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Sobsídlos para o estndo da História da Literatora Portngoêsa
XXf
Obras de
Fr. Agostinho da Cniz
Conforme a edição Impressa de 1771
6 os Códices manuscritos das Bibliotecas
de Coimbra, Porto e Évora
Com prefacia e nota* de Mendes dos Remedias
COIMBRA
FliANÇA yíMADO - EDITOU^
1918
Obras de
Fr. Agostinho da Cruz
Composto e impresso na Tipografia França Amado,
Rua Ferreira Borges io3 — Coimbra.
Sobsídíos para o estado da História da Literatura Portugalsa
XXI
Obras de
Fr. Agostinho da Cruz
Conforme a edição Impressa de 1771
e os Códices manuscritos das Bibliotecas
de Coimbra, Porto e Évora
Com prefácio e notas de JMendes dos Remédios
COIMBRA
Fli^ANÇA Q^MADO- EDITOIl
1918
V"\\t
FR. AGOSTINHO DA CRUZ
I
O HOMEM
Dentro de bem poucos meses — precisa-
mente no dia 14 de março próximo futuro - -
completar-se hám três séculos em que, quase
octogenário, mirrado pela doença e pelo rigor
da vida monástica, que exercera durante
59 anos, que tantos foram aqueles em que se
amortalhou no seu hábito querido de Capuchi-
nho, tendo ainda passado 14 destes na mais
estreita vida eremítica, mas serenamente, no
meio do maior fervor cristão, os olhos postos
no crucifixo que lhe haviam posto à cabeceira
do seu pobre leito de enfermo e a alma ele-
vada aos paramos do infinito, no meio das
oraçÕis que mais que com os lábios, ia acom-
panhando com o pensamento — se extinguia
o Poeta, que é o autor desta obra, que hoje
entra, honrando-a, na série da minha colecção
Fr. Agostinho da Cruz
de Subsídios para o estudo da Historia da
Literatura Portuguesa.
Extinguira-se num nimbo mais que de poe-
sia, de santidade. Em volta dos seus restos
mortais acercaram-se à compita as multidõis
na ânsia de o poderem vêr, como se essa visão
fosse uma benção. E nobres senhores, como
gente do povo, todos queriam o talisman duma
relíquia desse velho, cujos despojos olhavam
compungidos, mas que haviam tido a dita
de encerrar uma alma, que conservara com
Deus.
A morte não o transfigurara. O seu rosto
ressequido tinha o mesmo riso fagueiro e
acolhedor de quando na Serra encontrava o
visitante. E era para lá, para esse amado
retiro, que a sua lira tantas vezes nobremente
cantara, era para lá, que se resolveu transpor-
tar o cadáver. O Duque de Torres Novas, o
Marquês de Porto Seguro, frades, gente do
povo, todos formaram o cortejo, e dous dias
após o falecimento, a i6 de Março, por entre
o cântico solene e majestoso dos ofícios fúne-
bres, o cadáver de Fr. Agostinho ficava inu-
mado junto à Igreja da Arrábida, fora das
grades, do lado da Sacristia.
Durante anos e anos foi esse um logar pie-
doso. Não consta que se lhe lavrasse epitáfio,
que encimasse o humilde coval, mas bem o
conheciam todos, porque a fama das virtudes
supria essa vanglória fácil e tantas vezes men-
tirosa.
Fr. Agostinho da Cruz
Mas. . . rodaram os anos, e desde o dia em
que a vicissitude dos tempos atirou para a
miséria tantas criaturas, que nenhum outro
mal faziam senão o de concentrarem a vida
numa santificação contínua — desde esse dia
não mais se soube onde dormia o último sono o
pobre monge. Mostrava-se apenas ao curioso
ludo quanto dele restava — a caveira (i), essa
mesma destinada a desaparecer.
A ignorância e a maldade deram-se as
mãos para fazerem sumir-se os vestígios desses
pregoeiros da penitência e tudo, quase tudo,
desde as obras dos homens às da natureza,
desde as capelinhas dos monges às estalactites
e estalagmites das grutas e lapas, — tudo foi
sendo destruidp e arrazado metodicamente,
friamente, estupidamente. Pode o viajante
preguntar, ao menos, onde era a cela, pouco
menos que sepultura, do venerável Fr. Agos-
tinho.
Lá existiu durante mais dum século, conver-
tida em Ermida (2), mas de nada valeu isso
para a proteger. Pouco a pouco tudo foi sendo
derruído embora com os protestos dos raros
(i) Arrábida, publicação comemorativa... [ cit. na
nossa Bibliog.], pg. 53.
(2) Desde 1720. A Ermida fora dedicada a Santo
António no tempo da Guardiania do Convento nas
mãos de Fr. José da Esperança. Cfr. Chr. da Arrábida,
n.° g3, pg. 66.
8 Fr. Agostinho da Cruz
cultores do sentimento tradicional, até mesmo
estranjeiros (i).
Mas nem tudo se sumio no pó dos séculos.
Restam do velho Capuchinho as suas poesias,
chama imarcessivel, que não se extinguirá
nunca, e que, enquanto durar a lingoa em que
ele traduzio as emoçõis do seu espirito de
eleito, serão amoravelmente lidas e recor-
dadas.
Quem era este Poeta que conciliou sempre
em volta do seu nome a enternecida admiração
de raros ? Vejamos primeiro os traços princi-
pais da sua vida, depois estudaremos o seu
valor como escritor e conheceremos o logar
que de direito lhe cabe na série dos homens
que, pelo talento de escrever, ajudaram a tor-
nar imortal a nossa pátria. Fr. Agostinho da
Cruz não merece o quase esquecimento em
que jaz aos olhos da nossa geração ; como
homem é um nobre exemplo de virtudes, como
escritor merece um logar de destaque entre os
que como seu irmão Bernardes, como Gami-
Y (O O Príncipe de Lichnowíky escrevia nas Erinne-
\ rungen aus dem lahre 1842 ( Mainz, 1843): « Das
\ Kloster von Arrábida enthalt keine Kunslwerke ; wenig-
stens ist ieijt nichts davon ju sehen ; seine Poesie ist in
seiner Geschichte, in seiner Lage und in der Trauer
eines verwaisten Gotteshauses ». Cfr. pg. 266.
E um pouco antes : « Nur der bõseste Wille oder
krasse Ignoran:^ konnten dertei Vermuthungen aufstellen,
die an Ort und Stelle durch nichts gerechtfertig rver-
den ». Cfr, pg. 264.
Fr. Agostinho da Cruz
nha, Miranda, Ferreira e tantos mais, soube-
ram cimentar a grandeza literária de Portugal.
Tratando dele concisamente o seu primeiro
biógrafo começa : « Jacta-se o lugar da Ponte
da Barca no arcebispado de Braga de aver dado
ao mundo o P. Fr. Agostinho da Cruz. . . » (i),
e o Cronista da Arrábida : « nasceu na villa da
Ponte da Barca, limitada povoação de poucos
visinhos... » (2) e condizendo cora ambos de
dois José Caetano de Mesquita : e A villa da
Ponte da Barca. . . foi ella onde nasceu o vene-
rável servo de Deus. . . » (3).
Como foi perfilhada a opinião por parte
dalguns escritores de ser o logar do seu nasci-
mento Ponte do Lima ? (4). Certamente por
causa do irmão Diogo Bernardes que sem
maior exame, foi reputado oriundo dessa vila.
Seria o próprio Diogo Bernardes quem assim
(i) Jeronymo Cardoso, Agiologio Lusitano, 11, i5i
( 12 de março ) e 146.
(2) Fr. António da Piedade, Chronica da Arrábida,
% >'70.
(3) Cfr. a Vida anteposta à ed. feita pelo mesmo
Mesquita Esta Vida saiu em ed. separada.
{4) Afirma-o o Sr. Theophilo Braga : « Nasceu Diogo
Bernardes em Ponte do Lima, como elle o declara no
titulo das Varias Rimas ao Bom Jesus, impressas em
sua vida em Lisboa ». Historia dos Quinhentistas,
pg. 244.
IO Fr. Agostinho da Cruz
terminantemente o afirmara no título das
Varias Rimas ao Bom Jesus. Sucede, porém,
que uma simples investigação conscienciosa
demonstrou que em nenhuma das ediçôis — e
duas foram elas — impressas em vida do Poeta
há qualquer referência à naturalidade do seu
autor.
É em ediçõis posteriores à sua morte que
tal indicação aparece, circunstância que lhe
tira todo o valor. Quem primeiro exarou essa
afirmação deixou-se levar pelas muitas passa-
gens em que o Poeta canta o seu doce Lima,
não atendendo sequer a outros dados auto-
biográficos, que das suas poesias poderia colher
com maior e melhor individuação. Neste caso
está aquela passagem da Egloga 2.*, denomi-
nada Flora, que começa :
Num solitário valle, fresco e verde
Onde com veia doce e vagarosa
O Vez no Lima entrando o nome perde ;
Numa tarde rosada, graciosa
Quando no mar seus raios resfriava
O sol, deixando a terra saudosa
Ouvi huma voz triste que soava
Tam brandamente ali, que parecia
Hum rio que com outro murmurava
Nesta nossa ribeira ambos nascidos (i)-
(i) Gfr. O Lyma, ed. 1761, pg. 10.
Fr. Agostinho da Cruz
Se ambos os irmãos nasceram na fo\ do Ve{,
o mesmo é dizer, que nasceram em Ponte da
Barca (i). De resto um só é o fácies da região,
é a mesma a sua linha estrutural de beleza
campestre, igualmente capaz de inspirar o
bucolismo dos dois amoraveis cantores. Pelos
mesmos sítios passaram o seu período de
meninice e primeiros anos de infância, de lá
saíram para onde os acasos da vida os leva-
ram, bem diferentemente a um e a outro, pois
a vida de Bernardes desenrolou-se noutro sce-
nário, sendo mais agitada que a do pobre
Monge, mas um e outro cantaram nas suas
pastorais aquela paisagem doce e serena, que
afinal englobaram na mesma designação de
€ Lima ». Deixemos Bernardes entregue em
boas mãos de cuidadosos e beneméritos esme-
riladores das suas acçóis e merecimentos (2) e
tratemos nós de quem no momento nos inte-
ressa.
Nascido em 1540 vamos encontrá-lo aos
quinze anos na casa dum dos maiores fidalgos
do reino — D. Duarte, neto delrei D. Manoel,
(i) a Basta consultar um simples mapa de Portugal
para se vêr que é justamente no termo da Ponte da
Barca que se dá essa junção ». Sr. Hemeterio Arantes,
Fr Agostinho da Cru:^, pg. 2a ; e Sr. J. Gomes de Abreu,
Diogo Bernardes, pg i3.
(2} Sr. Álvaro Pimenta da Gama, Diogo Bernardes,
apontamentos genealógicos e biographicos no Instituto,
vols. 57 ( 1910 ) e 58 ( 191 1 ).
Fr. Agostinho da Cruz
filho do Infante D. Duarte e de D. Isabel.
Um ano mais novo que Agostinho Pimenta,
que esse era o nome de família do futuro ere-
mita da Arrábida, o Infante tinha a sua casa
independente desde o falecimento do Infante
D. Luís em ib55, à qual andara adicta por
determinação de D. João III.
Tornara-se assim naturalmente avisado e
cortesão, como quem de moço fora criado em
palácio e amado por suas muitas partes dos
principais senhores deste reino (i). Nesse meio
de eleição desabrochou e se foi desenvolvendo
o talento do moço poeta.
Entre os fidalgos que concorriam aos Paços
de D. Duarte contavam-se, entre os maiores,
D. Álvaro, Duque de Aveiro, sobrinho do
i.° Duque de Aveiro D. João de Lencastre,
e D. Jorge, Duque de Torres Novas, que o
Poeta memora nas suas poesias.
É à Duquesa de Aveiro que ele dedica as
suas composiçõis místicas, porque as outras,
arrependido, confessa êle tê-las queimado.
Os versos que cantei importunado
Da mocidade cega a quem seguia
Queimei ( como vergonha me pedia )
Chorando por haver tão mal cantado (2).
(i) J. Cardoso, Agiologio, já cit.
(2) Cfr. Son. 1° desta nossa ed.
Fr. Agostinho da Cruz i3
Foi essa alta Princesa, que se tornou sua
protectora, que impediu que ele fizesse a esses
versos religiosos o mesmo que fizera
... de quantos tinha feito
Na ribeira do Lima, em tenra idade,
Por dar algum remédio a meu defeito (i).
Mais tarde, no seu retiro, poucas serão as
lágrimas para chorar o que êle chama • os des-
varios da sua desaproveitada mocidade » (2).
Sendo os versos da sua última feição os que
nos restam teríamos a lamentar uma perda
total sem a intervenção da ilustre fidalga. Mas
a ela o Poeta obedece vencido da amizade e da
gratidão. Doente, cruciado de dôies morais,
nunca lhe faltou o amparo de tão generosos
protectores, èm cuja casa ou sob cuja prote-
cção mais imediata e directa êle viveo durante
o período de doze anos. É à Duquesa que êle
se dirige f antes de se ir para o Ermo » (3)
desculpando-se de não ter escrito por falta de
saúde. Vê-se que êle toma parte em todas as
alegrias, como em todos os desgostos de tam
nobre familia, mais, naturalmente nestes, que
naquelas. Fora êle quem instigara D. Mariana,
filha da Duquesa, a seguir a vida claustral.
(i) Cfr. o Son xyvi, pg. i85.
(2) Cfr. o Sou. xc, pg. 2Í7.
(3) Cfr. Carta. • •, pg 3 19.
14 Fr. Agostinho da Cruz
« Fidalga, rica, fermosa » êle sabe aconselha la
com moderação a seguiressa vida:
Se quereis fazer extremos,
Os que deveis de fdzer
Só por Deos devem de ser
A quem só servir devemos. . . (i)
Numa carta escrita da Serra da Arrábida
indica-lhe esse caminho como o do verdadeiro
bem, o da maior perfeição. Se ela não pôde
c por lhe faltar a liberdade » concluir os seus
propósitos, não é isso motivo para os abando-
nar. Descanse, « repouse na divina saudade »,
e que
Não haja quem te possa desviar
Do caminho que levas acertado
Que muitos não quiseram acertar.
Galcula-se a angústia da desolada mãi quando
os votos da filha se tornaram uma realidade.
E ela quem lhe escreve, pela pena do Poeta,
contando-lhe as amarguras da ausência, que
não poderá evitar, mas que não tem também
a coragem de sofrer. Por isso lhe suplica que
Ambas, adonde vós quiserdes mais
Havemos de viver, ou nas estranhas
Terras, ou nestas vossas naturaes.
(i) Elegia a D. Mariana, pg. 304.
Fr. Agostinho da Cruz i5
Mas adivinhando o impossível destes dese-
jos acaba por se confortar pedindo somente
a Deos
Que, ou me tire da absencia o sentimento
Ou vos abrande vosso coração (i).
Vê-se, pois, que a amizade que o moço de
quinze anos soubera grangear naquele meio
fidalgo em que entrara, veio com o tempo a
acrisolar-se e robustecer-se.
Ao lado dos representantes da mais lídima
raça portuguesa Agostinho Pimenta encontra-
ria vários intelectuais, dum escol de talento e
de mocidade : s^u irmão, por exemplo, mais
velho que êle apenas sete anos, a quem as
musas sorriam desde o berço ; Pedro de
Andrade Caminha que desde i556 se encon-
trava como mordomo-mór da casa do Infante
D. Duarte; por ventura também o Dr. António
Ferreira, ligado pela mais estreita amizade
com Bernardes, a quem lera, no meio de
enternecido entusiasmo, a sua famosa Castro.
E outros. Alguns, cavaleiros e fidalgos no
desempenho de funçõis no Paço dos reis,
como D. Diogo Lopes de Lima, Comendador
de Victorino e das Pias, camareiro do Infante
D. Luís e, depois, como Caminha, do senhor
(i) Carta que compôs á Duquesa de Aveiro, etc ,
pg. 321.
i6 Fr. Agostinho da Cruz
D. Duarte (i), D. Francisco Barreto de Lima (2),
védor da casa real e cavaleiro exforçado, a
quem o Poeta tece o mais entusiástico elogio,
a ambos os quais dedica poesias, cousa rara
no nosso Poeta, onde vagamente perpassam
outras personagens — um amigo que não no-
meia (3), uma pessoa amiga que também não
nomeia (4), uma tal D. Branca (5), e ninguém
mais.
Propositadamente o poeta esquece o mundo,
os seus prazeres, as suas relaçÕis. Vê-lo hemos
na concentração, íamos dizer, na absorpçao do
sentimento divino que o norteia. Fora disso
êle só aspira a morrer bem, lavando nesse ins-
tante supremo a sua alma da ganga, que a
passagem pelo mundo nela por ventura ainda
deixasse aderente, repetindo com Petrarca :
Ghe un bel morrir tutta la vita onera (6).
(i) A este dedica a Ode II, pg. 119.
(2) Dedica-lhe a Ode III, pg. 121 e a Carta III, pg. 134.
(3) Vid. pg. 34.
(4) Vid. pg. 95.
(5) Vid. pg i3í.
(6) Gfr. pg. 320. O lindo verso do Florentino entrou
como um ditado em quase todas as lingoas. Encontra-se
na Canção xxv. Gfr. Rime de Mess. F. Petrarca. . .,
Roma, 1893, pg. i63. Outro verso italiano se nos depara
na obra de Fr. Agostinho, a pg. 124, 1. 2.» Foi bem mais
sóbrio que o irmão, que gostou de entremear nos seus,
numerosos versos italianos.
Fr. Agostinho da Cruz i 7
Mas que determinou o Poeta a abandonar
este meio de tam galharda distinção, trocando-o
pelo isolamento duma congregação afamada
pela sua pobreza e rigores ?
Nenhum dos seus biógrafos desvendou este
misterioso passo da sua vida. « Com todas
distinçoens, escreve um deles, e commum
applauso promeitia o mundo a Agostinho
Pimenta os maiores adiantamentos, e fortu-
nas ; mas Deus que o reservava para outro
destino mais alto, lhe fazia entre ellas experi-
mentar dissabores, e amarguras, que melhor
excitão o animo para conhecer o caduco, e
«nganoso dos bens com que o mesmo mundo
lisongea. Observava elle, que todas aquellas
amizades unicamente lhe servião para entre-
ter o tempo que só aproveitaria bem, se o
occupasse comsigo, e com Deos. Da parte
dos que lhe invejavão a sua fortuna encon-
trou emulação : em algumas pretepçoens teve
o successo menos feliz : os amigos a quem
se prendia muito estreitamente pela ternura,
e bondade de seu coração, lhe não corres-
pondião como elle lhe merecia : tudo isto
lhe trazia muitas vezes à lembrança, que
o voltasse de todo para quem lho aceitasse
seguramente, e lhe pagasse com muita van-
tagem.
b
Fr. Agostinho da Cruz
a De todos os seus escritos se entende facil-
mente quanto temos observado sobre os moti-
vos da sua conversão » (i).
Percebe-se nestas palavras o que quer que
seja com pretensõis a responder a uma inter-
rogação, que todos os espíritos a si próprios
ham de fatalmente dirigir-se ao passarem este
váo da existência do famoso Arrábido.
Duvido que aiguem se dê por satisfeito. Sam
vagas alusôis, que não explicam nada. Essas
inferências fazemo-las nós ao lermos várias
passagens das suas poesias, aqui e àlêm, mas
pouco podemos avançar desajudados doutras
luzes, de que o citado biógrafo não quis ou
não soube tomar conta.
Temeu, talvez, deminuir o valor moral do
seu biografado, expondo o vítima duma doença
de alma, a que nenhum raro espírito pôde
subtraír-se. Essa doença sofreu-a êle decerto,
e o abalo que lhe produzio deveria ser enorme,
para que assim na quadra mais ridente da
existência abandonasse o mundo num propó-
sito, que não teve mais quebra na sua vida.
Dificilmente, é certo, se fundamentará tal
hipótese nas poesias, que nos restam, e em
que quase só se divisa o lado místico, ainda
naquelas que mais ferem a nota de coração, o
aspecto sentimental.
(i) Gfr. Mesquita, obr. cit., pg. 3.
Fr. Agostinho da Cruz 19
Como os seus contemporâneos ele gosta de
definir o amor, descreve-o, caracteriza-o, pro-
curando para isso as expresseis mais subtis,
como neste passo
Amor acende, inflama, amor tem tudo
Seta, lança, escudo ; dá vida e mata
Cativa, desbarata, solta e prende. . . (i)
Etc.
Mas quem clama nestes versos é o homem
interior, dominado por um sentimento do alto,
que só o eleva e engrandece. O seu pensamento
vai direito a Jesus, cammha direito ao Cruci-
ficado, em cuja contemplação se absorve (2).
Nas églogas há mais dum ponto que lhe res-
peita, mas pouco se encontra de concreto e de
positivo, fora da afirmação da sinceridade dum
convertido, que desprezou o mundo e todos
os seus encantos.
Foi com vinte anos contados que ele tomou
o hábito no Conventinho de Santa Cruz da
Serra de Sintra em dia da Vera-Cruz. É o
seu ano de noviciado, que encetou com o bene-
plácito do Infante, a quem servia, e sob as
ordens do Provmcial Fr. Jácome Peregrino, o
Tio. E logo passado um ano fez a sua pro-
fissão expressa e formal, entrando na rigo-
rosa Ordem depois de ter dado provas da
(O Cfr. pg. 28.
(2) Cfr. pg. 21 3.
20 Fr. Agostinho da Cruz
mais sincera e decidida vocação. Era no dia
3 de maio de i56i, também dia da Vera-Gruz,
em que, pôde dizer-se, morria para o mundo,
deixando desde então o seu apelido de família,
para o mudar no de religião por que ficou
sendo conhecido — de Fr. Agostinho da Cruz.
Ele próprio é quem no-lo diz
Nasci e renasci na casa em dia
De Santa-Cruz, da Cruz o nome tenho (i).
Segue-se um período de mais de quarenta
anos, em que nada de notável se passou na
vida do novo Capuchinho. Entregue à oração
e à meditação a sua lira só tem acentos para
chorar os erros da vida passada, para exaltar
a sua emenda (2), a sua inalterável confiança
em Deus (S).»
Moço de vinte anos ao entrar no ermo, bem
podia dizer que nele envelhecera, sem que
nunca a sua vontade sentisse o menor desfale-
cimento (4).
Quando alguma vez voltou ao mundo, isto
é, à convivência que lhe destinavam as suas
relaçõis e os seus conhecimentos numa esfera
social elevada foi para regressar ao isolamento
mais decidido e mais convicto. Ele próprio o
confessa aludindo a uma terceira vê^ em que
(i) Gfr. pg. 335.
(2) Cfr, pg. 228.
(3) Cfr. pg. 229.
(4) Cfr. pg. 289.
Fr. Agostinho da Cruz
determina não mais abandonar a Serra fazendo
aí a sua sepultura (i)
Contava 63 anos quando, a rogos do Pro-
vincial Frei António da Assunção, grande pa-
triota, amigo e partidário de D. António, pelo
que não era bem visto pelo intruso Felipe (2),
teve de aceitar a guardiania do Convento dè
S. José de Ribamar. Mas de curta duração
devia ser esta sombra de mando para quem
até a essa havia renunciado. Nesse mesmo
ano obteve licença do Provincial para ir viver
eremiticamente na Serra. Não foi sem resis-
tência. Eram grandes as provaçÕis, e embora
conhecido o animo do solicitante, receiava-se
uma quebra de energia da parte de quem era
conhecido na austeridade em que vivia por
uma bondade comunicativa, que o fazia muito
procurado e estimado de quantos desejavam o
conforto dum conselho, a esmola duma pala-
vra amiga, um gesto de perdão. Mas não
houve modo de prolongar a dilação, talvez
também porque outro companheiro o prece-
dera nos rogos e na satisfação deles. Fora
Fr. Diogo dos Inocentes, que se recolhera ao
ermo, indo viver na cela pertencente a S. Pedro
de Alcântara,
O alvoroço com que o pobrezinho de Cristo
recebeu a licença 1
(1) Cfr. pg. i5.
(2) Cfr. Chronica, % 1 163, pg. gsg.
Fr. Agostinho da Cruz
Viviam por essa época nos seus Paços de
Azeitão os seus antigos protectores e amigos
D. Álvaro, Duque de Aveiro, e seu filho o
Duque de Torres Novas. Fr. Agostinho antes
de se retirar ao cenóbio foi procurá-los para
lhes apresentar as suas despedidas, ouvindo
então da boca do velho Duque, entre gracejos,
bondosamente :
-^ Como se esqueceu da Arrábida, tanto que
se vio em S. José de Ribamar ?
Fora o seu cargo de Guardião, que o manti-
vera afastado da sua querida Arrábida, bem o
sabia o ilustre fidalgo, porém o que não espe-
raria era a resposta que ouvio :
— Mas se, rçplicou Fr. Agostinho, nunca
pensei tanto nela, como agora, em que de todo
vou a buscá-la !
E comunicou ao Duque a sua resolução aco-
lhida com a natural estranheza, mas engrande-
cida também com o natural louvor. E assim
se despedio o velho monge com aquela alegria
de santidade, que lhe fazia escrever ao iniciar
a ascensão da Íngreme ladeira
Aqui, Senhora minha, onde soía
Cantar na minha leve mocidade
O muito que de vossa saudade
Desejei de acender nesta alma fria.
Aqui torno outra vez, Virgem Maria (i).
(i) Cfr. pg. 4. Gompare-se com o soneto A mudança
da vida, pg. 12.
Fr. Agostinho da Cruz 23
Vem, depois, o hino que chamarei do homem
livre, que se vê solto dos liames do mundo,
na contemplação só do bem a que aspirava.
Veja-se como êle canta
Agora que de todo despedido
Nesta Serra da Arrábida me vejo
De tudo quanto mal tinha entendido.
Com mais quietação, livre desejo,
Nella quero cavar a sepultura,
Que não junto do Lima, nem do Tejo . .
Etc. (i).
Enquanto o Duque lhe não mandava cons-
truir uma pequena cela, que o recolhesse, fez
êle uma choupana com ramos de árvores, oní^e
viveu durante seis meses, após os quais come-
çou de pensar em mais sólido abrigo fazendo
uma gruta para o que aproveitava a disposição
natural dos terrenos. Era o trabalho superior
às suas forças e valeu-lhe nesse aperto a visita
dos Duques. Foi o próprio D. Jorge quem
escolheu o terreno e fez menção de abrir os
alicerces, o que provocou ao velho este dito :
— . . . e a paga de eu ter cantado nos meus
versos o seu nascimento.
Aludia à Piscatória, que começa :
Queres ouvir cantar um pescador
Pobre, que de marisco se sustenta,
E segundo o que dizem foi pastor ?. . .(2)
(i) Cfr. Elegia VI, pg. 101.
(2) Cfr. pg. 70.
34 Fr. Agostinho da Cruz
Duas palavras sobre o logar escolhido pela
grande, penitente-poeta, para se compreender
o que seria a sua vida de cenobita
O convento da Arrábida pertencia à ordem
de S. Francisco. A. Província daquelle nome
fora criada a instâncias do Cardeal D. Hen-
rique (i) peio Geral Fr. Francisco de Samora
no Capítulo que celebrou em o Convento de
S. José, cabeça da Província. Ficou tendo
como armas, como « selo maior », a imagem
de Nossa Senhora no alto da Serra, e a seus
pés à mão direita S. Francisco e à esquerda
Santo António com a Cruz. Ao pé do monte
três frades de joelhos. . . (2).
Chamavam-se Capuchos do capelo ou capuz
com que cobriam a cabeça. Traziam hábito
de burel pardo, capa, capuz bicudo, usavam a
barba comprida, donde lhes vinha também o
(i) O Cronista da Arrábida afirma que foi D. João
de Lencastre i.° Duque de Aveiro e portanto um dos
primeiros fidalgos do reino como primeiro neto del-rei
D. João II, quem ofereceu a Serra da Arrábida a Frei
Martinho de Santa Maria, que assim teve o ensejo de
se tornar o fundador do Convento sito na afamada
Serra. Cfr. a Chronica no capitulo iv. A esse fidalgo
deu D. Manoel o título de Marquês de Torres Novas e
D. João III o de Duque de Aveiro.
(2) Fr. Cristóvão de Lisboa, Jardim da Sagrada
Escriptura, Lisboa, i653, pg. 7.
Fr. Agostinho da Cruz 25
nome de Barbadinhos, faziam voto de pobreza
e viviam de esmolas.
A Província da Arrábida tinha vinte e um con-
ventos e dous hospícios. A igreja e mosteiro da
Arrábida foram mandados construir a expen-
sas do seu padroeiro D. João de Lencastre,
i.° Duque de Aveiro, edificaçõis que ficaram
constituindo o Convento novo, para as destin-
guir das primeiras casas destinadas a recolher
os poucos frades, que lá se foram estabelecer.
As obras continuaram com o andar dos tempos,
mas sem mudar a feição do que estava, nem na
sua extensão, nem na sua modéstia. O aper-
tado da ordem não convidava senão almas de
escol, e essas mesmo muito depuradas na fé.
O primeiro cenobita, Fr. Martinho de Santa
Mana, vivia na maior austeridade, que pouco
se atenuou com a chegada de S. Pedro de
Alcântara e outros frades vindos de Espanha.
Os religiosos andavam descalços, sem admi-
tir nenhum género de calçado e dispôs-se que
os hábitos fossem do mais vil e grosseiro pano,
< os quais no comprimento não passariam dos
tornozelos dos pés, e na largura não excederião
a de dez palmos em roda, como também os
mantos não passarião da ultima juntura das
mãos, estando os braços estendidos ». Viviam
de esmolas, sendo proibido para os frades sãos
pedir « carne, nem peixe, e muito menos vinho
ou ovos ».
As celas estavam sem o mínimo ornato,
dormindo os Frades sobre uma cortiça ou
26 Fr. Agostinho da Cruz
esteira, podendo usar duma manta ou saial
quatro meses do ano — março, abril, setem-
bro e outubro, de duas em novembro, dezem-
bro, janeiro e fevereiro, e de nenhuma nos
outros.
No coro tinham diariamente três horas de
oração mental e faziam também a disci-
plina, exceptuando aos domingos e festas de
guarda (i).
No lado sul da Serra existem várias caver-
nas ou grutas naturais como a Lapa do Medico,
no meio da encosta do Monte Abraão, à es-
querda do caminho que vai da Fonte do Soli-
tário para o mosteiro, pelo vale de S. Paulo.
É afamada a Lapa de Santa Margarida junto
ao mar e outras (2).
Desta última temos a descrição dum poeta
do século XVII, que achámos interessante repro-
duzir, não obstante o sabor gongórico, que por
completo a desfeia :
114
Metido por aquella oculta brenha
Logo outro religioso me convida
Para dentro de hi3ma grande penha
Ver a Lapa de Santa Margarida.
Pelos montes que aos mares se despenha
Nos afirmaram ser fácil decida
(1) Chronica, pg. i36.
(2) Rasteiro, Arch. Port., já cit.
Fr. Agostinho da Cruz 27
E andando meia legoa nesta frágoa
Nos viemos achar na borda d'agua.
ii5
Em húa rocha adonde o mar batia
Com tão grande clamor, que o mar abala
Húa pequena boca a pedra abria
Por onde entrava o mar a visitá-la;
Os penhascos famosos combatia
Mas de sorte na Lapa se regala,
Que se com todos inconstante quebra
Só com esta visita se requebra.
116
Entrei por esta gruta e na verdade
Tal pavor m'infundio e tal respeito,
Que então não soube com facilidade
Qual das cousas em mim fez este efeito,
Pois com tal intenção, tal igualdade
Se introduziram juntos em meu peito,
Que quando quis entrar neste penedo
Vi confuso o respeito com o medo.
Referindo-se à celebre Capela, que primiti-
vamente fôra a cela de S. Pedro de Alcântara
diz o mesmo autor :
41
Na parte do Evangelho esta Capela
Húa pequena porta nos mostrava,
Por onde entramos na apertada cela,
Onde Pedro de Alcântara habitava.
Húa fresta de hú palmo havia nela
Por esta a luz do sol escassa entrava.
Porque tanto do mundo se escondia,
Que apenas soube o sol donde via.
28 Fr. Agostinho da Cruz
42
Tem a cela dez palmos de comprido
Para hfl corpo pequena sepultura
Eu lhe medi com peso e advertido
Quatro palmos e meio de largura,
E se hú homem qualquer cousa é mais comprido
Não pode entrar q^^e é pouca sua altura,
Mas esta facilmente se acomoda
Levar em húa mão a cela toda.
Toda a Serra era revestida de mata formo-
síssima merecedora dos elogios de quantos
tiveram a dita de a visitar, pelo menos, uma
vêz na sua vida (i). Dela podia escrever A.
Herculano que era
. . .pátria da paz, deserto santo,
Onde não ruge a grande voz das turbas I
Foi a este logar que se acolheu Fr. Agosti-
nho e imagine-se como lhe decorreriam os dias
durante o período de catorze anos, em que
perseverou na vida contemplativa, que livre-
mente escolhera.
Ficava-lhe longe e sobranceiro o modesto
Convento, onde vivia a comunidade. Pois só
lá ia de oito em oito dias para buscar o pouco
de pão com que se alimentava. Isso e alguns
(i) Ainda em i836 o autor do Portugal and Galicia,
( London, 2.», pg. 38 ) escrevia que lá « are found the
quercus Australis, the maple, lhe slrawberry-tree and
the carob, or St. Jonh's bread-tree. . . ».
Fr. Agostinho da Cruz 29
frutos lhe bastavam. Aludindo a uns figos que
tinha a secar e una corvo lhe roubou escreveu
os interessantes versos, repletos de alegre resi-
gnação, que começam com o mote :
Se Agostinho fora Paulo
O corvo quando viera
Não levara, mas trouxera. . . (i)
Leia-se a égloga II « Mincio e Flávio », em
que este último, que não parece sêr outro
senão seu irmão Diogo Bernardes, conta àquele
o modo de viver de Limabeu, disfarce sob que
se designa Fr. Agostinho :
Nunca se imaginou tal asperesa
Não digo dos penedos do deserto
Mas da fome, do frio e da pobresa. . . (2).
Aí O representa marchando de pés nús, com
a boca atravessada por um páo para não falar,
apenas coberto o corpo por andrajos mal cer-
zidos. . . e todavia resignado e contente. • Era,
não obstante tais rigores, muito afável, alegre
e benévolo a todos », escreve um velho bió-
grafo.
Entretinha-se fora das horas de meditação
nos prazeres mais inocentes, um dos quais o
(i) Cfr. pg. 343.
(2) Cfr. o Vilancete de pgs. 337.
3o
Fr. Agostinho da Cruz
de pescar e o de fazer bordõis, de que todavia
se desculpa contra os maldizentes :
Em que parte, em que terra
Se pode vituperar,
Quem pesca peixes no mar
Ou coria lenha na Serra ?
Não admira que êle conheça e nomeie nos
seus versos variadas espécies da fauna e da
flora da região, onde vivia. Ele cita o lapari-
nho, o tordo, o pombo, a perdiz (i), o coelho,
a lebre, o açor, o porco, o galgo (2), àlêm da
áspide (3) e os sardos, robalos, douradas (4),
ruivos, salmonetes, vesugos, choupas, tainhas,
linguados (5), as ostras, amêijoas (6), birbigõis,
mexilhõis, as santolas (7), os perseves (8).
De plantas memora a Jiera, o louro (9), o
lirio (10), as boninas (i 1), o medronho, a esteva,
a aroeira (12), o sovereiro (i3), os murtais (14),
(i) Pgs. 5i.
(2) Pgs. i36.
(3) Pgs. 314.
(4) Pgs 61.
(5) Pgs. 74.
(6) Pgs. 80.
(7) Pgs. 106.
(8) Pgs. 60.
(9) Pgs. 2.
(10) Pgs. 19 e 28.
(11) Pgs. 40.
(12) Pg. 74.
(i3) Pg. i36.
(14) Pg. 314.
Fr. Agostinho da Cruz 3i
OS zimbros (i). Não esquece o perrexil (2), como
se lembra das rosas (3), e menciona as casta-
nhas e as maçãs (4) e os figos (5).
Imerso na natureza, na vida simples que
levava, dia a dia, hora a hora, mais e mais se
absorvia na contemplação dos grandes mis-
térios da vida, que o esperava àlêm túmulo,
numa radiosa esperança, ou melhor certeza.
Gomo já sucedera com outros grandes homens
piedosos, nimbados pela auréola da santidade,
a sua solidão é animada pela visita « de alguns
animais silvestres que andavam naquela Serra
notavelmente esquivos, como veados e genetas
e lhe vinham comer à mão deixando-se tratar
dele, como mui domésticos, obedecendo lhe tal
vez de modo que não se iam sem os despedir,
e assim mesmo todo o género se volateria » (6).
Vinham as aves pousar-jhe nos ombros ou no
colo, diz também o Cronista, que regista a tris-
teza do bom Capuchinho no dia em que soube
que a geneta fora procurá-lo ao seu aposento
« e não o achando, seguio-lhe as pisadas pelo
faro, até entrar dentro da clausura. Foi sentida
dos gatos, os quaes armando-se contra ella, a
(1) Pg. 338.
(2) Pg. òi.
(3) Pgs. 28 e 40.
(4) Pg- ^9-
(5) Pg. 343.
(6) Cfr. Agiologio Lusitano, 11, 146.
32 Fr. Agostinho da Cruz
mataram... » (i). Era um dos seus bichi-
nhos, (2) que desaparecia (3).
Maior tristeza devia sentir com a retirada
de Fr. Diogo dos Inocentes, a quem a doença
prostrara obrigando-o a acolher-se a Alcobaça :
Foi-se-me o companheiro, que aqui tinha,
Enfermo, sem poder mais aturar. . .
Etc. (4).
Ele, agora, mais vivia para o isolamento e
para a meditação. Algumas vezes foi encon-
trado em extasis, « suspenso e absorto. . • cousa
que lhe devia suceder cada dia, pois acaso o
( 1 ) Chr. da Arrábida, § 1 1 79, pg. 929.
(2) Cfr. pg 3o8.
(3) Gineta ou geneta (\at. f a gineta, deminutivo de
Jugina, segundo Faria, doninha grande, fuinha, e é»
segundo Bluteau o que alguns denominam o Catus
Hispanice e outros Panthera minor. E cita Gennero
que a descreve assim : bestia paulo maior vulpecula,
colore inter croceum et nigrum, maculis interdum
nigris, ordine in pelle dispositis, mansueta satis, nisi
lacessatur. Árdua non ascendit sed in humidibus locis
et juxta rivos degit, et ibi victum quaerit. Ginettas
Hispânia mittit forma, et moribus domesticis musteliis
quas nos foinos vocamus ...»
Como pôde a tímida e modesta doninha, cuja pele
lanuginosa é salpicada de negro ou de pardo, como diz
Fr. Domingos Vieira, ser transformada numa « cavalga-
dura que levava Fr. Agostinho do seu convento para a
Capellmha da Serra ? » Pois cfr. Sr. Dr. Th. Braga, Hist .
dos Qitinh., pg. 320. Veja-se a escapeiização do dislate
no Sr. H. Arantes, ob. cit., pg. 44 e segs.
(4) Cfr. pg. 220.
Fr. Agostinho da Cruz 33
acharam daquela maneira sendo ele grande
secretario de suas virtudes » (i). Semelhan-
tes fenómenos nada tinham de extraordinário,
sendo consequência das longas oraçõis mentais,
e tais como se observam noutros místicos, em
formas mais ou menos acentuadas, mas, no
fundo, idênticas (2).
Enfim, chegou também a sua hora. Os pre-
núncios da morte teve-os em princípios de
março do ano de 1619. E de tal modo se
anunciou a doença, que logo foi conduzido
para Setúbal, onde a Ordem tinha o seu hos-
pital. Foi fácil o diagnóstico, rápida a sua
confirmação. Em volta do seu leito junta-
ram-se os amigos, não lhe faltando os maiores
— o Duque D. Jorge de Aveiro, que então
com seu Pai e molher residia nos Paços da
vila. Em 14 de março expirou.
Contava 79 anos de idade, 69 de hábito, e
14 destes de eremita na Serra da Arrábida.
(i) Cfr. Mesquita, ob. cit., pg. xvi.
(2) Vid. H. Delacroix, Études <fhistoire et de psycho-
logie du mysúcisme. Les grands mystiques chrétiens.
Paris, 1908, pg. 176 segs.
34 Fr. Agostinho da Cruz
II
O POETA
Todos que em Portugal teem o amor das
suas glórias literárias conhecem Fr. Agostinho
da Cruz, pelo menos, através a edição que das
suas Poesias nos deixou o Prof. do Colégio Real
de Nobres — José Caetano de Mesquita (i).
Foram os próprios Frades da Arrábida que
forneceram a Mesquita o exemplar das poe-
sias que, copiadas « com o maior cuidado »,
serviram para a impressão (2).
O que até à data dessa edição — 177 1 — se
conhecia de Fr. Agostinho era somente o pou-
quíssimo que fora publicado na Chronica da
Arrábida em 1728 (3), embora a fama do seu
talento, como das suas virtudes, fosse já apre-
goada pelos contemporâneos (4). Aqui está a
(i) Varias poeifias do venerável Padre Fr. Agostinho
da Cruj, religioso da Provinda da Arrábida, dedicada
ao Excel, e Reverend. Senhor D. Fr. Manoel do Cená-
culo. . ., Lisboa, MDCCLxxi, i vol. de xxxm -j- i63 pgs.
(2) Cfr. a Vida. . ■ anteposta à ed., a pg. 29.
(3) Parte i, livro v, caps. 18-20, § 1170.
(4) Cfr. Fr. Pedro Calvo na Defensam das lagrimas
dos Justos perseguidos e das sagradas religiões, fructo
Fr. Agostinho da Cruz 35
prova em Fr. Rodrigo de Deos f -f* 1622 ), que
foi Guardião do Convento de Nossa Senhora
da Arrábida e que nas duas obras que deixou
inserio poesi^ís de Fr. Agostinho. No Tratado
dos Passos que se andam na Quaresma ( i * ed.
1618) (I) apareceu impresso como Proemio o
soneto :
Os passos que de dores trespassados
Etc. (2).
e o Epigrama :
A quem desceo do Ceo por nos dar vida
Etc (3).
Nos Motivos Espirituais I4) aparecem publi-
cados os seguintes dois Sonetos, que sam
das lagrimas de Christo, Lisboa, por P. Craesbeck, 1618,
que já [sendo ainda vivo] se lembra dele.
(i ) Tratado dos Passos. . . saido das oficinas de Pedro
Craesbeck, 1618. Era, portanto, vivo Fr Agostinho, que
só faleceu em março de 1619. O Tratado... saiu em
1618 e deste ano sam as licenças para a impressão.
Insere em primeiro logar um Soneto á Paixão, anónimo.
(2) Publicado nesta nossa ed. a pg. 193.
(3) Vid. esta nossa ed. a pg 335.
(4) Impressos por P. Craesbeck em 1620, mas as
licenças sam de outubro de 1618 e 1619. Posteriormente
à redacção da Nota 46 deste vol , pude consultar na
Bibl. Nac. de Lisboa exemplares tanto desta como da
ed. de i633.
36 Fr. Agostinho da Cruz
exclusivos deste livro bastante raro e que vale
a pena reproduzir :
Soneio de Frey Agostinho da Cruj a esta obra.
Âquelle que na vinha do Senhor
Trabalha por cavar proveito alheo,
Tanto do próprio seu fica mais cheo,
Quanto mais do commum foi cavador.
Costuma a pagar divino amor,
A quem buscar o quer por este meio.
Primeiro : como a quem mais tarde veio,
E tanto como o mais madrugador.
Aqui nesta doutrina claramente
Se ensina porque via, como & quando
OfFerta faz a Daos mais excellente
Todo o que dignamente comungando
OfFerece a Deos Padre omnipotente,
Seu filho, sua gloria acrescentando.
Outro.
O' vós que andais de achar cá desejosos
Modos de honrar sem fim mais a Trindade,
O melhor se vos dá aqui com brevidade
Nestes motivos santos amorosos.
Nelles tendes louvores copiosos
De summo grau & grande dignidade,
De quem trata & recebe a magestade,
Que temem olhar no Ceo os gloriosos.
O alto sacrificio de honrar digno
A vós tam proveitoso, a Deos aceito.
Com que he toda a Trindade engrandecida.
Fr. Agostinho da Cruz Sy
Sagrada Hóstia, viatico divino,
Que offerecida ao Padre com efíeito
Lhe deu gloria infinita & sem medida.
Trinta e oito anos após a morte do Poeta,
em 1657, o sábio autor do Agiologio Lusitano
chamando ao irmão Diogo Bernardes « insigne
poeta » acrescenta : « e ele o não foi menos
porque na Arrábida fez alguns poemas ao
divino, que sam muito estimados pelo engenho
& spiritu grande que nelles mostrou » (1).
Por cópias manuscritas, derivadas do autó-
grafo, que hoje se pôde reputai perdido, se foi
alargando a fama da inspiração do Poeta da
Arrábida. Que nos dizem esses Manuscritos
de novo ou de inédito ?
os MANUSCRITOS
Conhecem-se três manuscritos mais ou me-
nos numerosos, mas todos três importantes,
das poesias de Fr. Agostinho da Cruz. Além
destes há referências a um Códice do convento
de Verberena da Província da Arrábida, que
Barbosa Machado afirma sêr c da sua própria
mão ». Vê-lo hia o douto abade de Sever?
Ele ou quem o teve sob os olhos descreve-o
assim : « esta colecção poética fez á petição
(i) Cfr. II, i5i ( 12 de março) e Anotações, ao §/.
38 Fr. Agostinho da Crur
da Duquesa de Aveiro e a dedicou á mesma
Senhora, da qual existia um traslado na Biblio-
teca do Cardeal de Sousa. Constava de vinte
e uma Eglogas assim pastoris como piscatórias,
cartas, odes, endechas, redondilhas e vilhan-
cicos. Entre os Poemas que compôs he cele-
bre o de Santa Catharina, Virgem e Martyr,
em oitava rima ». O título era — Diversas
Poesias ao Divino (i).
Teríamos, pois, aqui um autógrafo por todos
os títulos valiosíssimo mas de que não há, à
hora atual, vestígios do seu paradeiro. Estará
irremediavelmente perdido ?
Inocêncio da Silva no seu precioso Dicioná-
rio Bibliográfico fâla-nos dum outro Códice»
que talvez prestasse elementos importantes se
se tornasse conhecido. Não seria autógrafo,
mas parecia c ter sido escripto logo depois da
morte do Venerável Padre. Consta de 164 fls.,
4.", letra do sec. xvii •. Inocêncio, que vio
este manuscrito, diz nos que êle compreendia:
dois epigramas, oitenta e um sonetos, uma
égloga à ingratidão, quinze elegias, três eglo-
gas, cinco odes, vários motes e glosas, quatro
cartas ou epístolas inéditas, um epigrama, um
epitáfio, oitavas sobre o c Flevit amare »,
cincoenta e sete oitavas sobre a Vida de Santo
Eustáquio, e a Vida de Santa Catarina (2).
(i) Btbl. Lus , vb. Verberena.
(2) Op. cií.y vb. Agostinho da Cruz, i, pg. 16.
Fr. Agostinho da Cruz 89
Qual a sorte deste Códice ? Perdido tam-
bém para sempre ?
Estes os desaparecidos, a que outros natu-
ralmente se poderão, em hipótese, juntar, por-
que várias cópias deveriam sêr tiradas para
enviar ou para os Conventos da mesma ordem,
ou pelo menos para aqueles que mostrassem
desejos de possuí-los, e também para pessoas
piedosas, que não deixariam de tér em alto
apreço leitura para elas tam sugestiva e impre-
gnada de misticismo.
Demos agora logar aos Mss. existentes, que
chegaram ao nosso conhecimento e de que nos
servimos para a elaboração deste trabalho.
A — Mss. Conimbricense n ° 400. Pertence
à Biblioteca da Universidade de Coimbra.
Grosso vol. de 448 pgs., numeração moderna,
já descrito e catalogado pela pena autorizada
do nosso amigo Sr. Dr. Augusto Mendes Simões
de Castro. As poesias do nosso auiôr abrem
o vol. e vão até pgs. 68. Rpigrafe ao alto da
pg : € Varias Poesias do Padre Fr. Agostinho
Bernardes, Religioso Capucho arrabido irmão
do grande Diogo Bernardes » e termina :
€ Aqui Jinalisa esta obra do irmão de Diogo
Bernardes ■.
Infelizmente todas as poesias neste Mss.
contidas se encontram publicadas (excepto os
dous sonetos de fl. 6, v. ) no vol. impresso
em 1771. Os dous sonetos que fazem exce-
pção encontram-se neste nosso vol., a pgs. 169
40 Fr. Agostinho da Cruz
e 2o3. Procedem entretanto de fonte diversa
da que sérvio a Mesquita para aquela sua ed.
de 1771 e sam, por isso, um subsídio para
fixar o sentido dalguns logares obscuros ou
deturpados, como o verifiquei cotejando para-
lelamente os logares e aproveitando a parte
essencial nas notas e esclarecimentos, que vam
no fim desta nossa edição.
B — Mss. Portuense (1). Pertence à Bibl.
Municipal do Porto, onde tem o registo antigo
i.ioo e o mod. 63 1. Ambas essas numeraçóis
se lêem em dous rótulos colados nas lombadas
do vol. No verso interior da capa há também
num Ex-libris da Bibl. o A^.° geral i 100.
Colocação F — 2. Voluminho in-8." Pesa
i65 grs. Tamanho 10X15*". Papel de linho,
amarelado. Encadernado toscamente em per-
gaminho. O canto superior externo da capa
está roido. No princípio há duas folhas custo-
des em branco. Frontespício verdadeiro não
existe. Na última v. há. todavia, o título
da primeira composição : Tercetos em louvor
da Immaculada Concepção da Virgem nossa
(i) Devemos a descrição deste Códice à Senhora
D. Carohna Michaelis de Vasconcelos. Foi também a
ilustre Senhora quem nos forneceu cópia das poesias,
que vam insertas neste nosso volume (acompanhadas de
rápidos comentários elucidativos ) e que sam exclusivas
deste Mss. Aqui consignamos a S. Ex.» o nosso vivís-
simo reconhecimento.
Fr. Agostinho da Cruz 41
Senhora e Sonetos vários de Santos, o que
está escrito com a mesma letra do texto.
Com letra muito mais moderna (primeira
metade do sec. xix) lese na mesma pág. :
Frei Agostinho da Crui — Irmão de Diogo
Bernardes, mas estes dizeres foram depois
apagados propositadamente. Em letra mais
antiga, mas posterior á do escrevente principal,
está lançada ao alto da primeira pág. do texto
a nota Da Livraria de Grijó. O texto abrange
i5o fols., pág. no recto. Está muito bem cali-
grafado. Letra do séc. xvii — apógrafo por-
tanto — parecida com a de Bernardes, Ferreira,
Resende, etc. No fim falta uma fl. de texto
(pelo menos) com as últimas quatro oitavas
da Visão de Santa Erigida e provavelmente
outra, branca, custode. As composiçÕis não
numeradas, mas sempre marcadas por uma
bandeirinha, sam 282 : portug. 190, castelha-
nas 42, de mistura.
O nome de Fr. Agostinho encontra-se várias
vezes em epígrafes ou junto às epígrafes de
certas poesias. A designação Do mesmo ou
Do Autor refere-se também a Fr. Agostinho.
Eis a lista dessas indicaçõis:
1 — f. a8 V., Himno á Cruz : de Fr. Agostinho.
2 — f. 3i V., Elegia a Jesu na Cruz : de Fr Agostinho.
3 — f. 32 V,, Elegia ao divino amor : do mesmo.
4 — f. 34, Elegia Spiritual : do mesmo.
5 — f. 35, Lagrimas de São João Euangelista ao pee
da Cruz : de Fr. Agostinho.
6 — f. 55 V., Outra Elegia a Serra da Arrábida : de Fr.
Agostinho.
42 Fr. Agostinho da Cruz
7 — f 58 V., Endexas : de Fr. Agostinho.
8 — f. 59 V., Outras endexas : do mesmo.
9 — f. 60, Vilancete : do mesmo.
10 — f. 81, Elegia de Fr. Agostinho da Cru;; a dona
Mariana filha do Duque d'Aveiro, etc.
11 — f. 82 v„ Egioga de Fr. Agostinho da Cruj, etc.
12 — f. g% Elegia á morte de diogo Bernardes Irmão
do Autor.
i3 — f. loi, Eitígia á morte : do mesmo.
14 — f. III V., Reposta a Soror Mariana filha do Duque
de Aveiro : do Autor Fr. Agostinho da Cruj.
i5 — f. 112, Carta que escreveu a Duqueza de Aveiro
antes de se ir pêra o Ermo.
16 — f. ii3, Carta que o Autor compôs a Duqueza de
Aveiro á absencia da madre Soror Mariana,
sua filha.
Temos, portanto, oito vezes a designação
clara e nominal do Autor.
Outras provas da autenticidade da atribui-
ção de muitas das 232 composiçõis do Cod,
Port. sam as seguintes :
a) 5o delas sam idênticas com outras tantas
impressas em 1771 por Mesquita. Essas mes-
mas encontram se também no Cod. Conimbr,
que é privativo de Fr. Agostinho.
b) 148 dessas poesias sam comuns ao Cod,
Port. e ao Conimbr.
Das obras impressas em 1771 faltam no Cod,
Port.: I — As Eglogas 1-12, a última das
Fr Agostinho da Cruz
quais termina com um soneto ( o de Limiana),
e com o Epitáfio de Limiana e Limabeu.
2 — O soneto A seu irmão Diogo Bernardes.
3 — O Vilancete que constitue o desfecho da
Elegia da Ausência conjugal. 4 — A Carta
em resposta à de seu irmão Diogo Bernardes.
5 — O Mote Ao Nascimento de Nosso Senhor.
Privativos do Cod. Conimbr. sam apenas os
dous sonetos : Aquele que na vinha do Senhor
( pg 23o), e Oh vós que andais ( pg. 23 1 ).
Privativos do Cod. Port. sam as quarenta e
duas composiçõis castelhanas, que vam publi-
cadas nesta nossa ed. [pgs. 369 a 416].
C — Mss. Conimbricense. Pertencente à
Bibl. da Universidade, onde, quando Bibliote-
cário deste notável Estabelecimento, o encon-
trei, aproveitando-o imediatamente para a
publicação que empreendi no Archivo Biblio-
graphico da Bibliotheca da Universidade de
Coimbra, que havia fundado um ano antes,
deixando desde então exarada a promessa da
edição autónoma, que só agora consigo levar
a cabo (i).
(i) E não foi mais cedo pelas razõis que deixei adi-
vinhar em outro logar e que aqui não explano para não
avivar um fogo-morto. A promessa então feita foi-me
44 Fr. Agostinho da Cruz
O Códice compreende vinte e três cadernos
e é todo da letra de Joaquim Inácio de Freitas,
professor do Colégio das Artes, bem conhe-
cido de todos os bibliófilos (i).
Não tem capa de resguardo, nem título, nem
outra indicação mais que uma fl. envolvente já
despedaçada onde, em letra moderna, decerto
cópia doutra antiga, se lê: t Poesias de Fr.
Agostinho da Ci'u^ ». Numeração moderna
de I a 64 por laudas, abrangendo oito cader-
nos somente. A numeração do punho de Inácio
de Freitas começa no caderno sétimo até ao
último, somente por página, somando sessenta
e quatro, esta última em branco. Na 63 v.
tem, porém, em seguida ao título Outras
[Endechas], que começam :
Já nSo digo um dia
Nem menos uma hora
Etc. (i).
Fls. em branco 18 v., 20 v., 5o, 5i, 62.
Tamanho da mancha manuscrita i66"""X95°'"'
Peso 220 grs.
A caligrafia das poesias é toda igual, perfei-
tamente legivel e correcta. Raramente inter-
vém a correcção de Inácio de Freitas, cuja
recordada penhorantemente há pouco pelo nosso dis-
tintíssimo maestro Sr. Viana da Mota.
(i) Cfr, Inoc, Dic. Bibl, iv, pg. 85.
(2) Vid. pg. 367 deste nosso volume.
Fr. Agostinho da Cruz
letra pequenina, tímida, cheia de discrição, se
encontra, apenas, na numeração das estrofes e
na paginação do caderno sétimo em deante,
como dizemos acima. Rebuscamos todos os
papeis daquelle infatigável trabalhador, infe-
lizmente muito poucos e dispersos. Freitas
aproveitava tudo para lançar as suas notas —
qualquer pedaço de papel, um velho sobre-
scrito, tudo lhe servia. Isso concorreria para se
dispersar muito do seu labor. O cuidado e
asseio do apógrafo augustiniano dá, porém,
a entender que êle cuidaria na sua impres-
são, como procedera com André Falcão de
Resende, cujas obras êle salvou de perecerem
totalmente e que só mais tarde publicadas
ainda aguardam a caridade de serem concluí-
das (i). Nada se nos deparou que nos eluci-
dasse sobre qualquer ponto. Do que nos não
restava dúvida é que estávamos em presença
dum rico espólio, contendo, sem dúvida, o
melhor, e por ventura, a quase totalidade das
poesias do ilustre Capuchinho, devendo ser
esses cadernos cópia dalgum exemplar oriundo
do convento da Serra da Arrábida. Ele vinha
lançar nova luz sobre a personalidade do
Poeta, representado apenas na edição de 1771,
que, se é mesquinha literariamente e merece-
dora das censuras do bibliógrafo, muito mais
o é editorialmente considerada, impressa como
(1) Cfr. laoc, Dic. Bibl., viu, pg. 62.
46 Fr. Agostinho da Cruz
está no papel que o tempo ameaça tornar ih-
givel, manchado caprichosamente e numa com-
posição cerrada que é, em absoluto, antipática
e irritante a quem lê (2).
Era uma obra de justiça reparar tanto des-
mazelo. Tê la hei eu realizado?
Assim como estes Manuscritos não encerram
talvez, tudo o que saiu da veia inspirada do
seu auiôr, também nem tudo o que contêem é
absolutamente dele. Os Quinhentistas costu-
mavam trasladar para seu próprio gozo espiri-
tual as poesias, que mais os impressionavam,
sem cuidar de indicar o verdadeiro autor. Daí
a confusão da atribuição rigorosa, que tam
facilmente conduzio alguns escritores a falar
em plágios, sem se lembrarem que nessa
(2) Claro que nisso não teve culpa alguma o modesto
Prof. Teve-a sim, em não dedicar maior cuidado ao
Poeta, que queria tornar conhecido, como procedeu
com os Opúsculos latinos de Diogo de Teive, a Vida de
D Fr. Bartolomeu dos Mártires de Fr. Luís de Sousa,
a Vida do Beato Henrique Suso atribuida ao mesmo, as
Poesias de Diogo Bernardes, e o Compendio da doutrina
Cristã de Fr. Luís de Granada. Cfr. Inoc, Dic. Bibl ,
IV, pg 283. Mesquita foi um operoso trabalhador, mas
desajudado de auxílios que compensassem o seu zelo.
Soma tudo — é para agradecer-lhe o suor no arrotear de
leiras, onde tantos, melhor afortunados, então e hoje e
sempre, só deixam criar cardos e ortigas.
Fr. Agostinho da Cruz 47
acusação envolviam os que, como Camões,
pairavam muito acima dessas pequenas misé-
rias inúteis à sua glória. Não era para que se
quisessem atribuir o que era de outros, mas
porque muito lhes agradava lê las sempre
deante dos olhos e retê las ou comenta las,
que uns poetas inseriam nos seus cadernos
manuscritos poesias, que eram da lavra de
outros, sem pensarem que esses textos lhes
sobreviviam gerando a confusão, que era natu-
ral que se desse. Os leitores téem as provas
especialmente nas poesias espanholas deste
nosso volume, seguidas, no seu logar compe-
tente, das notas eruditas da Sr.* D. Carolina
Michaêlis.
Não quisemos inserir outras, como as Lagri-
mas de S. João Evangelista integradas, como
obras de Bernardes, nas Vargas Rimas ao Bom
Jesus desde a edição de 1594, não obstante no
Cod. Port. virem incluidas entre as de Fr.
Agostinho.
Descontando as que possam com segurança
ou mesmo dubitativamente atribuir-se a outros
poetas — e que como tais vam indicadas nas
Notas lançadas no fim deste volume — a parte
autêntica é mais que suficiente para firmar
no bronze da história da literatura o nome de
Fr. Agostinho.
Se possuissemos a parte da sua obra, que
êle implacavelmenie fez desaparecer para sem-
pre, não pôde restar dúvida de que o seu nome
se aureolaria de mais radiante fama.
48 Fr. Agostinho da Cruz
Há nas suas poesias um acento dolorido, o
selo da tristeza que punha em tudo que o
rodeava, a nota do mistério do àlêm^ que lhe
domina e sobjuga a existência, que faz dessas
poesias verdadeiros trenos impregnados de
religiosa piedade.
Da vida passada só se divisam sombras de
sombras inatingíveis.
Canta o « doce Lima » como aquele que o
vio nascer, o « Mondego e o Tejo », que
o viram crescer e prosperar (i), especialmente
este último (2), a que parece ligar recordaçõis
de ternura e de saudade.
Só no deserto vê remédio para a sua tris-
teza, que não tem par:
He mui diferente
A minha tristeza
De quanta se sente
Noutra natureza.
Vamos ver da Serra
Do monte deserto
O ceo de mais perto,
De mais longe a terra (3).
As alusõis vagas e imprecisas ao seu pas-
sado encontram-se principalmente nas Eglogas,
(i) Cfr, o princípio da Elegia, pg 289.
(2) O Tejo vem com frequência à sua pena. Cfr.
pgs. 22, 3o, 35, 38, 82, associando-o ao pátrio Lima —
pgs. 100, loi, 104, 289. Outras vezes só fala deste —
pgs. 120, 121, i35.
i3) Vid. as Endechas de pg. i63 e comparem-se com
as de pgs. 365 e 367.
Fr. Agostinho da Cruz 49
onde pôde vêr-se êle próprio sob o nome de
Limabeu, e seu irmão Diogo Bernardes no de
Mincio.
A égloga primeira é dedicada à sua conver-
são. O poeta escreve-a )unto a ura claro rio,
que lhe sugere o da terra natal. No solilóquio
em que explica a mudança psíquica e moral,
que nele se operou, faz a apologia da Serra,
como o único logar onde pode achar repouso
a sua alma :
Não falta nos desertos agoa clara ;
A lapa, que da calma me defende,
Se ventar ou chover também me ampara .
Aqui não temerei a cruel guerra.
Daqui verei no Ceo formosas cores,
Assi me esquecerão cousas da terra.
Na quarta égloga figuram Limabeu e Mincio.
E' este, decerto, o irmão querido, que começa
como que repreendendo-o pela sua mudança,
tendo-o deixado num isolamento, que não me-
recia :
Companheiro te fui no sentimento,
Nunca me viste rir, quando choravas ;
Menos chorar no teu contentamento.
Com igual amor tu o meu pagavas.
Isso me fez sentir não te lembrar,
Que te partias donde me deixavas.
O que o pastor Mincio quere saber é o
motivo daquela retirada para a aspereza do
d
5o Fr. Agostinho da Cruz
deserto, aquele abandono de tudo — < cabras,
pasto, pastor, cabana e fato >.
Limabeu então queixa-se de sêr acusado e
perseguido injustamente. Um amigo o atrai-
çoou, um amigo que muito diversamente o
devera tratar, mas que o difamou com os
outros pastores.
Quem fosse cego e mudo, que não visse,
Muito menos sentisse quanto entende.
Na Egloga VII encontramos de novo os
dois irmãos. Fr. Agostinho devia estar ainda
há pouco na Arrábida, como da leitura desta
poesia se infere, e parece que se propu-
nha abandoná-la pelo menos temporariamente.
Mincio pede-lhe que lhe diga os motivos desse
procedimento aludindo a um outro pastor
Lauro, que depois vemos figurar na égloga
imediata.
A Egloga XII reveste um caracter de con-
fidencia indecifrável. Limabeu dirigindo-se ao
irmão diz-lhe :
Bem sabes quanto ri, quanto folguei
De cantar e tanger, que graça tinha,
Quantas apostas fiz, quantas ganhei
e alude a uma personagem, natural do Lima,
de quem se apartou para sempre, mas àcêrca
de quem dirige ao irmão a seguinte pregunta :
Dize-me que se fez de Limiana,
Que chorando ficou ó pé de faia ? . . .
Fr. Agostinho da Cruz 5i
Essa misteriosa Limiana morreu, para ela
voa o pensamento do monge numa evocação
sublime. Vê-se, adivinha-se, que foi ela a
criatura dos seus sonhos, a mística esposa que
lhe orientou a vida e o pensamento. Essa é a
t santa t, que uma mesma sepultura de sonho
uniria junta a ele, sob o mesmo Epitáfio que
lavrou e diz :
Eu vi do Ceo na terra a fermosura
No vestido dum pobre peregrino
Da terra para o Ceo voar segura
Fosse ventura minha, ou seu destino :
Por minha mão lhe dei a sepultura,
Pela sua a levou amor divino :
De Lima naturaes em Lapa Oceana
Se enterrou Limabeu com Limiana,
Finalmente Bernardes figura ainda noutra
égloga versando ambos os irmãos o mesmo
tema indecifrável.
Diogo Bernardes foi sempre o amigo querido
do grande solitário. Por sua vêz este dedicava
ao irmão uma enternecida estima. O Soneto
que lhe consagrou a propósito da composição
do Lima (i) revela um sentimento de conten-
tamento bem evidente. A Carta que lhe ende-
(i) Cfr. pg. 18. Este Soneto foi publicado como
Introdução do Lima, Lisboa, 1 596.
52 Fr. Agostinho da Cruz
reça (i) em resposta à que dele recebera (2) é
um hino de afectos, em que confessa a sua
gratidão por tantos conselhos recebidos e
que lhe faz exclamar enternecidamente « meu
Mestre ! », enfim sentem-se as lágrimas em
cada um dos tercetos das Elegias, que consa-
grou à sua morte (3).
Quem sam as personagens das demais
Eglogas ?
De positivo nada se pode afirmar. Por
toda a parte existe aquele tom de vago e de
impreciso, que tanto se presta a divagaçÕis ten-
tadoras. Inútil é o trabalho de procurar sempre
sob os criptónimos dos pastores personagens
históricas e autênticas para servirem as hipó-
teses que formulamos. É bastante lembrar
que os nomes dalguns foram sugeridos ao
Poeta por designaçõis dos locais ou sítios,
que êle conhecia da vida da Serra, tais os de
Galapo e Alportuxo.
c A comenda de Arrábida, diz um escritor
nosso contemporâneo, tinha pelo sul o mar,
pelo nascente a comenda e concelho de Pal-
mela, numa linha de Galapo ao monte de
S. Francisco...» (4). E « tinham transposto
(i) Cfr. pg. 128.
(2) A Carta de Diogo Bernardes é a vin do Lyma e
anda publicada a pg. 147 da ed. de 176:.
(3) Cfr. Elegias IX e X, pgs. in e ii3. A primeira
foi inserida nas Rimas Varias, pg. 219 da ed. 1770.
(4) Arrábida.. ., cit. 1896, pg 4.
Fr. Agostinho da 'Cruz 53
a poria de Alportuche, aonde o alcantilado
da serra se quebra. . . » (2).
E os dois irmãos figurarão unicamente sob
os nomes de Limabcu e Mincio ? Não é natu-
ral. Tem-se suspeitado que na Egloga V figu-
ram como interlocutores o Poeta (Gualbano)
e Fernão Lopo Soropita (Laurino), aquele
que, como diz o título, t foi reduzido a Reli-
gião », isto é, convertido. Infelizmente nem
nas obras publicadas, nem nas inéditas do
famoso satírico, há vislumbre de informação
aclaradora das reiaçõis mútuas dos dous poe-
tas, diferentes em idade, segundo a suspeita
de Camilo Castelo Branco, cerca de vinte anos,
e muito mais diferentes em génio, em fantasia,
e em motivos emocionais inspiradores.
Nos Manuscritos de Soropita apareceram
intercaladas algumas poesias de Fr, Agostinho,
como esta Egloga V, nos do Poeta da Arrá-
bida algumas atribuídas a Soropita. Portanto
daqui nenhum esclarecimento proveio, nem
provirá. E nessa ignorância continuaremos,
pois que os Mss. do Convento da Arrábida
ou não diziam cousa de maior monta além do
que foi explorado por Mesquita em tempo em
que tam fácil lhe fora colher quaisquer indica-
çôis, ou realmente continham elementos pre-
ciosos para o estudo do Poeta e podem consi-
derar-se como irremediavelmente perdidos.
(2) /*., pg. 7.
54 Fr. Agostinho da Cruz
Nos Códices manuscritos por nós explorados
nada se nos deparou de elucidativo.
Em parte alguma uma nótula marginal, a
mais simples cota de indiscrição. Contéem
a transcrição das obras do Poeta e é tudo
para a sua glória e pouco, quase nada, para a
nossa curiosidade.
Todas as poesias dos Manuscritos de Coim-
bra e do Porto sam de caracter profundamente
religioso, revelador do estado d'alma de quem
as redigio. Elas acompanham passo a passo a
vida do monge penitente, sam um diário duma
alma de eleição, que se eleva até Deus desde
o levantar da cama (i) até o recolher à noute
para dormir (2), entretendo constantemente o
pensamento nos mistérios divinos mais augus-
tos, como a Imaculada Conceição (3), a Encar-
nação (4), Paixão e morte de Jesus Cristo, e
mais passos que lhe dizem respeito (5), e tam-
bém na contemplação das virtudes dos santos,
como S. João Baptista (6j, S. Francisco (7),
Santa Clara (8), Santo António (9), etc.
(i) Gfr. pg. 174.
(2) Gfr. pg. 184.
(3) Gfr. pg. 186.
(4) Cfr. pg. 187.
(5) Gfr. pgs. 189, 191, 193-197, etc.
(6) Gfr. pgs. 4, 201.
(7) Gfr. pgs. 16, 204.
(8) Gfr. pg. 8.
(9) Gfr. pgs. 14, 200.
Fr. Agostinho da Cruz 55
A lira de Fr. Agostinho é impregnada duna
sentimento tam sincero de verdade e de
naturalidade, que impressiona profundamente.
É a alma dum verdadeiro crente, resignado,
compassivo, amoravel, que se nos desvenda
em cada página. Entretanto a sua obra per-
maneceu até hoje quase esquecida e ignorada
ainda mesmo dos que tinham nos seus planos
vantagem especialíssima em o conhecer. Em
duas Colectâneas modernas consagradas a reu-
nir ou fazer menção de tudo quanto em Por-
tugal e em todas as épocas se imprimio em
louvor da Virgem Maria (i) debalde se pro-
curará o nome de Fr. Agostinho, de cuja pena,
aliás, saíram tam soberbos cânticos (2).
E note-se que em ambos figura o nome de
Diogo Bernardes, que, como se vê, não foi
(i) Cfr. Abílio Augusto da Fonseca Pinto — Parnaso
Mariano, 2.* ed., Coimbra, 1890, i vol, xin-|- 3o4 págs. ;
Manoel Anaquini, Subsídios para a Bibliographia Ma-
rianna em Portugal — O Génio portugue^ aos pés de
Maria. Lisboa, 1904, i vol, xiv-f-3o6 págs.
(2) Basta vêr, para exemplo, só a Canção de Nossa
Senhora, de pgs. 273 :
Virgem pura, escolhida, honesta, santa
Humilde serva, mãe, esposa, filha.
Etc.
E os lindos Sonetos de pgs. 186 à Imaculada Concei-
ção, de pgs. 199 à Assunção, e o Poema em tercetos de
pg. 233, etc. ?
56 Fr. Agostinho da Cruz
bastante para sugerir o do querido e talentoso
irmão.
Acordará esta nossa publicação a hora da
justiça que se deve ao solitário da Arrábida ?
Desenha-se neste momento por todo o mundo
a aspiração insaciável duma vida mais pura,
mais alta, com outro ideal além do circunscrito
nos horizontes desta vida tam dolorosa de viver
à hora atual.
A leitura das Poesias, que preenchem este
volume, leva-nos para muito longe das misérias
terrenas. Sam versos que téem alma e fazem
sonhar alcandorando-nos até onde se não sente
o rugir da fera humana, como se nos fosse
dado mergulhar naquele indefinido descanso, a
que tanto aspirou o autor que os escreveu com
o seu grande espirito de Poeta e de Crente.
Mendes dos Remédios.
OBRAS
DE
FR. AGOSTINHO DA CRUZ
SONETO I.
A quem ler.
Os versos, que cantei importunado
Da mocidade cega a quem seguia,
Queimei (como vergonha me pedia)
Chorando, por haver tão mal cantado.
Se nestes não ficar tão desculpado
Quanto o mais alto estilo requeria,
Não me podem negar a melhoria
Da mudança, que fiz d'hum n'outro estado.
Que vai que sejam bem. ou mal aceitos ?
Pois os não escrevi para louvores
Humanos, pelo menos perigosos,
Senão para plantar em frios peitos
Desejos de colher divinas flores
A' força de suspiros saudosos.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
II.
Ao triste estado.
Passa por este valle a primavera,
As aves cantam, plantas enverdecem,
As flores pelo campo apparecem,
O mais alto do louro abraça a hera ;
Abranda o mar ; menor tributo espera
Dos rios, que mais brandamente descem,
Os dias mais fermosos amanhecem,
Não para mim, que sou quem dantes era.
Espanta-me o porvir, temo o passado;
A magoa choro d'hum, d'outro a lembrança.
