalde  se  pro- 
curará o  nome  de  Fr.  Agostinho,  de  cuja  pena, 
aliás,  saíram  tam  soberbos  cânticos  (2). 

E  note-se  que  em  ambos  figura  o  nome  de 
Diogo   Bernardes,  que,  como  se   vê,  não  foi 


(i)  Cfr.  Abílio  Augusto  da  Fonseca  Pinto  —  Parnaso 
Mariano,  2.*  ed.,  Coimbra,  1890,  i  vol,  xin-|-  3o4  págs. ; 
Manoel  Anaquini,  Subsídios  para  a  Bibliographia  Ma- 
rianna  em  Portugal  —  O  Génio  portugue^  aos  pés  de 
Maria.    Lisboa,  1904,  i  vol,  xiv-f-3o6  págs. 

(2)  Basta  vêr,  para  exemplo,  só  a  Canção  de  Nossa 
Senhora,  de  pgs.  273  : 

Virgem  pura,  escolhida,  honesta,  santa 
Humilde  serva,  mãe,  esposa,  filha. 
Etc. 

E  os  lindos  Sonetos  de  pgs.  186  à  Imaculada  Concei- 
ção, de  pgs.  199  à  Assunção,  e  o  Poema  em  tercetos  de 
pg.  233,  etc.  ? 


56  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

bastante  para  sugerir  o  do  querido  e  talentoso 
irmão. 

Acordará  esta  nossa  publicação  a  hora  da 
justiça  que  se  deve  ao  solitário  da  Arrábida  ? 

Desenha-se  neste  momento  por  todo  o  mundo 
a  aspiração  insaciável  duma  vida  mais  pura, 
mais  alta,  com  outro  ideal  além  do  circunscrito 
nos  horizontes  desta  vida  tam  dolorosa  de  viver 
à  hora  atual. 

A  leitura  das  Poesias,  que  preenchem  este 
volume,  leva-nos  para  muito  longe  das  misérias 
terrenas.  Sam  versos  que  téem  alma  e  fazem 
sonhar  alcandorando-nos  até  onde  se  não  sente 
o  rugir  da  fera  humana,  como  se  nos  fosse 
dado  mergulhar  naquele  indefinido  descanso,  a 
que  tanto  aspirou  o  autor  que  os  escreveu  com 
o  seu  grande  espirito  de  Poeta  e  de  Crente. 


Mendes  dos  Remédios. 


OBRAS 

DE 

FR.   AGOSTINHO    DA    CRUZ 


SONETO   I. 
A  quem  ler. 

Os  versos,  que  cantei  importunado 
Da  mocidade  cega  a  quem  seguia, 
Queimei  (como  vergonha  me  pedia) 
Chorando,  por  haver  tão  mal  cantado. 

Se  nestes  não  ficar  tão  desculpado 

Quanto  o  mais  alto  estilo  requeria, 

Não  me  podem  negar  a  melhoria 

Da  mudança,  que  fiz  d'hum  n'outro  estado. 

Que  vai  que  sejam  bem.  ou  mal  aceitos  ? 
Pois  os  não  escrevi  para  louvores 
Humanos,  pelo  menos  perigosos, 

Senão  para  plantar  em  frios  peitos 
Desejos  de  colher  divinas  flores 
A'  força  de  suspiros  saudosos. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


II. 
Ao  triste  estado. 

Passa  por  este  valle  a  primavera, 
As  aves  cantam,  plantas  enverdecem, 
As  flores  pelo  campo  apparecem, 
O  mais  alto  do  louro  abraça  a  hera ; 

Abranda  o  mar ;  menor  tributo  espera 
Dos  rios,  que  mais  brandamente  descem, 
Os  dias  mais  fermosos  amanhecem, 
Não  para  mim,  que  sou  quem  dantes  era. 

Espanta-me  o  porvir,  temo  o  passado; 

A  magoa  choro  d'hum,  d'outro  a  lembrança. 

Sem  ter  já  que  esperar,  nem  que  perder. 

Mal  se  pôde  mudar  tão  trrste  estado  \ 
Pois  para  bem  não  pôde  haver  mudança, 
E  para  maior  mal  não  pôde  ser. 


III. 
A'  Lei  de  Deos. 

Que  cousa  mais  suave,  doce,  e  branda, 
Que  nos  liberte  mais,  que  mais  releve, 
Que  guardar  huma  Lei  na  vida  breve, 
D'hum  peos,  que  por  amor  amar  nos  manda  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Qual  he  o  coração  que  não  se  abranda, 
Duro  que  pedra  mais,  frio  que  neve  ? 
Suave  o  jugo  seu,  a  carga  leve: 
Pois  ella  pende  toda  á  sua  banda  ? 

Inda  que  alma  ditosa  não  lograra, 
O  que  na  guarda  delia  está  tão  certo, 
Com  isso  só  ficava  satisfeito : 

Quanto  mais  com  tão  cedo  ver  tão  clara 

Aquella  luz  divina  de  tão  perto, 

Por  quem  he  nada  tudo  o  que  se  engeita  I 


IV. 
As  Chagas. 

Divinas  mãos,  e  pés,  peito  rasgado. 
Chagas  era  brandas  carnes  imprimidas, 
Meu  Deos,  que  por  salvar  almas  perdidas, 
Por  ellas  quereis  ser  crucificado. 

Outra  fé,  outro  amor,  outro  cuidado, 
Outras  dores  ás  vossas  são  devidas, 
Outros  corações  limpos,  outras  vidas, 
Outro  querer  no  vosso  transformado. 

Em  vós  se  encerrou  toda  a  piedade, 
Ficou  no  mundo  só  toda  a  crueza  \ 
Por  isso  cada  hum  deu  do  que  tinha : 

Claros  sinaes  d'amor,  ah  saudade! 
Minha  consolação,  minha  firmeza, 
Chagas  de  meu  Senhor,  redempção  minha. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


V. 
A  Nossa  Senhora  da  Arrábida 

Aqui,  Senhora  minha,  onde  soía 
Cantar  na  minha  leve  mocidade 
O  muito  que  de  vossa  saudade 
Desejei  d'accender  nesta  alma  fria: 

Aqui  torno  outra  vez,  Virgem  Maria, 
Desenganado  já,  mais  de  verdade. 
Pois  me  mostrou  do  mundo  a  falsidade, 
Que  a  lagrimas  comprei  quem  me  vendia. 

Conselham-me  tão  claros  desenganos 
Que  comece  de  novo  nova  vida 
Nesta  Serra  deserta,  alta,  e  fragosa ; 

Mas  são  conselhos  vãos,  leves,  humanos, 
Que  vós  nunca  quisestes  ser  servida, 
Se  não  por  puro  amor,  Virgem  fermosa. 


VI. 
A  S.  João  Baptista. 

Daquelle,  que  não  tinha  inda  pisado 
A  terra  com  seus  pés,  quando  saltava 
Nas  entranhas  da  mãi,  donde  alcançava 
O  Senhor  nas  da  Virgem  encarcerado ; 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz 


Daquelle  de  quem  Deos  foi  baptizado, 
Daqueile  que  era  voz  do  que  clamava, 
Daquelle  São  João,  que  tanto  amava 
A  Deos,  e  que  de  Deos  foi  tanto  amado, 

As  graças  infinitas,  os  favores. 
As  forças  que  lhe  deu  divino  amor, 
As  novas  liberdades,  os  poderes, 

Mal  as  podem  dizer  os  peccadores; 

Basta,  que  delle  só  diz  o  Senhor : 

«  Que  não  nasceu  maior  d'antre  as  mulheres.  > 


VII. 
Ao  mesmo  Santo. 

Nas  entranhas  da  mai  alumiado 
Da  luz,  que  nas  da  Virgem  dentro  via, 
Sentio  João  quamanho  bem  seria 
Trocar  pelo  deserto  o  povoado. 

Delle  fugindo  vai  todo  abrazado 
Do  fogo,  que  em  seu  peito  arder  sentia, 
Mais  quer  de  animaes  brutos  companhia, 
Que  ser  de  gente  humana  acompanhado. 

A  troca  foi  ditosa  em  tenra  idade, 
A  solitária  vida  he  majs  segura. 
Que  do  mundo  cruel  a  falsidade. 

Nas  pedras  do  deserto  achou  brandura, 
Nas  serpentes  da  serra  piedade, 
E  nas  pelles  das  feras  cobertura. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


VÍII. 
A  S.  João  Evangelista. 

Na  derradeira  Cêa  do  Senhor, 
João,  ceando  todos,  só  dormia 
Sobo-lo  peito,  donde  elle  sabia 
Que  não  sabia  cousa  outra  melhor. 

Naquelle  somno  achou  outro  sabor 
Mais  suave  que  quanto  se  comia, 
Que  em  fim  he  differente  iguaria 
O  repouso  de  seu  divino  amor. 

A  dormir  se  lançou  no  fogo  puro, 
Ardendo  repousou  no  meio  delle, 
Como  quem  tudo  o  mais  tinha  seguro. 

João  Evangelista  foi  aquelle, 

A  quem  disse  o  Senhor  do  Lenho  duro 

A'  Virgem :  —  que  seu  filho  era  aquelle  1 


IX. 
A  Cru\. 

Em  ti,  suave  Cruz,  inda  que  dura 
Por  ver  sangue  innocente  derramado, 
Pregados  pés,  e  mãos,  aberto  o  Lado, 
Donde  minha  esperança  se  pendura*, 


i 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Em  ti  de  piedade,  e  de  brandura 
Doce  penhor  do  penitente  errado, 
Em  ti  Christo  Jesus  dependurado 
A  salvação  do  mundo  dependura ; 

Em  ti  se  consumou  toda  crueza, 

Que  em  corações  humanos  se  accendia 

Contra  todas  as  leis  da  natureza. 

Mas  em  si  se  tornou,  em  alegria 

Da  nossa  redempção,  toda  a  tristeza ; 

Oh  Cruz  defensão  nossa,  nossa  guia. 


X. 
A  mesma. 

Oh  Cruz,  que  no  Calvário  sustentaste 
Os  membros  de  que  foste  sustentada, 
Quando,  pisados  elles,  tu  pesada 
Antes  de  lá  chegar  desconjuntaste. 

Como  sendo  instrumento  que  mataste 
Por  mãos  de  gente  ceg^i,  gente  errada, 
Não  somente  ficaste  desculpada. 
Mas  ainda  da  culpa  triunfaste. 

Se  tu  representaras  tão  somente 
A  salvação  do  mundo  resgatada 
Sem  sangue  do  Cordeiro  paciente ; 

Vira-me,  com  te  ver,  mais  consolado, 
Porque  parara  em  ver  meu  bem  presente, 
Sem  ver  nelle  meu  mal  representado. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


XI. 
A  Santa  Clara. 

Oh  Clara,  que  tão  clara  resplandeces, 
Nos  olhos  da  divina  claridade ; 
Clara  que  desterrastes  a  vaidade 
Das  vidas,  que  na  vida  favoreces : 

As  palmas  cujas  flores  oífereces 
Aquelle,  que  na  flor  da  tua  idade 
Guiou  para  si  só  tua  vontade, 
Te  dem  quantos  louvores  tu  mereces. 

Elias  a  quem  na  terra  tu  mostraste 
A  via,  que  escolheste  mais  segura, 
He  justo,  que  te  louvem,  eu  que  tema. 

Oh  Clara  que  tão  cedo  contemplaste 

Segredos  da  divina  fermosura, 

Clara,  que  das  mais  claras  foste  a  gemat 


XII. 
A  Deos. 

Que  lugar  acharei  no  pensamento 
Tão  áspero,  medonho,  triste,  escuro. 
Onde,  meu  Redemptor,  este  seguro 
De  mais  vos  offender  hum  só  momento  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Não  digo  pelo  meu  contentamento, 
Que  brando  me  faria  outro  mais  duro; 
Mas  por  não  ser  ingrato  a  amor  tão  puro, 
Que  morreu  por  me  dar  merecimento. 

Gomo  vos  servirei,  pois  vos  não  amo  ? 
Como  vos  amarei,  pois  vos  oífendo, 
E  sempre  cada  vez  mais  gravemente  ? 

Nestes  frios  suspiros  que  derramo 
Sem  servir,  sem  amar,  Senhor,  entendo 
Que  não  ha  poder  ser  viver  contente. 


XIII. 
Da  Oração. 

Doce  quietação  de  quem  vos  ama 
Em  serviços.  Senhor,  que  tanto  quanto 
Amado  sois,  tão  longe  o  fim  de  tanto, 
Subindo  mais,  e  mais,  mais  se  derrama  : 

Ardendo  por  arder  em  viva  chamma 
D'amor  do  vosso  amor,  a  voz  levanto ; 
Sinto,  suspiro,  choro,  colho,  e  planto 
Ao  som  doutra  suave  que  me  chama. 

Onde  se  vai.  Senhor,  quem  vos  offende  ? 
Donde  levais,  Deos  meu,  a  quem  vos  segue  ? 
Onde  fugir  se  pôde  huma  de  duas  ? 

Morto  por  quem  o  mata  que  pretende, 
Ou  que  extremos  d'amor  ha  que  nos  negue 
Quem  culpas  nossas  chama  oftensas  suas  ? 


IO  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


XIV. 
A  Jesus  Crucificado. 

Perdoai-me,  Senhor,  que  se  faltara 
Pôr  os  olhos  em  Vós  crucificado, 
O  menos  que  de  muito  tenho  errado, 
Noutros  maiores  erros  me  lançara. 

Triste  quanto  perdi,  e  quanto  achara 
Inda  assim  de  desculpas  carregado. 
Se  por  onde  Vós  tendes  caminhado 
Guiada  esta  alma  minha  caminhara. 

Culpado  fui  primeiro  que  nascido ; 
Engeitei  a  razão  pela  vontade; 
Amiga  do  meu  mal,  do  bem  imiga. 

Meu  Deos  por  mim  á  Cruz  offerecido, 
Alembrai-vos  da  vossa  piedade 
Tão  larga  em  perdoar,  e  tão  antiga. 


XV. 

Á  Magdalena. 

Tal  luz  á  Magdalena  alumiava 
(Fermosa  desd'antão,  dantes  tão  feia) 
Que  não  lhe  pareceu  ser  casa  alheia 
Aquella,  onde  o  Senhor  de  tudo  estava. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


E  como  quem  por  tal  o  confessava, 
Não  teme,  não  duvida,  não  receia 
Mostrar  sinaes  de  dôr,  de  que  alma  chea 
Tão  longe,  de  tão  perto  suspirava. 

Na  terra  jaz  lançada,  está  regando 
Com  lagrimas  as  plantas  do  Senhor, 
A  cuja  sombra  colhe  doce  fruito. 

Muito  lhe  perdoou,  porque  amou  muito-, 
E  muito  mais  lhe  deu  depois,  que  amor 
Em  lagrimas  de  dôr  se  foi  banhando. 


XVI 
Á  mesma. 

Diante  do  Senhor  está  lançada 
A  Magdalena  triste,  e  vergonhosa, 
Qual  na  força  do  sol  vermelha  rosa 
Dos  seus  ardentes  raios  transpassada. 

A  nova,  e  grave  dôr  lhe  tem  roubada 
( Sinal  do  que  padece  )  a  voz  queixosa ; 
Lembra-lhe  que  passou  tão  perigosa 
Vida,  da  vida  sua  descuidada. 

Os  pés  que  dos  seus  passos  foram  guia 
Em  lagrimas  banhados  alimpava 
Com  os  cabellos  de.  que  se  cubria. 

Alli  do  Redemptor,  a  quem  buscava, 

Encaminhada  foi;  porque  queria 

Que  amasse  muito  mais ;  que  tanto  amava  1 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


XVII. 
A  mesma  indo  ao  Sepulcro. 

Depois  que  não  achou  na  sepultura 
Seu  Senhor  a  fermosa  Magdalena, 
Os  seus  longos  cabellos  desordena, 
Vmgando-se  na  sua  fermosura  . 

—  Ingrata  fui,  Senhor,  fui  cega,  e  dura, 
\, Dizia)  minha  culpa  me  condena. 
Que  se  temia  dor,  tormento,  ou  pena, 
Em  que  parte  estivera  mais  segura  ? 

Se  donde  vos  deixei  não  me  apartara, 
Não  me  roubara  assi,  quem  me  roubou ; 
Tantas  forças  amor  dar-me  podia ! 

Porque  me  fui  daqui  ?  que  mais  queria 
Que  matar-me.  Senhor,  quem  vos  matou  ? 
Pôde  ser  que  comvosco  me  levara. . . 


XVIII. 
A  mudança  da  vida. 

Tempo  foi  que  pastava  neste  prado 
Bem  fora  de  cuidar  que  poderia 
Tornar  a  ver  me  nelle  inda  algum  dia, 
De  tantos  mil  cuidados  descuidado. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


O  Senhor,  que  me  trouxe  a  tal  estado, 
Quando  castigos  graves  merecia, 
Dando-me  muito  mais  do  que  pedia, 
Para  sempre  já  mais  seja  louvado  ! 

Estas  agoas  correntes,  estas  flores, 
Estes  bosques  cobertos  de  verdura, 
Os  passarinhos  nelles  escondidos, 

Aqui  lhe  dem  comigo  mil  louvores, 
Sem  fim  o  louve  toda  a  creatura, 
Não  sintam  outra  cousa  meus  sentidos. 


XIX. 

A  noite  de  Natal. 

Era  noite  de  inverno  longa,  e  fria, 
Cobria-se  de  neve  o  verde  prado; 
O  rio  se  detinha  congelado, 
Mudava  a  folha  a  cor,  que  ter  soía 

Quando  nas  palhas  de  huma  estrebaria, 
Entre  dous  animaes  brutos  lançado. 
Sem  ter  outro  lugar  no  povoado 
O  Minino  Jesus  pobre  jazia. 

—  Meu  filho,  meu  Amor,  porque  quereis 
(  Dizia  sua  Mãi )  nesta  aspereza 
Accrescentar-me  as  dores,  que  passais  ? 

Aqui  nestes  meus  braços  estareis; 
Que  se  vos  força  amor  soffrer  crueza, 
O  meu  não  pôde  agora  soffrer  mais. 


14  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


XX. 
Ao  mesmo. 

Que  saudade  d'alma,  e  que  brandura, 
Virgem  Senhora  minha,  se  vos  deve 
Em  tempo  que  paris  ó  vento,  á  neve, 
O  Creador  de  toda  a  creatura ! 

No  feno,  que  ficou  na  terra  dura, 
Pisado  de  r.nimaes,  lançado  esteve 
O  Minino  Jesus,  ah !  que  não  teve 
Casa,  berço,  lugar,  nem  cobertura ! 

Não  sou  Rei,  nem  Pastor,  que  me  appareça 
Estrella  que  me  guie.  Anjo  que  chame. 
Por  isso  a  Vós  não  vou,  de  mim  não  parto : 

E  não  tenho  cordeiros  que  oíFereça, 
Ouro,  incenso,  mirra,  amor  que  inflamme, 
Com  que  vos  visitar,  Virgem  no  parto! 


XXI. 

A  Santo  António. 

Que  louvores  direi  do  nosso  Santo 
António,  pelo  mundo  tão  louvado, 
Que  seja  seu  louvor  todo  igualado 
Com  seu  merecimento  tal,  e  tanto  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  t5 

Por  mais  livre  voar  de  tudo,  quanto 
Na  terra  tinha  já  renunciado, 
Depois  da  patna  sua  ter  trocado, 
Com  S.  Francisco  quis  trocar  o  manto. 

Assi  mais  docemente  assegurando 
Com  trocas  tão  ditosas,  tão  suaves, 
Amor,  que  por  amor  quer  que  te  deixes, 

Os  passos  vás  na  terra  conformando 
Com  Francisco,  que  nella  prega  ás  aves, 
António,  o  que  no  mar  pregas  aos  peixes. 


k 


XXII. 
A  Nossa  Senhora  da  Arrábida. 

Oh  Virgem  Mãi  de  Deos,  Senhora  minha, 
A  quem  me  soccorri,  por  quem  chamava, 
A  quem  servir  minha  alma  desejava 
Nesta  Serra  do  Ceo  vossa  vizinha. 

Tornar-me  á  saudade  que  me  vinha. 
Quando  mais  docemente  contemplava, 
Como  com  favor  vosso  caminhava, 
Daqui  donde  mais  livre  se  caminha. 

Esta  terceira  vez  que  determino 
(Se  Vós  assim  também  determinais) 
Sem  mudança  fazer  a  sepultura, 

Mostrai-vos  liberal  de  amor  divino, 
Arca  neste  meu  peito  tanto  mais, 
Quanto  mais  vos  dotou  de  fermosura. 


\6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


XXIII. 
A  nosso  Padre  S.  Francisco. 

Seráfico  Francisco,  assinalado 
Naquellas  cinco  partes,  donde  estava 
Amor,  quando  por  si  se  trasladava 
Para  mostrar  em  ti  o  seu  traslado : 

Assi  como  na  Cruz  fora  pregado, 
Assi  consigo  mesmo  te  pregava : 
Das  chagas  de  que  nella  se  chagava. 
Dessas  mesmas  te  deixa  a  ti  chagado. 

Que  seguro  te  deu  de  gloria  sua, 
Sellado  com  seu  sello,  impresso,  escrito 
Vivendo  na  vencida  carne  tua  ! 

Vencida  então  conforme  a  teu  esprito. 
Que  nú  se  apartou  delia  em  terra  nua, 
Qual  o  Senhor  da  Cruz  em  ti  bemdito. 


XXIV. 
À  saudade  de  hum  t^to. 

Que  coração  tão  duro,  secco,  e  frio 
Se  poderá  livrar  do  sentimento. 
Vendo  com  vagaroso  movimento 
Fugir  as  claras  agoas  deste  rio  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  17 

Tamanho  mal  em  tantos  males  crio, 
Que  não  fica  logar  ao  pensamento 
Para  chorar  sequer  hum  só  momento 
A  seccura,  e  dureza,  em  que  me  esfrio. 

A  corrente  das  agoas  branda,  ou  tesa, 
Mal  pôde  desfazer  minha  seccura. 
Pôde  mal  abrandar  minha  dureza ; 

A  saudade  d'alma  branda,  e  pura. 

Em  que  se  ha  de  accender  minha  frieza, 

Consiste  na  divina  fermosura. 


XXV. 

Da  Serra  da  Arrábida. 

Do  meio  desta  Serra  derramando 

A  saudosa  vista  nas  salgadas 

Agoas  humildes,  quando  e  quando  inchadas, 

Conforme  a  qual  o  tempo  vai  soprando, 

Estou  comigo  sô  considerando. 
Donde  foram  parar  cousas  passadas, 
E  donde  irão  presentes  mal  fundadas, 
Que  pelos  mesmos  passos  vam  passando. 

Oh  !  qual  se  representa  nesta  parte 
Aquella  derradeira  hora  da  vida 
Tão  devida,  tão  certa,  e  tão  incerta ! 

Em  quantas  tristes  partes  se  reparte, 

Dentro  nest'alma  minha  entristecida, 

A  dor,  que  em  taes  extremos  me  desperta ! 


i8  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


XXVI. 

A  seu  irmão  Diogo  Bernardes. 

Do  Lyma,  donde  vim  já  despedido, 
Cavar  cá  nesta  Serra  a  sepultura, 
Não  sinto  que  louvar  possa  brandura, 
Sem  me  sentir  turbar  do  meu  sentido. 

A  laã  de  que  me  vem  andar  vestido, 
Torcendo  em  varias  partes  a  costura, 
Os  pés  que  nús  se  dam  á  pedra  dura. 
Nem  me  deixam  ouvir,  nem  ser  ouvido. 

O  povo  cujo  applauso  recebeste, 
Vendo  teu  brando  Lyma  dedicado 
A  Principe  Real,  claro,  excellente. 

Louvará  muito  mais  quanto  escreveste. 
De  mim,  meu  caro  irmão,  menos  louvado,^ 
Louva  comigo  a  Deos  eternamente. 


ÉCLOGAS. 

ÉCLOGA  I. 

A  sua  conversão. 

Lançou-se  Limabeu  antre  huns  penedos 
Donde  via  correr  hum  claro  rio, 
Acostumado  a  ouvir  os  seus  segredos. 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  19 

Com  os  olhos  num  bosque  alto,  sombrio, 
A  quem  a  primavera  já  pagava 
A  perda  que  lhe  fez  o  tempo  frio. 

—  Aquillo  í  começou )  que  vos  contava, 
Plantas,  agoas,  penedos,  foi  engano; 
Já  me  desenganou  quem  me  enganava. 

Mais  foi  a  perda  sua  que  meu  damno, 

Mas  (como  dizem  )  tudo  tempo  cura, 

Pois  o  que  perde  o  mês,  não  perde  o  anno. 

Engeita-se  no  campo  a  fermosura 
Do  lírio  já  colhido,  que  não  cheira : 
Mais  ha  de  ter  o  bosque  que  verdura ! 

Inda  mal !  pois  não  foi  esta  a  primeira 
(Como  devera  ser)  que  me  levara, 
Donde  não  vira  mais  esta  ribeira. 

Não  falta  nos  desertos  agoa  clara, 
A  lapa  que  da  calma  me  defende. 
Se  ventar,  ou  chover,  também  me  ampara. 

Alli  tem  liberdade,  alli  se  estende 

O  pastor  solitário  com  seu  gado;  • 

Não  se  offende  d'alguem,  ninguém  offende. 

Não  tenho  que  fazer  no  povoado  ; 
A  razão  me  conselha  que  me  guarde, 
Eu  não  me  atrevo  nelle  andar  guardado. 

Se  escutar  sempre  quem  me  diz,  que  aguarde, 
Nunca  já  buscarei,  a  quem  me  espera ; 
E  pior  me  será  nunca,  que  tarde. 

Ainda  que  mais  males  não  tivera. 
Quem  bens  na  terra  tem,  que  ser  cativo 
Delles,  por  isso  só  fugir  devera. 


20  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Após  dum  gosto  falso,  fugitivo, 
Leve,  de  noite  vou,  cego,  ás  escuras, 
Sem  me  lembrar  que  para  morrer  vivo. 

Quebraram-se,  meu  Deos,  as  pedras  duras ; 
Mostrou  o  sol  e  lua  sentimento; 
E  não  vossas  humanas  creaturas ! 

Eu  só,  meu  Redemptor,  vos  atormento ! 
Eu  fiz  os  vossos  cravos,  cruz,  e  lança, 
Por  obra,  por  palavra,  e  pensamento. . . 

E  Vós  encheis  minh'alma  de  esperança 
Com  tão  claros  sinais  de  piedade, 
Que  quasi  já  não  sei  temer  vingança. 

Longe  está  de  sentir  suavidade 
Divina,  cá  na  terra,  quem  não  nega 
Pela  vossa,  Deos  meu,  sua  vontade. 

A  alma,  que  em  vossas  mãos  presa  se  entrega 
Não  tem  de  que  temer,  nada  recêa, 
A  névoa  deste  mundo  não  na  cega. 

Nas  lagrimas  de  dôr,  em  que  semêa, 
Colhe  suave  fruito  de  alegria, 
Saudoso  da  sua  em  terra  alhêa. 

Se  aquelles  a  quem  guerra  não  fazia 
Nenhum  dos  nossos  mores  três  imigos, 
Porque  a  serpente  então  pouco  podia : 

(Fallo  daquelles  nossos  pais  antigos, 
Que  não  lograram  inda  hum  dia  inteiro, 
Quando  livres  estavam  de  perigos), 

Que  farei  eu  de  sua  culpa  herdeiro, 
Com  tantas  sobre  tantas  nesta  vida, 
Antes  mais  propriamente  cativeiro  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Em  peccados,  Senhor,  foi  concebida, 
Em  peccados  minh'alma  foi  creada, 
De  peccados  tão  mal  arrependida ! 

Mas  pois  no  vosso  sangue  foi  lavada 
(Força  de  poderoso  amor  divino  ! ) 
He  justo  que  em  Vós  viva  confiada. 

Viestes  amostrar  ao  peregrino 
O  caminho  da  sua  natureza ; 
Querer  ir  lá  por  outro  he  desatino. 

A  carga  que  causou  minha  fraqueza 
Os  passos  me  detém,  faz-me  que  deça, 
E  quanto  deço  mais  tanto  mais  pesa. 

Não  vos  peço,  Senhor,  porque  mereça 

Graça  para  ficar  antre  esta  Serra, 

Mas  porque  Vós  quereis  que  vo  la  peça. 

Aqui  não  temerei  a  cruel  guerra ; 
Daqui  verei  no  Ceo  fermosas  cores ; 
Assi  me  esquecerão  cousas  da  terra. 

Não  colhem  sem  suar  os  lavradores  ; 
Não  nasce  sem  morrer  primeiro  o  trigo : 
Os  mimosos  não  são  para  pastores. 

O  vigiar  escusa  de  perigo, 

O  padecer  levou  muitos  á  gloria, 

Desenganado  emfim  estou  comigo, 

Que  sem  guerra  não  pôde  haver  victoria. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


ÉCLOGA  II 

Mincio,  e  navio. 

No  anno  do  Noviciado. 

Mincio. 
Trazes  mudada  a  côr,  mudado  o  rosto, 
O  coração  não  sei  se  anda  mudado  ? 

Flávio 
Eu,  Mincio,  não  nasci  para  ter  gosto. 

Mincio. 
Folgo  de  te  ver  já  desenganado. 
Ninguém  me  lia  de  tirar  de  meu  juizo: 
No  mundo' ninguém  vive  consolado. 

Huma  hora  vejo  pranto,  outra  hora  riso, 
E  muito  menos  riso  do  que  pranto, 
Emfim  rir  se  de  tudo  será  siso. 

Que  me  dá  a  mim,  que  nunca  tenha  quanto 
Eu  desejo  de  ter,  pois  que  te  vejo 
Tão  triste  com  te  ver  ter  outro  tanto  ? 

Depois  que  vim  pastar  junto  do  Tejo, 
E  vi  que  lanto  gado  não  bastava 
Para  matar  a  fome  do  desejo,  • 

Antes  cada  vez  mais  se  accrescentava. 
Disse  comigo :  —  Mincio,  aqui  não  soa 
O  som,  a  que  dançar  eu  esperava. 

Cousa  não  tenho  vista  má,  nem  boa, 
De  que  possa  tirar  honra,  ou  proveito, 
Mas  convém  que  homem  faça  de  pessoa. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


O  bem,  só  por  ser  bera,  sem  mais  respeito 
Consola  a  quem  o  faz  •,  nunca  verias 
Que  podésse  ser  máo  o  ter  bem  feito. 

Lembra-te  quantas  vezes  me  dizias. 
Que  se  de  teu  tivesses,  alguma  hora, 
Hum  pedaço  de  pão,  que  te  ririas 

De  tudo  quanto  visses  ?  pois  agora 
Que  tens  ainda  mais  do  que  sonhaste, 
Como  teu  coração  suspira,  e  chora  ? 

Flávio. 
Dize-me  tu  primeiro,  se  acabaste 
De  fallar  tantas  cousas  escusadas  ? 

Mincio. 
De  fallar  as  verdades  te  aggravaste  ? 

Flávio. 
Verdades  de  que  servem  declaradas 
A  quem  magoas  presentes  entristecem 
Na  lembrança  de  tantas  mal  lembradas  ? 

Que  se  por  estes  campos  nos  falecem 
Verdes  hervas,  e  claras  agoas,  frias, 
Peccados  nossos  muito  mais  merecem. 

Acabaram  se  as  nossas  alegrias, 
Secaram-se  os  altivos  pensamentos; 
Quantas  mudanças  em  tão  poucos  dias ! 

Deixaram  de  ventar  aquelles  ventos, 
Em  cuja  fúria  tantos  tinham  postos 
Os  seus  (já  derribados)  fundamentos. 

Mas  para  que  he  sentir  faltarem  gostos, 
A  quem  de  mim  zombava,  se  me  ouvia. 
De  quão  falsa  matéria  eram  compostos  ? 


24  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Inda  mal  porque  vemos  cada  dia 
Desejos  similhantes  doutros  tantos, 
A  quem  o  mesmo  vento  cega,  e  guia. 

Mas  pois  nós  não  podemos  curar  quantos 
Erros  o  mundo  tem,  será  melhor 
Deixarmos  tudo  a  Deos,  ou  aos  seus  Santos. 

Quero-te  dar  razão  do  rosto,  e  côr 
Mudados,  que  me  viste,  quando  vinha, 
Sinais  de  coração  cheio  de  dôr. 

Bem  sabes  que  na  vida  mais  não  tinha 
Para  me  consolar  que  hum  só  amigo, 
Tão  verdadeiro  amigo  d'alma  minha. 

Este  depois  que  não  pôde  comsigo 
Levar-me,  por  meu  mal  tão  mal  sentido, 
Fugindo  foi  de  mim  como  de  imigo. 

Disseram-me  que  estava  cá  mettido 
Junto  do  mar  Oceano  numa  serra, 
Dum  novo,  não  sei  qual,  amor  ferido. 

Por  elle  só  deixou  quanto  na  terra 
Tinha,  com  tudo  o  mais  que  ter  pudera, 
Por  elle  anda  comsigo  em  x:ruel  guerra. 

Se  não  chegara  a  vê-lo,  não  o  crera! 

Quasi  mudou  de  todo  a  natureza, 

Que  não  he  Limabeu,  mas  ferro,  e  cera. 

Nunca  se  imaginou  tal  aspereza. 
Não  digo  dos  penedos  do  deserto, 
Mas  da  fome,  do  frio,  e  da  pobreza. 

Dos  pés  até  á  cabeça  anda  coberto 
De  laã  de  alheas  cabras,  remendado 
De  mil  cores,  sem  ordem,  sem  concerto. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Traz  huma  corda  grossa,  a  que  anda  atado 
Pelo  meio,  descalço,  sem  mais  nada  •, 
Sem  bolsa,  sem  surrão,  e  sem  cajado. 

Barba,  e  cabeça  traz  toda  rapada. 
Qualquer  cousa  que  quebra,  fende,  ou  fura, 
No  seu  pescoço  a  leva  pendurada. 

Os  pés  se  por  compasso  pôr  não  cura, 
Quer  gretados  do  frio,  quer  doentes. 
Também  nelles  lhe  põem  huma  atadura. 

Não  pôde  responder  aos  mal  dizentes. 
Nem  dar  razão  de  si,  que  se  boqueja 
Atravessado  leva  hum  pao  nos  dentes. 

Os  olhos  se  alevanta,  ou  pestaneja. 
Nem  inda  para  quem  falia  com  elle. 
Hum  panno  lhe  põem  nelles  que  não  veja. 

Hum  principal  de  seis  nas  costas  delle 
De  tal  maneira  faz  soar  as  varas, 
Que  não  lhe  queiras  tu  jazer  na  pelle. 

Emfim  se  de  me  ouvir  não  te  enfadaras, 
Contara  tanto  mais  do  soffrimento. 
Com  que  tudo  padece,  que  pasmaras. 

Porque  não  fica  dor,  pena,  ou  tormento, 
De  cruel  mvenção,  qualquer  maneira. 
Que  deixe  de  softrer  hum  só  momento. 

Debaixo  de  hum  penedo  na  ladeira 

Do  monte  todos  tem  cada  hum  seu  ninho; 

Mas  o  triste  sempre  anda  na  carreira. 

Mincio. 
Basta,  não  digas  mais :  esse  caminho 
Bem  sei  adonde  vai,  e  donde  para : 
O  bom  de  Limabeu  he  Capuchinho. 


20  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Ah !  Limabeu,  Limabeu !  quem  cuidara, 
Que  do  meio  de  tantas  vaidades. 
O  Senhor  para  si  só  te  chamara ! 

Quantas  vezes  as  nossas  novidades 

Se  perdem,  como  claramente  vemos : 

Que  não  quer  Deos  que  chova  nas  herdades'. 

A  culpa  disso,  todos  nós  sabemos, 

Que  não  a  tem  os  bois,  mas  quem  semêa. 

E  por  ventura  os  mais  dos  que  colhemos. 

Não  ha  pastor  tão  néscio  que  não  crêa 
Que  nascemos,  aqui  neste  degredo. 
Desterrados  da  nossa  em  terra  alhêa. 

E  quem  viver  debaixo  do  penedo 
Como  Limabeu  vive,  he  mais  seguro; 
Pois  tudo  ha  de  acabar  ou  tarde,  ou  cedo. 

Mas  se  bens  da  minha  alma  não  procuro, 
Porque  quero  andar  eu  como  morcego, 
Que  sempre  anda  a  buscar  o  mais  escuro  ? 

Por  não  ver  o  melhor  me  faço  cego, 
E  por  mais  me  cegar  me  faço  mudo, 
E  quando  não,  mil  sem  razões  allego. 

Que  bárbaro  cruel  se  vio  tão  rudo. 
Que  deixe  de  entender  que  não  acerta 
Em  querer  dar  Jançada  em  seu  escudo  ? 

Creou  nosso  Senhor  alma  liberta. 
Conforme  as  nossas  forças  nos  obriga ; 
Que  para  todos  tem  a  porta  aberta. 

Flávio. 
Queres,  amigo  Mincio,  que  te  diga. 
De  meu  fraco  saber  o  que  comprendo? 
A  carne  sempre  da  alma  foi  imiga. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  27 

Eu  não  quero  fazer  segundo  entendo, 
Que  para  me  salvar  mais  me  releva; 
Assi  me  vou  matando,  assi  perdendo. 

Mincio. 
He  verdade  o  que  dizes,  mas  quem  leva 
Limabeu  dantre  nós,  inflamma,  accende, 
Que  no  divino  amor  todo  se  enleva  ? 

Quem  lhe  faz  tanta  força,  quem  o  rende  ? 
Quem  o  rege,  e  governa  ?  quem  o  ensina, 
Quem  o  sustenta  cá,  quem  o  defende  ? 

Quem  tal  mudança  fez  tão  repentina 
Dos  seus,  do  seu,  de  si,  de  toda  a  vida  ? 
Quem  de  cousa  mundana  fez  divina  ? 

Flávio. 
Inda  agora  ha  pastor  que  isso  duvida  ? 
Não  sabes  que  o  Senhor  a  lodos  chama, 
Todos  quer  para  si,  todos  convida  ? 

Por  todos  todo  seu  sangue  derrama. 
Pregado  numa  cruz  ?  mas  justamente 
Alcança  delle  mais  quem  o  mais  ama, 

E  por  isso  na  paga  he  diíferente  \ 
Que  não  acha  capaz  o  preguiçoso 
Das  graças,  que  merece  o  diligente. 

Mas  se  mais  algum  pouco  vagaroso 
O  seu  dourado  carro  governara 
O  filho  de  Latona  o  mais  fermoso, 

Que  versos  tão  suaves  te  cantara, 
D'alguns  que  Limabeu  agora  canta, 
Inda  que  minha  voz  pouco  soara ! 


28  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mincio. 
Antes  elle  não  leva  pressa  tanta, 
Se  não  para  que  soltes  mais  depressa 
A  tua  doce  voz  dessa  garganta. 

Inda  que  não  tivera  n'alma  impressa 
A  força  da  divina  saudade  ; 
Bastara  quanto  nisso  se  interessa. 

Flávio. 
Mandas-me  ?  negarei  minha  vontade  ? 

Meu  Deos,  que  cousa  pôde  ser  tão  forte, 
Que  género  de  morte,  que  tormento, 
Que  dor,  que  sentimento,  que  tristeza, 
Que  pena,  ou  que  aspereza  em  toda  a  vida. 
Que  numa  alma  ferida  de  verdade 
Da  vossa  saudade,  causa  espanto  ? 
Que  não  digo,  por  quanto  nisso  alcança; 
Pois  numa  só  lembrança,  inda  que  breve, 
A  muito  mais  se  atreve,  mais  deseja^ 
Mas  porque  se  despeja  tanto  mais 
No  muito  que  lhe  dais  do  vosso  muito, 
Que  contemplando  o  fruito,  do  que  espera 
Na  doce  primavera  colhe  flores 
De  tão  diversas  cores  tão  fermosas. 
Que  lírios,  e  que  rosas  de  contmo 
Semêa  amor  divino  nesta  serra, 
Onde  tanto  se  encerra,  e  se  derrama ! 
Amor  accende,  inflama,  amor  tem  tudo 
Setta,  lança,  escudo ;  dá  vida,  e  mata, 
Cativa,  desbarata,  solta,  e  prende. 
Amor  livra,  e  defende,  planta,  e  rega  ; 
Amor  freta,  e  navega,  amor  segura ; 
Amor  cria  brandura  na  dureza, 
E  converte  a  tristeza  em  alegria ; 
A  noite  escura  em  dia  fresco,  e  claro. 
Amor  he  meu  amparo,  e  meu  descanso ; 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  29 


Amor  he  brando,  e  manso,  piedoso, 
Suave,  e  saudoso,  doce,  e  puro 
Forte,  firme,  e  seguro,  verdadeiro. 
Amor  pôs  num  madeiro  meu  Senhor, 
Trespassado  de  dôr,  aberto  o  lado ; 
De  mãos  e  pés  pregado :  ai !  e  quão  tarde 
Senti  de  amor,  que  amor  por  amor  arde ! 

Mincio. 
Quão  differentes  versos  chora,  e  canta 
Quem  dos  suspiros  d'alma  anda  colhendo 
Quanto  divino  amor  semêa,  e  planta  ? 

Flávio. 
A  sombra  dos  outeiros  vai  decendo, 
O  fumo  das  aldeãs  vai  subindo, 
Quero-me  ir  com  meu  gado  recolhendo. 

Mincio. 
Antes  isso  te  vai  persuadindo. 
Que  fiques  esta  noite  aqui  comigo. 
Irte-has  pela  manhã,  o  sol  sahindo. 

Temos  do  leite,  e  nata,  e  do  pão  trigo, 
Castanhas,  e  maçans,  e  mais  da  boa 
Vontade,  de  que  sei  que  és  mais  amigo. 

Flávio. 
Não  gasto  tempo  em  vão,  Mincio,  perdoa, 
Que  nunca  faltará  boa  vontade ; 
Se  não  faltar,  então  basta  da  broa. 
Não  ha  manjar  melhor  que  liberdade. 

Sem  ver,  nem  conversar  mais  que  penedos, 

Que  só  amigos  da  minha  saudade 

São  firmes,  e  são  mudos,  não  são  tredos. 

Não  te  respondo  mais,  fica-te  embora  ! 


3o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


ÉCLOGA  III. 

Silvestre,  e  Rodrigo. 

Silvestre. 
Mais  cedo  te  buscara,  se  não  fora 
Este  gado  que  guardo  da  Madrasta, 
A  quem  querem  que  falle  por  senhora. 

Seu  avô  lho  sonhou,  pois  lhe  não  basta 
Deixar-lhe  minha  mãi  a  casa  chea, 
Se  não  inda  com  seus  filhos  se  agasta. 

Porém  se  m'ella  a  mim  muito  esquerdea, 
Pôde  ser  que  lhe  faça  huma,  e  boa, 
Que  tenha  que  fallar  a  nossa  aldeã. 

Arrenega,  Rodrigo,  da  pessoa, 
Que  primeiro  que  deça  com  cajado, 
Ha  de  buscar  a  parte  que  mais  doa. 

Rodrigo. 
E  com'ora  já  tenho  arrenegado ! 
Mas  que  lhe  hei  de  fazer,  pois  a  ventura 
Também  me  fez  pastor  de  alheo  gado. 

Aquelle  que  mais  serve,  e  mais  atura, 
Pagam-lhe  sô,  depois  de  ser  desfeito, 
Com  lhe  dizer  que  foi  sua  feitura. 

Na  requia  esteja  a  alma  de  Bieito, 

Que  fugio  de  pastar  junto  do  Tejo, 

Que  era  homem  que  queria  andar  direito. 

Levem  comsigo  á  cova  o  seu  sobejo, 

Cubice  quem  quiser  suas  valias, 

Que  nunca  mas  Deos  dê,  se  lhas  desejo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Não  faltam  cá  no  monte  as  agoas  frias. 
Verdes  hervas  por  donde  nos  lancemos, 
Quer  venham,  quer  se  vão,  noites,  e  dias. 

Silvestre. 
Se  quiseres,  Rodrigo,  que  deixemos 
De  querer  governar  vidas  alheas, 
Huns  versos,  que  homem  fiz,  aqui  cantemos. 

Rodrigo. 
Ainda  tu  de  amores  não  receas 
Cantar  versos  ao  som  do  leve  vento  ? 
Quão  pouco  colherás  do  que  sêmeas ! 

Silvestre. 
Não  sei  qual  he  tamanho  atrevimento, 
A  quem  eu  não  descubro  meu  segredo, 
Qu'  adivinhar  s'atreva  o  pensamento  ? 

Quantas  vezes  mostrei  meu  rosto  ledo, 
Quando  meu  coração  triste  chorava  ? 
E  quantas  me  movi  estando  quedo? 

Mas  se  queres  ouvir  o  que  cantava, 
Antes  que  deste  vaile  nos  partamos, 
Dirás,  quão  mal,  Silvestre,  te  julgava. 

Eu  quero-me  esconder  antre  estes  ramos 
E  tu  dalli  de  trás  daquelle  freixo 
Verás  se  nos  amores  concordamos. 

Rodrigo. 

Ora  escuta  bem  de  que  me  queixo: 
Se  tanto  vos  offendo  n'um  só  ponto, 
Poderoso  Senhor,  de  toda  a  vida, 
Que  conta  vos  darei,  pois  não  tem  conto ! 


32  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Que  conta,  ou  que  peso,  que  medida  ? 
Inda  que  menos  dias  mal  gastara 
Que  pena  ás  minhas  culpas  he  devida  ? 

Silvestre. 

Que  pena  ou  que  dôr  me  atormentara, 
Se  nunca  Deos  de  mim  íora  offendido. 
Quanto  pouco  temera,  e  quanto  amara ! 

Rodrigo. 
Quão  pouco  custa  andar  oflferecido 
A  soffrer  sem  razões,  fomes,  e  frios, 
A  quem  d'amor  divino  anda  ferido  ? 

Silvestre. 

A  quem  bosques  nos  deu  verdes,  sombrios. 
Louvores  infinitos  sejam  dados 
Dos  brutos  animaes,  peixes  dos  rios. 

Rodrigo. 

Dos  brutos,  e  das  feras,  e  dos  prados 
Aprendamos  a  dar  a  Deos  louvores. 
Pois  elles  para  nós  foram  creados. 

Silvestre. 
Pois  elle  cria  fruito,  cria  flores 
Nos  montes,  e  nos  valles,  nas  montanhas, 
Donde  nunca  se  encurvam  lavradores. 

Rodrigo. 
Donde  todo  pastor  veja  quamanhas 
Cousas  nos  ha  de  dar  em  nossas  terras, 
Quando  tantas  nos  dá  cá  nas  estranhas. 

Silvestre. 
Quando  paz  acharei  em  tantas  guerras 
Em  quantas  não  sei  que  me  desafia 
Ainda  com  viver  antre  estas  serras  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  33 

Rodrigo. 
Ainda  me  importuna,  inda  porfia 
Comigo  hum  não  sei  que,  que  nunca  cansa  : 
Ora  rosna,  ora  ladra,  ora  se  ínvia. 

Silvestre. 
Ora  me  fere  a  setta,  outr'ora  a  lança  •, 
Cansado  vivo  já  de  defenderme; 
Alas  ai  que  de  ferir-me  nunca  cansa! 

Rodrigo. 
Não  posso,  meu  Senhor,  nem  sei  valer-me; 
Peço-vos  por  quem  sois  que  me  ajudeis, 
Pois  sem  vós  está  certo  em  mim  perder-me. 

Silvestre. 
Meu  Deos,  e  meu  Senhor,  não  me  julgueis 
Segundo  vos  merecem  meus  peccados 
Abaste  que  por  elles  padeceis. 

Rodrigo. 

Quantos  pastores  andam  mal  julgados 
Aqui  por  estes  montes  ?  quem  cuidara 
Que  linhas  tu.  Silvestre,  estes  cuidados  ? 
Prouvera  a  Deos  que  o  dia  mais  durara, 
Ou  que  estivera  mais  perto  a  malhada, 
Que  esta  noite  comtigo  aqui  ficara. 

Silvestre. 
Não  falta  ( a  Deos  louvores )  na  pousada, 
De  que  fazer  a  cêa  com  bom  rosto. 
Nelle,  e  nella  te  nunca  faltou  nada  : 
—  Outro  dia  será  mais  a  teu  gosto. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


ÉCLOGA   IV 
Em  que  se  queixa  de  hum  amigo. 

Limabeu,  e  Mincio. 

Mincio. 

Se  tu  para  tão  longe  te  partias, 
Porque  razão  (  sequer )  fica-te  embora, 
Oh  Mincio,  que  me  vou,  não  me  dizias  ? 

Quanto  mais  acertado,  e  melhor  fora 
Soffrer,  e  não  mudar  o  pasto  antigo, 
Por  não  t'arrependeres  algum  dia. 

Se  cuidas  que  fugindo  d'hum  perigo, 
Noutra  parte  estarás  doutro  seguro, 
Não  te  deixes  levar  a  ti  comtigo. 

Que  nunca  foi  sinal  d'homem  maduro 

Dar  com  sua  cabeça  no  penedo,     , 
Para  depois  julgar  se  he  mole  ou  duro. 

De  que  me  serve  ser  triste  nem  ledo. 
Ter  mais  leite,  mais  lãa,  melhor  cabana, 
Se  tudo  ha  de  acabar  ou  tarde,  ou  cedo  ? 

Eu  não  sei  que  te  cega,  que  te  engana, 
Limabeu ;  pois  te  move  qualquer  vento, 
Assi  como  se  fosses  leve  cana. 

Companheiro  te  fui  no  sentimento. 
Nunca  me  vistes  rir,  quando  choravas ; 
Menos  chorar  no  teu  contentamento. 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  35 


Com  igual  amor  tu  o  meu  pagavas, 
Isso  me  fez  sentir  não  te  lembrar, 
Que  te  partias  donde  me  deixavas. 

Mas  comtudo  não  deixo  duvidar 
Que  nunca  da  ribeira  te  partiste, 
Sem  algum  bicho  grande  te  ladrar. 

Conta-me,  Limabeu,  de  que  fugiste  ? 
Quem  aos  olhos  te  tem  atravessado, 
Que  bem  se  vê  nos  teus  quanto  sentiste  ? 

Limabeu. 

Que  queres  que  te  conte  hum  magoado 
Da  setta,  que  atirou  aquelle  braço. 
Do  qual  elle  devera  ser  guardado  ? 

Passara  hum  coração  que  fora  d'aço, 
Quanto  mais  este  meu,  que  de  brandura 
E  de  amor  puro  nunca  foi  escasso ! 

Costumava  queixar-me  de  ventura 

Em  qualquer  outro  mal  ^  mas  no  presente, 

Não  ha  senão  morrer  de  magoa  pura. 

O  que  sinto  daqui  principalmente 
He  ver  que  me  faltou  agoa  num  rio 
Tão  claro  (ao  parecer)  alto,  e  corrente. 

Quero  morrer  de  fome,  calma,  e  frio 

Nesta  Serra  deserta,  onde  não  vejo 

Quem  cuida  mal  de  mim,  se  zombo,  ou  rio. 

Não  faço  força  nisto  ao  meu  desejo, 
Por  ver  que  se  secaram  quantas  flores 
Com  lagrimas  reguei  junto  do  Tejo. 


36  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


As  ribeiras  não  são  para  pastores, 
Cujas  palavras  mostram  as  entranhas, 
Cujos  olhos  não  vem  fingidas  cores. 

Mdl  poderá  fugir  de  tantas  manhas, 

De  tanto  riso  leve,  contrafeito. 

Se  não  viera  dar  nestas  montanhas. 

Eu  não  posso  entender  porque  respeito 
Me  querem  magoar;  mas  o  que  entendo, 
He  que  me  fazem  mal  sem  ter  mal  feito. 

Cabras  suas  guardei,  não  me  arrependo, 
Assaz  vingado  estou ;  porque  bem  sei. 
Quanto  cora  me  perder  ficam  perdendo. 

Aquelle  de  quem  mais  me  confiei, 
Aquelle  por  quem  mais  me  desvelava, 
A  coima,  que  não  fiz,  fez  que  paguei. 

Bem  mal  me  pareceu,  mal  suspeitava, 
Que  podesse  caber  em  peito  humano 
Cousa,  que  nem  por  sonhos  me  lembrava. 

Ou  fosse  por  malicia,  ou  por  engano. 
Ou  por  se  descuidar  de  ser  christão, 
A  mim  me  quis  ferir,  a  si  fez  damno. 

Matou  Caín  Abel,  seu  próprio  irmão; 
José  d'onze  que  tinha  foi  vendido, 
Naboc'  apedrejado  de  ambição. 

Foi  Job  de  seus  amigos  affligido 
Quando  mais  consolado  ser  devera, 
Eu  dos  meus  accusado,  e  perseguido. 

Quantas  voltas  o  triste  Mincio  dera 
Com  suas  próprias  mãos  á  sua  orelha, 
Se  de  falsos  amigos  não  temera  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  3j 

O  mesmo  nosso  Deos  nos  aconselha 
Doendo-se  de  nós,  que  nos  guardemos 
Do  lobo,  que  vestir  pelle  d'ovelha. 

Limabeu. 

E  como  conhecer,  Mincio,  podemos 
Que  possam  ser  cruéis  lobos  aquelles, 
Que  com  pelles  de  ovelhas  brandas  vemos? 

Mincio. 

Como  ?  diz  o  Senhor,  —  do  fruito  delles  : 
Dá  má  planta  máo  fruito,  bom  dá  boa : 
As  obras  mostram,  cujas  são  as  pelles. 

Limabeu. 

Nosso  Senhor  te  livre  da  pessoa, 

Que  por  fazer  dançar  mais  a  teu  gosto 

O  seu  próprio  arrabil  desencordoa. 

Mincio. 

Se  tu  me  has  de  contar  o  teu  desgosto 
(Como  deves  de  crer  que  to  mereço) 
Vai-se  fazendo  tarde,  o  sol  he  posto. 

Limabeu. 

Ando  fora  de  mim,  pasmo,  esmoreço 
Em  cuidar,  que  não  posso  consolar- me 
Com  te  contar  os  males,  que  padeço. 

O  que  posso  fazer  será  queixar-me 
Na  minha  rouca  voz.  triste,  confusa : 
Tempo  virá  que  possa  declarar-me. 

Mincio. 
Ora  começa  já,  não  dês  escusa. 


38  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Limabeu. 
Verdes  campos  do  Tejo,  claras  agoas, 
Se  para  chorar  mágoas  me  lembrais, 
Quanto  sentirei  mais  neste  meu  peito 
Hum  tamanho  defeito  de  hum  amigo, 
Que  pastava  comigo  tão  seguro ! 
Triste  de  mim !  quão  puro  se  mostrava ! 
Mai  ai!  quão  longe  estava  da  pureza, 
Que  a  minha  natureza  merecia! 
Se  mal  lhe  parecia,  bem  poderá 
Dizer-me,  que  não  era  gosto  seu 
Pascer  o  gado  meu  pela  ribeira. 
Donde  não  ha  silveira,  em  que  se  fira. 
E  quando  me  não  vira  sepultar, 
Para  nunca  tornar  a  povoado, 
Então  de  mim,  do  gado  se  vingara, 
E  não  me  difamara  com  pastores. 
Que  não  conhecem  flores  penduradas 
D'amizades  fundadas  nas  divinas. 
Tanto  podem  malinas  creaturas. 
Que  por  fazer  escuras  as  estrellas, 
Dizem  que  falta  nellas  claridade ! 
Pouco  vai  a  verdade  dos  pequenos ! 
Tudo  nelles  vai  menos;  a  cubica 
Em  lugar  da  Justiça  reina  agora. 
Ah !  quanto  melhor  fora  padecer 
Mil  mortes,  que  não  ver  nossos  vizinhos 
Por  tão  tortos  caminhos  possuir, 
Roubar,  e  destruir  honras,  e  vidas ! 
Assaz  de  destruidas  nos  ficaram 
Nos  poucos  que  escaparam  dos  imigos. 
Quantos  feitos  antigos,  que  façanhas 
Por  terras  tão  estranhas  semeadas 
Vemos  já  sepultadas  pelas  mãos 
Dos  filhos,  dos  irmãos,  em  tempo  breve ! 
Assim  paga  quem  deve !  justa  pena 
De  seu  peccado  ordena,  quem  deseja 
Que  seu  próximo  seja  perseguido, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  39 

Desprezado,  abatido  injustamente ! 
Este  nial  não  se  sente,  chora,  e  geme. 
De  quem  a  Deos  não  teme ;  assi  vai  tudo ! 
Quem  fosse  cego,  e  mudo  que  não  visse, 
Muito  menos  sentisse,  quanto  entende! 
Do  pouco  que  me  rende  meu  juizo 
Julgo  por  grande  aviso  sepultar-me 
Aqui,  donde  buscar-me  ninguém  venha. 
Não  falta  aqui  da  lenha  para  o  frio, 
Agoa  clara  no  rio  alto,  e  suave. 
Que  beba,  em  que  me  lave,  contemplando 
Gomo  se  move  brando  n'uma  parte, 
E  noutra  se  reparte  furioso. 
Tornando  vagaroso  para  cima. 
Como  murmura,  e  lima  a  pedra  dura, 
E  como  se  pendura  o  ramo  verde ; 
Como  seus  raios  perde  antes  da  tarde 
O  sol,  quando  mais  arde  d'outra  banda. 
Por  antre  a  folha  branda  o  passarinho 
O  seu  redondo  ninho  anda  escondendo, 
Mil  mudanças  fazendo  com  seu  canto, 
A  cujo  som  levanto  meu  esprito. 
Choro,  suspiro,  e  grito :  Meu  Senhor, 
Que  morre  por  amor  de  quem  o  mata  ! 
Ah !  gente  dura,  ingrata,  gente  cega.  • 
Que  prende,  accusa,  e  prega  n'um  madeiro 
Hum  tão  manso  Cordeiro,  antre  ladrões ! 
Ah!  cruéis  corações!  crueza  minha! 
Adonde  triste  tinha  o  pensamento 
Qual  outro  sentimento,  quaes  aggravos 
Se  não  Coroa,  e  Cravos,  Lança,  e  Cruz, 
Vossa  morte,  e  paixão,  doce  Jesus. 

Mincio. 
Quantas  mercês  recebes  do  Senhor! 

Limabeu. 

Ainda  muitas  mais  do  que  imaginas. 


jfjO  Obras  de  Fr,  Agostinho  da  Cruz 

Mincio. 
Que  posso  imaginar  do  seu  amor, 

Se  não  que  rosas  são  antre  as  boninas 
As  injustas  cruezas  dos  mortaes, 
Para  mais  apurar  graças  divinas  ? 

Não  vemos  nós  nos  seus  outros  sinaes 
Mais  claros,  mais  seguros,  nem  mais  certos^ 
Para  de  cada  vez  arderem  mais  ? 

Caminhos  são  do  Ceo  na  terra  abertos, 
Por  onde  mais  seguro  hum  pastor  anda, 
Sem  se  mover  daqui  destes  desertos. 

Limabeu. 
Nós  temos  de  passar  esia  agoa  branda 
Lá  por  cima  d'um  tronco  d'um  salgueiro. 
Que  desta  s'encurvou  áquella  banda : 

Vamos  cantando  ao  som  deste  ribeiro. 
Quanto  lastima,  e  fere  hum  peito  ingrato;. 
E  como  acaba  em  fim  por  derradeiro, 
Cabras,  pasto,  pastor,  cabana,  e  fato. 


ÉCLOGA  V. 

Do  tempo  que  trouxe  hum  a  Religião. 

Gualbano,  e  Laurino. 

Gualbano. 
Que  buscas  por  aqui  por  esta  Serra, 
Que,  segundo  o  que  julgo,  vás  errado  ? 

Laurino. 
Antes  quem  cedo  julga  ás  vezes  erra. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  41 

Gualbano. 
Perdoa-me  se  tenho  mal  julgado. 
Que  não  me  pareceu,  que  tomarias 
Mal  folgar  de  te  ver  encaminhado. 

Laurino. 
A  quem  já  caminhou  tão  longos  dias 
He  néscio  quem  mostrar  quer  a  estrada  : 
Qu'a  mudança  do  tempo  muda  as  vias. 

Gualbano. 
Mais  néscio  he  quem  traz  b-anqueada 
De  tão  poucos  cabellos  a  cabeça, 
E  dá  resposta  tão  mal  ensinada. 

Laurino. 
Ora  não  ha  ninguém  que  se  conheça  : 
E  de  quantos  mais  pretos  essa  tua 
Coberta  te  parece  que  appareça  ? 

Gualbano. 
Cada  hum  lá  se  avenha  com  a  sua. 
Que  cor  não  tão  somente,  mas  eíTeito 
Muitas  cabeças  brancas  tem  da  lua. 

Laurino. 
Paliemos,  como  dizem,  a  bem  de  feito: 
Porque  me  perguntaste  que  buscava  ? 
Ou  que  te  vai,  que  vá  tono,  ou  direito  ? 

Gualbano. 
Queres  saber  porque  te  perguntava  ? 
Por  ver  s'era  conforme  o  meu  desgosto, 
O  que  subir  a  Serra  te  forçava. 

Laurino. 
Tão  claro  se  descobre  no  meu  rosto 
O  que  no  coração  trago  encuberto  ? 
Pouco  diftere  a  tarde  do  sol  posto. 


42  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Gu^lbano. 
Quanto  mais  que  ninguém  busca  o  deserto, 
Em  quanto  lhe  parece  que  a  tristeza 
Seu  coração  não  mostra  descuberto. 

Da  magoa,  em  que  aprendi  esta  certeza 
Não  me  pude  livrar  se  não  deixando 
Nas  suas  próprias  mãos  a  natureza. 

Assi  me  fui  de  todo  acostumando 
A  tudo  quanto  quis  fazer  de  mim, 
Que  já  agora  me  fica  governando. 

Laurino. 
Bem  fora  de  contar  porque  me  vim 
Do  campo  para  a  Serra  agora  vinha ; 
Nem  menos  o  porque  me  desavim. 

Mas  o  que  está  por  vir  mal  se  adivinha  \ 
Posto  que  quem  no  mato  vai  atento, 
Como  desatentado  não  s'espinha. 

Folgara  de  saber  o  teu  intento 
Teu  nome,  tua  vida,  onde  nasceste, 
E  se  moras  aqui  sempre  d'assento  ? 

Gualbano. 
He  possivel  que  tu  não  conheceste, 
Laurino  amigo  meu,  quem  te  conhece  ? ! 

Laurino. 

Valha-me  Deos  que  assi  te  desfizeste ! 

Gualbano. 
Não  passa  tempo  em  vão,  nunca  s'esquece 
De  fazer  mil  mudanças,  mil  extremos : 
Hum  dia  nos  alegra,  outro  entristece. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  43 

Laurino. 
O'  pé  deste  rochedo  renovemos, 
A'  vista  destas  agoas  do  Oceano, 
Quanto  cantámos  já,  quanto  tangemos. 

Com  tanta  perda  nossa  tanto  damno, 
Com  tanta  sem  razão,  tamanha  inveja ; 
Queres  que  tanja,  e  cante  hum  peito  humano  ? 

[Gualbano.] 
Tu  vês  algum  pastor,  que  senhor  seja 
De  comer  o  cabrito,  que  lhe  nasce. 
Livre  da  lingua  má  lhe  pôr  vareja  ? 

Do  que  dentro  do  seu  serrado  pasce, 
Lhe  faz  pagar  a  coima  quem  inventa 
Armadilha  a  seu  gôsio  com  que  cace. 

A  terra,  já  não  sei,  como  sustenta 
Tão  depravada  gente,  tão  malina. 
Tão  mal  acostumada,  tão  praguenta. 

Ora  se  fazem  aves  de  rapina, 
Ora  lobos  cruéis,  orá  serpentes. 
Monstros  que  dos  bons  tem  fome  canina. 

Os  vizinhos  da  porta,  os  meus  parentes 

No  tempo  em  que  tusqueio,  ordenho,  e  queijo 

Aguçam  contra  mim  unhas,  e  dentes. 

Laurino. 

Também,  amigo  meu,  eu  como,  e  visto 
Do  suor  de  meu  rosto,  noite,  e  dia, 
E  reparto  com  quem  murmura  disto. 

E  já  do  mal  o  menos  tomaria 
Levarem  tudo  já  por  força  ou  manha, 
Não  façam  da  minha  honra  iguaria. 


44  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Deixem-m'aqui  viver  nesta  montanha, 
Matem-m'á  fome,  e  sede  na  fazenda, 
Pois  o  tomar  o  alheio  não  s'estranha. 

Mas  já  que  isto  não  pôde  ter  emenda, 
Fique-se  para  o  dia  do  juizo : 
Quero  quietação,  e  não  contenda. 

Gualbano 
Se  queres  que  fallemos  mais  de  siso, 
Nota,  Laurino,  bem  o  que  te  digo, 
Olha  por  onde  vou,  que  terra  piso. 

Eu  sou  o  que  no  mal  sou  mais  comtigo ; 
Os  meus  peccados  são  causa  de  tudo; 
Eu  faço  todo  o  mal  a  mim  comigo. 

Se  surdo  me  fizer,  se  cego,  e  mudo 
A  quanto  succeder,  e  no  meu  braço 
Trouxer  a  paciência  por  escudo; 

Se  do  mundo  quiser  fazer  retraço, 
E  folgar  que  de  mim  o  mundo  faça, 
Que  Imgua  temerei,  que  setta,  ou  laço  ? 

Laurino. 

Não  ha  mais  que  fatiar,  mas  muita  graça 
Ha  mister  do  Senhor  para  comprar 
Isso,  que  nunca  vi  vender  na  praça. 

Assi  me  queres  tu  santificar 
Vestido  nesta  minha  fraca  pelle. 
Que  não  sinta  quem  nella  me  picar? 

Gualbano. 
Não  duvides  que  tudo  pôde  aquelle 
Que  nas  mãos  d'hum  Senhor  preso  s'entrega, 
Que  preso,  e  morto  foi  por  amor  delle. 


I 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Quem  todos  seus  desejos  Nelle  emprega 
Sem  querer  mais  fallar,  vêr,  nem  ouvir, 
Inda  bem  não  semêa,  quando  sega. 

Laurino. 
Confesso  que  bem  posso  desistir. 
De  tudo  quanto  tenho  nesta  vida, 
Mas  não  sei  como  possa  não  sentir. 

Gualbano. 
Antes  o  que  não  sente  isto,  duvida, 
E  não  quem  )á  sentio  quanta  duçura 
Nas  suas  cousas  Deos  tem  escondida. 

A  dureza  converte-se  em  brandura, 
Florece  em  todo  o  tempo  a  primavera, 
Torna-se  em  claro  dia  a  noite  escura. 

Ah!  se  ne$se-teu  peito  s'accendera 
Huma  faisca  só  do  amor  divino. 
Quão  docemente  em  si  te  convertera ! 

Não  cuides  que  máo  fado,  ou  máo  destino, 
Estrella  em  que  nasceste,  alegre,  ou  triste 
Faz  hum  pastor  ditoso,  outro  mofino. 

Na  vontade  de  Deos  tudo  consiste: 
Quem  não  lhe  resistir  será  ditoso. 
Desditoso  será  quem  lhe  resiste. 

Laurino. 

Eu  nunca  duvidei  que  poderoso 
Fosse  nosso  Senhor,  mas  de  mudança 
Tão  milagrosa  estava  duvidoso. 

Gualbano. 
O  que  muito  trabalha,  muito  alcança; 
E  quanto  mais  alcança  mais  trabalha, 
E  quanto  mais  trabalha  mais  descansa. 


46  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Primeiro  o  verde  campo  se  retalha, 
Que  faça  o  lavrador  a  sementeira ; 
Antes  que  colha  o  trigo,  sega  a  palha. 

A  negra  violeta,  porque  cheira, 
Colhemos  antre  as  mais  ervas  do  mato: 
Seca-se  o  lírio  branco  na  ribeira. 

Laurino. 
Bem  sei  que  não  venderas  tão  barato 
O  que  tão  caro  custa,  se  tiveras, 
Ainda  por  deixar  cabana,  e  fato. 

Gualbano. 

Bem  sei  que  tu  também  s'ora  quiseras, 

Poderias  deixar  fato,  e  cabana, 

E  fazer  bom  barato  do  que  esperas. 

Laurino. 

Eu  não  deixo  de  ver  o  que  m'engana, 
E  com  muito  mais  claros  olhos  vejo 
Aquillo  com  que  o  mundo  desengana. 

E  sabe  Deos  de  mim  quanto  desejo 

Acabar  de  perder  a  saudade 

A  quantos  verdes  campos  rega  o  Tejo! 

Mas  não  poder  lograr  a  suavidade, 
Que  Deos  reparte  só  com  seus  amigos 
São  culpas,  que  plantou  a  mocidade. 

Eu  fiz  tão  poderosos  meus  imigos. 
Que  só  nosso  Senhor  pôde  livrar-me 
De  laços  tão  futis,  e  tão  antigos. 

Mas  se  ora  tu  quiseres  ajudar-me 
Com  tuas  orações,  rjão  desconfio, 
Que  venha  ainda  comtigo  a  conformar-me, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  47 

Não  temendo  soffrer  calma,  nem  frio, 
Fome.  sede,  nem  dor,  trabalho,  ou  pena, 
Pois  basta  herva  do  campo,  agoa  do  rio. 

Gualbano. 
Inda  que  Christo  a  Martha  não  condena 
Occupada  em  serviço  differente, 
Diz  que  escolheu  melhor  a  Magdalena. 

Tu  podes  fazer  bem  a  muita  gente, 
E  grangear  o  teu  sem  damno  alheio, 
E  salvar  te  vivendo  farto,  e  quente. 

Mas  testemunha  he  Deos,  quanto  receio 
Desta  tão  larga  vida  a  conta  estreita. 
Posto  que  menos  quente,  farto,  e  cheio, 

Se  mais  tira  da  barra  quem  mais  deita, 
Que  será  lá  no  Ceo,  donde  se  paga 
Cento  por  hum  do  que  por  Deos  s'enjeita  ? 

Laurino. 

Mal  se  pôde  curar  a  mortal  chaga 
Reputando  a  triaga  por  peçonha, 
E  peçonha  fazendo  da  triaga. 

A  carne  bem  sabemos  que  não  sonha. 
Se  não  no  com  que  mais  o  nosso  esprito 
Se  turbe,  desordene,  e  descomponha. 

Amostras  me  por  obra  o  que  tens  dito. 
Porque  deixar  quiseste  quanto  tinhas 
De  puro  coração,  firme,  contrito. 

Pisas  com  pés  descalços  as  espinhas, 
Morde-te  o  corpo  a  lãa  de  varias  cores, 
E  não  te  dá  que  o  ponto  amostre  as  linhas. 


48  Obras  de  Fr.  Agosiinho  da  Cruz 

Divinos  pensamentos  dos  amores, 

De  que  teu  coração  anda  ferido, 

Nos  ramos  dos  salgueiros  darão  flores. 

Gualbano. 
Ora  pois  tanto  tens  já  compreendido, 
Grave  culpa  será  não  te  ficares, 
Donde  não  ficarás  mal  do  partido. 

Laurino. 
Se  tu,  com  ser  qual  vês,  me  aconselhares 
Que  fique,  eu  fico,  e  faço  o  que  me  mandas, 
E  muito  mais  de  quanto  me  mandares. 

Gualbano. 
Anda,  que  tu  verás  como  desandas 
No  mal,  e  desandando,  como  corres, 
Correndo,  como  voas,  como  abrandas 
A  vida,  com  que  vives,  quando  morres. 


ÉCLOGA  VI 

A  morte  de  hum  amigo. 

Limabeu. 
O  meu  cordeiro  branco  que  saltava 
O'  som  da  minha  frauta,  ah  I  meu  cordeiro! 
Tão  branco  como  o  leite,  que  mamava, 

Emquanto  vigiava  o  gado  alfciro, 
Huma  águia  mo  levou  atravessado 
Nas  unhas,  lá  de  trás  daquelle  outeiro. 

Ah  !  fortuna  cruel,  ah  !  cruel  fado  1 
Que  se  de  cruéis  lobos  me  vigio, 
Das  aves  de  rapina  sou  roubado. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  49 

Se  nisto  ha  de  parar  todo  o  que  crio, 
Como  já  succedeu  da  minha  corça, 
Que  se  afogou  naquelle  negro  rio  \ 

Convém  que  a  natureza  faça  força ; 
Porque  não  se  oífereça  gosto  humano, 
Que  primeiro  que  venha  o  não  retorça. 

Que  maior  confusão,  que  mór  engano 
Ao  triste  coração,  que  se  affeiçoa 
Para  pagar  tributo  do  seu  damno  ? 

O  simples  passarinho  que  se  escoa 
Do  visco  em  que  cahio  incautamente, 
Com  menos  penas  foge,  menos  voa. 

Deixei  de  conversar  humana  gente 
Para  me  affeiçoar  cá  no  deserto 
A  brutos  animais  mais  brutamente. 

Com  que  composição,  com  que  concerto, 

Sobre  que  saudades  adormeço, 

Se  com  tão  leves  cousas  me  desperto! 

Como  posso  chegar,  se  não  começo 
Quando  começarei  como  desejo  ; 
Ou  como  subirei,  pois  sempre  deço  ? 

Se  qualquer  leve  cousa  me  faz  pejo 
Para  accender  no  peito  amor  divino, 
Porque  de  tudo  já  me  não  despejo  ? 

Assi  convém  valer-me  de  contino; 
Assi  fortalecer  minha  fraqueza, 
Que  não  sinta  descuido  repentino. 

Assi  soprar  de  novo  esta  frieza, 

Atiçar  no  madeiro,  onde  se  atêa 

O  fogo,  que  desfaz,  todo  em  pureza. 


5o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Nasci  para  lavrar  na  terra  alheia, 
Terra  da  maldição,  de  Deos  maldita, 
De  cardos,  e  de  espinhos  sempre  cheia. 

Tenta,  move,  perturba,  afaga,  incita 
A  buscar  o  pior,  o  mais  nocivo, 
Não  deixa  repousar  esta  alma  afflita. 

Nesta  contradição,  neste  incentivo 

De  males,  que  me  rende  a  minha  herdade, 

Quasi  me  sinto  já  como  cativo. 

Mas  pois  a  verdadeira  liberdade 
Depende  de  trazer  o  pensamento 
Acceso  na  divina  saudade; 

De  tudo  o  que  me  fôr  impedimento 
Para  poder  lograr  hum  bem  tamanho, 
Determino  fazer  apartamento. 

Experiência  tenho  do  que  ganho 

Essas  vezes,  que  saio  da  cabana, 

Pois  que  no  campo  limpo  inda  m'arranho. 

Muito  pequena  cousa  turba,  e  dana 
Huma  composição  clara,  e  serena, 
Emquanto  respirar  na  vida  humana ! 

Foge  do  povoado  a  Magdalena, 
Vai  fazer  no  deserto  vida  nova 
Depois  de  ter  perdão  da  culpa,  e  pena. 

Alli  mettida  dentro  numa  cova 
Chora,  suspira,  geme  noite,  e  dia  \ 
D'uma  noutra  aspereza  se  renova. 

Procure  quem  quiser  a  companhia, 
Branda  conversação  d'outros  pastores, 
Que  só  me  quero  a  mim  por  outra  via. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  5i 

Muitas  capellas  fiz  de  muitas  flores 
Compassando  nos  olhos  a  pintura 
Belia,  por  variar  fermosas  cores. 

Escolhendo  da  fruta  a  mais  madura 
Pelos  bosques  agrestes  m'espinhava, 
Deixando  o  gado  meu  posto  em  ventura. 

Do  louro  laparinho  que  tirava, 
O  tralhão  que  cahia  na  costella, 
O  tordo  que  na  vara  se  enforcava. 

O  pombo  que  cevava  na  courella ; 
A  perdiz  que  picar  vinha  na  lousa, 
Ou  metter  o  pescoço  pela  tela. 

Emfím  que  naò  colhi,  nem  cacei  cousa, 

Que  para  dar  não  fosse;  mas  quem  rega 

Plantas,  a  cuja  sombra  não  repousa, 

Não  deixa  de  pagar  quão  mal  se  emprega. 


ÉCLOGA  VII. 

Da  mudança  da  Arrábida. 

Libameu,  e  Mincio. 

Mincio. 
Eu  tenho  para  mim  ( segundo  as  queixas, 
Que  na  Mata  do  Lobo  me  contaste ), 
Que  não  sem  causa  agora  a  Serra  deixas. 

Mas  ha  tão  pouco  tempo  que  chegaste, 
Que  darás  que  fallar  lá  na  Ribeira 
De  quam  cedo  na  Serra  te  enfadaste. 


52  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Libameu. 
Bem  sei  que  cada  hum  que  diz  da  feira, 
Como  nella  lhe  vai ;  e  que  não  diga, 
Não  falta  quem  do  bem  mal  dizer  queira. 

Justa  desculpa  tem  o  que  se  obriga 
A  fazer  a  vontade  do  que  manda  \ 
Que  quem  bem  obedece  não  periga. 

Acostumei-me  d'uma,  e  d'outra  banda 
A  repousar  de  noite  na  cortiça, 
E  de  dia  a  comer  toda  a  vianda. 

Nem  ter,  nem  valer  mais  me  faz  cubica : 

Tanto  me  dá  que  vá,  como  que  venha: 

Por  mais  que  este  me  assopra,  estoutro  atiça. 

Não  tenho  sobre  que  me  desavenha. 
Nem  de  que  contender  muito,  nem  pouco ; 
Ora  tenha  razão,  ora  não  tenha. 

Eu  já  para  cantar  me  sinto  rouco; 
E  posto  que  não  fora,  me  fingira, 
Fingira-me  de  todo  cego,  e  mouco. 

E  quando  por  taes  meios  não  sentira 
Poder-me  quietar  mais  facilmente, 
De  buscar  outros  mais  não  desistira. 

Mincio. 
Ainda  que  não  fico  descontente 
Dessas  contas,  que  fazes  tão  bem  feitas, 
Como  servo  de  Deos,  como  prudente, 

Folgara  de  saber  o  que  suspeitas 
(Se  se  pôde  dizer)  desta  mudança. 
Que  contra  natureza  alegre  aceitas  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  53 


Libameu. 

Tu  cuidas  que  me  pesa,  ou  que  me  cansa, 
O  que  tenho  por  vida  ha  tantos  dias  ? 
Ou  que  ponho  meu  gosto  na  balança  ? 

Não  vemos  nós  seccar  plantas  sombrias, 
As  flores,  as  boninas  pelos  prados  ? 
Perder  o  uso  seu  as  agoas  frias  ? 

Não  vemos  abater  altos  estados? 
Não  vemos  levantar  os  abatidos, 
E  tornar  a  abater  os  levantados  ? 

Não  vemos  quanto  valem  os  validos, 
Que  não  valiam  mais,  e  por  ventura 
Menos,  que  seus  vizinhos  conhecidos  ? 

Não  pôde  ser  maior  desaventura, 
Que  não  saber  fugir  de  hum  fugitivo 
Mundo,  que  em  si  não  tem  cousa  segura. 

Bem  sabem  de  que  trato,  e  de  que  vivo; 
Com  que  folgo,  que  busco;  e  que  pretendo. 
De  cuja  natureza  me  cativo. 

A  causa,  que  perguntas,  não  defendo : 
Faça  quem  mais  puder  melhor  seu  fato. 
Que  isso  não  me  descose  o  meu  remendo. 

Cem  mil  virtudes  tem  hervas  do  mato 
Para  curar  cem  mil  enfermidades  •, 
Huma  não  podem  só  d'um  peito  ingrato. 

Rogo-te,  amigo  meu,  que  não  t'enfades 
De  ouvir  a  confusão  deste  meu  canto ; 
Que  a  dor  me  destruio  as  saudades. 


54  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mincio. 
Eu  tenho  padecido,  e  visto  tanto 
Desse  mal  incurável,  que  me  contas, 
Que  da  torpeza  delle  não  me  espanto. 

Trago  também  de  longe  minhas  contas 
Feitas  para  soífrer  qualquer  combate 
D'outros,  e  deste  só  que  agora  apontas. 

Folgara  de  saber  já,  por  remate, 
Se  tiveste  com  Lauro  desavença  ? 
Porque  também  sobre  isso  houve  debate. 

Libameu 
Quem  bem  considerar  a  differença, 
Que  vai  de  nós  a  Lauro,  entenderia, 
Que  tomo  de  fallar  larga  licença. 

O  que  imitar  não  sabe  a  melodia 
Dos  doces  passarinhos  \  porque  imita 
O  rouco  murmurar  da  fonte  fria  ? 

De  ter,  ou  de  não  ter  com  Lauro  dita 
Todos  podem  julgar  a  seu  prazer; 
Mas  o  seu  pelo  meu  nãp  se  limita. 

Alembra-me  que  já  lhe  ouvi  dizer, 
Que  folgava  comigo  lá  na  Serra; 
Mas  o  que  fôr,  será,  se  houver  de  ser. 

Obrigação  lhe  tenho  em  qualquer  terra 
Para  pedir  a  Deos  que  com  Liana 
(Liana  que  lhe  fez  tão  cruel  guerra) 

Logre  conformidade  soberana, 
Ambos  a  gosto  seu,  e  tantos,  tantos, 
Que  excedam  quantos  ha  na  vida  humana. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  55 

Excedam  seus  intentos  todos,  quantos 
O  ceo  na  terra  apura ;  e  em  tal  estado, 
Antes  de  lá  subir  se  vejam  santos. 

Confesso  que  fui  sempre  aífeiçoado 
A  solitários  bosques  do  deserto, 
Que  ensinam  a  viver  desenganado. 

Do  portal  da  choupana,  que  coberto 
Tinha  de  hum  verde  louro,  me  assentava 
A  ver  o  largo  mar  ao  longe,  ao  perto. 

D'um  valle  noutro  valle  caminhava 
Até  á  Lapa  de  Santa  Margarida, 
Donde,  para  comer,  peixes  pescava. 

Andava  sustentando  a  pobre  vida 
Minha,  sem  murmurar  da  vida  alheia  ; 
Por  onde  sinto  mais  esta  partida. 

Mincio. 

Alma,  que  no  deserto  se  recrêa, 

Nas  saudades  delle  se  sustenta, 

Das  quaes  recolhe  mais  quem  mais  semêa. 

Sabe  Deos  quanto  a  mim  me  descontenta 
A  má  repartição  do  que  reparte. 
Ou  seja  na  bonança  ou  na  tormenta! 

Desconsolar-se  pôde  numa  parte, 
O  que  noutra  qualquer  se  consolara. 
Do  qual  desconsolado  outro  se  parte. 

Finalmente  que  nisto  se  declara 

Aquelle  verdadeiro  adagio  antigo : 

Que  quando  Paulo  enferma,  Pedro  sara. 


56  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Bem  se  sabe  de  ti  que  és  mais  amigo 
Da  Serra  que  do  campo,  inda  que  colhas 
Silvestre  fruito  nella,  e  nelle  trigo. 

O  que  te  libertar  para  que  escolhas 

Assaz  de  ganho  fica  ;  pois  não  queres 

Os  fruitos,  que  outros  querem,  mas  as  folhas. 

Comtudo  se  na  Serra  pretenderes 
Lograr  quietação  com  mais  cautella, 
Convém  que  nas  palavras  te  temperes. 

Dizendo  cem  mil  males  dos  bens  delia, 
E  dos  males  do  campo  bens  sem  conto : 
Então  degradar  te-ham  delle  para  ella. 

Libameu. 

Como  queres  que  esteja  sempre  a  ponto 

Para  dobrar  a  minha  singeleza. 

Pois  não  coso  remendos  com  posponio  ? 

Por  não  contrafazer  a  natureza. 
Sinto  tornar  a  ver-me  antre  pastores, 
Cuja  conversação  tanto  me  pesa. 

Elles  querem  colher  no  campo  flores : 
Eu  medronhos  na  Serra  antre  penedos  ; 
Assim  desconcordamos  nos  humores. 

Elles  no  povoado  cantam  ledos 

Os  gostos  de  que  vivem  ;  eu  chorando 

Por  acabar  debaixo  dos  rochedos. 

Mas  pois  tudo  se  vai  contrariando 

Na  Serra",  nem  na  terra  buscarei 

Cousa,  que  o  tempo  possa  andar  mudando. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  5j 

Por  donde  quer  que  fôr,  levantarei 
Os  meus  olhos  ao  Ceo,  de  cuja  vista 
Aquellas  saudades  colherei, 

Coni  que  possa  fazer  nova  conquista 
Para  me  consumir  no  fogo  puro 
D'amor,  de  cujo  amor  divino  vista 

Est'alma,  caminhando  mais  seguro, 
Que  buscando  repouso  nas  montanhas  ; 
Pois  no  gosto  da  terra  me  aventuro 

A  não  poder  lograr  cousas  tamanhas 
Do  Ceo,  em  toda  a  parte  tão  fermoso, 
Que  pôde  penetrar  duras  entranhas. 

Mincio. 
Ditoso,  Libameu,  ah !  quão  ditoso 
Quem  sabe  temperar  nestas  branduras 
Os  discursos  do  tempo  duvidoso ! 

Libameu. 
Ditoso,  Mincio  meu,  quantas  mais  duras 
Cousas  de  duros  tempos  temperaste, 
Vendo  ficar  a  muitos  ás  escuras ! 

Mincio.  • 

Assim  como  de  mim  já  te  apartaste 
Assim  também  de  ti  me  aparto  agora. 

Libameu. 
Essa  lembrança  queres  tu  que  baste  ? 

Mincio. 
Baste  não  poder  mais :  fica-te  embora ! 


58  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


ÉCLOGA   PISCATÓRIA  VIII. 
Libameu,  e  Lauro. 

Libameu. 

Emquanto  se  dilata  a  pescaria 

(Pois  será  por  demais  provar  ventura 

Mofino  pescador,  maré  vazia), 

Debaixo  desta  rocha  antiga,  e  dura, 
Que  d'um  noutro  penedo  sustentada 
Por  cima  desta  praia  se  pendura, 

Se  queres  ouvir  de  novo  a  soada 

D'uns  versos,  que  cantei  em  Sampeneda, 

Emquanto  a  rede  ó  mar  tinha  lançada, 

Verás  que  vida  logra  quem  se  arreda 

Da  communicação  dos  pescadores  \ 

E  qual  quem  nos  conselhos  seus  se  enreda. 

.  Lauro. 

Ah !  não  danes  com  versos  sem  sabores 
Huma  tarde,  que  tarde  me  acontece : 
Se  queres  cantar  bem,  seja  d'amores. 

E  se  de  todos  inda  te  parece 
Melhor  cantar  do  meu  justo,  e  suave, 
(Que  do  mal  que  me  fez  já  se  conhece) 

Não  queiras  que  com  rogos  mais  te  aggrave, 
Nem  deixes  de  cantar,  posto  que  vejas 
Lagrimas  derramar,  em  que  me  lave. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  59 

Libameu. 

Se  tu  d'amor  cruel  ouvir  desejas 
Aggravos,  sem  razões,  duros  conceitos, 
Cuja  victoria  cuidas  que  festejas, 

Alembre-te  que  em  passos  tão  estreitos 
Te  pôde  entristecer  qualquer  lembrança ; 
Que  amor  tem  jurdição  em  tenros  peitos. 

De  que  serve  no  tempo  de  bonança 

Alevantar  de  novo  tempestades 

No  naar  donde  escapou  tua  esperança  ? 

Rompendo  por  cem  mil  adversidades, 
De  terra  em  terra  alheia  te  levaram 
Justas,  mal  tarde  pagas,  saudades. 

Quantas  vezes  os  remos  te  faltaram 
Depois  das  vellas  rotas  pelos  ventos, 
Que  na  firmeza  tua  se  quebraram ! 

Prolongaram  se  os  teus  merecimentos. 
De  perigo  em  perigo  navegando, 
Alagado  no  mar  dos  sentimentos. 