Sem ter já que esperar, nem que perder.
Mal se pôde mudar tão trrste estado \
Pois para bem não pôde haver mudança,
E para maior mal não pôde ser.
III.
A' Lei de Deos.
Que cousa mais suave, doce, e branda,
Que nos liberte mais, que mais releve,
Que guardar huma Lei na vida breve,
D'hum peos, que por amor amar nos manda ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Qual he o coração que não se abranda,
Duro que pedra mais, frio que neve ?
Suave o jugo seu, a carga leve:
Pois ella pende toda á sua banda ?
Inda que alma ditosa não lograra,
O que na guarda delia está tão certo,
Com isso só ficava satisfeito :
Quanto mais com tão cedo ver tão clara
Aquella luz divina de tão perto,
Por quem he nada tudo o que se engeita I
IV.
As Chagas.
Divinas mãos, e pés, peito rasgado.
Chagas era brandas carnes imprimidas,
Meu Deos, que por salvar almas perdidas,
Por ellas quereis ser crucificado.
Outra fé, outro amor, outro cuidado,
Outras dores ás vossas são devidas,
Outros corações limpos, outras vidas,
Outro querer no vosso transformado.
Em vós se encerrou toda a piedade,
Ficou no mundo só toda a crueza \
Por isso cada hum deu do que tinha :
Claros sinaes d'amor, ah saudade!
Minha consolação, minha firmeza,
Chagas de meu Senhor, redempção minha.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
V.
A Nossa Senhora da Arrábida
Aqui, Senhora minha, onde soía
Cantar na minha leve mocidade
O muito que de vossa saudade
Desejei d'accender nesta alma fria:
Aqui torno outra vez, Virgem Maria,
Desenganado já, mais de verdade.
Pois me mostrou do mundo a falsidade,
Que a lagrimas comprei quem me vendia.
Conselham-me tão claros desenganos
Que comece de novo nova vida
Nesta Serra deserta, alta, e fragosa ;
Mas são conselhos vãos, leves, humanos,
Que vós nunca quisestes ser servida,
Se não por puro amor, Virgem fermosa.
VI.
A S. João Baptista.
Daquelle, que não tinha inda pisado
A terra com seus pés, quando saltava
Nas entranhas da mãi, donde alcançava
O Senhor nas da Virgem encarcerado ;
Obras de Fr Agostinho da Cruz
Daquelle de quem Deos foi baptizado,
Daqueile que era voz do que clamava,
Daquelle São João, que tanto amava
A Deos, e que de Deos foi tanto amado,
As graças infinitas, os favores.
As forças que lhe deu divino amor,
As novas liberdades, os poderes,
Mal as podem dizer os peccadores;
Basta, que delle só diz o Senhor :
« Que não nasceu maior d'antre as mulheres. >
VII.
Ao mesmo Santo.
Nas entranhas da mai alumiado
Da luz, que nas da Virgem dentro via,
Sentio João quamanho bem seria
Trocar pelo deserto o povoado.
Delle fugindo vai todo abrazado
Do fogo, que em seu peito arder sentia,
Mais quer de animaes brutos companhia,
Que ser de gente humana acompanhado.
A troca foi ditosa em tenra idade,
A solitária vida he majs segura.
Que do mundo cruel a falsidade.
Nas pedras do deserto achou brandura,
Nas serpentes da serra piedade,
E nas pelles das feras cobertura.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
VÍII.
A S. João Evangelista.
Na derradeira Cêa do Senhor,
João, ceando todos, só dormia
Sobo-lo peito, donde elle sabia
Que não sabia cousa outra melhor.
Naquelle somno achou outro sabor
Mais suave que quanto se comia,
Que em fim he differente iguaria
O repouso de seu divino amor.
A dormir se lançou no fogo puro,
Ardendo repousou no meio delle,
Como quem tudo o mais tinha seguro.
João Evangelista foi aquelle,
A quem disse o Senhor do Lenho duro
A' Virgem : — que seu filho era aquelle 1
IX.
A Cru\.
Em ti, suave Cruz, inda que dura
Por ver sangue innocente derramado,
Pregados pés, e mãos, aberto o Lado,
Donde minha esperança se pendura*,
i
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Em ti de piedade, e de brandura
Doce penhor do penitente errado,
Em ti Christo Jesus dependurado
A salvação do mundo dependura ;
Em ti se consumou toda crueza,
Que em corações humanos se accendia
Contra todas as leis da natureza.
Mas em si se tornou, em alegria
Da nossa redempção, toda a tristeza ;
Oh Cruz defensão nossa, nossa guia.
X.
A mesma.
Oh Cruz, que no Calvário sustentaste
Os membros de que foste sustentada,
Quando, pisados elles, tu pesada
Antes de lá chegar desconjuntaste.
Como sendo instrumento que mataste
Por mãos de gente ceg^i, gente errada,
Não somente ficaste desculpada.
Mas ainda da culpa triunfaste.
Se tu representaras tão somente
A salvação do mundo resgatada
Sem sangue do Cordeiro paciente ;
Vira-me, com te ver, mais consolado,
Porque parara em ver meu bem presente,
Sem ver nelle meu mal representado.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
XI.
A Santa Clara.
Oh Clara, que tão clara resplandeces,
Nos olhos da divina claridade ;
Clara que desterrastes a vaidade
Das vidas, que na vida favoreces :
As palmas cujas flores oífereces
Aquelle, que na flor da tua idade
Guiou para si só tua vontade,
Te dem quantos louvores tu mereces.
Elias a quem na terra tu mostraste
A via, que escolheste mais segura,
He justo, que te louvem, eu que tema.
Oh Clara que tão cedo contemplaste
Segredos da divina fermosura,
Clara, que das mais claras foste a gemat
XII.
A Deos.
Que lugar acharei no pensamento
Tão áspero, medonho, triste, escuro.
Onde, meu Redemptor, este seguro
De mais vos offender hum só momento ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não digo pelo meu contentamento,
Que brando me faria outro mais duro;
Mas por não ser ingrato a amor tão puro,
Que morreu por me dar merecimento.
Gomo vos servirei, pois vos não amo ?
Como vos amarei, pois vos oífendo,
E sempre cada vez mais gravemente ?
Nestes frios suspiros que derramo
Sem servir, sem amar, Senhor, entendo
Que não ha poder ser viver contente.
XIII.
Da Oração.
Doce quietação de quem vos ama
Em serviços. Senhor, que tanto quanto
Amado sois, tão longe o fim de tanto,
Subindo mais, e mais, mais se derrama :
Ardendo por arder em viva chamma
D'amor do vosso amor, a voz levanto ;
Sinto, suspiro, choro, colho, e planto
Ao som doutra suave que me chama.
Onde se vai. Senhor, quem vos offende ?
Donde levais, Deos meu, a quem vos segue ?
Onde fugir se pôde huma de duas ?
Morto por quem o mata que pretende,
Ou que extremos d'amor ha que nos negue
Quem culpas nossas chama oftensas suas ?
IO Obras de Fr. Agostinho da Cruz
XIV.
A Jesus Crucificado.
Perdoai-me, Senhor, que se faltara
Pôr os olhos em Vós crucificado,
O menos que de muito tenho errado,
Noutros maiores erros me lançara.
Triste quanto perdi, e quanto achara
Inda assim de desculpas carregado.
Se por onde Vós tendes caminhado
Guiada esta alma minha caminhara.
Culpado fui primeiro que nascido ;
Engeitei a razão pela vontade;
Amiga do meu mal, do bem imiga.
Meu Deos por mim á Cruz offerecido,
Alembrai-vos da vossa piedade
Tão larga em perdoar, e tão antiga.
XV.
Á Magdalena.
Tal luz á Magdalena alumiava
(Fermosa desd'antão, dantes tão feia)
Que não lhe pareceu ser casa alheia
Aquella, onde o Senhor de tudo estava.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
E como quem por tal o confessava,
Não teme, não duvida, não receia
Mostrar sinaes de dôr, de que alma chea
Tão longe, de tão perto suspirava.
Na terra jaz lançada, está regando
Com lagrimas as plantas do Senhor,
A cuja sombra colhe doce fruito.
Muito lhe perdoou, porque amou muito-,
E muito mais lhe deu depois, que amor
Em lagrimas de dôr se foi banhando.
XVI
Á mesma.
Diante do Senhor está lançada
A Magdalena triste, e vergonhosa,
Qual na força do sol vermelha rosa
Dos seus ardentes raios transpassada.
A nova, e grave dôr lhe tem roubada
( Sinal do que padece ) a voz queixosa ;
Lembra-lhe que passou tão perigosa
Vida, da vida sua descuidada.
Os pés que dos seus passos foram guia
Em lagrimas banhados alimpava
Com os cabellos de. que se cubria.
Alli do Redemptor, a quem buscava,
Encaminhada foi; porque queria
Que amasse muito mais ; que tanto amava 1
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
XVII.
A mesma indo ao Sepulcro.
Depois que não achou na sepultura
Seu Senhor a fermosa Magdalena,
Os seus longos cabellos desordena,
Vmgando-se na sua fermosura .
— Ingrata fui, Senhor, fui cega, e dura,
\, Dizia) minha culpa me condena.
Que se temia dor, tormento, ou pena,
Em que parte estivera mais segura ?
Se donde vos deixei não me apartara,
Não me roubara assi, quem me roubou ;
Tantas forças amor dar-me podia !
Porque me fui daqui ? que mais queria
Que matar-me. Senhor, quem vos matou ?
Pôde ser que comvosco me levara. . .
XVIII.
A mudança da vida.
Tempo foi que pastava neste prado
Bem fora de cuidar que poderia
Tornar a ver me nelle inda algum dia,
De tantos mil cuidados descuidado.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
O Senhor, que me trouxe a tal estado,
Quando castigos graves merecia,
Dando-me muito mais do que pedia,
Para sempre já mais seja louvado !
Estas agoas correntes, estas flores,
Estes bosques cobertos de verdura,
Os passarinhos nelles escondidos,
Aqui lhe dem comigo mil louvores,
Sem fim o louve toda a creatura,
Não sintam outra cousa meus sentidos.
XIX.
A noite de Natal.
Era noite de inverno longa, e fria,
Cobria-se de neve o verde prado;
O rio se detinha congelado,
Mudava a folha a cor, que ter soía
Quando nas palhas de huma estrebaria,
Entre dous animaes brutos lançado.
Sem ter outro lugar no povoado
O Minino Jesus pobre jazia.
— Meu filho, meu Amor, porque quereis
( Dizia sua Mãi ) nesta aspereza
Accrescentar-me as dores, que passais ?
Aqui nestes meus braços estareis;
Que se vos força amor soffrer crueza,
O meu não pôde agora soffrer mais.
14 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
XX.
Ao mesmo.
Que saudade d'alma, e que brandura,
Virgem Senhora minha, se vos deve
Em tempo que paris ó vento, á neve,
O Creador de toda a creatura !
No feno, que ficou na terra dura,
Pisado de r.nimaes, lançado esteve
O Minino Jesus, ah ! que não teve
Casa, berço, lugar, nem cobertura !
Não sou Rei, nem Pastor, que me appareça
Estrella que me guie. Anjo que chame.
Por isso a Vós não vou, de mim não parto :
E não tenho cordeiros que oíFereça,
Ouro, incenso, mirra, amor que inflamme,
Com que vos visitar, Virgem no parto!
XXI.
A Santo António.
Que louvores direi do nosso Santo
António, pelo mundo tão louvado,
Que seja seu louvor todo igualado
Com seu merecimento tal, e tanto ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz t5
Por mais livre voar de tudo, quanto
Na terra tinha já renunciado,
Depois da patna sua ter trocado,
Com S. Francisco quis trocar o manto.
Assi mais docemente assegurando
Com trocas tão ditosas, tão suaves,
Amor, que por amor quer que te deixes,
Os passos vás na terra conformando
Com Francisco, que nella prega ás aves,
António, o que no mar pregas aos peixes.
k
XXII.
A Nossa Senhora da Arrábida.
Oh Virgem Mãi de Deos, Senhora minha,
A quem me soccorri, por quem chamava,
A quem servir minha alma desejava
Nesta Serra do Ceo vossa vizinha.
Tornar-me á saudade que me vinha.
Quando mais docemente contemplava,
Como com favor vosso caminhava,
Daqui donde mais livre se caminha.
Esta terceira vez que determino
(Se Vós assim também determinais)
Sem mudança fazer a sepultura,
Mostrai-vos liberal de amor divino,
Arca neste meu peito tanto mais,
Quanto mais vos dotou de fermosura.
\6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
XXIII.
A nosso Padre S. Francisco.
Seráfico Francisco, assinalado
Naquellas cinco partes, donde estava
Amor, quando por si se trasladava
Para mostrar em ti o seu traslado :
Assi como na Cruz fora pregado,
Assi consigo mesmo te pregava :
Das chagas de que nella se chagava.
Dessas mesmas te deixa a ti chagado.
Que seguro te deu de gloria sua,
Sellado com seu sello, impresso, escrito
Vivendo na vencida carne tua !
Vencida então conforme a teu esprito.
Que nú se apartou delia em terra nua,
Qual o Senhor da Cruz em ti bemdito.
XXIV.
À saudade de hum t^to.
Que coração tão duro, secco, e frio
Se poderá livrar do sentimento.
Vendo com vagaroso movimento
Fugir as claras agoas deste rio ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 17
Tamanho mal em tantos males crio,
Que não fica logar ao pensamento
Para chorar sequer hum só momento
A seccura, e dureza, em que me esfrio.
A corrente das agoas branda, ou tesa,
Mal pôde desfazer minha seccura.
Pôde mal abrandar minha dureza ;
A saudade d'alma branda, e pura.
Em que se ha de accender minha frieza,
Consiste na divina fermosura.
XXV.
Da Serra da Arrábida.
Do meio desta Serra derramando
A saudosa vista nas salgadas
Agoas humildes, quando e quando inchadas,
Conforme a qual o tempo vai soprando,
Estou comigo sô considerando.
Donde foram parar cousas passadas,
E donde irão presentes mal fundadas,
Que pelos mesmos passos vam passando.
Oh ! qual se representa nesta parte
Aquella derradeira hora da vida
Tão devida, tão certa, e tão incerta !
Em quantas tristes partes se reparte,
Dentro nest'alma minha entristecida,
A dor, que em taes extremos me desperta !
i8 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
XXVI.
A seu irmão Diogo Bernardes.
Do Lyma, donde vim já despedido,
Cavar cá nesta Serra a sepultura,
Não sinto que louvar possa brandura,
Sem me sentir turbar do meu sentido.
A laã de que me vem andar vestido,
Torcendo em varias partes a costura,
Os pés que nús se dam á pedra dura.
Nem me deixam ouvir, nem ser ouvido.
O povo cujo applauso recebeste,
Vendo teu brando Lyma dedicado
A Principe Real, claro, excellente.
Louvará muito mais quanto escreveste.
De mim, meu caro irmão, menos louvado,^
Louva comigo a Deos eternamente.
ÉCLOGAS.
ÉCLOGA I.
A sua conversão.
Lançou-se Limabeu antre huns penedos
Donde via correr hum claro rio,
Acostumado a ouvir os seus segredos.
Obras de Fr Agostinho da Cruz 19
Com os olhos num bosque alto, sombrio,
A quem a primavera já pagava
A perda que lhe fez o tempo frio.
— Aquillo í começou ) que vos contava,
Plantas, agoas, penedos, foi engano;
Já me desenganou quem me enganava.
Mais foi a perda sua que meu damno,
Mas (como dizem ) tudo tempo cura,
Pois o que perde o mês, não perde o anno.
Engeita-se no campo a fermosura
Do lírio já colhido, que não cheira :
Mais ha de ter o bosque que verdura !
Inda mal ! pois não foi esta a primeira
(Como devera ser) que me levara,
Donde não vira mais esta ribeira.
Não falta nos desertos agoa clara,
A lapa que da calma me defende.
Se ventar, ou chover, também me ampara.
Alli tem liberdade, alli se estende
O pastor solitário com seu gado; •
Não se offende d'alguem, ninguém offende.
Não tenho que fazer no povoado ;
A razão me conselha que me guarde,
Eu não me atrevo nelle andar guardado.
Se escutar sempre quem me diz, que aguarde,
Nunca já buscarei, a quem me espera ;
E pior me será nunca, que tarde.
Ainda que mais males não tivera.
Quem bens na terra tem, que ser cativo
Delles, por isso só fugir devera.
20 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Após dum gosto falso, fugitivo,
Leve, de noite vou, cego, ás escuras,
Sem me lembrar que para morrer vivo.
Quebraram-se, meu Deos, as pedras duras ;
Mostrou o sol e lua sentimento;
E não vossas humanas creaturas !
Eu só, meu Redemptor, vos atormento !
Eu fiz os vossos cravos, cruz, e lança,
Por obra, por palavra, e pensamento. . .
E Vós encheis minh'alma de esperança
Com tão claros sinais de piedade,
Que quasi já não sei temer vingança.
Longe está de sentir suavidade
Divina, cá na terra, quem não nega
Pela vossa, Deos meu, sua vontade.
A alma, que em vossas mãos presa se entrega
Não tem de que temer, nada recêa,
A névoa deste mundo não na cega.
Nas lagrimas de dôr, em que semêa,
Colhe suave fruito de alegria,
Saudoso da sua em terra alhêa.
Se aquelles a quem guerra não fazia
Nenhum dos nossos mores três imigos,
Porque a serpente então pouco podia :
(Fallo daquelles nossos pais antigos,
Que não lograram inda hum dia inteiro,
Quando livres estavam de perigos),
Que farei eu de sua culpa herdeiro,
Com tantas sobre tantas nesta vida,
Antes mais propriamente cativeiro ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Em peccados, Senhor, foi concebida,
Em peccados minh'alma foi creada,
De peccados tão mal arrependida !
Mas pois no vosso sangue foi lavada
(Força de poderoso amor divino ! )
He justo que em Vós viva confiada.
Viestes amostrar ao peregrino
O caminho da sua natureza ;
Querer ir lá por outro he desatino.
A carga que causou minha fraqueza
Os passos me detém, faz-me que deça,
E quanto deço mais tanto mais pesa.
Não vos peço, Senhor, porque mereça
Graça para ficar antre esta Serra,
Mas porque Vós quereis que vo la peça.
Aqui não temerei a cruel guerra ;
Daqui verei no Ceo fermosas cores ;
Assi me esquecerão cousas da terra.
Não colhem sem suar os lavradores ;
Não nasce sem morrer primeiro o trigo :
Os mimosos não são para pastores.
O vigiar escusa de perigo,
O padecer levou muitos á gloria,
Desenganado emfim estou comigo,
Que sem guerra não pôde haver victoria.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
ÉCLOGA II
Mincio, e navio.
No anno do Noviciado.
Mincio.
Trazes mudada a côr, mudado o rosto,
O coração não sei se anda mudado ?
Flávio
Eu, Mincio, não nasci para ter gosto.
Mincio.
Folgo de te ver já desenganado.
Ninguém me lia de tirar de meu juizo:
No mundo' ninguém vive consolado.
Huma hora vejo pranto, outra hora riso,
E muito menos riso do que pranto,
Emfim rir se de tudo será siso.
Que me dá a mim, que nunca tenha quanto
Eu desejo de ter, pois que te vejo
Tão triste com te ver ter outro tanto ?
Depois que vim pastar junto do Tejo,
E vi que lanto gado não bastava
Para matar a fome do desejo, •
Antes cada vez mais se accrescentava.
Disse comigo : — Mincio, aqui não soa
O som, a que dançar eu esperava.
Cousa não tenho vista má, nem boa,
De que possa tirar honra, ou proveito,
Mas convém que homem faça de pessoa.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
O bem, só por ser bera, sem mais respeito
Consola a quem o faz •, nunca verias
Que podésse ser máo o ter bem feito.
Lembra-te quantas vezes me dizias.
Que se de teu tivesses, alguma hora,
Hum pedaço de pão, que te ririas
De tudo quanto visses ? pois agora
Que tens ainda mais do que sonhaste,
Como teu coração suspira, e chora ?
Flávio.
Dize-me tu primeiro, se acabaste
De fallar tantas cousas escusadas ?
Mincio.
De fallar as verdades te aggravaste ?
Flávio.
Verdades de que servem declaradas
A quem magoas presentes entristecem
Na lembrança de tantas mal lembradas ?
Que se por estes campos nos falecem
Verdes hervas, e claras agoas, frias,
Peccados nossos muito mais merecem.
Acabaram se as nossas alegrias,
Secaram-se os altivos pensamentos;
Quantas mudanças em tão poucos dias !
Deixaram de ventar aquelles ventos,
Em cuja fúria tantos tinham postos
Os seus (já derribados) fundamentos.
Mas para que he sentir faltarem gostos,
A quem de mim zombava, se me ouvia.
De quão falsa matéria eram compostos ?
24 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Inda mal porque vemos cada dia
Desejos similhantes doutros tantos,
A quem o mesmo vento cega, e guia.
Mas pois nós não podemos curar quantos
Erros o mundo tem, será melhor
Deixarmos tudo a Deos, ou aos seus Santos.
Quero-te dar razão do rosto, e côr
Mudados, que me viste, quando vinha,
Sinais de coração cheio de dôr.
Bem sabes que na vida mais não tinha
Para me consolar que hum só amigo,
Tão verdadeiro amigo d'alma minha.
Este depois que não pôde comsigo
Levar-me, por meu mal tão mal sentido,
Fugindo foi de mim como de imigo.
Disseram-me que estava cá mettido
Junto do mar Oceano numa serra,
Dum novo, não sei qual, amor ferido.
Por elle só deixou quanto na terra
Tinha, com tudo o mais que ter pudera,
Por elle anda comsigo em x:ruel guerra.
Se não chegara a vê-lo, não o crera!
Quasi mudou de todo a natureza,
Que não he Limabeu, mas ferro, e cera.
Nunca se imaginou tal aspereza.
Não digo dos penedos do deserto,
Mas da fome, do frio, e da pobreza.
Dos pés até á cabeça anda coberto
De laã de alheas cabras, remendado
De mil cores, sem ordem, sem concerto.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Traz huma corda grossa, a que anda atado
Pelo meio, descalço, sem mais nada •,
Sem bolsa, sem surrão, e sem cajado.
Barba, e cabeça traz toda rapada.
Qualquer cousa que quebra, fende, ou fura,
No seu pescoço a leva pendurada.
Os pés se por compasso pôr não cura,
Quer gretados do frio, quer doentes.
Também nelles lhe põem huma atadura.
Não pôde responder aos mal dizentes.
Nem dar razão de si, que se boqueja
Atravessado leva hum pao nos dentes.
Os olhos se alevanta, ou pestaneja.
Nem inda para quem falia com elle.
Hum panno lhe põem nelles que não veja.
Hum principal de seis nas costas delle
De tal maneira faz soar as varas,
Que não lhe queiras tu jazer na pelle.
Emfim se de me ouvir não te enfadaras,
Contara tanto mais do soffrimento.
Com que tudo padece, que pasmaras.
Porque não fica dor, pena, ou tormento,
De cruel mvenção, qualquer maneira.
Que deixe de softrer hum só momento.
Debaixo de hum penedo na ladeira
Do monte todos tem cada hum seu ninho;
Mas o triste sempre anda na carreira.
Mincio.
Basta, não digas mais : esse caminho
Bem sei adonde vai, e donde para :
O bom de Limabeu he Capuchinho.
20 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ah ! Limabeu, Limabeu ! quem cuidara,
Que do meio de tantas vaidades.
O Senhor para si só te chamara !
Quantas vezes as nossas novidades
Se perdem, como claramente vemos :
Que não quer Deos que chova nas herdades'.
A culpa disso, todos nós sabemos,
Que não a tem os bois, mas quem semêa.
E por ventura os mais dos que colhemos.
Não ha pastor tão néscio que não crêa
Que nascemos, aqui neste degredo.
Desterrados da nossa em terra alhêa.
E quem viver debaixo do penedo
Como Limabeu vive, he mais seguro;
Pois tudo ha de acabar ou tarde, ou cedo.
Mas se bens da minha alma não procuro,
Porque quero andar eu como morcego,
Que sempre anda a buscar o mais escuro ?
Por não ver o melhor me faço cego,
E por mais me cegar me faço mudo,
E quando não, mil sem razões allego.
Que bárbaro cruel se vio tão rudo.
Que deixe de entender que não acerta
Em querer dar Jançada em seu escudo ?
Creou nosso Senhor alma liberta.
Conforme as nossas forças nos obriga ;
Que para todos tem a porta aberta.
Flávio.
Queres, amigo Mincio, que te diga.
De meu fraco saber o que comprendo?
A carne sempre da alma foi imiga.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 27
Eu não quero fazer segundo entendo,
Que para me salvar mais me releva;
Assi me vou matando, assi perdendo.
Mincio.
He verdade o que dizes, mas quem leva
Limabeu dantre nós, inflamma, accende,
Que no divino amor todo se enleva ?
Quem lhe faz tanta força, quem o rende ?
Quem o rege, e governa ? quem o ensina,
Quem o sustenta cá, quem o defende ?
Quem tal mudança fez tão repentina
Dos seus, do seu, de si, de toda a vida ?
Quem de cousa mundana fez divina ?
Flávio.
Inda agora ha pastor que isso duvida ?
Não sabes que o Senhor a lodos chama,
Todos quer para si, todos convida ?
Por todos todo seu sangue derrama.
Pregado numa cruz ? mas justamente
Alcança delle mais quem o mais ama,
E por isso na paga he diíferente \
Que não acha capaz o preguiçoso
Das graças, que merece o diligente.
Mas se mais algum pouco vagaroso
O seu dourado carro governara
O filho de Latona o mais fermoso,
Que versos tão suaves te cantara,
D'alguns que Limabeu agora canta,
Inda que minha voz pouco soara !
28 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mincio.
Antes elle não leva pressa tanta,
Se não para que soltes mais depressa
A tua doce voz dessa garganta.
Inda que não tivera n'alma impressa
A força da divina saudade ;
Bastara quanto nisso se interessa.
Flávio.
Mandas-me ? negarei minha vontade ?
Meu Deos, que cousa pôde ser tão forte,
Que género de morte, que tormento,
Que dor, que sentimento, que tristeza,
Que pena, ou que aspereza em toda a vida.
Que numa alma ferida de verdade
Da vossa saudade, causa espanto ?
Que não digo, por quanto nisso alcança;
Pois numa só lembrança, inda que breve,
A muito mais se atreve, mais deseja^
Mas porque se despeja tanto mais
No muito que lhe dais do vosso muito,
Que contemplando o fruito, do que espera
Na doce primavera colhe flores
De tão diversas cores tão fermosas.
Que lírios, e que rosas de contmo
Semêa amor divino nesta serra,
Onde tanto se encerra, e se derrama !
Amor accende, inflama, amor tem tudo
Setta, lança, escudo ; dá vida, e mata,
Cativa, desbarata, solta, e prende.
Amor livra, e defende, planta, e rega ;
Amor freta, e navega, amor segura ;
Amor cria brandura na dureza,
E converte a tristeza em alegria ;
A noite escura em dia fresco, e claro.
Amor he meu amparo, e meu descanso ;
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 29
Amor he brando, e manso, piedoso,
Suave, e saudoso, doce, e puro
Forte, firme, e seguro, verdadeiro.
Amor pôs num madeiro meu Senhor,
Trespassado de dôr, aberto o lado ;
De mãos e pés pregado : ai ! e quão tarde
Senti de amor, que amor por amor arde !
Mincio.
Quão differentes versos chora, e canta
Quem dos suspiros d'alma anda colhendo
Quanto divino amor semêa, e planta ?
Flávio.
A sombra dos outeiros vai decendo,
O fumo das aldeãs vai subindo,
Quero-me ir com meu gado recolhendo.
Mincio.
Antes isso te vai persuadindo.
Que fiques esta noite aqui comigo.
Irte-has pela manhã, o sol sahindo.
Temos do leite, e nata, e do pão trigo,
Castanhas, e maçans, e mais da boa
Vontade, de que sei que és mais amigo.
Flávio.
Não gasto tempo em vão, Mincio, perdoa,
Que nunca faltará boa vontade ;
Se não faltar, então basta da broa.
Não ha manjar melhor que liberdade.
Sem ver, nem conversar mais que penedos,
Que só amigos da minha saudade
São firmes, e são mudos, não são tredos.
Não te respondo mais, fica-te embora !
3o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
ÉCLOGA III.
Silvestre, e Rodrigo.
Silvestre.
Mais cedo te buscara, se não fora
Este gado que guardo da Madrasta,
A quem querem que falle por senhora.
Seu avô lho sonhou, pois lhe não basta
Deixar-lhe minha mãi a casa chea,
Se não inda com seus filhos se agasta.
Porém se m'ella a mim muito esquerdea,
Pôde ser que lhe faça huma, e boa,
Que tenha que fallar a nossa aldeã.
Arrenega, Rodrigo, da pessoa,
Que primeiro que deça com cajado,
Ha de buscar a parte que mais doa.
Rodrigo.
E com'ora já tenho arrenegado !
Mas que lhe hei de fazer, pois a ventura
Também me fez pastor de alheo gado.
Aquelle que mais serve, e mais atura,
Pagam-lhe sô, depois de ser desfeito,
Com lhe dizer que foi sua feitura.
Na requia esteja a alma de Bieito,
Que fugio de pastar junto do Tejo,
Que era homem que queria andar direito.
Levem comsigo á cova o seu sobejo,
Cubice quem quiser suas valias,
Que nunca mas Deos dê, se lhas desejo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não faltam cá no monte as agoas frias.
Verdes hervas por donde nos lancemos,
Quer venham, quer se vão, noites, e dias.
Silvestre.
Se quiseres, Rodrigo, que deixemos
De querer governar vidas alheas,
Huns versos, que homem fiz, aqui cantemos.
Rodrigo.
Ainda tu de amores não receas
Cantar versos ao som do leve vento ?
Quão pouco colherás do que sêmeas !
Silvestre.
Não sei qual he tamanho atrevimento,
A quem eu não descubro meu segredo,
Qu' adivinhar s'atreva o pensamento ?
Quantas vezes mostrei meu rosto ledo,
Quando meu coração triste chorava ?
E quantas me movi estando quedo?
Mas se queres ouvir o que cantava,
Antes que deste vaile nos partamos,
Dirás, quão mal, Silvestre, te julgava.
Eu quero-me esconder antre estes ramos
E tu dalli de trás daquelle freixo
Verás se nos amores concordamos.
Rodrigo.
Ora escuta bem de que me queixo:
Se tanto vos offendo n'um só ponto,
Poderoso Senhor, de toda a vida,
Que conta vos darei, pois não tem conto !
32 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que conta, ou que peso, que medida ?
Inda que menos dias mal gastara
Que pena ás minhas culpas he devida ?
Silvestre.
Que pena ou que dôr me atormentara,
Se nunca Deos de mim íora offendido.
Quanto pouco temera, e quanto amara !
Rodrigo.
Quão pouco custa andar oflferecido
A soffrer sem razões, fomes, e frios,
A quem d'amor divino anda ferido ?
Silvestre.
A quem bosques nos deu verdes, sombrios.
Louvores infinitos sejam dados
Dos brutos animaes, peixes dos rios.
Rodrigo.
Dos brutos, e das feras, e dos prados
Aprendamos a dar a Deos louvores.
Pois elles para nós foram creados.
Silvestre.
Pois elle cria fruito, cria flores
Nos montes, e nos valles, nas montanhas,
Donde nunca se encurvam lavradores.
Rodrigo.
Donde todo pastor veja quamanhas
Cousas nos ha de dar em nossas terras,
Quando tantas nos dá cá nas estranhas.
Silvestre.
Quando paz acharei em tantas guerras
Em quantas não sei que me desafia
Ainda com viver antre estas serras ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 33
Rodrigo.
Ainda me importuna, inda porfia
Comigo hum não sei que, que nunca cansa :
Ora rosna, ora ladra, ora se ínvia.
Silvestre.
Ora me fere a setta, outr'ora a lança •,
Cansado vivo já de defenderme;
Alas ai que de ferir-me nunca cansa!
Rodrigo.
Não posso, meu Senhor, nem sei valer-me;
Peço-vos por quem sois que me ajudeis,
Pois sem vós está certo em mim perder-me.
Silvestre.
Meu Deos, e meu Senhor, não me julgueis
Segundo vos merecem meus peccados
Abaste que por elles padeceis.
Rodrigo.
Quantos pastores andam mal julgados
Aqui por estes montes ? quem cuidara
Que linhas tu. Silvestre, estes cuidados ?
Prouvera a Deos que o dia mais durara,
Ou que estivera mais perto a malhada,
Que esta noite comtigo aqui ficara.
Silvestre.
Não falta ( a Deos louvores ) na pousada,
De que fazer a cêa com bom rosto.
Nelle, e nella te nunca faltou nada :
— Outro dia será mais a teu gosto.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
ÉCLOGA IV
Em que se queixa de hum amigo.
Limabeu, e Mincio.
Mincio.
Se tu para tão longe te partias,
Porque razão ( sequer ) fica-te embora,
Oh Mincio, que me vou, não me dizias ?
Quanto mais acertado, e melhor fora
Soffrer, e não mudar o pasto antigo,
Por não t'arrependeres algum dia.
Se cuidas que fugindo d'hum perigo,
Noutra parte estarás doutro seguro,
Não te deixes levar a ti comtigo.
Que nunca foi sinal d'homem maduro
Dar com sua cabeça no penedo, ,
Para depois julgar se he mole ou duro.
De que me serve ser triste nem ledo.
Ter mais leite, mais lãa, melhor cabana,
Se tudo ha de acabar ou tarde, ou cedo ?
Eu não sei que te cega, que te engana,
Limabeu ; pois te move qualquer vento,
Assi como se fosses leve cana.
Companheiro te fui no sentimento.
Nunca me vistes rir, quando choravas ;
Menos chorar no teu contentamento.
Obras de Fr Agostinho da Cruz 35
Com igual amor tu o meu pagavas,
Isso me fez sentir não te lembrar,
Que te partias donde me deixavas.
Mas comtudo não deixo duvidar
Que nunca da ribeira te partiste,
Sem algum bicho grande te ladrar.
Conta-me, Limabeu, de que fugiste ?
Quem aos olhos te tem atravessado,
Que bem se vê nos teus quanto sentiste ?
Limabeu.
Que queres que te conte hum magoado
Da setta, que atirou aquelle braço.
Do qual elle devera ser guardado ?
Passara hum coração que fora d'aço,
Quanto mais este meu, que de brandura
E de amor puro nunca foi escasso !
Costumava queixar-me de ventura
Em qualquer outro mal ^ mas no presente,
Não ha senão morrer de magoa pura.
O que sinto daqui principalmente
He ver que me faltou agoa num rio
Tão claro (ao parecer) alto, e corrente.
Quero morrer de fome, calma, e frio
Nesta Serra deserta, onde não vejo
Quem cuida mal de mim, se zombo, ou rio.
Não faço força nisto ao meu desejo,
Por ver que se secaram quantas flores
Com lagrimas reguei junto do Tejo.
36 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
As ribeiras não são para pastores,
Cujas palavras mostram as entranhas,
Cujos olhos não vem fingidas cores.
Mdl poderá fugir de tantas manhas,
De tanto riso leve, contrafeito.
Se não viera dar nestas montanhas.
Eu não posso entender porque respeito
Me querem magoar; mas o que entendo,
He que me fazem mal sem ter mal feito.
Cabras suas guardei, não me arrependo,
Assaz vingado estou ; porque bem sei.
Quanto cora me perder ficam perdendo.
Aquelle de quem mais me confiei,
Aquelle por quem mais me desvelava,
A coima, que não fiz, fez que paguei.
Bem mal me pareceu, mal suspeitava,
Que podesse caber em peito humano
Cousa, que nem por sonhos me lembrava.
Ou fosse por malicia, ou por engano.
Ou por se descuidar de ser christão,
A mim me quis ferir, a si fez damno.
Matou Caín Abel, seu próprio irmão;
José d'onze que tinha foi vendido,
Naboc' apedrejado de ambição.
Foi Job de seus amigos affligido
Quando mais consolado ser devera,
Eu dos meus accusado, e perseguido.
Quantas voltas o triste Mincio dera
Com suas próprias mãos á sua orelha,
Se de falsos amigos não temera ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 3j
O mesmo nosso Deos nos aconselha
Doendo-se de nós, que nos guardemos
Do lobo, que vestir pelle d'ovelha.
Limabeu.
E como conhecer, Mincio, podemos
Que possam ser cruéis lobos aquelles,
Que com pelles de ovelhas brandas vemos?
Mincio.
Como ? diz o Senhor, — do fruito delles :
Dá má planta máo fruito, bom dá boa :
As obras mostram, cujas são as pelles.
Limabeu.
Nosso Senhor te livre da pessoa,
Que por fazer dançar mais a teu gosto
O seu próprio arrabil desencordoa.
Mincio.
Se tu me has de contar o teu desgosto
(Como deves de crer que to mereço)
Vai-se fazendo tarde, o sol he posto.
Limabeu.
Ando fora de mim, pasmo, esmoreço
Em cuidar, que não posso consolar- me
Com te contar os males, que padeço.
O que posso fazer será queixar-me
Na minha rouca voz. triste, confusa :
Tempo virá que possa declarar-me.
Mincio.
Ora começa já, não dês escusa.
38 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Limabeu.
Verdes campos do Tejo, claras agoas,
Se para chorar mágoas me lembrais,
Quanto sentirei mais neste meu peito
Hum tamanho defeito de hum amigo,
Que pastava comigo tão seguro !
Triste de mim ! quão puro se mostrava !
Mai ai! quão longe estava da pureza,
Que a minha natureza merecia!
Se mal lhe parecia, bem poderá
Dizer-me, que não era gosto seu
Pascer o gado meu pela ribeira.
Donde não ha silveira, em que se fira.
E quando me não vira sepultar,
Para nunca tornar a povoado,
Então de mim, do gado se vingara,
E não me difamara com pastores.
Que não conhecem flores penduradas
D'amizades fundadas nas divinas.
Tanto podem malinas creaturas.
Que por fazer escuras as estrellas,
Dizem que falta nellas claridade !
Pouco vai a verdade dos pequenos !
Tudo nelles vai menos; a cubica
Em lugar da Justiça reina agora.
Ah ! quanto melhor fora padecer
Mil mortes, que não ver nossos vizinhos
Por tão tortos caminhos possuir,
Roubar, e destruir honras, e vidas !
Assaz de destruidas nos ficaram
Nos poucos que escaparam dos imigos.
Quantos feitos antigos, que façanhas
Por terras tão estranhas semeadas
Vemos já sepultadas pelas mãos
Dos filhos, dos irmãos, em tempo breve !
Assim paga quem deve ! justa pena
De seu peccado ordena, quem deseja
Que seu próximo seja perseguido,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 39
Desprezado, abatido injustamente !
Este nial não se sente, chora, e geme.
De quem a Deos não teme ; assi vai tudo !
Quem fosse cego, e mudo que não visse,
Muito menos sentisse, quanto entende!
Do pouco que me rende meu juizo
Julgo por grande aviso sepultar-me
Aqui, donde buscar-me ninguém venha.
Não falta aqui da lenha para o frio,
Agoa clara no rio alto, e suave.
Que beba, em que me lave, contemplando
Gomo se move brando n'uma parte,
E noutra se reparte furioso.
Tornando vagaroso para cima.
Como murmura, e lima a pedra dura,
E como se pendura o ramo verde ;
Como seus raios perde antes da tarde
O sol, quando mais arde d'outra banda.
Por antre a folha branda o passarinho
O seu redondo ninho anda escondendo,
Mil mudanças fazendo com seu canto,
A cujo som levanto meu esprito.
Choro, suspiro, e grito : Meu Senhor,
Que morre por amor de quem o mata !
Ah ! gente dura, ingrata, gente cega. •
Que prende, accusa, e prega n'um madeiro
Hum tão manso Cordeiro, antre ladrões !
Ah! cruéis corações! crueza minha!
Adonde triste tinha o pensamento
Qual outro sentimento, quaes aggravos
Se não Coroa, e Cravos, Lança, e Cruz,
Vossa morte, e paixão, doce Jesus.
Mincio.
Quantas mercês recebes do Senhor!
Limabeu.
Ainda muitas mais do que imaginas.
jfjO Obras de Fr, Agostinho da Cruz
Mincio.
Que posso imaginar do seu amor,
Se não que rosas são antre as boninas
As injustas cruezas dos mortaes,
Para mais apurar graças divinas ?
Não vemos nós nos seus outros sinaes
Mais claros, mais seguros, nem mais certos^
Para de cada vez arderem mais ?
Caminhos são do Ceo na terra abertos,
Por onde mais seguro hum pastor anda,
Sem se mover daqui destes desertos.
Limabeu.
Nós temos de passar esia agoa branda
Lá por cima d'um tronco d'um salgueiro.
Que desta s'encurvou áquella banda :
Vamos cantando ao som deste ribeiro.
Quanto lastima, e fere hum peito ingrato;.
E como acaba em fim por derradeiro,
Cabras, pasto, pastor, cabana, e fato.
ÉCLOGA V.
Do tempo que trouxe hum a Religião.
Gualbano, e Laurino.
Gualbano.
Que buscas por aqui por esta Serra,
Que, segundo o que julgo, vás errado ?
Laurino.
Antes quem cedo julga ás vezes erra.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 41
Gualbano.
Perdoa-me se tenho mal julgado.
Que não me pareceu, que tomarias
Mal folgar de te ver encaminhado.
Laurino.
A quem já caminhou tão longos dias
He néscio quem mostrar quer a estrada :
Qu'a mudança do tempo muda as vias.
Gualbano.
Mais néscio he quem traz b-anqueada
De tão poucos cabellos a cabeça,
E dá resposta tão mal ensinada.
Laurino.
Ora não ha ninguém que se conheça :
E de quantos mais pretos essa tua
Coberta te parece que appareça ?
Gualbano.
Cada hum lá se avenha com a sua.
Que cor não tão somente, mas eíTeito
Muitas cabeças brancas tem da lua.
Laurino.
Paliemos, como dizem, a bem de feito:
Porque me perguntaste que buscava ?
Ou que te vai, que vá tono, ou direito ?
Gualbano.
Queres saber porque te perguntava ?
Por ver s'era conforme o meu desgosto,
O que subir a Serra te forçava.
Laurino.
Tão claro se descobre no meu rosto
O que no coração trago encuberto ?
Pouco diftere a tarde do sol posto.
42 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Gu^lbano.
Quanto mais que ninguém busca o deserto,
Em quanto lhe parece que a tristeza
Seu coração não mostra descuberto.
Da magoa, em que aprendi esta certeza
Não me pude livrar se não deixando
Nas suas próprias mãos a natureza.
Assi me fui de todo acostumando
A tudo quanto quis fazer de mim,
Que já agora me fica governando.
Laurino.
Bem fora de contar porque me vim
Do campo para a Serra agora vinha ;
Nem menos o porque me desavim.
Mas o que está por vir mal se adivinha \
Posto que quem no mato vai atento,
Como desatentado não s'espinha.
Folgara de saber o teu intento
Teu nome, tua vida, onde nasceste,
E se moras aqui sempre d'assento ?
Gualbano.
He possivel que tu não conheceste,
Laurino amigo meu, quem te conhece ? !
Laurino.
Valha-me Deos que assi te desfizeste !
Gualbano.
Não passa tempo em vão, nunca s'esquece
De fazer mil mudanças, mil extremos :
Hum dia nos alegra, outro entristece.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 43
Laurino.
O' pé deste rochedo renovemos,
A' vista destas agoas do Oceano,
Quanto cantámos já, quanto tangemos.
Com tanta perda nossa tanto damno,
Com tanta sem razão, tamanha inveja ;
Queres que tanja, e cante hum peito humano ?
[Gualbano.]
Tu vês algum pastor, que senhor seja
De comer o cabrito, que lhe nasce.
Livre da lingua má lhe pôr vareja ?
Do que dentro do seu serrado pasce,
Lhe faz pagar a coima quem inventa
Armadilha a seu gôsio com que cace.
A terra, já não sei, como sustenta
Tão depravada gente, tão malina.
Tão mal acostumada, tão praguenta.
Ora se fazem aves de rapina,
Ora lobos cruéis, orá serpentes.
Monstros que dos bons tem fome canina.
Os vizinhos da porta, os meus parentes
No tempo em que tusqueio, ordenho, e queijo
Aguçam contra mim unhas, e dentes.
Laurino.
Também, amigo meu, eu como, e visto
Do suor de meu rosto, noite, e dia,
E reparto com quem murmura disto.
E já do mal o menos tomaria
Levarem tudo já por força ou manha,
Não façam da minha honra iguaria.
44 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Deixem-m'aqui viver nesta montanha,
Matem-m'á fome, e sede na fazenda,
Pois o tomar o alheio não s'estranha.
Mas já que isto não pôde ter emenda,
Fique-se para o dia do juizo :
Quero quietação, e não contenda.
Gualbano
Se queres que fallemos mais de siso,
Nota, Laurino, bem o que te digo,
Olha por onde vou, que terra piso.
Eu sou o que no mal sou mais comtigo ;
Os meus peccados são causa de tudo;
Eu faço todo o mal a mim comigo.
Se surdo me fizer, se cego, e mudo
A quanto succeder, e no meu braço
Trouxer a paciência por escudo;
Se do mundo quiser fazer retraço,
E folgar que de mim o mundo faça,
Que Imgua temerei, que setta, ou laço ?
Laurino.
Não ha mais que fatiar, mas muita graça
Ha mister do Senhor para comprar
Isso, que nunca vi vender na praça.
Assi me queres tu santificar
Vestido nesta minha fraca pelle.
Que não sinta quem nella me picar?
Gualbano.
Não duvides que tudo pôde aquelle
Que nas mãos d'hum Senhor preso s'entrega,
Que preso, e morto foi por amor delle.
I
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Quem todos seus desejos Nelle emprega
Sem querer mais fallar, vêr, nem ouvir,
Inda bem não semêa, quando sega.
Laurino.
Confesso que bem posso desistir.
De tudo quanto tenho nesta vida,
Mas não sei como possa não sentir.
Gualbano.
Antes o que não sente isto, duvida,
E não quem )á sentio quanta duçura
Nas suas cousas Deos tem escondida.
A dureza converte-se em brandura,
Florece em todo o tempo a primavera,
Torna-se em claro dia a noite escura.
Ah! se ne$se-teu peito s'accendera
Huma faisca só do amor divino.
Quão docemente em si te convertera !
Não cuides que máo fado, ou máo destino,
Estrella em que nasceste, alegre, ou triste
Faz hum pastor ditoso, outro mofino.
Na vontade de Deos tudo consiste:
Quem não lhe resistir será ditoso.
Desditoso será quem lhe resiste.
Laurino.
Eu nunca duvidei que poderoso
Fosse nosso Senhor, mas de mudança
Tão milagrosa estava duvidoso.
Gualbano.
O que muito trabalha, muito alcança;
E quanto mais alcança mais trabalha,
E quanto mais trabalha mais descansa.
46 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Primeiro o verde campo se retalha,
Que faça o lavrador a sementeira ;
Antes que colha o trigo, sega a palha.
A negra violeta, porque cheira,
Colhemos antre as mais ervas do mato:
Seca-se o lírio branco na ribeira.
Laurino.
Bem sei que não venderas tão barato
O que tão caro custa, se tiveras,
Ainda por deixar cabana, e fato.
Gualbano.
Bem sei que tu também s'ora quiseras,
Poderias deixar fato, e cabana,
E fazer bom barato do que esperas.
Laurino.
Eu não deixo de ver o que m'engana,
E com muito mais claros olhos vejo
Aquillo com que o mundo desengana.
E sabe Deos de mim quanto desejo
Acabar de perder a saudade
A quantos verdes campos rega o Tejo!
Mas não poder lograr a suavidade,
Que Deos reparte só com seus amigos
São culpas, que plantou a mocidade.
Eu fiz tão poderosos meus imigos.
Que só nosso Senhor pôde livrar-me
De laços tão futis, e tão antigos.
Mas se ora tu quiseres ajudar-me
Com tuas orações, rjão desconfio,
Que venha ainda comtigo a conformar-me,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 47
Não temendo soffrer calma, nem frio,
Fome. sede, nem dor, trabalho, ou pena,
Pois basta herva do campo, agoa do rio.
Gualbano.
Inda que Christo a Martha não condena
Occupada em serviço differente,
Diz que escolheu melhor a Magdalena.
Tu podes fazer bem a muita gente,
E grangear o teu sem damno alheio,
E salvar te vivendo farto, e quente.
Mas testemunha he Deos, quanto receio
Desta tão larga vida a conta estreita.
Posto que menos quente, farto, e cheio,
Se mais tira da barra quem mais deita,
Que será lá no Ceo, donde se paga
Cento por hum do que por Deos s'enjeita ?
Laurino.
Mal se pôde curar a mortal chaga
Reputando a triaga por peçonha,
E peçonha fazendo da triaga.
A carne bem sabemos que não sonha.
Se não no com que mais o nosso esprito
Se turbe, desordene, e descomponha.
Amostras me por obra o que tens dito.
Porque deixar quiseste quanto tinhas
De puro coração, firme, contrito.
Pisas com pés descalços as espinhas,
Morde-te o corpo a lãa de varias cores,
E não te dá que o ponto amostre as linhas.
48 Obras de Fr. Agosiinho da Cruz
Divinos pensamentos dos amores,
De que teu coração anda ferido,
Nos ramos dos salgueiros darão flores.
Gualbano.
Ora pois tanto tens já compreendido,
Grave culpa será não te ficares,
Donde não ficarás mal do partido.
Laurino.
Se tu, com ser qual vês, me aconselhares
Que fique, eu fico, e faço o que me mandas,
E muito mais de quanto me mandares.
Gualbano.
Anda, que tu verás como desandas
No mal, e desandando, como corres,
Correndo, como voas, como abrandas
A vida, com que vives, quando morres.
ÉCLOGA VI
A morte de hum amigo.
Limabeu.
O meu cordeiro branco que saltava
O' som da minha frauta, ah I meu cordeiro!
Tão branco como o leite, que mamava,
Emquanto vigiava o gado alfciro,
Huma águia mo levou atravessado
Nas unhas, lá de trás daquelle outeiro.
Ah ! fortuna cruel, ah ! cruel fado 1
Que se de cruéis lobos me vigio,
Das aves de rapina sou roubado.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 49
Se nisto ha de parar todo o que crio,
Como já succedeu da minha corça,
Que se afogou naquelle negro rio \
Convém que a natureza faça força ;
Porque não se oífereça gosto humano,
Que primeiro que venha o não retorça.
Que maior confusão, que mór engano
Ao triste coração, que se affeiçoa
Para pagar tributo do seu damno ?
O simples passarinho que se escoa
Do visco em que cahio incautamente,
Com menos penas foge, menos voa.
Deixei de conversar humana gente
Para me affeiçoar cá no deserto
A brutos animais mais brutamente.
Com que composição, com que concerto,
Sobre que saudades adormeço,
Se com tão leves cousas me desperto!
Como posso chegar, se não começo
Quando começarei como desejo ;
Ou como subirei, pois sempre deço ?
Se qualquer leve cousa me faz pejo
Para accender no peito amor divino,
Porque de tudo já me não despejo ?
Assi convém valer-me de contino;
Assi fortalecer minha fraqueza,
Que não sinta descuido repentino.
Assi soprar de novo esta frieza,
Atiçar no madeiro, onde se atêa
O fogo, que desfaz, todo em pureza.
5o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Nasci para lavrar na terra alheia,
Terra da maldição, de Deos maldita,
De cardos, e de espinhos sempre cheia.
Tenta, move, perturba, afaga, incita
A buscar o pior, o mais nocivo,
Não deixa repousar esta alma afflita.
Nesta contradição, neste incentivo
De males, que me rende a minha herdade,
Quasi me sinto já como cativo.
Mas pois a verdadeira liberdade
Depende de trazer o pensamento
Acceso na divina saudade;
De tudo o que me fôr impedimento
Para poder lograr hum bem tamanho,
Determino fazer apartamento.
Experiência tenho do que ganho
Essas vezes, que saio da cabana,
Pois que no campo limpo inda m'arranho.
Muito pequena cousa turba, e dana
Huma composição clara, e serena,
Emquanto respirar na vida humana !
Foge do povoado a Magdalena,
Vai fazer no deserto vida nova
Depois de ter perdão da culpa, e pena.
Alli mettida dentro numa cova
Chora, suspira, geme noite, e dia \
D'uma noutra aspereza se renova.
Procure quem quiser a companhia,
Branda conversação d'outros pastores,
Que só me quero a mim por outra via.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 5i
Muitas capellas fiz de muitas flores
Compassando nos olhos a pintura
Belia, por variar fermosas cores.
Escolhendo da fruta a mais madura
Pelos bosques agrestes m'espinhava,
Deixando o gado meu posto em ventura.
Do louro laparinho que tirava,
O tralhão que cahia na costella,
O tordo que na vara se enforcava.
O pombo que cevava na courella ;
A perdiz que picar vinha na lousa,
Ou metter o pescoço pela tela.
Emfím que naò colhi, nem cacei cousa,
Que para dar não fosse; mas quem rega
Plantas, a cuja sombra não repousa,
Não deixa de pagar quão mal se emprega.
ÉCLOGA VII.
Da mudança da Arrábida.
Libameu, e Mincio.
Mincio.
Eu tenho para mim ( segundo as queixas,
Que na Mata do Lobo me contaste ),
Que não sem causa agora a Serra deixas.
Mas ha tão pouco tempo que chegaste,
Que darás que fallar lá na Ribeira
De quam cedo na Serra te enfadaste.
52 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Libameu.
Bem sei que cada hum que diz da feira,
Como nella lhe vai ; e que não diga,
Não falta quem do bem mal dizer queira.
Justa desculpa tem o que se obriga
A fazer a vontade do que manda \
Que quem bem obedece não periga.
Acostumei-me d'uma, e d'outra banda
A repousar de noite na cortiça,
E de dia a comer toda a vianda.
Nem ter, nem valer mais me faz cubica :
Tanto me dá que vá, como que venha:
Por mais que este me assopra, estoutro atiça.
Não tenho sobre que me desavenha.
Nem de que contender muito, nem pouco ;
Ora tenha razão, ora não tenha.
Eu já para cantar me sinto rouco;
E posto que não fora, me fingira,
Fingira-me de todo cego, e mouco.
E quando por taes meios não sentira
Poder-me quietar mais facilmente,
De buscar outros mais não desistira.
Mincio.
Ainda que não fico descontente
Dessas contas, que fazes tão bem feitas,
Como servo de Deos, como prudente,
Folgara de saber o que suspeitas
(Se se pôde dizer) desta mudança.
Que contra natureza alegre aceitas ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 53
Libameu.
Tu cuidas que me pesa, ou que me cansa,
O que tenho por vida ha tantos dias ?
Ou que ponho meu gosto na balança ?
Não vemos nós seccar plantas sombrias,
As flores, as boninas pelos prados ?
Perder o uso seu as agoas frias ?
Não vemos abater altos estados?
Não vemos levantar os abatidos,
E tornar a abater os levantados ?
Não vemos quanto valem os validos,
Que não valiam mais, e por ventura
Menos, que seus vizinhos conhecidos ?
Não pôde ser maior desaventura,
Que não saber fugir de hum fugitivo
Mundo, que em si não tem cousa segura.
Bem sabem de que trato, e de que vivo;
Com que folgo, que busco; e que pretendo.
De cuja natureza me cativo.
A causa, que perguntas, não defendo :
Faça quem mais puder melhor seu fato.
Que isso não me descose o meu remendo.
Cem mil virtudes tem hervas do mato
Para curar cem mil enfermidades •,
Huma não podem só d'um peito ingrato.
Rogo-te, amigo meu, que não t'enfades
De ouvir a confusão deste meu canto ;
Que a dor me destruio as saudades.
54 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mincio.
Eu tenho padecido, e visto tanto
Desse mal incurável, que me contas,
Que da torpeza delle não me espanto.
Trago também de longe minhas contas
Feitas para soífrer qualquer combate
D'outros, e deste só que agora apontas.
Folgara de saber já, por remate,
Se tiveste com Lauro desavença ?
Porque também sobre isso houve debate.
Libameu
Quem bem considerar a differença,
Que vai de nós a Lauro, entenderia,
Que tomo de fallar larga licença.
O que imitar não sabe a melodia
Dos doces passarinhos \ porque imita
O rouco murmurar da fonte fria ?
De ter, ou de não ter com Lauro dita
Todos podem julgar a seu prazer;
Mas o seu pelo meu nãp se limita.
Alembra-me que já lhe ouvi dizer,
Que folgava comigo lá na Serra;
Mas o que fôr, será, se houver de ser.
Obrigação lhe tenho em qualquer terra
Para pedir a Deos que com Liana
(Liana que lhe fez tão cruel guerra)
Logre conformidade soberana,
Ambos a gosto seu, e tantos, tantos,
Que excedam quantos ha na vida humana.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 55
Excedam seus intentos todos, quantos
O ceo na terra apura ; e em tal estado,
Antes de lá subir se vejam santos.
Confesso que fui sempre aífeiçoado
A solitários bosques do deserto,
Que ensinam a viver desenganado.
Do portal da choupana, que coberto
Tinha de hum verde louro, me assentava
A ver o largo mar ao longe, ao perto.
D'um valle noutro valle caminhava
Até á Lapa de Santa Margarida,
Donde, para comer, peixes pescava.
Andava sustentando a pobre vida
Minha, sem murmurar da vida alheia ;
Por onde sinto mais esta partida.
Mincio.
Alma, que no deserto se recrêa,
Nas saudades delle se sustenta,
Das quaes recolhe mais quem mais semêa.
Sabe Deos quanto a mim me descontenta
A má repartição do que reparte.
Ou seja na bonança ou na tormenta!
Desconsolar-se pôde numa parte,
O que noutra qualquer se consolara.
Do qual desconsolado outro se parte.
Finalmente que nisto se declara
Aquelle verdadeiro adagio antigo :
Que quando Paulo enferma, Pedro sara.
56 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Bem se sabe de ti que és mais amigo
Da Serra que do campo, inda que colhas
Silvestre fruito nella, e nelle trigo.
O que te libertar para que escolhas
Assaz de ganho fica ; pois não queres
Os fruitos, que outros querem, mas as folhas.
Comtudo se na Serra pretenderes
Lograr quietação com mais cautella,
Convém que nas palavras te temperes.
Dizendo cem mil males dos bens delia,
E dos males do campo bens sem conto :
Então degradar te-ham delle para ella.
Libameu.
Como queres que esteja sempre a ponto
Para dobrar a minha singeleza.
Pois não coso remendos com posponio ?
Por não contrafazer a natureza.
Sinto tornar a ver-me antre pastores,
Cuja conversação tanto me pesa.
Elles querem colher no campo flores :
Eu medronhos na Serra antre penedos ;
Assim desconcordamos nos humores.
Elles no povoado cantam ledos
Os gostos de que vivem ; eu chorando
Por acabar debaixo dos rochedos.
Mas pois tudo se vai contrariando
Na Serra", nem na terra buscarei
Cousa, que o tempo possa andar mudando.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 5j
Por donde quer que fôr, levantarei
Os meus olhos ao Ceo, de cuja vista
Aquellas saudades colherei,
Coni que possa fazer nova conquista
Para me consumir no fogo puro
D'amor, de cujo amor divino vista
Est'alma, caminhando mais seguro,
Que buscando repouso nas montanhas ;
Pois no gosto da terra me aventuro
A não poder lograr cousas tamanhas
Do Ceo, em toda a parte tão fermoso,
Que pôde penetrar duras entranhas.
Mincio.
Ditoso, Libameu, ah ! quão ditoso
Quem sabe temperar nestas branduras
Os discursos do tempo duvidoso !
Libameu.
Ditoso, Mincio meu, quantas mais duras
Cousas de duros tempos temperaste,
Vendo ficar a muitos ás escuras !
Mincio. •
Assim como de mim já te apartaste
Assim também de ti me aparto agora.
Libameu.
Essa lembrança queres tu que baste ?
Mincio.
Baste não poder mais : fica-te embora !
58 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
ÉCLOGA PISCATÓRIA VIII.
Libameu, e Lauro.
Libameu.
Emquanto se dilata a pescaria
(Pois será por demais provar ventura
Mofino pescador, maré vazia),
Debaixo desta rocha antiga, e dura,
Que d'um noutro penedo sustentada
Por cima desta praia se pendura,
Se queres ouvir de novo a soada
D'uns versos, que cantei em Sampeneda,
Emquanto a rede ó mar tinha lançada,
Verás que vida logra quem se arreda
Da communicação dos pescadores \
E qual quem nos conselhos seus se enreda.
. Lauro.
Ah ! não danes com versos sem sabores
Huma tarde, que tarde me acontece :
Se queres cantar bem, seja d'amores.
E se de todos inda te parece
Melhor cantar do meu justo, e suave,
(Que do mal que me fez já se conhece)
Não queiras que com rogos mais te aggrave,
Nem deixes de cantar, posto que vejas
Lagrimas derramar, em que me lave.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 59
Libameu.
Se tu d'amor cruel ouvir desejas
Aggravos, sem razões, duros conceitos,
Cuja victoria cuidas que festejas,
Alembre-te que em passos tão estreitos
Te pôde entristecer qualquer lembrança ;
Que amor tem jurdição em tenros peitos.
De que serve no tempo de bonança
Alevantar de novo tempestades
No naar donde escapou tua esperança ?
Rompendo por cem mil adversidades,
De terra em terra alheia te levaram
Justas, mal tarde pagas, saudades.
Quantas vezes os remos te faltaram
Depois das vellas rotas pelos ventos,
Que na firmeza tua se quebraram !
Prolongaram se os teus merecimentos.
De perigo em perigo navegando,
Alagado no mar dos sentimentos.
Quantas vezes na praia murmurando
Conforme a seu juizo, ou seu desejo,
A tua causa andava mariscando!
He muito de notar com que despejo
O néscio pescador sentenciava
Aquillo, que contar inda me pejo.
Em que fera, em que pedra não soava
O teu nome, Liana ? que serpente,
Se de parir deixou, não te criava ?
6o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Desviado teu nome andou da gente
De Liana em Liona : nem m'espanto,
Pois tratavas teu sangue cruelmente.
Lauro.
Desejoso de ouvir suave canto
Te roguei que de amores me cantasses,
E tu provas de amor reprovas tanto.
Se tu nas redes suas te pescasses,
Não cuido que tão pouco estimarias
Queixumes seus, que delles te queixasses.
Antes a mariscar me ajudarias
Ameijas nas arêas revolvendo,
Tirando mexilhões das penedias.
Arrancando preseves, que pretendo
Levar para Liana este cestinho,
Que veja se m'esqueço, não a vendo.
Libameu.
Dart'ei que leves. mais hum passarinho
De verde, azul, e branco salpicado,
Que sem pena furtei á mãi do ninho.
Dentro num búzio irá todo pintado
De pardo, e de vermelho, que Palemo
Para Marfida tinha soterrado.
Não sei que cousa foi, não sei que demo
Tomou tal formosura, tal aviso,
Por quem nem ter na mão sabia o remo.
Depois que a causa foi posta em juizo,
Também nós demos cá nossa sentença •,
Que poucas tem firmeza, menos siso.
Obras de Fr Agostinho da Cruz 6i
Que desculpas darás a tão immensa
Culpa da fé, Marfida, que quebraste.
Se não se contra anior não houve ofFensa ?
Que negar tu não podes que negaste
Aquelle firme teu primeiro amante,
Depois que Diamante te tornaste.
Que ser não pôde hum ser tão inconstante,
Se não quem já perdeu a natureza,
Em meteria d'amor tão importante.
Mas deixemos motivos de tristeza:
O nosso cabazinho concertemos,
Lavado muitas vezes n'agoa tesa.
Verdes limos debaixo lhe poremos ;
O verde perrexil de cima posto,
Fazendo d'esperança dois extremos.
O presente no meio bem composto
Por ordem, que lhe dê muita mais graça .
Assi de lho levar muito mais gosto.
Que queres que por ti, Lauro, mais faça
Com desejos das forças difterentes,
Onde a pobreza minha m'embaraça ?
Mas inda pôde ser que te contentes
Muito mais de me ver pescar á cana,
De que possas fazer mores presentes.
Porque da Ponta gorda até Trezana
Hum sô dia que vem de marulhadas
Pesco para comer toda a semana.
Que pescarias fiz tão estremadas !
E mais de peixe limpo em breve espaço
De sardos, de robalos, de douradas ?
I
62 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que ? cuidarás que cuido neste passo
Do galardão, daquelles que comeram,
O que pescava á força do meu braço ?
Lauro.
Que posso cuidar eu do que fizeram,
Se não que seus intentos taes seriam
Na sua ingratidão, quaes elles eram ?
Mas que dirás dos que de mim fugiram,
Quando com menos barcos, menos redes
Sem mais affronta sua andar me viam ?
Eu te concederei, que tu me excedes
Agora na pobreza ; sem descanso
Se avantejada vida me concedes.
Libameu.
Se tu vás tanto ó mar, eu largo o lanço.
Que por não contender com bravas ondas^
Com menos me contento no remanso.
Lauro.
Nunca te faltará que me respondas \
Na tua própria causa, e nas alheias
Escura parte tens, onde te escondas.
Lavadas para ti tens as areias,
As saudosas agoas Oceanas,
Onde, pescando, a vida remedeias.
Soubeste desprezar cousas humanas,
Soubeste grangear cousas divinas.
Desenganado assi nos desenganas.
Assaz claro, e seguro nos ensinas
O caminho do Geo, pois que não tiras
Da própria mão do remo as disciplinas.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 63
Se tu também comnosco repartiras
O que buscas no Ceo, como na praia,
Com differente dom tornar me viras.
Libameu.
Oh! quão liberalmente amor espraia
Os dons da sua graça em toda a parte,
Que parte n'alma tem onde ella caia.
Poderá antre huns penedos amosirar-te
Huma Lapa redonda, lá mettida
Noutra, que dentro noutras se reparte.
Vista não pôde ser, nem presumida
De quem na Lapa grande vir enirar-me,
Donde a passagem fíca retorcida.
Alli depois que deixo de accusar-me,
E de tomar da vida conta estreita.
Propondo na futura melhorar-me ;
Diante de huma Cruz, que se foi feita
Por mãos da natureza, me suspende
Na causa do porque foi tão perfeita.
Primeiro que alguns outros encomende
A Deos, dous corações num convertidos
Minh'alma oôerecer alli pretende.
Hum só sentido sintam seus sentidos
Na carga singular, .vida serena,
D'amor celestial favorecidos. . .
Não sei que pescador de cá me acena
Daquelle batel novo. . . vai-te embora!
Que ouvir muito contar também dá pena.
Lauro.
Antes de ouvir tão pouco a sinto agora.
64 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
ÉCLOGA IX.
Da mudança de pastor em pescador.
Galapo, e Almilão.
Galapo.
Duas cousas receio, duas faço
Contra qiiietação da natureza
Mmha, que em qualquer delias satisfaço :
Hunoa, pedir áquelle, que despreza
A petição do pobre, cuja estrella
Gahir nas duras mãos foi da pobreza ;
Outra, que não difere muito delia,
He perguntar a quem dá má reposta
Quanto lhe custa a boa mais do que ella.
Eu fiz com dous pastores huma aposta,
Que já nas minhas mãos cuido que tenho;
Posto que nas alheas fica posta.
De seu consentimento agora venho,
A que tu nos desates a porfia :
Que porfiar não quero por ingenho.
E porque me criei na pescaria
Julguei, que também nella te criaste •,
Pois como pescador pescar te via.
Elles dizem que sempre te prezaste
Da fruita, do surrão, e do cajado,
Que poucos dias ha que desprezaste.
I
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 65
Almilão.
He verdade que sempre guardei gado
No campo, na montanha erma, deserta,
Com cujo branco leite fui creado.
Mas quem guardar alheio gado acerta,
Acertar pôde mal, quando seu dono
Para notar descuidos anda alerta.
Pois nunca (s'ora nisto não me abono)
Alguma vez perdi cabra, ou cabrito,
Antes muitas por elles o meu sono.
Seja louvado Deos, seja bemdito !
Que tal mudança fiz tão desejada
Do solitário meu cansado esprito !
Caminhei longo tempo pela estrada
Mais larga, e mais seguida dos antigos
Pastores, que não deixa de ir errada,
Desejando escapar d'alguns perigos,
Em que via cahir a meus vizinhos
Cubiçosos do gado, e dos pacigos.
Determinei dos valles montezinhos
(Que da ribeira já tinha fugido,
Trocando lirios seus pelos espinhos),
Buscar algum lugar tão escondido,
Debaixo de tão altas penedias.
Que nem pudesse ouvir, nem ser ouvido.
E porque me tomou sob-los dias
Tal determinação, posta em eôeito,
Quero que saibas mais do que querias.
66 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Pôde ser que por justo algum respeito
Esses, que vão saber, se me arrependo
Do que sem parecer seu tenho feito.
Bem lhes podes dizer, que não dependo
Daquillo que dirão ; para que deixe
De remendar as redes, que remendo.
Que nunca m'arrependa, nem me queixe
Da differente vida, mas segura ;
Que elles comem da carne, nós do peixe.
Galapo.
Não pôde ser môr dita, môr ventura
Que acertar de te ouvir para curar
Hum mal que não cuidei que tinha cura.
Eu sempre folgaria d'apostar,
Inda que môr aposta se perdesse,
Do que esta minha foi para ganhar.
Toda a quietação, todo o interesse
Cuidei que consistia em ser pastor.
Posto que de seu gado não tivesse ;
E que ser não podia outro pior
Successo da fortuna dura, imiga,
Que nascer junto d'agoa pescador.
Des hoje mais convém que me desdiga
Da minha opinião mal entendida,
E que por acertada a tua siga.
Almilão.
Afiflrmo te que duma, e doutra vida
Seus males, e seus bens considerados
Por conta certa, assaz peso, e medida.
I
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 67
Que ficam sempre bem differençados
No repouso, no gosto, e no descanso,
E no mais, os enxutos, dos molhados.
Que se pesco, ou não pesco no remanso,
Ora seja com rede, ora com cana,
Com cabra, ou cabrão ruivo, não me canso.
Se me desisca o peixe, e se me engana.
Quando no torto anzolo se magoa,
Não me magoa o trigo que se dana.
A voz do rouco mar que bravo soa.
Quando romper se vem nestes rochedos,
Não pôde ser de lobo, que me roa.
Aqui descobrir posso meus segredos
Para desabafar meu triste peito :
Que não tem peitos de homens os penedos !
Nesta lavada areia, em que me deito, ^
Versos diversos canto dos primeiros,
Que como pueris agora engeito.
Galopo.
Quero-me aproveitar dos verdadeiros
Conselhos, que me dás : se dás licença,
Que me vá despedir dos companheiros.
Que não me soffre já fazer detença
O muito que desejo de saber
Fazer nos bens, e males differença.
Deixa-rae só comtigo aqui viver ;
Não tomes mais na mão cana, nem rede ;
Que peixe não nos ha de falecer.
68 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Logra quietação, como te pede
O teu suave esprito \ tange, e canta :
Que eu te matarei fome, frio, e sede.
Pôde ser que com tua doce, e santa
Vida remediar possa esta minha.
Que boa sombra faz a boa planta.
Seguro vai o cego que caminha
Pelos passos da guia ; que se teme
De pôr seu pé descalço em secca espinha.
Almilão.
Suspira est'alma minha, chora, e geme
Por não ver, nem ouvir quem falle, ou veja :
De qualquer sombra humana pasma, e treme.
Abasta pouco a quem pouco deseja ;
Não basta muito a quem deseja muito;
O que nos outros falta me sobeja.
D'inverno, e de verão sempre dão fruto
Os penedos da praia regadios,
Nos quaes mariscar posso a pé enxuto.
Inda que não tem folha são sombrios,
Não se abalam, nem mudam suas cores,
Por ventos, nem por calmas, nem por frios.
E sobre tudo longe de pastores;
E de me constranger necessidade
A conversar ainda a pescadores.
Com tudo eu t'agradeço essa vontade ;
Que não sou deshumano, nem despreso
As mostras, que me mostras de amizade.
i
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 69
G alapo.
Assi me deixa a tua inda mais preso ;
Pôde ser que me escutes algum dia,
De que canto também, e de que reso.
Farta-te de viver só muito embora,
Que também viver só quero comigo,
E sem mim ( se podesse ! ) melhor fora.
Com' haja nos trabalhos mais antigo
Pescador desta praia, não receio
Na baixa, ou preamar algum perigo.
Ou seja por atalho, ou por rodeio
A pena, a magoa, a dor, que me lastima,
Com muita paciência remedeio.
Almilão.
Muito faz quem se esforça, e quem se anima
A soffrer, e calar, mostrar bom rosto :
Que he contra o duro ferro a dura lima.
Galapo.
O teu verso será melhor composto.
Cantado muito mais suavemente ;
Mas o meu mais conforme a meu desgosto.
Não faltará do teu quem se contente,
Nem do meu faltará, quem julgar queira ;
Que sempre o néscio cuida que he prudente.
Almilão.
Eu costumo pescar com singeleira.
Galapo.
Pois eu vi pescar muitos com tresmalho.
Que nadando se vem perder á veira.
7© Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Almilão.
Não cuides que rodeio, quando atalho
Neste breve caminho, em que me pus,
Alegre de me ver posto em trabalho.
Eu por dia nasci de Santa Cruz :
Em Santa Cruz troquei o pobre fato :
Nella sem elle foi posto Jesus,
Com cujo nó de amor tudo remato.
ÉCLOGA PISCATÓRIA X.
Ao nascimento do Duque D. Jorge de Lencastre.
Galapo, Alportuxo, Almilão.
Galapo.
Queres ouvir contar hum pescador
Pobre, que de marisco se sustenta,
E segund'o que dizem foi pastor ?
Não sei donde, nem como, ou que tormenta
O lançou nesta praia ha poucos dias :
Que nem sempre do norte o vento venta.
Naquellas solapadas penedias
Huma lapa buscou escusa, e escura,
Que não se deixa ver d'outras sombrias.
Dalli forçado sahe da fome pura
A buscar o salgado mantimento.
Duro de se arrancar da pedra dura.
Depois sobre hum penedo crespo, e lento
Ao som d'um arrabil que traz no seio,
As ondas faz parar, fugir o vento.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 71
O primeiro de abril alli se veio
A cantar, e tanger tão docemente,
Que do mar Oceano fez Lethêo.
Mas tanto mais alegre, e mais contente,
Que logo quem ouvisse julgaria,
Que festejava algum gosto presente.
Alportuxo.
Agora sabes tu, que foi o dia.
Em que fruito nos deu a primavera,
Fruito que só do Ceo cahir podia.
Do Ceo por cujo dom já se decera
Da sua opinião isenta, altiva,
Mais branda agora, mais que branda cera.
Mas ah ! livre Liana ! quão captiva
Te fez o justo amor daquelle teu,
A quem tu te mostrastes tão esquiva !
Agora tu não tua, elle não seu ;
Hum noutro si ; de dois hum só formado ;
Tal vos conserva Amor, qual elle o deu.
Galapo.
Outros muitos sobre esse tem já dado,
Que tempo, nem fortuna, dura imiga
Poderão desatar •, perde o cuidado.
O bom será cantar huma cantiga,
Em louvor desta sesta, nesta praia.
Alporiuxo.
Começa tu, se queres que te siga.
7» Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Galapo.
Esperemos hum pouco antes que caia
A sombra lá da Serra ; pôde ser
Que também Almilão da lapa saia.
Alportuxo.
Eu tenho para mim que ouço tanger. . .
Deve de ser aquelle ? vê-lo vem :
Gomo se vem regando de prazer !
Almilão.
Ouça-me quem quiser; veja-me quem
Folgar com bens de Lauro, e de Liana,
Que sempre dos seus bens contarei bem»
Que fica mais por ver na vida humana,
Que ver dois corações num convertidos,
De cuja flor tão doce fruto mana ?
Que fica por sentir a meus sentidos
Quando vestida vejo Magdalena
Dos seus, antes dos meus, pobres vestidos ?
Eu tomarei na mão hum dia a penna,
E nem remendo seu, nem graça sua
Ficarão por cantar, grande ou pequena.
Das fermosas estrellas, sol, e lua
As cores mostrarei em Violante ;
A dos olhos ao ceo se restitua.
Neíle pois passar quero mais avante
Convém que vá fazer o meu alforge ;
Para que mais cedo tanja, e melhor cante»
Amor tempere a fragoa, accenda, e forge
Com que festeje dia tão ditoso
Do novo Anjo do Ceo, ditoso Jorge.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 73
Detenha-se no bosque saudoso
A verdura na planta, a flor no valle ;
Nasceu Jorge, nasceu todo fermoso.
Antes que desta praia hoje me abale,
A fera amansarei, o duro seixo
Ousarei abrandar, farei que falle.
Já não sei murmurar, já me não queixo ;
Queixe-se o rouxinol, murmure a fonte,
Ella de pedra em pedra, elle no freixo.
D'encarnado, e d'azul nosso orizonte
Se vista nesta festa, cujas cores
Calo : que pôde ser que inda se afronte.
Fazei novas capellas, pescadores,
Nos salgados penedos, nas arêas,
A seu Príncipe já cobri de flores.
Galapo.
Quaes Alciões na praia, ou quaes sereas
Igualar já se podem com teu canto
Em louvor desse Infante, que nomeas ?
Não sei, qual affeição te ensinou tanto:
(Mas como cuidarei que se affeiçoa
Quem não vejo medrar n'hum pobre manto?)
Almilão.
Se tratas de interesse da pessoa
Pelas partes, que tem, não pela renda,
A tal opinião julgo por boa.
Comigo que não posso ter fazenda,
Que fazenda fará o néscio rico.
Que não pôde emendar, nem ter emenda ?
74 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Cuidarás por ventura que me pico
Desse juizo teu, commum juizo,
Que (como dizem) traz agoa no bico?
Sabe que com ninguém contemporizo ;
Que apelo me não falta na amizade
Singela condição, brandura, aviso.
Alportuxo.
Eu, pois cantar não sei da saudade
Antre taes dois cantores, calar quero ;
Por não cahir nas mãos da nescedade.
Mas isto só direi que não tempero,
Com quem destemperar-se quer comigo,
A' conta de cuidar que delle espero.
O que quiser que seja seu amigo.
Por ser tamanho meu, queira que seja ;
Não pelo seu, que come só comigo.
Galapo.
Queres que o nosso canto sobresteja,
Emquanto vou buscar que cozinhemos ;
Que festa sem comer não se festeja ?
Pescado no batel pescado temos :
O fogo sahirá da pederneira :
A lenha pelo mato ajuntaremos.
De medronho, de esteva, e de aroeira
Farei curtos espetos aguçados,
Dos quaes rodearei toda a fogueira.
De ruivos, salmonetes, carregados
De vezugos, de choupas, de tainhas,
E com três sapateiros linguados.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Alportuxo.
Ainda por cantar taes versos tinhas!
Eu ferirei o fogo, e trarei lenlia.
Galapo.
Já sabemos de ti quão bem cozinhas.
Alportuxo.
Não haja quem de nós se desavenha
De cantar, e tanger, e fazer festa.
Galapo.
Por quem não festejar, má festa venha.
Veremos Almilão para que presta :
Sabei que se Almilão sahe ao terreiro,
Que ha de fazer alguém suar a testa.
Que d'arrabil, de frauta, e de pandeiro
Nunca ninguém lhe teve a barba tesa.
Viva Jorge mil annos, mil primeiro
Viva o Duque seu pai, viva a Duquesa !
Almilão.
Vivam pais, e vivam filhos !
Outros destes, doutros mais
Vivam filhos, vivam pais !
Vivam como viver vejo
Com taes excessos d'amor,
Que nem menos, nem maior
Possa ser o seu desejo :
O gosto com que festejo
O seu não pôde ser mais :
Vivam filhos, vivam pais !
•
Galapo.
Tal amor nelles se veja \
Veja-se seu amor tal,
Tão conforme, e tão igual ;
j6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que nem mais nem menos seja.
A festa que se festeja
Convertida noutras mais
Festejem filhos, e pais.
Alportuxo.
Ditosa foi sua estrella
A mesma d'ambos ditosa,
A quem não foi poderosa
Resistir todo Castella,
Nasceu Jorge delle, e delia.
Almilão.
Elle fez quanto podia ;
Ella mais do que elle fez;
Pois se fez sua ; em que pês
A quantos na Corte havia
Igual ser poderia,
Firmeza em peitos reaes;
Mas no delia muito mais.
Galapo.
Ella foi a conquistada,
Ella firme, ella constante,
Ella, a quem d'um só amante
Se quis deixar ser amada :
Em tudo foi estremada
Na firmeza muito mais :
Tal como ella poucas taes.
Alportuxo.
Acabemos de dizer
Por remate, da Duquesa,
Que foi doutra natureza .
Dififrente da de mulher ;
E por isso devem ser
Seus louvores muitos mais :
Vivam filhos, vivam pais !
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 77
I
ÉCLOGA PISCATÓRIA XI.
Almilão.
Aparta-se de vós, desapparece,
Agoas do mar azul, o sol dourado,
Ou com meu triste pranto s'escurece.
Deixa-me nesta praia trespassado
O som daquella voz, que trespassou
Os deste meu no seu ditoso estado.
Que força, ou que brandura penetrou
Os corações daquelles pescadores
Que do barco, e das redes os levou?
Porque foram mais destros remadores
Ou por pescar mais peixe mereceram
Chamados do Senhor ser dos Senhores ?
Nós sabemos, Deus meu, que precederam
A quantos de pescar nos sustentamos;
Vós o porque melhor vos pareceram.
Quantos a pé enxuto desejamos
Seguir a doce vossa companhia.
Tantos na terra em secco nos achamos.
Entra no mar de noite, entra de dia
Descalço o pescador, entra despido
Por segurar melhor a pescaria.
O que dos vicios d'alma anda cingido,
Como néscio responde, que também
S'ha de salvar calçado, e mais vestido.
78 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Bem pôde ser que seja ; mas porém
O que mais leve vai, melhor caminha,
E mais pôde inda mais passar além.
Vai-se-me consumindo a vida minha
D'um gosto noutro falso pendurada ;
Dos quaes hum me remorde, outro m'espinha.
Resolver-me que foi mal empregada,
Determinar emenda que aproveita,
Pois a presente vai qual a passada ?
Na solitária minha lapa, estreita
(Minha não digo bem, antes alhea ;
Pois seu dono, se quer, delia me deita )
Não me falta que faça, escreva, e lea,
Do que foi, do que vai, e donde pára
Quem funda o gosto seu em leve arêa ?
E se por tantas vezes não tentara
Avisar, reprender alguém por verso.
Ainda agora aqui me não calara.
SofFre mal coração duro, perverso
Pequena reprehensão de ser defeito;
Posto que bem composta em brando verso.
O pescador debaixo de seu leito
Depois que deita ferro no remanso,
Manso discurso faz no manso peito.
O silencio ihe dobra seu descanso;
O pouco que deseja não lhe faz
Cubicar melhor sorte em melhor lanço.
Os seus dois remos rema em sua paz,
Que não deixa nas mãos do companheiro,
Que delles mais que delia foi capaz.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 79
Recolhe-se em qualquer pequeno esteiro ;
Que pouca agoa demanda o barco leve,
Que levemente leva hum só remeiro.
A mocidade minha me deteve
No pasto das ovelhas, que guardei
Ora do sol cortido, ora da neve :
Onde por muitas partes que notei
Num pastor pouco atrás da minha idade,
Com pureza de amor me transformei.
A taes termos chegou nossa amizade,
Que fizemos de dois hum só rebanho,
E de duas também huraa vontade.
Mas eu a quem dou conta deste estranho
Caso, senão a vós duros penedos.
Que com lagrimas tristes triste banho ?
Seguro vos descubro meus segredos,
De mim, como de vós, estou seguro,
Que possam nunca ouvir corações ledos.
Não porque por amor honesto, e puro
Extremos soem mal noutros ouvidos ;
Mas nos alegres fica o caso escuro.
O pastor, a pastora conhecidos
Foram dos mais pastores naturaes
Por jurados, ou quasi recebidos.
Ella, não sei porque, mostrou sinaes
De lhe quebrar a fé : tinha razão ;
Pois nella só ficavam desiguaes.
Emfim ella foi dar, adonde dão
Os que não tem remédio na ferida,
Que se dá no constante coração.
8o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ella depois que vio ser homicida
Do seu firme, leal, primeiro amante,
Deu nas mãos da tristeza a própria vida.
Eu dalli me parti naquelle instante,
De valle em valle vim, de monte em monte^
Até não poder mais passar avante :
Que as agoas Oceanas não tem ponte :
Neste batel, que remo, qualquer onda
Em qualquer taboa faz vir huma fonte.
Aqui busquei já parte onde me esconda,
Debaixo desta rocha tenho duas
Furnas, huma comprida, outra redonda.
Eu já sei das marés, já sei das luas ;
Das ostras, das amêijoas, também sei
Delias comer cozidas, delias cruas.
Aqui com mais repouso acabarei
O pouco que me fica, suspirando.
Não pelo verde campo em que pastei,
Mas por amor suave, doce, e brando
Daquelle Summo Bem, cuja lembrança
Da terra o coração vai desterrando
Confirmando no Ceo sua esperança.
ÉCLOGA XII.
Mincio, e Limabeu.
Mincio.
Espera, porque foges, Limabeu ?
Que não sou pescador do mar salgado,
Do doce Lima si, parceiro teu.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 8i
Delle por ti me venho desterrado,
Dando gritos por ti pelo deserto,
Perguntando por ti no povoado,
Honte, noite fechada, por acerto
(Não podendo acenar nunca de dia)
Achei dois pescadores daqui perto,
Dos quaes fui avisado que devia,
Antes que tu me visses, esconder-me ;
Porque depois em vão te buscaria..
Limabeu.
Pois de tão longe, Mincio, vens a ver-me,
Pois não pude escapar, como quisera,
Quero contigo só desencolher-me.
Não vai lugar no mato á brava fera.
Não vai ao peixe na agua fundo pego ;
Menos a mim, se nelle me escondera.
He verdade que fujo, não to nego.
De conversar a muitos ; porque sei
Quão mal no gosto seu meu tempo emprego.
Bem sabes, quanto ri, quanto folguei
De cantar, e tanger; que graça tinha.
Quantas apostas fiz, quantas ganhei ;
Quantos fardeis enchia do que tinha
Dentro no meu pombal, no meu poleiro ;
Enchia de vagar, vazava asinha.
Tirava do curral, e do fumeiro
(Jom gosto pelo dar; donde chegava
Pesado sempre fui, tornei ligeiro.
82 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não quero dizer mais do que mais dava;
Do pago que me deu quem o levou ;
Se não foi avisar-me quanto errava.
Enfim lá se ficaram, cá me estou
Numa lapa, da qual o mar Oceano,
Depois de a ter lavrada, se afastou.
Agora julga tu, qual peito humano
Me quisera largar seu aposento
Do Tejo natural, ou Limiano ?
Além disto me deixa o mantimento
Pegado nos penedos \ porque esteja
Seguro de mo vir levar o vento.
Tudo na sua praia me sobeja ;
Tudo na vista sua me recrea ;
A tudo fazer posso nella inveja.
EUe lavra, elle rega, elle semea.
Eu colho quando quero a sementeira ;
Olha que amigo achei em terra alhea 1
Mincio.
Bem diflerente doutros da Ribeira,
Que sem nunca lavrar querem colher,
Depois de limpo, e secco, o trigo n'eira»
Eu não te posso mais encarecer
O que vai pelo mundo cubiçoso
De enganar, de danar, de mal fazer.
Que se pôde esperar do vicioso,
Que nunca soube armar lousa, nem laço,
Ou por não ter ingenho, ou ser mimoso ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 83
Não se corre de ter o mole braço
Mais destro em revolver cartas, e dados,
Que contra os infiéis as pontas d'aço!
Dá-lhes pouco de serem apoucados,
Pusilânimes, vis, baixos de esprito,
E noutros mores erros sepultados.
Limabeu.
Basta ! não digas mais do que tens dito,
Que te quero contar hum caso estranho,
Que dentro nas entranhas trago escrito.
Ah ! ditoso succèsso ! bem tamanho !
Cuja doce lembrança nesta praia
As lagrimas detém em que me banho !
Mas primeiro que a voz do peito saia,
Dize-me que se fez de Limiana,
Que chorando ficou ó pé da faia ?
Mincio.
Aquelle mesmo dia da semana.
Em que tu te partiste, se partio,
E partindo-se pôs fogo á choupana.
Finalmente que nunca mais se vio,
Por mais que em toda a parte se buscou,
Nem sabemos adonde se sumio.
/ Limabeu.
Agora faz dois annos que chegou
O silencio que rendeo seu esprito !
Meu nome deixo escrito, terra, e vida :
Se de ti for sabida, muito embora.
Deixa-me por agora brevemente
Alevantar a mente áquelle immenso.
AUi ficou suspenso, eu lastimoso:
84 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Espirito ditoso, que soubeste,
Do modo que quiseste, confundir-me,
E para mais ferir-me alli deixaste
Os versos, que guardaste até partir.
Tanto para sentir na tua morte
A minha, e tua sorte declarada
Na tua costumada letra antiga,
Estilo que me obriga a ficar mudo*,
Toma Mincio o papel, saberás tudo.
Soneto de Limiana.
Depois que conheci que não podia
O nosso justo amor ser apartado;
Como comigo a ti te tinhas dado,
Me dei comtigo a quem dar-me devia.
E posto que da minha companhia
Tanto tempo viveste desviado ;
Peregrino fui pobre agasalhado
De ti julgado tal, qual me fingia.
Foi vontade divina, rogo meu,
Minha consolação na vida humana,
Que vendo nosso amor posto no seu,
Visse nesta final praia Oceana,
Que sendo conhecido Limabeu,
De Limabeu não fosse Limiana.
Chamar-lhe deshumana não m'atrevo,
Antes louvá-la devo além de santa ;
Que tão mimosa planta, tão ditosa
Tanto como fermosa assi crescesse,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 85
Que no Ceo se colhesse fructo delia,
Não planta, mas estreila, cujos raios
Causam cem mil desmaios na leitura
Dos versos, que escrevi na pedra dura.
Epitáfio de Limabeu, e Limiana.
Eu vi do Ceo na terra a fermosura
No vestido dum pobre peregrino
Da terra para o Ceo voar segura,
Fosse ventura minha, ou seu destino:
Por minha mão lhe dei a sepultura,
Pela sua a levou amor divino :
De Lima naturaes na Lapa Oceana
Se enterrou Limabeu com Limiana.
k
ELEGIA I.
A huma ingratidão.
Secou-se para mim agoa no rio,
Secou-se para mim herva no prado,
Secou-se a folha no bosque sombrio.
Quantas lagrimas tenho derramado
Não poderão tolher esta seccura,
Que sem causa me tem tão lastimado.
Que mal faz a ninguém haver verdura
No campo, valle, ou bosque, ou na ribeira
Regada da divina fermosura ?
86 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não sei quem não deseje, não se queira
Aventurar no mal, que se imagina,
Por amizade d'alma verdadeira.
Pouco pôde empecer lingua malina •,
Pouco pôde morder o dente agudo
Do máo, que com tal bem tão mal atina.
Hum Deos que tudo vê, que sabe tudo,
Me seja testimunha da verdade,
Que não quero outro amparo, ou outro escudo.
Movido sô da sua caridade
Amei, amo, amarei quem mo merece :
Basta que delle tenho liberdade.
Se busco, ou se pretendo outro interesse,
No mal se pôde ver, que me tem feito,
Quão pouco me perturba, e me entristece.
Rasguem-me pelo meio este meu peito,
Tirem-me o coração, vejam-no fora,
Que bem fora o verão deste defeito.
Verão, que não suspira, geme, e chora
Pelo muito que doem dores tamanhas ;
Mas porque nellas sô padece agora.
Mandarem-me viver antre montanhas ?
Que cousa para mim mais natural,
Que descobrir-lhe magoas tão estranhas ?
Eu mesmo fui a mim o desleal;
Eu de mim mesmo fui cruel imigo ;
Eu mesmo fiz a mim tamanho mal.
Eu fui o que me fui para o perigo
De tanta ingratidão, tanta crueza ;
Eu só o que sô choro a mim comigo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 87
Neguei a minha própria natureza ;
Perdi a liberdade, em que vivia ;
E nunca (por meu mal) perdi firmeza.
Não fora sem razão haver hum dia
De quantos esperei, em que cuidara,
Que tinha nos meus males companhia.
Pelo menos, sequer, não me faltara
Saber que da ribeira me convinha
Fugir; pois para mim já se seccara.
Queixara-me de mim na magoa minha,
Dera gritos em vão, em vão gemera,
Culpara-me na culpa, a quem não tinha.
E não me desvelara, não temera
Que podesse passar enfadamento
Quem dos meus me livrara, se quisera.
Ora pois de tamanho sentimento
A lastimosa culpa pôde ser,
Que me não deixe livre o pensamento.
Aqui quero fugir, quanto puder,
De todas as humanas creaturas.
Esses cansados dias que viver.
Aqui conversar quero pedras duras,
Os brutos animaes, feras, serpentes.
Que não sabem mudar suas figuras.
Não quero ouvir palavras differentes
Do que dentro do peito do malino
Se determina obrar contra innocentes.
Bem sei que julgarão que he desatino
Fazer em toda a vida tal extremo,
Gomo na que me fica determino.
tJ8 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mas já nesta que vivo me não temo,
Que me possa mudar outra mudança ;
Tanto de cuidar nesta pasmo, e tremo.
Se mal fundei a minha confiança.
Se tão mal empreguei amor tão puro.
Porque não tomarei de mim vingança ?
Quanto mais cruel for, quanto mais duro
Contra mim, tanto mais serei mais brando;
Pois todo o mal em mim he mais seguro.
Assi me irei de todo acostumando
A ser tamanho imigo do meu gosto,
Que me fique esta magoa consolando.
Dous rios correrão pelo meu rosto,
Envoltos nos meu gritos, derramados
Noite, dia, manhã, tarde, sol-posto.
Os tristes versos meus dependurados
Nos troncos deixarei das verdes plantas,
Que das seccas assaz estão queimados.
Nelles escreverei além de quantas
Cousas já padeci, quantas padeço.
Por julgarem tão mal muitas tão santas.
Comtudo, meu Senhor, eu não me esqueço
Que rogastes na Cruz por gente ingrata ,
Eu por ella também perdão vos peço.
Se vós, meu Deos, rogais por quem vos mata,
Como não rogarei a vós. Senhor,
Que perdoeis a quem tão mal me trata ?
Bem claro vendo estou, quanto melhor
He ser injustamente perseguido.
Que poder ser d'alguem perseguidor.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 89
A cousa de que mais estou sentido
He ver que nos meus olhos faltou vista,
Para ver de que côr era vestido
Hum coração devoto do Baptista.
ELEGIA II.
Da Arrábida.
Alta Serra deserta, donde vejo
As agoas do Oceano duma banda.
E doutra já salgadas as do Tejo :
Aqueila saudade, que me manda
Lagrimas derramar em toda a parte,
Que fará nesta saudosa, e branda ?
Daqui mais saudoso o sol se parte;
Daqui muito mais claro, mais dourado,
Pelos montes, nascendo, se reparte.
Aqui sob-lo mar dependurado
Hum penedo sobre outro me ameaça
Das importunas ondas solapado.
Duvido poder ser que se desfaça
Com agoa clara, e branda a pedra dura
Com quem assi se beija, assi se abraça.
Mas ouço queixar dentro a Lapa escura,
Roidas as entranhas apparecem
Daquella rouca voz, que lá murmura.
Eis por cima da rocha áspera decem
Os troncos meio seccos encurvados,
Eis sobem os que nelles enverdecem.
90 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Os olhos meus dalli dependurados,
Pergunto ó mar, ás plantas, ós penedos
Como, quando, por quem foram creados ?
Respondem-me em segredo mil segredos,
Cujas primeiras letras vou cortando
Nos pés doutros mais verdes arvoredos.
Assi com cousas mudas conversando.
Com mais quietação delias aprendo
Que outras que ha, ensinar querem fallando.
Se pelejo, se grito, se contendo
Com armas, com razão, com argumentos,
Elias só com calar ficam vencendo.
Ferido de tamanhos sentimentos
Fico fora de mim, fico corrido
De ver sobre que fiz meus fundamentos.
AUi me chamo cego, alli perdido,
AUi por tantos nomes me nomeio.
Quantos por culpas tenho merecido.
Alli gemo, e suspiro, alli pranteio ;
Alli geme, e suspira, alli prantea
O monte, e vai de meus suspiros cheio.
Alli me faz pasmar, alli me enlea
Quanto colhendo estou da saudade.
Que por toda esta terra se semêa.
Ora me ponho a rir da vaidade.
Ora triste a chorar com quanto estudo
Erros solicitei da mocidade.
Tudo se muda em fim, muda-se tudo,
Tudo vejo mudar cada momento :
Eu de mal em pior também me mudo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 91
Soía levantar meu pensamento
Assentado sobre estas penedias
Duras, eu duro mais nellas me assento.
Punha-me a ver correr as agoas frias
Por cima de alvos seixos repartidas,
Que faziam tremer hervas sombrias.
As flores, que levava já colhidas,
Passando pelos valles engeitava
Por outras doutra nova cor vestidas.
O livre passarinho, que voava,
Cantando para o ceo deixando a terra.
Da terra para o ceo me encaminhava.
Cuidei que se esquecesse nesta Serra
A dura imiga minha natureza \
Mas donde quer que vou lá me faz guerra.
Oh ! quem vira naquella fortaleza
Rodeada de fogo de amor puro,
Daquelle amor divino est'alma accesa 1
Quão firme, e quão quieto, e quão seguro
No campo se posera em desafio !
E quão brando sentira o ferro duro!
Mas se agora de mim me não confio,
Se fujo, se me escondo, se me temo,
He porque sinto fraco o peito frio.
Alevantam-se os mares •, pasmo, e tremo :
Vejo vento contrario, desfaleço,
A corrente das mãos me leva o remo.
Confesso minha culpa, bem conheço
Que por mais graves males que padeça
Menos padecerei do que mereço.
92 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mandais, Senhor, que busque, bata, e peça,
Eu busco, bato, e peço a vós. Senhor,
Sem haver cousa em mim que vos mereça.
Com os braços na Cruz, meu Redemptor,
Abertos me esperai, c'o lado aberto,
Manifestos sinaes do vosso amor.
Ah! quem chegasse hum dia de mais perto
A ver c'os olhos d'alma essa ferida,
Que esse coração mostra descoberto 1
Esse, que por salvar gente perdida
De tanta piedade quis usar.
Que deu nas suas mãos a própria vida.
A sangue nos quisestes resgatar
De tão cruel, e duro cativeiro.
Vendido fostes vós por nos comprar.
Padecestes por nó>s, manso Cordeiro,
Pisado, preso, e nú antre ladrões.
Ardendo o fogo posto no madeiro:
Arcam postos no fogo os corações.
ELEGIA III.
Espiritual.
Senhor ! se minhas culpas me endurecem
Para me não valer do sentimento,
Que vossas cinco Chagas me merecem.
Donde porei, meu Deos, meu pensamento,
Se não em meditar que esta dureza
Se abrandará com seu merecimento ?
I
Obras de Fr. Agostinho da Cruz g3
Armou-se contra Vós toda dureza,
Malicia, ingratidão de gente cega ;
Quebrantaram-se as leis da natureza.
Eis hum que vos accusa, outro que nega ;
Outro diz : crucifica ! crucifica !
Eis iium dos vossos doze, vos entrega.
Eis huno, eis outro falso testifica ;
Eis á columna dura vos apegam,
Que tinta do innocente sangue fica.
Dalli, meu Redemptor, vos desapegam,
Arrastado vos levam para a Cruz,
D'espinhos coroado alli vos pregam.
Eu fui, eu sou, Senhor, o que vos pus
Nesse duro madeiro pendurado,
Donde morreis por mim, doce Jesus.
Por falta de não ter considerado,
Ou por falta de amor, que se vos deve,
Não choro, como devo, meu peccado.
Ah ! duro peito ! mais frio que neve !
Que antre diversas dores tão estranhas
Lhe falta sentimento em que se enleve!
Que vês por ti rasgadas as entranhas,
As brandas mãos, e pés atravessados \
E que em lagrimas tristes não te banhas !
Não duvido. Senhor, que meus peccados
Com gemer, e chorar, com pôr emenda
Diante de Vós sejam perdoados.
Quereis do peccador que se arrependa ;
Quereis que ponha em Vós a confiança,
E que peça perdão por mais que oôenda.
94 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que fora, se não fora esta lembrança ! .
Ai que fora de mim, se não tivera
Tão firme posta em Vós minha esperança 1
Se ver-vos nessa Cruz me falecera
Donde morrer quereis por quem vos mata,
Ai ! triste de mim, triste que fizera ?
A puro sangue vosso se resgata
A minha salvação ; custa-vos cara,
E Vós oftereceis-ma tão barata !
Novo caso de amor! quem penetrara
Quanto s'encerra em passo tão estreito 1
Fere-vos, meu Senhor, o que me sara.
A mim que tantos erros tenho feito,
A mim tão cego, duro, secco, e frio
Os braços estendeis, abris o peito ?
Pouco faço, Senhor, se me confio
Nos extremos de amor, que me mostrais ;
Posto que de Vós tanto me desvio.
Que em fim Vós me dizeis que não chamais
Justos, mas miseráveis peccadores ;
Inda que outro nenhum possa ser mais.
Eu confesso que sou o mór dos mores ;
Accuso-me por tal, qual Vós sabeis ;
Alembrai-vos da dor de vossas dores,
Vosso sou, meu Senhor, não me engeiteisl
Obras de Fr. Agostinho da Cruz gS
ELEGIA IV.
Na tribulação de huma pessoa amiga.
Quero chorar-me agora aqui cercado
De plantas, e penedos nesta Serra ;
Pois não tenho de quem seja chorado.
Cruel me foi a minha própria terra
Em que nasci; cruel, e deshumano
O sangue meu, que nella me fez guerra.
Movido de tão claro desengano,
Desconfiado vim de nunca mais
Tornar a confiar em peito humano.
Mas o que me faltou nos naturaes.
No peito que busquei, ah ! verdes plantas !
Que tal ouvis contar, que não seccais !
O Senhor me quis dar além de tantas
Graças numa alma só em terra alhea
Nascida d'outras mais entranhas santas.
Por isso se esta minha aqui prantêa
Com tão estranha dôr, tão soltos gritos,
He pela ver de tantas magoas chea.
Não me lembram meus males infinitos^
Desgostos nenhuns já neste meu peito
Trago, senão os seus agora escritos.
Oh ! Virgem, se não foi meu rogo aceito
A Vós para aliviar de tantas dores,
Das lagrimas, que choro, havei respeito 1
96 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Se Vós servos fazeis dos peccadores,
Como não cuidarei que me fareis
Vosso, posto que seja o mór dos mores.
Vós sois A que por mim offereceis
A quem vistes morrer por me dar vida
Quantos dos meus suspiros comprendeis.
Já vo-la tenho, Virgem, offerecida ;
Peço-vos que tenhais delia lembrança.
Pois não pôde de mim ser esquecida.
Em Vós tenho, Senhora, a confiança,
Que tudo lhe dareis quanto deseja ;
Que quem em Vós confia tudo alcança.
Não he justo, Senhora, que lhe seja
Menos firme, fiel, menos leal.
Por mais longe que delia agora esteja.
Que bem pouco aproveita, pouco vai
Não poderem ver olhos o que querem
Para diminuir firmeza tal.
Façam, desfaçam tudo o que quiserem ;
Que tolher se não podem saudades
D'amor, que por amor divino ferem.
As justas bem fundadas amizades.
Que só Christo Jesus tomam por guia,
Não se desfazem, não, com novidades
Mudanças de tristeza, ou d'alegria
De tempo, de lugar, longe, nem perto
Nunca mudarão ser do que soía.
Quantas lagrimas cá neste deserto
Tenho por tua causa derramadas
Por te encerrar naquelle peito aberto?
I
Obras de Fr. Agostinho da Cru2 97
Naquelles pés, e mãos na Cruz pregadas,
Naquellas cinco Chagas do Senhor,
De quem tantas mercês tens alcançadas ;
Que não podes teus olhos nella pôr,
Que não fique tua alma consolada,
Seja atribulação quamanha fôr.
Enfim se viver queres descansada,
Da lança, cravos, Cruz, e da Coroa
D'espinhos sempre vive trespassada.
Outra cousa na vida te não doa ;
Noutra não vás buscar contentamento,
Confuso donde quer qu'esta não soa.
Não. faças doutra cousa fundamento,
Não deixes passar nunca levemente
Outra nenhuma pelo pensamento.
Qualquer pequena dor do mal presente
Não vos deixa sentir quamanho bem
He soôrer por Deos tudo alegremente.
Bem cegos são os olhos, que não vem
Quanto podem durar gostos humanos.
Com tantos quantos seus desgostos tem.
Passam dias, e meses, passam annos,
A vida com o tempo vai fugindo,
E nós dos seus, ou nossos desenganos.
Assi se nos vai tudo consumindo;
Assi de mal em mal imos cavando
A negra terra, que nos vai cobrindo.
"Quantas vezes me deixo ir suspirando
Aqui por esta Serra só comtigo,
E quantas tu comigo só chorando !
98 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
He muito pouco tudo quanto digo;
He muito mais do que podes cuidar,
Se sabes estimar tamanho amigo.
Bem pôde falecer agoa no mar,
Bem podem deixar pedras de ser duras,
Mas tu não deixarás de me lembrar.
As amizades d'alma são seguras :
No Ceo não pode haver senão pureza
De cousas muito claras, muito puras.
A rocha, que de sua natureza
Em todo o tempo está firme, e segura,
Não me faz aventagem na firmeza.
Nascem algumas plantas na espessura
Do bosque, que por calma, nem por frio,
Nunca perdem já mais sua verdura.
Não deixa de correr o claro rio
Por encontrar com duras penedias,
Antes nellas se faz mais corredio.
O Senhor te dê tantas alegrias,
Quantas aqui lhe peço de contino :
Elle nos faça arder noites, e dias
No seu divino amor, amor divino.
ELEGIA V.
Da Ingratidão.
Claras agoas nascidas das entranhas
De tão duras, desertas penedias.
No meio de tão ásperas montanhas.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 99
Se vós me segurais que estas sombrias
Plantas não perderão sua verdura,
Nem vós o curso vosso, oh ! agoas frias !
Direi o galardão, que da brandura
Da minha condição tenho alcançado
De toda a viva humana creaiura.
Trazia o meu salteiro temperado
O' som do gosto alheo ; aqui cantava
Sem me lembrar de mim, nem ser lembrado.
Na ribeira, no valle, em que pastava,
Rosas, lirios, violas repartia ;
E com menos quinhão me contentava.
Sabe Deos quantas vezes as colhia
Em lagrimas banhadas, sabe quanto
Sangue d^s carnes minhas as tingia !
Se no bosque soava o doce canto
Do livre passarinho, longe ou perto,
Soava muito mais meu triste pranto.
Ajudavam-me os montes do deserto
A chorar, e gemer o mal alheio ;
Que farão quando o meu fôr descoberto ?
Dum mal noutro maior a tanto veio
A fera ingratidão dum noutro peito,
Que deixou este meu de magoas cheio.
Cheguei a ver-me em passo tão estreito,
Que quasi duvidei se consentira
Em me pesar do bem, que tinha feito.
Ah ! quem não tivera olhos com que vira
Tomar hum coração ingrato, e duro,
Armas com que de novo se ferira 1
100 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Bem sei que já não posso estar seguro
De me doer do mal, que outrem padece ,
Porque me obriga amor por amor puro.
Mas tanto cresce a dor, tanto mais cresce
A magoa de trocar minha esperança ;
Que, se me não perturba, me entristece.
Quem tão mal empregou a confiança
Não se espante da dôr, que assi lastima,
Antes de haver no mal tanta tardança.
Primeiro me queixei junto do Lima-,
Agora muito mais junto do Tejo :
Pouco me aproveitou mudar o clima.
Não soube limitar o meu desejo ;
Cuidei que quanto mais, tanto melhor;
Não vi que do bem máo faz o sobejo.
Nas hervas nasce folha, fructo, e flor,
Nas ovelhas a lã, na palha o trigo,
No coração ferido nova dôr.
Não sei para que quero ser amigo ;
Pois só pura amizade me faz guerra,
E nenhum outro mal pôde comigo ?
Fallo da que no meu peito se encerra,
De que em lugar de fructo colho espinhas:
Ah 1 doudo, que mais tem que dar a terra 1
Daquellas esperanças, que sostinhas.
Cuja magoa de novo inda pranteas.
Que menos do que vês já visto tinhas?
Porque te cegas mais, porque te enleas ?
Que esperas de colher das pedras duras,
Donde plantas amor, donde sêmeas ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Aquellas saudosas fermosuras,
Que fazem refinar alma em pureza,
Enxergam-se em mui poucas creaturas.
Não soífre amor divino que dureza
Dure no coração, donde se accende;
Que seu he mudar nossa natureza.
O que mais puramente amar pretende
Quanto mais ama só, tanto mais ama ;
Que enfim o repartido menos rende.
O rio, que correndo se derrama,
Mais tarde ciiega ó mar, que vai buscando :
A planta sobe mais com menos rama.
Ah ! quanto mal me faz hum ser tão brando !
Que com peitos humanos toda minha
Quietação estou despedaçando,
Sem proveito, sem cura, nem mezinha.
ELEGIA VI.
Estando na Arrábida.
Agora que de todo despedido
Nesta Serra da Arrábida me vejo
De tudo, quanto mal tinha entendido;
Com mais quietação, livre desejo,
Nella quero cavar a sepultura,
Que não junto do Lima, nem do Tejo.
Aqui com mais suave compostura
Menos contradição, mais clara vista
Verei o Creador na creatura.
102 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
As forças cresceram com que resista
A dizer-vos humanos pensamentos,
Para que dos divinos só me vista.
Naquelles mais fermosos aposentos
Repouso buscarei acompanhado
Doutros mais saudosos sentimentos.
De plantas, de penedos rodeado,
Que não perdem verdura, nem firmeza
Por tempo em tempo mais destemperado.
Renovarei motivos de tristeza,
Para mais suspirar, considerando
A sujeição da fraca natureza.
Dum valle noutro valle vagueando,
Hum lugar buscarei medonho, escuro,
Donde comigo só me este queixando.
Quão triste ficarei, e quão confuso !
De ver aves, e feras desculpadas
De culpas, que não sei, como me accuso!
Por meio dos rochedos semeadas
Verei dependurar silvestres plantas
Verdes em pedras duras sustentadas.
Quantas cousas verei, maiores quantas
De cuja creação, de cujo objecto
Resultam confusões tantas, e tantas ?
Se aqui não derreter neste meu peito
A congelada neve, em que me esfrio,
Mal, a que já de longe estou sugeito,
Em qualquer outra parte desconfio
Da minha pretensão-, pois qualquer leve
Cousa cortar me deve o fraco fio.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz io3
Que fructo colher pôde nesta breve
Vida quem para a morte vai correndo
Sem nunca descansar, que mais releve ?
Se pelo largo mar olhos estendo,
Se nestas penedias os penduro,
Ora subindo o sol, ora descendo,
Certificado mais, muito mais puro.
De todo se resolve o pensamento.
Que quanto mais deserto, mais seguro.
Discorrendo dum noutro fundamento,
Huma vez me perturbo, outra m'indigno*,
Outra com puras magoas arrebento.
Poderoso Senhor, manso, benino.
Quem pôde penetrar mercês tamanhas.
Recebidas de Vós desde minino !
Que campos, que ribeiras, que montanhas
Pastei, passei, subi, com vossa ajuda
Por terras naturaes, e por estranhas !
Oh ! como se converte, rende, e muda
Aquella alma ditosa que trespassa
De amor celestial a setta aguda 1
Quão leve, quão ligeira voa, e passa
Pelos laços sutis da vida humana;
E como na divina se compassa !
Na doce perenal fonte, que mana
Do Ceo, toda banhada se recrea.
Segura de tocar noutra profana.
O que nos largos campos se passea,
Subindo nesta Serra se caminha
Atalhando o que nelles se rodea.
104 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Oh ! Serra das estrellas tão vizinha,
Quem nunca de ti, Serra, se apartara !
Ou quando se partira esta alma minha
Da terra, nesta tua me enterrara ?
ELEGIA VII.
Ao fim da vida.
Como cisne, que canta na ribeira,
O repouso da vida festejando.
Que sente naquella hora derradeira ;
Eu que da minha já me vou cercando
Aqui quero cantar ( se cantar deve
Quem deve dentro d'alma andar chorando).
Adonde vai parar a vida breve,
Convertida a velhice em mocidade,
Huma pesada tanto, outra tão leve ?
Com quanta confusão se persuade
A nossa depravada natureza
A seguir a mundana vaidade?
Oh ! quão cega se deixa levar presa
Dum falso gosto seu, dum vão desejo !
Qual convertido em dor, qual em tristeza :
Eu do Lima me vim pastar ó Tejo;
Depois detrás da Serra nas salgadas
Agoas, que para mim tão doces vejo.
Ajudam-me a chorar culpas passadas ;
Das que se representam me defendem
Nas lapas, que por tempo tem lavradas.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz io5
As suas roucas ondas me reprendem
De não considerar taes aposentos,
Quaes levar, e lavrar sempre pretendem.
Convida-me a criar remordimentos
A limpeza daquellas penedias,
Mais limpas do que são meus pensamentos.
Em quantas cousas mais por tantas vias
Acho tantos motivos de afrontar-me
Por ser que todas mais de entranhas frias ?
Pôde quem tudo pôde melhorar-me,
Tanto no que pretendo, inda que indigno,
Que sinta de amor seu todo abrazar-me.
Suave, doce meu amor divino,
Aqui donde vim ter, como sabeis,
Acabar suspirando determino.
Suspiro porque nunca me deixeis
Apartar-me de Vôs hum só momento,
Nem já mais Vôs de mim vos aparteis.
Bem vos posso allegar merecimento
Da morte, e paixão vossa, antes da minha,
Da minha redempção, vosso tormento.
Inda vossa bondade me não tinha
Formado, Senhor meu, quando morrestes
Por me salvar na Cruz, que vos sostinha.
Alli, manso cordeiro, ofierecestes
Nas mãos dos cruéis lobos vossa vida,
Que tirada, tirar-lha não quisestes.
Abriram-vos no peito huma ferida ;
Quatro nos pés, e mãos, depois que estava
Vossa carne de açoutes já delida.
io6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
A. piedade então donde morava
Aquella, que quebrou as pedras duras,
Que corações humanos não quebrava ?
Eis o sol perde a luz, fica ás escuras :
Rompe-se o véo do Templo ; a terra treme ;
Os mortos vivos saem das sepulturas.
Quem não chora, Deos meu, suspira, e geme !
O' quem de pura dor não arrebenta !
Quem toma mais na mão remo, nem leme !
Que me colha no mar huma tormenta,
Ficando a salvação posta em perigo,
Podendo lograr pobre vida isenta?
Desn' hoje mais parente, nem amigo
Me busque, nem me falle, nem me veja ;
Tanto me dá moderno como antigo.
Tudo me cansa Já, tudo me peja,
E pouco basta já para soster
O pouco que da vida me sobeja.
A praia tem marisco que comer
Amêijoas, bribigões na branca arêa.
Que facilmente posso revolver.
A pedra que dos mares se rodea,
Chea de lapas pardas apparece,
De negros mixilhôes mda mais chea.
A vermelha santola não falece,
Outro com seu pé curto revirado.
Seu não, antes de cabra me parece.
E quando se mostrar muito alterado
O mar, que seu marisco me defenda,
O bosque está daqui pouco afastado.
Obras de Fr, Agostinho da Cruz 107
Quer suba a planta nelle, quer se estenda,
Escolherei no ramo o mais maduro
Fructo sem damno alheo, e sem contenda.
E se caçar quiser eu pelo escuro
( Deixo na arribação dos passarinhos )
A pouco na pobreza me aventuro.
Que bem sei enlaçar pelos caminhos
Huns animaes que trazem na cabeça
Dois ramos cada qual cheios de espinhos.
E se na larga praia, ou mata espessa
O premio falecer do meu trabalho ;
Não temo que de cima me faleça.
Não me posso perder por este atalho;
Posto que tarde vou, que não perderão
Por tarde os desta vinha, em que trabalho,
Na qual os derradeiros precederão.
ELEGIA VIII.
Da ausência justa conjugal.
Se neste apartamento me faltara
Hum desejo enganado de esperança,
A vida consumida me deixara.
Quanto lastima mais, quanto mais cansa
Cuidar que faço offensa a amor tão puro,
Que não pôde sofFrer desconfiança ?
Inda que me não pôde dar seguro
Aceso em peitos nossos differentes,
Que sempre o da mulher he menos duro.
io8 Obras de Fr, Agostinho da Cruz
Veja-se nos extremos dos absentes
Quem pôde resistir a saudades.
Quem lagrimas seccar, tristes correntes ?
Em tantas, e tão feras tempestades,
Quem pôde assossegar, para que conte
Adversas, e diversas novidades.
Tristes dos olhos tristes, que defronte
Vem branquejar d'além huma sô parte,
Escurecer d'aquem o raio ao monte !
Que licença me dá, para que aparte
A. vista, brando amor, donde m'encerra,
Se em parte outra nenhuma se reparte ?
Deixem-me caminhar a breve terra.
Que não podem tolher o pensamento;
Verão quão pouco temo inglesa guerra.
Formara horrível som fero instrumento,
Reluzira de perto o ferro imigo,
Faltara-me da absencia o sentimento.
Se para me livrar de môr perigo
Se foi, e me deixou, não o deixando ,
Errou não me levar antes comsigo.
Que mal se fica a vida segurando,
Quando de dor se vai mais consumindo,
Sempre numa só cousa imaginando ?
Poderá divertir-me vendo, e ouvindo
Do mal que está por vir, não do presente,
Que sem ver nem ouvir-me está ferindo.
Se me concede amor tão justamente
Não ter meu coração do seu diviso.
Porque lhe não defende estar absente ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 109
Não sei para que mais contemporizo.
Temendo que dirão quando me fôr:
— A triste por amor perdeu o siso.
Ficarei por ventura então pior,
Ficando do meu mal remediada
Pondo por obra as leis do justo amor.
Que possa ser de néscios mal julgada,
Quero : que de prudentes reprendida
Não me será melhor que sepultada?
O que me dilatou esta partida,
Não sofire dilação já neste estado;
Que se vai esgotando a triste vida.
Quem fez amor igual mais libertado
Ah ! triste ! que não sei quanto he igual ;
Pois nisto o sinto enfim desigualado !
Que presta, de que serve, que me vai
No nosso apartamento hum pinhor certo ?
Por certo que inda foi para mór mal.
Que viva na cidade, ou no deserto,
Quando lhe dei a minha mão direita.
Não se apontou tal cousa no concerto.
Queres-me consolar, pouco aproveita,
Usando de palavras de brandura ?
Pois a vista não fica satisfeita.
Não sei qual outra mór desaventura
Possa criar em mim maior tristeza.
Que ser firme sem ser de pedra dura.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ah ! quem trocar pudera a natureza !
Imitando da planta a folha leve,
E da rocha mais dura mór dureza.
Que firme, e brando peito não se atreve
A poder resistir a mal tamanho,
Quamanho delle a absencia mo descreve.
As lagrimas de amor, em que me banho,
Testimunhas me sejam do que sinto ;
Pois por obedecer não acompanho.
Nesta tamanha magoa ás vezes pinto
Cruel o meu amor, ah ! quem pudera,
Sonhar este só bem, que não consinto !
Por ventura que assi me defendera :
Fosse por breve espaço neste peito,
Onde o fogo repousa em branda cera.
Que mal, meu justo amor, te tenho feito,
Que me negas a vista doce, e branda
Minha, e tanto minha por direito ?
Não vês que se quiser fazer demanda,
Manifesta justiça me sobeja ?
Não vês que a lei de Deos assim o manda?
Manda que adonde estás também esteja,
Tu que estejas adonde estar me mandas;
Agora ordena tu como isto seja,
— Não queiras que antre nós haja demandas.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
VILANCETE.
Que desculpa pôde dar
Amor a quem
Passando deixou áquem ?
Que poderá succeder
Por mais mal que succedera,
Que menos mal não soífrera
Do mal, que possa soíFrer ?
Que tem mais que bem querer
Quem quer bem
Sem dar desculpa a ninguém ?
Eu não sei que Amor me manda
Se manda que não te sig.i,
Menos seja quem te obriga.
Pois me deixas desta banda.
A mim só amor abranda,
Não a quem
Se foi, e deixou-me áquem.
ELEGIA IX.
A morte de seu irmão Diogo Bernardes.
Claras agoas do nosso doce Lima,
Seccou no Tejo já vossa corrente,
Onde me sécca a dôr, que me lastima.
Lembranças de vos ver suavemente
Correr ó som da voz, que em vós soava,
Não me deixarão já viver contente.
lia Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Lembra-me a tenra idade que passava,
Logrando-me daquella companhia,
A quem tanta brandura acompanhava.
Lembra-me quantas vezes succedia
Das plantas, e das fontes convidados
Aceitar sombras frescas, agoa fria.
Outros mil pensamentos renovados
A magoa me ofFerece, imaginando
Que nunca hão de tornar tempos passados.
Fique-se o mundo já desenganado.
Que não se abranda a morte com brandura;
Pois a não abrandou teu peito brando.
Que mór consolação, que mór ventura
( Antes quanto favor de Deos alcança )
Quem dá na vida á vida sepultura 1
Ah ! claro, e charo Irmão ! que confiança
Me fica neste passo, saber certo
Que tinhas lá no Geo tua esperança !
Sabias que da morte andavas perto. . .
Perto também de Deos a desejavas,
Como dantes me tinhas descoberto.
Que nem sempre do Lima praticavas.
Nem sempre cá no Tejo só comigo,
Nem tudo era poesia o que tratavas.
Eras além de irmão mais meu amigo
Por me veres do mundo despedido,
Cujos males chorar vinhas comigo.
Tinhas chorado assaz, tinhas gemido
O tempo vão da verde mocidade,
Na velhice madura conhecido.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 1 13
Não se deixa sentir a vaidade
No principio da vida grangeada,
Quando contra razão reina vontade.
Dum gosto noutro falso encaminhada,
Não sofFre mais ouvir, do que deseja,
Nem sabe desejar cousa acertada.
He necessário pois que se proveja
D'alheo parecer na causa sua ;
Porque na sua o seu sempre manqueja.
Mas porque mais não note, nem argua
Os defeitos comrauns da natureza,
Dos meus quero tratar na morte tua.
Eu cuidava bastar a fortaleza
Da solitária Serra, em que eu habito,
Para fortalecer minha fraqueza.
Mas nella se abalou mais meu esprito.
Que chorando não fica consolado
Nas lagrimas de amor, em que se banha.
ELEGIA X.
Ao mesmo.
Junto das bravas agoas Oceanas
Choro quanto cantei na mocidade
O' som daquellas mansas Limianas ;
Daquellas, que já foram noutra idade
Com nome de Letheas celebradas
Por lhes faltar do curso a liberdade.
1 14 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que estando tanio tempo represadas,
O tempo lhes deu nome d'esquecidas,
Até lho dar Bernardes de lembradas.
Mostrai-vos, claras agoas, tão sentidas,
Quanto vos deu Bernardes de brandura,
Vejam-vos de correr ficar corridas.
Deixai seccar nos campos a verdura,
Como já nos do Tejo se seccou,
Por darem a Bernardes sepultura.
Mostrai mais do que nelles se mostrou ;
Pois o ser natural mais vos obriga,
Além de quanto mais vos obrigou.
Cuidai que não se achou memoria antiga,
Que tanto vosso nome celebrasse.
Quanto não faltará quem melhor diga.
Ainda que se agora não deixasse
De lhe dar o louvor que se lhe deve.
Não faltaria quem me desculpasse.
Mas quem tão differente do que teve
A vista dos seus olhos, desencolhe,
Quanto mais quer louvar, menos se atreve.
Que de humanos louvores não se colhe
Outro fructo, senão remordimento
De quem semea, e mais de quem recolhe.
Podera-me abalar o sentimento
Da fraca humanidade noutra terra,
Não nesta, em que só pobre vivo isento.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz ii5
Mettido numa lapa desta Serra,
Que tenho que esperar ou que temer
Nos successos da paz, ou nos da guerra?
A morte já não tem que me empecer,
A vida pouco já deve durar,
A conta não me fica por fazer.
Poderam-se os gentios quietar,
Sem gosto da christã filosofia,
Com gostos desta vida desprezar.
Quanto mais o que delles se desvia,
Escolhendo o melhor, e mais seguro,
Por outra mais suave, e doce via ?
Onde se faz mais claro o mais escuro,
Onde muito mais leve o mais pesado,
Onde muito mais brando o que mais duro.
Onde se o pé descalso he magoado,
Se cura com lembrar que seu Senhor
O foi nos pés, e mãos, cabeça, e lado.
A tanto se estendeu o Redemptor,
Que pelo meu trocou seu amor, sendo
O seu de Deos, o meu de peccador.
Daqui não sei passar, aqui suspendo,
Quanto posso alcançar, quanto sentir;
Pois que me vejo amar de quem offendo.
Donde posso acabar de concluir.
Que quando não puder chegar amando.
Suprirei com desejos de servir.
1 16 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Pôde ser que se abrande, desejando,
Tanto no peito meu minha dureza,
Que de duro se venha a fazer brando.
Para que sinta esta alma em fogo accesa
Tanto quanto mais nelle arder deseja,
Sem mais contradição da natureza,
Da que divino amor quiser que seja.
EPIGRAMMA.
Á morte de hum moço.
Alma já tão ditosa entre as ditosas,
Em paz goza de quem lá te levou,
Livre das mortaes ondas furiosas,
Que, posto que esta minha suspirou
Por ti com muitas outras, saudosas.
Não se esquece de dar a Deos louvores,
Por não fiar do vento as brandas flores.
Outro ao mesmo.
Tamanha foi a dor, a magoa minha.
Que me queixei do Ceo, porque levava
O seu, que para si na terra linha.
Havê-lo de levar não duvidava,
Mas sofFre mal amor ser tão asinha.
Levar o Ceo o seu não foi crueza.
Mas que farei ás leis da natureza ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 117
ODA I.
As mudanças do tempo.
Largos campos do Tejo,
A cuja vista crescem
Tristes queixumes de cruéis lembranças;
As flores que em vós vejo
Alegres me entristecem,
Por ver que são sugeitas a mudanças.
As minhas esperanças,
Que tinha por seguras,
Já não tornarão mais,
Que como vos seccais
Assi me deixam ellas ás escuras.
Ah ! leves fundamentos !
Flores que seccas levam leves ventos !
O mal que não se espera
Traz outro mór comsigo,
Que não pôde ser bem remediado.
Conheço que devera
De imaginar comigo,
Que sécca agoa na fonte, herva no prado*,
Mas inda neste estado
Todas as magoas minhas
Me não deixam morrer:
Não vemos nós nascer
Rosas muito fermosas nas espinhas ?
Assi na mór crueza
Se apura muito mais toda firmeza.
Se tão suavemente
O passarinho canta,
Movido só da sua saudade *,
ii8 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que fará quem se sente
Magoado de tanta
Misturada com faltas de amizade ?
Mudanças da vontade,
Que pena mereceis
Por serdes argumento
Dum novo sentimento
Maior que quantos males me fazeis ?
Triste de quem se engana
Com folha, que o sol secca, o vento abana !
Se no valle, ou na serra.
Povoado, ou deserto,
Minha alma sem o bem doutra deseja
Algum gosto na terra.
Quer seja longe, oú perto,
Sem quantas cabras tenho inda me veja !
Por mais verde que seja,
Se seque a verde planta,
O sol me seja frio,
Não ache agoa no rio,
Se quero mais que ver huma alma santa,
Buscando de contino
Com tão puro desejo amor divino.
Confio só naquellas
Chagas, que padeceu
Por todos meu Senhor liberalmente,
Que por cima de estrellas
No Empiréo ceo
Viveremos com elle eternamente.
Meu Deos Omnipotente,
Vós só por nossa guia,
Sem viva creatura.
Na vossa fermosura
Abrazai duas almas noite, e dia ;
Por vós arcam, Deos nosso.
Arcam de puro fogo d'amor vosso.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 119
Não julgue mal ninguém,
Não será condemnada
A tenção, com que julga o que não deve ;
Veja primeiro bem,
Se tem tenção damnada
Aquelle que julgar outrem se atreve.
Faz o juizo leve
Da verdade mentira ;
Faz muitas differenças,
Torcer muitas sentenças ;
Faz amolar o ferro, faz que fira.
Ditoso quem padece
Alegremente, quanto se oflerece 1
ODA II.
A D. Diogo Lopes de Lima.
Senhor, se me esquecera
Da minha natureza,
A quem nunca se nega o que se deve,
Ainda que correra
Com sua agoa mais tesa
O Lima, que de seu tão branda a teve ;
Não passará tão leve
Por elle o pensamento,
Que não fora forçado,
Sentindo-me obrigado
A pagar o devido sentimento
A' minha saudade •,
Pois para amar não falta liberdade.
Daqui d'antre estes montes
Tão pobres de verdura,
Como nunca vos vejo, .de alegria,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Dos novos orizontes
Antiga fermosura
Ora me inflama todo, ora me esfria :
Não ha noite, nem dia
Na vida, que tornasse;
Inda que desviado
Do curso acostumado
O carro de seu pai já governasse
Faeton, desejoso
De fazer seu imigo mentiroso.
Não sei para que cansa
Quem sempre mais deseja,
Se não morre de fome, nem de frio ?
De que serve a privança
Por mais alta que seja,
Se nunca com os meus olhos me rio?
Por força corto o fio*,
Porque outrem me não corte
Do meu próprio gosto,
Todos me dão de rosto.
Té que vem a quebrar pelo mais forte.
Então me desengano.
Que basta pouco pão, e pouco panno.
He muito differente
Do que ó longe apparece
O verde bosque visto de mais perto!
Nem para toda a gente
Mais fermoso apparece
O dia pelos valles do deserto!
Quantas vezes desperto
Gritando ó nosso Lima
Porque se não consuma
No mar, como costuma,
Pois livre correr pôde para cima?
Quem vos visse apartadas.
Doces agoas do Lima, das salgadas !
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i»i
ODA III.
A Francisco Barreio de Lima.
O tempo que fugindo
Com tamanhas mudanças
Desengana quem nelle se confia,
Abatendo, e subindo
Diversas esperanças.
Me faz, Lima, cuidar o que faria
Se faltasse agoa fria,
Se me escusasse a tua,
Por mais clara que seja 1
Quem me tolhe que veja
Claro de dia o sol, de noite a lua,
Buscando a fermosura
De quem fez tão fermosa a creatura ?
Confias na corrente
Com que te vás ó mar ;
Lima, meu doce Lima, onde feneces ?
Olha quam brevemente
Salgadas vás tomar
As doces agoas nelle, com que deces 1
Se do tempo te esqueces.
Em que te faltou agoa
Para livre correr ;
He muito de temer,
Que chores outra magoa,
E por ventura quando
Não tenhas quem comtigo este chorando.
Posto que por ribeiras
De verdes arvoredos.
it2 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Por cima d'alvos seixos vás correndo,
As arêas primeiras,
Que por antre penedos
D'huns noutros murmurando vás volvendo,
Em montes vão crescendo,
As hervas afogando,
Que não deixam dar fruito.
A mim custa-me muito
Andar desareando,
Vendo por culpa alhea
Os tristes olhos meus cheios de área.
Por mais claro que saias
Da tua fonte clara,
Lima, também de limo vás coberto.
O campo donde espraias,
Seu fruito não negara,
Se de todo ficara descoberto.
Rústicos lavradores
Colhem o que Deos cria;
Eu não duvidaria.
Que fruito dessem flores
Orvalhadas de cima ;
Pois quanto a terra dá no Geo se lima.
Aquelle que deseja
O que por si não pôde,
Aquillo ha de buscar com que se alcança.
Não pôde ser que seja
O que mais tarde acode,
Pelo menos sem culpa de tardança.
Quem sofre outrem descansa,
Mil vezes se arrepende,
Outras tantas se queixa,
Que em mãos alheas deixa
Aquillo, que alcançar tanto pretende.
Erra quem se grangea,
Devendo ser a sua á custa alhea.
J
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i23
Que me presta que faça
Por mim, por almas santas,
Ainda muito mais do que me pedes ?
Pôde ser maior graça,
Que chorar quando cantas ?
E que para ti peça o que m'impede ?
Alembre-te que medes,
E que has de ser medida ;
Regista com a vida
O que tenho pedido,
Verás que se dilata
A petição, que pedes tão barata.
Orou o Sacerdote
No templo do Senhor
Por Anna reprendida, e mal julgada ;
Orou ella de sorte,
E com tanto fervor,
Que sua petição foi outorgada.
Oração ajudada
De quem n'ade lograr
He muito mais aceita.
Quem a dormir se deita
Que espera d'alcançar?
Alma, que está disposta,
As mercês do Senhor tem por resposta.
A força do desejo,
Que não soffre razão,
Sepultada no gosto a que se entrega,
Ordena mal sobejo.
Que dor de coração
E não poder valer a quem desejo !
A vaidade pega,
A malicia crece.
Adulação governa.
Gloria, e pena eterna
Na vida se merece.
124 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Duas almas num Lima !
€ Bisogna questa mia salvar prima ».
Vai confiado, vai donde te mando,
Duro papel, ou brando^
Que no fogo de amor tudo se apura,
E noutro muito pouco se aventura.
ODA IV.
Na condição da vida humana.
Verdes bosques da Serra
Por antre penedias
Por mãos da natureza repartidos.
Que me fica na terra
No fim já de meus dias,
Tristes tão nesciamente consumidos,
Se não dobrar gemidos
Envoltos na lembrança
De tamanha cegueira,
Pois que na flor primeira
Trabalhei por cortar minha esperança ?
Ah ! quem se consumira
Desta magoa primeiro que cahira !
Por mais que se combata
Com furiosos ventos,
O mar fora não sahe do limitado*,
A creatura ingrata
Com leves movimentos
Se desmanda do que lhe está mandado !
Oh ! desventurado.
Triste modo de vida!
Iniiga liberdade !
D'amor suavidade.
A
Obras de Fr. Agostinho da Cruz laS
Que meus peccados deixam destruída !
O mar guarda a lei sua ;
Mas eu, Senhor, não guardo a minha, e tua!
Os montes levantados,
Os valles abatidos
No seu lugar antigo permanecem
Em parte avantejados;
Pois que não compungidos
Do sentimento d'alma que carecem;
E com tudo obedecem
Com nunca se mover,
Movendo-me á tristeza.
Diversa natureza
Da sua, a que não turba obedecer !
Livres montes, e valles
De sentir, e gemer, de chorar males.
Nas feras, e nas aves,
Posto que sensitivas,
Alheas de sentir perda tamanha.
Acho cousas tão graves,
Tão desconsolativas,
Que a mesma confusão me desentranha.
Tanto, que na montanha
Por tudo quanto vejo
Me desejo trocar.
Por ver melhor guardar
A lei, que contradiz o meu desejo.
Criado nestas feras
Entranhas d'aves mais, mais que de feras.
Inda nas pedras duras,
Na sorte differentes
Da minha, muito mais dest'alma imiga,
Não se criam branduras
Passadas, e presentes,
Onde por hum descuido se periga ;
126 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
A sua lei antiga
Guardando firmemente
Sem mais contradição
Da sua condição,
Desta minha me fazem descontente,
Que sendo no bem dura,
No mal só por meu mal cria brandura.
Ai triste que desculpa !
Ou qual fingida escusa
Darei da vida minha mal gastada !
Eis o mar que me culpa ;
A terra, que me accusa,
Mostrando merecer pena dobrada.
Toda cousa criada
Me afronta, e me reprende
Com justiça sobeja.
Toda me faz inveia,
E toda finalmente me suspende
Vendo-me, e nella vendo
Que louva o Greador, a quem offendo.
Oh ! quanto mais se aggrava
Aqui neste deserto
A triste confusão da culpa minha !
Pois quando imaginava
Tamanho desconcerto
Poder remediar, quamanho tinha ;
Deste lugar me vinha
Huma doce lembrança.
Que me dava seguro
Deste meu peito duro,
Que como dantes inda aqui me cansa.
Que lugar, ou que parte
Acharei, que de mim mesmo me aparte !
Que presta, que aproveita
Fazer-se mil mudanças
k
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 127
No trajo, na feição, e no pacigo ?
Que faz quem tudo engeita,
Quem perde as esperanças
Do mundo, se se perde assi comsigo?
Se acabara comigo
Fazer apartamento
De mim, como fizera
Se mais força pusera
Na decomposição do pensamento
Quamanho bem lograra ?
Em quantos grãos d'amor me levantara ?
Mas pois que tal me sinto,
Que não sinto resguardo
Em mim para escapar do que mereço,
Que se promeíto, minto;
E se não minto, tardo ;
E tardando, de todo desfaleço.
A Vós, meu Senhor, peço
Graça, favor, ajuda.
No que tanto me vai ;
Pois a folha, que cahe
No chão, da verde planta, não se muda
Sem vossa permissão,
Quanto mais hum pesado coração !
Como pai piedoso
Em tudo liberal,
Fácil em perdoar, manso, benigno,
De mim tão vicioso.
Fero bruto animal.
De cada vez mais fero, e mais maligno,
De toda pena dino.
Vos mova á piedade
O muito que softresles
Vestido desta nossa humanidade,
Pregado num madeiro,
Antre lobos cruéis manso cordeiro.
128 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
EPITÁFIO.
A huma fermosa n'alma, e no corpo.
Aqui debaixo desta pedra dura
Hum corpo se converte em terra fria
Da mais suave, e branda creatura,
De quantas me mostrou a luz do dia.
Bem claro se vio nelle a fermosura
D'alma, que para o Geo sempre subia,
Sem nunca na tormenta, ou na bonança
Faltar á paciência, ou temperança.
CARTA I.
Em reposta á de seu irmão Diogo Bernardes.
Se tanto penetrou toda a «dureza
O som do teu suave, e doce canto,
Que fará numa branda natureza ?
Culpas o meu amor, e dizes quanto ;
Me tinhas ; muito foi ; não sei se diga,
Que tenho agora mais sempre outro tanto.
A lei do Redemptor não desobriga, i
A quem a professou, ser obrigado ^
Daquillo, que a razão humana obriga. í
t.
Se quis que nosso imigo fosse amado,
Como não quererá que nosso amigo
Seja no mesmo amor avantejado ?
\
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 129
Não sinto que passasse mór perigo
Para carecer desta liberdade,
Que desejar viver só lá comtigo.
Tamanha força tinha a saudade
De leve mininice bem gastada
Após da tua grave mocidade.
Então só foi de mim mais estimada
Sobre todas as mais esta esperança,
Quanto d'altos espritos cubicada.
Trazia-a pendurada da lembrança,
Que na vista dos bosques não parava .
Oh ! gosto d'outra firme confiança 1
Assi tinhas de teu o que buscava
Noutros, que se moveram de interesse,
Cuja nódoa na vida mal se lava.
Ah ! claro, e charo irmão, quem te cá desse
Com essa tua voz antre esta Serra,
Que tão altos conceitos não perdesse 1
Ora suave paz, outr'ora guerra
Cruel, mas necessária, contarias
A quem divino amor busca na terra.
No pasto da tua alma sentirias
Doçuras de tamanhas novidades,
Que tu mesmo de ti te esquecerias.
Nascem no sentimento estas verdades,
Mal as pôde dizer quem as não sente,
E pior quem sentir taes saudades.
Das plantas, que regou tua corrente,
Outro fructo não tens, outro não colhes,
Senão queixar-te em vão da estéril gente.
i3o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Acolhe-te a quem sempre te recolhes,
Não faças d'outra cousa fundamento,
Mais boninas do campo não desfolhes.
Guardar a Lei de Deos he mantimento ;
O ter menos do mundo, mais seguro;
O suspirar por Deos, contentamento.
Não temas que te falte no futuro
A provisão daquelle, que manteve
Com pão celestial povo tão duro.
Muito mais tem de seu, quem tanto teve,
De quem lhe deu fugir dos que confiam
Naquillo de que mais fugir se deve.
Os lirios do campo, que não fiam,
Vestidos de tamanha fermosura
Vejamos com os olhos que não viam.
Do que não semeou na terra dura
O passarinho colhe com licença
Do Creador de toda a creatura.
Tardar quero que julgues por oíFensa
E não ( sem to dizer ) pôr em eíFeito
Teu próprio parecer, tua sentença.
Que guardados trazia no meu peito
Muitos conselhos sãos, que tu me deste,
Para no torto andar sempre direito,
Lembram-me aquelles versos, que escreveste
Naquella Egloga antiga saudosa,
Onde tanto a pobreza enriqueceste.
Pois olha agora quanto mais ditosa
Hum'alma por seu Deos pobre seria ;
E quanto nos seus olhos mais fermosa !
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i3i
Nesta nossa christã filosofia,
O Senhor, que de graça nos sustenta,
Diante foi de nós por nossa guia.
Quem após elle vai na mór tormenta,
Maior quietação, forças maiores
Para mais o seguir mais accrescenta.
Verdes plantas sombrias, alvas flores,
Agoas, que mansamente is murmurando,
Fermosos orizontes, novas cores ;
Amor, que por amores suspirando
Não podes repousar se não ardendo.
Amor, divino amor, meu amor, quando
Em ti, por ti, comtigo irei sustendo
Nos hombros da minh'alma minha cruz,
O Lima no Leihêo convertendo,
Chamarei por Maria, e por Jesus?
CARTA II.
A Dona Branca.
Gomo queres que negue a teu esprito,
Branca, serva da branca Virgem pura,
Mostrar o que me pedes por escrito ?
Não sei eu por qual outra creatura
Os tristes versos meus desenterrara
Debaixo de tão alta sepultura.
i3z Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mas pois de branca queres fazer clara,
Aquella luz divina te esclareça,
Que nunca a bons desejos desampara.
Não imagines cousa que te deça
Do caminho do Geo breve, e seguro,
Por mais que trabalhoso te pareça.
Com penas immortaes do reino escuro
Não te quero espantar ; pois seguir queres
A Cruz de teu Senhor por amor puro.
Que podes esperar, por mais que esperes,
Do mundo, que te tem desenganada,
Que te pôde faltar, se a Deos te deres?
Se vires que por tudo deixas nada.
Por nada deixarás o que descansa
No curso desta vida tão cansada.
A tanto subirás nesta mudança,
Que não haverá dor, por mór que seja.
Na qual não cresça mais tua esperança.
Assim de culpas minhas eu me veja
Tão longe, como perto essa alma tua
Daquillo, que esta minha ver deseja.
Que vás após de quem á custa sua
Por nos levar ó Ceo, donde nos chama,
Na terra padeceu morte tão crua.
Hum firme coração, que em Vós se inflamma,
Ardendo por se ver de Vós amado,
Por vos amar. Senhor, tudo desama.
Do tempo, que gastei tão mal gastado,
Dera melhor razão, do que daria
De vos seguir, Senhor Crucificado ;
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i33
Mas nunca a fraca voz me faltaria
Para dizer do mundo a falsidade.
Gomo quem nelle andou cego sem guia.
Levanta os olhos teus á saudade
Do Summo Bem dos bens, e nella aprende
Aquillo, que mais fôr sua vontade.
A Fenis, que do tempo se defende,
Antes que lhe faleça força, e vida,
No fogo se renova, em que se accende.
Não se põe mais a rola, carecida
Do seu primeiro amor, em verde ramo ;
Foge da fonte clara aborrecida.
Testimunha me seja por quem chanoo,
Da verdade que escrevo brevemente
Nos versos, que por seu amor derramo.
Que não podes sem elle ser contente,
Sem elle, que dilata seu castigo.
Por não negar perdão ao penitente.
Busca falsas razões o duro imigo,
Para nos impedir que de mais perto
Possamos contemplar tamanho amigo.
Ah ! braços estendidos, Lado aberto !
Quanto se sentem mais as vossas dores
Nesta quietação deste desejo !
Nascem nesta aspereza brandas flores,
E nella tão suave, doce fruito.
Como tu colherás, como lá fores.
Amando muito mais quem amas muito.
i34 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
CARTA III.
A Francisco Barreto de Lima estando preso»
Andei de mes em mes, de dia em dia
Buscando hum'hora só desoccupada
Para satisfação do que devia.
E quando m'a pintou facilitada
A força do desejo em minhas mãos,
Nas alheas a vi renunciada.
Más se não pude ser dos temporãos,
Dos serôdios ser posso difterente,
Pois delles huns são pobres, outros sãos.
Quanto padece mais, quanto mais sente
O que não pôde ver o que deseja,
Desejando de ver o que está ausente ?
Causa pôde ser tal, que a mesma seja,
A que dous peitos mova a saudade ;
Mas que num delles só mór parte esteja.
Não foi escasso amor de liberdade.
Quanto de forças foi a natureza •,
Pois sem ellas senhor he da vontade.
Ou seja n'alegria, ou na tristeza
De mui vários successos da ventura,
Aventurar não deixa a fortaleza.
A barbara, infiel, ingrata, e dura
Terra de Berbéria, que negou
A tantos esforçados sepultura ;
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i35
Inda que desta nossa te apartou,
Apartar nunca pôde o sentimento
De quem sempre de cá te acompanhou.
Poderá desculpar o pensamento,
Se nesta conjunção se descuidara.
Por ser o mal de pouco soffrimento ;
Poderá, s'inda agora me calara.
Não danar outro estilo merecido,
De quem melhor nas armas te louvara.
Nas armas onde estava conhecido
Esforço em tenra idade, antecipado,
Nos campos africanos repartido.
Aquelle esforço teu dos teus herdado,
Que dos campos do Lima se estendeu
A vencer os que o Ganges tem regado.
Ah ! quanto neste passo se moveu
O meu coração triste a suspirar !
Mas seja tão somente pelo Ceo !
Pois que ninguém na terra limitar
Pôde, quanto de nós mais determina;
Quem pôde quanto quer determinar ?
Enquanto esta alma nossa peregrina.
Com tão mal inclinada carne unida.
Que de mal em pior sempre se inclina ;
Convém que se registe a breve vida
Pela morte por quem ella se mede,
Não respeitando ser desconhecida.
A quantos impedio matar a sede,
Que tinham de fartar cruéis intentos
Que a lei justa de Deos tão pouco impede ?
i36 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
A quantos derribou os fundamentos
De seus vãos appetites derivados ?
A quantos outros tantos pensamentos ?
Quão ditosos, quão bem considerados
Os dias são daquelles, que fugindo
Pelos desertos vão despovoados !
Agora do coelho vão seguindo
Os passos que lhe mostra o cão ligeiro,
Que busca, corre, salta, e vai latindo.
Ora se vai trepar no sovereiro,
Donde, sem ser ferido, o porco fira,
Que por ferir escuma no terreiro.