Quantas  vezes  na  praia  murmurando 
Conforme  a  seu  juizo,  ou  seu  desejo, 
A  tua  causa  andava  mariscando! 

He  muito  de  notar  com  que  despejo 
O  néscio  pescador  sentenciava 
Aquillo,  que  contar  inda  me  pejo. 

Em  que  fera,  em  que  pedra  não  soava 
O  teu  nome,  Liana  ?  que  serpente, 
Se  de  parir  deixou,  não  te  criava  ? 


6o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Desviado  teu  nome  andou  da  gente 
De  Liana  em  Liona :  nem  m'espanto, 
Pois  tratavas  teu  sangue  cruelmente. 

Lauro. 
Desejoso  de  ouvir  suave  canto 
Te  roguei  que  de  amores  me  cantasses, 
E  tu  provas  de  amor  reprovas  tanto. 

Se  tu  nas  redes  suas  te  pescasses, 
Não  cuido  que  tão  pouco  estimarias 
Queixumes  seus,  que  delles  te  queixasses. 

Antes  a  mariscar  me  ajudarias 
Ameijas  nas  arêas  revolvendo, 
Tirando  mexilhões  das  penedias. 

Arrancando  preseves,  que  pretendo 
Levar  para  Liana  este  cestinho, 
Que  veja  se  m'esqueço,  não  a  vendo. 

Libameu. 
Dart'ei  que  leves. mais  hum  passarinho 
De  verde,  azul,  e  branco  salpicado, 
Que  sem  pena  furtei  á  mãi  do  ninho. 

Dentro  num  búzio  irá  todo  pintado 
De  pardo,  e  de  vermelho,  que  Palemo 
Para  Marfida  tinha  soterrado. 

Não  sei  que  cousa  foi,  não  sei  que  demo 

Tomou  tal  formosura,  tal  aviso, 

Por  quem  nem  ter  na  mão  sabia  o  remo. 

Depois  que  a  causa  foi  posta  em  juizo, 
Também  nós  demos  cá  nossa  sentença  •, 
Que  poucas  tem  firmeza,  menos  siso. 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  6i 


Que  desculpas  darás  a  tão  immensa 

Culpa  da  fé,  Marfida,  que  quebraste. 

Se  não  se  contra  anior  não  houve  ofFensa  ? 

Que  negar  tu  não  podes  que  negaste 
Aquelle  firme  teu  primeiro  amante, 
Depois  que  Diamante  te  tornaste. 

Que  ser  não  pôde  hum  ser  tão  inconstante, 
Se  não  quem  já  perdeu  a  natureza, 
Em  meteria  d'amor  tão  importante. 

Mas  deixemos  motivos  de  tristeza: 
O  nosso  cabazinho  concertemos, 
Lavado  muitas  vezes  n'agoa  tesa. 

Verdes  limos  debaixo  lhe  poremos ; 
O  verde  perrexil  de  cima  posto, 
Fazendo  d'esperança  dois  extremos. 

O  presente  no  meio  bem  composto 

Por  ordem,  que  lhe  dê  muita  mais  graça . 

Assi  de  lho  levar  muito  mais  gosto. 

Que  queres  que  por  ti,  Lauro,  mais  faça 
Com  desejos  das  forças  difterentes, 
Onde  a  pobreza  minha  m'embaraça  ? 

Mas  inda  pôde  ser  que  te  contentes 
Muito  mais  de  me  ver  pescar  á  cana, 
De  que  possas  fazer  mores  presentes. 

Porque  da  Ponta  gorda  até  Trezana 
Hum  sô  dia  que  vem  de  marulhadas 
Pesco  para  comer  toda  a  semana. 

Que  pescarias  fiz  tão  estremadas  ! 

E  mais  de  peixe  limpo  em  breve  espaço 

De  sardos,  de  robalos,  de  douradas  ? 


I 


62  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Que  ?  cuidarás  que  cuido  neste  passo 
Do  galardão,  daquelles  que  comeram, 
O  que  pescava  á  força  do  meu  braço  ? 

Lauro. 

Que  posso  cuidar  eu  do  que  fizeram, 
Se  não  que  seus  intentos  taes  seriam 
Na  sua  ingratidão,  quaes  elles  eram  ? 

Mas  que  dirás  dos  que  de  mim  fugiram, 
Quando  com  menos  barcos,  menos  redes 
Sem  mais  affronta  sua  andar  me  viam  ? 

Eu  te  concederei,  que  tu  me  excedes 
Agora  na  pobreza ;  sem  descanso 
Se  avantejada  vida  me  concedes. 

Libameu. 
Se  tu  vás  tanto  ó  mar,  eu  largo  o  lanço. 
Que  por  não  contender  com  bravas  ondas^ 
Com  menos  me  contento  no  remanso. 

Lauro. 
Nunca  te  faltará  que  me  respondas  \ 
Na  tua  própria  causa,  e  nas  alheias 
Escura  parte  tens,  onde  te  escondas. 

Lavadas  para  ti  tens  as  areias, 
As  saudosas  agoas  Oceanas, 
Onde,  pescando,  a  vida  remedeias. 

Soubeste  desprezar  cousas  humanas, 
Soubeste  grangear  cousas  divinas. 
Desenganado  assi  nos  desenganas. 

Assaz  claro,  e  seguro  nos  ensinas 

O  caminho  do  Geo,  pois  que  não  tiras 

Da  própria  mão  do  remo  as  disciplinas. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  63 

Se  tu  também  comnosco  repartiras 
O  que  buscas  no  Ceo,  como  na  praia, 
Com  differente  dom  tornar  me  viras. 

Libameu. 
Oh!  quão  liberalmente  amor  espraia 
Os  dons  da  sua  graça  em  toda  a  parte, 
Que  parte  n'alma  tem  onde  ella  caia. 

Poderá  antre  huns  penedos  amosirar-te 
Huma  Lapa  redonda,  lá  mettida 
Noutra,  que  dentro  noutras  se  reparte. 

Vista  não  pôde  ser,  nem  presumida 
De  quem  na  Lapa  grande  vir  enirar-me, 
Donde  a  passagem  fíca  retorcida. 

Alli  depois  que  deixo  de  accusar-me, 
E  de  tomar  da  vida  conta  estreita. 
Propondo  na  futura  melhorar-me ; 

Diante  de  huma  Cruz,  que  se  foi  feita 
Por  mãos  da  natureza,  me  suspende 
Na  causa  do  porque  foi  tão  perfeita. 

Primeiro  que  alguns  outros  encomende 
A  Deos,  dous  corações  num  convertidos 
Minh'alma  oôerecer  alli  pretende. 

Hum  só  sentido  sintam  seus  sentidos 
Na  carga  singular, .vida  serena, 
D'amor  celestial  favorecidos. . . 

Não  sei  que  pescador  de  cá  me  acena 
Daquelle  batel  novo.  . .  vai-te  embora! 
Que  ouvir  muito  contar  também  dá  pena. 

Lauro. 

Antes  de  ouvir  tão  pouco  a  sinto  agora. 


64  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


ÉCLOGA   IX. 

Da  mudança  de  pastor  em  pescador. 
Galapo,  e  Almilão. 

Galapo. 

Duas  cousas  receio,  duas  faço 
Contra  qiiietação  da  natureza 
Mmha,  que  em  qualquer  delias  satisfaço : 

Hunoa,  pedir  áquelle,  que  despreza 
A  petição  do  pobre,  cuja  estrella 
Gahir  nas  duras  mãos  foi  da  pobreza ; 

Outra,  que  não  difere  muito  delia, 
He  perguntar  a  quem  dá  má  reposta 
Quanto  lhe  custa  a  boa  mais  do  que  ella. 

Eu  fiz  com  dous  pastores  huma  aposta, 
Que  já  nas  minhas  mãos  cuido  que  tenho; 
Posto  que  nas  alheas  fica  posta. 

De  seu  consentimento  agora  venho, 
A  que  tu  nos  desates  a  porfia : 
Que  porfiar  não  quero  por  ingenho. 

E  porque  me  criei  na  pescaria 
Julguei,  que  também  nella  te  criaste  •, 
Pois  como  pescador  pescar  te  via. 

Elles  dizem  que  sempre  te  prezaste 
Da  fruita,  do  surrão,  e  do  cajado, 
Que  poucos  dias  ha  que  desprezaste. 


I 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  65 


Almilão. 

He  verdade  que  sempre  guardei  gado 
No  campo,  na  montanha  erma,  deserta, 
Com  cujo  branco  leite  fui  creado. 

Mas  quem  guardar  alheio  gado  acerta, 
Acertar  pôde  mal,  quando  seu  dono 
Para  notar  descuidos  anda  alerta. 

Pois  nunca  (s'ora  nisto  não  me  abono) 
Alguma  vez  perdi  cabra,  ou  cabrito, 
Antes  muitas  por  elles  o  meu  sono. 

Seja  louvado  Deos,  seja  bemdito ! 
Que  tal  mudança  fiz  tão  desejada 
Do  solitário  meu  cansado  esprito ! 

Caminhei  longo  tempo  pela  estrada 
Mais  larga,  e  mais  seguida  dos  antigos 
Pastores,  que  não  deixa  de  ir  errada, 

Desejando  escapar  d'alguns  perigos, 
Em  que  via  cahir  a  meus  vizinhos 
Cubiçosos  do  gado,  e  dos  pacigos. 

Determinei  dos  valles  montezinhos 
(Que  da  ribeira  já  tinha  fugido, 
Trocando  lirios  seus  pelos  espinhos), 

Buscar  algum  lugar  tão  escondido, 

Debaixo  de  tão  altas  penedias. 

Que  nem  pudesse  ouvir,  nem  ser  ouvido. 

E  porque  me  tomou  sob-los  dias 
Tal  determinação,  posta  em  eôeito, 
Quero  que  saibas  mais  do  que  querias. 


66  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Pôde  ser  que  por  justo  algum  respeito 
Esses,  que  vão  saber,  se  me  arrependo 
Do  que  sem  parecer  seu  tenho  feito. 

Bem  lhes  podes  dizer,  que  não  dependo 
Daquillo  que  dirão ;  para  que  deixe 
De  remendar  as  redes,  que  remendo. 

Que  nunca  m'arrependa,  nem  me  queixe 

Da  differente  vida,  mas  segura ; 

Que  elles  comem  da  carne,  nós  do  peixe. 

Galapo. 
Não  pôde  ser  môr  dita,  môr  ventura 
Que  acertar  de  te  ouvir  para  curar 
Hum  mal  que  não  cuidei  que  tinha  cura. 

Eu  sempre  folgaria  d'apostar, 
Inda  que  môr  aposta  se  perdesse, 
Do  que  esta  minha  foi  para  ganhar. 

Toda  a  quietação,  todo  o  interesse 
Cuidei  que  consistia  em  ser  pastor. 
Posto  que  de  seu  gado  não  tivesse ; 

E  que  ser  não  podia  outro  pior 
Successo  da  fortuna  dura,  imiga, 
Que  nascer  junto  d'agoa  pescador. 

Des  hoje  mais  convém  que  me  desdiga 
Da  minha  opinião  mal  entendida, 
E  que  por  acertada  a  tua  siga. 

Almilão. 

Afiflrmo  te  que  duma,  e  doutra  vida 
Seus  males,  e  seus  bens  considerados 
Por  conta  certa,  assaz  peso,  e  medida. 


I 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  67 

Que  ficam  sempre  bem  differençados 
No  repouso,  no  gosto,  e  no  descanso, 
E  no  mais,  os  enxutos,  dos  molhados. 

Que  se  pesco,  ou  não  pesco  no  remanso, 

Ora  seja  com  rede,  ora  com  cana, 

Com  cabra,  ou  cabrão  ruivo,  não  me  canso. 

Se  me  desisca  o  peixe,  e  se  me  engana. 
Quando  no  torto  anzolo  se  magoa, 
Não  me  magoa  o  trigo  que  se  dana. 

A  voz  do  rouco  mar  que  bravo  soa. 
Quando  romper  se  vem  nestes  rochedos, 
Não  pôde  ser  de  lobo,  que  me  roa. 

Aqui  descobrir  posso  meus  segredos 

Para  desabafar  meu  triste  peito : 

Que  não  tem  peitos  de  homens  os  penedos ! 

Nesta  lavada  areia,  em  que  me  deito,  ^ 
Versos  diversos  canto  dos  primeiros, 
Que  como  pueris  agora  engeito. 

Galopo. 

Quero-me  aproveitar  dos  verdadeiros 
Conselhos,  que  me  dás :  se  dás  licença, 
Que  me  vá  despedir  dos  companheiros. 

Que  não  me  soffre  já  fazer  detença 
O  muito  que  desejo  de  saber 
Fazer  nos  bens,  e  males  differença. 

Deixa-rae  só  comtigo  aqui  viver ; 

Não  tomes  mais  na  mão  cana,  nem  rede ; 

Que  peixe  não  nos  ha  de  falecer. 


68  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Logra  quietação,  como  te  pede 

O  teu  suave  esprito  \  tange,  e  canta : 

Que  eu  te  matarei  fome,  frio,  e  sede. 

Pôde  ser  que  com  tua  doce,  e  santa 
Vida  remediar  possa  esta  minha. 
Que  boa  sombra  faz  a  boa  planta. 

Seguro  vai  o  cego  que  caminha 

Pelos  passos  da  guia ;  que  se  teme 

De  pôr  seu  pé  descalço  em  secca  espinha. 

Almilão. 

Suspira  est'alma  minha,  chora,  e  geme 
Por  não  ver,  nem  ouvir  quem  falle,  ou  veja : 
De  qualquer  sombra  humana  pasma,  e  treme. 

Abasta  pouco  a  quem  pouco  deseja ; 
Não  basta  muito  a  quem  deseja  muito; 
O  que  nos  outros  falta  me  sobeja. 

D'inverno,  e  de  verão  sempre  dão  fruto 

Os  penedos  da  praia  regadios, 

Nos  quaes  mariscar  posso  a  pé  enxuto. 

Inda  que  não  tem  folha  são  sombrios, 
Não  se  abalam,  nem  mudam  suas  cores, 
Por  ventos,  nem  por  calmas,  nem  por  frios. 

E  sobre  tudo  longe  de  pastores; 
E  de  me  constranger  necessidade 
A  conversar  ainda  a  pescadores. 

Com  tudo  eu  t'agradeço  essa  vontade ; 
Que  não  sou  deshumano,  nem  despreso 
As  mostras,  que  me  mostras  de  amizade. 


i 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  69 

G  alapo. 
Assi  me  deixa  a  tua  inda  mais  preso ; 
Pôde  ser  que  me  escutes  algum  dia, 
De  que  canto  também,  e  de  que  reso. 

Farta-te  de  viver  só  muito  embora, 
Que  também  viver  só  quero  comigo, 
E  sem  mim  ( se  podesse ! )  melhor  fora. 

Com'  haja  nos  trabalhos  mais  antigo 
Pescador  desta  praia,  não  receio 
Na  baixa,  ou  preamar  algum  perigo. 

Ou  seja  por  atalho,  ou  por  rodeio 

A  pena,  a  magoa,  a  dor,  que  me  lastima, 

Com  muita  paciência  remedeio. 

Almilão. 
Muito  faz  quem  se  esforça,  e  quem  se  anima 
A  soffrer,  e  calar,  mostrar  bom  rosto : 
Que  he  contra  o  duro  ferro  a  dura  lima. 

Galapo. 
O  teu  verso  será  melhor  composto. 
Cantado  muito  mais  suavemente ; 
Mas  o  meu  mais  conforme  a  meu  desgosto. 

Não  faltará  do  teu  quem  se  contente, 
Nem  do  meu  faltará,  quem  julgar  queira ; 
Que  sempre  o  néscio  cuida  que  he  prudente. 

Almilão. 

Eu  costumo  pescar  com  singeleira. 

Galapo. 
Pois  eu  vi  pescar  muitos  com  tresmalho. 
Que  nadando  se  vem  perder  á  veira. 


7©  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Almilão. 
Não  cuides  que  rodeio,  quando  atalho 
Neste  breve  caminho,  em  que  me  pus, 
Alegre  de  me  ver  posto  em  trabalho. 

Eu  por  dia  nasci  de  Santa  Cruz : 
Em  Santa  Cruz  troquei  o  pobre  fato  : 
Nella  sem  elle  foi  posto  Jesus, 
Com  cujo  nó  de  amor  tudo  remato. 


ÉCLOGA  PISCATÓRIA  X. 

Ao  nascimento  do  Duque  D.  Jorge  de  Lencastre. 

Galapo,  Alportuxo,  Almilão. 

Galapo. 
Queres  ouvir  contar  hum  pescador 
Pobre,  que  de  marisco  se  sustenta, 
E  segund'o  que  dizem  foi  pastor  ? 

Não  sei  donde,  nem  como,  ou  que  tormenta 
O  lançou  nesta  praia  ha  poucos  dias : 
Que  nem  sempre  do  norte  o  vento  venta. 

Naquellas  solapadas  penedias 
Huma  lapa  buscou  escusa,  e  escura, 
Que  não  se  deixa  ver  d'outras  sombrias. 

Dalli  forçado  sahe  da  fome  pura 
A  buscar  o  salgado  mantimento. 
Duro  de  se  arrancar  da  pedra  dura. 

Depois  sobre  hum  penedo  crespo,  e  lento 
Ao  som  d'um  arrabil  que  traz  no  seio, 
As  ondas  faz  parar,  fugir  o  vento. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  71 

O  primeiro  de  abril  alli  se  veio 
A  cantar,  e  tanger  tão  docemente, 
Que  do  mar  Oceano  fez  Lethêo. 

Mas  tanto  mais  alegre,  e  mais  contente, 
Que  logo  quem  ouvisse  julgaria, 
Que  festejava  algum  gosto  presente. 

Alportuxo. 

Agora  sabes  tu,  que  foi  o  dia. 

Em  que  fruito  nos  deu  a  primavera, 

Fruito  que  só  do  Ceo  cahir  podia. 

Do  Ceo  por  cujo  dom  já  se  decera 

Da  sua  opinião  isenta,  altiva, 

Mais  branda  agora,  mais  que  branda  cera. 

Mas  ah !  livre  Liana !  quão  captiva 

Te  fez  o  justo  amor  daquelle  teu, 

A  quem  tu  te  mostrastes  tão  esquiva ! 

Agora  tu  não  tua,  elle  não  seu ; 

Hum  noutro  si ;  de  dois  hum  só  formado ; 

Tal  vos  conserva  Amor,  qual  elle  o  deu. 

Galapo. 

Outros  muitos  sobre  esse  tem  já  dado, 
Que  tempo,  nem  fortuna,  dura  imiga 
Poderão  desatar  •,  perde  o  cuidado. 

O  bom  será  cantar  huma  cantiga, 
Em  louvor  desta  sesta,  nesta  praia. 

Alporiuxo. 
Começa  tu,  se  queres  que  te  siga. 


7»  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Galapo. 
Esperemos  hum  pouco  antes  que  caia 
A  sombra  lá  da  Serra ;  pôde  ser 
Que  também  Almilão  da  lapa  saia. 

Alportuxo. 
Eu  tenho  para  mim  que  ouço  tanger. . . 
Deve  de  ser  aquelle  ?  vê-lo  vem : 
Gomo  se  vem  regando  de  prazer ! 

Almilão. 
Ouça-me  quem  quiser;  veja-me  quem 
Folgar  com  bens  de  Lauro,  e  de  Liana, 
Que  sempre  dos  seus  bens  contarei  bem» 

Que  fica  mais  por  ver  na  vida  humana, 
Que  ver  dois  corações  num  convertidos, 
De  cuja  flor  tão  doce  fruto  mana  ? 

Que  fica  por  sentir  a  meus  sentidos 

Quando  vestida  vejo  Magdalena 

Dos  seus,  antes  dos  meus,  pobres  vestidos  ? 

Eu  tomarei  na  mão  hum  dia  a  penna, 
E  nem  remendo  seu,  nem  graça  sua 
Ficarão  por  cantar,  grande  ou  pequena. 

Das  fermosas  estrellas,  sol,  e  lua 
As  cores  mostrarei  em  Violante ; 
A  dos  olhos  ao  ceo  se  restitua. 

Neíle  pois  passar  quero  mais  avante 
Convém  que  vá  fazer  o  meu  alforge ; 
Para  que  mais  cedo  tanja,  e  melhor  cante» 

Amor  tempere  a  fragoa,  accenda,  e  forge 

Com  que  festeje  dia  tão  ditoso 

Do  novo  Anjo  do  Ceo,  ditoso  Jorge. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  73 

Detenha-se  no  bosque  saudoso 

A  verdura  na  planta,  a  flor  no  valle ; 

Nasceu  Jorge,  nasceu  todo  fermoso. 

Antes  que  desta  praia  hoje  me  abale, 
A  fera  amansarei,  o  duro  seixo 
Ousarei  abrandar,  farei  que  falle. 

Já  não  sei  murmurar,  já  me  não  queixo ; 
Queixe-se  o  rouxinol,  murmure  a  fonte, 
Ella  de  pedra  em  pedra,  elle  no  freixo. 

D'encarnado,  e  d'azul  nosso  orizonte 

Se  vista  nesta  festa,  cujas  cores 

Calo :  que  pôde  ser  que  inda  se  afronte. 

Fazei  novas  capellas,  pescadores, 
Nos  salgados  penedos,  nas  arêas, 
A  seu  Príncipe  já  cobri  de  flores. 

Galapo. 
Quaes  Alciões  na  praia,  ou  quaes  sereas 
Igualar  já  se  podem  com  teu  canto 
Em  louvor  desse  Infante,  que  nomeas  ? 

Não  sei,  qual  affeição  te  ensinou  tanto: 

(Mas  como  cuidarei  que  se  affeiçoa 

Quem  não  vejo  medrar  n'hum  pobre  manto?) 

Almilão. 
Se  tratas  de  interesse  da  pessoa 
Pelas  partes,  que  tem,  não  pela  renda, 
A  tal  opinião  julgo  por  boa. 

Comigo  que  não  posso  ter  fazenda, 

Que  fazenda  fará  o  néscio  rico. 

Que  não  pôde  emendar,  nem  ter  emenda  ? 


74  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Cuidarás  por  ventura  que  me  pico 

Desse  juizo  teu,  commum  juizo, 

Que  (como  dizem)  traz  agoa  no  bico? 

Sabe  que  com  ninguém  contemporizo ; 
Que  apelo  me  não  falta  na  amizade 
Singela  condição,  brandura,  aviso. 

Alportuxo. 
Eu,  pois  cantar  não  sei  da  saudade 
Antre  taes  dois  cantores,  calar  quero ; 
Por  não  cahir  nas  mãos  da  nescedade. 

Mas  isto  só  direi  que  não  tempero, 
Com  quem  destemperar-se  quer  comigo, 
A'  conta  de  cuidar  que  delle  espero. 

O  que  quiser  que  seja  seu  amigo. 
Por  ser  tamanho  meu,  queira  que  seja ; 
Não  pelo  seu,  que  come  só  comigo. 

Galapo. 
Queres  que  o  nosso  canto  sobresteja, 
Emquanto  vou  buscar  que  cozinhemos ; 
Que  festa  sem  comer  não  se  festeja  ? 

Pescado  no  batel  pescado  temos : 
O  fogo  sahirá  da  pederneira : 
A  lenha  pelo  mato  ajuntaremos. 

De  medronho,  de  esteva,  e  de  aroeira 
Farei  curtos  espetos  aguçados, 
Dos  quaes  rodearei  toda  a  fogueira. 

De  ruivos,  salmonetes,  carregados 
De  vezugos,  de  choupas,  de  tainhas, 
E  com  três  sapateiros  linguados. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Alportuxo. 
Ainda  por  cantar  taes  versos  tinhas! 
Eu  ferirei  o  fogo,  e  trarei  lenlia. 

Galapo. 
Já  sabemos  de  ti  quão  bem  cozinhas. 

Alportuxo. 

Não  haja  quem  de  nós  se  desavenha 
De  cantar,  e  tanger,  e  fazer  festa. 

Galapo. 
Por  quem  não  festejar,  má  festa  venha. 

Veremos  Almilão  para  que  presta  : 
Sabei  que  se  Almilão  sahe  ao  terreiro, 
Que  ha  de  fazer  alguém  suar  a  testa. 

Que  d'arrabil,  de  frauta,  e  de  pandeiro 
Nunca  ninguém  lhe  teve  a  barba  tesa. 
Viva  Jorge  mil  annos,  mil  primeiro 
Viva  o  Duque  seu  pai,  viva  a  Duquesa  ! 

Almilão. 

Vivam  pais,  e  vivam  filhos ! 

Outros  destes,  doutros  mais 

Vivam  filhos,  vivam  pais ! 

Vivam  como  viver  vejo 

Com  taes  excessos  d'amor, 

Que  nem  menos,  nem  maior 

Possa  ser  o  seu  desejo : 

O  gosto  com  que  festejo 

O  seu  não  pôde  ser  mais : 

Vivam  filhos,  vivam  pais ! 

• 

Galapo. 

Tal  amor  nelles  se  veja  \ 

Veja-se  seu  amor  tal, 

Tão  conforme,  e  tão  igual ; 


j6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  nem  mais  nem  menos  seja. 
A  festa  que  se  festeja 
Convertida  noutras  mais 
Festejem  filhos,  e  pais. 

Alportuxo. 
Ditosa  foi  sua  estrella 
A  mesma  d'ambos  ditosa, 
A  quem  não  foi  poderosa 
Resistir  todo  Castella, 
Nasceu  Jorge  delle,  e  delia. 

Almilão. 
Elle  fez  quanto  podia  ; 
Ella  mais  do  que  elle  fez; 
Pois  se  fez  sua ;  em  que  pês 
A  quantos  na  Corte  havia 
Igual  ser  poderia, 
Firmeza  em  peitos  reaes; 
Mas  no  delia  muito  mais. 

Galapo. 
Ella  foi  a  conquistada, 
Ella  firme,  ella  constante, 
Ella,  a  quem  d'um  só  amante 
Se  quis  deixar  ser  amada : 
Em  tudo  foi  estremada 
Na  firmeza  muito  mais : 
Tal  como  ella  poucas  taes. 

Alportuxo. 
Acabemos  de  dizer 
Por  remate,  da  Duquesa, 
Que  foi  doutra  natureza    . 
Dififrente  da  de  mulher ; 
E  por  isso  devem  ser 
Seus  louvores  muitos  mais : 
Vivam  filhos,  vivam  pais ! 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  77 


I 


ÉCLOGA  PISCATÓRIA  XI. 


Almilão. 

Aparta-se  de  vós,  desapparece, 
Agoas  do  mar  azul,  o  sol  dourado, 
Ou  com  meu  triste  pranto  s'escurece. 

Deixa-me  nesta  praia  trespassado 
O  som  daquella  voz,  que  trespassou 
Os  deste  meu  no  seu  ditoso  estado. 

Que  força,  ou  que  brandura  penetrou 
Os  corações  daquelles  pescadores 
Que  do  barco,  e  das  redes  os  levou? 

Porque  foram  mais  destros  remadores 
Ou  por  pescar  mais  peixe  mereceram 
Chamados  do  Senhor  ser  dos  Senhores  ? 

Nós  sabemos,  Deus  meu,  que  precederam 
A  quantos  de  pescar  nos  sustentamos; 
Vós  o  porque  melhor  vos  pareceram. 

Quantos  a  pé  enxuto  desejamos 
Seguir  a  doce  vossa  companhia. 
Tantos  na  terra  em  secco  nos  achamos. 

Entra  no  mar  de  noite,  entra  de  dia 
Descalço  o  pescador,  entra  despido 
Por  segurar  melhor  a  pescaria. 

O  que  dos  vicios  d'alma  anda  cingido, 
Como  néscio  responde,  que  também 
S'ha  de  salvar  calçado,  e  mais  vestido. 


78  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Bem  pôde  ser  que  seja ;  mas  porém 
O  que  mais  leve  vai,  melhor  caminha, 
E  mais  pôde  inda  mais  passar  além. 

Vai-se-me  consumindo  a  vida  minha 
D'um  gosto  noutro  falso  pendurada ; 
Dos  quaes  hum  me  remorde,  outro  m'espinha. 

Resolver-me  que  foi  mal  empregada, 
Determinar  emenda  que  aproveita, 
Pois  a  presente  vai  qual  a  passada  ? 

Na  solitária  minha  lapa,  estreita 
(Minha  não  digo  bem,  antes  alhea ; 
Pois  seu  dono,  se  quer,  delia  me  deita ) 

Não  me  falta  que  faça,  escreva,  e  lea, 
Do  que  foi,  do  que  vai,  e  donde  pára 
Quem  funda  o  gosto  seu  em  leve  arêa  ? 

E  se  por  tantas  vezes  não  tentara 
Avisar,  reprender  alguém  por  verso. 
Ainda  agora  aqui  me  não  calara. 

SofFre  mal  coração  duro,  perverso 
Pequena  reprehensão  de  ser  defeito; 
Posto  que  bem  composta  em  brando  verso. 

O  pescador  debaixo  de  seu  leito 
Depois  que  deita  ferro  no  remanso, 
Manso  discurso  faz  no  manso  peito. 

O  silencio ihe  dobra  seu  descanso; 
O  pouco  que  deseja  não  lhe  faz 
Cubicar  melhor  sorte  em  melhor  lanço. 

Os  seus  dois  remos  rema  em  sua  paz, 
Que  não  deixa  nas  mãos  do  companheiro, 
Que  delles  mais  que  delia  foi  capaz. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  79 

Recolhe-se  em  qualquer  pequeno  esteiro ; 
Que  pouca  agoa  demanda  o  barco  leve, 
Que  levemente  leva  hum  só  remeiro. 

A  mocidade  minha  me  deteve 
No  pasto  das  ovelhas,  que  guardei 
Ora  do  sol  cortido,  ora  da  neve  : 

Onde  por  muitas  partes  que  notei 

Num  pastor  pouco  atrás  da  minha  idade, 

Com  pureza  de  amor  me  transformei. 

A  taes  termos  chegou  nossa  amizade, 
Que  fizemos  de  dois  hum  só  rebanho, 
E  de  duas  também  huraa  vontade. 

Mas  eu  a  quem  dou  conta  deste  estranho 
Caso,  senão  a  vós  duros  penedos. 
Que  com  lagrimas  tristes  triste  banho  ? 

Seguro  vos  descubro  meus  segredos, 
De  mim,  como  de  vós,  estou  seguro, 
Que  possam  nunca  ouvir  corações  ledos. 

Não  porque  por  amor  honesto,  e  puro 
Extremos  soem  mal  noutros  ouvidos ; 
Mas  nos  alegres  fica  o  caso  escuro. 

O  pastor,  a  pastora  conhecidos 
Foram  dos  mais  pastores  naturaes 
Por  jurados,  ou  quasi  recebidos. 

Ella,  não  sei  porque,  mostrou  sinaes 
De  lhe  quebrar  a  fé :  tinha  razão ; 
Pois  nella  só  ficavam  desiguaes. 

Emfim  ella  foi  dar,  adonde  dão 
Os  que  não  tem  remédio  na  ferida, 
Que  se  dá  no  constante  coração. 


8o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Ella  depois  que  vio  ser  homicida 
Do  seu  firme,  leal,  primeiro  amante, 
Deu  nas  mãos  da  tristeza  a  própria  vida. 

Eu  dalli  me  parti  naquelle  instante, 

De  valle  em  valle  vim,  de  monte  em  monte^ 

Até  não  poder  mais  passar  avante : 

Que  as  agoas  Oceanas  não  tem  ponte : 
Neste  batel,  que  remo,  qualquer  onda 
Em  qualquer  taboa  faz  vir  huma  fonte. 

Aqui  busquei  já  parte  onde  me  esconda, 
Debaixo  desta  rocha  tenho  duas 
Furnas,  huma  comprida,  outra  redonda. 

Eu  já  sei  das  marés,  já  sei  das  luas ; 
Das  ostras,  das  amêijoas,  também  sei 
Delias  comer  cozidas,  delias  cruas. 

Aqui  com  mais  repouso  acabarei 
O  pouco  que  me  fica,  suspirando. 
Não  pelo  verde  campo  em  que  pastei, 

Mas  por  amor  suave,  doce,  e  brando 
Daquelle  Summo  Bem,  cuja  lembrança 
Da  terra  o  coração  vai  desterrando 
Confirmando  no  Ceo  sua  esperança. 


ÉCLOGA  XII. 

Mincio,  e  Limabeu. 

Mincio. 
Espera,  porque  foges,  Limabeu  ? 
Que  não  sou  pescador  do  mar  salgado, 
Do  doce  Lima  si,  parceiro  teu. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  8i 


Delle  por  ti  me  venho  desterrado, 
Dando  gritos  por  ti  pelo  deserto, 
Perguntando  por  ti  no  povoado, 

Honte,  noite  fechada,  por  acerto 
(Não  podendo  acenar  nunca  de  dia) 
Achei  dois  pescadores  daqui  perto, 

Dos  quaes  fui  avisado  que  devia, 
Antes  que  tu  me  visses,  esconder-me ; 
Porque  depois  em  vão  te  buscaria.. 

Limabeu. 

Pois  de  tão  longe,  Mincio,  vens  a  ver-me, 
Pois  não  pude  escapar,  como  quisera, 
Quero  contigo  só  desencolher-me. 

Não  vai  lugar  no  mato  á  brava  fera. 
Não  vai  ao  peixe  na  agua  fundo  pego ; 
Menos  a  mim,  se  nelle  me  escondera. 

He  verdade  que  fujo,  não  to  nego. 
De  conversar  a  muitos ;  porque  sei 
Quão  mal  no  gosto  seu  meu  tempo  emprego. 

Bem  sabes,  quanto  ri,  quanto  folguei 
De  cantar,  e  tanger;  que  graça  tinha. 
Quantas  apostas  fiz,  quantas  ganhei ; 

Quantos  fardeis  enchia  do  que  tinha 
Dentro  no  meu  pombal,  no  meu  poleiro ; 
Enchia  de  vagar,  vazava  asinha. 

Tirava  do  curral,  e  do  fumeiro 
(Jom  gosto  pelo  dar;  donde  chegava 
Pesado  sempre  fui,  tornei  ligeiro. 


82  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Não  quero  dizer  mais  do  que  mais  dava; 
Do  pago  que  me  deu  quem  o  levou ; 
Se  não  foi  avisar-me  quanto  errava. 

Enfim  lá  se  ficaram,  cá  me  estou 
Numa  lapa,  da  qual  o  mar  Oceano, 
Depois  de  a  ter  lavrada,  se  afastou. 

Agora  julga  tu,  qual  peito  humano 
Me  quisera  largar  seu  aposento 
Do  Tejo  natural,  ou  Limiano  ? 

Além  disto  me  deixa  o  mantimento 
Pegado  nos  penedos  \  porque  esteja 
Seguro  de  mo  vir  levar  o  vento. 

Tudo  na  sua  praia  me  sobeja ; 
Tudo  na  vista  sua  me  recrea ; 
A  tudo  fazer  posso  nella  inveja. 

EUe  lavra,  elle  rega,  elle  semea. 

Eu  colho  quando  quero  a  sementeira ; 

Olha  que  amigo  achei  em  terra  alhea  1 

Mincio. 

Bem  diflerente  doutros  da  Ribeira, 
Que  sem  nunca  lavrar  querem  colher, 
Depois  de  limpo,  e  secco,  o  trigo  n'eira» 

Eu  não  te  posso  mais  encarecer 
O  que  vai  pelo  mundo  cubiçoso 
De  enganar,  de  danar,  de  mal  fazer. 

Que  se  pôde  esperar  do  vicioso, 

Que  nunca  soube  armar  lousa,  nem  laço, 

Ou  por  não  ter  ingenho,  ou  ser  mimoso  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  83 

Não  se  corre  de  ter  o  mole  braço 

Mais  destro  em  revolver  cartas,  e  dados, 

Que  contra  os  infiéis  as  pontas  d'aço! 

Dá-lhes  pouco  de  serem  apoucados, 
Pusilânimes,  vis,  baixos  de  esprito, 
E  noutros  mores  erros  sepultados. 

Limabeu. 
Basta !  não  digas  mais  do  que  tens  dito, 
Que  te  quero  contar  hum  caso  estranho, 
Que  dentro  nas  entranhas  trago  escrito. 

Ah  !  ditoso  succèsso  !  bem  tamanho  ! 

Cuja  doce  lembrança  nesta  praia 

As  lagrimas  detém  em  que  me  banho ! 

Mas  primeiro  que  a  voz  do  peito  saia, 
Dize-me  que  se  fez  de  Limiana, 
Que  chorando  ficou  ó  pé  da  faia  ? 

Mincio. 
Aquelle  mesmo  dia  da  semana. 
Em  que  tu  te  partiste,  se  partio, 
E  partindo-se  pôs  fogo  á  choupana. 

Finalmente  que  nunca  mais  se  vio, 

Por  mais  que  em  toda  a  parte  se  buscou, 

Nem  sabemos  adonde  se  sumio. 

/  Limabeu. 

Agora  faz  dois  annos  que  chegou 
O  silencio  que  rendeo  seu  esprito ! 
Meu  nome  deixo  escrito,  terra,  e  vida : 
Se  de  ti  for  sabida,  muito  embora. 
Deixa-me  por  agora  brevemente 
Alevantar  a  mente  áquelle  immenso. 
AUi  ficou  suspenso,  eu  lastimoso: 


84  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Espirito  ditoso,  que  soubeste, 
Do  modo  que  quiseste,  confundir-me, 
E  para  mais  ferir-me  alli  deixaste 
Os  versos,  que  guardaste  até  partir. 
Tanto  para  sentir  na  tua  morte 
A  minha,  e  tua  sorte  declarada 
Na  tua  costumada  letra  antiga, 
Estilo  que  me  obriga  a  ficar  mudo*, 
Toma  Mincio  o  papel,  saberás  tudo. 


Soneto  de  Limiana. 

Depois  que  conheci  que  não  podia 
O  nosso  justo  amor  ser  apartado; 
Como  comigo  a  ti  te  tinhas  dado, 
Me  dei  comtigo  a  quem  dar-me  devia. 

E  posto  que  da  minha  companhia 
Tanto  tempo  viveste  desviado ; 
Peregrino  fui  pobre  agasalhado 
De  ti  julgado  tal,  qual  me  fingia. 

Foi  vontade  divina,  rogo  meu, 
Minha  consolação  na  vida  humana, 
Que  vendo  nosso  amor  posto  no  seu, 

Visse  nesta  final  praia  Oceana, 
Que  sendo  conhecido  Limabeu, 
De  Limabeu  não  fosse  Limiana. 


Chamar-lhe  deshumana  não  m'atrevo, 
Antes  louvá-la  devo  além  de  santa ; 
Que  tão  mimosa  planta,  tão  ditosa 
Tanto  como  fermosa  assi  crescesse, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  85 

Que  no  Ceo  se  colhesse  fructo  delia, 
Não  planta,  mas  estreila,  cujos  raios 
Causam  cem  mil  desmaios  na  leitura 
Dos  versos,  que  escrevi  na  pedra  dura. 


Epitáfio  de  Limabeu,  e  Limiana. 

Eu  vi  do  Ceo  na  terra  a  fermosura 
No  vestido  dum  pobre  peregrino 
Da  terra  para  o  Ceo  voar  segura, 
Fosse  ventura  minha,  ou  seu  destino: 
Por  minha  mão  lhe  dei  a  sepultura, 
Pela  sua  a  levou  amor  divino : 
De  Lima  naturaes  na  Lapa  Oceana 
Se  enterrou  Limabeu  com  Limiana. 


k 


ELEGIA  I. 

A  huma  ingratidão. 

Secou-se  para  mim  agoa  no  rio, 
Secou-se  para  mim  herva  no  prado, 
Secou-se  a  folha  no  bosque  sombrio. 

Quantas  lagrimas  tenho  derramado 
Não  poderão  tolher  esta  seccura, 
Que  sem  causa  me  tem  tão  lastimado. 

Que  mal  faz  a  ninguém  haver  verdura 
No  campo,  valle,  ou  bosque,  ou  na  ribeira 
Regada  da  divina  fermosura  ? 


86  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Não  sei  quem  não  deseje,  não  se  queira 
Aventurar  no  mal,  que  se  imagina, 
Por  amizade  d'alma  verdadeira. 

Pouco  pôde  empecer  lingua  malina  •, 

Pouco  pôde  morder  o  dente  agudo 

Do  máo,  que  com  tal  bem  tão  mal  atina. 

Hum  Deos  que  tudo  vê,  que  sabe  tudo, 

Me  seja  testimunha  da  verdade, 

Que  não  quero  outro  amparo,  ou  outro  escudo. 

Movido  sô  da  sua  caridade 

Amei,  amo,  amarei  quem  mo  merece : 

Basta  que  delle  tenho  liberdade. 

Se  busco,  ou  se  pretendo  outro  interesse, 
No  mal  se  pôde  ver,  que  me  tem  feito, 
Quão  pouco  me  perturba,  e  me  entristece. 

Rasguem-me  pelo  meio  este  meu  peito, 
Tirem-me  o  coração,  vejam-no  fora, 
Que  bem  fora  o  verão  deste  defeito. 

Verão,  que  não  suspira,  geme,  e  chora 
Pelo  muito  que  doem  dores  tamanhas ; 
Mas  porque  nellas  sô  padece  agora. 

Mandarem-me  viver  antre  montanhas  ? 

Que  cousa  para  mim  mais  natural, 

Que  descobrir-lhe  magoas  tão  estranhas  ? 

Eu  mesmo  fui  a  mim  o  desleal; 
Eu  de  mim  mesmo  fui  cruel  imigo ; 
Eu  mesmo  fiz  a  mim  tamanho  mal. 

Eu  fui  o  que  me  fui  para  o  perigo 
De  tanta  ingratidão,  tanta  crueza ; 
Eu  só  o  que  sô  choro  a  mim  comigo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  87 

Neguei  a  minha  própria  natureza ; 

Perdi  a  liberdade,  em  que  vivia ; 

E  nunca  (por  meu  mal)  perdi  firmeza. 

Não  fora  sem  razão  haver  hum  dia 
De  quantos  esperei,  em  que  cuidara, 
Que  tinha  nos  meus  males  companhia. 

Pelo  menos,  sequer,  não  me  faltara 
Saber  que  da  ribeira  me  convinha 
Fugir;  pois  para  mim  já  se  seccara. 

Queixara-me  de  mim  na  magoa  minha, 
Dera  gritos  em  vão,  em  vão  gemera, 
Culpara-me  na  culpa,  a  quem  não  tinha. 

E  não  me  desvelara,  não  temera 
Que  podesse  passar  enfadamento 
Quem  dos  meus  me  livrara,  se  quisera. 

Ora  pois  de  tamanho  sentimento 

A  lastimosa  culpa  pôde  ser, 

Que  me  não  deixe  livre  o  pensamento. 

Aqui  quero  fugir,  quanto  puder, 
De  todas  as  humanas  creaturas. 
Esses  cansados  dias  que  viver. 

Aqui  conversar  quero  pedras  duras, 
Os  brutos  animaes,  feras,  serpentes. 
Que  não  sabem  mudar  suas  figuras. 

Não  quero  ouvir  palavras  differentes 
Do  que  dentro  do  peito  do  malino 
Se  determina  obrar  contra  innocentes. 

Bem  sei  que  julgarão  que  he  desatino 
Fazer  em  toda  a  vida  tal  extremo, 
Gomo  na  que  me  fica  determino. 


tJ8  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mas  já  nesta  que  vivo  me  não  temo, 
Que  me  possa  mudar  outra  mudança ; 
Tanto  de  cuidar  nesta  pasmo,  e  tremo. 

Se  mal  fundei  a  minha  confiança. 
Se  tão  mal  empreguei  amor  tão  puro. 
Porque  não  tomarei  de  mim  vingança  ? 

Quanto  mais  cruel  for,  quanto  mais  duro 
Contra  mim,  tanto  mais  serei  mais  brando; 
Pois  todo  o  mal  em  mim  he  mais  seguro. 

Assi  me  irei  de  todo  acostumando 
A  ser  tamanho  imigo  do  meu  gosto, 
Que  me  fique  esta  magoa  consolando. 

Dous  rios  correrão  pelo  meu  rosto, 
Envoltos  nos  meu  gritos,  derramados 
Noite,  dia,  manhã,  tarde,  sol-posto. 

Os  tristes  versos  meus  dependurados 
Nos  troncos  deixarei  das  verdes  plantas, 
Que  das  seccas  assaz  estão  queimados. 

Nelles  escreverei  além  de  quantas 
Cousas  já  padeci,  quantas  padeço. 
Por  julgarem  tão  mal  muitas  tão  santas. 

Comtudo,  meu  Senhor,  eu  não  me  esqueço 
Que  rogastes  na  Cruz  por  gente  ingrata  , 
Eu  por  ella  também  perdão  vos  peço. 

Se  vós,  meu  Deos,  rogais  por  quem  vos  mata, 

Como  não  rogarei  a  vós.  Senhor, 

Que  perdoeis  a  quem  tão  mal  me  trata  ? 

Bem  claro  vendo  estou,  quanto  melhor 
He  ser  injustamente  perseguido. 
Que  poder  ser  d'alguem  perseguidor. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  89 

A  cousa  de  que  mais  estou  sentido 
He  ver  que  nos  meus  olhos  faltou  vista, 
Para  ver  de  que  côr  era  vestido 
Hum  coração  devoto  do  Baptista. 


ELEGIA  II. 

Da  Arrábida. 

Alta  Serra  deserta,  donde  vejo 
As  agoas  do  Oceano  duma  banda. 
E  doutra  já  salgadas  as  do  Tejo : 

Aqueila  saudade,  que  me  manda 
Lagrimas  derramar  em  toda  a  parte, 
Que  fará  nesta  saudosa,  e  branda  ? 

Daqui  mais  saudoso  o  sol  se  parte; 
Daqui  muito  mais  claro,  mais  dourado, 
Pelos  montes,  nascendo,  se  reparte. 

Aqui  sob-lo  mar  dependurado 

Hum  penedo  sobre  outro  me  ameaça 

Das  importunas  ondas  solapado. 

Duvido  poder  ser  que  se  desfaça 

Com  agoa  clara,  e  branda  a  pedra  dura 

Com  quem  assi  se  beija,  assi  se  abraça. 

Mas  ouço  queixar  dentro  a  Lapa  escura, 
Roidas  as  entranhas  apparecem 
Daquella  rouca  voz,  que  lá  murmura. 

Eis  por  cima  da  rocha  áspera  decem 
Os  troncos  meio  seccos  encurvados, 
Eis  sobem  os  que  nelles  enverdecem. 


90  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Os  olhos  meus  dalli  dependurados, 
Pergunto  ó  mar,  ás  plantas,  ós  penedos 
Como,  quando,  por  quem  foram  creados  ? 

Respondem-me  em  segredo  mil  segredos, 
Cujas  primeiras  letras  vou  cortando 
Nos  pés  doutros  mais  verdes  arvoredos. 

Assi  com  cousas  mudas  conversando. 

Com  mais  quietação  delias  aprendo 

Que  outras  que  ha,  ensinar  querem  fallando. 

Se  pelejo,  se  grito,  se  contendo 

Com  armas,  com  razão,  com  argumentos, 

Elias  só  com  calar  ficam  vencendo. 

Ferido  de  tamanhos  sentimentos 

Fico  fora  de  mim,  fico  corrido 

De  ver  sobre  que  fiz  meus  fundamentos. 

AUi  me  chamo  cego,  alli  perdido, 
AUi  por  tantos  nomes  me  nomeio. 
Quantos  por  culpas  tenho  merecido. 

Alli  gemo,  e  suspiro,  alli  pranteio ; 

Alli  geme,  e  suspira,  alli  prantea 

O  monte,  e  vai  de  meus  suspiros  cheio. 

Alli  me  faz  pasmar,  alli  me  enlea 
Quanto  colhendo  estou  da  saudade. 
Que  por  toda  esta  terra  se  semêa. 

Ora  me  ponho  a  rir  da  vaidade. 

Ora  triste  a  chorar  com  quanto  estudo 

Erros  solicitei  da  mocidade. 

Tudo  se  muda  em  fim,  muda-se  tudo, 
Tudo  vejo  mudar  cada  momento : 
Eu  de  mal  em  pior  também  me  mudo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  91 

Soía  levantar  meu  pensamento 
Assentado  sobre  estas  penedias 
Duras,  eu  duro  mais  nellas  me  assento. 

Punha-me  a  ver  correr  as  agoas  frias 
Por  cima  de  alvos  seixos  repartidas, 
Que  faziam  tremer  hervas  sombrias. 

As  flores,  que  levava  já  colhidas, 
Passando  pelos  valles  engeitava 
Por  outras  doutra  nova  cor  vestidas. 

O  livre  passarinho,  que  voava, 
Cantando  para  o  ceo  deixando  a  terra. 
Da  terra  para  o  ceo  me  encaminhava. 

Cuidei  que  se  esquecesse  nesta  Serra 

A  dura  imiga  minha  natureza  \ 

Mas  donde  quer  que  vou  lá  me  faz  guerra. 

Oh !  quem  vira  naquella  fortaleza 
Rodeada  de  fogo  de  amor  puro, 
Daquelle  amor  divino  est'alma  accesa  1 

Quão  firme,  e  quão  quieto,  e  quão  seguro 
No  campo  se  posera  em  desafio ! 
E  quão  brando  sentira  o  ferro  duro! 

Mas  se  agora  de  mim  me  não  confio, 
Se  fujo,  se  me  escondo,  se  me  temo, 
He  porque  sinto  fraco  o  peito  frio. 

Alevantam-se  os  mares  •,  pasmo,  e  tremo : 

Vejo  vento  contrario,  desfaleço, 

A  corrente  das  mãos  me  leva  o  remo. 

Confesso  minha  culpa,  bem  conheço 
Que  por  mais  graves  males  que  padeça 
Menos  padecerei  do  que  mereço. 


92  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mandais,  Senhor,  que  busque,  bata,  e  peça, 
Eu  busco,  bato,  e  peço  a  vós.  Senhor, 
Sem  haver  cousa  em  mim  que  vos  mereça. 

Com  os  braços  na  Cruz,  meu  Redemptor, 
Abertos  me  esperai,  c'o  lado  aberto, 
Manifestos  sinaes  do  vosso  amor. 

Ah!  quem  chegasse  hum  dia  de  mais  perto 
A  ver  c'os  olhos  d'alma  essa  ferida, 
Que  esse  coração  mostra  descoberto  1 

Esse,  que  por  salvar  gente  perdida 

De  tanta  piedade  quis  usar. 

Que  deu  nas  suas  mãos  a  própria  vida. 

A  sangue  nos  quisestes  resgatar 
De  tão  cruel,  e  duro  cativeiro. 
Vendido  fostes  vós  por  nos  comprar. 

Padecestes  por  nó>s,  manso  Cordeiro, 
Pisado,  preso,  e  nú  antre  ladrões. 
Ardendo  o  fogo  posto  no  madeiro: 
Arcam  postos  no  fogo  os  corações. 


ELEGIA  III. 

Espiritual. 

Senhor !  se  minhas  culpas  me  endurecem 
Para  me  não  valer  do  sentimento, 
Que  vossas  cinco  Chagas  me  merecem. 

Donde  porei,  meu  Deos,  meu  pensamento, 
Se  não  em  meditar  que  esta  dureza 
Se  abrandará  com  seu  merecimento  ? 


I 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  g3 

Armou-se  contra  Vós  toda  dureza, 
Malicia,  ingratidão  de  gente  cega ; 
Quebrantaram-se  as  leis  da  natureza. 

Eis  hum  que  vos  accusa,  outro  que  nega ; 

Outro  diz  :  crucifica !  crucifica  ! 

Eis  iium  dos  vossos  doze,  vos  entrega. 

Eis  huno,  eis  outro  falso  testifica ; 
Eis  á  columna  dura  vos  apegam, 
Que  tinta  do  innocente  sangue  fica. 

Dalli,  meu  Redemptor,  vos  desapegam, 
Arrastado  vos  levam  para  a  Cruz, 
D'espinhos  coroado  alli  vos  pregam. 

Eu  fui,  eu  sou,  Senhor,  o  que  vos  pus 
Nesse  duro  madeiro  pendurado, 
Donde  morreis  por  mim,  doce  Jesus. 

Por  falta  de  não  ter  considerado, 

Ou  por  falta  de  amor,  que  se  vos  deve, 

Não  choro,  como  devo,  meu  peccado. 

Ah !  duro  peito !  mais  frio  que  neve ! 
Que  antre  diversas  dores  tão  estranhas 
Lhe  falta  sentimento  em  que  se  enleve! 

Que  vês  por  ti  rasgadas  as  entranhas, 
As  brandas  mãos,  e  pés  atravessados  \ 
E  que  em  lagrimas  tristes  não  te  banhas ! 

Não  duvido.  Senhor,  que  meus  peccados 
Com  gemer,  e  chorar,  com  pôr  emenda 
Diante  de  Vós  sejam  perdoados. 

Quereis  do  peccador  que  se  arrependa ; 
Quereis  que  ponha  em  Vós  a  confiança, 
E  que  peça  perdão  por  mais  que  oôenda. 


94  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  fora,  se  não  fora  esta  lembrança !   . 

Ai  que  fora  de  mim,  se  não  tivera 

Tão  firme  posta  em  Vós  minha  esperança  1 

Se  ver-vos  nessa  Cruz  me  falecera 

Donde  morrer  quereis  por  quem  vos  mata, 

Ai !  triste  de  mim,  triste  que  fizera  ? 

A  puro  sangue  vosso  se  resgata 
A  minha  salvação ;  custa-vos  cara, 
E  Vós  oftereceis-ma  tão  barata ! 

Novo  caso  de  amor!  quem  penetrara 
Quanto  s'encerra  em  passo  tão  estreito  1 
Fere-vos,  meu  Senhor,  o  que  me  sara. 

A  mim  que  tantos  erros  tenho  feito, 
A  mim  tão  cego,  duro,  secco,  e  frio 
Os  braços  estendeis,  abris  o  peito  ? 

Pouco  faço,  Senhor,  se  me  confio 

Nos  extremos  de  amor,  que  me  mostrais ; 

Posto  que  de  Vós  tanto  me  desvio. 

Que  em  fim  Vós  me  dizeis  que  não  chamais 
Justos,  mas  miseráveis  peccadores ; 
Inda  que  outro  nenhum  possa  ser  mais. 

Eu  confesso  que  sou  o  mór  dos  mores ; 
Accuso-me  por  tal,  qual  Vós  sabeis ; 
Alembrai-vos  da  dor  de  vossas  dores, 
Vosso  sou,  meu  Senhor,  não  me  engeiteisl 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  gS 


ELEGIA  IV. 

Na  tribulação  de  huma  pessoa  amiga. 

Quero  chorar-me  agora  aqui  cercado 
De  plantas,  e  penedos  nesta  Serra ; 
Pois  não  tenho  de  quem  seja  chorado. 

Cruel  me  foi  a  minha  própria  terra 
Em  que  nasci;  cruel,  e  deshumano 
O  sangue  meu,  que  nella  me  fez  guerra. 

Movido  de  tão  claro  desengano, 
Desconfiado  vim  de  nunca  mais 
Tornar  a  confiar  em  peito  humano. 

Mas  o  que  me  faltou  nos  naturaes. 

No  peito  que  busquei,  ah !  verdes  plantas ! 

Que  tal  ouvis  contar,  que  não  seccais ! 

O  Senhor  me  quis  dar  além  de  tantas 
Graças  numa  alma  só  em  terra  alhea 
Nascida  d'outras  mais  entranhas  santas. 

Por  isso  se  esta  minha  aqui  prantêa 
Com  tão  estranha  dôr,  tão  soltos  gritos, 
He  pela  ver  de  tantas  magoas  chea. 

Não  me  lembram  meus  males  infinitos^ 
Desgostos  nenhuns  já  neste  meu  peito 
Trago,  senão  os  seus  agora  escritos. 

Oh  !  Virgem,  se  não  foi  meu  rogo  aceito 
A  Vós  para  aliviar  de  tantas  dores, 
Das  lagrimas,  que  choro,  havei  respeito  1 


96  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Se  Vós  servos  fazeis  dos  peccadores, 
Como  não  cuidarei  que  me  fareis 
Vosso,  posto  que  seja  o  mór  dos  mores. 

Vós  sois  A  que  por  mim  offereceis 

A  quem  vistes  morrer  por  me  dar  vida 

Quantos  dos  meus  suspiros  comprendeis. 

Já  vo-la  tenho,  Virgem,  offerecida ; 
Peço-vos  que  tenhais  delia  lembrança. 
Pois  não  pôde  de  mim  ser  esquecida. 

Em  Vós  tenho,  Senhora,  a  confiança, 
Que  tudo  lhe  dareis  quanto  deseja ; 
Que  quem  em  Vós  confia  tudo  alcança. 

Não  he  justo,  Senhora,  que  lhe  seja 

Menos  firme,  fiel,  menos  leal. 

Por  mais  longe  que  delia  agora  esteja. 

Que  bem  pouco  aproveita,  pouco  vai 
Não  poderem  ver  olhos  o  que  querem 
Para  diminuir  firmeza  tal. 

Façam,  desfaçam  tudo  o  que  quiserem ; 
Que  tolher  se  não  podem  saudades 
D'amor,  que  por  amor  divino  ferem. 

As  justas  bem  fundadas  amizades. 
Que  só  Christo  Jesus  tomam  por  guia, 
Não  se  desfazem,  não,  com  novidades 

Mudanças  de  tristeza,  ou  d'alegria 
De  tempo,  de  lugar,  longe,  nem  perto 
Nunca  mudarão  ser  do  que  soía. 

Quantas  lagrimas  cá  neste  deserto 
Tenho  por  tua  causa  derramadas 
Por  te  encerrar  naquelle  peito  aberto? 


I 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cru2  97 

Naquelles  pés,  e  mãos  na  Cruz  pregadas, 

Naquellas  cinco  Chagas  do  Senhor, 

De  quem  tantas  mercês  tens  alcançadas ; 

Que  não  podes  teus  olhos  nella  pôr, 
Que  não  fique  tua  alma  consolada, 
Seja  atribulação  quamanha  fôr. 

Enfim  se  viver  queres  descansada, 
Da  lança,  cravos,  Cruz,  e  da  Coroa 
D'espinhos  sempre  vive  trespassada. 

Outra  cousa  na  vida  te  não  doa ; 
Noutra  não  vás  buscar  contentamento, 
Confuso  donde  quer  qu'esta  não  soa. 

Não. faças  doutra  cousa  fundamento, 
Não  deixes  passar  nunca  levemente 
Outra  nenhuma  pelo  pensamento. 

Qualquer  pequena  dor  do  mal  presente 
Não  vos  deixa  sentir  quamanho  bem 
He  soôrer  por  Deos  tudo  alegremente. 

Bem  cegos  são  os  olhos,  que  não  vem 
Quanto  podem  durar  gostos  humanos. 
Com  tantos  quantos  seus  desgostos  tem. 

Passam  dias,  e  meses,  passam  annos, 

A  vida  com  o  tempo  vai  fugindo, 

E  nós  dos  seus,  ou  nossos  desenganos. 

Assi  se  nos  vai  tudo  consumindo; 
Assi  de  mal  em  mal  imos  cavando 
A  negra  terra,  que  nos  vai  cobrindo. 

"Quantas  vezes  me  deixo  ir  suspirando 
Aqui  por  esta  Serra  só  comtigo, 
E  quantas  tu  comigo  só  chorando ! 


98  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


He  muito  pouco  tudo  quanto  digo; 
He  muito  mais  do  que  podes  cuidar, 
Se  sabes  estimar  tamanho  amigo. 

Bem  pôde  falecer  agoa  no  mar, 

Bem  podem  deixar  pedras  de  ser  duras, 

Mas  tu  não  deixarás  de  me  lembrar. 

As  amizades  d'alma  são  seguras : 
No  Ceo  não  pode  haver  senão  pureza 
De  cousas  muito  claras,  muito  puras. 

A  rocha,  que  de  sua  natureza 

Em  todo  o  tempo  está  firme,  e  segura, 

Não  me  faz  aventagem  na  firmeza. 

Nascem  algumas  plantas  na  espessura 
Do  bosque,  que  por  calma,  nem  por  frio, 
Nunca  perdem  já  mais  sua  verdura. 

Não  deixa  de  correr  o  claro  rio 
Por  encontrar  com  duras  penedias, 
Antes  nellas  se  faz  mais  corredio. 

O  Senhor  te  dê  tantas  alegrias, 
Quantas  aqui  lhe  peço  de  contino : 
Elle  nos  faça  arder  noites,  e  dias 
No  seu  divino  amor,  amor  divino. 


ELEGIA  V. 

Da  Ingratidão. 

Claras  agoas  nascidas  das  entranhas 
De  tão  duras,  desertas  penedias. 
No  meio  de  tão  ásperas  montanhas. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  99 

Se  vós  me  segurais  que  estas  sombrias 
Plantas  não  perderão  sua  verdura, 
Nem  vós  o  curso  vosso,  oh !  agoas  frias ! 

Direi  o  galardão,  que  da  brandura 
Da  minha  condição  tenho  alcançado 
De  toda  a  viva  humana  creaiura. 

Trazia  o  meu  salteiro  temperado 

O'  som  do  gosto  alheo ;  aqui  cantava 

Sem  me  lembrar  de  mim,  nem  ser  lembrado. 

Na  ribeira,  no  valle,  em  que  pastava, 

Rosas,  lirios,  violas  repartia  ; 

E  com  menos  quinhão  me  contentava. 

Sabe  Deos  quantas  vezes  as  colhia 
Em  lagrimas  banhadas,  sabe  quanto 
Sangue  d^s  carnes  minhas  as  tingia ! 

Se  no  bosque  soava  o  doce  canto 
Do  livre  passarinho,  longe  ou  perto, 
Soava  muito  mais  meu  triste  pranto. 

Ajudavam-me  os  montes  do  deserto 

A  chorar,  e  gemer  o  mal  alheio ; 

Que  farão  quando  o  meu  fôr  descoberto  ? 

Dum  mal  noutro  maior  a  tanto  veio 
A  fera  ingratidão  dum  noutro  peito, 
Que  deixou  este  meu  de  magoas  cheio. 

Cheguei  a  ver-me  em  passo  tão  estreito, 

Que  quasi  duvidei  se  consentira 

Em  me  pesar  do  bem,  que  tinha  feito. 

Ah !  quem  não  tivera  olhos  com  que  vira 
Tomar  hum  coração  ingrato,  e  duro, 
Armas  com  que  de  novo  se  ferira  1 


100  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Bem  sei  que  já  não  posso  estar  seguro 
De  me  doer  do  mal,  que  outrem  padece , 
Porque  me  obriga  amor  por  amor  puro. 

Mas  tanto  cresce  a  dor,  tanto  mais  cresce 
A  magoa  de  trocar  minha  esperança ; 
Que,  se  me  não  perturba,  me  entristece. 

Quem  tão  mal  empregou  a  confiança 
Não  se  espante  da  dôr,  que  assi  lastima, 
Antes  de  haver  no  mal  tanta  tardança. 

Primeiro  me  queixei  junto  do  Lima-, 
Agora  muito  mais  junto  do  Tejo : 
Pouco  me  aproveitou  mudar  o  clima. 

Não  soube  limitar  o  meu  desejo ; 
Cuidei  que  quanto  mais,  tanto  melhor; 
Não  vi  que  do  bem  máo  faz  o  sobejo. 

Nas  hervas  nasce  folha,  fructo,  e  flor, 
Nas  ovelhas  a  lã,  na  palha  o  trigo, 
No  coração  ferido  nova  dôr. 

Não  sei  para  que  quero  ser  amigo ; 
Pois  só  pura  amizade  me  faz  guerra, 
E  nenhum  outro  mal  pôde  comigo  ? 

Fallo  da  que  no  meu  peito  se  encerra, 
De  que  em  lugar  de  fructo  colho  espinhas: 
Ah  1  doudo,  que  mais  tem  que  dar  a  terra  1 

Daquellas  esperanças,  que  sostinhas. 
Cuja  magoa  de  novo  inda  pranteas. 
Que  menos  do  que  vês  já  visto  tinhas? 

Porque  te  cegas  mais,  porque  te  enleas  ? 
Que  esperas  de  colher  das  pedras  duras, 
Donde  plantas  amor,  donde  sêmeas  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Aquellas  saudosas  fermosuras, 
Que  fazem  refinar  alma  em  pureza, 
Enxergam-se  em  mui  poucas  creaturas. 

Não  soífre  amor  divino  que  dureza 
Dure  no  coração,  donde  se  accende; 
Que  seu  he  mudar  nossa  natureza. 

O  que  mais  puramente  amar  pretende 
Quanto  mais  ama  só,  tanto  mais  ama  ; 
Que  enfim  o  repartido  menos  rende. 

O  rio,  que  correndo  se  derrama, 

Mais  tarde  ciiega  ó  mar,  que  vai  buscando : 

A  planta  sobe  mais  com  menos  rama. 

Ah !  quanto  mal  me  faz  hum  ser  tão  brando ! 
Que  com  peitos  humanos  toda  minha 
Quietação  estou  despedaçando, 
Sem  proveito,  sem  cura,  nem  mezinha. 


ELEGIA  VI. 

Estando  na  Arrábida. 

Agora  que  de  todo  despedido 
Nesta  Serra  da  Arrábida  me  vejo 
De  tudo,  quanto  mal  tinha  entendido; 

Com  mais  quietação,  livre  desejo, 

Nella  quero  cavar  a  sepultura, 

Que  não  junto  do  Lima,  nem  do  Tejo. 

Aqui  com  mais  suave  compostura 
Menos  contradição,  mais  clara  vista 
Verei  o  Creador  na  creatura. 


102  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

As  forças  cresceram  com  que  resista 
A  dizer-vos  humanos  pensamentos, 
Para  que  dos  divinos  só  me  vista. 

Naquelles  mais  fermosos  aposentos 
Repouso  buscarei  acompanhado 
Doutros  mais  saudosos  sentimentos. 

De  plantas,  de  penedos  rodeado, 

Que  não  perdem  verdura,  nem  firmeza 

Por  tempo  em  tempo  mais  destemperado. 

Renovarei  motivos  de  tristeza, 
Para  mais  suspirar,  considerando 
A  sujeição  da  fraca  natureza. 

Dum  valle  noutro  valle  vagueando, 
Hum  lugar  buscarei  medonho,  escuro, 
Donde  comigo  só  me  este  queixando. 

Quão  triste  ficarei,  e  quão  confuso ! 

De  ver  aves,  e  feras  desculpadas 

De  culpas,  que  não  sei,  como  me  accuso! 

Por  meio  dos  rochedos  semeadas 
Verei  dependurar  silvestres  plantas 
Verdes  em  pedras  duras  sustentadas. 

Quantas  cousas  verei,  maiores  quantas 
De  cuja  creação,  de  cujo  objecto 
Resultam  confusões  tantas,  e  tantas  ? 

Se  aqui  não  derreter  neste  meu  peito 
A  congelada  neve,  em  que  me  esfrio, 
Mal,  a  que  já  de  longe  estou  sugeito, 

Em  qualquer  outra  parte  desconfio 

Da  minha  pretensão-,  pois  qualquer  leve 

Cousa  cortar  me  deve  o  fraco  fio. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  io3 

Que  fructo  colher  pôde  nesta  breve 
Vida  quem  para  a  morte  vai  correndo 
Sem  nunca  descansar,  que  mais  releve  ? 

Se  pelo  largo  mar  olhos  estendo, 
Se  nestas  penedias  os  penduro, 
Ora  subindo  o  sol,  ora  descendo, 

Certificado  mais,  muito  mais  puro. 
De  todo  se  resolve  o  pensamento. 
Que  quanto  mais  deserto,  mais  seguro. 

Discorrendo  dum  noutro  fundamento, 
Huma  vez  me  perturbo,  outra  m'indigno*, 
Outra  com  puras  magoas  arrebento. 

Poderoso  Senhor,  manso,  benino. 
Quem  pôde  penetrar  mercês  tamanhas. 
Recebidas  de  Vós  desde  minino ! 

Que  campos,  que  ribeiras,  que  montanhas 
Pastei,  passei,  subi,  com  vossa  ajuda 
Por  terras  naturaes,  e  por  estranhas ! 

Oh !  como  se  converte,  rende,  e  muda 
Aquella  alma  ditosa  que  trespassa 
De  amor  celestial  a  setta  aguda  1 

Quão  leve,  quão  ligeira  voa,  e  passa 
Pelos  laços  sutis  da  vida  humana; 
E  como  na  divina  se  compassa ! 

Na  doce  perenal  fonte,  que  mana 
Do  Ceo,  toda  banhada  se  recrea. 
Segura  de  tocar  noutra  profana. 

O  que  nos  largos  campos  se  passea, 
Subindo  nesta  Serra  se  caminha 
Atalhando  o  que  nelles  se  rodea. 


104  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Oh !  Serra  das  estrellas  tão  vizinha, 
Quem  nunca  de  ti,  Serra,  se  apartara ! 
Ou  quando  se  partira  esta  alma  minha 
Da  terra,  nesta  tua  me  enterrara  ? 


ELEGIA  VII. 

Ao  fim  da  vida. 

Como  cisne,  que  canta  na  ribeira, 
O  repouso  da  vida  festejando. 
Que  sente  naquella  hora  derradeira ; 

Eu  que  da  minha  já  me  vou  cercando 

Aqui  quero  cantar  ( se  cantar  deve 

Quem  deve  dentro  d'alma  andar  chorando). 

Adonde  vai  parar  a  vida  breve, 
Convertida  a  velhice  em  mocidade, 
Huma  pesada  tanto,  outra  tão  leve  ? 

Com  quanta  confusão  se  persuade 
A  nossa  depravada  natureza 
A  seguir  a  mundana  vaidade? 

Oh !  quão  cega  se  deixa  levar  presa 
Dum  falso  gosto  seu,  dum  vão  desejo ! 
Qual  convertido  em  dor,  qual  em  tristeza : 

Eu  do  Lima  me  vim  pastar  ó  Tejo; 
Depois  detrás  da  Serra  nas  salgadas 
Agoas,  que  para  mim  tão  doces  vejo. 

Ajudam-me  a  chorar  culpas  passadas ; 
Das  que  se  representam  me  defendem 
Nas  lapas,  que  por  tempo  tem  lavradas. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  io5 

As  suas  roucas  ondas  me  reprendem 
De  não  considerar  taes  aposentos, 
Quaes  levar,  e  lavrar  sempre  pretendem. 

Convida-me  a  criar  remordimentos 

A  limpeza  daquellas  penedias, 

Mais  limpas  do  que  são  meus  pensamentos. 

Em  quantas  cousas  mais  por  tantas  vias 

Acho  tantos  motivos  de  afrontar-me 

Por  ser  que  todas  mais  de  entranhas  frias  ? 

Pôde  quem  tudo  pôde  melhorar-me, 
Tanto  no  que  pretendo,  inda  que  indigno, 
Que  sinta  de  amor  seu  todo  abrazar-me. 

Suave,  doce  meu  amor  divino, 
Aqui  donde  vim  ter,  como  sabeis, 
Acabar  suspirando  determino. 

Suspiro  porque  nunca  me  deixeis 
Apartar-me  de  Vôs  hum  só  momento, 
Nem  já  mais  Vôs  de  mim  vos  aparteis. 

Bem  vos  posso  allegar  merecimento 

Da  morte,  e  paixão  vossa,  antes  da  minha, 

Da  minha  redempção,  vosso  tormento. 

Inda  vossa  bondade  me  não  tinha 
Formado,  Senhor  meu,  quando  morrestes 
Por  me  salvar  na  Cruz,  que  vos  sostinha. 

Alli,  manso  cordeiro,  ofierecestes 
Nas  mãos  dos  cruéis  lobos  vossa  vida, 
Que  tirada,  tirar-lha  não  quisestes. 

Abriram-vos  no  peito  huma  ferida ; 
Quatro  nos  pés,  e  mãos,  depois  que  estava 
Vossa  carne  de  açoutes  já  delida. 


io6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

A.  piedade  então  donde  morava 
Aquella,  que  quebrou  as  pedras  duras, 
Que  corações  humanos  não  quebrava  ? 

Eis  o  sol  perde  a  luz,  fica  ás  escuras : 
Rompe-se  o  véo  do  Templo ;  a  terra  treme ; 
Os  mortos  vivos  saem  das  sepulturas. 

Quem  não  chora,  Deos  meu,  suspira,  e  geme ! 
O'  quem  de  pura  dor  não  arrebenta ! 
Quem  toma  mais  na  mão  remo,  nem  leme ! 

Que  me  colha  no  mar  huma  tormenta, 
Ficando  a  salvação  posta  em  perigo, 
Podendo  lograr  pobre  vida  isenta? 

Desn'  hoje  mais  parente,  nem  amigo 
Me  busque,  nem  me  falle,  nem  me  veja ; 
Tanto  me  dá  moderno  como  antigo. 

Tudo  me  cansa  Já,  tudo  me  peja, 
E  pouco  basta  já  para  soster 
O  pouco  que  da  vida  me  sobeja. 

A  praia  tem  marisco  que  comer 
Amêijoas,  bribigões  na  branca  arêa. 
Que  facilmente  posso  revolver. 

A  pedra  que  dos  mares  se  rodea, 
Chea  de  lapas  pardas  apparece, 
De  negros  mixilhôes  mda  mais  chea. 

A  vermelha  santola  não  falece, 
Outro  com  seu  pé  curto  revirado. 
Seu  não,  antes  de  cabra  me  parece. 

E  quando  se  mostrar  muito  alterado 
O  mar,  que  seu  marisco  me  defenda, 
O  bosque  está  daqui  pouco  afastado. 


Obras  de  Fr,  Agostinho  da  Cruz  107 

Quer  suba  a  planta  nelle,  quer  se  estenda, 
Escolherei  no  ramo  o  mais  maduro 
Fructo  sem  damno  alheo,  e  sem  contenda. 

E  se  caçar  quiser  eu  pelo  escuro 

( Deixo  na  arribação  dos  passarinhos  ) 

A  pouco  na  pobreza  me  aventuro. 

Que  bem  sei  enlaçar  pelos  caminhos 
Huns  animaes  que  trazem  na  cabeça 
Dois  ramos  cada  qual  cheios  de  espinhos. 

E  se  na  larga  praia,  ou  mata  espessa 
O  premio  falecer  do  meu  trabalho ; 
Não  temo  que  de  cima  me  faleça. 

Não  me  posso  perder  por  este  atalho; 
Posto  que  tarde  vou,  que  não  perderão 
Por  tarde  os  desta  vinha,  em  que  trabalho, 
Na  qual  os  derradeiros  precederão. 


ELEGIA  VIII. 

Da  ausência  justa  conjugal. 

Se  neste  apartamento  me  faltara 
Hum  desejo  enganado  de  esperança, 
A  vida  consumida  me  deixara. 

Quanto  lastima  mais,  quanto  mais  cansa 
Cuidar  que  faço  offensa  a  amor  tão  puro, 
Que  não  pôde  sofFrer  desconfiança  ? 

Inda  que  me  não  pôde  dar  seguro 

Aceso  em  peitos  nossos  differentes, 

Que  sempre  o  da  mulher  he  menos  duro. 


io8  Obras  de  Fr,  Agostinho  da  Cruz 

Veja-se  nos  extremos  dos  absentes 

Quem  pôde  resistir  a  saudades. 

Quem  lagrimas  seccar,  tristes  correntes  ? 

Em  tantas,  e  tão  feras  tempestades, 
Quem  pôde  assossegar,  para  que  conte 
Adversas,  e  diversas  novidades. 

Tristes  dos  olhos  tristes,  que  defronte 
Vem  branquejar  d'além  huma  sô  parte, 
Escurecer  d'aquem  o  raio  ao  monte ! 

Que  licença  me  dá,  para  que  aparte 
A.  vista,  brando  amor,  donde  m'encerra, 
Se  em  parte  outra  nenhuma  se  reparte  ? 

Deixem-me  caminhar  a  breve  terra. 
Que  não  podem  tolher  o  pensamento; 
Verão  quão  pouco  temo  inglesa  guerra. 

Formara  horrível  som  fero  instrumento, 
Reluzira  de  perto  o  ferro  imigo, 
Faltara-me  da  absencia  o  sentimento. 

Se  para  me  livrar  de  môr  perigo 
Se  foi,  e  me  deixou,  não  o  deixando , 
Errou  não  me  levar  antes  comsigo. 

Que  mal  se  fica  a  vida  segurando, 
Quando  de  dor  se  vai  mais  consumindo, 
Sempre  numa  só  cousa  imaginando  ? 

Poderá  divertir-me  vendo,  e  ouvindo 

Do  mal  que  está  por  vir,  não  do  presente, 

Que  sem  ver  nem  ouvir-me  está  ferindo. 

Se  me  concede  amor  tão  justamente 
Não  ter  meu  coração  do  seu  diviso. 
Porque  lhe  não  defende  estar  absente  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  109 

Não  sei  para  que  mais  contemporizo. 
Temendo  que  dirão  quando  me  fôr: 
—  A  triste  por  amor  perdeu  o  siso. 

Ficarei  por  ventura  então  pior, 
Ficando  do  meu  mal  remediada 
Pondo  por  obra  as  leis  do  justo  amor. 

Que  possa  ser  de  néscios  mal  julgada, 
Quero :  que  de  prudentes  reprendida 
Não  me  será  melhor  que  sepultada? 

O  que  me  dilatou  esta  partida, 
Não  sofire  dilação  já  neste  estado; 
Que  se  vai  esgotando  a  triste  vida. 

Quem  fez  amor  igual  mais  libertado 
Ah !  triste !  que  não  sei  quanto  he  igual ; 
Pois  nisto  o  sinto  enfim  desigualado ! 

Que  presta,  de  que  serve,  que  me  vai 
No  nosso  apartamento  hum  pinhor  certo  ? 
Por  certo  que  inda  foi  para  mór  mal. 

Que  viva  na  cidade,  ou  no  deserto, 
Quando  lhe  dei  a  minha  mão  direita. 
Não  se  apontou  tal  cousa  no  concerto. 

Queres-me  consolar,  pouco  aproveita, 
Usando  de  palavras  de  brandura  ? 
Pois  a  vista  não  fica  satisfeita. 

Não  sei  qual  outra  mór  desaventura 
Possa  criar  em  mim  maior  tristeza. 
Que  ser  firme  sem  ser  de  pedra  dura. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Ah !  quem  trocar  pudera  a  natureza ! 
Imitando  da  planta  a  folha  leve, 
E  da  rocha  mais  dura  mór  dureza. 

Que  firme,  e  brando  peito  não  se  atreve 
A  poder  resistir  a  mal  tamanho, 
Quamanho  delle  a  absencia  mo  descreve. 

As  lagrimas  de  amor,  em  que  me  banho, 
Testimunhas  me  sejam  do  que  sinto ; 
Pois  por  obedecer  não  acompanho. 

Nesta  tamanha  magoa  ás  vezes  pinto 
Cruel  o  meu  amor,  ah !  quem  pudera, 
Sonhar  este  só  bem,  que  não  consinto ! 

Por  ventura  que  assi  me  defendera : 
Fosse  por  breve  espaço  neste  peito, 
Onde  o  fogo  repousa  em  branda  cera. 

Que  mal,  meu  justo  amor,  te  tenho  feito, 
Que  me  negas  a  vista  doce,  e  branda 
Minha,  e  tanto  minha  por  direito  ? 

Não  vês  que  se  quiser  fazer  demanda, 

Manifesta  justiça  me  sobeja  ? 

Não  vês  que  a  lei  de  Deos  assim  o  manda? 

Manda  que  adonde  estás  também  esteja, 
Tu  que  estejas  adonde  estar  me  mandas; 
Agora  ordena  tu  como  isto  seja, 

—  Não  queiras  que  antre  nós  haja  demandas. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


VILANCETE. 

Que  desculpa  pôde  dar 

Amor  a  quem 

Passando  deixou  áquem  ? 

Que  poderá  succeder 

Por  mais  mal  que  succedera, 

Que  menos  mal  não  soífrera 

Do  mal,  que  possa  soíFrer  ? 

Que  tem  mais  que  bem  querer 

Quem  quer  bem 

Sem  dar  desculpa  a  ninguém  ? 

Eu  não  sei  que  Amor  me  manda 

Se  manda  que  não  te  sig.i, 

Menos  seja  quem  te  obriga. 

Pois  me  deixas  desta  banda. 

A  mim  só  amor  abranda, 

Não  a  quem 

Se  foi,  e  deixou-me  áquem. 


ELEGIA  IX. 

A  morte  de  seu  irmão  Diogo  Bernardes. 

Claras  agoas  do  nosso  doce  Lima, 
Seccou  no  Tejo  já  vossa  corrente, 
Onde  me  sécca  a  dôr,  que  me  lastima. 

Lembranças  de  vos  ver  suavemente 
Correr  ó  som  da  voz,  que  em  vós  soava, 
Não  me  deixarão  já  viver  contente. 


lia  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Lembra-me  a  tenra  idade  que  passava, 
Logrando-me  daquella  companhia, 
A  quem  tanta  brandura  acompanhava. 

Lembra-me  quantas  vezes  succedia 
Das  plantas,  e  das  fontes  convidados 
Aceitar  sombras  frescas,  agoa  fria. 

Outros  mil  pensamentos  renovados 

A  magoa  me  ofFerece,  imaginando 

Que  nunca  hão  de  tornar  tempos  passados. 

Fique-se  o  mundo  já  desenganado. 

Que  não  se  abranda  a  morte  com  brandura; 

Pois  a  não  abrandou  teu  peito  brando. 

Que  mór  consolação,  que  mór  ventura 
(  Antes  quanto  favor  de  Deos  alcança ) 
Quem  dá  na  vida  á  vida  sepultura  1 

Ah !  claro,  e  charo  Irmão !  que  confiança 
Me  fica  neste  passo,  saber  certo 
Que  tinhas  lá  no  Geo  tua  esperança ! 

Sabias  que  da  morte  andavas  perto. . . 
Perto  também  de  Deos  a  desejavas, 
Como  dantes  me  tinhas  descoberto. 

Que  nem  sempre  do  Lima  praticavas. 
Nem  sempre  cá  no  Tejo  só  comigo, 
Nem  tudo  era  poesia  o  que  tratavas. 

Eras  além  de  irmão  mais  meu  amigo 
Por  me  veres  do  mundo  despedido, 
Cujos  males  chorar  vinhas  comigo. 

Tinhas  chorado  assaz,  tinhas  gemido 
O  tempo  vão  da  verde  mocidade, 
Na  velhice  madura  conhecido. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  1 13 

Não  se  deixa  sentir  a  vaidade 
No  principio  da  vida  grangeada, 
Quando  contra  razão  reina  vontade. 

Dum  gosto  noutro  falso  encaminhada, 
Não  sofFre  mais  ouvir,  do  que  deseja, 
Nem  sabe  desejar  cousa  acertada. 

He  necessário  pois  que  se  proveja 
D'alheo  parecer  na  causa  sua ; 
Porque  na  sua  o  seu  sempre  manqueja. 

Mas  porque  mais  não  note,  nem  argua 
Os  defeitos  comrauns  da  natureza, 
Dos  meus  quero  tratar  na  morte  tua. 

Eu  cuidava  bastar  a  fortaleza 

Da  solitária  Serra,  em  que  eu  habito, 

Para  fortalecer  minha  fraqueza. 

Mas  nella  se  abalou  mais  meu  esprito. 

Que  chorando  não  fica  consolado 

Nas  lagrimas  de  amor,  em  que  se  banha. 


ELEGIA  X. 

Ao  mesmo. 

Junto  das  bravas  agoas  Oceanas 
Choro  quanto  cantei  na  mocidade 
O'  som  daquellas  mansas  Limianas ; 

Daquellas,  que  já  foram  noutra  idade 
Com  nome  de  Letheas  celebradas 
Por  lhes  faltar  do  curso  a  liberdade. 


1 14  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  estando  tanio  tempo  represadas, 
O  tempo  lhes  deu  nome  d'esquecidas, 
Até  lho  dar  Bernardes  de  lembradas. 

Mostrai-vos,  claras  agoas,  tão  sentidas, 
Quanto  vos  deu  Bernardes  de  brandura, 
Vejam-vos  de  correr  ficar  corridas. 

Deixai  seccar  nos  campos  a  verdura, 
Como  já  nos  do  Tejo  se  seccou, 
Por  darem  a  Bernardes  sepultura. 

Mostrai  mais  do  que  nelles  se  mostrou ; 
Pois  o  ser  natural  mais  vos  obriga, 
Além  de  quanto  mais  vos  obrigou. 

Cuidai  que  não  se  achou  memoria  antiga, 
Que  tanto  vosso  nome  celebrasse. 
Quanto  não  faltará  quem  melhor  diga. 

Ainda  que  se  agora  não  deixasse 
De  lhe  dar  o  louvor  que  se  lhe  deve. 
Não  faltaria  quem  me  desculpasse. 

Mas  quem  tão  differente  do  que  teve 
A  vista  dos  seus  olhos,  desencolhe, 
Quanto  mais  quer  louvar,  menos  se  atreve. 

Que  de  humanos  louvores  não  se  colhe 

Outro  fructo,  senão  remordimento 

De  quem  semea,  e  mais  de  quem  recolhe. 

Podera-me  abalar  o  sentimento 
Da  fraca  humanidade  noutra  terra, 
Não  nesta,  em  que  só  pobre  vivo  isento. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  ii5 

Mettido  numa  lapa  desta  Serra, 
Que  tenho  que  esperar  ou  que  temer 
Nos  successos  da  paz,  ou  nos  da  guerra? 

A  morte  já  não  tem  que  me  empecer, 
A  vida  pouco  já  deve  durar, 
A  conta  não  me  fica  por  fazer. 

Poderam-se  os  gentios  quietar, 
Sem  gosto  da  christã  filosofia, 
Com  gostos  desta  vida  desprezar. 

Quanto  mais  o  que  delles  se  desvia, 
Escolhendo  o  melhor,  e  mais  seguro, 
Por  outra  mais  suave,  e  doce  via  ? 

Onde  se  faz  mais  claro  o  mais  escuro, 
Onde  muito  mais  leve  o  mais  pesado, 
Onde  muito  mais  brando  o  que  mais  duro. 

Onde  se  o  pé  descalso  he  magoado, 
Se  cura  com  lembrar  que  seu  Senhor 
O  foi  nos  pés,  e  mãos,  cabeça,  e  lado. 

A  tanto  se  estendeu  o  Redemptor, 
Que  pelo  meu  trocou  seu  amor,  sendo 
O  seu  de  Deos,  o  meu  de  peccador. 

Daqui  não  sei  passar,  aqui  suspendo, 
Quanto  posso  alcançar,  quanto  sentir; 
Pois  que  me  vejo  amar  de  quem  offendo. 

Donde  posso  acabar  de  concluir. 

Que  quando  não  puder  chegar  amando. 

Suprirei  com  desejos  de  servir. 


1 16  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Pôde  ser  que  se  abrande,  desejando, 
Tanto  no  peito  meu  minha  dureza, 
Que  de  duro  se  venha  a  fazer  brando. 

Para  que  sinta  esta  alma  em  fogo  accesa 
Tanto  quanto  mais  nelle  arder  deseja, 
Sem  mais  contradição  da  natureza, 
Da  que  divino  amor  quiser  que  seja. 


EPIGRAMMA. 

Á  morte  de  hum  moço. 

Alma  já  tão  ditosa  entre  as  ditosas, 
Em  paz  goza  de  quem  lá  te  levou, 
Livre  das  mortaes  ondas  furiosas, 
Que,  posto  que  esta  minha  suspirou 
Por  ti  com  muitas  outras,  saudosas. 
Não  se  esquece  de  dar  a  Deos  louvores, 
Por  não  fiar  do  vento  as  brandas  flores. 


Outro  ao  mesmo. 