Ora no campo raso onde se estira
O galgo após da lebre fugitiva,
No cansado rocim se ponha á mira.
Ora tome caçando a perdiz viva
Das mãos do seu açor, ou do seu laço,
Ficando a presa dum, doutro capiiva.
E se de condição for mais escasso,
No rio vá pescar peixes á cana,
Que Marateca tem como bagaço.
Alli pôde caçar toda a semana.
Onde não pôde ver andar á caça
Contra divina lei malicia humana.
Nem deve parecer mal esta traça
A' rara, clara, e chara companheira
D'alma, que Deos conserve em sua graça.
Ou seja em Azeitão, ou na Landeira.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz iSy
MARTYRIO, E VIDA DE SANTA GATHARINA.
Penas, tormentos, dor, e fortaleza
Cantar quero de Santa Catharina,
Dotada de sciencia, e de pureza,
D'amor celestial, graça divina,
Cujo favor invoco nesta empresa,
D'outra mais branda voz, mais doce digna ;
Porque danar não possa ao verso rudo,
De rodas de navalhas fio agudo.
No tempo que Máxencio Imperador
Exercitava sua tyrannia,
Imigo dos amigos do Senhor
Christo Jesu, quem elle perseguia ;
Procedendo de mal para pior.
Posto no tribunal de Alexandria
Mandou que a todo povo se escrevesse,
Que certo dia todo alli viesse.
Com somma de diversos animaes
Correm a sacrificar solemnemente
No templo de seus deoses immortaes,
Adonde elle queria estar presente
Com todos de seu reino principaes,
Por ser o sacrifício differente
De quantos tantas vezes feitos tinha ;
Aparelha-se o mais como convinha.
Havia na cidade huma donzella
De rara perfeição, de bello rosto,
Mas na pureza d'alma inda mais bella.
Prudente Virgem, filha d'ElRei Costo,
Que vendo prepararse para aquella
Festa vizinhos seus com tanto gosto,
i38 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
O verdadeiro quis buscar á custa
Da vida com disputa clara, e justa.
E como muitas vezes desejara
Sacrificar a vida a quem lha dera,
E depois de lha dar inda a comprara,
Quando na Cruz por todos padecera *,
Com tanto fervor d'alma se prepara
A dar-lhe cem mil outras se as tivera,
Que não pôde encobrir naquelle instante
Quão leda dalli parte, e quão constante.
Da sua gente vai acompanhada,
Antes em companhia mais segura
D'amor, com quem se tinha desposada,
Que branda lhe fazia aquella dura
Mão do cruel Tyranno alevantada.
Para dar melhor corte á formosura :
Que tal não tinha vista noutro espelho.
Qual naquelle cutello assi vermelho.
Passa por animaes brutos atados,
Que pondo os olhos nella estão bramando
De verem com seu sangue venerados
Aquelles, que sem fim estão penando ;
Adonde tendo já considerados
Quantos nos erros seus se estão culpando,
A Maxencio mandou dizer da porta
Do templo: que fallar-lhe logo importa.
Respondeu-lhe Maxencio que importava
Muito mais acabar o começado
Sacrificio dos deoses, em que estava
Degolando naquelle manso gado ;
Mas pois a mesma causa a convidava
A festejar o dia festejado,
Que entrasse a pôr por obra o seu intento
Por não perder o seu merecimento.
I
Obras de Fr. Agostinho da Cruz iSp
A Virgem, que levava outro conceito
DifFerente do que elle presumio,
Entrou naquelle templo, açougue feito
Do sangue, em que o Tyranno se tingio ;
E revolvendo dentro no seu peito,
O que seu doce Esposo lhe imprimio,
Com brando parecer, sereno, £ grave
Começou levantar a voz suave.
f — Oh 1 bárbaro, cruel, endurecido,
Fero, bruto, animal, cego tyranno,
Que não tens nos teus erros consentido,
Por deixar de entender o teu engano
Tão manifestamente conhecido,
Se não por te prezar de deshumarto ;
Pois quando néscio foras na verdade,
Deras mostras se quer de piedade.
c Por onde podes mal dissimular
A tua natureza dura, e fera
Exercitada em tão sujo lugar.
Qual outro a piedade não movera ;
O gosto que tu levas de matar.
Oh ! que matando mais se embravecera !
Chamas-te Imperador, e não attentas
Que figura matando representas ?
c Mas pois tua malicia assim te cega
Para não poder ver idolatrando,
Como quem seu juizo cego entrega
A cego, que seus passos vai guiando.
Manda vir á disputa quem te prega,
E verás como venço disputando,
Moça de tenros annos, sabedores ;
Escolhe de teus reinos os maiores.
« Verás quão pouco basta para crer
Que não soffre razão serem honrados
I40 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Por deoses homens máos de máo viver,
Nem menos nos altares levantados
Os Ídolos, que tu mandas fazer
De pedra, de metal, ou páo lavrados.
Adora quem te fez, deixa o madeiro
Que tu mandas fazer ao carpinteiro.
€ A gloria, o louvor, a adoração
A Deos Omnipotente só se deve.
Que por perfeiçoar a Redempção
Universal, na Cruz pregado esteve ;
Sem cuja sempiterna permissão
Não se move na planta folha leve.
Põe nelle os olhos, tem da mão o ferro
Envolto em sangue, mais nesse teu erro. »
Perturbado, e confuso está no meio
O Tyranno daquelles argumentos.
Da dura reprensão que dar-lhe veio
A Virgem reprovando seus intentos ;
Sem mais outro respeito nem receio
Delle, nem dos sagrados aposentos ;
Não soube como delia se livrasse,
Se não com lhe mandar que se calasse.
Recolhido já dentro do seu paço,
Depois da funeral festa acabada.
Mandou que a Virgem fosse em breve espaço
Da sua imperial parte chamada ;
A qual com rosto alegre, e grave passo
Honesta, e vergonhosa presentada,
Com muita confiança escuta, e cala
O néscio Imperador, que assi lhe falia :
« — Quero saber que letras aprendeste,
Teu nome, cuja filha és, como ousaste ?
Se sabes ponderar o que fizeste
Quando tão soltamente reprendeste,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 141
E dos immortaes deoses blasfemaste ?
Que por elles te juro que não sei,
Como comtigo a mim me não matei » ?
« — Sou filha d'ElRei Gosto ( Gatharina
Respondeu ) desn'o berço doutrinada *,
Mas logo desprezei a tal doutrina,
Como me vi com Christo desposada ;
Porque em comparação do que elle ensina
Todo o saber do mundo fica nada :
Elle criou o Ceo, criou a Terra ;
E tudo quanto mais nelle s'encerra.
« As letras que aprendi d'homens humanos
Contradizer se podem disputando;
Mas não tão manifestos desenganos,
Como no templo estive declarando;
Devias desistir de teus enganos,
Falsas superstições abominando
Desses teus falsos deoses condemnados,
Das fúrias infernaes atormentados. »
Espantou-se o Tyranno da resposta,
Que da boca da Virgem tinha ouvida,
Avisada, subtil, e bem composta.
Com tanta liberdade repetida ;
E como vê que a tudo estava posta
Até perder por Christo a própria vida,
Começou a dizer mil desvarios,
Que a Virgem reprovou como sandios.
E por não se atrever a mais contenda,
Vencido finalmente por razões ;
« — Eu, disse, buscar quero quem te renda.
Que a mim me não convém tratar questões :
Antes privar da vida, e da fazenda
Quem sustentar quiser opiniões
142 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Em desprezo dos deoses poderosos,
A quem chamaste falsos, mentirosos. »
Entretanto mandou que lha pusessem
No cárcere até quando se juntassem
Os mores sabedores que pudessem,
Para que com a Virgem disputassem,
E que da sua parte lhe dissessem,
E dos immortaes deoses exhortassem,
Que nisto consistia seu Império,
Ganhar honra perpetua, ou vitupério.
Chegando já grão numero daquelles,
Que para disputar foram buscados,
Maxencio começou tratar com elles
Aquillo para que foram chamados;
E que considerassem pender delles
Serem seus próprios deoses desprezados,
O seu Imperador posto em ventura
De mais alegre, ou triste creatura.
E como quem deseja de vencer
Na guerra, lhe parece duvidoso
Tudo quanto lhe pôde succeder,
Imaginando mais industrioso
Aquillo de que mais se ha de prover
Para ficar em fim victorioso ;
Assi quis o Tyranno assegurar-se,
Como quem não queria aventurar-se.
Dizendo a todos juntos, que teriam,
Vencendo, largos prémios ; mas vencidos
Com gravíssimas penas pagariam
Ficarem os seus deoses abatidos,
E que por esta causa se deviam
Aparelhar com todos os sentidos ;
Pois elle também nella se perdera.
Se o mandá-la calar lhe não valera.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 143
Hum de todos aquelles que se tinha
Por mais avantejado na sciencia
Diz ao Imperador que muito asinha
Tomaria do caso experiência ;
Posto que disputar lhe não convinha
Com quem tinha tão fraca resistência ;
Mas que elle proporia tão profunda
Questão, que não houvesse outra segunda.
Festejou o Tyranno tão immensa
Soberba do Filosofo, cuidando
Abastar este só para que vença
A Virgem ante o povo disputando.
E por isso mandou que sem detença
Se fosse sua vinda abreviando
Desejoso de vê-la qual se vira,
Quando vencido delia se partira.
Mas antes que chegassem á cadêa,
Aonde Catharina tinham presa,
De luz divina foi a casa cheia ;
EUa de mais sciencia, mais firmeza,
A disputa dos sábios não recêa ;
Que de vence los já tinha certeza
Por hum Anjo do Geo, que lhe mandou
Aquelle, em cujas mãos se encommendou.
« — Oh! Catharina (disse) teu Esposo
Por mim, seu Anjo, manda visitar-te.
Para contra este numero odioso
De sábios, antes néscios, confortar-te,
E depois por martyrio glorioso
Com elles no seu reino aposentar-te ;
Dando-te graças taes, tão eminentes,
Que de néscios fazer possas prudentes.
« Alegra-te, que tens a Deos propicio;
Alegra-te de seres tão ditosa,
144 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que fazendo da vida sacrifício
Farás ess'alma tua mais fermosa ;
Alegre-te tamanho beneficio,
Oh ! Virgem Gatharina gloriosa *,
Lá te vou esperar no Ceo Empírio,
Onde tens a coroa do martyrio. »
Esta visitação celestial,
Que assi deixou a Virgem transformada
Naquillo, que dizer se pôde mal,
Não deu lugar Maxencio a ser lograda,
Que logo se subio no Tribunal,
Mandando que assi fosse apresentada
Gatharina antre aquelles escolhidos.
Que vinham a vencer, não ser vencidos.
Aquelle principal mais arrogante.
Que da victoria fez larga promessa,
Mostrando-se mais destro, e mais constante,
A disputar primeiro se arremeça,
Propondo, e concluindo num instante
Maravilhas dos deoses, que professa,
De Júpiter, Apollo, de Neptuno,
Vénus, Minerva, Geres, Thetis, Juno.
Gatharina que estava sobre aviso,
Além do natural, outro divino.
Alegre de se ver posta em juizo
Daquelle Imperador cego, malino;
Tão claramente prova de improvizo
Hum Deos Eterno, só ser Uno, e Trino,
Que não somente deixa convertido
O sábio, mas á morte offerecido.
Os outros, que na Virgem contemplaram
De raras perfeições, altos extremos.
Todos juntos por terra se lançaram
Dizendo: — « nós também nos convertemos
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 145
Dos erros, em que os nossos nos criaram \
Abasta o que com nossos olhos vemos ;
Que só na lei de Christo verdadeira
Pôde lobos vencer huma cordeira. »
O Tyranno que vio como perdera
Diante do seu povo a confiança ;
E como disputando se atrevera
Huma moça fazer leve mudança •,
Naquelles cincoenta, que escolhera,
D:terminou fazer cruel vingança,
iMandando que queimassem todos quantos
Por hum só Deos quisessem perder tantos.
Os verdadeiros sábios, que então viram
Aparelhar-se o fogo, não s'esfriam,
Antes por padecer nelle suspiram.
Accrescentando mais outro, em que ardiam ;
Alegres todos juntos se partiram
Da Virgem, que ficar alegre viam,
Dizendo: t Por nós roga •. Ella dizendo:
a Encomendai me a quem vos encomendo. »
Depois que para o Ceo purificadas
Se partiram aquellas cincoenta
Almas, por Catharina encaminhadas,
O Tyranno de novo prova, e tenta
Com palavras de amor affeiçoadas,
(Que seu desejo vão lhe representa)
Sc pôde por qualquer via que seja
A Virgem converter, como deseja.
Ella que nada mais delle pretende,
Martyrio, que favor, morte, que vida ;
Com tão duras palavras o reprende,
Que lhe faz vomitar a concebida
Fúria de huma paixão, em que s'accende
Pela vêr cada vez mais atrevida.
146 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Dizendo : • Quero ver se com tormentos
Abrandar posso teus atrevimentos.
Seja com duras vergas açoutada
Até que das blasfémias se desdiga,
Em que perseverou, como obstinada
Dos deoses immortaes cruel imiga.
Amostra-se da lei desobrigada ?
Da piedade a lei me desobriga.
Não fique membro são, nem sangue nelle,
Nem sobre suas carnes fique pelle. »
Quaes lobos vigiando dos outeiros,
Que viram sem pastor a mansa ovelha.
Famintos, furiosos, e ligeiros
Da pelle branca vão fazer vermelha :
Taes foram os algozes carniceiros.
Tanto que a voz soou na sua orelha
Da boca do Tyranno, que não ca-nsa
De bradar contra aquella ovelha mansa.
Mas ella nos tormentos florecendo,
Como lirio nos valles regadios,
Tanto mais na firmeza vai crescendo,
Quanto de sangue mais crescem os rios.
Eis o Tyranno vai desfalecendo
Do furor, desfalecem os sandios
Ministros seus, cansados de ferir
Quem mais ferida os faz mais confundir.
Vendo Maxencio já forças, e manhas,
Desprezadas daquella, que lançava
Pela rotura fora das entranhas
Aquelle resplendor, que dentro estava ;
Obrando maravilhas tão estranhas,
Que todo aquelle povo se abalava.
Mandou que par' o cárcere tornasse.
Até que algum martyrio se inventasse.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 147
A fama que voava deste peito
Augusta Imperatriz moveu contrita
A visitar naquelle carcer' estreito
Catharina, que n'alma tinha escripta.
E para poder pôr isto em efteito
O capitão Porfírio solicita,
Que com duzentos seus secretamente
Augusta a Catharina s'apresente.
Entrando na prisão, antes soltura,
Adonde Catharina se recrea.
Contemplando naquella formosura,
De cuja saudade estava chea,
Tamanho resplendor, tanta doçura
Naquelles circumstantes se semea,
Que confessam a lei, cujos effeitos
São brandura de amor em duros peitos.
t Oh ! dito a Senhora, quaes amores
Em tão duras prisões, taes asperezas,
Augusta disse, criam brandas flores
Crescendo, quanto mais no fogo accesas !
Quaes olhos podem ser merecedores
De ver á sua luz cousas defesas,
Não vos tendo servida por Senhora,
Serva de outro Senhor que vos namora ?
• De mim, e destes vossos, que comigo
A verdadeira lei seguir queremos,
Convertidos no nosso error antigo.
Que com suspiros d'alma lavaremos,
Vos alembrai. Senhora, que não digo
O gosto, com que todos morreremos ;
Mas que outro mór Tyranno tomaria,
Se noutro pôde haver mór tyrannia ? »
t Augusta Imperatriz, e todos quantos
(Respondeu Catharina) t'acompanham,
148 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ditosos escolhidos entre os Santos,
Que por seu Deos no seu sangue se banham :
Os tyrannos cruéis não podem tantos
Tormentos inventar, quantos se ganham
Eternos bens, morrendo, e desejando
Que cresçam penas, gloria accrescentando.
Antes' de poucos dias lá naquellas
Celestiaes moradas vivireis,
Passeando por cima das estreilas,
Adonde mais fermosas vos vereis,
Que quanta formosura creou nellas
Aquelle, por quem vós padecereis
Com tanta fortaleza, esforço tanto.
Que seja gloria a Deos, ó mundo espanto. »
Firmes, e consolados se apartaram
Da Virgem, que no cárcere onze dias
Sem mantimento as guardas encerraram;
Mas o Senhor mandou por outras vias,
Que por suas, humanas não serraram:
Hunia pomba lhe traz taes iguarias,
Que quando foi levada ao tribunal
De quaes ellas seriam deu sinal.
O doce Esposo seu, que não se esquece
De quem nas suas mãos se sacrifica,
Tão claro, e tão fermoso lhe apparece,
Consola, esforça, anima, e fortifica ;
Que não cárcer, mas gloria lhe parece
Aquelle, onde de amor mais presa fica,
Desejando de ver-se no tormento
Hum não, mas que d'hum só se façam cento.
Porfiando outra vez, prova tentá-la
Com palavras Maxencio, com branduras,
Pois não podem tormentos abrandá-la.
« Que tentas, ou que intentas, que procuras.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 149
Mover hum coração, que não se abala
Por amor ou temor das creaturas ? »
(Respondeu Gatharina ) tão isenta,
Que elle só dar-lhe morte prova, e tenta.
Hum dos seus cubiçoso de privança,
Conforme a seu senhor na natureza,
Prometteu de fazer leve mudança
Naquella constantíssima Princesa,
Assegurando sua confiança
Num tormento inventado da crueza,
Composto dumas rodas rodeadas •
De navalhas espessas aguçadas.
Posta já no tormento que moveram
Os algozes, porque ella se movesse,
Em pedaços as rodas se fizeram,
Sem que tocar algum nella podesse ;
Matando aquelles néscios, que quiseram,
Que no tormento a Virgem fenecesse ^
O povo que esperava a prova disto
Confessa por seu Deos a Jesus Christo.
O Tyranno blasfema, grita, e brama
De ver ficar a Virgem tão serena.
Destruindo dos deoses honra, e fama,
E zombando de quanto elle lhe ordena.
A fúria no seu rosto se derrama,
Encobrindo no peito quanta pena
Lhe dá vêr o seu povo alvoroçado,
A risco de perder o seu estado.
E querendo seguir a morte injusta
Na Virgem, que nas penas se deleita ;
Eis Porfirio lhe clama, eis clama Augusta
Dizendo : i Imperador, que te aproveita
Atormentar a Santa pia, e justa
Nas obras, e palavras tão perfeita ?
i5o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Pede-lhe, que te ensine, como possas
Saber o que ensinou ás almas nossas. »
O furioso então Maxencio volta
Contra sua mulher a fúria sua,
E contra o capitão Porfírio solta
Palavras com pregão de morte crua.
Eis recrece no povo outra revolta,
Com que o triste Tyranno mais se encrua,
Por ver duzentos inda no martyrio
Companheiros de Augusta, e de Porfírio.
A Virgem, que da terra para o Ceo
Tantas almas primeiro vio subir ;
Da saudade delias se venceu
De modo, que não soube resistir
(,Ao bem, que dos bens delias pretendeu,)
Ás queixas de mais tarde se partir;
Mas o seu doce Esposo, a quem se queixa,
Dilatar sua morte mais não deixa.
Permittindo que fora da cidade
Logo fosse levada a degolar.
Achando nos algozes liberdade
Facilmente de tempo para orar ;
Onde pede á divina Magestade,
Que seu corpo lhe mande sepultar
Naquelle santo monte, donde deu
A lei santa a Moisés, privado seu.
Depois que se acabou aquella breve,
E final oração da Virgem Santa,
O Ministro cruel não se deteve
Em sepultar o ferro na garganta,
Do qual correndo leite branco esteve;
Milagre de que o povo mais se espanta
Por ver hum corpo morto, que criava
Com leite aquellas almas, que guardava.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i5i
Do seu fermoso corpo degolado
Aquella alma ditosa despedida
Nos braços repousou do seu Amado,
Em cujo amor se tinha derretida.
O corpo foi dos Anjos sepultado
Na parte, que lhe fora concedida
Por Virgem, e por Martyr, e por Sabia,
No naonte de Sinai, monte de Arábia.
Sobre o t Flevit amare ».
Aquelle bom Pastor, que conhecia
Na fraqueza do seu medroso gado,
Como dos cruéis lobos fugiria
Quando ficar o visse preso, atado.
Seus olhos, quando já mais não podia,
Negar não quis áquelle, que negado
O tinha, porque nelles enxergasse
Qu'inda o receberia, se tornasse.
Ah ! Pedro, quanto mais te magoou
Daquelles claros olhos a brandura.
Que chorar teu peccado te ensmou !
Ensinou-te a buscar a cova escura,
Que d'outra mais escura te livrou.
Onde também cahiras porventura
Assim como cahio teu companheiro.
Hum por cubicar vida, outro dinheiro.
Que vida foi aquella que cuidavas
Que vivendo melhor conservarias ?
Pois pelo mesmo caso que negavas
A verdadeira vida, te perdias.
Mal podias viver, pois te matavas,
E mal matar-te já, pois não vivias,
Dizia Pedro triste, arrependido.
Na cova donde estava já mettido.
i52 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ah ! triste velho, triste, inda mais triste
No triste fim de quantos ter poderás,
Que podestes deixar a quem seguiste,
Que podestes negar a cujo eras !
Que medo foi aquelle, em que te viste,
Para te não lembrar que prometteras,
Que inda que visses todos fugir delle,
A ti veria só morrer com elle ?
Elle delle me vio também fugir.
Como delle fugio toda a manada ;
Depois me vio tornar, mas a mentir,
Mentira com três juras affirmada.
Mas se fugindo errei, tornando a vir
A fugida emendei com a tornada ;
Que se por huma vez não fui fugindo,
Constante por três vezes fui mentindo.
Jurei, menti, neguei summa verdade,
Erro grave, mortal, enorme, e feio,
Crime contra divina Magestade,
Culpa dum não sei qual leve receio,
Nascido já no fim da minha idade.
Que neste miserável parar veio,
Por não dar por resposta áquelles perros^
Preso sou, disse, preso por meus erros.
Preso de seu amor, não seu captivo,
A morte que lhe dais, não ma tireis ;
Escondei neste peito o ferro esquivo,
A malar por amor começareis.
Matai-me, que não quero ficar vivo;
Matai, cujo Senhor matar quereis:
Isto devera então de responder,
E deixar-me matar para viver.
Deixar o barco, e redes que prestou,
Daquella voz levado, que levara
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i53
O mar de Galiléa, onde me achou,
Cuja força se bem considerara,
Quando o Senhor primeiro me avisou
Que havia de negá-lo, não negara ;
Mas dissera três vezes : Já pequei :
Dai-me perdão de três que vos neguei.
Que posto que por eile estava dito,
O que dito por elle estava feito ;
Se, como agora, então me vira afflicto,
Algum remédio dera a meu defeito ;
Criara em mim de novo hum novo esprito,
Com que fortalecera o fraco peito ^
Porque se fraco fora da primeira,
Não fora da segunda, e da terceira.
Oh ! lingua mentirosa, que disseste ?
Desenfreada lingua, que causaste ?
Quanto tempo passou que prometteste ?
Quantas horas havia que affirmaste ?
E porque causa assi te desdisseste
Com testimunho falso, que juraste.
Que tal Mestre, e Senhor não conhecias,
Pois a tal, e em tal tempo lhe fugias ?
Fugio-mo coração que dantes tinha,
Quando meu Senhor nelle repousava,
Fugindo, me fugio a lingua minha,
Que minha covardia governava.
Bem claro se mostrou, com quanta vinha ;
Pois bastaram perguntas de huma escrava,
Para negar alli sem mais tormento,
Além daquellas três, três vezes cento.
Que menos se esperava da fraqueza,
Que assi se foi de mim senhoreando.
Depois que vi levar atada, e presa
Por cima das calçadas arrastando
i54 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
A huma Soberana fortaleza,
Que de longe segui, não me lembrando
Quanto mais refinada no presente
Se mostrava em mostrar-se paciente.
Mostrou-se tal por obra, qual dissera
Por palavra na Gea derradeira \
Ah ! ditoso se nunca anoitecera
Nest'alma minha aquella Quinta feira!
Ditoso fora então, se então morrera !
• • •
Que já não smto morte, que me queira;
Pois daquella fugi tão desejada.
De quem morrer deseja morte honrada.
Que mór ventura minha, ou que maior
Honra poderá ser naquelle instante,
Que vêr seguir o servo a seu Senhor,
Com o nome de fiel, firme, constante ?
E não do que ganhei de sêr traidor,
Que nunca deixará de sêr bastante
Para me niagoar além da magoa,
Que já lavar não podem rios d'agoa.
Que assi me aproveitei de huma doutrina,
Duma conversação tão amorosa
Tão branda, e tão suave, e tão benina,
Duma vista das vistas mais fermosa.
Ah! saudade minha, luz divina!
Ah ! velhice mofina desditosa !
Qual te fora melhor deixar de vê-la.
Ou ver que te perdeste com perdê-la !
A perda que meu mal me representa
Não tem conto, nem peso, nem medida ;
Que tanto cada vêz mais se accrescenta,
Quanto mór culpa tenho comettida.
Não sei como esta cova me sustenta ;
Posto que sua luz tem escondida,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i55
Ou por m'aborrecer, como culpado,
Ou por se escurecer com meu peccado !
Aquelles cruéis lot^s,que chegaram
A prender o mansíssimo Cordeiro,
De quanta piedade então usaram,
Se provaram seu ferro em mim primeiro ?
Que com suas palavras me provaram
Para fazer-me delias companheiro;
Ai ! quão brando sentira o ferro duro
No peito antes de ser falso, perjuro 1
Qual outro se vio nunca já nascido,
Ou por nascer está, que tal se veja,
Que depois de tão alto ter sobido,
Em tão baixo, e tão vil estado esteja ? !
Nem basta haver também outro cahido,
Porque dambos a culpa a mesma seja \
Qu'elle não o vendeu mais duma vêz,
Mas eu antes do gallo o neguei três.
Antes d'ouvir cantar o gallo, digo,
Que se não fora termo limitado.
Que meu Senhor quis pôr a meu perigo,
Tantas vezes de mim fora negado,
Quantas de qualquer seu mais fraco imigo
Este mais fraco fora preguntado :
Enfim, que se três vezes não ouvira
Cantar o gallo, mais de três mentira.
De quem me queixarei em mal tamanho,
Pois queixar-me de mim pouco aproveita ?
Pouco \ se em tristes lagrimas me banho,
E pouco a pouco dor, que a morte engeita :
Oh ! culpa nunca vista, caso estranho !
Qual rústica nação, barbara seita,
Soffre quebrantar fé, por guardar vida.
Que guardada não fique mais perdida ?
i56 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Como se pôde vêr na que não vejo,
Se não para chorar tão triste sorte
De mal tão desestrado, tão sobejo,
Que fêa me pintou fermosa morte,
Sem dar satisfação a meu desejo
Para saber se fui fraco, se forte :
Que se fraco, devera emudecer;
E se forte, devera não temer.
Mas eu, que forte fui para negar,
E para confessar fraco, covarde,
Em qual outra prisão me posso achar
Por mais que espere já, por mais que aguarde?
Que como forte possa confessar,
E como fraco só de mim me guarde.
De mim, que se de mim só me guardara,
Nunca tão cego povo me cegara.
Ah ! que me não cegou, quando tentei
Mata lo todo junto, o meu cutello,
Que de seu sangue tinto embainhei ;
Mas eu que forte fui em comettê-lo,
Tão fraco em responder-lhe então fiquei,
Que fiquei desculpado de oôendê lo,
Tanto que ninguém pode presumir.
Que eu pudesse arrancar, menos ferir.
Deste noutro successo differente
Dei na mór perdição que inda té gora
Nunca foi dar passado nem presente.
Nem dar outro se não só Pedro fora;
Pedro que nesta cova já não sente,
Já não prantea, não suspira, e chora
Pelos bens que perdeu, mas pela ofTensa
Feita contra seu Deos, bondade immensa.
Esta, que neste estado me tem posto
Para nunca afírouxar hum só momento
Obras de Fr. Agostinho da Cruz iSy
D'em lagrimas banhar meu triste rosto,
Meu falso peito em novo sentimento ;
Aqui desconsolado, e descomposto,
Onde vivo me deu enterramento.
Morto me deixará sem terra nova
Cobrir meu corpo dentro nesta cova.
Que veja quem por erro ou por acerto
( Erro qual foi o meu não digo tal )
Chegar a vêr meu corpo descoberto,
Que ficou para mais fraco sinal
De não querer a terra ter coberto
Quem para com seu Deos foi desleal ;
Que se nisto mór pena me não dera,
Já se abrira comigo, e me sorvera.
Da pena me dá pouco, que padeça,
Da culpa nada basta a consolar-me.
Que não pôde acabar donde começa,
Nem pôde começar para acabar-me •,
Nem menos pôde sêr que culpa esqueça,
Culpa, em que por três vezes fui culpar-me,
Assim triste de mim num, noutro extremo.
Da pena me não dá, da culpa gemo.
Gemer, e suspirar em magoa, em pranto,
Manjar será dest'alma minha, ingrata,
Dest'alma, que da carne tratou tanto.
Para tratar de si quão pouco trata.
Disto se manterão ambas emquanto
Sua fraca prisão não se desata,
Atadas no seu erro ambas padeçam.
Ambas desconhecidas se conheçam.
Assaz desconhecido estou de mim
Para não desculpar meu desatino !
Que fugi, que tornei, que fui, que vim,
Que de velho me vim fazer minino :
i58 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Perdendo, ai ! que perdi poder no fim
Trocar o ser humano por divino :
Se trocar não quisera huma verdade
Tamanha por tamanha falsidade.
Ora pois desta troca succedeu,
A quem seu próprio Deos foi em pessoa
Chamar do mar á terra para o Ceo,
Perder do mesmo Geo huma coroa •,
Que amor nas suas mãos lhe oftereceu
Cousa, que assi lastima, assi magoa l
Não quero dilatar o fim que espero *,
Por não desabafar, calar me quero.
MOTE.
Antre as cousas mais formosas
Busca a mais fermosa delias ;
Mais que o sol, lua, e estrellas.
Mais que lírios, e que rosas.
Busca a summa formosura,
Que tudo faz, tudo cria ;
Só daquella te confia,
Que sempre dos sempres dura :
Se vires cousas formosas,
Como são sol, lua, e estrellas,
Passa tu por cima delias,
Pisarás lírios, e rosas.
Não te envolva o pensamento
No gosto da vida humana ;
Que a folha que o vento abana
Não se defende do vento.
Ha cousas muito fermosas,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz iSg
Muito claras, muito bellas,
Huma só muito mais que ellas,
Mais que lirios, mais que rosas.
Quanto mais formosa for
A cousa que podes ver,
Verás que não pôde ser
Sem ser mais o Creador :
Se vires lirios, e rosas,
O sol, a lua, as estrellas,
Busca no Creador delias
Outras muito mais formosas.
Quem tudo fez para nós
Fazer-nos quis para si.
Põe os teus olhos em ti,
Verás quem os em ti pôs :
Que lirios vistes, que rosas,
Que sol, que lua, que estrellas,
Que não venhas a ver nellas
O Senhor das mais formosas ?
MOTE.
Quem muito deseja amar.
Muito tem do que deseja.
Sem que sinta, sem que veja.
Amor por mais sêr amado
No peito, donde s' accende,
Docemente lhe defende
Saber se tem começado :
Porque assi mais esforçado
Muito mais amar deseja.
Sem que sinta, sem que veja.
i6o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não se deixam comprehender
Efteitos de amor divino ;
Mas desejar de comino
He claro sinal de arder:
Donde se pôde esconder
Amor porque se não veja
Se não donde se deseja !
Não se queixe o coração,
Se sentir em si seccura,
Que a lenha que muito dura
No fogo, faz-se carvão :
Nem cuide que sopra em vão,
Posto que arder não se veja.
Que quem sopra arder deseja.
VOLTAS.
A Tra los Montes.
Por longe que vá
Donde quer que for,
Quem tiver amor,
Lá me buscará ;
Pouco me dará
De me não buscar
Quem me não amar.
Se mal empreguei
O meu bem querer,
Lá posso saber
O que cá não sei ;
Desenganarm'ei
De me não amar
Quem me não buscar.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz lòi
Quem me quiser bem
Quando me não vir,
Não ha de sentir
Passar inda além
Dos montes; mas quem
Não quiser passar,
Não me vá buscar.
Se lá vir perdida
A minha esperança.
Não terei mudança,
Que fazer na vida.
Com esta partida
Me posso acabar
De desenganar.
Que perco perdendo
Cuidados humanos,
De cujos enganos
Me vou acolhendo ?
Quanto me arrependo
De me descuidar
Do que devo amar !
REDONDILHAS.
A Nossa Senhora.
O' Maria
Doce porto, certa guia,
Gloriosa Virgem pura,
Qual Mãi sua vos faria.
Quem fez toda a formosura ?
i62 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não me atrevo
A louvar-vos quanto devo
Antre duras penedias ;
Porque borro, quanto escrevo
Nas minhas entranhas frias.
De que rosas
Farei capellas formosas,
De que lírios, de que flores,
Com que versos, com que prosas,
Cantarei vossos louvores ?
Sois Aquella,
Que do mar se chama estrella,
Dos tristes consolação.
Rosa que se criou nella
Toda a nossa Redempção.
Sois Rainha
Do Ceo ; mas nossa vizinha,
Tão solicita de nós,
Que menos tarda a mezinha,
Do que chamemos por Vós.
Sois Senhora,
Que dum'alma peccadora,
Que vos tem por avogada.
Do mesmo Deos, que em Vós mora^
A quereis fazer morada.
ENDECHAS.
O meu nascimento
Que tal ser devia.
Nunca hum só momento
Tive de alegria.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i63
A estrella rainha
Qual devia ser,
O bem que não linha
Me pôde tolher.
Fortuna que fere,
Que sente ferido.
Não soffre que espere
Cobrar o perdido.
Tudo me magoa,
Tudo me lastima,
Huma dôr em cima
Doutra que mais doa.
He mui differente
A minha tristeza,
De quanto se sente
Noutra natureza.
Alma entristecida
Façamos concerto;
Vamos fazer vida,
Vida num deserto.
Antre penedias.
E valles medonhos.
Onde nem por sonhos
Lembrem alegrias.
Não haja mais ver
Quem falle, quem veja ;
Tudo, tudo seja
Chorar, e gemer.
Claros desenganos
Dão nestes extremos,
164 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Quantos vistos temos
Em tão poucos annos !
Chorei saudades ;
Criei pensamentos ;
Fiz mil fundamentos
De mil vaidades.
Os dias não cansam ;
Cansa a vida nelles :
Que será daquelles,
Que nella descansam ?
Que busco, que quero ?
Que choro, que rio ?
Em que me confio ?
Que tenho, que espero?
Que presta, que vai
Quanto o mundo tem ?
Como terá bem
Quem escolhe mal !
Se choro, se canto.
Se calo, se grito ;
Falta-me o esprito
Para sentir tanto.
Que guerra tão crua,
Que esforço, que manhas,
As suas entranhas
Contra huma alma sua I
Que forças as minhas,
Com que armas pelejo
Contr' o meu desejo,
Coberto de espinhas ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i65
Alma magoada,
Se tanto desejas
Viver descansada,
Não ouças, não vejas.
Fujamos, fujamos,
Donde restauremos,
Quanto mal choramos,
Quanto bem perdemos.
Vamos vêr da serra
Do monte deserto
O Ceo de mais perto.
De mais longe a terra.
Vamos acabar
Numa lapa escura ;
Sem mais alembrar
Viva creatura.
No monte, no valle
Tenho onde me esconda •,
Sem têr com quem falle,
Nem quem me responda.
O bruto animal,
A fera serpente.
Por bem não faz mal,
Como faz a gente.
Plantas, e penedos
Mostram o que tem,
Sem têr mais segredos
Do que os olhos vem.
i66 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
AO NASCIMENTO DE NOSSO SENHOR.
Tânia formosura
Numa estrebaria
JESUS, e MARIA?
Chove, venta, e neva,
Congela-se o rio.
Meu Senhor ao frio
Com' os filhos d'Eva !
Pelo que releva
Numa estrebaria
JESUS, e MARIA?
Nasce a nova luz ;
Nasce a flor das flores ;
Amor dos amores,
No berço, e na cruz
MARIA, e JESUS.
Numa estrebaria
JESUS, e MARIA?
Deshumana gente,
Que não agasalha
A quem só na palha
Ficará contente.
Ai ! quão pobremente
Numa estrebaria
JESUS, e MARIA?
Fermoso Menino,
Meu Senhor eterno.
Por tempo de inverno
Pobre peregrino ;
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 167
O amor divino
Numa estrebaria
JESUS, e MARIA ?
Por terras estranhas,
A vossa pousada
Tem o tempo armada
De têas de aranhas ?
Nasce das entranhas
JESUS, e MARIA
Numa estrebaria ?
i68 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
SONETO I.
Que lugar, tempo, estado, ou esperança,
Me podem segurar do meu desejo,
Que me disfarça o mal, em que me vejo,
Com bens, que antes de vir, fazem mudança ?
Sombras vans d'enganada confiança
Fazem que o bom desprezo e o mal elejo ;
E vendo-me perdido, inda me pejo
De ter do que já foi, dôr, ou lembrança.
Desejo vencedor, razão vencida.
Poderoso querer, fraco sujeito.
Compridas esperanças, curta vida ;
Mouro, como ordenaes, mas satisfeito;
E mais dissera, mas amor duvida,
Que caiba em lingua o que não cabe em peito.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 169
II.
A uma absencia.
Posto que sofra amor apartamento,
Por não fazer ofFensa á confiança,
Desconfiando vou nesta mudança,
De poder enganar meu pensamento.
E pois negar não posso o sentimento,
Que mais me cansa a mim, por que vos cansa,
Lembre-vos que sem ter de vós lembrança,
Não posso respirar uni só momento.
Tal me parti de vós, que não cuidava
Que, pois dentro nesta alma vos trazia,
Noutra nenhuma parte vos deixava.
Mas depois que cá vi que vos não via,
Entendi na partida qual estava
Quem dos olhos, não d'alma se partia.
III.
Ás lagrimas duma despedida.
Quando d'ambos os ceos cahindo estava
O rico orvalho, em pérolas formado,
E sobre as frescas rosas derramado
Igual belleza recebia e dava \
lyo Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Amor, que sempre presente ali estava
Como competidor de meu cuidado,
Num vaso de crystal, douro lavrado,
As gottas, uma e uma, enlhesourava.
Eu cos olhos na luz, que aquelle dia
Entre as nuvens do novo sentimento
Escassamente os raios descobria,
Se me matar, dizia, o apartamento,
Ao menos não fará que esta alegria
Não seja paga igual de meu tormento.
IV.
Pús em tamanha altura o pensamento,
Que o perde já de vista a confiança.
Cansado de o seguir minha esperança
Parou em descobrir meu atrevimento.
Por elle mouro em áspero tormento.
Mas não cansará a fé, como não cansa,
Inda que o tempo faça outra mudança,
De que eu deva ter mór sentimento.
Bem pode amor cruel, se ha quem o mande.
Esta sombra da vida desfazer-me.
Seguindo seu costume deshumano.
Só nunca poderá, por mais que ande,
Fazer que me arrependa de perder-me
Com pena, espanto, dôr, força, ou engano.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que cousa seja amor, não se comprende,
Quão caro custa amar, minha alma o sente,
Um lhe chania aíTeição, outro accidente,
Mas quem mais o tratou, menos o entende.
Quando se não recea, então offende.
Entra dissimulado e facilmente,
Encobre no desejo frecha ardente,
Que o peito, que he mais frio, mais accende.
Gasta a vida, esperança e sofrimento,
A' sombra dum engano, a que sujeita
Qualquer baixo ou altivo pensamento.
Triste de quem provou sua mão direita,
E o pôs em tal estado seu tormento.
Que já de aborrecido a vida engeita !
VI.
Perdi-me dentro em mim, como em deserto.
Minha alma está metida em labyrintho,
Contino contradigo o que consinto,
Cem mil discursos faço, em nada acerto.
17a Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Vejo seguro o damno, o bem incerto;
Comigo porfiando me desminto,
O que mais atormenta, menos sinto,
O bem me foge, quando está mais certo.
E se as asas levanta o pensamento
Áquella parte, onde está escondida
A causa deste vario movimento,
Transforma-se por não ser conhecida,
Porque quer a pesar do sofrimento
Pôr as armas da morte em mão da vida.
VIL
Acostumado tinha o sofrimento
A um mal, que ja de antigo não sentia,
E, posto que era grave, nelle via,
Que o uso diminue o sentimento.
Ordenaram-me os Ceos novo tormento
No tempo, que esperei nova alegria \
Dantes somente amor me perseguia.
Agora amor, fortuna e pensamento.
A lembrança dos bens, que noutro estado
Teve este peito meu, que em chamas arde.
Está levando sempre meu cuidado.
Choro a noite, a manhã, a sesta e a tarde,
Mas não devo estar desesperado,
Pois não se escusa a morte, inda que tarde.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 173
VIII.
A peregrinação dum pensamento,
Que dos males fez habito e costume,
Tanto da triste vida me consume,
Quanto cresce na causa do tormento.
Leva a dor de vencida ao sofrimento,
Mas a alma está de entregue tão sem lume.
Que enlevada no bem, que haver presume,
Não faz caso do mal, que está de assento.
De longe receei, se me valera
O perigo, que tanto á porta vejo,
Quando não acho em mim cousa segura ;
Mas já conheço, e nunca conhecera !
Que entendimentos presos do desejo
Não tem remédio mais que o da ventura.
IX.
Vai-me gastando amor num pensamento.
Que me inclina a seguir meus próprios damnos,
A força, a esperança, o ser, os annos,
Que pêra mim são mil cada momento.
174 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Os suspiros que em vão entrego ao vento,
Paga-nnos quem os causa em desenganos,
He seguro fingir novos enganos,
Não mo quer consentir o entendimento.
Se pretendo mostrar quanto padeço,
Falta-me a voz, o alento e o sentido,
E a triste vida não, porque a aborreço.
O peito em vivas chamas convertido
Enfim mostra meu mal, pois ja conheço,
Que nem dizer-se pôde, nem sêr crido.
X.
Ao levantar da cama.
Graças vos dou. Senhor, que da escura
Noite e perigos delia me livrastes,
Deste dia ver a luz deixastes
A mim, humilde vossa creatura.
Fazei que esta alma seja nelle pura
E limpa de peccado, pois a amastes,
E pêra ma salvar do Geo baxastes,
Tomando a carne nossa e a figura.
Gom todo coração, e de vontade,
Gom a palavra, obra e pensamento,
Vos sirva, louve e ame neste dia.
Louvando vossa eterna magestade,
A meu obrar dareis merecimento,
Pêra gozar no Geo vossa alegria.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz lyS
XI.
A protestação da Fé.
Em um Deos creo só, da terra e Ceo
Omnipotente Padre creador.
Em Ghristo filho seu, nosso Senhor,
Que do Espirito Santo a Virgem concebeo.
Do ventre virginal delia nasceo,
E em tempo de Pilatos regedor.
Em cruz morreo, porém foi com primor
Sepultado, ao inferno descendeo.
Resurgindo subio com gloria tanta
Ao Ceo, que com Deos Padre está assentado.
Virá julgar a toda alma nascida.
No Sp'rito Santo creo, Igreja Santa,
União dos Santos, vénia do peccado,
Resurreição da carne, eterna vida.
XII.
Ao Padre Nosso.
Eterno Padre nosso creador.
Que lá nos Ceos estaes por divindade,
De vosso nome reine a santidade.
Venha a nós vosso reino, e vosso amor.
176 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Feita seja neste orbe inferior,
Como se faz no Ceo, vossa vontade ;
O grão, de que se tem necessidade,
Nos dai o dia de hoje com favor.
As dividas, que somos obrigados
A pagar, nos perdoai, e do modo
Que a nossos devedores perdoamos.
Não permittaes que sendo nós tentados,
Nos vença o inimigo, mas que em todo
Livrados do mal delle, vos sirvamos.
XIII.
A Ave Maria.
Deos vos salve sagrada Virgem pia,
De graça toda cheia, o grão Senhor,
Do Ceo, do mar e terra creador,
Comvosco he em vossa companhia.
Bemdita entre as mulheres sois, Maria,
Bemdito Jesus, nosso Salvador,
Fruito do vosso ventre, que sem dor
Nasceo em pobre lapa em noite fria.
O' Virgem mãi de Deos, intercessora
Dos míseros mortaes e advogada.
De quem a culpa segue a triste sorte.
Ouvi minha oração, pia Senhora,
Rogai por mim a Deos, de mim lembrada,
E por todos em nossa vida e morte.
I
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 177
XIV.
Á Confissão Geral.
Ao alto Deos confesso meus peccados,
E á Virgem sua mãi, santa Maria,
A são Miguel Archanjo em hierarchia,
Ao Baptista, auctor dos baptizados.
A Pedro, a Paulo, Apóstolos sagrados,
E a Santos da celeste Monarchia,
Que em tudo o que cuidei, fiz e dizia,
Contra meu Deos pequei e seus mandados.
Por isso á mesma Virgem rogo e peço,
Como advogada que he dos peccadores,
E a todos, de que acima fiz memoria ;
Pois meus erros accuso e os confesso,
Me sejam ante Deos intercessores.
Que mos perdoe, e dê a sua gloria.
XV.
Ao Anjo Custodio.
Anjo Custodio meo, a quem foi dado
Ter cargo de minha alma nesta vida.
Havei respeito a sêr por Deos remida.
Ainda que sujeita ao vil peccado.
tyS Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Por vossa via seja eu perseverado
De modo, que não fique homicida
Em culpa contra ellc commettida,
Mas antes de mim seja sempre amado.
Livrai-me da malicia e torpe engano
Do nosso inimigo, e alcancemos
Da carne, mundo e delle tal victoria,
Que sem temor de pena e mal de dano,
Com vosco a alma minha e eu gozemos
Na outra vida os bens da eterna gloria.
XVI.
A todos os Santos»
Angélicos espíritos creados
Pêra louvar a Deos e engrandecer
Da magestade sua o immenso ser.
Por quem em graça fostes confirmados^
Collegio d' Apóstolos sagrados,
Martyres gloriosos, que por crer
Na fe de Christo e pola defender
No mundo, fostes cá martyrizados ;
Profetas, Patriarcas, Confessores,
Virgens, que lá de Deos estaes gozando,
Se o Ceo vos deixa ter de nós memoria.
Ouvi as orações dos peccadores.
Intercedei por nós, a Deos rogando
Nos dê cá seu amor, no Ceo a gloria.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 179
XVII.
Ao sahir de casa.
Se destes, meu Senhor, anjo a Tobias,
Que o caminho certo lhe ensinou,
E a casa de seu pai salvo o tornou,
De mercês vossas cheio e de alegrias ;
Outro anjo me dai, que em vossas vias
Me guie e me acompanhe onde vou,
E endireite os passos, que agora dou,
E desta vida dér nos breves dias.
Sendo por anjo vosso encaminhado,
As passadas, que dér, serão bemditas,
Sendo-lhe do Ceo a graça influída.
Vosso nome será glorificado.
As gentes louvarão as infinitas
Misericórdias vossas nesta vida.
XVIII.
Ao entrar na Igreja,
Entrarei em vossa casa, meu Senhor,
Em vosso templo santo adorarei
Vossa eterna magestade e louvarei
A vossa omnipotência e vosso amor.
i8o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Com o coração humilde e com temor,
Meu spirito a vós levantarei,
De meus erros perdão vos pedirei,
Contrito d'haver sido peccador.
Não permitaes que aonde orar mandastes,
Seja vossa magestade offendida,
Mas devação ahi nos dae perfeita.
Se ao Padre eterno orar nos ensinastes,
A oração por vós instituida,
De vós querei que seja e d'elle acceita.
XIX.
Ao levantar da Hóstia.
Adoro-vos, Senhor Deos escondido.
Nesta hóstia divina encorporado,
Creio que estaes ahi substanciado,
Deos e homem verdadeiro, a Deos unido.
Sois Deos, filho do Padre, e concebido
Na Virgem, onde fostes humanado.
Pelo Spirito Santo fostes dado
Ao mundo pêra sêr por vós remido.
P'ra termos de tão grande beneficio
Lembrança, vida usastes desta traça,
De maravilhas vossas breve historia.
Por nós vos dais ao Padre em sacrificio,
Alcançando-nos por esse meio graça,
Que por ella e por vós nos dê a gloria.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
XX.
Ao levantar do Cálix.
Divino sangue, que do corpo e lado
De Christo, Salvador nosso, emanastes,
E pêra nosso bem vos esgotastes
Na Cruz, aonde foi crucificado.
Adoro-vos, e creio confiado
Com firme fé que a Deus por nós pagastes,
E a nossa penitencia habilitastes
Pêra nos ser por ella o perdão dado.
Da improvisa morte nos livrai,
Dando graça ao nosso entendimento,
Que sirva e louve a eterna magestade.
Por vosso grande mérito nos dai
De nossas culpas arrependimento,
Pcra lograr no Ceo a eternidade.
XXI.
Ao estar á Missa.
Omnipotente Padre, que deixastes
Sêr vosso filho Deos crucificado.
Pêra remir a culpa e o peccado
De Adão, primeiro homem, que creastes.
i82 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Deste benefício além passastes;
Quereis que em sacrifício renovado
Seja este bem, de nós continuado
Em vosso santo templo, que ordenastes.
De mysterio tão alto e tão profundo
Obre em nós a assistência e a tenção
Tão admirável, pio e santo efifeito,
Que não tenha lugar em nós do mundo,
Da carne, do inimigo a tentação,
Mas seja vosso amor em nós perfeito.
XXII.
Á benção da mesa.
De lá do vosso eterno firmamento,
Omnipotente Deos, uno e trino,
Lançae a benção e favor divino
A nós, a esta mesa, ao mantimento.
Tudo de vossa mão nos seja bento,
A nossos corpos útil e benino \
Não permittaes que seja algum indino,
De lhe dardes cada dia este alimento.
Se destes de comer em campos ermos
A muitas gentes mil com pouco pão,
E sobejou mais d'outro tanto;
Virtude dai a quanto aqui comermos
Por nossa corporal sustentação,
E aqui nos dê sua graça o Spirito Santo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i83
XXIII.
As graças depois de mesa.
Graças, Senhor, vos damos, que quisestes
Dar-nos a refeição de cada dia,
E que com oração devota e pia,
Por nós pedir ao Padre pretendestes.
Por esta, e as mais mercês, que nos fizestes,
No Ceo vos louve toda a hierarchia,
E cá vos sirva toda a Monarchia,
E reconheçam rei o que lhe destes.
A todos, que por vós bem nos fizeram,
E fazem, concedei. Senhor, por isso
Eternos bens e graça meritória.
Ás almas dos fieis, que já morreram,
Zelando vossa fé, vosso serviço.
Lhe dai eterna paz e vossa glória.
XXIV.
Ao tanger das Ave Marias.
A' Virgem deo o Anjo a embaixada,
Que no alto consistório se ordenou
Pêra ser mãi de Deos, mas duvidou
Sendo Virgem, têr de mãi a nomeada.
184 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Vendo-a Gabriel assi turbada,
c Maria, não temais », lhe replicou,
€ Vossa pureza a graça em Deos achou,
Sereis do Espirito Santo amparada ».
Aquietando a Virgem o pensamento,
Diz com vontade humilde : — «o mandada
Se faça nesta serva do Senhor ■.
Dizendo a Virgem ^a/, no momento
O Verbo eterno foi nella encarnado,
E a creatura unida ao Creador.
XXV.
Ao recolher á noite para dormir.
Omnipotente Deos, que o sol creastes
Presidente da luz do claro dia,
E o governo da noite escura e fria
A' inconstante lua encarregastes !
Por refugio das gentes ordenastes
O repousado somno, que allivia
O diurno trabalho e agonia,
A que nossa natureza obrigastes.
Pois deste se aproveita o inimigo,
Representando em sonhos e abusões,
Com que a vossa magestade oôendamos.
Livrai-nos do mal delle, e do perigo
De seus ardis e torpes invenções,
Por que dormindo ainda vos sirvamos.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i85
XXVI.
A Duquesa d' Aveiro.
Quando na verde planta, ou pedra dura,
Me mandava escrever minha tristeza,
Nunca me pareceo, alta Princesa,
Que podessem meus versos ter ventura
Pêra cuidar que houvesse creatura,
A quem taes partes desse a natureza,
Que podesse mover minha dureza
A não lhes dar no fogo sepultura.
Como já fiz de quantos tinha feito
Na ribeira do Lima, em tenra idade,
Por dar algum remédio a meu defeito.
Mas pois Vossa Excellencia tem vontade
De lhos dar, eu me dou por satisfeito,
Que tudo pôde enfim pura amizade.
XXVII.
Chora o vicioso emprego da sua vã mocidade.
Nasci junto do Lima saudoso,
Donde nunca já mais falta verdura,
Levou-me sem saber minha ventura,
Que fosse, ou que não fosse venturoso.
i86 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Comecei a seguir o vicioso
Na vida, que buscava na brandura,
Sem vêr a falsidade da pintura,
Que certo quer juntar o duvidoso.
Mas em me encaminhar indo perdido,
Sentindo que já não me desculpava
A mocidade vã mal consumida,
Não vos lembrou, Senhor, ser offendido,
E qu'inda d'ofFender-vos não cessava
Pêra na vida d'alma me dar vida.
XXVIII.
A Intmaculada Conceição de Nossa Senhora,
Lá nesse ethereo assento, Virgem pura,
Da trina e uma essência coroada,
De thronos, cherubins sempre adorada,
Gozando estaes eterna formosura.
Lá, onde a luz jamais perde a figura.
Sois vós, porque quereis, Virgem sagrada,
Nosso guião de paz, nossa avogada,
Sois sol, que nos livrou da noite escura.
Sem macula espelho, poço d'agoa,
Sinada fonte, em quem da sede humana
Os peccados de todos se lavaram!
Cerrado bosque, rosa soberana,
Lirio, que entre espinhos vos acharam,
Livrai-nos, por quem sois, da eterna mágoa !
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 187
XXIX.
A mesma.
Virgem fermosa, que do sol vestida,
De luzentes estreitas coroada,
Do sol supremo fostes tão presada.
Que em vós trouxe sua luz e nossa vida.
Virgem, do alto esposo recebida,
Tanto mais humil, quanto mais alçada,
Só vós pêra o Creador fostes creada,
Só vós entre as humanas escolhida.
Qual sahe a aurora, que trazendo o dia,
O ceo esmalta de purpura e d'ouro, '
E as negras nuvens fogem d'improviso:
Tal vós, estrella clara e nossa guia.
Trazendo á terra vosso alto thesouro
Convertestes o pranto d'Eva em riso.
XXX-
 Encarnação.
Do Ceo á terra Deos omnipotente
Vestir-se vem da nossa humanidade,
E dando-nos a sua divindade,
Em nós fica, e nós nelle eternamente !
i88 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Sarando a mordedura da serpente
Com fruito liberal da sua herdade,
Porque não tem limites a bondade
De quem tudo dispõe suavemente.
Com dizer e mandar, feito e mandado
Foi tudo quanto quis meu Deos fazer,
E fará quanto tem determinado.
Que se quis a si mesmo desfazer,
E fazendo-se em nós Deos humanado.
Nos deo divino ser por nosso ser.
XXXI.
Ás palhas do presépio de Belém,
Ó venturosas palhas de Belém,
Que hoje a Deos menino agasalharam,
Como em fogo d'amor não se abrazaram
Com as divinas chamas, que em si tem ?
Pastores, que gozaram tanto bem,
Como d'estas palhinhas se apartaram?
Ou como a ellas logo não tornaram
Por gozar do que os Anjos sempre vem ?
Deixai, pastores, já, deixai o gado,
Tornai a este cordeiro, que ficou
N^s palhas de Belém desamparado.
Que, pois que lá do Ceo por nós baixou,
Bem he que de vós seja acompanhado
Cá nestas palhas frias, que acceitou.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 189
XXXII.
Ao nascimento, paixão e ascensão.
Estando o mundo todo em paz composto,
Nascendo á mea noite, longa e fria,
Das mãos de sua Mai, Virgem Maria,
No presépio Jesus pobre foi posto.
Mas Herodes temendo sêr desposto
Do reino, por matar quem não podia.
Os meninos matou, quantos havia,
Ficando, com seo reino descomposto.
E depois de fugido para o Egypto,
Tornou o Redemptor manifestado
A cumprir quanto deile estava escrito.
Enfim que morto foi resuscitado
A' gloria, como d'antes tinha dito.
Da nossa salvação assinalado.
XXXIII.
A Quinta feira da Cea do Senhor.
O' divino banquete, onde foi dada
Toda a gloria do Ceo por iguaria,
Nunca aparteis desta alma o santo dia
Da morte de meu Deos, por mim causada.
igo Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Pagando em cruz o amor sem dever nada,
Inda lhe pareceu que nos devia
No tempo, em qu;; de nós se despedia,
Ir-se, e ficar numa hóstia consagrada.
Finos toques d^amor, raros extremos,
Se os Anjos vos não podem entender,
Os que somos humanos, que faremos ?
Contento-me, Senhor, basta-me crer.
Que nessa hóstia sagrada, onde vos temos,
Mais, nem menos, no Ceo não podeis ser.
XXXIV.
Quae non rapui. Ume exsohebam.
(Psalm. LXVIII. 5)
Com cordas á columna foi atado,
E com pregos pregado no madeiro
O nosso liberal, manso Cordeiro,
Que pagou o que não tinha furtado.
Assi da terra sendo aievantado,
Cativo levou nosso cativeiro,
E não sendo da culpa alhea herdeiro,
Morreo, como se fora o mais culpado.
Não tinha outro remédio a salvação
Do mundo, que só Deos salvar podia,
Se não da sua sancta encarnação ;
Porque Jesus nascendo de Maria
Podesse padecer morte e paixão.
Na qual nosso bem todo consistia.
i
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 191
XXXV.
A Chrisío preso á columna.
Meu Deos, nessa columna estaes atado
Pera do nó da culpa desatar-me \
Pera de vossa gloria coroar-me,
Vos vejo estar de espinhos coroado.
Na cruz entre ladrões crucificado
Sofreis sêr deshonrado por honrar-me;
Por da terra convosco levantar me,
Estaes de duros cravos trespassado.
A cruel lança do divino peito
Fez porta para a bemaventurança,
Pera que o amor se dê por satisfeito.
Elle faça nesta alma tal mudança,
Que sinta em si com amoroso effeito
Columna, espinhos, cruz, cravos e lança.
XXXVI.
Ao mesmo.
Se não posso pregar meu pensamento
Na Cruz, em que, meu Deos, fostes pregado.
Da columna, a que fostes atado,
Não sinta desatar meu pensamento.
ig2 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que se dentro desta alma represento
Pouco do que ellas tem representado,
Sendo de qualquer delias sustentado,
Sinta que de ambas juntas me sustento.
Mas a fraqueza humana acostumada
A vaguear por partes perigosas,
A memoria me leva derramada
Sem me deixar gozar as mais fermosas
Da columna e da cruz ensanguentada,
Nos cravos, que sostem vermelhas rosas.
XXXVII.
A coroa d'esptnhos.
A que vindes, Senhor, do Geo á terra,
Terra, que sendo vossa, vos engeita,
E que tanto vos honra e respeita,
Que em vos não receber insiste, emperra ?
Ah ! quanta ingratidão nella s'encerra !
Quam mal da vinda vossa se aproveita !
Pois se põe a tomar-vos conta estreita,
Mais brava contra vós, quanto mais erra.
E vós de vosso amor puro forçado
As malditas espinhas lhe pisaes,
Das quaes ainda sendo coroado,
A maldição antiga lhe trocaes
Na benção, que lhe daes crucificado.
Quando morto d'amor, d'amor mataes.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz igS
XXXVIII.
A Chrisio na Cru^
Eterno sacerdote, que hoje alçado
Na grande ara da cruz, onde morrestes,
A Deos em sacrifício ofFerecestes
A vós mesmo, em amor todo abrazado.
Supremo Rei, não d'ouro coroado,
Mas de cruéis espinhos, que escolhestes.
Que por senhor dos reinos, que vencestes,
No throno dessa cruz estaes jurado.
Guerreiro capitão, que assi ferido
Com a lança, que ao ombro alevantastes,
A morte, que morreis, tendes vencido.
Entrai, Senhor, nesta alma, que buscastes,
E nella pêra sempre recolhido
Os titulos tomai, que hoje ganhastes.
XXXIX.
Ao mesmo.
Como estaes, luz sem luz, vida sem vida,
Sol sem curso, com sede fonte pura,
Imagem do pai eterno sem figura
Do mesmo pai, palavra emudecida !
i3
194 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Vara santa de Arão, já não florida,
Bello espelho do ceo sem fermosura,
Doce favo de Sansão entre amargura,
Torre de David forte enfraquecida !
Mas sem vida dais vida, luz sem luz.
Vossa sede farta ao mundo, e a imagem,
Que tendes, me faz vêr onde vos pús.
Calando ensinaes, immovel moveis
Mais duros corações, que a dura lagem,
Morto espelho mais bello pareceis.
XL.
Ao mesmo.
Assi como vos vejo nessa cruz
Nú, despido, de todo assi me veja,
E como vós estaes, meu Deos, esteja,
Sem haver em mim mais, que o meo Jesus,
Que pois eu fui aquelle, que vos pús
Despido nessa cruz, despido seja
De quanto me desvia, turba e peja,
Pêra não contemplar a vossa luz.
Quisestes vós morrer na cruz despido.
Sendo vós senhor meu; eu servo vosso,
Não pago vossa morte com morrer.
Que, pois, por mim já tendes padecido,
Nem com morrer por vós pagar-vos posso,
Pois o morrer por vós é mais viver.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz igS
XU.
A Paixão.
Se queres, ó christão, gozar da gloria,
E fugir aos abismos do inferno,
A affligida paixão de Deos eterno
Traze sempre esculpida na memoria.
Nella tens de tormentos longa historia,
Um mar alto sem fim de amor interno,
Despreza o livro antigo e o moderno,
Que este lhes leva a palma e a victoria.
Verás o bom Jesus escarnecido.
Derramando do horto ao Calvário
Rios de sangue, dores de contino.
O' finezas de amor extraordinário !
Que um Rei da terra e Geo por povo indino
Não descanse, senão na cruz subido !
XLn.
Ao mesmo.
Os passos, que de dores trespassado
Christo Jesus passou ajoelhando,
Vamos por seo amor todos passando,
Pois tanto o nosso e seo lhe tem custado.
196 Obras de Fr, Agostinho da Cruz
Pelo rasto do sangue derramado
O seo caminho iremos acertando,
Pêra o monte Calvário caminhando,
Onde delle foi tudo consumado.
O descanso do peso, que levou,
Mudando nos seus membros o madeiro,
Dos ombros pêra as costas se passou.
E ficando do seo seo companheiro,
Assi no seo pregado se ficou,
Morto por nós no seo nosso cordeiro.
XLIII.
Ao mesmo.
Se vós, meo Senhor, dais consentimento
Pêra ser dos imigos preso, atado.
Não me negueis comvosco ser levado.
Atado a vós, sequer do pensamento.
Que já que em mim não há merecimento
Pêra serdes de mim acompanhado.
Pelo menos ser muito desejado
Não deixe de crescer um só momento.
Não faltam. Senhor meo, cordas banhadas
No próprio sangue vosso pêra atar
As entranhas dos vossos desatadas ;
Nem faltam pregos vossos, que me dar,
Nos vossos pés e mãos, na cruz pregadas.
Pêra comvosco nella me pregar.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 197
XLIV.
Ao ferro da lança, que ahrio o lado de Christo.
Duro ferro cruel, lança homicida,
Mais inda que homicida, pois ousaste
Tocar o sacro lado, onde passaste
O termo da crueldade além da vida.
Lança de fraca mão, mas atrevida.
Como de vêr tal Deos não te assombraste,
Como, quebrando as pedras, não quebraste,
Como de não quebrar não estás corrida ?
Não é perversa mão a que se atreve
A abrir-nos na divina humanidade
O thesouro, que o mundo descativa?
Mas nunca melhor lança o mundo teve,
Pois quando estanca a humana crueldade,
Ella nos fez correr a fonte viva.
XLV.
A firmeza do amor.
Quem me pôde apartar de vosso amor.
Imprimido por vós neste meo peito,
Que além de ser por vós, meu Senhor, feito,
Feito quisestes ser meo Redemptor ?
igS Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Em que tribulação, tormento, ou dôr,
Em que passo da morte tão estreito,
Me posso vêr em cinza e pó desfeito,
Que cada vez amor não seja mór.
Das penas, meo Senhor, que padecestes
Do berça até sêr na cruz pregado,
A dureza em brandura convertestes.
O ferro, com que fostes trespassado
Frio, por nós despois doce fizestes.
No sangue de amor vosso temperado.
XLVI.
A Crui.
Amor trouxe a Jesus da gloria á cruz,
Amor nos leva a nós da cruz á gloria,
Amor nos descobrio gloria na cruz.
Amor nos deo na cruz posse da gloria.
Amor me dê a gloria pela cruz.
Amor de cruz ensina amor de gloria.
Amor, que gloria quer, funda-se em cruz,
Amor fundado em cruz, pára na gloria.
Amor é peso igual de gloria e cruz.
Amor nuve é de cruz, e sol de gloria.
Amor porto é de .gloria em mar de cruz.
Amor ama na cruz, goza de gloria,
Amor une ceo, terra, gloria e cruz.
Amor, donde ha mór cruz, tira mór gloria.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 199
XLVII.
A Ascensão.
Lá vos tornaes, Senhor, onde subistes
Pêra lá nos subir, donde descestes ;
Nascestes para nós, por nós morrestes,
Morto por nos dar vida resurgistes.
A nossa humanidade, que vestistes,
Vestida pêra o ceo levar quisestes ;
E tudo quanto nella merecestes,
Comnosco livremente repartistes.
O nascer, o morrer, o resurgir,
O subirdes ao ceo por nos mostrar
O caminho, por onde havemos d'ir ;
Tudo tem muito em si que contemplar;
Mais muito mais em mim vêr-vos partir,
Sem vos poder, Deos meo, acompanhar.
XLVni.
A Assumpção de Nossa Senhora.
A terra feita ceo, de sol vestida,
Sobe com nova gloria e magestade
A ser único espelho da Trindade,
De anjos rainha, de homens honra e vida.
aoo Obras de Fr. Agostinho da Cruz
A luz, que esteve cá neila escondida,
Por que iguale o triumpho a dignidade,
Vem receber a mãi, cuja saudade
Leva tudo após si nesta partida.
O resplendor da igreja militante
Abrindo, como aurora um novo dia,
Faz hoje mais fermosa a triunfante.
Já goza o que esperava, amava e cria.
Que logo mereceo no mesmo instante.
Que Deos a fez mãi sua, e nossa guia.
XLIX.
A Santo António. '
Se o sacro Evangelista mereceo
Que Deos lhe desse o peito, onde aprendesse,
E são Francisco tanto se enriquece
Das suas cinco chagas, que lhe deo ;
Pois se o divino António se escolheo
Pêra que o mesmo Deos nas mãos trouxesse.
Parece sêr que muito mais merece
Que quem o peito, ou chagas recebeo.
Quando nas mãos de António Deos estava,
E nellas se quis pôr, e se sostinha,
Nellas, por pagar tanto, se deteve,
Fiava-se Deos delle, e bem convinha
Que desse António a Deos o mais, que teve.
Se Deos a António deo o mais, que tinha.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
L.
A Degolação do Baptista.
Tendo o rei adultero e deshumano
Ao grão Baptista preso, e não contente,
Como quem tal crime inda não sente,
Outro peor commette o máotyranno;
E doura assi seo ódio com engano,
Que com saber sêr santo, e luz da gente,
Por mais males fazer, matar consente
Um anjo tal de Deos com tanto dano.
Glorioso Baptista e pregoeiro
Com tanta fé, fervor, tal humildade,
Da terra pêra o ceo caminho e norte.
Dos nascidos em tudo és o primeiro
Martyr, que por falares a verdade,
Te dá um rei cruel tão cruel morte.
LI.
A' ida de Magdalena ao sepulcro.
Magdalena de amor toda roubada,
Confusa, triste, só, sem luz, sem guia,
Busca fora de si quem nella ia,
Com passos desiguaes, e alma abrazada.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não teme a noite, as guardas, a jornada,
Porque não tinha vista, nem sentia,
Que o coração seu mestre o possuia,
E os olhos, sem o ver, não viam nada.
Chorando chega enfim onde deseja,
Vasio acha o sepulcro, de anjos cheio,
Que o lugar de Jesus só elle o peja.
Mas como de o achar o melhor meio
São lagrimas de amor, quer Deos que veja
Nellas vivo, quem morto buscar veio.
LII.
A sua morte.
A corte dos celestes moradores
Da virtude da cruz hoje se espanta.
Que entra uma peccadora triunfante
A dar posse da gloria a peccadores.
Quem das lagrimas fez conquistadores,
Bandeiras de victoria no ceo plante \
E a gozar dos thesouros se levante,
De que os pés de Jesus foram penhores.
Delle tira o remédio efficaz,
Que o ceo, a terra, a vida, a morte, a culpa,
Abre, apura, reforma, vence, apaga.
Alquimia, que da offensa fez desculpa,
Diluvio, em que se salva quem se alaga.
São milagres de amor, que só Deos faz.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 3o3
Lin.
As SS. Marta e Maria.
Aqueixava-se Marta de Maria,
Que servir seu Senhor não lhe ajudava;
Mas o Senhor Maria desculpava,
De quem, mais que de Marta, se servia.
Porque, quando ella mais se distrahia
No serviço de quem agasalhava,
Sem se bolir Maria donde estava,
Os pés do Redemptor mais merecia.
Do qual foi a queixosa respondida,
Que andava em muitas cousas occupada,
Sendo só necessária uma na vida,
Que nunca poderia ser tirada
A Maria, de quem fora escolhida,
Escolhida de quem fora ensinada.
LIV.
A S. Jacinto.
Jacinto, já vestido doutras cores
Differentes daquellas, que vestido
Tinhas no verde campo, onde colhido
Colheste do Senhor largos favores.
204 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Em que passos de amor, em que amores
Teu brando coração íoi derretido,
O teu suave nome convertido
Ora fosse de pedra, ora de flores ?
De pedra preciosa rodeada
De brandas, alvas flores na pureza,
Das estrellas do ceo encastoada,
Tal festejada cá nesta baixeza,
Tal na maior alteza festejada,
Tal na festa do Duque e da Duquesa.
LV.
A S. Francisco.
Seráfico Francisco, sprito puro.
Profundo mar de amor e de humildade,
Exemplo de pobreza e caridade,
De faustos e honras vans imigo duro.
De santa fé columna e forte muro,
Espelho de limpeza e castidade.
Clara fonte de clara e sã bondade.
Sempre servo de Deos firme e seguro.
Como é próprio de amante desejar-sc
Na cousa amada todo transformado,
E vós com tanto amor o desejastes,
Deos, de vosso ardor santo namorado,
Quis também nesse habito encerrar-se,
E vós no próprio Deos vos transformastes.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz ao5
LVI.
A entrada da Madre Soror Meda
na Madre de Deos.
Qual ave, que do laço vai fugindo.
Qual cerva, dos monteiros acossada.
Qual pedra, d'alto monte despenhada,
Qual vem o raio ardente a nuve abrindo;
Qual sae do arco a setta, o ar ferindo,
Qual imaginação desenfreada,
Qual do rio a corrente arrebatada,
Qual fogo a sua esphera vae subindo;
Tal corre a esposa, ouvindo a voz do amado,
De delicias a cruz, de honra a desprêso,
Do mundo a Deos, das pompas á pobreza.
Effeitos de Jesus crucificado.
Que faz suave o jugo, e leve o peso,
£ faz que a graça vença a natureza.
Lvn.
A' mesma.
Pôs Deos da gloria o ceo na mór altura,
Pôs na mór humildade o ceo da graça,
E d'ambos deo amor (com nova traça)
Por meio do Creador, posse á creatura.
2o6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Com mortal veo a eterna formosura
Descendo dum a outro se disfarça,
E a cruz por nós com tal excesso abraça,
Que os que a buscam, já nella acham doçura.
Esta pedra evangélica preciosa
Buscou, achou, comprou por quanto tinha
A martyr de desejo valerosa.
Fez rica a pobre, a serva fez rainha,
A soberana sorte venturosa,
Devida a quem por cruz a Deos caminha.
LVIII.
Delitice mece, esse cum filiis hominum.
Prov. 8. 3i.
Sc são vossas delicias, meo Senhor,
Estar com filhos de homens nesta vida,
Que será na que tendes escolhida
Pêra mais refinar o vosso amor?
Por elle nú na cruz vos fostes pôr,
Por elle nossa carne em vós vestida.
Por elle nossa morte destruída.
Por elle feito santo o peccador.
E se vossas delicias são estar
Com os filhos dos homens, quaes as suas,
Que consistem somente em vos amar.
Contemplando nas vossas carnes nuas
Com que fogo d'amor quereis formar,
E fazer uma só cousa de duas.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 207
LIX.
Quid enim mihi esí in coelo? et a te quid volui
super íerram ? Psalm. 72. âS.
Que tenho mais no ceo, ou que na terra
Que vós, meo Deos, por queno foi tudo feito,
Ficando terra e ceo a vós sugeito
Com tudo quanto mais nelles se encerra ?
Que quem por vós de tudo se desterra,
Trazendo-vos só dentro no seo peito.
Sem terra, e sem ceo fica satisfeito,
E nú, comvosco só, vivo se enterra.
Como se pode ver nesta figura,
Em quem da carne nossa foi vestido.
Por vestir de si mesmo a creatura.
Por cujo amor morreo na cruz despido,
Vestindo-nos da sua fermosura,
Sem despir nosso e seo roto vestido.
LX.
A Nosso Senhor.
Mostrai-me, meo Senhor, em que deserto,
Em que ribeira," valie, monte, ou serra,
Em quanto me deixaes andar na terra,
Do ceo me deixareis andar mais perto.
2o8 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que pois, ora encoberto, ou descoberto,
Me faz cruel imigo cruel guerra,
De quanto dentro em mim mesmo se encerra
Lugar de defensão tenha mais certo.
Mas como, e donde posso defender-me,
Em quanto fôr de mim acompanhado,
Com tanta experiência de perder -me.
Senão sendo metido em vosso lado
Pêra todo de mim mesmo esquecer-me,
E só de vós, meo Deos, ser alembrado ?
LXI.
Ao mesmo.
Quando será, Senhor, quç desatado
Deste peso mortal comvosco esteja,
E vendo esta alma em vós o que deseja,
Veja quanto de vós tem desejado ?
Que inda que sêr não pôde coroado
Quem valerosamente não peleja,
Basta, por muito mais fraco que seja.
Quererdes vós por jmim ter pelejado.
Aqui se fortifica a confiança,
Aqui se certifica meu desejo,
Que quem muito deseja, muito alcança.
E se pena me dá, se me faz pejo
O sentimento grave da tardança.
Desejando acharei o que desejo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 209
XLII.
Ao mesmo.
Se desejo, meo Deos, de vos amar,
E sei que desejaes de sêr amado,
Como tendes amor tão limitado.
Que no desejo meo possa parar ?
Que posso fazer mais que desejar,
Nem tanto, se de vós me não for dado ?
E pois de mim não basta o desejado,
O que vós desejaes, me haveis de dar.
E se de libValidade e brandura
Quereis mostrar d'amor maior affeito
Sem mal, nem bem da. vossa creatura,
Creai coração limpo no meo peito,
Abrazado na vossa fermosura,
Onde todo de amor seja desfeito.
LXIII.
Ao mesmo.
Se vós quereis, Senhor, a quem vos quer,
Com vos querer alcanço o bem querido,
Mas porque melhor fique do partido,
Fique nas vossas mãos o bem querer.
14
310 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Assi que nem falar, ouvir, nem vêr,
Nem desejar me seja permittido
Mais daquillo, que mais fordes servido,
Seja quanto penoso poder sêr.
Que não receio dôr, pena, ou tormento,
Buscando quanto em vós achar pretendo
Por obra, por palavra, ou pensamento.
Donde vem que de vós, Senhor, aprendo.
Que entre ambos não sofreis apartamento,
Pois só com vos querer me estaes querendo.
LXIV.
Ipse dixit, et fada sunt. Psalm. 148. 5.
Se bastou só dizer para sêr feito,
E mandar pêra sêr tudo creado,
O que também a mim me está mandado,
Como não tem em mim o mesmo efteito ?
E que seja maior este preceito
De sêr Deos sobre tudo mais amado,
E que em mim só não seja effeituado,
Que tal deve de sêr o meo defeito !
Dous estremes d'aqui fico notando,.
Que me confunde meo entendimento
As causas dos effeitos discursando.
Num vejo quanto pôde o mandamento,
Noutro quam pouco em mim só fica obrando,
E de ambos falta em mi o sentimento.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 211
LXV.
Deus caritas est. Joan. Ep. I, IV, 8 e 16.
Habita n'alma Deos, se nella habita.
Como em sagrado templo a caridade;
Sem ella, qual sem Deos, a liberdade
D'alma em officio inútil se exercita.
ITirtude, que a virtude informa e incita
Ao summo bem, nem sofre que a vontade
Ande em campo menor, que a eternidade,
Ou queira menos gloria, que infinita.
Generosa princesa, em quem receio,
Em quem pena não há, que lhe dê vida,
Da ardente hierarchia a melhor palma.
E' spirito divino, é suave meio.
Que ajunta uma alma a Deos, e lhe dá vida,
Antes é o mesmo Deos, que é vida d'alma.
LXVI.
Satiabor cum apparuerit gloria tua.
Ps. XVI, i5.
Quando verei, meo Deos, chegar-se a hora,
Que a desagasalhada alma deseja.
Pêra que só comvosco em vós me veja,
E os mais cuidados vãos fiquem de ióra ?
aia Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Pasma o juizo, o peito se afervora
No vosso amor, que todo outro despeja,
Rouba-me o sprito a saudade sobeja,
Mas nada satisfaz a quem cá mora.
Se buscar-vos faz n'alma estes affeitos,
Achar vos que fará ? perca-se o tino,
Tornem-se os olhos rios, fogo os peitos.
Mouramos todos deste amor divino,
Que só nelle consiste o sêr perfeitos,
E o atinar do mundo é desatino.
LXVII.
Pr ceterit figura hiijus mundi.
I Corinth. Vil, 3i.
O' cegos, que buscaes na morte a vida,
Na terra quietação, no ar morada.
Se sois, se haveis de sêr, se fostes nada.
Onde está o conto, o peso e a medida ?
Se alma em deseios vãos anda embaida;
Dizei-me, gente vil, desatinada,
Que cousa vos engana desejada.
Que vos não desengane possuída ?
Quem não conhece a Deos, nem se conhece,
O que ha- de aborrecer, isso deseja,
E o que ha-de desejar, isso aborrece.
Meu Deos, dai-me outros olhos, com que veja,
Que o mundo em apparencia se esvanece,
E vós sejais meo fim, para que eu seja.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 21 3
LXVIII.
Voto de ardente amor divino.
Quem me dera por lingua um raio ardente,
Que os corações abrira e abrazára,
E os derretera, unira e transformara.
No amor, que arde e inflamma suavemente.
Amor, que tudo quer, nada consente,
Amor, que se não vê, sendo luz clara.
Amor, que do ceo vem, e no ceo pára.
Amor, que quem o sente, não se sente.
Amor que n'alma imprime um sêr divino,
Que alumiado abre, abnndo accende,
Derrete unindo, e une transformando.
Amor, que cá na terra é peregrino,
Amor, que attrahe o spirito e o suspende,
Amor, enfim, que só se aquire amando.
f LXDC.
Da oração.
Assi como, meo Deos omnipotente,
Não costumaes negar petição justa,
Assi não concedeis qualquer injusta,
Concedendo e negando justamente.
•íeslí-:'..
214 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
A justiça guardando igualmente
Em tudo, quanto mais, ou menos custa
Na fraca natureza, ou na robusta
Com desejo, das forças differente.
Mas não haja quem perca a confiança
D'alcançar o que pede a tal Senhor,
Que quem nelle confia, tudo alcança.
Pois a tanto se extende o seu amor,
Que pêra dar a bemaventurança
Em breve, justo faz do peccador.
LXX.
Ao mesmo.
Aquelle, que caminha, desejando
Chegar a vêr-se donde se deseja,
Ainda que chegado não se veja.
De cada vez se vai mais achegando.
Então já de mais perto renovando
O desejo lhe dá força sobeja
Tanto, que mais penoso inda lhe seja
Deixar de caminhar, que caminhando.
Não sofre amor divino haver tardança,
Por pequena que seja, em caminhar.
Pois o que mais caminha, menos cansa.
E pêra finalmente descansar.
No caminho da bemaventurança.
Deixando de correr, ha de voar.
Obras de Fr. Agostinho da Grur 21 5
LXXI.
Omniaflumina intrant in maré, et maré non
redundai. Eccles. /, 7.
Os rios, donde nascem, vão correndo,
Seu repouso no mar alto buscando,
Com suas doces agoas nelle entrando,
Que em salgadas se ficam convertendo.
Então seo claro engano conhecendo,
De novo a correr tornam, murmurando
Do mal com que lhes fica o mar pagando
As voltas, que por vê-lo vão fazendo.
Doces rios, deixai de murmurar,
Senão de vós, tão mal considerados.
Que correndo vos is lançar no mar.
De cima pêra baixo ides errados,
De baixo pêra cima sem errar.
Os caminhos do ceo vão acertados.
LXXII.
Gutta cavat lapidem. Ao effeiio da perseverança.
A fonte, que de seu curso Inurmurava,
Cahindo do mais alto do rochedo.
Nos mostra que cavando no penedo
A dureza se vence com brandura.
2i6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Assi quem persevera, espera, atura,
Com seos olhos banhados, tarde, ou cedo
Achega a penetrar este segredo.
Como o figurado na figura.
Se contra toda a lei da natureza
A brandura com ser continuada
Basta pêra vencer toda a dureza,
Que não fará nesta alma renovada
A faisca d'amor divino accesa
Pêra ser nelle toda transformada ?
LXXIII.
Quanto importa um bom desejo.
Um bosque, que de longe apparecia.
Quando mais claro o sol se nos mostrava,
Desejapdo de vêr, não acabava,
Arreceando quanto custaria.
Assi passando fui sem vêr um dia
O que vêr tantas vezes desejava.
Que muitas sêr devendo a carne escrava,
Usurpa d'alma sua a senhoria.
Enfim depois de bem considerado.
Rompendo pelo mais difficultoso.
Achei que em caminhar tinha acertado.
Que quem deseja vêr o mais fermoso,
Se não chegar a vêr o desejado,
A mais chega em se vêr mais desejoso.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 217
LXXIV.
Finis cujusque mali principium esí futuri.
Do fim de qualquer mal, que me persegue,
O principio de outro se me apega,
Porque quando um de mim se desapega,
Outro no mesmo instante se me apegue.
Assi do que se acaba, outro se segue,
E áquelle, que por vir está, me entrega,
E inda este não se vai, já outro chega,
Sem que para acabar-me, nenhum chegue.
E pois, quando um acaba, outro começa,
De um só (se d'ambos não) fico forçado
A que de novo sempre me entristeça.
Já que tão mal me tenho aproveitado.
Que não faltando males, que padeça,
Na paciência minha haja faltado.
LXXV.
A temperança.
No fim da vida humana discursando,
Dos males e dos bens fiz conta certa,
Vendo como tem sempre a porta aberta
O tempo, que nos cansa, não cansando.
2i8 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que todo se consume desejando
Os fugitivos bens da vida incerta ;
E se nos males seos se desconcerta,
Nos bens menos se fica concertando.
Temendo Salomão summa pobreza,
Das riquezas lemeo summa abundança,
Confessando de si sua fraqueza.
Assi d'ambas pedio a temperança
De tão destemperada natureza,
Que nos males e bens a todos cansa.
LXXVI.
A vaidade humana.
De que serve, que presta, que aproveita,
Tudo quanto se acaba em tempo breve,
Qual cera ao fogo, ou qual ao sol a neve,
Que não pôde deixar de ser desfeita.
Tal o que só jio mundo se deleita.
Querendo do pesado fazer leve.
Sem temer o castigo, que se deve
A quem por temporal eterno engeita.
As flores, que nos campos apparecem,
Abatem sua mesma fermosura
Antros olhos, de quem desapparecem.
Amostra-nos o tempo que é pintura.
De quantas cousas dá, todas fenecem,
Senão o Greador da creatura.
Obras de Fr. Agostinho da Cnu 219
LXXVIL
A dignidade da alma e vaidade da vida.
Quem podesse mostrar o que tem n^alma
Pêra desenganar em tudo a vida !
Mas não sinto ninguém, que trate d'alma,
E todos a esperança pÕe na vida.
O ceo é verdadeiro lugar d'alma,
E á terra baste dar-lhe o corpo e a vida,
Pois não podem têr fim os males d'alma,
E passam, como sombra, os bens da vida.
St queremos saber o preço d'alma,
Vejamos que pôs Deos por ella a vida,
E viveremos nelle, elle em nossa alma.
O mundo é sonho vão, que enlêa a vida.
Quem nelle está melhor, tem peor alma,
E quem o desprezou, tem alma e vida.
LXXVIII.
A' Senhora da Memoria na ausência
de Fr. Diogo dos Innoceníes.
Se vós me não deixaes, Senhora minha,
Seguro estou de nunca vos deixar,
Porque se em mim não ha que segurar,
Assegura-me ter-vos por vizinha.
k
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Foi-se-me o companheiro, que aqui tinha,
Enfermo sem poder mais aturar ;
E pois doença e morte hão-de chegar,
Fazei que a morte chegue mais asinha.
Segura-me, Senhora, a confiança
De vossa piedosa condição,
Tão liberal comigo aqui neste ermo.
Para não recear qualquer mudança,
Que quem de mim se serve, quando são.
Não me lançará fora, quando enfermo.
LXXIX.
Á mesma e ao mesmo respeito.
A saudade d'alma a vós devida,
De vós. Senhora minha, se sustenta.
Que todos quantos bens me representa,
Nascem de merecerdes ser servida.
•
Servir-vos é viver suave vida,
Doce, quieta, branda, livre, isenta ;
A paga do serviço se accrescenta
Aqui no vosso altar da vossa ermida.
Que graças dar-vos posso ? que louvores ?
Pois quanto posso mais, tanto mais devo,
E quanto devo mais, tanto mais rico.
E mais rico, mais devo das maiores ;
Mas quando no que devo mais me enlevo,
Libertado do amor mais preso fico.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 221
LXXX.
A mesma e ao mesmo respeito.
Daqui, minha Senhora, fui forçado
Da santa obediência á cidade ;
Mas mais forçado vim da saíidade
Vossa, que me tornou mais esforçado.
E se fui, e não vim acompanhado,
Como cuido que foi vossa vontade,
Ndo pode ser que aparte a piedade
Quem nunca vi d'amor vosso apartado.
Eu não posso encobrir o sentimento
De tão suave e branda companhia,
Serviço vosso, meo contentamento.
Mas tudo sofrerei com alegria,
Com tanto que não haja apartamento
Do meo doce Jesus, Virgem Maria.
LXXXI.
Na Serra da Arrábida.
No meo 4esta Serra, onde se cria
Aquella saudade d'alma pura.
Que no duro penedo acha brandura,
Ardente fogo dentro nagoa fria,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ouço no passarinho a melodia.
Vejo vestir o bosque de verdura,
Variar-se no ceo outra pintura,
Que em vários sentimentos me varia.
Pasmando de quam mal se gasta a vida
De quem da terra quer subir ao ceo,
Pois caminhar enfim ninguém duvida,
Menos da vida estreita, que escolheo,
Dos seos mais escolhidos, mais seguida,
Christo Jesus, que numa cruz mbrreo.
LXXXII.
Da contemplação na mesma.
Dos solitários bosques a verdura.
Nas duras penedias sustentada,
Nesta Serra, do mar largo cercada,
Me move a contemplar mais fermosura.
Que tem quem tem na terra mór ventura,
Nos mais altos estados arriscada,
Se não tem a vontade registada
Nas mãos do Creador da creatura ?
A folha, que no bosque verde estava.
Em breve espaço cahe, perdida a flor,
Que tantas esperanças sustentava.
Por isso considere o peccador,
Se quando na pintura se enlevava
Não se enlevava mais no seo pintor.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 223
LXXXIII.
Da perseverança na penitencia, na mesma.
As cabras, que inda guardo nesta Serra,
São lagrimas chorar por meos peccados
Na lembrança dos tempos mal gastados,
Vendo quem mais acerta, ou quem mais erra.
Triste vida se vive sobre a terra,
E triste muito mais nos povoados,
Dos meos e dos alheos semeados,
Por cima d'hervas más da mesma terra.
Quão pouco dura a vida, bem se entende,
E bem o pêra que foi concedida,
E quanto bem, ou mal no fim nos rende.
Ora seja mais breve, ou mais comprida,
A nenhum outro bem maior se estende,
Que a ganhar com mortal immortal vida.
LXXXIV.
Da experiência.
Que me fica por ver na mortal vida.
Dos meos immortaes bens tão alongada,
Que por mais que o seo tudo seja nada.
No mais do tudo seo vejo perdida !
224 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ah ! quanto se dilata esta partida,
Com perigo desta alma dilatada,
Que antes de ser nascida, foi culpada,
Culpada mais, depois de ser nascida.
A taes termos chegou minha esperança,
Que do remédio estou desenganado
Tanto, que cuidar nelle inda me cansa.
Porque passou o tempo limitado,
Que não pode sofrer tanta tardança
Da morte, de que estou desconfiado.
LXXXV.
Ao mesmo.
Dos males, qiie por mim já tem passado,
Os que estão por passar tenho aprendido,
Vendo quanto mais vai sêr perseguido
Sem causa, que com ella sêr louvado.
Na terra, que não sofre o curvo arando
Nas rasgadas entranhas revolvido,
Não pode o novo trigo sêr colhido,
Que pêra se colher foi semeado.
A natureza humana mal sofrida,
De vários successos encontrada.
Mal poderá deixar de sêr ferida.
E que deixe de sêr, sendo louvada,
Sofrendo sêr sem causa perseguida,
Ainda a vigiar fica obrigada.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 22 5
LXXXVI.
Da quietação.
Dentro na minha Lapa recolhido
Para chorar um mal novo presente,
Soltando a rouca voz mais brandamente
Disse, depois de tudo concluído :
— Se sempre são hei-de ir, e vir ferido,
E se triste tornar, indo contente.
Nem por amor de amigo, ou de parente,
Sahirei fora donde estou metido.
Nem ver, nem visto sêr quero neste ermo,
Nem mal, nem bem tratar mais que de mim,
Pois já da vida tenho feito termo.
Deixem-me morrer donde morrer vim,
Não queiram que mais viva o velho enfermo,
Nem queiram mais matar, sem dar-lhe fim !
LXXXVII.
Ao mesmo.
Dos males, que passei no povoado.
Fugi pêra esta Serra erma e deserta,
Vendo que quem servir seo Deos acerta,
Certo tem tudo o mais ter acertado.
220 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
E pera mais pureza sou forçado
Mostrar a paciência descoberta,
Que quando o tentador se desconcerta,
O paciente fica concertado.
Passou a furiosa tempestade,
Ouve-se a voz da rola em nossa terra,
Soando com maior suavidade.
Cobrio-se d'alvas flores toda a Serra,
A minha alma de doce saudade,
Em paz me fez amor divina guerra.
LXXXVIII.
Ao mesmo.
No silencio da noite, em que vigio,
Desterrado da terra o pensamento.
No que dentro nesta alma represento,
Ora me aquento mais, ora me esfrio.
E pera temperar fogo com frio,
Em que me esfrio mais, ou mais me aquento,
Dos efleitos do puro sentimento,
Na minha saiidade chorja e rio.
Depois destes contrários temperados
Na mór quietação, na mór brandura,
Meus pensamentos ficam sepultados.
Temperada a frieza na quentura
Do meo divino amor tão apurados,
Que me deixam em paz na sepultura.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 227
LXXXIX.
Ao peccado original.
Se sendo, meo Senhor, por vós formado
Adão, antes de ser o mal nascido,
Peccou, que fará quem foi concebido
Nas entranhas, que já tinham peccado ?
Comer de um fruito só lhe foi vedado,
Tudo mais a seo gosto concedido,
E por uma só vêz haver cahido.
Por muitas sêr não posso alevantado.
Tão fraca ficou minha natureza.
Que levantar não deixa o pensamento
Da terra, a que está atada e presa,
Tão imiga do meo merecimento.
Que se morder não pôde na pureza,
Não deixa de ladrar um só momento.
XC.
Chora os desvarios da sua desaproveitada
mocidade.
O' montes altos, valles abatidos.
Verdes ribeiras de correntes rios.
Ora por baixo de bosques sombrios.
Ora por largos campos estendidos ;
228 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Onde mais claros vejo repetidos
Meos mal considerados desvarios
De pensamentos vãos, baixos e frios,
Emendados tão mal, quam mal sentidos.
Passei a mocidade sem proveito,
Antes contra meo Deos accrescentando
Culpas a quantas culpas tenho feito \
Cuja pena a velhice está purgando
Pêra passar da morte o passo estreito,
Se não se no seo sangue for nadando.
XGI.
Da emenda.
Concluído me tenho a mi comigo
De deixar o caminho, que levava,
Vendo com razões claras quanto errava
Em não me desviar do mais antigo.
Pois no trabalho seo, no mór perigo,
Meo amigo consigo a mi me achava ;
E quando no meo mal algum buscava,
Achava-me comigo sem amigo.
Agora dei a volta por caminhos
De solitários bosques enramados
De feras bravas, mansos passarinhos \
Que inda que entre os espinhos conversados.
Mais quero pés descalços entre espinhos.
Que dos homens humanos espinhados.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 229
XCII.
A sua inalterável confiança em Deos.
Ancorou-me a velhice no remanso
Deste mar Oceano, largo e brando,
Onde não tenho já que andar remando,
Nem querer noutra parte melhor lanço.
Neste repouso meo, em que me lanço,
E me levanto sempre desejando,
As forças se me vão accrescentando
Pêra alcançar um bem, que não alcanço.
E tendo já no mar ferro lançado,
A confiança minha não se altera,
Por mais que o bravo mar vejo alterado.
Antes mais firme e forte persevera,
Que quem só no seo Deos tem ancorado,
Do bem se logra já, que ter espera.
xcm.
A morte.
Os correos da morte são chegados
Por caminhos antigos, impedidos,
Mal com meo» olhos, mal com meos ouvidos,
Mal com meos pés, do chão mal levantados.
23o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
E mal, por não chorar bem meos peccados,
Que sendo sete, e cinco meos sentidos,
Por serem tantas vezes repetidos,
Impossivel será serem contados.
Se não viera a. morte acompanhada
De conta, que dar devo tão estreita.
Não fora tão penosa imaginada.
Mas a que vivo e morto tenho feita,
Tenho com meo Senhor na cruz pregada,
Onde o ladrão contrito não se engeita.
XCIV.
Soneto.
Aquelle, que na vinha do Senhor
Trabalha por cavar proveito alheo.
Tanto do próprio seo fica mais cheo,
Quanto mais do commum foi cavador.
Costuma a pagar divino amor
A quem buscar o quer por este meio
Primeiro, como a quem mais tarde veio,
E tanto como o mais madrugador.
Aqui nesta doutrina claramente
Se ensina por que via, como e quando,
Oflerta faz a Deos mais excellente.
Todo o que dignamente commungando
Ofterece a Deos Padre omnipotente
Seo Filho, sua gloria accrescentando.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 23 1
xcv.
Soneto.
O' vós, que andaes de achar cá desejosos
Modos de honrar sem fim mais a Trindade,
O melhor se vos dá aqui com brevidade,
Nestes motivos santos amorosos.
Nelles tendes louvores copiosos
Se summo gráo, e grande dignidade
De quem trata e recebe a magestade,
Que temem olhar no ceo os gloriosos.
O alto sacrifício d'honras dino,
A nós tão proveitoso, a Deos acceito,
Com que é toda a Trindade engrandecida.
Sagrada Hóstia, Viatico divino.
Que offerecida ao Padre em effeito,
Lhe dou gloria infinita e sem medida.
XCVI.
Soneto.
Lembranças de meu bem, doces lembranças,
Que tão vivas estaes nesta alma minha.
Que mais quereis de mim que os bens que tinha,
Vê-los em poder todos de mudanças ?
232 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ai cego amor ! ai falsas esperanças,
De que eu no meu bom tempo me mantinha l
Agora deixareis quem vos sostinha,
Acabaram co'a vida as esperanças.
Co'a vida acabaram, pois a ventura
Me roubou num momento aquella gloria,
Que mostra um grande bem quam pouco dura.
Se após o prazer fora a memoria,
Ao menos estivera a alma segura
De ganhar-se com ella mais victoria.
XCVII.
Soneto.
Contentamentos meus, que já passastes,
Trocando a vida alegre, que vivia,
Por este mal, que passo, que um só dia
Me não deixam, depois que me deixastes.
Acabar me convém, pois acabastes
De darme o desengano, qu'encobria
Uma esperança vã, que me trazia
Contente, a qual também me já tirastes.
Os olhos, que amor sempre guiava
Aonde eu tinha firme o pensamento,
Quando vossa presença os alegrava,
Agora choram vosso apartamento,
Que lhe tirou um bem, que os sustentava,
E só de vós ficou o sentimento.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 233
OITAVAS.
Fortuna destruio minha esperança,
Desenganou-me amor, que a ventura
Que perdesse de tudo a confiança
Com mil claros sinaes da dor futura.
O' quantos males fez uma só mudança
E quam incerta nclles fica a cura,
Depois que vós de mim vos apartastes.
Contentamentos meus, que já passastes!
O summo bem, que tinha, me avisava
Da pena, que padeço justamente,
Que em tão baixo valor mal se empregava
Um tão felice estado, e tão contente.
A causa, por que dantes triunfava
Do tempo, sem cuidar no mal presente,
Comvosco se. me foi o contentamento,
E só de vós ficou o sentimento.
PROEMIO.
Tercetos em louvor da Immaculada Conceição
da Virgem Nossa Senhora.
Cantar pretendo aquelle alto mysterio,
Que Deos obrou na mais alta creatura,
A que entregou do ceo e terra o império.
A pura Conceição da Virgem pura.
Que pêra mai de Deos foi escolhida,
No eterno tribunal da empyria altura.
234 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mas falar cego em luz e morto em vida,
Em resplandor da gloria a escuridade,
Em fogo ardente a neve empedernida,
E' mór soberba, é mór temeridade,
Que emprender esgotar o grande Oceano,
E que medir dos ceos a immensidade.
Não é empresa enfim d'engenho humano,
Sem luz particular do sol divino,
Que se escondeo no ventre soberano.
Esta me alcança, ó Virgem, inda que indino,
Pois tudo te entregou quem pode tudo,
De teus naerecimentos premio dino.
Illustra o entendimento deste rudo.
Alumia o espriío deste cego,
Desata e abraza a lingoa deste mudo.
Pois rudo, cego e mudo a ti me entrego,
Reforma tudo em mim pêra louvar-te,
E não perder me em tão profundo pego.
Que o que dar pode a natureza e arte,
Não basta para tão alto sujeito,
Se de ti não recebo o que íiei-de dar-te.
E pois só gloria tua é o respeito.
Que move esta alma do teo amor roubada,
Enche de teo favor voz, penna e peito.
Que sem elle não sou nem posso nada.
Antes que houvesse tempo, ceos e terra.
Antes que na suprema hierarchia
Se levantasse a horrenda e nova guerra,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 235
Antes que a divisão da noite e dia
Das grandes luminárias se fiasse,
Por quem se rege o mundo e se alumia -,
Antes que o mar da terra se apartasse,
Antes que em seo lugar cada elemento
O Autor da natureza colocasse-,
Antes que do estrellado firmamento
O resplendor, o curso, a magestade,
Dessem do seo poder conhecimento ;
Nas Ideas de sua eternidade.
Querendo o amor divino insaciável
Unir ao Verbo nossa humanidade \
Predestinou uma Virgem admirável,
Que sem perder á virginal pureza,
Fosse mãi ó mysterio inexplicável !
O' excesso das leis da natureza!
O' thesouro da eterna sapiência,
Que tanto enriqueceo nossa pobreza !
Desta escolha se infere uma consequência,
Tão infallivel, e tão bem provada,
Que haver não pôde mais clara evidencia.
Que esta Virgem por Deos predestinada,
Pêra mãi sua necessariamente,
Da culpa original foi preservada.
Que a casa pêra Deos era decente,
Sêr santa em tudo sempre qual dissera,
O real Profeta delia expressamente.
236 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
E noutra parte diz, que Deos pusera
No sol seo tabernáculo, figura
Da luz e resplendor, que á Virgem dera.
Na criação do mundo e na escritura,
Isto em vários lugares representa,
Isto nos significa e nos figura.
Esta fé autoriza, esta sustenta,
O filho diviníssimo Cordeiro,
Que antre os lírios celestes se apascenta.
O grande, immenso, eterno e verdadeiro,
Omnipotente Deos maravilhoso,
De quem já mais ninguém foi conselheiro ;
O ceo fez lúcido, claro e fermoso,
Cuja influencia varia e deleitosa.
Nas creaturas o faz mais glorioso.
A terra creou fértil e amorosa.
Que sem humana industria e sem cuidado,
Nos dava fruito e flores copiosa.
Já posto em feição tudo o creado,
A' sua imagem cria e semelhança,
Um summario do mundo abreviado.
Deo-lhe a posse de tudo e a governança.
Aos anjos quasi quis que se igualasse,
E assi coroa de gloria alcança.
Porque a justiça da alma conservasse.
Luz sobrenatural lhe concedeo,
Com que o servisse, conhecesse e amasse.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 23/
E de sciencia infusa o enriqueceo,
Que as cousas mais occuitas penetrando,
Nada do natural se lhe escondeo.
Porque as mercês se vão multiplicando,
Companheira lhe deo com que se unisse,
Em paz na terra o ceo representando.
Pêra que tanta gloria possuísse,
Seguro de mudança e de ruina,
E a mais altas contemplações subisse,
Por morada lhe escolhe e lhe destina
O paraiso terrestre, onde abrevia
As delicias do ceo a mão divina.
Tudo o que ali creara delles fia,
Só comerem do fruito, que lhe aponta.
Da sciencia do bem e mal prohibia.
O' cega ingratidão, perpetua affronta,
Digna de sêr chorada eternamente.
Que sem Deos todo o mundo nada monta !
Quebraram o percepto incautamente.
Perdendo a Deos ficaram enganados,
Adão da esposa e Eva da serpente.
Da original Justiça despojados,
Tudo se lhes rebela e os desconhece,
Ficando a morte e a dores condemnados.
O' quanto a culpa acanha e empobrece,
Que na sua patna Adão fez peregrino,
E se não cava e sua já perece!
a38 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
E não parou só nelle o desatino,
Que a todos comprendeo este peccado,
Por ordem do Juiz justo e divino •,
Mas estando ab eterno decretado
Não sêr nesta geral lei comprendida
A custodia do Verbo desejado \
Representando-a na arvore da vida,
Porque Adão não podesse tocar neíla,
Depois da mortal culpa commettida.
Tu és a oriental, cerrada porta,
Do rico e venerável santuário,
Onde varão entrar não se supporta.
Sagrado tribunal, limpo sacrário,
Do Verbo que encarnou do Esprito Santo,
Feito qual pêra Deos foi necessário.
Aqui a alma enlevada em novo espanto,
Das potencias não usa, acha-se indina,
Que em finito saber não cabe tanto.
Vacila o entendimento, e não atina,
A vontade não pode o que pretende,
A memoria confusa desatina.
Nenhum discurso humano te comprende,
Mas se elle para o amor a lingua move,
A publicar o ardor, que o peito accende,
O mesmo amor o esprito me renova,
Pêra tal te cantar qual te contemplo,
E o que razões não provam, elle o prove.
I
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 289
Quis Deos que o sábio Rei fundasse um templo,
Que na forma, grandeza e artificio,
Não teve, nem terá no mundo exemplo.
O intento principal deste edifício
Tão rico, sumptuoso e admirável
Foi fazer-se a Deos nelle sacrifício,
E traçar um sacrário inextimavel,
Onde esteja em lugar santo e decente,
A arca do testamento venerável.
Se d'ouro puro, pedras do oriente,
Prata fína, riquissimos metaes,
E dos cedros do Libano eminente
Ornou Deos com mercês tantas e taes
O templo material, onde se faça
Sacrifício de brutos animaes.
Como ornaria o spiritual da graça,
Custodia da lei viva, santa e pura.
Em quem comnosco Deos se une e abraça ?
Por quem já não em nuve, nem figura.
Mas em pessoa he Deos sacrificado,
Feito pão d' Anjos, luz da alma, e fartura.
Se na figura Deos, com tal cuidado
Pôs tanta perfeição, mal sofreria
Macula original no figurado.
Que grande agravo a si mesmo fazia,
E injuria aos Anjos, que em graça creára,
Dar-lhe Senhora em quem faltado havia.
240 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Também no mesmo templo, expressa e clara
Figura foi da original limpeza
O que nas pedras delle Deos obrara ;
Donde as tinha formado a natureza,
Cortadas pêra a obra soberana,
Vinham justas no assento e na grandeza.
Ordem divina, donde tudo mana,
Foi virem tão iguais e compassadas.
Sem mais medida, ou nova traça humana.
Vinham todas tão limpas e acertadas,
Que, emquanto a obra durou, nunca soaram
D'instrumentos mecânicos pancadas.
As pessoas divinas te crearam
Tão pura e tão conforme á dignidade.
Que a ella a conceição proporcionaram.
Vieste lá da eterna magestade,
Tão limpa, tão perfeita e compassada.
Quanto convém do filho a humanidade.
Medida no ceo foste lá traçada,
E ao conceber a graça te influiram.
Que declarou a Angélica embaixada.
Se Deos a Eva e a Adão, que o desserviram,
Original justiça lhes concede.
Com antevir a culpa em que cahiram,
A Virgem que em servi-lo e amá-lo excede
A todos, e impeccavel sempre esteve,
Porque lha não daria o que lhe impede ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 241
Dizer não quis he dar o que querer teve
Falta : dizer não pôde a omnipotência
Quem num ou noutro pôr falta se atreve ?
Tudo quis, tudo pôde a providencia
Divina dar á mãe por não mostrar-lhe
No menos dando o mais menor clemência.
E o não cahir não tira aproveitar-lhe,
A redenção de Christo antes a honra,
Mais em a preservar, que em perdoar lhe.
Falta fora em um Rei, nota e deshonra,
Dar a seo filho herdeiro mais cativa.
Do mór imigo do seo estado e honra.
Deos ao filho por quem quer que reviva,
O mundo não dá mãi, que fosse escrava,
De quem dos bens da graça e gloria priva.
Saul quando David em campo entrava
Co bravo Filisteo, soberbo e horrendo,
Das reaes armas próprias o armava.
O rei celeste a mãi pura elegendo,
Pêra que contra o imigo pre.valeça.
De graça original a armou em sendo.
Em sendo quer que a tema e reconheça,
E se cumpra a palavra, que lhe dera,
Que ella quebrantaria sua cabeça.
Figura disto próprio o velo era.
Que vira Gedeão d^orvalho cheo,
Sem se molhar a terra em que estivera.
16
242 Orras de Fr. Agostinho da Cruz
Tendo todos ferrete escuro e feo
Das culpas paternaes hereditárias,
A graça original só á Virgem veo.
Joseph fazendo as terras tributarias
Todas do Kgypto, lemos que eximira
Franca a "Socerdotal de pagar párias.
Christo, mór Sacerdote, a Virgem tira
Da dura servidão, por não poder-se
Chamar mái de Jesus e filha d'ira.
E por no efteito a causa conhecer-se,
A livrou de sentir no parto dores,
E de seo corpo em terra converter-se.
Que em pena se deo isto aos successores-
De Adão, c como a Virgem não peccasse
Não padece as paixões dos peccadores.
Mandou Deos a Israel que, quem tratasse
D'ouvir sua voz, o primeiro q,ue a ouvisse
O sprito e coração santificasse.
Pois como se ha-de crer que consentisse
Falta na Virgem pura e mãi bemdiía,
Querendo que o gerasse e que o parisse ?
Formou, antes da terra ser maldita,
O Adão primeiro ; doutra é bem que forme
O segundo, em que falta não se admitta.
A culpa d'Eva fez, que a Deos conforme
Presuma o homem ser, por onde empenha
A alma, a quem de fermosa a fez disforme.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 243
A graça de Maria faz que venha
Deos sêr conforme ao homem, e por ella
O tenhamos em nós, e em si nos tenha.
Semelhança de sêr gerada nella
Foi a sarça que, sem queimar-se, ardia
Quando Deos a Moysés quis falar delia.
Entre as chamas mais verde se fazia
Contra o natural curso e propriedade,
Que o fogo prender nella não podia.
Só da parte usa aqui da claridade,
Que a outra do abrazar vencida fora
Do ramo, em que Deos pôs sua divindade.
Assi com sêr a Virgem successora
De Adão, põr privilegio milagroso,
Da culpa original foi vencedora.
Deste mysterio tão prodigioso
Ficou Moysés com tal lemôr e espanto,
Que está do que vê claro, duvidoso.
Mas com acatamento e fé de santo
Intenta de mais perto assegurar-se,
Que não quer dos sentidos fiar tanto.
Caminha e pára, não ousa, e quer chegar-se,
Ora fica suspenso, ora se abala,
E sem de todo enfim determinar-se,
Vê que da mesma sarça Deos lhe fala,
Que antes de dar mais passo se descalce,
Que a terra ali por santa lhe assignala.
k
244 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
O Patriarcha por que mais realça
Sua humildade, e com mór aífeito
De todo o coração a Deos exalce,
Pondo o sprito no Ceo, na terra o peito,
Obedece, ficando arrebatado.
Em amorosas lagrimas desfeito.
E assi quem presumir entrar calçado
De indevotas razões neste Ceo puro,
Da concepção na sarça figurado,
Merece achar este mysterio escuro,
Ás leis geraes a Virgem submettendo,
Signal de peito frio e animo duro.
Deos na sarça annuncia que entendendo
O clamor e afflição do cativeiro,
Que o povo está no Egypto padecendo,
Desce como Senhor e padroeiro,
A livra lo, e que a terra haja e possua
De promissão, e a logre como herdeiro.
Também na Conceição alegre tua,
Anunciou descer a libertar-nos,
E dar-nos posse em ti da gloria sua.
Esta grande mercê deve obrigar-nos
A com fé viva e animo incansável
Gratos na defensão delia mostrar-nos.
Christo, verdade eterna, mdubitavel,
Canonizando o angélico Baptista,
Depois de o declarar por inculpável,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 245
Disse, como refere o Evangelista,
Que entre os nascidos não se levantara
Outro maior, que foi honra não vista.
E nisto expressamente nos declara.
Que a Virgem não cahio, que se cahira,
Ou menor que o Baptista, ou igual ficara.
Da culpa original a esposa a tira,
Nos Cantares, pois diz que a doce amiga
Toda fermosa e sem macula a vira.
A mesma opinião consta, que siga
O santo Job, da Virgem celestial,
E que do Verbo eterno e delia diga :
Que a noite do peccado original
Não vira a luz, que é Christo, nem a aurora,
Que é a mãi clara, pura e virginal.
Isto confirma e testemunha agora
A Igreja universal e o Pastor delia.
Vigário do Senhor, que o mundo adora.
Pois entre as festas, que celebra nella
Quis, que a da Conceição tivesse dia
Particular, e dedicado a EUa.
E a Igreja santa não consentiria
Festejar-se com duvida ou peccado.
Que, enfim, nunca peccar pôde quem a guia.
E assi protesto aos teus pés prostado,
Que emquanto houver em mim vital alento,
Será este dia sempre festejado.
246 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mas quem terá favor, graça e talento,
Pêra exercicio tão santo e sublime,
Não tendo o teu favor por fundamento ?
Quando se há por indino e se reprime
O sprito de Moysés, e á vista treme
Da sarça, aonde achou Deos que o anime,
O meu, que entre o pesar e a culpa teme,
Cheo de confusão e de cegueira.
Qual náo em temporal, sem luz, nem leme,
Se tu, Senhora, mãi e padroeira.
Não fazes que a si mesmo e ao mundo negue,
Pêra ter a paz da alma verdadeira,
Que centro pôde achar, onde assossegue,
Quem me pôde valer, quem amparar-me.
Pois tudo o que há na terra, me persegue ?
Tu podes soccorrer-me e animar-me
Em todo lugar, tempo, estado e trance,
E com outro ser novo reformar-me ;
Abrir-me o coração pêra que lance
De si todo o amor vão, ou arrancar-mo,
Dando outro em seu lugar, que te ame e alcance.
E pois que da tua pane pêra dar-mo
Nada falta, não sejam meos peccados
Bastante occasião pêra negar-mo.
Erros tenho não vistos, nem cuidados,
Nenhuma emenda, muita confiança.
Bons propósitos nunca executados.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 247
Pondo os olhos em mim perco a esperança,
Pondo-os em ti, que a todos por costume
Soccorres sempre, em tudo, c sem tardança,
Cobrando alento o animo, presume
Ganhar por ti um amor, com que nereça
Sahir a alma de trevas com teo lume.
Não queiras que chamando-te pereça,
O foro me sustenta de acudir-me.
Porque teu filho não me desconheça.
Obrigue-te, Senhora, pêra ouvir-me,.
Ver quem és, os poderes e a valia.
Que tens pêra num ponto a Deos unir-me.
Dos Patriarchas honra e alegria.
Dos Profetas saudade, objecto e zélo,
Dos Apóstolos sol, conselho e gui.í.
De Evangelistas mestra, penna, e ^ello,
Dos mariyres valor, força, e victon.i,
Dos pontífices luz pêra bem sê-lo.
Dos doutores favor, lingua, e memoria,
Dos confessores certo e doce amp >,
Das virgens palma, flor, coroa e gi na.
Jesus, meu bom Senhor, teu filho charo,
Destas ordens de santos escolhidas
Exemplo cá te fez, lá lume claro.
Porque os does e virtudes repartidas.
Em todos se conheça por ti virem.
Em quem Deos as quis, por juntas e unidas.
248 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
E por lugar condigno possuirem,
Sobre os choros angélicos te exalça,
Por anjos, como cá, lá te servirem.
Sobre todos tua graça e luz realça,
Qual o mostra a visão do Evangelista,
Que te veste do sol e da lua calça.
Por tal antes de ser foste prevista,
Por tal á Coneeição isto se.applica,
Por delia o resplandor mostrar na vista.
È por Rainha gloriosa e rica,
Dos nove choros d'anjos se declara,
Que este numero tal se lhe dedica.
E pelos meses celebres que andara
Jesus no virginal ventre materno.
Mar de graça, onde mais ella inundara.
No nome de tua mái e no paterno.
Mostrou bem de quam longe te honra e ama,
E por limpa te approva o Rei eterno.
Joaquim — preparação do Senhor chama,
Anna — graciosa diz pêra que entenda,
Que tudo é graça em ti quem graça clama.
Também amor que trate me encomenda,
Do nome que escrever na alma desejo,
Porque a transforme, apure, arme, defenda.
Faz duvida e temor o que em mim vejo,
Antes que o signifique e pronuncie,
Mas pôde a razão menos que o desejo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 249
Elle me esforce a voz e a penna guie,
Pera que iguale o fim ao presuposio,
E tudo o ai despreze e renuncie.
De cinco letras foi por Deos composto
O nome, que apregoa e profetiza
Neste numero estar nosso bem posto.
Ter cinco o de Jesus o mesmo avisa,
E as chagas o confirmam preciosas,
Da humana redempção fecho e devisa.
Prerogativas tem maravilhosas,
Mas sem que Deos suspenda o esprito e o roube,
Quem cousas tratará tão mysteriosas ?
Milagre que só Deos conhecer soube,
Arca em que do diluvio nos salvamos.
Relicário divino em que Deos coube.
Imagem do Senhor, que nella achamos,
Arvore que por fruito a Jesus teve,
Por quem o Ceo da terra conquistamos.
O que Deos nos concede a ella se deve,
Que os thesouros do Ceo ella os possue.
Depois que o Senhor delles nella esteve.
Tudo o bem que elle dá nella se inclue,
Mostra o lá seu lugar, cá toda a cousa.
Qual o seo nome o diz e o que elle influe. "
Maria quer dizer ( ah ! que não ousa
A lingua indigna e ruda ir por diante ! )
Mas declare-o o Senhor, que em ti repousa.
k
/
25o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Maria é nome grande, triunfante,
Nome, em que tudo cabe, tudo se acha,
Nome, que a terra e o ceo quer Deos que cante.
Maria é luz sem névoa, sombra ou tacha,
Consolação, favor, remédio, ajuda,
Que com Jesus nos vai e nos despacha.
Maria é firme fé, que se não muda,
Certa esperança, caridade immensa.
Que faz que Deos nos ouça, e nos acuda.
Maria é salvação, couto e defensa
Nossa, por cuja mão franca e suave,
Dos bens da graça e gloria Deos dispensa.
Maria é de David gloriosa chave,
Fonte, mas antes mar, de mar sem fundo,
Piscina, onde Deos quer, que a alma se lave.
Maria é verão florido e jocundo.
Que em nós flores sem fim cria e descobre,
E faz fermoso o ceo, alegre o mundo.
Maria é veo que a Deos mostra e o cobre,
E de toda a Trindade incompreensível
Recolhimento e leito puro e nobre.
Maria é um retrato intelligivel
Do que o Padre em nós pode, e sabe o Filho,
E ama o Spirito d'ambos impassível.
De quanto alcanço em ti me maravilho,
O menos alcançando e assi confuso
Em vez de te louvar, me rendo e humilho.
Obras de Fr Agostinho da Cruz
Do pouco que te dou, Virgem, me accuso,
Não me esquecendo o muito, que te devo,
Mas desta tal lembrança bem mal uso.
Quanto imagino mais, menos me atrevo.
Vendo Anselmo, Maiheos, Lucas, Bernardo,
O que de ti escreveram, e o que escrevo.
Pois como calo, ou pêra quando guardo,
O que Dionísio diz chegando a vêr-te
Tão cheia d'humildade e de resguardo?
Diz quasi um ser divino conhecer-te,
Que se a fé e doutrina não repugnaram.
Cuidara de, por mais que humana, haver-te.
Se os membros todos línguas se tornaram,
De quantos Deos creou os elementos,
As plantas, animaes, e aves falaram.
Igual louvor a teos merecimentos
Dar não podiam, inda que excederam,
Na copia, estylo e arte, aos pensamentos.
Como logo meos versos se atreveram,
Formados em tal peito e tal sentido?
Salvo se o ser de meos em ti perderam.
E já que no louvar fui atrevido.
Não quero no pedir 3êr acanhado,
Pois Deos de lhe pedir se há por servido.
Que espero quanto mais haja alcançado,
Mais digno de servir te cá me faça,
Com alma, coração, vida e cuidado.
aSa Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Pêra que ao meu intento satisfaça,
Peço a immensa liberalidade
Da eterna e rica mina da sua graça.
De Pedro a fé, de Paulo a caridade,
Do bom ladrão o lume, a esperança,
De Francisco a pobreza e humildade.
Do Centurio fiel a confiança.
As lagrimas, o amor, e a penitencia,
Com que a paz da alma Magdalena alcança.
Do santo Abrahão a prompta obediência,
De Isaac a mansidão e sofrimento,
De Joseph a pureza e paciência.
E se parecer novo atrevimento
O pedir tanto a quem contino offendo,
Quem tira a culpa, dá o merecimento.
E todas as virtudes que pretendo,
São pêra te louvar mais dignamente,
Com luz divina as tuas conhecendo.
E vendo a gloria então clara e patente
Da tua Conceição immaculada,
Que a culpa conhecer nem vêr consente,
Dentro na alma por elle alumiada
Comporei outros versos mais acceitos
Fazendo ( pêra ser melhor louvada )
Do amor lingua e das lagrimas conceitos!
Obras de Fr. Agostinho da Cruz i53
OITAVAS.
Vida e Morte de S. Eustachio, mulher e filhos,
I
Se dos pais e dos filhos me fôr dado
Favor, pêra cantar o que se escreve,
Conforme a tudo quanto se lhes deve,
No verso ficarei aventajado.
O trabalho será suave e leve,
E nos seus quatro santos Deos louvado,
Eustachio e Theopiste d-ando a Christo
Dous filhos seus Agapio e Theopisto.
2
Foi no tempo dos dous Imperadores
Tito e Vespasiano um tal varão,
Que por ser estremado capitão,
Mereceo alcançar muitos favores.
De branda, natural inclinação,
E dotado de muitos mais primores,
Que alem dos mais officios que servia,
Capitão foi da mais cavallaria.
3
Segundo Metaphrastes concordando
Com Joseph, escritor da antiguidade,
Foi Plácido na vã gentilidade,
Gentio com gentios conversando.
Mas depois que alcançou luz da verdade,
Neste que tem d'Eustachio trocando,
Trocou a lei gentia, falsa, errada,
Naquella que de Deos lhe foi mostrada.
a54 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
4
O tempo que das guerras lhe ficava,
Costumava gastar andando á caça
A' caça delles andou divina graça,
Que nos desertos seus amor caçava.
Com ditosa invenção, divina traça,
Ferindo almas ditosas que sarava,
Dos que seguindo a caça perseguindo,
Assi mesmo persegue Deos seguindo.
5
Succedeu na montanha alevaniar-se
Um cervo de grandeza differente,
Que Plácido seguio ligeiramente.
Sem doutro nenhum seo acompanhar-se.
E depois de alongado da mais gente,
O cervo que fugio anteparar-se,
E mostra-se-lhe, estando anteparado,
Antre os cornos Jesus crucificado.
6
O qual com sua voz penetrativa
— a Porque, Plácido (diz) me persegues?
Essa lei dos gentios, que tu segues,
A mim de ti, a ti de mim me priva.
Não me negues essa alma que me deves
Comprada a sangue meo sendo cativa.
Eu sou Christo Jesus, que te appareço
Mercê doutras maiores, que começo ».
7-
Do seu cavallo abaixo se lançou
Plácido, perturbado e esmorecido,
E tal qual outro Paulo offerecido.
— « Que mandaes, meo Senhor? lhe perguntou.
Eu servo como teo servo convertido
Prestes pêra servir-te em tudo estou.
Obrss de Fr. Agostinho da Cruz 255
Manda que farei quanto tu quiseres,
Se quanto nae mandares tu me deres ».
8
— « Mando, disse o Senhor, que na cidade,
Com mulher e com filhos vás buscar
Sacerdote christão que conformar
Na minha lei te possa da verdade,
E depois todos quatro baptizar
No nome da Santíssima Trindade,
Então correndo aqui buscar-me vem
Para te declarar o que convém ».
9
Os nomes dos gentios já deixados
No bauiismo de novo outros tomaram
Eustachio e Theopiste se chamaram
De Plácido e de Trajano despresados.
Os filhos seus seus nomes não mudaram
Posto que com seus pais já baptizados
Eustachio se tornou donde deixara
Seu Deos, que alli tornar já lhe mandara.
iO
Ali seu coração posto no Ceo
Em profunda oração seu Deos espera.
Que cumprindo a palavra que lhe dera
Muito mais claro então lhe appareceo.
E dando lhe louvor do que fizera
Lhe disse o que depois lhe aconteceo,
Que o tentaria aquelle antigo imigo,
Como fizera a Job no tempo antigo.
II
Mas que estivesse forte e confiado
Porque nunca já mais lhe faltaria,
Fosse quam cruel fosse a bataria.
Do poder infernal soberbo inchado.
25b Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Porque com sua ajuda venceria,
E vencendo seria coroado,
Alcançando no Geo a sua gloria,
Devida a quem na terra tem victoria.
12
Dali se foi o novo cavalleiro
Dos pés de seo Senhor, armado e forte,
Havendo por ditosa sua sorte,
D'ouvir e vêr a seu Deos verdadeiro.
Não teme nenhum género de morte
A troco de se vêr dos Geos herdeiro,
A Theopiste dá conta de tudo,
Tomando a paciência por escudo.
i3
O diabo que já andava alerta
Pêra tentar aquella alma ditosa,
Com peste começou contagiosa
A dar-lhe a bataria descoberta.
E depois de deixar a lastimosa
Casa de quanto tinha erma e deserta,
Dos escravos do gado e da fazenda,
A deixou despejada e da mais renda.
E não se contentando o duro imigo
Com lhe tirar das mãos toda a riqueza,
Mas inda dos imigos da pobreza,
Tão bem lhe não deixou nenhum amigo.
Enfim que acompanhado de tristeza
O rico capitão no tempo antigo.
Com filhos e mulher pobre se parte,
A buscar seu remédio noutra parte.
Os pais levando dous filhos meninos
Partindo pêra Egyptu como Abrahão,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 257
Com sua mulher assi se vão
A sêr, como elles fôram, peregrinos.
Mas d'Eustachio foi mór a tentação
Forjada dos espíritos malinos,
Que lhe tem uma náo aparelhada
Pêra sua mulher lhe sêr roubada.
16
O patrão desta náo, tanto que vio
De Theopiste a rara fermosura,
Honesta, casta, humilde compostura,
Tomá-la a seu marido presumio.
E com armada mão por força pura,
Com seus filhos Eustachio despedio,
Que não lhe aproveitando a resistência
Se quis aproveitar da paciência.
Mas Deos que em casos taes não desempara
A fraca castidade que resiste,
Como com Sara usou, com Theopiste
Contra o duro patrão também usara ;
Que do seu máo propósito desiste
E da vida que a morte aparelhava.
Enfim que ella ficou limpa e constante,
Como relataremos ao diante.
18
O paciente Eustachio qual iria
Com dous filhos sem mãe, que alma lhe arranca,
Cuidando como aquella ovelha branca
Por força já trocara a companhia,
A fonte dos seus olhos não se estanca
Soando o nome seu que repetia :
« O' minha Theopiste, Theopiste,
Que tal ficar te vi qual tu me viste 1 »
»7
258 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
19
Assi com seus dous filhos que levava,
Discursando dum noutro desvario,
Acertou de se achar junto dum rio,
Que por aquella parte atravessava.
Pasmado ali ficou suspenso e frio,
Receando o perigo que esperava,
Por ver nos tenros filhos fraca idade,
Pêra supprir a tal necessidade ;
20
Dos quaes um delles só passou dalém,
E vindo pelo que daquém deixara,
Um lobo lhe levou o que levara,
Um leão fez o mesmo no d'aquém.
Enfim que sem nenhum delles ficara.
Enquanto pelo rio vae e vem,
Vendo dous filhos seus em doces agoas,
Nas salgadas da mai renovar mágoas.
21
Tal fica o pobre pae, triste marido,
Sem fazenda, sem filhos, sem mulher,
E sem mais outra cousa que perder.
Pois tinha quanto tinha já perdido.
E depois de chorar e de gemer,
Se lembra como fora prevenido
Dos males e dos bens, por derradeiro,
Promettidos a quem soffre primeiro.
22
« Ora (disse), pois já tenho sofridos
Os males, dos bens tenho confiança,
Que, posto que em chegar haja tardança^
Não ha que duvidar pois promettidos.
Firme posso já têr minha esperança,
Que males a bens foram preferidos
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 259
Enfim que em bens por vir ou males vindos
A Deos darei louvores sempre infindos ».
23
E caminhando só por terra alhea,
Deo comsigo na aldeã de Radiso,
Onde, como varão de muito aviso,
A fome com trabalho remedea.
E com muita humildade e bom juizo
Um lavrador buscou naquella aldeã,
Com o qual se alugou, viveo quinze annos,
Até que Deos quis dar fim a seus danos.
Entretanto Trajano imperador
Desconfiado já de defender se,
Discursando mil modos de valer-se
Concluio-se de todos no melhor :
Que foi se por ventura achar pudesse
Plácido, ficaria vencedor;
Assi com grandes prémios foi buscado
De quem mais brevemente fosse achado.
Dos prémios a cobiça pôde tanto.
Posto que o rosto já perdera o cheiro,
Que Plácido se achou por derradeiro
Com arado na mão com pobre manto.
Assi de lavrador em cavalleiro
Trazido foi com gosto e mór espanto.
Trajano não se farta d'abraçá lo
Antes que elle se desça do cavallo.
26
Depois dando-lhe conta por miúdo
Do passado na guerra, e do presente,
O campo lhe entregou com toda a gente
E finalmente o ser senhor de tudo.
k
200 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Por têr satisfação sufficiente,
De forte, d'esforçado e de sisudo,
O valeroso Plácido se anima,
Sentindo já favores lá de cima.
27
E posto no seu Deos seu pensamento,
Os imigos comete, fere, e mata.
Vence, queima, destrue, e desbarata,
Com louvor seu, geral contentamento;
Custando-lhe a victoria tão barata.
Que não somente foi sem detrimento,
Mas todos de despojos carregados.
Com Plácido se vão ricos, honrados.
28
Fôram-se descansar numa pequena
Aldeã, que do campo estava perto,
E contando mil contos por acerto,
Ou mais certo, porque Deos tudo ordena,
Um daquelles soldados mais experto
Alevantando a voz clara e serena,
Do pai, da mãi, de si, dum irmão.
Contou vida, successo e perdição.
Do pai que Capitão fora famoso,
Da mãi que lhe ficara em um navio,
De seu irmão menor, que alem dum rio
Vivo o levara um lobo furioso.
E tornando por elle o pai vazio,
Vazio o pai tornou e piedoso.
Que um leão me levou também nos dentes
Assi se derramaram os parentes.
3o
Mas entendo que foi traça divina,
A quem dou e darei sempre louvores,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz a6i
Porque o leão bradando-lhe uns pastores,
Sem damno meu largou sua rapina;
Os quaes além de usar outros primores,
Me deram panno, e pão, e mais doutrina,
De meu irmão o caso foi igual,
Mas não sei que ventura fosse tal.
3i
Eis d'antre todos um correndo grita :
« Irmão meu, charo irmão, dá me um abraço,
Antes que se me acabe, em breve espaço,
A vida, sem lograr tamanha dita;
Que como a ti também no mesmo passo
Um lobo, sem romper a carne afflicta,
Largou a sua presa aos lavradores,
Como o fez o leão aos teus pastores. »
32
E porque de Deos fosse maior gloria,
E elle mesmo ordenou que assi se achasse,
A mãi que seus dous filhos abraçasse,
Contando-lhes da vida a sua historia.
Na qual de ser mãi sua confirmasse.
Dos seus pequenos filhos a memoria,
Despois a mãi e filhos ordenaram,
Tornar-se á sua terra, que deixaram.
33
A mãi ao Capitão se vai vestida.
Como naquelia aldeã andou servindo,
E com os olhos no chão lhe está pedindo
Licença, e provisão pêra a partida.
Suas necessidades referindo,
E dando relação de toda a vida,
E levantando os olhos postos nelle.
Conhecido foi delia, ella foi delle.
202 Obras de Fr. Agostinho da Cruz '
34
« Graças te dou, meu Deos, que me mostraste.
(Eustachio disse), quanto me disseste,
E que no fim de tudo concedeste
Vêr a mulher e filhos, que guardaste,
E por quantas mercês mais me fizeste,
E de quantos perigos me livraste.
Do patrão, e das feras, e da fome,
Bento seja, meu Deos, teu bento nome.
35
c Da terra já não tenho que querer.
Do Geo só a meu Deos eterno quero,
Nelle confio só, só nelle espero,
Que como fez, fará o por fazer. -
Pois só por amor seu, só, puro e mero,
E só por querer mais o bem que quer.
Quis destes quatro seus fazer christãos,
Que ninguém tirará das suas mãos. »
36
E depois de três dias descansado,
O campo pêra Roma foi marchando,
Donde victorioso já chegando,
Eustachio foi de todos festejado.
Posto que o tempo já fora mudando,
O mando do que fora já mandado,
Porque sendo mandado de Trajano,
Quando veo achou, que era Adriano.
O qual querendo dar aos immortaes.
Antes seus falsos deoses, os louvores
Da guerra, em que não foram vencedores,
Os que padecem penas infernaes;
Notou Eustachio ser dos professores
Da lei dos baptizados capitães
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 263
Por não querer entrar nos profanados
Tenoplos, a falsos deoses dedicados.
38
E querendo vingar este desprezo,
O cego Imperador, cruel, tyranno,
Arreceando mais seu próprio dano,
Mandou levar Eustachio dali preso ;
E pêra se mostrar mais deshumano,
Em furor infernal seu peito acceso,
Também mulher e filhos prender manda,
Que a fúria em cruel peito não se abranda.
E pêra abreviar as dilações,
Mandou levar os quatro maniatados,
Que fossem a leões bravos lançados,
Lançados a seus pés bravos leões ;
De leões em cordeiros já tornados,
Pêra abrandar os duros corações
Daquelles infiéis, que claro viam,
Cujos pés os leões mansos lambiam.
40
Manda inda este cruel, bruto animal,
Bárbaro sem temor, e sem respeito,
Mandou que de metal fosse um boi feito,
Pêra se derreterem no metal.
Da fúria que se accende no seu peito,
Seus abrazados olhos dão signal,
Que manda aquella mansa companhia
Entrar naquelle boi, que em fogo ardia.
Os martyres que noutro estão ardendo,
Do seu divino amor aconselhados,
Com seus olhos ao Ceo alevantados,
Oração a seu Deos estão fazendo;
264 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que delles e dos seus encommendados
Geral perdão lhes fique emendado,
De todos seus peccados concedendo,
E de graça divina prevenidos.
42
Ouviram uma voz suave e clara,
Da sua petição ser concedida,
A palma do martyrio merecida
No fogo, que o tyranno lhe prepara.
A vontade dos quatro numa unida,
Ao som daquella voz, que Deos mandara.
Cantando pais e filhos repousaram
No boi, em que três dias os fecharam.
Depois que aberto foi o boi fechado,
Os corpos destes quatro gloriosos
Vistos foram, mais claros, mais fermosos,
Do que dentro no boi tinham entrado;
Que pêra si não só foram ditosos,
Mas pêra a conversão do povo errado.
Que de perto e de longe vem a vê-los.
Sem lhe faltar um só de seus cabellos.
44
Ditoso fim de tão ditosa vida.
Apurada no boi do fogo ardente.
Donde filhos e pais vão juntamente,
A possuir a gloria merecida !
E posto que por via diíferente
Caminha esta alma minha enfraquecida,
Santos, rogai por mim aparelhado,
A sêr no vosso boi de fogo assado.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 265
Visão de Santa Brígida.
T
Visão que a Santa Brígida foi feita,
Estando em Belem, já como lhe fora
Em Roma promettido da Senhora,
Despois de já quinze annos mais perfeita,
Mostrando-lhe o successo daquella hora,
A Deos e todo mundo tão acceita,
Do parto virginal, puro, divino.
No qual Deos, sendo Deos, se fez menino.
2
Estando no presépio do Senhor,
Em Belem, o logar donde nasceo,
Vi uma Virgem prenhe em branco véo,
Com vestidos subtis da mesma côr ;
Por cima dos quaes vêr me concedeo
A fermosa Senhora o resplandor
Do seu virginal ventre alevantado.
Com seu filho e seu Deos nelle encarnado.
3
Esta fermosa Virgem acompanhava
Um velho de admirável perfeição,
Que no presépio atou com sua mão
Um asno e mais um boi, que ali estava ;
E sahido da pobre habitação,
Acendeo a candea que levava,
E pregada no muro tornou fora
Por não estar ao parto da Senhora.
4
A Virgem, que se vio na desejada
Hora do parto seu, aparelhou-se,
í66 Obras de Fr. Agostinho da Grur
E com muita prudência accomodou-se,
Sem sapatas, sem manto, destoucada,
A dourada madexa derramou-se
Por cima de alva neve desatada.
Que luz amanheceo, que lirio, ou rosa,
Pêra comparar Virgem tão fermosa ? !
5
Trazia esta Senhora concertados
Seis pannos para seu filho embrulhar,
Quatro de linho e Iam pêra faixar
Aquelles membros tenros delicados,
E de linho outros dois pêra toucar.
Que pôs com suas mãos assi pegados,
Estando tudo a ponto prevenido
Pêra se usar a seu tempo devido.
6
Então depois que tudo preparou,
Em joelhos se pôs contra o Oriente,
Deixando o presépio ao Occidente,
Os olhos e mãos ao Ceo alevantou ;
E transportada assi tão docemente,
Vi mover no seu ventre o que ficou.
No mesmo instante fora escurecendo
A luz, que na parede estava ardendo.
7
E pouco de tal luz dizer me atrevo,
Inda que muito mais dizer pudera,
Porque a do sol mais claro escurecera,
Sem saber escrever delia o que escrevo,
Além da brevidade, que tal era,
Que encarecer não sei quanto mais devo,
Sem vêr, nem saber qual membro primeiro
Nascido foi, nem qual o derradeiro.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 267
Mas vi jazer no chão o glorioso
Infante, em carne limpa, branca e nua,
Mais branca, muito mais que a branca lua,
Mais fermoso que o sol, que fez fermoso;
E vi na secundina pelle sua,
Em volta um resplandor maravilhoso,
E neste breve espaço, que isto via,
Ouvi dos anjos doce melodia.
A Virgem com seu ventre despejado,
Ficou na sua antiga compostura,
E sentindo que já na terra dura
Seu Deos e filho seu tinha lançado.
Inclinada com graça e com brandura
Lhe disse, des que foi delia adorado,
— t Bemvindo seja aquelle que me deu
Sêr meu Deos, meu Senhor, e filho meu! »
10
O menino Jesus então chorando,
E tremendo de frio, em terra fria,
Na qual em branda carne nú jazia
Refrigério da mãi andou buscando,
A qual já neste tempo o recolhia
E cos braços seus brandos abraçando,
De dous amores foi um só composto,
Fazendo de dous rostos um só rosto.
II
A qual na terra fria se assentou.
Pondo no seu regaço o tenro infante,
E com seus subtis dedos num instante,
O seu embigo brando lhe cortou.
No qual como no mais de semilhante
Nem sangue, nem licor outro manou,
a68 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
E logo começou suavemente
A pensar filho e Deos omnipotente.
12
E dos seus pannos dous de linho escolhe,
Pêra seu filho tenro embrulhar nelles,
E nos de branda lã, por cima delles,
Seus brandos pés e mãos colhe e recolhe.
E depois de enfaixar as brandas pelles,
Os outros dois de linho desencolhe,
E com elles toucados na cabeça,
E' justo que Joseph justo pareça.
i3
Entrando o velho justo onde aquelle
Senhor teve por bem de ser nascido
No colo da Senhora já vestido
Chorando se lançou diante delle.
Com lagrimas d'amor oíferecido,
Alegre com vêr quanto via nelle,
E d'ambos ao presépio foi levado,
E d'ambos de joelhos adorado.
Beati qui lungent.
I
Se amor do Geo se cria e acha em lagrimas,
Quem não se venderá por comprar lagrimas ?
Que o thesouro escondido está nas lagrimas
E a paz divina acquire se com lagrimas;
Mas convém para vêr fructo de lagrimas,
Fogo no coração que accenda as lagrimas,
As asas da alma são saudade e lagrimas
Com que voa a quem é preço de lagrimas.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 269
2
Magdalena tornada um mar de lagrimas,
As culpas aíiogou vencendo em lagrimas,
Quem antes a venceo fora das lagrimas,
Que o que tudo não pôde, podem lagrimas.
Pedro, que o mór milagre foi das lagrimas,
Nos diz, depois de estar cego de lagrimas,
Que não há luz sem Deos, nem Deos sem lagrimas,
E que do mesmo Deos triunfam lagrimas.
3
.David perdido em si, banhado em lagrimas.
Semente d'alegria chama as lagrimas-,
Jacob chega a render anjos com lagrimas,
D'esteril Samuel nasceo por lagrimas.
A Ezechias, ao cego, ao ladrão, lagrimas.
Alcançam vida, vista, gloria : lagrimas,
A Mónica dão filho, ao filho lagrimas,
O transformaram em Deos ditosas lagrimas.
4
Nas lagrimas se alcança, que são lagrimas,
Piscina milagrosa dalma ; lagrimas,
Do naufrágio da culpa táboa ^ lagrimas.
São as aguas que estão sobre os ceos ; lagrimas
Nascem da pedra, viva Jesus; lagrimas
Só nelle como em centro param ; lagrimas
São raios seus, que as névoas tiram; lagrimas
São escadas do Geo, que é fim das lagrimas.
5
As lagrimas são vozes da alma, lagrimas
Fim das trevas, da luz principio, lagrimas
Pregoeiras do amor divino, lagrimas
Settas que o peito a Deos penetram, lagrimas
Tiros que batem o Geo e o rendem, lagrimas
Ghaves da celestial cidade, lagrimas
270 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Vigarias da Paixão de Christo, lagrimas
Não se pôde louvar senão com lagrimas.
6
Virgem nuvem do Ceo que com taes lagrimas,
No presépio adorastes nossas lagrimas,
Que teve Deos na Cruz sede de lagrimas,
E seu peno sacrário fez de lagrimas.
Pois é terra sem agoa, alma sem lagrimas,
E o Verbo a vós desceo, porque houve lagrimas,
Ponde os olhos em mim pêra ter lagrimas,
Que alcancem a promessa feita lagrimas !
ODE.
Aos desenganos.
I
A vista derramada
Por cima da verdura
Dos saudosos bosques desta Serra,
Do largo mar cercada,
Batendo a rocha dura,
A que de novo faz antiga guerra,
Deixando mar e terra,
No Ceo fica suspensa,
Naquella antiga e nova fermosura,
Que para sempre dura,
Da summa perfeição, bondade immensa.
Perdendo a natureza
Em quanto foi d'amor divino presa.
2
E quando se desata,
Tornando diíTerente
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 271
Daquella, que da Serra se partira,
Por que mais não se abata,
Suave e docemente,
Esquecida de si geme e suspira,
Ah ! quem livre se vira
De carga tão penosa
Pêra poder passar
O 'que fica da vida perigosa,
Pois que sem resistir
Não se livra do mal, que está por vir !
. 3
A pretensão humana,
Que na terra semea,
Que espera colher do fruito delia,
Entende que se engana,
Mas não se remedea.
Por quanto gosto tem de viver nella ;
Por isso se desvela,
Como se não tivera
Conta, que dar de seus merecimentos.
Breves contentamentos
Seguindo vai. de que fugir devera,
Gemidos e chorados.
Quando podem ser mal remediados I
4
A cega mocidade
Passa pelo perigo
Sem saber que vai mal encaminhada.
Guiada de vontade,
Que não sente castigo
Se não depois da culpa.
Então alumiada
Daquella luz divina,
Que nunca a bons desejos desempara.
Por via plana e clara
Caminhar mais direito determina,
a72 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Forte, firme, e constante,
Sem olhar pera trás, passar avante !
5
Campos, valles, ribeiras,
Cheos de varias flores,
Nas ervas e nas plantas derramadas
Seccaram-se as primeiras,
Vossas fermosas cores,
Que nossas vistas tinham recreadas.
Mas aquellas plantadas,
Que no ceo aparecem.
Dando de si mais claro desengano,
Não se secam cada anno,
Mas taes quaes sempre foram permanecem,
Amostrando na terra
A quem não busca o Ceo quanto mais erra l
6
Dos successos humanos
Presentes e passados,
Que vemos, que sentimos, que choramos?
Os claros desenganos
Dos tempos mal gastados,
Por seguir gostos nossos, engeitamos.
Mas os couces que damos
São contra o aguilhão.
Que não fere sem ser acouceado,
Dos couces magoado.
Meus mesmos pés em mim couces se dão
De quantos mais atiro,
De tantos contra a mim me firo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz %j3
Canção a Nossa Senhora.
I
Virgem pura, escolhida, honesta, santa,
Humilde serva, mãe, esposa, filha
Do autor da luz, do Rei da eternidade,
Sacrário da mais alta maravilha,
Por quem a humanidade se levanta
Unida no teu ventre á divindade.
Que estylo ou suavidade
De prosa, ou verso humano,
Sem favor soberano,
Te quererá louvar, que não te oftenda ?
O raio de tua luz minha alma accenda,
O esprito se levante a contemplar te
Com tal fervor, que entenda
Como te hei de servir, como louvar-te.
2
Virgem da providencia soberana,
{ P'ra throno seu ) da culpa preservada,
Que a tal Senhor convinha tal pureza,
De tantos, tantos annos esperada,
Por vêr aberto o Ceo com chave humana,
E a graça triunfar da natureza,
A spiritual riqueza,
Por Eva já perdida,
Por ti restituida.
Se communica agora, eternamente.
Ah ! quem dizer soubera o que a alma sente l
Mas se não faJar, baste-me que amo,
E mais efficazmente,
Com amor, que com vozes, por ti chamo!
18
374 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
3
Virgem benigna, sabia, gloriosa,
Por quem o mundo ingrato é sustentado,
Por quem livre se vio do reino escuro,
Depois de tanto tempo mal gastado,
Em vida tão incerta e perigosa.
Em 11 só me confio e asseguro,
Tu és porto seguro,
De casos da fortuna *,
Tu és firme coluna
De nossas esperanças, Virgem pia,
Tu és raio do sol do eterno dia,
Que as trevas rompe e os montes nos descobre^
Que o Rei profeta via,
Donde ao cego vem luz, soccorro ao pobre !
4
Virgem chea de graça, admirável,
Que o Verbo eterno, amando, concebeste
No ventre virginal, templo divino.
Quem não cabe nos Ceos, nelle escondeste
Por sobrenatural modo ineffavel,
Mysterio só de Deos e de ti dino,
Orvalho crystallino,
Do Verbo milagroso,
Pão vivo precioso.
Que a dar-nos vida eterna, do Ceo veio,
Milagre dos milagres, que do seio
Do Padre vio o estremo da humildade,
E delle tira um meio,
Que fez preço do Ceo, nossa vontade.
Virgem, visão de paz, arca segura,
Do diluvio geral, por Deos traçada,
Pêra que habite a gloria em nossa terra,
Custodia da lei, santa, immaculada,
Que em mais perfeito gráo mosta a doçura
Obras de Fr. Agostinho da Cruz ayS
Dos divinos preceitos que eila encerra,
Aurora que desterra
A noite ci'alma cega,
Nuvem que os justos rega
Com agoa viva do divino sprito,
Livro em que foi por elle o nome escrito,
Que enche o Ceo, salva o mundo, o inferno rende,
Cujo preço infinito,
Mostrou, posto na Cruz, quem só o entende !
6
Virgem do eterno Rei, santa cidade,
Rica, nobre, fermosa, e triunfante,
Fira de toda a celeste architectura;
Teu muro é de fortíssimo diamante,
Espelho da catholica verdade,
Por quem luz do Creador teve a creatura.
As torres, cuja altura
Só medem mãos divinas.
São d'esmeraldas finas,
Donde tua esperança a Deos namora \
Teus passos de rubis, em que elle mora.