Tamanha  foi  a  dor,  a  magoa  minha. 
Que  me  queixei  do  Ceo,  porque  levava 
O  seu,  que  para  si  na  terra  linha. 
Havê-lo  de  levar  não  duvidava, 
Mas  sofFre  mal  amor  ser  tão  asinha. 
Levar  o  Ceo  o  seu  não  foi  crueza. 
Mas  que  farei  ás  leis  da  natureza  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  117 


ODA  I. 

As  mudanças  do  tempo. 

Largos  campos  do  Tejo, 

A  cuja  vista  crescem 
Tristes  queixumes  de  cruéis  lembranças; 

As  flores  que  em  vós  vejo 

Alegres  me  entristecem, 
Por  ver  que  são  sugeitas  a  mudanças. 

As  minhas  esperanças, 

Que  tinha  por  seguras, 

Já  não  tornarão  mais, 

Que  como  vos  seccais 
Assi  me  deixam  ellas  ás  escuras. 

Ah  !  leves  fundamentos  ! 
Flores  que  seccas  levam  leves  ventos ! 

O  mal  que  não  se  espera 

Traz  outro  mór  comsigo, 
Que  não  pôde  ser  bem  remediado. 

Conheço  que  devera 

De  imaginar  comigo, 
Que  sécca  agoa  na  fonte,  herva  no  prado*, 

Mas  inda  neste  estado 

Todas  as  magoas  minhas 

Me  não  deixam  morrer: 

Não  vemos  nós  nascer 
Rosas  muito  fermosas  nas  espinhas  ? 

Assi  na  mór  crueza 
Se  apura  muito  mais  toda  firmeza. 

Se  tão  suavemente 
O  passarinho  canta, 
Movido  só  da  sua  saudade  *, 


ii8  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  fará  quem  se  sente 

Magoado  de  tanta 
Misturada  com  faltas  de  amizade  ? 

Mudanças  da  vontade, 

Que  pena  mereceis 

Por  serdes  argumento 

Dum  novo  sentimento 
Maior  que  quantos  males  me  fazeis  ? 

Triste  de  quem  se  engana 
Com  folha,  que  o  sol  secca,  o  vento  abana ! 

Se  no  valle,  ou  na  serra. 

Povoado,  ou  deserto, 
Minha  alma  sem  o  bem  doutra  deseja 

Algum  gosto  na  terra. 

Quer  seja  longe,  oú  perto, 
Sem  quantas  cabras  tenho  inda  me  veja ! 

Por  mais  verde  que  seja, 

Se  seque  a  verde  planta, 

O  sol  me  seja  frio, 

Não  ache  agoa  no  rio, 
Se  quero  mais  que  ver  huma  alma  santa, 

Buscando  de  contino 
Com  tão  puro  desejo  amor  divino. 

Confio  só  naquellas 

Chagas,  que  padeceu 
Por  todos  meu  Senhor  liberalmente, 

Que  por  cima  de  estrellas 

No  Empiréo  ceo 
Viveremos  com  elle  eternamente. 

Meu  Deos  Omnipotente, 

Vós  só  por  nossa  guia, 

Sem  viva  creatura. 

Na  vossa  fermosura 
Abrazai  duas  almas  noite,  e  dia ; 

Por  vós  arcam,  Deos  nosso. 
Arcam  de  puro  fogo  d'amor  vosso. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  119 

Não  julgue  mal  ninguém, 

Não  será  condemnada 
A  tenção,  com  que  julga  o  que  não  deve ; 

Veja  primeiro  bem, 

Se  tem  tenção  damnada 
Aquelle  que  julgar  outrem  se  atreve. 

Faz  o  juizo  leve 

Da  verdade  mentira  ; 

Faz  muitas  differenças, 

Torcer  muitas  sentenças ; 
Faz  amolar  o  ferro,  faz  que  fira. 

Ditoso  quem  padece 
Alegremente,  quanto  se  oflerece  1 


ODA  II. 
A  D.  Diogo  Lopes  de  Lima. 

Senhor,  se  me  esquecera 

Da  minha  natureza, 
A  quem  nunca  se  nega  o  que  se  deve, 

Ainda  que  correra 

Com  sua  agoa  mais  tesa 
O  Lima,  que  de  seu  tão  branda  a  teve ; 

Não  passará  tão  leve 

Por  elle  o  pensamento, 

Que  não  fora  forçado, 

Sentindo-me  obrigado 
A  pagar  o  devido  sentimento 

A'  minha  saudade  •, 
Pois  para  amar  não  falta  liberdade. 

Daqui  d'antre  estes  montes 
Tão  pobres  de  verdura, 
Como  nunca  vos  vejo,  .de  alegria, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Dos  novos  orizontes 

Antiga  fermosura 
Ora  me  inflama  todo,  ora  me  esfria : 

Não  ha  noite,  nem  dia 

Na  vida,  que  tornasse; 

Inda  que  desviado 

Do  curso  acostumado 
O  carro  de  seu  pai  já  governasse 

Faeton,  desejoso 
De  fazer  seu  imigo  mentiroso. 

Não  sei  para  que  cansa 

Quem  sempre  mais  deseja, 
Se  não  morre  de  fome,  nem  de  frio  ? 

De  que  serve  a  privança 

Por  mais  alta  que  seja, 
Se  nunca  com  os  meus  olhos  me  rio? 

Por  força  corto  o  fio*, 

Porque  outrem  me  não  corte 

Do  meu  próprio  gosto, 

Todos  me  dão  de  rosto. 
Té  que  vem  a  quebrar  pelo  mais  forte. 

Então  me  desengano. 
Que  basta  pouco  pão,  e  pouco  panno. 

He  muito  differente 

Do  que  ó  longe  apparece 
O  verde  bosque  visto  de  mais  perto! 

Nem  para  toda  a  gente 

Mais  fermoso  apparece 

O  dia  pelos  valles  do  deserto! 

Quantas  vezes  desperto 

Gritando  ó  nosso  Lima 

Porque  se  não  consuma 

No  mar,  como  costuma, 
Pois  livre  correr  pôde  para  cima? 

Quem  vos  visse  apartadas. 
Doces  agoas  do  Lima,  das  salgadas ! 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i»i 


ODA  III. 
A  Francisco  Barreio  de  Lima. 

O  tempo  que  fugindo 

Com  tamanhas  mudanças 
Desengana  quem  nelle  se  confia, 

Abatendo,  e  subindo 

Diversas  esperanças. 
Me  faz,  Lima,  cuidar  o  que  faria 

Se  faltasse  agoa  fria, 

Se  me  escusasse  a  tua, 

Por  mais  clara  que  seja  1 

Quem  me  tolhe  que  veja 
Claro  de  dia  o  sol,  de  noite  a  lua, 

Buscando  a  fermosura 
De  quem  fez  tão  fermosa  a  creatura  ? 

Confias  na  corrente 

Com  que  te  vás  ó  mar ; 
Lima,  meu  doce  Lima,  onde  feneces  ? 

Olha  quam  brevemente 

Salgadas  vás  tomar 
As  doces  agoas  nelle,  com  que  deces  1 

Se  do  tempo  te  esqueces. 

Em  que  te  faltou  agoa 

Para  livre  correr ; 

He  muito  de  temer, 

Que  chores  outra  magoa, 

E  por  ventura  quando 
Não  tenhas  quem  comtigo  este  chorando. 

Posto  que  por  ribeiras 
De  verdes  arvoredos. 


it2  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Por  cima  d'alvos  seixos  vás  correndo, 

As  arêas  primeiras, 

Que  por  antre  penedos 
D'huns  noutros  murmurando  vás  volvendo, 

Em  montes  vão  crescendo, 

As  hervas  afogando, 

Que  não  deixam  dar  fruito. 

A  mim  custa-me  muito 

Andar  desareando, 

Vendo  por  culpa  alhea 
Os  tristes  olhos  meus  cheios  de  área. 

Por  mais  claro  que  saias 

Da  tua  fonte  clara, 
Lima,  também  de  limo  vás  coberto. 

O  campo  donde  espraias, 

Seu  fruito  não  negara, 

Se  de  todo  ficara  descoberto. 

Rústicos  lavradores 

Colhem  o  que  Deos  cria; 

Eu  não  duvidaria. 

Que  fruito  dessem  flores 

Orvalhadas  de  cima  ; 
Pois  quanto  a  terra  dá  no  Geo  se  lima. 

Aquelle  que  deseja 

O  que  por  si  não  pôde, 
Aquillo  ha  de  buscar  com  que  se  alcança. 

Não  pôde  ser  que  seja 

O  que  mais  tarde  acode, 
Pelo  menos  sem  culpa  de  tardança. 

Quem  sofre  outrem  descansa, 

Mil  vezes  se  arrepende, 

Outras  tantas  se  queixa, 

Que  em  mãos  alheas  deixa 
Aquillo,  que  alcançar  tanto  pretende. 

Erra  quem  se  grangea, 
Devendo  ser  a  sua  á  custa  alhea. 


J 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i23 

Que  me  presta  que  faça 

Por  mim,  por  almas  santas, 
Ainda  muito  mais  do  que  me  pedes  ? 

Pôde  ser  maior  graça, 

Que  chorar  quando  cantas  ? 
E  que  para  ti  peça  o  que  m'impede  ? 

Alembre-te  que  medes, 

E  que  has  de  ser  medida ; 

Regista  com  a  vida 

O  que  tenho  pedido, 

Verás  que  se  dilata 
A  petição,  que  pedes  tão  barata. 

Orou  o  Sacerdote 

No  templo  do  Senhor 
Por  Anna  reprendida,  e  mal  julgada ; 

Orou  ella  de  sorte, 

E  com  tanto  fervor, 
Que  sua  petição  foi  outorgada. 

Oração  ajudada 

De  quem  n'ade  lograr 

He  muito  mais  aceita. 

Quem  a  dormir  se  deita 

Que  espera  d'alcançar? 

Alma,  que  está  disposta, 
As  mercês  do  Senhor  tem  por  resposta. 

A  força  do  desejo, 

Que  não  soffre  razão, 
Sepultada  no  gosto  a  que  se  entrega, 

Ordena  mal  sobejo. 

Que  dor  de  coração 
E  não  poder  valer  a  quem  desejo ! 

A  vaidade  pega, 

A  malicia  crece. 

Adulação  governa. 

Gloria,  e  pena  eterna 

Na  vida  se  merece. 


124  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Duas  almas  num  Lima ! 
€  Bisogna  questa  mia  salvar  prima  ». 
Vai  confiado,  vai  donde  te  mando, 

Duro  papel,  ou  brando^ 
Que  no  fogo  de  amor  tudo  se  apura, 
E  noutro  muito  pouco  se  aventura. 


ODA  IV. 
Na  condição  da  vida  humana. 

Verdes  bosques  da  Serra 

Por  antre  penedias 
Por  mãos  da  natureza  repartidos. 

Que  me  fica  na  terra 

No  fim  já  de  meus  dias, 
Tristes  tão  nesciamente  consumidos, 

Se  não  dobrar  gemidos 

Envoltos  na  lembrança 

De  tamanha  cegueira, 

Pois  que  na  flor  primeira 
Trabalhei  por  cortar  minha  esperança  ? 

Ah !  quem  se  consumira 
Desta  magoa  primeiro  que  cahira ! 

Por  mais  que  se  combata 

Com  furiosos  ventos, 
O  mar  fora  não  sahe  do  limitado*, 

A  creatura  ingrata 

Com  leves  movimentos 
Se  desmanda  do  que  lhe  está  mandado ! 

Oh !  desventurado. 

Triste  modo  de  vida! 

Iniiga  liberdade ! 

D'amor  suavidade. 


A 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  laS 

Que  meus  peccados  deixam  destruída ! 

O  mar  guarda  a  lei  sua  ; 
Mas  eu,  Senhor,  não  guardo  a  minha,  e  tua! 

Os  montes  levantados, 

Os  valles  abatidos 
No  seu  lugar  antigo  permanecem 

Em  parte  avantejados; 

Pois  que  não  compungidos 
Do  sentimento  d'alma  que  carecem; 

E  com  tudo  obedecem 

Com  nunca  se  mover, 

Movendo-me  á  tristeza. 

Diversa  natureza 
Da  sua,  a  que  não  turba  obedecer ! 

Livres  montes,  e  valles 
De  sentir,  e  gemer,  de  chorar  males. 

Nas  feras,  e  nas  aves, 

Posto  que  sensitivas, 
Alheas  de  sentir  perda  tamanha. 

Acho  cousas  tão  graves, 

Tão  desconsolativas, 
Que  a  mesma  confusão  me  desentranha. 

Tanto,  que  na  montanha 

Por  tudo  quanto  vejo 

Me  desejo  trocar. 

Por  ver  melhor  guardar 
A  lei,  que  contradiz  o  meu  desejo. 

Criado  nestas  feras 
Entranhas  d'aves  mais,  mais  que  de  feras. 

Inda  nas  pedras  duras, 

Na  sorte  differentes 
Da  minha,  muito  mais  dest'alma  imiga, 

Não  se  criam  branduras 

Passadas,  e  presentes, 
Onde  por  hum  descuido  se  periga  ; 


126  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


A  sua  lei  antiga 

Guardando  firmemente 

Sem  mais  contradição 

Da  sua  condição, 
Desta  minha  me  fazem  descontente, 

Que  sendo  no  bem  dura, 
No  mal  só  por  meu  mal  cria  brandura. 

Ai  triste  que  desculpa  ! 

Ou  qual  fingida  escusa 
Darei  da  vida  minha  mal  gastada  ! 

Eis  o  mar  que  me  culpa ; 

A  terra,  que  me  accusa, 
Mostrando  merecer  pena  dobrada. 

Toda  cousa  criada 

Me  afronta,  e  me  reprende 

Com  justiça  sobeja. 

Toda  me  faz  inveia, 
E  toda  finalmente  me  suspende 

Vendo-me,  e  nella  vendo 
Que  louva  o  Greador,  a  quem  offendo. 

Oh !  quanto  mais  se  aggrava 

Aqui  neste  deserto 
A  triste  confusão  da  culpa  minha ! 

Pois  quando  imaginava 

Tamanho  desconcerto 
Poder  remediar,  quamanho  tinha ; 

Deste  lugar  me  vinha 

Huma  doce  lembrança. 

Que  me  dava  seguro 

Deste  meu  peito  duro, 
Que  como  dantes  inda  aqui  me  cansa. 

Que  lugar,  ou  que  parte 
Acharei,  que  de  mim  mesmo  me  aparte ! 

Que  presta,  que  aproveita 
Fazer-se  mil  mudanças 


k 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  127 

No  trajo,  na  feição,  e  no  pacigo  ? 

Que  faz  quem  tudo  engeita, 

Quem  perde  as  esperanças 
Do  mundo,  se  se  perde  assi  comsigo? 

Se  acabara  comigo 

Fazer  apartamento 

De  mim,  como  fizera 

Se  mais  força  pusera 
Na  decomposição  do  pensamento 

Quamanho  bem  lograra  ? 
Em  quantos  grãos  d'amor  me  levantara  ? 

Mas  pois  que  tal  me  sinto, 

Que  não  sinto  resguardo 
Em  mim  para  escapar  do  que  mereço, 

Que  se  promeíto,  minto; 

E  se  não  minto,  tardo ; 

E  tardando,  de  todo  desfaleço. 

A  Vós,  meu  Senhor,  peço 

Graça,  favor,  ajuda. 

No  que  tanto  me  vai ; 

Pois  a  folha,  que  cahe 
No  chão,  da  verde  planta,  não  se  muda 

Sem  vossa  permissão, 
Quanto  mais  hum  pesado  coração ! 

Como  pai  piedoso 

Em  tudo  liberal, 
Fácil  em  perdoar,  manso,  benigno, 

De  mim  tão  vicioso. 

Fero  bruto  animal. 
De  cada  vez  mais  fero,  e  mais  maligno, 

De  toda  pena  dino. 

Vos  mova  á  piedade 

O  muito  que  softresles 
Vestido  desta  nossa  humanidade, 

Pregado  num  madeiro, 
Antre  lobos  cruéis  manso  cordeiro. 


128  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


EPITÁFIO. 

A  huma  fermosa  n'alma,  e  no  corpo. 

Aqui  debaixo  desta  pedra  dura 
Hum  corpo  se  converte  em  terra  fria 
Da  mais  suave,  e  branda  creatura, 
De  quantas  me  mostrou  a  luz  do  dia. 
Bem  claro  se  vio  nelle  a  fermosura 
D'alma,  que  para  o  Geo  sempre  subia, 
Sem  nunca  na  tormenta,  ou  na  bonança 
Faltar  á  paciência,  ou  temperança. 


CARTA  I. 

Em  reposta  á  de  seu  irmão  Diogo  Bernardes. 

Se  tanto  penetrou  toda  a  «dureza 
O  som  do  teu  suave,  e  doce  canto, 
Que  fará  numa  branda  natureza  ? 

Culpas  o  meu  amor,  e  dizes  quanto  ; 

Me  tinhas ;  muito  foi ;  não  sei  se  diga, 
Que  tenho  agora  mais  sempre  outro  tanto. 

A  lei  do  Redemptor  não  desobriga,  i 

A  quem  a  professou,  ser  obrigado  ^ 

Daquillo,  que  a  razão  humana  obriga.  í 

t. 
Se  quis  que  nosso  imigo  fosse  amado, 
Como  não  quererá  que  nosso  amigo 
Seja  no  mesmo  amor  avantejado  ? 


\ 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  129 

Não  sinto  que  passasse  mór  perigo 
Para  carecer  desta  liberdade, 
Que  desejar  viver  só  lá  comtigo. 

Tamanha  força  tinha  a  saudade 
De  leve  mininice  bem  gastada 
Após  da  tua  grave  mocidade. 

Então  só  foi  de  mim  mais  estimada 
Sobre  todas  as  mais  esta  esperança, 
Quanto  d'altos  espritos  cubicada. 

Trazia-a  pendurada  da  lembrança, 
Que  na  vista  dos  bosques  não  parava . 
Oh  !  gosto  d'outra  firme  confiança  1 

Assi  tinhas  de  teu  o  que  buscava 
Noutros,  que  se  moveram  de  interesse, 
Cuja  nódoa  na  vida  mal  se  lava. 

Ah !  claro,  e  charo  irmão,  quem  te  cá  desse 
Com  essa  tua  voz  antre  esta  Serra, 
Que  tão  altos  conceitos  não  perdesse  1 

Ora  suave  paz,  outr'ora  guerra 

Cruel,  mas  necessária,  contarias 

A  quem  divino  amor  busca  na  terra. 

No  pasto  da  tua  alma  sentirias 
Doçuras  de  tamanhas  novidades, 
Que  tu  mesmo  de  ti  te  esquecerias. 

Nascem  no  sentimento  estas  verdades, 
Mal  as  pôde  dizer  quem  as  não  sente, 
E  pior  quem  sentir  taes  saudades. 

Das  plantas,  que  regou  tua  corrente, 
Outro  fructo  não  tens,  outro  não  colhes, 
Senão  queixar-te  em  vão  da  estéril  gente. 


i3o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Acolhe-te  a  quem  sempre  te  recolhes, 
Não  faças  d'outra  cousa  fundamento, 
Mais  boninas  do  campo  não  desfolhes. 

Guardar  a  Lei  de  Deos  he  mantimento ; 
O  ter  menos  do  mundo,  mais  seguro; 
O  suspirar  por  Deos,  contentamento. 

Não  temas  que  te  falte  no  futuro 
A  provisão  daquelle,  que  manteve 
Com  pão  celestial  povo  tão  duro. 

Muito  mais  tem  de  seu,  quem  tanto  teve, 
De  quem  lhe  deu  fugir  dos  que  confiam 
Naquillo  de  que  mais  fugir  se  deve. 

Os  lirios  do  campo,  que  não  fiam, 
Vestidos  de  tamanha  fermosura 
Vejamos  com  os  olhos  que  não  viam. 

Do  que  não  semeou  na  terra  dura 
O  passarinho  colhe  com  licença 
Do  Creador  de  toda  a  creatura. 

Tardar  quero  que  julgues  por  oíFensa 
E  não  ( sem  to  dizer )  pôr  em  eíFeito 
Teu  próprio  parecer,  tua  sentença. 

Que  guardados  trazia  no  meu  peito 
Muitos  conselhos  sãos,  que  tu  me  deste, 
Para  no  torto  andar  sempre  direito, 

Lembram-me  aquelles  versos,  que  escreveste 
Naquella  Egloga  antiga  saudosa, 
Onde  tanto  a  pobreza  enriqueceste. 

Pois  olha  agora  quanto  mais  ditosa 
Hum'alma  por  seu  Deos  pobre  seria ; 
E  quanto  nos  seus  olhos  mais  fermosa ! 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i3i 

Nesta  nossa  christã  filosofia, 

O  Senhor,  que  de  graça  nos  sustenta, 

Diante  foi  de  nós  por  nossa  guia. 

Quem  após  elle  vai  na  mór  tormenta, 
Maior  quietação,  forças  maiores 
Para  mais  o  seguir  mais  accrescenta. 

Verdes  plantas  sombrias,  alvas  flores, 
Agoas,  que  mansamente  is  murmurando, 
Fermosos  orizontes,  novas  cores ; 

Amor,  que  por  amores  suspirando 
Não  podes  repousar  se  não  ardendo. 
Amor,  divino  amor,  meu  amor,  quando 

Em  ti,  por  ti,  comtigo  irei  sustendo 
Nos  hombros  da  minh'alma  minha  cruz, 
O  Lima  no  Leihêo  convertendo, 
Chamarei  por  Maria,  e  por  Jesus? 


CARTA   II. 

A  Dona  Branca. 

Gomo  queres  que  negue  a  teu  esprito, 
Branca,  serva  da  branca  Virgem  pura, 
Mostrar  o  que  me  pedes  por  escrito  ? 

Não  sei  eu  por  qual  outra  creatura 
Os  tristes  versos  meus  desenterrara 
Debaixo  de  tão  alta  sepultura. 


i3z  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mas  pois  de  branca  queres  fazer  clara, 

Aquella  luz  divina  te  esclareça, 

Que  nunca  a  bons  desejos  desampara. 

Não  imagines  cousa  que  te  deça 
Do  caminho  do  Geo  breve,  e  seguro, 
Por  mais  que  trabalhoso  te  pareça. 

Com  penas  immortaes  do  reino  escuro 
Não  te  quero  espantar ;  pois  seguir  queres 
A  Cruz  de  teu  Senhor  por  amor  puro. 

Que  podes  esperar,  por  mais  que  esperes, 
Do  mundo,  que  te  tem  desenganada, 
Que  te  pôde  faltar,  se  a  Deos  te  deres? 

Se  vires  que  por  tudo  deixas  nada. 
Por  nada  deixarás  o  que  descansa 
No  curso  desta  vida  tão  cansada. 

A  tanto  subirás  nesta  mudança, 

Que  não  haverá  dor,  por  mór  que  seja. 

Na  qual  não  cresça  mais  tua  esperança. 

Assim  de  culpas  minhas  eu  me  veja 
Tão  longe,  como  perto  essa  alma  tua 
Daquillo,  que  esta  minha  ver  deseja. 

Que  vás  após  de  quem  á  custa  sua 
Por  nos  levar  ó  Ceo,  donde  nos  chama, 
Na  terra  padeceu  morte  tão  crua. 

Hum  firme  coração,  que  em  Vós  se  inflamma, 
Ardendo  por  se  ver  de  Vós  amado, 
Por  vos  amar.  Senhor,  tudo  desama. 

Do  tempo,  que  gastei  tão  mal  gastado, 
Dera  melhor  razão,  do  que  daria 
De  vos  seguir,  Senhor  Crucificado ; 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i33 

Mas  nunca  a  fraca  voz  me  faltaria 
Para  dizer  do  mundo  a  falsidade. 
Gomo  quem  nelle  andou  cego  sem  guia. 

Levanta  os  olhos  teus  á  saudade 

Do  Summo  Bem  dos  bens,  e  nella  aprende 

Aquillo,  que  mais  fôr  sua  vontade. 

A  Fenis,  que  do  tempo  se  defende, 
Antes  que  lhe  faleça  força,  e  vida, 
No  fogo  se  renova,  em  que  se  accende. 

Não  se  põe  mais  a  rola,  carecida 

Do  seu  primeiro  amor,  em  verde  ramo ; 

Foge  da  fonte  clara  aborrecida. 

Testimunha  me  seja  por  quem  chanoo, 
Da  verdade  que  escrevo  brevemente 
Nos  versos,  que  por  seu  amor  derramo. 

Que  não  podes  sem  elle  ser  contente, 
Sem  elle,  que  dilata  seu  castigo. 
Por  não  negar  perdão  ao  penitente. 

Busca  falsas  razões  o  duro  imigo, 
Para  nos  impedir  que  de  mais  perto 
Possamos  contemplar  tamanho  amigo. 

Ah  !  braços  estendidos,  Lado  aberto  ! 
Quanto  se  sentem  mais  as  vossas  dores 
Nesta  quietação  deste  desejo  ! 

Nascem  nesta  aspereza  brandas  flores, 
E  nella  tão  suave,  doce  fruito. 
Como  tu  colherás,  como  lá  fores. 
Amando  muito  mais  quem  amas  muito. 


i34  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


CARTA  III. 

A  Francisco  Barreto  de  Lima  estando  preso» 

Andei  de  mes  em  mes,  de  dia  em  dia 
Buscando  hum'hora  só  desoccupada 
Para  satisfação  do  que  devia. 

E  quando  m'a  pintou  facilitada 

A  força  do  desejo  em  minhas  mãos, 

Nas  alheas  a  vi  renunciada. 

Más  se  não  pude  ser  dos  temporãos, 

Dos  serôdios  ser  posso  difterente, 

Pois  delles  huns  são  pobres,  outros  sãos. 

Quanto  padece  mais,  quanto  mais  sente 
O  que  não  pôde  ver  o  que  deseja, 
Desejando  de  ver  o  que  está  ausente  ? 

Causa  pôde  ser  tal,  que  a  mesma  seja, 
A  que  dous  peitos  mova  a  saudade ; 
Mas  que  num  delles  só  mór  parte  esteja. 

Não  foi  escasso  amor  de  liberdade. 
Quanto  de  forças  foi  a  natureza  •, 
Pois  sem  ellas  senhor  he  da  vontade. 

Ou  seja  n'alegria,  ou  na  tristeza 
De  mui  vários  successos  da  ventura, 
Aventurar  não  deixa  a  fortaleza. 

A  barbara,  infiel,  ingrata,  e  dura 
Terra  de  Berbéria,  que  negou 
A  tantos  esforçados  sepultura ; 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i35 

Inda  que  desta  nossa  te  apartou, 

Apartar  nunca  pôde  o  sentimento 

De  quem  sempre  de  cá  te  acompanhou. 

Poderá  desculpar  o  pensamento, 
Se  nesta  conjunção  se  descuidara. 
Por  ser  o  mal  de  pouco  soffrimento ; 

Poderá,  s'inda  agora  me  calara. 

Não  danar  outro  estilo  merecido, 

De  quem  melhor  nas  armas  te  louvara. 

Nas  armas  onde  estava  conhecido 
Esforço  em  tenra  idade,  antecipado, 
Nos  campos  africanos  repartido. 

Aquelle  esforço  teu  dos  teus  herdado, 
Que  dos  campos  do  Lima  se  estendeu 
A  vencer  os  que  o  Ganges  tem  regado. 

Ah !  quanto  neste  passo  se  moveu 
O  meu  coração  triste  a  suspirar ! 
Mas  seja  tão  somente  pelo  Ceo ! 

Pois  que  ninguém  na  terra  limitar 
Pôde,  quanto  de  nós  mais  determina; 
Quem  pôde  quanto  quer  determinar  ? 

Enquanto  esta  alma  nossa  peregrina. 
Com  tão  mal  inclinada  carne  unida. 
Que  de  mal  em  pior  sempre  se  inclina ; 

Convém  que  se  registe  a  breve  vida 
Pela  morte  por  quem  ella  se  mede, 
Não  respeitando  ser  desconhecida. 

A  quantos  impedio  matar  a  sede, 

Que  tinham  de  fartar  cruéis  intentos 

Que  a  lei  justa  de  Deos  tão  pouco  impede  ? 


i36  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

A  quantos  derribou  os  fundamentos 

De  seus  vãos  appetites  derivados  ? 

A  quantos  outros  tantos  pensamentos  ? 

Quão  ditosos,  quão  bem  considerados 
Os  dias  são  daquelles,  que  fugindo 
Pelos  desertos  vão  despovoados  ! 

Agora  do  coelho  vão  seguindo 

Os  passos  que  lhe  mostra  o  cão  ligeiro, 

Que  busca,  corre,  salta,  e  vai  latindo. 

Ora  se  vai  trepar  no  sovereiro, 
Donde,  sem  ser  ferido,  o  porco  fira, 
Que  por  ferir  escuma  no  terreiro. 

Ora  no  campo  raso  onde  se  estira 
O  galgo  após  da  lebre  fugitiva, 
No  cansado  rocim  se  ponha  á  mira. 

Ora  tome  caçando  a  perdiz  viva 

Das  mãos  do  seu  açor,  ou  do  seu  laço, 

Ficando  a  presa  dum,  doutro  capiiva. 

E  se  de  condição  for  mais  escasso, 
No  rio  vá  pescar  peixes  á  cana, 
Que  Marateca  tem  como  bagaço. 

Alli  pôde  caçar  toda  a  semana. 
Onde  não  pôde  ver  andar  á  caça 
Contra  divina  lei  malicia  humana. 

Nem  deve  parecer  mal  esta  traça 
A'  rara,  clara,  e  chara  companheira 
D'alma,  que  Deos  conserve  em  sua  graça. 
Ou  seja  em  Azeitão,  ou  na  Landeira. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  iSy 


MARTYRIO,  E  VIDA   DE   SANTA  GATHARINA. 

Penas,  tormentos,  dor,  e  fortaleza 
Cantar  quero  de  Santa  Catharina, 
Dotada  de  sciencia,  e  de  pureza, 
D'amor  celestial,  graça  divina, 
Cujo  favor  invoco  nesta  empresa, 
D'outra  mais  branda  voz,  mais  doce  digna ; 
Porque  danar  não  possa  ao  verso  rudo, 
De  rodas  de  navalhas  fio  agudo. 

No  tempo  que  Máxencio  Imperador 
Exercitava  sua  tyrannia, 
Imigo  dos  amigos  do  Senhor 
Christo  Jesu,  quem  elle  perseguia ; 
Procedendo  de  mal  para  pior. 
Posto  no  tribunal  de  Alexandria 
Mandou  que  a  todo  povo  se  escrevesse, 
Que  certo  dia  todo  alli  viesse. 

Com  somma  de  diversos  animaes 
Correm  a  sacrificar  solemnemente 
No  templo  de  seus  deoses  immortaes, 
Adonde  elle  queria  estar  presente 
Com  todos  de  seu  reino  principaes, 
Por  ser  o  sacrifício  differente 
De  quantos  tantas  vezes  feitos  tinha ; 
Aparelha-se  o  mais  como  convinha. 

Havia  na  cidade  huma  donzella 
De  rara  perfeição,  de  bello  rosto, 
Mas  na  pureza  d'alma  inda  mais  bella. 
Prudente  Virgem,  filha  d'ElRei  Costo, 
Que  vendo  prepararse  para  aquella 
Festa  vizinhos  seus  com  tanto  gosto, 


i38  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

O  verdadeiro  quis  buscar  á  custa 
Da  vida  com  disputa  clara,  e  justa. 

E  como  muitas  vezes  desejara 
Sacrificar  a  vida  a  quem  lha  dera, 
E  depois  de  lha  dar  inda  a  comprara, 
Quando  na  Cruz  por  todos  padecera  *, 
Com  tanto  fervor  d'alma  se  prepara 
A  dar-lhe  cem  mil  outras  se  as  tivera, 
Que  não  pôde  encobrir  naquelle  instante 
Quão  leda  dalli  parte,  e  quão  constante. 

Da  sua  gente  vai  acompanhada, 
Antes  em  companhia  mais  segura 
D'amor,  com  quem  se  tinha  desposada, 
Que  branda  lhe  fazia  aquella  dura 
Mão  do  cruel  Tyranno  alevantada. 
Para  dar  melhor  corte  á  formosura : 
Que  tal  não  tinha  vista  noutro  espelho. 
Qual  naquelle  cutello  assi  vermelho. 

Passa  por  animaes  brutos  atados, 

Que  pondo  os  olhos  nella  estão  bramando 

De  verem  com  seu  sangue  venerados 

Aquelles,  que  sem  fim  estão  penando ; 

Adonde  tendo  já  considerados 

Quantos  nos  erros  seus  se  estão  culpando, 

A  Maxencio  mandou  dizer  da  porta 

Do  templo:  que  fallar-lhe  logo  importa. 

Respondeu-lhe  Maxencio  que  importava 
Muito  mais  acabar  o  começado 
Sacrificio  dos  deoses,  em  que  estava 
Degolando  naquelle  manso  gado ; 
Mas  pois  a  mesma  causa  a  convidava 
A  festejar  o  dia  festejado, 
Que  entrasse  a  pôr  por  obra  o  seu  intento 
Por  não  perder  o  seu  merecimento. 


I 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  iSp 

A  Virgem,  que  levava  outro  conceito 
DifFerente  do  que  elle  presumio, 
Entrou  naquelle  templo,  açougue  feito 
Do  sangue,  em  que  o  Tyranno  se  tingio ; 
E  revolvendo  dentro  no  seu  peito, 
O  que  seu  doce  Esposo  lhe  imprimio, 
Com  brando  parecer,  sereno,  £  grave 
Começou  levantar  a  voz  suave. 

f  —  Oh  1  bárbaro,  cruel,  endurecido, 
Fero,  bruto,  animal,  cego  tyranno, 
Que  não  tens  nos  teus  erros  consentido, 
Por  deixar  de  entender  o  teu  engano 
Tão  manifestamente  conhecido, 
Se  não  por  te  prezar  de  deshumarto ; 
Pois  quando  néscio  foras  na  verdade, 
Deras  mostras  se  quer  de  piedade. 

c  Por  onde  podes  mal  dissimular 
A  tua  natureza  dura,  e  fera 
Exercitada  em  tão  sujo  lugar. 
Qual  outro  a  piedade  não  movera ; 
O  gosto  que  tu  levas  de  matar. 
Oh !  que  matando  mais  se  embravecera ! 
Chamas-te  Imperador,  e  não  attentas 
Que  figura  matando  representas  ? 

c  Mas  pois  tua  malicia  assim  te  cega 
Para  não  poder  ver  idolatrando, 
Como  quem  seu  juizo  cego  entrega 
A  cego,  que  seus  passos  vai  guiando. 
Manda  vir  á  disputa  quem  te  prega, 
E  verás  como  venço  disputando, 
Moça  de  tenros  annos,  sabedores ; 
Escolhe  de  teus  reinos  os  maiores. 

«  Verás  quão  pouco  basta  para  crer 
Que  não  soffre  razão  serem  honrados 


I40  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Por  deoses  homens  máos  de  máo  viver, 
Nem  menos  nos  altares  levantados 
Os  Ídolos,  que  tu  mandas  fazer 
De  pedra,  de  metal,  ou  páo  lavrados. 
Adora  quem  te  fez,  deixa  o  madeiro 
Que  tu  mandas  fazer  ao  carpinteiro. 

€  A  gloria,  o  louvor,  a  adoração 
A  Deos  Omnipotente  só  se  deve. 
Que  por  perfeiçoar  a  Redempção 
Universal,  na  Cruz  pregado  esteve ; 
Sem  cuja  sempiterna  permissão 
Não  se  move  na  planta  folha  leve. 
Põe  nelle  os  olhos,  tem  da  mão  o  ferro 
Envolto  em  sangue,  mais  nesse  teu  erro.  » 

Perturbado,  e  confuso  está  no  meio 
O  Tyranno  daquelles  argumentos. 
Da  dura  reprensão  que  dar-lhe  veio 
A  Virgem  reprovando  seus  intentos ; 
Sem  mais  outro  respeito  nem  receio 
Delle,  nem  dos  sagrados  aposentos ; 
Não  soube  como  delia  se  livrasse, 
Se  não  com  lhe  mandar  que  se  calasse. 

Recolhido  já  dentro  do  seu  paço, 

Depois  da  funeral  festa  acabada. 

Mandou  que  a  Virgem  fosse  em  breve  espaço 

Da  sua  imperial  parte  chamada ; 

A  qual  com  rosto  alegre,  e  grave  passo 

Honesta,  e  vergonhosa  presentada, 

Com  muita  confiança  escuta,  e  cala 

O  néscio  Imperador,  que  assi  lhe  falia : 

«  —  Quero  saber  que  letras  aprendeste, 
Teu  nome,  cuja  filha  és,  como  ousaste  ? 
Se  sabes  ponderar  o  que  fizeste 
Quando  tão  soltamente  reprendeste, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  141 

E  dos  immortaes  deoses  blasfemaste  ? 
Que  por  elles  te  juro  que  não  sei, 
Como  comtigo  a  mim  me  não  matei  »  ? 

«  —  Sou  filha  d'ElRei  Gosto  ( Gatharina 
Respondeu  )  desn'o  berço  doutrinada  *, 
Mas  logo  desprezei  a  tal  doutrina, 
Como  me  vi  com  Christo  desposada ; 
Porque  em  comparação  do  que  elle  ensina 
Todo  o  saber  do  mundo  fica  nada : 
Elle  criou  o  Ceo,  criou  a  Terra ; 
E  tudo  quanto  mais  nelle  s'encerra. 

«  As  letras  que  aprendi  d'homens  humanos 
Contradizer  se  podem  disputando; 
Mas  não  tão  manifestos  desenganos, 
Como  no  templo  estive  declarando; 
Devias  desistir  de  teus  enganos, 
Falsas  superstições  abominando 
Desses  teus  falsos  deoses  condemnados, 
Das  fúrias  infernaes  atormentados.  » 

Espantou-se  o  Tyranno  da  resposta, 
Que  da  boca  da  Virgem  tinha  ouvida, 
Avisada,  subtil,  e  bem  composta. 
Com  tanta  liberdade  repetida ; 
E  como  vê  que  a  tudo  estava  posta 
Até  perder  por  Christo  a  própria  vida, 
Começou  a  dizer  mil  desvarios, 
Que  a  Virgem  reprovou  como  sandios. 

E  por  não  se  atrever  a  mais  contenda, 
Vencido  finalmente  por  razões ; 
«  —  Eu,  disse,  buscar  quero  quem  te  renda. 
Que  a  mim  me  não  convém  tratar  questões : 
Antes  privar  da  vida,  e  da  fazenda 
Quem  sustentar  quiser  opiniões 


142  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Em  desprezo  dos  deoses  poderosos, 
A  quem  chamaste  falsos,  mentirosos.  » 

Entretanto  mandou  que  lha  pusessem 
No  cárcere  até  quando  se  juntassem 
Os  mores  sabedores  que  pudessem, 
Para  que  com  a  Virgem  disputassem, 
E  que  da  sua  parte  lhe  dissessem, 
E  dos  immortaes  deoses  exhortassem, 
Que  nisto  consistia  seu  Império, 
Ganhar  honra  perpetua,  ou  vitupério. 

Chegando  já  grão  numero  daquelles, 
Que  para  disputar  foram  buscados, 
Maxencio  começou  tratar  com  elles 
Aquillo  para  que  foram  chamados; 
E  que  considerassem  pender  delles 
Serem  seus  próprios  deoses  desprezados, 
O  seu  Imperador  posto  em  ventura 
De  mais  alegre,  ou  triste  creatura. 

E  como  quem  deseja  de  vencer 
Na  guerra,  lhe  parece  duvidoso 
Tudo  quanto  lhe  pôde  succeder, 
Imaginando  mais  industrioso 
Aquillo  de  que  mais  se  ha  de  prover 
Para  ficar  em  fim  victorioso ; 
Assi  quis  o  Tyranno  assegurar-se, 
Como  quem  não  queria  aventurar-se. 

Dizendo  a  todos  juntos,  que  teriam, 
Vencendo,  largos  prémios ;  mas  vencidos 
Com  gravíssimas  penas  pagariam 
Ficarem  os  seus  deoses  abatidos, 
E  que  por  esta  causa  se  deviam 
Aparelhar  com  todos  os  sentidos ; 
Pois  elle  também  nella  se  perdera. 
Se  o  mandá-la  calar  lhe  não  valera. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  143 

Hum  de  todos  aquelles  que  se  tinha 
Por  mais  avantejado  na  sciencia 
Diz  ao  Imperador  que  muito  asinha 
Tomaria  do  caso  experiência ; 
Posto  que  disputar  lhe  não  convinha 
Com  quem  tinha  tão  fraca  resistência ; 
Mas  que  elle  proporia  tão  profunda 
Questão,  que  não  houvesse  outra  segunda. 

Festejou  o  Tyranno  tão  immensa 
Soberba  do  Filosofo,  cuidando 
Abastar  este  só  para  que  vença 
A  Virgem  ante  o  povo  disputando. 
E  por  isso  mandou  que  sem  detença 
Se  fosse  sua  vinda  abreviando 
Desejoso  de  vê-la  qual  se  vira, 
Quando  vencido  delia  se  partira. 

Mas  antes  que  chegassem  á  cadêa, 

Aonde  Catharina  tinham  presa, 

De  luz  divina  foi  a  casa  cheia  ; 

EUa  de  mais  sciencia,  mais  firmeza, 

A  disputa  dos  sábios  não  recêa ; 

Que  de  vence  los  já  tinha  certeza 

Por  hum  Anjo  do  Geo,  que  lhe  mandou 

Aquelle,  em  cujas  mãos  se  encommendou. 

«  —  Oh!  Catharina  (disse)  teu  Esposo 
Por  mim,  seu  Anjo,  manda  visitar-te. 
Para  contra  este  numero  odioso 
De  sábios,  antes  néscios,  confortar-te, 
E  depois  por  martyrio  glorioso 
Com  elles  no  seu  reino  aposentar-te ; 
Dando-te  graças  taes,  tão  eminentes, 
Que  de  néscios  fazer  possas  prudentes. 

«  Alegra-te,  que  tens  a  Deos  propicio; 
Alegra-te  de  seres  tão  ditosa, 


144  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  fazendo  da  vida  sacrifício 
Farás  ess'alma  tua  mais  fermosa ; 
Alegre-te  tamanho  beneficio, 
Oh  !  Virgem  Gatharina  gloriosa  *, 
Lá  te  vou  esperar  no  Ceo  Empírio, 
Onde  tens  a  coroa  do  martyrio.  » 

Esta  visitação  celestial, 
Que  assi  deixou  a  Virgem  transformada 
Naquillo,  que  dizer  se  pôde  mal, 
Não  deu  lugar  Maxencio  a  ser  lograda, 
Que  logo  se  subio  no  Tribunal, 
Mandando  que  assi  fosse  apresentada 
Gatharina  antre  aquelles  escolhidos. 
Que  vinham  a  vencer,  não  ser  vencidos. 

Aquelle  principal  mais  arrogante. 
Que  da  victoria  fez  larga  promessa, 
Mostrando-se  mais  destro,  e  mais  constante, 
A  disputar  primeiro  se  arremeça, 
Propondo,  e  concluindo  num  instante 
Maravilhas  dos  deoses,  que  professa, 
De  Júpiter,  Apollo,  de  Neptuno, 
Vénus,  Minerva,  Geres,  Thetis,  Juno. 

Gatharina  que  estava  sobre  aviso, 
Além  do  natural,  outro  divino. 
Alegre  de  se  ver  posta  em  juizo 
Daquelle  Imperador  cego,  malino; 
Tão  claramente  prova  de  improvizo 
Hum  Deos  Eterno,  só  ser  Uno,  e  Trino, 
Que  não  somente  deixa  convertido 
O  sábio,  mas  á  morte  offerecido. 

Os  outros,  que  na  Virgem  contemplaram 
De  raras  perfeições,  altos  extremos. 
Todos  juntos  por  terra  se  lançaram 
Dizendo:  —  «  nós  também  nos  convertemos 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  145 


Dos  erros,  em  que  os  nossos  nos  criaram  \ 
Abasta  o  que  com  nossos  olhos  vemos ; 
Que  só  na  lei  de  Christo  verdadeira 
Pôde  lobos  vencer  huma  cordeira.  » 

O  Tyranno  que  vio  como  perdera 
Diante  do  seu  povo  a  confiança ; 
E  como  disputando  se  atrevera 
Huma  moça  fazer  leve  mudança  •, 
Naquelles  cincoenta,  que  escolhera, 
D:terminou  fazer  cruel  vingança, 
iMandando  que  queimassem  todos  quantos 
Por  hum  só  Deos  quisessem  perder  tantos. 

Os  verdadeiros  sábios,  que  então  viram 
Aparelhar-se  o  fogo,  não  s'esfriam, 
Antes  por  padecer  nelle  suspiram. 
Accrescentando  mais  outro,  em  que  ardiam ; 
Alegres  todos  juntos  se  partiram 
Da  Virgem,  que  ficar  alegre  viam, 
Dizendo:  t  Por  nós  roga  •.    Ella  dizendo: 
a  Encomendai  me  a  quem  vos  encomendo.  » 

Depois  que  para  o  Ceo  purificadas 
Se  partiram  aquellas  cincoenta 
Almas,  por  Catharina  encaminhadas, 
O  Tyranno  de  novo  prova,  e  tenta 
Com  palavras  de  amor  affeiçoadas, 
(Que  seu  desejo  vão  lhe  representa) 
Sc  pôde  por  qualquer  via  que  seja 
A  Virgem  converter,  como  deseja. 

Ella  que  nada  mais  delle  pretende, 
Martyrio,  que  favor,  morte,  que  vida ; 
Com  tão  duras  palavras  o  reprende, 
Que  lhe  faz  vomitar  a  concebida 
Fúria  de  huma  paixão,  em  que  s'accende 
Pela  vêr  cada  vez  mais  atrevida. 


146  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Dizendo :  •  Quero  ver  se  com  tormentos 
Abrandar  posso  teus  atrevimentos. 

Seja  com  duras  vergas  açoutada 
Até  que  das  blasfémias  se  desdiga, 
Em  que  perseverou,  como  obstinada 
Dos  deoses  immortaes  cruel  imiga. 
Amostra-se  da  lei  desobrigada  ? 
Da  piedade  a  lei  me  desobriga. 
Não  fique  membro  são,  nem  sangue  nelle, 
Nem  sobre  suas  carnes  fique  pelle.  » 

Quaes  lobos  vigiando  dos  outeiros, 
Que  viram  sem  pastor  a  mansa  ovelha. 
Famintos,  furiosos,  e  ligeiros 
Da  pelle  branca  vão  fazer  vermelha : 
Taes  foram  os  algozes  carniceiros. 
Tanto  que  a  voz  soou  na  sua  orelha 
Da  boca  do  Tyranno,  que  não  ca-nsa 
De  bradar  contra  aquella  ovelha  mansa. 

Mas  ella  nos  tormentos  florecendo, 
Como  lirio  nos  valles  regadios, 
Tanto  mais  na  firmeza  vai  crescendo, 
Quanto  de  sangue  mais  crescem  os  rios. 
Eis  o  Tyranno  vai  desfalecendo 
Do  furor,  desfalecem  os  sandios 
Ministros  seus,  cansados  de  ferir 
Quem  mais  ferida  os  faz  mais  confundir. 

Vendo  Maxencio  já  forças,  e  manhas, 
Desprezadas  daquella,  que  lançava 
Pela  rotura  fora  das  entranhas 
Aquelle  resplendor,  que  dentro  estava ; 
Obrando  maravilhas  tão  estranhas, 
Que  todo  aquelle  povo  se  abalava. 
Mandou  que  par'  o  cárcere  tornasse. 
Até  que  algum  martyrio  se  inventasse. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  147 

A  fama  que  voava  deste  peito 
Augusta  Imperatriz  moveu  contrita 
A  visitar  naquelle  carcer'  estreito 
Catharina,  que  n'alma  tinha  escripta. 
E  para  poder  pôr  isto  em  efteito 
O  capitão  Porfírio  solicita, 
Que  com  duzentos  seus  secretamente 
Augusta  a  Catharina  s'apresente. 

Entrando  na  prisão,  antes  soltura, 
Adonde  Catharina  se  recrea. 
Contemplando  naquella  formosura, 
De  cuja  saudade  estava  chea, 
Tamanho  resplendor,  tanta  doçura 
Naquelles  circumstantes  se  semea, 
Que  confessam  a  lei,  cujos  effeitos 
São  brandura  de  amor  em  duros  peitos. 

t  Oh !  dito  a  Senhora,  quaes  amores 
Em  tão  duras  prisões,  taes  asperezas, 
Augusta  disse,  criam  brandas  flores 
Crescendo,  quanto  mais  no  fogo  accesas ! 
Quaes  olhos  podem  ser  merecedores 
De  ver  á  sua  luz  cousas  defesas, 
Não  vos  tendo  servida  por  Senhora, 
Serva  de  outro  Senhor  que  vos  namora  ? 

•  De  mim,  e  destes  vossos,  que  comigo 
A  verdadeira  lei  seguir  queremos, 
Convertidos  no  nosso  error  antigo. 
Que  com  suspiros  d'alma  lavaremos, 
Vos  alembrai.  Senhora,  que  não  digo 
O  gosto,  com  que  todos  morreremos ; 
Mas  que  outro  mór  Tyranno  tomaria, 
Se  noutro  pôde  haver  mór  tyrannia  ?  » 

t  Augusta  Imperatriz,  e  todos  quantos 
(Respondeu  Catharina)  t'acompanham, 


148  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Ditosos  escolhidos  entre  os  Santos, 

Que  por  seu  Deos  no  seu  sangue  se  banham : 

Os  tyrannos  cruéis  não  podem  tantos 

Tormentos  inventar,  quantos  se  ganham 

Eternos  bens,  morrendo,  e  desejando 

Que  cresçam  penas,  gloria  accrescentando. 

Antes' de  poucos  dias  lá  naquellas 

Celestiaes  moradas  vivireis, 

Passeando  por  cima  das  estreilas, 

Adonde  mais  fermosas  vos  vereis, 

Que  quanta  formosura  creou  nellas 

Aquelle,  por  quem  vós  padecereis 

Com  tanta  fortaleza,  esforço  tanto. 

Que  seja  gloria  a  Deos,  ó  mundo  espanto.  » 

Firmes,  e  consolados  se  apartaram 
Da  Virgem,  que  no  cárcere  onze  dias 
Sem  mantimento  as  guardas  encerraram; 
Mas  o  Senhor  mandou  por  outras  vias, 
Que  por  suas,  humanas  não  serraram: 
Hunia  pomba  lhe  traz  taes  iguarias, 
Que  quando  foi  levada  ao  tribunal 
De  quaes  ellas  seriam  deu  sinal. 

O  doce  Esposo  seu,  que  não  se  esquece 
De  quem  nas  suas  mãos  se  sacrifica, 
Tão  claro,  e  tão  fermoso  lhe  apparece, 
Consola,  esforça,  anima,  e  fortifica ; 
Que  não  cárcer,  mas  gloria  lhe  parece 
Aquelle,  onde  de  amor  mais  presa  fica, 
Desejando  de  ver-se  no  tormento 
Hum  não,  mas  que  d'hum  só  se  façam  cento. 

Porfiando  outra  vez,  prova  tentá-la 
Com  palavras  Maxencio,  com  branduras, 
Pois  não  podem  tormentos  abrandá-la. 
«  Que  tentas,  ou  que  intentas,  que  procuras. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  149 

Mover  hum  coração,  que  não  se  abala 
Por  amor  ou  temor  das  creaturas  ?  » 
(Respondeu  Gatharina )  tão  isenta, 
Que  elle  só  dar-lhe  morte  prova,  e  tenta. 

Hum  dos  seus  cubiçoso  de  privança, 
Conforme  a  seu  senhor  na  natureza, 
Prometteu  de  fazer  leve  mudança 
Naquella  constantíssima  Princesa, 
Assegurando  sua  confiança 
Num  tormento  inventado  da  crueza, 
Composto  dumas  rodas  rodeadas  • 

De  navalhas  espessas  aguçadas. 

Posta  já  no  tormento  que  moveram 
Os  algozes,  porque  ella  se  movesse, 
Em  pedaços  as  rodas  se  fizeram, 
Sem  que  tocar  algum  nella  podesse ; 
Matando  aquelles  néscios,  que  quiseram, 
Que  no  tormento  a  Virgem  fenecesse  ^ 
O  povo  que  esperava  a  prova  disto 
Confessa  por  seu  Deos  a  Jesus  Christo. 

O  Tyranno  blasfema,  grita,  e  brama 
De  ver  ficar  a  Virgem  tão  serena. 
Destruindo  dos  deoses  honra,  e  fama, 
E  zombando  de  quanto  elle  lhe  ordena. 
A  fúria  no  seu  rosto  se  derrama, 
Encobrindo  no  peito  quanta  pena 
Lhe  dá  vêr  o  seu  povo  alvoroçado, 
A  risco  de  perder  o  seu  estado. 

E  querendo  seguir  a  morte  injusta 
Na  Virgem,  que  nas  penas  se  deleita ; 
Eis  Porfirio  lhe  clama,  eis  clama  Augusta 
Dizendo :  i  Imperador,  que  te  aproveita 
Atormentar  a  Santa  pia,  e  justa 
Nas  obras,  e  palavras  tão  perfeita  ? 


i5o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Pede-lhe,  que  te  ensine,  como  possas 
Saber  o  que  ensinou  ás  almas  nossas.  » 

O  furioso  então  Maxencio  volta 
Contra  sua  mulher  a  fúria  sua, 
E  contra  o  capitão  Porfírio  solta 
Palavras  com  pregão  de  morte  crua. 
Eis  recrece  no  povo  outra  revolta, 
Com  que  o  triste  Tyranno  mais  se  encrua, 
Por  ver  duzentos  inda  no  martyrio 
Companheiros  de  Augusta,  e  de  Porfírio. 

A  Virgem,  que  da  terra  para  o  Ceo 

Tantas  almas  primeiro  vio  subir ; 

Da  saudade  delias  se  venceu 

De  modo,  que  não  soube  resistir 

(,Ao  bem,  que  dos  bens  delias  pretendeu,) 

Ás  queixas  de  mais  tarde  se  partir; 

Mas  o  seu  doce  Esposo,  a  quem  se  queixa, 

Dilatar  sua  morte  mais  não  deixa. 

Permittindo  que  fora  da  cidade 
Logo  fosse  levada  a  degolar. 
Achando  nos  algozes  liberdade 
Facilmente  de  tempo  para  orar ; 
Onde  pede  á  divina  Magestade, 
Que  seu  corpo  lhe  mande  sepultar 
Naquelle  santo  monte,  donde  deu 
A  lei  santa  a  Moisés,  privado  seu. 

Depois  que  se  acabou  aquella  breve, 
E  final  oração  da  Virgem  Santa, 
O  Ministro  cruel  não  se  deteve 
Em  sepultar  o  ferro  na  garganta, 
Do  qual  correndo  leite  branco  esteve; 
Milagre  de  que  o  povo  mais  se  espanta 
Por  ver  hum  corpo  morto,  que  criava 
Com  leite  aquellas  almas,  que  guardava. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i5i 

Do  seu  fermoso  corpo  degolado 

Aquella  alma  ditosa  despedida 

Nos  braços  repousou  do  seu  Amado, 

Em  cujo  amor  se  tinha  derretida. 

O  corpo  foi  dos  Anjos  sepultado 

Na  parte,  que  lhe  fora  concedida 

Por  Virgem,  e  por  Martyr,  e  por  Sabia, 

No  naonte  de  Sinai,  monte  de  Arábia. 

Sobre  o  t  Flevit  amare  ». 

Aquelle  bom  Pastor,  que  conhecia 
Na  fraqueza  do  seu  medroso  gado, 
Como  dos  cruéis  lobos  fugiria 
Quando  ficar  o  visse  preso,  atado. 
Seus  olhos,  quando  já  mais  não  podia, 
Negar  não  quis  áquelle,  que  negado 
O  tinha,  porque  nelles  enxergasse 
Qu'inda  o  receberia,  se  tornasse. 

Ah !  Pedro,  quanto  mais  te  magoou 
Daquelles  claros  olhos  a  brandura. 
Que  chorar  teu  peccado  te  ensmou ! 
Ensinou-te  a  buscar  a  cova  escura, 
Que  d'outra  mais  escura  te  livrou. 
Onde  também  cahiras  porventura 
Assim  como  cahio  teu  companheiro. 
Hum  por  cubicar  vida,  outro  dinheiro. 

Que  vida  foi  aquella  que  cuidavas 
Que  vivendo  melhor  conservarias  ? 
Pois  pelo  mesmo  caso  que  negavas 
A  verdadeira  vida,  te  perdias. 
Mal  podias  viver,  pois  te  matavas, 
E  mal  matar-te  já,  pois  não  vivias, 
Dizia  Pedro  triste,  arrependido. 
Na  cova  donde  estava  já  mettido. 


i52  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Ah !  triste  velho,  triste,  inda  mais  triste 
No  triste  fim  de  quantos  ter  poderás, 
Que  podestes  deixar  a  quem  seguiste, 
Que  podestes  negar  a  cujo  eras  ! 
Que  medo  foi  aquelle,  em  que  te  viste, 
Para  te  não  lembrar  que  prometteras, 
Que  inda  que  visses  todos  fugir  delle, 
A  ti  veria  só  morrer  com  elle  ? 

Elle  delle  me  vio  também  fugir. 
Como  delle  fugio  toda  a  manada ; 
Depois  me  vio  tornar,  mas  a  mentir, 
Mentira  com  três  juras  affirmada. 
Mas  se  fugindo  errei,  tornando  a  vir 
A  fugida  emendei  com  a  tornada ; 
Que  se  por  huma  vez  não  fui  fugindo, 
Constante  por  três  vezes  fui  mentindo. 

Jurei,  menti,  neguei  summa  verdade, 
Erro  grave,  mortal,  enorme,  e  feio, 
Crime  contra  divina  Magestade, 
Culpa  dum  não  sei  qual  leve  receio, 
Nascido  já  no  fim  da  minha  idade. 
Que  neste  miserável  parar  veio, 
Por  não  dar  por  resposta  áquelles  perros^ 
Preso  sou,  disse,  preso  por  meus  erros. 

Preso  de  seu  amor,  não  seu  captivo, 
A  morte  que  lhe  dais,  não  ma  tireis ; 
Escondei  neste  peito  o  ferro  esquivo, 
A  malar  por  amor  começareis. 
Matai-me,  que  não  quero  ficar  vivo; 
Matai,  cujo  Senhor  matar  quereis: 
Isto  devera  então  de  responder, 
E  deixar-me  matar  para  viver. 

Deixar  o  barco,  e  redes  que  prestou, 
Daquella  voz  levado,  que  levara 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i53 

O  mar  de  Galiléa,  onde  me  achou, 
Cuja  força  se  bem  considerara, 
Quando  o  Senhor  primeiro  me  avisou 
Que  havia  de  negá-lo,  não  negara ; 
Mas  dissera  três  vezes  :  Já  pequei : 
Dai-me  perdão  de  três  que  vos  neguei. 

Que  posto  que  por  eile  estava  dito, 
O  que  dito  por  elle  estava  feito ; 
Se,  como  agora,  então  me  vira  afflicto, 
Algum  remédio  dera  a  meu  defeito ; 
Criara  em  mim  de  novo  hum  novo  esprito, 
Com  que  fortalecera  o  fraco  peito  ^ 
Porque  se  fraco  fora  da  primeira, 
Não  fora  da  segunda,  e  da  terceira. 

Oh  !  lingua  mentirosa,  que  disseste  ? 
Desenfreada  lingua,  que  causaste  ? 
Quanto  tempo  passou  que  prometteste  ? 
Quantas  horas  havia  que  affirmaste  ? 
E  porque  causa  assi  te  desdisseste 
Com  testimunho  falso,  que  juraste. 
Que  tal  Mestre,  e  Senhor  não  conhecias, 
Pois  a  tal,  e  em  tal  tempo  lhe  fugias  ? 

Fugio-mo  coração  que  dantes  tinha, 
Quando  meu  Senhor  nelle  repousava, 
Fugindo,  me  fugio  a  lingua  minha, 
Que  minha  covardia  governava. 
Bem  claro  se  mostrou,  com  quanta  vinha ; 
Pois  bastaram  perguntas  de  huma  escrava, 
Para  negar  alli  sem  mais  tormento, 
Além  daquellas  três,  três  vezes  cento. 

Que  menos  se  esperava  da  fraqueza, 
Que  assi  se  foi  de  mim  senhoreando. 
Depois  que  vi  levar  atada,  e  presa 
Por  cima  das  calçadas  arrastando 


i54  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

A  huma  Soberana  fortaleza, 
Que  de  longe  segui,  não  me  lembrando 
Quanto  mais  refinada  no  presente 
Se  mostrava  em  mostrar-se  paciente. 

Mostrou-se  tal  por  obra,  qual  dissera 

Por  palavra  na  Gea  derradeira  \ 

Ah !  ditoso  se  nunca  anoitecera 

Nest'alma  minha  aquella  Quinta  feira! 

Ditoso  fora  então,  se  então  morrera ! 

•  •  • 

Que  já  não  smto  morte,  que  me  queira; 

Pois  daquella  fugi  tão  desejada. 

De  quem  morrer  deseja  morte  honrada. 

Que  mór  ventura  minha,  ou  que  maior 
Honra  poderá  ser  naquelle  instante, 
Que  vêr  seguir  o  servo  a  seu  Senhor, 
Com  o  nome  de  fiel,  firme,  constante  ? 
E  não  do  que  ganhei  de  sêr  traidor, 
Que  nunca  deixará  de  sêr  bastante 
Para  me  niagoar  além  da  magoa, 
Que  já  lavar  não  podem  rios  d'agoa. 

Que  assi  me  aproveitei  de  huma  doutrina, 
Duma  conversação  tão  amorosa 
Tão  branda,  e  tão  suave,  e  tão  benina, 
Duma  vista  das  vistas  mais  fermosa. 
Ah!  saudade  minha,  luz  divina! 
Ah  !  velhice  mofina  desditosa  ! 
Qual  te  fora  melhor  deixar  de  vê-la. 
Ou  ver  que  te  perdeste  com  perdê-la ! 

A  perda  que  meu  mal  me  representa 
Não  tem  conto,  nem  peso,  nem  medida ; 
Que  tanto  cada  vêz  mais  se  accrescenta, 
Quanto  mór  culpa  tenho  comettida. 
Não  sei  como  esta  cova  me  sustenta ; 
Posto  que  sua  luz  tem  escondida, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i55 

Ou  por  m'aborrecer,  como  culpado, 
Ou  por  se  escurecer  com  meu  peccado ! 

Aquelles  cruéis  lot^s,que  chegaram 
A  prender  o  mansíssimo  Cordeiro, 
De  quanta  piedade  então  usaram, 
Se  provaram  seu  ferro  em  mim  primeiro  ? 
Que  com  suas  palavras  me  provaram 
Para  fazer-me  delias  companheiro; 
Ai !  quão  brando  sentira  o  ferro  duro 
No  peito  antes  de  ser  falso,  perjuro  1 

Qual  outro  se  vio  nunca  já  nascido, 
Ou  por  nascer  está,  que  tal  se  veja, 
Que  depois  de  tão  alto  ter  sobido, 
Em  tão  baixo,  e  tão  vil  estado  esteja  ? ! 
Nem  basta  haver  também  outro  cahido, 
Porque  dambos  a  culpa  a  mesma  seja  \ 
Qu'elle  não  o  vendeu  mais  duma  vêz, 
Mas  eu  antes  do  gallo  o  neguei  três. 

Antes  d'ouvir  cantar  o  gallo,  digo, 
Que  se  não  fora  termo  limitado. 
Que  meu  Senhor  quis  pôr  a  meu  perigo, 
Tantas  vezes  de  mim  fora  negado, 
Quantas  de  qualquer  seu  mais  fraco  imigo 
Este  mais  fraco  fora  preguntado : 
Enfim,  que  se  três  vezes  não  ouvira 
Cantar  o  gallo,  mais  de  três  mentira. 

De  quem  me  queixarei  em  mal  tamanho, 
Pois  queixar-me  de  mim  pouco  aproveita  ? 
Pouco  \  se  em  tristes  lagrimas  me  banho, 
E  pouco  a  pouco  dor,  que  a  morte  engeita : 
Oh !  culpa  nunca  vista,  caso  estranho ! 
Qual  rústica  nação,  barbara  seita, 
Soffre  quebrantar  fé,  por  guardar  vida. 
Que  guardada  não  fique  mais  perdida  ? 


i56  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Como  se  pôde  vêr  na  que  não  vejo, 
Se  não  para  chorar  tão  triste  sorte 
De  mal  tão  desestrado,  tão  sobejo, 
Que  fêa  me  pintou  fermosa  morte, 
Sem  dar  satisfação  a  meu  desejo 
Para  saber  se  fui  fraco,  se  forte : 
Que  se  fraco,  devera  emudecer; 
E  se  forte,  devera  não  temer. 

Mas  eu,  que  forte  fui  para  negar, 

E  para  confessar  fraco,  covarde, 

Em  qual  outra  prisão  me  posso  achar 

Por  mais  que  espere  já,  por  mais  que  aguarde? 

Que  como  forte  possa  confessar, 

E  como  fraco  só  de  mim  me  guarde. 

De  mim,  que  se  de  mim  só  me  guardara, 

Nunca  tão  cego  povo  me  cegara. 

Ah !  que  me  não  cegou,  quando  tentei 
Mata  lo  todo  junto,  o  meu  cutello, 
Que  de  seu  sangue  tinto  embainhei ; 
Mas  eu  que  forte  fui  em  comettê-lo, 
Tão  fraco  em  responder-lhe  então  fiquei, 
Que  fiquei  desculpado  de  oôendê  lo, 
Tanto  que  ninguém  pode  presumir. 
Que  eu  pudesse  arrancar,  menos  ferir. 

Deste  noutro  successo  differente 
Dei  na  mór  perdição  que  inda  té  gora 
Nunca  foi  dar  passado  nem  presente. 
Nem  dar  outro  se  não  só  Pedro  fora; 
Pedro  que  nesta  cova  já  não  sente, 
Já  não  prantea,  não  suspira,  e  chora 
Pelos  bens  que  perdeu,  mas  pela  ofTensa 
Feita  contra  seu  Deos,  bondade  immensa. 

Esta,  que  neste  estado  me  tem  posto 
Para  nunca  afírouxar  hum  só  momento 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  iSy 

D'em  lagrimas  banhar  meu  triste  rosto, 
Meu  falso  peito  em  novo  sentimento ; 
Aqui  desconsolado,  e  descomposto, 
Onde  vivo  me  deu  enterramento. 
Morto  me  deixará  sem  terra  nova 
Cobrir  meu  corpo  dentro  nesta  cova. 

Que  veja  quem  por  erro  ou  por  acerto 
( Erro  qual  foi  o  meu  não  digo  tal ) 
Chegar  a  vêr  meu  corpo  descoberto, 
Que  ficou  para  mais  fraco  sinal 
De  não  querer  a  terra  ter  coberto 
Quem  para  com  seu  Deos  foi  desleal ; 
Que  se  nisto  mór  pena  me  não  dera, 
Já  se  abrira  comigo,  e  me  sorvera. 

Da  pena  me  dá  pouco,  que  padeça, 
Da  culpa  nada  basta  a  consolar-me. 
Que  não  pôde  acabar  donde  começa, 
Nem  pôde  começar  para  acabar-me  •, 
Nem  menos  pôde  sêr  que  culpa  esqueça, 
Culpa,  em  que  por  três  vezes  fui  culpar-me, 
Assim  triste  de  mim  num,  noutro  extremo. 
Da  pena  me  não  dá,  da  culpa  gemo. 

Gemer,  e  suspirar  em  magoa,  em  pranto, 
Manjar  será  dest'alma  minha,  ingrata, 
Dest'alma,  que  da  carne  tratou  tanto. 
Para  tratar  de  si  quão  pouco  trata. 
Disto  se  manterão  ambas  emquanto 
Sua  fraca  prisão  não  se  desata, 
Atadas  no  seu  erro  ambas  padeçam. 
Ambas  desconhecidas  se  conheçam. 

Assaz  desconhecido  estou  de  mim 
Para  não  desculpar  meu  desatino  ! 
Que  fugi,  que  tornei,  que  fui,  que  vim, 
Que  de  velho  me  vim  fazer  minino : 


i58  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Perdendo,  ai !  que  perdi  poder  no  fim 
Trocar  o  ser  humano  por  divino : 
Se  trocar  não  quisera  huma  verdade 
Tamanha  por  tamanha  falsidade. 

Ora  pois  desta  troca  succedeu, 
A  quem  seu  próprio  Deos  foi  em  pessoa 
Chamar  do  mar  á  terra  para  o  Ceo, 
Perder  do  mesmo  Geo  huma  coroa  •, 
Que  amor  nas  suas  mãos  lhe  oftereceu 
Cousa,  que  assi  lastima,  assi  magoa  l 
Não  quero  dilatar  o  fim  que  espero  *, 
Por  não  desabafar,  calar  me  quero. 


MOTE. 

Antre  as  cousas  mais  formosas 
Busca  a  mais  fermosa  delias ; 
Mais  que  o  sol,  lua,  e  estrellas. 
Mais  que  lírios,  e  que  rosas. 

Busca  a  summa  formosura, 
Que  tudo  faz,  tudo  cria ; 
Só  daquella  te  confia, 
Que  sempre  dos  sempres  dura : 
Se  vires  cousas  formosas, 
Como  são  sol,  lua,  e  estrellas, 
Passa  tu  por  cima  delias, 
Pisarás  lírios,  e  rosas. 

Não  te  envolva  o  pensamento 
No  gosto  da  vida  humana ; 
Que  a  folha  que  o  vento  abana 
Não  se  defende  do  vento. 
Ha  cousas  muito  fermosas, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  iSg 

Muito  claras,  muito  bellas, 
Huma  só  muito  mais  que  ellas, 
Mais  que  lirios,  mais  que  rosas. 

Quanto  mais  formosa  for 
A  cousa  que  podes  ver, 
Verás  que  não  pôde  ser 
Sem  ser  mais  o  Creador : 
Se  vires  lirios,  e  rosas, 
O  sol,  a  lua,  as  estrellas, 
Busca  no  Creador  delias 
Outras  muito  mais  formosas. 

Quem  tudo  fez  para  nós 
Fazer-nos  quis  para  si. 
Põe  os  teus  olhos  em  ti, 
Verás  quem  os  em  ti  pôs  : 
Que  lirios  vistes,  que  rosas, 
Que  sol,  que  lua,  que  estrellas, 
Que  não  venhas  a  ver  nellas 
O  Senhor  das  mais  formosas  ? 


MOTE. 

Quem  muito  deseja  amar. 
Muito  tem  do  que  deseja. 
Sem  que  sinta,  sem  que  veja. 

Amor  por  mais  sêr  amado 
No  peito,  donde  s'  accende, 
Docemente  lhe  defende 
Saber  se  tem  começado : 
Porque  assi  mais  esforçado 
Muito  mais  amar  deseja. 
Sem  que  sinta,  sem  que  veja. 


i6o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Não  se  deixam  comprehender 
Efteitos  de  amor  divino ; 
Mas  desejar  de  comino 
He  claro  sinal  de  arder: 
Donde  se  pôde  esconder 
Amor  porque  se  não  veja 
Se  não  donde  se  deseja ! 

Não  se  queixe  o  coração, 
Se  sentir  em  si  seccura, 
Que  a  lenha  que  muito  dura 
No  fogo,  faz-se  carvão : 
Nem  cuide  que  sopra  em  vão, 
Posto  que  arder  não  se  veja. 
Que  quem  sopra  arder  deseja. 


VOLTAS. 

A  Tra  los  Montes. 

Por  longe  que  vá 
Donde  quer  que  for, 
Quem  tiver  amor, 
Lá  me  buscará ; 
Pouco  me  dará 
De  me  não  buscar 
Quem  me  não  amar. 

Se  mal  empreguei 
O  meu  bem  querer, 
Lá  posso  saber 
O  que  cá  não  sei ; 
Desenganarm'ei 
De  me  não  amar 
Quem  me  não  buscar. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  lòi 


Quem  me  quiser  bem 
Quando  me  não  vir, 
Não  ha  de  sentir 
Passar  inda  além 
Dos  montes;  mas  quem 
Não  quiser  passar, 
Não  me  vá  buscar. 

Se  lá  vir  perdida 
A  minha  esperança. 
Não  terei  mudança, 
Que  fazer  na  vida. 
Com  esta  partida 
Me  posso  acabar 
De  desenganar. 

Que  perco  perdendo 
Cuidados  humanos, 
De  cujos  enganos 
Me  vou  acolhendo  ? 
Quanto  me  arrependo 
De  me  descuidar 
Do  que  devo  amar ! 


REDONDILHAS. 
A  Nossa  Senhora. 

O'  Maria 
Doce  porto,  certa  guia, 
Gloriosa  Virgem  pura, 
Qual  Mãi  sua  vos  faria. 
Quem  fez  toda  a  formosura  ? 


i62  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Não  me  atrevo 
A  louvar-vos  quanto  devo 
Antre  duras  penedias ; 
Porque  borro,  quanto  escrevo 
Nas  minhas  entranhas  frias. 

De  que  rosas 
Farei  capellas  formosas, 
De  que  lírios,  de  que  flores, 
Com  que  versos,  com  que  prosas, 
Cantarei  vossos  louvores  ? 

Sois  Aquella, 
Que  do  mar  se  chama  estrella, 
Dos  tristes  consolação. 
Rosa  que  se  criou  nella 
Toda  a  nossa  Redempção. 

Sois  Rainha 
Do  Ceo ;  mas  nossa  vizinha, 
Tão  solicita  de  nós, 
Que  menos  tarda  a  mezinha, 
Do  que  chamemos  por  Vós. 

Sois  Senhora, 
Que  dum'alma  peccadora, 
Que  vos  tem  por  avogada. 
Do  mesmo  Deos,  que  em  Vós  mora^ 
A  quereis  fazer  morada. 


ENDECHAS. 

O  meu  nascimento 
Que  tal  ser  devia. 
Nunca  hum  só  momento 
Tive  de  alegria. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i63 

A  estrella  rainha 
Qual  devia  ser, 
O  bem  que  não  linha 
Me  pôde  tolher. 

Fortuna  que  fere, 
Que  sente  ferido. 
Não  soffre  que  espere 
Cobrar  o  perdido. 

Tudo  me  magoa, 
Tudo  me  lastima, 
Huma  dôr  em  cima 
Doutra  que  mais  doa. 

He  mui  differente 
A  minha  tristeza, 
De  quanto  se  sente 
Noutra  natureza. 

Alma  entristecida 
Façamos  concerto; 
Vamos  fazer  vida, 
Vida  num  deserto. 

Antre  penedias. 
E  valles  medonhos. 
Onde  nem  por  sonhos 
Lembrem  alegrias. 

Não  haja  mais  ver 
Quem  falle,  quem  veja ; 
Tudo,  tudo  seja 
Chorar,  e  gemer. 

Claros  desenganos 
Dão  nestes  extremos, 


164  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Quantos  vistos  temos 
Em  tão  poucos  annos ! 

Chorei  saudades ; 
Criei  pensamentos ; 
Fiz  mil  fundamentos 
De  mil  vaidades. 

Os  dias  não  cansam  ; 
Cansa  a  vida  nelles : 
Que  será  daquelles, 
Que  nella  descansam  ? 

Que  busco,  que  quero  ? 
Que  choro,  que  rio  ? 
Em  que  me  confio  ? 
Que  tenho,  que  espero? 

Que  presta,  que  vai 
Quanto  o  mundo  tem  ? 
Como  terá  bem 
Quem  escolhe  mal ! 

Se  choro,  se  canto. 
Se  calo,  se  grito ; 
Falta-me  o  esprito 
Para  sentir  tanto. 

Que  guerra  tão  crua, 
Que  esforço,  que  manhas, 
As  suas  entranhas 
Contra  huma  alma  sua  I 

Que  forças  as  minhas, 
Com  que  armas  pelejo 
Contr'  o  meu  desejo, 
Coberto  de  espinhas  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i65 

Alma  magoada, 
Se  tanto  desejas 
Viver  descansada, 
Não  ouças,  não  vejas. 

Fujamos,  fujamos, 
Donde  restauremos, 
Quanto  mal  choramos, 
Quanto  bem  perdemos. 

Vamos  vêr  da  serra 
Do  monte  deserto 
O  Ceo  de  mais  perto. 
De  mais  longe  a  terra. 

Vamos  acabar 
Numa  lapa  escura  ; 
Sem  mais  alembrar 
Viva  creatura. 

No  monte,  no  valle 
Tenho  onde  me  esconda  •, 
Sem  têr  com  quem  falle, 
Nem  quem  me  responda. 

O  bruto  animal, 
A  fera  serpente. 
Por  bem  não  faz  mal, 
Como  faz  a  gente. 

Plantas,  e  penedos 
Mostram  o  que  tem, 
Sem  têr  mais  segredos 
Do  que  os  olhos  vem. 


i66  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


AO   NASCIMENTO   DE   NOSSO   SENHOR. 

Tânia  formosura 
Numa  estrebaria 
JESUS,  e  MARIA? 

Chove,  venta,  e  neva, 
Congela-se  o  rio. 
Meu  Senhor  ao  frio 
Com'  os  filhos  d'Eva ! 
Pelo  que  releva 
Numa  estrebaria 
JESUS,  e  MARIA? 

Nasce  a  nova  luz ; 
Nasce  a  flor  das  flores ; 
Amor  dos  amores, 
No  berço,  e  na  cruz 
MARIA,  e  JESUS. 
Numa  estrebaria 
JESUS,  e  MARIA? 

Deshumana  gente, 
Que  não  agasalha 
A  quem  só  na  palha 
Ficará  contente. 
Ai !  quão  pobremente 
Numa  estrebaria 
JESUS,  e  MARIA? 

Fermoso  Menino, 
Meu  Senhor  eterno. 
Por  tempo  de  inverno 
Pobre  peregrino ; 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  167 


O  amor  divino 
Numa  estrebaria 
JESUS,  e  MARIA  ? 

Por  terras  estranhas, 
A  vossa  pousada 
Tem  o  tempo  armada 
De  têas  de  aranhas  ? 
Nasce  das  entranhas 
JESUS,  e  MARIA 
Numa  estrebaria  ? 


i68  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


SONETO  I. 

Que  lugar,  tempo,  estado,  ou  esperança, 
Me  podem  segurar  do  meu  desejo, 
Que  me  disfarça  o  mal,  em  que  me  vejo, 
Com  bens,  que  antes  de  vir,  fazem  mudança  ? 

Sombras  vans  d'enganada  confiança 
Fazem  que  o  bom  desprezo  e  o  mal  elejo ; 
E  vendo-me  perdido,  inda  me  pejo 
De  ter  do  que  já  foi,  dôr,  ou  lembrança. 

Desejo  vencedor,  razão  vencida. 
Poderoso  querer,  fraco  sujeito. 
Compridas  esperanças,  curta  vida ; 

Mouro,  como  ordenaes,  mas  satisfeito; 

E  mais  dissera,  mas  amor  duvida, 

Que  caiba  em  lingua  o  que  não  cabe  em  peito. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  169 


II. 

A  uma  absencia. 

Posto  que  sofra  amor  apartamento, 
Por  não  fazer  ofFensa  á  confiança, 
Desconfiando  vou  nesta  mudança, 
De  poder  enganar  meu  pensamento. 

E  pois  negar  não  posso  o  sentimento, 
Que  mais  me  cansa  a  mim,  por  que  vos  cansa, 
Lembre-vos  que  sem  ter  de  vós  lembrança, 
Não  posso  respirar  uni  só  momento. 

Tal  me  parti  de  vós,  que  não  cuidava 
Que,  pois  dentro  nesta  alma  vos  trazia, 
Noutra  nenhuma  parte  vos  deixava. 

Mas  depois  que  cá  vi  que  vos  não  via, 
Entendi  na  partida  qual  estava 
Quem  dos  olhos,  não  d'alma  se  partia. 


III. 
Ás  lagrimas  duma  despedida. 

Quando  d'ambos  os  ceos  cahindo  estava 
O  rico  orvalho,  em  pérolas  formado, 
E  sobre  as  frescas  rosas  derramado 
Igual  belleza  recebia  e  dava  \ 


lyo  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Amor,  que  sempre  presente  ali  estava 
Como  competidor  de  meu  cuidado, 
Num  vaso  de  crystal,  douro  lavrado, 
As  gottas,  uma  e  uma,  enlhesourava. 

Eu  cos  olhos  na  luz,  que  aquelle  dia 
Entre  as  nuvens  do  novo  sentimento 
Escassamente  os  raios  descobria, 

Se  me  matar,  dizia,  o  apartamento, 
Ao  menos  não  fará  que  esta  alegria 
Não  seja  paga  igual  de  meu  tormento. 


IV. 


Pús  em  tamanha  altura  o  pensamento, 
Que  o  perde  já  de  vista  a  confiança. 
Cansado  de  o  seguir  minha  esperança 
Parou  em  descobrir  meu  atrevimento. 

Por  elle  mouro  em  áspero  tormento. 
Mas  não  cansará  a  fé,  como  não  cansa, 
Inda  que  o  tempo  faça  outra  mudança, 
De  que  eu  deva  ter  mór  sentimento. 

Bem  pode  amor  cruel,  se  ha  quem  o  mande. 
Esta  sombra  da  vida  desfazer-me. 
Seguindo  seu  costume  deshumano. 

Só  nunca  poderá,  por  mais  que  ande, 
Fazer  que  me  arrependa  de  perder-me 
Com  pena,  espanto,  dôr,  força,  ou  engano. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Que  cousa  seja  amor,  não  se  comprende, 
Quão  caro  custa  amar,  minha  alma  o  sente, 
Um  lhe  chania  aíTeição,  outro  accidente, 
Mas  quem  mais  o  tratou,  menos  o  entende. 

Quando  se  não  recea,  então  offende. 

Entra  dissimulado  e  facilmente, 

Encobre  no  desejo  frecha  ardente, 

Que  o  peito,  que  he  mais  frio,  mais  accende. 

Gasta  a  vida,  esperança  e  sofrimento, 
A'  sombra  dum  engano,  a  que  sujeita 
Qualquer  baixo  ou  altivo  pensamento. 

Triste  de  quem  provou  sua  mão  direita, 
E  o  pôs  em  tal  estado  seu  tormento. 
Que  já  de  aborrecido  a  vida  engeita ! 


VI. 


Perdi-me  dentro  em  mim,  como  em  deserto. 
Minha  alma  está  metida  em  labyrintho, 
Contino  contradigo  o  que  consinto, 
Cem  mil  discursos  faço,  em  nada  acerto. 


17a  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Vejo  seguro  o  damno,  o  bem  incerto; 

Comigo  porfiando  me  desminto, 

O  que  mais  atormenta,  menos  sinto, 

O  bem  me  foge,  quando  está  mais  certo. 

E  se  as  asas  levanta  o  pensamento 
Áquella  parte,  onde  está  escondida 
A  causa  deste  vario  movimento, 

Transforma-se  por  não  ser  conhecida, 

Porque  quer  a  pesar  do  sofrimento 

Pôr  as  armas  da  morte  em  mão  da  vida. 


VIL 


Acostumado  tinha  o  sofrimento 
A  um  mal,  que  ja  de  antigo  não  sentia, 
E,  posto  que  era  grave,  nelle  via, 
Que  o  uso  diminue  o  sentimento. 

Ordenaram-me  os  Ceos  novo  tormento 
No  tempo,  que  esperei  nova  alegria  \ 
Dantes  somente  amor  me  perseguia. 
Agora  amor,  fortuna  e  pensamento. 

A  lembrança  dos  bens,  que  noutro  estado 
Teve  este  peito  meu,  que  em  chamas  arde. 
Está  levando  sempre  meu  cuidado. 

Choro  a  noite,  a  manhã,  a  sesta  e  a  tarde, 

Mas  não  devo  estar  desesperado, 

Pois  não  se  escusa  a  morte,  inda  que  tarde. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  173 


VIII. 


A  peregrinação  dum  pensamento, 
Que  dos  males  fez  habito  e  costume, 
Tanto  da  triste  vida  me  consume, 
Quanto  cresce  na  causa  do  tormento. 

Leva  a  dor  de  vencida  ao  sofrimento, 
Mas  a  alma  está  de  entregue  tão  sem  lume. 
Que  enlevada  no  bem,  que  haver  presume, 
Não  faz  caso  do  mal,  que  está  de  assento. 

De  longe  receei,  se  me  valera 
O  perigo,  que  tanto  á  porta  vejo, 
Quando  não  acho  em  mim  cousa  segura ; 

Mas  já  conheço,  e  nunca  conhecera ! 
Que  entendimentos  presos  do  desejo 
Não  tem  remédio  mais  que  o  da  ventura. 


IX. 


Vai-me  gastando  amor  num  pensamento. 
Que  me  inclina  a  seguir  meus  próprios  damnos, 
A  força,  a  esperança,  o  ser,  os  annos, 
Que  pêra  mim  são  mil  cada  momento. 


174  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Os  suspiros  que  em  vão  entrego  ao  vento, 
Paga-nnos  quem  os  causa  em  desenganos, 
He  seguro  fingir  novos  enganos, 
Não  mo  quer  consentir  o  entendimento. 

Se  pretendo  mostrar  quanto  padeço, 
Falta-me  a  voz,  o  alento  e  o  sentido, 
E  a  triste  vida  não,  porque  a  aborreço. 

O  peito  em  vivas  chamas  convertido 
Enfim  mostra  meu  mal,  pois  ja  conheço, 
Que  nem  dizer-se  pôde,  nem  sêr  crido. 


X. 
Ao  levantar  da  cama. 

Graças  vos  dou.  Senhor,  que  da  escura 
Noite  e  perigos  delia  me  livrastes, 
Deste  dia  ver  a  luz  deixastes 
A  mim,  humilde  vossa  creatura. 

Fazei  que  esta  alma  seja  nelle  pura 
E  limpa  de  peccado,  pois  a  amastes, 
E  pêra  ma  salvar  do  Geo  baxastes, 
Tomando  a  carne  nossa  e  a  figura. 

Gom  todo  coração,  e  de  vontade, 
Gom  a  palavra,  obra  e  pensamento, 
Vos  sirva,  louve  e  ame  neste  dia. 

Louvando  vossa  eterna  magestade, 
A  meu  obrar  dareis  merecimento, 
Pêra  gozar  no  Geo  vossa  alegria. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  lyS 


XI. 
A  protestação  da  Fé. 

Em  um  Deos  creo  só,  da  terra  e  Ceo 

Omnipotente  Padre  creador. 

Em  Ghristo  filho  seu,  nosso  Senhor, 

Que  do  Espirito  Santo  a  Virgem  concebeo. 

Do  ventre  virginal  delia  nasceo, 

E  em  tempo  de  Pilatos  regedor. 

Em  cruz  morreo,  porém  foi  com  primor 

Sepultado,  ao  inferno  descendeo. 

Resurgindo  subio  com  gloria  tanta 

Ao  Ceo,  que  com  Deos  Padre  está  assentado. 

Virá  julgar  a  toda  alma  nascida. 

No  Sp'rito  Santo  creo,  Igreja  Santa, 
União  dos  Santos,  vénia  do  peccado, 
Resurreição  da  carne,  eterna  vida. 


XII. 
Ao  Padre  Nosso. 

Eterno  Padre  nosso  creador. 
Que  lá  nos  Ceos  estaes  por  divindade, 
De  vosso  nome  reine  a  santidade. 
Venha  a  nós  vosso  reino,  e  vosso  amor. 


176  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Feita  seja  neste  orbe  inferior, 
Como  se  faz  no  Ceo,  vossa  vontade ; 
O  grão,  de  que  se  tem  necessidade, 
Nos  dai  o  dia  de  hoje  com  favor. 