A tua caridade mostram nelle,
Por quem o Ceo te adora,
E a terra veio a ser mais alta qu elle.
7
Virgem resplandecente, que subsiste
D'anjos acompanhada, triunfando,
Ao thalamo em que estás sobre as estrellas,
Com resplandor eterno, sempre dando
Louvores ao Senhor, que cá pariste,
A elles alegria, e luz a ellas,
> Numero achar delias.
Meter numa gotta o mar,
Pesar o fogo e o ar,
E' menos que o meu pobre engenho e rudo,
Sendo nada tratar de quem é tudo,
vj6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Só digo dentro n'altna, que te devo,
Por têr-me o espanto mudo,
Que és mais que santa, e deosa não me atrevo.
8
Virgem, guarda fiel do mór thesouro,
Nova revelação do Esprito Santo,
Em quem, de quem, por quein Deos nos foi dado,
O Rei que a ti desceu te sobio tanto,
Que á mão direita, em pé, vestida d"ouro,
Te pôs, da qual David tinha cantado.
Já tens a honra alcançado.
Por ti profetizada,
Que bemaventurada,
Todas as gerações te chamariam.
Cá de servir-te os homens se gloriam,
E os santos, que nos Ceos com brancas vestes
O cordeiro seguiam,
Te cantam, sem cessar, hymnos celestes.
9
Virgem de gloria, e honra coroada,
Novo sol dos celestes hori-sontes,
A quem os Serafins servem d'estrado
Nas cinco perennaes divinas fontes,
Abertas na tua alma transformada,
Em teu filho e Senhor crucificada \
Estava represado
O mar de teus prazeres.
Em que de seus poderes
Soltou a presa, a eterna omnipotência,
Porque houvesse nos prémios respondencia,
Das bemaventuranças que louvou,
Com tam alta eloquência,
A mulher que o Evangelho celebrou.
IO
Virgem, por quem há tanto que porfia,
Teu filho com esta alma ingrata e morta,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 377
Que no Ceo bata, o busque, o peça, o queira ;
Se elle me houver d'abrir, tu és a porta ;
Se quer que o possa achar, tu és a guia ;
Se dar-me bens, tu és a dispenseira,
Tu foste medianeira
Do despacho fermoso.
Do ladrão venturoso.
Magdalena, por ti, a graça achou;
Paulo se converteu, Pedro chorou.
Enfim, Deos pêra nós te fez mãi sua,
Confiado a ti, vou,
Pois o que é meu remédio, é gloria tua.
ODE.
Hjrtnno á Cru\.
Insignia triunfal, honrosa e santa,
Chave do Ceo, penhor da eterna gloria,
Que com lesu da terra nos levanta.
Sacrário em que ficou viva a memoria
Do immenso amor divino, onde se alcança
Dos imigos domésticos, victoria.
Signal que, após diluvio, traz bonança,
Por quem o mundo novo é reformado,
E se converte o espanto em esperança.
O' Cruz, minha saudade, e meu cuidado.
Que sustentar pudeste o doce peso
De nossa redempção, tão desejado !
2-jB Obras de Fr. Agostinho da Cruz
O' Cruz onde lesu sofre estar preso,
Pêra soltar me já da culpa antiga,
Porque o passo do Geo aie era defeso !
O' Cruz, pregão da paz, amor, e liga,
Entre a divina e humana natureza,
Arvore victoriosa, alegre, amiga !
O' Cruz onde se humilha a mór grandeza,
O mór poder, mais alta magestade,
E onde se engrandece a mór baixeza !
O' Cruz onde offerece a humildade
Do meu lesu, seu sangue precioso,
Por nós ao Padre, ó summa bondade !
O* bom lesu, quam manso e amoroso,
Sofrido, brando, humilde, e obediente,
Vos mosiraes nessa Cruz, e quam piedoso !
Se vos quero imitar, não mo consente
A vaidade, ambição, soberba, e ira.
Que tem preso o juizo, e cega a mente.
Mas abraçando a Cruz, logo se tira
O temor de perder-vos, e perder me,
Quem fugira de si e á Cruz se unira !
Conhecer-vos pudera, e conhecer-me,
Vós pregando amar, eu ser ingrato.
Vós perdoar, eu nunca arrepender-me.
Se alguma hora comigo me retrato,
Temo de vêr quam caro me comprastes,
Porque cousas vos vendo tão barato.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 279
Mas pêra emenda disto me alcançastes
Tanta graça na Cruz, que num momento
Me entrega a vós, que a mim vos entregastes.
Nella alcançou de vós o claro assento,
O bom ladrão, vencendo a errada vida,
Num breve, mas fiel conhecimento.
Que alma haverá tão dura e tão perdida,
Que da Cruz de lesu, vendo-se perto,
Não seja a graça e amor restituída ?
Soccorro universal, remédio certo,
De quem te busca, achado em toda a parte,
Na cidade, no campo, e no deserto.
Quem levar sabe a Cruz, seguro parte,
Pêra todo lugar, estado, e sorte.
Mas quem se disporá, ó Cruz, a levar-ie ?
Serpente milagrosa, vital, forte.
Que só pondo-lhe os olhos, dá saúde
Na venenosa chaga, e vence a morte.
Dos máos é confusão, dos bons virtude.
Com que se fortifica o espnto enfermo.
Seguro de mudança haver que o mude.
Tu levaste o Baptista ao Ceo do ermo,
Paulo do cego horror, Pedro da rede,
Magdalena da culpa, a amar sem termo.
Ah 1 quem de ti, Cruz santa, houvera sede,
Correndo ao lado aberto, sacra fonte.
Correi todos, amai, esperai, crede 1
a8o Obras de Fr. Agostinho da Grut
O' glorioso calvário, monte santo,
Que em breve espaço ajuntas Ceo e terra
Pêra dar luz a um e outro horisonte.
O' soberana Cruz, onde se encerra
O mais alto mysterio, ó Cruz divina,
Principio da mór paz, fim da mór guerra.
Columna dos apóstolos, doctrina
D'Evangelistas, santa e verdadeira,
Que alma guia, arrebata, accende, afina.
Dos gloriosos Martyres bandeira,
E justificação dos Confessores ;
Das Virgens guarda, luz, firmeza inteira.
Ah ! honra e salvação de peccadores,
Leva-me, após meu Deos, todo influído.
Nas chagas de lesu e nas suas dores.
Renove se outro sêr no meu sentido,
Outro amor e aífeição, que me transforme,
E eu seja ao mundo e elle a mim perdido.
Triste de quem descansa, espera, e dorme
Nos prazeres da terra, emascarados,
Cujo fructo é pesar e fim disforme.
Eu só da Cruz me fio, onde os cuidados
Param todos em Deos, que faz suaves
O jugo, pena, dôr dos mais tentados.
Peço-te, minha Cruz, que esta alma encraves,
Com esse Redemptor, verbo divino,
E na sacramental piscina a laves.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 281
Mas quem de tanta gloria será dino,
Que voe do mais baixo á mór altura.
Quem se inclinar á Cruz, que me inclino ?
As aves quando voam na figura
Da Cruz, se alçam da terra, e o Ceo alcançam,
Que esta só faz voar toda a creatura.
O' venerável Cruz, com que se lançam
Os demónios confusos e vencidos,
E as tempestades d'alma se abonançam.
Em ti prendo as potencias e os sentidos,
Cos olhos em Jesus, que por levar-me.
Espera tanto, ah ! c'os pés detidos.
Que só lesu e a Cruz podem salvar me!
ELEGIA.
A' Quinta-feira da Cea do Senhor.
Que lingua, que saber, que estylo ou arte,
Comprenderá, Senhor, vossa grandeza,
Pois nunca foi capaz de toda a parte ?
O' incessavel mina de riqueza,
Spiritual, eterna, sem medida,"
Abysmo, onde não vai nossa rudeza !
Pois vós verdade sois, caminho, e vida,
Dai luz, guia, fervor, e esprito vosso,
A esta, com que em vós fique influída.
Que quando ofFerecer tudo o que posso.
Partindo só de mim, sem peito, entregue
De todo ao vosso amor, livre do nosso !
aSa Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mudo parecerei, por mais que pregue,
Que saber vos louvar, de vós se aprende,
E sempre alcança mais, quem mais vos segue.
E pois, só quem vos ama vos entende,
E não há amar sem sêr de vós amado;
Amai, a quem só dar-se-vos pretende.
Lembro-vos, meu Senhor, que é já chegado
O tempo de render a omnipotência.
Ao peccador mais pobre e desprezado.
Estai por graça, em mim, dai-me vehemencia
De caridade, com que hoje vos cante,
Pois sois principio e fim da mór sciencia.
Já todo humano sprito se levante.
Pois tanto, meu Jesus, vos abaixastes,
Pondo a vingança atrás, o amor diante.
Hoje trouxestes Deos, homens levastes,
A divida pagaes, que outrem cjevia,
Mas tudo padecei, pois tudo amastes.
Grande, maravilhoso, alegre dia.
Dos thesouros do Ceo mór pregoeiro.
Em que dos homens Deos mais trata e fia!
Dia que o celestial, manso cordeiro,
Seu corpo e sangue deu por mantimento,
Descanso e lume d'alma verdadeiro!
O' ineffavel, santo sacramento,
Onde o juizo pára e perde o tino,
E a fé triunfa em nós, do entendimento 1
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 283
Mysterio incomprensivel e só dino.
Da sapiência do Padre, que elle encerra,
Diluvio universal do amor divino !
Amor que fez prostrar lesu por terra,
A pés de mortaes, fracos peccadores,
Por fazer cum desprezo, ao outro guerra.
Ah ! Rei dos reis, Senhor sobre os senhores,
Que até a ludas cego, ingrato, imigo,
Dás de perdão e amor tantos penhores !
Porque se o coração leva comsigo.
Ao menos os pés fiquem damor presos,
Mas cobiça não quer Deos por amigo.
E vendo a ingratidão e o ódio accesos.
Pondes justiça e amor logo em balança.
Mas a do amor levou todos os pesos.
Ah ! quem pusesse os olhos na lembrança
De tam raro triunfo de humildade,
Pêra pôr só em Deos toda a esperança !
Aqui venceo o amor, a magestade
Divina em desafio, e por memoria
Lhe deu trajo servil de humanidade \
No qual promette, em pago da victoria,
Neste exemplo tam santo e necessário.
Dar por alhea culpa a própria gloria.
Inexorável, pérfido, falsario.
Pois teu mestre e senhor a ti se entrega,
Que esperas noite e sitio solitário ?
284 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Por prata dás um Deos, que os pés te rega
Com lagrimas ardentes e amorosas ;
Ah ! troca desigual, horrenda e cega !
Se te move interesse nas piedosas
Mãos de Jesu, tens mais do que aceitaste
Das Ímpias, farizaicas, rigorosas.
Mal te lembrou o emquanto avaliaste
O unguento de Maria, há poucos dias,
Quando em tão pouco a Christo arremataste.
Em trezentos dinheiros inda havias
O licor dado a Deos, por mal vendido,
E em trinta hás que a Jesu mui bem vendias.
O' coração de tigre, endurecido.
Que a quem mais te honra e ama, mais offendes,
Do teu Deos e de ti tão esquecido !
Porque o conheces mal, por isso o vendes,
Deixas de o conhecer, porque o desamas,
E porque amor não tens, não te arrependes.
Quanto o peito de Christo arde em mais chamas
De amor. por reduzir-te ao grémio santo,
Tanto obstmado o teu mais d'ira inflammas.
De sofrer-te Jesu nada me espanto.
Mas tremo de cuidar na recompensa
Que dás a este Senhor, que te dá tanto.
Elle beija teus pés com dor immensa,
Tu com beijo de paz, á morte o levas,
Nova misericórdia e nova ofíensa.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz a85
Cuida bem na traição em que te enlevas,
Olha que sem Jesu tudo é inferno,
Mas como verá a luz quem vive em trevas?
A todos deu remédio o Verbo eterno,
A ti, por membro alheo, já te engeita,
E te risca do seu vital caderno.
A doctrina, milagres, vida estreita,
Que ao choro e luto, seu divulgar manda.
Confirma aos onze, em ti nada aproveita.
Por lavar igualmente a todos anda,
Mas tu ficas mais torpe, elles mais puros,
Qual sol que o barro secca, e a cera abranda.
Claro annuncio de teus males futuros,
Passar Jesu por ti, e os pensamentos
No desejo do mal ficar seguros.
A Pedro os passos move e movimentos
D'espanto, nelle faz ver tal, quem antes
Lhe entregou sua Igreja e Sacramentos.
Pasma das mãos divinas, triunfantes,
Pedir-lhe os pés, duvida, cuida e teme,
E busca de os negar rezóes bastantes.
Sem poder formar vóz, suspira e geme
Vendo-se peccador, e que os peccados
Põem a seus pés um Deos, de que o Ceo treme,
E cos olhos em lagrimas banhados,
Tornando em si, lhe diz: — « como é possível,
Que hajam de ser meus pés de vós lavados ?
286 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
c Eu fraco peccador, vós Deos terrivel,
Eu sombra vã, vós sol divino e puro,
Eu limitado, vós incomprensivel.
í O servir-vos é meu, isso procuro,
Vosso o crear, o remir, o dar-me graça,
Mas lavar Christo a Pedro, é caso duro ! »
— « Isto que faço agora te embaraça,
Lhe responde Jesu, e não no alcanças,
Mas vê-lo-has alcançar depois que o faça. »
O discípulo entregue inda ás mudanças.
Que o peito combatiam, não consente,
E resoluto, diz, sem mais tardanças:
— « Meus pés não lavareis eternamente ;
Perdoai-me, benhor, pois vos conheço,
Ser nisto mais cortez, que obediente.
« No ai, como a meu Deos vos obedeço,
Por tal vos confessei, por tal vos tinha,
Por tal vos nego, os pés e alma oftereço. »
— « Refusas o que tanto te convinha,
Repete o Redemptor, não te lavando,
Não terás parte em mim, nem cousa minha. »
O Apostolo, tremendo e desmaiando
De ouvir tal ameaça, antes que creça
Mais a culpa, as palavras apressando,
Responde : — a Senhor, pés, mãos e cabeça^
Lavai, fazei de mi quanto quiserdes.
Não me aparteis de vós em que o mereça.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 287
c Se no centro da terra me puserdes
Na região do ar, no fogo e na agoa,
Alegre estarei lá, se em mim estiverdes.
t Sem vós, a vida é morte, o prazer mágoa,
O descanso trabalho, a gloria pena,
O ar, de que respiro, ardente frágoa.
€ Creatura sou vil, baixa e pequena,
Mas vossa e pêra vós, e isto mais monta.
Que os erros que a ignorância minha ordena.
< E pois, fazeis de mim, ao lavar, conta,
Levai me á Cruz também, que não é justo.
Que achando-me ás mercês, falte na affronta.
€ Lembrai-vos, meu Creãdor, quanto vos custo,
Não me fieis de mim, convosco acabe.
Pois de vós me há de vir não sêr injusto. 1
Mas Jesu, como todo o porvir sabe,
E vê chegar-se tanto a hora sua,
Testemunha do amor, que nelle cabe,
A Pedro atalha e quer que se conclua
O lavatório já, por ir-se ao monte
Donde, dando-se a nós, o imigo exclua.
E pondo-se aos discípulos defronte.
Os avisa e doutrina e nelles fica
Do seu immenso amor, abrindo a fonte.
O' fonte perennal, divina e rica,
Que alimpa, sara, salva, alegra, farta.
Consola, nutre, anima e fortifica 1
a88 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Depois de ensinar todos, tres aparta,
E com elles se vai trás o desejo,
Que sem deter-se um ponto faz que parta.
Quam desagasalhados ficar vejo
Os discipulos órfãos e saudosos,
Que tem asas no amor, nos passos pejo.
Presos da obediência, os chorosos
Olhos e corações a Jesu seguem.
De o não seguir co mais bem pesarosos.
E depois de o não ver onde assosseguem,
Os spiritos não acham, co a dor bramam,
Até que á mesma dor a vida entreguem.
Buscam o seu Jesu, por elle chamam,
Todos o acham •, menos nenhum ousa
Persuadir-se, que é ido, porque o amam.
O' bom Jesu, em quem a alma repousa,
Em quem só se aquieta e se recrea,
Esquecendo por vós toda outra cousa.
A que mais se vos dá, menos recêa
Os laços, tantaçÔes, sombras, vaidades,
Que sendo imagem vossa, a fazem fêa.
A minha de amor chêa e de saudades
Vos entrego, Senhor, inda que indina.
Com vosco ma levai, ou não vos vades.
Com voscD ma levai, pois determina
De mim tanto alhear-se, até que veja
O fructo em si, que dá vossa doutrina.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 289
Com vosco ma levai pêra que seja
Na gloriosa paixão habilitada,
E alcance a parte delia que deseja.
Com vosco ma levai á Cruz pesada,
A' columna, á cadea áspera e grossa,
Aos espinhos, ao fel, não fique nada.
Com vosco ma levai, porque não possa
Haver cousa no mundo que a detenha,
Tendo-a, meu bom Jesu, toda por vossa,
Pêra que ella, por seu todo, vos tenha.
)
ELEGIA.
Na ribeira do Lima fui nascido,
Na do Mondego e Tejo fui creado,
E na serra, em que vivo envelhecido,
Onde esperando estou o desejado
Fim dos meus longos annos mais vizinho,
Quanto de cada vêz mais alongado.
Assi vou, pouco e pouco, meu caminho,
Não sem queixas da dura natureza.
Em cuja companhia ainda me espinho.
Que mais custa abrandar sua dureza
Importuna, cruel, que padecer.
Quanto sofrer se pode de aspereza.
Pois tantas quantas v^zes commetter,
Não basta sêr de todas resistida.
Se não que em todas sempre hei-de vencer.
'9
igo Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que te posso fazer, alma ferida,
Que em tanto se dilata tua cura,
Emquanto te sentir endurecida.
Olha, de cujo Deos és creatura,
Olha, em cujo sangue resgatada ;
Ah ! nâo se perca em ti sua feitura 1
Ainda que no cabo da jornada,
Com poucas forças vamos caminhando,
A porta do Geo nunca está serrada.
Do pouco que podemos trabalhando,
Não deixamos do pouco que podemos
De accrescentar no muito desejando.
Enfim, que em não poder, não reparemos
Da fraqueza da carne aconselhados,
Pois não pode tolher, que desejemos.
Que desejos d'amor continuados.
De novo criam forças, reverdecem,
Com sangue do Senhor na Cruz regados.
Os cravos, que nas rosas apparecem,
Daquelles pés e mãos atravessados.
Esforçam, dão vigor, e fortalecem.
As carnes á columna dura atadas,
Açoutadas, pisadas e moidas,
Nunca das minhas sejam desatadas.
Pois por querer sarar nossas feridas,
Nellas não ficou parte por ferir.
Nem dor de que não fossem consummidas.
I
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 291
Mas não que se podesse consumir
No Senhor a clemência do perdão,
Que pêra os malfeitores quis pedir.
Ouvindo, que em lugar de galardão,
Não deixaram ali de blasfemar,
Do que morre por sua salvação.
Que nem bastou na Cruz pregado estar,
Coroado d'espmhos, o Senhor,
Pêra sua crueza se fartar.
No meio dos ladrões o foram pôr,
Que buscando lugar mais affrontoso,
Não puderam achar outro peor;
Onde seu brando peito piedoso,
Depois de morto, abrio o povo imigo.
Por não ficar da morte duvidoso.
Não me deixe ficar amor comigo,
Sem á columna atar meu pensamento,
Ou na arvore da Cruz pregar corasigo.
Pode sêr que alguma hora o sentimento,
Dentro desta alma minha suba tanto,
Que faça de mim doce apartamento.
E quando não puder chegar a quanto
Se deve, a tal Senhor, tal amor seu,
Comigo ficarei fazendo pranto.
Que quero aqui neste ermo mais de meu.
De quanto esta alma minha mais deseja,
Que dar-me a quem por mim todo se deu?
292 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Que se saber não posso qual esteja
No meo, de todo seu, lhe ser acceito,
O seu não pode ser, que alheio seja.
As maravilhas vejo que tem feito,
Sarando d'alma e corpo peccadores,
Dos quaes um leva ás costas o seu leito.
Chamou do mar os pobres pescadores,
Pêra fazerem de homens pescaria,
Nos fins da terra toda pregadores.
Elle diz que é verdade, vida e via,
Que tomou, por salvar-nos, carne humana,
Da rainha dos Ceos, Virgem Maria,
De cujo bem dos bens todo bem mana.
Elegia da Arrábida.
Comvosco e dentro em vós, Serra batida
Mais das ondas humanas, que marinhas.
Cantarei, como cisne, a despedida.
Testemunha sois vós das queixas minhas,
E porque quero, mais antes que gente,
As feras e serpentes por vizinhas.
Tanto, que nem d'amigo, nem parente,
Inda agora não faço difterença.
Se seu amor do meu for dififerente.
A nenhum delles nisto faço oífensa,
Se algum seu interesse só pretende,
Pois iielle só consiste a desavença.
Obras de Fr. Agostinho da Crux 293
Experiência tenho do que rende
A palavra sem obra confirniada,
Que em vão pêra comigo se despende.
Resposta, que mil vezes tenho dada
A quem já sei que nada dar-me quer,
Que pois nada quer dar, não quero nada.
Nem elle de mim deve de querer
Levar-me sem nenhum merecimento,
O que me doe a mi, sem lhe doer.
O descanso do doce pensamento,
O repouso do livre coração.
Não se deve perder um só momento.
Qual deve ser a minha pretensão
Antre os bosques desertos, velho e enfermo,
Se não não ver em mi um só senão ?
Os juizos rasteiros dos do termo.
Que todos, o qual mais me perseguia,
Já por mercê de Deos, fizeram termo.
Que quem dos seus ardis me defendia,
Ordenou redundar em meu proveito,
Quanto mais encontrá-lo parecia.
Finalmente, que nunca fora feito,
O menos do que a mi mais me importava,
Se entortar não quiseram o direito.
Tanto na paixão sua se cegava
O que mais trabalhou por me lançar.
Que não vio que de muro me cercava.
294 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ora já que me deixam descansar,
Trabalharei de novo, descansado,
Por nada já da terra me cansar.
De todo em todo tão desapegado,
Que não me lembre viva creatura,
Nem queira de nenhuma ser lembrado.
Passando os olhos meus pela verdura
Das plantas, que plantou a natureza.
Me mostraram no Geo nova pintura.
Onde a minha alma em puro fogo accesa,
Não sinta, nem consinta, outro desejo,
Se não ficar d'amor divino presa.
Em cuja clara luz mais claro vejo
Por onde caminhar posso seguro,
Emquanto agora a terra não despejo.
Não vejo Job lançado no monturo.
Queixoso de amigos carregosos,
E como assi dos meus mais me asseguro.
Não vejo o de que são mais cobiçosos.
Que pretendo do mundo falso e cego,
Por passos de caminhos perigosos ?
Mas porque brado em vão, ou a quem prego,
Se não a mim, de mim tão esquecido,
Que do meu próprio bem me desapego?
Quanto em menos tempo tem colhido
O fruito que se colhe trabalhando,
Que, por não trabalhar, tenho perdido?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz agS
O que daqui me fica magoando,
Determino emendar pelo mais certo
E mais breve caminho, caminhando.
Sem me desviar, já, neste deserto,
Por atalho nenhum, nenhum rodeo,
Senão pelo que fôr do Ceo mais perto.
Não me venha turbar o gosto alheo,
Que menos penitencia diz que basta.
Porque a virtude, diz, consiste em meo.
Em vão pêra comigo o tempo gasta.
Quem mais quer alongar meus longos dias,
Que a morte, inda que tarda, não se afasta.
Venha quando quiser, por quaesquer vias,
Que por nenhuma já pôde vir cedo
Despir as enrugadas carnes frias.
Deixe-me o coração arder um Credo
Naquelle amor divino a quem me dei,
Enquanto vivo aqui neste degredo.
No meo Deos, em quem só me confiei,
Porque por mi pregado foi na Cruz,
Confiado só nelle acabarei,
Chamando por Maria e por Jesus.
ELEGIA.
Quantas vezes cuidei, que me apartava
Pêra mais não vos ver. Serra deserta,
E conforme a razão, não me enganava.
296 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mas inda a sepultura tenho aberta,
Que quanto a morte vem mais devagar,
Tanto de tardar pouco está mais certa.
Entretanto, mais quero conversar
Com brutos animaes, que não com gente,
Que descansar não quer, sem me cansar.
De que fera cruel, brava serpente,
Se vio no bemfeitor a mordedura,
O cabello enriçar, bater o dente ?
E se do que padece mais se apura
Na paciência seu merecimento,
A perdê-la mais vezes se aventura.
Por isso eu, como fraco, me contento,
Com fugir, donde vim, também mordido,
Que não se estende a mais o meu talento.
Só na minha choupana, recolhido.
No silencio da Serra me suspendo.
Dos humanos agravos esquecido.
Que busco, porque espero, que pretendo.
Tanto monta no mar, como na terra,
Onde com suspirar olhos estendo ?
Vestida de verdura vejo a Serra,
O mar, por muitas vezes, de mil cores ;
Umas horas de paz, outras de guerra.
Assim nem sempre podem pescadores
As redes estender na agoa salgada,
Nem lavrar sempre a terra os lavradores.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 297
Que nem sempre ser pode cultivada,
Nem sempre recolher a sementeira,
Sem ser da mão divina temperada.
Tal herança deixou a mãi primeira
Aos tristes filhos seus, de tal herança
Convinha a alma também ficar foreira.
Assi que se faltar a temperança,
No povo do Senhor não deixaremos
De vêr, na terra e mar, destemperança.
Por tanto nos convém que trabalhemos,
Caminhando por onde caminhou
Aquelle a quem conta dar devemos.
Alembrados de quanto lhe custou
Sêr preso dos Judeos, como ladrão,
No horto, que de seu sangue regou.
Onde por Judas foi dado á prisão,
E por imigos seus preso e levado
A padecer por nós morte e paixão.
De açoutes na columna carregado,
Com sua Cruz ás costas caminhando,
Pêra nú padecer nella pregado.
De rogar a seu Padre não cessando,
Por aquelles ingratos, cobiçoso
De dar a vida a quem lha está tirando.
Escurécese o sol claro e fermoso,
Choram seu Creador os elementos,
O feito foi cruel, mas proveitoso.
298 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Confiado nos seus merecimentos,
Acabarei o pouco que me resta
Em levantar da terra os pensamentos.
De que me serve a mi, ou que me presta,
Tudo quanto ter posso em toda a vida,
Senão pêra pagar a quem ma empresta ?
Qual branda cera ao fogo derretida,
No fogo do meu Deos minha alma seja,
Quer sarada por elle, quer ferida.
Onde quer que estiver com elle esteja.
Esteja com seu Deos, sua cativa.
Sem elle só um momento se não veja.
Com elle morra, só com elle viva.
ELEGIA.
Deixei de cantar já, como sohia.
Por ver se poderia, não cantando.
Seguir o summo bem de que fugia.
Que pouco vai cantar suave e brando.
Nos ouvidos de quem não tem brandura,
Perdendo quanto mais sinto calando.
O bosque que se veste de verdura,
Vestem os meus desejos d'esperança,
Obra do Creador na creatura.
O mar também me faz sua lembrança
Com suas próprias ondas variadas,
Quando mais se enbravece ou se amansa.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 299
Finalmente que dou por escusadas,
Palavras das humanas creaturas,
Pois estas faliam mais sempre caladas,
Doces versos envoltos em branduras.
De contemplar procede o sentimento,
Que deixo de lograr mais docemente,
Quanto menos quieto, o pensamento.
Mal se pode escrever o que se sente.
No meio do silencio sepultado,
Consumido de amor em fogo ardente.
Não quer ouvir o mal acostumado
A quem curar deseja seu defeito,
Mais quer não se curar, que ser curado.
O mal que agasalhou dentro no peito,
Inclinou a fazer sua vontade,
Sem medo, sem vergonha, e sem respeito.
O que mais claro vir esta verdade,
Não tem pêra que mais se desvelar
Em versos da divina saiidade.
Sem syllabas medir, e sem trovar,
Se logre dos conceitos, que de cima
Pelo de cima, fazem suspirar.
Escuse de limar em prosa ou rima,
Porque sem se limar a rima ou prosa,
Nem por isso no Ceo menos se estima.
Não deixa de cheirar melhor a rosa.
Por se colher nascida das espinhas.
Sem desfolhar-se, fica mais íermosa.
Soo Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Das prosas que limei, das rimas minhas,
Que proveito colhi, senão vergonha,
Nas estranhas nações e nas vizinhas ?
Não falta quem me diga, que componha
Versos pêra accender os frios peitos,
E que pelos compor me descomponha.
Bem posso descubrir novos conceitos,
Bem posso repetir os descobertos.
Mas mal posso crear brandos sugeitos.
Os caminhos do Ceo estão abertos
Pêra quem mais quiser correr a posta,
Que eu já me aposentei nestes desertos.
A quem me pede aquillo de que gosta,
Ou quer do temporal o que deseja.
Que sou mór peccador, dou por resposta.
Quero-lhes dar, enfim, que poder seja,
E mais que seja tudo á custa minha,
Será quando de Dcos mais perto esteja.
A Senhora que tenho por vizinha,
E' rica, liberal, e não se enfada.
Pois é branda em ouvir, era dar rainha.
O que geme e suspira, grita e brada,
Por despacho da sua petição.
Não perde por lhe sêr mais dilatada,
Pois assegura mais a salvação.
Obras de Fr Agostinho da Cruz 3o i
Elegia penitencial.
Aqui neste deserto, sêcco e pobre,
Só de medonhos monstros habitado,
Que a morte com sua sombra cobre,
Nesta imagem de bruto transformado,
Por mão da consciência vingadora,
Sou todos os momentos castigado.
E se alevanto os olhos alguma hora
Ao Ceo, que não cansa de chamar-me
Por ver se minha sorte se melhora *,
Ainda bem não tento levantar-me.
Quando outra vêz me abaixa a gravidade,
De que eu tão sem razão quis carregar-me.
E foi tal minha prodigalidade,
Com que desbaratei tanta riqueza,
Nos jardins encantados de vaidade,
Que quando agora a força da pobreza
Me offerece, entre brutos, mantimento.
Sei que meto em afFronta a natureza.
Lembra-me aquelle ingrato pensamento,
Que como Jeroboão se levantou
Contra o throno real do entendimento.
E tanto que por Rei se coroou
Como Ídolos, em alto levantados,
Os seus próprios conceitos adorou.
3o2 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Lembra-me aquelles bárbaros cuidados,
Que com profanos fogos abrazaram
Os edifícios pêra o Ceo lavrados.
E depois que ao iuizo a luz tiraram,
Como Nabuzardão, com sua gente,
Os propósitos santos profanaram.
Lembra-me o aviso vão, que ousadamente
Os segredos do Ceo saber queria,
Também como Saul desobediente.
Até que em tantos dias veo um dia.
Que lhe pôs a cabeça pendurada,
Onde sua soberba merecia.
Lembra-me a affeição, mal empregada,
Que entre apetites máos ficou por terra,
Qual outra lesabel despedaçada.
Mas é tal o veneno que se encerra
Nestes pedaços que ficaram delia,
Que assi despedaçada me faz guerra.
Lembra-me, sobre tudo, a nobre estrella,
Que com o Divino lume resplandece
Nesta alma que algum tempo foi tão bella,
E se por mercê sua o Ceo quisesse,
Que este lume de lá favorecido
Noutro lume d'amor se convertesse.
Quão prestes fora nelle consumido,
Este profano altar onde amor cego
Com tantos sacrifícios, foi servido!
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 3o3
E postos meus desejos em sossego,
O rebelde estandarte recolheram,
Que eu tantas vezes com o Ceo desprego.
Bem sei que ao contrario mereceram
Minhas desordens, que com tal soltura,
No caminho da morte se perderam.
Mas vós, Senhor do Ceo, que a fermosura
Do vosso rico amor communicastes
Tão largamente a toda a creatura,
Obrai agora em mim o que já obrastes,
Quando entre gente tão desconhecida
Tantos raios de amor manifestastes ;
Que sou aquelle Lazaro sem vida,
Que a graça, que por graça esta alma tinha,
Com tanto damno meu tenho perdida.
E posto que faltei quando convinha,
Vossa misericórdia é tão immensa,
Que não pode encurtá-la a falta minha.
Sou aquelle leproso, onde a detença
De tantas culpas tão contagiosas,
Só com o exemplo seu faz tanta oôensa.
Culpas de cada vez mais perigosas.
Pois o mesmo uso máo que mas sustenta,
Só pelas não deixar mas faz fermosas.
Sou o mudo a que o Ceo se representa.
Rico de preço, pêra libertar-me
Deste Senhor cruel, que me atormenta.
3o4 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mas o sprito que houvera d'ajudar-me,
De sorte neste cárcere emmudece,
Que não sabe pedir-lho e resgatar-me.
Sou aquelle doente que parece
Paralytico, já desconfiado,
De quem o mundo seu também se esquece.
E se por vós não fora remediado,
Esta fé que assi sêcca está comigo.
Iria também por presa do peccado.
Sou o cego, que traz ura mal que sigo.
Os mal guiados passos, tão mal rejo,
Que dum perigo, vou noutro perigo.
E pôs-me tantas névoas o desejo
Na luz, com que a alma ennobrecestes.
Que a mim mesmo me busco e não me vejo.
Vós que os remédios todos nos pusestes
Nessa Cruz onde a gloria se conquista,
Dar-me delia podeis, como já destes.
Vida, limpeza, fala, força e vista.
ELEGIA.
A Dona Mar ianna, filha do Duque de Aueiro,
incitando-a e animando-a a ser religiosa.
Daquella que cantei felices annos,
A que sendo de poucos promettia,
Sabendo desprezar gosios humanos.
Obras de Fr Agosrinho da Gruz 3o5
Se verdadeira foi a profecia.
Agora se vê nella já mais clara
Do que se pode vêr a luz do dia.
Pois nesta tenra idade inda não pára
De subir para o Ceo, firme e segura,
A' vontade de quem tal a plantara.
Cultivada com tanta fermosura,
Com tanta gravidade tão estranha,
Que as flores apparecem na verdura.
As lagrimas d'amor em que se banha,
Que lá de cima estão nella chovendo,
Com suaves suspiros acompanha.
Ditosa quem na terra está colhendo
As rosas, que do Ceo estão cahindo
No fogo, que com ellas vai crescendo !
E quanto cresce mais, mais vai subindo
Levando lá comigo o sentimento,
Que das brandas entranhas vai fugindo.
Daqui não passa avante o pensamento,
xMas se não vem de dentro o coração,
De fora pôde vir o fundamento.
Na sua branda e doce inclinação,
Na sua bem composta natureza,
Que Deos governa e tem da sua mão;
Mostrando-lhe o caminho da pureza,
Por onde o mesmo Deos quis caminhar,
Fazendo aos caminhantes a despesa.
3o6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não haja quem te possa desviar
Do caminho que levas acertado,
Que muitos não quiseram acertar.
Aquelle que lançou mão ao arado,
Olhando pêra trás se fez indino
Do bem, que já bem tinha começado.
Sem caminhar não chega o peregrino
A se vêr no lugar que desejava,
Quanto mais quem deseja amor divino.
Achou a Magdalena o que buscava,
Porque perseverando amor buscou,
E com buscar achou a quem tanto amava.
Na sua petição perseverou
A Cananea firme e confiada,
E cora perseverar tudo alcançou.
A justa petição perseverada,
Deante do Senhor é concedida,
Posto que por bem nosso dilatada.
Entende que sem ser favorecida.
Do Senhor que desejas de servir,
Não poderás deixar de sêr vencida.
Mas pois te não fizeram desistir
Os imigos do bem que determinas,
Armas não terão já com que ferir.
Armada forte, tu, d'armas divinas,
Da progénie real de que nasceste,
Que são do Redemptor as cinco quinas.
Obras de Fr. Agostinho da Crui Zoj
E com estas, enfim, enfraqueceste
O poder infernal em tenra idade.
No primeiro combate que venceste.
Ora pois te falece liberdade
F'era se concluir no que desejas,
Repousa na divina satldade.
Que posto que de mim absente estejas,
Daqui te levarei por esta Serra
Por parte donde o Ceo mais perto vejas.
Verás ondas marinhas fazer guerra,
Combatendo penedias encurvadas.
Que defendendo estão a fraca Serra.
Verás no mar Oceano alevantados
Os golfinhos dar saltos pêra o Ceo,
Da fermosura delle convidados.
Verás mais claro o sol donde nasceo,
As nuvens variar de cem mil cores,
E doutras tantas donde se escondeo.
Verás por toda a parte donde fores.
As entranhas das duras penedias
Abertas e cobertas d'alvas flores.
Verás tanto abraçar plantas sombrias,
Que façam próprios seus braços alheios.
Mostrando o sêr reaes, celestes vias.
Verás d'animaes brutos montes cheos,
Dos homens racionaes arreceosos,
E da brutal presa tem receos.
3q8 Obras de Fr. Agostinho da Grui
Verás dos baixos valles satidosos
Alevantar, cantando os passarinhos,
Do Geo mais que da Serra cobiçosos.
Verás dos verdes bosques mais vizinhos,
Donde foram nascidos sahir fora,
E vir a vizitar-me os meus bichinhos.
Verás junto da casa da Senhora,
Por cima dos rochedos retorcidos.
Os passos da Paixão pintar agora.
Contados, meditados, e- medidos
Do Senhor desta Serra, renovando
Aquelles com que nós fomos remidos,
Nos quaes te deixo agora contemplando.
ELEGIA.
A Jesu na Cru'{.
A ti, bom Jesu, que tanto offendi,
A ti repouso dos atribulados,
Firme esperança de quem espera em ti \
A ti peço perdão de meus peccados.
Tão dinos de temer e de chorar.
Pouco de mim temidos e chorados.
Por elles, ó meu Deos, te vejo estar
Crucificado nesse duro lenho.
Por elles tardei tanto em te buscar.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz Sog
Não me engeites, Senhor, se tarde venho,
A culpa de temor me está cercando,
Segura-me a esperança que em ti tenho.
Se te viram. Senhor, estar rogando
A teu Eterno Padre por perdão,
Daquelles que te estão crucificando ;
Se dizes com voz doce ao bom ladrão
« Hodie mecum erts in paradiso »
Que querem medos, como se não vão ?
Mercês tamanhas feitas d'improviso
Me fazem ter mui certa confiança,
Que não entrarás commigo em juizo.
Se te meus erros movem a vingança,
Lembra-te que por mim puzeste a vida,
Abranda teu furor nesta lembrança.
Alma a tão grande amor endurecida,
Que não sentes minha alma o grande amor,
Com que por quem te fez, foste remida ?
Sente o que por ti sente com mais dor,
Olha que por dar vida á creatura.
Tão pouco estima a sua o Greador.
E tu, coração meu de pedra dura.
Se vês quebrar as pedras com tristeza,
Como não quebras de tristeza pura ?
Como encerras em ti tão grão dureza,
Sendo tão brando de teu natural,
E ellas tão duras de sua natureza ?
3 IO Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Entranhas de ferro ! ah ! camanho mal !
Em tantas magoas sentimento duro,
De mui pequeno amor dá grão sinal.
Ai que sem ti, Senhor, tudo é escuro.
Tudo são nuvens vans, tudo é um sonho,
E cego entendimento é o mais seguro.
Quando meus olhos nessas chagas ponho,
E me vejo de frieza rodeado,
D'ellas, de mim, e do mundo me envergonho.
O' chagas suaves, ó suave lado,
Este meu peito frio em vosso amor.
Quem o visse, ah ! quem o visse abrazado !
Spirito novo cria em mim. Senhor,
Pêra que a ti só tema, a ti só ame,
A ti só, que a ti só devo louvor.
Por si suspire sempre, por ti chame.
Por ti me negue a mim, e tudo negue,
Por ti saudosas lagrimas derrame.
A ti busque, a ti ache, a ti me entregue,
Com hmpo coração, pura vontade.
Nunca de ti minha alma desapegue.
Um desejo vivo, viva saudade.
Tenha sempre de ti, isto te peço.
Que sem ti, tudo enfim é vaidade.
Muito peço, Senhor, pouco mereço,
E tão pouco que não mereço nada,
Se o teu muito ao meu nada não dá preço.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 3ii
Esta alma tantas vezes enganada,
No verdadeiro caminho encaminha,
Que se por ti não vai, vai muito errada,
Doce Jesu, doce esperança minha !
ELEGIA.
Ao divino amor.
Como o cervo cansado e ferido
Busca as fontes de agua deleitosa,
Remédio a seu animo affligido;
Assi a minha alma saUdosa,
Dessa vossa divina fermosura,
Toda ardendo em sede amorosa •,
Busca a vós, ó fonte de doçura,
Fonte viva, aonde achará
Remédio e toda sua fartura.
O' Deos ! quando apparecerá
Diante de vosso rosto divino ?
Este ditoso dia quando virá ?
Estas lagrimas minhas de contino,
São o meu pão de que eu me sustento,
A' tarde e no tempo matutino.
As lagrimas são meu contentamento,
As lagrimas mitigam minha dôr,
E fazem mais sofrivel meu tormento.
Já me consumira de tanto amor,
Quando todos me dizeis cada dia
— Aonde está teu Deos e teu Senhor?
3í2 Obras de Fr Agostinho da Cruz
Tendo isto sempre nâ fantasia,
Derrama minha alma de pura vontade
Ante vós, Senhor, a quem tanto queria.
Quando passarei desta saudade
A.O tabernáculo maravilhoso.
Morada de vossa eternidade ?
Onde tudo é suave e deleitoso,
O' vozes d'alegria e
O' banquete eterno e glorioso !
Pois alma minha, porque rezão
Andas triste e descontente.
Porque assi entregue á paixão ?
Ainda que o teu mal seja presente,
Viva sempre a dor e a lembrança,
E o teu somno seja mui ausente.
Espera em Deos, tem nelle confiança.
Põe nelle teu desejo e teu amor,
E não será em vão tua esperança.
Porque ainda confessarei ao Senhor,
Que é elle minha gloria desejada,
O meu ultimo fim, meu Salvador.
Minha alroa de mim mesmo cansada.
Chora sua misevavel condição
Vendo se de vós longe, desterrada.
Mas desta terra do rio Jordão,
E deste Hermonio monte pequeno,
Levantarei a vós a coração.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 3i3
Ainda que seja vil e terreno.
Todo cheio de baixas affeições,
Espera de se vêr no Ceo sereno.
O' abysmo de minhas afiBiçôes,
Chamo o abysmo de vossa piedade,
Que vence as ondas das tentações.
Aqui em muito grande cantidade
Me cercam, como mar embravecido,
Mas sobre tudo é vossa bondade.
Não sois vós, Senhor, de mim esquecido,
Não tem esquecimento quem tem amor,
Ah ! Deos ! e sois de mim tão mal servido í
A misericórdia mandaes, Senhor,
De dia e noite em contemplação,
Cantar vossas maravilhas e louvor.
Assi a vós será minha oração,
A vós, a vós, ó Deos de minha vida.
Meu Redempior, e minha salvação.
Pois, Senhor, porque será tão esquecida
A minha alma de vós, que está chorando
Vêr-se de seus imigos perseguida ?
Olhai, meu Jesu, que se vão gastando
Meus ossos e se consumem com dôr,
E meus imigos estam triunfando.
Dizendo : — onde está o teu Senhor,
E o teu Deos por que suspiras,
A quem amas com tão firme amor ?
3 14 Obras de Fr, Agostinho da Cruz
O' alma, porque me dás tu tormento,
Espera e terá o teu mal cura,
Espera e verás teu contentamento.
Espera e verás sua fermosura,
Verás sua eterna magestade,
Verás a sua divindade pura,
E assim fartarás tua vontade.
Ao Sepulcro da Esperança.
Ao pé deste carvalho áspero e duro,
Contra quem quanto o vento mais se cansa,
Tanto mais firme o deixa e mais seguro;
No meo da floresta, da mudança,
Onde tem mil jardins a fermosura,
Por amor o sepulcro da esperança,
Um áspide a matou na espessura,
Que entre espessos murtaes tinha escondida,
D'inveja de meu bem, minha ventura.
Eu por ella mil vezes dera a vida,
Se com vida tão mal afortunada,
Pudera a sua sêr restituída.
Mas pois também do Ceo me foi negada
Essa pequena parte de alegria,
Só porque era de mim tão desejada ;
Na banda deste bosque mais sombria,
Defronte do sepulcro venturoso,
Que encerra todo o bem que eu pretendia,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 3i5
Sempre alheo de mim, sempre queixoso,
Contarei meus queixumes aos penedos,
Algum delles quiçaes será piedoso.
E pelos troncos destes arvoredos,
Que tantas vezes já são costumados
A saberem de mim os meus segredos ;
Em grandes letras deixarei cortados
Poderosos signaes de meu tormento.
Que das Nynfas serão sempre guardados.
E tu, ó mal nascido pensamento.
Que nas asas d'amor alevantaste
O teu tão temerário atrevimento.
Agora que por pena me ficaste,
Entre as rumas de teus vãos castellos,
Que sobre as nuvens vans tão mal fundaste,
Se ainda ousares ver os olhos bellos.
Em cujo doce fogo anda abrazado,
O mesmo amor, que te ensinava a vê los,
Dar-lhe-has da minha parte este recado,
— Que ainda que a esperança aqui está morta,
Que não morreo por isso meu cuidado.
Fortuosa no que é seu dispensa e corta,
E como dá os favores brutamente,
Brutamente também lhe cerra a porta.
Mas a fé que amor fez tão excellente.
Como nunca á fortuna está sujeita.
Qual foi, tal ha-de ser perpetuamente.
3i6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
E se nunca chegar a sêr-lhe acceita,
Quanto menos tiver de interessada,
Tanto mais terá d'alta e de perfeita.
E tu, minha esperança, em flor cortada.
Se nessas agoas lá do esquecimento,
Fores do que te quis inda lembrada,
Põe os olhos de lá neste tormento,
Que em lagrimas de fogo convertido,
Sobre o sepulcro teu eu te presento.
E se de ti também não for ouvido
Este meu desatino tão sisudo.
Este ganho terei d'estar perdido,
Que não tem que perder, quem perde tudo.
A morte dum contentamento.
Despojos tristes dum contentamento,
Que amor, como tyranno, sepultou
Nas entranhas cruéis de meu tormento ;
Agora que o desejo vos deixou
Na melhor parte d'alma levantados,
Em signal da victoria que alcançou;
Assi tintos em sangue, assi banhados,
De piedoso orvalho, noite e dia,
Sempre tristes sereis, sempre acatados.
Tempo foi que a ventura concedia.
Com mão tão larga tudo a meu cuidado,
Que pródiga comigo parecia.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz Siy
Um bem noutro mór bem continuado,
Gloria á doce gloria do presente.
Mil suaves lembranças do passado.
O sol mais bello e mais resplandecente,
A novas alegrias me chamava,
Quando dourava as portas do Occidente.
E quando d'esmeraldas se toucava
A terra alegre e de diversas cores,
O natural toucado ataviava.
Na verdura dos campos e das flores,
Como em signal de gloria e d'esperança,
Incitava o desejo a bens maiores.
Mas o desejo imigo que não cansa
D'espedaçar o bem que n'alma nasce,
Entre apressadas rodas da mudança;
Se consentio que o tempo levantasse
A tanta gloria meu contentamento,
Foi porque de mais alto o derrubasse.
Bem vejo que lhe devia acatamento,
Por sêr d'aquelles olhos procedido,
Onde o poder d'amor tem rico assento.
Mas o que por alli lhe era devido.
Perdeu só por sêr meu em espaço breve,
Das rodas da mudança foi ferido.
Ali, sobre elle, a morte a mão deteve,
Ali tingio seu sangue a terra dura,
Que de vê-lo acabar magoa não teve.
3i8 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Só vós, fermosas Nynfas da espessura,
Que adornadas de lírios e de rosas
Fazeis mais poderosa a fermosura ;
Só vós, por entre as arvores saudosas,
Que já alguma hora attentas me escutarano,
A males ião cruéis fostes piedosas.
As flores que também vos imitaram,
As lagrimas que então ali chorastes,
Em pérolas tornadas as guardaram.
E vós lembranças tristes que ficastes
Por retrato do bem que esta alma chora,
E que em vós tanto ao vivo debuxastes ;
Duro allivio me sois que tanto outr'hora
O bem vivo presente me alegrava,
Quanto em lastima vê trocado agora.
Este é o galardão que me esperava.
Esta a illustre pompa da victoria,
Que á fé victorioso amor guardava.
Sei que é morta de todo minha gloria,
Mas assi morta pêra mais matarme
Tem vivos os effeitos na memoria.
Se de tamanho mal ouso queixar-me,
Os queixumes dos ventos engeitados
Se tornam contra mim atormentar-me.
E se da causa delles espantados
Em defeito da lingua que emmudece,
Sem lingua a amor se queixam meus cuidados.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Só amor como cruel os aborrece,
Sendo cUes de meu mal rico tributo,
Que a alma em tanto aperto lhe offerece,
Ha dias entendi que são sem fruto.
Carta que o Autor escreveo á Duquesa d* Aveiro
antes de se ir para o Ermo.
Desejando escrever-lhe, nunca pude,
Taes correram os meses, taes os dias,
Que ha muitos que não tive um de saúde.
Umas horas ardentes, outras frias,
Devíeis de acabar, pois acabei
De ver ondas do mar, plantas sombrias,
Cuja vista se doze annos logrei.
Deviam de não ser horas tamanhas.
Como de um triste só que cá passei.
Quantas vezes revolvo nas entranhas
O mal que me forçou deixar a terra,
Suave e natural pelas estranhas!
Deixei ( que mais não pude ) a branda Serra,
Que pêra brandos peitos se criou,
Quem com duros a dana, inda mais erra.
Mas quem culpou o néscio que chamou
Aquella Serra branda, Serra dura,
Se tal como elle foi quem o julgou ?
320 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
O bosque não se veste de verdura,
Pera rústicos olhos que se vem,
Não penetra seu peito a fermosura,
Aquella saUdade que me vem
Dos louros e da fonte sofro mal,
Mas a dos pães e filhos, mal nem bem.
E porque já não posso fazer ai,
Testemunha me seja o sentimento
A quem curar Galeno pouco vai.
Não foi mal desculpado meu intento,
Que tal me succedeo qual o pintei,
Num mal me aventurei, fugi de cento.
Nestes campos do Tejo onde cheguei,
Achei graça, bom rosto, e gasalhado,
Que noutros meus amigos não achei.
E tanto me senti mais obrigado.
Quanto mais fraco e enfermo me senti,
Sem nunca me sentir desamparado.
Desta pura amizade me venci,
Que mais me obriga quem comigo chora,
Do que me obriga quem comigo ri.
Mas se Deos permittir inda alguma hora.
Espero de morrer como desejo,
Que « un bel morir tuta la pita honor a ».
Já para mim não são campos do Tejo,
De tantos lavradores cultivados,
Onde planta sombria nunca vejo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 32 1
E se não me impedirem meus peccados,
A parte buscarei mais apartada
Dos campos e dos valles povoados.
Alli, quando vier menos pesada
A morte, me será mais leve a vida,
Ambas, uma por outra, registada.
Enquanto se dilata esta partida,
A graça do Senhor dos reaes peitos,
Dos pais seja nos filhos repartida,
Com quem já repartio altos conceitos.
I
Carta que compôs á Duquesa de Aveiro
á absencia da Madre Soror Mariana sua filha.
Primeiro que partísseis, filha minha,
Os males, que da absencia receava,
(Que não pude vedar) chorado tinha.
Já meu coração triste adevinhava
Que tudo quanto foi sêr poderia.
Pois meu poder tão pouco aproveitava.
Chorar e suspirar não me valia,
Nem ter da minha parte a razão clara
Que, enfim, prevaleceo quem mais podia.
Cpmtudo, filha minha, se cuidara
Quam longe e quanto tempo desterrada
Estaríeis de mim, já me enterrara.
322 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mas cuido que me tem inda guardada
Pêra algum grande mal, fortuna imiga,
Se me vir de vos ver desesperada.
Alembre-vos de mim, que não me obriga
Desejar de vos vêr outro interesse,
Senão em vos amar ser mais antiga.
Que, se tanto comvosco amor pudesse,
Quanto triste de mim pôde comigo,
Não duvido que já vos não rendesse.
Muitas vezes me vi posta a perigo,
Ou de vos ir buscar, ou de perder-me,
( Se tenho que perder, pois vos não sigo. )
Em tanta dilação não sei valer-me,
Menos sofrer tamanhas saiidades.
De que não sei, nem posso defender-me.
Imagino cem mil difificuldades.
Que todas contra mim terão vigor
Em tempos de tamanhas novidades.
Que, se como foi tudo, tudo for.
Que tenho que esperar ou que querer,
Senão chorar de novo a minha dor ?
Se da vontade alhea hei-de pender,
Bem posso e bem podeis estar segura,
Eu de vos vêr a vós, vós de me vêr.
Bem se pôde abrandar a pedra dura.
Bem se pôde abrandar a brava fera.
Mal se pôde abrandar minha ventura.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 333
Tudo já, finalmente, lhe sofrera,
Como tudo lhe tenho já sofrido ;
Uma cousa não mais me concedera ;
Que nos deixe entre nós fazer partido,
Pois rezão e justiça me sobeja
Pêra me ser meu bem restituido.
Que, ou me mandeis viver onde vos veja,
Ou vós venhaes viver onde vejaes,
Quem sem vos vêr nenhum gosto deseja.
Ambas, adonde vós quiserdes mais,
Havemos de viver, ou nas estranhas
Terras, ou nestas nossas naturaes.
Que não podem sofrer brandas entranhas
De mãi tão deshumano apartamento,
Tendo sofrido já magoas tamanhas.
Sabe Deos, filha minha, meu inteiito,
Deixo nas suas mãos a conclusão :
Que, ou me tire da absencia o sentimento,
Ou vos abrande vosso coração.
EGLOGA.
Almilão, e Galapo.
Almilão.
Alegre venho a vêr-te no teu ermo,
Onde, depois de sete annos passados.
Tuas perseguições fizeram termo.
324 Obras de Fr. Agostinho da Crur
Dizem que os estrangeiros vão pasmados
De vêr quam nesciamente os naturaes
Em perseguir-te foram obstinados.
Digo, dos irmãos teus os principaes,
Com seus familiares cobiçosos
De serem no governo officiaes.
E' muito natural dos preguiçosos,
Que querem merecer, não trabalhando,
O sêr dos diligentes invejosos.
Assi, da diligencia murmurando,
Acostumam dizer que, por ventura,
Merecem muito mais não trabalhando.
Não pôde sêr maior desaventura.
Que não querer louvar o que trabalha,
E quer sêr louvado o que murmura.
Enfim, que com buscar de que se valha,
Accusado de seu remordimento.
Cuidando rodear o néscio atalha.
A virtude tem firme fundamento,
E muito firme mais sendo encontrada,
E quanto mais maior merecimento.
Tanto que, se não for contrariada,
E dos mores imigos perseguida,
Não pôde sêr de todo refinada.
E pois que já ficaste de vencida,
Dá-me conta de quanto o teu geral
Pastor passou comtigo nessa ermida.
k
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 325
Galapo
Nosso geral pastor he pastor qual
O Senhor escolheo no seu rebanho
Antre todos, mais dignos, outro tal.
A naudança foi breve, o caso estranho,
Que se por nosso bem não succedera,
Succeder não pudera um bem tamanho.
Nasceo de novo aqui a primavera,
Ouvio-se a voz da rola em nossa terra,
O ferro converteo se em branda cera.
Depois que com seus pés subio a serra.
Entrando nesta lapa e nesta cella,
A paz prevaleceo, cessou a guerra.
Mas eu que, velho e calvo, escapei delia.
Não deixo de entender que a vida humana
Acha sempre cabellos que arrepella.
O tempo que passei me desengana
No que passando vou. vou qual a folha
Leve que, em tronco sêcco, o vento abana.
E posto que, quieto, me recolha.
Convém o vigiar-me como grou.
Que a morte descuidada me não colha.
Aquelle que viver mais desejou.
Pintando seus cabellos d'ouira cor.
Os seus annos mais breves não pintou.
Por tanto, amigo meu, seja o que for,
Determinado estou de me esquecer
De quem tomar- me quer por valedor.
326 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Os mais de todos quantos me vem ver,
Todos cuidam que vem fazer fazenda,
Despachando primeiro seu querer.
No mando, na demanda, na mais renda,
Nos ricos mais honrados casamentos,
E no breve despacho da Gommenda.
Nos gostos seus, nos seus contentamentos,
Nas suas vaidades esquecidos,
Fazendo em cousas vans, vãos fundamentos.
Querendo, dos meus dias consumidos
Na velhice, por calma, fome e frio,
Roubar-me, se alguns tenho merecidos.
Eu, coitado de mim, não fio
De meus graves peccados o perdão,
Que, por meio da Virgem, haver confio.
E querem que despache a petição
Conforme o gosto seu, inda que seja
Com perigo da sua salvação.
E posto que mais livre agora esteja
Pêra lhe responder, segundo entendo,
O seu mesmo desgosto inda me peja.
E pois que ninguém quer o que pretendo
No caminho do Ceo, que mais importa,
Valha-lhes Deos, a quem os recommendo.
Almilão.
Os que querem entrar por outra porta
Mais larga e mais seguida dos mundanos,
Pouco lhes dá que vão por via torta.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz Say
Embrulham gostos seus com seus enganos,
De bens nem males fazem differença,
Nem dos proveitos seus, nem dos seus danos.
Não se querem curar desta doença,
Porque da penitencia a purga amarga,
Posto que revocar faça a sentença.
Com quanto menos pejo e menos carga
Pela via do Ceo se vai subindo.
Que na terra descendo pela larga !
Galapo.
Ah ! quanta saiidade está sentindo
Aquella alma ditosa no deserto,
De quem seu próprio Deos se está servindo.
Contemplando no Ceo caminho aberto,
A força dos suspiros que lhe ensina
O desejo de vê-lo de mais perto.
Ah ! doce saudade, alta, divina,
Da visão de seu Deos, em que se accende,
C quanto accesa mais, mais se refína.
Almilão.
O som desses teus versos me suspende
O silencio, me pede teu esprito,
Que de meu baixo esprito me reprende.
Affrontado do mal que tenho escrito,
Calando esperarei até que venha
A morte levantar seu interdito
Que, presto, pega o fogo em sêcca lenha.
SzS Obras de Fr. Agostinho da Cruz
EGLOGA.
Lattrino, e Fontano.
Fontana.
Que novas me darás de nosso amigo,
De tres seus companheiros engeitado,
Como se remedea só consigo ?
Laurino.
O primeiro se foi necessitado,
O segundo e terceiro constrangidos
Da santa obediência do prelado.
Outros amigos seus, ofterecidos
Se tinham a fazer-lhe companhia,
Mas cuido que estam já arrependidos.
As novas que do velho te daria.
São conselhos maduros de viver,
Que me deu pêra vêr o que não via.
Nos quaes todos se vem a resolver,
Que por muitas razões e perfeição
Humana, só consiste em padecer.
Com muita paciência e mansidão,
Como nos ensinou o Redemptor,
Na Cruz posto por nossa salvação \
Cujo suave, brando e doce amor,
Tão valeroso faz um fraco peito
Que seja, padecendo, vencedor.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 3a6
Não ficando já passo tão estreito
No caminho do Geo por alargar,
Que quem quiser não possa ir lá direito.
Os ermos se sohiam povoar
Com rara penitencia, toda a vida,
Dos que nelles queriam contemplar.
Cuja imitação foi mal sofrida
E dos mais ociosos murmurada,
E doutros contrastada e perseguida.
A qual, se fora menos encontrada,
Menos merecimento lhe rendera,
Que no fogo se estilla agoa rosada.
Fontano.
Certo, amigo Laurino, que me dera
Muita consolação ver Limabeo,
Se desculpar meu erro me atrevera.
Que, sendo pontual amigo meu,
O achei amigo sempre no meu mal,
Não me achando comsigo no mal seo.
Assi, que sendo amigo pontual,
Faltei na pontual sua amizade
Com me afastar no tempo principal.
Amigos tem quem tem prosperidade,
Mas amigos não tem quem na não tem
Não ha que duvidar nesta verdade.
Limabeo não se queixa de ninguém,
Alheo do passado e do presente.
Sem lhe dar do que vai, nem do que vem.
33o Obras de Fr, Agostinho da Cruz
Quieto, vive só, livre e contente,
Com plantas e com feras conversando,
Não conversando amigo, nem parente.
Assi, noites e dias vão passando,
Tendo posta no Ceo sua esperança,
E da terra a si mesmo desterrando.
Enfim, que não repousa nem descansa,
Senão no summo bem que só deseja.
Enlevado na bemaventurança.
Ainda que tão longe agora esteja
Do que vi, do que ouvi, do que notei,
O velho não me faz pequena inveja.
Por muitas vezes já determinei
Ir ver o velho calvo no seu ermo,
Mas na vergonha minha reparei.
Nem menos quis usar dum justo termo,
Oíferecendo-se obra piedosa
Pêra ser visitado, estando enfermo.
Dilatou-se-lhe a morte vagarosa.
Escapou dos imigos encubertos,
Escapou da tormenta furiosa.
Escapou doutros muitos desconcertos.
Que consumindo foi o tempo largo
Da larga penitencia dos desertos.
De mim não posso dar outro descargo,
Por sêr contrario ó Ceo e contumaz,
Cuja contradição agora amargo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 33 1
Porque de tanto bem não fui capaz,
Perda que assi me turba, assi lastima,
Por não participar da sua paz.
Enfim, Laurino, tudo vem de cima,
No mal como no bem, nosso ou alheo,
Onde o mal se reprova o bem se lima.
O máo quer do fermoso fazer fêo,
O bom quer do fêo fazer fermoso,
Um vazio do mal, o outro cheio,
Um desditoso, enfim, outro ditoso.
EGLOGA.
Almilão, e Galapo.
Almilão.
Pois que nos ajuntamos nesta praia,
Cantemos a que vimos, nesta tarde,
Antes que lá da Serra a sombra c^ia.
Galapo.
Quem quereis, Almilão, que mais aguarde,
Inda que as redes fiquem por lançar,
Nem que pêra melhor lanço se guarde ?
Quem devemos com versos celebrar,
Senão principes, nossos pescadores.
Que juntos, peixes juntos vem fisgar?
Estes dous excellentes amadores
Do fruito, que de Deos tem )á colhido,
Embarcarão comsigo a flor das flores.
33» Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Almilão.
Dentro na minha Lapa recolhido,
O barco vi passar das agoas ciaras,
Naquelle breve curso obedecido.
Ditosa embarcação, se frequentaras
O teu mar Oceano, a lua renda
Com muito peixe nosso acrescentaras.
Mas, pois, aqui não vens fazer fazenda.
Como vem constrangido o pescador
Buscar com que da fome se defenda :
Ouçam cantar e dar a Deos louvor,
Porque do mar e terra quis fazer
Uma Senhora tal um tal Senhor ;
Que partiram depois de amanhecer,
E feita de vagar a pescaria,
Se tornaram com sol a recolher.
Nunca de peixe a praia está vazia,
A Serra de perdizes e veados,
E doutra muita caça em demasia.
Os bosques, nos penedos sustentados.
Dão pasto ás bravas feras na verdura,
E nos pés de seus troncos gasalhados.
Cercada a Serra está de rocha dura,
E das agoas salgadas, desta parte
E doutra a maior já se cerca e mura.
De todos quantos doens o Geo reparte,
Com estes excellentes escolhidos,
Um só te contarei, para alegrar-te:
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 333
Que nunca entre estes de amor unidos
Se viu em cousa alguma differença,
Senão que um rompe mais menos vestidos.
Daquella liberal bondade immensa,
Doutras mores mercês tenho esperança,
Que só pêra calar-me dá licença.
A fonte perennal nunca descansa,
Nem cansa quando mais agoa derrama,
Antes quando mais lança menos cansa.
Tanto subindo vai a verde rama,
Quanto esse mesmo tronco vai subindo,
E tanto o coração, quanto mais ama.
As minhas altas vozes repetindo,
O cavernoso valle me reprende,
Que com calar não ficarei ouvindo.
Aquelle que no mar a rede estende,
Por manha quer pescar ou com engano.
Não quem com tanta fisga o peixe fende.
Com muito pouco custo e pouco dano.
Os senhores do mar vem pescar nelle,
Quando muito, três vezes d'anno em anno.
Mas se bem não parece ella sem elle,
Também bem não parece elle sem ella,
Venha elle com ella e ella com elle;
Que não os ajuntou divina estrella
Pêra ser apartados um momento.
Quer ambos vão a remos, quer a vela.
334 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Ambos logrem um só contentamento,
Ambos um só querer, uma vontade,
Nem quero dispensar no pensamento.
Se havemos de cantar, da saíidade
Deixemos nestas agoas ancorada.
Dos dous a perennal conformidade,
Com favores divinos confirmada.
O' quam ligeiramente vai fugindo,
Pêra nunca tornar, a própria vida.
Tão mal considerada e mal sentida
De mi, que dum mal noutro vou cahindo !
Entendo que estou perto da partida,
Mas folgo d'ouvir quem me está mentindo,
Não querendo acceitar os desenganos,
Querendo-me enganar cos meus enganos.
O' como vai fugindo a mocidade,
Do que não mais que seu gosto pretende,
Fazendo pouco caso do que entende,
E trocando a rezão pola vontade!
E quando desta troca se arrepende,
Perdida tem de todo a liberdade
Pêra se restaurar como pudera,
Se mais do coração se arrependera.
Galapo.
O' quanto tempo passa tão ligeiro,
Sem respeito de grande, nem pequeno,
E como desordena quanto ordeno,
Do que quero fazer por derradeiro !
E com quanta mais magoa me condeno
Por querer sêr no bem aventureiro.
Da temporal cobiça aconselhado,
Por me deixar em vão mais magoado.
Obras de Fr Agostinho da Cruz 335
Epigramma ql Paixão.
A quem desceo do Ceo, por nos dar vida,
Pagamos com lhe dar a morte crua,
Dada por nós, por elle padecida
Por nós na Cruz, despida a carne nua,
Que por salvação nossa fôi vestida,
Por tudo padecer á custa sua :
Enfim, que nosso Deos o fez de sorte,
Que nos deu sua vida e sua morte.
Epigramma.
Nasci e renasci na casa em dia
De Santa-Cruz, da Cruz o nome tenho ;
Tenho quem nella foi morto por guia,
Nas entranhas abertas me sustenho,
Que não pôde cerrar quem as abria :
E quando neste passo me detenho
Gemendo e suspirando, não duvido,
Que me sare quem foi por mim ferido.
Epigramma.
Aqui, Deos da minha alma, onde cheguei,
O como vós sabeis, dar fim á vida,
Outra de novo aqui começarei
Nesta despovoada, antiga ermida
Da Virgem vossa mãi \ não deixarei
De servir-vos, com ella ser servida.
Que qual amor d'esposo. filho e pai,
Tal o mesmo d'esposa, filha e mãi.
336 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Acerca do tempo.
A desigual balança
Da vil fortuna cega,
Fiada d'infieis repartidores
Com violenta mudança,
Desordenada, entrega
Aos máos sempre o governo dos melhores;
Faz servos dos senhores,
Aos mais baixos levanta
Sem mais aucção, nem custa,
Que uma eleição injusta,
Que o Ceo escandaliza e a terra espanta :
Por onde o venturoso
Tyranniza o lugar do valeroso.
A dura tyrannia,
Dos grandes empossada.
Triunfa da justiça e da verdade.
O interesse guia,
A rezão desterrada
Chora o direito seu dar-se á maldade.
O amor e a lealdade
Da pátria perseguida,
Já desagasalhados
Dos principaes estados,
No vulgo baixo e pobre acham guarida ;
E tal se tornou tudo.
Que quem falou verdade, agora é mudo.
O zelo desprezado
He desfavorecido,
Queixar-se, nem buscar remédio ousa.
Al bom tempo passado,
De poucos entendido,
Obras de Fr Agostinho da Cruz 33j
Quem cuida mais em vós, menos repousa !
Cerca-nos tanta cousa,
Que já o entendimento,
Apezar do receio,
Não achando outro meio,
Rebenta com soltar vozes ao vento,
Mas se Deos não soccorre,
Pouco monta dar vozes a quem morre.
VILANCETE.
A desculpa de pescar, e fa\er bordões.
Em que parte, ou em que terra
Me deixarão repousar,
Pois que não pude escapar
Entre os penedos da Serra ?
Que vai peçonha fazer
A cega malícia humana
De pescar peixes á cana
Pêra lhe dar a comer.
Em que parte de que Serra
Se pudera imaginar,
Que aparelhos de pescar
Fossem munições de guerra ?
Se cortando pela rama
Dos zimbros muito cortei.
Cuido que menos pequei,
Que cortando pela fama.
338 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Em que parte, ou em que terra
Não fora peor cortar
Homens, que Deos manda amar,
Que páos, que nascem na Serra ?
Não sinto que culpa tenha,
Se lhe negam ser louvado,
Tão longe do povoado
Pescar peixes, cortar lenha.
Em que parte, em que terra
Se pode vituperar
Quem pesca peixes no mar,
Ou corta lenha na Serra ?
Disse Deos: não matarás
Homens, mas não disse peixes ;
Nem tão pouco disse : feixes
De zimbros não cortarás.
Julgue-sc agora quem erra.
Se quem quer homens matar,
Se quem peixes vai pescar.
Ou corta zimbros na Serra.
Se direitos', ou pensões
Devia do mar, ou mata,
O' Duque, paguei « pro rata »
Peixes, cruzes e bordões.
Paguei ó Senhor da terra.
Paguei ó Senhor do mar,
O' do Ceo ha-de pagar
Quem sem causa me faz guerra.
Eu se corto, ou se pesco
Peixes, ou bordões no mato,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz SSg
Homens não corto, nem mato,
Senão páos e peixe fresco.
Que não pecca, que não erra,
Acabai já de provar,
Que pescar não é peccar,
Menos cortar páos na Serra.
MOTE.
Enganos da vida humana, '
Mal vos pode penetrar
Quem folga de se enganar.
Pois quando se desengana,
O tempo não dá lugar.
GLOSA.
Do que vi e do que vejo.
No que o mundo representa,
Mais me canso e mais me pejo
Por vêr, que venta e não venta
Conforme ao meu desejo.
Assi busco o meu querer,
Querendo o que mais me ingana
Pêra me poder perder,
Pois me não basta entender
Enganos da vida humana.
O tempo, que vai fugindo,
Gasto no gosto da vida,
Ambos se vão consumindo
Mal, que quando estou sentindo,
íl' já no fim da partida.
Então dos gostos passados
340 Obras de Fr Agostinho da Cruz
Começo a me queixar,
Dizendo: quem se enganar
Comvosco, gostos passados,
Mal vos pode penetrar.
O caminho leva errado
Quem por seu gosto se guia,
Trabalha, sua, e porfia
Em querer por outra via
Sêr melhor encaminhado.
Que grande desaventura
E' não querer acertar
Por sua vontade pura,
Pois que não pode ter cura
Quem folga de se enganar.
Camanho mal me tem feito
O meu gosto, que sustento
A torto e a direito,
Sem razão, nem fundamento,
Nos enganos, que apontei.
Se disser que não se engana
Quem de enganado notei,
Então lhe perguntarei :
Pois quando se desengana ?
Donde fui, andei e vim.
Fui e vim e andei comigo.
Comigo, de mim imigo,
A mim sigo, a mim persigo.
Por sêr imigo de mim.
Pelo que posso affirmar
Que quem anda grangeando
O mal, com que quer folgar,
Que se desengana, quando
O tempo não dá lugar.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 341
MOTE.
Que forte fortuna sigo,
A que grande estremo vim,
Que já não vejo o perigo,
Pêra mim maior que a mim.
GLOSA.
Enganos dum pensamento
Me trazem senhoreado
De tal maneira, que é vento
Discursos do entendimento
Em tão perigoso estado,
Porque quanto mais entendo,
Tanto menos me arrependo
De me entregar ao perigo,
Que minha alma chora, vendo
Que forte fortuna sigo.
Força d*estrella imiga.
Contra quem sizo não vai.
Deve ser a que me obriga
A que eu mesmo me persiga,
Buscando o que me faz mal.
De tudo me arreceei,
E de nada me guardei;
Tremo de cuidar em mim
A quanto me aventurei,
A que p-ande estremo vim.
Se alguma hora me desejo
Livre deste desatino.
Tem tal força o meu desejo,
Que me esconde o mal, que vejo,
342 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Por querer o bem que imagino.
A razão bem me avisou
Dos perigos, em que estou •,
Mas o cuidado, que sigo,
Tão depressa me cegou.
Que já não vejo o perigo.
Fujo do que me convém,
Corro após o que me dana *,
E se me aconselha alguém
O que sei que me está bem,
Inda cuido que me engana.
Enfim, que desta mudança
Ficarei sem esperança
De terem meus rhales fim,
Pois a ninguém vi esquivança
Pêra mim maior que a mim.
MOTE.
Que queira quem me não quer,
Não queira de mim ninguém,
Que não posso querer bem
A quem bem me não quiser.
GLOSA.
Não posso ter por amigo
Quem de mim senão doer,
Nem sei como possa sêr
Poder acabar comigo
Que queira quem me não quer.
Por sêr mal afortunado.
Não duvido haver alguém,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 343
Que queira vcr-me enganado ;
Mas amar sem sêr amado
Não queira de mim ninguém.
Quem nne vir desconfiar,
Entenderá que me vem
De não ter já que esperar,
Pelo que pôde affirmar
Que não posso querer bem.
Não é justo que me empregue
Em quem me não merecer,
Muito menos que me cegue
De maneira, que me entregue
A quem bem me não quiser.
MOTE.
Se Agostinho fora Paulo,
O corvo quando viera,
Não levara, mas trouxera.
GLOSA.
Os figos, que no telhado
Tinha postos a passar,
Todos levou sem deixar
Nem por passar, nem passado,
Foi pena de meu peccado,
Que se eu guardar não quisera,
O corvo mos não comera.
Mas no deserto, onde estou,
Se tudo logo comer,
344 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não me poderei manter
No comêr, que se acabou.
Mas mais do que me levou,
O corvo negro trouxera.
Se por Paulo me tivera.
Mas pois que por culpa minha
Sou de Paulo differente,
Ficarei mais penitente,
Sem ter os figos, que tinha.
O corvo, que a Paulo vinha
Trazer, também me trouxera.
Se em Paulo me convertera.
Do que este corvo me faz
Não deixo de presumir,
Que no que devo servir
Inda fico muito atrás.
O corvo leva, e não traz :
Se não levara, o trouxera,
Com Paulo me parecera.
Não fora contra razão
Entre os corvos daninhos
Matar antes passarinhos
No tempo da arribação ?
O corvo negro ladrão.
Se por Paulo me tivera,
Não levara, mas trouxera.
Não deveras de ajudar
Os que tão mal me trataram,
Baste que já me raparam,
Não me venhas tu rapar.
Que se eu poderá estar
Tão longe, como quisera,
De rapazes não temera.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 345
Menos mal foi rapar figos,
Que rapar as barbas minhas.
Peor do que tu vizinhas,
Vezinharam meus amigos.
Se quiseram os antigos
Comigo estar á vara,
Nenhum rapaz me rapara.
Reposta a Soror Mariana, Jilha do Duque
de Aveiro
MOTE.
Não passou meu pensamento
De desejar de servir,
Sem vo-lo dar a sentir.
GLOSA.
O muito, que em vós havia,
O pouco, que em mim achava,
Meu desejo limitava,
Meu pensamento abatia.
Nunca cuidei que podia
Chegar a mais que servir,
Sem vo-lo dar a sentir.
Desesperei com razão
Do que sem ella esperei;
Porque nunca imaginei
Qual fosse vossa tenção.
Nunca esperei galardão
De desejar de servir.
Nem tal pude presumir.
346 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Se quereis fazer estremos,
Os que deveis de fazer,
Só por Deos devem de ser,
A quem só servir devemos.
Quereis que nos conformemos?
Seja em amar e servir
Quem morreo por nos remir.
Que vos fale, que vos veja,
E* por demais, não canseis,
Que por mais que trabalheis,
Já não pôde sêr que seja.
O que minha alma deseja
E' poder-vos concluir
Que só Deos deveis servir.
Se sois firme, branda e pura,
Em tudo mais venturosa,
Fidalga, rica, fermosa.
Tudo sei quam pouco dura.
Escolhei vida segura.
Que não vos possa fugir,
Servi a quem vim servir.
MOTE.
Rodeado nesta Serra
De firmeza e confiança
Sustento a esperança.
GLOSA.
Destas rochas a dureza,
Destes bosques a verdura,
Qual esperança figura,
Qual me figura firmeza.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 847
As obras da natureza
Me fazem doce lembrança
De suster a confiança.
A rocha sem se abalar
Aqui vejo no deserto,
Da verde folha cuberto
O bosque sem se seccar.
Enquanto me rodear
De firmeza e de esperança
Não perderei confiança.
Mas de que me serve vêr
Rochas firmes, verdes plantas,
Vendo em mim faltar quantas
Cousas eu desejo têr
Pêra mais me entristecer,
De firmeza e de esperança
A Serra me faz lembrança.
As feras vejo pascendo.
As aves ouço cantando,
As ondas do mar quebrando
Nas rochas, que estão batendo,
Quanto mais ouvindo e vendo
Se renova a confiança
No silencio da lembrança !
MOTE.
Tanto é o bem, que espero,
Que nas penas me deleito.
GLOSA.
Desejo de padecer
Por amor do que mais quero
k
348 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Todo O mal cruel e fero,
E mais, se mais pôde ser
Nos estremos do querer,
Tanto é o bem, que espero.
Daqui nasce a confiança
Firme dentro no meu peito,
Que só em penar descansa,
Sem outro nenhum respeito,
Com tão suave esperança,
Que nas penas me deleito.
MOTE.
Neste meu remanso
Manso, doce e brando,
Ando amor buscando.
Quanto mais descanso,
Ganso descansando.
MOTE.
Do mundo desapegado.
Dos homens desempedido.
Do tempo desenganado,
Da terra mais esquecido,
Quando do Ceo mais lembrado.
ECOS.
Que mal não queres sentir ? Ouvir.
E que virtude escolher ? Sofrer.
E que bem folgas guardar ? Galar.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 349
Logo te podes gabar
Vencer o maior perigo,
Quando acabares comtigo
Ouvir, sofrer, e calar.
Qual dos bens mór bem te faz ? Paz.
E na paz qual é melhor ? Amor.
E tem Amor igualdade ? Charidade.
Logo a communidade
Está de brigas segura,
Quando se nella procura
Paz, Amor, e Charidade.
Qual é de tudo mais forte ? A morte.
E delia que mal ouviste ? Ser triste.
E tem mais que ser penosa ? Espantosa
Escusado é têr mimosa
Vida que tão pouco dura.
Pois o tempo lhe procura
A morte triste e espantosa.
Quem de todo o bem te tira ? Ira.
Quem pôde mais que a razão ? Paixão.
Quem do que deve se esquece ? Interesse.
Logo com razão merece,
Que não seja conhecido
Quem traz no peito escondido
Ira, paixão, e interesse.
35o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Redondilhas a Nossa Senhora.
Nesta Serra,
Onde me não falta guerra,
Servindo na vossa ermida
Gastarei, Senhora, a vida,
Até me cobrir a terra.
Confiado,
Que serei sempre amparado
De quem sempre me emparou,
Que menos medroso estou,
Pois o mais forte é passado.
A baixeza,
A que minha alma está presa,
Espero que desateis,
E que servindo me deis.
Pêra servir mais firmeza.
Quem pudera
Servir-vos quanto devera
Sem cessar um só momento,
Levantando o pensamento
Tanto, que nunca descera.
E' verdade.
Que tanta suavidade
Consiste em vosso serviço,
Que servir-vos só por isso
E' summa felicidade.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 35 1
Quem mais quer,
Ou que mais deseja ter,
Antes de se vêr nos Ceos,
Que servir a Mãi de Deos
Sem nunca desfalecer ?
Chansonetas ao Nascimento de Nosso Senhor.
1
Pasmem d'alegria
na terra e nos Ceos,
vendo a noite — dia,
vendo o homem — Deos.
2
Commercio admirável,
que o amor descubrio;
mysterio inefável,
que o Ceo nos abriol
3
Como em um supposto
caiba esta união,
não é presupposto
de humana rezão.
4
Senão obedece
o juizo á fé,
nada se conhece
daquelle, que é.
352 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
5
Pelos ares voa
Celeste armonia ;
e o que nella sôa,
só d' Anjos se fia.
6
Feitos esquadrões
O seu rei seguindo,
vam dando pregões,
que a salvar é vindo.
7
O' ditosa culpa,
caso nunca ouvido,
que busque a desculpa
quem é oíFendido !
8
Toma o que em nós há,
dá-nos o que é seu :
que lingua dirá
que toma, e que deu ?
9
Toma pena e morte,
dá-nos gloria e vida :
a causa mais forte
foi d'amor vencida 1
IO
Fermosa victoria,
que a terra Ceo faz,
de que a Deos vem gloria,
e aos homens paz.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 253
II
Acaba a mór guerra,
entra a-mor, concórdia,
tem Deos chea a terra
de misericórdia.
12
Os cegos já viram,
os mudos falaram,
os surdos ouviram,
os coxos andaram.
i3
Os mortos tem vida,
os vivos não morrem,
os bens á medida
do desejo correm.
A summa bondade
nos manda por guia
a luz e a verdade,
que David pedia. Salm. 42.
i5
A justiça sua
hoje nos revela,
nasce o sol da lua,
sendo maior quella.
16
Sem abrir-se a fonte,
sahe delia o mar;
vão de monte a monte,
tudo ha-de alagar.
*3
354 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
'11
Milagre inventado
do divino esp'rito,
qae do limitado
saia o infinito.
18
Na Virgem caber
quem nos Ceos não cabe,
como pode ser ?
quem o fez o sabe.
19
Nova maravilha
do divino amor,
mãi, esposa e filha
dum mesmo Senhor.
20
Deu a flor suave
o fructo esperado,
já vimos a chave
do jardim cerrado. Cant. 4, 12.
21
O divina Aurora,
só em vós se vio
dar mais luz na hora,
em que o sol sahio.
22
Sol, que apparecendo
almas rouba e inflamma \
sol, que em se escondendo
levanta mór chama.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 355
23
E' lume do lume,
que elle só faz vêr,
no qual se resume
tudo o que tem sêr.
24
Fez a vóz humana
Outro sol deter. Josué, 10. 12.
fez a soberana
este a nós descer.
26
Lá figurou isto
Deos por Isaías, Is. 38. 8.
no relógio visto
delRei Ezechias.
26
Pêra o segurar
da mercê, que íèz^
o sol fêz tornar
dez linhas atrás.
27
Quando o mundo alcança
o de que era indino,
a mesma mudança
fêz o sol divino.
28
Deixa Anjos no Ceo,
seus coros passou,
ao homem desceo,
e nelle parou.
356 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
29
Aqui a humildade
de Deos triunfou,
forma a divindade
de servo tomou.
3o
Se o não conhecera
por Deos e Senhor,
isto parecera,
doudice d'amor.
3i
Por Deos seu thesouro
todo em nossa mão:
este é o altar d'ouro,
que vio São João. Apocal. 8. 3.
32
Leão de Judá,
que o Ceo nos conquista,
Cordeiro, que o dá,
e honra o Baptista.
33
Triunfo e lucerna Apocal. 21. 23.
da Cidade santa,
que com gloria eterna
se adora e se canta.
Grão do Ceo cahido,
que o fructo, que deu,
só nelle é sabido,
que é celeiro seu.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz SSy
35
Na terra cahio,
de Deos mui amada,
que foi na que vio
Moysés figurada.
36
Virgem soberana,
se a fé me deixara,
serdes mais que humana
de vós afifirmára.
37
Custodia segura
da sabedoria,
que os Anjos mais pura,
que os santos mais pia.
38
Do Ceo desejada,
porque vos conhece,
da terra engeitada,
que vos não merece.
3&
Querendo-lhe dar
Rei, vida, luz, graça, »
chega a lhe negar
lugar, em que nasça.
4a
Do mundo é senhor,
não tem lugar nelle,
tudo pôde amor,
pois o trouxe a eile.
358 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
41
Se o não abrasara
saudade da cruz,
quiçaes nos deixara
com nosco e sem luz.
42
De homens racionaes
é Deos engeitado,
só entre animaes
achou gasalhado.
43
Senhor dos senhores,
vós entre os animaes,
e reis peccadores
em paços reaes !
44
E' Deos tal amigo,
tão bom de servir,
que em nada comigo
se quer desavir.
Sofre companhia
tão imprópria nelle,
por que neste dia
ninguém fuja delle.
46
Por mais semilhança
que cos brutos tenha,
não perca a esperança,
venha, venha, venha !
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 3^9
47
Lapa gloriosa,
dos Geos invejada,
que elles mais fermosa,
mais alumiada.
48
Mil Anjos a ornaram,
nenhum apparece,
que a luz, que adoravam,
a sua escurece.
49
Nella os serafins
são mais abrasados,
nella os cherubins
mais arrebatados.
5o'
Nella nasce Deos,
nella hoje se encerra
o melhor dos Ceos,
o melhor da terra.
Hoje os homens vem
o Verbo encarnado,
por quem, pêra quem
tudo foi creado.
62
Quando a Virgem vio
da gloria o penhor,
tudo se cubrio
do seu resplendor.
36o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
53
Em tal claridade
a sua alma ardia,
que toda a Trindade
nella se revia.
54
Lá lhe mostra agora
Quem nella morou
e quem nesta hora
cá lhe revelou.
55
Meu Jesu, que é isto!
em presépio vós,
e que a causa disto
sejamos nós, nós !
56
Dizei-me Anjos seos,
• pastores e reis.
se tal está Deos,
em que o conheceis ?
Em que no amor tem
a gloria escondida,
só por que a dar vem
pelos seus a vida.
58
E na adoração
da mãi e do esposo,
que ambos raios são
deste Sol fermoso.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 36i
A mão soberana
seu poder mostrou
na Trindade humana,
que aqui ajuntou.
60
No esposo santo
da Virgem sem magoa
SC enche alma d'espanto,
e os olhos d'agua.
61
Vendo o que deseja,
do Anjo avisado
o presépio beja,
nelle transformado.
62
Do mais serlndino
cuida o Patriarcha,
que inda que é menino,
terra e Ceos abarca.
63
Anjos, reis, pastores
por divina traça
são annunciadores
do auctor da graça.
64
Pêra nos mostrar
que nesle senhor
ha três que adorar,
Deos, rei e pastor.
302 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
65
Palhas tem por leito
quem Anjos deixou,
porque accenda o peito,
que o mundo apagou.
66
Choraes, meu Jesu,
de frio tremeis.
Quem vio a Deos nu,
pobre o Rei dos Reis !
67
O rica pobreza !
ó falta abundante !
ó alta baixeza !
ó divino amante !
São tudo mysterios,
que nos apregoam,
que honras, pompa, impérios
não são o que soam,
O' cega ambição,
mais cega vaidade,
que da opinião
fêz necessidade.
70
Pelo Deos visivel,
que já conhecemos,
no amor do invisível
nos arrebatemos.
Obras de Fr. Agostinho da Grur 363»
71
Alma, que hoje teve
tão nova mercê,
pois toda se deve,
toda se lhe dê.
72
Lembrai-lhe senhora,
porque a não exclua,
que o sêr pecoadora
não tira sêr sua.
MOTE A NOSSA SENHORA
Antes de parir,
Parindo e parida
Virgem escolhida.
GLOSA.
Quem vos escolheo
Rainha dos Ceos,
foi o mesmo Deos,
que de vós nasceo.
de vós procedeo
vossa eterna vida.
Virgem escolhida.
Muito alcançastes,
muito merecestes,
porque muito amastes,
muito padecestes.
Virgem, que nos destes
o Autor da vida,
Virgem escolhida.
364 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Os vossos louvores
não podem ser ditos,
que são infinitos,
cada vêz maiores ;
destes fructo e flores,
déstes-nos a vida,
Virgem escolhida.
O Sol, as estrellas,
os lírios, as rosas,
sendo mais fermosas,
vós o sois mais qu'ellas.
Das cousas mais bellas
fostes escolhida
pêra nos dar vida.
Toda sois fermosa.
Virgem, minha amiga,
em amor antiga,
do amor mimosa;
doce, satidosa,
parindo e parida
de Deos escolhida.
MOTE.
Saudade minha,
quando vos veria?
GLOSA.
Este doce quando
vós o sabeis certo,
se longe, se perto,
se duro, se brando.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 365
vivo contemplando
no bem, que seria,
quando vos veria.
Desejo de vêr
um bem que desejo,
cousa em mim não vejo
pera poder ser.
sem vos merecer,
saudade minha,
quando vos veria ?
Quem fazer pudera
comvosco um partido,
que inda que perdido,
nunca vos perdera,
que allivio me dera
saber que vos tinha,
saudade minha.
Esta piedade
(ah! não ma negueis)
que não me priveis
da vossa amizade,
minha saíidade,
saudade minha,
quando vos veria ?
ENDECHAS.
I
Fiz conta comigo,
achei-me enganado,
porque tenho achado,
que não tenho amigo.
366 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Não foi culpa minha,
Foi minlia ventura
esperar brandura
de quem a não tinha.
3
Peitos deshumanos,
ingratos, esquivos, '
senti-vos nocivos
no fim de os meus annos.
4
Tenra mocidade,
quando te partiste,
então descobriste
tua vaidade.
5
Desertas montanhas,
se em vós me criara,
nunca me queixara
de magoas tamanhas.
6
Campos povoados,
povoados valles,
em vós nascem males,
sem ser semeados.
7
Quem nunca vos vira,
nunca em vós pascera,
nunca se vendera,
nunca se sentira !
Obras de Fr Agostinho da Cruz 867
Quam tarde se sente,
quam tarde se entende
quanto bem depende
de fugir da gente !
o ... 9
Solitária vida,
suave, ditosa,
vida saudosa,
vida só vivida !
OUTRAS.
I
Já não digo um dia,
nem menos uma hora;
um momento fora
sequer d'alcgria.
2
Em que respirara
de mágoas tamanhas,
tantas, tão estranhas,
antes que acabara.
3
Se cada anno perde '
sua folha a planta,
cada anno outra tanta
lhe nasce mais verde.
O no, que corre,
vai pêra tornar;
entra e sahe do mar,
assi nunca morre.
368 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
5
Mas onde se vio
que tornasse a vida,
depois de partida,
donde se partio ?
Obras de Fr Agostinho da Cruz 369
MOTE .
A Nuestra Senora.
Para bien os sea el parto,
Virgen hermosa y pura !
Para bien sea ! para bien !
GLOSA.
Bendita seais, senora,
pues creyendo concebistes !
y bendita'ansi ia hora
en la qual, Virgen, paristes
ai que el cielo y tierra adora.
Aca os alaben harto
como en el Empíreo cielo,
de los quales no me aparto,
mas diziendo en baxo buelo :
para bien os sea el parto l
24
370 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Como de Dios sois criada
sin mancilla original,
ansi quedastes sellada
en vuestro parto y qual
dei Angel annunciada.
Tal madre en la blancura
a tal hijo convenia,
quedando-vos criatura
pariendo le luz dei dia,
Virgen hermosa y pura /
Quedastes mas sin lesion
quel cristal dei sol herido,
puerta abierta de perdon,
dei yerro de Eva nacido
, y velo de Gedeon.
Pues de todos no aya quien
vuestro parto no alabe,
ya que estais como en Bellen,
aca diga y en esto acabe :
para bien sea ! para bien !
11.
Grandes nuevas ; Dios nacido,
por amor ;
a él 1 a él, pecador.
GLOSA.
Ya la tierra está hecha cielo,
Maria donzella y madre,
baxando angeles ai suelo,
el hombre subido de un buelo
a la derecha dei padre.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 371
Ya las culpas se perdonan,
ya se cobra el perdido,
los Archangeles entonan
dulce musica y pregonan :
grandes nuevas: Dios nacido!
Grandes nuevas : Dios nacido !
dilúvios de amor derrama*,
la madre de mar ha salido,
muestra el verbo ai hombre remido
quanto puede, sabe, y ama.
Pudo en un nino esconder-se,
supo unir suervo y sefíor,
tanto amó que vino hazer-se
hombre para deshazer-se
Por amor t
Triunpha con nueva gloria
la criatura dei criador:
el vencido es vencedor,
y ambos quedan con vitoria.
Por una oveja perdida
el soberano pastor
de las noventa se olvida;
y pues viene a dar-te vida,
a él ! a él, pecador !
m.
A la circunce^ion.
Oy sangran a nuestro Dios
y segun la sangre está,
sin duda que morerá.
372 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
GLOSA.
Dime, amor, sabes que heziste
en hazeres a Dios hombre ?
A mi a ser Dios subiste,
y Dios tener por renombre
mi forma que tu le diste.
Hoy verás en uno, dos;
criatura, el criador ;
por el no, solo por nos
y solo por su amor :
oi sangran a nuestro Dios.
Entre brutos nel invierno,
embuelto en viles panos,
mas Dios trino y uno eterno
nacio aer por nuestros danos,
y oi se sangra tan tierno.
Quien iàmas pues dudara
si el viene, morir de hecho
y que mas por nos hará
estando oi en tal estrecho,
_y segun la sangre está.
Mas ia tenia ordenado
su eterno y summo padre,
quel nino fuesse humanado
quedando Virgen la madre.
Mas aquel bien pagará,
que hizo Adan y Eva,
y ansi nos salvará
5' como Matheo lo prueva:
sin diida que morir á.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 373
OITAVAS 1.
A Christo no Horto.
Divino sol, en cuya imagen pura
le desean ver los angeles dei cielo,
y en cuyo nonnbre toda criatura
humilde se arrodilla por el suelo,
nuestra culpa eclipso vuestra hermosura
dessas gotas de sangre con el velo,
que amor vos ha humanado por tal arte,
que seendo Dios temeis por vuestra parte.
Este es un acto raro y sobrehumano,
en que mas vuestro amor aveis mostrado,
pues sin entrevenir agena mano
fue cuchillo el temor, mano el cuidado.
Vuestro mesmo dolor Dios soberano
os tiene por mis culpas desagotado :
vos por me libertar sangre sudais,
yo vivo dei sudor que derramais.
II.
A Christo acoutado.
De la planta dei pio a lo mas alto
de la cabeça, que el oido serena,
ni un pequeno lugar le quedo falto
de los vestigios de la injusta pena.
374 Obras de Fr, Agostinho da Cruz
Dió ai poder divino amor assalto
y quedo dei amor la mano Uena
de triunfos, y el Dios dei alto ciclo
Ueno de golpes dei cruel flagelo.
Prodígio enamorado Christo mio,
que por enriquecer la esposa ingrata
desnudo estais ai rigoroso frio,
roto el vestido de la humana plata.
Quanto baxastes el divino brio,
mas es ai amor la imagen grata :
y aun si ai padre os mostrais en esse estado,
pregonará que sois su hijo amado.
III.
A Christo coroado.
Salid, hijas dichosas de Sion,
con passo presto, com veloz corrida !
mirad de vuestro amado Salamon
la cabeça sagrada enriquecida.
Que esta es de su imortal coronacion
la fiesta a que ab eterno se combida,
como dulce y real preparatório
dei nuevo inseparable desposorio.
Pêro, mi buen Jesus, Salamon nuevo,
aunque tanto os preciais dessa corona,
quando los ojos a miraros muevo
con Uanto su dolor mi alma abona.
Aunque llorar no puedo quanto devo,
que es mejor la razon que me apassiona
mas, amado Jesus, mis culpas siento,
que son las que an dade esse tormento.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 375
IV.
A Christo com a cru\ nas costas.
Adonde, mi dulce Dios, cargado
de Adan com los vilissimos despojos,
que podreis de Michol ser despreciado,
segun humilde os miran nuestros ojos.
El choro celestial todo admirado
pasma de tanto amor en los anlojos,
viendo que ai peso de la cruz se humilla
aquel a quien el cielo se arrodilla.
Santo Isaac, que a los ombros inocentes
la leiía ansi llevais dei sacrifício,
porque para el remédio de las gentes,
iguala amor las fuerças ai servicio
Pues por modos hazeis tan excellentes
vuestra la pena, mio el beneficio,
una parte me dad de vuestra cruz,
porque pueda seguiros, buen Jesus !
V.
A Christo crucificado.
Serpiente de metal, que en el desierto
a los ojos dei mundo levantada
ai hombre vida dais, que estava muerto,
con el veneno de la sierpe airada.
376 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Felice, buen Jesus, ha sido cierto
la culpa en vuestros ombros descargada
que en esse mar de sangre pura
muere el tirano que matar procura.
Gorred pues, ovejuellas desgarradas,
a la voz dei pastor que tanto os ama,
que dexando sus penas olvidadas
por la vida os dar muriendo os llama.
Reved de las corrientes regaladas,
que por todas sus venas ais derrama ;
llegá-os, fatigado pueblo humano,
ai pecho dei divino pelicano.
MOTE.
l Como es possible, mi Dios,
que hecho nino esteis llorando,
estando angeles cantando
paz ai hombre, y gloria a vos ?
VOLTAS.
Van cantando que en Belen
hecho niíío sois nacido,
y que de una virgen parido
sois oi para nuestro bien.
Si es aquesto assi, mi Dios,
l como naceis oi llorando
estando angeles cantando
pa:{ ai hombre, y gloria a vós ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 877
Si a vuestro padre ofreceis
mi Dios, aquesta venida,
y aun el alma y la vida
y la sangre que teneis,
l como es possible, mi Dios,
que nazcais nino, llorando,
estando angeles cantando
pa:{ ai hombre^ y gloria a pós ?
DIALOGO ENTRE PECADOR E XRISTO.
Si, que más puede el amor.
P. i Que azeis, nino y senor,
nel suelo tan pobrezito ?
X. Crio-me para pastor.
P. i Tu pastor, Dios infinito ?
X. Si, que más puede el amor.
P. No eres tu dei cielo seííor
quen ansi te ha mudado?
X. Deseos de ser pastor.
P. i Dios ha de guardar ganado ?
X. Si, que más puede el amor.
P. Pues dime, nino e senor,
si es pastor i como es tu nombre ?
X. Jesu, nuestro Redemptor.
P. i Dios eterno ha de ser hombre ?
Si, que más puede el amor.
378
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
ROMANCE.
Ao Ser a/i CO Padre São Francisco.
l Quien será aquel cavallero,
que trae el Rei de la gloria
el cuerpo lleva herido,
Dizen que en el monte Alverne
en cinco partes dei cuerpo
Vino volando dei cielo
do estava el santo padre,
con lagrimas de sus ojos
viendo como el Rei dei cielo
por re[de]mir a los hombres
el criador por la criatura,
Dios eterno por el hombre
El alma se le salia
pensando como en la cruz
sin tener quien lo consuele
Qual lo peensa, tal lo vido
con alas de serafin
con um semblante amoroso
se abaxo ado el estava
y tanto lo apretó consigo
Tan lierna y tan dulcemente,
que ni el puede dexar a Christo
Tal es el laço de amor
con el sello de Dios vivo.
entre todos estremado,
de sus armas senalado ?
el coraçon trespassado,
un Seraphin lo ha llagado,
que son pies, manos y lado.
hazia aquel monte sagrado
en oracion enlevado ;
el campo liene regado,
quiso ser crucificado,
que contra el avian peccado
el senor por su vasallo,
mal herido y mal tratado,
de compassion de su amado
fue en todo atormentado
de todos desamparado,
en los aires levantado
en fuego todo abrasado
qual nadie, basta contarlo,
y en sus braços lo ha llevado,
que en el fico afigurado,
entre si se an abraçado
ni Christo queere dexarlo.
Con que los dos se an atado
su cuerpo fico sellado.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz
379
Las senales de su passion
por las renovar en el mundo,
imprimio-las Christo en el
Quien viere bien la pintura,
pues tal debuxo como este
sino fuera en San Francisco
en el las ha renovado :
que las tenia olvidado
como en siervo más privado,
bien verá quien la ha pmtado
ya mas se vio debuxado
por ser de Dios tam amado.
38o Obras de Fr. Agostinho da Cruz
MOTE
A' Cru:{.
Cruz, remédio de mis males,
ancha sois, pues cupe en vos
el gran pontifice Dios
con cinco mil cardenales !
GLOSA.
Dulcíssima cruz sagrada,
consvelo en la conversion,
cruz en quien hasta un ladron
halló, quando no esperada,
vida eterna y salvacion.
Cruz a quien Dios concedió
sus poderes celestiales,
cruz, que puedes quanto vales,
cruz, con quien Dios se medió
cru:{, remédio de mis males.
El [que no tiene medida
medió el cuerpo humanado
con vos por nuesiro peccado ^
quedastes por dar-nos vida
maior que el cuerpo sagrado.
Infalible conclusion
es, si os medis con Dios,
quedando iguales los dos,
que sois ancha, y con razon
ancha sois, pues cupe en vos.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 38 1
Quien durará, cruz divina,
vuestra grandeza excellente,
que no vea claramente
que el mismo Dios se os inclina
y baxa a la cruz la frente.
Es notable maravilla
mediros solos los dos,
y que os haja sola a vos
nel Calvário ara y silla
el gran pontífice Dios.
No quedo Dios satisfecho,
quando con vos se medió,
ser solo pêro llevó
el amor dentro en el pecho,
que en vos le crucifico.
Y por quedardes maior
demás de quedar[desj iguales
y dar vida a los mortales,
tuvistes Dios y el amor
con cinco mil cardenales.
ECOS.
I
l Quien me tiene sin honor ?
Amor!
l Quien me tiene sin sentido ?
Olvido!
•l Quien acaba mi esperança ?
Mudança !
Pues mi passion nó alcança
remédio por ningun modo,
oi me destruen de todo
Amor, olvido j" mudança.
382 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
l Quien me tiene sin alento ?
Tormento !
l Quien me tiene en cadena ?
La pena.
l Quien me tiene sin vigor ?
Dolor.
Pues me falta el favor
de quien pensava aiudar-me,
por fuerça aura de acabar-me
Tormento, pena f dolor.
^ Quien me quita el passatiempo?
El tiempo !
l Quien me procura estorvar ?
El lugar !
l Quien me dá moléstia alguna ?
Fortuna.
Si el resplandor de la luna
basta un nublado quitar,
mal puedo yo conquistar
Tiempo, lugar j fortuna.
4
l Quien me derruba ai profundo ?
El mundo !
l Quien me oprime como António ?
El demónio !
l Quien ay que nel alma me encarne?
La carne.
Acertado es que descarne
dei coraçon y dei pecho,
como gente sin provecho
ai mundo, demónio y carne.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 583
l Quien se saca de peccar ?
Penar !
l Quien de dar-se ai malbiver ?
Gemer !
^ Quien de seguir ai plazer ?
Arder !
Si en tal trance se á de ver
quien pretende cosa injusta,
malgusto tiene el que gusta
de penar, gemer j' arder.
l Que causa ha mundano gusto ?
Desgusto !
l Que ay debaxo de su manto ?
Llanto !
l Que dá pêra descansar ?
Pesar !
Luego no cy que confiar,
ni que tenerse esperança
de quien tan solo se alcança
desgusto, llanlo y pesar.
l Quien me bolverá a mi ser ?
No ver !
l Quien me podrá revivir ?
No oir !
l Quien me vendrá a remediar ?
Callar!
Si con esso he de cobrar
lo que he venido a perder,
forçoso me avrá de ser
no ver, no oir, y callar. ,
384 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
8
^ Quien podrá dar-me solaz?
La paz !
l Quien podrá dar-me consuelo ?
El cielo !
l Quien alegrar mi memoria ?
La gloria !
Si salgo con la vitoria,
que he pretendido alcançar,
por devisa he de sacar
la pa\, el cielo y la gloria.
l Quien dá descanso sin guerra ?
La tierra !
l Quien dá segura posada ?
El azada !
l Quien los peligros taja ?
La mortaja !
En vano luego trabaja
quien más procura acquerir [sic]
de lo que puede cobrar:
la tierra, a^ada, y mortaja.
10
l Quien da lo que no se vê ?
La fee !
l Quien lo más dudoso alcança
La esperança !
l Quien lleva a la eternidad ?
La caridad 1
Aquessa es liana verdad,
y ansi de oi mas quiero hazer
que esten siempre en mi poder
fee, esperança y caridad.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 385
MOTE.
En sola la miséria de mi vida
nego fortuna su comun mudança !
,; Adonde podré huir que sacudida
un rato sea de mi la grave carga ?
Por mil razones pienso que es cordura
renovar tanto el mal que me atormenta,
que a morir venga de tristeza pura.
GLOSA.
Triunpha el tiempo, y con mudable rueda
la fortuna se buelve en un instante •,
el que estava delante atrás se queda,
quando el que tropeio puso delante.
Ningun estado ay trisie, que no pueda
esperar un efeto semejante,
y veo esta esperança estar perdida
én sola la miséria de mi vida.
Qualquiera, triste, espera la ventura,
que sabe ser mudable y lisonjera,
que aora con los bienes se apressura
y con los danos luego firme espera.
Mas esperança en mi fuera locura
pues claramente el alma considera,
que en mi desdicha y mi desconfiança
nes:ó fortuna su comun mudança
No ay lugar que no ocupe el desengano,
y aunque quisiera huir, fuera impossible,
porque no me dexara el próprio dafío
35
386 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
ni a la suerte cruel fuera invesible,
que sacudida esta pêra mi dano,
l que dura ? i que tirana ? i y que terrible ?
; que peligrosa y fiera que ha salida ?
r adonde podre huir que sacudida ?
Ni tiempo ay, ni fortuna, ni mudança,
ni remédio a mi dano que es forçado,
ni me curan enganos de esperança
ni a sus o)os conozco mi cuidado ;
desenganada está mi confiança,
que un dia no avrá tambien llegado,
que devertida en pena que es tan larga
un rato sea de mi la grave carga.
En aspereza y mal tan duro y fuerte
no sé como la vida se detiene,
que ningun lance tiene ya la suerte,
que otro remédio [de] a mi desdicha.
Necedad es no dar-me própria muerte,
porque biviendo más no muera y pene^
pêro si mi querer ansi se apura
por mil ra^ones pienso que es cordura.
Si crece el merecer en sufrimiento
quando contra la suerte se pelea,
no vea io en mi mal ningun contento,
ni la causa se obligue ni me vea.
En sacrifício a amor doy mi tormento^
y para que más noble y puro sea
me satisfaze y agrada y contenta
renovar tanto el mal que me atormenta^
No muera yo de estar desenganado,
ni de ver que mudanças se han perdido,
ni de estar de mi bien desesperado
y mi tan firme amor puesto en olvido.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 387
Biva triste, penoso y desgraciado,
más triste que los tristes que lo an sido
hasta que tanto canse la ventura,
que a morir venga de triste\a pura.
CANCION A LA MUERTE.
Rompe los lazos de la prision fuerte,
anima venturosa, en la partida
con que saldrás de amargas confusiones
para la eiernidad e imortal vida,
por la estrada comun que llaman muerte
y es termino de enojos y passiones !
Dexarás de seguir las ilusiones
de los sentidos debiles, que enganan*,
y mientras te acompanan,
aunque baxos, grosseros, se inclina
tu parte más divina,
que va pedir socorro ai aposento
de los fantasmas dei entendimiento.
2
Desnuda quedarás de la librea,
que de color mortal humores vários
para hazer-te a su mano, te componen,
ni de elementos entre si contrários
ofenderá tus fuerças la pelea,
con que lo que an compuesto discomponen ;
l No miras que peligros se te oponen ?
l mientras cubierta desta vil corteza
escondes la nobleza,
que a tu criador te buelve semejante ?
Camina, y en un instante
388 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
te bailarás libre, en la gran pátria, fuera
de adonde el tiempo sigue su carrera !
3 /.
Quando veas dei cuerpo desasirte
no temas el morir, que tu no mueres :
sola la tierra en tierra se deshaze !
Como de mortal mano hechura no eres
espirito desnudo has de partir-te :
assi ai movedor primero aplaze *,
las obras son senal dei que las haze.
Mientras te tiene el cuerpo en sus cadenas,
cosas de cuerpo agenas
entendiendo y amando, tal te paras,
que entre tus obras declaras
poder estar sin cuerpo, y si esto puedes,
l quien podrá hazer-te que imortal no quedes?
4
No la triste vejez, no enfermedades,
no riesgos de la mar y de la tierra,
no batalla sangrienta y peligrosa •,
solo ai cuerpo estas cosas hazen guerra.
Tu que traes con él contrari_'dades,
mal puedes ser con el la misma cosa.
Manda la voluntad imperiosa,
han de servir los miembros obedientes;
son cosas diferentes,
uno que manda, el otro que obedece;
lo mismo es que acontece
entre el entendimiento y los sentidos
de parte a parte en votos divididos.
5
La continua ambicion, la mortal hambre
de hacer eterno el curso de la fama,
que con cien lenguas y cien alas vuela,
de esperanças urdir perpetua trama,
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 389
pensando que las parcas con su estambre
podran hacer incorrutible tela
bivir como soldado en sentinela,
lo porvenir buscando en las estrellas,
l que son sino centellas
de la inmortalidade ? con cuya lumbre
por natural costumbre
colunas, letras, arcos, mausoleos,
contra los anos dexas por irofeos.
6
Ni con esto se quieta el movimiento
de un deseo que corre a rienda suelta
trás cosas que de un soplo desvanecen,
aun no las halla bien quando dá vuelta
sin parar hasta el mas sublime assiento,
do las vidas sin muertes permanecen.
Otros más anchos campos se le ofrecen,
do sin trocar verano o invierno
se goza un prado eterno;
otras montarias, selvas, rios, fuentes,
cuyas limpias corrientes
hazen con que de todo allá se enfria
la ardiente sed de nuesira hidropesia.
7
Dexa este vaso que es de vil escoria,
todo de llanto, y de dolor compuesto,
hediondo, quebradizo, y corrutible,
quando buelvas despues ai mismo puesto
redundará de ti en el tal gloria,
que lo haga ágil, sotil, claro, impassible :
espectáculo aora tan horrible,
verásse en tu presencia todo hermoso,
un cuerpo glorioso,
libre dei yugo de mortal estado,
tanto mejor ornado
Bgo Obras de Fr Agostinho da Cruz
quanto eterna beldad es má;5 perfecta,
que estobra que a la muerte está sujeta.
8
En este dia, que piensas que es postrero,
será con más razon tu nacimiento !
Mira los passos bien por do veniste :
nueve vezes con próprio movimiento
renovado ha la luna su luzero ;
y en el maternal ventre te estuviste \
desta prision a ver la luz saliste,
mas no clara dei todo, que ha quedado
enbuelta en un nublado,
y aun assi no puedes bien gozalla,
que son para miralla
dos ventanas tus ojos, cuyas puertas
aora estan cerradas, aora abiertas.
9 ,
Es todo quanto miras frágil cosa,
débil este aire, y su luz reparte
descansando una noche a cada dia.
l Que es lo que te acobarda a no passar-te
para la otra region mas clara y hermosa
do habita eternamente el alegria ?
Oh quien allá se viera ! y que seria
a una alma ver que en todo lo passado
a escuras ha andado,
quando juzgue por burla y por mentira
quanto aora la admira,
ni tema escuridad, ni sienta pena,
toda de luz divina y gloria Uena.
10
Renacerás aora, y este segundo
nacimiento te lleva a mejor vida;
tambien en el primero atada estavas
Obras de Fr. Agostinho da Cruz • Sgi
desata-te otra vez; que entretenida
en la carcel estás dei cuerpo inmundo
con el oficio vil de tus esclavas.
Verás que sin respeto te quexavas
de las oras que buelan con presteza •,
dio-te naturaleza
esta vida, ella misma te procura
otra con gran usura.
Agravias la en llorar, hombre siente
como hiziste ai nacer, nino inocente.
II
Vé-te a tu pátria, que no será qualquiera
de los estrechos limites dei suelo,
esta o aquclla region, cindad, o villa ;
mas será todo el estrellado cielo
sobre los fuertes axes de la esfera,
donde el supremo juez tiene su silla.
Oh siempre nueva y antiga maravilla 1
montes eternos cuyo gran deseo
por las sombras que veo
me llevará seguro entre esquadrones
de barbaras naceones,
aunque vea procurar ai duro Geta
en mi desnudo pecho su saeta.
12
Conviene reposar en breve sueno ,
han sido trabajosas las jornadas
trás quien se halla descanso sin medida.
Adiós, mis prendas ; fuesies-me prestadas
por poço tiempo \ pide-vos el dueno ;
no me importa saber por quien vos pida,
o vos venga a buscar mano homicida
o traicion, o dolência, o duro caso.
Basta, que llega el plazo;
muchos caminos van a este camino,
Ya ya, me determino :
392 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
lo mismo es ir sorviendo gota y gota,
que de un trago, pues todo ai fin se agota.
i3
Tocan a recoger : en paz se vaya
la alma a eterno reposo.
^ Quien hay que en un naufrágio temeroso
no quiera ir-se a la playa ?
Si esto es nuevo bivir, i que más pretendo ?
En tus manos, oh muerte, me encomiendo.
MOTE.
Las tristes lagrimas mias
en piedra hazen senal,
y en vos nunca, por mi mal.
GLOSA.
Los rios naturalmente
corren derecho a la mar,
y su ligera corriente
en saiiendo de la fuente
se inclina siempre a baxar.
Al contrario van comendo
de alia siempre subindo
a vos por estranas vias,
y en bivas Uamas ardiendo
las tristes lagrimas mias.
Y como el agua subir
no puede sin otra fuerça,
el alma triste ai salir
Obras de Fr. Agostinao da Cruz SgS
le representa do á de ir
y con esto la esfuerça.
Mas no tanto que se atrevan
a fiar de si que os muevan,
aunque su poder es tal,
que dei impetu que llevan
en piedras ha\en serial.
Y no deve de espantar
tal estremo a quien provo,
que fuerça tiene el llorar*,
mas solo no os ablanda
lo que a ellas ablandó.
Son lagrimas sin ventura
a quien razon assegura
duelo de anciã tan mortal
hasta en una pena dura,
^ en vos nunca, por mi mal.
MOTE.
Lagrimas que no pudieron
vuestra dureza ablandar,
yo las bolveré a la mar,
pues de la mar salieron.
GLOSA.
Des que el pecho abraso
el rayo de vuestros ojos,
el amor que lo encendió
de tus cenizas salió
con más fuerça y más despojos.
394 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Y SUS intentos crueles
el alma abrasar quisieron,
mas dos fontes se corrieron
con tantas y tan fieles
lagrimas que no pudteron.
Aunque el alma socorrida
pudo contrastar la llama,
siendo de amor encendida
no podrá escapar la vida,
que enfin no bive quien ama !
Y ansi de vuestro sosiego
ya no vengo a no me espantar,
que assi ame y nos haze amar
l como podran agua y fuego
viieslra dureza ablandav?
Ondas mis lagrimas son,
que de la mar se levantan,
y anegando el coraçon
luego en vuestra condicion,
como en rocha le quebrantan.
Ya que la vista de mi fee
aguas me hazen acabar,
do pense de me salvar,
pues de la mar las saque,
yo las bolveré a la mar.
Siendo cosa natural,
que quien muere restituya
viendosse en un trance tal
buelvo ai sofrimiento el mal,
la vida ai amor que es suya.
Mis gutos a las mudanças,
que siempre los persiguieron,
mis anciãs ado naçieron,
a la mar las esperanças
puesque de la mar salieron !
Obras de Fr. Agostinho da Cruz SqS
MOTE
A El Rei Phelippe o Segundo.
l Di, contento, adonde estás ?
que no [te] tiene ninguno :
quien piensa tener alguno
no sabe por donde vas !
GLOSA.
Lo que se deve entender,
fortuna, de tu caudal,
es que siendo temporal,
no puedes satisfazer
ai alma que es inmortal.
Tu me diste y me vas dando
honra, estado, reino y mando;
y es tan poço quanto das,
que digo de quando en quando*,
^ di, contento, adonde estás ?
No estás entre los favores
deste mundo y sus flores,
ni en el fin de sus de.seos,
ni en riquezas y amores,
ni en vitorias y trofeos.
En fin, no te halla alguno,
que todos dizen de no.
Y entienda el mundo importuno,
que pues no te tengo yo,
que no te te tiene ninguno.
396 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Buscar contento en la tierra
es buscar pena en el cielo,
y en el abismo consuelo,
tranquilidad en la guerra
y calor dentro en yelo.
Dentro ni fuera de Hespana
no le ay, porque acompana
en su trono ai trino y uno ;
y fuera de aqui se engana
quien piensa íener alguno.
Quien te busca antre contentos,
contento, tenga entendido,
que te perde y va perdido,
porque entre los descontentos
sueles estar escondido^
Y si Dios, fuera de ti,
padecio penas por mi,
para entrar onde estas,
el que no va por aqui
no sabe por donde vas.
MOTE.
En ningun médio puedo sustentar[me],
estando los estremos tan Uegados,
que me ayais de valer ó aborrecer.
GLOSA.
El destino cruel que me detiene
en dura servidumbre tantos anos,
por do viene a olvidar lo que conviene
ai alma que escogió bivir de enganos
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 897
Porqne menos me entienda y más no pene,
te escondi a ti mi fee y a ti mis danos
de suerte que se llegó a entender me
en ningun médio puedo susíeníar-me.
Voyme trás mi cuidado a rienda suelta
sin ver de ado parti, ni ado camino;
el cielo da una buelta y otra buelta
y siempre me alia en quexa de contino.
La razon y el querer trago en rebuelta
lo que no puede ser, esso imagino,
l que alivio me dareis, mis fieros hados
estando los estremas tan llegados?
Mostra-me un solo bien en tal estado
si tristes pueden ver lo que desean,
que sepan quien me lleva el deseado
fin daquella prision que otros grangean.
Quiçá vendré moriendo a ser llorado
de los ojos que hazeis que no me vean
yescusaré de a vos ofrecer-me
que me ayais de valer o aborrecer.
MOTE.
Este mi mal tan estrano,
si os viesse, aunque mayor,
nunca seria dolor
por mucho que fuesse el dano.
GLOSA.
Pudieron médios injustos
quitar su sol a mis ojos,
SgS Obras de Fr. Agostinho da Cruz
dando-me estranos enojos,
como naturales gusios,
llueven rayos de disgustos.
A su centro llega el dano
y aun no me desengano
si el bien puede hazer-me mal,
que ha quedado natural
este mi mal tan estrano.
Si mejorara mi suerte
aun de perdidas passadas
como en llagas apretadas
se hiziera el dolor más fuerte
acercarasse mi muerte.
Pêro todo templa amor,
y si creciera el dolor
de haver dejado de os ver,
menor fuera el parecer
si os viesse, aunque mayor.
Pudiera cobrar tal brio
el alma en vuestra presencia
que quitara la potencia
dei dolor ai alvedrio
un licito desvario.
Do razon fuera peor
hallaria tal sabor
en el mal de que muriera
que por mucho que doliera
nunca seria dolor.
Ay mis locos pensamientos !
que de bienes invisibles
hazer provechos possibles,
son vanos atrevimientos,
vayan, pêro, mis intentos.
Obras de Fr Agostinho da Cruz Sgç
Ado los lleva este engano
si llegasse un bien tamano,
de mil dificiles hechos
seria mucho el provecho
por mucho que fuesse el dano!
MOTE.
j Pluguiera a vos, mi Dios, que no nasciera,
o ya que nasci, nunca ai mundo amara,
o ya que amé, solo en vos me empleara,
Senor, que mi amor me agradeciera !
GLOSA.
Estoy de lepra fea tan llagado,
que hasta lo interior tengo podrido,
que ya no siento aver a Dios dexado,
ni menos el porque le he ofendido.
Sin amor mi coraçon tengo yelado,
la alma sin luz, el pecho endurecido ;
y pues fuy para vos quien no debiera,
} pluguiera a vos, mi Dios, que no nasciera t
Quien me robô, senor, la libertad
la qual en me formando me dotaste ?
l que es de mi entendimiento y voluntad
y mi memoria con que mi alma ornaste ?
i Dexé-os, via y luz, vida y verdad,
con que dexar ai mundo me ensenaste !
Ah 1 quien no nasciera I o ya acabara 1
/ o ya que nasci nunca ai mundo amara l
400 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Dexé-me enganar de mil enganos,
(que como cego cegue) y vanidades
sin nunca echar de ver los desenganos
dei mundo y sus mentiras y falsidades,
y despues que gaste mis largos anos
en gustos vanos, plazeres, novedades
disse : j ah quien, mi Dios, solo en vos, los gastara
o ya que amé, solo en vos me empleara !
Si vos para servir-me todo hizistes
y todo a mi para vos solo amaros
para que ame ai mundo permitistes
o no me acabastes antes que dexaros,
que [no] nos da o haze el mundo sino tristes
y que bienes no nos dais solo en daros.
j Ah quien, mi Dios, con vos ya allá se viera
Seííor, que mi amor me agradeciera ! *
MOTE.
Passo la vida solo en contemplar-te,
y en la contemplaçion me desespero,
no podiendo hazer más que desearte.
GLOSA..
El coraçon más preso, el pensamiento
más suelto buela a la region suprema
y sin interromper-se de su intento
en Ia esphera de amor sus alas quema.
Ansi queda más firme y su aposento
haze en ti, mi senora, hasta la estrema
hora, y pues en ninguno ay olvidar-se,
passo la vida solo en coníemplar-te.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 401
Contemplo en la ocasion de mis enojos,
y como porfiados permanecen
ei contrario en el bien, que a un voltar de ojos
sus glorias van huyendo y desvanecen.
Todo son fantasias, todo antojos,
y si apretallos quiero, no parecen :
contemplo que son algo y temo y espero,
y en la contemplacion me desespero.
Perdida la esperança y quasi muerto
en alto mar me quedo en soledad ;
si a salir pruevo el camino incierto
si las ondas contrasto, es vanidad.
Impedido dei todo veo el puerto
y vencida ya mas la tempesiad
de lexos con el faro oso mirarte,
no pudiendo ha\er mas que desearte.
MOTE.
No pudieron más subir
mis pensamientos, mi Dios;
y ansi solo estan en vos.
GLOSA.
Quando, mi Dios y senor,
veo que tanto me amais,
que aun despues de muerto echais
dei pecho rios de amor
con que mis erros lavais,
No hay razones ni desculpas
con que mi verguença huir,
pues que por [los] redemir
36
402 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
tanto os baxaron mis culpas
no pudieron más subir.
Y ya que conozco que soy
quien os ha crucificado
doy me a vos por el pecado,
aunque muy poço os doy,
pues doy lo que me haveis dado.
Mas si dei precio las sobras
muriendo pagais por nos,
crucificar quiero en vos
mis palabras y mis obras,
mis pensamientos, mi Dios.
Justo es que aqui me dessangre
en los clavos que os rompieron,
que si en vos sangre vertieron
dar [debo] dei alma la sangre
a quien ellos vida dieron.
Todo el rigor se asserena
viendo-os mis ojos, mi Dios,
que en mi ven ia pena atroz
y en vos ya paga la pena
y ansi solo estan^ en vos.
OUTRA GLOSA AO MESMO MOTE.
En aquella eterna luz,
que dende la empiria cumbre
a todo el hombre da lumbre
y haze occidente en la cruz,
porque hasta el infierno alumbre,
Mi viejas alas ardieron
para de otras me vestir,
con que solo ai cielo he de ir,
mas si Dios en la cruz vieron,
non pudieron más subir.
Obras de Fr Agostinho da Cruz 4o3
Fueron de ícaro mis alas
ai sol dei divino amor,
y en el mar de mi dolor
se anegaron plumas malas
porque volaste mejor
Que como en si Uevan dentro
el fuego de aquella voz,
que ai bien llama a todos nos,
solo en vos allan su centro,
mis pensamieníos, mi Dios.
Corre el fuego a su region,
y el aiie a la sua en buelo,
la agua ai mar, la piedra ai suelo,
y a Dios las almas, pues son
partes dei todo dei cielo.
Gloria inmensa allan alli
con vosco estando, mi Dios,
dexaros es caso atroz,
pues sin vos no estan en si,
y ansi solo estan en vos.
404 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
SONETO I.
A Assunção de Nossa Senhora.
En turquesadas nubes y celajes
estan en los alcazares empirios,
con blancas achas y [con] blancos cirios,
dei sacro Dios los soberanos pajés.
Humean de mil suertes y linajes
entre amaranto y plateados lirios
inciensos índios y pevetes sirios
sobre alhombras de lazos y follajes.
Por manto el sol, la luna por chapines
llegó la virgen a la empírea sala :
visita que esperava el cielo tanto.
Echaronse a sus pies los seraphines,
cantaronle los Angeles la gala,
y asentóla a su lado el verbo santo.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 4o5
II.
Ao Advento de Chrisio.
l De do venis, Dios alto ? — dei altura.
l Que motivo traeis ? — de enamorado.
l Y que librea es essa ? — de encarnado.
l Y quien os la vestió ? — la Virgen pura.
l Porque venis criador ? — por la criatura.
l Y que quereis por esso ? — ser amado.
l De quien reçebis fuerça ? — de mi grado.
l Por quê ? — por dar reparo a mi echura.
l Que tal bailais el alma ? — endurecida.
l Pues porque le hazeis bien ? — porque es mi officio.
l Que tanto es vuestro amor ? — es sin medida.
l Con que os lo pagaran ? — con buen servicio.
l Que más haran por vós ? — dar-me la vida,
Pues yo le di la mia en sacrifício.
III.
A Christo no Horto.
* Dezid, senor, si no teniades animo
para bever el cálix que dixistes :
l por que causa a beverlo os oíFrecistes
con pecho fuerte y coraçon magnânimo ?
4o6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Y si entonces mostrastes viril animo,
l porque tan presto os cnflaqueçistes ?
Acabad Ia hazanha que emprendistes,
que no es de Dios mostrar-se pusilânime. •
t — Pecador, mi flaqueza no te assombre,
que quando prometi la vida dar-te,
como era solo Dios, nada temia.
Mas como soy agora Dios y hombre,
teme la carne que es de vuestra parte,
el spirito no, que es de la mia ».
IV.
A Chrisío crucificado.
Este largo martirio de la vida,
la fee sin ella, y la esperança muerta,
el alma recordada y tan despierta,
ai dano y ai remédio tan dormida ;
La voluntad ai gusto tan rendida,
entrar el mal, cerrar trás si la puerta
con diligencia y gana descubierta,
que el bien no halle entrada, ni saida.
Ser los alívios mas sangrientos laços,
y riendas livres de los desconciertos,
efectos son, Senor, de mis pecados,
l De que me an de livrar esses tus braços,
que para recibir-me estan abiertos,
y por no castigar-me estan clavados ?
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 407
V.
Ao Menino no presépio.
Si sois dei cielo gloria y alegria
dezi-me, nino i porque estais llorando ?
Si dais luz ai sol que está alumbrando,
l porque naceis en noche escura y fria ?
Si sois dei Padre la sabiduria
; porque ansi chiquito estais callando ?
Si Angeles de vos estan temblando
l porque temblais, dezid vos, gloria mia ?
Si sin principio sois, i como nacido ?
si criador, ; como [sois] criatura ?
si quedais en el cielo, i aqui como venido ?
Estremos son de amor, que a mas altura
ha os llevado Dios, porque ha querido
nacer de una madre virgen y pura.
VI.
Ao mesmo.
Si sois tan grande Dios, imenso, eterno,
que apenas en el cielo aveis cabido
^como naceis chiquito, assi despido,
llorando ai frio en médio dei invierno ?
4o8 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Del Padre aquel amor immenso y tierno
ansi lo ha procurado y ansi querido
para que pague (sin lo aver devido)
de Adan la culpa y pena dei infierno.
Como leon se estava allá en el cielo,
mas amor dei hombre le ha forçado,
que nazca hècho cordero oi en el suelo.
Porque dei suelo el hombre llevantado
con las alas de amor, llegue de un buelo
ai cielo donde ha oi por el baxado.
VII.
A São Francisco.
Si acaso, gran Francisco, yo os aliara
sin habito y cordon, desnudo os viera,
por Dios crucificado os conociera,
y como ai mismo Dios os adorara.
Y si apar de vos Dios se aiuntara
desnudo como vos, me detuviera,
ni a vos, mirando a Dios, por Dios tuviera,
ni a Dios luego por Dios le declarara !
Viera qual Dios Francisco esclarecido:
Uagas, gloria, humildad, un Dios sincero,
que, ai parecer, con Dios no ai diíFerencia.
Pêro si os viera luego con vestido,
llamara-le a Dios, Dios verdadero,
Y a vos Francisco, Dios en aparência.
Obras de Fr. Agostinao da Cruz 409
VIII.
Ao mesmo.
De vos a Dios, Francisco, el pensamiento
no pone mas de aquella differencia,
que en Dios la magestad y la potencia,
y en vos obedecer es mandamiento.
Las llagas tuvo Dios, mas fue un momento,
y vos tuvistes, santo, tal paciência,
que lo que mato ai Christo sin clemência,
os da a vos la vida sin tormento.
Que cosa es ser [de] Dios vuestra herida,
y las de Dios de hombre ? y fue de suerte,
que estais con las de Dios mui mas ufano,
Pues quedais con vitoria y con la vida,
y Dios, aunque en vitoria, fue con muerte
con ser Dios y vos, Dios, Francisco humano.
IX.
A* ordem de São Francisco.
Ochenta y seis províncias y conventos,
dos mil e siete cientos computados,
cinco en Hierusalem, siete fundados
entre Turcos y Tártaros sangrientos.
410 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Mártires veintc y seis y quatrocientos,
y santos veinte y três canonizados ;
de quinientos que estan beatificados
duran eternamente los assientos.
Quatro papas, quarenta cardenales,
quinientas mitras, y seiscientas plumas,
Reis veinte y cinco con stirpe honrosa.
Estos tiene por ramos inmortales
con diez hijos de reis y otros Numas
de Francisco la Orden milagrosa.
X.
A Santa Maria Magdalena.
Perdido el nombre, dei peccado esclava,
esclava de Dios se hizo de limpfije^a,
limpie'{a abraça y dexa la torpe\a,
torpe'{a juzga ai mundo y lo que amava.
Amava ai mundo que la despertava,
despenava el sentido en su bruíe:{a,
bruteza le ofuscava la noble^a,
nobleia oi le declara quanto errava.
Errava Magdalena, el blanco errando,
errando acierta y bive de amor llena,
llena de un fuego, en otro se resuelve ;
Resuelvesse en amar, y ama llorando,
llorando lava, y mata culpa y pena ;
pena por ella el cielo, a quien se buelve.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 411
XI.
Aos Moradores de Arrábida.
Alta sierra [de] riscos encumbrados,
rudos arboles, valles cavernosos,
desiertos solitários y espantosos,
mar [de] donde salis, densos nublados ;
Spiritos que habitais tan apartados
y daquel bien tan deseosos,
dexando atrás los casos enganosos,
seguros alevantais vuestros cuidados.
Aunque fueran mui largos vuestros anos
y los bienes dei mundo mui seguros,
más valen por aqui los desenganos.
Dichosos que temiendo los futuros
y con discursos livres caminando
viven contentos en penascos duros.
xn.
El canto de las aves en la sierra
alegra el pensamiento y el oido;
el olor de las flores desparcido
muestra el herraoso cielo aca en Ia tierra;
412 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Las fieras que el salvaje bosque encierra
causan plazer ai animo afligido ;
la fuente despenada con ruido
el estivo calor templa y destierra ;
La yerva que la verde selva cria
y el arco es a las ninfas agradable,
dulce el fermoso Tajo en el estio.
A mi solo el morir me agradaria,
pues sufro un mal que nunca hizo mudable
ave, flor, fiera, fuente, yerva, arco o rio.
XIII.
No me persigas más, vana esperança,
que apesar dei deseo y sus enganos
me an llegado a términos mis danos,
que ni temo, ni espero otra mudança.
Ya bivo sin temor ni confiança,
fruto de mis tan mal gastados anos,
y ansi tengo los bienes por estranos,
que aun me aflige dellos la lembrança.
En este miserable estado puesto,
l que mal puede venir que el alma estrafie
estando el pecho a males tan dispuesto ?
Tiempo, fortuna, amor se desengane,
que contra ellos tome por presupuesto,
que quien no espera bien, no ay mal que dane.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 41 3
XIV.
A honrra do mundo.
i Que ciega y general idolatria !
j que voluntária muerte y mortal vida !
i que reina tan tirana y tan servida !
i que áspide dulce y ponzonosa arpia !
j Que íiero encanto y loca frenesia !
i que senda tan estrecha y sin salida !
i que lei tan dura y tan obedecida !
j que injusta y mal fundada monarquia !
; Que bellicosa paz ! \ que civil guerra !
j que nave sin timon lexos dei puerto !
i que infernal fúria contrapuesta ai cielo !
i Que berdugo dei alma ado se encierra
que sepulcro de bivos siempre abierto
es la que Uaman honra acá en el suelo.
XV.
Em vitupério da pobreia.
Hambrienta, rota, inquieta, disgustada,
pálida, débil, triste, congoxosa,
cortês, humilde, inútil, temerosa,
mansa, cruel y mal ocasionada.
414 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
De todo el mundo con razon odiada,
de quantas cosas mira descosa,
en sujetos honrados vergonçosa,
y en los que no lo son desvergonçada.
Sin voto, sin razon, sola, afligida,
noche de la virtud y entendimiento,
ruina dei valor y de la nobleza.
Riguroso verdugo de la vida,
y de las almas infernal tormento,
eres, infame y misera pobreza.
XVI.
Es la esperança un mal bien reputado,
que promete los biénes de que priva;
es un ânsia mortal o muerte biva,
augmento dei deseo y dei cuidado.
Es un desesperar tan rebocado,
que quiere que por gloria se reciba;
CS prision de que el gusto se captiva
por venir de se ver desenganado.
Es mortal enemiga a sus efectos ;
bive de no complir lo prometido ;
mucre en los estados mas perfectos.
E« hechizo eficaz para el sentido,
pues, compreendendo en si tantos defectos,
no bive el que está delia dividido.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 41 5
XVII.
Si ai curso mas veloz tan solo atenden
essas ruedas fatales de las vidas,
si se suelen levantar trás sus caidas
con igualdad los grados que compreenden.
Sin duda son las almas que suspenden
por danoso milagro detenidas
e nel profundo mar, do siempre asidas
mientras más sacrifican, más te offenden.
Y si indica essa mano oras dudosas
muestra en su variedad distintamente,
que es de reloj comun a toda altura,
Y que ay clima en que se oyen las dichosas
y como en esta region perpetuamente
las perezosas, de mi desventura.
XVIII.
Essas ruedas de amor que no suspenden
varias tormentas que causando ignoras,
si tiempo indican con la mano y oras,
oras fatales de tu mano penden.
4i6 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
De cuya voluntad no se defenden,
las penas que renovas y mejoras,
atenta solo ai tiempo que empeoras
a las que más rendidas mas te oftenden.
Inexorable parca de las vidas
con beneficio sin los hilos cortas,
que estan en lo profundo de tus ruedas
Y con piedosas manos homicidas
oras, vidas y tormento junto cortas,
si con ultimo mal vingada quedas.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 417
EGLOGA.
Mincio, e Limabeu.
D. S. A. G. D. f
Do Senhor Agostinho da Cruz.
Mincio.
Soias de cantar onde pastavas,
pastar onde teus versos escrevias,
escrever onde mais plantas achavas.
Da serra pêra o campo, se descias,
se sobias, do campo pêra a serra,
as saudades de ambos repetias.
Por mais que te fizesse cruel guerra
não te pode tirar fortuna imiga
cantar, tanger, folgar em qualquer terra.
Não sei que de ti cuide nem que diga,
que tu não folgas já, tanges, nem cantas,
cousas com que qualquer a dor mitiga..
27
41 8 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Limabeu.
Assaz pouco tu sentes, pois te espantas
de não me ver folgar, cantar, tanger,
nem versos escrever nas verdes plantas.
Acabou de secar, de emmudecer
agora a pena ; já não determino
senão de suspirar e de gemer.
Se foi ou se não foi meu canto dino
dos ouvidos de quem melhor sentia
não sei ; mas o que sei, que foi mofino.
Saber quão pouco vale a poesia
por falta de haver quem docemente
sinta a sua suave melodia.
Entre muitos e muitas i qual prudente ?
^ qual avisado, brando e qual saudoso ?
l e qual julga melhor e melhor sente ?
O campo que parece mais fermoso
nos olhos de um pastor, fica mais feio
nos daquelle que foi mais cobiçoso.
Uns quando de boninas o vem cheio
lhes parece melhor, e outros quando
de cevada, de milho, ou de centeio.
Assi se vão desejos variando
sem poder concordar a natureza
de qual duro nasceu, qual nasce brando.
Tempo foi que causava em mi tristeza
poder imaginar de um peito humano,
que pagasse brandura com dureza.
Obras de Fr Agostinho da Cruz 419
Agora, inda que seja com meu dano
alegro-me com ver que me aproveito
deste tão lastimoso desengano,
Seja quão duro for um cruel peito,
ingrato, falso e fero, já não temo,
que me faça mais mal do que tem feito.
Porque, depois que dei num doce estremo,
se não vejo gemer o meu amigo
do meu próprio mal, do seu não gemo ;
Logra-se do seu gosto só comsigo
e quando lhe sucede algum desgosto
então vem consolar-se só comigo.
Se no seu mal me quer achar disposto
para me entristecer ^ por que rezão
não quer que no seu bem tenha algum gosto ?
Mincio.
Não vos ouçam tratar esta questão
baixa entre pastores apostados
a buscar a divina perfeição,
Que quando suceder ser afrontados
dos amigos que mais temos servido,
então devemos ser mais consolados.
Foi nosso Deos por nós oferecido
á cruz, e por seus mesmos matadores
os principaes, de seu povo escolhido.
A nós, que da cruz sua professores
somos, não nos convém qneixar de nada,
mas sofrer como seus imitadores.
420 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
Pouco pode durar esta jornada :
amar nossos imigos nos ensina
a correr pêra o ceo por limpa estrada,
Que nunca nos mandara a lei divina
cousa tão trabalhosa, se não fora
quanto no seu amor mais se refina.
Dar-te-hei outra rezão ainda, afora
esta, com que confesso ser verdade
de quem na sorte sua se melhora.
Pois quem guardou pureza na amizade
não pode padecer remordimento,
como qualquer que trata falsidade.
Limabeu.
Não quero tratar mais deste argumento,
que porfiar bem sei que desconcerta
quem concertado traz seu pensamento.
Mincio.
l Pudeste nunca achar cousa mais certa
pêra se concertar que pena e lira,
na terra povoada ou na deserta ?
Limabeu.
Digo que já comtigo consentira
em cantar e tanger ca desta banda,
se Laura ou se Liana o permitira,
Que nunca pena ou lira senti branda,
que dirigir deixasse a seus ouvidos
como seu puro amor me obriga e manda ;
Que versos bem cantados, bem tangidos,
brandos, de grave estilo, altos conceitos,
estimados não são, se não sentidos.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 421
Pois não penetram versos outros peitos,
cantemos destes dois cuja ventura
num so quis converter taes dois sujeitos.
Convida-nos a fonte que murmura,
o sol que ja no mar se vai metendo,
variando no ceo nova pintura.
O gado que no campo anda pascendo
também se alegra com o nosso canto
se não se for comigo, entristecendo,
que, emfim, ou cantarás, ou farei pranto.
Mincio.
O bosque que se veste de verdura,
o campo que se cobre de mil cores,
de boninas, de rosas, de outras flores,
variando na cor a fermosura,
a musica de dois competidores
suaves rouxinoes entre a espessura
nunca nos olhos meus, nos meus ouvidos
serão dois corações num convertidos.
Limabeu.
O bosque acompanhado de verdura,
o campo variado de mil cores,
coberto de mil rosas, de mil flores,
acrescentando graça á fermosura,
suaves rouxinoes competidores
tardes, noites, manhãs entre a espessura,
nunca a meus olhos, nunca a meus ouvidos
poderão alegrar entristecidos.
Adindo.
Do nosso claro Lima, saudoso
o curso quando vi mais encontrado
4*2 Obras de Fr. Agostinho da Cruz
por cima de penedos apressado
por baixo de arvoredos vagaroso,
donde vinha a beber o manso gado,
nos olhos do pastor mais gracioso
nunca me pareceu como parece
amor que de dois peitos num florece.
Limabeu.
Do nosso Lima claro e saudoso
quando seu curso vi mais encontrado,
por cima de alvos seixos apressado,
por baixo dos carvalhos vagaroso,
donde saltando vinha o manso gado
á vista do pastor mais gracioso
não me pareceu nunca o que parece
quando meu coração mais se entristece.
Mincio.
Aqueles corações que desejava
de ver em puro amor mais conformados,
vi com taes excessos confirmados,
quaes nunca poder ver imaginava
seus justos pensamentos, seus cuidados,
seus desejos, que o ceo encaminhava,
vejo gozar a mor conformidade
que amor nesta criou, ou noutra idade.
Limabou.
Os tristes corações que desejava
de ver na mor tristeza conformados,
nunca cuidei de ver tão confirmados
quanto deste meu triste imaginava;
meus tristes pensamentos, mal cuidados
que pêra maior mal encaminhava
a tristeza, sem tal conformidade
qual nesta, se não viu, nem noutra idade.
Obras de Fr. Agostinho da Cruz 423
Mincio.
Tudo quanto na serra ver podia
de quanto criar pode a natureza,
ou no duro rochedo de firmeza
ou nas aguas da fonte que corria,
em tudo imaginei sempre certeza
de nunca se mudar tanta alegria
suave, doce, branda, clara e pura
pêra da terra ao ceo voar segura.
Limabeu.
Quanto no monte ou serra ver podia,
tudo quanto ali criou a natureza,
ora fosse rochedo com firme?a,
[ora fosse agua clara que corria],
tudo me confirmou na mor certeza
de nunca já poder ter alegria
tão cativo me tem tristeza pura,
<que de me libertar está segura.
Mincio.
Deixemos de cantar, pois que não deixas
de te queixar de Lauro nem de Liana !
Um só te desterrou, d'ambos te queixas !
Faltará noutra serra outra choupana ?
Falta donde pescar peixes á cana ?
•donde possas cantar como naquela ?
Limabeu.
Falta ! pois falta foi de minha estrela
não me poder queixar sem ela deles
e pois não pode ser dele sem ela
muitos anos viva ela e viva ele !
FIM
NOTAS E ESCLARECIMENTOS
Pg. 4-5. O son. VI « A S. João Baptista » encon-
tra-se a fl. iSg do Cod Portuense, noutro logar descrito
pela Sr.» D. Carolina Michaèlis, sem variantes dignas de
nota. O último v. do 2." terceto, aspado, é tradução
daquele conhecido passo do Ev. de S. Mateus XI, 11:
« Amen dico vobis, non surrexit inter natos mulierum
major Joanne Baptista. . . ». Impregnado da leitura da
Biblia sam frequentes os passos em que Fr. Agostinho
da Cruz se inspirou já aproveitando uma ou outra pas-
sagem quase literalmente e já, e é naturalmente o maior
número, procurando apenas o seu significado místico.
Em qualquer dos casos é do próprio coração que tudo
mana, instintivamente, sem o mmimo esforço ou o vis-
lumbre de preocupação erudita ou literária.
Pg. 4. Este soneto de arrependimento dedicado « A
Nossa Senhora da Arrábida » é interessante. O Poeta
reconhece a sua fraqueza. Volta outra vej, agora mais
resoluto, mais decidido. Vai prosseguir de novo a sua
via espiritual cheio dos desenganos colhidos no mundo.
O Cod. Portuense apresenta uma variante notável no
último terceto :
Porque quanto mais longe dos humanos
Tanto, Virgem, sereis melhor servida
E servida, louvada em verso e prosa.
4^6 Notas e Esclarecimentos
O Cod. Conimbricense, n." 400, dá a versão impressa,
que nos parece por todas as razõis preferível.
Pg. 6, son. VIII. O último v. do 2° terceto alude à
passagem do Ev. de S. João, xix, 26 : « Cum vidisset
ergo Jesus matrem, et discipulum stJníem quem dilige-
òat, dicit matri suce : Mulier, ecce filius tuas ».
4
Pg. 10 O 2." v. da 2 « quadra trá-lo o Cod. Conim-
bricense n." 400 nesta variante :
Inda assim de culpas carregado.
O verso tecnicamente não fica melhor, e a modificação
não me parece exegída pelo sentido.
5
Pg. II. Talvez o último v. do son. xvi ficasse melhor
Que amasse muito mais quem tanto amava !
não obstante a lição impressa seguida é a do Cod.
Conimbricense, n." 400, conteste.
Pg. 12. O son. xviii correspondente ao de fl. 134 do
Cod. Portuense também se encontra na Cr. da Piedade
[Vide Bibliografia] pg. 984 com algumas pequenas
variantes sendo no 3." v. do i * quarteto a falta de inda,
que é essencial, aliás, e no 4.° v. do mesmo, que traz
vãos em vez de mil. O que nos alegra porque ira-
tando-se de códices ou fontes diversas indica de certo
modo a fixidez do texto desejável.
7
Pg. i5. O son. xxn, a fl. 85, sem variantes, do Cod.
Portuense, merece destacar-se pela indicação auto-
biográfica que traduz, visto deduzir-se dele que ires
foram as tentativas do grande Isolado para renunciar
ao mundo. Que lutas tremendas naquele amoravel
Notas e Esclarecimentos 427
espírito ! Todo o soneto é cheio de doçura e de resi-
gnação. Raras vezes se deparam termos ou formas
antiquados no nosso Poeta. Mas note-se o arca no
2.° V do 2.° terceto em vez de arda, aliás empregado
em Sá de Miranda e outros Quinhentistas e várias vezes
por ele mesmo [cfr. por ex , 2 vezes, pg. 118, últimos
versos]. Já atrás, no son. xii, apareceu a forma este
que é, como se sabe, a forma sincopada de esteja,
também frequente nos Quinhentistas.
Pg. 16. Eis variantes do Cod. Conimbricense, n.»40o,
1.» quarteto, 3.» v. :
Amor, quanto por si te trasladava
i." terceto, 3." v. :
Unindo na vencida carne toa
».• terceto, i.» v. :
Vencida e tam conforme a teu esprito,
única que me parece aproveitável.
9
Pg. 17. O 4." v. da I.» quadra aparece tanto no Cod.
Portuense, como no de Coimbra, n." 400, assim :
Conforme o vario vento vai soprando,
que é preferível à lição do texto.
Pg. 18 Este lindo soneto dedicado ao querido irmSo
anda impresso como Introdução do Lyma, desde a ed.
de 1596, e não vem nem no Cod Portuense, nem no
Conimbricense n." 400. Diogo Bernardes ouvia e aca-
tava a opinião do humilde Capucho e muito se satisfez
em vê-lo engrandecer o nome daquele a quem dirigia
as suas líricas — D. Álvaro D'Allemcastro, Duque de
Aveiro, « Príncipe real, claro, excelente ».