As  dividas,  que  somos  obrigados 
A  pagar,  nos  perdoai,  e  do  modo 
Que  a  nossos  devedores  perdoamos. 

Não  permittaes  que  sendo  nós  tentados, 
Nos  vença  o  inimigo,  mas  que  em  todo 
Livrados  do  mal  delle,  vos  sirvamos. 


XIII. 
A  Ave  Maria. 

Deos  vos  salve  sagrada  Virgem  pia, 
De  graça  toda  cheia,  o  grão  Senhor, 
Do  Ceo,  do  mar  e  terra  creador, 
Comvosco  he  em  vossa  companhia. 

Bemdita  entre  as  mulheres  sois,  Maria, 
Bemdito  Jesus,  nosso  Salvador, 
Fruito  do  vosso  ventre,  que  sem  dor 
Nasceo  em  pobre  lapa  em  noite  fria. 

O'  Virgem  mãi  de  Deos,  intercessora 
Dos  míseros  mortaes  e  advogada. 
De  quem  a  culpa  segue  a  triste  sorte. 

Ouvi  minha  oração,  pia  Senhora, 

Rogai  por  mim  a  Deos,  de  mim  lembrada, 

E  por  todos  em  nossa  vida  e  morte. 


I 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  177 


XIV. 
Á  Confissão  Geral. 

Ao  alto  Deos  confesso  meus  peccados, 
E  á  Virgem  sua  mãi,  santa  Maria, 
A  são  Miguel  Archanjo  em  hierarchia, 
Ao  Baptista,  auctor  dos  baptizados. 

A  Pedro,  a  Paulo,  Apóstolos  sagrados, 
E  a  Santos  da  celeste  Monarchia, 
Que  em  tudo  o  que  cuidei,  fiz  e  dizia, 
Contra  meu  Deos  pequei  e  seus  mandados. 

Por  isso  á  mesma  Virgem  rogo  e  peço, 
Como  advogada  que  he  dos  peccadores, 
E  a  todos,  de  que  acima  fiz  memoria ; 

Pois  meus  erros  accuso  e  os  confesso, 
Me  sejam  ante  Deos  intercessores. 
Que  mos  perdoe,  e  dê  a  sua  gloria. 


XV. 
Ao  Anjo  Custodio. 


Anjo  Custodio  meo,  a  quem  foi  dado 
Ter  cargo  de  minha  alma  nesta  vida. 
Havei  respeito  a  sêr  por  Deos  remida. 
Ainda  que  sujeita  ao  vil  peccado. 


tyS  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Por  vossa  via  seja  eu  perseverado 
De  modo,  que  não  fique  homicida 
Em  culpa  contra  ellc  commettida, 
Mas  antes  de  mim  seja  sempre  amado. 

Livrai-me  da  malicia  e  torpe  engano 

Do  nosso  inimigo,  e  alcancemos 

Da  carne,  mundo  e  delle  tal  victoria, 

Que  sem  temor  de  pena  e  mal  de  dano, 
Com  vosco  a  alma  minha  e  eu  gozemos 
Na  outra  vida  os  bens  da  eterna  gloria. 


XVI. 
A  todos  os  Santos» 

Angélicos  espíritos  creados 

Pêra  louvar  a  Deos  e  engrandecer 

Da  magestade  sua  o  immenso  ser. 

Por  quem  em  graça  fostes  confirmados^ 

Collegio  d' Apóstolos  sagrados, 
Martyres  gloriosos,  que  por  crer 
Na  fe  de  Christo  e  pola  defender 
No  mundo,  fostes  cá  martyrizados ; 

Profetas,  Patriarcas,  Confessores, 
Virgens,  que  lá  de  Deos  estaes  gozando, 
Se  o  Ceo  vos  deixa  ter  de  nós  memoria. 

Ouvi  as  orações  dos  peccadores. 
Intercedei  por  nós,  a  Deos  rogando 
Nos  dê  cá  seu  amor,  no  Ceo  a  gloria. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  179 


XVII. 
Ao  sahir  de  casa. 

Se  destes,  meu  Senhor,  anjo  a  Tobias, 
Que  o  caminho  certo  lhe  ensinou, 
E  a  casa  de  seu  pai  salvo  o  tornou, 
De  mercês  vossas  cheio  e  de  alegrias ; 

Outro  anjo  me  dai,  que  em  vossas  vias 
Me  guie  e  me  acompanhe  onde  vou, 
E  endireite  os  passos,  que  agora  dou, 
E  desta  vida  dér  nos  breves  dias. 

Sendo  por  anjo  vosso  encaminhado, 
As  passadas,  que  dér,  serão  bemditas, 
Sendo-lhe  do  Ceo  a  graça  influída. 

Vosso  nome  será  glorificado. 
As  gentes  louvarão  as  infinitas 
Misericórdias  vossas  nesta  vida. 


XVIII. 
Ao  entrar  na  Igreja, 

Entrarei  em  vossa  casa,  meu  Senhor, 
Em  vosso  templo  santo  adorarei 
Vossa  eterna  magestade  e  louvarei 
A  vossa  omnipotência  e  vosso  amor. 


i8o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Com  o  coração  humilde  e  com  temor, 
Meu  spirito  a  vós  levantarei, 
De  meus  erros  perdão  vos  pedirei, 
Contrito  d'haver  sido  peccador. 

Não  permitaes  que  aonde  orar  mandastes, 
Seja  vossa  magestade  offendida, 
Mas  devação  ahi  nos  dae  perfeita. 

Se  ao  Padre  eterno  orar  nos  ensinastes, 

A  oração  por  vós  instituida, 

De  vós  querei  que  seja  e  d'elle  acceita. 


XIX. 
Ao  levantar  da  Hóstia. 

Adoro-vos,  Senhor  Deos  escondido. 
Nesta  hóstia  divina  encorporado, 
Creio  que  estaes  ahi  substanciado, 
Deos  e  homem  verdadeiro,  a  Deos  unido. 

Sois  Deos,  filho  do  Padre,  e  concebido 
Na  Virgem,  onde  fostes  humanado. 
Pelo  Spirito  Santo  fostes  dado 
Ao  mundo  pêra  sêr  por  vós  remido. 

P'ra  termos  de  tão  grande  beneficio 
Lembrança,  vida  usastes  desta  traça, 
De  maravilhas  vossas  breve  historia. 

Por  nós  vos  dais  ao  Padre  em  sacrificio, 
Alcançando-nos  por  esse  meio  graça, 
Que  por  ella  e  por  vós  nos  dê  a  gloria. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


XX. 

Ao  levantar  do  Cálix. 

Divino  sangue,  que  do  corpo  e  lado 
De  Christo,  Salvador  nosso,  emanastes, 
E  pêra  nosso  bem  vos  esgotastes 
Na  Cruz,  aonde  foi  crucificado. 

Adoro-vos,  e  creio  confiado 

Com  firme  fé  que  a  Deus  por  nós  pagastes, 

E  a  nossa  penitencia  habilitastes 

Pêra  nos  ser  por  ella  o  perdão  dado. 

Da  improvisa  morte  nos  livrai, 
Dando  graça  ao  nosso  entendimento, 
Que  sirva  e  louve  a  eterna  magestade. 

Por  vosso  grande  mérito  nos  dai 
De  nossas  culpas  arrependimento, 
Pcra  lograr  no  Ceo  a  eternidade. 


XXI. 
Ao  estar  á  Missa. 


Omnipotente  Padre,  que  deixastes 
Sêr  vosso  filho  Deos  crucificado. 
Pêra  remir  a  culpa  e  o  peccado 
De  Adão,  primeiro  homem,  que  creastes. 


i82  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Deste  benefício  além  passastes; 
Quereis  que  em  sacrifício  renovado 
Seja  este  bem,  de  nós  continuado 
Em  vosso  santo  templo,  que  ordenastes. 

De  mysterio  tão  alto  e  tão  profundo 
Obre  em  nós  a  assistência  e  a  tenção 
Tão  admirável,  pio  e  santo  efifeito, 

Que  não  tenha  lugar  em  nós  do  mundo, 
Da  carne,  do  inimigo  a  tentação, 
Mas  seja  vosso  amor  em  nós  perfeito. 


XXII. 
Á  benção  da  mesa. 

De  lá  do  vosso  eterno  firmamento, 
Omnipotente  Deos,  uno  e  trino, 
Lançae  a  benção  e  favor  divino 
A  nós,  a  esta  mesa,  ao  mantimento. 

Tudo  de  vossa  mão  nos  seja  bento, 
A  nossos  corpos  útil  e  benino  \ 
Não  permittaes  que  seja  algum  indino, 
De  lhe  dardes  cada  dia  este  alimento. 

Se  destes  de  comer  em  campos  ermos 
A  muitas  gentes  mil  com  pouco  pão, 
E  sobejou  mais  d'outro  tanto; 

Virtude  dai  a  quanto  aqui  comermos 

Por  nossa  corporal  sustentação, 

E  aqui  nos  dê  sua  graça  o  Spirito  Santo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i83 


XXIII. 
As  graças  depois  de  mesa. 

Graças,  Senhor,  vos  damos,  que  quisestes 
Dar-nos  a  refeição  de  cada  dia, 
E  que  com  oração  devota  e  pia, 
Por  nós  pedir  ao  Padre  pretendestes. 

Por  esta,  e  as  mais  mercês,  que  nos  fizestes, 
No  Ceo  vos  louve  toda  a  hierarchia, 
E  cá  vos  sirva  toda  a  Monarchia, 
E  reconheçam  rei  o  que  lhe  destes. 

A  todos,  que  por  vós  bem  nos  fizeram, 
E  fazem,  concedei.  Senhor,  por  isso 
Eternos  bens  e  graça  meritória. 

Ás  almas  dos  fieis,  que  já  morreram, 
Zelando  vossa  fé,  vosso  serviço. 
Lhe  dai  eterna  paz  e  vossa  glória. 


XXIV. 
Ao  tanger  das  Ave  Marias. 

A'  Virgem  deo  o  Anjo  a  embaixada, 
Que  no  alto  consistório  se  ordenou 
Pêra  ser  mãi  de  Deos,  mas  duvidou 
Sendo  Virgem,  têr  de  mãi  a  nomeada. 


184  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Vendo-a  Gabriel  assi  turbada, 
c  Maria,  não  temais  »,  lhe  replicou, 
€  Vossa  pureza  a  graça  em  Deos  achou, 
Sereis  do  Espirito  Santo  amparada  ». 

Aquietando  a  Virgem  o  pensamento, 

Diz  com  vontade  humilde :  —  «o  mandada 

Se  faça  nesta  serva  do  Senhor  ■. 

Dizendo  a  Virgem  ^a/,  no  momento 
O  Verbo  eterno  foi  nella  encarnado, 
E  a  creatura  unida  ao  Creador. 


XXV. 
Ao  recolher  á  noite  para  dormir. 

Omnipotente  Deos,  que  o  sol  creastes 
Presidente  da  luz  do  claro  dia, 
E  o  governo  da  noite  escura  e  fria 
A'  inconstante  lua  encarregastes ! 

Por  refugio  das  gentes  ordenastes 
O  repousado  somno,  que  allivia 
O  diurno  trabalho  e  agonia, 
A  que  nossa  natureza  obrigastes. 

Pois  deste  se  aproveita  o  inimigo, 
Representando  em  sonhos  e  abusões, 
Com  que  a  vossa  magestade  oôendamos. 

Livrai-nos  do  mal  delle,  e  do  perigo 
De  seus  ardis  e  torpes  invenções, 
Por  que  dormindo  ainda  vos  sirvamos. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i85 


XXVI. 
A  Duquesa  d' Aveiro. 

Quando  na  verde  planta,  ou  pedra  dura, 
Me  mandava  escrever  minha  tristeza, 
Nunca  me  pareceo,  alta  Princesa, 
Que  podessem  meus  versos  ter  ventura 

Pêra  cuidar  que  houvesse  creatura, 
A  quem  taes  partes  desse  a  natureza, 
Que  podesse  mover  minha  dureza 
A  não  lhes  dar  no  fogo  sepultura. 

Como  já  fiz  de  quantos  tinha  feito 
Na  ribeira  do  Lima,  em  tenra  idade, 
Por  dar  algum  remédio  a  meu  defeito. 

Mas  pois  Vossa  Excellencia  tem  vontade 
De  lhos  dar,  eu  me  dou  por  satisfeito, 
Que  tudo  pôde  enfim  pura  amizade. 


XXVII. 
Chora  o  vicioso  emprego  da  sua  vã  mocidade. 

Nasci  junto  do  Lima  saudoso, 
Donde  nunca  já  mais  falta  verdura, 
Levou-me  sem  saber  minha  ventura, 
Que  fosse,  ou  que  não  fosse  venturoso. 


i86  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Comecei  a  seguir  o  vicioso 
Na  vida,  que  buscava  na  brandura, 
Sem  vêr  a  falsidade  da  pintura, 
Que  certo  quer  juntar  o  duvidoso. 

Mas  em  me  encaminhar  indo  perdido, 
Sentindo  que  já  não  me  desculpava 
A  mocidade  vã  mal  consumida, 

Não  vos  lembrou,  Senhor,  ser  offendido, 
E  qu'inda  d'ofFender-vos  não  cessava 
Pêra  na  vida  d'alma  me  dar  vida. 


XXVIII. 
A  Intmaculada  Conceição  de  Nossa  Senhora, 

Lá  nesse  ethereo  assento,  Virgem  pura, 
Da  trina  e  uma  essência  coroada, 
De  thronos,  cherubins  sempre  adorada, 
Gozando  estaes  eterna  formosura. 

Lá,  onde  a  luz  jamais  perde  a  figura. 
Sois  vós,  porque  quereis,  Virgem  sagrada, 
Nosso  guião  de  paz,  nossa  avogada, 
Sois  sol,  que  nos  livrou  da  noite  escura. 

Sem  macula  espelho,  poço  d'agoa, 
Sinada  fonte,  em  quem  da  sede  humana 
Os  peccados  de  todos  se  lavaram! 

Cerrado  bosque,  rosa  soberana, 
Lirio,  que  entre  espinhos  vos  acharam, 
Livrai-nos,  por  quem  sois,  da  eterna  mágoa ! 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  187 


XXIX. 
A  mesma. 

Virgem  fermosa,  que  do  sol  vestida, 
De  luzentes  estreitas  coroada, 
Do  sol  supremo  fostes  tão  presada. 
Que  em  vós  trouxe  sua  luz  e  nossa  vida. 

Virgem,  do  alto  esposo  recebida, 
Tanto  mais  humil,  quanto  mais  alçada, 
Só  vós  pêra  o  Creador  fostes  creada, 
Só  vós  entre  as  humanas  escolhida. 

Qual  sahe  a  aurora,  que  trazendo  o  dia, 
O  ceo  esmalta  de  purpura  e  d'ouro,    ' 
E  as  negras  nuvens  fogem  d'improviso: 

Tal  vós,  estrella  clara  e  nossa  guia. 
Trazendo  á  terra  vosso  alto  thesouro 
Convertestes  o  pranto  d'Eva  em  riso. 


XXX- 

  Encarnação. 

Do  Ceo  á  terra  Deos  omnipotente 
Vestir-se  vem  da  nossa  humanidade, 
E  dando-nos  a  sua  divindade, 
Em  nós  fica,  e  nós  nelle  eternamente ! 


i88  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Sarando  a  mordedura  da  serpente 
Com  fruito  liberal  da  sua  herdade, 
Porque  não  tem  limites  a  bondade 
De  quem  tudo  dispõe  suavemente. 

Com  dizer  e  mandar,  feito  e  mandado 
Foi  tudo  quanto  quis  meu  Deos  fazer, 
E  fará  quanto  tem  determinado. 

Que  se  quis  a  si  mesmo  desfazer, 
E  fazendo-se  em  nós  Deos  humanado. 
Nos  deo  divino  ser  por  nosso  ser. 


XXXI. 
Ás  palhas  do  presépio  de  Belém, 

Ó  venturosas  palhas  de  Belém, 
Que  hoje  a  Deos  menino  agasalharam, 
Como  em  fogo  d'amor  não  se  abrazaram 
Com  as  divinas  chamas,  que  em  si  tem  ? 

Pastores,  que  gozaram  tanto  bem, 
Como  d'estas  palhinhas  se  apartaram? 
Ou  como  a  ellas  logo  não  tornaram 
Por  gozar  do  que  os  Anjos  sempre  vem  ? 

Deixai,  pastores,  já,  deixai  o  gado, 
Tornai  a  este  cordeiro,  que  ficou 
N^s  palhas  de  Belém  desamparado. 

Que,  pois  que  lá  do  Ceo  por  nós  baixou, 
Bem  he  que  de  vós  seja  acompanhado 
Cá  nestas  palhas  frias,  que  acceitou. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  189 


XXXII. 
Ao  nascimento,  paixão  e  ascensão. 

Estando  o  mundo  todo  em  paz  composto, 
Nascendo  á  mea  noite,  longa  e  fria, 
Das  mãos  de  sua  Mai,  Virgem  Maria, 
No  presépio  Jesus  pobre  foi  posto. 

Mas  Herodes  temendo  sêr  desposto 
Do  reino,  por  matar  quem  não  podia. 
Os  meninos  matou,  quantos  havia, 
Ficando,  com  seo  reino  descomposto. 

E  depois  de  fugido  para  o  Egypto, 
Tornou  o  Redemptor  manifestado 
A  cumprir  quanto  deile  estava  escrito. 

Enfim  que  morto  foi  resuscitado 
A'  gloria,  como  d'antes  tinha  dito. 
Da  nossa  salvação  assinalado. 


XXXIII. 
A  Quinta  feira  da  Cea  do  Senhor. 

O'  divino  banquete,  onde  foi  dada 
Toda  a  gloria  do  Ceo  por  iguaria, 
Nunca  aparteis  desta  alma  o  santo  dia 
Da  morte  de  meu  Deos,  por  mim  causada. 


igo  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Pagando  em  cruz  o  amor  sem  dever  nada, 
Inda  lhe  pareceu  que  nos  devia 
No  tempo,  em  qu;;  de  nós  se  despedia, 
Ir-se,  e  ficar  numa  hóstia  consagrada. 

Finos  toques  d^amor,  raros  extremos, 
Se  os  Anjos  vos  não  podem  entender, 
Os  que  somos  humanos,  que  faremos  ? 

Contento-me,  Senhor,  basta-me  crer. 
Que  nessa  hóstia  sagrada,  onde  vos  temos, 
Mais,  nem  menos,  no  Ceo  não  podeis  ser. 


XXXIV. 

Quae  non  rapui.  Ume  exsohebam. 
(Psalm.  LXVIII.  5) 

Com  cordas  á  columna  foi  atado, 
E  com  pregos  pregado  no  madeiro 
O  nosso  liberal,  manso  Cordeiro, 
Que  pagou  o  que  não  tinha  furtado. 

Assi  da  terra  sendo  aievantado, 
Cativo  levou  nosso  cativeiro, 
E  não  sendo  da  culpa  alhea  herdeiro, 
Morreo,  como  se  fora  o  mais  culpado. 

Não  tinha  outro  remédio  a  salvação 
Do  mundo,  que  só  Deos  salvar  podia, 
Se  não  da  sua  sancta  encarnação ; 

Porque  Jesus  nascendo  de  Maria 
Podesse  padecer  morte  e  paixão. 
Na  qual  nosso  bem  todo  consistia. 


i 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  191 


XXXV. 
A  Chrisío  preso  á  columna. 

Meu  Deos,  nessa  columna  estaes  atado 
Pera  do  nó  da  culpa  desatar-me  \ 
Pera  de  vossa  gloria  coroar-me, 
Vos  vejo  estar  de  espinhos  coroado. 

Na  cruz  entre  ladrões  crucificado 
Sofreis  sêr  deshonrado  por  honrar-me; 
Por  da  terra  convosco  levantar  me, 
Estaes  de  duros  cravos  trespassado. 

A  cruel  lança  do  divino  peito 
Fez  porta  para  a  bemaventurança, 
Pera  que  o  amor  se  dê  por  satisfeito. 

Elle  faça  nesta  alma  tal  mudança, 
Que  sinta  em  si  com  amoroso  effeito 
Columna,  espinhos,  cruz,  cravos  e  lança. 


XXXVI. 
Ao  mesmo. 


Se  não  posso  pregar  meu  pensamento 

Na  Cruz,  em  que,  meu  Deos,  fostes  pregado. 

Da  columna,  a  que  fostes  atado, 

Não  sinta  desatar  meu  pensamento. 


ig2  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  se  dentro  desta  alma  represento 
Pouco  do  que  ellas  tem  representado, 
Sendo  de  qualquer  delias  sustentado, 
Sinta  que  de  ambas  juntas  me  sustento. 

Mas  a  fraqueza  humana  acostumada 
A  vaguear  por  partes  perigosas, 
A  memoria  me  leva  derramada 

Sem  me  deixar  gozar  as  mais  fermosas 
Da  columna  e  da  cruz  ensanguentada, 
Nos  cravos,  que  sostem  vermelhas  rosas. 


XXXVII. 

A  coroa  d'esptnhos. 

A  que  vindes,  Senhor,  do  Geo  á  terra, 
Terra,  que  sendo  vossa,  vos  engeita, 
E  que  tanto  vos  honra  e  respeita, 
Que  em  vos  não  receber  insiste,  emperra  ? 

Ah !  quanta  ingratidão  nella  s'encerra ! 
Quam  mal  da  vinda  vossa  se  aproveita ! 
Pois  se  põe  a  tomar-vos  conta  estreita, 
Mais  brava  contra  vós,  quanto  mais  erra. 

E  vós  de  vosso  amor  puro  forçado 
As  malditas  espinhas  lhe  pisaes, 
Das  quaes  ainda  sendo  coroado, 

A  maldição  antiga  lhe  trocaes 

Na  benção,  que  lhe  daes  crucificado. 

Quando  morto  d'amor,  d'amor  mataes. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  igS 


XXXVIII. 
A  Chrisio  na  Cru^ 

Eterno  sacerdote,  que  hoje  alçado 

Na  grande  ara  da  cruz,  onde  morrestes, 

A  Deos  em  sacrifício  ofFerecestes 

A  vós  mesmo,  em  amor  todo  abrazado. 

Supremo  Rei,  não  d'ouro  coroado, 
Mas  de  cruéis  espinhos,  que  escolhestes. 
Que  por  senhor  dos  reinos,  que  vencestes, 
No  throno  dessa  cruz  estaes  jurado. 

Guerreiro  capitão,  que  assi  ferido 

Com  a  lança,  que  ao  ombro  alevantastes, 

A  morte,  que  morreis,  tendes  vencido. 

Entrai,  Senhor,  nesta  alma,  que  buscastes, 

E  nella  pêra  sempre  recolhido 

Os  titulos  tomai,  que  hoje  ganhastes. 


XXXIX. 

Ao  mesmo. 

Como  estaes,  luz  sem  luz,  vida  sem  vida, 
Sol  sem  curso,  com  sede  fonte  pura, 
Imagem  do  pai  eterno  sem  figura 
Do  mesmo  pai,  palavra  emudecida ! 

i3 


194  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Vara  santa  de  Arão,  já  não  florida, 
Bello  espelho  do  ceo  sem  fermosura, 
Doce  favo  de  Sansão  entre  amargura, 
Torre  de  David  forte  enfraquecida ! 

Mas  sem  vida  dais  vida,  luz  sem  luz. 
Vossa  sede  farta  ao  mundo,  e  a  imagem, 
Que  tendes,  me  faz  vêr  onde  vos  pús. 

Calando  ensinaes,  immovel  moveis 
Mais  duros  corações,  que  a  dura  lagem, 
Morto  espelho  mais  bello  pareceis. 


XL. 
Ao  mesmo. 

Assi  como  vos  vejo  nessa  cruz 
Nú,  despido,  de  todo  assi  me  veja, 
E  como  vós  estaes,  meu  Deos,  esteja, 
Sem  haver  em  mim  mais,  que  o  meo  Jesus, 

Que  pois  eu  fui  aquelle,  que  vos  pús 
Despido  nessa  cruz,  despido  seja 
De  quanto  me  desvia,  turba  e  peja, 
Pêra  não  contemplar  a  vossa  luz. 

Quisestes  vós  morrer  na  cruz  despido. 
Sendo  vós  senhor  meu;  eu  servo  vosso, 
Não  pago  vossa  morte  com  morrer. 

Que,  pois,  por  mim  já  tendes  padecido, 
Nem  com  morrer  por  vós  pagar-vos  posso, 
Pois  o  morrer  por  vós  é  mais  viver. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  igS 


XU. 
A  Paixão. 

Se  queres,  ó  christão,  gozar  da  gloria, 
E  fugir  aos  abismos  do  inferno, 
A  affligida  paixão  de  Deos  eterno 
Traze  sempre  esculpida  na  memoria. 

Nella  tens  de  tormentos  longa  historia, 
Um  mar  alto  sem  fim  de  amor  interno, 
Despreza  o  livro  antigo  e  o  moderno, 
Que  este  lhes  leva  a  palma  e  a  victoria. 

Verás  o  bom  Jesus  escarnecido. 
Derramando  do  horto  ao  Calvário 
Rios  de  sangue,  dores  de  contino. 

O'  finezas  de  amor  extraordinário ! 

Que  um  Rei  da  terra  e  Geo  por  povo  indino 

Não  descanse,  senão  na  cruz  subido ! 


XLn. 
Ao  mesmo. 

Os  passos,  que  de  dores  trespassado 
Christo  Jesus  passou  ajoelhando, 
Vamos  por  seo  amor  todos  passando, 
Pois  tanto  o  nosso  e  seo  lhe  tem  custado. 


196  Obras  de  Fr,  Agostinho  da  Cruz 

Pelo  rasto  do  sangue  derramado 
O  seo  caminho  iremos  acertando, 
Pêra  o  monte  Calvário  caminhando, 
Onde  delle  foi  tudo  consumado. 

O  descanso  do  peso,  que  levou, 
Mudando  nos  seus  membros  o  madeiro, 
Dos  ombros  pêra  as  costas  se  passou. 

E  ficando  do  seo  seo  companheiro, 

Assi  no  seo  pregado  se  ficou, 

Morto  por  nós  no  seo  nosso  cordeiro. 


XLIII. 
Ao  mesmo. 

Se  vós,  meo  Senhor,  dais  consentimento 
Pêra  ser  dos  imigos  preso,  atado. 
Não  me  negueis  comvosco  ser  levado. 
Atado  a  vós,  sequer  do  pensamento. 

Que  já  que  em  mim  não  há  merecimento 
Pêra  serdes  de  mim  acompanhado. 
Pelo  menos  ser  muito  desejado 
Não  deixe  de  crescer  um  só  momento. 

Não  faltam.  Senhor  meo,  cordas  banhadas 
No  próprio  sangue  vosso  pêra  atar 
As  entranhas  dos  vossos  desatadas ; 

Nem  faltam  pregos  vossos,  que  me  dar, 
Nos  vossos  pés  e  mãos,  na  cruz  pregadas. 
Pêra  comvosco  nella  me  pregar. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  197 


XLIV. 
Ao  ferro  da  lança,  que  ahrio  o  lado  de  Christo. 

Duro  ferro  cruel,  lança  homicida, 
Mais  inda  que  homicida,  pois  ousaste 
Tocar  o  sacro  lado,  onde  passaste 
O  termo  da  crueldade  além  da  vida. 

Lança  de  fraca  mão,  mas  atrevida. 
Como  de  vêr  tal  Deos  não  te  assombraste, 
Como,  quebrando  as  pedras,  não  quebraste, 
Como  de  não  quebrar  não  estás  corrida  ? 

Não  é  perversa  mão  a  que  se  atreve 
A  abrir-nos  na  divina  humanidade 
O  thesouro,  que  o  mundo  descativa? 

Mas  nunca  melhor  lança  o  mundo  teve, 
Pois  quando  estanca  a  humana  crueldade, 
Ella  nos  fez  correr  a  fonte  viva. 


XLV. 

A  firmeza  do  amor. 

Quem  me  pôde  apartar  de  vosso  amor. 
Imprimido  por  vós  neste  meo  peito, 
Que  além  de  ser  por  vós,  meu  Senhor,  feito, 
Feito  quisestes  ser  meo  Redemptor  ? 


igS  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Em  que  tribulação,  tormento,  ou  dôr, 
Em  que  passo  da  morte  tão  estreito, 
Me  posso  vêr  em  cinza  e  pó  desfeito, 
Que  cada  vez  amor  não  seja  mór. 

Das  penas,  meo  Senhor,  que  padecestes 
Do  berça  até  sêr  na  cruz  pregado, 
A  dureza  em  brandura  convertestes. 

O  ferro,  com  que  fostes  trespassado 
Frio,  por  nós  despois  doce  fizestes. 
No  sangue  de  amor  vosso  temperado. 


XLVI. 
A  Crui. 

Amor  trouxe  a  Jesus  da  gloria  á  cruz, 
Amor  nos  leva  a  nós  da  cruz  á  gloria, 
Amor  nos  descobrio  gloria  na  cruz. 
Amor  nos  deo  na  cruz  posse  da  gloria. 

Amor  me  dê  a  gloria  pela  cruz. 
Amor  de  cruz  ensina  amor  de  gloria. 
Amor,  que  gloria  quer,  funda-se  em  cruz, 
Amor  fundado  em  cruz,  pára  na  gloria. 

Amor  é  peso  igual  de  gloria  e  cruz. 
Amor  nuve  é  de  cruz,  e  sol  de  gloria. 
Amor  porto  é  de  .gloria  em  mar  de  cruz. 

Amor  ama  na  cruz,  goza  de  gloria, 
Amor  une  ceo,  terra,  gloria  e  cruz. 
Amor,  donde  ha  mór  cruz,  tira  mór  gloria. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  199 


XLVII. 
A  Ascensão. 

Lá  vos  tornaes,  Senhor,  onde  subistes 
Pêra  lá  nos  subir,  donde  descestes ; 
Nascestes  para  nós,  por  nós  morrestes, 
Morto  por  nos  dar  vida  resurgistes. 

A  nossa  humanidade,  que  vestistes, 
Vestida  pêra  o  ceo  levar  quisestes ; 
E  tudo  quanto  nella  merecestes, 
Comnosco  livremente  repartistes. 

O  nascer,  o  morrer,  o  resurgir, 
O  subirdes  ao  ceo  por  nos  mostrar 
O  caminho,  por  onde  havemos  d'ir ; 

Tudo  tem  muito  em  si  que  contemplar; 
Mais  muito  mais  em  mim  vêr-vos  partir, 
Sem  vos  poder,  Deos  meo,  acompanhar. 


XLVni. 
A  Assumpção  de  Nossa  Senhora. 

A  terra  feita  ceo,  de  sol  vestida, 

Sobe  com  nova  gloria  e  magestade 

A  ser  único  espelho  da  Trindade, 

De  anjos  rainha,  de  homens  honra  e  vida. 


aoo  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

A  luz,  que  esteve  cá  neila  escondida, 
Por  que  iguale  o  triumpho  a  dignidade, 
Vem  receber  a  mãi,  cuja  saudade 
Leva  tudo  após  si  nesta  partida. 

O  resplendor  da  igreja  militante 
Abrindo,  como  aurora  um  novo  dia, 
Faz  hoje  mais  fermosa  a  triunfante. 

Já  goza  o  que  esperava,  amava  e  cria. 
Que  logo  mereceo  no  mesmo  instante. 
Que  Deos  a  fez  mãi  sua,  e  nossa  guia. 


XLIX. 
A  Santo  António. ' 

Se  o  sacro  Evangelista  mereceo 

Que  Deos  lhe  desse  o  peito,  onde  aprendesse, 

E  são  Francisco  tanto  se  enriquece 

Das  suas  cinco  chagas,  que  lhe  deo ; 

Pois  se  o  divino  António  se  escolheo 

Pêra  que  o  mesmo  Deos  nas  mãos  trouxesse. 

Parece  sêr  que  muito  mais  merece 

Que  quem  o  peito,  ou  chagas  recebeo. 

Quando  nas  mãos  de  António  Deos  estava, 
E  nellas  se  quis  pôr,  e  se  sostinha, 
Nellas,  por  pagar  tanto,  se  deteve, 

Fiava-se  Deos  delle,  e  bem  convinha 

Que  desse  António  a  Deos  o  mais,  que  teve. 

Se  Deos  a  António  deo  o  mais,  que  tinha. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


L. 

A  Degolação  do  Baptista. 

Tendo  o  rei  adultero  e  deshumano 
Ao  grão  Baptista  preso,  e  não  contente, 
Como  quem  tal  crime  inda  não  sente, 
Outro  peor  commette  o  máotyranno; 

E  doura  assi  seo  ódio  com  engano, 
Que  com  saber  sêr  santo,  e  luz  da  gente, 
Por  mais  males  fazer,  matar  consente 
Um  anjo  tal  de  Deos  com  tanto  dano. 

Glorioso  Baptista  e  pregoeiro 

Com  tanta  fé,  fervor,  tal  humildade, 

Da  terra  pêra  o  ceo  caminho  e  norte. 

Dos  nascidos  em  tudo  és  o  primeiro 
Martyr,  que  por  falares  a  verdade, 
Te  dá  um  rei  cruel  tão  cruel  morte. 


LI. 

A'  ida  de  Magdalena  ao  sepulcro. 

Magdalena  de  amor  toda  roubada, 
Confusa,  triste,  só,  sem  luz,  sem  guia, 
Busca  fora  de  si  quem  nella  ia, 
Com  passos  desiguaes,  e  alma  abrazada. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Não  teme  a  noite,  as  guardas,  a  jornada, 
Porque  não  tinha  vista,  nem  sentia, 
Que  o  coração  seu  mestre  o  possuia, 
E  os  olhos,  sem  o  ver,  não  viam  nada. 

Chorando  chega  enfim  onde  deseja, 
Vasio  acha  o  sepulcro,  de  anjos  cheio, 
Que  o  lugar  de  Jesus  só  elle  o  peja. 

Mas  como  de  o  achar  o  melhor  meio 

São  lagrimas  de  amor,  quer  Deos  que  veja 

Nellas  vivo,  quem  morto  buscar  veio. 


LII. 
A  sua  morte. 

A  corte  dos  celestes  moradores 
Da  virtude  da  cruz  hoje  se  espanta. 
Que  entra  uma  peccadora  triunfante 
A  dar  posse  da  gloria  a  peccadores. 

Quem  das  lagrimas  fez  conquistadores, 
Bandeiras  de  victoria  no  ceo  plante  \ 
E  a  gozar  dos  thesouros  se  levante, 
De  que  os  pés  de  Jesus  foram  penhores. 

Delle  tira  o  remédio  efficaz, 

Que  o  ceo,  a  terra,  a  vida,  a  morte,  a  culpa, 

Abre,  apura,  reforma,  vence,  apaga. 

Alquimia,  que  da  offensa  fez  desculpa, 
Diluvio,  em  que  se  salva  quem  se  alaga. 
São  milagres  de  amor,  que  só  Deos  faz. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  3o3 


Lin. 
As  SS.  Marta  e  Maria. 

Aqueixava-se  Marta  de  Maria, 

Que  servir  seu  Senhor  não  lhe  ajudava; 

Mas  o  Senhor  Maria  desculpava, 

De  quem,  mais  que  de  Marta,  se  servia. 

Porque,  quando  ella  mais  se  distrahia 
No  serviço  de  quem  agasalhava, 
Sem  se  bolir  Maria  donde  estava, 
Os  pés  do  Redemptor  mais  merecia. 

Do  qual  foi  a  queixosa  respondida, 
Que  andava  em  muitas  cousas  occupada, 
Sendo  só  necessária  uma  na  vida, 

Que  nunca  poderia  ser  tirada 
A  Maria,  de  quem  fora  escolhida, 
Escolhida  de  quem  fora  ensinada. 


LIV. 
A  S.  Jacinto. 

Jacinto,  já  vestido  doutras  cores 
Differentes  daquellas,  que  vestido 
Tinhas  no  verde  campo,  onde  colhido 
Colheste  do  Senhor  largos  favores. 


204  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Em  que  passos  de  amor,  em  que  amores 
Teu  brando  coração  íoi  derretido, 
O  teu  suave  nome  convertido 
Ora  fosse  de  pedra,  ora  de  flores  ? 

De  pedra  preciosa  rodeada 

De  brandas,  alvas  flores  na  pureza, 

Das  estrellas  do  ceo  encastoada, 

Tal  festejada  cá  nesta  baixeza, 

Tal  na  maior  alteza  festejada, 

Tal  na  festa  do  Duque  e  da  Duquesa. 


LV. 
A  S.  Francisco. 

Seráfico  Francisco,  sprito  puro. 
Profundo  mar  de  amor  e  de  humildade, 
Exemplo  de  pobreza  e  caridade, 
De  faustos  e  honras  vans  imigo  duro. 

De  santa  fé  columna  e  forte  muro, 
Espelho  de  limpeza  e  castidade. 
Clara  fonte  de  clara  e  sã  bondade. 
Sempre  servo  de  Deos  firme  e  seguro. 

Como  é  próprio  de  amante  desejar-sc 
Na  cousa  amada  todo  transformado, 
E  vós  com  tanto  amor  o  desejastes, 

Deos,  de  vosso  ardor  santo  namorado, 
Quis  também  nesse  habito  encerrar-se, 
E  vós  no  próprio  Deos  vos  transformastes. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  ao5 


LVI. 

A  entrada  da  Madre  Soror  Meda 
na  Madre  de  Deos. 

Qual  ave,  que  do  laço  vai  fugindo. 
Qual  cerva,  dos  monteiros  acossada. 
Qual  pedra,  d'alto  monte  despenhada, 
Qual  vem  o  raio  ardente  a  nuve  abrindo; 

Qual  sae  do  arco  a  setta,  o  ar  ferindo, 
Qual  imaginação  desenfreada, 
Qual  do  rio  a  corrente  arrebatada, 
Qual  fogo  a  sua  esphera  vae  subindo; 

Tal  corre  a  esposa,  ouvindo  a  voz  do  amado, 
De  delicias  a  cruz,  de  honra  a  desprêso, 
Do  mundo  a  Deos,  das  pompas  á  pobreza. 

Effeitos  de  Jesus  crucificado. 

Que  faz  suave  o  jugo,  e  leve  o  peso, 

£  faz  que  a  graça  vença  a  natureza. 


Lvn. 
A'  mesma. 

Pôs  Deos  da  gloria  o  ceo  na  mór  altura, 
Pôs  na  mór  humildade  o  ceo  da  graça, 
E  d'ambos  deo  amor  (com  nova  traça) 
Por  meio  do  Creador,  posse  á  creatura. 


2o6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Com  mortal  veo  a  eterna  formosura 
Descendo  dum  a  outro  se  disfarça, 
E  a  cruz  por  nós  com  tal  excesso  abraça, 
Que  os  que  a  buscam,  já  nella  acham  doçura. 

Esta  pedra  evangélica  preciosa 

Buscou,  achou,  comprou  por  quanto  tinha 

A  martyr  de  desejo  valerosa. 

Fez  rica  a  pobre,  a  serva  fez  rainha, 

A  soberana  sorte  venturosa, 

Devida  a  quem  por  cruz  a  Deos  caminha. 


LVIII. 

Delitice  mece,  esse  cum  filiis  hominum. 
Prov.  8.  3i. 

Sc  são  vossas  delicias,  meo  Senhor, 
Estar  com  filhos  de  homens  nesta  vida, 
Que  será  na  que  tendes  escolhida 
Pêra  mais  refinar  o  vosso  amor? 

Por  elle  nú  na  cruz  vos  fostes  pôr, 
Por  elle  nossa  carne  em  vós  vestida. 
Por  elle  nossa  morte  destruída. 
Por  elle  feito  santo  o  peccador. 

E  se  vossas  delicias  são  estar 

Com  os  filhos  dos  homens,  quaes  as  suas, 

Que  consistem  somente  em  vos  amar. 

Contemplando  nas  vossas  carnes  nuas 
Com  que  fogo  d'amor  quereis  formar, 
E  fazer  uma  só  cousa  de  duas. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  207 


LIX. 

Quid  enim  mihi  esí  in  coelo?  et  a  te  quid  volui 
super  íerram  ?    Psalm.  72.    âS. 

Que  tenho  mais  no  ceo,  ou  que  na  terra 
Que  vós,  meo  Deos,  por  queno  foi  tudo  feito, 
Ficando  terra  e  ceo  a  vós  sugeito 
Com  tudo  quanto  mais  nelles  se  encerra  ? 

Que  quem  por  vós  de  tudo  se  desterra, 
Trazendo-vos  só  dentro  no  seo  peito. 
Sem  terra,  e  sem  ceo  fica  satisfeito, 
E  nú,  comvosco  só,  vivo  se  enterra. 

Como  se  pode  ver  nesta  figura, 

Em  quem  da  carne  nossa  foi  vestido. 

Por  vestir  de  si  mesmo  a  creatura. 

Por  cujo  amor  morreo  na  cruz  despido, 
Vestindo-nos  da  sua  fermosura, 
Sem  despir  nosso  e  seo  roto  vestido. 


LX. 
A  Nosso  Senhor. 

Mostrai-me,  meo  Senhor,  em  que  deserto, 
Em  que  ribeira,"  valie,  monte,  ou  serra, 
Em  quanto  me  deixaes  andar  na  terra, 
Do  ceo  me  deixareis  andar  mais  perto. 


2o8  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  pois,  ora  encoberto,  ou  descoberto, 
Me  faz  cruel  imigo  cruel  guerra, 
De  quanto  dentro  em  mim  mesmo  se  encerra 
Lugar  de  defensão  tenha  mais  certo. 

Mas  como,  e  donde  posso  defender-me, 
Em  quanto  fôr  de  mim  acompanhado, 
Com  tanta  experiência  de  perder -me. 

Senão  sendo  metido  em  vosso  lado 
Pêra  todo  de  mim  mesmo  esquecer-me, 
E  só  de  vós,  meo  Deos,  ser  alembrado  ? 


LXI. 

Ao  mesmo. 

Quando  será,  Senhor,  quç  desatado 
Deste  peso  mortal  comvosco  esteja, 
E  vendo  esta  alma  em  vós  o  que  deseja, 
Veja  quanto  de  vós  tem  desejado  ? 

Que  inda  que  sêr  não  pôde  coroado 
Quem  valerosamente  não  peleja, 
Basta,  por  muito  mais  fraco  que  seja. 
Quererdes  vós  por  jmim  ter  pelejado. 

Aqui  se  fortifica  a  confiança, 
Aqui  se  certifica  meu  desejo, 
Que  quem  muito  deseja,  muito  alcança. 

E  se  pena  me  dá,  se  me  faz  pejo 
O  sentimento  grave  da  tardança. 
Desejando  acharei  o  que  desejo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  209 


XLII. 
Ao  mesmo. 

Se  desejo,  meo  Deos,  de  vos  amar, 
E  sei  que  desejaes  de  sêr  amado, 
Como  tendes  amor  tão  limitado. 
Que  no  desejo  meo  possa  parar  ? 

Que  posso  fazer  mais  que  desejar, 
Nem  tanto,  se  de  vós  me  não  for  dado  ? 
E  pois  de  mim  não  basta  o  desejado, 
O  que  vós  desejaes,  me  haveis  de  dar. 

E  se  de  libValidade  e  brandura 
Quereis  mostrar  d'amor  maior  affeito 
Sem  mal,  nem  bem  da.  vossa  creatura, 

Creai  coração  limpo  no  meo  peito, 
Abrazado  na  vossa  fermosura, 
Onde  todo  de  amor  seja  desfeito. 


LXIII. 
Ao  mesmo. 

Se  vós  quereis,  Senhor,  a  quem  vos  quer, 
Com  vos  querer  alcanço  o  bem  querido, 
Mas  porque  melhor  fique  do  partido, 
Fique  nas  vossas  mãos  o  bem  querer. 

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310  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Assi  que  nem  falar,  ouvir,  nem  vêr, 
Nem  desejar  me  seja  permittido 
Mais  daquillo,  que  mais  fordes  servido, 
Seja  quanto  penoso  poder  sêr. 

Que  não  receio  dôr,  pena,  ou  tormento, 
Buscando  quanto  em  vós  achar  pretendo 
Por  obra,  por  palavra,  ou  pensamento. 

Donde  vem  que  de  vós,  Senhor,  aprendo. 
Que  entre  ambos  não  sofreis  apartamento, 
Pois  só  com  vos  querer  me  estaes  querendo. 


LXIV. 
Ipse  dixit,  et  fada  sunt.    Psalm.  148.    5. 

Se  bastou  só  dizer  para  sêr  feito, 

E  mandar  pêra  sêr  tudo  creado, 

O  que  também  a  mim  me  está  mandado, 

Como  não  tem  em  mim  o  mesmo  efteito  ? 

E  que  seja  maior  este  preceito 
De  sêr  Deos  sobre  tudo  mais  amado, 
E  que  em  mim  só  não  seja  effeituado, 
Que  tal  deve  de  sêr  o  meo  defeito ! 

Dous  estremes  d'aqui  fico  notando,. 
Que  me  confunde  meo  entendimento 
As  causas  dos  effeitos  discursando. 

Num  vejo  quanto  pôde  o  mandamento, 
Noutro  quam  pouco  em  mim  só  fica  obrando, 
E  de  ambos  falta  em  mi  o  sentimento. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  211 


LXV. 
Deus  caritas  est.  Joan.    Ep.  I,  IV,  8  e  16. 

Habita  n'alma  Deos,  se  nella  habita. 
Como  em  sagrado  templo  a  caridade; 
Sem  ella,  qual  sem  Deos,  a  liberdade 
D'alma  em  officio  inútil  se  exercita. 

ITirtude,  que  a  virtude  informa  e  incita 
Ao  summo  bem,  nem  sofre  que  a  vontade 
Ande  em  campo  menor,  que  a  eternidade, 
Ou  queira  menos  gloria,  que  infinita. 

Generosa  princesa,  em  quem  receio, 
Em  quem  pena  não  há,  que  lhe  dê  vida, 
Da  ardente  hierarchia  a  melhor  palma. 

E'  spirito  divino,  é  suave  meio. 

Que  ajunta  uma  alma  a  Deos,  e  lhe  dá  vida, 

Antes  é  o  mesmo  Deos,  que  é  vida  d'alma. 


LXVI. 

Satiabor  cum  apparuerit  gloria  tua. 
Ps.  XVI,  i5. 

Quando  verei,  meo  Deos,  chegar-se  a  hora, 
Que  a  desagasalhada  alma  deseja. 
Pêra  que  só  comvosco  em  vós  me  veja, 
E  os  mais  cuidados  vãos  fiquem  de  ióra  ? 


aia  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Pasma  o  juizo,  o  peito  se  afervora 
No  vosso  amor,  que  todo  outro  despeja, 
Rouba-me  o  sprito  a  saudade  sobeja, 
Mas  nada  satisfaz  a  quem  cá  mora. 

Se  buscar-vos  faz  n'alma  estes  affeitos, 
Achar  vos  que  fará  ?  perca-se  o  tino, 
Tornem-se  os  olhos  rios,  fogo  os  peitos. 

Mouramos  todos  deste  amor  divino, 
Que  só  nelle  consiste  o  sêr  perfeitos, 
E  o  atinar  do  mundo  é  desatino. 


LXVII. 

Pr ceterit  figura  hiijus  mundi. 
I  Corinth.  Vil,  3i. 

O'  cegos,  que  buscaes  na  morte  a  vida, 
Na  terra  quietação,  no  ar  morada. 
Se  sois,  se  haveis  de  sêr,  se  fostes  nada. 
Onde  está  o  conto,  o  peso  e  a  medida  ? 

Se  alma  em  deseios  vãos  anda  embaida; 
Dizei-me,  gente  vil,  desatinada, 
Que  cousa  vos  engana  desejada. 
Que  vos  não  desengane  possuída  ? 

Quem  não  conhece  a  Deos,  nem  se  conhece, 
O  que  ha- de  aborrecer,  isso  deseja, 
E  o  que  ha-de  desejar,  isso  aborrece. 

Meu  Deos,  dai-me  outros  olhos,  com  que  veja, 
Que  o  mundo  em  apparencia  se  esvanece, 
E  vós  sejais  meo  fim,  para  que  eu  seja. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  21 3 


LXVIII. 
Voto  de  ardente  amor  divino. 

Quem  me  dera  por  lingua  um  raio  ardente, 
Que  os  corações  abrira  e  abrazára, 
E  os  derretera,  unira  e  transformara. 
No  amor,  que  arde  e  inflamma  suavemente. 

Amor,  que  tudo  quer,  nada  consente, 
Amor,  que  se  não  vê,  sendo  luz  clara. 
Amor,  que  do  ceo  vem,  e  no  ceo  pára. 
Amor,  que  quem  o  sente,  não  se  sente. 

Amor  que  n'alma  imprime  um  sêr  divino, 
Que  alumiado  abre,  abnndo  accende, 
Derrete  unindo,  e  une  transformando. 

Amor,  que  cá  na  terra  é  peregrino, 
Amor,  que  attrahe  o  spirito  e  o  suspende, 
Amor,  enfim,  que  só  se  aquire  amando. 


f  LXDC. 

Da  oração. 

Assi  como,  meo  Deos  omnipotente, 
Não  costumaes  negar  petição  justa, 
Assi  não  concedeis  qualquer  injusta, 
Concedendo  e  negando  justamente. 


•íeslí-:'.. 


214  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

A  justiça  guardando  igualmente 
Em  tudo,  quanto  mais,  ou  menos  custa 
Na  fraca  natureza,  ou  na  robusta 
Com  desejo,  das  forças  differente. 

Mas  não  haja  quem  perca  a  confiança 
D'alcançar  o  que  pede  a  tal  Senhor, 
Que  quem  nelle  confia,  tudo  alcança. 

Pois  a  tanto  se  extende  o  seu  amor, 
Que  pêra  dar  a  bemaventurança 
Em  breve,  justo  faz  do  peccador. 


LXX. 
Ao  mesmo. 

Aquelle,  que  caminha,  desejando 
Chegar  a  vêr-se  donde  se  deseja, 
Ainda  que  chegado  não  se  veja. 
De  cada  vez  se  vai  mais  achegando. 

Então  já  de  mais  perto  renovando 
O  desejo  lhe  dá  força  sobeja 
Tanto,  que  mais  penoso  inda  lhe  seja 
Deixar  de  caminhar,  que  caminhando. 

Não  sofre  amor  divino  haver  tardança, 
Por  pequena  que  seja,  em  caminhar. 
Pois  o  que  mais  caminha,  menos  cansa. 

E  pêra  finalmente  descansar. 
No  caminho  da  bemaventurança. 
Deixando  de  correr,  ha  de  voar. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Grur  21 5 


LXXI. 

Omniaflumina  intrant  in  maré,  et  maré  non 
redundai.    Eccles.  /,  7. 

Os  rios,  donde  nascem,  vão  correndo, 
Seu  repouso  no  mar  alto  buscando, 
Com  suas  doces  agoas  nelle  entrando, 
Que  em  salgadas  se  ficam  convertendo. 

Então  seo  claro  engano  conhecendo, 
De  novo  a  correr  tornam,  murmurando 
Do  mal  com  que  lhes  fica  o  mar  pagando 
As  voltas,  que  por  vê-lo  vão  fazendo. 

Doces  rios,  deixai  de  murmurar, 
Senão  de  vós,  tão  mal  considerados. 
Que  correndo  vos  is  lançar  no  mar. 

De  cima  pêra  baixo  ides  errados, 
De  baixo  pêra  cima  sem  errar. 
Os  caminhos  do  ceo  vão  acertados. 


LXXII. 
Gutta  cavat  lapidem.  Ao  effeiio  da  perseverança. 

A  fonte,  que  de  seu  curso  Inurmurava, 
Cahindo  do  mais  alto  do  rochedo. 
Nos  mostra  que  cavando  no  penedo 
A  dureza  se  vence  com  brandura. 


2i6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Assi  quem  persevera,  espera,  atura, 
Com  seos  olhos  banhados,  tarde,  ou  cedo 
Achega  a  penetrar  este  segredo. 
Como  o  figurado  na  figura. 

Se  contra  toda  a  lei  da  natureza 
A  brandura  com  ser  continuada 
Basta  pêra  vencer  toda  a  dureza, 

Que  não  fará  nesta  alma  renovada 
A  faisca  d'amor  divino  accesa 
Pêra  ser  nelle  toda  transformada  ? 


LXXIII. 
Quanto  importa  um  bom  desejo. 

Um  bosque,  que  de  longe  apparecia. 
Quando  mais  claro  o  sol  se  nos  mostrava, 
Desejapdo  de  vêr,  não  acabava, 
Arreceando  quanto  custaria. 

Assi  passando  fui  sem  vêr  um  dia 
O  que  vêr  tantas  vezes  desejava. 
Que  muitas  sêr  devendo  a  carne  escrava, 
Usurpa  d'alma  sua  a  senhoria. 

Enfim  depois  de  bem  considerado. 
Rompendo  pelo  mais  difficultoso. 
Achei  que  em  caminhar  tinha  acertado. 

Que  quem  deseja  vêr  o  mais  fermoso, 

Se  não  chegar  a  vêr  o  desejado, 

A  mais  chega  em  se  vêr  mais  desejoso. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  217 


LXXIV. 
Finis  cujusque  mali  principium  esí  futuri. 

Do  fim  de  qualquer  mal,  que  me  persegue, 
O  principio  de  outro  se  me  apega, 
Porque  quando  um  de  mim  se  desapega, 
Outro  no  mesmo  instante  se  me  apegue. 

Assi  do  que  se  acaba,  outro  se  segue, 
E  áquelle,  que  por  vir  está,  me  entrega, 
E  inda  este  não  se  vai,  já  outro  chega, 
Sem  que  para  acabar-me,  nenhum  chegue. 

E  pois,  quando  um  acaba,  outro  começa, 
De  um  só  (se  d'ambos  não)  fico  forçado 
A  que  de  novo  sempre  me  entristeça. 

Já  que  tão  mal  me  tenho  aproveitado. 
Que  não  faltando  males,  que  padeça, 
Na  paciência  minha  haja  faltado. 


LXXV. 
A  temperança. 

No  fim  da  vida  humana  discursando, 
Dos  males  e  dos  bens  fiz  conta  certa, 
Vendo  como  tem  sempre  a  porta  aberta 
O  tempo,  que  nos  cansa,  não  cansando. 


2i8  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  todo  se  consume  desejando 
Os  fugitivos  bens  da  vida  incerta ; 
E  se  nos  males  seos  se  desconcerta, 
Nos  bens  menos  se  fica  concertando. 

Temendo  Salomão  summa  pobreza, 
Das  riquezas  lemeo  summa  abundança, 
Confessando  de  si  sua  fraqueza. 

Assi  d'ambas  pedio  a  temperança 

De  tão  destemperada  natureza, 

Que  nos  males  e  bens  a  todos  cansa. 


LXXVI. 
A  vaidade  humana. 

De  que  serve,  que  presta,  que  aproveita, 
Tudo  quanto  se  acaba  em  tempo  breve, 
Qual  cera  ao  fogo,  ou  qual  ao  sol  a  neve, 
Que  não  pôde  deixar  de  ser  desfeita. 

Tal  o  que  só  jio  mundo  se  deleita. 
Querendo  do  pesado  fazer  leve. 
Sem  temer  o  castigo,  que  se  deve 
A  quem  por  temporal  eterno  engeita. 

As  flores,  que  nos  campos  apparecem, 
Abatem  sua  mesma  fermosura 
Antros  olhos,  de  quem  desapparecem. 

Amostra-nos  o  tempo  que  é  pintura. 
De  quantas  cousas  dá,  todas  fenecem, 
Senão  o  Greador  da  creatura. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cnu  219 


LXXVIL 
A  dignidade  da  alma  e  vaidade  da  vida. 

Quem  podesse  mostrar  o  que  tem  n^alma 
Pêra  desenganar  em  tudo  a  vida ! 
Mas  não  sinto  ninguém,  que  trate  d'alma, 
E  todos  a  esperança  pÕe  na  vida. 

O  ceo  é  verdadeiro  lugar  d'alma, 
E  á  terra  baste  dar-lhe  o  corpo  e  a  vida, 
Pois  não  podem  têr  fim  os  males  d'alma, 
E  passam,  como  sombra,  os  bens  da  vida. 

St  queremos  saber  o  preço  d'alma, 
Vejamos  que  pôs  Deos  por  ella  a  vida, 
E  viveremos  nelle,  elle  em  nossa  alma. 

O  mundo  é  sonho  vão,  que  enlêa  a  vida. 
Quem  nelle  está  melhor,  tem  peor  alma, 
E  quem  o  desprezou,  tem  alma  e  vida. 


LXXVIII. 

A'  Senhora  da  Memoria  na  ausência 
de  Fr.  Diogo  dos  Innoceníes. 

Se  vós  me  não  deixaes,  Senhora  minha, 
Seguro  estou  de  nunca  vos  deixar, 
Porque  se  em  mim  não  ha  que  segurar, 
Assegura-me  ter-vos  por  vizinha. 


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Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Foi-se-me  o  companheiro,  que  aqui  tinha, 
Enfermo  sem  poder  mais  aturar ; 
E  pois  doença  e  morte  hão-de  chegar, 
Fazei  que  a  morte  chegue  mais  asinha. 

Segura-me,  Senhora,  a  confiança 

De  vossa  piedosa  condição, 

Tão  liberal  comigo  aqui  neste  ermo. 

Para  não  recear  qualquer  mudança, 
Que  quem  de  mim  se  serve,  quando  são. 
Não  me  lançará  fora,  quando  enfermo. 


LXXIX. 
Á  mesma  e  ao  mesmo  respeito. 

A  saudade  d'alma  a  vós  devida, 
De  vós.  Senhora  minha,  se  sustenta. 
Que  todos  quantos  bens  me  representa, 
Nascem  de  merecerdes  ser  servida. 

• 

Servir-vos  é  viver  suave  vida, 
Doce,  quieta,  branda,  livre,  isenta ; 
A  paga  do  serviço  se  accrescenta 
Aqui  no  vosso  altar  da  vossa  ermida. 

Que  graças  dar-vos  posso  ?  que  louvores  ? 
Pois  quanto  posso  mais,  tanto  mais  devo, 
E  quanto  devo  mais,  tanto  mais  rico. 

E  mais  rico,  mais  devo  das  maiores ; 
Mas  quando  no  que  devo  mais  me  enlevo, 
Libertado  do  amor  mais  preso  fico. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  221 


LXXX. 
A  mesma  e  ao  mesmo  respeito. 

Daqui,  minha  Senhora,  fui  forçado 
Da  santa  obediência  á  cidade ; 
Mas  mais  forçado  vim  da  saíidade 
Vossa,  que  me  tornou  mais  esforçado. 

E  se  fui,  e  não  vim  acompanhado, 
Como  cuido  que  foi  vossa  vontade, 
Ndo  pode  ser  que  aparte  a  piedade 
Quem  nunca  vi  d'amor  vosso  apartado. 

Eu  não  posso  encobrir  o  sentimento 
De  tão  suave  e  branda  companhia, 
Serviço  vosso,  meo  contentamento. 

Mas  tudo  sofrerei  com  alegria, 

Com  tanto  que  não  haja  apartamento 

Do  meo  doce  Jesus,  Virgem  Maria. 


LXXXI. 
Na  Serra  da  Arrábida. 

No  meo  4esta  Serra,  onde  se  cria 

Aquella  saudade  d'alma  pura. 

Que  no  duro  penedo  acha  brandura, 

Ardente  fogo  dentro  nagoa  fria, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Ouço  no  passarinho  a  melodia. 
Vejo  vestir  o  bosque  de  verdura, 
Variar-se  no  ceo  outra  pintura, 
Que  em  vários  sentimentos  me  varia. 

Pasmando  de  quam  mal  se  gasta  a  vida 
De  quem  da  terra  quer  subir  ao  ceo, 
Pois  caminhar  enfim  ninguém  duvida, 

Menos  da  vida  estreita,  que  escolheo, 
Dos  seos  mais  escolhidos,  mais  seguida, 
Christo  Jesus,  que  numa  cruz  mbrreo. 


LXXXII. 

Da  contemplação  na  mesma. 

Dos  solitários  bosques  a  verdura. 
Nas  duras  penedias  sustentada, 
Nesta  Serra,  do  mar  largo  cercada, 
Me  move  a  contemplar  mais  fermosura. 

Que  tem  quem  tem  na  terra  mór  ventura, 
Nos  mais  altos  estados  arriscada, 
Se  não  tem  a  vontade  registada 
Nas  mãos  do  Creador  da  creatura  ? 

A  folha,  que  no  bosque  verde  estava. 
Em  breve  espaço  cahe,  perdida  a  flor, 
Que  tantas  esperanças  sustentava. 

Por  isso  considere  o  peccador, 
Se  quando  na  pintura  se  enlevava 
Não  se  enlevava  mais  no  seo  pintor. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  223 


LXXXIII. 
Da  perseverança  na  penitencia,  na  mesma. 

As  cabras,  que  inda  guardo  nesta  Serra, 
São  lagrimas  chorar  por  meos  peccados 
Na  lembrança  dos  tempos  mal  gastados, 
Vendo  quem  mais  acerta,  ou  quem  mais  erra. 

Triste  vida  se  vive  sobre  a  terra, 
E  triste  muito  mais  nos  povoados, 
Dos  meos  e  dos  alheos  semeados, 
Por  cima  d'hervas  más  da  mesma  terra. 

Quão  pouco  dura  a  vida,  bem  se  entende, 

E  bem  o  pêra  que  foi  concedida, 

E  quanto  bem,  ou  mal  no  fim  nos  rende. 

Ora  seja  mais  breve,  ou  mais  comprida, 
A  nenhum  outro  bem  maior  se  estende, 
Que  a  ganhar  com  mortal  immortal  vida. 


LXXXIV. 
Da  experiência. 

Que  me  fica  por  ver  na  mortal  vida. 
Dos  meos  immortaes  bens  tão  alongada, 
Que  por  mais  que  o  seo  tudo  seja  nada. 
No  mais  do  tudo  seo  vejo  perdida ! 


224  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Ah !  quanto  se  dilata  esta  partida, 
Com  perigo  desta  alma  dilatada, 
Que  antes  de  ser  nascida,  foi  culpada, 
Culpada  mais,  depois  de  ser  nascida. 

A  taes  termos  chegou  minha  esperança, 
Que  do  remédio  estou  desenganado 
Tanto,  que  cuidar  nelle  inda  me  cansa. 

Porque  passou  o  tempo  limitado, 
Que  não  pode  sofrer  tanta  tardança 
Da  morte,  de  que  estou  desconfiado. 


LXXXV. 
Ao  mesmo. 

Dos  males,  qiie  por  mim  já  tem  passado, 
Os  que  estão  por  passar  tenho  aprendido, 
Vendo  quanto  mais  vai  sêr  perseguido 
Sem  causa,  que  com  ella  sêr  louvado. 

Na  terra,  que  não  sofre  o  curvo  arando 
Nas  rasgadas  entranhas  revolvido, 
Não  pode  o  novo  trigo  sêr  colhido, 
Que  pêra  se  colher  foi  semeado. 

A  natureza  humana  mal  sofrida, 
De  vários  successos  encontrada. 
Mal  poderá  deixar  de  sêr  ferida. 

E  que  deixe  de  sêr,  sendo  louvada, 
Sofrendo  sêr  sem  causa  perseguida, 
Ainda  a  vigiar  fica  obrigada. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  22  5 


LXXXVI. 
Da  quietação. 

Dentro  na  minha  Lapa  recolhido 
Para  chorar  um  mal  novo  presente, 
Soltando  a  rouca  voz  mais  brandamente 
Disse,  depois  de  tudo  concluído : 

—  Se  sempre  são  hei-de  ir,  e  vir  ferido, 
E  se  triste  tornar,  indo  contente. 
Nem  por  amor  de  amigo,  ou  de  parente, 
Sahirei  fora  donde  estou  metido. 

Nem  ver,  nem  visto  sêr  quero  neste  ermo, 
Nem  mal,  nem  bem  tratar  mais  que  de  mim, 
Pois  já  da  vida  tenho  feito  termo. 

Deixem-me  morrer  donde  morrer  vim, 

Não  queiram  que  mais  viva  o  velho  enfermo, 

Nem  queiram  mais  matar,  sem  dar-lhe  fim ! 


LXXXVII. 
Ao  mesmo. 

Dos  males,  que  passei  no  povoado. 
Fugi  pêra  esta  Serra  erma  e  deserta, 
Vendo  que  quem  servir  seo  Deos  acerta, 
Certo  tem  tudo  o  mais  ter  acertado. 


220  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

E  pera  mais  pureza  sou  forçado 
Mostrar  a  paciência  descoberta, 
Que  quando  o  tentador  se  desconcerta, 
O  paciente  fica  concertado. 

Passou  a  furiosa  tempestade, 
Ouve-se  a  voz  da  rola  em  nossa  terra, 
Soando  com  maior  suavidade. 

Cobrio-se  d'alvas  flores  toda  a  Serra, 
A  minha  alma  de  doce  saudade, 
Em  paz  me  fez  amor  divina  guerra. 


LXXXVIII. 
Ao  mesmo. 

No  silencio  da  noite,  em  que  vigio, 
Desterrado  da  terra  o  pensamento. 
No  que  dentro  nesta  alma  represento, 
Ora  me  aquento  mais,  ora  me  esfrio. 

E  pera  temperar  fogo  com  frio, 

Em  que  me  esfrio  mais,  ou  mais  me  aquento, 

Dos  efleitos  do  puro  sentimento, 

Na  minha  saiidade  chorja  e  rio. 

Depois  destes  contrários  temperados 
Na  mór  quietação,  na  mór  brandura, 
Meus  pensamentos  ficam  sepultados. 

Temperada  a  frieza  na  quentura 
Do  meo  divino  amor  tão  apurados, 
Que  me  deixam  em  paz  na  sepultura. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  227 


LXXXIX. 
Ao  peccado  original. 

Se  sendo,  meo  Senhor,  por  vós  formado 
Adão,  antes  de  ser  o  mal  nascido, 
Peccou,  que  fará  quem  foi  concebido 
Nas  entranhas,  que  já  tinham  peccado  ? 

Comer  de  um  fruito  só  lhe  foi  vedado, 
Tudo  mais  a  seo  gosto  concedido, 
E  por  uma  só  vêz  haver  cahido. 
Por  muitas  sêr  não  posso  alevantado. 

Tão  fraca  ficou  minha  natureza. 
Que  levantar  não  deixa  o  pensamento 
Da  terra,  a  que  está  atada  e  presa, 

Tão  imiga  do  meo  merecimento. 
Que  se  morder  não  pôde  na  pureza, 
Não  deixa  de  ladrar  um  só  momento. 


XC. 

Chora  os  desvarios  da  sua  desaproveitada 
mocidade. 

O'  montes  altos,  valles  abatidos. 
Verdes  ribeiras  de  correntes  rios. 
Ora  por  baixo  de  bosques  sombrios. 
Ora  por  largos  campos  estendidos ; 


228  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Onde  mais  claros  vejo  repetidos 
Meos  mal  considerados  desvarios 
De  pensamentos  vãos,  baixos  e  frios, 
Emendados  tão  mal,  quam  mal  sentidos. 

Passei  a  mocidade  sem  proveito, 
Antes  contra  meo  Deos  accrescentando 
Culpas  a  quantas  culpas  tenho  feito  \ 

Cuja  pena  a  velhice  está  purgando 
Pêra  passar  da  morte  o  passo  estreito, 
Se  não  se  no  seo  sangue  for  nadando. 


XGI. 
Da  emenda. 

Concluído  me  tenho  a  mi  comigo 
De  deixar  o  caminho,  que  levava, 
Vendo  com  razões  claras  quanto  errava 
Em  não  me  desviar  do  mais  antigo. 

Pois  no  trabalho  seo,  no  mór  perigo, 
Meo  amigo  consigo  a  mi  me  achava ; 
E  quando  no  meo  mal  algum  buscava, 
Achava-me  comigo  sem  amigo. 

Agora  dei  a  volta  por  caminhos 

De  solitários  bosques  enramados 

De  feras  bravas,  mansos  passarinhos  \ 

Que  inda  que  entre  os  espinhos  conversados. 
Mais  quero  pés  descalços  entre  espinhos. 
Que  dos  homens  humanos  espinhados. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  229 


XCII. 
A  sua  inalterável  confiança  em  Deos. 

Ancorou-me  a  velhice  no  remanso 
Deste  mar  Oceano,  largo  e  brando, 
Onde  não  tenho  já  que  andar  remando, 
Nem  querer  noutra  parte  melhor  lanço. 

Neste  repouso  meo,  em  que  me  lanço, 
E  me  levanto  sempre  desejando, 
As  forças  se  me  vão  accrescentando 
Pêra  alcançar  um  bem,  que  não  alcanço. 

E  tendo  já  no  mar  ferro  lançado, 
A  confiança  minha  não  se  altera, 
Por  mais  que  o  bravo  mar  vejo  alterado. 

Antes  mais  firme  e  forte  persevera, 
Que  quem  só  no  seo  Deos  tem  ancorado, 
Do  bem  se  logra  já,  que  ter  espera. 


xcm. 

A  morte. 

Os  correos  da  morte  são  chegados 

Por  caminhos  antigos,  impedidos, 

Mal  com  meo»  olhos,  mal  com  meos  ouvidos, 

Mal  com  meos  pés,  do  chão  mal  levantados. 


23o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

E  mal,  por  não  chorar  bem  meos  peccados, 
Que  sendo  sete,  e  cinco  meos  sentidos, 
Por  serem  tantas  vezes  repetidos, 
Impossivel  será  serem  contados. 

Se  não  viera  a. morte  acompanhada 
De  conta,  que  dar  devo  tão  estreita. 
Não  fora  tão  penosa  imaginada. 

Mas  a  que  vivo  e  morto  tenho  feita, 
Tenho  com  meo  Senhor  na  cruz  pregada, 
Onde  o  ladrão  contrito  não  se  engeita. 


XCIV. 
Soneto. 

Aquelle,  que  na  vinha  do  Senhor 
Trabalha  por  cavar  proveito  alheo. 
Tanto  do  próprio  seo  fica  mais  cheo, 
Quanto  mais  do  commum  foi  cavador. 

Costuma  a  pagar  divino  amor 
A  quem  buscar  o  quer  por  este  meio 
Primeiro,  como  a  quem  mais  tarde  veio, 
E  tanto  como  o  mais  madrugador. 

Aqui  nesta  doutrina  claramente 

Se  ensina  por  que  via,  como  e  quando, 

Oflerta  faz  a  Deos  mais  excellente. 

Todo  o  que  dignamente  commungando 
Ofterece  a  Deos  Padre  omnipotente 
Seo  Filho,  sua  gloria  accrescentando. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  23 1 


xcv. 

Soneto. 

O'  vós,  que  andaes  de  achar  cá  desejosos 
Modos  de  honrar  sem  fim  mais  a  Trindade, 
O  melhor  se  vos  dá  aqui  com  brevidade, 
Nestes  motivos  santos  amorosos. 

Nelles  tendes  louvores  copiosos 
Se  summo  gráo,  e  grande  dignidade 
De  quem  trata  e  recebe  a  magestade, 
Que  temem  olhar  no  ceo  os  gloriosos. 

O  alto  sacrifício  d'honras  dino, 

A  nós  tão  proveitoso,  a  Deos  acceito, 

Com  que  é  toda  a  Trindade  engrandecida. 

Sagrada  Hóstia,  Viatico  divino. 
Que  offerecida  ao  Padre  em  effeito, 
Lhe  dou  gloria  infinita  e  sem  medida. 


XCVI. 
Soneto. 

Lembranças  de  meu  bem,  doces  lembranças, 
Que  tão  vivas  estaes  nesta  alma  minha. 
Que  mais  quereis  de  mim  que  os  bens  que  tinha, 
Vê-los  em  poder  todos  de  mudanças  ? 


232  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Ai  cego  amor !  ai  falsas  esperanças, 
De  que  eu  no  meu  bom  tempo  me  mantinha  l 
Agora  deixareis  quem  vos  sostinha, 
Acabaram  co'a  vida  as  esperanças. 

Co'a  vida  acabaram,  pois  a  ventura 

Me  roubou  num  momento  aquella  gloria, 

Que  mostra  um  grande  bem  quam  pouco  dura. 

Se  após  o  prazer  fora  a  memoria, 
Ao  menos  estivera  a  alma  segura 
De  ganhar-se  com  ella  mais  victoria. 


XCVII. 
Soneto. 

Contentamentos  meus,  que  já  passastes, 
Trocando  a  vida  alegre,  que  vivia, 
Por  este  mal,  que  passo,  que  um  só  dia 
Me  não  deixam,  depois  que  me  deixastes. 

Acabar  me  convém,  pois  acabastes 
De  darme  o  desengano,  qu'encobria 
Uma  esperança  vã,  que  me  trazia 
Contente,  a  qual  também  me  já  tirastes. 

Os  olhos,  que  amor  sempre  guiava 
Aonde  eu  tinha  firme  o  pensamento, 
Quando  vossa  presença  os  alegrava, 

Agora  choram  vosso  apartamento, 

Que  lhe  tirou  um  bem,  que  os  sustentava, 

E  só  de  vós  ficou  o  sentimento. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  233 


OITAVAS. 

Fortuna  destruio  minha  esperança, 
Desenganou-me  amor,  que  a  ventura 
Que  perdesse  de  tudo  a  confiança 
Com  mil  claros  sinaes  da  dor  futura. 
O'  quantos  males  fez  uma  só  mudança 
E  quam  incerta  nclles  fica  a  cura, 
Depois  que  vós  de  mim  vos  apartastes. 
Contentamentos  meus,  que  já  passastes! 

O  summo  bem,  que  tinha,  me  avisava 

Da  pena,  que  padeço  justamente, 

Que  em  tão  baixo  valor  mal  se  empregava 

Um  tão  felice  estado,  e  tão  contente. 

A  causa,  por  que  dantes  triunfava 

Do  tempo,  sem  cuidar  no  mal  presente, 

Comvosco  se.  me  foi  o  contentamento, 

E  só  de  vós  ficou  o  sentimento. 


PROEMIO. 

Tercetos  em  louvor  da  Immaculada  Conceição 
da  Virgem  Nossa  Senhora. 

Cantar  pretendo  aquelle  alto  mysterio, 
Que  Deos  obrou  na  mais  alta  creatura, 
A  que  entregou  do  ceo  e  terra  o  império. 

A  pura  Conceição  da  Virgem  pura. 
Que  pêra  mai  de  Deos  foi  escolhida, 
No  eterno  tribunal  da  empyria  altura. 


234  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mas  falar  cego  em  luz  e  morto  em  vida, 
Em  resplandor  da  gloria  a  escuridade, 
Em  fogo  ardente  a  neve  empedernida, 

E'  mór  soberba,  é  mór  temeridade, 

Que  emprender  esgotar  o  grande  Oceano, 

E  que  medir  dos  ceos  a  immensidade. 

Não  é  empresa  enfim  d'engenho  humano, 
Sem  luz  particular  do  sol  divino, 
Que  se  escondeo  no  ventre  soberano. 

Esta  me  alcança,  ó  Virgem,  inda  que  indino, 
Pois  tudo  te  entregou  quem  pode  tudo, 
De  teus  naerecimentos  premio  dino. 

Illustra  o  entendimento  deste  rudo. 

Alumia  o  espriío  deste  cego, 

Desata  e  abraza  a  lingoa  deste  mudo. 

Pois  rudo,  cego  e  mudo  a  ti  me  entrego, 
Reforma  tudo  em  mim  pêra  louvar-te, 
E  não  perder  me  em  tão  profundo  pego. 

Que  o  que  dar  pode  a  natureza  e  arte, 

Não  basta  para  tão  alto  sujeito, 

Se  de  ti  não  recebo  o  que  íiei-de  dar-te. 

E  pois  só  gloria  tua  é  o  respeito. 
Que  move  esta  alma  do  teo  amor  roubada, 
Enche  de  teo  favor  voz,  penna  e  peito. 
Que  sem  elle  não  sou  nem  posso  nada. 


Antes  que  houvesse  tempo,  ceos  e  terra. 

Antes  que  na  suprema  hierarchia 

Se  levantasse  a  horrenda  e  nova  guerra, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  235 

Antes  que  a  divisão  da  noite  e  dia 

Das  grandes  luminárias  se  fiasse, 

Por  quem  se  rege  o  mundo  e  se  alumia  -, 

Antes  que  o  mar  da  terra  se  apartasse, 
Antes  que  em  seo  lugar  cada  elemento 
O  Autor  da  natureza  colocasse-, 

Antes  que  do  estrellado  firmamento 
O  resplendor,  o  curso,  a  magestade, 
Dessem  do  seo  poder  conhecimento ; 

Nas  Ideas  de  sua  eternidade. 
Querendo  o  amor  divino  insaciável 
Unir  ao  Verbo  nossa  humanidade  \ 

Predestinou  uma  Virgem  admirável, 
Que  sem  perder  á  virginal  pureza, 
Fosse  mãi  ó  mysterio  inexplicável ! 

O'  excesso  das  leis  da  natureza! 
O'  thesouro  da  eterna  sapiência, 
Que  tanto  enriqueceo  nossa  pobreza ! 

Desta  escolha  se  infere  uma  consequência, 

Tão  infallivel,  e  tão  bem  provada, 

Que  haver  não  pôde  mais  clara  evidencia. 

Que  esta  Virgem  por  Deos  predestinada, 
Pêra  mãi  sua  necessariamente, 
Da  culpa  original  foi  preservada. 

Que  a  casa  pêra  Deos  era  decente, 
Sêr  santa  em  tudo  sempre  qual  dissera, 
O  real  Profeta  delia  expressamente. 


236  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

E  noutra  parte  diz,  que  Deos  pusera 

No  sol  seo  tabernáculo,  figura 

Da  luz  e  resplendor,  que  á  Virgem  dera. 

Na  criação  do  mundo  e  na  escritura, 
Isto  em  vários  lugares  representa, 
Isto  nos  significa  e  nos  figura. 

Esta  fé  autoriza,  esta  sustenta, 

O  filho  diviníssimo  Cordeiro, 

Que  antre  os  lírios  celestes  se  apascenta. 

O  grande,  immenso,  eterno  e  verdadeiro, 

Omnipotente  Deos  maravilhoso, 

De  quem  já  mais  ninguém  foi  conselheiro ; 

O  ceo  fez  lúcido,  claro  e  fermoso, 
Cuja  influencia  varia  e  deleitosa. 
Nas  creaturas  o  faz  mais  glorioso. 

A  terra  creou  fértil  e  amorosa. 

Que  sem  humana  industria  e  sem  cuidado, 

Nos  dava  fruito  e  flores  copiosa. 

Já  posto  em  feição  tudo  o  creado, 
A'  sua  imagem  cria  e  semelhança, 
Um  summario  do  mundo  abreviado. 

Deo-lhe  a  posse  de  tudo  e  a  governança. 
Aos  anjos  quasi  quis  que  se  igualasse, 
E  assi  coroa  de  gloria  alcança. 

Porque  a  justiça  da  alma  conservasse. 

Luz  sobrenatural  lhe  concedeo, 

Com  que  o  servisse,  conhecesse  e  amasse. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  23/ 


E  de  sciencia  infusa  o  enriqueceo, 

Que  as  cousas  mais  occuitas  penetrando, 

Nada  do  natural  se  lhe  escondeo. 

Porque  as  mercês  se  vão  multiplicando, 
Companheira  lhe  deo  com  que  se  unisse, 
Em  paz  na  terra  o  ceo  representando. 

Pêra  que  tanta  gloria  possuísse, 
Seguro  de  mudança  e  de  ruina, 
E  a  mais  altas  contemplações  subisse, 

Por  morada  lhe  escolhe  e  lhe  destina 
O  paraiso  terrestre,  onde  abrevia 
As  delicias  do  ceo  a  mão  divina. 

Tudo  o  que  ali  creara  delles  fia, 

Só  comerem  do  fruito,  que  lhe  aponta. 

Da  sciencia  do  bem  e  mal  prohibia. 

O'  cega  ingratidão,  perpetua  affronta, 

Digna  de  sêr  chorada  eternamente. 

Que  sem  Deos  todo  o  mundo  nada  monta ! 

Quebraram  o  percepto  incautamente. 
Perdendo  a  Deos  ficaram  enganados, 
Adão  da  esposa  e  Eva  da  serpente. 

Da  original  Justiça  despojados, 
Tudo  se  lhes  rebela  e  os  desconhece, 
Ficando  a  morte  e  a  dores  condemnados. 

O'  quanto  a  culpa  acanha  e  empobrece, 
Que  na  sua  patna  Adão  fez  peregrino, 
E  se  não  cava  e  sua  já  perece! 


a38  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

E  não  parou  só  nelle  o  desatino, 

Que  a  todos  comprendeo  este  peccado, 

Por  ordem  do  Juiz  justo  e  divino  •, 

Mas  estando  ab  eterno  decretado 
Não  sêr  nesta  geral  lei  comprendida 
A  custodia  do  Verbo  desejado  \ 

Representando-a  na  arvore  da  vida, 
Porque  Adão  não  podesse  tocar  neíla, 
Depois  da  mortal  culpa  commettida. 


Tu  és  a  oriental,  cerrada  porta, 
Do  rico  e  venerável  santuário, 
Onde  varão  entrar  não  se  supporta. 

Sagrado  tribunal,  limpo  sacrário, 

Do  Verbo  que  encarnou  do  Esprito  Santo, 

Feito  qual  pêra  Deos  foi  necessário. 

Aqui  a  alma  enlevada  em  novo  espanto, 
Das  potencias  não  usa,  acha-se  indina, 
Que  em  finito  saber  não  cabe  tanto. 

Vacila  o  entendimento,  e  não  atina, 
A  vontade  não  pode  o  que  pretende, 
A  memoria  confusa  desatina. 

Nenhum  discurso  humano  te  comprende, 
Mas  se  elle  para  o  amor  a  lingua  move, 
A  publicar  o  ardor,  que  o  peito  accende, 

O  mesmo  amor  o  esprito  me  renova, 
Pêra  tal  te  cantar  qual  te  contemplo, 
E  o  que  razões  não  provam,  elle  o  prove. 


I 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  289 

Quis  Deos  que  o  sábio  Rei  fundasse  um  templo, 
Que  na  forma,  grandeza  e  artificio, 
Não  teve,  nem  terá  no  mundo  exemplo. 

O  intento  principal  deste  edifício 
Tão  rico,  sumptuoso  e  admirável 
Foi  fazer-se  a  Deos  nelle  sacrifício, 

E  traçar  um  sacrário  inextimavel, 
Onde  esteja  em  lugar  santo  e  decente, 
A  arca  do  testamento  venerável. 


Se  d'ouro  puro,  pedras  do  oriente, 
Prata  fína,  riquissimos  metaes, 
E  dos  cedros  do  Libano  eminente 


Ornou  Deos  com  mercês  tantas  e  taes 
O  templo  material,  onde  se  faça 
Sacrifício  de  brutos  animaes. 

Como  ornaria  o  spiritual  da  graça, 
Custodia  da  lei  viva,  santa  e  pura. 
Em  quem  comnosco  Deos  se  une  e  abraça  ? 

Por  quem  já  não  em  nuve,  nem  figura. 
Mas  em  pessoa  he  Deos  sacrificado, 
Feito  pão  d' Anjos,  luz  da  alma,  e  fartura. 

Se  na  figura  Deos,  com  tal  cuidado 
Pôs  tanta  perfeição,  mal  sofreria 
Macula  original  no  figurado. 

Que  grande  agravo  a  si  mesmo  fazia, 

E  injuria  aos  Anjos,  que  em  graça  creára, 

Dar-lhe  Senhora  em  quem  faltado  havia. 


240  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Também  no  mesmo  templo,  expressa  e  clara 

Figura  foi  da  original  limpeza 

O  que  nas  pedras  delle  Deos  obrara  ; 

Donde  as  tinha  formado  a  natureza, 
Cortadas  pêra  a  obra  soberana, 
Vinham  justas  no  assento  e  na  grandeza. 

Ordem  divina,  donde  tudo  mana, 
Foi  virem  tão  iguais  e  compassadas. 
Sem  mais  medida,  ou  nova  traça  humana. 

Vinham  todas  tão  limpas  e  acertadas, 
Que,  emquanto  a  obra  durou,  nunca  soaram 
D'instrumentos  mecânicos  pancadas. 

As  pessoas  divinas  te  crearam 

Tão  pura  e  tão  conforme  á  dignidade. 

Que  a  ella  a  conceição  proporcionaram. 

Vieste  lá  da  eterna  magestade, 

Tão  limpa,  tão  perfeita  e  compassada. 

Quanto  convém  do  filho  a  humanidade. 

Medida  no  ceo  foste  lá  traçada, 
E  ao  conceber  a  graça  te  influiram. 
Que  declarou  a  Angélica  embaixada. 

Se  Deos  a  Eva  e  a  Adão,  que  o  desserviram, 

Original  justiça  lhes  concede. 

Com  antevir  a  culpa  em  que  cahiram, 

A  Virgem  que  em  servi-lo  e  amá-lo  excede 
A  todos,  e  impeccavel  sempre  esteve, 
Porque  lha  não  daria  o  que  lhe  impede  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  241 

Dizer  não  quis  he  dar  o  que  querer  teve 
Falta :  dizer  não  pôde  a  omnipotência 
Quem  num  ou  noutro  pôr  falta  se  atreve  ? 

Tudo  quis,  tudo  pôde  a  providencia 
Divina  dar  á  mãe  por  não  mostrar-lhe 
No  menos  dando  o  mais  menor  clemência. 

E  o  não  cahir  não  tira  aproveitar-lhe, 
A  redenção  de  Christo  antes  a  honra, 
Mais  em  a  preservar,  que  em  perdoar  lhe. 

Falta  fora  em  um  Rei,  nota  e  deshonra, 
Dar  a  seo  filho  herdeiro  mais  cativa. 
Do  mór  imigo  do  seo  estado  e  honra. 

Deos  ao  filho  por  quem  quer  que  reviva, 
O  mundo  não  dá  mãi,  que  fosse  escrava, 
De  quem  dos  bens  da  graça  e  gloria  priva. 

Saul  quando  David  em  campo  entrava 
Co  bravo  Filisteo,  soberbo  e  horrendo, 
Das  reaes  armas  próprias  o  armava. 

O  rei  celeste  a  mãi  pura  elegendo, 
Pêra  que  contra  o  imigo  pre.valeça. 
De  graça  original  a  armou  em  sendo. 

Em  sendo  quer  que  a  tema  e  reconheça, 
E  se  cumpra  a  palavra,  que  lhe  dera, 
Que  ella  quebrantaria  sua  cabeça. 

Figura  disto  próprio  o  velo  era. 

Que  vira  Gedeão  d^orvalho  cheo, 

Sem  se  molhar  a  terra  em  que  estivera. 

16 


242  Orras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Tendo  todos  ferrete  escuro  e  feo 
Das  culpas  paternaes  hereditárias, 
A  graça  original  só  á  Virgem  veo. 

Joseph  fazendo  as  terras  tributarias 
Todas  do  Kgypto,  lemos  que  eximira 
Franca  a  "Socerdotal  de  pagar  párias. 

Christo,  mór  Sacerdote,  a  Virgem  tira 
Da  dura  servidão,  por  não  poder-se 
Chamar  mái  de  Jesus  e  filha  d'ira. 

E  por  no  efteito  a  causa  conhecer-se, 
A  livrou  de  sentir  no  parto  dores, 
E  de  seo  corpo  em  terra  converter-se. 

Que  em  pena  se  deo  isto  aos  successores- 
De  Adão,  c  como  a  Virgem  não  peccasse 
Não  padece  as  paixões  dos  peccadores. 

Mandou  Deos  a  Israel  que,  quem  tratasse 
D'ouvir  sua  voz,  o  primeiro  q,ue  a  ouvisse 
O  sprito  e  coração  santificasse. 

Pois  como  se  ha-de  crer  que  consentisse 
Falta  na  Virgem  pura  e  mãi  bemdiía, 
Querendo  que  o  gerasse  e  que  o  parisse  ? 