428 Notas e Esclarecimentos
Pg. 22. Toda esta Egloga « No atino do Noviciado »
é notabilíssima como sugestão auto-biográfica e dela se
aproveitará o necessário noutro logar. Para que não
restassem dúvidas nos disfarces destes pastores lá vem
bem claro no último v. de pg. 25 :
O bom do Limabeu he Capuchinho.
Pg. 3o. Há nesta Egloga um sentido enigmático, que
escapa a toda a concretização. O emprego de certos
termos não é menos de notar. No 7.° v. esquerdeia no
sentido de pôr ou criar estorvo ou embaraço e no 7.°
terceto
Na requia esteja a alma de Bieíto
requia será equivalente a requiem, adulterado nas cópias^
que serviram para a impressão ? Infelizmente a Egloga
falta nos Cods. Portuense e Conimbricense.
i3
Pg 35. O 4." V. deve emendar-se como traz o Cod.
Conimbricense n." 400 :
Mas comtudo não deixo de cuidar,
o que torna o sentido perfeitamente inteligível. E o 8."
Que máos olhos te tem atravessado,
que no texto impresso de Mesquita, reproduzido, pouco
menos é que enigmático.
•4
Pg. 36. O último terceto desta página, assim como o
imediato, pertence a Mincio, o que não foi indicado por
não vir no texto de 1771. Mas o Cod. Conimbricense
n.° 400 assim o indica nitidamente e é o que deve ser.
i5
Pg. 36, 8." terceto. Naboc, em vez de Naboth, per-
sonagem bíblico mencionado no 3 Reg., XXI, 2, e segs/
Notas e Esclarecimentos 4*9
que negou ao rei Achab uma vinha e que foi por isso
lapidado. • . . .eduxerunt eum extra civitatem et lapi-
dibus interfecerunt », como diz o v. iS.", e vem apropo-
sitadamente citado por Fr. Agostinho.
16
Pg. 40. A epígrafe desta Egloga V não é bem expli-
cita. O Cod. Conimbricense n." 400, diz melhor: Egloga V
em a qual dá conta como redu^io hum a Religião. Aparte
pequenas divergências é notável a omissão dum terceto,
que seria o 8.° na pg. 43 e que copiamos daquelle Mss.
Dam-me na face minha o falso beijo
De Judas, que vendeo a Jesus Christo,
Rapam-me a minha lã, o leite e o queijo.
17
Pg. 48. Esta Egloga é muito interessante pelo ar de
rusticidade que a envolve. Enquanto vigia o seu gado
alfeiro, ou entretido a pastar livremente [ segundo A.
Coelho, Dicc.y o termo proveio do árabe ], o triste pas-
tor conhece todas as inocentes distraçõis do isolamento.
Por isso lembra nos últimos tercetos a caça aos passa-
rinhos por meio do costeio ou da vara, recorda o fugitivo
e timido coelho, faz menção das flores que ajuntava e
dos frutos que colhia. Tudo, porem, para dar !
. ..não colhi, nem cacei cousa
Que para dar não fosse. . .
18
Pg. 53, V. 7." Perder o uso melhor será lêr com o
Msi. Conimbricense n." 400 : Perder o curso.
19
Pg. 60. O i.° terceto desta pág. falia no Mss. Conim-
bricense. Descuido ? Propósito ?
Pg 67, V. 6. O Mss. Conimbriceiyse n.° 400 traz : Com
cabra ou sarda ruivo. Talvez melhor. Um pouco adiante,
pg. 59, V. 22 diz : Eu costumo pescar com singeleira.
43o Notas e Esclarecimentos
Á pesca de cana para que se servia, como isca, da cabra
ou sarda, preferia a pequena rede daquele nome, usada
para a pesca do peixe miúdo, diferente do iresmalho,
também muito usada na pesca do peixe dos rios. Veira,
ibid., em vez de beira ? O Mss. Conimbricense n." 400
termina esta Égloga com uma pequena variante prefe-
rível ao texto : Pois no dia nascia. . . etc.
21
Pg. 70 Esta Égloga, dirigida à comemoração do
nascimento do Duque D. Jorge de Lencastre, aparece
no Mss. Conimbricense n.° 400 coip variantes, a mais
importante das quais é pg. 71, 1.» terceto :
O primeiro de abri! ali se ouvio
Cantar e tanger tam docemente,
Que as vozes ao Oceano transferio
Na pg. 72, 2.» terceto :
Eu tenho para mim que ouço tanger. . .
Deve de ser aquele que lá vem.
Como se vem recreando de prazer !
E nesta mesma pg., v. 25 :
Amor tempere, a fragoa acenda e forge
que dá, positivamente, melhor sentido que o que se
seguiu no texto em obediência à ed. de 1771.
Ainda na pg. 75, o v. 25 é substituído por est'outro :
Seu nome seja imortal.
Pg. 77. Logo o i." terceto desta Égloga aparece mais
correcto no Mss. Conimbricense n.» 400 :
Apartam-se de vós, desaparecem
Agoas do mar azul e sol dourado
E com meu triste pranto se escurecem.
Já é discutível a variante de pg. 78, v. 17 :
Avisar, repreender a quem converso
Notas e Esclarecimentos 43 1
23
Pg. 89. Esta Elegia não escapou em nenhuma das
fomes conhecidas — no Cod. Portuense, fl. 34 v.. no
Canc. de F. Tomás, fl. 77 v., e lá está impresso na Chr.
de Arrábida, pg. o36. Emendemos o erro do v. 10 :
Aqui sobre o mar e registemos, como preferivei, a lição
do Mss. Conimbricense n." 400 no v. 9 de pg. 90 :
Que de outras que ensinar querem falando.
É o que deve sêr. O impresso não se entende Na
mesma pág . v. 16 leia-»e : Alli me acho, etc. E no v. 19:
O monte vão de meus suspiros cheio, variante que toma
perfeitamente correcto o verso anterior casando-se
ambos harmonicamente no sentido. Suprimo outras
variantes para citar as dos dous versos, que terminam
a Elegia :
Ardeo o fogo posto no madeiro
Ardam postos no fogo os corações.
Acho assim a frase mais incisiva e mais bela.
24
Pg. o5. Esta Elegia trá-la o Cod Portuense. O Mss.
Conimbricense n.» 400, também a insere com» varian-
tes aproveitáveis. Destaquemos no v. 23 : A Vós pêra
livrar. . . lição, decerto^ melhor que a exarada no texto.
25
Pg. 101. Esta Elegia figura no Cod. Portuense, pg. 56
e no Conimbricense n.* 400 e corre impressa na Chro-
nica, pg 934 Também há algumas variantes que acla-
ram notavelmente o sentido. Por ex., pg. io3, v. 3."
«■ Sem nunca descansar qual vento leve.
26
Pg. 104 Nesta Elegia VII deve emendar-se em har-
monia com os dois Códices do Porto e de Coimbra o
V. iJ.» : « Convertida em velhice a mocidade ». O Conim-
bricense melhora o v. o" de pg. io-5 exarando : Por ver
que todos são de entranhas frias. Na pg. io3, o v. 9.»
hcaria melhor como o traz o Mss. Conimbricense: « Por
vér que todos são de entranhas frias-
432 Notas e Esclarecimentos
27
Pg. 107. O Cod Portuense epigrafa esta Égloga :
« De húa molher á absencia de seu marido sendo par-
tido para a guerra «. Variantes preferíveis ao texto no
Mss. Conimbricense n° 400, pg. 108, v. 9° : a Escurecer
daquem o rajo monte «. O Cod. Portuense diz : . . .0
alto monte. No v. i5.° o Cod. Portuense: Verão quam
pouco temo a cruel guerra ; mas o Conimbricense man-
tém a lição impressa. Creio que há razão para a man-
ter, como noutro logar provarei. Na pg. 109, o v. 25."
deve modificar-se : Querer-me... O 2° v. do último
terceto, pg 1 10 é preferível assim: Ou que estejas...
E o último : Não quero. . .
28 .
Pg. III. A Elegia à morte de seu irmão anda im-
pressa na ed. das Flores do Lima de 1770. Esta Elegia
está incompleta no texto, faitando-lhe nada menos que
14 tercetos, que aqui seguem extraídos da ed. impressa
das Flores do Lima, com as variantes do Cod. Portuense,
onde vem a fl. 98. O que é extranho é a mesma omis-
são existir no Cod Conimbricense n.° 400. As fontes dos
dous textos impressos foram de certo diversas, como
as dos Mss., pois em todos se notam divergências.
O Conimbricense melhora algumas passagens, como
pg. 112, V. 23. ''-24." : Nem sempre cá do Tejo só comigo
— Nem tudo poesia o que tratavas.
29
Pg. II 3, V. 14» : Da solitária Serra, em que habito.
Segue o texto que é o ccnplemento natural da
Egloga :
Mas nella se abalou mais meu esprito
acrecentando mais o sentimento
de um brando coração num peito aflito,
Que mal resistir pode o pensamento,
onde se estendem mais as saudades
a quem nunca neguei consentimento.
Ha nos bosques cem mil diversidades
no fructo, folha e flor e nos rochedos
rotos das oceanas tempestades.
Notas e Esclarecimentos 433
Por cima de uns nos outros arvoredos
voar vejo cantando uns passarinhos,
outros ouço cantar, estando quedos.
Vejo nos montes rasos mais vezinhos
as fugitivas feras ir torcendo
os passos por pa»sar entre os espinhos.
Triste I com que remédios vou detendo,
na vista dos meus olhos, magoas minhas,
que nas aves e feras vão crescendo.
Nestas me lembra a doce voz que tinhas *,
naquellas quantos passos retorcidos
por colher brandas flores entr'espinhas.
Quam tristes penetrar vão * meus gemidos
as entranhas das duas penedias
tão tristes tornar ' delias repetidas.
Que ainda que das ardentes dem nas frias
indâ que destas brandas dem nas duras
pêra me responder estão vazias.
Abr-andão-se as durezas em branduras,
podem magoas mudar as naturezas
-quando mudar não podem as venturas.
Os claros desenganos, as certezas
da vida, que já vai de foz em fora,
não soffrem mais estremos de tristezas.
Tratar de como irá convém agora
e da * que já se foi mais não tratar,
como se derradeira desta fora.
Vida que tarde ou cedo ha de acabar,
morte que por fugir mais não dilato,
de ambas '" devo temer, ambas chorar,
Que com o temor e choro de que trato •
assi me posso haver nesta primeira,
que a segunda me custe mais barato.
' 1770. Nestas me lembra o som da voz que tinha. — • PenetriTio.
^ tornáo delias repartidas. — ' C. P. e io — 1770 — E da que )á se foi,
mais não tratar. — ' 1770. Ambas. — • Que com temor e choros.
28
434 Notas e Esclarecimentos
Mas quem só naquella hora derradeira
espera descansar por ter cansado
( se cansa quem faz conta derradeira ).
Nem o temor o traz inquietado,
nem o choro lhe da pena tamanha,
que chorando nSo fique consolado
nas lagrimas de amor "^ em que se banha.
3o
Pg. 117. Esta Ode repete-se nos Mss. do Porto e
Coimbra. Verso i3.<* no Conimbricense: Flores que
secam levam leves ventos. Versos 2i.»-22» Magoas
minhas — Me não deixam mover. Pg 118, v. 21 ° : Se
quero mais querer. . . E os últimos desta pág : Por vós
ardam, Deos nosso — Ardam no puro fogo de amor
vosso.
3i
Pg. 116. O epíteto teso no 5." v. da Ode //poderia
hoje merecer reparo, como já o apontou Gosta e Silva
(Ensaio biogr. critico, 11, 261), mas « agoa tesa quer
dizer agoa que corre com força ou agoa alta, dahi vem
as expressões marítimas vento teso, mar teso, e o cha-
mar-se teso a um outeiro, ou elevações de terreno.
Tembem se chama teso a um homem, que tem firmesa
de. caracter e que não cede facilmente ». Fr. Agostinho
empregou o vocábulo pelo menos outra vez — Cfr.
pg. 61, V. 12.»
32
Pg. 128. Esta Carta é, como diz o título, resposta à
de seu irmão Diogo Bernardes, e que pôde lêr-se em
O Lyma, Carta VIII. Um terno sentimento de doce e
amarga saudade envolve de encanto especial toda esta
linda poesia, até à recordação do elogio da pobreza
( pg. i3o, terceto 9."*) feita pelo irmão — alusão à
Égloga III — Liarda — inserta em O Lyma.
33
Pg. 134. Esta Carta, cujo final é duma côr regional
interessantíssima, apresenta algumas variantes no Cod.
' Nas lagrimas da morte.
Notas e Esclarecimentos 435
Conimbricense, que melhoram a contextura e o sentido.
Assim no g.» verso podres contrastando com sãos, e não
pobres O i.° V do 3 " terceto : A causa pode sèr que a
mesma seja. Na pág. imediata o 3." v do penúltimo
terceto fi^nrá mais correcto assim : Não respeitando ser
descomedida Pg. i36 o v. 21 ' Que Marateca tem como
bagaço, precisa duma aclaração para alguns leitores.
Marateca é uma pequena povoação na comarca e con-
celho de Setúbal, próxima do rio do mesmo nome, que
é um afluente do Sado com 33 quil. de curso. A alusão
de Fr Agostinho torna-se assim evidente se suposermos
esse rio abundante em peixe. [ Pinho Leal, Portugal
ant. e mod., v, s. v. ] O Mss Conimbricense menciona
Lameira em vez de Landeira no último verso. A qual-
quer delas podia referir-se o Poeta, mas esta última está
abonada também pelo Cod. Portuense.
34
Pg. i38. O Cod. Conimbricense ajuda a repor muita
deturpação do texto infeliz de Mesquita. Em regra as
variantes dadas por esse Mss. sam de receber. Não é pos-
sivel apontar tudo, que ficará, querendo Deos, para uma
2.* ed Mas ressalvemos o essencial Antes de mais a
deturpadissima oitava final de pg. 140 com falta dum
verso inteiro I Deverá ficar assim :
Quero saber que letras aprendestes,
Teu nome, cuja filha e como ousaste !
Se sabes ponderar o que fizestes
Quando tam soltamente reprovaste.
O sacrifício a mim repreendeste
E dos imortaes deuses blasfemaste,
Que por eles te juro que não sei
Como comtigo a mim me não matei.
Na pg. 147, a 3." oitava deve principiar: Oh! ditosa,
A estância imediata está também incompreensivel.
devendo ser :
De mim. . .
A verdadeira. .
Convertidos de nosso erro antigo
Que com suspiros da alma lavaremos
Nossas culpas, Senhora, que não digo
O gosto. . .
436 Notas e Esclarecimentos
35
Pg. i56. O 2." V. da 3.' estância está totalmente
deturpado, devendo corrigir-se : Metê-lo todo Junto ao
meu cutelo, no que sam concordes os Mss. Portuense e
Conimbricense.
36(1)
A Tra los Montes — pg. i6o. Essa epígrafe quer
dizer que as Voltas de Frei Agostinho parafraseiam o
Vilancete ou Cantar velho :
Tra-los montes
me irei morar !
Quem me bem quiser
lá me irá buscar !
já tratado por Francisco de Sá de Miranda ( n.» 5i.
Gfr pg. 746 da ed. de G. M. de Vasconcellos ). Jorge
Ferreira de Vasconcellos ciiou-o na Ulysippo.
Ambos dizem todavia Naquela serra irei morar. ( Var.
Naquela alta serra )
O Cod. Conimbricense traz o Mote com a epígrafe
Atrás dos Montes :
Atrás dos montes
Me irei morar.
Quem bem me quiser
Lá me irá buscar.
37
As Endechas — pg. 162 e 365 e 367 — lembram as
de Gamões : « Vai o bem fugindo », as de Caminha :
« Vai-se a vida e foge » e as de Diogo Bernardes : « En
mis esperanzas ».
38
,^'Que lugar, tempo, estado, ou esperança -^ pg. 168.1
Este soneto, contido em ambos os códices, é atribuído,
a Martim de Castro, ou Castro do Rio, no. Canc. de A.i
F. Thomas &.. 4. Isto é a um Quinhentista e Camonista
de talento que figura com versos ( Sonetos ) em todas
as Miscelâneas poéticas do seu tempo ( sobretudo nas
(i) À excepção das notas 45, 46, .7, 48 e ^5 todas as demais, daqui
por deante, sam devidas à pena autorizadíssima da Senhora D. Carolina
Michaêlis de Vasconcelos.
Notas e Esclarecimentos A^^
Eborenses ) e escreveu, segundo Faria e Sousa, muitos
versos, dignos de que Luis de Camões os estimasse.
Vid. C. M. de Vasconcellos, Sonetos e Sonetistas,
pg. 41, 43, 85 e 87.
39
Posto que sofra amor apartamento — pg. 169. Este
soneto ( que figura no Cod. Portuense duas vezes, a
fl. 77 e 86 ) é atnbuido no Canc. de A. F. Thomas
( fl. 11 v. ) a Fernão Rodrigues Lobo Soropita.
40
^ Quando de ambos os ceos caindo estava — pg. 169.
Este soneto, de amor profano. As lagrimas de uma
despedida, foi impresso por Camilo Castelo Branco ( era
lição defeituosa ), nas Poesias e Prosas do Soropita
(pg 43).
E como obra deste poeta está também no Canc. de
A. F Thomas fi 84 .
Num Canc. ( inédito ) coleccionado por Faria e Sousa
para o onde de Haro, ha ( salvo erro ) uma redacção
castelhana, que prmcipia
Cuando de entrambos cielos el rocio
Como desconheço todo o resto, não posso avaliar
qual seria o texto origmal, e qual mera traducção
4«
Perdi me dentro em. mim como em deserto — pg. 171.
Com variantes está no Canc de A. F. Thomas fl. a.
Com atribuição a Fernão Corrêa de Lacerda
No Canc. de Évora cxiv-2-», explorado com pouco
critério por A. F. Barata, anda sem nome de autor
( PP- '47 )
De autor incerto, portanto.
■4a
A peregrinação de um pensamento — pg. 173. Foi
atribuído a Luis de Camões pelo fantasioso Faria e
Sousa ( Rimas, vol. 11, 353 ), embora no manuscrito em
que o encontrou, estivesse com autoria de Martim de
Crasto.
Por isso foi traduzido por Storck ( n.» 293 ) e por
Tommaso Cannizzaro ( pg. 268 ).
438 Notas e Esclarecimentos
Em redacção castelhana fígura num Canc particular
do Conde de Villamediana ( Paris, 6o5 fl. 48 v ).
Em português aparece com o nome de Martim de
Crasto no Canc de A. F. Thomas fl 10.
Vid. C M. de V , Sonetos e Sonetisías, pg. 43.
43
Vai-me gastando amor e um pensamento — pg 173.
Atribuído a Lms de Camões no Canc. de A F, Thomas
fl. I So ; publtcndo com > obra dele por T. Braga no seu
Camões : obra épica e lyrica 191 1 ( pg. 226 ) ; e tradu-
zido por T. Cannizzaro ( n » 892 ).
Certo é que esse soneto mal pode ser obra de um
rapaz que aos vinte se fez capucho.
Vid. G. M. de V., Sonetos e Sonetistas, pg. 43.
44
Como estaes, luif, sem luj f vida sem vida t — pg. igS*
Amor trouxe a Jesus da gloria d cruj — pg 198.
Quem me dera por lingua um raio ardente — pg. 21 3.
São, a meu ver, obras legítimas de Frei Agostinho, pro-
pagadas em copias por serem belíssimas, infelizmente
sem nome de autor.
O primeiro foi metido por Miguel Leitão de Andrade
na sua Miscelânea (1629). onde sai da boca de Maria
Magdalena, abraçada ao pé da cruz, com os olhos cheios
de agua e olhando para o Cristo Crucificado, pg 84
Os outros dois estão no Cod. Eborense, cxiv-2-2. sem
autoria. E foram publicados por A F. Barata, no Canc.
Geral, pg. 160 e i38 — Brito Rebelo reconheceu, que
a poesia Amor gloria e cruj era obra de Frei Agostinho.
Vid. Arquivo Histórico, 1, 1 38-148. Cfr. El canto de
las aves.
45
Pg. 193. O soneto xxxix esplendido na forma, riquís-
simo no conceito, foi publicado por Miguel Leitão de
Andrade na sua Miscelânea, pg. 84, como anónimo,
apresentando algumas variantes menos felizes.
46
Pg 195 Este primeiro son. A Paixão, entranhado de
cândido misticismo, pf<de parecer ousado na afirmação
do V 7.0 — Desprega o livro antigo e o moderno. É como
diz o texto do Cod. Conimbricense e o do Portuense.
Já no A/55. Portuense uma sigla marginal antiga indica
a extranheza dalgum leitor curioso. Gomo compreen-
Notas e Esclarecimentos 489
der-se que espirito tam bem equilibrado nas suas
expressõis religiosas mandasse desprezar o livro antigo
e o moderno ? Que mais diria um heresiarca despreza-
dor dos Livros Santos ? Mas tudo se explica com uma
leve emenda. Se suposermos o verso assim saído da
pena de Fr. Agostinho :
Despreza o livro antigo pelo moderno
poderá ainda afigurar-se ousado aquele verbo despregar,
mas a passagem mantém todo o seu vigor pondo em
relevo, numa frase que, explicada, se encerra em perfeita
ortodoxia, a excellência do Novo sobre o Antigo Testa-
mento. Ainda nesta pág. son Ao Mesmo. Frei Rodrigo
de Deos ( + '622 ), que foi Guardião do Convento de
Nossa Senhora da Arrábida tinha em muita estimação
as poesias de Fr. Agostinho da Cruz. As duas obras
que deixou, ambas vêem enriquecidas com sonetos
dele. No Tratado dos Passos que se andam na Qua-
resma . ■ (I.* ed. 1681 ) vem como Proemio este — Os
passos que de dôr trespassado . . . e o Epigrama : A quem
deceo do Ceo para nos dar vida, publicado a pg. 335
desta nossa ed. Também nos Motivos Espirituais
[Lisboa, i6zo]. que não pude ver, vêem secundo o
testemunho de Inoc [ Dic. Bibl , vii, 169], no princípio,
dous sonetos em louvor da obra, que não andam
incluidos na colecção impressa.
47
Pg. 208 O mesmo tema foi cantado pelo irmão
Diogo Bernardes nas Varias Rimas, pg. gS, no soneto
paralelo O Jacinto entre pedras preciosas. Pelo soneto
anterior do mesmo Bernardes se vê que o Santo fora
« agora novamente canonizado », [ « agora » — i5 de
abril de iSgi segundo o Agiol Dominicano de Frei
Manoel de Lima, iii, 441 J daí os versos e as prosas,
a que alude. Quem quiser confrontar o talento dos
dois irmãos veja especialmente os temas que ambos
cantaram O verso final do soneto claramente indica
Sue o Santo também contava como seus devotos os
>uques de Aveiro, tam notáveis, de resto, pela sua
piedade.
48
Pg. 210-22 1. O soneto A Senhora da Memoria chora
a ausência do pobre monge Fr. Diogo dos Inocentes
que, quasi octogenário e enfermo, se vio obrigado a
440 Notas e Esclarecimentos
recolher-se ao Convento de Alcobaça. Ao mesmo pro-
pósito sam consagrados os imediatos. A Chr. da Arrá-
bida transcreve os deus primeiros [§ 1189].
49
Lembranças de meu bem, doces lembranças — pg 23 1 .
Foi atribuído por P'aria e Sousa a Luis de Camões
(Rimas, II, pg 334, n.» 358 = 291 de T. Braga ) — e tra-
duzido como tal por Storck ( 269 ) e Cannizzaro ( 291).
O polihistor confessa todavia que andava em nome de
Martim de Crasto no manuscrito que explorou.
Já então { 1645 ) tinha sido impresso em Florença entre
as Rimas do Dr Estevam Rodrigues de Castro (1623 ).
E no Canc. de A F. Thomas aparece igualmente em
nome desse poeta ( fl. 269 ).
De autor incerto, portanto.
Vid. Sonetos e Sonettstas, pg 85. Aí disse eu que os
dois versos ioiciaes do soneto foram glosados moder-
namente.
5o
Contenícmentos meus que já passastes — pg. 232.
Este soneto profano ocorre duas vezes no Canc. de A.
F. Thomas a fl. 3 como obra de Francisco de Andrada ;
a fl 16 com atribuição a Luis de Camões.
Como cbra dele foi publicado por T. Braga em
Camões, Obra eptca e lyrica, 1911, ( pg 221) ; e por
isso traduzido para italiano por T. Cannizzaro (igiS,
/ Sonetti ).
Frei Agostinho glosou o verso inicial, e o ultimo em
duas oitavas E seria por ventura somente como Mote
que ele colocara o texto alheio à testa da sua paráfrase.
Vid. Sonetos e Sonettstas, pg. 1 14.
5i
Aqui neste deserto, seco e pobre — pg. 3o i. Esta
Elegia Penitencial que está tanto no Cod. Conimbri-
cense como no Portuense com um lapso, ( salto de três
ve^^os ) é atribuída a Soroptta, no Canc de A F.
Thomas, fl 66.
E em nome dele, com a epígrafe Elegia da minha
penitencia, está nas Poesias e Prosas inéditas tiradas por
C. C. Branco de um ms vindo do Mosteiro de Tibaes.
( Vid pg. 147 e cfr. pg xxviii, assim como T. Braga,
Quinhentistas, pg. 3 \g-320).
Notas e Esclarecimentos 441
52
A ti bom Jesu que tanto ofendia — pg. 3o8. Esta Ele-
gia a Jesu na Cruz é de Diogo Bernardes, Rimas Varias
ao bom Jesus, pg. 8.
Também se encontra no Canc. Juromenha a fl. 5i,
com importantes divergências.
Vid. Zeitschri/t, viii, pg 443 e ix, 364.
53
Despojos tristes dum contentamento — pg. 3 16. Esta
Elegia Á Morte de um Contentamento ( — epígrafe
exarada em ambos os manuscritos ) — obra profana
cheia de reminiscências tristes de um passado feliz,
representado talvez por um retrato da amada, figura no
Canc. de A. F. Thomas a fl. 53 v. como Capitulo do
Soropita.
E estava também no Ms. de Tibaes das obras dele.
Vid Prosas e Poesias pg. 29.
Que forte fortuna sigo — pg. 341. O Mote é de
Crtstovam Falcão, ou de Bernardim Ribeiro. Quero
dizer que pertence ao grupo de pequenas poesias que
na edi ão de i559 da Menina e Moça e das Trovas de
Crisfal (Colónia) ocupam as folhas i53 171 e foram
reimpressas por Epifânio Diaz, na Revista Lusitana,
IV, Ds. 14.6. Cfr. Ed. Delfim Guimarães, pg. 55.
55
Pg 343. A Chr. da Arrábida, pg. 940 traz esta poe-
sia com falta das duas últimas estâncias. As variantes
publicadas sam insignificantes.
56
Saudade minha ^ quando vos veria ? — pg. ^64 Mote
antigo em estilo popular — ou Cantar velho parafra-
seado por Sá de Miranda ( n *• 59 Cfr pg. 681 e 746),
por Camões, e diversos outros Quinhentistas e Seiscen-
tistas
Vid C M. de Vasconcelloa, A Saudade Portuguesa,
Í9i4> ( pg- 9 e 90-98).
442 Notas e Esclarecimentos
5?
Cru:^, remédio de mis males — pg. 38o. Cod. Por-
tuense, fl 53 O Mote é uma Quadra, cujo último verso
não compreendo, a não ser que, sendo satírico, queira
dizer que cinco mil Cardeaes teriam cabido na cruz =
teriam merecido a cruz ! ?
Foi no ano de 1627 que um joven fidalgo castelhano,
repetindo boatos que corriam em Espanha, atribuiu a
Quadra a Felipe II.
Vid. Panegírico de la Poesia de D. Fernando de Vera,
que possuo na reimpressão de i88g.
De lá passou a um opúsculo de T. Braga, intitulado
Camões e Philippe II — I^89
A Glosa de Frei Agostinho, publiquei-a eu no meu
estudo sobre Sonetos e Sonetistas, pg. 102-106.
58
Ecos, port. e cast. — pg. 38 1. São imitação, boa e
bela, daqueles que Cervantes meteu no seu D. Qiiixote,
I, Cap. 27 :
Quien menoscaba mis bienes ?
Desdenes.
59
Rompe los lajos de la prision fuertc — pg. 887. Cod.
Portuense, fl. 69. Esta Cancion á la Muerte — ou antes
à Alma, cuja imortalidade é o assunto principal — nem
é inédita, nem é de Frei Agostinho.
Foi impressa em 1623 em Florença como composição
de Estevam Rodriguez de Castro ; e nas Rimas dele,
publicadas pelo filho, Francisco de Castro — fnz parte
de uma obra narrativa de vulto, a Fabula, clássica, de
Arion ( fl. 66-77 ).
Como obra desse médico filosofante foi elogiada e
citada :
a) por Faria e Sousa, nas Rimas de Camões, { iii,
pg- ' ) ;
b) por Gallardo no Ensayo, na descrição do volume
florentino ( vol. tv, pg. 229, n " 3670 ) ;
c) pelo mesmo, na descrição do Canc. do Conde de
Haro, coligido por Faria e Sousa ( vol 11, cap. 994,
n.° 268 ) ;
d) por Garcia Perez, que o reimprimiu no seu Cata-
logo (pg. 485).
Notas e Esclarecimentos 443
Compreende-se que Frei Agostinho gostasse da Can-
ção e a copiasse, para seu uso particular.
Embora Francisco de Castro metesse no volumito
das Rimas alguns poemas de diversos, como de boa fé
declara ( por ex. de Sá de Miranda, Correia de Lacerda,
Francisco Rodriguez Lobo o Soropita, Bernardo Rodri-
gues, a Fradinho da Rainha, a Fabula com a Canção
pertence, a meu ver, ao número dos originaes que,
quasi violentando-o, arrancou das mãos do pai.
Vid. Sonetos e Sonetistas, pg. 102, nota 3.
60
Las trisjes lágrimas mias — pg. 393. God. Portuense,
pg. 73o. Este Mote é um Vilhancico antigo, muito glos-
sado. Entre Voltas e Glosas, port e cast , conheço pelo
menos umas 20 paráfrases posteriores a i55o, algumas
superiores à de Frei Agostinho.
61
Lagrimas que no pudieron — pg. 3q3. Cod. Portuense,
fl.74. Este Mote também é antigo. Foi citado por Gra-
cian na sua Agudejajy- Arte de Ingenio, no Discurso 33
por causa da ambiguidade que há no último verso em
que de la mar significa dei amar.
62
Di, contento, adonde estás f — pg. SgS. Cod. Por-
tuense, ú. 62. Esta quadra, profana e humana, mas
moralizadora que, segundo o Cod. Portuense foi, com
a correspondente Glosa, dedicada por Frei Agostinho
a el Rei Phelipe II, é atribuída ao próprio Monarca
pelo mesmo D Fernando de la Vera que lhe atribue a
Quadra à cruz — boato esse que foi propagado também
por Faria e Sousa no Cancioneiro que colecionou para
o Conde de Haro ( Gallardo, Ensayo, 1, c. 1000, n." 2 168).
Vid. Sonetos e Sonetistas, pg. 102-106, onde publiquei
a Glosa de Frei Agostinho — e mais outra, com diversas
considerações.
Se esta foi dedicada a Felipe II, iria em troca da
Quadra relativa à cruz, mandada pelo rei para o Poeta
a parafrasear ? ? ? Mas quando ? e como ? e por inter-
venção de quem ?
444 Notas e Esclarecimentos
63
Este mi mal tan estrano — pg. 397. Cod. Portuense»
fl. 80. Tudo é alheio. Nada de Frei Agostinho O Mote
é de Sá de Miranda e pertence à Egloga de Alexo,
{ V. 879 e seg. ).
A Glosa é de Estevam Rodriguez de Castro, que evi-
dentemente era um dos autores predilectos de Frei
Agostinho. Encontra-se nas Rimas, dele (a fl. 5i).
E foi reimpressa por Garcia Perez no Catálogo, pg 489.
Gallardo cita-a como fazendo parte do Canc. do Conde
de Haro, coleccionado por Faria e Sousa (Ensayo,
n.o 2168).
64
Pluguiera a vos, mi Dios, que no naciera — pg 399.
Cod. Portuense, fl. 80. O Mote é de Gregório Silvestre.
E talvez também a Glosa seja dele. Não o posso dizer
com certeza porque tenho a desgraça de não possuir as
obras dele. Vid. Sonetos e Sonetistas, pg. 3g.
65
Passo la vida solo en contemplarte — pg. 400. Cod.
Portuense, fl 76. No Ensayo de Gallardo, na descrição
das Rtmas de Estevam Rodriguez de Castro ( Vol. iv a.
229 n.° 3670 ) aprendi que o Terceto-Mote é obra desse
autor.
E como a Glosa dele, infelizmente não reimpressa,
conste de três Oitavas, como a que se lê no Cod Por-
tuense, é provável que essas também sejam mera copia.
Embora a edição de Florença se publicasse depois
da morte de Frei Agostinho, as obras que contêm, são
provavelmente anteriores à ida do Cristão Novo ( n.
em 1339 ) para fora do reino. O próprio íilho diz que
sairam de Portugal.
66
En turquesadas nubes y celajes — pg, 404. Este son.
é de Pedro Espinosa e foi publicado em i6o3 nas Flores
de Poetas ilustres^
É o n.» 244, pg. 287 da admirável ed. moderna de
D. Francisco Rodriguez Marin.
Entrou, elogiado por causa da felicidade da metáfora
e pola propriedade, viveza e formosura das imagens, no
Parnaso ( tomo v ) de Sedano e no Cancioneroy Roman-
cero ( tomo 35 da Bibl. de Ant. Esp ).
Noras e Esclarecimentos - 445
b7
El canto de las aves de la sierra — pg. 411. Cod.
Portuense, fl 65. Este lindo Soneto foi metido por
Faria e Sousa no Cancioneiro que colecionou para o
Conde de Haro, sem nome de autor.
E Gallardo achou-o digno de reimpressão (n." 2168).
68
No me persigas más, vana esperança — pg 412. Cod.
Portuense, fl 67 Esse Soneto figura também no Canc.
do Conde de Haro, col por F S ; aparentemente num
ramalhete de Sonetos dedicados a Felipe II por ocasião
da Morte da Rainha de Espanha em Badajoz ( D Ana
Maria de Áustria •{• a 26 de Out. de i58o ). Sem nome
de autor.
Gallardo não o reimprimiu (Ensayo, n.» 2168).
69
Hambrienta, rota, inquieta, disgustada — ,pe- 4i3. Cod.
Portuense, fl. 78 v Este Soneto afamado À Pobreza ou
Em vitupério da Pobreza é atribuído no Canc. coleccio-
nado por Faria e Sousa a D. Juan de Silva, Conde de
Portalegre.
Foi publicado por Gallardo, no Ensayo 11 an. 996.
Cfr. 992.
Mas já fora acolhido em 1629 por Miguel Leitão de
Andrade, na sua Miscelânea, Dial. xvii, pg. 899 na ed.
de 1876
Vid. Sonetos e Sonetistas, pg. 76.
BIBLIOGRAFIA <•>
Abreu ( João Gomes de ) — Diogo Bernardes ( A sua
naturalidade ), Ponte do Lima, 1907, i folh., 19 págs.
Arantes ( Hemeterio ) — Frei Agostinho da Cruj.
Notas á margem duma « Historia dos Quinhentistas »,
Lisboa, 1909. 1 folh.
Archivo Bibliographico da Bibliotheca da Universidade
de Coimbra, i, (1901) pg. 17, onde, começando a publica
ção do Códice, que tornamos conhecido nessa Revista,
emitimos pela primeira vez o propósito, que só hoje
levamos a efeito Cfr. nesta Bibliografia — Remédios
( Mendes dos ) — Almanach, etc.
Arrábida — Numero único. Setúbal, i de Julho de
1899, 8 págs. Colaborado por diversos, a principiar por
D. Anna de Castro Osório, A J. Marques da Costa,
Arronches Junqueiro, Adolpho Portela, Júlio Augusto
de Oliveira, Oliveira Parreira, etc. O artigo deste último
m Os amadores de Arrábida » com interesse pelas refe-
rências a um passeio com Oliveira Martins e ao encon-
tro que tiveram com o último eremita Fr. José de N.
Senhora, que apareceu, um dia, morto na ermida de
Santa Catarina em 11 de Novembro de 1870.
Arrábida — Publicação commemorativa da festividade
celebrada pelo antigo Cirio de Setúbal. Ano de 1896,
55 págs. A pg. 5o e 5 1 transcreve como de Fr. Agos-
tinho da Cruz dois sonetos, cuja autenticidade é licito
^1) Como se verá, lembramos na nossa resenha os artigos oa pablica-
ç6is consagradas à Arrábida, porque é raro falar-se da famo$a Serra sem
aludir ao seu exímio Cantor. Algumas delas transcrevem até poesias de
Fr. Agostinho, como por ex., a de Bulhão Pato, A. Portela, etc, adiante
citados.
448 Bibliografia
pôr em dúvida. Dizem-se inéditos, mas não se declara
a fonte ou proveniência. Um principia :
ff Adeus, ingrata, adeus, que a tirania »
E o outro :
« Quando do amor fiei minha vontade ».
O artigo é assinado por M. ( Manoel ) M, ( Maria ) P.
< Portella ).
Artes e Letras^ i, 1892, artigo de Bulhão Pato, pgs. 81
e 97, sob o título : « O Palácio de Galhariz — Diogo
Bernardes — Frei Agostinho da Cruz — A Serra da
Arrábida ».
Barata ( António Francisco ) — Miscelânea histórico-
rommtica, pg 63,
Bernardes ( Diogo ) — Carta ao P. Fr. Agostinho da
Cru^jf. E a VIII, pg. i52 de « O Lyma », ed. de 1761.
Braga ( Th. ) — Revista contemporânea, v, 1864-1865,
artigos seus a propósito de Fr Agostinho e Fr. António
das Chagas, considerados como poetas místicos.
— Id. Estudos da Edade Media, 1870, pgs 168-182;
Historia dos Quinhentistas, 1871, c. v, pgs. 3ii-32i;
Historia da Litteratura Portuguesa, 11, Renascença,
Porto, 1914, pgs. 357-362. Etc.
Branco e Negro, 1896, 1 " ano, número de 7 de junho,
pgs. 14-15. Gravura do Convento e Serra da Arrábida
com artigo de Fialho de Almeida.
Cardoso ( Jeronymo ) — Agiologio Lujiíano, 2.%
pg. 146 e Comentário de 12 de Março, letra F.
Cardoso ( P. Luiz ) — Diccionario Geographico, ar-
tigo « Arrábida ».
Castro ( João Baptista de ) — Mapa de Portugal.
Discrição da Serra da Arrábida — Mss. n.° 399 da
Bibhoteca da Universidade de Coimbra compreendendo
i34 oitavas. Principia : Canto da Europa a terra ven-
turosa — e termina : Não nos sucedeu cousa na jornada.
Anónimo. Letra do séc. xvm. Pág moderna de pgs loi
a 134. Faz parte duma grossa Miscelânea, que se pôde
vêr descrita no Cardlógò'dos Mss., \t\ Arch. Bibl. da
Bibli da Univ. de Coimbra, vol. vi { 1906 ), pg. 10.
Gonçalves ( J. C. de Sousa) — Uma excursão á Serra
da Arrábida, 1902.
Bibliografia 449
Illustração Portuguesa n." iSi de 18 de Janeiro de
1909
— Id., n" 209 de 21 de Fevereiro de 1910.
Longfelow ( Henry W. ) — Poems of Places edited
by..., Boston, 1877. A pg. 67 do vol 2.° figura a poe-
sia de Fr. Agostinho « Arrábida » traduzida para inglês
por J. Adamson.
Pg. 6S o"tra de Robert Southey intitulada « Written
after visiting the Convent of Arrábida, near Setúbal ».
Pg. 70, outra de Francisco Manoel traduzida para
inglês por Robert Southey — « The Arrábida Convent ».
Vid. Southey ( Robert ).
Machado ( Barbosa ) — Bibliotheca Lusitana, i, s. v.,
biografia em que fala do Cod. de Verberena, a que na
Introdução fazenoos referência. No vol. 11, pg. 617 no
artigo sobre João de Brito e Melo ( -|- 1682) diz que
êlp compôs a Chr. da Provinda de Santa Maria da
Arrábida dividida em 5 livros, que ficou Mss. e natu-
ralmente se perdeu Cfr. Piedade, Chr. da Arrábida,
adiante cit.
Mesquita e Quadros ( José Caetano de) [1726-1799],
o Metatesio Cilenio da Arcádia de Lisboa — Vida do
N. P. Fr. Agostinho da Cru:^ Religioso da Provinda
da Arrábida, Lisboa, na Reg. Ofic Tvp , 1 7q3, 8.» de
57 págs. Cito segundo Inoc. Dic. Bibl , iv, 283. É a
impressa à frente do vol. Poesias de Fr. Agostinho da
Cruj, de que em 1771 foi editor o mesmo Mesquita.
Monteiro ( P. Ignacio ) — Descripção da Arrábida.
Mss. da Bibl. Nac. de Lisboa Principia :
Desvanecido o sol que procurava
Lograr da bella sarça a bizarria
e termina na estanca i33 :
Em Lisboa me vejo finalmente
Com que venho dar fim a minha historia.
O autor é o mesmo de que fala Inoc, Dic. Bibl , iii,
pg. 212, dando-o aí como natural de Lamas, no bispado
de Viseu, mas neste Mss. diz-se « Descripção... feita
pelo R. P , natural da Ilha da Madeira ».
Occidcnte — n." 776 — Julho de 1900.
>9
45o Bibliografía
Pato ( Bulhão ) — Vid. Artes e Letras.
Paulo (José Agostinho^ — artigo publicado no n.»
5175 de 14 de Junho de 1896 do jornal O Século —
« A Serra da Arrábida » com várias gravuras.
Piedade ( Fr. António da ) — Espelho de Penitentes e
Chr. da Provinda de Santa Maria da Arrábida, da
regular e mais estreita observância da Ordem do Sera-
phico Patriarcha S. Francisco no Instituto Capucho,
Lisboa, MDCcxxviii, part. 1, liv. v, caps. 18 e 20, pgs. 940
e 941, I 1170.
Pimentel ( Alberto ) — Memoria sobre a historia e
administração do Municipio de Setúbal. Lisboa, 1877,
I vol , pg. 22( e segs.
Portela ( M. M. ) — Ecos do Ermo, versos de...,
Setúbal, 1872. pgs. 127, 169 e 176
Purificação ( Fr. António da ) Crónica dos Eremitas
de Santo Agostinho, 2.* Parte ( i65o), pg. «74.
Rasteiro ( J. ) — artigo intitulado « Os frades meno-
res da Arrábida » em O Recreio, Lisboa, 1896, 21.* série,
pg 67.
— Id. « Notas históricas sobre a Península da Arrá-
bida » no Boletim da Soe. de Geogr. de Lisboa, 8.' série,
pg. 527 ; Noticias archeologicas da Península da Arrá-
bida in — O Archeologo Portugue^, iii, pgs. 1-48.
Rebelo ( Brito ) — Carta de Diogo Bernardes a
António de Castilho ( 1574 ) in — Arch. Hist., i.
Remédios ( Mendes dos ) — Almanach ilustrado « O
Comercio do Lima », coordenado por António de
Magalhães, 1910, (4.° de publicação) pgs. i85-i88
a Fr. Agostinho da Cruz ».
Revista Universal Lisbonense, vol. 4.°, pg. 408, artigo
de R. Gusmão, sem valor.
Silva { Inoc. Francisco da) — Dicc. Bibl, i, i5-i6,
fala do Cod. Marreca, a que na Introdução faço a
devida referência.
Silva ( José Maria da Costa e ) — Ensaio biografico-
critico sobre os melhores poetas portugueses, vol. 11,
pgs, 229-269.
Soriano ( J. da Luz ) — RevelaçÕis da minha vida,
na I.* ed a pg 23.
Southey ( Robert ) — Lettres written during a short
residence in Spain and Portugal, Bristol, 1797. Traz :
Musings afier visiting the Convent of Arrábida, pgs. 476
Bibliografia 451
e 484 — A Letter XXV termina transcrevendo a poesia
de Francisco Manuel :
No baxes temeroso o peregrino. . .
Torresão ( Guiomar D. de Noronha ) — Folhetim
do « Diário de Noiicias » assinado • 3o de setembro
de 1867 », com o título « Digressão á Arrábida. —
Ascensão. — Altar problemático. — Gruta com privi-
legio de álbum — Paguei o tributo. — Salto á Lapa.
— Encontro com a brisida. — A propósito da dita que
transige admiravelmente com o Sado. — Boileau ».
Trata dum passeio ao famoso local. Fecha com uns
medíocres versos feitos pela autora na ocasião desse
passeio, que se realizou a 24 de setembro de 1867.
Vidal Júnior ( G. A. ) — « Uma excursão á Serra da
Arrábida u nos — Annais da Academia dos Estudos
livres, Lisboa, 1902.
índices
I
ÍNDICE DAS POESIAS POR ORDEM
ALFABÉTICA
Pág.
A corte dos celestes moradores 202
Acostumado tinha o sofrimento 1^72
A desigual balança 336
Adonde, mi dulce Dios, cargado 375
Adoro-vos, Senhor Deus escondido 180
A fonte que de seu curso murmurava 2i5
Agora que de todo despedido loi
Alegre venho a ver-te no teu ermo :í23
Alma já tão ditosa entre os ditosos 116
Alta serra deserta, donde vejo 89
Alta sierra [de] riscos encumbrados '411
Amor trouxe a Jesu da gloria á cruz 198
Ancorou-me a velhice no remanso. 229
Andei de mes em mes, de dia em dia i34
Angélicos espirites creados 178
Anjo custodio a quem foi dado 177
Antes de parir 363
Antre as cousas mais formosas i58
Ao alto Deus confesso meus pecados 177
Ao pé deste carvalho áspero e duro 3 14
Aparta-se de vós, desaparece 77
A peregrinação dum pensamento 173
A que vindes, Senhor, do Céo á terra 192
4^4 índices
Páf.
Aqueixava-se Marta de Maria 2o3
Aquelle bom Pastor, que conhecia i5i
Aquelle que caminha desejando 214
Aquelle que na vinha do Senhor 23o
A quem desceo do Geo por nos dar vida 335
Aqui debaixo desta pedra dura 128
Aqui, Deos da minha alma, onde cheguei 335
Aqui neste deserto seco e pobre 3oi
Aqui, Senhora minha, onde soía 4
A saudade d'alma a vós devida 220
A terra feita Ceo, de sol vestida 199
A ti bom Jesu que tanto ofendi 3o8
As cabras que inda guardo nesta Serra 223
Assi como, meu Deus omnipotente 2i3
Assi como vos vejo nessa cruz 194
A' Virgem deu o Anjo a embaixada i83
A vista derramada 270
Cantar pretendo aquelle alto mysterio 233
Claras agoas do nosso doce Lima 1 1 1
Claras agoas nascidas das entranhas 98
Comvosco e dentro em vós, Serra batida 292
Com cordas á columna foi atado 190
Como cisne, que canta na ribeira «04
Como es possible, mi Dios 376
Como estaes, luz sem luz, vida sem vida 193
Como o cervo cansado e ferido 3i i
Como queres que negue a teu esprito i3i
Concluído me tenho a mi comigo 228
Contentamentos meus, que já passastes 232
Cruz, remédio de mis males 38o
Daquela que cantei felices annos • 3o4
Daquele que não tinha inda pisado 4
Daqui, minha Senhora, fui forçado 221
l De do venis, Dios alto ? — dei altura 4o5
Deixei de cantar já, como sohia 298
De lá do vosso eterno firmamento 102
De la planta dei pie a lo mas alto 373
Dentro na minha lapa recolhido 225
Depois que conheci que não podia 84
Depois que não achou na sepultura 12
De que serve, que nresta, que aproveita 218
Desejando escrever-lhe nunca pude 3 19
Despojos tristes dum contentamento 3i6
Deus vos salve sagrada Virgem pia 176
De vos a Dios, Francisco, el pensamiento 409
Dezid, senor, si no teniades animo 4o5
^ Di, contento, adonde estás ? SgS
índices 455
Pág.
Diante do Senhor está lançada 1 1
Divinas mãos, e pés, peito rasgado 3
Divino sangue, que do corpo e lado i8i
Divino sol, en cuya imagen pura 373
Do ceo á terra, Deus omnipotente 187
Do fim de qualquer mal, que me persegue 217
Do Lyma, donde vim já despedido 18
Dos males que passei no povoado 225
Dos males que por mim já tem passado 224
Do meio desta Serra derramando 17
Do mundo desapegado 348
Doce quietação de quem vos ama 9
Dos solitários bosques a verdura 222
Duas cousas receio, duas faço 64
Duro ferro cruel, lança homicida 197
El canto de las aves en la sierra 411
En aquella eterna luz 402
Emquanto se dilata a pescaria 58
Em que parte, ou em que terra 337
Em ti, suave cruz, inda que dura • . 6
Enganos da vida humana 339
En turquesadas nubes y celajes 404
Em um Deus creio só, da terra e Ceo 175
En ningun médio puedo sustentar[me] 396
En sola la miséria de mi vida 385
Entrarei em vossa casa, meu Senhor 179
Era noute de inverno longa e fria 1 3
Es la esperança un mal bien reputado 414
Espera, porque foges, Limabeu ? 80
Essas ruedas de amor que no suspenden 415
Estando o mundo todo em paz composto 189
Este largo martírio de la vida 406
Este mi mal tan estrano 397
Eterno Padre nosso Creador 175
Eterno sacerdote, que hoje alçado 193
Eu tenho para mim seeundo as queixas 5i
Eu vi do ceo na terra a fermosura 85
Fiz conta comigo 365
Fortuna destruio minha esperança 233
Graças, Senhor, vos damos, que quisestes i83
Graças vos dou, Senhor, que da escura 174
Grandes nuevas ; Dios nacido 3^0
Habita n'alma Deus, se nella habita ai i
Hambrienta, rota. inquieta, diigustada 41 3
Insígnia triunfal honrosa e santa 277
Já não digo um dia 36^
Jacinto, já vestido doutras cores ao3
456 índices
Pág.
Junto das bravas agoas Oceanas 1 1 3
Já nesse ethereo assento, Virgem pura i86
Lagrimas que no pudieron SgS
Lançou-se Limabeu antre huns penedos i8
Largos campos do Tejo 117
Lá vos tornaes, Senhor, onde subistes 199
Las tristes lagrimas mias 3g2
Lembranças do meu bem, doces lembranças 23i
Magdalena de amor toda roubada 20t
Mais cedo te buscara se não fora 3o
Meu Deos, nessa columna estaes atado .'.... 191
Mostrai-me, meu Senhor, em que deserto 207
Na derradeira Cêa do Senhor 6
Na ribeira do Lima fui nascido 289
Não passou meu pensamento 345
Nas entranhas da mãi alumiado 5
Nasci e renasci na casa em dia 335
Nasci junto do Lima satldoso i85
No me persigas más, vana esperança 412
No pudieron más subir 401
Nesta Serra 35o
Neste meu remanso 348
No fim da vida humana discursando 217
No meio desta Serra, onde se cria 221
No silencio da noute, em que vigio 226
O' cegos, que buscais na morte a vida 212
Ochenta y seis províncias y conventos 409
Oh ! Clara, que tão clara resplandeces »
Oh ! cruz, que no Calvário sustentaste 7
O' divino banquete, onde foi dada 189
O' Maria 161
O' montes altos, vales abatidos 227
Oh ! Virgem, Mãi de Deos, Senhora minha i5
O meu cordeiro branco que saltava 48
O meu nascimento 162
O tempo que fugindo 121
O' venturosas palhas de Belém 188
O' vós que andaes de achar cá desejosos 23 1
Omnipotente Deos, que o sol creastes 184
Omnipotente Padre, que deixastes 181
Os correos da morte são chegados 229
Os figos que no telhado 343
Os passos, que de dores trespassado igS
Os rios, donde nascem, vão correndo 2i5
Os versos, que cantei importunado i
Oy sangran a nuestro Dios 37 1
Para bien os sea el parto 369
índices 457
Pág.
Pasmem d'alegria 35 1
Passa por este vale a Primavera 2
Passo la vida solo en contemplar-te • . 400
Penas, tormentos, dôr, e fortaleza i3y
Perdido el nombre, dei peccado esclava 410
Perdi-me dentro em mim, como em deserto 171
Perdoai-me, Senhor, que se faltara 10
Pluguiera a vos, mi Dios, que no nasciera 309
Pois que nos ajuntamos nesta praia 33 1
Por longe que vá 160
Pôs Deos da gloria o ceo na mór altura 2o5
Posto que sofra amor apartamento 169
Primeiro que partísseis, filha minha 32i
Pús em tamanha altura o pensamento 170
Qual ave, que do laço vai fugindo ao5
Quando d'ambos os ceos caindo estava 169
Quando na verde planta, ou pedra dura i83
Quando será, Senhor, que desatado 208
Quando verei, meu Deos, chegar-se a hora 211
Quantas vezes cuidei que me apartava 295
Que buscas por aqui, por esta Serra 40
i Que ciega y general idolatria ! 4i3
Que coração tão seco, duro e frio 16
Que cousa mais suave, doce, e branda 2
Que cousa seja amor, não se comprende 171
Que desculpa pode dar 1 1 1
Que forte fortuna sigo 341
Que lingua, que saber, que esryio ou arte 281
Que louvores direi do nosso Santo 14
Que lugar acharei no pensamento 8
Que lugar, tempo, estado ou esperança 168
Que males não queres sentir ? Ouvir 348
Que me fica por ver na mortal vida ... a 223
Que novas me darás do nosso amigo 328
Que queira quem me não quer 342
Que saudade d'alma, e que brandura 14
Que tenho mais no ceo, ou que na terra 207
Quem me dera por lingoa um raio ardente 2i3
Quem me pode apartar de vosso amor 107
Quem muito deseja amar iSg
Quem podesse mostrar o que tem n'alma 219
Quem vos escolheo 363
Quero chorar-me agora aqui cercado 95
Queres ouvir contar hum pescador 70
; Quien me tiene sin honor ? 38i
Quien será aquel cavallero 378
Rodeado nesta Serra 346
5o
458 índices
Pág.
Salid, hijas dichosas de Sion 874
Saudade minha 364
Se amor do Ceo se cria e acha em lagrimas 268
Se bastou só dizer para ser feito 210
Secou-se para mim agoa no rio 85
Se desejo, meu Deos, de vos amar 209
Se destes, meu Senhor, anjo a Tobias 179
Se dos pais e dos filhos me fôr dado 253
Se não posso pregar meu pensamento 191
Se neste apartamento me saltara 107
Senhor, se minhas culpas m'endurecem 92
Senhor, se me esquecera 119
Se Agostinho fora Paulo 343
Se o sacro Evangelista mereceo 200
Seráfico Francisco assinalado 16
Seráfico Francisco, sprito puro 204
Se queres, ó Christão, gozar da gloria 195
Se são vossas delicias, meu Senhor 206
Se sendo, meo Senhor, por vós formado 227
Se tanto penetrou toda a dureza 128
Se tu para tão longe te partias 34
Se vós, meu Senhor, dais consentimento 196
Se vós me não deixais, Senhora minha 219
Se vós quereis. Senhor, a quem vos quer 209
Serpiente de metal, que en el desierto 375
Si acaso, gran Francisco, yo os aliara 408
Si ai curso más veloz tan solo atenden 41 5
Si, que más puede el amor 377
Si sois dei cielo gloria y alegria 407
Si sois tan grande Dios, imenso, eterno 407
Soias de cantar onde pastavas 417
Tal luz á Magdalena alumiava 10
Tamanha foi a dôr, a magoa minha 116
Tanto é o bem, que espero 347
Tempo foi que pastava neste prado 12
Tendo o rei adultero e deshumano 201
Trazes mudada a côr, mudado o rosto 22
Um bosque que de longe apparecia 216
Vai-me gastando amor num pensamento 173
Verdes bosques da Serra. «24
Virgem formosa, que do sol vestida 187
Virgem pura, escolhida, honesta, santa 273
Visão que a Santa Brígida foi feita 265
II
índice das POEblAS POR ORDEM
DA PUBLICAÇÃO NESTE VOLUME
PARTE I
POESIAS DA ED. DE MESQUITA, 1771
[Pag. 1-167]
Pág
Soneto I — A quem lêr i
Soneto II — Ao triste estado a
Soneto m — A' Lei de Deus 2
Soneto IV — As Chagas 3
Soneto V — A' Nossa Senhora da Arrábida 4
Soneto VI — AS João Baptista 4
Soneto VII — Ao mesmo Santo 5
Soneto VIII — AS. João Evangelista 6
Soneto IX — A' Cruz 6
Soneto X — A' mesma 7
Soneto XI — A Santa Clara H
Soneto xii — A Deos 8
Soneto XIII — Da oração 9
Soneto XIV — A Jesus Crucificado 10
Soneto XV — A' Magdalena 10
Soneto xví — A' mesma 11
Soneto xvii — A' mesma indo ao Sepulcro ..... 12
Soneto XVIII — A' mudança da vida 12
Soneto XIX — A' noute de Natal i3
Soneto XX — Ao mesmo 14
Soneto xxí — A Santo António 14
Soneto XXII — A nossa Senhora da Arrábida .... i5
Soneto XXIII — A nosso Padre S. Francisco 16
Soneto XXIV — A' saudade de hum rio , . 16
4^0 índices
• Pág.
Soneto XXV — Da Serra da Arrábida 17
Soneto XXVI — A seu irmão Diogo Bernardes .... 18
Egloga I — A' sua conversão 18
Egloga II — Mincio e Flávio. No ano do Novi-
ciado 22
Egloga III — Silvestre e Rodrigo 3o
Egloga IV — Limabeu e Mincio — Em que se
queixa de hum amigo 84
Eglbga V — Gualbano e Laurindo — Do tempo
que trouxe hum a Religião 40
Egloga VI — Limabeu — A' morte de hum Amigo 48
Egloga VII — Limabeu e Mincio — Da mudança
da Arrábida 5 1
Egloga vni — Limabeu e Lauro — Piscatória. ... 58
Egloga IX — Galapo e Almilão — Da mudança de
pastor em pescador 64
Egloga X — Galapo, Alportuxo, Almilão — Pisca-
tória I — Ao nascimento do Duque D. Jorge de
Lencastre 70
Egloga XI — Almilão. Piscatória 77
Egloga xn — Mincio e Limabeu 80
Soneto de Limiana 84
Epitáfio de Limabeu e Limiana 85
Elegia I — A hua ingratidão 85
Elegia II — Da Arrábida 89
Elegia III — Espiritual 92
Elegia IV — Na tribulação de huma pessoa amiga. 95
Elegia V — Da ingratidão 98
Elegia VI — Estando na Arrábida loi
Elegia MI — Ao fim da vida 1 04
Elegia vui — Da ausência justa conjugal 107
Vilancete — Que desculpa pôde dar n 1
Elegia IX — A' morte de sen irmão Diogo Ber-
nardes Ill
Elegia X — Ao mesmo 1 13
Epigrama — A' morte de hum moço u6
Outro ao mesmo 116
Oda I — Ás mudanças do tempo 117
Oda II — A D. Diogo Lopes de Lima 119
Oda 111 — A Francisco Barreto de Lima 121
Oda IV — Da condição da vida humana 124
Epitáfio 128
Carta i — Em resposta á de seu irmão Diogo Ber-
nardes 1 28
Carta ii — A Dona Branca i3i
Carta lu — A Francisco Barreto de Lima estando
preso k 134
índices 461
Pig.
[ Poema (i) sobre o ] Martírio e vida de Santa
Catharina 1 87
[ Poema (11) ] Sobre o « Flevit amare » i5 1
Mote — ' « Antre as cousas mais fermosas • i58
Mote — a Quem muito deseja amar » i59
Voltas — A Tra-los-Montes 160
Redonddhas — A Nossa Senhora 161
Endechas 1 òi
Ao Nascimento de Nosso Senhor 166
PARTE II
POESIAS DO "COD. CONIMBRICENSE"
[ Pag. 168-368 ]
Soneto I 1 68
Soneto 11 — A uma absencia 169
Soneto iti — Ás lagrimas duma despedida 169
Soneto IV 1 70
Soneto V 1 7 1
Soneto VI 171
Soneto vil 172
Soneto VIII 1 73
Soneto IX 1 73
Soneto X — Ao levantar da cama 174
Soneto XI — A' protestação da Fé 173
Soneto xu — Ao Padre Nosso 175
Soneto XIII — A' Ave-Maria 176
Soneto XIV — A' Confissão Geral 177
Soneto XV — Ao Anjo Custodio ■. . . . 177
Soneto XVI — A todos os Santos 178
Soneto XVII — Ao sair de Casa ijg
Soneto xviii — Ao entrar na Igreja 179
Soneto XIX — Ao levantar da Hóstia 180
Soneto XX — Ao levantar do Cálix. ..." 181
Soneto XXI — Ao estar á Missa 181
Soneto xxii — A' benção da Mesa 182
Soneto xxiH — Ás graças depois da Mesa iSS
Soneto XXIV — Ao tanger das Ave-Marias i83
Soneto XXV — Ao recolher á noute para dormir . 184
Soneto XXVI — A' Duquesa d' Aveiro i83
4^2 índices
Pág.
Soneto xxvíi — Chora o vicioso emprego da sua
vã mocidade i85
Soneto xxviii — A' Imaculada Conceição de Nossa
Senhora i86
Soneto XXIX — A' mesma 187
Soneto XXX — A.' Encarnação 187
Soneto XXXI — Ás palhas do presépio de Belém. . 188
Soneto XXXII — Ao nascimento, paixão e ascensão i8q
Soneto XXXIII — A Quinta-Feira da Cêa do Senhor 189
Soneto xxxiv — Quae non rapui, tunc exsolvebam 190
Soneto XXXV — A Christo preso á columna 191
Soneto xxxvi — Ao mesmo 191
Soneto xxxvii — A coroa de espinhos 192
Soneto xxxviii — A Christo na Cruz ig3
Soneto XXXIX — Ao mesmo 193
Soneto XL — Ao mesmo 194
Soneto XLi — A' Paixão 19I)
Soneto xLii — Ao mesmo igS
Soneto XLiii — Ao mesmo igó
Soneto XLiv — Ao ferro da lança, que abrio o lado
de Christo 197
Soneto XLv — A' firmeza do Amor 197
Soneto XLVi — A' Cruz 198
Soneto XLVii — A Ascensão 199
Soneto XLviii — A' Assumpção de Nossa Senhora 199
Soneto XLix — A Santo António 200
Soneto L — A' degolaçao do Baptista 201
Soneto L[ — A' ida de Magdalena ao sepulcro . . . 201
Soneto LH — A' sua morte 202
Soneto Liii — Ás SS Marta e Maria 2o3
Soneto Liv — AS. Jacintho 2o3
Soneto Lv — A S Francisco 204
Soneto Lvi — A' entrada de Madre Soror Mecia
na Madre de Deus 2o5
Soneto Lvn — A' mesma 2o5
Soneto Lviii — Delitias meae esse cum filiis hominum 206
Soneto Lix — Quid enim mihi est in coelo ? 207
Soneto Lx — A Nosso Senhor 207
Soneto LXi — Ao mesmo 208
Soneto LXd — Ao mesmo 209
Soneto Lxiii — Ao mesmo 209
Soneto Lxiv — Ipse dixit, et facta sunt 210
Soneto Lxv — Deus caritas est 211
Soneto Lxvr — Satiabor cum apparuerit gloria tua 211
Soneto Lxvii — Prasterit figura hujus mundi ..... 212
Soneto XLviii — Voto de ardente amor divino ... 2i3
Soneto LXix — Da oração 2 1 3
índices 463
Pág.
Soneto Lxx — Ao mesmo 214
Soneto Lxxi — Omnia ilumina intrant in maré ... 2i5
Soneto LxxH — Gutta cavat lapidem. Ao efFeito
da perseverança 2 1 5
Soneto Lxxni — Quanto importa um bom desejo. 216
Soneto Lxxiv — Finis cujusque mali principium
est futuri 217
Soneto Lxxv — A' temperança 217
Soneto Lxxvi — A' vaidade humana 218
Soneto Lxxvii — A' dignidade da alma e vaidade
da vida 219
Soneto Lxxviii — A* Senhora da Memoria na au-
sência de Fr. Diogo dos Innocentes 219
Soneto Lxxix — A' mesma e ao mesmo respeito . 220
Soneto Lxxx — A' mesma e ao mesmo respeito . . 221
Soneto Lxxxi — Na Serra da Arrábida 221
Soneto Lxxxii — Da contemplação na mesma .... 222
Soneto Lxxxiii — Da perseverança na penitencia,
na mesma 223
Soneto Lxxxiv — Da experiência 223
Soneto Lxxxv — Ao mesmo 224
Soneto Lxxxvi — Da quietação 225
Soneto Lxxxvii — Ao mesmo 225
Soneto Lxxxvm — Ao mesmo 226
Soneto Lxxxix — Ao pecado original 227
Soneto xc — Chora os desvarios da sua desapro-
veitada mocidade 227
Soneto x<:i — Da emenda 229
Soneto xcii — A' sua inalterável confiança em
Deos 229
Soneto xciii — A' morte 229
Soneto xciv 23o
Soneto xcv 33 1
Soneto xn VI 23 1
Soneto xcvn 232
Oitavas 233
[ Poema em ] Tercetos em louvor da Imaculada
Conceição da Virgem Nossa Senhora 233
[ Poenia em ] Oitavas — Vida e morte de S. Eus-
tachio, molher e filhos 253
[ Poema da ] Visão de Santa Brígida 265
Beati qui lugent 268
Ode — Aos desenganos 270
Canção a Nossa Senhora 273
Ode — Hymno á Cruz 277
Elegia — A' Quinta- feira da Cea do Senhor 281
Elegia 289
464 índices
Pág.
Elegia da Arrábida 292
Elegia [ A' Arrábida ] 295
Elegia 298
Elegia penitencial 3oi
Elegia — A D. Mariana, filha do Duque de Aveiro,
incitando-a e animando-a a ser religiosa 3o4
Elegia — A Jesus na Cruz 3o8
Elegia — Ao divino amor 3i i
Ao Sepulcro da Esperança 3i4
A' morte de hum contentamento 3 16
Carta que o Autor escreveo á Duquesa de Aveiro
antes de ir para o Ermo 319
Carta que compôs á Duquesa de Aveiro á absen-
cia da Madre Soror Mariana sua filha 32i
Egloga — Almilão e Galapo 323
Egloga — Laurino e Fontano 32S
Egloga — Almilão e Galapo 33 1
Epigramma — A' Paixão 335
Epigramma • 335
Epigramma 335
Acerca do tempo 336
Vilancete — A' desculpa de pescar e fazer bordões 337
Mote — « Enganos da vida humana » — . SSg
Mote — « Que forte fortuna sigo » 341
Mote — « Que queira quem me não quer » 342
Mote — «Se Agostinho fora Paulo » 343
Mote — n Não passou meu pensamento » — Re-
posta a Soror Mariana, filha do Duque de Aveiro 345
Mote •:— n Rodeado nesta Serra » 346
Mote — « Tanto é o bem, que espero » 347
Mote — » Neste meo remanso » 348
Mote — «Do mundo desapegado » 348
Ecos 348
Redondilha a Nossa Senhora 35o
Chansonetas ao Nascimento de Nosso Senhor. ... 35 1
Mote a Nossa Senhora « Antes de parir » 363
Mote « Saudade minha ■ 364
Endechas 365
Outras 367
índices 465
PARTE III
POESIAS DO " COO. PORTUENSE "
[Pag 369-416]
Pag.
Mote — « Para bien os sea el parto ■ — A' Virgem
Maria 369
Mote — « Grandes nuevas ; Dios nacido • 370
Mote — o Oy sangran a nuestro Dios » — A la
circuncezion 371
CMtavas i — A Christo no Horto 373
Oitavas II — A Christo azoutado 373
Oitavas III — A Christo coroado 374
Oitavas IV — A Christo com a cruz nas costas . . . 375
Oitavas V — A Christo crucificado 3jb
Mote — « Como es possible, mi Dios » 376
Dialogo entre Pecador e XRisto 377
Romance — Ao Seráfico Padre São Francisco . . . 378
Mote — « Cruz, remédio de mis males • 38o
Ecos 38i
Mote — « En sola la miséria de mi vida » 383
Cancion a la muerte 387
Mote — o Las tristes lagrimas mias » 392
Mote — « Lagrimas que no pudieron » SgS
Mote — « A El Rei Phelippe o Segundo • 3g5
Mote — « En ninguno medio puedo sustentar[me] 396
Mote — « Este mi maio tan estrano » 397
Mote — • Pluguiera a vos, mi Dios, que no nas-
ciera » 399
Mote — « Passo la vida solo en contemplar-te » . 400
Mote — «No pudieron más subir » 401
Outra glosa ao mesmo Mote 402
Soneto I — A' Assunção de Nossa Senhora » 404
Soneto II — Ao Advento de Christo 4o5
Soneto iii — A Christo no Horto 40>
Soneto IV — A Christo crucificado 406
Soneto V — Ao Menino no presépio 407
Soneto VI — Ao mesmo 407
Soneto vn — A São Francisco 408
Soneto VIU — Ao mesmo 409
Soneto IX — A' Ordem de S. Francisco 409
3i
466 índices
Pág.
Soneto X — A Santa Maria Magdalena 410
Soneto XI — Aos nrjoradores de Arrábida 411
Soneto XII 4 "
Soneto XIII 412
Soneto XIV — A honra do mundo 4i3
Soneto XV — Em vitupério da pobreza 4' 3
Soneto XVI 414
Soneto XVII 4' -^
Soneto xvni 4' 5
PARTE IV
CXIV
POESIA DO CANCIONEIRO DE ÉVORA
22
Ègloga — Mincio e Limabeu l 417
LISTA DAS PRINCIPAIS
ERRATAS
Pág.
Erro
Emenda
3 verso
7
satisfeito
satisfeita
7
»
8
si
ti
7
u
20
resgatada
resgatado
9
»
12
serviços
servir-vos
1 1
»
23
mais, que
mais quem
46
»
24
futis
sutis
63
»
23
carga
larga
7»
1>
23
sesta
festa
122
»
3o
sofre
sobre
i33
»
24
desejo
deserto
176
»
3
grão
pão
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»
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eslava
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murmurava
murmura
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renova
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268
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20
rosto
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lungent
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274
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mosta
mostra
275
281
D
20
passos
paços
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de toda
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25
forte
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quer
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haya
laga
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a
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aura
avrá
394
'•
3i
gutos
gustos
MENDES DOS REMÉDIOS
<^
História da Literatura Portuguesa desde as origens até á actua-
iidade, 4.» ed., i vol. brochado, iííf>5oo. Cartonado... ií{í>6oo
Introdução á História da Literatura Portuguesa, 3.» edição, muito
melhorada ^^^
Subsidios para o estudo da História da Literatura Portuguesa :
«^, I. _ Fidalgo Aprendiz, de D. PVancisco Manuel de Mello,.
2.» edição 3oo
II. — Poesias inéditas de D. Thomás de Noronha, poeta saty-
rico do século xvii .' 3oo
III. — Lusíadas ( ?.• ed. anotada, para as escolas), bro-
chado, 5oo. Cartonado 6úO
IV. — Foguetario (poema heroi-comico ), de Pedro de Aze-
vedo Tojal 3oo
V, — Vida do Grande D. Quixote de La Mancha e do gordo
Sancho Pança ( opera jocosa ), de António José da
Silva 3oo
VI. — Guerras do Alecrim e Mangerona ( opera joco-seria ),
de António José da Silva 200
VII. — Sentenças de D. Francisco de Portugal, i.° Conde òe
Vimioso, seguidas das suas poesias, publicadas no
« Cancioneiro de Garcia de Rezende » 3oo
VIII a X. — Consolaçam ás Tribulaçoens de Israel, por Samuel
Usque, 3 vòls ^oí»
r^XI, XV e XVII. — Obras de Gil Vicente, ( completas ), 3 vols. i ^ Soo
™-Xn. — Memorias de José da Cunha Brochado 2J0
XIII. — Chronica do Infante Santo D. Fernando 400
XIV. — Chronica do Condestabre de Portugal Dom Nuno Alvarez
Pereira ^o"
XVI, — Escritoras doutros tempos 40<*
XVIII. — A Castro, de António Ferreira 400
'XIX. — Miscellanea, de Garcia de Resende... 5oo
XX. — A Castro, de Domingos dos Reis Quita 400
XXL — Obras de Fr. Agostinho da Cruz.
Filosofia elementar, 2.» edição refundida, 1916, \ vol. broch. i íí>700
Os Judeus em Portugal, i vol. broch ií{í)000
Os Judeus Portugueses em Amsterdam, i vol. broch 700
Sousa Martins e a Serra da Estreita, ( Exgotado ).
Cartas inéditas de El-Ret D. Pedro V, ( Exgotado).
Uv^a Bíblia hebraica da Biblioiheca da Universidade de Comíbra,
': 'clh. iKxgotado ).
AíútJas romanas da Bibliotheca da Universidade de Coimbra
( ensaio de catalogo ) • •. .• • ^<^
As Horas do Nossa Senhora da Bibliotheca da Universidade de
Coimbra, 1 ío!h. (Exgotado).
Philomena de S. Boaventura • • 200
Carta exhortatona aos Padres da Companhia de Jesus .... 200
PQ
9191
H
1918
Agostinho da Cruz, Brother
Obras
I
1
UNIVERSITY OF TORONTO LIBRARY