Formou,  antes  da  terra  ser  maldita, 

O  Adão  primeiro ;  doutra  é  bem  que  forme 

O  segundo,  em  que  falta  não  se  admitta. 

A  culpa  d'Eva  fez,  que  a  Deos  conforme 
Presuma  o  homem  ser,  por  onde  empenha 
A  alma,  a  quem  de  fermosa  a  fez  disforme. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  243 

A  graça  de  Maria  faz  que  venha 

Deos  sêr  conforme  ao  homem,  e  por  ella 

O  tenhamos  em  nós,  e  em  si  nos  tenha. 

Semelhança  de  sêr  gerada  nella 

Foi  a  sarça  que,  sem  queimar-se,  ardia 

Quando  Deos  a  Moysés  quis  falar  delia. 

Entre  as  chamas  mais  verde  se  fazia 
Contra  o  natural  curso  e  propriedade, 
Que  o  fogo  prender  nella  não  podia. 

Só  da  parte  usa  aqui  da  claridade, 

Que  a  outra  do  abrazar  vencida  fora 

Do  ramo,  em  que  Deos  pôs  sua  divindade. 

Assi  com  sêr  a  Virgem  successora 
De  Adão,  põr  privilegio  milagroso, 
Da  culpa  original  foi  vencedora. 

Deste  mysterio  tão  prodigioso 

Ficou  Moysés  com  tal  lemôr  e  espanto, 

Que  está  do  que  vê  claro,  duvidoso. 

Mas  com  acatamento  e  fé  de  santo 
Intenta  de  mais  perto  assegurar-se, 
Que  não  quer  dos  sentidos  fiar  tanto. 

Caminha  e  pára,  não  ousa,  e  quer  chegar-se, 
Ora  fica  suspenso,  ora  se  abala, 
E  sem  de  todo  enfim  determinar-se, 

Vê  que  da  mesma  sarça  Deos  lhe  fala, 
Que  antes  de  dar  mais  passo  se  descalce, 
Que  a  terra  ali  por  santa  lhe  assignala. 


k 


244  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


O  Patriarcha  por  que  mais  realça 
Sua  humildade,  e  com  mór  aífeito 
De  todo  o  coração  a  Deos  exalce, 

Pondo  o  sprito  no  Ceo,  na  terra  o  peito, 
Obedece,  ficando  arrebatado. 
Em  amorosas  lagrimas  desfeito. 

E  assi  quem  presumir  entrar  calçado 
De  indevotas  razões  neste  Ceo  puro, 
Da  concepção  na  sarça  figurado, 

Merece  achar  este  mysterio  escuro, 
Ás  leis  geraes  a  Virgem  submettendo, 
Signal  de  peito  frio  e  animo  duro. 

Deos  na  sarça  annuncia  que  entendendo 

O  clamor  e  afflição  do  cativeiro, 

Que  o  povo  está  no  Egypto  padecendo, 

Desce  como  Senhor  e  padroeiro, 

A  livra  lo,  e  que  a  terra  haja  e  possua 

De  promissão,  e  a  logre  como  herdeiro. 

Também  na  Conceição  alegre  tua, 

Anunciou  descer  a  libertar-nos, 

E  dar-nos  posse  em  ti  da  gloria  sua. 

Esta  grande  mercê  deve  obrigar-nos 
A  com  fé  viva  e  animo  incansável 
Gratos  na  defensão  delia  mostrar-nos. 

Christo,  verdade  eterna,  mdubitavel, 
Canonizando  o  angélico  Baptista, 
Depois  de  o  declarar  por  inculpável, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  245 

Disse,  como  refere  o  Evangelista, 
Que  entre  os  nascidos  não  se  levantara 
Outro  maior,  que  foi  honra  não  vista. 

E  nisto  expressamente  nos  declara. 
Que  a  Virgem  não  cahio,  que  se  cahira, 
Ou  menor  que  o  Baptista,  ou  igual  ficara. 

Da  culpa  original  a  esposa  a  tira, 

Nos  Cantares,  pois  diz  que  a  doce  amiga 

Toda  fermosa  e  sem  macula  a  vira. 

A  mesma  opinião  consta,  que  siga 
O  santo  Job,  da  Virgem  celestial, 
E  que  do  Verbo  eterno  e  delia  diga : 

Que  a  noite  do  peccado  original 

Não  vira  a  luz,  que  é  Christo,  nem  a  aurora, 

Que  é  a  mãi  clara,  pura  e  virginal. 

Isto  confirma  e  testemunha  agora 
A  Igreja  universal  e  o  Pastor  delia. 
Vigário  do  Senhor,  que  o  mundo  adora. 

Pois  entre  as  festas,  que  celebra  nella 
Quis,  que  a  da  Conceição  tivesse  dia 
Particular,  e  dedicado  a  EUa. 

E  a  Igreja  santa  não  consentiria 

Festejar-se  com  duvida  ou  peccado. 

Que,  enfim,  nunca  peccar  pôde  quem  a  guia. 

E  assi  protesto  aos  teus  pés  prostado, 
Que  emquanto  houver  em  mim  vital  alento, 
Será  este  dia  sempre  festejado. 


246  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mas  quem  terá  favor,  graça  e  talento, 
Pêra  exercicio  tão  santo  e  sublime, 
Não  tendo  o  teu  favor  por  fundamento  ? 

Quando  se  há  por  indino  e  se  reprime 

O  sprito  de  Moysés,  e  á  vista  treme 

Da  sarça,  aonde  achou  Deos  que  o  anime, 

O  meu,  que  entre  o  pesar  e  a  culpa  teme, 

Cheo  de  confusão  e  de  cegueira. 

Qual  náo  em  temporal,  sem  luz,  nem  leme, 

Se  tu,  Senhora,  mãi  e  padroeira. 

Não  fazes  que  a  si  mesmo  e  ao  mundo  negue, 

Pêra  ter  a  paz  da  alma  verdadeira, 

Que  centro  pôde  achar,  onde  assossegue, 
Quem  me  pôde  valer,  quem  amparar-me. 
Pois  tudo  o  que  há  na  terra,  me  persegue  ? 

Tu  podes  soccorrer-me  e  animar-me 
Em  todo  lugar,  tempo,  estado  e  trance, 
E  com  outro  ser  novo  reformar-me ; 

Abrir-me  o  coração  pêra  que  lance 

De  si  todo  o  amor  vão,  ou  arrancar-mo, 

Dando  outro  em  seu  lugar,  que  te  ame  e  alcance. 

E  pois  que  da  tua  pane  pêra  dar-mo 
Nada  falta,  não  sejam  meos  peccados 
Bastante  occasião  pêra  negar-mo. 

Erros  tenho  não  vistos,  nem  cuidados, 
Nenhuma  emenda,  muita  confiança. 
Bons  propósitos  nunca  executados. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  247 

Pondo  os  olhos  em  mim  perco  a  esperança, 
Pondo-os  em  ti,  que  a  todos  por  costume 
Soccorres  sempre,  em  tudo,  c  sem  tardança, 

Cobrando  alento  o  animo,  presume 
Ganhar  por  ti  um  amor,  com  que    nereça 
Sahir  a  alma  de  trevas  com  teo  lume. 

Não  queiras  que  chamando-te  pereça, 
O  foro  me  sustenta  de  acudir-me. 
Porque  teu  filho  não  me  desconheça. 

Obrigue-te,  Senhora,  pêra  ouvir-me,. 

Ver  quem  és,  os  poderes  e  a  valia. 

Que  tens  pêra  num  ponto  a  Deos  unir-me. 

Dos  Patriarchas  honra  e  alegria. 
Dos  Profetas  saudade,  objecto  e  zélo, 
Dos  Apóstolos  sol,  conselho  e  gui.í. 

De  Evangelistas  mestra,  penna,  e  ^ello, 
Dos  mariyres  valor,  força,  e  victon.i, 
Dos  pontífices  luz  pêra  bem  sê-lo. 

Dos  doutores  favor,  lingua,  e  memoria, 
Dos  confessores  certo  e  doce  amp      >, 
Das  virgens  palma,  flor,  coroa  e  gi na. 

Jesus,  meu  bom  Senhor,  teu  filho  charo, 
Destas  ordens  de  santos  escolhidas 
Exemplo  cá  te  fez,  lá  lume  claro. 

Porque  os  does  e  virtudes  repartidas. 

Em  todos  se  conheça  por  ti  virem. 

Em  quem  Deos  as  quis,  por  juntas  e  unidas. 


248  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

E  por  lugar  condigno  possuirem, 
Sobre  os  choros  angélicos  te  exalça, 
Por  anjos,  como  cá,  lá  te  servirem. 

Sobre  todos  tua  graça  e  luz  realça, 
Qual  o  mostra  a  visão  do  Evangelista, 
Que  te  veste  do  sol  e  da  lua  calça. 

Por  tal  antes  de  ser  foste  prevista, 
Por  tal  á  Coneeição  isto  se.applica, 
Por  delia  o  resplandor  mostrar  na  vista. 

È  por  Rainha  gloriosa  e  rica, 

Dos  nove  choros  d'anjos  se  declara, 

Que  este  numero  tal  se  lhe  dedica. 

E  pelos  meses  celebres  que  andara 

Jesus  no  virginal  ventre  materno. 

Mar  de  graça,  onde  mais  ella  inundara. 

No  nome  de  tua  mái  e  no  paterno. 

Mostrou  bem  de  quam  longe  te  honra  e  ama, 

E  por  limpa  te  approva  o  Rei  eterno. 

Joaquim  —  preparação  do  Senhor  chama, 
Anna  —  graciosa  diz  pêra  que  entenda, 
Que  tudo  é  graça  em  ti  quem  graça  clama. 

Também  amor  que  trate  me  encomenda, 
Do  nome  que  escrever  na  alma  desejo, 
Porque  a  transforme,  apure,  arme,  defenda. 

Faz  duvida  e  temor  o  que  em  mim  vejo, 
Antes  que  o  signifique  e  pronuncie, 
Mas  pôde  a  razão  menos  que  o  desejo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  249 

Elle  me  esforce  a  voz  e  a  penna  guie, 
Pera  que  iguale  o  fim  ao  presuposio, 
E  tudo  o  ai  despreze  e  renuncie. 

De  cinco  letras  foi  por  Deos  composto 
O  nome,  que  apregoa  e  profetiza 
Neste  numero  estar  nosso  bem  posto. 

Ter  cinco  o  de  Jesus  o  mesmo  avisa, 
E  as  chagas  o  confirmam  preciosas, 
Da  humana  redempção  fecho  e  devisa. 

Prerogativas  tem  maravilhosas, 

Mas  sem  que  Deos  suspenda  o  esprito  e  o  roube, 

Quem  cousas  tratará  tão  mysteriosas  ? 

Milagre  que  só  Deos  conhecer  soube, 
Arca  em  que  do  diluvio  nos  salvamos. 
Relicário  divino  em  que  Deos  coube. 

Imagem  do  Senhor,  que  nella  achamos, 
Arvore  que  por  fruito  a  Jesus  teve, 
Por  quem  o  Ceo  da  terra  conquistamos. 

O  que  Deos  nos  concede  a  ella  se  deve, 
Que  os  thesouros  do  Ceo  ella  os  possue. 
Depois  que  o  Senhor  delles  nella  esteve. 

Tudo  o  bem  que  elle  dá  nella  se  inclue, 
Mostra  o  lá  seu  lugar,  cá  toda  a  cousa. 
Qual  o  seo  nome  o  diz  e  o  que  elle  influe.  " 

Maria  quer  dizer  (  ah  !  que  não  ousa 
A  lingua  indigna  e  ruda  ir  por  diante  ! ) 
Mas  declare-o  o  Senhor,  que  em  ti  repousa. 


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25o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Maria  é  nome  grande,  triunfante, 
Nome,  em  que  tudo  cabe,  tudo  se  acha, 
Nome,  que  a  terra  e  o  ceo  quer  Deos  que  cante. 

Maria  é  luz  sem  névoa,  sombra  ou  tacha, 
Consolação,  favor,  remédio,  ajuda, 
Que  com  Jesus  nos  vai  e  nos  despacha. 

Maria  é  firme  fé,  que  se  não  muda, 
Certa  esperança,  caridade  immensa. 
Que  faz  que  Deos  nos  ouça,  e  nos  acuda. 

Maria  é  salvação,  couto  e  defensa 

Nossa,  por  cuja  mão  franca  e  suave, 

Dos  bens  da  graça  e  gloria  Deos  dispensa. 

Maria  é  de  David  gloriosa  chave, 

Fonte,  mas  antes  mar,  de  mar  sem  fundo, 

Piscina,  onde  Deos  quer,  que  a  alma  se  lave. 

Maria  é  verão  florido  e  jocundo. 

Que  em  nós  flores  sem  fim  cria  e  descobre, 

E  faz  fermoso  o  ceo,  alegre  o  mundo. 

Maria  é  veo  que  a  Deos  mostra  e  o  cobre, 
E  de  toda  a  Trindade  incompreensível 
Recolhimento  e  leito  puro  e  nobre. 

Maria  é  um  retrato  intelligivel 

Do  que  o  Padre  em  nós  pode,  e  sabe  o  Filho, 

E  ama  o  Spirito  d'ambos  impassível. 

De  quanto  alcanço  em  ti  me  maravilho, 

O  menos  alcançando  e  assi  confuso 

Em  vez  de  te  louvar,  me  rendo  e  humilho. 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz 


Do  pouco  que  te  dou,  Virgem,  me  accuso, 
Não  me  esquecendo  o  muito,  que  te  devo, 
Mas  desta  tal  lembrança  bem  mal  uso. 

Quanto  imagino  mais,  menos  me  atrevo. 
Vendo  Anselmo,  Maiheos,  Lucas,  Bernardo, 
O  que  de  ti  escreveram,  e  o  que  escrevo. 

Pois  como  calo,  ou  pêra  quando  guardo, 
O  que  Dionísio  diz  chegando  a  vêr-te 
Tão  cheia  d'humildade  e  de  resguardo? 

Diz  quasi  um  ser  divino  conhecer-te, 
Que  se  a  fé  e  doutrina  não  repugnaram. 
Cuidara  de,  por  mais  que  humana,  haver-te. 

Se  os  membros  todos  línguas  se  tornaram, 
De  quantos  Deos  creou  os  elementos, 
As  plantas,  animaes,  e  aves  falaram. 

Igual  louvor  a  teos  merecimentos 
Dar  não  podiam,  inda  que  excederam, 
Na  copia,  estylo  e  arte,  aos  pensamentos. 

Como  logo  meos  versos  se  atreveram, 
Formados  em  tal  peito  e  tal  sentido? 
Salvo  se  o  ser  de  meos  em  ti  perderam. 

E  já  que  no  louvar  fui  atrevido. 

Não  quero  no  pedir  3êr  acanhado, 

Pois  Deos  de  lhe  pedir  se  há  por  servido. 

Que  espero  quanto  mais  haja  alcançado, 
Mais  digno  de  servir  te  cá  me  faça, 
Com  alma,  coração,  vida  e  cuidado. 


aSa  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Pêra  que  ao  meu  intento  satisfaça, 

Peço  a  immensa  liberalidade 

Da  eterna  e  rica  mina  da  sua  graça. 

De  Pedro  a  fé,  de  Paulo  a  caridade, 
Do  bom  ladrão  o  lume,  a  esperança, 
De  Francisco  a  pobreza  e  humildade. 

Do  Centurio  fiel  a  confiança. 

As  lagrimas,  o  amor,  e  a  penitencia, 

Com  que  a  paz  da  alma  Magdalena  alcança. 

Do  santo  Abrahão  a  prompta  obediência, 
De  Isaac  a  mansidão  e  sofrimento, 
De  Joseph  a  pureza  e  paciência. 

E  se  parecer  novo  atrevimento 

O  pedir  tanto  a  quem  contino  offendo, 

Quem  tira  a  culpa,  dá  o  merecimento. 

E  todas  as  virtudes  que  pretendo, 
São  pêra  te  louvar  mais  dignamente, 
Com  luz  divina  as  tuas  conhecendo. 

E  vendo  a  gloria  então  clara  e  patente 

Da  tua  Conceição  immaculada, 

Que  a  culpa  conhecer  nem  vêr  consente, 

Dentro  na  alma  por  elle  alumiada 
Comporei  outros  versos  mais  acceitos 
Fazendo  ( pêra  ser  melhor  louvada ) 
Do  amor  lingua  e  das  lagrimas  conceitos! 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  i53 


OITAVAS. 
Vida  e  Morte  de  S.  Eustachio,  mulher  e  filhos, 

I 

Se  dos  pais  e  dos  filhos  me  fôr  dado 
Favor,  pêra  cantar  o  que  se  escreve, 
Conforme  a  tudo  quanto  se  lhes  deve, 
No  verso  ficarei  aventajado. 
O  trabalho  será  suave  e  leve, 
E  nos  seus  quatro  santos  Deos  louvado, 
Eustachio  e  Theopiste  d-ando  a  Christo 
Dous  filhos  seus  Agapio  e  Theopisto. 

2 

Foi  no  tempo  dos  dous  Imperadores 
Tito  e  Vespasiano  um  tal  varão, 
Que  por  ser  estremado  capitão, 
Mereceo  alcançar  muitos  favores. 
De  branda,  natural  inclinação, 
E  dotado  de  muitos  mais  primores, 
Que  alem  dos  mais  officios  que  servia, 
Capitão  foi  da  mais  cavallaria. 

3 
Segundo  Metaphrastes  concordando 
Com  Joseph,  escritor  da  antiguidade, 
Foi  Plácido  na  vã  gentilidade, 
Gentio  com  gentios  conversando. 
Mas  depois  que  alcançou  luz  da  verdade, 
Neste  que  tem  d'Eustachio  trocando, 
Trocou  a  lei  gentia,  falsa,  errada, 
Naquella  que  de  Deos  lhe  foi  mostrada. 


a54  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


4 
O  tempo  que  das  guerras  lhe  ficava, 
Costumava  gastar  andando  á  caça 
A'  caça  delles  andou  divina  graça, 
Que  nos  desertos  seus  amor  caçava. 
Com  ditosa  invenção,  divina  traça, 
Ferindo  almas  ditosas  que  sarava, 
Dos  que  seguindo  a  caça  perseguindo, 
Assi  mesmo  persegue  Deos  seguindo. 

5 
Succedeu  na  montanha  alevaniar-se 
Um  cervo  de  grandeza  differente, 
Que  Plácido  seguio  ligeiramente. 
Sem  doutro  nenhum  seo  acompanhar-se. 
E  depois  de  alongado  da  mais  gente, 
O  cervo  que  fugio  anteparar-se, 
E  mostra-se-lhe,  estando  anteparado, 
Antre  os  cornos  Jesus  crucificado. 

6 
O  qual  com  sua  voz  penetrativa 

—  a  Porque,  Plácido  (diz)  me  persegues? 
Essa  lei  dos  gentios,  que  tu  segues, 

A  mim  de  ti,  a  ti  de  mim  me  priva. 
Não  me  negues  essa  alma  que  me  deves 
Comprada  a  sangue  meo  sendo  cativa. 
Eu  sou  Christo  Jesus,  que  te  appareço 
Mercê  doutras  maiores,  que  começo  ». 

7- 
Do  seu  cavallo  abaixo  se  lançou 
Plácido,  perturbado  e  esmorecido, 
E  tal  qual  outro  Paulo  offerecido. 

—  «  Que  mandaes,  meo  Senhor?  lhe  perguntou. 
Eu  servo  como  teo  servo  convertido 
Prestes  pêra  servir-te  em  tudo  estou. 


Obrss  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  255 

Manda  que  farei  quanto  tu  quiseres, 
Se  quanto  nae  mandares  tu  me  deres  ». 

8 
—  «  Mando,  disse  o  Senhor,  que  na  cidade, 
Com  mulher  e  com  filhos  vás  buscar 
Sacerdote  christão  que  conformar 
Na  minha  lei  te  possa  da  verdade, 
E  depois  todos  quatro  baptizar 
No  nome  da  Santíssima  Trindade, 
Então  correndo  aqui  buscar-me  vem 
Para  te  declarar  o  que  convém  ». 

9 

Os  nomes  dos  gentios  já  deixados 

No  bauiismo  de  novo  outros  tomaram 
Eustachio  e  Theopiste  se  chamaram 
De  Plácido  e  de  Trajano  despresados. 
Os  filhos  seus  seus  nomes  não  mudaram 
Posto  que  com  seus  pais  já  baptizados 
Eustachio  se  tornou  donde  deixara 
Seu  Deos,  que  alli  tornar  já  lhe  mandara. 

iO 

Ali  seu  coração  posto  no  Ceo 
Em  profunda  oração  seu  Deos  espera. 
Que  cumprindo  a  palavra  que  lhe  dera 
Muito  mais  claro  então  lhe  appareceo. 
E  dando  lhe  louvor  do  que  fizera 
Lhe  disse  o  que  depois  lhe  aconteceo, 
Que  o  tentaria  aquelle  antigo  imigo, 
Como  fizera  a  Job  no  tempo  antigo. 

II 

Mas  que  estivesse  forte  e  confiado 
Porque  nunca  já  mais  lhe  faltaria, 
Fosse  quam  cruel  fosse  a  bataria. 
Do  poder  infernal  soberbo  inchado. 


25b  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Porque  com  sua  ajuda  venceria, 
E  vencendo  seria  coroado, 
Alcançando  no  Geo  a  sua  gloria, 
Devida  a  quem  na  terra  tem  victoria. 

12 

Dali  se  foi  o  novo  cavalleiro 
Dos  pés  de  seo  Senhor,  armado  e  forte, 
Havendo  por  ditosa  sua  sorte, 
D'ouvir  e  vêr  a  seu  Deos  verdadeiro. 
Não  teme  nenhum  género  de  morte 
A  troco  de  se  vêr  dos  Geos  herdeiro, 
A  Theopiste  dá  conta  de  tudo, 
Tomando  a  paciência  por  escudo. 

i3 

O  diabo  que  já  andava  alerta 
Pêra  tentar  aquella  alma  ditosa, 
Com  peste  começou  contagiosa 
A  dar-lhe  a  bataria  descoberta. 
E  depois  de  deixar  a  lastimosa 
Casa  de  quanto  tinha  erma  e  deserta, 
Dos  escravos  do  gado  e  da  fazenda, 
A  deixou  despejada  e  da  mais  renda. 

E  não  se  contentando  o  duro  imigo 
Com  lhe  tirar  das  mãos  toda  a  riqueza, 
Mas  inda  dos  imigos  da  pobreza, 
Tão  bem  lhe  não  deixou  nenhum  amigo. 
Enfim  que  acompanhado  de  tristeza 
O  rico  capitão  no  tempo  antigo. 
Com  filhos  e  mulher  pobre  se  parte, 
A  buscar  seu  remédio  noutra  parte. 

Os  pais  levando  dous  filhos  meninos 
Partindo  pêra  Egyptu  como  Abrahão, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  257 

Com  sua  mulher  assi  se  vão 
A  sêr,  como  elles  fôram,  peregrinos. 
Mas  d'Eustachio  foi  mór  a  tentação 
Forjada  dos  espíritos  malinos, 
Que  lhe  tem  uma  náo  aparelhada 
Pêra  sua  mulher  lhe  sêr  roubada. 

16 

O  patrão  desta  náo,  tanto  que  vio 
De  Theopiste  a  rara  fermosura, 
Honesta,  casta,  humilde  compostura, 
Tomá-la  a  seu  marido  presumio. 
E  com  armada  mão  por  força  pura, 
Com  seus  filhos  Eustachio  despedio, 
Que  não  lhe  aproveitando  a  resistência 
Se  quis  aproveitar  da  paciência. 

Mas  Deos  que  em  casos  taes  não  desempara 
A  fraca  castidade  que  resiste, 
Como  com  Sara  usou,  com  Theopiste 
Contra  o  duro  patrão  também  usara ; 
Que  do  seu  máo  propósito  desiste 
E  da  vida  que  a  morte  aparelhava. 
Enfim  que  ella  ficou  limpa  e  constante, 
Como  relataremos  ao  diante. 

18 
O  paciente  Eustachio  qual  iria 
Com  dous  filhos  sem  mãe,  que  alma  lhe  arranca, 
Cuidando  como  aquella  ovelha  branca 
Por  força  já  trocara  a  companhia, 
A  fonte  dos  seus  olhos  não  se  estanca 
Soando  o  nome  seu  que  repetia  : 
«  O'  minha  Theopiste,  Theopiste, 
Que  tal  ficar  te  vi  qual  tu  me  viste  1  » 

»7 


258  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


19 
Assi  com  seus  dous  filhos  que  levava, 
Discursando  dum  noutro  desvario, 
Acertou  de  se  achar  junto  dum  rio, 
Que  por  aquella  parte  atravessava. 
Pasmado  ali  ficou  suspenso  e  frio, 
Receando  o  perigo  que  esperava, 
Por  ver  nos  tenros  filhos  fraca  idade, 
Pêra  supprir  a  tal  necessidade ; 

20 
Dos  quaes  um  delles  só  passou  dalém, 
E  vindo  pelo  que  daquém  deixara, 
Um  lobo  lhe  levou  o  que  levara, 
Um  leão  fez  o  mesmo  no  d'aquém. 
Enfim  que  sem  nenhum  delles  ficara. 
Enquanto  pelo  rio  vae  e  vem, 
Vendo  dous  filhos  seus  em  doces  agoas, 
Nas  salgadas  da  mai  renovar  mágoas. 

21 
Tal  fica  o  pobre  pae,  triste  marido, 
Sem  fazenda,  sem  filhos,  sem  mulher, 
E  sem  mais  outra  cousa  que  perder. 
Pois  tinha  quanto  tinha  já  perdido. 
E  depois  de  chorar  e  de  gemer, 
Se  lembra  como  fora  prevenido 
Dos  males  e  dos  bens,  por  derradeiro, 
Promettidos  a  quem  soffre  primeiro. 

22 
«  Ora  (disse),  pois  já  tenho  sofridos 
Os  males,  dos  bens  tenho  confiança, 
Que,  posto  que  em  chegar  haja  tardança^ 
Não  ha  que  duvidar  pois  promettidos. 
Firme  posso  já  têr  minha  esperança, 
Que  males  a  bens  foram  preferidos 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  259 

Enfim  que  em  bens  por  vir  ou  males  vindos 
A  Deos  darei  louvores  sempre  infindos  ». 

23 

E  caminhando  só  por  terra  alhea, 

Deo  comsigo  na  aldeã  de  Radiso, 

Onde,  como  varão  de  muito  aviso, 

A  fome  com  trabalho  remedea. 

E  com  muita  humildade  e  bom  juizo 

Um  lavrador  buscou  naquella  aldeã, 

Com  o  qual  se  alugou,  viveo  quinze  annos, 

Até  que  Deos  quis  dar  fim  a  seus  danos. 

Entretanto  Trajano  imperador 
Desconfiado  já  de  defender  se, 
Discursando  mil  modos  de  valer-se 
Concluio-se  de  todos  no  melhor : 
Que  foi  se  por  ventura  achar  pudesse 
Plácido,  ficaria  vencedor; 
Assi  com  grandes  prémios  foi  buscado 
De  quem  mais  brevemente  fosse  achado. 

Dos  prémios  a  cobiça  pôde  tanto. 
Posto  que  o  rosto  já  perdera  o  cheiro, 
Que  Plácido  se  achou  por  derradeiro 
Com  arado  na  mão  com  pobre  manto. 
Assi  de  lavrador  em  cavalleiro 
Trazido  foi  com  gosto  e  mór  espanto. 
Trajano  não  se  farta  d'abraçá  lo 
Antes  que  elle  se  desça  do  cavallo. 

26 
Depois  dando-lhe  conta  por  miúdo 
Do  passado  na  guerra,  e  do  presente, 
O  campo  lhe  entregou  com  toda  a  gente 
E  finalmente  o  ser  senhor  de  tudo. 


k 


200  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Por  têr  satisfação  sufficiente, 
De  forte,  d'esforçado  e  de  sisudo, 
O  valeroso  Plácido  se  anima, 
Sentindo  já  favores  lá  de  cima. 

27 
E  posto  no  seu  Deos  seu  pensamento, 
Os  imigos  comete,  fere,  e  mata. 
Vence,  queima,  destrue,  e  desbarata, 
Com  louvor  seu,  geral  contentamento; 
Custando-lhe  a  victoria  tão  barata. 
Que  não  somente  foi  sem  detrimento, 
Mas  todos  de  despojos  carregados. 
Com  Plácido  se  vão  ricos,  honrados. 

28 
Fôram-se  descansar  numa  pequena 
Aldeã,  que  do  campo  estava  perto, 
E  contando  mil  contos  por  acerto, 
Ou  mais  certo,  porque  Deos  tudo  ordena, 
Um  daquelles  soldados  mais  experto 
Alevantando  a  voz  clara  e  serena, 
Do  pai,  da  mãi,  de  si,  dum  irmão. 
Contou  vida,  successo  e  perdição. 

Do  pai  que  Capitão  fora  famoso, 

Da  mãi  que  lhe  ficara  em  um  navio, 

De  seu  irmão  menor,  que  alem  dum  rio 

Vivo  o  levara  um  lobo  furioso. 

E  tornando  por  elle  o  pai  vazio, 

Vazio  o  pai  tornou  e  piedoso. 

Que  um  leão  me  levou  também  nos  dentes 

Assi  se  derramaram  os  parentes. 

3o 
Mas  entendo  que  foi  traça  divina, 
A  quem  dou  e  darei  sempre  louvores, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  a6i 

Porque  o  leão  bradando-lhe  uns  pastores, 
Sem  damno  meu  largou  sua  rapina; 
Os  quaes  além  de  usar  outros  primores, 
Me  deram  panno,  e  pão,  e  mais  doutrina, 
De  meu  irmão  o  caso  foi  igual, 
Mas  não  sei  que  ventura  fosse  tal. 

3i 

Eis  d'antre  todos  um  correndo  grita  : 

«  Irmão  meu,  charo  irmão,  dá  me  um  abraço, 

Antes  que  se  me  acabe,  em  breve  espaço, 

A  vida,  sem  lograr  tamanha  dita; 

Que  como  a  ti  também  no  mesmo  passo 

Um  lobo,  sem  romper  a  carne  afflicta, 

Largou  a  sua  presa  aos  lavradores, 

Como  o  fez  o  leão  aos  teus  pastores.  » 

32 

E  porque  de  Deos  fosse  maior  gloria, 
E  elle  mesmo  ordenou  que  assi  se  achasse, 
A  mãi  que  seus  dous  filhos  abraçasse, 
Contando-lhes  da  vida  a  sua  historia. 
Na  qual  de  ser  mãi  sua  confirmasse. 
Dos  seus  pequenos  filhos  a  memoria, 
Despois  a  mãi  e  filhos  ordenaram, 
Tornar-se  á  sua  terra,  que  deixaram. 

33 
A  mãi  ao  Capitão  se  vai  vestida. 
Como  naquelia  aldeã  andou  servindo, 
E  com  os  olhos  no  chão  lhe  está  pedindo 
Licença,  e  provisão  pêra  a  partida. 
Suas  necessidades  referindo, 
E  dando  relação  de  toda  a  vida, 
E  levantando  os  olhos  postos  nelle. 
Conhecido  foi  delia,  ella  foi  delle. 


202  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  ' 

34 

«  Graças  te  dou,  meu  Deos,  que  me  mostraste. 

(Eustachio  disse),  quanto  me  disseste, 

E  que  no  fim  de  tudo  concedeste 

Vêr  a  mulher  e  filhos,  que  guardaste, 

E  por  quantas  mercês  mais  me  fizeste, 

E  de  quantos  perigos  me  livraste. 

Do  patrão,  e  das  feras,  e  da  fome, 

Bento  seja,  meu  Deos,  teu  bento  nome. 

35 
c  Da  terra  já  não  tenho  que  querer. 
Do  Geo  só  a  meu  Deos  eterno  quero, 
Nelle  confio  só,  só  nelle  espero, 
Que  como  fez,  fará  o  por  fazer.    - 
Pois  só  por  amor  seu,  só,  puro  e  mero, 
E  só  por  querer  mais  o  bem  que  quer. 
Quis  destes  quatro  seus  fazer  christãos, 
Que  ninguém  tirará  das  suas  mãos.  » 

36 
E  depois  de  três  dias  descansado, 
O  campo  pêra  Roma  foi  marchando, 
Donde  victorioso  já  chegando, 
Eustachio  foi  de  todos  festejado. 
Posto  que  o  tempo  já  fora  mudando, 
O  mando  do  que  fora  já  mandado, 
Porque  sendo  mandado  de  Trajano, 
Quando  veo  achou,  que  era  Adriano. 

O  qual  querendo  dar  aos  immortaes. 
Antes  seus  falsos  deoses,  os  louvores 
Da  guerra,  em  que  não  foram  vencedores, 
Os  que  padecem  penas  infernaes; 
Notou  Eustachio  ser  dos  professores 
Da  lei  dos  baptizados  capitães 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  263 


Por  não  querer  entrar  nos  profanados 
Tenoplos,  a  falsos  deoses  dedicados. 

38 
E  querendo  vingar  este  desprezo, 
O  cego  Imperador,  cruel,  tyranno, 
Arreceando  mais  seu  próprio  dano, 
Mandou  levar  Eustachio  dali  preso ; 
E  pêra  se  mostrar  mais  deshumano, 
Em  furor  infernal  seu  peito  acceso, 
Também  mulher  e  filhos  prender  manda, 
Que  a  fúria  em  cruel  peito  não  se  abranda. 

E  pêra  abreviar  as  dilações, 
Mandou  levar  os  quatro  maniatados, 
Que  fossem  a  leões  bravos  lançados, 
Lançados  a  seus  pés  bravos  leões ; 
De  leões  em  cordeiros  já  tornados, 
Pêra  abrandar  os  duros  corações 
Daquelles  infiéis,  que  claro  viam, 
Cujos  pés  os  leões  mansos  lambiam. 

40 

Manda  inda  este  cruel,  bruto  animal, 
Bárbaro  sem  temor,  e  sem  respeito, 
Mandou  que  de  metal  fosse  um  boi  feito, 
Pêra  se  derreterem  no  metal. 
Da  fúria  que  se  accende  no  seu  peito, 
Seus  abrazados  olhos  dão  signal, 
Que  manda  aquella  mansa  companhia 
Entrar  naquelle  boi,  que  em  fogo  ardia. 

Os  martyres  que  noutro  estão  ardendo, 
Do  seu  divino  amor  aconselhados, 
Com  seus  olhos  ao  Ceo  alevantados, 
Oração  a  seu  Deos  estão  fazendo; 


264  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  delles  e  dos  seus  encommendados 
Geral  perdão  lhes  fique  emendado, 
De  todos  seus  peccados  concedendo, 
E  de  graça  divina  prevenidos. 

42 
Ouviram  uma  voz  suave  e  clara, 
Da  sua  petição  ser  concedida, 
A  palma  do  martyrio  merecida 
No  fogo,  que  o  tyranno  lhe  prepara. 
A  vontade  dos  quatro  numa  unida, 
Ao  som  daquella  voz,  que  Deos  mandara. 
Cantando  pais  e  filhos  repousaram 
No  boi,  em  que  três  dias  os  fecharam. 

Depois  que  aberto  foi  o  boi  fechado, 
Os  corpos  destes  quatro  gloriosos 
Vistos  foram,  mais  claros,  mais  fermosos, 
Do  que  dentro  no  boi  tinham  entrado; 
Que  pêra  si  não  só  foram  ditosos, 
Mas  pêra  a  conversão  do  povo  errado. 
Que  de  perto  e  de  longe  vem  a  vê-los. 
Sem  lhe  faltar  um  só  de  seus  cabellos. 

44 
Ditoso  fim  de  tão  ditosa  vida. 
Apurada  no  boi  do  fogo  ardente. 
Donde  filhos  e  pais  vão  juntamente, 
A  possuir  a  gloria  merecida ! 
E  posto  que  por  via  diíferente 
Caminha  esta  alma  minha  enfraquecida, 
Santos,  rogai  por  mim  aparelhado, 
A  sêr  no  vosso  boi  de  fogo  assado. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  265 


Visão  de  Santa  Brígida. 

T 

Visão  que  a  Santa  Brígida  foi  feita, 
Estando  em  Belem,  já  como  lhe  fora 
Em  Roma  promettido  da  Senhora, 
Despois  de  já  quinze  annos  mais  perfeita, 
Mostrando-lhe  o  successo  daquella  hora, 
A  Deos  e  todo  mundo  tão  acceita, 
Do  parto  virginal,  puro,  divino. 
No  qual  Deos,  sendo  Deos,  se  fez  menino. 

2 

Estando  no  presépio  do  Senhor, 

Em  Belem,  o  logar  donde  nasceo, 

Vi  uma  Virgem  prenhe  em  branco  véo, 

Com  vestidos  subtis  da  mesma  côr ; 

Por  cima  dos  quaes  vêr  me  concedeo 

A  fermosa  Senhora  o  resplandor 

Do  seu  virginal  ventre  alevantado. 

Com  seu  filho  e  seu  Deos  nelle  encarnado. 

3 

Esta  fermosa  Virgem  acompanhava 
Um  velho  de  admirável  perfeição, 
Que  no  presépio  atou  com  sua  mão 
Um  asno  e  mais  um  boi,  que  ali  estava ; 
E  sahido  da  pobre  habitação, 
Acendeo  a  candea  que  levava, 
E  pregada  no  muro  tornou  fora 
Por  não  estar  ao  parto  da  Senhora. 

4 
A  Virgem,  que  se  vio  na  desejada 
Hora  do  parto  seu,  aparelhou-se, 


í66  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Grur 

E  com  muita  prudência  accomodou-se, 
Sem  sapatas,  sem  manto,  destoucada, 
A  dourada  madexa  derramou-se 
Por  cima  de  alva  neve  desatada. 
Que  luz  amanheceo,  que  lirio,  ou  rosa, 
Pêra  comparar  Virgem  tão  fermosa  ? ! 

5 
Trazia  esta  Senhora  concertados 
Seis  pannos  para  seu  filho  embrulhar, 
Quatro  de  linho  e  Iam  pêra  faixar 
Aquelles  membros  tenros  delicados, 
E  de  linho  outros  dois  pêra  toucar. 
Que  pôs  com  suas  mãos  assi  pegados, 
Estando  tudo  a  ponto  prevenido 
Pêra  se  usar  a  seu  tempo  devido. 

6 
Então  depois  que  tudo  preparou, 
Em  joelhos  se  pôs  contra  o  Oriente, 
Deixando  o  presépio  ao  Occidente, 
Os  olhos  e  mãos  ao  Ceo  alevantou ; 
E  transportada  assi  tão  docemente, 
Vi  mover  no  seu  ventre  o  que  ficou. 
No  mesmo  instante  fora  escurecendo 
A  luz,  que  na  parede  estava  ardendo. 


7 
E  pouco  de  tal  luz  dizer  me  atrevo, 
Inda  que  muito  mais  dizer  pudera, 
Porque  a  do  sol  mais  claro  escurecera, 
Sem  saber  escrever  delia  o  que  escrevo, 
Além  da  brevidade,  que  tal  era, 
Que  encarecer  não  sei  quanto  mais  devo, 
Sem  vêr,  nem  saber  qual  membro  primeiro 
Nascido  foi,  nem  qual  o  derradeiro. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  267 


Mas  vi  jazer  no  chão  o  glorioso 
Infante,  em  carne  limpa,  branca  e  nua, 
Mais  branca,  muito  mais  que  a  branca  lua, 
Mais  fermoso  que  o  sol,  que  fez  fermoso; 
E  vi  na  secundina  pelle  sua, 
Em  volta  um  resplandor  maravilhoso, 
E  neste  breve  espaço,  que  isto  via, 
Ouvi  dos  anjos  doce  melodia. 


A  Virgem  com  seu  ventre  despejado, 
Ficou  na  sua  antiga  compostura, 
E  sentindo  que  já  na  terra  dura 
Seu  Deos  e  filho  seu  tinha  lançado. 
Inclinada  com  graça  e  com  brandura 
Lhe  disse,  des  que  foi  delia  adorado, 
—  t  Bemvindo  seja  aquelle  que  me  deu 
Sêr  meu  Deos,  meu  Senhor,  e  filho  meu!  » 

10 
O  menino  Jesus  então  chorando, 
E  tremendo  de  frio,  em  terra  fria, 
Na  qual  em  branda  carne  nú  jazia 
Refrigério  da  mãi  andou  buscando, 
A  qual  já  neste  tempo  o  recolhia 
E  cos  braços  seus  brandos  abraçando, 
De  dous  amores  foi  um  só  composto, 
Fazendo  de  dous  rostos  um  só  rosto. 


II 

A  qual  na  terra  fria  se  assentou. 
Pondo  no  seu  regaço  o  tenro  infante, 
E  com  seus  subtis  dedos  num  instante, 
O  seu  embigo  brando  lhe  cortou. 
No  qual  como  no  mais  de  semilhante 
Nem  sangue,  nem  licor  outro  manou, 


a68  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


E  logo  começou  suavemente 

A  pensar  filho  e  Deos  omnipotente. 

12 

E  dos  seus  pannos  dous  de  linho  escolhe, 
Pêra  seu  filho  tenro  embrulhar  nelles, 
E  nos  de  branda  lã,  por  cima  delles, 
Seus  brandos  pés  e  mãos  colhe  e  recolhe. 
E  depois  de  enfaixar  as  brandas  pelles, 
Os  outros  dois  de  linho  desencolhe, 
E  com  elles  toucados  na  cabeça, 
E'  justo  que  Joseph  justo  pareça. 

i3 

Entrando  o  velho  justo  onde  aquelle 
Senhor  teve  por  bem  de  ser  nascido 
No  colo  da  Senhora  já  vestido 
Chorando  se  lançou  diante  delle. 
Com  lagrimas  d'amor  oíferecido, 
Alegre  com  vêr  quanto  via  nelle, 
E  d'ambos  ao  presépio  foi  levado, 
E  d'ambos  de  joelhos  adorado. 


Beati  qui  lungent. 

I 

Se  amor  do  Geo  se  cria  e  acha  em  lagrimas, 
Quem  não  se  venderá  por  comprar  lagrimas  ? 
Que  o  thesouro  escondido  está  nas  lagrimas 
E  a  paz  divina  acquire  se  com  lagrimas; 
Mas  convém  para  vêr  fructo  de  lagrimas, 
Fogo  no  coração  que  accenda  as  lagrimas, 
As  asas  da  alma  são  saudade  e  lagrimas 
Com  que  voa  a  quem  é  preço  de  lagrimas. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  269 


2 

Magdalena  tornada  um  mar  de  lagrimas, 
As  culpas  aíiogou  vencendo  em  lagrimas, 
Quem  antes  a  venceo  fora  das  lagrimas, 
Que  o  que  tudo  não  pôde,  podem  lagrimas. 
Pedro,  que  o  mór  milagre  foi  das  lagrimas, 
Nos  diz,  depois  de  estar  cego  de  lagrimas, 
Que  não  há  luz  sem  Deos,  nem  Deos  sem  lagrimas, 
E  que  do  mesmo  Deos  triunfam  lagrimas. 

3 
.David  perdido  em  si,  banhado  em  lagrimas. 
Semente  d'alegria  chama  as  lagrimas-, 
Jacob  chega  a  render  anjos  com  lagrimas, 
D'esteril  Samuel  nasceo  por  lagrimas. 
A  Ezechias,  ao  cego,  ao  ladrão,  lagrimas. 
Alcançam  vida,  vista,  gloria :  lagrimas, 
A  Mónica  dão  filho,  ao  filho  lagrimas, 
O  transformaram  em  Deos  ditosas  lagrimas. 

4 
Nas  lagrimas  se  alcança,  que  são  lagrimas, 
Piscina  milagrosa  dalma ;  lagrimas, 
Do  naufrágio  da  culpa  táboa  ^  lagrimas. 
São  as  aguas  que  estão  sobre  os  ceos ;  lagrimas 
Nascem  da  pedra,  viva  Jesus;  lagrimas 
Só  nelle  como  em  centro  param  ;  lagrimas 
São  raios  seus,  que  as  névoas  tiram;  lagrimas 
São  escadas  do  Geo,  que  é  fim  das  lagrimas. 

5 
As  lagrimas  são  vozes  da  alma,  lagrimas 
Fim  das  trevas,  da  luz  principio,  lagrimas 
Pregoeiras  do  amor  divino,  lagrimas 
Settas  que  o  peito  a  Deos  penetram,  lagrimas 
Tiros  que  batem  o  Geo  e  o  rendem,  lagrimas 
Ghaves  da  celestial  cidade,  lagrimas 


270  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Vigarias  da  Paixão  de  Christo,  lagrimas 
Não  se  pôde  louvar  senão  com  lagrimas. 

6 

Virgem  nuvem  do  Ceo  que  com  taes  lagrimas, 
No  presépio  adorastes  nossas  lagrimas, 
Que  teve  Deos  na  Cruz  sede  de  lagrimas, 
E  seu  peno  sacrário  fez  de  lagrimas. 
Pois  é  terra  sem  agoa,  alma  sem  lagrimas, 
E  o  Verbo  a  vós  desceo,  porque  houve  lagrimas, 
Ponde  os  olhos  em  mim  pêra  ter  lagrimas, 
Que  alcancem  a  promessa  feita  lagrimas ! 


ODE. 
Aos  desenganos. 

I 

A  vista  derramada 

Por  cima  da  verdura 

Dos  saudosos  bosques  desta  Serra, 

Do  largo  mar  cercada, 

Batendo  a  rocha  dura, 

A  que  de  novo  faz  antiga  guerra, 

Deixando  mar  e  terra, 

No  Ceo  fica  suspensa, 

Naquella  antiga  e  nova  fermosura, 

Que  para  sempre  dura, 

Da  summa  perfeição,  bondade  immensa. 

Perdendo  a  natureza 

Em  quanto  foi  d'amor  divino  presa. 

2 

E  quando  se  desata, 
Tornando  diíTerente 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  271 

Daquella,  que  da  Serra  se  partira, 

Por  que  mais  não  se  abata, 

Suave  e  docemente, 

Esquecida  de  si  geme  e  suspira, 

Ah  !  quem  livre  se  vira 

De  carga  tão  penosa 

Pêra  poder  passar 

O 'que  fica  da  vida  perigosa, 

Pois  que  sem  resistir 

Não  se  livra  do  mal,  que  está  por  vir ! 

.    3 

A  pretensão  humana, 

Que  na  terra  semea, 

Que  espera  colher  do  fruito  delia, 

Entende  que  se  engana, 

Mas  não  se  remedea. 

Por  quanto  gosto  tem  de  viver  nella ; 

Por  isso  se  desvela, 

Como  se  não  tivera 

Conta,  que  dar  de  seus  merecimentos. 

Breves  contentamentos 

Seguindo  vai.  de  que  fugir  devera, 

Gemidos  e  chorados. 

Quando  podem  ser  mal  remediados  I 

4 
A  cega  mocidade 
Passa  pelo  perigo 

Sem  saber  que  vai  mal  encaminhada. 
Guiada  de  vontade, 
Que  não  sente  castigo 
Se  não  depois  da  culpa. 
Então  alumiada 
Daquella  luz  divina, 
Que  nunca  a  bons  desejos  desempara. 
Por  via  plana  e  clara 
Caminhar  mais  direito  determina, 


a72  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Forte,  firme,  e  constante, 

Sem  olhar  pera  trás,  passar  avante ! 

5 
Campos,  valles,  ribeiras, 
Cheos  de  varias  flores, 
Nas  ervas  e  nas  plantas  derramadas 
Seccaram-se  as  primeiras, 
Vossas  fermosas  cores, 
Que  nossas  vistas  tinham  recreadas. 
Mas  aquellas  plantadas, 
Que  no  ceo  aparecem. 
Dando  de  si  mais  claro  desengano, 
Não  se  secam  cada  anno, 
Mas  taes  quaes  sempre  foram  permanecem, 
Amostrando  na  terra 
A  quem  não  busca  o  Ceo  quanto  mais  erra  l 

6 
Dos  successos  humanos 
Presentes  e  passados, 
Que  vemos,  que  sentimos,  que  choramos? 
Os  claros  desenganos 
Dos  tempos  mal  gastados, 
Por  seguir  gostos  nossos,  engeitamos. 
Mas  os  couces  que  damos 
São  contra  o  aguilhão. 
Que  não  fere  sem  ser  acouceado, 
Dos  couces  magoado. 
Meus  mesmos  pés  em  mim  couces  se  dão 
De  quantos  mais  atiro, 
De  tantos  contra  a  mim  me  firo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  %j3 


Canção  a  Nossa  Senhora. 

I 

Virgem  pura,  escolhida,  honesta,  santa, 

Humilde  serva,  mãe,  esposa,  filha 

Do  autor  da  luz,  do  Rei  da  eternidade, 

Sacrário  da  mais  alta  maravilha, 

Por  quem  a  humanidade  se  levanta 

Unida  no  teu  ventre  á  divindade. 

Que  estylo  ou  suavidade 

De  prosa,  ou  verso  humano, 

Sem  favor  soberano, 

Te  quererá  louvar,  que  não  te  oftenda  ? 

O  raio  de  tua  luz  minha  alma  accenda, 

O  esprito  se  levante  a  contemplar  te 

Com  tal  fervor,  que  entenda 

Como  te  hei  de  servir,  como  louvar-te. 

2 

Virgem  da  providencia  soberana, 

{  P'ra  throno  seu )  da  culpa  preservada, 

Que  a  tal  Senhor  convinha  tal  pureza, 

De  tantos,  tantos  annos  esperada, 

Por  vêr  aberto  o  Ceo  com  chave  humana, 

E  a  graça  triunfar  da  natureza, 

A  spiritual  riqueza, 

Por  Eva  já  perdida, 

Por  ti  restituida. 

Se  communica  agora,  eternamente. 

Ah  !  quem  dizer  soubera  o  que  a  alma  sente  l 

Mas  se  não  faJar,  baste-me  que  amo, 

E  mais  efficazmente, 

Com  amor,  que  com  vozes,  por  ti  chamo! 

18 


374  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

3 

Virgem  benigna,  sabia,  gloriosa, 

Por  quem  o  mundo  ingrato  é  sustentado, 

Por  quem  livre  se  vio  do  reino  escuro, 

Depois  de  tanto  tempo  mal  gastado, 

Em  vida  tão  incerta  e  perigosa. 

Em  11  só  me  confio  e  asseguro, 

Tu  és  porto  seguro, 

De  casos  da  fortuna  *, 

Tu  és  firme  coluna 

De  nossas  esperanças,  Virgem  pia, 

Tu  és  raio  do  sol  do  eterno  dia, 

Que  as  trevas  rompe  e  os  montes  nos  descobre^ 

Que  o  Rei  profeta  via, 

Donde  ao  cego  vem  luz,  soccorro  ao  pobre ! 

4 
Virgem  chea  de  graça,  admirável, 
Que  o  Verbo  eterno,  amando,  concebeste 
No  ventre  virginal,  templo  divino. 
Quem  não  cabe  nos  Ceos,  nelle  escondeste 
Por  sobrenatural  modo  ineffavel, 
Mysterio  só  de  Deos  e  de  ti  dino, 
Orvalho  crystallino, 
Do  Verbo  milagroso, 
Pão  vivo  precioso. 

Que  a  dar-nos  vida  eterna,  do  Ceo  veio, 
Milagre  dos  milagres,  que  do  seio 
Do  Padre  vio  o  estremo  da  humildade, 
E  delle  tira  um  meio, 
Que  fez  preço  do  Ceo,  nossa  vontade. 


Virgem,  visão  de  paz,  arca  segura, 
Do  diluvio  geral,  por  Deos  traçada, 
Pêra  que  habite  a  gloria  em  nossa  terra, 
Custodia  da  lei,  santa,  immaculada, 
Que  em  mais  perfeito  gráo  mosta  a  doçura 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  ayS 

Dos  divinos  preceitos  que  eila  encerra, 

Aurora  que  desterra 

A  noite  ci'alma  cega, 

Nuvem  que  os  justos  rega 

Com  agoa  viva  do  divino  sprito, 

Livro  em  que  foi  por  elle  o  nome  escrito, 

Que  enche  o  Ceo,  salva  o  mundo,  o  inferno  rende, 

Cujo  preço  infinito, 

Mostrou,  posto  na  Cruz,  quem  só  o  entende ! 

6 
Virgem  do  eterno  Rei,  santa  cidade, 
Rica,  nobre,  fermosa,  e  triunfante, 
Fira  de  toda  a  celeste  architectura; 
Teu  muro  é  de  fortíssimo  diamante, 
Espelho  da  catholica  verdade, 
Por  quem  luz  do  Creador  teve  a  creatura. 
As  torres,  cuja  altura 
Só  medem  mãos  divinas. 
São  d'esmeraldas  finas, 
Donde  tua  esperança  a  Deos  namora  \ 
Teus  passos  de  rubis,  em  que  elle  mora. 
A  tua  caridade  mostram  nelle, 
Por  quem  o  Ceo  te  adora, 
E  a  terra  veio  a  ser  mais  alta  qu  elle. 

7 
Virgem  resplandecente,  que  subsiste 
D'anjos  acompanhada,  triunfando, 
Ao  thalamo  em  que  estás  sobre  as  estrellas, 
Com  resplandor  eterno,  sempre  dando 
Louvores  ao  Senhor,  que  cá  pariste, 
A  elles  alegria,  e  luz  a  ellas, 
>  Numero  achar  delias. 
Meter  numa  gotta  o  mar, 
Pesar  o  fogo  e  o  ar, 

E'  menos  que  o  meu  pobre  engenho  e  rudo, 
Sendo  nada  tratar  de  quem  é  tudo, 


vj6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Só  digo  dentro  n'altna,  que  te  devo, 

Por  têr-me  o  espanto  mudo, 

Que  és  mais  que  santa,  e  deosa  não  me  atrevo. 

8 
Virgem,  guarda  fiel  do  mór  thesouro, 
Nova  revelação  do  Esprito  Santo, 
Em  quem,  de  quem,  por  quein  Deos  nos  foi  dado, 
O  Rei  que  a  ti  desceu  te  sobio  tanto, 
Que  á  mão  direita,  em  pé,  vestida  d"ouro, 
Te  pôs,  da  qual  David  tinha  cantado. 
Já  tens  a  honra  alcançado. 
Por  ti  profetizada, 
Que  bemaventurada, 
Todas  as  gerações  te  chamariam. 
Cá  de  servir-te  os  homens  se  gloriam, 
E  os  santos,  que  nos  Ceos  com  brancas  vestes 
O  cordeiro  seguiam, 
Te  cantam,  sem  cessar,  hymnos  celestes. 

9 
Virgem  de  gloria,  e  honra  coroada, 

Novo  sol  dos  celestes  hori-sontes, 

A  quem  os  Serafins  servem  d'estrado 

Nas  cinco  perennaes  divinas  fontes, 

Abertas  na  tua  alma  transformada, 

Em  teu  filho  e  Senhor  crucificada  \ 

Estava  represado 

O  mar  de  teus  prazeres. 

Em  que  de  seus  poderes 

Soltou  a  presa,  a  eterna  omnipotência, 

Porque  houvesse  nos  prémios  respondencia, 

Das  bemaventuranças  que  louvou, 

Com  tam  alta  eloquência, 

A  mulher  que  o  Evangelho  celebrou. 

IO 

Virgem,  por  quem  há  tanto  que  porfia, 
Teu  filho  com  esta  alma  ingrata  e  morta, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  377 

Que  no  Ceo  bata,  o  busque,  o  peça,  o  queira ; 

Se  elle  me  houver  d'abrir,  tu  és  a  porta ; 

Se  quer  que  o  possa  achar,  tu  és  a  guia  ; 

Se  dar-me  bens,  tu  és  a  dispenseira, 

Tu  foste  medianeira 

Do  despacho  fermoso. 

Do  ladrão  venturoso. 

Magdalena,  por  ti,  a  graça  achou; 

Paulo  se  converteu,  Pedro  chorou. 

Enfim,  Deos  pêra  nós  te  fez  mãi  sua, 

Confiado  a  ti,  vou, 

Pois  o  que  é  meu  remédio,  é  gloria  tua. 


ODE. 
Hjrtnno  á  Cru\. 

Insignia  triunfal,  honrosa  e  santa, 
Chave  do  Ceo,  penhor  da  eterna  gloria, 
Que  com  lesu  da  terra  nos  levanta. 

Sacrário  em  que  ficou  viva  a  memoria 
Do  immenso  amor  divino,  onde  se  alcança 
Dos  imigos  domésticos,  victoria. 

Signal  que,  após  diluvio,  traz  bonança, 
Por  quem  o  mundo  novo  é  reformado, 
E  se  converte  o  espanto  em  esperança. 

O'  Cruz,  minha  saudade,  e  meu  cuidado. 
Que  sustentar  pudeste  o  doce  peso 
De  nossa  redempção,  tão  desejado ! 


2-jB  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

O'  Cruz  onde  lesu  sofre  estar  preso, 
Pêra  soltar  me  já  da  culpa  antiga, 
Porque  o  passo  do  Geo  aie  era  defeso ! 

O'  Cruz,  pregão  da  paz,  amor,  e  liga, 
Entre  a  divina  e  humana  natureza, 
Arvore  victoriosa,  alegre,  amiga  ! 

O'  Cruz  onde  se  humilha  a  mór  grandeza, 
O  mór  poder,  mais  alta  magestade, 
E  onde  se  engrandece  a  mór  baixeza ! 

O'  Cruz  onde  offerece  a  humildade 
Do  meu  lesu,  seu  sangue  precioso, 
Por  nós  ao  Padre,  ó  summa  bondade ! 

O*  bom  lesu,  quam  manso  e  amoroso, 
Sofrido,  brando,  humilde,  e  obediente, 
Vos  mosiraes  nessa  Cruz,  e  quam  piedoso ! 

Se  vos  quero  imitar,  não  mo  consente 
A  vaidade,  ambição,  soberba,  e  ira. 
Que  tem  preso  o  juizo,  e  cega  a  mente. 

Mas  abraçando  a  Cruz,  logo  se  tira 
O  temor  de  perder-vos,  e  perder  me, 
Quem  fugira  de  si  e  á  Cruz  se  unira ! 

Conhecer-vos  pudera,  e  conhecer-me, 
Vós  pregando  amar,  eu  ser  ingrato. 
Vós  perdoar,  eu  nunca  arrepender-me. 

Se  alguma  hora  comigo  me  retrato, 
Temo  de  vêr  quam  caro  me  comprastes, 
Porque  cousas  vos  vendo  tão  barato. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  279 

Mas  pêra  emenda  disto  me  alcançastes 
Tanta  graça  na  Cruz,  que  num  momento 
Me  entrega  a  vós,  que  a  mim  vos  entregastes. 

Nella  alcançou  de  vós  o  claro  assento, 
O  bom  ladrão,  vencendo  a  errada  vida, 
Num  breve,  mas  fiel  conhecimento. 

Que  alma  haverá  tão  dura  e  tão  perdida, 
Que  da  Cruz  de  lesu,  vendo-se  perto, 
Não  seja  a  graça  e  amor  restituída  ? 

Soccorro  universal,  remédio  certo, 

De  quem  te  busca,  achado  em  toda  a  parte, 

Na  cidade,  no  campo,  e  no  deserto. 

Quem  levar  sabe  a  Cruz,  seguro  parte, 

Pêra  todo  lugar,  estado,  e  sorte. 

Mas  quem  se  disporá,  ó  Cruz,  a  levar-ie  ? 

Serpente  milagrosa,  vital,  forte. 
Que  só  pondo-lhe  os  olhos,  dá  saúde 
Na  venenosa  chaga,  e  vence  a  morte. 

Dos  máos  é  confusão,  dos  bons  virtude. 
Com  que  se  fortifica  o  espnto  enfermo. 
Seguro  de  mudança  haver  que  o  mude. 

Tu  levaste  o  Baptista  ao  Ceo  do  ermo, 
Paulo  do  cego  horror,  Pedro  da  rede, 
Magdalena  da  culpa,  a  amar  sem  termo. 

Ah  1  quem  de  ti,  Cruz  santa,  houvera  sede, 
Correndo  ao  lado  aberto,  sacra  fonte. 
Correi  todos,  amai,  esperai,  crede  1 


a8o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Grut 

O'  glorioso  calvário,  monte  santo, 

Que  em  breve  espaço  ajuntas  Ceo  e  terra 

Pêra  dar  luz  a  um  e  outro  horisonte. 

O'  soberana  Cruz,  onde  se  encerra 
O  mais  alto  mysterio,  ó  Cruz  divina, 
Principio  da  mór  paz,  fim  da  mór  guerra. 

Columna  dos  apóstolos,  doctrina 
D'Evangelistas,  santa  e  verdadeira, 
Que  alma  guia,  arrebata,  accende,  afina. 

Dos  gloriosos  Martyres  bandeira, 

E  justificação  dos  Confessores ; 

Das  Virgens  guarda,  luz,  firmeza  inteira. 

Ah !  honra  e  salvação  de  peccadores, 
Leva-me,  após  meu  Deos,  todo  influído. 
Nas  chagas  de  lesu  e  nas  suas  dores. 

Renove  se  outro  sêr  no  meu  sentido, 
Outro  amor  e  aífeição,  que  me  transforme, 
E  eu  seja  ao  mundo  e  elle  a  mim  perdido. 

Triste  de  quem  descansa,  espera,  e  dorme 
Nos  prazeres  da  terra,  emascarados, 
Cujo  fructo  é  pesar  e  fim  disforme. 

Eu  só  da  Cruz  me  fio,  onde  os  cuidados 
Param  todos  em  Deos,  que  faz  suaves 
O  jugo,  pena,  dôr  dos  mais  tentados. 

Peço-te,  minha  Cruz,  que  esta  alma  encraves, 
Com  esse  Redemptor,  verbo  divino, 
E  na  sacramental  piscina  a  laves. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  281 

Mas  quem  de  tanta  gloria  será  dino, 
Que  voe  do  mais  baixo  á  mór  altura. 
Quem  se  inclinar  á  Cruz,  que  me  inclino  ? 

As  aves  quando  voam  na  figura 

Da  Cruz,  se  alçam  da  terra,  e  o  Ceo  alcançam, 

Que  esta  só  faz  voar  toda  a  creatura. 

O'  venerável  Cruz,  com  que  se  lançam 

Os  demónios  confusos  e  vencidos, 

E  as  tempestades  d'alma  se  abonançam. 

Em  ti  prendo  as  potencias  e  os  sentidos, 
Cos  olhos  em  Jesus,  que  por  levar-me. 
Espera  tanto,  ah  !  c'os  pés  detidos. 
Que  só  lesu  e  a  Cruz  podem  salvar  me! 


ELEGIA. 
A'  Quinta-feira  da  Cea  do  Senhor. 

Que  lingua,  que  saber,  que  estylo  ou  arte, 
Comprenderá,  Senhor,  vossa  grandeza, 
Pois  nunca  foi  capaz  de  toda  a  parte  ? 

O'  incessavel  mina  de  riqueza, 
Spiritual,  eterna,  sem  medida," 
Abysmo,  onde  não  vai  nossa  rudeza ! 

Pois  vós  verdade  sois,  caminho,  e  vida, 
Dai  luz,  guia,  fervor,  e  esprito  vosso, 
A  esta,  com  que  em  vós  fique  influída. 

Que  quando  ofFerecer  tudo  o  que  posso. 
Partindo  só  de  mim,  sem  peito,  entregue 
De  todo  ao  vosso  amor,  livre  do  nosso ! 


aSa  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Mudo  parecerei,  por  mais  que  pregue, 

Que  saber  vos  louvar,  de  vós  se  aprende, 

E  sempre  alcança  mais,  quem  mais  vos  segue. 

E  pois,  só  quem  vos  ama  vos  entende, 
E  não  há  amar  sem  sêr  de  vós  amado; 
Amai,  a  quem  só  dar-se-vos  pretende. 

Lembro-vos,  meu  Senhor,  que  é  já  chegado 
O  tempo  de  render  a  omnipotência. 
Ao  peccador  mais  pobre  e  desprezado. 

Estai  por  graça,  em  mim,  dai-me  vehemencia 
De  caridade,  com  que  hoje  vos  cante, 
Pois  sois  principio  e  fim  da  mór  sciencia. 

Já  todo  humano  sprito  se  levante. 
Pois  tanto,  meu  Jesus,  vos  abaixastes, 
Pondo  a  vingança  atrás,  o  amor  diante. 

Hoje  trouxestes  Deos,  homens  levastes, 
A  divida  pagaes,  que  outrem  cjevia, 
Mas  tudo  padecei,  pois  tudo  amastes. 

Grande,  maravilhoso,  alegre  dia. 

Dos  thesouros  do  Ceo  mór  pregoeiro. 

Em  que  dos  homens  Deos  mais  trata  e  fia! 

Dia  que  o  celestial,  manso  cordeiro, 
Seu  corpo  e  sangue  deu  por  mantimento, 
Descanso  e  lume  d'alma  verdadeiro! 

O'  ineffavel,  santo  sacramento, 

Onde  o  juizo  pára  e  perde  o  tino, 

E  a  fé  triunfa  em  nós,  do  entendimento  1 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  283 


Mysterio  incomprensivel  e  só  dino. 

Da  sapiência  do  Padre,  que  elle  encerra, 

Diluvio  universal  do  amor  divino ! 

Amor  que  fez  prostrar  lesu  por  terra, 
A  pés  de  mortaes,  fracos  peccadores, 
Por  fazer  cum  desprezo,  ao  outro  guerra. 

Ah !  Rei  dos  reis,  Senhor  sobre  os  senhores, 
Que  até  a  ludas  cego,  ingrato,  imigo, 
Dás  de  perdão  e  amor  tantos  penhores ! 

Porque  se  o  coração  leva  comsigo. 

Ao  menos  os  pés  fiquem  damor  presos, 

Mas  cobiça  não  quer  Deos  por  amigo. 

E  vendo  a  ingratidão  e  o  ódio  accesos. 
Pondes  justiça  e  amor  logo  em  balança. 
Mas  a  do  amor  levou  todos  os  pesos. 


Ah  !  quem  pusesse  os  olhos  na  lembrança 
De  tam  raro  triunfo  de  humildade, 
Pêra  pôr  só  em  Deos  toda  a  esperança ! 

Aqui  venceo  o  amor,  a  magestade 
Divina  em  desafio,  e  por  memoria 
Lhe  deu  trajo  servil  de  humanidade  \ 

No  qual  promette,  em  pago  da  victoria, 
Neste  exemplo  tam  santo  e  necessário. 
Dar  por  alhea  culpa  a  própria  gloria. 

Inexorável,  pérfido,  falsario. 

Pois  teu  mestre  e  senhor  a  ti  se  entrega, 

Que  esperas  noite  e  sitio  solitário  ? 


284  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Por  prata  dás  um  Deos,  que  os  pés  te  rega 
Com  lagrimas  ardentes  e  amorosas ; 
Ah !  troca  desigual,  horrenda  e  cega ! 

Se  te  move  interesse  nas  piedosas 

Mãos  de  Jesu,  tens  mais  do  que  aceitaste 

Das  Ímpias,  farizaicas,  rigorosas. 

Mal  te  lembrou  o  emquanto  avaliaste 
O  unguento  de  Maria,  há  poucos  dias, 
Quando  em  tão  pouco  a  Christo  arremataste. 

Em  trezentos  dinheiros  inda  havias 

O  licor  dado  a  Deos,  por  mal  vendido, 

E  em  trinta  hás  que  a  Jesu  mui  bem  vendias. 

O'  coração  de  tigre,  endurecido. 

Que  a  quem  mais  te  honra  e  ama,  mais  offendes, 

Do  teu  Deos  e  de  ti  tão  esquecido ! 

Porque  o  conheces  mal,  por  isso  o  vendes, 
Deixas  de  o  conhecer,  porque  o  desamas, 
E  porque  amor  não  tens,  não  te  arrependes. 

Quanto  o  peito  de  Christo  arde  em  mais  chamas 
De  amor.  por  reduzir-te  ao  grémio  santo, 
Tanto  obstmado  o  teu  mais  d'ira  inflammas. 

De  sofrer-te  Jesu  nada  me  espanto. 
Mas  tremo  de  cuidar  na  recompensa 
Que  dás  a  este  Senhor,  que  te  dá  tanto. 

Elle  beija  teus  pés  com  dor  immensa, 
Tu  com  beijo  de  paz,  á  morte  o  levas, 
Nova  misericórdia  e  nova  ofíensa. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  a85 

Cuida  bem  na  traição  em  que  te  enlevas, 

Olha  que  sem  Jesu  tudo  é  inferno, 

Mas  como  verá  a  luz  quem  vive  em  trevas? 

A  todos  deu  remédio  o  Verbo  eterno, 
A  ti,  por  membro  alheo,  já  te  engeita, 
E  te  risca  do  seu  vital  caderno. 

A  doctrina,  milagres,  vida  estreita, 

Que  ao  choro  e  luto,  seu  divulgar  manda. 

Confirma  aos  onze,  em  ti  nada  aproveita. 

Por  lavar  igualmente  a  todos  anda, 

Mas  tu  ficas  mais  torpe,  elles  mais  puros, 

Qual  sol  que  o  barro  secca,  e  a  cera  abranda. 

Claro  annuncio  de  teus  males  futuros, 
Passar  Jesu  por  ti,  e  os  pensamentos 
No  desejo  do  mal  ficar  seguros. 

A  Pedro  os  passos  move  e  movimentos 
D'espanto,  nelle  faz  ver  tal,  quem  antes 
Lhe  entregou  sua  Igreja  e  Sacramentos. 

Pasma  das  mãos  divinas,  triunfantes, 
Pedir-lhe  os  pés,  duvida,  cuida  e  teme, 
E  busca  de  os  negar  rezóes  bastantes. 

Sem  poder  formar  vóz,  suspira  e  geme 

Vendo-se  peccador,  e  que  os  peccados 

Põem  a  seus  pés  um  Deos,  de  que  o  Ceo  treme, 

E  cos  olhos  em  lagrimas  banhados, 
Tornando  em  si,  lhe  diz:  —  «  como  é  possível, 
Que  hajam  de  ser  meus  pés  de  vós  lavados  ? 


286  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

c  Eu  fraco  peccador,  vós  Deos  terrivel, 
Eu  sombra  vã,  vós  sol  divino  e  puro, 
Eu  limitado,  vós  incomprensivel. 

í  O  servir-vos  é  meu,  isso  procuro, 
Vosso  o  crear,  o  remir,  o  dar-me  graça, 
Mas  lavar  Christo  a  Pedro,  é  caso  duro !  » 

—  «  Isto  que  faço  agora  te  embaraça, 
Lhe  responde  Jesu,  e  não  no  alcanças, 
Mas  vê-lo-has  alcançar  depois  que  o  faça.  » 

O  discípulo  entregue  inda  ás  mudanças. 
Que  o  peito  combatiam,  não  consente, 
E  resoluto,  diz,  sem  mais  tardanças: 

—  «  Meus  pés  não  lavareis  eternamente ; 
Perdoai-me,  benhor,  pois  vos  conheço, 
Ser  nisto  mais  cortez,  que  obediente. 

«  No  ai,  como  a  meu  Deos  vos  obedeço, 
Por  tal  vos  confessei,  por  tal  vos  tinha, 
Por  tal  vos  nego,  os  pés  e  alma  oftereço.  » 

—  «  Refusas  o  que  tanto  te  convinha, 
Repete  o  Redemptor,  não  te  lavando, 

Não  terás  parte  em  mim,  nem  cousa  minha.  » 

O  Apostolo,  tremendo  e  desmaiando 
De  ouvir  tal  ameaça,  antes  que  creça 
Mais  a  culpa,  as  palavras  apressando, 

Responde :  —  a  Senhor,  pés,  mãos  e  cabeça^ 
Lavai,  fazei  de  mi  quanto  quiserdes. 
Não  me  aparteis  de  vós  em  que  o  mereça. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  287 

c  Se  no  centro  da  terra  me  puserdes 
Na  região  do  ar,  no  fogo  e  na  agoa, 
Alegre  estarei  lá,  se  em  mim  estiverdes. 

t  Sem  vós,  a  vida  é  morte,  o  prazer  mágoa, 
O  descanso  trabalho,  a  gloria  pena, 
O  ar,  de  que  respiro,  ardente  frágoa. 

€  Creatura  sou  vil,  baixa  e  pequena, 
Mas  vossa  e  pêra  vós,  e  isto  mais  monta. 
Que  os  erros  que  a  ignorância  minha  ordena. 

<  E  pois,  fazeis  de  mim,  ao  lavar,  conta, 
Levai  me  á  Cruz  também,  que  não  é  justo. 
Que  achando-me  ás  mercês,  falte  na  affronta. 

€  Lembrai-vos,  meu  Creãdor,  quanto  vos  custo, 
Não  me  fieis  de  mim,  convosco  acabe. 
Pois  de  vós  me  há  de  vir  não  sêr  injusto.  1 

Mas  Jesu,  como  todo  o  porvir  sabe, 
E  vê  chegar-se  tanto  a  hora  sua, 
Testemunha  do  amor,  que  nelle  cabe, 

A  Pedro  atalha  e  quer  que  se  conclua 
O  lavatório  já,  por  ir-se  ao  monte 
Donde,  dando-se  a  nós,  o  imigo  exclua. 

E  pondo-se  aos  discípulos  defronte. 

Os  avisa  e  doutrina  e  nelles  fica 

Do  seu  immenso  amor,  abrindo  a  fonte. 

O'  fonte  perennal,  divina  e  rica, 
Que  alimpa,  sara,  salva,  alegra,  farta. 
Consola,  nutre,  anima  e  fortifica  1 


a88  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Depois  de  ensinar  todos,  tres  aparta, 

E  com  elles  se  vai  trás  o  desejo, 

Que  sem  deter-se  um  ponto  faz  que  parta. 

Quam  desagasalhados  ficar  vejo 
Os  discipulos  órfãos  e  saudosos, 
Que  tem  asas  no  amor,  nos  passos  pejo. 

Presos  da  obediência,  os  chorosos 

Olhos  e  corações  a  Jesu  seguem. 

De  o  não  seguir  co  mais  bem  pesarosos. 

E  depois  de  o  não  ver  onde  assosseguem, 
Os  spiritos  não  acham,  co  a  dor  bramam, 
Até  que  á  mesma  dor  a  vida  entreguem. 

Buscam  o  seu  Jesu,  por  elle  chamam, 
Todos  o  acham  •,  menos  nenhum  ousa 
Persuadir-se,  que  é  ido,  porque  o  amam. 

O'  bom  Jesu,  em  quem  a  alma  repousa, 
Em  quem  só  se  aquieta  e  se  recrea, 
Esquecendo  por  vós  toda  outra  cousa. 

A  que  mais  se  vos  dá,  menos  recêa 
Os  laços,  tantaçÔes,  sombras,  vaidades, 
Que  sendo  imagem  vossa,  a  fazem  fêa. 

A  minha  de  amor  chêa  e  de  saudades 
Vos  entrego,  Senhor,  inda  que  indina. 
Com  vosco  ma  levai,  ou  não  vos  vades. 

Com  voscD  ma  levai,  pois  determina 
De  mim  tanto  alhear-se,  até  que  veja 
O  fructo  em  si,  que  dá  vossa  doutrina. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  289 


Com  vosco  ma  levai  pêra  que  seja 

Na  gloriosa  paixão  habilitada, 

E  alcance  a  parte  delia  que  deseja. 

Com  vosco  ma  levai  á  Cruz  pesada, 
A'  columna,  á  cadea  áspera  e  grossa, 
Aos  espinhos,  ao  fel,  não  fique  nada. 

Com  vosco  ma  levai,  porque  não  possa 
Haver  cousa  no  mundo  que  a  detenha, 
Tendo-a,  meu  bom  Jesu,  toda  por  vossa, 
Pêra  que  ella,  por  seu  todo,  vos  tenha. 


) 


ELEGIA. 

Na  ribeira  do  Lima  fui  nascido, 
Na  do  Mondego  e  Tejo  fui  creado, 
E  na  serra,  em  que  vivo  envelhecido, 

Onde  esperando  estou  o  desejado 

Fim  dos  meus  longos  annos  mais  vizinho, 

Quanto  de  cada  vêz  mais  alongado. 

Assi  vou,  pouco  e  pouco,  meu  caminho, 
Não  sem  queixas  da  dura  natureza. 
Em  cuja  companhia  ainda  me  espinho. 

Que  mais  custa  abrandar  sua  dureza 
Importuna,  cruel,  que  padecer. 
Quanto  sofrer  se  pode  de  aspereza. 

Pois  tantas  quantas  v^zes  commetter, 

Não  basta  sêr  de  todas  resistida. 

Se  não  que  em  todas  sempre  hei-de  vencer. 

'9 


igo  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  te  posso  fazer,  alma  ferida, 
Que  em  tanto  se  dilata  tua  cura, 
Emquanto  te  sentir  endurecida. 

Olha,  de  cujo  Deos  és  creatura, 
Olha,  em  cujo  sangue  resgatada ; 
Ah !  nâo  se  perca  em  ti  sua  feitura  1 

Ainda  que  no  cabo  da  jornada, 

Com  poucas  forças  vamos  caminhando, 

A  porta  do  Geo  nunca  está  serrada. 

Do  pouco  que  podemos  trabalhando, 
Não  deixamos  do  pouco  que  podemos 
De  accrescentar  no  muito  desejando. 

Enfim,  que  em  não  poder,  não  reparemos 
Da  fraqueza  da  carne  aconselhados, 
Pois  não  pode  tolher,  que  desejemos. 

Que  desejos  d'amor  continuados. 
De  novo  criam  forças,  reverdecem, 
Com  sangue  do  Senhor  na  Cruz  regados. 

Os  cravos,  que  nas  rosas  apparecem, 
Daquelles  pés  e  mãos  atravessados. 
Esforçam,  dão  vigor,  e  fortalecem. 

As  carnes  á  columna  dura  atadas, 
Açoutadas,  pisadas  e  moidas, 
Nunca  das  minhas  sejam  desatadas. 

Pois  por  querer  sarar  nossas  feridas, 

Nellas  não  ficou  parte  por  ferir. 

Nem  dor  de  que  não  fossem  consummidas. 


I 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  291 

Mas  não  que  se  podesse  consumir 
No  Senhor  a  clemência  do  perdão, 
Que  pêra  os  malfeitores  quis  pedir. 

Ouvindo,  que  em  lugar  de  galardão, 
Não  deixaram  ali  de  blasfemar, 
Do  que  morre  por  sua  salvação. 

Que  nem  bastou  na  Cruz  pregado  estar, 
Coroado  d'espmhos,  o  Senhor, 
Pêra  sua  crueza  se  fartar. 

No  meio  dos  ladrões  o  foram  pôr, 
Que  buscando  lugar  mais  affrontoso, 
Não  puderam  achar  outro  peor; 

Onde  seu  brando  peito  piedoso, 
Depois  de  morto,  abrio  o  povo  imigo. 
Por  não  ficar  da  morte  duvidoso. 

Não  me  deixe  ficar  amor  comigo, 
Sem  á  columna  atar  meu  pensamento, 
Ou  na  arvore  da  Cruz  pregar  corasigo. 

Pode  sêr  que  alguma  hora  o  sentimento, 
Dentro  desta  alma  minha  suba  tanto, 
Que  faça  de  mim  doce  apartamento. 

E  quando  não  puder  chegar  a  quanto 
Se  deve,  a  tal  Senhor,  tal  amor  seu, 
Comigo  ficarei  fazendo  pranto. 

Que  quero  aqui  neste  ermo  mais  de  meu. 
De  quanto  esta  alma  minha  mais  deseja, 
Que  dar-me  a  quem  por  mim  todo  se  deu? 


292  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Que  se  saber  não  posso  qual  esteja 
No  meo,  de  todo  seu,  lhe  ser  acceito, 
O  seu  não  pode  ser,  que  alheio  seja. 

As  maravilhas  vejo  que  tem  feito, 
Sarando  d'alma  e  corpo  peccadores, 
Dos  quaes  um  leva  ás  costas  o  seu  leito. 

Chamou  do  mar  os  pobres  pescadores, 
Pêra  fazerem  de  homens  pescaria, 
Nos  fins  da  terra  toda  pregadores. 

Elle  diz  que  é  verdade,  vida  e  via, 

Que  tomou,  por  salvar-nos,  carne  humana, 

Da  rainha  dos  Ceos,  Virgem  Maria, 

De  cujo  bem  dos  bens  todo  bem  mana. 


Elegia  da  Arrábida. 

Comvosco  e  dentro  em  vós,  Serra  batida 
Mais  das  ondas  humanas,  que  marinhas. 
Cantarei,  como  cisne,  a  despedida. 

Testemunha  sois  vós  das  queixas  minhas, 
E  porque  quero,  mais  antes  que  gente, 
As  feras  e  serpentes  por  vizinhas. 

Tanto,  que  nem  d'amigo,  nem  parente, 
Inda  agora  não  faço  difterença. 
Se  seu  amor  do  meu  for  dififerente. 

A  nenhum  delles  nisto  faço  oífensa, 
Se  algum  seu  interesse  só  pretende, 
Pois  iielle  só  consiste  a  desavença. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Crux  293 

Experiência  tenho  do  que  rende 
A  palavra  sem  obra  confirniada, 
Que  em  vão  pêra  comigo  se  despende. 

Resposta,  que  mil  vezes  tenho  dada 
A  quem  já  sei  que  nada  dar-me  quer, 
Que  pois  nada  quer  dar,  não  quero  nada. 

Nem  elle  de  mim  deve  de  querer 
Levar-me  sem  nenhum  merecimento, 
O  que  me  doe  a  mi,  sem  lhe  doer. 

O  descanso  do  doce  pensamento, 

O  repouso  do  livre  coração. 

Não  se  deve  perder  um  só  momento. 

Qual  deve  ser  a  minha  pretensão 

Antre  os  bosques  desertos,  velho  e  enfermo, 

Se  não  não  ver  em  mi  um  só  senão  ? 

Os  juizos  rasteiros  dos  do  termo. 
Que  todos,  o  qual  mais  me  perseguia, 
Já  por  mercê  de  Deos,  fizeram  termo. 

Que  quem  dos  seus  ardis  me  defendia, 
Ordenou  redundar  em  meu  proveito, 
Quanto  mais  encontrá-lo  parecia. 

Finalmente,  que  nunca  fora  feito, 

O  menos  do  que  a  mi  mais  me  importava, 

Se  entortar  não  quiseram  o  direito. 

Tanto  na  paixão  sua  se  cegava 

O  que  mais  trabalhou  por  me  lançar. 

Que  não  vio  que  de  muro  me  cercava. 


294  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Ora  já  que  me  deixam  descansar, 
Trabalharei  de  novo,  descansado, 
Por  nada  já  da  terra  me  cansar. 

De  todo  em  todo  tão  desapegado, 
Que  não  me  lembre  viva  creatura, 
Nem  queira  de  nenhuma  ser  lembrado. 

Passando  os  olhos  meus  pela  verdura 
Das  plantas,  que  plantou  a  natureza. 
Me  mostraram  no  Geo  nova  pintura. 

Onde  a  minha  alma  em  puro  fogo  accesa, 
Não  sinta,  nem  consinta,  outro  desejo, 
Se  não  ficar  d'amor  divino  presa. 

Em  cuja  clara  luz  mais  claro  vejo 
Por  onde  caminhar  posso  seguro, 
Emquanto  agora  a  terra  não  despejo. 

Não  vejo  Job  lançado  no  monturo. 

Queixoso  de  amigos  carregosos, 

E  como  assi  dos  meus  mais  me  asseguro. 

Não  vejo  o  de  que  são  mais  cobiçosos. 
Que  pretendo  do  mundo  falso  e  cego, 
Por  passos  de  caminhos  perigosos  ? 

Mas  porque  brado  em  vão,  ou  a  quem  prego, 
Se  não  a  mim,  de  mim  tão  esquecido, 
Que  do  meu  próprio  bem  me  desapego? 

Quanto  em  menos  tempo  tem  colhido 
O  fruito  que  se  colhe  trabalhando, 
Que,  por  não  trabalhar,  tenho  perdido? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  agS 

O  que  daqui  me  fica  magoando, 
Determino  emendar  pelo  mais  certo 
E  mais  breve  caminho,  caminhando. 

Sem  me  desviar,  já,  neste  deserto, 
Por  atalho  nenhum,  nenhum  rodeo, 
Senão  pelo  que  fôr  do  Ceo  mais  perto. 

Não  me  venha  turbar  o  gosto  alheo, 
Que  menos  penitencia  diz  que  basta. 
Porque  a  virtude,  diz,  consiste  em  meo. 

Em  vão  pêra  comigo  o  tempo  gasta. 
Quem  mais  quer  alongar  meus  longos  dias, 
Que  a  morte,  inda  que  tarda,  não  se  afasta. 

Venha  quando  quiser,  por  quaesquer  vias, 
Que  por  nenhuma  já  pôde  vir  cedo 
Despir  as  enrugadas  carnes  frias. 

Deixe-me  o  coração  arder  um  Credo 
Naquelle  amor  divino  a  quem  me  dei, 
Enquanto  vivo  aqui  neste  degredo. 

No  meo  Deos,  em  quem  só  me  confiei, 
Porque  por  mi  pregado  foi  na  Cruz, 
Confiado  só  nelle  acabarei, 
Chamando  por  Maria  e  por  Jesus. 


ELEGIA. 


Quantas  vezes  cuidei,  que  me  apartava 
Pêra  mais  não  vos  ver.  Serra  deserta, 
E  conforme  a  razão,  não  me  enganava. 


296  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mas  inda  a  sepultura  tenho  aberta, 
Que  quanto  a  morte  vem  mais  devagar, 
Tanto  de  tardar  pouco  está  mais  certa. 

Entretanto,  mais  quero  conversar 

Com  brutos  animaes,  que  não  com  gente, 

Que  descansar  não  quer,  sem  me  cansar. 

De  que  fera  cruel,  brava  serpente, 
Se  vio  no  bemfeitor  a  mordedura, 
O  cabello  enriçar,  bater  o  dente  ? 

E  se  do  que  padece  mais  se  apura 
Na  paciência  seu  merecimento, 
A  perdê-la  mais  vezes  se  aventura. 

Por  isso  eu,  como  fraco,  me  contento, 
Com  fugir,  donde  vim,  também  mordido, 
Que  não  se  estende  a  mais  o  meu  talento. 

Só  na  minha  choupana,  recolhido. 
No  silencio  da  Serra  me  suspendo. 
Dos  humanos  agravos  esquecido. 

Que  busco,  porque  espero,  que  pretendo. 
Tanto  monta  no  mar,  como  na  terra, 
Onde  com  suspirar  olhos  estendo  ? 

Vestida  de  verdura  vejo  a  Serra, 

O  mar,  por  muitas  vezes,  de  mil  cores ; 

Umas  horas  de  paz,  outras  de  guerra. 

Assim  nem  sempre  podem  pescadores 
As  redes  estender  na  agoa  salgada, 
Nem  lavrar  sempre  a  terra  os  lavradores. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  297 

Que  nem  sempre  ser  pode  cultivada, 
Nem  sempre  recolher  a  sementeira, 
Sem  ser  da  mão  divina  temperada. 

Tal  herança  deixou  a  mãi  primeira 
Aos  tristes  filhos  seus,  de  tal  herança 
Convinha  a  alma  também  ficar  foreira. 

Assi  que  se  faltar  a  temperança, 
No  povo  do  Senhor  não  deixaremos 
De  vêr,  na  terra  e  mar,  destemperança. 

Por  tanto  nos  convém  que  trabalhemos, 
Caminhando  por  onde  caminhou 
Aquelle  a  quem  conta  dar  devemos. 

Alembrados  de  quanto  lhe  custou 
Sêr  preso  dos  Judeos,  como  ladrão, 
No  horto,  que  de  seu  sangue  regou. 

Onde  por  Judas  foi  dado  á  prisão, 
E  por  imigos  seus  preso  e  levado 
A  padecer  por  nós  morte  e  paixão. 

De  açoutes  na  columna  carregado, 
Com  sua  Cruz  ás  costas  caminhando, 
Pêra  nú  padecer  nella  pregado. 

De  rogar  a  seu  Padre  não  cessando, 

Por  aquelles  ingratos,  cobiçoso 

De  dar  a  vida  a  quem  lha  está  tirando. 

Escurécese  o  sol  claro  e  fermoso, 
Choram  seu  Creador  os  elementos, 
O  feito  foi  cruel,  mas  proveitoso. 


298  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Confiado  nos  seus  merecimentos, 

Acabarei  o  pouco  que  me  resta 

Em  levantar  da  terra  os  pensamentos. 

De  que  me  serve  a  mi,  ou  que  me  presta, 
Tudo  quanto  ter  posso  em  toda  a  vida, 
Senão  pêra  pagar  a  quem  ma  empresta  ? 

Qual  branda  cera  ao  fogo  derretida, 
No  fogo  do  meu  Deos  minha  alma  seja, 
Quer  sarada  por  elle,  quer  ferida. 

Onde  quer  que  estiver  com  elle  esteja. 
Esteja  com  seu  Deos,  sua  cativa. 
Sem  elle  só  um  momento  se  não  veja. 
Com  elle  morra,  só  com  elle  viva. 


ELEGIA. 

Deixei  de  cantar  já,  como  sohia. 
Por  ver  se  poderia,  não  cantando. 
Seguir  o  summo  bem  de  que  fugia. 

Que  pouco  vai  cantar  suave  e  brando. 
Nos  ouvidos  de  quem  não  tem  brandura, 
Perdendo  quanto  mais  sinto  calando. 

O  bosque  que  se  veste  de  verdura, 
Vestem  os  meus  desejos  d'esperança, 
Obra  do  Creador  na  creatura. 

O  mar  também  me  faz  sua  lembrança 
Com  suas  próprias  ondas  variadas, 
Quando  mais  se  enbravece  ou  se  amansa. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  299 


Finalmente  que  dou  por  escusadas, 
Palavras  das  humanas  creaturas, 
Pois  estas  faliam  mais  sempre  caladas, 
Doces  versos  envoltos  em  branduras. 


De  contemplar  procede  o  sentimento, 
Que  deixo  de  lograr  mais  docemente, 
Quanto  menos  quieto,  o  pensamento. 

Mal  se  pode  escrever  o  que  se  sente. 
No  meio  do  silencio  sepultado, 
Consumido  de  amor  em  fogo  ardente. 

Não  quer  ouvir  o  mal  acostumado 

A  quem  curar  deseja  seu  defeito, 

Mais  quer  não  se  curar,  que  ser  curado. 

O  mal  que  agasalhou  dentro  no  peito, 

Inclinou  a  fazer  sua  vontade, 

Sem  medo,  sem  vergonha,  e  sem  respeito. 

O  que  mais  claro  vir  esta  verdade, 
Não  tem  pêra  que  mais  se  desvelar 
Em  versos  da  divina  saiidade. 

Sem  syllabas  medir,  e  sem  trovar, 
Se  logre  dos  conceitos,  que  de  cima 
Pelo  de  cima,  fazem  suspirar. 

Escuse  de  limar  em  prosa  ou  rima, 
Porque  sem  se  limar  a  rima  ou  prosa, 
Nem  por  isso  no  Ceo  menos  se  estima. 

Não  deixa  de  cheirar  melhor  a  rosa. 
Por  se  colher  nascida  das  espinhas. 
Sem  desfolhar-se,  fica  mais  íermosa. 


Soo  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Das  prosas  que  limei,  das  rimas  minhas, 
Que  proveito  colhi,  senão  vergonha, 
Nas  estranhas  nações  e  nas  vizinhas  ? 

Não  falta  quem  me  diga,  que  componha 
Versos  pêra  accender  os  frios  peitos, 
E  que  pelos  compor  me  descomponha. 

Bem  posso  descubrir  novos  conceitos, 
Bem  posso  repetir  os  descobertos. 
Mas  mal  posso  crear  brandos  sugeitos. 

Os  caminhos  do  Ceo  estão  abertos 
Pêra  quem  mais  quiser  correr  a  posta, 
Que  eu  já  me  aposentei  nestes  desertos. 

A  quem  me  pede  aquillo  de  que  gosta, 

Ou  quer  do  temporal  o  que  deseja. 

Que  sou  mór  peccador,  dou  por  resposta. 

Quero-lhes  dar,  enfim,  que  poder  seja, 
E  mais  que  seja  tudo  á  custa  minha, 
Será  quando  de  Dcos  mais  perto  esteja. 

A  Senhora  que  tenho  por  vizinha, 

E'  rica,  liberal,  e  não  se  enfada. 

Pois  é  branda  em  ouvir,  era  dar  rainha. 

O  que  geme  e  suspira,  grita  e  brada, 
Por  despacho  da  sua  petição. 
Não  perde  por  lhe  sêr  mais  dilatada, 
Pois  assegura  mais  a  salvação. 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  3o i 


Elegia  penitencial. 

Aqui  neste  deserto,  sêcco  e  pobre, 
Só  de  medonhos  monstros  habitado, 
Que  a  morte  com  sua  sombra  cobre, 

Nesta  imagem  de  bruto  transformado, 
Por  mão  da  consciência  vingadora, 
Sou  todos  os  momentos  castigado. 

E  se  alevanto  os  olhos  alguma  hora 
Ao  Ceo,  que  não  cansa  de  chamar-me 
Por  ver  se  minha  sorte  se  melhora  *, 

Ainda  bem  não  tento  levantar-me. 
Quando  outra  vêz  me  abaixa  a  gravidade, 
De  que  eu  tão  sem  razão  quis  carregar-me. 

E  foi  tal  minha  prodigalidade, 
Com  que  desbaratei  tanta  riqueza, 
Nos  jardins  encantados  de  vaidade, 

Que  quando  agora  a  força  da  pobreza 
Me  offerece,  entre  brutos,  mantimento. 
Sei  que  meto  em  afFronta  a  natureza. 

Lembra-me  aquelle  ingrato  pensamento, 
Que  como  Jeroboão  se  levantou 
Contra  o  throno  real  do  entendimento. 

E  tanto  que  por  Rei  se  coroou 
Como  Ídolos,  em  alto  levantados, 
Os  seus  próprios  conceitos  adorou. 


3o2  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Lembra-me  aquelles  bárbaros  cuidados, 
Que  com  profanos  fogos  abrazaram 
Os  edifícios  pêra  o  Ceo  lavrados. 

E  depois  que  ao  iuizo  a  luz  tiraram, 
Como  Nabuzardão,  com  sua  gente, 
Os  propósitos  santos  profanaram. 

Lembra-me  o  aviso  vão,  que  ousadamente 
Os  segredos  do  Ceo  saber  queria, 
Também  como  Saul  desobediente. 

Até  que  em  tantos  dias  veo  um  dia. 
Que  lhe  pôs  a  cabeça  pendurada, 
Onde  sua  soberba  merecia. 

Lembra-me  a  affeição,  mal  empregada, 
Que  entre  apetites  máos  ficou  por  terra, 
Qual  outra  lesabel  despedaçada. 

Mas  é  tal  o  veneno  que  se  encerra 
Nestes  pedaços  que  ficaram  delia, 
Que  assi  despedaçada  me  faz  guerra. 

Lembra-me,  sobre  tudo,  a  nobre  estrella, 
Que  com  o  Divino  lume  resplandece 
Nesta  alma  que  algum  tempo  foi  tão  bella, 

E  se  por  mercê  sua  o  Ceo  quisesse, 
Que  este  lume  de  lá  favorecido 
Noutro  lume  d'amor  se  convertesse. 

Quão  prestes  fora  nelle  consumido, 
Este  profano  altar  onde  amor  cego 
Com  tantos  sacrifícios,  foi  servido! 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  3o3 

E  postos  meus  desejos  em  sossego, 

O  rebelde  estandarte  recolheram, 

Que  eu  tantas  vezes  com  o  Ceo  desprego. 

Bem  sei  que  ao  contrario  mereceram 
Minhas  desordens,  que  com  tal  soltura, 
No  caminho  da  morte  se  perderam. 

Mas  vós,  Senhor  do  Ceo,  que  a  fermosura 
Do  vosso  rico  amor  communicastes 
Tão  largamente  a  toda  a  creatura, 

Obrai  agora  em  mim  o  que  já  obrastes, 
Quando  entre  gente  tão  desconhecida 
Tantos  raios  de  amor  manifestastes ; 

Que  sou  aquelle  Lazaro  sem  vida, 

Que  a  graça,  que  por  graça  esta  alma  tinha, 

Com  tanto  damno  meu  tenho  perdida. 

E  posto  que  faltei  quando  convinha, 
Vossa  misericórdia  é  tão  immensa, 
Que  não  pode  encurtá-la  a  falta  minha. 

Sou  aquelle  leproso,  onde  a  detença 

De  tantas  culpas  tão  contagiosas, 

Só  com  o  exemplo  seu  faz  tanta  oôensa. 

Culpas  de  cada  vez  mais  perigosas. 

Pois  o  mesmo  uso  máo  que  mas  sustenta, 

Só  pelas  não  deixar  mas  faz  fermosas. 

Sou  o  mudo  a  que  o  Ceo  se  representa. 

Rico  de  preço,  pêra  libertar-me 

Deste  Senhor  cruel,  que  me  atormenta. 


3o4  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mas  o  sprito  que  houvera  d'ajudar-me, 
De  sorte  neste  cárcere  emmudece, 
Que  não  sabe  pedir-lho  e  resgatar-me. 

Sou  aquelle  doente  que  parece 

Paralytico,  já  desconfiado, 

De  quem  o  mundo  seu  também  se  esquece. 

E  se  por  vós  não  fora  remediado, 
Esta  fé  que  assi  sêcca  está  comigo. 
Iria  também  por  presa  do  peccado. 

Sou  o  cego,  que  traz  ura  mal  que  sigo. 
Os  mal  guiados  passos,  tão  mal  rejo, 
Que  dum  perigo,  vou  noutro  perigo. 

E  pôs-me  tantas  névoas  o  desejo 

Na  luz,  com  que  a  alma  ennobrecestes. 

Que  a  mim  mesmo  me  busco  e  não  me  vejo. 

Vós  que  os  remédios  todos  nos  pusestes 
Nessa  Cruz  onde  a  gloria  se  conquista, 
Dar-me  delia  podeis,  como  já  destes. 
Vida,  limpeza,  fala,  força  e  vista. 


ELEGIA. 

A  Dona  Mar ianna,  filha  do  Duque  de  Aueiro, 
incitando-a  e  animando-a  a  ser  religiosa. 

Daquella  que  cantei  felices  annos, 
A  que  sendo  de  poucos  promettia, 
Sabendo  desprezar  gosios  humanos. 


Obras  de  Fr   Agosrinho  da  Gruz  3o5 


Se  verdadeira  foi  a  profecia. 
Agora  se  vê  nella  já  mais  clara 
Do  que  se  pode  vêr  a  luz  do  dia. 

Pois  nesta  tenra  idade  inda  não  pára 
De  subir  para  o  Ceo,  firme  e  segura, 
A'  vontade  de  quem  tal  a  plantara. 

Cultivada  com  tanta  fermosura, 
Com  tanta  gravidade  tão  estranha, 
Que  as  flores  apparecem  na  verdura. 

As  lagrimas  d'amor  em  que  se  banha, 
Que  lá  de  cima  estão  nella  chovendo, 
Com  suaves  suspiros  acompanha. 

Ditosa  quem  na  terra  está  colhendo 
As  rosas,  que  do  Ceo  estão  cahindo 
No  fogo,  que  com  ellas  vai  crescendo  ! 

E  quanto  cresce  mais,  mais  vai  subindo 

Levando  lá  comigo  o  sentimento, 

Que  das  brandas  entranhas  vai  fugindo. 

Daqui  não  passa  avante  o  pensamento, 
xMas  se  não  vem  de  dentro  o  coração, 
De  fora  pôde  vir  o  fundamento. 


Na  sua  branda  e  doce  inclinação, 

Na  sua  bem  composta  natureza, 

Que  Deos  governa  e  tem  da  sua  mão; 

Mostrando-lhe  o  caminho  da  pureza, 
Por  onde  o  mesmo  Deos  quis  caminhar, 
Fazendo  aos  caminhantes  a  despesa. 


3o6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Não  haja  quem  te  possa  desviar 
Do  caminho  que  levas  acertado, 
Que  muitos  não  quiseram  acertar. 

Aquelle  que  lançou  mão  ao  arado, 

Olhando  pêra  trás  se  fez  indino 

Do  bem,  que  já  bem  tinha  começado. 

Sem  caminhar  não  chega  o  peregrino 
A  se  vêr  no  lugar  que  desejava, 
Quanto  mais  quem  deseja  amor  divino. 

Achou  a  Magdalena  o  que  buscava, 
Porque  perseverando  amor  buscou, 
E  com  buscar  achou  a  quem  tanto  amava. 

Na  sua  petição  perseverou 
A  Cananea  firme  e  confiada, 
E  cora  perseverar  tudo  alcançou. 

A  justa  petição  perseverada, 
Deante  do  Senhor  é  concedida, 
Posto  que  por  bem  nosso  dilatada. 

Entende  que  sem  ser  favorecida. 
Do  Senhor  que  desejas  de  servir, 
Não  poderás  deixar  de  sêr  vencida. 

Mas  pois  te  não  fizeram  desistir 
Os  imigos  do  bem  que  determinas, 
Armas  não  terão  já  com  que  ferir. 

Armada  forte,  tu,  d'armas  divinas, 

Da  progénie  real  de  que  nasceste, 

Que  são  do  Redemptor  as  cinco  quinas. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Crui  Zoj 

E  com  estas,  enfim,  enfraqueceste 
O  poder  infernal  em  tenra  idade. 
No  primeiro  combate  que  venceste. 

Ora  pois  te  falece  liberdade 
F'era  se  concluir  no  que  desejas, 
Repousa  na  divina  satldade. 

Que  posto  que  de  mim  absente  estejas, 

Daqui  te  levarei  por  esta  Serra 

Por  parte  donde  o  Ceo  mais  perto  vejas. 

Verás  ondas  marinhas  fazer  guerra, 
Combatendo  penedias  encurvadas. 
Que  defendendo  estão  a  fraca  Serra. 

Verás  no  mar  Oceano  alevantados 
Os  golfinhos  dar  saltos  pêra  o  Ceo, 
Da  fermosura  delle  convidados. 

Verás  mais  claro  o  sol  donde  nasceo, 
As  nuvens  variar  de  cem  mil  cores, 
E  doutras  tantas  donde  se  escondeo. 

Verás  por  toda  a  parte  donde  fores. 
As  entranhas  das  duras  penedias 
Abertas  e  cobertas  d'alvas  flores. 

Verás  tanto  abraçar  plantas  sombrias, 
Que  façam  próprios  seus  braços  alheios. 
Mostrando  o  sêr  reaes,  celestes  vias. 

Verás  d'animaes  brutos  montes  cheos, 
Dos  homens  racionaes  arreceosos, 
E  da  brutal  presa  tem  receos. 


3q8  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Grui 

Verás  dos  baixos  valles  satidosos 
Alevantar,  cantando  os  passarinhos, 
Do  Geo  mais  que  da  Serra  cobiçosos. 

Verás  dos  verdes  bosques  mais  vizinhos, 
Donde  foram  nascidos  sahir  fora, 
E  vir  a  vizitar-me  os  meus  bichinhos. 

Verás  junto  da  casa  da  Senhora, 
Por  cima  dos  rochedos  retorcidos. 
Os  passos  da  Paixão  pintar  agora. 

Contados,  meditados,  e-  medidos 
Do  Senhor  desta  Serra,  renovando 
Aquelles  com  que  nós  fomos  remidos, 
Nos  quaes  te  deixo  agora  contemplando. 


ELEGIA. 
A  Jesu  na  Cru'{. 

A  ti,  bom  Jesu,  que  tanto  offendi, 

A  ti  repouso  dos  atribulados, 

Firme  esperança  de  quem  espera  em  ti  \ 

A  ti  peço  perdão  de  meus  peccados. 
Tão  dinos  de  temer  e  de  chorar. 
Pouco  de  mim  temidos  e  chorados. 

Por  elles,  ó  meu  Deos,  te  vejo  estar 

Crucificado  nesse  duro  lenho. 

Por  elles  tardei  tanto  em  te  buscar. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  Sog 

Não  me  engeites,  Senhor,  se  tarde  venho, 
A  culpa  de  temor  me  está  cercando, 
Segura-me  a  esperança  que  em  ti  tenho. 

Se  te  viram.  Senhor,  estar  rogando 
A  teu  Eterno  Padre  por  perdão, 
Daquelles  que  te  estão  crucificando ; 

Se  dizes  com  voz  doce  ao  bom  ladrão 
«  Hodie  mecum  erts  in  paradiso  » 
Que  querem  medos,  como  se  não  vão  ? 

Mercês  tamanhas  feitas  d'improviso 
Me  fazem  ter  mui  certa  confiança, 
Que  não  entrarás  commigo  em  juizo. 

Se  te  meus  erros  movem  a  vingança, 
Lembra-te  que  por  mim  puzeste  a  vida, 
Abranda  teu  furor  nesta  lembrança. 

Alma  a  tão  grande  amor  endurecida, 

Que  não  sentes  minha  alma  o  grande  amor, 

Com  que  por  quem  te  fez,  foste  remida  ? 

Sente  o  que  por  ti  sente  com  mais  dor, 
Olha  que  por  dar  vida  á  creatura. 
Tão  pouco  estima  a  sua  o  Greador. 

E  tu,  coração  meu  de  pedra  dura. 

Se  vês  quebrar  as  pedras  com  tristeza, 

Como  não  quebras  de  tristeza  pura  ? 

Como  encerras  em  ti  tão  grão  dureza, 
Sendo  tão  brando  de  teu  natural, 
E  ellas  tão  duras  de  sua  natureza  ? 


3 IO  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Entranhas  de  ferro !  ah  !  camanho  mal ! 
Em  tantas  magoas  sentimento  duro, 
De  mui  pequeno  amor  dá  grão  sinal. 

Ai  que  sem  ti,  Senhor,  tudo  é  escuro. 
Tudo  são  nuvens  vans,  tudo  é  um  sonho, 
E  cego  entendimento  é  o  mais  seguro. 

Quando  meus  olhos  nessas  chagas  ponho, 

E  me  vejo  de  frieza  rodeado, 

D'ellas,  de  mim,  e  do  mundo  me  envergonho. 

O'  chagas  suaves,  ó  suave  lado, 
Este  meu  peito  frio  em  vosso  amor. 
Quem  o  visse,  ah !  quem  o  visse  abrazado ! 

Spirito  novo  cria  em  mim.  Senhor, 
Pêra  que  a  ti  só  tema,  a  ti  só  ame, 
A  ti  só,  que  a  ti  só  devo  louvor. 

Por  si  suspire  sempre,  por  ti  chame. 
Por  ti  me  negue  a  mim,  e  tudo  negue, 
Por  ti  saudosas  lagrimas  derrame. 

A  ti  busque,  a  ti  ache,  a  ti  me  entregue, 
Com  hmpo  coração,  pura  vontade. 
Nunca  de  ti  minha  alma  desapegue. 

Um  desejo  vivo,  viva  saudade. 
Tenha  sempre  de  ti,  isto  te  peço. 
Que  sem  ti,  tudo  enfim  é  vaidade. 

Muito  peço,  Senhor,  pouco  mereço, 
E  tão  pouco  que  não  mereço  nada, 
Se  o  teu  muito  ao  meu  nada  não  dá  preço. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  3ii 

Esta  alma  tantas  vezes  enganada, 
No  verdadeiro  caminho  encaminha, 
Que  se  por  ti  não  vai,  vai  muito  errada, 
Doce  Jesu,  doce  esperança  minha ! 


ELEGIA. 
Ao  divino  amor. 

Como  o  cervo  cansado  e  ferido 
Busca  as  fontes  de  agua  deleitosa, 
Remédio  a  seu  animo  affligido; 

Assi  a  minha  alma  saUdosa, 
Dessa  vossa  divina  fermosura, 
Toda  ardendo  em  sede  amorosa  •, 

Busca  a  vós,  ó  fonte  de  doçura, 
Fonte  viva,  aonde  achará 
Remédio  e  toda  sua  fartura. 

O'  Deos !  quando  apparecerá 
Diante  de  vosso  rosto  divino  ? 
Este  ditoso  dia  quando  virá  ? 

Estas  lagrimas  minhas  de  contino, 
São  o  meu  pão  de  que  eu  me  sustento, 
A'  tarde  e  no  tempo  matutino. 

As  lagrimas  são  meu  contentamento, 

As  lagrimas  mitigam  minha  dôr, 

E  fazem  mais  sofrivel  meu  tormento. 

Já  me  consumira  de  tanto  amor, 

Quando  todos  me  dizeis  cada  dia 

—  Aonde  está  teu  Deos  e  teu  Senhor? 


3í2  Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz 


Tendo  isto  sempre  nâ  fantasia, 
Derrama  minha  alma  de  pura  vontade 
Ante  vós,  Senhor,  a  quem  tanto  queria. 

Quando  passarei  desta  saudade 
A.O  tabernáculo  maravilhoso. 
Morada  de  vossa  eternidade  ? 

Onde  tudo  é  suave  e  deleitoso, 

O'  vozes  d'alegria  e 

O'  banquete  eterno  e  glorioso ! 

Pois  alma  minha,  porque  rezão 
Andas  triste  e  descontente. 
Porque  assi  entregue  á  paixão  ? 

Ainda  que  o  teu  mal  seja  presente, 
Viva  sempre  a  dor  e  a  lembrança, 
E  o  teu  somno  seja  mui  ausente. 

Espera  em  Deos,  tem  nelle  confiança. 
Põe  nelle  teu  desejo  e  teu  amor, 
E  não  será  em  vão  tua  esperança. 

Porque  ainda  confessarei  ao  Senhor, 
Que  é  elle  minha  gloria  desejada, 
O  meu  ultimo  fim,  meu  Salvador. 

Minha  alroa  de  mim  mesmo  cansada. 
Chora  sua  misevavel  condição 
Vendo  se  de  vós  longe,  desterrada. 

Mas  desta  terra  do  rio  Jordão, 
E  deste  Hermonio  monte  pequeno, 
Levantarei  a  vós  a  coração. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  3i3 


Ainda  que  seja  vil  e  terreno. 
Todo  cheio  de  baixas  affeições, 
Espera  de  se  vêr  no  Ceo  sereno. 

O'  abysmo  de  minhas  afiBiçôes, 
Chamo  o  abysmo  de  vossa  piedade, 
Que  vence  as  ondas  das  tentações. 

Aqui  em  muito  grande  cantidade 
Me  cercam,  como  mar  embravecido, 
Mas  sobre  tudo  é  vossa  bondade. 

Não  sois  vós,  Senhor,  de  mim  esquecido, 
Não  tem  esquecimento  quem  tem  amor, 
Ah !  Deos !  e  sois  de  mim  tão  mal  servido  í 

A  misericórdia  mandaes,  Senhor, 
De  dia  e  noite  em  contemplação, 
Cantar  vossas  maravilhas  e  louvor. 

Assi  a  vós  será  minha  oração, 

A  vós,  a  vós,  ó  Deos  de  minha  vida. 

Meu  Redempior,  e  minha  salvação. 

Pois,  Senhor,  porque  será  tão  esquecida 
A  minha  alma  de  vós,  que  está  chorando 
Vêr-se  de  seus  imigos  perseguida  ? 

Olhai,  meu  Jesu,  que  se  vão  gastando 
Meus  ossos  e  se  consumem  com  dôr, 
E  meus  imigos  estam  triunfando. 

Dizendo  :  —  onde  está  o  teu  Senhor, 

E  o  teu  Deos  por  que  suspiras, 

A  quem  amas  com  tão  firme  amor  ? 


3 14  Obras  de  Fr,  Agostinho  da  Cruz 

O'  alma,  porque  me  dás  tu  tormento, 
Espera  e  terá  o  teu  mal  cura, 
Espera  e  verás  teu  contentamento. 

Espera  e  verás  sua  fermosura, 
Verás  sua  eterna  magestade, 
Verás  a  sua  divindade  pura, 
E  assim  fartarás  tua  vontade. 


Ao  Sepulcro  da  Esperança. 

Ao  pé  deste  carvalho  áspero  e  duro, 
Contra  quem  quanto  o  vento  mais  se  cansa, 
Tanto  mais  firme  o  deixa  e  mais  seguro; 

No  meo  da  floresta,  da  mudança, 
Onde  tem  mil  jardins  a  fermosura, 
Por  amor  o  sepulcro  da  esperança, 

Um  áspide  a  matou  na  espessura, 

Que  entre  espessos  murtaes  tinha  escondida, 

D'inveja  de  meu  bem,  minha  ventura. 

Eu  por  ella  mil  vezes  dera  a  vida, 
Se  com  vida  tão  mal  afortunada, 
Pudera  a  sua  sêr  restituída. 

Mas  pois  também  do  Ceo  me  foi  negada 

Essa  pequena  parte  de  alegria, 

Só  porque  era  de  mim  tão  desejada ; 

Na  banda  deste  bosque  mais  sombria, 

Defronte  do  sepulcro  venturoso, 

Que  encerra  todo  o  bem  que  eu  pretendia, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  3i5 

Sempre  alheo  de  mim,  sempre  queixoso, 
Contarei  meus  queixumes  aos  penedos, 
Algum  delles  quiçaes  será  piedoso. 

E  pelos  troncos  destes  arvoredos, 
Que  tantas  vezes  já  são  costumados 
A  saberem  de  mim  os  meus  segredos ; 

Em  grandes  letras  deixarei  cortados 
Poderosos  signaes  de  meu  tormento. 
Que  das  Nynfas  serão  sempre  guardados. 

E  tu,  ó  mal  nascido  pensamento. 
Que  nas  asas  d'amor  alevantaste 
O  teu  tão  temerário  atrevimento. 

Agora  que  por  pena  me  ficaste, 

Entre  as  rumas  de  teus  vãos  castellos, 

Que  sobre  as  nuvens  vans  tão  mal  fundaste, 

Se  ainda  ousares  ver  os  olhos  bellos. 

Em  cujo  doce  fogo  anda  abrazado, 

O  mesmo  amor,  que  te  ensinava  a  vê  los, 

Dar-lhe-has  da  minha  parte  este  recado, 

—  Que  ainda  que  a  esperança  aqui  está  morta, 

Que  não  morreo  por  isso  meu  cuidado. 

Fortuosa  no  que  é  seu  dispensa  e  corta, 
E  como  dá  os  favores  brutamente, 
Brutamente  também  lhe  cerra  a  porta. 

Mas  a  fé  que  amor  fez  tão  excellente. 
Como  nunca  á  fortuna  está  sujeita. 
Qual  foi,  tal  ha-de  ser  perpetuamente. 


3i6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

E  se  nunca  chegar  a  sêr-lhe  acceita, 
Quanto  menos  tiver  de  interessada, 
Tanto  mais  terá  d'alta  e  de  perfeita. 

E  tu,  minha  esperança,  em  flor  cortada. 
Se  nessas  agoas  lá  do  esquecimento, 
Fores  do  que  te  quis  inda  lembrada, 

Põe  os  olhos  de  lá  neste  tormento, 
Que  em  lagrimas  de  fogo  convertido, 
Sobre  o  sepulcro  teu  eu  te  presento. 

E  se  de  ti  também  não  for  ouvido 

Este  meu  desatino  tão  sisudo. 

Este  ganho  terei  d'estar  perdido, 

Que  não  tem  que  perder,  quem  perde  tudo. 


A  morte  dum  contentamento. 

Despojos  tristes  dum  contentamento, 
Que  amor,  como  tyranno,  sepultou 
Nas  entranhas  cruéis  de  meu  tormento  ; 

Agora  que  o  desejo  vos  deixou 

Na  melhor  parte  d'alma  levantados, 

Em  signal  da  victoria  que  alcançou; 

Assi  tintos  em  sangue,  assi  banhados, 
De  piedoso  orvalho,  noite  e  dia, 
Sempre  tristes  sereis,  sempre  acatados. 

Tempo  foi  que  a  ventura  concedia. 
Com  mão  tão  larga  tudo  a  meu  cuidado, 
Que  pródiga  comigo  parecia. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  Siy 

Um  bem  noutro  mór  bem  continuado, 
Gloria  á  doce  gloria  do  presente. 
Mil  suaves  lembranças  do  passado. 

O  sol  mais  bello  e  mais  resplandecente, 

A  novas  alegrias  me  chamava, 

Quando  dourava  as  portas  do  Occidente. 

E  quando  d'esmeraldas  se  toucava 
A  terra  alegre  e  de  diversas  cores, 
O  natural  toucado  ataviava. 

Na  verdura  dos  campos  e  das  flores, 
Como  em  signal  de  gloria  e  d'esperança, 
Incitava  o  desejo  a  bens  maiores. 

Mas  o  desejo  imigo  que  não  cansa 
D'espedaçar  o  bem  que  n'alma  nasce, 
Entre  apressadas  rodas  da  mudança; 

Se  consentio  que  o  tempo  levantasse 
A  tanta  gloria  meu  contentamento, 
Foi  porque  de  mais  alto  o  derrubasse. 

Bem  vejo  que  lhe  devia  acatamento, 
Por  sêr  d'aquelles  olhos  procedido, 
Onde  o  poder  d'amor  tem  rico  assento. 

Mas  o  que  por  alli  lhe  era  devido. 
Perdeu  só  por  sêr  meu  em  espaço  breve, 
Das  rodas  da  mudança  foi  ferido. 

Ali,  sobre  elle,  a  morte  a  mão  deteve, 
Ali  tingio  seu  sangue  a  terra  dura, 
Que  de  vê-lo  acabar  magoa  não  teve. 


3i8  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Só  vós,  fermosas  Nynfas  da  espessura, 
Que  adornadas  de  lírios  e  de  rosas 
Fazeis  mais  poderosa  a  fermosura ; 

Só  vós,  por  entre  as  arvores  saudosas, 
Que  já  alguma  hora  attentas  me  escutarano, 
A  males  ião  cruéis  fostes  piedosas. 

As  flores  que  também  vos  imitaram, 
As  lagrimas  que  então  ali  chorastes, 
Em  pérolas  tornadas  as  guardaram. 

E  vós  lembranças  tristes  que  ficastes 
Por  retrato  do  bem  que  esta  alma  chora, 
E  que  em  vós  tanto  ao  vivo  debuxastes ; 

Duro  allivio  me  sois  que  tanto  outr'hora 
O  bem  vivo  presente  me  alegrava, 
Quanto  em  lastima  vê  trocado  agora. 

Este  é  o  galardão  que  me  esperava. 
Esta  a  illustre  pompa  da  victoria, 
Que  á  fé  victorioso  amor  guardava. 

Sei  que  é  morta  de  todo  minha  gloria, 
Mas  assi  morta  pêra  mais  matarme 
Tem  vivos  os  effeitos  na  memoria. 

Se  de  tamanho  mal  ouso  queixar-me, 
Os  queixumes  dos  ventos  engeitados 
Se  tornam  contra  mim  atormentar-me. 

E  se  da  causa  delles  espantados 

Em  defeito  da  lingua  que  emmudece, 

Sem  lingua  a  amor  se  queixam  meus  cuidados. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Só  amor  como  cruel  os  aborrece, 
Sendo  cUes  de  meu  mal  rico  tributo, 
Que  a  alma  em  tanto  aperto  lhe  offerece, 
Ha  dias  entendi  que  são  sem  fruto. 


Carta  que  o  Autor  escreveo  á  Duquesa  d* Aveiro 
antes  de  se  ir  para  o  Ermo. 

Desejando  escrever-lhe,  nunca  pude, 
Taes  correram  os  meses,  taes  os  dias, 
Que  ha  muitos  que  não  tive  um  de  saúde. 

Umas  horas  ardentes,  outras  frias, 

Devíeis  de  acabar,  pois  acabei 

De  ver  ondas  do  mar,  plantas  sombrias, 

Cuja  vista  se  doze  annos  logrei. 
Deviam  de  não  ser  horas  tamanhas. 
Como  de  um  triste  só  que  cá  passei. 

Quantas  vezes  revolvo  nas  entranhas 
O  mal  que  me  forçou  deixar  a  terra, 
Suave  e  natural  pelas  estranhas! 

Deixei  (  que  mais  não  pude )  a  branda  Serra, 
Que  pêra  brandos  peitos  se  criou, 
Quem  com  duros  a  dana,  inda  mais  erra. 

Mas  quem  culpou  o  néscio  que  chamou 
Aquella  Serra  branda,  Serra  dura, 
Se  tal  como  elle  foi  quem  o  julgou  ? 


320  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

O  bosque  não  se  veste  de  verdura, 
Pera  rústicos  olhos  que  se  vem, 
Não  penetra  seu  peito  a  fermosura, 

Aquella  saUdade  que  me  vem 

Dos  louros  e  da  fonte  sofro  mal, 

Mas  a  dos  pães  e  filhos,  mal  nem  bem. 

E  porque  já  não  posso  fazer  ai, 
Testemunha  me  seja  o  sentimento 
A  quem  curar  Galeno  pouco  vai. 

Não  foi  mal  desculpado  meu  intento, 
Que  tal  me  succedeo  qual  o  pintei, 
Num  mal  me  aventurei,  fugi  de  cento. 

Nestes  campos  do  Tejo  onde  cheguei, 
Achei  graça,  bom  rosto,  e  gasalhado, 
Que  noutros  meus  amigos  não  achei. 

E  tanto  me  senti  mais  obrigado. 
Quanto  mais  fraco  e  enfermo  me  senti, 
Sem  nunca  me  sentir  desamparado. 

Desta  pura  amizade  me  venci, 

Que  mais  me  obriga  quem  comigo  chora, 

Do  que  me  obriga  quem  comigo  ri. 

Mas  se  Deos  permittir  inda  alguma  hora. 

Espero  de  morrer  como  desejo, 

Que  «  un  bel  morir  tuta  la  pita  honor  a  ». 

Já  para  mim  não  são  campos  do  Tejo, 
De  tantos  lavradores  cultivados, 
Onde  planta  sombria  nunca  vejo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  32 1 

E  se  não  me  impedirem  meus  peccados, 
A  parte  buscarei  mais  apartada 
Dos  campos  e  dos  valles  povoados. 

Alli,  quando  vier  menos  pesada 
A  morte,  me  será  mais  leve  a  vida, 
Ambas,  uma  por  outra,  registada. 

Enquanto  se  dilata  esta  partida, 
A  graça  do  Senhor  dos  reaes  peitos, 
Dos  pais  seja  nos  filhos  repartida, 
Com  quem  já  repartio  altos  conceitos. 


I 


Carta  que  compôs  á  Duquesa  de  Aveiro 
á  absencia  da  Madre  Soror  Mariana  sua  filha. 

Primeiro  que  partísseis,  filha  minha, 
Os  males,  que  da  absencia  receava, 
(Que  não  pude  vedar)  chorado  tinha. 

Já  meu  coração  triste  adevinhava 
Que  tudo  quanto  foi  sêr  poderia. 
Pois  meu  poder  tão  pouco  aproveitava. 

Chorar  e  suspirar  não  me  valia, 
Nem  ter  da  minha  parte  a  razão  clara 
Que,  enfim,  prevaleceo  quem  mais  podia. 

Cpmtudo,  filha  minha,  se  cuidara 
Quam  longe  e  quanto  tempo  desterrada 
Estaríeis  de  mim,  já  me  enterrara. 


322  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Mas  cuido  que  me  tem  inda  guardada 
Pêra  algum  grande  mal,  fortuna  imiga, 
Se  me  vir  de  vos  ver  desesperada. 

Alembre-vos  de  mim,  que  não  me  obriga 
Desejar  de  vos  vêr  outro  interesse, 
Senão  em  vos  amar  ser  mais  antiga. 

Que,  se  tanto  comvosco  amor  pudesse, 
Quanto  triste  de  mim  pôde  comigo, 
Não  duvido  que  já  vos  não  rendesse. 

Muitas  vezes  me  vi  posta  a  perigo, 
Ou  de  vos  ir  buscar,  ou  de  perder-me, 
( Se  tenho  que  perder,  pois  vos  não  sigo. ) 

Em  tanta  dilação  não  sei  valer-me, 

Menos  sofrer  tamanhas  saiidades. 

De  que  não  sei,  nem  posso  defender-me. 

Imagino  cem  mil  difificuldades. 
Que  todas  contra  mim  terão  vigor 
Em  tempos  de  tamanhas  novidades. 

Que,  se  como  foi  tudo,  tudo  for. 
Que  tenho  que  esperar  ou  que  querer, 
Senão  chorar  de  novo  a  minha  dor  ? 

Se  da  vontade  alhea  hei-de  pender, 
Bem  posso  e  bem  podeis  estar  segura, 
Eu  de  vos  vêr  a  vós,  vós  de  me  vêr. 

Bem  se  pôde  abrandar  a  pedra  dura. 
Bem  se  pôde  abrandar  a  brava  fera. 
Mal  se  pôde  abrandar  minha  ventura. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  333 

Tudo  já,  finalmente,  lhe  sofrera, 
Como  tudo  lhe  tenho  já  sofrido ; 
Uma  cousa  não  mais  me  concedera ; 

Que  nos  deixe  entre  nós  fazer  partido, 
Pois  rezão  e  justiça  me  sobeja 
Pêra  me  ser  meu  bem  restituido. 

Que,  ou  me  mandeis  viver  onde  vos  veja, 
Ou  vós  venhaes  viver  onde  vejaes, 
Quem  sem  vos  vêr  nenhum  gosto  deseja. 

Ambas,  adonde  vós  quiserdes  mais, 
Havemos  de  viver,  ou  nas  estranhas 
Terras,  ou  nestas  nossas  naturaes. 

Que  não  podem  sofrer  brandas  entranhas 
De  mãi  tão  deshumano  apartamento, 
Tendo  sofrido  já  magoas  tamanhas. 

Sabe  Deos,  filha  minha,  meu  inteiito, 
Deixo  nas  suas  mãos  a  conclusão : 
Que,  ou  me  tire  da  absencia  o  sentimento, 
Ou  vos  abrande  vosso  coração. 


EGLOGA. 

Almilão,  e  Galapo. 

Almilão. 
Alegre  venho  a  vêr-te  no  teu  ermo, 
Onde,  depois  de  sete  annos  passados. 
Tuas  perseguições  fizeram  termo. 


324  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Crur 

Dizem  que  os  estrangeiros  vão  pasmados 
De  vêr  quam  nesciamente  os  naturaes 
Em  perseguir-te  foram  obstinados. 

Digo,  dos  irmãos  teus  os  principaes, 
Com  seus  familiares  cobiçosos 
De  serem  no  governo  officiaes. 

E'  muito  natural  dos  preguiçosos, 
Que  querem  merecer,  não  trabalhando, 
O  sêr  dos  diligentes  invejosos. 

Assi,  da  diligencia  murmurando, 
Acostumam  dizer  que,  por  ventura, 
Merecem  muito  mais  não  trabalhando. 

Não  pôde  sêr  maior  desaventura. 
Que  não  querer  louvar  o  que  trabalha, 
E  quer  sêr  louvado  o  que  murmura. 

Enfim,  que  com  buscar  de  que  se  valha, 
Accusado  de  seu  remordimento. 
Cuidando  rodear  o  néscio  atalha. 

A  virtude  tem  firme  fundamento, 

E  muito  firme  mais  sendo  encontrada, 

E  quanto  mais  maior  merecimento. 

Tanto  que,  se  não  for  contrariada, 
E  dos  mores  imigos  perseguida, 
Não  pôde  sêr  de  todo  refinada. 

E  pois  que  já  ficaste  de  vencida, 
Dá-me  conta  de  quanto  o  teu  geral 
Pastor  passou  comtigo  nessa  ermida. 


k 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  325 

Galapo 
Nosso  geral  pastor  he  pastor  qual 
O  Senhor  escolheo  no  seu  rebanho 
Antre  todos,  mais  dignos,  outro  tal. 

A  naudança  foi  breve,  o  caso  estranho, 
Que  se  por  nosso  bem  não  succedera, 
Succeder  não  pudera  um  bem  tamanho. 

Nasceo  de  novo  aqui  a  primavera, 
Ouvio-se  a  voz  da  rola  em  nossa  terra, 
O  ferro  converteo  se  em  branda  cera. 

Depois  que  com  seus  pés  subio  a  serra. 
Entrando  nesta  lapa  e  nesta  cella, 
A  paz  prevaleceo,  cessou  a  guerra. 

Mas  eu  que,  velho  e  calvo,  escapei  delia. 
Não  deixo  de  entender  que  a  vida  humana 
Acha  sempre  cabellos  que  arrepella. 

O  tempo  que  passei  me  desengana 
No  que  passando  vou.  vou  qual  a  folha 
Leve  que,  em  tronco  sêcco,  o  vento  abana. 

E  posto  que,  quieto,  me  recolha. 

Convém  o  vigiar-me  como  grou. 

Que  a  morte  descuidada  me  não  colha. 

Aquelle  que  viver  mais  desejou. 
Pintando  seus  cabellos  d'ouira  cor. 
Os  seus  annos  mais  breves  não  pintou. 

Por  tanto,  amigo  meu,  seja  o  que  for, 
Determinado  estou  de  me  esquecer 
De  quem  tomar- me  quer  por  valedor. 


326  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Os  mais  de  todos  quantos  me  vem  ver, 
Todos  cuidam  que  vem  fazer  fazenda, 
Despachando  primeiro  seu  querer. 

No  mando,  na  demanda,  na  mais  renda, 
Nos  ricos  mais  honrados  casamentos, 
E  no  breve  despacho  da  Gommenda. 

Nos  gostos  seus,  nos  seus  contentamentos, 

Nas  suas  vaidades  esquecidos, 

Fazendo  em  cousas  vans,  vãos  fundamentos. 

Querendo,  dos  meus  dias  consumidos 
Na  velhice,  por  calma,  fome  e  frio, 
Roubar-me,  se  alguns  tenho  merecidos. 

Eu,  coitado  de  mim,  não  fio 

De  meus  graves  peccados  o  perdão, 

Que,  por  meio  da  Virgem,  haver  confio. 

E  querem  que  despache  a  petição 
Conforme  o  gosto  seu,  inda  que  seja 
Com  perigo  da  sua  salvação. 

E  posto  que  mais  livre  agora  esteja 
Pêra  lhe  responder,  segundo  entendo, 
O  seu  mesmo  desgosto  inda  me  peja. 

E  pois  que  ninguém  quer  o  que  pretendo 
No  caminho  do  Ceo,  que  mais  importa, 
Valha-lhes  Deos,  a  quem  os  recommendo. 

Almilão. 

Os  que  querem  entrar  por  outra  porta 
Mais  larga  e  mais  seguida  dos  mundanos, 
Pouco  lhes  dá  que  vão  por  via  torta. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  Say 


Embrulham  gostos  seus  com  seus  enganos, 

De  bens  nem  males  fazem  differença, 

Nem  dos  proveitos  seus,  nem  dos  seus  danos. 

Não  se  querem  curar  desta  doença, 
Porque  da  penitencia  a  purga  amarga, 
Posto  que  revocar  faça  a  sentença. 

Com  quanto  menos  pejo  e  menos  carga 
Pela  via  do  Ceo  se  vai  subindo. 
Que  na  terra  descendo  pela  larga ! 

Galapo. 
Ah !  quanta  saiidade  está  sentindo 
Aquella  alma  ditosa  no  deserto, 
De  quem  seu  próprio  Deos  se  está  servindo. 

Contemplando  no  Ceo  caminho  aberto, 
A  força  dos  suspiros  que  lhe  ensina 
O  desejo  de  vê-lo  de  mais  perto. 

Ah !  doce  saudade,  alta,  divina, 

Da  visão  de  seu  Deos,  em  que  se  accende, 

C  quanto  accesa  mais,  mais  se  refína. 

Almilão. 
O  som  desses  teus  versos  me  suspende 
O  silencio,  me  pede  teu  esprito, 
Que  de  meu  baixo  esprito  me  reprende. 

Affrontado  do  mal  que  tenho  escrito, 

Calando  esperarei  até  que  venha 

A  morte  levantar  seu  interdito 

Que,  presto,  pega  o  fogo  em  sêcca  lenha. 


SzS  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


EGLOGA. 


Lattrino,  e  Fontano. 


Fontana. 

Que  novas  me  darás  de  nosso  amigo, 
De  tres  seus  companheiros  engeitado, 
Como  se  remedea  só  consigo  ? 

Laurino. 
O  primeiro  se  foi  necessitado, 
O  segundo  e  terceiro  constrangidos 
Da  santa  obediência  do  prelado. 

Outros  amigos  seus,  ofterecidos 
Se  tinham  a  fazer-lhe  companhia, 
Mas  cuido  que  estam  já  arrependidos. 

As  novas  que  do  velho  te  daria. 
São  conselhos  maduros  de  viver, 
Que  me  deu  pêra  vêr  o  que  não  via. 

Nos  quaes  todos  se  vem  a  resolver, 
Que  por  muitas  razões  e  perfeição 
Humana,  só  consiste  em  padecer. 

Com  muita  paciência  e  mansidão, 
Como  nos  ensinou  o  Redemptor, 
Na  Cruz  posto  por  nossa  salvação  \ 

Cujo  suave,  brando  e  doce  amor, 
Tão  valeroso  faz  um  fraco  peito 
Que  seja,  padecendo,  vencedor. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  3a6 

Não  ficando  já  passo  tão  estreito 
No  caminho  do  Geo  por  alargar, 
Que  quem  quiser  não  possa  ir  lá  direito. 

Os  ermos  se  sohiam  povoar 
Com  rara  penitencia,  toda  a  vida, 
Dos  que  nelles  queriam  contemplar. 

Cuja  imitação  foi  mal  sofrida 
E  dos  mais  ociosos  murmurada, 
E  doutros  contrastada  e  perseguida. 

A  qual,  se  fora  menos  encontrada, 
Menos  merecimento  lhe  rendera, 
Que  no  fogo  se  estilla  agoa  rosada. 

Fontano. 

Certo,  amigo  Laurino,  que  me  dera 

Muita  consolação  ver  Limabeo, 

Se  desculpar  meu  erro  me  atrevera. 

Que,  sendo  pontual  amigo  meu, 
O  achei  amigo  sempre  no  meu  mal, 
Não  me  achando  comsigo  no  mal  seo. 

Assi,  que  sendo  amigo  pontual, 
Faltei  na  pontual  sua  amizade 
Com  me  afastar  no  tempo  principal. 

Amigos  tem  quem  tem  prosperidade, 
Mas  amigos  não  tem  quem  na  não  tem 
Não  ha  que  duvidar  nesta  verdade. 

Limabeo  não  se  queixa  de  ninguém, 

Alheo  do  passado  e  do  presente. 

Sem  lhe  dar  do  que  vai,  nem  do  que  vem. 


33o  Obras  de  Fr,  Agostinho  da  Cruz 

Quieto,  vive  só,  livre  e  contente, 
Com  plantas  e  com  feras  conversando, 
Não  conversando  amigo,  nem  parente. 

Assi,  noites  e  dias  vão  passando, 
Tendo  posta  no  Ceo  sua  esperança, 
E  da  terra  a  si  mesmo  desterrando. 

Enfim,  que  não  repousa  nem  descansa, 
Senão  no  summo  bem  que  só  deseja. 
Enlevado  na  bemaventurança. 

Ainda  que  tão  longe  agora  esteja 
Do  que  vi,  do  que  ouvi,  do  que  notei, 
O  velho  não  me  faz  pequena  inveja. 

Por  muitas  vezes  já  determinei 
Ir  ver  o  velho  calvo  no  seu  ermo, 
Mas  na  vergonha  minha  reparei. 

Nem  menos  quis  usar  dum  justo  termo, 

Oíferecendo-se  obra  piedosa 

Pêra  ser  visitado,  estando  enfermo. 

Dilatou-se-lhe  a  morte  vagarosa. 
Escapou  dos  imigos  encubertos, 
Escapou  da  tormenta  furiosa. 

Escapou  doutros  muitos  desconcertos. 
Que  consumindo  foi  o  tempo  largo 
Da  larga  penitencia  dos  desertos. 

De  mim  não  posso  dar  outro  descargo, 
Por  sêr  contrario  ó  Ceo  e  contumaz, 
Cuja  contradição  agora  amargo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  33 1 

Porque  de  tanto  bem  não  fui  capaz, 
Perda  que  assi  me  turba,  assi  lastima, 
Por  não  participar  da  sua  paz. 

Enfim,  Laurino,  tudo  vem  de  cima, 
No  mal  como  no  bem,  nosso  ou  alheo, 
Onde  o  mal  se  reprova  o  bem  se  lima. 

O  máo  quer  do  fermoso  fazer  fêo, 
O  bom  quer  do  fêo  fazer  fermoso, 
Um  vazio  do  mal,  o  outro  cheio, 
Um  desditoso,  enfim,  outro  ditoso. 


EGLOGA. 

Almilão,  e  Galapo. 

Almilão. 
Pois  que  nos  ajuntamos  nesta  praia, 
Cantemos  a  que  vimos,  nesta  tarde, 
Antes  que  lá  da  Serra  a  sombra  c^ia. 

Galapo. 
Quem  quereis,  Almilão,  que  mais  aguarde, 
Inda  que  as  redes  fiquem  por  lançar, 
Nem  que  pêra  melhor  lanço  se  guarde  ? 

Quem  devemos  com  versos  celebrar, 
Senão  principes,  nossos  pescadores. 
Que  juntos,  peixes  juntos  vem  fisgar? 

Estes  dous  excellentes  amadores 

Do  fruito,  que  de  Deos  tem  )á  colhido, 

Embarcarão  comsigo  a  flor  das  flores. 


33»  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Almilão. 

Dentro  na  minha  Lapa  recolhido, 
O  barco  vi  passar  das  agoas  ciaras, 
Naquelle  breve  curso  obedecido. 

Ditosa  embarcação,  se  frequentaras 
O  teu  mar  Oceano,  a  lua  renda 
Com  muito  peixe  nosso  acrescentaras. 

Mas,  pois,  aqui  não  vens  fazer  fazenda. 
Como  vem  constrangido  o  pescador 
Buscar  com  que  da  fome  se  defenda : 

Ouçam  cantar  e  dar  a  Deos  louvor, 
Porque  do  mar  e  terra  quis  fazer 
Uma  Senhora  tal  um  tal  Senhor ; 

Que  partiram  depois  de  amanhecer, 

E  feita  de  vagar  a  pescaria, 

Se  tornaram  com  sol  a  recolher. 

Nunca  de  peixe  a  praia  está  vazia, 
A  Serra  de  perdizes  e  veados, 
E  doutra  muita  caça  em  demasia. 

Os  bosques,  nos  penedos  sustentados. 
Dão  pasto  ás  bravas  feras  na  verdura, 
E  nos  pés  de  seus  troncos  gasalhados. 

Cercada  a  Serra  está  de  rocha  dura, 
E  das  agoas  salgadas,  desta  parte 
E  doutra  a  maior  já  se  cerca  e  mura. 

De  todos  quantos  doens  o  Geo  reparte, 
Com  estes  excellentes  escolhidos, 
Um  só  te  contarei,  para  alegrar-te: 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  333 

Que  nunca  entre  estes  de  amor  unidos 
Se  viu  em  cousa  alguma  differença, 
Senão  que  um  rompe  mais  menos  vestidos. 

Daquella  liberal  bondade  immensa, 
Doutras  mores  mercês  tenho  esperança, 
Que  só  pêra  calar-me  dá  licença. 

A  fonte  perennal  nunca  descansa, 
Nem  cansa  quando  mais  agoa  derrama, 
Antes  quando  mais  lança  menos  cansa. 

Tanto  subindo  vai  a  verde  rama, 
Quanto  esse  mesmo  tronco  vai  subindo, 
E  tanto  o  coração,  quanto  mais  ama. 

As  minhas  altas  vozes  repetindo, 
O  cavernoso  valle  me  reprende, 
Que  com  calar  não  ficarei  ouvindo. 

Aquelle  que  no  mar  a  rede  estende, 
Por  manha  quer  pescar  ou  com  engano. 
Não  quem  com  tanta  fisga  o  peixe  fende. 

Com  muito  pouco  custo  e  pouco  dano. 
Os  senhores  do  mar  vem  pescar  nelle, 
Quando  muito,  três  vezes  d'anno  em  anno. 

Mas  se  bem  não  parece  ella  sem  elle, 
Também  bem  não  parece  elle  sem  ella, 
Venha  elle  com  ella  e  ella  com  elle; 

Que  não  os  ajuntou  divina  estrella 
Pêra  ser  apartados  um  momento. 
Quer  ambos  vão  a  remos,  quer  a  vela. 


334  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Ambos  logrem  um  só  contentamento, 
Ambos  um  só  querer,  uma  vontade, 
Nem  quero  dispensar  no  pensamento. 

Se  havemos  de  cantar,  da  saíidade 
Deixemos  nestas  agoas  ancorada. 
Dos  dous  a  perennal  conformidade, 
Com  favores  divinos  confirmada. 


O'  quam  ligeiramente  vai  fugindo, 
Pêra  nunca  tornar,  a  própria  vida. 
Tão  mal  considerada  e  mal  sentida 
De  mi,  que  dum  mal  noutro  vou  cahindo ! 
Entendo  que  estou  perto  da  partida, 
Mas  folgo  d'ouvir  quem  me  está  mentindo, 
Não  querendo  acceitar  os  desenganos, 
Querendo-me  enganar  cos  meus  enganos. 

O'  como  vai  fugindo  a  mocidade, 

Do  que  não  mais  que  seu  gosto  pretende, 

Fazendo  pouco  caso  do  que  entende, 

E  trocando  a  rezão  pola  vontade! 

E  quando  desta  troca  se  arrepende, 

Perdida  tem  de  todo  a  liberdade 

Pêra  se  restaurar  como  pudera, 

Se  mais  do  coração  se  arrependera. 

Galapo. 

O'  quanto  tempo  passa  tão  ligeiro, 
Sem  respeito  de  grande,  nem  pequeno, 
E  como  desordena  quanto  ordeno, 
Do  que  quero  fazer  por  derradeiro ! 
E  com  quanta  mais  magoa  me  condeno 
Por  querer  sêr  no  bem  aventureiro. 
Da  temporal  cobiça  aconselhado, 
Por  me  deixar  em  vão  mais  magoado. 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  335 


Epigramma  ql  Paixão. 

A  quem  desceo  do  Ceo,  por  nos  dar  vida, 
Pagamos  com  lhe  dar  a  morte  crua, 
Dada  por  nós,  por  elle  padecida 
Por  nós  na  Cruz,  despida  a  carne  nua, 
Que  por  salvação  nossa  fôi  vestida, 
Por  tudo  padecer  á  custa  sua : 
Enfim,  que  nosso  Deos  o  fez  de  sorte, 
Que  nos  deu  sua  vida  e  sua  morte. 


Epigramma. 

Nasci  e  renasci  na  casa  em  dia 
De  Santa-Cruz,  da  Cruz  o  nome  tenho ; 
Tenho  quem  nella  foi  morto  por  guia, 
Nas  entranhas  abertas  me  sustenho, 
Que  não  pôde  cerrar  quem  as  abria : 
E  quando  neste  passo  me  detenho 
Gemendo  e  suspirando,  não  duvido, 
Que  me  sare  quem  foi  por  mim  ferido. 


Epigramma. 

Aqui,  Deos  da  minha  alma,  onde  cheguei, 
O  como  vós  sabeis,  dar  fim  á  vida, 
Outra  de  novo  aqui  começarei 
Nesta  despovoada,  antiga  ermida 
Da  Virgem  vossa  mãi  \  não  deixarei 
De  servir-vos,  com  ella  ser  servida. 
Que  qual  amor  d'esposo.  filho  e  pai, 
Tal  o  mesmo  d'esposa,  filha  e  mãi. 


336  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Acerca  do  tempo. 

A  desigual  balança 

Da  vil  fortuna  cega, 

Fiada  d'infieis  repartidores 

Com  violenta  mudança, 

Desordenada,  entrega 

Aos  máos  sempre  o  governo  dos  melhores; 

Faz  servos  dos  senhores, 

Aos  mais  baixos  levanta 

Sem  mais  aucção,  nem  custa, 

Que  uma  eleição  injusta, 

Que  o  Ceo  escandaliza  e  a  terra  espanta : 

Por  onde  o  venturoso 

Tyranniza  o  lugar  do  valeroso. 

A  dura  tyrannia, 

Dos  grandes  empossada. 

Triunfa  da  justiça  e  da  verdade. 

O  interesse  guia, 

A  rezão  desterrada 

Chora  o  direito  seu  dar-se  á  maldade. 

O  amor  e  a  lealdade 

Da  pátria  perseguida, 

Já  desagasalhados 

Dos  principaes  estados, 

No  vulgo  baixo  e  pobre  acham  guarida ; 

E  tal  se  tornou  tudo. 

Que  quem  falou  verdade,  agora  é  mudo. 

O  zelo  desprezado 

He  desfavorecido, 

Queixar-se,  nem  buscar  remédio  ousa. 

Al  bom  tempo  passado, 

De  poucos  entendido, 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  33j 

Quem  cuida  mais  em  vós,  menos  repousa ! 

Cerca-nos  tanta  cousa, 

Que  já  o  entendimento, 

Apezar  do  receio, 

Não  achando  outro  meio, 

Rebenta  com  soltar  vozes  ao  vento, 

Mas  se  Deos  não  soccorre, 

Pouco  monta  dar  vozes  a  quem  morre. 


VILANCETE. 
A  desculpa  de  pescar,  e  fa\er  bordões. 

Em  que  parte,  ou  em  que  terra 
Me  deixarão  repousar, 
Pois  que  não  pude  escapar 
Entre  os  penedos  da  Serra  ? 

Que  vai  peçonha  fazer 
A  cega  malícia  humana 
De  pescar  peixes  á  cana 
Pêra  lhe  dar  a  comer. 

Em  que  parte  de  que  Serra 
Se  pudera  imaginar, 
Que  aparelhos  de  pescar 
Fossem  munições  de  guerra  ? 

Se  cortando  pela  rama 
Dos  zimbros  muito  cortei. 
Cuido  que  menos  pequei, 
Que  cortando  pela  fama. 


338  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Em  que  parte,  ou  em  que  terra 
Não  fora  peor  cortar 
Homens,  que  Deos  manda  amar, 
Que  páos,  que  nascem  na  Serra  ? 

Não  sinto  que  culpa  tenha, 
Se  lhe  negam  ser  louvado, 
Tão  longe  do  povoado 
Pescar  peixes,  cortar  lenha. 

Em  que  parte,  em  que  terra 
Se  pode  vituperar 
Quem  pesca  peixes  no  mar, 
Ou  corta  lenha  na  Serra  ? 

Disse  Deos:  não  matarás 
Homens,  mas  não  disse  peixes ; 
Nem  tão  pouco  disse :  feixes 
De  zimbros  não  cortarás. 

Julgue-sc  agora  quem  erra. 
Se  quem  quer  homens  matar, 
Se  quem  peixes  vai  pescar. 
Ou  corta  zimbros  na  Serra. 

Se  direitos',  ou  pensões 
Devia  do  mar,  ou  mata, 
O'  Duque,  paguei  «  pro  rata  » 
Peixes,  cruzes  e  bordões. 

Paguei  ó  Senhor  da  terra. 
Paguei  ó  Senhor  do  mar, 
O'  do  Ceo  ha-de  pagar 
Quem  sem  causa  me  faz  guerra. 

Eu  se  corto,  ou  se  pesco 
Peixes,  ou  bordões  no  mato, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  SSg 

Homens  não  corto,  nem  mato, 
Senão  páos  e  peixe  fresco. 

Que  não  pecca,  que  não  erra, 
Acabai  já  de  provar, 
Que  pescar  não  é  peccar, 
Menos  cortar  páos  na  Serra. 


MOTE. 

Enganos  da  vida  humana,   ' 
Mal  vos  pode  penetrar 
Quem  folga  de  se  enganar. 
Pois  quando  se  desengana, 
O  tempo  não  dá  lugar. 


GLOSA. 

Do  que  vi  e  do  que  vejo. 
No  que  o  mundo  representa, 
Mais  me  canso  e  mais  me  pejo 
Por  vêr,  que  venta  e  não  venta 
Conforme  ao  meu  desejo. 
Assi  busco  o  meu  querer, 
Querendo  o  que  mais  me  ingana 
Pêra  me  poder  perder, 
Pois  me  não  basta  entender 
Enganos  da  vida  humana. 

O  tempo,  que  vai  fugindo, 
Gasto  no  gosto  da  vida, 
Ambos  se  vão  consumindo 
Mal,  que  quando  estou  sentindo, 
íl'  já  no  fim  da  partida. 
Então  dos  gostos  passados 


340  Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz 

Começo  a  me  queixar, 
Dizendo:  quem  se  enganar 
Comvosco,  gostos  passados, 
Mal  vos  pode  penetrar. 

O  caminho  leva  errado 
Quem  por  seu  gosto  se  guia, 
Trabalha,  sua,  e  porfia 
Em  querer  por  outra  via 
Sêr  melhor  encaminhado. 
Que  grande  desaventura 
E'  não  querer  acertar 
Por  sua  vontade  pura, 
Pois  que  não  pode  ter  cura 
Quem  folga  de  se  enganar. 

Camanho  mal  me  tem  feito 
O  meu  gosto,  que  sustento 
A  torto  e  a  direito, 
Sem  razão,  nem  fundamento, 
Nos  enganos,  que  apontei. 
Se  disser  que  não  se  engana 
Quem  de  enganado  notei, 
Então  lhe  perguntarei : 
Pois  quando  se  desengana  ? 

Donde  fui,  andei  e  vim. 
Fui  e  vim  e  andei  comigo. 
Comigo,  de  mim  imigo, 
A  mim  sigo,  a  mim  persigo. 
Por  sêr  imigo  de  mim. 
Pelo  que  posso  affirmar 
Que  quem  anda  grangeando 
O  mal,  com  que  quer  folgar, 
Que  se  desengana,  quando 
O  tempo  não  dá  lugar. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  341 


MOTE. 

Que  forte  fortuna  sigo, 
A  que  grande  estremo  vim, 
Que  já  não  vejo  o  perigo, 
Pêra  mim  maior  que  a  mim. 


GLOSA. 

Enganos  dum  pensamento 
Me  trazem  senhoreado 
De  tal  maneira,  que  é  vento 
Discursos  do  entendimento 
Em  tão  perigoso  estado, 
Porque  quanto  mais  entendo, 
Tanto  menos  me  arrependo 
De  me  entregar  ao  perigo, 
Que  minha  alma  chora,  vendo 
Que  forte  fortuna  sigo. 

Força  d*estrella  imiga. 
Contra  quem  sizo  não  vai. 
Deve  ser  a  que  me  obriga 
A  que  eu  mesmo  me  persiga, 
Buscando  o  que  me  faz  mal. 
De  tudo  me  arreceei, 
E  de  nada  me  guardei; 
Tremo  de  cuidar  em  mim 
A  quanto  me  aventurei, 
A  que  p-ande  estremo  vim. 

Se  alguma  hora  me  desejo 
Livre  deste  desatino. 
Tem  tal  força  o  meu  desejo, 
Que  me  esconde  o  mal,  que  vejo, 


342  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Por  querer  o  bem  que  imagino. 
A  razão  bem  me  avisou 
Dos  perigos,  em  que  estou  •, 
Mas  o  cuidado,  que  sigo, 
Tão  depressa  me  cegou. 
Que  já  não  vejo  o  perigo. 

Fujo  do  que  me  convém, 
Corro  após  o  que  me  dana  *, 
E  se  me  aconselha  alguém 
O  que  sei  que  me  está  bem, 
Inda  cuido  que  me  engana. 
Enfim,  que  desta  mudança 
Ficarei  sem  esperança 
De  terem  meus  rhales  fim, 
Pois  a  ninguém  vi  esquivança 
Pêra  mim  maior  que  a  mim. 


MOTE. 

Que  queira  quem  me  não  quer, 
Não  queira  de  mim  ninguém, 
Que  não  posso  querer  bem 
A  quem  bem  me  não  quiser. 


GLOSA. 

Não  posso  ter  por  amigo 
Quem  de  mim  senão  doer, 
Nem  sei  como  possa  sêr 
Poder  acabar  comigo 
Que  queira  quem  me  não  quer. 

Por  sêr  mal  afortunado. 
Não  duvido  haver  alguém, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  343 


Que  queira  vcr-me  enganado ; 
Mas  amar  sem  sêr  amado 
Não  queira  de  mim  ninguém. 

Quem  nne  vir  desconfiar, 
Entenderá  que  me  vem 
De  não  ter  já  que  esperar, 
Pelo  que  pôde  affirmar 
Que  não  posso  querer  bem. 

Não  é  justo  que  me  empregue 
Em  quem  me  não  merecer, 
Muito  menos  que  me  cegue 
De  maneira,  que  me  entregue 
A  quem  bem  me  não  quiser. 


MOTE. 

Se  Agostinho  fora  Paulo, 
O  corvo  quando  viera, 
Não  levara,  mas  trouxera. 


GLOSA. 

Os  figos,  que  no  telhado 
Tinha  postos  a  passar, 
Todos  levou  sem  deixar 
Nem  por  passar,  nem  passado, 
Foi  pena  de  meu  peccado, 
Que  se  eu  guardar  não  quisera, 
O  corvo  mos  não  comera. 

Mas  no  deserto,  onde  estou, 
Se  tudo  logo  comer, 


344  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Não  me  poderei  manter 
No  comêr,  que  se  acabou. 
Mas  mais  do  que  me  levou, 
O  corvo  negro  trouxera. 
Se  por  Paulo  me  tivera. 

Mas  pois  que  por  culpa  minha 
Sou  de  Paulo  differente, 
Ficarei  mais  penitente, 
Sem  ter  os  figos,  que  tinha. 
O  corvo,  que  a  Paulo  vinha 
Trazer,  também  me  trouxera. 
Se  em  Paulo  me  convertera. 

Do  que  este  corvo  me  faz 
Não  deixo  de  presumir, 
Que  no  que  devo  servir 
Inda  fico  muito  atrás. 
O  corvo  leva,  e  não  traz : 
Se  não  levara,  o  trouxera, 
Com  Paulo  me  parecera. 

Não  fora  contra  razão 
Entre  os  corvos  daninhos 
Matar  antes  passarinhos 
No  tempo  da  arribação  ? 
O  corvo  negro  ladrão. 
Se  por  Paulo  me  tivera, 
Não  levara,  mas  trouxera. 

Não  deveras  de  ajudar 
Os  que  tão  mal  me  trataram, 
Baste  que  já  me  raparam, 
Não  me  venhas  tu  rapar. 
Que  se  eu  poderá  estar 
Tão  longe,  como  quisera, 
De  rapazes  não  temera. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  345 

Menos  mal  foi  rapar  figos, 
Que  rapar  as  barbas  minhas. 
Peor  do  que  tu  vizinhas, 
Vezinharam  meus  amigos. 
Se  quiseram  os  antigos 
Comigo  estar  á  vara, 
Nenhum  rapaz  me  rapara. 


Reposta  a  Soror  Mariana,  Jilha  do  Duque 
de  Aveiro 


MOTE. 

Não  passou  meu  pensamento 
De  desejar  de  servir, 
Sem  vo-lo  dar  a  sentir. 


GLOSA. 

O  muito,  que  em  vós  havia, 
O  pouco,  que  em  mim  achava, 
Meu  desejo  limitava, 
Meu  pensamento  abatia. 
Nunca  cuidei  que  podia 
Chegar  a  mais  que  servir, 
Sem  vo-lo  dar  a  sentir. 

Desesperei  com  razão 
Do  que  sem  ella  esperei; 
Porque  nunca  imaginei 
Qual  fosse  vossa  tenção. 
Nunca  esperei  galardão 
De  desejar  de  servir. 
Nem  tal  pude  presumir. 


346  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Se  quereis  fazer  estremos, 
Os  que  deveis  de  fazer, 
Só  por  Deos  devem  de  ser, 
A  quem  só  servir  devemos. 
Quereis  que  nos  conformemos? 
Seja  em  amar  e  servir 
Quem  morreo  por  nos  remir. 

Que  vos  fale,  que  vos  veja, 
E*  por  demais,  não  canseis, 
Que  por  mais  que  trabalheis, 
Já  não  pôde  sêr  que  seja. 
O  que  minha  alma  deseja 
E'  poder-vos  concluir 
Que  só  Deos  deveis  servir. 

Se  sois  firme,  branda  e  pura, 
Em  tudo  mais  venturosa, 
Fidalga,  rica,  fermosa. 
Tudo  sei  quam  pouco  dura. 
Escolhei  vida  segura. 
Que  não  vos  possa  fugir, 
Servi  a  quem  vim  servir. 


MOTE. 

Rodeado  nesta  Serra 
De  firmeza  e  confiança 
Sustento  a  esperança. 

GLOSA. 

Destas  rochas  a  dureza, 
Destes  bosques  a  verdura, 
Qual  esperança  figura, 
Qual  me  figura  firmeza. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  847 

As  obras  da  natureza 
Me  fazem  doce  lembrança 
De  suster  a  confiança. 

A  rocha  sem  se  abalar 
Aqui  vejo  no  deserto, 
Da  verde  folha  cuberto 
O  bosque  sem  se  seccar. 
Enquanto  me  rodear 
De  firmeza  e  de  esperança 
Não  perderei  confiança. 

Mas  de  que  me  serve  vêr 
Rochas  firmes,  verdes  plantas, 
Vendo  em  mim  faltar  quantas 
Cousas  eu  desejo  têr 
Pêra  mais  me  entristecer, 
De  firmeza  e  de  esperança 
A  Serra  me  faz  lembrança. 

As  feras  vejo  pascendo. 

As  aves  ouço  cantando, 

As  ondas  do  mar  quebrando 

Nas  rochas,  que  estão  batendo, 

Quanto  mais  ouvindo  e  vendo 

Se  renova  a  confiança 

No  silencio  da  lembrança ! 


MOTE. 

Tanto  é  o  bem,  que  espero, 
Que  nas  penas  me  deleito. 

GLOSA. 

Desejo  de  padecer 

Por  amor  do  que  mais  quero 


k 


348  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Todo  O  mal  cruel  e  fero, 
E  mais,  se  mais  pôde  ser 
Nos  estremos  do  querer, 
Tanto  é  o  bem,  que  espero. 

Daqui  nasce  a  confiança 
Firme  dentro  no  meu  peito, 
Que  só  em  penar  descansa, 
Sem  outro  nenhum  respeito, 
Com  tão  suave  esperança, 
Que  nas  penas  me  deleito. 


MOTE. 

Neste  meu  remanso 
Manso,  doce  e  brando, 
Ando  amor  buscando. 
Quanto  mais  descanso, 
Ganso  descansando. 


MOTE. 

Do  mundo  desapegado. 
Dos  homens  desempedido. 
Do  tempo  desenganado, 
Da  terra  mais  esquecido, 
Quando  do  Ceo  mais  lembrado. 


ECOS. 

Que  mal  não  queres  sentir  ?    Ouvir. 
E  que  virtude  escolher  ?    Sofrer. 
E  que  bem  folgas  guardar  ?    Galar. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  349 

Logo  te  podes  gabar 
Vencer  o  maior  perigo, 
Quando  acabares  comtigo 
Ouvir,  sofrer,  e  calar. 


Qual  dos  bens  mór  bem  te  faz  ?    Paz. 
E  na  paz  qual  é  melhor  ?    Amor. 
E  tem  Amor  igualdade  ?    Charidade. 

Logo  a  communidade 
Está  de  brigas  segura, 
Quando  se  nella  procura 
Paz,  Amor,  e  Charidade. 


Qual  é  de  tudo  mais  forte  ?    A  morte. 
E  delia  que  mal  ouviste  ?    Ser  triste. 
E  tem  mais  que  ser  penosa  ?    Espantosa 

Escusado  é  têr  mimosa 
Vida  que  tão  pouco  dura. 
Pois  o  tempo  lhe  procura 
A  morte  triste  e  espantosa. 


Quem  de  todo  o  bem  te  tira  ?    Ira. 
Quem  pôde  mais  que  a  razão  ?    Paixão. 
Quem  do  que  deve  se  esquece  ?    Interesse. 

Logo  com  razão  merece, 
Que  não  seja  conhecido 
Quem  traz  no  peito  escondido 
Ira,  paixão,  e  interesse. 


35o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Redondilhas  a  Nossa  Senhora. 

Nesta  Serra, 
Onde  me  não  falta  guerra, 
Servindo  na  vossa  ermida 
Gastarei,  Senhora,  a  vida, 
Até  me  cobrir  a  terra. 


Confiado, 
Que  serei  sempre  amparado 
De  quem  sempre  me  emparou, 
Que  menos  medroso  estou, 
Pois  o  mais  forte  é  passado. 

A  baixeza, 
A  que  minha  alma  está  presa, 
Espero  que  desateis, 
E  que  servindo  me  deis. 
Pêra  servir  mais  firmeza. 


Quem  pudera 
Servir-vos  quanto  devera 
Sem  cessar  um  só  momento, 
Levantando  o  pensamento 
Tanto,  que  nunca  descera. 

E'  verdade. 
Que  tanta  suavidade 
Consiste  em  vosso  serviço, 
Que  servir-vos  só  por  isso 
E'  summa  felicidade. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  35 1 

Quem  mais  quer, 
Ou  que  mais  deseja  ter, 
Antes  de  se  vêr  nos  Ceos, 
Que  servir  a  Mãi  de  Deos 
Sem  nunca  desfalecer  ? 


Chansonetas  ao  Nascimento  de  Nosso  Senhor. 


1 

Pasmem  d'alegria 
na  terra  e  nos  Ceos, 
vendo  a  noite  —  dia, 
vendo  o  homem  —  Deos. 

2 
Commercio  admirável, 
que  o  amor  descubrio; 
mysterio  inefável, 
que  o  Ceo  nos  abriol 

3 

Como  em  um  supposto 
caiba  esta  união, 
não  é  presupposto 
de  humana  rezão. 

4 

Senão  obedece 
o  juizo  á  fé, 
nada  se  conhece 
daquelle,  que  é. 


352  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

5 
Pelos  ares  voa 
Celeste  armonia ; 
e  o  que  nella  sôa, 
só  d' Anjos  se  fia. 

6 

Feitos  esquadrões 
O  seu  rei  seguindo, 
vam  dando  pregões, 
que  a  salvar  é  vindo. 

7 
O'  ditosa  culpa, 
caso  nunca  ouvido, 
que  busque  a  desculpa 
quem  é  oíFendido ! 

8 
Toma  o  que  em  nós  há, 
dá-nos  o  que  é  seu : 
que  lingua  dirá 
que  toma,  e  que  deu  ? 

9 

Toma  pena  e  morte, 
dá-nos  gloria  e  vida : 
a  causa  mais  forte 
foi  d'amor  vencida  1 

IO 

Fermosa  victoria, 
que  a  terra  Ceo  faz, 
de  que  a  Deos  vem  gloria, 
e  aos  homens  paz. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  253 


II 
Acaba  a  mór  guerra, 
entra  a-mor,  concórdia, 
tem  Deos  chea  a  terra 
de  misericórdia. 

12 

Os  cegos  já  viram, 
os  mudos  falaram, 
os  surdos  ouviram, 
os  coxos  andaram. 

i3 
Os  mortos  tem  vida, 
os  vivos  não  morrem, 
os  bens  á  medida 
do  desejo  correm. 

A  summa  bondade 

nos  manda  por  guia 

a  luz  e  a  verdade, 

que  David  pedia.  Salm.  42. 

i5 
A  justiça  sua 
hoje  nos  revela, 
nasce  o  sol  da  lua, 
sendo  maior  quella. 

16 
Sem  abrir-se  a  fonte, 
sahe  delia  o  mar; 
vão  de  monte  a  monte, 
tudo  ha-de  alagar. 

*3 


354  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


'11 
Milagre  inventado 
do  divino  esp'rito, 
qae  do  limitado 
saia  o  infinito. 

18 
Na  Virgem  caber 
quem  nos  Ceos  não  cabe, 
como  pode  ser  ? 
quem  o  fez  o  sabe. 

19 

Nova  maravilha 
do  divino  amor, 
mãi,  esposa  e  filha 
dum  mesmo  Senhor. 

20 
Deu  a  flor  suave 
o  fructo  esperado, 
já  vimos  a  chave 
do  jardim  cerrado.  Cant.  4,  12. 

21 

O  divina  Aurora, 
só  em  vós  se  vio 
dar  mais  luz  na  hora, 
em  que  o  sol  sahio. 

22 
Sol,  que  apparecendo 
almas  rouba  e  inflamma  \ 
sol,  que  em  se  escondendo 
levanta  mór  chama. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  355 

23 

E'  lume  do  lume, 
que  elle  só  faz  vêr, 
no  qual  se  resume 
tudo  o  que  tem  sêr. 

24 

Fez  a  vóz  humana 

Outro  sol  deter.  Josué,  10.  12. 

fez  a  soberana 

este  a  nós  descer. 

26 
Lá  figurou  isto 

Deos  por  Isaías,  Is.  38.  8. 

no  relógio  visto 
delRei  Ezechias. 

26 
Pêra  o  segurar 
da  mercê,  que  íèz^ 
o  sol  fêz  tornar 
dez  linhas  atrás. 

27 

Quando  o  mundo  alcança 
o  de  que  era  indino, 
a  mesma  mudança 
fêz  o  sol  divino. 

28 
Deixa  Anjos  no  Ceo, 
seus  coros  passou, 
ao  homem  desceo, 
e  nelle  parou. 


356  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


29 

Aqui  a  humildade 
de  Deos  triunfou, 
forma  a  divindade 
de  servo  tomou. 

3o 

Se  o  não  conhecera 
por  Deos  e  Senhor, 
isto  parecera, 
doudice  d'amor. 

3i 
Por  Deos  seu  thesouro 
todo  em  nossa  mão: 
este  é  o  altar  d'ouro, 
que  vio  São  João.  Apocal.  8.  3. 

32 

Leão  de  Judá, 
que  o  Ceo  nos  conquista, 
Cordeiro,  que  o  dá, 
e  honra  o  Baptista. 

33 
Triunfo  e  lucerna       Apocal.  21.  23. 
da  Cidade  santa, 
que  com  gloria  eterna 
se  adora  e  se  canta. 

Grão  do  Ceo  cahido, 
que  o  fructo,  que  deu, 
só  nelle  é  sabido, 
que  é  celeiro  seu. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  SSy 

35 
Na  terra  cahio, 
de  Deos  mui  amada, 
que  foi  na  que  vio 
Moysés  figurada. 

36 

Virgem  soberana, 
se  a  fé  me  deixara, 
serdes  mais  que  humana 
de  vós  afifirmára. 

37 

Custodia  segura 

da  sabedoria, 

que  os  Anjos  mais  pura, 

que  os  santos  mais  pia. 

38 

Do  Ceo  desejada, 
porque  vos  conhece, 
da  terra  engeitada, 
que  vos  não  merece. 

3& 

Querendo-lhe  dar 

Rei,  vida,  luz,  graça,  » 

chega  a  lhe  negar 

lugar,  em  que  nasça. 

4a 

Do  mundo  é  senhor, 
não  tem  lugar  nelle, 
tudo  pôde  amor, 
pois  o  trouxe  a  eile. 


358  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


41 

Se  o  não  abrasara 
saudade  da  cruz, 
quiçaes  nos  deixara 
com  nosco  e  sem  luz. 

42 
De  homens  racionaes 
é  Deos  engeitado, 
só  entre  animaes 
achou  gasalhado. 

43 

Senhor  dos  senhores, 
vós  entre  os  animaes, 
e  reis  peccadores 
em  paços  reaes ! 

44 

E'  Deos  tal  amigo, 
tão  bom  de  servir, 
que  em  nada  comigo 
se  quer  desavir. 

Sofre  companhia 
tão  imprópria  nelle, 
por  que  neste  dia 
ninguém  fuja  delle. 

46 
Por  mais  semilhança 
que  cos  brutos  tenha, 
não  perca  a  esperança, 
venha,  venha,  venha ! 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  3^9 


47 
Lapa  gloriosa, 
dos  Geos  invejada, 
que  elles  mais  fermosa, 
mais  alumiada. 

48 

Mil  Anjos  a  ornaram, 

nenhum  apparece, 

que  a  luz,  que  adoravam, 

a  sua  escurece. 

49 

Nella  os  serafins 
são  mais  abrasados, 
nella  os  cherubins 
mais  arrebatados. 

5o' 

Nella  nasce  Deos, 
nella  hoje  se  encerra 
o  melhor  dos  Ceos, 
o  melhor  da  terra. 

Hoje  os  homens  vem 
o  Verbo  encarnado, 
por  quem,  pêra  quem 
tudo  foi  creado. 

62 
Quando  a  Virgem  vio 
da  gloria  o  penhor, 
tudo  se  cubrio 
do  seu  resplendor. 


36o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

53 

Em  tal  claridade 
a  sua  alma  ardia, 
que  toda  a  Trindade 
nella  se  revia. 

54 

Lá  lhe  mostra  agora 
Quem  nella  morou 
e  quem  nesta  hora 
cá  lhe  revelou. 

55 
Meu  Jesu,  que  é  isto! 
em  presépio  vós, 
e  que  a  causa  disto 
sejamos  nós,  nós ! 

56 
Dizei-me  Anjos  seos, 
•   pastores  e  reis. 
se  tal  está  Deos, 
em  que  o  conheceis  ? 

Em  que  no  amor  tem 
a  gloria  escondida, 
só  por  que  a  dar  vem 
pelos  seus  a  vida. 

58 
E  na  adoração 
da  mãi  e  do  esposo, 
que  ambos  raios  são 
deste  Sol  fermoso. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  36i 

A  mão  soberana 
seu  poder  mostrou 
na  Trindade  humana, 
que  aqui  ajuntou. 

60 
No  esposo  santo 
da  Virgem  sem  magoa 
SC  enche  alma  d'espanto, 
e  os  olhos  d'agua. 

61 
Vendo  o  que  deseja, 
do  Anjo  avisado 
o  presépio  beja, 
nelle  transformado. 

62 
Do  mais  serlndino 
cuida  o  Patriarcha, 
que  inda  que  é  menino, 
terra  e  Ceos  abarca. 

63 

Anjos,  reis,  pastores 
por  divina  traça 
são  annunciadores 
do  auctor  da  graça. 

64 

Pêra  nos  mostrar 
que  nesle  senhor 
ha  três  que  adorar, 
Deos,  rei  e  pastor. 


302  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

65 
Palhas  tem  por  leito 
quem  Anjos  deixou, 
porque  accenda  o  peito, 
que  o  mundo  apagou. 

66 
Choraes,  meu  Jesu, 
de  frio  tremeis. 
Quem  vio  a  Deos  nu, 
pobre  o  Rei  dos  Reis ! 

67 

O  rica  pobreza ! 
ó  falta  abundante ! 
ó  alta  baixeza  ! 
ó  divino  amante ! 

São  tudo  mysterios, 

que  nos  apregoam, 

que  honras,  pompa,  impérios 

não  são  o  que  soam, 

O'  cega  ambição, 
mais  cega  vaidade, 
que  da  opinião 
fêz  necessidade. 

70 

Pelo  Deos  visivel, 
que  já  conhecemos, 
no  amor  do  invisível 
nos  arrebatemos. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Grur  363» 


71 
Alma,  que  hoje  teve 
tão  nova  mercê, 
pois  toda  se  deve, 
toda  se  lhe  dê. 

72 
Lembrai-lhe  senhora, 
porque  a  não  exclua, 
que  o  sêr  pecoadora 
não  tira  sêr  sua. 


MOTE  A  NOSSA  SENHORA 

Antes  de  parir, 
Parindo  e  parida 
Virgem  escolhida. 


GLOSA. 

Quem  vos  escolheo 
Rainha  dos  Ceos, 
foi  o  mesmo  Deos, 
que  de  vós  nasceo. 
de  vós  procedeo 
vossa  eterna  vida. 
Virgem  escolhida. 

Muito  alcançastes, 
muito  merecestes, 
porque  muito  amastes, 
muito  padecestes. 
Virgem,  que  nos  destes 
o  Autor  da  vida, 
Virgem  escolhida. 


364  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Os  vossos  louvores 
não  podem  ser  ditos, 
que  são  infinitos, 
cada  vêz  maiores ; 
destes  fructo  e  flores, 
déstes-nos  a  vida, 
Virgem  escolhida. 

O  Sol,  as  estrellas, 
os  lírios,  as  rosas, 
sendo  mais  fermosas, 
vós  o  sois  mais  qu'ellas. 
Das  cousas  mais  bellas 
fostes  escolhida 
pêra  nos  dar  vida. 

Toda  sois  fermosa. 
Virgem,  minha  amiga, 
em  amor  antiga, 
do  amor  mimosa; 
doce,  satidosa, 
parindo  e  parida 
de  Deos  escolhida. 


MOTE. 

Saudade  minha, 
quando  vos  veria? 


GLOSA. 

Este  doce  quando 
vós  o  sabeis  certo, 
se  longe,  se  perto, 
se  duro,  se  brando. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  365 

vivo  contemplando 
no  bem,  que  seria, 
quando  vos  veria. 

Desejo  de  vêr 

um  bem  que  desejo, 

cousa  em  mim  não  vejo 

pera  poder  ser. 

sem  vos  merecer, 

saudade  minha, 

quando  vos  veria  ? 

Quem  fazer  pudera 
comvosco  um  partido, 
que  inda  que  perdido, 
nunca  vos  perdera, 
que  allivio  me  dera 
saber  que  vos  tinha, 
saudade  minha. 

Esta  piedade 
(ah!  não  ma  negueis) 
que  não  me  priveis 
da  vossa  amizade, 
minha  saíidade, 
saudade  minha, 
quando  vos  veria  ? 


ENDECHAS. 

I 

Fiz  conta  comigo, 
achei-me  enganado, 
porque  tenho  achado, 
que  não  tenho  amigo. 


366  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Não  foi  culpa  minha, 
Foi  minlia  ventura 
esperar  brandura 
de  quem  a  não  tinha. 

3 
Peitos  deshumanos, 
ingratos,  esquivos,  ' 
senti-vos  nocivos 
no  fim  de  os  meus  annos. 

4 
Tenra  mocidade, 
quando  te  partiste, 
então  descobriste 
tua  vaidade. 

5 
Desertas  montanhas, 
se  em  vós  me  criara, 
nunca  me  queixara 
de  magoas  tamanhas. 

6 
Campos  povoados, 
povoados  valles, 
em  vós  nascem  males, 
sem  ser  semeados. 

7 
Quem  nunca  vos  vira, 
nunca  em  vós  pascera, 
nunca  se  vendera, 
nunca  se  sentira  ! 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  867 


Quam  tarde  se  sente, 
quam  tarde  se  entende 
quanto  bem  depende 
de  fugir  da  gente ! 

o      ...      9 

Solitária  vida, 
suave,  ditosa, 
vida  saudosa, 
vida  só  vivida ! 


OUTRAS. 

I 
Já  não  digo  um  dia, 
nem  menos  uma  hora; 
um  momento  fora 
sequer  d'alcgria. 

2 
Em  que  respirara 
de  mágoas  tamanhas, 
tantas,  tão  estranhas, 
antes  que  acabara. 

3 
Se  cada  anno  perde  ' 
sua  folha  a  planta, 
cada  anno  outra  tanta 
lhe  nasce  mais  verde. 

O  no,  que  corre, 
vai  pêra  tornar; 
entra  e  sahe  do  mar, 
assi  nunca  morre. 


368  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

5 
Mas  onde  se  vio 
que  tornasse  a  vida, 
depois  de  partida, 
donde  se  partio  ? 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  369 


MOTE    . 
A  Nuestra  Senora. 

Para  bien  os  sea  el  parto, 

Virgen  hermosa  y  pura ! 
Para  bien  sea  !  para  bien  ! 

GLOSA. 

Bendita  seais,  senora, 
pues  creyendo  concebistes ! 
y  bendita'ansi  ia  hora 
en  la  qual,  Virgen,  paristes 
ai  que  el  cielo  y  tierra  adora. 

Aca  os  alaben  harto 
como  en  el  Empíreo  cielo, 
de  los  quales  no  me  aparto, 
mas  diziendo  en  baxo  buelo : 
para  bien  os  sea  el  parto  l 


24 


370  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Como  de  Dios  sois  criada 
sin  mancilla  original, 
ansi  quedastes  sellada 
en  vuestro  parto  y  qual 
dei  Angel  annunciada. 

Tal  madre  en  la  blancura 
a  tal  hijo  convenia, 
quedando-vos  criatura 
pariendo  le  luz  dei  dia, 
Virgen  hermosa  y  pura  / 

Quedastes  mas  sin  lesion 
quel  cristal  dei  sol  herido, 
puerta  abierta  de  perdon, 
dei  yerro  de  Eva  nacido 
,  y  velo  de  Gedeon. 

Pues  de  todos  no  aya  quien 
vuestro  parto  no  alabe, 
ya  que  estais  como  en  Bellen, 
aca  diga  y  en  esto  acabe  : 
para  bien  sea !  para  bien ! 


11. 


Grandes  nuevas ;  Dios  nacido, 
por  amor ; 
a  él  1  a  él,  pecador. 

GLOSA. 

Ya  la  tierra  está  hecha  cielo, 
Maria  donzella  y  madre, 
baxando  angeles  ai  suelo, 
el  hombre  subido  de  un  buelo 
a  la  derecha  dei  padre. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  371 

Ya  las  culpas  se  perdonan, 
ya  se  cobra  el  perdido, 
los  Archangeles  entonan 
dulce  musica  y  pregonan  : 
grandes  nuevas:  Dios  nacido! 

Grandes  nuevas  :  Dios  nacido  ! 

dilúvios  de  amor  derrama*, 

la  madre  de  mar  ha  salido, 

muestra  el  verbo  ai  hombre  remido 

quanto  puede,  sabe,  y  ama. 
Pudo  en  un  nino  esconder-se, 

supo  unir  suervo  y  sefíor, 

tanto  amó  que  vino  hazer-se 

hombre  para  deshazer-se 

Por  amor  t 

Triunpha  con  nueva  gloria 

la  criatura  dei  criador: 

el  vencido  es  vencedor, 

y  ambos  quedan  con  vitoria. 
Por  una  oveja  perdida 

el  soberano  pastor 

de  las  noventa  se  olvida; 

y  pues  viene  a  dar-te  vida, 

a  él !  a  él,  pecador  ! 


m. 

A  la  circunce^ion. 

Oy  sangran  a  nuestro  Dios 
y  segun  la  sangre  está, 
sin  duda  que  morerá. 


372  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


GLOSA. 

Dime,  amor,  sabes  que  heziste 
en  hazeres  a  Dios  hombre  ? 
A  mi  a  ser  Dios  subiste, 
y  Dios  tener  por  renombre 
mi  forma  que  tu  le  diste. 

Hoy  verás  en  uno,  dos; 
criatura,  el  criador ; 
por  el  no,  solo  por  nos 
y  solo  por  su  amor : 
oi  sangran  a  nuestro  Dios. 

Entre  brutos  nel  invierno, 
embuelto  en  viles  panos, 
mas  Dios  trino  y  uno  eterno 
nacio  aer  por  nuestros  danos, 
y  oi  se  sangra  tan  tierno. 

Quien  iàmas  pues  dudara 
si  el  viene,  morir  de  hecho 
y  que  mas  por  nos  hará 
estando  oi  en  tal  estrecho, 
_y  segun  la  sangre  está. 

Mas  ia  tenia  ordenado 
su  eterno  y  summo  padre, 
quel  nino  fuesse  humanado 
quedando  Virgen  la  madre. 

Mas  aquel  bien  pagará, 
que  hizo  Adan  y  Eva, 
y  ansi  nos  salvará 
5'  como  Matheo  lo  prueva: 
sin  diida  que  morir á. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  373 


OITAVAS   1. 
A  Christo  no  Horto. 

Divino  sol,  en  cuya  imagen  pura 
le  desean  ver  los  angeles  dei  cielo, 
y  en  cuyo  nonnbre  toda  criatura 
humilde  se  arrodilla  por  el  suelo, 
nuestra  culpa  eclipso  vuestra  hermosura 
dessas  gotas  de  sangre  con  el  velo, 
que  amor  vos  ha  humanado  por  tal  arte, 
que  seendo  Dios  temeis  por  vuestra  parte. 

Este  es  un  acto  raro  y  sobrehumano, 
en  que  mas  vuestro  amor  aveis  mostrado, 
pues  sin  entrevenir  agena  mano 
fue  cuchillo  el  temor,  mano  el  cuidado. 
Vuestro  mesmo  dolor  Dios  soberano 
os  tiene  por  mis  culpas  desagotado : 
vos  por  me  libertar  sangre  sudais, 
yo  vivo  dei  sudor  que  derramais. 


II. 

A  Christo  acoutado. 

De  la  planta  dei  pio  a  lo  mas  alto 
de  la  cabeça,  que  el  oido  serena, 
ni  un  pequeno  lugar  le  quedo  falto 
de  los  vestigios  de  la  injusta  pena. 


374  Obras  de  Fr,  Agostinho  da  Cruz 

Dió  ai  poder  divino  amor  assalto 
y  quedo  dei  amor  la  mano  Uena 
de  triunfos,  y  el  Dios  dei  alto  ciclo 
Ueno  de  golpes  dei  cruel  flagelo. 

Prodígio  enamorado  Christo  mio, 
que  por  enriquecer  la  esposa  ingrata 
desnudo  estais  ai  rigoroso  frio, 
roto  el  vestido  de  la  humana  plata. 
Quanto  baxastes  el  divino  brio, 
mas  es  ai  amor  la  imagen  grata : 
y  aun  si  ai  padre  os  mostrais  en  esse  estado, 
pregonará  que  sois  su  hijo  amado. 


III. 
A  Christo  coroado. 

Salid,  hijas  dichosas  de  Sion, 
con  passo  presto,  com  veloz  corrida ! 
mirad  de  vuestro  amado  Salamon 
la  cabeça  sagrada  enriquecida. 
Que  esta  es  de  su  imortal  coronacion 
la  fiesta  a  que  ab  eterno  se  combida, 
como  dulce  y  real  preparatório 
dei  nuevo  inseparable  desposorio. 

Pêro,  mi  buen  Jesus,  Salamon  nuevo, 
aunque  tanto  os  preciais  dessa  corona, 
quando  los  ojos  a  miraros  muevo 
con  Uanto  su  dolor  mi  alma  abona. 
Aunque  llorar  no  puedo  quanto  devo, 
que  es  mejor  la  razon  que  me  apassiona 
mas,  amado  Jesus,  mis  culpas  siento, 
que  son  las  que  an  dade  esse  tormento. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  375 


IV. 

A  Christo  com  a  cru\  nas  costas. 

Adonde,  mi  dulce  Dios,  cargado 

de  Adan  com  los  vilissimos  despojos, 
que  podreis  de  Michol  ser  despreciado, 
segun  humilde  os  miran  nuestros  ojos. 
El  choro  celestial  todo  admirado 
pasma  de  tanto  amor  en  los  anlojos, 
viendo  que  ai  peso  de  la  cruz  se  humilla 
aquel  a  quien  el  cielo  se  arrodilla. 

Santo  Isaac,  que  a  los  ombros  inocentes 
la  leiía  ansi  llevais  dei  sacrifício, 
porque  para  el  remédio  de  las  gentes, 
iguala  amor  las  fuerças  ai  servicio 
Pues  por  modos  hazeis  tan  excellentes 
vuestra  la  pena,  mio  el  beneficio, 
una  parte  me  dad  de  vuestra  cruz, 
porque  pueda  seguiros,  buen  Jesus ! 


V. 
A  Christo  crucificado. 

Serpiente  de  metal,  que  en  el  desierto 
a  los  ojos  dei  mundo  levantada 
ai  hombre  vida  dais,  que  estava  muerto, 
con  el  veneno  de  la  sierpe  airada. 


376  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Felice,  buen  Jesus,  ha  sido  cierto 
la  culpa  en  vuestros  ombros  descargada 
que  en  esse  mar  de  sangre  pura 
muere  el  tirano  que  matar  procura. 

Gorred  pues,  ovejuellas  desgarradas, 
a  la  voz  dei  pastor  que  tanto  os  ama, 
que  dexando  sus  penas  olvidadas 
por  la  vida  os  dar  muriendo  os  llama. 
Reved  de  las  corrientes  regaladas, 
que  por  todas  sus  venas  ais  derrama  ; 
llegá-os,  fatigado  pueblo  humano, 
ai  pecho  dei  divino  pelicano. 


MOTE. 

l  Como  es  possible,  mi  Dios, 
que  hecho  nino  esteis  llorando, 
estando  angeles  cantando 
paz  ai  hombre,  y  gloria  a  vos  ? 


VOLTAS. 

Van  cantando  que  en  Belen 
hecho  niíío  sois  nacido, 
y  que  de  una  virgen  parido 
sois  oi  para  nuestro  bien. 
Si  es  aquesto  assi,  mi  Dios, 
l  como  naceis  oi  llorando 
estando  angeles  cantando 
pa:{  ai  hombre,  y  gloria  a  vós  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  877 


Si  a  vuestro  padre  ofreceis 
mi  Dios,  aquesta  venida, 
y  aun  el  alma  y  la  vida 
y  la  sangre  que  teneis, 
l  como  es  possible,  mi  Dios, 
que  nazcais  nino,  llorando, 
estando  angeles  cantando 
pa:{  ai  hombre^  y  gloria  a  pós  ? 


DIALOGO   ENTRE    PECADOR    E   XRISTO. 

Si,  que  más  puede  el  amor. 

P.         i  Que  azeis,  nino  y  senor, 

nel  suelo  tan  pobrezito  ? 
X.         Crio-me  para  pastor. 
P.         i  Tu  pastor,  Dios  infinito  ? 
X.         Si,  que  más  puede  el  amor. 

P.         No  eres  tu  dei  cielo  seííor 
quen  ansi  te  ha  mudado? 
X.         Deseos  de  ser  pastor. 
P.         i  Dios  ha  de  guardar  ganado  ? 
X.         Si,  que  más  puede  el  amor. 

P.         Pues  dime,  nino  e  senor, 

si  es  pastor  i  como  es  tu  nombre  ? 

X.         Jesu,  nuestro  Redemptor. 

P.         i  Dios  eterno  ha  de  ser  hombre  ? 
Si,  que  más  puede  el  amor. 


378 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


ROMANCE. 


Ao  Ser  a/i  CO  Padre  São  Francisco. 


l  Quien  será  aquel  cavallero, 
que  trae  el  Rei  de  la  gloria 
el  cuerpo  lleva  herido, 
Dizen  que  en  el  monte  Alverne 
en  cinco  partes  dei  cuerpo 
Vino  volando  dei  cielo 
do  estava  el  santo  padre, 
con  lagrimas  de  sus  ojos 
viendo  como  el  Rei  dei  cielo 
por  re[de]mir  a  los  hombres 
el  criador  por  la  criatura, 
Dios  eterno  por  el  hombre 
El  alma  se  le  salia 
pensando  como  en  la  cruz 
sin  tener  quien  lo  consuele 
Qual  lo  peensa,  tal  lo  vido 
con  alas  de  serafin 
con  um  semblante  amoroso 
se  abaxo  ado  el  estava 
y  tanto  lo  apretó  consigo 
Tan  lierna  y  tan  dulcemente, 
que  ni  el  puede  dexar  a  Christo 
Tal  es  el  laço  de  amor 
con  el  sello  de  Dios  vivo. 


entre  todos  estremado, 
de  sus  armas  senalado  ? 
el  coraçon  trespassado, 
un  Seraphin  lo  ha  llagado, 
que  son  pies,  manos  y  lado. 
hazia  aquel  monte  sagrado 
en  oracion  enlevado ; 
el  campo  liene  regado, 
quiso  ser  crucificado, 
que  contra  el  avian  peccado 
el  senor  por  su  vasallo, 
mal  herido  y  mal  tratado, 
de  compassion  de  su  amado 
fue  en  todo  atormentado 
de  todos  desamparado, 
en  los  aires  levantado 
en  fuego  todo  abrasado 
qual  nadie,  basta  contarlo, 
y  en  sus  braços  lo  ha  llevado, 
que  en  el  fico  afigurado, 
entre  si  se  an  abraçado 
ni  Christo  queere  dexarlo. 
Con  que  los  dos  se  an  atado 
su  cuerpo  fico  sellado. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


379 


Las  senales  de  su  passion 
por  las  renovar  en  el  mundo, 
imprimio-las  Christo  en  el 
Quien  viere  bien  la  pintura, 
pues  tal  debuxo  como  este 
sino  fuera  en  San  Francisco 


en  el  las  ha  renovado : 
que  las  tenia  olvidado 
como  en  siervo  más  privado, 
bien  verá  quien  la  ha  pmtado 
ya  mas  se  vio  debuxado 
por  ser  de  Dios  tam  amado. 


38o  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


MOTE 
A'  Cru:{. 

Cruz,  remédio  de  mis  males, 
ancha  sois,  pues  cupe  en  vos 
el  gran  pontifice  Dios 
con  cinco  mil  cardenales ! 


GLOSA. 

Dulcíssima  cruz  sagrada, 
consvelo  en  la  conversion, 
cruz  en  quien  hasta  un  ladron 
halló,  quando  no  esperada, 
vida  eterna  y  salvacion. 

Cruz  a  quien  Dios  concedió 
sus  poderes  celestiales, 
cruz,  que  puedes  quanto  vales, 
cruz,  con  quien  Dios  se  medió 
cru:{,  remédio  de  mis  males. 

El  [que  no  tiene  medida 
medió  el  cuerpo  humanado 
con  vos  por  nuesiro  peccado  ^ 
quedastes  por  dar-nos  vida 
maior  que  el  cuerpo  sagrado. 

Infalible  conclusion 

es,  si  os  medis  con  Dios, 
quedando  iguales  los  dos, 
que  sois  ancha,  y  con  razon 
ancha  sois,  pues  cupe  en  vos. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  38 1 

Quien  durará,  cruz  divina, 

vuestra  grandeza  excellente, 

que  no  vea  claramente 

que  el  mismo  Dios  se  os  inclina 

y  baxa  a  la  cruz  la  frente. 
Es  notable  maravilla 

mediros  solos  los  dos, 

y  que  os  haja  sola  a  vos 

nel  Calvário  ara  y  silla 

el  gran  pontífice  Dios. 

No  quedo  Dios  satisfecho, 

quando  con  vos  se  medió, 

ser  solo  pêro  llevó 

el  amor  dentro  en  el  pecho, 

que  en  vos  le  crucifico. 
Y  por  quedardes  maior 

demás  de  quedar[desj  iguales 

y  dar  vida  a  los  mortales, 

tuvistes  Dios  y  el  amor 

con  cinco  mil  cardenales. 


ECOS. 

I 

l  Quien  me  tiene  sin  honor  ? 

Amor! 
l  Quien  me  tiene  sin  sentido  ? 

Olvido! 
•l  Quien  acaba  mi  esperança  ? 

Mudança ! 
Pues  mi  passion  nó  alcança 
remédio  por  ningun  modo, 
oi  me  destruen  de  todo 
Amor,  olvido  j"  mudança. 


382  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


l  Quien  me  tiene  sin  alento  ? 

Tormento ! 
l  Quien  me  tiene  en  cadena  ? 

La  pena. 
l  Quien  me  tiene  sin  vigor  ? 

Dolor. 
Pues  me  falta  el  favor 
de  quien  pensava  aiudar-me, 
por  fuerça  aura  de  acabar-me 
Tormento,  pena  f  dolor. 


^  Quien  me  quita  el  passatiempo? 

El  tiempo ! 
l  Quien  me  procura  estorvar  ? 

El  lugar ! 
l  Quien  me  dá  moléstia  alguna  ? 

Fortuna. 
Si  el  resplandor  de  la  luna 
basta  un  nublado  quitar, 
mal  puedo  yo  conquistar 
Tiempo,  lugar  j  fortuna. 


4 

l  Quien  me  derruba  ai  profundo  ? 

El  mundo ! 
l  Quien  me  oprime  como  António  ? 

El  demónio ! 
l  Quien  ay  que  nel  alma  me  encarne? 

La  carne. 
Acertado  es  que  descarne 
dei  coraçon  y  dei  pecho, 
como  gente  sin  provecho 
ai  mundo,  demónio  y  carne. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  583 


l  Quien  se  saca  de  peccar  ? 

Penar ! 
l  Quien  de  dar-se  ai  malbiver  ? 

Gemer ! 
^  Quien  de  seguir  ai  plazer  ? 

Arder ! 
Si  en  tal  trance  se  á  de  ver 
quien  pretende  cosa  injusta, 
malgusto  tiene  el  que  gusta 
de  penar,  gemer  j'  arder. 


l  Que  causa  ha  mundano  gusto  ? 

Desgusto ! 
l  Que  ay  debaxo  de  su  manto  ? 

Llanto ! 
l  Que  dá  pêra  descansar  ? 

Pesar ! 
Luego  no  cy  que  confiar, 
ni  que  tenerse  esperança 
de  quien  tan  solo  se  alcança 
desgusto,  llanlo  y  pesar. 


l  Quien  me  bolverá  a  mi  ser  ? 

No  ver ! 
l  Quien  me  podrá  revivir  ? 

No  oir ! 
l  Quien  me  vendrá  a  remediar  ? 

Callar! 
Si  con  esso  he  de  cobrar 
lo  que  he  venido  a  perder, 
forçoso  me  avrá  de  ser 
no  ver,  no  oir,  y  callar.  , 


384  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


8 

^  Quien  podrá  dar-me  solaz? 

La  paz ! 
l  Quien  podrá  dar-me  consuelo  ? 

El  cielo ! 
l  Quien  alegrar  mi  memoria  ? 

La  gloria ! 
Si  salgo  con  la  vitoria, 
que  he  pretendido  alcançar, 
por  devisa  he  de  sacar 
la  pa\,  el  cielo  y  la  gloria. 


l  Quien  dá  descanso  sin  guerra  ? 

La  tierra ! 
l  Quien  dá  segura  posada  ? 

El  azada ! 
l  Quien  los  peligros  taja  ? 

La  mortaja ! 
En  vano  luego  trabaja 
quien  más  procura  acquerir  [sic] 
de  lo  que  puede  cobrar: 
la  tierra,  a^ada,  y  mortaja. 


10 

l  Quien  da  lo  que  no  se  vê  ? 

La  fee ! 
l  Quien  lo  más  dudoso  alcança 

La  esperança ! 
l  Quien  lleva  a  la  eternidad  ? 

La  caridad  1 
Aquessa  es  liana  verdad, 
y  ansi  de  oi  mas  quiero  hazer 
que  esten  siempre  en  mi  poder 
fee,  esperança  y  caridad. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  385 


MOTE. 

En  sola  la  miséria  de  mi  vida 

nego  fortuna  su  comun  mudança ! 
,;  Adonde  podré  huir  que  sacudida 
un  rato  sea  de  mi  la  grave  carga  ? 
Por  mil  razones  pienso  que  es  cordura 
renovar  tanto  el  mal  que  me  atormenta, 
que  a  morir  venga  de  tristeza  pura. 


GLOSA. 

Triunpha  el  tiempo,  y  con  mudable  rueda 
la  fortuna  se  buelve  en  un  instante  •, 
el  que  estava  delante  atrás  se  queda, 
quando  el  que  tropeio  puso  delante. 
Ningun  estado  ay  trisie,  que  no  pueda 
esperar  un  efeto  semejante, 
y  veo  esta  esperança  estar  perdida 
én  sola  la  miséria  de  mi  vida. 

Qualquiera,  triste,  espera  la  ventura, 
que  sabe  ser  mudable  y  lisonjera, 
que  aora  con  los  bienes  se  apressura 
y  con  los  danos  luego  firme  espera. 
Mas  esperança  en  mi  fuera  locura 
pues  claramente  el  alma  considera, 
que  en  mi  desdicha  y  mi  desconfiança 
nes:ó  fortuna  su  comun  mudança 

No  ay  lugar  que  no  ocupe  el  desengano, 
y  aunque  quisiera  huir,  fuera  impossible, 
porque  no  me  dexara  el  próprio  dafío 

35 


386  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

ni  a  la  suerte  cruel  fuera  invesible, 
que  sacudida  esta  pêra  mi  dano, 
l  que  dura  ?  i  que  tirana  ?  i  y  que  terrible  ? 
;  que  peligrosa  y  fiera  que  ha  salida  ? 
r  adonde  podre  huir  que  sacudida  ? 

Ni  tiempo  ay,  ni  fortuna,  ni  mudança, 
ni  remédio  a  mi  dano  que  es  forçado, 
ni  me  curan  enganos  de  esperança 
ni  a  sus  o)os  conozco  mi  cuidado ; 
desenganada  está  mi  confiança, 
que  un  dia  no  avrá  tambien  llegado, 
que  devertida  en  pena  que  es  tan  larga 
un  rato  sea  de  mi  la  grave  carga. 

En  aspereza  y  mal  tan  duro  y  fuerte 
no  sé  como  la  vida  se  detiene, 
que  ningun  lance  tiene  ya  la  suerte, 
que  otro  remédio  [de]  a  mi  desdicha. 
Necedad  es  no  dar-me  própria  muerte, 
porque  biviendo  más  no  muera  y  pene^ 
pêro  si  mi  querer  ansi  se  apura 
por  mil  ra^ones  pienso  que  es  cordura. 

Si  crece  el  merecer  en  sufrimiento 
quando  contra  la  suerte  se  pelea, 
no  vea  io  en  mi  mal  ningun  contento, 
ni  la  causa  se  obligue  ni  me  vea. 
En  sacrifício  a  amor  doy  mi  tormento^ 
y  para  que  más  noble  y  puro  sea 
me  satisfaze  y  agrada  y  contenta 
renovar  tanto  el  mal  que  me  atormenta^ 

No  muera  yo  de  estar  desenganado, 

ni  de  ver  que  mudanças  se  han  perdido, 
ni  de  estar  de  mi  bien  desesperado 
y  mi  tan  firme  amor  puesto  en  olvido. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  387 

Biva  triste,  penoso  y  desgraciado, 
más  triste  que  los  tristes  que  lo  an  sido 
hasta  que  tanto  canse  la  ventura, 
que  a  morir  venga  de  triste\a  pura. 


CANCION  A  LA  MUERTE. 


Rompe  los  lazos  de  la  prision  fuerte, 
anima  venturosa,  en  la  partida 
con  que  saldrás  de  amargas  confusiones 
para  la  eiernidad  e  imortal  vida, 
por  la  estrada  comun  que  llaman  muerte 
y  es  termino  de  enojos  y  passiones ! 
Dexarás  de  seguir  las  ilusiones 
de  los  sentidos  debiles,  que  enganan*, 
y  mientras  te  acompanan, 
aunque  baxos,  grosseros,  se  inclina 
tu  parte  más  divina, 
que  va  pedir  socorro  ai  aposento 
de  los  fantasmas  dei  entendimiento. 

2 
Desnuda  quedarás  de  la  librea, 

que  de  color  mortal  humores  vários 

para  hazer-te  a  su  mano,  te  componen, 

ni  de  elementos  entre  si  contrários 

ofenderá  tus  fuerças  la  pelea, 

con  que  lo  que  an  compuesto  discomponen ; 

l  No  miras  que  peligros  se  te  oponen  ? 

l  mientras  cubierta  desta  vil  corteza 

escondes  la  nobleza, 

que  a  tu  criador  te  buelve  semejante  ? 

Camina,  y  en  un  instante 


388  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

te  bailarás  libre,  en  la  gran  pátria,  fuera 
de  adonde  el  tiempo  sigue  su  carrera ! 

3  /. 

Quando  veas  dei  cuerpo  desasirte 

no  temas  el  morir,  que  tu  no  mueres : 
sola  la  tierra  en  tierra  se  deshaze ! 
Como  de  mortal  mano  hechura  no  eres 
espirito  desnudo  has  de  partir-te : 
assi  ai  movedor  primero  aplaze  *, 
las  obras  son  senal  dei  que  las  haze. 
Mientras  te  tiene  el  cuerpo  en  sus  cadenas, 
cosas  de  cuerpo  agenas 
entendiendo  y  amando,  tal  te  paras, 
que  entre  tus  obras  declaras 
poder  estar  sin  cuerpo,  y  si  esto  puedes, 
l  quien  podrá  hazer-te  que  imortal  no  quedes? 

4 
No  la  triste  vejez,  no  enfermedades, 

no  riesgos  de  la  mar  y  de  la  tierra, 

no  batalla  sangrienta  y  peligrosa  •, 

solo  ai  cuerpo  estas  cosas  hazen  guerra. 

Tu  que  traes  con  él  contrari_'dades, 

mal  puedes  ser  con  el  la  misma  cosa. 

Manda  la  voluntad  imperiosa, 

han  de  servir  los  miembros  obedientes; 

son  cosas  diferentes, 

uno  que  manda,  el  otro  que  obedece; 

lo  mismo  es  que  acontece 

entre  el  entendimiento  y  los  sentidos 

de  parte  a  parte  en  votos  divididos. 

5 
La  continua  ambicion,  la  mortal  hambre 
de  hacer  eterno  el  curso  de  la  fama, 
que  con  cien  lenguas  y  cien  alas  vuela, 
de  esperanças  urdir  perpetua  trama, 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  389 

pensando  que  las  parcas  con  su  estambre 

podran  hacer  incorrutible  tela 

bivir  como  soldado  en  sentinela, 

lo  porvenir  buscando  en  las  estrellas, 

l  que  son  sino  centellas 

de  la  inmortalidade  ?  con  cuya  lumbre 

por  natural  costumbre 

colunas,  letras,  arcos,  mausoleos, 

contra  los  anos  dexas  por  irofeos. 

6 

Ni  con  esto  se  quieta  el  movimiento 
de  un  deseo  que  corre  a  rienda  suelta 
trás  cosas  que  de  un  soplo  desvanecen, 
aun  no  las  halla  bien  quando  dá  vuelta 
sin  parar  hasta  el  mas  sublime  assiento, 
do  las  vidas  sin  muertes  permanecen. 
Otros  más  anchos  campos  se  le  ofrecen, 
do  sin  trocar  verano  o  invierno 
se  goza  un  prado  eterno; 
otras  montarias,  selvas,  rios,  fuentes, 
cuyas  limpias  corrientes 
hazen  con  que  de  todo  allá  se  enfria 
la  ardiente  sed  de  nuesira  hidropesia. 

7 
Dexa  este  vaso  que  es  de  vil  escoria, 
todo  de  llanto,  y  de  dolor  compuesto, 
hediondo,  quebradizo,  y  corrutible, 
quando  buelvas  despues  ai  mismo  puesto 
redundará  de  ti  en  el  tal  gloria, 
que  lo  haga  ágil,  sotil,  claro,  impassible : 
espectáculo  aora  tan  horrible, 
verásse  en  tu  presencia  todo  hermoso, 
un  cuerpo  glorioso, 
libre  dei  yugo  de  mortal  estado, 
tanto  mejor  ornado 


Bgo  Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz 

quanto  eterna  beldad  es  má;5  perfecta, 
que  estobra  que  a  la  muerte  está  sujeta. 

8 
En  este  dia,  que  piensas  que  es  postrero, 
será  con  más  razon  tu  nacimiento ! 
Mira  los  passos  bien  por  do  veniste : 
nueve  vezes  con  próprio  movimiento 
renovado  ha  la  luna  su  luzero ; 
y  en  el  maternal  ventre  te  estuviste  \ 
desta  prision  a  ver  la  luz  saliste, 
mas  no  clara  dei  todo,  que  ha  quedado 
enbuelta  en  un  nublado, 
y  aun  assi  no  puedes  bien  gozalla, 
que  son  para  miralla 
dos  ventanas  tus  ojos,  cuyas  puertas 
aora  estan  cerradas,  aora  abiertas. 

9     , 
Es  todo  quanto  miras  frágil  cosa, 
débil  este  aire,  y  su  luz  reparte 
descansando  una  noche  a  cada  dia. 
l  Que  es  lo  que  te  acobarda  a  no  passar-te 
para  la  otra  region  mas  clara  y  hermosa 
do  habita  eternamente  el  alegria  ? 
Oh  quien  allá  se  viera !  y  que  seria 
a  una  alma  ver  que  en  todo  lo  passado 
a  escuras  ha  andado, 
quando  juzgue  por  burla  y  por  mentira 
quanto  aora  la  admira, 
ni  tema  escuridad,  ni  sienta  pena, 
toda  de  luz  divina  y  gloria  Uena. 

10 

Renacerás  aora,  y  este  segundo 
nacimiento  te  lleva  a  mejor  vida; 
tambien  en  el  primero  atada  estavas 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  •  Sgi 

desata-te  otra  vez;  que  entretenida 

en  la  carcel  estás  dei  cuerpo  inmundo 

con  el  oficio  vil  de  tus  esclavas. 

Verás  que  sin  respeto  te  quexavas 

de  las  oras  que  buelan  con  presteza  •, 

dio-te  naturaleza 

esta  vida,  ella  misma  te  procura 

otra  con  gran  usura. 

Agravias  la  en  llorar,  hombre  siente 

como  hiziste  ai  nacer,  nino  inocente. 

II 

Vé-te  a  tu  pátria,  que  no  será  qualquiera 
de  los  estrechos  limites  dei  suelo, 
esta  o  aquclla  region,  cindad,  o  villa ; 
mas  será  todo  el  estrellado  cielo 
sobre  los  fuertes  axes  de  la  esfera, 
donde  el  supremo  juez  tiene  su  silla. 
Oh  siempre  nueva  y  antiga  maravilla  1 
montes  eternos  cuyo  gran  deseo 
por  las  sombras  que  veo 
me  llevará  seguro  entre  esquadrones 
de  barbaras  naceones, 
aunque  vea  procurar  ai  duro  Geta 
en  mi  desnudo  pecho  su  saeta. 

12 

Conviene  reposar  en  breve  sueno , 
han  sido  trabajosas  las  jornadas 
trás  quien  se  halla  descanso  sin  medida. 
Adiós,  mis  prendas ;  fuesies-me  prestadas 
por  poço  tiempo  \  pide-vos  el  dueno ; 
no  me  importa  saber  por  quien  vos  pida, 
o  vos  venga  a  buscar  mano  homicida 
o  traicion,  o  dolência,  o  duro  caso. 
Basta,  que  llega  el  plazo; 
muchos  caminos  van  a  este  camino, 
Ya  ya,  me  determino : 


392  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


lo  mismo  es  ir  sorviendo  gota  y  gota, 

que  de  un  trago,  pues  todo  ai  fin  se  agota. 

i3 
Tocan  a  recoger :  en  paz  se  vaya 
la  alma  a  eterno  reposo. 
^  Quien  hay  que  en  un  naufrágio  temeroso 
no  quiera  ir-se  a  la  playa  ? 
Si  esto  es  nuevo  bivir,  i  que  más  pretendo  ? 
En  tus  manos,  oh  muerte,  me  encomiendo. 


MOTE. 


Las  tristes  lagrimas  mias 
en  piedra  hazen  senal, 
y  en  vos  nunca,  por  mi  mal. 


GLOSA. 

Los  rios  naturalmente 
corren  derecho  a  la  mar, 
y  su  ligera  corriente 
en  saiiendo  de  la  fuente 
se  inclina  siempre  a  baxar. 

Al  contrario  van  comendo 
de  alia  siempre  subindo 
a  vos  por  estranas  vias, 
y  en  bivas  Uamas  ardiendo 
las  tristes  lagrimas  mias. 

Y  como  el  agua  subir 
no  puede  sin  otra  fuerça, 
el  alma  triste  ai  salir 


Obras  de  Fr.  Agostinao  da  Cruz  SgS 

le  representa  do  á  de  ir 
y  con  esto  la  esfuerça. 

Mas  no  tanto  que  se  atrevan 
a  fiar  de  si  que  os  muevan, 
aunque  su  poder  es  tal, 
que  dei  impetu  que  llevan 
en  piedras  ha\en  serial. 

Y  no  deve  de  espantar 
tal  estremo  a  quien  provo, 
que  fuerça  tiene  el  llorar*, 
mas  solo  no  os  ablanda 
lo  que  a  ellas  ablandó. 

Son  lagrimas  sin  ventura 
a  quien  razon  assegura 
duelo  de  anciã  tan  mortal 
hasta  en  una  pena  dura, 
^  en  vos  nunca,  por  mi  mal. 


MOTE. 


Lagrimas  que  no  pudieron 
vuestra  dureza  ablandar, 
yo  las  bolveré  a  la  mar, 
pues  de  la  mar  salieron. 


GLOSA. 


Des  que  el  pecho  abraso 

el  rayo  de  vuestros  ojos, 

el  amor  que  lo  encendió 

de  tus  cenizas  salió 

con  más  fuerça  y  más  despojos. 


394  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Y  SUS  intentos  crueles 

el  alma  abrasar  quisieron, 
mas  dos  fontes  se  corrieron 
con  tantas  y  tan  fieles 
lagrimas  que  no  pudteron. 

Aunque  el  alma  socorrida 
pudo  contrastar  la  llama, 
siendo  de  amor  encendida 
no  podrá  escapar  la  vida, 
que  enfin  no  bive  quien  ama ! 

Y  ansi  de  vuestro  sosiego 

ya  no  vengo  a  no  me  espantar, 
que  assi  ame  y  nos  haze  amar 
l  como  podran  agua  y  fuego 
viieslra  dureza  ablandav? 

Ondas  mis  lagrimas  son, 
que  de  la  mar  se  levantan, 
y  anegando  el  coraçon 
luego  en  vuestra  condicion, 
como  en  rocha  le  quebrantan. 

Ya  que  la  vista  de  mi  fee 
aguas  me  hazen  acabar, 
do  pense  de  me  salvar, 
pues  de  la  mar  las  saque, 
yo  las  bolveré  a  la  mar. 

Siendo  cosa  natural, 

que  quien  muere  restituya 
viendosse  en  un  trance  tal 
buelvo  ai  sofrimiento  el  mal, 
la  vida  ai  amor  que  es  suya. 

Mis  gutos  a  las  mudanças, 
que  siempre  los  persiguieron, 
mis  anciãs  ado  naçieron, 
a  la  mar  las  esperanças 
puesque  de  la  mar  salieron ! 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  SqS 


MOTE 
A  El  Rei  Phelippe  o  Segundo. 

l  Di,  contento,  adonde  estás  ? 
que  no  [te]  tiene  ninguno : 
quien  piensa  tener  alguno 
no  sabe  por  donde  vas ! 

GLOSA. 

Lo  que  se  deve  entender, 
fortuna,  de  tu  caudal, 
es  que  siendo  temporal, 
no  puedes  satisfazer 
ai  alma  que  es  inmortal. 

Tu  me  diste  y  me  vas  dando 
honra,  estado,  reino  y  mando; 
y  es  tan  poço  quanto  das, 
que  digo  de  quando  en  quando*, 
^  di,  contento,  adonde  estás  ? 

No  estás  entre  los  favores 
deste  mundo  y  sus  flores, 
ni  en  el  fin  de  sus  de.seos, 
ni  en  riquezas  y  amores, 
ni  en  vitorias  y  trofeos. 

En  fin,  no  te  halla  alguno, 
que  todos  dizen  de  no. 
Y  entienda  el  mundo  importuno, 
que  pues  no  te  tengo  yo, 
que  no  te  te  tiene  ninguno. 


396  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Buscar  contento  en  la  tierra 
es  buscar  pena  en  el  cielo, 
y  en  el  abismo  consuelo, 
tranquilidad  en  la  guerra 
y  calor  dentro  en  yelo. 

Dentro  ni  fuera  de  Hespana 
no  le  ay,  porque  acompana 
en  su  trono  ai  trino  y  uno ; 
y  fuera  de  aqui  se  engana 
quien  piensa  íener  alguno. 

Quien  te  busca  antre  contentos, 
contento,  tenga  entendido, 
que  te  perde  y  va  perdido, 
porque  entre  los  descontentos 
sueles  estar  escondido^ 

Y  si  Dios,  fuera  de  ti, 
padecio  penas  por  mi, 
para  entrar  onde  estas, 
el  que  no  va  por  aqui 
no  sabe  por  donde  vas. 


MOTE. 

En  ningun  médio  puedo  sustentar[me], 
estando  los  estremos  tan  Uegados, 
que  me  ayais  de  valer  ó  aborrecer. 


GLOSA. 

El  destino  cruel  que  me  detiene 
en  dura  servidumbre  tantos  anos, 
por  do  viene  a  olvidar  lo  que  conviene 
ai  alma  que  escogió  bivir  de  enganos 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  897 

Porqne  menos  me  entienda  y  más  no  pene, 
te  escondi  a  ti  mi  fee  y  a  ti  mis  danos 
de  suerte  que  se  llegó  a  entender  me 
en  ningun  médio  puedo  susíeníar-me. 

Voyme  trás  mi  cuidado  a  rienda  suelta 
sin  ver  de  ado  parti,  ni  ado  camino; 
el  cielo  da  una  buelta  y  otra  buelta 
y  siempre  me  alia  en  quexa  de  contino. 

La  razon  y  el  querer  trago  en  rebuelta 
lo  que  no  puede  ser,  esso  imagino, 
l  que  alivio  me  dareis,  mis  fieros  hados 
estando  los  estremas  tan  llegados? 

Mostra-me  un  solo  bien  en  tal  estado 
si  tristes  pueden  ver  lo  que  desean, 
que  sepan  quien  me  lleva  el  deseado 
fin  daquella  prision  que  otros  grangean. 

Quiçá  vendré  moriendo  a  ser  llorado 
de  los  ojos  que  hazeis  que  no  me  vean 
yescusaré  de  a  vos  ofrecer-me 
que  me  ayais  de  valer  o  aborrecer. 


MOTE. 

Este  mi  mal  tan  estrano, 
si  os  viesse,  aunque  mayor, 
nunca  seria  dolor 
por  mucho  que  fuesse  el  dano. 


GLOSA. 

Pudieron  médios  injustos 
quitar  su  sol  a  mis  ojos, 


SgS  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

dando-me  estranos  enojos, 
como  naturales  gusios, 
llueven  rayos  de  disgustos. 
A  su  centro  llega  el  dano 
y  aun  no  me  desengano 
si  el  bien  puede  hazer-me  mal, 
que  ha  quedado  natural 
este  mi  mal  tan  estrano. 


Si  mejorara  mi  suerte 
aun  de  perdidas  passadas 
como  en  llagas  apretadas 
se  hiziera  el  dolor  más  fuerte 
acercarasse  mi  muerte. 

Pêro  todo  templa  amor, 
y  si  creciera  el  dolor 
de  haver  dejado  de  os  ver, 
menor  fuera  el  parecer 
si  os  viesse,  aunque  mayor. 

Pudiera  cobrar  tal  brio 

el  alma  en  vuestra  presencia 
que  quitara  la  potencia 
dei  dolor  ai  alvedrio 
un  licito  desvario. 

Do  razon  fuera  peor 
hallaria  tal  sabor 
en  el  mal  de  que  muriera 
que  por  mucho  que  doliera 
nunca  seria  dolor. 

Ay  mis  locos  pensamientos ! 
que  de  bienes  invisibles 
hazer  provechos  possibles, 
son  vanos  atrevimientos, 
vayan,  pêro,  mis  intentos. 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  Sgç 

Ado  los  lleva  este  engano 
si  llegasse  un  bien  tamano, 
de  mil  dificiles  hechos 
seria  mucho  el  provecho 
por  mucho  que  fuesse  el  dano! 


MOTE. 


j  Pluguiera  a  vos,  mi  Dios,  que  no  nasciera, 
o  ya  que  nasci,  nunca  ai  mundo  amara, 
o  ya  que  amé,  solo  en  vos  me  empleara, 
Senor,  que  mi  amor  me  agradeciera ! 


GLOSA. 

Estoy  de  lepra  fea  tan  llagado, 

que  hasta  lo  interior  tengo  podrido, 

que  ya  no  siento  aver  a  Dios  dexado, 

ni  menos  el  porque  le  he  ofendido. 

Sin  amor  mi  coraçon  tengo  yelado, 

la  alma  sin  luz,  el  pecho  endurecido ; 

y  pues  fuy  para  vos  quien  no  debiera, 

}  pluguiera  a  vos,  mi  Dios,  que  no  nasciera  t 

Quien  me  robô,  senor,  la  libertad 
la  qual  en  me  formando  me  dotaste  ? 
l  que  es  de  mi  entendimiento  y  voluntad 
y  mi  memoria  con  que  mi  alma  ornaste  ? 
i  Dexé-os,  via  y  luz,  vida  y  verdad, 
con  que  dexar  ai  mundo  me  ensenaste  ! 
Ah  1  quien  no  nasciera  I  o  ya  acabara  1 
/  o  ya  que  nasci  nunca  ai  mundo  amara  l 


400  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Dexé-me  enganar  de  mil  enganos, 
(que  como  cego  cegue)  y  vanidades 
sin  nunca  echar  de  ver  los  desenganos 
dei  mundo  y  sus  mentiras  y  falsidades, 
y  despues  que  gaste  mis  largos  anos 
en  gustos  vanos,  plazeres,  novedades 
disse :  j  ah  quien,  mi  Dios,  solo  en  vos,  los  gastara 
o  ya  que  amé,  solo  en  vos  me  empleara ! 

Si  vos  para  servir-me  todo  hizistes 
y  todo  a  mi  para  vos  solo  amaros 
para  que  ame  ai  mundo  permitistes 
o  no  me  acabastes  antes  que  dexaros, 
que  [no]  nos  da  o  haze  el  mundo  sino  tristes 
y  que  bienes  no  nos  dais  solo  en  daros. 
j  Ah  quien,  mi  Dios,  con  vos  ya  allá  se  viera 
Seííor,  que  mi  amor  me  agradeciera  !  * 


MOTE. 

Passo  la  vida  solo  en  contemplar-te, 
y  en  la  contemplaçion  me  desespero, 
no  podiendo  hazer  más  que  desearte. 


GLOSA.. 

El  coraçon  más  preso,  el  pensamiento 
más  suelto  buela  a  la  region  suprema 
y  sin  interromper-se  de  su  intento 
en  Ia  esphera  de  amor  sus  alas  quema. 
Ansi  queda  más  firme  y  su  aposento 
haze  en  ti,  mi  senora,  hasta  la  estrema 
hora,  y  pues  en  ninguno  ay  olvidar-se, 
passo  la  vida  solo  en  coníemplar-te. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  401 

Contemplo  en  la  ocasion  de  mis  enojos, 
y  como  porfiados  permanecen 
ei  contrario  en  el  bien,  que  a  un  voltar  de  ojos 
sus  glorias  van  huyendo  y  desvanecen. 
Todo  son  fantasias,  todo  antojos, 
y  si  apretallos  quiero,  no  parecen : 
contemplo  que  son  algo  y  temo  y  espero, 
y  en  la  contemplacion  me  desespero. 

Perdida  la  esperança  y  quasi  muerto 
en  alto  mar  me  quedo  en  soledad ; 
si  a  salir  pruevo  el  camino  incierto 
si  las  ondas  contrasto,  es  vanidad. 
Impedido  dei  todo  veo  el  puerto 
y  vencida  ya  mas  la  tempesiad 
de  lexos  con  el  faro  oso  mirarte, 
no  pudiendo  ha\er  mas  que  desearte. 


MOTE. 

No  pudieron  más  subir 

mis  pensamientos,  mi  Dios; 
y  ansi  solo  estan  en  vos. 


GLOSA. 

Quando,  mi  Dios  y  senor, 

veo  que  tanto  me  amais, 

que  aun  despues  de  muerto  echais 

dei  pecho  rios  de  amor 

con  que  mis  erros  lavais, 
No  hay  razones  ni  desculpas 

con  que  mi  verguença  huir, 

pues  que  por  [los]  redemir 

36 


402  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

tanto  os  baxaron  mis  culpas 
no  pudieron  más  subir. 

Y  ya  que  conozco  que  soy 
quien  os  ha  crucificado 
doy  me  a  vos  por  el  pecado, 
aunque  muy  poço  os  doy, 
pues  doy  lo  que  me  haveis  dado. 

Mas  si  dei  precio  las  sobras 
muriendo  pagais  por  nos, 
crucificar  quiero  en  vos 
mis  palabras  y  mis  obras, 
mis  pensamientos,  mi  Dios. 

Justo  es  que  aqui  me  dessangre 
en  los  clavos  que  os  rompieron, 
que  si  en  vos  sangre  vertieron 
dar  [debo]  dei  alma  la  sangre 
a  quien  ellos  vida  dieron. 

Todo  el  rigor  se  asserena 
viendo-os  mis  ojos,  mi  Dios, 
que  en  mi  ven  ia  pena  atroz 
y  en  vos  ya  paga  la  pena 
y  ansi  solo  estan^  en  vos. 


OUTRA  GLOSA  AO  MESMO  MOTE. 

En  aquella  eterna  luz, 

que  dende  la  empiria  cumbre 
a  todo  el  hombre  da  lumbre 
y  haze  occidente  en  la  cruz, 
porque  hasta  el  infierno  alumbre, 

Mi  viejas  alas  ardieron 
para  de  otras  me  vestir, 
con  que  solo  ai  cielo  he  de  ir, 
mas  si  Dios  en  la  cruz  vieron, 
non  pudieron  más  subir. 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  4o3 

Fueron  de  ícaro  mis  alas 

ai  sol  dei  divino  amor, 

y  en  el  mar  de  mi  dolor 

se  anegaron  plumas  malas 

porque  volaste  mejor 
Que  como  en  si  Uevan  dentro 

el  fuego  de  aquella  voz, 

que  ai  bien  llama  a  todos  nos, 

solo  en  vos  allan  su  centro, 

mis  pensamieníos,  mi  Dios. 

Corre  el  fuego  a  su  region, 
y  el  aiie  a  la  sua  en  buelo, 
la  agua  ai  mar,  la  piedra  ai  suelo, 
y  a  Dios  las  almas,  pues  son 
partes  dei  todo  dei  cielo. 
Gloria  inmensa  allan  alli 
con  vosco  estando,  mi  Dios, 
dexaros  es  caso  atroz, 
pues  sin  vos  no  estan  en  si, 
y  ansi  solo  estan  en  vos. 


404  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


SONETO   I. 
A  Assunção  de  Nossa  Senhora. 

En  turquesadas  nubes  y  celajes 
estan  en  los  alcazares  empirios, 
con  blancas  achas  y  [con]  blancos  cirios, 
dei  sacro  Dios  los  soberanos  pajés. 

Humean  de  mil  suertes  y  linajes 
entre  amaranto  y  plateados  lirios 
inciensos  índios  y  pevetes  sirios 
sobre  alhombras  de  lazos  y  follajes. 

Por  manto  el  sol,  la  luna  por  chapines 
llegó  la  virgen  a  la  empírea  sala : 
visita  que  esperava  el  cielo  tanto. 

Echaronse  a  sus  pies  los  seraphines, 

cantaronle  los  Angeles  la  gala, 

y  asentóla  a  su  lado  el  verbo  santo. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  4o5 


II. 

Ao  Advento  de  Chrisio. 

l  De  do  venis,  Dios  alto  ?  —  dei  altura. 
l  Que  motivo  traeis  ?  —  de  enamorado. 
l  Y  que  librea  es  essa  ?  —  de  encarnado. 
l  Y  quien  os  la  vestió  ?  —  la  Virgen  pura. 

l  Porque  venis  criador  ?  —  por  la  criatura. 
l  Y  que  quereis  por  esso  ?  —  ser  amado. 
l  De  quien  reçebis  fuerça  ?  —  de  mi  grado. 
l  Por  quê  ?  —  por  dar  reparo  a  mi  echura. 

l  Que  tal  bailais  el  alma  ?  —  endurecida. 

l  Pues  porque  le  hazeis  bien  ?  —  porque  es  mi  officio. 

l  Que  tanto  es  vuestro  amor  ?  —  es  sin  medida. 

l  Con  que  os  lo  pagaran  ?  —  con  buen  servicio. 
l  Que  más  haran  por  vós  ?  —  dar-me  la  vida, 
Pues  yo  le  di  la  mia  en  sacrifício. 


III. 
A  Christo  no  Horto. 

*  Dezid,  senor,  si  no  teniades  animo 
para  bever  el  cálix  que  dixistes : 
l  por  que  causa  a  beverlo  os  oíFrecistes 
con  pecho  fuerte  y  coraçon  magnânimo  ? 


4o6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Y  si  entonces  mostrastes  viril  animo, 
l  porque  tan  presto  os  cnflaqueçistes  ? 
Acabad  Ia  hazanha  que  emprendistes, 
que  no  es  de  Dios  mostrar-se  pusilânime.  • 

t  —  Pecador,  mi  flaqueza  no  te  assombre, 
que  quando  prometi  la  vida  dar-te, 
como  era  solo  Dios,  nada  temia. 

Mas  como  soy  agora  Dios  y  hombre, 
teme  la  carne  que  es  de  vuestra  parte, 
el  spirito  no,  que  es  de  la  mia  ». 


IV. 
A  Chrisío  crucificado. 

Este  largo  martirio  de  la  vida, 
la  fee  sin  ella,  y  la  esperança  muerta, 
el  alma  recordada  y  tan  despierta, 
ai  dano  y  ai  remédio  tan  dormida  ; 

La  voluntad  ai  gusto  tan  rendida, 
entrar  el  mal,  cerrar  trás  si  la  puerta 
con  diligencia  y  gana  descubierta, 
que  el  bien  no  halle  entrada,  ni  saida. 

Ser  los  alívios  mas  sangrientos  laços, 
y  riendas  livres  de  los  desconciertos, 
efectos  son,  Senor,  de  mis  pecados, 

l  De  que  me  an  de  livrar  esses  tus  braços, 
que  para  recibir-me  estan  abiertos, 
y  por  no  castigar-me  estan  clavados  ? 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  407 


V. 
Ao  Menino  no  presépio. 

Si  sois  dei  cielo  gloria  y  alegria 
dezi-me,  nino  i  porque  estais  llorando  ? 
Si  dais  luz  ai  sol  que  está  alumbrando, 
l  porque  naceis  en  noche  escura  y  fria  ? 

Si  sois  dei  Padre  la  sabiduria 

;  porque  ansi  chiquito  estais  callando  ? 

Si  Angeles  de  vos  estan  temblando 

l  porque  temblais,  dezid  vos,  gloria  mia  ? 

Si  sin  principio  sois,  i  como  nacido  ? 

si  criador,  ;  como  [sois]  criatura  ? 

si  quedais  en  el  cielo,  i  aqui  como  venido  ? 

Estremos  son  de  amor,  que  a  mas  altura 
ha  os  llevado  Dios,  porque  ha  querido 
nacer  de  una  madre  virgen  y  pura. 


VI. 
Ao  mesmo. 

Si  sois  tan  grande  Dios,  imenso,  eterno, 
que  apenas  en  el  cielo  aveis  cabido 
^como  naceis  chiquito,  assi  despido, 
llorando  ai  frio  en  médio  dei  invierno  ? 


4o8  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Del  Padre  aquel  amor  immenso  y  tierno 
ansi  lo  ha  procurado  y  ansi  querido 
para  que  pague  (sin  lo  aver  devido) 
de  Adan  la  culpa  y  pena  dei  infierno. 

Como  leon  se  estava  allá  en  el  cielo, 
mas  amor  dei  hombre  le  ha  forçado, 
que  nazca  hècho  cordero  oi  en  el  suelo. 

Porque  dei  suelo  el  hombre  llevantado 
con  las  alas  de  amor,  llegue  de  un  buelo 
ai  cielo  donde  ha  oi  por  el  baxado. 


VII. 
A  São  Francisco. 

Si  acaso,  gran  Francisco,  yo  os  aliara 
sin  habito  y  cordon,  desnudo  os  viera, 
por  Dios  crucificado  os  conociera, 
y  como  ai  mismo  Dios  os  adorara. 

Y  si  apar  de  vos  Dios  se  aiuntara 
desnudo  como  vos,  me  detuviera, 

ni  a  vos,  mirando  a  Dios,  por  Dios  tuviera, 
ni  a  Dios  luego  por  Dios  le  declarara ! 

Viera  qual  Dios  Francisco  esclarecido: 
Uagas,  gloria,  humildad,  un  Dios  sincero, 
que,  ai  parecer,  con  Dios  no  ai  diíFerencia. 

Pêro  si  os  viera  luego  con  vestido, 
llamara-le  a  Dios,  Dios  verdadero, 

Y  a  vos  Francisco,  Dios  en  aparência. 


Obras  de  Fr.  Agostinao  da  Cruz  409 


VIII. 
Ao  mesmo. 

De  vos  a  Dios,  Francisco,  el  pensamiento 
no  pone  mas  de  aquella  differencia, 
que  en  Dios  la  magestad  y  la  potencia, 
y  en  vos  obedecer  es  mandamiento. 

Las  llagas  tuvo  Dios,  mas  fue  un  momento, 
y  vos  tuvistes,  santo,  tal  paciência, 
que  lo  que  mato  ai  Christo  sin  clemência, 
os  da  a  vos  la  vida  sin  tormento. 

Que  cosa  es  ser  [de]  Dios  vuestra  herida, 
y  las  de  Dios  de  hombre  ?  y  fue  de  suerte, 
que  estais  con  las  de  Dios  mui  mas  ufano, 

Pues  quedais  con  vitoria  y  con  la  vida, 
y  Dios,  aunque  en  vitoria,  fue  con  muerte 
con  ser  Dios  y  vos,  Dios,  Francisco  humano. 


IX. 
A*  ordem  de  São  Francisco. 

Ochenta  y  seis  províncias  y  conventos, 
dos  mil  e  siete  cientos  computados, 
cinco  en  Hierusalem,  siete  fundados 
entre  Turcos  y  Tártaros  sangrientos. 


410  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 


Mártires  veintc  y  seis  y  quatrocientos, 
y  santos  veinte  y  três  canonizados ; 
de  quinientos  que  estan  beatificados 
duran  eternamente  los  assientos. 

Quatro  papas,  quarenta  cardenales, 
quinientas  mitras,  y  seiscientas  plumas, 
Reis  veinte  y  cinco  con  stirpe  honrosa. 

Estos  tiene  por  ramos  inmortales 
con  diez  hijos  de  reis  y  otros  Numas 
de  Francisco  la  Orden  milagrosa. 


X. 
A  Santa  Maria  Magdalena. 

Perdido  el  nombre,  dei  peccado  esclava, 
esclava  de  Dios  se  hizo  de  limpfije^a, 
limpie'{a  abraça  y  dexa  la  torpe\a, 
torpe'{a  juzga  ai  mundo  y  lo  que  amava. 

Amava  ai  mundo  que  la  despertava, 
despenava  el  sentido  en  su  bruíe:{a, 
bruteza  le  ofuscava  la  noble^a, 
nobleia  oi  le  declara  quanto  errava. 

Errava  Magdalena,  el  blanco  errando, 
errando  acierta  y  bive  de  amor  llena, 
llena  de  un  fuego,  en  otro  se  resuelve ; 

Resuelvesse  en  amar,  y  ama  llorando, 
llorando  lava,  y  mata  culpa  y  pena ; 
pena  por  ella  el  cielo,  a  quien  se  buelve. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  411 


XI. 

Aos  Moradores  de  Arrábida. 

Alta  sierra  [de]  riscos  encumbrados, 
rudos  arboles,  valles  cavernosos, 
desiertos  solitários  y  espantosos, 
mar  [de]  donde  salis,  densos  nublados ; 

Spiritos  que  habitais  tan  apartados 
y  daquel  bien  tan  deseosos, 
dexando  atrás  los  casos  enganosos, 
seguros  alevantais  vuestros  cuidados. 

Aunque  fueran  mui  largos  vuestros  anos 
y  los  bienes  dei  mundo  mui  seguros, 
más  valen  por  aqui  los  desenganos. 

Dichosos  que  temiendo  los  futuros 
y  con  discursos  livres  caminando 
viven  contentos  en  penascos  duros. 


xn. 


El  canto  de  las  aves  en  la  sierra 
alegra  el  pensamiento  y  el  oido; 
el  olor  de  las  flores  desparcido 
muestra  el  herraoso  cielo  aca  en  Ia  tierra; 


412  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Las  fieras  que  el  salvaje  bosque  encierra 
causan  plazer  ai  animo  afligido ; 
la  fuente  despenada  con  ruido 
el  estivo  calor  templa  y  destierra ; 

La  yerva  que  la  verde  selva  cria 
y  el  arco  es  a  las  ninfas  agradable, 
dulce  el  fermoso  Tajo  en  el  estio. 

A  mi  solo  el  morir  me  agradaria, 

pues  sufro  un  mal  que  nunca  hizo  mudable 

ave,  flor,  fiera,  fuente,  yerva,  arco  o  rio. 


XIII. 


No  me  persigas  más,  vana  esperança, 
que  apesar  dei  deseo  y  sus  enganos 
me  an  llegado  a  términos  mis  danos, 
que  ni  temo,  ni  espero  otra  mudança. 

Ya  bivo  sin  temor  ni  confiança, 
fruto  de  mis  tan  mal  gastados  anos, 
y  ansi  tengo  los  bienes  por  estranos, 
que  aun  me  aflige  dellos  la  lembrança. 

En  este  miserable  estado  puesto, 

l  que  mal  puede  venir  que  el  alma  estrafie 

estando  el  pecho  a  males  tan  dispuesto  ? 

Tiempo,  fortuna,  amor  se  desengane, 

que  contra  ellos  tome  por  presupuesto, 

que  quien  no  espera  bien,  no  ay  mal  que  dane. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  41 3 


XIV. 
A  honrra  do  mundo. 

i  Que  ciega  y  general  idolatria  ! 
j  que  voluntária  muerte  y  mortal  vida ! 
i  que  reina  tan  tirana  y  tan  servida  ! 
i  que  áspide  dulce  y  ponzonosa  arpia  ! 

j  Que  íiero  encanto  y  loca  frenesia  ! 
i  que  senda  tan  estrecha  y  sin  salida  ! 
i  que  lei  tan  dura  y  tan  obedecida ! 
j  que  injusta  y  mal  fundada  monarquia ! 

;  Que  bellicosa  paz  !  \  que  civil  guerra  ! 
j  que  nave  sin  timon  lexos  dei  puerto ! 
i  que  infernal  fúria  contrapuesta  ai  cielo ! 


i  Que  berdugo  dei  alma  ado  se  encierra 
que  sepulcro  de  bivos  siempre  abierto 
es  la  que  Uaman  honra  acá  en  el  suelo. 


XV. 
Em  vitupério  da  pobreia. 

Hambrienta,  rota,  inquieta,  disgustada, 
pálida,  débil,  triste,  congoxosa, 
cortês,  humilde,  inútil,  temerosa, 
mansa,  cruel  y  mal  ocasionada. 


414  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

De  todo  el  mundo  con  razon  odiada, 
de  quantas  cosas  mira  descosa, 
en  sujetos  honrados  vergonçosa, 
y  en  los  que  no  lo  son  desvergonçada. 

Sin  voto,  sin  razon,  sola,  afligida, 
noche  de  la  virtud  y  entendimiento, 
ruina  dei  valor  y  de  la  nobleza. 

Riguroso  verdugo  de  la  vida, 
y  de  las  almas  infernal  tormento, 
eres,  infame  y  misera  pobreza. 


XVI. 

Es  la  esperança  un  mal  bien  reputado, 
que  promete  los  biénes  de  que  priva; 
es  un  ânsia  mortal  o  muerte  biva, 
augmento  dei  deseo  y  dei  cuidado. 

Es  un  desesperar  tan  rebocado, 
que  quiere  que  por  gloria  se  reciba; 
CS  prision  de  que  el  gusto  se  captiva 
por  venir  de  se  ver  desenganado. 

Es  mortal  enemiga  a  sus  efectos ; 
bive  de  no  complir  lo  prometido ; 
mucre  en  los  estados  mas  perfectos. 

E«  hechizo  eficaz  para  el  sentido, 

pues,  compreendendo  en  si  tantos  defectos, 

no  bive  el  que  está  delia  dividido. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  41 5 


XVII. 

Si  ai  curso  mas  veloz  tan  solo  atenden 
essas  ruedas  fatales  de  las  vidas, 
si  se  suelen  levantar  trás  sus  caidas 
con  igualdad  los  grados  que  compreenden. 

Sin  duda  son  las  almas  que  suspenden 
por  danoso  milagro  detenidas 
e  nel  profundo  mar,  do  siempre  asidas 
mientras  más  sacrifican,  más  te  offenden. 

Y  si  indica  essa  mano  oras  dudosas 
muestra  en  su  variedad  distintamente, 
que  es  de  reloj  comun  a  toda  altura, 

Y  que  ay  clima  en  que  se  oyen  las  dichosas 
y  como  en  esta  region  perpetuamente 

las  perezosas,  de  mi  desventura. 


XVIII. 


Essas  ruedas  de  amor  que  no  suspenden 
varias  tormentas  que  causando  ignoras, 
si  tiempo  indican  con  la  mano  y  oras, 
oras  fatales  de  tu  mano  penden. 


4i6  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

De  cuya  voluntad  no  se  defenden, 
las  penas  que  renovas  y  mejoras, 
atenta  solo  ai  tiempo  que  empeoras 
a  las  que  más  rendidas  mas  te  oftenden. 

Inexorable  parca  de  las  vidas 

con  beneficio  sin  los  hilos  cortas, 

que  estan  en  lo  profundo  de  tus  ruedas 

Y  con  piedosas  manos  homicidas 
oras,  vidas  y  tormento  junto  cortas, 
si  con  ultimo  mal  vingada  quedas. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  417 


EGLOGA. 

Mincio,  e  Limabeu. 

D.       S.  A.  G.       D.     f 

Do  Senhor  Agostinho  da  Cruz. 

Mincio. 
Soias  de  cantar  onde  pastavas, 
pastar  onde  teus  versos  escrevias, 
escrever  onde  mais  plantas  achavas. 

Da  serra  pêra  o  campo,  se  descias, 
se  sobias,  do  campo  pêra  a  serra, 
as  saudades  de  ambos  repetias. 

Por  mais  que  te  fizesse  cruel  guerra 

não  te  pode  tirar  fortuna  imiga 

cantar,  tanger,  folgar  em  qualquer  terra. 

Não  sei  que  de  ti  cuide  nem  que  diga, 
que  tu  não  folgas  já,  tanges,  nem  cantas, 
cousas  com  que  qualquer  a  dor  mitiga.. 

27 


41 8  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Limabeu. 
Assaz  pouco  tu  sentes,  pois  te  espantas 
de  não  me  ver  folgar,  cantar,  tanger, 
nem  versos  escrever  nas  verdes  plantas. 

Acabou  de  secar,  de  emmudecer 
agora  a  pena ;  já  não  determino 
senão  de  suspirar  e  de  gemer. 

Se  foi  ou  se  não  foi  meu  canto  dino 
dos  ouvidos  de  quem  melhor  sentia 
não  sei ;  mas  o  que  sei,  que  foi  mofino. 

Saber  quão  pouco  vale  a  poesia 
por  falta  de  haver  quem  docemente 
sinta  a  sua  suave  melodia. 

Entre  muitos  e  muitas  i  qual  prudente  ? 
^  qual  avisado,  brando  e  qual  saudoso  ? 
l  e  qual  julga  melhor  e  melhor  sente  ? 

O  campo  que  parece  mais  fermoso 
nos  olhos  de  um  pastor,  fica  mais  feio 
nos  daquelle  que  foi  mais  cobiçoso. 

Uns  quando  de  boninas  o  vem  cheio 
lhes  parece  melhor,  e  outros  quando 
de  cevada,  de  milho,  ou  de  centeio. 

Assi  se  vão  desejos  variando 

sem  poder  concordar  a  natureza 

de  qual  duro  nasceu,  qual  nasce  brando. 

Tempo  foi  que  causava  em  mi  tristeza 
poder  imaginar  de  um  peito  humano, 
que  pagasse  brandura  com  dureza. 


Obras  de  Fr  Agostinho  da  Cruz  419 

Agora,  inda  que  seja  com  meu  dano 
alegro-me  com  ver  que  me  aproveito 
deste  tão  lastimoso  desengano, 

Seja  quão  duro  for  um  cruel  peito, 

ingrato,  falso  e  fero,  já  não  temo, 

que  me  faça  mais  mal  do  que  tem  feito. 

Porque,  depois  que  dei  num  doce  estremo, 

se  não  vejo  gemer  o  meu  amigo 

do  meu  próprio  mal,  do  seu  não  gemo ; 

Logra-se  do  seu  gosto  só  comsigo 
e  quando  lhe  sucede  algum  desgosto 
então  vem  consolar-se  só  comigo. 

Se  no  seu  mal  me  quer  achar  disposto 

para  me  entristecer  ^  por  que  rezão 

não  quer  que  no  seu  bem  tenha  algum  gosto  ? 

Mincio. 

Não  vos  ouçam  tratar  esta  questão 
baixa  entre  pastores  apostados 
a  buscar  a  divina  perfeição, 

Que  quando  suceder  ser  afrontados 
dos  amigos  que  mais  temos  servido, 
então  devemos  ser  mais  consolados. 

Foi  nosso  Deos  por  nós  oferecido 

á  cruz,  e  por  seus  mesmos  matadores 

os  principaes,  de  seu  povo  escolhido. 

A  nós,  que  da  cruz  sua  professores 
somos,  não  nos  convém  qneixar  de  nada, 
mas  sofrer  como  seus  imitadores. 


420  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

Pouco  pode  durar  esta  jornada : 

amar  nossos  imigos  nos  ensina 

a  correr  pêra  o  ceo  por  limpa  estrada, 

Que  nunca  nos  mandara  a  lei  divina 
cousa  tão  trabalhosa,  se  não  fora 
quanto  no  seu  amor  mais  se  refina. 

Dar-te-hei  outra  rezão  ainda,  afora 
esta,  com  que  confesso  ser  verdade 
de  quem  na  sorte  sua  se  melhora. 

Pois  quem  guardou  pureza  na  amizade 
não  pode  padecer  remordimento, 
como  qualquer  que  trata  falsidade. 

Limabeu. 
Não  quero  tratar  mais  deste  argumento, 
que  porfiar  bem  sei  que  desconcerta 
quem  concertado  traz  seu  pensamento. 

Mincio. 
l  Pudeste  nunca  achar  cousa  mais  certa 
pêra  se  concertar  que  pena  e  lira, 
na  terra  povoada  ou  na  deserta  ? 

Limabeu. 
Digo  que  já  comtigo  consentira 
em  cantar  e  tanger  ca  desta  banda, 
se  Laura  ou  se  Liana  o  permitira, 

Que  nunca  pena  ou  lira  senti  branda, 

que  dirigir  deixasse  a  seus  ouvidos 

como  seu  puro  amor  me  obriga  e  manda ; 

Que  versos  bem  cantados,  bem  tangidos, 
brandos,  de  grave  estilo,  altos  conceitos, 
estimados  não  são,  se  não  sentidos. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  421 

Pois  não  penetram  versos  outros  peitos, 

cantemos  destes  dois  cuja  ventura 

num  so  quis  converter  taes  dois  sujeitos. 

Convida-nos  a  fonte  que  murmura, 
o  sol  que  ja  no  mar  se  vai  metendo, 
variando  no  ceo  nova  pintura. 

O  gado  que  no  campo  anda  pascendo 
também  se  alegra  com  o  nosso  canto 
se  não  se  for  comigo,  entristecendo, 
que,  emfim,  ou  cantarás,  ou  farei  pranto. 


Mincio. 
O  bosque  que  se  veste  de  verdura, 
o  campo  que  se  cobre  de  mil  cores, 
de  boninas,  de  rosas,  de  outras  flores, 
variando  na  cor  a  fermosura, 
a  musica  de  dois  competidores 
suaves  rouxinoes  entre  a  espessura 
nunca  nos  olhos  meus,  nos  meus  ouvidos 
serão  dois  corações  num  convertidos. 

Limabeu. 
O  bosque  acompanhado  de  verdura, 
o  campo  variado  de  mil  cores, 
coberto  de  mil  rosas,  de  mil  flores, 
acrescentando  graça  á  fermosura, 
suaves  rouxinoes  competidores 
tardes,  noites,  manhãs  entre  a  espessura, 
nunca  a  meus  olhos,  nunca  a  meus  ouvidos 
poderão  alegrar  entristecidos. 

Adindo. 
Do  nosso  claro  Lima,  saudoso 
o  curso  quando  vi  mais  encontrado 


4*2  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz 

por  cima  de  penedos  apressado 
por  baixo  de  arvoredos  vagaroso, 
donde  vinha  a  beber  o  manso  gado, 
nos  olhos  do  pastor  mais  gracioso 
nunca  me  pareceu  como  parece 
amor  que  de  dois  peitos  num  florece. 

Limabeu. 

Do  nosso  Lima  claro  e  saudoso 
quando  seu  curso  vi  mais  encontrado, 
por  cima  de  alvos  seixos  apressado, 
por  baixo  dos  carvalhos  vagaroso, 
donde  saltando  vinha  o  manso  gado 
á  vista  do  pastor  mais  gracioso 
não  me  pareceu  nunca  o  que  parece 
quando  meu  coração  mais  se  entristece. 

Mincio. 

Aqueles  corações  que  desejava 

de  ver  em  puro  amor  mais  conformados, 

vi  com  taes  excessos  confirmados, 

quaes  nunca  poder  ver  imaginava 

seus  justos  pensamentos,  seus  cuidados, 

seus  desejos,  que  o  ceo  encaminhava, 

vejo  gozar  a  mor  conformidade 

que  amor  nesta  criou,  ou  noutra  idade. 

Limabou. 

Os  tristes  corações  que  desejava 
de  ver  na  mor  tristeza  conformados, 
nunca  cuidei  de  ver  tão  confirmados 
quanto  deste  meu  triste  imaginava; 
meus  tristes  pensamentos,  mal  cuidados 
que  pêra  maior  mal  encaminhava 
a  tristeza,  sem  tal  conformidade 
qual  nesta,  se  não  viu,  nem  noutra  idade. 


Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz  423 

Mincio. 
Tudo  quanto  na  serra  ver  podia 
de  quanto  criar  pode  a  natureza, 
ou  no  duro  rochedo  de  firmeza 
ou  nas  aguas  da  fonte  que  corria, 
em  tudo  imaginei  sempre  certeza 
de  nunca  se  mudar  tanta  alegria 
suave,  doce,  branda,  clara  e  pura 
pêra  da  terra  ao  ceo  voar  segura. 

Limabeu. 
Quanto  no  monte  ou  serra  ver  podia, 
tudo  quanto  ali  criou  a  natureza, 
ora  fosse  rochedo  com  firme?a, 
[ora  fosse  agua  clara  que  corria], 
tudo  me  confirmou  na  mor  certeza 
de  nunca  já  poder  ter  alegria 
tão  cativo  me  tem  tristeza  pura, 
<que  de  me  libertar  está  segura. 

Mincio. 
Deixemos  de  cantar,  pois  que  não  deixas 
de  te  queixar  de  Lauro  nem  de  Liana ! 
Um  só  te  desterrou,  d'ambos  te  queixas ! 
Faltará  noutra  serra  outra  choupana  ? 
Falta  donde  pescar  peixes  á  cana  ? 
•donde  possas  cantar  como  naquela  ? 


Limabeu. 
Falta !  pois  falta  foi  de  minha  estrela 
não  me  poder  queixar  sem  ela  deles 
e  pois  não  pode  ser  dele  sem  ela 
muitos  anos  viva  ela  e  viva  ele ! 


FIM 


NOTAS    E    ESCLARECIMENTOS 


Pg.  4-5.  O  son.  VI  «  A  S.  João  Baptista  »  encon- 
tra-se  a  fl.  iSg  do  Cod  Portuense,  noutro  logar  descrito 
pela  Sr.»  D.  Carolina  Michaèlis,  sem  variantes  dignas  de 
nota.  O  último  v.  do  2."  terceto,  aspado,  é  tradução 
daquele  conhecido  passo  do  Ev.  de  S.  Mateus  XI,  11: 
«  Amen  dico  vobis,  non  surrexit  inter  natos  mulierum 
major  Joanne  Baptista. .  .  ».  Impregnado  da  leitura  da 
Biblia  sam  frequentes  os  passos  em  que  Fr.  Agostinho 
da  Cruz  se  inspirou  já  aproveitando  uma  ou  outra  pas- 
sagem quase  literalmente  e  já,  e  é  naturalmente  o  maior 
número,  procurando  apenas  o  seu  significado  místico. 
Em  qualquer  dos  casos  é  do  próprio  coração  que  tudo 
mana,  instintivamente,  sem  o  mmimo  esforço  ou  o  vis- 
lumbre de  preocupação  erudita  ou  literária. 


Pg.  4.  Este  soneto  de  arrependimento  dedicado  «  A 
Nossa  Senhora  da  Arrábida  »  é  interessante.  O  Poeta 
reconhece  a  sua  fraqueza.  Volta  outra  vej,  agora  mais 
resoluto,  mais  decidido.  Vai  prosseguir  de  novo  a  sua 
via  espiritual  cheio  dos  desenganos  colhidos  no  mundo. 
O  Cod.  Portuense  apresenta  uma  variante  notável  no 
último  terceto  : 

Porque  quanto  mais  longe  dos  humanos 
Tanto,  Virgem,  sereis  melhor  servida 
E  servida,  louvada  em  verso  e  prosa. 


4^6  Notas  e  Esclarecimentos 


O  Cod.  Conimbricense,  n."  400,  dá  a  versão  impressa, 
que  nos  parece  por  todas  as  razõis  preferível. 


Pg.  6,  son.  VIII.  O  último  v.  do  2°  terceto  alude  à 
passagem  do  Ev.  de  S.  João,  xix,  26  :  «  Cum  vidisset 
ergo  Jesus  matrem,  et  discipulum  stJníem  quem  dilige- 
òat,  dicit  matri  suce  :  Mulier,  ecce  filius  tuas  ». 

4 

Pg.  10  O  2."  v.  da  2  «  quadra  trá-lo  o  Cod.  Conim- 
bricense n."  400  nesta  variante  : 

Inda  assim  de  culpas  carregado. 

O  verso  tecnicamente  não  fica  melhor,  e  a  modificação 
não  me  parece  exegída  pelo  sentido. 

5 
Pg.  II.    Talvez  o  último  v.  do  son.  xvi  ficasse  melhor 

Que  amasse  muito  mais  quem  tanto  amava  ! 

não   obstante   a  lição  impressa  seguida  é  a  do   Cod. 
Conimbricense,  n."  400,  conteste. 


Pg.  12.  O  son.  xviii  correspondente  ao  de  fl.  134  do 
Cod.  Portuense  também  se  encontra  na  Cr.  da  Piedade 
[Vide  Bibliografia]  pg.  984  com  algumas  pequenas 
variantes  sendo  no  3."  v.  do  i  *  quarteto  a  falta  de  inda, 
que  é  essencial,  aliás,  e  no  4.°  v.  do  mesmo,  que  traz 
vãos  em  vez  de  mil.  O  que  nos  alegra  porque  ira- 
tando-se  de  códices  ou  fontes  diversas  indica  de  certo 
modo  a  fixidez  do  texto  desejável. 


7 
Pg.  i5.  O  son.  xxn,  a  fl.  85,  sem  variantes,  do  Cod. 
Portuense,  merece  destacar-se  pela  indicação  auto- 
biográfica que  traduz,  visto  deduzir-se  dele  que  ires 
foram  as  tentativas  do  grande  Isolado  para  renunciar 
ao   mundo.     Que  lutas   tremendas   naquele  amoravel 


Notas  e  Esclarecimentos  427 


espírito  !  Todo  o  soneto  é  cheio  de  doçura  e  de  resi- 
gnação. Raras  vezes  se  deparam  termos  ou  formas 
antiquados  no  nosso  Poeta.  Mas  note-se  o  arca  no 
2.°  V  do  2.°  terceto  em  vez  de  arda,  aliás  empregado 
em  Sá  de  Miranda  e  outros  Quinhentistas  e  várias  vezes 
por  ele  mesmo  [cfr.  por  ex ,  2  vezes,  pg.  118,  últimos 
versos].  Já  atrás,  no  son.  xii,  apareceu  a  forma  este 
que  é,  como  se  sabe,  a  forma  sincopada  de  esteja, 
também  frequente  nos  Quinhentistas. 


Pg.  16.    Eis  variantes  do  Cod.  Conimbricense,  n.»40o, 
1.»  quarteto,  3.»  v.  : 

Amor,  quanto  por  si  te  trasladava 

i."  terceto,  3."  v. : 

Unindo  na  vencida  carne  toa 

».•  terceto,  i.»  v.  : 

Vencida  e  tam  conforme  a  teu  esprito, 

única  que  me  parece  aproveitável. 

9 
Pg.  17.     O  4."  v.  da  I.»  quadra  aparece  tanto  no  Cod. 
Portuense,  como  no  de  Coimbra,  n."  400,  assim  : 

Conforme  o  vario  vento  vai  soprando, 

que  é  preferível  à  lição  do  texto. 


Pg.  18  Este  lindo  soneto  dedicado  ao  querido  irmSo 
anda  impresso  como  Introdução  do  Lyma,  desde  a  ed. 
de  1596,  e  não  vem  nem  no  Cod  Portuense,  nem  no 
Conimbricense  n."  400.  Diogo  Bernardes  ouvia  e  aca- 
tava a  opinião  do  humilde  Capucho  e  muito  se  satisfez 
em  vê-lo  engrandecer  o  nome  daquele  a  quem  dirigia 
as  suas  líricas  —  D.  Álvaro  D'Allemcastro,  Duque  de 
Aveiro,  «  Príncipe  real,  claro,  excelente  ». 


428  Notas  e  Esclarecimentos 


Pg.  22.  Toda  esta  Egloga  «  No  atino  do  Noviciado  » 
é  notabilíssima  como  sugestão  auto-biográfica  e  dela  se 
aproveitará  o  necessário  noutro  logar.  Para  que  não 
restassem  dúvidas  nos  disfarces  destes  pastores  lá  vem 
bem  claro  no  último  v.  de  pg.  25  : 

O  bom  do  Limabeu  he  Capuchinho. 


Pg.  3o.  Há  nesta  Egloga  um  sentido  enigmático,  que 
escapa  a  toda  a  concretização.  O  emprego  de  certos 
termos  não  é  menos  de  notar.  No  7.°  v.  esquerdeia  no 
sentido  de  pôr  ou  criar  estorvo  ou  embaraço  e  no  7.° 
terceto 

Na  requia  esteja  a  alma  de  Bieíto 

requia  será  equivalente  a  requiem,  adulterado  nas  cópias^ 
que  serviram  para  a  impressão  ?  Infelizmente  a  Egloga 
falta  nos  Cods.  Portuense  e  Conimbricense. 

i3 

Pg  35.  O  4."  V.  deve  emendar-se  como  traz  o  Cod. 
Conimbricense  n."  400  : 

Mas  comtudo  não  deixo  de  cuidar, 

o  que  torna  o  sentido  perfeitamente  inteligível.   E  o  8." 

Que  máos  olhos  te  tem  atravessado, 

que  no  texto  impresso  de  Mesquita,  reproduzido,  pouco 
menos  é  que  enigmático. 

•4 
Pg.  36.    O  último  terceto  desta  página,  assim  como  o 
imediato,  pertence  a  Mincio,  o  que  não  foi  indicado  por 
não  vir  no  texto  de  1771.     Mas  o  Cod.  Conimbricense 
n.°  400  assim  o  indica  nitidamente  e  é  o  que  deve  ser. 


i5 

Pg.  36,  8."  terceto.     Naboc,  em  vez  de  Naboth,  per- 
sonagem bíblico  mencionado  no  3  Reg.,  XXI,  2,  e  segs/ 


Notas  e  Esclarecimentos  4*9 


que  negou  ao  rei  Achab  uma  vinha  e  que  foi  por  isso 
lapidado.  • . .  .eduxerunt  eum  extra  civitatem  et  lapi- 
dibus  interfecerunt  »,  como  diz  o  v.  iS.",  e  vem  apropo- 
sitadamente  citado  por  Fr.  Agostinho. 

16 

Pg.  40.  A  epígrafe  desta  Egloga  V  não  é  bem  expli- 
cita. O  Cod.  Conimbricense  n."  400,  diz  melhor:  Egloga  V 
em  a  qual  dá  conta  como  redu^io  hum  a  Religião.  Aparte 
pequenas  divergências  é  notável  a  omissão  dum  terceto, 
que  seria  o  8.°  na  pg.  43  e  que  copiamos  daquelle  Mss. 

Dam-me  na  face  minha  o  falso  beijo 

De  Judas,  que  vendeo  a  Jesus  Christo, 
Rapam-me  a  minha  lã,  o  leite  e  o  queijo. 

17 
Pg.  48.  Esta  Egloga  é  muito  interessante  pelo  ar  de 
rusticidade  que  a  envolve.  Enquanto  vigia  o  seu  gado 
alfeiro,  ou  entretido  a  pastar  livremente  [  segundo  A. 
Coelho,  Dicc.y  o  termo  proveio  do  árabe  ],  o  triste  pas- 
tor conhece  todas  as  inocentes  distraçõis  do  isolamento. 
Por  isso  lembra  nos  últimos  tercetos  a  caça  aos  passa- 
rinhos por  meio  do  costeio  ou  da  vara,  recorda  o  fugitivo 
e  timido  coelho,  faz  menção  das  flores  que  ajuntava  e 
dos  frutos  que  colhia.    Tudo,  porem,  para  dar ! 

.  ..não  colhi,  nem  cacei  cousa 
Que  para  dar  não  fosse. . . 

18 

Pg.  53,  V.  7."  Perder  o  uso  melhor  será  lêr  com  o 
Msi.  Conimbricense  n."  400  :  Perder  o  curso. 


19 

Pg.  60.    O  i.°  terceto  desta  pág.  falia  no  Mss.  Conim- 
bricense.  Descuido  ?    Propósito  ? 


Pg  67,  V.  6.  O  Mss.  Conimbriceiyse  n.°  400  traz  :  Com 
cabra  ou  sarda  ruivo.  Talvez  melhor.  Um  pouco  adiante, 
pg.  59,  V.  22  diz  :  Eu  costumo  pescar  com  singeleira. 


43o  Notas  e  Esclarecimentos 


Á  pesca  de  cana  para  que  se  servia,  como  isca,  da  cabra 
ou  sarda,  preferia  a  pequena  rede  daquele  nome,  usada 
para  a  pesca  do  peixe  miúdo,  diferente  do  iresmalho, 
também  muito  usada  na  pesca  do  peixe  dos  rios.  Veira, 
ibid.,  em  vez  de  beira  ?  O  Mss.  Conimbricense  n."  400 
termina  esta  Égloga  com  uma  pequena  variante  prefe- 
rível ao  texto  :  Pois  no  dia  nascia. . .  etc. 


21 

Pg.  70  Esta  Égloga,  dirigida  à  comemoração  do 
nascimento  do  Duque  D.  Jorge  de  Lencastre,  aparece 
no  Mss.  Conimbricense  n.°  400  coip  variantes,  a  mais 
importante  das  quais  é  pg.  71,  1.»  terceto  : 

O  primeiro  de  abri!  ali  se  ouvio 
Cantar  e  tanger  tam  docemente, 
Que  as  vozes  ao  Oceano  transferio 

Na  pg.  72,  2.»  terceto  : 

Eu  tenho  para  mim  que  ouço  tanger. . . 
Deve  de  ser  aquele  que  lá  vem. 
Como  se  vem  recreando  de  prazer  ! 

E  nesta  mesma  pg.,  v.  25  : 

Amor  tempere,  a  fragoa  acenda  e  forge 

que  dá,  positivamente,  melhor   sentido  que   o  que  se 
seguiu  no  texto  em  obediência  à  ed.  de  1771. 
Ainda  na  pg.  75,  o  v.  25  é  substituído  por  est'outro  : 

Seu  nome  seja  imortal. 


Pg.  77.    Logo  o  i."  terceto  desta  Égloga  aparece  mais 
correcto  no  Mss.  Conimbricense  n.»  400  : 

Apartam-se  de  vós,  desaparecem 
Agoas  do  mar  azul  e  sol  dourado 
E  com  meu  triste  pranto  se  escurecem. 

Já  é  discutível  a  variante  de  pg.  78,  v.  17  : 

Avisar,  repreender  a  quem  converso 


Notas  e  Esclarecimentos  43 1 


23 

Pg.  89.  Esta  Elegia  não  escapou  em  nenhuma  das 
fomes  conhecidas  —  no  Cod.  Portuense,  fl.  34  v..  no 
Canc.  de  F.  Tomás,  fl.  77  v.,  e  lá  está  impresso  na  Chr. 
de  Arrábida,  pg.  o36.  Emendemos  o  erro  do  v.  10 : 
Aqui  sobre  o  mar  e  registemos,  como  preferivei,  a  lição 
do  Mss.  Conimbricense  n."  400  no  v.  9  de  pg.  90  : 

Que  de  outras  que  ensinar  querem  falando. 

É  o  que  deve  sêr.  O  impresso  não  se  entende  Na 
mesma  pág  .  v.  16  leia-»e  :  Alli  me  acho,  etc.  E  no  v.  19: 
O  monte  vão  de  meus  suspiros  cheio,  variante  que  toma 
perfeitamente  correcto  o  verso  anterior  casando-se 
ambos  harmonicamente  no  sentido.  Suprimo  outras 
variantes  para  citar  as  dos  dous  versos,  que  terminam 
a  Elegia  : 

Ardeo  o  fogo  posto  no  madeiro 
Ardam  postos  no  fogo  os  corações. 

Acho  assim  a  frase  mais  incisiva  e  mais  bela. 


24 

Pg.  o5.  Esta  Elegia  trá-la  o  Cod  Portuense.  O  Mss. 
Conimbricense  n.»  400,  também  a  insere  com»  varian- 
tes aproveitáveis.  Destaquemos  no  v.  23  :  A  Vós  pêra 
livrar. . .  lição,  decerto^  melhor  que  a  exarada  no  texto. 

25 

Pg.  101.  Esta  Elegia  figura  no  Cod.  Portuense,  pg.  56 
e  no  Conimbricense  n.*  400  e  corre  impressa  na  Chro- 
nica,  pg  934  Também  há  algumas  variantes  que  acla- 
ram notavelmente  o  sentido.  Por  ex.,  pg.  io3,  v.  3." 
«■  Sem  nunca  descansar  qual  vento  leve. 

26 

Pg.  104  Nesta  Elegia  VII  deve  emendar-se  em  har- 
monia com  os  dois  Códices  do  Porto  e  de  Coimbra  o 
V.  iJ.»  :  «  Convertida  em  velhice  a  mocidade  ».  O  Conim- 
bricense melhora  o  v.  o"  de  pg.  io-5  exarando  :  Por  ver 
que  todos  são  de  entranhas  frias.  Na  pg.  io3,  o  v.  9.» 
hcaria  melhor  como  o  traz  o  Mss.  Conimbricense:  «  Por 
vér  que  todos  são  de  entranhas  frias- 


432  Notas  e  Esclarecimentos 


27 

Pg.  107.  O  Cod  Portuense  epigrafa  esta  Égloga : 
«  De  húa  molher  á  absencia  de  seu  marido  sendo  par- 
tido para  a  guerra  «.  Variantes  preferíveis  ao  texto  no 
Mss.  Conimbricense  n°  400,  pg.  108,  v.  9°  :  a  Escurecer 
daquem  o  rajo  monte  «.  O  Cod.  Portuense  diz  :  . .  .0 
alto  monte.  No  v.  i5.°  o  Cod.  Portuense:  Verão  quam 
pouco  temo  a  cruel  guerra ;  mas  o  Conimbricense  man- 
tém a  lição  impressa.  Creio  que  há  razão  para  a  man- 
ter, como  noutro  logar  provarei.  Na  pg.  109,  o  v.  25." 
deve  modificar-se  :  Querer-me...  O  2°  v.  do  último 
terceto,  pg  1 10  é  preferível  assim:  Ou  que  estejas... 
E  o  último  :  Não  quero.  . . 

28  . 

Pg.  III.  A  Elegia  à  morte  de  seu  irmão  anda  im- 
pressa na  ed.  das  Flores  do  Lima  de  1770.  Esta  Elegia 
está  incompleta  no  texto,  faitando-lhe  nada  menos  que 
14  tercetos,  que  aqui  seguem  extraídos  da  ed.  impressa 
das  Flores  do  Lima,  com  as  variantes  do  Cod.  Portuense, 
onde  vem  a  fl.  98.  O  que  é  extranho  é  a  mesma  omis- 
são existir  no  Cod  Conimbricense  n.°  400.  As  fontes  dos 
dous  textos  impressos  foram  de  certo  diversas,  como 
as  dos  Mss.,  pois  em  todos  se  notam  divergências. 
O  Conimbricense  melhora  algumas  passagens,  como 
pg.  112,  V.  23. ''-24."  :  Nem  sempre  cá  do  Tejo  só  comigo 
—  Nem  tudo  poesia  o  que  tratavas. 


29 

Pg.  II 3,  V.  14»  :  Da  solitária  Serra,  em  que  habito. 
Segue   o    texto   que   é   o   ccnplemento   natural  da 
Egloga  : 

Mas  nella  se  abalou  mais  meu  esprito 

acrecentando  mais  o  sentimento 

de  um  brando  coração  num  peito  aflito, 

Que  mal  resistir  pode  o  pensamento, 
onde  se  estendem  mais  as  saudades 
a  quem  nunca  neguei  consentimento. 

Ha  nos  bosques  cem  mil  diversidades 
no  fructo,  folha  e  flor  e  nos  rochedos 
rotos  das  oceanas  tempestades. 


Notas  e  Esclarecimentos  433 


Por  cima  de  uns  nos  outros  arvoredos 
voar  vejo  cantando  uns  passarinhos, 
outros  ouço  cantar,  estando  quedos. 

Vejo  nos  montes  rasos  mais  vezinhos 

as  fugitivas  feras  ir  torcendo 

os  passos  por  pa»sar  entre  os  espinhos. 

Triste  I  com  que  remédios  vou  detendo, 
na  vista  dos  meus  olhos,  magoas  minhas, 
que  nas  aves  e  feras  vão  crescendo. 

Nestas  me  lembra  a  doce  voz  que  tinhas  *, 
naquellas  quantos  passos  retorcidos 
por  colher  brandas  flores  entr'espinhas. 

Quam  tristes  penetrar  vão  *  meus  gemidos 
as  entranhas  das  duas  penedias 
tão  tristes  tornar  '  delias  repetidas. 

Que  ainda  que  das  ardentes  dem  nas  frias 
indâ  que  destas  brandas  dem  nas  duras 
pêra  me  responder  estão  vazias. 

Abr-andão-se  as  durezas  em  branduras, 
podem  magoas  mudar  as  naturezas 
-quando  mudar  não  podem  as  venturas. 

Os  claros  desenganos,  as  certezas 
da  vida,  que  já  vai  de  foz  em  fora, 
não  soffrem  mais  estremos  de  tristezas. 

Tratar  de  como  irá  convém  agora 
e  da  *  que  já  se  foi  mais  não  tratar, 
como  se  derradeira  desta  fora. 

Vida  que  tarde  ou  cedo  ha  de  acabar, 
morte  que  por  fugir  mais  não  dilato, 
de  ambas  '"  devo  temer,  ambas  chorar, 

Que  com  o  temor  e  choro  de  que  trato  • 
assi  me  posso  haver  nesta  primeira, 
que  a  segunda  me  custe  mais  barato. 


'  1770.  Nestas  me  lembra  o  som  da  voz  que  tinha.  — •  PenetriTio. 
^  tornáo  delias  repartidas.  —  '  C.  P.  e  io  —  1770  —  E  da  que  )á  se  foi, 
mais  não  tratar.  — '  1770.  Ambas.  —  •  Que  com  temor  e  choros. 

28 


434  Notas  e  Esclarecimentos 


Mas  quem  só  naquella  hora  derradeira 

espera  descansar  por  ter  cansado 

(  se  cansa  quem  faz  conta  derradeira  ). 

Nem  o  temor  o  traz  inquietado, 
nem  o  choro  lhe  da  pena  tamanha, 
que  chorando  nSo  fique  consolado 
nas  lagrimas  de  amor  "^  em  que  se  banha. 

3o 

Pg.  117.  Esta  Ode  repete-se  nos  Mss.  do  Porto  e 
Coimbra.  Verso  i3.<*  no  Conimbricense:  Flores  que 
secam  levam  leves  ventos.  Versos  2i.»-22»  Magoas 
minhas  —  Me  não  deixam  mover.  Pg  118,  v.  21  °  :  Se 
quero  mais  querer. . .  E  os  últimos  desta  pág  :  Por  vós 
ardam,  Deos  nosso  —  Ardam  no  puro  fogo  de  amor 
vosso. 

3i 

Pg.  116.  O  epíteto  teso  no  5."  v.  da  Ode  //poderia 
hoje  merecer  reparo,  como  já  o  apontou  Gosta  e  Silva 
(Ensaio  biogr.  critico,  11,  261),  mas  «  agoa  tesa  quer 
dizer  agoa  que  corre  com  força  ou  agoa  alta,  dahi  vem 
as  expressões  marítimas  vento  teso,  mar  teso,  e  o  cha- 
mar-se  teso  a  um  outeiro,  ou  elevações  de  terreno. 
Tembem  se  chama  teso  a  um  homem,  que  tem  firmesa 
de.  caracter  e  que  não  cede  facilmente  ».  Fr.  Agostinho 
empregou  o  vocábulo  pelo  menos  outra  vez  —  Cfr. 
pg.  61,  V.  12.» 

32 

Pg.  128.  Esta  Carta  é,  como  diz  o  título,  resposta  à 
de  seu  irmão  Diogo  Bernardes,  e  que  pôde  lêr-se  em 
O  Lyma,  Carta  VIII.  Um  terno  sentimento  de  doce  e 
amarga  saudade  envolve  de  encanto  especial  toda  esta 
linda  poesia,  até  à  recordação  do  elogio  da  pobreza 
( pg.  i3o,  terceto  9."*)  feita  pelo  irmão  —  alusão  à 
Égloga  III  —  Liarda  —  inserta  em  O  Lyma. 

33 

Pg.  134.  Esta  Carta,  cujo  final  é  duma  côr  regional 
interessantíssima,  apresenta  algumas  variantes  no  Cod. 


'  Nas  lagrimas  da  morte. 


Notas  e  Esclarecimentos  435 


Conimbricense,  que  melhoram  a  contextura  e  o  sentido. 
Assim  no  g.»  verso  podres  contrastando  com  sãos,  e  não 
pobres  O  i.°  V  do  3  "  terceto  :  A  causa  pode  sèr  que  a 
mesma  seja.  Na  pág.  imediata  o  3."  v  do  penúltimo 
terceto  fi^nrá  mais  correcto  assim  :  Não  respeitando  ser 
descomedida  Pg.  i36  o  v.  21  '  Que  Marateca  tem  como 
bagaço,  precisa  duma  aclaração  para  alguns  leitores. 
Marateca  é  uma  pequena  povoação  na  comarca  e  con- 
celho de  Setúbal,  próxima  do  rio  do  mesmo  nome,  que 
é  um  afluente  do  Sado  com  33  quil.  de  curso.  A  alusão 
de  Fr  Agostinho  torna-se  assim  evidente  se  suposermos 
esse  rio  abundante  em  peixe.  [  Pinho  Leal,  Portugal 
ant.  e  mod.,  v,  s.  v.  ]  O  Mss  Conimbricense  menciona 
Lameira  em  vez  de  Landeira  no  último  verso.  A  qual- 
quer delas  podia  referir-se  o  Poeta,  mas  esta  última  está 
abonada  também  pelo  Cod.  Portuense. 


34 

Pg.  i38.  O  Cod.  Conimbricense  ajuda  a  repor  muita 
deturpação  do  texto  infeliz  de  Mesquita.  Em  regra  as 
variantes  dadas  por  esse  Mss.  sam  de  receber.  Não  é  pos- 
sivel  apontar  tudo,  que  ficará,  querendo  Deos,  para  uma 
2.*  ed  Mas  ressalvemos  o  essencial  Antes  de  mais  a 
deturpadissima  oitava  final  de  pg.  140  com  falta  dum 
verso  inteiro  I    Deverá  ficar  assim  : 

Quero  saber  que  letras  aprendestes, 
Teu  nome,  cuja  filha  e  como  ousaste  ! 
Se  sabes  ponderar  o  que  fizestes 
Quando  tam  soltamente  reprovaste. 
O  sacrifício  a  mim  repreendeste 
E  dos  imortaes  deuses  blasfemaste, 
Que  por  eles  te  juro  que  não  sei 
Como  comtigo  a  mim  me  não  matei. 

Na  pg.  147,  a  3."  oitava  deve  principiar:  Oh!  ditosa, 
A  estância  imediata  está  também  incompreensivel. 
devendo  ser : 

De  mim. . . 

A  verdadeira.    . 

Convertidos  de  nosso  erro  antigo 

Que  com  suspiros  da  alma  lavaremos 

Nossas  culpas,  Senhora,  que  não  digo 

O  gosto. . . 


436  Notas  e  Esclarecimentos 


35 

Pg.  i56.  O  2."  V.  da  3.'  estância  está  totalmente 
deturpado,  devendo  corrigir-se  :  Metê-lo  todo  Junto  ao 
meu  cutelo,  no  que  sam  concordes  os  Mss.  Portuense  e 
Conimbricense. 

36(1) 

A  Tra  los  Montes  —  pg.  i6o.  Essa  epígrafe  quer 
dizer  que  as  Voltas  de  Frei  Agostinho  parafraseiam  o 
Vilancete  ou  Cantar  velho  : 

Tra-los  montes 
me  irei  morar  ! 
Quem  me  bem  quiser 
lá  me  irá  buscar  ! 

já  tratado  por  Francisco  de  Sá  de  Miranda  ( n.»  5i. 
Gfr  pg.  746  da  ed.  de  G.  M.  de  Vasconcellos  ).  Jorge 
Ferreira  de  Vasconcellos  ciiou-o  na  Ulysippo. 

Ambos  dizem  todavia  Naquela  serra  irei  morar.  ( Var. 
Naquela  alta  serra ) 

O  Cod.  Conimbricense  traz  o  Mote  com  a  epígrafe 
Atrás  dos  Montes : 

Atrás  dos  montes 
Me  irei  morar. 
Quem  bem  me  quiser 
Lá  me  irá  buscar. 


37 

As  Endechas  —  pg.  162  e  365  e  367  —  lembram  as 
de  Gamões  :  «  Vai  o  bem  fugindo  »,  as  de  Caminha  : 
«  Vai-se  a  vida  e  foge  »  e  as  de  Diogo  Bernardes :  «  En 
mis  esperanzas  ». 

38 

,^'Que  lugar,  tempo,  estado,  ou  esperança  -^  pg.  168.1 
Este  soneto,  contido  em  ambos  os  códices,  é  atribuído, 
a  Martim  de  Castro,  ou  Castro  do  Rio,  no.  Canc.  de  A.i 
F.  Thomas  &..  4.  Isto  é  a  um  Quinhentista  e  Camonista 
de  talento  que  figura  com  versos  (  Sonetos  )  em  todas 
as  Miscelâneas  poéticas  do  seu  tempo  ( sobretudo  nas 


(i)  À  excepção  das  notas  45,  46,  .7,  48  e  ^5  todas  as  demais,  daqui 
por  deante,  sam  devidas  à  pena  autorizadíssima  da  Senhora  D.  Carolina 
Michaêlis  de  Vasconcelos. 


Notas  e  Esclarecimentos  A^^ 


Eborenses  )  e  escreveu,  segundo  Faria  e  Sousa,  muitos 
versos,  dignos  de  que  Luis  de  Camões  os  estimasse. 

Vid.  C.  M.  de  Vasconcellos,  Sonetos  e  Sonetistas, 
pg.  41,  43,  85  e  87. 

39 

Posto  que  sofra  amor  apartamento  —  pg.  169.  Este 
soneto  ( que  figura  no  Cod.  Portuense  duas  vezes,  a 
fl.  77  e  86 )  é  atnbuido  no  Canc.  de  A.  F.  Thomas 
( fl.  11  v. )  a  Fernão  Rodrigues  Lobo  Soropita. 

40 

^  Quando  de  ambos  os  ceos  caindo  estava  —  pg.  169. 
Este  soneto,  de  amor  profano.  As  lagrimas  de  uma 
despedida,  foi  impresso  por  Camilo  Castelo  Branco  (  era 
lição  defeituosa ),  nas  Poesias  e  Prosas  do  Soropita 
(pg  43). 

E  como  obra  deste  poeta  está  também  no  Canc.  de 
A.  F  Thomas  fi  84        . 

Num  Canc.  ( inédito  )  coleccionado  por  Faria  e  Sousa 
para  o  onde  de  Haro,  ha  (  salvo  erro )  uma  redacção 
castelhana,  que  prmcipia 

Cuando  de  entrambos  cielos  el  rocio 

Como  desconheço  todo  o  resto,  não  posso  avaliar 
qual  seria  o  texto  origmal,  e  qual  mera  traducção 

4« 

Perdi  me  dentro  em.  mim  como  em  deserto  —  pg.  171. 
Com  variantes  está  no  Canc  de  A.  F.  Thomas  fl.  a. 
Com  atribuição  a  Fernão  Corrêa  de  Lacerda 

No  Canc.  de  Évora  cxiv-2-»,  explorado  com  pouco 
critério  por  A.  F.  Barata,  anda  sem  nome  de  autor 
(  PP-  '47  ) 

De  autor  incerto,  portanto. 

■4a 

A  peregrinação  de  um  pensamento  —  pg.  173.  Foi 
atribuído  a  Luis  de  Camões  pelo  fantasioso  Faria  e 
Sousa  (  Rimas,  vol.  11,  353  ),  embora  no  manuscrito  em 
que  o  encontrou,  estivesse  com  autoria  de  Martim  de 
Crasto. 

Por  isso  foi  traduzido  por  Storck  ( n.»  293  )  e  por 
Tommaso  Cannizzaro  (  pg.  268  ). 


438  Notas  e  Esclarecimentos 


Em  redacção  castelhana  fígura  num  Canc  particular 
do  Conde  de  Villamediana  (  Paris,  6o5  fl.  48  v  ). 

Em  português  aparece  com  o  nome  de  Martim  de 
Crasto  no  Canc  de  A.  F.  Thomas  fl    10. 

Vid.  C  M.  de  V ,  Sonetos  e  Sonetisías,  pg.  43. 

43 

Vai-me  gastando  amor  e  um  pensamento  —  pg  173. 
Atribuído  a  Lms  de  Camões  no  Canc.  de  A  F,  Thomas 
fl.  I  So ;  publtcndo  com  >  obra  dele  por  T.  Braga  no  seu 
Camões  :  obra  épica  e  lyrica  191 1  ( pg.  226  ) ;  e  tradu- 
zido por  T.  Cannizzaro  (  n  »  892  ). 

Certo  é  que  esse  soneto  mal  pode  ser  obra  de  um 
rapaz  que  aos  vinte  se  fez  capucho. 

Vid.  G.  M.  de  V.,  Sonetos  e  Sonetistas,  pg.  43. 

44 

Como  estaes,  luif,  sem  luj  f  vida  sem  vida  t  —  pg.  igS* 

Amor  trouxe  a  Jesus  da  gloria  d  cruj —  pg   198. 

Quem  me  dera  por  lingua  um  raio  ardente  —  pg.  21 3. 
São,  a  meu  ver,  obras  legítimas  de  Frei  Agostinho,  pro- 
pagadas em  copias  por  serem  belíssimas,  infelizmente 
sem  nome  de  autor. 

O  primeiro  foi  metido  por  Miguel  Leitão  de  Andrade 
na  sua  Miscelânea  (1629).  onde  sai  da  boca  de  Maria 
Magdalena,  abraçada  ao  pé  da  cruz,  com  os  olhos  cheios 
de  agua  e  olhando  para  o  Cristo  Crucificado,  pg  84 

Os  outros  dois  estão  no  Cod.  Eborense,  cxiv-2-2.  sem 
autoria.  E  foram  publicados  por  A  F.  Barata,  no  Canc. 
Geral,  pg.  160  e  i38  —  Brito  Rebelo  reconheceu,  que 
a  poesia  Amor  gloria  e  cruj  era  obra  de  Frei  Agostinho. 

Vid.  Arquivo  Histórico,  1,  1 38-148.  Cfr.  El  canto  de 
las  aves. 

45 

Pg.  193.  O  soneto  xxxix  esplendido  na  forma,  riquís- 
simo no  conceito,  foi  publicado  por  Miguel  Leitão  de 
Andrade  na  sua  Miscelânea,  pg.  84,  como  anónimo, 
apresentando  algumas  variantes  menos  felizes. 

46 
Pg  195  Este  primeiro  son.  A  Paixão,  entranhado  de 
cândido  misticismo,  pf<de  parecer  ousado  na  afirmação 
do  V  7.0  —  Desprega  o  livro  antigo  e  o  moderno.  É  como 
diz  o  texto  do  Cod.  Conimbricense  e  o  do  Portuense. 
Já  no  A/55.  Portuense  uma  sigla  marginal  antiga  indica 
a  extranheza  dalgum  leitor  curioso.     Gomo  compreen- 


Notas  e  Esclarecimentos  489 


der-se  que  espirito  tam  bem  equilibrado  nas  suas 
expressõis  religiosas  mandasse  desprezar  o  livro  antigo 
e  o  moderno  ?  Que  mais  diria  um  heresiarca  despreza- 
dor  dos  Livros  Santos  ?  Mas  tudo  se  explica  com  uma 
leve  emenda.  Se  suposermos  o  verso  assim  saído  da 
pena  de  Fr.  Agostinho  : 

Despreza  o  livro  antigo  pelo  moderno 

poderá  ainda  afigurar-se  ousado  aquele  verbo  despregar, 
mas  a  passagem  mantém  todo  o  seu  vigor  pondo  em 
relevo,  numa  frase  que,  explicada,  se  encerra  em  perfeita 
ortodoxia,  a  excellência  do  Novo  sobre  o  Antigo  Testa- 
mento. Ainda  nesta  pág.  son  Ao  Mesmo.  Frei  Rodrigo 
de  Deos  (  +  '622  ),  que  foi  Guardião  do  Convento  de 
Nossa  Senhora  da  Arrábida  tinha  em  muita  estimação 
as  poesias  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz.  As  duas  obras 
que  deixou,  ambas  vêem  enriquecidas  com  sonetos 
dele.  No  Tratado  dos  Passos  que  se  andam  na  Qua- 
resma .  ■  (I.*  ed.  1681  )  vem  como  Proemio  este  —  Os 
passos  que  de  dôr  trespassado . . .  e  o  Epigrama  :  A  quem 
deceo  do  Ceo  para  nos  dar  vida,  publicado  a  pg.  335 
desta  nossa  ed.  Também  nos  Motivos  Espirituais 
[Lisboa,  i6zo].  que  não  pude  ver,  vêem  secundo  o 
testemunho  de  Inoc  [  Dic.  Bibl ,  vii,  169],  no  princípio, 
dous  sonetos  em  louvor  da  obra,  que  não  andam 
incluidos  na  colecção  impressa. 

47 
Pg.  208  O  mesmo  tema  foi  cantado  pelo  irmão 
Diogo  Bernardes  nas  Varias  Rimas,  pg.  gS,  no  soneto 
paralelo  O  Jacinto  entre  pedras  preciosas.  Pelo  soneto 
anterior  do  mesmo  Bernardes  se  vê  que  o  Santo  fora 
«  agora  novamente  canonizado  »,  [ «  agora  »  —  i5  de 
abril  de  iSgi  segundo  o  Agiol  Dominicano  de  Frei 
Manoel  de  Lima,  iii,  441 J  daí  os  versos  e  as  prosas, 
a  que  alude.  Quem  quiser  confrontar  o  talento  dos 
dois  irmãos  veja  especialmente  os  temas  que  ambos 
cantaram      O  verso  final  do  soneto  claramente  indica 

Sue   o  Santo   também   contava  como  seus  devotos  os 
>uques  de   Aveiro,  tam  notáveis,  de   resto,  pela   sua 
piedade. 

48 

Pg.  210-22  1.  O  soneto  A  Senhora  da  Memoria  chora 
a  ausência  do  pobre  monge  Fr.  Diogo  dos  Inocentes 
que,  quasi  octogenário  e  enfermo,  se  vio  obrigado  a 


440  Notas  e  Esclarecimentos 


recolher-se  ao  Convento  de  Alcobaça.  Ao  mesmo  pro- 
pósito sam  consagrados  os  imediatos.  A  Chr.  da  Arrá- 
bida transcreve  os  deus  primeiros  [§  1189]. 

49 

Lembranças  de  meu  bem,  doces  lembranças  —  pg  23 1 . 
Foi  atribuído  por  P'aria  e  Sousa  a  Luis  de  Camões 
(Rimas,  II,  pg  334,  n.»  358  =  291  de  T.  Braga  )  —  e  tra- 
duzido como  tal  por  Storck  (  269 )  e  Cannizzaro  (  291). 

O  polihistor  confessa  todavia  que  andava  em  nome  de 
Martim  de  Crasto  no  manuscrito  que  explorou. 

Já  então  { 1645  )  tinha  sido  impresso  em  Florença  entre 
as  Rimas  do  Dr  Estevam  Rodrigues  de  Castro  (1623  ). 

E  no  Canc.  de  A  F.  Thomas  aparece  igualmente  em 
nome  desse  poeta  (  fl.  269  ). 

De  autor  incerto,  portanto. 

Vid.  Sonetos  e  Sonettstas,  pg  85.  Aí  disse  eu  que  os 
dois  versos  ioiciaes  do  soneto  foram  glosados  moder- 
namente. 

5o 

Contenícmentos  meus  que  já  passastes  —  pg.  232. 
Este  soneto  profano  ocorre  duas  vezes  no  Canc.  de  A. 
F.  Thomas  a  fl.  3  como  obra  de  Francisco  de  Andrada  ; 
a  fl    16  com  atribuição  a  Luis  de  Camões. 

Como  cbra  dele  foi  publicado  por  T.  Braga  em 
Camões,  Obra  eptca  e  lyrica,  1911,  (  pg  221) ;  e  por 
isso  traduzido  para  italiano  por  T.  Cannizzaro  (igiS, 
/  Sonetti ). 

Frei  Agostinho  glosou  o  verso  inicial,  e  o  ultimo  em 
duas  oitavas  E  seria  por  ventura  somente  como  Mote 
que  ele  colocara  o  texto  alheio  à  testa  da  sua  paráfrase. 

Vid.  Sonetos  e  Sonettstas,  pg.  1 14. 

5i 

Aqui  neste  deserto,  seco  e  pobre  —  pg.  3o  i.  Esta 
Elegia  Penitencial  que  está  tanto  no  Cod.  Conimbri- 
cense como  no  Portuense  com  um  lapso,  (  salto  de  três 
ve^^os  )  é  atribuída  a  Soroptta,  no  Canc  de  A  F. 
Thomas,  fl  66. 

E  em  nome  dele,  com  a  epígrafe  Elegia  da  minha 
penitencia,  está  nas  Poesias  e  Prosas  inéditas  tiradas  por 
C.  C.  Branco  de  um  ms  vindo  do  Mosteiro  de  Tibaes. 
(  Vid  pg.  147  e  cfr.  pg  xxviii,  assim  como  T.  Braga, 
Quinhentistas,  pg.  3 \g-320). 


Notas  e  Esclarecimentos  441 


52 

A  ti  bom  Jesu  que  tanto  ofendia  —  pg.  3o8.  Esta  Ele- 
gia a  Jesu  na  Cruz  é  de  Diogo  Bernardes,  Rimas  Varias 
ao  bom  Jesus,  pg.  8. 

Também  se  encontra  no  Canc.  Juromenha  a  fl.  5i, 
com  importantes  divergências. 

Vid.  Zeitschri/t,  viii,  pg  443  e  ix,  364. 


53 

Despojos  tristes  dum  contentamento  —  pg.  3 16.  Esta 
Elegia  Á  Morte  de  um  Contentamento  ( —  epígrafe 
exarada  em  ambos  os  manuscritos )  —  obra  profana 
cheia  de  reminiscências  tristes  de  um  passado  feliz, 
representado  talvez  por  um  retrato  da  amada,  figura  no 
Canc.  de  A.  F.  Thomas  a  fl.  53  v.  como  Capitulo  do 
Soropita. 

E  estava  também  no  Ms.  de  Tibaes  das  obras  dele. 

Vid  Prosas  e  Poesias  pg.  29. 


Que  forte  fortuna  sigo  —  pg.  341.  O  Mote  é  de 
Crtstovam  Falcão,  ou  de  Bernardim  Ribeiro.  Quero 
dizer  que  pertence  ao  grupo  de  pequenas  poesias  que 
na  edi  ão  de  i559  da  Menina  e  Moça  e  das  Trovas  de 
Crisfal  (Colónia)  ocupam  as  folhas  i53  171  e  foram 
reimpressas  por  Epifânio  Diaz,  na  Revista  Lusitana, 
IV,  Ds.  14.6.    Cfr.  Ed.  Delfim  Guimarães,  pg.  55. 


55 

Pg  343.  A  Chr.  da  Arrábida,  pg.  940  traz  esta  poe- 
sia com  falta  das  duas  últimas  estâncias.  As  variantes 
publicadas  sam  insignificantes. 

56 

Saudade  minha  ^  quando  vos  veria  ?  —  pg.  ^64  Mote 
antigo  em  estilo  popular  —  ou  Cantar  velho  parafra- 
seado por  Sá  de  Miranda  ( n  *•  59  Cfr  pg.  681  e  746), 
por  Camões,  e  diversos  outros  Quinhentistas  e  Seiscen- 
tistas 

Vid  C  M.  de  Vasconcelloa,  A  Saudade  Portuguesa, 
Í9i4>  (  pg-  9  e  90-98). 


442  Notas  e  Esclarecimentos 


5? 

Cru:^,  remédio  de  mis  males  —  pg.  38o.  Cod.  Por- 
tuense, fl  53  O  Mote  é  uma  Quadra,  cujo  último  verso 
não  compreendo,  a  não  ser  que,  sendo  satírico,  queira 
dizer  que  cinco  mil  Cardeaes  teriam  cabido  na  cruz  = 
teriam  merecido  a  cruz  !  ? 

Foi  no  ano  de  1627  que  um  joven  fidalgo  castelhano, 
repetindo  boatos  que  corriam  em  Espanha,  atribuiu  a 
Quadra  a  Felipe  II. 

Vid.  Panegírico  de  la  Poesia  de  D.  Fernando  de  Vera, 
que  possuo  na  reimpressão  de  i88g. 

De  lá  passou  a  um  opúsculo  de  T.  Braga,  intitulado 
Camões  e  Philippe  II  —  I^89 

A  Glosa  de  Frei  Agostinho,  publiquei-a  eu  no  meu 
estudo  sobre  Sonetos  e  Sonetistas,  pg.  102-106. 

58 

Ecos,  port.  e  cast.  —  pg.  38 1.  São  imitação,  boa  e 
bela,  daqueles  que  Cervantes  meteu  no  seu  D.  Qiiixote, 
I,  Cap.  27  : 

Quien  menoscaba  mis  bienes  ? 
Desdenes. 

59 

Rompe  los  lajos  de  la  prision  fuertc  —  pg.  887.  Cod. 
Portuense,  fl.  69.  Esta  Cancion  á  la  Muerte  —  ou  antes 
à  Alma,  cuja  imortalidade  é  o  assunto  principal  —  nem 
é  inédita,  nem  é  de  Frei  Agostinho. 

Foi  impressa  em  1623  em  Florença  como  composição 
de  Estevam  Rodriguez  de  Castro  ;  e  nas  Rimas  dele, 
publicadas  pelo  filho,  Francisco  de  Castro  —  fnz  parte 
de  uma  obra  narrativa  de  vulto,  a  Fabula,  clássica,  de 
Arion  (  fl.  66-77  ). 

Como  obra  desse  médico  filosofante  foi  elogiada  e 
citada  : 

a)  por  Faria  e  Sousa,  nas  Rimas  de  Camões,  { iii, 

pg- ' ) ; 

b)  por  Gallardo  no  Ensayo,  na  descrição  do  volume 
florentino  (  vol.  tv,  pg.  229,  n  "  3670  ) ; 

c)  pelo  mesmo,  na  descrição  do  Canc.  do  Conde  de 
Haro,  coligido  por  Faria  e  Sousa  (  vol  11,  cap.  994, 
n.°  268  )  ; 

d)  por  Garcia  Perez,  que  o  reimprimiu  no  seu  Cata- 
logo (pg.  485). 


Notas  e  Esclarecimentos  443 


Compreende-se  que  Frei  Agostinho  gostasse  da  Can- 
ção e  a  copiasse,  para  seu  uso  particular. 

Embora  Francisco  de  Castro  metesse  no  volumito 
das  Rimas  alguns  poemas  de  diversos,  como  de  boa  fé 
declara  (  por  ex.  de  Sá  de  Miranda,  Correia  de  Lacerda, 
Francisco  Rodriguez  Lobo  o  Soropita,  Bernardo  Rodri- 
gues, a  Fradinho  da  Rainha,  a  Fabula  com  a  Canção 
pertence,  a  meu  ver,  ao  número  dos  originaes  que, 
quasi  violentando-o,  arrancou  das  mãos  do  pai. 

Vid.  Sonetos  e  Sonetistas,  pg.  102,  nota  3. 


60 

Las  trisjes  lágrimas  mias  —  pg.  393.  God.  Portuense, 
pg.  73o.  Este  Mote  é  um  Vilhancico  antigo,  muito  glos- 
sado.  Entre  Voltas  e  Glosas,  port  e  cast ,  conheço  pelo 
menos  umas  20  paráfrases  posteriores  a  i55o,  algumas 
superiores  à  de  Frei  Agostinho. 

61 

Lagrimas  que  no  pudieron  —  pg.  3q3.  Cod.  Portuense, 
fl.74.  Este  Mote  também  é  antigo.  Foi  citado  por  Gra- 
cian  na  sua  Agudejajy-  Arte  de  Ingenio,  no  Discurso  33 
por  causa  da  ambiguidade  que  há  no  último  verso  em 
que  de  la  mar  significa  dei  amar. 


62 

Di,  contento,  adonde  estás  f  —  pg.  SgS.  Cod.  Por- 
tuense, ú.  62.  Esta  quadra,  profana  e  humana,  mas 
moralizadora  que,  segundo  o  Cod.  Portuense  foi,  com 
a  correspondente  Glosa,  dedicada  por  Frei  Agostinho 
a  el  Rei  Phelipe  II,  é  atribuída  ao  próprio  Monarca 
pelo  mesmo  D  Fernando  de  la  Vera  que  lhe  atribue  a 
Quadra  à  cruz  —  boato  esse  que  foi  propagado  também 
por  Faria  e  Sousa  no  Cancioneiro  que  colecionou  para 
o  Conde  de  Haro  ( Gallardo,  Ensayo,  1,  c.  1000,  n."  2 168). 
Vid.  Sonetos  e  Sonetistas,  pg.  102-106,  onde  publiquei 
a  Glosa  de  Frei  Agostinho  —  e  mais  outra,  com  diversas 
considerações. 

Se  esta  foi  dedicada  a  Felipe  II,  iria  em  troca  da 
Quadra  relativa  à  cruz,  mandada  pelo  rei  para  o  Poeta 
a  parafrasear  ?  ?  ?  Mas  quando  ?  e  como  ?  e  por  inter- 
venção de  quem  ? 


444  Notas  e  Esclarecimentos 


63 

Este  mi  mal  tan  estrano  —  pg.  397.  Cod.  Portuense» 
fl.  80.  Tudo  é  alheio.  Nada  de  Frei  Agostinho  O  Mote 
é  de  Sá  de  Miranda  e  pertence  à  Egloga  de  Alexo, 
{  V.  879  e  seg.  ). 

A  Glosa  é  de  Estevam  Rodriguez  de  Castro,  que  evi- 
dentemente era  um  dos  autores  predilectos  de  Frei 
Agostinho.  Encontra-se  nas  Rimas,  dele  (a  fl.  5i). 
E  foi  reimpressa  por  Garcia  Perez  no  Catálogo,  pg  489. 

Gallardo  cita-a  como  fazendo  parte  do  Canc.  do  Conde 
de  Haro,  coleccionado  por  Faria  e  Sousa  (Ensayo, 
n.o  2168). 

64 

Pluguiera  a  vos,  mi  Dios,  que  no  naciera  —  pg  399. 
Cod.  Portuense,  fl.  80.  O  Mote  é  de  Gregório  Silvestre. 
E  talvez  também  a  Glosa  seja  dele.  Não  o  posso  dizer 
com  certeza  porque  tenho  a  desgraça  de  não  possuir  as 
obras  dele.    Vid.  Sonetos  e  Sonetistas,  pg.  3g. 

65 

Passo  la  vida  solo  en  contemplarte  —  pg.  400.  Cod. 
Portuense,  fl  76.  No  Ensayo  de  Gallardo,  na  descrição 
das  Rtmas  de  Estevam  Rodriguez  de  Castro  (  Vol.  iv  a. 
229  n.°  3670  )  aprendi  que  o  Terceto-Mote  é  obra  desse 
autor. 

E  como  a  Glosa  dele,  infelizmente  não  reimpressa, 
conste  de  três  Oitavas,  como  a  que  se  lê  no  Cod  Por- 
tuense, é  provável  que  essas  também  sejam  mera  copia. 

Embora  a  edição  de  Florença  se  publicasse  depois 
da  morte  de  Frei  Agostinho,  as  obras  que  contêm,  são 
provavelmente  anteriores  à  ida  do  Cristão  Novo  ( n. 
em  1339  )  para  fora  do  reino.  O  próprio  íilho  diz  que 
sairam  de  Portugal. 

66 

En  turquesadas  nubes y  celajes  —  pg,  404.  Este  son. 
é  de  Pedro  Espinosa  e  foi  publicado  em  i6o3  nas  Flores 
de  Poetas  ilustres^ 

É  o  n.»  244,  pg.  287  da  admirável  ed.  moderna  de 
D.  Francisco  Rodriguez  Marin. 

Entrou,  elogiado  por  causa  da  felicidade  da  metáfora 
e  pola  propriedade,  viveza  e  formosura  das  imagens,  no 
Parnaso  ( tomo  v )  de  Sedano  e  no  Cancioneroy  Roman- 
cero  (  tomo  35  da  Bibl.  de  Ant.  Esp  ). 


Noras  e  Esclarecimentos  -  445 


b7 

El  canto  de  las  aves  de  la  sierra  —  pg.  411.  Cod. 
Portuense,  fl  65.  Este  lindo  Soneto  foi  metido  por 
Faria  e  Sousa  no  Cancioneiro  que  colecionou  para  o 
Conde  de  Haro,  sem  nome  de  autor. 

E  Gallardo  achou-o  digno  de  reimpressão  (n."  2168). 


68 

No  me  persigas  más,  vana  esperança  —  pg  412.  Cod. 
Portuense,  fl  67  Esse  Soneto  figura  também  no  Canc. 
do  Conde  de  Haro,  col  por  F  S  ;  aparentemente  num 
ramalhete  de  Sonetos  dedicados  a  Felipe  II  por  ocasião 
da  Morte  da  Rainha  de  Espanha  em  Badajoz  (  D  Ana 
Maria  de  Áustria  •{•  a  26  de  Out.  de  i58o ).  Sem  nome 
de  autor. 

Gallardo  não  o  reimprimiu  (Ensayo,  n.»  2168). 

69 

Hambrienta,  rota,  inquieta,  disgustada  — ,pe-  4i3.  Cod. 
Portuense,  fl.  78  v  Este  Soneto  afamado  À  Pobreza  ou 
Em  vitupério  da  Pobreza  é  atribuído  no  Canc.  coleccio- 
nado por  Faria  e  Sousa  a  D.  Juan  de  Silva,  Conde  de 
Portalegre. 

Foi  publicado  por  Gallardo,  no  Ensayo  11  an.  996. 
Cfr.  992. 

Mas  já  fora  acolhido  em  1629  por  Miguel  Leitão  de 
Andrade,  na  sua  Miscelânea,  Dial.  xvii,  pg.  899  na  ed. 
de  1876 

Vid.  Sonetos  e  Sonetistas,  pg.  76. 


BIBLIOGRAFIA  <•> 


Abreu  ( João  Gomes  de  )  —  Diogo  Bernardes  (  A  sua 
naturalidade  ),  Ponte  do  Lima,  1907,  i  folh.,  19  págs. 

Arantes  ( Hemeterio  )  —  Frei  Agostinho  da  Cruj. 
Notas  á  margem  duma  «  Historia  dos  Quinhentistas  », 
Lisboa,  1909.  1  folh. 

Archivo  Bibliographico  da  Bibliotheca  da  Universidade 
de  Coimbra,  i,  (1901)  pg.  17,  onde,  começando  a  publica 
ção  do  Códice,  que  tornamos  conhecido  nessa  Revista, 
emitimos  pela  primeira  vez  o  propósito,  que  só  hoje 
levamos  a  efeito  Cfr.  nesta  Bibliografia  —  Remédios 
(  Mendes  dos  )  —  Almanach,  etc. 

Arrábida  —  Numero  único.  Setúbal,  i  de  Julho  de 
1899,  8  págs.  Colaborado  por  diversos,  a  principiar  por 
D.  Anna  de  Castro  Osório,  A  J.  Marques  da  Costa, 
Arronches  Junqueiro,  Adolpho  Portela,  Júlio  Augusto 
de  Oliveira,  Oliveira  Parreira,  etc.  O  artigo  deste  último 
m  Os  amadores  de  Arrábida  »  com  interesse  pelas  refe- 
rências a  um  passeio  com  Oliveira  Martins  e  ao  encon- 
tro que  tiveram  com  o  último  eremita  Fr.  José  de  N. 
Senhora,  que  apareceu,  um  dia,  morto  na  ermida  de 
Santa  Catarina  em  11  de  Novembro  de  1870. 

Arrábida  —  Publicação  commemorativa  da  festividade 
celebrada  pelo  antigo  Cirio  de  Setúbal.  Ano  de  1896, 
55  págs.  A  pg.  5o  e  5 1  transcreve  como  de  Fr.  Agos- 
tinho da  Cruz  dois  sonetos,  cuja  autenticidade  é  licito 


^1)  Como  se  verá,  lembramos  na  nossa  resenha  os  artigos  oa  pablica- 
ç6is  consagradas  à  Arrábida,  porque  é  raro  falar-se  da  famo$a  Serra  sem 
aludir  ao  seu  exímio  Cantor.  Algumas  delas  transcrevem  até  poesias  de 
Fr.  Agostinho,  como  por  ex.,  a  de  Bulhão  Pato,  A.  Portela,  etc,  adiante 
citados. 


448  Bibliografia 

pôr  em  dúvida.    Dizem-se  inéditos,  mas  não  se  declara 
a  fonte  ou  proveniência.   Um  principia  : 

ff  Adeus,  ingrata,  adeus,  que  a  tirania  » 

E  o  outro  : 

«  Quando  do  amor  fiei  minha  vontade  ». 

O  artigo  é  assinado  por  M.  (  Manoel )  M,  (  Maria )  P. 
<  Portella  ). 

Artes  e  Letras^  i,  1892,  artigo  de  Bulhão  Pato,  pgs.  81 
e  97,  sob  o  título  :  «  O  Palácio  de  Galhariz  —  Diogo 
Bernardes  —  Frei  Agostinho  da  Cruz  —  A  Serra  da 
Arrábida  ». 

Barata  ( António  Francisco  )  —  Miscelânea  histórico- 
rommtica,  pg  63, 

Bernardes  (  Diogo )  —  Carta  ao  P.  Fr.  Agostinho  da 
Cru^jf.    E  a  VIII,  pg.  i52  de  «  O  Lyma  »,  ed.  de  1761. 

Braga  (  Th.  )  —  Revista  contemporânea,  v,  1864-1865, 
artigos  seus  a  propósito  de  Fr  Agostinho  e  Fr.  António 
das  Chagas,  considerados  como  poetas  místicos. 

—  Id.  Estudos  da  Edade  Media,  1870,  pgs  168-182; 
Historia  dos  Quinhentistas,  1871,  c.  v,  pgs.  3ii-32i; 
Historia  da  Litteratura  Portuguesa,  11,  Renascença, 
Porto,  1914,  pgs.  357-362.    Etc. 

Branco  e  Negro,  1896,  1  "  ano,  número  de  7  de  junho, 
pgs.  14-15.  Gravura  do  Convento  e  Serra  da  Arrábida 
com  artigo  de  Fialho  de  Almeida. 

Cardoso  ( Jeronymo )  —  Agiologio  Lujiíano,  2.% 
pg.  146  e  Comentário  de  12  de  Março,  letra  F. 

Cardoso  (  P.  Luiz  )  —  Diccionario  Geographico,  ar- 
tigo «  Arrábida  ». 

Castro  ( João  Baptista  de  )  —  Mapa  de  Portugal. 

Discrição  da  Serra  da  Arrábida  —  Mss.  n.°  399  da 
Bibhoteca  da  Universidade  de  Coimbra  compreendendo 
i34  oitavas.  Principia  :  Canto  da  Europa  a  terra  ven- 
turosa —  e  termina  :  Não  nos  sucedeu  cousa  na  jornada. 
Anónimo.  Letra  do  séc.  xvm.  Pág  moderna  de  pgs  loi 
a  134.  Faz  parte  duma  grossa  Miscelânea,  que  se  pôde 
vêr  descrita  no  Cardlógò'dos  Mss.,  \t\  Arch.  Bibl.  da 
Bibli  da  Univ.  de  Coimbra,  vol.  vi  { 1906 ),  pg.  10. 

Gonçalves  ( J.  C.  de  Sousa)  —  Uma  excursão  á  Serra 
da  Arrábida,  1902. 


Bibliografia  449 


Illustração  Portuguesa  n."  iSi  de  18  de  Janeiro  de 
1909 
—  Id.,  n"  209  de  21  de  Fevereiro  de  1910. 

Longfelow  ( Henry  W. )  —  Poems  of  Places  edited 
by...,  Boston,  1877.  A  pg.  67  do  vol  2.°  figura  a  poe- 
sia de  Fr.  Agostinho  «  Arrábida  »  traduzida  para  inglês 
por  J.  Adamson. 

Pg.  6S  o"tra  de  Robert  Southey  intitulada  «  Written 
after  visiting  the  Convent  of  Arrábida,  near  Setúbal  ». 

Pg.  70,  outra  de  Francisco  Manoel  traduzida  para 
inglês  por  Robert  Southey  —  «  The  Arrábida  Convent  ». 

Vid.  Southey  (  Robert ). 

Machado  (  Barbosa  )  —  Bibliotheca  Lusitana,  i,  s.  v., 
biografia  em  que  fala  do  Cod.  de  Verberena,  a  que  na 
Introdução  fazenoos  referência.  No  vol.  11,  pg.  617  no 
artigo  sobre  João  de  Brito  e  Melo  ( -|-  1682)  diz  que 
êlp  compôs  a  Chr.  da  Provinda  de  Santa  Maria  da 
Arrábida  dividida  em  5  livros,  que  ficou  Mss.  e  natu- 
ralmente se  perdeu  Cfr.  Piedade,  Chr.  da  Arrábida, 
adiante  cit. 

Mesquita  e  Quadros  ( José  Caetano  de)  [1726-1799], 
o  Metatesio  Cilenio  da  Arcádia  de  Lisboa  —  Vida  do 
N.  P.  Fr.  Agostinho  da  Cru:^  Religioso  da  Provinda 
da  Arrábida,  Lisboa,  na  Reg.  Ofic  Tvp ,  1 7q3,  8.»  de 
57  págs.  Cito  segundo  Inoc.  Dic.  Bibl ,  iv,  283.  É  a 
impressa  à  frente  do  vol.  Poesias  de  Fr.  Agostinho  da 
Cruj,  de  que  em  1771  foi  editor  o  mesmo  Mesquita. 

Monteiro  ( P.  Ignacio )  —  Descripção  da  Arrábida. 
Mss.  da  Bibl.  Nac.  de  Lisboa    Principia  : 

Desvanecido  o  sol  que  procurava 
Lograr  da  bella  sarça  a  bizarria 

e  termina  na  estanca  i33  : 

Em  Lisboa  me  vejo  finalmente 

Com  que  venho  dar  fim  a  minha  historia. 

O  autor  é  o  mesmo  de  que  fala  Inoc,  Dic.  Bibl ,  iii, 
pg.  212,  dando-o  aí  como  natural  de  Lamas,  no  bispado 
de  Viseu,  mas  neste  Mss.  diz-se  «  Descripção...  feita 
pelo  R.  P ,  natural  da  Ilha  da  Madeira  ». 

Occidcnte  —  n."  776  —  Julho  de  1900. 
>9 


45o  Bibliografía 


Pato  (  Bulhão  )  —  Vid.  Artes  e  Letras. 

Paulo  (José  Agostinho^  —  artigo  publicado  no  n.» 
5175  de  14  de  Junho  de  1896  do  jornal  O  Século  — 
«  A  Serra  da  Arrábida  »  com  várias  gravuras. 

Piedade  ( Fr.  António  da  )  —  Espelho  de  Penitentes  e 
Chr.  da  Provinda  de  Santa  Maria  da  Arrábida,  da 
regular  e  mais  estreita  observância  da  Ordem  do  Sera- 
phico  Patriarcha  S.  Francisco  no  Instituto  Capucho, 
Lisboa,  MDCcxxviii,  part.  1,  liv.  v,  caps.  18  e  20,  pgs.  940 
e  941,  I  1170. 

Pimentel  (  Alberto  )  —  Memoria  sobre  a  historia  e 
administração  do  Municipio  de  Setúbal.  Lisboa,  1877, 
I  vol ,  pg.  22(  e  segs. 

Portela  (  M.  M. ) — Ecos  do  Ermo,  versos  de..., 
Setúbal,  1872.  pgs.  127,  169  e  176 

Purificação  (  Fr.  António  da  )  Crónica  dos  Eremitas 
de  Santo  Agostinho,  2.*  Parte  ( i65o),  pg.  «74. 


Rasteiro  ( J. )  —  artigo  intitulado  «  Os  frades  meno- 
res da  Arrábida  »  em  O  Recreio,  Lisboa,  1896,  21.*  série, 
pg  67. 

—  Id.  «  Notas  históricas  sobre  a  Península  da  Arrá- 
bida »  no  Boletim  da  Soe.  de  Geogr.  de  Lisboa,  8.'  série, 
pg.  527 ;  Noticias  archeologicas  da  Península  da  Arrá- 
bida in  —  O  Archeologo  Portugue^,  iii,  pgs.  1-48. 

Rebelo  (  Brito )  —  Carta  de  Diogo  Bernardes  a 
António  de  Castilho  ( 1574 )  in  —  Arch.  Hist.,  i. 

Remédios  (  Mendes  dos )  —  Almanach  ilustrado  «  O 
Comercio  do  Lima  »,  coordenado  por  António  de 
Magalhães,  1910,  (4.°  de  publicação)  pgs.  i85-i88 
a  Fr.  Agostinho  da  Cruz  ». 

Revista  Universal  Lisbonense,  vol.  4.°,  pg.  408,  artigo 
de  R.  Gusmão,  sem  valor. 


Silva  { Inoc.  Francisco  da)  —  Dicc.  Bibl,  i,  i5-i6, 
fala  do  Cod.  Marreca,  a  que  na  Introdução  faço  a 
devida  referência. 

Silva  (  José  Maria  da  Costa  e  )  —  Ensaio  biografico- 
critico  sobre  os  melhores  poetas  portugueses,  vol.  11, 
pgs,  229-269. 

Soriano  (  J.  da  Luz )  —  RevelaçÕis  da  minha  vida, 
na  I.*  ed  a  pg  23. 

Southey  (  Robert )  —  Lettres  written  during  a  short 
residence  in  Spain  and  Portugal,  Bristol,  1797.  Traz  : 
Musings  afier  visiting  the  Convent  of  Arrábida,  pgs.  476 


Bibliografia  451 


e  484  —  A  Letter  XXV  termina  transcrevendo  a  poesia 
de  Francisco  Manuel : 

No  baxes  temeroso  o  peregrino. . . 

Torresão  ( Guiomar  D.  de  Noronha )  —  Folhetim 
do  «  Diário  de  Noiicias  »  assinado  •  3o  de  setembro 
de  1867  »,  com  o  título  «  Digressão  á  Arrábida.  — 
Ascensão.  —  Altar  problemático.  —  Gruta  com  privi- 
legio de  álbum  —  Paguei  o  tributo.  —  Salto  á  Lapa. 
—  Encontro  com  a  brisida.  —  A  propósito  da  dita  que 
transige  admiravelmente  com  o  Sado.  —  Boileau  ». 

Trata  dum  passeio  ao  famoso  local.  Fecha  com  uns 
medíocres  versos  feitos  pela  autora  na  ocasião  desse 
passeio,  que  se  realizou  a  24  de  setembro  de  1867. 

Vidal  Júnior  (  G.  A. )  —  «  Uma  excursão  á  Serra  da 
Arrábida  u  nos  —  Annais  da  Academia  dos  Estudos 
livres,  Lisboa,  1902. 


índices 


I 


ÍNDICE   DAS   POESIAS   POR   ORDEM 
ALFABÉTICA 


Pág. 

A  corte  dos  celestes  moradores 202 

Acostumado  tinha  o  sofrimento 1^72 

A  desigual  balança 336 

Adonde,  mi  dulce  Dios,  cargado 375 

Adoro-vos,  Senhor  Deus  escondido 180 

A  fonte  que  de  seu  curso  murmurava 2i5 

Agora  que  de  todo  despedido loi 

Alegre  venho  a  ver-te  no  teu  ermo :í23 

Alma  já  tão  ditosa  entre  os  ditosos 116 

Alta  serra  deserta,  donde  vejo 89 

Alta  sierra  [de]  riscos  encumbrados '411 

Amor  trouxe  a  Jesu  da  gloria  á  cruz 198 

Ancorou-me  a  velhice  no  remanso. 229 

Andei  de  mes  em  mes,  de  dia  em  dia i34 

Angélicos  espirites  creados 178 

Anjo  custodio  a  quem  foi  dado 177 

Antes  de  parir 363 

Antre  as  cousas  mais  formosas i58 

Ao  alto  Deus  confesso  meus  pecados 177 

Ao  pé  deste  carvalho  áspero  e  duro 3 14 

Aparta-se  de  vós,  desaparece   77 

A  peregrinação  dum  pensamento 173 

A  que  vindes,  Senhor,  do  Céo  á  terra 192 


4^4  índices 

Páf. 

Aqueixava-se  Marta  de  Maria 2o3 

Aquelle  bom  Pastor,  que  conhecia   i5i 

Aquelle  que  caminha  desejando 214 

Aquelle  que  na  vinha  do  Senhor 23o 

A  quem  desceo  do  Geo  por  nos  dar  vida 335 

Aqui  debaixo  desta  pedra  dura 128 

Aqui,  Deos  da  minha  alma,  onde  cheguei 335 

Aqui  neste  deserto  seco  e  pobre 3oi 

Aqui,  Senhora  minha,  onde  soía    4 

A  saudade  d'alma  a  vós  devida 220 

A  terra  feita  Ceo,  de  sol  vestida 199 

A  ti  bom  Jesu  que  tanto  ofendi 3o8 

As  cabras  que  inda  guardo  nesta  Serra   223 

Assi  como,  meu  Deus  omnipotente  2i3 

Assi  como  vos  vejo  nessa  cruz 194 

A'  Virgem  deu  o  Anjo  a  embaixada    i83 

A  vista  derramada 270 

Cantar  pretendo  aquelle  alto  mysterio 233 

Claras  agoas  do  nosso  doce  Lima 1 1 1 

Claras  agoas  nascidas  das  entranhas 98 

Comvosco  e  dentro  em  vós,  Serra  batida   292 

Com  cordas  á  columna  foi  atado 190 

Como  cisne,  que  canta  na  ribeira «04 

Como  es  possible,  mi  Dios 376 

Como  estaes,  luz  sem  luz,  vida  sem  vida 193 

Como  o  cervo  cansado  e  ferido 3i i 

Como  queres  que  negue  a  teu  esprito   i3i 

Concluído  me  tenho  a  mi  comigo 228 

Contentamentos  meus,  que  já  passastes 232 

Cruz,  remédio  de  mis  males 38o 

Daquela  que  cantei  felices  annos • 3o4 

Daquele  que  não  tinha  inda  pisado 4 

Daqui,  minha  Senhora,  fui  forçado   221 

l  De  do  venis,  Dios  alto  ?  —  dei  altura 4o5 

Deixei  de  cantar  já,  como  sohia 298 

De  lá  do  vosso  eterno  firmamento 102 

De  la  planta  dei  pie  a  lo  mas  alto 373 

Dentro  na  minha  lapa  recolhido 225 

Depois  que  conheci  que  não  podia  84 

Depois  que  não  achou  na  sepultura 12 

De  que  serve,  que  nresta,  que  aproveita 218 

Desejando  escrever-lhe  nunca  pude 3 19 

Despojos  tristes  dum  contentamento 3i6 

Deus  vos  salve  sagrada  Virgem  pia 176 

De  vos  a  Dios,  Francisco,  el  pensamiento 409 

Dezid,  senor,  si  no  teniades  animo 4o5 

^  Di,  contento,  adonde  estás  ? SgS 


índices  455 

Pág. 

Diante  do  Senhor  está  lançada 1 1 

Divinas  mãos,  e  pés,  peito  rasgado   3 

Divino  sangue,  que  do  corpo  e  lado i8i 

Divino  sol,  en  cuya  imagen  pura 373 

Do  ceo  á  terra,  Deus  omnipotente 187 

Do  fim  de  qualquer  mal,  que  me  persegue    217 

Do  Lyma,  donde  vim  já  despedido 18 

Dos  males  que  passei  no  povoado 225 

Dos  males  que  por  mim  já  tem  passado 224 

Do  meio  desta  Serra  derramando 17 

Do  mundo  desapegado 348 

Doce  quietação  de  quem  vos  ama 9 

Dos  solitários  bosques  a  verdura 222 

Duas  cousas  receio,  duas  faço 64 

Duro  ferro  cruel,  lança  homicida 197 

El  canto  de  las  aves  en  la  sierra 411 

En  aquella  eterna  luz 402 

Emquanto  se  dilata  a  pescaria   58 

Em  que  parte,  ou  em  que  terra   337 

Em  ti,  suave  cruz,  inda  que  dura • .  6 

Enganos  da  vida  humana 339 

En  turquesadas  nubes  y  celajes  404 

Em  um  Deus  creio  só,  da  terra  e  Ceo 175 

En  ningun  médio  puedo  sustentar[me] 396 

En  sola  la  miséria  de  mi  vida 385 

Entrarei  em  vossa  casa,  meu  Senhor 179 

Era  noute  de  inverno  longa  e  fria 1 3 

Es  la  esperança  un  mal  bien  reputado 414 

Espera,  porque  foges,  Limabeu  ? 80 

Essas  ruedas  de  amor  que  no  suspenden 415 

Estando  o  mundo  todo  em  paz  composto 189 

Este  largo  martírio  de  la  vida 406 

Este  mi  mal  tan  estrano 397 

Eterno  Padre  nosso  Creador 175 

Eterno  sacerdote,  que  hoje  alçado  193 

Eu  tenho  para  mim  seeundo  as  queixas 5i 

Eu  vi  do  ceo  na  terra  a  fermosura    85 

Fiz  conta  comigo 365 

Fortuna  destruio  minha  esperança 233 

Graças,  Senhor,  vos  damos,  que  quisestes i83 

Graças  vos  dou,  Senhor,  que  da  escura 174 

Grandes  nuevas ;  Dios  nacido 3^0 

Habita  n'alma  Deus,  se  nella  habita ai i 

Hambrienta,  rota.  inquieta,  diigustada 41 3 

Insígnia  triunfal  honrosa  e  santa 277 

Já  não  digo  um  dia 36^ 

Jacinto,  já  vestido  doutras  cores ao3 


456  índices 

Pág. 

Junto  das  bravas  agoas  Oceanas 1 1 3 

Já  nesse  ethereo  assento,  Virgem  pura i86 

Lagrimas  que  no  pudieron SgS 

Lançou-se  Limabeu  antre  huns  penedos i8 

Largos  campos  do  Tejo 117 

Lá  vos  tornaes,  Senhor,  onde  subistes 199 

Las  tristes  lagrimas  mias   3g2 

Lembranças  do  meu  bem,  doces  lembranças   23i 

Magdalena  de  amor  toda  roubada   20t 

Mais  cedo  te  buscara  se  não  fora 3o 

Meu  Deos,  nessa  columna  estaes  atado .'....  191 

Mostrai-me,  meu  Senhor,  em  que  deserto 207 

Na  derradeira  Cêa  do  Senhor 6 

Na  ribeira  do  Lima  fui  nascido 289 

Não  passou  meu  pensamento 345 

Nas  entranhas  da  mãi  alumiado 5 

Nasci  e  renasci  na  casa  em  dia 335 

Nasci  junto  do  Lima  satldoso i85 

No  me  persigas  más,  vana  esperança 412 

No  pudieron  más  subir 401 

Nesta  Serra 35o 

Neste  meu  remanso 348 

No  fim  da  vida  humana  discursando 217 

No  meio  desta  Serra,  onde  se  cria 221 

No  silencio  da  noute,  em  que  vigio 226 

O'  cegos,  que  buscais  na  morte  a  vida 212 

Ochenta  y  seis  províncias  y  conventos 409 

Oh  !  Clara,  que  tão  clara  resplandeces » 

Oh  !  cruz,  que  no  Calvário  sustentaste 7 

O'  divino  banquete,  onde  foi  dada 189 

O'  Maria  161 

O'  montes  altos,  vales  abatidos 227 

Oh  !  Virgem,  Mãi  de  Deos,  Senhora  minha i5 

O  meu  cordeiro  branco  que  saltava 48 

O  meu  nascimento 162 

O  tempo  que  fugindo 121 

O'  venturosas  palhas  de  Belém 188 

O'  vós  que  andaes  de  achar  cá  desejosos 23 1 

Omnipotente  Deos,  que  o  sol  creastes 184 

Omnipotente  Padre,  que  deixastes 181 

Os  correos  da  morte  são  chegados 229 

Os  figos  que  no  telhado 343 

Os  passos,  que  de  dores  trespassado igS 

Os  rios,  donde  nascem,  vão  correndo 2i5 

Os  versos,  que  cantei  importunado i 

Oy  sangran  a  nuestro  Dios 37 1 

Para  bien  os  sea  el  parto 369 


índices  457 

Pág. 

Pasmem  d'alegria 35 1 

Passa  por  este  vale  a  Primavera 2 

Passo  la  vida  solo  en  contemplar-te • .  400 

Penas,  tormentos,  dôr,  e  fortaleza i3y 

Perdido  el  nombre,  dei  peccado  esclava  410 

Perdi-me  dentro  em  mim,  como  em  deserto 171 

Perdoai-me,  Senhor,  que  se  faltara   10 

Pluguiera  a  vos,  mi  Dios,  que  no  nasciera 309 

Pois  que  nos  ajuntamos  nesta  praia 33 1 

Por  longe  que  vá    160 

Pôs  Deos  da  gloria  o  ceo  na  mór  altura 2o5 

Posto  que  sofra  amor  apartamento  169 

Primeiro  que  partísseis,  filha  minha 32i 

Pús  em  tamanha  altura  o  pensamento 170 

Qual  ave,  que  do  laço  vai  fugindo ao5 

Quando  d'ambos  os  ceos  caindo  estava 169 

Quando  na  verde  planta,  ou  pedra  dura i83 

Quando  será,  Senhor,  que  desatado 208 

Quando  verei,  meu  Deos,  chegar-se  a  hora 211 

Quantas  vezes  cuidei  que  me  apartava 295 

Que  buscas  por  aqui,  por  esta  Serra 40 

i  Que  ciega  y  general  idolatria  ! 4i3 

Que  coração  tão  seco,  duro  e  frio 16 

Que  cousa  mais  suave,  doce,  e  branda 2 

Que  cousa  seja  amor,  não  se  comprende 171 

Que  desculpa  pode  dar 1 1 1 

Que  forte  fortuna  sigo 341 

Que  lingua,  que  saber,  que  esryio  ou  arte 281 

Que  louvores  direi  do  nosso  Santo 14 

Que  lugar  acharei  no  pensamento 8 

Que  lugar,  tempo,  estado  ou  esperança 168 

Que  males  não  queres  sentir  ?   Ouvir 348 

Que  me  fica  por  ver  na  mortal  vida   ...  a 223 

Que  novas  me  darás  do  nosso  amigo 328 

Que  queira  quem  me  não  quer 342 

Que  saudade  d'alma,  e  que  brandura   14 

Que  tenho  mais  no  ceo,  ou  que  na  terra 207 

Quem  me  dera  por  lingoa  um  raio  ardente 2i3 

Quem  me  pode  apartar  de  vosso  amor 107 

Quem  muito  deseja  amar iSg 

Quem  podesse  mostrar  o  que  tem  n'alma 219 

Quem  vos  escolheo 363 

Quero  chorar-me  agora  aqui  cercado 95 

Queres  ouvir  contar  hum  pescador 70 

;  Quien  me  tiene  sin  honor  ? 38i 

Quien  será  aquel  cavallero  378 

Rodeado  nesta  Serra 346 

5o 


458  índices 

Pág. 

Salid,  hijas  dichosas  de  Sion 874 

Saudade  minha 364 

Se  amor  do  Ceo  se  cria  e  acha  em  lagrimas 268 

Se  bastou  só  dizer  para  ser  feito 210 

Secou-se  para  mim  agoa  no  rio 85 

Se  desejo,  meu  Deos,  de  vos  amar 209 

Se  destes,  meu  Senhor,  anjo  a  Tobias 179 

Se  dos  pais  e  dos  filhos  me  fôr  dado   253 

Se  não  posso  pregar  meu  pensamento 191 

Se  neste  apartamento  me  saltara 107 

Senhor,  se  minhas  culpas  m'endurecem 92 

Senhor,  se  me  esquecera 119 

Se  Agostinho  fora  Paulo 343 

Se  o  sacro  Evangelista  mereceo 200 

Seráfico  Francisco  assinalado 16 

Seráfico  Francisco,  sprito  puro 204 

Se  queres,  ó  Christão,  gozar  da  gloria 195 

Se  são  vossas  delicias,  meu  Senhor 206 

Se  sendo,  meo  Senhor,  por  vós  formado 227 

Se  tanto  penetrou  toda  a  dureza 128 

Se  tu  para  tão  longe  te  partias 34 

Se  vós,  meu  Senhor,  dais  consentimento 196 

Se  vós  me  não  deixais,  Senhora  minha 219 

Se  vós  quereis.  Senhor,  a  quem  vos  quer 209 

Serpiente  de  metal,  que  en  el  desierto 375 

Si  acaso,  gran  Francisco,  yo  os  aliara 408 

Si  ai  curso  más  veloz  tan  solo  atenden 41 5 

Si,  que  más  puede  el  amor 377 

Si  sois  dei  cielo  gloria  y  alegria 407 

Si  sois  tan  grande  Dios,  imenso,  eterno 407 

Soias  de  cantar  onde  pastavas   417 

Tal  luz  á  Magdalena  alumiava 10 

Tamanha  foi  a  dôr,  a  magoa  minha 116 

Tanto  é  o  bem,  que  espero 347 

Tempo  foi  que  pastava  neste  prado 12 

Tendo  o  rei  adultero  e  deshumano 201 

Trazes  mudada  a  côr,  mudado  o  rosto 22 

Um  bosque  que  de  longe  apparecia 216 

Vai-me  gastando  amor  num  pensamento 173 

Verdes  bosques  da  Serra. «24 

Virgem  formosa,  que  do  sol  vestida 187 

Virgem  pura,  escolhida,  honesta,  santa 273 

Visão  que  a  Santa  Brígida  foi  feita 265 


II 


índice    das    POEblAS    POR    ORDEM 
DA   PUBLICAÇÃO   NESTE   VOLUME 


PARTE   I 

POESIAS  DA  ED.  DE  MESQUITA,  1771 
[Pag.  1-167] 

Pág 

Soneto  I  —  A  quem  lêr i 

Soneto  II  —  Ao  triste  estado a 

Soneto  m  —  A'  Lei  de  Deus 2 

Soneto  IV  —  As  Chagas 3 

Soneto  V  —  A'  Nossa  Senhora  da  Arrábida 4 

Soneto  VI  —  AS  João  Baptista 4 

Soneto  VII  —  Ao  mesmo  Santo   5 

Soneto  VIII  —  AS.  João  Evangelista 6 

Soneto  IX  —  A'  Cruz 6 

Soneto  X  —  A'  mesma    7 

Soneto  XI  —  A  Santa  Clara H 

Soneto  xii  —  A  Deos 8 

Soneto  XIII  —  Da  oração 9 

Soneto  XIV  —  A  Jesus  Crucificado 10 

Soneto  XV  —  A'  Magdalena 10 

Soneto  xví  —  A'  mesma 11 

Soneto  xvii  —  A'  mesma  indo  ao  Sepulcro  .....  12 

Soneto  XVIII  —  A'  mudança  da  vida 12 

Soneto  XIX  —  A'  noute  de  Natal i3 

Soneto  XX  —  Ao  mesmo 14 

Soneto  xxí  —  A  Santo  António 14 

Soneto  XXII  —  A  nossa  Senhora  da  Arrábida  ....  i5 

Soneto  XXIII  —  A  nosso  Padre  S.  Francisco 16 

Soneto  XXIV  —  A'  saudade  de  hum  rio , .  16 


4^0  índices 

•  Pág. 

Soneto  XXV  —  Da  Serra  da  Arrábida 17 

Soneto  XXVI  —  A  seu  irmão  Diogo  Bernardes ....  18 

Egloga  I  —  A'  sua  conversão 18 

Egloga  II  —  Mincio  e  Flávio.    No  ano  do  Novi- 
ciado    22 

Egloga  III  —  Silvestre  e  Rodrigo 3o 

Egloga  IV  —  Limabeu   e   Mincio  —  Em   que  se 

queixa  de  hum  amigo 84 

Eglbga  V  —  Gualbano   e  Laurindo  —  Do  tempo 

que  trouxe  hum  a  Religião 40 

Egloga  VI  —  Limabeu  —  A'  morte  de  hum  Amigo  48 
Egloga  VII  —  Limabeu  e  Mincio  —  Da  mudança 

da  Arrábida 5 1 

Egloga  vni  —  Limabeu  e  Lauro  —  Piscatória. ...  58 
Egloga  IX  —  Galapo  e  Almilão  —  Da  mudança  de 

pastor  em  pescador 64 

Egloga  X  —  Galapo,  Alportuxo,  Almilão  —  Pisca- 
tória I  —  Ao  nascimento  do  Duque  D.  Jorge  de 

Lencastre  70 

Egloga  XI  —  Almilão.    Piscatória 77 

Egloga  xn  —  Mincio  e  Limabeu 80 

Soneto  de  Limiana 84 

Epitáfio  de  Limabeu  e  Limiana 85 

Elegia  I  —  A  hua  ingratidão 85 

Elegia  II  —  Da  Arrábida 89 

Elegia  III  —  Espiritual 92 

Elegia  IV  —  Na  tribulação  de  huma  pessoa  amiga.  95 

Elegia  V  —  Da  ingratidão 98 

Elegia  VI  —  Estando  na  Arrábida loi 

Elegia  MI  —  Ao  fim  da  vida 1 04 

Elegia  vui  —  Da  ausência  justa  conjugal 107 

Vilancete  —  Que  desculpa  pôde  dar n  1 

Elegia  IX  —  A'  morte  de  sen  irmão  Diogo  Ber- 
nardes    Ill 

Elegia  X  —  Ao  mesmo 1 13 

Epigrama  —  A'  morte  de  hum  moço u6 

Outro  ao  mesmo 116 

Oda  I  —  Ás  mudanças  do  tempo    117 

Oda  II  —  A  D.  Diogo  Lopes  de  Lima 119 

Oda  111  —  A  Francisco  Barreto  de  Lima 121 

Oda  IV  —  Da  condição  da  vida  humana 124 

Epitáfio  128 

Carta  i  —  Em  resposta  á  de  seu  irmão  Diogo  Ber- 
nardes    1 28 

Carta  ii  —  A  Dona  Branca i3i 

Carta  lu  —  A  Francisco  Barreto  de  Lima  estando 

preso k 134 


índices  461 

Pig. 

[  Poema  (i)  sobre  o  ]  Martírio  e   vida  de  Santa 

Catharina   1 87 

[  Poema  (11)  ]  Sobre  o  «  Flevit  amare  » i5 1 

Mote  — '  «  Antre  as  cousas  mais  fermosas  • i58 

Mote  —  a  Quem  muito  deseja  amar  » i59 

Voltas  —  A  Tra-los-Montes 160 

Redonddhas  —  A  Nossa  Senhora 161 

Endechas 1  òi 

Ao  Nascimento  de  Nosso  Senhor 166 


PARTE  II 

POESIAS  DO  "COD.   CONIMBRICENSE" 
[  Pag.  168-368  ] 


Soneto  I   1 68 

Soneto  11  —  A  uma  absencia 169 

Soneto  iti  —  Ás  lagrimas  duma  despedida 169 

Soneto  IV   1 70 

Soneto  V 1 7 1 

Soneto  VI   171 

Soneto  vil 172 

Soneto  VIII   1 73 

Soneto  IX 1 73 

Soneto  X  —  Ao  levantar  da  cama   174 

Soneto  XI  —  A'  protestação  da  Fé 173 

Soneto  xu  —  Ao  Padre  Nosso 175 

Soneto  XIII  —  A'  Ave-Maria 176 

Soneto  XIV  —  A'  Confissão  Geral 177 

Soneto  XV  —  Ao  Anjo  Custodio ■. . . .  177 

Soneto  XVI  —  A  todos  os  Santos 178 

Soneto  XVII  —  Ao  sair  de  Casa ijg 

Soneto  xviii  —  Ao  entrar  na  Igreja 179 

Soneto  XIX  —  Ao  levantar  da  Hóstia 180 

Soneto  XX  —  Ao  levantar  do  Cálix. ..." 181 

Soneto  XXI  —  Ao  estar  á  Missa    181 

Soneto  xxii  —  A'  benção  da  Mesa 182 

Soneto  xxiH  —  Ás  graças  depois  da  Mesa iSS 

Soneto  XXIV  —  Ao  tanger  das  Ave-Marias i83 

Soneto  XXV  —  Ao  recolher  á  noute  para  dormir  .  184 

Soneto  XXVI  —  A'  Duquesa  d' Aveiro i83 


4^2  índices 

Pág. 
Soneto  xxvíi  —  Chora  o  vicioso  emprego  da  sua 

vã  mocidade i85 

Soneto  xxviii  —  A'  Imaculada  Conceição  de  Nossa 

Senhora i86 

Soneto  XXIX  —  A'  mesma 187 

Soneto  XXX  —  A.'  Encarnação 187 

Soneto  XXXI  —  Ás  palhas  do  presépio  de  Belém. .  188 

Soneto  XXXII  —  Ao  nascimento,  paixão  e  ascensão  i8q 

Soneto  XXXIII  —  A  Quinta-Feira  da  Cêa  do  Senhor  189 

Soneto  xxxiv  —  Quae  non  rapui,  tunc  exsolvebam  190 

Soneto  XXXV  —  A  Christo  preso  á  columna 191 

Soneto  xxxvi  —  Ao  mesmo 191 

Soneto  xxxvii  —  A  coroa  de  espinhos 192 

Soneto  xxxviii  —  A  Christo  na  Cruz ig3 

Soneto  XXXIX  —  Ao  mesmo 193 

Soneto  XL  —  Ao  mesmo 194 

Soneto  XLi  —  A'  Paixão 19I) 

Soneto  xLii  —  Ao  mesmo igS 

Soneto  XLiii  —  Ao  mesmo igó 

Soneto  XLiv  —  Ao  ferro  da  lança, que  abrio  o  lado 

de  Christo 197 

Soneto  XLv  —  A'  firmeza  do  Amor 197 

Soneto  XLVi  —  A'  Cruz 198 

Soneto  XLVii  —  A  Ascensão 199 

Soneto  XLviii  —  A'  Assumpção  de  Nossa  Senhora  199 

Soneto  XLix  —  A  Santo  António 200 

Soneto  L  —  A'  degolaçao  do  Baptista 201 

Soneto  L[  —  A'  ida  de  Magdalena  ao  sepulcro  . . .  201 

Soneto  LH  —  A'  sua  morte 202 

Soneto  Liii  —  Ás  SS  Marta  e  Maria  2o3 

Soneto  Liv  —  AS.  Jacintho 2o3 

Soneto  Lv  —  A  S  Francisco 204 

Soneto  Lvi  —  A'  entrada  de  Madre  Soror  Mecia 

na  Madre  de  Deus 2o5 

Soneto  Lvn  —  A'  mesma 2o5 

Soneto  Lviii  —  Delitias  meae  esse  cum  filiis  hominum  206 

Soneto  Lix  —  Quid  enim  mihi  est  in  coelo  ? 207 

Soneto  Lx  —  A  Nosso  Senhor 207 

Soneto  LXi  —  Ao  mesmo  208 

Soneto  LXd  —  Ao  mesmo 209 

Soneto  Lxiii  —  Ao  mesmo 209 

Soneto  Lxiv  —  Ipse  dixit,  et  facta  sunt 210 

Soneto  Lxv  —  Deus  caritas  est 211 

Soneto  Lxvr  —  Satiabor  cum  apparuerit  gloria  tua  211 

Soneto  Lxvii  —  Prasterit  figura  hujus  mundi  .....  212 

Soneto  XLviii  —  Voto  de  ardente  amor  divino  ...  2i3 

Soneto  LXix  —  Da  oração 2 1 3 


índices  463 

Pág. 

Soneto  Lxx  —  Ao  mesmo 214 

Soneto  Lxxi  —  Omnia  ilumina  intrant  in  maré  ...  2i5 
Soneto  LxxH  —  Gutta  cavat  lapidem.    Ao  efFeito 

da  perseverança 2 1 5 

Soneto  Lxxni  —  Quanto  importa  um  bom  desejo.  216 
Soneto  Lxxiv  —  Finis    cujusque    mali    principium 

est  futuri 217 

Soneto  Lxxv  —  A'  temperança 217 

Soneto  Lxxvi  —  A'  vaidade  humana 218 

Soneto  Lxxvii  —  A'  dignidade  da  alma  e  vaidade 

da  vida 219 

Soneto  Lxxviii  —  A*  Senhora  da  Memoria  na  au- 
sência de  Fr.  Diogo  dos  Innocentes 219 

Soneto  Lxxix  —  A'  mesma  e  ao  mesmo  respeito  .  220 

Soneto  Lxxx  —  A'  mesma  e  ao  mesmo  respeito  . .  221 

Soneto  Lxxxi  —  Na  Serra  da  Arrábida 221 

Soneto  Lxxxii  —  Da  contemplação  na  mesma  ....  222 
Soneto  Lxxxiii  —  Da  perseverança  na  penitencia, 

na  mesma 223 

Soneto  Lxxxiv  —  Da  experiência 223 

Soneto  Lxxxv  —  Ao  mesmo 224 

Soneto  Lxxxvi  —  Da  quietação 225 

Soneto  Lxxxvii  —  Ao  mesmo 225 

Soneto  Lxxxvm  —  Ao  mesmo 226 

Soneto  Lxxxix  —  Ao  pecado  original 227 

Soneto  xc  —  Chora  os  desvarios  da  sua  desapro- 
veitada mocidade 227 

Soneto  x<:i  —  Da  emenda 229 

Soneto  xcii  —  A'   sua    inalterável   confiança    em 

Deos 229 

Soneto  xciii  —  A'  morte 229 

Soneto  xciv 23o 

Soneto  xcv 33 1 

Soneto  xn VI 23 1 

Soneto  xcvn 232 

Oitavas 233 

[  Poema  em  ]  Tercetos  em  louvor  da  Imaculada 

Conceição  da  Virgem  Nossa  Senhora 233 

[  Poenia  em  ]  Oitavas  —  Vida  e  morte  de  S.  Eus- 

tachio,  molher  e  filhos 253 

[  Poema  da  ]  Visão  de  Santa  Brígida 265 

Beati  qui  lugent 268 

Ode  —  Aos  desenganos 270 

Canção  a  Nossa  Senhora 273 

Ode  —  Hymno  á  Cruz 277 

Elegia  —  A'  Quinta- feira  da  Cea  do  Senhor 281 

Elegia   289 


464  índices 

Pág. 

Elegia  da  Arrábida 292 

Elegia  [  A'  Arrábida  ] 295 

Elegia 298 

Elegia  penitencial 3oi 

Elegia  —  A  D.  Mariana,  filha  do  Duque  de  Aveiro, 

incitando-a  e  animando-a  a  ser  religiosa 3o4 

Elegia  —  A  Jesus  na  Cruz 3o8 

Elegia  —  Ao  divino  amor 3i  i 

Ao  Sepulcro  da  Esperança 3i4 

A'  morte  de  hum  contentamento 3 16 

Carta  que  o  Autor  escreveo  á  Duquesa  de  Aveiro 

antes  de  ir  para  o  Ermo 319 

Carta  que  compôs  á  Duquesa  de  Aveiro  á  absen- 

cia  da  Madre  Soror  Mariana  sua  filha 32i 

Egloga  —  Almilão  e  Galapo 323 

Egloga  —  Laurino  e  Fontano 32S 

Egloga  —  Almilão  e  Galapo 33 1 

Epigramma  —  A'  Paixão 335 

Epigramma • 335 

Epigramma 335 

Acerca  do  tempo 336 

Vilancete  —  A'  desculpa  de  pescar  e  fazer  bordões  337 

Mote  —  «  Enganos  da  vida  humana  » —  .  SSg 

Mote  —  «  Que  forte  fortuna  sigo  » 341 

Mote  —  «  Que  queira  quem  me  não  quer  » 342 

Mote  —  «Se  Agostinho  fora  Paulo  » 343 

Mote  —  n  Não  passou  meu  pensamento  »  —  Re- 
posta a  Soror  Mariana,  filha  do  Duque  de  Aveiro  345 

Mote  •:—  n  Rodeado  nesta  Serra  » 346 

Mote  —  «  Tanto  é  o  bem,  que  espero  » 347 

Mote  —  »  Neste  meo  remanso  » 348 

Mote  —  «Do  mundo  desapegado  » 348 

Ecos 348 

Redondilha  a  Nossa  Senhora 35o 

Chansonetas  ao  Nascimento  de  Nosso  Senhor. ...  35 1 

Mote  a  Nossa  Senhora  «  Antes  de  parir  » 363 

Mote  «  Saudade  minha  ■ 364 

Endechas 365 

Outras  367 


índices  465 


PARTE  III 

POESIAS   DO   "  COO.  PORTUENSE " 
[Pag  369-416] 

Pag. 

Mote  —  «  Para  bien  os  sea  el  parto  ■  —  A'  Virgem 

Maria 369 

Mote  —  «  Grandes  nuevas  ;  Dios  nacido  • 370 

Mote  —  o  Oy  sangran  a  nuestro  Dios  »  —  A  la 

circuncezion 371 

CMtavas  i  —  A  Christo  no  Horto 373 

Oitavas  II  —  A  Christo  azoutado 373 

Oitavas  III  —  A  Christo  coroado 374 

Oitavas  IV  —  A  Christo  com  a  cruz  nas  costas  . . .  375 

Oitavas  V  —  A  Christo  crucificado 3jb 

Mote  —  «  Como  es  possible,  mi  Dios  » 376 

Dialogo  entre  Pecador  e  XRisto 377 

Romance  —  Ao  Seráfico  Padre  São  Francisco  . . .  378 

Mote  —  «  Cruz,  remédio  de  mis  males  • 38o 

Ecos 38i 

Mote  —  «  En  sola  la  miséria  de  mi  vida  »   383 

Cancion  a  la  muerte 387 

Mote  —  o  Las  tristes  lagrimas  mias  » 392 

Mote  —  «  Lagrimas  que  no  pudieron  » SgS 

Mote  —  «  A  El  Rei  Phelippe  o  Segundo  • 3g5 

Mote  —  «  En  ninguno  medio  puedo  sustentar[me]  396 

Mote  —  «  Este  mi  maio  tan  estrano  » 397 

Mote  —  •  Pluguiera  a  vos,  mi  Dios,  que  no  nas- 

ciera  » 399 

Mote  —  «  Passo  la  vida  solo  en  contemplar-te  »  .  400 

Mote  —  «No  pudieron  más  subir  » 401 

Outra  glosa  ao  mesmo  Mote 402 

Soneto  I  —  A'  Assunção  de  Nossa  Senhora  » 404 

Soneto  II  —  Ao  Advento  de  Christo 4o5 

Soneto  iii  —  A  Christo  no  Horto 40> 

Soneto  IV  —  A  Christo  crucificado   406 

Soneto  V  —  Ao  Menino  no  presépio 407 

Soneto  VI  —  Ao  mesmo 407 

Soneto  vn  —  A  São  Francisco 408 

Soneto  VIU  —  Ao  mesmo 409 

Soneto  IX  —  A'  Ordem  de  S.  Francisco 409 

3i 


466  índices 

Pág. 

Soneto  X  —  A  Santa  Maria  Magdalena 410 

Soneto  XI  —  Aos  nrjoradores  de  Arrábida 411 

Soneto  XII 4  " 

Soneto  XIII 412 

Soneto  XIV  —  A  honra  do  mundo   4i3 

Soneto  XV  —  Em  vitupério  da  pobreza 4' 3 

Soneto  XVI 414 

Soneto  XVII 4'  -^ 

Soneto  xvni 4' 5 


PARTE  IV 

CXIV 

POESIA  DO  CANCIONEIRO  DE  ÉVORA 


22 


Ègloga  —  Mincio  e  Limabeu l 417 


LISTA    DAS   PRINCIPAIS 
ERRATAS 


Pág. 


Erro 

Emenda 

3  verso 

7 

satisfeito 

satisfeita 

7 

» 

8 

si 

ti 

7 

u 

20 

resgatada 

resgatado 

9 

» 

12 

serviços 

servir-vos 

1 1 

» 

23 

mais,  que 

mais  quem 

46 

» 

24 

futis 

sutis 

63 

» 

23 

carga 

larga 

7» 

1> 

23 

sesta 

festa 

122 

» 

3o 

sofre 

sobre 

i33 

» 

24 

desejo 

deserto 

176 

» 

3 

grão 

pão 

aoo 

» 

iq 

eslava 

esteve 

2l5 

11 

i5 

murmurava 

murmura 

220 

J> 

22 

das 

dar 

238 

» 

25 

renova 

renove 

268 

a 

20 

rosto 

rasto 

Epígi 

■afe 

lungent 

lugent 

274 

verso 

i  3J 

mosta 

mostra 

275 
281 

D 

20 

passos 

paços 

U 

16 

de  toda 

do  todo 

3o6 

. 

25 

forte 

foste 

3i4 

» 

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por 

pôs 

324 

1) 

i5 

quer 

querer 

328 

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344 

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fez 

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38 1 

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haya 

laga 

382 

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9 

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avrá 

394 

'• 

3i 

gutos 

gustos 

MENDES   DOS   REMÉDIOS 


<^ 


História  da  Literatura  Portuguesa  desde  as  origens  até  á  actua- 

iidade,  4.»  ed.,  i  vol.  brochado,  iííf>5oo.   Cartonado...     ií{í>6oo 

Introdução  á  História  da  Literatura  Portuguesa,  3.»  edição,  muito 

melhorada  ^^^ 

Subsidios  para  o  estudo  da  História  da  Literatura  Portuguesa : 
«^,      I.  _  Fidalgo  Aprendiz,  de  D.  PVancisco  Manuel  de  Mello,. 

2.»  edição 3oo 

II.  —  Poesias  inéditas  de  D.  Thomás  de  Noronha,  poeta  saty- 
rico  do  século  xvii .' 3oo 

III.  —  Lusíadas    ( ?.•    ed.    anotada,    para    as    escolas),   bro- 

chado, 5oo.   Cartonado 6úO 

IV.  —  Foguetario  (poema  heroi-comico  ),  de  Pedro  de  Aze- 

vedo Tojal 3oo 

V,  —  Vida  do  Grande  D.  Quixote  de  La  Mancha  e  do  gordo 

Sancho  Pança  ( opera  jocosa ),  de  António  José  da 
Silva 3oo 

VI.  —  Guerras  do  Alecrim  e  Mangerona  (  opera  joco-seria  ), 

de  António  José  da  Silva  200 

VII.  —  Sentenças  de  D.  Francisco  de  Portugal,  i.°  Conde  òe 
Vimioso,  seguidas  das  suas  poesias,  publicadas  no 

«  Cancioneiro  de  Garcia  de  Rezende  » 3oo 

VIII  a  X.  —  Consolaçam  ás  Tribulaçoens  de  Israel,  por  Samuel 

Usque,  3  vòls ^oí» 

r^XI,  XV  e  XVII.  —  Obras  de  Gil  Vicente,  ( completas ),  3  vols.  i  ^ Soo 
™-Xn.  — Memorias  de  José  da  Cunha  Brochado 2J0 

XIII.  —  Chronica  do  Infante  Santo  D.  Fernando 400 

XIV.  —  Chronica  do  Condestabre  de  Portugal  Dom  Nuno  Alvarez 

Pereira ^o" 

XVI,  —  Escritoras  doutros  tempos 40<* 

XVIII.  —  A  Castro,  de  António  Ferreira 400 

'XIX.  —  Miscellanea,  de  Garcia  de  Resende... 5oo 

XX.  —  A  Castro,  de  Domingos  dos  Reis  Quita 400 

XXL  —  Obras  de  Fr.  Agostinho  da  Cruz. 
Filosofia  elementar,  2.»  edição  refundida,  1916,  \  vol.  broch.    i  íí>700 

Os  Judeus  em  Portugal,  i  vol.  broch ií{í)000 

Os  Judeus  Portugueses  em  Amsterdam,  i  vol.  broch 700 

Sousa  Martins  e  a  Serra  da  Estreita,  (  Exgotado  ). 

Cartas  inéditas  de  El-Ret  D.  Pedro  V,  (  Exgotado). 

Uv^a  Bíblia  hebraica  da  Biblioiheca  da  Universidade  de  Comíbra, 

':    'clh.  iKxgotado ). 
AíútJas  romanas  da  Bibliotheca  da   Universidade  de  Coimbra 

(  ensaio  de  catalogo  ) •  •. .•  •     ^<^ 

As  Horas  do  Nossa  Senhora  da  Bibliotheca  da  Universidade  de 
Coimbra,  1  ío!h.  (Exgotado). 

Philomena  de  S.  Boaventura • •     200 

Carta  exhortatona  aos  Padres  da  Companhia  de  Jesus  ....     200 


PQ 
9191 
H 
1918 


Agostinho  da  Cruz,  Brother 
Obras 


I 

1 


UNIVERSITY  OF  TORONTO  LIBRARY